A Vida é feita de Escolhas
Elisa Masselli
Sinopse
Fernanda, prestes há completar 50 anos é abandonada
pelo marido. Entra em desespero. Sente que o chão está
faltando sob seus pés. Vê tudo o que construiu e sua vida
destruída em um momento.
Amparada por Marilda a sempre amiga e verdadeira
cúmplice que sempre esteve ao seu lado no desenrolar de sua
trajetória.Começam juntas uma verdadeira maratona na
tentativa de recuperar o amor de Antero, marido de Fernanda.
Mas, a lição do destino, só poderá ser compreendida
após o final de um longo caminho. Ajudada pelo plano
espiritual, Fernanda faz descobertas jamais imaginadas.
Dedicatória
Lucas
Meu neto querido
Que acaba de nascer
Com carinho e amor
Queremos te receber
A tua vida futura
Não sabemos como será
Mas durante toda ela
Carinho e amor você terá
Que a luz Divina te acompanhe
Por toda a tua jornada
Que possa ser feliz
Em toda a empreitada
Sumário
Prefácio ............ 10
Preciso falar com alguém 12
Amiga é para todas as horas 24
A atitude de Antero 37
Experiência de vida 54
Vigiando 70
Em busca de evidências 76
A consulta 85
Constatando a verdade 100
Tudo está sempre certo 109
De volta à realidade 132
Surgem Dúvidas 147
Coisas do destino 156
Notícias de Fernanda 179
Em busca de paz 187
Suspeitas confirmadas 193
A quem de direito 200
Conversa franca 204
Notícias do delegado 209
O desabafo 214
O despertar 225
Recebendo esclarecimento 240
A influência 261
Lição de mediunidade 268
Nada é como parece 279
A pior acusadora 310
Instrumento de Deus 324
Epílogo 334
PREFÁCIO
Sempre que começo a escrever um livro, nunca sei como a
história vai continuar; sei que ela chegará aos pedaços.
Em uma manhã quando eu estava quase acordando, como
sempre acontece, ouvi uma voz de homem, dizendo:
-"Uma mulher abandonada".
Acordei, sabendo de antemão que a minha próxima história
seria sobre uma mulher abandonada. Sorri e comecei a
escrever.
Como sempre faço, não me preocupei em pensar como seria a
história, nem as suas personagens, pois sabia que viriam. Não só
a história, mas, ao meu ver, o mais importante: os ensinamentos sobre a
espiritualidade. Quando estou escrevendo, não me preocupo
muito com a forma ou com a própria história, apenas escrevo.
No entanto, com este livro foi diferente. Em dado momento,
após terminar um capítulo, parei para pensar. Conheço várias pessoas
que, assim como eu, muitas vezes já foram tentadas a abandonar
a Doutrina e outras que realmente a abandonaram. O motivo
foi, é e sempre será o mesmo: consciência e inconsciência.
Por sempre ter sido consciente e ver que as pessoas ao meu
lado diziam estar inconscientes, eu julgava estar mentindo,
fazendo "teatro". Por muitas vezes me afastei das casas
espíritas, embora continuasse acreditando na Doutrina e
procurasse vivê-la da melhor maneira possível e aplicá-la à
minha vida sem que fosse preciso eu frequentar casas espíritas
e mentir sobre um mentor, que eu não acreditava ter. Mas, por
um motivo ou outro, eu sempre voltava. Durante um desses
abandonos, estava acordando e ouvi uma voz de homem:
-"O que importa é a mensagem".
Despertei totalmente e pensei:
-É isso mesmo! Não importa de que maneira as mensagens
venham, mas, sim, que cheguem.
Daí para frente não me preocupei mais com quem as estava
transmitindo nem como, se por livros ou palavras. Comecei só
a tirar o melhor proveito delas. Nesse tempo, eu nem
imaginava que um dia escreveria. Quando escrevi o meu
primeiro livro, nem por um minuto pensei que aquela história
maravilhosa fosse minha. Tinha certeza que ela estava me
sendo intuída. Sabia e sei que, pela pouca escolaridade que
possuo, não tenho capacidade para escrever uma história como
aquela nem as outras que vieram depois. As pessoas me
perguntam qual é o nome do mentor que escreve comigo. A
bem da verdade, não posso dizer, porque não sei. Poderia, se
quisesse, inventar um nome qualquer e ninguém contestaria,
mas não seria a verdade.
Acredito que o meu mentor não queira se identificar, pois se
quisesse o faria. E, em uma manhã qualquer, como sempre faz,
eu acordaria ouvindo seu nome. Depois deste livro, a minha
preocupação se tornou menor ou quase nenhuma, pois
compreendi, através dele, o enorme trabalho que o plano
espiritual tem para fazer com que os médiuns acreditem e se
entreguem.
Hoje, tenho a certeza que o mais importante são as
MENSAGENS, não importando a maneira como cheguem. Por
isso, só posso dizer: se você, espírita ou não, acreditando ou
não, tiver vontade de escrever, ESCREVA; se tiver vontade de
falar, FALE; se tiver vontade de compor uma música,
COMPONHA; recebendo e agradecendo com carinho a
INTUIÇÃO ou, se preferir, a INSPIRAÇÃO que está chegando,
facilitando assim, em muito, a vida do plano espiritual. Porque,
no final, o que importa mesmo é a MENSAGEM.
Elisa Masselli
Preciso falar com alguém
Marilda estava dormindo, quando o telefone. Tocou. Acordou
assustada. Atendeu. Do outro lado da linha uma voz
desesperada disse:
—Marilda! Algo terrível aconteceu! Preciso da sua ajuda!
Venha, por favor!
—Que aconteceu? Alguém está doente? Algum acidente?
— Não é nada disso, mas preciso de você! Preciso falar com
alguém senão vou cometer uma loucura!
— Calma! Está me deixando nervosa! Diga ao menos alguma
coisa! Dê uma pista!
— O Antero me abandonou!
— O quê? Como foi isso?
—Não consigo falar por telefone! Preciso que venha!
Marilda olhou para o relógio.
— á são mais de duas horas da madrugada! Está muito tarde! Não quer
deixar para amanhã?
— Não! Não posso esperar! Estou ficando louca!
— Deixe para amanhã!
— Não! Tem que ser agora! Você é ou não minha amiga?
— Claro que sou sua amiga, mas são duas horas da manhã. —
disse, sonolenta.
A voz do outro lado da linha disse gritando e chorando:
—Não está entendendo? O Antero me abandonou!
Marilda sentou-se na cama; embora sonolenta e ainda aturdida com
aquela notícia, pensou: "A situação parece mesmo grave".
—Está bem, estou indo para aí, só vou pegar minha bolsa e as
chaves do carro. Irei em seguida. — disse.
— Venha depressa, sinto que vou enlouquecer!
— Fique calma! Estou indo agora mesmo...
Foi o que fez. Levantou-se, foi até o banheiro, lavou o rosto,
passou um pente pelos cabelos, pegou a bolsa, as chaves e saiu
apressada. Já no carro, enquanto dirigia, pensava: "Embora seja muito
larde para sair de casa, preciso ir, já que sou, e sei disso, a
melhor amiga dela. Que terá acontecido? Por que ele fez isso?"
Chegou na casa de Fernanda o mais rápido possível. Estava
nervosa, preocupada. Tocou a campainha. Fernanda abriu a
porta, toda descabelada e, chorando muito, abraçou-se à
Marilda.
—Por que demorou tanto? Não podia ter vindo mais rápido?
Estou desesperada! Não sei o que fazer!
Marilda quis responder, dizer a ela que aquela não era hora para
alguém sair de casa, que teve medo e estava preocupada, mas
percebeu que não adiantaria.
Sentiu que ela não a ouviria, notou que, naquele momento, a única
pessoa que existia no mundo para Fernanda era ela mesma, com
todo o seu sofrimento. Mas, mesmo assim, embora sentindo
um pouco de raiva pelo modo como foi recebida e tentando
entender a amiga, disse:
—Fique calma! Estou aqui. Deixe-me entrar!
Fernanda soltou-a e, calada, saiu da frente da porta e Marilda
conseguiu entrar. Dentro da sala sentou-se em um sofá.
Fernanda sentou-se em outro, na ponta, quase caindo e
chorando muito.
— O Antero foi embora! Me abandonou!
— Como foi isso e por quê? Quando foi?
— Não sei! Chegou dizendo que estava indo embora, porque
não me amava mais, quer viver a sua vida. Não entendi!
— Disse isso? Falou dessa maneira?
Fernanda, chorando com mais intensidade, gritou:
— O pior você não sabe ainda! Fui trocada por outra!
Marilda ao ouvir aquilo não acreditou. Sem saber o que dizer e
preocupada, ficou calada por alguns segundos:
—Está bem, Fernanda. Vai me contar tudo, mas antes sente-se
direito. Desse modo como está vai cair do sofá.
Fernanda ajeitou-se no sofá, mas continuou chorando.
— Como posso ficar calma, Marilda? Fui trocada por outra! Fui
largada! Jogada fora. Depois de tantos anos, tantas lutas!
— Por outra? Ele disse isso? Quem é essa outra?
— Não, ele não disse que estava me trocando por outra, mas só
pode ser isso! Não sei quem ela é! Tentei argumentar com ele,
perguntar, mas Antero não quis conversar, me deixou,
arrumou suas roupas em uma mala e foi embora...
— Foi para onde?
— Não sei! Simplesmente foi embora!
Marilda percebeu que a amiga estava muito nervosa e sabia que
a primeira coisa a fazer era acalmá-la:
— Já está tarde, eu estou com sono...pode me oferecer um
café? Preciso manter-me acordada.
Percebeu que Fernanda ficou nervosa. Sabia que ela poderia
querer fazer qualquer coisa naquele momento, menos café.
Mas Marilda apenas sorriu, não deixando outra alternativa para
Fernanda a não ser fazer um café.
Muito a seu contragosto, dirigiram-se para a cozinha. Lá,
Fernanda começou a preparar o café. Marilda ficou olhando para
a amiga, sem saber o que falar. Afinal, elas eram amigas desde crianças,
moraram na mesma rua, estudaram na mesma escola. Sabia que
ela estava desesperada. Entendia a situação. Sabia que era muito
difícil aceitar um abandono, muito pior quando é por outra
pessoa.
— Que pretende fazer, Fernanda? Qual é o seu plano?
Tentando enxugar os olhos, Fernanda respondeu:
— Não sei! Estou desolada, não consigo pensar!
— Entendo que não saiba o que fazer, mas o que você não
pode mesmo é ficar nesse estado!
— Quer que fique como? Quer que eu saia rindo, dançando ou
cantando? Será que não entendeu? Fui abandonada!
— Espere aí! — disse Marilda ao perceber o tom de ironia da
amiga. — Está bem que esteja nervosa, mas isso não te dá o
direito de ser rude comigo! Estou aqui tentando te ajudar e
você vem com toda essa grosseria!? Estou indo embora!
Fernanda percebeu que a amiga estava brava e disse:
— Desculpe, não pretendi ser grosseira, só estou nervosa!
Marilda apenas sorriu, compreensiva. Tentava entender. Ficou
olhando para ela e pensando: "O que te dizer? Eu estou
sentindo muita pena de você, por tudo que está passando. Entendo
que esteja fora de si e por isso nem pensa no que diz. Sei que
preciso te dizer algo, mas o quê? O que se diz em uma hora
como esta?"
Fernanda terminou de preparar o café, colocou sobre a mesa
duas xícaras, o açucareiro e o bule. Em seguida, sentou-se ao
lado de Marilda. Enquanto tomavam o café, Marilda pensava
em sua amiga Dinorá, que é psicóloga e faz terapia de casais, e
no que ela sempre diz:
"Sabe, Marilda, o ser humano é engraçado. Pode ter lá as suas
diferenças. Ele pode ser de qualquer raça, seguir qualquer
religião, torcer para qualquer time de futebol, pertencer a
qualquer partido político, ser pobre ou rico... mas quando se
trata de amor, de sentimento, somos todos iguais e reagimos da
mesma forma. Por exemplo, quando tomamos conhecimento que
nós ou alguém a quem amamos está com uma doença grave, a
nossa primeira reação é a de negação. Nunca aceitamos que
aquilo esteja acontecendo conosco, porque, no íntimo, todos
nos julgamos livres de qualquer mal. Tudo pode acontecer com
os outros, mas conosco, nunca! Quando algo de ruim nos
acontece, não aceitamos, pois somos orgulhosos, mas isso não é
errado, não! Somos apenas seres humanos."
— Não posso acreditar, isso não está acontecendo, não comigo!
Fernanda disse, com a xícara na mão.
Ao ouvir a amiga, Marilda voltou dos seus pensamentos.
Tentou mais uma vez confortá-la:
— Talvez não esteja acontecendo mesmo. Deve ser uma crise
passageira! Você só tem que ter paciência. Tenho certeza que
logo Antero voltará e pedirá desculpas!
— Não vai, não! Ele falou com muita tranquilidade! Sabia o que
estava dizendo!
— Acredita mesmo nisso?
— Claro que sim! Acha que estou dessa maneira por quê? Senti
que ele estava sendo sincero! Já o conheço há muito tempo! Sei
que pensou muito antes de tomar essa decisão...
Novamente Marilda não soube o que dizer. Ficou apenas
olhando para um ponto distante. Fernanda,mais é amiga do
casal. Eu sou amiga dos dois e sempre julguei que fossem um casal
perfeito. Nunca havia passado por minha cabeça que um dia
estariam nessa situação. Estou mesmo sem saber o que dizer."
Marilda percebeu que Fernanda estava distante, parada, sem
dizer uma palavra, parecia estar se distanciando da realidade.
Ficou preocupada. Sabia que precisava ajudá-la, mas como? O
que dizer naquele momento? Com voz firme, perguntou:
calma, mas ainda chorando, levou a xícara até os lábios. Marilda
ficou calada, respeitando o silêncio da amiga, mas sentia que
precisava dizer algo, só que não sabia o quê. Só conseguiu pensar:
"Ninguém pode imaginar a situação em que um amigo fica diante
de uma cena como esta. Na maioria das vezes, como acontece
agora, se...
Fernanda, em que está pensando?
— Estou fazendo uma pergunta a mim mesma, mas não
encontro resposta. Mesmo assim, não consigo parar de
perguntar — respondeu, voltando os olhos para Marilda.
— Que pergunta é essa?
— Por que isso aconteceu? Por que ele me deixou?
Marilda sorriu intimamente ao constatar que Dinorá tinha
razão. Só que ela, Marilda, não era psicóloga, por isso estava ali
sem saber o que responder. Também nervosa, disse:
— Não sei, eu era a última pessoa neste mundo que poderia um
dia imaginar estar, a esta hora da madrugada, aqui, ao teu lado,
discutindo um assunto como esse... não sei o que te dizer.
Novamente se calaram.
"De acordo com a Dinorá", Marilda pensou, "após a aceitação,
geralmente essa é a pergunta que todos fazem. Por que
comigo?" No dia em que conversávamos sobre isso, lhe
perguntei, intrigada:
— Por que isso acontece?
— Porque somos orgulhosos.
Lembro-me que olhei assustada e espantada para ela, que
sorrindo me perguntou:
— Está assustada? Não precisa se assustar. Graças a Deus somos
orgulhosos. O orgulho é um sentimento humano e, como todos os
sentimentos, é divino. Isso mesmo, divino. Em todos os sentimentos e
coisas, existem sempre dois lados. O certo e o errado. O
orgulho, quando bem direcionado, pode e deve ser muito
usado. Não entendeu?
Com a cabeça, eu disse que não, e ela continuou:
— Podemos e devemos sentir orgulho de nossa família, do
nosso trabalho, quando feito com amor; dos nossos filhos,
quando fazem algo que nos dê prazer, ou alguma coisa que nos
encha de orgulho; da casa que construímos; do diploma que
conseguimos após muito estudo; de uma luta vencida e de muitas
outras coisas. Eu, por exemplo, tenho muito orgulho dos
pacientes que consegui ajudar. Fico feliz quando eles me
dizem: — Obrigado, doutora, a senhora abriu os meus olhos.
— Isso sempre acontece? — perguntei.
— Nem sempre, mas quando acontece me causa um prazer
enorme. Aí sim, eu me orgulho do meu trabalho.
— Orgulha-se?
— Sim, o orgulho nos empurra para a conquista, para a
felicidade. Mas, se ele for usado do modo errado, pode nos
destruir. Quando colocamos nosso orgulho à frente de tudo.
Quando queremos nos mostrar a outra pessoa de uma maneira
que sabemos não ser a verdadeira, pois nos conhecemos.
Quando ficamos tristes por não sermos aceitos em determinadas
ocasiões ou lugares. Quando o nosso orgulho nos leva a esconder os
nossos sentimentos em relação a outra pessoa. Quando sentimos
orgulho do que temos e, por isso, achamos que podemos
desprezar aqueles que não têm. Quando somos trocados por outra
pessoa. Quando nos sentimos abandonados. Aí sim, o orgulho é
pernicioso."
Pensando sobre o que Dinorá lhe disse, Marilda ficou com uma
vontade enorme de contar tudo aquilo para Fernanda, mas não
podia, pois sabia que, da maneira como ela estava, não
entenderia. Mesmo assim, sentindo ser necessário, falou:
— Fernanda, preciso lhe contar algo que Dinorá falou.
— Lá vem você com psicologia. Não estou para isso.
— Sei o que sente a respeito de psicólogos, algumas vezes sinto
o mesmo. Mas parece que aquilo que ela disse tem lógica. Não
esqueça que ela faz terapia de casais.
— O que ela te disse?
Marilda contou tudo que Dinorá havia lhe dito. Quando
terminou de falar, Fernanda a olhou com os olhos arregalados:
— Você e ela estão loucas! Não sou orgulhosa! Só estou
sofrendo porque eu o amo muito e porque ele foi embora!
Porque estou vendo o meu casamento se destruindo! Para
vocês é fácil dizer isso, não estão na minha pele! Não está
acontecendo com vocês! Eu amo o meu marido! Não sei viver
sem ele!
— Será que o ama mesmo ou será que apenas o suporta?
— Está louca mesmo! — Fernanda respondeu furiosa. — Claro
que o amo. Estamos juntos há muito tempo! Temos uma casa,
uma filha! Uma vida toda juntos! Claro que o amo!
"Será que o estar juntos — Marilda pensou — há muito tempo,
ter uma casa e uma filha, significa amar? Será que ela nunca pensou, que,
se não tivesse se casado, poderia ter feito isso ou aquilo? Poderia ter se
tornado uma profissional? Será que conseguiu realizar todos os
seus sonhos? Será que a sua filha a completa? Será que você é
feliz, Fernanda?"
Ela se fez todas essas perguntas, mas não teve coragem de fazê-
las para Fernanda. Continuou olhando para ela, que estava com
um lenço enxugando as lágrimas, e continuou pensando:
"Neste momento, tenho uma vontade imensa de te perguntar tudo
isso, mas não posso; não agora, neste momento em que está
sofrendo tanto. Sou sua amiga, estou aqui para confortá-la, não
para enchê-la de dúvidas".
Olhou fixamente para Fernanda, que estava com a xícara na
mão e os olhos tristes, esperando que ela lhe dissesse alguma
coisa. Nesse momento, Marilda sentiu a língua arder com
vontade de dizer tudo que estava pensando, mas ficou calada.
Fernanda, percebendo que ela estava distante, disse:
— Marilda! Responda! Por que isso aconteceu?
Marilda voltou os olhos para ela e pensou: "Agora não tem
jeito, vou ter que responder. Você está sofrendo e precisando
de uma resposta. Sou sua amiga e preciso dizer o que estou
achando de tudo isso. Mas, sei que não vai adiantar. Você não
entenderia nem aceitaria, mas vou tentar".
— Não sei. Estou aqui pensando, tentando te ajudar, mas não
sei como. Sempre julguei o teu casamento perfeito. Não era?
— Claro que era perfeito! Nos dávamos muito bem. Tivemos
algumas brigas como todo casal, mas nada mais sério. Ele foi sempre um
ótimo marido e sempre fez tudo que eu quis. E um marido perfeito!
— Você também fez sempre tudo que ele quis?
— Claro que sim!
— Nunca lhe disse um "não"?
— Não! Claro que não!
— Não sei o que dizer, pois sempre achei que não tinham
problema algum!
— Éramos não! Somos um casal perfeito! Ele vai voltar e
seremos felizes novamente!
"Preciso encontrar uma maneira de te ajudar, Fernanda. Tenho que
levantar teu ânimo, mas como?"
Não encontrando as palavras certas para confortá-la, disse:
— Sendo assim, se tudo estava bem, acredito que isso seja só
uma crise da idade e que ele logo voltará. Só precisa ter
paciência e esperar.
— Não! Ele não voltará! Ele foi embora!
— Por favor, não volte a chorar. Isso não vai adiantar.
— Será que não entende! — Fernanda gritou furiosa — O pior
de tudo é que fui trocada por outra!
— Pior, por quê?
— Não imagina o que estou sentindo! Estou humilhada!
Magoada! Com muita raiva! Tenho vontade de matar aquela
sem-vergonha!
— Calma! Isso não vai adiantar. Procure ficar calma para poder
encontrar uma solução! Se continuar assim, não conseguirá.
— Que solução? Não sei o que fazer!
— Também não sei, mas sempre há uma solução. Vamos
pensar com cuidado? Sei que encontraremos um caminho.
Fernanda tentou se acalmar. Marilda precisava pensar rápido,
estava cansada, com sono, mas não podia abandonar a amiga
em um momento de crise como aquele.
— Sabe quem é essa outra? Ele disse que tinha outra?
— Não! Ele não disse. Perguntei, mas ele não quis dizer. Mas só
pode ter sido por causa de outra. Não existe outro motivo.
Preciso descobrir. Preciso saber quem é essa sem-vergonha que
roubou o meu marido e destruiu o meu lar. Assim que
descobrir vou mata la! Vou mesmo!
Ao ouvir aquilo, Marilda voltou a pensar: "Novamente ela está
entrando no lugar-comum. Por que a outra é a culpada? Por
que é sempre mais fácil julgar e condenar os outros? Por que
ela, e não você, é a culpada? Por que o seu marido não é o
culpado?"
Ela pensou, mas não falou. Percebeu nos olhos da amiga um
brilho diferente, que já conhecia.
"Está tendo uma ideia", pensou — "Disso tenho certeza".
Fernanda levantou-se, olhou para Marilda bem nos olhos:
— Vou descobrir quem é essa sem-vergonha! Vou descobrir!
Aí, ela vai ver com quem está lidando!
— Como vai fazer isso?
— Vou segui-lo por toda parte! Ele vai ter que ir até ela!
— Seguir? Vai mesmo fazer isso?
— Vou sim! Preciso descobrir quem é ela!
— Como vai fazer isso?
— Você vai me ajudar!
— Eu?! Como?!
— Ele conhece o meu carro e o seu, por isso não podemos usar
nenhum dos dois!
— Não estou entendendo...
— Vamos arrumar um carro emprestado de alguém que ele não
conheça!
— Vamos?! Está dizendo que nós vamos?!
— Claro que vamos! Você irá junto comigo! Não poderei fazer
isso sozinha! Não sei qual vai ser minha reação quando
encontrar os dois juntos!
— Espere aí! Você não disse que eu teria de participar de tudo
isso! Além do mais, quem vai te emprestar um carro?
— Sei lá! Temos muitos amigos, não temos?
— Acredito que sim, mas quem vai querer te emprestar um
carro? Ainda mais nas condições em que se encontra?
— Que condições? Estou muito bem!
Marilda percebeu que ela estava nervosa novamente. Precisava
pensar rápido no que iria dizer ou fazer: "Que vou fazer? Não
posso sair por aí dando uma de detetive! Mas, sou sua amiga!
Preciso ajudá-la de alguma forma".
— Sei que estou nervosa — Fernanda continuou —, mas
também queria o quê? Você tem que arranjar o carro!
— Eu?! Não sei a quem pedir!
— Você sempre disse ser minha amiga, agora chegou a hora de
provar! Preciso de um carro e você vai ter que conseguir.
— Como, vou ter?!
— Claro que vai ter! E a única amiga que tenho! A única em
quem posso confiar! Não sei o que fazer! Precisa me ajudar! Só
tenho você neste momento!
"Você não percebe, mas está confundindo as coisas. A amizade
tem um limite. Não podemos exigir, de nossos amigos, coisas que
talvez eles não possam fazer. Sei que para você, no momento,
isso não tem importância. O que está importando agora é só
você e seu enorme sofrimento. Os outros...ora, os outros! Estou
nervosa, a minha vontade é sair, ir para minha casa e dormir,
mas não posso fazer isso. Não posso te abandonar. Não neste
momento, e da maneira como está".
— Estou pensando, mas não encontro alguém que possa ou
queira emprestar um carro, Fernanda. Sabe como é, as pessoas,
normalmente, têm muito ciúmes de seus carros.
— Que ciúmes! Que nada! Esta é uma hora de desespero!
Preciso de um carro! Tente lembrar-se de alguém! Eu não
consigo pensar em ninguém! Você tem mais conhecidos do
que eu!
— Nem eu, neste momento, consigo lembrar-me de ninguém!
Espere... talvez a Ivete... ela também passou por essa mesma
situação! Talvez ela entenda e nos ajude!
— Ótimo! Não a conheço muito bem, mas, se passou por isso,
vai entender e me ajudar. Tem o número do telefone dela?
— Sim, está aqui na minha agenda.
— Então procure e vamos ligar para ela agora!
— Agora? Sabe que horas são? Não podemos fazer isso!
— Não me importo! Preciso de ajuda e não posso esperar!
— Espere aí! As coisas não podem ser feitas dessa maneira! A
Ivete tem um emprego, deve estar dormindo! Não temos o
direito de acordá-la por um probleminha desse!
— Probleminha! Probleminha!? Como pode dizer isso?
Marilda percebeu que havia dito uma bobagem. Mas agora já
estava feito. Fernanda estava brava e com razão. Marilda
precisava incontrar um meio de se desculpar, mas estava cansada, e, no
fundo, la no fundo, achava que era um probleminha mesmo.
Sabia também que para Fernanda o problema era imenso.
— Desculpe, mas você está muito nervosa e não está podendo pensar
direito. Não podemos telefonar para a Ivete neste momento.
Ela tem que levantar cedo e ir trabalhar. Precisamos respeitar a
privacidade das pessoas.
— Privacidade?! Privacidade?! A minha foi mais que
desrespeitada. Alguém entrou dentro da minha casa e roubou o
meu marido! Destruiu o meu lar!
— Espere aí, ninguém entrou na sua casa. Você foi quem não
notou que seu casamento estava terminando!
Fernanda começou a chorar novamente. Marilda percebeu que,
mais uma vez, havia falado demais e essa não era a sua intenção.
Levantou-se da cadeira em que estava sentada, aproximou-se
de Fernanda e abraçou-a:
— Desculpe mais uma vez, estamos cansadas. Vamos fazer o
seguinte: eu vou embora, vamos tentar dormir. Amanhã bem
cedo eu volto e traçaremos um plano. Prometo que vou pensar.
Falarei com a Ivete. Está bem assim?
Fernanda não respondeu, apenas continuou chorando. Marilda
sentiu que já não poderia mais ajudá-la, não naquele momento. Após
alguns instantes, Fernanda disse:
— Não vou conseguir dormir! Não consigo parar de sofrer e
muito menos de chorar! Estou desesperada!
— Tente! Amanhã terá que estar inteira para poder agir. Eu
estou num "prego" e preciso dormir. Boa-noite.
Fernanda não queria que ela fosse embora, mas não disse coisa
alguma. Percebeu, finalmente, que Marilda estava cansada
mesmo e que, em seu devaneio, chegou a pensar que ela não
queria ajudá-la, que não era mais sua amiga. Ficou calada.
Marilda, embora com um sentimento de culpa, não por não tê-
la ajudado nem por não se sentir sua amiga, mas por não ter
dito tudo aquilo que realmente estava pensando, entrou no
carro. O caminho até a sua casa era longo.
"Como as pessoas sofrem sem necessidade", foi pensando
enquanto dirigia. "Eu já havia aprendido com a vida que tudo
nela é ilusão. O bem, como o mal, passam. Quando um
momento termina, em seguida vem outro. Quando estamos
passando por uma situação ruim, julgamos ser o fim do mundo, mas
ela passa e, depois de algum tempo, ao nos lembrarmos dela, não
acreditamos que foi difícil. Mas não temos mais tempo para pensar
nela, pois quase sempre estamos com um outro problema. Assim
vamos vencendo as dificuldades. O vencer dificuldades
depende de cada um. Alguns conseguem com facilidade, outros
não. Mas, de uma coisa eu tenho certeza: a cada dificuldade
vencida, ficamos cada vez mais fortes. Fernanda está agora vivendo algo
novo e, por ser novo, diferente de tudo que conheceu até hoje, está
nervosa e ansiosa, mas sei que conseguirá superar".
Finalmente chegou em casa. Ao entrar na sala, olhou para o
relógio. Eram cinco horas da manhã. Estava realmente muito cansada.
Foi direto para o quarto, deitou-se e adormeceu.
Amiga é para todas as horas
Marilda novamente acordou assustada com o barulho do
telefone. Olhou para o relógio que estava sobre seu criado-mudo.
Sonolenta, atendeu:
— Alô.
— Ainda bem que já está acordada!
— Não estava, mas agora estou...
— Não consegui dormir! Não via a hora de que amanhecesse!
Já falou com a Ivete?
— Não. São ainda oito horas da manhã! Nem acordei direito...
estou sonolenta...
— Pois então acorde! Não liga mesmo para o meu sofrimento!
Será que não percebeu que estou desesperada? Que não sei o
que fazer da minha vida?
Marilda sentou-se na cama. Na realidade, estava furiosa por ter
sido acordada daquela maneira e naquela hora, depois de ter
passado quase a noite toda ouvindo Fernanda reclamar. Ia responder
com uma má-criação, mas lembrou-se do muito tempo que
eram amigas e que os amigos verdadeiros estão presentes nos
bons e maus momentos. Respirou fundo e contou até dez:
— Fique calma. Vou me levantar, tomar um banho, depois
telefono para a Ivete. Não sei a que horas ela chega no
trabalho, por isso precisamos esperar mais um pouco.
— Não! Não quero que telefone para ela sozinha!
— Por que não? — Marilda perguntou, surpresa.
— Quero estar ao seu lado para ver o que você vai dizer!
— Não entendi! Por que está dizendo isso?
— Quero estar presente para ver o que vocês vão conversar!
Quero ter a certeza de que você telefonou mesmo!
Marilda pulou da cama e ficou em pé junto a ela, irritada.
"Isso já é demais! Estou aqui com a maior boa vontade, quer
dizer, sem muita vontade, mas estou tentando ajudar, ficar ao
seu lado nesse momento, e ela me vem com essa? Não! Já é
demais! Eu não preciso disso!"
Ia responder, mandar Fernanda se virar sozinha! Pedir que a
deixasse em paz e que resolvesse seus próprios problemas! Foi
o tempo de pensar tudo isso, quando Fernanda se deu conta do
que havia dito e disse, chorosa:
— Desculpe, estou muito nervosa...
Marilda voltou da fúria em que estava. Procurou entender o
que Fernanda estava sentindo:
— Está bem, vou te desculpar, mas precisa entender que só
estou tentando te ajudar. Hoje é o meu segundo dia de férias,
tenho a minha viagem marcada, preciso comprar roupas, deixar
alguns papéis em ordem, mas vou adiar tudo isso por alguns
dias, só para ficar ao seu lado neste momento.
— Desculpe novamente, sabia que poderia contar com você.
Obrigada, sempre soube que você era minha amiga...
— É... amiga é para essas coisas...
Enquanto Marilda dizia isso, Fernanda soluçava. Marilda não
teve outra alternativa:
— Está bem — disse, contrariada —, antes vou tomar um
banho para despertar.
Fernanda suspirou fundo, dizendo:
— Vê se não demora muito!
Marilda não respondeu. Percebeu que, se aquela conversa
continuasse, iriam brigar.
"Ela está completamente fora de si", pensou. "Sei que estando
do lado de fora da história tenho que manter a cabeça fria. Sei que tudo
isso em breve passará. Só preciso ter um pouco de paciência."
— Já vou, chego aí o mais rápido possível — disse, com um
sorriso conformado.
Antes que Fernanda tivesse tempo para dizer qualquer coisa,
Marilda desligou o telefone.
Foi em direção ao banheiro, precisava mesmo de um banho.
Não havia dormido o suficiente. Precisava despertar. Olhou
para o espelho, estava com olheiras profundas. Entrou embaixo do
chuveiro, deixou a água cair por seu corpo. Aos poucos a
irritação que estava sentindo foi passando. Sabia que teria de ter
muita paciência. Sabia que Fernanda estava realmente passando
por um momento muito difícil. Sabia, principalmente, que era
sua amiga. Talvez a única que tivesse naquele momento.
Terminou de tomar banho. Desligou o chuveiro. Estava se
secando, quando o telefone tocou outra vez. Atendeu:
— Alô.
— Você ainda está aí, Marilda?
Marilda novamente contou até dez, respondeu:
— Estou terminando de tomar meu banho, Fernanda...
— Já faz muito tempo que te liguei! Você ainda está tomando
banho?
Marilda olhou para o relógio:
— Agora são só oito e dez! Não faz tanto tempo assim...
— Não pode ser que se passaram só dez minutos! Seu relógio
não está certo! Faz mais de uma hora!
Marilda sorriu, entendia que, para Fernanda, o relógio parecia
estar parado. Ela estava tão ansiosa, que não via o tempo passar.
— Fique calma, já estou indo! Fernanda começou a chorar
novamente:
— Venha logo, por favor...
"Como vou brigar com ela nesse momento? Uma mulher com
quase cinquenta anos está ali perdida, sem saber o que fazer,
agindo como se fosse uma criança, uma adolescente".
— Estou indo. Chego o mais rápido que conseguir. Tchau.
Desligou o telefone, não dando tempo para Fernanda dizer
nada. Vestiu-se, saiu. Chegou na casa de Fernanda, encontrou-a
com a mesma roupa com que a havia deixado. Estava com os
olhos vermelhos e esbugalhados. Percebeu que realmente ela
não havia dormido um minuto sequer. Antes que Marilda
dissesse qualquer coisa, Fernanda falou:
— Ainda bem que chegou! Demorou muito!
Ia responder novamente com uma mal-criação, mas percebeu
que não adiantaria. Apenas disse:
— Você está horrível! Nem parece a mesma Fernanda que
conheci durante tanto tempo!
— Queria que eu estivesse como? Ainda não entendeu que fui
abandonada? Que fui trocada por outra, que nem sei quem é?
Vamos telefonar para Ivete?
— Sei de tudo que está passando, sei que está sofrendo, por isso
estou aqui. Vamos telefonar para a Ivete, sim, mas antes você
vai tomar um banho, trocar de roupa e pentear esse cabelo.
— Não! Vamos falar primeiro com a Ivete!
— Primeiro você vai fazer o que eu disse. Se não fizer, eu não
telefono para ela! Depois vamos tomar um café. Aí, só aí, vamos
telefonar.
— Vai demorar muito!
— Não vai, não. Me recuso a ficar ao seu lado, nesse estado em
que está. Não suporto ver a minha amiga nessa situação de
desânimo. Logo tudo isso vai passar.
— Como, passar? Será que não entendeu ainda a minha
situação? Perdi o meu marido! Quero que ele volte!
— Entendi a sua situação, sim! Claro que entendi, mas não vai
adiantar você ficar nesse estado. Nervosa como está, não vai
conseguir pensar. Nem tomar uma atitude sensata!
Fernanda recomeçou a chorar. Marilda sabia que a primeira
reação de qualquer pessoa é justamente essa. Desespero e sentimento de
impotência diante de uma situação inesperada.
— Não adianta ficar assim. Procure se acalmar. Nada melhor
para isso do que um bom banho. Você precisa sentir-se bonita. Depois
que estiver calma, vamos telefonar para a Ivete.
— Não consigo me controlar! Não consigo aceitar que ele tenha
me abandonado, depois de tantos anos juntos! Depois de tanto
sacrifício para conseguirmos tudo que temos hoje!
— Sinto muito. Não quero te desanimar, mas você não é a
primeira nem será a última a passar por essa situação.
— Sim, sei disso. Quantas nós conhecemos? Muitas, mas nunca
pensei que isso um dia aconteceria comigo. Comigo não! Sou
uma boa dona de casa. Boa mãe. Dediquei minha vida toda à
minha família. Comigo não!
— Está bem, mas vá tomar o seu banho. Enquanto isso, vou
preparar um café. Quando voltar cheirosa e bem penteada,
vamos telefonar para a Ivete. Está bem assim?
Marilda conhecia muito bem Fernanda. Sabia que ela não
desistiria e não sossegaria enquanto Antero não voltasse.
"No seu íntimo, ela deve saber que estou certa. Quando isso
aconteceu com algumas de nossas amigas, discutíamos sempre
a respeito, sempre demos a nossa opinião, mas agora é
diferente, está acontecendo com ela".
Abanando as mãos, entendendo que Marilda não faria nada,
antes que ela fosse tomar banho, Fernanda saiu da sala. Marilda
respirou fundo e, aliviada, foi para a cozinha e colocou água no
fogo para ferver. Enquanto a água fervia, ia pensando no que
diria para Ivete. Mais uma pessoa seria envolvida em uma
história que não era sua. Não sabia se Ivete estaria disposta a
emprestar o carro. Conhecia-a há muito tempo, era sua amiga,
mas não íntima como Fernanda. Não tinha com ela a mesma
liberdade. Por isso, não sabia como pedir um favor desses, mas
sabia, também, que se Fernanda não tivesse um carro, se não
descobrisse quem era a mulher que havia roubado seu marido,
não teria sossego. Estava ainda pensando quando Fernanda entrou
na cozinha. O café já estava pronto e Marilda estava colocando as
xícaras sobre a mesa. Fernanda, ainda com os olhos vermelhos,
perguntou:
— Estou melhor agora?
— Agora sim! Está limpa e com outra aparência. Seus cabelos
estão molhados, mas penteados. Seus olhos, embora tristes,
estão faiscando de uma maneira diferente daquela que estava
quando cheguei. Justamente por esse olhar, estou percebendo
que teve uma idéia e que está, outra vez, com esperança.
—Tive sim!Já sei o que faremos!
Marilda, receosa do que ia ouvir, disse:
— Você está ótima! Agora sim vai saber que caminho tomar!
Venha tomar café. Vai me contar qual é essa nova idéia?
— Claro que vou contar. Vou tomar uma decisão, sim. Só que
antes precisamos falar com a Ivete. Vou precisar do carro para
pôr em prática o que decidi.
— O que foi que decidiu?
— Só depois que falarmos com a Ivete, vou te contar. Agora
estou mais calma. Sinto que ainda não está tudo perdido.
Agora quem estava curiosa era Marilda. Percebeu que aquele
banho que Fernanda havia tomado lhe fizera mais bem do que
ela poderia imaginar. Sentou-se e começaram a tomar café.
Para o espanto de Marilda, Fernanda tomou café
tranquilamente, comeu até uma fruta e pão. De repente disse:
— Estou velha e gorda!
Ao ouvir Fernanda dizer isso, Marilda estremeceu. Olhou para
ela, enquanto pensava:
"Como o ser humano pode ser tão óbvio e previsível? Por que,
quando somos abandonados, a nossa reação é a de primeiro,
procurar um defeito em nós? Por que nunca no outro"?
Estava pensando isso, mas também não poderia dizer. Não
agora, que estava vendo os olhos dela brilhando de esperança.
— Não estou te achando gorda — disse sorrindo —, talvez um
pouco cheinha, mas não gorda! Sente-se realmente velha?
— Não na cabeça, mas o meu corpo já não é o mesmo! Ele não
acompanha a minha cabeça. Não posso negar que os anos
passaram e que já não sou a mesma...
— Tem razão, mas, se você envelheceu, aconteceu o mesmo
com Antero: hoje já não é o mesmo rapaz que você conheceu,
se apaixonou e casou.
— Sei que ele também envelheceu, mas com o homem é
diferente. Quanto mais velho fica, mais charmoso se torna.
— Nisso você tem razão, mas, mesmo charmoso, ele nunca
poderá negar a idade que tem. Se o seu corpo não acompanha a
sua cabeça, o dele também não. Tem de ter outro motivo. Não
acredito que seja esse.
— Pode ser que não, mas vou a uma clínica de estética! Quero
cortar e pentear o cabelo, fazer massagens e marcar algumas
aulas de ginástica. Depois quero ir a uma loja e comprar roupas
novas. VOU me tornar outra mulher! Você vai ver!
Marilda ficou olhando para ela. Percebeu que estava feliz por
ter encontrado a solução.
"Não importa em que eu acredito, o importante é que ela se
sinta bem e parece que está muito bem..."
— Não estou te achando gorda nem velha, mas se acha que isso
seja o problema, poderemos ir até uma clinica de estética.
Também estou precisando de um tratamento.
— Você vai mesmo comigo? Faria isso por mim?
— Claro que vou! Sou sua amiga e estou aqui para te ajudar,
mas e a Ivete? Não vamos falar com ela?
— Agora não, não vai adiantar. Preciso estar preparada e
bonita, se quiser tê-lo de volta. Por isso podemos ir hoje
mesmo à clínica de estética.
— Hoje?
— Sim, quanto mais cedo melhor. Assim que eu estiver bem
bonita, iremos até o escritório do Antero. Tenho certeza que
ele, ao me ver mudada, desistirá de me abandonar!
— Está pensando mesmo em fazer isso?
— Claro que estou! É a solução!
Sem alternativa, Marilda acompanhou a amiga.
Durante o caminho até a clínica, quase não conversaram. Para
Marilda não havia opção a não ser acompanhá-la.
Fernanda estava ansiosa, sentia que ali encontraria a solução
para seus problemas. Em dado momento, ela disse:
— Marilda, não sei como te agradecer.
— Agradecer o quê?
— Por estar fazendo isso, por estar me acompanhando. Está
mostrando que realmente é minha amiga. Eu sabia que você pretendia
viajar nas suas férias...
— Pretendia, não! Ainda pretendo, mas terei muito tempo.
Logo tudo isso vai se acertar e poderei viajar tranquila.
Novamente uma sombra de tristeza apareceu nos olhos de
Fernanda. Marilda, percebendo, disse:
— Você não vai começar a chorar outra vez, vai?
Fernanda passou as mãos pelo rosto, olhos e nos cabelos.
Tentou esboçar um sorriso.
— Desculpe, estou tentando me controlar, mas está sendo
difícil. Tenho medo de não conseguir trazer Antero de volta.
Não sei como isso pôde acontecer... ele foi sempre tão
carinhoso, comigo e com a Regiane. Jamais poderia imaginar
que houvesse outra em sua vida. Embora, pensando melhor, já
há algum tempo ele estava diferente, quase não conversava
mais comigo e começou a chegar tarde. Dizia que estava em
reunião ou em jantares de negócios. Nunca desconfiei de nada.
Também, depois de tantos anos, já não existe mais ciúmes ou
preocupação.
— Posso imaginar como está se sentindo, eu também nunca
imaginei isso. Ele sempre demonstrou gostar de vocês, por isso
acho que não passa de uma aventura; logo mais ele voltará e
tudo ficará como antes.
— Gostaria de acreditar nisso, Marilda, mas não consigo. Ele
falou calmo, parecia saber muito bem o que queria.
— Olhe, estamos chegando à clínica; quando sairmos dela, você
será outra pessoa. Irá falar com Antero, quem sabe, ele também não
esteja arrependido do que fez. Você não pode perder a
esperança. São muitos anos de casamento para terminar assim.
— Deus te ouça... Deus te ouça. Se isso não acontecer, não sei
o que farei com a minha vida, Marilda...
— Ora, não se preocupe. A vida sempre foi, é e será mais
importante que tudo!
— Você fala assim porque nunca se casou, nunca teve uma
família nem sabe o que isso significa. O dia que tiver, poderá
saber como me sinto hoje.
— Talvez você tenha razão, mas acho perigoso colocarmos a
nossa felicidade nas mãos de outra pessoa. Acredito que isso
não acontecerá comigo. Já passei da idade. Hoje, só quero
pensar no meu trabalho, aliás, como sempre fiz. Agora eu sei
do que sou capaz e que posso viver às minhas custas, sem
depender de ninguém, financeira ou emocionalmente.
Marilda estacionou o carro em frente à clínica, e desceu,
enquanto Fernanda também descia. Sorriram e, confiantes,
entraram. Dirigiram-se até o balcão, uma recepcionista sorriu:
— Em que posso ajudá-las?
Fernanda respondeu ansiosa e com a voz embargada:
— Estou aqui porque preciso me transformar em outra mulher, quero
e preciso ficar bonita. E só o que quero!
A recepcionista sorriu. Estava acostumada com aquele tipo de
mulher e sabia o motivo de ela estar ali.
"Essa também deve ter perdido o marido", pensou, mas não
disse. Ao contrário, demonstrando solidariedade, falou:
— Pois a senhora veio ao lugar certo! Vou chamar a doutora
Lídia. Ela conversará com as senhoras, garanto que tem o
remédio para que esse seu pedido seja atendido.
Acionou o interfone e chamou a doutora, que pediu que
entrassem em seu consultório. Marilda e Fernanda
encaminharam-se para a porta apontada pela recepcionista,
entraram. Dentro do consultório, uma senhora as recebeu:
— Bom dia, meu nome é Lídia, espero poder ser útil. Sentem-
se, por favor. Em que posso ajudá-las?
— Preciso mudar todo o meu visual, quero ficar bonita! —
Fernanda respondeu, agitada.
— Está no lugar certo, vejo que você está precisando de um
bom corte de cabelo, uma tintura, talvez com algumas luzes, e
um tratamento de pele — disse sorrindo, compreensiva.
— A senhora acha que só isso basta? Não acha que estou gorda?
Que preciso emagrecer muito?
A doutora olhou-a demoradamente, respondeu:
— Não acho, só talvez um pouco flácida, nada que algumas
sessões de ginástica não possam resolver.
— Quanto tempo isso vai demorar?
— Depende da senhora; se seguir todo o tratamento facial e
fizer ginástica, em dois meses, mais ou menos, estará vendo
algum resultado.
— Dois meses?! Não posso esperar tanto tempo! Preciso ficar
bonita hoje!
— Hoje?! Acredito que não será possível... poderemos arrumar
seu cabelo, um tratamento de pele e uma maquiagem, nada além disso.
Depois, com o tempo, aí sim, obterá resultados.
Fernanda olhou para Marilda, que sorriu. Ela sabia que aquilo
que Fernanda queria era quase impossível, mas disse:
— Acho que deve fazer isso que a doutora indicou ou esperar
por dois meses, Fernanda. Quem sabe a espera seja o ideal.
Nesse tempo, poderá pensar com mais calma em tudo que
aconteceu e assim poderá tomar uma decisão mais consciente.
Quem sabe o Antero reflita e volte atrás.
— Marilda, você está louca? Não posso esperar tanto tempo!
Tenho que ir hoje até o escritório dele!
— Você é quem sabe. Estou aqui para te acompanhar.
— Então vamos fazer o possível para que a senhora se sinta
bonita! — disse a doutora, sorrindo.
— E isso o que quero! Sei que a senhora não sabe, mas o meu
marido me abandonou, me trocou por outra!
— Desconfiei, isso acontece muito. Já estou acostumada. Quer
mesmo fazer o tratamento inicial?
— Quero! Claro que quero!
— Pois bem. Queiram, por favor, me acompanhar.
Marilda olhou para Fernanda, sabia que aquilo estava deixando
a amiga feliz e esperançosa, não lhe restou alternativa, decidiu
acompanhá-la. Enquanto caminhavam, disse:
— Fernanda, já que você vai ficar aqui praticamente o dia indo,
vou aproveitar e também cuidar um pouco da minha aparência; sabe
que trabalho muito e me sobra pouco tempo.
— Você sempre trabalhou muito, deve fazer isso mesmo,
também tem que ficar bonita, quem sabe encontre um
namorado.
Marilda riu, o que menos lhe preocupava era ter um namorado. Ela
estava com quarenta e oito anos, nunca se casou; além do mais,
depois que terminou com Jorge, repensou a sua vida e não encontrou
niguém que fizesse com que ela abandonasse a sua carreira, tão
promissora. Era advogada e, desde que se formou, começou a trabalhar
em um grande escritório. Aos poucos, foi crescendo na
empresa e, agora, era sócia. Morava em uma bela casa, tinha
carro e podia viajar
sempre que o trabalho permitisse. Estava quase na hora de se
aposentar, mas continuaria no escritório, trabalhando menos, mas ainda
trabalhando. Adorava o seu trabalho. Depois de Jorge, não se interessou
mais por romances, teve alguns por pouco tempo, mas nada
muito sério, e, agora, ao ver a situação de Fernanda, pensava:
"Algumas vezes, apesar do Jorge, pensei em casar, ter marido
filhos, cheguei até a invejar a Fernanda. Mas, hoje, ao vê-la
dessa maneira, acho que fiz bem em não colocar a minha
felicidade nas mãos de ninguém. Assim que me aposentar, vou
viajar e conhecer todos os lugares que antes não tive
oportunidade. Tenho a minha profissão, dinheiro para fazer
isso, e Fernanda? O que ela tem? O que conseguiu?"
Enquanto ela pensava, Fernanda conversava animada com a
doutora Lídia:
— Sabe, doutora, estou arrependida de ter deixado de me
cuidar... sabe como é, após um longo casamento, parece que
tudo está bem, mas veja o que me aconteceu.
Para espanto de Marilda, ela começou a contar para a doutora
tudo que havia acontecido com Antero. A doutora ouvia com o
olhar compreensivo; no final, disse:
— Nunca é tarde, quem sabe conseguirá recuperá-lo.
— Tenho certeza que sim. Sei que ele ama a mim e à nossa
filha também. Sempre foi muito carinhoso.
— Espero que consiga o que quer. Chegamos à recepção. As
senhoras podem fazer as suas fichas. Depois, uma atendente irá
levá-las para todos os setores.
Sorrindo, se despediu. Marilda e Fernanda fizeram as fichas e o
plano de pagamento; em seguida foram levadas para a sala de
ginástica, massagem, cabeleireiro e maquiagem. Já eram quase duas
horas da tarde quando ficaram prontas. As duas olharam-se no
espelho que estava em frente ao cabeleireiro.
— Puxa, Fernanda! — Marilda disse, feliz — Há quanto tempo
eu não te via tão bonita! O que um tratamento não faz!
— Você tem razão, também gostei. Esse corte e cor de cabelo
ficaram muito bons!
— Agora que já está se sentindo bem, podemos ir até ao
escritório do Antero?
— Nem pensar! Acha que vou com esta roupa?
— Não vá me dizer que está pensando em fazer compras!
— Claro que sim! Todas as roupas que tenho ele já conhece!
Quero que ele sinta que sou outra mulher!
Marilda sabia que seria inútil tentar argumentar, apenas sorriu, e saíram.
Percorreram várias lojas até que, finalmente, Fernanda
escolheu a roupa e os sapatos que usaria naquele dia tão
especial. Voltaram para a casa de Fernanda, onde ela se vestiu
com esmero. Marilda teve que dizer:
— Você está realmente bonita! Por que deixou de se cuidar
durante todos estes anos?
Não sei, mas você tem razão. Desde que me casei e tive a
Regiane, deixei de pensar em mim e passei a viver para ela e
para Antero. Fazia muito tempo que não me sentia bonita,
aliás, isso não me preocupava, o importante era que Antero e
ela estivessem bem. Hoje, me arrependo disso, mas sinto que
ainda posso recuperar o tempo perdido. Com minha filha
casada, terei mais tempo para me dedicar ao Antero e a mim
mesma. De hoje em diante serei outra mulher. Não quero nem
posso perder o meu marido! Sei que ele ainda me ama, fui eu
que deixei de me preocupar com ele. Mas, a partir de hoje,
tudo será diferente.
Marilda sorriu. Sabia que Fernanda estava determinada a
reconquistar o marido, sabia também que ela não desistiria.
— Fernanda, estou preocupada com você. Se Antero não
quiser voltar mais para casa, o que você fará? Foi sempre tão
dependente dele. Como você mesma disse; deixou de se
preocupar com a sua aparência, a sua própria vida e passou a
viver só para eles. Abandonou a faculdade, não se preparou
profissionalmente. O que acontecerá se ele não quiser voltar?
Fernanda a olhou com um misto de espanto e raiva.
— Você está dizendo que eu o perdi para sempre? Nem pensar!
Se isso acontecer, não sei mesmo o que farei. Sinto que a vida
não terá mais sentido. Não suportarei viver sem ele, sei que
morrerei. Não sei viver sem ele!
— Sei disso, mas você tem de pensar em todas as
possibilidades. Espero e desejo de coração que tudo dê certo,
que vocês se entendam e que ele volte para casa, mas se isso
não acontecer você terá que repensar a sua vida. Agora, terá de
saber o que fará com ela.
— Não sabe o que está dizendo! Nunca teve um amor,
casamento ou filhos! Por isso não entende que para mim não
existe vida sem ele! Não sabe o que significa viver a vida toda
voltada para uma família! Se ele não voltar, não sei o que farei
da minha vida! Aliás, eu sei! Vou me matar!
Ao ouvir aquilo, Marilda novamente ficou brava. Estava apenas
preocupada, querendo animar e ajudar a amiga, mas ela parecia
não entender o que estava pretendendo. Outra vez, sem
perceber, ofendeu-a. Magoada, disse:
— Fernanda, sei que sempre me criticou por eu, depois do
Jorge nao ter me casado. Por ter escolhido a minha profissão.
Mas, embora eu tenha feito isso, nunca deixei de ver e analisar
os casamentos de minhas amigas, e a cada momento eu meu
convencia mais de que havia feito uma boa escolha. Talvez eu não
tenha mesmo como te dar conselhos. Só posso te dizer que o
que mais desejo é te ver feliz e novamente ao lado do seu
marido.
— Desculpe por aquilo que falei. Estou nervosa, sei que você é
minha amiga e só quer o meu bem, mas estou desnorteada. Não
quero pensar na possibilidade de Antero não voltar mais para
casa. Não quero nem posso!
— Está desculpada novamente. Já que deseja realmente tentar, vamos.
Estou e estarei sempre ao seu lado.
A atitude de Antero
Passavam quinze minutos das cinco horas da tarde, quando
Marilda estacionou o carro na garagem do prédio onde Antero
tinha o seu escritório. O prédio era austero, mas elegante,
ficava na Avenida Paulista, o cartão-postal do Estado de São
Paulo e centro financeiro do País. Marilda já havia estado ali
muitas vezes. Conhecia o andar, onde ficavam os escritórios da
construtora de Antero. Assim que entraram no elevador que as
levaria até ao décimo primeiro andar, Fernanda disse:
— Marilda, você lembra do dia em que Antero inaugurou estes
escritórios? Lembra-se de como ele estava feliz?
Marilda voltou seu pensamento para aquele dia distante.
— Lembro-me sim, e não era só ele quem estava feliz, você
também estava.
— É verdade. Naquele dia, realizamos o sonho da nossa vida.
Finalmente, ele conseguiu fazer com que a construtora se
tornasse famosa e respeitada. Eu não estava só feliz, estava também
orgulhosa por tudo aquilo estar acontecendo. Eu havia ajudado
muito, não só com incentivo, mas também com toda a herança
que recebi dos meus pais. Você sabe, não foi pouca. Finalmente eu
via tudo que fiz produzir resultados. Por isso, não entendo o
porquê de ele ter me abandonado, justamente agora que nossa filha
cresceu e está casada. Agora que poderíamos aproveitar a nossa
vida. Não tínhamos mais preocupação alguma.
— Também não entendo, mas agora você vai falar com ele e
tudo ficará bem novamente. Assim espero.
O elevador parou, lentamente a porta se abriu. Fernanda ficou
parada, sem coragem de sair. Marilda pegou em seu braço e
conduziu-a para fora. Diante delas surgiu um corredor e, no
fim dele, uma imensa porta de vidro. Entraram em uma sala
decorada com quadros e vasos floridos. Tudo muito luxuoso.
Assim que as viu, uma moça levantou dizendo:
— Dona Fernanda! Que bom vê-la aqui!
— Boa tarde, Cristina, preciso falar com Antero. Pode me
anunciar?
— Pois não, agora mesmo.
— Luciana, a dona Fernanda está aqui para falar com o doutor
Antero.
Ao ouvir a resposta, olhou para Fernanda:
— A senhora pode entrar. — disse Cristina. Fernanda,
intrigada, perguntou:
— Com quem você falou?
— Com a Luciana, secretária do doutor Antero.
— Luciana?! Quem é ela? Onde está Zuleica?
— Ela foi embora da empresa. Disse que estava cansada de
trabalhar e de morar nesta cidade. Foi morar no interior, não
sei o nome da cidade, mas parece que ia montar um negócio lá.
— Quando foi isso?
— Há mais de três meses. A senhora não sabia?
Surpresa, Fernanda olhou para Marilda, com um olhar
significativo, depois disse:
— Eu sabia, sim. Antero me contou, só que eu havia me esquecido.
Marilda sabia que a amiga estava mentindo, mas ficou calada.
Fernanda pegou em seu braço e as duas entraram. Assim que
abriram a porta, uma moça sorridente as recebeu.
— Boa tarde, meu nome é Luciana. A senhora deve ser a
esposa do doutor Antero. Reconheci pela fotografia que ele
tem em sua mesa. Por favor, sentem-se, ele já vai atendê-las.
Marilda sentou e fez com que Fernanda sentasse também.
Ficaram em silêncio, mas estavam intrigadas: "Por que ele não
me contou que a Zuleica havia ido embora?" — Fernanda
pensou — "Eu não sabia; sempre que precisava falar com ele,
ligava para o seu telefone direto. Não me disse que havia
contratado essa moça. Ela é muito bonita..."
Marilda também estava intrigada. Conhecia Zuleica. Ela fez
parte da mesma turma de faculdade, sabia que ela trabalhava
para Antero desde quando ele iniciou a construtora. Assim como
Fernanda, também ficou admirada com a beleza daquela moça,
que as olhava.
"Ela é jovem e bonita, será que foi por causa dela que o Antero
me abandonou?"
Luciana notou que as duas pareciam intrigadas com a presença dela ali,
mas fingiu não notar. O telefone que estava em sua mesa tocou,
ela atendeu e olhou para Fernanda.
— O doutor já vai atendê-la.
Fernanda olhou para Marilda, que sabia que ela estava nervosa
e não mais tão segura como estava quando chegaram. Assim
como ela, Marilda também temia que aquela visita seria inútil,
pois a moça era realmente bonita e educada. Agora uma luz
surgia. Ali, provavelmente, estava o motivo do abandono de Antero.
Intimamente estava furiosa, mas tentou animar Fernanda. Disse
em voz baixa:
— Sei o que você está pensando, mas talvez não seja isso.
Vamos entrar e ver o que ele diz. Não faça acusações, deixe-o
falar, procure manter-se calma.
— Como ficar calma? — Fernanda disse, nervosa. — Foi por
ela que ele me trocou! Vou matar os dois!
— Um escândalo aqui não vai resolver. Entre e fale com ele,
ouça o que ele tem para dizer, mas não faça escândalo.
Lembre-se que aqui é um estabelecimento comercial, um local
de trabalho, não seria conveniente um escândalo.
— Eu não vou suportar vê-lo com essa aí! Ele não podia ter
feito isso! Não comigo, depois de tanto tempo, tantas lutas!
— Sei o que está pensando, mas procure se controlar...
Luciana, a uma certa distância, percebeu que elas conversavam
e pareciam alteradas, mas não conseguiu ouvir o que
conversavam. Após um novo chamado pelo interfone, disse,
sorridente e amável:
— O doutor está pedindo que entrem.
Andou na frente das duas, abriu a porta para que elas
entrassem. Sempre com aquele sorriso que fazia com que elas
ficassem mais indignadas. Marilda, segurando o braço de
Fernanda com força, empurrou-a para dentro da sala.
Por detrás de uma mesa, Antero levantou-se sorrindo e,
olhando para Marilda, disse:
— Marilda, boa tarde! Como vai? Faz muito tempo que não nos
encontramos!
Marilda sentiu-se mal com aquela situação. Assim como
Fernanda ,percebeu que ele fez questão de ignorar a presença
da sua esposa. Um pouco sem graça, pensou rápido e disse:
— Boa tarde, Antero, faz muito tempo mesmo. Estou bem, e
você, como está?
— Estou bem, só não entendo a sua visita aqui; precisa de meus
serviços? Queira sentar-se.
Marilda, pouco à vontade, olhou para Fernanda e percebeu no
rosto dela um misto de ódio e vergonha. Pegou no braço da
amiga e fez com que ela sentasse ao seu lado. Tentando manter
uma calma que não estava sentindo, mentiu:
— Foi por isso mesmo que viemos aqui. Fernanda me disse que
você está com um novo empreendimento. Estou querendo
comprar um apartamento e, sabendo que tudo que você
constrói é sempre da melhor qualidade, eu a convenci a me
acompanhar. Ela gentilmente me atendeu.
Ele, ainda ignorando Fernanda, sorrindo, disse:
— Fez muito bem. Com certeza, nossos apartamentos têm tudo
que você procura. Espere um pouco, vou lhe mostrar... os
apartamentos são da melhor qualidade e o lugar onde foram
construídos, também. É um lugar privilegiado, vou até a outra
sala pegar a planta para que veja. Fique à vontade, vou pedir à
Luciana que nos sirva um café.
Assim dizendo, levantou-se e saiu da sala. Marilda olhou para
Fernanda e viu que ela estava lívida. Seu rosto, apesar da maquiagem,
estava branco e ela tremia muito, disse, nervosa:
— Fernanda, vamos embora daqui! Voltaremos outro dia.
— Não, vamos ficar aqui — Fernanda respirou fundo e
continuou: — Quero ver até onde ele vai com essa atitude.
Está me tratando como se eu não estivesse aqui, como uma
inimiga! Não dá para entender. Não posso ir embora, você sabe que
jurei reconquistar o meu marido e é o que farei, nem que para
isso tenha que me
humilhar. Você viu a secretária dele, como é bonita? Ainda
tem alguma dúvida do motivo pelo qual ele me abandonou? Foi por
causa dela! Como posso competir com ela? Ela tem juventude!
Beleza! Eu? Tenho o quê?
Embora Marilda pensasse da mesma maneira, disse:
— Você não sabe se foi por causa dela que ele te abandonou.
Por isso não pode julgar. Talvez o motivo tenha sido outro, mas
acho melhor irmos embora. Deixe essa conversa para outro dia.
Da maneira como ele nos recebeu, não acredito ser boa hora
para se dizer qualquer coisa. Vamos embora, conversaremos e
encontraremos um outro caminho. Vamos!
Estava terminando de dizer isso, quando Antero entrou na sala. Trazia
em suas mãos algumas folhas que queria mostrar para Marilda. Ainda
ignorando a presença de Fernanda, estendeu as folhas sobre a
mesa e disse sorrindo:
— Olhe, Marilda, como o prédio é bonito e os apartamentos
são espaçosos! Olhe que área verde!
Marilda não sabia o que fazer, não estava se sentindo bem com
aquela situação, queria sair correndo, mas apenas sorriu e fingiu olhar
para as folhas. Ele, ainda ignorando Fernanda, começou falar
sem parar sobre os apartamentos.
Fernanda não suportou mais, levantou-se e, tentando manter a
calma, disse com a voz pausada:
—Antero, não sei por que você está me tratando assim, mas não viemos
aqui para comprar apartamento algum. Talvez você não tenha notado,
mas hoje me arrumei toda e viemos aqui te convidar para sairmos,
jantarmos e conversarmos sobre tudo que aconteceu ontem.
Antero voltou-se para ela como se só a estivesse vendo naquele
momento. Dobrando as folhas, disse:
— Notei, sim, e quero te dizer que está muito bonita, mas não
temos mais o que conversar. Ontem tomei uma decisão que
venho adiando há muito tempo. Não posso mais viver ao seu
lado. Nossa filha está criada, casada e bem. Meu pai morreu, e
agora posso viver a minha vida da maneira como sempre quis.
— Não estou te entendendo, você precisa me explicar.
Acredito que tenho esse direito. Eu, como fico?
— Não quero nem posso te explicar nada. Você ficará muito
bem, continuará na nossa casa, com o seu carro, e te darei uma
pensão com a qual poderá viver, tranquilamente, pelo resto da
sua vida, sem ter que se preocupar com nada.
Lágrimas começaram a descer pelo rosto de Fernanda. Ela
estava desconhecendo aquele homem que estava à sua frente.
— Não sabe o que está dizendo! Não estou preocupada com a
parte financeira. Sabe muito bem que tudo que tem hoje é
meu, pois tudo foi construído com o dinheiro dos meus pais!
Estou preocupada com o nosso casamento, com a nossa família
e com você! — disse soluçando.
— Todo o dinheiro que um dia me deu, multipliquei várias
vezes, mas mesmo assim vou devolver com juros e correção
monetária. Quanto à nossa família, está tudo bem. O nosso
casamento nunca deveria ter acontecido. Nunca fui feliz ao seu
lado, sempre quis outra vida e agora vou conseguir tê-la. Não se
preocupe, não deixarei que lhe falte nada. Procure encontrar
um outro alguém e seja feliz.
Marilda, assim como Fernanda, estava sem saber o que dizer ou
fazer. Ele, embora nervoso, disse aquelas palavras com uma
tranquilidade impressionante.
— Você não sabe o que está dizendo! — disse Fernanda, muito
nervosa. — Nada está bem! Tudo está se desmoronando a nossa
volta. Não quero encontrar um outro alguém! Sempre fui feliz
ao seu lado! Não sei por que está dizendo tudo isso! Deve estar
doente e precisando passar por um psiquiatra!
— Não estou louco, apenas decidi viver a minha vida da
maneira que sempre quis e você deve viver a sua.
— Está me abandonando por causa da sua secretária? Não vê
que ela poderia ser sua filha? Que ela só te quer por causa do
seu dinheiro? Se você fosse pobre, ela nem te olharia!
— Não sabe o que está dizendo, não tenho nada com a minha
secretária — ele disse, sem alterar a voz. — Ela apenas trabalha
aqui. Nada além disso! Não foi por ela, apenas quero viver a
minha vida! Agora, por favor, volte para casa, procure
reconstruir a sua vida e ser feliz.
— Está querendo que eu acredite que não existe outra? Como
pode ser isso? Se não houvesse outra, jamais me abandonaria!
Tem que existir!
— Pense o que quiser, mas, por favor, vá embora. Preciso ir a
uma reunião com alguns fornecedores...
Para espanto de Marilda, Fernanda deu a volta ao redor da
mesa, abraçou Antero e disse chorando copiosamente:
— Você não pode me abandonar! Por favor, não faça isso! Não
sei o que será da minha vida sem você! Volte para casa! Eu farei
tudo que você quiser, mas não me abandone!
Antero, com força, afastou Fernanda, dizendo:
— Não faça isso! Terminou! Não quero mais viver ao seu lado!
Quero viver a minha vida! Quantas vezes precisarei te dizer
isso? Volte para casa e procure viver a sua vida também! Não
suporto mais a sua companhia!
— O que eu te fiz? — disse, chorando. — Sempre procurei ser
a melhor esposa deste mundo! Sempre me dediquei à você e a
nossa filha! Você precisa me dizer o que foi!
— Você não fez nada! — ele disse, muito nervoso. — Esse foi
o motivo! Não cresceu! Foi a melhor dona de casa que conheci,
mas como minha mulher foi um desastre! Sua casa sempre
esteve muito limpa, mas para isso você escravizou a mim e à
nossa filha! Não tínhamos liberdade para nada! Não podíamos
sentar no seu sofá sem colocarmos um cobertor ou qualquer
coisa, pois ele não poderia sujar! Ela não podia brincar, pois
sujaria a casa! Essa sua mania de limpeza sempre me fez muito
mal, tentei te alertar muitas vezes, mas você fez questão de
ignorar!
— Sempre quis manter a casa limpa para vocês, para evitar
doenças por germes! Mas se esse foi o motivo, prometo que mudarei!
Não ligarei mais para a limpeza!
— Esse foi um dos motivos, mas sabe muito bem que eu não
queria me casar. Você arrumou um filho e eu fui obrigado por meu pai
a te assumir! Eu nunca quis me casar! Mesmo assim, mantive
nosso casamento por eles. Mas hoje ela não precisa mais da
minha presença e ele morreu! Minha obrigação com você
terminou!
— E eu, como fico?
— Vai continuar cuidando da sua casa e da sua vida!
Fernanda chorava desesperada. Marilda estava constrangida
com aquela cena. Penalizada e ao mesmo tempo com raiva da
atitude da amiga, percebeu que Antero não mudaria de idéia:
— Fernanda , disse nervosa , vamos embora. Vocês estão
muito nervosos. Deixe essa conversa para outro dia.
— Não posso ir embora! Eu não quero que ele me abandone!
Preciso dele!
— Não adianta insistir, tomei a minha decisão e nada neste
mundo fará com que eu mude de idéia. Marilda, desculpe-me
por esta cena, mas não tenho mais condições de viver ao lado
dela.
Marilda não olhou, nem respondeu, estava com raiva dos dois.
Deu a volta na mesa, segurou no braço de Fernanda:
— Fernanda, vamos embora! Não tem mais nada para fazer
aqui! Tudo que poderia fazer já o fez!
Fernanda olhou-a, sem conseguir conter as lágrimas. Em
silêncio, acompanhou-a. Passaram pela recepção. Luciana, ao
perceber que Fernanda chorava muito, disse:
— Tudo bem com a senhora? Aconteceu alguma coisa?
Fernanda não respondeu. Marilda, olhando para ela com muita
raiva, respondeu:
— Não aconteceu nada que seja da sua conta! Boa tarde!
Segurando Fernanda pelo braço, empurrou-a para dentro do
elevador e já na garagem a colocou dentro do carro. Deu a
partida, acelerou e saíram rápido.
Na rua, Fernanda continuava chorando copiosamente. Marilda
estava sem saber o que fazer. Entendia a situação da amiga,
mas, ao mesmo tempo, assim como ela, não entendia a atitude
de Antero e como ele pôde ser tão cruel. Não sabia o que dizer.
Continuou dirigindo em direção à casa de Fernanda.
"O que será dela agora?" Marilda pensava, enquanto dirigia. —
"Nunca imaginei que o seu casamento fosse só de aparência, ao
menos por parte de Antero. Ele sempre me pareceu tão
tranquilo e feliz. O que será que aconteceu na realidade? Não
posso acreditar que o motivo tenha sido aquele por ele alegado.
Deve existir um outro, mas qual?"
— Fernanda , disse preocupada , não adianta você ficar assim.
Isso não vai resolver... precisa reagir...
— Estou tentando me controlar, mas não consigo! Você viu o
que ele disse? Viu das coisas que me acusou? Me condenou por
eu ter sido uma boa mãe, esposa e por querer a minha casa
sempre em ordem! Pode uma coisa dessa? Tudo isso para mim
foi sempre motivo de orgulho! O que ele queria? Chegar em
casa e estar tudo desarrumado, a minha filha abandonada? Não
consigo entender! Não pode ter sido esse o motivo! Tem que
ter outro!
— Você tem razão, mas nem sempre aquilo que julgamos ser o
correto na realidade o é. Talvez ele quisesse um pouco mais de
liberdade dentro de casa.
— Ele tinha toda a liberdade do mundo. Só me incomodava
quando ele se deitava no sofá da sala e queria comer. Eu dizia
que lugar dessas coisas era na copa. Nunca imaginei que isso o
estava desagradando. No início ele reclamou, mas depois não
tocou mais no assunto! Você acha que fui tão errada para que
ele me abandonasse?
— Não sei o que responder, como você sempre diz, nunca tive
marido ou filhos, sempre vivi sozinha.
Fernanda pareceu não ouvir a resposta e continuou:
— Dizer que eu arrumei um filho só para forçar um casamento, foi
ridículo! É verdade que eu sabia que ele não queria se casar,
mas não arrumei um filho, simplesmente aconteceu. Não fiz a
Regiane sozinha!
— Por que você não se protegeu?
— Eu tinha vinte anos! Não tinha cabeça para isso. Na
realidade, eu sempre tive tudo. Por ser filha única, meus pais sempre
me deram tudo, inclusive muito dinheiro. Ele esqueceu de
dizer que o nosso casamento para ele foi um bom negócio, pois
seus pais estavam falidos e ele, talvez, nem conseguisse
terminar a faculdade. Disso, convenientemente, ele se
esqueceu! Não se lembra mais!
— Não sei o que dizer, mas vamos para sua casa, lá terá tempo
para pensar com mais calma.
— Para minha casa?! Nem pensar! Passei o dia todo me
arrumando, não vou para casa! Quero ir a um lugar onde
possamos jantar, dançar e, quem sabe, conhecer algum
homem.
Marilda estacionou o carro junto à calçada, disse indignada:
— Não ouvi isso que você disse. Não está realmente
pretendendo arrumar um homem!
— Claro que estou! Você não viu a secretária dele? Não viu que
ele me trocou por ela?
— Eu vi a secretária, sim, ela realmente é muito bonita, mas
não tem certeza de que ela tenha sido o motivo.
— Claro que foi ela! Por isso hoje vou dançar e encontrar um
homem. É impossível que eu não encontre um que não me
rejeite. Você vai comigo!
— Eu?! Sinto muito, Fernanda, mas não gosto de frequentar
esses lugares onde há dança. Não me sinto bem.
— Você sempre foi assim! Por isso não arrumou um marido até
hoje! Não posso ir sozinha, você tem que ir comigo! Está com
medo do quê?
— Não estou com medo de coisa alguma. Só acho que essa não
seja uma boa idéia. Quanto a não ter arrumado nenhum
marido, você sempre foi minha amiga e sabe que muitos
apareceram, mas não encontrei em nenhum deles a segurança
para entregar a minha vida e a minha felicidade. Confesso que,
embora você possa não acreditar, não sinto falta alguma. Tenho
a minha carreira e a minha liberdade e isso, minha amiga, não
tem preço.
— Desculpe, sem querer eu te ofendi novamente, mas você
precisa me perdoar. Está vendo que estou transtornada! Não
estou sabendo o que dizer ou fazer...
— Não tenho o que te desculpar. Entendo a sua situação. Você
colocou a sua vida e a sua felicidade nas mãos do Antero,
esqueceu que as únicas responsáveis por isso somos nós
mesmas. A nossa felicidade só será completa quando tivermos
o seu domínio em nossas mãos. Sei que está perdida. Admito
que na sua situação eu também estaria, mas arrumar um homem, da
maneira como está, continuo dizendo que não é uma boa idéia.
— Talvez não seja, mas é a única alternativa que estou vendo. Preciso
me sentir amada e desejada, seja por quem for! Estou me
sentindo muito mal, a mulher mais feia e asquerosa deste
mundo!
— Você sabe que isso não é verdade. Você é uma mulher
bonita, inteligente e educada; se isso lhe faz tanta falta, com
certeza encontrará alguém que te ame do modo como quer e
merece. Só precisa ter um pouco de calma, pensar em como
recomeçar a sua vida sem ele. Não tome nenhuma atitude
agora.
Fernanda ficou novamente furiosa. Disse, gritando:
— Você ainda não entendeu? Não existe vida sem ele! Se eu
não o reconquistar, com certeza encontrarei uma maneira de
acabar com esta vida que não tem mais sentido!
-Você está ouvindo o que está dizendo? Pensar em acabar com
a vida por causa de um homem? Você não está raciocinando
direito! Tudo isso vai passar e você se reencontrará. Vamos
para sua casa. Vou tomar um café e você, um comprimido.
Depois vai dormir e amanhã será outro dia, com novas idéias.
Além do mais, do jeito que está o seu rosto, não poderemos ir a
lugar algum.
— O que tem o meu rosto?
— Com todas essas lágrimas — Marilda disse, rindo — a sua
maquiagem borrou toda, seus olhos estão pretos, parece que
levou um soco!
Fernanda tirou da bolsa um pequeno espelho e se olhou.
— Está bem — disse —, você tem razão, vamos fazer isso.
Vamos para minha casa.
Chegaram em casa. Fernanda ainda estava chorando. Não
conseguia entender nem aceitar que Antero a havia
abandonado. Marilda observava a amiga, sabia que precisava animá-la,
mas como? Entraram, Fernanda foi para o banheiro. Marilda
permaneceu na sala, olhando tudo à sua volta. A sala era ampla, muito
bem decorada cada coisa estava colocada em seu lugar. Tudo
com muito bom gosto. Sabia que Fernanda havia contratado
uma decoradora para projetar todos os cômodos da casa.
Lembrou-se do dia em que, com uma festa, a casa foi aberta
para os amigos e da felicidade de Fernanda, que dizia orgulhosa:
"— Marilda, a minha casa não está linda?!"
"— Está sim, você tem muito bom gosto."
Marilda estava ainda olhando e pensando, quando Fernanda
regressou. Estava com o rosto limpo, mas os olhos inchados.
Pegou no braço de Marilda e fez com que ela sentasse em um
sofá. Disse com a voz embargada:
— Lembra do dia da inauguração desta casa?
— Estava aqui, lembrando daquele dia. Vocês estavam tão
felizes! Nunca pensei que o seu casamento estivesse passando
por uma crise. Preciso te confessar que, vendo como teu
casamento era feliz, algumas vezes fiquei em dúvida se havia
feito a escolha certa, no sentido de não ter me casado e não ter
tido filhos.
— Sei que não só você, mas muitas pessoas tinham esse
pensamento. Eu mesma não acreditava em tanta felicidade.
Nunca imaginei que o Antero fosse tão infeliz. Ele nunca
deixou transparecer. Não consigo ver a minha vida daqui para
frente. Não sei viver sem ele...
— Mas terá que aprender. Você tem muito tempo pela frente.
A vida não se resume só a um marido e filhos.
— Isso é para você que nunca teve, mas para mim é difícil.
— É difícil, mas não impossível. Verá como, com o tempo,
tudo ficará mais claro e você encontrará um caminho. Só
precisa ter um pouco de paciência, logo tudo ficará bem.
— Nada ficará bem! Não sei o que fazer sem ele! Meu mundo
caiu, sinto como se me faltasse o chão.
— É natural que isso aconteça, mas logo tudo voltará ao
normal, você vai ver!
— Nada voltará ao normal sem ele! Estou confusa, não sei onde
errei, mas com certeza aconteceu em algum momento. Preciso
descobrir onde e quando.
— Não se torture mais. Você não errou, sempre foi uma ótima
esposa e boa mãe.
— Também sempre pensei isso, mas agora vejo que nunca fui
boa esposa, mãe ou coisa alguma!
— Espere aí, Marilda disse furiosa. — Assim também, já é
demais! Você foi, sim, uma ótima esposa! Por que não se
pergunta se ele foi um bom marido? Um casamento é feito a
dois! Quando termina, não existe só um culpado! Ele te
abandonou! Não foi você. Ao contrário, dedicou toda a sua vida
a ele! Você terá agora a oportunidade de descobrir novos
caminhos, poderá realizar alguns sonhos que ficaram perdidos!
Tem ainda muito tempo de vida! Não pode continuar se
culpando por algo que fugiu ao seu controle! Tem que reagir!
— Sei que você tem razão em quase tudo que está dizendo, mas
eu não consigo pensar em algo que possa fazer neste momento. Nem
sei se deixei de realizar algum sonho.
— Você agora não está podendo pensar com clareza, mas
dentro de algum tempo, quando se acostumar com a idéia, sei
que encontrará um novo caminho.
Fernanda, chorando, se abraçou a Marilda. Depois de algum
tempo, parou de chorar, ficou com os olhos distantes. Marilda
ficou calada. Sabia que não tinha o que fazer, a não ser ficar ao
lado da amiga, dando-lhe todo o apoio. Apenas isso.
— Não sei! — disse Fernanda quase gritando. — Não sei viver
sozinha, sem ter alguém a meu lado. Pensando bem, ainda não
são oito horas. Você passou o dia todo ao meu lado, o mínimo
que posso fazer é te oferecer um jantar. Não tenho nada pronto
e nem vontade de cozinhar, por isso vamos até a um restaurante,
jantaremos e poderemos até dançar.
— Fernanda, o que está pensando?
— O mesmo que você. Quero me divertir e, quem sabe,
encontrar alguém que me ame!
— Já conversamos sobre isso, continuo achando que não é uma
boa idéia. Você não está bem. Precisa pensar na sua vida antes
de decidir sobre qualquer assunto.
— Estou me sentindo muito mal. Estou sendo rejeitada! Preciso
ter alguém que me ame!
— Mas não vai encontrar esse alguém em um restaurante ou
bar. Da maneira como está, só atrairá para o seu lado pessoas
também deprimidas. Espere mais algum tempo, veja como as
coisas ficarão. Tenha calma...
— Você não viu como ele falou? Não tem volta, não! Ele disse
para eu encontrar um caminho! É isso mesmo que vou fazer!
Encontrar um novo amor! Vou me arrumar e sairemos para
jantar! Depois decidiremos o que fazer. Está bem assim?
— Está bem; se vai fazer com que se sinta melhor, vamos.
Fernanda voltou para o quarto. Seu coração estava partido, mas
ela bem lá no fundo, tinha certeza que traria Antero de volta.
Aquele que estava no escritório e que disse aquelas coisas para
ela não era o Antero que conhecera, era outro. Alguma coisa
havia acontecido para que ele mudasse daquela maneira e ela
descobriria que coisa era essa. Não podia aceitar ficar sozinha
com toda aquela idade e depois de tanto sacrifício para
conquistar tudo que sonharam e quiseram. Não, ela não
dividiria tudo aquilo com ninguém.
Arrumou-se, colocou uma maquiagem suave e voltou para a
sala. Marilda percebeu que nos olhos da amiga estava
novamente aquele brilho estranho, e perguntou:
—Tudo bem com você? Quer mesmo sair?
— Está tudo bem, quero sair, sim, mas só para jantar. Não se
preocupe, não pretendo arranjar uma companhia. Sei que
alguma coisa aconteceu para fazer com que Antero mudasse de
comportamento e vou descobrir o que foi. Ele está diferente.
Jamais me tratou da maneira como fez hoje, parece que ele está me
odiando e eu não sei o motivo. Mas não quero mais falar sobre
isso, vamos sair e jantar.
— Está bem, vamos fazer o que quiser. Estou feliz por notar
que você já está tentando se controlar. Isso é bom, pois só
assim poderá encontrar um caminho para seguir. Vamos?
Foram ao restaurante onde Fernanda, Antero e a filha sempre iam. O
garçom e os donos conheciam Fernanda. Assim que elas
entraram e se sentaram, o garçom se aproximou:
— Dona Fernanda! Boa noite! Que bom que está aqui! O doutor
Antero não veio?
— Boa noite, Luigi, o Antero não veio, teve uma reunião. Você
já sabe o que desejo comer. Esta é a minha amiga Marilda.
— Boa noite, senhora. Aqui está o menu, pode escolher.
Marilda, sorrindo, pegou o menu e começou a ver os pratos que
eram oferecidos. Fernanda olhava a sua volta, pensativa. Marilda
observava a amiga e sabia que, com certeza, ela devia estar pensando no
marido, na filha e nas muitas vezes que haviam estado ali.
Sentia um grande pesar pela situação da amiga, mas não tinha o
que fazer a não ser ficar ao lado dela. Jantaram. Fernanda
comeu pouco e permaneceu quase o tempo todo em silêncio,
só respondendo às perguntas que Marilda lhe fazia, na tentativa
de trazê-la de volta.
Terminaram de comer, saíram e entraram no carro. Marilda
olhou para Fernanda e disse:
— Ainda é cedo, você não quer ir ao cinema? Está passando
um ótimo filme!
— Pensando bem, você tem razão, é ainda muito cedo. Vamos ao
cinema.
Foram ao cinema, mas, durante o tempo todo, Fernanda
permaneceu calada e Marilda respeitou o silêncio dela. Após
terminar o filme, voltaram para a casa de Fernanda. Assim que
chegaram, ela desceu do carro e não convidou Marilda para
entrar:
— Já está tarde, vou entrar, tomar um banho e tentar dormir.
— Faça isso, lembre-se de que amanhã será outro dia, mas se
precisar de alguma coisa basta ligar, virei o mais rápido
possível.
— Sei disso e preciso te pedir desculpas, por hoje e pela
maneira que algumas vezes falei com você.
— Não se preocupe, entendo a sua situação. Até logo.
Beijaram-se, Marilda acelerou o carro e foi embora.
Fernanda entrou em casa. Aquela casa que ela e Antero haviam
planejado nos mínimos detalhes. Onde sua filha nasceu,
cresceu e foram tão felizes. Aquela casa, que agora era imensa e
solitária. Novamente seus olhos se encheram de lágrimas. Com
as mãos, enxugou-as e entrou em seu quarto. Foi para o banheiro,
tomou um banho, voltou para o quarto e se olhou no espelho.
Lembrou-se de Luciana tão jovem, bonita, com a pele macia e
um corpo escultural.
"Como posso competir com ela? Com este rosto marcado pelo
tempo? Com este corpo disforme e esses cabelos escassos? Ela
tem juventude e mistério, coisas que já há muito tempo eu perdi.
Antero não podia ter feito isso! Dediquei toda a minha vida a
ele! O que vou fazer agora? Marilda disse que preciso
recomeçar, mas como e por onde? O que vejo diante de mim a
não ser tristeza, solidão e esse terrível sentimento de rejeição?
O que vou dizer para Regiane? Ela entenderá? Não sei o que
fazer. Preciso dormir. Como Marilda disse, amanhã será outro
dia."
Deitou-se, fechou os olhos e tentou dormir, mas foi em vão.
