quarta-feira, 24 de junho de 2015

{clube-do-e-livro} LIVRO ÉRAMOS SEIS - MARIA JOSÉ DUPRÊ - SUBSTITUA O ANEXO ANTERIOR

Éramos Seis

Maria José Dupré

Coleção Vaga
lume

Coordenação da Série: Fernando Paixão
I
lustrações: Terezinha Bissoto
Capa: "Lay out" d
e Ary Almeida Normanha

ISBN 85 08 00100 2


1993

Todos os direitos reservados pela Editor
a Ática S A.
R. Barão de Iguape, 110 - Tel.: PA
BX278-9322
C. Postal 8656 - End. Telegráfico "B
omhvro - São Paulo

QUEM É A AUTORA
Maria Jos
é Dupré nasceu em 1905, na Fazenda Bela Vista, m
unicípio de Botucatu, próxima da divisa entre Sã
o Paulo e Paraná.
Aprendeu as primeiras letras
com sua mãe e seu irmão, e em Botucatu estudou M
úsica e Pintura. Transferiu-se para São Paulo, o
nde se formou professora pela Escola
Normal Cae
tano de Campos. Iniciou-se na Literatura depois
de se casar com o engenheiro Leandro Dupré.
Seu
primeiro romance — O Romance de Teresa Bernard
— foi publicado em 1941. Mas o que a tornou famo
sa foi Éramos Seis, editado em 1943, traduzido p
ara o espanhol,
francês e sueco e transformado
em filme pelo cinema argentino.
Entre os divers
os prémios que conquistou, destacam-se: Prémio R
aul Pompéia, da Academia Brasileira de Letras e
o Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.
Falece
u em São Paulo, em maio de 1984.

ÓBRAS DA AUT
ORA:
Romances:
Gina
Os Caminhos
A Casa do Úd
io
Angélica
Dona Lola
Éramos Seis
Luz e Somb
ra
Menina Isabel
O Romance de Teresa Bernard

Os Rodriguez
Vila Soledade
Livros infantis:
A
Mina de Ouro
O Cachorrinho Samba na Bahia
A I
lha Perdida
Aventuras de Vera Lúcia,
Pingo e P
ipoca
O Cachorrinho Samba
A Montanha Encantada

O Cachorrinho Samba na Floresta
O Cachorrinho
Samba na Rússia
O Cachorrinho Samba entre os í
ndios
O Cachorrinho Samba na Fazenda Maristela



INDA ontem passei por lá; a manhã estava muit
o clara, radiosa, dessas alegres manhãs de verão
, quentes de sol e de vida.
Havia no ar uma lum
inosidade surpreendente e o zumbido dos insetos,
o canto dos pássaros e o riso das crianças ench
iam o espaço; por toda a parte reinava a luz,
a
alegria, o desejo de viver, de ser feliz, de se
r bom. As árvores pareciam paradas, quase imóvei
s; mas observando bem, podia-se perceber um suss
urro de brisa entre
as folhas como a contarem s
egredinhos umas às outras, na transparência lumi
nosa da manhã.
Passando pela Praça Buenos Aires
, vi um grupo de crianças brincando e correndo;
seus gritos repercutiam em meus ouvidos como eco
s de coisas mortas, remanescentes
de um passado
há muito tempo desaparecido. Lembrei-me então d
o meu sonho; durante a noite inteira eu havia so
nhado que ainda morávamos lá e meus filhos eram
pequenos;
no sonho ouvi chamarem várias vezes:
Mamãe! Mamãe!
Mal a claridade do dia passou atr
avés das tabuinhas das venezianas, eu me vesti e
saí; tomei o bonde para passar na "nossa casa";
digo "nossa" por hábito porque
há muitos anos
já que a deixamos e nem sei quem mora lá. Desci
do bonde umas quadras antes para passar a pá dia
nte dela e vagarosamente fui subindo a Avenida A
ngélica,
tão familiar e amiga, onde residimos d
urante tantos anos!
Esse quarteirão não mudou m
uito; um ou outro prédio novo e por toda a parte
as mesmas árvores e até, pode-se dizer, os mesm
os pássaros cantando em seus galhos. Vi
uma das
árvores com um galho retorcido, tal e qual a vi
sempre. Diante da casa, parei um pouco para ver
melhor; lá estava ela com as duas janelas de fr
ente e o portãozinho
de ferro, o jardim de quat
ro metros, como chamávamos, e a trepadeira roxa
plantada por Júlio há tanto, tanto tempo.
O jar
dim era insignificante e pequeno, mas para nós e
ra encantador com algumas roseiras e um canteiro
de cravos; havia cravos brancos, vermelhos e ou
tros quase roxos.
Quando um cravo começava a se
abrir, as crianças iam espiar a todo o momento
para adivinhar de que cor seria; e vinham me con
tar:
— Mamãe, é branco!
— Não é, mamãe. É verm
elho!
E às vezes discutiam por causa dos cravos
.
Olhei as janelas e meu olhar passou através d
elas e se alongou pelo interior; revi então noss
a vida, todos os longos anos da nossa mocidade.
Sorri ao ver os degraus
da entrada; eram de cim
ento, estavam gastos e escuros, mas me lembro tã
o bem do tombo que Carlos levou uma vez que entr
ou correndo, caiu e fez um "galo" na testa.
Dur
ante muitos dias Carlos chorou e brigou com os i
rmãos porque olhavam para ele e gritavam: có có
ró có, por causa do "galo".
#As duas janelas da
frente eram do escritório e vi dentro dele a es
crivaninha grande onde eles estudavam; sobre a e
scrivaninha, eu colocava sempre um mata-borrão

verde preso com quatro tachinhas. Não durava mui
to tempo porque as crianças iam tirando os pedac
inhos do mata-borrão conforme precisavam e logo
eu tinha que atirar
fora o velho, todo rasgado
e sujo de tinta e colocar outro novo. Ao lado, n
uma parede, havia uma estante com livros; havia
também duas cadeiras, e um tapetinho feito
de m
eias velhas por minha irmã Clotilde.
Passei pel
o pequeno vestíbulo, onde havia uma chapeleira e
entrei na sala de jantar. Era uma sala grande e
de um lado havia um recanto com um sofjí, duas
poltronas
e uma cadeira de balanço, tudo cobert
o com brim pardo, por causa das crianças; nesse
lugar eu passava o dia, recebia minhas visitas e
fazia tricô para ganhar algum
dinheiro. Havia
um espelho num dos móveis da sala de jantar e to
das as vezes que minha filha Isabel passava dian
te dele, ela se inclinava um pouco e dava um jei
to
para se olhar e arranjar os cabelos. Eu acha
va-a vaidosa, mas também era tão bonita quando e
ra mocinha!
Passei pelo corredor, para onde dav
am nossos quartos e entrei na copa; vi então Isa
bel com três anos, os cabelos castanhos presos p
or uma fita vermelha, sentada
à volta da mesa p
equena, batendo a colher no prato, sem vontade d
e comer. Eu dizia: Coma, filhinha, olhe como est
á gostoso Eu fingia que comia um pouquinho, mast
igando
ruidosamente. Ela ria mostrando a fileir
a de dentes iguais e batia a colher no prato com
toda a força, gritando: Num quelo come! Num que
lo!
Julinho que já tinha cinco anos, comia tudo
o que estava no prato e às vezes ainda pedia ma
is.
Eu os levava depois para o quarto e vestia-
lhes as camisolas brancas; Isabel só queria cami
sola com rendas na gola e começava a choramingar
quando não havia renda
e tinha que vestir outr
a com ponto russo vermelho na frente e nos punho
s. Eu ficava admirada porque ela era muito crian
ça e sabia escolher o que era bonito. Eu dizia:


Agora vamos rezar. Eles se ajoelhavam então aos
pés da minha cama e pondo as mãos, diziam junto
s, olhando para o teto:
— Coração de Jesus, tes
ouro de bondade, de nós, pecadores, tende
pieda
de. Protegei papai, mamãe, meus irmãos, eu e tod
a a nossa família.
Nunca me esquecerei de Julin
ho que disse um dia: "Coração de
Jesus, tesouro
de bondade. Mamãe, tem teia de aranha naquele c
anto
da janela. Veja. De nós, pecadores, tende
piedade".
Vendo-os assim piedosos, de camisolas
brancas, os cabelos soltos de Isabel em ondas b
rilhantes pelos ombros, Julinho com os olhos pre
tos muito grandes, comparava-os
a anjos. Depois
cada um ia para sua caminha; Julinho dormia sem
pre com o cavalo de borracha que o padrinho tinh
a dado. Às vezes, já estava na cama quando lembr
ava
e gritava: Meu cavalinho! E saía correndo à
procura do brinquedo, a camisola branca entufad
a pelo vento. Uma noite procuramos pela casa tod
a e ele já estava desesperado
quando Durvalina,
a criada, encontrou o cavalo sob o sofá da sala
de jantar; então ele correu para a cama e abraç
ando o cavalinho, dormiu imediatamente. Era o ún
ico
brinquedo de Julinho.
Antes de deixar o q
uarto, eu me debruçava para cobri-los e beijá-lo
s e eles passavam os braços à volta do meu pesco
ço e me beijavam, às
vezes com os olhinhos amor
tecidos pelo sono; e eu me enternecia tanto quan
do diziam: Boa noite, mamãezinha.
Mas eram meus
, verdadeiramente meus naquele tempo e, apesar d
e darem trabalho, pois quatro filhos dão muito q
ue pensar para quem tem pouco dinheiro, eu me se
ntia
feliz, muito feliz. E nunca me esqueço do
que me disse uma senhora que tinha três filhos m
oços: "que saudades eu tenho do tempo em que ele
s eram pequenos, eram tão
meus".
Tudo isso me
passou pela imaginação num relance enquanto olha
va nossa casa batida de sol; um cheiro de flores
chegou ao meu nariz; aspirei com satisfação por
que
devia ser das nossas flores; era um cheiro
de orvalho também, orvalho das manhãs de verão.
Fui tomar o bonde para voltar, não podia ficar a
li olhando o dia inteiro.
Enquanto ia andando,
descendo a Avenida Angélica, comecei a lembrar q
ue os meus também foram embora, a vida levou-os
e se espalharam pelo mundo, menos Carlos que

não existe.
Esse eu visito sempre; está deitad
o no cemitério São Paulo, dormindo sossegado ent
re quatro roseiras que florescem todos os anos,
em setembro. São rosas brancas,
bem grandes, da
s que ele mais gostava. Carlos eu sei que está b
em, os outros não sei onde andam.
Estão aí, pel
o mundo.
Quanta saudade eu tenho desse tempo da
Avenida Angélica, quando meus filhos eram crian
ças e vivíamos todos juntinhos com Júlio, meu ma
rido, como passarinhos em gaiola.
Os dois mais
velhos tinham sete e nove anos quando nos mudamo
s para lá e não me davam muito trabalho. Eram fo
rtes e sadios. Alfredo e Carlos já se vestiam so
zinhos
e estavam estudando na escola particular
de D. Benedita, próxima à nossa casa. Carlos er
a o mais velho e estava no terceiro ano da escol
a; Alfredo no segundo.
Depois que punha na cama
os dois menores, eu ficava sentada na poltrona
da sala de jantar esperando Júlio; ele vinha jan
tar sempre entre seis e meia e sete horas,
mas
quando passava das sete e ele não aparecia, eu f
icava aflita porque o imaginava numa confeitaria
, bebendo com os amigos. Com certeza voltaria em
briagado para
casa. Nunca me enganei, infelizme
nte.
Quando na porta, ele dizia: Boa noite! e p
unha o chapéu na chapeleira, eu já sabia se ele
estava bom ou não. Era horrível quando vinha um
pouco "tocado", passava
pisando duro pela sala
e ia para o quarto tirar o paletó e pôr um de pi
jama. Depois lavava as mãos e sentava na mesa pa
ra jantar; os dois meninos mais velhos comiam
n
a mesa conosco e tinham medo do pai nesses dias.
Começávamos a tomar a sopa em silêncio; de repe
nte o pai olhava para Carlos, sentado na frente
dele e falava:
— Onde se viu tomar sopa desse j
eito? Não aprende? Parece cachorrinho.
"Pronto,
começou". Eu pensava. O menino baixava a cabeça
sobre o prato, evitando olhar o pai. Ninguém fa
lava e eu ficava um pouco assustada com o silênc
io. Durvalina
começava a tirar os pratos de sop
a e para disfarçar, eu perguntava:
#— Teve um d
ia muito atribulado, Júlio? Ah! Meu Deus! Por qu
e eu falava? Júlio ficava vermelho e respondia:


— Naturalmente. Tenho algum dia que não seja at
ribulado? Eu? Diga!
Batia a mão no peito, olhan
do para mim e repetindo:
— Eu? Eu sou um burro
de carga para trabalhar. Burro de carga! Trabalh
o doze horas por dia e depois me perguntam se ti
ve um dia muito atribulado. Essa é boa!
Ria alt
o, sem vontade. Sem querer, eu olhava para ele;
estava com os olhos avermelhados, pareciam injet
ados e a fisionomia carregada.
Eu fazia os prat
os dos meninos que comiam em silêncio, as cabeça
s baixas sobre a mesa. Júlio punha pimenta todos
os dias na comida; um dia eu disse:
— Não coma
pimenta hoje, Júlio. Pode fazer mal. Imediatame
nte me arrependi de ter falado; a fisionomia del
e ficou
mais carregada e gritou, impaciente:

Não posso comer o que eu quero? Será que na min
ha casa, não tenho liberdade? Na minha casa? Por
que não hei de comer? Pensa que estou bêbedo? H
ein?
Não respondi e continuei a servir as crian
ças; irritado talvez com minha atitude, continuo
u furioso:
— Diga uma coisa, quem é que manda a
qui? Serei eu ou você? Vamos, diga.
Continuei c
alada; ele gritou mais:
— Diga quem manda nesta
casa? Quem é que paga tudo? Hein? Por que não f
ala? Chego exausto do serviço, sento na mesa par
a jantar e ela vem me dizer que não
devo comer
isto ou aquilo. Fique sabendo que como o que que
ro e ninguém tem nada com isso. Ouviu? Ninguém!


E pondo bastante molho de pimenta no feijão, co
meu furiosamente. As crianças olhavam para mim e
baixavam a cabeça outra vez, timidamente, com m
edo do pai. De súbito,
ele tornou a olhar o fil
ho na frente dele e perguntou:
— Que nota tirou
hoje?
Percebi a palidez do menino; encorajei-o
com o olhar como se dissesse: "Fale, meu filho.
Estou aqui".
O menino olhou para o pai, um olh
ar medroso:
— Hoje tirei cinco.
— E por quê? I
sso é nota? Por que não tirou dez? ao menos nove
?
Carlos procurava sorrir, contrafeito:
— Erre
i um problema, papai, e na História do Brasil...
O pai interrompeu, indignado, imitando a voz de
Carlos:
— "Errei um problema, papai". Ele fala
como se isso fosse muito natural. E ainda ri co
m esses dentes de cavalo. Eu se fosse você não r
ia, ouviu? Não sei quem
você puxou, tem dentes
de cavalo. E repito que quero nota dez todos os
dias. Entendeu? Ouviu?
Carlos continuava a mast
igar de cabeça baixa, humilhado, sem dizer nada.
Vendo que ninguém falava, Júlio serviu-se de ca
rne assada com salada e despejou mais molho
de
pimenta no prato. De repente olhou
Alfredo que
tinha acabado de comer e fazia bolinhas com miol
o de pão. Perguntou:
— Já comeu carne com salad
a?
Alfredo levantou os olhos medrosos para o pa
i e hesitou, respondendo:
— Não gosto de salada
de alface.
Júlio sorriu triunfante como se tiv
esse encontrado uma boa razão para impor sua tir
ania. Olhava à volta da mesa e falava pausadamen
te fixando os filhos:
— Aqui não tem gosta ou n
ão gosta. Coma salada de alface. Alfredo olhou r
apidamente para mim como a pedir auxílio. Procur
ei intervir, suavemente:
— Por que forçar a cri
ança a comer o que não gosta, Júlio? Pode até fa
zer mal.
— Fazer mal? Mal o quê! Quando eu era
criança, comia tudo o que vinha à mesa, nunca ti
ve esse luxo de escolher comida; agora esses men
inos são uns "não-me-toques",
gosto disso, não
gosto daquilo. Não senhor. Na minha casa não tem
nada disso. (Olhava furioso para mim):
— E voc
ê é culpada, dá muitos mimos, muitos carinhos. O
que vão ser depois de grandes? Uns inúteis! Uns
vagabundos!
E como via que eu não fazia um ges
to para pôr alface no prato do menino, gritou, c
olérico, para Durvalina:
— Ponha alface no prat
o de Alfredo, Durvalina.
Olhei Alfredo; seus ol
hos lançavam chispas para o pai quando este não
estava observando-o; pareciam chispas de ódio. C
om os lábios trêmulos começou a mastigar as
fol
has de alface, sem dizer nada.
Durvalina levou
os pratos para a cozinha e trouxe goiabada; cont
inuamos a comer sem falar. De repente, Carlos be
beu uns goles de água. O pai falou, irritado:

Não quero que beba muita água na comida; quanta
s vezes já disse a mesma coisa?
O menino procur
ou uma desculpa:
— É o primeiro copo que estou
bebendo, papai.
— Mas não quero que beba, acabo
u-se.
Carlos depositou o copo na mesa e ficou d
e cabeça baixa, carrancudo. O pai tornou a falar
:
— E nada de carrancas comigo, hein? Depois vi
rou-se para mim:
— Recebeu o dinheiro da encome
nda? Fitei-o discretamente:
— Da encomenda? Ah!
sim. Não recebi ainda; mandaram dizer que pagar
ão no princípio do mês que vem.
Júlio exultou:


— Eu não disse? Eu não digo sempre que rico não
gosta de pagar? São sempre os últimos a pagar a
s contas. Eu disse a você que não aceitasse a en
comenda da
tia rica. Por que aceitou?
Comeu um
último pedaço de goiabada:
— Lá na loja também
é assim; quando mandamos a conta para os ricos,
já sabemos que vamos custar a receber. São uns
miseráveis; relutam, adiam o mais que podem
o m
omento de pagar e quando mandamos um empregado r
eceber, ou não têm troco na ocasião, ou não estã
o em casa. Nunca têm troco e nunca estão em casa
.
#E batendo a mão na mesa com força, bradou, i
ndignado:
— Banidos! Procure} acalmá-lo:
— Mas
o fim do mês está próximo, Júlio, e eu não esto
u precisando de dinheiro agora.
Ele riu alto ir
onicamente.
— E você acredita que eles vão paga
r no princípio do mês que vem, como disseram? Ah
! Ah! Ah! Não seja idiota. Não pagam nem no outr
o" mês. Eu avisei que
não aceitasse o trabalho;
são todos uns caloteiros. Precisa mandar recebe
r muitas vezes para um dia resolverem a pagar.

Mudou de tom:
— Afinal onde está esse café? Vem
ou não vem?
Durvalina apressava-se a trazer o
café; ele começava a bebê-lo em goles grandes, a
pressadamente. Os meninos me olhavam esperando o
momento de levantarem da mesa.
Falei com calma
:
— Podem ir brincar um pouco na calçada.
Era
sempre assim. Carlos e Alfredo deixavam a sala e
iam brincar com os filhos da vizinha; eu ajudav
a Durvalina a tirar a mesa, enquanto Júlio senta
va-se na cadeira
de balanço e pondo os pés no s
ofá em frente, pedia o jornal e o cachimbo.
Lan
çando para o ar grandes baforadas de fumaça, ele
começava a ler o jornal da noite: eu abria a ga
veta de um móvel da sala, onde guardava o tricô
envolvido num
guardanapo, e sentando-me ao lado
dele, começava a trabalhar; era uma encomenda p
ara uma criancinha que ia nascer. Tudo ficava em
silêncio; só se ouvia o barulho
dos pratos na
cozinha e o barulho dos bondes que subiam a Aven
ida de vez em quando.
Eu pensava com alívio que
o mau humor de Júlio ia passando e suspirando,
baixava a cabeça sobre meu trabalho.
As dez hor
as fechávamos a casa e íamos deitar; eu virava n
a cama, sem sono. Uma vez levei um susto lembran
do da carta recebida dois dias antes. Minhas irm
ãs haviam
escrito de Itapetininga perguntando s
e poderiam vir passar as férias em nossa casa. D
e que forma eu poderia contar isso a Júlio? Ele
detestava hóspedes.
E eu tinha pena das minhas
irmãs que levavam no interior uma vidinha triste
, trabalhando pesadamente; a mais moça, Olga, er
a professora e a outra, a mais velha,
ajudava m
amãe a fazer doces para vender. Sorri pensando n
elas; Clotilde estava acabada, passava dos trint
a anos e não pensava em se casar. Trabalhando, t
rabalhando,
mexendo o grande tacho de goiabada,
um pano amarrado na cabeça, as mãos calosas e g
rossas. Se não era goiabada, era marmelada, se n
ão era marmelada, era sabão. Faziam
tudo em cas
a. Mamãe gritando do fundo do quintal:
— Clotil
de! Estão batendo!
Clotilde largava o serviço.
Um menino perguntava da porta:
— Tem goiabada p
ra vender?
— Tem.
— Quanto vende o quilo?
— C
inco mil-réis.
— Minha mãe manda buscar dois qu
ilos bem pesados. Clotilde arrastando as chinela
s pláf, pláf, pláf, ia para o quarto dos doces,
pegava os dois quilos de goiabada,
embrulhava,
entregava na porta para o menino. Depois voltava
ao quintal, à sombra da mangueira e com a grand
e colher de pau, mexia o tacho, o calor no rosto
, a testa
suada. Cinco horas. Olga, a mais moça
, voltando da Escola Isolada do Tanquinho, onde
lecionava, sentando na salinha, estendendo as pe
rnas. Suspirando:
— Ai que calor! Que canseira!
Clotilde falando com ironia:
— Canseira? Você
não sabe o que é canseira, menina. E não sabe o
que é calor. Queria ver você aqui o dia inteiro
trabalhando no duro, com este calor do forno
na
cara, o dia inteiro. ..
— É? E pensa que agüen
tar quarenta crianças malcriadas é brincadeira?
A gente fica esgotada, estragada para o resto da
vida. Isso é que é.
Clotilde fazia um gesto de
pouco caso e não respondia. A tarde caindo lent
amente, uma tarde quente de novembro, sufocante.

À noite, Olga na janela da sala esperando o Ze
ca passar. Zeca era o namorado firme, desde o te
mpo de meninos; trabalhava numa farmácia. Zeca v
inha vindo, subindo
a rua disfarçadamente, para
va na esquina. Cumprimentava. Olga respondia com
o coração aos saltos. Depois ele chegava mais p
erto da janela, perguntava com a voz abafada:

Quer dar uma voltinha no jardim?
Olga respondi
a hesitando:
— Não posso; tenho que ajudar mamã
e.
— Amanhã então?
Ela respondia apressada, ou
vindo os passos de mamãe que vinham lá de dentro
:
— Vá andando, amanhã quem sabe.
O Zeca sumia
na esquina. Uma ou outra pessoa passava. Ruas e
scuras e silenciosas de cidade de interior; um c
achorro latindo na casa vizinha. Um grilinho can
tando
teimosamente escondido numa moita escura.

Mudei de posição para ver se dormia; lembrei-m
e de que nesse dia de manhã vira sardas no meu r
osto e eu tinha fama de ter a pele mais bonita d
e Itapetininga! Pelo
menos diziam isso. Também
não devo me esquecer que contava dez anos menos.
Ouvi Isabel tossir, estendi o braço e puxei a c
oberta dela até o pescoço. O galo de D.
Genu ca
ntou quinze vezes seguidas, pensei que devia ser
bem tarde e mudei de posição-outra vez. Quando
fiquei noiva de Júlio em Itapetininga, todos diz
iam arregalando
os olhos: Júlio de Lemos? Ótimo
casamento!
A primeira valsa que dancei com ele
foi em casa de D. Sinhá; era aniversário dela e
a valsa chamava-se Monte Cristo. Comecei a me

lebrar da festinha; eu já era namorada de Júlio
desde o ano anterior; ele passava as férias lá e
m casa de um tio que todos chamavam de tio Ináci
o. Tio Inácio usava
cavanhaque; chamava farmáci
a de botica e violino de rabeca; nunca falou de
outra maneira. Quando Júlio me viu em casa de D.
Sinhá, começou logo a conversar e a dançar
com
igo; depois fomos à sala de jantar comer uns doc
es; perguntei se ele não queria bom-bocado; ele
me disse em voz baixa para os outros não ouvirem
que já tinha
comido e não gostara; achara os b
ons-bocados muito pesados, preferia as mães-
#-
bentas. Fiquei muito vermelha porque todos os do
ces tinham sido feitos por nós mesmas; mamãe era
considerada a melhor doceira da cidade. Voltamo
s à sala para dançar
uma valsa; a orquestra era
piano, flauta e violino; lembrei-me outra vez d
a rabeca de tio Inácio. Nesse tempo papai era vi
vo e estava na sala conversando. Morreu
logo de
pois do meu casamento; lembrei-me dele deitado n
o caixão, a face serena como se dormisse, as mão
s cruzadas sobre o peito. Ouvi a valsa de Monte
Cristo até
o fim; depois cansada de recordar, a
dormeci.
No dia seguinte era um sábado, dia de
compras; enquanto estava tirando o pó dos móveis
e estendendo as camas das crianças, tive uma id
éia brilhante a respeito da
carta das minhas ir
mãs. Saí com a cesta no braço como fazia todos o
s sábados e comprei, além do que precisava, umas
costeletas de porco muito bonitas. Na volta,
f
ui eu mesmo preparar as costeletas com batatas c
ozidas e molho de manteiga. Quando Júlio chegou
para o almoço e viu diante dele o prato predilet
o com o molho amarelo
espalhado por cima, olhou
surpreendido para mim. Sorri o mais terno sorri
so, dizendo:
— Não resisti e saí fora do orçame
nto, Júlio. Achei estas costeletas tão boas e co
mo é seu prato preferido, comprei e preparei par
a você. São especiais, olhe
que beleza. E você
gosta tanto!
Ele sorriu e serviu-se com generos
idade, admirado de ter durante a semana um prato
bom, pois era só aos domingos que tínhamos qual
quer coisa melhor. Estendi-lhe
o vidro de pimen
ta e enquanto ele se servia, continuei:
— Sabe
o que encontrei hoje na quitanda? Repolho roxo;
então me lembrei de fazer um vidro de picles par
a você. Já comprei todos os preparos: cebolinha,
couve-flor,
pepino e repolho; o vinagre branco
está um pouco caro, mas compro assim mesmo. Vou
pôr pimentinha também, deve ficar uma delícia.
Logo ficará pronto.
Ele se serviu outra vez de
costeletas e continuou a comer animadamente. Pre
parado o caminho, falei distraidamente, um ar di
stante, como quem ia esquecendo de contar:
— Ah
! Recebi hoje uma cartinha de Olga; vai entrar e
m férias agora e está com vontade de vir passar
uns dias aqui.
Fiz uma pausa e continuei:
— At
é acho bom que ela venha; estou cheia de encomen
das e ela pode me ajudar como me ajudou nas outr
as férias. Ajudou bastante.
Mudei de assunto:

— Estive hoje com D. Tudinha na quitanda; contou
que a filha teve gémeos desta vez. Não estão mu
ito entusiasmados. Imagine!
Júlio me olhou e fa
lou mastigando:
— Escreva para Olga que traga o
vos quando vier; os daqui são caros ou estragado
s. Os de lá são bem melhores.
Respirei aliviada
e senti-me corar até a raiz dos cabelos; lembre
i-me de outra vez que eu dera a notícia e Júlio
gritara no meu rosto:
— Lá vêm suas irmãs outra
vez. Pensa que somos ricos? O dinheiro que ganh
o mal dá para vivermos e elas ainda vêm ficar do
is meses aqui; só serve para aumentar
as despes
as. Que inferno!
E levantara furioso da mesa, j
ogara o guardanapo amarrotado sobre a cadeira, d
eixando a sala e resmungando. Agora fora até fác
il, ele não fizera cena alguma. Pensei:
"Que fe
licidade!" Continuei:
— Naturalmente trazem. Vo
cê não se lembra de que o ano passado elas troux
eram ovos? Não hão de esquecer esta vez.
Houve
uma pausa e Júlio olhou para mim outra vez:
— E
las? Clotilde vem também? Você falou só Olga. Co
rei mais e respondi embaraçada:
— Não sei bem a
final de contas. Não explicam bem na carta, mas
como o ano passado vieram juntas, provavelmente
Clotilde vem também.
E esperei a reação; mas nã
o houve nada e acabamos de almoçar. Júlio começo
u a folhear o jornal sentado na cadeira de balan
ço e os dois meninos vieram despedir-se
para ir
à escola. Diante da janela aberta, examinei-lhe
s as unhas, os cabelos, os dentes. Em seguida ac
ompanhei-os até o portão, recomendando cuidado c
om os bondes;
fiquei olhando até sumirem na esq
uina. Fui ver depois os dois menores que brincav
am à sombra da figueira no quintal. Logo mais, o
uvi a voz de Júlio:
— Já vou. Até logo, Lola.

Enquanto fazia tricô bem depressa, sentada na sa
la, depois que Júlio ia embora, pensava em meu n
ome. Eleonora. Mamãe contava que quando estava m
e esperando, tinha
lido um romance empolgante e
o nome da mocinha bonita que casava com o homem
bom era Eleonora; então quando eu nasci, ela di
sse:
— Quero que esta seja Eleonora.
— Deus me
livre, disse meu pai. Isso é nome de ópera, mui
to comprido. Quero que seja Olga porque é curto
e bonito.
Brigaram por causa disso e mamãe proc
urou apaziguar, dizendo:
— A outra filha que eu
tiver será Olga.
Meu pai fez uma carranca muit
o feia dizendo que bastavam duas filhas (já havi
a Clotilde) e queria depois um menino.
Dois ano
s depois veio outra menina e o casal se reconcil
iou a respeito de nomes pondo Olga na terceira;
o menino nunca apareceu.
Sempre achei meu nome
antipático e cheio de "os", e apesar de dizerem
que meu apelido é espanholado, prefiro o apelido
. Achava Lola leve e fútil como uma bolinha
rol
ando numa descida, até que um dia vi na venda do
Seu Joaquim uma folhinha colorida representando
uma mulher com vestido decotado, os braços leva
ntados e castanholas
nas mãos. A saia com basta
nte roda embaixo, os saltos altíssimos, parecia
um pião rodopiando na cabeça uma mantilha branca
de rendas, um grande pente de tartarugas
enter
rado num monte de cabelos e um cravo vermelho no
canto da boca, sorrindo, faceira. Disseram que
"aquilo" era uma -espanhola e como diziam que Lo
la era espanholado,
liguei de tal forma as duas
imagen-, que quando chamavam: Lo-la! Lo-la! Eu
não sabia se estavam chamando a mulher da folhin
ha ou eu, ficava na dúvida.
Enquanto lembrava -
essas coisas, tricotava sapatinhos e paletozinho
s das minhas encomendas, ouvindo os gritos de Is
abel e Julinho brincando no quintal e Durvalina


cantarolando na cozinha. Trabalhava, trabalhava
.
Nos domingos eu tinha sempre muito trabalho;
levantava mais cedo do que o costume, fazia um b
olo para o café da tarde, depois ajudava Durvali
na a limpar a casa e
preparar o almoço, pois Du
rvalina saía às duas horas. Ia à missa com os do
is mais velhos quando havia tempo,
mas sempre c
hegava tarde à igreja e assistia só à metade da
missa. Júlio levantava tarde e ficava de pijama
no quintal, lidando com as plantas e tomando con
ta de
Isabel e Julinho. Gostava das plantas; co
m um chapéu velho na cabeça e uma tesoura nas mã
os, podava as roseiras, cortava estacas para ama
rrar os pés dos cravos,
varria a parte cimentad
a do quintal. Almoçávamos ao meio-dia. Nossa viz
inha D. Genu pedia emprestado as forminhas de em
padas; à hora do almoço mandava seis empadas
de
presente, pedindo desculpas porque não tinham f
icado boas. Depois do almoço, Júlio ia dormir e
levava Isabel, os dois mais velhos iam à casa de
um amigo jogar
bola, Durvalina acabava de arru
mar a cozinha depressa e saía também para só vol
tar no dia seguinte, eu então ficava só. Às veze
s Julinho brincava ao meu lado enquanto
eu lia
o jornal da manhã ou algum livro emprestado. O t
empo passava rapidamente nas horas de descanso;
quando as tardes eram quentes e bonitas, Júlio l
evava a cadeira
de balanço para o quintal e fic
ava até a noite cair, tomando cerveja e fumando.
Eu chegava à janela de vez em quando para ver s
e Carlos e Alfredo já vinham vindo;
as crianças
da vizinhança corriam na calçada, D. Genu apare
cia na janela vizinha e eu agradecia as empadinh
as. Quando nos mudamos para a Avenida Angélica,
havia
pouquíssimas casas naquele quarteirão; co
m o tempo foram construindo outras e o quarteirã
o ficou cheio.
D. Genu pedia desculpas porque a
s empadas não tinham ficado boas; eu protestava:

— Ah! Não diga isso, D. Genu, estavam delicios
as; Júlio gostou muito.
Ela sorria com modéstia
, retrucando:
— Não estavam tão boas como da ou
tra vez, a senhora não reparou como a massa não
estava quebradiça? Da outra vez a massa ficou mu
ito mais macia.
Eu tornava a dizer que era enga
no; a massa estava tão boa que derretia na boca
e tínhamos gostado muito. Ela tornava a protesta
r com calor dizendo que era bondade
minha, que
eu devia saber muito bem porque entendia do ass
unto e que a massa dessa vez não ficara tão boa.
Eu terminava dizendo que estavam esplêndidas e
para não
gastar mais palavras com as empadas, d
izia:
— Sabe que minhas irmãs vêm passar as fér
ias de dezembro conosco? Estou muito satisfeita.

Ela participava da minha alegria e falávamos l
ongamente sobre irmãos e parentes; um dia aprove
itei o ensejo para pedir emprestado uma cama, po
is como ela pedia sempre
panelas e formas, ache
i que podia pedir a cama para uma das manas. Ela
respondeu:
— Pois não, D. Lola. Todas as vezes
que a senhora quiser, está às ordens.
E conver
sávamos até os meninos chegarem da rua às seis h
oras; então eu me despedia e ia lá para dentro p
reparar o lanche para todos.
Carlos e Alfredo t
inham a diferença de um ano e pouco um do ouro,
andavam sempre juntos, vestiam quase iguais, est
udavam na mesma escola, mas eram muito diferente
s
em tudo. Júlio dizia que Alfredo tinha o cora
ção fechado, vivia para dentro; e parecia mesmo,
era muito retraído, falava pouco e raramente se
expandia, enquanto
Carlos era alegre, brincalh
ão, risonho, e parecia um menino feliz.
Quando
chegavam de qualquer lugar, Carlos sempre tinha
o que contar, falava do que havia visto, das pes
soas que encontrara, de suas conversas, enquanto
Alfredo ficava
quieto, escutando sem dizer nad
a. Às vezes, Carlos perguntava:
— Você não viu,
Fedo?
Alfredo ficava vermelho de raiva, pois n
ão gostava que o chamassem de Fedo e em vez de r
esponder à pergunta de Carlos, gritava:
— Não q
uero que me chame assim, já disse que não quero.

E fechava a mão furiosamente para dar um murro
na cara do irmão; eu precisava intervir muitas
vezes e quase sempre não chegava a tempo e como
Alfredo era mais forte,
Carlos acabava apanhand
o. Muitas vezes Carlos falava sem querer, mas go
stava de provocar o irmão. Eu pedi:
— Não fale
assim, meu filho. Você sabe que ele não gosta, p
or que não diz Alfredo?
Ele prometia não dizer
Fedo, mas dias depois tornavam a brigar por caus
a do apelido.
Tomávamos café com bolo e comíamo
s o que sobrava do almoço; depois ficávamos na s
ala esperando a hora de dormir e no dia seguinte
, recomeçávamos a luta novamente.
En princípios
de dezembro, minhas irmãs chegaram de Itapetini
nga. Fui à estação com Julinho e voltamos todos
de bonde porque um carro ficava muito caro e pre
cisávamos
fazer economia. Pusemos as duas malin
has na frente do bonde; logo me arrependi de hav
er levado Julinho porque minhas irmãs traziam mu
itos embrulhos de ovos e doces
que mamãe me man
dara e Julinho só serviu para atrapalhar porque
queria ajudar a levar os embrulhos e deixava-os
cair a todo instante.
Clotilde e Olga estavam a
nsiosas por conhecer nossa nova casa, pois no an
o anterior, quando elas vieram nas férias, ainda
residíamos no Bom Retiro, numa casa muito
pequ
ena e apertada; elas tiveram que dormir no quart
inho com os meninos mais velhos, onde mal cabiam
os quatro e assim mesmo Carlos e Alfredo dormia
m num colchão,
no chão.
Quando escrevi contand
o que tínhamos mudado para a Avenida Angélica, n
uma boa casa que estávamos pretendendo comprar,
exultaram em Itapetininga. Responderam:
"Então
agora é só no palacete, hein? Muito bem. Vocês e
stão progredindo; estamos ansiosas por conhecer
a nova residência, ainda mais nesse bairro tão e
legante".
Na viagem de bonde, perguntaram muita
s vezes:
— Então, está contente na casa nova?

— Quantos quartos tem?
— Já é de vocês?
— Tem
jardim na frente?
Eu respondia às perguntas, pr
estando mais atenção em Julinho que, disfarçadam
ente, estava querendo abrir o pacote, onde ele s
abia que havia um bolo. Pedi notícias
de mamãe.

Disseram que mamãe ia bem, mas se queixando de
reumatismo nas pernas, era de tanto trabalhar;
tinha sempre muito serviço. De vez em quando ela
se queixava também
de uma dor forte na boca d
o estômago. Ficávamos uns momentos sem falar, pe
nsando na dor de mamãe, querendo adivinhar o que
seria.
Quando chegamos em casa, Júlio e as cri
anças estavam no portão, esperando. Houve muitas
exclamações e abraços:
*— Olhe como a Isabel e
stá crescida!
— E Júlio cada vez mais gordo!

Que casa bonita!
Entraram olhando todos os can
tos da casa, enquanto Júlio levava as malas para
o quarto delas e Durvalina levava as cestas e p
acotes para a cozinha. Abraçaram Durvalina:
— A
té a Durva está mais gorda. Olhe um pouco como o
clima daqui é bom mesmo.
Visitaram a casa toda
achando tudo uma beleza; no quarto delas que er
a meu quarto de costura, eu tinha coberto a máqu
ina com uma toalhinha bordada e assim servia
de
mesa; havia duas camas, uma cadeira e um espelh
inho na parede. Tiravam o chapéu, entravam no ba
nheiro, voltavam, passavam o pente nos cabelos,
sempre conversando:
— Que banheiro bom! Se tivé
ssemos um assim lá em casa! Depois:
— Sabe quem
casou? Você não é capaz de adivinhar! A Maria d
a Glória!
Abri os olhos, espantada:
— Não diga
! A Maria da Glória? Mas com quem?
— Com um via
jante de uma casa importante, dizem que ganha be
m. Eu me sentava na cama, admirada, olhando Clot
ilde que contara a
novidade:
— Mas ela tem uns
quarenta anos, Clotilde! Mais de quarenta até;
eu me lembro que era criança de vestido curto e
ela já ia a bailes! Tem mais de quarenta, uns qu
arenta
e cinco!
Olga intervinha falando malici
osamente:
— Pois é. Pra você ver; feia e velha,
arranjou marido. Eu já disse pra Clotilde que n
ão devemos perder as esperanças. Clotilde ficava
amuada:
— Ah! Ah! Não diga bobagens!
Isabel a
pareceu na porta do quarto comendo um pedaço de
doce; fiquei zangada:
— Meu Deus! Olhe esta men
ina comendo doce quase na hora do jantar. Quem d
eu para você?
Ela não respondia e antes que tom
asse o pedaço que tinha na mão, enfiava-o inteir
inho na boca e olhava para mim com os olhos úmid
os pelo esforço da mastigação. As
tias riam, en
cantadas:
— A Isabel é um encanto; está parecid
a com Júlio.
— Mas os olhos são de Lola, veja u
m pouco.
— Os olhos e a boca; a boca é igualzin
ha à de Lola.
— Então é parecida com Lola.
— N
ão. A testa e o nariz são de Júlio. Repare bem.


Isabel se impacientava e fugia; Júlio aparecia
na porta do quarto, risonho:
— Não acabaram de
contar as novidades? Falta muito ainda? E virava
-se para mim:
— Como é o jantar, Lola? Não está
pronto?
Saí correndo do quarto e mandei Durval
ina pôr o jantar na mesa. Depois do jantar, ficá
vamos conversando no canto da sala, falando sobr
e os conhecidos e parentes
de Itapetininga. Eu
perguntava:
— E tia Candoca como vai? Vocês me
escreveram que ela tinha levado um tombo? Está m
elhor?
— A perna ficou inteirinha roxa, mas ago
ra está quase boa. Você soube que o Juquinha cai
u do cavalo?
— Não. Vocês não me escreveram nad
a. E machucou muito? Como é que vocês não mandar
am contar?
— Não quebrou nenhum osso, mas esfol
ou muito a testa e o nariz; ficou inchado uns di
as, depois sarou. Não mandamos contar porque est
ávamos para vir.
De repente Olga se lembrava de
um caso e falava com entusiasmo:
— Sabe que a
Doca fez as pazes com o Gumercindo? Vão se casar
no mês que vem.
— Não diga! Pois quando brigar
am, ela disse que preferia morrer a casar com el
e!
— Pra ver. Fala sem pensar; estão agora muit
o entusiasmados com o casório.
— Quem, havia de
dizer!
As crianças, sonolentas, ficavam à noss
a volta ouvindo prosa, sem quererem ir dormir; l
evava-os depois apressadamente para o quarto e p
unha-os na cama. Voltava para
a sala para ouvir
mais novidades; Júlio com o cachimbo esquecido
no canto da boca, o jornal no colo, trocava uma
ou outra frase com minhas irmãs, perguntando pel
os
conhecidos. Eu guardava os doces que mamãe t
inha mandado; seis latinhas pequenas de goiabada
em calda, seis pacotinhos de figos cristalizado
s, seis quadrados de
pessegada e um bolo mármor
e; calculava mentalmente quantos dias podia dura
r essa sobremesa. Havia uma pausa na conversa, u
m descanso, Júlio reiniciava a prosa:
— E o Soa
res como vai? Sempre metido a conquistador?
Clo
tilde e Olga olhavam-se embaraçadas, como quem p
ergunta: contamos ou não? E Clotilde resolvia:

— Ele agora anda atrás da Maroquinhas.
Júlio ti
rava o cachimbo da boca, um ar admirado, os olho
s muito abertos; eu ficava com a lata de doce na
mão, parada, sem saber o que fazer com ela. Olg
a acrescentava:
— Pois é. Pra que deu agora o s
em-vergonha. Não presta mesmo. Júlio afinal cons
eguia falar:
— A Maroquinhas do Chico? Uma mulh
er casada! É o cúmulo!
— É isso mesmo. A Maroqu
inhas do Chico. Não é uma vergonha? Ficávamos to
dos parados, mudos, sentindo a tragédia que se e
spalhava
no ar como fumaça; reatávamos outra ve
z a conversação, mas o caso principal da noite v
oltava ao assunto, imperiosamente. Eu dizia em v
oz baixa, como se tivesse medo
de falar alto: -

#— Este mundo está perdido. Nem acredito, pare
ce incrível. E a Maroquinhas?
— A Maroquinhas e
stá correspondendo. Dizem. Olga falava revoltada
:
— Mulher é idiota mesmo, acredita em homem; s
empre desconfiei da Maroquinhas, sempre foi assa
nhada com os homens.
Durante meia hora comentáv
amos o caso, com medo da reação do Chico.
Afina
l Júlio se levantava e se espreguiçava levantand
o os braços para cima:
— Bom. Vamos dormir? Qua
se dez horas! , Dispersávamos todos e antes de d
ormir, eu ia perguntar confidencial-
mente à Ol
ga:
— E o Zeca como vai?
Olga fazia uma careta
e virando o rosto para um lado, respondia:
— N
ão sei. Brigamos.
— Brigaram? Mas por quê? Não
acredito! Clotilde entrava no assunto:
— Brigui
nha de namorado, Lola. Qualquer dia fazem as paz
es.
— Mas qual o motivo da briga? Vocês estavam
tão firmes! Olga explicava com ar contrariado:


— Não queria que eu viesse para São Paulo. Quer
ia que passasse as férias lá mesmo. Imagine! Tei
mei em vir e ele ficou zangado. Passou dois dias
sem aparecer e eu
vim assim mesmo. Por que não
pede? Se fôssemos noivos, eu não vinha.
Eu sor
ria:
— Essas briguinhas não são nada, qualquer
dia estão noivos.
E dizendo boa noite, retirava
-me para o quarto, onde Júlio já estava dormindo
; eu me deitava e, no escuro, lembrava as novida
des que tinha sabido e via passar na
imaginação
todos os amigos e conhecidos de Itapetininga. V
ia a Maroquinhas namorando o sem-vergonha do Soa
res; a Doca casando com o Gumercindo; mamãe mexe
ndo o tacho
de goiabada ou então espiando se os
biscoitos de polvilho estavam assados, no grand
e forno de barro do quintal, afogueada, suando,
um pano amarrado na cabeça, a
tampa do forno na
mão e com a pazinha de madeira na outra, virand
o os biscoitos um por um, franzindo a testa, os
olhos meio fechados por causa do calor. Tia Cand
oca
com a perna roxa espichada numa cadeira, da
ndo um gemido de vez em quando: Ai, meu Deus! To
dos passavam na minha imaginação e tornavam a pa
ssar teimosamente, até
que o sono vinha chegand
o aos pouquinhos e fechava meus olhos pesadament
e.
Na primeira semana depois da chegada das min
has irmãs, trabalhamos muito em chapéus e vestid
os para que elas pudessem sair. Os chapéus eram
do ano anterior e estavam
feios e desbotados; f
izemos então umas armações de arame e talagarça
e cobrimos com cetim como era moda naquele tempo
. O de Clotilde com cetim cor de cinza e uma
fi
ta cereja; o de Olga com cetim azul e umas flori
nhas azuis em toda aba. Depois que os vestidos t
ambém ficaram prontos, fomos visitar tia Emília,
a "tia rica"
como Júlio dizia. Era a irmã mais
velha de papai e tinha se casado com
um homem
muito rico e importante; estava viúva há alguns
anos já. Morava na Rua Guaianases e uma das prin
cipais perguntas de nossa mãe quando escrevia er
a: "Já
visitaram tia Emília?" de modo que era u
m dever imprescindível visitar tia Emília porque
mamãe lhe devia muitos favores. Um belo dia log
o depois do almoço, fomos
para a Rua Guaianases
. No caminho, recomendei a Olga que não risse, n
em olhasse para mim se aparecesse refresco de or
chata ou se tia Emília falasse na origem das
fa
mílias paulistas. Era engraçada essa mania dela;
sabia de cor a origem de todas as principais fa
mílias e tinha uma memória prodigiosa para guard
ar nomes e datas.
Tinha cadernos com as históri
as dos fundadores de São Paulo e quando via pess
oas interessadas no assunto, não parava mais de
falar. Olga prometeu.
O palácio da Rua Guaianas
es impunha respeito e medo; quando chegamos e to
camos a campainha, calculei mentalmente quantas
vezes nossa casa cabia dentro daqueles jardins,


a casa que ainda não era nossa e nem sabíamos q
uando terminaríamos de pagar os vinte contos res
tantes. Tia Emília era riquíssima e para nós seu
palácio era um sonho
das mil e uma noites com
uma legião de criados, governantes tesas e compe
netradas, grossos tapetes onde os pés se afundav
am, cortinas pesadas como chumbo, mesas
enverni
zadas com as pernas cheias de bolas e caras de g
ente. E os cavalos? Tinha uma carruagem puxada p
or dois cavalos castanhos e um cocheiro empertig
ado com uma
grande cartola reluzente inclinada
para um lado da cabeça. Dizia que havia de ter c
arruagem enquanto pudesse, detestava automóvel.
E quando ela me visitava uma vez
por ano e o ca
rro parava em frente à nossa casa, as janelas da
s casas vizinhas enchiam-se de cabeças curiosas
que ficavam olhando os majestosos cavalos batere
m com
força as patas do chão. O espetáculo era
soberbo!
As crianças ficavam excitadas e começa
vam a entrar e sair a todo o momento, o que me d
eixava nervosa; Carlos e Alfredo ficavam com as
mãos nos bolsos das calças,
um ar imponente, an
dando de um lado para outro perto da carruagem,
desafiando todos que passavam com olhares orgulh
osos como se dissessem: "Não somos qualquer um,


vejam as visitas que nossa mãe recebe". E olhav
am com admiração o cocheiro que parecia um rei s
entado no trono. Felizmente as visitas eram curt
as e eu ficava envergonhada
de só oferecer café
, que nem sempre ela aceitava.
No palacete, um
criado levou à sala particular, onde tia Emília
recebia os íntimos e as pessoas da família. Sent
amos com muita cerimônia na ponta das cadeiras d
e
veludo e quando nossa tia entrou com ar majes
toso, levantamos para cumprimentá-la respeitosam
ente. Ela já estava com uns setenta anos; era al
ta e tinha um ar imponente
que colocava todos à
distância; parecia estar sempre recomendando: "
Não precisa aproximar-se, fale daí mesmo". Pergu
ntou pela nossa mãe, pelo meu marido e pelas
cr
ianças com certa polidez; depois perguntamos tam
bém pelos filhos dela. Contou histórias sobre os
filhos mais velhos e os netos e disse que os do
is filhos solteiros
estavam viajando, na Argent
ina; se não fosse a guerra, estariam na Europa.
Em seguida, tocou a campainha e quando o criado
apareceu, mandou chamar as meninas; logo
depois
vieram as duas filhas que moravam com ela. "As
meninas" tinham mais de cinqüenta anos, uma era
viúva e outra solteirona, muito quietas e concen
tradas. Tia
Emília mandou depois uma das menina
s tocar a campainha e virando-se para nós, pergu
ntou suavemente:
- Gostam de orchata? Vou manda
r vir.
Olhei as figuras do tapete e com os lábi
os cerrados, fiz um esforço tremendo para não ri
r; de repente percebi a cadeira de Olga estremec
er e Olga começou a tossir;
tossiu tanto que to
das recomendaram xaropes; uma dizia que o de euc
aliptus era melhor, outra ensinava outra coisa e
finalmente a tosse cessou. Tomamos o refresco

de orchata e tia Emília quis me pagar o dinheiro
dos sapatinhos. Protestei:
— Não vim aqui para
isso, tia Emília. Não tenho pressa de receber.
Mas ela pagou e fez outra encomenda para novos n
etos que estavam
para chegar. Depois nos avisou
que o casamento da última neta seria no fifh do
mês, na casa dela, onde dariam uma recepção. Ho
uve uma pausa e de súbito ela começou:
— Eu sei
a história da família Lemos desde 1724; são de
S. João de Atibaia e tiveram fazenda em Parnaíba
. Houve um dom Francisco de Lemos nascido em Cas
tela e
casou-se com Isabel no ano de 1640. Isab
el morreu e dom Francisco casou-se com Catarina
de Mendonça e tiveram dois filhos Baltasar e ler
ônimo...
Uma das meninas interrompeu:
— Não fo
i um desses que casou com uma filha de Bartolome
u Bueno de Camargo?
— Pois é esse mesmo, o Balt
asar. Tiveram sete filhos. . .
Olga me olhou co
m olhar suplicante como quem pergunta: "Será que
vai nomear os sete?" Fiz que sim com a cabeça e
Olga deu um suspiro fundo.
Tia Emília continuo
u:
— Uma das filhas desse casal foi Leonor que
casou três vezes; a primeira vez casou com um vi
úvo Machado e teve três filhos. A segunda vez ca
sou-se com Baltasar da
Borba Gato (fez uma paus
a para apreciar o efeito do nome): com o Borba G
ato teve quatro filhos.
Uma das meninas que con
tava com os dedos o número de filhos da Leonor,
levantou as mãos e mostrou sete dedos. Tia Emíli
a continuou imperturbável:
— Um dos filhos do s
egundo matrimónio chamava-se Baltasar também e c
asou-se em 1710 na vila de Santo Amaro com Franc
isca de Sousa. Tiveram três filhos; creio que
o
Lemos do marido de Lola vem daí, descende desse
Baltasar de Lemos. Um dos filhos casou na Vila
de Itu que nesse tempo chamavam Outu.
Clotilde
não pôde deixar de exclamar:
— Que memória, tia
Emília! Como consegue guardar tudo tão bem? Nom
es e datas?
Tia Emília riu, satisfeita.
— Ah!
É porque gosto dessas coisas. É uma das minhas m
anias. Há gente que gosta de colecionar selos, o
u leques, ou moedas; eu coleciono a origem dos p
aulistas.
Gosto disso e tenho tudo escrito em c
adernos. Desde solteira, eu me interessava por á
rvores genealógicas; seu pai não contava?
— Pap
ai contava, mas nunca pensei que sua memória fos
se assim prodigiosa. Esse Borba Gato é o mesmo d
a História do Brasil?
Tia Emília se animou, vir
ando-se mais para Clotilde:
— Pois é o mesmo. O
Baltasar teve uma filha Isabel, outra Mariana;
esta foi casada com um Alcoforado, depois Maria
que foi casada com um
Baião. Teve um filho cham
ado Baltasar também, que se casou com Isabel Mon
teiro e...
Nesse momento entraram umas senhoras
na sala e tia Emília se levantou para recebê-la
s. Apresentou-nos dizendo que eram da família Ba
rros, de Itu, continuou explicando
para as visi
tas:
— Estava contando às minhas sobrinhas a or
igem da família da mãe delas que é a mesma do ma
rido da segunda, esta aqui, (e me mostrou. Estav
a justamente falando sobre
os Lemos; tenho tudo
escrito em cadernos. Os Barros também são meus
conhecidos; há os Pais de Barros, os Aguiar Barr
os...
Umas das senhoras replicou:
— É extraord
inária sua memória e admiro ainda mais como pode
saber tudo com minúcias, com datas, sem esquece
r nada. A senhora devia escrever um livro sobre
as famílias
paulistas, seria interessantíssimo.

Todas concordaram e tia Emília sorriu dizendo
que já pensara nisso; a outra senhora disse:

A nossa família descende dos Barros de Itu. Tia
Emília se entusiasmou:
— Justamente. O Cap. Fer
não Pais de Barros casou-se em 1731 com Ângela L
eite Ribeiro e tiveram vários filhos; o sétimo f
oi o Cap. Francisco Xavier Pais de Barros,
de I
tu; tinha o apelido de Capitão Chico de Sorocaba
...
Uma das senhoras interrompeu com um sorris
o:
— Pois era o nosso avô. Como a senhora sabe!
Tia Emília continuou cada vez mais animada:

Ele foi casado três vezes; a primeira vez com Ro
sa Cândida de Aguiar Barros, a segunda vez com s
ua ex-cunhada Maria de Aguiar Barros e a terceir
a vez com Andreza
Lopes de Oliveira.
Clotilde
fez um elogio:
— É admirável, tia Emília! Outra
senhora perguntou:
— Não foi um desses que tev
e uma mina de ouro e conseguiu tirar uma arroba
de ouro dessa mina?
— Pois foi; com essa arroba
de ouro, ele comprou terras em Itu e voltou a S
ão Paulo, onde se casou com Maria Paula Machado,
filha do...
Uma das filhas interrompeu:
— O p
rimeiro desses Barros veio ao Brasil há séculos
atrás, não foi, mamãe?
— Foi. O primeiro chamav
a-se Pedro Vaz de Barros. Veio em 1601 e foi ver
eador na Câmara de São Paulo. Imaginem, naquele
tempo já era vereador, vejam como a família
é a
ntiga.
Todas ficamos admiradas e tia Emília con
tinuou:
— Casou-se aqui na família Leme, descen
dente de uma família flamenga e o quinto filho d
esse casal foi Fernão Pais de Barros. Esse defen
deu brilhantemente a praça
de Santos do ataque
dos holandeses; e recebia cartas do próprio punh
o do príncipe D. Pedro...
— Sua memória é prodi
giosa e sua modéstia também, disse uma das senho
ras com veemência.
Outra retrucou:
— É um verd
adeiro tesouro ter na cabeça as árvores genealóg
icas dos paulistas!
Todas sorrimos e o criado e
ntrou anunciando mais visitas. Minhas irmãs e eu
nos levantamos e saímos; durante toda a tarde c
omentamos a visita, a memória de tia Emília,
a
festa do casamento da neta e tudo o que havia se
passado.
Uns dez dias depois, um criado veio t
razer um convite para o casamento; a casa ficou
em alvoroço. Fui dizendo logo:
— Não vou; preci
so de tanta coisa que não posso ir. Não tenho ve
stido bom, nem chapéu; pra falar verdade, só ten
ho um par de sapatos novos. Mas nem meias tenho.

Houve protestos veementes:
— Que absurdo perd
er essa festa magnífica! Nem pense isso; daremos
um jeito, mas você e Júlio terão que ir.
Quand
o Júlio chegou essa tarde, falamos sobre a festa
e mostramos o convite para a recepção. Júlio co
çou a cabeça, desanimado:
— Parente rico só ser
ve para fazer a gente gastar. Imagine como não v
ai sair cara a brincadeira só para ir lá e ficar
meia hora: roupa, sapatos, automóvel...
Olga r
eplicou:
— "Noblesse oblige", acho que vocês de
vem ir. Tenha paciência, Júlio, imagine como vai
ser bonita a festa e as coisas gostosas que voc
ês vão comer e beber!
Eu disse:
— Não, é melho
r desistirmos. Nem quero fazer o cálculo das coi
sas que preciso comprar; com esse dinheiro compr
o roupinhas e sapatos para as crianças.
Minhas
irmãs protestaram de novo:
— Não, vocês têm que
ir. Onde se viu isso? Tia Emília ficará ofendid
a.
Júlio acabou concordando:
— Vamos pôr o cor
ação à larga e vamos, Lola. Clotilde olhou para
mim, dizendo:
— Eu tenho as meias novas, empres
to a você. Nem usei ainda. Olga disse que me emp
restava a bolsinha de miçangas que tinha ganho

de uma amiga há muito tempo e Júlio me deu cinqü
enta mil-réis para arranjar o vestido.
Há três
anos já, eu tinha um vestido de renda marrom, fe
ito para o casamento de uma filha de tia Candoca
; então levei o vestido na costureira para ver o
que ela
podia fazer. Ela tirou o enfeite velho
que eram umas rendinhas e enfeitou o vestido co
m fitas de veludo canário; estavam usando muito
essa cor. Com o resto do dinheiro,
comprei umas
flores novas para meu chapéu de seda preta, com
prei luvas para mim e, como Júlio estava se quei
xando que a gravata estava feia para um casament
o, dei-lhe
uma gravata nova. Comprou botinas no
vas também.
No dia do casamento, logo de manhã,
chamei a cabeleireira para me pentear e ao meio
-dia eu estava com a cabeça pronta: ela levou um
a hora" enrolando e prendendo
os cachinhos à vo
lta da cabeça; meus cabelos eram compridos até à
cintura e a mulher teve um trabalhão para prend
er tudo aquilo e dar um ar artístico.
Depois de
pronto o penteado, fiquei desgostosa, achando m
inha cara enorme, parecia vespeira; mas não diss
e nada porque minhas irmãs estavam elogiando e d
izendo que
tinha ficado uma beleza. Aquilo me p
esou o dia
inteiro porque o casamento era às se
is horas e tive que agüentar. Clotilde e Olga es
tavam nervosas, procurando lembrar todos os deta
lhes e comentando com gritinhos
e exclamações.
Tomaram conta das crianças para não me incomodar
em, esfregaram pedra-pomes nas minhas mãos para
amaciar a pele, passaram creme no meu rosto e no
pescoço,
me fizeram tomar um banho morno prolo
ngado para ficar com as feições descansadas e às
quatro horas, foram me ajudar a vestir. Primeir
amente o colete; tanto me apertaram
que as barb
atanas entraram na carne, pois eu tinha engordad
o muito ultimamente; para vestir o vestido foi u
ma luta porque tínhamos medo que desmanchasse o
penteado.
As crianças espiavam e perguntavam a
todo o momento se podiam ver "mamãe pronta" e eu
já estava impaciente. Era fim de dezembro e o d
ia estava quentíssimo; antes
de' estar completa
mente preparada, suava por todos os poros e o cr
eme que Clotilde havia passado no meu rosto, esc
orreu todo, dando uma aparência deplorável. Júli
o
chegou nesse instante e começou a se vestir;
disse que tinha tratado um automóvel para as cin
co e meia e as crianças correram para esperar o
carro no portão.
Olga tirou o creme do meu rost
o com um pedaço de trapo e depois passou novamen
te outra camada; sentei então numa cadeira da sa
la para descansar e deixar de suar;
tive vontad
e de mandar tudo às favas nessa hora, tirar a ro
upa, desmanchar o penteado, sentar no chão só de
roupão em cima da camisa e tomar café com pão e
manteiga.
Afinal chegou o momento de colocar o
chapéu; Olga de um lado e Clotilde do outro, pu
seram o enorme chapéu de veludo preto e enfiaram
os grampos emprestados por D.
Genu; um era mui
to bonito, de marfim formando uma cabeça de cava
lo. Deixaram para abotoar a gola do vestido à úl
tima hora; havia cinco barbatanas que deixavam m
eu
pescoço bem esticado. Em seguida calcei as l
uvas e peguei a bolsa de miçangas com um lencinh
o de renda dentro. Quando olhei no espelho, mal
me conheci; estava tão
diferente de mim mesma,
com tanto enfeite e tanta bugiganga. Clotilde e
Olga não se cansavam de me admirar e chamaram D.
Genu para me ver. Vieram D. Genu, as filhas
mo
ças e as crianças; todos ficaram à minha volta,
falando e comentando; D. Genu disse que era uma
pena eu não ter uma jóia, mas Olga respondeu que
Maria Borralheira
também não tinha jóia e foi
a mais bonita do baile, e que em casa de tia Emí
lia, todos perguntariam aos donos da casa:
— Qu
em é aquela senhora de vestido marrom e fita can
ário? Com um chapéu de veludo preto?
Tal o suce
sso que iria fazer. Júlio apareceu na sala manca
ndo um pouco e se queixando que o casamento ia s
er uma cacetada porque não conhecia ninguém e al
ém disso
as botinas novas estavam apertadas; ge
nte rica só servia para isso: fazer os pobres ga
starem. Prometeu que lá não mancaria. Todos elog
iaram a roupa escura e a gravata
nova; percebi
que as botinas rinchavam e fiquei horrorizada. N
em por sombra parecia o Príncipe Encantado da Ma
ria Borralheira. À última hora, apareceu uma peq
uena
dificuldade; minhas irmãs eram de opinião
que o automóvel esperasse no portão do palacete
até a festa se acabar. Júlio achava que isso era
luxo e ficaria caríssimo.
Olga ponderou:
— Ma
s quando acabar a festa, vocês saem de lá Cansad
os e não encontram automóvel para voltar. Fica a
té feio andar assim pelas ruas... "Noblesse obli
ge", acho que
deve ser assim.
Júlio coçou a ca
beça com cuidado para não tirar o cabelo do luga
r;
Mas quanto o homem irá cobrar? Vai ser um di
nheirão, já tive tantas despesas.
Clotilde diss
e:
— Deixe que eu vou falar com o chofer, esper
e aí.
Logo depois voltou dizendo que tinha pech
inchado um pouco e o homem deixara por 12$000; a
o princípio estava firme nos 15, mas acabara ced
endo.
Júlio tirou todo o dinheiro que havia nos
bolsos e somou: não dava. Fui então na minha ga
veta de economias onde rodavam sempre alguns níq
ueis e juntando tudo, conseguimos
reunir o dinh
eiro justo. Entramos no carro que esperava na po
rta, acompanhados de toda a vizinhança que foi v
er a nossa saída sorrindo e dizendo adeusinho co
m a
mão, ao mesmo tempo invejando nossa sorte p
or comparecermos a uma festa da alta sociedade.
Eu nem me mexia durante o trajeto com medo de de
smanchar o cabelo ou entortar
o chapéu.
Na Rua
Guaianases, uma fila interminável de automóveis
passava majestosamente, deixando os convidados
na porta do palacete. Descemos um pouco nervosos
e entramos
com passos miúdos e solenes, atrave
ssamos uma parte do jardim e fomos ao salão prin
cipal, onde já estavam muitos convidados. Vi de
longe tia Emília e uma das meninas
que sorriram
para nós.
Olhamos à nossa volta e como não con
hecêssemos ninguém, ficamos quietos num canto, e
sperando os noivos e o resto. De repente, ouvimo
s uma música muito suave e abriu-se
uma porta d
e vidro que dava para o salão; vimos então a noi
va dando o braço ao pai e caminhando lentamente
para o altar que estava armado no fundo do salão
. Achei
tudo tão bonito, a noiva com um lindo v
estido, a música, as flores, os perfumes, os con
vidados atentos e silenciosos, até tive vontade
de chorar. Meus olhos encheram-se
de lágrimas e
disfarçadamente tirei o lencinho de renda e enx
uguei-os fingindo que estava enxugando a testa.


Fez-se um longo silêncio e começou a cerimônia;
nós não ouvíamos nada porque estávamos longe, a
penas um sussurro perto do altar e um movimento
de cabeças. Depois
ouvimos a voz do padre fazen
do o sermão; ouvíamos uma ou outra palavra: "Sac
ramento", "Sagrado", "Amai-vos" e "Filhos". A mã
e da noiva chorou durante todo o sermão,
via-lh
e apenas o queixo e a papada tremerem, depois en
xugou o nariz ruidosamente.
Júlio de vez em qua
ndo, cochichava ao meu lado:
— Que estopada! Me
us calos estão horríveis, as botinas me apertam
como o diabo.
— Quem mandou comprar botina aper
tada? Agora agüente.
Logo depois começaram os a
braços e toda aquela multidão movimentou-se e fa
lou; outras portas foram abertas e nos dirigimos
para o salão de jantar, os noivos na frente.
N
esse salão, havia uma mesa enorme carregada de d
oces belíssimos. No centro, uma pirâmide de fios
de ovos de um metro de altura; uma beleza. Fiqu
ei assombrada com
tanto luxo e não quis perder
um detalhe. Com dificuldade chegamos ao lado dos
noivos que se colocaram no centro da mesa e ape
rtamos-lhes as mãos, desejando
muitas felicidad
es; eles não nos conheciam, mas agradeceram sorr
indo muito cortesmente. Também estavam ali para
isso: agradecer e sorrir.
Começaram a circular
entre os convidados uns criados de uniforme com
bandejas cheias de taças de champanha; os olhos
de Júlio brilhavam na direção das taças. "Agora


sim, ele" esquece os calos", pensei. Falamos de
pois com tia Emília, prima Adelaide, prima Justi
na que nos apresentaram os pais da noiva; tia Em
ília perguntou por
que minhas irmãs não tinham
ido, eu disse que estavam com enxaqueca e ela so
rriu — não podia dizer que não tinham roupa. Tod
os eram amáveis e perguntavam a todo
instante s
e tínhamos comido peru e bebido champanha. Às se
te horas, todas as luzes se acenderam e tive a i
mpressão de que estava num castelo encantado; os
noivos
voltaram então para o salão e dançaram
uma valsa lenta; depois todos dançaram mazurcas
e polcas.
Vi Júlio mancar um pouco quando atrav
essou o salão, fiz-lhe um sinal imperceptível pa
ra que não mancasse. Ele não entendeu e pergunto
u de longe: "O que há?" Fiquei
muito vermelha e
sorri para ele, dizendo que não era nada; depoi
s me aproximei disfarçadamente e falei-lhe ao ou
vido: "Você está mancando, e você me prometeu nã
o
mancar". Ele se virou para mim e respondeu: "
O que você quer que eu faça, meu calo está danad
o". Tornei a falar: "Mas você prometeu, Júlio, f
ica feio". Ele disse:
"Então não mancarei mais"
.
E sorrimos um para outro, cordialmente. Fui f
icar ao lado de umas senhoras que estavam vestid
as com menos luxo e comentamos a beleza da festa
; enquanto isso, eu
reparava nos vestidos que p
assavam ao nosso lado: eram belíssimos! Uns com
pastilhas de ouro, outros com pastilhas de prata
, outros ainda com diamantes no cinto
e na blus
a; a maioria com caudas farfalhantes de tafetá e
cetim que estalavam quando passavam perto. O me
u pobre vestido com fitas cor de canário que min
has irmãs
tinham achado encantador, fazia um tr
iste papel naquela brilhante reunião.
A metade
dos convidados estava na sala de jantar, comendo
e bebendo; nós também começamos a comer e exper
imentei todos os doces da mesa, um por um. Algun
s eu nunca
vira antes. Experimentei uma bebida
que chamavam de ponche e eu nunca tinha bebido;
serviam em copos pequenos, com asas, e um criado
a tirava majestosamente de uma
espécie de sope
ira grande com uma concha de prata. No fundo do
copo sobravam uns pedacinhos de frutas e fiquei
imaginando de que modo podia tirar aquelas fruti
nhas.
Olhei à volta para ver se havia colherinh
as próprias e como não havia, tive um desejo lou
co de enfiar o dedo no copo e comer com a mão os
pedacinhos de maçã e uvas;
então pedi ao criad
o que servia, mais um pouco da tal bebida e sacu
dindo disfarçadamente a canequinha de vidro, vir
ei-a depressa na boca para ver se as frutinhas

vinham; assim mesmo ficaram algumas que não cons
egui tirar do fundo.
Com o calor e tanta bebida
e comida, comecei a sentir um abafamento e o co
lete me apertava tanto que parecia que eu ia arr
ebentar; disse então à prima Adelaide que
queri
a subir um pouquinho para consertar a alça da co
mbinação que tinha escapado e ela mandou imediat
amente uma criada me levar ao banheiro, em cima.
Quando me vi
no espelho, fiquei horrorizada; m
eu rosto era uma pasta de creme, pó de arroz e c
armim, tudo meio escorrido. Passei uma toalha de
leve pelo rosto e tirei toda a
pasta suada, de
pois passei um pouco de talco que achei no banhe
iro e assim fiquei com melhor fisionomia. Desape
rtei um cordão do colete e fiquei tão
aliviada
que tive vontade de dançar; desci novamente e vi
Júlio com um copo na mão, conversando animadame
nte com um senhor gordo e calvo, olhando as danç
as. Pensei
assustada: "E se Júlio ficar bêbedo?
"
Voltei para a sala de jantar e fui novamente
comer e beber; então sem ninguém perceber, escor
reguei seis balinhas na minha mão, e apertei-as
no lenço de renda para
minhas crianças.
Às nov
e horas, os noivos já haviam desaparecido e muit
os convidados
começaram a sair; despedimo-nos t
ambém e saímos. Júlio mancava horrivelmente e as
botinas rinchavam, mas ele nem se importava; eu
empurrei o chapéu para trás para
aliviar a tes
ta molhada de suor. Encontramos nosso chofer um
pouco nervoso e falando com os outros animadamen
te. Júlio perguntou o que havia e ele respondeu
com
grandes gestos:
— Non abbiamo curpa ma il
preço e molto diferente. Sono andato portare il
capelano e sono voltato qui. Sono mas cinqui mil
aréis.
Júlio olhou-o com olhos arregalados:

O quê? Foi levar o capelano? Mas que tenho eu co
m isso? Pago o que tratei e acabou-se.
— Ma qui
me paga allora? Non posso avere prejudizio; non
vado via senza mio denaro.
Júlio foi se exalta
ndo:
— Ora, ora, ora! Você está com besteiras.
Pago o que tratei e nem um tostão mais. Vamos, L
ola.
Perguntei:
— O que ele disse de capelano?

— É o padre. Padre capelão. Disse que foi leva
r o padre e quer mais cinco mil-réis pelo serviç
o.
O chofer juntou os cinco dedos da mão direit
a perto do rosto de Júlio e respondeu, zangado:


— Mi hanno mandato portare il padre. Voglio mio
denaro. Pigarreou alto e puxou as calças para c
ima num gesto brusco com
as duas mãos. Segurei
o braço de Júlio:
— Vamos deixar de discutir e
vamos embora. Não adianta.
Mas Júlio estava cad
a vez mais exaltado e voltou-se para o italiano:

— Olhe aqui, eu também não tenho culpa se ocup
aram seu automóvel, mas não tenho nada com isso.
Pago o que tratei. Vamos embora.
— Non vado vi
a senza mio denaro. Qui me paga allora? Per Ia M
adona!
Começou a juntar gente à nossa volta; ou
tros choferes, pessoas que iam passando e convid
ados que deixavam a festa. Tornei a puxar Júlio
por um braço; falei baixo:
— Por favor, Júlio,
vamos embora e deixe de discutir. Não faça escân
dalo.
Júlio gritou mais:
— Quem paga você? Sei
lá quem vai pagar você, italiano. Eu pago o que
devo. Dê a manivela nessa geringonça e me leve
para casa.
O homem olhou zangado e deu uma cusp
arada para o lado:
— Per Ia Madona! Non vado vi
a senza mio cinqui milaréis. Io sono andato port
are il capelano. Mi hanno mandato.
— E eu tenho
a culpa? Nem conheço o capelano. Toca pra casa.
As pessoas à nossa volta começaram a comentar o
caso em voz alta;
uns eram contra Júlio e outr
os a favor. O chofer estava firme e de
vez em q
uando dava uma sacudidela violenta na calça para
pô-la no lugar outra vez. Pigarreava, levantava
os braços, juntava os dedos e quase encostava a
mão em nós,
dizendo: "Má quê! Má quê!"
Eu cad
a vez mais nervosa, agarrava o braço de Júlio co
nvidando-o para ir embora; Júlio me disse, aborr
ecido:
— Mas ir embora de que jeito? Esse desgr
açado quer mais dinheiro e não tenho um tostão m
ais no bolso!
Eu suava cada vez mais; alguns co
nvidados que deixavam o palacete, olhavam admira
dos para o nosso grupo. O chofer estava cada vez
mais valente e Júlio cada vez mais
exaltado.
Dizia:
— Deixe de contar prosa, italiano e vamo
s embora.
— Voglio mio denaro. Sono andato port
are il padre.
— Mas não tenho seu dinheiro.

