quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

{clube-do-e-livro} Lançamento: A Vida de Joana Dar`c - Érico Veríssimo -Formatos : pdf





Olá, pessoal:
                   Este é mais um livro de nossa campanha de doação  e digitalização de livros para atender aos deficientes visuais.
                   Agradecemos ao Irmão Bezerra pela doação e ao irmão  Fernando  pela digitalização.
                    Pedimos não divulgar em canais públicos ou Facebook. Esta nossa distribuição é para atender aos deficientes visuais em canais específicos.


O Grupo Mente Aberta lança hoje mais um livro digital !
Desejamos a todos uma boa   leitura !

A Vida de Joana D´Arc - Érico Veríssimo

Livro doado por Bezerra e digitalizado por Fernando Santos

Sinopse:
Erico Verissimo publica A vida de Joana d'Arc em 1935, alguns anos depois de mudar-se do interior do estado para Porto Alegre. Desde a publicação de Clarissa, em 1932, o jovem de Cruz Alta já conquistara algum renome como escritor. O livro é a primeira das doze obras dedicadas ao público infantojuvenil que escreveria ao longo da vida.

A linguagem utilizada por Verissimo para contar a história da menina de Domrémy deixa bem evidente o carinho do escritor para com seu personagem, a jovem de dezessete anos ao mesmo tempo forte e frágil, crédula e determinada que realizou o feito quase incompreensível de liderar um exército para defender seu rei.

A história da curta vida de Joana d'Arc — queimada na fogueira como feiticeira aos dezenove anos pelos ingleses — é o ensejo para explicar aos leitores um período complexo da história da França: o da chamada Guerra dos Cem Anos. Tendo Joana d'Arc como foco da narrativa, Verissimo pinta um painel político e histórico capaz de fornecer a seus leitores uma noção bastante clara do período.





 



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{clube-do-e-livro} Lançamento: A Vida de Joana Dar`c - Érico Veríssimo -Formatos : epub e txt

S t v i e Paradid��tica

A Vida

de Joana d'Arc

Erico V e r �� s s i m o

Pequena Biografia

do Autor

ERICO VER��SSIMO nasceu em Cruz Alta, RS, a 17-12-1905, f i l h o

de Sebasti��o Ver��ssimo da Fonseca e Abegahy Lopes Ver��ssimo.

Estudou no C o l �� g i o C r u z e i r o do S u l , em Porto A l e g r e e, de volta

�� c i d a d e n a t a l , t r a b a l h o u p o r a l g u m t e m p o n u m b a n c o ,

t o r n a n d o - s e d e p o i s s �� c i o de u m a f a r m �� c i a . Ali, entre r e m �� d i o s e o n a m o r o c o m Mafalda Halfen Volpe, q u e iria desposar em 1931,

dedicava as horas vagas �� leitura , p r i n c i p a l m e n t e de Ibsen,

Shakespeare, G e o r g e B e r n a r d Shaw, Oscar W i l d e e M a c h a d o de

Assis, que m u i t o i n f l u e n c i a r a m sua f o r m a �� �� o liter��ria.

Em 1930, t e n d o seus p r i m e i r o s c o n t o s d i v u l g a d o s em j o r n a i s da capital g a �� c h a (estreou c o m " L a d r �� o de G a d o " , na Revista do

Globo, em 1928), transferiu-se para l�� e ingressou c o m o redator

na referida Revista. Iria e n c o n t r a r seu lugar certo, p o r �� m , c o m o

secret��rio do D e p a r t a m e n t o Editorial da Livraria do G l o b o , a

convite d o e d i t o r H e n r i q u e Bertaso, c o m q u e m c o l a b o r o u por

l o n g o s anos.

Em 1932, c o m a e d i �� �� o de Fantoches, pela Livraria do G l o b o ,

i n i c i o u sua b r i l h a n t e carreira liter��ria, que viria a alcan��ar, a

partir de 1938, repercuss��o n a c i o n a l e, mais tarde, i n t e r n a c i o -

n a l . J�� em 1934 c o n q u i s t a v a , c o m seu r o m a n c e M��sica ao

Longe,o Pr��mio M a c h a d o de Assis, da Cia. Editora Nacional e,

no ano s e g u i n t e , seu Caminhos Cruzados era p r e m i a d o pela

Funda����o Gra��a A r a n h a . Foi c o m Olhai os L��rios do Campo,

e n t r e t a n t o , q u e seu n o m e se fez largamente p o p u l a r , a t i n g i n d o

a t o d o s os p o n t o s do Pa��s.

Desde 1943, q u a n d o v i a j o u pela p r i m e i r a vez aos Estados Uni-

d o s , e m p e n h o u - s e em d i v u l g a r a literatura e a c u l t u r a brasileira

no exterior, em c o n f e r �� n c i a s e c u r s o s q u e se realizaram nos

mais d i v e r s o s pa��ses ( M �� x i c o , E q u a d o r , Peru, U r u g u a i , Fran��a,

Espanha, P o r t u g a l , A l e m a n h a , e t c ) . Seu prest��gio internacional

c r e s c e u a tal p o n t o q u e , em 1953, p o r i n d i c a �� �� o do Minist��rio

das Rela����es Exteriores do Brasil, a s s u m i u a d i r e �� �� o do Depar-

t a m e n t o de A s s u n t o s C u l t u r a i s da OEA, c a r g o q u e e x e r c e u por tr��s anos em W a s h i n g t o n , D.C.

A t �� 1950 esteve ligado �� Editora G l o b o , na q u a l i d a d e de conse-

lheiro liter��rio, f u n �� �� o q u e n u n c a a b a n d o n o u d e t o d o , e m b o r a mais adiante tivesse p r e f e r i d o voltar-se inteiramente para sua

v o c a �� �� o de escritor, a q u e d e u f o r o s de verdadeira profiss��o,

sustentando-se c o m o s r e n d i m e n t o s d e sua o b r a p u b l i c a d a .

Para a G l o b o , t r a d u z i u t a m b �� m mais de c i n q �� e n t a t��tulos, do

ingl��s, f r a n c �� s , italiano e e s p a n h o l , a l �� m de o r g a n i z a r v��rias

c o l e �� �� e s liter��rias c��lebres, c o m o a Nobel e a B i b l i o t e c a dos

S �� c u l o s .

Sua o b r a l o g o espalhou-se pelo m u n d o , e m t r a d u �� �� e s p u b l i c a -

das nos EUA, Inglaterra, Fran��a, It��lia, A l e m a n h a , �� u s t r i a , M��-

x i c o , URSS, N o r u e g a , H o l a n d a , H u n g r i a , R o m �� n i a e A r g e n t i n a .

No Brasil, r e c e b e u , entre o u t r o s , os p r �� m i o s J a b u t i (1966), J u c a Pato (1967), P e r s o n a l i d a d e Liter��ria do A n o (PEN C l u b , 1972) e o

P r �� m i o Liter��rio da F u n d a �� �� o M o i n h o s Santista (1973), para o

c o n j u n t o d a o b r a .

Viajante a p a i x o n a d o , esteve ainda na G r �� c i a , O r i e n t e M �� d i o e

Israel, e r e t o r n o u v��rias vezes �� E u r o p a e aos EUA. Faleceu

s u b i t a m e n t e , de i n f a r t o , a 28-11-1975, em Porto A l e g r e , q u a n d o

se o c u p a v a c o m o s e g u n d o v o l u m e de suas m e m �� r i a s , Solo de

Clarineta. A c r o n o l o g i a de sua o b r a c o m p l e t a �� a s e g u i n t e :

��� 1932 ��� FANTOCHES, c o n t o s

* 1933 ��� CLARISSA, r o m a n c e

935 -- M��SICA AO LONGE, r o m a n c e

CAMINHOS CRUZADOS, r o m a n c e

--- A VIDA DE JOANA D A R C , literatura infanto-juvenil

936 ��� AS AVENTURAS DO AVI��O V E R M E L H O , literatura i n -

fantil

��� OS TR��S PORQUINHOS POBRES, literatura i n f a n t i l

��� ROSA MARIA NO CASTELO ENCANTADO, literatura in-

fantil

��� UM LUGAR AO SOL, r o m a n c e

937 ��� AS AVENTURAS DE TIBICUERA, literatura infantil

938 ��� O URSO-COM-M��SICA-NA-BARRIGA, literatura i n f a n -

til

--- OLHAI OS L��RIOS DO CAMPO, r o m a n c e

939 ��� A VIDA DO ELEFANTE BAS��LIO, literatura infantil

��� OUTRA VEZ OS TR��S PORQUINHOS, literatura i n f a n t i l

��� VIAGEM �� AURORA DO MUNDO, literatura i n f a n t o -





j u v e n i l


��� AVENTURAS NO MUNDO DA HIGIENE, literatura i n f a n -

til

940 SAGA, r o m a n c e

941 ��� GATO PRETO EM C A M P O DE NEVE, viagens

942 ��� AS M �� O S DE MEU FILHO, c o n t o s

943 --- O RESTO �� SIL��NCIO, r o m a n c e

945 ��� BRAZILIAN LITERATURE, An o u t l i n e

946 ��� A VOLTA DO GATO PRETO, viagens

949 ��� O T E M P O E O VENTO, 1 . Parte:

a

O Continente, 2 vols., r o m a n c e

951 ��� O T E M P O E O VENTO: 2 . Parte:

a

O Retrato, 2 vols., r o m a n c e

954 ��� NOITE, novela

956 ��� GENTE E BICHOS, literatura infantil

(antologia)

957 ��� M��XICO, viagens

959 ��� O A T A Q U E , c o n t o s

2

E R I C O VER��SSIMO

car alegre, as suas ��guas eram azuis como o c��u e se enfeita-

vam de pingos dourados de sol. Brotavam jardins nas margens.

Jardins como o que agora Joana est�� vendo.

Que lindo! Os salgueiros se inclinam para a ��gua. Parecem

mulheres de cabelos verdes se olhando no espelho do rio. Os

olmos est��o perfilados e o vento sacode a sua folhagem rendi-

lhada. Os juncos das margens parecem a cabeleira eri��ada do

sacrist��o da igreja. H�� uma quantidade enorme de plantas aqu��-

ticas que Joana n��o sabe como se chamam. Papai lhe disse o

nome de muitas, mas ela esqueceu. . .

Joana respira forte. Ajoelha-se �� beira do rio, molha os dedos

n��gua e depois encosta-os na testa. Como est�� fresca a ��gua do

rio!

L�� no fundo passam peixes esverdeados. Joana sabe que s��o

trutas. Papai Jacques ��s vezes vai pescar; no jantar servem truta

frita. Joana tem muita pena dos peixes. N��o deviam tirar os coi-

tadinhos de dentro d��gua.. . Todos os bichos ��� os peixes, os

veados, os porcos, as vacas, as pombas e os burrinhos ��� s��o filhos

de Deus. Um pai gosta de ver os filhos maltratados? N��o gosta.

Logo: Deus n��o pode gostar de ver os peixes irem para a panela

de mam��e Isabel. A ��ltima vez que viu uma truta no prato, Joa-

na n��o quis comer. De pena, de pura pena.

Joana se levanta e continua a andar. A estradinha que leva a t ��

a casa de Hauviette se mete moitas a dentro, brincando de escon-

de-esconde. Os passarinhos cantam nas ��rvores. E Joana tem a

impress��o de que todas as andorinhas, todos os pardais e todos

os rouxin��is a conhecem de vista. Quando eles cantam as suas

cantigas que os homens n��o entendem, Joana julga saber o que

os passarinhos dizem. Agora eles est��o perguntando: "Joana,

aonde vais?"E ela, sorrindo, responde assim: "Vou ver a minha

amiguinha Hauviette. Gosto muito dela. N��o temos a mesma

idade, n��o, senhores! Eu tenho nove anos e ela, cinco. Mas n��o

faz m a l . . . Hauviette �� muito boazinha e eu gosto dela!"

Joana segue o seu caminho, sempre pela beira do rio. L�� na

outra margem est�� a aldeia de Maxey. A gente daqui enxerga os

seus telhados vermelhos, os seus moinhos com as grandes p��s

rodopiando ao vento da manh��.

Joana torna a p a r a r p a r a pensar numa coisa muito triste. A

aldeiazinha de Maxey f a z que ela se lembre dos irm��os. Jac-



A V I D A DE J O A N A D A R C

3

quemin mora longe, era Sermaize, com tio Henrique, cura da

par��quia. Mas Jo��o e Pedrinho freq��entam a escola de Maxey

e quase sempre voltam com as roupas esfarrapadas, porque bri-

gam com os outros rapazes da aldeia vizinha. Brincam de guerra.

Atiram-se pedras, atracam-se a socos.

O rosto de Joana fica sombrio ao pensar nestas coisas. Papai

j�� explicou tudo. Os habitantes de Maxey s��o partid��rios dos

borgonheses, isto ��: s��o do lado do Duque de Borgonha. Os de

Domr��my, onde Joana mora com sua gente, s��o do lado dos ar-

magnacs.

Joana n��o chega a compreender bem essas lutas dos grandes.

Sabe que s��o dois partidos compostos de homens ferozes que

vivem sempre em guerras. E os meninos��� maluquinhos!���dis-

cutem e lutam tamb��m. N��o h�� roupa nem cal��ado que chegue

para Jo��o e Pedrinho. Mam��e se queixa muito. Papai j�� pro-

meteu uma surra a cada um se eles continuam a b r i g a r . . .

Joana vai pensando que a sua querida aldeia de Domr��my,

cujo ch��o ela agora pisa com tanto amor, podia ser um para��so

se n��o fossem as guerras. A vida vai correndo muito bem, mas

de repente se ouve um barulho, uma gritarir., um tinido de



4

E R I C O VER��SSIMO

ferros e fica alarmada... Os bichos come��am a gritar nos quin-

tais, os burros zurram, as vacas mugem, os galos fazem um co-

coric�� assustado... As pessoas saem p��lidas de suas casas para

ver o que aconteceu. Saem e encontram homens-de-armas, com

coura��as rebrilhantes, capacetes de a��o, lan��as, espadas, escu-

dos . . . E s��o homens brutos, dizem palavr��es feios, comem mui-

to, bebem canec��es enormes de vinho e n��o pagam nada. Depois

v��o embora levando, o gado pela frente, o gado que roubaram

aos pobres camponeses de Domr��my! E ainda todos d��o gra-

��as a Deus quando os brutos n��o atravessam com suas lan��as

pontudas o corpo de algum habitante da aldeia.

Joana tem certeza de que Deus n��o pode gostar dessas bru-

talidades. E todas as noites ela reza as ora����es que mam��e Isabel

lhe ensinou. O Pai-Nosso, a Salve-Rainha, o Credo... Reza

e pede a Deus que d�� ju��zo e bom cora����o aos homens. Aos ar-

magnacs, aos borgonheses, a todos, t o d o s . . .

A V I D A D E J O A N A D A R C 5

Joana chega �� casa de Hauviette. A amiguinha j�� est�� �� por-

ta acenando para ela com a sua m��ozinha mi��da como um pas-

sarinho.

Abra��am-se.

��� Como vais? ��� pergunta Joana.

��� Vou bem ��� responde Hauviette.

A vozinha dela �� fina e fraca, fraca e suave como o marulho

do rio que Joana ouvia quando estava no ber��o. Hauviette tem

cabelos louros e olhos azuis.

��� Vim te buscar para um passeio.

Hauviette bate palmas.

��� Que bom! Espera aqui que eu vou pedir �� mam��e.

Vai para dentro e volta depressa, pulando de contente.

De m��os dadas as duas amiguinhas se v��o. A cabe��a de Hau-

viette mal chega aos ombros de Joana. E �� um contraste vivo o

vestido vermelho da mais velha com o vestido branco da outra.

��� Aonde �� que vamos?���pergunta Joana.

��� Vamos ver o castelo da ilha.

V��o.

Bem no centro duma ilha formada por dois bra��os do Mosa

ergue-se um castelo de paredes ertegrecidas e altas torres. Ao

redor dele abre-se uma fossa funda. N��o mora ningu��m no ca-

sar��o. Joana sabe que �� uma 'fortaleza abandonada. Contam his-

t��rias de fantasmas...

Hauviette olha com olhinhos assustados.

��� Joana, tu eras capaz de entrar no castelo de noite?

��� Eu? Era.

��� Sozinha?

��� Sozinha.

Hauviette faz uma carinha de incredulidade.

��� N��o tinhas medo?

��� N��o. Quem acredita em Deus n��o tem medo de nada. Ca-

da pessoa tem um anjo da guarda que anda sempre atr��s dela.

��� Anjo da guarda?

Hauviette est�� espantada. Nunca lhe" contaram esta h i s t �� r i a . . .

Ent��o Joana explica que Deus deu a cada criatura um anjo

que serve de protetor, que vai aonde a gente vai, que desvia to-

dos os perigos, que cuida de n��s como a melhor das m��es cui-

daria do seu filho.



6

ERICO VER��SSIMO

Hauviette est�� de olhos arregalados.

��� Mas como �� que eu n��o vejo o meu anjo? ��� Volta-se de

repente, procurando. ��� Como �� que eu n��o vejo o teu? Ser��

que Deus se esqueceu de n��s?

Joana solta uma risada. De dentro duma faia copada um ban-

do de passarinhos desata tamb��m a rir.

��� Bobinha! Ningu��m pode ver o anjo da guarda.

Hauviette fica pensativa. Olha para o castelo e diz:

��� Mas nem com o anjo da guarda eu tenho coragem de en-

trar naquele casar��o de noite.

��� Olha, ��� conta Joana ��� todos os pastores t��m medo dos lo-

bos da floresta. Eu n��o tenho. Eles nunca atacam as minhas ove-

lhinhas. Sabes por qu��? Porque t��m medo do meu anjo da

guarda. Os homens fogem dos lobos porque n��o t��m f�� nos seus

anjos.. .

As duas amigas d��o-se as m��os e continuam a caminhar.

O Mosa canta, acompanhando a menina do vestido branco e

a menina do vestido vermelho.

I I

Q U E F O I Q U E O S G A L O S V I R A M ?

�� NESTA aldeia de Domr��my que Joana vive com seus pais e

irm��os. Um lugar bonito e de apar��ncia tranq��ila. O R i o Mosa

passa perto dela, com suas ��guas transparentes e as suas ilhotas

verdes e floridas.

Entre os habitantes de Domr��my h�� velhinhos risonhos que

contam estranhas hist��rias do tempo em que as fadas andavam

pela terra. . .

O senhor cura n��o gosta dessas heresias. Nos seus serm��es

dominicais, bate no p��lpito e grita:

��� As fadas nunca existiram!

Nos bancos da igreja os velhinhos risonhos se entreolham e

trocam sinais misteriosos, cochichando palavras que os mo��os n��o

entendem.

Pela manh�� os camponeses levam o seu gado a pastar nos

arredores. E o pasto �� rico gra��as ao Mosa que nunca esquece

os amigos que tem nas aldeias que ficam ��s suas margens. Na

esta����o das chuvas ele transborda e invade o vale. Quer tanto

bem �� terra que n��o se contenta com o correr sempre pelo mes-

mo leito. Sente desejo de se espraiar, de abra��ar as colinas, de

chegar ao portal das casas, de acariciar os p��s das crian��as, dos

homens, dos animais. . . E quando se recolhe para o leito antigo,

os prados que ele visitou ficam fertilizados: o pasto cresce ver-

de e tenro. Ficam aqui e ali pequenas lagoas que s��o como que

filhotes do grande rio.

Ao redor de Domr��my erguem-se colinas dum verde suave c

polido. No alto de muitas delas existem florestas de carvalhos.

Florestas onde h�� lobos e encantamentos. As pessoas mais anti-

gas do lugar contam hist��rias espantosas que v��m l�� do fundo

do tempo. Fa��anhas dum certo bruxo que sabia ler o que es-

tava escrito no futuro.. .

O Cura Minet nos seus serm��es dos domingos repete sempre

que um bom crist��o n��o deve acreditar em contos de fadas. Nem





A V I D A DE J O A N A D ' A R C

9

em genios e m��gicos. S�� h�� um Deus Todo-Poderoso com a

sua grande corte de santos e anjos.

Mesmo assim os habitantes de Domr��my olham com certo

temor para o "Bois Ch��nu" que negreja no cocuruto dum ou-

teiro. Dizem que era uma vez um feiticeiro chamado M e r l i n . . .

Quase todas as casas da aldeia t��m telhados vermelhos.

Galos e galinhas, cavalos e burros, ovelhas e porcos se mis-

turam nos quintais. Os vizinhos conversam, falam do tempo e

das colheitas, dos filhos e dos bichos dom��sticos, contam-se his-

t��rias, trocam favores. Entre eles h�� muitos compadres. Quando

uma crian��a nasce, escolhem para ela muitos padrinhos e ma-

drinhas.

Bem no centro da aldeia fica a capela dedicada a S. Remigio.

Tem um vitralzinho com a figura de S. Miguel. Imagens de S.

Catarina e S. Margarida. Um Cristo muito bonito pregado na

cruz. Um sino musical que nos domingos de manh�� chama os

fi��is para a missa e que �� tardinha toca a Ave-Maria. Ao lado

da igreja, o pequeno cemit��rio. Depois do cemit��rio, o jardim,

e finalmente a casa de Jacques D'Are, cuja mulher se chama Isa-

bel. �� um casal muito trabalhador e religioso. A casinha em que

moram �� pequena e modesta: uma porta e duas janelas. O te-

Ihado de pedra desce quase at�� o ch��o, do lado do jardim. No

inverno a fachada fica muito triste: nua e cinzenta. Mas na

primavera as rosas sobem pelas paredes e vestem a casa de bran-

co e vermelho.

Aqui mora a menina Joana. Foi sob este teto que ela nasceu,

na noite de seis de janeiro de 1 4 1 2 . Era o dia da Epifania. Os

camponeses de Domr��my festejavam com alegria a vinda de

Jesus Cristo.

Estrelas no c��u. Janelas iluminadas em Domr��my. Havia can-

tigas e risos em todos os lares. Muitos vizinhos se reuniam

numa casa s�� ao redor da grande mesa do banquete. Segundo

costume muito antigo, tiravam a sorte. Ocultavam dentro de

enorme bolo uma fava. Quem ficasse com a fatia onde estava

metida a fava era aclamado rei e da�� por diante tomava conta

da festa.

Os homens e as mulheres de Domr��my comiam e riam; fa-

lavam muitos deles nos Tr��s Reis Magos que foram levar seus

presentes ao Menino Jesus. De repente os convivas se calaram.

10 ERICO VER��SSIMO

assustados. Acontecia uma coisa fora do comum. Todos os ga-

los da aldeia estavam cantando e batendo asas, furiosamente, co-

mo doidos. Era como se o antigo senhor do castelo da ilha ti-

vesse posto todos os seus pajens a tocar trombetas ao mesmo

tempo. . .

Homens e mulheres sa��ram para fora de casa: queriam ver o

que estava acontecendo. Inc��ndio ou salteadores? Encontraram

so a neve, o frio e o c��u estrelado. Os galos cantavam ainda,

sempre sacudindo as asas.

��� Devem ser os lobos! ��� disse um campon��s.

Armaram-se e foram ao quintal mais pr��ximo. N��o encontra-

ram vest��gio de lobo. Mas viram os galos alvorotados, cocori-

cando, cocoricando. ..

Visitaram outros quintais. A mesma cena.

Que milagre estaria acontecendo? Cada qual dava a sua opi-

ni��o. As comadres tagarelavam. Os homens olhavam para os

lados e para cima, procurando descobrir o motivo daquele al-

voro��o. O senhor cura apareceu e pediu que todos voltassem pa-

ra as suas casas, para as suas festas.

Obedeceram. O padre ficou na rua. A sua batina negra era

um contraste no meio da neve que o luar deixava ainda mais

branca. O reverendo ficou pensando. Porque ele sabia que os

galos sempre adivinham. Cantaram uma noite para anunciar o

nascimento de Jesus.. .

Por fim o senhor cura come��ou a ficar entanguido. Voltou

para casa, pensativo e tr��mulo. Foi rezar. Deitou-se. Custou a

dormir.

Durante duas horas os galos ainda cantaram. Quando fecha-

ram o bico, desceu sobre a aldeia um sil��ncio muito grande. To-

das as luzes de Domr��my estavam apagadas. Todas ��� n��o. Na

casa de Joana D'Arc brilhava uma luzinha amarelada. Acon-

tecia l�� dentro uma coisa muito importante. Vinha ao mundo

uma crian��a. Jacques caminhava dum lado para outro �� porta

do quarto. Jacquemin, Catarina e Jo��o, seus tr��s filhos, dormiam

profundamente, enrodilhados ao p�� do fogo. Na varanda em

torno da mesa havia alguns vizinhos amigos. Estavam silencio-

sos e aflitos.

Mal os galos l�� fora terminaram de cantar, come��ou um chorei

de crian��a dentro do quarto. Os olhos de Jacques brilharam. A

porta se abriu e uma mulher lhe disse sorrindo:

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

11

��� Pode entrar.

��� Jacques entrou, tonto de alegria. Era uma menina.

Foi assim o nascimento de Joana. Deram-lhe tr��s padrinhos

e os tr��s se chamavam Jo��o. Deram-lhe cinco madrinhas e uma

delas se chamava tamb��m Joana.

E a filha de Jacques e Isabel D'Arc cresceu na aldeia com os

porcos e os burrinhos, com as ��rvores e os pardais.

Agora tem nove anos. Quem a v�� pela primeira vez tem von-

tade de perguntar.

��� Quem �� aquele rapazinho vestido de mulher?

Sim, porque Joana tem uma cara de menino, apesar dos ca-

belos escuros e longos, com tran��as, que lhe caem quase at�� os

joelhos. Seus olhos s��o dum azul dilu��do e remoto de c��u de

primavera. O narizinho �� reto e curto. O rosto, mi��do e oval.

A boca parece simplesmente um risco feito com l��pis vermelho.

Joana �� diferente dos demais meninos e meninas de Dom-

remy. Quando est�� no meio deles, brincando, chama mais a

aten����o do que os outros. N��o �� bonita mas tem qualquer coisa

que atrai, que faz pensar. O seu ar tranq��ilo e ao mesmo tempo

resoluto, impressiona. A coragem com que ela leva as suas ove-

lhas at�� a borda dos bosques das colinas, por onde ��s vezes

correm lobos, deixa toda a gente pasmada.

Joana n��o sabe 1er nem escrever. Mas percebe tudo, com-

preende tudo. Tem resposta para as mais complicadas pergun-

tas. Acha solu����o para todos os problemas. Sabe onde fica o

pasto mais maduro. Sabe como conduzir sem extravios as vacas,

os porcos, as ovelhas. Em casa �� muito h��bil nos trabalhos de

agulha. Ajuda a m��e no servi��o dom��stico. E nunca deixa de

fazer o sinal-da-cruz quando o sino da capelinha toca o Angelus.

Aconteceu h�� poucos dias um fato muito curioso. O sacris-

t��o se esqueceu de tocar a Ave-Maria. Joana esperou o som

do sino. Como n��o ouviu nada, foi �� igreja saber o que tinha

acontecido. Com bons modos repreendeu o sacrist��o. E o Pe.

Minet, que tinha vindo para o mesmo fim, achou gra��a da me-

nina e perdoou o sacrist��o.

E assim vive Joana DArc.

Mas.. . que teriam visto os galos naquela fria noite de Reis

do ano de 1412?

I l l

MERLIN, O ENCANTADOR

U M A das madrinhas de Joana ��� a que se chama Jannet Aubrit

��� �� mulher muito supersticiosa. O Cura Minet vive a lhe di-

zer: "A senhora precisa deixar dessas id��ias. As bruxas n��o

existem, estou cansado de dizer. �� pecado acreditar nelas." Mal

a Sra. Aubrit n��o consegue esquecer as hist��rias que lhe mete-

ram na cabe��a quando ela era crian��a.

Vai todos os dias visitar compadre Jacques e comadre Isabel.

Sempre traz novidades: uma nova receita de bolo, um rem��dio

para curar a peste do gado, boatos, mexericos.. .

Hoje a madrinha de Joana chega e n��o encontra os compa-

dres em casa. Foram ambos e mais Catarina visitar um parente

que mora em Sermaize. Joana est�� de caseira. Jo��o e Pedrinho

sa��ram para a escola.

A madrinha senta-se perto da mesa. A afilhada lhe traz um

copo de vinho fresco. A Sra. Aubrit bebe um gole largo e es-

trala a l��ngua. Fica com o rosto muito vermelho, os seus olhinhos

ganham mais lustro.

Muito tesa, com as m��os enla��adas, descansando no colo, Joana

olha para a sua madrinha.

Que Cara engra��ada, a dela! Pisca o olho de quando em

quando. Tem uma verruga na ponta do nariz. Seus dentes s��o

mi��dos e esverdeados.

Mas a menina Joana olha e fica s��ria. N��o �� direito fazer

tro��a dos mais velhos. . .

A Sra. Aubrit come��a a fazer perguntas. Joana responde.

A janela ab��rta enquadra um peda��o de paisagem: o "Bois

Ch��nu" negreja longe.

��� Queres ouvir uma hist��ria bonita? ��� pergunta a madrinha

Joana sacode a cabe��a, dizendo que sim. A Sra. Aubrit ent��o

come��a a contar um dos seus contos prediletos. E tem muito

orgulho nisso, porque a hist��ria fala no grande bosque de car-



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

13

valhos que se avista de Domr��my, no alto duma colina. �� t��o

bom contar casos que se passaram com gentes e coisas nossas

conhecidas...

��� Pois era uma vez um rei chamado Artur (Isto se deu h��

muito, muito tempo.) Esse rei tinha na sua rica corte um con-

selheiro chamado Merlin. E quem �� que tu pensas que era

Merlin? Pois Merlin era um encantador. N��o sabes o q u e �� en-

c a n t a d o r ? Encantador �� um m��gico, um homem que faz bru-

xarias, que tem parte com o D e m �� n i o . . .

Joana se benze. A madrinha solta uma risada e prossegue:

��� Merlin era um homem extraordin��rio. Inventou um p��

m��gico que tinha o poder de destruir os seus inimigos. Merlin

sabia ler o futuro. Merlin conhecia os pensamentos dos homens.

���A voz da Sra. Aubrit agora �� um cochicho leve, leve,���

Merlin era filho do pr��prio Diabo!

14

E R I C O VER��SSIMO

Joana se benze de novo. A madrinha piscou o olho. Enruga o

nariz: a verruga dan��a.

��� O Dem��nio queria transformar Merlin no Anticristo...

��� Que �� Anticristo, madrinha?

��� Anticristo �� o inimigo de Cristo. Anticristo �� o homem

mau que vai aparecer antes do fim do mundo para transformar

a terra num inferno de crime e de impiedade,

Joana torna a se benzer. A madrinha continua:

��� Merlin um dia foi batizado e o Dem��nio levou um logro!

��� A Sra. Aubrit solta a sua risadinha seca. ��� Mas aconteceu

que Merlin caiu na asneira de ensinar as suas artes e encanta-

mentos para a fada Viviana. E a fada Viviana ��� veja s�� que|

ingratid��o!���um belo dia fechou Merlin dentro de um c��rculoj

m��gico, de onde ele n��o p��de sair. ..

Joana escuta atenta. Pausa.

��� Merlin era um profeta.. .

��� Que �� profeta?

��� Profeta �� o homem que diz o que vai acontecer no futuro.

Os olhos de Joana brilham.

��� Merlin f��z uma profecia muito g r a n d e . . . ��� A madrinhas

Aubrit olha para fora, atrav��s da janela aberta. ��� Disse quej

l�� do "Bois C h �� n u " . . . ��� A p o n t a para a mancha escura no ci-j

mo da colina��� .. .l�� daquelas florestas ainda h�� de sair umd

donzela para fazer grandes, grandes coisas...

A voz da madrinha est�� cheia de segredos. Joana fica olhando)

para ela, muito impressionada. A Sra. Aubrit toma mais urra

gole de vinho.

Depois levanta-se, despede-se e vai embora.

Joana fica �� porta da casa, olhando muito fixamente para oi

"Bois Ch��nu" que agora contra o vermelh��o do ocaso parece!

ainda mais preto e misterioso...

IV

NOSSA SENHORA DE BERMONT

A PRIMAVERA prolonga a sua visita.

A menina Joana vive a sua vida. Levanta-se muito cedo, an-

tes mesmo do sol nascer. Auxilia a m��e na arruma����o da casa.

Acorda Jo��o, Pedrinho, e prepara a merenda que eles t��m de

levar para o col��gio. Sai para o p��tio e vai dar de comer aos

bichos.

O sol aparece, vestindo Domr��my dum v��u cor de laranja.

Joana acompanha o pai ao campo. E fica-se a ajud��-lo, mui-

to decidida, no trabalho da lavoura.

Mam��e Isabel permanece em casa com Catarina, enquanto os

dois rapazes v��o para Maxey.

Ao meio-dia, Joana volta para a aldeia. Vem cansada mas

vem contente. Faz o sinal-da-cruz quando passa pela frente da

igreja. E se acontece o Sr. Cura estar �� porta, a menina Joana

lhe sorri gentilmente.

�� tardinha brinca com os irm��os e vizinhos. Al��m de Pedro,

Jo��o e Catarina, h�� outros companheiros. Hauviette, a da ca-

becinha loura. Mengette, que mora na casa fronteira, e que ��s

v��zes vem ajudar Joana nos trabalhos dom��sticos. Zabillet, o

filho de Simonin M u s n i e r . . .

O bando fica cantando e dan��ando ao ar livre. Corre ��s vezes

a beber ��gua na fonte milagrosa ou a fazer ciranda ao redor da

Arvore-das-Fadas.

Neste momento est��o todos reunidos. N��o sabem que fa-

z e r . . . J�� jogaram todos os jogos que conhecem. J�� cantaram

todas as cantigas...

Joana tem uma id��ia:

���Vamos visitar Nossa Senhora?

Todos batem palmas a um tempo:

���Vamos! vamos! vamos!