Seus olhos, boca e garganta estavam secos. Levantou várias
vezes foi até a cozinha para beber água. Voltava para a cama,
virava de um lado para outro, mas não conseguia relaxar e
dormir. Em sua mente via a imagem de Antero e Luciana
beijando-se. Novamente levantava, ia até o banheiro, sala e
cozinha, andava de um lado para outro até que finalmente decidiu:
foi ao banheiro, pegou um comprido que Antero tomava quando
não conseguia dormir e tomou. Após alguns minutos,
finalmente adormeceu.
Seu sono foi agitado. Em dado momento, sonhou que corria
atrás de Antero por um campo; ele olhava para trás, a via e
corria ainda mais. Ela chamava por seu nome, mas ele corria
cada vez mais rápido. Ele parou junto a um precipício. Quando
ela estava se aproximando, ele olhou, sorriu e se jogou. Ela
chegou junto ao precipício e pôde vê-lo ainda caindo.
Começou a gritar. Diante dela surgiu a figura de Luciana, que
ria sem parar. Fernanda se atirou sobre ela e acordou. Seu
corpo todo tremia e transpirava, seu coração batia acelerado.
Sentou-se na cama, respirou fundo. Percebeu que havia
sonhado. Levantou-se e foi para a cozinha tomar um pouco de
água. Depois foi ao jardim. A noite estava silenciosa, o céu com
poucas estrelas e a lua escondida atrás de uma nuvem.
Caminhou até o portão:
"Que sonho louco foi aquele? Será algum aviso? Será que o
Antero está em perigo? E Luciana? Por que ria daquela
maneira? Ela parecia saber o que estava acontecendo! Meu
Deus do céu, será que ela fez algum feitiço para ele? É, só pode
ter sido isso! Ela deve ter mandado fazer alguma macumba! Se
ela fez isso, preciso mandar desmanchar, mas como? Onde?
Não conheço ninguém que lide com isso! Vou ligar para a
Marilda, ela conhece tanta gente! Quem sabe possa me ajudar!"
Entrou em casa e foi até um telefone que estava na sala de
estar. No momento em que ia discar o número de Marilda, seus
olhos voltaram-se para o relógio que estava ao lado do telefone.
"Não posso fazer isso, ainda é madrugada, ela deve estar
dormindo. Ficou ao meu lado quase toda a noite passada e hoje o dia
inteiro. Vou esperar amanhecer, aí sim telefonarei."
Colocou o telefone de volta no gancho, foi para o seu quarto e
tornou a se deitar.
Marilda chegou em casa. Estava cansada, pois não havia
dormido bem na noite anterior e o dia também não havia sido
fácil. Estava triste com a situação da amiga e por ver um casamento
como aquele se desfazer daquela maneira.
"Assim como a Fernanda, também não reconheci Antero. Ele
foi sempre muito educado, sempre tratou Fernanda com
carinho, nunca presenciei um gesto ríspido por parte dele, mas
hoje à tarde ele pareceu sentir por ela um ódio profundo. Não
consigo entender o que aconteceu. Será que ele tem algo com
aquela moça? Será que todo aquele amor, que parecia sentir,
terminou assim de repente? Não sei, mas hoje dou graças a
Deus por nunca ter me apaixonado. Percebo que o amor só traz
sofrimento. Estou feliz assim, pois sei que a minha felicidade
está só nas minhas mãos. Não tenho marido, nem filhos, mas
tenho tranquilidade e paz quando leio um bom livro, assisto a
um filme ou vou ao teatro. Não posso negar que se tivesse uma
companhia seria bem melhor, mas para sofrer prefiro ficar
sozinha. Além do mais, já passei da idade. Estou com quase
cinquenta anos, quem se interessaria por mim? Bem, de
qualquer maneira, não consigo entender o que aconteceu com o
casamento da Fernanda, só sei que ela terá de encontrar um novo
caminho para seguir e que pretendo ajudá-la no que for
possível. Não entendo, mas também neste momento não quero
entender. O que quero, na realidade, é me deitar e dormir."
Foi o que fez. Tomou um banho rápido e foi para a cama.
Assim que se deitou, adormeceu. Antes, desligou o telefone,
não queria ser acordada subitamente por Fernanda. Queria
dormir e acordar sozinha, sem susto ou atropelo.
Experiência de vida
Fernanda, após rolar muito pela cama durante o resto da noite,
também adormeceu. Acordou, olhou para o relógio. Assustada,
sentou na cama: "Quase dez horas! Como pude dormir tanto?
Preciso me levantar e telefonar para a Marilda, ela deve
conhecer alguém ou algum lugar aonde possamos ir. Sei que vai
ser difícil convencê-la, mas conseguirei."
Sentou-se na cama e pegou o telefone para discar, mas
colocou-o de volta. Precisava pensar com mais calma.
"Sei que Marilda não tem uma religião que siga. Ela nunca foi
dada a acreditar nessas coisas de espíritos ou macumba. Por
isso, sei que vai ser difícil convencê-la a me acompanhar, mas
eu preciso salvar o meu casamento e a minha família, e para
isso farei qualquer coisa."
Marilda também acordou e, assim como Fernanda, olhou para o
relógio.
"Nove e meia! Há quanto tempo eu não dormia tanto! Estou me
sentindo muito bem, tenho trabalhado muito, por isso pretendo
aproveitar bem as minhas férias. A minha viagem para a Europa já está
programada. Na próxima semana, embarcarei e certamente irei
aproveitar muito, mas e Fernanda? Como estará? Estou com
muita pena dela, quem sabe também não queira fazer essa viagem
comigo? Vou me levantar, tomar o meu café e em seguida telefonarei
para ela."
Olhou para o telefone, sentiu uma ponta de remorso.
"Será que ela tentou me telefonar? Eu não devia ter desligado o
telefone, mas também eu estava tão cansada e não queria ser
acordada no meio da madrugada. Assim que tomar o meu café,
telefonarei para ela, inventarei uma desculpa qualquer. Direi
que não ouvi o telefone ou que ele está com algum defeito."
Levantou, foi para a cozinha, encontrou Renata.
— Bom dia, Renata. Está tudo bem?
— Bom dia, dona Marilda, está tudo bem. Assim que cheguei,
percebi que a senhora estava dormindo e não quis fazer
barulho; vim aqui para a cozinha preparar o seu café e o seu
almoço.
— Estranhei te encontrar aqui, quase nunca te vejo. Quando
saio para o trabalho você ainda não chegou e quando chego à
noite você já foi embora. Mas não sei o que seria da minha vida
sem você para me ajudar.
— A senhora sabe que adoro trabalhar aqui e que ficarei até
quando a senhora quiser.
— Se for assim, ficará para sempre. Marilda sorriu:
— Pode ir para a copa, logo levarei o seu café. A senhora quer
algumas frutas?
— Quero sim, obrigada.
O telefone tocou. Renata ia atender, Marilda disse:
— Pode deixar, eu atendo. Deve ser a Fernanda.
Marilda foi para a sala de estar, sentou e atendeu. Do outro lado
da linha ouviu a voz de Fernanda.
— Bom dia, Marilda! Já está acordada? Dormiu bem?
— Bom dia, Fernanda. Estou acordada e dormi muito bem.
Aliás acabei de acordar, ainda não tomei o meu café. E você,
conseguiu dormir?
— Tive alguma dificuldade, mas, depois que consegui resolver
o meu problema, adormeci e acordei quase agora também.
— Resolveu o seu problema? Como?
— Tive uma ideia, mas vou precisar da sua ajuda.
— Sabe que estou sempre pronta para te ajudar, embora às
vezes eu ache que não vai te fazer bem. O que pretende fazer?
Que solução encontrou?
— O assunto é sério! Não gostaria de falar por telefone. Você
não quer vir almoçar comigo? Poderemos conversar.
— Antes de sair em férias, tenho alguns processos pendentes e
preciso colocar alguns papéis em ordem, mas nada que não
possa ficar para depois. Está bem, vou tomar um banho e irei
para aí. Estou curiosa para saber que solução é essa.
— Estarei te esperando. Vou cozinhar algo que você vai gostar
muito, tenho certeza!
— Sei disso, pois sei também que você é uma ótima cozinheira!
Comendo a sua comida fico com medo de engordar.
A voz de Fernanda ficou embargada quando disse:
— Mas isso não serviu para fazer Antero feliz...
— Não vá começar a chorar! Estou indo para aí. Tchau!
— Está bem, não vou chorar. Já está tudo resolvido. Tchau.
Marilda tomou o café, se vestiu. Antes de sair foi até a cozinha
e disse para Renata:
— Não precisa se preocupar com o almoço. Não almoçarei em
casa, vou para a casa de Fernanda.
Saiu, olhou para o céu, que estava azul e sem nuvens. Entrou
no carro e foi para a casa de Fernanda.
Assim que chegou e entrou na casa, percebeu no olhar da
amiga um brilho diferente. Perguntou, curiosa:
— O que aconteceu? O que está pretendendo fazer?
— Sente-se aí, vou te contar tudo.
Contou o sonho e que, assim, teve a certeza de que Luciana era
a culpada do abandono de Antero. Terminou dizendo:
— Foi ela sim! Acho que ela fez um feitiço para ficar com ele
ou uma macumba. Sei lá, eu não entendo nada disso!
Marilda, que estava sentada, levantou-se e disse indignada.
— Você definitivamente não está bem da cabeça! Como pode
pensar e acreditar em uma coisa dessa? Tudo por causa de um
sonho! Tire isso da cabeça ou vai acabar louca mesmo!
— Você fala assim porque não viu o rosto de felicidade dela!
Ela fez alguma coisa sim! O Antero mudou muito! Ele sempre
foi amoroso! Não posso aceitar e ficar sem fazer nada!
— Não posso acreditar que estou ouvindo isso! Sabe muito bem
que, embora eu não siga uma religião, acredito em Deus e Ele
jamais permitiria algo assim! O Antero simplesmente cansou da
vida que levou durante todos esses anos e quis se libertar, só
isso! Não existe macumba ou feitiço! Você precisa aceitar a
separação e seguir a sua vida! Arrumar algo para fazer!
— Vou fazer o que, com quase cinquenta anos? Não tenho
mais aquele impulso da juventude! Todo o impulso e energia
que tinha dediquei para ele e para a minha filha! Não sei o que
fazer daqui para frente sem ele! Será que você não entende
isso?
— Entendo que você esteja passando por um momento difícil,
mas ele, como tudo na vida, vai passar e você encontrará um
novo caminho. Por favor, não se deixe levar por crendices!
Tudo isso é bobagem. Da maneira como está, só poderá ser
enganada. Tem que ter cuidado.
— Não sei se é bobagem, mas alguma coisa aconteceu! Você
não lembra da Palmira, aquela que estudava na faculdade? Ela
gostava do Luiz, que não gostava dela, e, quando ela foi naquele
lugar, eles se casaram. Lembra-se dela?
— Lembro dela, sim, mas lembro também que dois anos depois de
casados estavam separados. Além do mais, não sabemos se foi
por causa daquilo que eles se casaram. Tem outra coisa, você
não tem certeza de que foi a Luciana quem te tirou o Antero.
Pode ter sido outra pessoa qualquer ou ninguém. Ele pode ter
se cansado de ser casado.
— Eu sonhei! Ela ria com muito desdém! Foi ela, sim! Tenho
quase certeza!
— Está vendo o que disse? Quase, mas não total. Acho melhor
voltarmos ao nosso plano inicial. Vou telefonar para a Ivete,
conversar com ela, pedir o seu carro emprestado, seguiremos o Antero
e veremos se é com ela que ele está saindo. Se tivermos
certeza, prometo que vou procurar saber onde tem e irei com
você a um lugar desses.Está bem assim?
Fernanda estava nervosa, mas, diante da forma com que
Marilda falou, só lhe restou concordar.
— Está bem, faça isso. Fale com a Ivete; se ela concordar,
vigiaremos os dois. Assim, você verá que tenho razão e vai me
acompanhar.
Marilda sorriu, intimamente estava feliz por ter conseguido
tirar aquela idéia louca da cabeça de Fernanda. Pegou o
telefone e falou com Ivete. Contou a ela tudo que estava
acontecendo; do outro lado da linha, Ivete disse:
— Já passei por isso e sei como é! Não conheço Fernanda
muito bem, mas diga a ela que sei o que está sentindo. É uma
sensação de rejeição, de abandono e inconformismo, parece
que o mundo vai acabar. É muito triste, mas diz pra ela
também que, depois de algum tempo, ela vai descobrir que nem tudo
está terminado.
Na realidade, está apenas começando. Ela vai descobrir que não
é tão ruim viver só e descobrirá o que realmente sabe e poderá
fazer coisas que nunca pensou saber.
— Estou tentando, mas está difícil. Ela quer segui-lo, para
descobrir quem é a outra. Para isso precisamos de um carro,
pode emprestar o seu? Poderemos trocar, deixo o meu com
você.
Do outro lado da linha, Ivete começou a rir. Marilda estranhou
a atitude dela:
— Do que está rindo? A situação é triste! Não é para rir!
— Desculpe, mas é que já passei por isso. Também segui o meu
marido em um carro que ele não conhecia, fui a bares para
tentar encontrá-lo com alguém. Estou rindo, pois a situação
sempre se repete e as mulheres fazem as mesmas coisas!
Poderia dizer que não vai adiantar. Se ele resolveu sair de casa,
com certeza não voltará, mas sei também que não adianta dizer
isso a ela, pois não vai acreditar. Ela se julga, neste momento,
mais inteligente que todas as outras que passaram por isso.
Portanto, está bem. Pode vir buscar o meu carro, mas
realmente vou precisar ficar com o seu para ir para casa, assim
que terminar o meu expediente.
— Está bem, iremos até aí depois do almoço.
— Volto do almoço às duas horas, estarei esperando. Em
seguida desligou o telefone. Fernanda perguntou:
— E daí? Ela concordou? — estava ansiosa.
— Ela concordou, podemos buscar o carro quando quisermos,
só que preciso deixar o meu com ela. Pronto, agora você
poderá seguir Antero sem que ele desconfie, mas antes vamos
almoçar.
— Está bem, já está quase pronto.
Começaram a almoçar. Fernanda quase não comeu, estava
nervosa, sentia como se tivesse um caroço em sua garganta.
"Não posso aceitar essa situação. Não sei o que vou fazer, mas
de uma coisa tenho certeza: não vou perder o Antero. Farei o
possível e o impossível para que isso não aconteça."
Parou o garfo na altura da boca, olhou sério para Marilda, que
comia tranquilamente, e disse com determinação:
— Não vou permitir que uma sem-vergonha como aquela me
tire o marido. Ela não perde por esperar!
— Para ser bem sincera, não acho que isso valha a pena.
Depois de tanto tempo de casados, ele te abandonou, não te
dando valor, e, o pior, não te respeitando. Acho melhor que
continue a sua vida sem ele. Sei que encontrará um caminho.
— Quero o meu marido de volta e o trarei. Só poderei
continuar a minha vida se for ao lado dele!
— Está bem, mas termine de comer.
Três horas da tarde. Chegaram à empresa onde Ivete
trabalhava. Era uma confecção. Identificaram-se ao porteiro,
ele as anunciou, e foram encaminhadas até a sala, onde Ivete as
recebeu com um sorriso:
— Olá, Marilda, há quanto tempo não nos vemos!
— É verdade, sabe como é, a vida não nos dá muito tempo.
— Sei disso, mas na realidade não é a vida. Somos nós mesmas
que não arrumamos tempo para outra coisa a não ser o
trabalho. E você, Fernanda, como está?
— Na medida do possível, estou bem.
— Ótimo, mas queiram sentar. Sei que estão começando uma
maratona. Sei, Fernanda, como você está se sentindo. Acredite,
já percorri esse caminho e sei como é doloroso. Justamente por
tê-lo percorrido, sei também que no fim dele encontrará não só
outro caminho, mas a você mesma, e isso te fará muito bem.
Fernanda, calada, apenas sorriu. Conhecia Ivete apenas de
vista. Encontrara-a em algumas reuniões nas quais acompanhou
Marilda, que era amiga de Ivete há muito tempo. Nunca teve
uma conversa mais longa com ela, a não ser um "como vai" ou
um "até logo". Ivete compreendia plenamente a situação de
Fernanda, por isso voltou-se para Marilda, perguntando:
— E você, Marilda, como vai? Ainda sozinha?
— Vou bem, e ainda estou sozinha, Ivete. Mas posso te dizer
que isso não me incomoda nem um pouco. Acostumei-me
com a minha vida e o meu trabalho me toma muito tempo.
— Eu também trabalho muito, mas não deixo de viver.
— Gostei deste lugar. Nunca pensei que gostasse de moda!
Como romeçou a trabalhar aqui?
— Nem eu sabia — respondeu, sorrindo. — Quando o Reinaldo
me deixou, fiquei quase louca, como você sabe... nós temos a mesma
idade. Eu já não era mais jovem e pensava que viveria ao lado
dele até o fim dos meus dias. Desde que nos casamos, ele
tomou a frente de tudo. Pagava as contas, comprava os
alimentos.
Enfim, cuidava de tudo. Eu nem sabia qual era o seu salário. Nunca
precisei me preocupar com nada. Tinha segurança e
tranquilidade, só precisava ser boa dona-de-casa, boa mãe, e
isso, com certeza, fui. De repente me vi privada de tudo. Senti
que me faltava o chão, fiquei desesperada, deprimida. Tornei-
me uma pessoa doente. O meu prazer maior era ir ao médico,
me queixando de problemas; embora ele dissesse que a minha saúde
era perfeita, eu não acreditava, porque sentia realmente os sintomas. O
médico dizia que eu precisava encontrar algo para preencher o
meu tempo, mas eu não conseguia pensar ou fazer nada, a não
ser chorar e procurar onde eu havia errado. Aos poucos fui me
controlando e voltei ao meu normal, mas isso só aconteceu
quando, finalmente, eu aceitei que ele não voltaria mais. Aí ,
sim, entendi que, embora ele tivesse ido embora, eu
continuava ali e precisava continuar vivendo. Logo que o
divórcio saiu, ele se casou, saiu do emprego e mudou-se para
Curitiba. Na partilha, fiquei com a casa e meus dois filhos, que
só estudavam. Reinaldo mantinha-os na faculdade e continuou
mantendo, mas eu fiquei sem nada, além da casa. Precisava de
dinheiro para me manter, mas como conseguir? Nunca havia
trabalhado, pois, assim que me formei, casei e vivi para a minha
família. Fiquei desesperada. Ele quis me dar uma espécie de
pensão, a princípio recusei. Eu julgava ser humilhante. Passei
dias, semanas e meses terríveis. Estava perdida. Um dia, não
tendo o que fazer, fui até o shopping para me distrair. Não
tinha dinheiro para compras, fiquei olhando vitrines. Estava
olhando uma vitrine de roupas, quando ouvi uma voz me
chamando. Olhei, era a Laurinda. Marilda, você lembra dela?
Ela fez parte do nosso grupo. Aquela que era muito engraçada e
que sempre tinha uma piada para contar!
— Claro que lembro, embora não a veja há algum tempo; fiquei
sabendo que ela ficou viúva.
— Isso mesmo. Ela ficou feliz ao me ver. Fomos até a praça de
alimentação e, enquanto comíamos, conversamos muito. Aliás,
eu falei muito, contei tudo que me havia acontecido. Ela me
ouviu calmamente. Quando terminei de contar a maldade que
o Reinaldo havia feito e como eu estava arrasada, ela me olhou
e perguntou tranquila:
— E agora? Pretende fazer o que da sua vida?
— Não sei. Estou quase com cinquenta anos. Não tenho
profissão, nunca trabalhei. Não sei o que fazer, acho que a
solução seria eu morrer. Já pensei em várias maneiras de fazer
isso, mas sou covarde. Nem para isso presto. De todas as formas que
existem, eu penso que sofrerei muito e tenho medo.
Ela continuou me olhando firme, depois disse:
— Existem muitas maneiras de se cometer o suicídio. Já ouvi
dizer que se tomar comprimidos não sentirá nada. Poderá
também tomar veneno de rato. Dizem que a morte é quase
certa; ou então cortar os pulsos com uma gilete. Esta quase
nunca dá certo, mas não custa tentar. Poderia, também, se
enforcar no cano do chuveiro com uma corda, só que não pode ser
de náilon, tem que ser de sisal, pois a de náilon não é muito
confiável; quem sabe se jogar na frente de um carro, mas aí
estaria envolvendo o motorista, qui não tem culpa dos seus
problemas. Como vê, não é difícil de cometer suicídio, mas... e
depois? Como ficará a sua alma ou
espírito? Para onde ele vai? Que futuro você deseja para a
eternidade?"
— Fiquei chocada com a maneira como ela falou, aquilo não
era normal. Pensei que Laurinda fosse tentar me demover da
idéia, mas ao contrário, ela estava me incentivando. Fiquei
calada por alguns minutos, depois eu disse:
— Você diz isso porque não foi abandonada, seu marido
morreu! Você não teve alternativa. Foi diferente do meu caso,
meu marido me abandonou. Além do mais, acho que não
existe nada depois da morte.Acho que somos como os animais
ou as plantas, morremos e acabou.
— Você acha, mas não tem certeza. Tem?
— Pensei por alguns segundos; intrigada, respondi:
— Não tenho certeza, mas ninguém tem. Tudo que se ouve é
muita teoria, mas na realidade, como as pessoas dizem,
ninguém voltou para dizer se é verdade ou não.
— Aí é que você se engana. Muitos voltaram e estão voltando
para nos dizer como é do outro lado.
—As pessoas dizem, mas nunca ninguém voltou em carne e
somente falam que recebem esse ou aquele espírito, nada mais
do que isso. Desculpe minha amiga, mas não posso acreditar nessas
pessoas. Elas querem só se promover, ganhar dinheiro.
—Talvez você tenha razão, mas mesmo assim existe a dúvida da
existência da vida depois da morte. Acredito que só essa dúvida
já nos faz pensar que, se realmente existir, temos um espírito
ou alma e devemos saber o que queremos para eles. De acordo
com a sua teoria, não existe vida depois da morte, mas e se
existir? Está disposta a arriscar?
— Não sei, você está me deixando confusa, Laurinda ,respondi
quase chorando.
—Não sei se existe algo além, só sei que estou vivendo aqui e
agora!
— Isso é o que importa! Acordar todos os dias, respirar, ver o
sol nascendo, o céu e toda a natureza linda que Deus nos
presenteou. Ver homens e mulheres caminhando, alguns até
correndo em busca da sua felicidade. Crianças nascendo,
crescendo e brincando. O ser humano evoluindo para um
mundo melhor. Isso é o que importa realmente, o resto é só
resto. Você disse que somos como plantas e animais, somos
mesmo. Estamos rodeados de energias, boas ou más. Assim
como nós, quando uma planta ou animal morre, eles voltam
para a terra para adubá-la, fazem com que outra planta nasça.
Nós comemos dessa planta, crescemos, temos nossos filhos,
vivemos e morremos e nosso corpo continua adubando a terra.
Mas nossa energia não morre, apenas se transforma. Deus, que
criou tudo isto, fez com perfeição. Por isso nada está errado.
Tudo é como tem que ser.
— Você vive em um mundo diferente do meu! No meu, só
vejo desigualdade. Enquanto muitos não têm nada, outros têm
até demais. Vejo tristeza, fome e miséria. Vejo crianças sofrendo,
homens e mulheres trabalhando para sobreviver e alguns nem
isso conseguem. Além dos crimes e todo tipo de violência.
— Tudo isso faz parte da evolução de cada um.
Eu não acreditava em nada daquilo e disse indignada:
—Você está dizendo que está tudo certo? Até essas maldades?
Você deve estar louca mesmo. Alguém fez a sua cabeça.
Ninguém pode aceitar toda essa injustiça e maldade que
existem!
—Não estou dizendo que alguém nasce para ser ruim. Ao
contrário, nascemos e vivemos da maneira que escolhemos.
Alguns, durante a jornada, se desviam e seguem rumos
diferentes. Mas um dia, mais cedo ou mais tarde, entenderão e
voltarão para o rumo certo. Deus é nosso pai e nos ama a todos
sem limites ou privilégios. Em Sua bondade infinita nos dá o
direito da escolha.
— Está dizendo que cada um vive da maneira que escolheu?
Que alguém escolheu ser pobre, miserável?
— Isso mesmo. De acordo com o que seria melhor para sua
evolução."
Enquanto Ivete ia falando, Marilda e Fernanda se olhavam, mas
nenhuma das duas teve coragem de interrompê-la. Ivete
continuou falando:
— Ao ouvir aquilo que Laurinda dizia, não suportei e perguntei
num impulso:
—Quer dizer que o pobre escolheu ser pobre e o rico ser rico?
Que alguns escolheram ser saudáveis, enquanto outros
escolheram ser doentes? Alguns escolheram ser bons,
enquanto outros escolheram ser bandidos? Disse que cada um
está vivendo de acordo com a sua evolução, quer dizer que só o
rico é evoluído? Está dizendo que já temos um destino e que
ele será sempre ruim,
que não poderemos fazer nada para mudar, só nos
conformarmos? Está dizendo, como dizem muitos, que tudo é
vontade de Deus?
— Quase tudo que eu disse você entendeu, mas nem só o rico
e evoluído, ao contrário. O dinheiro também é uma forma de
teste. Aquele que vem com muito dinheiro é para usá-lo de
uma maneira que propicie trabalho e ajuda para muitos.
-O dinheiro serve para nos testar e para sabermos o que fazer
com ele. Posso te garantir que é o mais difícil dos karmas. Eu disse
que sempre estamos evoluindo e não que devemos nos
conformar e aceitar. Mas, sim, escolher a melhor maneira de
passarmos pela vida. Quase todos os problemas que temos nesta
vida são por nossa culpa mesmo; quase sempre por nos
desviarmos do nosso caminho. Ninguém nasceu para ser ruim,
isso é um desvio. Nós traímos as nossas esperanças, deixamos
de lutar por aquilo que acreditamos, seja em que nível for.
Teremos, sim, que encontrar amigos e inimigos. Teremos, sim, alguns
testes para superar, mas nunca, quando eles chegarem,
estaremos sós. Teremos sempre a ajuda de alguém ou de alguma
coisa e a oportunidade de superá-los. Oportunidades nunca
faltarão. Deus nos dá tudo o que precisamos para que a nossa
felicidade seja completa. Cada um tem um ritmo, a evolução não
termina nunca. Evoluímos através da reencarnação e de várias
vidas.
—Karma!? Reencarnação!? Desculpe, mas não vou continuar
conversando sobre isso! Não aceito a vida após a morte e muito
menos isso de reencarnação. Não tenho muita religião, mas
acredito que isso tudo é bobagem. A única coisa que sei é que
estou aqui, sozinha, desesperada, sem saber o que fazer com a minha
vida, sem saber que caminho tomar.
— Desculpe, você tem razão, mas é que estou tão feliz, Depois
que aprendi isso, às vezes me empolgo e falo demais.
—Sou eu quem te peço desculpas. Embora eu não tenha uma
religião que siga com frequência, não tenho o direito de criticar
a de ninguém. Agora preciso ir. Fiquei feliz por te ver.
— Eu estava me levantando para ir embora, quando Laurinda,
segurando a minha mão, disse:
—Espere, acabei de te dizer que Deus nunca nos deixa sós.
Quando precisamos ajuda para cumprir o nosso destino, Ele faz
com que algo aconteça ou alguém apareça para nos ajudar.
—Não estou entendendo o que está querendo dizer.
—Quando Rubens morreu, fiquei desesperada. Ele tinha só
cinquenta e um anos, estava forte. A morte nunca passou por
nossas cabeças. Ele era diretor de um importante banco,
sempre teve um bom salário; por isso, nunca tivemos
preocupação com dinheiro. Sempre tivemos uma vida muito
boa. Nos amávamos e éramos felizes. Rubens estava
trabalhando, quando sentiu-se mal e morreu ali mesmo no seu
escritório. Sofreu um enfarte fulminante. A morte abalou a
todos e, principalmente, a mim. Não conseguia acreditar que
aquilo estivesse acontecendo. Revoltei-me contra Deus e contra
a vida, pois havíamos feito muitos planos para o nosso futuro: ele
trabalharia por mais algum tempo e, quando se aposentasse,
começaríamos a viver realmente, pois, embora tivesse um bom
salário, não tinha muito tempo para descansar. As pessoas me diziam
que tinha sido a vontade de Deus, aí sim eu me revoltava ainda mais.
Que Deus era aquele que havia tirado deste mundo um homem
trabalhador, honesto, bom pai e bom marido como ele e
deixado tantos outros de mau caráter, péssimos pais e maridos,
bêbados e bandidos? Que Deus injusto era aquele? Nunca
poderia aceitar aquele Deus. De repente, eu vi todos os meus
sonhos destruídos. Financeiramente, a minha vida não
mudaria, pois ele possuía um bom seguro de vida e o banco
continuaria pagando o seu salário. Minha casa era enorme, mas
mesmo assim eu me sentia sufocada dentro dela. Fiquei
desesperada, entrei em uma profunda depressão. Meu filho quis
me levar para morar com ele; tentei, mas não consegui. Não
encontrava um lugar para ficar e, como você está hoje, Ivete,
também não tinha um caminho para seguir. Achava que o meu
único caminho seria morrer para me reencontrar com ele.
Ivete parou de falar por alguns segundos. Fernanda olhou para
Marilda, pois ela também havia dito que a sua única solução
seria morrer depois que o Antero a abandonou. Marilda sabia o
que amiga estava pensando, mas ficou calada, apenas sorriu.
Olhou para Ivete, dizendo:
— Continue, o que aconteceu? Como veio trabalhar aqui?
— Laurinda, enquanto me dizia essas coisas, estava
emocionada. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, mas
continuou:
—Fiquei assim por muito tempo, até que um dia recebi a visita
da minha cunhada, irmã do Rubens. Estranhei, pois, diferente
de mim, ela parecia feliz. Ignorando a minha aparência, disse:
— Laurinda! Como você está bonita! Nem parece que já está
chegando aos cinquenta!
—Aquilo me revoltou mais ainda. Eu não estava bem, nem
bonita. Estava triste e só querendo morrer; disse nervosa:
— Não estou bem. Perdi o meu marido, não tenho motivo
algum para estar feliz! Estou admirada por te ver dessa maneira,
nem parece que perdeu o seu irmão! Você não gostava dele?
Não sentiu a sua morte?
— Claro que gostava dele, mas penso de uma maneira
diferente. Para mim, a morte não existe, é só uma mudança de
dimensão. O corpo do meu irmão cumpriu a sua missão e
voltou para a terra, mas o espírito dele alçou vôo e ele está
bonito e feliz como sempre foi.
— O que está dizendo? De onde tirou essa idéia?
— Pertenço a uma doutrina que nos ensina isso e acredito. Para
mim, não perdi o meu irmão. Ele foi viajar e está em algum
lugar, onde mais cedo ou mais tarde nos reencontraremos.
— Não acredito em nada disso! Não quero saber de religião,
Deus ou de seus companheiros!.
— Está bem, não precisa ficar nervosa. Vim até aqui porque
fiquei sabendo que você não está bem, não vim falar de religião
ou doutrina. Vim para te fazer uma proposta.
— Que proposta?
— Sabe que tenho uma confecção. Desde o início, tive ao meu
lado uma funcionária que cuidava da parte administrativa,
enquanto eu me dedicava a modelar e cuidar das costureiras.
Como você sabe, sempre gostei de costurar. Por isso, me dei
muito bem, mas agora a minha funcionária de tanto tempo, e em
quem eu confiava plenamente, ficou doente e teve que se afastar.
Estou desesperada, pois ela era quem cuidava de todos os papéis
e do dinheiro da confecção. Não conheço ou confio em
ninguém para ficar no seu lugar, só você, Laurinda.
—Eu?! O que está dizendo? Nunca trabalhei, não sei como
administrar uma empresa!
— Sempre administrou o dinheiro do Rubens e se deu muito
bem, compraram várias casas e apartamentos. Por isso, sei que
saberá administrar muito bem a minha confecção, Laurinda.
—Não sei, não estou com cabeça para nada.
—Por que não tenta? Poderá sair, conhecer outras pessoas.
Tente por um mês, se não der certo poderá sair e ficará o dito
pelo não dito; encontrarei alguém para me ajudar.
—Está bem, vou tentar. Quem sabe eu me encontre
novamente e consiga reconstruir a minha vida.
— Comecei a trabalhar com ela. No princípio, me senti um
pouco deslocada, me sentia velha para recomeçar e aprender,
mas ela teve muita paciência e nem vi o mês passar. Ela
também fez de conta que não viu e eu continuo trabalhando
até hoje. Investimos dinheiro e a confecção cresceu muito,
hoje até exportamos. Comecei a frequentar uma casa espírita.
Aprendi e aceitei o que aprendi. Hoje sei que o Rubens está
caminhando também, mas em outra dimensão, e que a
qualquer momento irei ao seu encontro. Com o tempo,
compreendi que Deus, através da minha cunhada, me ajudou a
seguir o meu caminho e descobri como é que Ele trabalha.
— Ontem, ela me disse que o seu filho, que mora na Inglaterra,
pediu que ela fosse para lá passar algum tempo. Como está
cansada de trabalhar, pediu que eu encontrasse alguém para
tomar o seu lugar e ficaria até essa pessoa ser treinada. Vim
hoje até aqui para visitar um cliente e te encontrei, Ivete. Acho
que Deus vai te ajudar através de mim. Quer trabalhar comigo
na confecção?
— Eu me assustei com o que Laurinda me propunha; respondi,
gaguejando:
—Eu?! Como! Não entendo nada de moda ou costura!
— Sei disso! Mas poderá aprender! Sei que também gosta de
fazer as suas roupas. Minha cunhada ficará com você, te ensinará tudo.
Só irá embora quando você ficar pronta!
—Estou velha para isso. Terei dificuldade para aprender!"
Laurinda começou rir e disse:
— Estou me vendo dizendo essas mesmas palavras, Ivete. Vou
fazer como a minha cunhada: tente por um mês. Se der certo,
continue. Preciso de alguém responsável e em quem eu possa confiar.
Você reúne todas essas qualidades, Ivete. Tente!
—Tentei e fiquei. Fui para a escola. Eu era mais velha da turma,
mas me dei muito bem. Aprendi modelagem, crio todos os
modelos e a confecção continua indo muito bem. Comecei a
frequentar uma casa espírita, ler e entender aquela doutrina da
qual ela havia falado. Entendi que a missão do Reinaldo ao meu
lado havia terminado, que ele tinha outro caminho para seguir e eu
também.
Precisava me descobrir e me dar valor. Hoje vivo feliz, tenho
meu trabalho e um namorado com o qual me dou muito bem;
sou feliz.
Consigo conversar com o Reinaldo como companheiro de
caminhada. Alguém com quem eu precisava me reencontrar e
aparar algumas arestas. Mas com quem não poderia ficar por
toda a minha vida. Como vê, Fernanda, nada está perdido,
sempre existe um caminho e, com certeza, você encontrará o
seu.
Fernanda apenas sorriu. Toda aquela conversa não estava
interessando. Ela fora ali somente para pegar o carro, nada
mais. Teve que ouvir toda aquela história. Esse era o preço que
precisava pagar pelo empréstimo do carro. Ela não era a Ivete, nem a
Laurinda, por isso não desistiria, traria seu marido de volta para casa,
custasse o que custasse. Por nada deste mundo permitiria que
uma safada como aquela Luciana roubasse o seu marido.
Marilda, vendo o rosto de Fernanda, perguntou:
—Ivete, por quanto tempo podemos ficar com o seu carro?
—Pelo tempo que for preciso. Você vai me deixar o seu,
portanto não haverá problema algum.
—Obrigada. Bem, acho que está na hora de irmos.
—Está mesmo, fiquei falando tanto, que não vi o tempo passar e tenho
muito trabalho.
Marilda, sorrindo, levantou-se e tocou no braço de Fernanda
para que ela fizesse o mesmo. Despediram-se e saíram.
Já lá fora, no carro, Marilda perguntou:
— Fernanda, que vamos fazer agora?
— Não sei, o Antero ainda deve estar no escritório. Vamos
para minha casa, esperaremos lá até que seja a hora de ele sair e
ai o seguiremos. Veremos como e onde ele a encontra.
— Está bem, mas, mesmo depois de tudo que a Ivete nos disse,
você ainda quer continuar com isso? Acredita que valha a
pena? Não seria melhor tentar achar algo para fazer, esquecer e
seguir a sua vida?
— Nem pensar! Ouvi tudo aquilo por causa do carro! Ela é
muito diferente de mim! Aceitou a idéia de perder o marido,
mas eu não! Não vou permitir! Não é justo! Não preciso
trabalhar, tenho minha casa e dinheiro suficiente para viver
muito bem! Eu nunca trabalhei em minha vida e não vou
começar agora com quase cinquenta anos! Não vou trabalhar.
Ao contrário, vamos seguir o Antero, descobrir onde ele se
encontra com ela e depois verei o que quero fazer. Amo o
meu marido e não vou perdê-lo!
— Está bem, se é assim que você quer, mas me pareceu que ela
estava sendo sincera, que está realmente feliz.
— Você acreditou mesmo em toda aquela história? Ela não
conseguiu trazer o marido de volta e encontrou uma desculpa
para dizer que aceitou, mas lá no fundo te garanto que ela é
uma pessoa revoltada, como eu ficarei se não conseguir trazer o
Antero de volta! Mas eu vou conseguir! Sei que ele também me
ama!
— Está bem, tenho alguns dias de folga e poderei te
acompanhar, mas e depois? O que fará?
— Não sei o que farei, só quero ter certeza de que ele está com
ela, para que você não me impeça de ir buscar ajuda.
— Ainda quer fazer algum trabalho de macumba, Fernanda?
— Não quero fazer um trabalho, quero somente desmanchar
o que foi feito! Em algum lugar, deve existir alguém que desmanche! Eu
vou encontrar esse lugar! Eu amo o meu marido!
— Sei que você ama o seu marido, mas será que é amor mesmo
ou somente a dor da traição?
— Por que está dizendo isso? Como pode duvidar do amor que
sinto? Estamos casados há muito tempo, tivemos uma vida feliz
e tranquila por todo esse tempo! Claro que amo o meu marido
e, por isso, farei tudo para que fique ao meu lado!
— Puxa! Ainda bem que nunca me apaixonei dessa maneira
louca. Gostei do Jorge, mas nunca desse modo!
— Por isso mesmo é que não pode avaliar o que estou
sentindo! Se um dia se apaixonar, vai ver como é!
— Sinto que nunca verei esse dia! Se não aconteceu quando era
jovem, não acontecerá agora! — Marilda disse, rindo.
— Tomara que Deus te livre disso, Marilda.
— Já me livrou! Se não aconteceu até agora, não acontecerá
mais! Ainda bem que não me faz falta! Tenho uma vida muito
boa e a minha única preocupação é com o meu trabalho. A
minha felicidade está somente em minhas mãos. Não dependo
de ninguém para ser feliz. Acho isso uma conquista e posso te
garantir que é muito bom. Vendo o que aconteceu com você e
depois de tudo que Ivete nos disse, fico feliz por nunca ter me
casado.
Chegaram à casa de Fernanda. Marilda estacionou o carro
diante do portão e entraram. Ficaram conversando. Fernanda
preparou um café e tomaram um lanche. Na realidade quem
comeu foi Marilda, pois Fernanda não sentia fome. Ainda
continuava com aquele caroço na garganta. Estava nervosa,
ansiosa e olhando a toda hora para o relógio, esperando que
desse cinco e meia para saírem. Sabia que Antero sairia do
escritório lá pelas seis horas. Entava decidida a segui-lo e
descobrir toda a verdade.
Vigiando
Faltavam dez minutos para as seis horas, quando Marilda
estacionou o carro em frente ao escritório de Antero.
Do lugar em que estavam, poderiam ver qualquer pessoa que
saísse pela porta principal ou pela garagem. Ficaram lá por
algum tempo, quando viram Luciana saindo. Ela estava apressada,
parou em um ponto de ônibus que ficava a uns dez metros de onde
Fernanda e Marilda estavam. As duas acompanharam todos os
movimentos dela. Estava sozinha. Logo depois o carro de
Antero surgiu na porta da garagem. Marilda ligou o carro e se
preparou para segui-lo. Ele nunca pensaria que elas o estavam
seguindo, pois o carro era estranho e elas estavam com óculos escuros.
Ele estava acompanhado de Flávio, seu sócio e amigo.
Iniciaram juntos a construtora, conheciam-se desde o tempo da
faculdade. Marilda colocou o carro atrás de dois outros, assim poderia
segui-los sem que as vissem. Fernanda, nervosa e ansiosa, perguntou:
— Para onde será que estão indo?
— Não sei, é para isso que estamos aqui, vamos descobrir.
Antero percorreu algumas ruas do centro e foi seguido por elas.
Parou diante de um bar, já conhecido por Fernanda. Era um
lugar de encontros no fim da tarde. Alguns empresários ali se
encontravam para discutir negócios ou conversar. Fernanda
sabia que ele o frequentava e não se importava, embora
soubesse que ali também haviam encontros amorosos. Marilda
também estacionou o carro, mas não desceram, ficaram
esperando com impaciência. Fernanda olhava a todo instante para o
relógio, que parecia ter parado. Queria entrar para ver o que
estavam fazendo, mas foi contida por Marilda:
-Não pode fazer isso, o lugar é pequeno e fatalmente eles te
veriam e isso estragaria todo o nosso plano. Vamos esperar.
Tenha calma, logo tudo será esclarecido.
— Mas, se saírem acompanhados, o que vamos fazer?
— Não sei, mas você precisa manter a calma, se é que
realmente quer descobrir tudo. Um escândalo de nada vai
adiantar. Precisa esperar.
Quarenta minutos depois, eles saíram sozinhos. Entraram no
carro. Fernanda, intrigada, disse:
— Por que será que o Flávio não está com o carro dele? Por
que saíram juntos?
— Não sei, mas isso não tem importância. O carro pode estar
na oficina para uma revisão ou ele vendeu e está de carona até
comprar outro; mas acredito que o Flávio não seja o nosso problema. Se
o Antero continuar ao seu lado, não encontrará mulher
alguma. A não ser que os dois se encontrem com duas amigas
— disse isso sorrindo com desdém.
Fernanda sorriu, ela também conhecia Flávio desde o tempo da
faculdade, gostava dele, considerava-o um bom amigo. Ele sempre
frequentou a sua casa e a sua filha tinha verdadeira adoração
por ele , no que era correspondida. Mesmo durante o tempo
em que esteve casado e depois de alguns anos se separou,nunca
deixou de visitá-los e de presentear a menina com brinquedos,
roupas e de levá-la para passear. Ele era quase ou mais que um
irmão, por isso riu e disse:
— Enquanto o Antero estiver na companhia dele, não preciso
me preocupar.
— Tem razão, por isso acho melhor irmos embora.
— Não, Marilda. Vamos continuar seguindo. Precisamos saber
para onde irão. Sobre o que estarão conversando?
— Provavelmente sobre o mesmo que nós duas... vocês... O
que não é de estranhar, pois assim como eu sou sua melhor
amiga o Flávio é o melhor amigo do Antero.
— Tem razão, e ele deve estar contando o real motivo que fez
com que me abandonasse.
— Pode ser.
O carro entrou na garagem de um prédio; ao vê-lo entrar,
Fernanda disse surpresa:
— Temos um apartamento neste prédio, no nono andar, e o
Flávio tem um no oitavo, mas pensei que estivesse alugado...
— Bem, parece que não está. O Antero deve ter-se mudado
para cá. Agora, também, temos o motivo de estarem usando
um só carro. Morando no mesmo prédio não há necessidade de
usarem dois carros para irem até o trabalho.
— É... tem razão... não precisam de dois carros. O Antero deve
ter-se mudado para cá, mas será fácil eu descobrir: tenho as
chaves do apartamento. Amanhã virei até aqui para ver se ele
está morando com alguém.
— Não pode fazer isso! Se ele estiver morando com alguém,
você irá encontrá-la e fará o quê?
— O quê?! Vou colocá-la para fora do meu apartamento, nem
que para isso seja necessário eu chamar a polícia!
— Está louca? Isso se transformaria em um escândalo! Os
jornais comentariam e a credibilidade do Antero, como
construtor, iria por água abaixo! Você não pode fazer isso! Tem
que resolver tudo com cautela. Não se esqueça que a sua filha
trabalha em uma empresa respeitada. Um escândalo poderá
afetá-la muito! Já te disse que precisa manter a calma!
— Você está certa. Preciso agir com cautela. Conheço o
síndico do prédio. Amanhã vou telefonar e perguntar-lhe se o
apartamento está vazio. Se estiver, viremos aqui para ver se
tem só as roupas do Antero.
— Assim está melhor, só poderei vir na parte da tarde. Sabe que
vou viajar e preciso colocar a minha vida em ordem, pagar contas e
providenciar a dispensa da minha casa. Renata continuará cuidando da
casa e dos meus cachorros.
— Não sei como você tem paciência para cuidar de cachorros!
Eu nunca consegui; mesmo quando a minha filha quis um,
sempre dei uma desculpa e nunca tive animais em casa.
— Pois eu adoro os meus cachorros, com eles posso conversar.
Você não acredita, mas eles me entendem. São ótimas
companhias. Acho que não temos mais nada para fazer aqui.
Provavelmente, eles não irão sair mais. Vamos embora.
— Vamos sim. Não temos mais nada para fazer aqui.
Marilda ligou o carro e foram para a casa de Fernanda. Ela
levou-a para casa e depois foi para a sua. Aquele dia para elas
havia encerrado. O trabalho de detetive, também.
Antero, em seu apartamento, conversava com Flávio.
— Finalmente estou livre...
— Tem certeza que fez a coisa certa? Não vai se arrepender?
— Tomei a decisão certa. Eu já devia ter saído de casa há muito
tempo. Por isso, sei que não vou me arrepender.
— E a Fernanda, como reagiu?
— Você pode imaginar... foi uma surpresa. Ela jamais pensou
em uma separação! Ontem, ela esteve no escritório com a Marilda. Fiz
questão de tratá-la mal, para que não reste esperança. Ela tem
que aceitar a nossa separação, viver a sua vida e deixar eu viver a
minha.
— Você sabe que não vai ser fácil, Antero.
— Sei disso, mas não existe outro jeito. Cansei de viver uma
vida de mentiras. Você conheceu o meu pai, sabe como ele era
autoritário. Sempre nos criou com firmeza, eu diria com
ignorância. Sempre nos dominou através do medo.
— Minha mãe nunca reagiu, o que fez com que nós, seus filhos,
também não reagíssemos. Ele sempre decidiu a nossa vida, sempre
fizemos o que ele queria. Praticamente me Obrigou a namorar com a
Fernanda, pois ela era filha de pessoas importantes e para ele era
conveniente juntar as famílias. Quando ela engravidou, ele me
obrigou a casar. Eu o obedeci, me casei e procurei ser um
marido e pai da melhor qualidade, mas nunca fui feliz. Sempre sofri
muito por estar vivendo uma vida que não era a que eu queria.
Não tive escolha. Hoje faz mais de um ano que ele morreu,
minha filha está casada, minha neta nasceu e finalmente posso
me libertar. Posso viver a vida da maneira que sempre quis.
— Mas e a Fernanda? Ela não teve culpa de nada disso! Sempre
foi uma boa esposa e mãe, já não é mais jovem. Para ela, será
difícil recomeçar a vida, Antero...
—Antes de tomar a minha decisão, ponderei sobre tudo isso.
Realmente ela não teve culpa sobre o meu pai, mas errou
quando engravidou. Ela sabia que eu não queria me casar, que
desejava antes, fazer outras coisas. Ela fez de caso pensado. Se
foi boa esposa e mãe, não fez mais que a sua obrigação. Eu a
deixarei muito bem, não quero nada das nossas propriedades,
ela poderá ficar com tudo. Darei uma boa pensão para que
possa viver com tranquilidade, sem que o seu padrão de vida
mude em nada. Eu só quero ser feliz. Nada além disso.
— Bem, não posso interferir na sua decisão. Já tem idade o
suficiente para saber o que quer.
— É isso mesmo. Vamos jantar? Agora que somos dois
solitários, precisamos pensar no modo de nos alimentar. É
melhor irmos a um restaurante, Flávio.
— Não precisa se preocupar. Moro sozinho há muito tempo,
por isso tenho em minha geladeira alguns congelados, vou até
lá pegar. Enquanto isso, vá preparando uma bebida. Jantaremos
sozinhos com a nossa solidão.
Flávio disse isso rindo, acenou e saiu. Antero foi até o bar e
preparou uma bebida. Conhecia Flávio há muito tempo e sabia
do que ele gostava. Flávio retornou com algumas bandejas, e
colocou no microondas. Juntos preparam a mesa. Assim que a
comida ficou pronta, sentaram e começaram a comer.
Marilda finalmente chegou na casa de Fernanda, mas não
entrou. Estava cansada e queria chegar o mais rápido possível
em sua casa. O dia, como o anterior, havia sido cansativo.
Estacionou a carro na garagem e entrou em casa. Respirou
fundo.
Fernanda, em sua casa, tentava dormir, mas não conseguia. Na
sua imaginação, via Antero beijando e abraçando Luciana.
Deitou e levantou várias vezes. Foi até a cozinha, que, assim
como todo o resto da casa, estava em perfeita ordem. Olhou
para ela:
"De que adiantou eu ter sido uma boa esposa e dedicar tantas
horas do meu dia para que tudo permanecesse em ordem? Ser
considerada como uma tirana pelas empregadas que passaram
por aqui? Ele vem me acusar exatamente disso! De ter mania de
limpeza! Não, esse não foi o motivo. Claro que não foi! Ele está
com ela, me trocou, pois estou velha e sem mistério. Ela, ao
contrario, é jovem e bonita! Ela deve realmente ter feito algum
feitiço! Ele não poderia ter mudado tão de repente! Não vou
contar o que está acontecendo para a Regiane, pois sei que ele
voltará. Preciso encontrar algum lugar que desmanche feitiço.
Mas onde? Não conheço nada a respeito disso! Nunca me
interessei. Preciso dormir; se isso não acontecer, sinto que terei
um colapso. Tenho que me alimentar. Não posso ficar doente,
preciso ser forte!
Espere aí! Será que essa não seria uma boa solução? Se eu
adoecer, ele vai ficar com pena e voltará para casa.
Como vou inventar uma doença? Ele sabe que sou saudável,
pois a cada seis meses sempre fizemos todos os exames de
rotina. Eu poderia encontrar algum médico que me daria um
diagnóstico mentiroso, de câncer, por exemplo. Não, não daria
certo, pois temos o doutor João, que sempre cuidou da nossa família.
Com certeza, ele pediria vários exames e constataria que eu não
estou doente. Realmente, essa não foi uma boa idéia. Mas
preciso encontrar outra e encontrarei.
Virou de um lado para outro na cama, mas não encontrou
posição. Sentiu seu coração bater rápido, se assustou e se
sentou na cama. Respirou fundo e tornou a se deitar. Fechou os
olhos tentando dormir, mas não adiantou. Por mais que
quisesse, não conseguia parar de pensar.
Bem, ele não foi se encontrar com ela, foi para casa junto com
o Flávio. Eu poderia ficar sossegada, mas não estou. É claro que
ele não sairia com ela hoje. Ele precisa manter as aparências.
Sei que deve estar preocupado com a reação da Regiane. Não
sei o que ela dirá quando souber, mas, por outro, lado ele
sempre conversou muito com ela. Sempre foi mais amigo dela
do que eu.
Em alguma coisa ele teve razão, eu sempre me preocupei mais
com a casa do que com a tranquilidade da minha filha.
Não a deixava brincar dentro de casa nem no quintal; eu estava
sempre olhando.
Se ela jogasse um papel ou fizesse alguma sujeira, lá estava eu
para brigar e obrigá-la a limpar. Será que ela ficará do lado do
pai? Já é adulta, tem a sua própria vida.
Não posso lhe contar coisa alguma, ao menos por enquanto. Só
direi quando eu tiver certeza que o Antero não voltará para
casa, mas, como isso não vai acontecer,por enquanto ela não
precisa saber. Tenho certeza de que encontrarei uma maneira de
consertar tudo isso. Vou seguir o plano original.
Amanhã irei até o apartamento, perguntarei ao síndico se está vazio.
Sim, pois Antero pode estar morando provisoriamente com o Flávio,
essa decisão, para ele, também deve ter sido repentina. Talvez
ele, não tendo onde ficar, foi para o apartamento do Flávio. Se
o apartamento estiver vazio, entrarei e vasculharei tudo. Se ele
tem uma outra mulher, com certeza haverá algum vestígio.
Sorriu satisfeita. Esse era o caminho que precisava seguir.
Precisava aproveitar enquanto Marilda estivesse de férias e
antes que ela fosse viajar. Ao pensar em Marilda, sorriu e
pensou.
Ela é realmente minha amiga. Não sei como poderei agradecer
por estar ao meu lado em um momento como este. Sempre tive
muitas colegas, conhecidas, mas amiga mesmo só ela. Sempre
esteve ao meu lado em todos os momentos. Não sei o que faria
agora sem ela. Vou tomar um comprimido e dormir. Hoje, não
tenho mais o que fazer.
Em busca de evidências
Marilda abriu os olhos, olhou para o relógio. Sete horas da
manhã. Essa era a hora em que ela acordava todos os dias para
ir trabalhar. " Estou em férias" pensou, virando-se na cama. "É
muito cedo! Vou tentar dormir mais um pouco."
Dormiu em seguida.Acordou novamente. Outra vez olhou para
o relógio. Assustou-se, eram quase dez horas. Sentou-se na
cama, havia sonhado muito, por isso não sentia o corpo
descansado; tentou lembrar o que havia sonhado, mas não
conseguiu. Levantou, foi para o banheiro, olhou no espelho,
estava com olheiras. Sorriu. "Não estou acostumada a dormir
tanto. Será que a Fernanda também dormiu? Acho que sim,
senão ela teria me telefonado logo cedo.
Coitada, que situação terrível essa que ela está passando! Que
será que deu no Antero para tomar uma atitude como essa?
Dizer que foi por causa da mania de limpeza de Fernanda, e ela
que sempre se orgulhou da sua casa. Ainda bem que nunca me
apaixonei ou tive marido. Bem, não posso ficar pensando nisso.
Preciso tomar o meu café."
Tomou um banho que a despertou definitivamente e foi procurar
Renata. Ao passar pela copa, viu que a mesa estava colocada
para o seu café. Sorriu e foi para a cozinha. Renata não estava
ali, achou que ela estivesse lá fora na lavanderia, foi para lá e, realmente,
Renata estava com a máquina de lavar ligada e dando comida
para os cachorros. Marilda aproximou-se e sorrindo disse:
— Bom-dia, Renata, dormi muito, não foi?
Bom-dia, dona Marilda. Quando cheguei, vi que a senhora
estava dormindo. Sei que trabalha muito e precisa aproveitar
suas férias para descansar, por isso procurei não fazer barulho.
Pode ir para a copa que já vou lhe servir o café.
Marilda foi para a copa, sentou, tomou um pouco de suco e
começou a comer algumas frutas. Renata veio em seguida com
o café. Assim que terminou o café, Marilda foi para o
escritório. Antes de viajar precisava deixar tudo em
ordem.Aquela viagem seria a realização de um sonho de uma
vida. Por muitas vezes se imaginou passeando pela Europa.
Queria conhecer a maior parte dos países, mas o que queria
conhecer primeiro era Roma. Por isso, quando foi escolher a
excursão, preferiu aquela que estivesse passando o primeiro dia
na Itália. Estava examinando os papéis, quando o telefone tocou.
Atendeu, era Fernanda.
— Olá, Marilda, hoje não te acordei! Você está bem?
— Estou, só com um problema, que estou tentando resolver.
— Que problema?
— Antes de viajar preciso deixar os meus papéis em ordem.
Fernanda deu uma gargalhada e disse:
— Você está me dizendo que isso é um problema? Isso não é
nada; perder o marido, isso sim é um problema!
Marilda ficou furiosa com a atitude de Fernanda.
— Você é mesmo uma egoísta — disse, nervosa. — Pois para
você arrumar os meus papéis pode não ser um problema, mas
para mim é um problema, sim! O que não é meu problema é o
seu marido ter te abandonado, mas mesmo assim fiquei do
seu lado, te dando apoio.
— Tem razão, desculpe. Sempre pensamos que o nosso
problema é maior que o dos outros. Entendo que para você
deixar tudo em ordem é também um problema imenso. Quer
que eu te ajude de alguma maneira? O que posso fazer?
— Não, você não pode me ajudar, eu mesma farei isso. Só
quero que entenda a minha preocupação. Nada, além disso!
— Tem razão, desculpe novamente por esta e por todas as
outras vezes em que só vou pensar em mim e nos meus
problemas. Sabe que não sei o que faria sem você, mas estou
nervosa.
— Está bem, Deus sabe que estou fazendo o melhor que posso
para te ajudar, mas você como está? Dormiu bem?
— Quase não dormi, ainda continuo muito nervosa. Estou te
telefonando para saber se você vai comigo até o apartamento.
— Claro que vou. Foi bom você ter marcado para a tarde, Sabe
que vou viajar daqui a quatro dias. Por isso, preciso ver que
roupas levarei para a viagem e quais preciso comprar. Sabe que
nesta época faz frio na Europa, e eu não tenho muitas roupas
para o inverno. Preciso comprar e espero que vá comigo.
— Irei com certeza. Você está ao meu lado e não sei como
agradecer por isso. Ir com você fazer compras, além de ser
agradável, é o mínimo que eu poderia fazer. Vai mesmo viajar
com uma excursão, Marilda?
— Preferi fazer uma excursão, pois viajar sozinha é muito ruim,
ainda mais por países estranhos e com idioma diferente.
Além do mais, indo com a excursão, os guias com certeza nos
levarão a todos os pontos turísticos de cada lugar.
— Tem razão. Eu sempre quis fazer uma viagem como essa,
mas nunca tivemos oportunidade. Sempre precisávamos fazer
algo para a Regiane, ou Antero estava envolvido com o
trabalho e não podia gastar dinheiro com "essas coisas".
Termine o que está fazendo, também preciso arrumar a casa.
— Por que não viaja comigo, Fernanda? Sei que nos
divertiríamos muito! Você agora está livre e poderá fazer o que
quiser da sua vida! Vamos! Se quiser, telefonarei para a agência
e verei se ainda tem algum lugar na excursão!
— Talvez não fosse uma má ideia, mas não agora. Estou infeliz,
não seria boa companhia. Quem sabe uma outra vez.
— Está bem, não vou insistir, embora ache que uma viagem
como esta te faria muito bem.
— Fica para uma outra vez. Estou te esperando.
— Logo depois do almoço estarei aí. Não se preocupe.
— Está bem, estou te esperando.
Despediram-se. Marilda voltou para os seus papéis e Fernanda
ficou olhando para os móveis de sua sala. Estavam
empoeirados, as almofadas que ficavam sobre o sofá estavam
desarrumadas. Na cozinha, louças sujas espalhadas sobre a mesa
e a pia. O fogão também estava sujo, o chão, engordurado.
Tudo estava de uma maneira como ela nunca havia visto.
Está tudo sujo e bagunçado, jamais pensei que um dia veria a minha
casa assim. Jamais pensei que a sujeira e a bagunça não me
incomodariam. Pensar que eu nunca quis empregadas, pois não
confiava no trabalho delas e estava sempre atrás limpando o
que elas haviam limpado. Do que adiantou cuidar tanto da
minha casa, se não soube cuidar do meu marido? Ele disse que
não suporta a
minha mania de limpeza! Que quer viver a sua vida!
Mas que vida? O que ele quis dizer com aquelas palavras? Eu
não entendo, temos uma família maravilhosa! Nossa filha
sempre foi uma criança linda e boa. Sempre quis estudar, nunca
nos deu trabalho. Hoje, está bem e encaminhada na vida! Tem
seu trabalho, está casada e tem também o Marquinhos, que é
lindo e eu adoro! Porque ele está
revoltado? Não é só por minha mania de limpeza! Se fosse isso,
conversaríamos e entraríamos em acordo. Sei que seria
difícil, mas eu conseguiria mudar. Tem algo mais, lógico que
tem! E o nome desse "algo" é Luciana, com toda a sua beleza e
juventude! Mas ela não perde por esperar! Não vou deixar que
fique com o meu marido! Não vou mesmo!
Duas horas e pouco da tarde, Marilda chegou.
— Ainda bem que chegou, Marilda — Fernanda disse,
enquanto abria a porta, — não suporto mais ficar dentro de
casa.
Marilda, enquanto entrava e sentava em um sofá, disse:
— Você está com uma aparência horrível; embora esteja com
os cabelos penteados, os seus olhos estão tristes e está com
olheiras profundas. Sinto muito, minha amiga, mas parece que
você envelheceu dez anos! Isso não pode continuar! Vamos
viajar!
Fernanda começou a chorar.
-Acha que já não vi como estou? Mas não posso evitar, estou
triste e revendo toda a minha vida, vendo os momentos em
que briguei com o Antero e com a Regiane por causa de uma migalha
de pão que deixavam cair. Quanto tempo perdi!
—Também não é assim! Está certo que sempre te achei um
pouco exagerada, mas você procurou dar a sua filha uma boa
educação. Não pode continuar se culpando e tentando
encontrar um motivo para isso que está acontecendo. Antero
iria embora de qualquer maneira. Se você fosse relapsa com a
sua casa, ele diria que estava indo porque você não cuidava das
coisas. Ele encontraria
uma desculpa qualquer. Não se culpe por nada. Tente
recomeçar a sua vida. Venha viajar comigo!
— Não posso viajar agora, estou deprimida. Preciso descobrir
qual foi o real motivo pelo qual ele me abandonou. Embora eu
saiba que o motivo tenha um nome: "Luciana".
— Você não tem certeza disso, apenas desconfia. Não tire
conclusões apressadas. Precisa investigar mais.
— Não é isso que estamos fazendo? Não é para isso que estamos
indo até ao apartamento?
— Está bem. Mas como você fará para entrar? Vai conversar
com o síndico... E se encontrar alguém lá, o que vai fazer?
— Já pensei em tudo.Tentei falar com o síndico, mas não
consegui. No prédio não tem porteiro. Eu tenho as chaves de
entrada do prédio e do apartamento. Não quero falar com o
zelador, pois, se houver alguém no apartamento, ele poderá
nos impedir de entrar. Se eu encontrar alguém, não sei o que
farei.
— Sendo assim, eu não vou com você. Não quero participar
dessa loucura.Acho que você não pode invadir a privacidade do
Antero. Só vou se me prometer que falaremos com o zelador
para sabermos se tem alguém morando lá. Se tiver, não
entraremos. Voltaremos para cá e pensaremos no próximo
passo.
—Está bem,vamos fazer como você quiser.
Chegaram na rua em que ficava o apartamento. Estavam
entrando justamente no momento em que o zelador estava
saindo. Ao vê-las, disse admirado:
— Boa tarde dona Fernanda! Como vai?
— Boa tarde, seu João, estou bem. Vim até o apartamento para
ver se está tudo em ordem.
— Eu acho que está. O doutor Antero comprou móveis novos.
Ele disse que não pretende mais alugar.
Fernanda olhou para Marilda ,depois disse:
— Realmente, não pretendemos mais alugar; é justamente isso
que vim fazer, olhar os móveis novos.
— Acho que a senhora vai gostar, são bonitos. Até mais.
Ele se afastou e elas entraram no elevador. Fernanda tremia
muito, enquanto dizia:
— Você viu? Ele comprou móveis novos, vai mesmo trazê-la
para cá! Não te disse? Eu sabia!
— Disse bem, vai trazer, mas ele ainda não trouxe. Se tivesse
feito isso, o zelador não nos deixaria entrar.
—Ainda bem, estou louca para ver os móveis.
Chegaram à porta do apartamento. Fernanda colocou a chave
na fechadura, a porta abriu e elas entraram. Fernanda, após
olhar a sala, disse, abismada:
—Ele comprou móveis modernos e coloridos! Um horror!
Sempre gostei de móveis tradicionais e de madeira de lei! Isso
aqui está um horror mesmo.
Marilda, que também olhava tudo, disse:
— Pois eu não acho. Está muito bem decorado, alegre e claro.
Eu nunca quis te dizer, mas a tua casa é muito escura. Este
ambiente está aconchegante. Vamos ver o resto?
Para a cozinha ele também havia comprado móveis novos,
todos brancos. No quarto, havia só uma cama e um armário que
pegava a parede toda, claro também. Embora, a princípio,
Fernanda quisesse criticar, foi obrigada a reconhecer que estava
tudo bonito e com muito bom gosto.
— Bem, Fernanda, ao menos você está vendo que não tem
ninguém morando com ele.
— Como pode ter certeza disso?
— No armário e nas gavetas, só tem roupas dele e, no banheiro, só tem
uma escova de dentes.
— É... você tem razão. Mas, para ele ter modificado tudo assim,
é porque pretende trazer ela para cá.
— Ou talvez quisesse viver da maneira como sempre quis, em
um ambiente alegre e colorido.
— Você viu que sobre a pia da cozinha tem dois pratos limpos
e talheres? Ela deve ter vindo aqui ontem à noite.
— A que horas? Esqueceu que ontem ficamos ali embaixo por
muito tempo? Provavelmente, ele deve ter jantado com o
Flávio. Vamos embora, não temos mais nada para fazer aqui.
Ele ainda não a trouxe para cá. Está vivendo sozinho,
Fernanda...
Fernanda concordou com a cabeça. Foram embora. Saíram do
prédio e entraram no carro. Marilda conduziu o carro em
direção a casa de Fernanda, que disse:
— Para onde está indo?
— Para a sua casa, já vimos que ele está sozinho.
— Não! Vamos até a empresa ver com quem ele sai.
— Fernanda, isso não vai adiantar. O Antero deixou bem claro
que não voltará mais a viver com você. Está se torturando à
toa. Está perdendo tempo.
—Ele disse, mas isso não é verdade! Ele vai voltar! Sei disso.
Porque, se não voltar, prefiro morrer.
— Não diga isso! Ter o corpo perfeito, ver o amanhecer e o
anoitecer é um privilégio! Devemos agradecer todos os dias por
isso e pela vida que Deus nos deu!
— Deus?! Que Deus?! Aquele que permitiu que o meu marido
se apaixonasse por outra e fosse embora?! Deus não existe! Pois
se existisse não permitiria uma coisa dessa! Sempre fui uma boa
esposa e mãe! Vivi a minha vida toda para a minha família!
Nunca fiz mal a ninguém! Não merecia isso, não agora, que já
estou velha e não tenho mais nada para fazer na vida!
— Você tem razão de se revoltar, mas Deus é quem sabe das
coisas. Você não é velha, tem muito a fazer!
— Tenho?! Pode me dizer o quê? Não tenho mais nada!
Acabou tudo, Marilda!
— Não sei o que te dizer, mas acredito que tudo tem sempre
uma solução. Vou viajar, mas antes disso precisamos devolver o
carro para a Ivete. Já que Antero não pode saber que o está
vigiando e por isso não pode ver o seu carro, o melhor a fazer
seria comprar um novo carro.
— Como comprar um carro novo? Não tenho dinheiro!
— Não tem dinheiro? Como assim? O Antero fica com todo o
dinheiro de vocês?
— Foi ele quem sempre se preocupou com as finanças. Eu só
pedia e ele dava tudo que eu ou a Regiane precisássemos.
Nunca nos negou nada! Eu não queria ter preocupação com
isso e sabia que ele cuidava muito bem do dinheiro. Tanto que
aquele que recebi como herança de meus pais ele multiplicou
várias vezes. Nunca pensei que um dia estaria nesta situação...
— Você está dizendo que não tem dinheiro, nem uma conta
em um banco? O seu carro está no seu nome?
— Não, está no nome do Antero. Ele sempre fez isso e todos
os anos vendia o meu carro velho e comprava um novo.
Sempre como uma surpresa. Eu me acomodei a essa situação.
Nunca quis saber o quanto ele ganhava. Nunca me faltou
nada! Eu vivia bem e era feliz, Marilda...
Não acredito que você tenha-se anulado tanto na vida! Que
tenha vivido através do Antero e da sua filha! Mas parece que
foi isso que aconteceu. De qualquer maneira, embora a Ivete
tenha dito que não precisa do carro, ela o emprestou para
mim. Por isso, vou lhe telefonar e dizer quer estou indo viajar
e perguntar se o carro pode ficar com você.
— Faça isso e lhe explique a minha situação. Ela entenderá.
Diga que não tem problema, eu me responsabilizo pelo carro.
— Se responsabiliza como? Não tem dinheiro, e da maneira
como está não tem condições de dirigir! Se você vir o Antero
com outra, perderá facilmente o controle e poderá causar um
acidente! Não posso permitir!
— Não se preocupe com isso. Prometo que vou apenas segui-
lo e, se encontrá-lo com outra, esperarei você voltar da
viagem para ver o que faremos. Está bem assim? Prometo, pode viajar
sossegada. Não farei nada antes da sua volta!
— Não sei se posso confiar em você, está muito alterada.
— Pode confiar, eu prometo.
—Está bem, vou telefonar para a Ivete, ela decidirá.
Pegou o telefone e ligou para Ivete. Contou-lhe tudo que
estava acontecendo.
— Não se preocupe — disse Ivete —, pode deixar o carro com
ela. Já passei por isso e sei como é. O meu carro tem seguro,
portanto não se preocupe. Só diga a ela que tenha calma e que
não tome nenhuma atitude precipitada se vir Antero com a
outra.
— Obrigada Ivete. Creio que ela está bem consciente do perigo
que corre, mas me parece que tomará cuidado.
— Então, boa viagem e aproveite. Você bem que merece umas
férias. Sei que tem trabalhado muito.
Desligou o telefone, olhou para Fernanda dizendo, séria:
—Está feito, Fernanda, pode ficar com o carro da Ivete.
Mas tem que prometer que não fará coisa alguma até eu
voltar.
—Prometo e obrigada. Você é mesmo uma grande amiga.
Marilda sorriu ao ver no rosto da amiga um ar de criança.
— Você está mesmo parecendo que voltou à adolescência.
Agora preciso ir, tenho muitos preparativos para a viagem. Vou
com o seu carro e você ficará com o da Ivete. Quando eu for
viajar, o seu ficará guardado em minha garagem. A propósito, você vai
me levar até ao aeroporto?
— Claro que sim, imagine se não faria isso, Marilda.
— Otimo, depois te darei a hora em que deve me pegar.
— Está bem, assim que combinarmos, estarei em sua casa.
Marilda sorriu. Fernanda acompanhou-a até o portão. Marilda
entrou no carro, ligou e saiu.
No carro, enquanto dirigia, Marilda, ainda preocupada com a
situação de Fernanda, pensou:
"Como alguém pode entregar a sua vida e felicidade nas mãos
de outra pessoa? O que a Fernanda fará agora? Não está
preparada para nada. Pelo que percebi, durante toda a sua vida
foi tratada como uma criança. Antero não lhe deu
responsabilidade alguma a não ser cuidar da casa e criar a
filha. Ela nunca se deu conta da sua real situação. Também,
nunca imaginou que ele um dia a deixaria. Ainda bem que
nunca me apaixonei dessa maneira. Sei que isso tem um preço.
Estou envelhecendo e não tenho um marido ou filhos, mas ao
menos apenas eu sou responsável pela minha vida e felicidade."
Entrou em casa.Como sempre, tudo estava em ordem.Foi até
seu quarto, pegou uma mala e foi colocando as roupas que
pensava usar durante a viagem.Estava feliz com a vida que
havia escolhido. Tinha tudo para ser feliz e era. Não tinha
preocupação alguma, a não ser com o seu trabalho, o que não
chegava a ser preocupação, pois gostava do que fazia.
A consulta
Fernanda em casa, sabia ,estava na hora de preparar o jantar,
mas não estava com fome; pensava:
"Prometi que vou esperar a Marilda voltar, mas será que
conseguirei? Será que não vou vigiar o Antero? Não sei..."
—Alô!
— Fernanda! Sou eu, a Leonor, como vai?
— Tudo bem, e você? — disse contrariada, pois Leonor era
muito conhecida como aquela que sabia da vida de todos e que
também comentava.
— Faz muito tempo que não me telefona, aconteceu alguma
coisa?
— Comigo não, mas com a Joana sim. Você já sabe?
— Não, o que aconteceu?
— O marido dela foi embora. Trocou-a por outra. Também, ela
é muito chata! Você não sabia?
— Não, não sabia, mas parece que você está feliz com a
situação dela.
— Não estou feliz, mas pelo menos tenho assunto para
conversar e você sabe que gosto disso...
- Sei, te conheço muito bem. Como você soube?
— Você nem imagina! Ela me telefonou para contar. Disse que
a outra fez macumba e queria saber se eu conhecia alguém para
desmanchar a macumba e fazer outra contra a mulher que
levou o marido dela!
— Você conhece alguém que faça isso?
— Conheço! É um homem que faz "trabalhos", ele é muito
bom. Fui com ela até lá, ele prometeu que o marido dela vai
voltar e que a outra vai acabar na miséria e ficar doente.
— Credo! Como pôde fazer isso?
— Eu não fiz nada, quem fez foi ela. Eu só a levei até lá.
Fernanda pensou um pouco e disse:
— Estou pensando, tenho uma amiga que o marido também foi
embora e ela está desconfiada que a outra fez macumba. Você
pode me dar o endereço para eu dar para ela?
— Quem é ela?
— Você não conhece, ela faz parte das amizades do Antero.
— Vou te dar o número do telefone dele. Ela tem que telefonar,
marcar hora e dizer que fui eu quem o indicou. Assim, terei
desconto em uma próxima "consulta" que precisar.
— Tem certeza que ele é bom mesmo?
— Tenho! Já vi muitas coisas que ele fez! Já vi gente se afundar
em dívidas e até morrer.
— Sendo assim, me dê o número, que passarei para ela.
Leonor deu o número e Fernanda anotou. Conversaram mais
um pouco. Depois se despediram. Assim que colocou o
telefone no gancho, Fernanda olhou para o papel. Ficou
olhando para ele por algum tempo, resolveu:
—Vou até lá! A Luciana deve mesmo ter feito macumba para o
Antero, ele mudou muito de repente! Mas não posso ir sozinha, será
que a Marilda vai comigo?
Com o papel na mão, tomou coragem e ligou:
— Marilda, sou eu!
— Tudo bem, o que foi agora?
— A Leonor me ligou e me contou uma coisa incrível.
— Partindo da Leonor, deve ter sido incrível mesmo! Ela gosta
de falar da vida de todo mundo, mas o que foi desta vez?
Fernanda contou tudo e terminou contando sobre o homem,
do papel e se ela iria junto fazer uma "consulta".
—Fernanda, você sabe que preciso arrumar as minhas coisas
para a viagem. Além disso, nem sei se isso vai valer a pena! O
Antero está firme na sua decisão e eu não acredito nessas
coisas!
Geralmente, são charlatões que se aproveitam do desespero das
pessoas para tirarem o seu dinheiro! Ainda continuo pensando
que você deveria viajar comigo! Eu sei que você não tem
dinheiro, mas isso não importa. Pagarei a sua viagem e, assim
que tiver o dinheiro, me devolverá. O Antero disse que não vai
deixar te faltar nada, com certeza te dará uma boa pensão.
— Sei que não vai me faltar nada, mas ao mesmo tempo me
faltará tudo, pois não terei mais ele! Vamos até lá, só para ver
como é. Prometo que não farei nada se perceber que tudo é
mentira e que o homem é um charlatão!
Vendo que não haveria como escapar, Marilda faria mais aquilo,
também, pela amiga:
— Está bem, mas tem que ser amanhã.
— Vou telefonar agora mesmo, dizer da urgência e ver se ele
pode marcar para amanhã. Assim que tiver a resposta te ligo.
— Está bem, estarei aqui em casa.
Fernanda telefonou, marcou para o dia seguinte, às três horas.
Disse ser amiga de Leonor e deu um nome falso. Não queria
que a Leonor descobrisse que ela também tinha sido
abandonada, sabia que, se isso acontecesse, ela contaria para
todos, e por isso seria motivo de chacota de todas as suas
conhecidas. Anotou o endereço e tornou a telefonar para
Marilda, marcando o encontro para o dia
seguinte.
Embora contrariada Marilda atendeu a mais um pedido de
Fernanda, mas já estava se cansando:
"Quando ela vai se conformar com a separação? Ela está ficando
louca! Imagine, ir atrás de um macumbeiro! Da maneira como
o Antero falou, ele está decidido e não voltará para casa. Mas,
enfim, vou acompanhá-la e que tudo seja como Deus quiser."
No dia seguinte, ao acordar e ir para a copa, como todos os dias,
a mesa do café estava colocada. Foi até a cozinha. Renata estava
junto ao fogão; ao vê-la entrando, disse:
— Bom dia, dona Marilda, seu café está quase pronto. Acordou
mais cedo hoje? Já estava acostumada com a senhora acordando
mais tarde!
— Bom dia. Tem razão, acordei cedo. Eu queria ficar mais um
pouco na cama, mas não consegui. Já me acostumei a acordar
cedo. Agora, vou tomar o meu café e não te dou nem quinze
minutos para a Fernanda telefonar — disse sorrindo. — Não sei
como ainda não fez isso!
— São muito amigas, não é? — Renata também riu e disse:
— Somos, sim, mas não pensei que passaria quase todas as
minhas férias cuidando da vida dela.
— Pode ir para a copa que já estou levando o seu café.
Marilda estava indo para a copa quando o telefone tocou.
Olhou para Renata e disse com ar de deboche:
— Você ganha um doce se adivinhar quem é!
— É a dona Fernanda! Só ela telefona para a senhora. A
senhora não tem outras amigas?
Aquela pergunta pegou Marilda de surpresa. Nunca havia
pensado naquilo. Nunca havia notado que, apesar de ter muitas
conhecidas, amiga mesmo era só Fernanda.
Respondeu, enquanto pegava o telefone, que estava sobre uma
mesinha no corredor:
— Sabe que nunca pensei nisso. Não, não tenho outras amigas.
Conhecidas sim, mas amiga mesmo como ela, não.
— Alô, Fernanda, bom dia! Dormiu bem?
— Bom dia, Marilda, não dormi muito bem. Estou telefonando
para te lembrar do nosso compromisso de hoje à tarde. Você
não esqueceu, não é? Quer vir almoçar aqui em casa? Depois
do almoço, poderemos sair. O bairro onde ele mora é distante.
Estou ansiosa para fazer a "consulta".
— Não esqueci, não, fique sossegada. Está bem, vou almoçar
com você. Lá pelas onze estarei aí. Pode me esperar e faça um
almoço bem gostoso!
— Pode deixar, sabe que adoro cozinhar! É o que melhor faço
nessa vida! Vou te preparar, como sobremesa, uma torta que
você não vai acreditar!
— Acredito sim! — disse rindo. — Suas tortas são um perigo
para as nossas gordurinhas!
— Elas não engordam, só fazem bem ao nosso paladar!
— Sei...está bem, logo mais estarei aí, Fernanda.
Desligou o telefone e continuou andando para a copa. Olhou
para a mesa, puxou uma cadeira e sentou. Renata chegou em
seguida, trazendo o café com leite, que Marilda colocou em
uma xícara. Enquanto tomava, pensava nas últimas palavras de
Renata.
"A senhora só tem ela como amiga?"
"Só agora me dei conta que realmente não tenho amigos.
Desde que meus pais morreram e meus irmãos se casaram, me
isolei nesta casa e no meu trabalho. Nunca tive muita vontade
de conversar futilidades. As minhas amigas da juventude
também se casaram e só sabem falar de marido e filhos,
assuntos que não me interessam. Só restou a Fernanda. Quando
estamos juntas, conversamos sobre tudo e quase nunca sobre família,
a não ser agora, que ela está com esse problema. Será que nunca
notei por que não me fez falta? Deve ter sido isso. Gosto de
ficar em casa, ler e assistir a um bom filme na televisão.
Depois do Jorge, nunca mais quis me envolver com alguém. Sofri
muito com a separação e, agora, depois do que vi acontecer com a
Fernanda, a Ivete e com a Laurinda, acho que sempre tive razão.
Apesar de viver sozinha, nunca me senti só. Eu sempre achei
que eu me bastava e continuo achando.
O trabalho me completa e tenho o suficiente para me manter ocupada.
Depois que terminar de tomar o café, vou tentar arrumar as
minhas malas. Essa idéia de consultar um macumbeiro não me agrada.
Mas Fernanda tem o direito de fazer tudo que puder para salvar
o seu casamento. Se isso tivesse acontecido comigo, eu daria a
volta por cima, deixaria para lá e encontraria algo para fazer.
Será que eu
faria isso mesmo? Não sei; depois do Jorge, nunca mais me
apaixonei, e agora tenho certeza: não me apaixonarei mais!"
Um pouco antes do meio-dia, Marilda chegou na casa de
Fernanda, que já estava com o almoço pronto e preparava a
mesa. Ajudou Fernanda a terminar de preparar a mesa,
sentaram-se e começaram a almoçar.
Aquilo de visitar o macumbeiro a estava incomodando. Nunca
foi muito de religião. Não conhecia aquela, mas o pouco que
sabia era que, em um lugar como aquele, só era praticado o
mal. Não acreditava muito nesse poder, mas o simples fato de
alguém se dirigir até a um lugar como aquele, com a intenção
de prejudicar outra pessoa, deixava-a muito brava. Olhou sério
para Fernanda e disse:
— Fernanda, você tem mesmo certeza que quer ir a um lugar
como esse?
— Claro que tenho! Não estou vendo a hora de chegar lá e
acabar com a macumba que a Luciana fez contra o Antero!
— Você não entende e não sabe como funciona... para te dizer
a verdade, não acredito que funcione. Isso tudo é folclore. Não
conheço ninguém que tenha usado a macumba e que tenha
funcionado! É tudo uma maneira de tirar dinheiro dos incautos. Mude
de idéia, vamos viajar juntas. Na Europa, conheceremos muitos
lugares diferentes e você terá tempo de pensar no que vai
fazer da sua vida. Não acredite em mentiras...
— Você conhece alguém que já fez macumba?
— Não, mas ouço falar a respeito.
— Então, se não conhece ninguém, não pode afirmar com
certeza que não exista. Não te contei o que a Leonor disse que
aconteceu com a Joana? A Leonor disse que ele é muito
bom. Não vou fazer mal para ninguém, só vou defender a
minha família! Você há de convir que a mudança do Antero foi
muito rápida!
— Como rápida? Você disse que ele sempre se queixou da
maneira como você cuidava da casa e da Regiane. Disse que há
muito tempo não tinham uma vida sexual normal!
— Mas ele continuou sempre sendo um bom marido e bom
pai, nunca nos deixou faltar nada!
— E você se acomodou a essa situação! Deixou que ele tomasse
conta da sua vida de uma tal maneira, que hoje está aí... sem
dinheiro e sem saber como continuará vivendo; e se ele não
te der uma pensão todos os meses?
— Você ouviu ele dizendo que vai dar a pensão!
— Sim, mas quanto? Será que te dará o suficiente para que
possa continuar vivendo da maneira como sempre viveu?
— Ele vai! Ele disse que vai dar! Mas também não vou me
preocupar com isso. Hoje, vou desmanchar a macumba e ele
vai voltar para casa e para mim e tudo vai continuar como
antes! Não vamos mais perder tempo, vamos terminar de
comer e ir embora, já estamos atrasadas.
— Está bem, se é assim que quer... faremos isso, mas não
venha me dizer mais tarde que não te avisei, Fernanda.
— Não vou dizer isso, nunca!
— Você tem o endereço? Sabe ir até lá?
— Fica em um bairro da periferia, nunca fui até lá, mas
encontraremos! Vamos. Você vai dirigindo, Marilda?
— Vou, mas você sabe que vamos nos perder!
Fernanda sorriu. Ela sabia que as duas, no carro, eram um
desastre. Nenhuma tinha bom senso de direção e sempre se perdiam,
pois cada uma queria ir para um lado.
— Sei disso. Por isso que quero sair bem antes da hora. Se nos
perdermos, teremos tempo para nos achar.
Marilda também sorriu, já que não havia outra solução, o
remédio seria partir para aquilo que julgava ser uma loucura.
Por incrível que pareça, elas não se perderam. Duas e vinte já
estavam na rua onde ficava a casa. Marilda parou o carro na
esquina.
— Chegamos — disse um pouco apreensiva. — Ainda é um
pouco cedo, você tem tempo para desistir dessa loucura.
Vamos para casa, arrume suas malas e venha viajar comigo.
— Marilda! — disse Fernanda, nervosa. — Você acha que
tenho cabeça para viajar, da maneira como estou? Não. Já que
chegamos até aqui, vamos em frente! Hoje vou resolver a
minha vida e o Antero vai voltar para casa!
Impotente, Marilda acelerou o carro e pararam em frente ao
número que estava no papel. Marilda estacionou o carro e as
duas desceram. A casa era simples, de muro baixo. Uma
senhora estava sentada perto do portão. Fernanda perguntou:
— Aqui é a casa do senhor Pedro?
— É aqui mesmo, moça. Pode entrar, ele está lá no fundo,
atendendo a uma pessoa.
Marilda, nervosa e assustada, apertou o braço de Fernanda
tentando fazer com que ela voltasse para o carro, mas foi em
vão. Fernanda, com passos firmes, entrou pelo corredor que
levava aos fundos da casa. Marilda, tremendo muito, a seguiu.
Chegaram diante de uma porta que estava aberta, entraram.
Diante delas, surgiu uma grande sala, com muitos bancos e, na
frente dos bancos, um altar com imagens de santos conhecidos
por elas. Pararam na porta e ficaram olhando. No alto do altar e
de braços abertos, estava a imagem de Jesus. Olharam-se
admiradas, pois jamais poderiam imaginar que em um lugar
como aquele encontrariam imagens de santos, e muito
menos de Jesus.
Estavam ainda paradas, quando, nos fundos da sala, uma porta se abriu
e por ela saíram duas pessoas, um homem e uma mulher, que
levava em suas mãos algo embrulhado em um pano branco.
Enquanto saíam, o homem disse:
— Agora está tudo nas mãos de Oxalá. Fizemos a nossa parte.