Non son venuto qui por avere prejudizio.
— Mas
não mandei você levar o padre. Não tenho nada co
m isso. Outra cusparada para o lado, essa mais l
onge ainda. Grandes gestos,
vozes alteando mais
e mais, eu agarrada no braço de Júlio:
— Por f
avor, Júlio, vamos embora. Não brigue.
O grupo
à nossa volta ficava cada vez maior; todos discu
tiam alto. O chofer endireitava as calças e olha
va desafiadoramente para o nosso lado. Resmungav
a:
— Per Ia Madona! Non son venuto qui por aver
e prejudizio. Io ho fatto ei lavoro. Mio denaro.

— Eu dou o que devo, não dou mais.
— Mas io h
o fatto il lavoro. Sono andato portare il padre.

— Mas não tenho nada com isso.
— Voglio mio d
enaro. Per Ia Madona!
— Mas...
Nesse instante,
apareceu um criado do palacete de tia Emília e
veio saber o que havia; dei graças a Deus. Acons
elhou o chofer que não discutisse e receberia o
dinheiro
imediatamente. Voltou correndo e troux
e logo a quantia certa. Entramos então no automó
vel e fomos finalmente para casa. Minhas irmãs e
os dois meninos mais velhos
esperavam na sala
de jantar para ouvir as novidades. Quando chegam
os, Júlio pagou o que tinha tratado e quis discu
tir de novo. Começou:
— Olhe aqui, chofer...
M
as eu dei um apertão no braço dele:
— Júlio!
E
ele desistiu. Desci com o chapéu na mão, já ali
viada e ele entrou em casa de meias, carregando
as botinas e ainda sacudiu uma delas para o auto
móvel que se afastava,
dizendo:
— Per Ia Madon
a!
Quando sentamos nas nossas cadeiras e Júlio
estendeu os pés doloridos na cadeira da frente,
demos um fundo suspiro de satisfação.
Logo depo
is fui para o quarto e desmanchei a vespeira, co
çando a cabeça com as duas mãos num frenesi; em
seguida enfiei os pés numas chinelas velhas, tir
ei o vestido
e o colete e vestindo um roupão de
chita, voltei à sala para contar a Clotilde e O
lga, o sucesso do casamento.
Olga perguntou log
o:
— E então? Seu vestido fez furor? Foi muito
apreciado?
Tive pena de dizer que ninguém repar
ou em mim, nem no vestido, então falei toda riso
nha:
#— Não fez propriamente furor, mas reparar
am nele e várias senhoras perguntaram onde eu ti
nha feito.
Clotilde riu-se dizendo:
— Logo vi;
estava mesmo uma beleza. E você bancou a Maria
Borralheira?
Hesitei um pouquinho e achei que e
ra mentir muito, então respondi:
— Ah! Isso não
, Clotilde. Isso é demais. Lá havia lindos vesti
dos , vindos da Europa, uns prateados, outros do
urados, outros cobertos de
brilhantes...
Impre
ssionadas, minhas duas irmãs abriram muito os ol
hos diante da minha narrativa e enquanto Júlio e
os meninos foram se deitar, fiquei no canto da
sala, falando,
falando sem parar, até onze e me
ia da noite.
No dia seguinte, o jornal trouxe u
ma longa lista de presentes recebidos pelos noiv
os; era mais ou menos assim: "Um colar de pérola
s da mãe da noiva", "um lindo aparelho
de janta
r de porcelana finíssima do pai do noivo", "um c
heque do Dr. Fulano de Tal, irmão da noiva", "um
bracelete de brilhantes e rubis do noivo à noiv
a", "uma
carteira de ônix cravejada de pérolas
da noiva ao noivo", "um rico aparelho de jantar
de porcelana da China da avó da noiva",, e no fi
m da lista, havia uma frase
que gostei muito e
minhas irmãs bateram palmas quando leram: "Uma b
andeja de prata com copos de cristal do Sr. Júli
o Abílio de Lemos e Senhora".
O jornal dizia qu
e a bandeja era de prata e os copos de cristal,
o que me encheu de satisfação pois, na loja onde
comprei, foi o que achei de mais barato em maté
ria
de presentes. Comprei com o dinheiro das mi
nhas economias às escondidas de Júlio e quando e
le leu, sorriu sem dizer nada, sacudindo os ombr
os, como quem diz: O dinheiro
é seu, faça o que
quiser.
À tarde, as vizinhas vieram saber porm
enores da festa e eu contei tudo o que tinha vis
to e inventei também alguma coisa, pois queriam
saber detalhes que eu não tinha
reparado; Olga
e Clotilde dobraram o jornal religiosamente para
levar para mamãe ler e mostrar a todos em Itape
tininga.
Dois dias depois, Júlio me fez uma gra
nde preleção sobre economia, dizendo que não pod
íamos esperdiçar dinheiro porque tínhamos o grav
e compromisso da casa e que
o presente que eu h
avia comprado para a neta da tia Emília, fora um
desperdício; seria muito melhor que, com esse d
inheiro, comprasse roupinhas para os meninos;
q
ue os ricos desprezam os pobres e que o presente
que eu tinha comprado com sacrifício, seria ati
rado numa prateleira da despensa, ou serviria pa
ra o chofer beber
água. Olhei Júlio sem replica
r, admirada de tanto egoísmo, pois todos os sába
dos ele dizia que tinha balanço na loja para min
has irmãs não desconfiarem e voltava
sempre de
madrugada completamente embriagado. Eu mesma tir
ava-lhe as roupas para que as crianças não o vis
sem no dia seguinte dormindo vestido e mais de u
ma vez,
encontrei nos seus bolsos, notas de cer
veja, bifes com batatas e ceias entre amigos. Po
dia ter respondido que a última nota que encontr
ei, dezessete mil e oitocentos
só de cerveja, d
ava também para comprar roupinhas para os filhos
, mas nada respondi com medo do seu gênio impuls
ivo.
Em princípios de janeiro, Olga e Clotilde
se prepararam para voltar
a Itapetininga; parti
ram levando Carlos e Alfredo para passarem o fim
das
férias com mamãe; era a primeira vez que m
e separava dos meus filhos e fiquei tão desnorte
ada no primeiro dia que fiquei girando pela casa
de quarto em quarto sem
saber o que fazer e ac
abei chorando na cadeira de balanço, com Isabel
no colo.
Comecei então a trabalhar ativamente p
ara ajudar Júlio a pagar a casa; tínhamos pago a
penas cinco contos que foi o que Júlio recebeu p
ela morte do pai; estávamos
devendo ainda vinte
contos que seriam pagos anualmente durante dez
anos. Precisávamos pagar dois contos e quinhento
s por ano e isso nos fazia perder o sono muitas


noites, porque, se no fim do ano não tivéssemos
dinheiro para pagar, perderíamos a casa e eu di
sse a Júlio que preferiria morrer a perder aquel
a casa e trabalharia
quanto fosse preciso, mas
a casa seria nossa. Equivalia a um aluguel de 20
8$300 por mês e, como até àquela data, tínhamos
residido em casas de 120$000, essa idéia
nos an
iquilava; percorremos todos esses anos com uma ú
nica idéia no pensamento: "Trabalhar para pagar
a casa." Às vezes eu pensava em quanto seríamos
felizes no
dia em que a casa fosse nossa e não
tivéssemos mais esse pesadelo; seria um grande d
ia.
No fim das férias, os meninos voltaram, mai
s fortes e corados; vieram contando proezas, pri
ncipalmente Carlos que falava muito; Alfredo só
fazia sim ou não com a
cabeça.
Assim foram pas
sando os meses. Eu trabalhava muito, às vezes at
é tarde da noite para entregar uma encomenda no
dia seguinte e amanhecia sempre com dor de lado
ou
dor de cabeça. Mamãe escrevia que fosse vê-l
a e descansar um pouco, pois ela sabia que eu tr
abalhava muito. Prometi ir nas férias seguintes
com as crianças: então
em julho recebi uma cart
inha de Olga contando que estava noiva do Zeca e
se casariam no fim do ano. Fiquei muito content
e com essa notícia; comprei uma peça de morim
n
a loja onde o Júlio trabalhava e preparei uma su
rpresa para Olga; fiz camisas debruadas com rend
inhas, calças, combinações e por fim comecei a b
ordar um par de
fronhas para o dia. Tudo isso d
eu muitíssimo trabalho porque eu não recusava en
comendas de sapatinhos e paletozinhos pois preci
sava ganhar algum dinheiro.
Um dia o jornal tro
uxe a notícia da morte de uma das filhas de tia
Emília; era uma das "meninas", a prima Justina.
Eu disse a Júlio que precisávamos ir, mas ele
n
ão quis, que aquilo era uma xaropada e que iria
no enterro no dia seguinte. Fui sozinha. Vesti u
m vestido preto e fui depois do jantar para a Ru
a Guaianases; tia
Emília estava inconsolável, o
rosto vermelho e inchado de tanto chorar. Mal f
alei com ela e fiquei sentada num canto, muito q
uietinha. Entravam a todo o momento
pessoas que
eu não conhecia, atravessavam o salão na ponta
dos pés e iam falar com tia Emília que estava no
centro, ao lado do caixão, rodeada dos filhos e
parentes.
Fiquei ali uma hora e tanto, depois
me levantei e fui para outra sala; o ar estava a
bafado e um cheiro forte de flores predominava.
Nessa sala, a prosa era animada;
conversavam e
riam; então me convidaram para ir tomar um café
na sala de jantar; havia gente em todos os canto
s da casa e uns conversavam a meia voz, outros e
m tom
alto. Muitas senhoras se encontravam depo
is de não se verem há muito tempo: faziam exclam
ações de alegria e trocavam beijos: — Como vai?


— Vou bem. Há quanto tempo não nos víamos?
— N
em sei. Creio que há mais de um ano, desde o cas
amento de Laura. Foi mesmo. Estivemos juntas a ú
ltima vez no casamento de Laura.
— Será possíve
l? E como vai Laura?
— Vai bem; com um filho e
meio. Espera o outro para o fim do ano. Riam-se
alegremente, depois lembravam-se da morta, e seu
s rostos
tornavam-se consternados, baixavam a v
oz. Mas a prosa continuava:
— E seu irmão como
vai? Era úlcera mesmo que ele tinha?
— Era. Fez
regime durante muito tempo e está bom. Pelo men
os se livrou de operação. Sabe que quando arrebe
ntou a guerra, ele estava na Europa?
— Que horr
or! Como foi? Como conseguiu fugir?
— Estava na
Bélgica quando ela foi invadida. Em Bruxelas. A
ssistiu todo aquele movimento; esteve a noite in
teira diante do palácio do Rei esperando o Rei d
ar a resposta
aos alemães. O povo todo excitadí
ssimo; foi um horror, não podia receber dinheiro
para embarcar; levou dias esperando; o país tod
o em expectativa. Era de madrugada
quando o pov
o todo estava em frente ao Palácio e o Rei deu a
resposta aos alemães: Não passarão. Foi um delí
rio em toda a cidade, ninguém dormiu, todo o mun
do aclamando
delirantemente, o Pedroca assistiu
tudo.
— Não sabia. Depois conseguiu vir?
— Re
cebeu dinheiro e embarcou depois de muitas perip
écias; só vendo o que ele conta. Soube que o Qui
ncas morreu?
— Quem? O Quincas Santos? Sabia qu
e estava doente, mas não que tinha morrido.
— M
orreu na Europa. Lembrei-me dele porque falamos
na Europa. Morreu tuberculoso, na Suíça.
— Não
sabia. Coitado. Mas foi de repente?
— Já estava
doente há muito tempo, há mais de um ano; ningu
ém falava nada, guardaram segredo na família.

Tolice guardar segredo dessas coisas. O que adi
antou?
— Pois é. Agora a família está aí e dize
m que eles não estão muito bem de finanças. Pare
ce que os negócios ficaram atrapalhados.
— Eram
tão ricos.
— É, mas com dinheiro não se brinca
.
Entravam outras pessoas e tomavam café que os
criados serviam. Havia um silêncio, depois novo
sussurro de vozes e exclamações abafadas. Pergu
ntavam:
— Afinal, de que ela morreu?
E apontav
am disfarçadamente o salão. Um dizia:
— Não sei
. Dizem que foi do coração.
— Foi sim. Coração.
Há muito tempo estava com uma lesão bem adianta
da. Teve várias síncopes e não voltou da última.

— Coitada. Ninguém escapa, não?
— Ninguém. É
o fim de todos nós.
— É verdade.
De repente ou
vi uma voz conhecida atrás de mim:
— É Lola? Co
mo vai, Lola? Há quanto tempo não via você.
Era
tia Elvira, outra irmã de meu pai. Era pobre ta
mbém e morava em Santos. Fiquei satisfeita de en
contrar alguém com quem falar:
— Oh! Tia Elvira
! Como vai a senhora? E os seus?
— Graças a Deu
s todos bons. E sua mãe como vai? Continua traba
lhando muito?
Começamos a falar alegremente sob
re as pessoas da família quando ouvimos vozes ch
orosas vindas do salão; baixamos então a voz e d
epois ficamos quietas. Mas tia Elvira
era incan
sável em saber novidades; queria saber se meu ma
rido estava bem, se ganhava bastante, se a casa
já era nossa, que idade tinham meus filhos, em q
ue colégio
estavam, qual a qualidade de doces q
ue mamãe gostava mais de fazer e se tinha encome
ndas todos os dias. De repente, ela parava um po
uco de falar, fazia um rosto
sério, suspirava e
dizia:
— Coitada da Justina. Sofreu bem.
Seu
peito subia e baixava com os suspiros que dava;
era um peito cheio e imponente. Majestoso. Quand
o via um conhecido, cumprimentava sorridente e f
icava séria outra
vez, o rosto tristonho; suspi
rava:
— Coitada da Justina.
Mais tarde, uma da
s netas de tia Emília nos levou para a copa e to
mamos um prato de canja. Era meia-noite. Ficamos
lá muito tempo, bebendo vinho do Porto e tomand
o
café. Tia Elvira formou uma rodinha de parent
es e conversou com animação durante mais de uma
hora; de vez em quando se lembrava de prima Just
ina, e seu peito subia
e descia, arfava em susp
iros tristes.
À uma e meia, quase todos tinham
se retirado e ficou só uma meia dúzia de pessoas
à volta do caixão. As velas nos castiçais de pr
ata tremiam de vez em quando como
se um vento i
nvisível soprasse sobre elas; a cera escorria tr
istemente e formava montões sobre os castiçais.
Ouvia-se o crepitar suave das chamas que ardiam.
Eu
olhava o rosto da defunta; era um rosto ine
xpressivo como fora em vida; morena, feia, cabel
os brancos, tristonha. Em toda sua vida só tiver
a dinheiro, mas o dinheiro
não compensara a fal
ta de outros bens como a beleza e o amor. No cas
amento não fora feliz, nem infeliz; fora igual a
tantas outras mulheres. Enviuvara cedo e voltar
a
a residir com a mãe; não tivera filhos para s
uavizar sua árida e seca velhice. Toda a sua vid
a havia sido plácida como um lago escuro, sem on
das, perdido numa planície
deserta; e agora ali
estava deitada entre velas que ardiam mansament
e, as mãos cruzadas sobre o peito. A fortuna não
a defendera da moléstia, da infelicidade e da

morte.
O cheiro das flores era tão violento às
vezes que sufocava; alguém abriu uma janela atrá
s de mim e o ar frio da madrugada começou a inva
dir o salão e a refrescar
o ambiente, levando p
ara longe o cheiro persistente de flores murchas
.
Convidaram novamente para comer alguma coisa;
na copa havia um prato de sanduíches, bolo e ca
fé. Enquanto comia sozinha, lembrei-me de que un
s meses antes ali estivera
festejando um casame
nto; houvera também flores, bolos e movimento. E
stava agora diante da morte, mas uma afinidade q
ualquer unia as duas cerimônias, era um ponto
d
e contacto quase impalpável, mas existente. Em v
ez de parabéns, a gente dava pêsames; em vez de
rosto alegre, fazia um rosto triste; mas todos p
rocuravam os donos
da casa e diziam umas palavr
inhas, tanto no casamento como na morte. Todos a
pertavam-se as mãos, abraçavam-se, as mulheres t
rocavam beijos; e sempre flores, muitas
flores.

#Quando o dia chegou e os primeiros bondes com
eçaram a circular, saí sem falar com ninguém e f
ui para casa, descansar. Dormi um pouco; e depoi
s do almoço, Júlio
saiu para ir ao enterro; foi
de roupa escura, gravata preta, queixando-se de
que aquilo era uma grande estopada, mas foi.
i
n
E
ASSIM chegou o fim do ano. Preparei-me par
a seguir para Itapetininga; em fins de novembro
estava tudo pronto e eu tratei da minha viagem.
Fedi à Durvalina que tomasse
conta da casa na m
inha ausência, pois Júlio comeria fora, preparei
minhas crianças, fiz roupas novas para todos, e
com malas, trouxas, pacotes, e filhos, tomei o


trem para Itapetininga no dia primeiro de dezem
bro de 1915.
A temporada lá foi muito alegre po
r causa dos preparativos do casamento que estava
marcado para o dia 31; tínhamos sempre muitas v
isitas que iam me ver e perguntavam
tanto sobre
nossa casa da Avenida Angélica como se ela foss
e um palácio. As crianças aproveitavam muito e c
orriam no quintal o dia inteiro, aos gritos; um
dia Alfredo
caiu de uma ameixeira e torceu o pé
. Ficamos muito aflitos e pensamos que tivesse q
uebrado algum osso; eu já estava imaginando de q
ue modo escreveria a notícia a
Júlio, quando o
Zeca examinou melhor o pé e disse que não estava
quebrado; era uma torcedura. Alfredo teve de fi
car quase uma semana com a perna estendida; resm
ungava
e chorava, furioso por estar preso, mas
nó fim da semana ficou bom e corria como os outr
os.
O vestido de casamento de Olga foi feito nu
ma boa costureira e ficou bem bonito; era de gor
gorão, enfeitado de rendinhas. A roupa branca pa
ra o dia foi feita por
nós mesmas e deu trabalh
o porque era toda enfeitada com preguinhas estre
itíssimas, muito delicadas. O casamento foi real
izado de manhã para os noivos embarcarem
cedo p
ara São Paulo; assim também ficou mais económico
porque, em vez de mesa de doces, oferecemos um
chocolate acompanhado de bolos, sequilhos e bisc
oitos de polvilho.
Júlio chegou na sexta-feira
à noite e a cerimónia foi no sábado pela manhã,
em casa de mamãe. Nessa noite ninguém dormiu qua
se, a não ser as crianças; eu e Júlio
ficamos a
rranjando o altar até depois da meia-noite; puse
mos uma toalha branca bordada sobre uma mesinha,
depois uns vasos com camélias e jasmins de cada
lado da
mesinha e no centro um crucifixo de pr
ata, emprestado por tia Candoca, a irmã de mamãe
. Colocamos na parede, até uma certa altura, uma
toalha branca pregada com
tachinhas e isso dem
orou porque as tachinhas não seguravam a toalha
e Júlio foi ficando impaciente; então pregou pre
gos em vez de tachinhas e mamãe reclamou dizendo

que os pregos rasgariam a toalha e de fato ras
garam um pouco, o que me contrariou bastante.
P
ara tapar os pés da mesa, pusemos outra toalha q
ue ia até embaixo,
com uma renda larga à volta
toda e no chão colocamos um tapetinho,
empresta
do por uma amiga nossa vizinha. Depois disso, fu
i engomar o
vestido de Isabel e passar a camisa
de Júlio, pois durante o dia não tivera tempo p
or causa do casamento civil e outras coisas. Enf
im fui me deitar às duas horas
da manhã e acord
ei de madrugada com o barulho de mamãe fazendo b
iscoitos de polvilho no forno de barro; queria q
ue fossem quentinhos para a mesa. Às seis e meia
,
todos já estavam de pé e eu fui vestir as cri
anças; comecei por Carlos, depois Alfredo, Julin
ho e Isabel. Cada um que eu aprontava, punha sen
tado no sofá da sala
e dizia: "Fique quieto aí
e não se mexa".
Ficaram mais ou menos quietos;
Isabel parecia um repolhinho porque era gorda e
com o vestido branco bem engomado e armado, pare
cia um repolho ou uma flor. Depois
Clotilde e e
u fomos vestir e pentear a noiva; de vez em quan
do, eu ouvia uma vozinha na sala:
— Mamãe, Juli
nho saiu do lugar e está passeando na sala. Eu g
ritava do quarto:
— Julinho, assim você não ass
iste à festa. Depois a voz de Julinho:
— Mamãe,
Alfredo quer dar em Carlos; estão querendo brig
ar porque Carlos chamou Alfredo de Fedo.
Eu apa
recia na porta da sala:
— Fiquem quietos, senão
acabam apanhando.
Depois ouvi o choro de Isabe
l; furiosa porque Carlos disse que ela parecia u
ma couve-flor. Os outros começaram a gritar:

A banda está tocando! Olhe a banda: Ta-ra-ta-chi
m-chim-chim! Todas as vezes que Isabel chorava,
diziam que a banda estava tocando
e imitavam o
choro dela. Pedi a Júlio:
— Pelo amor de Deus;
tome conta das crianças.
Júlio estava pronto e
sentou na sala, esperando os convidados; as cria
nças estavam assanhadas e levantavam a todo mome
nto para espiar na porta da rua e ver quem
cheg
aria primeiro. De repente gritaram:
— Olhe o Ze
ca! O Zeca vem vindo! Olhe o noivo!
O Zeca entr
ou um pouco nervoso, enfiado numa roupa preta, o
s cabelos lustrosos, botinas novas, gravata nova
.
No quarto, Olga estava quase pronta; quando c
olocamos o véu, ficou muito bonita, mas um pouco
pálida; passamos então carmim nas faces e ficou
muito melhor, com um
aspecto alegre e saudável
.
A cerimónia realizou-se às nove horas, entre
pessoas íntimas e parentes; compareceram os pais
e irmãos do Zeca, nossa tia Candoca e os filhos
, o tio de Júlio e umas
quatro amigas de Olga.
Correu tudo muito bem mas o padre fez um sermão
um pouco longo; quando terminou, todos estavam c
ansados e suando por causa do calor e das
velas
do altar. Mamãe enxugava as lágrimas que teimav
am em correr dos seus olhos, misturados com suor
; todos estavam com um ar solene e comovido. Fom
os depois à
salinha de jantar e servimos um vin
ho do Porto para beber à saúde dos noivos; depoi
s oferecemos café e chocolate com bolos. Quando
os convidados começaram a se retirar,
Olga troc
ou o vestido de noiva por um vestidinho de viage
m azul-marinho com gola branca, enquanto o Zeca
também foi trocar de roupa. Às onze e pouco, emb
arcaram
para São Paulo, alegres e cheios de esp
eranças.

Embarcamos no dia seguinte e depois
de uma viagem fatigante, quente e poeirenta, che
gamos a São Paulo; as crianças perguntavam de ci
nco a cinco minutos: "Será que
ainda não chegam
os? Falta muito ainda?"
Nossa casa deu-nos a im
pressão de um oásis num deserto árido cheio de a
reia e calor; estava fresca, limpa e agradável.
Os meninos começaram a correr de um lado
a outr
o numa grande satisfação. Durvalina estava senta
da nos degraus da escada, esperando. Fomos para
a cozinha preparar um jantar rápido e como eu ha
via trazido
alguma coisa de Itapetininga, em me
ia hora estava tudo pronto. Tomamos banho de chu
veiro e sentamos para o jantar; enquanto comíamo
s, comentávamos o casamento
de tia Olga e a via
gem.
Dias depois, Olga e Zeca passaram por São
Paulo, de volta da lua-de-mel em Santos. Jantara
m conosco e estavam tão contentes e fazendo tant
os planos risonhos
para o futuro que pareciam d
uas crianças, apesar de não serem já tão jovens.

Depois desse acontecimento, continuamos a mesm
a rotina de sempre; Júlio na loja de fazendas e
eu com meus tricôs. Nesse princípio de ano, elev
aram Júlio a gerente
da loja e isso foi maravil
hoso para nós. As crianças compreenderam que o p
ai tinha escalado um lugar mais importante na lo
ja e ficaram orgulhosas, principalmente
os dois
mais velhos; eu me lembro que esse inverno foi
muito longo e rigoroso. Nós nos reuníamos todas
as noites na sala de jantar e ficávamos conversa
ndo; Júlio
proibiu os meninos de brincarem na c
alçada nessas noites geladas de inverno, quando
a garoa cinzenta caía como um véu sobre toda a c
idade, envolvendo as casas, as
árvores e os lam
piões de gás em silenciosa melancolia.
Eu ajuda
va Carlos e Alfredo a fazerem as lições para o d
ia seguinte, enquanto Isabel dormia no colo do p
ai, toda enrolada como um novelo de lã, e Julinh
o cochilava
no meu colo, dizendo que não queria
dormir porque a cama estava fia.
Assim passava
m as horas; Júlio ia deitar-se mais cedo com os
dois menores e eu ficava ainda mais um pouco, co
nversando com Carlos e Alfredo. Ficava admirada
de ver
Carlos conversar e achava que ele tinha
uma inteligência viva e compreendia tudo rapidam
ente. Dizia que ia ser médico, enquanto Alfredo
não dizia nada, ou então
hesitava um pouco e ac
abava dizendo que queria ser mecânico e saber li
dar com automóveis; adorava os automóveis, achav
a-os impressionantes. Dizia às vezes:
— Imagine
, mamãe! Um carro que anda sozinho!
Eu sorria o
uvindo os planos dos dois; uma noite Carlos perg
untou:
— Mamãe, papai é rico?
Respondi que não
éramos ricos, mas estávamos bem e no futuro pod
íamos ficar ricos. Alfredo fez um risinho malici
oso e falou:
— Então se papai fosse rico, nós í
amos a pé para a escola, bobo? Carlos ficou verm
elho e disse que muitos pais podem ser ricos e n
ão
mandar os filhos de automóvel para a escola
e que pobres também não éramos, porque tínhamos
uma bela casa, a mais bela casa daquele pedaço d
a Avenida. Alfredo retrucou
imediatamente:

A casa não é nossa; estamos pagando, mas ainda n
ão é nossa. Não é, mamãe?
Respondi que sim e fi
quei admirada de Alfredo estar a par dos nossos
negócios, pois pensei que ele nada soubesse. Car
los não desanimou e continuou:
— Papai não é ri
co hoje, mas pode ter uma oportunidade e ficar r
ico. Levantei os olhos do meu trabalho e encarei
Carlos; fiquei orgulhosa
nesse momento vendo-o
empregar tão bem a palavra oportunidade; pensei
que poucos meninos daquela idade saberiam tão b
em a significação.
Quando nos deitávamos, eu fi
cava pensando na conversa de meus filhos e custa
va a conciliar o sono, querendo imaginar o que o
destino tinha reservado para cada um
deles; im
aginava Carlos um grande médico, atendendo solíc
ito a numerosa clientela, enquanto nas conversas
e nos chás, as senhoras elegantes comentavam di
scretamente:
— Um médico que está com uma grand
e fama é o Dr. Carlos de Lemos; parece que é Car
los Abílio de Lemos. Já ouviram falar?
Outra se
nhora respondia:
— Já sim, pois ele curou meu i
rmão e nenhum outro médico tinha acertado ainda
com a doença dele. É formidável.
Eu ouvia inter
essada, depois uma sussurrava qualquer frase e t
odas olhavam para mim; uma perguntava:
— Ah! A
senhora é mãe de Dr. Carlos? Não sabia, pois dou
-lhe os parabéns, seu filho é um grande médico.


Eu sorria como que me desculpando de ser mãe de
uma celebridade e não queria ficar orgulhosa, m
as ficava; sentia então o rubor se estender no m
eu rosto, apesar da
conversa ser apenas na imag
inação.
Depois meu pensamento ficava cheio de s
ombras quando pulava de Carlos para o futuro de
Alfredo. O que seria, quando fosse grande? Era u
m menino esquisito, tão indiferente,
parecia de
siludido. E o pior é que não queria estudar, não
queria nada. Queria ficar o tempo todo na rua,
brincando e correndo com moleques. Não gostava d
e livros,
nem de ficar sossegado no quintal com
os irmãos; vivia correndo com os outros meninos
na rua e seus amigos eram sempre os piores do b
airro. Eu ficava pesarosa quando
via Alfredo en
tre esses meninos; eram todos moleques sujos, de
scalços, fumando tocos de cigarro encontrados no
chão, dizendo nomes feios, cuspindo entredentes
e
apostando para ver quem cuspia mais longe, d
e lado e sibilando. Uns chamavam os outros por m
eio de assobios estridentes e agudos e todos tin
ham apelidos: Vira-mundo,
Raio negro, Silencios
o. Alfredo era o Silencioso.
Tinham fisionomias
cansadas e cínicas, pareciam velhos. Por mais q
ue eu pedisse e aconselhasse, Alfredo estava sem
pre com eles.
De vez em quando Carlos vinha me
contar em segredo que Alfredo tinha quebrado um
vidro na casa da esquina, ou tinha dado uma surr
a tão grande num outro menino que
o menino fica
ra machucado. E Alfredo era forte e grande; com
oito anos apenas, parecia ter doze.
Eu ficava c
heia de apreensões e procurava esconder essas pe
raltagens do pai, o mais que podia. Minhas censu
ras e meus ralhos de nada valiam e ele crescia c
ada vez
mais desobediente e mais sabido.
Muita
s noites eu ficava acordada uma hora inteira, ap
esar de cansada, pensando no futuro de meus filh
os, sem poder dormir. Achava que Julinho daria u
m rapaz sossegado
e estudioso, pois era um gran
de amigo dos livros. Apesar de não saber ler, fi
cava no quintal horas inteiras, sentado no caixã
o de querosene, com o livro sobre os
joelhos, q
uerendo adivinhar o que estava escrito. E tinha
o espírito do negócio; tudo o que podia vender,
ele vendia: pregos velhos, jornais, garrafas, la
tinhas
vazias. Gostava de guardar dinheiro; Júl
io chamava-o de banqueiro.
E Isabel? Com quem s
e casaria? Imaginava um bom marido para Isabel e
por mais que pensasse e pensasse, nunca estava
satisfeita, pois nenhum marido me satisfazia.
A
ssim passaram mais uns anos e chegamos ao fim de
1918.
Todas as crianças ficaram doentes, foi u
m tempo horrível para nós. Tiveram gripe forte e
eu tinha que passar horas e horas com Julinho n
o colo, com medo que ele
se afogasse no acesso
de tosse. Tossia muito, parecia que o peito ia a
rrebentar; chorava de aflição e engasgava com a
tosse. Um dia que as outras crianças também
est
avam doentes, com febre alta e eu ficara sozinha
em casa, pois Durvalina fora para a casa da mãe
, Julinho perdeu o fôlego e virando a cabeça par
a trás, ficou
vermelho e sem respirar. Olhei à
minha volta num desespero, sem saber o que fazer
; sacudi o menino com força e dei-lhe uns tapas
nas costas. Nada. Estava cada vez
mais roxo e n
ão respirava. Tive de repente uma inspiração; vi
a vassoura imunda num canto da sala, arranquei
depressa uma vareta da vassoura e sem pensar, en
fiei
na boca do menino, fazendo cócegas na garg
anta. Com isso, ele vomitou violentamente, passo
u a aflição e recomeçou a respirar outra vez. Re
parei depois que a vassoura
estava preta de suj
eira, mas no momento não lembrei de nada. Dei gr
aças a Deus de ter sido apenas um susto.
Júlio
também caiu com gripe forte; eu andava de quarto
em quarto, dando remédios, tomando a temperatur
a e fazendo chás que vomitavam depois; ninguém q
ueria comer
e eles ficavam numa prostração hora
s e horas. Não sei como atravessei esse tempo te
rrível sem ter nada; e foi uma felicidade, pois
pude tratar de todos; havia dias
que eu não and
ava, me arrastava de chinelas pela casa, indo de
quarto em quarto, tal a fraqueza e o desânimo q
ue sentia. Morreu muita gente de gripe esse ano;
e
uma netinha de D. Genu, uma criança de dois
anos, morreu também em poucas horas. Durante tod
a noite, eu ouvia o choro lamentoso da mãe na ca
sa vizinha; às vezes
parecia que não era gente,
eram uivos de cachorro. Júlio gemia:
— Pelo am
or de Deus, Lola. É horrível isso. Por que ela c
hora assim? A gente fica mais doente ouvindo iss
o.
Eu respondia:
— Meu Deus, o que você quer q
ue eu faça? Como posso proibir a mãe de chorar a
filha morta? Quer que eu vá lá e diga: "Não cho
re assim porque incomoda os vizinhos.
Júlio est
á aborrecido". Que absurdo!
Júlio resmungava, v
irava a cabeça para o lado com mau humor e tapav
a os ouvidos com as mãos para não ouvir o choro
desesperado da vizinha.
No fim da temporada má,
quando pensamos que tudo estivesse acabado, Isa
bel caiu com pneumonia. Nem gosto de lembrar do
que sofri; passava as noites ao lado dela,
toma
ndo a temperatura de meia em meia hora; levei-a
para outro quarto para deixar Júlio sossegado, p
ois ele se queixava de que precisava trabalhar e
não podia perder
as noites. O médico vinha tod
os os dias e não gostava do estado da menina; só
depois de passada a primeira crise, ela começou
a melhorar e a temperatura baixou.
O peitinho
não sibilava mais quando respirava e começou a d
ormir mais calmamente, sem se queixar de dodói n
as costas. O primeiro dia que a vi sentada numa
cadeirinha
no quintal, pálida e magra, mas salv
a da
moléstia, fiz uma promessa de ir a pé à Pe
nha e levar uma vela para Nossa Senhora.
Esse a
no foi duro para nós; tivemos que pagar a conta
do médico, farmácia e, como atrasei com meus tri
côs, quase não pudemos pagar a prestação da casa
. Júlio ficou
de um mau humor terrível e passav
a semanas sem falar comigo como se eu tivesse a
culpa de tanta infelicidade. Penso que ele fez a
lguma dívida porque perdia o sono
muitas noites
e eu o via sempre tão preocupado e aborrecido q
ue tive pena. Na mesa, brigava com as crianças p
or qualquer motivo e fazia-as chorar.
No fim do
ano, recebemos um cartão de Olga e Zeca partici
pando o nascimento da primeira filha; e uma cart
a de mamãe convidando-nos para ir com as criança
s passar
as férias em Itapetininga. Apesar da v
ontade que tive de ir, não falei nada aos menino
s, nem mostrei a carta a Júlio porque sabia que
ele ficaria indignado se eu
falasse em viagem d
epois de tantas despesas. Assim passamos as féri
as em São Paulo, numa grande economia. Trabalhei
muito e não saí de casa durante meses para não


gastar dinheiro em bondes e outras coisas. O Na
tal foi bem triste esse ano; as crianças ganhara
m brinquedos de papel e fiz apenas um bolo para
festejá-lo.
Outro inverno chegou e passou; e ch
egaram outras férias de dezembro. Mais uma vez n
os apertamos para pagar a prestação da casa; pag
amos. E outro ano começou. Esse
passou rapidame
nte, depois outro e mais outro, todos iguais. Ou
tras casas começaram a aparecer no nosso quartei
rão, como dizíamos, e a nossa já não estava isol
ada
como antes. Cada vez mais bonita por causa
do jardim. O canteiro de cravos ficou florido e
a trepadeira roxa se encheu de flores. Até a ros
eira chorão que Júlio
plantou um dia com carinh
o, deu rosas esse ano e as crianças espiavam tod
os os dias pela janela, bem cedo, e vinham me co
ntar:
Mamãe, hoje tem mais um cacho de rosas do
lado do escritório. Venha ver.
Cada um queria
ser o primeiro a dar a notícia. Foi então que Ca
rlos, o mais velho, fez doze anos. Eu ficava olh
ando Carlos e achando quase inacreditável já ter
um
filho de doze anos. Ele era forte, tinha bo
a altura, apenas magro. Tirava boas notas na esc
ola e nunca nos dava aborrecimentos.
Alfredo nã
o passou de ano e o professor escreveu uma carta
com queixas contra ele; dizia até que dava maus
exemplos na classe. Quis esconder a carta de Jú
lio, mas
não consegui e quando ele a leu, viu q
ue Alfredo fora reprovado e ainda havia sérias r
eclamações contra ele. Pegou o menino, levou-o p
ara o quintal e deu-lhe uma
grande sova com a p
rópria cinta. Cada grito de Alfredo, era uma pon
tada em meu peito, como a ponta de uma faca; eu
torcia as mãos sem saber se devia intervir ou
n
ão. Depois que tudo passou, fui procurar Alfredo
que estava chorando, sentado na cama da Durvali
na; reparei que não era um choro sentido, era de
raiva e falava
em vingança. Percebi que ele es
tava fervendo de ódio contra o pai. Passei minha
mão nos seus cabelos, abracei-o aconselhando e
dizendo que tudo era para o bem dele,
mas o men
ino estava revoltado e não queria
me ouvir. Ped
i que prometesse ser bom e ajuizado, estudar mai
s e não andar com os moleques, mas ele nada prom
eteu. Com os dentes cerrados, chorava de raiva e
tremia.
Deixei-o mais tarde e fui tratar do me
u serviço; à hora do jantar, ninguém sabia onde
estava Alfredo. Havia desaparecido. Os irmãos pr
ocuraram-no por toda a vizinhança
e ninguém o t
inha visto nesse dia. Sentamos para jantar muito
apreensivos, e olhei Júlio que comia com a cabe
ça baixa, preocupado. Depois fui ficando cada ve
z mais
aflita; deixando Isabel com o pai saí co
m Carlos e Julinho para procurar Alfredo em toda
s as casas que ele costumava ir. Andamos pelo ba
irro todo, até bem longe
e ninguém vira Alfredo
. Pensei que ele já devia estar em casa nesse mo
mento; voltamos apressadamente e em casa também
ele não estava. Comecei a chorar, sentada num
c
anto da sala, pensando que a essa hora meu filho
devia estar morto; e meus soluços eram cada vez
mais fortes. Júlio andava de um lado para outro
, sem saber o que
fazer. De repente, pôs o chap
éu na cabeça e disse que ia à Polícia saber se h
avia notícias do menino. Acompanhei-o ao portão,
explicando:
— Diga na Polícia que ele está com
calça azul-marinho e blusa branca. Não esqueça
de dizer que não tem doze anos ainda, mas parece
que tem. É bom dizer também
que tem umas quatr
o sardas bem na ponta do nariz. É claro, até alo
irado; forte e bonito. Não esqueça Júlio. E vá d
e táxi para ir mais depressa.
Júlio saiu sem na
da responder e eu fiquei com os outros filhos na
janela, vendo meu marido sumir na esquina. Eram
nove horas já.
As crianças ficaram ao meu lado
, excitadas pelo acontecimento, sem querer dormi
r, comentando o desaparecimento do irmão. Às onz
e horas, Julinho e Isabel dormiram
nas cadeiras
da sala; levei-os para o quarto. Ficamos Carlos
e eu esperando ansiosamente. Às onze e vinte mi
nutos, Júlio voltou dizendo que na Polícia não h
avia
aparecido menino algum dessa idade e que a
té aquela hora nada se sabia a respeito de Alfre
do. Sentei desanimada numa cadeira e, com a cabe
ça apoiada nos braços,
fiquei durante muito tem
po imaginando tudo o que havia de pior e que pod
ia ter acontecido a Alfredo. Via seu corpo esmag
ado sob um bonde; de repente, via-o morto
no Ri
o Tietê, o rosto inchado e irreconhecível, desli
zando entre as águas do rio, no meio de galhos e
folhas secas; depois o chamado na Polícia para
a identificação.
Homens desconhecidos à nossa v
olta e o delegado perguntando, penalizado:
— É
este o menino?
Reagia procurando afastar esses
pensamentos, mas eles voltavam de novo, imperios
amente. Júlio com as mãos nos bolsos, passeava n
a sala de um lado a outro; de vez
em quando che
gava à janela do escritório e ficava olhando a A
venida durante longo tempo. Assim passaram as ho
ras; Carlos adormeceu sobre o sofá da sala e qua
ndo
eu quis levá-lo para a cama, acordou dizend
o que queria esperar o irmão, mas levei-o assim
mesmo e obriguei-o a se deitar. Às duas da manhã
, sentei-me num dos degraus
da escada que dava
para o jardim e fiquei imóvel, esperando, no meu
desespero pedia a Deus que trouxesse meu filho
de novo; rezava misturando as palavras sem compr
eender
o que estava dizendo e na minha reza vi
sempre seu corpo estendido numa calçada, o crâni
o esmagado.
Às três da manhã, Júlio começou a s
e desesperar, dizendo que eu era culpada; que se
fosse mais enérgica, ele não fugiria, e que eu
estragava a educação dos filhos
com os mimos qu
e dava; que não se pode fazer
a vontade das cri
anças como eu fazia e o resultado era esse. Eu e
nterrava a cabeça entre os braços com vontade de
gritar, mas não respondia. Ele então pôs o chap
éu
na cabeça e saiu a pé pela Avenida afora, po
is não havia bondes a essa hora. Fiquei no portã
o vendo seu vulto desaparecer entre as árvores l
á embaixo; e cada vez
que via uma criatura huma
na se aproximar de mim, pensava que era Alfredo
e meu coração batia furiosamente, mas nunca era
ele. Às cinco horas, vi Júlio chegar devagar,
c
ompletamente desorientado, o chapéu inclinado pa
ra trás da cabeça, as mãos nos bolsos, um cigarr
o apagado no canto da boca. Estava lívido, grand
es olheiras sob
os olhos; perguntei com o coraç
ão apertado:
— Nada, Júlio?
Olhou-me duramente
, a fisionomia cansada e infeliz, e sentando-se
no sofá, respondeu entredentes:
— Nada.
Fui en
tão me arrastando para a cozinha, sem saber o qu
e pensar da nossa vida, completamente aniquilada
pela aflição; encontrei Durvalina já de pé, tam
bém aflita
por notícias, assoprando o fogo para
a água do café. Começou a falar:
— Não desanim
e, D. Lola. Isso é coisa de menino; ele é muito
levado mesmo, mas ele volta. A senhora vai ver.
E tudo por causa da sova, foi muito forte.
Debr
uçada sobre o fogão, assoprava o fogo muitas vez
es, as bochechas negras muito luzidias, enquanto
uma leve chamazinha azul começava a crescer e o
cheiro da lenha
queimada enchia a cozinha. Fiq
uei esperando o café, sem coragem de mover um de
do, encostada na porta da cozinha, olhando sem v
er e sem coragem de enfrentar o olhar
de Júlio,
duro e colérico sobre mim.
Depois do café, vol
tei novamente para a sala e vi Júlio cochilando
no sofá, pálido e desfigurado, os pés sobre outr
a cadeira; passei sem fazer ruído e cheguei ao

portão. Várias carrocinhas de padeiros e leiteir
os subiam e desciam a Avenida; pessoas saíam de
suas casas e iam esperar o bonde na esquina. Já
eram seis e pouco
quando meu coração deu um sal
to no peito; vi meu filho Alfredo que se aproxim
ava segurando a mão do padrinho, um amigo nosso,
em casa de quem iam jogar bola aos
domingos. M
eus olhos ficaram nublados de lágrimas e mal dis
tingui os vultos que se aproximavam cada vez mai
s. Nem sei como gritei para dentro:
— Júlio, Al
fredo vem vindo.
Quando chegaram ao meu lado, v
i que Alfredo estava trêmulo, muito pálido e seu
s lábios tremiam. O padrinho começou a falar, ma
s eu nada ouvi; abracei meu filho com
toda a fo
rça e chorei:
— Ah! Meu filho! Meu filhinho!
J
úlio desceu compassadamente a escadinha de cimen
to, como a pensar em cada degrau, que atitude to
maria; Alfredo então se afastou de mim, e ficou
esperando o pai,
a cabeça baixa, um ar medroso,
sem uma lágrima nos olhos, os lábios apertados.
O padrinho falava e explicava, mas eu nem ouvi
o que ele dizia, tal a satisfação em
ter Alfred
o ao meu lado, com perfeita saúde. A única coisa
que entendi é que o padrinho pediu para não bat
ermos no menino; que ele tinha aparecido às cinc
o e meia
em casa dele, cansado de andar a noite
inteira pela cidade, sem rumo e arrependido de
ter fugido. Alfredo tinha um ar amedrontado e tr
istonho.
#Júlio olhava-o severamente, sem nada
dizer, mas no íntimo, percebi que estava content
e e aliviado por ver o filho novamente em casa.
Entramos todos e eu sempre
segurando o braço de
Alfredo como se tivesse medo que ele fugisse ou
tra vez. Os irmãos apareceram desconfiados, sem
saber se falavam ou não com ele; vi Carlos rindo

para o irmão e Durvalina trazendo o café na ba
ndeja com um alegre sorriso na boca sem dentes.
Depois do padrinho ter a promessa de Júlio que n
ão bateria no menino,
despediu-se e saiu. Júlio
voltou do portão, um ar grave e indignado. Perg
untou ao filho:
— Por que fez isso? Agora você
vai dizer por quê.
Alfredo com a cabeça baixa,
nada dizia: imóvel como uma pedra. Falei:
— Dig
a, Alfredo. Por que fugiu? Não pensou que nos de
ixava desesperados? Fale, meu filho.
Ele não fa
lava, cada vez mais silencioso e imóvel; percebi
que o pai ia perder a paciência e fiquei aflita
. Pedi:
— Responda alguma coisa, Alfredo. Onde
você foi?
Nada. Seu mutismo era desesperador. E
ntão Júlio perdeu a paciência; puxando-o por uma
orelha, arrastou-o pela sala, dizendo:
— Antes
não tivesse voltado. Você é um filho que só dá
desgosto e aborrecimento. Ouviu? Desobediente e
malcriado.
Corri atrás de Júlio, gritando:
— V
ocê prometeu não bater nele; você prometeu, Júli
o.
Procurei tirar o menino das mãos de Júlio, m
as Júlio segurava-o fortemente; Alfredo começou
a gritar e procurou morder a mão do pai. Carlos
olhava a cena com olhos
esbugalhados, enquanto
os dois menores começaram a chorar. Segurei entã
o violentamente o braço de Júlio e gritei:
— Nã
o faça isso. Você está louco? Ou é um homem sem
palavra? Que exemplo dá a seus filhos?
Ele larg
ou Alfredo, mas antes de largar deu um safanão n
o menino com tanta força que Alfredo foi parar n
o outro lado da sala, caindo de joelhos. Quase b
ateu a cabeça
na ponta da mesa. Corri para acud
ir o menino e ver se ele não estava ferido, enqu
anto Júlio saía da sala, ainda furioso e vermelh
o de raiva.
Alfredo passou vários dias num muti
smo absoluto, muito desapontado, sem falar e sem
brincar com os irmãos, sumido no quintal ou fec
hado no quarto.
Como prémio às boas notas de Ca
rlos e pelo fato de ter passado de ano brilhante
mente, mandamo-lo passar as férias em Itapetinin
ga, com mamãe. Foi sozinho, convencido
de que e
ra um homem, com uma maleta na mão, cheio de imp
ortância. Levei-o até à estação e enchi-o de rec
omendações e conselhos até o momento do trem com
eçar a rodar.
Alfredo tinha me pedido uns dias
antes que o deixasse ir também para Itapetininga
, mas eu disse que não; o pai não deixaria porqu
e estava desgostoso com as notas
dele, e nem pe
disse que seria inútil. Tive pena de meu filho,
mas nada falei a Júlio. E Alfredo passou umas fé
rias muito tristes, sempre na rua brincando com
os
moleques sujos e dizendo nomes feios aos pró
prios irmãos. Os pequenos me contavam;
— Mamãe,
Alfredo me xingou de galinha morta.
Galinha mo
rta era o nome carinhoso que Alfredo dizia quand
o brincava com os irmãos, porque geralmente os n
omes eram verdadeiramente impróprios. Isabel e J
ulinho
choravam às vezes e vinham se queixar:

— Mamãe, Alfredo me deu um tapa e me xingou.
Po
r mais que eu ralhasse, Alfredo não se importava
; parece que queria vingar-se por não ter saído
nas férias e tornava-se cada dia mais insuportáv
el. Entrava em
casa nas horas das refeições e p
ara dormir; mas quando sabia que o pai não vinha
almoçar ou jantar, ele também não aparecia. Com
o era diferente de Carlos, o mais
velho; Carlos
mandava cartinhas que me enterneciam; começavam
sempre por: "Minha querida mamãe", e meu coraçã
o parecia derreter de amor, como cera mole na pr
oximidade
do fogo. Contava tudo o que fazia e d
izia que ajudava a vovó e tia Clotilde a mexerem
o tacho de doce sob as mangueiras. E que a filh
a de tia Olga era uma belezinha;
já queria fica
r de pé e falava: Dá, dá, com os bracinhos esten
didos para ele.
Passaram dezembro e janeiro; em
fevereiro, Carlos voltou forte, disposto e até
me pareceu um pouco mais gordo. Mamãe veio com e
le para consultar o médico, o que
me deixou mui
to triste, pois ela estava bem magra, tinha uma
cor esverdeada e uma dor insuportável nas costas
. Levei-a a um médico conhecido nosso e ele diss
e que
só com operação ela ficaria curada; mamãe
tinha horror a operação e começou a chorar dian
te dele. Fomos então a outro médico que conhecía
mos apenas de nome, mas
tinha muita fama. Este
disse que ela não precisava fazer operação, bast
ava repouso e tratamento para ficar boa. Ela sai
u de lá mais animada, porém preocupada com
a pa
lavra — repouso. Disse-me:
— Como posso fazer r
epouso, Lola? Deu uma risadinha e continuou:

Se eu não trabalhar, como viver? Imagine se eu f
icar deitada o dia inteiro, sem fazer nada; você
pensa que Clotilde dá conta? Não tem perigo. Nó
s duas juntas
trabalhando sempre, muitas vezes
ficamos apertadas no princípio do mês, faça idéi
a se eu ficar parada dias e dias; no que dará?

Suspirou profundamente, e arrematou:
— Como é t
riste a vida de pobre!
Fiquei também triste por
não poder auxiliá-la e resolvemos consultar um
terceiro médico; mamãe não queria, dizendo que o
gasto já era excessivo, mas Júlio lhe fez
pres
ente do dinheiro da consulta, generosamente. Ess
e terceiro médico pronunciou um — talvez — que n
ão adiantou muito. Disse que talvez não precisas
se operar, se
ela fizesse muito repouso e um tr
atamento rigoroso. Ela gostou da palavra tratame
nto e, comprando os remédios indicados, voltou u
ma semana depois para Itapetininga,
dizendo que
preferia morrer a fazer operação.
Logo depois
recebi uma carta de Clotilde dizendo que mamãe n
ão ia nada bem; continuava a sentir dores e não
fazia quase repouso, por mais que Olga e Clotild
e pedissem.
Emagrecia dia a dia e estava sempre
se queixando. Fiz meus cálculos para ir visitá-
la nas outras férias com as crianças; e assim co
rreu mais um ano da nossa vida.
De vez em quand
o eu ia visitar tia Emília na Rua Guaianases e e
la também me visitava uma vez por ano. Há tempos
já que não tinha carruagem; comprara um grande
automóvel
preto que fazia sucesso por onde
pas
sava. Brilhante e imponente; mas quando começava
a rodar, soltava uma fumaça escura e fedorenta.
Alfredo ficava o tempo todo examinando o automó
vel detalhadamente,
quando a limusine parava em
frente à nossa casa; era uma alegria para ele c
onversar sobre maquinismos, principalmente de au
tomóveis. Nessa época, Isabel que se aproximava


dos oito anos, também entrou na escola; eu me l
embro tão bem do primeiro dia que ela foi, tão e
ntusiasmada e tão contente, com uma saia preguea
da azul-marinho e
blusinha branca de fustão, na
cabeça, um grande laço de fita vermelha. Com a
idade, já não era tão gorda, mas era bonita; as
faces rosadas e os cabelos castanhos
muito bril
hantes. Levou na pasta pão com goiabada, uma can
eca, lápis e caderno. Voltou tagarelando muito,
contando maravilhas da professora e das outras m
eninas.
Quando eu perguntei, curiosa:
— Então
o que fez na escola?
Ela me respondeu, entusias
mada, os olhos cintilantes de contentamento:

Comi o lanche que você me deu.
Achei graça e ab
racei-a rindo muito. Apesar de me sentir sozinha
algumas horas do dia, também me sentia orgulhos
a por vê-los interessados nos estudos e discutin
do
muitas vezes problemas ou lições de História
e Geografia. Um perguntava para o outro:
— Sab
e quando o Brasil foi descoberto?
— Sei. Quem n
ão sabe? Em 1500.
— E a descoberta da América q
uando foi?
— Em mil quatrocentos e... espere um
pouco...
— Ah! Sabe, hein?
— Sei sim. Espere
um pouco.
— Quando a gente sabe, não precisa es
perar. Então diga o que é uma ilha?
— Uma porçã
o de terra cercada de água por todos os lados.

— E um cabo?
— Um cabo?
O outro hesitava, coça
ndo a cabeça; bastava isso para tomar vaia dos i
rmãos:
— Não sabe! Não sabe! Mamãe, ele não sab
e nem o que é um cabo!
Alfredo ficava sempre de
lado, sempre indiferente, com um ar enigmático.

Nesse tempo, como eles já estavam crescidos e
não me davam muito trabalho, eu saía algumas noi
tes com Júlio para ir ao cinema; geralmente aos
domingos, quando Durvalina
ficava em casa. Uma
segunda-feira, Júlio e eu comentamos à noite a f
ita assistida na véspera; tínhamos acabado de ja
ntar e eu estava auxiliando Durvalina a tirar
a
mesa quando Júlio disse que achara a fita imora
l. Respondi:
— Não deixa de ser mesmo imoral, m
as é uma boa fita.
— E lá estava cheio de crian
ças e mocinhas; deviam avisar que a fita era imo
ral, assim só os grandes iam, disse Júlio.
Os m
eninos escutavam, interessados em nossa conversa
; Julinho perguntou:
— Mamãe, o que é imoral?

Não respondi e peguei a toalha da mesa para sacu
dir na janela, enquanto dizia a Júlio:
— Há gen
te que não se importa de levar as crianças e as
filhas pra verem fitas imorais. Conheço muita ge
nte assim.
Julinho tornou a perguntar, curioso,
puxando-me pelo braço:
— O que é imoral, hein,
mamãe?
Isabel, que ouvia também com interesse,
olhou Julinho e disse, impaciente :
— É doença
, Julinho.
Júlio e eu rimos muito com a respost
a de Isabel e tempos depois, Júlio ainda pergunt
ava com ar brincalhão:
— Isabel, o que é imoral
?
Ela ficava vermelha e não respondia.
Chegou
o fim do ano com graves preocupações para mim. E
screviam de Itapetininga que mamãe ia cada vez p
ior; eu tinha medo que faltasse dinheiro para a
prestação
da casa e que Alfredo não passasse de
ano na escola. Ele dizia que estudava, mas eu p
ercebia que não pegava num livro e quando lhe pe
dia com voz pesarosa:
— Estude um pouco, Alfred
o. Por favor, vá estudar. Ele respondia com má-c
riação:
— Já estudei, já estudei.
Ia embora, b
atendo com os pés no chão e fechava a porta com
força para não ouvir minhas censuras.
Para aume
ntar minhas apreensões, houve uma epidemia de ca
xumba em setembro desse ano e minhas crianças fo
ram as primeiras a ficar doentes. Os rostos inch
aram e elas
não dormiam de dor; eu passava hora
s e horas no quarto e no dia seguinte estava exa
usta e não podia dar conta das minhas encomendas
, o que me deixava triste e com
dor de cabeça.
Felizmente chegou dezembro e com grande esforço
pagamos a casa; Alfredo passou arranhando para o
terceiro ano e Carlos tirou o diploma do Grupo
Escolar
com brilhantes notas.
Preparei uma mes
a de doces e bolos e mandei Carlos convidar os a
migos para festejar o acontecimento. Na véspera,
enquanto estava batendo os bolos, ouvi tapas no

quarto e uma forte discussão. Isabel apareceu
muito assustadinha dizendo que Carlos e Alfredo
estavam se socando; corri para acudir e consegui
separá-los, dando
uns tapas em cada um. Carlos
dizia vermelho e suando:
— Não admito, ouviu?
Não admito esse desaforo. Alfredo respondia, ind
ignado:
— Deixe de ser besta. Você é a maior be
sta que eu já vi.
Carlos então olhou para mim e
explicou, ainda ofegante e furioso:
— Mamãe, e
le quer trazer os amigos dele para comer os doce
s; são todos moleques da rua, não sabem nem come
r na mesa. Eu toco eles daqui.
Alfredo tentou a
vançar outra vez, gritando:
— É mentira, mamãe.
É mentira desse estúpido. São tão bons quanto v
ocê; são melhores ainda.
Consegui acalmá-los, p
ondo Carlos fora do quarto e ralhei com Alfredo
dizendo que a festa era só para Carlos e os amig
os; ele não devia intervir; mandei que ficasse

no escritório de castigo até o pai chegar.
Perc
ebi que logo depois Alfredo estava brincando na
calçada com os moleques; fingi que não vi porque
não adiantava e ele não me obedecia mesmo. À ho
ra do jantar,
ele entrou com um arzinho cínico,
evitando olhar para meu lado e jantou muito bem
.
#À noite, enquanto o sono não chegava, comece
i a recordar os conselhos que papai me dera quan
do me casei:
— Eduque os filhos com critério, L
ola. Quando você disser para uma criança: tem qu
e ficar hoje meia hora de castigo, é preciso que
essa criança fique meia hora de
castigo; não s
e esqueça disso que é importantíssimo. Assim, qu
ando você prometer um passeio ou um doce, precis
a cumprir, senão se desmoraliza diante do filho,
ele
não obedece mais porque não crê em você e
lá se vai por água abaixo a força moral que é a
maior força que temos. E nunca prometa demais; n
em castigos muito fortes
de que possa se arrepe
nder depois, nem passeios ou promessas que você
sabe que não pode cumprir. Não se esqueça disso
são fatores principais na educação de um filho.


Meditando nessas palavras da experiência ouvida
s há tantos anos atrás, pensei com certa tristez
a que Alfredo com onze anos apenas não me obedec
ia, fugia aos castigos
e não dava atenção às mi
nhas palavras. Eu sabia que papai tinha razão, p
ois fora professor numa escola rural durante mui
tos anos e depois diretor. Em trinta e tantos
a
nos de sua vida, só vira crianças diante de si e
só convivera com crianças; crianças de várias r
aças, de várias origens, de várias cores e de vá
rias religiões.
Fora um mestre-escola eficiente
e honesto, sempre elogiado pelos pais dos menin
os e elevado no conceito dos inspetores que visi
tavam a escola. Diziam dele: é um
verdadeiro pe
dagogo.
dias depois fui com as crianças a Itape
tininga para passar um mês de férias. Uma verdad
eira festa a nossa viagem; uma semana antes as m
alas e pacotes já estavam
prontos e colocados n
o sofá da sala de jantar. De vez em quando, um s
e lembrava que se esquecera de colocar qualquer
coisa, corria e desmanchava malas e pacotes
par
a pôr o objeto esquecido; assim Isabel colocou a
boneca de pano com protestos veementes de Julin
ho que havia acabado de arrumar tudo de novo por
causa de uns
sapatos velhos. Carlos queria que
eu levasse presentes para a avó e as tias; dizi
a toda hora: "Mamãe, não se esqueça dos presente
s".
Chegou o dia da viagem; Júlio nos acompanho
u à estação, prometendo que iria nos buscar, se
pudesse. Durante todo o percurso, as crianças es
tavam excitadas, falavam
e riam o tempo todo, p
ois agora eram maiores e apreciavam mais as viag
ens; e depois, há mais de dois anos não deixávam
os São Paulo.
A chegada a Itapetininga foi outr
a festa; estavam todos esperando com ansiedade;
achei mamãe muito magra e abatida, mas jurando q
ue se sentia melhor. A criançada
começou logo a
correr pelo quintal e a subir nas árvores fazen
do uma gritaria insuportável. Mamãe olhava tudo
com um riso paciente e um olhar bondoso, enlevad
a pelas
peraltagens dos
netos
Confidencialmen
te, Clotilde me contou que achava que mamãe não
ia viver muito; apesar dos remédios e do tratame
nto, definhava dia a dia, e não queria falar em
fazer
operação. Olhei pra minha irmã meio desan
imada e ela me olhou também; ficamos apreensivas
com a perspectiva de perder mamãe; não disse na
da, mas pensei o que seria
de Clotilde se mamãe
morresse. Não falamos mais no assunto e ficamos
um tempo quietas, cada uma com seus pensamentos
. Depois resolvemos ir ao quintal onde estavam

as crianças; antes de ir, abri a mala e tirei as
roupas dos meninos. Ouvi no quarto vizinho, Clo
tilde dizer a Isabel que vinha correndo lá de fo
ra:
— É melhor você pôr outro vestido, Isabel.
Esse pode rasgar-se com as brincadeiras.
— Não
rasga, tia Clotilde. Eu tenho cuidado.
— Mas nã
o custa nada vestir outro; até deixa você mais a
vontade para subir nas árvores e brincar de peg
ador.
Não. Não precisa; e depois eu quero que r
asgue este vestido, não gosto dele. Pode rasgar.

— Não diga isso! Sua mãe não pode dar tantos v
estidos para você. É preciso economizar; vista a
quele mais velhinho.
— Não visto; eu quero acab
ar com este aqui. Clotilde se irritou:
— Não se
ja teimosa e vista este, Isabel.
Houve um silên
cio, depois a voz de Clotilde outra vez: — Vamos
, você precisa obedecer sua tia; vista este. A v
oz de Isabel respondeu, furiosa: >
— A senhora
não manda em mim.
— Como não? Não sou sua tia?


— Mas a senhora não manda, vá mandar nos seus f
ilhos.
Apareci na porta do quarto e encarei Isa
bel; estava vermelha, um ar carrancudo e com os
braços cruzados, não queria pegar o vestido que
Clotilde estava dando. Falei
com voz autoritári
a:
— Vista o vestido, Isabel.
Como ela não fiz
esse um movimento, dei-lhe um tapa no braço:

Já disse que vista o vestido.
Ela continuou imó
vel; os olhos enormes fuzilavam de raiva; então
Clotilde e eu tiramos o vestido dela à força e v
estimos o outro. Falei:
— Agora fique aí de cas
tigo meia hora.
Ela foi para o canto do quarto
e continuou imóvel, sem chorar; de repente repar
ei que levantava os ombros em sinal de pouco cas
o e dizia uma palavra. Clotilde sorriu
e abaixo
u a cabeça, disfarçando; eu me aproximei de Isab
el para ouvir o que ela resmungava, mas Clotilde
disse:
— Deixe essa menina tola e malcriada, v
enha descrever o resto da viagem. Então encontro
u o Benevides e a mulher?
Sentei na beira da ca
ma e comecei a falar do casal Benevides; Isabel
continuou a levantar os ombros e a murmurar. Con
tei que tinha achado a mulher do Benevides bem

bonitinha, e parece que com novidade; Clotilde c
onfirmou com a cabeça e sorriu, dizendo: quarent
a e cinco. Perguntei admirada:
— Quarenta e cin
co o quê? A idade dela? Impossível; nem dele. Cl
otilde me fez um leve sinal com uma expressão ri
sonha no rosto.
Continuei a conversar; terminad
o o assunto "Benevides". percebi que
Isabel con
tinuava do mesmo jeito. Não me importei e comece
i a falar de outras pessoas conhecidas, até que
se passou um bom quarto de hora e mandei Isabel
brincar
no quintal. Clotilde então deu uma gran
de risada, ficou até com os olhos úmidos; pergun
tei:
— O que foi?
— Sabe quantas vezes Isabel
disse burra? Cem vezes, Lola! Tive a paciência d
e contar. Ela levantava o ombro e dizia — burra.
.. burra. E eu fui contando: falou
cem burras e
cem levantamentos de ombro.
Fiquei horrorizada
:
— Será possível? Afinal não é para admirar; é
o génio do pai, Clotilde. Igualzinho. Nunca vi
uma pessoa teimosa como Júlio. Sabe que pimenta
faz mal,
come pimenta todos os dias. É desses q
ue morrem teimando. Mas o que Isabel fez é desaf
oro; vou bater nela.
Levantei-me para sair, mas
Clotilde me segurou pelo braço:
— Não vá. Ela
modifica com a idade. Deixe.
— Mas não posso de
ixar; é de pequenino que se torce o pepino. E de
pois tem a força do sangue que não ajuda.
Cloti
lde riu, procurando apaziguar:
— As crianças sã
o assim mesmo; com o tempo vão criando juízo. Ma
s foi estupendo ouvir os cem burras.
Assim conv
ersando, fomos ao quintal. Mamãe estava sentada
numa cadeira baixa à sombra das mangueiras; e as
crianças corriam à volta. A tarde ia escurecend
o lentamente
e o sol se infiltrava ainda atravé
s da folhagem, mas era um sol moribundo, dispers
ando a última claridade do dia. Tinha sido um di
a quente de dezembro e toda a natureza
parecia
sentir também o calor e acompanhar a trajetória
do sol, respirando agora com delícia a frescura
da noite que chegava de manso, como se viesse na
pontinha
dos pés, sorrateira e desconfiada, en
tre sussurros e suspiros. Fazia lembrar uma conv
ersa íntima entre mulheres bonitas e perfumadas,
trocando confidências de amor
a meia voz e mur
murando segredinhos entre sorrisos velados e olh
ares misteriosos cheios de langor.
Ficamos ali
uns instantes conversando enquanto as crianças c
ontavam, todas ao mesmo tempo, as novidades enco
ntradas no quintal; eram as mangueiras carregada
s de
mangas, uma árvore nova que não conheciam,
a parreira de uvas brancas com os dois primeiro
s cachos maduros e as galinhas-d'angola que dizi
am o dia inteiro: To fraca,
to fraca. Queriam s
aber por que as galinhas falavam assim e custei
a convencer Julinho da minha ignorância.
Entram
os todos vagarosamente e fomos jantar na cozinha
como fazíamos sempre, para que a sala ficasse a
rrumada. À noite, Olga e o marido foram nos visi
tar; eu não
via Olga desde o casamento; achei-a
mais gorda e bonita. Para auxiliar o marido, co
ntinuava a lecionar no Grupo Escolar; contou que
a filhinha já tinha um ano, estava
forte e eng
raçadinha, já falava e andava regularmente. Depo
is contou que estava esperando outro filho para
o mês de maio.
No dia seguinte fui ver a filhin
ha de Olga, achei-a viva e esperta. Tive vontade
de ter uma criancinha nova outra vez nos meus b
raços; mole e gordinha, cheirando
talco e com
uma touquinha de renda na cabeça, olhando para m
im curiosamente e sorrindo com a boca vermelha e
desdentada.
Assim entre visitas, prosas longas
sob as mangueiras, auxiliando Clotilde a fazer
doces para vender, entre os gritos e as brincade
iras das crianças e uns goles de
café com bisco
itos de polvilho no intervalo das conversas, pas
sou rapidamente o mês de dezembro.
À noite, qua
ndo havia só os de casa, eu fazia o meu tricô e
assim adiantei bem minhas encomendas. Tive vonta
de de ficar ainda o mês de janeiro mas recebi ca
rta de
Júlio dizendo para voltarmos; estava ach
ando falta nas crianças e Durvalina quase não pa
rava em casa porque a mãe estava doente e ela ia
e vinha, deixando a casa
abandonada horas inte
iras. Alarmada com a carta, resolvi voltar imedi
atamente; quando mamãe soube da minha resolução,
não me animou a ficar, disse que eu devia mesmo

ir; e mais tarde fui encontrá-la chorando no e
scuro, sentada na cama, a cabeça branca entre as
mãos trémulas. Fiquei muito triste e chorei tam
bém; ela então me disse
que a doença a deixara
assim, chorando à toa, mas não era nada.
Dois d
ias depois, abracei-a e parti com as crianças; e
la ficou no portão de casa sacudindo a mão para
mim, o rosto triste e o olhar profundamente saud
oso. Embarquei
com o coração magoado e apesar d
a algazarra das crianças durante a viagem, não p
ude esquecer o olhar de mamãe sobre nós, no mome
nto da despedida.
Em São Paulo, Júlio nos esper
ava na estação e quando viu Isabel descer do tre
m com muito desembaraço, trazendo sob o braço um
a cestinha com goiabas que tia Clotilde
lhe der
a, abraçou-a com carinho e não largou mais a mão
zinha dela, pois por mais que ele negasse, Isabe
l era sempre a predileta.
Suspirei com satisfaç
ão quando entramos novamente em nossa casa e no
dia seguinte, reiniciamos a vida de sempre.
Log
o no dia seguinte, estava abrindo as malas e col
ocando as roupas nas gavetas quando ouvi discuss
ão e ruído de luta no quarto de Alfredo. Corri p
ara lá e vi Carlos
e Alfredo aos tapas e socos;
separei-os com dois empurrões perguntando se nã
o tinham vergonha de brigar assim, sendo tão cre
scidos. Então Carlos contou, ofegante,
que Alfr
edo tinha trazido ovos de passarinhos do quintal
de mamãe, além de ter matado muitos outros com
estilingue que levara; e que um menino que desma
ncha os ninhos
dos pássaros é um menino mau, se
m coração e ele não admitia um irmão assim. Alfr
edo sorria e fechava as mãos para dar outro soco
em Carlos.,; Carlos abriu sobre'
a cama o paco
te de ovos; havia grandes e pequenos, pintadinho
s de várias cores, todos ocos e furados, sem nad
a dentro, prontos para serem colecionados; estav
a furioso,
com lágrimas na voz:
— Veja, mamãe.
Isso é malvadeza. Olhe estes de sanhaço e estes
de tico-tico. Que estúpido! Eu vi ele matando p
assarinho e fiquei quieto para não brigar, mas

não sabia que tinha desmanchado tanto ninho.
Re
criminei Alfredo asperamente; mas ele sorria ind
iferente e virando-se para Carlos, perguntava, s
apateando no quarto, nervoso como um galo de bri
ga:
— É seu o passarinho, seu besta? O que você
tem com isso? Olhe mamãe, diga para esse idiota
que não se intrometa na minha vida.
E avançou
novamente para Carlos. Peguei Carlos por um braç
o e arrastei-o para fora do quarto. Voltei para
ralhar com Alfredo e disse que fizesse desaparec
er os ovos
e censurei-o com severidade. Ele sac
udiu os ombros sem responder; logo depois ouvi a
batida do portão da rua; era Alfredo com o paco
te de ovos. Pensei: "Com certeza
vai vender os
ovos aos moleques".
E creio que foi mesmo porqu
e não os vi mais. À noite, depois do jantar, Car
los contou ao pai a matança que Alfredo fizera e
m Itapetininga; Júlio mal escutou, censurou
um
pouco Alfredo e continuou a ler o jornal.
Carlo
s desapontou: Alfredo começou a fazer caretas pa
ra ele dizendo baixinho: "Bem feito, bem feito".

Júlio era assim: algumas vezes quando o caso n
ão requeria grandes penas, perdia a cabeça e rep
reendia duramente; outras vezes quando devia pas
sar um bom sermão ou
dar um castigo aos meninos
, dizia duas ou três palavras e encerrava o inci
dente. Outras vezes ainda, por causa de um lápis
quebrado, falava uma hora inteira. Por
isso eu
me sentia só na educação dos filhos; e não tinh
a força bastante para conter os ímpetos dos quat
ro. A paixão de Júlio era Isabel; para Isabel er
a tudo: doces,
balas, dinheiro, carinhos. Eu pr
ecisava chamar a atenção dele, dizendo: "Júlio,
dê aos outros também". Então ele dava, mas nunca
com boa vontade.
Um novo ano começou e as aula
s foram reiniciadas; tratamos de colocar Carlos
no Ginásio do Estado. Júlio tinha um amigo que c
onhecia um dos lentes do Ginásio e por
interméd
io desse amigo conseguimos que Carlos entrasse.
No primeiro dia ele veio trazendo o programa e a
lista dos livros, envaideci-me ao vê-lo tão con
centrado
e tão seriamente dedicado aos estudos.
Estudava às tardes quando voltava e muitas veze
s às noites também. Prometia ser ótimo aluno e J
úlio e eu nos sentíamos felizes
com esse filho.
Em abril, recebemos uma carta da mãe de Júlio d
izendo que ela e a filha solteira viriam passar
uma temporada conosco. Residiam em Belo Horizont
e
e vinham de vez em quando a São Paulo; corres
pondíamo-nos raramente. Chegaram em maio; instal
ei-as no quarto dos neninos e transferi os menin
os para o quarto de
costura
que não recebia o
sol no inverno.
Maria, a irmã mais moça de Júl
io já andava pelos trinta anos; não era bonita,
mas atraente e simpática. Gostava muito de passe
ar'e queria que eu saísse com ela todos
os dias
; queria ver também todas as fitas novas dos cin
emas. Fui atrasando as encomendas de tricô mas n
ão me importei muito pensando recuperar o tempo
perdido depois
que elas partissem. Passou-se ma
is de um mês e não falavam em partir. Eu não tin
ha tempo de prestar atenção nos estudos dos meni
nos e percebi que Alfredo não estava
freqüentan
do a escola. Quando eu ralhava, ele sacudia os o
mbros e saía assobiando com a mão no bolso, o qu
e me deixava furiosa. No segundo mês, aconteceu
o inevitável:
Durvalina ficou doente durante ma
is de uma semana e eu tive de fazer todo o servi
ço. Fiquei cansadíssima; além da limpeza da casa
, tive que cozinhar; experimentei
pedir comida
numa pensão, mas vi logo que minha sogra não com
ia, achando defeitos
no arroz, dizendo que a ca
rne era de segunda e assim começou a passar a ca
fé com pão. Júlio me chamou a atenção:
— Lola,
você viu que mamãe não come nada? É preciso faze
r alguma coisa em casa. Ela está acostumada a pa
ssar bem e creio que nunca comeu de pensão; em n
ossa
casa, não há luxo, mas tudo é muito bem fe
ito porque é mamãe quem faz; e mamãe é uma admir
ável dona de casa.
Fui então para a cozinha: lo
go no primeiro dia ninguém me auxiliou a lavar o
s pratos e panelas; fiquei arrumando sozinha até
tarde, enquanto minha sogra se fechou
no quart
o e Maria ficou na janela, vendo os bondes passa
rem. Apenas tiraram a toalha da mesa, sacudiram
na janela e levaram a louça para a cozinha. No s
egundo e
terceiro dias, a mesma coisa. Maria vi
via ocupando as crianças com coisas insignifican
tes:
— Isabel, me traga um copo d'água, sim? Ou
então:
— Isabel, meu bem, você quer ajudar tit
ia a estender as camas? Às vezes era Julinho:

Benzinho, vá ver quem está batendo, sim? Eu não
posso ir agora. Os dois mais velhos escapuliam
como podiam; Alfredo vivia na rua
vagabundeando
e Carlos dizia que precisava estudar e ficava h
oras inteiras sem sair do quarto. No fim da sema
na, não agüentei mais e disse a Júlio, depois do
almoço:
— Não posso mais, ninguém me auxilia e
estou cansadíssima. Sua irmã vive na janela e s
ua mãe, ou está no quarto descansando, ou conver
sando com D. Genu no portão.
Assim também é dem
ais! Não sei se agüentarei.
Júlio riu, um riso
irônico, mordaz:
— Logo vi que você ia dar o ba
sta; você e sua gente são fracas mesmo. Eu queri
a que você visse quando mamãe era moça, da sua i
dade; cozinhava para todos nós, limpava
a casa
que era uma beleza, mas ficava mesmo uma beleza.
O soalho brilhava que se podia ver, não é como
este aqui que até dá vergonha. Ainda costurava t
oda a roupa
da casa, pergunte a Maria. Isso sim
é dona de casa!
Senti o sangue subir ao meu ro
sto e fiquei furiosa, disposta a discutir. Repli
quei:
— Então você não teve sorte em se casar c
omigo; você é um infeliz, um pobre infeliz. Eu s
ei que não valho nada, só sua gente é que presta
.
— E presta mesmo. Presta muito mais que a sua
; suas irmãs vêm aqui só para passear é bater pe
rna na rua o dia inteiro. Que fazem? Você diz qu
e elas ajudam
no tricô, mas nunca vi elas pegar
em numa agulha; e nunca vi pegarem numa vassoura
e varrerem a casa para suavizar o serviço da Du
rva. E não se esqueça que minha
mãe vem poucas
vezes aqui e quero que ela seja muito bem tratad
a, não quero que faça nada. Ouviu? Nada. Ela vei
o para descansar e não quero que lave um copo.