16

E R I C O VER��SSIMO

Seguem os sete de m��os dadas, pulando, falando e rindo. S��

Zabillet �� que vai triste.

��� Que �� que tu tens, Zabillet?���pergunta Joana, que gosta

muito dc seu pequeno viainho.

��� Estou sentindo uma dor a q u i . . .

Zabillet bota a m��o no peito. Joana p��ra. Os outros conti-

nuam a andar.

��� D��i muito?

��� D��i.

��� Nos vamos pedir �� Nossa Senhora que te fa��a sarar.

Zabillet sacode a cabecinha, triste. E os dois seguem atr��s:

do bando.

A tarde, muito clara e transparente, parece de vidro. Por tr��s:

das colinas verdes e dos bosques negros o horizonte est�� co-

me��ando a se tingir duma poeira douiada e vermelha.

O bando caminha.

��� Vamos ligeiro, antes que anoite��a!���diz um.

Apressam o passo. Joana puxa Zabillet pela m��o. Se ele fos-

se mais pequeno ou se ela fosse mais forte, havia de lev��-la

nos bra��os, como um beb��.. .

Chegam todos a um lugar onde h�� muita sombra. Param,

cansados. A relva aqui �� t��o verde, t��o macia e t��o fresca que

d�� vontade de rolar pelo ch��o.

L�� est�� a fonte. O bando se aproxima dela. A ��gua muito

pura corre com um glu-glu musical. Dizem que esta ��gua ��

milagrosa, cura febres, cicatriza feridas. Brota da terra, �� som-

bra de faias, carvalhos e freixos. Mais para diante, a poucos

passos da fonte, est�� a Capela de Nossa Senhora de Bermont

��� Vamos fazer coroas para Nossa Senhora?���convida Joana

E todos se p��em a apanhar flores no prado. Cada qual qued

ficar com as mais bonitas. Depois de algum tempo todos ele

est��o com os bra��os cheios de flores azuis, vermelhas, amare-

las e alaranjadas.

��� Vamos entrar! ��� diz Joana.

Dentro da capelinha h�� uma frescura ainda maior que a da

sombra das ��rvores. Anda no ar um cheiro de flores murchas

Os sete companheiros ficam parados �� porta.

Joana d�� alguns passos e se ajoelha aos p��s de Nossa Se

nhora. A santa parece uma rainha, com o seu comprido manto

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

17

de seda e a sua coroa refulgente. Nos seus bra��os o Menino

Jesus sorri.

Nossa Senhora de Bermont faz milagres. Os meninos e as

meninas, os mo��os e as mo��as de Domr��my v��m aqui trazer-

lhe pedidos. E Nossa Senhora atende a todos.

Joana come��a a orar. Pede �� santa que d�� sa��de a todos os

seus e que fa��a Zabillet sarar da dor no peito. Suplica-lhe que

mande a papai uma boa colheita e que afaste os lobos e a peste

de todos os bichos de Domr��my. E que n��o permita tamb��m

que os homens de armadura e lan��a ataquem a aldeia, assus-

tem os habitantes e lhes roubem o gado e os v��veres.

Faz o sinal-da-cruz e se ergue. Volta-se para os amigos e diz:

��� Podem vir.

Num minuto os p��s da santa ficam afogados no meio das,

flores.

V

O VIZINHO DOENTE

H O J E �� dia de Joana ficar cuidando dos rebanhos que pastam

no prado, ao p�� duma colina. Enquanto os bichos comem, Joa-

na trabalha no seu bordado. N��o tem medo dos lobos da flo-

resta porque sabe que seu anjo da guarda n��o a deixa aban-

donada. N��o teme as serpentes, porque tem a certeza de que,

se elas vierem, �� para lhe lamber mansamente os p��s.

Quando cansa de trabalhar, Joana conversa com os passari-

nhos que passam voando e piando por cima de sua cabe��a.

�� beira da floresta os porcos comem bolotas de carvalho, fa-

zendo grande barulho. As vacas arrancam o pasto com seus

dentes amarelos, ��� gru-gru-gru. �� um ru��do macio e mon��tono

que d�� vontade de dormir.

Quando chega a hora de voltar, Joana se ergue e leva o gado

para a aldeia. Isso n��o lhe custa. Porque os bichos est��o acos-

tumados e obedecem com docilidade.

Agora ao chegar em casa Joana fica sabendo pela m��e que

Zabillet caiu de cama e est�� muito doente.

��� Mam��e, ��� diz ela ��� eu vou �� casa de Zabillet cuidar

dele.

Mam��e Isabel sorri.

��� Pois sim, minha filha.

Joana vai �� casa de Simonin Musnier.

Zabillet est�� na sua pobre cama desconjuntada. A coberta ��

toda feita de retalhos de diversas cores. O rostinho do doente

est�� t��o p��lido que quase desaparece no branco da fronha.

Joana entra na ponta dos p��s.

Zabillet entreabre os olhos.

��� Joana, ��s tu?

��� Sou eu, Zabillet.

��� Estou doente, Joana.



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

19

��� Eu sei, mas n��o fales.

��� Tu n��o vais embora, sim?

��� N��o vou.

Joana senta-se ao p�� da cama. P��e a m��o na testa de Zabillet,

Parece um forno, de t��o quente. Joana sente uma dor no co-

ra����o. Pobre Zabillet!

��� Joana.

��� Que ��?

��� Conta uma hist��ria pra mim.

��� Pois sim.

Joana conta a hist��ria do nascimento de Jesus.

Depois, a fuga para o Egito, a Virgem Maria com o menino

no colo, montada num burrinho.

Zabillet pergunta:

��� O burrinho era como aquele l�� da tua casa?

��� Era.

Vai anoitecendo. Joana n��o se arreda da cabeceira da cama.

E quando a noite desce, Pedrinho vem perguntar se a irm�� n��o

volta para casa.



2 0

E R I C O VER��SSIMO

��� Diga que eu fico cuidando do Zabillet, ��� responde Joana.

E fica. A noite est�� muito clara. Pela janela aberta Joana v��

l�� longe, iluminado pelo luar, o grande bosque de carvalhos.

Merlin, o encantador, disse que do "Bois Ch��nu" ia sair uma

donzela para fazer grandes, grandes coisas...

Zabillet dorme tranq��ilamente. Joana leva a m��o �� testa de-

le. Agora est�� mais fresca.

Joana continua sentada. Come��a a contar as estrelas mas logo

cansa. Mesmo ela n��o sabe contar al��m de d e z . . .

V��o caindo de mansinho suas p��lpebras. Quando a manh��

come��a a clarear, Joana abre os olhos. Dormiu na cadeira. Est��

com o corpo dolorido.

Ergue-se e sai do quarto na ponta dos p��s.

Na varanda encontra o velho Simonin Musnier.

��� Ele est�� dormindo. Eu volto depois.

A V I D A D E J O A N A D A R C

21

��� Muito obrigado, Joana, ��� sorri o pai de Zabillet.

Joana volta para casa. Tem de acordar os irm��os e mand��-los

para a escola. Tem de vestir Catarina. (Nem parece que ela ��

mais velha.. .) Tem de dar comida para os b i c h o s . . .

As costas lhe doem. Mas n��o faz mal. O cura sempre diz que

Deus quer que a gente seja muito boa e caridosa para com o

pr��ximo. Zabillet n��o �� o pr��ximo? ��. Logo: Deus deve estar

contente com ela.

Antes de entrar em casa, Joana entra na capela.

A luz do sol come��a a atravessar o pequeno vitral onde ful-

gura a imagem de S. Miguel: vestido de armadura, espada na

m��o, asas muito brancas.

Joana ajoelha-se e ora. E como sempre seus olhos pousam

nas suas duas santas queridas: S. Catarina e S. Margarida. O

titio Henrique de Vauthon prometeu contar-lhe um dia a vida

dessas duas santas. Quando papai deixar, ela e Pedrinho v��o at��

Sermaize, para visitar titio e ouvir suas hist��rias.

Joana se levanta e sai da igreja.

O sol inunda Domr��my. As vacas mugem O Mosa e os galos

cantam.

V I

A �� R V O R E - D A S - F A D A S

DOMR��MY tem coisas muito singulares.

L�� para aquelas bandas do horizonte onde o sol se esconde

ao fim do dia, ergue-se uma colina toda coberta de cerrada flo-

resta de carvalhos, onde moram lobos e javalis. �� sombra de

suas ��rvores ��� contam ��� aconteceram muitos encantamentos. A

floresta �� antiga, t��o antiga que ningu��m sabe quantos anos ela

tem.

Ao p�� da colina fica a Fonte-dos-Groselheiros. Contam as

gentes dantanho que o bosque estava cheio de fadas que iam

beber na fonte. Tinham elas uma grande influ��ncia na sorte

dos homens. Possu��am varinhas de cond��o, eram adoradas e

respeitadas. Mas o tempo passou e elas perderam o seu poder

m��gico. Passaram ent��o a viver uma vida simples, como a da

gente da aldeia. Os habitantes de Domr��my e Maxey as con-

vidavam para madrinhas das crian��as que nasciam. As fadas vi-

nham para as festas e comiam sozinhas. Ningu��m via quando

elas entravam; ningu��m percebia quando sa��am.

Havia fadas boas e m��s. E quase todas tinham uma estr��la

de luz na cabe��a. Seus vestidos eram lindos e feitos de fios bri-

lhantes que a gente podia ver mas n��o podia pegar. De quando

em quando uma fada se apaixonava por um cavaleiro. Coitado

dele! Se era valente, passava a ficar medroso. Muitos n��o ti-

nham mais for��a nem destreza para manejar a espada. Outros

ficavam como loucos, s�� queriam viver dentro da floresta en-

cantada.

Isto tudo se passou num tempo mui remoto que nem a ima-

gina����o agora alcan��a.

Mas ainda h�� pessoas em Domr��my que acreditam que as

fadas n��o morreram.

Jannet Aubrit, madrinha de Joana, afirma que viu com os

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

23

seus pr��prios olhos uma fada debaixo daquela grande faia que

fica �� beira do besque, perto da estrada real que vai para Neuf-

ch��teau. E chega at�� a garantir que era a pr��pria Melusina.

Joana conhece a hist��ria de Melusina. Madrinha Jannet lhe

contou num ser��o de inverno, enquanto os lobos l�� fora uiva-

vam para a lua. Foi assim:

Existia, h�� muitos, muitos anos uma fada que casou com o

Rei da Alb��nia e teve uma filha a que deu o nome de Melusina.

Era uma crian��a muito bonita que recebeu da m��e um dom

terr��vel. Todos os s��bados a parte inferior de seu corpo tomava

a forma de uma serpente. Melusina cresceu, ficou uma mo��a

linda como as estrelas. Um dia encontrou o Conde Raimundino

e se apaixonou por ele. O conde ficou tamb��m perdido de amor

pela fadazinha e pediu-a em casamento. "S�� me caso contigo

��� disse Melusina ��� se tu prometeres que nunca procurar��s ver-

me aos s��bados." Raimundino prometeu. Casaram. Foi um ca-

samento deslumbrante. Foram convidados todos os reis e todas

as fadas do mundo. Nunca se viram presentes mais finos.

Os noivos viveram felizes muitos anos no Castelo de Lusi-

gnan, erguido pela magia de Melusina. Mas um belo dia o Conde

de For��t, irm��o de Raimundino convenceu o irm��o de que ele

devia quebrar a promessa. Tentado, Raimundino procurou Me-

lusina num s��bado e descobriu o seu horrendo segredo. Melusina

se transformou imediatamente em serpente e fugiu por uma

janela do castelo, soltando berros de dor. E desde aquele dia,

sempre que a morte rondava o Castelo de Lusignan, Melusina

aparecia na torre, exalando os seus uivos doloridos.

Esta �� a hist��ria da fada Melusina que Jannet Aubrit diz

que viu debaixo da ��rvore-das-Fadas.

Todos os anos, no quarto domingo da Quaresma, os campo-

neses de Domr��my v��o beber na Fonte-dos-Groselheiros e can-

tar e dan��ar ao redor da ��rvore-das-Fadas.

Todas as meninas e todos os meninos da aldeia tomam parte

nas dan��as.

A ��rvore-das-Fadas �� uma faia muito alta e copada. Parece

prata. Quando o sol bate nela, seus troncos, suas folhas e

seus frutos rebrilham. Sua sombra no ch��o �� azulada e fresca.

Dizem que as fadas se re��nem para conversar debaixo dessa

faia antiga.



2 4

ERICO VER��SSIMO

De m��os dadas, homens e mulheres, meninos e meninas, for-

mam rodas enormes a seu redor. Cantam e dan��am. Depois

estendem toalhas na relva e comem as suas merendas sentados

no ch��o.

Para festejar a primavera os homens e as crian��as mais habi-

lidosos da aldeia fazem um boneco de folhagens e de flores.

Joana sempre vai com seus pais e seus irm��os �� festa ao

Dia das Fontes. Dan��a ao redor da faia. Bebe a ��gua das fontes.

Canta e come as merendas.

Mas no ��ntimo ela sabe que as fadas nunca existiram. Se

existiram, n��o tinham nenhum poder. O Cura Minet lhe diz

sempre que s�� Deus e os seus santos �� que podem obrar mi-

lagres.

V I I

J O A N A E OS BICHOS DE NOSSO SENHOR

JOANA agora tem onze anos. Em Domr��my a vida rola. O se-

nhor padre reza as suas missas todos os domingos. Os homens

trabalham, comem, oram e dormem. As comadres fiam, conver-

sam e cuidam de suas casas. Morrem vacas mas nascem ter-

neiros. E cada terneiro que nasce �� mais um amigo para a me-

nina Joana.

Fora disso, escaramu��as e sustos. Correrias, e invas��es. Os

borgonheses lutam com os armagnacs e se estra��alham sem pie-

dade. E os bandos de soldados que se desgarram depois das

batalhas assombram constantemente Domr��my.

Joana neste momento est�� sentada �� beira do bosque cui-

dando das suas ovelhinhas que pastam.

�� o forte do ver��o. Os passarinhos v��m pousar nos ombros,

nos bra��os, nos joelhos e nas m��os da menina. E com os bicos

��geis v��o tirando do c��ncavo do avental dela o dourado farelo

que foi trazido especialmente para eles. Depois que se fartam

de comer, voltam para o mato �� procura dum regato ou algum

oco de pau ou c��lice de flor que tenha guardado a ��gua da

��ltima chuva.

Um rouxinol se p��e a cantar numa ��rvore. Solta algumas no-

ras e cala-se. Joana come��a a cantar tamb��m, imitando. O rou-

xinol torna a tirar mais algumas notas. Joana responde. O pas-

sarinho volta para todos os lados a cabe��a, aflito por descobrir

o outro rouxinol. V�� Joana e voa para ela, pousando-lhe nas

costas da m��o. O rouxinal canta. Joana canta tamb��m. E os dois

fiam num concerto, como se estivessem conversando.

Mas de repente as ovelhinhas come��am a balar e a se acon-

chegar umas ��s outras. O rouxinol, pressentindo algum perigo,

foge. Joana se ergue. As ovelhas tremem e soltam balidos la-

mentosos. Que ser��?



26

E R I C O VER��SSIMO

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

2 7

Joana olha. Um lobo enorme vem saindo do bosque. Corre,

de dentes arreganhados. Seu pelo fulvo est�� incendiado de sol

Parece um dem��nio. O berreiro das ovelhas cresce.

Joana d�� alguns passos para a frente, na dire����o do lobo.

Ela sabe que o seu anjo da guarda n��o lhe faltar��.

O lobo corre para Joana. Seus dentes s��o pontudos e de sua

boca vermelha escorre uma baba branca. Joana caminha sem va-

cilar. P��ra. Espera. O lobo continua a correr. Est�� a cinco pas-

sos da rapariga. Vai saltar. Joana permanece im��vel, olhando

firme para a fera. O lobo rosna. Mas estaca. Olha e o seu olhar

de repente, como se pousasse numa vis��o assustadora, perde o

brilho. E ele vai recuando, sempre com os olhos fitos na cabe��a

de Joana, vai recuando at�� se sumir na floresta.

Joana leva o rebanho para casa. Vai triste, com pena do des-

tino dos lobos. E pensa nos homens que vivem como lobos,

esquecidos de Deus e sempre de dentes arreganhados, prontos

para ferir o p r �� x i m o . . .

VIII

O BURRINHO TRISTE

J O A N A e Pedrinho se preparam para visitar tio Henrique, que

mora em Sermaize, distante quinze l��guas de Domr��my.

Mal o dia come��a a clarear j�� os dois irm��os est��o arrumando

as suas trouxas, porque pretendem ficar alguns dias na casa de

titio.

Viajar em algum dos cavalos de papai, seria perigoso. O ani-

mal pode assustar-se dos lagartos, dos lobos e at�� dos passari-

nhos e jog��-los no ch��o. O melhor �� ir em cima do burrinho

que j�� est�� habituado com eles e com as viagens a Sermaize.

Pedrinho e Joana despedem-se dos pais.

��� Beijos no Jacquemin!���recomenda a m��e.

��� Leva este garraf��o de vinho para tio Henrique! ��� d i z papai

Jacques, metendo um garraf��o de barro no cesto de Joana.

Pedro monta no burrinho. Joana sobe para a garupa.

��� Upa! Vamos!���diz Pedrinho, batendo com os calcanhares

na barriga do burro. O animal come��a a trotar. Joana volta a

cabe��a e acena.

��� N��o esque��a de passar pela casa de primo Perrinet!���gri-

ta o pai.

Joana diz que sim com um sinal.

O burrinho atravessa Domr��my. Aparecem caras ��s janelas!

Os conhecidos abanam:

��� Boa viagem, Joana!

��� Sejam felizes, meninos!

Chegam �� casa de Hauviette, que est�� �� porta e sai correndo

para se despedir da amiga. Seguem depois pela estrada grande

Passam pela ��rvore-das-Fadas e entram no vale.

O sol agora vai alto. �� muito engra��ada a sombra do b u r r �� -

co no ch��o. Pedrinho e Joana conversam animadamente. O ra-

paz fala nos meninos de Domr��my e nas guerras que eles tra-

vam com os de Maxey.

A V I D A D E J O A N A D A R C 2 9

O burrico avan��a. Passam os tr��s por grandes florestas som-

brias onde cantam passarinhos e onde se ouvem mil ruidos mis-

teriosos. Ao entrar novamente no campo, encontram um moinho

de grandes asas escuras girando ao vento.

E o burrico trota-que-trota, trota-que-trota...

Quando a noite come��a a cair eles chegam �� casa de uns mo-

leiros conhecidos. Apeiam e entram. A fam��lia os recebe com

carinho. Pedrinho e a irm�� jantam com apetite e Joana n��o es-

quece de ir levar comida para o seu burrinho.

Aqui est�� ele no est��bulo, tristonho e pensativo. �� um ani-

malzinho peludo, de grandes orelhas que sempre est��o a se me-

xer dum lado para outro. Quanta m��goa nestes olhos gra��dos!

Que ar abandonado o pobrezinho tem! Como parece infeliz!

Ou tudo ser�� apenas cansa��o?

Joana o acaricia suavemente. O burrico arreganha os dentes.

�� o seu melhor s o r r i s o . . .

De noite os moleiros se re��nem na varanda. Joana conta

hist��rias de santos aos filhos do casal.

Depois v��o todos para a cama. No dia seguinte de madru-

gada os dois filhos de Jacques D A r c continuam a sua viagem.

Agora aqui segue o burrinho trotando com as duas crian��as

��s costas.

��� Que ser�� aquilo l��, Joana? ��� pergunta Pedrinho, apontan-

do para uma curva da estrada.

Joana olha. V�� uma grande nuvem de poeira dourada do sol.

Pedrinho puxa as r��deas bruscamente e faz o burrinho parar.

A nuvem de poeira vem se aproximando. Agora se ouve o ba-

rulho de patas de cavalos e o tinir de metais.

��� S��o homens-d'armas!���diz Joana.

��� Tenho medo. . . ��� balbucia Pedrinho, come��ando a tremer.

��� Bobinho! Como �� que n��o tens medo de brincar de guerra

com os meninos de Maxey?

���Oh! Mas aquilo �� guerra de brinquedo...

��� Fica quieto. O nosso anjo da guarda est�� nos protegendo.

A nuvem de poeira se dissipa. Agora a gente pode ver bem

claro os cavaleiros. �� um bando de doze Todos vestidos de ar-

paduras polidas. Trazem lan��as e espadas.

Joana faz o burrico sair da estrada. E os cavaleiros passam

conversando e rindo, fazendo uma barulheira inferna!, como



30 E R I C O VER��SSIMO

uma floresta de passarinhos. Passam e nenhum deles d�� pelos

valentes viajantes de Domr��my. P e d r i n h o burrico tremem

de medo. Mas Joana sorri serenamente.

A cavalgada se some. Os tr��s amigos continuam a viagem.

Joana est�� pensativa, olhando para a cabe��a do burro. Ela

se lembra que foi um burrinho assim como este que ajudou

Nossa Senhora na sua fuga para o Egito. Deus Nosso Senhor

deve ser muito amigo dos burrinhos. E a gente n��o devia sa-

crificar e encher de carga os pobres animais abandonados. Como

�� triste este bichinho! E como vai sacudindo as orelhas para

espantar as moscas!

De repente Joana fica com tanta pena deie que salta para o

ch��o.

��� Que �� isso? ��� pergunta Pedrinho.

��� Vou a p��.

��� Mas estamos longe ainda de Sermaize!

��� N��o faz mal. Vou a p��.

��� Mas por qu��?

��� �� muito peso para ele.

��� Oh!

Contrariado, Pedrinho volta o rosto. Sabe que n��o adianta

discutir com maninha Joana. Ela sempre vence. Sempre tem

raz��o. Sabe tudo, compreende tudo. Tem id��ias extraordin��ria.

No fundo, ele respeita mais a irm�� mais mo��a do que a m��e..

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

31

Joana segue a p��. O dia est�� quente e o ch��o escalda. O

burrico segue agora mais aliviado.

Ao entardecer, depois de fazerem v��rias paradas para des-

cansar e para dar ��gua ao animal e para comer a merenda, eles

chegam a Sermaize.

Tio Henrique recebe-os �� porta de sua casa, com os bra��os

abertos. Jacquemin tamb��m os abra��a com alegria.

Pedrinho chega contando proezas:

��� Encontramos um bando de soldados, ��� diz ele. ��� N��o sa��-

mos da estrada. Voc��s pensam que eu tenho medo de soldado?

Qual! Meti as esporas no b u r r o . . .

Encontra os olhos en��rgicos de Joana e se cala.

A casa de tio Henrique �� muito confort��vel. Tem as paredes

pintadas de branco e seus m��veis s��o polidos e limpos. Tio

Henrique �� um homem alegre e simp��tico.

��� Fiquem �� vontade, meninos! V��o brincar.

Jacquemin e Pedrinho v��o �� casa de primo Perrinet. Ele ��

pedreiro e tem um filho chamado Henriquinho. Os tr��s rapazes

saem pelas ruas de Sermaize procurando mais companheiros pa-

ra fazer um ex��rcito.

Joana prefere ir �� igreja rezar. Ajoelha-se e ora, pedindo a

Deus que proteja todos os burrinhos do mundo.



A HIST��RIA DE S. M A R G A R I D A

�� NOITE tio Henrique re��ne as crian��as para lhes contar his-

t��rias.

��� Que �� que voc��s querem ouvir? ��� pergunta ele, cruzando

as m��os por cima do ventre roli��o.

��� Contos de fadas!���pede Jacquemi

��� Hist��rias de guerras! ��� grita Pedrinho.

��� E tu, Joana?

��� Eu quero ouvir a vida dos santos, ��� responde ela baixinho.

��� Muito bem! Joana ganhou. As fadas nunca existiram, as

guerras s��o contr��rias �� vontade de Deus. Vou contar a hist��ria

de S. Margarida.

Os tr��s pequenos aproximam do cura os seus bancos. Tio

Henrique pigarreia, passa nos l��bios o seu largo len��o verme-

lho e come��a a contar:

��� H�� muitos anos, numa cidade da S��ria chamada Antioquia,

nasceu Margarida. O pai dela se chamava Teod��sio e era sa-

cerdote dos gentios. Voc��s sabem o que quer dizer gentios?

Pois eram os pag��os, os b��rbaros, gentes que adoravam ��dolos

esquisitos, que n��o seguiam a religi��o crist��. Margarida guar-

dava as ovelhas de seu pai e um dia, quando ela j�� tinha quinze

anos, o Governador Olibrius viu a menina e ficou encantado

com a sua beleza. Chegou ao pal��cio e disse aos seus servidores:

"V��o buscar aquela mo��a. Se ela for livre, eu me caso com ela.

Se for escrava, ficar�� sendo minha serva."

"Quando Margarida foi trazida �� sua presen��a, Olibrius lhe

perguntou:

"���Dize-me de onde ��s, qual �� o teu nome e a tua religi��o.

"���Eu me chamo Margarida de Antioquia e sou crist��.

"Olibrius fez uma careta.

"�����Como �� que uma mo��a bonita e nobre como tu pode

adorar o Jesus crucificado?

A VIDA DE JOANA D'ARC

33

"���Jesus vive eternamente, ��� respondeu Margarida com do-

�� u r a .

"Olibrius ficou irritado e mandou a mo��a para a pris��o. No

dia seguinte enviou-a ao seu tribunal, dizendo-lhe:

"���Criatura infeliz, tem piedade de tua pr��pria beleza. Adora

os nossos deuses, porque assim poder��s aproveitar melhor essa

linda carinha que tens. Mas se insistes em adorar o Crucificado,

eu mando rasgar o teu corpo!

"Os olhos de Olibrius fuzilaram.

"Margarida n��o se perturbou e foi com uma grande calma que

respondeu:

"���Jesus morreu por minha causa: eu quero morrer por

Jesus.

"Ent��o o governador mandou amarrar Margarida em cima

dum cavalete. Uns homens fortes e brutos lanharam o corpo

dela a chibatadas. Outros homens mais brutos e mais fortes

ainda lhe rasgaram as carnes com pontudas unhas de ferro. O

sangue come��ou a correr do corpo da mo��a, parecia uma fonte

de ��gua vermelha que jorrava, que jorrava sem parar.

"Os que assistiam ao supl��cio choravam O pr��prio gover-

nador cobriu o rosto com seu manto para n��o ver os rios de

sangue que escorriam daquele corpo puro. Mandou desamarrar

Margarida e lev��-la de volta para a pris��o.

"Deitada num monte de feno na masmorra escura, Margari-

da foi tentada pelo Diabo. Ent��o ela se ajoelhou e pediu a

Deus que lhe fizesse ver o inimigo que tinha de combater. De

repente surgiu diante dela um enorme e horrendo drag��o azul

e amarelo que avan��ou para a devorar, vomitando fogo. Mas

Margarida fez o sinal-da-cruz e o monstro desapareceu.

"Surgiu ent��o o Diabo em figura de homem para tentar Mar-

garida. Chegou, segurou as m��os da mo��a e disse:

"��� Margarida, j�� sofreste demais. Agora precisas fazer o que

Olibrius deseja.

"Mas ela o segurou pelos cabelos, derrubou-o no ch��o e, pon-

do o p�� sobre a cabe��a dele, gritou:

"���Treme, inimigo soberbo, tu est��s sob os p��s duma mulher!

"No dia seguinte, diante do juiz e do povo, ela foi intimada a

adorar os ��dolos. Margarida recusou-se a isso e ent��o o juiz

".andou queimar o corpo dela com tochas ardentes. A mo��a

34

E R I C O VER��SSIMO

parecia n��o sentir a menor dor, o menor mal. Espantado, diante

daquele milagre, o povo todo se converteu �� religi��o da Don-

zela de Antioquia.

"Olibrius mandou decapitar a bem-aventurada Margarida. Foi

assim que ela disse ao carrasco:

"���Irm��o, toma da tua espada e me fere.

"O carrasco cortou-lhe a cabe��a dum s�� golpe.

"E a alma de Margarida voou para o c��u, transformada numa

linda pomba.

"Esta �� a hist��ria de S. Margarida."

Quando o cura termina a narrativa, Pedrinho e Jacquemin

est��o cochilando. Mas Joana, muito atenta e comovida est�� com

olhos fixos no tio.

�� hora de deitar, ajoelha-se diante da cama e come��a a orar.

Agora ela quer ainda mais bem a S. Margarida.

Deita-se e fica por muito tempo ainda recordando a estranha

hist��ria que tio Henrique lhe contou. E dorme pensando em

que seria muito bom a gente se chamar como S. Margarida ���

"Donzela de Antioquia".. .

X

A HIST��RIA DE S. C A T A R I N A

No DIA seguinte os tr��s filhos de Jacques D A r c pulam da

cama contentes e v��o pedir a b��n����o ao tio cura. O Pe. Hen-

rique os aben��oa sorrindo. Jacquemin e Pedrinho saem para

tomar banho no rio.

Joana vai dar de comer ao burrinho. Sermaize �� uma aldeia

pequena como Domr��my. Seus habitantes s��o tamb��m campo-

neses pacatos. Joana conhece muita gente. Passa o dia fazendo

visitas.

Agora ela vai aqui em companhia de duas meninas de sua

idade, rumo do campo. As camponesinhas de Sermaize n��o co-

nhecem Domr��my. Joana lhes conta maravilhas, de sua terra

natal.

��� Temos o Mosa, o nosso rio bonito ��� diz ela.

��� N��s tamb��m temos um rio, ��� retruca uma das companhei-

ras, mostrando o Saulx que corre a poucos metros da estrada.

��� Temos uma igrejinha...

��� N��s tamb��m.

��� Temos a Capelinha da Nossa Senhora de B e r m o n t . . . ���

continua Joana. ��� Temos um castelo grande numa ilha cercada

de f l o r e s . . .

As outras se calam. Porque em Sermaize n��o h�� ilhas com

castelos.

Joana ensina ��s amiguinhas v��rias ora����es e um punhado de

jogos e cantigas. Ficam brincando o resto da tarde.

Quando voltam para a aldeia j�� brilham estrelas. E Joana

verifica que s��o as mesmas estrelas que moram no c��u de Dom-

r��my. Mais tarde a lua cheia se ergue por tr��s do grande bosque

que fica na outra margem do rio. Tamb��m �� a mesma lua que

clareia as noites de Domr��my.



36

ERICO VER��SSIMO

De sua janela, depois da ceia, Joana fica olhando o rio. Tem

a impress��o de que as estrelas se atiraram dentro da ��gua, s��

para alegrar os pobres peixes que vivem no fundo sem poderem

ver as coisas bonitas que Nosso Senhor semeou pela terra.

Tio Henrique sentou-se na sua grande cadeira, assoou o na-

riz com estrondo e agora est�� preparado para contar mais uma

hist��ria.

Jacquemin e Pedrinho bocejam. Joana se aproxima do tio e

pede:

��� Conte a hist��ria de S. Catarina, titio.

O Pe. Henrique conta:

"Era uma vez um rei chamado Costus casado com uma rai-

nha chamada Sabinela. O bom Deus lhes dera uma filha lind��s-

sima, que ganhou o nome de Catarina. Mas de que servia aque-

la beleza se a alma dela era feia? De que valia ter um corpo

bonito se o esp��rito adorava ��dolos grosseiros?

A V I D A D E J O A N A D A R C

3 7

O cura faz uma pausa, fita os sobrinhos, que est��o de olhos

arregalados, e depois continua:

"Catarina cresceu sem conhecer o Deus de verdade. Mui-

tos nobres, condes e bar��es e marqueses queriam casar com

ela. Mas Catarina era ambiciosa e queria mais do que condes,

do que bar��es e do que marqueses.

"Mas um belo dia a menina teve um sonho. A Virgem Maria

lhe apareceu com o Menino Jesus no colo, dizendo: Catarina,

queres tomar este aqui como esposo? E tu, meu suav��ssimo filho,

queres essa virgem como esposa?"

"O Menino Jesus respondeu: 'Minha m��e, eu n��o quero, por-

que ela �� idolatra. Mas se ela consente em se batizar, eu pro-

meto botar no dedo dela o anel nupcial."

"Catarina acordou impressionada. T��o impressionada que na

mesma manh�� foi �� Montanha Negra da Arm��nia procurar o

eremita Ananias. Chegou e disse:

"��� Quero que me batizes. Vou ser esposa de Jesus. ��� E o

batismo foi feito.

"Catarina voltou para casa, radiante de alegria. E um dia, bem

no momento em que rezava sozinha em seu quarto, come��ou, a

ouvir um coro muito suave e muito bonito. Uma luz cresceu,

vencendo a luz do sol e o Senhor se aproximou de Catarina, no

meio de anjos, e meteu-lhe no dedo um anel que era o s��mbolo

daquele casamento espiritual.

"Ora, Max��ncio era Imperador de Roma naquela ��poca. Exi-

gia que os habitantes da Alexandria fizessem sacrif��cios aos ��do-

los. Certa tarde, ouvindo os c��nticos dos sacerdotes e os mugi-

dos dos pobres animais que iam ser sacrificados, Catarina saiu

para a pra��a e, vendo o imperador �� porta do templo, disse:

" ��� Que loucura mandar essa gente render homenagem a ��do-

los! Tu vives admirando esse templo que foi erguido pela m��o

dos oper��rios. Adoras esses enfeites faiscantes que n��o passam

de poeira que o vento espalha. Tu devias antes admirar a terra,

o mar, o c��u, os passarinhos. Devias admirar os ornamentos do

c��u, o sol, a lua e as estrelas. Devias admirar os c��rculos des-

ses astros que, desde o come��o do mundo, correm para o Oci-

dente e voltam para o Oriente, sem nunca cansar. Olha e pensa

em tudo isso. Quem foi que fez todas essas maravilhas? Foi o

nosso Deus, o Deus dos deuses!

38

ERICO VER��SSIMO

"0 imperador depois do sacrif��cio mandou levar Catarina

para o pal��cio. Estava impressionado com a beleza e com a

sabedoria da mo��a. Ent��o chamou os cinq��enta doutores mais

s��bios de todo o Egito e lhes disse:

"���Uma rapariga de espirito sutil garante que nossos deuses

n��o passam de dem��nios. Eu quero que a confundam pela for-

��a de seus argumentos. Se triunfarem sobre ela, farei que vo-

c��s voltem para casa cheios de honrarias.