Chegando em casa, dê um banho nele com essas pipocas e,
depois, não esqueça de levar no cruzeiro do cemitério e, com
muita fé e respeito, ofereça a Omulu. Se seu marido tiver
merecimento e for a vontade de Oxalá, ele ficará curado.
Quando ele ficar bom, em agradecimento, traga algumas velas
para serem acesas aqui no Congá.
— Pode ficar sossegado, tenho certeza que ele ficará bom,
e não trarei só velas, mas muitas flores também.
Marilda e Fernanda se olharam, cada vez mais abismadas. A
mulher se despediu, passou por elas sem dizer nada. O
homem também se encaminhou em direção a elas. Assim que
chegou perto, estendeu a mão dizendo:
— Qual das duas me telefonou?
Fernanda se adiantou e também estendendo a mão disse:
— Fui eu quem telefonou. Estou aflita para conversar com o
senhor, a Leonor falou muito bem a seu respeito.
— Ela frequenta a nossa casa, também gosto muito dela,
embora saiba que ela fala demais da vida dos outros. Mas
tudo faz parte do aprendizado. A senhora pode entrar comigo
ali naquela sala e a senhora pode esperar aqui.
Ao ouvir aquilo, Fernanda disse:
— Se o senhor não se incomodar, eu preferiria que ela entrasse
comigo. Ela é minha amiga e sabe de tudo que está
acontecendo. Além do mais, o senhor precisa entender, nunca
estivemos em um lugar como este e por isso estamos confusas
e até um pouco amedrontadas, sabe como é...
— Por mim, não tem problema algum. A senhora é quem sabe.
Queiram me acompanhar.
Ele seguiu na frente e as duas o acompanharam. Marilda ainda
estava um pouco confusa, mas não com todo aquele medo que sentiu
quando chegaram.
Embora ainda estivesse preocupada com aquela história de
cemitério, o ambiente era agradável e acolhedor. Não havia
nada ali que a amedrontasse mais. Parecia um lugar de muita
paz. Assim que entraram na sala viram uma mesa coberta por
um pano branco. Sobre ela, havia uma vela branca e outra preta
e branca. Ao redor das duas, havia dois colares feitos com
contas: um feito com contas brancas e outro com contas
pretas, misturadas com brancas. Na frente da mesa, uma
cadeira, e do outro lado, um banco. Novamente se assustaram.
O homem percebeu e, enquanto sentava-se na cadeira, disse:
— Podem se sentar aí nesse banco. Não se preocupem com as
velas. Elas são de Oxalá e do preto velho que trabalha comigo.
Fiquem tranquilas.
Embora não estivessem tranquilas, mas não tendo mais
como sair dali, sentaram-se. O homem olhou sério para
Fernanda:
— Se foi a senhora quem me telefonou, é porque precisa da
minha ajuda. Pode me contar o que está acontecendo?
— Meu marido foi embora — ela disse de uma vez, muito
nervosa, ele me trocou por outra... ela deve ter feito uma
macumba para ele. Vim aqui para desmanchar essa macumba
e, assim, trazer ele de volta para casa.
— Calma. Não precisa ficar tão nervosa. Tudo tem sempre
solução, mas, antes de fazer qualquer coisa, preciso
conversar com as senhoras... percebi que estão preocupadas
com estas velas e estes colares. Esta casa pertence, primeiro, a
Oxalá; depois, ao meu preto velho. O nome dele é Pai Joaquim
das Almas, é um negro muito bom e só faz o bem. Já ajudou
muita gente. Sei que, quando chegaram, ouviram eu dizer para
aquela senhora que era para ela ir ao cemitério. O marido dela
está muito doente, e os médicos da Terra já o desenganaram.
Como última alternativa, ela veio até aqui. Aqui tudo é
cercado de magia. Todo ser humano tem dentro de si o bem
e o mal. Aqui trabalhamos com essas duas forças. Aquela
mulher vai dar um banho de pipoca no seu marido.Pipoca é o
remédio de Omulu. Ele cura as pessoas, quando permitido por Deus.
Ele mora no cemitério, por isso todas as entregas e presentes para
ele precisam ser feitos ali. Aquela mulher está tentando curar o
marido. Ela vai ao cemitério, mas também poderia ir a uma
encruzilhada, no mar, na cachoeira, na mata ou no rio.
Depende do que o doente precise que seja feito para a sua cura.
Ela vai fazer o que eu disse e, se o marido dela tiver
merecimento, vai ficar curado.
— O senhor está dizendo que todas aquelas coisas que a gente
vê nas encruzilhadas não são para o mal? Pode ser de cura
também? — Fernanda perguntou admirada
— Sim, é isso mesmo que estou dizendo. Grandes trabalhos são
feitos na encruzilhada para o bem. Como já disse, Exu
trabalha dos dois lados. Existem, sim, trabalhos feitos na
encruzilhada, mas a maioria é para a cura de alguém. Aqueles
que fazem para o mal terão o seu pagamento. Xangô, o Orixá da
Justiça, mais cedo ou mais tarde deixará seu machado cair sobre
eles. A senhora também, de uma certa maneira, está tentando
curar o seu marido. A senhora conhece a mulher por quem
ele se enrabichou?
— Conheço! É a secretária dele, é muito bonita e jovem!
— Fernanda — disse Marilda —, você não tem certeza!
— Não tenho, mas só pode ter sido ela. Não tem outra!
— Isso é importante — rebateu o homem. — É importante
também que tenha certeza. Senão, poderá estar fazendo mal a alguém
que talvez seja inocente. Mas julgando que ela seja a culpada,
o que pretende fazer?
— Trazer o meu marido de volta!
— Muito bem. E com ela, quer fazer o quê?
— Não sei...
— Matar?
— Se for preciso — disse Fernanda com muita raiva. — Ela
teve a coragem de roubar o meu marido, então que morra!
— Moça, sei que a senhora não conhece nada, nem sabe o que
está dizendo, por isso, vou lhe explicar. Como já disse, aqui
nesta casa lidamos com as duas forças que regem o ser
humano, o bem e o mal.
Aqui, conseguimos a cura, abrimos caminhos, mas só de
acordo com a vontade de Oxalá e de acordo com o
merecimento de cada um. Do lado do bem, temos pretos
velhos e caboclos. Do lado do mal, temos os Exus, que as
pessoas chamam de diabo, mas na realidade, eles não são o
diabo. Eles são escravos e, por isso, obrigados a fazer tudo o
que lhe pedem. Quando solicitados, eles obedecem àquilo que
lhes ordenam. Quando lhes pedem o bem, eles ficarão felizes e
fazem de bom grado. Quando lhes pedem o mal, embora não
gostem e não queiram, são obrigados a fazer. Mas quem lhes
pediu esse mal, fica sendo seu devedor e eles, de uma maneira
ou de outra, irão cobrar. O mal está onde houver inveja, ódio e
ganância, não importando lugar ou religião, pois ele está dentro de cada
um. A senhora quer que eu peça a Exu para fazer o mal para
alguém que nem sabe se é culpada ou inocente? Se insistir, eu
pedirei e ele fará. Isto é, se essa pessoa tiver merecimento,
pois, se ela não tiver, não vai adiantar. A senhora será então
uma devedora do Exu e ele cobrará. Eu sou simplesmente
aquele que obedece às suas ordens. Não tenho responsabilidade
alguma, porque estou lhe avisando. Sei que tem muitos que
fazem todo tipo de maldade, não importando a quem,
somente movidos pela ganância e pelo dinheiro e que até
ficam felizes quando vêem que o seu "trabalho" deu certo.
Alguns até mudam de religião e se dizem arrependidos.
Acreditam que, pelo simples fato de ter mudado de religião e se
arrependerem, não devem mais nada. Puro engano. Ao se
arrependerem do mal que fizeram, estão ganhando um ponto diante
de Deus, mas e aqueles que foram prejudicados? Aqueles que
perderam tudo e, muitas vezes, até a vida? Esses serão seus
cobradores e exigirão vingança, nesta vida ou em outras. Sem
contar os Exus que foram usados, eles também vão querer
vingança. Existe o direito da escolha, o livre-arbítrio, onde todos
podem e devem perdoar. Mas não se pode impedir o desejo de
vingança. As pessoas, às vezes, não sabem com que forças estão
lidando e pagam caro por isso. Está em suas mãos. O que quer
que eu faça?
Fernanda olhou para Marilda, que ouviu tudo atentamente.
— Marilda, o que eu faço?
— Não sei, tudo isso que ele disse parece ser sério. Na
realidade, você não tem certeza se a Luciana é o motivo pelo
qual Antero foi embora. Não sei o que deve fazer, você é
quem tem que resolver, só vim para te acompanhar.
O homem olhava as duas. Conhecia várias pessoas como elas,
que vinham em busca de coisas achando ser fácil e sem
problemas. Ele era consciente, seus guias lhe ensinaram tudo
sobre magia e ele sabia fazê-la, mas sabia também das
consequências. Por isso, a sua casa estava sempre cheia e
conseguia ali coisas surpreendentes. Ele sempre usou os exus
para tentar desmanchar um trabalho feito para prejudicar
alguém, mas nunca para o mal ou para destruir e matar.
Continuou olhando-as em silêncio.Como Fernanda não se
decidia, disse:
— Acho melhor a senhora ir para sua casa, pensar bem na
atitude que vai tomar e procurar ter a certeza que essa moça é
realmente a causadora do abandono do seu marido. Se tiver
certeza e decidir, pode voltar. Farei o que a senhora quiser.
— Também acho — disse Marilda. — É a melhor coisa que tem
para fazer. Vamos embora...
— Mas, se ela fez uma macumba, não tem como desmanchar? Não
tenho o que fazer?
— Se a senhora tiver a certeza que ela é a pessoa por quem seu
marido saiu de casa, a senhora volte e veremos o que dá para
se fazer. Sempre existe uma maneira de se desmanchar um
mal feito. Só não posso fazer mal para ninguém, meus guias não
deixariam nem eu quero. Gosto de ajudar a cura de alguém,
gosto de dar esperança para aqueles que se sentem perdidos
e sem rumo. Isso faço com prazer.
Marílda se levantou, colocou a mão sobre o braço de
Fernanda e fez com que se levantasse também. O homem
continuou sentado, Fernanda perguntou:
— Quanto preciso pagar pela consulta?
— Eu só cobro quando preciso fazer algum trabalho, porque
para isso é necessário comprar algumas coisas; mas por
conversar com a senhora, não vou cobrar. Sei que está
desesperada, não vou abusar disso. Vá para sua casa,
investigue. Depois volte e veremos o que podemos fazer.
Tome cuidado com o que vai fazer. A senhora está desesperada
e por isso é uma presa fácil para alguém que queira lhe enganar.
Fernanda sorriu; iam saindo quando ele disse:
— Moça!
As duas se voltaram, ele olhou para Marilda, dizendo:
— Sei que a senhora veio só para acompanhar e que não
acredita no que eu disse ou viu aqui, mas Pai Joaquim está
dizendo que a sua vida vai mudar muito.
— Minha vida mudar?! — Marilda disse admirada. — Mudar
como? Tenho ela muito bem controlada! Diga ao Pai Joaquim
que, desta vez, ele se enganou; boa tarde.
— Boa-tarde, mas o Pai Joaquim não se engana.
Marilda apenas sorriu e, empurrando Fernanda, saíram dali.
Já na rua, Fernanda, que estava frustrada com tudo que ouviu
do senhor Pedro, disse:
— Marilda, você entendeu alguma coisa do que ele disse?
Vim para encontrar uma solução e ele me deixou mais
confusa!
— Entendi que não se deve fazer mal para ninguém. Muito
menos quando não se tem certeza se a pessoa é culpada ou
não. E você não sabe se a Luciana é mesmo a amante do
Antero.
— Nossa, Marilda! Que palavra forte! Amante!
— Por que forte? — perguntou Marilda, entrando no carro,
ligando o motor e saindo. — Que nome se dá para alguém que
vive com outro não sendo casados?
— Tem razão, não tem outro nome mesmo. Só que não sei
o que fazer. Da maneira como ele disse, é muita
responsabilidade. Ele disse que não tem culpa de nada, que o
culpado é aquele que mandou fazer o trabalho, que ele é só um
instrumento. Não sei mesmo o que fazer...
Acho melhor você esquecer tudo isso e viajar comigo. Deixe
essas coisas para quem entenda.
— Não sei, é tudo tão estranho e diferente do que pensei que
fosse. Da maneira como a Leonor falou, ele trouxe o marido da
Joana de volta. Por que não quer trazer o Antero?
— Ele não disse que não vai trazer, disse que, se você não tem
certeza de que Luciana é mesmo a culpada, deve investigar e
depois retornar. Mas, se eu fosse você, esqueceria de tudo isso
e procuraria uma outra maneira. Não acredito nessas coisas,
mas vai que ele estava falando a verdade... já pensou o perigo
que está correndo se mexer com o tal de Exu, que você nem
sabe direito como é? Ele disse que esse Exu é rancoroso e
vingativo. Fernanda, deixe isso pra lá. Não mexa com o que
desconhece...
— Como deixar para lá?! O Antero foi embora e aquela
mulher deve ter feito uma macumba, um feitiço! Se aquele
homem não fizer o que quero, tem que ter outro que faça!
— Depois de tudo que ouviu dele, o que quer realmente?
— Quero o meu marido de volta! Só isso! É pedir muito?
— Não, realmente não é, mas você não tem certeza se a
Luciana é mesmo a culpada!
— Está bem, não tenho, mas vou investigar. Hoje mesmo
vamos esperar ela sair do escritório e vamos segui-la.
— Seguir a Luciana! Está louca mesmo! Já viu que o Antero
sai do escritório e vai direto para o apartamento. Portanto, não
é com ele que ela vai se encontrar!
— Ele não saiu esses dias, talvez porque pense que eu o esteja
seguindo. Preciso saber quem ela é realmente!
— Tem certeza que quer fazer isso mesmo?
— Não sei, não sei de mais nada! Estou desesperada!
— Está bem. Entendo a sua situação. Confesso que também
fiquei um pouco confusa, pois não pensei que esse seria o
resultado da consulta. Sempre só ouvi falar mal dessas coisas.
Nunca pensei que, em um lugar como esse, as pessoas
procurassem a cura para as suas doenças e, parece que essa cura
existe mesmo. Sempre achei que só se praticava maldade.
— Também pensava isso, mas pelo visto não é assim.
— Pretende mesmo seguir a Luciana, Fernanda?
— Pretendo, sim. E você, vai comigo?
— Já te disse que, até o dia da minha viagem, ficarei à sua
disposição. Farei o que quiser...
— Obrigada, nem sei como te agradecer toda essa força que
está me dando, Marilda!
— Não precisa agradecer. Estou fazendo porque quero, se não
quisesse seria diferente..
— Ainda é cedo para ela sair do escritório, podemos ir a uma
confeitaria e tomarmos o chá da tarde. O que acha?
Marilda sorriu e concordou com a cabeça. Foram à confeitaria,
tomaram o chá e aproveitaram para conversar. Fernanda,
passando geléia no pão, perguntou:
— Marilda, o que achou daquilo que ele falou?
— Do quê?
— Daquela história que a sua vida vai mudar...
— Achei uma bobagem. A minha vida não tem o que mudar.
Tenho meu trabalho, casa e dinheiro. Nada pode mudar. Ele
só quis mostrar serviço. A minha vida é bem controlada
— Também pensei que a minha fosse, mas agora vejo que
estava errada. A minha vida deu uma volta de cento e oitenta
graus. Está de cabeça para baixo e eu, perdida...
— Com você é diferente. Entregou a sua vida e felicidade nas
mãos de outra pessoa. Eu nunca fiz isso. Sou a única responsável por
tudo que me acontece.
— É... acho que você está certa, não tem mesmo o que mudar em sua
vida, a não ser que encontre um amor. Aí, sim, a sua vida
mudaria e muito!
Marilda começou a rir sem parar, depois disse:
— Imagine, isso acontecer nessa altura do campeonato! Se não
aconteceu quando eu era jovem, não acontecerá agora. Ainda
mais depois de ter visto o casamento de quase todas as minhas amigas ir
por água abaixo. Não, minha amiga, isso não vai acontecer.
Tenho a minha cabeça bem presa ao pescoço!
É... mas em matéria de amor o que menos importa é a cabeça.
Quando a gente está apaixonada, não pensa em nada.Só se quer
ficar junto da pessoa que se ama. Quando eu conheci o Antero
foi assim. Depois que nos casamos, com o tempo, tudo foi se
modificando... problemas com a casa, o nascimento da Regiane
fizeram todo aquele amor inicial ir esfriando. Mas confesso que
sinto falta daqueles tempos, em que eu só queria ficar junto
dele.
Por isso é que estou tão triste e revoltada, não é justo! Agora
que estou velha e que praticamente não temos mais
problema algum e tudo poderia voltar a ser como antes, ele me
abandona! Não é justo! Não é mesmo!
— Também acho e por isso estou te acompanhando nessa
maratona, nessa tentativa de trazer o Antero de volta. Por isso,
também, sei que nunca vou me apaixonar. O meu tempo já
passou.
Fazendo assim, acho que me livrei de um grande problema,
de estar na situação em que você se encontra hoje. Não tenho
ninguém para me prerocupar, a não ser os meus
cachorrinhos, que não reclamam e estão sempre abanando o
rabinho quando chego em casa.Eles são sinceros. Me amam...
— Depois de tudo que estou passando, chego à conclusão que
você sempre esteve certa. Hoje está tranquila, sem problema
algum, podendo viajar e aproveitar a vida. Eu, ao contrário, dediquei
toda a minha vida para Regiane e para Antero. Ela está casada,
cuidando da sua vida, e nem imagina o que está acontecendo,
e só saberá se eu não conseguir trazer o Antero de volta. Não
quero preocupá-la, ainda não está na hora. Ela já tem os seus
próprios problemas.
— Nunca tive dúvidas a esse respeito, mas já está na hora de
irmos embora, já são quase seis horas.
— É mesmo! Ficamos conversando e nem vi o tempo passar.
Não sei como vai ser enquanto você estiver viajando!
— Serão só vinte dias e passarão depressa. Tem que prometer que vai
esperar a minha volta para tomar qualquer decisão. Promete?
— Prometo! Ficarei contando os dias para a sua volta e não
tomarei decisão alguma.
Marilda não acreditou muito, mas sorriu.
Constatando a verdade
Depois que saíram da confeitaria, Marilda estacionou o carro do
lado direito da rua, dois carros atrás do ponto do ônibus. De
onde estacionou poderia sair rapidamente e, assim que Luciana
subisse no ônibus, elas a seguiriam.
Passava um pouco das seis quando viram Luciana saindo e,
como sempre, apressada. Ela parou no ponto e ficou olhando,
parecendo aflita e olhando para todos os ônibus que passavam
e paravam, mas aquele que ela deveria tomar demorou um
pouco para chegar. Finalmente, Marilda e Fernanda viram
Luciana estendendo a mão para um ônibus que se aproximava,
num sinal claro de que era aquele que estava esperando.
Marilda ligou o carro, trocou a marcha e se colocou atrás do
ônibus. Quando todas as pessoas subiram, o motorista deu a
partida. Elas o seguiram. Tiveram que ter paciência, pois o
ônibus parava a toda hora para que as pessoas subissem ou
descessem. Mais ou menos meia hora depois, viram Luciana
descendo do ônibus. Marilda parou um pouco mais à frente.
Não tinha como parar no ponto. O ônibus passou por elas, que
ficaram paradas, mas sem tirar os olhos de Luciana, que,
ansiosa, olhava na direção em que os ônibus chegavam. Após
uns dez minutos, a viram dando sinal para um outro ônibus,
que parou e ela entrou. Assim que o ônibus passou, Marilda
novamente o seguiu. Estavam já há quinze minutos seguindo
o ônibus quando, após ele parar, viram Luciana descendo.
Novamente, Marilda estacionou alguns metros à frente.
Luciana desceu e apressada começou a caminhar. Passou pelo
carro, mas não olhou. Ela realmente não percebeu que estava
sendo seguida. Assim que ela se afastou um pouco, Marilda,
devagar, continuou seguindo a uma certa distância. Luciana
virou na primeira rua à direita e depois na segunda, também à
direita. Assim que virou, em uma casa iluminada pela luz de
um poste, estava um senhor com um menino em uma cadeira
de rodas. Assim que Luciana os viu, saiu correndo; abraçou e
beijou o menino. Fernanda e Marilda se olharam. Pensavam
que descobririam tudo, menos que ela tivesse um filho.
Luciana tirou o menino da cadeira e, abraçando-o
carinhosamente entrou na casa, acompanhada pelo senhor.
Marilda passou pela casa, ainda a tempo de vê-los entrando. A
casa, embora simples, tinha uma boa aparência. Tinha uma varanda e
um pequeno jardim. Fernanda não conseguia tirar os olhos de
Luciana, abraçada àquele menino. Alguns metros à frente,
Marilda estacionou novamente. Olhou sério para Fernanda.
— Fernanda, parece que você se enganou. Não foi por causa
dela que Antero foi embora. Ela parece ser mais uma
trabalhadora que cuida de um filho doente.
— Não pode dizer isso! Não sabemos se aquele menino é filho
dela, pode ser seu irmão!
— Da maneira e felicidade como ela correu para ele, não
acredito. Acho que é seu filho, sim...
— Se for filho dela, pode ser de Antero também.
— Como pode pensar uma coisa como essa? Acredita que
Antero fosse pai dessa criança, permitiria que a mãe trabalhasse
fora? Ainda mais a criança sendo doente? Ele nunca faria isso!
Sabe muito bem que ele tem condições de manter uma ou mais
casas! Definitivamente, não é ela a culpada do teu sofrimento.
— Não sei, mas preciso ter certeza, precisamos encontrar uma
maneira de descobrir de quem esse menino é filho.
— Como? Vai bater palmas no portão e perguntar : esse menino é filho
do Antero? Ora, Fernanda! Você precisa aceitar o que vê. Essa
moça não tem nada a ver com a sua vida.
— Não sei, ainda não estou convencida. Preciso de um
tempo para pensar no que farei. Ligue o carro e vamos embora.
Marilda obedeceu, ligou o carro e saiu. Seguiram em
silêncio.Na realidade, nenhuma das duas sabia o que dizer.
— Marilda — Fernanda disse — não consigo acreditar que ela
não tenha nada a ver com o Antero. Eu tinha certeza!
— Mas parece que não tem mesmo! Ainda bem que o
macumbeiro era honesto e te alertou sobre tudo que poderia acontecer
se você fizesse algo contra ela sem ter a certeza de que era realmente a
culpada. Se tivesse ido a alguém desonesto, que estivesse
interessado só no dinheiro, ele poderia tirar tudo que você
tem. E você estaria, agora, com um problema sério nas mãos.
Por tudo o que ele nos disse, sério... sério mesmo...
— Tem razão, mas ainda não acredito que ela não é a culpada do meu
sofrimento. Preciso ter certeza!
— Como vai descobrir isso? Perguntando para ela ou voltando
à sua casa?
— Espere! É isso mesmo! Vamos voltar à sua casa!
— Agora?!
— Não, amanhã cedo. Vamos mentir que estamos pretendendo
montar uma escolinha para crianças e que por isso estamos
fazendo uma pesquisa para saber do interesse dos moradores.
Bateremos em algumas portas e depois na casa dela. Assim, poderemos
obter todas as informações que queremos! É isso mesmo que
vamos fazer!
— Nós?! Fernanda, espere aí! Estou tendo a maior paciência do
mundo e acompanhando você em toda essa procura. Mas,
agora, você está passando dos limites! Isso que está querendo
fazer é invasão de privacidade! Não sei se sabe, mas é crime!
Sou uma advogada respeitada! Não posso fazer uma coisa
como essa! Tenho uma vida toda de trabalho e um nome para
zelar! Desculpe, mas nisso não vou te acompanhar!
— Não sei se é crime, mas preciso saber a verdade! Não existirá
perigo algum! Daremos um nome falso! Ninguém vai
desconfiar! Preciso da sua ajuda, não poderei fazer sozinha e
não tenho mais ninguém em que possa confiar! Me ajude!
Prometo que essa vai ser a última coisa que vou te pedir,
Marilda...
Disse essas últimas palavras chorando. Estava realmente
desesperada, precisando de uma resposta. Marilda, novamente
procurando entender a situação da amiga, disse:
— Sei que é uma loucura, que se formos pegas estarei em maus
lençóis, mas está bem. Vou te ajudar. Mas, por favor, não me
venha mais com idéias loucas!
— Obrigada! Sabia que você entenderia! Não se preocupe.
Ninguém vai desconfiar, sabe que preciso descobrir a verdade...
— Está bem, espero não estar fazendo uma loucura.
Chegaram na rua onde Fernanda morava. Marilda não quis
entrar ; além de ter muito para fazer, queria ir para casa e ficar
sozinha para poder pensar em tudo que estava acontecendo.
Fernanda deu um beijo no rosto dela e desceu. Marilda
acenou, deu partida no carro e foi embora.
Estacionou o carro na garagem e entrou em casa.Ao passar pela
copa, viu a mesa colocada para o jantar. Sabia que a comida
deveria estar sobre o fogão e que precisaria somente aquecer.
Foi para o seu quarto e resolveu tomar um banho antes do jantar. Estava
cansada e preocupada com Fernanda e suas atitudes. Sabia que
o que ela pretendia fazer era algo perigoso. Mas era sua amiga,
precisava ajudar. Tomou banho, jantou e foi se deitar. Tentou assistir
televisão, mas não conseguiu; o que queria mesmo era dormir.
Adormeceu e não passou muito bem naquela noite. Sonhou
muito e acordou várias vezes.
Acordou com o telefone tocando. Olhou para o relógio, não
eram nem oito horas, atendeu amuada.
— Alô!
— Alô, bom dia! Dormiu bem?
— Bom dia, Fernanda, não dormi muito bem. Não acha que é
ainda muito cedo? Eu pretendia dormir mais um pouco...
— Desculpe, mas eu também não consegui dormir bem.
Precisamos ir cedo à casa dela, logo depois que ela sair para o trabalho.
Antes do almoço estaremos de volta e poderá descansar.
Prometo que esta vai ser a última coisa que vou te pedir.
— Está bem. Vou tomar um banho e o café, irei em seguida.
— Estou te esperando!
Marilda colocou o telefone no gancho. Abraçou o travesseiro e
tentou dormir novamente, mas não conseguiu. Sabia que, assim
que despertava, precisava levantar. Já fazia parte da sua
natureza, não conseguia ficar na cama. Levantou, vestiu-se e
foi para a copa. Como Renata ainda não havia chegado, ela
mesma preparou seu café, tomou e saiu.
Assim que Marilda chegou na casa de Fernanda e estacionou o
carro, percebeu que ela estava olhando pela janela e que saiu
imediatamente. Trazia na mão uma prancheta com um papel
em branco.Fernanda estava bem vestida, porém discreta.
Parecia mesmo uma executiva. Talvez até uma empresária.
Diferente daquela Fernanda que Marilda havia encontrado
nos últimos dias.
— Ainda bem que chegou, Marilda. Estou ansiosa para
descobrir tudo. Está pronta?
— Pronta não estou, pois sei que estamos fazendo uma
bobagem. Mas, tudo bem, vamos.
Chegaram na rua em que Luciana morava, estacionaram na
esquina e desceram. A rua estava deserta, tocaram a
campainha da casa vizinha à de Luciana. Uma senhora
apareceu na janela.
— Bom dia — disse Fernanda, sorrindo —, estamos fazendo
uma pesquisa, a senhora poderia nos atender?
A senhora, vendo que eram duas senhoras distintas e bem
vestidas, sorriu e fez um sinal com a mão, dizendo que
esperassem. Enquanto esperavam, olharam por cima do muro
que separava as duas casas e viram uma senhora que brincava
com o menino, que ainda permanecia na cadeira de rodas. A senhora
da casa que haviam chamado se aproximou:
— Bom dia, em que posso ajudá-las, senhoras?
— Bom dia. Pretendemos montar uma escolinha para crianças,
por isso estamos fazendo uma pesquisa para saber quantas crianças
moram no bairro — disse Fernanda.
— Não sei, pois moro há pouco tempo aqui e não tenho mais
crianças; as minhas já estão todas crescidas.
— Está bem, obrigada pela atenção.
— Não tem de quê. Espero que venham para cá.
— Também esperamos. Obrigada mais uma vez. Elas foram
para a casa vizinha, onde estava a senhora.
— Bom dia — disse Fernanda, sorrindo.
— Bom dia, se as senhoras vieram para falar sobre religião,
preciso dizer que sou espírita. Tenho minha opinião formada
e não gosto de discutir sobre nada, muito menos sobre religião.
— Não se trata disso. Não vamos falar sobre religião.
Pretendemos montar uma escolinha para crianças pequenas
e, por isso, estamos fazendo uma pesquisa. Precisamos saber
quantas crianças tem no bairro, se há interesse dos pais e suas
condições financeiras. Assim saberemos quanto poderemos
cobrar. Estou vendo que a senhora tem um lindo menino!
— Ele é lindo, sim, mas não é meu filho, é meu neto.
— Desculpe senhora, mas já é quase meio-dia, estamos na rua
desde de manhã, poderia deixar que usássemos o seu banheiro?
A senhora olhou-as de cima a baixo, sorriu dizendo:
— Posso, sim, já ia entrar. Está na hora de eu dar o almoço
para o Bruno. Um momento, que vou buscar a chave do
portão.
Ela voltou para dentro da casa. Marilda olhou para Fernanda
não acreditando que ela estivesse fazendo aquilo. Parecia que
tudo que dizia era verdade. Tanto que até ela mesma, Marilda,
estava acreditando. Fernanda piscou um olho, num sinal de
vitória. Marilda balançou a cabeça e sorriu.
A senhora voltou logo em seguida trazendo nas mãos um molho de
chaves, escolheu uma. Abriu o portão e permitiu que elas
entrassem. Depois, empurrou a cadeira de rodas.
— O banheiro fica ali naquela porta do corredor — disse assim
que entraram na sala —, pode usar à vontade.
— Marilda, vá você primeiro, está mais apertada que eu!
Enquanto isso vou fazendo a pesquisa.
— Está bem. Mas não podemos nos demorar muito. Acho que
já pesquisamos o suficiente.
Fernanda apenas sorriu. Enquanto Marilda entrava no
banheiro, ela perguntou.
— Ele está na cadeira de rodas, qual é a idade dele?
— Ele vai fazer quatro anos. Nasceu com um defeito no pé
direito, já fez várias operações e ainda vai precisar de muitas,
mas, se Deus quiser, ele ainda vai ficar bom e correndo por aí!
— Sinto muito. Ele é muito bonito, com certeza andará sim! A
mãe dele está? O pai trabalha no quê?
— A minha filha foi trabalhar em uma empresa, onde
conheceu o pai dele.Começaram a namorar. Eu e o meu
marido não gostavamos dele, porque sabíamos que ele não gostava de
trabalhar, mais minha filha gostava dele, engravidou, se casaram.
Logo depois que o menino nasceu, o meu genro viu que teria
muito trabalho para cuidar do Bruno, então ele desapareceu e nós
nunca mais soubemos dele. Tenho mais um filho, que trabalha
em um hospital. Ele é enfermeiro e muito querido pelo médico que
é ortopedista e dono do hospital. Assim que o Bruno nasceu, o
meu filho conversou com ele. Depois minha filha levou o
Bruno para que fosse consultado. O médico disse que cuidaria
de todo o tratamento e que não cobraria nada. Foi a nossa sorte,
pois, se não fosse esse médico, não teríamos como pagar o
tratamento.
— A sua filha não se casou novamente?
— Não, ela se dedica totalmente ao filho. Ficou muito
tempo sem trabalho. Nós frequentamos uma casa espírita,
pedimos muito e, graças a Deus, ela encontrou um trabalho
que, além de pagar muito bem, também tem um bom
ambiente. Ela está muito feliz e nós também. Há coisa de seis
meses, ela conheceu, lá na casa espírita, um rapaz. Eles estão
namorando e parece que se gostam e nós gostamos dele, pois é
trabalhador e estudioso. Parece gostar muito dela e do Bruno,
também. Queira Deus que dê certo. Nossa! Como fui contar
tudo isso para a senhora? Talvez seja porque me pareceu ser
uma pessoa confiável.
— Não se preocupe com isso.Sempre acontece, as pessoas
confiam em mim.Fico feliz por ver que tudo está caminhando
bem e, com certeza, esse lindo menino ficará bom.
Marilda, ao sair do banheiro, ouviu parte da conversa.
— Fernanda — Marilda disse constrangida — você não vai ao
banheiro? Está tarde, precisamos ir. A senhora tem que dar o
almoço para o Bruno.
— Vou, sim, acho que já terminamos a pesquiísa. So falta uma
pergunta. A senhora gostaria que aqui no bairro tivesse uma
escolinha para crianças pequenas, assim como o Bruno?
— Para o Bruno não vai adiantar. Também, este bairro é velho,
todos os vizinhos têm mais ou menos a minha idade. As
crianças que nasceram aqui já estão adultas. Tem uma ou outra
que os avós cuidam, mas não são muitos.
— Pelas entrevistas que fizemos, já percebemos isso. Acho que
vamos ter que escolher outro bairro, mas de qualquer maneira
foi bom ter conhecido a senhora. Espero, de coração, que tudo
caminhe bem e que a sua filha, desta vez, tenha sorte com esse
rapaz — olhou para Marilda e disse — Depois que eu voltar do
banheiro, vamos embora?
— Vamos, sim, Fernanda, estou cansada. Assim que Fernanda
voltou do banheiro, disse:
— Até logo, senhora. Obrigada por tudo.
— Não tem de quê. Fiquei feliz em receber as duas aqui na
minha casa. Deus as acompanhe.
Fernanda sorriu. A senhora acompanhou-as até o portão.
Entraram no carro.
— Marilda, eu deveria estar feliz por ela não ser a culpada, mas
não estou...
— Por que não?
— Se não é ela, quem é?
— Não sei. Mas viu como você poderia, sem querer, ter
julgado e prejudicado uma pessoa simplesmente por um mal
entendido?A Luciana, embora bonita, tem uma história de
desenganos e sofrimentos. É uma boa moça, que trabalha e
vive para o filho doente. Pensar que você quase mandou que
aquele homem fizesse um trabalho de macumba contra ela.
— Tem razão. Como o julgamento é perigoso. Bem, não foi por
causa dela que Antero me abandonou. Me penitencio por isso,
mas e agora? O que vamos fazer para descobrir quem é a outra?
O que posso fazer é continuar vigiando o Antero, a qualquer
hora ele terá que se encontrar com a outra, e aí eu saberei.
— Fernanda! — disse Marilda, com a voz firme e alta. — Você
tem que parar com isso! Já está se tornando uma doença! Do
que vai adiantar descobrir quem é a outra? Vai fazer o quê?
Matá-la ou voltar naquele homem e pedir que ele faça um
"trabalho"? Antero foi embora e deixou bem claro que não
voltará mais! Você não tem o que fazer contra isso! Repense
sua vida! Veja o que fez dela. Enquanto viveu com Antero, não
estudou, não trabalhou e não se realizou como pessoa! Agora,
tem a chance de recomeçar! De ser alguém!
— Como recomeçar? Estou quase com cinquenta anos! Como
encontrar um trabalho e ser alguém? Não sou ninguém! Sou
um nada! Minha vida sempre foi ao lado dele, por isso não sei
viver sem ele, sozinha! Preciso continuar procurando! Preciso
saber por quem ele me trocou! Quando descobrir, não sei o que
farei, mas preciso saber! Será que você não consegue
entender?
Fernanda, enquanto dizia isso, chorava desesperada. Estava sem
rumo, sem saber o que fazer com a vida.
— Estou procurando te entender, sim! Se assim não fosse, eu
não estaria aqui! Mas estou vendo você se consumir! Você está
aí, se desvalorizando, sofrendo por alguém que não te merece!
Não é tão velha assim! Tem seu valor! Com certeza encontrará
algo para fazer! Algo que te preencha e, quem sabe, até um outro
alguém. Muitas pessoas começaram suas vidas depois dos
cinquenta e até mais! O que não pode é parar com a sua vida!
Tem que reagir, está com a sua auto-estima muito baixa! O que
é isso? Foi sempre tão decidida! Precisa reagir!
— Não sei como reagir. Não sei o que fazer...
— Vou viajar, só te peço que espere a minha volta, antes disso
não faça nada. Quando voltar, encontraremos uma solução,
quem sabe poderá vir trabalhar no meu escritório.
— Te agradeço, mas não sei o que fazer em um escritório.
— Encontraremos algo que goste. Preciso de alguém para
organizar os meus papéis, ir ao banco e ao fórum.
— É trabalho para um jovem, não para uma velha!
— O que está dizendo não é verdade! Tem algumas coisas que
eu só entregaria nas mãos de alguém em que eu confíasse.
Você é essa pessoa. Mas está bem. Estou indo viajar, por
enquanto não tenho o que fazer. Só quero que prometa que vai
esperar minha volta e que não fará nada antes disso. Promete?
—Prometo disseFernanda,sem muita convicção.
Marilda sorriu, levou Fernanda para casa e depois foi para a sua.
Outro dia de aventura havia se passado.
Tudo está sempre certo
Finalmente, o dia da viagem chegou. Marilda embarcaria só à
noite, por isso passou o dia com Fernanda fazendo as últimas
compras e indo ao cabeleireiro. Queria estar bonita. Afinal, ela ia
realizar o sonho da sua vida, conhecer a Europa e
principalmente a Itália.
Fernanda a acompanhou até o aeroporto, dizendo que atenderia o seu
conselho, não seguiria Antero e esperaria que ela voltasse.
Fernanda sabia que só assim Marilda viajaria tranquila. Ela
estava mentindo, Marilda sabia, mas fingia acreditar.
Assim que Marilda embarcou, Fernanda foi para a frente do
prédio onde Antero morava. Ficou lá por muito tempo, não conseguia
ver se o carro dele estava na garagem. Foi para casa e nos dias
seguintes o seguiu por toda parte. Durante a tarde e, em
algumas manhãs, ficava em frente ao escritório. Sempre que ele
saía, Fernanda o seguia, mas ele seguia sempre a mesma rotina: saía ora
com o Flávio, ora sozinho. Segundo ela, tudo para despistar. Ela
tinha certeza de que Antero sabia que estava sendo seguido por ela.
Luciana saía sempre sozinha e, apressada, ia para o ponto do ônibus.
Outras vezes, Fernanda ia pela manhã: parava o carro em frente
ao apartamento e esperava ele sair, para ver se saía
acompanhado. Mas era em vão, ele sempre saía sozinho, pois
Flávio saía mais cedo. Ela voltava para casa.
Marilda fingiu acreditar quando ela disse que não o vigiaria.
Estava muito feliz com a sua viagem e não queria se preocupar
com outra coisa que não fosse ela e realizar o seu sonho.
Finalmente, o avião aterrizou em Roma.Marilda desceu
emocionada por estar naquela terra que, um dia, fora de seus
antepassados.A confusão do aeroporto era imensa. O guia da
excursão mostrou a todos as esteiras onde deveriam apanhar
suas malas. Marilda ficou olhando, esperando as suas malas, mas
elas não chegaram. As pessoas que a acompanhavam estavam
aflitas, querendo ir embora, pois queriam aproveitar todos os
momentos, mas não poderiam sair do aeroporto enquanto suas malas
não fossem encontradas. Após notar que as malas haviam se
extraviado, o guia da excursão, acompanhado por Marilda, foi
até o setor de bagagem e lá ela teve que descrever a cor,
tamanho e o que tinha dentro das malas. Marilda descreveu da
maneira que lembrava, pois havia colocado muita coisa e não se
lembrava de tudo. A pessoa que os estava atendendo tomou
nota de tudo e disse que a companhia mandaria entregar as
malas no hotel, e assim todos poderiam ir embora. Marilda
estava nervosa, pois queria chegar ao hotel, tomar um banho e
trocar de roupas, mas não tinha nenhuma. De acordo com o
empregado da companhia, levaria mais ou menos vinte e quatro horas
para que eles entregassem as malas e que ela seria ressarcida dos
prejuízos. Assim que entrou no quarto, ficou deslumbrada com
a beleza. Marilda preferiu pagar um pouco mais e ficar sozinha.
Não queria dormir com outra pessoa que não conhecia. Parou
diante de um espelho e se olhou:
"A viagem foi longa e não estou gostando deste começo. Será
que só terei contrariedades? Esta roupa está toda amassada,
preciso de um banho, mas não tenho roupas para trocar.
Preciso comprar algumas. Se eu tivesse uma companheira de
quarto, talvez ela me ajudasse nesta hora. Não, foi melhor
assim, como dormir com uma estranha?"
Saiu do quarto e foi em busca do guia da excursão, ele teria que
ajudá-la. Afinal, o pacote de viagem que comprou foi um dos
mais caros. Ela não conhecia nada e, ainda, tinha a barreira do
idioma. Se fosse no Brasil, não haveria problema, sairia e
compraria roupas em qualquer lugar, mas ali? Aonde poderia ir?
— A senhora tem razão por estar nervosa — disse o guia
preocupado — mas deve convir que não foi culpa nossa. Essas
coisas acontecem todos os dias.
— Mas teria que ser logo comigo? Preciso de roupas, pelo
menos algumas, para uns dois dias, ou até que a companhia traga as
minhas malas. Não sei aonde ir para comprar!
— Agora, não posso sair daqui. Estou instalando as outras
pessoas, mas, se quiser, basta seguir a calçada do hotel por dois
quarteirões. Ali tem um shopping muito grande, tenho certeza
que encontrará algo que lhe agrade. A senhora trouxe lira?
— Não, somente dólares, pensei em trocar o dinheiro em cada
país que fôssemos. Achei que seria melhor, pelo visto não é.
Estou sem saber o que fazer...
— Não se preocupe, aqui no hotel eles trocam. Fale com aquela
mocinha que está ali naquele balcão.
Contrariada, mas não tendo opção, ela se dirigiu ao balcão.
Como aquele hotel era visitado por muitos turistas brasileiros, a
recepcionista falava português. Marilda trocou cem dólares e
saiu. Caminhou pela calçada, olhou algumas vitrines, mas
estava nervosa e preocupada.
"Esperei tanto por esta viagem para ter uma contrariedade logo
no primeiro dia! Que coisa desagradável!
Chegou em frente ao shopping, que parecia ser grande, e
entrou. Caminhou pelos corredores, foi olhando as vitrines,
mas não encontrou nenhuma roupa que lhe chamasse a
atenção. As roupas eram estranhas, diferentes daquelas que
estava acostumada a usar, mas sabia que não teria opção. Teria
que procurar mais um pouco e depois compraria qualquer
uma. O que precisava realmente era de um banho e trocar
aquela roupa. Ao passar por uma vitrine,parou.
Havia algumas calças que pareciam ter um bom corte, entrou.
Uma vendedora se aproximou sorridente, falou em italiano:
— Posso lhe ajudar?
Marilda não entendeu, sorriu e mostrou algumas calças, que a
vendedora apanhou e lhe mostrou o provador. Marilda entrou,
fechou a cortina e vestiu uma atrás da outra. Escolheu três
delas, saiu e entregou para a vendedora. Em seguida, caminhou
pela loja procurando algumas blusas. Encontrou, tornou a
mostrar para a vendedora, que as apanhou e a encaminhou
novamente ao provador. Assim como aconteceu com as calças,
ela escolheu três que combinavam. Estava no começo do
inverno, por isso não comprou nada muito quente. Saiu e
entregou-as para a vendedora, que fez sinal para que ela a
acompanhasse até o caixa. Ali, as coisas se complicaram.A
moça lhe deu um valor, mas ela não conhecia o dinheiro,
estava toda atrapalhada. Foi quando ouviu uma voz de homem:
—Posso lhe ajudar? Estou vendo que está encontrando
dificuldades com o dinheiro.
Ela se voltou e disse feliz:
— O senhor é brasileiro, que bom! Estou, sim, um pouco
atrapalhada.
— Não tem importância, me dê o dinheiro.
Ela lhe deu o dinheiro, ele falou com a caixa, depois se voltou
para Marilda, dizendo:
— Este dinheiro não vai dar, precisa de mais.
— Não tenho, só troquei esse no hotel. Acabei de chegar do
Brasil e as minhas malas foram extraviadas.
— Não se preocupe, pagarei o que está faltando. Depois a
acompanharei até o hotel e poderá me devolver.
— Estou constrangida com esta situação, mas se fizer isso
ficarei muito grata.
Ele apenas sorriu, pagou a conta dela e a dele, pegaram os
pacotes e saíram.
Caminhavam pelo corredor, quando ela lembrou de algo e ficou
prestando mais atenção nas vitrines. Parou diante de uma; nela
estavam em exposição roupas íntimas.
— As minhas malas extraviaram — disse. — Sinto muito, mas
preciso entrar nesta loja. Desculpe, mas é necessário...
— Quer que te ajude a escolher? — ele disse sorrindo.
— Não! Pode deixar que escolho sozinha, só preciso que me
empreste mais algum dinheiro. Mas não se preocupe, assim que
chegarmos no hotel devolverei tudo.
— Você é quem não precisa se preocupar. Pode escolher a
roupa que quiser, ficarei esperando junto ao caixa.
Entraram, ela rapidamente escolheu as roupas íntimas. Ele
pagou e saíram. Enquanto caminhavam, ele disse:
— Nem nos apresentamos. Meu nome é Júlio, sou cardiologista
e moro em São Paulo ,estive participando de um congresso que
terminou ontem. Por sorte, hoje, resolvi passar aqui e comprar
uma gravata que havia visto e gostado. Vou embarcar hoje à
noite para o Brasil.
— Muito prazer, meu nome é Marilda, sou advogada e também moro
em São Paulo. Estou fazendo uma excursão para conhecer o
Velho Mundo, mas parece que não comecei bem.
— Claro que começou! Nos conhecemos! Estou muito feliz por
isso. Acredito que estejamos iniciando uma amizade!
Marilda ficou um pouco constrangida pela maneira como ele
falou. Ele percebeu seu constrangimento e tentou consertar:
—Desculpe, mas você não me parece estranha e fiquei feliz
quando a vi. Será que não nos conhecemos de algum lugar?
Ela percebeu que quem estava constrangido, agora, era ele.
— É pouco provável; embora meu pai tenha sido médico,
nunca frequentei os mesmos lugares que os médicos
frequentam e, graças a Deus, precisei muito pouco deles.
— Bem, eu também não frequento muito os lugares dos
advogados e, também, graças a Deus, não precisei muito deles.
Os dois riram e continuaram andando.
"Também parece que já o conheço, mas não consigo lembrar
de onde poderia ter sido" pensou, intrigada. "Ele é muito bonito! Deve
ter mais ou menos trinta e oito ou trinta e nove anos. Seus
cabelos estão levemente grisalhos, o que lhe dá um charme
especial, seus olhos e sorrisos são lindos! Nunca homem algum me
chamou a atenção como está acontecendo agora! De onde será
que o conheço?"
Embora pensasse tudo isso, tentou disfarçar o seu entusiasmo.
Chegaram ao hotel, que por essas coisas do destino era o
mesmo em que ele estava hospedado. Ela foi em direção à
recepcionista, trocou mais dinheiro e deu a Júlio.
— Não sei como lhe agradecer. Sem a sua ajuda, eu estaria até
agora tentando me explicar à caixa da loja e provavelmente não
teria comprado as minhas roupas.
— O que é isso? Eu estava lá e foi um prazer. Mas agora está me
devendo um favor! Que tal almoçarmos juntos para pagar? É o
mínimo que posso cobrar..
— Bem... eu não sei... hoje pela manhã fomos liberados, o guia
não nos levará a lugar algum. Ele disse que é para que possamos nos
instalar, mas... está bem, almoçaremos juntos.
Ele sorriu, olhou para o relógio e disse:
— São dez e trinta, creio que logo estaremos com fome; que tal
passearmos por aí até a hora do almoço? Conheço bem a cidade
e poderei te levar a algum lugar agradável.
Ela pensou um pouco, não conhecia aquele homem, mas ele
lhe pareceu sincero e com certeza era agradável.
— Está bem, só que terá que esperar um pouco. Preciso de um
banho e trocar estas roupas, estou horrível!
— Para mim, está divina! Mas, se preferir, eu espero.
Ela sorriu com o elogio. Júlio a acompanhou até o elevador.
Enquanto o elevador subia, ela pensava:
"O que está acontecendo? Como posso sair com um homem
que acabo de conhecer, que nem sei direito quem é? Eu, que sempre
fui tão comedida, que sempre escolhi as minhas companhias!
Bem, já que estou em um país estranho e com pessoas
estranhas, vou arriscar, vamos ver até onde isso vai."
Tomou seu banho, trocou sua roupa, colocou uma calça cinza-
claro e uma blusa azul-claro e se olhou no espelho:
"Apesar de ter quase cinquenta anos, não estou tão mal assim. Meu
corpo é perfeito, embora tenha algumas gordurinhas a mais.
Estou muito bem e o meu rosto não está muito enrugado.
Que é isso, dona Marilda, está mesmo impressionada com ele!
Não vá se envolver! Está muito bem sozinha! Olhe o que
aconteceu com a Fernanda e com tantas outras que conhece! Não
está querendo passar pela mesma situação".
Sorriu e continuou pensando.
"Não vou me envolver, vou apenas aproveitar a minha viagem,
procurar tirar dela o melhor proveito!"
Passou uma escova nos cabelos, fez uma suave maquiagem e
desceu. Assim que a porta do elevador se abriu, ele, que estava
sentado em uma poltrona, foi ao seu encontro e disse
admirado:
— Você está muito bonita! Essa roupa lhe caiu muito bem!
— Também gostei, embora sejam diferentes das que costumo usar.
Sempre me visto com roupas de cores escuras. Nem lembro da
última vez em que vesti uma roupa clara.
— Pois deveria usá-las mais, está muito bonita!
— Bondade sua, uma mulher com quase cinquenta anos
dificilmente pode ficar bonita...
— Quem disse isso? Eu nem imaginava que já tivesse essa
idade, está muito bem.
Marilda sorriu. Ele era realmente um galanteador, estava
fazendo um jogo e ela resolveu jogar. Júlio quis pegar o carro
que havia alugado e estava no estacionamento do shopping,
mas Marilda preferiu caminhar. Caminharam um pouco, estava
frio. Resolveram entrar em um restaurante. Marilda se admirou
com a sobriedade e luxo do lugar. Comeram, tomaram vinho, ela não
sabia dizer o porquê, mas estava feliz. Conversaram sobre muitas
coisas, entre elas o Brasil, que era muito amado pelos dois. Ela
tentou falar sobre o trabalho dele, mas ele respondeu:
— Não quero falar sobre doenças ou doentes. Estes momentos
estão sendo muito importantes. Vamos falar de você, tem
marido, filhos?
— Não, não tenho marido ou filhos, nunca me casei.
— Por quê? É uma mulher linda!
— Não sei, talvez porque não tenha encontrado alguém em
quem pudesse confiar. Mas e você, é casado, tem filhos?
— Sou viúvo, minha esposa morreu faz cinco anos e tenho
dois filhos. Meu filho, Rafael, está com quinze anos. Minha
filha, Tatiana, tinha oito anos quando a mãe morreu. Moramos
em uma casa, perto do hospital, onde trabalho.
— Sinto muito por sua esposa, ela deve ter morrido jovem.
— Morreu, sim. O que mais me irrita quando penso sobre isso
é que, como médico, não consegui salvá-la. Fiz todo o possível,
mas foi em vão.Ela se foi e me deixou sozinho, eu a amava
muito.
— Não se casou novamente?
— Não, não quero passar por tudo aquilo outra vez, não
suportaria ver alguém de quem gosto sofrer da maneira
como ela sofreu e depois morrer. Preferi me dedicar ao
trabalho. Vivo participando de congressos, quero saber sempre
mais para poder usar com os meus pacientes. Mas... vamos
mudar de assunto? Estamos aqui, em um lugar distante, e não
quero pensar em coisas tristes. Vamos aproveitar este nosso
encontro. Bendita foi a hora em que as suas malas foram
extraviadas, pois, se assim não fosse, não teríamos nos
encontrado.
— Tem razão, e eu fiquei tão nervosa!
— Aprendi com a vida que é sempre assim: não temos
paciência para nada. Sempre que nos acontece algo ruim, nos
revoltamos. Mas, na maioria das vezes, é sempre para o
melhor.
— Preciso concordar com você, mas já terminamos de comer, o que
faremos agora?
— Podemos pegar o carro e irmos até o Coliseu.
— Gostaria muito, pois sempre tive vontade de conhecer o
Coliseu. Mas esse passeio consta do programa da excursão...
— Iremos agora e depois poderá ir com a excursão.
Voltaram ao shopping , pegaram o carro e foram até o Coliseu,
onde Marilda se emocionou ao pensar que ali, naquele lugar,
muitos cristãos foram devorados pelos leões. Já vira aquele
cenário muitas vezes, em filmes.Mas estar ali lhe dava uma emoção
jamais sentida. Júlio, que já estivera ali muitas vezes, lhe mostrava
tudo e falava sem parar. Ela ia se encantando com tudo e
principalmente com ele. Assim que viram tudo, resolveram
voltar para o hotel. Já eram quase seis horas da tarde e ele
precisava ir para o aeroporto. Pegaram o carro e retornaram.
Em dado momento ele, parecendo feliz, disse:
— Estou pensando. Não preciso voltar hoje, quinta-feira. Posso
ficar até domingo e embarcar à noite. Chegarei no Brasil na
segunda pela manhã. Não tenho consultas agendadas antes
disso. Sempre que vou a algum congresso, peço à minha
secretária que não marque consultas até eu lhe telefonar,
avisando que estou voltando. Só preciso ir à companhia aérea e
trocar o meu bilhete. Você me acompanha?
— Claro que sim, mas não estou entendendo.
— Eu estava pronto para ir embora, mas agora que te conheci
e vi a sua emoção ao visitar o Coliseu, quero ficar um pouco
mais de tempo com você. Já estive aqui na Itália várias vezes.
Conheço tudo e posso ser o seu cicerone. Podemos ir de trem
até Veneza. Fica distante daqui, mais ou menos cinco horas, e
antes poderemos passar por Florença. Garanto que vai adorar,
são cidades lindas como jamais viu. Ao pisar em cada uma
delas, parece que estamos nos tempos da Idade Média.
Existem castelos medievais, catedrais riquíssimas e monumentos
famosos. Tenho certeza de que vai adorar. Você comunica o seu
guia que só voltará no domingo, para que ele não se preocupe,
e assim poderemos viajar tranquilos. Dormiremos em hotéis.
—Espere! Você está indo rápido demais! Não posso
simplesmente abandonar a excursão e seguir um homem que
mal conheço, dormir com ele em um hotel e segui-lo em uma
maratona como essa, principalmente em um país estranho!
Ela estava atônita e assustada. Ele percebeu.
—Desculpe, mas sou assim. Você tem razão, mas não sei como
explicar. Logo que te vi, fiquei feliz. Senti que já te conhecia.
Fazia muito tempo que não me sentia assim. Falei depressa.
Talvez, não lenha me explicado bem. Sei que posso te mostrar
muitas das belezas deste país. Quando disse em dormirmos em
um hotel, não quis dizer dormirmos juntos. Sei que, para isso, é cedo
demais, apenas
quero aproveitar a sua companhia e voltar a lugares que já
visitei e gostei muito. Por parecer te conhecer há muito tempo,
falei como se isso fosse verdade. Pode ficar tranquila. Não vou
te raptar ou assassinar, só quero a sua companhia, nada além
disso. Olhe aqui os meus documentos — tirou do bolso uma
carteira de documentos — sou mesmo médico, moro em São
Paulo, trabalho em um hospital o tenho o meu consultório.
Marilda estava assustada, não sabia o que dizer. Nunca em sua
vida havia estado em uma situação como aquela. Fazia muito
tempo que não tinha um relacionamento e, agora, aquilo estava
acontecendo. Achava Júlio bonito, interessante e uma
companhia agradável, mas daí a sair com ele para uma aventura
daquela? Ficou calada. Ele, sorrindo e constrangido, disse:
— Está bem, você tem razão. Desculpe. Vamos voltar para o
hotel, jantaremos e embarco hoje para o Brasil. Quando você
voltar, me telefone, nos encontraremos e aí, quem sabe, você poderá
confiar em mim.
— Acho que será o melhor a fazer. Preciso pensar, não sou
mais uma criança para me deixar levar pelo entusiasmo. Vamos
deixar para quando eu voltar para o Brasil.
— Desculpe, mais uma vez tem razão; mas é que passei a minha
vida toda estudando, nunca tive tempo para fazer o que gostava.
Quando me formei médico, que foi o meu sonho desde
criança, fui trabalhar como interno em um hospital. Meu pai
morreu de um enfarte. Fiquei triste, mas, como ele já era idoso, a sua
morte, embora tenha me abalado, fazia parte da vida. Aí sim,
resolvi estudar mais e me tornar um cardiologista, pois pensava
que, se eu fosse cardiologista, poderia ter evitado a morte dele.
Continuei estudando, nunca fiquei muito ao lado da minha
esposa e dos meus filhos.Passava muito pouco tempo em casa
e, quando estava lá, estava tambem muito cansado para sair, me
divertir e até mesmo conversar. Ouando a minha esposa
morreu, percebi como havia sido inútil tudo que eu havia
aprendido, pois não consegui ajudá-la. Do que adiantou eu ter
estudado tanto, se, na hora em que mais precisei, de nada
serviu? Meu pai era idoso, mas ela não! Era jovem, bonita e
tinha dois filhos! Fiquei revoltado com a vida e com tudo!
Abandonei o hospital, consultório e clientes, me isolei do
mundo, pois percebi que nada na vida importava, já que, a qualquer
momento, poderia morrer e ficaria tudo aqui. Eu amava muito a
minha esposa e só queria ir para junto dela, nada mais. Entreguei
meus filhos para a minha mãe, que, depois da morte do meu pai,
veio morar conosco. Peguei uma mochila e saí pelo mundo.
Fiquei mais de um ano andando sem destino. Eu tinha dinheiro
e podia me dar ao luxo de fazer isso. Mas, para onde eu fosse, não
adiantava, uma tristeza imensa me perseguia. Sozinho, viajei muito e
tive tempo para pensar em toda a minha vida até que, um dia,
resolvi voltar para a minha casa. Tentei retomar o meu
trabalho, mas não era fácil, pois aquela tristeza, aquele
sentimento de impotência, me acompanhava. Assim que
cheguei, ao ver as crianças, notei que elas estavam bem, pareciam as
mesmas de antes. Eu não entendia. A mãe delas havia morrido,
como puderam continuar a vida daquela maneira, como se
nada tivesse acontecido? Elas falavam da mãe como se ela não
tivesse morrido, como se ela ainda estivesse ali. Eu não
entendia aquele comportamento.
— Mamãe — perguntei intrigado — as crianças não gostavam
da mãe?
— Claro que sim, mas por que está me perguntando isso?
— Elas parecem que não estão sentindo a morte dela. Falam
dela como se a qualquer momento pudessem vê-la. Não estou
entendendo. Poderia me explicar? " Minha mãe começou a rir.
— Mas é isso mesmo o que elas pensam.
— Como assim?
— Quando a Isaura morreu e você foi embora, esta casa se
transformou. Tudo pareceu perder o sentido. Cada um de nós tentava
retomar a vida, mas a tristeza era muito grande. Todas as
noites, do meu quarto, ouvia as crianças chorando. Não sabia o
que fazer para ajudá-las, pois eu também estava muito triste.
Isso durou mais de dois meses. Eu rezava muito, pedia ajuda,
mas não adiantava. Não conseguia fazer as crianças serem
felizes como antes, até que um dia, Lia, aquela minha amiga de
muitos anos, veio me visitar. Ela veio em uma tarde. As
crianças já haviam voltado da escola. Fiquei feliz com a sua visita,
conversamos sobre tudo, mas não sobre Isaura. Desde que ela havia
morrido, eu evitava falar dela e as crianças também. Quando
coloquei a mesa para servir o lanche, as crianças sentaram-se ao
nosso lado. Começamos a comer. Lia tentou conversar com as
crianças, mas elas não tinham o que dizer. Lia não se deu por
vencida e disse:
— Isaura está aqui.
Olhamos para ela achando que estava delirando.
— O que você está dizendo? — perguntei intrigada. — Isaura
morreu!
— Sei disso. O corpo dela morreu; terminou, mas o espírito
continua mais vivo do que nunca.
— Ah, esqueci que você é espírita. Desculpe, mas não acredito
nisso.
— Eu sei, Rosa, mas isso não pode impedir que eu acredite e
que a veja, aqui, neste momento.
— Pare com isso! Você está assustando as crianças.
Realmente, as crianças olhavam para ela com os olhos
arregalados; sem mudar o tom de voz, ela disse:
— Crianças, não precisam se assustar. O que está acontecendo
aqui é maravilhoso. A mãe de vocês está aqui, veio visitá-los e
está muito feliz. Ela está pedindo para eu dizer que já não sente
mais dor e que está aprendendo muito. Está pedindo para te
dizer, Tatiana, que não precisa chorar todas as noites, pois ela está
sempre com você e que não pode continuar apertando tanto a
sua boneca quando vai dormir, porque ela pode morrer
sufocada. Para você, Rafael, ela está me pedindo para dizer que
você não precisa se preocupar, vai tirar uma boa nota de
matemática e que fará parte da equipe de natação. Disse para
seguirem a vida, porque tem muita coisa boa para acontecer.
"Nós três nos olhamos, incrédulos com tudo que ela disse. Eu
sabia que Tatiana chorava todas as noites, mas não sabia que
ela, ainda, dormia com a boneca. Pensava que o Rafael ia bem
na escola, que não tinha problemas, mas não sabia que ele
queria entrar para a equipe de natação. Ela, me olhando,
continuou:
— Para você, Rosa, ela tem um recado especial, vou repetir
exatamente o que ela está dizendo:
— Dona Rosa, quero agradecer por todo o carinho que esa
tendo com os meus filhos e com o Júlio. Está preocupada com
ele e com a sua ausência, mas não se preocupe, ele logo estará
aqui. Diga para ele retornar a sua vida e que, em breve,
conhecerá uma mulher com a qual será muito feliz e viverá ao
seu lado pelo resto da vida. Diga que estou bem, que o meu
tempo na Terra terminou, mas o dele continua. Ele tem muito
a aprender e, com o seu conhecimento, ajudar as pessoas.
— E a senhora acreditou nisso? — perguntei intrigado.
— Não tinha por que não acreditar. Lia estava dizendo coisas
que eu não sabia e que muito menos ela poderia saber. Que eu estava
preocupada com você era óbvio, mas com as crianças nem eu mesmo
sabia. De qualquer maneira, Lia se despediu, nos deixou alguns livros
que havia trazido e nos convidou para irmos até a casa espírita
que frequentava. Assim que ela saiu, perguntei para as crianças
se aquilo que ela disse era verdade. Eles confirmaram. Li os
livros e gostei. Tudo aquilo que estava escrito poderia ser verdade.
Comentei com as crianças e perguntei se queriam ir comigo até a
casa espírita. Elas concordaram. Começamos a frequentar duas vezes
por semana. Eles frequentam as reuniões feitas especialmente
para adolescentes. Daquele dia em diante, mudaram a atitude e sabem
hoje que, um dia, não importa quando, voltarão a encontrar a
mãe.
— Sabe, Marilda, fiquei impressionado com tudo que a minha
mãe me contou. Resolvi conhecer mais sobre tudo aquilo.
Comecei a ler. Embora seja médico e acreditando só na
Ciência, muitas vezes não entendi e não aceitei a morte das pessoas
que, apesar da ciência, não consegui salvar. Tinha que ter uma
explicação, talvez eu encontrasse ali. Encontrei naqueles livros algo
que poderia ser verdade e, se fosse, seria maravilhoso. Comecei
frequentar a casa espírita. A tristeza que sentia foi
desaparecendo aos poucos. Hoje, não sofro mais com a
ausência da Isaura, sei que ela está bem e sempre ao nosso lado.
Quando te vi lá no shopping, toda atrapalhada, senti que já te
conhecia. Pode até ter sido de outra encarnação, ou talvez
aquela mulher que Lia disse que eu encontraria. Por isso, todo
esse meu entusiasmo e a vontade de ficar ao seu lado. Foi
isso que aconteceu.
Deu um beijo na testa de Marilda e sorriu. Ela estava
impressionada com o que ele lhe contou. Não sabia o que
dizer, tudo aquilo era muito estranho. Ela nunca havia pensado na
morte daquela maneira. Sofreu muito e ainda sofria, sempre que
se lembrava dos pais ou de algum amigo que havia morrido e
na certeza de nunca mais vê-los. Tudo aquilo que ele contou
acendeu uma chama de esperança em seu coração. Quem sabe,
algum dia, em algum lugar, poderia reencontrar seus entes queridos?
Pensou isso, mas, naquele momento, apenas disse:
— Tudo isso que me contou é muito bonito, não sei o que
fazer. Sou um pouco descrente. Preciso pensar a respeito. Mas
agora podemos voltar para o hotel? Estou com fome.
— Claro que sim, jantaremos e depois irei para o aeroporto.
Assim que você chegar no Brasil, voltaremos a nos ver.
Entraram no carro e foram para o hotel. Na recepção, pegaram
as chaves. O recepcionista, assim que os viu, disse:
— Senhora, a companhia aérea mandou entregar a suas malas, já estão
no seu quarto.
— Que ótimo! Mas já? Estou espantada! Eles disseram que
demoraria vinte e quatro horas! Eu estava preocupada, espero
que esteja tudo em ordem.Ficarei muito triste se faltar algo.
— Eles sempre dizem isso para que as pessoas não fiquem
curiosas, mas normalmente entregam antes. Não deve estar
faltando nada, mas qualquer coisa é só comunicar à companhia.
Entregou as chaves. Júlio e Marilda foram para o elevador.
Enquanto subiam, Júlio disse:
— Estou em um andar acima do seu. Não podemos nos
demorar muito, preciso estar às dez horas no aeroporto.
Quanto tempo acha que vai demorar para ficar pronta?
Ela olhou no relógio, respondeu:
— Em mais ou menos quarenta minutos, está bem?
— Está; é o tempo que também vou demorar para me aprontar e
arrumar as minhas malas. Te vejo no saguão.
O elevador parou no andar em que Marilda deveria descer,ela
acenou e desceu. Entrou no quarto e viu suas malas junto à
cama. Abriu-as e constatou que estavam em ordem. As malas
estavam, mas a cabeça dela, não. Tudo estava acontecendo
muito rápido. Pela manhã, quando chegou a Roma, sua única
preocupação era com as malas, e agora estava ali, pensando:
"Depois de ter encontrado um homem maravilhoso como ele,
que nunca imaginei que existisse, estou aqui, pela primeira vez
em minha vida, sem saber o que fazer."
Começou a tirar algumas roupas de uma das malas, mas não
conseguia parar de pensar:
"Ele me convidou para uma viagem que poderá ser
maravilhosa, mas como aceitar?"
Com um vestido nas mãos, sentou na cama:
"Não, não posso! — continuou pensando. — Eu não o
conheço! Não sei, na realidade, quem é! Mas... pareceu-me tão
sincero quando me contou tudo aquilo sobre a sua vida. Ele
não poderia estar mentindo, não sei o que fazer."
Escolheu um vestido azul-turquesa. Vestiu-se, fez uma
maquiagem leve e se olhou no espelho:
"Estou me sentindo bonita! Essa cor de vestido realçou os meus
olhos."
Desceu. Júlio a esperava no saguão. Assim que a viu se levantou
e foi ao seu encontro. Sorrindo, disse:
— Você está se superando! Sempre que te vejo está mais
bonita! Não sei por que ainda não me acostumei!
— Obrigada, você é mesmo um galanteador!
— Não costumo ser, mas não consigo me conter. Acho que
estou te amando mesmo!
Enquanto se encaminhavam para o restaurante, ela disse:
—Isso não pode ser verdade! Como pode dizer que me ama,
acabamos de nos conhecer!
— Nesta vida, mas e em outras... Não teríamos nos conhecido
e nos amado?
— Não acredito em outras vidas, uma só já é o suficiente!
Assim que entraram no restaurante, uma moça apontou a mesa
em que deveriam sentar. Quando chegaram junto à mesa, Júlio
afastou a cadeira para que ela sentasse.
"Este homem é demais! Ele não existe, estou sonhando!"
Sentaram-se. Ela seguiu a sugestão dele e comeram lasanha,
tomaram um bom vinho e conversaram sobre vários assuntos.
— Agora preciso ir — ele disse assim que terminaram o jantar.
— Logo que chegar ao Brasil, não se esqueça de me telefonar.
Fique com o meu cartão, nele tem o telefone do meu
consultório.
Marilda pegou o cartão, olhou e disse:
— O seu convite para viajarmos ainda está de pé?
— Você vai aceitar? Não acredito! Claro que está, e não pode
imaginar como estou feliz!
—Estive pensando: conhecer Veneza, Florença, sempre foi o
meu sonho, tanto que esses lugares estão incluídos no roteiro
da excursão, e só por causa disso eu a escolhi. Mas sinto que, se
conhecê-los com você, aproveitarei mais. Você parece
conhecer muito sobre essas cidades.
— Conheço mesmo! Vou te levar a lugares que as excursões
normalmente não vão. Garanto que não vai se arrepender.
— Está bem, pensei bem e poderemos ir amanhã. Só tem uma
condição.
— Qual?
— Iremos como amigos e dormiremos em quartos separados.
Não o conheço o suficiente para maiores intimidades.
— Está certo. Mas agora precisamos ir rápido até o aeroporto
trocar o meu bilhete para domingo. Vamos?
Ele disse isso se levantando e dando a volta para afastar a
cadeira em que ela estava sentada. Ela também se levantou.
Estava feliz por ele e, principalmente, por ela mesma, que pela
primeira vez em sua vida estava vivendo uma aventura.
Sorrindo, pensou:
"Não tenho o que perder. Estou com idade bastante para
entender que, apesar de tudo, de estar bem financeiramente e
tranquila com a vida, nunca, na realidade, eu a vivi realmente.
Aquilo de ele dizer que a morte pode chegar a qualquer
momento, embora eu sempre soubesse que era assim, nunca
parei para pensar. Não sei quando vou morrer, mas agora estou
viva! Ele é maravilhoso, por que não aproveitar?"
Saíram de lá e foram para o aeroporto. Júlio teve que pagar pela
troca do bilhete, mas nada lhe interessava; estava feliz, como
há muito tempo não estava. Ele sentia que havia conhecido a
mulher da sua vida. Depois do aeroporto, ele a levou a outro
restaurante, onde havia uma pista de dança. Dançaram,
beberam vinho e conversaram muito.
Marilda estava feliz por tê-lo encontrado. Era quase meia noite
quando chegaram de volta ao hotel. Combinaram que na
manhã seguinte sairiam bem cedo. Cada um, feliz, foi para o
seu quarto.
Ela entrou no seu e, ao passar por um espelho que estava
pendurado na parede, falou em voz alta:
— O que é isso dona Marilda? O que está fazendo?
Enlouqueceu? Tem certeza que é isso mesmo que quer fazer?
Sorrindo, foi em direção à cama e se deitou. Estava um pouco
perturbada com tudo aquilo que estava acontecendo, mas não
podia negar, estava feliz.
"Ele é um homem atraente e inteligente. O que poderá me
acontecer de mal nessa viagem? E se ele for um psicopata? Meu
Deus! Eu não havia pensado nisso!"
Levantou, foi para o banheiro. Precisava pensar e, para isso,
nada melhor que uma banheira cheia e quente. Ligou a torneira
e colocou a banheira para encher. Voltou ao quarto, abriu
novamente uma das malas, tirou uma camisola e colocou sobre
a cama, mas o seu pensamento não parava:
"Não! Ele não é um psicopata, tem um sorriso franco e uns
olhos lindos. Conversa muito bem e é coerente em tudo que
diz. A única coisa que me preocupou um pouco foi àquela
história de vidas passadas, vida após a morte e amor à primeira
vista. Como pode ser isso? Como alguém pode se apaixonar por
outro sem nunca tê-lo visto antes? Mas o que é isso que estou
sentindo? E estranho, nunca senti antes. Por que não consigo
esquecer aquele sorriso, aqueles olhos?
Voltou para o banheiro. A banheira já estava quase cheia,
pegou alguns sais, colocou dentro e, com as mãos, começou a
fazer espuma. Em seguida, entrou, se ajeitou, colocou uma
tolha sob a cabeça e ficou ali deitada, pensando em toda a sua
vida e naquilo que estava acontecendo.
Após meia hora, levantou, tomou uma ducha e voltou para o
quarto. Colocou a camisola, se deitou pensando:
"Seja tudo que Deus quiser; se ele não for um psicopata...
melhor ainda! — sorriu. — Com certeza terei bons momentos
nessa viagem. Agora, preciso dormir, já está passando da hora.
Amanhã vou realizar um sonho, conhecer Veneza! Tomara
Deus, que esse sonho seja bom."
Ajeitou o corpo na cama e a cabeça no travesseiro, fechou os
olhos e adormeceu.
Pela manhã, Marilda abriu os olhos, estava ainda sonolenta.
Virou-se na cama, ajeitou a cabeça, fechou os olhos
novamente, mas os abriu em seguida; olhou para o relógio,
sentou-se assustada:
— Meu Deus é quase seis horas! Estou atrasada!"
Correu para o banheiro, tomou um banho rápido, vestiu uma
das calças e a blusa verde que havia comprado no dia anterior.
Estava passando a escova nos cabelos, quando o telefone tocou.
— Alô! — atendeu.
— Alô! Bom dia! Está acordada?
— Bom dia! Estou, e quase pronta, estou descendo.
— Ótimo, estou te esperando aqui no saguão.
Desligou o telefone, olhou para o espelho. Não tinha certeza,
mas achava que ia viajar no carro que Júlio havia alugado, e era
esporte. Sabia que ele tinha capota, só não sabia se Júlio ia abri-
la. Se isso acontecesse, seus cabelos voariam ao vento. Foi até a
uma das malas que continuavam abertas perto da cama.
Procurou e encontrou um lenço de cabeça que, por acaso, era
verde um pouco mais claro que a blusa. Colocou sobre os
cabelos e olhou para o espelho. Sorriu, dizendo em voz alta:
— Você está mesmo bonita! Bonita não, maravilhosa!
Colocou tudo que estava espalhado pelo quarto nas malas,
fechou-as e desceu. Júlio, quando a viu chegando, não
conseguiu disfarçar o seu encantamento e disse:
— Não quero ser repetitivo, mas você, hoje, está mais linda!
Ela apenas sorriu e pensou:
"Ele é realmente maravilhoso, não pode ser um psicopata."
Assim que chegou perto dele, disse:
— As minhas malas estão no quarto, só estou levando esta
maleta com roupas para três dias. Preciso deixar avisado ao guia
da excursão que só voltarei no domingo. Ontem, quando
chegamos,não consegui encontrá-lo; eu sabia que ele levaria as
pessoas da excursão a um passeio noturno.
— Está bem, vamos até a recepção. Preciso avisar que vou
deixar o hotel agora, pois quando voltarmos irei direto para o
aeroporto. Vou pedir que fechem a minha conta e que
guardem as minhas malas. Para nossa viagem, também levarei
só uma maleta.
Conversaram com o recepcionista. Marilda escreveu um
bilhete para o guia da excursão. Pegaram as malas e saíram.
—Acho melhor que façamos essa viagem de trem, Marilda.
Alem de admirarmos melhor a paisagem, poderemos conversar
sem que eu me preocupe com a direção do carro. O que acha?
— Estou em suas mãos, Júlio, sei que já veio muitas vezes até
aqui e deve saber o que é melhor. Eu apenas te seguirei e sinto
que não vou me arrepender.
— Sendo assim, deixe por minha conta e te garanto que não vai
se arrepender mesmo! Vamos de trem!
Júlio devolveu o carro para a locadora e foram de táxi até a
estação de trem. A viagem começou e Marilda foi-se
maravilhando com a paisagem, que passava rápida por seus
olhos; disse:
— Esta paisagem sempre fez parte dos meus sonhos. Sempre
quis conhecer a Europa e, principalmente, Veneza, na Itália,
que é conhecida como a terra do romance e do amor.
—Verá que realmente é. Sei que ficará encantada!
Júlio ia lhe mostrando tudo.
"Já não estou mais preocupada em estar viajando sozinha com
ele", pensava. "Não sei como, mas eu tenho quase certeza que
já o conheço de algum lugar, mas de onde será? Não vou mais
me preocupar, só quero ficar ao seu lado e ser feliz!"
Estavam viajando há mais de duas horas.
— Estamos quase em Florença, Marilda, poderíamos nos
hospedar em um hotel, passarmos o dia aqui e amanhã
seguirmos para Veneza. Florença é uma cidade muito bonita,
assim que entrar nela vai pensar que está na idade média ou na
tela de um cinema. O que acha?
— Tudo bem, estou em suas mãos, se achar que visitar
Florença vale a pena, gostaria muito!
— Sei que vai adorar!
— Já me convenceu. Vamos visitar Florença.
O trem parou em Florença, desceram. Marilda se admirou com
as construções, castelos e igrejas que via. As ruas estreitas e
calçadas com pedras. Disse, emocionada:
— É realmente muito bonita!
— Não te disse?! Florença foi uma cidade importante da Idade
Média. Vamos a um hotel que conheço, ele é agradável e
aconchegante. Depois sairemos para que conheça tudo.
Foram para o hotel, pediram dois quartos. Depois de se
acomodarem, Júlio disse:
— Agora, vamos sair. Vou te mostrar alguns lugares, como a
Catedral, o Fórum, castelos, monumentos e obras de arte.
Garanto que nunca viu coisa igual a não ser nos filmes. Depois
iremos almoçar. Conheço uma cantina que serve uma comida
maravilhosa. Quero que esta viagem seja inesquecível para
você.
— Já está sendo! Claro que imaginei tudo isso, mas por mais
que se imagine nunca se conseguirá chegar perto da realidade!
Sabe que, andando por essas ruas, posso até ver as damas
antigas caminhando com seus vestidos armados, luxuosos, e
com as suas sombrinhas coloridas enfeitadas com rendas largas.
— É isso mesmo que acontece com todas as pessoas que
visitam Florença pela primeira vez. Sem que se perceba, volta-
se ao passado. Isso tudo parece mesmo um sonho, ou melhor, é
muito mais que um sonho! Embora já tenha vindo aqui muitas
vezes, sempre que volto não consigo deixar de me emocionar e
me sentir deslumbrado.
Fizeram o planejado. Depois do almoço, que Marilda adorou,
passearam por toda a cidade. À noite, foram a um restaurante
dançante. Marilda sentia-se voar.
"Não acredito que tudo isto esteja acontecendo. Realmente é
muito mais do que um dia eu sonhei. Em meus sonhos, nunca
pensei em ter ao meu lado um homem maravilhoso como este!
Quando eu contar para a Fernanda, ela não vai acreditar
mesmo!"
Era quase meia-noite quando voltaram ao hotel. Despediram-se
e cada um foi para o seu quarto. Embora, durante a dança,
tivessem sentido que algo mais que uma amizade nascia,
ficaram calados. Um ficou com medo que o outro não gostasse,
e não queriam estragar aquela viagem e a amizade que
começava e parecia ser promissora.
Na manhã seguinte, após tomarem o café, saíram do hotel.
Pegaram o trem novamente e foram para Veneza, a terra do
amor e do romance. Novamente, Marilda se encantou pela
paisagem e se deixou levar, por aquele sonho maravilhoso.
Assim que o trem parou e eles desceram, pegaram um grande
barco, que os levaria ao centro de Veneza. Júlio disse,
entusiasmado:
—Este barco leva os turistas para o centro, onde se encontra
toda a parte histórica. Olhe ali! Aquele muro alto que parece
um castelo é um museu e está aberto para visitação. Vou te
levar até lá. Você verá a riqueza como viviam, e também os
jardins, com suas arvores e uma fonte maravilhosa.
Como aconteceu desde que chegou a Roma, em Veneza,
também, Marilda se encantou. Durante a viagem naquele
barco, pôde ver os castelos, catedrais, pontes e os canais. Foram
a um hotel conhecido de Júlio e pediram dois quartos. O hotel
era pequeno , por isso ficaram em quartos no mesmo andar.
Cada um em seu quarto, deixaram as maletas e voltaram
rápido, não queriam perder tempo. Júlio tinha muito para
mostrar e Marilda para conhecer. Em seguida, saíram do hotel.
Marilda estava deslumbrada. A cidade, com suas ruas estreitas,
era toda rodeada por canais, as pessoas iam e vinham em seus
barcos; lá no meio, várias gôndolas com casais que pareciam
apaixonados. Nelas havia o gondoleiro e outro homem que
tocava violino. Marilda parou para olhar um dos casais que
estava abraçado, ouvindo a suave canção. Júlio percebeu que
ela estava encantada; disse:
— Não quer dar um passeio de gôndola?
— Gostaria muito! É um dos meus sonhos!
— Sei que vai gostar e poderá realizar o seu sonho. Quero que
realize todos!
Marilda o seguiu sem nada dizer, estava feliz demais para falar
ou simplesmente pensar. Ele comprou os bilhetes, entraram na
gôndola, que saiu mansamente e, em seguida, começou soar
uma linda canção no violino. Marilda fechou os olhos para
ouvir melhor o som da melodia. Júlio a abraçou. Ela se
assustou, abriu os olhos e encontrou os dele. Ficaram calados,
olhando-se. Ele aproximou o seu rosto do dela, que não
resistiu, e beijaram-se com paixão. A princípio leve e suave,
depois com calor e emoção.
Após o beijo, Marilda se afastou dizendo emocionada:
— Estou perdida...
— Não! Esse nosso encontro não foi casual, sinto que ele foi
planejado no céu! Encontraríamos-nos mais cedo ou mais
tarde. Estou muito feliz, e você?
—Eu também. Não sei o que estou sentindo, só sei dizer que
está me fazendo muito bem. Será que isso é o amor?
—Tenho certeza que sim, pelo menos da minha parte. Agora
vamos terminar o nosso passeio, depois discutiremos o que
fazer. Por enquanto, aprecie a paisagem, as construções e essa
música maravilhosa que está nos invadindo.
Ela, calada, encostou a cabeça no ombro dele e fechou os
olhos. Abriu-os novamente, olhou à sua volta para ter certeza
de que estava realmente acordada, e não sonhando; pensou:
"Está feito, não tenho como negar, estou irremediavelmente
apaixonada. Talvez eu vá me arrepender, mas neste momento
quero viver com intensidade este amor que demorou tanto
para acontecer em minha vida."
Na gôndola, os dois homens sorriram. Estavam acostumados a
cenas como aquela, mas sempre se emocionavam. O que estava
tocando colocou mais sentimento na música, o que fez com
que ela achasse ainda mais bonita.
Assim que a gôndola parou, eles desceram abraçados e
caminharam felizes. O amor os envolvia e eles aceitavam sem
pensar nas consequências.Não queriam pensar em
nada.Naquele momento, só interessava a felicidade que
estavam sentindo. Júlio disse entusiasmado:
—Agora vamos para a Praça de São Marcos. Entraremos na
igreja e você poderá apreciar a bela obra de arte que ela é.
Depois, iremos até a fonte, jogaremos uma moeda e faremos
um pedido; não preciso te dizer que pedido farei!
—Que pedido fará? Será o mesmo que o meu?
—Pedirei para ficar ao seu lado o resto da minha vida! Não
quero me separar nunca mais de você, Marilda.
—Não vale! Era isso mesmo que eu ia pedir!
—Um pedido duplo tem muito mais força! Vamos?
Entraram na igreja. Como ele havia lhe dito, ela se encantou
com a arquitetura e as obras de arte que viu. Depois foram até a
fonte. Marilda começou revirar a bolsa para pegar uma moeda.
Júlio, enquanto tirava algumas do bolso, disse:
— Você me dará uma moeda e eu te darei outra. Assim o
desejo terá mais força para ser realizado.
Marilda, sorrindo, concordou. Antes de jogarem a moeda na
fonte, ele a abraçou e beijou suavemente.
Ela estava encantada com tudo aquilo. Sentia como se fosse
uma adolescente e tivesse quinze anos, quando encontra o
primeiro amor. Assim que jogaram as moedas, continuaram
caminhando abraçados. Chegaram junto a uma cantina,
entraram. Era hora do almoço. Almoçaram, tomaram vinho e
se olharam profundamente; não falaram muito, pois nada
precisava ser dito. Após o almoço, continuaram andando pela
cidade. Visitaram muitas lojas e Marilda fez compras. Viu um
lindo aparelho de chá, feito da mais fina porcelana; disse:
— Ele é lindo! Vou levar e presentear a Fernanda!
— Quem é a Fernanda?
— É uma amiga que está passando por um sério problema, mas
sei que conseguirá superar. Esse aparelho de chá é bem do
estilo dela. Gosta de manter a sua casa sempre limpa e bonita e
é apreciadora de tudo que é bonito e caro! Tenho certeza que
vai gostar. Disso tenho certeza.
Comprou o aparelho de chá, pediu que embrulhassem para
presente. Com a caixa nas mãos, continuaram andando
abraçados e, de vez em quando, beijavam-se suavemente.
Estava anoitecendo. Começaram a ouvir de vários pontos da
praça músicas clássicas. Marilda se admirou:
—De onde vem essa música? — disse Marilda encantada.
—Aqui em Veneza existe uma espécie de disputa entre os
bares que cercam a praça. Artistas tocam músicas clássicas e os
turistas andam de um lado para outro parando na frente dos
bares. Venha! Vamos andar um pouco e você verá como é.