Falou dirigindo-se para a porta, então gritei:

— Está bem. Mas não sou sua escrava, nem de sua
gente. Se a Durva continuar doente, vou arranjar
outra empregada, nem que seja para pagar cem mi
l-réis.
E não admito que fale das minhas irmãs
Entendeu?
#Ele ainda respondeu com ironia:
— É
? Só isso? Falo quando quiser falar; e se arranj
ar outra empregada, não se esqueça que eu não pa
go. Pague você.
Bateu a porta com força e foi e
mbora. Fiquei me contendo no quarto, depois fui
à cozinha acabar de lavar os pratos do almoço. E
stava ainda nesse serviço quando Isabel
entrou
na cozinha; não fora ao Grupo esse dia porque es
tava com dor de barriga, tinha comido mexerica v
erde. Falou com um arzinho assustado:
— Mamãe,
eu vi um automóvel parar aqui, acho que é tia Em
ília da Rua Guaianases. É um automóvel grande, p
reto, com...
Interrompi-a com um grito, o coraç
ão aos pulos:
— Tia Emília? Meu Deus, o que eu
faço?
Lembrei que a sala estava em desordem por
que eu não tinha tido tempo de arrumar, olhei de
sesperada para minhas mãos sujas, cheirando a ce
bola e para meu vestido
velho todo manchado de
gordura; nisso ouvi umas batidas fortes no portã
ozinho de ferro. Isabel, radiante com a novidade
, saiu aos pinotes pelo corredor afora, fazendo


um barulhão. Chamei-a:
— Isabel! Isabel!
E co
rri atrás dela; mas ela não me atendeu. Fui pedi
r à minha sogra que fosse receber tia Emília; ba
ti na porta do quarto, mas ninguém respondeu. El
a não estava;
gritei por minha cunhada, mas não
ouvi resposta. Nesse momento, bateram mais fort
emente no portão e meu coração deu uma reviravol
ta no peito. Corri para meu quarto
para ver o q
ue podia fazer; lembrei que minhas mãos estavam
cheirando cebola, corri para o banheiro e lavei-
as; voltei correndo para o quarto e nisso ouvi v
ozes
na sala e percebi que tia Emília já havia
entrado. Tirei o vestido velho e vesti outro que
estava dependurado atrás da porta; na pressa de
enfiá-lo pela cabeça,
um colchete enroscou no
meu cabelo e só consegui tirá-lo à custa de muit
o cabelo arrancado. Abotoei o vestido rapidament
e, mas não podia ter escolhido pior, pois
era c
heio de botões de pressão, daqueles bem miudinho
s; resolvi abotoar um sim, outro não, e depois d
e ter passado um pente nos cabelos e espalhado p
ó-de-arroz no
rosto, fui afobadamente para a sa
la, ainda abotoando os colchetes do punho. Encon
trei tia Emília e prima Adelaide conversando cal
mamente com minha sogra, enquanto
Isabel encost
ada na cadeira da avó, olhava com olhos espantad
os as visitas importantes. Desculpei-me pela dem
ora, mas tia Emília disse que encontrara minha s
ogra
no portão da vizinha e haviam se apresenta
do. Disse que Isabel era muito educadinha e a re
cebera muito bem. Fiquei aliviada e começamos a
conversar; tia Emília queria
saber quantos filh
os minha sogra tinha, onde moravam e o que fazia
m. Depois falou sobre os Lemos; conhecia a nomen
clatura de todos os Lemos, desde 1700 e tudo o

que já me contara várias vezes, repetiu à minha
sogra. Começava sempre assim:
— Há os Lemos de
Melo, os Lemos de Almeida, os Lemos de Brito...
Conheci uns Lemos de Brito numa viagem que fiz p
ela Europa. Não lembra, Adelaide? Ficamos até
m
uito amigos.
Prima Adelaide confirmava com a ca
beça e tia Emília continuava.
— Há também outro
s Lemos; deixa ver se me lembro... Já sei, são o
s Lemos de Arruda. O seu Lemos deve ser Faria Le
mos, não é.
- Conheci um Faria Lemos há muitos
anos, família de Minas
Quando acertava, ficava
radiante e continuava a enumerar todos os Lemos
que conhecia, e custava mudar de assunto. Levant
ei-me mais tarde dizendo que ia fazer um
cafezi
nho, mas tia Emília estendeu o braço, num gesto
arrogante; estava proibida de tomar café. Pergun
tei então se queria tomar um licor de leite muit
o fraco feito
em casa. Aceitou distraidamente,
enquanto prima Adelaide começou a falar sobre li
cores feitos em casa; disse que sabia fazer um d
e cacau, tão saboroso como os estrangeiros;
min
ha sogra foi apressadamente buscar um lápis e pa
pel para tomar nota da receita. Tomamos licor de
leite e falamos depois sobre pessoas conhecidas
. Uma hora depois,
levantaram para sair; Isabel
correu na frente, imaginei logo que foi avisar
a vizinhança. Enquanto tia Emília e a filha entr
avam, no automóvel, vi as filhas de D.
Genu na
janela, a cortininha branca da casa de D. laia s
e mexer, era ela que estava espiando; e uma outr
a vizinha de lado também chegou à janela. O auto
móvel partiu
entre adeuses, lançando uma fumaça
escura e roncando muito, entre a admiração da v
izinhança alvoroçada.
À noite, quando Júlio che
gou, Isabel correu para contar a novidade da vis
ita; dizia com olhos arregalados: "Um automóvel
batuta, grande, preto, brilhante..." Eu
estava
na cozinha fazendo o jantar quando Júlio chegou
com uma língua defumada e me deu, disfarçadament
e, como quem não quer; depois mandou os meninos
todos me auxiliarem
na limpeza da cozinha; a ir
mã vendo isso, foi me ajudar também e às oito ho
ras, tudo estava pronto; fomos então assistir a
uma fita no Royal. Por sinal que foi uma
boa fi
ta e fiquei contente comigo mesma.
Dois dias de
pois, Durvalina veio trabalhar e tudo se normali
zou de novo. Em fins de julho, minha sogra e min
ha cunhada voltaram para Belo Horizonte e ficamo
s sós
outra vez; antes de partirem, fomos fazer
um passeio a Santos. Foi num sábado e dias ante
s as crianças só falavam nisso, pois nunca tinha
m visto o mar. Fiz
uns calções para eles tomare
m banho e levamos uma cesta com coisas para come
r; foi um verdadeiro piquenique na praia. Nunca
poderei esquecer a reação que cada
un deles sen
tiu quando viu diante de si a imensidão azul do
mar. Quando o bonde ia chegando na praia pela Av
enida Ana Costa, Isabel foi a primeira a se mani
festar;
ficou de pé, os olhos cintilantes, os c
abelos soltos sacudidos pelo vento da praia, col
ocou as duas mãozinhas no peito num gesto de adm
iração incontida e gritou,
comovida:
— Mamãe!


Foi um grito espontâneo, sincero, natural; asso
mbrada com o que via, não achou outras palavras
para expressar melhor o sentimento de alegria, a
dmiração e assombro
diante do inverossímil, do
inacreditável.
Descemos do bonde no Gonzaga; os
meninos continuavam calados num mutismo teimoso
de quem tem medo de falar qualquer coisa errada
. Júlio então alugou uma cabine e
as crianças v
estiram os calções; correram para o mar, dando g
ritinhos de alegria. De repente, Alfredo abriu o
s braços diante do mar ficou assim um minuto par
ado,
de calção azul, as pernas fortes um pouco
abertas, os pés fincados na areia, recebendo em
pleno corpo a brisa morna e salgada, e gritou en
tão com toda a força:
— O ma.
A admiração foi
demasiada, esqueceu o r; parecia querer abraçar
o mundo todo; o céu, o mar. as ondas, as montanh
as verde-azuladas à djreita e os navios perdidos

ao longe, na linha do horizonte... Depois saiu
correndo e entrou nas primeiras espumas, jogand
o água por todos os lados, com os braços e as pe
rnas. Rimos todos.
Julinho não disse nada e qua
ndo Júlio perguntou:
— Então que tal o mar? Ele
respondeu com evasivas:
— É bem grande, papai.
E onde estão os navios que o senhor disse. Carl
os quis mostrar superioridade e disse com um ar
displicente.
— O mar? Ora! Eu já vi tanto em ci
nema!
Fiquei pensando em como é misteriosa a na
tureza humana; quando pensamos que conhecemos a
alma dos nossos filhos, suas vontades, seus gost
os, suas reações, suas debilidades,
vemos que e
stamos longe da verdade; não conhecemos nada, es
tamos diante do inexplicável. Mesmo sondando com
tato e cautela, deparamos sempre o desconhecido
e ficamos
surpreendidos diante do inesperado.


Passamos a tarde na praia; depois do almoço, as
crianças brincaram de amarelinha, jogaram bola,
fizeram castelos na areia, sem vontade de deixa
r aquele paraíso;
quando um vento frio começou
a soprar e a tarde foi escurecendo, tratamos de
voltar. As ondas eram mansas e vagarosas, como s
e tivessem preguiça; desfaziam-se lentamente,
u
ma em perseguição à outra numa continuidade semp
re igual; os meninos procuravam conchinhas numa
sofreguidão para ver quem encontrava maiores e m
ais bonitas. Tomamos
o bonde para a estação; qu
ando o trem começou a subir a serra, Isabel reco
stou a cabeça no ombro do pai e dormiu; já era n
oite escura e uma neblina cerrada encobria
tudo
. Os meninos vinham sonolentos e pesarosos por t
er terminado o passeio e ao chegar em casa, toma
ram café com leite com restos do bolo que sobrou
do almoço e
foram dormir canadíssimos, mas com
os corações alegres.
No dia seguinte, Carlos e
Alfredo tiveram uma gripe muito forte; Júlio di
sse que foi o passeio a Santos, mas como dias an
tes eles estavam espirrando muito, creio
que fo
i porque dormiram durante todo o inverno no quar
to de costura. A gripe foi violenta e pensei que
tivesse pneumonia em casa outra vez, mas felizm
ente tudo passou;
fiquei muito cansada e as des
pesas cresceram com o médico e os remédios.
Olg
a escreveu anunciando o nascimento de um filho e
contando que mamãe não estava passando bem, viv
ia quase sempre deitada, sem poder trabalhar e C
lotilde trabalhava
duplamente, o que dava pena.
Fiquei apreensiva e penmei em ir a Itapetininga
logo que pudesse.
Assim chegou o fim do ano; e
m dezembro tivemos a satisfação de ver Carlos pa
ssar para o segundo ano ginasial com as melhores
notas; Julinho e Isabel também passaram
de ano
no Grupo; só Alfredo tomou bomba. Não gosto de
lembrar o que sofremos Júlio e eu, ao vê-lo tão
vadio, desobediente e malcriado. Júlio quis bate
r com a cinta
outra vez, dizendo que só uma boa
sova podia endireitar Alfredo; eu dizia que não
, era ainda pior. Chegamos a discutir muitas vez
es e não nos conformávamos com ter
um filho ass
im, tão pouco amigo dos estudos e dos deveres fi
liais. Eu procurava consolar meu marido.
— Ele
fica bom. É muito criança ainda e não sabe o que
faz. Ele ainda endireita; e depois não tem por
quem puxar na ruindade, tem que ficar bom.
Júli
o não dizia nada e passava as mãos na cabeça, de
sconsoladamente. Às vezes suspirava:
— Qual! Já
perdi as esperanças.
Eu o encorajava, mas no í
ntimo, achava Alfredo tão esquisito, com um ar c
ínico e indiferente, e não tinha também muita es
perança no futuro dele. Tive que pô-lo num
quar
to sozinho, pois brigava tanto com os irmãos que
não era possível continuarem juntos. Como não h
avia outro quarto na casa, voltou para o quarto
de costura; ficou
radiante de ter um quarto só
para ele; pregou uma porção de figurinhas na par
ede e colocou sobre a mesinha da cabeceira, uma
coleção de conchas e outras bugigangas.
Proibiu
os irmãos de entrarem no quarto sem licença esp
ecial e só para Isabel fazia uma exceção de vez
em quando. Estávamos em fins de dezembro. Dois d
ias depois
do Natal, recebi um triste telegrama
: "Venha. Mamãe muito mal".
SENTI o coração esp
remido e uma leve falta de ar; fiquei desnortead
a ao princípio, sem saber bem o que fazer porque
estava sozinha em casa, só com a Durva. Corri

para o meu quarto e coloquei alguma roupa na mal
eta escura, pensando: "ela morreu... ela morreu.
.. ela mor..." Lembrei de pôr um vestido preto t
ambém, mas a mala
era tão pequena que não cabia
, então fiz depressa um embrulho separado, grita
ndo ao mesmo tempo:
— Durva! Durva!
Durvalina
veio correndo do quintal, onde estava lavando ro
upa, um ar assustado; mostrei o telegrama dizend
o que ia partir no trem das quatro e pedi que ol
hasse as
crianças e explicasse tudo a Júlio. El
a queria que eu tomasse um café forte antes de s
air, mas eu disse que não dava tempo e tomaria n
a estação; ela foi para a cozinha
fazer o café
e disse que os da estação nunca são tão bons com
o os de casa. Quando eu já estava pronta, aparec
eu com uma xícara de café forte e fumegante que-
tomei
afobadamente, no momento de sair. Queime
i a língua na pressa de beber e despedi-me dela,
saindo correndo para tomar o bonde que já ia de
scendo a Avenida. No fim
da Avenida, tomei um t
áxi porque vi que não dava tempo de alcançar o t
rem e apenas tive tempo de comprar a passagem e
correr para entrar no trem; parece que ele
esta
va esperando, pois começou a rodar com estrépito
, soltando um insuportável cheiro de carvão que
me entrou pelo nariz. Durante toda a viagem fui
pensando: ela
morreu.. ela morreu... ela morreu
...
Em Sorocaba, entrou no meu vagão uma pessoa
conhecida que veio falar comigo; conversamos li
geiramente e contei o motivo da minha viagem. Em
Boituva, entraram outros
conhecidos e me cumpr
imentaram;
#eu não estava com vontade de conver
sar, então abri a bolsa e recostando a cabeça pa
ra trás, fiquei segurando o lenço de encontro ao
nariz, os olhos fechados como
se estivesse sen
tindo enjôo. Quando vi, estávamos em Itapetining
a; estranhei não encontrar ninguém na estação, d
epois me lembrei que não podiam adivinhar a hora

da minha chegada. Quando desci do automóvel em
frente da nossa velha casa e estava tirando o d
inheiro para pagar o chofer, uma vizinha chegou
à janela e me cumprimentou.
Pelo cumprimento qu
e me fez, percebi que não havia mais esperança.
Sempre que essa vizinha me via chegar, dizia, mu
ito alegre:
— Olhe a Lola! Como foi de viagem?
Que criançada bonita! E como ela também está bon
itona, ora vejam só!
E sabia tudo o que se pass
ava na casa de mamãe, pois costurava perto da ja
nela o dia inteiro e espiava toda a vizinhança;
quando se queria alguma informação sobre
qualqu
er assunto, era só perguntar à D. Carola-
— D.
Carola, o homem da mandioca já passou?
— Não. H
oje não é dia; ele passa três vezes por semana t
erças, quintas e sábados. Hoje é quarta-feira.

— Ah! Muito obrigada. Ou então:
— D. Carola, nã
o sabe se os Brito já se mudaram?
— Não ainda;
eles iam se mudar ontem, mas amanheceu chovendo
e deixaram para hoje. Hoje as crianças ficaram r
esfriadas, com febre, então deixaram para depois

de amanhã.
— Ah!
Era o jornal vivo da cidade
; nesse dia quando desci do carro, ela enfiou a
cabeça na janela, olhou para mim em silêncio e d
isse com ar compungido:
— Boa noite, Lola.
Sen
ti as pernas bambas e entrei cambaleando; encont
rei dotilde e Olga chorando debruçadas sobre o c
aixão. Abraçaram-me convulsivamente, chorando ma
is alto; comecei
a olhar tristemente o rosto es
curo de mamãe e quando levantei a cabeça, toda a
vizinhança estava pelos cantos da sala. D. Caro
la também tinha vindo assistir ao encontro.
A c
asa foi se enchendo; D. Carola como vizinha e am
iga da casa, tomou conta da cozinha; logo depois
da minha chegada, veio com uma bandeja de café:

— Tome, Lola, está bem quentinho.
Tomei café,
enquanto muitas pessoas falavam comigo; reparei
que não havia mais cadeiras disponíveis; havia
grupos espalhados na cozinha, nos quartos e até
no quintal.
Muitos ficavam encostados nos baten
tes das portas, conversando; falavam em voz baix
a e contavam casos de morte e doenças dos parent
es. Fiquei todo o tempo na sala
e quando vieram
me buscar para tomar qualquer coisa, disse que
não queria nada, mas insistiram tanto que resolv
i tomar outra xícara de café, bem forte e quente
.
Passaram-se horas; à meia-noite, todos começa
ram a se retirar e ficamos só as três filhas e o
Zeca, mas às duas horas, o Zeca também foi se r
ecostar um pouco e ficamos
as três recordando a
doença de mamãe e todas as palavras e os atos d
ela nos últimos tempos. Clotilde disse:
— Ela v
ivia rezando pra ver você antes de morrer. Pergu
ntava: Será que ela não vem? Será que Lola não v
em?
— Vocês deviam ter me avisado que ela estav
a para morrer, eu viria
de qualquer jeito
Olga
interrompeu:
— A questão é que havia dias que
ela passava melhor, até bem, não é Clotilde? Com
o é que a gente ia adivinhar? E você é tão ocupa
da!
Clotilde falou, chorando:
— Pois ela até q
ueria me ajudar nos doces; quantas vezes foi mex
er o tacho pra mim. Eu dizia: deixa isso, mamãe,
faz mal pra senhora. Qual o quê! Ficava horas

até não poder mais. Ficava às vezes tão pálida c
omo a cal, o beiço branco, então largava tudo e
ia deitar. Coitada de mamãe!
Clotilde chorou ma
is alto e Olga e eu também choramos; depois Clot
ilde levantou-se e endireitou o pavio de uma das
velas que tinha entortado e o esparmacete ia se

amontoando de um lado só. A vela deu uns estal
os e ficou firme; entrava um vento quente pela j
anela. Fazia muito calor. Olga perguntou:
— Não
quer comer alguma coisa, Lola? Você não jantou.
Levantei-me dizendo que ia tomar um pouco de ág
ua; Clotilde interveio :
— Tome leite; tem leit
e no guarda-comida. Tem biscoito também.
Tomei
um copo de leite na cozinha e comi uns biscoitos
; depois procurei mais coisas para comer porque
estava com fome; encontrei então pão e goiabada.
Comi de tudo
e voltei à sala, onde minhas irmã
s estavam sentadas de cabeça baixa, ao clarão da
s quatro velas. Dirigi-me a Olga:
— Como vão su
as crianças? Nem perguntei ainda. Olga levantou
a cabeça sorrindo:
— Vão muito bem, felizmente.
Sabe que a mais velha fala tudo?
— É?
— E o m
enino está pesando quase cinco quilos; está um c
olosso. Clotilde disse que nunca tinha visto uma
criança forte e bonita assim. Ficamos quietas u
m tempo,
depois falei:
— Achei tia Candoca tão
acabrunhada, está tão diferente da última vez q
ue a vi. Por que será?
Clotilde perguntou:
— U
é! Pois você não sabe que ela está com a cunhada
louca em casa? Isso é brincadeira? Agüentar uma
pessoa nessas condições?
— Nossa Senhora! Por
que não a mandam para um hospício?
— Hospício c
usta dinheiro e tia Candoca não tem muito; mas é
uma loucura mansa, não faz mal a ninguém.
— Ma
s é louca mesmo? Eu acho que tem umas manias, ma
s não se pode chamar de louca.
— Antigamente er
a esquisita; agora é louca de uma vez.
— Então
piorou?
— Nem, se fala; não conhece quase ningu
ém, às vezes nem tia Candoca nem os sobrinhos. C
onfunde todos e faz uma embrulhada. Passa dias n
o quarto sem falar com
pessoa alguma.
— Não di
ga!... E não sai de casa?
— Nunca. Vive no quar
to ou na sala; às vezes veste o melhor vestido d
os bons tempos, pega o leque e começa a se abana
r, sentada na cadeira de balanço, conversando
s
ozinha.
- - Que horror!
Olga baixou a cabeça e
começou a rir disfarçadamente; Clotilde continu
ou.
#— Tem umas manias esquisitas que você nem
imagina; lembra da Benedita, aquela preta velha?

— Lembro.
— Pois todo o dia de manhã, a mulhe
r abre a porta do quarto quando se levanta e gri
ta, meio cantando:
— Benedita! Be-ne-di-ti-nha!
Venha tirar o ourinol que está sujo e não está
limpo!
Olga baixou mais a cabeça e pondo a mão
na boca, riu-se mais; eu ri também, falando:

Que horror, Clotilde. E eles agüentam isso? Maní
aca desse jeito?
— Pois é. Imagine! E fala isso
cantarolando; é por causa disso que tia Candoca
está acabada; mas ouvi dizer que estão vendo se
arranjam um lugar pra doente,
em São Paulo.

Precisa mesmo. Impossível ficar assim a vida to
da.
— E quando passa pelos corredores da casa,
vai arranhando as paredes como as crianças; e se
mpre cantando baixinho.
Tornamos a rir e Clotil
de para disfarçar, tornou a se levantar e arranj
ou o pavio da outra vela com as pontas dos dedos
; puxôu-os apressadamente para não queimá-los.

Então olhamos para mamãe e suspiramos. Houve um
longo silêncio; de repente Olga encarou Clotilde
e perguntou com voz um pouco estridente, a voz
que ela fazia todas
as vezes que queria consegu
ir qualquer coisa:
— Onde estão os brinquinhos
de brilhantes de mamãe?
— Na gaveta do lavatóri
o, dentro de uma caixinha de pó-de-arroz. Por qu
ê?
— À toa. Clotilde acrescentou:
— Os brinqui
nhos são meus; há muito tempo mamãe me deu. Olga
insistiu:
— O que vai fazer com eles? Não tem
filhas para deixar.
— Ué! Eu não posso usá-los?
Será que estou tão velha assim que não posso ma
is usar brincos? Ora esta!
Cortei a discussão:


— Coitada de mamãe. Há quanto tempo ela não usa
va os brincos; e eram tão bonitinhos; a última v
ez que a vi com eles foi em São Paulo quando foi
consultar o médico.
..
Olga me interrompeu:

— Quando papai comprou esses brincos, nas bodas
de prata, parece que tinham pouco valor; mas hoj
e estão valorizados. Valem pelo menos um conto d
e réis. Não
é, Clotilde?
— Avaliaram em 500$00
0 cada brilhante. Também era a única jóia que a
coitada tinha; isto é, tinha também o broche de
camafei.
— Camafeu, Clotilde.
— Camafeu.
Olga
se mexeu na cadeira:
— O broche de camafeu é m
eu; mamãe me deu quando eu estava grávida a segu
nda vez. Ela me disse um dia sentada aqui neste
sofá e eu naquela cadeira: "Olhe, Olga,
este br
oche de camafeu é para você. Não vale grande coi
sa, mas é uma lembrança minha". E eu respondi: "
Basta ser dado pela senhora, que para mim vale m
uito".
Ficamos quietas outra vez e Clotilde me
olhou piscando levemente um olho; Olga tinha a m
ania de querer sempre o melhor para ela, desde p
equena. Lembrei do nosso
pai que dizia ter estu
dado o caráter de cada uma de nós e definia assi
m: "Clotilde, a mansa. Eleonora, (a humilde; Olg
a, a arrogante." Perguntei:
— E o bandolim de m
osaicos? Aquele brochinho que tia Emília trouxe
da Itália para mamãe? Eu achava uma belezinha, t
em a palavra Roma.
— Está junto com as outras c
oisas na caixinha de pó-de-arroz; mas está quebr
ado.
Continuei:
— Então esse fica para mim com
o lembrança de mamãe. Clotilde afirmou: *
— Nat
uralmente; esse fica pra você.
Olga não disse n
ada e se mexeu na cadeira outra vez. Depois falo
u:
— Eu me lembro que era ainda pequena e achav
a o broche muito bonito; um dia mamãe disse que
quando eu tivesse uma filha, seria meu.
Repliqu
ei imediatamente:
— Então você devia ter reclam
ado quando cresceu e não esperar ela morrer para
dizer isso. E se eu não ficar com o bandolim, o
que fica para mim?
Clotilde tornou a falar:

Lola tem razão, Olga. O bandolim fica para ela;
você já tem o camafei.
— Camafeu, corrigi.

Camafeu.
— Mas eu não estou querendo, disse Olg
a. Só contei o que mamãe disse quando era pequen
a, mas Lola faz muito bem em ficar com ele.
Olh
amos outra vez para mamãe. Olga sussurrou:
— Qu
e horas são?
— Três e meia. Vá deitar-se um pou
co, Olga. Você tem criança pequena, disse Clotil
de.
Olga levantou-se dizendo que não; depois, a
proximou-se de mamãe e olhou-a longo tempo. Susp
irou:
— Coitada!
Começou a passar a mão lentam
ente pelo rosto impassível de mamãe; e principio
u a chorar, um choro baixinho e triste, entremea
do de palavras:
— Coitada!... Tanto que ela tra
balhou para nos sustentar, para nos educar... Di
zia: o pouco que seu pai deixou não dá para nada
, se eu não der duro aqui no
forno, não podemos
viver. .. E trabalhava da manhã à noite.
Cloti
lde falou do canto da sala:
— Pode-se dizer que
trabalhou até o dia da morte, pois estava doent
e, fraca, sem forças pra nada e ainda mexia o ta
cho pra mim. Coitada. E sabe que deixou seis tij
olos
de goiabada para vocês? Todo o ano ela mes
ma fazia questão de preparar os seis pedaços de
doce e dizia: Estes não vendo, são de Lola. Eles
são seis. Que
gosto tinha em mandar todo o ano
os seis tijolos do doce pra vocês. Agora acabou
-se.
Olga tornou a falar, chorando:
— Sempre d
izia que não ia ver meus filhos crescidos. E ace
rtou.
Chorou mais alto e saiu da sala, encaminh
ando-se para o quarto de Clotilde, onde o Zeca e
stava dormindo. Deitou-se também. Clotilde disse
:
— Você também deve estar cansada por causa da
viagem. Por que não se recosta um pouco no sofá
?
— Não. Estou agüentando bem.
— E que tal um
café agora?
— Acho bom.
Clotilde se levantou e
antes de deixar a sala, curvou-se para mamãe e
beijando as mãos, unidas, balbuciou:
— Coitada
de mamãe.
Aproximei-me da janela e vi uns tons
avermelhados de um lado do céu; era um novo dia
que surgia, longe ainda. Olhando as árvores tão
conhecidas do pomar, comecei
a me lembrar da no
ssa infância e de mamãe batendo ovos a vida inte
ira para fazer os doces que vendia. Lembrava bem
da voz dela:
— Lola, venha me ajudar a bater e
ste pão-de-ló para a casa do Juiz que faz anos h
oje.
Eu às vezes respondia, sem vontade de trab
alhar:
— Agora não posso, mamãe. Tenho lições p
ara fazer. Ela se irritava:
— Deixe as lições p
ara a noite e venha me ajudar. Anda.
Eu ia deva
gar, preguiçosamente, e começava a bater o pão-d
e-ló. Mamãe falava com voz mandona:
— Depressa,
menina. Deixe de preguiça.
Eu batia então com
força e parecia que o prato ia se quebrar com as
batidas da colher. Batia com raiva. Mamãe corri
a apressada de um lado a outro; um pano amarrado

na cabeça. Espiava o forno uma porção de vezes
para ver se estava no ponto; punha um papel bra
nco dentro dele para experimentar a temperatura.
O papel saía marrom.
Pronto; estava no ponto;
despejava o pão-de-ló na forma. Falava depressa:

— Este é para o Juiz; as rosquinhas também. De
pois de amanhã tenho de fazer uma porção de doce
s para a senhora do delegado novo; nem sei bem d
ireito o nome dela.
É aniversário. E na quinta-
feira que vem é dia de anos do vigário; encomend
aram fios de ovos.
Espiava outra vez o forno, c
orada, a testa cheia de suor. Vinha um bafo quen
te lá de dentro. Dizia, afobada:
— Traga as ama
relinhas. Anda. Não estão prontas?
Com os olhos
úmidos, voltei-me para Clotilde que vinha com a
bandeja do café:
— Tome, Lola. Está bem quenti
nho.
Tomamos juntas o café quando a porta da fr
ente se abriu e entrou D. Carola, ainda com cara
de sono:
— Bom dia! Bom dia!
Depois olhou par
a meu lado e começou a explicar:
— Olhe, Lola,
eu já falei porque não passei a noite aqui com v
ocês; tenho andado com uma dor nos rins ultimame
nte, que não há o que cure. Passo mal e o médico
quer
que eu faça repouso; não é mesmo, Clotild
e?
E aproximando-se de mamãe, começou a chorar
fungando e a limpar as lágrimas com a manga da b
lusa; logo acalmou e tomou café conosco.
O dia
chegou rapidamente; a casa começou a se encher d
e novo e as pessoas que entravam, sentavam na sa
la, compenetradas e tristonhas; um terrível cans
aço se apoderou
de mim e os olhos arderam de so
no; Júlio chegou de São Paulo no primeiro trem.
Ficamos todos ali até o momento do enterro sair;
minha cabeça pesava como chumbo;
não
entendi
a bem o que estava se passando. Depois de tudo t
erminado, ficamos Combinando o que seria de Clot
ilde; não poderia continuar vivendo sozinha na v
elha casa.
Ela disse que acabaria com tudo, ven
deria o que pudesse e iria morar com Olga e Zeca
na farmácia. Depois passaria um tempo conosco,
em São Paulo.
Júlio e Zeca pagaram as despesas
do enterro; à noite, embarcamos para São Paulo.


Despedi-me das irmãs com o coração magoado e ch
eguei muito cansada em nossa casa; desanimada ta
mbém, pensando: Para que tanto trabalho, tanto e
sforço, tanta luta
neste mundo, se o fim de tod
os é o mesmoficar deitado entre quatro tábuas, n
o escuro e com uma porção de terra por cima?


Capítulo VI

Mais um inverno chegou e passou;
a Avenida ficou com as árvores peladas, os galho
s sem folhas voltados para o céu cinzento, enqua
nto um ventinho gelado penetrava
nas casas, sac
udindo as roupas nos varais e assobiando através
das tabuinhas das venezianas, um assobio fininh
o e irritante. E mais um ano acabou para nós; ch
egamos
então a 1922.
Muitas casas novas aparec
eram perto da nossa e nas travessas da Avenida A
ngélica; a cidade fez um progresso assustador. R
uas que antigamente eram lama e pó, foram
calça
das, e, nos terrenos baldios, surgiram palacetes
e mais palacetes; as telhas vermelhas e novas b
rilhavam ao sol; nos gramados verdes, entre os c
anteiros floridos,
cães de raça passeavam com d
isplicência. E automóveis apareceram de todos os
lados; todo o mundo começou a passear de automó
vel e a fazer corso aos domingos na Avenida
Pau
lista; eu ia às vezes a pé com as crianças e fic
ava na esquina, olhando o corso. Não se via mais
carro de espécie alguma; os automóveis passavam
vagarosamente
um ao lado do outro, cheios de p
essoas muito bem vestidas que quando se conhecia
m cumprimentavam-se sorrindo, as senhoras dando
adeusinho com as mãos, alegremente.
Alfredo diz
ia que, quando fosse grande, teria um automóvel.
Carlos e Julinho discutiam o valor das marcas.


À noite, à volta da mesa da sala de jantar, con
versávamos sobre o futuro das crianças. Carlos d
izia que ia ser médico, Alfredo queria ser mecân
ico, Julinho queria
estudar Engenharia e Isabel
dizia que ia ser professora. Júlio falava grave
mente, fazendo planos para aumentar dois quartos
depois que tivesse pago tudo. Um dia
falei aos
quatro:
59
#60
— Vou comprar um bilhete de l
oteria este ano, no Natal; não compro bilhete in
teiro porque fica caro, compro só a terça parte.
Decerto vou ganhar porque nunca
comprei. Cada
um de vocês tem direito a escolher o que quiser.
Vamos ver.
As faces das crianças cintilaram, o
s olhos radiantes fixos no meu rosto. Isabel foi
a primeira:
— O que eu quiser? Ah! Eu quero pa
ssar as férias na praia, mamãe. Nunca mais fomos
a Santos; eu quero que a senhora alugue uma cas
inha na praia ou perto
da praia e vamos todos p
ara lá.
— Está bem. Terá as férias na praia. E
você, Julinho, o que quer?
— Eu quero livros, m
amãe. Quero toda a coleção Amarela e os livros p
oliciais que vi outro dia numa livraria.
Ó pai
sorria, concordando:
— Está bem. Vai ganhar os
livros, mas não precisa gritar desse jeito. Juli
nho baixava a voz e continuava, achando pouco o
que tinha pedido:
— E quero a temporada em Sant
os também. E se pudesse queria comprar um cachor
rinho que vi um homem vendendo outro dia.
— Nos
sa Senhora! Quanta coisa! E você, Alfredo? Alfre
do respondeu logo, contentíssimo por ter chegado
a sua vez:
— O que eu quero a senhora não pode
dar. Olhamos todos para ele que continuou, sorr
idente:
— Quero um automóvel, nem que seja velh
o e feio. Júlio e eu começamos a rir; Júlio falo
u:
— Sua mãe não pode dar isso para você, Alfre
do. Automóvel é muito caro; o dinheiro não dá pa
ra tanto. E o que dará então aos outros irmãos?


Carlos interrompeu, olhando Alfredo de lado:

Eu já sabia que ele ia pedir isso; eu já sabia.
Alfredo levantou a voz:
— Sabia o quê? Como é
que sabia? Sabia coisa nenhuma. Júlio falou, con
ciliadoramente:
— E você, Carlos, o que quer?

— Uma bicicleta.
Julinho e Isabel gritaram ao m
esmo tempo:
— Eu também quero uma bicicleta.

Mamãe, eu também quero uma. O pai tornou a fala
r:
— Mas vocês dois já escolheram o que queriam
e está muito bem escolhido; de vez em quando Ca
rlos empresta a bicicleta para vocês darem umas
voltinhas.
Carlos protestou, resmungando:
— Is
so não, papai. Eles me estragam a bicicleta. Vir
ei-me para Alfredo:
— Você tem que escolher out
ra coisa; automóvel não posso dar Isabel exaltou
-se:
— Peça bicicleta, Fedo. Bicicleta. Alfredo
olhou furioso para ela:
— Agora eu não peço. P
ronto. Eu ia pedir, agora não peço E entredentes
chamou a irmã de besta.
Censurei Isabel:
— Po
r que chama seu irmão pelo apelido' O nome dele
é Alfredo diga Alfredo
O pai insistiu:
— Escol
ha, Alfredo. O que você prefere? Uma bicicleta t
ambém?
— Não. Quero uma bola de futebol.
Houve
um silêncio de expectativa, depois foi a vez de
Julinho provocar o irmão:
— Eu sei para que el
e quer bola. Eu sei. Como ninguém respondeu, con
tinuou, triunfante:
— Para jogar com os moleque
s da rua. Alfredo olhou bravo para Julinho:
— S
abe nada, bobo. Bobão. Isabel perguntou:
— Entã
o para que é?
— Pensa que eu quero bola para gu
ardar, é? Quero bola para jogar. E pôs as mãos n
os bolsos, olhando arrogantemente os irmãos.
Ca
rlos protestou:
— Mas bicicleta a gente anda so
zinho. Bola precisa companheiros. Alfredo respon
deu:
— É isso mesmo; e você tem alguma coisa co
m isso? O que você tem com os companheiros que e
u arranjar? Julinho interrompia:
— Seus companh
eiros são os moleques da rua, todo o mundo sabe.
Alfredo gritou:
— Não se intrometa. Eu intervi
nha:
— Alfredo tem direito de escolher outra co
isa além da bola para não ficar inferior aos irm
ãos. Que será?
Ficaram mudos, insisti:
— Livro
s, Alfredo?
Ele dizia não com a cabeça. Depois
pensou um pouco e respondeu.
— Quero um jogo me
cânico que vi numa vitrine outro dia; e se puder
, um canivete também.
Os irmãos começaram a gri
tar:
— Olhe o mecânico! Olá, mecânico! De repen
te Isabel falou, maciamente:
— Carlos, você me
deixa andar de bicicleta duas vezes por semana?


— Não. Você me estraga a bicicleta.
— Ah! Carl
os, por favor. Ao menos uma vez. Deixa, Carlos?


— Já disse que não. Por que não pediram também
bicicleta?
— Mas papai disse que você deve empr
estar a bicicleta para darmos umas voltinhas. Nã
o foi, papai? Julinho fez voz de choro:
— Ah! C
alucho! Deixa só de vez em quando. Mamãe, diga p
ró Carlos emprestar a bicicleta.
— Já disse que
vocês estragam a minha bicicleta. Não quero.

Nós não estragamos, Calucho. Juro que tenho cui
dado.
— Estragam sim. Qualquer dia o breque não
funciona mais. Eu sei. Começaram a discutir em
voz alta, quando Júlio interrompeu:
— É por iss
o que Papai Noel não dá o bilhete premiado; você
s estão brigando desde já. Imagine depois.
E ac
rescentou, bocejando:
— Não discutam mais e vam
os tratar de dormir; peçam ao Papai Noel o bilhe
te premiado.
Isabel perguntou em voz baixa para
mim:
— A senhora me dá também um tapetinho par
a minha cama?
— Dou sim, vamos dormir.
Fomos t
odos dormir. Percebi Julinho e Isabel atrás de C
arlos, pedindo a bicicleta; ralhei com eles. Qua
ndo apaguei as luzes e a casa ficou em silêncio,
ouvi um sussurro
na porta do quarto de Carlos;
era ainda Julinho pedindo para andar de bicicle
ta; ouvi a voz zangada de Carlos:
— Está bom. D
eixo; mas você tem que prometer não me estragar
a bicicleta.
Calaram-se de novo; eu estava quas
e dormindo, ouvi outra vez a voz de Julinho me c
hamando mansamente atrás da porta:
— Mamãe, a s
enhora me dá também os livros de Júlio Verne? Eu
esqueci de pedir naquela hora.
— Dou sim, vá d
ormir, respondi com as pálpebras pesadas de sono
.
O fim do ano foi chegando com muita animação
por parte das crianças que estudavam muito, meno
s Alfredo. Apesar de eu ter comprado uma parte d
o bilhete de Natal,
Papai Noel não se lembrou d
e nós. Felizmente eu tinha poupado algum dinheir
o do meu trabalho e consegui comprar brinquedos
e livros para os meninos; e também o tapetinho

para a cama de Isabel. A temporada em Santos fic
ou adiada, mas compramos uma bicicleta para Carl
os a prestações, como prêmio por ter passado par
a o terceiro ano
com notas ótimas, mas com a co
ndição de deixar os irmãos andarem uma vez por s
emana. Demos uma bola para Alfredo e livros para
Julinho. Isabel ganhou uma boneca
que fechava
os olhos e dizia "mamã" com voz esganiçada; tinh
a um monte de cabelos cor de milho no alto da ca
beça e uma touca de cetim azul sobre o monte de
milho.
Isabel tirou logo a touca e amarrou uma
fita vermelha nos cabelos da boneca; chamava-a d
e filhinha querida e meu coração. Vivia o dia to
do com ela nos braços e beijava-a
muitas vezes
às escondidas; foi a primeira grande boneca que
ela teve; e a única.
Passaram-se os primeiros m
eses com muita chuva e muito calor; as crianças
estavam em férias e como não podiam brincar no q
uintal porque chovia muito, brincavam dentro
de
casa fazendo grande algazarra; brigavam muito t
ambém.
Júlio chegava da loja mal-humorado e abo
rrecido porque não fazia bons negócios; não sabi
a se era por causa dos maus tempos que atravessá
vamos ou por causa da concorrência,
pois em cad
a esquina abriam uma loja nova, às vezes até dua
s no mesmo quarteirão e isso o aborrecia muito.
Ralhava com as crianças por um motivo qualquer e
, uma
ou mais vezes por semana, voltava tarde e
embriagado. Queixava-se também de dor no estôma
go, depois das refeições, principalmente. Eu diz
ia que era por causa da
pimenta; ele dizia que
não, e comia pimenta todos os dias; às vezes ia
para o banheiro e vomitava tudo o que tinha comi
do, mas não fazia dieta e no dia seguinte
comia
pimenta outra vez e tornava a sentir a dor. Pro
pus um dia levá-lo ao médico para saber a causa
da dor, ele não quis:
— Deus me livre; não me f
ale em médicos.
E assim foi passando o tempo; u
ma tarde eu estava sentada no meu canto fazendo
tricô quando Isabel entrou muito excitada, falan
do alto, os olhos enormes:
— Mamãe, a senhora n
ão sabe o que Julinho fez; abriu a porta da carr
ocinha dos cachorros e soltou toda a cachorrada
na rua.
Levei um susto e pondo de lado o meu tr
abalho, perguntei:
— O que, Isabel? Conte direi
to porque eu não sei o que você está falando.

Nós íamos pela Rua Sergipe, mamãe, levar a enco
menda que a senhora mandou; entregamos o pacote
lá e íamos voltando. Quase na esquina da Avenida
, estava parada
uma carrocinha cheia de cachorr
os; então Julinho disse: "se eu pudesse, soltava
esses coitados". Eu disse: "Nem pense isso, vam
os embora". E começamos a subir
a Avenida, mas
Julinho olhava para trás de dois em dois minutos
; de repente ele gritou: "Vá andando, Isabel, qu
e eu já vou". Voltou correndo e ficou perto da c
arrocinha,
olhando. Eu parei para ver. Enquanto
os homens estavam caçando um cachorrinho sem ra
bo, Julinho foi por trás, abriu a portinhola e s
aiu correndo. Todos os
cachorros pularam na mes
ma hora e começaram a correr pela rua; os homens
, quando viram, gritaram: Pega! Pega! mas eles g
ritavam pega para Julinho e não para os cachorro
s.
Julinho corria feito louco, depois virou uma
esquina e não vi mais. Todo o mundo saiu nas ja
nelas e foi um barulhão na rua. No fim, os homen
s perderam ele de
vista e perguntavam: "Não viu
o menino que soltou os cachorros? Se nós pegarm
os ele de jeito, vai ver".
— E onde está Julinh
o agora?
— Não sei, decerto entrou em alguma ca
sa porque não vi mais. Fiquei aflita e fui à jan
ela esperá-lo; logo mais Carlos chegou do ginási
o e disse que já sabia da arte
de Julinho. E da
va grandes risadas:
— Que danado, hein, mamãe?


Quando já estava escurecendo, Julinho entrou, c
onvencido da sua grande façanha, as mãos nos bol
sos, assobiando alegremente. Recebi-o com uma ca
rranca:
— Muito bonito o que você andou fazendo
, hein? E se fosse preso? E se os homens batesse
m em você na rua diante de todo o mundo? E tinha
m direito de fazer isso.
Podia até ir parar na
cadeia. Bonito, hein?
Julinho empinou o peito,
esticou o beicinho e olhando para mim de lado, f
alou com convicção:
— Ora, mamãe, então sou alg
um trouxa para eles me pegarem? Não vê! Mas foi
estupendo, hein, Isabel?
Interrompi-o:
— E ond
e esteve esse tempo todo? Por que não veio mais
cedo para casa?
— Aí é que está o truque; podia
ser que os homens estivessem me esperando na es
quina. Então fiquei o tempo todo em casa de um a
migo.
— Que amigo?
— Um amigo que mora perto d
a Rua Ceará; ele assistiu tudo de longe porque i
a passando de bonde nessa hora; diz que a cachor
rada correu que não foi vida. Tinha um
luluzinh
o branco que corria mais que todos; ia com o rab
o em pé feito pluma. Assim. Outro era preto, pes
adão; de repente ele ficou distraído perto de um
poste;
quando viu que era para correr, desando
u pela Avenida abaixo num carreirão. Parecia uma
pista de corrida para cachorro. Foi gozado, não
, Isabel?
Carlos perguntou, rindo:
— E não peg
aram nenhum?
— Qual o quê. Nem sombra. E esses
os homens da carrocinha não seguram mais; estão
sabidos.
Insisti, ainda um pouco zangada:
— Ma
s não faça mais isso, Julinho. Um dia você se sa
i mal e ainda vai dar dor de cabeça para seu pai
; é capaz de parar na polícia.
Julinho sorriu c
om superioridade, o rosto vermelho e suado:
— N
ão tem perigo! Mas queria que a senhora visse a
cachorrada correndo, mamãe. Foi um sucesso! Tinh
a um manquitola, você viu esse, Isabel? Quando c
omeçou a correr,
esqueceu que era manco. Quá! Q
uá! Quá!
Todos começaram a rir e a falar; Alfre
do entrou também da rua, orgulhoso da proeza do
irmão; repetia rindo:
— O manquitola esqueceu q
ue era manco! Esse é que corria mais! Quá! Quá!
Quá!
Julinho animava-se mais:
— Foi um sucesso
; saía gente nas janelas, nos portões, todos gri
tando: "Olhe a cachorrada solta"! E todos torcia
m para que os homens não pegassem mais os bichos
.
Gritavam para o Lulu: "Corre, luluzinho. Corr
e mais! Corre, pretão!" Foi uma beleza, mamãe! S
umiram todos lá para baixo da Avenida!
— Está b
em, disse. Agora vá tomar banho e se vestir, est
á parecendo um moleque.
Quando ele ia saindo da
sala, todo ufano, lembrei de perguntar:
— E o
dinheiro da encomenda, Julinho? A Rua Sergipe pa
gou?
— Ah! Pagou. Ia me esquecendo.
E enfiando
a mão no bolso, Julinho começou a procurar o di
nheiro; procurou no outro bolso e noutro e não a
chou; virou os bolsos todos pelo avesso e o dinh
eiro não
apareceu. Começou a perder o entusiasm
o e eu fiquei branca:
— Mas entregaram o dinhei
ro a você?
— Entregaram; espere aí. Em que bols
o eu pus o dinheiro, Isabel? Não foi neste?
— F
oi, disse Isabel, muito assustada também.
Depoi
s de terem procurado outra vez, viram que o dinh
eiro estava perdido. Fiquei desesperada com a pe
rda daqueles trinta mil-réis que iam me fazer fa
lta porque já
contava com eles. Quase dei uns t
apas em Julinho, mas não tive coragem, porque se
u rosto estava desolado. Sorrateiramente, saiu d
a sala e na hora do jantar, veio
muito humilde
me propor um negócio: tirar da mesada dele os tr
inta mil-réis, assim eu receberia o dinheiro, po
uco a pouco. Com a fisionomia muito triste, eu d
isse
que aceitava o negócio, mas me lembrei de
que ele levaria seis meses para pagar a dívida e
tive vontade de rir.
Nesse dia, Júlio não veio
jantar; no dia seguinte, quando soube da proeza
do filho, riu-se muito em vez de zangar com ele
. E quando eu disse na hora do almoço que
um di
a Julinho seria preso por causa dessas brincadei
ras, replicou:
— Não tem perigo, ele é muito es
perto. E piscou para Julinho:
— Boas pernas, he
in, Julinho?
#Todos riram e comentaram a façanh
a durante dias. Julinho sentia-se orgulhoso, qua
se um herói; e assim perdi a pouca autoridade qu
e tinha e ainda meus trinta mil-réis.
convidei
Clotilde para passar uma temporada conosco; cheg
ou num dia abafado de novembro, com cestas e emb
rulhos de doces. Fiz do escritório um bom quarto
para ela;
ficou bem instalada, com a janela pa
ra o jardim e de vez em quando ela me dava de ma
nhã, na hora do café, uma grata notícia:
— Apar
eceu hoje um lindo cravo vermelho; tão escuro qu
e parece roxo.
Outro dia, anunciava:
— Lembra
aquela roseira que veio de Itapetininga e nós nã
o sabíamos a qualidade? É uma rosa cor-de-rosa m
uito bonita, acho que é Bela Helena.
— Tem rosa
s?
— Apareceu hoje a primeira.
As crianças cor
riam para ver a roseira e Júlio também; ficávamo
s rodeando a planta e fazendo exclamações sobre
a cor, o tamanho e a qualidade.
Clotilde não fi
cava inativa; costurava roupas novas para as cri
anças, consertava roupas velhas e ajudava na lim
peza da casa. Falava sempre em fazer doces para
vender;
dizia que isso dava dinheiro e estava t
ão prática que não se cansava muito. Achei boa a
idéia, mas como o forno não era bom, tratamos d
e ajuntar dinheiro para comprar
outro fogão com
forno grande, mas era muito caro.
No fim do an
o, Carlos vestiu calças compridas pela primeira
vez e foi uma surpresa para mim. Já tinha feito
quinze anos, mas não era muito alto e Alfredo qu
e era
mais moço, era altíssimo. Dias antes, eu
dissera a Júlio:
— Precisa mandar fazer uma rou
pa de homem para Carlos.
Júlio não disse nada e
mandou fazer às escondidas; uma vez surpreendi
os dois cochichando e, nas vésperas de Natal, Ca
rlos apareceu em casa com calças compridas,
gra
vata de homem e a voz grossa, pois tinha mudado
tanto ultimamente que os irmãos até o imitavam q
uando ele falava. Foi uma festa quando ele entro
u em casa e Isabel
bateu palmas, gritando:
— M
amãe! Ele parece um homem! Julinho protestou, ex
altado:
— Mas ele é homem mesmo, boba! Alfredo
gritou com entusiasmo:
— Aí, bichão. Está batut
a! Ralhei com eles:
— Fiquem quietos, deixa ver
.
E olhei Carlos com orgulho; senti-me orgulhos
a de ter um filho
homem. E que homem! Bom, estu
dioso, simpático, ajuizado, e acima de
tudo, me
u amigo! Amigo! Só mais tarde compreendi a grand
eza e a profundidade dessa palavra, quando, deco
rridos os anos, me vi quase só com ele naquela s
ala vazia,
ouvindo o relógio bater as horas com
passadamente, pingando os minutos que me separav
am do passado. Parecia que o relógio fazia de pr
opósito; todas as vezes que eu
estava lembrando
, ele começava a bater: dom! dom! dom! devagar e
tristemente, como se dissesse: Lembra! Lembra!
Lembra! Esse mesmo som, eu ouvi a vida inteira,
nos
dias alegres e nos dias de sofrimento; em t
odas as ocasiões principais da nossa vida, esse
badalar tocou meu coração; não sei por que eu só
reparava nele quando
estava emocionada. E ele
batia sempre com tanta indiferença pelo que se p
assava em nossa casa; queria que ele vibrasse ta
mbém conosco. Na solidão, sofri mais; e
Carlos
nunca me abandonou um dia sequer; costumava dize
r:
— Mamãe, lembre-se de que estou aqui. Corage
m, mamãe! Nunca deixarei a senhora; lembre-se de
que estou aqui!
Foi o melhor filho e o melhor
amigo; comparei-o a uma árvore verde num deserto
, coberto de sol e de areia e eu perdida na soli
dão procurando um lugar para descansar
e refres
car a cabeça ardente.
Não pude deixar de agrade
cer ao céu o ter-me dado um filho assim e no ínt
imo, achava que não merecia tanto; e o céu me de
u razão, porque um dia mo tirou. Senti-me
então
só no deserto, tão desesperadamente só que acre
ditei morrer de dor; em vão procurei a árvore qu
e me protegera e me amparara anos antes; já não
existia. Não
resistira ao sol ardente da vida,
estava morta. Eu levantava os braços para o céu,
numa imploração:
— Ah! Meu filho!
Lembrava de
uma canção que ele cantava sempre: Quero ver-lh
e uma vez mais. Eu então cantava baixinho: quero
ver-te uma vez mais, meu filho. Só uma vez. Com
o se assim
passasse a minha dor. Mas nunca mais
ele voltou e minha dor ficou.
* * *
Nessa fes
tiva véspera de Natal, quando Carlos apareceu de
calças compridas, risonho e feliz, entre as bri
ncadeiras e exclamações dos irmãos, beijei-o e a
bracei-o
comovida, pedindo a Deus todas as bênç
ãos para meu filho mais velho. Fiz um jantar mel
hor para festejar o acontecimento e também porqu
e era véspera de Natal e ficamos
até tarde da n
oite quebrando nozes à volta da mesa e fazendo p
lanos para o futuro. Carlos dizia:
— Quando eu
for médico...
E meu coração inchava de orgulho.

No sábado seguinte, Júlio veio mais cedo para
casa e fiquei muito admirada, pois aos sábados,
geralmente, ele voltava de madrugada. Chamou-me
no quarto com ares
misteriosos e disse:
— Lola
, tenho uma boa notícia a dar, mas não sei como
vamos arranjar o negócio. Tive então uma idéia.
Sente aí.
Eu me sentei na beira da cama e ele f
icou de pé à minha frente; deu depois uns passos
pelo quarto, enquanto eu esperava, rígida, a no
tícia. Parando outra vez na
minha frente e me e
ncarando, falou com voz nervosa:
— Lola, aparec
eu uma oportunidade única em nossa vida; única.
Imagine que o chefe me convidou para sócio.
E p
arou esperando a resposta; quando abri a boca pa
ra falar, ele não me deu tempo e continuou:
- O
Barbosa vai abrir uma filial no Brás; há muito
tempo que eles têm essa idéia e hoje me chamaram
no escritório depois do almoço e o tico-tico me
propôs entrar
para sócio da casa. (Entre nós c
hamávamos o Barbosa, o patrão de meu marido, de
"tico-tico"). Quando ele fez a proposta, até fiq
uei sem fala; minhas pernas
bambearam e nem sab
ia o que responder. Afinal ele me disse que pens
asse bem antes de resolver qualquer coisa. Mas o
pior é o dinheiro, Lola; o tico-tico disse
que
eu tenho de entrar com um capital, perguntei de
quanto; ele parou um pouco, coçou a cabeça e di
sse: no mínimo cinqüenta contos. Fiquei frio. On
de vou arranjar?
Decerto ele me convidou porque
sabe que temos esta casa, senão, não me convida
ria. Eu disse uma vez que a casa já é nossa; ele
não sabe que ainda faltam quatro anos
para aca
barmos de pagar. E vender a casa para obter o di
nheiro, não quero.
Protestei com energia:
- De
us me livre, Júlio! Isso nunca! Nem pense em ven
der a casa. Casa é casa.
- Então, o que faremos
? Você não tem uma idéia?
Olhamo-nos sem nada d
izer, mas notei um sorriso disfarçado nos lábios
de Júlio. Ele continuou a passear pelo quarto c
om as mãos atrás das costas e eu baixei a cabeça
,
cismando.
- O negócio é bom mesmo, Júlio, ma
s se os 50 contos rodarem, como há de ser?
- Já
vem você com idéias pessimistas; o principal nã
o é os 50 contos rodarem, o principal é encontra
r esses 50 contos. E tive uma idéia.
Olheio-o s
em responder; o sorriso se acentuou no rosto de
Júlio:
- Que tal se você fosse pedir à tia Emíl
ia? Tive um sobressalto:
- Mas, Júlio...
- Eu
pensei primeiro em irmos nós dois pedir, depois
achei melhor você ir sozinha. É melhor. Que diab
o! Eu dou a casa como garantia; quanto não vale
esta casa?
Passei a mão pela testa, angustiada:

- Mas a casa ainda não é nossa, não pode ser g
arantia; e depois nunca pedi nada a tia Emília,
fico sem jeito...
- Justamente por nunca ter pe
dido nada, talvez ela nos atenda. Eu pago os jur
os direitinho, é apenas um empréstimo. Enfim se
ela não der, um outro há de dar por
causa desta
casa. É uma garantia. Que tal?
- Vou pensar, J
úlio. Para quando é?
- O mais depressa possível
; vá segunda-feira. Senti as mãos frias e úmidas
.
- Tão depressa assim?
- Naturalmente; o tico
-tico não pode esperar, precisa resolver logo.

- Então vou segunda-feira.
Passei a noite preoc
upada e o domingo todo também. Como seria recebi
do meu pedido? De que forma falaria? E seria ate
ndida?
Amanheci com dor de cabeça na segunda-fe
ira; tomei uma aspirina e nem almocei; depois sa
í com Júlio e disse a Clotilde que ia fazer umas
compras. Separei-me de Júlio
na cidade e, com
o coração aos saltos, fui para a Rua Guaianases.
Tia Emília me recebeu numa sala pequena onde pa
ssava os dias quando não recebia visitas; estava

só. A filha que morava
com ela, tinha saído.
Cumprimentei-a e sentando-me ao lado, peiguntei


por toda a família, desde os filhos mais velhos
, até o último bisneto. Depois falei sobre o fri
o, o calor e as chuvas. O tempo ia passando e de
repente podia chegar
alguma visita; então crie
i coragem e comecei a falar sem rodeios:
- Tia
Emília, vim fazer-lhe um pedido; gente pobre só
faz pedidos desagradáveis. A pobreza é horrível;
já ouvi uma senhora rica dizer uma vez: "Quando
meus
parentes pobres telefonam ou me visitam,
tenho sempre contrariedades, nunca tenho alegria
s". E é assim mesmo. Infelizmente. A senhora des
culpe minha ousadia
e se não puder atender meu
pedido, não faz mal.
Fiz uma pausa; tia Emília
mexeu-se na cadeira, mas seu rosto ficou impassí
vel; só suas mãos moviam-se nervosamente. Contin
uei:
- Queria ver se a senhora podia nos fazer
um empréstimo; meu marido teve uma proposta para
entrar como sócio da casa e precisa muito do di
nheiro. Ele pagará os
juros que a senhora pedir
e damos nossa casa como garantia. Precisamos de
cinqüenta contos.
Primeiro os olhos dela me fi
xaram terrivelmente; depois falou devagar, a voz
breve e seca, procurando sorrir:
- Ah! Não ten
ho esse dinheiro para dar agora; tenho tido muit
os compromissos ultimamente e não posso dar. Sin
to muito, mas não posso.
Respirei fundo como um
a pessoa que está debaixo d'água e consegue pôr
a cabeça para fora; e falei:
- Está bem, tia Em
ília. E se Júlio arranjar esse dinheiro com outr
a pessoa, a senhora pode ser nossa fiadora?
- C
omo? Fiadora?
Sua voz mudara de tom, era mais a
lta. Houve um curto silêncio. Tive uma pequena e
sperança e continuei com animação:
- Damos noss
a casa como garantia, tia Emília; é verdade que
ela não vale cinqüenta contos, mas quem sabe a s
enhora sendo nossa fiadora, poderemos fazer o ne
gócio
mais facilmente; e temos esperança de pag
ar logo porque a loja vai bem; tem progredido mu
ito ultimamente.
Desta vez suas mãos moveram-se
mais e as rugas se afundaram à volta da boca e
na testa:
- Não posso fazer isso, Lola. Sinto m
uito, mas não posso, não costumo me responsabili
zar por dívidas de ninguém, nem de meus filhos.
Nunca fiz isso.
Sua voz tinha se tornado mais d
ura e mais seca; parecia uma lixa a me ferir os
ouvidos. Mordi os lábios, sem saber o que dizer;
comecei a escarafunchar uma idéia
na cabeça pa
ra falar qualquer coisa e quebrar o silêncio, qu
ando uma porta se abriu e prima Adelaide entrou.
Sentou-se ao lado e conversamos assuntos difere
ntes.
Falou-se outra vez das chuvas da última s
emana, da temperatura agradável e dos preços dos
gêneros que estavam subindo cada vez mais. Abri
u-se a porta outra vez e
uma criada entrou traz
endo uma grande bandeja pesada de bules de prata
e xícaras; levantei-me para me despedir, mas ti
a Emília disse que eu devia tomar uma xícara
de
chá. Fiquei. Tomei chá e comi um pedaço de bolo
, conversando despreocupadamente; levantei-me ou
tra vez para sair e notei no rosto de tia Emília
um clarão de alívio
e contentamento por se ver
livre de mim tão facilmente. A voz tornou-se en
tão macia como se fosse de veludo:
- Foi pena e
u não atender você; mas não foi possível. Recome
ndações.
Saí com a cabeça tonta, completamente
atarantada; em casa, disse a Clotilde que estava
muito cansada e com dor de cabeça; refugiando-m
e no quarto, chorei livremente,
enquanto espera
va Júlio. Ele chegou mais cedo, aflito por saber
o resultado do pedido e quando me viu, percebeu
o fracasso; seu rosto que estava animado quando
entrou,
fechou-se entre rugas e sombras:
- En
tão?
- Nada, Júlio. Diz que não tem dinheiro.

- Não tem dinheiro? A voz de Júlio era forte e á
spera. E fiadora?
- Também diz que não; não faz
isso nem para os filhos, não é hábito.
Ficamos
um momento calados; de repente, Júlio explodiu:

- Os ricos são uns bandidos! São desgraçados e
miseráveis, não se salva nenhum. São todos igua
is, não se pode contar com nenhum. Nenhum. Nunca
estendem o
braço para auxiliar um parente, um
amigo, o próximo enfim. Só eles, só eles, só ele
s.
Júlio andava nervosamente de um lado a outro
do quarto; procurei acalmá-lo:
- Você arranja
com algum amigo, Júlio. Não desanime.
- Amigos?
São todos mais pobres que eu; e, se tivessem di
nheiro, não emprestariam ou não seriam amigos. D
ariam uma desculpa, como essa velha deu. Miseráv
el. Nessa
hora é que se conhecem os amigos; mas
não há amigos, todos fogem.
Não fiz observação
alguma, só olhava para o chão; mas Júlio me int
erpelou:
- Como é mesmo que a Escritura fala do
s ricos? Negócio de elefante no fundo de uma agu
lha?
- Camelo.
- Como é mesmo?
- É mais fácil
um camelo passar pelo fundo de uma agulha do qu
e um rico entrar no reino dos Céus.
- Isso mesm
o; é verdade. Muito mais fácil. Repare como eles
não dão nada, Lola. O que eles têm, é pouco par
a gastar com eles mesmos. São muito piores que o
s pobres
para pagar as contas; eu não digo semp
re para você? Na loja nós sabemos quais são os r
icos porque as contas deles dormem na gaveta. Mi
seráveis. Essa velha há
de pagar; os netos dela
hão de ser mais pobres do que nós.
- Não diga
isso, Júlio. Que coisa horrível! Você está como
D. Genu que é invejosa e rogadeira de pragas.
-
Não estou rogando pragas; estou falando uma coi
sa que é quase lei do mundo: Os avós são riquíss
imos, os pais são ricos, os netos pobres ou quas
e pobres. Se não
são os netos, é a outra geraçã
o. Não se vê isso em muitas famílias? Quase toda
s. Repare um pouco. Como são ricos, ninguém trab
alha, ninguém produz e o dinheiro vai
saindo se
mpre, no fim tem que escassear. Tudo acaba. Desg
raçados. O que custava ela me emprestar esse din
heiro?Que são para ela 50 contos? Uma migalha!

Pois até essa migalha a diaba negou. Não faz mal
, ela paga de
outra forma.
Deixei o quarto par
a não ouvir Júlio falar e disse que ia tratar do
jantar. Não se comentou mais nada. Júlio ficou
de mau humor, não jantou quase e se retirou cedo

para o quarto. Mais tarde, na hora de dormir,
combinamos juntos o que ele devia fazer nos dias
seguintes a respeito do empréstimo e dormimos t
arde, alquebrados e
sem esperanças.
No outro d
ia de manhã, contei a Clotilde a visita da véspe
ra e nosso desespero. Ela estava costurando; lev
antou a cabeça, pôs os óculos no meio da testa,
olhou-me
e escutou até o fim; quando parei, dis
se indignada:
- Para o diabo toda essa gente ri
ca; que vão àquela parte é o que desejo, seja pa
rente ou não. Vocês hão de arranjar sem eles, hã
o de arranjar. Se Deus quiser.
E baixando a cab
eça, continuou a alinhavar a calça de brim de Ju
linho com a máxima atenção, passando a unha do p
olegar com toda força sobre a costura.

Capítu
lo VIII

Por toda a semana, Júlio não fez outr
a coisa senão procurar alguém que emprestasse o
dinheiro; pediu a amigos e aos que não eram amig
os, mas não conseguiu.
Quando entrava em casa c
om o chapéu caído na nuca, as duas mãos nos bols
os, andando devagar e o rosto fechado em carranc
a, eu já sabia por quê; nem precisava perguntar.

Ele me dizia a sós, no quarto:
- Parece incrí
vel que eu não encontre quem me dê a mão; é a me
sma coisa como se eu estivesse caído, quisesse m
e levantar e ninguém me desse a mão para me ajud
ar
a ficar de pé. Nunca pensei que fosse assim,
Lola.
E passava os dedos pelos cabelos, num gr
ande mal-estar. Eu procurava animá-lo, aparentan
do despreocupação:
- Em primeiro lugar você não
está caído, Júlio. Nem deve dizer isso. Você es
tá de pé e não pode se queixar, pois vai muito b
em na loja. Pense um pouco: se por acaso
arranj
a o dinheiro e a loja vai mal, tudo vai para trá
s e a gente tem que vender esta casa para pagar
a dívida? Deus me livre, prefiro tudo a perder a
casa, você
sabe. Casa é casa. Diga ao tico-tic
o que agora você não pode ser sócio; mas, daqui
a alguns anos, você será. Então esta casa já ser
á nossa e teremos um grande
sossego. Faltam só
quatro anos, lembre-se bem! E quatro anos passam
tão depressa!
Com essas palavras, ele se acalm
ava e dormia, mas no dia seguinte, ia novamente
à procura de outras pessoas que pudessem emprest
ar o dinheiro. Quinze dias se passaram
e não en
controu ninguém; então explicou ao tico-tico- qu
e infelizmente nesse ano não podia entrar para s
ócio da casa porque tinha outros compromissos, m
as ficaria
para o próximo ano.
Assim pusemos u
ma pedra em cima do assunto, mas uma vez ou outr
a quando o sono não vinha logo, eu percebia Júli
o, virando na cama sem dormir. Uma noite me cham
ou;
- Lola, está dormindo?
- Não.
- Que bom s
e fosse sócio, hein? Agora no fim do ano teria m
eu lucro, e dava para tanta coisa. Até para faze
r mais um quarto aqui na casa. Que pena!
Não re
spondi; ele percebeu que eu não queria falar do
negócio, dormiu logo depois. Eu também dormi e s
onhei com os bules de prata da tia Emília; eles
tinham pés
e corriam na minha frente; de vez em
quando olhavam para trás e riam-se do esforço q
ue eu fazia para alcançá-los"; assim corríamos d
urante horas inteiras.
Depois começamos a pensa
r em outras coisas e fomos esquecendo essa oport
unidade perdida. Olga escreveu que tinha mais um
filho, o terceiro, e nos convidou para padrinho
s;
dizia que era um meninão gordo, cheio de cov
inhas. Ficamos de ir fazer o batizado em dezembr
o.
Nessa época, Júlio começou a ter dor de estô
mago duas ou três vezes por semana, então resolv
emos consultar um médico; era impossível viver c
om essa dor. O médico
examinou-o muito bem e di
sse que era uma feridinha que havia na boca do e
stômago, tão pequena como a cabeça de um alfinet
e e era por isso que doía quando acabava
de com
er porque os alimentos iam na feridinha; só muit
o mais tarde é que fiquei sabendo que era úlcera
. Ele começou a fazer dieta e repouso, comia ali
mentos amassados,
mas não tinha muita paciência
e de vez em quando dizia, empurrando o prato:

- A feridinha que leve o diabo!
E comia de tudo
; horas depois gemia de dor, deitado na cama, co
m a mão na boca do estômago.
- Ai! Isto me mata
!
Eu fazia o que podia; pedir a ele que só come
sse o que o médico mandara, era pedir à chuva qu
e não chovesse ou ao sol que não brilhasse.
As
crianças ficavam assustadas com a doença do pai
e quando entravam em casa, perguntavam logo, em
voz baixa:
- Ele está sentindo dor? Como vai el
e?
O Natal desse ano foi triste; um dos piores
dias para Júlio. Passou o dia todo deitado, um l
ivro na mão e Isabel ao lado dele, lendo também.

Quanto mais velha eu ia ficando, mais forte me
sentia contra as vicissitudes e as tormentas à
minha volta; com o tempo, vamos aprendendo melho
r os conflitos da vida;
a própria vida vai nos
ensinando a viver melhor, a compreender melhor e
a sentir melhor. É a sabedoria da idade.
Dizem
que o sofrimento enobrece o caráter e purifica
o espírito; mas não creio. Só os felizes podem s
er bons e piedosos; os que sofrem são vingativos
, perversos
e sentem regozijo em acompanhar a i
nfelicidade do próximo. Só aqueles que vivem no
pedestal da riqueza, do bem-estar e da segurança
, os privilegiados do destino
é que sentem pied
ade sincera pelos que sofrem; olham consternados
para o céu e dizem com ar compungido:
- Coitad
o! Que pena eu tenho! Fiquei tão triste quando s
oube! Mas se de repente um vento forte os empurr
asse desse pedestal e eles
se vissem no meio do
caminho, sem ter onde se refugiar entre o frago
r da tempestade, palavras bem diversas sairiam d
os seus lábios diante da dor alheia. Não seriam


mais palavras de comiseração ou piedade, soment
e sarcasmo, revolta e ódio! A desgraça e o sofri
mento contínuo é que modelam os maus e revoltado
s; só compreendi isso
mais tarde.
Essa impress
ão me ficou depois de anos de convivência com D.
Genu, nossa vizinha; ela era boa a seu modo, um
a bondade diferente, revoltada, uma bondade mald
osa,
se se pudesse falar assim. Só era boa mesm
o para os que morriam. Quando sabia que alguém h
avia morrido na vizinhança, mesmo que não conhec
esse muito bem, ela corria
e apresentava seus s
erviços; parecia sentir prazer em lidar com o de
funto. E vai ver que sentia mesmo. Gostava de la
vá-lo e vesti-lo solicitamente, não esquecendo

detalhe algum; depois que o defunto estava no ca
ixão, vinha com montões de flores e colocava uma
por uma, carinhosamente, artisticamente, sobre
o cadáver. Depois
de tudo pronto, sentava-se ao
lado, puxava um rosário da bolsa e ficava rezan
do para a alma que se fora. Toda a família do mo
rto ficava admirando D. Genu e durante
o resto
da vida, dizia, referindo-se a ela:
- Como é bo
a! É uma santa! Veio vestir mamãe depois de mort
a, tomou conta de tudo e ainda passou a noite in
teira aqui conosco!
Ninguém sabia que ela fazia
isso porque gostava e sentia verdadeiro prazer,
fosse quem fosse o morto; não era para prestar
serviço aos vivos, nem para auxiliar a
família
num dia de aflição. Não. Era por amor ao defunto
, conhecido ou desconhecido; creio que tinha uma
espécie de divergência para atos mórbidos, um v
ício, um
desvio, nunca pude interpretar.
Fora
dessa tarefa que ela achava agradável executar,
e fazia com gosto, a fisionomia iluminada pelo d
evotamento, era uma mulher áspera, dura para com
todos, quase
agressiva, um ar petulante.
Exte
riormente era calma e aparentava bondade; mas ba
stava um pequeno detalhe; um automóvel brilhante
que passasse, uma vizinha do palacete da esquin
a lendo um livro
despreocupadamente no terraço,
cintilações de brilhantes na mão de uma mulher
bonita, ela se revoltava logo; levantava o braço
direito para cima num gesto mudo de
condenação
. Era como uma água parada com a superfície lisa
e enganadora, onde na profundidade rugisse semp
re a tormenta.
Perdera o marido e o filho único
no espaço de um ano e ficara pobre, lutando par
a criar e educar quatro filhas. Quando essas fil
has ficaram moças e começaram a trabalhar,
entã
o ela pôde descansar um pouco, ou antes, não tra
balhar tanto. Mas desses anos cruéis de lutas se
m tréguas e cheios de desenganos, ficara o resse
ibo amargo da
revolta, do ódio para com os feli
zes, os que não precisavam lutar como ela lutara
. Era um misto de inveja e anseio de vingança, d
esejando a todos os conhecidos e
amigos as dore
s que ela havia sofrido, o pranto que ela havia
derramado.
Quando meus filhos cresceram e conhe
ceram melhor D. Genu, diziam:
- Mamãe, ela é me
io comunista. Está sempre reclamando que no mund
o uns têm muito e outros não têm nada. Isso é de
saforo! Ninguém tem culpa disso, não é mamãe?
P
arece que está sempre com raiva.
Eu procurava d
esculpar D. Genu:
- Coitada! Ela tem sofrido mu
ito; é por isso que é assim. Às vezes ela conver
sava comigo no portão:
- Já viu a mocinha da es
quina passeando com o namorado? Vivem de mãos da
das, andando no escuro, mas como é filha de gent
e rica ninguém diz nada. Até acham bonito;
mas
se fosse minha filha... Credo! Estava na boca do
mundo.
Outras vezes falava asperamente;
- A s
enhora e eu trabalhando o dia inteiro no fogão e
na máquina de costura e as outras passeando de
automóvel e tomando chá com bolos. Eh! Mundo err
ado!
Eu procurava apaziguar:
- Elas não têm cu
lpa da nossa pobreza, D. Genu, assim como não sã
o culpadas de terem nascido ricas ou bonitas. Ni
nguém sabe por que é feia ou bonita, aleijada
o
u perfeita. São os desígnios de Deus, que nós de
vemos aceitar.
- Ou do diabo. Mas dá raiva, D.
Lola. Me dá um ódio ver tanta diferença nos dest
inos das pessoas. Esses que são tão ricos, devia
m ostentar menos e repartir mais
com os pobres.
Não está direito.
- Não diga isso, D. Genu. Me
smo que eles dessem ou repartissem tudo, ainda f
icava muita miséria no mundo; ninguém pode dar j
eito, só Deus.
- Mas me dá raiva. Tenho ódio.