"Quando soube que ia discutir com os s��bios, Catarina ficou

cheia de medo. Era uma pobre mo��a que n��o tinha nem cora-

gem nem conhecimentos para enfrentar os doutores sabich��es.

Mas um anjo lhe apareceu dizendo:

"���Sou o Arcanjo S. Miguel, enviado de Deus. Venho te di-

zer que sair��s do combate vitoriosa e digna da gra��a de Nosso

Senhor Jesus Critso.

"E a virgem discutiu com os s��bios. Eles afirmavam que era

imposs��vel que um Deus se tivesse transformado em homem

para conhecer a dor. Catarina provou que o nascimento e a

paix��o de Jesus tinham sido anunciados aos gentios e procla-

mados por Plat��o e Sibila."

Neste ponto os tr��s irm��os D'Are se entreolharam sem com-

preender.

"Os doutores ��� continuou o cura ��� n��o tiveram argumen-

tos para responder.

"Voltaram ao imperador para dizer que nunca tinham sido

vencidos por ningu��m, mas que aquela mo��a os confundira.

E confessaram:

"���Em verdade vos dizemos que ela nos encheu de admi-

ra����o. Fala no esp��rito de Deus e n��o ousamos nem sabemos

dizer nada contra Cristo.

"E os cinq��enta doutores ��� vejam s�� voc��s!���se converteram

ao Cristianismo. Furioso, Max��ncio mandou queim��-los em pra-

��a p��blica. Acenderam-se grandes fogueiras. Mas, em sinal de

que aqueles homens morriam pela verdade, os anjos do Senhor

n��o deixaram que suas vestes e seus cabelos fossem atingidos

pelo fogo.

"Max��ncio chamou Catarina e ofereceu-lhe j��ias, o seu pa-

l��cio e os seus escravos, em troca apenas de seu sacrif��cio aos

deuses. Catarina respondeu que pertencia a Jesus.

A V I D A D E J O A N A D A R C

39

"Max��ncio amea��ou-a de morte. Catarina n��o se atemorizou.

Cristo n��o tinha morrido por ela? Pois ent��o ela podia morrer

por Cristo.

"O imperador mandou dois musculosos escravos negros fus-

tigar o corpo da virgem. Toda lanhada e sem for��as, Catarina

foi metida numa masmorra. O rei partiu para uma prov��ncia

distante.

"Aconteceu que a imperatriz, que era pag��, teve uma vis��o

em que S. Catarina lhe apareceu no meio dum clar��o deslum-

brante. A imperatriz recuou, medrosa, n��o ousando erguer os

olhos para a claridade cegante. A santa lhe disse:

"���Eis aqui uma coroa que te mandaram do c��u, em nome

de Jesus Cristo meu Senhor.

"A imperatriz ficou muito emocionada. Chamou Porf��rio, um

bravo guerreiro, chefe dos ex��rcitos e foi uma noite com ele

�� pris��o da donzela Catarina.

"Encontraram-na cercada duma claridade t��o grande que eles

ficaram deslumbrados e ca��ram de joelhos sobre as pedras. Um

perfume maravilhoso se evolava do corpo da virgem. Ela tinha

na m��o uma pomba branca que todos os dias lhe levava ��

pris��o um alimento feito no c��u.

"���Erguei-vos ��� disse ela �� rainha e ao guerreiro ��� n��o vos

espanteis, porque Jesus vos chama.

"A imperatriz e Porf��rio se ergueram e viram Catarina no

meio de um grupo de anjos. A santa tomou das m��os de um

deles uma coroa muito bonita e p��-la na cabe��a da imperatriz.

Era a coroa que simbolizava o mart��rio.

"Voltando de sua viagem, Max��ncio chamou Catarina e lhe

disse:

"���Faze a tua escolha: ou sacrificas e vives ou n��o sacrificas

e sofrer��s tormentos e morte.

"Mandou buscar uma roda guarnecida de dentes de ferro

para amarrar nela o corpo de Catarina. Mas um anjo apareceu

e quebrou a m��quina: fez que ela arrebentasse com tanta for��a

que seus cacos mataram muitos pag��os. Vendo estas coisas, a

imperatriz desceu de seu quarto e repreendeu o imperador, di-

zendo que ele era um monstro de crueldade. Max��ncio, cheio

de raiva, mandou a imperatriz fazer o sacrif��cio aos deuses. Ven-

do que a mulher se recusava a obedecer-lhe, o imperador or-



40

ERICO VER��SSIMO

denou que lhe decepassem a cabe��a, depois de muito tortura-la.

"O corpo da pobre rainha foi levado para fora da cidade.

Porf��rio, cavaleiro fiel, levou-o carinhosamente nos bra��as e deu-

lhe sepultura crist��.

"Ao saber disso, Max��ncio mandou matar Porf��rio e jogar seu

cad��ver aos c��es.

"Chamou depois Catarina e falou assim:

"���Fizeste a rainha morrer com tuas artes m��gicas. Se te

arrependeres, ter��s agora o lugar dela no meu pal��cio. Faze o

sacrif��cio aos deuses, ou oferece a tua cabe��a ao carrasco.

"Catarina respondeu serena:

"���Faze o que quiseres. Eu perten��o ao rebanho de Jesus.

"Max��ncio mandou levar Catarina para fora da Cidade de

Alexandria. Antes de morrer ela ergueu cs olhos para o c��u. N��o

chorava. N��o tremia. O seu olhar era manso. Suas m��os se jun-

taram, brancas como a pombinha que a visitava na pris��o. E

Catarina falou:

"���Jesus, esperan��a e salva����o dos fi��is, eu te suplico que

atendas a todos os que, invocando o meu mart��rio, se dirijam

a ti no momento de aperturas ou na hora extrema da morte.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

4 1

"Uma voz que fez os guardas estremecerem lhe respondeu

com ternura:

"���Vem, minha esposa. A porta do c��u est�� aberta. Prometo

ajudar aqui do alto os que me chamarem por tua intercess��o.

"Assim morreu Catarina de Alexandria, numa tranq��ila sexta-

f��ira de novembro. Hoje ela mora na corte celestial e �� a pa-

droeira das mo��as, das criadas e das fiandeiras."

Quando tio Henrique termina de contar a sua linda hist��ria,

a noite j�� vai alta. Os dois rapazes cochilam. Mas a menina

Joana, de olhos arregalados, fica escutando na sua mente o eco

daquelas palavras que titio disse com sua voz grave e doce.

Joana vai para o quarto e n��o consegue dormir.

Lembra-se de S. Catarina e de S. Margarida. Agora ainda quer

mais bem ��s duas santas.

Elas morreram por amor de Jesus. Foram boas e constantes.

Joana se ajoelha ao p�� da cama e pede a Deus que lhe d�� a

coragem e a f�� que S. Catarina e S. Margarida tiveram na hora

do perigo.

XI

OS HOMENS S �� O M A U S

DE VOLTA a Domr��my, Joana retoma a sua vidinha de sempre.

Vai agora todos os dias �� Igreja de S. Rem��gio. Ajoelha-se

diante das imagens de S. Catarina e S. Margarida e lhes repete o

pedido que fez diretamente a Deus a ��ltima noite que passou

na casa de tio Henrique.

Nos dias em que n��o tem de ir cuidar do gado no pasto, fica

em casa fiando. Mengette, a sua amiga e vizinha, vem ajud��-la

e as duas se deixam estar, uma na frente da outra, conversando,

trabalhando.. .

Roda a roca. O fio �� branco. A tarde �� calma.

��� Papai disse que viu ontem uma fada debaixo da faia,���

diz Mengette.

Joana levanta os olhos.

��� N��o acredito.

��� Oh! Ent��o queres dizer que papai �� mentiroso.

��� N��o �� isso. As fadas n��o existem.

��� Existem. A tua madrinha mesmo j�� viu.

��� Foi engano.

��� N��o foi.

��� Ent��o n��o acreditas em apari����es?

��� N��o.

��� Nem de santos?

��� De santos, acredito.

��� Pois eu n��o.

A roca continua a girar. Um passarinho pia l�� fora. As ami-

gas baixam a cabe��a de novo. Sil��ncio.

Mengette fala:

��� Por que �� que teu pai anda t��o triste?

Joana encolhe os ombros.

��� N��o s e i . . . Deve ser por causa daquela coisa que ele ��

agora.

��� Que coisa?





A V I D A D E J O A N A D A R C 4 3


...��� Eu n��o entendo bem. Deram para ele um cargo.. . Ele

tem ido a Vaucouleurs para se entender com o senhor do cas-

telo. Vai e volta triste. Fala nas guerras. Fala nos impostos.

��� Ah! Eu sei. . . Mas isso n��o �� motivo para andar triste.

Nossos pais v��o para a guerra? N��o. Pois os armagnacs e os

borgonheses que se estripem...

��� Mas �� que os soldados entram aqui e roubam, incendeiam,

matam o gado. Papai vive dizendo que agora ele tem muitas

responsabilidades...

Mengette encolhe os ombros. No fundo ela acha todas as cor-

rerias muito divertidas.

E depois, erguendo os olhos da roca:

��� Tu entendes essas guerras?

Os olhos de Joana entristecem:

��� N��o entendo.

��� Por que ser�� que os homens brigam?

44

ERICO VER��SSIMO

��� Porque s��o maus.

��� �� porque querem mais terras, mais dinheiro, mais gado

mais comidas e mais bebidas.. .

��� Se eles amassem Jesus Cristo, n��o brigavam.

��� E se Jesus Cristo voltasse, ��� acrescenta Mengette ��� eles tor-

navam a pregar o pobre Nosso Senhor numa c r u z . . .

Ficam falando nas guerras. Agora Domr��my n��o tem mais

sossego. Vai tudo muito bem quando de repente surge um bando

de cavaleiros, no meio duma nuvem de poeira. Entram gritando

e assustando os pobres camponeses. ��s vezes s��o soldados do

Duque de Borgonha. Outras, s��o homens do lado dos Armagnacs.

(Joana e Mengette sabem o que ouvem os grandes conversar. . . )

Apeiam. Invadem as casas. Pedem comida. Pedem vinho. Pedem

dinheiro. Revistam arcas e gavetas. Faltam com respeito ��s mu-

lheres. Amea��am os homens.

Mengette conta que ouviu o pai falar num tal Roberto de

Saarbruck, que �� o mais feroz dos chefes. Um homem t��o mau

que acha que guerra sem inc��ndio n��o tem gra��a. Queima sem

piedade as casas dos camponeses, queima florestas, campos, cer-

cas. . . Se fosse poss��vel queimaria at�� os rios.

��� Quem sabe se ele n��o �� o pr��prio diabo?���remata Men-

gette.

Joana Jaz o sinal-da-cruz.

Quando cansam de trabalhar, Mengette se despede da amiga

e volta para casa.

De noite Joana vai para a cama e fica longo tempo de olhos

abertos, pensando nas guerras. Lembra-se de que h�� poucos dias

despertou de madrugada acordada pelo repicar desesperado dos

sinos e pelos gritos dos camponeses. Era um grupo de borgo-

nheses que invadia Domr��my. Levaram boa parte do gado de

papai e ainda por cima o maltrataram.

Joana espiou pela fresta da janela, quando os guerreiros par-

tiram. A noite estava clara de lua. A silhueta dos borgonheses

se recortava contra o c��u cor de violeta. As armaduras, as lan��as

e os elmos brilhavam.

Ela ficou olhando, transida de medo e ao mesmo tempo fas-

cinada. Aqueles homens eram os anjos da morte. Por onde pas-

savam iam deixando a marca brutal de seus coturnos de ferro.

Mas como ficavam lindas ao luar as suas armaduras polidas!

X I I

POBRE DOMR��MY!

UM DIA, certo viajante que ia para Vaucouleurs passou por

Domr��my, apeou do cavalo �� frente da casa de Jacques D'Arc,

entrou, sentou-se �� mesa, comeu p��o com toicinho, bebeu vi-

nho e disse, estralando a l��ngua:

��� Esta aldeia �� um para��so!

Jacques ouviu e calou. Joana ouviu e entristeceu. Realmente

a aldeia estava calma ��quela hora. Um sol muito dourado cla-

reando o casario, o vale, as colinas, os bosques e o rio. Um c��u

muito azul. Um vento fresco perfumado de bosque. Bom vinho

vermelho, p��o gostoso.

O viajante levantou-se, agradeceu, montou a cavalo e partiu,

levando a ilus��o de que Domr��my era o lugar mais tranq��ilo

e delicioso do mundo.

Os que ficaram, os habitantes mesmo da aldeia, bem sabiam

de sua vida. Viviam noite e dia em cont��nuo sobressalto.

Agora tudo piorou.

Antigamente o gado podia pastar livre. Hoje n��o pode.

As raparigas andavam soltas pelo vale, cantando. Hoje n��o

andam.

Os camp��nios viviam alegres. Hoje n��o vivem.

A vida era serena. Hoje n��o ��.

Numerosos bandos de borgonheses burlequeiam pelas terras de

Vaucouleurs. Por onde passam deixam mont��es de cinzas e de

ru��nas. As patas de seus cavalos amassam as flores. As suas lan-

��as trespassam o corpo dos pastores e p��em em fuga os seus

rebanhos. O fogo e o sangue reinam nas terras da Lorena.

Ningu��m mais dorme tranq��ilo na aldeia de Joana.

Jacques D'Arc alugou com os outros homens da vila o caste-

lo da ilha. �� l�� que eles v��o esconder os seus porcos, os seus

46

ERICO VER��SSIMO

cavalos,��� enfim: os seus rebanhos e os seus objetos mais valio-

sos quando se aproxima algum bando de homens armados.

Cada noite postam um alde��o de guarda na torre mais alta

de Domr��my. E ali fica ele sob as estrelas, o cora����o batendo

acelerado, os olhos pregados na estrada. Se alguma coisa reluz

ao luar, se algum foguinho brota longe, o vigia d�� o alarma. E

Perrin, o tesoureiro da par��quia, se pendura na corda do sino

como um doido e come��a a badalar, a badalar, a badalar, acor-

dando a popula����o.

Homens e mulheres saem correndo de suas casas, em trajes

de dormir. Crian��as choram. Porcos grunhem. Galos cocoricam.

Cavalos relincham. Vacas mugem. E cada qual vai levando como

pode os seus bichos para o p��tio do castelo da ilha. E passam

homens arrastando arcas. E mulheres carregando trouxas de

roupa. Crian��as puxando a cabresto o seu cabrito ou o seu ca-

chorrinho de estima����o. Balb��rdia. O Sr. Cura ��� que agora

n��o �� mais o Pe. Jo��o Minet, mas sim o Pe. Guilherme Frontey,

que o substituiu ��� tenta apaziguar a popula����o alarmada. O

sino continua a badalar. Os bichos do Sr. Musnier se misturam

com os bichos do Sr. Aubrir. Os porcos do Sr. Barry se confun-

dem com os do Sr. Royer. O burrico peludo do Sr. d'Estellin

d�� um coice no Sr. Aubert dOurches.

A confus��o dura demorados e angustiosos minutos. S�� cessa

quando todo o gado fica encerrado no p��tio do castelo da ilha.

E depois que o sino se cala e os homens se acalmam, veri-

ficam que o fogo que brilhou longe numa amea��a era simples-

mente a tocha que Jo��o Morel, que vinha de Vaucouleurs, agi-

tava no ar para lhe alumiar o caminho.

Mas muitas vezes o rebate n��o �� falso.

Sob o olho do sol o vigia do alto da torre contempla a es-

trada. De repente longe, longe, apagada, uma nuvem de poeira

sobe da estrada. No meio da nuvem h�� manchas brilhantes que

se movem. N��o h�� d��vida. S��o guerreiros. . .

De novo geme o sino. Os homens, se est��o fora, voltam para

suas casas, apressados. Se est��o em casa, saem para fora. A gri-

taria e a confus��o se repetem. O gado �� encurralado no p��tio

do castelo da ilha.

O bando de aventureiros entra na aldeia. As armaduras ful-

guram ao sol. A cavalgada passa num barulho de metais que

A V I D A D E J O A N A D A R C

4 7

retinem. Os cavalos resfolegam, suas patas brutais v��o derri-

bando os canteiros, as sebes, as gentes... Os guerreiros s��o

maus e riem do medo dos camponeses.

Apeiam. Querem dinheiro. Os seus senhores precisam de re-

cursos para continuar as guerras. Querem bom vinho e boa ca-

ma. E ai de quem n��o tem dinheiro, bom vinho e boa cama!

O pobre Jo��o Morel ficou estendido no ch��o com uma costela

quebrada, s�� porque, atarantado, deu vinagre em vez de vinho

a um capit��o truculento.

Anoitece e muitos dos moradores da aldeia tem de dormir ao

ar livre para dar seus leitos aos soldados. E �� na escurid��o da

noite que explode o fogo dos inc��ndios. Como os soldados riem

vendo o clar��o que se ergue das pobres casinholas que ardem!

E suas caras s��o vermelhas e horrendas como caras de dem��nios.

Quando os bandidos v��o embora, Domr��my fica triste como

um cemit��rio no inverno. (Sim, porque na primavera, verdes e

floridos, at�� os cemit��rios s��o alegres.. . ) . Homens e mu-

lheres choram diante de seus lares reduzidos a cinzas, de suas

lavouras devastadas e de seus rebanhos mortos. Re��nem-se os

chefes de fam��lia e come��am a fazer a lista dos preju��zos. Tantas

casas incendiadas, tantas hortas inutilizadas, tantos homens fe-

ridos. ��s vezes h�� mortos.

O consolo destas pobres gentes �� a religi��o. O cura lhes abre

as portas da casa de Deus. E a igrejinha de Domr��my �� pequena

para conter todos os que a procuram.

O padre fala em Deus, em resigna����o e em recompensa. Os

camponeses se retiram mais aliviados.

E a vida recome��a. Trazem o gado de volta do p��tio do cas-

telo. Erguem-se novas casas. Plantam-se novas lavouras. Os fe-

ridos se curam. Os mortos s��o esquecidos.

E l�� um dia passa um viajante descuidoso, apeia, bebe bom

vinho, come bom p��o, estrala a l��ngua e diz:

��� Domr��my �� um para��so!

E se vai, sem desconfiar de nada.

X I I I

U M A HIST��RIA SEM F A D A S

JOANA olha tudo com olhos espantados. N��o compreende a

crueldade dos homens. Medo n��o sente deles, porque tem f��

em Deus e nos Santos. Mas lhe d�� pena ver a sua pobre aldeia

saqueada pelos soldados malvados.

Joana procura aproximar-se cada vez mais de Deus. Vai ��

igreja todos os dias. Conta os seus pecados ao Pe. Frontey, no

confession��rio. O cura a absolve sorrindo e ela volta para casa

com a alma leve e clara.

O ver��o corre manso e luminoso. O Mosa marulha, as trutas

nadam por entre os juncos e os animais pastam tranq��ilamente

no campo.

At�� quando durar�� esta paz?

Joana vai �� casa de Hauviette. Encontra-a no jardim. Saem

de m��os dadas. Mengette aparece. Depois vem o filho de Si-

m��o Musnier. E o bando vai crescendo.

Chegam �� ��rvore-das-Fadas. Come��am a cantar e a dan��ar

ao redor dela. Joana come��a a fazer grinaldas de flores para

Nossa Senhora de Bermont.

Mas n��o h�� mais alegria nestes brinquedos. As meninas es-

t��o sobressaltadas. Temem ver surgir a cada instante um bando

de soldados.

E os rapazes s�� falam em guerras.

Diz Pedrinho:

��� Hoje o nosso ex��rcito vai tomar Maxey!

��� Vamos queimar a casa do Jer��nimo! ���grita Jo��ozinho com

entusiasmo.

��� Ele disse que era o Duque de Borgonha.

��� Pois sou eu que vou matar o Duque de Borgonha!

Riem. Fazem planos. Pedrinho diz que vai montado no bur-

rinho peludo e armado com uma enorme lan��a de pau.

��� Vou fazer uma armadura com a bacia de folha de mam��e!

��� exclama Sim��ozinho, encantado com a pr��pria id��ia.



A V I D A DE J O A N A D A R C

49

��� Vamos atacar pelo lado do moinho.

��� Primeiro, as bombardas.

��� Depois as setas.

��� Depois a carga de lan��a.

��� Viva o Ex��rcito dos armagnacs!

��� Viva!

��� Viva!

Joana ouve e v�� o que dizem e fazem os irm��os e os amigos.

Seu cora����o se aperta de dor. At�� estes coitadinhos est��o com

as cabe��as cheias de hist��rias de guerras. Os culpados s��o os

grandes, que n��o t��m ju��zo e d��o o mau exemplo. Que Deus

tenha piedade deles!

O bando volta para Domr��my. Separam-se.

Ao chegar a casa, Joana tem a alegria de encontrar l�� tio Hen-

rique, que acaba de chegar de Sermaize.

Caminha para ele sorrindo e pede-lhe a b��n����o.

��� Deus te aben��oe e crie para o bem, Joaninha, ��� diz o

cura.

5 0

E R I C O VER��SSIMO

�� noite, depois da ceia, o Pe. Frontey vem visitar o Pe. Hen-

rique. E ficam os dois e mais Jacques D'Are e Perrin, conver-

sando ao redor da mesa.

Mam��e vem servir p��o molhado em vinho tinto. Joana fica a

um canto, muito atenta ��s conversas.

Tio Henrique conta que Sermaize foi saqueada. E ao falar

nos seus paroquianos maltratados e roubados, as l��grimas co-

me��am a correr-lhe pelo rosto.

O Pe. Frontey fala das ��ltimas pilhagens em Domr��my. Jacques

e a mulher escutam em sil��ncio.

E noite a dentro os homens continuam a falar em pol��tica.

��� Joana, n��o queres ir dormir? ��� pergunta m��e Isabel.

��� N��o, mam��e, eu quero ficar.

Isabel encolhe os ombros. Joana fica.

Os homens falam nas guerras. Dizem nomes de gentes conhe-

cidas e desconhecidas. Nomes complicados, nomes que fazem

medo. Reis, pr��ncipes, duques, condes, capit��es valentes, senho-

res de castelos...

E Joana escuta, sem compreender.

Quando os visitantes se v��o embora, ela chega para tio Hen-

rique e lhe pede, muito humilde:

��� Titio, n��o fique zangado, mas me explique toda essa his-

t��ria de reis e de guerras.. .

O cura sorri.

��� Para que �� que queres saber?

��� Fico muito a f l i t a . . . Veio os homens brigarem e n��o sei

por que �� que eles brigam. Ou��o falar em reis e em tronos e

n��o entendo. Acho que tudo o que existe �� de Deus. N��o devia

haver donos de terras e de castelos. Todos os homens s��o irm��os.

Deus fez o mundo para todas as pessoas. . .

Tio Henrique sorri.

��� Senta-te a��, menina.

Joana senta-se.

Como naquelas duas noites em que contou as hist��rias de

S. Margarida e S. Catarina, o cura de Sermaize limpa a boca com

o seu len��o vermelho e come��a a falar:

��� Olha, minha filha, se eu fosse te contar toda essa compli-

ca����o pol��tica, tu ias ficar morta de sono e no fim n��o enten-

derias nada.



52 ERICO VER��SSIMO

��� Conte, titio, que eu escuto. N��o durmo. Prometo.

��� Bom. Faz de conta que as guerras s��o uma hist��ria de

fadas. . . N��o. Melhor: uma hist��ria sem fadas.

��� Faz de conta. . .

Tio Henrique sorri e come��a:

��� Era uma vez um rei chamado Carlos VI. Um rei t��o esqui-

sito que uns lhe chamavam "O Bem-Amado" e outros "O ma-

luco".

Joana sorri. Tio Henrique continua:

��� Esse rei governou algum tempo a nossa Fran��a. Governou

�� o modo de dizer. . . Quem manda aqui nesta casa �� teu pai

Jacques. Mas quem mandava na Fran��a n��o era o Rei Carlos VI.

Imagina tu, menina, quando o rei maluco chegou aos vinte e

um anos, convidou para seus conselheiros os Marmousets, que

governaram direitinho. Mas esses mo��os, oh!, esses, mo��os.. . ���

O padre faz um gesto desesperado. ��� Esses mo��os perdem fa-

cilmente a cabe��a. O Rei Carlos j�� n��o era muito bom da bola.

Viu riqueza, viu ouro, viu honras, perdeu a cabe��a. Come��ou

a se divertir com loucura e acabou louco mesmo.. .

Joana est�� muito s��ria e muito atenta.

O Pe. Henrique se remexe na cadeira e prossegue:

��� Se teu papai enlouquecesse, que o bom Deus o livre!, que

�� que acontecia? Os meninos n��o iam mais �� escola e mana

Isabel n��o tinha for��a para governar a casa. Todo o mundo se

achava com direito de mandar e desmandar. Pois foi o que acon-

teceu na Fran��a. Todos viram que o rei estava maluco. N��o ha-

via meio de se verem livres dele. Veio a anarquia, a confus��o.

Dum lado o Duque de Borgonha e do outro lado o Duque de

Orl��ans, cada qual queria ficar de dono do pa��s. Come��ou o ba-

rulho. No ano de 1407 Lu��s de Orl��ans foi assassinado.

Pausa. Joana estremece. Tio Henrique prossegue:

��� Por causa dessa morte, estourou a guerra entre os arma-

gnaes e os borgonheses, esta maldita guerra que est�� durando at��

hoje. Ora, o Rei da Inglaterra, o meu xar�� Henrique V, era um

homem muito sabido. ��� O padre solta uma risadinha. ��� Viu a

situa����o e procurou tirar vantagem para si. Fez amizade com

Jo��o Sem Medo, o Duque de Borgonha, e combinou com ele

invadir a Fran��a. Jo��o Sem Medo foi vencedor em muitas ba-

A V I D A DE J O A N A D ' A R C 53

talhas e chegou a tomar Paris, onde ficou governando em nome

de Carlos VI.

O Pe. Henrique tosse. Pela janela Joana v�� brilhar as estre-

las da noite. O vento traz o barulho macio do Mosa, que corre

ao luar.

��� E depois, tio Henrique?

��� Onde �� que eu estava?

��� J o �� o Sem Medo tomou Paris.

��� Ah! Mas o Duque de Borgonha era um homem de cabe��a

esclarecida. Viu que era melhor governar sem inimigos e pro-

p��s a paz aos armagnacs, que tinham em seu poder o Delfim

Carlos, filho do rei maluco. Combinaram um encontro numa

ponte para tratarem da paz. . . Mas esses diabos n��o t��m mesmo

miolo na cabe��a! Pois imagina s��, minha filha, a loucura dos

amigos do Delfim! Em vez de irem calmamente fazer a paz, fi-

zeram uma trai����o, mataram o Duque de Borgonha!

��� N��o diga!

��� Pois �� para tu veres, Joaninha. . .

��� Que gente m a l v a d a . . . ��� J o a n a suspira. ��� E depois?

��� Com a morte de Jo��o Sem Medo, foi o seu filho Filipe, o

Bom que ficou como Duque de Borgonha. Pois o novo Duque

de Borgonha fez uma alian��a firme com o meu xar�� Henrique

da Inglaterra. Fizeram l�� uma combina����o, um tratado, segundo

o qual Henrique V tinha de casar com Catarina, filha de Carlos

VI, para ficar rei da Fran��a. E sabes o que aconteceu?���Joana

sacode negativamente a cabe��a. ��� Pois Henrique V morreu e dois

anos depois morreu o rei maluco, Carlos V I . . .

��� E agora, titio?

��� Agora o filho dele, o Delfim, est�� em Bourgess. Um su-jeito mole, desanimado, sem energia. Est�� l�� atirado e n��o quer

outra vida. Est�� esperando um homem, um homem de verdade

que comande os seus ex��rcitos e leve o Delfim a Reims, para

botar a coroa de rei na cabe��a dele, naquela pobre cabe��a des-

miolada!

��� E ningu��m quer fazer isso?

��� Qual! Os ingleses est��o tomando conta de tudo. O Delfim

n��o tem dinheiro para pagar as tropas. O Duque de Borgonha

tem aliado forte: Duque de Bedford. . .

��� Quem �� esse Duque de Bedford?

54

E R I C O V E R �� S S I M O

��� �� o regente da Fran��a, por parte de Henrique VI da

glaterra.

��� E ent��o, titio?

O cura faz um gesto desanimado.

��� N��o h�� esperan��a! N��o h�� ex��rcito! N��o h�� dinheiro!

h�� intelig��ncia! N��o h�� energia! N��o h�� nada!

Jacques D'Arc, que ouviu tudo em sil��ncio, agora fala:

��� H�� uma profecia que diz que a Fran��a, desgra��ada

uma mulher, ser�� salva por uma donzela.

O cura de Sermaize ergue os olhos para o alto e diz:

��� Se Deus assim quiser, assim ser��.

Joana fica imaginando.. .

XIV





A V O Z LUMINOSA


�� UM meio-dia de ver��o cheio de sol.

Joana tem treze anos.

No seu jardim as rosas e as cenouras se misturam. E o mes-

mo sol que doura as rosas e as cenouras inunda tamb��m as se-

pulturas e as cruzes do cemit��rio da igreja.

Sil��ncio na aldeia. Nuvens no c��u.

Joana est�� im��vel, pensando. Seus olhos se acham voltados

para a estrada de Vaucouleurs mas seu esp��rito est�� olhando pa-

ra Deus.

De repente, �� direita dela, no meio da grande luz do meio-

dia chameja uma claridade maior, mais branca, mais brilhante,

uma claridade t��o grande que Joana fica tonta por um instante.

E, saindo inexplicavelmente do meio da claridade, chega aos

ouvidos dela uma voz que Joana nunca ouviu. Uma voz clara,

uma voz luminosa que lhe diz:

��� Eu venho de Deus para te ajudar a ter um bom compor-

tamento. S�� boa, Joaninha, e Deus te ajudar��.

Joana come��a a tremer de medo porque a voz que ela ouve

sai dum corpo que n��o se v��. �� a voz da luz, desta luz que cega,

desta luz que vence o pr��prio clar��o do sol.

A menina Joana treme da cabe��a aos p��s. Tem a impress��o

de que est�� pairando no ar, como um anjo ou um passarinho.

Depois que a luz se apaga ela se encontra de novo sozinha no

jardim silencioso, entre as cenouras e as rosas. N��o diz uma pa-

lavra, n��o faz um gesto.

Fica assim alguns minutos.

Depois vai para casa muito quieta e se mete no quarto sem

falar com ningu��m.

A noite chega. Joana teza, ajoelhada ao p�� da cama. Deita-se.

N��o consegue dormir. As horas passam. Ela pensa.. . Os ga-



56 E R I C O VER��SSIMO

los cantam. Um novo dia amanhece. Joana levanta-se apreensiva,

pensando ainda na voz luminosa. Vai �� igreja. O sol da manh��

ilumina o pequeno vitral. Ali est�� o Arcanjo S. Miguel com a sua

armadura lampejante e a sua espada de ouro.

Joana se ajoelha e reza. Depois fica olhando muito tempo

para as imagens de S. Catarina, S. Margarida e S. Rem��gio.

�� sa��da da igreja encontra Mengette.

��� Joaninha, vamos brincar?

��� N��o, Mengette, eu n��o quero brincar.

A V I D A D E J O A N A D A R C

57

��� Mas que tristeza �� essa, menina?

��� Nada, Mengctte. N��o fiques zangada, sim? Eu quero estar

sozinha.

Joana fica a s��s com seus pensamentos.

A voz luminosa n��o lhe sai da mem��ria. Ser�� mesmo que

Deus, o grande e bom Deus teve a imensa bondade de lhe man-

dar um recado, a ela pobre camponesinha humilde e sem im-

port��ncia?

Passam-se os dias. ��s horas das refei����es, pai Jacques e M��e

Isabel notam que a filha est�� diferente.

��� Que �� que tens, minha filha?���pergunta ele.

��� Nada, papai.

��� Est��s sentindo alguma coisa, Joaninha?���pergunta a m��e.

��� Nada, mam��e. Estou bem.

Joana vai ao confession��rio. Volta para casa, pega a sua roca

e fica fiando, fiando e pensando, pensando e fiando. . .

E um dia, no mesmo lugar do jardim, outra vez surge o cla-

r��o. Joana estremece. A voz luminosa lhe diz:

��� S�� boa, Joaninha!

Ela se volta, atarantada, e n��o enxerga ningu��m. O clar��o se

apaga. E por tr��s dele fica s�� a parede branca da igrejinha.

Com o cora����o aos pulos Joana entra em casa.

�� tarde leva os porcos para as bordas do bosque de carvalhos.

Vai distra��da, de olhos postos no c��u. Se os bichos quisessem

podiam se dispersar, podiam fugir. Mas os gordos porquinhos

de Jacques D'Arc querem bem �� sua guardadora e seguem pela

estrada muito disciplinados, bem como os soldados do Duque

de Borgonha, quando entram nas cidades conquistadas.

Enquanto os animais mastigam as bolotas de carvalho que

juncam o ch��o, sentada numa pedra, Joana fica pensando na

voz luminosa que ela n��o sabe donde v e m . . .

X V

AS VIS��ES QUERIDAS

O VER��O vai forte. O Mosa refulge nos dias claros, como a ar-

madura dum guerreiro. Os lagartos pregui��osos saem para os,

descampados para tomar sol. Os sapos verdes coaxam nos char-

cos uma cantiga que d�� sono. As nuvens muito brancas se amon-

toam no c��u: parecem grandes montanhas de neve. O ar est��

cheio de insetos de asas transparentes, as abelhas voam e zum-

bem e fulguram, como se fossem de ouro.

Joana se acha agora no seu jardim. Est�� agachada sobre um

canteiro quando de repente o clar��o aparece. E a mesma voz

lhe diz:

��� Joaninha, s�� boa!