Assim como os demais turistas começaram a andar de um lado
para outro da praça e paravam um pouco na frente de cada bar,
ouviam um pouco da música e seguiam para o próximo, até que
resolveram entrar em um deles para jantar. Comeram uma
pasta como Marilda nunca havia visto ou comido em sua vida e
tomaram vinho. Saíram e continuaram por um bom tempo
andando pela praça e ouvindo a música. Já eram quase dez
horas da noite, Júlio disse:
—Está na hora de irmos para o hotel, o sábado já está
terminando. Teremos só mais meio dia de amanhã para
ficarmos juntos. Amanhã à tarde precisamos voltar para Roma,
pois o meu avião sairá à noite. Vamos aproveitar bem o resto
do tempo que nos resta para ficarmos juntos aqui. Mas no Brasil
nos encontraremos muitas vezes. Nunca mais me separarei de
você!
— Tem razão, quando se está feliz, o tempo passa muito
depressa. Também nunca mais quero me separar de você...
— Quando chegar ao Brasil vai me telefonar?
— Claro que sim!
— Estarei esperando ansioso!
Pegaram as chaves, subiram as escadas, pois não havia elevador.
Enquanto subiam, Júlio a beijou com um pouco mais de ardor
do que antes. Estava feliz e disse:
—Estive pensando, não sei se vai concordar, mas gostaria de te
acompanhar até o seu quarto. Pode me convidar?
Ela olhou para ele, sentiu que não só o seu coração já era dele,
mas o seu corpo também.
— Não sei se o que estou fazendo é o certo, mas é o que desejo
neste momento. Quer vir ao meu quarto?
Ele não respondeu apenas a beijou. Ele abriu a porta e assim
que entraram a pegou nos braços e nada mais pôde impedir que
o amor fluísse. Amaram-se com paixão e intensidade.
Dormiram abraçados.
De volta à realidade
Pela manhã, ao acordar, Marilda olhou para o lado da cama:
estava vazia e sentiu um aperto no coração.
Continuou deitada, pensando em tudo que havia acontecido.
Para ela, havia sido mais do que um sonho. Temeu que, como
nos sonhos, acordaria. Ela havia se entregado a um
desconhecido, não só o corpo. Sabia que nunca havia sentido
algo igual por alguém como sentiu por ele. Com lágrimas nos
olhos, pensou:
"Ele foi embora antes que eu acordasse, num sinal claro que
tudo não passou mesmo de uma aventura. Eu deveria estar
brava, mas não estou. Sou a mulher mais feliz deste mundo e
preciso agradecer a Deus por ter tido, nessa altura da minha
vida, a oportunidade de viver um amor tão intenso. Um amor
que demorou, mas chegou rápido e, da mesma maneira, foi
embora".
Sentou-se na cama, olhou novamente para o lado.
"Quem sabe ele deixou algum bilhete; sabe que estou sozinha e
que terei dificuldade para voltar a Roma. Não, não deixou
nenhum bilhete. Ele não pode ter ido embora, seria muita falta
de responsabilidade me deixar sozinha em um país que ele sabe
ser estranho para mim."
Levantou, foi para o banheiro. Abriu a torneira do chuveiro,
precisava de um banho para despertar de vez e poder pensar
com clareza no que faria se ele tivesse mesmo ido embora.
"Sempre fui muito centrada. Nunca deixei que problema algum
interferisse no meu trabalho. Sempre soube o que fazer. Nunca
me desesperei, pois sempre acreditei que todo problema tem
sempre uma solução." — pensou, respirando fundo.
Sem que conseguisse controlar, lágrimas começaram a descer
por seu rosto e depois correram em abundância. Soluçava, fazia
força para que fosse baixo, mas não conseguia.
"Sempre fui controlada e centrada, mas hoje, não estou
conseguindo. Por que ele fez isso comigo? Eu não merecia! Ele
me pareceu tão honesto!"
Mesmo chorando, entrou no chuveiro, deixou a água cair por
sou corpo. Ela ainda podia sentir seus beijos, seus carinhos. As
lágrimas se misturaram com a água do chuveiro.
"Definitivamente, estou descontrolada. Preciso me acalmar e
ver se ele deixou alguma instrução na recepção. Preciso me
conformar que tudo não passou de um sonho e que foi lindo!
Agora, consigo entender melhor Fernanda. Não é fácil perder
alguém que se ama, muito mais ela, que esteve casada por tanto
tempo, que entregou toda a sua vida para Antero. Também, o
que eu queria? Sou mais velha que ele! É bonito, charmoso e
educado, pode ter a jovenzinha que quiser. Como eu pude
imaginar que ele gostaria de uma velha como eu? Bem, preciso
ir até a recepção."
Voltou para o quarto. As roupas que usou no dia anterior
estavam espalhadas pelo chão. Pegou uma a uma, foi dobrando
e colocando de volta na maleta. A todo instante precisava parar
para enxugar as lágrimas, que não paravam de cair por seu
rosto. Escolheu a primeira roupa que pegou para vestir. Estava
sentada na cama colocando os sapatos, quando percebeu a
porta do quarto se abrindo lentamente. Seu coração disparou:
A porta se abriu totalmente. Júlio entrou, trazendo em suas
mãos um enorme ramalhete flores de vários tipos.
— Você já acordou? — disse feliz — Que pena! Queria te fazer
uma surpresa , acordei cedo e sai à procura de uma floricultura;
queria te dar rosas vermelhas, mas não encontrei. Pensei que
soubesse tudo de Veneza, mas pelo jeito não sei. O rapaz da
recepção foi quem disse onde eu poderia encontrar flores.
Queria voltar antes que você acordasse, mas não deu.
Ela o ouvia contar o que havia acontecido, mas não conseguia
falar. Agora, as lágrimas corriam com mais força ainda.
Ele se aproximou, entregou as flores e a abraçou. Depois,
afastou a sua cabeça. Olhou em seus olhos, perguntando:
— Está chorando? Por quê? Magoei-te de algum modo?
Ela, com as flores nas mãos, quase não conseguia falar; disse
num sussurro:
— Não, você não me magoou... Eu é que sou uma boba, você é
maravilhoso! Sei que não devia, mas te amo, Júlio!
—Não devia por quê?
—Pensei que tivesse ido embora e me abandonado aqui...
—Por que pensou isso?
—Acordei e você não estava mais na cama. Pensei que tivesse
ido embora. Sei que sou mais velha que você e que pode ter a
jovem que quiser...
—Como pode pensar uma coisa dessas? Acreditou mesmo que
eu te deixaria sozinha em um país estranho? Desde que te
conheci, estou tentando demonstrar de todas as maneiras que
te amo e que quero viver o resto da minha vida ao teu
lado!Velha?! Quem disse que você é velha? Isso é o que menos
está me importando! — continuou muito nervoso — Posso,
sim, ter a jovem que quiser, mas não quero! Você é uma
mulher maravilhosa, inteligente, com quem eu posso falar
sobre todos os assuntos! Precisa acreditar que eu gosto
realmente de você, que estou sendo sincero!
— Desculpe, mas, quando acordei e não te vi do meu lado,
fiquei insegura... Senti medo...
—Não te passou nem um minuto pela cabeça que eu tivesse
acordado mais cedo e, para não te incomodar, saí do quarto?
Por que será que as pessoas, quando acontece algo que não
estão esperando, a primeira reação é pensar logo no mal? Diga,
quanto tempo ficou sofrendo e chorando por algo que só estava
na sua cabeça? Você me pareceu uma mulher inteligente,
segura de si. Por favor, não diga que me enganei a seu
respeito.Eu estou sendo sincero,preciso ir para o Brasil, tenho
compromissos agendados, mas assim que você chegar lá vamos
nos encontrar, nos conhecer melhor, e quero te apresentar a
minha mãe e comunicar aos meus filhos. Sei que, assim como
eu, gostarão de você e ficarão felizes ao verem a minha
felicidade. Por favor, hoje é o último dia que vamos ficar juntos
aqui em Veneza, não o estrague com desconfianças. Pensei em
te fazer uma surpresa e quem me fez foi você.
—Desculpe, prometo que isso não vai se repetir. E que tudo
está sendo tão maravilhoso, que estou com medo. Não estava
pensando e nem preparada para encontrar alguém. Já tinha me
conformado de que ficaria sozinha para sempre. Esta viagem
era só para eu conhecer lugares que sempre sonhei em
conhecer e, de repente, se transformou em algo tão espantoso.
Realmente, não estava preparada, mas não vai se repetir, juro.
— Está bem. Para mim também foi uma surpresa. Não fiz essa
viagem para encontrar alguém. Minha única intenção era
participar do congresso, tomar conhecimento daquilo que o
mundo científico tem para nos mostrar, levar para o Brasil e,
assim, poder ajudar meus pacientes de lá. Esse nosso encontro
foi coisa do destino. Por isso, vamos agora sair. Vou te levar
para conhecer lugares maravilhosos. Depois do almoço,
retornaremos para Roma e, à noite, infelizmente, preciso ir
embora, mas quando voltar para o Brasil vou te buscar no
aeroporto.
— Não, por favor. Combinei com Fernanda, aquela amiga que
te falei. Tive que deixá-la sozinha em um momento muito
delicado e sei que ela está contando os dias para que eu volte.
— Está bem, também estou me oferecendo, sem saber se
estarei livre quando você chegar. Já tem o meu cartão com o
número do telefone do consultório e do meu bipe. Assim que
chegar, me telefone ou bipe. Combinaremos um encontro.
— Estive pensando, acho que não vou terminar a excursão.
Estou pensando em tentar mudar o meu bilhete e voltar com
você.
—Nem pensar, Marilda! Você ainda tem muito para ver. Fique
até o fim. Aproveite, estarei te esperando. Não esqueça de que
é o sonho da sua vida que está se realizando!
Ela sorriu; aquele homem não existia.
"Como pude duvidar?"
— Está bem, vou ficar, mas pode ter certeza de que pensarei
em você o tempo todo.
— Também estarei pensando e, como a sua amiga, contando os
dias da sua volta.
Marilda foi até uma cômoda, pegou um vaso que estava com
flores artificiais, e as tirou. Encheu o vaso com água e colocou
aquelas flores que Júlio havia lhe dado. Beijaram-se e saíram.
Voltaram a caminhar pelas ruas estreitas de Veneza e foram até
o museu. A cada momento, mais ela se encantava. Tudo aquilo
era mesmo um cenário de filme.
Voltaram para a praça, não podiam se demorar mais. O trem
passaria às duas horas e precisavam almoçar e se preparar para a
viagem de volta. Marilda, embora estivesse vivendo aquele
sonho, custava a acreditar. Almoçaram, voltaram para o hotel e
se amaram mais uma vez. Pegaram as maletas, as flores e foram
até o grande barco, que os levaria à estação para esperar o trem.
Chegaram a Roma ainda a tempo de jantar em uma cantina.
Foram para o hotel. Marilda colocou as flores que estavam um
pouco murchas em outro vaso, pegou as malas de Júlio e
saíram. Ela queria acompanhá-lo até o aeroporto, mas ele não
deixou. Falou com firmeza:
— Não, não precisa. Você não conhece muito bem o idioma e
muito menos a cidade. Vou de táxi; assim que você chegar ao
Brasil, me telefone. Estarei ansioso, esperando.
— Está bem, mas leve o meu cartão; se eu não te encontrar,
pode telefonar, estarei em casa ou no escritório.
— Não esqueça que te amo, Marilda, e que estarei te
esperando. Aproveite bem o resto da viagem, realize o seu
sonho. Tem muito para ver — disse isso a beijando.
— Só não terei o meu guia preferido. Ele está indo embora.
— Não mesmo, mas não faltará ocasião para voltarmos.
Ele entrou no táxi e, com a ponta dos dedos, mandou um beijo.
Foi embora.
Marilda, triste, ficou olhando o táxi se afastar, depois voltou
para o hotel. Não havia ninguém da excursão. Todos haviam
saído e o recepcionista não soube dizer para onde, mas isso não
a perturbou. Foi para o seu quarto, deitou-se e ficou
relembrando todos os momentos que passou ao lado de Júlio.
"E se eu não voltar a vê-lo? Se ele me ignorar lá no Brasil?"
Aquele pensamento fez com que ela sentasse na cama. Ficou
por alguns instantes, parada, depois pensou:
"Isso não vai acontecer, mas se acontecer ao menos terei algo
para recordar, terei vivido um grande amor. Preciso agradecer a
Deus por esta oportunidade."
Levantou, se preparou para dormir, deitou e adormeceu.
Pela manhã, ao acordar, sorriu. Dormiu a noite toda, não
acordou uma só vez. Lembrou de Júlio, do seu sorriso e de todo
o carinho com que ele a havia tratado. Levantou-se, estava
perdida.
Não sabia qual era o programa que o guia da excursão havia
planejado para aquele dia. Vestiu-se e foi até o saguão do hotel.
Assim que a porta se abriu, ela viu o guia rodeado pelas pessoas
da excursão. Não conhecia ninguém, só os havia visto durante
o vôo. Sabia que a maioria era mais ou menos de sua faixa
etária. Aproximou-se. O guia, ao vê-la, sorriu dizendo:
— Olhem a nossa sumida! Espero que tenha aproveitado bem
esses dias.
— Aproveitei, sim, obrigada.
— Esta é a Marilda — disse, voltando-se para o grupo. —
Embora não pareça, também faz parte do nosso grupo. Hoje
andaremos muito e amanhã iremos de trem para Florença e
Veneza. Tenho certeza que gostarão da viagem.
Sorriram. Marilda também. Ela, sim, havia gostado muito.
Saíram seguindo o guia. Em pouco tempo, Marilda já
conversava com todos. Andaram durante o dia todo. À noite,
quando regressaram, alguns ainda quiseram sair, mas Marilda
não. Estava exausta. Foi para seu quarto, deitou-se e ligou o
televisor, mas tinha dificuldade de entender o idioma. Desligou
o televisor e ficou pensando em Júlio e em todos os momentos
que haviam passado juntos.
Pelo resto dos dias ela acompanhou o guia. Foram a Paris, à
Espanha, onde, juntamente com os outros, pôde se encantar
com tudo que via. Embora o guia não fosse tão bom quanto
Júlio, era competente e conhecia tudo.
Os dias passaram e foram tão corridos, que Marilda não teve
tempo de pensar. Andava o dia todo e, quando chegava ao
quarto, só queria dormir. Aquela viagem havia sido um sonho,
mas o que ela queria mesmo era voltar para o Brasil, para sua
casa, sua cama e, principalmente, para Júlio. Na última noite,
depois de terem voltado para Roma, deitada, pensou:
"Amanhã à noite, voltarei para o Brasil. Será que vou me
reencontrar com o Júlio? Claro que sim, ele estava dizendo a
verdade. Assim que chegar e contar tudo que me aconteceu
para a Fernanda, vou telefonar para ele e ver qual será a sua
reação. Fernanda deve estar louca para que eu volte e a
acompanhe na sua luta para trazer Antero de volta. Será que ele
vai voltar? Não sei, mas não poderei mais ficar ao lado dela.
Quando eu chegar ao Brasil será quarta-feira e eu preciso voltar
para o trabalho na segunda-feira. Só tenho mais um fim de
semana."
Adormeceu. O dia seguinte foi livre e ela pôde fazer algumas
compras. Precisou comprar uma mala, pois as que trouxera
estavam cheias. Sem perceber, comprou muito. À noite foram
para o aeroporto e embarcaram de volta para o Brasil:
"Logo voltarei para a minha rotina de trabalho, e agora, queira
Deus, não pensarei só no trabalho; terei o Júlio ao meu lado.
Não vejo a hora de o avião aterrizar para que eu possa me
encontrar com a Fernanda e contar tudo que aconteceu. Ela
não vai acreditar! Vai pensar que estou mentindo! Ainda bem
que tenho as fotos que tiramos juntos. Sei que não vai adiantar,
pois, por mais que eu fale, não conseguirei dizer o quanto ele é
maravilhoso" — pensou, já dentro do avião.
Finalmente, o avião aterrizou. Marilda pegou as malas, passou
pela alfândega e saiu. Lá fora havia uma multidão esperando os
que chegavam. Ela saiu ansiosa procurando Fernanda no meio
da multidão, mas não a viu. Continuou olhando, mas foi em
vão. Definitivamente Fernanda não estava lá. Ficou ali parada
por mais de meia hora, esperando a qualquer momento vê-la
chegar. Preocupada, pensou:
"O que será que aconteceu? Ela sabia que eu chegaria hoje!
Deve ter se atrasado. Vou me sentar em um desses bancos e
esperar. Ela deve estar atrapalhada com o trânsito."
Esperou mais meia hora; vendo que ela não chegava, resolveu
telefonar.
"Acho que ela esqueceu. Vou telefonar; se ela esqueceu, vou
de táxi para casa".
Empurrando o carrinho com as malas, foi até um telefone
público. Discou o número do telefone de Fernanda. O telefone
chamou, chamou, mas ninguém atendeu.
Preocupada, pensou:
"Ela não está em casa, deve estar vindo. Vou esperar mais um
pouco, sei que ela chegará. Só preciso ter paciência."
Sentou novamente no banco e continuou esperando. Depois
de mais uma hora, resolveu:
"Ela não vem mesmo. Há esta hora, Antero já deve estar no
escritório, quem sabe ele pode me dizer algo; vou telefonar.
Novamente foi até o telefone, discou. Do outro lado da linha,
Luciana atendeu. Estranhou, pois havia ligado para o telefone
particular do Antero, que ficava em sua sala, mas naquele
momento aquilo era o que menos importava; disse:
— Sou a Marilda, amiga da Fernanda, o Antero está aí?
— Não senhora, ele está no velório.
— Que velório, quem morreu?
— A senhora não sabe? A dona Fernanda foi encontrada morta
ontem de manhã e vai ser enterrada hoje às duas horas.
Marilda estremeceu, precisou encostar-se às malas que estavam
no carrinho. O telefone quase caiu da sua mão:
— Como ela morreu? — perguntou, gaguejando. — O que
aconteceu? Conte, por favor!
— Quando a faxineira chegou, encontrou-a morta. Parece que
foi suicídio, coitada.
— Não pode ser — agora ela chorava — ela não fez isso! Deve
haver algum engano!
— Não sei o que dizer, mas essa foi à notícia que chegou aqui
na empresa.
— Não acredito que isso tenha acontecido! Onde ela está sendo
velada?
Luciana falou o endereço. Marilda anotou e desligou o telefone.
Voltou ao banco e, chorando muito, tornou a sentar-se.
"Não pode ser, ela não faria isso! Está certo que estava
desesperada, mas não a esse ponto. Ah, minha amiga, eu que
estava tão feliz e ansiosa para te encontrar. Você não fez isso, é
tudo um engano. Devo estar sonhando..."
Saiu dali rapidamente, pegou um táxi e foi para o velório.
Quando chegou lá, pediu ao motorista que esperasse. Entraria
para ter a absoluta certeza de que aquilo havia acontecido,
depois iria para casa levar as malas e voltaria.
O motorista aceitou, ela desceu e ele ficou esperando.
Apressada, se informou onde Fernanda estava sendo velada e
foi para lá. Assim que entrou na sala que servia de velório, viu
Antero junto ao caixão. Aproximou-se chorando e sem falar
com ninguém. Olhou o rosto de Fernanda. Não havia dúvida,
era ela mesma. Embora estivesse maquiada , seu rosto não
estava sereno. Ao contrário, podia-se até dizer que uma mulher
como ela, que sempre foi bonita, estava feia. Nem parecia a
mesma Fernanda que ela conhecia. Ficou olhando para a amiga,
pensando:
"Não acredito que você tenha feito uma loucura dessa . Por que
não esperou a minha volta? Quando soubesse tudo que me
aconteceu, veria que nem tudo está perdido. Que sempre existe
uma chance de felicidade. Por quê, minha amiga? Por quê?"
Chorava em silêncio. Sentia-se culpada.
"Se eu estivesse aqui , isso não teria acontecido. Perdão por eu
ter sido tão egoísta e não ter pensado mais em você."
Sentiu uma mão tocando em seu ombro, voltou-se. Era Antero.
Ela, chorando, abraçou-se a ele e perguntou:
—Antero, como isso foi acontecer? Como ela fez isso?
—Vamos lá fora, precisamos conversar. Sabia que você estava
viajando, mas não sabia quando voltaria.
Ela o acompanhou. Precisava saber o que havia acontecido e só
assim ter a certeza de que Fernanda havia cometido aquela
loucura. Lá fora, distante de todos, perguntou:
—Como aconteceu? A Luciana me disse que foi a faxineira
quem a encontrou. Estranho, pois sei que ela nunca quis que
ninguém mexesse em suas coisas. Foi ela quem sempre fez a
limpeza da casa. Briguei muitas vezes com ela por causa disso,
mas ela ria e dizia que gostava de limpar a casa.
— Também sempre soube disso, por isso estranhei quando
Anita, a nossa vizinha do lado, me telefonou lá na empresa,
dizendo que a faxineira havia encontrado a Fernanda morta e
que ela não sabia o que fazer . Pedi que ela, se pudesse, fosse lá
em casa e ficasse com a faxineira enquanto eu telefonaria para a
polícia e depois iria para casa. Foi isso que fiz.
—Mas o que aconteceu? Como ela fez essa loucura?
— Segundo a faxineira, Fernanda a contratou por telefone.
Disse e é verdade. Trabalha já há muito tempo para a Anita,
que foi quem a indicou. A Fernanda combinou com ela para
que viesse no dia seguinte, que a estaria esperando. A faxineira
disse que, quando chegou, bateu na porta da frente, mas a
Fernanda não abriu; resolveu então dar a volta na casa e viu
que a porta da cozinha estava aberta.
Bateu e, como ninguém respondeu, entrou e encontrou
Fernanda caída no chão da cozinha. Desesperada, telefonou
para Anita contando o que havia acontecido. Ela, antes de ir a
minha casa, me ligou. Depois de chamar a polícia, fui para casa.
A faxineira estava lá, ao lado de Anita, as duas choravam. A
pobre mulher tremia muito. Assim que vi a Fernanda deitada
no chão, não consegui evitar de me sentir culpado. Afinal, eu
a abandonei sem dar muitas explicações e ela não suportou.
—Como aconteceu isso? Ela morreu de que maneira?
—Ao lado do seu corpo, tinha um vidro de calmante quase que
totalmente vazio. Os comprimidos são pequenos, mas mesmo
assim ela deve ter tomado muitos de uma só vez.
—A polícia disse o quê?
—Ao encontrarem o vidro dos comprimidos e depois da
autópsia, chegaram à conclusão de que ela havia se suicidado.
Ficou comprovado que ela ingeriu uma grande quantidade de
comprimidos muito fortes.
—A que horas foi isso?
—De acordo com a polícia, mais ou menos as sete ou oito
horas da noite.
—Estranho, pois eu sabia que ela tomava comprimidos para
dormir, mas não eram fortes. Eram apenas antidepressivos.
—Não sei como, mas ela tomou comprimidos e fortes.
—Você não estava em casa.
— Não. É a respeito disso que preciso conversar com você.
Para minha surpresa, nem a Regiane sabia que estávamos
separados. Fernanda não contou para ninguém. Eu estava há
mais de dez dias no interior negociando um terreno para uma
próxima construção. Viajei a noite inteira. Cheguei à empresa,
alguns minutos antes da Anita ligar . Estive pensando, já que a
Fernanda não quis contar à nossa filha a respeito da separação,
acho melhor que continue ignorando. Só quem sabe é você,
eu e o Flávio. Poderá ficar calada a respeito disso?
—Não estou entendendo. Por que quer que eu faça isso?
—Para que Regiane não sofra mais do que já está sofrendo.
Fernanda não queria que ela soubesse, senão teria contado você
não acha? Ela conversou a esse respeito com você?
— Sim. Ela não queria contar, pois tinha esperança que você
voltasse para casa. Mas agora não sei se devo ficar calada.
—Até agora, não sei por que me separei dela. Durante esses
dias em que estive longe e sozinho, tive tempo para pensar.
Descobri que sempre amei a Fernanda, ia pedir a ela para que
me aceitasse de volta.
—Um pouco tarde para pensar isso, não acha?
—Infelizmente. Tenho me amargurado muito por isso!
—Bem, preciso ir embora. Cheguei de viagem agora. Fiquei
sabendo no aeroporto e as minhas malas estão no táxi. Vou
para casa e voltarei logo. Até mais.
—Até mais e, por favor, pense no que falei a respeito do
Regiane, ela não precisa sofrer mais.
— Vou pensar.
Estava saindo quando ouviu uma voz lhe chamando; se voltou,
era Regiane, filha de Fernanda, que corria para encontrá-la.
Marilda parou, abriu os braços e Regiane se abraçou a ela.
—Tia Marilda — Regiane disse chorando — não entendo.
Como a minha mãe foi fazer uma coisa dessas? Por que foi?
Você sabe? Sempre foi a sua melhor amiga, deve saber o que
estava acontecendo! Por que ela fez isso?
Abraçada a ela e por detrás dos seus ombros, Marilda viu
Antero, que com os olhos lhe pedia que não falasse o que
haviam conversado. Ela se afastou de Regiane, dizendo:
— Também não sei qual foi o motivo. Estava viajando e só
retornei hoje pela manhã e, assim como você, estou surpresa,
sem saber o que dizer ou pensar. Até agora, ainda não acredito
que isso tenha realmente acontecido.
—Mas aconteceu! A minha mãe está morta e eu não estou
suportando tanta dor. Ainda mais da maneira como foi. Por que
ela não confiou em mim? Não me contou seus problemas?
Nunca pensei que ela tivesse algum!
— Procure ficar calma. Como você , também estou sofrendo,
mas de nada vai adiantar se desesperar, só ela poderia nos dizer
qual era o problema. Portanto, ficaremos sem saber.
Estavam ainda abraçadas, quando Rui, o marido de Regiane,
chegou perto delas.
— Regiane, o Marquinhos está com fome.
— Nossa! Esqueci de dar a mamadeira! Tia Marilda , preciso ir,
meu filho precisa de mim.
Marilda sorriu.
— Tem razão, pode ir e não esqueça que ele precisa muito de
você. Também preciso ir até em casa, mas voltarei logo.
Rui e Regiane se afastaram. Marilda olhou para Antero, que de
longe a observava; acenou e foi embora.
O motorista a esperava , entrou no carro e seguiram. Ela, em
silêncio, não conseguia tirar de sua mente o rosto de Fernanda
naquele caixão. Estava com sentimento de culpa e, enxugando
com um lenço as lágrimas, pensava:
"Eu não deveria ter ido embora. Se eu estivesse aqui, ela teria
com quem conversar e não faria isso. Mas como eu poderia
saber? Essa minha viagem estava programada há tanto tempo!
Era o sonho de minha vida. Não sei o que fazer, nem o que
pensar. Fernanda, eu ia te contar tudo que me aconteceu.
Queria que você visse que sempre existe uma chance de ser
feliz. E o Júlio? Com tudo isso , esqueci de ligar, mas também,
hoje, não tenho como conversar com ele; acho melhor deixar
para amanhã, não tenho muito tempo. Só vou deixar as malas
em casa, pegar o meu carro e voltar para o velório."
Quando chegaram a sua casa, o motorista levou as malas para
dentro. Ela agradeceu a gentileza. Pagou, deu uma gorjeta e ele
foi embora.
Renata sabia que ela voltaria naquele dia e estava na cozinha
preparando o almoço. Como a cozinha ficava nos fundos da
casa, não ouviu o carro parando. Só percebeu que Marilda havia
voltado quando ouviu a porta da frente se abrir. Foi para lá.
— Dona Marilda, que bom que voltou!
— Estou feliz por ter voltado, só não estou mais por aquilo que
aconteceu com Fernanda.
— A senhora tem razão, foi muito triste. Quando a filha dela
telefonou para cá perguntando sobre a senhora e me contou o
que havia acontecido, eu nem acreditei. A dona Fernanda era
tão boa, como foi morrer dessa maneira?
— Não sei , também não me canso de fazer essa pergunta. Por
mais que pense, não consigo aceitar a morte dela. Agora, vou
tomar um banho rápido, trocar esta roupa e voltar para o
velório. Preciso me apressar. Quero dar-lhe o meu último
adeus.
— A senhora não vai almoçar?
— Não tenho fome, nem tempo. Preciso me apressar!
— Vou lhe preparar uma salada e um bife, a senhora não pode
ficar sem comer.
— Está bem, faça isso, enquanto eu tomo banho e me visto.
Renata foi para a cozinha, Marilda entrou no quarto, tomou o
banho, se vestiu e foi até ela. Ao passar pela copa, viu que a
mesa não estava colocada, foi para a cozinha. Renata estava
terminando de temperar a salada e, ao vê-la chegando, disse:
— Dona Marilda , já vou colocar a mesa.
— Não precisa, estou com pressa, preciso voltar ao velório.
Vou comer aqui mesmo na cozinha.
Sentou-se. Comeu algumas folhas e um pedaço de carne, mas
não conseguiu continuar; disse:
— Não estou conseguindo comer, vou embora.
Renata apenas sorriu. Ela sabia da amizade que havia entre as
duas, por isso entendeu a dor de Marilda.
Marilda, enquanto se dirigia ao velório, recordava todo o tempo
que conviveu com Fernanda. De quando eram crianças, do
tempo da escola e de quando aprenderam a ler juntas. Da sua
felicidade quando começou a namorar com Antero. De
quando ela veio lhe dizer que estava grávida e que não sabia
como contar a ele. Do casamento, nascimento, batizado,
primeira comunhão da filha. Da alegria quando abriram à
construtora. Da compra da sua casa e de cada móvel comprado
para ela.
"Sempre estivemos presentes uma na vida da outra. Apesar de
ter se casado, nunca nos separamos. E agora Fernanda está lá,
naquele caixão, mas o rosto que vi lá não é o dela. Ela foi
sempre terna, aquele rosto está crispado, como se sofresse
muito. Não, ela não se mataria. Temia a Deus e, por isso, sabia
que o suicídio é um pecado que não tem perdão e que se
fizesse isso iria para o inferno. Não! Ela não se matou!"
Parou o carro em um semáforo. Ainda pensando:
"Inferno! Será que vai para o inferno? Não, não pode ser. Ela
sempre foi muito boa, teve uma vida digna, nunca fez mal a
ninguém. Foi sempre ponderada e temente a Deus. Estava
deprimida, fora de si. Não suportou o abandono. Se ela for para
o inferno, não há justiça. Deus não poderia ser tão implacável."
Chegou ao cemitério, faltavam vinte minutos para o enterro.
Assim que entrou na sala, viu a filha de Fernanda e Antero em
volta do caixão. Tinha muita gente. Amigos, parentes e os
funcionários da construtora. Ela não quis se aproximar, não
queria ver o rosto de Fernanda da maneira como estava. Queria
se lembrar dela como sempre foi: alegre e sorridente. Ficou a
certa distância. Regiane chorava, mas Antero chorava muito
mais. Ele soluçava a ponto de seu corpo tremer. As pessoas
tentavam consolá-lo. Marilda, revoltada com aquela situação e
não se conformando, pensou:
"Deve estar com remorso, pois sabe muito bem que ela fez isso
por sua culpa, por tê-la abandonado sem uma explicação. Ele
sabe que ela sempre viveu para ele e para a filha. Está mesmo
com remorso e isso há de acompanhá-lo pelo resto da vida. A
filha dele o está abraçando, mas será que ela estaria assim, tão
carinhosa, se soubesse o que ele fez com a sua mãe?
Fernanda, você foi mesmo uma cretina! Por que não contou à
sua filha o que ele fez? Não sei se devo contar. Ela não queria, e
também do que adiantaria? Ela se foi para sempre, não voltará
mais. Antero tem razão, para que aumentar a dor da Regiane?"
Chegou a hora de fechar o caixão. Todos se aproximaram
menos Marilda, que continuou distante. O caixão foi fechado.
Foi acompanhado, por todos, até o túmulo, onde deveria ser
sepultado. Assim que foi colocado no fundo, as pessoas se
aproximaram jogando flores sobre ele. Marilda também se
aproximou, beijou uma rosa que trazia em suas mãos e jogou.
"Vá com Deus, minha amiga, sei que Ele não vai te abandonar",
pensou, em lágrimas.
Em seguida, as pessoas começaram se afastar, ela também. Seu
coração estava apertado por saber que nunca mais encontraria
aquela sua amiga tão querida. Não se despediu de ninguém,
estava sofrendo muito, não queria mais prolongar tudo aquilo.
Queria chegar a casa, se deitar e relembrar com carinho de sua
amiga, que havia feito aquela besteira sem fim. Estava entrando
no carro, quando alguém a chamou. Olhou para trás, era
Antero, que se aproximava correndo. Ela ficou parada,
esperando-o chegar. Assim que chegou, disse:
— Marilda, tem lá em casa um carro que pertence a uma
mulher chamada Ivete, você sabe quem é ela?
— Sei sim, é uma amiga minha. Ela emprestou o carro para que
Fernanda pudesse te seguir, sem ser notada.
— Me seguir! Para quê?
— Ela queria descobrir quem era a outra.
— Não existe outra! Se ela realmente me seguiu, viu que eu
estou morando sozinho, em um dos nossos apartamentos.
— Se não tem outra, por que não deu para Fernanda um
motivo no qual ela pudesse acreditar? Desde que soube da
morte dela, estou pensando: será que ela não fez essa loucura
por ter descoberto com quem você estava saindo? Será que ela
não fez isso por acreditar que você não voltaria mais para casa?
Será que não foi por ter perdido a esperança e por ver que toda
a vida dedicada a você não valeu nada?
— Eu te disse que nem eu mesmo sei qual foi o motivo e que
estava querendo pedir perdão... Voltar para casa...
—Você me disse, mas não sei se posso acreditar. Estou confusa.
De qualquer maneira, ela está morta e nada poderá modificar
isso. Estou triste, nervosa e muito abalada com tudo que
aconteceu. Vou para casa descansar e amanhã vou até lá pegar
o carro e levá-lo para a Ivete. Você está com a chave e com os
documentos?
— Estão no meu carro, vou pegar e te darei também a chave do
portão, para que possa entrar sem problema algum.
Ele foi até seu carro, que estava ali, naquele mesmo
estacionamento, e voltou trazendo as chaves, os documentos e
a chave do portão. Entregou tudo para Marilda, que, muito
nervosa, entrou no carro, ligou, acelerou e foi embora, sem se
despedir.
Surgem dúvidas
Chegando a casa, lembrou-se que Renata já tinha ido embora.
Foi para seu quarto, trocou de roupa, colocou uma camisola.
Queria deitar e tentar dormir. Estava cansada da viagem e das
fortes emoções que sentiu. Em seguida, foi para a cozinha,
abriu a geladeira, pegou uma fatia de pão, colocou manteiga e
um pedaço de queijo, sentou-se e começou a comer. Não
estava com fome, mas sabia que precisava se alimentar.
Voltou para o quarto, tomou um comprimido e deitou-se.
Poucos minutos depois estava dormindo. Sonhou que estava
em um campo florido, correndo para encontrar com alguém
que ela não via o rosto. Quando estava se aproximando, ouviu
um barulho, despertou. Era o telefone que estava tocando.
Esticou o braço e pegou o aparelho que estava sobre o seu
criado-mudo. Atendeu:
—Alô!
—Alô, Marilda! Sou eu, o Júlio! Estava dormindo?
— Júlio!
—Por que o espanto? Fiquei esperando o dia todo o seu
telefonema. Você disse que ia telefonar.
—Desculpe, não deu...
— Entendo. Como não ligou, pensei que estivesse com a sua
amiga contando tudo sobre a viagem; resolvi esperar até a
noite. Ela está bem?
Marilda olhou para o relógio, eram oito horas da noite.
—Ela... Ela... Está morta...
—Morta?! Como e quando isso aconteceu?
Marilda contou o que aconteceu, terminou dizendo:
— Por esse motivo não te telefonei — disse com lágrimas
correndo por seu rosto —, estava confusa demais, cansada
demais...
—Entendo, foi difícil. Ela era muito sua amiga, não?
—Sim, crescemos juntas. Estou completamente atônita. O que
mais me preocupa é saber que ela deve estar no inferno. Eu
não consigo aceitar...
—Quem te disse isso?
—Foi o que sempre ouvi dizer desde criança.
—Acredita mesmo que Deus, sendo um Pai maravilhoso,
poderia condenar um filho seu ao fogo eterno?
—Não sei, não quero acreditar que isso seja possível, mas foi o
que sempre ouvi dizer. O suicídio é um pecado sem perdão...
—É sim um pecado imenso; quem o pratica deve sofrer muito.
Mas sofrer eternamente, isso Deus não permitiria. Ele é o nosso
Criador e sabe que não somos perfeitos, mas nos ama muito.
Assim como um pai aqui na Terra castiga um filho quando faz
algo errado para em seguida perdoá-lo, muito mais faz Deus.
Talvez até nos dê algumas provações para conseguirmos a
perfeição, mas estará sempre de braços abertos, esperando por
nosso pedido sincero, de perdão e a nossa vontade de acertar.
Nos dará sempre novas chance para que isso aconteça.
—Acredita mesmo nisso?
— Sim, pois, se acreditamos em Deus, temos que acreditar
nisso, porque, se não fosse assim, Deus não seria nosso Pai,
nosso Criador. Se acreditamos, devemos confiar no Seu amor.
— Não sei, estou muito confusa.
— Entendo. Gostaria que você conversasse com a minha mãe e
com a Lia, sua amiga. A Lia entende muito de vida pós-morte,
poderá te explicar muitas coisas e tirar suas dúvidas.
—Você me falou sobre ela, mas eu não acredito nessas coisas
de espíritos.
— Mas acredita que Deus é um Pai vingativo e tirano...
— Não, ele é maravilhoso! Só não sei se acredito nessas coisas
de espíritos e tudo mais.
—Está bem, não vou te obrigar a acreditar, mas não custa
conversar. Se quiser, falarei com a minha mãe e ela convidará a
Lia para ir lá em casa . Nesse dia, também te levarei e ela
poderá te ajudar. O que acha?
— Não sei, estou confusa.
—Tenho que desligar, estou aqui no hospital. Preciso ver um
paciente. Pense sobre o assunto. Amanhã, me telefone, mesmo
que não aceite a minha sugestão. Estou com muitas saudades e
louco para te ver, abraçar e beijar!
— Está bem, vou pensar, também estou com muitas saudades e
com as mesmas vontades que você.
— Nunca, mas nunca mesmo, se esqueça que te amo...
— Não esquecerei, também te amo.
Desligou o telefone, seu coração batia forte.
"Como fui esquecer-me de telefonar? Ainda bem que ele
telefonou. Já é noite! Dormi muito!"
Saiu da cama e foi até o escritório para ver se havia algum
recado do trabalho. Não havia recado sobre a mesa. Sinal de
que ninguém havia telefonado, pois Renata sabia que todo
recado deveria ser anotado.
Foi para a cozinha, olhou a comida, que estava pronta, mas
ainda não sentia vontade de comer. Fez outro sanduíche,
comeu, voltou para o quarto. Ligou o televisor, mas também
não achou algo que lhe interessasse. Saiu do quarto e foi para
sala, mas lá também não se sentiu bem. Foi até o quintal,
chegou ao portão e olhou os dois lados da rua. Tudo estava
quieto, as pessoas deviam estar dentro de suas casas. Olhou para
o céu, que estava com poucas estrelas, e a lua, quase apagada,
escondida por uma pequena neblina.
"Não estou conseguindo ficar em lugar algum, estou com um
peso grande nas costas. Tem algo que está me incomodando,
mas não sei o quê. Talvez seja a tristeza por aquilo que
aconteceu com a Fernanda. Não consigo aceitar que ela tenha
acabado com a própria vida! Será que aquela amiga da mãe do
Júlio consegue mesmo falar com os mortos? Será que tudo
aquilo que ele me contou é verdade? Não sei, essas coisas são
misteriosas e nunca dei atenção. Mas, se for verdade, ela
poderá falar com Fernanda e, assim, eu saberei o que realmente
aconteceu. Amanhã vou pedir ao Júlio que marque um
encontro com aquela mulher. Como é mesmo o nome dela?
Lia. É isso mesmo; se ela pode realmente falar com os mortos,
falará com a Fernanda; só assim terei paz novamente."
Voltou para o quarto. Deitou-se novamente. Pegou um livro e
tentou ler, mas não conseguiu. Ficou assim o resto da noite,
virando-se de um lado para outro na cama, até que finalmente
conseguiu adormecer.
Ao acordar pela manhã, sentiu que todo aquele peso que estava
sentindo na noite anterior havia desaparecido.
"Eu devia estar cansada da viagem e também triste pela morte
de Fernanda, mas, apesar de tudo que possa acontecer, a vida
tem que continuar.
Vou telefonar para o Júlio. Ainda bem que ele surgiu em minha
vida, bem agora, neste momento em que eu estava precisando
tanto de alguém com quem pudesse conversar e confiar. Agora
que a Fernanda se foi, não tenho mais ninguém com quem
possa falar tudo que estou sentindo. É... a vida não pára
mesmo... — sorriu. — Estou com fome, vou até a cozinha
comer alguma coisa..."
Levantou-se, foi para a cozinha e entrou no exato momento
em que Renata abria a porta que dava para a rua e entrava
também.
— Bom dia, dona Marilda, a senhora já se levantou? Pensei que
hoje fosse dormir até mais tarde. A senhora deve estar cansada
da viagem e com tudo que aconteceu.
— Bom dia! Embora esteja mesmo cansada, acordei há pouco e
não consegui ficar na cama.
— Espere só um pouquinho, que já vou preparar o seu café.
— Enquanto isso vou tomar um pouco de suco.
Abriu a geladeira, pegou uma garrafa de suco, colocou em um
copo, sentou-se e começou a tomar. Renata, que estava junto
ao fogão esperando a água ferver para coar o café, disse:
— Que tristeza o que aconteceu com a dona Fernanda...
— Foi sim. Ainda mais da maneira como aconteceu.
— Isso que não estou entendendo. Quando ela falou comigo,
parecia alegre e feliz. Eu nunca poderia imaginar que ela fosse
fazer aquilo.
—Você falou com ela? Quando? — Marilda, nervosa e
levantando-se, perguntou.
— No dia em que a Dona Fernanda morreu. Eu estava me
preparando para ir embora, o telefone tocou, eu atendi, era ela.
— O que ela queria? O que disse?
— Queria saber se a senhora tinha telefonado. Eu disse que
não. Aí, ela disse que, se a senhora telefonasse, era para eu
dizer que estava tudo bem e que o doutor Antero ia jantar na
casa dela naquela noite. Por isso, ela estava preparando um
jantar especial. Parecia que ele queria voltar para casa. Ele tinha
saído?
— Espere, espere, repita o que você acabou de me dizer.
— Foi assim mesmo. Ela me pareceu feliz. Como poderia se
matar naquela noite?
— Não sei. Mas tenho quase certeza que ela não se matou, só
não sei o que fazer. Vou telefonar e depois sair.
— A senhora não vai tomar o café?
— Termine de preparar, mas não precisa colocar a mesa. Só
Vou tomar café preto. Preciso pensar.
Renata ficou calada. Marilda foi para o seu quarto, pegou o
telefone, telefonou para o hospital onde Júlio trabalhava. Ele
não estava lá, chegaria mais tarde. Ia chamar pelo bipe, mas
achou melhor não fazer isso. Telefonou para Ivete. Conversou
com ela, disse que iria até lá levar o carro que estava com
Fernanda e rapidamente contou-lhe sobre a morte dela, pois
Ivete ainda não sabia o que tinha acontecido. Ivete disse que
estava esperando e que poderiam almoçar juntas.
Assim que desligou o telefone, tomou banho. Vestiu-se e
voltou para a cozinha. Renata tinha terminado de colocar o
café em cima da mesa, só colocou uma xícara. Marilda não
sentou, tomou o café e saiu dizendo:
—Renata , estou indo agora me encontrar com uma amiga. Se
alguém ligar, não deixe de anotar o recado. Antes vou telefonar
para o escritório e ver como as coisas estão por lá.
— Está bem. Eu não me esqueço de anotar, não.
Marilda terminou de tomar o café. Em seguida, telefonou para
o escritório. Estava tudo bem e ela avisou que voltaria a
trabalhar na segunda-feira. Pegou as chaves do carro. Precisava
ir até a casa de Fernanda pegar o carro de Ivete e deixar o de
Fernanda. Fez isso. Assim que chegou à empresa onde Ivete
trabalhava, se anunciou e foi recebida por ela na recepção.
— Marilda, que bom te ver. Foi boa a viagem?
— Foi ótimo, o difícil foi o que encontrei quando retornei.
— Foi uma pena mesmo. Preciso ver algumas coisas, depois
sairemos para almoçar e conversaremos. Pode me esperar um
pouco? Não vou demorar muito.
— Claro que sim.
— Fique lendo essas revistas que estão aí, volto em seguida.
Saiu. Marilda pegou uma revista e começou a ler.
Alguns minutos depois, Ivete retornou e as duas saíram. Foram
a um restaurante que ficava lá perto, onde Ivete estava
acostumada a almoçar. Sentaram-se e fizeram o pedido.
Enquanto bebiam um refrigerante e esperava a refeição chegar,
Ivete disse
— Você me contou sobre a morte da Fernanda, mas não falou
como foi. Quando ela esteve com você me visitando, parecia
gozar de perfeita saúde. Um pouco nervosa com a situação que
estava vivendo, mas não me pareceu doente.
— E não estava!
— Do que ela morreu?
— Dizem que ela se suicidou, mas eu não acredito Ivete...
— Meu Deus! Como foi isso, Marilda?
Marilda contou o que haviam lhe dito. Quando terminou,
Ivete, com ar preocupado, disse:
—Se isso aconteceu realmente, ela não deve estar bem.
- Sei disso e é exatamente o que está me deixando mais nervosa
e triste. Estou com medo que ela tenha ido para o inferno.
— Ela não deve estar em um bom lugar, mas com certeza não
está no inferno. Deus não permitiria um sofrimento eterno.
— Alguém já me disse isso, mas custo a acreditar.
— Só não consegue se não acreditar que exista um Deus, e que
Ele é nosso criador e um Pai amoroso.
— Acredito Nele, mas sei também que Ele deixou algumas
regras para serem seguidas. Algumas coisas que não poderíamos
fazer; entre elas, o suicídio talvez seja a pior.
— Sim, é um erro terrível e mostra que a pessoa não confia em
Deus e não acredita que sempre exista uma solução para
qualquer problema. Por um ato como esse, terá que pagar, sim,
mas não com o fogo eterno. Se assim fosse, Ele não seria nosso
Pai, mas um carrasco. Aqui mesmo, na Terra, existe sempre um
julgamento antes que alguém seja condenado. Imagine com
Deus!
— Alguém que conheço disse essas mesmas palavras. Também
acredita em um castigo, mas não eterno. Ele segue essa sua
religião. Gostaria de acreditar nisso.Tremo só em pensar o
quanto ela deve estar sofrendo. Não consigo esquecer o rosto
dela dentro daquele caixão.
—O que precisa é lembrar-se dos bons momentos que passou
com ela. Pedir muito a Deus que ela seja protegida e acreditar
que essa proteção existe, e não esquecer que, a qualquer
momento em que ela se arrependa do ato que cometeu e pedir
ajuda, com certeza a ajuda virá. O que você viu no caixão foi
só o corpo, a ferramenta que serviu para dar a ela a
oportunidade de vir para cá e cumprir a sua missão. Agora, o
corpo já não serve mais e deve ser reverenciado pelo trabalho
que prestou. Ele vai descansar, mas o espírito dela, esse não.
Vai continuar mais vivo do que nunca. Está neste momento
encarando a sua verdade.
—Não entendo muito bem o que você está dizendo. Missão?
Que missão? Ela não fez nada de importante! Viveu só para a
casa, o marido e a filha!
— Ela fez exatamente o que precisava ser feito. Ser uma boa
mãe e esposa. Isso é, talvez, uma das tarefas mais difíceis a
serem cumpridas. Muitas pessoas não dão valor, mas é uma das
mais belas missões. Talvez você devesse ler alguns livros. Eles
podem te ajudar muito, posso te emprestar alguns.
— Não sei se estou pronta para isso. Embora não seja
praticante, tenho minhas convicções religiosas.
—Está certa. Não se preocupe, quando chegar a hora, de uma
maneira ou de outra, tomará conhecimento da espiritualidade.
Por enquanto, reze muito por Fernanda. É a única coisa que ela
está precisando no momento.
—Acredita que alguém possa ver e falar com os mortos?
—Existem pessoas que têm esse dom. Já tive muitas provas.
—Essa pessoa com quem conversei disse que conhece uma
mulher que fala com os mortos. Estou pensando em ir vê-la
para ver se consigo falar com Fernanda.
—A sua morte está muito recente e, nas condições que foi,
acredito que será difícil, mas não custa tentar. Tome cuidado,
pois existem pessoas que agem de má fé. Se te pedirem alguma
espécie de pagamento, não aceite e nem acredite no que te
disserem. Lembre-se, não chame por Fernanda, nem insista em
vê-la. Na hora em que for permitido, isso acontecerá.
— Estou quase certa de que ela não cometeu suicídio. Ela não
faria isso! Lutaria de outra forma para trazer Antero de volta.
— Se isso não aconteceu, melhor para ela. Está hoje tendo
assistência, mas por tudo que me contou, não restam dúvidas.
— Ainda assim, tenho minhas dúvidas, só não sei como provar.
Mas farei tudo para descobrir o que aconteceu.
—Não se preocupe com isso, apenas reze por ela e, muito mais,
para que não tenha tirado a própria vida.
—Mas se ela não se matou, foi assassinada! A pessoa que a
matou fica livre?
—Ninguém fica livre. Pode não ser condenado aqui na Terra,
mas com certeza terá que responder a uma força maior e
suprema. Fique calma e aceite a morte dela e continue a sua
vida. Ainda tem muito para fazer. Tem uma missão a cumprir.
—Ainda não cumpri a minha missão, não me casei, nem tive
filhos! — Marilda disse rindo.
—Mas, por outro lado, trabalha do lado da lei e, assim, ajuda
muitas pessoas a terem os seus direitos respeitados. Todas as
profissões são verdadeiras missões. Não importa qual seja. Você
já imaginou se não existisse o lixeiro, que limpa a nossa cidade?
Aquele que planta para que aqui, na cidade, possamos comer?
O padeiro, o sapateiro, a costureira e, por fim o coveiro, que dá
repouso para o nosso corpo? Além de tantas outras pessoas que
trabalham para ajudar as outras. Todos fazem parte de uma
grande corrente, uma profissão ajuda a outra e todos caminham
para a perfeição. Não importando a nossa cor, estado civil,
social ou religioso, somos todos filhos do mesmo Deus e Ele
nos ama a todos da mesma maneira. Pode parecer, algumas
vezes, que somos injustiçados, mas com certeza isso não
acontece. Ele apenas nos dá a oportunidade de aprendermos,
resgatarmos nossos erros, darmos valor a tudo que nos
acontece e principalmente à nossa vida, pois dela depende o
nosso aprimoramento e o nosso futuro.
—Olhando por esse ponto de vista, você está certa. Todas as
profissões são mesmo uma missão.
—Por isso, todas têm de ser exercidas com amor. Agora,
precisamos comer. Tenho que voltar ao meu trabalho.
—E eu tenho muito que aprender a esse respeito. Preciso te
agradecer, em nome da Fernanda, por ter emprestado o seu
carro. Não é qualquer pessoa que faz isso...
—Não tive problema algum, você me deixou o seu. Foi uma
pena mesmo que ele não serviu para aquilo que ela queria.
—De qualquer maneira, obrigada.
Almoçaram. Marilda entregou as chaves e os documentos do
carro, que estava no estacionamento. Despediu-se, pegou o seu
carro que estava com Ivete, e foi embora cheia de dúvidas.
Enquanto dirigia de volta para casa, Marilda foi pensando em
tudo que Ivete havia lhe dito.
"Ela parece tão segura do que fala. Como pode aceitar tudo com
tanta naturalidade? Será que é mesmo da maneira como ela
pensa? Será que existe mesmo vida depois da morte? Será que
os mortos podem mesmo se comunicar? São muitas as
perguntas e poucas as respostas. Desde criança, aprendi que eu
precisava fazer só o bem, senão iria para o inferno. Sempre
acreditei nisso e procurei fazer o bem; se não consegui, o mal,
com certeza, nunca fiz. Hoje, depois do que aconteceu com a
Fernanda, não quero nem consigo acreditar que exista um
inferno, onde as pessoas sofram por toda a eternidade. Não
quero aceitar, mas e se existir? A Fernanda estará queimando
no inferno? Não pode ser! Ela foi sempre muito boa. Não sei o
que fazer. Talvez seja uma boa idéia eu ir falar com a amiga do
Júlio... quem sabe ela consiga me tirar dessas dúvidas."
Chegou ao portão de sua casa, entrou e estacionou o carro na
garagem.
Coisas do destino
Entrou em casa .Renata estava na lavanderia, foi até ela e
perguntou sorrindo:
— Tudo bem por aqui?
— Está sim; e a senhora, como está?
— Estou bem, preciso telefonar.
— Um moço, chamado Júlio, telefonou e pediu que assim que
a senhora chegasse, telefonasse para ele.
Sem conseguir evitar, um brilho diferente surgiu em seus
olhos. O brilho foi tão intenso, que até Renata percebeu:
— A senhora ficou feliz com isso que falei?
— Muito! Vou telefonar!
Marilda saiu correndo da lavanderia, foi para seu quarto, deitou,
pegou o telefone e discou o número do consultório. Alguém
atendeu. Ela perguntou por Júlio. Pediram que
esperasse.Alguns segundos depois ouviu a voz dele:
—Marilda! Que bom que telefonou! Desde que cheguei estou
esperando que me telefonasse.
—Telefonei logo cedo, mas você ainda não havia chegado. Tive
que sair e acabei de chegar.
—Ainda bem que telefonou. Vou ficar aqui até as sete horas,
depois disso poderemos jantar?
—Está me convidando?
—Claro que sim. Estou morrendo de saudade e quero saber
como foi o resto da sua viagem! Você aceita?
—Está bem, aceito. Também estou morrendo de saudade e
preciso conversar com você a respeito daquilo que me falou
sobre Fernanda e sobre a amiga da sua mãe.
—Pensou no assunto?
—Sim, e muito.
—Quer falar com a Lia?
—Sim, acha que ela falará comigo?
—Claro, ela é uma pessoa muito boa e gosta de falar sobre esse
assunto. Vou telefonar para a minha mãe e ver se ela marca
com a Lia. Agora, preciso desligar, tenho paciente me
esperando. Até a noite. Você vem até aqui ou quer que eu vá te
buscar?
— Eu vou até aí. Assim nos encontraremos mais rápido.
—Está vendo por que te amo? É uma mulher prática e decidida.
Até mais.
Ela sorriu e desligou o telefone.
"Ele é mesmo maravilhoso! Que bom que surgiu em minha
vida! Acho que estou amando mesmo! Preciso me preparar
para o nosso encontro, quero estar bem bonita. Vou até o
cabeleireiro preciso dar um jeito nos cabelos, fazer as unhas."
Passou o resto da tarde se preparando. Quando voltou para
casa, já eram seis horas. Estava em frente ao espelho dando os
últimos retoques, quando, de repente, pensou:
"Nossa! Com toda essa correria, esqueci completamente da
Fernanda. Desculpe minha amiga, mas isso não se repetirá!
Prometo que não vou te esquecer, nem só mais um dia. Vou
tentar conversar com você através da tal Lia. Vai ser difícil ela
me convencer. Como disse a Ivete, preciso tomar cuidado para
não ser enganada. Não acredito nessas coisas, mas, se houver
uma chance de saber como você está, eu vou tentar."
Ela, que durante toda a tarde estivera feliz com a expectativa do
encontro, naquele momento ficou triste e sentindo-se culpada
por ter esquecido a amiga. Olhou mais uma vez para o relógio,
estava na hora e precisava sair. Saiu. Faltavam dez minutos para
as sete quando chegou ao consultório que ficava em um prédio
no centro da cidade. Entrou no elevador, apertou o quinto
andar. A porta se abriu, ela saiu olhando para os números que
estavam nas portas. Encontrou o número cinquenta e três,
parou. Na porta, estava escrito com letras douradas: Dr. Júlio
César Coutinho. Um pouco abaixo, outra placa menor escrito,
Entre. Era atrás daquela porta que ele a estava esperando. Seu
coração bateu forte, respirou por três vezes, virou a maçaneta e
entrou. Lá dentro, uma moça, que estava sentada atrás de uma
mesa sorriu:
— A senhora é a dona Marilda?
— Sim, sou.
— O doutor Júlio pediu que a senhora, por favor, esperasse,
pois chegou um cliente de última hora. Pediu também que eu
lhe servisse água, refrigerante ou café.
— Não, obrigada, não é preciso. Posso me sentar?
— Claro que sim. Tem aí algumas revistas, fique à vontade.
Marilda sentou e pegou uma revista, abriu e fingiu ler. Pois na
realidade, estava tão ansiosa por aquele encontro, que não
conseguia concentrar-se na leitura. Enquanto fingia ler, olhou
por toda a sala. Era decorada em cores alegres. O ambiente era
agradável. Ficou ali, olhando a todo instante para a porta,
esperando que ela se abrisse, pois ali julgava ser o consultório.
Não saberia dizer por quanto tempo esperou, mas parecia ser
uma eternidade. Na realidade, passaram só dez minutos e a
porta se abriu. Um senhor saiu e logo atrás Júlio, com seu
sorriso permanente. Despediu-se do paciente, que saiu.
—Você chegou! — disse voltando-se para ela.
— Que bom, fiquei com medo que não viesse. Olga, agora você
já pode ir.
—Está bem doutor, até amanhã. Boa noite.
—Boa noite.
A moça se levantou, olhou para Marilda, despediu-se e saiu.
Assim que a porta se fechou atrás dela, antes que Marilda se
desse conta, Júlio, num impulso, a abraçou e beijou com
paixão. Ela, a princípio, se assustou, mas depois se entregou
àquele beijo. Beijaram-se com saudade até que, finalmente,
resolveram que estava na hora de sair. Antes, porém, a levou
para dentro do consultório. Mostrou seus aparelhos, que para
ela eram complicados, e explicou como funcionavam, depois
saíram.
Quando chegaram à porta do prédio, ele perguntou:
—Onde deixou o seu carro?
—Ali, naquele estacionamento, do outro lado da rua.
—O meu está na garagem do prédio. Vamos fazer o seguinte:
esse estacionamento fecha às oito horas. É melhor irmos no
seu carro, pois o meu posso pegar a qualquer hora.
— Está bem; você dirige?
— Se preferir, para mim não há problema algum.
Atravessaram a rua, pegaram o carro e foram para um
restaurante elegante, que, segundo Júlio, tinha uma comida
muito boa. Sentaram-se. Júlio olhou sério para ela, dizendo:
—Que tal, para comemorarmos esse nosso reencontro,
tomarmos champanhe?
—Adoraria, embora não seja de beber muito... Mas hoje é um
dia especial.
—Também não bebo. Sou cardiologista e sei os riscos da bebida
para o coração. Mas um pouco não faz mal, até faz bem.
Comeram, beberam e, quando Marilda quis falar sobre
Fernanda, ele a interrompeu.
—Não vamos falar sobre tristezas. Hoje, quero que seja só de
felicidade. Conversaremos sobre isso em outra hora.
Ela sabia que ele tinha razão, aquele assunto poderia ficar para
depois. O que mais queriam era aproveitar aqueles momentos.
Quando terminaram de comer e estavam saindo do restaurante,
ele disse:
—Agora, o que vamos fazer?
—Não sei, estou à sua disposição, Júlio.
—Está mesmo? — disse sorrindo e piscando um olho.
Ela percebeu o que havia dito, ficou envergonhada. Ele,
percebendo o seu constrangimento, disse rindo:
—Por que está envergonhada? Também estou à sua disposição.
Temos duas opções, podemos ir a um teatro, cinema, ou ir para
um lugar tranquilo e colocarmos o nosso amor em dia.Você é
quem escolhe.
—Estou gostando da segunda opção. Para onde quer me levar?
Confio inteiramente em você — ela disse sorrindo.
—Gostaria mesmo de te levar para a minha casa, mas lá estão a
minha mãe e os meus filhos. Por enquanto, não ficaria bem.
Vamos esperar mais um pouco. Podemos ir para um hotel
passarmos a noite. Garanto que não vai se arrepender. Que
acha?
Ela, sem titubear, aceitou. Foram para um hotel, pediram uma
suíte. Passaram toda a noite se amando, matando a saudade.
Pela manhã, ao acordar, Marilda viu que ele não estava deitado
ao seu lado. Lembrou do que havia acontecido em Veneza e
não se preocupou. Virou, fechou os olhos e ficou pensando em
tudo que havia acontecido naquela noite. Sorriu feliz.
"Daqui a pouco, ele vai chegar me trazendo flores."
Passados alguns minutos, ela percebeu que a porta estava se
abrindo. Sorriu e fingiu estar dormindo. Ele se aproximou,
ajoelhou junto da cama, colocou a mão sobre a cabeça de
Marilda e, afastando os cabelos, beijou seu rosto. Ela, fingindo
estar acordando naquele momento, sorriu.
— Desculpe por te acordar, mas eu preciso ir para o hospital.
Há dois dias fiz uma cirurgia em um paciente, ele estava em
observação e agora a pouco recebi um chamado. Ele não está
bem, preciso ir até lá.
— Como ficou sabendo? Não ouvi o telefone!
— Eu sabia que ele não estava bem. Sabia que poderia ser
chamado a qualquer momento, por isso deixei o meu bipe
ligado à noite inteira. Ontem, você não o viu sobre o criado-
mudo?
—Vi, mas ele não tocou.
—Sim, mas, assim que você adormeceu e para não te
incomodar caso ele tocasse, coloquei o bipe no vibrador, sob o
meu travesseiro. Acordei agora a pouco com a vibração,
percebi que você dormia e fui até a recepção para telefonar e
ver do que se tratava. Sinto muito, mas preciso ir agora mesmo.
—Estarei pronta em um minuto — disse, levantando-se.
—Sinto muito, gostaria de ficar mais tempo ao seu lado.
—Não se preocupe Júlio, a noite que passamos foi tão
maravilhosa, que nada neste mundo poderia me deixar triste, a
não ser quando me lembro da Fernanda. Desculpe, já percebi
que não gosta de falar sobre ela.
—Não é que não goste, é que eu planejei o nosso reencontro
em todos os detalhes. Queria que fosse uma noite inesquecível.
Infelizmente, com a morte dela, percebi que se eu deixasse
você falar nela nada seria do modo como eu havia planejado.
Assim como você, fiquei abalado. Após conversar com você,
falei com a minha mãe e pedi que marcasse um encontro com
a Lia, disse que assim que fosse marcado eu te levaria. Não quis
te dizer ontem à noite quando nos encontramos, mas na
mesma tarde ela me telefonou dizendo que, se você quiser,
poderá ir a minha casa hoje à tarde. A Lia estará lá. Você quer
ir?
—Não sei, tenho um pouco de medo dessas coisas, mas, ao
mesmo tempo, morro de curiosidade e de vontade de saber
como a Fernanda está.
Terminaram de se vestir e saíram. Pegaram o carro e, enquanto
Júlio dirigia, falou:
—Vou telefonar para minha secretária e pedir que remarque os
meus pacientes para depois das seis horas. Acho que não são
muitos, uns dois ou três.
—Ir à sua casa? Conhecer a sua mãe? Confesso que isso me
assusta um pouco.
— Não precisa se assustar — disse rindo —, mas fique
preparada, pois, assim como todas as mães, a minha também é
ciumenta. Já falei com ela a seu respeito, disse que te amava e
que queria ficar com você para sempre.
—Contou que estamos juntos?
—Claro que sim!
—O que ela disse?
—Ela ficou um pouco desconfiada, mas, afinal, já tenho
quarenta e um anos! Sei bem o que quero da vida. Sei que ela
só quer a minha felicidade e tenho certeza de que também vai
te adorar. Agora, vamos até o meu consultório pegar o meu
carro. Assim que eu chegar ao hospital e atender o meu
paciente,vou te telefonar para dizer a que horas nos
encontraremos. Poderemos almoçar juntos e depois irmos para
a minha casa.
—Você pensa em tudo. Estou percebendo que se ficarmos
juntos para sempre, assim com diz, não precisarei me
preocupar com mais nada.
—Ao contrário, não pode imaginar nem por um minuto como
sou dependente.
—Não está me parecendo!
—Só estou querendo te impressionar, mas lá no fundo preciso
de alguém ao meu lado que me ajude com as pequenas coisas,
que detesto, tais como: pagar contas, cuidar do dinheiro e me
ajudar a comprar roupas. Não sou bom nessas coisas.
—Estou começando a acreditar que nos daremos muito bem,
pois eu adoro fazer todas essas coisas.
—Você ainda tinha dúvidas de que nos daríamos bem? Não sei
você, mas eu tenho certeza que te amo!
"Isso não pode ser verdade — pensou — é felicidade demais!
Esse homem é perfeito!"
No estacionamento do prédio, pegaram o carro de Júlio. Ela
ficou dentro do seu carro, esperando que ele saísse pela
garagem. Quando ele passou por ela, com a ponta do dedo,
mandou um beijo, que ela recebeu com outro e sorriu. Em
seguida, ligou o carro e saiu para lado contrário ao dele.
Enquanto dirigia, pensava
"Ao mesmo tempo em que estou feliz por tê-lo encontrado,
sinto um grande medo, pois sempre soube que a felicidade
nunca pode ser completa. Mas, de qualquer maneira, vou viver
o momento. Com certeza, esse momento está sendo
maravilhoso!"
Chegou em casa . Ainda era muito cedo, Renata não havia
chegado. Foi para o seu quarto e deitou. Queria relembrar
daquela linda noite e do amor que teve com Júlio.
"Também, não tem como não amar um homem igual a ele! Não
sei o que vai acontecer, mas sinto que não poderei deixá-lo
nunca! Eu, na realidade, jamais imaginei que o amor fosse isso.
Não conseguir esquecer nem por um segundo. Ver a todo
instante o seu sorriso e sentir o seu abraço e beijo. Não sei, mas
acho que não sou a mesma pessoa. Eu era tão forte e segura,
sabia bem o que queria da minha vida e, hoje, não sei quem
sou. Só quero ficar ao lado dele. Será que foi isso o que
Fernanda sentiu pelo Antero, quando o conheceu? Deve ter
sido por isso o seu desespero quando foi abandonada; dizia que
sem ele não existia vida. Sinto que, se perder o Júlio, será a
mesma coisa. Não consigo mais imaginar a minha vida sem ele.
Não quero nem pensar nisso!"
Ouviu um barulho que vinha da cozinha, levantou e foi até lá.
Renata estava junto ao fogão, disse feliz:
—Bom dia, Renata, mas bom dia mesmo!
—Bom dia, dona Marilda! Mas já está acordada? O que
aconteceu? A senhora está diferente! Acordou cedo por causa
da dona Fernanda?
—Não, acordei cedo porque passei uma noite maravilhosa e
descobri que dormir é perda de tempo! A vida está aí para ser
vivida! Sinto muito pela Fernanda. Hoje, talvez, eu entenda
melhor o que ela sentia. Hoje, sei o que ela queria dizer quando
dizia que amava o Antero, que ele era tudo na sua vida...
—Dona Marilda, a senhora está apaixonada?
—Está tão evidente assim?
—A senhora nunca falou dessa maneira, foi sempre muito
quieta. Agora, os seus olhos estão brilhando!
—Não sei se estou apaixonada, só sei que estou feliz!
—Que bom, fico contente. A senhora merece ter um amor
verdadeiro. Quero de coração que a senhora seja feliz.
— Obrigada, não sei se serei feliz para sempre, mas enquanto
durar vou aproveitar. Estou com fome! Hoje quero comer tudo
que tenho direito, Renata.
— A senhora merece! Já vou preparar.
O telefone tocou e Renata ia atender, mas Marilda disse:
—Pode deixar que eu atendo. Prepare o meu café. Foi para a
sala, pegou o telefone e atendeu:
—Alô!
—Alô. Estou no hospital e já atendi o meu paciente.
—Como ele está?
—Está reagindo melhor do que eu esperava. Já confirmei para
hoje à tarde a nossa ida lá em casa. Está disposta?
—Um pouco receosa, mas assim mesmo eu vou. Preciso tirar as
dúvidas que tenho em relação à morte da Fernanda.
—Está bem, preciso ficar aqui até uma hora, mais ou menos.
Assim que sair eu te telefono. Acho melhor eu ir até aí para te
pegar, Marilda, não faz sentido usarmos dois carros.
— Boa idéia, estarei te esperando.
— Só tem um detalhe!
—Que detalhe?
—Você não me deu o seu endereço, como chegarei aí?
Ela deu o endereço e, rindo, disse:
— Sou uma donzela misteriosa! Moro em um castelo com a
minha madrasta que não é nada boa. Na realidade, é uma bruxa!
—Não se importe com isso, chegarei com o meu cavalo branco
e te resgatarei das mãos dela. Se estiver morta ou dormindo, te
beijarei e você acordará num instante!
—Sei disso, você é o meu príncipe encantado, te amo!
—Também te amo. Até mais, um beijo!
Desligou o telefone. Renata, na cozinha, ouviu toda conversa e
sorriu. Marilda, parecendo pisar em nuvens, foi para o seu
quarto. Deitou pensando:
"Isso não pode estar acontecendo! Que bobagem foi aquela que
eu disse sobre castelo, madrasta e príncipe? Pareço ter quinze
anos! Mas, é muito bom! Estou feliz!"
Tomou café, andou de um lado para o outro dentro de casa, até
que finalmente, Júlio voltou a telefonar avisando que estava
saindo do hospital e indo para lá. Ela se vestiu bem, porém com
discrição. Afinal, iria conhecer a mãe dele e queria causar boa
impressão. Depois de vestida, foi para a cozinha,
— Renata , como estou?
Renata a olhou de cima a baixo, disse sorrindo:
—A senhora está linda! Não é só a roupa, a sua beleza vem de
dentro pra fora! Está mesmo apaixonada!
—Estou sim e muito feliz!
—A senhora merece! Vai almoçar com ele?
—Vou e depois ele vai me levar até a sua casa para que eu
conheça a sua mãe...
—Que bom, sei que ela vai gostar da senhora! A senhora é
muito boa e merece ser feliz.
—Obrigada, mas, na realidade, eu vou encontrar uma mulher
que diz falar com os mortos. Vou tentar falar com a Fernanda.
Estou com um pouco de medo. Você acredita nisso?
—Claro que acredito. O Altair começou ir a uma casa espírita,
depois eu também fui, gostei e vamos sempre.
—Eu não sabia disso!
—Nunca comentei porque sempre soube que a senhora não
acreditava. Nós gostamos muito. Depois que comecei a estudar,
entendi muita coisa que acontece na minha vida e estou
procurando fazer o melhor para viver bem. De vez em quando
eu me revolto com a minha situação, mas logo depois aceito.
Sei que tudo tem um motivo e que tudo vai passar. Sei que
Deus está sempre com a gente, dando força, e sempre que a
gente precisa, Ele manda uma ajuda.
Eu estava desempregada, precisava trabalhar, mas não tinha
com quem deixar as crianças. Fiquei nervosa e com fé pedi
ajuda. Não sei se foi isso, mas logo depois a prefeitura fez, lá no
bairro, uma creche. Aí eu tinha onde deixar as crianças, mas
não tinha emprego. A senhora apareceu na minha vida e só
posso agradecer a Deus. Apesar de tudo, eu gosto muito do
Altair e ele de mim. Assim a gente vai tocando a vida. Sou
feliz, tenho os meus filhos, perfeitos e com saúde. Aprendi
também que Deus não erra, por isso tudo está sempre certo.
Pode ter certeza disso...
—Isso é o que nos foi ensinado pelos poderosos, desde o início
dos tempos, Renata! Criaram vários deuses para fazer com que
o povo aceitasse tudo e não lutasse por seus direitos!
—Não, dona Marilda, não é assim! Eu não aceito injustiça!
Quando vejo uma, luto muito.
Quando pedi a Deus um lugar para deixar os meus filhos, junto
com outras pessoas, fundamos uma sociedade de amigos do
bairro e, através dela, conseguimos assinaturas. Fomos até a
Prefeitura, falamos com muitas pessoas, até que resolveram
fazer a creche. Aceitar tudo não quer dizer ficar parado, sem
fazer nada, nem esperar que tudo caia do céu! Essa conversa
está boa, mas preciso dar os últimos retoques, o Júlio já deve
estar chegando.
—Dona Marilda, vá sem medo. Se for permitido por Deus, a
senhora vai falar com a dona Fernanda.
—Assim espero. Estou curiosa. Outro dia continuaremos
falando sobre esse assunto.
—A senhora vai me contar o que acontecer lá?
—Claro que vou.
Voltou para o quarto, olhou mais uma vez no espelho, ajeitou
um fio de cabelo que estava fora do lugar. Sorriu, olhou através
da janela, exatamente no momento em que Júlio estacionava o
carro. Saiu correndo em direção a ele. Quando chegou perto,
sorriu ao ver que ele estava todo atrapalhado junto ao portão
procurando a campainha. Ao vê-la, sorriu.
—Por que as campainhas ficam sempre escondidas?
—Ela não está escondida! Está do outro lado!
Ele olhou e, ainda sorrindo, disse:
—Você não me deu tempo para procurar!
—Eu estava ansiosa te esperando... por isso, olhava pela janela
a todo instante.
Entraram no carro. Renata, olhando pela janela da sala, viu os
dois, sorriu pensou:
"Ele é um homem bonito! Tomara que faça a dona Marilda
feliz. Ela merece."
Júlio começou a dirigir e a levou ao mesmo restaurante da noite
anterior. Comeram e ele não permitiu que ela falasse sobre
Fernanda, Lia ou na sua mãe. Apenas quis relembrar os dias
que ficaram juntos na Itália. Riram muito quando lembraram
do susto que ela levou ao acordar e ver que ele não estava ao
seu lado. Ela disse, fazendo uma careta:
—Hoje estou rindo, mas naquele dia sofri muito!
—Sofreu sem necessidade, por uma coisa que só estava na sua
cabeça. Bem, agora que terminamos de comer, acho que está
na hora de irmos.
—Está bem, só espere um pouco. Quero retocar a minha
maquiagem e arrumar os meus cabelos. Preciso causar boa
impressão à sua mãe.
—Pode ir, mas não precisa, a minha mãe não vai olhar para a
sua aparência, ela enxerga mais além.
—Tem certeza?
—Claro que tenho, eu a conheço desde que nasci!
—Está bem, mas mesmo assim prefiro chegar impecável.
Quero que ela goste de mim.
Saiu em direção ao banheiro. Ele ficou para pagar a conta. Na
rua, entraram no carro. Marilda continuava pisando em
nuvens. Estava distraída, conversando, quando percebeu que
ele estava indo em direção a sua casa.
—Está indo para a minha casa, Júlio?
—Estou , durante o almoço pensei bem e resolvi que não vou
te levar para conhecer a minha mãe...
Ela, sem entender e preocupada, perguntou:
— Resolveu isso durante o almoço?
— Foi.
— Fiz ou disse algo que te desagradou? Está com vergonha de
me levar para conhecer a sua mãe?
—Não sei bem qual foi o motivo, mas não quero te levar hoje.
Quem sabe outro dia.
Ela ficou calada, pensando:
"Eu devia saber que isso não poderia durar muito tempo, era
bom de mais. Claro, como fui burra! Como ele poderia levar
uma velha e apresentar como sua namorada? Bem, acho que o
sonho terminou."
Ele entrou com o carro na rua em que ela morava, passou por
sua casa, que ficava na esquina, mas não parou.
— Você não vai parar? A minha casa é aqui!
Ele não respondeu, continuou dirigindo até a próxima esquina
o parou o carro. Olhou para ela e, sorrindo, disse:
—Vamos descer?
—Vai fazer com que eu ande até a minha casa?
—Não, vou fazer com que entre nesta!
Ela olhou para a casa que ficava na outra esquina da rua em que
morava. Já vira aquela casa muitas vezes, achava-a linda, mas
não conhecia os moradores.
—De quem é essa casa?
—É a minha casa!
—Não acredito! Você mora aqui?
—Sim, faz muito tempo.
—Por que não me disse? Por que me assustou dizendo que
estava me levando para a minha casa?
—Para que você parasse de pensar que não estou sendo sincero
e acredite que te amo e que te apresentarei a todos meus
familiares e amigos.
—Você gosta de me assustar.
—Isso acontecerá até o dia que acreditar em mim.
—Não acredito que somos vizinhos!
—Nem eu acreditei quando você me deu o seu endereço.
—Pensar que precisamos ir até a Itália para nos encontrar. Não
acredito mesmo!
—Coisas do destino! Talvez, antes disso, não estivessem
prontos para nos conhecer. Não estava na hora.
—Deve ter sido isso mesmo.
—Tudo na nossa vida tem hora certa. Ainda bem que nossa
chegou. Vamos entrar?
— Estou um pouco nervosa, será que a sua mãe vai me
aceitar, gostar de mim?
—Claro que sim, não se preocupe!
Antes de descer do carro, Marilda abriu a bolsa, tirou um
pequeno espelho, se olhou, passou nos lábios um pouco de
batom, depois olhou para Júlio, ansiosa:
—Como estou?
—Está linda! Vamos, a Lia já está aí.
—Como você sabe? — perguntou intrigada.
—Esse carro que está aí na nossa frente é o dela. Vamos?
Ela olhou mais uma vez no espelho, sorriu e o guardou.
Desceram. Júlio abriu o portão, ela entrou na frente.
Estavam na metade do caminho para chegarem à porta da
frente da casa, quando ela se abriu e por ela saiu uma senhora.
—Até que enfim chegaram! Boa tarde, você é a Marilda, não é?
Sou Rosa, a mãe do Júlio! Estou feliz por ter vindo à minha
casa! Seja bem-vinda — disse, enquanto beijava Júlio.
Estendeu a mão para Marilda, que a recebeu sorrindo.
—Muito obrigada, também estou feliz por estar aqui.
—Venha! Vamos entrar. O Júlio falou muito bem a seu respeito
e confesso que estava curiosa para te conhecer.
Marilda sorriu, não sabia o que falar, pois estava emocionada.
Entraram.
Assim que entraram na sala, Marilda deu uma olhada rápida e
pôde ver que era grande e com móveis modernos e coloridos.
Achou linda. Bem em frente à porta, viu uma fonte grande,
enfeitada com plantas e pedras.
—Essa fonte é linda! — disse encantada.
—É sim. Gosto muito dela. O barulho da água nos traz
harmonia e paz. As energias fluem melhor e todos se sentem
bem aqui em casa.
—Tem razão, ela é linda mesmo!
—Venha até a cozinha, Lia está lá. Normalmente, recebo as
visitas na sala, mas não te considero uma visita. Já faz parte da
família. Acho que a cozinha é o melhor lugar da casa para se
conversar, pois enquanto conversamos poderemos ir tomando
um café ou suco. A Lia acabou de chegar e eu estou preparando
um café. Quer um também?
—Gostaria dona Rosa.
Entraram por uma porta e deram com uma cozinha grande, no
seu centro uma mesa, com cadeiras à sua volta, e em uma delas
estava sentada uma senhora sorridente. Ao vê-los, levantou-se
e estendeu a mão para Marilda, dizendo:
—Boa tarde, como vai? Sou a Lia!
—Boa tarde, sou Marilda. Dadas as circunstâncias, estou bem...
Gostaria de estar melhor...
—Entendo, a Rosa me contou sobre a sua amiga. Foi muito
triste, mas Deus é nosso Pai e não nos abandona nunca.
Antes de Marilda dizer qualquer coisa, Rosa disse:
—Sei que acabaram de almoçar, por isso, agora, vamos só
tomar um café e depois que conversarmos faremos um lanche.
Marilda, aos poucos, foi ficando à vontade. Sentou-se em uma
das cadeiras e Júlio sentou-se ao seu lado. Rosa serviu o café e
tomaram. Marilda estava se sentindo bem naquela casa. Rosa a
recebeu muito bem e parecia sincera. Lia, levando a xícara aos
lábios, disse:
—A Rosa me contou que a sua amiga morreu de uma forma
estranha. Como foi?
Os olhos de Marilda encheram-se de lágrimas.
—Foi. Infelizmente, ela se suicidou...
—Isso é terrível para o espírito. Em um momento do
desespero, a pessoa comete um ato como esse, sem imaginar as
consequências que terá de enfrentar pela frente.
—É isso que está me deixando mais aflita. Ela foi sempre muito
boa. Claro que, como todo mundo, teve acertos e erros, mas
posso garantir que a conhecia muito bem e sei que ela deve ter
tido mais acertos. Sempre acreditou em Deus e criou a filha
ensinando o caminho do bem.
—Vocês eram muito ligadas, não?
—Sim, nos conhecemos desde crianças.
—Ela estava triste por algum motivo?
—Foi abandonada pelo marido e não conseguia aceitar essa
separação, pois foi sempre muito dedicada a ele e à filha.
Sempre foi uma esposa e mãe exemplar.
—Nesta vida, temos que passar por algumas provas para que
possamos vencer as nossas fraquezas. Normalmente passamos,
pois para isso temos ajuda, muita ajuda...
—Ela não teve! Deus a abandonou!
—Não, Deus nunca nos abandona. Sempre temos ao nosso lado
um ou mais amigos espirituais que nos ajudam e intuem nos
bons e maus momentos, principalmente na hora da passagem
e, mais ainda, quando se está perto de cometer um suicídio.
Eles ficam o tempo todo, tentando nos tirar aqueles
pensamentos destrutivos e sofrem muito quando não
conseguem.
—Se fosse assim, ninguém se suicidaria!
—Eles podem intuir e mandar bons pensamentos, mas não
podem interferir. Existe uma Lei maior, a do livre-arbítrio, e
por ela cada um de nós é responsável. Por isso, só nós podemos
decidir o que fazer com a nossa vida e com tudo mais.
—Já ouvi falar em livre-arbítrio. Aprendi sobre ele na
faculdade, quando estudei Direito. Mas como uma pessoa que
está triste e doente pode exercer o seu livre-arbítrio?
—Sempre se pode exercer o livre-arbítrio. Como te disse,
sempre teremos ajuda para que isso aconteça.
—Então, quer dizer que não há salvação para Fernanda e que
ela estará, realmente, condenada por toda a eternidade?
—Ela terá que arcar com as consequências dos seus atos, sim.
Terá que resgatar esse erro que, diante de Deus, é o mais
terrível e de difícil resgate. Mas não pela eternidade. Deus,
nosso Pai, não permitiria. Depois de algum tempo, sofrendo
muito em um vale de sombras, provavelmente retornará para a
Terra, em uma situação não muito boa. Terá uma vida com
muitos problemas e até poderá nascer com alguma doença
grave ou um defeito físico, mas sempre terá a chance de se
redimir. Como disse antes, Deus não nos abandona.
—Está falando em renascer na Terra? Em reencarnação?
—Isso mesmo. Na Terra ou em qualquer outro planeta.
Lembre-se, Jesus disse: Existem muitas moradas na casa do meu
Pai. Estou, sim, falando de vida após a morte. Depois da nossa
morte, existe uma vida vibrante.
—Desculpe, mas não acredito nisso! Ninguém voltou para nos
contar se tudo isso é verdade.
—Muitos voltaram e nos contaram. Eu acredito piamente.
—Pois eu não. Acho que tudo isso faz parte de uma grande
mentira para que as pessoas se tornem presas fáceis dos
charlatões e embusteiros. Ou, também, para que as pessoas se
tornem fracas e possam ser guiadas, aumentando, assim, o
poder daqueles que as guiam. Para ser sincera, não acredito em
religião alguma, só mesmo em Deus.
—Todas as religiões são boas. Elas servem para nos ajudar a
distinguir o bem do mal. Muitas pessoas passam pela vida
fazendo caridade, ensinando, aprendendo e ajudando as
pessoas, sem nunca ter tido, querido ou precisado seguir uma
religião. Outros precisam ter alguém que lhes guie, ensine o
caminho. Caminhos esses que são muitos e que pretendem
levar, cada um a sua maneira, ao mesmo destino: Deus.
Embora o ser humano viva muito pelo dinheiro e aparência, lá
no fundo, bem no fundo, seu espírito sabe que existe uma vida
após a morte. Ele traz consigo lembranças. Você pode notar
que todos precisam acreditar em algo mais, em um ser superior.
De uma maneira ou de outra, todos têm a sua crença e a
esperança de encontrar a paz e a felicidade depois da morte.
—Eu tenho essa esperança, só não acredito que se possa
retornar um dia. Acho que quando se morre é para sempre,
Lia.
—Pois é bem ao contrário. Quando se morre, a vida continua,
temos muito a aprender e trabalhar.
—Trabalhar?
—Isso mesmo. A vida, mesmo depois da morte, não teria
sentido se não tivéssemos o que fazer. Os espíritos estão
espalhados pelo Universo todo, ajudando as pessoas nas horas
de tormento e vibrando com elas nas horas de felicidade.
Existem muitas equipes de trabalho. Existem médicos que
fazem curas milagrosas e que, na maioria das vezes, a pessoa
que foi curada nem imagina que contou com a ajuda deles.
—Não consigo acreditar em tudo isso, Lia.
Mas devia, já que, agora mesmo, acabou de entrar aqui um
médico.É um senhor de cabelos levemente grisalhos, com
bigode; está sorrindo e mandando-me dizer:
"Milinha, estou feliz por te ver. Sei que você tem cumprido
muito bem os seus compromissos assumidos antes de nascer;
que Deus te abençoe."
Marilda deu um pulo da cadeira e se levantou no susto;
chorando, gritou:
— Não pode ser! Não pode ser!
Júlio, que se assustou com a reação dela, também se levantou,
perguntando aflito:
—Que aconteceu, por que você está assim?
Ela não conseguia falar, chorava e ria ao mesmo tempo. Rosa e
Júlio estavam aflitos, mas Lia olhou à sua frente e sorriu,
agradecendo em pensamento.
"Obrigada, meu irmão, por se fazer presente."