- Pois eu não tenho; sou resignada.
- Então a s
enhora tem sangue de barata. Eu não sou assim. E
u sorria e não respondia. Dias depois, Júlio avi
sava:
- D. Genu anda alerta; animada e contente
. Pensei: alguém deve estar para morrer. Hoje um
a das filhas me contou que a irmã da cunhada do
marido está muito mal.
Logo vi!
E era verdade;
toda vez que encontrava um de nós dizia com ar
entendido:
- Ela não sara mais. Coitada! Também
com essa moléstia; está por dias, talvez por ho
ras.
Dias depois, vinha dar a notícia por cima
do muro:
- Não disse? A moça morreu de madrugad
a. Vou já para lá.
E logo mais tomava o bonde,
contente e disposta a passar o dia e a noite, li
dando com a defunta.
Meus filhos perceberam ess
a qualidade da rossa vizinha e muitas vezes quan
do eram moços, ouvi um dizer para o outro:
- No
ssa vizinha anda assanhada esses dias; deve have
r defunto em perspectiva.
Um dia Alfredo chegou
a me dizer:
- Olhe, mamãe, quando eu morrer, n
ão deixe D. Genu mexer comigo. Todos riram e eu
prometi não deixar.
D. Genu tinha uma irmã rica
que residia na Avenida Paulista: chamava "a irm
ã da Avenida". Quando voltava dessas visitas à c
asa da irmã, parecia mais revoltada; apesar
de
a irmã e o cunhado a auxiliarem muito, ela achav
a sempre pouco e se queixava. Eu sabia quando el
a vinha da casa da irmã: ficava mais aborrecida
e nervosa, gritando
com as filhas, sem paciênci
a para nada. Gostava de me contar o que se passa
va em casa da irmã; pintava a riqueza do cunhado
com cores maravilhosas para 'me impressionar,

exagerava, descrevia com calor. Um dia contou, m
ais excitada do que de costume:
- Hoje encontre
i lá uma novidade; uma estátua de mármore que me
u cunhado mandou vir da Europa. Nua! Imagine com
prar uma estátua nua; está inclinada assim em ci
ma
de uma coluna de mármore verde e o traseiro
virado para a porta.
- Para a porta?
- Pois pu
seram ela no hall da entrada, sabe? Um hall muit
o rico, como já contei à senhora, todo de mármor
e preto e branco. Uma beleza; puseram a mulher a
li bem
no meio. Se pusessem ela de frente para
a entrada, ficava o traseiro virado para as visi
tas, então puseram ao contrário. A gente entra,
já dá com a mulher nua;
eu não, porque entro pe
los fundos. O pobre entra sempre pelo lado feio
da casa. Dizem que a estátua custou doze contos;
eu não gostei, não gosto dessas imoralidades.

Tem tanta coisa mais bonita pra comprar, pra que
comprar mulher pelada? Com esses doze contos eu
fazia tanta coisa! Nem gosto de pensar. Imagine
, comprar uma coisa
daquelas pra enfeitar o hal
l não acho que enfeite nada. Enfim... são gostos
. Eles têm dinheiro para jogar fora. E minhas fi
lhas trabalhando como trabalham, nem sempre
têm
capote pró frio.
- Mas o ano passado, eles der
am casacos para o frio; e bem bonitos. Não foi?


- Mas nem por isso eram muito quentes; fazenda
ordinária. Já estão feios, não servem mais. Dão
coisas ordinárias, isso é que é. Coisas que eles
não são capazes
de usar.
Durante vários dias
rimos com a estátua nua de D. Genu; os filhos pe
rguntavam:
- Como é que ela está, mamãe? Assim
ou assim?
E faziam as posições mais grotescas p
ossíveis, dando gargalhadas. Precisei ralhar com
eles para pararem com a brincadeira.
Mas para
mim a vizinha foi sempre boa; nos momentos mais
difíceis, esteve sempre ao meu lado e tenho-lhe
que ser sempre reconhecida apesar do seu gênio r
evoltoso
e despeitado.
Durante toda a moléstia
de Júlio, ela foi muito solícita; fazia pratinh
os especiais para ele, perguntava todos os dias
se tinha passado melhor, aconselhava, contava
c
asos de pessoas com úlcera que haviam ficado com
pletamente boas, ensinava como devia fazer para
não sofrer tanto e tudo isso foi cimentando de t
al forma nossa amizade
que nossas vidas ficaram
unidas. Anos mais tarde, na noite mais terrível
da minha longa vida, encontrei o braço forte de
D. Genu me amparando e levantei as mãos
para o
céu nesse dia por tê-la como amiga.

Capítulo
IX

Em 1924, Júlio deixou de ser gerente da l
oja e foi trabalhar no escritório; o tico-tico v
iu que ele sofria muito por ficar de pé o dia to
do e ofereceu um lugar no
escritório
com o mes
mo ordenado. Ficou mais aliviado e começou a pas
sar melhor do estômago.
Nossa tia Candoca, únic
a irmã de mamãe que morava em Itapetininga, tinh
a vindo um ano antes de mudança para São Paulo e
alugara uma casa na Luz, Rua Bandeirantes.
Tod
a a semana, Clotilde e eu íamos passar umas hora
s com tia Candoca; levávamos nosso trabalho e tr
abalhávamos contando fatos e lembrando pessoas d
e Itapetininga.
Em maio, tia Candoca ficou só c
om uma netinha e a cozinheira porque a filha for
a com o marido para Rio Preto, onde passariam un
s dois anos. Então tia Candoca convidou
Clotild
e a passar uns tempos com ela. Clotilde já estav
a lá há dois meses quando, um dia, Júlio voltou
muito nervoso para casa dizendo que havia revolu
ção na cidade.
Perguntei, assustada:
- Revoluç
ão? Por que revolução?
- Não sei, disse Júlio.
Estão dizendo por aí. Onde estão as crianças?
-
Não vieram ainda. E agora? Haverá perigo?
- Cr
eio que não; parece que o barulho é lá para o la
do dos quartéis, na Avenida Tiradentes.
Levei u
m susto:
- E tia Candoca? E Clotilde? Coitadas!

- Não sei bem ainda, quem sabe não há de ser n
ada, disse Júlio encaminhando-se para o portão.


Nesse momento, ouvimos um barulho surdo como um
tiro de canhão, mas muito longe; Isabel chegou
logo depois dizendo que tinha ouvido um tiro de
canhão e todas as
escolas estavam se fechando.
Carlos e Julinho também vieram contando novidade
s e dizendo que o Isidoro era um bicho.
Pergunt
ei:
- Que Isidoro é esse?
- O General Isidoro,
mamãe. Pois é ele que está fazendo a revolução.
Fiquei na mesma e saí ao portão para ver se Alf
redo vinha vindo;
esse chegou por último, entus
iasmado com o que vira; soldados correndo de um
lado para o outro no largo do Palácio, outros fa
zendo trincheiras na rua, caminhões
passando a
toda velocidade conduzindo soldados com carabina
s embaladas, casas comerciais fechando suas port
as de ferro com estrépito, na cidade.
- Mas par
a que tudo isso? perguntei.
- Não sei, ninguém
sabe. Dizem que é para depor o presidente. Ficam
os até tarde à escuta para ouvir outros tiros de
canhão, mas
nada mais ouvimos e fomos deitar,
muito apreensivos.
No dia seguinte cedo, mandei
Carlos e Alfredo à casa de tia Candoca para sab
er como estavam; mas os meninos voltaram do meio
do caminho dizendo que não havia mais
bondes e
eles tinham ido a pé até a estação da Luz; lá d
isseram que não fossem adiante porque estavam co
mbatendo na Avenida Tiradentes. Júlio voltou ced
o da loja
e disse que todo o comércio resolvera
fechar enquanto houvesse revolução; comecei a f
icar seriamente apreensiva com a sorte de Clotil
de e tia Candoca e sem meios
de comunicação par
a saber alguma coisa. Quase todos os nossos vizi
nhos foram embora deixando as casas fechadas; sa
íam apressadamente altas horas da noite, a pé ou

de automóvel, levando pacotes, trouxas de roup
a, bichos, canarinhos em gaiolas; iam quase em s
ilêncio para rumos desconhecidos. Só ficou a fam
ília de D. Genu naquele
quarteirão. E nós. Ouvi
a-se o canhão troar o dia todo e parte da noite
lá para os lados da Cantareira; os meninos vivia
m agitados, dizendo a todo o momento:
- Olhe o
canhão! Começou a dança! Júlio observava:
- Só
assim vou descansar; que boa revolução!
E ficav
a deitado o dia todo, lendo jornais e mandando A
lfredo sair para saber mais novidades.
Vieram c
ontar que as estradas para o interior estavam ch
eias de automóveis com retirantes; era um atrás
do outro levando crianças, malas, cachorros, gal
inhas; um
nunca acabar de famílias que deixavam
São Paulo. Três dias se passaram e eu mandei ou
tra vez os dois meninos até a Rua Bandeirantes p
ara saber notícias de Clotilde.
Eles voltaram t
arde dessa vez e eu já estava aflitíssima espera
ndo no portão; disseram que conseguiram chegar a
té o Jardim da Luz; lá viram uma porção de solda
dos
entrincheirados atrás de um monte de sacos,
atirando para um grupo escondido atrás das árvo
res. Então um tenente passou correndo e gritou,
nervoso, a cara manchada
de preto:
- O que est
ão fazendo aqui, meninos? Sumam-se! Voltem para
casa!
Nesse momento uma saraivada de balas caiu
perto deles e o tenente e os outros soldados qu
e estavam perto tiveram que deitar no chão e fic
ar quietinhos; Carlos e
Alfredo também. O tenen
te dava ordens e os soldados se aprontaram para
atirar; era na esquina da Rua S. Caetano.
Júlio
perguntou:
- E esse tenente de que lado era?

- Isidorista, respondeu Carlos.
Eu tremia só de
pensar no perigo a que meus filhos se haviam ex
posto e Júlio me olhou com ar de censura:
- Por
que mandou os meninos para aqueles lados? Podia
m até morrer!
Os meninos continuaram:
- Um neg
rão saiu do grupo do tenente e ficou atrás de um
a árvore, atirando. Ele punha a carabina na cara
, atirava e dizia: "Toma, bandido, pensa que ten
ho medo de
governista?" E a árvore já estava la
scada de tanta bala que vinha pró lado dele; tod
as as vezes ele gritava: "Toma, cachorro!", e a
bala zunia zizzzzz e batia
nos sacos da trinche
ira; o negrão dava risada, metia outra vez a car
abina na cara para a pontaria: "Essa é procê, ba
ndido!", e lá ia outra zizzzz... páf! entrava
n
o saco. O negrão era valente mesmo. Formidável!


- E depois? Como é que vocês voltaram?
- Aí ap
areceu um lençol branco na ponta de um pau
- Um
a vassoura, interrompeu Alfredo.
- Na ponta de
uma vassoura na janela de uma casa da Avenida; e
ra uma família que queria ir embora. Então o ten
ente mandou parar o tiroteio, o pessoal do quart
el
também parou e a família saiu à rua e foi pa
ra o lado da estação da Luz para embarcar. Levav
am dois cachorros, uma porção de malas e um caix
ote de galinhas; nós
fomos andando com eles. O
tenente dizia: "Raspem-se daqui, meninos. Vão em
bora; ainda tiveram sorte".
- Então cessaram as
hostilidades?
- Qual o quê, papai! Quando íamo
s atravessando a estação, ouvimos os tiros de no
vo. Todas as portas da estação estavam fechadas;
só um guarda abria a metade de
uma portinha pa
ra quem queria sair. Estavam dizendo que esta no
ite a coisa vai ser feia. E o tenente disse para
nós não sairmos mais de casa.
Fiquei muito ass
ustada e não dormi mais pensando em Clotilde; un
s> dias depois levei um choque tremendo quando v
i entrando em casa tia Candoca, Clotilde, a neti
nha
de oito anos, a cozinheira Benedita e Mulat
a,
o papagaio. Traziam uma enorme trouxa de rou
pa, uma cesta com alguns comestíveis e uma valis
e; chegaram exaustas, foram entrando e sentando
nos degraus da escada;
nós ficamos à volta dela
s, excitados, e D. Genu que as viu chegar, veio
também saber o que havia.
Elas então contaram o
susto do primeiro dia e o medo que sentiram, so
zinhas, sem poder sair de casa e sem poder se co
municar com ninguém. No primeiro dia estavam
al
moçando sem saber de nada; de repente um tiro de
canhão passou por cima da cabeça delas, tão for
te que a casa inteira tremeu e caiu cisco na com
ida. A Benedita
veio da cozinha com a mão na ca
beça, tremendo de medo: "Cruz credo! Que será is
so?" O Pirata começou a latir feito um danado e
elas correram à janela para ver o
que havia; mu
ita gente estava correndo nas ruas de um lado a
outro e um grupo de soldados passou em disparada
subindo a Avenida. Esperaram mais um pouco e qu
ando
foram ao armazém da esquina para telefonar
, os telefones não funcionavam mais; Clotilde nã
o tinha medo, dizia que isso passava logo, mas t
ia Candoca nem dormiu mais
de pavor.
Tia Cando
ca que era gorda, arquejava de cansaço e como an
dara a pé, pois não havia condução de espécie al
guma foi tirando logo os sapatos e as meias, que
ixando-se
de dores nos pés e mostrando duas bol
has enormes; uma num dedão e outra no calcanhar.
Começou a esfregar os pés devagarinho e a gemer
:
- Ai! Que estopada!
Os meninos perguntaram l
ogo pelo cachorro e pela cabrinha; contaram que
haviam deixado bastante comida e água perto dele
s e que isso daria para uns três ou quatro
dias
.
Alojei-as como pude e assim passaram mais uns
dias; D. Genu perguntava por cima do muro, trep
ada num caixão de gasolina:
- Souberam hoje mai
s alguma novidade? Ou então:
- Ouviram o canhão
esta noite? Cantou que não foi vida!
Um dia co
ntaram que haviam assestado um canhão no Morro d
os Ingleses; ia atirar de lá para o quartel de V
ila Mariana; pensamos logo que se Vila Mariana r
espondesse
seria um estrago no nosso bairro. Fi
camos aterrados; mas Júlio, que estava gostando
do repouso, dizia que não havia perigo e fôssemo
s ficando. Cinco dias depois
da chegada de Tia
Candoca, como a revolta não acabava, começamos a
pensar seriamente no cachorro e na cabrinha. Ti
tia suspirava o dia inteiro:
- Será que ainda v
ivem? Eu que criei aquele cachorro com mamadeira
!
E ficava com os olhos cheios d'água. Os menin
os se ofereceram para ir buscar os animais, mas
ela não aceitou. Então, um dia de manhã, Clotild
e e Benedita resolveram
ir até lá; saíram bem c
edo levando almoço numa cesta, carne para o Pira
ta, milho para a cabrinha; foi como se se dirigi
ssem para uma longa e perigosa excursão; os
men
inos tiveram licença de acompanhá-las uns três q
uarteirões adiante; tia Candoca reprovava:
- Me
u Deus! Que loucura de Clotilde. O que poderão f
azer? Passou-se o dia todo e elas não voltaram;
ficamos todos muito
apreensivos e não dormimos
a noite toda esperando vê-las aparecer de uma ho
ra para outra. D. Genu gritava do muro:
- Nada
ainda D. Lola?
- Nada.
- Credo! O que terá aco
ntecido?
Ao meio-dia do dia seguinte, não tínha
mos almoçado ainda e os meninos foram até a esqu
ina ver se elas vinham voltando, quando Isabel e
ntrou correndo e gritando:
- Vêm vindo! Elas vê
m vindo!
Respirei aliviada e fomos todos ao por
tão vê-las chegar; traziam Pirata numa corda e p
uxavam Esmeralda, a cabrinha, numa outra; Benedi
ta trazia também uns frangos
dentro da cesta. C
hegaram abatidas e cansadíssimas. Ficamos todos
curiosos por saber o que acontecera; então Cloti
lde contou que chegaram lá e encontraram tudo
e
m ordem; deram comida para os bichos, almoçaram
e quando tratavam de sair, um soldado falou da e
squina:
- Não saia agora, moça. Está perigoso.


Esperaram mais e anoiteceu muito depressa; come
çaram a ouvir as balas pipocarem ali perto. Reso
lveram então voltar no dia seguinte de manhã; at
é esse momento, não
tiveram medo. Mas assim que
anoiteceu, um canhão começou a mandar balas par
a o quartel da Avenida e parecia que o canhão es
tava muito perto; devia estar no campo
de Marte
. Resolveram descer e ficar no porão; levaram o
cachorro e a cabrinha e ficaram os quatro quieti
nhos, imóveis, só com uma vela acesa. O Pirata e
stava inquieto,
mas a cabrinha deitou num canto
e dormiu. A coisa foi piorando tanto que Clotil
de e Benedita pensaram que não amanheciam, pois
a todo instante parecia que as balas
iam cair n
a casa. Resolveram então rezar juntas; ajoelhara
m e Clotilde disse:
- Olhe Benedita; desta vez
não sei se escaparemos. O negócio está preto, va
mos rezar juntas.
E começaram a rezar alto:
-
Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é... (Benedi
ta gritava: lá vem ela! Percebiam quando a bala
saía de dentro do canhão e vinha
zunindo zuim B
um! Caía com estrondo logo adiante. Clotilde
su
spirava: desta vez ainda não foi aqui. Vamos...)
O Senhor é convosco, bendita sois vós entre as
mulheres, bendito o fruto do vosso ventre, Jesus
.
Santa Maria...
Rezavam Santa Maria até o fim
porque estavam pondo outra bala no canhão. Quan
do começavam outra vez:
- Ave-Maria, cheia de g
raça, o Senhor é convosco... (Já vem outra- zuim
... Agora é aqui! - baixavam a cabeça e ficavam
encolhidas esperando a morte - Bum! A
casa toda
estremecia. Desta vez ainda escapamos), Bendita
sois vós entre as mulheres, bendito o fruto do
vosso ventre, Jesus.
Assim rezaram uma porção d
e ave-marias entremeadas com balas de canhão; de
vez em quando a vela ia sumindo e acendiam outr
a; a certa hora Clotilde resolveu escrever
um b
ilhete despedindo-se de toda a família porque ac
hou que não atravessaria a noite viva. Tirou um
lápis da bolsa, umas folhas do caderninho e fez
uma espécie de
testamento; despediu-se de todos
com palavras comovidas. Pôs o papel bem dobrado
dentro da bolsa e escreveu em cima: "Se eu morr
er". Ajoelhou-se outra vez para rezar;
Benedita
sentou no chão com a cabeça entre as mãos e com
eçou a chorar de medo; Pirata de vez em quando r
osnava baixinho; só Esmeralda mascava num canto,
mudava de
posição e tornava a dormir. Clotilde
disse
- Não adianta chorar, Benedita. Vamos re
zar mais que é melhor; olhe, vamos, agora uma sa
lve-rainha bem alto: Salve-rainha, mãe de miseri
córdia, vida doçura... (a
Benedita cobriu a cab
eça com o chalinho gritando: Nossa Senhora da Bo
a Morte, esta vem por cima de nóis) vida doçura.
.. zuim esperança nossa... zuim Bum! Salve!
As
duas caíram deitadas no chão, tal o fragor da bo
mba ao cair ali perto; a cabra levantou-se assus
tada e começou a balir baixinho, e o cachorro ve
io para perto
delas gemendo e se encostando, co
m um pavor louco. Resolveram então não rezar alt
o; Benedita chorava e dizia que a pior bomba for
a no Salve; apagaram a vela e ficaram
os quatro
juntinhos, esperando o dia amanhecer, sem muita
esperança de verem o sol.
Aos primeiros clarõe
s da madrugada, a artilharia cessou, então elas
se levantaram trôpegas e tremendo de frio, foram
espiar as ruínas da vizinhança; não havia ruína
s
por perto, tinha sido mais impressão que peri
go. Trataram de sair enquanto havia tréguas; ama
rraram cordas nos pescoços dos animais, puseram
os frangos dentro da
cesta e saíram devagar, es
piando a rua com cuidado. Estava tudo parado dep
ois dessa noite de pavor; só havia um homem deit
ado na esquina da Avenida, parecia morto.
Subir
am a Rua Afonso Pena e vieram vindo; Esmeralda p
arou umas duas vezes no caminho sem querer andar
; precisava uma puxar com força e a outra empurr
ar: "Vamos,
Esmeralda, vamos, meu bem". Afinal
chegaram abatidas e cansadas, horrorizadas só em
lembrar a noite que haviam passado.
Desse dia
em diante, Júlio não aproveitou mais as férias i
mprovisadas; Pirata perseguia Caçarola, o gato d
e Isabel. Isabel encontrara o gato na rua, morre
ndo de
fome e pusera o nome de Caçarola porque
tinha apenas um toco de rabo; o resto ninguém sa
be onde foi parar e o que tinha parecia mesmo ca
bo de caçarola. Caçarola
subia na goiabeira e f
icava horas sem poder descer, o pêlo eriçado, os
dentes arreganhados. Isabel chamava carinhosame
nte:
- Vem, Caçarola. Pirata não te faz mal, eu
não deixo.
Qual o quê; o gato cada vez mais as
sustado, olhava para baixo com os olhos amarelad
os, enormes de pavor. Se se prendia o cachorro,
latia o dia inteiro de uma maneira
lamentável;
e Caçarola, quando se via livre, ficava olhando
a Mulata no poleiro, mas com uns olhos tão compr
idos que se pegasse a Mulata de jeito, estraçalh
ava a
coitada. Passava a língua fora da boca be
m devagar como se estivesse na eminência de sabo
rear um bom quitute.
Os meninos não podiam sair
e ficavam presos em casa o dia todo; ficavam ir
ritados e nervosos; a netinha de tia Candoca era
chorona; por qualquer coisa, chorava horas
int
eiras. Júlio coçava a cabeça:
- Será que esta r
evolução não acaba mais?
As despesas aumentaram
, o canhão troava desde a madrugada, às vezes du
rante a noite e D. Genu punha a cabeça vinte vez
es por cima do muro:
- Souberam mais alguma nov
idade?
Afinal, depois de vinte e tantos dias, s
oubemos que as tropas do Isidoro haviam abandona
do a cidade e tudo serenou; foi um alívio para

todos e em poucos dias a vida se normalizou. Tia
Candoca voltou para a casa da Rua Bandeirantes
com o bando todo; nossa casa ficou sossegada out
ra vez e durante
todo esse fim de 1924, só se f
alou na Revolta do Isidoro e suas conseqüências.

Em dezembro, Carlos tirou diploma no ginásio e
foi uma grande satisfação para nós; em compensa
ção Alfredo teve que repetir o primeiro ano gina
sial e Júlio ficou
tão desesperado que pensei q
ue piorasse.
Nem pudemos festejar a formatura d
e Carlos porque Júlio passou mal do estômago e o
nosso Natal foi bem tristonho esse ano. Júlio p
asseava na sala de um lado para
outro, impacien
te e nervoso; depois chamou Alfredo, que aparece
u com ar tímido diante do pai, a cabeça baixa, p
arecia abatido. Estávamos só nós três na sala; J
úlio
começou:
- Sente aí.
Alfredo sentou-se d
iante dele, como um réu na hora de ser julgado;
fiz um sinal para Júlio ficar mais calmo e ele t
ornou a falar:
- Então não quer estudar? Quer s
er vagabundo?
Alfredo não respondeu e abaixou m
ais a cabeça, roendo as unhas; então começou o s
ermão, o sermão mais longo que Júlio falou em to
da sua vida:
- Eu sei que você não é mau filho;
é até um filho amoroso e dedicado, principalmen
te para sua mãe. Quando quer, sabe ser bom para
os irmãos e delicado para sua
irmã; mas tem um
defeito grande que supera todas suas boas qualid
ades. Sabe qual é? Não quer levar a vida a sério
. Você sabe que idade tem? Tem 16 anos. Está bem
.
Sabe que nessa idade eu trabalhava no armazém
de meu pai das 6 às 6, sem saber o que era um b
rinquedo, um divertimento, nem dinheiro? E sabe
por que eu trabalhava
tanto? Porque era paupérr
imo e via a luta de meus pais para nos educar e
nos criar. Pois bem; à noite eu estudava, fazia
um curso noturno até dez horas da noite;
assim
me formei no ginásio. Mesmo no trabalho, eu vivi
a com um livro na mão para estudar nas horas vag
as. E tudo isso para quê? Diga: Para quê? Para s
er alguém,
para ser um homem correto, para honr
ar o nome de meu pai. Eu podia ser um vagabundo,
não fazer nada, viver de expedientes, de recado
s, só para ter um dinheiro para
os divertimento
s. Nunca fiz isso. Trabalhei quanto pude e se nã
o estudei num curso superior foi porque meus pai
s eram pobres e mal pude cursar o ginásio. E voc
ê?
Você tem tudo: um lar sólido, uma mãe que se
desvela para dar todo o conforto aos filhos, vi
ve trabalhando, fazendo encomendas para fora; às
vezes até tarde da
noite para receber um dinhe
irinho no dia seguinte. E para quem é esse dinhe
iro? Para os filhos, para você. De mim nem se fa
la porque você está vendo a vida que
levo; não
faço outra coisa senão trabalhar, doente ou são,
para vocês se educarem e serem alguém. Está com
preendendo? (Júlio fez uma pausa, tinha no rosto
uma
expressão grave). Dirá você: Para que tudo
isso? Para que estudar, trabalhar, sacrificar,
levar a vida a sério? É tão bom flanar, divertir
com os amigos
nas ruas, ir ao cinema, não faze
r nada. Está bem. E depois? Não sabe que há um d
epois? A vida não é hoje, nem amanhã; a vida é u
ma vida inteira, são anos e anos
que terá diant
e de si, e, se não estiver preparado para enfren
tar esses longos anos com estudo, prática do tra
balho, boa vontade, não será nada, será um homem
vagabundo
como há muitos por aí, dormindo nos
bancos dos jardins, desonrando os nomes dos ante
passados. E quando tiver a idade de um homem, ve
rá seus irmãos
elevarem-se na sociedade, serem
bem recebidos, terem um nome limpo e honrado, ve
rdadeiros homens de bem e você o que será? Nada.
Um vagabundo. Não roa as unhas e
preste
atenç
ão, Alfredo, nas minhas palavras: nem o convívio
de seus irmãos você terá, porque eles subirão e
você descerá de nível cada vez mais; e a distân
cia irá aumentando
sempre. Você se achará um di
a sozinho como um náufrago num rochedo isolado;
chamará, mas ninguém atenderá ao seu apelo porqu
e você criou a própria situação. Só há
um meio
de você se tornar um homem de bem e honrar nosso
nome, é cumprir seu dever. (Júlio fez outra pau
sa). E outra coisa: não quer estudar, seguir cur
so superior,
não estude; apesar de sentirmos de
sgosto com isso, mas o ginásio você precisa faze
r, do contrário nem bom emprego você arranja por
que não terá aptidões. Carlos está
na Escola de
Medicina, Julinho vai estudar Engenharia, Isabe
l vai para a Escola Normal. E você? Ao menos no
ginásio você precisa se formar, depois vai traba
lhar.
Mas filho vadio eu não quero; para isso e
u e sua mãe nos sacrificamos, é para vocês serem
alguma coisa na vida. Se não seguir meus consel
hos, cava seu próprio abismo,
um abismo entre v
ocê e a sociedade, entre você e seus irmãos. A d
istância será cada vez maior e mais tarde você t
erá arrependimento, mas será tarde. Creia nas mi
nhas
palavras: o maior sentimento que tenho na
vida é não ter podido estudar mais, é ter sido o
brigado a ganhar a vida desde os quinze anos. La
rgue essa mania de roer
as unhas. O estudo dign
ifica, eleva o nível da pessoa, melhora a situaç
ão. Não se esqueça disso. Pode ir.
Alfredo leva
ntou-se, olhou para nós furtivamente e saiu da s
ala devagar, arrastando os pés, um ar acabrunhad
o.
Júlio sentou-se numa cadeira, dizendo, enqua
nto acendia um cigarro:
- Esse menino é um pesa
delo, não sei a quem saiu. Preveni-o:
- O médic
o disse para você não fumar. Por que fuma?
- Pa
ra me distrair; eu não trago a fumaça.
- Mas o
médico proibiu. Ele coçou o queixo:
- Eu sei. E
stou pensando em Alfredo; não sei a quem puxou.
Durante uns três meses, Alfredo estudou seriamen
te, não brincou na
rua, estava sempre com um li
vro na mão, concentrado e estudioso. Cada dia pa
recia mais alto e estava ficando um rapagão; tin
ha cabelos aloirados e dentes muito brancos;
qu
ando sorria, tornava-se atraente e muito simpáti
co. Era o mais bonito dos meus filhos.
Ele e Is
abel formavam um lindo par; com treze anos, Isab
el era esbelta, com um jeitinho elegante e já es
tava da minha altura. Seus cabelos eram de um li
ndo castanho-escuro,
tinha olhos muito grandes
e uma boca bem feita, com dentes iguaizinhos e a
lvos. Parecia um botão de rosa que, ao se ver, s
e diz: "Que linda rosa vai sair deste botão".
U
m dia chamei' a atenção do pai:
- Viu como Isab
el está ficando bonitinha?
- Bonita demais. Fil
ha de pobre não pode ser muito bonita.
- Ora, q
ue tolice! Quanto mais bonita, melhor. Assim ela
arranjará um bom casamento.
Júlio sacudiu a ca
beça e não respondeu.
Nesse ano, Isabel tirou d
iploma no grupo escolar e começou a se preparar
para a Escola Normal. Por ocasião da sua formatu
ra no grupo, foi encarregada do discurso
de des
pedida; uma das professoras substitutas escreveu
o discurso para Isabel falar. Ela estudava alto
para decorá-lo e o repetiu tantas vezes que nós
todos decoramos
também; passeava de um lado a
outro no quintal ou então parava, segurando o pa
pel na mão esquerda e levantando o braço direito
, dirigia-se à goiabeira ou ao gato:
"Minha que
rida professora: Desejaria ser um Cícero ou um H
omero para, com palavras brilhantes, agradecer o
s sábios ensinamentos que de vós recebi". Assim
por diante.
E na mesa, quando Isabel choraminga
va reclamando qualquer coisa como fazia sempre,
Julinho fazia pose, levantava o braço direito nu
m gesto exagerado, fazia uma carranca
e começav
a: "Desejaria ser um Cícero ou um Homero..." Isa
bel ficava furiosa: levantava-se e ia dar socos
no irmão que se defendia como podia, entre as ri
sadas dos
outros. Ela gritava: "Mamãe, olhe Jul
inho me amolando". Eu ralhava: "Julinho, não faç
a assim". Ele respondia: "Não é nada, mamãe. Cíc
ero e Homero é que estão discutindo".
Geralment
e isso sucedia quando Júlio não vinha comer em c
asa. Às vezes era Alfredo que provocava, às veze
s Carlos. A brincadeira durou muito tempo. Anos
mais tarde,
quando um deles queria provocar Isa
bel, bastava levantar um braço e começar com voz
cantada: "De-se-já..." Nem terminava. Isabel vi
rava uma ferazinha.
Carlos começou a cursar o p
rimeiro ano de Medicina e um dia disse que podia
trabalhar nas horas vagas. Havia tempo de sobra
e assim não nos ficava tão pesado. Então
arran
jou com um médico conhecido nosso para ser entre
gador de amostras. Trabalhava e estudava, tinha
todas as horas tomadas e começou a receber um or
denado regular,
o que nos aliviou muito. As vez
es, vinha almoçar às duas horas da tarde e eu fi
cava apreensiva porque ele não parecia muito for
te; era pálido e magro.
Isabel entrou para a Es
cola Normal e ficamos muito animados; à noite, e
la, Carlos e Julinho discutiam em casa à volta d
a mesa as matérias que estudavam; falavam
em pe
dagogia, álgebra, mecânica, psicologia e outras
coisas que eu não entendia. Falavam também sobre
lições de inglês e francês e um citava frases q
ue outro traduzia
com auxílio do dicionário. Jú
lio e eu ficávamos contentes com o progresso dos
nossos filhos. Alfredo, quando estava em casa,
tomava parte também, mas sempre um pouco
descon
fiado, devido à sua ignorância; saía quase todas
as noites e muitas vezes voltava tarde. Nessa o
casião, Carlos me contou muito em segredo:
- Ma
mãe, já sei onde Alfredo passa as noites; vive f
reqüentando reuniões políticas.
- Reuniões polí
ticas? Meu Deus! O que será isso, Carlos?
- Não
sei bem; não reparou nos livros que ele andou l
endo a semana passada? Parece que só tratavam de
comunismo...
- Comunismo! Alfredo com idéias c
omunistas? Que absurdo! Carlos deu uma risadinha
:
- Lembra que nós chamávamos D. Genu de comuni
sta, mamãe? Agora é Alfredo.
- Não fale nada a
seu pai, Carlos; ele ficará furioso se souber.


Não tocamos mais no assunto e esqueci essa conv
ersa; em princípios de 1926, Júlio me disse:
-
Lola, sabe que este é o último ano das prestaçõe
s?
- Como não hei de saber? Venho contando os d
ias e é um sonho imaginar que esta casa será nos
sa este ano. Absolutamente nossa. É uma felicida
de. E você reparou
quantos palacetes têm aparec
ido na Avenida? Mesmo aqui na vizinhança há três
casas novas, verdadeiros palacetes; quer dizer
que daqui a alguns anos esta casa vai
valer o d
obro.
- Penso que já vale o dobro, disse Júlio.
E quando eu puder fazer mais um quarto para Isa
bel e dar uma reforma boa com pintura e tudo, qu
anto não ficará valendo?
- E você reparou como
o jardim enfeita a casa? É pequenino, mas tão ch
eio de flores sempre que pára gente na rua só pa
ra olhar e os que passam de bonde, voltam a
cab
eça para trás.
- Também a trepadeira do portão
está uma beleza, chama a atenção. Trocamos essas
palavras uns dias antes de Júlio adoecer. Uma n
oite
acordei com os gemidos dele; acendi a luz
e me levantei perguntando se ele queria uma bols
a de água quente. Fui para a cozinha aquecer a á
gua e fiz também um chá;
ele tomou o chá, pôs a
bolsa no estômago e não melhorou. O dia nos enc
ontrou sentados na cama e Júlio com expressão ab
atidíssima no rosto, gemendo muito. Os meninos

levantaram-se para sair e mandei um deles telefo
nar do armazém da esquina chamando o médico que
já tinha tratado dele.
O médico apareceu às dez
horas e quando examinou Júlio, mostrou-se aborr
ecido dizendo que não estava gostando muito e ia
chamar um colega. Depois do almoço, vieram
os
dois médicos, examinaram muito bem e foram conve
rsar na sala de jantar; depois me chamaram dizen
do que Júlio precisava ir para um hospital nesse
dia mesmo e era
necessário fazer uma operação.

- Operação?
Levei um susto e meu coração bate
u fortemente; eu nunca imaginara que meu marido
precisasse ser operado.
Tudo então se precipito
u de maneira tumultuosa; veio uma ambulância bus
cá-lo às quatro horas. Só depois que a ambulânci
a chegou, me lembrei que Júlio dizia muitas
vez
es que nunca haveria de andar naquela "gaiola".
Quando foi carregado na maca, protestou fracamen
te dizendo que preferia ir de automóvel, mas os
enfermeiros disseram
que ele não podia ir senta
do e ele se resignou depois de novos protestos.
Mandei chamar Clotilde que estava em casa de tia
Candoca; chegou afobada, assustadíssima,
no mo
mento em que a ambulância estava na porta, esper
ando. Disse a ela que tomasse conta dos meninos
e da casa e entrei na ambulância também; toda a
vizinhança
estava nas janelas e nos portões ass
istindo nossa partida. Levei alguma roupa mais n
ecessária e fomos para o hospital Santa Catarina
.
Então marcaram a operação para o dia seguinte
, às oito horas. À noite, os filhos vieram vê-lo
, muito preocupados, mas encontraram o pai calmo
e confiante. Recomendei
que não se assustassem
, que não havia de ser nada, mas percebi que Car
los estava muito nervoso quando me chamou de lad
o e disse que o caso era gravíssimo. Os médicos


tinham contado
que era uma úlcera bem grande e
havia outras complicações. Carlos não tirava os
olhos de mim. Só lhe disse isto:
- Seja o que
Deus quiser, meu filho.
Passei uma noite horrív
el, sem dormir um minuto; Carlos ficou comigo.

No dia seguinte levaram Júlio para a sala de ope
rações; tia Candoca, Clotilde e meus filhos esta
vam à minha volta; a operação durou mais de uma
hora. Carlos passeava
no corredor, branco como
papel. Alfredo sentou numa cadeira de vime que h
avia perto da sala e roeu todas as unhas; eu dei
xei. Isabel tinha os olhos úmidos e fazia
esfor
ços para não chorar; Julinho passou o braço no m
eu e ficamos juntos esperando o resultado. Quand
o um dos médicos saiu da sala, Carlos se precipi
tou; vi o médico
sorrir e, pelo modo como respo
ndia a Carlos, fiquei aliviada; não havia razão
para desesperar. Carlos veio explicar que tudo c
orrera bem e já iam levá-lo para o
quarto. Resp
iramos cheios de espeiança e demos graças a Deus
por tudo ter acabado bem.
Nessa noite, Júlio t
eve febre alta e variou a noite toda, falando co
isas sem nexo, muito agitado. Só dois dias depoi
s, começou a melhorar e entramos nos eixos outra

vez. Uma noite eu ficava com ele, outra noite
ficava Carlos ou Clotilde e no fim da semana, um
dos médicos assistentes me disse:
- A senhora
ficou bem assustada nos dois primeiros dias, não
? Pensamos mesmo que ele não resistisse. Mas ago
ra está cada dia melhor.
Mas eu não achava Júli
o muito bem; parecia sempre inconsciente, não se
importava com o que estava se passando e só qua
ndo Isabel chegava perto da cama, ele se animava

para perguntar:
- Então como vai a minha filh
inha?
Os olhos brilhavam no rosto abatido e esb
oçava um fraco sorriso. No décimo dia depois da
operação, veio a catástrofe; ele não tinha passa
do bem a noite, sempre muito
agitado e quando o
médico veio examiná-lo,
sobreveio a síncope. T
odos correram; vieram enfermeiros, médicos e emp
regados. Resolveram fazer imediatamente uma tran
sfusão de sangue; fizeram, mas parece que o
org
anismo não reagia, parecia tão cansado. Era o co
ração que não resistia; à noite, outra transfusã
o, mas não adiantou nada. Disseram que era mesmo
o coração que
enfraquecia cada vez mais; passo
u a noite toda muito mal, respirando à custa de
balões de oxigênio; não falou mais, nem conheceu
ninguém. No dia seguinte cedo, morreu.
Quando
os filhos vieram visitá-lo, vi o rosto bonito e
alegre de Isabel no vam da porta; estava com uma
blusinha vermelha. Julinho que entrara um pouco
antes, voltou-se
rapidamente e disse quando el
a estava ainda na porta:
- Papai está morrendo!

Vi o rosto dela empalidecer até os lábios; olh
ou para mim como se não me visse e um soluço dol
oroso saiu da sua garganta; corri a abraçar minh
a filhinha e assim
unidas, ficamos até o fim. E
le acabou de fechar os olhos e nós cinco, meus q
uatro filhos e eu nos abraçamos desesperadamente
, pois parecia que estavam arrancando
um pedaço
de nós mesmos. Foi horrível e dilacerante.
Tud
o passou rapidamente; levamos Júlio para casa e
marcou-se o enterro para o dia seguinte às nove
horas. O dono da loja veio logo falar comigo e d
izer que a loja
faria o enterro porque ele era
um empregado antigo e considerado: era mesmo o m
ais antigo. Concordei e dei graças a Deus pois n
ão tinha em casa dinheiro algum e
estava devend
o as despesas de hospital e operação. Nem queria
pensar como iríamos viver.
Nessa noite nossa c
asa ficou cheia até altas horas; vieram todos os
colegas da casa onde Júlio trabalhava e todos o
s amigos. Eu estava um pouco idiota e dizia obri
gada
para todas as pessoas que vinham apertar m
inha mão; mas não entendia o que elas diziam e à
s vezes nem as conhecia. Depois me lembrava que
conhecia muito bem e sentia
não ter sido mais a
mável para com elas. Clotilde de vez em quando v
inha me buscar para ir lá dentro tomar um cafezi
nho, mas não tinha vontade e não saí da sala um


minuto sequer. D. Genu fez presente de um frang
o e ela mesma preparou uma canja que só provei n
o dia seguinte, apesar dos pedidos de tia Candoc
a, de Clotilde e de
meus filhos. Da meia-noite
em diante, ficamos quase sós porque todos foram
saindo; D. Genu ficou firme até o dia seguinte.
Ora arrumava as flores, ora espetava as
velas,
providenciava tudo, animada e quase alegre como
ficava nessas ocasiões.
No dia seguinte, começa
ram a chegar muitas coroas; reparei que a mais b
onita era a dos donos da loja, depois a dos cole
gas e outra de tia Emília, da Rua Guaianases.
C
lotilde também mandou fazer uma em nosso nome; e
ra de crisandálias graúdas, cor de carne. Prefer
ia que fosse de crisandália cor-de-rosa, mas ela
disse que não havia
mais. Depois que o enterro
saiu, fui lá para dentro, com Tia Candoca de um
lado e D. Genu do outro e sentando numa cadeira
da copa, chorei livremente. Os dois filhos
mai
s velhos foram acompanhar o pai; só Julinho e Is
abel ficaram comigo. Uma meia hora depois, quand
o fiquei mais calma, procurei Isabel e não a enc
ontrei; então
fui ver se ela estava no quarto.
Estava deitada na cama e abraçada ao Caçarola, c
horava, chorava; um chorinho triste e abafado, d
e cortar o coração. Todo seu corpo
tremia e os
soluços eram doloridos e vinham do fundo do peit
o. O gato um pouco assustado, olhava de banda me
io desconfiado, as orelhas baixadas, como que ab
orrecido.
Abracei-a passando a mão pelos seus o
mbros:
- Filhinha, precisa ter coragem; perdemo
s nosso maior amigo, mas precisamos ter coragem.

Ela começou a chorar mais alto:
- O que havem
os de fazer, mamãe? Como vamos viver agora sem e
le?
- Tudo-se há de arranjar, Isabel. Deus é gr
ande e não nos abandonará.
A vozinha dela conti
nuou, abafada, o rosto contra o travesseiro:
-
Eu gostava tanto dele, mamãe. Era tão bom, tão b
om. Tão meu amigo; ainda antes de ficar doente,
prometeu me levar um dia ao Rio de
Janeiro. E e
le levava, mamãe, se não tivesse morrido.
- Nat
uralmente levava, Isabel. Quando ele prometia, c
umpria, mesmo com sacrifício. Coitado!
- Coitad
o do meu paizinho! Com este frio e esta chuva, s
ozinho debaixo da terra! Como vai ser?
E Isabel
soluçou mais segurando com força o Caçarola; ma
s o gato revoltou-se e pulou para o chão, miando
. Comecei a passar as mãos nos cabelos dela:
-
Não fale assim filhinha. Fico mais triste e mais
desesperada ouvindo você falar desse jeito. Ele
não está debaixo da terra, está no céu!
Julinh
o enfiou a cabeça no vão da porta e entrou de ma
nso; não disse nada, sentou-se numa cadeira pert
o da cama e deitando a cabeça sobre os braços, c
aiu em prantos
também. Isabel continuava.
- Pa
pai! Meu papaizinho!
Meu coração quase arrebent
ava ouvindo os soluços de meus filhos; depois vi
eram Clotilde, tia Candoca e Durvalina e começar
am a falar para nos consolar. Quando os
meninos
voltaram do cemitério, contaram que o enterro t
inha sido grande com muitos automóveis e coroas.
Julinho parou de chorar dizendo que quando o en
terro saiu,
ele contara três quarteirões cheios
de automóveis, o que Durva contestou, afirmando
que eram quatro quarteirões e não três; podia p
erguntar para a cozinheira da
vizinha que tinha
contado também. Tia Candoca disse que perdera a
conta do número de coroas, mas chegara a contar
quatorze. D. Genu entrou nesse momento trazendo

um prato de pastéis quentinhos, ouviu a conver
sa e garantiu que contara até vinte e duas coroa
s; e tinham chegado mais depois.
Os meninos fic
aram admirados; e quando Carlos disse que já tin
ha providenciado e que no dia seguinte nós íamos
ler a notícia em dois jornais, Isabel ficou mai
s animada:
- Vai sair em dois jornais?
Deixamo
s o quarto e fomos para a copa comer alguma cois
a; logo depois nos deitamos porque estávamos mui
to cansados. Levei Isabel para minha cama e como
Clotilde
também queria dormir no nosso quarto,
trouxemos a cama dela e dormimos as três juntas
.
Dormi o primeiro sono muito pesado porque est
ava exausta; acordei com um pensamento que me ve
io durante o sono; mesmo dormindo, pensei:
- Co
mo vamos viver? Com que recursos? Como irei paga
r as dívidas do médico e do hospital? Como iremo
s comer?
E de repente, levei um susto maior:
-
E a prestação da casa? Meu Deus! Com que iria p
agar a prestação? E os estudos dos meninos? Noss
a Senhora, e os estudos?
Então me sentei na cam
a, desesperada e toda desgrenhada, sentindo uma
angústia se apoderar de mim e, apesar da fadiga
dos últimos dias, não dormi mais. Clotilde
acor
dou também e perguntou se eu estava doente e eu
disse que não, estava bem. Fingi que dormi meio
sentada, mas esperei a madrugada chegar com negr
os pensamentos
vagando em meu cérebro. Para des
viar meu pensamento, procurei ouvir o vento; era
um vento forte que sacudia as janelas e as plan
tas do jardim; comecei a prestar
atenção para v
er se o vento vinha do norte ou do sul e ouvi a
roseira plantada por Júlio bater na parede do qu
arto; batia, voltava e tornava a bater conforme
a força
do vento. Pensei nas rosas desfolhadas,
descobri que o vento mudava de direção como se
quisesse me enganar, vi uma ténue claridade dese
nhar-se na veneziana do quarto
e senti a ventan
ia ulular mais forte-
mente, mas o mesmo pensam
ento me fazia doer a cabeça: "Como iremos comer?
O que iremos fazer?" Acho que nessa noite envel
heci todos os anos que tinha que envelhecer
o r
esto da vida.
Amanheceu chovendo; uma cor cinze
nto-escura sobre todas as coisas e a chuva a pin
gar fininha das árvores e dos telhados com um ba
rulho monótono. E fazia frio.
Passei o dia todo
muito atarefada com as visitas e não tive tempo
de pensar em nós; logo depois do almoço vieram
tia Emília e a "menina". Eu estava tão abalada q
ue
quase não falava, só ouvia a conversa dos ou
tros; Isabel não se separava de mim, segurando m
inha mão ou meu braço. Ou então ficava horas int
eiras com Caçarola no
colo, sem falar nada, os
olhos muito grandes fixos num ponto qualquer, se
m ver. Os meninos passeavam pela casa de um lado
para outro, sem saber o que fazer, nem
onde ir
. Iam da sala para a cozinha, da cozinha para o
quarto, voltavam à sala outra vez, sentavam um p
ouco e se levantavam logo depois, tornando a sai
r. Davam a
impressão de criaturas que tivessem
perdido o rumo e não o encontrassem mais; inutil
mente procuravam, inutilmente.
Passamos assim o
s primeiros dias, sem direção, sem saber para on
de ir, por onde recomeçar a viver.
Carlos foi t
ratar da missa, Clotilde tratou do luto; só quan
do me pediram dinheiro para as despesas, pensei
de novo desesperadamente no futuro.
Reunimos en
tão todos na terceira ou quarta noite e discutim
os para ver o que havíamos de fazer. Clotilde er
a corajosa; propôs comprarmos um fogão com bom f
orno e
fazermos doces para vender. Carlos disse
que deixaria a escola e ia procurar emprego; qu
ando pudesse recomeçaria os estudos. Protestei c
om energia dizendo que nesse
caso preferia vend
er a casa, mas quando disse isso, todos gritaram
que não, isso nunca! A nossa única salvação era
a casa, se a vendêssemos, e acabasse o dinheiro
,
que faríamos? Clotilde dizia convencida, bate
ndo a mão na mesa:
- Ao menos temos o teto, Lol
a. Isso é o principal, o resto se arranja. Come-
se pão com banana se for preciso, mas a casa é n
ossa. Ninguém tira.
- Mas Carlos deixar a escol
a? Depois de tanto sacrifício? É o futuro dele q
ue está em jogo. É o futuro, a vida inteira! Não
.
Protestaram de novo:
- Mas em qualquer época
ele pode estudar! Nunca é tarde para isso. O pr
incipal agora é garantir a casa, o teto. Quem sa
be o ano que vem, as coisas melhoram e ele
pode
continuar a estudar.
Olhei tristemente para Ca
rlos que confirmou:
- É isso mesmo, mamãe. Tia
Clotilde tem razão; se eu arranjar um bom empreg
o, a situação melhora muito; estudarei mais tard
e, quando puder.
Julinho e Alfredo disseram que
também iam trabalhar; ficou assentado que só Is
abel continuaria a estudar. Julinho deu uma idéi
a instantes depois:
- Tem um jeito melhor; alug
amos esta casa e vamos para uma casa menor e mai
s barata. Assim o aluguel desta sobrando um pouc
o, já ajuda.
Os outros não quiseram:
- Menor q
ue esta? Não. Daqui não saímos, não é, mamãe? Cl
otilde interveio:
- Por enquanto não. Nada de p
recipitação. Mais tarde, se precisarmos, então v
amos ver.
Fiquei muito acabrunhada em pensar qu
e os meninos deixariam os estudos, mas não tive
outra solução, senão aceitar. Juntando minhas ec
onomias com as de Carlos, paguei
as primeiras d
espesas. Uns dias depois, um automóvel muito bon
ito parou na porta da nossa casa e um rapaz me p
rocurou em nome de tia Emília. Era o filho mais
moço
que queria falar comigo; muito polidamente
, ele me deu um cheque dobrado em dois dizendo q
ue era uma lembrança de tia Emília. Apertei o ch
eque na palma da minha
mão, curiosa para ver qu
anto era e perguntei se ele não queria entrar e
tomar um café. Agradeceu e foi embora. Quando o
automóvel partiu, abri vagarosamente o papelzinh
o
e espiei: dois contos! Li outra vez com calma
: dois contos de réis!
Todos me rodearam:
- De
ixa ver, mamãe, deixa ver!
- Puxa! Quanto dinhe
iro!
- Assim mesmo a tia da Guaianases é boa! C
lotilde veio alvoroçada:
- Oh! Lola, que felici
dade! Dá para sair do buraco!
Encarei com mais
coragem a situação. Mandei Carlos saber as despe
sas do hospital e do médico; depois de tudo pago
, fiquei com 800$000 que guardei como o maior te
souro
do mundo e tocamos a vida para a frente.


Em primeiro lugar, fui procurar emprego para os
meninos; fui à loja falar com o chefe. O dono c
oncordou em aceitar Julinho como empregado, mas
ganhando pouco ao
princípio. Levantei as mãos p
ara o céu. Mas meu contentamento não durou muito
; um dos colegas de Júlio veio me contar que Júl
io lhe devia 300$000; e mostrou a letra.
Levei
um susto! Mas ele me acalmou dizendo que não vin
ha me cobrar porque sabia que não estávamos em c
ondições de pagar, pagasse quando pudesse. Pergu
ntei se ele
não concordava em tirar 50$000 do o
rdenado de Julinho todos os meses; ele hesitou e
concordou, um pouco contrariado. Eu queria guar
dar os 800$000 para a prestação
da casa no fim
do ano. Julinho começou a ganhar 150$000, mas tr
azia apenas 100$000 para casa, o resto ficava pa
ra o pagamento da dívida.
O tempo foi passando
e fomos ficando endividados; nos primeiros meses
não paguei quase nada e o homem do armazém come
çou a reclamar. Carlos e Alfredo não encontraram

emprego; Carlos continuou como entregador de a
mostras, mas dava pouco e quando ele se apresent
ava nos empregos que via nos jornais perguntavam
se ele sabia escrever
'a máquina; como não sab
ia, não aceitavam.
Clotilde e eu continuávamos
ativamente a fazer tricô, mas infelizmente não a
pareciam tantas encomendas como desejávamos. Dei
xamos para comprar o fogão mais tarde
e avisamo
s as amigas e vizinhos que aceitávamos encomenda
s de doces e salgados; se aparecesse alguma enco
menda, faríamos no nosso forno mesmo. Alfredo se
ofereceu
para vender algum doce ou balas nas c
asas conhecidas e como ele gostava muito de vive
r na rua, mandei-o uma vez com uma lata de cocad
as e outra de
pé-de-moleque. ''Depois de andar
um dia inteiro, voltou desanimado dizendo que o
que gastava nos sapatos era mais do que o lucro;
assim mesmo conseguiu vender quase
tudo. O que
sobrava ele comia no caminho, na volta, e o res
ultado foi nulo.
No primeiro mês, fiquei horror
izada com as despesas; empório, açougue, pão, le
ite, Durva. Reuni todos outra vez para conversar
mos sobre a situação e disse que tínhamos
que c
ortar tudo o que não fosse absolutamente necessá
rio; assim resolvemos mandar Durvalina embora. O
s meninos estavam acostumados com ela desde pequ
eninos e sentiram
muito; dois dias depois ela f
oi. Antes de deixar nossa casa, comprou um bule
de metal para café e me deu de presente; estava
tão comovida que não pôde falar. Estendeu
o bra
ço para mim sem dizer nada, e eu também estendi
o braço e segurei o bule sem poder falar; assim
foi nossa despedida, sem palavras. Saiu pelo por
tãozinho com
a trouxa de -roupa e Isabel e Juli
nho chorando atrás dela; acompanharam-na até o b
onde.
Clotilde e eu começamos a revezar na cozi
nha; uma cozinhava uma semana e outra na semana
seguinte; a limpeza da casa era feita por todos,
cada um varria seu próprio
quarto, estendia a
cama e tirava o pó. Muitas vezes discutiam por c
ausa da vassoura, um puxava de um lado, outro do
outro lado, eu precisava intervir.
Quando come
çou o segundo mês, tive uma dolorosa surpresa: r
ecebi um aviso de uma letra de Júlio no valor de
500$000; não sei por que ele fez essas dívidas
e chorei
durante horas fechada no meu quarto. M
andei Carlos pagar; dos 800$000 já havia tirado
200$000 para as primeiras despesas, tirei mais 5
00$000 para pagar a letra e
fiquei apenas com

100$000 para algum novo aperto. Nesse dia tia Ca
ndoca esteve em casa e conversando, perguntou se
Júlio não tinha deixado Seguro de Vida. Disse q
ue não. Ela tornou
a perguntar, meio seca, com
ar de censura:
- Não deixou nada, nada?
Tornei
a dizer que não e ela abanou a cabeça. Nessa no
ite, tive uma conversa outra vez com Clotilde a
respeito do nosso futuro. Para fazermos mais eco
nomia resolvemos
cortar o leite, a manteiga e c
omprar carne só duas vezes por semana, quintas e
domingos. Dias depois, quando acabou a 'manteig
a que ainda tínhamos em casa, Julinho
perguntou
de manhã onde estava a manteiga para passar no
pão. Eu disse que não tinha mais; ele me encarou
admirado:
- Por que não pede, mamãe?
Não resp
ondi e ele compreendeu; comeu o pão com lágrimas
. Consolei-o dizendo que tivesse paciência, as c
oisas não seriam sempre assim. Ele engoliu o últ
imo pedaço
de pão com um soluço e foi para a lo
ja; o grande engenheiro que pretendia ser, era u
m pobre caixeiro de uma modesta loja.
Nessa tar
de, fomos visitar tia Emília e pedi um emprego p
ara Carlos a um genro dela que era diretor de um
banco. Eu não queria pedir nada desde que não m
e atendera
uma vez, mas devido à insistência de
Clotilde e com grande receio pelo futuro dos me
us filhos, fui à Rua Guaianases. Agradeci caloro
samente o cheque que já agradecera
por carta e
expliquei que os dois mais velhos não tinham arr
anjado nada ainda,
apesar de procurarem todos o
s dias. Ela ficou admirada, pois não sabia que m
eus filhos haviam deixado os estudos para trabal
har. Perguntou:
- Seu marido não deixou Seguro
de Vida?
Respondi que não, porque vivíamos com
muita economia por causa dos estudos dos filhos
e o dinheiro não sobrava para outras coisas; ela
também sacudiu a cabeça com
ar de censura e na
da disse. Prometeu falar com o genro e mandar ch
amar Carlos logo que arranjasse algum emprego.

Voltamos para casa muito desanimadas; o fim do a
no se aproximava rapidamente e eu só pensava na
prestação da casa. Como iria pagar? Vivíamos com
os cem mil-réis
de Julinho, cem mil-réis que C
arlos fazia com as amostras de remédios e algum
dinheiro do tricô; mas todos iam precisar de sap
atos, roupas e como compraríamos? O
dinheiro da
va apenas para comer.
Quando os filhos perceber
am que não havia carne todos os dias, não disser
am nada, mas acharam muita falta. Todos os dias
era feijão, arroz e batatas; uma verdura
barata
de vez em quando. E banana; eu comprava bananas
porque era barato e fazia eles comerem com a co
mida. Nas quintas-feiras e nos domingos, prepara
va um picadinho
de carne ou um bife pequeno par
a cada um; como eles saboreavam esse bife! Comia
m devagar, mastigando bem para sentir o gosto e,
como a própria frigideira vinha na
mesa, passa
vam o pão no molho tantas vezes que a frigideira
ficava limpa! Clotilde e eu não comíamos bife;
mais tarde, tive de apertar mais porque o dinhei
ro não
dava, então havia carne só aos domingos
e comprei menos pão. Nós também não comíamos pão
. Apesar de nunca se queixarem, creio que muitas
vezes passaram fome. Pobrezinhos!
E como eu so
fria com isso.
Comecei a achá-los magros, mas C
lotilde disse que era impressão, todos estavam b
em. De vez em quando, Clotilde ia à feira e comp
rava uma abóbora bem grande; fazia
então uma ta
chada de doce e durante uma semana inteira comia
m doce de abóbora três vezes ao dia; às vezes er
a doce de batata. E uma vez então que Clotilde m
isturou
coco na batata, foi um dia de festa! Qu
ase choravam de alegria.
Só dois meses depois q
ue pedi o emprego à tia Emília, Carlos foi chama
do ao banco e deram-lhe uma colocação; começou g
anhando 200$000 por mês; nem acreditei quando
e
le veio com a notícia. Faltava agora Alfredo; es
se não tinha muita vontade de trabalhar, mas com
o viu que não podia viver assim, andava procuran
do emprego em oficinas
de mecânico, pois era o
que mais gostava; como não tinha prática, não er
a aceito.
Chegou o mês de dezembro e continuamo
s na mesma ansiedade; vivendo com muito pouco di
nheiro; foi então que chegou a primeira encomend
a de doces. Veio da Rua Guaianases
e era para a
véspera de Natal, mas como a encomenda era gran
de, ficamos sem saber o que fazer, pois não tính
amos dinheiro para comprar os ingredientes, e pe
dir para
tia Emília outra vez, era demais. Tive
então uma idéia, ir de empório em empório, até
encontrar um que me fiasse o necessário. No noss
o eu não podia pedir porque
já estávamos devend
o o último mês. Peguei a lista de tudo que preci
sava juntamente com a carta de tia Emília fazend
o as encomendas e entrei no primeiro armazém;
n
em acabei de falar, o dono foi logo dizendo que
não podia. Fui ao segundo, ao terceiro, ao quart
o, nada. Tomei o bonde, procurei outro bairro, a
mesma coisa; todos
abanavam a cabeça dizendo q
ue não. Lembrei então do bandolim de mosaicos qu
e mamãe tinha deixado; mostrei o broche aos dono
s dos armazéns dizendo que ficaria depositado
a
té eu pagar a conta e valia uns duzentos mil-réi
s. Nem assim. Só quando entrei no décimo quinto
empório e já estava quase morta de fadiga e tris
teza, um homem gordo
me atendeu, leu a carta at
é o fim e disse que podia retirar o que precisas
se. Olhei para ele com tanta admiração que ele r
epetiu a ordem e quando dei o broche como
garan
tia, disse que não precisava porque tinha confia
nça em mim. Com lágrimas nos olhos, fiz então a
encomenda: ovos, açúcar, farinha, frangos, mante
iga, cocos,
tâmaras e ameixas. O embrulho era e
norme e eu não podia carregar; ele ficou de mand
ar no mesmo dia. Depois de agradecer muito, saí
de lá tão leve como se fosse voar!
Clotilde e e
u começamos logo a trabalhar; arregaçamos as nan
gas, pusemos uns aventais grandes e trabalhamos
dois dias sem parar, até tarde da noite. Ficou t
udo tão
bom e tão bonito que demos graças a Deu
s e à nossa mãe por nos ter ensinado um meio de
ganhar a vida. No dia determinado, tia Emília ma
ndou o automóvel buscar e
ficamos sossegadas. P
assamos um Natal mais aliviado, pois apesar de n
ão termos nada, nossa mesa ficou bem bonita com
as sobras da festa de tia Emília; logo depois
e
la mandou o dinheiro e ficamos mais folgados. Co
rri e fui pagar o homem gordo do empório, depois
comprei uns sapatos novos para Isabel porque os
dela já estavam
muito furados na sola: ela viv
ia forrando com papelão e jornal, mas tinha os p
és sempre molhados porque chovia todos os dias e
eles estavam tão velhos que não havia
mais con
serto. Mandei pôr meia sola nos sapatos dos rapa
zes e comprei mais uma camisa para Carlos; ele t
inha apenas uma que eu lavava de noite e passava
a ferro
para no dia seguinte cedo ir ao banco
e como já estava esgarçando, comprei outra.
Ass
im terminou o ano de 1926.

Cap´tulo XI

Em
em princípios do novo ano, fui falar com o dono
da nossa casa, para dizer que não podia pagar a
prestação e pedi que esperasse mais trinta dias.
Ele concordou.
Isabel começou a cursar o segun
do ano da Escola Normal e ia muito bem; já estav
a com quatorze anos e muito espiga dinha de corp
o, parecia uma mocinha. Começou a
pintar-se par
a ir à escola e eu ralhei com ela dizendo que er
a muito criança para pôr rouge e achava horrível
uma menina pintada. Ela respondeu que todas na
classe
faziam o mesmo, não tinha nada de mais e
não era crime. Fiquei quieta porque sabia que n
ão adiantava falar e ela começou a pintar os láb
ios também.
Subiram o ordenado de Julinho para
180#000, o que foi ótimo. Em janeiro apareceu um
emprego para Alfredo por intermédio de um genro
de D. Genu; dei tantos conselhos
para Alfredo
ser bom e correto nessa colocação que ele saiu c
om raiva de mim e nem se despediu no primeiro
d
ia que foi trabalhar. Deu graças a Deus de não e
studar mais e creio que nunca se formaria, pois
com dezessete anos, estava apenas no segundo ano
ginasial. Dias
depois trouxe o macacão azul-es
curo sujo de óleo e graxa para eu lavar; trabalh
ava em automóveis. Foi com satisfação que lavei
o macacão, pois não tinha muita esperança
que e
le trabalhasse; ganhava 120$000 por mês.
Aparec
eu então outra encomenda de doces; uma encomenda
grande, de D. Laia, a dona do palacete da esqui
na; era o chá de noivado de uma filha. Clotilde
e eu trabalhamos
três dias sem parar e tivemos
um bom lucro; fomos depois comprar um fogão novo
a prestações porque o nosso não dava para muita
coisa e ficávamos assando os bolos
até de madr
ugada. Depois de instalado, esperamos ansiosamen
te outras encomendas.
Então reuni todos outra v
ez e expliquei a situação da casa; precisávamos
dinheiro para a última prestação e eu tinha apen
as 450$000, a custa de muita economia. Contei
q
ue os trinta dias de prazo já estavam se escoand
o e eu não tinha juntado o que faltava. Ficaram
admirados porque pensavam que a casa já era noss
a, expliquei que
tentara tudo para evitar mais
esse desgosto, mas não foi possível; começamos e
ntão a fazer uma espécie de inventário para ver
tudo o que na casa havia de vendável
e saber o
que podíamos apurar; Clotilde quis dar os brinco
s de brilhantes que foram de mamãe. Protestamos
e não aceitamos; avaliamos cadeiras, pratos, vas
os, panelas,
tudo o que pudéssemos vender e, de
pois de tudo avaliado, não chegava a trezentos m
il-réis, se dessem o preço que calculávamos. Car
los acabou dizendo que ia pedir
mais trinta dia
s de prorrogação ao dono da casa; foi no dia seg
uinte cedo, o homem cedeu outra vez, mas contrar
iado.
Nesse ínterim, Olga veio de Itapetininga
para nos visitar;* disse que queria vir antes, m
as os filhos e os deveres de professora não perm
itiam; não passava bem ultimamente,
sofria dos
rins, então pediu uma licença e veio para se tra
tar. Trouxe só o último filho; ocuparam meu quar
to e fui dormir no de Isabel.
Quase na véspera
de Olga voltar, o dono da casa veio receber a pr
estação; fiquei muito aflita e como não podia pa
gar, dei o dinheiro que tinha em casa. Ele não q
uis
receber dizendo que receberia tudo de uma v
ez e não podia mais esperar; pedi que esperasse
mais trinta dias e então pagaria tudo. Depois qu
e ele foi embora, muito
zangado, Clotilde conto
u tudo a Olga e eu perguntei se ela e o Zeca não
podiam nos fazer esse adiantamento; tinha esper
ança de pagá-los até o fim do ano. Ela hesitou

dizendo que não tinham quase nada, em todo o cas
o ia ver o que podia arranjar. E como presenciou
nossa pobreza e nossa luta de todos os dias, po
is muitas vezes comíamos
apenas feijão com angu
e bananas (eu misturava uns torresmos no angu p
ara dar um gostinho de carne) e mais nada, nem c
afé, assim que chegou a Itapetininga, escreveu

dizendo que podíamos contar com o dinheiro em ab
ril. Respirei mais aliviada porque havia noites
que eu passava sem dormir, pensando na dívida.

Quando, em abril, juntei todo o dinheiro, levei
ao dono da casa, recebi o recibo e senti, tive c
erteza, a completa certeza de que a "Casa da Ave
nida Angélica" era
nossa, inteirinha nossa, fiq
uei tão tonta, quase caí e meus olhos se nublara
m. Precisei me encostar na parede de uma casa e
esperar a vertigem passar; lembrei dos
projetos
de Júlio para esse dia e chorei, na rua mesmo.
Depois sorri sozinha quando voltava para casa,

pensando no banquete com que iria surpreender me
us filhos, à noite. Preparei um frango assado; f
iz um quilo de filé e ainda comprei umas frutas
e duas garrafas de
cerveja; não contei nada aos
meninos e quando eles se sentaram à volta da me
sinha da copa e viram o que havia, exclamações a
legres cortaram o ar; gritaram, bateram
palmas:

- Mamãe, que milagre é esse?
- D. Lola, o que
foi que aconteceu?
- Mamãe tirou a sorte grand
e! Venham ver!
Julinho pôs a mão em pala sobre
os olhos e fingindo que não via bem, gritou:
-
Será possível? É verdade o que estou vendo ou é
ilusão de ótica! Oh! Milagre dos milagres! É tud
o verdade! Um abraço, D. Lola!
E, sentando-se,
tirou logo uma perna do frango e começou a masti
gar fazendo um barulhão. Então sacudi o recibo a
cima da minha cabeça, tal qual uma criança como
os
meus filhinhos eram naquele tempo e falei co
m entusiasmo:
- A casa é nossa! A casa é nossa!

E caí sentada numa cadeira, completamente exau
sta como se tudo aquilo fosse demais para mim. T
odos pegaram o recibo, olharam, cheiraram, levan
taram contra a luz,
riram, apalparam, acariciar
am, e Alfredo disse:
- Mamãe, isto merece um qu
adro e uma moldura dourada; vamos colocá-lo na p
arede mais saliente da casa. Que acha?
Todos ri
ram e Carlos achou que a data era muito solene e
ficaria gravada para sempre nos anais da famíli
a Lemos! Sentaram e comeram sofregamente todo o
jantar; deixaram
apenas um pouco de arroz no fu
ndo da panela e uns pedacinhos de carne para o g
ato; acontecesse o que acontecesse, nunca esquec
iam o Caçarola e, mesmo nos piores
dias, sempre
guardavam alguma coisa para o gatinho, o que me
enternecia. Roeram os ossinhos finos do frango
comentando a posse do "palacete" e até as frutas
que
eu tinha feito em salada, desapareceram nu
m instante!
Fomos dormir mais felizes nessa noi
te como se tivéssemos tirado um peso enorme das
costas e no dia seguinte, quando me olhei no esp
elho, como estava velha! Meus
cabelos estavam q
uase todos brancos e eu tinha sulcos à volta dos
olhos e da boca, e um cansaço profundo que vinh
a de anos e anos de pobreza, de lutas, de provaç
ões.
Todo o corpo fatigado e moído do trabalho
e das preocupações. E ainda estava longe da idad
e de ser velha!
Quando Alfredo recebeu o primei
ro mês de ordenado, tive uma desilusão; em vez d
e ficar com algum dinheiro e dar a quantia maior
para mim como os outros faziam, ficou
com cem
mil-réis e me deu só vinte. Chamei sua atenção,
mas replicou:
- Não adianta eu dar à senhora po
rque com esse dinheiro tem que me comprar sapato
s e camisas; então já fico com ele, vem dar na m
esma. Não posso continuar com estes
sapatos por
que tenho vergonha. Veja. E preciso dinheiro par
a meus cigarros também.
Fumava muito ultimament
e e quando disse que Carlos era o mais velho e n
ão fumava, respondeu que Carlos era um "trouxa".
Percebi
que não podia contar com Alfredo para
nada; era o único que voltava tarde da noite e o
s outros me diziam:
- Mamãe, Alfredo está abusa
ndo.
Mas eu sabia que não adiantava falar e qua
ndo queria repreendê-lo desviava o assunto de mo
do hábil; perguntava com voz meiga:
- Mamãe, já
reparou na Genu estes dias?
- Não fale assim,
Alfredo, fale D. Genu. O que tem?
- Não reparou
no alvoroço dela? Anda contente, os olhos brilh
antes como os do Caçarola, cheirando o ar... esc
utando... espreitando... não viu ainda?
- Não.


- Pois a vizinha da esquina debaixo está muito
mal, pra morrer Quero dizer, a mãe da vizinha, a
quela velhinha de oitenta anos, e a Genu já está
se preparando para
a festa.
- Alfredo, não fa
le assim, nem diga Genu.
- Tumbém onde se viu u
ma mulher chamada Genu?
- Você sabe muito bem q
ue o nome dela é Genoveva, não é Genu.
- Mas ch
amam de Genu e está acabado. Eu sei que anda che
irando defunto.
- Não fale assim, meu filho; de
repente ela fica sabendo e é tão nossa amiga...

- Mas ela gosta de defunto, não gosta? Sente u
m gosto especial em...
- Alfredo, fique quieto.
Por que veio tão tarde ontem?
Ele não responde
u e ficou me olhando, fazendo sinais que eu não
entendia. Tornei a perguntar:
-- Responda; por
que veio tarde?
- É pra falar? Agora mesmo a se
nhora não disse pr'eu ficar quieto? Esqueceu?
E
u não podia deixar de sorrir e ele me abraçava e
me beijava:
- Esta D. Lola, esta D. Lola... E
as repreensões paravam aí.
Quando terminou o se
gundo mês do emprego, apareceu com uma roupa nov
a azul-marinho; vendo-me tão espantada com o ter
no, riu com gosto e perguntou:
- Está estranhan
do o filho, D. Lola?
E fez uma pirueta para eu
ver a roupa. Perguntei:
- Que loucura é essa? C
om esse ordenado, fez uma roupa tão cara? Respon
deu rindo:
- Ora, mamãe, para que servem as pre
stações? Vou pagar trinta mil-réis por mês; levo
tempo pagando, mas não tem importância.
Censur
ei:
- Cuidado, meu filho. Não vá se endividar;
você devia fazer a roupa lá para o fim do ano, e
m dezembro.
Ele saiu assobiando e antes de entr
ar no quarto, falou da porta:
- Não tenha medo,
sei o que estou fazendo.
E assim continuou, se
m dar muita atenção aos apuros que passávamos e
sempre desligado dos outros irmãos, achando que
eram uns trouxas por levarem a vida tão a sério.