A menina se volta. Oh! Agora ela v�� uma vis��o resplande-

cente. Esfrega os olhos. Pisca. Torna a esfreg��-los. Depois os

abre bem e fica olhando. Quer dizer uma palavra mas a voz lhe

falta. Dentro do clar��o est�� um lindo guerreiro, metido na sua

armadura polida. O belo cavaleiro tem uma grande espada na

m��o direita e um escudo na esquerda. Uma coroa de ouro cir-

cunda o seu elmo, que lampeja. O rosto dele mal se enxerga

por causa da luz que o inunda. Mas Joana sente que �� um lin-

do rosto de anjo. Sim, de a n j o . . . Ela est�� conhecendo este so-

berbo capit��o.. . Ela o conhece...

S. Miguel! Oh! o arcanjo S. Miguel!

Os olhos de Joana se turvam de l��grimas.

Sereno, o arcanjo lhe fala:

��� S. Catarina e S. Margarida vir��o a ti, Joaninha. Segue os

conselhos que elas te derem, pois as santas te dir��o �� que tens

a fazer. -Deves acreditar em tudo o que disserem. Todas estas

coisas se fazem por ordem de Nosso Senhor.

S. Catarina e S. Margarida v��o aparecer para ela? Oh! Joana

sente um desfalecimento.



A V I D A DE J O A N A D A R C

59

60

ERICO VER��SSIMO

A vis��o desaparece. E a filha de Jacques D'Arc fica de joe-

lhos, de m��os postas com a alma iluminada por aquela clari-

dade do c��u.

Que alegria! Ver a suas santas queridas, ouvir a voz d e l a s . . .

Ser�� poss��vel? Ser�� poss��vel?

Ergue-se, toda tr��mula. Caminha para casa. T e m a impress��o

de que seus p��s n��o tocam no ch��o. Parece que vai volitando

como uma pomba, como uma andorinha. N��o sente que tem

um corpo: �� toda alma.

Deve dizer ao pai o que viu? Deve contar �� m��e, aos mani-

nhos? N��o. Eles h��o de dizer, rindo:

��� Menina boba, tu est��s mentindo. . .

N��o. Melhor �� guardar o segredo. S�� contar�� se o anjo lhe

der ordem.

E Joana passa o dia contente como se estivesse morando no

para��so. Em torno dela os grandes falam em guerras, em morte,

em inc��ndios e roubos. Os homens lamentam a sorte do pobre

delfim que est�� metido em Bourges, sem um capit��o forte que

lhe dirija os ex��rcitos e o leve a Reims para ser coroado.

E Joana pensa assim: Se o Delfim tivesse a seu lado um ca-

pit��o valente e forte como S. Miguel, suas tropas sairiam vito-

riosas. . . Os ingleses seriam expulsos e na Catedral de Reims

(disseram-lhe um dia que �� uma catedral imponente, enorme)

um bispo de roupagens deslumbrantes haveria de p��r-lhe na

cabe��a a coroa do Reino de Fran��a. . .

Passam-se alguns dias. Joana agora vai ainda com mais fre-

q����ncia �� igreja. E depois da Capela de S. Rem��gio, o lugar mais

agrad��vel para ela �� o pequeno jardim de sua casa onde viu e

ouviu o Anjo.

Chega o momento em que a promessa de S. Miguel se cumpre.

S. Catarina e S. Margarida aparecem para Joana. �� um dia

sombrio de c��u cinzento.

A pobre menina sente que suas for��as lhe faltam. Se n��o cai

decerto �� porque as m��os de seu Anjo da Guarda a amparam. . .

Com os olhos muito abertos de espanto, Joana v�� as suas

santas queridas.

Elas t��m longos vestidos de rainhas. Trazem na cabe��a co-

roas de ouro crivadas de pedras preciosas que brilham como es-

trelas. Joana quer ver bem as fei����es delas. Mas n��o consegue.



porque a luz que os rostos santos irradiam �� t��o grande que

deixa a gente quase c e g a . . .

Joana se ajoelha. Vai se arrastando de joelhos e se aproxima

das vis��es. Toca a ponta de seus vestidos, beija-os com fervor.

Oh! Vem das santas um perfume suave e bom, mais suave e

melhor que o perfume das flores, que o perfume dos bosques

depois das chuvas da primavera.

Joana est�� deslumbrada. E quando a voz lhe volta, ela diz:

��� Oh minhas santas queridas! Eu prometo que n��o hei de

me casar como as outras mo��as. Quero me dedicar toda a Je-

62

E R I C O V E R �� S S I M O

sus. . . Como a senhora, S. C a t a r i n a . . . ��� como a senhora tam-

b��m, S. Margarida.

Quando as imagens se apagam, e s�� fica o branco da parede

da igreja, Joana come��a a chorar. Ergue-se e vai para o quarto.

N��o conta a ningu��m nada do que viu e ouviu.

E nos dias que seguem ela vive a esperar nova visita das suas

santas.

S. Catarina e S. Margarida voltam. . .

Joana as conhece pela maneira como elas cumprimentam. E

tamb��m as santas conversam e se chamam pelos nomes. Surgem

no jardim cercadas de anjos.

D��o conselhos:

��� N��o deixes de ir �� igreja, Joana.

��� Segue os mandamentos do Senhor.

��� S�� boa, Joaninha.

Outras vezes, indo �� Fonte-dos-Groselheiros com as suas ami-

guinhas, Joana l�� encontra as suas vis��es queridas. As outras n��o

v��em nada. Ficam s�� muito admiradas do jeito esquisito da

companheira.

E assim correm os dias da menina Joana em Domr��my.

Ela continua a levar seus rebanhos para a beira da floresta.

E l�� tamb��m as santas lhe aparecem. Antes delas surgirem,

ouve-se um farfalhar no arvoredo, o rebanho fica ligeiramente

inquieto e depois a luz brota contra o verde dos carvalhos. . .

Muitas vezes as vozes dos sinos que tocam as matinas ou as

completas se misturam com as vozes dos c��us.

Onde estar�� S. Miguel que agora n��o aparece mais?

Ter�� desconfiado de alguma coisa? ��� pensa Joana, aflita.

E mal ela acaba de pensar isto o arcanjo surge no meio dum

grande clar��o.

Surge e lhe diz da grande pena que tem do pobre Reino de

Fran��a, desta pobre terra sem rei e sem lei.

E a menina Joana se vai habituando ��s vozes e ��s vis��es do

c��u. J�� n��o se perturba quando as v�� e ouve. Escuta-as com cal-

ma e com alma. Procura seguir todos os conselhos que os santos

lhe d��o. E sente um peso no cora����o quando as vis��es desapa-

recem.

XVI

UMA VIDA N O V A

MENGETTE chega e diz:

��� Joana, vamos apanhar groselhas no bosque?

��� N��o, Mengette, eu quero ficar sozinha.

Hauviette aparece e convida:

��� Joana, vamos cantar ao redor da ��rvore-das-Fadas?

��� N��o, Hauviette, eu quero ficar sozinha.

E Joana fica. Em casa todos pensam que ela anda doente. E

no entanto a menina nunca teve sa��de melhor. Todos acham que

ela �� infeliz. E no entanto nunca em sua vida Joana se sentiu

mais venturosa.

Suas visitas �� igreja redobram.

Agora ela vem saindo da Capelinha de Nossa Senhora de

Bermont. As crian��as da aldeia est��o bebendo na fonte ou can-

tando e rindo ao redor da ��rvore-das-fadas.

Quando Joana passa de cabe��a baixa e ar s��rio os outros fi-

cam rindo dela. E alguns gritam, com vozinhas de falsete:

��� Olha a carola!

��� Vejam s�� a santinha!

��� Qualquer dia cria asas e sai voando como os anjos!

��� Ela est�� mas �� maluquinha!

Risadas. Gritos. Algazarra.

Mas Joana sorri e segue o seu caminho sem voltar o rosto,

cem dizer palavras.

Agora a sua vida mudou. Sua alma �� forte. Ela tem f�� nos

santos. Ela tem pena da Fran��a. Em coisas que antes n��o pen-

sava, agora pensa.

Ontem era uma pastorinha despreocupada que n��o sabia das

coisas. Pouco lhe importava que a Fran��a estivesse sem rei.

Pouco se lhe dava que os ingleses estivessem tomando conta de

tudo.



64

ERICO VER��SSIMO

Agora n��o. Os santos aparecem e lhe dizem que a Fran��a ��

infeliz e que a gente deve ter pena dela.

Joana est�� vivendo uma vida nova. Cumpre as suas obriga-

����es de boa filha. Cose e fia. Lava os pratos. Cuida da merenda

dos irm��ozinhos que v��o �� escola de Maxey. Leva os porcos, as

ovelhas e as vacas para o pasto. Visita os conhecidos. Mas a sua

vida mesmo, a vida de sua alma est�� toda dedicada a Deus.

Todos fazem tro��a dela. Todos, menos o cura. Todos dizem

que ela vai acabar maluquinha. Uns garantem que �� doen��a. .

Coitados! Eles n��o sabem das vis��es, eles n��o viram nem ouvi-

ram n a d a . . .

E assim os meses se v��o. Domr��my vive num sobressalto sem

fim. Os bandos aventureiros continuam a aparecer. A aldeia so-

fre. Os soldados chegam e destroem. V��o embora gritando e

cantando. Os camponeses se dedicam mais uma vez �� recons-

tru����o paciente. E a vida recome��a.

A V I D A DE J O A N A D A R C

6 5

Um homem disse que �� o fim do mundo. Outro declarou que

tudo est�� perdido.

Mas ela, Joana, tem f��. Os anjos do c��u est��o se interessando

pela sorte da Fran��a.

Tr��s vezes por semana as santas lhe aparecem.

E agora lhe dizem coisas estranhas. Assim:

��� Filha de Deus, �� preciso que deixes a tua aldeia e v��s para

a Fran��a.

Mas para qu��? Com que fim? Ela simplesmente n��o com-

preende. . . Ser�� que as santas querem que a pobre Joana de

Domr��my fa��a alguma coisa pelo Delfim? Oh! N��o �� poss��-

vel. . .

Joana fica horas e horas pensando na ordem que veio do c��u.

Deixar Domr��my e ir para a Fran��a. Ser�� poss��vel?

A profecia rezava: "A Fran��a, desgra��ada por uma mulher,

ser�� salva por uma donzela." Sim, diziam que essa donzela ha-

via de sair das fronteiras da Lorena. Domr��my est�� justamente

nas fronteiras da Lorena. Oh! Mas n��o �� poss��vel!

E como a d��vida �� uma tortura, Joana vai rezar na igreja.

E aqui ela passa a maior parte de seu tempo. Aqui, ajoelhada

ao p�� das imagens.

Papai Jacques j�� se queixou ao Sr. Cura. O Sr. Cura sorriu,

porque n��o v�� pecado na devo����o da menina.

Papai Jacques disse que ultimamente Joana j�� n��o cuida com

o mesmo amor os rebanhos, j�� n��o �� a mesma no servi��o da

casa. S�� pensa nos santos, nas ora����es, no confession��rio. . .

E assim os anos passam.

O tempo �� uma coisa misteriosa. T��o misteriosa que n��o tem

para todas as criaturas a mesma dura����o. Para uns �� mais curto,

para outros, mais longo. H�� minutos que duram anos. H�� anos

que parecem minutos.

Para o vigia da torre, que fica olhando a estrada para dar

alarma guando avistava soldados armados, as horas de guarda s��o

s��culos, para a menina Marianne e o jovem Paulo, os namora-

dos que v��o colher frutas no bosque de m��os dadas, as horas

s��o segundos que se escoam depressa.

Assim para Joana que v�� os santos da corte de Deus, o tempo

nem existe.

Os dias, as semanas e os meses fluem sem que ela sinta.

66

ERICO VER��SSIMO

Os santos lhe aparecem sempre com ordens estranhas.

E, em sua grande humildade, ela responde:

��� Eu sou uma pobre menina que n��o sabe andar a cavalo

nem g u e r r e a r . . .

Mas as vozes insistem:

��� Filha de Deus, �� preciso que deixes a tua aldeia e que v��s

para a F r a n �� a . . .

E neste sonho vive Joana. Mais com os santos do c��u do que

com as gentes de Domr��my.

Ela n��o sabe quando um dia acaba e outro principia. As se-

manas nascem, envelhecem e morrem. Assim os meses. Assim

os anos.

XVII

O SONHO DE JACQUES D A R C

A TARDE �� doce. Por cima das colinas h�� uma grande lista ver-

melha pintada no c��u. As sombras s��o arroxeadas. O vento ��

manso.

Aqui vai Joana �� rabi��a do arado. Os cavalos est��o suados do

trabalho do dia: seus corpos ofegantes reluzem ao ��ltimo sol.

�� beira do rio as raparigas cantam. Seus vestidos s��o colo-

ridos. Elas jogam flores para o ar e dan��am. S��o mo��as e tem

namorados. O Mosa canta com elas. Os peixes dan��am. As som-

bras escutam. Os vaga-lumes farfalham. Os vaga-lumes come��am

a luze-luzir no campo enquanto as primeiras estrelas brincam

no c��u de imitar os vaga-lumes. Os cavalos caminham. O arado

rasga a terra. Joana segue pensativa. A seu lado Jo��o Waterin,

seu companheiro de lida, trabalha e canta. Tem cabelos louros,

cara tostada, olhos azuis de crian��a. Conversa muito, gosta de

dan��ar com as raparigas da aldeia e diz sempre que um dia

h�� de ser senhor dum castelo grande e fortificado.

Agora aqui vai ele, cantando uma can����o alegre. Suas roupas

est��o esfarrapadas, mas Jo��o Waterin julga-se um rei. Quem o

v�� assim caminhando contente, de cabe��a erguida e passo firme,

dir�� que ele �� o dono de Domr��my!

Joana n��o v�� nem ouve o companheiro. Seus olhos est��o vol-

tados para o c��u.

Cansada, ela p��ra e senta-se numa pedra, enxugando a testa

com o len��o. Jo��o p��ra tamb��m. Os cavalos resfolegam. L�� em

baixo �� beira do rio as raparigas continuam a cantar.

Contra o c��u claro Joana v�� desenharem-se os seus vultos

queridos. S. Catarina e S. Margarida aparecem numa nuvem de

ouro. O seu perfume domina o perfume dos campos, que ��

mais ativo nesta hora do escurecer. O azul de seus man-

tos �� mais suave que o azul do c��u da noitinha. A coroa de suas



68

ERICO VER��SSIMO

cabe��as t��m pedras que brilham mais que os vaga-lumes e as

estrelas.

Joana escuta as vozes amigas.

��� Toma o estandarte em nome do rei do c��u, ��� elas lhe di-

zem��� toma-o com coragem, que Deus te ajudar��.

As santas desaparecem. Suas palavras ficam ecoando na me-

m��ria de Joana como uma m��sica encantada.

��� Eia, Joana! Que �� isso?

Jo��o Waterin gesticula. Joana desperta. Ergue-se.

��� A noite chegou. Vamos embora.

Jo��o desatrela os cavalos e desce cantando para o rio. A me-

nina Joana volta para casa.

�� hora da ceia todos se re��nem. Falta uma pessoa. �� Cata-

rina, que casou o m��s passado com Collin de Greux e agora

mora na aldeia vizinha, do outro lado do riacho.

Papai Jacques est�� preocupado. Diz que o Sr. Roberto de

Saarbruck o obrigou a assinar, em nome da aldeia, um papel

A V I D A DE JOAN'A D A R C

69

pelo qual ele fica comprometido a lhe pagar muito dinheiro por

ocasi��o das festas de S. Miguel, para que os soldados daquele

senhor defendam Domr��my dos salteadores e aventureiros.

Mam��e Isabel queixa-se dos filhos. Pedrinho e Jo��ozinho sem-

pre voltam do col��gio de Maxey todos lanhados, ��s vezes san-

grando, e com as roupas sujas de lama. Continuam a brincar de

guerra com os rapazes da aldeia vizinha. Sempre a mesma his-

t��ria de borgonheses contra armagnacs.

Joana nada ouve e nada v��. Seu pensamento est�� voltado para

Deus e para os santos.

Ela n��o esquece as palavras de S. Catarina e S. Margarida.

��� Toma o estandarte em nome do Rei do c��u, toma-o com

coragem, que Deus te ajudar��.

Mas como ela h�� de fazer isto se �� uma pobre rapariguinha

que n��o sabe andar a cavalo, que n��o sabe guerrear?

Na cama Joana torna a pensar na estranha ordem. As vozes

n��o cessam. Joana, vai para Fran��a! Joana, toma do -estandarte!

Joana, tem pena da Fran��a que est�� sem rei!

Joana adormece pensando nos santos.

No dia seguinte encontra o pai de cara sombria.

�� hora da primeira refei����o ele conta o sonho horr��vel que

teve:

��� Sonhei que vi a Joana sair a cavalo com os soldados, ves-

tida de h o m e m . . .

Todos olham para ele, surpreendidos. Joana sente um sobres-

salto, porque o sonho do pai coincide com a vontade dos santos.

Jacques D'Arc d�� um soco na mesa. Os pratos tremem. O vi-

nho vermelho salta dos copos e mancha a toalha.

��� Se isso acontecesse, com estas m��os que Deus me deu, eu

afogava Joana no rio!

�� tarde, antes de ir para o campo, Joana se lembra de S.

Rem��gio, padroeiro da aldeia. Tio Henrique lhe contou a hist��-

ira do bem-aventurado arcebispo que batizou o Rei Cl��vis.

Se S. Rem��gio se lembrasse de descer do c��u para coroar

e sagrar o pobre Delfim que est�� metido no seu castelo de

Chinon?

Joana entra na igreja.

X V I I I

A I N S P I R A �� �� O D E S . R E M �� G I O

AJOELHADA ao p�� da imagem de S. Rem��gio, depois de orar,

Joana fica pensando na hist��ria deste santo. Foi tamb��m tio

Henrique que lhe contou.

S. Rem��gio coroou um rei. Se S. Rem��gio andasse agora pela

Terra, e��e havia de levar o Delfim a Reims para o sagrar rei.

H�� muito, muito tempo, certo eremita ouviu uma voz que

sa��a dum ex��rcito de anjos:

��� Deus olhou a terra e ouviu o gemido dos que est��o acor-

rentados. O Senhor quebrar�� as suas cadeias, a fim de que seu

nome seja proclamado ��s na����es e que os povos e os reis se

re��nam para o servir. Cil��nia ter�� um filho, que ser�� a salva-

����o do povo.

Cil��nia era velha. O marido dela era cego. Mas Cil��nia deu

�� luz uma crian��a. E com o leite que dava a seu beb��, esfregou

os olhos do cego, que tornou a ver a luz do dia.

Essa crian��a que os anjos tinham anunciado ganhou o nome

de Rem��gio.

Rem��gio era muito piedoso. Passou sua mocidade em Laon,

praticando todas as virtudes crist��s. Quando completou vinte e

dois anos, ficou vago o bispado de Reims, porque havia morrido

o bem-aventurado Bispo Bennade. O povo em massa designou o

mo��o Rem��gio para ocupar o lugar. Ele, entretanto, recusou, di-

zendo que a carga era pesada demais para seus ombros fr��geis

de mo��o. Mas um raio de luz desceu de repente do c��u sobre a

cabe��a de Rem��gio. Um licor divino se derramava ao mesmo

tempo sobre seus cabelos, que se inundaram dum perfume ma-

ravilhoso nunca antes sentido.

Rem��gio sentou-se na cadeira episcopal. Mostrou-se liberal nas

esmolas, zeloso, piedoso e justo. Despertou a admira����o dos ho-

mens.

A V I D A DE J O A N A D ' A R C 71

Naquele tempo Cl��vis, Rei da Fran��a, era pag��o. Os seus ca-

pit��es e soldados tamb��m n��o conheciam o Deus ��nico e verda-

deiro. Um dia, ��s v��speras duma grande batalha contra os ale-

m��es, Cl��vis invocou o nome de Jesus Cristo. No dia seguinte

obteve uma grande vit��ria. Depois, sua mulher, a santa Rainha

Clotilde, insistiu para que ele se fizesse batizar pelo bem-aven-

turado bispo de Reims.

Sabedor do desejo do rei pag��o, o Bispo Rem��gio o instruiu,

dizendo-lhe como devia renunciar a Satan��s e ��s suas pompas.

Disse-lhe da onipot��ncia de Deus e do sacrif��cio de Jesus.

Como se aproximavam as festas da P��scoa, o "bom Bispo Re-

m��gio ordenou ao rei pag��o que fizesse jejum, segundo o cos-

tume dos fi��is.

No dia da Paix��o de Nosso Senhor, na v��spera do batismo do

rei, Rem��gio levou Cl��vis e a rainha a um orat��rio consagrado

a S. Pedro, pr��ncipe dos ap��stolos. De s��bito a capela toda se

encheu duma claridade indescrit��vel. E do meio dessa claridade

saiu uma voz: "A paz seja convosco. N��o tenhais medo, sou eu.

Permanecei em meu amor."

A luz desapareceu, mas ficou na capela um perfume suav��s-

simo. O Bispo Rem��gio, com o rosto iluminado dum clar��o di-

vinal, profetizou:

��� Cl��vis e Clotilde, vossos descendentes estender��o os limi-

tes do reino. Elevar��o a Igreja de Jesus Cristo e triunfar��o sobre

as na����es estrangeiras, contanto que, n��o abandonando a virtu-

de, n��o se afastem nunca dos caminhos da salva����o, n��o envere-

dem pela estrada do pecado e n��o se deixem cair. nas garras

desses v��cios mortais que derribam os imp��rios e transferem a

domina����o dum povo para outro.

Tudo se prepara para o batismo. Forram de tapetes finos as

ruas que v��o do pal��cio at�� a igreja. As casas ostentam estan-

dartes e guirlandas. O povo est�� alegre.

O cortejo sai do pal��cio. O clero vai na frente, abrindo a

marcha com os santos evangelhos, as cruzes e as bandeiras. Can-

tam-se hinos religiosos. Vem depois do clero o bispo, condu-

zindo o rei pela m��o. Depois a rainha, seguida do povo.

O rei pergunta ao bispo:

��� �� este o reino de Deus que me prometeste?

Rem��gio lhe responde:

72

E R I C O V E R �� S S I M O

��� N��o. Mas �� a entrada da estrada que leva aos c��us.

O cortejo chega ao batist��rio. O sacerdote que traz os santos

��leos, detido pela multid��o, n��o pode c e g a r at�� o rei. H�� um

momento de ang��stia. A espera �� dolorosa. Os minutos passam.

Come��am os cochichos.

Mas o bispo ergue os olhos para o c��u e ora em sil��ncio, com

os olhos cheios de l��grimas.

Ent��o uma pomba branca como as nuvens mais puras desce

do c��u trazendo no bico uma ampola cheia do santo ��leo da

crisma. Um perfume delicioso se exala da ampola. O santo bispo

a toma do bico do p��ssaro, asperge com o ��leo a ��gua batismal.

A pomba desaparece.

Cheio de alegria diante dum milagre t��o espl��ndido, o rei

renuncia a Satan��s e ��s suas pompas, pede insistentemente o

batismo e se inclina sobre a pia.

Desde ent��o os reis da Fran��a s��o sagrados com a un����o di-

vina trazida do c��u pela pomba. A santa ampola que a cont��m

est�� guardada na Igreja de S. Rem��gio em Reims. E por um

milagre de Deus, a ampola nunca se esvazia. . .

Joana pensa na hist��ria maravilhosa.

Pobre Delfim! Quando achar�� ele um general para lev��-lo a

Reims? Quando os santos ��leos cair��o sobre sua cabe��a desam-

parada? Quando?

Joana faz um pedido a S. Rem��gio: Que ele lhe d�� coragem

e inspira����o para cumprir a ordem dos santos. Que ele interceda

junto a Deus para que um dia os santos ��leos perfumem os

cabelos de Carlos de Valois. . .

X I X

A O R D E M DO A R C A N J O

QUANTOS anos se passaram desde que Joana ouviu a voz lu-

minosa e viu as vis��es queridas pela primeira vez? Dois? Tr��s?

Ela n��o sabe. . . A seu redor a vida continua. Em sua casa hou-

ve um longo per��odo de tristeza. Num inverno muito frio e

escuro Deus Nosso Senhor sentiu que estava precisando de mais

um anjo na sua corte e mandou seus mensageiros �� Terra es-

colher uma jovem. Foi numa noite de neve e ventania que os

anjos do Senhor chegaram a Greux e pairaram sobre a casa

de Coiin. Viram Catarina, a irm��zinha de Joana, e acharam

que Deus havia de ficar contente se a tivesse no seu ex��rcito

branco. E assim, enquanto Colin estava de visita a vizinhos,

eles levaram a mo��a para o c��u. Agora o corpo de Catarina

acha-se enterrado no pequeno cemit��rio da igreja junto do jar-

dim de seus pais. De sua janela Joana pode ver a sepultura sin-

gela, um monte de terra com uma cruz tosca.

Das coisas do mundo, s�� desta �� que Joana tem uma lem-

bran��a viva. O mais se lhe esfuma aos olhos da mem��ria, como

se estivesse por tr��s de um nevoeiro.

Joana, animada pelas visitas repetidas das santas, vai sen-

tindo nascer dentro de si uma alma nova, corajosa e forte.

Interessa-se por tudo quando ouve dizer da sorte da Fran��a.

Escuta com aten����o o que se fala do rei.

Um dia o Arcanjo surge e lhe ordena:

��� Filha de Deus, tu conduzir��s o Delfim a Reims para que

ele ali receba a sua digna sagra����o.

E Joana imediatamente se lembra de S. R e m �� g i o e da pom-

ba branca que trouxe no bico a ampola com o ��leo sagrado.

Mas, por que ser�� que Deus, o grande e bom Deus escolheu

a ela, pobre camponesa, para esta miss��o t��o alta e t��o dif��-

cil? Tudo parece um s o n h o . . .



74

ER I C O V E R �� S S I M O

Joana pensa e mais pensa. De dia e de noite. De noite e de

dia. Reza e pede conselho a Deus. E Deus em troca lhe for-

talece mais e mais a alma.

Uma noite papai Jacques volta de Vaucouleurs, a cidade mais

pr��xima de Domr��my, onde fora falar com o Sr. Roberto de

Baudricourt, a respeito de neg��cios da aldeia.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C 7 5

��� Um homenzarr��o decidido, a q u e l e ! ��� c o m e n t a ele. ��� Fala

grosso, tem ares de mand��o e parece valente como trinta!

Os meninos, que o escutam atentos, ao ouvirem falar em va-

lentia, crivam o pai de perguntas.

��� Tem muitos soldados?

��� De que lado �� ele? Do Delfim ou do Duque de Borgonha?

��� Do Delfim, meu filho.

Joana vai dormir pensando no Sr. de Baudricourt.

No outro dia S. Miguel lhe aparece com estas palavras:

��� Filha de Deus, ir��s ao Cap. Roberto de Baudricourt, na

Cidade de Vaucouleurs, para que ele te d�� gente que te conduza

at�� o Delfim.

Joana se alegra. Ficara toda a noite a pensar no capit��o, cer-

ta de que era a pessoa que a podia ajudar.

Agora aqui est�� a menina D'Arc indecisa no seu jardim, sem

saber que fazer. . . Como vai pedir para ir a Vaucouleurs?

��� Papai, eu quero ir procurar o senhor Cap. Roberto de Bau-

dricourt. . .

Assim? Claro que n��o! Porque papai perguntaria:

��� Para qu��, menina boba?

��� Para ele me levar at�� o Delfim.

��� Perdeste o ju��zo?

Oh! N��o. �� melhor n��o dizer nada a papai. Joana lembra-se

do sonho que ele teve e da amea��a que proferiu ao cont��-lo ��

fam��lia.

Joana se p��e a orar. E quando diz a ��ltima palavra da ora����o,

nasce-lhe na mente uma id��ia.

Em Burey-en-Vaulx, �� margem esquerda do Mosa, mora Du-

rand Lassois, que casou com a filha duma irm�� de mam��e Isa-

bel. Joana gosta dele. Devia chamar-lhe primo. Mas como Du-

rand �� mais velho e tem um ar grave e doce, Joana chama-lhe

titio.

Ele n��o seria capaz de ajud��-la?

A mulher de Durand est�� esperando um nen��. . . N��o �� mes-

mo um pretexto maravilhoso?

Joana um dia se aproxima do pai e pede:

��� Papai, posso ir at�� Burey-en-Vaulx visitar tio Durand e

prima Joana?

7 6

E R I C O VER��SSIMO

Jacques diz que sim. Joana vai. O lugarejo em que Durand

mora com sua mulher fica perto de Domr��my.

��� Olhem a Joana! Mas que �� que tu andas fazendo por aqui,

menina?

Joana chega, cumprimenta os parentes, vai �� igreja orar e

depois de pedir coragem a Deus se dirige ao "tio":

��� Titio Durand, eu quero que o senhor me leve a Vaucou-

leurs.

��� A Vaucouleurs? Mas para qu��, menina?

��� Quero falar com o Cap. de Baudricourt.

��� Tu?

Durand solta uma risada sonora. O seu can��rio que pula na

gaiola ao p�� da porta come��a a cantar.

��� N��o ria, titio. Tenho uma coisa muito importante a dizer

ao capit��o.

��� Mas que coisa �� essa?

��� Titio, o senhor nunca ouviu falar naquela profecia: "uma

mulher desgra��ar�� a Fran��a e uma donzela a salvar��"?

Joana fala com firmeza. Tio Durand co��a o queixo, impres-

sionado, e fica pensando, s��rio, de olhos baixos.. . Estas rapari-

guinhas ��s vezes t��m cada i d �� i a ! . . .

O can��rio canta. Joana espera. Tio Durand hesita.

X X

A PRIMEIRA V I A G E M A VAUCOULEURS

Tio D U R A N D atrela o cavalo na carro��a, Joana salta para dentro

dela e a viagem come��a.

V��o conversando durante todo o tempo. Tio Durand fala

no filho que est�� para chegar. Joana conta hist��rias de Domr��-

my. E quando d��o acordo de si, j�� aparecem perto as primeiras

casas de Vaucouleurs.

�� porta do castelo do Cap. Roberto de Baudricourt, Durand

Lassois faz parar a carro��a.

��� Olha, Joana, eu n��o quero me meter em complica����es. Sei

que o Sr. de Baudricourt �� brig��o e bruto. Agora eu te d e i x o . . .

Joana se despede do tio.

E aqui vai ela no seu vestidinho vermelho todo cheio de re-

mendos. Caminha pela ponte levadi��a como se caminhasse pe-

los carreiros familiares de Domr��my. Que for��a misteriosa des-

via dela a aten����o dos guardas? Que misteriosa vontade faz que

eles fiquem im��veis em seus lugares e n��o impe��am a menina

de passar?

Joana entra no castelo. Ser�� que os anjos a guiam? Porque

ela vai sem errar, sobe escadas, caminha por corredores longos

e finalmente entra numa grande sala. A luz do sol jorra pela

janela aberta. Grandes reposteiros de veludo verde.

Dois homens se acham conversando junto duma mesa. Em

torno deles h�� muitos outros cavaleiros armados.

Joana vai direto ao Cap. Roberto de Baudricourt, que se es-

panta.

Estar��o dormindo os seus guardas? Por que deixaram entrar es-

ta pastorinha maltrapilha?

Joana p��ra diante do enorme capit��o.

��� Eu venho da parte do Messire para lhe pedir mande dizer

ao Delfim que se contenha e n��o d�� combate aos ingleses.

78

E R I C O V E R �� S S I M O

Roberto de Baudricourt cruza os grandes bra��os musculosos.

Olha muito s��rio para Joana e depois desata a rir.

��� Mas que algaravia �� essa, rapariga?

Joana repete as palavras que o Arcanjo lhe sussurrara ao ou-

vido. E �� com calma que continua:

��� Antes da terceira quarta-feira da Quaresma, Messire lhe

mandar�� socorro. Porque o reino na verdade n��o pertence ao

Delfim. Mas Messire quer que ele seja feito rei. Apesar de seus

inimigos, Carlos de Valois ser�� coroado rei. E quem o vai levar

�� sagra����o, sou eu.

A risada de Roberto de Baudricourt ecoa no grande sal��o. Os

outros homens, para lhe serem agrad��veis, riem tamb��m.

��� Mas quem �� esse Messire? ��� pergunta o capit��o.

��� O Rei do C��u, ��� responde Joana.

Roberto de Baudricourt continua a rir. De repente corta a ri-

sada, fica s��rio e diz a um de seus homens:

��� Mandem levar esta rapariga de volta aos pais. Mas pri-

meiro lhe apliquem umas palmadas.

Joana �� levada para fora do sal��o e para fora do castelo. Pro-

cura tio Durand, mete-se na carro��a dele e volta para Burey-en-

Vaulx, onde se demora oito dias. Depois torna a Domr��my.

E passa a viver como num sonho. Pensando no Delfim. Nos

ex��rcitos. Nos combates. Na vit��ria. Na coroa����o. E sempre

com esperan��a em Roberto de Baudricourt.

Um dia diz a um dos camponeses:

��� H�� entre Coussey e Vaucouleurs uma menina que daqui

a um ano levar�� o R e i da Fran��a �� sagra����o. . .

O campon��s cont��m a custo uma gargalhada.

Todos na a��deia notam os modos estranhos de Joana.

Alguns dizem que ela est�� enfeiti��ada.

��� �� obra das fadas, ��� afirma a sua madrinha Jannet Aubrit.

��� Sim, das fadas!���repetem muitos.

Isto n��o pode ser natural. A menina est�� perdida.

Mas os dias passam e o sonho maravilhoso de Joana se pro-

longa.

X X I

A F U G A P A R A NEUFCHTEAU

PARECE que Bedford quer mesmo tomar conta de toda a Fran-

��a, em nome do Rei da Inglaterra. Agora os seus olhos se vol-

tam para a castelania de Vaucouleurs. Para domin��-la, ele manda

equipar mil homens d'armas que entrega ao comando de An-

t �� n i o de Vergy.