"Eu sempre estive ao lado dela. Só agora me fiz presente, neste
momento difícil pelo qual está passando, para que ela saiba que
Deus, nosso Pai, não nos abandona nunca."
Enquanto Lia conversava com o médico, Rosa, assustada e
aflita, pegou um copo de água e ofereceu para Marilda, que não
conseguia parar de chorar.
Júlio, também assustado, segurou-a pelos ombros e, olhando
em seus olhos, disse firme:
—O que aconteceu? Por que está chorando dessa maneira?
Precisa se controlar! Respire fundo!
Ela enxugou os olhos com as mãos e respirou fundo. Após
alguns segundos, tentando voltar ao normal, disse:
—Lia! Não pode ser! É verdade mesmo?
—Não sei, eu apenas repeti o que ele disse.
—Não pode ser! Não pode ser!
—Não pode ser o quê, Marilda? — perguntou Júlio, aflito.
—A única pessoa, neste mundo, que me chamava de Milinha
era o meu pai! Ninguém mais! — disse chorando.
—É verdade? Está achando que o seu pai está aqui?
—Só pode ser, pois ninguém mais me chamava assim!
—É ele mesmo — disse Lia —, bendito seja Deus. Agora você
está tendo a prova de que tudo aquilo que falei é verdade.
Existe, sim, a vida após a morte e trabalho também. Seu pai faz
parte de uma equipe de médicos que continua tratando das
pessoas, vivas ou mortas. Ele está sorrindo e pedindo para eu
dizer que trabalha muito! Muito mais do que trabalhava quando
estava aqui na Terra.
—Não pode ser, não pode ser.
—Pode, sim! Ele está aqui e te manda um beijo, disse que não
pode ficar mais. Precisa ir embora, mas que te deixa a sua
benção e a certeza de que tudo ficará bem. Para que não se
desespere, pois a verdade sempre aparece e a justiça é sempre
feita. Está pedindo para que feche os olhos e agradeça a Deus
pela vida e por tudo que te deu.
—Espere! Ele não pode ir embora assim, tenho muitas coisas
para perguntar! Papai! Fique por favor...
—Ele não pode ficar mais. Disse que você não precisa fazer
perguntas, pois todas elas terão respostas. Disse, também, que
não pode ficar mais, porque você sabe que ele sempre deixou
tudo de lado para atender um paciente e que agora tem muitos
que precisam do seu atendimento. Pediu que fechasse os olhos.
Ela conhecia o pai, sabia que ele não era de falar muito. Sabia
também o quanto ele a amava. Obedeceu, fechou os olhos.
—Papai, obrigada por ter vindo. Se puder, ajude a Fernanda. O
senhor a conhecia e sabe como ela foi sempre muito boa e
minha amiga. Acho que ela está precisando de ajuda.
Não ouviu o que ele dizia. Apenas sentiu um leve frescor em
seu rosto, como se estivesse recebendo um beijo. Realmente
seu pai a beijava, e dizia:
— Deus te abençoe, minha filha, e não se preocupe com a
Fernanda, ela ficará bem. Até mais.
Ao sentir aquele frescor no rosto, as lágrimas voltaram a cair de
seus olhos, só que agora não eram mais de susto ou aflição, mas
de felicidade, de amor e de esperança no amanhã. Marilda sabia
que um dia em algum lugar, reencontraria seu pai, sua mãe,
Fernanda e todos aqueles que partiram e por quem tanto
chorou. Estava feliz e tranquila. Sabia que o seu pai não
abandonaria Fernanda e que, daquele dia em diante, ela estaria
protegida.
Júlio e Rosa, acostumados e acreditando em tudo, pois já há
muito tempo haviam tomado conhecimento da doutrina,
pegaram um de cada lado, na mão de Marilda, que pegou na de
Lia, formando assim uma corrente. Júlio disse, emocionado:
—Obrigado, meu Deus, por mais essa prova do Seu amor por
nós. De nosso coração só pode partir a felicidade por termos
conhecido, através dos Seus ensinamentos, a grandiosidade da
Sua obra. Continue nos abençoando.
Lia também estava tranquila. Mais uma vez, através dela, Deus
pôde se manifestar. Ela só tinha a agradecer aquele dom, que
Ele havia lhe dado, e pedia sempre que a ajudasse para que ela
nunca o usasse se não fosse para o bem, para ajudar as pessoas.
Marilda, um pouco mais calma, embora tivesse certeza que seu
pai estivera ali, estava confusa e emocionada.
—Sei que foi o meu pai mesmo quem esteve aqui, mas se ele é
um espírito deve saber e ver tudo! Por isso, ele deve saber de
minha angústia em relação à Fernanda. Por que não me contou
o que realmente aconteceu com ela? Por que não disse se
realmente ela se matou? Ele deve saber que eu estou
desesperada, Lia...
—Nem sempre o espírito sabe o que acontece. O morrer não
significa santidade ou poder. Cada um volta para o Pai
exatamente como era com seus defeitos e qualidades. A morte
não lhe dá poderes especiais. Por isso, mesmo amando àqueles
que deixaram aqui, embora querendo, nem sempre podem
ajudar. Cada um tem seus próprios compromissos na evolução
do seu espírito. Talvez ele até saiba o que aconteceu de
verdade, mas não possa dizer, pois tudo tem que acontecer da
maneira e na hora certa. Ele esteve aqui, sim, apenas para que
você repense a sua vida e as suas crenças. Para que saiba que,
não importa se vivos ou mortos, a nossa vida continua e, com
ela, todos os nossos deveres e obrigações. Por isso, temos que
ter muito cuidado com as nossas ações, pois delas depende o
nosso futuro espiritual.
—É tudo muito novo. Estou confusa e com dificuldades para
entender, e olhe que sempre me julguei muito inteligente.
—Não se preocupe tudo que precisar saber ou entender virá até
você. Está começando uma nova etapa da sua vida. Estudou, se
formou e é, hoje, uma profissional; está preparada para
enfrentar quase todos os problemas desta vida. Chegou à hora
de estudar e aprender para ficar preparada para os problemas da
outra vida, que ela, sim, é que tem o verdadeiro valor.
—Vim aqui para saber da Fernanda, para conversar com ela.
Pelo que estou vendo, isso não acontecerá...
—Hoje não, é muito cedo para falar com ela. Mas não foi esse o
motivo que te trouxe aqui. Na realidade, você veio tomar
conhecimento da vida eterna.
—Sim, pode ter sido isso, mas ainda estou preocupada com a
Fernanda. Preciso saber como ela está.
—Não se preocupe Marilda, ela está bem. Esqueceu o que eu
disse? Deus não nos abandona nunca.
—Está bem; mesmo se matando, Lia?
—Quem dá cabo de sua vida precisa reparar esse erro de
alguma maneira e, infelizmente, é sempre de uma maneira
dolorosa. Mas, mesmo assim, nunca fica abandonado à sua
própria sorte. Sempre terá ajuda e a oportunidade de reparar o
seu erro. O que você pode e todos nós podemos e devemos
fazer é rezar, enviar luz e amor para que ela, onde estiver,
possa descobrir que somente o amor, o perdão e o
arrependimento poderão lhe servir agora.
Não sabemos por onde, com quem e como estará caminhando,
só podemos tentar ajudá-la através do amor e da certeza que
Deus estará com ela.
—O que está dizendo não está me ajudando muito...
—É só isso que posso lhe dizer, pois é só isso que sei.
—É muito pouco! Preciso de mais!
—No momento, é tudo que precisa saber. Sinto muito si não
posso te ajudar mais. Talvez se frequentar uma casa espírita, ler
e estudar possa entender mais. Lembre-se de que a procura da
verdade é o melhor caminho para se conseguir a felicidade.
—Eu trabalho muito e estou aqui por estar em férias. Mas,
assim que voltar ao meu trabalho terei muito pouco tempo
livre. Não posso me dedicar a outra coisa além do trabalho.
—Não se preocupe. Tudo tem a hora certa, e, se você sentir
necessidade, encontrará tempo. Por hoje, não tenho mais o
que dizer. Está ficando tarde, preciso ir. Tenho que preparar o
meu jantar. Logo, todos estarão chegando em casa e estarão
com fome. Sinto muito não ter podido dar todas as respostas,
mas, também, não sei tudo. Assim como todos, também estou
caminhando e aprendendo a cada dia.
Pelo tom da voz de Lia, Marilda percebeu que o encontro havia
terminado.
—Desculpe, estou sendo ingrata, Lia. Eu deveria ter ficado feliz
só com a presença do meu pai. No entanto, você sabe como é o
ser humano, sempre quer mais.
—Sim, e isso é o que o torna diferente dos animais. O querer
saber, o querer mais foi o que impulsionou e ainda impulsiona a
humanidade. Eu entendo, pois também sou assim. Por querer
saber mais foi que estudei e me aprofundei. Por isso, hoje posso
te dizer que, apesar disso, não sei tudo e que tenho muito a
aprender. Só de uma coisa eu tenho certeza: do profundo amor
de Deus por todos nós. Agora preciso ir.
—Não, espere — disse Rosa. — Vamos tomar um lanche.
—Desculpe Rosa, mas ficamos conversando e não vimos o
tempo passar. Outra hora eu voltarei.
Marilda, sempre que precisar conversar me telefone.Anote o
meu número. Se precisar de mais algum esclarecimento, estarei
sempre disposta a conversar com você e tentarei responder a
todas as suas perguntas. Pelo menos as que eu souber.
Dizendo isso, Lia levantou-se, beijou Rosa, Júlio e, quando
chegou perto de Marilda, ela, constrangida, sabendo que havia
sido ingrata e mal-educada, disse:
—Lia, desculpe. Acho que, mesmo sem querer, te ofendi. Juro
que essa não foi a minha intenção.
—Não se preocupe com isso. Não estou ofendida, estou mesmo
atrasada. Quando começo a falar sobre a espiritualidade, me
esqueço do mundo, não vejo o tempo passar. Tenho ainda as
minhas obrigações com a minha família. Como te disse, já fui
assim como você: tive muitas perguntas, poucas respostas. Por
isso fui à busca delas e posso te garantir que encontrei respostas
para todas. Você está, agora, no início de uma nova vida. Tem
muito para aprender e aprenderá. Um dia, estará assim como
eu, passando para o outro aquilo que aprendeu.
Foi em direção à porta da sala, saiu. No portão, deu adeus tom à
mão, entrou no carro e foi embora.
Marilda também queria ir embora, mas Rosa, pegando em sou
braço, convidou-a para que entrasse novamente na casa.
— Vamos entrar — disse sorrindo —, ainda não tomamos o
nosso lanche. Eu preparei uma torta de palmito, sei que você
vai adorar! É a minha especialidade.
—Marilda , sei que não vai se arrepender. A torta da minha
mãe é realmente uma delícia. Venha, vamos entrar — disse
Júlio.
—Você chegou e não tivemos tempo para conversar. Quero te
mostrar o resto da casa. Afinal, esta é uma visita que se tornará
rotina.
O Júlio está muito impressionado com você e espero que sinta
o mesmo por ele. Fazia muito tempo que eu não via o meu
filho tão feliz. Obrigada. Por que está assim tão preocupada?
—Acho que ofendi a Lia. Ela, com tão boa vontade, tentou me
ajudar... E eu fui indelicada...
—Ora! Nada disso! A Lia não se ofende facilmente. Ela tem
mesmo que fazer o jantar, já a conheço há muito tempo. Eu sei
que se a tivesse ofendido ela te responderia à altura. Ela não é
de levar desaforo para casa! Vamos entrar!
—Embora a senhora e ela mesma tenham dito que não a
ofendi, sinto que exagerei. Estou confusa com tudo que
aconteceu. Não vim preparada para sentir a presença do meu
pai. Para dizer a verdade, nem estava pensando nele. A minha
única preocupação era saber sobre a Fernanda.
—Não se preocupe, ela entende muito bem a sua situação.
Todos já passamos por isso. Eu mesma quase a expulsei quando
me disse que a Isaura estava aqui na minha casa.
Disse essas palavras olhando para Júlio, que, percebendo que
ela estava embaraçada, disse:
— Pode continuar mamãe, eu contei tudo para a Marilda.
—Pois é; para você ver, eu, que também era assim como você,
não quis acreditar e fiquei furiosa. Lia, com toda a paciência do
mundo, me esclareceu e, hoje, eu agradeço muito a ela por
isso. Vamos entrar? Convidou Rosa.
Entraram, mas, por mais que Rosa e a própria Lia dissesse que
não estava ofendida, Marilda não estava bem. Sentaram ao
redor da mesa e comeram a torta, que estava realmente muito
boa. Marilda se deliciou.
Rosa mostrou a casa, conversaram muito sobre a vida e sobre
os filhos de Júlio, que não estavam ali naquele momento. Aos
poucos, Marilda foi ficando à vontade. Falou de sua vida, de seu
pai e da imensa felicidade que estava sentindo por ter sentido a
presença dele e por saber que, em algum lugar, ele estava vivo
e que também, um dia, voltaria a vê-lo.
Acabou ficando para o jantar. Já eram quase dez horas da noite
quando Júlio a levou para casa.
Foram caminhando. Quando chegaram ao portão, ela
perguntou:
— Não quer entrar e conhecer a minha casa?
— Quero, sim, mas não só conhecer a sua casa, eu quero ficar
com você a noite toda.
Ela beijou o seu rosto e o encaminhou para dentro da casa.
Sabia que aquela seria mais uma noite de amor.
Notícias de Fernanda
Marilda e Júlio ficaram juntos naquela noite. Ao acordar pela
manhã, não cabiam em si de felicidade. Júlio, ainda deitado, a
abraçou, dizendo:
— Fazia muito tempo que eu não me sentia tão feliz assim.
Bendito aquele dia em que te encontrei lá em Roma e que você
precisava de ajuda e eu estava na hora e no lugar certo.
—E pensar que eu fiquei furiosa por minhas malas terem sido
extraviadas...
—É assim mesmo que acontece. Nem sempre o que parece
ruim na realidade é. Muitas vezes é só o destino trabalhando.
—Tem razão, quando eu poderia imaginar que aquela viagem,
que eu havia sonhado tanto, seria muito mais do que uma
simples viagem? Também estou feliz por ter te encontrado e
por estar com você aqui ao meu lado, Júlio.
—Também estou, mas não fique achando que vai ser sempre
assim. Terá que se acostumar com a minha rotina.
—Por que está dizendo isso?
—Esqueceu que sou médico e que muitas vezes tenho que sair
durante a noite para atender a pacientes? Esposa de médico tem
que ter muita paciência.
—Esposa?!
—Claro que esposa! Ou está achando que vai aproveitar só o
bom desta relação? Quero ser tratado por você com muito
carinho, ter uma casa para chegar, com uma mulherzinha
linda, amorosa e sorridente me esperando, com a minha
comida pronta.
—Acho que você é quem está esquecendo — disse rindo e o
beijando — que sou uma mulher que trabalha fora.
—Sei disso, mas quem sabe você resolva abandonar o seu
trabalho e viver só para nós...
—Sinto muito, mas não posso. Amo o meu trabalho e gosto de
me sentir útil. Estudei e trabalhei muito para chegar aonde
cheguei, não conseguiria abandonar tudo.
—Não faria isso nem mesmo para ser a minha esposa?
—Desculpe, mas não. Adoro-te, quero ficar ao teu lado para
sempre, mas, deixar o meu trabalho, não. Ainda mais depois do
que aconteceu com a Fernanda. Ela abandonou tudo para se
dedicar ao marido e a filha, e no final foi abandonada e ficou
sozinha. Sem saber o que fazer com a vida. Sem saber cuidar do
seu dinheiro, que ela na realidade nunca teve, pois o Antero se
encarregou de suprir todas as suas necessidades.
—Você não pode me comparar com o Antero! Sou diferente
dele e te amo e já te dei provas disso!
—Estou acreditando nisso e sou feliz, mas quando eles se
casaram também se amavam. Ninguém se casa para que haja
uma separação, a vida dá muitas voltas. Quero ficar ao teu lado,
mas continuarei trabalhando.Te garanto que será muito bem
cuidado, a Renata é especialista e muito eficiente.
—Está bem, não vamos ter a nossa primeira briga por isso. Se
quiser continuar trabalhando, não me oponho. A opção é sua.
Agora preciso ir, vou até em casa trocar de roupa e depois irei
para o hospital.
Ele se levantou. Ela também, se levantou e o acompanhou até a
porta. Beijando-a novamente, ele foi embora. Ela voltou para o
quarto, tornou a se deitar. Era ainda muito cedo.
Não fazia nem meia hora quando o telefone tocou. Ela se
assustou, pois quem fazia aquilo com ela era a Fernanda. Não
podendo imaginar quem seria, atendeu:
—Alô.
—Alô, meu amor! Estou te ligando para dizer que hoje pela
manhã a Lia telefonou para a minha mãe. Disse que precisa
falar urgente com você.
—Comigo?! Ela não disse sobre o que quer falar?
—Não disse, mas deixou o número do telefone e pediu que
você telefonasse o mais breve possível.
—Estranho o que será?
—Não sei, mas pode telefonar agora. Ela está esperando o seu
telefonema. Depois me conte sobre o que ela quer conversar
de tão urgente com você.
—Está bem, vou fazer isso agora mesmo.
Anotou o número e, assim que desligou , intrigada, telefonou
para Lia, que atendeu prontamente.
—Alô, Lia, sou eu, a Marilda. Desculpe, sei que ainda é cedo,
mas o Júlio disse que você queria falar comigo urgente.
—Queria muito, tenho uma notícia para te dar que com certeza
te deixará feliz, Marilda.
—Que notícia é essa?
—Tenho quase certeza que a sua amiga não se suicidou!
—Como?!
—É isso mesmo. Eu tive um sonho com ela e, da maneira
como estava, é sinal que não se suicidou. Pois se isso,
realmente, tivesse acontecido, ela estaria em uma situação
muito ruim.
—Mas se foi só um sonho, como sabe que é verdade e pode
falar com tanta certeza?
—Sei disso porque é assim que o meu guia se comunica
comigo, através dos sonhos. Ele me mostrou a Fernanda
dormindo, tranquila e muito bem.
—Não está dizendo isso só para me consolar?
—Não, eu não faria isso! Ela está bem, sim, e, se não se
suicidou, alguém a matou. O meu guia me mostrou como ela
está para que você fique tranquila e não se preocupe mais.
Quem a matou será castigado. Se não for nesta vida, com
certeza será na outra. Mande, em pensamento, muito amor e
luz para a Fernanda, garanto que lhe fará muito bem.
—Não sei se posso acreditar nisso que está me dizendo...
—Ainda tem dúvidas sobre a vida depois da morte?
—Claro que não! Eu não vi, mas senti a presença do meu pai, e
só poderia ser ele quem te mandou dizer aquelas coisas, era o
único que me chamava pelo apelido. Minha mãe brigava com
ele, mas não adiantava. Quando eu nasci, ela quis colocar o
nome da mãe dela, de quem por sinal ele não gostava. Sabe
como é , coisas de família — disse isso rindo —, por isso se
recusava a me chamar de Marilda e sempre me chamou por
Milinha. Não tenho como duvidar, sei que era ele mesmo...
—Está vendo que não tem motivo para duvidar do que estou te
dizendo. Só tem que agradecer a Deus por sua amiga estar bem.
Isso é o mais importante.
—Farei isso, mas quem a matou? Não te disseram?
—Não, esse assunto será resolvido pelo plano espiritual. Só
comunicam aquilo que é permitido. Mas não se preocupe,
tenho certeza que tudo será esclarecido. Deus é nosso Pai e não
nos abandona nunca! O importante é que ela esteja bem.
—Se realmente for verdade, estou feliz mesmo, e nem sei
como te agradecer por esta notícia.
—Não tem o que agradecer, só estou cumprindo a minha
obrigação. Quando recebo uma mensagem do meu mentor,
preciso transmitir o mais breve possível. Fico feliz por ela e por
você. Agora, preciso desligar. Tenho uma casa inteira para
cuidar. Até mais tarde. Ainda estou na Terra — disse isso rindo.
—Até mais tarde e obrigada mais uma vez.
Marilda colocou o telefone de volta no gancho. Ao mesmo
tempo em que estava feliz por ter tido notícias de Fernanda,
estava intrigada e com muita raiva:
"Ainda bem, minha amiga, que você não se matou! Deus te
abençoe por isso, mas quem te matou não pode ficar impune!
Quem teria feito isso e por quê? Só pode ter sido o Antero! Era
o único que teria um motivo! Mas que motivo? Ele já havia
saído de casa! Também não acredito que ele teria coragem de
fazer uma coisa como essa! Não! Não pode ter sido ele! Preciso
conversar com a Renata e saber direito como foi à conversa
que ela teve com a Fernanda quando eu estava viajando. Pelo
jeito, o Antero ia voltar para casa, mas, se foi isso, por que ele
não me contou? Está tudo muito estranho. Daqui a pouco a
Renata vai chegar e poderá me esclarecer tudo."
Foi até a cozinha; como Renata ainda não havia chegado,
colocou água no fogo para ferver. Queria e precisava tomar um
café. Assim que a água ferveu, coou o café e colocou em uma
xícara; sentando em uma cadeira, começou a beber. Estava
pensativa, quando a porta da cozinha se abriu e por ela entrou
Renata, que se assustou ao vê-la, tomando café ali na cozinha:
—Dona Marilda, a senhora já está acordada? Desculpe, mas não
consigo chegar mais cedo.
—Não se preocupe com isso, sei bem a hora em que você
chega. Acordei cedo e fiquei com vontade de tomar café.
Preciso também conversar com você.
—O que é? Fiz alguma coisa errada?
—Não, não é nada disso. Você me disse que a Fernanda
telefonou no dia em que morreu. Quero que me diga,
exatamente, o que ela te disse, e a que horas foi.
—Ela telefonou, sim, acho que era lá pelas duas da tarde, eu
estava terminando de arrumar para ir embora. O telefone
tocou.
—Alô
—Renata! Sou eu, a Fernanda, estou telefonando para saber se a
__Marilda já telefonou para você.
__Ainda não, mas acho que ela vai telefonar logo.
—Quando ela telefonar, diz que ela não precisa mais se
preocupar comigo e que estou muito feliz. O Antero vai voltar
para casa! Ele vem jantar e eu estou preparando um jantar
caprichado! Estou muito feliz!"
—Aí, eu desliguei dona Marilda. Por isso levei o maior susto
quando soube que ela tinha se matado. Não conseguia
acreditar, ela me pareceu tão feliz! Ninguém se mata quando
está feliz...
— Talvez ela não tenha feito isso.
— O que a senhora está dizendo? Ela não se matou?
— Não posso te dizer com certeza, mas tenho uma grande
suspeita que ela não fez aquilo, suspeita não! Quase certeza!
—Se ela não se matou alguém a matou! Quem foi?
—Não sei, mas vou descobrir!
—Como à senhora soube disso?
Marilda contou tudo que havia acontecido na casa de Júlio.
—Foi o seu pai, sim, dona Marilda! — Renata disse, parecendo
não se admirar — Tenho certeza! Que bom que isso aconteceu.
Deus está sempre ao nosso lado mesmo. Acho que chegou a
hora da senhora estudar e conhecer a espiritualidade. Quando
chega a hora, não tem jeito não. Agora, a senhora, começando
a estudar, vai entender muitas coisas que não entendia. O Altair
vai ficar feliz. Ele acredita muito e, quando eu dizia que a
senhora era muito sozinha, ele sempre dizia:
—Não se preocupe, para tudo sempre tem a hora certa. A dona
Marilda é uma pessoa boa e com certeza tudo de bom vai
acontecer na vida dela. É só ter paciência e esperar.
—Ela não acredita na espiritualidade.
—Para isso, também, tem a hora certa e , quando essa hora
chegar, não tem retorno não.
—Se for mesmo do jeito que ele fala, agora, deve ter chegado
há sua hora, dona Marilda.
— Chegou, sim, e estou curiosa sobre esse assunto. Vou
comprar alguns livros e estudar. Mas a minha prioridade é
descobrir quem matou a Fernanda! Desconfio de alguém, mas
parece que ele preparou um bom álibi. Mas mesmo assim vou
investigar. Sei que descobrirei a verdade.
__ Investigue, sim. Se isso aconteceu mesmo, foi uma maldade
e precisa ser descoberta.
— Essa é a minha intenção. O criminoso não pode ficar
impune! Tem que ser descoberto e preso!
— O leite está fervendo, vou colocar a mesa.
— Faça isso. Vou tomar um banho e virei em seguida. Hoje o
dia vai ser intenso. Preciso fazer uma visita a alguém que terá
de me dar explicações. Dependendo dessas explicações, talvez
eu até tenha que ir à polícia.
— A senhora vai à polícia? — perguntou Renata, assustada.
— Se for preciso, sim. Antes preciso conversar com ele.
— Pensando bem, a senhora tem que fazer isso mesmo! A
dona Fernanda era tão boa e sua amiga sincera! Se alguém a
matou, tem que ser preso e condenado.
— No que depender de mim, isso acontecerá!
Marilda se levantou e saiu da cozinha. Renata, enquanto
colocava a mesa, pensava:
"Será que ela não se matou mesmo? Meu Deus tomara que isso
seja verdade... dona Fernanda, não sei onde a senhora está
agora, mas, onde estiver, receba a minha saudade e muita luz
para que possa seguir em frente. Deus a proteja."
Marilda, em seu quarto, estava preparando a roupa que iria
vestir quando o telefone tocou. Atendeu.
— Alô!
— Sou eu, você está bem? Estou curioso para saber o que a Lia
tinha de tão urgente para te falar.
— Ela queria me dizer que a Fernanda não se matou, Júlio.
— O quê?!
— Ela disse que sonhou com a Fernanda em um lugar muito
bom, dormindo tranquila, e que isso significa que ela não se
matou. Se ela tivesse feito isso, estaria em um lugar ruim.
— Graças a Deus! Você acreditou nela, Marilda?
— Não sei, talvez tenha sido a vontade de acreditar, mas eu
mesma nunca aceitei essa idéia. A Fernanda não era uma
pessoa fraca. Ela poderia ter todos os defeitos, mas era lutadora.
Um pouco dominada pelo Antero, mas mesmo assim, quando o
assunto não era ele, então, ela lutava muito. Estava fazendo de
tudo na tentativa de trazê-lo para casa. Para ser sincera, não sei
se ela teria coragem para se matar. Só o faria se tivesse a certeza
que o Antero não voltaria mesmo, nunca mais.
— Isso não pode ter acontecido?
—Quem sabe. De alguma maneira ela, pode ter tido essa
certeza. Mas acredito que não faria nada antes da minha volta.
Além do mais, ela telefonou na tarde do dia da sua morte para a
Renata, dizendo que estava feliz e para eu não me preocupar
mais, pois o Antero iria jantar na sua casa e voltaria para ela.
— Ela fez isso?
— Sim, como então poderia ter se matado? Não faz sentido.
— Acho que você tem razão, mas o que pretende fazer?
— Estou querendo ir à delegacia falar com o delegado e dizer
das minhas suspeitas.
— Não pode chegar lá e dizer que a sua amiga não se matou e
que foi uma médium que lhe disse isso.
— Tem razão, eles não acreditariam, mas pensei muito e já sei
o vou fazer!
— O que vai fazer Marilda?
— Vou até a empresa conversar com o Antero e contar do
telefonema da Fernanda. Quero ver a sua reação.
— Desconfia dele?
— Muito, pois ele disse que não estava na cidade e que só
chegou à manhã do dia seguinte em que ela morreu. Se ele não
estava na cidade, como ela deu aquele telefonema dizendo que
ele ia jantar com ela? Ele está mentindo!
—É muito estranho, mas acho que você não deve ir até lá
sozinha. Ficarei aqui no hospital até as duas horas da tarde.
Assim que eu sair, vou te buscar e irei com você. Se ele tiver
alguma culpa, não será bom que saiba que você desconfia dele.
—Não, não conseguirei esperar, irei agora mesmo! Não se
preocupe, estarei na empresa e, ali, ele não poderá fazer nada.
Não vou dizer que desconfio dele, só falarei do telefonema e
prestarei atenção na sua reação.
— Não sei, acho que não deve ir sozinha. Mas como já sei que
é uma mulher independente, sei que irá. Por favor, me
telefone quando sair de lá.
—Vou telefonar. Tenho que fazer isso. Se não fizer, não terei
sossego. Não vai me acontecer nada. Ele só precisa saber que
sei muito mais do que ele imagina.
— Está bem, até mais tarde!
Logo que desligou o telefone, Marilda sentiu um aperto no
coração. Não sabia dizer o que era aquilo, mas ficou triste. Em
seu pensamento surgiu à imagem de Fernanda, sorrindo. Com
lágrimas nos olhos, pensou:
"Minha amiga, sei que muitas vezes perdi a paciência com
você, mas sempre fui e serei sua amiga. Naquilo que depender
de mim, descobrirei quem fez essa maldade com você."
Vestiu-se e foi para a copa. A mesa já estava colocada, mas ela
estava sem fome. Tomou só uma xícara com café. Saiu
apressada. Ela precisava falar com Antero o mais rápido
possível, tinha na garganta aquele caroço seu conhecido, que
só sairia depois que conversasse com ele. Precisava tomar
cuidado ao conversar com Antero, não poderia, de maneira
alguma, deixar que ele suspeitasse que ela sabia mais do que
ele pensava.
Em busca de paz
Antero chegou à empresa, foi para sua sala, sentou-se e ficou
pensando:
— Bom dia — disse Flávio, entrando na sala —, já é quase onze
horas. O que aconteceu?
— Bom dia, não dormi bem esta noite.
— Estou notando. Você está com olheiras. Não dormiu por
quê? Estava com alguma dor? Está doente?
— Não, não estou doente. Não sei o que foi. Tentei dormir,
mas não consegui. A imagem da Fernanda, naquele caixão, não
saiu, nem sai da minha cabeça.
— Foi triste mesmo, mas agora terminou. Você tem que
retornar à sua vida.
— Sei disso, mas, por mais que eu tente, não consigo me livrar
da culpa.
— Que culpa?
— Se eu não a tivesse abandonado isso não teria acontecido.
Quando decidi sair de casa, nem por um momento pensei que
ela poderia cometer uma loucura como essa.
— Nem eu, pois ela sempre pareceu ser equilibrada, mas você
não pode se culpar. Ela não aceitou o abandono, por isso se
destruiu, mas a culpa não é sua. Sempre existiu e continuarão
existindo casais que se separam. Ela deveria saber disso e
procurar entender. Para dizer a verdade, eu acho que, na
realidade, ela não queria se matar. Queria apenas chamar a sua
atenção e fazer com que você voltasse para ela. Se não fosse
por amor, que fosse por pena, remorso ou por qualquer coisa
parecida. Ela te queria de volta. Só ia tentar, mas se deu mal.
Acho que errou a dose.
— Acredita mesmo nisso, Flávio?
— Não, mas não deixa de ser uma boa teoria. Sou seu amigo há
muito tempo, como também era dela. Assim como todos estou
arrasado com o que aconteceu. Mas sei também que nada
poderá ser mudado. A única coisa que você tem a fazer é
retomar a sua vida e ser feliz. Sabe muito bem o que tem que
fazer para que isso aconteça. Agora está livre e poderá realizar
os seus sonhos. Você não é culpado, não foi você quem a
matou. Quando vai para Louveira?
— Não sei, ainda é muito cedo para isso. Preciso dar um tempo
e conversar com a minha filha.
— Estranhei a Fernanda não ter contado para a Regiane sobre a
separação. Por que ela teria feito isso, Antero?
— Não sei, talvez porque, no fundo, acreditava que eu voltaria
para casa e não queria preocupá-la.
— É, pode ser... Mas mesmo assim não deixa de ser estranho.
Além do mais, se ela não queria preocupar a filha, como foi
tomar uma decisão drástica como a de se matar sem deixar um
bilhete? Será que ela não pensou que isso, sim, seria motivo
não só de preocupação, mas de muita tristeza?
— Acho que ela não pensou nisso, nem sei como ela teve a
coragem de fazer uma coisa como essa...
— Bem, meu amigo, mas, de certa maneira, a morte dela veio
bem a calhar.
— Por que está dizendo isso?
—Ela morrendo e não contando nada à Regiane, deixou o
caminho livre para que você decida a sua vida. Convenhamos
que seja muito mais fácil.
— Não estou te entendendo, Flávio.
— Como não? Vai me dizer que já não pensou nisso!
— Claro que não. Ao contrário, com relação à Regiane, tudo
ficou mais difícil.
—Difícil como?
—Você acha que ela irá aceitar a minha relação com outra
pessoa sabendo que a mãe morreu e da forma como foi?
—Claro que acho. Estou te estranhando. Quando saiu de casa
disse estar disposto a encarar tudo para poder se realizar e ser
feliz. Por que agora tudo isso? Por que essa insegurança? Você
não quer mais ser feliz, realizar o seu sonho?
__ Claro que sim! Só que terei de esperar mais um pouco.
Preciso dar um tempo e esperar que a minha filha deixe de
sofrer tanto com a morte da mãe. Depois com mais calma, eu
contarei o que pretendo fazer, mas por enquanto não.
—Acha que conseguirá esse tempo? Tomou a decisão de sair de
casa porque não tinha mais tempo... Precisava resolver a sua
vida. Terá mais tempo agora?
—Terei que ter. As coisas mudaram, agora sou um homem
livre, diferente daquele que eu era.
—Não estou te entendendo, Antero, mas você, com certeza,
deve saber o que está fazendo. Preciso ir para minha sala. Hoje,
teremos um dia cheio. O gerente do banco virá às duas horas.
Como gerente-financeiro, vou ter que conversar com ele e
obter mais prazo. Não vai ser fácil, mas farei o possível.
— Se ele não aceitar?
— Se isso acontecer, estaremos perdidos.
— Você pode usar o argumento de que, com a morte da
Fernanda, haverá um inventário e terei dinheiro, disponível,
para acertar tudo. Se ela estivesse viva, com certeza não
concordaria. Posso vender alguns dos nossos apartamentos e
até a nossa casa.
—Vai vender a sua casa?
—Claro que sim. Sabe muito bem que não poderei voltar a
viver lá. Tem muitas lembranças que só atrapalharia a minha
nova vida e isso eu não quero. Só quero ser feliz.
—Não acredito que esteja pensando em fazer isso! Aquela casa
foi construída e decorada com tanto carinho por vocês dois.
Pensei que gostasse dela.
—Gosto, mas agora não posso continuar morando nela.
—Está certo, mas, pensando bem, não deixa de ser um bom
argumento para o gerente do banco. Pois, mesmo com a
partilha, dará para pagar tudo e ainda sobrará muito. A Regiane
deixará você vender a casa?
—Terá que deixar. Ela já tem a sua própria casa e mora distante.
Não pretende morar lá. Por isso sei que ela ficará contente com
a sua parte na partilha.
—Tomara que consiga o que deseja, sem muito trauma para ela.
Agora preciso ir. Até mais tarde.
Flávio saiu da sala. Antero ficou com o olhar perdido no espaço
relembrando de sua vida, que passou quase que toda ao lado do
Fernanda.
"Não posso negar que, embora não a tenha amado, tive
momentos felizes ao seu lado. Não precisava terminar assim. Se
eu soubesse que isso iria acontecer, jamais teria saído de casa.
Mas o Flávio tem razão: com a morte dela, será mais fácil eu
falar com Regiane. Sei que a princípio ela não aceitará, mas
com o tempo perceberá que será para a minha felicidade e sei
que é isso o que deseja. Ainda bem que Fernanda não lhe
contou. Seria pior. Se ela soubesse que eu havia abandonado
Fernanda, com certeza estaria com muita raiva. Não sabendo,
ao contrário, está tão perplexa quanto qualquer um.
Mas por que não consigo tirar da minha mente a imagem de
Fernanda naquele caixão? Preciso trabalhar, mas não estou
conseguindo... o que quero mesmo é sair, andar sem rumo.
Não estou bem. Se eu acreditasse em vida pós-morte, diria que
Fernanda está aqui ao meu lado. Mas sei que isso não existe.
Está tudo muito recente e com o tempo sei que vai passar.
Como se diz: o tempo sempre cura tudo."
Antero tentou ficar na sala por mais um tempo, mas não
conseguiu. Sentia-se abafado, precisava de ar, respirar. Pegou o
paletó e saiu. Luciana quis conversar com ele, mas ele passou
por ela sem nada dizer.
"O que será que ele tem? — pensou intrigada. — Não me
parece bem, vou falar com o doutor Flávio."
Foi para a sala de Flávio, bateu de leve e entrou.
—Doutor , estou preocupada com o doutor Antero.
— Por quê?
— Ele saiu e não disse onde estaria. Não costuma fazer isso.
Sempre que sai, me avisa onde posso encontrá-lo, caso precise.
Tentei falar com ele, mas não me respondeu.
—Também achei que ele não estava bem. Mas precisamos
entender que a morte da esposa, principalmente da maneira
como foi, o deixou abalado. Vamos esperar até ele retornar.
Conversarei e verei se consigo descobrir o que está
acontecendo. Você está com algum problema, precisando dele?
— Não, está tudo sob controle, só estou preocupada.
— Está bem; se precisar de alguma coisa, estarei aqui.
— Obrigada, Doutor Flávio.
Luciana saiu da sala. Flávio ficou pensando.
"Ele está abalado com a morte da Fernanda e é compreensível.
Dentro de alguns dias estará bem. Vou esperar que volte e
tentarei conversar novamente."
Antero tomou o elevador, saiu para a rua e foi para um bar que
havia ali, onde sempre ia tomar café com clientes ou
fornecedores. Entrou no bar. Assim que o garçom o viu sentar-
se junto ao balcão, disse com a voz embargada:
— Sinto muito, doutor, por aquilo que aconteceu com a sua
mulher. O senhor veio aqui com ela algumas vezes e me
pareceu ser uma mulher feliz. Nunca pensei que ela pudesse
fazer uma coisa assim.
—Nem eu... Nem eu... Mas, por favor, sirva-me um café.
—É para já.
O garçom o serviu e ele, levando a xícara até os lábios,
continuava pensando em sua vida junto com Fernanda e na
imagem dela no caixão.
"Ela estava com uma expressão estranha. O que terá
acontecido? Por que fez aquilo? Será que foi como o Flávio
disse: para chamar a minha atenção? Não. Se fosse isso, ela teria
tomado cuidado. Sabia exatamente a quantidade de remédio
que poderia tomar. Jamais tomaria uma dose excessiva. Mas por
que fez isso? Por que não veio me procurar na empresa ou
mesmo lá no apartamento? Já que estava me seguindo; sabia
que eu estava lá. Por quê? Por quê? Talvez porque eu a tenha
recebido tão mal quando veio com a Marilda. Meu Deus, se eu
soubesse que isso pudesse acontecer, jamais teria agido daquela
maneira!"
Ficou ali, tomando o café, mas logo percebeu que ali também
não estava bem. Voltou para o prédio, foi até o
estacionamento, entrou no carro e, sem comunicar a ninguém,
saiu sem destino. Dirigiu por ruas que estava acostumado a
passar. Dirigia o carro, mas seu pensamento não estava na
direção, só no rosto de Fernanda dentro daquele caixão.
Quando percebeu, estava na estrada que o levaria para a região
de Campinas; tentou fazer a volta, mas decidiu:
"Já que vim até aqui, vou em frente. Preciso falar com alguém
e não existe ninguém melhor do que ela."
Dirigindo pela estrada, ficou olhando o verde que a cercava, e
aos poucos foi ficando mais calmo. Assim que viu a placa que
mostrava a entrada da cidade de Louveira, sabia que mais algum
metro à frente estava à entrada de acesso à cidade. Sentiu que
ali encontraria paz.
Pegou a estrada e, pouco tempo depois, estava diante de uma
casa com um lindo jardim, com muitos pés de rosas de todas as
cores. Ele conhecia bem aquele lugar. Foi ali que passou muitas
horas de total felicidade. Estacionou o carro, desceu, abriu o
portão e entrou.
Suspeitas confirmadas
Assim que abriu a porta onde ficava o escritório de Antero, se
dirigiu para a recepcionista, perguntando:
—O Antero está? Preciso falar urgente com ele.
—Ele não está. Saiu logo cedo, mas a Luciana, sua secretária,
deve saber aonde ele foi. Espere um minuto.
Ela se comunicou através de um interfone. Minutos depois,
Luciana surgiu em uma porta. Ao ver Marilda, disse sorrindo:
— A senhora não é a amiga da dona Fernanda? Fiquei muito
triste com o que aconteceu com ela.
Marilda sentiu-se envergonhada por, juntamente com
Fernanda, tê-la seguido, considerando que ela fosse a causadora
do abandono de Antero, e por descobrir que ela era uma moça
sofrida.
— Não sei se a senhora acredita, mas frequento uma casa
espírita e, lá, todos estamos fazendo preces vibrando e
enviando muita luz para a dona Fernanda.
— Acredito, sim, e agradeço muito. Sei que é disso que ela está
precisando. Mas o Antero não está? Sabe para onde ele foi e
quando vai voltar?
— Infelizmente não. Ele estava estranho, saiu sem dizer para
onde ia. Estou preocupada, pois ele não costuma fazer isso.
Marilda, decepcionada, disse:
— É uma pena, preciso muito falar com ele. Está bem, mais
tarde eu telefonarei para ver se ele voltou.
— Faça isso; ou melhor, já que é tão urgente, assim que ele
voltar, digo que a senhora esteve aqui e em seguida lhe
telefono.
— Está bem. Estarei esperando. Anote o número do meu
telefone, estarei em casa a tarde toda. Muito obrigada por sua
atenção. Até logo.
Luciana sorriu e, quando estava entrando novamente por
aquela porta da qual havia saído, Flávio estava entrando na
recepção. Ao ver Marilda saindo, disse feliz:
— Marilda! Você aqui! Que surpresa!
— Olá, Flávio, como está?
— Estou bem, na medida do possível. Mas não vá embora,
venha até a minha sala e poderemos conversar um pouco sobre
tudo que se passou com a Fernanda. Sabe que custo acreditar
que aquilo realmente aconteceu.
— Eu também. Vim conversar com o Antero, mas ele não está.
Voltarei mais tarde.
— É sobre ele que quero falar com você. Estou preocupado.
Entre e conversaremos.
Marilda sabia que, assim como ela era amiga de Fernanda,
Flávio também era o melhor amigo de Antero, por isso
precisaria tomar cuidado ao conversar com ele. Não poderia
deixar de maneira alguma que ele suspeitasse das desconfianças
dela, mas, vendo que não haveria alternativa, acompanhou-o.
Ele a conduziu até a sua sala. Pediu à secretária que lhes
servisse um café, em seguida apontou para Marilda uma cadeira
que estava em frente à sua mesa, sentaram-se.
— Posso saber o que você quer conversar com o Antero?
— Não é nada importante, só queria ver como ele está. No
enterro, não deu para conversarmos muito.
— Ele não está bem e estou preocupado.
— Não está bem como?
— Está estranho, sente-se culpado pela morte da Fernanda.
— Culpado? Por quê?
— Disse que se ele não tivesse saído de casa... Você sabe que
ele saiu, não é? A Fernanda não contou para a filha, mas para
você ela deve ter contado. Você sempre foi a sua melhor
amiga.
— Claro que sei, mas não acredito que esse tenha sido o
motivo que levou Fernanda à morte.
— Por que está dizendo isso? Não estou entendendo...
— Ela estava triste com a separação, mas tinha esperança que
ele voltaria para casa. Estava procurando por sua amante e
queria saber o motivo exato para ele ter tomado essa atitude.
Ela não se mataria, antes que tivesse a certeza que ele não
voltaria mais. Eu fui viajar e ela me disse que esperaria a minha
volta. Você sabe quem é a outra mulher?
— Ele disse que havia outra mulher?
— Não. Mas qual seria o motivo? Ninguém sai de casa porque a
mulher tem mania de limpeza. Isso não existe!
— Acalme-se. Sei que tem motivo para estar revoltada com ele,
mas te garanto que, quando ele saiu de casa, nem por um
minuto, pensou que isso poderia acontecer.
— Desculpe, estou nervosa mesmo, mas não é para menos.
Como uma coisa dessas foi acontecer? Não consigo me
conformar, Fernanda era cheia de vida e sempre a considerei
feliz. De repente, sem mais nem menos, ela morre! Se estivesse
doente, eu até entenderia, mas não, ela gozava de perfeita
saúde!
— Tem razão. Foi muito triste. Ainda mais da maneira como
aconteceu. O Antero também não se conforma, hoje pela
manhã estava estranho e saiu sem dizer nada. Estou
preocupado. Não sei o que está passando pela mente dele.
— Deve estar assim como nós, com um agravante; ele pode ter
sido o causador da morte dela e isso deve pesar muito. Agora
preciso ir embora, sei que você deve ter muito para fazer.
— Neste momento até que não, mas à tarde terei uma conversa
séria com o gerente do banco.
— Séria por quê?
— Estamos com alguns problemas financeiros. Não vendemos
os apartamentos como tínhamos planejado e, para construí-los,
fizemos um empréstimo. Agora estamos com dificuldades para
saldar a dívida.
— Vocês estão com problemas? A Fernanda não comentou
sobre isso! Ela não sabia?
— Não, ela não sabia. Sabe como o Antero é, ele nunca quis
que ela se envolvesse com os problemas da empresa.
— Mas deveria afinal ela também era sócia.
— Sei disso, mas Antero sempre resolveu tudo.
— Bem, de qualquer maneira, preciso ir embora. Quando o
Antero chegar, diga que preciso falar com ele. Peça que me
telefone. Até mais e boa sorte com o gerente do banco.
Marilda saiu da sala. Flávio a acompanhou até a recepção e
despediram-se. Ela estava cada vez mais certa de que Antero,
mesmo que não tivesse matado Fernanda, de alguma maneira
havia tomado parte. Por que teria mentido, dizendo que havia
viajado a noite inteira? Sim, pois a Fernanda disse que ele ia até
a casa dela naquela noite. Estava aflita e nervosa.
"Não se preocupe, minha amiga — pensou no elevador. —
Você, antes de morrer, deixou uma pista. Vou segui-la e
encontrarei o culpado por sua morte! Pode ser que até demore,
mas sei que conseguirei."
Pegou o carro e foi dirigindo. Olhou o relógio, era quase meio-
dia. Foi para casa. Renata já estava com o almoço pronto,
Marilda almoçou e foi para o seu quarto. Sabia que, logo mais,
Júlio chegaria e ela lhe contaria tudo que conversou com
Flávio. Talvez ele tivesse alguma idéia do que ela poderia fazer
para desmascarar o Antero. Pegou um livro e começou a ler,
mas não conseguia se concentrar na leitura. Mesmo não
querendo, não conseguia esquecer o que conversou com
Flávio.
"Se o Antero estava com problemas financeiros, por que não
contou para a Fernanda? Com a morte dela, ele terá muito
dinheiro e poderá saldar suas dívidas. Não. Ele não precisaria
tê-la matado para conseguir o dinheiro. Ela o amava e faria tudo
para ajudá-lo, mesmo se desfazendo de tudo que tinham. Ela
não seria um empecilho. Não, esse também não deve ter sido o
motivo. Meu Deus! Qual foi o motivo da morte dela? Preciso
de um caminho para seguir... a pista que Fernanda deixou. Mas
como segui-la? Não sei o que fazer para desvendar esse
mistério. Sempre ouvi dizer que não existe crime perfeito, mas
acho que, neste caso, existe sim. Se eu disser para a polícia que
a Fernanda, naquela noite, estava esperando por ele para jantar,
será que eles não fariam uma investigação? Claro que sim! É
isso que vou fazer! Assim que o Júlio chegar, contarei tudo que
conversei com o Flávio e, se ele quiser, iremos juntos até a
delegacia!"
Ela estava deitada tentando ler e adormeceu. Sonhou que
estava em uma casa grande, brincando com algumas crianças.
Ela era criança e deveria ter uns nove ou dez anos. Estavam
brincando de esconder, quando encontrou outra menina, mais
ou menos de sua idade. As duas, rindo muito, se abraçaram.
Acordou, estranhou aquele sonho, lembrava de tudo com
perfeição: da casa, das crianças e principalmente daquela
menina. Estava emocionada e não sabia dizer por quê. Sentou-
se na cama, pensando:
"Que sonho estranho... eu conheço aquela casa, aquelas
crianças. E aquela menina, quem é? Estávamos vestidas com
roupas de outra época e eu era criança? Que sonho estranho..."
Levantou-se, foi até a cozinha e bebeu um pouco de água.
Renata não estava mais ali, já tinha ido embora. Olhou para o
relógio que estava na parede, lembrou que não havia
telefonado para Júlio. Pensou em telefonar para o hospital e
saber dele, mas imediatamente pensou:
"Não, não vou fazer isso, embora eu tenha dito que telefonaria
assim que conversasse com o Antero. Se demorei e ele não
telefonou, deve ter tido algum motivo, vou esperar. Tenho que
me acostumar com a vida de uma esposa de médico. Esposa? —
pensou sorrindo. Imagine só! Esposa! Nunca pensei que isso
aconteceria em minha vida! Mas acho que, vou sim, ser uma
esposa de médico!"
Foi para o escritório. Assim que entrou, viu sobre a mesa um
saquinho de plástico branco. Abriu e dentro dele estavam
vários rolos de filmes ainda para serem revelados.
"Os filmes da viagem! Com tudo que aconteceu, esqueci de
mandar revelar. Vou fazer isso hoje mesmo. Quando o Júlio
chegar, pedirei que me acompanhe."
Ouviu o toque da campainha do portão. Olhou pela janela, era
Júlio quem havia tocado. Saiu apressada do escritório e foi ao
encontro dele, que a recebeu com um sorriso:
—Já não me ama mais?
—Por que está dizendo isso?
—Não estava na janela, tive que chamar pela campainha.
—Eu me distraí — disse, abrindo o portão e recebendo na testa
o beijo dele —, encontrei os filmes da viagem e lembrei que
não havia mandado revelar. Têm nossas fotos!
— Poderemos ir mais tarde, também quero ver essas fotos!
Quero ver se ficaram boas.
Entraram em casa, abraçados. Lá dentro, beijaram-se
apaixonados. Após o beijo, ele disse:
— Desculpe pela demora, mas na hora em que eu estava saindo
do hospital chegou uma emergência. Tive que atender.
—Conseguiu ajudar a pessoa?
—Sim, era uma criança que caiu de um muro.
—Nossa! Estava muito machucada?
—Sim, mas agora está bem. Isso sempre acontece. Acidentes
com crianças têm quase todos os dias, mas não precisava ser na
hora em que eu estava saindo — disse, rindo.
— O importante é que chegou e está agora aqui ao meu lado.
Quer tomar alguma coisa?
— Sim, gostaria muito de um café.
— Vou preparar agora mesmo.
— O que a minha amada fez hoje?
— Fui à empresa conversar com o Antero. Precisava descobrir
alguma coisa.
— Descobriu?
— Não, ele não estava lá.
— Não?! Onde estava?
— Não sei e ninguém sabe, vou te contar.
Contou à conversa que teve com Flávio e a sua idéia de ir até a
polícia e contar que Fernanda havia telefonado.
— Estou muito desconfiada — terminou dizendo — que
Antero tenha alguma coisa a ver com a morte da Fernanda. A
atitude estranha dele e as dificuldades financeiras. Por que ele
mentiu dizendo que não estava na cidade e a Fernanda
telefonou dizendo que estava tudo bem e que ele ia jantar com
ela?
— São dúvidas razoáveis. Acho que suficientes para que a
polícia investigue. O que pretende fazer?
— Estava esperando você chegar para ver se achava
conveniente eu ir até a delegacia e se queria me acompanhar.
—Acho que agora, sim, terá argumentos para falar com a
polícia. Não poderia chegar e dizer que a sua amiga não havia
se matado porque uma médium te contou. Nisso, com certeza,
eles não acreditariam. Claro que vou te acompanhar.
—Acredita em crime perfeito? Acredita que qualquer pessoa
possa cometer um crime e ficar impune, sem que a justiça
possa apanhá-la e ela possa continuar vivendo tranquilamente?
—Não sei se há crime perfeito, nem se alguém pode fugir da
justiça da Terra, mas à de Deus não fugirá. Sempre haverá uma
forma de se pagar e também de se redimir de um crime.
—O que quer dizer com isso?
—Quando vemos alguém sofrendo alguma injustiça ou tendo
uma vida difícil, é Deus praticando a Sua justiça.
—Quer dizer que aquilo que praticamos de bem ou de mal
receberemos de volta na mesma proporção e que, se não for
nesta vida, será em outra?
—Isso mesmo. Já aprendeu muito!
—Sempre ouvi falar dessas coisas, só que nunca dei muita
atenção. Também, nunca aceitei. Não me importa o que
acontecerá em outra vida, com o Antero ou com a pessoa que
matou a Fernanda. Quero que a justiça seja feita, aqui, nesta
vida mesmo, pois em outra não se lembrarão. Portanto não
estarão pagando, apenas sendo vítimas. Por isso vou fazer tudo
que estiver ao meu alcance para descobrir nesta vida mesmo.
—Está certa em pensar assim, mas mesmo não concordando é
assim que acontece. Deus nos julga a todos e nos dá de acordo
bom os nossos merecimentos e ninguém, ninguém mesmo,
consegue escapar da Sua justiça.
—Bem, posso até esperar outra vida se não conseguir fazer
nesta, mas farei tudo que puder para encontrar o assassino da
Fernanda. Ela era minha amiga e não merecia ter uma morte
como essa. Farei tudo o que estiver ao meu alcance.
—Está bem. Faça isso, mas agora vamos tomar o café, nos
amarmos e depois iremos até a polícia.
Foi o que fizeram.
A quem de direito
Chegaram à delegacia. Embora fosse advogada, Marilda nunca
havia ido a uma delegacia. Nunca pensou em ser uma advogada
criminalista, pois sempre julgou ser muito difícil defender um
criminoso. Ficou admirada com a quantidade de pessoas que
estavam ali sentadas, esperando para serem atendidas. Pensou
em se identificar como advogada, mas achou melhor não usar
dessa prerrogativa. Esperaria como os demais. Ela e Júlio
esperaram por um bom tempo, até que finalmente foram
atendidos. O delegado os recebeu com um sorriso.
—Em que posso ajudá-los?
—Estamos aqui para poder lhe contar algumas suspeitas que
temos sobre uma morte — disse Marilda.
—Suspeitas? Pode contar, do que se trata?
Ela contou tudo que havia acontecido desde que chegou da
viagem. O delegado ouviu atentamente.
—Eu me lembro desse caso... Parece que o meu colega do
turno da manhã já o arquivou. Mas diante de tudo que me
contou, vou rever. Um momento, por favor.
Pediu ao escrivão que pegasse o prontuário. Assim que o
escrivão trouxe, ele leu e falou em seguida:
—Aqui diz que ela foi encontrada morta na cozinha da casa e
que tinha, ao seu lado, um vidro contendo soníferos muito
potentes.A autopsia revelou que não houve luta e que ela
morreu por ter ingerido uma grande quantidade daqueles
soníferos, entre sete e oito horas da noite. Diz também que foi
encontrada na manhã seguinte. Não resta a menor dúvida que
foi suicídio, mas diante do que me contou estou curioso. O
marido disse que não estava na cidade, que viajou durante toda
a noite e que só tomou conhecimento na manhã seguinte,
quando estava no escritório da empresa onde trabalha. Falou o
quanto a esposa estava deprimida porque eles haviam se
separado. A senhora está me dizendo que ela, no dia da sua
morte, durante à tarde, telefonou para sua casa dizendo que
estava tudo bem e que ele iria jantar com ela e voltar para casa?
—Foi isso exatamente que aconteceu. A minha empregada
recebeu o telefonema e me contou. Eles estavam realmente
separados e ela estava, sim, muito nervosa. Posso dizer que até
deprimida, mas nunca se mataria.
— Como pode ter tanta certeza? A senhora não imagina
quantos casos de homicídio passam por esta delegacia e o que
tanto homens como mulheres podem fazer quando são
abandonados, desde o assassinato até o suicídio. Isso é muito
comum de acontecer!
—Não! A Fernanda não faria isso, esperaria ao menos eu voltar
da viagem. Éramos muito amigas e ela sabia que poderia confiar
em mim, a qualquer momento.
—Pode ser que ela não tenha querido esperar a senhora
retornar. Mas, de qualquer maneira, está me apresentando um
fato novo. Vou intimar o marido para que venha até aqui e
preste um novo depoimento. Agora ele terá que explicar esse
telefonema que ela deu. A sua empregada estará disposta a vir
até aqui e confirmar o que está me dizendo?
— Não posso responder por ela, mas acredito que não haverá
problema algum. Ela virá, sim.
— Está bem, depois que eu conversar com o marido, entrarei
em contato com a senhora e lhe direi o que descobri.
—Obrigada. Sei que talvez o senhor não entenda, mas nada me
convence que a Fernanda se matou.
—Fique tranquila, se isso não aconteceu, descobriremos.
—Obrigada por sua atenção, estarei esperando ansiosa.
—Não se preocupe tudo será esclarecido.
Ela e Júlio saíram dali. Estava mais tranquila por ter contado
tudo que sabia e por ter sentido que o delegado se interessou e
ia investigar realmente.
Já na rua, Júlio, a abraçando, disse:
— Está mais tranquila agora?
— Sim, parece que ele vai investigar.
— Parece não, ele vai investigar! Bem, agora você precisa
deixar de ficar tão ansiosa e entregar tudo nas mãos de Deus,
pois a justiça será feita. Disso não tenha dúvidas.
— Não sei não, acontecem tantos crimes que ficam por muito
tempo sem solução.
—Tem razão, mas alguns são descobertos e os culpados são
pegos. Já te disse que, mesmo que isso não aconteça nesta vida,
com toda a certeza do mundo, acontecerá em outra.
—Sempre fui muito desconfiada quanto às religiões. Acho que
elas deixam as pessoas alienadas em relação ao mundo. As
pessoas se tornam dependentes de outras para resolverem os
seus problemas. Em todas as religiões, sempre existe aquele que
julga saber mais e a quem as pessoas seguem sem discutir. Essa
mesma, que você pratica e que estou começando a aprender,
diz que tudo tem relação com uma vida passada. Não sei, mas
parece muito conveniente julgarmos que tudo que nos
acontece foi por causa de uma vida passada e deixarmos para
resolver os problemas para uma próxima vida. Claro que estou
acreditando que exista uma vida depois da morte. Mas estou
vivendo aqui e é agora que vejo tantas coisas acontecendo. Foi
agora que a Fernanda morreu! E é agora que o assassino está
solto. Nessa outra vida, não sei como será! Não sei se um dia, se
realmente eu renascer, me lembrarei desta. Que bobagem
estou dizendo! Eu sei, com certeza, que não me lembro da
anterior. Desculpe, mas não me convence! Sei que há outra
vida, isso não posso negar, pois o meu pai esteve presente. Mas
se tudo que nos acontecer deve ser deixado para lá, sinto
muito, mas não dá para aceitar com tanta facilidade! Não
conseguirei!
—Você e outras milhões de pessoas. É realmente difícil e
conveniente, mas religião foi algo inventado pelo homem. Ele
precisou fazer isso porque o ser humano não é só matéria. Em
todos os tempos, ele precisou acreditar que existia algo além.
Precisou acreditar em um ser superior. Não importa qual seja a
religião que sigamos, em todos os momentos da nossa vida
sempre temos e teremos ao nosso lado espíritos amigos nos
ensinando, intuindo e dando forças para que atravessemos
qualquer obstáculo e nos alertando quando pretendemos fazer
algo que seja errado. Nunca estamos sós, eu acredito nisso.
Pode não ser verdade ou conveniente, como você diz, mas é o
que eu acredito e não preciso de alguém que saiba mais, ou
menos, para me guiar. Só preciso ter a certeza que sou filho de
um Deus maravilhoso, que é justo. O aceitar não significa
ficarmos parados e esperarmos que todas as soluções venham
do céu. Precisamos sempre lutar por aquilo em que
acreditamos , defender os nossos direitos, sem nunca nos
esquecermos das nossas obrigações. Neste caso, você tem as
suas dúvidas, trouxe a quem de direito. Agora, só resta esperar.
Não tem outra coisa a fazer, além disso, Marilda.
—De certa maneira você tem razão, não poderei fazer nada
além de esperar que o delegado investigue e consiga descobrir
quem matou Fernanda.
—Isso mesmo. Mas vamos deixar essa conversa para outro dia.
Quero passar o fim de semana com você. Embora eu não tenha
todo um fim de semana livre, quero passar todas as horas
possíveis ao seu lado.
— Também quero. Na segunda-feira voltarei ao trabalho.
Apesar de todos esses problemas, estou feliz por ter te
encontrado. Vou fazer parte das pessoas que
convenientemente deixam os problemas nas mãos de Deus.
—Posso te garantir que são as melhores mãos que existem.
Conversa franca
Antero abriu o portão, caminhou até porta da frente da casa,
tirou um chaveiro do bolso.
Escolheu uma das chaves, abriu e entrou.
Caminhou pelos vários cômodos, mas eles estavam vazios. Foi
para a cozinha, abriu a geladeira, pegou uma garrafa com água,
colocou em um copo e começou a beber lentamente. Em
seguida, ainda com o copo na mão, foi para a sala de visitas,
ligou o televisor, sentou, continuou bebendo a água e ficou
pensativo.
"Embora eu não tenha planejado, no fim deu tudo certo. Com a
morte da Fernanda agora será mais fácil, embora saiba que não
precisaria ter sido dessa maneira. Por que não consigo esquecer
o rosto dela naquele caixão? Parecia estar me acusando. Preciso
encontrar uma maneira de me controlar... estou nervoso, não
consigo raciocinar e preciso continuar com os meus negócios.
Tomara que o Flávio consiga convencer o gerente do banco a
nos dar mais prazo. São tantos os problemas..."
Estava assim distraído, pensando, quando a porta abriu e entrou
uma mulher, que disse surpresa:
— Você está aqui? Fiquei surpresa quando vi o seu carro lá
fora. Não me avisou que viria, fui até o supermercado.
— Eu não sabia que viria. Não dormi bem e não consegui ficar
na empresa. Saí dirigindo sem destino... No meio do caminho
resolvi vir até aqui — disse, enquanto a beijava.
— Não dormiu bem, por quê?
— Não estou bem. Não consigo esquecer a Fernanda naquele
caixão, sua imagem não sai do meu pensamento.
—Isso era de se esperar. Tudo está ainda muito recente.
Também, assim como todos, estou abismada com o que
aconteceu... Mas venha, vou te servir um café. Estava
morrendo de saudade. Eu queria muito ter estado ao seu lado
naqueles momentos, mas sabemos que foi melhor eu não ter
ido. Se nos encontrássemos lá, não conseguiríamos disfarçar e
as pessoas poderiam desconfiar.
—Sei disso; embora eu tenha pedido a você que não fosse,
senti muito a sua falta. Não foi fácil.
—Posso imaginar, mas agora tudo passou e em breve
poderemos nos revelar. Já esperamos muito. Sabe o quanto te
amo, acho que já dei provas disso, Antero.
— Também sabe o quanto te amo e também já dei provas disso.
Por você, abandonei a minha casa.
—Agora é só questão de tempo — disse, sentando-se ao lado
dele. — Tome o café.
— Não sei, nunca pensei que ela reagiria dessa maneira, estava
preparado para choros e pedidos de volta, mas nunca para um
suicídio... Isso nunca esperei...
—Nem eu, Antero. Pensava que conhecia a Fernanda, mas
parece que me enganei. Como ela teve coragem para fazer
aquilo? Não consigo acreditar...
Nesse momento, sem poder se controlar, Antero começou a
chorar desesperadamente. Seu corpo tremia e não conseguia
controlar os soluços, que vinham do fundo. Ela, ansiosa,
perguntou:
—Por que está chorando assim? Acalme-se, Antero...
—Eu ainda não estou acreditando. Por que ela fez isso? Se eu
soubesse, juro que não teria saído de casa! Ela foi uma boa
esposa e companheira. Sempre soube que eu não a amava, mas
mesmo assim fez tudo que podia para me manter feliz e tratou
com carinho nossa filha. Talvez fosse um pouco exagerada com
a limpeza da casa, mas sei que foi sempre para que eu me
sentisse bem. Conseguiu manter um lar harmonioso. Isso não
podia ter acontecido. Eu, só eu, sou o culpado de tudo e
deveria morrer também! — disse, entre soluços.
— Pare com isso! Você não tem culpa de nada! Se ela foi tudo
isso que você disse com certeza você também foi! Foi um bom
marido e sempre esteve ao lado dela e de sua filha! Mesmo
sendo infeliz, ficou ali durante todo esse tempo!
— Se você não tivesse me pressionado e abandonado, eu
estaria em casa até hoje e nada disso teria acontecido!
—Agora está dizendo que eu fui à culpada?
—Não estou dizendo isso, mas se não tivesse exigido a minha
separação, nada disso teria acontecido.
—Você já imaginou há quanto tempo estou esperando que
você tome a decisão de deixar a sua casa e ficar comigo? Você
já imaginou o que é a vida de uma amante? Sei que todos
condenam, mas ninguém imagina o que é ficar sempre
sozinha, tentando adivinhar o que você estará fazendo,
principalmente com ela. Passar finais de semana sozinha, Natal,
Ano Novo e todos os outros feriados, familiares ou não!
Quando chegavam as férias escolares, você pegava a sua linda
família e ia viajar! Eu ficava sempre sozinha esperando a sua
volta. Foram anos de espera, pois você sempre dizia que,
quando a sua filha crescesse, quando seu pai morresse, ficaria
comigo. Isso tudo aconteceu. Seu pai morreu , a sua filha
cresceu e casou! Agora eu não poderia esperar mais, estou
velha! Passei toda a minha juventude à espera de uma decisão
sua que nunca veio! Não venha me dizer que eu não deveria
ter te abandonado e exigido essa decisão! Esperei muito! Por
que se casou com ela, se sempre disse que era a mim que
amava? Não venha com a desculpa que foi por causa do seu pai!
—Sabe como ele era autoritário e nós, seus filhos, tínhamos
que obedecê-lo cegamente! Quando Fernanda engravidou, meu
pai me obrigou a casar! Você sabe muito bem disso!
—Claro que sei! Você namorava comigo, mas, sem que eu
soubesse, começou a namorar com ela também! Isso eu
também nunca deveria ter perdoado! A sua traição! Não venha
me dizer que se casou por causa do seu pai! Você sabia muito
bem a fortuna que o pai dela possuía. Sabia, portanto, que, ao
lado dela, teria uma vida bem melhor do que ao meu, filha de
um motorista! Você se casou por interesse e, durante toda a
vida, deu uma de vítima! Você é um dissimulado! Agora
mesmo não sei se essas lágrimas são verdadeiras! Pode estar
fingindo novamente!
Ela, muito nervosa e com muita raiva, começou chorar.
—Nem sei se essas lágrimas são verdadeiras. Pode estar
fingindo, como sempre fez. Estou cansada das suas mentiras!
Ela começou a chorar, mas de raiva. Ele a abraçou, chorando
também. Ela continuou falando entre soluços:
—Você acha que foi fácil eu tomar a decisão de deixar o meu
apartamento, meu emprego, a minha vida, e ter vindo para cá?
Não foi fácil, eu tinha uma vida organizada! Só tomei essa
decisão depois que o seu pai morreu, e ele, segundo você, era o
único obstáculo para ficarmos juntos! Mas você continuava
sempre com mais desculpas. Cansei de ficar sozinha, de não ter
uma família, de não ler um filho, não ter nada! Enquanto a
mulher que você dizia não amar tinha tudo! Não te obriguei,
simplesmente te deixei em paz para que decidisse a sua vida!
Portanto, não venha me culpar, pois eu não aceito! Já me senti
culpada demais! Agora você está livre e pode fazer o que quiser
com a sua vida!
—Sabe que é o que mais quero! Embora diga tudo isso, você foi
à única mulher que amei em toda a minha vida! Quero ficar no
seu lado para sempre! Só que precisamos esperar um pouco
para anunciar essa nossa decisão.
—Está com novas desculpas! Não estou disposta a esperar.
—Você tem que ser razoável... Sabe que não posso chegar
agora e dizer que vou me casar. Vamos esperar mais um pouco?
Já esperamos tanto... Um pouco mais não fará diferença.
Depois, te prometo que farei tudo como você quiser...
— Está bem, sei que desta vez está certo. Vamos esperar.
Venha, vamos tomar o café.
Tomaram o café, voltaram para a sala. Ela o olhou com carinho,
disse com a voz macia;
— Venha, vamos para o quarto. Você precisa relaxar e eu estou
aqui para isso, Antero...
Foram para o quarto e se entregaram ao amor. Ficaram ali por
um bom tempo, até que ela se levantou.
—Fique aí — disse carinhosa — que vou preparar algo para
comermos. Está na hora.
—Não quero, não estou com fome.
—Eu também não, mas é preciso. Temos que conversar.
—Não, hoje não. Vou comer alguma coisa e voltar para a
empresa. Saí sem avisar e todos devem estar preocupados.
—Por que não telefona para o Flávio?
—É... É isso que vou fazer.
Pegou o telefone e discou para o Flávio, que atendeu.
—Puxa Antero! — Flávio disse nervoso. — Onde você está?
Saiu sem avisar! Estou preocupado!
—Estou bem, não se preocupe. Estou aqui em Louveira.
—Ainda bem, agora sei que está bem mesmo! Vou ficar
tranquilo. E ela, como está?
—Assim como todos, abismada.
— á conversou com ela sobre aquilo que falei?
—Sobre o quê?
—Sobre como, com a morte da Fernanda, tudo ficou mais fácil
para vocês e para a empresa?
—Claro que não conversei sobre isso, não é hora!
—Não precisa ficar nervoso, mas que estou certo, isso estou.
—Está bem, depois falaremos. Já estou voltando.
—A Marilda esteve aqui te procurando.
—O que ela queria?
—Não sei, disse que vai te telefonar. Ela estava estranha.
__ Estranha como?
—Tentei descobrir, mas você sabe como ela é não queria que
eu soubesse o motivo da sua visita e conseguiu. Tentei fazer
com que falasse, mas foi inútil. Fiquei sem saber.
—Está bem. Se ela telefonar, diga que logo mais estarei aí e que
também estou querendo falar com ela.
Desligou o telefone, dizendo:
— Meu amor, preciso ir para a empresa. Logo mais te telefono.
— Quem era "ela"?
— A Marilda esteve me procurando. O Flávio não sabe o que
ela queria, mas disse que, mais tarde, ela vai telefonar para
conversar comigo. Não imagino o que ela deseja...
— Ela era muito amiga da Fernanda.
— Sim, muito amiga. Você sabe o quanto.
Ela o abraçou; disse, beijando de leve os seus lábios:
— Sabe que estarei aqui te esperando, como sempre...
Notícias do delegado
Na segunda-feira, Marilda acordou ouvindo o despertador, que
ela havia marcado para que tocasse na hora em que costumava
acordar para ir ao trabalho. Virou na cama, com aquela
vontade de ficar mais um pouco. Durante o tempo em que
esteve de férias, se acostumou a não ter hora para nada,
inclusive para se levantar. Pela primeira vez em sua vida, não
sentia vontade de ir trabalhar. Levantou, foi para o banheiro.
Precisava se preparar, sabia que o dia seria cheio, pois, embora
tivesse deixado o escritório nas mãos de Laura e soubesse que
ela era competente, Marilda tinha muitos processos em
andamento. Depois de tomar banho, foi para o quarto e
começou a se vestir.
"Estou me sentindo tão estranha. Sempre fui uma mulher
decidida, sempre soube o que queria da minha vida. Nunca
pensei no futuro com medo, pois sabia que ele só dependeria
do meu esforço, da minha vontade e, hoje, estou com medo
dele. Está tudo indo tão bem na minha vida, que estou com
medo de morrer! Morrer?! Credo! O que é isso? Nunca pensei
na morte!"
Terminou de se vestir e saiu.
"Estranho aquele pensamento de morte. Isso nunca me
preocupou. Talvez por estar tudo tão bem e eu tão feliz, chego
a ter medo. Sinto que já não sou a mesma que era. Sempre me
julguei uma pessoa equilibrada. Tanto que muitas vezes
critiquei Fernanda por sua maneira submissa, mas acho que
fazia isso por nunca ter conhecido o verdadeiro amor. Hoje,
depois do Júlio, acho que faria qualquer coisa que ele quisesse.
Sinto que o meu único desejo é vê-lo feliz. Esse fim de semana
foi maravilhoso! Aliás, todos os dias, depois que o conheci,
foram maravilhosos. Nunca pensei que o amor pudesse ser tão
importante na nossa vida, ainda mais quando encontramos
alguém que também nos ame. Só posso agradecer a Deus por
tudo."
Chegou ao escritório e, como já esperava, tinha realmente
muito trabalho: tanto, que quase se esqueceu de Fernanda e de
Júlio. Já eram quase seis horas da tarde quando Júlio telefonou,
dizendo;
—Oi, meu amor, passou bem o dia?
—Com muito trabalho, mas estou feliz. E você?
— Estou aqui no meu consultório. Também tive muito
trabalho, mas estarei livre depois das sete horas. Quer me ver?
—Claro que quero! Quer que eu passe aí para te pegar?
—Não, vá para casa. Preciso jantar em casa, senão minha mãe
vai ficar com ciúmes e isso não é bom. Já reclamou por eu ter
passado quase todo o fim de semana fora — disse, rindo.
—Está bem, tenho muito trabalho; se você for jantar na sua
casa, virá só depois disso. Então, vou aproveitar e ficar mais um
pouco por aqui. Que tal lá pelas nove?
— Está ótimo! Ainda bem que moramos na mesma rua!
— Estarei te esperando, um beijo.
"Ele é mesmo maravilhoso! Nunca pensei que existisse um
homem como ele. Parece adivinhar o que estou pensando. Será
esse o amor verdadeiro? Será que somos almas gêmeas? Se alma
gêmea realmente existir, com certeza somos e eu estou muito
feliz por isso. Bem, preciso voltar ao trabalho."
Passaram-se os dias. Marilda dividia o seu tempo entre o
trabalho e Júlio. Esqueceu o delegado e a investigação que ele
disse que faria. Eram quase seis horas da tarde, o telefone
tocou:
—Doutora Marilda, é Tomas o delegado. Como está?
—Delegado! Estou bem, obrigada. Tem algo para me dizer?
Estou ansiosa esperando notícias suas!
—Tenho notícias, sim. Hoje é o meu plantão. Gostaria que, se a
senhora pudesse, viesse até aqui.
—Claro que posso! Estou ansiosa por suas notícias! A que horas
quer que eu vá?
—A qualquer hora. Estarei aqui à noite toda.
—Está bem, irei assim que sair do trabalho.
"Finalmente, agora sei que haverá uma solução para a morte da
Fernanda" — pensou enquanto desligou o telefone.
Em seguida telefonou para Júlio e contou-lhe sobre o
telefonema do delegado. Marcaram um encontro para as nove
horas, em frente à delegacia. Marilda não conseguiu mais
trabalhar, estava muito ansiosa. Saiu do escritório, foi para casa.
Precisava se acalmar e esperar que Júlio estivesse desocupado
para acompanhá-la. Havia prometido a ele que não iria sozinha
à delegacia e pretendia cumprir a promessa.
"Mudei mesmo!" — pensava enquanto escolhia uma roupa para
vestir. — "Se fosse há outros tempos, não estaria aqui
esperando. Assim que o delegado me telefonou, voaria para a
delegacia. Mas olhe só! Estou aqui, na dependência do Júlio
para me acompanhar, só para que não fique magoado."
Quando faltava meia hora para as nove horas, ela saiu de casa.
No pátio da delegacia ficou esperando Júlio, que chegou logo
depois. Entraram juntos. O delegado estava atendendo um
caso. Sentaram-se e ficaram esperando.
—Que bom que estão aqui. Entrem. Sei que o que tenho para
contar fará que fiquem mais tranquilos. Entrem, por favor.
—O senhor intimou Antero, doutor? — Marilda perguntou
aflita. — Ele veio e explicou o telefonema da Fernanda?
—Calma doutora! Eu o intimei, sim, e ele atendeu
prontamente. Deu um novo depoimento, só não pôde explicar
a respeito do telefonema. Disse que não sabia sobre o jantar e
que não havia se comunicado com a esposa desde o dia em que
as senhoras foram juntas na empresa.
—Ele está mentindo! Claro que sabia do jantar e que também
disse a ela que voltaria para casa! Ela não teria inventado uma
história como essa! Por que ligaria para minha casa, sabendo
que eu não estava lá? Estava ansiosa para que eu soubesse e
ficasse tranquila em relação a ela!
—A senhora tem razão em estar desconfiada, mas o álibi dele é
perfeito. Esteve realmente viajando a noite toda, só chegou a
São Paulo pela manhã.
—Não pode ser! Como pode ter certeza que ele esteve viajando
durante a noite?
—Ele viajou em companhia de um corretor que queria lhe
mostrar umas terras. Para que os gastos da empresa sejam
controlados, eles têm e sempre tiveram por norma pegar notas
fiscais em todos os postos de gasolina onde abastecem o carro e
nos pedágios. Trouxe duas notas de dois postos diferentes e
alguns recibos de pedágio. Ele esteve viajando a noite toda.
Disse que além do corretor que o acompanhava jantou com os
vendedores das terras e que eles poderiam confirmar que
esteve lá. Estando tão longe, não teria como ter matado a sua
amiga. Não foi ele. Pela autopsia, ela ingeriu uma quantidade
grande dos comprimidos que estavam espalhados pelo chão,
que ela deve ter deixado cair. Sinto muito, sei que é difícil, mas
a senhora precisa se conformar com a idéia de que ela se matou
realmente.
—Não pode ser! Por que ela telefonaria para a minha casa, para
que eu ficasse tranquila caso eu telefonasse, se estava pensando
em se matar?
—Isso não posso lhe responder. Sabe-se lá o que se passa pela
cabeça de um suicida, mas posso lhe garantir que se alguém a
matou não foi ele.
—Como pode ter tanta certeza disso?
—Sou delegado há muito tempo, só nesta delegacia trabalho há
mais de dez anos. Sei como interrogar uma pessoa e sei
também que, se ela for culpada, não conseguirá escapar das
minhas armadilhas. Por isso, tenho quase certeza de que não
foi ele.
Júlio, que assim como ela prestava atenção e acompanhava a
conversa, disse, colocando o braço sobre os ombros de Marilda:
—Bem, Marilda, acho que o delegado tem razão. Ele conhece
o seu trabalho. Precisamos ir embora e procurar esquecer
tudo que passou. A única coisa que podemos fazer pela
Fernanda é vibrarmos muito por seu espírito e pedir que Deus
não a abandone, esteja onde estiver. Acredito que Ele nunca
fará isso.
—Sabe doutora, já vi muitos crimes que, aparentemente,
pareciam sem solução. Mas do nada, quando já não me
lembrava mais, sempre surgia uma pista e pegávamos o
assassino. Por isso lhe digo que não vou parar as investigações,
embora esteja convencido de que ela realmente se matou.
—Obrigada, doutor, por sua atenção. Conto com o senhor, pois
ainda não estou convencida que ela tenha feito isso.
—Não tem que agradecer. Estou somente cumprindo com o
meu dever — disse isso rindo. — Não esqueça que sou um
servidor público e que o meu salário é pago pela senhora.
—Estou certa de que o dinheiro dos meus impostos está sendo
bem usado se for investido, em funcionários como o senhor —
Marilda disse, também rindo. — Até logo e qualquer novidade
me comunique, por favor.
—Não se preocupe. Procure esquecer e continue a sua vida.
Nada mais poderá fazer por sua amiga. Até logo.
Saíram, pararam no pátio e ficaram conversando.
—Júlio, não consigo aceitar! De alguma maneira, o Antero está
envolvido! Ele matou a Fernanda!
—Não tem como provar. Se foi ele, planejou muito bem.
Agora, vamos para a sua casa, lá conversaremos mais. Não
poderei passar a noite com você. Hoje, tenho plantão no
hospital.
—Vamos — disse, sorrindo. — Ao menos poderemos ficar
algum tempo juntos.
Em casa, conversaram sobre o que o delegado havia dito.Meia
hora depois, Júlio foi embora. Marilda foi para o seu quarto,
deitou e, olhando para o teto, pensou com lágrimas nos olhos:
"Fernanda, minha amiga, sei que você não tirou a sua vida, mas
sinto que não terei como provar. Não entendo muito bem da
vida espiritual, mas de acordo com o que me disseram o que
mais precisa neste momento é de muito amor. É isso que estou
te enviando neste momento: luz, amor e muita saudade. Fique
bem e seja feliz onde estiver. Sei que Deus não te deixará
sozinha."
Sentiu uma brisa suave e adormeceu.
O desabafo
Antero chegou à empresa e estava nervoso. Assim que entrou
na sua sala, Flávio também entrou e percebeu que o amigo não
estava bem; perguntou:
—O que aconteceu agora, Antero?
—Ontem à noite te procurei, mas não o encontrei. No final da
tarde, o delegado telefonou e pediu para que eu fosse até a
delegacia para prestar alguns esclarecimentos sobre o dia da
morte da Fernanda. Fiquei preocupado, não queria ir sozinho,
mas como não te encontrei não tive alternativa e fui sozinho.
—Você sabia que eu precisava sair mais cedo, mas por que isso?
O que ele queria?
—Não sei, mas acho que ele estava desconfiado que ela não se
matou, que foi um assassinato.
—O quê?! Assassinada?! De onde ele tirou essa idéia?
—Não sei Flávio, disse que ficou sabendo que a Fernanda, na
noite em que morreu, estava me esperando para jantar porque
eu voltaria para casa.
—O quê?! Quem disse isso a ele, Antero?
—Não sei, perguntei, mas ele não quis dizer. Deduzi que só
pode ter sido a Marilda.
—Por que ela faria isso? Além do mais, você nem estava aqui,
na cidade! Estava comprando aquelas terras...
—Pois é, não sei de onde ela tirou essa idéia. Mas não foi difícil
convencer o delegado de que eu não estava mesmo aqui. Além
das notas fiscais dos postos de gasolina, dos recibos dos
pedágios, eu estava acompanhado do corretor. Foi a minha
sorte.
—O que pretende fazer agora?
—Vou conversar com a Marilda. Ela vai ter que me explicar o
porquê de ter inventado uma coisa como essa. Não entendo!
—Mas e se não foi ela quem disse ao delegado?
—É isso que preciso saber. Se não foi ela, não consigo imaginar
quem poderia ter sido. Mais tarde vou ligar para o escritório
dela e perguntar. Com tudo isso que está acontecendo, esqueci
de te perguntar: o que resolveu com o gerente do banco?
—Depois de muita discussão e muito tempo, ele resolveu
aceitar a minha proposta para que fizesse um novo plano de
pagamento da nossa dívida e, assim que o inventário fique
pronto, pagaremos tudo de uma vez. Embora tenha sido difícil,
no final ele concordou.
—Melhor assim. Antes, preciso falar com a Regiane. Vou
precisar dizer a situação da empresa e convencê-la a vender ao
menos dois apartamentos.
—Você acredita que ela vai concordar Antero?
—Acredito que sim, pois também tem uma boa retirada mensal
da empresa e, se ela for mal, Regiane também sofrerá.
—Sabe que a morte da Fernanda aconteceu em boa hora.
—O que está dizendo, Flávio! Está louco?
—Não estou dizendo nada do que você já não tenha pensado.
Vai me dizer que não pensou sobre isso, Antero. Sabe muito
bem que, se não voltasse para casa, ela jamais aceitaria vender
qualquer uma das propriedades, muito menos a casa de que ela
tanto gostava. Não se esqueça de que o primeiro dinheiro desta
empresa veio da herança dos pais dela.
—Nunca pensei sobre isso! Eu jamais seria capaz de matar a
Fernanda. Ela era a minha esposa e foi sempre dedicada a mim
e à Regiane! Eu não a amava, mas a respeitava muito! Nunca
passou pela minha cabeça a possibilidade da morte dela! Sei que
seria difícil convencê-la, mas eu tentaria fazer com que
entendesse que, se eu não tivesse dinheiro, a empresa poderia
ser fechada e sei que isso ela também não ia querer. Ela
concordaria.
—Mesmo que para isso fosse obrigado a voltar para casa?
—Eu jamais voltaria, mas encontraria algum argumento. Nunca
matá-la, Flávio! Você sabe disso, Flávio...
—Claro que sei, mas de qualquer forma a morte dela foi
providencial. Vai facilitar em muito o nosso problema.
—Como você pode ser tão insensível? Sempre me pareceu que
gostava dela!
—E gostava, nunca quis a morte dela, só que não pode negar
que foi providencial e que aconteceu em boa hora, Antero.
—Pois eu preferiria que isso não tivesse acontecido.
Encontraríamos uma solução para o problema da empresa, sem
que,para isso, ela tivesse que morrer.
—Que solução, Antero? Não havia nenhuma. Sabe muito bem
que todo o meu dinheiro empreguei aqui na empresa e na
construção desses apartamentos, que, se não forem vendidos
ainda na construção, não teremos como terminar e entregar.
—Sei disso, mas ela não precisava ter morrido Flávio.
—Agora não tem mais jeito. Fernanda morreu, está enterrada e
você poderá finalmente resolver a sua vida e ser realmente
feliz. Não foi isso o que sempre quis?
—Foi. Eu sempre quis ser feliz, mas não precisava ser dessa
maneira . Agora chega! Essa conversa está me deixando
nervoso! Vá arrumar alguma coisa para fazer e me deixe em
paz. Não quero mais falar sobre isso! Da maneira como está
falando, até parece que está feliz com a morte dela! Se o
delegado te ouvisse, pensaria que foi você quem a matou,
Flávio!
—Eu não a matei, mas não posso negar que a morte dela foi a
nossa solução.
—Vá embora, Flávio! Saia! Está me deixando nervoso!
—Está bem, não precisa ficar nervoso. Estou indo...
Flávio saiu, Antero estava realmente nervoso.