Clotilde e eu continuávamos a trabalhar muito,
às vezes nos tricôs, às vezes fazendo doces, po
is sempre tínhamos uma ou outra encomenda.
E as
sim os dias foram passando, as semanas e os mese
s; eu dizia que nossa casa parecia uma colmeia;
todos saíam cedo para o trabalho e os que ficava
m, também trabalhavam.
Havia meses que passávam
os melhor, mas havia outros que apenas comíamos;
não podíamos comprar uma escova de dentes seque
r! O dinheiro dava apenas para não morrer
de fo
me.
E veio outro ano e outro inverno; e esse in
verno foi triste. Todos se resfriaram e eu tinha
muita pena dos rapazes porque iam para o trabal
ho com dor de cabeça e
tosse e eu ficava o dia
todo pensando neles, com mágoa no coração. Quem
custou mais a se curar foi Julinho; passou meses
tossindo. Não podíamos comprar remédios,
então
Clotilde fez em casa um xarope de eucaliptos qu
e ele tomava todos os dias; emagreceu e ficou ab
atido.
No fim desse ano, todos se queixaram de
dor de dentes. Fiquei desesperada; tia Candoca e
ntão lembrou que havia um sobrinho de uma irmã d
a cunhada dela que era dentista
no Brás. Fui lá
com os filhos e pedi orçamento para todos; ele
me cobrou o mínimo possível e levei quase dois a
nos pagando.
O dinheiro que Olga e Zeca nos adi
antaram só consegui pagar um ano depois, assim m
esmo a prestações.
Nessa época, Isabel quis dei
xar os estudos para aprender datilografia e se e
mpregar; precisou muita energia e conselhos para
ela desistir do projeto; queria trabalhar
para
comprar vestidos e sapatos. Era muito vaidosa e
não se conformava com a pobreza.
Todos os dias
tinha uma reclamação a fazer e ia para a escola
chorando; um dia porque os sapatos estavam velh
os demais e "o que as colegas iriam pensar?" Out
ro dia
porque a blusa tinha um remendo e não qu
eria vesti-la mais; outro dia porque não tinha u
m bom casaco para o frio e sentia vergonha de ir
só com a blusa de malha.
Era uma luta acalmar
o gênio forte de Isabel; eu me lembrava de Júlio
que sempre reclamava, censurava e nada achava b
om, nada a seu gosto. Percebi que sumia dinheiro

da minha gaveta e chamei a atenção de Isabel;
ela chorou, bateu os pés e negou, dizendo que nã
o era ela, mas dias depois descobri que ela e Al
fredo tiravam os níqueis
que eu guardava para a
s compras de momento. Ralhei com eles e escondi
o dinheiro noutro lugar. Depois soube que Isabel
ia a pé para a escola quase todos os dias
e, c
om o dinheiro que eu dava para o bonde, comprava
pintura para o rosto e esmalte para as unhas. P
or isso não havia sapatos que durassem para Isab
el; todos os
sapatos que eu comprava estragavam
-se em pouco tempo.
Era muito vaidosa e às veze
s eu pensava comigo mesma que tinha sua razão de
ser, pois estava cada dia mais bonita!
Fez exa
mes em novembro e passou com boas notas para o t
erceiro ano da Escola Normal. Às vezes estudava
inglês em voz alta no quintal passeando de um la
do para outro;
entusiasmada porque já sabia alg
umas frases, e não parava de repeti-las. Tanto r
epetiu um dia que até eu decorei. Também não sei
por que, sempre tive uma cabeça
danada para de
corar as lições de meus filhos. Quando estudava
inglês, Isabel dizia e repetia alto:
- Ai go to
béde et naine o cloque et naite... ú as meide i
our cote?
Falava devagar e com intervalo em cad
a sílaba; perguntava ao gato que se espreguiçava
ao sol em cima da folha de zinco que servia par
a estender roupa:
- Caçarrôla, ú as meide iour
chôs?
E dava uma risada gostosa. Clotilde e eu
ríamos também ao vê-la tão alegre e espiávamos a
través da vidraça: ela ficava na ponta dos pés e
sacudia o dedinho na direção
do gato que se es
preguiçava com as patas esticadas, os olhos semi
cerrados e a barriguinha amarela voltada para o
sol.
Chegamos ao fim desse ano com mais esperan
ça e mais confiança em nosso futuro. Carlos dizi
a que pretendia reiniciar os estudos de Medicina
no próximo ano; trabalharia
durante o dia e es
tudaria à noite. Julinho falava em continuar os
preparatórios interrompidos e fazer o curso de E
ngenharia do Mackenzie. Comecei a ver tudo por

um prisma melhor; as encomendas de doces também
não nos faltavam, e, para ficarmos mais aperfeiç
oadas, Clotilde fez um curso completo de cozinha
e aprendeu novidades
que desconhecíamos.
Alfr
edo continuava com boas roupas, gravatas bonitas
e de vez em quando, comprava uma camisa nova; e
u censurava:
- Alfredo, Alfredo, cuidado, não f
aça dívidas.
Ele dizia que comprava a prestaçõe
s e me agradava muito; um dia me trouxe um par d
e meias de seda que Isabel tomou para ela dizend
o que estava precisando; outro
dia me trouxe fr
utas finas. Eu agradeci muito e pedi que não gas
tasse assim; preferia que não me desse presentes
.
Um dia, nas vésperas de outro Natal, eu traba
lhava na cozinha dando conta de umas encomendas;
Clotilde tinha saído para comprar papel de enro
lar balas. Estava justamente
batendo um bolo qu
ando Alfredo entrou na cozinha, uma expressão es
quisita no olhar. Como não era hora de nenhum de
les voltar, perguntei o que havia. Ele respondeu

que não havia nada. Tornei a perguntar:
- Est
á doente, filho? Está sentindo alguma coisa?
El
e deu umas voltas pela cozinha com as mãos no bo
lso e um ar preocupado. Disse:
- Não, mamãe, nã
o tenho nada.
- Então por que veio mais cedo? i
nsisti enquanto peneirava a farinha e o fermento
.
Alfredo deixou a cozinha dizendo que depois e
xplicaria e foi para o quarto. Fiquei pensando e
, depois que enfiei o bolo no forno, fui vê-lo;
encontrei-o sentado
na cama, a cabeça baixa, pe
nsativo. Sentei perto, passando o braço sobre se
us ombros e falei ternamente:
- Que há, filho?


Então ele baixou mais a cabeça e me disse que t
inha perdido o emprego. Fiquei assustada:
- Mas
assim à toa? Sem motivo? O que houve com você?


- Disseram lá na oficina que não há serviços pa
ra todos e como sou o mais novo, me mandaram emb
ora. Mas eles me pagam, os bandidos.
Acalmei Al
fredo dizendo que não era motivo de desespero, o
utros empregos haviam de aparecer e, depois de d
ar-lhe um tapinha carinhoso no ombro, corri para
ver o
meu bolo. Logo depois o vi saindo; não m
e disse onde ia e bateu com força a porta da rua
.
Passei o resto da tarde fazendo bem-casados e
quando Carlos entrou, contei logo o que tinha a
contecido. Carlos tornou a pôr o chapéu, dizendo
:
- Vou ver o que há, mamãe. Não se aflija.
Cl
otilde chegou e começou a cortar o papel de bala
fininho como renda; os outros filhos também ent
raram: cada um deu uma espiada na cozinha como f
aziam sempre:
- Alô, mamãe.
E foram para seus
quartos; Isabel trocou o uniforme por um vestidi
nho velho de linho e foi passear na calçada com
as amigas. Fazia um calor de abafar; pus o açúca
r
no fogo e fiquei esperando o ponto certo para
colocar as tâmaras recheadas na calda; sentia o
suor escorrendo pelas minhas costas e umidade n
o meu pescoço. Estava
tão ocupada nesse serviço
para que a calda não passasse do ponto que não
percebi Carlos e Alfredo entrarem. De repente ou
vi um ruído estranho; parece que sapateavam
voz
es falavam asperamente; e de repente um grito de
Clotilde; um grito angustioso:
- Lola.
Largue
i tudo num susto tremendo e corri para dentro; v
i Clotilde na porta do quarto de Alfredo, muito
pálida, e, dentro do quarto, Alfredo e Carlos, e
mpenhados numa
luta horrível. Num relance, vi A
lfredo com a boca sangrando e Carlos com um olho
meio fechado; nem me olharam e continuaram agar
rados; um se esforçando para derrubar
o outro.
Puxei Carlos por um braço e gritei:
- Meus filh
os, pelo amor de Deus! Não façam isso! Clotilde
também segurou um braço de Alfredo e gritou:
-
Alfredo! Alfredo! Não façam assim, por favor!
E
les se separaram um segundo; não deu tempo para
intervir e Alfredo vibrou um murro com força no
queixo de Carlos; vi Carlos cambalear como se fo
sse cair, mas firmou-se
imediatamente e atirou-
se como um tigre sobre o irmão. Comecei a chorar
alto e a gritar como louca, enquanto Clotilde t
ornava a puxar Alfredo com toda a força, mas
el
e deu um empurrão nela e quase a fez cair junto
à janela. Eu chorava e procurava separar os dois
, quando apareceu Julinho na porta do quarto, as
sustado. Gritei-lhe:
- Julinho, por favor, acud
a!
Julinho não hesitou; foi por trás de Alfredo
e, segurando os dois braços dele, tolheu-o de t
odo movimento. Graças a Deus Julinho era forte,
tão forte quanto Alfredo;
segurou-o assim uns m
inutos e Carlos caiu sentado na cama arquejando
e segurando o queixo com as duas mãos. Perguntei
:
- Está ferido, Carlos? Que houve? Por que fiz
eram isso? Vocês nunca brigaram assim. Vocês me
matam, me matam.
Alfredo resmungava:
- Desgraç
ado, tu há de me pagar este sangue aqui.
Julinh
o largou-o; com o lenço na mão, Alfredo enxugava
os lábios; estava tão cansado que mal podia fal
ar. Clotilde foi correndo buscar água para beber
em e como eu
tinha medo que brigassem outra vez
, disse para Carlos:
•- Vamos para a cozinha, C
arlos, vamos ver o que há.
Carlos se levantou c
om uma expressão terrível no rosto e mostrando A
lfredo, disse:
- Agora a senhora precisa saber
o motivo da nossa briga. Alfredo foi despedido d
o emprego porque é um ladrão. Roubou.
Alfredo f
ez um movimento violento para avançar sobre Carl
os, mas Julinho segurou-o novamente; protestou f
urioso:
- É mentira. Mentira desse cachorro. Nã
o acredite, mamãe. Sem poder falar, embrutecida
com a notícia, sem poder acreditar
nas palavras
de Carlos, encarei Alfredo que, vermelho, conti
nuou a falar:
- Mentira. É mentira. Tu há de me
pagar. Carlos falou como se não o ouvisse'
- P
ara isso eu fui à oficina e o próprio chefe me c
ontou tudo. Furtava peças de automóvel e vendia.
Negue agora. Desonrou o nome da nossa família,
do nosso
pai.
Fez uma pausa e continuou:
- É
por isso que anda assim almofadinha.
Saindo do
quarto, foi sentar-se numa cadeira da copa. Sent
ando-me então ao lado de Carlos, escondi a cabeç
a entre os braços e chorei desesperadamente.
Cl
otilde andava para cá e para lá, passando salmou
ra num e noutro, depois me trouxe um café:
- To
me este café bem forte; não veja as coisas do la
do trágico, Lola. Foi uma criancice de Alfredo;
qual é o rapaz que não dá cabeçadas? Ele já está
envergonhado
e arrependido, naturalmente vai s
e corrigir. Não se entregue assim, encare os fat
os com mais coragem.
E acrescentou baixinho:
-
A calda queimou. «
Então me lembrei que havia
deixado a calda no fogo. Enxuguei meus olhos, to
mei rapidamente o café e fui para a cozinha trat
ar de fazer outra. Clotilde preparou a
mesa par
a o jantar; como fazia muito calor, havia apenas
uma grande travessa de salada de batatas com to
mates e outra travessa de sardinhas fritas que e
les apreciavam
muito.
Mas quase ninguém jantou
; Alfredo não saiu do quarto e quando Isabel che
gou da rua, curiosa por saber por que estavam to
dos tão quietos e Clotilde explicou, defendeu
o
irmão:
- Ah! Coitado do Alfredo. É tão triste
a gente viver na miséria que dá vontade mesmo de
roubar. Puxa!
Olhamos para ela duvidando da si
nceridade daquelas palavras; mas ela estava tran
qüila e jantou alegremente não dando ao caso a m
ínima atenção. Clotilde censurou-a:
- Não fale
assim, Isabel. Você está mostrando muita leviand
ade nessas palavras. Seu irmão cometeu um erro m
uito grande e você parece que está de acordo com
ele.
Isso é muito feio, nem deve repetir.
Ela
levantou os ombros num gesto desdenhoso e fazen
do uma careta para Clotilde, começou a trincar u
ma sardinha segurando-a com as duas mãos,
Carlo
s falou, carrancudo:
- Ela é tão leviana quanto
ele, tia Clotilde, nem sei qual é o pior. Eles
se entendem.
Isabel largou a carcaça da sardinh
a no prato, enxugou rapidamente as pontas dos de
dos engordurados, falando para Carlos:
- Eh! Já
começa, hein? É melhor não se importar com a mi
nha vida. Trate da sua que já não é pouco, ouviu
? Pensa que é um santo? Pretende endireitar o mu
ndo?
Bobão!
E pegou outra sardinha com as mãos
.
- Não pretendo endireitar o mundo, mas preten
do endireitar você que é minha irmã e não tem ju
ízo. Parece oca por dentro. E não seja
malcriad
a.
- Psiu! Psiu! fez Clotilde. Não discutam ass
im; sua mãe já está tão aborrecida hoje. Sejam b
ons.
- É Carlos que vive me amolando. Por que e
le me aborrece? Carlos saiu da mesa mal-humorado
, empurrou a cadeira e foi para o
quarto; Isabe
l fez menção de jogar a carcaça da sardinha nas
costas dele; Clotilde segurou a tempo o braço de
la, dizendo:
- Pelo amor de Deus!
Ela lambeu a
s pontas dos dedos e riu, despreocupada. Julinho
gritou:
- Olhe o café, Carlos.
- Não quero ca
fé, respondeu e fechou-se no quarto. Isabel resm
ungou: "melhor para ele".
Ninguém mais falou na
mesa e logo todos se levantaram; voltei para a
cozinha e continuei nos meus afazeres, enquanto
Clotilde tirava a mesa e lavava os pratos do
ja
ntar. Comecei a preparar o coco para as cocadinh
as e falei a Clotilde:
- Nunca disse aos meus f
ilhos para serem honestos. Sabe por quê? Porque
sempre pensei que a gente já nascesse honesta e
isso não se ensinasse. Imagine dizer a
eles tod
os os dias: Não roube, não mate. Você acha que i
sso se ensina? É o mesmo que dizer: a boca é par
a falar, os olhos são para olhar. Isso se ensina
, Clotilde?
Diga se isso se ensina. Ensina-se a
ser bom, ser correto, cumprir as obrigações, se
r limpo, fazer o bem, não maltratar ninguém, obe
decer aos mais velhos, respeitar
os superiores.
Mas não roubar, não matar, eu nunca ensinei; se
rá que errei e devia ter ensinado também isso? P
ensei que a gente da nossa raça já nascesse sabe
ndo.
Vai ver que errei.
Clotilde respondeu um
pouco nervosa, enxugando os pratos:
- Não digo
que você leva as coisas muito a sério? Isso não
quer dizer nada, Lola. Foi uma cabeçada e todo o
rapaz dá cabeçadas de vez em quando, mas são pe
rdoáveis.
Estou achando que essa cocada está fi
cando muito escura.
- Não está, está no ponto c
erto. Depois clareia. Você não quer que eu leve
a sério. Se ele fez isso agora, o que não fará m
ais tarde, Clotilde? Que desgosto,
meu Deus!
-
Mas ele já está arrependido, coitado! Não quis
jantar, ele que come sempre tão bem. Com este re
sto de leite, vou fazer um prato de aveia com ca
cau que ele
gosta tanto e vou levar ao quarto.


Não respondi e Clotilde fez o que disse. Mais t
arde fui falar com
Carlos; sentei-me ao lado de
le, na cama, e enquanto ele tomava uma
xícara d
e chocolate, conversamos. Ele disse que tinha es
perança que Al-
fredo tivesse juízo um dia e eu
continuei. Muitos rapazes não têm muito juízo n
essa idade, mas depois se tornam homens bons e c
orretos. Falamos também sobre Isabel;
disse que
às vezes tinha a impressão de que ela era cínic
a; protestei com energia:
- Não, meu filho, nem
diga isso. É leviana, assim um pouco aérea, mas
você veja, é estudiosa e boazinha. Muito boazin
ha mesmo e carinhosa. Talvez seja um
pouco malc
riada, isso sim, mas não diga que sua irmã é cín
ica.
Carlos tornou a falar sobre Alfredo, dizen
do que o que o estragava eram as más companhias;
desde pequeno não sabia escolher amigos e só br
incava com moleques que
diziam nomes feios e qu
ebravam vidraças. Ri-me ao lembrar as peraltagen
s de Alfredo e mais consolada com essas confidên
cias, despedimo-nos e fui me deitar.
Mas não co
nsegui dormir; levantei-me então de madrugada pa
ra preparar os frangos para a encomenda; começou
a cair uma chuva grossa e barulhenta, chuva de
verão e
um cheiro de terra molhada entrou pela
cozinha adentro. O dia prometia ser escuro, somb
rio, com a chuva a despencar lá fora. Ouvi um le
ve arranhão na porta do quintal
e, quando abri,
o gato entrou esbaforido, sacudindo-se todo e p
assando devagar a língua vermelha por todo o cor
po. Correu para perto do fogão no canto predilet
o
e de vez em quando se erguia e se esfregava n
a minha saia para enxugar o pêlo molhado. E rosn
ava, todo satisfeito; falei enquanto limpava os
frangos:
- Divertiu-se a noite toda por aí, hei
n, Caçarola? Agora vem procurar a gente.
E come
cei a pensar em Alfredo; o que eu faria com ele?
Não era uma infelicidade ter um filho assim?
D
e repente Alfredo apareceu na cozinha, uma expre
ssão tristonha no rosto:
- Bom dia, mamãe.
- B
om dia.
Ficou encostado na porta, sem dizer nad
a, seguindo meus movimentos de um lado para outr
o. Depois, sentou-se num banquinho ao lado da me
sa e bocejando, perguntou
com voz pesarosa:
-
A senhora acreditou no que Carlos contou, mamãe?
Olhei para ele dizendo:
- Como não havia de ac
reditar? Naturalmente acreditei.
Então Alfredo
me contou que tinha sido vítima de um colega de
oficina; eram amigos e o outro o levava todos os
dias para jogar no bicho. Começaram a perder mu
ito
dinheiro e como Alfredo lidava com peças ca
ras, o amigo insinuou: "Venda algumas peças, com
esse dinheiro jogamos mais; depois que ganharmo
s, iremos repor as peças
de novo, porque esta t
abela que tenho é infalível. Quer ver? Pode ser
que se perci um dia ou outro, mas depois se ganh
a, é na batata".
E o amigo explicou como era a
tabela e todas as probabilidades que havia de ga
nharem; tanto o amigo falou que ele acreditou e
me disse: - "Fui na onda", mamãe, e
a tabela "n
egou fogo". Então não pudemos repor as peças e n
a "hora h", o tal da oficina "tirou o corpo" e "
eu fiquei na mão".
Ele falava com tanta convicç
ão, tão calorosamente que não pude deixar de acr
editar, pois percebia que era verdade. Dizia que
queria
melhorar, ganhar mais para eu não preci
sar trabalhar, ou não trabalhar tanto. Tinha pen
a de mim correndo pra cá e pra lá o dia todo no
serviço árduo; lembrei-me
de
todos os presente
s que ele me dera e meu coração começou a amolec
er. Quase sem energia, falei:
- Mas você nunca
devia ter feito o que fez. Não era seu, Alfredo.

- Mas eu ia repor, mamãe. Juro para a senhora.
Deus me livre ficar com o que não é meu. Mas nã
o deu tempo. Aquele bandido que me traiu continu
a na oficina,
mas ele me paga. Ainda hei de "su
jar" ele.
Enquanto Alfredo falava, eu o olhava
e como estava bonito e simpático, assim com os c
abelos louros despenteados, os dentes muito igua
is e brancos, a boca perfeita,
apesar de leveme
nte inchada por causa do soco da véspera. Como e
ra bonito esse meu filho! Pelo modo como contou
o fato, vi que tudo era verdade e que o chefe ti
nha
sido mau e impiedoso e exagerado num caso q
ue não era para tanto. Pensei em quanto o mundo
era ruim e como os pobres sofriam; a tentação er
a grande, ainda mais para
um belo rapaz.
Sorri
ndo mais aliviada, preparei então para Alfredo u
ma boa xícara de chocolate e fiz um mexido de ov
os com leite do jeito que ele gostava; comeu tud
o com pão fresquinho
chegado na hora e me vendo
contente, falou batendo nas minhas costas:
- N
ão se aflija, mamãe. Vou arranjar um emprego mel
hor, a senhora vai ver. Aquele não era grande co
isa, ganhava muito pouco. E eu já tenho prática,
o que a senhora
pensa?
E levantando os braços
para cima, começou a se espreguiçar e a bocejar
; depois sorriu alegremente para mim e saiu da c
ozinha, dizendo que ia dormir mais um pouco.
Co
mecei a mexer os frangos na panela, tranqüilizad
a.

Capítulo XII

um desses anos ficou assin
alado na minha vida por um ou outro fato importa
nte que fez desaparecer os outros fatos ocorrido
s na mesma época e que serviu para mais
tarde s
epararmos um do outro, destacadamente. Era como
se uma pessoa calcasse a folhinha com a ponta da
unha, fazendo com força um sulco profundo. Nas
horas do "Lembra-se",
eu dizia para Clotilde:

- Não se lembra quando foi? Foi no ano daquele "
caso" de Alfredo. Ou então Clotilde me dizia:
-
Já esqueceu, Lola? Foi no ano "da morte de Júli
o". Ou:
- Isso foi no ano da "formatura de Isab
el..."
Esse ano que começo a narrar foi o ano d
a partida do meu filho Julinho.
Alfredo ficou s
em emprego quase até o meio do ano; pedíamos par
a uma e outra pessoa, mas nada de bom aparecia o
u, quando aparecia, Alfredo achava que não valia
a
pena perder tempo com "empreguinhos".
Pedia
dinheiro para mim ou para Clotilde com um modo
tão simpático e um sorriso tão atraente que era
impossível resistir. Dizia:
- Mamãe, estou "pro
nto". Pode me arranjar alguns cobres? Dávamos às
escondidas de Carlos e Julinho que censuravam e
diziam
que não devíamos dar nada, que Alfredo
precisava aprender a trabalhar e a ganhar a vida
. Assim passaram quase seis meses.
Finalmente A
lfredo se colocou num cartório; foi por interméd
io de um amigo do genro de D. Genu que apareceu
esse emprego. Aconselhei-o tanto dessa vez e tod
os em
casa pediram tanto que fosse correto e cu
mprisse os deveres em memória do pai, que Alfred
o ficou abalado e prometeu ser um bom empregado.

Quando dei um suspiro de alívio e disse comigo
mesma: agora posso dormir tranqüila, compreendi
que essas palavras não foram feitas para mim e
que é muito difícil
uma mãe pobre com quatro fi
lhos dormir tranqüila.
Uma noite, quase no fim
do ano, o dono da loja de Julinho, veio nos faze
r uma visita; elogiou muito o serviço de Julinho
, dizendo que era um empregado tão correto
que
desejaria mandá-lo para o Rio de Janeiro, na fil
ial do irmão, uma casa importante, e de muito fu
turo. Seria chefe da seção de perfumaria da casa
do Rio; lembrara
de Julinho por ser um rapaz t
rabalhador e honesto e, se eu consentisse, o fut
uro do menino estaria garantido. Eu disse logo q
ue não; não me separaria dos meus filhos
a não
ser por casos irremediáveis e que ele podia tamb
ém ter o futuro garantido aqui, não precisava ir
para tão longe. O dono da loja pediu-me que ref
letisse bem
e que devia mudar de idéia a respei
to dos filhos, e que não me esquecesse do futuro
dele.
Quando fechei as portas e janelas para i
rmos dormir, disse a Clotilde
- Deus me livre s
eparar dos filhos assim à toa, não acha?
- Acho
que você deve deixar Julinho ir, disse Clotilde
lentamente, olhando para mim.
Julinho que esta
va sempre ao meu lado pedindo para ir, exultou:


- Está ouvindo, mamãe? Todos acham que eu devo
ir, só a senhora não.
Não respondi; fui para o
quarto e deitei-me, pensando no que devia fazer;
devia permitir que meu filho fosse para longe?


Na noite escura e silenciosa, insone, os olhos
fixos na escuridão, ouvindo o velho relógio da s
ala dar lentamente as horas, pensei: "Preciso de
ixá-lo ir; é o futuro
dele que está em jogo. Lá
poderá ser feliz, subir na vida, ficar rico, fa
zer carreira. Mas ele é tão bom filho; é uma lou
cura deixá-lo partir; aqui também ele poderia
f
azer carreira e ganhar dinheiro. E se ele for em
bora, perderei o filho. Sim, perderei. Alguém di
sse que a ausência mata o amor, qualquer espécie
de amor; só a convivência
aquece e faz viver t
anto o amor como a amizade. A separação esfria.
Perderei o filho. Mas afinal, pensando bem, qual
a mãe que cri u o filho para si? As mães criam


os filhos para o mundo e os filhos só são delas
enquanto pequenos. Há muito tempo Julinho não é
meu Já u perdi, que tolice".
Virei do outro la
do sem poder dormir: "Como não é meu? Poinão fui
eu quem o criou, quem o amamentou, e o tratou n
as doenças, quv o acalentou nas noites frias? Co
mo
não é meu se é meu sangue e minha carne? Um
pedacinho do meu coração? E depois eu ficava aco
rdada
a noite inteira quando ele estava doente;
eu me lembro quando teve sarampo, passei a noit
e toda segurando a mãozinha dele e pondo o termô
metro toda a hora por causa
do febrão. Nem fala
va ainda, era tão pequenino; gemia e virava a ca
becinha pra cá e pra lá. Os filhos são das mães,
como não? Mesmo que vão para longe e fiquem em


outros ambientes, como podem esquecer aquela qu
e os pôs no mundo?"
O galo de D. Genu começou a
cantar. Contei: "Uma... Duas... Três... Galo ca
cete... Quatro... Fez um intervalo agora. Cinco.
.. É verdade que os filhos não esquecem
as mães
, mas também não se importam muito com elas... S
eis... Casam-se e formam outra família, têm tamb
ém filhos, outros lares, ambientes novos... Mas
nunca esquecerão
a mãe. Sete. Mas o que signifi
ca isso para eles? A mãe será apenas a "velha".
E uma boa mãe nunca deverá prejudicar o futuro d
e um filho, Nunca. Oito. Galo pau.
Se Julinho n
ão for agora para o Rio de Janeiro, nunca esquec
erá que fui eu que não deixei, "a velha". Dirá s
empre recriminando: Se a senhora tivesse me deix
ado ir
para o Rio aquela vez... Ou então: Foi a
senhora mesma que não quis que eu fosse, eu pod
ia estar longe na vida... Ué! O galo parou de ca
ntar. Qual a mãe que gosta
de ouvir isso? Pense
i que nunca precisasse me separar dos filhos; ma
s pensar é uma coisa e a realidade é outra. O ga
lo cantou outra vez, logo vi que ele continuava.

Eu acho que já cantou nove vezes. O que eu est
ava pensando mesmo? Ah! Julinho. E por que Julin
ho não há de progredir aqui também? Meu Deus! Em
toda a parte a gente
pode ganhar dinheiro. Par
a que ir tão longe? Perderei o filho, tenho a ce
rteza e um filho bom e obediente como Julinho é
triste perder. Não devo deixar".
Virei para out
ro lado: "Mas afinal dizem que a felicidade só t
em um fio de cabelo e passa só uma vez perto de
nós. Se a gente não segura na hora exata esse fi
ozinho
de cabelo, nunca mais encontra a felicid
ade. Galo danado. Para materializar o pensamento
, esse fiozinho chama-se "oportunidade" e ela ap
areceu agora para
Julinho, ele tem que segurá-l
a. Preciso deixá-lo seguir. Mas também um poeta
já disse que a felicidade está onde nós a pomos
e a dele está aqui ao lado da família,
da mãezi
nha. Doze vezes? Não me lembro bem, acho que doz
e. Será que os poetas conhecem bem a vida? A vid
a de ganhar dinheiro'' Os poetas sabem cantar es
trelas, namorar
a lua, chorar na viola, mas pen
so que eles não sabem quanto custa ganhar o "pão
nosso de cada dia". As estrelas, a lua e a viol
a não dão dinheiro e sem dinheiro,
como podemos
viver? E depois a família de Julinho aqui é pro
visória; mais tarde ou mais cedo ele se casará e
* irá constituir a verdadeira família. Treze. Is
so tanto
faz aqui como no Rio. Se o "tico-tico"
acha que deve ir, é porque ele deve ir. Mas Jul
inho é tão bom filho... Filhos assim não se enco
ntram todos os dias.
E depois vai para um meio
diferente, sem ninguém da família. E se ficar do
ente um dia, quem tratará dele? O galo parou. E
se tiver uma desilusão ou um desgosto,
com quem
irá o pobrezinho desabafar? É triste um filho s
ofrer longe da mãe. Não devo me lamentar; homem
é homem, gato é gato. E a gente está no mundo pa
ra sofrer,
tanto sofre aqui como em qualquer lu
gar, e um verdadeiro homem sabe suportar a dor.
Só os filhos que crescem segurando na saia da ma
mãe é que não sabem sofrer. Preciso
deixar Juli
nho partir Preciso! Preciso! O galo recomeçou; l
ogo vi. Afinal antes Julinho ir
embora do que A
lfredo; Alfredo é um anjo de bondade, mas um pou
co estourado. Estourado não, aluado. Um pouquinh
o aluado, um pouquinho só, não liga muito para a
vida.
Mas é bom como um anjo e me quer tanto b
em. Uma vez Carlos me disse que ele andava freqü
entando reuniões de comunistas. Que será isso? P
reciso indagar
direito, saber o que é. Por que
as pessoas não ficam quietas no seu canto, traba
lhando e vivendo tranqüilas? Por que essa inquie
tação? Comunista, ora esta! Amanhã
vou saber di
reito o que Alfredo anda fazendo. O que mesmo eu
estava pensando? Ah! Julinho. -Lá no Rio ele po
derá ser feliz. Poderá fazer carreira e até fica
r rico.
Poderá fazer um bom casamento, tudo iss
o é verdade. E quando vierem os filhinhos no nov
o lar de Julinho, estarei tão longe que não pode
rei vê-los, criá-los, amá-los.
Bobagem. Falo co
mo se ele fosse para a China. E há de ter outra
avó que cuide disso; toda a criança tem duas avó
s. Não devo chorar; Julinho precisa ir.
As mães
não podem prejudicar o futuro dos filhos. Esta
frase está acima de todas as outras. Não podem s
er egoístas e querer os filhos só para si. Tenho
de me sacrificar,
sacrificar sempre. Mãe quer
dizer sacrifício, não devo esquecer. O galo cant
ou dezoito vezes. Agora parou".
Virei outra vez
na cama e esperei a madrugada. O galo recomeçou
: "Uma... Duas... Três..."
Quando o dia chegou
e o sol começou a iluminar o quarto, levantei-me
decidida a deixar meu filho seguir para o Rio,
embora sentisse meu coração chorar de dor.
Fui
para a copa preparar a mesa para o café e ví Jul
inho sair do banheiro, a toalha enrolada no pesc
oço, os cabelos úmidos do banho de chuveiro esco
rridos na testa,
gotas d'água no rosto e no pei
to meio descoberto. Olhou para mim numa interrog
ação, um ar entre risonho e sério:
- Bom dia, m
amãe. Então? Posso ir?
- Você quer ir? pergunte
i.
- Natural que quero, lá deve estar meu futur
o.
- Então vá, e seja feliz.
Ele tirou a toalh
a do pescoço e dando uma reviravolta com ela no
ar quase derrubou as xícaras da mesa. Gritou:
-
Urra! Ip, ip, ip, urra! Vou para o Rio de Janei
ro. Viva!
E me beijou com força nas duas faces;
fingi que estava um pouco irritada para disfarç
ar a emoção que sentia:
- Você quebra as xícara
s, Julinho. Que estabanado! Venha depressa tomar
seu café.
Clotilde e Isabel apareceram no corr
edor para ver o que havia; mais tarde comentaram
na mesa que eu fizera muito bem em deixar Julin
ho seguir. Se ele não fosse feliz
lá, voltaria;
e se fosse, seria sempre grato por eu não ter p
erturbado a carreira dele. Clotilde ainda me dis
se:
- Desde pequeno ele foi negociante, não se
lembra, Lola? Todo o dinheiro que a gente dava,
ele guardava. Todos gastavam, menos ele. É econô
mico e há de ir longe
nos negócios, você vai ve
r.
Tomei meu café quase em silêncio, ouvindo os
comentários; Julinho era o que mais falava e ri
a, fazendo planos para o futuro, feliz por
conh
ecer outra cidade, viver em outros meios, despre
nder-se da nossa vida rotineira e estreita, sem
imaginar que meu coração já doía de saudade; ano
s e anos depois
eu
ainda sentia os beijos úmid
os de Julinho nas minhas faces, mas naquela manh
ã mesmo compreendi que o tinha perdido para semp
re. Ele não me pertencia mais, pertencia
ao mun
do que o reclamava. E à noite, ao jantar, enquan
to conversavam animadamente sobre a sorte de Jul
inho, olhei os outros três à minha volta e um pe
nsamento sombrio
cruzou meu cérebro: Qual deles
irá em seguida?
Em pouco tempo, preparamos rou
pas novas para Julinho levar; fizemos pijamas, c
ompramos camisas; eu queria que ele levasse uma
espécie de enxoval para tão cedo não
precisar d
e nada.
Passou o Natal conosco e seguiu dois di
as depois; no dia da partida, esteve sempre ao m
eu lado, enquanto eu o aconselhava a ser bom, aj
uizado e cumpridor dos deveres:
- Se o chefe el
ogiou você, não o desiluda faltando com seu deve
r. Seja sempre correto.
Ele prometeu tudo e na
hora da partida, fomos todos acompanhá-lo. Entra
mos juntos na estação, ele segurando meu braço e
feliz como nunca o tinha visto antes. Despediu-
se
dos irmãos e de Clotilde e por último, despe
diu-se de mim. Beijou-me a mão e as duas faces.
Não consegui falar; senti um nó prender a gargan
ta e não pude dizer nada.
Ele se comoveu um pou
co e disse que viria nos visitar, logo que pudes
se. Pensei que isso não seria possível tão cedo.

Fiquei olhando para seu rosto risonho debruçad
o na janelinha, enquanto o trem se pôs em marcha
; todos disseram: felicidades, boa viagem. Meus
lábios se moveram,
mas nenhum som saiu deles, n
ão pude falar. O trem foi indo, foi indo e seu r
osto alegre desapareceu no meio da fumaça e não
o vi mais.
Deixamos a estação quase em silêncio
; eu sentia uma amargura enorme se apoderar de m
im. Quando o trem apitou, já a uma certa distânc
ia, as lágrimas saltaram enfim
dos meus olhos e
foi sem enxergar que tomei o bonde de volta par
a casa. Assim que chegamos, D. Genu veio dar uma
prosa e contar as novidades; já estava com um c
halinho
preto na cabeça, preparada para ir pass
ar a noite com uma senhora doente na Rua Alagoas
. Disse que a doente não estava muito mal, mas p
odia "esticar" de uma hora
para outra por causa
do coração que não estava muito forte, e seus o
lhinhos chisparam.
Contou que a vizinha da esqu
ina, a que morava no palacete e tinha casado a f
ilha há dois anos atrás, estava muito aborrecida
porque a moça estava falando em se separar
do
marido. E em voz baixa acrescentou:
- Quem me c
ontou foi a cozinheira de lá, eu me dou com ela;
ainda ontem ela veio me pedir um raminho de los
na para fazer um chá, estava com dor de estômago
. Olhe,
D. Lola, este mundo... este mundo não v
ale nada, nem um caracol...
E olhando o gato qu
e dormia numa cadeira, exclamou:
- Como o Caçar
ola está gordo, também é só dormir e comer... Ma
s falando na vizinha, os ricos são assim mesmo,
qualquer coisinha é
pá! estão se separando. Um
não atura o outro nenhum tiquinho assim
(e most
rou a ponta da unha). Dinheiro demais é desgraça
. Às vezes eu queria ter mais um pouco para não
trabalhar do jeito que trabalho, não passar tant
as privações,
mas muito dinheiro traz desgraça.
Isso é verdade. Bem feito prós ricos; pensam qu
e porque têm dinheiro, têm tudo, podem tratar a
gente com pouco caso. Olhe, ainda
ontem, eu vi
quando ela entrou no automóvel; tem agora um aut
omóvel novo azul-marinho. Meu genro disse a marc
a, mas eu esqueci; parece Buroc, Buric, não me l
embro.
- Buick... interrompeu Isabel.
- Eu ach
o que é esse mesmo; mas o chofer estava segurand
o a portinhola para ela entrar, assim com o boné
na mão e nisso eu ia passando; olhe que conheço
ela bem
e ela também me conhece. Há quanto tem
po somos vizinhas? Nem sei; eu armei um cumprime
nto pra ela, sabe o que ela fez? Fingiu que nem
me viu e entrou depressa
no automóvel. O automó
vel até rangeu, ela está gorda, com um traseiro
enorme, deste tamanho. Eu pensei: Ué bandida! Pe
nsa que é melhor do que eu porque
tem automóvel
? Quem diz que ali na esquina isso tudo não vai
dar de encontro com um bonde e tu não vai ficar
estendida na calçada com as tripas pra fora?
Cl
otilde deu um gritinho pondo a mão no rosto:
-
Ah! D. Genu, não fale assim pelo amor de Deus.

Ela olhou Clotilde com um olhar mau e um sorriso
quase perverso, mostrando os dentes escuros e d
efeituosos; estava nos dias de revolta. Continuo
u:
- Por que não? Não acontece desastres todos
os dias? Por que não com ela também? Quem manda
ser orgulhosa e besta assim?
- Isso está nas mã
os de Deus, D. Genu. A gente não deve falar essa
s coisas, nem desejar. Deus é quem sabe.
- Pois
é isso, o mundo não vale nada, é uma porcaria.
Olhe D. Lola, criou a filharada com amor e sacri
fício, agora Julinho louco para ir embora. Foi c
ontente
se despedir de mim; perguntei: E sua mã
e, Julinho? Não tem dó de deixar ela? Ele ficou
meio embaraçado, sabe? Respondeu: Tenho, mas tem
os outros pra
ficar com ela. E lá se foi todo
lampeiro, nem pensa no que deixou atrás. Qual! S
ou mesmo uma desiludida. Olhe, hoje teve uma bri
ga em casa por uma coisinha
à-toa; Leonor e Lil
i bateram boca uma meia hora seguida, sabem por
quê? Por causa do cabelo de Lili. Lili disse que
, se estava mal penteada e com o cabelo mal
cor
tado, era por causa de Leonor que não se importo
u e deixou o cabeleireiro judiar do cabelo dela.
Leonor é muito brava, já começou: Eh! Marmota!
cale essa
boca, sujeitinha magricela!
Começamo
s todos a rir ao ouvir D. Genu contar a briga da
s filhas e Clotilde perguntou interessada:
- O
que é marmota? Algum bicho?
- Sei lá! Uma xinga
a outra de marmota quando brigam e até hoje não
sei o que é, nem perguntei.
Rimos mais e ela r
iu também; Carlos que estava mergulhado na leitu
ra de um livro no canto da sala, levantou a cabe
ça e falou:
- Marmota é o nome de um bichinho d
o norte; eu sei que é roedor. Prestei muita aten
ção na explicação dada por Carlos. Tudo quanto

meus filhos aprendiam na escola e conversavam em
casa entrava na minha cabeça e não saía mais. A
ssim, posso dizer, que, com o tempo, dei xei de
ser aquela ignorantona
e até passei a me exprim
ir direito.
D. Genu continuou:
- Pois então é
isso. Eu sei que quase se pegaram; a Lili chorav
a e dizia que Leonor era a culpada de todas as d
esgraças dela. Ih! A Leonor subiu a serra quando

ouviu isso. Começou: Você o que é, é mal-agrad
ecida, ouviu? Faço tudo pró seu bem e ainda vem
me dizer que sou sua desgraça. Vaca magra! Você
parece
vaca magra quando cai no brejo; os vaque
iros vão acudir a bicha e ela sai chifrando. Mal
-agradecida. Medonhenta! Cara magriça! E continu
ou por aí afora.
Em Minas xingamos assim.
Foi
uma gargalhada geral e Carlos tornou a interromp
er a leitura para repetir:
- Medonhenta! Que id
éia!
- Pois é. Lili respondeu: Eu sei porque vo
cê só fala em vaca e vaqueiro; pensa que não sei
que está namorando o boiadeiro? Vou contar tudo
a mamãe, vai ver.
Tu me paga. Um homem que só
lida com boi, tu me paga. E assim bateram boca u
ma meia hora. Qual... Moça precisa casar...
D.
Genu coçou a testa e pediu com voz terna a Isabe
l:
- Me arranja um copo d'água, minha nega? Est
ou pra morrer de sede.
Isabel saiu da sala e to
da ligeirinha foi buscar água na copa; D. Genu r
elanceou os olhos para Carlos que estava novamen
te distraído com o livro, baixou a voz, pôs
a m
ão na boca e falou:
- Mulher quando não casa fi
ca assim, brigando à toa, azeda. Mulher precisa
de homem, eu já disse... e machão bom, senão fic
a desarvorada.
Emendou em tempo:
- A não ser q
ue seja como a Clotilde, de espírito sossegado.
Clotilde é diferente, mas a maioria precisa, sen
ão desembesta, fica com o gênio desgraçado. Os

antigos diziam que mulher depois de velha dá pra
parteira, ou pra alcoviteira, ou pra pitar. Eu
não dei pra nenhuma dessas, dei pra guardar defu
nto.
E riu-se. Clotilde falou:
- Então deu pra
carpideira, é quase a mesma coisa.
Ela levanto
u as sobrancelhas numa interrogação, sem compree
nder:
- Hein? Pois é. Mulher desequilibrada é o
diabo, faz besteira. Tomando o copo que Isabel
apresentava, bebeu dois golinhos d'água.
- Obri
gada, minha nega. Já vou indo; a doente me esper
a, quem sabe até está pensando que não vou mais.

E ajustando o chalinho preto na cabeça, saiu d
izendo boa noite. Esqueci D. Genu para pensar em
Julinho; a cada momento se distanciava mais de
mim, levado pelo trem;
já devia estar longe. Eu
ouvia os apitos da locomotiva e o rangido das r
odas que o transportavam, para longe, para longe
. Adormeci pensando nele.
Dois dias depois, Isa
bel começou a me agradar; passava a mão no meu b
raço, me abraçava pelo pescoço, me chamava de mã
ezinha boazinha. Pensei comigo: O
que será que
Isabel está querendo? O que será?
No terceiro d
ia, ela me disse:
- Mamãe, vai haver um baile n
o dia de Reis; umas colegas estão organizando es
se baile e eu queria muito que a senhora me deix
asse ir. A senhora deixa?
- O que, minha filha?
Você não tem vestido de baile, como pode ir a b
ailes? Isso é para os ricos; precisa-se de tanta
coisa para ir a bailes, eu não tenho nada,
nem
sapatos.
- Ora, mamãe, a senhora não precisa i
r, eu vou com as minhas amigas; e tia Clotilde f
az um vestido para mim em dois dias; eu vi numa
loja da Rua das Palmeiras uma
belezinha de orga
ndi azul. Deixa, mamãe.
- Mas você não pode ir
sozinha com as colegas; precisa Carlos acompanha
r, ou então Alfredo.
- Mas Carlos e Alfredo não
têm roupa própria, mamãe. Todos os rapazes vão
de smoking; eles não podem ir com qualquer roupa
. Eu peço para ir com a mãe de uma
das colegas.

- A mãe vai? A mãe de sua colega? Ela hesitou
um pouquinho:
- Eu acho que vai sim; vou falar.
Deixa, mamãe? Por favor.
- Não sei; vamos ver,
não se pode resolver assim de repente.
- Mas p
recisa resolver logo, mamãe. Faltam poucos dias
para o baile.
Não disse nada e fui para o quart
o ver o dinheiro que eu tinha guardado para comp
rar um par de sapatos. O meu único par estava tã
o velho e consertado que não dava
mais nada, es
tava disforme no pé. E eu estava precisando visi
tar tia Emília que andava doente. Refleti um pou
co se dava ou não o dinheiro a Isabel, e resolvi
dar
porque os sapatos, bem engraxados, ainda p
odiam servir. Dei os cinqüenta mil-réis a Isabel
que começou a saltar com a nota na mão e me bei
jou repetidas vezes, agradecendo.
Pensei que fi
z bem em dar o dinheiro; ela precisava se divert
ir de vez em quando; mocidade quer dizer alegria
e ela era tão jovem!
Uma hora depois, Isabel e
ntrou com a fazenda embrulhada na mão; Clotilde
cortou o vestido e dois dias depois, experimenta
mos em Isabel. Era o seu primeiro vestido
de ba
ile e dava gosto ver o entusiasmo da minha filha
.
Na noite do baile, Isabel me disse que as ami
gas passariam às dez horas em casa, de táxi, e c
ada uma pagaria uma parte das despesas; dei o di
nheiro para o táxi.
Ela levou horas se enfeitan
do; fez as unhas, encrespou os cabelos com pedac
inhos de papel, passou creme feito por Clotilde
(suco de pepino e água de rosas), nos
braços, n
o pescoço, nas mãos e na hora de vestir, Clotild
e foi auxiliá-la. Quando saiu do quarto, eram qu
ase dez horas, parecia uma bonequinha. O vestido
assentava
muito bem e os cabelos eriçados à vo
lta do rosto, davam-lhe um ar garoto, encantador
. Fiquei olhando minha filha num enlevo, enquant
o ela fazia piruetas à volta
da mesa, com a gra
nde saia rodada. Estava linda. Carlos veio ver t
ambém; olhou-a sem dizer nada, depois falou:
-
Tem muita pintura na cara. E por que essa pinta
preta? Isabel fez um gesto de amuo e respondeu:


- Não está demais, está, mamãe? E eu tenho mesm
o essa pintinha aqui.
- Mas está grande demais;
você exagerou tanto que de longe esta
se vendo
que é postiça.
- Mas já disse que não é postiç
a. Que homem implicante você é. Puxa!
Carlos sa
iu dizendo:
- Juízo, hein, menina?
Ela levanto
u os ombros com pouco caso e continuou a fazer p
iruetas e fingir que estava dançando à volta da
mesa. Às dez e vinte, parou um automóvel no port
ão; Isabel
levantou a saia com as duas mãos e c
orreu para espiar através da vidraça; voltou alv
oroçada:
- São eles, mamãe. Boa noite, boa noit
e, titia. Eu disse:
- Espere, Isabel. Quero con
hecer sua amiga e a mãe dela, convide para entra
rem um pouquinho.
Ela fez cara de choro:
- Não
posso mamãe. O táxi está pagando; se entrarem,
demora muito e paga-se mais.
- Então espere aí
que quero conhecê-las.
Fui até o automóvel; vi
dois rapazes na frente, espremidos ao lado do ch
ofer, e duas moças atrás gritando:
- Anda, Isab
el, já é tarde. Chegamos um pouco atrasadas, não
? Tive vontade de perguntar:
- Onde está a mãe?
Não pôde vir?
Mas não tive coragem. Cheguei ma
is perto, e enquanto Isabel entrava no automóvel
, disse um pouco contrariada:
- É mamãe. Minhas
colegas e meus colegas. Cumprimentaram constran
gidos; quis recomendar Isabel a elas, mas
eram
tão jovens que não disse nada. Houve risinhos e
exclamações quando Isabel se sentou entre elas.
Falavam todas ao mesmo tempo:
"Puxa! Quanta sai
a!" "Você conhece o Eduardo?" Um dos rapazes da
frente virou-se para cumprimentar Isabel e a out
ra acrescentou: "É o nosso campeão de fox-trot!"

Todos começaram a rir e o táxi partiu; mal tiv
eram tempo de me dizer boa noite.
Jurei nunca m
ais deixar Isabel ir sozinha com as amigas (mas
jurei em vão, porque depois desse baile, foi a m
uitos outros, apesar de minhas recriminações).

Ouvi quando ela chegou nessa madrugada; entrou d
izendo que o baile fora maravilhoso e já tinha c
ombinado outros para antes do carnaval. Com voz
sonolenta, perguntou:
- A senhora deixa, não é
mamãe?
Arrastando o vestido pelo corredor e boc
ejando, disse que não tinha perdido nenhuma danç
a; de repente olhou admirada para mim:
- Ué, a
senhora estava acordada? Abriu a porta na mesma
hora que eu bati.
Disse que acordara naquele in
stante; não quis contar que estivera sentada per
to da janela, sem poder dormir. No dia seguinte,
à hora do café, enquanto Isabel ainda
dormia,
disse aos meus filhos que Isabel era muito crian
ça para ir aos bailes sozinha com moças e rapaze
s e um dos irmãos devia fazer um smoking para ac
ompanhá-la.
Carlos respondeu que iria, se fosse
preciso, mas preferia estudar do que ir a baile
; ainda tinha esperanças de cursar a Escola de M
edicina e Alfredo que devia ir.
Alfredo respond
eu que se dessem o dinheiro para o smoking, ele
mandaria fazer
para acompanhar a irmã, ou então
esperassem para quando ele pudesse, mais tarde.
Repliquei:
- Enquanto um de nós não puder leva
r Isabel, não a deixo ir. Não é conveniente nem
bonito.
Alfredo me olhou sorrindo:
- Mamãe, a
senhora não pode impedir a chuva de chover e o v
ento de ventar. Pode? Ela está na idade das fest
as, está estonteada.
Carlos olhou-o com ar carr
ancudo:
- Nossa, jirmã não é elemento da nature
za, e pode ser dominada.
- Dominada? Ah! Você n
ão conhece Isabel. Procure dominá-la então.
Deu
uma risada; mais tarde compreendi que Alfredo é
quem tinha razão. Nunca consegui fazer Isabel c
eder, eu é que cedi sempre.
Uns dias depois, re
cebi a primeira carta de Julinho; estava simples
mente encantado com o Rio de Janeiro. Dizia:
A
viagem, mamãe, foi esplêndida; a cidade é mesmo
maravilhosa, tudo é bonito aqui: as casas, as ru
as, as montanhas, o mar, tudo. A gente é muito m
ais dada, muito
melhor que o pessoal daí. Nem h
á comparação; todos os vizinhos se conhecem e se
dão. Já tenho uma porção de amigos. E o que a s
enhora vai admirar mais é que janto
todas as no
ites em casa do chefe. São ótimos; os filhos for
am me esperar na estação. Moro numa pensão barat
a e só pago cama e almoço. D. Júlia, a mãe, é mu
ito amável
para mim, estou contentíssimo; sou c
omo pessoa da família. Tenho saudades de todos a
í. Escreverei sempre.
O filho saudoso
JULINHO.

Li mais de vinte vezes essa carta e durante vá
rios dias comentamos a carta de Julinho. Então m
ais um ano terminou na nossa vida e um outro com
eçou; este ficou assinalado:
o ano da formatura
de Isabel.
Capítulo XIII
FURANTE o ano todo,
Isabel disse que, mesmo que tirasse diploma de p
rofessora, queria ser datilôgrafa num escritório
; não queria lecionar crianças idiotinhas; pague
i
então um curso de datilografia e em pouco tem
po ela aprendeu.
Em junho, recebemos uma carta
de Olga pedindo para Clotilde ir passar uns temp
os em Itapetininga; precisava roupas para as cri
anças e
queria que Clptilde fizesse. Lá se foi
ela e achei muita falta em seu auxílio; quando t
inha alguma encomenda grande, dava pulos, para d
ar conta de tudo sozinha.
Quase no fim do ano,
Carlos me procurou um dia no quarto me disse:
-
Olhe, mamãe, eu vi Isabel passeando hoje com um
rapaz, sozinhos os dois. Se eu falo, ela fica f
uriosa, é melhor a senhora falar.
Fiquei muito
assustada e quando Isabel voltou da aula de dati
lografia, nessa mesma tarde, perguntei quem era
o rapaz com quem ela tinha passeado. Ela me enca
rou
com um ar zangado dizendo;
- Quem foi o li
nguarudo que contou isso? Não posso conversar co
m algum conhecido na rua? '
- Não. E você não e
stava só conversando, estava passeando; não deve
passear com rapazes que você não conhece; uma o
u outra pessoa vem me contar e eu fico muito
ab
orrecida.
- Mas ele não é um desconhecido; é lá
da aula de datilografia; é muito distinto e só
porque fomos conversando um pouco pela rua, depo
is da aula, já vem um trouxa
contar para a senh
ora. E a maliciar; a senhora começa a pensar mil
coisas. Me dá um ódio!
- Não fale assim, Isabe
l. Estou falando para seu bem, minha filha; tudo
que falo é para seu bem. É tão feio ver uma men
ina andar com namorados na rua; todo o mundo
co
meça a falar, a comentar.
- Já vem a senhora fa
lar em namorados; eu não disse?
Saiu da sala am
uada e ficou 'uns três dias assim. Pedi a Carlos
que a vigiasse um pouco quando deixava a aula d
e datilografia e uns dias depois ele me disse qu
e
os dois ficavam conversando na porta uns minu
tos, depois se separavam. Fiquei mais sossegada.

Um mês depois Alfredo veio me dizer que vira I
sabel sentada na Praça da República conversando
com um rapaz; fiquei novamente apreensiva e pedi
a Alfredo que procurasse
saber quem era o rapa
z e vigiasse mais.
Chamei Isabel outra vez:
-
Veja o que está fazendo, Isabel. Quem é esse rap
az? Você sai da escola e fica sentada num jardim
público ao lado de um homem horas inteiras; ach
a isso direito?
Os olhos de Isabel cresceram pa
ra mim:
- Manda me vigiar, não é?
- Nunca mand
ei vigiar; pessoas conhecidas que vêem você pass
eando com o rapaz perguntam se estão noivos. Já
pedi que não fizesse isso; se seu pai fosse vivo
, havia
de ficar bem triste.
Isabel ficou muit
o vermelha e começou a resmungar:
- Podiam bem
me deixar sossegada, eu não me importo com a vid
a de ninguém; por que eles se importam com a min
ha? Tenho ódio a toda essa gente.
Foi para o qu
arto e se fechou. Como a visse depois estudando
muito e ninguém mais me falou sobre isso, quase
esqueci esse fato.
Uma tarde, era meu aniversár
io, eu tinha saído para umas compras e quando vo
ltei, encontrei os três filhos na sala de jantar
, rindo e escondendo qualquer coisa de
mim; ri-
me também sem saber o motivo e perguntei o que h
avia. Isabel disse:
- Fale, Carlos, você é quem
deve falar.
Carlos então deu dois passos à fre
nte, pigarreou e falou com voz solene:
- Mamãe,
nós três oferecemos um presente à senhora. Nós
três não, nós quatro porque Julinho também conco
rreu. É um aparelho de rádio, veja. Feliz aniver
sário!
Saíram os três da frente da mesa e vi co
m assombro um aparelho de rádio sobre ela; me ab
raçaram e gritaram:
- Viva mamãe! Viva!
E liga
ram o rádio; ouvi então uma música muito suave q
ue nunca mais esquecerei; Carlos que entendia de
música me disse mais tarde que era a "Berceuse
de Jocelin".
O lamento triste do violino ficou
para sempre gravado na minha memória; olhei os f
ilhos sem poder conter as lágrimas; mal consegui
falar:
- Ah! Meus filhinhos! Por que foram gas
tar tanto comigo, eu sou uma pobre velha!
Eles
riram com lágrimas nos olhos e Isabel falou:
-
Mas, mamãe, a senhora se esquece que vivia suspi
rando por um rádio? Dizia sempre: Ah! Se eu pude
sse comprar um rádio! Está contente agora?
Foi
essa uma das grandes surpresas da minha vida e à
noite, D. Genu e as filhas vieram também ouvir
música até tarde. Depois que todos se retiraram
e fiquei sozinha
no meu quarto, lembrei que est
ava mais velha um ano, mais desiludida, mais tri
ste, com os cabelos mais brancos e a alma mais c
ansada, senti de repente meu rosto
úmido de lág
rimas e olhei então o crucifixo de marfim que fo
ra de Júlio:
- Oh! Cristo, obrigada! Na pobreza
e na luta, na incerteza e na amargura, velha e
cansada, sinto que ainda sou feliz porque tenho
os meus filhinhos.
E chorei muito essa noite, m
as de felicidade.
No dia seguinte, recebi de It
apetininga, como mamãe fazia todos os anos, lata
s de doces e bolos, enviados por Clotilde; mas d
esta vez vieram quatro latas de goiabada
em cal
da, quatro pacotes de figos cristalizados, quatr
o tijolos de pessegada. Já não éramos seis, como
um ano antes. Dois tinham desertado!
Comecei a
notar livros esquisitos no quarto de Alfredo, e
le que não gostava de livros. Fiquei assustada e
chamei-o um dia, mostrando-lhe um daqueles livr
os:
- Que livros são esses, Alfredo? Você compr
ou? Riu-se alegremente:
- Um amigo me emprestou
, mamãe. Por quê?
- Fala em "sistema marxista",
em "Karl Marx", em "bolchevismo". O que é isso?

Alfredo tomou o livro que estava na minha mão
e folheando-o, explicou:
- Não é nada de mais.
Vem apenas explicando o que é o socialismo moder
no. Quer saber o que é? A essência do plano é um
a espécie de "coletivismo", quero dizer,
é um i
deal que aspira a divisão de terras, meios de pr
odução, propriedade, tudo dividido coletivamente
.
- O quê? Mas isso é comunismo. ] ]
- Não é,
mamãe. O comunismo é diferente. O socialismo exi
ste em todos os países civilizados do mundo e o
comunismo existe só na Rússia. Karl Marx foi um
homem
formidável, fundador do socialismo; tinha
uma teoria notável sobre a reorganização social
. Ele também que inspirou a formação de uma liga
internacional dos trabalhadores,
a Primeira In
ternacional.
- Mas por que você lê esses livros
? Não seria melhor estudar outras coisas mais út
eis e que dêem algum resultado? O que adianta is
so para você? Adianta alguma coisa?
- Eu gosto,
mamãe, e depois tenho um amigo que entende diss
o como o diabo. E me conta essas teorias; desde
1835 existe o socialismo; é uma espécie de defes
a do
proletariado contra o capitalismo.
- Mas
por que estudar isso, filho? Estude coisas mais
úteis. O que pretende fazer com essas teorias ma
r... Como se chama?
- Marxista. Não pretendo na
da, mas gosto de saber. Estudo por curiosidade.
O que tem saber?
- Você é muito moço e pode fic
ar influenciado por essas idéias; creio que são
teorias revolucionárias, não são?
- Não. Qual o
quê. Sei o que estou fazendo. E jogou o livro s
obre a mesa com ar displicente.
O fim do ano fo
i se aproximando e Alfredo veio me dizer que ia
deixar o emprego no cartório. Perguntei:
- Mas
por quê? Houve alguma coisa?
- Não houve nada,
mamãe. A questão é que eles são muito grosseiros
e tem um camarada lá que até me trata mal, pare
ce que vive me vigiando.
- Vigiando você? Fez a
lguma coisa errada?
- Fiz nada; ele é que se im
plicou comigo desde o princípio. Não falei nada
para a senhora não se aborrecer, mas agora não a
güento mais, vou mudar de
emprego. Um amigo que
tenho ficou de me arranjar como o irmão dele qu
e é engenheiro. Prefiro trabalhar num escritório
.
- Reflita bem, filho. É tão desagradável fica
r sem dinheiro, sem nada. Reflita bem antes de f
azer as coisas. Não seja precipitado.
Quando Ca
rlos soube na hora do jantar, coçou a cabeça, pe
nsativo:
- Qual, mamãe. Alfredo não gosta de tr
abalhar, para ele nada serve. Mas se ficar sem e
mprego agora, que se arranje. À nossa custa não
fica.
Um tempo depois, Alfredo veio falar comig
o, um pouco desapontado, com uma caixa de lenços
na mão:
- Olhe, mamãe, com o último ordenado d
aquele maldito cartório, comprei este presente p
ara a senhora. Deixei hoje o emprego mandando um
a banana para aquela gente.
Mas não se incomode
que não me aperto, estou com outro emprego quas
e no papo.
Peguei a caixa e agradeci, enquanto
Alfredo tirava um lenço de seda do bolso do pale
tó e passava pela testa e pelo rosto. Uma onda d
e perfume me envolveu. Olhei
amoada e ele pergu
ntou, rindo, os olhos muito brilhantes:
- Que t
al o perfume, D. Lola? É bom?
- Você compra per
fumes, Alfredo? Custam tão caro. Que loucura.
-
Com o último ordenado, comprei um vidrinho assi
m (mostrou com os dedos um tamanho pequeno) e de
i a uma amiguinha; ela então pôs umas-gotas nest
e lenço para
eu experimentar. Que tal?
E Alfre
do me passou de leve o lenço no nariz, piscando
um olho e sorrindo. Guardou-o depois cuidadosame
nte no bolso do paletó, deixando as pontas bem e
spetadas para
cima. Deu-me um beijo na testa e
um tapinha no braço; dirigindo-se para a porta,
falou alegremente:
- Não me espere para o janta
r, mamãe. Adeusinho.
Elegante e bem vestido, co
locou o chapéu na cabeça com todo o cuidado dian
te do espelhinho da chapeleira e sorrindo ainda
para mim, fez um gesto de adeus e saiu
puxando
a porta sem bater. Fiquei com a caixa de lenços
na mão, sem saber o que fazer; não contei nada a
Carlos esse dia e depois do jantar fui para o m
eu quarto
porque estava cansada. A madrugada vi
nha vindo e os primeiros clarões do novo dia já
se desenhavam nas paredes do quarto quando ouvi
Alfredo entrar sorrateiramente
e dirigir-se par
a o quarto dele. Levantei-me, mais cansada ainda
, e fui trabalhar.
Todas as tardes ele saía diz
endo que ia procurar emprego; e todos os dias eu
perguntava:
- Encontrou algum emprego, Alfredo
?
- Nada ainda, mamãe. Mas não devemos desanima
r. A senhora não acha? E sorria meigamente para
mim. Uma semana depois perguntei:
- E o emprego
que você disse que iam arranjar num escritório
de engenharia?
Ele me olhou admirado:
- Que es
critório de engenharia?
- Você me disse que um
colega seu do cartório estava arranjando um empr
ego...
- Ah! Já sei. Agora me lembro; aquele ta
mbém gorou, mamãe. Fui procurá-lo há uns dias e
ele me disse que o irmão preferiu um rapaz que e
screvesse à máquina.
É o diabo eu não saber dat
ilografia.
- Pois aprenda; sua irmã não está ap
rendendo?
- Vou pensar nisso, sabe? É uma boa i
déia.
E saiu como todos os dias. Não falou mais
em aprender a escrever a máquina e não achou em
prego. De vez em quando me trazia uma lata de do
ce ou um quilo de uvas.
Eu censurava:
- Não qu
ero que me traga presentes, Alfredo. Afinal de c
ontas você não está ganhando e ainda me compra p
resentes. Não quero que faça isso.
- Sempre ten
ho umas corretagens que os amigos me dão. E com
isso vou me arranjando até firmar num emprego pa
ra o resto da vida. A senhora vai ver.
Acaricia
va meu braço e sorria mostrando os dentes muito
brancos.
- Eu ainda vou dar uma casa para a sen
hora. E que casa! E estalava os lábios. Depois s
aía e voltava de madrugada. Faltavam só dois mes
es para a formatura de Isabel
e a casa estava

toda alvoroçada com o acontecimento; Isabel só f
alava no baile e na cerimônia da entrega dos dip
lomas, com todos os detalhes.
Queria dois vesti
dos novos, um para a missa e outro para a cerimô
nia: comprei tudo e também um par de sapatos por
que ela disse que não podía usar vestido novo co
m
sapato engraxado, precisava tudo novíssimo. F
iz
a vontade dela, mas não sobrou dinheiro para
comprar nada para mim; nesse meio tempo fui vis
itar tia Emília da Rua Guaianases; não posso dei
xar de confessar que
no íntimo tinha esperança
que tia Emília me auxiliasse um pouquinho. Ela a
ndava doente ultimamente e riirrecebeu na saleta
em cima; contei que Isabel ia tirar diploma
de
professora e logo depois de datilografia; conte
i também que Julinho ia admiravelmente bem no Ri
o e era chefe de uma seção da casa; contei que C
arlos ia cada vez
melhor no Banco e tinham prom
etido subir-lhe o ordenado no princípio do ano.
Eu procurava sempre elevar meus filhos diante do
s outros e mentia um pouco exagerando
as qualid
ades de cada um porque não resistia a esse desej
o vaidoso de vê-los elogiados. Porém quando tia
Emília me perguntou com voz um pouco fanhosa:
-
E o outro? Você não tem outro filho? Não são qu
atro? Hesitei um pouco e respondi alegremente, m
entindo ainda mais:
- Não falei ainda em Alfred
o? Ah! Esse está trabalhando há muitos anos num
cartório, tia Emília. Eu já tinha contado, decer
to a senhora esqueceu. Graças a
Deus vai indo m
uito bem e ganha regularmente. É ótimo filho, mu
ito carinhoso. É o que me dá mais presentes; tod
a a semana me leva qualquer coisa, nunca se esqu
ece
de mim. Muito bom mesmo.
Enquanto falava a
ssim, lembrava das noitadas de Alfredo, das madr
ugadas em que ele chegava embriagado e das vezes
que eu precisava sacudi-lo com força na cama pa
ra
ele se levantar ao menos na hora do almoço,
pois não queria que Carlos presenciasse essas ce
nas. Lembrei das vezes que ele se chegava a mim,
risonho, um brilho de
malícia no olhar:
- Est
ou prontíssimo, mamãe. Me arranja uns cobres? Pa
garei com juros depois.
E mostrava os bolsos va
zios; apesar do meu desejo de negar, nunca negue
i e ia depressa ao meu quarto, dando o que ele p
edia às escondidas dos outros. Ele piscava
para
mim como para um cúmplice, ia ao quarto de Carl
os, tirava a água de colônia do irmão e passava
no rosto e no lenço, depois me beijava de leve o
s cabelos e saía
radiante, só voltando de madru
gada. Nada disso eu falei e pedi a Deus confiden
cialmente que me perdoasse as mentiras que estav
a pregando à tia Emília; e quando
ela me pergun
tou de Isabel, continuei dizendo:
- Graças a De
us é uma boa filha; ajuizada e estudiosa.
Tia E
mília ainda me perguntou se ela me auxiliava qua
ndo tinha encomendas de doces; fiquei sobressalt
ada no momento porque só então me lembrei que Is
abel nunca tinha
batido um ovo para mim, nem ol
hado o forno para ver se os bolos estavam cresce
ndo. Respondi:
- Ah! Tia Emília, ela estuda tan
to que não tem tempo de me auxiliar. A senhora n
em imagina; ela se dedica muito aos estudos e as
sim mesmo quando estou muito
apurada com as enc
omendas, nos sábados à tarde e até mesmo nos dom
ingos, ela me ajuda bastante. Peneira as farinha
s, espia o forno toda a hora, corta os papéis
d
e bala, é uma boa menina. Não posso me queixar;
e se não me ajuda mais é porque não deixo.
Mas
pelo meu pensamento, passou a visão de Isabel, t
oda bonita e preparada nos sábados à tarde: "Mam
ãe, vou ao cinema com Luísa". Ou: "Mamãe, vou da
r um passeio
com umas colegas. Volto tarde".
E
saía com os lábios vermelhos como cereja, os ca
belos em ondas escuras pelos ombros, bem vestida
e feliz. Eu podia ter serviço até o pescoço, nu
nca ela se ofereceu
para me auxiliar. Tia Emíli
a disse:
- É uma sorte ter filhos assim bons e
ajuizados. Deus nunca se esquece da gente.
- É
verdade; nunca se esquece dos que têm fé e dos q
ue pedem. E olhei disfarçadamente para os meus s
apatos tão velhos e deformados
que eu procurava
esconder sob a cadeira. Pensei: "Deus bem podia
dar um jeito para eu comprar sapatos novos; est
es estão horríveis. Tenho vergonha".
Tia Emília
disse para prima Adelaide que mandasse vir o ch
á; conversamos mais um pouco enquanto tomávamos
chá nas xícaras de porcelana vindas de muito lon
ge, cheias
de florzinhas; eu pegava na xícara c
om um medo atroz porque tia Emília tinha me cont
ado uma vez que cada xícara custara cinqüenta ou
oitenta mil-réis. Eu segurava
com as duas mãos
como se segurasse uma imagem sagrada e levava a
os lábios devagar, com um ar comovido. Levantei-
me então para sair dizendo que tinha muito servi
ço
em casa; tia Emília estendeu o braço e me de
u um pacote dizendo que era um corte de vestido
preto para eu assistir à formatura de Isabel e j
untou uma nota de duzentos
mil-réis para o feit
io do vestido. Agradeci muito e saí pisando em f
also, pois lembrei que Deus tinha me ouvido. Fui
depressa para a Rua das Palmeiras e lá comecei


a olhar as vitrinas das sapatarias; de repente
me lembrei que minhas meias estavam tão velhas e
remendadas que era impossível comprar sapatos n
aquele dia. Comprei
então um par de meias e só
no dia seguinte voltei para comprar os sapatos;
gastei o resto do dinheiro em camisas para Carlo
s, meias para Isabel, alguma roupa para
Alfredo
e ainda sobrou para um presentinho que alegrou
o Natal do meu Julinho.
Clotilde chegou um mês
antes da formatura; cortou o vestido para mim e
começamos a costurar; era uma seda preta muito b
onita. Em dois dias o vestido estava pronto.
En
tão tratamos de fazer os vestidos para Isabel; o
da missa era azul-marinho e o de formatura era
de seda branca, vaporosa.
Escrevi a Julinho que
viesse se pudesse, mas ele respondeu que não er
a possível; não fazia ainda um ano que tinha ido
e não podia pedir licença tão cedo; fiquei
tri
ste,
mas guardei a tristeza para mim.
Uns dias
antes da festa, Alfredo não voltou para jantar
e como não me tinha dito nada, fiz o prato dele
e guardei no forno, pois sempre que não vinha, a
visava antes.
Até meia-noite, ele não tinha che
gado. Sentada na cadeira de balanço da sala de j
antar, ouvi as horas passarem numa lentidão esma
gadora; continuei a esperar até
que, cansada de
mais, fui me deitar, mas apenas passei pelo sono
. Teria acontecido algum desastre? Por que não v
inha? Nunca deixara de jantar sem avisar. O que
seria
então?
Levantei-me e fui para a cozinha
tratar de fazer alguma coisa, pois os pensamento
s me esmagavam. Comecei a andar de um lado para
outro fazendo o café, depois fui
para o quarto
de Alfredo, abri a janela, desmanchei a cama par
a os irmãos pensarem que ele já tinha saído e vo
ltei para a copa, onde arrumei a mesa. Cada um a
pareceu
por sua vez, tomou o café e saiu. Fique
i sozinha limpando a casa, sem coragem de falar
a
Clotilde que costurava num canto da janela; f
iz o almoço e ao meio-dia e pouco, estávamos na
mesa quando a porta abriu e Alfredo entrou, muit
o satisfeito. Disse
bom dia e me olhou risonho:
dirigiu-se depois para o meu lado e me beijou o
s cabelos:
- Ficou muito assustada com minha au
sência? Não avisei nada porque não tive tempo; u
m amigo me convidou para ir a Santos de repente.
Ele tem automóvel e um convite
assim não se re
cusa; fomos quatro rapazes e nos divertimos à gr
ande. Houve uma festinha lá e por isso não volta
mos antes. Emendamos a festa com o banho de mar


e estamos chegando agora. Foi formidável. Ficou
nervosa?
Respondi severamente, mas no íntimo d
ando graças a Deus por ver meu filho são e salvo
:
- Nunca mais faça isso, meu filho. Como não h
ei de ficar nervosa? Pode dar seus passeios, mas
avise sempre.
Riu-se alegremente, os cabelos d
espenteados:
- Ora, mamãe, como é que hei de av
isar sem telefone em casa? Às vezes essas coisas
são resolvidas à última hora. Ponha um telefone
aqui e avisarei todos os passos
que der.
Carl
os se mexeu na cadeira, olhou Alfredo com um ar
de censura:
- Não seja cínico. É assim que proc
ura emprego? Passando as noites nas farras com a
migos vagabundos?
- E o que você tem com isso?
Já viu procurar emprego de noite, seu...? De dia
eu procuro e de noite faço o que quero.
Carlos
ficou vermelho:
- Todos aqui em casa trabalham
; você vê como mamãe luta. É revoltante ver você
na boa vida, passeando de automóvel, fazendo fa
rras em Santos, levantando ao meio-dia.
Mamãe n
ão conta nada porque sabe que me aborrece. Mas p
ensa que não estou vendo a vida que você leva?