Aqui marcham neste momento os soldados borgonheses sob

suas ordens. Por onde passam v��o deixando um rasto de fogo

e de sangue. Incendeiam casas, derrubam lavouras, matam ho-

mens. . .

Quando o vigia da torre de Domr��my os divisa a boa dis-

t��ncia, na curva do caminho, faz um sinal para a igreja e o

sino come��a a badalar desesperadamente.

Agora ningu��m mais pensa no castelo da ilha. O seu escon-

derijo j�� est�� conhecido. O rem��dio �� fugir, fugir para bem

longe e esperar que passe a onda de morte e de destrui����o.

Os camponeses com suas mulheres e filhos saem de suas casas

gritando, como marimbondos assanhados que fogem das colmeias

incendiadas.

Os velhos se arrastam. Os doentes s��o carregados em bra��os.

As carretas se enchem de m��veis e de trouxas. Os que n��o t��m

carreta v��o a p��, arrastando os mulambos.

H�� choro e impreca����es por todos os lados.

E o ex��rcito dos retirantes l�� vai. �� uma fila comprida que

se estende pela estrada. Carro��as, bois, vacas, porcos, cavalos e

homens de mistura. Seguem todos para Neufch��teau.

Chegam ao cair da noite.

A fam��lia de Joana vai parar no albergue da mulher de Jo��o

Waldaires, que �� uma velha de cara enrugada, feia e r��spida.

80 E R I C O VER��SSIMO

A hospedaria �� barulhenta. Soldados e monges, camponeses

e comerciantes. Viajantes misteriosos e mulheres estranhas. Jo-

gam, comem, bebem e conversam ao redor das mesas. Explo-

dem risadas. ��s vezes h�� discuss��es violentas: brilham punhais.

Joana vive indiferente a tudo. Para ela s�� existe uma coisa

importante: a sua miss��o. Quando toda essa balb��rdia cessar,

ela h�� de ir de novo ao Cap. de Baudricourt.

Neufch��teau �� um lugar bonito. Tem dois velhos convento?

onde �� tardinha os monges passeiam no jardim por entre ci-

prestes, cantando c��nticos melanc��licos que sobem para o c��u.

Joana fica a escut��-los, encantada.

Os dias passam. O gado de Jacques D'Arc est�� no p��tio do

albergue. Joana leva-o a pastar nas campinas dos arredores.

Quando volta para a hospedaria, ajuda a velha Waldaires nos

trabalhos dom��sticos.

Quando sente necessidade de aliviar a alma, vai aos monges

e se confessa.

No fim de duas semanas Jacques D'Arc e a fam��lia voltam

para Domr��my.

Ao chegarem �� entrada da aldeia, ele se det��m e olha. O seu

cora����o se confrange. Isabel chora. Os rapazes ficam olhando,

de boca aberta, tristonhos. . .

Casas incendiadas. Lavouras derrubadas. Galos cantando, lon-

gamente, tristemente sobre ru��nas. Sil��ncio de cemit��rio.

Outros camponeses voltam. Quase todos dormem ao relento

quando a noite chega.

No outro dia recome��a a reconstru����o. N��o �� a primeira.. .

N��o ser�� a ��ltima. . .

Casas novas v��o brotando aos poucos no meio dos escombros.

Os camponeses de Domr��my t��m o cora����o forte. Trabalham

cantando. Pensam nas colheitas futuras. S��o felizes de novo.

A normalidade volta �� aldeiazinha. J�� se v��em caras alegres;

risos.

As vinhas tornam a reverdecer. Homens e mulheres saem pa-

ra o campo. As raparigas farandulam outra vez, pelos bosques,

v��o dan��ar e colher flores �� beira do Mosa.

Uma tarde chega um viajante a Domr��my e conta que Or-

l��ans, cora����o da Fran��a, est�� sitiada pelos ingleses.



A VIDA DE JOANA D'ARC 81

Joana ouve a not��cia e fica pensando, pensando...

Nessa mesma tarde, S. Catarina e S. Margarida lhe aparecem

para dizer com insist��ncia:

��� �� preciso que deixes a tua aldeia e v��s para a Fran��a!

XXII

ADEUS, DOMR��MY!

Os VIAJANTES que passam pela aldeia trazem not��cias de Or-

l��ans. O cerco continua. A cidade sofre. O seu duque est�� pri-

sioneiro. A peste irrompeu nos sub��rbios pobres. Cad��veres

insepultos empestam o ar e a ��gua. Mulheres e crian��as gemem

de fome. O Anjo da Morte passeia pelas ruas desertas da cida-

de sitiada.

Joana escuta estas hist��rias negras. O cora����o lhe d��i de pena.

Ela n��o disse ao Cap. Roberto de Baudricourt que os socorros

mandados por Messire chegariam ao Delfim antes da terceira

quarta-feira da Quaresma? Ent��o? O tempo passa. As vozes re-

petem a ordem de ir para a Fran��a.

Janeiro principia. Um vento gelado sacode as ��rvores despidas

de folhas. Nos bosques de carvalhos da profecia de Merlin h��

flocos de neve que o t��bio sol n��o consegue dissolver. O burri-

nho tirita no est��bulo. Morreram as rosas do jardim. E a can-

tiga do Mosa n��o �� mais um embalo doce e sim um gemido

tr��mulo de quem est�� com frio e n��o tem agasalho.

Joana pensa no Cap. de Baudricourt. �� preciso procur��-lo de

novo, custe o que custar.

Prima Joana Lassois dentro de poucos dias vai ganhar o seu

b e b �� . . .

Papai naturalmente d�� licen��a para eu ir ajudar a cuidar de-

l a , ��� pensa Joana.

E Jacques permite mesmo. Faz um mundo de recomenda����es:

��� Tome cuidado com os lobos. Se enxergar algum grupo de

soldados, esconda-se. Seja obediente e boa.

Mam��e Isabel tamb��m vem com os seus conselhos:

��� Agasalha-te bem, minha filha. N��o durmas de janela aber-

ta. N��o te resfries.

Uma tarde Joana monta no seu burrinho e segue para Burey.





A V I D A DE J O A N A D A R C

83

Aqui vai ela saindo da aldeia. Com o pressentimento de que

nunca, nunca mais tornar�� a ver estas casas, estas gentes, estas

colinas, estas ��rvores.

��� Adeus, Joaninha, boa viagem!���exclamam os seus amigos.

Joana acena com a m��o e com a cabe��a.

��� Adeus!

Despede-se dos conhecidos. N��o tem coragem de passar pela

casa de Hauviette. Pensa na amiguinha de cabelos louros. Como

sua carinha ficar�� triste se ela souber que a sua companheira

vai p a r t i r . . .

O burrinho trota. E em cima dele vai uma menina triste de

vestido vermelho. Berra a cor viva contra o branco dos caminhos

cobertos de neve.

Um sol frouxo inunda a paisagem. O Mosa marulha. E a sua

voz macia de ��gua parece que est�� dizendo assim:

��� Adeus, Joana, adeus. N��o te lembras de quando eras pe-

quena e vinhas brincar nas minhas ��guas e ficavas muito admi-

rada quando vias o teu rostinho no meu espelho? Olha, Joana,

diz adeus a tudo isto. Diz adeus �� ��rvore-das-Fadas, �� tua casa,

�� igrejinha, ao cemit��rio, �� Nossa Senhora de Bermont, a t u d o . . .

Segue, Joana, segue o teu caminho, que eu te acompanharei at��

onde Deus quiser. Se eu pudesse correr �� vontade, eu iria sem-

per contigo. Mas n��o posso, tu sabes, sou prisioneiro deste leito.

84

E R I C O VER��SSIMO

Mas Joana n��o escuta a voz do rio porque est�� ouvindo as vo-

zes santas que falam dentro dela.

Em Greux, a aldeia vizinha de Domr��my, ela passa por Men-

gette.

��� Joana, aonde vais?

��� Vou para Vaucouleurs! Adeus, Mengette! Eu te recomendo

a Deus!

O burrinho continua a trotar. Joana mergulha nos seus pen-

samentos. E s�� desperta nas proximidades de Burey.

Fica-se v��rias semanas na casa dos primos. E depois que o

beb�� nasce, depois que passa o alvoro��o dos primeiros dias, Joana

pede a Durand Lassois que a acompanhe de novo a Vaucouleurs.

O bom tio comp��e uma cara fingida de zanga e diz:

��� N��o levo!

Joana torna a pedir. Durand Lassois quer manter a carranca

mas a felicidade que lhe traz a presen��a daquela criaturinha que

esperneia e berra no ber��o lhe inunda a alma. E ele n��o sabe

resistir aos pedidos de Joana. Sorri e vai atrelar o melhor cavalo

na carro��a.

Seguem uma manh�� para Vaucouleurs.

Durand vai todo encolhido de frio. Mas Joana n��o sente o

inverno. N��o ouve o que o companheiro de jornada lhe diz. N��o

v�� a paisagem desolada. S�� tem ouvidos para suas vozes inte-

riores. S�� tem olhos para as suas vis��es queridas. S�� tem alma

para sentir a desgra��a da Fran��a.

X X I I I





O U T R A V E Z E M V A U C O U L E U R S


EM VAUCOULEURS Joana vai de novo ao castelo de Roberto de

Baudricourt. Encontra-o um tanto mudado. O homenzarr��o j��

n��o solta as suas grandes gargalhadas que sacudiam os repostei-

ros e faziam os m��veis trepidar. J�� n��o fala em mandar dar pal-

madas na camponesinha travessa. Agora eie a escuta, s��rio, aten-

cioso. . .

��� Capit��o, ��� diz Joana ��� Deus mandou que eu fosse ao gen-

til Delfim, que deve ser e �� o verdadeiro Rei de Fran��a. Ele me

deve dar gentes darmas para eu levantar o cerco de Orl��ans e

lev��-lo depois �� sagra����o em Reims.

Levantar o cerco de Orl��ans? O Cap. de Baudricourt franze a

testa. . . Esta garota de olhos ing��nuos? Bah!

Mas manda Joana em paz, sem resolver nada.

A menina sai do castelo e volta para casa. Est�� hospedada

com Henrique Leroyer e sua mulher Catarina ��� gente boa.

Para matar o tempo, Joana fia. O que fia, vende. O dinheiro

que tira, d�� aos pobres.

Enquanto permanece em Vaucouleurs vai repetidamente ��

igreja. Catarina a acompanha. A mulher de Henrique Leroyer

gosta de Joana. Nunca viu menina t��o quieta e t��o piedosa. As

outras raparigas da idade dela ��� acha Catarina ��� andam ��s vol-

tas com festas, com vestidos, com rapazes. Joana �� diferente.

Reza e fia. Nunca pronuncia em v��o o nome de Deus. N��o faz

juramentos. N��o se irrita. N��o se queixa. �� mansa, obediente,

compassiva.

Agora a caminho da igreja as duas conversam. Catarina fala

na sorte da Fran��a. Pobre terra! Como os tempos s��o maus! H��

de chegar o dia em que n��o ficar�� pedra sobre pedra. Joana

sorri e pergunta:

8 6

E R I C O VER��SSIMO

��� Nunca ouviu falar naquela profecia que diz que a Fran��a,

desgra��ada por uma mulher, ser�� salva por uma donzela?

Catarina sacode a cabe��a afirmativamente.

��� Sim. Mas onde est�� a donzela libertadora?

O sorriso de Joana �� vago e enigm��tico.

Na cripta da capela de Vaucouleurs existe uma velha ima-

gem da Virgem a que os habitantes do lugar chamam Notre-Dame-

de-la-Vo��te. A santa faz milagres. �� a padroeira dos pobres e

dos desgra��ados.

Joana fica horas e horas ajoelhada na cripta, ao lado da ima-

gem. �� aqui que as suas santas a visitam, agora, de prefer��ncia.

�� aqui que Joana cada dia que passa ganha mais coragem para

levar avante a sua miss��o.

��s vezes vai tamb��m se confessar ao Pe. Jo��o Fournier, cura

de Vaucouleurs.

E a todas as pessoas com quem fala Joana, repete sem temor:

��� Preciso ir at�� o Delfim. �� vontade de Messire, o Rei do

C��u, que eu v�� at�� ele.

E a hist��ria estranha da camponesinha de Domr��my se es-

palha por Vaucouleurs.

Jo��o de Metz, um homem d'armas da guarni����o da cidade,

curioso, um dia se aproxima de Joana.

��� Ent��o, minha pequena, que �� que est��s fazendo aqui? ���

pergunta ele, com ar meio s��rio, meio brincalh��o. E, para expe-

riment��-la, indaga, tamb��m. ��� Ent��o, que dizes? �� preciso bo-

tar o rei para fora do reino para todos ficarmos ingleses?

Joana ergue os olhos para o guerreiro. �� um homem mo��o.

Deve ter no m��ximo vinte e oito anos.

��� Eu vim aqui ��� responde ela ��� para pedir a Sire Roberto

que me leve ou me mande levar ao Delfim. Mas o capit��o n��o

faz caso de mim nem de minhas palavras.

Jo��o de Metz est�� interessado. Olha firmemente para a me-

nina que se acha na sua frente metida no seu vestido vermelho

e grosseiro. Que criaturinha esquisita!

Joana, animada pelo olhar de simpatia, prossegue:

��� Preciso estar com o Delfim antes da terceira quarta-feira

da Quaresma, nem que seja preciso eu ir at�� l�� de joelhos!

Jo��o de Metz, surpreendido, olha sem dizer palavra. Joana

continua:





A V I D A D E J O A N A D A R C


8 7


��� Ningu��m no mundo, nem pr��ncipe, nem duque, nem a fi-

lha do Rei da Esc��cia pode recuperar o Reino de Fran��a. E o

��nico socorro que existe est�� em mim. Eu preferia ficar em casa

de minha m��ezinha, fiando e cuidando dos bichos do quintal,

porque esta era a minha vida. Mas preciso ir, preciso mesmo.

E se vou fazer isso �� porque Messire quer que eu fa��a.

��� Mas quem �� Messire?���pergunta Jo��o de Metz.

��� �� Deus.

��� Pois eu te prometo e te dou a minha palavra que, se Deus

me ajudar, eu te levarei at�� o rei.

E p��e a sua m��o na m��o de Joana, em sinal de juramento.

��� Quando queres p a r t i r ? ��� p e r g u n t a ele.

��� Hoje ser�� melhor do que amanh��; e amanh�� melhor do

que depois.

8 8

E R I C O VER��SSIMO

Que estranha for��a faz Joana, a pobre alde��, dizer estas pala-

vras decididas de sabedoria? Por que falou ela na filha do Rei

da Esc��cia? Por que, se mal compreendia as conversas que an-

davam espalhadas pela cidade a respeito da Fran��a e da Ingla-

terra, dos reis e dos seus capit��es?

��� Mas vais viajar assim com estas roupas?

Jo��o de Metz olha Joana de alto a baixo. Seria coisa de cha-

mar a aten����o sair com esta menina metida num berrante ves-

tido vermelho.

��� Eu me visto de homem! ��� decide Joana.

Despede-se de Jo��o de Metz e volta para casa.

Uma tarde Joana e Catarina est��o fiando serenamente em si-

l��ncio quando Roberto de Baudrico��rt e o Pe. Jo��o Fournier

entram na casa de Henri Leroyer. Pedem a Catarina que se re-

tire. Ela obedece.

O padre est�� com �� sua estola. Recita as palavras latinas que

querem dizer:

��� Se ��s coisa ruim, afasta-te. Se ��s coisa boa, aproxima-te.

Em seguida o cura respinga Com ��gua-benta o rosto de Joana.

Ele sabe que se o diabo na verdade mora dentro dela, a menina

imediatamente se rojar�� ao ch��o, escabujando, em contor����es

horrendas.

Mas Joana permanece serena. Roberto de Baudrico��rt a con-

templa, embasbacado. Foi ele que trouxe o padre. Desconfiou

que Joana estivesse possu��da do dem��nio.

No entanto aqui se acha ela muito tranq��ila, parada na frente

do cura. Seus olhos s��o doces, olhos de anjo e n��o de dem��nio.

Os dois homens se retiram em sil��ncio.

X X I V

"DEUS A P L A I N A R �� O C A M I N H O . . . "

Os DIAS passam. Baudricourt n��o resolveu ainda mandar levar

Joana ao Delfim.

Joana fia, ora, ajuda os pobres, fala com os seus santos e

espera.

Faz diversas viagens a Burey. Vai, volta. Torna a ir. Torna a

voltar.

Chegam not��cias de novas derrotas dos franceses.

Jo��o-de Metz cumprir�� a sua palavra? ��� pergunta Joana a si

mesma.

E um dia, n��o se podendo conter, veste as roupas de seu pri-

mo Durand Lassois e decide ir at�� o rei. O bom "titio" a acom-

panha. Um habitante de Vaucouleurs oferece-se para gui��-los.

V��o.

Chegam �� capela de S. Nicolau, a uma l��gua da cidade. Ao

lado dela escurece o grande bosque de Saulcy.

De repente Joana resolve voltar. Que lhe ter��o sussurrado ao

ouvido as suas vozes amigas?

Voltam.

De novo Vaucouleurs e a espera.

Enquanto isso, Baudricourt, como tinha ent��o a certeza de que

Joana n��o estava possu��da do dem��nio, escrevera a Carlos de

Valois contando o que vira e ouvira da estranha menina de

Domr��my.

E agora justamente chega por um mensageiro a resposta do

Delfim. Diz que Sire Roberto de Baudricourt pode enviar a ra-

pariga a Chinon.

Quando Joana vem a saber da not��cia, ergue os olhos para o

c��u, num agradecimento. Tudo vai se passar como ela queria e

esperava.

No seu velho casar��o senhorial, de Nancy, assombrado pelos

fantasmas da velhice e duma doen��a cr��nica, vive o velho Du-



90

E R I C O VER��SSIMO

que de Lorena. Tinha uma esposa dedicada e fiel, que expulsou

de casa para acolher como amante a bela Alison du Mai, com

a qual agora vive.

O remorso e o medo da morte s��o as duas visitas que o duque

recebe com mais freq����ncia. Eles chegam e ficam parados na

frente da poltrona do doente e ��s vezes nem o ru��do de vozes

humanas, nem a trepida����o das festas os conseguem espantar.

A not��cia dos milagres de Joana chegam aos ouvidos do ve-

lho Duque, que resolve mandar chamar a menina de Domr��my.

Atendendo ao convite do velho senhor de Lorena, Joana ca-

valga at�� Nancy em companhia de Durand Lassois e Jacques

Alain. Jo��o de Metz os acompanha at�� Toul.

Joana chega �� presen��a do duque, que lhe pergunta:

��� ��s capaz de me restituir a sa��de?

A V I D A D E J O A N A D A R C

91

A menina contempla o velho tranquilamente e depois de al-

guns segundos responde:

��� Eu n��o sei se posso curar o senhor. S�� sei que Deus n��o

lhe restituir�� a sa��de enquanto o senhor n��o abandonar a mu-

lher com quem agora vive, trocando-a por sua esposa leg��tima.

O duque fica vermelho. Morde o l��bio. Olha para os lados,

atarantado. Joana est�� serena. Seus olhos azuis s��o t��o puros e

t��o l��mpidos que o duque rev�� neles, como num espelho m��gico,

todos os seus pecados.

Antes de partir, Joana, que foi informada da vida e dos re-

cursos do duque, lhe pede com veem��ncia:

��� D��-me o seu filho, o herdeiro de Lorena, para que ele e

os seus soldados me levem at�� o Delfim. Em recompensa eu

pedirei a Deus pela sua sa��de, duque!

Ora, o senhor de Lorena deseja ardentemente a cura. Mas a

menina de Domr��my o decepcionou. Tocou na sua corda sen-

s��vel. Feriu-o no seu orgulho. E com que decis��o, com que co-

ragem! No entanto ele hesitaj luta com seus pensamentos, com-

para, pesa, conjetura... Se a menina �� uma impostora e ele

lhe d�� o filho com seus soldados, todos h��o de rir do seu logro,

do seu rid��culo. Mas por outro lado, se eie nega e Joana D'Are

�� realmente uma enviada do C��u, Deus nunca, nunca lhe devol-

ver�� a sa��de perdida. Que f a 2 e r ?

O velho duque ainda fica por muitos minutos sem resolver

nada. Por fim, julgando descobrir uma solu����o conciliat��ria, diz

para um de seus homens:

��� D�� a essa mo��a quatro francos e um cavalo negro!

E Joana volta para Vaucouleurs com os presentes do duque.

De novo na cidade de Roberto de Baudricourt, escreve aos pais,

pedindo-lhes perd��o por hav��-los abandonado.

Agora muita gente come��a a ter f�� em Joana D'Arc. Ouvem-

na com mais aten����o. Contemplam-na com ar mais respeitoso.

Espalha-se a not��cia de que a estranha camponesinha est�� pres-

tes a ir a Chinon �� procura do Delfim.

Ent��o se faz entre os habitantes da cidade uma coleta de di-

nheiro com o fim de comprar para Joana vestimentas masculinas

e arreios completos de guerra.

Roberto de Baudricourt lhe d�� uma espada.

E R I C O VER��SSIMO

Jo��o de Metz, Bertrand de Poulengy, Jo��o de Hovecourt e

mais seus criados devem acompanhar Joana na longa viagem.

Fala-se que os caminhos est��o povoados de salteadores. Con-

tam-se os horrores das noites nos descampados. Assaltos, morti-

c��nios, crueldades.

Fevereiro de 1429.

O pequeno grupo sai de Vaucouleurs rumo da Fran��a.

Muitas pessoas assistem �� partida. Os bons amigos Henrique

e Catarina Leroyer choram ao se despedirem da h��spede de tantos

dias. Durand Lassois enxuga disfar��adamente uma l��grima.

Algu��m pergunta a Joana:

��� Como tens coragem de fazer uma jornada t��o arriscada?

N��o sabes que em todas as partes h�� ex��rcitos em guerra?

A menina sorri, olhando para o c��u.

��� A estrada est�� aberta diante de mim, ��� responde. ��� Se en-

contrarmos homens d'armas, Deus saber�� aplainar o caminho para

que eu chegue salva at�� o Delfim. Porque esta �� a minha miss��o.

O bando p��e-se em marcha.

Baudricourt se despede de Joana com estas palavras:

��� Vai! E aconte��a o que acontecer!

A cavalgada se some na dist��ncia. E quando a noite desce, ela

segue em sil��ncio sob as estrelas.

X X V





A J O R N A D A


D E M��OS DADAS com Mengette, Hauviette, Jo��o, Pedro e outros

meninos e meninas de Domr��my, Joana cantava e dan��ava ao

redor da ��rvore-das-Fadas.

Hoje vai aqui em cima dum cavalo alaz��o alto e fogoso (ela

que s�� andava na garupa de seu burrico peludo e m a n s o ! ) , via-

jando na companhia de guerreiros de verdade, atrav��s de campos

desolados pelo inverno.

Dizem que os caminhos est��o infestados de bandidos e guer-

rilheiros. Para evitar encontros, o grupo de Joana se desvia da

estrada real e procura os atalhos, as veredas menos freq��entadas.

A noite est�� fria. As estrelas palpitam. Os cavalos trotam. Os

homens guardam sil��ncio.

Joana est�� pensativa. Saudade da sua aldeia, de seus pais, de

sua casa, de seus companheiros? Est�� claro que ela os traz guar-

dados no cora����o; mas no fundo, bem no fundo, num lugar em

que agora todas aquelas coisas ficam escondidas, como se n��o

existissem. Porque todo o corpo dela est�� cheio deste grande

desejo: ver o Delfin , conseguir homens d'armas, libertar Or-

leans, coroar o rei em Reims, devolver Paris �� Fran��a.

Joana quebra o sil��ncio: fala aos companheiros. E eles ficam

espantados vendo que a filha de Jacqu��s D'Arc, esta rapariguita

de dezessete anos que n��o sabe ler nem escrever, compreende

com uma nitidez luminosa a situa����o de sua terra e de seu rei.

Novo sil��ncio entre os viajantes.

O ��nico ru��do que se ouve �� o das paras dos cavalos batendo

no ch��o, golpeando os seixos da estrada.

A cavalgata chega �� margem direita do Marne. Avista-se em

cima duma colina o Monasterio de S. Urbano. Suas portas se

abrem para os viajantes.



9 4 E R I C O V E R �� S S I M O

No sil��ncio da abadia Joana encontra repouso. E no seu re-

pouso recebe a visita do Arcanjo, que a reconforta e deixa com

novas ordens e uma alma nova.

A noite avan��a. Os cavaleiros que acompanham Joana, dor-

mem. A mo��a fica de olhos abertos. Sabe que ao lado do mos-

teiro se acha a igreja onde se guardam as rel��quias de S. Urbano.

A como����o lhe rouba o sono. Olha atrav��s da janela de seu

quarto. L�� fora se agitam sombras leves e fundas. As estrelas

agora brilham com mais for��a. Al��m, muito al��m destes cam-

pos fica Chinon. Em Chinon vive o pobre Carlos de Valois,

cercado de amigos hip��critas, sem dinheiro, sem esperan��a, sem

g l �� r i a . . .

Oh Deus! Quando chegar�� o momento da liberta����o?

Na manh�� seguinte Joana assiste a uma missa conventual.

Poucos minutos depois a companhia retoma a marcha. Fal-

tam ainda cento e vinte e cinco l��guas.

Resolvem viajar de prefer��ncia �� noite, por causa do perigo

dos encontros com destacamentos borgonheses.

Nas horas do descanso, Joana dorme vestida sobre as palhas"

dos celeiros ou debaixo de ��rvores, ao relento. .

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

95

Jo��o de Metz est�� sempre a seu lado. Uma vez a d��vida o

assalta:

��� Mas ser�� que vais fazer mesmo tudo o que dizes?

Joana fita nele seus olhos claros:

��� N��o tenhas medo. O que fa��o, fa��o por ordem de Deus.

Meus irm��os do Para��so me dizem como devo me conduzir. Faz

j�� quatro ou cinco anos que Messire, por interm��dio deles, me

diz que devo ir para a guerra, a fim de retomar o Reino de

Fran��a.

E a jornada continua. ��s vezes neva. Quando os homens falam

sai fuma��a de suas bocas. Joana se lembra por um instante de

sua casinha em Domr��my: a chamin�� da cozinha lan��ando fu-

mo para o c��u.

Os companheiros de viagem s��o alegres e gostam de brincar

com Joana. Eles a respeitam e a estimam, acreditam mesmo em

que ela �� uma inspirada. Mas no fundo ainda sentem uma pon-

tinha de d��vida quando contemplam esta menina do campo me-

tida em roupas de pajem, esta pequena de olhos de beb��, rosto

sereno, ar inocente...

E lhe dizem, com voz grave, como se estivessem contando a

uma crian��a hist��rias assustadoras de gigantes e drag��es:

��� Oh! Os ingleses s��o ferozes. Grandes e valentes. Com um

golpe de espada podem partir uma pessoa ao meio.

Joana sorri:

��� N��o temam nada! ��� diz. ��� Em nome de Deus, eles n��o

podem fazer nenhum mal a voc��s!

A cavalgata trota sempre e sempre. Avistam-se novos rios. O

Aube, o Sena, o Yone. Todos lembram a Joana o Mosa de sua

inf��ncia.

Em Auxerre a menina D'Arc ouve missa na Igreja de S. Es-

t��v��o.

Chegam ao Loire, que banha Gien.

Gien! Uma cidade francesa, obediente ao Rei de Fran��a!

Os homens gritam e cantam de contentamento. Acabam de

fazer setenta e cinco l��guas em terra inimiga!

��� Tivemos sorte em n��o encontrar inimigo pela frente! ��� d i z

um dos homens da comitiva.

Joana responde:

96

ERICO VER��SSIMO

��� Dizes que tivemos sorte? Eu te digo que foi Deus que nos

protegeu.

A jornada continua. O inverno tamb��m. Noites terr��veis, com

vento gelado e cortante como uma espada de fio fino.

O grupo chega a Fierbois.

Joana apeia do cavalo. Neste lugar �� que se ergue o Santu��rio

de S. Catarina. Aqui a santa querida de Joana recebe os pere-

grinos e faz os seus milagres. Muitos guerreiros valentes que,

tendo invocado a santa, ganharam vit��rias contra os infi��is, vie-

ram depor suas armas neste santu��rio.

Joana olha para as paredes da capela e v�� escudos, armaduras,

elmos e gl��dios. E os anjos lhe contam em surdina ao ouvido a

hist��ria milagrosa de cada arma.

Em Fierbois Joana assiste a tr��s missas.

Antes de p��r-se de novo a caminho, chama um dos compa-

nheiros e dita-lhe uma carta para o Delfim. Manda dizer que,

para ir em seu aux��lio, ela percorreu cento e cinq��enta l��guas

a cavalo e que precisa v��-lo a todo o custo, pois tem boas no-

t��cias a lhe dar.

Jo��o de Metz sela a carta e a manda a Chinon, por m��os de

um mensageiro.

Ao meio-dia o grupo torna a partir.

As nuvens que toldavam o c��u desde a tarde anterior se dis-

sipam. O sol brilha alegremente sobre os campos cobertos de

neve. Os viajantes v��em nisso um bom press��gio.

E aqui vai a cavalgata rumo da cidade do Delfim.

Bem na frente, Joana D'Arc segue em cima de seu cavalo, de

cabe��a erguida. Seu rosto resplandece ao sol. N��o �� a campone-

sinha desamparada que sa��a para visitar tio Henrique em Ser-

maize, montada na garupa dum burrinho triste.

Agora �� a guerreira. �� a Donzela das profecias. A virgem que

vai dar uma coroa ao rei e um rei �� Fran��a.

X X V I

REI SEM COROA, REINO SEM REI

JOANA chega a Chinon com a sua comitiva.

Esta �� a cidade do rei.

Mas pobre rei!

Carlos de Valois ainda n��o fez trinta anos. �� um homem t��-

mido e covarde. N��o tem figura empertigada e rija de guerreiro.

�� com dificuldade que consegue equilibrar-se em cima dum ca-

valo. Vive metido no seu pal��cio, embalado por uma vida pre-

gui��osa da qual receia sair. Sonha com a coroa����o. Mas se en-

colhe diante do menor obst��culo.

O Duque de Borgonha e seu aliado Bedford, que comanda

os ingleses, est��o senhores de quase toda a Fran��a. Falta-lhes

apenas tomar conta do Sul.

Orl��ans est�� cercada. O Loire, completamente nas m��os dos

ingleses.

O rei est�� enfurnado no seu castelo. Ao seu redor conversam,

gesticulam, caminham, contam anedotas, intrigam, dizem mal da

vida alheia ��� conselheiros, capit��es, cortes��os e doutores muito

s��bios, muito profundos, muito solenes, mas doutores, enfim, que

n��o acham rem��dio para a crise.

O cozinheiro do castelo sofre ainda mais do que o rei. Vai

buscar verduras e frangos no fornecedor e este lhe sai com um

palavr��rio terr��vel:

��� N��o pagam a minha conta! S��o uns ladr��es! Que faz o

rei que n��o cobra impostos? Sou pai dele? N��o sou. N��o tenho

obriga����o de estar fornecendo verduras e frangos de gra��a!

E o pobre cozinheiro volta aniquilado para o castelo; por-

que, custe o que custar, tem de dar de comer ao rei, aos conse-

lheiros, aos astr��logos, aos soldados da guarda, �� criadagem.. .

Pelas ruas de Chinon as comadres e os compadres espalham

hist��rias que cobrem o Delfim de rid��culo.

9 8

E R I C O VER��SSIMO

Contam que um dia Carlos de Valois mandou fazer umas po-

lainas no melhor sapateiro da cidade. O sapateiro veio, muito

honrado com a real prefer��ncia, tirou a medida das nobres per-

nas do Delfim, voltou para a sapataria e se p��s a trabalhar. No

dia seguinte voltou para o rei e, tirando-lhe humildemente as

polainas velhas, experimentou-lhe as novas. O rei olhou, sorriu

e gostou:

��� Admir��veis! ��� disse.

E quando o sapateiro pediu o dinheiro, Carlos de Valois, her-

deiro do trono de Fran��aj baixou os olhos mansos e disse:

��� Olhe, bom homem, depois eu mando um pajem �� sua casa

levar o dinheiro.

��� Depois?���retrucou o sapateiro alarmado. ��� Essa �� que n��o!

O homem conhecia o estado dos cofres p��blicos. Ajoelhou-se

de novo, n��o para beijar a m��o do soberano, mas sim para ti-

rar-lhe das magras pernas tortas as polainas que acabara de

fazer. O rei ficou firme e o sapateiro saiu sem cerim��nia, dei-

xando o Delfim com as polainas velhas e uma cara desconsola-

damente triste.

Contam tamb��m que um dia encontraram o rei e a rainha

muito desanimados diante do almo��o que com enorme sacrif��-

cio o real cozinheiro conseguira apresentar-lhes: dois frangui-

nhos magros e um rabo de porco.

E assim se ridiculariza o pobre rei sem coroa. E assim vive

a pobre Fran��a sem rei.

Auvergne, Lyonnais, Dauphin��, Touraine, Anjou e todas as ter-

ras do sul do Rio Loire, al��m da Guyana e da Gasconha, ainda

pertencem ao Delfim. Mas de que serve isso se os impostos n��o

rendem nada? Os coletores correm o risco de cair nas m��os dos

salteadores de estradas ou dos bandos de soldados inimigos. Nin-

gu��m viaja. Ningu��m faz neg��cio.

Carlos de Valois est�� cercado de gente m��. Nobres cavalhei-

ros ambiciosos que se guerreiam na sombra, procurando cada

qual dominar o Delfim, influir, mandar nele.

Quem Carlos de Valois mais ouve �� La Tr��mouille, seu conse-

lheiro e favorito. O reino lhe deve muito dinheiro.

Quando h�� necessidade de fazer algum banquete ou recep����o,

o Delfim se aproxima humilde de seu gordo conselheiro:

��� Olha, La Tr��mouille, eu estou precisando de d i n h e i r o . . .



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

99

La Tr��mouille sorri. Sua barriga bojuda treme de contenta-

mento. O dinheiro passa para a m��o do Delfim. O prest��gio do

emprestador aumenta. A d��vida do reino tamb��m.