"Como ele pode pensar e dizer uma coisa como essa? Eu nunca
quis a morte da Fernanda! Ela foi sempre uma ótima esposa e
companheira para todas as horas! Se eu conversasse com ela,
sei que entenderia e não se oporia a me ajudar com a empresa.
O Flávio está louco em pensar isso! Preciso falar com a Marilda,
ela tem que me explicar o que aconteceu e por que está
inventando essa história de que eu jantaria com a Fernanda —
olhou para o relógio que estava em seu pulso.
—Há essa hora, ela já deve estar no escritório. Vou telefonar e
saber o que está acontecendo."
Procurou na agenda e discou o número de Marilda. Ela estava
entretida lendo um processo, atendeu:
—Marilda, sou eu, o Antero. Precisamos conversar, quer
almoçar comigo?
—Olá, Antero, acredito que não poderei ir, tenho muito
trabalho. Vou comer um lanche aqui mesmo no escritório.
—O que tenho para conversar com você é muito sério.
Quando poderemos nos ver?
—Parece sério mesmo! Do que se trata? Sinto muito, mas hoje
não poder ser.
—Fui intimado a comparecer na delegacia.
—Sei disso.
—Sabe?! Então foi você mesmo quem contou aquela história
louca de que eu iria jantar com a Fernanda?!
—Sim, fui eu.
—Por que fez isso? Sei que você era a sua melhor amiga e que
não quer aceitar que ela tenha se matado, mas foi o que
aconteceu! Eu também estou sentindo muito e me julgando
culpado por tê-la abandonado, mas nunca pensei ou desejei a
sua morte! De onde tirou essa idéia de jantar?
—Você sabe que eu viajei. Ela telefonou lá para casa e disse
para a minha empregada que, se eu telefonasse, era para ela me
dizer que estava tudo bem e que você iria jantar com ela
naquela noite e voltaria para casa. Como pode ver, ela estava
feliz e jamais se mataria. Se estivesse na minha situação, o que
faria? Com certeza, iria até a delegacia e contaria o que sabia;
foi o que fiz. Não acredito nem quero acreditar que ela tenha se
matado!
—Não pode ser! Demorei muito para tomar a decisão de sair de
casa e não voltaria! A sua empregada deve estar mentindo!
—Por que ela faria isso? Qual o interesse dela? Não, ela não
mentiu! Se alguém está mentindo, esse alguém é você!
— Marilda , nos conhecemos há tanto tempo. Nunca pensei
que poderia ouvir isso de você! Eu provei para o delegado que
estava viajando e, para minha sorte, estava acompanhado.
Como poderia tê-la matado a quilômetros de distância?
— Não sei. E é isso que está me confundindo, mas tenho
certeza que ela não se matou! Isso ela não fez!
— Sei que é o que deseja, mas infelizmente ela fez. Não houve
luta! Ela ingeriu uma quantidade grande daqueles comprimidos,
Marilda!
—Alguém pode tê-la obrigado!
—Se isso tivesse acontecido haveria algum sinal de luta em seu
corpo, haveria alguma marca de agressão e, de acordo com a
autopsia, não havia! Ela se matou, sim! Mas, mesmo que tivesse
sido assassinada, não fui eu. Eu estava muito longe!
—Pode ter feito essa viagem de caso pensado, enquanto um
cúmplice fazia a parte suja!
—Por favor, Marilda, tire isso da sua cabeça. Para mim também
está sendo difícil aceitar e, pode não acreditar, mas estou
sofrendo muito também!
—Sinto muito. Não acredito que ela tenha se matado e não
acredito que você não tenha nada com isso! Era o único que
tinha um motivo!
—Que motivo?
—Com a morte dela poderá assumir uma nova vida com outro
alguém.
—Eu já havia feito isso! Já havia saído de casa, Marilda.
—Sim, mas teria que enfrentar a sua filha e amigos, e sabe que
isso também não seria fácil.
—Eu, antes de sair de casa, pensei em tudo isso. Sabia que seria
difícil, mas nada me importava. Queria e quero ser feliz e isso
só acontecerá ao lado da mulher que sempre amei, mesmo
antes de me casar com a Fernanda!
—Está me dizendo que não trocou a Fernanda por uma
menininha? Que sempre a enganou? Que durante todo o tempo
manteve um caso fora do lar, Antero?
—Sim, foi isso mesmo que fiz. Quando me casei estava
apaixonado pela Zuleica.
—Zuleica?! A mesma que conhecemos?!
—Sim, ela mesma! Fui obrigado por meu pai a assumir o filho
que a Fernanda estava esperando, mas mesmo assim nunca nos
separamos.Zuleica ficou ao meu lado todo esse tempo, me
ajudou a construir a empresa, trabalhando sempre ao meu lado.
Esperou minha filha crescer, meu pai morrer e só aí decidiu
que não queria mais ser a minha amante. Foi embora da
empresa dizendo que ou eu abandonava a Fernanda ou ela
nunca mais me veria. Eu, que sempre a amei, tomei a decisão
de abandonar tudo e ficar ao seu lado.
Marilda estava abismada, nunca poderia imaginar que a Zuleica
tivesse um caso com Antero.
—Não pode ser, ela fazia parte da nossa turma na faculdade e
sempre foi nossa amiga! Nunca deixou transparecer que
estavam juntos! Frequentou a sua casa, nas festas e aniversários!
—Apesar de me amar, também gostava da Fernanda. Zuleica
entendeu quando ela engravidou e, por me amar muito, aceitou
essa situação. Prometeu que jamais revelaria para a Fernanda ou
para ninguém o nosso amor.
—Estou pasma, sem saber o que falar. A Fernanda poderia
duvidar de qualquer pessoa, menos dela.
—Sei disso, mas a Zuleica não quis continuar. Ela não queria
mais a situação de ser minha amante. Não havia mais motivo,
minha filha estava casada e meu pai morto.
—E a Fernanda, como ficaria nessa história? Não pensou em
quanto a estava fazendo sofrer?
—Ela nunca sofreu! Sempre fui um bom marido e pai!
—Disso tenho certeza. Por isso também não entendia a sua
rápida decisão de sair de casa, sem dizer o motivo. Fernanda
também não entendeu. Pensou que a culpada fosse a Luciana.
—A Luciana?! Aquela menina?!
—Sim. Assim que Fernanda a viu na empresa, percebeu o
quanto ela é jovem e bonita. Nós a seguimos e descobrimos
que ela é uma boa moça lutadora e que tem uma vida muito
sofrida.
—Vocês a seguiram?! Não posso acreditar nisso!
—Sim, e o culpado foi você. A desculpa de que a Fernanda
tinha mania de limpeza não convenceu a ela, nem a mim.
Você só poderia ter deixado tudo por alguém e esse alguém
deveria ser mais nova e bonita que a Fernanda, nunca por
outra com a mesma idade dela e não tão bonita quanto ela!
—Viu como estavam enganadas?
—Sim, muito enganadas, mas agora não podemos mais
continuar conversando. Eu tenho mesmo muito trabalho.Sei
que a Fernanda não se matou e que o assassino será descoberto.
Sei também que tudo é uma questão de tempo.
Marilda desligou o telefone. Estava abismada e ainda mais
enfurecida. Pensou, ainda com o telefone na mão:
"Como eles puderam enganar Fernanda por tanto tempo? Será
que ela descobriu enquanto estive viajando? Acho que não,
pois ela telefonou dizendo que estava tudo bem.Meu Deus, não
sei mais o que pensar, mas agora preciso mesmo voltar ao meu
trabalho. Mais tarde vou telefonar para o Júlio e contar a
conversa que tive com Antero".
Antero, também, enquanto desligava o telefone, pensava:
"Por que a Fernanda telefonou dizendo aquilo? Eu não a vejo
desde o dia em que esteve com Marilda aqui na empresa.
Nunca lhe disse que iria jantar e muito menos que voltaria para
casa. O que terá acontecido para ela dizer uma coisa como essa?
Será que fiz bem em revelar para a Marilda o meu
relacionamento com Zuleica? Isso fará com que as suspeitas
dela aumentem. Não estou bem, estou me sentindo abafado,
não estou conseguindo respirar direito. Preciso sair e encontrar
Zuleica, lhe contar o que aconteceu. É isso que vou fazer."
Pegou o paletó e saiu. Ao passar por Luciana, disse:
— Preciso sair e hoje não volto mais.
Ela, não entendendo a sua atitude, disse:
—Está bem, se alguém procurar pelo senhor, anotarei e
amanhã lhe passarei os recados.
Ele foi até ao estacionamento do prédio, pegou seu carro e saiu
dirigindo. Estava intrigado, precisava pensar e tentar descobrir
o que realmente havia acontecido com Fernanda, pois diante
de tudo que Marilda lhe contou ele também tinha dúvidas se
Fernanda havia mesmo cometido o suicídio.
"É isso mesmo. Se o que a Marilda contou for verdade, a
Fernanda não tinha intenção alguma de se matar. Vou para
Louveira. Preciso de um pouco de paz. Sei que só encontrarei
ao lado de Zuleica, vou lhe contar tudo o que aconteceu e ela,
assim como eu, ficará surpresa."
O dia estava quente. Antero parou em um posto de gasolina
para abastecer o carro e aproveitou para tirar o paletó e jogou-o
no banco de trás do carro. Chegou a Louveira, saiu da estrada
principal e foi para a casa de Zuleica. Abriu o portão, a porta e
entrou. A casa estava silenciosa. A porta do quarto onde
Zuleica dormia estava fechada. Ele concluiu que ela deveria
estar dormindo. Foi até a cozinha, estava com sede, mas, ao
entrar, levou um choque, a cozinha toda estava uma bagunça.
Havia louça suja por todo lado, em cima do fogão, da pia e da
mesa. Parecia que não era lavada há muitos dias. Estranhou,
pois, embora Zuleica não tivesse a mesma mania de limpeza
que Fernanda, gostava de deixar a casa mais ou menos em
ordem.
Abriu a geladeira, que estava quase vazia, tomou um pouco de
água e foi para o quarto. Abriu a porta devagar. Realmente,
Zuleica estava dormindo. Ele se aproximou devagar, beijou sua
testa, ela demorou um pouco para abrir os olhos. Então a beijou
novamente . Agora, sim, ela abriu os olhos e o viu debruçado
sobre ela. Levou um susto e sentou-se na cama.
—O que você está fazendo aqui?
—Por que está perguntando isso? Achei que pudesse vir
sempre que quisesse, existe algum problema?
—Problema nenhum. Só que não estava te esperando. Pensei
que estivesse no trabalho, sabe que não posso telefonar para a
empresa, pois poderiam reconhecer a minha voz.
—Tem razão, mas isso será por pouco tempo, logo poderemos
anunciar o nosso amor para todos. Estava me sentindo muito só
e confuso, precisava te ver.
—Ainda bem que essa vida de amante vai terminar. Todos
condenam as amantes, mas não imaginam o sofrimento da vida
delas, estou cansada da solidão e da tristeza de não saber nunca
onde você está e com quem.
—Sabe muito bem que, não importa onde eu esteja, estarei
pensando em você.Não pensei que te encontraria dormindo,
são mais de onze horas. Notei também que a sua casa está um
tanto abandonada e a geladeira está vazia. Não está se sentindo
bem? Está doente? O que você tem Zuleica?
— Não estou doente, mas sabe que não gosto do serviço da
casa. É cansativo e chato. Só faço o necessário, pois sempre
encontro algo melhor para fazer. Gosto menos ainda de
cozinhar, por isso faço pedidos a um restaurante que tem aqui
perto e eles trazem as minhas refeições. A comida é muito boa.
Ontem fiquei até tarde assistindo televisão, por isso estava
ainda dormindo. Não esperava que viesse hoje.
—Você é muito diferente da Fernanda, ela adorava tudo isso e
muito mais acordar cedo para nos preparar o café.
—Por isso você me trocou por ela — disse, sorrindo e com ar
de deboche.
Ele também sorrindo disse:
—Só que a você eu amo e muito!
Ela o abraçou, dizendo emocionada:
—Também te amo, mas até agora não me disse o que está
fazendo aqui a esta hora da manhã.
—Aconteceram algumas coisas que queria te contar e saber a
sua opinião a respeito.
—Está bem, espere só um pouco. Vou me levantar e tomar um
banho, depois conversaremos enquanto tomo o meu café.
—Não deseja, antes, fazer amor, Zuleica?
Ela beijou o seu rosto e respondeu sorrindo:
— Sabe que estou sempre disposta a te amar. Na realidade, isso
é o que vou fazer: amar-te com toda intensidade. Já volto.
Entrou no banheiro, ele deitou na cama e, olhando para o teto,
ficou em silêncio e pensando:
"Como ela é diferente da Fernanda. Não se apega a nada. Nem a
casa, aos móveis e não sei se a mim. Mas, como ela disse, talvez
seja por isso que a amo tanto e que por ela faria qualquer
loucura. Como fiz ao abandonar a Fernanda, sem medir as
consequências do meu ato."
Ficou ali deitado, até que ela voltou do banho e se amaram com
intensidade e amor. Depois foram para a cozinha, ela retirou as
louças sujas que estavam sobre a mesa, colocou água para
ferver; em seguida, pegou um pedaço de bolo e leite. Sentaram-
se e, assim que a água ferveu, ela coou o café.
— O que aconteceu de tão urgente para que viesse até aqui? —
Zuleica perguntou enquanto tomavam café.
Ele contou sobre a conversa que teve com Marilda. Ela ouviu
calada; quando ele terminou, assustada, disse:
—Estou impressionada com a atitude dela. De onde ela tirou
essa idéia? Mas ainda bem que você tem como provar que
estava distante naquela noite. Só acho que você não devia ter
contado para ela sobre o nosso relacionamento.
—Por que não? Agora já não existe empecilho algum. Estou
livre e pretendo em breve comunicar a todos. Depois de tanto
tempo poderemos, finalmente, ser felizes.
—Ainda acho um pouco cedo. Ela poderá desconfiar de alguma
coisa, sabe como ela é esperta.
—Desconfiar do quê?
—De nada... De nada...
—Está estranha, sabe de alguma coisa que eu não saiba?
—Claro que não — disse, sem conseguir esconder seu
nervosismo —, só acho muito cedo.
— Estou cansado de esperar. Dentro de alguns dias, vou
conversar com a Regiane e tudo ficará bem.
—Acredita mesmo que ela aceitará, assim, sem discutir?
—Ela é adulta, está em sua casa, com o marido e o filho, não
pode me condenar por eu querer ser feliz.
— Não tenho tanta certeza, mas que seja tudo como você
quiser. Sabe que sempre tentei fazer tudo para te agradar. Vai
ficar para o almoço?
—Vou, não pretendo voltar para a empresa. Não estou com
cabeça para o trabalho.
— Sendo assim, vou telefonar para o restaurante e pedir que
tragam mais uma refeição.
Ela se levantou, foi até ao telefone, telefonou para o
restaurante, depois voltou a sentar-se ao lado dele,
perguntando:
—E os problemas financeiros da empresa, foram resolvidos?
Está tudo bem?
—Flávio conversou com o gerente do banco e conseguiu que
ele nos desse mais tempo, usando como argumento a morte da
Fernanda e o inventário. O gerente sabe que possuímos várias
propriedades e que o dinheiro não será difícil. Tenho muito
mais do que aquilo que estamos devendo.
— Até que a morte da Fernanda não foi tão má assim. Ao
menos os problemas da empresa serão resolvidos.
—Você está parecendo o Flávio! — disse espantado.
—Por quê?
—Ele me disse exatamente essas mesmas palavras. Não sei
como vocês podem pensar uma coisa como essa! A empresa
estava, sim, com problemas, mas nada como uma boa conversa
com Fernanda para que pudéssemos resolvê-los. Ela não
precisava ter morrido, porque no final sempre fazia o que eu
queria.
—Quanto à empresa, talvez uma boa conversa resolvesse, mas
e quanto a nós, acha que ela aceitaria o divórcio, sabendo que
era para você se casar com outra? Principalmente essa outra
sendo eu? Claro que não! Portanto, para mim, ela ter morrido
foi ótimo! Não vou te enganar dizendo que não estou feliz por
isso ter acontecido, pois na realidade estou!
—Não pode estar falando sério! Você parece que a odiava e
nunca me passou isso! Sempre disse que gostava dela, apesar de
me amar.
—Era verdade. Mas com ela morta todos os nossos problemas
estarão resolvidos. Não sei qual é o problema.
—Não acredito que esteja ouvindo essas palavras, vindas da sua
boca. Estou mesmo te desconhecendo.
Ela, percebendo que havia falado demais, tentou remediar:
— Ora, meu bem, claro que não estou falando sério. Assim
como você, também senti muito a morte dela, só foi um
pensamento ruim que passou pela minha cabeça. Vamos mudar
de assunto? Prefiro falarmos do nosso futuro e de toda a
felicidade que teremos e merecemos.
Beijaram-se, passaram o dia e a noite juntos.
O despertar
O quarto era grande, com uma cama de solteiro, colchão e
travesseiros macios. As paredes e o teto eram pintados em um
tom de azul, bem claro. As cortinas e lençóis, também em azul,
um pouco mais escuro. A iluminação vinha de uma pequena
lâmpada no tom lilás. O ambiente era de profunda paz. A porta
se abriu e por ela entraram duas mulheres. Uma mais velha e a
outra jovem ainda. Ao se aproximarem da cama onde
Fernanda estava adormecida, a mais jovem sussurrou:
—Ela ainda está dormindo, Marli...
—Sim, e dormirá por mais algum tempo.
—O que acontecerá quando ela acordar?
—O mesmo que aconteceu com todos nós e acontecerá
sempre. Levará um susto, não entenderá e precisará de muito
tempo para entender e aceitar, Tânia.
—Estou me lembrando de quando cheguei. Você tem razão.
Eu não entendia, nem aceitava que tinha morrido. Era muito
jovem. Sabia que fracassara.
—Não importa com que idade se chega, nunca estamos
preparados para aceitar a morte e sempre teremos algo para
fazer na Terra. Mas com o tempo notamos que aqui, sim, é o
nosso verdadeiro lugar. Diga com sinceridade: você tem
vontade de renascer, de voltar a viver na Terra?
—Já pensei muito a esse respeito, sei que está chegando a hora,
mas confesso que tenho medo de fracassar, outra vez.
—Não existe fracasso. O que existe é aprendizado e nada
melhor que a Terra; ela é a escola mais perfeita.
—Tem razão. Mas será que ela vai se lembrar de mim?
—Claro que sim; talvez demore um pouco, mas lembrará.
Uma luz branca atravessou o teto e parou sobre o corpo
adormecido de Fernanda. Ficou lá por alguns minutos.
Fernanda se mexeu na cama, respirou fundo e sorriu como se
estivesse sentindo um bem-estar enorme.
A mais jovem se assustou e perguntou, sussurrando:
—Marli, que luz é essa?
—Esse é o melhor remédio para todos nós que estamos aqui.
Alguém lá na Terra, neste momento, está pensando nela e está
lhe enviando amor, luz e paz. Alguém que a ama e que mesmo
sentindo saudade deseja tudo de bom para ela. Essa luz lhe
servirá como alimento. Graças a Deus! Lá na Terra, ninguém
imagina como um simples pensamento pode ajudar tanto.
—Está dizendo que um pensamento, apesar de ser de saudade,
mas tendo amor e luz, nos faz bem? Um simples pensamento
pode ajudar?
—Muito mais do que você possa imaginar. O pensamento tem
uma força ainda desconhecida. Assim como pode trazer paz,
como neste caso, pode também trazer dor e sofrimento.
—Como assim?
—Quando o pensamento é de dor, sofrimento ou de ódio,
também nos atinge da mesma maneira e pode nos causar muito
mal. Quando for de dor e sofrimento pela perda, faz muito mal
para aqueles que partiram e estão aqui tentando se recuperar.
Você talvez não saiba que a doença mais grave do espírito é a
saudade e que, para ela, o remédio é demorado. O pensamento
de ódio é pior ainda, mas esse não faz mal só para quem está
aqui, mas muito mais para aquele que o transmite.
—É por isso que, quando as pessoas morrem lá na Terra, todos
esquecem o que fizeram de ruim e passam a acreditar que só
porque morreram podem ajudar , que viraram santos?
—É isso mesmo o que acontece — disse Marli rindo. — Mal
sabem eles que, depois da morte, nada muda. As pessoas
continuam sendo como sempre foram, com seus defeitos e
suas qualidades. Não tem poder algum e não podem se
comunicar sem o consentimento dos nossos superiores.
—Tem muitas pessoas que procuram os médiuns para tentar se
comunicar com aqueles que morreram?
—Sim, acontece muito e, quando não conseguem, se revoltam
e passam a não acreditar mais. Não sabem em que estado o seu
ser amado chegou aqui, nem quanto tempo vai demorar a
aceitar a morte e estar lúcido para poder se comunicar. Às
vezes, ele está participando de alguma equipe de socorro e não
pode se comunicar naquele momento. Melhor seria se, ao
invés de ficar chorando ou sofrendo com a perda, fosse
enviando, como aconteceu neste caso, luz, amor e, se
necessário, o perdão. — Por outro lado, Marli, para nós que
estamos aqui e conhecemos o mundo espiritual, é muito fácil,
mas não podemos nos esquecer que lá na Terra não temos esse
conhecimento. Por isso fica tão difícil aceitarmos a perda de
alguém que amamos.
—Nisso você está certa, Tânia.
—Não seria mais fácil voltarmos lembrando-se de todos os
compromissos que fizemos aqui antes de renascer? Não seria
mais fácil nos lembrarmos das reencarnações passadas? Assim,
não nos revoltaríamos quando algo não fosse bem a nossa vida.
—Nem sempre seria mais fácil. Imagine se você encontrar no
seu caminho alguém que te fez muito mal em outra vida, será
que conseguiria perdoar? Ou, ao contrário, alguém a quem
você fez mal, acredita que te perdoaria?
—Tendo o conhecimento de tudo, talvez sim.
—Talvez.Viu como não tem certeza? O espírito está
caminhando, evoluindo a cada minuto. Você sabe que na
maioria das vezes inimigos e amigos se encontram dentro de
uma mesma família. Justamente para que convivam e
aprendam a se amar, respeitar e principalmente perdoar.
—Nem sempre isso acontece. Existem famílias, nas quais
pessoas não se entendem e passam o tempo todo brigando.
—Sim, isso acontece. Brigam por muito tempo, mas, no final,
envelhecem e começam a ver que nada na vida é para sempre
e o amor de irmão, pais e filhos são sempre mais fortes.
Normalmente, aqueles que foram os piores inimigos durante a
vida tornam-se os melhores amigos. A força do sangue, da
convivência, na maioria das vezes, sempre vence. Deus é sábio,
Ele sabe o que faz.
Fernanda se virou, abriu os olhos, sorriu, ajeitou o travesseiro e
voltou a dormir. Tânia sorriu perguntando:
— Ela vai acordar?
— Não sei, está dormindo profundamente. Acho que ainda
não está preparada para acordar e encarar a realidade. Não está
pronta para aceitar a morte, mas na hora certa acordará.
—Terá que aceitar, embora tenha vindo tão cedo, não e?
— Sim, terá que aceitar, mas será difícil. Ela era muito apegada
a coisas como casa, móveis, à filha e ao marido. Como você diz,
ainda mais tendo voltado antes do tempo, o que, na realidade,
será o nosso maior problema.
—Como ela vai reagir quando souber o que aconteceu?
—Não sei, mas precisamos estar preparadas. Sabe que o nosso
trabalho aqui é justamente esse, convencê-la de que os planos
tiveram que ser mudados, pois o ódio foi mais forte e fez com
que ela voltasse antes do tempo e da maneira como foi.
—Não vai ser fácil.
—Sei que não, mas faremos o melhor que pudermos. Por
enquanto, ficaremos ao seu lado, dando-lhe passes e luz.
Quando chegar a hora, quando estiver pronta, acordará e aí
veremos o que precisará ser feito.
—Apesar de tudo, e a partir daquele momento em que tudo foi
mudado, ela cumpriu sua missão direitinho. Levou a vida
como o planejado; o que não deu certo?
—Ela cumpriu, sim, mas os outros não. Não aceitaram as
mudanças e agora ela está bem, e eles terão que responder por
aquilo que fizeram.
—Responder como?
—Terão que pagar pelo crime cometido, essa é a Lei e dela
ninguém escapa. Assim como ela, tiveram a oportunidade de
resgatar, mas não tiveram paciência. Um dia, terão que voltar e
responder por tudo que fizeram. Terão que prestar contas.
—Serão julgados, condenados e presos na Terra?
—Nem sempre isso acontece, mas com certeza do julgamento
de Deus não escaparão. Por mais que se escondam ou
disfarcem, não há como escapar.
—Ela foi quase perfeita...
—Disse bem, quase, só não aceitou e quis Antero a qualquer
custo e não deixou de ser tão apegada a tudo.
Fernanda moveu-se novamente e para espanto delas abriu os
olhos. Olhou para uma de cada vez, não as reconheceu. Em
seguida, olhou para todo o quarto. Estava ainda um pouco
adormecida e também não reconheceu aquele lugar. Tentou se
levantar, mas não conseguiu. Marli disse com voz suave:
—Seja bem-vinda, estávamos ansiosas para que acordasse,
embora pensássemos que dormiria por mais algum tempo.
—Onde estou? Que lugar é este? Está parecendo um quarto de
hospital.
—É isso mesmo o que é. Você está em um hospital, mas não se
preocupe, está tendo todo o tratamento necessário.
—Estou me sentindo fraca, o que aconteceu?
—Fique calma, não se preocupe. Teve um mal-estar e foi
enviada para cá, mas logo ficará bem. Meu nome é Marli, e esta
é a Tânia, estamos cuidando de você desde que chegou.
—Mal-estar?! Não me lembro disso! Onde está a minha família,
minha filha, meu marido?
—Eles não estão aqui. Mas não se preocupe, estão bem. O que
precisa, agora, é se levantar aos poucos para que possa sair
deste quarto e tomar um pouco de sol lá fora. Está
amanhecendo e o sol já está nascendo. Já está aqui há vários
dias.
—Vários dias?! Como cheguei aqui?
—Foi trazida minutos antes de ter tido o mal-estar.
—Estou me lembrando... Acho que já sei o que me aconteceu,
eu estava nervosa por Antero ter me abandonado e pela volta
dele. Não me alimentei direito, a minha pressão deve ter caído.
Mas agora estou bem, já posso voltar para casa.
—Ainda não, precisa estar bem forte para que isso aconteça.
Venha, tente se levantar que vamos te ajudar.
Ajudaram-na a se sentar na cama. Ela ainda estava um pouco
tonta, mas aos poucos foi se sentindo bem e logo estava em pé,
amparada por elas, que a levaram até o banheiro que ficava
dentro do quarto. Diante do espelho, Fernanda se olhou, estava
pálida e com olheiras.
—Ainda bem — disse sorrindo — que Antero não está aqui
para me ver dessa maneira. Preciso me arrumar antes que ele
chegue. Não quero que me veja neste estado.
—Pode tomar um banho, vamos providenciar uma roupa
limpa. Tânia, por favor, vá até o quarto e, no armário, pegue as
roupas que estão lá para ela vestir.
Enquanto Tânia saía do quarto, Marli ajudou Fernanda a entrar
na banheira, que já estava cheia de água quente e com sais
perfumados. Fernanda entrou nela, sentou e se deliciou com a
espuma colorida que a envolveu.
—Que maravilha! Sempre quis ter uma dessas em casa, mas
Antero nunca quis, dizia ser bobagem. Se ele visse esta, sei que
não diria mais isso.
—É realmente muito bom tomar um banho de espuma. Fique
todo o tempo que quiser. Preciso sair, mas a Tânia ficará aqui
com você. Voltarei em seguida.
—Está bem, mas posso mesmo ficar o quanto eu quiser?
—Claro que sim.
Marli passou a mão carinhosamente pelos cabelos de Fernanda
e saiu. Ao passar por Tânia, que estava junto ao armário,
pegando as roupas, disse:
—Estou indo falar com o Nivaldo, preciso saber o que temos
que fazer agora que ela despertou. Cuide dela.
—Está bem, pode ir.
"Será que ela vai me reconhecer?" pensou Tânia. — "Tomara
que sim ."
"Ela disse que estou aqui há alguns dias"
— Fernanda também pensava.
"Não me lembro desse mal-estar, só lembro que estava
preparando o jantar. Como será que aconteceu? Se faz alguns
dias que estou aqui, Marilda já deve ter voltado da viagem.
Estou ansiosa para saber como foi. Agora já estou bem, acho
que voltarei hoje mesmo para casa. Este hospital é diferente
daqueles que conheci. O Antero deve estar pagando uma
fortuna."
Fechou os olhos e aproveitou a água e a espuma colorida.
Marli entrou em uma sala não muito grande. Por detrás de uma
mesa, estava um homem, jovem ainda, que ao vê-la disse:
— Olá, Marli, está tudo bem?
— Mais ou menos, Fernanda acabou de acordar. Coloquei-a na
banheira e vim aqui para saber o que preciso fazer agora.
—Como ela está?
—Está bem, não se lembra de nada. Pensa que teve um mal-
estar, mas quer voltar para casa. Não sei se devo dizer logo que
não voltará tão cedo.
—Não, por enquanto não. Assim que ela terminar o banho,
leve-a para conhecer todo o hospital. Mais tarde, traga-a até
aqui e falarei com ela.
—Está bem, farei isso.
Acenou dando adeus e saiu. Marli sabia que tinha uma tarefa
árdua pela frente: convencer Fernanda de que havia morrido e
tentar segurá-la no momento em que se lembrasse de como
tudo havia acontecido.
Fernanda, que estava ainda dentro da banheira com espuma
colorida e perfumada, abriu os olhos e olhou à sua volta. Viu
que estava sozinha. Tirou a tampa da banheira e a água
começou escorrer, esvaziando-a. Levantou-se, abriu a torneira
do chuveiro e deixou a água quente escorrer por seu corpo e
cabelos. Ao lado da banheira, havia toalhas. Ela pegou uma
grande e se enrolou. Pegou outra pequena e envolveu seus
cabelos. Estava sentindo-se muito bem, parecia estar com
muita energia, pensou:
"Estou muito bem, já posso ir para casa. Vou telefonar para o
Antero e pedir que venha me buscar. Apesar de tudo, tenho
certeza que não se recusará. Aqui é muito bom e as
enfermeiras são ótimas, mas prefiro estar na minha casa."
Abriu a porta do banheiro. No quarto, sentadas em um sofá,
estavam Marli e Tânia, que ao vê-la sorriram. Marli se levantou
para encontrá-la, dizendo:
— Parece que está muito bem, Fernanda.
— Estou mesmo, acho que já posso ir para casa.
— Você precisa de alta do doutor Nivaldo, mas ele só poderá
vir à tarde. Enquanto isso, você vai se vestir e iremos dar uma
volta por aí para que conheça tudo.
— Preferia telefonar para o meu marido, ao menos para saber o
que me aconteceu e como está tudo lá em casa.
—Não se preocupe, está tudo bem. Depois que conversar com
o doutor Nivaldo, poderá telefonar para o seu marido. Agora
venha, vista essa roupa que está aqui em cima da cama. É a
roupa que todos usam aqui.
Fernanda olhou para a roupa e depois a pegou em suas mãos.
Era uma camisola longa, toda branca, e uma túnica curta, no
mesmo azul-claro que estava pintado nas paredes. Sentiu a
textura do tecido e disse admirada:
—É bonito e suave, como nunca vi!
—É de um fabricante especial, mas vista logo, quero te mostrar
tudo por aqui. Sei que vai gostar.
Fernanda vestiu-se, gostou. Sentiu-se bem e em seguida saíram.
Ao sair, viram diante de si um imenso corredor com muitas
portas. Pararam em frente a uma delas. Marli abriu e entraram.
Lá dentro havia duas camas, com duas senhoras. Ao verem
Marli, uma delas disse:
—Quando vou voltar para casa? Meu filho deve estar sentindo
a minha falta. Por que ele ainda não veio me ver?
—Este hospital fica um pouco longe, mas não se preocupe, ele
logo virá — passando as mãos com carinho sobre os cabelos
dela, continuou, — o que precisa agora é ficar forte e saudável.
—Eu estou me sentindo muito bem. Diferente de como eu me
sentia quando ia lá naquele outro hospital. Como o meu filho
encontrou vocês?
—Ele estava muito triste com a sua doença, pediu ajuda e foi
atendido. Agora, está tudo bem, vai se sentir cada vez melhor.
Fernanda acompanhava a conversa, não estranhou, pois ela
própria estava sentindo-se muito bem. Na outra cama, a
senhora que estava nela permanecia adormecida. Marli mais
uma vez passou as mãos sobre os cabelos da senhora, dizendo:
— Agora, precisamos ir embora. Esta aqui é a Fernanda, ela
acabou de chegar.
—Fernanda! Era o nome da minha mãe. Não se preocupe, eles
aqui tratam a gente muito bem.
—Já percebi... São muito atenciosos, mas preciso voltar para
casa. Tenho marido, uma filha e um netinho lindo! Assim
como o seu filho, eles também devem estar preocupados.
— Tem razão — disse Marli, abraçando-a —mas venha, vamos
conhecer o resto. Abraçadas, saíram. Marli abriu uma porta que
dava para fora do hospital, Fernanda ficou encantada:
Nossa! Como aqui é bonito! Esse jardim! Essas flores, nunca vi
igual! São maravilhosos!
—São muito bonitas mesmo, como pode ver também bem
tratada. Venha, quero te mostrar o lago.
—Isto aqui parece o paraíso!
—Não é ainda, mas estamos bem perto disso — Marli disse
sorrindo.
Caminharam mais um pouco entre as alamedas floridas.
Chegou junto ao lago, cercado por uma grama baixa e muito
verde. Por todos os lados, havia prédios coloridos. Pessoas
caminhavam em grupos ou sozinhas, parecia que não tinham
muita pressa. O ar era puro. Sem perceber, Fernanda respirou
fundo e, como não podia deixar de ser, não cabia em si de
tanta surpresa:
—Aqui tudo parece ser tão perfeito! Que cidade é esta? Já viajei
muito por este Brasil todo, nunca vi algo parecido!
—Este lugar é ainda desconhecido por muitos, mas, mais cedo
ou mais tarde, todos o conhecerão. Venha, tenho mais coisas
para mostrar. Sei que vai gostar.
—Antes, posso tocar nessa água?
—Claro que sim, e se quiser pode até beber. É potável.
Fernanda se abaixou, tocou na água, assim que sua mão
começou a se molhar, peixinhos coloridos se aproximaram e
ficaram nadando ao redor dela. Fernanda não se conteve:
—São lindos! Olhe essas cores!
Marli sorria ao ver a felicidade no rosto de Fernanda. Em
seguida,continuaram caminhando. Entraram em outro prédio,
onde havia cadeiras como se fosse um teatro ou cinema. Em
algumas cadeiras, havia pessoas que assistiam a um filme.
— Que filme é esse que estão passando? Adoro filmes!
— É só um filme que está sendo mostrado para aquele senhor.
Agora não podemos ficar aqui, mas logo mais voltaremos e
você poderá assistir a outro... Sei que vai gostar.
—Gosto de qualquer um, mas prefiro os românticos. Adoro
chorar quando assisto a um filme triste. Antero sempre diz que
eu não tenho motivo para sofrer, por isso choro no cinema.
—Não se trata disso, é que você é sensível. Mas venha, vamos
continuar andando, você tem muito ainda para ver.
Continuaram andando e entraram em outro prédio, que, assim
como o outro, possuía muitas cadeiras. Só que nesse havia
muitas pessoas sentadas e, no palco, uma senhora falava. Marli
mostrou uma cadeira para que Fernanda sentasse.
Sentaram-se e Marli disse baixinho:
— Preste atenção no que ela está dizendo, Fernanda,sei que te
fará muito bem.
—Sei que todos vocês são recém-chegados — dizia a senhora
— e só agora tomaram conhecimento de sua real situação. Sei
também que alguns estão tendo dificuldades para entender e
aceitar. Aqui, todos têm liberdade para fazer o que mais gostar,
existe trabalho e estudos para aqueles que assim o desejarem.
Aqueles que estão cansados e, por qualquer motivo, não
queiram participar podem simplesmente observar. Aqueles que
queiram dormir poderão fazer isso, sem constrangimento
algum. Alguns de vocês têm parentes e amigos esperando para
um reencontro feliz. Está na vontade da cada um como
desejará viver enquanto permanecerem aqui. Existem também
muitos de nós dispostos a dar qualquer explicação para aqueles
que ainda não entenderam ou aceitaram. Esta é uma das
moradas do Pai, à qual Jesus se referiu quando esteve na Terra.
Como esta existe outras tantas espalhadas por todo o universo.
Aqui reina a paz e a oportunidade para todos que assim
desejarem. Sei que muitos se julgam injustiçados, mas com o
tempo verão que não existem injustiças, apenas acerto de
contas. Lembrem-se que, em primeiro lugar, o que deve existir
é a compreensão, o amor e o mais importante, o perdão. Todos
terão a oportunidade de refletir sobre tudo que aconteceu e
escolher o caminho que queiram seguir. Fiquem todos na paz
de Deus, nosso Pai.
A senhora que falava, com um sorriso, saiu do palco. Fernanda
olhou para Marli com preocupação. Não entendeu o que estava
acontecendo ali e perguntou:
—Sobre o que ela está falando? Que lugar é este?
— Mais tarde terá todas as explicações necessárias, por
enquanto só precisa conhecer tudo que existe aqui.
—Desculpe Marli, você está sendo muito atenciosa, mas não
quero conhecer coisa alguma. Preciso voltar para casa, tenho
responsabilidades e nunca viajei sozinha.
— Sei disso, mas tenha só mais um pouco de paciência, logo
tudo ficará bem. Venha, quero lhe mostrar mais lugares que
tenho certeza te agradarão.
A contragosto,Fernanda a acompanhou. Ela estava preocupada
com a maneira como aquela mulher havia falado.
"Ela deu a entender que todos que estão aqui não sairão mais.
Não estou gostando. Será que fui internada pelo Antero? Será
que ele fez isso para se livrar definitivamente de mim? Não me
lembro de ter falado com ele depois daquele dia em que fui à
empresa junto com a Marilda! Só o vi de longe, nunca mais
conversamos. O que está acontecendo aqui?"
Marli percebeu o ar de preocupação de Fernanda, mas ficou
calada.As pessoas começaram a se levantar e a se dirigir para a
porta de saída. Marli pegou no braço de Fernanda e fez com
que saísse.Assim que cruzaram a porta, Fernanda ficou
abismada com a quantidade de pessoas que estavam do lado de
fora do prédio. Viu que as pessoas que saíam encontravam-se
com outras que estavam do lado de fora e que se abraçavam e
choravam, umas nos braços das outras. Não podia ouvir o que
elas diziam, mas percebeu que estavam felizes. Muito
intrigada, olhava tudo. Queria entender e temia saber o que
realmente estava acontecendo.
Saíram dali e continuaram andando. Entraram em outro prédio,
que era um enorme salão, com estantes por todos os lados, que
continham muitos livros. Era uma imensa biblioteca. Fernanda,
que gostava muito de ler, se admirou:
—Que lugar é este? Quantos livros existem aqui?
—Existem muitos, poderá ler quantos quiser.
—São de todos os autores?
—Sim, mas ainda não foram publicados.
—Como assim?
—Os autores os deixam prontos e, à medida do necessário, vão
transmitindo para que outros os escrevam.
—Agora estou mais confusa ainda! Como um autor pode dar a
sua obra para que seja publicada por outro? Isso não existe!
—Existe, sim, e muito mais do que você possa imaginar.
—Estou ficando cada vez mais confusa com tudo que estou
vendo. Este lugar, ao mesmo tempo em que parece um paraíso,
me causa medo. Está parecendo uma prisão da qual não poderei
sair. Você precisa me dizer. Que lugar é este?
—Já te disse que aqui não é o paraíso, mas quase. Por
enquanto, não tenho mais o que dizer. Na hora certa, terá todas
as explicações que desejar; mas posso te adiantar que aqui
ninguém faz o que não queira e todos podem decidir sobre o
futuro que desejam.
Portanto, assim que souber de tudo, poderá decidir sobre o que
quer fazer. Existe uma Lei maior, a do livre-arbítrio, através da
qual cada um decide sobre o que realmente quer.
—Estou ficando cada vez mais nervosa...
—Não precisa e não deve ficar. Você nunca esteve tão bem e
em um lugar melhor que este. Mas venha, vamos continuar,
tem muito ainda para ver, Fernanda.
Atravessaram toda a biblioteca e entraram em outra sala, onde
existiam vários instrumentos musicais. Em um piano, um
senhor tocava uma música suave. Aproximaram-se. Ao vê-las
chegando, ele sorriu, continuou tocando e disse:
— Olá, Marli! Está gostando desta música?
— Muito... Como todas as outras que você compôs.
— Estou só dando os últimos retoques. Enviarei no fim de
semana. Espero que gostem.
—Sei que será bem recebida, como todas as outras.
—Assim espero, mas quem é essa linda senhora?
—O nome dela é Fernanda, acabou de chegar e está
conhecendo tudo. Fernanda, nesta sala muitos compositores
compõem as suas músicas para que outros as toquem.
—Assim como os livros?
—Isso mesmo. Todas as obras que você conhece foram
compostas aqui ou em lugares semelhantes a este. Este é o
Mariano. Ele teve outro nome mais conhecido, mas aqui
prefere ser chamado assim. Como te disse, aqui todos só fazem
o que desejam e você poderá fazer também.
— Muito prazer, senhora — disse Mariano —, espero que
aproveite bem a sua estadia por aqui. Este lugar é
surpreendente.
—Obrigada, estou admirada com tudo que estou vendo.
—Não duvido, pois eu também me admirei muito quando
cheguei, mas tem ainda muito para ver e se admirar.
—Bem, Fernanda, vamos continuar passeando?
Fernanda ainda não entendia o que estava acontecendo, mas
estava curiosa e queria ver o resto.
—Vamos, sim. Este lugar é mesmo sensacional, Marli.
Marli pegou em seu braço e, dando adeus para Mariano, saíram.
Ele sorriu e continuou tocando. Elas entraram em outra sala,
onde havia várias pessoas em frente a telas pintando com
maestria.As pinceladas eram rápidas e, em poucos segundos,
imagens apareciam nas telas. Fernanda parou na porta e ficou
olhando; estava emocionada, não conseguia andar. Sempre
desejou ser pintora, mas achava que não tinha jeito e nunca
tentou.
—Você gosta de pinturas e de pintar, não é, Fernanda?
—Gosto, sim, Marli e essas telas estão maravilhosas, nunca vi
nada igual! Estou encantada!
—Venha, vamos entrar. Todas as telas que você já viu foram
pintadas aqui. Como os livros e as músicas, as telas também são
criadas para que outros pintem.
Cada vez entendo menos.
—Mas logo entenderá e verá como é bom estar em um lugar
como este. Venha, vamos conversar com Otaviano.
Entraram. Marli se dirigiu para um senhor que olhava
atentamente uma tela que, pelo jeito, havia terminado de
pintar. Ao se aproximarem, ela disse sorrindo:
— Otaviano, está lindo a sua tela!
— Olá, Marli — disse, voltando-se para elas e sorrindo —, está
mesmo? Sabe que para um pintor uma tela nunca está pronta...
—Sei disso, mas está tão perfeita que, com um pouco de
esforço, pode-se até ouvir o barulho das ondas batendo nos
rochedos... Espalhando toda essa espuma branca...
—Era exatamente isso o que eu estava fazendo quando
chegaram: tentando ouvir o barulho das ondas. Esta tela só
estará pronta quando eu conseguir ouvir.
—Pois eu já estou ouvindo. Esta é a Fernanda, ela sempre quis
ser pintora.
—E não é? Por quê? — perguntou para Fernanda.
—Sempre achei que não levava jeito.
—Tentou alguma vez?
—Não, nunca tive coragem.
—Este é o mal de todos nós. Por medo do fracasso, deixamos
de tentar muitas coisas. Venha, vamos até aquela outra tela,
que está ali.
Fernanda olhou para Marli, que, sorrindo e com um sinal, fez
com que ela o seguisse. Fernanda, um pouco tímida,
acompanhou Otaviano. Diante de uma tela em branco, ele
disse:
— Pegue o pincel que desejar e escolha na palheta a cor que
mais gostar. Fique à vontade.
Ela olhou para onde ele apontava com a mão. Do lado da tela,
havia tubos de tinta, vários pincéis e uma palheta.
— Não, não vou conseguir!
— Como vai saber se não tentar? Faça o que te disse!
Ela, tremendo muito, escolheu o pincel e a cor da tinta. Ele,
colocando-se por trás dela, estendeu as suas mãos ao lado de
sua cabeça. Sem saber como explicar, Fernanda deu a primeira
pincelada, depois outra e outra... Misturou as tintas, usou o
branco para dar luz e, em um breve momento, surgiu diante
dela uma paisagem linda de um campo florido, um rio com
uma leve queda de água tendo no fundo uma montanha toda
verde, em verde de vários tons. Assim que julgou ter
terminado, colocou-se a certa distância e ficou admirando a
tela. Ela não acreditava que havia pintado aquela tela tão linda.
Disse, entusiasmada:
— Não fui eu quem fez isso! Não fui eu quem pintou!
— Claro que foi eu apenas te dei intuição, é a isso que se dá o
nome de inspiração. É assim que todas as telas são pintadas,
livros são escritos e músicas são compostas.
— Não estou entendendo, mas estou adorando!
— Sei que não entende, mas é muito fácil, só que as pessoas
não acreditam. Muitas vezes, sentem desejo de escrever um
livro, pintar uma tela ou compor uma música e deixam para lá
essa idéia por não se julgarem capazes. É uma pena, pois muitos
talentos são desperdiçados, simplesmente, por medo de se
tentar.
— Sempre desejei pintar... O senhor tem razão, nunca tive
coragem de tentar.
— Agora já sabe que pode; espero que continue.
— Vou continuar, sim. Assim que chegar em casa, vou contar
para todos e em seguida vou me matricular em uma escola de
pintura. Quando eu contar tudo que vi aqui, ninguém vai
acreditar! Mas que lugar é este?
— Este é o lugar que todos procuramos encontrar durante toda
a nossa vida — disse, sorrindo e olhando para Marli.
— Vou trazer todos que conheço para cá! Até a Marilda! Ela vai
ficar feliz quando chegar e vir que estou muito bem!
— Mas enquanto eles não chegam, vamos continuar andando
por aí, até chegar a hora de encontrarmos Nivaldo. Até mais,
Otaviano.
— Até mais, e você, Fernanda, volte sempre que quiser.
— Voltarei, sim, no entanto sinto que não será por muito
tempo, porque estou bem e acredito que voltarei logo para
casa. Mas virei passar alguns dias aqui com toda a minha
família.
— Estarei esperando, disse Otaviano, sorrindo.
Marli segurou no braço de Fernanda, saíram e foram até uma
praça onde havia uma fonte que jorrava água em abundância.
Pessoas iam e vinham, crianças brincavam. Fernanda ficava
cada vez mais encantada com tudo que estava vendo:
— Isto é uma cidade! Mas que cidade é esta que nunca ouvi
falar? Aqui tudo parece perfeito! Olhe esses prédios, que lindos!
A arquitetura também é diferente de tudo que já vi! Preciso
trazer todos para cá! Sei que eles vão adorar!
Marli apenas sorriu, e continuaram andando.
Recebendo esclarecimento
Chegou a hora em que deveriam se encontrar com Nivaldo.
Marli, segurando no braço de Fernanda, disse:
— Agora vamos entrar ali naquele prédio, Nivaldo deve estar
nos esperando.
— Ele vai me dar alta e assim poderei voltar para casa?
— Ele vai conversar com você e te dizer o que precisará fazer.
Vamos , você entenderá tudo.
Atravessaram uma praça e entraram em um prédio que, assim
como os outros, estava limpo e decorado com plantas
conhecidas e desconhecidas por Fernanda. Após atravessarem
uma sala imensa, Marli bateu suavemente em uma porta e
abriu. Lá dentro, por detrás de uma mesa, estava Nivaldo que
Fernanda, ainda não conhecia. Ao vê-lo, pensou:
"Ele é jovem ainda e muito bonito".
— Marli, Fernanda! — ele disse, sorrindo, assim que as viu.
— Sejam bem-vindas! Estava esperando que chegassem.
Marli, segurando no braço de Fernanda, fez com que ela
entrasse.
Fernanda estava um tanto tímida, pela presença daquele
homem, que ela parecia conhecer, mas não podia precisar de
onde. Ele saiu de trás da mesa e se aproximou, abraçando-a. Ela
se assustou com a atitude dele, mas o abraço lhe pareceu tão
sincero, que também o abraçou. Ele parecia emocionado por
vê-la. Depois do abraço, ele se afastou e olhou bem para ela,
dizendo:
— Embora, não fosse ainda à hora da sua volta, estou feliz por
te reencontrar. Estava ansioso para te rever.
— Não estou entendendo e estou confusa. Parece que me
conhece, mas eu, embora sinta que também o conheça, não sei
precisar como e de onde; lamento.
— Desculpe, eu não devia ter agido assim, mas fiquei tão feliz
ao te rever, que não me contive.
— Me rever?! De onde nos conhecemos? Estou tentando, mas
não consigo me lembrar!
— Esta é uma longa história. Mas sentem-se, temos muito para
conversar.
Elas sentaram-se. Fernanda estava cada vez mais intrigada, ele,
percebendo, disse:
— Sei que está intrigada e querendo saber o que está
acontecendo e vou procurar esclarecer todas as suas dúvidas. O
que deseja saber primeiro?
— Embora esteja adorando este lugar, estou também achando
tudo muito estranho. Se fui internada em um hospital e estava
em quarto particular, por que, quando acordei, não tinha
ninguém da minha família?
— Eles estiveram aqui enquanto você estava dormindo, mas
não se preocupe, eles estão bem.
— Eu também estou bem e acredito que já possa voltar para
casa. Quando irei?
— Espere um pouco. Precisamos conversar. Depois você
mesma decidirá quando irá.
— Eu vou decidir? Então, quero ir agora mesmo! Pode
telefonar e pedir para que alguém venha me buscar?
— Eu disse que irá depois que conversarmos Fernanda.
— Está bem, sobre o que quer conversar? Se for sobre a minha
saúde, posso lhe garantir que nunca estive tão bem.
— Sei disso, mas não é sobre a sua saúde que quero falar.
Preciso saber qual é a última coisa de que se lembra antes de
acordar aqui. É importante que eu saiba.
— Lembro que eu estava feliz preparando o jantar para Antero,
pois ele viria jantar comigo e voltaria para casa. Não sei se sabe,
mas fazia alguns dias que ele havia saído de casa.
— E depois, o que aconteceu?
— Não sei, não consigo me lembrar. Sei que telefonei para a
casa da Marilda e falei com a Renata. A Marilda é a minha
melhor amiga. Ela foi viajar. Sei que está preocupada.
— Sabemos disso — disse, sorrindo e olhando para Marli —,
mas foi Antero quem te avisou que jantaria na sua casa? Foi ele
quem pediu para que preparasse o jantar?
— Não, ele pediu para a Zuleica me telefonar. Ele estava no
interior vendo algumas terras e voltaria só à noite, e aí viria
direto para a minha casa.
— Ele foi?
— Não; quando era um pouco mais de sete horas da noite,
quem chegou foi a Zuleica. Ela me disse que ele se atrasaria,
mas que viria e que era para eu ficar preparada.
— Você não se admirou de ver Zuleica na sua casa? Afinal, ela
não trabalhava mais na empresa, já há um bom tempo...
— Não, nem pensei nisso, pois a minha atenção estava toda no
preparo do jantar. Embora ela não trabalhasse mais na empresa,
sempre foi nossa amiga. Éramos conhecidas desde a faculdade,
Eu não queria dividir aquela noite com ninguém. Desejava que
ela fosse só nossa, mas mesmo assim eu a recebi bem, contei a
ela o que estava acontecendo. Ela disse que estranhou Antero
ter telefonado e pedido para que ela me transmitisse aquele
recado.
— Você não estranhou também?
— Não. Eu estava tão feliz, que não conseguia ou queria pensar
em qualquer coisa que não fosse o jantar. Muito menos em algo
que pudesse estragar aquela noite.
— Depois, o que aconteceu?
— Ela disse que ia embora em seguida, só pediu para que eu
fizesse um café para tomarmos juntas.
— E você, o que fez?
— Passei o café e tomamos juntas.
— E depois, o que aconteceu?
— Não sei, acho que fiquei com muito sono, não consigo me
lembrar. Só me lembro do momento em que acordei aqui, hoje
pela manhã. Mais nada. O que me aconteceu?
— Antes que tomasse o café, ela te pediu alguma coisa?
Fernanda pensou por algum tempo, depois respondeu:
— Sim, ela disse que estava com dor de cabeça e perguntou se
eu não tinha algum comprimido para dor. Eu disse que sim e
fui até o meu quarto, onde ficam guardados os remédios.
Peguei, voltei e ela tomou com o café puro e eu tomei café-
com-leite.
— Você não sentiu um gosto diferente no café?
— Não, pois eu tomo com adoçantes, e deve saber como é...
Sempre dão um gosto diferente ao café. Já estou acostumada.
Mas por que está me fazendo todas essas perguntas?
— Por nada. Só queria saber se você se lembrava de tudo que
aconteceu naquela noite.
— É tudo do que me lembro, mas espere; o que realmente
aconteceu? Que lugar é este? Um lugar assim não ficaria
escondido. Se alguém tivesse descoberto e vindo até aqui, com
certeza faria muita propaganda! Eu nunca ouvi falar dele e olhe
que viajo muito! É impossível que a minha agente de viagens
nunca tenha me falado sobre este lugar!
— Fique calma, tem razão. Um lugar como este ninguém
esqueceria, mas isso acontece. Todos os que por aqui passaram
guardam dentro de si lembranças e a certeza de que existe este
lugar, mas não se lembram de onde ele fica exatamente.
— Não estou entendendo, desde que acordei passei por
emoções diferentes, que me encantaram e também me
confundiram. Agora, estou mais confusa ainda! Por que Antero
não veio para o jantar? Por que não me lembro do que
aconteceu após ter tomado o café junto com Zuleica? Por que
senti aquele sono imenso? Por favor, responda!
— O que você sabia sobre a vida após a morte?
— Nada, mas por que está perguntando isso? Está querendo
dizer que eu estou morta e que este é o céu?
— Mais ou menos isso. Como você pode ver, não está morta e
aqui também não é o céu... Está perto de ser, mas ainda não é.
Para chegarmos a ele, ainda nos falta muito.
— Você está brincando comigo! — Fernanda disse muito
assustada e com lágrimas nos olhos. — Não estou morta! Sinto
o meu corpo, até almocei ao lado da Marli! Não foi, Marli?
Marli sorriu e, com a cabeça, afirmou que sim.
— Então, como posso estar morta?! Estou tão nervosa, que
sinto vontade até de ir ao banheiro! Não posso estar morta! Não
posso e nem quero! Tenho medo da morte, sempre tive!
— Acalme-se, a sensação é exatamente essa: parece que nada
mudou e, na realidade, não mudou mesmo.
Depois da morte, continuamos como éramos por um bom
tempo. Mas logo se acostumará. Não está feliz aqui, Fernanda?
— Sim, este lugar é maravilhoso. Mas quero voltar para a
minha casa, para junto da minha família! Não posso ser feliz
longe deles! Preciso voltar!
— Poderá ir visitá-los sempre que quiser e não tiver algum
trabalho para fazer. Não por enquanto, pois, agora, da maneira
como está, a sua presença ao lado deles poderia lhes causar mal.
Você agora está em outra dimensão, a sua energia é diferente
das deles. Logo mais, será acompanhada até a sua casa.
— Não estou morta! — disse, chorando desesperada. — Não
quero estar morta! Eu tinha toda a saúde do mundo, como isso
foi acontecer? Estava feliz por que Antero ia voltar para casa!
Não pode ser! Era ainda muito cedo para eu morrer!
— Tem razão. Era ainda muito cedo, mas aconteceu. O que
tem a fazer agora é aceitar a sua morte e se preparar para uma
vida futura. Aqui terá toda a assistência necessária para que toda
essa mudança seja rápida, aceita e entendida.
— Como posso aceitar a morte? Nunca pensei nela! Para mim,
ela sempre esteve muito distante!
— Sei disso, acontece com quase todos nós. Nós não pensamos
na morte, embora saibamos que ela é o único futuro certo que
temos. Quando somos pequenos e durante a vida, estudamos
sobre muitas coisas, mas nunca sobre a morte, como se ela não
fizesse parte da nossa existência.
—Realmente, a morte nunca fez parte das minhas
preocupações, mas você falou de uma vida futura, o que é isso?
— Somos todos criação e filhos de um Deus maravilhoso, que
nos deu todo esse Universo. Criou-nos dando a liberdade para
que nós mesmos escolhêssemos o caminho que quiséssemos
seguir. Somos espíritos e todos nós, espíritos trazemos desde a
muito tempo um pouco de amor, mas muito de ódio, ciúmes,
desejo de vingança e ganância, muita ganância.
Deus, na Sua infinita bondade, nos dá a oportunidade de
nascermos e renascermos tantas vezes quantas forem
necessárias, pois a cada reencarnação o nosso espírito vai sendo
lapidado, até que um dia chegaremos àquele céu esperado por
todos.
—Renascermos! Você está mesmo brincando comigo! Não
quero renascer! Quero voltar para a minha casa.
— Renascermos, sim, Fernanda. Deus não seria justo se nos
desse só uma vida de setenta, oitenta ou até cem anos vivendo
sempre com sofrimento e, depois da nossa morte, não existisse
coisa alguma, ou melhor, encontrássemos o castigo eterno ou a
benção do céu.
Todos os que estão renascidos não são ruins o suficiente para
terem um castigo eterno nem bom o suficiente para terem um
céu eterno, todos os que estão renascidos na Terra ou em outro
lugar semelhante, estão aparando suas arestas. Um dia, sim,
quem sabe quando, estaremos no céu tão esperado.
Mas posso te dizer que esse céu também não é da maneira
como nos ensinaram. Nele, também existe muito trabalho, pois
na ociosidade ninguém pode ser feliz, e o céu, supõe-se, é um
lugar de felicidade. Não importa onde estejamos, nem o grau de
espiritualidade que alcançamos, sempre haverá alguém a quem
amamos que precisará renascer. Por isso, muitos voltam,
mesmo estando em um céu maravilhoso, por sua vontade,
apenas para ajudar aqueles que ficaram para trás na caminhada,
porque não seriam felizes enquanto não tivessem ao seu lado
aqueles a quem amam. Essa é a beleza da escolha e do amor de
Deus.
Embora revoltada, Fernanda, sem perceber, começou a ouvir
atentamente aquilo que Nivaldo dizia. Não entendia muito
bem, mas começava a fazer sentido.
— Tudo que está me dizendo faz sentido, mas o que eu tenho a
ver com isso? Não sei se sou um espírito iluminado ou não.
Nunca me preocupei, mas se o que está dizendo for verdade,
na realidade estou morta e agora terei que enfrentar o juízo
final. Não estou nem um pouco preocupada. Talvez eu não
tenha sido um anjo de candura, mas procurei viver a minha
vida junto de minha família e me esforcei para ser uma boa
mãe e esposa. Dei para a minha filha a educação que conhecia e
parece que deu certo, pois hoje ela é uma pessoa de bem.
— Sim, você, a partir de sua escolha, cumpriu de uma maneira
certa e digna a sua missão, por isso está tendo toda a nossa
assistência, Fernanda.
— Não recebem a todos da mesma maneira?
— Com tristeza, preciso lhe dizer que nem sempre é possível.
Existem aqueles que, ao desencarnarem, trazem muita
maldade, estão cercados de energias ruins e, por causa delas,
nem sempre conseguimos nos aproximar e fazer com que
durmam segundos antes do desenlace.
— Eles são abandonados à própria sorte? Sem ajuda?
— Não.Ninguém fica sozinho, encarnado ou não. Sempre
houve, há e haverá espíritos que os amem, nos bons e maus
momentos. Tentando ajudá-lo nos maus e vibrando de
felicidade nos bons, mas nem sempre é possível ajudar.
Somente por culpa deles mesmos, de suas energias ruins.
— Não estou entendendo. Por que por culpa deles?
— Por não querer aceitar a sua real situação e querer continuar
seguindo a fazer as maldades de sempre. Infelizmente existem
também os suicidas, que ficam muitas vezes por longos anos
perambulando, sofrendo e revivendo os últimos momentos de
vida que tiveram em que praticaram o suicídio. Eles sentem e
sofrem ao perceberem o que está acontecendo.
— Isso é cruel. Se esse Deus é tão perfeito, como pode permitir
uma coisa dessas?
—Ele é perfeito, por isso não pode ser injusto. Todos nós
precisamos aprender por nós mesmos. O suicida prova para si
mesmo que não acredita na bondade de Deus, não acredita que
Ele não abandona filho algum e que nos ama a todos, muito
mais do que acontece com os pais na Terra ou em outro planeta
qualquer.
Os pais da Terra estão sempre ao lado dos filhos, sejam eles da
maneira como forem. Para os pais, serão sempre seus filhos e
os defenderão sempre, apesar de saberem que eles merecem os
castigos que a vida e a sociedade lhes impõem por erros
praticados contra ela e a si mesmo. Deus não poderia ser
diferente. Ele nos ama, por isso tem que nos mostrar o
caminho; cabe a nós seguirmos ou não. Ele nos deu o direito da
escolha daquilo que queremos para o presente e para o futuro.
Ele estará sempre ao nosso lado, nos dando todas as
oportunidades que precisarmos. Sua paciência é infinita, pois
sabe que um dia chegaremos lá, não se importando quanto
tempo demore. Sabe esperar...
— Não sei se consigo acreditar em tudo isso, mas mesmo assim
Ele, comigo, não agiu corretamente. Se tudo isso é verdade,
sempre procurei levar uma vida normal, tentando, e acho que
consegui não fazer mal. Sempre procurei ajudar as pessoas e só
fazer o bem. Estou pensando agora, como foi que eu morri?
Estava bem e feliz, sofri algum enfarte ou um derrame?
— Não. Feche os olhos. Verá agora o que aconteceu nos
últimos minutos da sua vida na Terra.
Embora ainda não estivesse acreditando em tudo aquilo e
sentindo que estava tendo um pesadelo, Fernanda fechou os
olhos.
Nivaldo saiu de trás da mesa, aproximou-se dela, colocou as
mãos em volta de sua cabeça a certa distância. Olhou para
Marli, que se colocou à frente de Fernanda, abrindo os braços
em sua direção. Luzes brancas envolveram Fernanda. Nivaldo e
Marli sorriram e voltaram a ficar na mesma posição anterior.
Fernanda, no mesmo instante, se viu na cozinha da sua casa.
Sobre o fogão, as panelas ferviam e, sentada em uma cadeira
junto à mesa, estava Zuleica, que sorrindo lhe dizia:
— Depois de tudo que me contou, não consigo acreditar.
Vocês pareciam fazer um casal perfeito. Parecia que o seu
casamento foi sempre um mar de rosas.
—Realmente, eu também sempre pensei que fosse. Claro que
tivemos brigas, como todos os casais, principalmente no início,
pois sabe como é, são duas pessoas que tiveram educação e
conceitos diferentes. Mas a cada briga e a cada reconciliação,
com o passar do tempo, fomos nos adequando e, agora,
estávamos muito bem. Eu tinha muitos planos. Depois que
Regiane se casasse e após o término do empreendimento,
poderíamos viajar por todo esse mundo.
Foi por isso que não acreditei nem aceitei quando ele disse que
ia embora de casa para ser feliz. Nunca pensei que ele havia
sido infeliz durante o tempo em que estivemos casados. Mas
felizmente tudo passou e hoje ele virá jantar e voltará para
sempre. Foi só mais uma briga, como todas as outras que
tivemos.
—Não sei o que é uma vida a dois, pois, como sabe, eu nunca
me casei...
—Sabe que nunca entendi isso, Zuleica. Você sempre foi e é
uma mulher bonita, inteligente. Posso te fazer uma pergunta?
—Claro que sim.Quantas quiser, prometo que responderei a
todas, sejam quais forem. A minha intenção de vir aqui hoje foi
justamente para conversar com você.
—Por que não se casou?
—Talvez por nunca ter encontrado o homem da minha vida
ou, quem sabe, ao encontrá-lo descobrir que ele nunca seria
meu realmente.Não sei, talvez estivesse esperando o príncipe
encantado que nunca chegou. Ou estivesse esperando que um
dia ele se decidisse e resolvesse aparecer. Não sei, mas hoje,
com quase cinquenta anos, sem filhos, sem nada, sinto que
perdi toda a minha vida e a minha juventude vivendo uma
ilusão.
—Que ilusão?"
—Esperando por alguém que eu sabia que nunca seria meu
realmente.
—Não consigo imaginar como seria a minha vida sem a minha
filha, meu neto e, principalmente, sem Antero. Agradeço a
Deus, todos os dias, por ele ter me dado uma família tão
maravilhosa. A vida passa muito depressa, nem acredito que
também já estou com quase cinquenta anos. Mas você nunca
contou se teve algum namorado. Você teve?
— Sim, no tempo da faculdade, me apaixonei perdidamente
por um rapaz, mas ele se casou com outra e eu nunca mais
consegui ou quis amar outro.
—Acho que isso foi um erro. Poderia ter encontrado outro e
hoje estaria assim como eu, com a minha filha e com o meu
neto. Com a volta do Antero para casa, serei a mulher mais
feliz deste mundo.
—Bem, acho que está na hora de eu ir embora, não quero
estragar a sua noite, Fernanda.
—Ainda bem que você entende e não vai ficar magoada, mas
você tem razão. Esta noite vai ser decisiva para a minha
felicidade.Antero vai voltar, vou propor a ele fazermos uma
viagem, uma segunda lua-de-mel.
—Faça isso, vocês merecem. Cheguei e você não me ofereceu
nem um café.
— Desculpe, estou tão preocupada com o jantar, que nem
pensei nisso. Mas eu passo agora mesmo, vou tomar também.
Só que com leite, não gosto muito de café puro.
—Pois eu gosto dele puro e forte.
—Vai ficar pronto em um minuto. Estou mesmo muito
nervosa. Sofri muito com o abandono do Antero, mas sinto
que agora tudo ficará bem.
Fernanda estava junto ao fogão; assim que terminou de passar o
café, disse:
—O café está pronto, vamos tomar.
—Não sei o que está se passando comigo. De repente a minha
cabeça começou a doer. Você não teria um comprimido para
que eu pudesse tomar junto com o café?
—Tenho, sim, mas acha bom tomar com café?
—Não tem problema algum. Estou acostumada. Não sei o que
tenho. Já tem alguns dias que estou sentindo essa dor. Ela vem
de repente e desaparece assim que tomo um comprimido.
— Precisa ir a um médico e ver do que se trata. Dor de cabeça
é um sinal que algo não vai bem, Zuleica.
—Farei isso. Mas, enquanto não vou ao médico, pode me dar
um comprimido?
— Posso, sim, está em meu quarto, vou buscar. Olhe o leite
para que não derrame quando ferver.
— Olharei, pode ficar sossegada.
Nesse momento, Fernanda viu Nivaldo, Marli e Tânia entrando
na cozinha. Depois ela se viu saindo da cozinha, viu também
quando Zuleica levantou-se, abriu a bolsa e tirou de dentro dela
um vidrinho. Tânia se aproximou dizendo:
— Zuleica, não faça isso, pois se fizer vai se arrepender muito.
Esse não é o caminho... — Tânia dizia baixinho.
Nivaldo e Marli colocaram-se em volta das duas e começaram a
jogar luzes sobre elas. Zuleica, como se ouvisse aquela voz
suplicante, por alguns instantes ficou olhando para o vidrinho,
mas o abriu. Desligou o fogão e jogou uma grande quantidade
de um pó branco dentro da leiteria e mexeu com uma colher.
Permaneceu ali até que Fernanda voltasse trazendo o
comprimido para a dor de cabeça.
Ela entrou sorrindo:
—Aqui está o comprimido. É o que sempre uso. Creio que te
fará bem, mas, mesmo assim, precisa ir a um médico.
—Irei amanhã mesmo. O leite ferveu e eu apaguei o fogo.
Vamos tomar?
—Vamos, sim, sente-se enquanto eu preparo a mesa.
Sentaram-se e Fernanda colocou o leite em sua xícara; colocou
muito, pois gostava do café-com-leite bem clarinho. Zuleica
colocou um pouco de café preto na sua e tomaram. Passados
alguns segundos, Fernanda sentiu que não estava bem.
—Zuleica , não estou bem. Não sei o que aconteceu, mas estou
me sentindo muito fraca, estou tendo dificuldades para
controlar o meu corpo.
Zuleica levantou e se aproximou dela, dizendo:
—Deve ser uma queda de pressão. Sei como é. Tenho sempre.
Fique calma, que logo passará.
— Não sei se foi isso, mas sinto que vou desmaiar.
Tentou se levantar, mas não conseguiu, caiu em seguida
.Tentou falar algo, mas também não conseguiu.
Zuleica ficou olhando para Fernanda caída no chão, sem fazer
nada. Poucos segundos depois, Nivaldo pegou em seus braços o
espírito adormecido de Fernanda, enquanto seu corpo
permanecia caído no chão. Os três olharam tristes para Zuleica
e afastaram-se levando Fernanda com eles.
Fernanda deu um pulo, abriu os olhos e disse abismada:
— Eu morri?! Ela me matou, mas por quê?! Ela sempre foi
minha amiga! Isso não é verdade! Vocês estão brincando!
Marli a abraçou enquanto Nivaldo dizia:
—Infelizmente não é uma brincadeira, tudo isso aconteceu
realmente. Tentamos evitar, mas não foi possível. Não
podemos nunca interferir no livre-arbítrio de cada um.
Podemos enviar bons pensamentos de alerta, mas interferir
nunca!
Ela cometeu um crime grave e por ele terá que prestar contas.
Você voltou para casa antes do tempo. Embora estivesse
previsto que Zuleica poderia fazer isso, ela tinha a chance de
mudar essa expectativa. O que infelizmente não aconteceu.
Fernanda tremia e chorava em desespero.
— Isso não pode ser verdade! Não consigo acreditar!
— Para nós também foi difícil e está sendo, mas aconteceu
realmente e nada poderá fazer com que mude. Está feito.
— Por que ela fez isso?
— Não prefere continuar vendo? Por mais que tentemos te
explicar, nunca será tão convincente como se você mesma vir.
—Não sei... Estou nervosa, não sei o que desejo realmente.
Minha única vontade é ir até ela, fazer com que saiba que agora
eu sei de tudo e que quero matá-la também!
— Assim como ela errou você também erraria muito se fizesse
o mesmo com ela...
— Erraria?! Não está vendo que ela me matou sem um motivo
aparente?! Não sei o que vocês pensam, nem me importo com
isso! Ela me matou! Tirou a oportunidade de o Antero voltar
para casa e eu ser feliz novamente! Não posso ficar aqui,
parada, vivendo esta vida de sonho, neste lugar maravilhoso,
mas longe da minha família, enquanto ela fica lá, sem sofrer
nada! Preciso voltar para me vingar! Antes preciso saber por
que ela fez isso.
— Terá todas as respostas, mas para isso precisa se acalmar e
fechar os olhos novamente.
— Não sei se conseguirei me acalmar e muito menos fechar os
olhos. Já vi o suficiente. Agora só quero voltar para lá e ir ao
encontro dela! É só isso o que quero nada mais!
— Mais tarde, se quiser iremos. Mas agora precisa ver tudo até
ao final. Assim, saberá o motivo e poderá tomar uma decisão. A
partir de certo momento, você cumpriu a sua parte nessa
encarnação, não pode estragar tudo agora.
— Cumpri a minha parte?! Do que me adiantou se, no final, fui
assassinada de uma maneira tão cruel? Sempre ouvi falar que as
pessoas boas são as que mais sofrem; acho que isso é verdade!
Procurei viver a vida da melhor maneira possível e olhe o que
me restou! Isso não é justo. Não posso aceitar!
— Você está nervosa e tem razão, mas veja até o final e verá
que nada está errado e que nunca podemos dizer o que é certo,
justo ou não. Só posso lhe dizer que Deus é nosso Pai e
Criador e que Ele tem toda a justiça do mundo. Quer ver o que
aconteceu em seguida e saber qual foi o motivo?
— Quero, pois, por mais que eu pense, não entendo nem
encontro justificativa.
— Sendo assim, feche os olhos e continue vendo.
Fernanda, embora nervosa, fechou os olhos. Nivaldo levantou
os braços em frente a ela e na direção da sua cabeça. Em
poucos instantes, ela se viu novamente na cozinha da sua casa
e viu também o seu corpo deitado no chão e Zuleica a olhando.
Depois, Zuleica se abaixou, colocou a mão no pescoço de
Fernanda, percebeu que a veia não batia mais. Não contente,
tirou da bolsa um pequeno espelho e colocou junto ao nariz de
Fernanda para ver se ela ainda respirava. Constatou que ela não
respirava mais.
—Está feito — disse, sorrindo — agora preciso tirar todo
vestígio da minha estada aqui. Preciso dar um fim a toda essa
comida que está pronta. Senão, ninguém vai acreditar que ela
se matou. Ninguém prepara comida antes de se matar.
Pegou um saco de lixo, colocou a comida dentro dele. Depois
lavou a louça e limpou a cozinha. Fazendo tudo com luvas de
borracha para que não ficassem impressões digitais. Assim que
tudo estava limpo e arrumado, voltou para junto do corpo de
Fernanda, Tirou da bolsa outro vidro de comprimidos, espalhou
pelo chão, fazendo parecer que os comprimidos haviam caído
das mãos de Fernanda. Em seguida, abriu a mão de Fernanda e
colocou o vidrinho nela. Ficou olhando para Fernanda e para
tudo à sua volta. Precisava ver se tudo estava em ordem. Disse:
— Está tudo certo. Vou embora e agora sim, poderei ser feliz
com Antero sem a sua presença. A sua morte vai me trazer
toda a felicidade do mundo e resolverá também os problemas
financeiros da empresa.
Pegou o saco de lixo que estava com toda a comida e sujeira,
saiu da casa. Fechou a porta, caminhou até onde estava o carro,
colocou o saco no banco de trás. Olhou para a rua e viu que
não havia ninguém. Entrou, ligou o motor e foi embora.
Fernanda abriu os olhos novamente, disse entre espantada,
nervosa e admirada:
—Antero?! Ela fez isso por causa do Antero?! Por causa de
problemas financeiros da empresa?! O que ela tem a ver com
Antero?! Que problemas estão tendo a empresa que eu não sei?!
Agora ela não estava mais chorando ou nervosa. Estava
estupefata, e não entendendo nada daquilo.
— Essa é uma longa história — disse Nivaldo — eles se
amavam bem antes do seu casamento.
— O quê?!
— É isso mesmo. Quando vocês se conheceram na faculdade,
eles começaram a namorar. Mas nunca contaram a ninguém.
Você sempre soube como os pais dela eram, não permitiam
que ela saísse de casa sem que fosse na companhia deles. Por
isso, ela não comparecia a festas. Lembra-se daquela festa em
que Zuleica não pôde comparecer, pois seu pai não deixou, e
foi quando você e o Antero começaram a namorar?
— Claro que me lembro, mas eles já namoravam naquele
tempo? Eu nunca soube disso!
— Sim, mas ela ficou com medo de contar para alguém e que
chegasse aos ouvidos do pai. Ele não podia nem imaginar que
ela estivesse namorando. Julgava que ela era muito jovem e que
só podia se interessar pelos estudos. Na realidade, ele morria de
ciúmes.
Ela pretendia contar para você e para a Marilda, mas só depois
de convencer o pai a aceitar Antero.
— Eu nunca imaginei que isso estava acontecendo...
— Depois daquela noite, você e Antero começaram a se ver
com mais frequência. Zuleica ficou sabendo, sofreu muito e
não quis mais ver Antero. Ele a convenceu que o que sentia
por você, Fernanda, não era amor, só uma atração sexual, e que
era dela que ele gostava realmente.
— Antero fez isso?
— Sim, pois ele também não sabia de qual das duas gostava
mais. Isso durou muito tempo, até o dia em que você disse a ele
que estava grávida. Ele tentou desmanchar o namoro, mas o pai
dele não permitiu e vocês se casaram.
— Estou me lembrando agora que Zuleica não compareceu ao
meu casamento. Disse que a sua mãe estava doente.
— Quem ficou doente naquele dia foi ela. Chorou e sofreu
muito. Antero a havia enganado e ela não se conformava.
— Não posso acreditar que ele tenha feito isso.
— Mas fez. Depois disso, ficou um bom tempo sem se ver, até
quando vocês montaram a empresa e ele levou Zuleica para
trabalhar lá. Depois disso, começaram a se ver todos os dias e,
com o tempo, o amor que existia entre eles foi mais forte e
acabaram se tornando amantes.
— Eles ficaram juntos todo esse tempo? — agora Fernanda
estava novamente muito nervosa, até com ódio. — Ela
frequentou a minha casa e sempre disse ser minha amiga.
— Sim, pois sendo sua amiga não poderia deixar de atender a
um convite seu, e, mais ainda, ela tinha curiosidade para saber
como vocês viviam e como se tratavam. Se fizer um esforço,
lembrará que sempre que ela estava presente Antero ficava
distante de você. Sempre conversando com outras pessoas e
quase nunca com ela. Ele dizia para ela que não gostava de
você, que só estava ao seu lado por causa da sua filha e por
causa do pai dele, que nunca permitiria uma separação.
Prometia sempre que, assim que a sua filha se casasse e o pai
dele morresse, ele ia embora de casa e ficaria com ela para
sempre. Ela acreditou.
— Mas eu não consigo acreditar que ele tenha feito isso.
Também não posso perdoá-la por ter me enganado durante
tanto tempo. Por ter frequentado a minha casa. Isso não está
certo!
— Zuleica sabia disso, mas o amor que julgava sentir era mais
forte.
O tempo foi passando, até o dia em que o pai dele morreu. Ela,
vendo que ele não tomaria uma decisão e percebendo que
havia perdido toda a sua juventude ao lado dele, arrependeu-se
de todo o tempo perdido.
Saiu da empresa e disse que não queria mais vê-lo a não ser no
dia em que ele realmente te abandonasse e a assumisse
totalmente.
Viu que no final nada lhe restou, pois não tinha propriedades e
nem sequer um filho para lhe fazer companhia na velhice. Não
suportava saber que não tinha nada, enquanto você tinha tudo.
— Foi por isso que ele me abandonou? Por ela?
— Sim. Ele também achou que estava na hora, pois na
realidade ele, no seu egoísmo, sempre amou Zuleica de
verdade, só não queria complicação.
— Se ele me abandonou por ela, por que ela me matou? Isso é
estranho! Não tinha mais um motivo...
— Ele já havia mentindo tanto, que ela não acreditava mais e,
através de maus pensamentos, atraiu para o seu lado espíritos
sofredores e vingativos. Estando na mesma faixa que ela, eles
começaram a envolvê-la, sussurrando coisas más contra você e
contra o Antero. Diziam que ele estava mentindo novamente e
que só ficaria com ela quando você morresse e que os
problemas da empresa só teriam solução com a sua morte.
— Meu Deus... Que problemas a empresa está passando? Ele
nunca me disse nada; ao contrário, quando eu lhe perguntava,
sempre dizia que estava tudo bem.
— Ele não conseguiu vender os apartamentos da forma como
pensou que aconteceria. Sabe que o prédio estava em
construção e que ele tinha prazo para entregar. Por isso pediu
muitos empréstimos a vários bancos e não estava conseguindo
cumprir seus compromissos.
— Eu não sabia disso. Mas uma coisa eu não entendo: como e
em que a minha morte poderia ajudar?
— Ele temia ter que se desfazer de alguns dos seus bens. Entre
eles, a casa em que moravam que ele sabia ser a sua paixão.
Temia que você não concordasse em vendê-la. Com a sua
morte, haveria o inventário e, como a sua filha já têm a sua
própria casa, não se oporia. Ela poderia pegar a sua parte da
herança e assim Antero poderia pagar os bancos e continuar
com a construção.
Antero nunca havia pensado nisso, mas Zuleica, sim, e
começou a planejar a sua morte. Teria que ser de uma forma
que parecesse suicídio e que não a envolvesse ou Antero.
— Ele sabia dos planos dela?
— Não; embora várias vezes, tenha comentado com ela o
medo que tinha de te dizer que precisaria vender a casa de
vocês.
— Não estou conseguindo acreditar em tudo isso. Acho que
estou tendo um sonho mal. Sei que vou acordar.
— Infelizmente tudo aconteceu. Não vai acordar, está acordada
e terá que se esforçar para entender e aceitar.
— Entender? Aceitar? Não pode ser! Foi muito cruel! Todos
aceitaram a minha morte? Ninguém desconfiou de assassinato?
Acreditaram mesmo que eu me suicidei?
— Aceitaram e acreditaram, pois Zuleica fez bem feito.
Planejou, durante muito tempo, nos mínimos detalhes para que
nada desse errado. Você se lembra que naquela noite já estava
escuro quando ela chegou à sua casa?
— Sim, eu estava terminando o jantar.
— Ela sabia que Antero estava longe dali e acompanhado, por
isso não teria como ser envolvido. Deixou o carro estacionado
a algumas quadras da sua casa e caminhou. Antes de tocar a
campainha, olhou a rua para ver se não tinha ninguém. Viu que
a rua estava deserta, tocou a campainha, você atendeu e a
convidou para entrar; depois que terminou tudo e com o saco
de lixo nas mãos, também olhou a rua para ter a certeza que
ninguém a veria. Já era tarde da noite e todos os seus vizinhos
estavam dentro de casa, provavelmente assistindo televisão.
Vendo que não havia ninguém, ela caminhou até o carro,
entrou e saiu dirigindo. Em uma praça distante dali, deixou os
sacos de lixo com a comida. Sabia que por ali existiam
mendigos que ficariam felizes ao verem toda aquela comida.
— Ela pensou em tudo mesmo. E agora, como ela está?
— Por enquanto está bem. Feliz por saber que poderá ficar
com Antero para sempre e que a empresa será salva.
— Não pode ser! Ela não pode ficar impune! Tem que ser
desmascarada! Alguém tem de fazer alguma coisa!
— Isso não nos compete. Mais cedo ou mais tarde, ela será
descoberta. O que desejamos é que você a entenda e a perdoe e
deixe o resto nas mãos de Deus. Ele saberá como agir.
— Perdoar? Nunca! Como posso perdoar a alguém que me fez
tanto mal? Que foi como uma sombra na minha vida? Que
desejou e conseguiu a minha morte? Sinto muito, mas não
posso! Está além das minhas forças! Nunca fui vingativa e,
sempre que alguém me fazia alguma coisa que me deixava
triste, eu procurava esquecer; nunca alimentei ódio. Mas, por
ela, estou sentindo um ódio incrível! Não posso perdoar!
Nunca!
— Você está chocada com tudo que descobriu. Com o tempo
entenderá melhor e verá que nada que faça lhe satisfará. Deixe
nas mãos de Deus e de Seu julgamento, Ele sempre sabe o que
faz. Não erra nunca!
— Como sabe o que faz? Onde ele estava quando ela conseguiu
me matar? Como ele permitiu isso? Eu não merecia...
— Não cai uma folha de uma árvore sem o consentimento
Dele, disso tenha certeza.
— Isso é mais uma das bobagens que estão escritas na Bíblia!
Depois de tudo que vi, não posso mais acreditar! A Zuleica me
matou e está impune! Será que não entende isso?
— Entendo que pense assim, mas posso te garantir que as
palavras que estão na Bíblia são verdadeiras. Jesus veio mesmo
nos ensinar o caminho para chegarmos ao Pai. Por isso sei que
ninguém fica impune. Todos teremos que responder por
nossos atos, cedo ou tarde, disso você pode ter certeza...
— Não acredito que isso aconteça. Você mesmo disse que
Zuleica planejou muito bem. Ela não será descoberta! Sei que
está morando em uma cidade distante. Ninguém desconfiará
dela e, pelo que me disse, ninguém desconfia de nada. Todos
acreditaram que me matei realmente. Antero, minha filha e os
meus amigos! Todos acreditaram nessa mentira?
— Todos, menos Marilda. Ela não aceitou. Aquele telefonema
dizendo que Antero viria jantar com você reforçou mais a
certeza que ela já tinha. Com isso, ela foi até a delegacia e
contou a sua suspeita para o delegado, ele está investigando.
— Marilda sempre foi minha amiga! Descobrirão?
—Será difícil, mas não posso te dar essa resposta. Fique
tranquila. De uma maneira ou de outra, tudo será descoberto.
Acredite nisso e verá como tudo ficará mais fácil.
— Não acredito no que está me dizendo! Nunca me interessei
muito em aprender nada sobre a espiritualidade. Aprendi que
todos tinham uma alma. Agora que estou aqui, sentindo que o
meu corpo ainda existe, mesmo depois da morte, chego à
conclusão que este corpo é a minha alma. Se for assim, poderei
voar e ir a qualquer lugar que queira.
— Sim, em parte tem razão. Poderá, sim, ir a qualquer lugar,
mas para isso tem que obter uma autorização.
— Uma autorização? E se não derem?
— Na hora certa, ela será concedida.
— Quem decide à hora certa?
— Nossos superiores. Só eles sabem quando você estará pronta
para ir a qualquer lugar.
— Se eu não aceitar?
—Aqui, como em todo lugar, existem regras para serem
cumpridas. Enquanto estiver aqui, terá toda a proteção que
precisar, mas, no momento em que não aceitar e desejar
desobedecer, poderá fazer isso, pois tem o seu livre-arbítrio e
contra ele nada podemos fazer. Se sair daqui sem autorização,
ficará sem proteção e responsável por tudo que possa te
acontecer.