Alfredo respondeu, zangado:
- É? E que culpa te
nho eu se não tenho sorte nos empregos? Pensa qu
e não procuro? Pergunte pra mamãe quanto não ten
ho andado de baixo para cima procurando colocaçã
o.
- Não minta. Os empregos são bons, você é qu
e não presta. Por que deixou o cartório? Eu não
vou lá saber porque tenho vergonha de receber a
mesma resposta que
tive do dono da garage onde
você trabalhava antes. E mamãe nem me pediu para
ir lá porque já sabemos mais ou menos porque vo
cê deixou.
Alfredo ficou furioso e cerrou os pu
nhos: Clotilde e eu ficamos nervosas e olhamos p
ara um e outro, pedindo que parassem com a discu
ssão. Alfredo gritou:
- Isso é insinuação? Repi
ta isso. Não é por ser meu irmão que eu vou deix
ar de te quebrar a cara, ouviu? E já tenho quebr
ado a cara de muita gente. E olhe aqui,
Carlos,
é melhor não se intrometer mais comigo. Estou a
visando.
Levantei os braços para cima e implore
i:
- Pelo amor de Deus, não briguem. Assim você
s me matam. Alfredo deixou a sala e foi pelo cor
redor afora batendo os pés no
chão, como quem e
stá revoltado. Antes de entrar no quarto dele, g
ritou:
- Eu já disse que você não tem nada com
a minha vida. Estou avisando.
l
E fechou a por
ta com toda a força. Acabamos de tomar o café em
silêncio e Carlos levantou-se para ir ao Banco;
estava um pouco pálido e nervoso. Aconselhei-o:

- Não fique aborrecido, meu filho. Vamos ter p
aciência com ele, um dia há de endireitar. Você
vai ver.
- A senhora é muito otimista; ele já t
em idade para ter juízo. A questão é que ele não
quer trabalhar. Tenho vergonha de ter um irmão
assim.
Falando, dirigiu-se para a porta e saiu;
Clotilde e eu nos olhamos enquanto começamos a
tirar a mesa; Isabel que não tinha dito nada, le
vantou-se também para sair,
dizendo:
- Coitado
de Alfredo. Implicam demais com ele. Ele há de
arranjar um bom emprego. Olhe, hoje a aula de da
tilografia acaba mais tarde. Voltarei só na hora
de jantar.
- Mas não é uma hora só por dia?
-
É, mas agora tem exame e demora mais. Quando é
que vou experimentar meu vestidjo novo? Estou an
siosa por vê-lo já adiantado. Até já.
Bateu a p
orta e saiu; dirigi-me então para o quarto de Al
fredo:
- Venha almoçar, meu filho. Você ainda n
ão comeu.
Alfredo saiu do quarto em mangas de c
amisa e foi para o banheiro, perguntando:
- Aqu
ele estúpido já foi?
Não respondi e feliz por v
ê-lo alegre e com perfeita saúde, fritei um bom
bife com um ovo estalado em cima e, sentada na f
rente dele, fiquei vendo-o comer enquanto
conta
va a viagem a Santos. Quando acabou de almoçar,
levantou os braços para cima e espreguiçou-se bo
cejando alto, dizendo que estava cansado e ia do
rmir um pouco.
Voltei para meu trabalho e deixe
i-o dormir até tarde, evitando fazer o mínimo ba
rulho; apesar de Alfredo ser sem juízo e leviano
, não deixava de ser também meu filho,
como os
outros.
1 Depois desse dia Alfredo passou muita
s noites fora de casa e eu escondia o mais possí
vel dos outros. De vez em quando lembrava:
- Al
fredo, precisa procurar emprego; não pode viver
assim.
- Estou procurando, mamãe. Não acredita?

E ficava um pouco nervoso tratando de mudar de
assunto imediatamente; se o gato estava por ali
, ele dizia:
- O que é que tem o Caçarola? A se
nhora já reparou, mamãe? Parece que está ficando
pelado.
Começava a chamar: "Caçarola! Psiu! Ps
iu! Venha cá, bichano". E fazia um barulhão com
o gato. Outras vezes quando eu censurava:
- Alf
redo! Alfredo! Estamos no fim do ano e você não
arranjou nada ainda. Fico aflita com isso; fico
até envergonhada. Você tem procurado?
- Como nã
o? Procuro todos os dias, a senhora pensa que qu
ando estou na rua, estou flanando? Tenho procura
do sempre e de tanto andar a pé ontem, fiquei co
m dor
de lado. Bem aqui. Olhe.
E me mostrava u
m lugar na altura da cintura, do lado direito. E
u respondia:
- É a primeira vez que sente isso?
Não há de ser nada.
- É sim, a primeira vez. S
erá fígado? Eu tornava a perguntar:
-, Dói muit
o?
- Ontem doeu bastante, hoje está melhor. Tam
bém andar a pé com este sol quente...
Na cozinh
a, ele ficava me olhando trabalhar, sentado num
banquinho e conversando; às vezes tomava café co
m leite e contava que a cidade estava cada dia m
ais bonita.
Tinha esperança de ser rico um dia;
havia de ter um automóvel e uma casa; então eu
não trabalharia mais e ficaria morando com ele e
tomando conta da casa. E assim
conversando, nã
o se falava mais em empregos e ele também se esq
uecia da dor. Na mesa principalmente, à hora das
refeições, a situação ia ficando cada vez mais
tensa.
Carlos, com a autoridade de irmão mais v
elho e chefe da casa, queria que Alfredo fizesse
qualquer coisa e censurava-o por não arranjar c
olocação. Alfredo não admitia
censuras e como a
s discussões cresciam, Clotilde e eu ficávamos d
esgostosas; os dois tinham gênio exaltado e não
aceitavam conselhos. Alfredo começou então, a nã
o
vir almoçar na hora certa; chegava depois que
Carlos saía dizendo que se atrasara por isso ou
por aquilo. Eu tirava o prato do forno e ele co
mia sentado na mesa
da cozinha e conversando; à
s vezes tinha um ar tão triste, tão desconsolado
que eu me afligia:
- O que há, Alfredo? Está c
om dor de lado? Ele me olhava admirado:
- Que d
or de lado? Depois respondia depressa:
- Não, m
amãe. Não senti mais a dor; a questão é que por
mais que procure não arranjo colocação e estou "
pronto". Não tenho nem para tomar um café na cid
ade.
Eu ia à minha gaveta pensando que essa vez
seria a última, tirava uma nota de vinte mil-ré
is e dava; ele me beijava a testa sorrindo e diz
endo:
- A senhora é um anjo, mamãe. Um dia devo
lverei tudo isso com juros.
Ia para o quarto, o
s olhos brilhantes de alegria, alisava os cabelo
s, roubava um pouco da água de colônia de Carlos
e dizendo um "até loguinho, meu bem", saía, não

vinha jantar e só eu sabia quando ele voltava,
de madrugada ou no dia seguinte. Às vezes apare
cia com notas de cinqüenta mil-réis no bolso; pa
ssava uma temporada
folgada, comprava um par de
sapatos, camisas e me trazia um presente, fruta
s ou doces. Eu procurava recusar:
- Onde ganhou
esse dinheiro, Alfredo? E por que compra essas
coisas para mim? Não quero presentes, quero que
você trabalhe direito.
- Pensa que eu vivo vadi
ando, não? Pois de vez em quando, pego uns servi
ços de corretagem na Praça. Faço questão que ace
ite meus presentes porque nem sempre eu
posso d
ar. Se eu pudesse, mamãe, a senhora não trabalha
ria mais.
Pegava minhas duas mãos e levantava-a
s para cima:
- Eu queria que estas mãos fossem
finas como seda; quem sabe um dia ainda serão.

Eu ria e puxava as mãos dizendo que deixasse de
tolices; ele continuava:
- Terá um palacete e u
m automóvel, uma boa cozinheira, copeira, arruma
deira e chofer. Eu gosto de chofer preto, que ta
l? Se for preto, será Benedito. A senhora então


toda bem vestida, entra no automóvel e diz:
(E
le fazia voz fina). "Benedito, vamos para a Rua
Guaianases". O Benedito põe o boné na cabeça (ti
ra o boné para falar com a senhora). Senta na di
reção e zizzz...
lá vai o carrão deslizando par
a a Rua Guaianases. Lá a senhora entra como uma
rainha, conta que seus filhos vão bem e diz assi
m: (Voz fina outra vez). "O Alfredo
agora está
na Europa; foi viajar um pouco para espairecer e
descansar. Quando ele está cansado dos negócios
aqui, vai descansar na Europa, porque, para fal
ar a verdade,
só lá ele tem sossego. Aqui ele é
muito procurado por causa dos negócios e não po
de descansar. Vai quase todos os anos; com esta
viagem, é a quinta vez que ele vai".
(Não. É me
lhor dizer sétima vez, cinco é pouco. Sete é boa
conta). "Mas como eu ia dizendo, é a sétima vez
. E também vim me despedir; vou levar Isabel par
a Buenos
Aires; vamos passar uma temporada lá.
Querem alguma coisa?" Quando os olhos da Rua Gua
ianases estiverem bem crescidos de admiração, as
sim... olhe... (E Alfredo abriu
o mais que pôde
os olhos) a senhora dirá: "Bom, já vou indo. Im
aginem que hoje dou um jantar em casa para vinte
pessoas e ainda estou aqui. É um jantarzinho, m
as
tenho confiança na minha criadagem. É toda e
ficiente. O jantarzinho é oferecido às amiguinha
s de Isabel. Não é nada extraordinário, mas vão
em traje de rigor. Tolices
da mocidade". Aí ent
ão a senhora se levanta e se despede: "Adeusinho
, adeusinho, apareçam em casa, recebo às quintas
-feiras". E Alfredo dava uns passinhos miúdos
e
cumprimentava seres invisíveis com gestos delic
ados e sorrisos suaves: "Adeusinho, tia Emília (
E falava baixo entredentes: velha bruxa, comilon
a, sapão). Adeus.
Passe bem." (Ele ia até a por
ta do quintal se requebrando todo, a cabeça ergu
ida, um ar altivo).
Essas brincadeiras eram na
cozinha e eu ria tanto que precisava parar de tr
abalhar e sentar numa cadeira de pé torto, que e
stava sempre num canto, para apreciar
melhor. E
le continuava:
- Depois a senhora atravessa o j
ardim sempre acompanhada pela prima Adelaide ou
por alguma outra que estiver lá na hora. Hoje el
as não acompanham porque a senhora
é pobre, mas
quando for rica irão até o portão, ali no duro;
então a senhora entra no carrão batuta, bem pre
to, os metais reluzentes e o pretão do Benedito
tira
o boné assim. .. olhe.. . A senhora entra
e diz só (voz fina): "Benedito, para casa". E ne
m olha mais para elas que ficaram no portão, a b
oca aberta, cara de bobonas.
E o Dito vai zizzz
... E o bicho desliza que é uma beleza e para ca
sa.
E Alfredo fingia que guiava um automóvel, v
irando esquina, buzinando, desviando do fogão, d
a mesa, do gato e de repente, brecando,
- Pront
o. Chegou no palacete. Ai bichão.
Ríamos muito,
enquanto eu corria para perto do fogão outra ve
z, espiava as panelas, abria o forno, rindo aind
a e Alfredo dizia logo depois, animado e brincal
hão:
- Mamãe, me passe uns vinte hoje que estou
"pronto". Seja boa zinha; enquanto não tivermos
nada disso, a senhora vai me dando. Depois pago
com juros e tudo.
E sorria. Dava-lhe então o q
ue pedia e ele saía assobiando com entusiasmo, p
elo corredor afora. Na porta da rua, parava de a
ssobiar para gritar:
- Até logo, minha beleza.


Eu ouvia seu assobio até no portão. Às vezes pa
ssava dois dias fora de casa. A situação foi fic
ando cada vez mais desagradável porque Julinho t
ambém escrevia do
Rio reclamando: "O Alfredo ai
nda não arranjou nada? é o cúmulo! Todo o mundo
arranja qualquer emprego, só ele nada. Isso até
é desaforo".
Alfredo resmungava: "O que ele tem
com isso? Peço dinheiro a ele? Como o feijão de
le? Que corja de irmãos que tenho, todos a quere
rem governar minha vida".
Carlos me avisou um d
ia:
- Mamãe, Alfredo anda metido em complicaçõe
s; parece que está freqüentando reuniões comunis
tas ou socialistas, não entendo disso. Logo vi q
ue essas noitadas fora
de casa não podiam ser b
oa coisa. Qualquer dia a polícia dá em cima, aí
ele vai ver.
Nesse mesmo dia, chamei Alfredo na
cozinha quando estava preparando uma encomenda;
sentou-se na cadeira de pé torto e ficou olhand
o meu trabalho:
- Olhe aqui, Alfredo, você cont
inua com aquelas idéias absurdas sobre socialism
o?
Não respondeu; apenas sorriu; tornei a falar
:
- Onde estão os livros? Já entregou?
- Já.

- E que reuniões são essas que você anda freqüen
tando? Ele franziu a testa, um ar zangado:
- Qu
em foi o linguarudo?
- Não importa o linguarudo
. Que reuniões são essas?
- Não tem reunião, ne
m meia reunião, mamãe. Que gente estúpida. Tudo
vêm contar para a senhora.
Deu uns passos na co
zinha, as mãos enfiadas nos bolsos, uma expressã
o de contrariedade no rosto. Criei energia e con
tinuei:
- Gosto de saber tudo, ouviu? Gosto de
saber o que meus filhos andam fazendo, onde vão,
com quem andam. Você é muito criança para andar
metido nessas coisas;
qualquer dia a polícia d
á uma batida e aí então será um desastre.
- Ele
s enchem sua cabeça de novidades; o que tem a po
lícia com uma reunião de amigos? Conversando coi
sas à-toa?
- Mas passar a noite toda conversand
o coisas à-toa? Não compreendo.
Ele tirou um ci
garrinho do bolso, bateu levemente na unha e foi
acendê-lo na chama do gás:
- Conversa-se, bebe
-se um pouco, às vezes jogamos baralho. E só.
-
E suas idéias socialistas?
- Bem. Estudei e en
tendo um pouco por causa do tal amigo que tenho.
Todos somos socialistas, a senhora, eu, todo o
mundo.
- Não diga bobagens. Eu não sou.
- Mamã
e, a senhora pensa que socialismo é um bicho-de-
sete-cabeças. Nada disso. É uma luta de classe e
ntre o capitalista e o
proletariado Marx chamav
a os capitalistas de aventureiros, devido à gran
de cobiça que os domina e o ideal de Marx era di
vidir os bens, os meios de produção e
outras co
isas entre os operários; não deixar tudo na mão
dos capitalistas, quer
dizer, não deixar eles t
erem tudo e o proletariado não ter nada. Chama-s
e uma revolução social. Não acha nobre a teoria?

- Dividir a propriedade, o dinheiro, os bens c
om os outros? Isso é comunismo, eu já disse. Ent
ão esta nossa casa que custamos tanto a pagar, l
evamos anos economizando,
passando apertado, se
m roupas suficientes e agora tenho que repartir
a metade com o genro de D. Genu, por exemplo, qu
e não faz nada certo? Um dia trabalha, outro
di
a não? Vive de biscates? Não. Deus me livre!
Al
fredo começou a rir e sentou-se de novo na cadei
ra:
- A senhora é formidável.
- Pois não é iss
o que está falando? Sua teoria não é essa? Repar
tir tudo com os que não têm?
- Não é bem assim.
Seria muito longo explicar tudo à senhora, mas
não é isso. A senhora não é capitalista; o ideal
é impedir que o capitalista ajunte tudo
nas mã
os e obrigá-lo a repartir com o proletariado.
-
Está certo, mas apesar de não ser capitalista,
eu tenho esta casa e você falou também em bens,
não falou? Há muita gente que não tem uma casa c
omo esta, logo,
preciso repartir com aqueles qu
e não têm. Está errado, filho.
Alfredo jogou fo
ra o cigarrinho e ficou um instante pensativo. P
erguntei.
- Gosta de figos em calda?
Olhou par
a mim com um olhar estranho:
- Não. É muito doc
e. Por quê?
- E de café, você gosta?
- Ora est
a, mamãe. Tomo café o dia inteiro; o que tem iss
o?
- E Isabel gosta de café?
- Nunca a vi toma
ndo café. Por quê?
- E ela gosta de figos em ca
lda?
- Gosta, porque quando vem de Itapetininga
, ela come tudo,
- Julinho fuma? Ele começou a
rir.
- Já estou adivinhando onde quer chegar. N
ão.
- E você?
- O dia inteiro. Até onde vai?

- Não vou longe. Você é o mais alto dos irmãos;
Carlos é de altura regular, Julinho é o mais bai
xo dos três. Você é louro, Julinho é moreno, Car
los não é moreno,
nem louro. Os cabelos de Isab
el são pretos, não são? Que engraçado! E você é
louro. E no entanto vocês são irmãos, filhos dos
mesmos pais, crescidos no
mesmo lar.
Ele sorr
iu e ficou me olhando; comecei a forrar as forma
s de empadas com amassa:
- Você gosta de café,
Isabel não toma café. Carlos é estudioso e só es
tá feliz com um livro nas mãos; você não gosta d
e estudar. Julinho gosta de ajuntar dinheiro,
d
esde pequeno gostou de dinheiro. Você não pode t
er dinheiro no bolso, quanto tem, quanto gasta.
Joga pela janela fora. Não é isso mesmo, Alfredo
?
Ele sorriu mais:
- Onde está o fim da histór
ia?
125
#- O fim da história é que todos somos
diferentes, meu filho. No físico, no moral, no
gosto, no caráter, nas particularidades, nas ten
dências, na essência,
enfim. E como podemos viv
er igualmente, dividir igualmente o que possuímo
s e levar o mesmo padrão de vida, se somos tão d
iferentes como os dedos da mão?
- Ora esta! D.
Lola também tem suas teorias! Sacudi uma forminh
a na frente dele:
- Teoria? E você chama isso d
e teoria, Alfredo? Estou falandona prática, ali
no duro. Nada de teorias ou idéias. Só prática.
Disso é que vivemos e
precisamos.
Alfredo deu
uma risada gostosa:
- Mas eu vou ganhar uma emp
adinha, não vou?
- Vai ganhar até duas, mas não
fuja do assunto. Responda ao meu raciocínio se
for capaz.
- Mas, mamãe, não é assim. Vou dar u
ns livros para a senhora ler, depois vamos discu
tir.
- Não preciso livros para discutir, isso n
ão serve de base. Basta o que estou vendo e o qu
e a vida tem me ensinado. Você é quem está errad
o, filho. Siga o
exemplo dos seus irmãos, traba
lhe e produza. Não se importe com o socialismo,
nem com o comunismo, nem com o que vai pelo mund
o. Cada um é que faz seu próprio
mundo, faça ta
mbém o seu. Deixe a Rússia em paz. Trabalhe. O m
elhor ideal é o trabalho, seja qual for. Essa é
a mais bela teoria, o resto é bobagem.
Se cada
um pensasse assim, o mundo seria outro. Se em ve
z de inventar teorias, esse Marx Karl..
- Karl
Marx.
- Ou isso. Se aconselhasse a todos serem
bons e trabalhadores, seria bem melhor do que qu
erer tirar de uns o que custou ganhar para dar a
os outros.
Alfredo ficou de pé, um pouco excita
do:
- Não diga isso, mamãe. Com as teorias dele
sobre socialismo, salvou o proletariado da inju
stiça de ser explorado como era naquele tempo pe
los capitalistas. Os
operários trabalhavam doze
horas por dia e ganhavam tão pouco que mal dava
para comerem; até as crianças trabalhavam.
- E
ntão ele fez muito bem de fazer essas leis para
salvar os operários, mas querer tirar de uns e d
ar aos outros, não estou de acordo. Isso só Deus
. Cada um com
o que tem.
- A senhora vai ler u
ns livros, depois vamos conversar.
- Está certo
, mas as minhas idéias serão as mesmas. Alfredo
espreguiçou-se e deixou a cozinha; recomendei:

- Cuidado com as tais reuniões de amigos!
- Não
há perigo!
Inclinei-me diante do forno e coloq
uei o tabuleiro com as empadinhas. Logo depois o
uvi a porta da rua bater e percebi que Alfredo i
a saindo; cada vez se afastava
mais de casa. Er
a como se alguém puxasse uma corda para um lado
e outro puxasse do outro lado. Um dia havia de a
rrebentar e eu não podia saber de que maneira ne
m
de que lado.
126
O vestido para a cerimônia
da entrega dos diplomas ficou lindo; todo branc
o, bem rodado, com mangas bufantes e levemente d
ecotado. Colocamos Isabel de pé sobre a
mesa da
copa, enquanto Clotilde e eu procurávamos defei
tos no vestido e queríamos ver se não estava dep
endurado de um lado. Suávamos porque fazia muito
calor, era
dezembro, e Clotilde com uns alfine
tes no canto da boca, ia dizendo pra Isabel:
-
Vire, vire mais. Vá virando devagarinho
Isabel
reclamava:
- Tia Clotilde, não fale com os alfi
netes na boca que é capaz de engolir.
E ia vira
ndo devagar e tia Clodiude prendia aqui, prendia
acolá, dando pontos e dizendo
- Lola, vá mais
longe e orne agora. Veja se não tem defeitos.
E
u olhava de certa distância e Isabel ia dando vo
ltas sobre a mesa como uma grande rosa.
No dia
da formatura/Isabel amanheceu nervosa:
- Ih! Ma
mãe, chegou finalmente o dia!
Houve a missa em
ação de graças; rezamos muito. Nesse dia fiz um
almoço melhor e as'duas amigas mais íntimas de I
sabel compareceram. Festejamos e demos um presen
tinho
a Isabel; Clotilde deu uma caixinha de co
stura com todo o necessário, eu dei um colarzinh
o de pérolas que ela cobiçava há muito tempo; co
mprei na Casa Sloper e como
o fecho era de bril
hantinhos, fazia muito efeito. Na mesa, quando e
la desdobrou o guardanapo e encontrou o colar, f
icou radiante, os olhos brilhantes como estrelas
:
- Mamãe! Que lindo!
Carlos deu uma caneta-ti
nteiro e Alfredo deu um par de meias de seda. (E
u dei o dinheiro para comprar as meias).
À noit
e ninguém jantou porque queríamos chegar cedo ao
teatro onde ia ser feita a entrega dos diplomas
; tomamos apenas café com pão. Penteamos e vesti
mos Isabel;
uns dias antes ela tinha me pedido
dinheiro para fazer ondulação permanente pela pr
imeira vez e ficou encantadora, com a cabeça che
ia de cachinhos. Bem no alto da
testa, entre os
cachinhos, prendemos um raminho de rosas e, qua
ndo vi minha filha pronta, preparada, toda de br
anco, vaporosa e elegante, achei-a linda! Tomamo
s
um táxi e saímos bem cedo; fomos dos primeiro
s a chegar e tivemos que esperar mais de uma hor
a, mas foi bom porque encontramos os melhores lu
gares e pudemos apreciar
o teatro que não conhe
cíamos. Achamos uma beleza, enorme, cheio de dou
rados! De repente começou a chegar gente em band
os e o teatro ficou completamente cheio; Isabel


foi logo para o palco e não a vimos mais. Num l
ugar fundo, na frente do palco, ficou colocada a
orquestra e os músicos foram chegando um por um
e afinando os instrumentos.
Clotilde, Carlos e
eu ficamos numa das primeiras filas e Alfredo s
umiu dizendo que preferia ficar lá em cima, no "
galinheiro".
De repente, a orquestra tocou o Hi
no Nacional; depois correu o pano e vimos um esp
etáculo deslumbrante: todas as moças sentadas no
palco, vestidas de branco; de
um lado alguns p
rofessores e uma mesa com flores e mais flores.
Do outro lado os rapazes, todos de preto. Batera
m muitas palmas e começaram então os discursos.
Avidamente
começamos a procurar Isabel no meio
daquela brancura imaculada; de súbito Carlos
me
deu uma cotovelada murmurando: "Na terceira fil
a à esquerda. Ela é a quinta". Dei uma cotovelad
a em Clotilde: "Na terceira fila à esquerda. A q
uinta".
Lá estava Isabel sorrindo para nós, o r
aminho de rosas no alto da cabeça, mais linda qu
e nunca. Fiz um sinal com a cabeça e ela 'corres
pondeu. Olhei-a durante longo
tempo. Era minha
filha!
Comecei então a ouvir o discurso; o para
ninfo falou muito bem sobre os deveres dos profe
ssores, dizendo que o magistério era uma das mai
s belas profissões e possuía
a faculdade de ape
rfeiçoar o caráter; guardei apenas essas palavra
s. Depois de muitas palmas, a orquestra começou
a tocar; tocou uma música um pouco triste porque

me fez chorar. Perguntei a mim mesma: Por que
essa música tão triste?
Carlos me disse depois
que a música não era triste, eu é que estava tri
ste. Comecei a me lembrar da luta que tivera de
sustentar até chegar o momento de ver Isabel
re
ceber esse diploma. A pobreza, as dificuldades,
o desespero de Isabel porque eu não podia compra
r todos os livros; alguns eram tão caros! Os sap
atos furados na
sola, e eu forrando com papelão
dobrado nos dias de chuva; assim mesmo ela volt
ava com os pés encharcados; aos sábados, depois
da aula, eu os levava depressa ao
sapateiro par
a que consertasse para "segunda-feira sem falta"
, enquanto Isabel ficava em casa descalça ou com
os pés enfiados nuns chinelos velhos quando faz
ia frio.
Esses anos todos haviam ficado para tr
ás; graças a Deus haviam passado. Nesse momento
a música parou de tocar e eu não chorei mais. Co
meçaram a distribuição de diplomas:
de súbito u
ma voz grossa falou: Isabel Abílio de Lemos! Lev
ei uma pancada tão forte no coração como se tive
sse levado um soco! Ela se levantou e atravessou
o palco,
pisando firme, a cabeça erguida. Meus
olhos ficaram outra vez úmidos de lágrimas; ali
estava Isabel formada! Isso significava o fim d
e muita luta, de muita miséria.
Que felicidade
se o pai pudesse estar ali assistindo essa cena,
ele que adorava a filha!
Isabel sentou-se de n
ovo e me pareceu que bateram mais palmas para el
a do que para as outras; com certeza porque ela
estava mais bonita e mais elegante. *
Depois da
distribuição, houve outro discurso; era um cole
ga que se despedia da turma dizendo no fim: "Ade
us, caros colegas! E mesmo que cada um de nós si
ga um rumo
diverso, nunca havemos de esquecer a
Escola! A velha e querida Escola que nos prepar
ou para a Vida!"
Em seguida a orquestra tocou o
Hino Nacional outra vez e acabou-se a festa. Fo
mos todos deixando o teatro lentamente no meio d
a multidão e eu estava ansiosa por
abraçar minh
a filha; vi-a então num dos corredores conversan
do com um rapaz. Estava encostada na parede, um
ar embaraçado, olhando um pouco assustada para o
s lados;
ele falava depressa, inclinado sobre o
rosto dela enquanto ela procurava evitar os olh
os dele, virando a cabeça para o lado e sorrindo
. Quando ela nos viu, assustou-se;
e ele se des
pediu depressa. Ela veio ao nosso encontro, muit
o vermelha e emocionada; abracei-a dando os para
béns e perguntei logo: "Quem é esse moço que est
ava falando
com você?"
- É um colega, mamãe. Q
ue tal a festa? Gostaram?
Saímos do teatro e fo
mos de bonde para a casa, comentando a cerimônia
da formatura, o teatro e concordamos que o vest
ido de Isabel era o mais elegante e o mais bem

feito de todos os que tínhamos visto por lá.
Al
fredo só apareceu quando já estávamos deitados e
no dia seguinte cedo, na mesa do café, Carlos m
e disse:
- Aquele rapaz que estava conversando
com Isabel no teatro é o mesmo que anda com ela
na rua.
Perguntei:
- E quem é ele, Carlos? Ser
á bom moço? De boa família?
- Não sei. Não conh
eço.
Pedi então que indagasse quem era o rapaz,
se era trabalhador e de boa família. Carlos pro
meteu. Nesse dia Isabel me disse:
- Foi bom eu
me formar para ter um diploma, mas não quero ser
professora; prefiro ser datilôgrafa e trabalhar
num escritório do que andar por aí pelo interio
r
agüentando desaforo de Jecas e lidando com cr
ianças ranhentas. A senhora não acha?
Concordei
porque não queria me separar de Isabel e ela co
ntinuou a freqüentar as aulas de datilografia. D
ois dias depois houve o baile das professorandas
no Trianon;
eu estava certa de acompanhar Isab
el porque não queria deixá-la ir só com as coleg
as, mas como era um sábado, tive uma encomenda t
ão grande de doces que fiquei
cansadíssima e à
noite, meus pés doíam tanto que eu não podia cal
çar sapatos, então pedi a Carlos que fosse aluga
r um smoking para acompanhá-la. Carlos foi e uma
s
horas depois apareceu com um smoking muito ma
ior que ele dizendo que não achara outro; as man
gas cobriam a metade das mãos e estava todo rasg
ado na gola, além das
calças longas demais. Ass
im mesmo foi com a irmã; ouvi quando voltaram de
madrugada. No dia seguinte Isabel queixou-se de
que desde duas horas Carlos queria ir embora;

não dançara nenhuma vez de vergonha do smoking.
Fiquei com muita pena de Carlos e comecei a ajun
tar dinheiro às escondidas para mandar fazer um
smoking para ele.
Capítulo XIV
UNS dias depois
, Clotilde despediu-se novamente e seguiu para I
tapetininga, onde Olga reclamou a presença dela;
estava esperando o quarto filho e queria Clotil
de
lá.
Nos primeiros dias do ano novo, Carlos
veio com a notícia; ele esperou que todos se dei
tassem e me procurou na cozinha, falando baixo,
um ar esquisito:
- Mamãe, sabe aquele moço que
está namorando Isabel?
- Sei. Quem é?
- Não po
sso dizer se é bom ou não por enquanto; só sei q
ue a senhora vai se espantar com a notícia.
- O
que é? Fale de uma vez.
Carlos deu uma voltinh
a, coçou a cabeça do Caçarola que estava perto d
o fogão e sem olhar para mim, foi dizendo:
- El
e é casado; mas está separado da mulher.
Foi co
mo se tivesse levado uma bordoada no cérebro; ol
hei Carlos que me olhava também, sem dizer nada,
a boca aberta, sentindo todo o sangue fugir do
meu rosto.
Apoiei-me à mesa da cozinha e/ pergu
ntei por perguntar alguma coisa:
- Tem certeza?
Não é possível! Isabel não ia namorar um homem
casado!
E uma leve esperança brilhou nos meus o
lhos:
- Ela não sabe, Carlos. Coitada! Precisam
os avisá-la; ela, não sabe de nada.
Carlos bate
u levemente nos meus ombros:
- Ela deve saber,
mamãe. Não se iluda; mas ou ela acaba esse namor
o ou não é mais minha irmã.
Sentei-me no banqui
nho da cozinha e murmurei com desespero:
- Falt
ava isso para me acontecer, Carlos. Faltava só i
sso.
- Não diga isso, mamãe, afinal não é um ca
so irremediável. Para tudo há remédio, ainda mai
s para um caso desses. Sossegue.
Perguntei:
-
O que vamos fazer agora? Falar com Isabel?
- Am
anhã falaremos com ela; vá dormir tranqüila e am
anhã trataremos do caso. Não se desespere por is
so.
Ficou por ali enquanto eu acabava de limpar
a cozinha; despedimo-nos na porta do meu quarto
e ele ainda disse:
- Durma bem, mamãe. Há de s
e dar um jeito.
Mas não dormi; pensava e pensav
a. Achava isso uma desgraça para nós e conhecend
o o génio de minha filha como eu conhecia, tinha
medo dos acontecimentos.
Como o dia seguinte e
ra feriado, ninguém saiu de casa; logo depois do
café, chamei Isabel ao quarto e Carlos entrou a
trás de mim, fechando a porta. Ela olhou para
m
im e para o irmão e ficou um pouco pálida; compr
eendeu o assunto que íamos tratar. Carlos pergun
tou sem rodeios:
- Quem é esse sujeito que você
está namorando? Conhece?
Ela empertigou-se tod
a e levantou a cabeça como quem se prepara para
a luta:
- E por que você quer saber?
- Porque
sou seu irmão; e um irmão tem direito de saber.


- Pois se quer tanto saber, vá perguntar. Indag
ue. Olhei fixamente Isabel e disse:
- Não fale
assim; Carlos é seu irmão mais velho e está no l
ugar de seu pai. Se ele pergunta, é para seu bem
, só para seu bem.
- Mas por que vem com brutal
idades?
- Ele não perguntou com brutalidade, qu
er apenas saber. Você anda conversando nas ruas
com esse rapaz; no dia da sua formatura, estava
no teatro conversando
com você e quando nos viu
, foi embora depressa. Um moço que tem boas inte
nções não foge assim; ele devia até gostar de no
s ser apresentado, se é sério e direito.
Quem é
ele?
Os lábios de Isabel tremeram levemente qu
ando respondeu:
- Ele não fugiu quando estava n
o teatro; foi embora porque estava com pressa. C
hama-se Felício... só isso que eu sei...
Carlos
interrompeu gritando:
- Só isso? Mentira! Você
sabe quem ele é e não quer contar. É casado e t
em um filho pequeno. Por que não conta também is
so?
Dei um grito:
- Tem um filho? Meu Deus, Is
abel você está louca?
Isabel ficou branca, todo
seu rosto se contraiu como se sentisse dor; dep
ois reagiu e voltando-se para Carlos, respondeu
furiosa:
- Ele não tem culpa se foi infeliz no
casamento; está separado da mulher há mais de do
is anos e a mulher é que não prestava. Todo o mu
ndo sabe disso.
Carlos estava cada vez mais ner
voso:
- Cretina! E você não sabe quê não pode c
asar-se? O que adianta namorar esse sujeito e an
dar com ele de baixo para cima? Para toda a gent
e andar falando? Você
não pode casar-se com ess
e homem.
Isabel deu dois passos para trás, os o
lhos brilhantes de indignação:
- Se eu quiser,
eu me caso com ele. Você pensa que pode fazer al
guma coisa contra mim? Quem é você pra mandar na
minha vida?
Segurei Isabel pelos ombros e sacu
di com força:
- Isabel! Isabel! Cale a boca. Nã
o diga uma coisa dessas: você não pode se casar
com ele; não está ouvindo seu irmão falar? Ele é
casado, tem mulher e filho.
Atenda seu irmão q
ue só fala para seu bem; você não pode se casar.

Ela me olhou de frente e sacudiu os ombros par
a livrar-se das minhas mãos:
- Posso. A senhora
não sabe, mas hoje há leis para isso... Houve u
ma pequena pausa enquanto Carlos e eu mal respir
ávamos;
Carlos ia responder quando ela continuo
u, hesitando:
- Ele se desquita da mulher prova
ndo que ela não foi boa e mais tarde... pode cas
ar-se comigo.
Olhei Carlos numa interrogação; e
le avançou para ela, os braços no ar como se qui
sesse esbofeteá-la:
- Não seja cretina! O homem
fala essas coisas para essa boba e ela acredita
. Deixe de ser estúpida; não temos leis para iss
o. É mentira dele. Ele quer você,
mas não para
casar. Entendeu?
Olhei Carlos e falei zangada:


- Não fale assim, Carlos. Não chame sua irmã de
estúpida. Ela ainda é uma criança e qualquer um
pode iludi-la.
Voltei-me para ela com ternura:

- Não se iluda, minha filha. Há muita gente ru
im neste mundo e você não é nenhuma tola para ir
acreditando em tudo que dizem. Esse homem não t
em boas idéias.
Pense um pouco, ele não pode se
r seu marido.
Ela tremia apoiada aos pés da cam
a e parecia que ia chorar; mas em vez de chorar,
levantou a cabeça e nos olhou como que desafian
do:
- Eu gosto de Felício e ele gosta de mim; n
ão há nada que nos possa separar.
Dando dois pa
ssos, alcançou a porta e saiu correndo do quarto
; ouvimos a porta do banheiro fechar com força.
Carlos fez um movimento para ir atrás dela e eu
disse,
segurando-o pelo braço:
- Não, Carlos.
Deixe. Com calma, havemos de conseguir que ela d
eixe esse homem. Que desgraça, minha Nossa Senho
ra! Minha
única filha gostar de um homem casado
. Não me conformo.
E sentando-me na beira da ca
ma, escondi a cabeça entre as mãos e chorei. Car
los sentou-se ao meu lado e com uma das mãos sob
re meu ombro, falou:
- Não chore, mamãe. Tudo h
á de se arranjar; essa desmiolada há de criar ju
ízo, a senhora vai ver. É pena papai não estar v
ivo, senão ela havia de ver. Não sei
por que Al
fredo e Isabel só dão aborrecimentos; a senhora
já reparou? Alfredo não quer trabalhar; é essa l
uta sem fim. Diz que procura trabalho todos os d
ias,
mas é mentira. Vive nos cafés conversando
e não procura coisa nenhuma. Agora é Isabel com
esse namoro estúpido; e depois é teimosa como um
a besta, não quer ouvir
conselho algum. Felizme
nte Julinho é ajuizado e parece que vai bem no R
io.
Tirou um cigarro e acendeu; repliquei limpa
ndo os olhos:
- E você, meu filho. Graças a Deu
s, tenho você. Deus teve dó de mim, me deu vocês
dois tão bons que nem sei como agradecer.
Fiz
uma pausa e continuei:
- Não diga mais nada a I
sabel por enquanto; não convém. É capaz de fazer
uma tolice, vamos deixar passar uns dias.
- Ma
s se a senhora fica quieta e não fala mais nada,
é pior. Precisa falar, mamãe. Precisa proibi-la
de sair de casa, pelo menos uns dias.
- Mas el
a é capaz de fugir, Carlos. Aí será pior, muito
pior.
- Não foge e se fugir, a polícia vai atrá
s e segura.
- Não fale assim.
Ficamos um tempo
em silêncio e comecei a lembrar de Isabel em It
apetininga sacudindo os ombros cem vezes e dizen
do cem nomes feios, só de raiva do castigo. Era
teimosa
e não cedia; preferia morrer a ceder. L
evantei-me suspirando e fui preparar o almoço. I
sabel fechou-se no quarto e não quis almoçar; pa
ssou o dia todo chorando.
Durante o dia, quando
a casa estava em silêncio e todos tinham saído,
ouvi um choro lamentoso. Escutei; era ela quem
chorava e dizia entre soluços:
- Pelo amor de D
eus, Santa Terezinha, tirai-me este amor do cora
ção. Arrancai-me se for preciso, se não for para
minha felicidade. Tenha pena de mim, por favor,

Santa Terezinha. Não me faça sofrer e fazer os
outros sofrerem. Por favor.. E soluçava; fiquei
com muita pena de minha filha; quis bater na po
rta e chamá-la,
mas nada fiz e me retirei na po
nta dos pés. Alfredo chegou à noite e eu contei
tudo a ele; coçou a cabeça e ficou me olhando; d
epois disse:
- Mas se não há jeito mesmo e se e
la insiste em casar com esse camarada, é melhor
deixar, mamãe.
- Mas não é possível, filho, poi
s se o homem é casado.
- Ué, faz o desquite e a
cabou-se. Há remédio pra tudo.
- Mas então só s
e casará no civil e um casamento sem ser no reli
gioso, não é casamento para mim. Não vale nada,
é nulo. Não sei se ele tem dinheiro, mas com
o
desquite ele tem que sustentar mulher e filho. T
erá tanto dinheiro para isso? E depois deve ser
muito mais velho que Isabel: Não quero esse casa
mento,
nunca hei de aceitar. Se seu pai fosse v
ivo, ficaria desesperado; ver nossa filha vivend
o com um homem sem ser pelos laços da Igreja, nu
nca. Preferia que ela
morresse.
Alfredo me con
solou dizendo que aconselharia Isabel e iria inv
estigar toda a verdade sobre o tal Felício.
#Qu
ando Alfredo jantava em casa, o que era raro, di
scutia sempre com Carlos durante o jantar; Carlo
s desprezava as idéias dele e ele ficava furioso
, muitas vezes
eu intervinha; Carlos dizia à vo
lta da mesinha da copa:
- Você pensa que eu não
sei o que é socialismo? Sei mais do que você ta
lvez. E sei também a diferença entre o comunismo
e o socialismo. O comunismo é a abolição
total
da propriedade, é dividir tudo por todos, e o s
ocialismo distingue perfeitamente a propriedade
pessoal e a coletiva. Não é isso? Agora me diga
uma coisa:
a propriedade coletiva é repartida d
e que forma? É a região, é a nação, é o municípi
o, é a cidade? Como você explica isso?
Alfredo
sorria ironicamente:
- Quer saber mais do que o
s livros que anda lendo? Sua mania é vir com arg
umentos complexos. Nada disso. O socialista se o
põe a que um indivíduo único seja
proprietário
de uma grande extensão de terra ou dono de uma m
ina, por exemplo. O fim do socialismo é obrigar
esse indivíduo a negociar sua mina ou sua terra
com
outros; a negociar repartindo. O socialismo
foi fundado como uma proteção ao pobre; evitand
o horas demasiadas de trabalho e mantendo o salá
rio. Você está muito
enganado confundindo os do
is princípios. Socialismo não tem nada com comun
ismo.
Carlos se exaltava:
- Como não? A base é
a mesma, assim como o integralismo. As teorias
são baseadas num só princípio, numa única essênc
ia e o fim é o mesmo: confusão social,
conflito
s e falhas. No fim, desequilíbrio. Essa crença d
e poderem reorganizar leis com ordem e sem pertu
rbações é nula. É uma crença falha.
- Então voc
ê está de acordo em que haja a opressão do rico
sobre o pobre? Está de acordo com os opressores
da humanidade?
- Estou porque não acho que haja
opressores. Onde está a opressão? E se não foss
em os ricos que você chama de opressores, os pob
res poderiam viver? Se os ricos
não encomendass
em doces para mamãe fazer, mamãe não teria dinhe
iro algum e não teríamos pago esta casa.
- Qual
! É inútil querer fazer você compreender; cada u
m acha que está com a Verdade.
- E ninguém sabe
onde ela está, disse Isabel. Carlos retrucou:

- Como não? Sei perfeitamente.
Isabel se esprem
ia para passar atrás da cadeira de Alfredo que f
icava justamente entre a mesa e o lavatório da c
opa; Alfredo se impacientava:
- Você passa toda
a hora aí atrás, Isabel Que diabo! Não tem mais
o que fazer?
- Quero beber água, a água está n
o filtro lá do outro lado. Quer que eu vá voando
ou passe por baixo da mesa?
Havia uma pausa; C
arlos aproveitava para continuar:
- Trate de de
ixar essas reuniões, Alfredo. Você só tem a perd
er com isso. Atrapalha sua vida.
Eu intervinha:

- Já pedi a ele que deixe essas coisas para os
ricos e evite esses
amigos anarquistas.
- Soc
ialistas, mamãe. Não posso evitá-los; são meus a
migos e não vou deixá-los porque pensam desse mo
do. E depois acho que estão com a razão. Nós é q
ue estamos
errados. Que bom se a humanidade com
preendesse isso, se quisesse compreender enfim.
Seria o ideal!
Carlos respondia:
- Ideal? Não
há forma ideal de governo; todos têm defeitos e
falhas!
- Nem diga isso. Os países socialistas
vivem admiravelmente bem governados. São os que
vivem melhor.
- Cite um país socialista.
Alfre
do assoprava a fumaça do cigarro para cima; ralh
ava outra vez com Isabel:
- Deixe de passar atr
ás da minha cadeira, já disse. Isabel encolhia o
s ombros. Alfredo respondia:
- Todos os países
escandinavos são socialistas e lá existe a maior
ordem do mundo e a maior organização. Vivem num
equilíbrio perfeito; a Noruega, a Suécia e
a D
inamarca.
Carlos não respondia logo; refletia,
depois dizia:
- Está bem. Mas quantos habitante
s têm esses países? A Suécia, por exemplo.
- Nã
o sei ao certo. Alguns milhões.
- Pouquíssimos
milhões; menos habitantes que o Estado de São Pa
ulo. É fácil implantar o socialismo num país peq
ueno.
- Implantar nada; ninguém forçou. Tudo ve
io naturalmente, sem revoluções, sem nada. O pov
o em si é socialista.
Havia uma pausa. Alfredo
perguntava com ironia:
- Está de acordo então q
ue pode haver países socialistas e que são os ma
is bem organizados do mundo?
Carlos hesitava:

- Não estou de acordo absolutamente; só acho que
num país pequeno, tudo se pode conseguir. E me
diga uma coisa: Você e seus amigos pretendem faz
er o Brasil
socialista?
- Não diga asneiras.

- Então o que pretendem? Por que fazem reuniões
e debates se não é para conseguir algum fim? É p
or nada tudo isso?
Alfredo acendia vagarosament
e outro cigarro e me pedia em voz alta enquanto
eu lavava os pratos:
- Mamãe, a senhora quer me
arranjar outro café?
Depois olhava o teto e di
zia com indiferença, empurrando a cadeira para t
rás:
- É por um ideal. Todo o mundo precisa ter
um ideal, um fim, uma qualquer coisa enfim. Não
é viver por viver, assim sem querer nada, sem a
spirações.
Carlos respondia com ironia:
- Sim
senhor! Reúnem-se para discutir um ideal! Sonhar
com um ideal! Pensar nele, acariciar, desejar,
só de longe. São então homens idealistas, não sã
o?
Pois eu não vou na onda. Vocês são é revoluc
ionários, isso é que são. Contra a ordem, contra
a paz. Vocês têm desequilíbrio mental.
Alfredo
se levantava, excitado, nervoso. Eu trazia a ba
ndeja com o café; Carlos também bebia. Eu aconse
lhava: ,
#- Não discutam, não adianta discutir.
Alfredo resmungava:
- Vem Carlos com bobagens.
Depois se perco a cabeça, ficam contra mim.
-
Bobagens nada. Pois não vivemos tão bem assim? P
or que procurar ideais que só servem para pertur
bar? Há ideais e ideais; o de vocês é perturbado
r.
Tenha um ideal para você só, mas não queira
implantá-lo na comunidade.
Alfredo deixava a co
pa, respondendo:
- Você não se meta onde não en
tende. Fala sem saber. Carlos retrucava em voz a
lta:
- Talvez mais que você, homem idealista.

A porta da rua batia com força; era Alfredo que
saía. Carlos ia buscar um livro no quarto e fica
va lendo na sala de jantar, à luz da lâmpada. Is
abel ia à calçada
conversar com as filhas de D.
Genu. Eu juntava as xícaras usadas sobre a band
eja e ia lavá-las na cozinha.
A época do carnav
al foi se aproximando e Isabel quis ir a um bail
e a fantasia. Alfredo se ofereceu para acompanhá
-la; eu me lembro que ela estava encantadora fan
tasiada
de pirata; sobre o grande chapéu preto
batido na testa, havia uma caveira branca; os ca
chos escuros dos cabelos apareciam sob o chapéu
e a blusinha branca muito
leve fazia sobressair
seu busto perfeito. No dia seguinte, os dois me
contaram quanto o baile foi divertido e senti g
randes esperanças que Isabel esquecesse o namoro
.
Dias depois, Carlos me preveniu:
- Mamãe, Is
abel e o rapaz estavam de mãos dadas passeando n
a Praça da República.
Tornei a ficar aflita e à
noite, falei com minha filha:
- Isabel, Isabel
, pelo amor de Deus, deixe esse namoro, minha fi
lha. Pelo amor de Deus.
Ela ficou vermelha e os
olhos brilharam de raiva; respondeu com voz rou
ca:
- Já deixei, já deixei. Será possível que m
e persigam sempre?
- Não minta; hoje mesmo anda
ram juntos. Hoje mesmo. Que desgosto você me dá,
Isabel. Que desgosto. O que diria seu pai se fo
sse vivo? Pense um
pouco. Quanto ele não sofrer
ia? Seu pai que queria tão bem a você e fazia tu
do o que você queria? Que coisa horrível.
Pergu
ntou ironicamente:
- É pecado amar? Gosto dele
e pronto. Ele também gosta de mim. É pecado? É c
rime? A senhora também não gostou de papai? Não
casou?
- Mas seu pai era um homem digno, não er
a casado com ninguém. Não compare seu pai com es
se homem. É muito diferente...
Ela me interromp
eu:
- E quem disse que Felício não é digno? A s
enhora por acaso o conhece? Só porque teve a inf
elicidade de casar mal a primeira vez, ficam tod
os contra ele. A senhora
não pode falar nada co
ntra ele porque
não sabe; não se pode falar de
quem não se conhece.
- Como não posso falar? Ba
sta o fato de ser casado e namorar você. Acha po
uco?
- Meu Deus, mas ele não é casado. É separa
do; há muito tempo está separado da mulher.
- P
ara mim é casado. Pelo fato de viver longe dela,
não deixa de ser casado. Será sempre um homem c
asado.
- E o dia que ele conseguir o desquite?
Continua casado?
- Continua. O casamento sem se
r na Igreja, não é casamento. Nunca.
Isabel dir
igiu-se para a porta, levantou os ombros num ges
to de pouco caso, dizendo:
- Nesse caso então..
.
Tive ímpetos de esbofeteá-la, mas me contive.
Passei dois dias sem falar com ela; fui contar
tudo à tia Candoca que me aconselhou calma e pru
dência. Contei também
à nossa vizinha D. Genu;
D. Genu me ouviu em silêncio, os óculos no meio
da testa, sacudindo a cabeça de vez em quando; d
e repente explodiu:
- Mulher quando dá para iss
o é pior que homem, D. Lola. Desembesta. Não lem
bra o que eu lutei para impedir o casamento da J
oca com aquele casca? E consegui?
Qual o quê! E
la não queixa pra mim; pra mim é que não diz nad
a, prefere morrer. Mas pensa que não percebo? So
fre o diabo com ele; aquele é um tranca, D. Lola
.
E quando vem aqui, quase se derrete em gentil
ezas; só me chama de comadre. "Não é, comadre?"
"A comadre não sabia?" Comadre o quê, desgraçado
! Seu eu pudesse
torcer o pescoço dele, era com
prazer. E quem é que estava mais assanhada pra
casar? A burra da Joca! Pior que ele; disse pra
mim aqui nesta sala, batendo no
peito assim: "S
e a senhora não deixar eu "casar com ele, eu faç
o uma loucura, eu fujo com ele." "Está louca, cr
iatura? Não vê que ele não presta?" Sabe o que

ela me respondeu? "Pois se não prestar é por min
ha conta, o prejuízo é meu; a senhora não-tem na
da com isso." Ah! O que eu sofri, D. Lola. Não s
ei como
não matei aquela desgraçada. Nem sei.

Olhou para mim e lembrou-se do meu caso, procura
ndo me consolar:
- Mas a Isabel é diferente, se
mpre foi obediente. Não perca as esperanças; que
m sabe a senhora consegue o que eu não consegui?
Tenha fé.
E colocando os óculos no lugar outra
vez, continuou a alinhavar a costura e a falar
mal das filhas. Voltei para casa e escrevi para
Itapetininga contando tudo às
minhas irmãs; res
ponderam que me acalmasse que tudo havia de term
inar bem com a ajuda de Deus. Pareciam muito pre
ocupadas com o último filho de Olga que tinha na
scido
fora de tempo; era magrinho e raquítico,
estava dando um trabalhão. Olga tinha levado um
tombo de uma escada e estava sofrendo as conseqü
ências; fiquei apreensiva
e esqueci por algum t
empo o caso de Isabel.
Uns meses depois, ela se
formou em datilografia e começou a procurar emp
rego nos jornais. Logo depois se empregou num es
critório de uma companhia importante, onde
havi
a outras moças trabalhando. Começou ganhando pou
co, mas fiquei aliviada; ainda mais que Alfredo
também se colocou em Santos, com um amigo da Alf
ândega. "Vinha
quase
#todos os domingos me vis
itar. Ficava na sala de jantar, sentado na velha
cadeira de balanço, e enquanto balançava leveme
nte fazendo a cadeira ranger, conversava
e cont
ava o que fazia no emprego. Depois divagava olha
ndo para o teto:
- Mamãe, quando vejo no cais a
queles navios grandes com chaminés do tamanho de
sta sala e que saem apitando pelo mar afora, sab
e o que eu tenho vontade de fazer?
- O quê? per
guntava adivinhando a resposta.
- Tenho vontade
de vagar pelo mundo todo... conhecer cidades..
. aventuras... descobrir mundos.. . Tenho vontad
e de ir à África, não sei por que. .. À índia
t
ambém. Tenho loucura de conhecer Bombaim por cau
sa de um livro que li... Ah! Meu Deus!
- Isso é
bom para os ricos, meu filho. Economize, trabal
he, ganhe dinheiro honestamente e um dia você ir
á correr mundo também.
Ele me olhava sorrindo d
e leve e balançava, fazendo a cadeira ranger, en
quanto lá fora o dia ia morrendo e estava chegan
do a hora de-Alfredo voltar para Santos.
De rep
ente ele contava os nomes de todos os navios do
Loyd: dizia que tinha amigos em quase todos eles
. E quando eu me admirava, respondia:
- Como nã
o, mamãe? Pois meu serviço é na Alfândega, conhe
ço bem todo esse movimento do cais.
Eu sorria f
eliz por vê-lo trabalhando e interessado no empr
ego. Era tão carinhoso para mim, muito mais que
os outros, e eu nunca pude esquecer os presentin
hos que
sempre me trazia, nem que fosse uma fru
ta ou uma flor. Quando se despedia, eu ficava tr
iste; às vezes passava mais de quinze dias sem v
oltar.
Uns meses mais tarde, Carlos me disse qu
e um amigo que trabalhava numa estação de rádio
achava que ele devia aprender canto porque tinha
uma bela voz de barítono.
Ouvira-o cantar O lu
ar do sertão" e gostara muito. Um dia Carlos apa
receu com um violão em casa e começou a aprender
; tocava com um amigo todas as noites e ficava

uma hora inteira estudando. Quando tocou e canto
u pela primeira vez para eu ouvir, fiquei admira
da; sua voz era suave e firme, muito agradável.
Tocava "Porteira
velha" e cantava acompanhado p
or Isabel que tinha uma vozinha muito afinada. U
ma noite, foi cantar num programa caipira de uma
estação de rádio; cantou com mais
dois companh
eiros "Zezé Suçuarana" e cantou tão bem que Isab
el, Alfredo que estava essa noite em São Paulo,
e eu, à volta do aparelho de rádio, ficamos como
vidos.
Quando ele disse então: "Meu coração não
me engana, tu não volta nunca mais", meus olhos
ficaram lacrimosos e Isabel começou a rir.
- O
que é isso, mamãe? Por que está chorando?
- Nã
o sei, respondi. Me deu vontade.
Desde esse dia
, ele cantou em vários programas caipiras e mais
tarde cantou também canções mexicanas e argenti
nas. Eu gostava quando ele cantava "Quiero verte
una
vez más". Isabel e eu aprendemos todas as
canções e à noite, quando Carlos não saía, cantá
vamos os três juntos na nossa sala de jantar e à
s vezes Alfredo cantarolava
também. Creio que f
oram as noites mais belas e tranqüilas da nossa
vida, apesar de ausentes, Júlio e Julinho; mas t
ambém foram curtas, passaram tão depressa.
Um d
ia, estávamos sentados à volta da mesinha da cop
a, almoçando, quando vimos Alfredo entrar de rep
ente. Vinha assustado, o rosto sombrio, as roupa
s sujas, sem
gravata, o cabelo em desordem. Nós
três ficamos de pé ao mesmo tempo, trêmulos e a
ssustados. Carlos perguntou:
- O que aconteceu,
Alfredo?
Ele procurou sorrir e olhando para mi
m, respondeu indeciso:
- Andei envolvido num co
nflito, mamãe, mas não tive culpa.
- Aonde?, pe
rguntei. Em Santos?
- Em Santos, esta madrugada
. Não tenho culpa, tive que tomar parte por caus
a dos amigos. Juro que não sou culpado.
Carlos
olhou-o firmemente censurando:
- Foi o resultad
o das tais reuniões, não é? Eu já sabia que ia a
cabar assim.
E sentou-se de novo, um ar acabrun
hado. Houve um silêncio pesado. Alfredo deu um l
eve gemido e levou a mão direita ao rosto fazend
o uma contração de dor; reparei
então que estav
a com um dente quebrado, o rosto vermelho e inch
ado. Mostrou com o dedo um pequeno ferimento na
cabeça e suas roupas estavam úmidas de sangue. F
alei:
- Vamos tratar esses ferimentos, Alfredo,
depois conversaremos. Ele olhou para trás medro
samente:
- Não, mamãe, não quero nada. Vou-me e
mbora. Depois em voz mais baixa:
- Desconfio qu
e a polícia está atrás de mim. Olhamo-nos aterro
rizados e Carlos disse num tom decidido:
- Cont
e de uma vez o que você fez. Foi alguma coisa gr
ave se não a polícia não vinha atrás.
Alfredo a
pertou as mãos, uma contra a outra num gesto ner
voso, depois apalpou o pescoço no lugar ferido;
falou hesitando:
- Não fiz nada, já disse. Esta
va numa reunião com uns amigos quando a polícia
chegou; houve uma provocação qualquer e nem sei
como começou. Quando vimos, estávamos
lutando e
cada um se defendia como podia. .. Jogaram garr
afas, copos, no fim até cadeiras... e. . acho qu
e machuquei um sujeito, mas não tenho culpa. Eu


podia estar morto também; foi horrível, houve m
uitos feridos. . .
Olhou novamente à volta com
ar assustado, depois dando um gemido sentou-se n
uma cadeira. Carlos disse com autoridade:
- Fal
e a verdade. Era uma reunião socialista, não era
? Alfredo procurou evasivas:
- Já vem você com
insinuações; não fale o que não viu.
E levou de
novo a mão ao pescoço; dei-lhe imediatamente um
café quente e perguntei:
- Mas, meu filho, por
que a polícia está perseguindo você? Só você? C
arlos tornou a falar:
- Era ou não era uma reun
ião socialista? Conte de uma vez. Não minta.
Al
fredo ficou embaraçado; deu um débil gemido e to
mando o cale aos golinhos, falou:
- Dizem que n
ós é que provocamos, mas não foi assim. Isso é m
entira. Estávamos conversando, apenas conversand
o...
Carlos interrompeu:
- Onde? 139
#Alfredo
olhou-o furioso:
- Isso interessa a você? Você
é da polícia também? Fez uma pausa, tomou o últ
imo gole de café e continuou:
- Estávamos conve
rsando quando a polícia chegou fazendo barulho,
querendo prender todo o mundo, fazendo ameaças.
Nós reagimos; foi aí que houve luta, dois dos
m
eus amigos foram presos, eu consegui pular uma j
anela dos fundos e fugi. Dei vinte mil-réis para
um chofer de táxi que tinha levado uns passagei
ros para embarcar
e vinha voltando a São Paulo.
Ele não me conhece, desci ali perto do largo da
Sé e vim para casa. Pretendia me esconder numa
cidade do interior ou nalguma fazenda,
por isso
vim. Mas um amigo me aconselhou outra coisa e m
udei de idéia. Já sei o que vou fazer; vou volta
r esta madrugada para Santos e embarco amanhã nu
m cargueiro
para os Estados Unidos, vou de qual
quer jeito. Aqui não fico, não quero ser preso.
Talvez não haja nada, mas estou com medo que alg
uém me denuncie.
E olhou para mim, um ar aflito
. A angústia se apoderou de nós quando ouvimos A
lfredo relatar o fato; uma angústia pesada de in
certezas. Ó que fazer? Como agir? Carlos
falou:

- Mas por que fugir, Alfredo? Se você diz que
não é culpado, não deve fugir. Enfrente a situaç
ão. Não acha, mamãe?
Alfredo interrompeu mais n
ervoso ainda:
- Como vou provar que não tenho c
ulpa? Se eu estava entre eles e lutei também, vã
o dizer que sou culpado. Um sujeito ficou caído
lá no chão e se dizem que fui
eu, como vou prov
ar o contrário?
Carlos aproximou-se do irmão e
num terrível tom de acusação na voz, perguntou a
bruptamente:
- Então foi você? Fale a verdade.
Foi você que feriu o homem? Isabel não dizia nad
a; tinha os olhos dilatados fixos em Alfredo; eu

intervim:
- Ninguém pode saber num conflito g
eral, Carlos. Pode ser que ele não tenha a culpa
, mas está arriscado a ser preso. Venha, Alfredo
, trocar essa roupa imunda
e tratar esses ferim
entos.
Ele gemeu dizendo que preferia morrer a
ser preso; levou a mão ao lado direito do rosto
e disse que tudo estava dolorido; dei-lhe uma as
pirina e outro café quente.
Em seguida preparei
-lhe um banho. Carlos ficou sentado, pensativo,
um cigarro entre os dedos, e Isabel saiu dizendo
que era hora de ir para o emprego. Carlos saiu


logo depois, apreensivo. Depois do banho, Alfre
do ficou mais calmo e-almoçou; vestiu uma roupa
de Carlos que ficou um pouco apertada e foi se d
eitar. Fiz então um
embrulho de tudo o que era
dele e deixei no tanque, no quintal. Passou-se a
tarde e Isabel e Carlos voltaram do trabalho; j
antamos mais calmamente. Quase ninguém
falava,
atemorizados com o que podia ainda acontecer. Fo
mos depois para a sala de jantar e ficamos à vol
ta da lâmpada. Alfredo estava dizendo que fugiri
a essa madrugada;
Carlos e eu procurávamos acon
selhá-lo:
- Não fuja, afinal de contas você há
de ter meios de provar que não teve culpa.
Eu d
izia:
- O filho mais velho de tia Emília é advo
gado; vou pedir a ele que auxilie você ou então
indique outro. Temos dinheiro para pagar o
advo
gado, nem que seja para vender esta casa, Alfred
o, mas não vá embora.
- Não. Já resolvi. Vou co
mo marinheiro ou como clandestino no navio, mas
vou.
- Você está louco? A polícia pega você e a
í será pior, muito pior. Faça o que mamãe disse,
vá se entregar.
- Nunca. Luto, mas não me entr
ego. Se vierem hoje aqui me buscar, faço um "fre
ge", mas não me pegam. Prefiro morrer.
Olhamos
para ele desconsoladamente. Carlos insistiu:
-
Mas pegam você de qualquer jeito. Antes de entra
r no tal navio, será preso.
- Não pegam. Tenho
amigos nesse navio e tenho certeza que me proteg
erão... Depois... Um amigo graúdo vai me levar a
manhã para Santos, de automóvel...
Já combinamo
s. Ninguém me pega.. . Tenho certeza...
Bateram
no portãozinho do jardim; meus três filhos leva
ntaram-se ao mesmo tempo e Isabel disse, resolut
a:
- Esperem. Vou espiar na janela da frente.

Uns segundos depois, voltou desfigurada, branca
como papel, os lábios trémulos. Pronunciou apena
s:
- Polícia!
Alfredo deu um salto e sumiu pel
o corredor; Carlos ainda tentou retê-lo, murmura
ndo:
- Espere; não fuja que é pior.
Mas ele es
tava longe. Bateram de novo e Isabel ficou parad
a no meio da sala, sem saber o que fazer. Admire
i Carlos nesse momento; com uma calma inabalável
, dirigiu-se
para a porta e descendo a escadinh
a do jardim com passos firmes e seguros, foi ate
nder. Quase em seguida, dois homens apareceram n
a porta da sala de jantar, dizendo
que traziam
ordem de prisão para Alfredo. Tive a coragem de
perguntar, fingindo firmeza:
- Mas o que há? Po
r quê?
Um dos homens que tinha uma pinta escura
do lado esquerdo do rosto, me olhou e disse sim
plesmente:
- Ele esteve envolvido num conflito
comunista ontem em Santos; houve morte.
Repeti
a palavra "morte" como um eco e já os homens com
eçavam a busca. Entraram no corredor e ouvi quan
do abriram a porta do meu quarto, acompanhados d
e Carlos.
Fiquei imóvel na sala ao lado de Isab
el que segurava nervosamente meu braço; envelhec
i muito essa hora e esses minutos valeram por an
os de sofrimento. Olhava o chão
com o olhar mor
to e esperava, esperava. Ouvi os passos dos insp
etores deixarem meu quarto e entrarem no quarto
de Isabel. Pensei: "É lá que ele está escondido.
É
agora que vão prendê-lo". Os inspetores deix
aram o quartinho de Isabel. Pensei: "Então ele e
stá no quarto de costura, escondido. Não encontr
aram ainda, mas agora
vão encontrá-lo". Saíram
novamente do quarto e se dirigiram para a copa,
pensei: "Então ele está no banheiro. É lá que el
e está escondido. Vão descobrir neste instante.


Agora". Mas os passos foram além e ouvi o rangi
do suave da porta do banheiro se fechar atrás de
les; um suor frio escorreu nas minhas costas e s
enti as mãos úmidas.
A angústia foi crescendo,
foi se avolumando, foi me envolvendo e me aperta
ndo a garganta. Ouvi então entrarem na cozinha.
Pensei: "É agora. Ele se refugiou no
quarto da
cozinha onde Carlos dorme. Prenderam. Pronto". E
sperava um grito, uma reação, um barulho de luta
. Nada. Apenas os passos cadenciados dos homens
e as portas
abrindo e fechando. Preferi que tud
o terminasse no mesmo instante de qualquer modo,
era melhor do que a angústia que me sufocava. P
ensei: "Já sei onde ele está.
É no quintal, no
nosso quintalzinho onde brincou tantas vezes, es
tá escondido num canto como um animal acuado e v
ai ser levado. Quem sabe está em cima da goiabei
ra;
uma vez ele caiu da goiabeira e se machucou
, mas não foi nada. Que pena ele não ser mais cr
iança, agora tudo é tão diferente. Comunista! E
tinha me dito que era
socialista. Será que é tu
do a mesma coisa? Não compreendo! Que silêncio,
será que já prenderam Alfredo? Ah! Meu filhinho!
Eu preferia que você ainda fosse pequeno
e tor
nasse a cair da goiabeira, do que na mão da polí
cia. Vão prendê-lo agora. AGORA!" Mas os passos
cadenciados e surdos voltaram do quintal e soara
m na sala novamente.
Alfredo não tinha sido enc
ontrado. Olhei os inspetores sem distinguir as f
eições de nenhum e sem compreender o que havia s
ucedido. Fizeram um ligeiro cumprimento
e deixa
ram a sala. Fiquei no mesmo lugar tão imóvel com
o uma estátua, com Isabel ao meu lado e quando C
arlos voltou do portão dizendo que um dos homens
tinha ficado
vigiando, dei um suspiro tão angu
stioso que os dois filhos olharam assustados par
a mim. Nada perguntei e nada disse, mas pelo olh
ar de Carlos para uma parede, compreendi
que Al
fredo se refugiara na casa de D. Genu.
Sentei-m
e então e procurei ler um jornal que havia sobre
a mesa; Isabel sentou-se na minha frente e pego
u um bordado que estava fazendo; Carlos abriu um
livro. Ficamos
imóveis e silenciosos uma meia
hora talvez; percebi de repente uma sombra desen
har-se na vidraça da sala de jantar que dava par
a o pequeno patamar da escada do jardim.
Não ol
hei, mas vi. A falha do jornal começou a tremer
na minha mão e as letras a dançarem sinistrament
e; senti o homem de pinta no rosto nos vigiando
por trás da
vidraça; então disse a Isabel que b
ordava com a cabeça baixa:
- Sorria, Isabel, pa
ra disfarçar.
Ela levantou a cabeça e me olhou
assustada, sem compreender. Repeti a ordem:
- R
ia, Isabel. Ela murmurou:
- Mas, mamãe...
E eu
repeti pela terceira vez:
- Ria, Isabel.
Ela
então principiou um sorriso que mais parecia de
dor, quando Carlos com a voz serena e tranqüila,
disse:
- Escute, mamãe, veja que pedaço bonito
do livro.
E leu um trecho do livro que tinha n
a mão; era de Zweig, traduzido para o espanhol.
Nunca pude esquecer a voz de Carlos e as palavra
s que leu nessa hora trágica
da nossa vida; até
hoje tenho o livro que guardo como lembrança de
le e releio sempre esse trecho: "Mi hijo ha muer
to ayer. Durante três dias y três noches he esta
do
luchando con Ia muerte, queriendo salvar est
a pequena y tierna vida, y durante cuarenta hora
s he permanecido sentada junto a su cama, mientr
as Ia gripe agitaba su
pobre cuerpo, ardiente d
e fiebre dia e noche. A Ia tercera noche he caid
o (.iesplomada. Mis ojos no podían ya más y se m
e cerraban sin que
yo me diera cuenta. He dormi
do durante três o cuatro horas en Ia dura butaca
y mientras he estado dormida se Io ha llevado I
a muerte".
A sombra desapareceu da vidraça e a
voz se calou; houve um profundo silêncio. Pergun
tei:
- Enquanto ela dormia, a morte roubou o fi
lho? Carlos confirmou em silêncio, depois disse:

- Três dias e três noites ela agüentou; depois
dormiu e enquanto dormia "se Io ha llevado Ia m
uerte".
Houve novo silêncio. Disse:
- Carlos,
creio que vou me deitar. Que horas são? Carlos r
espondeu sem levantar os olhos do livro:
- Quas
e dez e meia; eu também vou. Deixe, mamãe, eu fe
cho as janelas.
Fomos juntos fechar a casa, mas
vimos antes o vulto de um homem parado na calça
da; às vezes andava, voltava e parava outra vez.
Disse boa noite a Carlos e Isabel
e fui para m
eu quarto; vi as economias que tinha feito para
dar um smoking para Carlos e um vestido para Isa
bel no fim do ano. Eram quase seiscentos mil-réi
s; juntei
tudo dentro de um lenço e saí na port
a da cozinha, desci a escadinha e fui para o qui
ntal, andando às apalpadelas e repetindo mentalm
ente: "Enquanto dormia, "se
Io ha llevado Ia mu
erte", "se Io ha llevado Ia muerte". Não posso d
ormir, não posso". Fiquei um tempo escutando enc
ostada ao muro que dava para a casa de D. Genu.


A lua estava muito branca e o céu cheinho de es
trelas. Olhei-as bem; pareciam tão brilhantes, t
ão tranqüilas que tive inveja delas. "Se Io ha l
levado Ia muerte.
Para salvar meu filho, não po
sso dormir". Chamei baixinho:
- D. Genu!
Mas o
uvi a voz de Alfredo que me respondeu do outro l
ado, quase num murmúrio:
- Mamãe, sou eu. D. Ge
nu me escondeu. Vou me embora amanhã cedo.
- Pa
ra onde? perguntei.
- Não sei bem, creio que Es
tados Unidos. Foi sorte ter pensado nisso, o nav
io parte amanhã.
Fizemos uma pausa, depois eu d
isse:
- Tem aqui um dinheiro para você levar; s
ão minhas economias. A voz dele se quebrou:
- A
h! Mamãe, não precisava. Obrigado.
E seu rosto
apareceu por cima do muro, iluminado pela lua; e
stava muito pálido. Alfredo se debruçou e eu sub
i num caixão de gasolina como fazia sempre quand
o queria
falar com D. Genu; dei o dinheiro. Fic
amos um momento quietos, escutando, e de repente
, ele começou a chorar; um choro abafado e trist
e. Sussurrei:
- Não chore, meu filho. Tudo há d
e dar certo. Não chore.
- Só dei desgosto, mamã
e. Desgosto e aborrecimentos. ..
- Não, não dig
a isso. Você foi sempre tão bom filho, tão carin
hoso, isso me bastou.
Ele chorou mais:
- Mamãe
...
- O que é?
- A senhora me perdoa?
- Oh! A
lfredo, não tenho o que perdoar, filho.
- Mas d
iga que perdoa.
- Perdôo.
Ele se debruçou de n
ovo e eu estendi as duas mãos para que ele segur
asse; apertou com força minha mão direita e sent
i que toda minha energia e força de vontade se

desmoronavam nesse instante; não quis largar a m
ão dele e tive ímpetos de implorar:
- Não vá, f
ilho. Fique e lutaremos juntos. Não fuja.
Mas n
ão disse e chorei; foi ele então que me deu cora
gem:
- Mamãe, o que é isso? Não chore. Eu não d
izia sempre que queria viajar, conhecer mundo? P
ois agora eu vou...
- Deus te abençoe. Escreva
de vez em quando.
- Escrevo se puder; preciso t
er cuidado. Adeus, mamãe.
- Adeus, então.
Ele
ainda ficou uns instantes debruçado no muro, olh
ando para mim, o rosto pálido com os reflexos do
luar:
- Não se incomode comigo, mamãe. Eu me a
rranjo, tudo há de passar.
- Há de passar sim,
eu sei...
Uma porta bateu lá dentro e o rosto d
e Alfredo desapareceu. Houve um silêncio de mort
e e ouvi só as pancadas fortes do meu coração. V
oltei para casa vagarosamente,
andando no escur
o e ao passar no tanque, apalpei o fundo para ve
r se o embrulho de roupas estava lá; mas não est
ava. Na fuga, não tinha esquecido. Entrei em cas
a,
fechei a porta e fui para o meu quarto olhar
o Cristo de marfim; durante muito tempo olhei p
ara Ele e Ele tinha a cabeça inclinada para um l
ado e olhava o chão de
um modo obstinado, um ar
triste e tão desolado que dava pena. Nas horas
longas dessa noite, compreendi o que tinha sido
para nós a amizade de D. Genu, se ela não
tives
se escondido Alfredo, ele faria uma loucura com
seu gênio impulsivo e o que aconteceria depois?