Existem outros credores de grandes import��ncias. O fornece-

dor de peixe. Os cozinheiros do pal��cio. Os pajens. Os armeiros

de v��rias cidades.

Que fazer para lhes pagar as d��vidas? O Delfim d�� terras,

cidades... Um dia, como recurso extremo, resolve fazer moeda

f a l s a . . .

La Tr��mouille �� o usur��rio da corte. Faz largos empr��stimos

e recebe como garantias terras e castelos.

E as suas propriedades crescem como a sua barriga.

Desanimado, o rei recorre aos seus astr��logos. Carlos de Valois

acredita em Deus e ao mesmo tempo nos magos que l��em nos

astros a sorte dos homens e das coisas.

Um dia o seu melhor astr��logo lhe vem dizer que as estrelas

falam vagamente duma Donzela das margens do Mosa que h��

de vir, mandada por Deus. para expulsar os ingleses...

100

ERICO VER��SSIMO

Um dia chega ao castelo de Chinon a carta do Cap. Roberto

de Baudricourt falando na camponesinha de Domr��my.

Carlos consulta La Tr��mouille. O gordo cortes��o faz um mu-

xoxo. �� homem pr��tico. N��o acredita em milagres. A menina

diz que quer comandar os ex��rcitos de Fran��a e levantar o cerco

de Orl��ans? Qu��-qu��-qu��! Se grandes comandantes, homens for-

tes e bravos n��o conseguem n a d a . . .

Mas o rei escreveu em segredo ao capit��o de Vaucouleurs, di-

zendo que concordava em receber a Donzela.

Depois lhe chegou a carta de Joana, mandada de Fierbois.

Chegou num momento cr��tico. O Delfim acabava de receber

not��cias de novas derrotas. O dinheiro continuava a faltar. A

carta da Donzela era impressionante. Que preju��zo ele pode ter

em receb��-la, mesmo que ela seja uma impostora? Nenhum.

Assim reflete o rei sem coroa e fica pensando em se deve ou

n��o deve deixar entrar no seu castelo aquela estranha rapari-

guinha de Domr��my que insiste em afirmar que o pode levar

a Reims para ser coroado...

XXVII

O S I N A L

J O A N A E SEUS amigos chegam a Chinon e v��o parar numa hos-

pedaria.

Jantam com apetite. Os homens bebem e conversam. Depois

sobem para os seus quartos. Soltam suspiros de al��vio quando

se estendem nos colch��es macios. Pensam nas noites passadas ao

relento e adormecem sorrindo.

Joana no seu quarto est�� im��vel, voltada para dentro de si

mesma. Por um instante sai do estado de contempla����o para re-

cordar a sua aventura. Agora ela se acha numa cidade estranha,

a quase duzentas l��guas de sua terra natal. Cercada de gente

desconhecida. Burgueses, guerreiros, ladr��es, doutores, vagabun-

dos . . .

De sua janela v�� as luzes de Chinon. Na silhueta escura das

casas recortam-se janelinhas iluminadas. Muitas dessas casas de-

certo abrigam fam��lias que vivem calmamente a sua vida. As

mulheres fiam. Os homens pensam no trabalho do dia que fin-

dou. O fogo arde na lareira.

Por um segundo a saudade de Domr��my visita a alma de

Joana. Por um segundo apenas, porque de novo aqui est��o com

ela as Vozes queridas a lhe sussurrar segredos extraordin��rios.

No sil��ncio da noite ela ouve as palavras do Arcanjo que

lhe fala nos mist��rios do Delfim e lhe d�� o Sinal, a grande re-

vela����o que h�� de fazer que Carlos de Valois veja nela a en-

viada do C��u.

Quando S. Miguel se vai, Joana adormece.

Nasce mais um dia. E esse dia morre. E clareia outra madru-

gada que se faz manh�� dourada de sol.

Jo��o de Metz abre a porta do quarto da Donzela.

��� Joana, o rei te recebe! ��� exclama ele.



102

E R I C O V E R �� S S I M O

Joana monta no seu cavalo e com os companheiros segue para

o castelo.

Agora aqui v��o eles seguindo pela ponte que leva ao gran-

de port��o da morada real. Um soldado da guarda cavalga em

sentido, contr��rio. O caminho �� estreito. O cavalo do guarda se

choca com um dos cavalos da comitiva. Estr��pito. Pinotes. Bal-

b��rdia. Impreca����es. A escurid��o da noite que desce aumenta

a confus��o. O guarda fica enraivecido e solta uma blasf��mia.

��� Em nome de Deus, tu blasfemas? Logo agora que est��s t��o

perto da morte?

�� Joana que fala. Que vis��o teria ela tido para dizer tais

palavras? Sua voz se ouve, clara e musical, dominando todas as

outras. O guarda sente um calafrio. Sabe que o Delfim espera

uma Donzela, uma virgem inspirada por Deus. Ser�� esta, Santo

Pai?

Esporeia o cavalo e continua o seu caminho de cabe��a baixa,

perdido em reflex��es. A noite �� escura. As nuvens escondem

a lua. O guarda esquece as estranhas palavras da mo��a. Mas an-

tes de uma hora, ao descer do cavalo, aproxima-se demais do

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

103

fosso que rodeia o castelo, d�� um passo em falso, rola para o

fundo da vala inundada e morre afogado.

Joana espera diante da grande porta fechada do sal��o prin-

cipal do castelo. Chegam at�� seus ouvidos os ru��dos abafados

das conversas. Deve haver muita gente l�� do outro lado. Um

mundo diferente e deslumbrante. Mas ela n��o sente o mais le-

ve tremor no corpo. Porque n��o est�� sozinha. Sente a seu redor

um cortejo de anjos, invis��vel para os outros, mas vis��vel e pal-

p��vel para ela.

A porta se abre. Joana D'Arc entra.

Um bafo quente lhe bate no rosto. Dentro do sal��o se avo-

lumam ondas de claridade e de sons coloridos. Cinq��enta to-

chas ardem presas ��s paredes. E os diademas, os an��is e os bra-

celetes das damas enfeitadas fa��scam, fa��scam, fa��scam...

Quanta gente! Homens e mulheres, velhos e mo��os. Vestidos

coloridos e espadas. Caras lisas e caras barbudas.

As vestimentas dos homens s��o engra��adas: ombros posti��os

enormes, cal����es curtos e pernas cobertas de meias de cor. V��em-

se tamb��m guerreiros com armaduras rebrilhantes.

Num instante passam mil pensamentos pela mente de Joana.

No zunzum das conversas em que h�� vozes finas e grossas, fir-

mes e tr��mulas, ela "v��" e "ouve" o seu rebanho de Domr��my

a balir com medo do lobo que sai da floresta...

As mulheres exibem vestidos de seda e j��ias finas. Mas que ��

tudo isto comparado com o esplendor de S. Catarina e de S.

Margarida? O sal��o �� claro, sim, mas que �� esta pobre luz de

tochas, comparada com o clar��o divino das apari����es?

Quando Joana d�� os primeiros passos no sal��o, as conversas

cessam.

Onde estar�� o rei, ��� pergunta ela a si mesma. N��o est�� no

estrado do trono. N��o se v�� nenhum homem vestido de maneira

a fazer a gente desconfiar de que ele seja o Delfim.

Joana passeia os olhos pelos cortes��os.

Alguns come��am a rir. Outros, para experimentar a virgem

milagrosa, apontam ao acaso e dizem:

��� O rei �� aquele!

��� N��o. �� aquele outro ali!

��� Menina, o rei �� o de barba branca!

��� �� o mo��o louro!

104

E R I C O V E R �� S S I M O

Mas Joana caminha firme numa dire����o. Sabe onde se encon-

tra o Delfim. O Arcanjo guia seus passos. Ela se aproxima de

um homem que est�� vestido modestamente, sem luxo, ajoelha-se

aos p��s dele e diz:

��� Deus vos d�� uma longa vida, gentil Delfim!

Carlos de Valois estremece. Mas procura disfar��ar ainda:

��� Eu n��o sou o rei!

��� Em nome de Deus, Sire, v��s sois o rei e nenhum outro

mais! Dai-me tropas com que socorrer Orl��ans e guardar-vos

at�� Reims, onde recebereis a crisma e a coroa. Porque este �� o

desejo de Deus.

O Delfim, de olhos arregalados, surpreendido e tr��mulo, olha

para os seus cortes��os sem saber que fazer nem dizer.

Joana al��a os olhos para o rei.

Ele n��o �� nem mais elegante nem mais garboso que o menos

elegante e menos garboso rapaz de Domr��my.

Feio. Tem olhinhos mi��dos e vesgos que piscam e mais pis-

cam. Nariz abatatado. Boca de l��bios finos. Pernas tortas, descar-

nadas, unidas nos joelhos.

Pobre rei!

Joana est�� im��vel. Carlos leva-a para um canto do sal��o e fi-

ca a conversar com ela longamente, fazendo-lhe perguntas sobre

perguntas. Como foi que a menina o conheceu sem nunca o ter

visto, sem ningu��m o ter mostrado? �� verdade que ela viu S.

Miguel? E S. Catarina? E S. Margarida? Deus acha mesmo que

ele �� o verdadeiro Delfim?

Joana se recorda das palavras do Arcanjo e diz:

��� Em sinal de que venho da parte de Deus, eu vos revelarei

um grande segredo de vossa vida.

Carlos de Valois estremece. Olha para os lados, assustado.

Aproxima-se mais de Joana. E s c u t a . . . A Donzela lhe diz ao

ouvido o grande segredo.

Carlos de Valois est�� aniquilado. Maravilhado. Mudo de es-

panto. Porque o que Joana lhe diz ningu��m sabe, al��m de Deus

e dele pr��prio.

Come��am a explodir conversas em diversos pontos.

O Delfim olha para a mo��a longamente, como que sob a in-

flu��ncia de estranho sortil��gio.

A V I D A D E J O A N A D A R C

105

Vendo a express��o de espanto respeitoso no rosto do senhor

do castelo, os cortes��os fazem sil��ncio.

E todos os olhos se voltam para Joana.

La Tr��mouille est�� furioso. Que ser�� que a menina disse de

extraordin��rio ao ouvido do Delfim? Oh, o pobre diabo acre-

dita nos astr��logos, acredita nas estrelas e n��o �� de admirar que

acredite tamb��m nas virgens milagrosas. Quanto a ele, La Tr��-

mouille, s�� tem f�� nas moedas de ouro, nos fais��es recheados e

no prest��gio da ast��cia...

Agora, por entre duas alas de cortes��os que a contemplam

em sil��ncio, Joana caminha rumo da porta, com passadas firmes.

A luz das tochas p��e lampejos de ouro em seus cabelos es-

curos. Joana leva amassado na m��o o chap��u de l��. Os seus sa-

patos grosseiros pisam os ladrilhos do ch��o.

E nenhum dos homens, nenhuma das mulheres nem de leve

t��m uma id��ia do grande, do bravo cora����o que pulsa dentro

deste peito de dezessete anos.

XXVIII

O CONSELHO DOS Q U A T R O

H�� NO CASTELO de Chinon uma torre que se chama "A Torre

de Coudray". Moram nela Guilherme Bellier, oficial da corte,

e sua mulher.

Para l�� �� que levam Joana. D��o-lhe aposentos confort��veis, como

se ela fosse um guerreiro de renome. P��em a seu servi��o um pajem

de quatorze anos. Chama-se Lu��s de Coutes. O rapaz v�� Joana e

fica encantado. Come��a a servi-la com dedica����o.

Encontra-a sempre recolhida em seu quarto, de joelhos, orando.

E fica parado �� porta, silencioso, contemplando a sua senhora com

uma express��o de simpatia no rosto liso e corado.

Muitas vezes por dia ele chega, respeitoso, e pergunta:

��� Deseja alguma coisa. . .?

E fica todo atrapalhado porque n��o sabe se deve trat��-la de

senhora ou de senhor.

Joana despede-o com um gesto:

��� N��o quero nada, Lu��s, obrigada. V�� descansar.

Mas o pajem n��o vai. Deixa-se estar no corredor, rondando o

quarto da jovem guerreira. Conhece-a h�� apenas dois dias e j�� se

sente disposto a morrer por ela.

O Delfim anda muito contente. Tem conversado repetidamente

com Joana. Ela lhe chama "gentil Delfim", fala-lhe com carinho e

respeito. Insiste em dizer que ainda h�� de p��r-lhe na cabe��a a

coroa de rei.

Ora, o pobre Carlos de Valois n��o est�� acostumado a estas

cortesias. Sabe que na cidade, nas prov��ncias e nos campos ini-

migos, em todo o pa��s enfim (e provavelmente at�� na pr��pria

Inglaterra) toda a gente ri dele, inventa anedotas a seu respeito,

cobrindo-o de rid��culo...

Joana agora vem dar-lhe alma nova. Esperan��a de uma vida

m e l h o r . . .





A V I D A D E J O A N A D ' A R C

107

O Delfim conversa com a Donzela. O sol entra pelas grandes

janelas num jorro luminoso. E neste mesmo instante penetra no

sal��o, num lampejo de armadura, um homem alto e forte.

O rosto do rei se ilumina.

��� O Duque d' Alen��on!

O guerreiro sorri e beija a m��o do rei.

��� Esta �� a Donzela do Mosa, duque, na certa j�� ouviste fa-

lar nela.

Sim, d'Alen��on j�� ouviu falar em Joana, a sua hist��ria corre

mundo, parece que viaja nas asas do vento.

A Donzela est�� maravilhada. Contaram-lhe muitas hist��rias

deste bravo cavaleiro, que �� casado com a prima do Delfim.

Diz-lhe agora estas palavras:

108

ERICO VER��SSIMO

��� Seja bem-vindo, duque! Quanto mais sangue real houver ao

redor do rei, tanto melhor.

O pobre rei sente-se feliz. E �� t��o t��mido e t��o modesto que

j�� se contenta com reinar no cora����o dum guerreiro valente e

duma Donzela inspirada. Que lhe importa neste momento a

coroa da Fran��a? Dois amigos n��o valem um reino?

Mas aparece o gordo La Tr��mouille. A custo passa na porta

estreita que d�� para o comprido corredor que corre ao longo

duma das paredes externas do castelo.

O conselheiro cumprimenta o Duque d'Alencon mas n��o diz

a menor palavra nem faz o menor gesto para a Donzela.

No dia seguinte Joana assiste a uma missa do rei.

Depois se aproxima de Carlos e faz-lhe uma rever��ncia. O

Delfim sorri. Chama d'Alencon e convida-o a ir com ele e

Joana para a sala particular do castelo. Os tr��s para l�� se di-

rigem. Mas La Tr��mouille, que n��o abandona o Delfim, segue

o grupo como uma sombra.

O rei n��o tem outro rem��dio sen��o admitir La Tr��mouille no

conselho.

Conversam. Discutem. Estudam a situa����o. Trocam perguntas.

Fazem planos.

Joana fala; e o Arcanjo e as santas guiam as suas palavras.

A mo��a diz da sorte da Fran��a. Os outros escutam. La Tr��mouille

sorri ironicamente.

��� Gentil Delfim, quando fordes sagrado rei, deveis oferecer

a Deus o Reino da Fran��a.

Joana exp��e planos de guerra. Carlos de Valois est�� mara-

vilhado. D'Alencon sorri do entusiasmo da Donzela. O gordo

cortes��o n��o se pode conformar com a id��ia de que esta me-

nina pleb��ia, sa��da duma aldeia pequenina, possa comandar ex��r-

citos, ter sob suas ordens capit��es de sangue azul, guerreiros ex-

perimentados e soldados, muitos soldados...

Para ele s�� existe uma for��a irresist��vel no mundo: o ouro.

Joana insiste. H�� de expulsar os ingleses e coroar o verdadeiro

Rei de Fran��a.

��� Bravo, companheira!���exclama d'Alencon.

E desde este momento a amizade de Joana pelo jovem du-

que aumenta. Despedem-se numa sauda����o m��scula, como bons

companheiros d'armas.

X X I X

COMO S. C A T A R I N A DIANTE DOS DOUTORES

M A S O REI duvida ainda. N��o quer dizer que no fundo do co-

ra����o n��o sinta simpatia e n��o tenha uma pontinha de confian-

��a na pastora inspirada de Domr��my. Carlos de Valois �� t��o

fraco e t��o sem vontade, que n��o tem firmeza nem na f�� nem

na d��vida.

Mas acontece que os seus conselheiros a todo o momento lhe

enchem os ouvidos de palavras assim:

��� Ela �� Uma impostora.

��� Se Deus escolhesse algu��m na Terra para comandar os ex��r-

citos de Fran��a, esse algu��m n��o seria certamente uma campo-

nesinha r��stica das margens do M o s a . . .

��� Ela vem mandada por Belzebu... ��� diz La Tr��mouille.

O gordo cortes��o n��o cr�� em Deus, mas teme o diabo, o Es-

p��rito das Trevas ��� essa entidade maligna que nos aparece no

corpo dum bicho, no c��lice duma flor, na alma duma mulher.. .

Enquanto os conselheiros conspiram e intrigam, enquanto o

rei mergulha desesperado as m��os p��lidas nos cabelos ralos, na

"Torre de Coudray" Joana recebe muitas visitas. N��o s��o s�� as

visitas de anjos e de santos. S��o criaturas da Terra que querem

ver a Donzela de quem se contam tantos milagres.

Joana os recebe sorrindo. E chegam senhores importantes,

capit��es enormes, padres, astr��logos, guerreiros. E a todos ela

fala e a todos encanta.

No sal��o particular do castelo o rei acha-se com o seu Con-

selho reunido. Acabam de decidir que Joana deve ser mandada

a Poitiers para ser examinada por s��bios doutores versados em

Teologia.

Quando Joana recebe a not��cia de que vai ser examinada,

lembra-se imediatamente de S. Catarina que teve de enfrentar

os s��bios do Egito. E fica serena, esperando a visita do Arcanjo.

110

E R I C O V E R �� S S I M O

Poitiers �� agora a capital da Fran��a francesa. Os restos do

Parlamento de Paris (cidade que est�� em poder dos i n i m i g o s )

se encontra em Poitiers. Nesta cidade existe uma Universidade

cheia de homens de grande saber e incalcul��vel experi��ncia.

O rei escolhe entre seus s��bios os padres e os doutores que

devem examinar Joana. H�� bachar��is em Teologia, doutores em

Direito Civil e em Direito Can��nico. O confessor do rei, o bispo

de Poitiers, o bispo de Maquelonne, o inquisidor de Toulouse

e outros, muitos outros ��� uns vinte ao todo ��� fazem parte da

ilustre companhia que vai submeter a Donzela a um exame se-

vero.

Aqui est��o seis deles reunidos. Conhecem toda a ci��ncia da

Terra e alguns dos mist��rios dos c��us. Sabem que o diabo muita

vez prefere para morada terrena o corpo das virgens. . .

S��o homens de caras fechadas, testas largas, olhos penetrantes.

Est��o vestidos de escuro. T��m um aspecto assustador. Uns se-

guram o queixo pensativamente. Outros mordem a falange do

indicador com f��ria nervosa. Outros ainda entortam a cabe��a e

apoiam uma das faces na m��o espalmada.

Na frente deles est�� a menina Joana.

Seis pares de olhos se acham voltados para ela.

Mas n��o se l�� rancor nem mesmo desconfian��a nestes olha-

res duros. S��o olhos de partid��rios dos armagnacs que est��o

fitando uma criatura que se diz enviada de Deus para expulsar

os ingleses.

Joana espera.

Estamos na sala maior da casa de Jo��o Rabateau, homem do

Duque de Orl��ans. �� aqui que Joana est�� hospedada. E �� aqui

que ela recebe a visita dos doutores.

Eles n��o v��m todos juntos. Chegam aos grupos.

Irm��o Jo��o Lombardo pergunta:

��� Por que foi que vieste? O rei quer saber o que foi que te

impeliu a procur��-lo.. .

Joana responde:

��� Eu estava no jardim de minha casa e uma voz me apare-

ceu dizendo: "Deus tem grande pena do povo franc��s. Joana,

�� preciso que v��s para a Fran��a." Quando ouvi estas palavras

comecei a chorar. Ent��o a voz me disse: "Vai a Vaucouleurs.

Achar��s l�� um capit��o que te mandar�� conduzir com seguran��a

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

1 1 1

a Fran��a, para junto do rei. N��o tenhas medo." Eu fiz o que

mandavam e cheguei ao rei sem impedimento.

Um outro doutor argumenta:

��� Se Deus quer libertar o povo da Fran��a n��o precisar�� de

gente d'armas...

��� Em nome de Deus, ��� replica Joana ��� os homens d'armas

batalhar��o e Deus lhes dar�� a vit��ria!

Os doutores se entreolham admirados, e se retiram em si-

l��ncio.

Outras visitas chegam. Novos interrogat��rios. A todos Joana

responde com rapidez e clareza.

Um dia recebe a visita de Pedro de Versalhes e de To��o Erault,

que trazem em sua companhia um jovem escudeiro, Gobert Thi-

bault. Ao v��-lo entrar, Joana, tomada de brusca simpatia, apro-

xima-se dele, bate-lhe no ombro amistosamente e lhe diz:

��� Eu queria ter muitos soldados assim de boa vontade como

este!

E tem raz��o para dizer isto, porque Gobert Thibault �� um

homem simples e bravo, tem uma f�� t��o grande que para acre-

ditar na Donzela n��o exige provas nem sinais.

Chegam mais doutores. Joana est�� cansada, aborrecida, mas

responde a todas as perguntas.

Os s��bios contradizem a Donzela. E ela freq��entemente lhes

retruca assim:

��� Nos livros de Nosso Senhor h�� muito mais sabedoria e

verdade do que nos vossos.

Irm��o de Seguin interroga Joana. �� um homem natural do

Limousin e fala com um sotaque que a muitos faz rir. Suas pa-

lavras saem arrastadas, lentas como se fossem de chumbo.

Ele quer confundir a Donzela e prepara-lhe uma pergunta

sutil:

��� Que l��ngua falam as tuas Vozes?

Os outros doutores se entreolham, surpreendidos pela habili-

dade de Seguin. Mas Joana lan��a ��gua fria na chama de seu

entusiasmo:

��� Falam um franc��s muito melhor do que o teu.

Risadas. Irm��o Seguin fica vermelho.

Mas insiste:



112

ERICO VER��SSIMO

��� Acreditas em Deus?

��� Mais do que tu!���responde Joana sem pestanejar.

Seguin n��o se d�� por vencido. Pede sinais, sinais que mostrem

que ela realmente �� uma enviada do Senhor.

��� N��o vim aqui para dar sinais. Levem-me a Orl��ans e eu

vos mostrarei com fatos que tenho uma miss��o de Deus.

Diante das caras surpreendidas dos doutores, com voz firme

e clara, Joana faz estas quatro profecias extraordin��rias:

��� Orl��ans ser�� libertada. Eu levarei o Delfim a Reims para

ser coroado. Paris voltar�� a pertencer ao rei. O Duque de Or-

l��ans, que est�� preso na Torre de Londres, voltar�� �� p��tria.

Os doutores est��o satisfeitos. E surpreendidos tamb��m. N��o

descobrem mal��cia nem falsidade nem fanatismo na Donzela.

Joana falou nas Vozes. . . Mas n��o diz nada das vis��es. �� um

segredo que guarda por enquanto no fundo do cora����o.

Os doutores se retiram.

Joana fica. E Jo��o Rabateau tem ocasi��o de v��-la muitas ho-

ras ajoelhada, orando.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

113

No mais ela ri, fala com alegria na vit��ria da Fran��a e a

espera, com f��.

O rei em Chinon recebe o resultado do interrogat��rio. Fica

muito contente porque n��o se descobriram em Joana influ��n-

cias do Maligno. La Tr��mouille sacode a cabe��a com abandono.

Suas bochechas tremem. E ele diz:

��� Que calamidade! Os ex��rcitos do Rei de Fran��a comanda-

dos por uma camponesinha ignorante do Mosa. Que calamidade!

X X X

A ESPADA D A S CINCO CRUZES

TOURS �� a linda cidade dos tecel��es e dos armeiros. Daqui ��

que saem os mais finos panos de seda de ouro e de prata.

Joana �� conduzida a Tours. O melhor armeiro da cidade, por

ordem do rei, lhe faz sob medida uma armadura completa de

ferro batido.

O homem que est�� polindo agora o elmo comenta, sacudindo

a cabe��a:

��� �� imposs��vel que uma simples rapariguinha ag��ente todo

este peso!

E continua a balan��ar a cabe��a.

Quando a armadura fica pronta, o armeiro recebe em troca

algumas centenas de acres de terra boa, porque dinheiro n��o h��

ncs cofres do rei.

Joana recebe a sua armadura. E o rei lhe diz que escolha em

suas cavalari��as o cavalo de que mais gostar. Joana escolhe.

Falta agora a espada.

Joana se lembra do Santu��rio de S. Catarina em Fierbois. L��

existem muitas espadas pelas paredes da capela. Cada arma con-

ta uma hist��ria de hero��smo e lealdade...

��� Vamos, Joana ��� diz o Duque d'Alen��on ��� escolhe a tua

espada.

Joana n��o escuta a voz do companheiro darmas. Porque outra

Voz mais familiar e mais doce lhe est�� falando agora �� alma e

lhe dita as seguintes palavras:

��� Escrevam esta carta aos padres de Fierbois. . .

Jo��o de Metz escreve. Joana dita, de olhos fechados. S��o pou-

cas frases em que a Donzela pede aos bons padres que cavem

perto do altar de S. Catarina onde se acha enterrada, n��o muito

fundo, uma velha espada. Como sinal de que est�� falando com

autoridade, a Donzela declara que o gl��dio tem cinco cruzes

gravadas na l��mina.



A V I D A DE J O A N A D ' A R C

115

Jo��o de Metz incumbe um armeiro de Tours de levar a carta

a Fierbois.

Enquanto o portador vem e vai, Joana manda bordar um es-

tandarte que deve ser o seu distintivo de comando.

Suas irm��s do Para��so lhe disseram: "Toma do estandarte por

ordem do Rei do C��u!"

E Joana recebe de suas Vozes instru����es para mandar fazer um

estandarte de linho branco com franjas de seda.

Vai ao melhor pintor da cidade.

Aqui est�� ela na casa de Hamish Power, um escoc��s muito

h��bil no manejo do pincel.

Ela lhe diz:

��� Quero que pintes no estandarte Nosso Senhor sentado no

seu trono, com a m��o direita levantada e com a esquerda se-

gurando o mundo. �� esquerda dele, faze um anjo; outro anjo

�� direita, os dois apresentando ao Senhor um punhado de flores-

de-lis. E mais este d��stico: Jesus-Maria.

l16

E R I C O V E R �� S S I M O

No outro lado do estandarte Joana manda pintar um escudo

azul, com uma pomba de prata trazendo no bico uma bandeirola

com estas palavras: "Por ordem do Rei do C��u."

Hamish Power est�� inclinado sobre o linho branco e pinta o

estandarte com amor. Anda no ar um cheiro ativo de tinta. L��

fora os sinos de Tours batem e o som fica dan��ando sobre os

telhados, luminosamente.

Heliote, filha do pintor, entra na sala e sorri para Joana. A

Donzela lhe corresponde ao sorriso.

Power ergue a cabe��a:

��� Essa �� a minha filha ��� diz, fazendo um sinal na dire����o

da rec��m-chegada. ��� Est�� noiva, vai c a s a r . . . ��� acrescenta com

satisfa����o.

Heliote tem os cabelos claros, t��o claros que parecem de prata.

Seus olhos s��o do azul dessas lagunas muito puras e transparentes

que deixam ver no fundo uma flora m��gica de coral.

Joana e Heliote conversam. A filha do pintor contempla ad-

mirada esta menina de sua idade que teve a coragem de cortar

os cabelos ( q u e deviam ser l i n d o s ) , de se vestir de homem e

que agora est�� aqui esperando que papai pinte para ela o seu

estandarte de guerra. �� extraordin��rio!

E ficam as duas, uma na frente da outra, a se mirar em si-

l��ncio. Dum lado est�� Heliote, fr��gil, clara, vestida de branco,

m��os finas e delicadas como os l��rios que seu pai justamente

neste instante est�� pintando no estandarte. Do outro lado acha-

se Joana, cabelos muito negros e cortados �� moda dos homens,

empertigada e rija, m��os calosas, roupas grosseiras.

Joana fala. Pergunta a Heliote not��cias do noivo. A escocesa

cora. E embara��ada pergunta, depois de dizer que o noivo �� um

belo oficial do rei:

��� E tu n��o tens tamb��m um noivo?

Joana sorri.

��� N��o, minha amiga. Prometi aos santos do C��u que dedi-

caria toda a minha vida ao Senhor. . .

Quando o estandarte fica pronto, Joana manda coloc��-lo na

ponta duma haste de ferro.

Volta para o hotel de Jo��o du Puy, onde se acha hospedada.

J�� est�� de volta o mensageiro que levou sua carta aos padres de

Fierbois.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

117

Ao p�� do Santu��rio de S. Catarina, n��o muito fundo, estava

realmente enterrada uma espada. E tinha cinco cruzes gravadas

na l��mina.

Os homens que sabem da profecia de Joana, est��o espantados.

Joana agora mira e remira a arma. Est�� enferrujada, ba��a,

velha.

��� Mandem polir esta espada!���ordena ela.

Jo��o de Metz sai com o gl��dio das cinco cruzes. Joana fica

olhando para a porta por onde saiu o seu fiel companheiro d'ar-

mas. E seus olhos caem em dois vultos familiares que entram e

ficam parados, com os gorros apertados nas m��os.

��� Voc��s aqui?

Joana olha, admirada. Na sua frente os seus dois irm��os Jo��o

e Pedro lhe sorriem. N��o t��m coragem de entrar e abra��ar a

irm��, dizendo:

��� Ent��o, Joaninha, como vais?

Sabem das coisas maravilhosas que se contam dela. Sabem

que ela viu o rei e que o rei lhe vai dar um cavalo, uma arma-

dura, um estandarte, e um ex��rcito. Agora ela n��o �� mais a cam-

ponesinha de Domr��my que levava as ovelhas para o campo,

que viajava na garupa do burrinho. N��o. Maninha agora �� Joana

D'Arc, a guerreira.

E por isto ficam de olhos muito abertos, olhando com amor

e admira����o para a mo��a que est�� sorrindo diante deles, com os

bra��os a b e r t o s . . .

X X X I

A MENSAGEM A O S INGLESES

TRAZEM a Joana a espada das cinco cruzes que agora est�� poli-

da e fulgura ao sol de Tours.

A not��cia do milagre se espalha. A cidade se enche de entu-

siasmo. Joana �� aclamada nas ruas. O povo de Tours lhe d��

duas bainhas para a arma sagrada. Uma de veludo para o uso

di��rio; a outra de pano de ouro para as grandes solenidades.

Mas Joana prefere guardar a espada numa bainha tosca de couro.

Trazem-lhe �� hospedaria de Jo��o du Puy um padre, Irm��o

Pasquerel:

��� Joana, n��s te trouxemos este bom padre. H��s de gostar

dele, quando o conheceres melhor.

A Donzela responde:

��� O bom padre me deixa bem alegre. J�� ouvi falar a seu

respeito e amanh�� quero faz��-lo meu confessor.

No dia seguinte Irm��o Pasquerel confessa Joana D'Arc e can-

ta a missa com a presen��a dela.

E desde este momento n��o a abandona mais.

Joana segue para Blois com sua comitiva.

No ��ltimo encontro com o rei ela fez uma profecia:

��� Hei de salvar Orl��ans e p��r os ingleses em fuga. Quando

eu estiver na cidade uma frecha me ferir��, mas n��o de morte.

E neste mesmo ver��o sereis coroado em Reims!

�� mulher do Duque d'Alen��on prometeu:

��� N��o se inquiete. Eu lhe trarei de volta o seu marido com

vida e com gl��ria.

Agora aqui est�� a Donzela, cercada de seus companheiros.

Jo��o de Metz e Bertrand de Poulengy discutem animadamente

a rijeza de suas coura��as. O primeiro ergue no ar o seu gl��dio,

para mostrar ao amigo um golpe eficaz de gume. A l��mina re-

Iampagueia ao sol de Blois.



A V I D A D E J O A N A D ' A R C 119

Joana v�� e sorri.

��� Est��s com medo, Raimundo? ��� pergunta ela ao rapaz tris-.

tonho que est�� a seu lado.

��� Medo, eu? Ao vosso lado?

Raimundo for��a um sorriso. Ainda n��o fez dezessete anos. ��

o novo pajem de Joana. A proximidade da luta o deixa nervoso.

��� Olha s�� para o Lu��s, v�� como ele se diverte! ���anima-o

a Donzela.

Num grupo de soldados Lu��s de Coutes, o primeiro pajem

que Joana ganhou em Chinon, inventa fa��anhas que nunca fez

e ri uma risada sonora que se mistura com o tinido das espadas

e das armaduras que se entrechocam.

O cavaleiro Jo��o d'Aulon, escudeiro de Joana, estende os olhos

pelo acampamento fervilhante e diz, sorrindo:

��� �� um milagre. Esta gente ganhou alma nova. Ontem s�� de

ouvir falar no nome dos ingleses queriam fugir. Hoje est��o aqui

dispostos a b r i g a r . . .

Joana fecha os olhos e ora, agradecendo a Deus todos os fa-

vores que lhe tem feito.

O acampamento ganha vida. Chegam novos contingentes. Pre-

param-se muitas carretas com v��veres. �� que os habitantes de

1 2 0

ERICO VER��SSIMO

Orl��ans j�� come��am a sentir fome. A muni����o de seus defenso-

res escasseia. �� preciso revitualhar a cidade sitiada,

O vulto de Poulengy se ergue na frente de Joana. Sua arma-

dura polida reverbera �� luz do sol.

��� Ent��o? Atacamos?