— O que poderá ser pior que a minha morte?
— Você está morta, mas pode ver que não está tão ruim assim.
Está em um lugar muito bom, onde poderá fazer tudo que
quiser. Aqui, terá a oportunidade de trabalhar e aprender
muito. Além de se preparar para uma nova encarnação.
— Nova encarnação? Como funciona?
— Você será preparada para isso. Terá que rever todo o seu
passado e decidir como e onde irá renascer.
— Eu vou decidir?
— Sim, mais uma vez fará uso do seu livre-arbítrio.
— Se eu não aceitar, o que poderá me acontecer?
— Ficará à mercê da sua própria sorte. Fora desta cidade,
existem muitos perigos e seres que você nem pode imaginar.
Com muito custo, nós os deixamos afastados.
— Está dizendo isso para me assustar. Está querendo me
manter prisioneira aqui nesta terra de sonhos?
— Nem você nem ninguém é prisioneiro aqui. Poderá fazer o
que quiser. Mas para continuar nesta terra de sonhos, como
disse terá que cumprir as regras. Se eu te disse que não pode
sair sozinha foi simplesmente para te proteger. O melhor que
tem a fazer é deixar tudo entregue nas mãos de Deus. Ele se
encarregará de julgar e dar o castigo ou merecimento para
todos. Nada do que faça poderá modificar isso. Você, até agora,
está tendo a nossa proteção e a proteção deste lugar, porque,
apesar de escolhas erradas, cumpriu quase todos os
compromissos assumidos antes de renascer. A escolha é sua.
Você teve e tem aqui muitos amigos, além de mim, Tânia e
Marli.
Quando renasceu na Terra, torcemos muito para que se saísse
bem. Estamos aqui e estaremos sempre ao seu lado.
Procuraremos fazer que entenda tudo que se passou, mas não
podemos nem queremos desrespeitar as regras que regem este
lugar. Está em suas mãos o seu futuro. Está na hora de escolher.
— Não sei o que fazer. Por mais que tente, não consigo
perdoar a traição e a maldade que fizeram contra mim durante
tanto tempo. Não é fácil para ninguém. Talvez seja para vocês,
que são iluminados, mas para uma pessoa comum como eu sou,
é realmente difícil. Fui enganada durante toda a minha vida!
— Sabemos disso e, por isso também, estamos aqui te dando
todos os esclarecimentos e te mostrando o caminho que deve
seguir. Mas, como já disse, a escolha é só sua.
— Não poderei voltar, nem por um instante, só para ver como
tudo está por lá?
— Poderá , claro que poderá. Só que não neste momento.
Agora que tomou conhecimento de sua real situação, deve se
adaptar por aqui e entregar tudo nas mãos de Deus. Aliás, era o
que todos nós deveríamos fazer nos momentos de desespero,
decisão e ansiedade.
Quando aprendermos a fazer isso, veremos que tudo se tornará
mais fácil. Quando tivermos a certeza de que nunca estamos
sós, que sempre temos ao nosso lado espíritos amigos tomando
conta de tudo e fazendo o possível para que a nossa jornada
seja a melhor possível, veremos como conseguiremos
caminhar com mais facilidade.
Estamos ainda nos primeiros passos em direção da Luz Divina,
mas, com certeza, um dia chegaremos lá. Não somos ninguém
para julgar. Precisamos apenas nos preocupar em aprender
sempre mais.
Fernanda começou a chorar, mas agora não era mais com raiva.
Não conseguia dizer exatamente o que estava sentindo.
Acreditava nas palavras de Nivaldo, mas ao mesmo tempo não
conseguia entender e perdoar.
— Não sei o que fazer, estou nervosa e magoada com tudo que
me contou. Quero que todos paguem pelo que me fizeram.
Sempre fui muito dependente do Antero. Nunca fiz uma
viagem sozinha. Tenho vontade de sair daqui e ir ao encontro
dela para que seja descoberta.
Ao mesmo tempo, tenho medo de ir sozinha, ainda mais
depois do que disse. Se eu encontrar um ser estranho, sinto que
não saberei reagir e que serei uma presa fácil. Preciso pensar
um pouco, antes de decidir o que fazer.
— Faça isso, pense bem. Enquanto isso continue visitando tudo
por aí. Talvez encontre algo que chame a sua atenção. Nivaldo
voltou-se para Marli, dizendo:
— Marli, leve-a até a câmara de passes. Ela precisa de um
tratamento, de receber novas energias.
Fernanda conversaremos em outra hora.
—Farei isso — disse Marli. — Vamos, Fernanda?
Fernanda, ainda um pouco confusa com tudo que ficou
sabendo, consentiu com a cabeça e saíram. Assim que elas
saíram, Nivaldo fechou os olhos e disse em pensamento:
"Meu Pai, sei que a sua bondade e perdão são infinitos. Permita
que ela aceite e perdoe para que eu não seja obrigado a lhe
contar tudo. Sei que um dia ela terá que saber, mas sei também
que agora não é o momento. Obrigado, meu Deus, por todas as
bênçãos que nos dá todos os dias..."
Assim que saíram, Marli disse:
— Fernanda , espero que tenha entendido tudo que te
aconteceu e siga os conselhos do Nivaldo. Ele gosta muito de
você e disse tudo àquilo porque quer realmente te proteger.
— Sei que aconteceu, mas não consigo entender. Se realmente
querem me ajudar, precisam deixar que eu volte para ver como
ela está. É impossível que não sinta arrependimento pelo que
fez. Sempre ouvi dizer que existe uma consciência e que ela
nos condena quando fazemos algo errado. Será que a Zuleica
não tem essa consciência? Será que ela poderá ser feliz, apesar
de ter cometido um crime como esse? Será que a minha morte
vai ser esquecida por todos e ninguém conseguirá ou se
importará em descobrir a verdade? Ninguém fará justiça?
—Isso não posso te responder.Não sabemos o que acontecerá
com ela. Só sabemos o que pode acontecer com você. Tem
aqui a oportunidade de trabalhar, aprender e se preparar para
uma nova reencarnação. Mas para isso é necessário que
entregue o seu sofrimento e revolta nas mãos de Deus. Ele, e só
Ele, saberá como praticar a justiça.
— No momento, não sei o que fazer. Estou confusa e com
muito ódio, por tudo que vocês me disseram. Não deveria ser
assim, mas não consigo evitar. Estou muito longe da perfeição e
revoltada com tudo que me fizeram. Por isso, vou pensar mais
um pouco, tentar aceitar os conselhos e deixar tudo nas mãos
de Deus. Mas sei que vai ser difícil.
— Ótimo, vou te levar a vários outros lugares. Você verá que
este lugar tem muito para te oferecer. O tempo, aqui ou em
qualquer outro lugar, é o remédio para tudo. No tempo certo,
você poderá voltar. Por enquanto, vamos procurar algo que
você possa fazer para sentir-se melhor. Vamos?
— Vamos — disse Fernanda, tentando sorrir — mas eu quero
voltar para cobrar o mal que me fizeram.
— Voltará, voltará...
A influência
Zuleica acordou. Naquela manhã estava feliz. Antero passou a
noite toda ao seu lado. Isso dificilmente acontecia, pois,
embora ele ficasse com ela algumas horas do dia, nunca
conseguia ficar durante a noite. Sempre precisava voltar para
casa para os braços de Fernanda, a quem ele dizia não amar.
Olhou para o lado da cama, ele estava lá. Levantou devagar:
"Não quero acordá-lo. Vou preparar um café da maneira que
ele gosta. Finalmente seremos felizes, nada mais poderá evitar
que isso aconteça. Agora, Fernanda não está mais aqui para
impedir. Por que não a matei antes? Nunca pensei que seria tão
fácil! Ainda dizem por aí que não existe o crime perfeito. Claro
que existe e ninguém desconfiará de nada e, mesmo que
desconfiem, não terão como envolver a mim ou ao Antero.
Marilda é a única que está desconfiando de algo, mas que
também não tem como provar. Com o tempo, ela esquecerá e
nós, eu e Antero, poderemos ser felizes para sempre, como
sempre quisemos e merecemos. Ninguém poderá impedir..."
Vestiu um roupão por cima da camisola e foi para a cozinha.
Colocou água no fogo para fazer café, foi para o banheiro.
Diante do espelho olhou para seu rosto, pensou tristemente:
"Estou ficando velha e muitas rugas estão surgindo no meu
rosto, mas Antero parece que não as vê. Ele provou que
realmente me ama quando saiu de casa. Acho que valeu a pena
todo esse tempo de espera. Daqui para frente, seremos felizes."
Antero também acordou, viu quando Zuleica saiu do quarto.
Não sentia vontade de falar com ela. Deitado de costas, ficou
olhando para o teto e pensando:
"Não sei por que estou me sentido assim. Eu deveria estar
contente por poder finalmente viver ao lado da mulher que
sempre julguei amar. Mas agora não sei se a amo realmente.
Não consigo esquecer as palavras do delegado:
— Sua mulher telefonou para a casa da amiga, dizendo que
estava feliz, e preparando um jantar, pois o senhor avisou que
voltaria para casa.
"Por que Fernanda faria isso? Se o que Marilda está dizendo for
verdade, alguém disse para ela que eu estava voltando, mas
quem e por quê? Por mais que pense, não consigo encontrar
uma explicação. Se isso for verdade, ela realmente não teria
motivo para se matar. Será que ela não se matou? Será que foi
assassinada? Não, não pode ser. Quem faria isso e por quê?
Estou confuso, nunca pensei que sentiria a falta dela, mas estou
sentindo. Zuleica é uma mulher maravilhosa, mas sinto agora
que, na realidade, eu nunca a amei. Não sei se amei Fernanda,
mas sinto falta dela, só que agora é tarde demais. Ela morreu,
não está mais aqui e nunca mais voltará. Estranho como o
pensamento pode mudar de uma hora para outra. Como pode
ser que o sonho, o desejo, só é bom quando não se consegue
realizar e, ao se conseguir, parece não ter sentido? Sempre quis
estar assim como estou hoje, livre para viver ao lado da Zuleica,
mas não estou feliz."
Zuleica entrou no quarto, viu que Antero estava acordado,
aproximou-se e beijou seus lábios suavemente, dizendo:
— Bom dia, meu amor. O café já está pronto e eu caprichei.
Vai passar o dia comigo?
— Não, preciso ir até a empresa, há muitos problemas para
serem resolvidos e só eu posso resolver.
— Vamos fazer amor antes ou depois do café?
Ele a olhou. Parecia que aquela que estava diante dele era outra
pessoa, não a Zuleica a quem havia amado a vida toda.
— Não estou me sentindo bem — respondeu nervoso, — não
estou em condições de fazer amor. Voltarei à noite, estarei
melhor e tudo ficará bem.
— Não quer fazer amor? Não estou te entendendo, nunca se
recusou. Por que está fazendo isso, agora que estamos livres
para nos amar sem culpa?
— Não sei o que está acontecendo, mas não consigo deixar de
pensar na Fernanda e na maneira como ela morreu. Aquilo
que o delegado me disse, de ela ter telefonado para a casa da
Marilda dizendo que eu estava voltando, me deixou muito
preocupado. Quem teria dito isso a ela? De onde Fernanda tirou
essa idéia? Não consigo encontrar resposta...
— Eu é que não estou entendendo o que está acontecendo.
Sempre pensei que você me amava e que queria ser livre para
ficar comigo, Antero!
— Eu te amo e o que sempre desejei na vida foi justamente
isso. Só não sei o que está acontecendo. Não me sinto bem e
não estou com vontade de fazer amor com você ou com
ninguém. Preciso ir embora, ficar sozinho para pensar.
Estava nervoso, sentia raiva de Zuleica, mas não conseguia
saber por quê.
Levantou-se, tomou um banho rápido, vestiu sua roupa e foi
até a cozinha. Zuleica estava sentada junto à mesa, que estava
preparada com um saboroso café da manhã. Assim que ele
entrou, ela se levantou dizendo:
— Sente-se e tome o seu café. À noite, quando voltar,
conversaremos e você verá que tudo ficará bem.
— Não vou me sentar, só tomarei um café puro. Já está tarde.
Não se esqueça de que terei que fazer uma viagem até chegar à
empresa. Você não precisava ter se mudado para tão longe.
— Sei disso, mas sabe muito bem porque me mudei. Pode
tomar um café decente, tem tempo para isso. Alguns minutos
não fará diferença, Antero.
— Não! — ele gritou. — Estou me sentindo abafado. Preciso
sair desta casa e respirar ar puro! O ar aqui está pesado! À noite
voltarei e, por favor, não telefone para a empresa. Alguém
poderá desconfiar. Ainda não quero isso!
— Sabe que não telefono para a empresa — disse, abismada
com a atitude dele — mas agora já poderia fazer isso sem
problema algum. Ninguém desconfiaria de nada. Afinal
trabalhei lá por muitos anos. Também, se desconfiarem, qual é
o problema? Agora está livre e pode fazer o que quiser com a
sua vida. Só dependerá da sua vontade. Não estou entendendo.
— Estou livre de quê? Da Fernanda? — perguntou mais
irritado. — Pois quero lhe dizer que não estou livre, que nunca
pensei nela como agora! Até mais tarde!
— Está bem, mas não vai tomar nem o café?
— Não, estou atrasado, até mais.
Ela quis acompanhá-lo até o portão, mas ele não deixou.
— Fique aqui dentro, não quero que me acompanhe.
Ela parou, ficou olhando para ele sem saber o que fazer. Aquele
homem que estava na sua frente ela não conhecia. O que
estaria acontecendo com ele?
Antero entrou no carro. Estava realmente muito nervoso o não
sabia explicar qual era o motivo. Em poucos minutos, entrou na
rodovia que o levaria para São Paulo e, à medida que foi se
afastando, sentiu-se mais calmo. Ao seu lado, sem que sequer
desconfiasse, estava sentado Nivaldo, que lhe disse:
— É meu irmão, você errou. Errou não, pois erro não existe, o
que existe é apenas aprendizado. Você escolheu mal e agora
terá que pagar as consequências. Mas estive, estou e estarei
sempre ao seu lado. Agora, acalme-se, você está em uma
rodovia e não é responsável só por sua vida, mas por todos que
trafegam por ela. Em breve tudo será resolvido.
Antero, sem perceber, respirou fundo, recebeu uma rajada de
luz branca que o envolveu totalmente por fora e por dentro.
Sentiu-se calmo. Continuou dirigindo.
Zuleica foi para o seu quarto e se deitou. Estava nervosa e
preocupada com a atitude de Antero.
"O que será que deu nele? Por que agiu daquela maneira?".
"Parecia que estava me odiando. Disse que nunca pensou tanto
na Fernanda como agora! Não pode ser! Será que tudo que fiz
foi inútil? Será que me tornei uma assassina por nada?"
— Infelizmente foi isso o que aconteceu, minha irmã. Você e
o Antero não aceitaram a mudança de planos. Sei que era
difícil, mas poderiam ter escolhido outro caminho. Antero foi
fraco, ganancioso e escolheu mal. Você, infelizmente, se
deixou levar pelo ódio, pelo ciúme e o sentimento de vingança.
Agora, com a sua atitude, tudo se complicou. Entendo a ânsia
que tinham de ficarem juntos, mas mesmo depois do fato
consumado passaram por cima de tudo, não se preocupando
com quem estavam magoando. Com você foi pior ainda,
chegou às últimas consequências. Agora, não sei o que
acontecerá com você, mas estou aqui ao seu lado e ficarei até
quando me for permitido — Zuleica não percebeu, mas quem
lhe falava era Marli.
Uma ventania se fez sentir e atrás dela um homem surgiu, era
bonito, alto e forte, só tinha o rosto crispado de ódio.
— O que está fazendo aqui, Marli? — disse, com muito ódio.
Sabe que ela sempre foi e continuará sendo minha! Ela atendeu
aos meus apelos e cometeu aquilo que lhe intuí. Agora, ficará
ao meu lado para sempre e você não pode ficar aqui!
Marli não pareceu estar surpresa; tentando esboçar um sorriso,
disse:
— Olá, Aristides, como vai?
— Estou bem e nem um pouco feliz por te ver.
— Pois eu estou feliz em te ver. Sabe que te procurei por todos
os lugares onde eu pudesse chegar...
— Esteve sempre perdendo o seu tempo. Onde estou só os
corajosos podem chegar! Ninguém assim como você ou aqueles
que te acompanham, chegam lá.
— Não sabe o quanto sinto por você, Aristides.
— Não preciso que sinta nada! Estou muito bem .Só quero que
vá embora! Não quero te fazer mal, mas, se insistir em ficar
aqui, não terei outro remédio .
—Não precisa fingir um poder que sabe não ter. Ficarei aqui
todo o tempo que for necessário. Zuleica se deixou sucumbir
pelos seus desejos, mas você sabe que nunca é tarde para se
redimir. Estou e ficarei aqui, até que ela decida o que fará com
a sua vida terrestre e espiritual. Sinto que será difícil fazer com
que ela se arrependa, mas tentarei o máximo possível.
—Sabe bem que ela tinha motivos para fazer o que fez.
— Sei, sim, mas sei também que ela poderia ter escolhido outro
caminho. Poderia exercer o perdão e tudo seria diferente para
ela e para todos os envolvidos.
— Ela aceitou a minha influência e agora não a deixarei nunca
mais! Finalmente poderei ser feliz! Será minha para sempre.
— Você sabe que o sempre ou o nunca não existem, são apenas
palavras. Sabe também que um dia terá que renascer e terá que
responder por todos os seus atos.
— Não quero e não vou renascer! Gosto de estar aqui e não
quero voltar para aquela Terra.
— Entendo que tenha medo. Sabe que, depois de tudo que fez,
intuindo-a ao crime, terá que responder não só pelos seus
erros, mas pelos dela também. Sabe que, quando chegar a hora,
não terá como evitar a reencarnação e que ela será sofrida. Sabe
que a sua vida terrestre não será boa. Será mais uma daquelas
pessoas que não entendem o motivo de seus sofrimentos e se
revoltam contra Deus e contra todos. Isso acontece porque não
sabe o quanto fizeram de mal e que a vida na Terra é uma
bênção divina. É a oportunidade para resgatarmos todos os
nossos erros.
— Essa conversa é fiada! Não estou interessado nela! Só quero
que saia daqui. Nada mais!
— Vou embora, sim, mas não porque você está mandando,
Aristides. Vou porque sei que nada poderei fazer até que
Zuleica se arrependa e peça perdão a Deus pelos crimes
cometidos. Mas quero te advertir que, se isso acontecer, estarei
aqui para levá-la para a casa do Pai. Você não conseguirá me
impedir.
— Pode esperar sentada, Marli. Ela não vai fazer isso, pois, ao
contrário de você, ficarei aqui ao seu lado e não deixarei que
ela se arrependa. Sou eu que vou levá-la para a minha casa!
Marli sabia que infelizmente ele tinha razão. Zuleica havia se
deixado envolver por seus conselhos e se colocou na mesma
faixa em que ele estava. Ela sabia também que não poderia
interferir na escolha de Zuleica. Só poderia mesmo ficar orando
e pedindo a Deus que ela se arrependesse. Triste, desapareceu.
Encontrou com Nivaldo, que seguia ao lado de Antero no
carro. Ela sentou-se no banco de trás, perguntando:
— Como ele está?
— Está desconfiando de alguma coisa, não sabe muito bem do
que, mas já é um caminho. A Fernanda como está?
— Deixei-a com a Tânia. Deve estar bem, mas muito revoltada
e com razão. Sei que a Tânia saberá fazer com que ela veja tudo
de uma maneira diferente e compreenda.
— Espero que sim. Pretendo adiar, o máximo que puder, para
lhe contar o que se passou na encarnação anterior.
— Sabe que chegará a hora em que não poderá evitar.
— Sei disso. Mas até lá espero que ela esteja adaptada à nova
vida. Assim, entenderá com mais facilidade.
— Não sei, acho que, quanto mais tempo passar, pior ficará.
Vai ficar aqui ao lado dele?
— Não. Você sabe que tenho compromissos. Ele mesmo já está
pensando a respeito e, mais cedo ou mais tarde, ligará Zuleica
ao crime. Só precisamos dar tempo ao tempo. Podemos ir
embora. Quero ver como Fernanda está.
Antes, diga: a Zuleica, como está? Ainda confiante na
impunidade?
— O Aristides esteve o tempo todo com ela...
— Já imaginava isso. Sabia que ele tentaria tudo para fazer com
que ela fizesse o que ele queria e, infelizmente, conseguiu.
— Sim, ela se deixou envolver.
— Como ele está?
— Revoltado como sempre. Mas tenho fé que ele consiga se
arrepender e encontrar o caminho do perdão.
— Para isso estamos e estaremos lutando. Parece que o nosso
trabalho aqui, por enquanto, acabou. Antero já está chegando à
empresa e, ali, ficará bem. Vamos embora? Voltaremos mais
tarde.
Marli não respondeu, apenas consentiu com a cabeça.
Desapareceram.
Lição de mediunidade
Nivaldo e Marli chegaram e foram em busca de Fernanda, que
estava na companhia de Otaviano, o pintor.
— Pode pintar sempre que quiser Fernanda. Fico feliz com a
sua presença, mas agora não poderei ficar aqui, pois, assim
como você está hoje ao meu lado, preciso auxiliar uma
discípula que já esteve aqui e hoje está renascida. Está tentando
pintar, mas tem dúvidas sobre a minha presença. Isso torna o
meu trabalho mais difícil. Ela pinta telas belíssimas. Todos
dizem que está recebendo a minha intuição, mas não quer
aceitar.
— Onde ela está?
— Está agora em uma reunião de trabalho em uma casa
espírita. Todos estão envolvidos em profunda vibração. O
momento não poderia ser melhor para que ela se entregasse à
pintura, mas está vacilando. Ela tem medo de que seja ela
mesma e não um pintor do além que a esteja inspirando.
— Mas não me disse que toda e qualquer criação é feita
primeiro aqui e que a isso se dá o nome de inspiração?
— Exatamente, é assim que acontece. Mas todo artista tem que
estar aberto e confiante para poder receber. Se isso não
acontece, fica difícil. Difícil, mas não impossível. Com o
tempo, todos conseguem. Venha comigo, vou te mostrar como
funciona.
Nivaldo e Marli entraram na sala, Otaviano sorriu.
— Sejam bem-vindos. Estou mostrando para Fernanda como
funciona aquilo que chamam de inspiração. Ia levá-la até uma
reunião para ela ter uma melhor idéia de como tudo funciona.
— Estou feliz que ela esteja querendo aprender — Nivaldo
disse, sorrindo. — Podem ir e, quando voltarem,
conversaremos.
Fernanda não sabia por que, mas gostava muito de Nivaldo.
Não entendia também por que isso acontecia, pois acabara de
conhecê-lo, mas não teve muito tempo para pensar. Otaviano
pegou em sua mão e ela se viu voando pela cidade. Estava feliz.
Não conseguia expressar o que sentia, apenas podia dizer que
estava feliz. Chegaram a uma casa, onde várias pessoas estavam
reunidas em profunda meditação. Otaviano, após
cumprimentar alguns outros espíritos que estavam ali, disse:
— Neste local, Fernanda está sendo administradas aulas práticas
para médiuns. Eles se reúnem uma vez por semana para
treinarem a mediunidade em suas diversas formas.
— Não sabia que existia esse tipo de aula. Também, nunca me
interessei.
— Existem, sim, e muito mais do que você possa imaginar.
Todos os que estão sentados ao redor dessa mesa são médiuns.
Só falta eles próprios acreditarem.
— O que está dizendo? Eles estão aqui, mas não acreditam na
mediunidade?
— A maioria não. Pensam que são eles mesmos quem
transmitem as mensagens, pintam ou escrevem. Não acreditam
que estejam sendo intuídos.
Assim dizendo, colocou-se atrás de uma senhora que estava
diante de uma folha de papel branco. Abriu suas mãos sobre a
cabeça dela e fechou os olhos. A senhora sentiu como um leve
tremor nas mãos e começou a pintar, com uma agilidade que
impressionava a qualquer um que a estivesse vendo, sem ver
Otaviano. Em poucos minutos, surgiu no papel, em tamanho
menor, a mesma paisagem que Fernanda viu Otaviano
terminando de pintar. Ela falou abismada e feliz:
— Não pode ser! Você a reproduziu em poucos minutos! Está
linda, tanto quanto a maior que te vi terminando!
— Está linda mesmo! Mas não fui eu; usei a energia que emana
dessa senhora... Por alguns instantes ela se deixou levar e se
entregou totalmente. Só assim eu consegui passar para o plano
físico a tela que havia pintado no astral. Mas olhe, nós sabemos
o que aconteceu, porém ela não. Veja o que está pensando.
Fernanda, curiosa, fixou sua atenção na mulher, que, olhando
para o papel que estava à sua frente e no qual acabara de
reproduzir a tela de Otaviano, pensava:
"Essa paisagem está linda! Não sei como explicar de que
maneira ela surgiu, mas não pode ter sido através de um
mentor. Estou consciente! Eu mesma escolhi as cores que
usaria! Se me disser que estou consciente, as pessoas, assim
como eu, não irão acreditar que foi através de um mentor, e
não posso culpá-las! Eu mesma não acredito, e acho que fui eu
mesma...
— É assim que sempre funciona? — perguntou Fernanda.
— Na maioria das vezes, as pessoas não acreditam e isso
dificulta muito o nosso trabalho.
— Estou vendo e entendendo a aflição dessa senhora. Ela não
acredita na sua interferência por estar consciente?
— Sim, mas com o tempo, e através de várias provas que lhe
daremos, esperamos que ela passe a acreditar.
—Entendo, mas, para ela poder pintar, é preciso estar em um
lugar como este, cercada de tanta vibração boa?
—Seria o ideal, mas não é necessário. Sempre que alguém se
colocar diante de uma tela, esteja onde estiver, terá ao seu lado
um inspirador como eu — disse isso, rindo muito.
— Pensar que tantas vezes tive vontade de pintar, mas nunca
me julguei capaz. Sempre achei que não conseguiria pintar
coisa alguma — confessou Fernanda.
— Não se recrimine por isso, acontece com milhões de
espíritos encarnados. Todos têm, como se diz aqui, uma veia
artística, mas a maioria não sabe ou não quer acreditar nisso, e
sentem medo de tentar.
— Que pena, se eu soubesse disso quando estava Terra...
— Nunca é tarde para se aprender. Olhe, ali, aquele senhor.
Ela olhou para onde ele apontava: viu um senhor que também
estava sentado diante de uma folha de papel branco. Viu
também uma senhora sorridente e percebeu que ela também
estava desencarnada. Otaviano aproximou-se dela, dizendo:
— Olá, Justina, está aqui também cumprindo a sua missão?
— Estou, sim, mas está difícil... Já mandei várias mensagens,
mas ele não quer escrever; julga que as idéias são dele. Como
sempre acontece, está com medo de mentir.
—Essa desconfiança atrapalha muito mesmo. Eu estava
comentando isso com a Fernanda. Ela está me acompanhando
para ver como funciona a mediunidade.
— Olá, Fernanda, está gostando do que está vendo?
— Muito! Nunca imaginei que fosse assim, Justina.
— Pois é assim mesmo. Esse meu irmão já está há muito tempo
tentando. Com a minha ajuda escreve mensagens belíssimas,
mas não acredita e julga que escreve sozinho.
— Por que não acredita?
— As pessoas se enganam e acham que, para serem aceitas ou
para que tenham credibilidade, precisam fazer um ar de
mistério dizendo que não se lembram do que falaram ou
escreveram que estavam inconscientes. Isso atrapalha aqueles
que, por estarem conscientes e sabendo muito bem de tudo
que se passa ao seu redor, acreditam que estejam mentindo ou
mistificando. Muitos médiuns já se afastaram da doutrina ou de
sua missão por essa dúvida que os cerca.
— Nunca frequentei ou conheci profundamente essa religião
onde existem médiuns, mas sempre ouvi dizer que eles
estavam inconscientes e que não sabiam como escreviam ou
falavam pelos espíritos. Isso não é verdade? Todos sabem o que
está passando ao seu redor, Justina?
Justina olhou para Otaviano e os dois sorriram:
— Felizmente, sim. Imagine se alguém perdesse totalmente a
consciência e não soubesse o que estava escrevendo, pintando
ou falando. Em um lugar como este, onde existe aquela
separação magnética — Justina apontou com a mão e Fernanda
viu uma corrente de luz que rodeava os médiuns — estão todos
protegidos.
Eu, o Otaviano e todos os outros que está vendo estamos
trabalhando em paz. Otaviano está intuindo essa senhora e ela
terminou de pintar essa linda paisagem.
Através da minha intuição, esse senhor pode escrever
mensagens de amor, esperança, felicidade e transmitir
ensinamentos. Mas, em outros lugares onde não existe a
mesma proteção, eles poderiam ser visitados não só por
espíritos de luz, mas também pelos das trevas, espíritos maus
ou simplesmente brincalhões, e, ao invés desse nosso trabalho,
poderia surgir uma pintura pornográfica ou uma escrita cheia
de ódio e mentira. Por isso, é necessário que o médium esteja
consciente, para que sirva de sensor e perceba se o que está
escrevendo, pintando ou falando está vindo mesmo de um
espírito de luz ou de qualquer outro. Além do que, se assim
não fosse, estaria sendo violada uma das maiores leis, a do livre-
arbítrio.
— É uma pena que isso aconteça. Que não acreditem em uma
coisa tão maravilhosa — disse Fernanda.
— Sim, mas está mudando. Com o tempo, todos irão perceber
que, para a doutrina ser conhecida, respeitada e para os
médiuns também serem respeitados,não será mais necessário
coisas espetaculares ou sobrenaturais. O que vai importar
mesmo é a doutrina como um todo: as mensagens de amor e
paz que serão espalhadas por todos os lugares criados por Deus.
No início, foi importante e necessário que essas coisas
acontecessem. Eram outros tempos e surgia uma doutrina nova
como essa, que ensinava coisas diferentes de tudo que se sabia
e se havia aprendido até então. O plano espiritual sabia que a
quebra de tabus e as coisas novas assustariam a todos.
Essa doutrina deveria surgir e provar a existência de vida após a
morte e que cada um é responsável por suas ações; que o céu
não se compra com dinheiro, mas sim com trabalho, com o
aperfeiçoamento do espírito através de várias encarnações.
Para isso foi preciso que coisas espetaculares e sobrenaturais
acontecessem. Hoje, isso não se faz mais necessário, muitos
estão aceitando com tranquilidade e procurando viver a
doutrina, sabendo que o que importa na realidade, são as
mensagens transmitidas de todas as formas possíveis.
— Desculpe a minha curiosidade, mas não existe nenhum
médium inconsciente, Justina?
— Na realidade não. O que acontece com alguns é que, por
acreditarem que são intuídos e terem a certeza de que tudo que
fazem não parte deles entregam-se totalmente. Tanto que, às
vezes, distanciam-se, deixando que os mentores trabalhem em
paz, por isso lhes parece que são inconscientes. Mas, na
realidade, não o são, pois, ao sentirem que o que estão dizendo,
pintando, compondo ou escrevendo não corresponde à
verdade ou estão desvirtuando os ensinamentos,
imediatamente tomam os seus lugares e dão por encerrados os
trabalhos. Esse é o seu papel de sensor. Além do mais, se assim
não fosse, estaria sendo violada uma das maiores leis, a do livre-
arbítrio, pois estaria tirando-se do médium o seu direito de
escolha, e isso não pode acontecer, pois, em última análise, o
médium é o responsável por tudo que faz. É assim que precisa
ser para o bem da doutrina.
— Entendo... Mas como são escolhidos os médiuns? Eles
precisam pertencer a essa doutrina?
— Todos são médiuns, pertencendo à doutrina ou não. Até
mesmo aquele que não acredita em Deus, aquele que se diz
ateu. Qualquer um poderia pintar, escrever ou falar através de
nós. O que impede é a falta de fé em si mesmo e o medo de
falhar. Mas existem aqueles que conseguem compor, pintar,
escrever ou falar mesmo não pertencendo à doutrina. Assim
surgem obras belíssimas.
Agora, preciso voltar para o meu amigo, vamos ver se hoje eu
consigo fazer com que escreva.
Fernanda olhou ao redor da mesa e percebeu que, atrás de cada
uma das pessoas que estavam sentadas, tinha um mentor com
as mãos abertas e que de suas cabeças saíam raios que iam
diretamente para a cabeça dos médiuns. Ficou encantada com o
que viu. Aos poucos, foi notando que os médiuns iam
escrevendo e pintando sob a influência dos espíritos. Disse para
Otaviano:
— Isso tudo aqui é maravilhoso! Jamais imaginei que fosse
assim. Estou encantada! Será que algum dia poderei estar em
um lugar como este, fazendo as mesmas coisas que vocês
fazem?
— Poderá estar, sim, mas ainda não viu tudo. Você ainda tem
muito para ver e aprender.
Ficaram ali por mais ou menos duas horas. Eles e Justina
ficaram felizes, pois o senhor a quem ela estava se dedicando
finalmente conseguiu escrever algumas palavras. Em seguida,
os trabalhos foram encerrados e eles voltaram para a cidade.
Ao se encontrar com Marli e Tânia, Fernanda disse, animada:
— Marli, Tânia! O Otaviano me levou para passear! Fomos lá a
Terra, a um tipo de escola, onde as pessoas, sob a influência dos
espíritos, fizeram coisas maravilhosas!
— Parece que você gostou — disse Marli.
— Muito! Nunca pensei que fosse assim e estou arrependida de
não ter querido conhecer mais quando estive na Terra.
— Não se preocupe com isso, não era à sua hora. Em uma
próxima encarnação, agirá diferente, pois está tendo a
oportunidade de ver aqui como tudo acontece.
Fernanda parou de falar e em seus olhos surgiu uma sombra.
—O que aconteceu, Fernanda? Eu falei algo errado?
—Não falou Marli, só me fez lembrar que estou morta e que
nunca mais poderei estar ao lado daqueles que deixei. Queria
estar lá para poder contar tudo que estou vendo aqui e também
lhes confirmar que a vida existe depois da morte e que tudo
continua igual. Não posso deixar de lembrar-me da Zuleica e de
todo o mal que ela me fez.
— Você está tendo uma visão diferente de tudo que pensou.
Não deixe que maus pensamentos estraguem tudo. Embora
triste e revoltada, aceitou bem a sua morte e viu que ela não é o
fim, mas apenas o começo. Não se preocupe com o que está se
passando por lá. Deixe nas mãos de Deus e continue
desfrutando de tudo que tem aqui. Tem muito ainda para ver e
aprender.
— Tento fazer isso, mas está sendo difícil. Vocês falam em
perdão, mas eu não consigo... Sempre que me lembro, sinto
uma revolta imensa. Não sei se um dia conseguirei perdoar.
Zuleica não estava contente só em tirar o meu marido, quis e
conseguiu tirar a minha vida. Por causa dela, não vou ver o
meu neto crescer nem os que estão para nascer.
— Como não? Poderá ir até lá quando quiser. Você estará
sempre ao lado deles e, quanto aos netos que nascerão você os
verá aqui. Verá como são preparados para renascer! Está na
hora de saber que a Tânia está se preparando para renascer e
será na casa da sua filha. Ela será sua neta...
Fernanda olhou incrédula para Tânia, que sorria, e perguntou:
— Você vai ser a minha neta? Não posso acreditar nisso!
— Vou renascer, sim — disse Tânia em lágrimas —, preciso
voltar. Na última encarnação deixei algumas coisas sem
terminar.
— Mas por que na minha família? Por que ser minha neta?
— Estamos ligados por laços de amor e ódio. Com todos
aqueles que reencontramos na vida física, temos algo em
comum, resgates, amor ou ódio para que possamos caminhar
juntos.
— Resgates, amor e ódio? Está dizendo que em algum tempo já
nos encontramos? Já convivemos na mesma família?
— Sim, por muitas vezes. Mas, embora eu quisesse, não
consegui resgatar todos os meus erros. Estou voltando para
mais uma tentativa e queira Deus que desta vez eu consiga.
— Posso saber como e quando foi a nossa última encarnação?
Estou curiosa...
Tânia olhou para Marli, que respondeu:
— Terá que saber, mas precisamos conversar com Nivaldo. Ele
saberá te dizer quando poderá saber.
— Vai perguntar para ele? Agora estou ansiosa, Marli!
— Conversarei e veremos como ele deseja fazer. Por enquanto,
continue vendo tudo por aí com a Tânia, preciso fazer algo.
Sorriu e saiu. Precisava conversar com Nivaldo. Sabia que havia
chegado à hora de contar tudo para Fernanda. Entrou na sala de
Nivaldo. Assim que a viu, sorriu e perguntou:
— Olá, está tudo bem? Parece preocupada...
— Estou as duas coisas, bem e preocupada.
— Está preocupada com o quê? Que aconteceu?
—Fernanda esteve com Otaviano em uma aula prática de
médiuns. Acabou de chegar.
— O que ela achou? Não gostou?
— Gostou muito e voltou encantada.
— Então, qual é o problema, Marli?
—Apesar da sua felicidade e de estar se adaptando muito bem
aqui, não consegue esquecer e perdoar Zuleica. Cada vez que
se lembra do que ela lhe fez, fica envolvida por uma nuvem
escura e isso está me preocupando. Outra coisa: enquanto
conversávamos, eu falei que a Tânia está se preparando para
nascer e que será a sua neta.
—Fernanda... Como reagiu?
—Ficou feliz e interessada em saber sobre sua última
encarnação. Pediu que eu lhe pedisse permissão para lhe
contar.
—Você acha que ela já está pronta para isso, Marli?
— Não sei, às vezes parece que sim. Mas, em outras, temo que
seja cedo demais.
—Sabemos que não poderá ser adiado por muito tempo. Faça o
seguinte, Marli, marque para daqui a um mês e, se ela continuar
agindo assim como está fazendo agora, nos reuniremos e
contaremos tudo. Durante esse tempo, tentaremos fazer com
que perdoe Zuleica, mesmo desconhecendo o passado.
—Falando em Zuleica, estou preocupada com Aristides. Ele
está ao lado dela e poderá fazer com que pratique outras
maldades ou até o suicídio. Você o conhece e sabe como é
vingativo, por isso poderá conseguir tudo que quer.
—Sim, tem razão. Mas ela se deixou envolver. O Aristides,
como sabemos, está envolvido com as forças do mal. Por
enquanto, vamos nos preocupar com Fernanda e em como
ajudá-la. Talvez então possamos fazer algo por ele e pela
Zuleica. Sabe que todos estão envolvidos por laços imensos.
— Está bem, vou falar com ela.
Despediu-se com um aceno de mão e voltou para junto de
Fernanda e Tânia, que conversavam animadamente:
— Fernanda, disse aproximando-se , conversei com o
Nivaldo. Ele disse que dentro de um mês nos reuniremos para
que possa relembrar a sua encarnação passada.
—Ótimo! Por que só daqui a um mês, não pode ser agora?
—Não, julgamos que você ainda não esteja preparada. Mas não
se preocupe, tem muito para ver. Sei que costumava frequentar
a igreja católica tem aqui igrejas maravilhosas, que poderá
visitar sempre que quiser.
—Igrejas católicas, aqui? Como pode ser?
—Igrejas católicas, protestantes, evangélicas, sinagogas,
mesquitas, templos budistas e terreiros de umbanda, com seus
pretos velhos, caboclos e suas crianças. Temos também
terreiros de candomblé, com seus orixás, e todas as crenças e
religiões.
— Não acredito! Como pode ser?!
— Nem todos os que chegam, assim como você, conhecem ou
entendem da espiritualidade: aqueles que nada sabem julgam se
tratar do demônio. Eles trazem suas crenças. Aqui, não se
impõe. Aqui não existe religião. Por isso, todos continuam
frequentando os lugares a que estavam acostumados e, com o
tempo, vai lhes sendo revelada a vida após a morte.
—Não pode ser! Tudo aqui é perfeito!
—Tentamos fazer com que seja — Marli disse, sorrindo.
— Seria cruel impor uma crença para alguém que viveu outra e
acreditou durante toda a sua vida terrena. Nunca nos
esquecendo que cada um imagina o céu de uma forma e muitos
levam tempo para aceitar que estão mortos e que a vida
continua.
Para que possam se adaptar, sem grandes traumas, encontram
aqui tudo que precisam para serem felizes. Não seriam felizes
se não pudessem professar a crença que conheceram e
acreditaram. Nem se lhes fosse imposta outra, que julgavam ser
do demônio.
—Estou cada vez mais encantada.
—Tem muito ainda para se encantar. Encontrará aqui tudo que
viu enquanto esteve na Terra e muito mais.
—Este é mesmo o céu?
—Ainda não, estamos distantes dele. Precisamos caminhar
muito até lá, Fernanda.
—Por que eu aceitei logo a minha morte?
—Antes de renascer, escolheu a vida que queria ter para
reparar e resgatar alguns erros. Você foi muito bem preparada e
através do livre-arbítrio, fez algumas escolhas e se desviou do
prometido. Mas, apesar disso, daí para frente, cumpriu quase
tudo daquilo a que havia se proposto. Por isso, ao desencarnar,
nós estávamos lá esperando para te trazer par cá. Durante o
tempo em que ficou adormecida, recebeu um tratamento de
passes e energia. Quando acordou, estava mais ou menos
preparada. No momento em que Nivaldo te contou,não
sabíamos qual seria a sua reação, mas graças a Deus foi muito
boa.
—A princípio eu me revoltei e não aceitei.
—A princípio, mas em seguida foi aceitando e agora parece que
aceitou de vez.
—Com tudo que estou vendo aqui, não teria como não aceitar.
No entanto, ainda não aceito a forma como a minha morte se
deu nem a impunidade de Zuleica. Não consigo deixar de sentir
um ódio muito grande por ela e o desejo de vingança me
persegue. Só ficarei bem quando conseguir me vingar.
—Não deve se preocupar. Ao contrário, procure assimilar o
máximo que puder de tudo que está vendo por aqui, garanto
que em uma próxima encarnação lhe será muito útil. O crime
nunca fica impune. Poderá ficar nas leis dos homens, mas
perante Deus não. Todos, cedo ou tarde, terão o seu
julgamento. Confie nisso e será feliz. Tente tirar esses
pensamentos de ódio e vingança, pois eles não te ajudarão; ao
contrário, só poderão te fazer mal.
—Vou tentar, mas não sei se conseguirei.
Marli, você há de convir que não é fácil quando se descobre
que sempre foi traída. Ainda mais para alguém que, como eu,
sempre pensou estar tudo bem em sua vida.
—Entendo, sim, por isso vou repetir. Está tendo toda a
assistência que precisa. Dentro de um mês entenderá mais
ainda.
—Estarei esperando ansiosa. Ficarei contando os minutos.
—Faça isso. Agora, continue com a Tânia. Poderemos nos ver
mais tarde.
Marli se afastou e Fernanda a acompanhou com os olhos.
Nada é como parece
O tempo foi passando. Fernanda procurou conhecer todos os
recantos, distraindo-se até que chegasse o dia em que saberia
todo o passado e pudesse ir visitar aqueles que deixara e amava.
Ficou encantada ao ver uma fábrica de brinquedos; perguntou
para Tânia, que a acompanhava:
—Até os brinquedos são feitos aqui?
—Sim, eles são feitos e testados. Depois, são passados para
aqueles que se dedicam a esse tipo de trabalho nas fábricas de
brinquedos. Antes de renascer, foram treinados aqui.
— Como são passadas essas idéias? Através de médiuns?
— Não. Geralmente são passadas durante a noite, quando
aquele que precisa recordar o que fez aqui está dormindo. Uma
equipe daqui vai até ele para trazê-lo aqui. Ele percorre tudo e,
quando acorda pela manhã, acha que teve uma idéia, coloca-a
em prática e assim surgem os brinquedos.
—Pelo que estou vendo, tudo que é inventado na Terra antes
foi criado aqui.
—Isso mesmo.As pessoas não sabem, mas todas trabalham
naquilo em que foram treinadas aqui. Algumas não aceitam e
tentam fazer outras coisas por causa do dinheiro ou para
manter um status, mas, nunca dá certo. Mais cedo ou mais
tarde, voltam para realizar aquilo que sempre sonharam e
planejaram. Sonhos e planos que levaram daqui ou de outro
lugar como este.
—Existem outros lugares como este Tânia?
—Sim, muitos, em todo o Universo. Lugares como este servem
para receber os recém-chegados, auxiliá-los em tudo que
precisarem, e depois, se pertencerem a outro lugar, serão
levados.
Isso porque sempre estaremos ao lado de nossos companheiros
de caminhada: amigos e até inimigos, sem esquecer os nossos
familiares que nos antecederam.
Estavam conversando, quando um raio de luz caiu sobre
Fernanda, envolvendo-a totalmente. Ela se assustou, deu um
pulo para trás, dizendo:
—O que é isso?!
—Não se preocupe — disse Tânia rindo —, essa luz significa
que alguém lá na Terra está pensando em você, com amor, paz
e saudade, mas sem sofrimento. Mesmo sem saber, está te
mandando essa luz, que se transforma em energia.
—Como? Que luz é essa?
—Quando alguém pensa naquele que partiu do alto da sua
cabeça sai esse tipo de luz, que na realidade é uma energia
muito boa. Você verá como se sentirá bem, isso acontece
sempre.
—Nunca vi em mim ou em qualquer outra pessoa...
—Mas chegaram muitas vezes. Geralmente quando isso
acontece estamos dormindo e não percebemos. Para você, no
início, chegaram muitas! Eu mesma presenciei e com o tempo
elas foram se tornando mais raras.
—Por quê? As pessoas se esqueceram de mim?
—Não! Sempre que alguém morre, no início chora-se muito,
mas aos poucos se acostumam e vão se esquecendo.
—Tem razão. Quando perdi meus pais, sofri muito, mas com o
tempo a lembrança deles foi-se tornando mais distante. Por que
isso acontece?
—Deus é mesmo sábio. Ele faz com que, à medida que o tempo
vai passando, as pessoas vão sendo envolvidas pelas lutas do dia
a dia e deixam de pensar naqueles que foram. Isso é bom para
elas próprias e muito mais para aqueles que estão aqui. Nem
sempre a luz é como essa que chegou agora. Muitas vezes são
de dor e na não aceitação da morte. Nesses casos, a luz, ao
invés de fazer bem, como está acontecendo com você, causa
muito mal, pois uma das doenças do espírito chama-se saudade.
—É mesmo? Eu não sabia disso!
—Não é difícil de entender. Mesmo quando vivos, ao ficarmos
distantes, não sentimos saudade daqueles que amamos?
—Sim e, dependendo de onde estivermos, sentimos muito.
—Aqui não poderia ser diferente. Ficamos ansiosos para revê-
los e lhes contar tudo que vimos.
—É verdade. Neste momento, é o que mais desejo.
—Mas nem sempre é possível. Alguns levam muito tempo para
entender e aceitar a sua atual situação. Enquanto não estiverem
prontos, não poderão voltar. Outros, embora aceitem e
entendam prontamente, se deixam envolver por trabalhos e
raramente voltam ao seu antigo lar.
—Isso acontece?
—Sim, pois para os que estão aqui é indispensável que tenham
trabalho. Já cumpriram o seu tempo renascido e agora precisam
se preparar para uma próxima volta.
Assim como acontece na Terra, aqui também todos são
envolvidos, para que possam continuar a caminhada. Isso só é
possível de acontecer quando aqueles que ficaram na Terra só
lembram-se deles com saudade e amor, sem sofrimento e,
principalmente, sem ódio, mágoa ou rancor.
—A energia de ódio e mágoa também chega?
—Sim. Da mesma forma que esta que chegou para você te fez
bem, aquela que vem com dor, sofrimento, ódio e mágoa causa
muito mal.
—Quem terá me mandado essa luz?
—Não sei, mas poderemos verificar; você gostaria?
—Claro que sim.
—Vamos conversar com a Marli ou o Nivaldo, só eles saberão
como tirar a sua curiosidade.
Encontraram Marli na sala de Nivaldo. Estavam conversando,
quando Tânia e Fernanda entraram. Foram recebidas com
sorrisos.
—Fernanda — disse Nivaldo — estava falando a seu respeito.
Íamos pedir que viesse até aqui. Mas já que veio sem o convite,
deve ter algum motivo, posso saber qual é?
—Que bom que falavam sobre mim, mas o que falavam?
Espero que seja a respeito da promessa que me fizeram, de
revelar tudo que aconteceu na minha encarnação passada.
—Era sobre isso mesmo que falávamos, mas antes, sentem-se e
digam qual o motivo da sua presença aqui.
—Estávamos conversando eu e Tânia — disse Fernanda
enquanto sentavam-se — quando uma imensa bola de luz caiu
sobre mim.
Confesso que, a princípio, me assustei, mas depois me senti
muito bem. Tânia disse que aquela luz provinha de alguém que
estava pensando em mim com muito amor e saudade, sem
sofrimento. Que luz foi aquela?
—Luzes como essa chegam diariamente. Elas são, sim,
mensagens de amor, paz, saudade e o desejo de que aqueles a
quem elas foram dirigidas estejam bem e felizes.
—Quem me enviou?
—Não posso te responder de imediato, mas posso quase
adivinhar que foi a Marilda.
—A Marilda! Só ela?
—Não, todos os seus mandam, só que com dor e sofrimento,
por acreditarem que você cometeu realmente o suicídio.
Marilda é a única que não acredita, portanto sabe que você está
bem e sempre te manda pensamentos de amor e paz. Ainda
mais depois que começou a conhecer a doutrina.
—Ela está conhecendo? Nunca se interessou por nada!
— Tudo tem a sua hora. Agora, chegou a hora de Marilda
deixar de se preocupar só com o material e se preocupar um
pouco mais com o espírito: é o que está fazendo, e muito bem.
Ela foi uma grande aliada nossa para a sua recuperação.
—Ela, realmente, sempre foi minha amiga. Gostaria de fazer
algo para agradecer-lhe esses bons pensamentos.
—Para isso, só precisa mandar-lhe também pensamentos de
amor. Ela não verá a luz caindo, assim como aconteceu com
você, mas certamente a receberá e lhe fará muito bem.
Fernanda fechou os olhos, pensou firmemente em Marilda:
—Obrigada, minha amiga, por ter estado sempre ao meu lado,
mesmo nos meus momentos mais difíceis e, agora, por não
acreditar que cometi esse terrível pecado. Estou bem e
desejando que você também esteja e que tenha toda a
felicidade do mundo.
Enquanto Fernanda fazia isso, uma imensa esfera de luz saiu de
seu peito e sumiu no espaço.
Depois disso, ela abriu os olhos, dizendo preocupada:
—Será que consegui?
—Conseguiu, sim — disse Nivaldo sorrindo.
— Neste momento, esteja Marilda onde estiver, estará
recebendo uma dose de energia muito grande e se lembrará de
você. É assim que funciona; o amor não tem fronteiras, nem
distâncias. As pessoas trocam energias, mesmo sem saber ou
perceber.
— Estou me sentindo muito bem.
—Esse é o melhor remédio que há para todos nós. Mas agora,
já que está aqui, quer mesmo saber como foi a sua encarnação
anterior?
—É o que mais desejo.
—Talvez vá se surpreender — disse Nivaldo.
—Depois de ter descoberto que Antero me traiu a vida toda e
que Zuleica me matou, nada mais poderá me surpreender.
—Estou sentindo que ainda não conseguiu perdoar, apesar de
ter estado muito bem aqui, Fernanda.
—Desculpe, mas não consegui mesmo e acho que nunca
conseguirei. Foi muita traição.
—O perdão é algo que deve ser sincero e de coração. Não
esquecendo jamais que tudo tem a sua hora.
—Tenho me esforçado muito, mas não consigo. Sempre que
me lembro, uma onda de ódio cresce dentro de mim.
—Está bem, mas agora vamos até o auditório. Lá você assistirá a
um filme e talvez mude de idéia e entenda que o perdão foi, é e
sempre será a melhor solução.
—O filme que vou ver é igual ao que vi aquele homem
assistindo quando estava conhecendo tudo por aqui?
—Isso mesmo. Naquele dia, ele estava assistindo ao filme que o
interessava. Hoje, você vai assistir ao seu, vamos?
Levantaram-se, saíram do prédio e se encaminharam até o
auditório que estava vazio. Nivaldo apontou uma poltrona para
cada uma de suas acompanhantes, dizendo:
—Agora, Fernanda, procure ficar calma e não interromper.
Preferi conservar os nomes das pessoas, conforme você as
conhece hoje. Embora tudo isso tenha acontecido em outra
época e todos, então, tinham outros nomes.
Ela sorriu, estava ansiosa para ver, e Nivaldo, sabendo de sua
ansiedade, fez um sinal para alguém que ela não viu. A tela se
iluminou e apareceu um quarto imenso, com os móveis em
madeira escura e a decoração toda verde, com detalhes em
dourado. A cama era grande e tinha sobre ela um véu em verde
bem claro. O ambiente era luxuoso. Fernanda se vê diante de
um espelho e parecia feliz. Por uma porta entrou outra moça
bonita e com um vestido de festa azul-turquesa:
__Você está muito bonita, mas já está atrasada .Estão todos te
esperando, Fernanda!
—Sei disso, mas só faltam alguns retoques. Quero estar bem
bonita e que todas as atenções sejam voltadas para mim.
—Isso não será difícil, pois sempre foi e será a mais bonita de
nós três.
—Somos eu e a Marilda? — perguntou Fernanda, no presente e
assustada
—Estamos com roupas diferentes das que usamos agora! Mas
somos nós mesmas!
—Claro que são vocês! — disse Marli, sorrindo. — Só que em
outra época. Não queria saber como foi a sua última
encarnação? Não pode ficar interrompendo, apenas assista até o
final. Então, entenderá tudo que te aconteceu.
—Desculpe, mas é que não consegui me conter. Estamos muito
bonitas! Tem certeza que somos nós mesmas?
—Claro que sim, mas continue assistindo.
Fernanda, cada vez mais curiosa, se calou. Na tela, ela e Marilda
conversavam:
—Marilda tem muitos rapazes lá embaixo?
—Sim, Fernanda, sabe que sim. Todos da alta sociedade.
Vamos, minha irmã! Você está atrasando a festa! Afinal, você é
a aniversariante e nem sempre se faz dezoito anos.
—Estou bem mesmo?
—Claro que está! Vamos você está linda!
Saíram juntas e abraçadas. Seguiram por um corredor e
chegaram a uma escadaria em formato de caracol e forrada com
tapete vermelho. Do alto podia-se ver um imenso salão todo
enfeitado com camélias e lírios brancos. O ambiente era rico e
deslumbrante. Assim que Fernanda e Marilda surgiram no alto
da escada, todos os olhares se voltaram para elas, que, sorrindo,
desceram calmamente. Um senhor elegante se aproximou,
dizendo eufórico:
—Minha filha, você está linda.
Um pouco encabulada Fernanda disse:
—Obrigada, papai, e obrigada por esta linda festa.
—Você merece. Venha, estamos te esperando. Quero ser o
primeiro a dançar com você para que todos sintam inveja.
Ela sorriu e, assim que entrou no salão, a valsa começou a ser
tocada por uma orquestra que só estava esperando a chegada
dela para começar. Ela saiu dançando nos braços do pai, feliz.
Marilda se aproximou de uma outra moça que, como todos,
acompanhava os dois dançando, disse:
—Zuleica, ela está mesmo linda, não é?
—Está sim Marilda, mas não esqueça que ela sempre foi a mais
bonita de nós três.
—Pode ser, mas nós também não ficamos atrás. Somos também
muito bonitas.
Zuleica sorriu, confirmando com a cabeça, e perguntou:
—Onde está mamãe?"
—Está toda atrapalhada com os convidados. Você sabe que ela
não gosta de festas.Ela deve estar torcendo para a noite passar
depressa e tudo isso terminar.
—Ela sempre foi assim, mas olhe quem está chegando!
Marilda olhou para onde Zuleica apontava e viu Nivaldo
chegando acompanhado por outro rapaz desconhecido delas.
—Quem é aquele que está com Nivaldo?" — perguntou Marilda
espantada.
—Não o conheço, nunca o vi por aqui!
—Deve ser o irmão dele, estuda na França.
—Ele é muito bonito, Zuleica!
—É mesmo, muito mais que o Nivaldo.
—Vamos esperar que se aproximem... assim, a nossa
curiosidade será satisfeita.
—Senhoritas, boa noite, disse Nivaldo gentil.
Nivaldo cumprimentou Marilda, beijando-a na mão. Em
seguida, fez o mesmo com Zuleica. Depois, voltando-se para o
rapaz que o acompanhava, disse:
—Este é o meu irmão Antero, que estava estudando na França.
—Olhou para ele e disse:
— Estas são Marilda e Zuleica, duas pérolas da sociedade. A
outra é aquela que está dançando com o pai. Seu nome é
Fernanda.
Antero olhou primeiro para Fernanda, depois cumprimentou
Marilda e, quando ia beijar a mão de Zuleica, seus olhos se
encontraram.
No mesmo instante, sentiram o corpo todo estremecer, como
se fosse uma corrente elétrica passando por eles. Um pouco
constrangidos, tentando esconder um do outro o que estavam
sentindo, sorriram.
—Fernanda, como sempre, está muito bonita e parece feliz —
disse Nivaldo, sem perceber a reação dos dois.
— Ela é bonita — disse Marilda, — e está feliz. Sabe como ela
é. Apesar de estar fazendo dezoito anos, ainda parece uma
criança. Acredito que continuará sendo assim para sempre.
—Isso que a torna encantadora. Não querem dançar?
Marilda olhou para Zuleica e notou que ela estava um tanto
diferente do normal. Perguntou, sorrindo:
—Zuleica, você quer dançar?
—Quero... — respondeu um pouco desajeitada.
Nivaldo estendeu a mão para Marilda, Antero fez o mesmo
para Zuleica, saíram dançando.
Zuleica tremia muito e não conseguia coordenar os passos.
Por muitas vezes, pisou no pé de Antero, que se divertia muito.
Em dado momento ele disse:
—O meu irmão falou muito de vocês três e de como eram
bonitas. Mas acho que ele não conseguiu transmitir o quanto.
Ela sorriu e disse:
—De nós três, eu sou a menos bonita...
—Não acho. Ao contrário, a sua beleza é terna. Estou muito
impressionado, nunca senti o que estou sentindo agora.
Ela, tímida, não sabia o que dizer; estava confusa, mas feliz por
estar nos braços dele. A música parou e Fernanda caminhou
em direção a eles. Quando ela se aproximou, conversavam.
—Nivaldo! Estou feliz por ter vindo!
—Também estou Fernanda. Este é o meu irmão Antero, que
estava estudando na França e que acabou de chegar. Antero,
esta é Fernanda, outra pérola da casa.
—Muito prazer, senhorita!
Fernanda estendeu a mão, que ele beijou delicadamente.
—A senhorita é realmente muito bonita, muito mais do que
pensei que fosse.
—Obrigada. O senhor é muito gentil.
Sorriram e continuaram conversando. Fernanda também se
impressionou com ele, mas, por ser a aniversariante, teve que
se afastar.Antero e Zuleica dançaram durante o tempo todo.
Em dado momento ele a puxou para uma das sacadas que havia
em volta do salão, pegou em suas mãos, dizendo:
—Senhorita estou encantado com a sua beleza. Não sei o que
estou sentindo, mas a sua companhia me faz muito bem. Já
ouvi falar em amor à primeira vista. Não sei se o que estou
sentindo é amor, mas queria a sua permissão para pedir ao seu
pai licença para poder visitá-la.
Ela não sabia o que dizer, mas com a voz trêmula disse:
—Também estou sentindo algo diferente, algo que nunca senti
antes. Não sei se meu pai permitirá. O senhor teve uma
educação na Europa; ali, pelo que ouvi dizer, é diferente, mas
aqui as moças devem obediência aos seus pais. Meu pai tem
planos para nós e é ele, também, quem vai escolher os nossos
maridos.
—Na Europa também ainda existe isso. Mas, está mudando. Eu
não concordo com arranjos matrimoniais, pois acredito que
cada um deve ser responsável pela sua vida e escolher com
quem deve ficar. Mas os costumes são assim e precisamos
respeitá-los; mesmo assim, gostaria de tentar. Acredito que não
haverá empecilho, pois também pertenço a uma família rica e
poderosa, tanto quanto vocês. Além do mais, nossos pais são
amigos. Se a senhorita permitir, tentarei.
—Por mim está bem, e ficarei feliz se ele concordar.
—Quem está feliz com a sua resposta sou eu, mas vamos voltar
ao salão e dançar? A festa está linda e devemos aproveitar.
Ela sorriu, pegou no braço que ele lhe oferecia, foram para o
meio do salão e começaram a dançar.
Em um canto, sozinho, outro rapaz os observava. Não
conseguia disfarçar o ódio que estava sentindo por vê-los
dançando felizes. Uma moça se aproximou dele.
—Aristides, meu irmão, como está?
—Estou bem e exatamente no lugar em que devo estar. Com
ódio desse estranho que está com Zuleica!
—Você precisa tirar esses pensamentos que tem a respeito
dela. Sabe que o padrinho jamais concordará que ela se case
com você. Sabe também que ele já tem planos para as filhas.
—Sei disso, mas não acho justo. Eu a amo desde criança e
quero que ela seja minha esposa.
Fernanda, no presente, e que até aí assistia calada, não resistiu e
disse entusiasmada:
— Marli, Nivaldo! Vocês também estavam lá, viveram no
mesmo tempo que eu?
— Sim — disse Marli, sorrindo — vivemos juntos no mesmo
tempo. Continue assistindo. Tem ainda muito para ver.
Ela se ajeitou na poltrona e voltou sua atenção para a tela.
—Não sei o que fazer — Aristides falava.
—Não consigo tirar esse amor do meu peito.
—Tem que tirar meu irmão. Se não fizer isso, sofrerá para
sempre. Sabe bem que ela gosta de você como a um irmão.
Desde que os nossos pais morreram o padrinho, por ser o único
amigo e por não termos família, nos trouxe para a casa dele.
Criaram-nos com carinho, como se fôssemos seus filhos.
— Como se fôssemos, mas não somos Marli! Não temos direito
a coisa alguma que é deles. Não tenho dinheiro nem posição,
por isso não posso me atrever a sequer pensar em casar com
uma das suas filhas.
—Tem razão, mas existem outras moças que ficarão felizes em
se casar com você, Aristides!
—Não quero outra moça! Quero-a e conseguirei, pois, se ela
não for minha, não será de mais ninguém!
—Não diga isso, pense em mim. Se fizer alguma coisa que te
prejudique, eu também serei prejudicada, só tenho a você!
—Não haverá problema. Sabe que Nivaldo está interessado em
você e que o padrinho não se oporá, pois ele é também de
família rica e poderosa! Eu, sim, é que não conseguirei o que
mais quero,o amor da Zuleica. Ser feliz ao lado dela!
—Não sei mais o que te dizer , estou preocupada. Te amo,
você é o meu irmão. Só posso te pedir que, antes de tomar
qualquer atitude, pense bem nas consequências que poderá
ter...
Fernanda se aproximou deles.
—Olá, está tudo bem por aqui? Parecem nervosos.
—Está tudo bem. Só estamos conversando, Fernanda.
—Pelo rosto dos dois,parece que a conversa não está sendo
muito boa — disse, com ironia.
— Será que estão falando da Zuleica e daquele moço com
quem ela está dançando?
—É sobre isso mesmo que estamos falando — respondeu
Aristides, agressivo.
—Estão dançando há muito tempo!
—Acho que você deve esquecer Zuleica. Assim como eu e a
Marilda, ela te considera como a um irmão, Aristides.
Bem, preciso ir. Tenho que atender aos convidados.
Saiu, deixando os dois. Ao passar por Zuleica e Antero, que
dançavam e pareciam apaixonados, pensou:
Ele é realmente muito bonito; quando o cumprimentei não
notei, parece que está interessado nela..
A festa terminou. Os convidados foram embora e as irmãs,
apesar de cansadas, queriam comentar sobre tudo que
aconteceu naquela noite. Foram para o quarto de Fernanda,
que era o maior de todos. Depois de fazer muita birra, e por ser
a preferida do pai, ela conseguiu aquele quarto, que por direito
pertenceria a Marilda por ser a mais velha. No princípio,
Marilda brigou, mas aos poucos Fernanda foi conquistando a
sua amizade novamente, mas nunca deixando que elas, as
irmãs, esquecessem que naquela casa quem tinha o poder era
ela. Zuleica, embora não tivesse demonstrado para Antero,
estava exultante:
—Ele é maravilhoso, atencioso e parece que gostou realmente
de mim! Estou tão feliz! Ele disse que pedirá permissão ao papai
para me visitar.
—Fico feliz por você minha irmã, disse Marilda.
— Ele me parece um bom moço. Se for como o Nivaldo, sei
que te fará feliz. Falando em Nivaldo, onde está Marli?
—Se ela não está aqui — disse Fernanda debochando — deve
estar com ele. Não esqueçam que irão se casar em breve. Ela
teve muita sorte: apesar de não possuir fortuna ou pertencer a
uma boa família, conseguiu conquistar um rapaz como o
Nivaldo. Nunca gostei dela, sempre me pareceu ser fingida e
invejosa.
—Não fale assim, Fernanda — disse Zuleica, muito nervosa.
—Ela está aqui desde que era ainda uma criança.Fomos criadas
juntas, eu os considero como se fossem minha família, ela e o
Aristides. Você sabe que o papai e a mamãe, também.
—Pois eu, não. São dois estranhos que entraram na nossa casa e
hoje se comportam como um de nós. Você devia ter visto os
dois conversando e o ódio que o Aristides estava sentindo te
vendo dançar com Antero. Você sabe que ele sempre te amou.
—Não sei por que ele insiste nisso. Já conversamos muito a
esse respeito e sempre lhe disse que não o amava e que nunca
me casarei com ele.
—Ele não gosta de você — disse Fernanda, ainda debochando
— Ele sabe que não tem direito a coisa alguma da herança de
nossos pais e está querendo se casar com você somente para se
tornar um herdeiro.
—Nossa Fernanda — disse Marilda, nervosa. — Você está
sendo cruel! Sabemos que ele a ama desde muito tempo!
Acredita que Zuleica não tenha atributos para despertar o
amor? Apesar de não ser tão bonita quanto você, ela também é
linda! Isso foi provado hoje, pois um rapaz bonito como
Antero se impressionou com ela e não fez questão nenhuma de
esconder de todos. Não sei se percebeu, mas ele nem sequer
nos notou.
—Não percebi — disse, com ar de despeito —estava ocupada
atendendo aos convidados. Mas ele poderia estar brincando.
—Fernanda! Pare com isso! Não queira estragar a felicidade da
Zuleica com insinuações que não são verdadeiras. Ele disse que
conversará com papai, espero sinceramente que isso aconteça!
disse Fernanda furiosa.
—Eu também — disse Zuleica —pois, se não acontecer, serei a
mulher mais infeliz do mundo. O papai aceitará Antero. Ele
pertence a uma boa família e papai tem muitos negócios com o
pai dele. Não sei se é amor, mas não consigo esquecê-lo nem
por um minuto. A todo o momento o vejo diante de mim.
Aquele rosto, aquele sorriso. Será que estou amando mesmo,
de verdade?
—Está amando, sim — disse Marilda.
— Posso te dizer isso, pois é o mesmo que sinto em relação a
Júlio. Também não consigo esquecê-lo, nem por um minuto
sequer. Agora está na hora de dormirmos. Conversaremos mais
amanhã. Venha, Zuleica, vamos deixar a rainha dormir.
Levantaram-se da cama e saíram. Fernanda também se
levantou, foi até ao espelho, começou soltar os cabelos.
"Ele não pode estar apaixonado por Zuleica. Não pode ter
deixado de me notar. Como disse a Marilda, sou muito mais
bonita que as duas. Se ele não me notou, com certeza farei com
que me note. Ele é um bonito rapaz e bom partido, não
deixarei que fique com a Zuleica, aquela tonta.
Terminou de soltar os cabelos, passou sobre eles uma escova e
depois foi para a cama. Deitou-se. Fazia um esforço enorme
para lembrar-se do rosto de Antero, mas não conseguia. Pois na
realidade ela também não o havia notado.
—Está certo que também não o notei, mas a partir de agora
passarei a notar.
Marilda e Zuleica entraram no quarto de Zuleica. Dirigiram-se
para a cama. Marilda, ainda nervosa, disse:
—A Fernanda, às vezes, se torna insuportável! Parece que,
apesar de ter uma beleza invejável, de ter um pai que a ama
com predileção, ela sente inveja das coisas que conseguimos!
Lembra-se quando eu comecei namorar com o Júlio? Ela fez
tudo para nos separar, inventou uma porção de mentiras.
—Mas não adiantou. Vocês estão noivos e, assim que ele
terminar a faculdade se casará e será muito feliz, Marilda.
—Espero que sim. Ele se dedica tanto aos estudos, quer tanto
ser médico, que nem pôde comparecer hoje à festa, pois está
em provas e não poderia viajar. Eu o amo profundamente!
Assim como acredito que você também está amando Antero,
mas agora vamos dormir e esperar para ver o que acontece.
—Vamos, sim, mas sinto que vou demorar um pouco para
adormecer. Estou sentindo o toque das suas mãos e seu cheiro.
—Boa noite, e tenha bons sonhos, você merece.
Fernanda, no presente, e que a tudo assistia, ao ver a sua atitude
no passado, disse, um pouco nervosa e assustada:
—Nivaldo, essa que vocês estão mostrando não sou eu! Eu não
sou assim! Vivi para a minha casa e para o meu marido!
Procurei ser uma pessoa de bem, nunca senti inveja de
ninguém nem quis nada que não me pertencesse, Nivaldo...
—Sabemos disso. Graças a Deus, você mudou, mas você era
essa mesma que está sendo mostrada. Para ganhar tempo, vou
te contar o que aconteceu depois dessa noite. Antero começou
a frequentar a sua casa, seu pai permitiu.
Você, não se conformando com a felicidade de Zuleica, se
insinuou muitas vezes para ele, tentando fazer com que ele se
apaixonasse. Mas tudo foi em vão, ele amava realmente a
Zuleica e por isso fingia não entender as suas reais intenções.
Eles ficaram noivos e, um ano depois, se casaram. O casamento
teve uma festa suntuosa. Seu pai fazia questão que todos
soubessem que ele tinha muito dinheiro e, por consequência,
muito poder. Fazia questão de ser respeitado pelas pessoas.
Zuleica estava linda, não só devido ao rico vestido de noiva que
usou, mas pela felicidade que transmitia em seus olhos. Você
estava à distância olhando e invejando a felicidade dela, quando
viu, em um canto, Aristides, que também a observava;
aproximou-se e percebeu que ele estava se remoendo de ódio.
A tela se iluminou novamente e apareceu aquele mesmo salão,
todo iluminado e decorado. Fernanda, no passado, aproximou-
se de Aristides e disse com ironia nos olhos e na voz:
—Parece que as suas esperanças terminaram. Ela se casou com
outro, Aristides, e você a perdeu para sempre...
—Aristides estava muito nervoso — Nivaldo continuou
falando. —Por isso levou alguns minutos para responder:
—Infelizmente, você tem razão, Fernanda.
—O que pretende fazer, Aristides?
__ Não sei, mas acredito que não tenho mais o que fazer.
Agora a perdi para sempre. Só resta me conformar.
—Para sempre é muito tempo. Quem sabe não aconteça algo
que a traga de volta para você, e assim poderão ser felizes!
—O que poderia acontecer? Está tudo terminado!
—Quem sabe... ele morrer...
—O que está dizendo? Como morrer?
—Um acidente sempre pode acontecer, Aristides...
—O que está insinuando? Que eu o mate? Está louca! Nunca
farei isso, por mais que a ame!
—Nunca também é muito tempo. Se a ama de verdade, pensará
nisso com carinho...
—Após dizer isso, você se afastou, Fernanda. Aristides ficou
olhando você e Zuleica, que, feliz, dançava nos braços de
Antero.
Uma onda de ódio tomou conta de todo o seu ser. Aristides
procurou tirar aquelas idéias da cabeça, se afastou e foi para o
seu quarto. A festa terminou. Zuleica e Antero, para desespero
de Aristides e o seu, ficaram morando naquela casa.
Você, Fernanda, ficava, cada vez mais, irritada com a felicidade
deles. Você, que a princípio queria apenas tirar o namorado da
sua irmã, com o tempo e diante da recusa dele, e da felicidade
de Zuleica, julgou-se apaixonada por Antero e não se
conformava por tê-lo perdido para ela. Ficava pensando, todo o
tempo, em uma maneira de separá-los, mas não encontrava.
Um ano depois do casamento de Zuleica, com uma grande
festa, eu e Marli, e Marilda e Júlio, nos casamos e fomos morar
em nossas casas. O tempo foi passando.
Ia fazer dois anos que eles estavam casados, não tinham tido
filhos, pois Tânia ainda estava sendo preparada para renascer,
como filha deles. Ela tinha um trabalho importante para fazer:
lutaria junto dos demais abolicionistas pela liberdade dos
escravos.
Quando Tânia ficou pronta e Zuleica descobriu que estava
esperando um filho, a felicidade foi completa. Seu pai ficou
feliz, pois seria o seu primeiro neto. Ele nem queria pensar na
possibilidade de ter uma neta. Havia tido três filhas, que amava,
mas nunca se conformou por não ter tido um filho para que o
seu nome seguisse adiante. Todos ficaram felizes, menos você,
pois, embora houvessem aparecido muitos pretendentes, você
não aceitou nenhum e convenceu seu pai a também não aceitá-
los. No fundo, ele te amava de uma maneira obsessiva e não
queria te ver casada com ninguém. Por isso, ficava feliz
quando você recusava um pretendente. Agora, com a criança
que iria nascer você ficou com mais ódio de Zuleica e da sua
felicidade:
"Essa criança não nascerá! Não permitirei!''
—Você ia ser a minha sobrinha, Tânia?
—Ia não, fui. Você não se lembra Fernanda?
—Não, tudo que estou vendo está me parecendo ser a história
de outra pessoa.
—Mas é a sua mesmo — disse Nivaldo — mas, vamos
continuar. A felicidade deles cada vez mais a irritava. Aristides
também não se conformava de ter perdido Zuleica e você se
aproveitou disso. Então, começou a tentar convencê-lo:
—Aristides sei que está sofrendo muito; eu também, pois amo
Antero perdidamente. Precisamos encontrar uma maneira de
matá-lo. Assim, Zuleica acabará te aceitando, e eu, por minha
vez, se não puder ficar com ele, não quero que fique com ela.
Não suporto ver a felicidade deles!
—Você dizia isso para Aristides — falou Nivaldo — mas na
realidade queria que quem morresse fosse Zuleica, pois ela,
além de ter o amor de Antero, trazia agora, dentro de si, um
filho dele e isso você, Fernanda, não poderia suportar. Uma
noite, aproximou-se de Aristides, que continuava com muita
raiva e ciúmes:
—Aristides — disse sussurrando —, descobri uma maneira de
você matar o Antero.
— Como? Não quero ser preso.
—Se fizer da maneira como vou te dizer, isso não vai
acontecer, e você ficará livre para conquistar Zuleica.
— Como?
—Percebi que, todas as vezes que eles saem de carruagem, ela
sempre senta do lado direito do banco. Se você ficar escondido
do lado esquerdo, poderá atirar cruzado, e com certeza irá
acertá-lo. Depois, sozinha, triste e esperando um filho, Zuleica
ficará feliz em encontrar alguém que se case com ela. Meu pai
também não se oporá, pois não vai querer uma filha sem
marido. Ele te conhece e sabe que você é um bom rapaz e que
poderá fazer Zuleica feliz. Essa é a única chance de você ser
feliz.
—Como vou fazer isso? Alguém pode me ver atirando; até
mesmo o cocheiro, se me vir, me reconhecerá!
—Todas as quartas-feiras, eles vão jantar na casa de Marli e de
Nivaldo.A carruagem é obrigada a passar por aquela rua, onde
não tem casa ou ninguém por perto. Na rua tem muitas árvores
e, entre elas, uma com muitos galhos e folhas. Sempre que eles
saem, já está anoitecendo. Você poderá esconder-se e, quando
a carruagem passar, você atira no lado direito e, fatalmente,
atingirá Antero. O cocheiro ficará tão desesperado, que não vai
querer ficar procurando quem atirou. Ele vai querer socorrer
Antero. Você fica ali, escondido no meio da árvore, até eles
irem embora. Depois, volta para casa e fica esperando. Quando
a notícia chegar, assim como eu, você deve ficar desesperado.
—Não sei não, e se não der certo? Se o cocheiro ou a Zuleica
resolverem me procurar e me acharem?
—Você acha que eles irão se preocupar com isso? Estarão mais
interessados em salvar a vida da Zuleica. Não esqueça que o tiro
tem que ser certeiro e só poderá dar um, pois, se errar, estará
perdido. Antero e o cocheiro ouvirão e, aí sim, irão atrás de
quem atirou e certamente te encontrarão."
—No exército, me especializei em tiro. Não errarei!
—Está bem, então fica para a próxima quarta-feira.
—Meu Deus — disse Fernanda no presente e chorando —, eu
fiz isso mesmo! Estou me lembrando! Fiz mesmo, Marli!
—Infelizmente fez — disse Marli —, mas já pagou por tudo
isso; quer continuar vendo? Podemos parar.
—Não, Tânia, você disse que falhou na sua última encarnação.
Quero saber por quê. Estou me lembrando, mas não de tudo.
Não sei o que se passou depois.
—Está bem — disse Nivaldo — vamos continuar.
Você disse aquilo para Aristides, mas era mentira. Na realidade,
você sabia que quem viajava do lado direito era Antero. A sua
real intenção era que Aristides, ao atirar, matasse Zuleica e a
criança que estava para nascer. Pois assim você ficaria com
Antero. Imaginava que ele, sozinho, sem a mulher que amava
e o filho que esperava, ficaria triste o suficiente para aceitar a
sua atenção e o seu amor. Era sábado quando combinaram tudo
e Aristides ficou esperando ansioso o dia chegar. Na quarta-
feira, quando Zuleica e Antero se prepararam para sair, você se
despediu, como sempre, beijando o rosto de Zuleica. O beijo da
traição já aconteceu antes e acontecerá muitas vezes.
Nivaldo disse isso com dor. Fernanda entendeu o que ele quis
dizer, baixou a cabeça e, com a mão, tentou secar a lágrima que
corria por seu rosto. Ele continuou.
—Na quarta-feira seguinte, bem antes da hora, Aristides foi até
a árvore; olhou seus galhos, subiu e ficou escondido em um
deles, do lado contrário ao que julgava que Antero estaria
sentado. Assim que a carruagem passou, ele atirou e ouviu um
grito. O cocheiro parou, desceu e correu para ver se alguém
havia sido atingido. Depois voltou desesperado para frente,
chicoteou os cavalos e saiu em disparada. Aristides, nervoso e
já arrependido, tremia muito. Deixou passar alguns minutos,
depois desceu da árvore e passou por um rio que corria ali
perto. Por cima da ponte, jogou a garrucha que havia usado.
Aristides sabia que ali ninguém a encontraria, pois o rio era
fundo. Além disso, ninguém sabia que ele possuía uma arma.
Foi para casa. Assim que entrou, viu que você, Fernanda,
estava sentada ao lado de seu pai e fingia bordar.
Você olhou para ele, que confirmou com a cabeça.
Intimamente, você sorriu, sabia que agora o caminho estava
livre para poder, finalmente, viver o seu grande amor. Ficou ali
até que Zefinha, a escrava que havia criado vocês três e que as
amava como se fossem suas filhas, entrou na sala, avisando que
o jantar já estava pronto. Você e seu pai se levantaram e foram
jantar. Aristides, também os acompanhou. Durante todo o
tempo em que estiveram jantando, evitaram se olhar. Estavam
terminando de jantar, quando ouviram alguém batendo na
porta. Vocês já sabiam do que se tratava. Jeremias, que era
marido de Zefinha e que fazia às vezes de mordomo, foi abrir a
porta e por ela entrou o cocheiro, desesperado. Seu pai se
assustou, perguntou:
—O que aconteceu, homem? Por que está assim?
—Alguém atirou na gente, lá naquela rua que não tem nada, só
árvores. O senhor Antero morreu.
— Como? O que está dizendo?! Quem fez isso?
—Não sei senhor, quando a menina Zuleica viu o marido todo
ensanguentado, não me deixou procurar quem tinha atirado e,
desesperada, pediu que eu fosse rápido para o hospital. Os
cavalos correram o mais que conseguiram, mas não adiantou;
antes da gente chegar ao hospital, o senhor Antero morreu.
—Não pode ser! Quem faria isso? Nem ele nem eu temos
inimigos! Nunca tivemos!
—Também não sei.
—Meu Deus do céu! Zuleica, onde está?
—Ficou lá no hospital. Não quis sair do lado do marido.
—Você, Fernanda — continuou Nivaldo — que estava em pé,
sentiu o chão sumir sob seus pés, ficou branca como cera e
desmaiou. Aristides não entendeu aquele desmaio. Afinal, sabia
que aquilo aconteceria e julgou que você estivesse fingindo.
Chamou Zefinha, que veio com uma garrafa de vinagre e
esfregou em seu rosto, mãos e pés. Aos poucos, você foi
recobrando a razão. Ao perceber o que havia acontecido você
começou a chorar desesperadamente. Antero trocou de lugar
com Zuleica, por isso morreu e você tinha sido a culpada.
Você queria que Zuleica morresse para ficar com Antero e
quem morreu foi ele. Como se diz, o feitiço virou contra o
feiticeiro. Seu pai, juntamente com Aristides e o cocheiro, foi
até o hospital.
Quando chegaram, encontraram Zuleica, que chorava sem
parar. O enterro foi feito. Zuleica entrou em uma depressão
profunda. Para ela, a vida tinha terminado com a morte de
Antero. Marilda e Marli ficaram ao lado dela e foram
importantes, no sentindo de fazer com que ela se lembrasse
que estava esperando um filho e que dedicasse sua vida a ele.
Com o tempo, Zuleica foi se
acalmando e esperou, com ansiedade, o nascimento da
criança. Você se tornou triste e foi entendendo o terrível erro
que cometeu; tornou-se uma pessoa amarga. Não restou nada
daquela menina bonita e feliz. Aristides procurou se aproximar
de Zuleica, mas ela não lhe deu chance. Falava que, para ela,
ele continuava sendo seu irmão.
Ao ouvir aquilo, ele foi para o quarto, chorando:
"Não adiantou nada o que fiz. Ela nunca ficará ao meu lado.
Matei um homem e hoje sei que não devia ter feito. Já que não
poderei ficar com ela, prefiro morrer."
— Foi até a sala de armas de seu pai, Fernanda — Nivaldo
continuou — pegou uma das garruchas, voltou para o quarto e
atirou na cabeça. Aristides morreu na hora. Usando o seu
direito de escolha, cometeu o maior dos erros, o suicídio.
Ninguém entendeu o motivo daquele ato desesperado. Só você,
Fernanda, sabia o que realmente havia acontecido, mas ficou
calada.
Enquanto as cenas iam passando na tela e Nivaldo falava,
Fernanda ia se encolhendo cada vez mais na poltrona. Estava
triste e envergonhada, não querendo acreditar nas imagens que
via e no que ele falava.
Na tela, apareceu Zuleica dando à luz. Todos corriam pela casa.
Zefinha, ajudada por outra escrava, atendia Zuleica.
Finalmente, a criança nasceu. Fernanda estava do lado de fora
do quarto, junto com o pai. Quando ouviram o choro da
criança, sorriram.
—Nasceu! Nasceu, é uma menina! — Zefinha saiu do quarto,
dizendo isso feliz. Seu pai, Fernanda, começou a chorar de
alegria — Nivaldo continuou falando.
—Você se afastou e foi para o seu quarto, onde também
chorou, mas de revolta e ódio.
"Nasceu a filha dele e eu estou sozinha. Zuleica, apesar de tudo,
venceu! Eu a odeio e não vou perdoá-la nunca por ter me
tirado o homem a quem eu amava tanto."
—Você, Fernanda, estava com tanto ódio e ciúmes da sua irmã,
que não percebia que na realidade, você nunca o amou; apenas
não suportou a idéia de que um homem bonito como ele não
havia te notado e escolheu a sua irmã. Apesar de saber que era
e sempre seria mais bonita do que ela. Tudo que fez foi movida
por inveja e por ciúmes.
—Não posso acreditar Nivaldo!
— Agora Fernanda chorava desesperada — Eu não posso ter
feito isso! Não posso ter sido tão má! Sou totalmente diferente!
Jamais faria!
—Não se culpe; apesar de toda a maldade que cometeu Deus
nunca te abandonou. Mas não terminou aí, muito ainda iria
acontecer. Com o nascimento da Tânia, a paz pareceu voltar
àquela casa. Zuleica, embora se dedicasse à filha, não deixava
de pensar em Antero e foi ficando cada vez mais triste, apesar
dos esforços da Marilda e da Marli.
Quando Tânia completou oito anos, Zuleica contraiu
tuberculose e, apesar de todos os esforços, ela morreu. Foi
outro choque para seu pai. Marilda e Marli sabiam que você
não estava bem, pois ainda continuava triste e amarga.
Quiseram levar Tânia para viver com uma delas, mas seu pai
não aceitou, ele amava muito aquela menina.
Tânia continuou com vocês, mas era uma menina triste. Apesar
do amor de seu pai, ele era um tanto calado e você não lhe
dava a mínima atenção. Só quem cuidava dela com amor era
Zefinha. Quando Tânia ia fazer quinze anos, seu pai também
morreu. A dor dela foi imensa, pois sabia que não teria mais
ninguém para amá-la.
Você ficou cada dia mais amarga, e a maltratava cada vez mais.