De manhã, bem cedo, abri as janelas da frente e
vi um homem na esquina; parava, andava outra ve
z e olhava para todos os lados. Vigiava. Fingi q
ue estava espanando
as janelas quando ouvi o po
rtão da casa de D. Genu abrir e fechar. Vi então
a filha dela, Lili, que trabalhava na cidade, s
air como sempre saía, um pouco mais cedo
esse d
ia, acompanhada por um rapaz de sobretudo preto
e um cachecol enrolado no pescoço; era Alfredo e
o sobretudo devia ser do genro de D. Genu. Ele
tomou a pasta
da mão de Lili muito delicadament
e e depois de fecharem o portão, desceram a Aven
ida, conversando com despreocupação, passaram a
esquina e foram tomar o bonde mais
além. Disfar
çadamente acompanhei meu filho com o olhar e nem
uma vez sequer ele olhou para nossa casa. Assim
seu vulto desapareceu dos meus olhos. Voltei pa
ra dentro
e fui à cozinha fazer café; quando es
tava pondo a mesa, Carlos apareceu com um ar som
brio, o rosto fechado:
- Bom dia, mamãe.
- Bom
dia.
Ele me olhou sem perguntar, mas eu respon
di.
- Foi embora agora... saiu com Lili... Não
sei mais nada.
Carlos tomou o café com leite e
não quis pão esse dia; quando terminou, passou o
guardanapo na boca e ficou olhando fixamente a
mesa, um olhar distante e triste;
de repente fa
lou:
Ele tomou a pasta da mão de Lili muito del
icadamente e depois de fecharem o portão, descer
am a Avenida, conversando com despreocupação.
-
Mamãe, há coisas piores que a morte. Confirmei
com a cabeça e ele continuou:
- Quando papai mo
rreu, pensei que nada pior pudesse haver no mund
o do que a morte; nada mais triste, mais horríve
l; era uma separação tão brutal, um silêncio tão

grande à volta do desaparecido, tudo tão negro
e tão misterioso... Só essas palavras "nunca ma
is" me desesperavam. Eu pensava: "Nunca mais" ve
rei meu pai
falar, "nunca mais" ouvirei seus pa
ssos, "nunca mais" se sentará nesta mesa, tudo i
sso era como um peso na minha cabeça. Mas hoje e
u sei que há coisas piores,
mamãe.
Fez uma pau
sa e terminou:
- Preferia que ele tivesse morri
do.
Não respondi e de cabeça baixa, olhei as xí
caras vazias; Carlos empurrou a cadeira e se des
pedindo, saiu. Quase no mesmo instante, Isabel a
pareceu, pronta para sair.
Foi logo interrogand
o:
- Então, mamãe?
E olhou para a parede da ca
sa vizinha.
- Foi embora hoje cedo.
- Para ond
e?
- Não sei, creio que para os Estados Unidos.

Ela estava passando a' manteiga no pão; parou
e com a faca no ar, levantou a cabeça e disse al
egremente:
- Aí, batuta!
Durante algum tempo,
D. Genu e eu não nos procuramos a não ser pelo m
uro, com medo do secreta; mas uns dias depois da
partida de Alfredo, subi no caixão de gasolina


e chamei-a para agradecer; falamos sem nos verm
os. Ouvi seus passos descerem a escadinha do qui
ntal, firmes e resolutos; aproximaram-se do muro
. Agradeci o que ela
tinha feito por Alfredo e
ela interrompeu em voz baixa:
- Não tem nada a
agradecer, ora esta! Pois felizmente eu estava a
qui nessa hora juntando umas roupinhas que tinha
m ficado no varal. De repente ouvi alguém descer

depressa a escada do seu quintal. Pensei: "Ué!
Quem será? Será que alguém está doente?" Ia per
guntar quando vi Alfredo já com uma perna em cim
a do muro, apertando
uma trouxa de roupa e dize
ndo: "D. Genu, estou sendo perseguido pela políc
ia, mas estou inocente. Posso me esconder aí?" "
Venha, ora esta, pra que serve a amizade?
Pula
pra cá, rapaz." Ele pulou e correu a se esconder
na cozinha. Eu entrei atrás dele e disse pra mi
nha gente: Ninguém pergunte nada, deixem o rapaz
sossegado.
Ficou no quartinho do fundo, no esc
uro. Levei um prato de comida e ele comeu; então
contou os planos dele. Quando ouvi a senhora fe
chando a casa, disse: "Vá agora
no quintal, per
to do muro que sua mãe está lá". E fiquei vigian
do para ver se acontecia alguma coisa. Depois el
e e Lili combinaram sair juntos bem cedo como se
fossem
marido e mulher que vão para o serviço;
antes de sair, ele me disse: "D. Genu, o que eu
devo à senhora, não se paga". E ficou comovido;
eu disse: "Vá, vá embora".
Coitado. Disse que
ia dar um jeito de arranjar um automóvel porque
de trem era
perigoso pegarem. Alfredo é esperto
, ninguém pega, D. Lola. A esta hora está longe.
..
- Mas D. Genu, se descobrissem que ele esta
va escondido em sua casa, todos os seus iriam so
frer as conseqüências; a senhora, suas filhas, s
eu genro. Até a senhora
era capaz de ir parar n
a polícia, meu Deus! Que vergonha!
- Vergonha?
Ué, vergonha por quê? Nada disso, D. Lola. Se fo
sse na polícia, eu dizia o que tinha de dizer e
acabou-se. E pra que serve ser amigo?
Amigo é p
ras horas alegres? Horas de festa? Hora de comer
e beber? Não. Amigo é ali no duro; nas horas de
aperto é que se conhece o amigo. Ou então
não
é amigo, é uma besta.
Respondi:
- Pois, D. Gen
u, a senhora tem um coração grande, bem poucas p
essoas pensam assim. Ter coragem de esconder um
rapaz perseguido pela polícia, não conheço ningu
ém,
só a senhora. Os outros diriam logo: Ah! Nã
o é possível, é muita responsabilidade.
- Respo
nsabilidade? Responsabilidade é o medo que dói,
medo de enfrentar os casos, enfrentar o perigo,
é ser covarde. Eu não tenho medo de nada, D.
Lo
la, de nada. .. (Ouvi a pancadinha que ela deu n
o peito). Também tenho sofrido cada pedaço... Em
Minas nós somos assim. . . Amigos na vida e na
morte.
-- Pois Deus há de pagar o que a senhora
fez por meu filho e por mim. Deus lhe pague!
-
Amém! A voz dela soou por trás do muro.
Passei
uns tempos preocupada, sem notícias de meu filh
o Só três meses mais tarde, recebi um cartão pos
tal com letra disfarçada e assinado: Sua sobrinh
a Diná.
Era de Alfredo; estava em Charleston, E
stados Unidos. Dizia: A vida aqui é dura, mas eu
gosto. Tudo vai bem. .. Fiquei com o cartão na
mão, um ar parado,
apoiada na mesa da cozinha c
omo se tivesse medo de cair; depois lembrei das
palavras dele: "Diga que me perdoa." As lágrimas
brotaram dos meus olhos e chorei copiosamente,


olhando o cartão que foi se desvanecendo no na
voeiro do meu pranto.
Nessa semana, Clotilde ve
io de Itapetininga e passou uma temporada grande
conosco; fez roupas, vestidos, pijamas, e me au
xiliou muito nos doces. Um dia que tinha
ido ao
Largo do Arouche comprar rendas e linha para co
stura, voltou contando que vira Isabel e um rapa
z conversando com muita intimidade; eu, que havi
a me esquecido
do namoro de Isabel esse tempo
todo, tive um sobressalto. Quis falar nessa noit
e, mas Clotilde pediu:
- Deixe passar uns dias,
senão ela desconfia que fui eu e fica furiosa.
Acho que me viu.
Três dias depois, chamei Isabe
l na cozinha:
- Quem é aquele rapaz que estava
conversando com você? Percebi uma sombra no rost
o dela e a voz alterada quando perguntou:
- Qua
ndo?
- Você sabe melhor do que eu; há três dias
.
Ela ficou vermelha e me olhando bem de frente
como que desafiando, respondeu: -- Felício... P
erdi a calma:
- E você fala com esse cinismo? N
ão tem vergonha Isabel? Depois do que falei, do
que seu irmão falou, você ainda tem coragem de a
ndar com esse homem? Precisa não
ter mesmo verg
onha. Meu Deus! Meu Deus!
Ela continuou de pé,
encostada na mesa da cozinha sem dizer nada, ris
cando a mesa com a ponta da unha.
- Por que voc
ê não deixa esse namoro? Por quê? Não vê o desgo
sto que nos dá? Não percebe o meu sofrimento? Se
seu pai fosse vivo, o que não diria?
- A senho
ra é só: "Se seu pai fosse vivo, se seu pai foss
e vivo. .." Deixe papai sossegado. Garanto que e
le me deixaria quieta, não me amolaria.
- E eu
estou te amolando, sua malcriada? Quando eu faço
tudo para seu bem? Você é uma grande ingrata, i
sso sim.
Sem querer, eu já estava gritando; Car
los e Clotilde vieram ver o que havia; Clotilde
perguntou conciliadora:
- O que há, Lola?
- Is
abel, que continua com aquele namoro. Clotilde n
ada disse, mas Carlos avançou para ela:
- Não t
em vergonha na cara? Olhe, mamãe, eu vou avisar
a polícia para que não deixe os dois andarem jun
tos; ele é casado e ela é menor. E todas as veze
s que pegar
os dois juntos, vão presos.
Isabel
gritou, em lágrimas:
- Não pode! Você não pode
fazer isso. Miserável; deixe minha vida e vá tr
atar da sua. Não se intrometa!
Clotilde virou-s
e para Isabel:
- Por que dá esse desgosto à sua
família Isabel? Não ouve os conselhos de sua mã
e?
Carlos fumava perto da janela, nervoso; volt
ou-se para Clotilde: - A senhora ainda pergunta
por que, Tia Clotilde? Porque é uma
desavergonh
ada. Se ela tivesse um pingo de vergonha na cara
, daria um
pontapé nesse sujeito. Ele só merece
desprezo.
Isabel chorava, o rosto escondido en
tre as mãos e todo seu corpo
tremia; de súbito,
tirou as mãos do rosto, dizendo:
- Eu sei o qu
e vou fazer. Vou acabar com a minha vida que é m
elhor. Nesta casa todos me detestam; já percebi
isso há muito tempo; desde que papai morreu.
Ma
s eu acabo já com isto...
Deu uns passos para a
porta da copa, mas Carlos segurou-a por um braç
o e sacudiu-a:
- Não diga besteiras. Sempre dig
o que você é estúpida; não vê que é para seu bem
? Queremos livrar você desse homem, não compreen
de?
Ela procurava soltar-se dos braços do irmão
e gritava:
-- Largue meu braço, largue meu bra
ço, bandido.- Miserável.
Carlos levantou a mão
para bater nela, mas Clotilde e eu interviemos:


- Não, Carlos. Deixe Isabel, não faça nada. Dei
xe.
Carlos largou-a com força e ela saiu corren
do em direção ao banheiro, onde se fechou batend
o a porta com estrondo.
Ficamos nós três sem sa
ber o que fazer. Clotilde perguntou, receosa:
-
Não há perigo de Isabel abrir o gás no banheiro
? Carlos estava tão zangado que respondeu:
- Po
is que abra, que faça o que entender.
- Não fal
e assim, Carlos, é sua irmã.
- Mas é uma estúpi
da.
Fomos todos para a sala e ficamos sentados
à volta da mesa, desconsolados, conjeturando sob
re o caso de Isabel; de vez em quando, um de nós
ia cheirar a porta do
banheiro na ponta dos pé
s para ver se não sentia exalações de gás. Meia
hora depois. Isabel trancou-se no quarto e ficou
o resto do dia sem sair.
Nossa casa foi ficand
o cada vez mais quieta, Julinho e Alfredo ausent
es, Isabel sempre contrariada, tudo foi se trans
formando tristemente. Na mesa, onde ela era
a m
ais tagarela, não falava mais, Carlos sempre fal
ara pouco, só Clotilde e eu conversávamos alguma
s vezes sobre Itapetininga. Eu me queixava dos t
rabalhos e canseiras;
era um cansaço velho vind
o de anos atrás, vivia cansada. Sonhava com long
os silêncios: dias parados, noites tranqüilas, v
adiação, lugares ermos, céus azuis, ondas
mansa
s do mar, palmeiras, paz. Uma paz tão perfeita c
omo de túmulo, e eu sem ouvir, sem sentir, só ol
hando. Em vez disso, levantava muitas vezes de m
adrugada, ia
à feira comprar os preparos para a
s encomendas, voltava da feira, arregaçava as ma
ngas, punha um avental, toca a trabalhar. .. tra
balhar... Sem hora para dormir
nem para comer,
precisava entregar as encomendas nas horas deter
minadas, suar diante do forno aberto, os olhos s
emicerrados pelo bafo quente, queimando as ponta
s
dos dedos e muitas vezes os braços. E quando
eu queria dormir mais um pouquinho, ouvia vozes
me dizerem com as pancadas do relógio grande: "L
evante e trabalhe. Corra,
não deixe queimar a c
alda. Olhe o bolo que está no forno. É hora de m
atar os frangos. Corra! Corra! Corra!
E eu corr
ia de manhã à noite. Corria. À noite, quando Car
los tocava violão e cantava, eu chorava de sauda
des de Alfredo e Julinho. A alegria foi desapare
cendo como
as noites escuras quando vão caindo
e deixando sombras nos lugares claros. Tudo à vo
lta foi ficando sombrio e o silêncio foi crescen
do com a sombra.
Felizmente Julinho teve umas f
érias e veio nos fazer uma visita; veio mais bon
ito e mais bem vestido, parecia até mais alto. T
rouxe presentes para todos nós; quando
Isabel o
viu, gritou logo:
- Ué! De bigode?
Rimos todo
s. A estadia de Julinho trouxe alegria e risos p
ara o fim do ano; passamos um Natal mais alegre.
Durante horas inteiras descrevia as belezas do
Rio de
Janeiro e nós escutávamos , embevecidos.

Clotilde arriscava uma pergunta:
- E você and
ou no carrinho do Pão de Açúcar? É assim mesmo c
omo se vê nas figuras?
- Igualzinho; já fui uma
s três vezes. A gente vai dentro de uma espécie
de caixinha, dependurada no espaço. Uma gostosur
a.
Eu perguntava:
- E o Cristo? É grande mesmo
como dizem?
- Ih! Mamãe, só vendo. Um dia a se
nhora há de ver. É gran dioso; um dia levarei a
senhora ao Rio para passear. Aí a senhora vê que
maravilha, que esplendor.
É mesmo a cidade mar
avilhosa... E depoiv todos lá são muito dados, n
ão são retraídos como os daqui. O carioca v. amá
vel, alegre, comunicativo. Tudo lá é
formidável
, a senhora há de ver
E Julinho falava, falava;
sobre os automóveis, as casas bonitas, o movime
nto intenso das ruas, sobre os navios que entrav
am e saíam. Dizia que ia bem no emprego
e era m
uito considerado pelos patrões; pretendia subir
sempre mais, tinha grandes planos e grandes espe
ranças.
Os dias passaram quase como um sonho e
Julinho partiu de novo; na véspera de embarcar,
me contou muito particularmente que estava compr
ometido com a filha única
do patrão. Pretendia
ficar noivo nesse ano que estava começando e tod
os na família da moça já sabiam e estavam conten
tes. Fiquei comovida com a notícia. Acompanhamos

Julinho à estação e na hora do embarque, Isabe
l avisou-o rindo:
- Toda a vez que vier, traga
o bigode. Você fica formidável de bigodinho.
Ju
linho escrevia sempre, mas não tive mais notícia
s de Alfredo; passaram-se meses sem saber dele;
quando eu me queixava, Carlos dizia:
- Não pens
e mais nele, mamãe. É ingrato e não merece seus
cuidados. A senhora vive pensando nele e ele nem
liga, pois podia escrever de vez em quando como

escreveu uma vez. Largue mão dele.
Mas eu
não podia; talvez não fosse correto e trabalhado
r como os outros, talvez não tivesse mesmo muito
juízo e fosse ingrato, mas era meu filho como o
s outros e
meu amor se dividia igualmente pelos
quatro, assim como meus pensamentos, minha vont
ade e tudo que era meu. Mesmo minha vida, se fos
se uma coisa que se pudesse dividir,
estaria di
vidida em quatro pedaços, assim como meu coração
. Como podia deixar de pensar em Alfredo, se era
um dos meus quatro pedaços?
Nesse ano, Carlos
tomou parte numa revolução; pedi a ele que não p
artisse, era o único filho que me restava e eu t
inha tanto medo. Mas foi inflexível, não me aten
deu.
Quem pode impedir os ímpetos da juventude?

Logo nos primeiros dias, apareceu fardado em c
asa; era uma farda caqui um pouco grande para el
e e as mangas iam até às mãos. Seu corpo magro q
uase desaparecia dentro
da farda; quando me viu
sentada na sala, fez uma continência, batendo c
om força os calcanhares; estava tão risonho e a
farda era tão desproporcionada que comecei
a ri
r
- Então vai mesmo, filho?
- Lógico. Hoje à n
oite vamos nos aquartelar num Grupo Escolar e se
guiremos nestes dois dias.
- Para onde?
- Deus
sabe. Para onde mandarem.
Senti o coração pequ
eno. Voltaria? Rezei mentalmente: "Oh! Cristo, d
ai-me o filho de volta novamente".
E sorri para
Carlos, fingindo que estava calma e confiante.
Jantamos quase em silêncio; Carlos comia apressa
damente, só pensando na hora de ir embora, e eu
pensava
nas noites de aflição que se aproximava
m; as longas e intermináveis horas passadas no e
scuro, ouvindo o próprio coração bater, o pensam
ento longe, procurando seguir
o filho na trinch
eira, no quartel, na alegria e na tristeza. Ele
tomou café de pé, na pressa de sair, e disse ape
nas:
- Já vou, mamãe.
Senti as pernas trêmulas
, mas sorri, procurando ser forte, também de pé,
na frente dele
- Seja feliz. E tudo que precis
ar, escreva que eu mando. Não seja exaltado, nem
corajoso demais. Seja calmo e ponderado...
Ele
riu mansamente:
- Ora, mamãe, ser calmo na gue
rra?
- Não. Não digo calmo nesse sentido; digo
para não se exaltar muito, pense antes de agir p
recipitadamente. Às vezes a coragem não é valent
ia, é exaltação, é
loucura.
Riu-se mais quando
me abraçou, dizendo:
- Está bem. Seguirei à ri
sca seus conselhos. Quando o Capitão disser: Ava
nçar! Eu me sento no chão e digo: Minha mãe diss
e para eu pensar antes de agir,
deixa pensar um
pouco. E enquanto os outros vão, fico pensando.
Está contente?
Abracei-o fortemente e ri:
- V
ocê sabe o que quero dizer. Seja feliz.
Não pud
e falar mais e ele me apertou mais uma vez em se
us braços; depois pôs o quépi com cuidado e saiu
; antes de fechar a porta fez continência batend
o os calcanhares.
Desceu correndo os degraus e
saiu pela Avenida, a mochila nas costas. Fiquei
na janela até vê-lo desaparecer. Voltei para a s
ala outra vez e sentando-me ao lado
de Clotilde
, ficamos olhando a escuridão, o pensamento segu
indo Carlos. Como me senti infeliz! Com o correr
dos anos, comecei a sentir que o trabalho, o sa
crifício,
a luta, a dedicação estavam sendo jog
ados fora como folhas amarelas, de nada estavam
valendo. Meus filhos partiam, cada um para seu d
estino e eu ia ficando só. E
se Carlos não volt
asse? Os outros poderiam voltar de um momento pa
ra outro, e Carlos? Fui com Clotilde para o port
ão para ver alguém, conversar, saber alguma cois
a.
Havia grupos de pessoas em todas as esquinas
; falavam, discutiam, gesticulavam. Ds repente D
. Gemi chegou quase correndo, cansada, arquejand
o, contando que vira
dois batalhões partirem; o
s filhos da irmã tinham seguido num dos batalhõe
s para o Norte. Quando contei que Carlos já esta
va aquartelado e partiria qualquer dia,
encoste
i a cabeça no portão e chorei; D. Genu e Clotild
e puseram as mãos nos meus ombros e começaram a
me consolar, chorando também. Depois outras vizi
nhas foram
se aproximando e Isabel também; uma
dizia que estavam sendo travados combates no Nor
te, outra dizia que o filho único discutira o di
a inteiro com o pai porque queria
ir e tinham c
edido finalmente porque ele disse que fugiria se
não deixassem. D. Genu ficava excitada, gesticu
lava, falava grosso:
- Droga de revolução. Não
tenho filho para ir, mas tenho netos. A Joca já
tem dois na idade e vão mesmo, nem precisa pergu
ntar. Até o genro é capaz de ir também,
é meio
louco. A gente cria todos, tem um trabalhão, sua
pitanga para ver tudo crescido e para estudarem
direitinho, de repente aparece uma revolução nã
o sei onde,
nem sei por que, tudo assanha: "Ah!
Porque preciso ir. Porque quero ir", pois que v
ão, seus diabos. Que vão de uma vez.
Uma das vi
zinhas argumentou, calma:
- Mas a questão é que
às vezes não há remédio, D. Genu, e tem que ir
mesmo. O que se há de fazer. Acho que a obrigaçã
o acima de tudo, se tem dever de ir, cumpram
se
u dever.
- Dever... Dever... Não sei bem do que
se trata, mas estou achando uma besteira muito
grande. Enfim vamos ver no que dá.
- Tudo há de
dar certo, observou Clotilde cheia de mansidão


- Se não voltarem alguns estropeados. outros do
entes e outros mortos, terminou D. Genu se retir
ando, zangada.
Recolhemo-nos todas e eu passei
a noite pensando em Carlos; no dia seguinte, bem
cedo, fui com Isabel ao Grupo Escolar onde ele
estava pronto a seguir com o batalhão.
Lá disse
ram que o batalhão já tinha seguido para a estaç
ão da Sorocabana, onde embarcaria. Perguntei log
o:
- E pra onde vão?
- Ah! Isso não sabemos.

Fiquei aflita e tomamos o bonde para a estação;
percebia-se qualquer coisa anormal na cidade; to
do o mundo falava, formavam-se grupos nas esquin
as. O bonde andava
devagar e o motorneiro conve
rsava com um passageiro sobre a revolução. Na pr
essa de descer, quase caí e havia tal quantidade
de povo comprimido diante da estação
que foi c
om muita dificuldade que conseguimos entrar. Uns
estavam abatidos, outros animados; homens farda
dos falando depressa e andando de um lado a outr
o: comecei
a procurar Carlos ansiosamente enqua
nto atravessávamos a multidão. Vimos então um tr
em cheio de soldados parado na plataforma; a cus
to nos aproximamos e quando estávamos
quase alc
ançando, ouvimos apitos fortes e vivas entusiást
icos ao batalhão que partia. Era o batalhão Borb
a Gato, o batalhão de Carlos. Então eu não veria
mais meu
filho? Comecei a correr acompanhada d
e Isabel e a olhar os rostos dos soldados que se
debruçavam em todas as janelinhas. Gritei: Carl
os! Carlos! E olhei com sofreguidão
todas as fa
ces. Empurrei várias pessoas e tropecei enquanto
procurava meu filho e todo o mundo gritava:
-
Viva o batalhão Borba Gato! Um eco ensurdecedor
respondia:
- Vivôôô!...
Isabel procurava me re
ter segurando meu braço:
- Mamãe, não corra que
a senhora cai,
Eu corria cada vez mais, seguin
do o trem que estava em movimento, mas o trem de
slizou nos trilhos com tal celeridade que de rep
ente não vi mais nada a não ser mãos
que se agi
tavam no ar freneticamente num último adeus aos
que ficavam; eram tantas mãos que não vi mais as
cabeças, haviam desaparecido. Depois fumaça; na
plataforma
do último vagão, vi um grupo de sol
dados de pé, acenando e rindo; fixei-os para ver
se meu Carlos estava ali, mas não o achei. O tr
em foi sumindo rapidamente e só
vi então os tri
lhos brilhantes na minha frente e ao longe as mã
os misturadas na fumaça.
Assim meu filho Carlos
partiu, e eu não pude dar-lhe um último adeus.


Então a angústia voltou a se apoderar de mim; p
assei noites e dias sem perceber como estava viv
endo e o que estava se passando; um peso me opri
mindo o peito e um
suor frio brotando de vez em
quando na minha testa e nas minhas mãos. A angú
stia de alguma coisa que vai faltar na nossa vid
a ou alguma coisa que se considera perdida;
uma
espécie de sufocação ou falta de ar. Se dormia,
acordava de madrugada com a voz de Carlos me ch
amando do fundo de uma trincheira: Mamãe!
#Na t
erceira ou quarta noite depois da partida, às on
ze horas da noite, ouvi um jornaleiro gritando.
O combate do Túnel! O primeiro encontro hoje no
Túnel!
Levantei-me e fui comprar o jornal; li a
vidamente as últimas notícias: os combates tinha
m começado. Passei a noite toda acordada apertan
do o jornal na mão e pensando
que um outro jorn
al como aquele poderia trazer qualquer noite uma
frase pequenina no fim de uma página e bastaria
essa frase para esmagar, aniquilar, destruir to
da
minha vida. Só no fim de uma semana, recebi
carta de Carlos. Estava em Itapetininga e não ti
nha entrado ainda em combate. Itapetininga! Como
o destino fora bom!
Tinha mandado Carlos para
minha terra, ao lado dos meus parentes! Respirei
aliviada e recomecei os afazeres com mais confi
ança no futuro. Muitos dias passaram e
todo o m
ês de julho se escoou com a cidade transformada.
D. Genu viu partir o genro e acompanhou os neto
s à estação, um por um; de cada vez voltava mais
acabrunhada,
o corpo mais curvado para a frent
e, mais triste e mais cansada. Conversávamos lon
go tempo no portão, trocando as últimas notícias
recebidas; os combates se sucediam.
No Sul, on
de estava Carlos, também combatiam com furor. Vi
zinhas que nunca tinham conversado umas com as o
utras, vinham se chegando também e cada uma tinh
a uma notícia
a dar, cada uma tinha na frente,
um filho, um irmão, ou o marido. Eu escrevia inc
essantemente para Olga pedindo notícias de Carlo
s, mas não respondiam de lá, parece
que tudo es
tava desorganizado. Um dia li no jornal: "Correi
o Militar para o Setor Sul!" Corri e levei uma c
arta para ser entregue a Carlos. Mais uma semana
se foi
quando recebi a segunda cartinha. Estre
meci; estava combatendo em Buri. Dizia que passa
va regularmente; dormia algumas horas e comia be
m. Não havia tomado banho
desde que partira e n
em as botas tinha tirado! Dormia fardado no fund
o da trincheira. Fiquei horrorizada e passei o d
ia todo com a carta na mão, lendo e relendo.
To
das as vizinhas vieram à noite no portão da noss
a casa e li alto a carta para elas ouvirem; umas
choraram, outras suspiraram tristemente: D. Gen
u não tinha notícia
dos netos que combatiam em
Cruzeiro; chorava e fungava assoando ruidosament
e; suspirava e passava o lenço na testa e nos ol
hos; esperava uma coisa desconhecida que
viria
de repente, mas não se sabia como, nem de onde.
Era a angústia da espera; aquelas longas horas d
a noite pensando no escuro: O que estará acontec
endo agora?
Agora mesmo? Quem sabe ele já morre
u? Não. Meu cérebro negava a idéia de morte, var
ria para longe, mas de repente, sem querer, essa
idéia voltava outra vez, imperiosa
e dominante
, e ficava verrumando num canto, dominando minha
vontade: E se ele morrer? Essa idéia ficava ali
, noite e dia, atormentando, matando aos pouquin
hos.
Assim o tempo foi se escoando através das
noites, dos dias, das semanas de espera. As notí
cias eram raras.
O escritório onde Isabel traba
lhava estava fechado e como não tive mais encome
nda de doces, começamos a trabalhar ativamente p
ara os soldados. Um dia chegou um trem
cheio de
feridos. Vinha do Norte, perto de Cruzeiro; Isa
bel foi assistir a chegada e veio contando: algu
mas mães gritavam desesperadamente quando viram
os filhos
descerem do trem, carregados em macas
, as fisionomias quase irreconhecíveis, barbudos
e pálidos. Alguns tinham os olhos fechados, par
eciam mortos; outros
vinham com as cabeças amar
radas e tão brancos que pareciam fantasmas.
Nes
se dia lembrei que podia ir a Itapetininga fazer
uma visita a Carlos; queria vê-lo, precisava fa
lar com ele, nem que fosse um instante só. Era c
apaz de ir até
a pé, tal o meu desespero. Diant
e de tanto horror, queria certificar-me se ele v
ivia ainda.
No dia seguinte, fui com Isabel ao
Largo do Palácio para tirar o salvo-conduto; de
lá fomos para um prédio atrás do teatro Municipa
l e depois de muita espera e dificuldade,
conse
guimos o que queríamos. No dia seguinte, às sete
e meia, estávamos na estação para tomar o trem
das oito horas; Clotilde foi conosco. Fazia frio
nessa manhã,
mas o dia estava bonito e o céu m
uito azul. Um batalhão ia também embarcar e a es
tação estava completamente cheia de soldados que
falavam e riam alto. Ocupamos nossos
lugares e
ficamos esperando o momento de partir; meu cora
ção batia apressado sem saber o que ia encontrar
.
O movimento de pessoas que passavam, falavam,
davam ordens, era incessante enquanto um batalh
ão se instalava num outro trem ao lado do nosso;
senhoras e meninas
traziam pacotes e mais paco
tes que distribuíam aos soldados; eram da M. M.
D. C.; quando uma das senhoras nos viu, veio fal
ar conosco; era uma vizinha que encomendava
sem
pre doces para eu fazer nas festas que dava. Con
tei que ia visitar meu filho em Itapetininga e q
ue ele combatia no Sul, em Buri; ela sorriu e di
sse que também
tinha um filho no 9 de Julho; ou
tras duas senhoras se aproximaram também e disse
ram que eram "três animadoras" e assim trabalhav
am pela Causa. Um pouco antes das
tropas partir
em, vinham as três distribuir cigarros, chocolat
es e roupas de lã aos soldados. Então nos contar
am que a mais velha, de cabelos grisalhos, grita
va no
momento do trem partir: Viva o Batalhão t
al! Essa primeira era viúva e não tinha quem pro
ibisse de dar vivas; a segunda batia palmas porq
ue o marido não queria que
desse vivas; a terce
ira apenas sorria porque o marido não queria que
desse vivas, nem batesse palmas. Assim as "anim
adoras" iam de vagão em vagão, distribuindo pres
entes,
coragem e sorrisos aos soldados; e assim
trabalhavam ativamente pela Causa.
Perto de nó
s um rapaz despedia-se de um soldado que ia part
ir: o que ficava, dizia:
- Irei logo que puder,
é só os velhos cederem. Já estão cedendo; irei
combater ao seu lado.
Perguntou depois de uma p
ausa:
- Não precisa de nada? Dinheiro? Cigarros
?
- Não. Tenho tudo. E para que quero mais?
O
que ficava, tirou uma nota de cinqüenta mil-réis
e deu ao soldado:
- Leve mais esse dinheiro, q
uem sabe vai precisar. O soldado riu, dizendo:

- Se eu morrer lá, não poderei pagar você.
- Nã
o morre; e me espere que dou um jeito nos velhos
e vou também.
O trem começou a rodar levando t
ropas para o Setor Sul. Nosso trem seguiu logo d
epois; na estação de Santo Antônio parou durante
muito tempo. Chegamos muito tarde
em Itapetini
nga e Olga ficou surpreendida quando nos viu; a
casa estava cheia e tivemos que dormir na sala d
e jantar; Isabel dormia no sofá e tinha que enco
lher
as pernas; todas as manhãs sentia as perna
s duras e se queixava. Tia Candoca estava lá com
a filha casada: Mocinha; o marido de Mocinha es
tava combatendo no rio
das
Almas e Mocinha cho
rava todos os dias. No mesmo dia da chegada, fui
ao Hotel São Paulo procurar alguém que nos indi
casse a maneira de ver Carlos ou saber notícias


dele. O hotel estava cheio de soldados e aviado
res; me mandaram para um outro hotel e era tarde
quando consegui falar com um tenente que promet
eu providenciar para
Carlos vir me ver. Nessa n
oite chegaram trens com feridos e mortos; o club
e da cidade já estava transformado em hospital.
Um grande silêncio caía como uma sombra
sobre a
cidade todas as vezes que vinha da frente um tr
em de feridos; todos se lamentavam e sofriam qua
ndo viam os soldados pálidos e doentes descerem
do trem apoiados
uns aos outros ou deitados em
macas, tão pálidos como o próprio lençol que os
cobria. E um silêncio pesado se fazia quando sur
gia um morto, carregado com cuidado
e carinho.
O povo se afastava respeitosamente para o morto
passar e lá ia ele levado pelos amigos, cheio de
glória e de feridas para um canto qualquer da t
erra.
Pensava em Carlos; dia e noite, noite e d
ia, o pensamento me martirizava verrumando o cér
ebro sem piedade e sem tréguas.
Só no terceiro
dia de espera, tive notícias de Carlos; havia um
oficial ferido do mesmo batalhão na Santa Casa
de Misericórdia e fui imediafamente procurá-lo.
Durante
mais de uma hora fiquei sentada num can
to, esperando ser recebida; depois me disseram q
ue o oficial estava tão mal que não podia me rec
eber. Tornei a falar o nome
dele e explicar que
o ferimento era nos olhos e tinham me dito que
não era tão grave assim; voltaram depois dizendo
que era engano, decerto estava num outro hospit
al.
Fui à Escola Normal, não era também lá; res
olvi ir então ao Clube Venâncio Aires, talvez es
tivesse lá. Cheguei à Praça Marechal Deodoro tão
cansada como se não houvesse
mais esperança de
nada, tudo estivesse perdido. À minha volta, só
dor, tristezas e luto; tive a impressão que aos
poucos tudo ia se desmoronando como terra solta

num barranco, nada mais ficava de pé. Depois d
e ter descansado um pouco na Praça, entrei no Cl
ube transformado em Hospital; médicos e enfermei
ros passavam apressados
de um lado para outro.
Quando disse o que queria, me mandaram esperar n
uma saleta e ali fiquei, com medo de saber a ver
dade e ao mesmo tempo ansiando saber, fosse
o q
ue fosse. Depois me mandaram entrar numa sala on
de havia vários feridos; o enfermeiro me indicou
um dos leitos e me disse que era aquele quem eu
estava procurando.
Aproximei-me e vi que tinha
os olhos vendados; virou o rosto para meu lado
e ficou esperando. Disse então quem eu era e o q
ue pretendia; fez um breve gesto com a
mão como
que saudando e sorriu brandamente. Havia um che
iro forte de remédios no ar e nas outras camas a
lguns doentes gemiam ou dormiam, enquanto lá for
a o dia estava
lindo e azul. Sentei-me numa cad
eirinha ao seu lado e perguntei-lhe o que tinha
acontecido; ele entãocontou: juntamente com um c
ompanheiro tomava conta de uma metralhadora
qua
ndo uma bomba de canhão explodiu mesmo em frente
; tudo saltou pelos ares e ele recebeu grande qu
antidade de terra nos olhos, além de um estilhaç
o no braço. O
camarada ficara gravemente ferido
; os outros soldados conseguiram se arrastar da
trincheira e puxá-los pelos pés; assim tinham de
ixado o batalhão e vindo à cidade
para se trata
rem. Disse-lhe palavras de comiseração e ele con
tou que conhecia muito Carlos; ia bem
e era um
dos valentes. Disse também que "a coisa lá era d
ura e se levantavam um pouco a cabeça fora da tr
incheira, vinha bala porque o inimigo não dormia
". Perguntei
como se alimentavam: hesitou um po
uco dizendo que ia até fazer uma reclamação ness
e sentido porque a "bóia" não era das melhores.


- Feijão com arroz? perguntei. Hesitou mais ant
es de responder:
- Às vezes feijão com arroz; p
ão de guerra não falta nunca.
- E café? Lembrei
que Carlos gostava muito de café.
- Temos semp
re café.
Virou o rosto para a parede, um ar can
sado; depois me aconselhou a procurar o Coronel
Taborda e pedir uma licença para meu filho; eu d
isse que seria difícil falar
com o Coronel Tabo
rda; virou-se outra vez para meu lado com os olh
os vendados, os lábios sem cor e a voz cansada:


- Procure falar com alguém do Estado-Maior; tal
vez a senhora arranje alguma ordem, mas é difíci
l. Os que conseguem sair de lá, são só os mortos
e feridos.
E fez um gesto mostrando a cabeça.
Agradeci e saí completamente desanimada. A quem
recorrer?
Fui andando pela Rua Dr. Júlio Preste
s arrastando os pés que pesavam como chumbo, e m
e dirigi novamente para o Hotel São Paulo. Por f
elicidade um oficial me atendeu,
solícito, e me
disse muito delicadamente que nesse momento ser
ia quase impossível uma licença, mas que eu tive
sse paciência e voltasse a São Paulo porque uma
semana
mais tarde a Companhia na qual meu filho
combatia teria uma licença e ele poderia ir a S
ão Paulo. Disse que se orgulhava desse Batalhão
porque todos lutavam como
bravos; e que mesmo n
a' véspera tinham-se portado heroicamente durant
e um violento ataque inimigo. Meu coração deu um
salto e perguntei com voz trémula:
- Mas já te
ve notícias depois desse ataque?
Ele sorriu com
passivamente e soltando a fumaça do cigarro para
cima disse com a mão no meu ombro como se eu fo
sse uma criança:
- Tenho sempre notícias; pode
voltar tranqüila, nada aconteceu. Agradeci muito
e voltei para a casa de Olga, resolvida a embar
car
para São Paulo no dia seguinte. Nessa noite
, levamos um susto muito grande; estávamos deita
dos e era quase meia-noite quando ouvimos batere
m com força na porta da
rua. Todos nos levantam
os imediatamente e eu levei a mão ao coração num
a ânsia desesperada; Zeca foi abrir a porta, Olg
a com um roupão por cima da camisola foi atrás

dele, tia Candoca e Mocinha saíram assustadas do
quarto. As crianças acordaram e o menor começou
a chorar; Clotilde correu para acalmar o pequen
o, enquanto as batidas
se sucediam e ouvimos um
a voz grossa um pouco rouca, dizer:
- Abram, so
u eu, o Nelson.
Era o marido de Mocinha; ela co
rreu como louca enquanto Zeca abria a porta; vim
os então o Nelson com a farda rasgada, todo sujo
, a barba enorme, os olhos pretos
luzindo inten
samente no meio da barba preta, um ar de profund
o cansaço. Todos perguntaram aflitamente ao mesm
o tempo:
- O que foi? Está ferido? O que aconte
ceu?
Mocinha encostou a cabeça no ombro do mari
do e desatou a chorar sem poder falar; então Nel
son entrou lentamente, arrastando os pés e
#bat
endo com as esporas no chão, Mocinha dependurada
no braço dele. Olga puxou logo uma cadeira e el
e se sentou dando um gemido. As crianças começar
am a aparecer
assustadas, os cabelos desgrenhad
os, um mascando a chupeta, e pararam na porta da
sala, olhando Nelson com olhos dilatados de esp
anto. Tia Candoca foi buscar um
copo d'água na
cozinha e Zeca gritou:
- Traga um café quente q
ue é melhor.
Nelson estava com os lábios descor
ados e recostando a cabeça para trás, disse com
voz pausada:
- Não se assustem, não estou ferid
o. O que estou é cansadíssimo; fomos cercados pe
lo inimigo e quase fiquei por lá...
Houve uma ú
nica exclamação:
- Cercados?
Mocinha começou a
chorar mais alto e Olga ralhou com ela:
- Você
não deve chorar assim, pois seu marido está aí
sem ferimento algum. Dê graças a Deus, conte com
o foi, Nelson.
Veio um cálice de vinho do Porto
que Nelson bebeu de uma só vez; depois pediu ág
ua. Água! Água! Pois estava com uma sede dos dia
bos! Bebeu dois enormes copos d'água
e então co
ntou que toda a cavalaria tinha sido cercada nas
proximidades de Buri; quando perceberam o perig
o, havia apenas uma brecha por onde podiam passa
r. Puseram
os cavalos num galope desenfreado e
passaram um por um pela brecha, deitados sobre o
s cavalos e ouvindo as balas zunirem por cima da
s cabeças. Ele viu o companheiro
que vinha atrá
s vacilar e cair enquanto o cavalo continuava a
correr; quis voltar para acudir, mas atrás vinha
m os outros que gritaram:
- Toca pra frente que
o inimigo vem aí.
Ele tocou à toda e mais adia
nte, reuniram-se para contar se estavam todos; f
altavam três.
Houve um silêncio e tia Candoca d
eu um gemido lamentoso:
- Que calamidade! Imagi
ne as mães desses três! Que dor, meu Deus! Estre
meci pensando em meu filho enquanto um friozinho
me subia
pela espinha; perguntei se não havia
notícias do batalhão Borba Gato. Ele me olhou es
tranhamente e disse que não sabia; cada um comba
tia de um lado e nada se sabia.
Ficamos convers
ando ainda uma meia hora depois fomos todos deit
ar; tia Candoca precisou dormir também na sala p
ara dar a cama para o Nelson; eu me deitei no so

e não dormi. Levantamos cansados no dia segu
inte e embarcamos para São Paulo, Isabel e eu; C
lotilde resolveu ficar para auxiliar Olga. Chega
mos e fiquei esperando
a licença de Carlos, ans
iosamente.
No mesmo dia da chegada, D. Genu vei
o me perguntar se eu não queria dar ouro para a
revolução. Perguntei admirada:
- O que é isso d
e ouro para a revolução?
Então ela me mostrou o
s jornais que traziam títulos enormes; fui ver o
que eu podia dar e resolvi entregar minhas alia
nças e uma corrente velha de relógio; Isabel
qu
is dar umas medalhas de ouro que as tias tinham
dado quando ela era pequena. Disse que não devia
dar todas, mas ela teimou e foi entregar três m
edalhas e uma correntinha.
ficou só com uma med
alhinha de Nossa Senhora. Fui ao Banco com D. Ge
nu e lá havia uma fila enorme de pessoas com pac
otinhos de jóias e alianças para entregar;
algu
mas eram estrangeiras. Eram modestas e simples;
D. Genu falou:
- Essas dão muito mais que os ri
cos porque dão tudo o que têm; assim como nós ta
mbém. Imagine se os ricos vão dar tudo; dão um a
nel, o mais feio de todos ou o de
menos valor e
ainda ficam com vinte! É sempre assim. São uns
diabos.
Depositamos nossa modesta dádiva e volt
amos conversando para casa; na Praça Marechal De
odoro vi Isabel passeando com um rapaz fardado;
mostrei para D. Genu:
- Olhe, D. Genu, o que sã
o os filhos. Por mais que eu fale e aconselhe, n
ão adianta. Pedi tanto a ela para deixar esse na
moro porque o rapaz não presta e é inútil.
Tenh
o vontade de fazer um escândalo.
D. Genu me seg
urou pelo braço:
- Não faça nada disso; a senho
ra é capaz de perder a cabeça e eles ficam com r
aiva. Isso não conserta o que está torto. Fale c
om ela em casa que é melhor.
- Já aconselhei, j
á ameacei, já pedi Qual! É um desespero esta vid
a; quem é que pode com isso?
D. Genu procurou m
e consolar:
- Pode ser que endireite; se não en
direitar, paciência. Ao menos a senhora fez tudo
que pôde, se ela não escutou é porque não quis.
Lembre-se da Joca. Não houve
cristão que fizes
se ela largar o homem; e vivem aos trambolhões p
or aí.
Fomos para nossas casas e vesti logo um
avental para fazer uns doces para uma senhora qu
e esperava essa tarde um sobrinho da frente Nort
e. De repente Isabel entrou
cantarolando; enfio
u a cabeça na porta da cozinha, muito alegre:
-
Foi levar suas ricas jóias? Que doce é esse? Se
m levantar a cabeça do meu serviço, falei:
- Se
rá possível Isabel, será possível que nada adian
ta? Nem conselhos, nem ralhos, nem nada? Você nã
o parece minha filha. A filha que criei com todo
o carinho
e cuidado me desobedecendo desta for
ma vergonhosa. Então minhas palavras não valem n
ada? Estou falando para o vento?
Ela tinha se a
proximado da mesa e pegando um pedaço de massa d
e doce, começou a fazer bolinhas, a cabeça baixa
, sem nada dizer.
- Fale, Isabel, não tem mesmo
vergonha? Continua a andar com aquele ordinário
?
Ela se revoltou: - Ele não é ordinário.
- Co
mo, não é ordinário? Um homem casado namorando u
ma menina solteira? Como vai casar com você? Lar
gue a massa do doce!
- Ele não é casado; já dis
se que está separado e tratando do desquite.
-
É casado. Que desquite nada! É casado, continua
casado. Abandonou a mulher, mas é casado.
- A s
enhora pergunte para quem quiser se não foi ela
que abandonou o lar. Pode indagar: ele foi sempr
e bom, ela que não
prestava...
Mexi com força
a panela:
- Já disse que largue essa massa. Que
m contou isso? Ele, não foi? Eu queria ouvir a m
ulher dele, isso sim. Ele não pode ser boa bisca
.
Ela levantou a cabeça e falou bem alto:
- Ac
ho graça a senhora e Carlos falarem essas coisas
se não o conhecem. Deviam procurar conhecê-lo p
rimeiro.
- Deus me livre; não quero conhecê-lo-
e nunca darei meu consentimento nem para ele ent
rar aqui. Ele não quer casar, quer juntar. É cas
ado.
Isabel ficou furiosa e vermelha de raiva:


- Um dia a senhora ainda há de se arrepender de
ssas palavras. Há de se arrepender, mas será tar
de. Eu já disse e torno a dizer que faço uma lou
cura. E faço mesmo!
Estou cansada de tudo isto!

Levantei a colher de pau que mexia a panela e
sacudi diante dela:
- Olhe, Isabel, tenho visto
muita moça casada por aí com homens tão ordinár
ios que suas mães preferiam ver as filhas mortas
do que vivendo essas vidas. Essa é que
é a ver
dade. Ouviu? E deixe de me ameaçar.
A calda do
doce escorreu pela colher de pau e me queimou os
dedos; lambi-os enquanto Isabel começava a chor
ar:
- Sou mesmo uma infeliz. Ninguém me quer ne
sta casa, ninguém deseja minha felicidade. É hor
rível viver assim...
Deixou a cozinha e foi se
fechar no quarto; o resto da tarde passou-se em
silêncio. Fui levar as encomendas e na volta cha
mei Isabel para jantar: ela apareceu com
os olh
os inchados, a fisionomia muito abatida. Aconsel
hei-a durante quarenta minutos enquanto ela comi
a sem vontade o jantar; no fim pareceu concordar
comigo porque
sacudia a cabeça sen dizer nada,
o rosto muito triste. Mais tarde quando deitei
a cabeça cansad no travesseiro, lembrei-me de Ca
rlos, que eu tinha esquecido durante
aquelas ho
ras. Tive um sobressalto e pensei: "Estará vivo?
Morreu? Oh! Meu Deus!"
E levantando-me de novo
, comecei a rezar de joelhos na cama para que vi
esse logo a paz; a paz para São Paulo e para nos
so lar.

Capítulo XV

O MÊS de setembro foi
passando lentamente; só se ouvia contar que comb
atiam em todas as frentes, em todas as fronteira
s, em todos os setores. Em toda a parte a triste
za,
a aflição, a falta de notícias; os corações
fechados, as fisionomias preocupadas; os olhos
fixos no alto procurando a esperança e a esperan
ça acenando ao longe como
um véu branco a se ag
itar na distância, tão longe e tão tênue como se
fosse desaparecer ou fosse inatingível. Um véu
agitado por vento incerto. As horas lentas,
os
dias longos, as noites sem fim marcando o tempo
que não passava. Setembro. Soldados feridos em t
odos os hospitais; soldados mortos, E as rosas d
os jardins paulistas
enfeitando túmulos. Túmulo
s cheios de rosas; olhos cheios de lágrimas; láb
ios cheios de orações... As esperanças caindo um
a por uma como folhas mortas. Dor. Angústia.
De
salento. Névoa no céu e na terra; nos olhos e na
s almas. Desilusão.
Uma tarde um soldado trouxe
uma mensagem à nossa casa; Isabel ficou com ela
na mão e depois me disse com voz trêmula:
- Av
isaram que Carlos está no Hospital Militar do Br
ás. Ferido.
Olhamo-nos um instante sem compreen
der, depois perguntei aflitamente, sem saber o q
ue falava, para ter tempo de firmar: - Quem? Car
los? Onde? Carlos mesmo? Gravemente?
- Acalme-s
e, mamãe. Disseram que está levemente ferido; es
tá no Hospital do Brás aqui em São Paulo.
- Que
m avisou? Isso é mentira. Se estivesse levemente
ferido, viria para casa. Onde é o Hospital do B
rás? Vamos embora.
E saí correndo para pôr o ch
apéu enquanto Isabel também se preparava rapidam
ente; tomamos o bonde e levamos mais de uma hora
para chegar lá.
Quando entrei no jardim do Hos
pital, nem sei como minhas pernas caminhavam, po
is os mais tristes pressentimentos vinham-me à c
abeça. Só me lembro que andamos atrás
de uma en
fermeira por um caminho interminável; passamos p
or um lugar coberto, depois por um lugar descobe
rto, depois entramos na outra ala do hospital; a
travessamos
uma sala, duas salas, passamos um c
orredor e chegamos a uma enfermaria. Vi todas as
camas ocupadas, um sol triste entrando através
de duas janelas abertas, cheiro
de remédios, de
sinfetantes, enfermeiras de branco, sussurros de
vozes, vidros sobre algumas mesinhas, uma bande
ja esquecida num canto, um ambiente pesado. Algu
mas
cabeças voltaram-se para nós, olhos admirad
os e surpreendidos; a enfermeira mostrou:
- É a
quele lá, o quinto à direita.
Quando divisei o
rosto de Carlos muito pálido, mas risonho, numa
das últimas camas perto da janela aberta, senti
um alívio e pensei que ia chorar. Apertei as mão
s
dele entre as minhas e ele perguntou com um s
orriso nos lábios muito brancos:
- Assustou-se
muito, mamãe?
- Muito. Então? Como foi?
Quando
ele me explicou que tinha um estilhaço de grana
da no peito, perto da clavícula e não tinha outr
o ferimento, senti maior alívio e tive vontade d
e falar alto,
fazer qualquer coisa, rir. levant
ar, sair correndo, fechar a janela, abrir outra
vez, mover-me enfim; mas fiquei ali parada olhan
do para ele e vendo-o sorrir e falar.
Conversou
alegremente dizendo que logo iria para casa; ap
areceu uma enfermeira trazendo uma bandeja com c
afé e pão; quando se sentou na cama e começou a
comer com
vontade, chorei. Mas ele riu, acarici
ando minha mão:
- O que é isso? Agora que estou
bom, lembra de chorar, mamãe? Então falei que t
inha sofrido tanto nesses longos meses de guerra

que nem sei como ainda vivia; Carlos sorria pa
ra Isabel e para mim, depois perguntou alegremen
te:
- Essa menina está com juízo agora?
Isabel
abaixou a cabeça e começou a disfarçar brincand
o com a bolsa; respondi:
- Naturalmente; ela co
mpreendeu em tempo e tudo vai bem. Carlos riu-se
mais e pediu umas frutas quando voltasse; algum
as
laranjas e algum docinho também. Meia hora d
epois, saímos e fui procurar a enfermeira chefe
para saber melhores notícias; ela disse que fari
am uma pequena operação
logo que ele estivesse
mais forte e podia então voltar para casa. Estav
a muito enfraquecido, mas não era nada grave. Fo
ra muito feliz. Fomos embora e voltei no dia
se
guinte; só vivia esperando a hora de visita para
ver Carlos; levava frutas, doces que fazia todo
s os dias.
inventava coisas para levar ao meu f
ilho. Não, pensei mais na revolução e nem me imp
ortei quando acabou; um dia Isabel me contou sob
re o armistício e respondi:
- Estimo muito; che
ga de morrer gente. Já era hora.
E dizendo isso
, saí com meu pacotinho a caminho do Hospital. U
m dia encontrei Carlos pronto para voltar para c
asa; tiraram o estilhaço sem novidade. Levei-o d
e automóvel.
Foi uma festa. D. Genu e toda a fa
mília vieram vê-lo logo, assim como as outras vi
zinhas; Carlos se via rodeado como um herói e ti
nha que contar tudo, com todas
as minúcias. Con
tava que durante dias e dias só comia pão de gue
rra porque não havia outra coisa; como a trinche
ira era na beira do Rio das Almas e o pão às vez
es
estava duro como pedra, arranjavam uns barba
ntes compridos, amarravam o pão na ponta do barb
ante e jogavam no rio; quando o pão estava bem i
nchado, puxavam e comiam.
Havia exclamações de
dó:
- Que horror! Que horror! Não havia oufra c
oisa? E café? Eu perguntava:
- E feijão com arr
oz? O oficial que visitei em Itapetininga me dis
se que comiam feijão com arroz.
- Tinha feijão
cozinhado com arroz, misturado. Pão e café. Cont
ava que dormia no chão do fundo da trincheira e
ficavam dias
e dias sem pôr a cabeça para fora.
Uma noite contou o caso da metralhadora. Um ofi
cial chamou-o e mais um outro para assentarem um
a F.M. num certo ponto estratégico;
foram se ar
rastando durante a noite, esconderam a F.M. entr
e galhos de árvore e ficaram ali esperando o mom
ento oportuno. Carlos falava rodeado de ouvintes
:
- Assestamos a "bicha" na direção deles e cos
turamos; a F.M. funcionava que era uma beleza; v
imos uns fugirem e outros tombarem. Foi sucesso.
Mais tarde eles
voltaram e jogaram granadas so
bre nós, não deu resultado; nós continuamos noss
o jogo vários dias. No terceiro ou quarto dia, n
ão me lembro bem, íamos revezar
para vir outra
turma quando o oficial foi costurado no peito; n
em gemeu. Meu companheiro e eu abaixamos e ficam
os quietinhos, porque as balas cantavam nas noss
as
cabeças. O oficial só virou de lado e morreu
; esperamos a noite e voltamos para a trincheira
, resolvidos a ir buscar o corpo do oficial no d
ia seguinte. Quem diz?
Os diabos descobriram on
de estava a metralhadora e não deixaram ninguém
chegar perto; e o corpo do nosso companheiro fic
ou lá apodrecendo. No quinto dia, o Capitão
"Sa
i Tiro", como chamávamos na turma, valente como
o diabo, disse: "Isso não pode ficar assim. Quem
quer vir comigo?" Eu e mais dois camaradas nos
oferecemos. Então
fizemos uma cobra, um seguran
do nos pés do outro, fomos nos arrastando até ch
egar onde estava o corpo. O "Sai Tiro" ia na fre
nte, pegou o cadáver pelo pé e foi puxando;
eu
puxava "Sai Tiro" pela perna, outro puxava minha
perna até chegar na trincheira. Assim trouxemos
o morto para enterrar; não digo nada, faltava u
m braço no coitado.
Isabel deu um grito agudo e
cobriu o rosto; D. Genu fez o sinal da Cruz apr
essadamente:
- Credo! Que coisa horrorosa. E de
pois?
- Depois enterramos o camarada no fundo d
a trincheira e lá ficou, bem quietinho.
Ficávam
os em silêncio, a sombra da morte pairando na ro
da; vinha outra história:
- Havia no nosso bata
lhão um rapazinho muito bom, muito religioso e d
elicado; tinha o rosto redondo e corado, a pele
tão lisa e fina como a de uma moça. A mãe
era p
ortuguesa e como ele falava com sotaque portuguê
s, nós o apelidamos de "portuga". Todas as vezes
que havia perigo, ele dizia: "Valha-me Deus! Va
lha-me Deus!"
Nós perguntávamos: "Está com medo
, portuga?" "Não", respondia, "estou lembrando D
eus para quando eu bater na casa dele, não demor
ar a abrir a porta". "Qual, portuga,
você não m
orre assim à toa". Mas um dia o "Sai Tiro" pediu
uma turma boa para tirar um ninho de metralhado
ra do inimigo. O portuga foi um dos primeiros qu
e se ofereceram;
o serviço era perigoso. Precis
ava calma e coragem. Esperamos anoitecer e foram
o "Sai Tiro" na frente se arrastando, depois um
outro camarada, o portuga e
mais outros dois.
Levavam os bolsos cheios de granadas de mão e os
fuzis a tiracolo para cobrir a retirada depois
da façanha. O inimigo quieto, parece que estava


dormindo. Tudo foi indo bem; quando estavam a p
oucos metros e o "Sai Tiro" deu ordem de avançar
, levantaram e jogaram as granadas. Pegaram de s
urpresa; os que
guardavam a metralhadora, caíra
m; apareceram logo outros e começaram a pipocar;
mas naquela confusão, o "Sai Tiro" e um camarad
a conseguiram roubar a F. M. e correr.
Os outro
s continuaram a atirar com os fuzis e a recuar p
ara dar tempo dos companheiros chegarem na trinc
heira. Nesse instante, viram o portuga cair; ape
sar da escuridão,
o companheiro percebeu que er
a ele pelo "Valha-me Deus". O companheiro procur
ou levantá-lo: "Coragem, portuga. Falta pouco".
Ele riu e respondeu: "Hoje é
o dia de me recebe
rem; não perca tempo comigo, camarada". Outras b
alas choveram perto; o companheiro disse para um
outro: "Ajude a levar o portuga". Vieram outros

em auxílio e começaram a atirar por cima das c
abeças para os inimigos não se aproximarem, enqu
anto arrastavam o camarada ferido para a trinche
ira. Vimos então
que ele estava ruim mesmo; saí
a sangue da boca e tinha um ferimento feio no pe
ito; a farda estava vermelha de sangue. Arranjam
os uma cama para ele e o médico do
batalhão com
eçou a examinar e fez sinal que nada adiantava;
o coitado estava morrendo. Vimos então que ele r
ezava; estava lívido, os olhos meio embaciados e
dizia:
"Livrai-nos, Senhor, do mal, Amém". Rep
etia só isso; eu acho que esqueceu o resto. "Liv
rai-nos, Senhor, do mal. Amém". Um outro disse:
"Vamos rezar desde o princípio,
camarada". E co
meçou bem devagar e bem perto dele, mas acho que
ele nem ouvia mais. Era só: "Livrai-nos, Senhor
, do mal, Amém". Nem entendia mais nada, nem olh
ava
para nós. As lágrimas corriam sem cessar do
s seus olhos e nós enxugávamos; quando não era u
m, era outro companheiro perto dele. Custou morr
er, creio que foi hemorragia
interna. Eu não as
sisti o fim, mas me contaram que ele disse: "Val
ha-me Deus! Minha mãezinha!" Um camarada que gos
tava muito dele, ficou danado e começou a xingar

a revolução: "É para assistir isso que estamos
aqui. Porcaria de revolução, uma banana para to
da esta..." Dizia nomes horríveis com os olhos c
heios de lágrimas de
dó do portuga. Era até eng
raçado. Ficamos a noite inteira guardando o corp
o e no dia seguinte, foi enterrado com toda a so
lenidade.
- Onde?
- Na trincheira mesmo.
- Co
itado! E não houve mais feridos nesse dia?
- Um
outro foi baleado na barriga da perna, mas saro
u logo.
D. Genu perguntava se tinha matado algu
m frente a frente; Carlos
disse que sim; um dia
matou um negro que chegou-quase na boca da F.M.
Veio vindo, veio vindo, procurando se esconder
entre o capim ou atrás dos arbustos, quando
Car
los apontou o fuzil e bum! o coitado só largou o
fuzil e gritou: "Ai minha Nossa Senhora!"
D. G
enu fez outra vez o sinal da Cruz rapidamente e
Isabel deu outro gemido cobrindo o rosto; fiquei
imóvel, os olhos muito abertos, achando Carlos
incapaz dessa
maldade. Ele continuou calmo:
-
Guerra é guerra. Se eu não tivesse matado o negr
o, ele não me matava? Matava. A gente vai lá par
a matar ou para morrer; então é melhor acabar tu
do de uma
vez, se não a gente leva fogo.
- Não
sentiu remorsos?
- Tive muita dor de cabeça es
sa noite e sonhei com o grito do negro a noite t
oda. Horrível.
Desde esse dia, não quis mais ou
vir falar em revolução e pedi a Carlos que não f
alasse mais nisso. Logo que ele sarou completame
nte, voltou a trabalhar no Banco
e recomeçamos
então nossa pobre vida.
Recebi um cartão de Alf
redo pedindo notícias, pois ouvira contar coisas
horríveis da revolução: continuava nos Estados
Unidos, tinha passado maus pedaços, mas agora
i
a melhor. Já estava um ano ausente. Julinho tamb
ém escreveu do Rio, muito aflito, perguntando se
nos acontecera alguma coisa. Ia sempre bem na l
oja, dizendo que
as possibilidades eram muitas
para o futuro.
Clotilde veio de Itapetininga e
passou meses conosco; mais uma vez fomos juntas
visitar tia Emília na Rua Guaianases. Titia esta
va paralítica em todo o lado direito
devido a u
ma congestão que tivera; não falava com muita fa
cilidade, mas quando nos viu não se esqueceu de
falar sobre a origem das famílias porque sabia q
ue Clotilde
gostava. Às vezes não podia termina
r as palavras porque a língua não auxiliava; pre
cisava então prima Adelaide terminar por ela; me
smo assim não deixou de falar.
Quando ouviu con
tar que Carlos combatera no Batalhão Borba Gato,
tia Emília ficou animada e contou que Borba Gat
o tinha se casado em Sorocaba em 1726. Prima Ade
laide
pediu que não falasse tanto, podia fazer
mal, mas tia Emília continuou serenamente como s
e não tivesse ouvido:
- Borba Gato casou-se com
Luzia Leme de Barros. Essa Luzia era filha de..
. de... Espere que eu sei...
Prima Adelaide sus
surrava:
- Não se esforce, mamãe. Pode fazer ma
l.
- De. .. Ah! Já sei. De Inácia de Barros. Es
sa Inácia foi casada duas vezes; do primeiro mat
rimônio, deixou um filho e do segundo deixou cin
co filhos. A Luzia do
Borba Gato era filha do s
egundo...
Olhou triunfante para a filha e para
nós:
- Pensa que me esqueci? Não esqueço essas
coisas.
- Nós sabemos que a senhora não esquece
, mas a questão é que falar muito pode fazer mal
.
- Não faz. Um dos descendentes deles foi Clar
a de Miranda; essa casou-se com um filho de nobr
es portugueses. Chamava-se Francisco de Barros P
enteado; um dos filhos
deste casal foi Manoel C
orreia Penteado,
nasceu aqui em São Paulo.. .

Prima Adelaide procurou interromper:
- Está bem
, mamãe. Vamos agora tomar um leitinho?
Tia Emí
lia fez uma careta e começou a tomar o leite sem
vontade; assim que acabou, levantamos para sair
, mas ela ainda procurou explicar:
- Esse Manoe
l que eu falei teve muitas fazendas, minas de ou
ro, grandes riquezas; pois esse foi casado com..
. com...
Prima Adelaide procurou auxiliar:
- I
nácia de Barros?
Tia Emília olhou-a revoltada p
or ouvir tamanho erro. Minha prim.; insistiu:
-
Depois a senhora lembra, mamãe. Não se incomode
agora
- Esperem aí que lembro já; pensa que es
tou maluca? Casou-se com... com...
Novo silênci
o; Clotilde interveio mansamente:
- Não se esfo
rce tanto, tia Emília. Sua memória é muito boa;
naturalmente devido à moléstia, ficou um pouco e
squecida, depois volta tudo.
Ela interrompeu:

- Não estou esquecida; quem disse que estou? Eu
me lembro muito bem, esse Manoel Correia Pentead
o foi casado com Beatriz de Barros.
E dando um
suspiro de alívio, fechou os olhos, recostando a
cabeça no travesseiro. Saímos imediatamente e f
omos comentando pelo caminho afora a mania de ti
a Emília;
Clotilde suspirou:
- Mesmo morrendo,
ela vai citando os nomes, as datas os casamento
s das famílias antigas.
- É mesmo. Olhe que hoj
e o esforço foi danado, assim mesmo ela falou di
reitinho; vai assim até a hora da morte.
- Vai.
Imagine falando até o último suspiro sobre Borb
a Gato e sua descendência. Tem graça.
- A Beatr
iz de Barros custou a sair, não?
- Nem fale; eu
já estava aflita.
- Eu também.
Assim conversa
ndo, chegamos em casa e arregaçando as mangas, p
usemos os aventais e fomos fazer uns doces para
uma encomenda. Pouco tempo depois, fomos pela úl
tima
vez à Rua Guaianases; tia Emília tinha mor
rido. Morreu perfeitamente lúcida, falando e rec
omendando tudo até o último momento. Depois da m
orte dela, prima Adelaide
vendeu a casa e foi m
orar na fazenda, em Campinas.
Clotilde voltou p
ara Itapetininga; e quando eu insisti para que f
icasse sempre comigo, confessou que preferia mor
ar lá a morar em São Paulo. Sentia-se velha e a

velhice
pedia-lhe paz e silêncio; em São Paul
o havia muito barulho. Mesmo o ruído das carroci
nhas de pão e leite sobre o calçamento das ruas,
fazia-lhe mal; queria a paz
das
cidades do i
nterior com suas ruas desertas, seu sossego e se
us gatos dormindo ao sol, sobre os muros. Gostav
a de sair e cumprimentar todo o mundo; essa hist
ória
de não conhecer ninguém, nem os próprios v
izinhos, não ia com seu temperamento. Gostava de
abrir a janela de manhã e cumprimentar a vizinh
a da esquina, a de lado,
a da frente. E pergunt
ar bem alto na rua silenciosa: "Dormiu bem? Noss
o galo cantou muito essa madrugada? Não ouviu?"
Ou então: "Acertou o ponto de tricô que ensinei


ontem? Não? Ora, é tão fácil. Dá duas laçadas e
um ponto à direita. Depois faz o contrário; no
fim. Olhe, venha depois do almoço que ensino out
ra vez"
E à tarde fazia uma peregrinação pela v
izinhança; ia ver Nhazinha que estava com a filh
inha doente; dava um pulo até à casa da Marocas
para cumprimentá-la pelo
aniversário dizendo ri
ndo: "Mais uma rosa no jardim da sua existência,
hein, Marocas?" Depois ia ensinar o ponto de ba
la de ovos para D. Tuda que não havia meios
de
acertar. E assim corria a vida; tão simples, nad
a de complicações e problemas, nada de correrias
. Tudo lentidão e paz. Para que pressa? -,
Em S
ão Paulo não; todo o mundo corria, todo o mundo
andava depressa para chegar na hora, todo o mund
o vivia afobado.
- Corre que o bonde vem vindo.

- Não tem lugar nesse bonde; temos que esperar
outro.
- Então chegaremos atrasados no cinema.

- Ah! Meus Deus! Vamos perder a hora.
- Quem
é a vizinha da esquina?
- Não sei.
- Não sabe?
Pois não são vizinhos?
- Somos. Faz mais de tr
ês anos que vieram morar aí, mas não sei quem sã
o.
- Deus me livre e guarde! Viver assim sem co
nhecer ninguém? E pior que viver num deserto.
A
sua vida era como um livro em branco; nenhum tr
aço sentimental para escurecer a brancura imacul
ada das suas páginas, nenhum sorriso de amor, ne
nhum beijo. Nada;
vivia apenas para bondade e p
ara o trabalho.
Nos dias de procissão, levantav
a-se mais cedo, num alvoroço, para enfeitar o an
dor de Santa Teresinha; pedia rosas em casa das
amigas e enfeitava o altar e o andor
com rosas
brancas, vermelhas, cor-de-rosa. Quando consegui
a enfeitar só com rosas, ficava mais alvoroçada;
dizia olhando a imagem da Santa com olhos terno
s e respeitosos:
"Hoje sim, minha Santinha, est
á contente com o montão de rosas?"
À tarde, num
vestido preto muito solene, reservado só para o
s dias solenes, colocava uma fita vermelha no pe
ito e acompanhava a procissão, enlevada, os olho
s pregados
no andor, os lábios murmurando oraçõ
es: "Santa Teresinha, protegei a nossa família:
minhas irmãs, meu cunhado, meus sobrinhos. Prote
gei meu sobrinho Alfredo que
anda longe, lá pel
a América do Norte, sabe Deus onde; meu sobrinho
Julinho que trabalha no Rio de Janeiro; minha s
obrinha Isabel que tenha juízo e desista de casa
r
com o homem casado; meu sobrinho Carlos que c
ontinue feliz no Banco. Ah! E obrigada por ele t
er voltado da revolução são e salvo. Proteja a m
iudeza de Olga; que
todos tenham saúde. Amém".


Assim era Clotilde; à noite, de volta da reza,
vinha cansada para casa, trocava os sapatos pelo
s chinelos velhos e ia fazer o sobrinho pequeno
dormir, enquanto Olga
costurava sob a luz da lâ
mpada da sala de jantar, fazendo roupinhas para
outro filho que já se fazia anunciar. Gostava da
s cidadezinhas quietas, com seus jardins
bem tr
atados, onde, nas tardes de domingo, a banda de
música tocava marchas e dobrados e o povo passea
va de cá para lá, de lá para cá, tranqüilamente,
serenamente,
conversando; gostava de levar um
"tijolo" de goiabada feita por ela mesma para a
Mariazinha do Nico que tivera sarampo; e noutro
dia uns copinhos de geléia de mocotó
para a Lol
ota que estava com desejo. Sabia tudo que se pas
sava na cidade, conhecia todos, visitava todos e
se interessava pela vida de cada um como pela s
ua
própria. Risonha e calma, boa e
sincera, de
sfilava de casa em casa, levando um pouco do seu
"eu" para cada um, generosamente.
Assim era mi
nha irmã Clotilde. Sua alma singela e boa pedia
o silêncio das cidades pequenas, as noites tranq
üilas sem bondes barulhentos, sem automóveis a t
oda velocidade,
sem desastres horríveis, sem gr
itos, sem nada. Paz. Silêncio. Andores enfeitado
s por ela e, Nossa Senhora entre flores, carrega
da nas procissões, tremendo e sorrindo
para a m
ultidão. E um dia arrumou as malas e partiu dize
ndo que São Paulo só de vez em quando; preferia
sua cidade quieta e boa, onde os gatos se espreg
uiçam nos
muros das ruas silenciosas e onde pod
ia abrir a janela e gritar para a vizinha da esq
uina num cumprimento sorridente: "Bom dia! Não f
icou cansada ontem na procissão?
E que mundão d
e gente, hein?"
Nesse mesmo ano, no dia do meu
aniversário, recebi de Clotilde três caixinhas d
e figos secos, três "tijolos" de goiabada (pedin
do desculpas porque dessa vez saiu
puxa-puxa) e
três latinhas de doce de marmelo. Olhei tristem
ente pensando: "Quem havia de dizer! Somos apena
s três, e Éramos Seis!"
Esse ano se findou; vei
o outro. Esse outro foi tão cheio de acontecimen
tos e imprevistos que encheu minha vida; vivi mu
ito esse ano e os poucos cabelos pretos que
me
restavam, tornaram-se brancos. As rugas crescera
m mais na minha face e continuei sem os dentes d
a frente porque o dinheiro que eu tinha reservad
o para isso foi
gasto com a doença de Carlos. E
m meio das minhas atribulações, levantava os olh
os para o céu procurando encontrar alívio; senti
a às vezes como se fosse levada por
uma torrent
e; uma torrente tão impetuosa que, por mais que
eu me debatesse e procurasse segurar em qualquer
coisa para não ser arrastada, continuava a me l
evar,
a me arrastar para não sei onde. Era um t
urbilhão que me puxava e eu dizia: "Nada mais im
porta agora porque o pior já aconteceu". Mas não
se deve dizer isso porque
vemos depois que ain
da pode ser "pior", como aconteceu comigo.
O an
o começou com uma alegre surpresa: Julinho veio
passar três dias conosco para contar que ia casa
r com Maria Laura, a filha do patrão. Contou que
desde que chegara
ao Rio, gostara dela. Era ai
nda menina de Colégio e quando vinha nas férias,
andavam sempre juntos. Nos domingos de sol, iam
os dois para a praia e ficavam deitados
sob um
grande guarda-sol, listas brancas e verdes, faz
endo projetos na areia. Depois nadavam lado a la
do, em grandes braçadas para apostar quem nadava
mais depressa
e, quando voltavam e deitavam de
novo na areia, riam alto, felizes de amor, a ág
ua escorrendo dos seus corpos molhados. Sempre s
e compreenderam muito bem; e agora
que ela esta
va moça e ele firme na Loja, com um belo futuro
à sua frente, queria que eu desse meu consentime
nto para o noivado; o casamento realizar-se-ia u
m ano
depois.
Tirou da carteira com todo o cui
dado, um retratinho da moça e me mostrou; era um
rostinho mimoso e simpático. Nesse dia e no dia
seguinte, até o momento de Julinho
embarcar, s
ó se falou no noivado e em Maria Laura. Embarcou
de novo, dizendo que só voltaria casado e foi c
om minha bênção, sacudindo a mão no ar, a felici
dade estampada
em seu rosto risonho.
#Uns temp
os depois escreveu que estava noivo e toda a fam
ília da Maria Laura estava contente com o noivad
o; pensei em juntar dinheiro desse dia em diante
para dar
um bom presente de casamento ao meu J
ulinho.
Comecei a reparar que Isabel vinha muit
o tarde para casa; perguntei o que havia, e ela
me respondeu que tinha serviço extra todos os di
as.
Pedi a Carlos que investigasse e um dia ele
me disse:
- Mamãe, Isabel está namorando outra
vez.
- Não é possível, filho. Depois de tudo o
que houve? Decerto não é o mesmo; não pode ser.