Joana sacode a cabe��a em sil��ncio. De olhos fechados ela en-

xerga a vit��ria. Mas contra o fundo vermelho de suas p��lpebras

descidas se desenha uma vis��o horr��vel. �� um campo depois da

batalha. Os feridos se estorcem. O Rio Loire est�� tinto de sangue.

Os mortos b��iam �� flor da ��gua. Oh Deus! Quando �� que os

homens v��o compreender?

��� Escudeiro! ��� grita a Donzela.

��� Pronto! ��� responde d'Aulon, aproximando-se.

��� Quero mandar uma mensagem aos ingleses.

E dita uma carta assim:

Rei da Inglaterra, e v��s, Duque de Bedford, que vos dizeis

regente do Reino da Fran��a; Guilherme de la Poule, Conde de

Suffort, Jo��o, Sire de Talbot, e v��s, Thomas, Lord d'Escales, que

vos dizeis tenentes do dito Duque de Bedford, fazei justi��a ao

Rei do C��u; entregai �� Donzela que foi enviada por Deus, Rei

do C��u, as chaves de todas as boas cidades que tomastes e vio-

lastes na Fran��a. Ela aqui veio por ordem de Deus para redimir

o Sangue Real; ela est�� pronta a fazer a paz se fizerdes justi��a

a ela e ao Reino de Fran��a, ao qual deveis pagar por aquilo de

que vos haveis apoderado. E v��s, arqueiros e companheiros de

guerra, de alta ou baixa linhagem, que estais diante da boa Ci-

dade de Orl��ans, ide embora, em nome de Deus, para a vossa

P��tria. Rei da Inglaterra, se assim n��o fizerdes, eu, chefe de guer-

ra, em qualquer lugar da Fran��a em que vos encontrar vos man-

darei para fora, queiram ou n��o queiram, e a quem n��o obede-

cer matarei e a quem obedecer pouparei. Nem julgueis que vos

�� poss��vel tomar conta do Reino de Fran��a. N��o, por Deus, o

Filho de Maria! Carlos, o Rei, ficar�� com ele, porque �� o vero

herdeiro. Porque Deus o Rei do C��u assim o quer, conforme a

Donzela lhe revelou. Ele entrar�� por fim em Paris com uma boa

companhia. Se n��o derdes cr��dito ��s palavras de Deus pela boca da

Donzela, em qualquer lugar que vos acharmos, havemos de desferir

golpes tremendos e faremos uma derrubada violenta como ja-

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

121

mais se viu na Fran��a nestes cem anos. Depois veremos quem

tem melhor direito do Deus dos C��us, se n��s ou v��s!

De Blois a Orl��ans h�� uma dist��ncia que o ex��rcito pode

vencer em tr��s dias de marcha. Um cavaleiro montado em bom

cavalo poderia deixar Blois ao nascer do sol e chegar �� cidade

sitiada bem no momento em que as ��guas do Loire come��am

a se tingir da luz alaranjada do sol poente.

Joana re��ne os seus oficiais.

��� Quantos homens temos? ��� pergunta.

��� Uns quatro mil, ��� responde Jo��o de Metz.

Sil��ncio.

Bertrand de Poulengy fala:

��� Antes de tudo, precisamos revitualhar Orl��ans.

��� Justo, ��� concorda Joana.

Os olhos de dAulon fuzilam: o seu rosto se ilumina de

alegria:

��� A situa����o n��o pode ser mais favor��vel. O Duque de Bor-

gonha retirou os seus soldados do cerco.

��� Brigou com Bedford?���pergunta Jo��o de Metz.

D'Aulon sacode a cabe��a:

��� N��o. Mas vieram-lhe aos ouvidos umas intriguinhas de

Chinon. .. O duque quer tirar partido da situa����o. Pelas d��-

vidas, prefere ficar de lado por uns t e m p o s . . .

��� Ent��o?���E ao fazer a pergunta, Poulengy franze a testa.

Os homens est��o sentados nos fardos de v��veres, formando

uma roda em cujo centro se encontra Joana, de p��.

D'Aulon tira a espada da bainha e come��a a riscar o ch��o.

��� Vejam s�� a situa����o de Orl��ans.. .

Joana baixa os olhos. Poulengy e Jo��o de Metz acocoram-se

muito juntos um do outro e ficam olhando com aten����o os ra-

biscos que o escudeiro da Donzela est�� tra��ando na terra.

Lu��s e Raimundo espicham o pesco��o para olhar. E d'Aulon

vai explicando. Sua longa espada projeta no ch��o uma sombra

azulada.

XXXII

P A R A ORL��ANS!

AGORA no grupo s�� se ouve a voz pausada de d'Aulon.

��� Como voc��s v��em ��� diz ele ��� aqui est�� Orleans...

Aponta com a espada. Orleans fica �� margem direita do Rio

Loire, que corre do nascente para o poente.

��� Os ingleses est��o nos seus fortins ��� continua o escudeiro.

��� Ficaram com o efetivo reduzido depois que o Duque de Bor-

gonha retirou os seus soldados. Como n��o possuem gente em

quantidade suficiente para assaltar a cidade, est��o procurando.. .

��� Submet��-la pela fome!���berra Jo��o de Metz, como se ti-

vesse feito uma grande descoberta.

��� Isso! ��� confirma d'Aulon. E prossegue: ��� Aqui est��o os

fortes que cercam Orleans. Temos ao sul as "Tourelles". Mais

adiante est�� o dos Agostinianos. Perto do rio, para as bandas

do Ocidente, temos o "S. Louren��o". Ao norte, fica o "Paris'".

��� E ao pronunciar o nome desta cidade, d'Aulon suspira fundo

porque se lembra que Paris est�� nas m��os dos inimigos do Del-

fim. ��� Bom. Do lado era que nasce o sol fica o forte St. Loup.

Esta, a situa����o. Entre estes fortes existem grandes espa��os des-

protegidos por onde a nossa gente podia e n t r a r . . .

��� Os ingleses s�� vigiam o lado de onde eles julgam possa

chegar socorro para Orleans. �� o lado do Ocidente, o que d��

para Tours e Chinon.

Joana escura em sil��ncio. Poulengy, Jo��o de Metz e d'Aulon

discutem. Diz o primeiro:

��� Quer dizer ��� avan��a Jo��o de Metz ��� que podemos entrar

por qualquer outra parte?

D'Aulon encolhe os ombros. Joana f a l a :

��� Temos dois caminhos livres que nos levam a Orleans. Um

pela margem direita do Loire. Outro pela esquerda.



A V I D A DE J O A N A D'AP,C

123

��� Tomaremos a margem esquerda!���exclama de Poulengy.

A do sul! ��� Os ingleses est��o esperando refor��os. Temos de se-

guir o quanto antes! Pela margem esquerda! Que acham voc��s?

Ergue os olhos para Joana, que medita, de olhos fechados.

��� Seguiremos pela margem direita, diretamente sobre Orl��ans

��� diz ela com firmeza.

Poulengy ergue-se r��pido.

��� Mas n��o �� poss��vel! Veja as conveni��ncias.. . Do lado di-

reito do rio encontraremos as guarni����es inglesas de Marchenoir,

Beaugency, de Meung, de Montpipeau, Saint-Sigismond, Janvil-

l e . . . d e . . . d e . . . nem sei mais que!

��� Joana, ��� diz Jo��o de Metz com voz doce ��� ser�� desastroso

para n��s se tomarmos a margem direita. Vamos cair na boca do

l o b o . . .

O rosto da Donzela est�� sereno. E com calma ela repete:

��� Vamos pela margem direita!

Os homens se entreolham em sil��ncio e se separam.

O acampamento �� uma colmeia assanhada. Gritos e trop��is.

Lan��as e espadas e armaduras fulgindo na claridade macia da

124

E R I C O VER��SSIMO

tarde. Capit��es berrando ordens. Homens fortes carregando far-

des para dentro das carretas.

Do alto duma colina onde fica a sua tenda, Joana contempla

o acampamento. Chegam a seus ouvidos, de mistura com as vo-

zes dos homens, vozes mais finas e mais musicais. A Donzela

franze a testa. Passam mulheres abra��adas a soldados, cantando

e rindo. S��o criaturas de m�� vida que burlequeiam pelas tendas,

e que acompanham os ex��rcitos.

O cora����o de Joana se aperta. E ela desce na dire����o dos sol-

dados. Encontra Jo��o de Metz. Det��m-se na frente dele e lhe

diz com voz tr��mula:

��� Mande botar todas as mulheres para fora do acampamento.

��� Pausa. Jo��o de Metz espera. Joana prossegue.���Todas, e ime-

diatamente!

Jo��o de Metz faz meia-volta e se some no meio dos soldados.

A Donzela re��ne os guerreiros e lhes diz que n��o poder�� ha-

ver esperan��a de vit��ria se eles n��o se arrependerem de todos os

pecados.

��� Precisais purificar as vossas almas sujas. Deveis pedir per-

d��o a Deus. Se morrerdes na luta, como haveis de ter coragem

de erguer os olhos para o Pai, l�� na outra vida? V��s os casados

lembrai-vos tamb��m de vossas esposas. E de vossas irm��s, os

solteiros. Cada uma dessas mulheres que foram expulsas do acam-

pamento �� mais perigosa do que todo o ex��rcito do Duque de

Bedford.

Joana fala de cabe��a erguida. O ��ltimo sol do dia lhe pinta

ao redor da cabe��a uma aur��ola de ouro avermelhado. E os guer-

reiros fortes baixam a cabe��a diante desta menina de dezessete

anos, de olhos azuis como o c��u que se estende sobre o acampa-

mento, de voz fina como o tinido das espadas. E nenhum tem

coragem de dizer uma palavra de revolta.

Joana manda chamar os padres que acompanham as tropas.

S��o muitos. Vindos de diversas partes da Fran��a, fugidos de con-

ventos que foram pilhados e incendiados pelos ingleses. Sem

teto e sem p��o, esfarrapados e exaustos, eles ainda est��o de p�� e

se agitam porque a f�� os anima.

Os padres chegam e a Donzela manda-os confessar os soldados,

que se ajoelham na terra dura e contam baixinho ao ouvido dos

A V I D A D E J O A N A D ' A R C 125

sacerdotes todos os seus pecados. E ura por um, todos confessam

suas culpas, purificam suas almas.

Ao anoitecer, o Duque d'Alencon, que tinha ido a Chinon pe-

dir ao rei dinheiro para as tropas, chega com pequena comitiva.

�� noite as csrreias brilham sobre o acampamento adormecido.

D'Alencon, Poulengy, Jo��o de Metz e outros capit��es confabu-

lam em voz baixa numa das tendas do comando.

Joana ora ao ar livre, com os olhos erguidos para o c��u. Os

guardas que rondam o acampamento parecem fantasmas. Um si-

l��ncio de morte envolve todas as coisas. E no meio do sil��ncio

Joana ouve as Vozes.

No dia seguinte, pelos seus arautos Ambleville e Guyenne, a

Donzela envia a mensagem aos ingleses.

Mais tarde o ex��rcito libertador prepara-se para seguir para

Orl��ans.

Joana veste pela primeira vez a sua armadura. Monta no seu

cavalo branco, toma do estandarte e abre a marcha.

O dia est�� claro e fresco.

Os padres marcham reunidos, com uma bandeira �� frente, e

v��o cantando o Veni Creator Spiritus. Joana segue embalada pe-

lo c��ntico dos religiosos. Ao seu lado cavalgam em sil��ncio Rai-

mundo e Lu��s, os dois pajens. Jo��o e Pedro, irm��os de Joana,

tamb��m n��o se afastam do lado dela. Como um c��o fiel que n��o

conhece fadiga, Irm��o Pasquerel se arrasta ao lado da Donzela.

E os soldados da Fran��a, marchando de lan��as aos ombros, d��o

a impress��o de uma floresta desgalhada em movimento.

Joana volta os olhos e se deslumbra. O sol arranca fa��scas das

armaduras, das espadas e das lan��as. O ex��rcito se estende no

campo como uma grande cobra de prata lampejante. Os padres

cantam. Os soldados cantam. At�� as carretas de v��veres, no re-

chinar das rodas, parecem cantar um hiro de vit��ria.

Joana segura firme a haste do seu estandarte.

E por um instante ��� s�� por um instante ��� ela se lembra da-

quela viagem que fez a Sermaize, na garupa do burrinho pe-

ludo. . .

XXXIII

DEUS �� O SENHOR DOS VENTOS

No DIA seguinte, ao anoitecer, Joana avista as torres de Orl��ans.

Mas de s��bito, olhando o rio que corre l�� em baixo, ela sente

um sobressalto:

��� Mas n��s estamos na margem esquerda! ��� exclama.

D'Aulon, que se encontra a seu lado, baixa os olhos sem dizer

palavra.

��� Mas que �� isto, D'Aulon? Eu n��o disse que dev��amos se-

guir pela margem direita?

Seus olhos fuzilam. Sua testa est�� franzida em in��meras rugas

de contrariedade.

Ainda de olhos baixos DAulon confessa humildemente:

��� Eles quiseram...

��� E l e s . . . quem?

��� Os capit��es...

Sil��ncio. D'Aulon se afasta, aniquilado, como sob o peso du-

ma culpa irremiss��vel.

Poucos instantes depois, o comandante das tropas que defen-

dem Orl��ans sai da cidade sitiada, atravessa o rio e vem procu-

rar a Donzela.

Os dois se acham agora aqui, frente a frente.

Ela �� a primeira a falar:

��� ��s tu o Bastardo de Orl��ans?

��� Sou eu e estou contente por teres vindo.

O comandante de Orl��ans sorri com simpatia. �� um bravo

soldado. Olha para a Donzela e fica desde o primeiro instante

acreditando na sinceridade dela.

��� Foste tu que deste o conselho de virmos por este lado do

rio e n��o direito sobre o lado onde est��o Talbot e os ingleses?

A V I D A D E J O A N A D ' A R C 127

��� Eu e outros capit��es mais prudentes demos esse conselho,

julgando fazer tudo pela forma melhor e mais segura.

��� Em nome de Deus! O conselho de Messire �� mais seguro

e mais s��bio que o vosso. V��s julgais me enganar e v��s vos en-

ganais a v��s mesmos. Porque eu vos trago um socorro melhor,

que �� o socorro do C��u, que vem do pr��prio Deus. Ele teve pie-

dade de Orl��ans, n��o quis que os inimigos tivessem ao mesmo

tempo o corpo do duque e a sua cidade.

O Bastardo baixa os olhos em silencio e sorri com benevol��ncia.

Saem os dois juntos a revistar as tropas.

�� beira do Loire Joana estende os bra��os e mostra ao guer-

reiro um punhado de barcas carregadas com v��veres e muni����es.

��� Temos de fazer isto tudo entrar em Orl��ans.

��� Qual �� o p l a n o ? ��� p e r g u n t a o Bastardo.

��� Levar as embarca����es pelo rio at�� a aldeia de Checy e dali,

por terra, at�� a Porta Oriental de Orl��ans. Na Porra Ocidental

a entrada seria imposs��vel porque ali os inimigos s��o "mais nu-

merosos.

O Bastardo contempla as barcas carregadas que sobem e des-

cem levemente ao balan��o das ondas. A ��gua bate-lhes nos cos-

tados com um chape-chape macio e repetido que d�� vontade de

dormir. As velas est��o enfunadas. Os homens que v��o conduzir

as embarca����es acham-se a postos. Esperam apenas ordem de

largar.

O comandante de Orl��ans est�� pensativo.

��� �� imposs��vel levar estas barcas a Checy!

��� Imposs��vel?

Joana sorri.

��� O vento sopra de leste. As barcas t��m de subir o rio. N��o

h�� for��a humana que ven��a a correnteza aliada ao vento.

E o vento que vem das bandas do nascente leva para longe as

palavras do Bastardo. E infla as velas, tentando impelir as bar-

cas para o rumo contr��rio ao que elas precisam tomar. O vento

�� impiedoso. Uiva e sopra incessantemente. Os capit��es andam

dum lado para outro, sem saber que provid��ncia tomar.

O Bastardo olha pensativo para a sua pobre cidade sitiada.

Sil��ncio por um minuto.

Joana abre os bra��os e ergue os olhos para o c��u. E diz alto

para que todos a seu redor possam ouvir:



128

E R I C O VER��SSIMO

��� Deus �� o Senhor dos Ventos!

E de repente o vento cessa. Cessa e em seguida come��a a so-

prar do Ocidente para o Oriente com a mesma for��a com que

soprava em sentido contr��rio. Os homens perdem a fala. O bojo

das velas que estava voltado para o oeste agora est�� apontando

para o leste.

O Bastardo est�� assombrado. Joana sai do seu ��xtase e grita:

��� Soltem as amarras! Para Checy! Para Orl��ans!

E nas asas do vento parece que vem um bafejo dos c��us.

Alguns soldados se ajoelham para adorar a Donzela. Joana

f��-los erguerem-se.

Os barcos vencem a correnteza com facilidade. E l�� se v��o

de velas infladas, rumo de Checy, onde chegam no mesmo dia.

Joana forma a sua tropa e atravessa com ela o Loire.

Em sua companhia est��o agora o Bastardo, o Mar. Boussac,

0 Cap. La Hire e outros oficiais,

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

129

A tropa pernoita em Reilly. Joana vai parar na casa de Guy

de Cailly, que lhe d�� bom quarto e boa cama.

E de noite, quando, orgulhoso de hospedar a Donzela inspira-

da, Guy de Cailly vai at�� Joana para lhe perguntar se deseja

alguma coisa ��� ao chegar �� porta recua espantado. Porque a

vis��o que se lhe depara dentro do quarto da h��spede �� incr��vel. . .

No meio da pe��a a guerreira est�� ajoelhada, orando. E diante

dela, envoltos em sua luz radiosa, S. Catarina, S. Margarida e

os anjos pairam no ar, s o r r i n d o . . .

X X X I V

A E N T R A D A E M O R L �� A N S

SEXTA-FEIRA.

Joana passa o dia em Reilly. Quer partir para Orl��ans a todo

o transe. Os capit��es a custo a det��m.

��� Vamos esperar a noite, ��� aconselha o Bastardo.

A noite chega.

O ex��rcito retoma a marcha.

Sob um c��u sem estrelas aqui vai a Donzela, com o estandarte

na m��o. A seu lado cavalga o Bastardo. Os soldados marcham em

sil��ncio.

Aproximam-se de Orl��ans, na dire����o da Porta Borgonhesa,

que est�� livre.

Joana sente o corpo dolorido. A armadura �� pesada e inc��-

moda. Mas o seu cora����o, que bate de como����o ao se aproximar

da cidade sitiada, parece querer saltar-lhe do peito, romper o

ferro da coura��a e voar como uma pomba para Orl��ans, levando

a seus habitantes a not��cia de que o socorro se avizinha.

De repente o Bastardo avista um clar��o confuso que sobe da

terra. Aproximando-se mais v�� que ele �� formado pela luz de

muitas tochas.

Um ru��do indistinto, prolongado, semelhante ao uivo do ven-

to, chega aos ouvidos dos que marcham �� frente do ex��rcito

salvador.

��� O povo est�� saindo da cidade para nos encontrar!'���grita

o escudeiro D'Aulon.

��� �� extraordin��rio!���comenta o Bastardo. ��� Essas criaturas

estavam mortas de des��nimo. Parece que at�� os mortos voltaram

�� vida.

Esporeia o cavalo. Um espi��o vem dizer ao comandante da

pra��a sitiada que nos arraiais dos ingleses anda o zunzum de

que uma Donzela que tem parte- com o diabo se aproxima Se



A V I D A DE J O A N A D A R C

131

Orl��ans. Os soldados atacantes come��am a sentir um vis��vel

mal-estar. Uma sentinela no meio da noite come��ou a gritar e

a correr, dizendo ter enxergado fantasmas escalando a pali��ada

do forte. Estava louco. Talbot a custo cont��m os seus homens.

O ex��rcito de Joana D'Arc passa a Porta Borgonhesa.

Orl��ans!

As patas do cavalo branco da Donzela pisam nas pedras da

cidade sitiada. Uma multid��o que urra, canta, grita e agita no

ar as tochas acesas, cerca a jovem guerreira.

��� Viva Joana D'Arc!

��� Viva a Donzela de Orl��ans!

Nas janelas das casas aparecem mulheres e crian��as.

O ex��rcito desfila pelas ruas. Joana vai de cabe��a erguida. Em

torno dela ardem tochas e cora����es. Mulheres erguem nos bra-

��os finos os filhos pequenos, para que eles vejam a hero��na,

para que eles toquem com os dedinhos min��sculos a sua cou-

1 3 2

E R I C O VER��SSIMO

ra��a sagrada. Um homem chega a deitar-se no ch��o para que o

cavalo da Donzela lhe espezinhe o corpo.

�� luz dos archotes as caras dos habitantes de Orl��ans parecem

m��scaras avermelhadas. M��scaras de alegria, de entusiasmo, de

loucura. Berros, atropelamentos, impreca����es, cantigas, l��grimas,

��� tudo se mistura no ar fresco da noite numa onda sonora e lu-

minosa que sobe para o c��u e se dissolve na escurid��o que reina

acima dos telhados.

Os soldados da guarni����o sitiada se alegram e ganham cora-

gem com a chegada do ex��rcito salvador.

A chama duma tocha prende fogo no estandarte de Joana. A

Donzela, imperturb��vel, baixa a sua bandeira e faz que as patas

de seu cavalo abafem o fogo. E de novo o pend��o dos c��us tre-

mula acima da cabe��a da guerreira, acima do entusiasmo da mul-

tid��o.

A prociss��o da vit��ria chega �� Igreja da Vera Cruz. Joana des-

ce para orar e para render gra��as ao verdadeiro Senhor dos Ex��r-

citos.

Torna a subir para o seu cavalo e vai hospedar-se na casa de

Boucher, o tesoureiro do duque, que mora na outra extremidade

da cidade.

A como����o n��o a deixa dormir esta noite. Um novo dia clareia

e a primeira coisa que a Donzela faz ao nascer do sol �� man-

dar uma nova mensagem a Glasdale, no forte das "Tourelles",

prometendo-lhe a paz se ele abandonar o cerco.

"A vaqueira que volte para cuidar dos seus rebanhos de Dom-

r��my" ��� responde o chefe ingl��s.

Passam-se uns poucos dias de calma.

Na frente da casa em que Joana se hospeda apinha-se uma

multid��o que ergue a voz e os bra��os para a janela de Boucher.

��� Queremos ver a Donzela! Queremos Joana D'Arc! ��� gritam.

E quando Joana aparece ao balc��o, um enorme clamor sobe

para ela.

O Bastardo sai com suas tropas ao encontro dum novo com-

boio de v��veres.

Na manh�� de quarta-feira voltam com as provis��es.

Joana re��ne os seus homens e vai ao encontro da expedi����o.

Entram em Orl��ans sem serem perturbados pelos inimigos.

A multid��o canta e ri �� vista das carro��as de mantimentos. O

A V I D A D�� J O A N A D ' A R C

133

Bastardo tem de empregar a for��a para evitar que os homens e

as mulheres dilacerem os fardos dos mantimentos.

Joana entra na casa de Boucher. Tem o corpo cansado, os

membros doloridos. A armadura lhe maltrata as carnes.

A dona da casa, muito sol��cita, se aproxima dela:

��� A minha querida n��o quer tirar a armadura? Oh! Isso deve

ser horr��vel. . .

Joana despe a roupa de ferro. Atira-se na cama com um ge-

mido de al��vio. No outro quarto ao lado est�� D'Aulon, o seu

escudeiro e fiel companheiro d'armas.

Joana pensa em Domr��my. De olhos fechados enxerga a ca-

sinha de seus pais. Um penacho de fuma��a foge pela chamin��

e sobe para as nuvens. As rosas no jardim. Os porcos na lama do

quintal. Hauviette, muito loura, brincando ��s margens do Mosa.

E o Mosa correndo de mansinho, como nos tempos da inf��ncia

em que ela dormia embalada pela cantiga do rio. Pela cantiga

d o c e . . . D o r m i a . . .

Joana dorme. Mas as Vozes falam dentro de seu sono e ela

acorda sobressaltada.

��� Raimundo! Lu��s!

Os dois pajens aparecem, caras assustadas.

��� Por que me deixaram dormir?

Enquanto eles gaguejam palavras de desculpa, Joana grita:

��� Minha armadura, depressa!

Mete-se r��pida na armadura.

��� Meu cavalo!

Lu��s sai para buscar o cavalo.

Joana pega da espada e do elmo e corre para a rua. Monta. O

cavalo se empina nas patas traseiras. A guerreira grita para

dentro:

��� O meu estandarte!

Raimundo passa-lhe pela janela o estandarte.

Acompanhada de D'Aulon, Joana se dirige para a Porta Orien-

tal. Saltam estrelas de fogo das ferraduras dos animais.

Joana "sabe" o que est�� acontecendo. Os homens do Bastardo

levam um ataque de surpresa ao forte ingl��s de St. Loup.

Joana re��ne-se a eles.

��� Hardi! ��� grita ela. E este �� o seu grito de guerra.

Sem desembainhar a espada, entra na luta.

134

E R I C O VER��SSIMO

Incita os soldados. A seu lado ningu��m sente medo. Pedro,

seu irm��o, bate-se como um velho guerreiro experimentado.

Dentro de algum tempo St. Loup cai em poder dos franceses.

Joana olha para os cad��veres. D��i-lhe ver tanta gente morta

sem confiss��o.

��� Pai, eles n��o quiseram a paz!���murmura ela olhando para

o c��u. ��� Por mim n��o correria sangue. Eu a v i s e i . . .

Mas de s��bito a express��o doce de seu rosto se altera comple-

tamente. E seus olhos s��o frios e duros como um escudo. De

novo �� a guerreira.

Urge tomar uma provid��ncia. Chegam not��cias de que os re-

for��os para os ingleses se aproximam de Orl��ans pela estrada

de Paris.

Anoitece.

Na casa de Bouchet, diante de v��rios capit��es, Joana diz:

��� Dentro de cinco dias a cidade estar�� livre.

Joana relembra os cad��veres do forte de St. Loup. Manda uma

mensagem ao forte das "Tourelles", propondo a paz aos ingleses.

As "Tourelles" ficam ao sul da cidade, na margem oposta do

rio. Uma ponte atravessa o Loire. Mas a parte do sul dessa pon-

te foi destru��da pelos sitiados.

Joana em pessoa toma dum arco e duma frecha e se aproxi-

ma das "Tourelles", seguindo pela ponte at�� chegar ao ponto

em que os pilares est��o derribados. Ajoelha-se cautelosamente,

espeta a mensagem na ponta da frecha e, fazendo pontaria para

o forte ingl��s, d i s p a r a . . .

Os ingleses lhe respondem com um palavr��o ofensivo. A pa-

lavra �� dura e d��i. Joana chora. Mas sente imediatamente um

par de m��os celestiais que lhe afagam a cabe��a e ouve uma voz

amiga, que n��o �� da Terra, dizer-lhe palavras de consolo.

X X X V

A V I T �� R I A

H O J E se comemora a Ascens��o.

Os guerreiros dep��em as armas e fazem tr��gua de um dia.

Joana conversa com os irm��os na sala de Boucher.

��� Ent��o, Pedrinho, gostaste da luta?

��� Se gostei!

O rosto do rapaz se ilumina de contentamento.

��� E tu, Jo��ozinho?

��� Eu tamb��m.

��� Voc��s se lembram de Maxey? Os rapazes de l�� eram bor-

gonheses. Os de Domr��my eram armagnacs.. .

��� Agora estamos numa guerra de verdade! ��� exclama Pedro

com um ar de incredulidade.

Jo��ozinho faz um muxoxo:

��� E se eu disser que eu tinha mais medo das pedradas dos

rapazes de Maxey do que tenho hoje das bombardas e das fre-

chas dos ingleses.. . voc��s acreditam?

��� Acredito, ��� diz Pedro, muito s��rio. ��� Mas o que me sur-

preende �� a maninha Joana.. . Ficava toda arrepiada quando

nos via arranhados e agor.i est�� aqui, como uma guerreira de

v e r d a d e . . .

��� �� mesmo, ��� concorda Jo��o. ��� Comandando um ex��rcito.

Parece s o n h o . . .

Ficam recordando os dias passados. Relembram gentes e cenas

da aldeia natal.

Mas de repente Joana se ergue:

��� Bom! N��o podemos ficar a vida inteira a falar nestas coi-

sas. Orl��ans n��o est�� ainda livre. Andem! V��o para o acampa-

mento.

136

ERICO VER��SSIMO

Os rapazes saem. Joana se recolhe para esperar as Vozes. E

pensa isto: se as "Tourelles" ca��rem, a cidade estar�� salva!

Quando �� noite se dirige para o quarto com o fito de dormir

algumas horas, a Donzela pede aos pajens que a acordem pela

madrugada.

Sexta-feira amanhece sombria.

Joana procura o Bastardo.

��� Precisamos atacar o quanto antes. O refor��o para os ingle-

ses se aproxima. Falstoff, o grande general, vem comandando as

tropas.

��� Acho mais prudente ficar na defensiva, ��� observa o co-

mandante de Orl��ans.

��� Na defensiva? Mas se precisamos libertar a cidade antes

da chegada dos refor��os!

��� Pensei muito e este �� o ju��zo que formei.

��� Pois bem, ��� replica Joana ��� tu formaste o teu ju��zo. Mas

o meu foi ditado por Deus.

A Donzela faz meia-volta e sai, disposta a conduzir sozinha

os seus soldados.

Re��ne-os ��s pressas, monta a cavalo e cavalga na dire����o da

porta que fica ao sul da cidade. Encontra-a fechada. Diante dela

se estende uma fileira de guardas que t��m ordens positivas de

n��o deixar passar ningu��m.

��� Cometeis uma a����o' m��! ��� exclama a Donzela, dirigindo-se

aos guardas que lhe impedem a sa��da. ��� Mas os meus soldados

h��o de passar, com o vosso consentimento ou sem ele.

Os guardas baixam a cabe��a, vencidos.

E pouco depois as grandes portas se abrem com ru��do. Qual

o bom franc��s que tem coragem de resistir a uma ordem da

Donzela?

Joana atravessa o rio com a sua tropa. Glasdale tem seus ho-

mens reunidos no forte dos Agostinianos; fazendo uma sortida,

recha��a os primeiros soldados de Orl��ans, que chegam �� mar-

gem esquerda. Mas Joana, que pisa terra firme com sua gente,

re��ne-se a eles e, ajudada por D'Aulon, comanda uma carga de

lan��as contra o inimigo. Ataca a porta do forte dos Agostinia-

nos. A sua presen��a anima os franceses.

O forte ingl��s cai. O estandarte branco da Donzela tremula

no alto da pra��a vencida.



A V I D A DE J O A N A D ' A R C 137

Joana volta para Orl��ans. Agora falta tomar as "Tourelles".

Exausta, a guerreira vai para o quarto. Dorme sono agitado.

Acorda com o corpo dolorido. Abre a janela.

S��bado ��� pensa ela. ��� Amanh�� Orl��ans estar�� livre.

Pasquerel, seu confessor, vem saud��-la.

��� O Senhor seja contigo, Joana.

��� Am��m.

��� Tornamos a atacar hoje? ��� pergunta o padre.

E Joana:

��� Sim. E hoje serei ferida, acima do seio esquerdo. No en-

tanto hei de voltar com vida: e pela ponte.

��� Pela ponte?

E Pasquerel franze a testa, intrigado. Mas se a ponte est�� em

parte destru��da?

No instante em que Joana se apresta para partir, aproxima-se

dela um pescador que lhe traz uma savelha enorme. De olhos

vidrados, boca sangrenta e aberta, o peixe se balou��a nas m��os

do bom homem, que tremem de como����o.

1 3 8

ERICO VER��SSIMO

��� Olhe o que eu lhe trouxe! ��� diz ele para Joana.

Boucher pega a savelha. Ergue-a no ar. Grita para a cozinha:

��� Venha c��, mulher! Mande fritar este peixe para a Donzela.

Ela vai com��-lo antes de sair para o ataque ��s "Tourelles".

Joana pousa a m��o no ombro do pescador e diz:

��� Bom homem, eu te agrade��o. ��� Depois, voltando-se para

Boucher com um sorriso: ��� Amigo, guarda o peixe para a ceia,

porque esta noite eu te trarei um goddam que h�� de querer tam-

b��m um bocado.

Dum salto ganha a porta. Volta-se. Faz um gesto largo de des-

pedida. E grita:

��� E n��o esque��am: eu vou voltar pela ponte!

Boucher est�� im��vel, com o peixe na m��o. Seus olhos n��o se

afastam da porta onde a Donzela se sumiu.

Joana, fora, olha o c��u da manh��. Chama os pajens e o escu-

deiro. Manda buscar o cavalo. Monta. Atravessa o rio e vai

reunir-se ��s tropas vencedoras do dia anterior.

Ao chegar �� beira do Loire a Donzela contempla a ponte. Os

soldados de Orl��ans trabalham como formigas, tentando estabe-

lecer uma passagem sobre os arcos quebrados.

A cavalaria dos armagnacs atravessa o rio em barcas. O rio,

como um espelho puro, copia todas as cores do c��u matinal. Os

cavalos est��o inquietos dentro das embarca����es.

E aqui v��o muitos capit��es ilustres. O pessimismo lhes ensom-

brece os rostos. Preferiam n��o a t a c a r . . . Mas Joana insistiu,

pediu, imp��s desesperadamente a sua v o n t a d e . . .

As barcas deslizam. O Bastardo, apoiando-se na espada, con-

templa a outra margem. A seu lado La Hire pensa num plano

de ataque. No batel��o que vem mais atr��s, Poton de Xantrailles,

Florent d'Illiers e v��rios outros capit��es discutem animadamente.

Dentro de meia hora as tropas francesas est��o reunidas na

margem esquerda. Trazem canh��es que se enfileiram agora com

as bocas voltadas na dire����o das "Tourelles".

Come��a o assalto.

Joana entrega o seu pend��o ao porta-estandarte e esporeia o

cavalo.

��� Hardi! ��� grita, precipitando-se �� frente das tropas.