Agora, você, Fernanda, sem o seu pai por perto, podia
demonstrar o ódio que sentia por ela, por ser a filha do homem
que julgou amar e da irmã a quem invejava e odiava. Tânia, que
várias vezes, em muitas vidas, praticou o suicídio, nessa
também não resistiu ao apelo e, por falta de amor, carinho e
proteção, também sucumbiu: enforcou-se em uma árvore e
outra vez desperdiçou uma encarnação.
Fernanda, no presente, olhou para Tânia, que chorava:
—Perdão, Tânia, por todo o sofrimento que te causei. Perdão
por não ter sido a tia que deveria ser.
Tânia levantou-se da poltrona em que estava sentada,
aproximou-se de Fernanda, abraçaram-se e beijaram-se.
—Não tenho o que te perdoar Fernanda. O erro foi todo meu.
Apesar de tudo, eu deveria ter lutado contra o meu desejo de
suicídio. O suicida sempre encontra um motivo para cometer
esse erro. Por isso lhe, disse que, ao voltar dessa vez, eu tinha a
esperança em Deus, de não fracassar novamente, mas não
consegui.
—Perdão, Tânia. Se eu tivesse te ajudado, talvez você não
tivesse feito isso.
—O "se" é relativo. Aprendi que todos somos espíritos livres e,
por isso mesmo, responsável por tudo que nos acontece.
—Fernanda — continuou Nivaldo — ela tem razão no que diz.
Geralmente, tudo que nos acontece na vida física ou espiritual
é sempre de nossa responsabilidade. Cada um colhe o que
planta, embora, se usássemos o perdão, que é o antídoto para
todos os males, muito seria evitado. Aqueles que foram
prejudicados poderão exigir a justiça de Deus, e ela tem que ser
cumprida. Tânia foi, é e será responsável por sua vida. Ela, só
ela, poderá lutar contra suas fraquezas. Aconteça o que
acontecer, o suicídio nunca será solução, e sim um
agravamento da pena.
—Estou começando a entender. Mas o que aconteceu comigo?
Qual foi o meu merecido castigo, Nivaldo?
—Como já disse você se tornou cada vez mais amarga.
Com a morte da Tânia, piorou muito, isolou-se naquela casa e
não queria receber ninguém. Você ficou presa aos seus
pensamentos e não conseguia tirar da memória o crime que
havia praticado. Suas irmãs tentaram te ajudar, mas você não
permitiu. Morreu com quase setenta anos, sozinha, sentindo
que não havia construído coisa alguma na vida. Não se casou,
não teve filhos, não participou de nada perante a sociedade.
Apenas viveu e, infelizmente, perdeu uma encarnação, que é
tão desejada por muitos. Como todos nós já havíamos voltado e
como não recebia visitas, levou algum tempo para ser
encontrada.
Foi enterrada por estranhos. Por pessoas que não conheciam a
sua história e que se comoveram ao vê-la morrer sozinha e
abandonada.
Enquanto Nivaldo falava, na tela aparecia o corpo de Fernanda
jogado na cama, já em estado de putrefação. Logo depois,
algumas pessoas, condoídas, levaram-na para que fosse
enterrada.
Fernanda viu o momento em que seu espírito saiu do corpo e
foi levado por Aristides que, apesar de estar um pouco
diferente daquele que ela se lembrava, pôde reconhecê-lo.
Estava tão apavorada, que não conseguia falar.
Nivaldo continuou, enquanto as imagens apareciam na tela.
—Quando você morreu, Aristides estava à sua espera. Nós, aqui
no plano, não pudemos evitar. Vocês estavam ligados pelo
mesmo crime.
Aristides desapareceu com você. Tentamos te encontrar, mas
foi impossível. Existem lugares em que nem mesmo nós
podemos chegar sem que haja um motivo justo. Você estava
colhendo aquilo que havia plantado. Escapou da justiça dos
homens, pois a morte do Antero nunca foi solucionada,
portanto você nunca respondeu por ela. Mas da justiça de Deus
não teria como escapar.
Ficou vagando por muito tempo, sofrendo tormentos jamais
imaginados. Via e revia Antero morto e o seu corpo
putrificado. Foi visitada por seres horrendos, que te
apavoravam. Tentava fugir, mas, por mais que quisesse, não
conseguia. Viveu em constante estado de terror.
Fernanda, embora envergonhada, assustada e sofrendo muito,
conseguiu perguntar, gaguejando:
—O que aconteceu com Zuleica e Antero?
—Zuleica, quando chegou aqui, foi recebida por nós e tratada
durante muito tempo. Quando ela estava recuperada e sabendo
que estava morta, perguntou por Antero.
Embora ele estivesse ao seu lado durante todo o tempo, ela não
o havia visto. Eles se encontraram e fizeram juras de amor.
Assim como aconteceu com você e acontece com todos, ela
também quis saber o que havia acontecido com Antero, quem
o havia matado e por quê. Assim como está acontecendo hoje
com você, ela foi trazida para esta mesma sala e assistiu a este
mesmo filme.
—Não! Não fizeram isso! — gritou Fernanda. — Ela deve ter
me odiado, da mesma maneira que eu estou me odiando!
—Adiamos o máximo que pudemos, mas chegou uma hora em
que teve que ser mostrado. Realmente, assim como você, ela se
revoltou e queria a qualquer custo fazer com que você fosse
desmascarada, presa e condenada. Antero, que já havia passado
por todo esse mesmo processo, convenceu-a de que não valia à
pena, que ela precisava perdoar e deixar que a justiça de Deus
se encarregasse do resto. Ela não se conformou, mas depois de
muita conversa aceitou. Quis procurar Aristides, mas não o
encontraram. Antero e Zuleica não queriam te procurar.
—Não podemos fazer isso — disse Marilda.
—Ela é nossa irmã. Não poderemos abandoná-la. Precisamos
pedir com fervor para que ela se arrependa e assim possamos
ajudá-la.
—Podemos até fazer isso por Fernanda, Marilda, mas o que
quero mesmo é encontrar Tânia. Precisamos procurá-la. Ela já
sofreu muito, foi apenas uma vítima.
—Não, Zuleica — disse Marilda — ninguém é vítima. Tânia foi
para a Terra com uma missão. Sabia que não poderia mais se
matar. Fracassou, não conseguimos evitar, ela teve que passar
algum tempo no vale, não sabemos se o tempo já terminou.
Mas tem razão, precisamos encontrar uma maneira de ajudá-la.
—Daquele dia em diante, Fernanda, ficamos pedindo uma
oportunidade de ajudar vocês duas e Aristides. Mandávamos
luzes, como aquela que você viu hoje. Quando a luz saía daqui,
era imensa, mas, ao atravessar a densa energia onde vocês
estavam, chegava fraca. Mesmo assim não desistimos. Sabíamos
que, na hora certa, a luz conseguiria atravessar a energia e
chegar até vocês.
Estávamos um dia conversando, quando chegou até nós uma
luz fraca. Sabíamos que ela vinha de um de vocês, mas não
sabíamos de quem. Ficamos eufóricos, fomos conversar com
Adriano, que é o responsável por todos os que estão nos
diversos vales de sofrimento. Ele se prontificou a nos
acompanhar enquanto seguíamos a luz e, juntamente com
alguns outros, também acostumados a andar por aqueles
caminhos, acompanhamos aquela luz fraca. Estávamos
protegidos por uma corrente magnética. Por causa dela não
enxergávamos o que acontecia à nossa volta, só o caminho que
deveríamos seguir. Ouvimos os lamentos de dor, medo e
sofrimento. Depois de caminharmos com muita dificuldade,
chegamos ao final da luz. Lá, encontramos Tânia, que corria de
um lado para outro, chorava e dizia:
—Mamãe! Onde a senhora está? Estou com medo, preciso da
senhora! Venha me buscar, mamãe! Por que a senhora me
abandonou? Venha me buscar!
—Todos nos emocionamos ao vermos aquela menina ali
sozinha e chorando daquela maneira. Zuleica foi a primeira que
correu para ela, segurou-a e fez com que se sentasse ,depois se
sentou ao seu lado, segurou a sua cabeça e trouxe-a para junto
de si.
Enquanto a beijava e abraçava, dizia, também chorando:
—Estou aqui, minha filha querida. Perdão por ter te
abandonado; eu te amo muito! Eu e seu pai estamos aqui,
viemos te buscar e nunca mais te abandonaremos.
—Tânia ouviu aquela voz e sentiu os abraços e beijos. Abriu os
olhos, nos viu a todos, principalmente Zuleica, a quem havia
conhecido muito pouco, mas de quem nunca se esqueceu. Não
conseguiu falar, apenas sorriu e desmaiou. Antero correu para
ela, também a abraçou e pegou no colo. Todos agradeceram a
Deus por aquele momento. Antero, com Tânia nos braços,
Zuleica e todos nós, chorando e emocionados, tomamos o
caminho de volta.
Finalmente a encontramos. Agora, ela estava protegida de todo
o mal — explicou Nivaldo.
A tela se apagou. Todos que estavam naquela sala choraram.
Muito mais Fernanda, por saber que ela havia sido a causadora
de todo aquele sofrimento. Ela não conseguia falar. A dor, o
sofrimento, a vergonha e o arrependimento que sentia eram
imensos. Permaneceu muito tempo de cabeça baixa, sem
coragem de encará-los. Até que Nivaldo disse:
—Fernanda, foi isso o que aconteceu.
Fernanda levantou os olhos, encarou um a um e disse:
—Estou profundamente envergonhada por tudo que fiz. Não
sei o que dizer ou fazer. Devo ter sofrido um castigo, mas até
agora eu não sei o que me aconteceu. Mostraram a minha
morte e o Aristides me levando embora; o que aconteceu
depois?
A tela voltou a se iluminar. Nela apareceram todos aqueles que
haviam partido em busca da luz: Antero trazia Tânia
adormecida nos braços. Zuleica, ao seu lado, chorava, mas não
de desespero, e sim de felicidade e paz. Levaram Tânia para um
quarto, acomodaram-na em uma cama e todos ficaram ao seu
lado, jogando sobre ela focos de luzes coloridas.
—Por vários meses, continuamos o tratamento. Antero e
Zuleica foram os que mais se dedicaram, até que, finalmente,
Tânia começou a se recuperar e ficou totalmente curada.
Agora, ela já estava pronta para rever o que havia feito e
planejar o que faria em seguida. Foi quando a nossa
preocupação em relação a ela terminou.
Zuleica não se conformava em saber que você, Fernanda,
poderia estar naquele lugar horrível, onde encontramos Tânia.
Tanto insistiu que começamos também a vibrar, orar e pedir
muito para que, assim como aconteceu com Tânia, surgisse
uma luz que nos conduzisse até você. Passou muito tempo até
que, finalmente, um foco brilhante de luz surgiu. Não
tínhamos certeza, mas desejávamos que aquela luz fosse à
resposta que tanto esperávamos. Novamente, com o auxílio de
Adriano, seguimos a luz. Como aconteceu com Tânia, a luz, ao
penetrar nas trevas, tornou-se fraca, mas não desistimos até
chegarmos ao ponto em que ela começava.
Enquanto Nivaldo falava, as imagens passavam na tela. No final
da luz, encontraram Fernanda, que chorava muito. Por seus
pensamentos, revia tudo que havia feito. Via monstros que
eram criados por sua própria mente. Tentava se esconder, mas
sem conseguir gritava desesperada.
Ao vê-la naquela situação, nenhum deles conseguiu evitar se
emocionar e de se condoer. Zuleica, chorando muito, disse:
—Sei que Fernanda me fez muito mal, mas não consigo deixar
de pensar que ela é minha irmã, e é aquela mesma que cresceu
ao meu lado e a quem eu tanto amei. Temos que encontrar
uma maneira de ajudá-la. Ela não pode continuar aqui.
—Foi para isso que viemos — disse Nivaldo.
— No momento em que a luz chegou até nós, foi para nos
dizer que o tempo havia terminado e que ela poderia ser
resgatada. Vamos levá-la conosco. Ela terá novas
oportunidades.
Aproximaram-se, mas Fernanda, assim que os viu chegando
perto, apavorou-se ainda mais e começou a correr alucinada e
gritando, julgando serem mais monstros que se aproximavam.
Zuleica tentou falar com ela:
—Fernanda sou eu, a Zuleica, viemos aqui para te levar para
um lugar bom e feliz.
Fernanda, com o rosto coberto pelas mãos, olhou somente
pelos vãos de seus dedos. Aflita e gritando, não conseguia
esconder o medo que estava sentindo:
—É mentira! Você não é Zuleica! Está aqui para me levar para
junto daqueles monstros horrendos! Vá embora! Não se
aproxime! Sei que está querendo me enganar!
Vendo a reação inesperada dela, todos pararam onde estavam.
Marilda se aproximou e, emocionada, disse:
—Fernanda sou eu, a Marilda. Também estou aqui. Estamos
todos. Sei que está com razão de ter medo. Sei que também
sabe todo o mal que causou, mas o tempo de sofrimento
terminou. Sou sua irmã, aquela que sempre esteve ao seu lado e
que sempre estará. Nunca menti e não mentiria agora. Com a
graça de Deus, conseguimos te encontrar. Venha, minha irmã,
venha para os meus braços e sentirá o quanto te amo.
Fernanda deixou aparecer o outro lado do rosto — Nivaldo
continuou falando. — Estava envelhecida, com sombras pretas
em volta dos olhos. Não lembrava, nem de longe, aquela
menina bonita que fora. Marilda aproximou-se mais. Bem
devagar, segurou sua mão. Aos poucos, foi subindo as mãos e
tocando nos seus braços, até que, finalmente, te trouxe para
junto do peito. Emocionada, dizia:
—Fernanda, o momento de desespero passou. Você esteve
aqui por um longo tempo, pôde refletir sobre tudo que fez.
Agora irá conosco, que te amamos, e ficará bem.
__Você começou a olhar um a um. Baixava os olhos, talvez por
vergonha, não sabemos, mas isso não nos importava. Você
estava ali ao alcance dos nossos braços e com um futuro, quem
sabe, melhor pela frente.
Te trouxemos para cá, ficou sob os cuidados de Marli, Marilda e
Zuleica por mais um longo tempo.
Fernanda olhou para eles com um sorriso de gratidão. Sabia
que, se estava ali, sentindo-se protegida, era porque de alguma
maneira eles se preocuparam com ela e a amaram.
— Foi demorada a sua cura — disse Marli, para que Fernanda
não ficasse envergonhada —, mas conseguimos. Finalmente
todos estavam preparados para voltar.
— Por que desta vez também não deu certo, Nivaldo?
— Em uma reunião com todos os presentes e mais alguns
amigos e nossos conselheiros ficaram decididos que nos
reencontraríamos novamente. Não mais na mesma família,
pois, além de tudo que aconteceu cada um de nós teria que
prosseguir com os nossos próprios resgates e a busca do
conhecimento. Zuleica e Antero decidiram que se
encontrariam, casariam e seguiriam a vida, como teria sido
antes de você os interromper. Eu e Marli ficaríamos aqui, pois
tínhamos um trabalho para fazer que nos tomaria muito
tempo, mas mesmo assim procuraríamos ajudá-los nos
momentos difíceis. Marilda e Júlio demorariam um pouco para
se encontrar, pois ela vivera uma vida submissa, sem reclamar
nem lutar por aquilo que achava certo. Desejava e precisava
provar a si mesma que poderia vencer sozinha. Júlio, apesar de
ter tido uma encarnação relativamente boa, contraiu algumas
dívidas que precisava resgatar. Se casaria, teria dois filhos e só
depois poderia ser feliz nos braços de Marilda. Você, por ter
feito tanto mal, pediu, para na próxima encarnação, viver
sozinha, somente ajudando as pessoas. Tânia, por ter sido um
espírito que já havia praticado o suicídio muitas vezes,
precisava de mais um bom tempo para se preparar e tentar,
dessa vez, escapar a essa tentação. Seria a neta de Antero e de
Zuleica, onde teria muito amor e proteção, para não ter
motivos de incorrer na mesma falha. Outros, nossos amigos,
iriam para ajudar; alguns como amigos, outros como inimigos,
mas sempre com um único desejo: o crescimento e
aprimoramento de todos.
—Já que estava tudo bem planejado, por que não deu certo?
Perguntou Fernanda, curiosa.
—Quando estamos aqui, conhecemos as nossas falhas, sabemos
o que precisamos fazer para resgatarmos e enriquecermos o
nosso espírito. Por isso escolhemos a maneira como viveremos
no corpo físico, sabendo também que teremos de passar pelas
mesmas situações nas quais falhamos e tentar vencê-las.
Aqui, nos propomos a fazer o melhor possível para que
consigamos superar e vencer. Sabemos que, se conseguirmos,
teremos caminhado alguns passos. Mas, ao chegarmos lá, o
esquecimento nos é forçado, para que possamos realmente
lutar contra essas mesmas falhas e vencer.
—Por que acontece o esquecimento? — perguntou Fernanda.
— Seria muito mais fácil se todos se lembrassem. Aí, sim,
conseguiriam evitar cometer os mesmos fracassos.
—Mas não haveria mérito algum. Além do mais, conhecendo o
passado, ninguém suportaria viver e conviver na mesma família
ou no mesmo círculo de amigos com outro alguém que lhes
tivesse feito mal. Desconhecendo o passado, há sempre uma
melhor chance de reconciliação. Mas, como eu dizia, ao
chegarmos no plano físico com o esquecimento, quando as
mesmas situações surgem, alguns conseguem superá-las, outros
não. Foi o que aconteceu com você, Fernanda. Ao conhecer
Antero, aquele amor doentio que julgava sentir por ele aflorou,
quis conquistá-lo de qualquer maneira. Primeiro tentou
envolvê-lo com ternura e carinho, mas logo percebeu que não
adiantava, pois ele só te queria como amiga. Você,
inconformada, foi tentando outras formas até conseguir ter
com ele um romance e finalmente esperar um filho. Sabia que
assim conseguiria tê-lo para sempre, pois ele já havia
comentado sobre a rigidez com que fora criado e você sabia
que o pai dele não permitiria que ele fugisse à responsabilidade.
Naquele momento, com aquela sua escolha, você mudou tudo
que havia planejado aqui e nós também tivemos que mudar.
Você fez uma nova escolha.
—Embora tenha sido tão bem planejado, pode-se mudar?
—Não esqueça Fernanda, de que tudo é planejado quando
estamos aqui, protegidos e sabendo das nossas reais
necessidades.
Tudo é planejado da melhor maneira, para o aperfeiçoamento
de todos.
Mas a resposta de cada um virá de acordo com o seu livre-
arbítrio, que é o direito que Deus nos dá para decidirmos sobre
a nossa vida física e espiritual. Deus nunca quis impor o seu
desejo, pois, se quisesse tudo seria perfeito.
Ele quis dar a cada um o direito de escolher o seu próprio
caminho rumo à perfeição. Jesus nos falou sobre isso, na
parábola dos talentos. A cada um daqueles três homens foi dada
uma moeda e cada um deles fez com ela o que desejou. Assim
Deus age com todos: Ele dá as mesmas oportunidades, não de
riqueza ou poder, mas de aprender e caminhar.
Alguns caminham com maior rapidez, outros demoram um
pouco, desviam-se. Mas Deus sabe que, um dia, em algum
momento, reencontrarão a luz. Por aquela sua atitude,
Fernanda, algumas coisas precisaram ser mudadas. A Zefinha,
que fora quem te criara e que te amava muito, prontificou-se a
renascer como tua filha. Ela não estava programada para
renascer, mas, diante daquela situação, não quis te deixar
sozinha.
—Por que isso não foi evitado?
—Em parte, a atitude do Antero também contribuiu para essa
mudança de planos, pois, embora ele já tivesse encontrado
Zuleica e já estivessem namorando, ele se deixou levar pela
vaidade de ser amado por duas mulheres e também pela fortuna
que sabia poder herdar de seus pais. Ele aceitou sem discutir as
exigências do pai e se casou com você, mas nunca deixou de
amar Zuleica. Com o seu casamento, ela se afastou, mas
tornaram a se encontrar e a se envolver de uma forma
definitiva. Antero, seguindo a educação que havia recebido no
lar, foi para você um bom marido e um ótimo pai, mas foi para
Zuleica que ele dedicou todo o seu amor e com quem desejava
ficar realmente.
—Ela soube o tempo todo que ele estava casado comigo!
Éramos amigas! Quando comecei a sair com Antero, não sabia
que eles estavam namorando!
—Se você tentar se lembrar, depois de seu casamento, ela ficou
um bom tempo sem aparecer, foi morar no interior, para não
sofrer vendo a sua felicidade.
Mas precisava trabalhar para ajudar seus pais e, no interior, não
encontrou trabalho; teve que voltar para a Capital e candidatar-
se a uma vaga que estava sendo oferecida em um jornal. Assim
que chegou para a entrevista, foi recebida pelo Antero. Vocês
já estavam casados há mais de dois anos. O encontro deles foi
definitivo.
Todo o amor que sentiam aflorou e não resistiram. Começaram
a ter um relacionamento, que durou todo esse tempo, durante
o qual se amaram intensamente.
—Ela aceitou essa situação, a de ser amante?
—Ela o amava muito, aceitou e procurou não reclamar, pois ele
sempre lhe dizia que, a qualquer momento, te deixaria e ficaria
com ela para sempre.
—Se ela concordou com essa situação, por que mudou tão
radicalmente a ponto de me matar?
—Aristides, durante o tempo todo em que ficou vagando e
longe dos nossos olhos, se envolveu cada vez mais no mundo
das trevas.
Em vão procuramos por ele e esperamos que a luz viesse nos
indicar o seu paradeiro, mas ele não permitiu e, por sua vez,
procurava por você e por Zuleica. Dela, ele queria o amor e, de
você, queria se vingar, pois agora sabia que você o havia usado
e julgava que você fosse à causadora de todos os seus males.
Encontrou primeiro Zuleica e, através dela, você.
Assim, começou a instigá-la dizendo-lhe que só com sua
morte ela poderia ser feliz ao lado de Antero. Foi aos poucos a
envolvendo, até que ela se deixou levar. O ódio que começou
a sentir por você foi incontrolável, até finalmente concretizar
os desejos do Aristides.
—Está me dizendo que todos podem ser envolvidos dessa
maneira e cometer um crime? — perguntou Fernanda,
intrigada.
—Todos podem ser envolvidos, mas depende de cada um
resistir a uma influência negativa.
—Não entendi; como isso pode ser feito?
—Todos sabem, desde muito cedo, o que é certo e o que é
errado. Por isso, temos a oportunidade de escolher o nosso
caminho e o que podemos ou não fazer. Sempre que surge no
nosso pensamento algo que vá contra aquilo que julgamos não
ser o certo, devemos resistir. Com certeza esse pensamento
não é nosso, mas, sim, de algum espírito que está querendo nos
usar.
—Ela não resistiu...
—Foi isso o que aconteceu. Embora estivéssemos o tempo
todo, enviando-lhe bons pensamentos e tentando de todas as
formas fazer com que desistisse da idéia, Zuleica não aceitou e
preferiu se deixar envolver pelo Aristides. Ela cometeu o crime
e por ele terá de responder. Essa é uma das leis.
—Não se pode fazer nada para ajudá-la?
—Sim, claro que sim! Estaremos sempre ao seu lado, mesmo
enquanto ela estiver no vale do sofrimento. Mas Zuleica terá
que passar por lá para refletir no que fez e, um dia, quando
retornar para a vida física, terá uma nova oportunidade para se
redimir. Não se esqueça de que Deus é o nosso Pai e Criador e
que nos ama muito, a todos, sem distinção, apesar das nossas
falhas.
—Desejava muito ajudar a Zuleica, afinal fui à culpada de tudo,
mas não sei como fazer.
—Deus nos dá todas as ferramentas de que precisamos para
evoluir; uma delas é o perdão. Muitas vezes dizemos que
nunca vamos perdoar, quando, na realidade, somos nós que
precisamos de perdão. Por isso, ao invés de perdoarmos ,
temos que primeiro pedir o perdão para aqueles que
conhecemos e também aos que desconhecemos. Zuleica foi,
sim, uma vítima, mas teve a oportunidade de perdoar e não
o fez. Terá que pagar pelo que fez, mas, com a graça de Deus,
terá um dia uma nova oportunidade e, quando esse dia chegar,
esperamos, em Deus, poder estar aqui para recebê-la com
muito carinho.
—Que posso fazer agora?
— Somente agradecer a Deus a oportunidade que está tendo e
se colocar à disposição Dele para se redimir de todo o seu
passado. Quebrar essa corrente de ódio que existe entre vocês
e, o mais importante, confiar sempre na bondade e justiça de
Deus.
Fernanda olhou para os outros, que, assim como ela, prestavam
atenção em tudo que o Nivaldo falava. Para eles também estava
servindo de lição. Ela estava envergonhada por tudo que havia
feito, mas aprendeu que nada está perdido e que a qualquer
momento podemos nos aproximar de Deus e Ele estará sempre
de braços abertos para nos receber; apesar de tudo que
tenhamos feito de certo ou errado, Ele será sempre aquele Pai
carinhoso, que sempre nos dará novas oportunidades.
—Meus amigos — disse Fernanda, tentando sorrir — preciso
agradecer a todos vocês tudo que fizeram para me ajudar, e
lamento não ter correspondido. Mas, da próxima vez, se Deus
me der essa nova graça, prometo que farei o melhor que puder.
—Não se atormente — disse Marli. — Todos estão na
mesma classe da escola da espiritualidade e todos têm muito a
aprender. Não existe ninguém melhor ou pior, só espíritos
caminhando para a luz. Sabemos que algum dia a
encontraremos, mesmo que para isso falte muito tempo. Um
dia chegaremos, pois somos todos filhos de um Deus amoroso
que nos criou e nos deu o direito de escolhermos o nosso
caminho. Por isso, não precisa se envergonhar, apenas
reconheça os pontos em que falhou e tente acertar da próxima
vez.
Agora que já está tudo esclarecido, queria pedir para que me
acompanhassem com uma prece em favor do meu irmão
Aristides. Eu sei que ele está perdido entre o amor doentio que
sente por Zuleica e o ódio que sente por você, Fernanda, mas
sei que, com a ajuda do nosso bom Deus, poderemos ajudá-lo
e fazer com que retorne para o lado do bem.
Vendo todos concordarem, ela disse, com a voz emocionada:
—Senhor, meu Deus, que a todos ama e a todos dá sempre
novas oportunidades. Estamos aqui para pedir em favor do
nosso irmão Aristides, pois sabemos que ele está perdido e
andando por caminhos escuros e preso ainda a conceitos falsos.
Sabemos também que, se for da Sua vontade, ele poderá
encontrar o caminho da luz. Senhor permita que consigamos
nos aproximar dele e, com o Seu amor, fazer com que
reconheça seus erros e volte para os Seus braços. Em Suas
mãos , colocamos a nossa vida espiritual e a dele também.
A pior acusadora
Passou-se mais de um ano desde aquela conversa. Fernanda
pediu muitas vezes para retornar a terra, queria ver como
estavam os seus. Quando pedia para vê-los, respondiam-lhe que
ainda não era hora. Enquanto isso gastava o seu tempo entre
muitos afazeres. A maior parte do tempo passava ao lado de
Otaviano pintando e o acompanhando nas suas tentativas de
fazer com que os médiuns pintassem.
Ela ficou alegre ao perceber que aquela senhora que era tão
insegura quanto sua mediunidade agora já pintava com
facilidade e, com agilidade, ia misturando as cores, deixando-se
levar. Pela intuição de Otaviano, pintava belíssimas telas. Ao
terminar uma, Otaviano disse sorridente:
—Até que enfim, ela se entregou totalmente. Daqui para frente
será cada vez mais fácil.
—Estou impressionada, pensei que ela nunca conseguiria.
—Ainda hoje ela tem dúvidas, mas agora já não se preocupa
tanto. Sabe que nunca conseguiria ter tanta agilidade e pintar
com tanta desenvoltura. Só posso dizer que estou feliz, tornou
mais fácil o meu trabalho.
—Pensar que todos os artistas são intuídos, sendo médiuns ou
não, pertencendo a uma religião ou não. Deus é mesmo
fabuloso!
—É, sim, Fernanda, Ele nos ama a todos e não tem filhos
prediletos. Religião é só questão de escolha e predileção, para
Ele não tem a menor importância.
—Algumas pessoas não pensam assim, acham que Ele é injusto
e que está distante delas.
—Você mesma já teve provas de que isso não é verdade.
—Tem razão. Nunca pensei, quando estava na Terra, que havia
feito tanto mal e prejudicado tantas pessoas.
—Você e quase todas as pessoas que estão encarnadas. Mas
agora continue a sua pintura.
Ela olhou para a sua tela, sorriu e continuou pintando.
Em uma tarde, ela estava pintando, quando Marli entrou
afobada.
—Fernanda! Chegou à hora! Recebemos uma luz e Adriano
disse que ela veio com uma autorização para visitar Aristides!
Pode imaginar como estou me sentindo?
—Isso quer dizer que ele que pediu perdão?
— Não. Significa que chegou a hora de ele receber ajuda.
Quem sabe consigamos fazer com que reconheça suas falhas e
possamos fazer com que volte! Quer ir conosco?
—Claro que sim! Sabe o quanto esperei por este momento!
Tenho e quero fazer todo o possível para ajudá-lo. Preciso de
alguma forma reparar o meu erro.
—Acredito que a sua chance chegou! Venha, não temos muito
tempo. Precisamos nos preparar! Adriano e sua equipe, além de
Nivaldo e Tânia, irão nos acompanhar. Estou tão feliz, que não
consigo esconder a minha ansiedade. Vamos?
—Agora mesmo! Otaviano, depois eu termino essa tela.
—Não se preocupe, ela estará aqui te esperando. Vá visitar
Aristides, que no momento é mais importante.
Ela e Marli saíram dali apressadas, pois sabiam que a preparação
precisava ser feita com esmero. Precisavam modificar suas
energias para se aproximar de Aristides, pois, embora a luz
tivesse chegado, sabiam que ele ainda permanecia na casa de
Zuleica e sob uma energia carregada.
Encontraram-se com Adriano, sua equipe, Nivaldo e Tânia, que
já as esperavam. Quando todos estavam reunidos, colocaram-se
em posição de oração. Nivaldo, emocionado, fechou os olhos e
disse:
—Senhor, meu pai, sei que neste momento está nos dando à
oportunidade de resgatarmos o nosso irmão Aristides. Que
possamos Senhor, bem cumprir a nossa missão. Sabemos que
estaremos protegidos de todo o mal, pois o Seu amor é infinito
e a Sua luz divina nos acompanhará.
Após a oração, deram-se as mãos e partiram. Seguiram a luz, e
em pouco tempo chegaram à casa de Zuleica. Ela estava
deitada sobre a cama e chorava, tendo ao seu lado Aristides,
que não percebeu a presença deles. Zuleica chorava muito,
seus olhos estavam inchados. Aristides lhe falava:
—Não adianta esperar, ele não vem mais, te esqueceu!
Agora, a sua única saída é se matar. Assim, poderei te levar para
viver ao meu lado para sempre! Sempre te amei e continuarei
amando! Você é minha! No momento em que matou
Fernanda, se entregou a mim totalmente! Da Fernanda já
cuidamos, agora você precisa dar um fim no Antero! Ele é um
traidor e nunca te amou, sempre mentiu!
Ele dizia essas palavras rindo sem parar. De seus olhos saíam
faíscas vermelhas, que a atingiam completamente.
Zuleica tentava encontrar uma posição para seu corpo, mas não
achava. Estava desesperada, um pouco devido à influência de
Aristides, mas muito mais por ter entendido que, mesmo com
a morte de Fernanda, não havia conseguido fazer com que
Antero ficasse ao seu lado. Pior, parecia que o havia afastado
ainda mais.
"Não posso continuar vivendo assim! — chorava; — Do que
adianta! Não tenho um minuto de paz! Antero nunca mais veio
até aqui, nem atende quando lhe telefono! Preciso me
encontrar com ele! Tenho que fazer alguma coisa, mas não sei
o quê! Tentarei falar com ele; se não conseguir, terei de matá-
lo..."
Fernanda, ao ver Zuleica naquela situação e, ao se lembrar de
que tudo foi por sua culpa, começou a chorar em silêncio.
—Fernanda — disse Marli — você não é a culpada.
—Como não? Sabe que eu os destruí! Eu fui à culpada; se não
tivesse me intrometido na vida deles, estariam casados e felizes!
Eu errei no passado e voltei a errar!
—Em parte, o que está dizendo é a verdade. Mas não se
esqueça de que, assim como você teve o direito de usar o seu
livre-arbítrio, eles também tiveram o direito de usar o deles!
—Não estou entendendo!
—Antero poderia ter te repelido e ficado com Zuleica, pois já a
havia encontrado e sabia que a amava. Mas ele se deixou
envolver pela ganância do dinheiro de seus pais.
—Mas eu sabia que o pai dele não permitiria que fugisse a um
compromisso. Por isso, o envolvi e consegui esperar um filho!
—O pai não permitiria, mas ele poderia ter evitado não se
deixando envolver, mas ele não o fez.
—Zuleica cometeu um crime terrível por minha culpa, por eu
ter interferido e feito com que todo o plano fosse mudado.
—Você realmente provocou essa mudança, mas mesmo assim
ela poderia ter aceitado e continuado a sua vida. No momento
da mudança, outros caminhos surgiriam para ela. Você teve,
sim, a sua parcela de culpa, mas eles também tiveram a deles.
Por isso, todos terão que refazer os planos e, no futuro,
tentarem novamente.
Por ora, só o que podemos fazer é tentar convencer Aristides
de que a abandone e deixe que ela própria tome a decisão e
direção de suas ações e que faça as suas escolhas...
—Conseguiremos? Ele parece tão enfurecido...
—Não sei se conseguiremos, mas para Deus nada é impossível.
Se a luz chegou até nós, foi porque existe uma esperança.
Faremos tudo que estiver ao nosso alcance. O que você tem a
fazer é parar de chorar e se entregar à oração, pedindo que
possamos ser intuídos nas palavras que usaremos e que
possamos conseguir encaminhá-los de volta para a luz.
Fernanda entendeu. Fechou os olhos e se colocou em oração
para aqueles irmãos que um dia haviam feito parte de sua vida.
Zuleica, alheia a tudo que se passava à sua volta, pegou o
telefone e discou o número do escritório de Antero. Foi
atendida por Luciana.
—Alô, Luciana! É a Zuleica novamente. Posso falar com o
doutor Antero?
—Sinto muito, dona Zuleica, mas ele não está. Saiu cedo para
visitar as obras.
—Quando ele voltará?
—Não sei, ele não disse.
—Por favor, quando ele voltar, diga que telefonei.
—Farei isso, como tenho feito todos os dias. Ele tem estado
muito ocupado com a construção. A senhora sabe que está na
fase de acabamento e isso toma muito tempo dele.
—De qualquer maneira, por favor, dê o meu recado.
Desligou o telefone. De seus olhos saiam faíscas de ódio.
—Não te disse que tudo acabou e que só tem um caminho para
seguir? Tem que matá-lo e depois se matar! Não te resta outra
coisa a fazer!
— Aristides ria enquanto dizia isso.
Como se o ouvisse, ela imediatamente pensou:
—Já sei o vou fazer! Ele está me evitando, não me quer mais!
Vou matá-lo e depois me matarei! Consegui praticar um crime
perfeito. Farei de novo. Não tenho outro caminho, só esse! Não
sei viver sem ele...
Fernanda ouvia o que Zuleica dizia e seu coração se apertava
cada vez mais.
Continuava em oração. Nivaldo se fez notar por Aristides,
que, ao vê-lo, se afastou um pouco de Zuleica:
— O que você está fazendo aqui? — gritou Aristides — Sabe
que ela sempre foi minha! Que a amei e continuarei amando
para sempre! Você não tem o direito de continuar aqui!
—Está havendo aqui uma pequena confusão. Ela nunca te
pertenceu e nem te pertencerá! Ela é criação e filha de Deus, só
a Ele ela pertence, a ninguém mais.
—Não venha com essa conversa de Deus. Eu nunca o vi e sei
que nunca o verei! Não sei se Ele existe realmente, mas se
existir não é um Deus amoroso como vocês pregam! Se ele
fosse, não permitiria tanta desigualdade! Não permitiria que
alguém como eu sofresse tanto por um amor não
correspondido!
—Deus é misericordioso, tanto que nos deixa escolher o
caminho que queremos seguir. Você está preso à matéria, não
sabe que já não está mais vivendo no corpo físico?
—Claro que sei! O que acha que senti quando me matei,
pensando que encontraria a paz, e, ao chegar aqui, perceber
que tudo continuava igual e que a paz tão procurada não
existia?
—A paz existe e ela é maravilhosa, só depende de cada um
encontrá-la. Mas ela nunca será encontrada através do suicídio.
Deus é tão misericordioso, que está te dando uma nova chance.
Está em suas mãos encontrar a paz tão procurada. Estamos aqui
para te ajudar, Aristides.
Enquanto Nivaldo dizia essas palavras, Aristides pôde ver os
outros que estavam ali e os reconheceu.
Gritou furioso:
— Marli, você aqui novamente! Já não disse que a sua presença
não é bem-vinda?
—Disse meu irmão, mas não me conformo em te ver nessa
situação, Aristides. Viemos até aqui para te buscar.
—Que situação?! Estou muito bem, ainda mais estando ao lado
da Zuleica! Não quero ir a lugar algum!
—Não está bem. Você está tentando se enganar e sabe disso.
Sempre existe uma chance do arrependimento e de, assim,
receber as graças de Deus, nosso Pai. Ele está sempre disposto a
nos receber, a qualquer momento. Ele é paciente, Aristides.
—Como sabe disso? Acha mesmo que, depois de tudo que fiz,
Ele, se é que existe, ainda estaria disposto a me perdoar?
—Claro que sim. Ele só quer a nossa felicidade. Você pode se
quiser, nos acompanhar e comprovará isso.
—Está mentindo! Por que está fazendo isso?
—Não estou mentindo. Sabe que sempre te amei como um
irmão querido e que, durante a nossa vida, tentei muitas vezes
fazer com que se conformasse e agradecesse a vida que o
padrinho nos deu, depois que nossos pais morreram. Mas você
nunca quis me ouvir. A sua revolta e o seu amor doentio pela
Zuleica fizeram com que cometesse dois crimes: primeiro
matou Antero e, depois, tirou a sua própria vida. Crimes esses
que te lançaram neste vale das sombras, da dor e do desespero.
—Está querendo me convencer de que eu fui o culpado de ter
perdido meus pais e ter sido obrigado a viver de favor na casa
de estranhos? Isso aconteceu! A culpa não foi minha! Foi desse
Deus que vocês tanto adoram!
—Não foi Dele, foi sim uma escolha sua e minha. Por isso
nascemos como irmãos, mas isso não importa mais. Estamos
aqui para te mostrar a bondade de Deus e te levar de volta para
casa. Lá, saberá de tudo e encontrará a paz que tanto procura.
—Não posso ir! Preciso ficar ao lado da Zuleica, quero-a ao
meu lado e não a deixarei aqui!
—Você poderá, um dia, ficar ao lado de Zuleica, mas, se
continuar influenciando os seus pensamentos, jamais terá essa
chance. Se ela cometer mais estes crimes, matar Antero e
depois se matar, estará condenada por muito tempo e cada vez
mais distante de você.
Ainda está em tempo, Aristides. Fernanda também está aqui;
ela, hoje, já sabe tudo que aconteceu.
Ele olhou para Fernanda, que continuava de olhos fechados,
orando e ouvindo o que eles diziam. Assim que ouviu Marli se
referir a ela, abriu os olhos e olhou para Aristides, que, ao vê-la,
gritou raivoso e tentando atacá-la:
—Você está aqui? Sua traidora! Enganou-me, fez com que eu
cometesse um crime! Te odeio ! Te odeio !
—Sei disso — Fernanda disse com lágrimas nos olhos — e
infelizmente você tem razão de me odiar. Mas hoje sei o que
fiz e quanto mal causei, não só a você ou a Zuleica, mas contra
mim mesma. Estou arrependida e pedindo a todo instante que
Deus me perdoe e que me dê uma nova chance de resgatar
todo o mal que causei. Preciso pedir perdão a você e a Zuleica.
Sei que, se estão nessa situação, em muito a culpa foi minha...
—Em muito não! Em tudo! Você nos enganou e traiu! Agora
vem com essas lágrimas de crocodilo pedindo perdão e acha
que tudo vai ficar bem? Que tudo que você fez acabou e que
está tudo certo? Não está! Se for verdade que existem outras
vidas, eu te perseguirei para sempre e nunca te darei paz! Você
pode ter a proteção que tiver! Eu te odeio!
Fernanda ficou sem saber o que dizer. Nivaldo disse:
—Espere aí, Aristides! Ela teve culpa, sim, mas você também
teve a sua parcela e não foi pouca.
—Que culpa eu tive? Ela me envolveu e mentiu!
—Foi isso que ela fez, mas você sempre soube o que era certo e
errado. Apesar de o certo ou errado serem discutíveis, pois na
realidade sobre muitas coisas não sabemos o que é certo ou
errado, com o passar do tempo, os conceitos mudam. Mas
sobre assassinato todos sabem que é errado, isso nunca mudou
e nunca mudará. Você sabia que era errado, mas mesmo assim
cometeu um assassinato. Você usou o seu livre-arbítrio e teve
que responder por sua atitude.
—O que eu poderia ter feito? Eu amava Zuleica e sempre fui
prejudicado. Desde minha infância, fui obrigado a viver de
favor na casa de estranhos!
—Estranhos que te receberam e que te deram muito amor.
Você pôde estudar e se preparar para o futuro, mas nunca lhes
agradeceu.
Você poderia ter sido enviado a um orfanato qualquer e ser
apenas um número, criado sem amor e sem carinho, como
acontece com muitos. Você sempre foi egoísta e mal
agradecido, por isso não soube aproveitar as oportunidades que
Deus te deu e que você mesmo havia escolhido. Quando
Fernanda te propôs a morte de Antero, você poderia ter
reagido e se negado a praticá-la; para isso tinha o seu livre-
arbítrio e o conhecimento de que era errado. Em vão, o plano
espiritual tentou te demover daquela idéia. Você não ouviu e se
deixou levar. Portanto, pode ver que a culpa não foi só dela,
mas muito mais sua.
Agora, tudo isso não tem mais importância, você está prestes a
cometer outro crime: a morte de Antero; e ver Zuleica se
perder por muito tempo no vale do sofrimento. Está em suas
mãos não só o seu futuro, como o dela também. Novamente,
está tendo a oportunidade de usar o seu livre-arbítrio e só você
poderá fazer isso. Estamos aqui para te ajudar, para te levar de
volta para o Pai, onde todo o seu passado será revelado e assim
poderá decidir o seu futuro.
Aristides, embora não quisesse, ouviu tudo que Nivaldo lhe
disse. Em seguida olhou para Zuleica, que continuava se
remoendo de ódio e deitada na cama. Ele a amava muito e não
queria ficar separado dela.
—Da maneira como você está falando — disse olhando nos
olhos de Nivaldo — penso que, sim, eu tive a minha parcela de
culpa, mas não posso deixar Zuleica. Quero ficar ao seu lado
para sempre. Quero não, vou ficar!
—Poderá ficar ao lado dela enquanto ela estiver na mesma faixa
de pensamento que o seu. Quanto a isso, não temos o que
fazer. Mas, se realmente a ama e quer mesmo ajudá-la, evitar
que ela se perca no vale do sofrimento, poderá fazê-lo.
—Como? O que preciso fazer?
—Deixar que ela mesma decida o que fazer. Você pode ir
embora com Marli e Tânia. Elas te acompanharão e te darão
toda a assistência de que precisa e verá como tudo ficará bem.
Sem sua influência, Zuleica, também, poderá exercer o seu
livre arbítrio. Está em suas mãos, chegou o momento da
escolha.
—Não posso abandoná-la! Eu a amo! Como posso ir para esse
lugar que você diz ser bom sem saber o que vai acontecer com
ela? Como poderei ficar bem?
—Se você prometer ficar quieto, sem fazer coisa alguma,
aconteça o que acontecer, você poderá ficar aqui e nos ajudar.
Aristides pensou por um momento; estava cansado. Durante
muito tempo, ficou vagando sem destino, sentiu sede, fome e a
tristeza de não se encontrar com Zuleica. Quando a encontrou,
ficou ao seu lado. Mas agora Nivaldo e os outros lhe mostraram
que havia uma esperança. Amava Zuleica e sabia que ela, assim
como ele, ficaria vagando sem destino, sofrendo toda sorte de
aflição. Ele não queria que ela sofresse, amava-a muito.
—Está bem — disse — eu ficarei quieto. Só quero dizer que,
para onde ela for, eu irei também.
—Não sabemos como ela usará o livre-arbítrio. Depende só
dela o futuro que terá. Quanto a você, é também livre para
escolher.
Deus nos ama tanto, que não impõe coisa alguma. Tem
paciência, pois sabe que cedo ou tarde iremos para ele.
Aristides, embora sempre tentasse mostrar-se forte e poderoso,
sabia que aquilo que Nivaldo dizia era a verdade. Sabia que
estava cansado de vagar e queria encontrar aquela paz
oferecida. O que sabia mesmo, e disso tinha convicção, era que
o amor que sentia por Zuleica era verdadeiro, disse:
—Estou disposto a ficar calado e acatar tudo que está dizendo,
só não quero que ela sofra.
—Infelizmente, não posso te prometer isso, pois sabe que, a
cada um, será dado de acordo com as suas obras; cada um
receberá de acordo com aquilo que escolheu e ela escolheu se
entregar ao ódio. Assim como todos, ela terá a chance de ser
feliz, mas, antes, terá de aprender que o amor deve estar
sempre presente e que ele significa entrega e doação.
Antes que Aristides dissesse algo, Zuleica começou a correr de
um lado para outro dentro da casa. Chorava e gritava sem parar.
Parecia estar alucinada.
—Eu quero morrer! Não quero mais continuar nessa vida!
Estou cansada. Antero não me quer mais e sem ele não sei
viver!
Nivaldo e Marli aproximaram-se dela e, com passes de luz e
energia, fizeram com que ela se acalmasse e parasse.
—Zuleica — disse Nivaldo, estendendo os braços em sua
direção — você, agora, precisa parar e pensar em tudo que fez.
Sabemos que, embora tenha sido vítima em outra vida, nesta
tornou-se uma pessoa triste e magoada, o que permitiu que
Aristides a envolvesse. Embora essa aproximação tenha sido
por amor, ele te influenciou e você permitiu. Agora, tem sobre
os seus ombros um crime... Que não importam quais tenham
sido os motivos, sempre será um crime, e por ele terá de
responder.
Ela foi até a cama e se deitou. Em seu pensamento começaram
a surgir cenas do passado: quando conheceu Antero e
Fernanda; o amor que sentiu por ele e a amizade que sentiu
por ela; depois, veio o casamento deles, a tristeza e a revolta
que sentiu. Aquelas cenas passavam por sua mente e ela
chorou muito ao ver o corpo de Fernanda caído no chão da
cozinha.
—O que foi que fiz? Tirei a vida da Fernanda por ciúmes e
quando não era mais necessário. Antero já a havia abandonado!
Como tive coragem para fazer aquilo? Eu não tenho perdão!
—Todos nós — disse Nivaldo — temos o perdão, Zuleica.
Para isso, basta apenas reconhecer e pedir. Deus estará sempre
de braços abertos para nos receber.
Zuleica não ouvia, mas sentia uma presença boa ao seu lado.
Ela precisava fazer alguma coisa para se redimir do que havia
feito do crime que praticou. Sabia que estava fora do alcance da
justiça da Terra, pois muito tempo havia se passado desde a
morte de Fernanda e nunca ela foi, sequer, mencionada.
Acreditaram que Fernanda havia se matado, por isso, nesse
sentido, podia ficar tranquila.
"Sei que posso ficar tranquila, nada me atingirá, nunca ninguém
descobrirá que fui eu, mas por que não estou? Por que a
imagem de Fernanda, deitada no chão da cozinha, não sai da
minha cabeça? Meu Deus, eu vou acabar louca! Perdi Antero,
matei a minha amiga, o que me resta mais para fazer?"
—Para que encontre a paz — disse Nivaldo — terá que se
entregar à policia, confessar, ser julgada e pagar pelo crime que
cometeu.
Ela não ouviu, achou que aquele pensamento fosse seu, pensou
um pouco e depois disse:
"Não posso me entregar, nem confessar! Serei julgada e
condenada! Passarei o resto dos meus dias na prisão! Não! Não!"
Levantou e continuou andando de um lado para outro. Não
tinha lugar para ficar e os pensamentos não saíam de sua
cabeça. Nivaldo continuou falando:
—Zuleica, estamos aqui porque nos foi permitido vir para
ajudar você e Aristides, como espíritos irmãos e amigos.
Estamos já há muito tempo preocupados com vocês, mas nada
poderemos fazer a não ser te intuir para que faça o que é certo.
Sabemos que te custará muito, que será difícil, mas é o único
caminho que tem para seguir, se desejar realmente encontrar a
paz e a felicidade junto a Deus.
—Nivaldo — disse Fernanda chorando — eu sou a culpada de
todo esse sofrimento. Por duas encarnações eu interferi na vida
dela e a prejudiquei. Não é justo o que está acontecendo com
ela. Ela me matou, mas teve razão para fazer isso, eu merecia!
Eu a destruí e roubei a sua vida!
—Não diga isso! Para o assassinato não há desculpa! Você
interferiu, sim, mas ela deveria reagir e aceitar. Teve ajuda para
isso. Poderia ter se libertado e continuado a sua vida sem
Antero e encontrar em outro alguém o amor. Com a mudança
dos planos, esse alguém lhe seria enviado. Deus nunca
abandona seus filhos, mas ela escolheu o caminho do ódio e
do rancor. Você, por suas faltas, se penitenciou; apesar de ter
querido Antero a qualquer preço, viveu o resto do tempo uma
vida reta. Hoje, está arrependida de tudo que fez. Zuleica terá
que fazer o mesmo e novamente, todos juntos nos reuniremos
e discutiremos como será a próxima encarnação. Teremos a
chance de nos encontrar novamente e tudo será reparado. Por
favor, hoje, agora, deixe de se lamentar e nos ajude com
vibrações de amor e paz. É só disso que ela está precisando e
você também, Aristides! Levante-se desse canto em que está
sentado e nos ajude; a sua vibração de amor é muito importante
neste momento.
Aristides, abatido, estava sentado em um canto do quarto. Ele
sabia que, apesar de amar Zuleica, havia sido parte importante
nas atitudes dela. Agora, vendo-a daquela maneira, arrependeu-
se, e queria fazer tudo que pudesse para ajudá-la.
Levantou-se e, junto com os outros, começou a pedir a Deus
por Zuleica e principalmente por ele mesmo.
"Senhor, meu Deus, perdão por ter ficado tanto tempo longe da
Sua presença, embora saiba agora que o Senhor nunca ficou
longe da minha. Sei que não mereço, pois por muitas vezes me
revoltei com a vida que, hoje sei, fui eu mesmo quem
escolheu. Mas, meu pai, sou apenas um aprendiz que precisa de
sua ajuda e de seu perdão. Permita que Zuleica encontre o seu
caminho para que possa se libertar e finalmente ser feliz, ao
meu lado ou não. Isso não tem mais importância, só quero o
seu bem. Eu sempre a amei. Sei que por causa desse amor me
destruí e a ela também."
Conforme ele pensava essas palavras, uma luz desceu sobre ele
e o iluminou totalmente. Ele se encantou ao mesmo tempo em
que se assustou, disse:
—Que luz é essa?
—É a luz do perdão — disse Nivaldo — e da certeza que você
está de volta ao seio do senhor! Seja bem-vindo! Agora, vamos
ao trabalho.
Aristides não sabia se chorava ou ria. A emoção que sentia não
conseguia descrever. Aproximou-se dos outros e, como eles,
abriu suas mãos sobre Zuleica, que estava deitada. De repente,
ela sentou-se na cama com os olhos esbugalhados.
Todos acompanharam seus olhos e viram o que ela via: o corpo
de Fernanda, deitado na cozinha, começou a se levantar e a
encarar Zuleica, dizendo com raiva:
—Você me matou! Não vou te perdoar nunca! Vai ter o castigo
que merece! Vou te atormentar até o seu último suspiro!
Zuleica ficou paralisada de medo ao ver aquela cena que estava
só em sua mente. Fernanda não entendeu o que estava
acontecendo, perguntou assustada:
—Nivaldo, o que está acontecendo? Eu não a estou
atormentando. Ao contrário, estou lhe enviando luz de amor e
pedido de perdão.
—Ela, agora sem a influência de Aristides, está tomando
conhecimento do que fez. Mesmo que não saibamos, o nosso
espírito fica feliz quando pratica algo de bom, pois sabe que
caminhou um pouco, mas fica triste e revoltado quando
percebe que com uma atitude errada pôde atrasar a sua
caminhada em muito. Ele se revolta e se faz presente; a isso,
no corpo físico, se dá o nome de consciência. Ela é a pior das
acusadoras, e, dificilmente alguém consegue escapar. A
consciência vai atormentar Zuleica até que confesse o crime
que cometeu e receba o julgamento que merece dos homens,
pois ao de Deus nunca conseguirá escapar. Vamos agradecer a
Deus por sua consciência ter chegado com toda essa força.
Sinto que o momento da libertação está próximo.
Todos se colocaram em oração, somente observando Zuleica,
que se levantou, foi até a cozinha, tentou tomar um pouco de
água, mas não conseguiu. Dentro do copo, via Fernanda lhe
acusando, largou o copo. Andou pela casa toda e voltou para o
quarto. Não tinha onde ficar. A imagem de Fernanda não saía
do seu pensamento. Voltou para a cozinha, abriu a geladeira e
tentou comer um pedaço de bolo, mas também não conseguiu;
a imagem de Fernanda estava em todos os lugares.
"Não quero mais me lembrar daquele dia!" — disse, chorando,
desesperada. "Já faz muito tempo! Ninguém desconfia de mim!"
Continuou andando. Enxugou os olhos com as mãos.
"Preciso esquecer! Não vou me entregar à policia! Não posso
fazer isso! Não quero ser presa!"
Eles continuavam observando e enviando luz sobre ela. Ela
tentou dormir, não conseguiu.
Levantou, tomou um comprimido para relaxar e dormir, mas
também não conseguiu. Ficou assim por vários dias, até que,
não suportando mais e sentindo-se fraca, pois não conseguia
comer ou beber, resolveu:
"Minha vida está terminada. Sei que cometi um crime e que,
enquanto não me entregar, não terei paz. Que Deus tenha
compaixão de minha alma, pois sinto que padecerei no fogo do
inferno para sempre. Vou telefonar para a delegacia, contar
tudo e depois me matarei. Não suporto mais essa vida."
Nivaldo e os outros permaneceram ao lado dela durante todo o
tempo e ouviram o que ela pensava. Fernanda disse:
—Ela não pode se matar! Se fizer isso estará perdida por muito
tempo! Precisamos evitar de qualquer maneira!
—Sabe que não podemos interferir. Ela mesma terá que
encontrar o seu caminho, só podemos continuar orando e
pedindo a Deus que não a abandone nesse momento.
Todos sabiam que ele tinha razão. Até Aristides se ajoelhou e,
juntos, começaram a rezar.
"Preciso tomar coragem e telefonar para a polícia" — Zuleica
continuou pensando — mas não sei se terei coragem. Não
quero ficar presa pelo resto da minha vida. O que preciso,
mesmo, é encontrar uma maneira de me matar sem sofrer
muito."
Saiu para o quintal, começou a olhar tudo, procurando algo que
pudesse lhe ajudar. A sua idéia estava fixa na maneira de se
matar. Foi até o portão, olhou a rua, que naquele momento
estava calma; apenas um casal se aproximava e parecia feliz:
"Minha vida, que hoje está sem sentido — pensou ao vê-los —,
poderia ter sido diferente. Eu estaria assim como eles se não
tivesse me prendido ao amor que sentia por Antero. Poderia
ter construído a minha vida de outra maneira. Já ouvi dizer que
tudo depende de escolhas. Mas como saber quando a escolha é
a certa? Não entendo por que ele me abandonou. Sempre
acreditei em seu amor e nas mentiras que dizia. Ele sempre me
enganou, dizendo que ia abandonar Fernanda. Mas hoje sei que
sempre foi mentira. Agora não me resta mais nada a fazer, a
não ser me matar. Pensando bem, não vou telefonar. Vou
deixar uma carta contando tudo que aconteceu... depois, vou
tomar um vidro cheio de comprimidos".
Morando sozinha, sem ter ninguém que me visite, quando me
encontrarem já será tarde e eu estarei livre desta vida! É isso
mesmo que vou fazer.
Aristides, ao ouvir aquilo, começou a chorar.
—Meu Deus, sei que não mereço te pedir coisa alguma, pois
sei que sou culpado, mas, por favor, não permita que ela
cometa essa loucura. Faça comigo o que quiser, mas ajude-a...
—Aristides —disse Nivaldo — posso entender o que está
sentindo, mas agora não é hora. Não existem culpados ou
inocentes, somente espíritos caminhando. Vamos continuar
pedindo para que ela exerça com sabedoria o seu livre-arbítrio.
Voltaram a rezar com todo o amor e a fé que possuíam.
Instrumento de Deus
Luciana desligou o telefone e foi até a sala de Antero.
Bateu e entrou:
—Doutor Antero, a dona Zuleica voltou a telefonar. Seguindo
as suas instruções, disse que o senhor não estava que tinha
saído para visitar a obra.
—Ela aceitou bem?
—Não, claro que não. Ela disse que voltará a telefonar. "Será
que ela ainda não entendeu que não quero mais vê-la?" —
pensou nervoso — "Que tudo entre nós terminou? Que estou
cansado de sua insistência?"
—Desculpe doutor, sei que o que vou dizer pode até provocar
a minha demissão, mas sou mulher e conheço como as
mulheres pensam. Não sei o que houve entre o senhor e dona
Zuleica, mas essa atitude de ficar se escondendo nunca deu
certo e nunca dará. Seria melhor que o senhor a atendesse e
tivesse com ela uma conversa definitiva.
Ele olhou para ela; entre admirado e furioso, disse:
O que está dizendo? Quando foi que te dei essa confiança? Ela
só foi minha funcionária! Quem te disse que tenho alguma
coisa com ela? Ela disse?
—Não, doutor, ela não disse. Nem o senhor me deu liberdade
para tanto, mas, como já disse, conheço os sentimentos das
mulheres e sei o quanto sofrem quando são abandonadas. A
mulher pensa e encara as coisas, diferente dos homens.
Quando amam, se entregam totalmente. Por isso, nunca
pensam que possam ser abandonadas. Esperam dos
companheiros a mesma fidelidade e dedicação. Acho que o
senhor deveria conversar com ela. Não adianta se esconder.
Isso não resolverá a sua situação.
—Saia daqui, por favor! — Antero disse furioso.
Luciana saiu preocupada, pois sabia que havia se excedido.
Mas confiava em Deus e sabia que, se disse aquilo, não havia
sido sem motivo. Sentada em sua mesa, enquanto trabalhava,
sentiu uma leve brisa bater em seu rosto. Ela já conhecia
aquele sinal, sabia que seu mentor estava ao seu lado.
"Não sei, meu Deus, o que me levou a dizer aquilo, mas sinto
que era preciso. Meu mentor está aqui ao meu lado, portanto
fiz o que precisava. Devo ter sido Seu instrumento."
Antero, em sua sala, pensava nas palavras de Luciana. A
princípio, ficou nervoso com o atrevimento dela, mas aos
poucos foi refletindo e decidiu:
"Ela tem razão, não posso mais protelar. Preciso conversar com
Zuleica; não sei o que vou lhe dizer, pois eu mesmo não sei o
que me aconteceu.
Depois da morte de Fernanda, entendi que aquele amor que
sentia pela Zuleica não era tão importante assim. Só foi
importante enquanto era proibido. Fernanda me faz muita falta
e, por isso, eu não consegui mais ficar ao lado da Zuleica.
Preciso tomar coragem e ir até lá. Não posso tratar de um
assunto como esse por telefone."
Pegou o paletó; ao passar pela mesa de Luciana, disse;
—Se alguém me telefonar, diga que estou saindo e não sei a
que horas voltarei. Tenho um assunto urgente para resolver.
—Está bem, doutor — ela disse, sorrindo — não se preocupe e
que Deus o acompanhe.
Ele não percebeu o sorriso dela, saiu. Sabia que teria uma
conversa que, embora dolorosa, era importante.
Zuleica estava sentada em uma cadeira, junto à mesa da
cozinha. Tinha diante de si um papel em branco e um vidro de
compridos, que ela sabia ser um sonífero muito forte. Era o
mesmo que ela havia usado contra Fernanda. Abriu o vidro,
retirou os comprimidos, pegou um e colocou em uma colher;
com outra o triturou. Em seguida, jogou o pó que resultou da
tritura sobre o papel. Pegou outro e mais outro e fez
exatamente o que tinha feito com os comprimidos que deu
para Fernanda beber e que a mataram. Depois que triturou os
comprimidos que sabia ser suficiente, pegou uma caneta e,
trêmula, começou a escrever.
A quem possa interessar
Estou cometendo este ato terrível, pois não suporto mais viver
com a minha culpa. Matei Fernanda, minha amiga, usando o
mesmo método que usarei agora contra mim. Espero que todos
me perdoem e peço a Deus que também me perdoe, embora eu
saiba que isso será o mais difícil.
Zuleica
Depois de ler e reler o papel levantou-se. Foi até a pia. Pegou
um copo, encheu de água e voltou a se sentar.
Colocou o pó dentro do copo e, com uma colherinha,
começou a mexer.
Aristides e Fernanda, agora abraçados, choravam.
Nivaldo e os outros continuavam em oração e, de suas mãos,
luzes continuavam caindo sobre Zuleica. Ela mexeu o pó no
copo por um bom tempo. Sabia que precisava fazer aquilo e
que não haveria outra solução. Mas estava lhe faltando
coragem. De seus olhos, lágrimas começaram a cair.
Antero estacionou o carro em frente ao portão da casa de
Zuleica e, como sempre fazia, tirou as chaves do bolso e entrou
sem se anunciar. Abriu a porta da sala e ela não estava. Foi até a
cozinha e viu que ela estava sentada de costas para ele. Ela
estava com os cotovelos sobre a mesa, com as mãos sobre a
cabeça e chorava muito. Ele ficou perturbado com a situação
em que ela se encontrava. Ela, envolta em seus pensamentos,
não percebeu quando ele entrou. Ele se aproximou devagar
para não assustá-la. Quando chegou perto, viu sobre a mesa o
copo com aquela água esbranquiçada e o papel escrito. Mesmo
de longe, conseguiu ler o que estava escrito. Disse desesperado:
—Zuleica! O que você fez? O que está fazendo? Ela se voltou,
levantou e se abraçou a ele:
—Eu a matei! Eu a matei! Matei Fernanda!
—Mas por que fez isso?
—Eu queria você só para mim! Fui uma louca e estou
arrependida! Agora tenho que morrer!
—Eu sempre fui seu! Eu abandonei Fernanda para ficar com
você! Que mais eu poderia fazer para que acreditasse?
—Depois que ela morreu, percebi que você foi se afastando aos
poucos e quase não vinha me ver! Matei-a por causa de seus
problemas financeiros. Eu pensava que, com a morte dela, você
seria meu para sempre e que os problemas seriam resolvidos.
—Não precisava fazer isso! Eu só me afastei porque o delegado
estava desconfiando e eu não queria lhe dar a oportunidade de
encontrar um motivo. Quanto aos problemas financeiros,
haveria uma maneira de superar! Você não precisava ter feito
isso! Foi uma loucura!
—Hoje sei disso, mas naquele momento acreditava ser a única
solução. Perdoe-me, Antero!
Ele a soltou foi até a geladeira, colocou água em um copo e
tomou.
Estava atônito e não sabia o que fazer ou dizer. Nunca
imaginou que aquilo poderia ter acontecido. Ela tornou a sentar
e ficou olhando para o copo com aquela água esbranquiçada.
Ele voltou a levantou, olhou bem em seus olhos, dizendo:
—Você não precisa se matar! Já se passou muito tempo!
Ninguém conseguiu encontrar algo que te envolvesse, nem
mesmo que provasse que Fernanda não se matou! Eu não direi
coisa alguma! Você poderá recomeçar a sua vida!
—Você ficará comigo?
—Infelizmente não. Já deve ter percebido que tentei me afastar
definitivamente de você. Aos poucos, fui percebendo que
aquele amor que sentia não era tão forte assim. Vim aqui hoje
para te dizer isso, mas poderá continuar a sua vida mesmo sem
a minha companhia! Não pode se matar! A sua vida vale muito!
Não pode jogá-la fora dessa maneira! É preciosa!
—Para quem?
Nivaldo levou as mãos até a garganta de Antero, que disse:
—Para Deus! Sim, para Deus! Ele é nosso pai e saberá perdoar!
Ele não nos abandona nunca!
Antero mesmo não entendia como e por que havia dito
aquelas palavras. Nunca havia sido muito católico ou
pertencera a qualquer outra religião e, para dizer a verdade,
nunca pensou muito em Deus. Sempre se preocupou só em
ganhar dinheiro.
—Deus? Você acredita mesmo que ele vai me perdoar? Nunca!
Como ele pode fazer isso, se eu mesma não me perdôo?
Nivaldo continuava com a mão na garganta de Antero.
— Ele pode e faz — Antero disse, sob a influência de Nivaldo
— por que é um Pai amoroso e tem tanto amor, que nos dá a
todo o momento a oportunidade de nos redimirmos. Por esse
mesmo amor, nos perdoa e nos dá sempre novas chances!
Ela o ouviu dizendo aquelas palavras e se admirou:
—Antero! Como você está dizendo isso? Nunca te ouvi falar
sobre essas coisas?
—Nem eu, mas não importa. Sinto que são verdadeiras, sinto
que elas vêm do meu coração!
Ela se afastou, foi para o quarto, pensou um pouco, depois
voltou, dizendo:
—Você tem razão. Acho que posso acreditar nesse amor de
Deus. Sinto que tudo que você disse é a verdade, mas, para que,
eu mesma acredite nisso, preciso que me acompanhe até a
delegacia. Não posso ir sozinha.
—Até a delegacia?!
—Sim, preciso me entregar e confessar tudo. Sinto que esse é o
único caminho para conseguir o perdão de Deus.
Ele percebeu que Zuleica falava tranquila, que realmente tinha
decidido e que nada faria com que mudasse de idéia.
—Tem certeza que é isso mesmo que quer fazer? Sabe que não
precisa, eu não contarei a ninguém.
—Sei o que estou fazendo. Sei que cometi um crime e que não
posso mais viver com ele. Preciso pagar por aquilo que fiz.
Embora sinta que o meu crime não tenha perdão, vou tentar.
Antero sentiu-se impotente diante do olhar dela, disse:
—Se é isso o que quer te acompanharei.
Ela foi para o quarto, vestiu uma blusa, pois já estava
entardecendo e o céu estava cinza. Sabia que sentiria frio.
Saíram.
Nivaldo e os outros foram com eles até a delegacia. Zuleica
contou tudo ao delegado, que a ouviu em silêncio.
—A sua vinda até aqui — ele disse quando ela terminou de
falar —vai pesar a seu favor, mas infelizmente preciso prendê-
la e colocá-la à disposição da Justiça.
—É para isso que estou aqui.
—Zuleica — disse Antero, abraçando-a — sei que a culpa de
tudo que te aconteceu foi minha, mas ficarei ao seu lado para
sempre. Não vou te abandonar...
—A culpa não foi sua, eu tomei a decisão e fiz. Cumprirei a
minha pena sem reclamar. Sei que mereço.
O delegado chamou uma policial, e Zuleica foi levada para o
interior da delegacia.
—Bem, doutor Antero — disse, com ar preocupado — preciso
comunicar ao delegado que cuidou da morte da sua mulher.
—Estarei esperando notícias de Zuleica.
—Fique tranquilo, será notificado de tudo que acontecer.
Antero despediu-se e foi para a rua. Respirou fundo, seu
coração estava apertado, mas sabia que aquilo era o melhor que
Zuleica poderia fazer. Entrou em seu carro e partiu. Assim que
ele partiu, Nivaldo disse:
—Agora podemos ir embora. A nossa missão terminou.
Conseguimos evitar que ela se matasse e que, usando de seu
livre-arbítrio, fizesse a coisa certa: resolveu se entregar.
—O que acontecerá agora? — perguntou Fernanda.
—Ela será julgada e condenada e terá de passar um bom tempo
presa. Na prisão terá muito tempo para refletir sobre tudo que
fez, e lembrar-se que Deus nunca nos abandona. Ele dará
novas oportunidades para que Zuleica faça alguma coisa de
bom junto a tantas outras mulheres que estão presas. Além do
que, na maioria das vezes, essa prisão se deu por causa de um
grande amor. Zuleica, mesmo na prisão, estará sempre
protegida.
—E na vida espiritual, o que lhe acontecerá?
—Isso depende só de você, Fernanda...
—De mim?! Como, por quê?!
—Você foi sua vítima.
—Fui nesta vida, mas na outra eu fui à culpada! E nesta eu
escolhi mal e modifiquei os planos de todos!
—Sim, hoje você sabe disso e vê dessa forma, mas, se estivesse
no plano físico, não entenderia e teria muita dificuldade em
perdoá-la. Chegará o dia que, antes de se perdoar, pediremos
perdão, pois nunca saberemos quem é o verdadeiro culpado.
Você poderá quebrar o elo de ódio. Poderá ficar ao lado dela,
dando-lhe carinho e amor.
—Posso ficar ao lado dela até que a pena se cumpra?
—Se quiser pode, a sua presença lhe fará muito bem.
—Eu — disse Aristides — quero ficar ao lado dela.
—Você não poderá, já que tem muito a entender. Precisa fazer
um tratamento que te ajudará a refletir sobre tudo que
aconteceu.
Terá que passar por nossas escolas. Poderá vir visitá-la algumas
vezes, mas ficar ao seu lado para sempre ainda não. As suas
energias estão muito pesadas, por isso a sua presença poderá
fazer mal a ela.
Aristides não discutiu. Queria descansar e sabia que estava
tendo uma nova oportunidade. Fernanda lembrou-se de
Antero, sentiu que, agora, já não o enxergava mais com aquele
amor doentio. Mas, sim, como um companheiro de jornada.
—O que vai acontecer com Antero?
—Deus, Fernanda, tem um instrumento para nos ajudar a
entender as nossas falhas, chama-se remorso.
O remorso fará com que Antero sempre saiba que, por sua
ganância, desprezou um amor que sabia ser verdadeiro. Ele
sabe que é o responsável por sua morte e pela prisão da
Zuleica. Isso o acompanhará por todo o tempo em que
permanecer no corpo físico.
—Até quando isso vai durar?
—Cada um retornará para a casa do Pai há seu tempo. Assim
que todos estiverem reunidos novamente, conversaremos,
estudaremos e veremos onde falhamos. Depois, juntos,
planejaremos, escolheremos e renasceremos torcendo que, da
próxima vez, consigamos caminhar alguns passos.
—Nivaldo, pensei que a cada encarnação resgataríamos os
nossos erros. Com a Zuleica isso não aconteceu. Ela foi traída e
enganada na encarnação anterior e nesta o foi novamente, a
ponto de cometer um crime. Como na encarnação passada,
nesta também eu fui à culpada. Interferi na sua vida...
—Sim, você interferiu, mas ela se deixou levar pelo ódio,
deixando-se envolver pelo Aristides. Agora, na prisão, ela terá a
oportunidade de ajudar outras presas e assim caminhar alguns
passos. Você entendeu o seu erro, por isso está aqui sob a nossa
proteção. Sempre voltamos melhor, pois, por pior que sejam as
nossas escolhas, sempre caminharemos ao menos um passo e,
para Deus, será o suficiente. Ele confia na Sua criação e tem a
eternidade toda para esperar. Sabe que, cedo ou tarde, o
encontraremos. Bem, acho que já respondi a todas as dúvidas.
—Tenho uma que ainda está me atormentando.
—Qual é? Pode dizer Fernanda.
—Não sei, mas tive a impressão que sempre que existe um
abandono a culpa é da pessoa que foi abandonada e por erros
passados, em outra vida, e não daquela por quem foi
abandonada.
Nivaldo começou a rir.
—Neste caso foi, sim, mas cada caso é um caso. O que você
não pode esquecer é que somos movidos por nossas escolhas.
—Quando poderemos saber se as nossas escolhas são as
melhores? — perguntou Fernanda, intrigada.
—Quando nos sentirmos bem e felizes com elas. Se elas nos
fizerem felizes, serão as certas. Agora precisamos ir embora...
—Posso ficar aqui ao lado da Zuleica?
—Se quiser, pode, mas sabe que não pode interferir na escolha
dela. Só ela deverá ser a responsável, sem interferência.
—Não farei isso, pode ficar tranquilo.
Todos se despediram de Fernanda e partiram. Ela foi até a cela
onde Zuleica estava e disse baixinho em seu ouvido:
—Estou aqui e ficarei ao seu lado, enquanto me for permitido.
É o mínimo que posso fazer...
Zuleica não ouviu, mas sentiu-se muito bem e pensou:
"Finalmente estou em paz."
***
Assim que chegou a casa, Antero telefonou para Marilda, que
estava feliz, pois, após refletir muito sobre a sua vida, chegou à
conclusão que estava na hora de se casar. O seu casamento
seria dali a vinte dias. Em rápidas palavras, Antero contou tudo
que havia acontecido com Zuleica. Marilda ficou abismada:
—O que está me dizendo? Foi a Zuleica?
— Sim, só fiquei sabendo hoje e a acompanhei até a delegacia,
e lá ela contou tudo ao delegado.
—Não pode ser! Por que ela faria isso? Você já estava separado
da Fernanda!
—Também não entendi. Ela disse que não queria mais me
dividir e que, ficou com medo que eu voltasse para casa e que
enquanto Fernanda estivesse viva, sempre haveria esse risco.
Ficou com medo de me perder.
—Que loucura! Nunca imaginei que fosse ela! Que Fernanda
não tinha se matado eu tinha certeza, mas que tivesse sido
Zuleica, isso nunca pensei. Ela como está?
—Deixei-a na delegacia e terá que responder a um processo.
Certamente será condenada, pois confessou. No entanto me
pareceu bem, diria até que parecia estar em paz.
—Talvez isso esteja acontecendo por ela ter confessado.
—Acredito que sim, não sei.
—E você, como está?
—Estou arrasado, pois nunca pensei que a minha história
terminaria assim. Tinha toda a minha vida sob controle e, de
repente, tudo mudou e fiquei sem nada, sozinho. Perdi
Fernanda e também Zuleica. O pior é esta sensação de
remorso, porque sei que foi somente por minha culpa que tudo
aconteceu.
—Eu, por minha vez, estou feliz por finalmente ter a absoluta
certeza que Fernanda não se matou e que, de acordo com
aquilo que aprendi, deve estar em um bom lugar. Quanto a
você, não sei o que dizer. Aprendi também que a culpa e o
remorso são sentimentos que só nos fazem mal. Por isso,
acredito que você deva se aproximar de alguma religião, buscar
Deus. Ele, só ele, poderá te confortar neste momento.
—Vou fazer isso, sinto que será bom. Agora vou desligar,
preciso contratar um advogado para defender Zuleica.
Pensando bem, não quer pegar o caso? Afinal, você é uma
advogada.
—Desculpe, mas não pode ser não advogo na área criminal,
mas posso te indicar um amigo meu.
—Gostaria muito. Apesar de tudo, Zuleica sempre me amou e
esteve ao meu lado durante todos esses anos. Não vou
abandoná-la agora.
—Anote o número do telefone dele. Eu ainda não posso
perdoar Zuleica. Fernanda era minha amiga, e não merecia
morrer.
—Também acho, até mais.
—Até mais, Antero.
Marilda desligou o telefone. Fechou os olhos. "Agora, sim,
minha amiga, poderá descansar em paz.Onde você estiver,
receba um beijo e, de acordo com o que aprendi muita luz e
paz. Seja feliz!"
Fernanda, que estava ao lado de Zuleica, viu a luz chegando e a
envolvendo por inteiro, sorriu: "Essa luz eu já conheço, é
Marilda que está pensando em mim . Já deve ter tomado
conhecimento da verdade sobre a minha morte. Obrigada,
minha amiga, por sempre ter estado ao meu lado e nunca ter
acreditado que eu havia praticado o suicídio."
Marilda telefonou para Júlio; após lhe contar tudo que Antero
havia lhe dito, disse:
—Sei que você vai me condenar, Júlio, mas não consigo
perdoar Zuleica nem Antero.
—Eu entendo o que está sentindo e que, agora, não perdoe,
mas, com o tempo, tudo isso passará e você verá que o perdão
é um dos sentimentos mais preciosos que temos. Por agora, só
deve agradecer a Deus por saber que sua amiga não se matou e
deve estar feliz. O resto deixe a cargo do tempo.
—Acho que você tem razão, farei isso.
—Eu estava pensando: não quer ir jantar lá em casa? Afinal,
falta pouco tempo para o nosso casamento e a minha mãe ficará
satisfeita em te receber.
—Irei, sim, adoro a sua mãe. Ela me recebeu muito bem e as
suas crianças, também.
—Sim, elas só querem a minha felicidade. Agora preciso
desligar, está na hora de eu atender a um paciente. Depois te
telefono. Um beijo.
—Outro para você.
Epílogo
Fernanda, junto com outras equipes, ficou ao lado das
prisioneiras, ajudando-as com bons pensamentos e a certeza de
que, um dia, sairiam dali e poderiam recomeçar as suas vidas.
Estava feliz ao ver que Zuleica, aos poucos, se entrosou bem.
Ela começou a dar aulas e ensinar àquelas que não sabiam ler.
De vez em quando, ela se lembrava da morte de Fernanda,
chorava muito e pedia perdão. Fernanda a abraçava com
carinho:
—Zuleica, estou aqui ao seu lado e sei que não tenho que te
perdoar. Entendi que embora você tenha errado ao me matar,
eu também errei muito. Por isso, fique em paz e cumpra todo o
tempo que terá que ficar aqui. Um dia, quem sabe, encontre a
felicidade que tanto procurou e que merece.
Embora Zuleica não a ouvisse ou visse, sentia-se muito bem e
voltava para o seu trabalho, junto das outras detentas.
Fernanda, às vezes, ia ter com Otaviano. Pintava algumas telas
e o acompanhava nas suas idas até aquela casa espírita onde a
senhora, agora, pintava com desenvoltura. Estava junto com
ele, terminando de pintar uma tela, quando Marli entrou
afobada:
—Fernanda, conseguimos! Você pode visitar os seus!
—Posso mesmo? Ver a minha filha, o meu neto, Antero e
Marilda também?
— Eu não sei se poderá ver a todos, mas poderemos conferir.
Você quer ir?
—Claro que sim! É uma pena que não poderei lhes contar de
como estou vivendo e o quanto estou feliz!
—Não poderá lhes contar, mas poderá abraçá-los e ver que eles
também estão vivendo bem.
—Quando iremos?
—Agora mesmo. Nivaldo está vindo para cá, ele vai nos
acompanhar.
—E a Tânia? Ela vai também?
—Não, desta vez não.
—Por que não?
—Ela está envolvida em um trabalho importante, mas não se
preocupe, em breve terá notícias dela. Mas não vamos perder
mais tempo, olhe Nivaldo chegando!
—Olá, Fernanda — disse Nivaldo, aproximando-se — vejo que
está muito bem.
—Estou sim. Muito mais agora que Marli disse que poderei ir
visitar os meus.
—Pode, sim. Finalmente poderá realizar o seu desejo.
—Estou muito feliz, sabe que era o que eu mais ansiava.
—Então, vamos?
Nivaldo e Marli pegaram um de cada lado nas mãos de
Fernanda e desapareceram. Chegaram a uma igreja que estava
toda enfeitada por muitas flores. No altar, um padre rezava uma
missa e, para sua surpresa, Fernanda viu Marilda ajoelhada,
acompanhada por Júlio, que ela conhecera na encarnação
anterior, mas que nesta não havia conhecido. Curiosa,
perguntou:
—O que está acontecendo aqui?! Marilda não está vestida de
noiva, mas parece que está se casando!
—Está sim — disse Marli, sorrindo.
—Não pode ser Marli! Ela sempre disse que nunca se casaria!
Que gostava de viver sozinha!
—Dizia isso porque não havia encontrado o homem da sua
vida. Agora encontrou.
—Meu Deus do céu! Que homem é esse? Ele é lindo!
—Você não o está reconhecendo, mas é Júlio. Finalmente se
encontraram novamente e, agora sim, serão felizes, pois se
amam há muito tempo.
—Estou feliz por ela e não poderia mesmo faltar em uma
ocasião como esta nem poderia deixar de ser a sua madrinha.
Posso ficar ao lado dela?
Marli, que também estava feliz, sorriu, respondendo:
—Claro que pode, foi para isso que te trouxemos.
Fernanda passou as mãos pelos cabelos e roupas para ajeitá-los
e, sorrindo, se colocou ao lado de Marilda, que, sem saber por
que, naquele momento pensou: "Fernanda, minha amiga, é
uma pena que não esteja aqui para ver a minha felicidade, mas
sei que, onde estiver, estará bem e feliz também".
A cerimônia terminou. As pessoas levantaram-se e dirigiram-se
para fora da igreja para cumprimentarem os noivos. Em seguida
foram para um salão de festas. Regiane, a filha de Fernanda,
também estava lá. Aproximou-se de Marilda no exato
momento em que Fernanda também se aproximava. Ao vê-la,
Marilda abriu os braços e a abraçou, dizendo:
—Regiane! Que bom que veio!
—Não poderia deixar de vir, sempre te considerei como se
fosse uma tia. Estou feliz por você estar casando, embora todos
saibam que você nunca pensou que um dia isso aconteceria.
—Tem razão. Mas cheguei à conclusão de que não sabemos
nada desta vida.
—É isso mesmo! A minha mãe, de onde estiver, deve estar
muito feliz. Ela gostava muito de você, Marilda.
—Sei disso. Também estou feliz por ela, pois hoje sabemos que
não praticou o suicídio, mas, neste momento, sinto a sua falta.
Gostaria muito que ela estivesse aqui...
—Também sinto muito a sua falta, ainda mais hoje, depois de
ter tido uma ótima notícia.
—Que notícia, Regiane?
—Hoje, pela manhã, recebi o resultado de um exame, estou
grávida novamente!
—Que bom! Esperamos que agora seja uma menina, pois um
lindo menino você já tem!
—Gostaria também que fosse uma menina, mas Deus é quem
sabe. Qualquer um será bem-vindo.
—É você tem razão, mas o importante é que essa criança vai
nascer; menino ou menina, não importa, será bem-vinda.
—Tem razão, Regiane, mas é uma pena mesmo que Fernanda
não esteja aqui, ela ficaria muito feliz! Não se preocupe de
acordo com que aprendi, ela já deve saber.
Fernanda, que a tudo ouvia, olhou para Marli, surpresa:
—Você me disse que a Tânia seria minha neta, Marli! Só não
disse que seria agora!
—Disse e é verdade. Tânia, agora, está pronta para renascer.
Terá um bom lar, com todo carinho e atenção. Tomara que
desta vez consiga fugir à tentação do suicídio.
—Ela vai conseguir — disse Fernanda, sorrindo, abraçando e
beijando Regiane.
A festa continuou. Fernanda viu Antero chegando.
—Marli! Olhe lá Antero! Mas ele está diferente, parece que
envelheceu vinte anos!
—Envelheceu mesmo. Depois de tudo que aconteceu, ele
repensou a sua vida e percebeu que, por sua covardia, havia
destruído duas mulheres, além de ter perdido o amor da filha.
—O que está dizendo? Regiane não o ama mais?
—Ela ficou magoada depois que tomou conhecimento de tudo.
Acha que ele foi o culpado por sua morte e não consegue
perdoá-lo.
—Isso não pode continuar! Apesar de tudo, ele sempre foi um
pai amoroso.
—Tem razão, mas é preciso dar tempo ao tempo. O
nascimento de Tânia vai aproximá-los. Esperamos que
consigam viver em paz novamente.
Fernanda se aproximou de Antero, beijou-o com carinho.
— Antero, sei que te prejudiquei muito, por isso peço a Deus
que te proteja e que te faça feliz.
Em seguida, olhou para o lado e viu Marilda, que dançava com
Júlio. Aproximou-se, ouvindo o que ele dizia.
— Marilda, felizmente estamos casados e, depois da festa,
embarcaremos para Veneza. Lá, teremos a nossa lua-de-mel.
—Eu não estou acreditando que tudo isso está acontecendo,
parece um sonho, Júlio!
—Está acontecendo, sim — disse, sorrindo e abraçando-a mais
forte — e é um sonho do qual não desejo acordar e espero que
você não acorde também!
Ela sorriu e correspondeu ao abraço, enquanto Fernanda dizia
com lágrimas de felicidade:
—Seja muito feliz, minha amiga! Você merece e, novamente,
obrigada por tudo que fez por mim.
Outra vez, Marilda lembrou-se dela.
— Júlio , sinto falta da Fernanda neste momento.
—O que te garante que ela não está aqui, Marilda?
—O que está dizendo?
—Sabemos que a morte não é o fim e sabemos que ela não
cometeu o suicídio. Portanto, ela pode muito bem estar aqui e,
se ela estiver com certeza também estará feliz.
—Tem razão. Fernanda, minha amiga, onde estiver, receba
toda a luz do mundo, o meu amor e paz.
—Estou recebendo, e obrigada por toda a amizade e a luz que
sempre me mandou.
Beijou os dois e afastou-se. Nivaldo se aproximou:
—Precisamos ir, temos muito trabalho. Agora, dependerá de
cada um encontrar o seu caminho e ser feliz.
FIM
Olá, pessoal:
Estou reenviando o livro A Vida é Feita de Escolhas devido a algumas pessoas ter tido dificuldade de baixar pelo winrar. Agora ele segue em texto e doc.
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