- É o mesmo sim. Conheço-o muito bem.
- O que
vamos fazer então?
- Vamos chamá-la pela últim
a vez e dizer umas boas verdades. Se não atender
, que leve a breca. Não me importo mais; ela não
é criança, tem vinte anos. Que diabo!
Já é tem
po de sabei"o que faz.
Nessa noite tivemos uma
discussão tremenda com Isabel; a princípio ela f
icou muda, olhando para o chão, os lábios aperta
dos como quem está firme numa resolução,
de pé,
apoiada na mesa da sala de jantar. Depois levan
tou a cabeça e olhou para o irmão dizendo:
- Po
is é. Você disse que eu tenho idade suficiente p
ara saber o que faço ou o que quero fazer. Eu já
disse o que eu quero, não é preciso repetir.
F
oi então que dei uns passos para a frente e perg
untei, trêmula:
- Isabel, veja bem o que está d
izendo. Você passa por cima de tudo por causa de
sse homem? Reflita, minha filha.
Ela não respon
deu e apertou mais os lábios; tornei a perguntar
mais trêmula ainda:
- Quem você prefere, Isabe
l? Nós ou ele? .
Ela continuou quieta, imóvel,
os olhos baixos; só essa atitude já era uma conf
issão. Mas eu queria ouvir dos próprios lábios d
a minha filha o que eu sabia que ela
ia dizer;
insisti:
- Diga, Isabel. Precisa escolher. Quem
você prefere? Não podemos viver assim.
Então o
uvi nitidamente a voz de minha filha Isabel dize
r:
- Vou me casar com Felício.
Todo o sangue f
ugiu do meu rosto e foi como se estivesse me afo
gando; Carlos apertou meu braço e disse:
- Que
é isso, mamãe?
E virou-se impetuosamente para a
irmã:
- Miserável ingrata! Então vá de uma vez
. Não vê que mata nossa mãe?
E vibrou-lhe um ta
pa no rosto; ela deu uns passos para a frente co
m a mão no rosto e quis reagir, depois desistiu
e saiu chorando da sala e dizendo:
- Você me pa
ga. Detesto você. Odeio. Fechou-se no quarto. Re
criminei Carlos:
- Por que fez isso? Não adiant
a mais, meu filho. Deixe...
E fiz um gesto mela
ncólico levantando os braços e deixando-os cair
desalentadamente. Carlos começou a passear de um
lado a outro na sala, nervoso, fumando:
- Olhe
, mamãe. É inútil mesmo; lembra do que Alfredo d
isse uma vez? "É o mesmo que querer impedir a ch
uva de cair ou o vento de ventar". Tudo é inútil
; e é mesmo.
Ele é quem tinha razão. Não podemo
s lutar contra essa força desgraçada.
E sentou-
se ao meu lado, no sofá, passando o braço ao red
or do meu pescoço, enquanto as lágrimas caíam, u
medecendo minhas faces. Lutar como? O que mais p
oderíamos
fazer?
Senti então nesse instante qu
e tinha perdido para sempre minha filha Isabel.
Era o amor que a chamava; tinha sido mais forte
que tudo e ela atendera ao chamado.
Não me pert
encia mais.
Logo depois, um mês e meio talvez,
Isabel saiu de casa para se casar. Não me disse
nada, nem se despediu; uma tarde não voltou e ma
ndou uma amiga me avisar que ficaria
em casa da
família dessa amiga. No dia seguinte, veio a me
sma moça com um bilhete de Isabel pedindo o cons
entimento para o casamento; disse que não, sem s
er na igreja,
não. Nesse dia mesmo ela se casou
e à tarde, a mãe da amiga veio me contar que re
cebera Isabel em sua casa porque não podia deixá
-la na rua e mesmo sabendo que era
contra minha
vontade, fizera o casamento; do contrário seria
pior. Agradeci tudo o que ela fez por minha fil
ha e nem perguntei onde eles iam morar; a própri
a senhora
me disse que iam ficar num apartament
o pequeno perto da cidade e Isabel continuaria n
o emprego, pelo menos nos primeiros tempos. Proc
urou defender o rapaz dizendo
que parecia boa p
essoa e gostava muito de Isabel. Agradeci outra
vez e ela partiu. Quando me vi só, fiquei parada
no meio da sala de jantar, um turbilhão de pens
amentos
girando, desordenados. O que acontecera
? Então eu ia ficando sozinha? Só me restava Car
los, o Calucho como chamávamos quando era pequen
o? Como fora suceder isso?
Será que alguém não
viria também buscá-lo algum dia? O que seria de
mim?
E à noite, quando ele voltou, ficamos nós
dois em silêncio, um na frente do outro, na pequ
ena copa que durante anos e anos tinha reunido t
oda a família à hora do
jantar. No verão, um di
zia: "Abra as janelas, está fazendo calor!" E no
inverno outro pedia: "Feche a janela, está faze
ndo frio!"
E quantas estações assim se sucedera
m e eu ouvindo: Abra a janela e feche a janela!
nessa pequena copa que ficava cheia quando todos
estavam reunidos. Houve o tempo
em que havia o
Caçarola, o gato gordo e luzidio que à hora do
jantar ficava sempre debaixo da mesa, pedindo um
pedaço de carne; de vez em quando um dava algum
a coisa
e quando Caçarola insistente, começava
a arranhar a perna de algum, eu ouvia: "Ah! Caça
rola, não tenho muito para dar. Vá esperar na co
zinha".
E mesmo nos dias em que a carne era pou
ca porque não tínhamos dinheiro, sempre davam al
gum pedacinho ao gato. Essas cenas estavam grava
das na minha lembrança como
se estivessem escri
tas; nunca mais esqueceria.
Quando eram ainda p
equenos e não tinham sido empolgados pelas paixõ
es, como era diferente: juntinhos à minha volta,
tagarelando enquanto comiam e fazendo planos
p
ara o dia seguinte. Para eles só existia o momen
to que passava ou o dia seguinte. E agora? Todos
espalhados e
com um destino diferente; não pen
savam mais no dia seguinte, pensavam num futuro
desconhecido e longínquo. Olhei Carlos; também n
ão jantou. Talvez pensamentos iguais
passassem
pela sua cabeça. Disse de súbito:
- A senhora n
ão deve ficar triste, mamãe. Isabel vai se arrep
ender.
- Mesmo que se arrependa, o que adianta?
O mal está feito. O espinho que ela me cravou n
o peito, nunca mais me deixará.
- Mas ela vai v
oltar. ->
- Mesmo que volte, nunca poderei esqu
ecer. Pensa que não dói, filho? Nunca pensei que
minha única filha fosse se casar assim em casa
alheia e contra nossa vontade.
Como devem ser f
elizes as mães que casam suas filhas aprovando o
s casamentos. Quantas Vezes sonhei com o vestido
de noiva que havia de fazer para ela...
Ficamo
s novamente em silêncio na triste e pequena copa
; uma inexprimível agonia se apoderou de mim. Es
tava cada dia mais1 velha e mais só. O relógio b
ateu horas
na sala de jantar; até as badaladas
nessa noite pareciam melancólicas e faziam um ec
o esquisito no silêncio da casa. Já não mais hav
ia movimento; tudo quieto e calmo.
As vozes ale
gres de outrora não repercutiam mais entre aquel
as paredes; o vaivém, o bater das portas, o baru
lho da água correndo no lavatório da copa quando
lavavam
as mãos, os "até logo, mamãe", os sina
is de vida enfim de todos aqueles anos, haviam m
orrido. Parece que a morte rondava; só a morte é
assim silenciosa, só ela traz
essa quietude lo
nga e profunda. Carlos levantou-se e ligou o rád
io; ouvimos o "Doce mistério da vida" tocado por
órgão. Ficamos ouvindo em silêncio, depois Carl
os
desligou e me disse que muitas vezes depois
das refeições, sentia uma dorzinha no estômago.
Fui fazer um chá que ele tomou antes de dormir;
foi para o quarto e se
fechou. Ouvi baterem de
leve na porta da rua; era D. Genu. Já sabia do c
asamento de Isabel porque eu tinha contado por c
ima do muro durante o dia; veio então me
confor
tar. Sentou-se ao meu lado, fungando e dizendo:


- Que desgosto! Filha única, D. Lola! Eu me lem
bro tanto dela quando era pequenina; parecia uma
boneca. Muito gorda, muito mimosa, fazia covinh
as quando ria.
A senhora tanto fez por ela e ag
ora se casa assim, sem sua licença, com o tal ho
mem que a senhora não queria. Qual, D. Lola. ..
os filhos.. . cada dia me desiludem
mais. A Isa
bel.. . quem diria! A gente se sacrifica por ele
s, dá tudo, faz o que pode, morre por eles, e na
da reconhecem. Nada. Eh! Mundo errado! D. Lola!


Mundo errado! Lembra do jeito que Isabel me cha
mava quando era pequena? A senhora tinha se muda
do para cá há pouco tempo e ela era pequena, pod
ia ter uns seis
anos, não? Subia na goiabeira e
gritava: "D. Gevoveva, onde está a Lili? Quero
brincar com a Lili". Ela me chamava de Gevoveva
porque achava o nome engraçado; eu
me lembro tã
o bem. Tão bonitinha. .. com as covinhas redonda
s...
As lágrimas que eu tinha retido durante mu
ito tempo, correram' pelas minhas faces e D. Gen
u me abraçou, desajeitada, os braços muito gordo
s rodeando meus ombros,
chorando também com gra
ndes soluços:
- Chore, D. Lola. Chore que desab
afa.
- A senhora também está chorando? Acontece
u alguma coisa? Ela respirou profundamente, enxu
gou o rosto e respondeu, fungando:
- Não. Falar
a verdade, choro pelos meus também e pelas veze
s que não tive tempo de chorar. É tanta coisa qu
e acontece na vida da gente! Nem sempre se tem t
empo
de pensar, mas hoje vendo a senhora
tão t
riste, lembrei de tudo o que tem acontecido na m
inha família e me deu vontade de chorar também;
é como diz o povo: Desgraça pouca é bobagem.
Fi
camos um pouco mais calmas, depois eu repeti:
-
Isabel me cravou um espinho no peito, D. Genu.
E esse espinho nunca mais sairá, tenho certeza.


- E quantos espinhos a senhora pensa que eu ten
ho, D. Lola? A senhora queixa de um e eu? Olhe o
casamento da Joca, quase morri. Depois quando o
filhinho da Leonor
morreu, lembra? A Leonor se
abraçava comigo e gritava: "Mamãe, eu morro! É
uma dor que eu não agüento, mamãe! Me acuda pelo
amor de Deus!" Aquilo é que foi
sofrimento; e
como eu queria bem àquela criança! Só me chamava
de Vozinha. E custou a Leonor serenar; foi uma
vida pra ela esquecer aquele filho. Agora é o ca
samento
dessa última que está encrencado; dizem
que o moço é direito, mas não resolve nada. Viv
em os dois pra baixo e pra cima, sempre sozinhos
. Eu já disse: Qualquer
dia há um barulho, aí n
ão venha pra meu lado que é pior. Tudo isso são
espinhos, D. Lola, e minha vida está cheia deles
. Cheinha.
Paramos de falar e ouvimos o relógio
bater as horas; ela se levantou para sair dizen
do que os pobres precisam levantar cedo para agü
entar o repuxo, e só levanta
cedo quem dorme ce
do. Foi embora e fiquei só de novo. Então vagaro
samente fui fechar a casa, ouvindo as vozes dos
meus filhos nos meus ouvidos. Eles falavam e ria
m
como se estivessem todos ali e não faltasse n
enhum. Não. Eles não me haviam abandonado, como
eu pensara, estavam todos comigo, todos. O riso,
a voz, o modo de falar
de cada um estavam guar
dados no meu coração; o tempo podia passar, o re
lógio marcar as horas inexoráveis e cruéis, as n
oites sucederem aos dias, as estações passarem

uma por uma, tudo podia se extinguir e morrer, m
as a lembrança de cada um viveria comigo até a m
orte, inextinguivelmente.
Nos dias que se segui
ram Carlos continuou a se queixar de uma dorzinh
a no estômago, muito longe, muito funda. O médic
o que o examinou disse que era um princípio
de
úlcera e com dieta e regime, ficaria bom.
Lembr
ei dos espinhos de D. Genu; eu também estava fic
ando cheia deles. Carlos começou o tratamento e
logo se sentiu melhor. No meio do ano, num dia d
e julho muito
frio e escuro, tive uma grande en
comenda de doces. Levantei de madrugada e trabal
hei sem cessar até duas horas da tarde; comi ent
ão alguma coisa ali mesmo de pé
quando ouvi alg
uém vir entrando; pensei que era D. Genu ou uma
das filhas que viesse com algum recado.
Incline
i-me para ver as "Silvia's cakes" que estavam no
forno, assando; de repente ouvi uma voz forte a
trás de mim:
- Alô, D. Lola. Como vai?
Não olh
ei imediatamente e pensei: "Creio que estou fica
ndo louca, pois estou ouvindo a voz do meu filho
que está tão longe, lá pela América do Norte...
"
E voltei devagar a cabeça para a porta da coz
inha; meu coração deu um soco no peito; Alfredo
estava no vão da porta, olhando para mim e rindo
com alegria. Caímos
então nos braços um do out
ro; ri para disfarçar a vontade de chorar; depoi
s senti as pernas tão bambas que precisei sentar
-me. Alfredo sentou-se no banquinho ao
meu lado
e começou a contar as façanhas das viagens e da
vida que levara. Mas eu não ouvia o que ele con
tava; ouvia mas não compreendia. A surpresa tinh
a sido demasiada.
Não tirava os olhos do filho
que estivera ausente tanto tempo e parecia um so
nho vê-lo ali de novo ao meu lado, falando e rin
do. Então devagar, muito devagarinho,
segurei-l
he as duas mãos; acariciei-as. Eram fortes e gro
ssas. Depois apalpei-lhe os braços e o rosto, mu
ito de leve, aquele rosto tão querido que eu não
via há
tanto tempo. Então chorei, dizendo:
-
Ah! Meu filhinho! Que felicidade!
Alfredo pôs a
s duas mãos sobre meus ombros e procurou rir:
-
Ora, mamãe! O que é isso? Está chorando? E chor
ou também, um choro triste e sentido.
Percebi d
e repente um cheiro de queimado e corri a abrir
o forno; as "Silvias" estavam torradas. Ele me a
uxiliou então a tirar os tabuleiros do forno e r
imos juntos
enquanto atirávamos fora a massa qu
eimada. Disse depois a Alfredo: "Vá falando enqu
anto eu trabalho." E fiz tudo de novo.
À noite,
Carlos levou um susto:
- Então o filho pródigo
voltou? Ele respondeu:
- Apenas por dois dias;
o navio segue viagem na quinta-feira. Perguntei
:
- Então vai voltar filho? Por que não fica co
nosco?
Ele tirou um cachimbo do bolso, bateu-o
na palma da mão, encheu-o de fumo e acendeu dize
ndo:
- Um bom marinheiro precisa gostar do cach
imbo. E voltou-se para mim:
- Tenho de voltar,
mamãe. Estou engajado na Marinha americana; e te
nho viajado muito. Gosto que a senhora não imagi
na.
E assoprou uma grande fumarada para cima.

Nessa noite, Carlos, Alfredo e eu conversamos lo
ngamente; Carlos dizia:
- Afinal não estivemos
juntos depois da sua façanha aqui. Mentiu para n
ós que era socialista, hein? É pior que isso: Co
munista!
Alfredo riu:
- Ora, você ainda volta
ao assunto? O que tem com isso, rapaz? Sou maior
e faço o que entendo, não dou satisfações.
Fez
uma pausa e perguntou:
- Perturba você que eu
seja isto ou aquilo? Estou tirando sua paz? Esto
u arrancando você do seu bom sono burguês?
Carl
os apertou os lábios com desprezo:
- Prefiro me
u sono burguês, prefiro morrer burguês, tudo a v
iver de terra em terra pregando um credo errado,
perseguido pela polícia. Um dia você há de comp
reender
que o ideal que procura não está onde p
ensa, está na vida burguesa que levamos.
Alfred
o tirou o cachimbo da boca e deu uma gargalhada:

- Deus me livre viver sentado o dia inteiro na
frente de uma mesa, lidando com papéis, escreve
ndo, tendo hora certa para almoçar, para
jantar
, para ir para a casa. Não nasci para viver assi
m, isso me sufoca. Nasci para lutar, para mudar
de ambiente, para semear idéias...
- Para fazer
castelos no ar...
- Talvez.
Fez uma pausa e t
ornou a falar:
- Prefiro os castelos no ar; que
desmoronem um dia, mas não levarei vida parada
como água podre. Gosto da água corrente.
Falei:

- Alfredo, que pena você gostar dessa vida que
eu não compreendo. Podíamos ser tão felizes aqu
i; uma vida calma. Podia-se arranjar um bom empr
ego, não é, Carlos?
Que bom se você quisesse, m
eu filho... Havíamos de ser tão felizes. Não ach
a que a felicidade está na paz dessa vida caseir
a e pacata? Ir para o emprego, voltar,
conversa
r com um amigo, ir ao cinema, ter tudo equilibra
do, consciência tranqüila, depois casar, criar o
s filhos da mesma forma como criei vocês... Tudo
quieto
e bom. Lutar para quê, filho? Gosta de
viajar, de ver cidades? Economize, um dia poderá
viajar sossegado, mas não assim, como marinheir
o. São castelos no ar,
como disse Carlos.
- Go
sto da vida de marinheiro, gosto das minhas idéi
as e nunca serei rico. Não posso levar a vida qu
e a senhora quer. Está no meu sangue, não posso
tirar. Algum
dos meus antepassados foi lutador,
com certeza.
Tornou a encher o cachimbo devaga
r; Carlos falou:
- Acaba um dia na mão da políc
ia ou então com uma bala nas costas; assim acaba
m os lutadores.
Alfredo sacudiu os ombros com d
isplicência:
- Que seja assim, não será você. S
erei eu. Falei:
- Você me abandona então, Alfre
do? Não volta mais? Ele me olhou com olhar enigm
ático:
- Não abandono a senhora; voltarei sempr
e que puder. Não estou aqui? Mas não me peça par
a ficar sempre, não posso.
Carlos perguntou com
ironia:
- Vai pregar pelo mundo suas idéias co
munistas? Quanto vai ganhar?
- Não vou para gan
har, vou por um ideal. Sorriu:
- Burguês só pen
sa no dinheiro: "Quanto vai ganhar?" Tem graça!
Carlos estendeu as pernas e colocou-as sobre a c
adeira da frente;
murmurou calmamente:
- Como
é bom ser burguês! Fizeram uma pausa; Carlos con
tinuou:
- Você nasceu com tendências revolucion
árias; é um eterno revoltado contra os dominador
es e a propriedade. Em todas as idades tem havid
o a classe dominante, tem
havido o rico e o pob
re. Como pode igualar a humanidade? Não está ven
do que é uma utopia? Um problema insolúvel?
Alf
redo reagiu protestando:
- Como insolúvel? E a
Rússia? E os próprios países socialistas' Você n
ão sabe o que está falando.
- E você sabe o que
se passa na Rússia? Já esteve lá?,Já viu de per
to essa organização? Tudo é deficiente, é incert
o, é desequilíbrio. Não sabe que os dominadores


da Rússia atual são tão autocratas como os velh
osImperadores? Meu Deus, como você está errado!


Alfredo bateu o cachimbo na palma da mão:
- Es
cute, Carlos, estamos muito distanciados um do o
utro e nunca nos compreenderemos. Você não enten
de minha teoria, não compreende o que sinto. Ten
ho amigos
pobres e inteligentes, tão inteligent
es que sofrem porque não têm o que gostariam de
ter: bons livros, meios para estudar, boa música
. Eles não têm meios para
alcançar esses livros
, essa música, e eu acho que o mundo está errado
porque os que têm tudo isso, não dão o mínimo v
alor, até desprezam muitas vezes a arte porque

não estão na altura de compreendê-la. É isso que
me revolta, me sufoca, ver essa desigualdade, e
ssa indiferença dos ricos que têm tudo e não se
importam com os
pobres que não têm nada. Não fa
lo dos bens materiais, boas roupas, automóvel, c
asa, boa mesa, dinheiro. Não. Falo da vida espir
itual, proporcionar os meios
para os rapazes p
obres que lutam e dão duro para ganhar uma misér
ia, terem um pouco de vida do espírito... podere
m se desenvolver, e se instruírem... Eles querem
,
mas não podem. E sofrem a vida toda.
Carlos
se levantou e começou a passear de um lado para
outro:
- E você pensa que com suas teorias cons
egue endireitar o que está errado? Aí que está o
maior erro. Estou vendo que muita coisa não est
á certa, mas não somos
nós, pobre humanidade, q
ue vamos consertar. O erro vem de longe. Essas t
eorias marxistas são velhas como o mundo e o que
tem o mundo conseguido até agora? Revoluções
p
ara depois voltar ao mesmo ponto. Desista, Alfre
do, enquanto é tempo. O que pretende vivendo met
ido dentro do comunismo? Tem aspirações?
- Não.
Não pretendo nada.
- Então é comunista assim c
omo podia ser padre ou vender verduras? Por boni
to?
- Não. Por vocação.
- Está convencido de q
ue está no caminho certo?
- Não estou convencid
o de nada, Carlos. Já disse que gosto disso e ni
nguém me tira. É inútil discutir.
Levantou-se t
ambém e foi bater o cachimbo na beira da janela;
Carlos sentou-se e ficou imóvel, em silêncio. O
lhei Alfredo; sorriu para mim como quando era cr
iança
e queria conseguir alguma coisa. Vi que s
eus dentes já não eram belos; havia um ou dois e
scuros na frente e faltava outro que quebrara na
briga. Tudo mostrava que
sua vida tinha sido á
spera. Estava queimado, roupas velhas, mãos muit
o grossas, mas era bonito assim mesmo. Muito bon
ito. Os cabelos alourados um pouco revoltos,
os
olhos castanhos e brilhantes, alto e forte. Fic
ou impassível quando contei mais tarde do noivad
o de Julinho e do casamento de Isabel. Ficava mi
nutos sem dizer
nada, os olhos perdidos em reco
rdações. Perguntei por que não tinha roupas melh
ores, aquela estava suja e gasta. Disse que o di
nheiro não era muito, a vida era dura,
mas gost
ava daquilo. Se quisessem que mudasse de 'vida,
tirariam o ar que respirava. Precisava ver sempr
e lugares novos, paisagens múltiplas e paixões.
Só assim
era feliz. Ficar a vida inteira na mes
ma casa, na mesma rua, na mesma cidade,
sufocav
a. Levava na alma o sabor da aventura, do perigo
, do
desconhecido. Disse que um marinheiro tinh
a que gostar da bebida, do jogo e da briga, senã
o não era marinheiro, e ele gostava disso tudo.
Falava com voz forte e
dava grandes
risadas.


Carlos perguntou bem mais tarde:
- Então nada
mudará a sua resolução?
- Nada.
Carlos sacudiu
a cabeça:
- Está bem; desejo felicidades e que
encontre seu ideal sem tropeços e sem desilusõe
s.
Alfredo sorriu, como fazia sempre ao ouvir p
alavras irônicas. Carlos recolheu-se ao quarto e
comecei a fechar a casa auxiliada por Alfredo.


No dia seguinte, fui a Caixa Econômica, tirei a
s minguadas economias que estava guardando para
arrumar meus dentes e dei a ele para comprar rou
pa e calçado. Despediu-se
de Carlos na hora do
almoço e às quatro horas, me abraçou despedindo-
se também. Pedi que desse sempre notícias, prome
teu. Contou no último instante que iria muito
l
onge não sabia quando voltaria. Perguntei:
- Eu
ropa?
Levantou os braços para cima:
- Mais lon
ge, mais longe.. .
- África?
Levantou mais os
braços:
- Mais longe ainda...
- Então no fim d
o mundo?
- Talvez, mamãe. Vou à Austrália, Chin
a, nem sei onde, por aí. . . Mostrou o espaço di
ante de nós e sorriu. Perguntei:
- Mas se você
é marinheiro, não é comunista, é? Retrucou rindo
:
- Não vamos falar nisso agora, mamãe. Está na
hora. Adeus. Tornei a perguntar:
- Não terá sa
udades da sua terra? Da sua gente? Sempre num me
io estranho, entre gente estranha, falando outra
s línguas. E se ficar doente, filho?
- Por que
hei de ficar doente? E se ficar, ou saro ou morr
o. Isso em qualquer parte. A palavra saudade est
á riscada do meu vocabulário há muito tempo, é u
ma
palavra imprópria para esta geração, imprópr
ia para os homens fortes e eu sou um homem forte
, mamãe. Sou homem do mar.
Sorriu novamente. De
pois tirou o cachimbo do bolso, o saquinho de fu
mo do outro bolso e lentamente começou a encher
o cachimbo. Observei-o. Seria esse o filho que

eu tinha criado? Seria mesmo meu filho? O filho
que eu havia amamentado e acalentado? Esse homem
forte, louro e grande que estava na minha frent
e falando uma linguagem
esquisita, com idéias e
squisitas, não era meu filho, não podia ser. O m
eu era bom, simples, amoroso, cheio de carinhos
para a mãe velha; era aquele que trazia presenti
nhos
e me abraçava sorrindo dizendo: "D. Lola!"
Era o meu filhinho muito amado e sua imagem est
ava gravada no meu coração. Era o que me pedia c
onselhos e me dizia quando
era pequenino: "Mãez
inha, quando eu for grande, a senhora vai morar
comigo". E quando era moço me dizia: "Mamãe, qua
ndo eu for rico, a senhora virá morar comigo
no
palacete e terá um automóvel grande com chofer
preto, o Benedito. Que tal, D. Lola?"
Não, esse
não era meu filho; esse trazia cicatrizes de br
igas no rosto, faltavam-lhe os belos dentes; ess
e bebia, jogava, fumava cachimbo e dizia que não
conhecia
a saudade. Não era meu filho. Q meu e
stava no coração; era o filhinho louro que me ab
raçava sorrindo, e me queria bem; era aquele que
não podia viver sem mim e me
pedia dinheiro to
dos os dias; era um que sabia pedir e sabia sorr
ir tèrnamente. O sorriso desse homem grande que
estava na minha frente era um sorriso amargo, fo
rçado,
torcido. Um sorriso desiludido das pesso
as que já viveram muito e muito sofreram; tanto
podia ser um sorriso como uma contração. Eu tinh
a me enganado quando pensara
que ele havia sorr
ido como quando era criança. Não. O ideal podia
arrastar o homem grande para longe de mim porque
o pequenino ficaria sempre, nunca me abandonari
a.
Senti uns braços fortes sobre meus ombros e
o cheiro da fumaça do cachimbo encher a sala tod
a: uma voz grossa me disse:
- Então eu vou, mam
ãe. Adeus.
Apertou-me com força, olhou meu rost
o um instante e foi embora sem olhar para trás,
gingando o corpo como os homens do mar, dando pa
ssos largos e firmes. Pressenti
que nunca mais
o veria e gritei:
- Escreva sempre, Alfredo.
S
em se voltar, ele levantou um braço num gesto de
aquiescência e passando pelo jardinzinho, alcan
çou a calçada sem fechar o portão. Gritei de nov
o:
- Não vá, meu filho. Volte, Alfredo. Meu fil
hinho!
Mas ele não me ouviu, estava longe. Dei
uns passos e sentando-me na velha cadeira de bal
anço da sala de jantar ouvi o relógio bater cinc
o horas. Fiquei então imóvel
ouvindo apenas o l
eve tique-taque enquanto foi se fazendo escuro à
minha volta e percebi que já era noite. Não me
levantei para acender as luzes. Para quê? Tudo

era escuro e sombrio na minha vida e não era a l
uz que iria clarear minha solidão. Mais tarde pe
rcebi os passos de Carlos e sua voz dizendo:
-
O que é isso, mamãe? No escuro? E acendeu a luz.
Perguntou:
- O filho pródigo foi de novo?
- F
oi.
Ele passou a mão pela testa lentamente:
-
Alfredo foi sempre um camarada esquisito. Lembra
, mamãe? Desde pequeno foi diferente dos outros.
Papai dizia que ele tinha o coração fechado. Le
mbra?
- Lembro.
Perguntei se ele queria jantar
, disse que não, ia jantar na cidade com um amig
o. Ele me olhou interrogadoramente:
- Por que n
ão vai ao cinema, mamãe? Convide D. Genu e vá se
distrair um pouco. Não fique sozinha em casa qu
e é pior. Fica pensando em coisas tristes que nã
o
vão nem vêm. Saia um pouco.
Trocou a roupa,
voltou do banheiro com os cabelos bem lisos e pe
rfumados. Passou rapidamente por mim dizendo que
estava atrasado e levaria a chave. Disse "até l
ogo,
mamãe". Só o leve perfume ficou no ar.
A
casa ficou num grande silêncio. Lembrei de Alfre
do. O ideal o chamara e ele não resistira ao cha
mado. Era como um apelo imperioso e irresistível
que o atraía e
o arrastava para longe de mim.
Assim meu filho Alfredo partiu em busca de um id
eal e nunca mais voltou. Foi para sempre.
Uns d
ias depois Carlos tornou a dizer logo de manhã:
', - Mamãe, a dorzinha voltou. Não fiz nada de m
ais, não comi nada que pudesse fazer mal e no en
tanto acordei
de noite com a dor no estômago. N
ão sei que diabo eu tenho.
Passou uns tempos fa
zendo regime e tornou a melhorar; esqueceu a dor
. Mas eu não esqueci; pensava no pai que começar
a assim também. E passava horas de insónia pensa
ndo
na dorzinha de Carlos. Um mês depois, Julin
ho me surpreendeu na cozinha; assustei-me:
- O
que é isso, Julinho? Você por aqui? O que aconte
ceu?
- Vim a negócio, mamãe. Vai tudo bem e meu
casamento está marcado para janeiro. Quero que
a senhora seja a madrinha.
Pensei logo nas desp
esas que teria com vestido, viagem e outras cois
as. Ele não me deixou responder; bateu ligeirame
nte nas minhas costas
- Só que precisa pôr os d
entes que faltam, mamãe. Quero que minha mãe vá
bem bonita. Por que não tratou disso?
- Porque
para isso é preciso dinheiro e o dinheiro não so
bra aqui, você sabe.
Sentamos na mesa para toma
r café e ele continuou animado:
- Mas para o me
u casamento é preciso dar um jeito. Eu ajudo a s
enhora e pago a metade das despesas. Peça um orç
amento ao dentista e me diga em quanto fica.
Ag
radeci dizendo que ia pensar nisso e perguntei q
ual era o negócio que o trouxera a São Paulo. Ju
linho passou o guardanapo nos lábios lentamente,
depois tirou um
cigarro da carteira, acendeu-o
e olhando para mim, falou:
- Vim propor um neg
ócio à senhora. Meu futuro sogro quer me dar int
eresse na casa, mas quer que eu entre com cinqüe
nta contos no mínimo. Eu acho que vale a pena
p
orque a loja vai bem, cada vez melhor. Tem prosp
erado muito ultimamente. Creio que terá um belo
futuro e meu sogro tem mesmo idéias de ampliar m
ais
tarde, comprar uma casa velha que há ao lad
o e aumentar a loja.
Fez uma pausa, deixou a ci
nza do cigarro cair no pires que estava na frent
e e me olhou falando de novo:
- Lembrei então d
esta casa; a senhora não quer vendê-la e me empr
estar o dinheiro? Eu emprego o dinheiro na loja
e darei os juros à senhora. Que necessidade tem


de uma casa tão grande? Agora que está quase só
e sobrando aqui dentro, acho melhor ir para uma
casa menor e viver dos juros. Que tal? Arranja
a minha vida
e a senhora não fica prejudicada.


Concordei imediatamente e senti-me feliz de pod
er auxiliar Julinho. Quando Carlos chegou para a
lmoçar, contamos a ele que concordou também; fiz
emos então todos os
planos para o negócio. Só e
ntão me lembrei de que ia perder minha querida e
velha casa, mas nada disse.
Sorri comigo mesma
; para um filho eu me sacrificaria. Como não? E
seria mesmo um sacrifício? Não era como Julinho
dissera: "A casa é grande demais para a senhora,

por que ficar sobrando aqui dentro?" Uma casa
menor seria melhor, daria menos trabalho e podia
ser tão boa como aquela. Não era sacrifício. E
depois, pelos filhos,
tudo eu faria. À noite, a
o jantar, Julinho falou novamente sobre meus den
tes. Perguntou a Carlos:
- Não acha, Carlos, qu
e fica feio mamãe ir assistir a meu casamento se
m os dentes da frente? Ainda mais como madrinha!

Carlos riu: '/
- Não são bem da frente, são d
o lado. Há tanto tempo vejo minha mãe assim que
nem reparo mais. Eu já disse para ela tratar que
pago a metade.
Julinho retrucou:
- Então somo
s dois. Eu também ajudo.
Prometi tratar dos den
tes o mais depressa possível e à noite, Julinho
embarcou de novo para o Rio; na hora do embarque
, me deu uma nota de cem mil-réis para auxiliar


o tratamento dos dentes. Carlos e eu ficamos pe
nsando no novo rumo que tomariam nossas vidas de
ixando a casa onde tínhamos vivido durante tanto
tempo.
Eu mesma fui tratar do negócio porque C
arlos continuou a se queixar da dorzinha; pedi a
o corretor que vendesse a casa o mais breve poss
ível porque Julinho tinha
pressa do dinheiro e
tratei de procurar uma casa pequena e barata par
a nós. Logo na primeira semana, apareceram algum
as pessoas interessadas, mas todas diziam que
a
casa estava velha e não valia grande coisa, tal
vez só valesse pelo terreno. É verdade que não e
ra grande e tinha apenas duas janelas na frente,
mas eu a queria
tanto e os anos de luta e sacr
ifício que atravessara para pagá-la estavam impr
egnados nas suas velhas paredes. O corretor dizi
a com um cigarro no canto da boca,
meio dependu
rado:
- Se não tivessem pressa, esta casa alcan
çaria um bom preço. Eu podia pegar mais de cinqü
enta contos. Mas com pressa não se arranja grand
e coisa, temos que
nos sujeitar ao preço que qu
iserem dar. Talvez não alcance nem cinqüenta.
N
o fim de vinte e tantos dias, depois de muita ge
nte ter visto a casa, apareceu um comprador que
dava 48 contos à vista, nem um vintém mais. E co
mo Julinho tinha
pressa, fizemos o negócio. Esc
revi ao Rio contando e Julinho respondeu: "Podía
ser melhor, mas serve assim mesmo".
Depois dis
so tivemos trinta dias para deixar a casa; foi e
ntão que qualquer coisa começou a doer no meu pe
ito. Sentia uma ansiedade como se o coração foss
e sufocar;
aquela casa representava anos de sof
rimento, de trabalhos, de meses sem sobremesa, s
apatos furados na sola sem poder mandar conserta
r, de trabalheira fazendo doces
e salgados para
vender. Salgados e doces. "Cinco dúzias de bom-
bocados para entregar antes das cinco horas. Meu
Deus, terei tempo? E o bolo de noiva? Tenho que
fazer
outro, não ficou bom, parece que ficou p
esado. O que seria?" E levantar de madrugada par
a entregar outra encomenda no dia seguinte. O qu
e mesmo? Salgados. Empadinhas
e croquetes. Que
correria! Noites de frio porque não havia cobert
ores, nem dinheiro
para comprá-los. O conselho
de D. Genu: "Ponha tijolos quentes na
cama das
crianças senão eles não dormem, coitados". Um di
a ou uma noite, o tijolo quente queimou o melhor
lençol. Paciência. E quando pediam duzentos réi
s para comprar
balas e eu dizia: "Precisamos ec
onomizar, meu filho. Temos a casa para pagar; de
pois darei o que você quiser". Perguntavam muita
s vezes: "Mamãe, já pagamos a casa?
Eu queria t
anto uma coisa!" "O quê?" "Uma bola de futebol".
"Espere mais tempo, um dia darei". Ou então, Al
fredo sentado na porta da cozinha, um ar triste:
"O que
você tem, meu filho-?" "Se ao menos tiv
éssemos pago a casa!" "Por quê?" "Queria tanto i
r a Santos, só um dia, para ver o mar!" Depois a
tranqüilidade, a casa paga,
o alívio. Finalmen
te!
E agora tinha de deixá-la. Não era mais nos
sa. Mas a vida é assim mesmo, cheia de altos e b
aixos. Quem disse que não é?
O dinheiro seguiu
para o Rio e nessa mesma semana, encontrei uma c
asa no fim da Barra Funda; dois quartinhos, uma
sala, banheiro e cozinha. Tratamos da mudança.

E na véspera despedi-me das vizinhas. Depois que
Carlos se fechou no quarto, fui então dizer ade
us à casa. Reparei que quase todos os trincos es
tavam quebrados e
muitas janelas sem vidraças.
A pintura também estava descascada; sentei-me nu
m caixão cheio de livros e recapitulei toda a mi
nha vida. Olhei tudo; ali havíamos passado
hora
s e horas todas as noites depois do jantar. Cada
um contava o que tinha feito; ali conversávamos
, e fazíamos nossos planos. Havia tanto de nós m
esmos naquela
sala; parece que um pedacinho de
cada um ficava encerrado entre aquelas paredes.
Passei as mãos por elas, mansamente. Por que ser
sentimental? Pensei quanto deve
ser feliz esta
geração que não conhece a saudade, como disse A
lfredo. Fui para meu quarto e deitei-me; quem di
z de dormir? Até tarde vivi toda nossa vida na v
elha
casa.
No dia seguinte bem cedo, entrei nu
m automóvel com Carlos e partimos. Tinha os olho
s secos como se tivessem poeira e, nenhuma vez s
equer, olhei para trás.
Capítulo XVI
Mais uma
vez chegou o fim do ano e mais um Natal se passo
u. Carlos e eu jantamos sozinhos na casinha da B
arra Funda; disse-lhe que convidasse uns amigos,
mas ele
estava com a saúde tão alterada que nã
o quis. Cada vez mais magro e pálido.
Começamos
a nos preparar para o casamento de Julinho que
estava marcado para o dia 25 de janeiro; resolve
mos seguir dia 20 para o Rio. Tratei dos dentes,
fiz um
vestido preto com um peitinho de renda
branca, comprei um chapéu de feltro enfeitado co
m uma asa branca, comprei luvas e até uma bolsa
nova. Reunimos nossas economias
e compramos par
a os noivos um bonito aparelho de jantar; custou
caro. Era de porcelana inglesa, creme com um ra
minho de flores sobressaindo no fundo Além disso

Carlos disse que ia dar uma carteira de couro
que comprara
numa liquidação e eu resolvi dar m
eu broche de bandolim escrito "Roma" para Maria
Laura. Depois de tudo pronto, pedimos à D. Genu
uma mala emprestada porque não
valia a pena com
prar uma só para a viagem e justamente na vésper
a da viagem tive uma grande cólica de fígado. Fo
i tão forte que Carlos chamou o médico; tive feb
re
e passei muito mal. Carlos deixou para embar
car dia 23, mas nem nesse dia consegui me levant
ar, então ele partiu sozinho e foi assim que não
assisti ao casamento
do meu filho Julinho.
Pa
ssei dia 25 na cama e dia 26, quando ele voltou,
ainda me encontrou muito abatida. Disse que o c
asamento fora uma beleza e que Maria Laura era u
ma mocinha bonita
e ficara muito contente com o
s presentes. Mandaram uma caixa de sapatos cheia
de doces da festa; o retrato do casamento viria
depois. Contou que o casal ia morar
num aparta
mento muito bonito no Leblon e que o sogro tinha
dado quase toda a mobília; a do quarto era lind
a, moderna, jheia de espelhos. Terminou dizendo:

- A senhora precisa ver como seu filho está im
portante, mamãe! Qualquer dia vem nos visitar de
automóvel.
- O quê? Tem automóvel?
- Não aind
a, mas vai comprar logo. Os pais dela são ricos
e Julinho vai ficar rico também. Vai ver.
Pense
i nesse momento que tinha feito bem em não imped
ir a ida dele para o Rio alguns anos antes. Sorr
i alegremente com esse pensamento.
Fiquei logo
boa e recomecei meus afazeres; não tinha muita e
ncomenda porque morava longe e não tinha telefon
e. Um mês depois recebi uma carta de Julinho ped
indo
para eu ter paciência, mas em vez de me ma
ndar 480$000 dos juros, mandaria só 400$000 por
enquanto; estava ainda endividado por causa do c
asamento e mais tarde,
quando estivesse mais fo
lgado, enviaria os juros atrasados. Concordei e
me senti disposta a trabalhar enquanto tivesse f
orças; não seriam 80$000 por mês que iriam
me f
azer falta.
Continuei a trabalhar e com isso fo
i passando o tempo; mas durante o ano todo Carlo
s não se sentiu muito bem. Apesar do tratamento
e do regime, continuava a ter
sempre a dorzinha
. Julinho escrevia de vez em quando dizendo que
viria logo nos visitar com Maria Laura; recebi a
penas um cartão de Alfredo vindo de muito longe,

e de Isabel, nenhuma notícia.
D. Genu apareci
a de vez em quando na casinha da Barra Funda; ch
egava cansada, fungando, cada vez mais gorda e m
ais velha, dizendo:
- A distância é longa, mas
a amizade é mais longa ainda. Esfregava os dedos
um no outro:
- Amizade que vem de longe, do te
mpo em que eles eram crianças... amizade assim n
ão se despreza.
Sentava-se gemendo na cadeira m
ais próxima e eu ao lado dela, conversávamos sob
re os filhos, sobre o passado, e sobre a vizinha
nça da Avenida Angélica. Ela dizia
enxugando o
rosto do suor:
- Lembra a ricaça da esquina? Aq
uela da esquina de baixo? A gorda orgulhosa que
de vez em quando encomendava doces pra senhora?


- Ah! Sei, sei.
Ela continuava, contente, anim
ada, contando nos dedos, o rosto sorridente onde
os olhinhos brilhavam:
- Pois a filha mais vel
ha separou do marido e está lá com duas crianças
; o filho, aquele sem-vergonha de bigodinho, cas
ou à toa com uma moça com quem ele já vivia
e n
ão é grande coisa; o marido dela depois de velho
deu para piratear e anda pintando, diz que nem
dorme mais em casa, vive com uma mocinha que tir
ou não sei de
onde. Por cima de tudo isso, ela
anda doente, diabética.
Olhei D. Genu vendo a m
aldade ressumando por todos os seus poros, ela q
ue para mim era tão boa. Continuou com animação:

- O que adianta orgulho? Pra que orgulho? Orgu
lho é pra cachorro, eu já disse. Ela passava per
to de mim que nem respirava de orgulhosa, com os
quadris balançando
de tanta pose. Entrava no a
utomóvel preto e falava com o chofer quase sem a
brir a boca, decerto de medo que a gente ouvisse
o que falava, ou então pra não entrar
mosca na
boca, e quando o automóvel começava a deslizar,
ela levantava a cabeça assim, que nem cavalo qu
ando sacode o freio. Nem olhava para os lados co
mo quem
diz: "não ligo pra essa gentalha". Dana
da de ter por vizinhança uma gente pobre como nó
s. E lá ia ela, a burra. Gente orgulhosa assim é
burra, D. Lola.
Me diga uma coisa: O que não s
e perde neste mundo? Tudo se perde.
Começou out
ra vez a contar nos dedos:
- O dinheiro, a honr
a, o nome, o marido, os filhos, a mocidade, a be
leza, os cabelos, os dentes, a vista, o ouvido..
. O que mais? Os bens terrenos como a casa
que
a gente gosta, as jóias, o gato de estimação, a
mobília, mãe, pai, irmãos, amigos. Não se pode p
erder tudo? Até uma perna ou um braço a gente po
de perder
na hora de atravessar uma rua. Tudo o
que a gente mais quer bem, perde. Por que orgul
ho então? Orgulho é pra gente besta, prós burros
, já disse. A senhora
não perdeu Isabel? E não
era sua única filha tão mimada?
Fez uma pausa,
baixou mais a voz e perguntou, curiosa:
- Não t
eve mais notícias dela, D. Lola? Como irá na vid
a nova?
- Nada, D. Genu. Não tive mais notícias
dela depois do casamento. Também não pergunto.


- Faz muito bem de não perguntar, D. Lola. Ora
esta! Ela que deve procurar a senhora. Ingrata!
Filho é assim mesmo. Depois que se vê criado, dá
o
fora. Já estou acostumada. E Alfredo? Teve m
ais notícias?
- Mandou um cartão de muito longe
, um lugar que eu nunca ouvi falar; só diz: "Vou
bem, mamãe. Abraços".
Ficamos quietas um insta
nte; tornei a falar:
- Esse também está tão dif
erente, D. Genu. A última vez que esteve em casa
, lembra-se? Só falava nas viagens, nas brigas q
ue tinha tido nos portos de mar, brigas
à-toa p
or causa de mulheres vagabundas. Estava tão dife
rente! As mãos muito grossas, grandes, nunca tin
ha reparado que ele tinha mãos assim grandes; de
pois calosas,
cheias de nós. Fumando cachimbo o
tempo todo, disse que um bom marinheiro tem que
gostar de cachimbo; e uma fumaça tão forte que
depois que ele foi embora, até tarde
da noite,
a sala estava cheirando aquela fumaça fedida. Pa
recia que ele ainda estava lá. E falava tão dife
rente de nós, uma linguagem decerto usada só por
marinheiros.
D. Genu me interrompeu:
- Mas es
tá um homão. Bonito e desempenado, forte como el
e só. Gosto de homem assim. Machão. Meteu-se' aí
pelo mundo cavando a vida no duro, sem medo
de
nada, sabendo o que quer. Disse assim pra mim:
"Olhe D. Genu, eu gosto desta vida e pronto, nin
guém tem nada com isso, não acha? Estou pedindo
alguma
coisa prós outros? Só tenho dó de mamãe,
mas tem os outros pra ficar com ela". Gosto de
gente assim decidida, sabe o que quer. Olhe o ma
rido da Joca, já
viu um diabo molenga, assim? M
uda de emprego, vai pra lá, vai pra cá, indeciso
, um dia vai pró Norte, outro dia vai pró Sul, D
eus me livre gente assim. A família
é que sofre
, coitada.
Levantei-me para fazer um café e dis
se:
- Vamos para a cozinha e continuamos a conv
ersar enquanto eu preparo um cafezinho.
Ela me
acompanhou gemendo e se queixando; tornei a fala
r:
- Olhe, D. Genu, quando à senhora enumerou t
udo que se pode perder, esqueceu o que para mim
é mais importante e eu já perdi há muito tempo.


Ela parou para me olhar, os olhinhos brilhantes
fixos no meu rosto:
- A saúde, D. Genu, a saúd
e. ..
Ela continuou a andar e levantou os ombro
s num gesto de pouco caso:
- Ché, há tanto temp
o ela me deixou que esqueci a diaba. Bandida. Pa
ra mim é também a primeira coisa. E todo o dinhe
iro dos ricos não afasta a doença quando
ela te
m que vir. Não tem perigo! Quantos ricos por aí
não dariam tudo o que têm para terem saúde?
Sen
tou-se, suspirou fundo e continuou:
- Não diga
que a senhora já perdeu a saúde, a senhora está
ainda sacudida, fazendo seus quitutes, lidando n
a casa, mexendo pra cá e pra lá. Eu é que não pr
esto
mais, já dei o que tinha de dar. Bananeira
que já deu cacho, precisa cortar. Tou pronta. J
á disse pras minhas filhas: Na hora que a Parca
vier - não é Parca
que se diz? - pode vir. Na h
ora que vier, estou esperando. Já vivi muito, já
sofri, estou cansada de ver porcarias e ingrati
dões. Chega. O mundo está
cheio disso. Vamos ve
r o outro, quem sabe é melhor que este.
Inclino
u-se para espiar pela porta da cozinha:
- Ih! P
arece que vem chuva, o céu está negrejando. Prec
iso tratar de ir embora. E o Julinho que casou,
hein? Qualquer dia está a senhora de neto.
O Ju
linho está bem, casou com a filha do patrão, est
á feito na vida. Está rico. Quem sabe a senhora
ainda vai morar no Rio de Janeiro. E nós ficamos
aqui com água
na boca, chuchando...
- Não. Nã
o deixo meu canto, D. Genu. Se eu fosse morar co
m algum filho, talvez fosse com o Carlos, me ent
endo mais com o gênio dele, estou mais acostumad
a.
Mas não adianta fazer esses planos porque se
ele casa com uma moça de gênio esquisito, estou
eu sozinha. Nunca dá certo morar com nora. Tome
o café enquanto está
quentinho.
D. Genu estal
ou a língua e bebeu um grande gole:
- Seu café
tem fama, sempre gostei dele. Não é todo o mundo
que sabe fazer café. Será que a Isabel vai fica
r a vida inteira afastada da senhora? Pensei que

ela tivesse mais juízo. Parecia tão sensata, t
ão estudiosa; foi encontrar esse porqueira de ho
mem só pra dar desgosto à
família. Os homens tê
m lábia; a coitada foi na onda. ..
- Também se
não me procurar, pode ficar por lá. Não quero ma
is .saber dela, me abandonou.
- Qual o que, D.
Lola. A senhora fala isso da boca pra fora; o di
a que ela aparecer por aqui com aquele jeitinho:
"Mamãe, tive tanta saudade da senhora..." Acabo
u-se
tudo, vai por água abaixo toda a energia,
toda a braveza. Filho é filho. Quer me dar mais
um tiquinho de café? Olhe eu com a Joca. Nossa S
enhora, quase
excomunguei ela. Hoje tenho um dó
dela.. . Aparece de vez em quando quase trapent
a de mal vestida, os olhos no fundo, filho um an
o sim, um ano não, marido sem
juízo, luta sem f
im, criança doente, inferno.. . Quem não tem dó?
Só se a gente não tivesse coração. Mas a gente
é mãe, D. Lola. Coração de mãe é um só. Faço
tu
do o que posso por ela; faço mais por ela do que
pras outras até.
Levantou-se para espiar o céu
; esticou o pescoço para cima, sondou, escutou:


- Vou indo, D. Lola. Daqui lá é um estirão. Que
ro ver se a chuva não me pega antes de chegar em
casa. Tem tido encomendas?
- Poucas. Desde que
mudei, quase não me procuram; depois tive a cól
ica de fígado que me atrapalhou a vida. Tudo vem
junto, D. Genu. Quando me lembro que não
pude
assistir ao casamento de Julinho. .. fico até do
ente. É cedo ainda. Creio que não chove já.
- C
hove. E creio que não demora muito. Como vão sua
s irmãs? Até esqueci de perguntar. Clotilde está
em Itapetininga?
- Está. Diz que não se acostu
ma em São Paulo; aqui é só para me visitar, lá é
para morar. Gosta do interior.
- Interior é bo
m mesmo. A gente vive mais sossegada, mais em fa
mília, não tem tanta diferença do rico pra pobre
, não se nota tanto orgulho. Parece que gente
d
o interior é mais pacata; mesmo que seja rica, t
em mais miolo na cabeça. Eu também gosto. Sua ir
mã tem razão; quando escrever, dê lembranças min
has.
Agora eu vou mesmo. Olhe que nuvem preta d
aquele lado; quando preteja assim do lado de San
to Amaro, chuva na certa.
D. Genu saía devagar,
arrastando o corpo enorme, pesada e gorda, para
tomar o bonde na primeira esquina. Eu ficava na
janela vendo-a sumir, dizendo adeus com a mão,


pensando que estava só, os filhos espalhados, c
om saudades do tempo em que eles eram pequenos e
vivíamos juntinhos, juntinhos e felizes. E agor
a?
Às vezes eu dizia para Carlos, à noite, quan
do ficávamos sozinhos:
- Toque um pouco de viol
ão, meu filho. Gosto de ouvir você cantar.
Ele
pegava o violão e começava a afinar; inclinava-s
e sobre as cravelhas, torcia, tirava um som, tor
cia de novo, tirava outro som, destorcia, experi
mentava, inclinava
mais o ouvido sobre o instru
mento e de repente dava os primeiros acordes. Es
tava bom.
- O que quer ouvir, mamãe?
- O que q
uiser tocar, a "Casinha Pequenina".
Ele aos pou
cos ia elevando a voz; uma voz cheia, sonora, ag
radável e afinada. Eu ouvia enlevada, sentindo a
doração pelo filho que ficara comigo, que não me
abandonara,
que me fazia companhia nas noites


tristes, que me acompanhava na solidão. Pensava
: "Este é meu amigo. Com este posso contar sempr
e". De repente perguntava:
- Quer ouvir as canç
ões do México?
Eu nem falava; fazia que sim com
a cabeça para não perturbar com minha voz a paz
daquelas horas. Ele tornava a afinar o violão,
dava um som, outro som, torcia outra
vez as cra
velhas e cantava de novo. Uma noite, cantou muit
o, tudo o que sabia. Pedi:
- Cante outra vez "Q
uiero verte una vez más".
- A senhora gosta des
sa, não?
- Gosto.
Quando terminou, pôs o violã
o de lado e disse.
- Chega por hoje; não estou
muito bom.
- Que tem?
- A dor.
- Ora esta! Ti
nha me esquecido dela; há quanto tempo você não
se queixa!
- Voltou agora.
No dia seguinte, Ca
rlos me disse que dormira mal; resolvemos ir jun
tos no médico. Pediram radiografia. Duas radiogr
afias. Depois outro médico, vários médicos. Fala
ram
em operação; a princípio vagamente, depois
com firmeza. Operação. Quando?
- Amanhã às oito
horas.
- Amanhã! Amanhã! Amanhã!
Tomamos um a
utomóvel e fomos para o hospital; lembrei-me do
pai. Também foi num dia assim com fiapos de nuve
ns varrendo o céu. Montinhos brancos no azulão.


Operaram meu filho; tia Candoca, D. Genu e uma
das filhas dela me acompanharam; mandei telefona
r a Julinho, no Rio. Ele veio só; a mulher era l
uxenta, não gostava
de viajar de repente. Isabe
l apareceu também; mandou perguntar à tia Candoc
a se podia vir. Disse que sim; veio sozinha, um
pouco triste, um pouco desapontada e quando
me
viu, chorou. Carlos na cama, muito pálido, todo
dolorido, os olhos grandes rolando nas órbitas;
Isabel ficou uma meia hora conversando. Havia la
rgas pausas em
que ficávamos silenciosos, olhan
do o chão, as paredes, sentindo o cheiro dos rem
édios no ar. Despediu-se dizendo que voltaria ma
is vezes; também estava esperando
um filho para
breve. No dia seguinte, Julinho voltou ao Rio,
preocupado com a mulher. Toda a minha vida girav
a à volta daquele leito; um leito branco e simpl
es.
Vinha a Irmã; espiava, tomava o pulso, olha
va, ajeitava as cobertas, cochichava com outra I
rmã. Vinha o médico, não dizia nada, olhava só.
Todos olhavam Carlos,
Carlos não olhava ninguém
. Triste e quieto, os olhos fechados.
- Como va
i, filho?
- Bem.
Dois, três dias. Colegas do B
anco vinham visitá-lo. Clotilde chegou de Itapet
ininga, aflita; trouxe latas de doces, sequilhos
, bolos. Ninguém comeu. Carlos estava
mal. Uma
noite disse:
- Mamãe, não posso engolir, tudo v
olta. Sorri. Isso não é nada, Carlos.
- Mas não
posso engolir.
Contei ao médico; ele sacudiu a
cabeça sem dizer nada; depois falouTentamos tud
o. .
Avvoz era baixa e rouca, voz sem esperança
. Olhei Clotilde:
- Clotilde, o que eu faço?
-
Coragem, Lola!
Eu estava tão cansada de ter co
ragem. A vida toda precisaria ter coragem. Corag
em para viver. E agora?
Estava tão cansada! Tod
os olhavam muito para mim e se preocupavam com m
eus menores gestos; isso era um aviso, uma adver
tência que não me escapou. Estavam querendo
me
avisar por fios imperceptíveis o que ia acontece
r. Chegou uma filha de D. Genu e me abraçou sorr
indo; reparei que estava com um dente quebrado d
o lado; D. Genu
tinha me contado do tombo e do
dente quebrado. Pensei: ,
- Ela é tão bonitinha
! Por que não mandou consertar esse dente? Meu D
eus! Por que em momentos cruciars de nossa vida,
temos idéias às vezes tão
banais que chocam no
ssos sentimentos? O que eu tenho com o dente del
a?
Tentava rezar atrapalhadamente:
"Meu Deus,
tenha pena de nós. Meu Deus, auxiliai-me. Ave-Ma
ria, cheia de graça, o que posso fazer para salv
ar meu filho? Diga o que eu devo fazer. Espere u
m pouco;
do que eu mais gosto? Gosto de café. A
h! Prometo não tomar café durante um ano, mas nã
o deixe ele morrer. Não. Durante cinco anos não
tomarei café. É um sacrifício,
meu Deus, que es
tou lhe oferecendo pela vida de Carlos. Durante
o resto da minha vida não tomarei café, mas me d
ê meu filho. Não o leve, por favor. Ave-Maria, c
heia
de..."
E tudo se precipitou de repente. F
oi a torrente que me arrastou ao fundo do abismo
; nada pôde impedir. Vi Carlos depois no leito c
omo que sumindo, tão branco, indo
embora de uma
vez. Clotilde, tia Candoca e a Madre estavam no
quarto. O dia estava bonito, nuvens varrendo o
céu; eu via uma nesguinha pela janela. Ouvia uma
voz
gritando, uma voz angustiada, dolorida: "C
alucho! Meu Calucho!" Era eu mesma quem gritava.

Carlos ainda olhou para mim e sorriu com brand
ura. Ele me entendeu; ainda tentou falar, mas se
us lábios se negaram a pronunciar a palavra. A l
uz dos seus olhos foi
se extinguindo lentamente
como a esperança quando morre nos corações; com
pena de se apagar. De repente se extinguiu de u
ma vez; percebi que seus olhos já não viam;
era
m dois pedacinhos de vidro muito fixos, muito pa
rados, muito abertos. Olhei então a Madre que es
tava de pé do outro lado da cama e ela desviou o
olhar; apenas
confirmou com a cabeça e fez com
tristeza o sinal da Cruz. Compreendi a horrível
verdade: Carlos já não existia. Apertei com mai
s força as mãos inertes e os pensamentos
turbil
honaram em confusão. Olhei seu rosto imóvel:
-
Calucho!
Atropeladamente fatos longínquos viera
m à tona; coisas que eu nunca pensava, e nem lem
brava mais. Imagens, frases ditas anos atrás, pa
lavras, coisas insignificantes,
banais, numa pr
ocissão desordenada. Lembrei da noite em que ele
nasceu: fazia frio e mamãe estava embrulhada nu
m chalé preto num canto do quarto. Havia um roup
ão
em cima de uma cadeira; era um roupão de fus
tão azul com pintas vermelhas; um chinelo estava
no meio do quarto. Falei: "Tirem esse chinelo d
aí. Escondam o roupão
atrás da porta". O chinel
inho era de lã e mamãe tinha
bordado na véspera
do nosso casamento: rosas vermelhas entrelaçada
s Com folhas verdes. Bonitinho. Mas quem disse q
ue ele morreu? Que mentira, pois eu me lembro tã
o
bem
de tudo! Comecei a falar no ouvido de C
arlos: "Lembra quando chamávamos você de Calucho
?" "E lembra daquela vez que você caiu da escada
e fez um galo na testa?"
De repente, observei-
o e pensei: "Como é que estou falando com ele, p
ois se ele morreu? Ah! Meu filhinho, meu filhinh
o, como vou viver sem você? Quando você não
vol
tar para o jantar, que irei fazer? Os dias serão
longos e as noites mais longas ainda e eu ficar
ei com os olhos fixos no relógio grande, aquele
mesmo relógio
onde vocês todos aprenderam a olh
ar as horas, esperando, esperando. Onde irei esc
onder a minha dor? Esta dor que não teiin cura?
Por que me abandonou?"
E novamente esqueci] que
ele tinha morrido e continuei a falar: "Quando
você era maiorzinho, Júlio gostava de cantarolar
para você dormir; talvez por ser o primeiro
fi
lho, seu pai tinha muita paciência. Cantava uma
cantiga que ele mesmo inventou e falava em bicho
s:
O boizinho e vem. . .
O cavalinho e vem. .
.
O burrinho e vem. . .
A formiguinha e vem. .
.
O carneirinho e vem. . .
Buscar meu filhinh
o que não quer dormir.
De propósito, Júlio esqu
ecia de falar o "macaquinho" para ouvir você rec
lamar; e você reclamava com os olhos pesados de
sono, quase dormindo: Papai esqueceu o macaquinh
o...
Júlio recomeçava e incluía o macaquinho, e
ntão você dormia um longo sono até de madrugada.
Só quando o sol começava a dourar a terra e os
passarinhos cantavam no
nosso jardinzinho, você
acordava. Os tico-ticos diziam: Maria é dia, é
dia. Maria é dia, é dia. E você sorria, lembra?
Quer que eu cante agora aquela cantiga para
voc
ê dormir?"
E cantei baixinho. Depois olhei meu
filho morto e disse: "Mas desta vez seu sono é t
ão profundo que apesar de eu ter esquecido o "ma
caquinho", você não reclamou,
meu filho".
Clot
ilde e tia Candoca dirigiram-se para mim com os
olhos desvairados; não me deixaram cantar. Passo
u-se toda uma longa noite e vi Isabel ao meu lad
o segurando minha
mão e chorando: "Mamãe! Mamãe
!" como quando era criança. Julinho chegou cedo
do Rio com as feições transtornadas. Abraçou-se
ao irmão chorando alto, uns soluços
profundos d
e cortar o coração: "Meu irmão, meu amigo, meu i
rmão!"
De madrugada, saí sozinha dizendo que ia
rezar e fui à Capela do Hospital. Procurei Noss
a Senhora e vi seu rosto macerado, angustioso, d
olorido, lágrimas cor de
sangue penderem das su
as pálpebras. Ajoelheime diante dela e olhando-a
no rosto, falei alto:
"Acabou-se, meu filho fo
i embora. A senhora que já passou por isso e sab
e que dor é esta que estou sentindo, por que dei
xou meu filho ir embora? Por quê? Afinal
de con
tas, a senhora devia estar preparada para perder
o filho. A senhora é Santa, já nasceu Santa e a
s Santas vieram ao mundo para sofrer. Mas eu? Qu
em sou eu?
Uma pobre mulher que trabalha para v
iver, para comer, para ter um pedaço de pão todo
s os dias. E por que deixou meu filho morrer? Es
se filho que me auxiliava a ganhar
o pedaço de
pão? O filho bom, trabalhador? O meu grande amig
o? Nem todos os filhos são amigos das mães, esse
era. A senhora não devia ter deixado. Como vou
viver
agora? Sem ele?
Nossa Senhora olhava par
a o espaço, um olhar longínquo e enigmático, lon
ge das dores deste mundo. Parei um pouquinho e c
ontinuei:
- Já passou por isto, não é verdade?
Sentiu o que estou sentindo? Nunca tive nada de
bom neste mundo; nunca fui bonita, nunca tive di
nheiro, nunca tive nada,
nem jóias, nem vestido
s. Desde mocinha cobicei um anelzinho de ouro co
m pedra verde lá na loja do seu Atonso em Itapet
ininga e nunca consegui. Nem sapatos bonitos,
t
odos ordinários e baratos. A única fita bonita q
ue tive era de cetim azul-claro e mamãe me dava
um grande laço em cima da cabeça. Mas essa fita
que eu achava
tão bonita era de segunda mão; ti
nha sido de uma filha de tia Candoca e estava es
garçada nas pontas e desbotada. Sempre vivi com
tanta economia que nunca me sobraram
dez mil-ré
is para eu dizer: "posso jogar fora esse dinheir
o que não me faz falta". Mas fazia falta se joga
sse fora. Trabalhei desde pequena ajudando mamãe
nas encomendas
de doces; por mais cedo que a g
ente começasse a fazer os bolos e biscoitos, era
sempre uma correria à última hora. Mamãe dizia
com o suor escorrendo pelo rosto:
"Depressa que
o forno está pronto". Clotilde e eu corríamos d
e um lado para outro ajudando mamãe. A única coi
sa que eu tinha de bonito era a pele do rosto,

mas logo ficou queimada com o calor do forno, re
puxada, escura. Procurei ser boa filha, boa espo
sa e boa mãe. Nunca tive nada e procurei dar sem
pre o pouco que
tive. E por que me aconteceu is
so agora? Agora que todos já foram e só me resta
va esse? Mas eu não reclamei de ficar só com ess
e filho, reclamei? Gostei sempre
tanto dele que
podia ficar sem os outros, só com ele a vida in
teira e assim mesmo estava satisfeita. Era tão b
om, Nossa Senhora! Lembra-se dele? Por que então

ele morreu? Dizem que tudo neste mundo se paga
; a senhora pode fazer o favor de me explicar o
que estou pagando? Não quero que ele morra. Não
quero. Não quero.
NÃO QUERO.
Chorei alto grand
es soluços: olhei Nossa Senhora outra vez. Seu r
osto macerado estava triste e seu olhar desesper
ado procurava algo no infinito como se não compr
eendesse.
Minha voz tornou-se humilde e rouca:


"Só os que não têm fé é que se lamentam pelos q
ue dormem. E eu tenho fé. Me perdoe".
Senti ent
ão uma leve mão sobre meus ombros, pensei que er
a a mão de Nossa Senhora, pois estávamos sós na
Capela, mas não era; era a Irmã Cristina que tin
ha entrado
sem eu perceber. Debruçou-se sobre m
im
- Venha comigo. Não chore assim.
Lembrei qu
e podia ser Nossa Senhora que a tivesse enviado
para me consolar; levantei-me e fazendo um gesto
de adeus para o altar, saí da Capela acompanhan
do a Irmã.
Fui para uma copa onde me fizeram
s
entar. A Irmã deu-me uma xícara de café que fui
tomando só para fazer a vontade dela; e me dizia
palavras confortadoras que agradeci, mas esquec
i logo depois. Um
pouco aliviada da enorme dor
que me pesava, levantei a cabeça e encarei Irmã
Cristina com serenidade; sorriu levemente dizend
o:
- Lembre-se das palavras de Jesus: Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida. Quem crer em mim vi
verá, mesmo depois da Morte.
Com essas palavras
nos meus ouvidos, voltei para o lado de Carlos.
Foi enterrado nessa manhã no cemitério São Paul
o; estava uma linda manhã de fim de setembro; fl
ores
desabrochavam perfumando os jardins, pássa
ros cantavam em todas as árvores e tudo estava a
legre no ar, na terra, no céu. Levei-o até o fim
; foi quando me vi arrastada
pela torrente até
o fundo e no fundo só havia trevas.
1942. Moro
numa pensão de Irmãs num quartinho que dá para u
m jardim interno; esses quartos são mais baratos
porque são menores, mas para que eu quero um qu
arto grande?
Estou mais perto das flores e dos
passarinhos, que sempre amei. Sinto o perfume da
s rosas e dos heliotropos e todas as manhãs atir
o migalhas de pão aos pássaros
que vêm pousar s
obre a minha janela. São meus amigos. Há também
dois gatos gordos e amarelos, pensionistas das I
rmãs; um deles parece um pouco com Caçarola, o g
ato
de Isabel. Vivem tão fartos e bem tratados
com as sobras da pensão que nunca os vi persegui
ndo os passarinhos que saltitam ao lado deles co
m confiança e camaradagem;
são todos amigos.
I
sabel já tem dois filhos; um deles chama-se Carl
os. Já está crescido e vem muitas vezes me visit
ar; procuro nos olhos dele os olhos do meu filho
morto; há uma ligeira
semelhança.
Uma vez est
ive muito doente e as Irmãs se alarmaram; correr
am assustadas de um lado para outro, agitando rá
pidas as grandes toucas brancas que mais parecia
m borboletas
gigantescas; mandaram chamar Isabe
l e Isabel chorou durante horas debruçada sobre
meu leito dizendo que sofria por ver que eu não
perdoava o marido; disse então:
- Não há nada q
ue eu não perdoe, chame seu marido.
Nessa mesma
tarde ele veio; conversou comigo, deu-me corage
m e convidou-me para residir com eles no apartam
ento. Respondi que estava bem ali no meu quartin
ho, podiam
vir me visitar quando quisessem, mas
me sentia feliz e queria morrer entre as Irmãs
bondosas e solícitas.
Desde esse dia, Felício t
ambém me visita de vez em quando; traz presentes
, conversa muito, procura afastar o passado cada
vez mais.
Julinho tem duas meninas; Maria Laur
a e ele já me visitaram duas
vezes. Gosto de Ma
ria Laura; é boa e amável. As meninas são fortes

c uma delas é muito parecida com o pai. Às vez
es escrevem convidando
para passar uma temporad
a com eles no Rio; prometo, digo que sim, um
d
ia irei, mas não tenho coragem. Moram com os pai
s de Maria Laura
num palacete em Copacabana; te
nho a impressão de que vou ser demais entre eles
. Não quero que a carga da minha pobreza vá empa
nar o brilho da riqueza de meu filho;
seria tol
dar um céu brilhante com nuvens sombrias. Prefir
o sempre meu quartinho obscuro.
Sinto-me quase
feliz; estou perto de Carlos, visito-o todos os
domingos, levo-lhe rosas e ao lado do seu túmulo
, recordo nossa vida numa rápida recapitulação.


Penso que cada um dos meus filhos está feliz po
rque seguiu o caminho escolhido.
Desde pequeno,
Julinho gostou do dinheiro; os outros nem lembr
avam que se podia vender alguma coisa, caixinhas
, jornais, garrafas. Julinho vendia tudo e tinha
sempre
dinheiro guardado. Quando, na mesa, par
a nos agradar, dizia que ia estudar engenharia,
Júlio nunca acreditava e respondia: "Você tem a
alma do negócio, deve ser
negociante".
E Julin
ho é negociante. Ganha bastante dinheiro, já tem
automóvel, mora numa bela casa e com certeza se
rá rico, muito rico. É feliz.
Alfredo tem o que
quer; sem responsabilidades, sem pensar no futu
ro, sem se preocupar com o que ficou para trás,
vive ao sabor da aventura, de terra em terra, de

mar em mar, de cidade em cidade procurando o i
deal. De vez em quando, lembra-se que ainda tem
mãe num canto qualquer da terra; toma então um c
artãozinho e escreve:
"Mamãe, vou bem. Abraços
do filho Alfredo". É feliz.
Isabel casou com o
homem que escolheu; não houve nada; nem conselho
s, nem ameaças, nem lágrimas que a demovessem. T
rabalha e luta; auxilia o marido ganhando a vida
,
adora os filhos. Está mais alta e mais forte,
parece mais mulher. Já não é a menina despreocu
pada e alegre. Tem agora rugas de apreensões na
testa, pensa no futuro
dos filhos, economiza e
trabalha, mas está bem. É feliz.
Carlos foi o ú
nico que não escolheu, foi escolhido. Mas tenho
certeza que é o mais feliz dos quatro. Tem tudo.

Não vivo só; tenho os quatro rostos risonhos s
obre a mesa do meu quarto. Sorriem para mim todo
s os dias. Tenho também uma carta de Alfredo des
de a semana passada,
a primeira carta longa que
me escreveu desde muitos anos. Está na guerra;
diz assim:
Mamãe:
Estou no Pacífico Sul desde
5 deste mês. Se algum dia eu disse que a vida er
a dura para mim, menti, porque foi um mar de ros
as. Rosas como as do nosso jardinzinho,
aquelas
que chamávamos de Bela Helena, lembra-se? Pois
minha vida era suave como uma Bela Helena em com
paração com a
de agora. Estou combatendo. Sabe
o que quer dizer isso? Não. Nunca poderá saber.
Estamos nas Ilhas Salomão e há três dias atacamo
s um comboio japonês que navegava
ao largo da A
ustrália. Os caças japoneses foram repelidos e d
errubamos seis deles ali na batata. Tomamos o ae
ródromo de Cucun na ilha de Guadalcanal e vamos
avançar
agora na base nipônica de Tulagi. Estou
no elemento, lutando. Eu não dizia sempre que p
referia água corrente à água parada? Pois estou
agora na correnteza, nem é
mais água corrente.
É uma correnteza que vai a muitos quilômetros a
hora e não há tempo nem de respirar. Tomamos Gav
atu e Mocambo em dois dias; foi uma chuva de
ba
las, bombas e gritos durante horas seguidas. Se
a senhora me visse, diria: Eu, mãe desse demônio
? Impossível. E não me reconheceria. Tudo no mei
o da fumaça e do
horror. Os japs recuam cada ve
z mais para o interior das Ilhas; a Austrália po
de ficar sossegada porque o perigo amarelo já nã
o paira sobre ela. Dias atrás os inimigos
receb
eram reforços no setor de Cocada e temos combati
do numa passagem estreita na cordilheira de Stan
ley, é importante a conquista por causa do Porto
Moresbi. Vencemos
sempre e nosso lema é este:
combater para vencer! Não sei quando escreverei
de novo; este agosto tem sido o mês mais longo d
a minha vida. Nem sei se receberá esta
carta, v
ai por acaso. Lembre-se que luto pelo ideal que
sempre desejei e depois desta guerra o mundo vai
mudar, sempre para melhor. Muita coisa cairá ma
s nossa idéia
ficará de pé. Felicidades a todos
.
ALFREDO.
Reli essa carta muitas e muitas vez
es; tinha certas palavras que eu não compreendia
muito bem, mas era uma carta de Alfredo, do meu
rebelde.
Dormi com ela sob o travesseiro; acor
dei altas horas, acendi a luz, tornei a ler e to
rnei a chorar. Meu coração me avisou no momento
da despedida que Alfredo não
voltaria mais. Deu
s o abençoe!
Vejo-o nos meus sonhos se debatend
o entre as ondas pesadas e negras e sinto que se
u último pensamento é para mim. Ouço sua voz cha
mando: Mamãe!
A manhã que estava radiosa e aleg
re, transformou-se. Vejo atravé da vidraça a chu
va cair no jardim da pensão; cai em gotas barulh
entas todas as plantas estão
inclinadas para o
solo, pesadas de água. Por toda parte a desolaçã
o, a tristeza e o silêncio; só a chuva e o vento
car juntos a sarabanda do outono; cobrem o
chã
o de folhas amarelas desfolhadas. Entre o ruído
da chuva e do vento ouço também o violão e a voz
de Carlos cantando, cantando.
O céu está sombr
io e escuro, cinzento-escuro. O que foi a vida e
m todos esses anos? Sacrifício e devotamento. É
como ver numa tarde assim de chuva, pesada de tr
istezas.
Mas não sei lamentar; se fosse preciso
recomeçar novamente, novamente
faria minha vid
a a mesma que foi, de sacrifício e devotamento.
Devo serfeliz porque cada filho
seguiu o caminh
o escolhido.
No meu último aniversário, recebi
um pacote de minha irmã vindo de Itapetininga; a
bri com curiosidade. Havia "uma" caixa
de figos
cristalizados, "uma" lata de goiabada
em calda
e "um" tijolo de pessegada. Apenas.
Grossas go
tas de chuva caem do céu sobre a terra, sobre as
árvores e sobre os telhados Cor de cinza. Solid
ão.





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Abraços fraternos!

 Bezerra

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'TUDO QUE É BOM E ENGRADECE O HOMEM DEVE SER DIVULGADO!

PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR."

JOSÉ IDEAL

' A MAIOR CARIDADE QUE SE PODE FAZER É A DIVULGAÇÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA" EMMANUEL




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