Uma chuva horizontal de frechas parte das "Tourelles". Os



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

139

franceses se aproximam do fosso. Os canh��es troam. Um cheiro

de enxofre inunda o ar. Erguem-se nuvens de poeira.

Tombam os primeiros soldados nas fileiras de Orl��ans. O san-

gue come��a a empapar a terra. Os canh��es continuam a vomitar

fogo. As setas se entrecruzam e chocam no ar luminoso.

Joana desmonta. Desce o fosso que cerca a muralha que os

ingleses defendem. Encosta uma escada no parapeito. Ergue uma

perna para galgar o primeiro degrau.. . De s��bito uma arbaleta

arremessada violentamente, do alto, passando pelo interst��cio que

h�� entre a coura��a e a ombreira, se lhe crava no ombro e vem

sair no seio. Joana solta um grito. O sangue come��a a manar da

ferida, escorre quente, borbotando, tinge de vermelho a arma-

dura clara. A Donzela cai. Mas se ergue em seguida, levando

a m��o ao ferimento. A dor lhe p��e uma nuvem escura diante dos

olhos. D'Aulon se aproxima dela e num relance compreende tu-

do. Com mais dois companheiros tira Joana do fosso. Ela resiste:

quer ficar. Levam-na �� for��a para um lugar abrigado. Deitam-na

no ch��o. O sangue continua a correr.

��� Eu sei duma cantiga m��gica que faz parar o sangue, ���

diz um dos homens que se acha ao lado da guerreira.

Joana ergue a cabe��a e com voz fraca diz:

��� S�� aceito rem��dios l��citos. Ponham azeite de oliva na fe-

rida.

140

E R I C O VER��SSIMO

Enquanto lhe pensam o ferimento, Joana olha o combate. E

se aflige. E freme de impaci��ncia. E mal o sangue cessa de ma-

nar ela se ergue, torna a p��r o elmo e s a i . . .

Afasta-se alguns metros do lugar da luta. Vai para uma vinha

e ali fica por v��rios minutos a orar. Depois volta correndo para

os seus soldados, toma o estandarte das m��os de um deles e leva-o

at�� a beira do fosso. No alto do parapeito apontam as cabe��as

dos soldados da defesa. Quando v��em a Donzela, a sua f��ria re-

dobra. Engrossa a chuva de setas. Saltam pedras que fazem uma

trajet��ria serena no ar e v��m cair nas fileiras dos armagnacs.

Caem homens com os cr��nios esfacelados.

Passam-se os segundos, os minutos, as h o r a s . . . A luz do sol

vai mudando de cor. O vento muda de rumo. E a batalha con-

tinua.

Servindo-se de abrigos de madeira, trincheiras m��veis que

escudam pequenos grupos de guerreiros, os franceses repetem as

investidas

E Joana os incita. Esquece o ferimento. Corre dum lado para

outro agitando o estandarte.

De mistura com as setas e as bombardas e as alabardas, os

ingleses arremessam tamb��m ofensas dirigidas �� Donzela.

��� Vaqueira dos armagnacs!

��� Ordin��ria!

��� Feiticeira!

E em Joana essas palavras doem mais do que a ferida que a

seta lhe rasgou no seio.

O Bastardo est�� desanimado. O dia declina. Seus homens es-

t��o extenuados. Os ingleses n��o afrouxam a defesa. �� loucura

insistir.

Anoitece. Come��am a aparecer as primeiras estrelas no c��u e

as primeiras luzes em Orl��ans. E luzes e estrelas enchem de pon-

tinhos prateados e amarelentos as ��guas do Loire.

O Bastardo consulta os outros capit��es e manda as trombetas

dar sinal de retirada. E os sons das trombetas dominam os ou-

tros ru��dos da luta. Os canh��es cessam de atirar.

Joana estremece. Monta a cavalo e vai at�� ao Bastardo:

��� Por Deus! ��� grita ela. ��� Espere ao menos mais uma hora.

��� �� in��til, ��� responde o comandante de Orl��ans. ��� A noite

chega. A tropa est�� cansada. N��o h�� esperan��a.

A V I D A DE J O A N A D ' A R C

1 4 1

A Donzela faz gestos desesperados. Repete o pedido. Invoca

Deus. Pinta para o Bastardo um quadro de horror: Orl��ans ren-

dendo-se pela fome, Orl��ans invadida, Orl��ars em poder dos in-

gleses .. .

O Bastardo est�� im��vel. Por fim Joana lhe diz:

��� Est�� bem. Leve os seus hcmens. Eu fico.

Puxa as r��deas, esporeia o cavalo e se precipita para a frente

da luta. A retirada j�� come��a. Os armagnacs recuam. Os canh��es

s��o arrastados para a margem do rio. �� a derrota.. .

De repente, no meio da confus��o, ouvem-se de novo as trom-

betas que agora d��o ordem de atacar.

Joana puxa forte as r��deas e faz o cavalo estacar.

��� Bravo, Bastardo! ��� exclama ela para si mesma.

Os armagnacs voltam ao assalto.

Os canh��es tornam a atirar. Chegam refor��os de Orl��ans. Um

brulote carregado de mat��rias graxas e inflam��veis �� lan��ado

pelos franceses do meio do rio e agora, ardendo como um pe-

queno inferno flutuante, vai deslizando rumo da ponte levadi��a

que, acima d��gua, une a primeira torre de defesa �� segunda.

De repente Joana v�� o seu estandarte branquejar perto da mu-

ralha. Fita os olhos nele e compreende. O seu pend��o est�� na

m��o dum dos soldados armagnacs. E o soldado se acha sozinho

no fosso. Se os ingleses fazem uma sortida, o estandarte sagra-

do cair�� em suas m��os.. . Num segundo a Donzela resolve. . .

Apeia. Corre. Desce o fosso. Arrebata a bandeira das m��os do

soldado e a agita no ar. Avan��a assim contra a muralha. Os sol-

dados franceses a seguem. O combate recrudesce. Encostam-se

escadas na pali��ada. Come��a a escalada.

Do alto caem pedras. Muitos assaltantes rolam. Uns conse-

guem transpor a muralha. Outros tombam com as m��os decepa-

das a machadinha. O sangue escorre pelo muro de pedra cin-

zenta. Clar��es de inc��ndio iluminam vis��es horrendas.

E os soldados franceses sobem, sobem, sobem. Saltam o para-

peito. Tinem ferros. Os homens se atracam num corpo-a-corpo

selvagem.

A voz de Joana se destaca no meio das vozes mais fortes:

��� Quando esta bandeira tocar o basti��o, a vit��ria ser�� nossa!

��� diz ela.

E dentro de poucos minutos o estandarte branco ondula no

142 E R I C O VER��SSIMO

alto da fortaleza. Os ingleses recuam. Ganham a ponte levadi��a

procurando passar para a bastilha de pedra. A ponte levadi��a

verga ao peso dos soldados. Estrala. Cai. O brulote ateou fogo

nela.

Joana grita para o grupo de ingleses que se defende feroz-

mente:

��� Glasdale! Glasdale! Entrega-te em nome do Rei do C��u!

Tu me chamaste prostituta, mas tenho muita pena da tua alma

e das almas dos teus soldados.

Neste momento um novo ataque franc��s parte de Orl��ans e

cai violento sobre as "Tourelles". Os ��ltimos ingleses tombam.

Glasdale morre com eles. Fazem-se muitos prisioneiros.

As trombetas soam anunciando a vit��ria das gentes de Orl��ans.

Brilham estrelas no c��u. Brotam mais luzes em Orl��ans. Os

sinos da cidade libertada come��am todos a badalar. Os sons cla-

ros invadem a noite.

Com grandes pranchas de madeira, os soldados franceses es-

tabelecem uma passagem por cima dos arcos derribados da ponte.

E aqui voltam eles para Orl��ans. Joana �� carregada numa

rede. Vai de olhos cerrados. A ferida lhe d��i. O vento da noite

lhe bate no rosto e lhe traz aos ouvidos a m��sica contente dos

sinos.

X X X V I

" P A R A A FRENTE, FILHA DE DEUS!"

A FERIDA ainda d��i. Joana leva a m��o ao peito e seu rosto

se contrai numa careta muito parecida com as que ela fazia

quando estava doente em Domr��my e madrinha Aubrit a obri-

gava a tomar rem��dios amargos.

A luz desta tarde de primavera entra pela janela aberta e inunda

o quarto da casa de Boucher onde Joana est�� hospedada.

Nas ruas o povo ainda canta e grita. Os sinos badalam. As

casas est��o enfeitadas com bandeiras e guirlandas. O sol �� uma

festa sobre os telhados.

Joana sentada ao p�� da janela recosta a cabe��a no espaldar da

cadeira e cerra os olhos de mansinho.

E bem como o Mosa que, passadas as tempestades de inverno

que lhe sujam e sacodem as ��guas, fica tranq��ilo e l��mpido na

primavera, ��� assim agora Joana, cessada a tempestade da bata-

lha, come��a a enxergar neste momento transparente todo o seu

passado.

De olhos fechados ela ve papai Jacques, mam��e Isabel, mano

Jacquemin, tio Henrique, as madrinhas. . . Domr��my lhe apa-

rece nitidamente diante dos olhos. Ela enxerga tudo t��o bem. ..

A estradinha que leva para casa de Hauviette, o rio, a igreja com

o cemit��rio ao lado. . . E o .bosque de carvalhos? Como ele

ficava engra��ado no inverno, todo sarapintado de neve! Parecia

uma cabe��a que come��a a envelhecer. . . Depois o quintal da

casa. Os porcos chapinhando no lodo, e o sol botando respingos

de fogo no ch��o do chiqueiro. O burrico paciente e peludo,

sacudindo as enormes orelhas para espantar as moscas.

Joana se deixa adormecer, ninada pela m��sica dos seus pen-

samentos.

Mas batem �� porta.

��� Entre!

144

E R I C O VER��SSIMO

D'Aulon entra. Sa��da a Donzela. Seus olhos chispam.

��� Ent��o? ��� pergunta a mo��a, percebendo que o companheiro

darmas est�� recheado de not��cias. ��� Novas do rei?

D'Aulon atira-se sobre uma poltrona.

��� Tens inimigos na Corte! ��� exclama ele, ofegante.

Joana sorri.

��� Eu sei. -..

O escudeiro faz um gesto desesperado.

��� Aquele gorducho miser��vel do La Tr��mouille. Vive a con-

tar mentiras ao Delfin. Quer por for��a conseguir uma alian��a

com o Duque de Borgonha, porque sabe que o dia em que os

borgonheses abandonarem Bedford, n��o ficar�� mais nenhum

ingl��s em terras de Fran��a.

��� La Tr��mouille! ��� murmura Joana. E continua a sorrir.

��� Um dia a gra��a de Deus h�� de atravessar aquela coura��a de

gordura e atingir-lhe o cora����o.

��� Duvido! ��� berra D'Aulon. ��� N��o h�� em Tours um ar-

meiro capaz de bater uma armadura mais espessa e mais resis-

tente do que as carnes do conselheiro do Delfim

Sil��ncio. Joana olha o c��u.

��� Not��cias dos ingleses? ��� pergunta.

��� Fortificados em Jargeau, Meung e Beaugency, ��� diz o es-

cudeiro. ��� E �� isto que est�� preocupando o Delfim.

��� O Duque de Borgonha?

��� Um mist��rio. N��o ata nem desata. Nem d�� apoio a Bed-

ford nem combate a nossa gente.

��� Est�� procurando tirar proveito de ambos os lados.. .

��� Exato. E sabes o que ele disse? Ouve s��: Hei de fazer

que cada um deles me deseje com tanto ardor que por fim eu

serei dono de minha pr��pria P��tria e n��o terei rei acima de mim,

nem o meu primo Valois nem o Plantageneta.

��� Bonitas palavras! ��� ca��oa Joana, de bom-humor. ��� Mas Deus

resolveu que o Delfim h�� de ser o rei e ��nico senhor de Fran��a.

��� Am��m! ��� exclama d'Aulon, meio s��rio, meio brincalh��o.

��� Mas esta demora me impacienta. Estamos parados, parados.

A Donzela sorri da impaci��ncia do amigo. Acalma-o com um

gesto.

Continuam a falar em planos de guerra. Por fim os soldados

de Joana v��o aos poucos crescendo e ganhando um lugar



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

1 4 5

maior. E dentro de dez minutos ela est�� ardendo na mesma an-

siedade que abrasa o seu escudeiro.

��� Precisamos ir falar com o rei, nem que tenhamos de bater

��s portas da Sala do Conselho!

Joana ergue-se brusca. Onde est�� a menina que sonhava tris-

tonha com sua aldeia natal? Onde est�� a convalescente?

A guerreira acorda.

E no momento em que D'Aulon se retira e o quarto remer-

gulha no sil��ncio, as Vozes rompem a falar com insist��ncia aos

ouvidos da Donzela. E lhe dizem de modo doce mas en��rgico:

��� Para a frente, filha de Deus! Estamos contigo. Vai! Vai!

No dia seguinte Joana segue para Loches.

Bate �� porta da Sala do Conselho.

Ao v��-la, o rei se sobressalta. Tem vontade de se ajoelhar e ir

de rastos beijar a m��o da libertadora de Orl��ans. Ou ent��o de

gritar muito alto, sacudindo os bra��os: Viva Joana D'Are! Viva

a Donzela! Mas a presen��a dos cortes��os e dos conselheiros o

deixa constrangido.

Joana se aproxima do Delfim, inclina-se diante dele e abra-

��a-lhe os joelhos:

���Delfim, nobre Delfim, n��o fique aqui desperdi��ando pala-

vras com os seus conselheiros, mas ide a Reims para serdes

coroado. As Vozes me dizem: Para a frente, filha de Deus!

estomos contigo! Vai! Vai!

146

ERICO VER��SSIMO

O gordo La Tr��mouille sorri amarelo. O rei hesita. E fraco,

para desconversar, diz a Joana que est�� muito satisfeito com a

vit��ria e que, como prova de seu reconhecimento, est�� pensando

em dar um t��tulo de nobreza �� fam��lia D'Arc.

J�� pensou at�� no b r a s �� o . . . Uma flor-de-lis branca em campo

azul.. . Que tal, hein? Que tal?

Muitas e muitas vezes Joana torna a insistir com o rei para que

ele decida reunir tropas e seguir com ela para Reims.

Carlos de Valois sonha com a coroa de Fran��a, sonha com a

G l �� r i a . . . Mas �� t��o boa e t��o calma esta vidinha do castelo,

sem terras largas demais para governar, sem complica����es, sem

fronteiras definidas... Beber, comer, dormir, ouvir intrigas, con-

sultar os astr��logos, dar recep����es, pedir dinheiro emprestado a

La Tr��mouille e tolerar as suas impertin��ncias.. . Tudo isto ��

t��o bom e ao mesmo tempo t��o f��cil, que o Delfim se deixa ficar

no castelo, pregui��osamente, voluptuosamente, como um lagarto

ao s o l . . .

Mas Joana persevera no pedido.

Passa-se um m��s, depois da liberta����o de Orl��ans. O Duque

d'Alen��on, que cada vez est�� mais cativo de Joana, tamb��m

procura convencer o Delfim.

��� Convencer este diabo���confessa ele um dia, indignado ���

�� mais dif��cil do que tomar uma pra��a forte aos ingleses!

Jo��o de Metz, truculento e pouco amigo de diplomacias, pro-

p��e, entre s��rio e trocista:

��� Vamos raptar o Delfim e lev��-lo amarrado �� garupa dum

cavalo!

Os seus amigos riem. Joana diz:

��� Ele h�� de ir livremente. A vontade dele ser�� mais forte que

a de Deus?

E no mesmo dia torna a visitar Carlos de Valois, repetindo o

pedido. O Delfim co��a o queixo ossudo e diz:

��� Est�� bem. Vamos.

9 de junho de 1429. A grande comitiva se p��e em marcha.

O Bastardo de Orl��ans, Joana e seus cavaleiros, Pasquerel, d'Au-

lon e os pajens seguem �� frente das tropas.

Espalha-se a not��cia da marcha rumo de Reims. O entusiasmo

torna a acender-se. Muitos guerreiros de v��rias partes v��m em

aux��lio de Carlos de Valois, atra��dos pelas fa��anhas da Donzela,

A V I D A D E J U A N A D ' A R C

147

fascinados pela energia, pela coragem e pela serenidade da me-

nina de Domr��my.

A for��a engrossa. Guy e Andr��, dois jovens de sangue nobre,

oriundos da Bretanha, juntam-se aos guerreiros de Joana. O

encontro se realiza em Selles. Os mo��os se aproximam da Don-

zela, fazem uma sauda����o com a espada e ajoelham-se-lhe aos

p��s.

��� Quero ser um dos teus, Donzela!���diz Guy.

��� Meu maior desejo �� combater ao teu lado, Joana D'Arc ���

exclama Andr��.

Joana manda servir vinho para os rec��m-chegados.

��� �� tua sa��de, Donzela!���brindam eles, erguendo os ca-

nec��es.

Joana leva o cop��zio aos l��bios. E seus olhos fitam a superf��-

cie vermelha do vinho onde uma vis��o se desenha de repente.

Uma cidade com altas torres e muitas casas. Ela reconhece Paris.

Numa hospedaria muitos guerreiros bebem e conversam anima-

damente. S��o guerreiros do D e l f i m . . . Os pend��es dos. ar-

magnacs tremulam na cidade. . .

Joana baixa o copo e diz aos jovens bret��es:

��� Em breve estareis bebendo em Paris!

Os olhos dos novos guerreiros se incendeiam.



X X X V I I





U M A SEMANA GLORIOSA


PREPARA-SE a tropa para continuar a marcha.

Metida na sua armadura branca, Joana espera o novo cavalo

que lhe trazem. �� um grande animal negro, inquieto e bravo.

Tr��s homens n��o conseguem cont��-lo: o cavalo sacode a cabe��a,

empina as patas, escouceia e nitre. Os soldados que procuram

domin��-lo olham para a guerreira com ar apalermado, como que

pedindo socorro.

A VIDA DE JOANA D'ARC

1 4 9

�� numa grande pra��a. Homens e mulheres olham a cena e o

temor lhes tira a voz.

Joana faz um sinal e diz:

��� Levem o cavalo at�� aquela cruz ali ao lado da igreja.

Com grande esfor��o os homens conseguem arrastar o animal

para o lugar indicado. E um milagre acontece. Diante da cruz

o cavalo se aquieta, fica calmo e d��cil. Um rugido de admira-

����o se escapa de todas as gargantas quando Joana, serenamente,

a armadura chispando ao sol, monta com facilidade no cavalo

negro.

As suas m��os puxam com energia as r��deas prateadas e guiam

o corcel na dire����o do norte. Atr��s da Donzela segue o ex��rcito

do rei.

D Alen��on e o Bastardo consultam Joana sobre o plano da

campanha.

��� Primeiro marcharemos sobre Jargeau.

��� Mas os nossos homens j�� atacaram a cidade com insucesso!

��� declara d'Alen��on.

��� �� que n��o estava com eles, ��� retruca Joana.

��� Falstolf saiu de Paris com refor��os para Jargeau ��� observa o

Bastardo.

��� Maior ser�� a nossa vit��ria, ��� afirma a Donzela, sem hesitar.

Jargeau fica a dois dias de marcha de Orl��ans.

Antes do anoitecer de s��bado, o ex��rcito do Delfim chega aos

muros da cidade. Trazem de Orl��ans um grande canh��o, cuja

boca assestam para Jargeau.

E �� impressionante o grito dum dos capit��es ao anoitecer, no

momento em que um crep��sculo de sangue tinge o c��u:

��� Fogo!

Um ribombo e pouco depois outro ru��do, mais adiante, numa

das muralhas da cidade, atingida pelo tiro. As estrelas come��am a

aparecer no c��u. Os tiros continuam. Por fim uma brecha se

abre numa das torres principais da defesa. Joana prepara os

homens para o assalto. D'Alen��on se aproxima dela e, para se

fazer .ouvir no meio da tempestade de estrondos, berra:

��� N��o conv��m atacar. A brecha pode ser pequena demais

para os nossos homens entrarem.

��� Para a frente! ��� grita Joana. ��� Rumo da brecha, sem medo

de nada! Esta �� a hora do prazer de Deus! N��o te lembras,

150

E R I C O VER��SSIMO

d'Alen��on, que eu disse a tua mulher em Tours que te levaria

de volta com vida?

Joana esporeia o cavalo e se precipita como um dardo na

dire����o da cidade fortificada. Os soldados a seguem. Junto da

muralha, ela apeia e se dirige para uma escada.

Do alto da muralha desaba uma chuva de pedras e de setas.

No momento em que a Donzela al��a o p�� para subir o primeiro

degrau, uma pedra lhe cai sobre o elmo. Joana tomba. Mas se

ergue em seguida:

��� Avante, amigos, avante! Coragem! ��� exclama. ��� Nesta mes-

ma hora seremos vencedores!

E, animados pela Donzela, os soldados do Delfim entram em

Jargeau, tomando conta da cidade. Os ingleses fogem. Os que

n��o fogem morrem ou ficam prisioneiros.

Suffolk, o comandante da defesa, cai nas m��os dos armagnacs.

Joana e os seus homens na mesma noite seguem para Orl��ans.

��� Agora Meung! ��� diz ela a d'Alen��on.

Na ter��a-feira seguinte Joana conduz a sua tropa rumo de

Meung, que fica a dois dias de marcha de Jargeau.

No caminho a Donzela diz a d'Alen��on:

��� Amanh��, depois da refei����o do meio-dia, atacaremos Meung.

D�� Ordens.

E no dia seguinte Meung c a i . . .

Agora aqui segue Joana D'Arc montada no seu cavalo. Um

grande manto vermelho e verde-escuro lhe cobre a armadura.

Foi o Duque de Orl��ans que o deu de presente �� Donzela, em

testemunho do seu reconhecimento por lhe ter ela devolvido a

sua cidade amada.

Anoitece. As estrelas se escondem atr��s das nuvens com medo

da batalha iminente.

O ex��rcito libertador se aproxima de Beaugency. A guarni����o

inglesa desta pra��a recebe a not��cia de que Richemont, capit��o

franc��s, se dirige para ela com muitos soldados, em aux��lio do

Delfim. Sentindo-se fracos, os invasores abandonam a cidade e

a ponte, refugiando-se no castelo.

Joana recebe comunica����o de que Richemont est�� prestes a

chegar. Seus olhos passeiam, interrogadores, pelos rostos de seus

capit��es.

Um deles lhe diz:

A V I D A DE J O A N A D A R C

151

��� Donzela, se me permites, eu digo que seria de bom aviso re-

cusar o aux��lio de Richemont.

Outro cavaleiro avan��a um passo e confessa:

��� Sou da mesma opini��o.

Mas d'Alen��on chama Joana �� parte e lhe segreda:

��� S��o trapa��as do gordo! La Tr��mouille tem um velho ��dio

a Richemont. N��o podemos recusar um aux��lio t��o precioso. De-

pois, diga-se a verdade, Richemont �� bom chefe.

Joana hesita um instante. Mas a Voz lhe fala no meio do tu-

multo e ela decide.

La Tr��mouille instiga o rei a recusar o apoio de Richemont.

��� Pois sim, La Tr��mouille. Vou dar ordem para que os meus

capit��es se recusem a receber a ajuda de Richemont.

E d��.

Mas Joana recebe Richemont com muita amizade.

E Richemont lhe diz, sorrindo:

��� Joana, eles diziam que tu me repelirias. Se ��s de Deus ou

��s do Diabo, n��o sei. Se ��s de Deus, nada temo, porque Ele

sabe que meu cora����o �� leal; mas se ��s do Diabo, a�� ent��o �� que

eu n��o temo em absoluto!

E, muito amigos, Joana e Richemont ficam a conversar ani-

madamente.

Na mesma noite o castelo se rende.

A sexta-feira amanhece cheia de sol. La Tr��mouille, sabendo

do sucesso de seu inimigo Richemont, fica sombrio.

��� Que cara �� essa, homem? ��� pergunta-lhe um cortes��o.

��� Aquele fais��o de ontem me sentou mal, ��� responde o con-

selheiro, escondendo o verdadeiro motivo da indisposi����o.

O acampamento dos soldados de Joana �� despertado pela che-

gada dum mensageiro que traz a not��cia de que o Gen. Talbot est��

de volta com um novo ex��rcito. N��o sabe que Beaugency caiu

e vem trazer-lhe socorro.

O acampamento fica todo alvorotado, porque o nome de

Talbot �� temido.

Ao saber do que se passa, Joana exclama:

��� Em nome de Deus, precisamos dar-lhe combate! Mesmo

que eles estivessem pendurados nas nuvens, n��s os arrastar��amos

para baixo!

Escurece. �� a noite de sexta-feira e entre os soldados do Del-

152

E R I C O VER��SSIMO

fim corre um murm��rio de temor. Sexta-feira, dia agourento,

as bruxas andam soltas, as corujas piam, os defuntos saem de

suas sepulturas... E grandes guerreiros musculosos se encolhem

de medo.

Mas quando a Donzela passa por eles em cima do seu cavalo,

como uma vis��o branca varando o crep��sculo, todos os cora����es

se animam. Porque se irradia da guerreira uma luz t��o clara, e

o rosto dela �� t��o lindo e t��o sereno que os soldados sentem que

est��o do lado de Deus.

No alto duma colina, Joana, em companhia de Richemont,

olha a plan��cie que se estende a seus p��s. Os ingleses devem estar

a pouca dist��ncia. Os campos dormem mergulhados numa cla-

ridade docemente azulada.

Com as primeiras estrelas chegam arautos da parte dos in-

gleses. Talbot oferece duelos de tr��s cavaleiros contra tr��s.

Mas os capit��es de Joana lhe respondem por ordem dela:

��� V��o descansar por hoje: amanh�� nos veremos bem de perto,

se Deus e Nossa Senhora quiserem.

Os arautos voltam a galope para Talbot.

Joana conversa com os seus comandantes.

��� Tendes boas esporas?���pergunta.

��� Por qu��?���indagam eles. ��� Para fugir?

��� N��o. Para perseguir!

Risadas.

Joana passa em revista o seu ex��rcito. S��o perto de doze mil

homens.

Seguem para Meung, no dia 18, s��bado. N��o encontram os

ingleses. Estes, com canh��es, muni����es e vitualhas, se dirigiram a

noite passada para Janville.

O ex��rcito do Delfim sai a persegui-los pela estrada que leva

a Paris.

��� O gentil rei ��� diz Joana aos seus companheiros d'armas ���

ter�� hoje a sua maior vit��ria dos ��ltimos tempos.

Patay.

Pela grande plan��cie de horizontes que fogem, o ex��rcito se

estende. O sol arde. O calor sufoca.

A tropa inglesa comandada por Talbot e Falstolf tamb��m

marcha sob o sol. Seus generais combinam um plano para sur-

preender os franceses. Talbot escolhe um grupo de arqueiros pe-

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

153

ritos e firmes e manda-os ficar de tocaia numa depress��o do ter-

reno, por tr��s dum bosque por onde v��o passar as tropas fran-

cesas.

Na vanguarda do ex��rcito franc��s cavalgam alguns homens

encarregados de abrir a marcha e de dar o alarma quando avis-

tarem o inimigo.

Aqui v��o eles se aproximando do bojo onde os ingleses es-

t��o escondidos. De repente, a poucos passos dos cavalos, um

veado assustado pelo tropel sai a correr como um doido. E os

vanguardeiros da Donzela, cheios de surpresa, ouvem agora os

gritos dos ingleses que em seu esconderijo saltam e gritam e

correm como bons "sportmen" tentando apanhar o animal que

entrou pinoteando, assustado, no meio deles.

��� O inimigo! ��� diz um dos vanguardeiros. ��� Vamos voltar.

Seguem a todo o galope ao encontro de sua tropa, para dar

aviso aos chefes. Os soldados franceses se apressam e caem de

- surpresa em cima dos ingleses emboscados e os desbaratam.

Falstolf e seus infantes, com o melhor da cavalaria, se apres-

sam para encontrar os homens que est��o imediatamente atr��s

dos arqueiros, comandados por um cavaleiro que agita um es-

tandarte branco. Este chefe ingl��s, vendo a poeira e ouvindo o

tropel, julga que se trata do inimigo e bate apressadamente em

retirada. Quando Falstolf, a todo o galope, chega com sua gente

ao lugar onde se encontrava a sua vanguarda, v��-se s�� e despro-

tegido, com os infantes muito longe e todo o ex��rcito franc��s pela

frente.

Os generais do Delfim percebem a confus��o dos ingleses e

d��o ordem de avan��ar.

As lan��as armagnacs se projetam na dire����o dos peitos dos

infantes de Falstolf. O choque �� horr��vel. Os ingleses caem um

por um.

��� A vit��ria!���murmura Joana, cerrando os olhos.

No campo aberto os feridos gemem. Os vencedores cercam as

carretas de v��veres.

Joana passeia por entre os destro��os. E cobre o rosto com

as m��os ao ver sangue e carnes dilaceradas e sente uma frechada

no cora����o ao pensar que todas essas criaturas morreram sem

confiss��o.

154

E R I C O VER��SSIMO

Talbot est�� prisioneiro. �� levado �� presen��a do jovem Duque

d'Alen��on.

��� Ent��o ��� pergunta-lhe este ��� hoje de manh�� nem sonhavas

que isto podia acontecer, hein?

Talbot est�� imperturb��vel. Com um sorriso polido responde:

��� Fortuna de guerra.. .

O ex��rcito vencedor se aproxima de Lignerolles, onde Joana

passa a noite.

N��o consegue dormir, apesar da canseira. N��o pode esquecer

o gemido dos feridos. Nem as vis��es sangrentas do campo de

batalha.

Mas depois de rezar muito e muito, a calma lhe vem como

duas m��os frescas e macias que pousam sobre seu rosto febril. E

ela dorme. Dorme e sonha que o Delfim est�� sendo coroado em

Reims.

XXXVIII

P A R A REIMS!

O D U Q U E d'Alen��on manda vir �� sua presen��a Talbot, o general

prisioneiro.

��� Uma vez eu ca�� nas m��os do inimigo, ��� diz o jovem capi-

t �� o ��� mas os meus me resgataram por alto pre��o.

Talbot est�� silencioso, de cabe��a erguida.

D'Alen��on continua:

��� V��s sois um general ingl��s. E sabeis quanto vale para mim

um chefe da vossa t��mpera?

Talbot sacode a cabe��a, negativamente.

��� Pois vale tanto, ��� termina o duque ��� que n��o h�� pre��o

para o seu resgate. Podeis ir em paz.

D�� dois passos e entrega-lhe a espada. Talbot faz-lhe uma sau-

da����o militar. Nenhum m��sculo de seu rosto se move. E ele sai,

acompanhado de dois cavaleiros franceses.

O ex��rcito da vit��ria marcha para Orl��ans.

O povo o recebe com entusiasmo. Gritos e vivas. Ruas emban-

deiradas.

��� Onde est�� o rei? ��� perguntam vozes.

Mas o rei n��o entra com a tropa, como se esperava.

��� O rei! O rei!

Os gritos redobram. Os soldados desfilam mas Carlos VII n��o

aparece.

Neste momento de entusiasmo e de ru��do, em que o tinido

das lan��as e das espadas se mistura com o tropel dos cavalos

e os gritos dos habitantes de Orl��ans, o rei no seu castelo silen-

cioso olha as moscas que voam ao redor do seu nariz, enquanto

La Tr��mouille lhe vai enumerando os perigos de uma viagem a

Reims.

��� Entre este castelo e Reims, alteza, existem muitas cidades

fortificadas em poder dos borgonheses. E os borgonheses, n��s

156

E R I C O VER��SSIMO

sabemos que n��o s��o nossos amigos... V�� contando nos dedos..

Auxerre, Troyes, C h �� l o n s . . . At�� a pr��pria Reims tem muitos

castelos fortes e muralhas dif��ceis de t r a n s p o r . . .

Carlos de Valois olha o v��o caprichoso duma mosca que tra��a

um s no ar e vai pousar na testa de La Tr��mouille. Come��a a

rir baixinho.

��� De que �� que est�� rindo, alteza? N��o �� brinquedo. Quatro

cidades fortificadas! �� melhor ficar.. .

��� Ai, meu Deus!���exclama o Delfim.

��� E depois, onde �� que se vai conseguir dinheiro para pagar

as tropas? ��� prossegue La Tr��mouille, importuno como a mosca

que voa da sua testa e vai pousar de novo no nariz do rei. ���

S��o cem l��guas que nos separam de R e i m s . . .

Cem l��guas para o Delfim correspondem ao Infinito. Cem

metros para ele j�� parecem dist��ncia respeit��vel.

Menos de cem passos o separam da mesa onde agora acabam

de servir a ceia. �� Carlos de Valois se ergue resoluto e marcha

para a sala de refei����es, com passo firme, teso e importante

como um general.

Joana vem procurar o Delfim, cansada de esper��-lo. Encontra-o

em S. Benedito, �� margem do Loire.

��� Em nome do Senhor eu vos suplico, nobre Delfim, que

me deixeis conduzir-vos a Reims para a coroa����o.

O Delfim desconversa:

��� Estou maravilhado com as tuas vit��rias. ..

��� Vamos, nobre Delfim, a coroa v��s espera.

��� Conseguiste a maior gl��ria para as armas de Fran��a!

Os dias passam. Joana insiste. Por fim o rei cede.

��� Vamos para Gien! ��� resolve ele.

V��o. Mas corre uma semana e a comitiva real n��o se move

de Gien. Falta dinheiro. Faltam provis��es. �� preciso abastecer

e pagar as tropas.

Novos cavaleiros chegam de castelos distantes, seduzidos pelo

que se conta da Donzela. E todos v��m entregar a Joana os seus

cora����es e as suas espadas.

O ex��rcito engrossa.

Mas a guerreira est�� impaciente. A inatividade lhe causa mal-

estar. Ela chega a sentir saudade do peso da armadura, do balan��o

do cavalo, do ru��do da batalha. Sua espada jaz adormecida na



A V I D A D E J O A N A D ' A R C 157

bainha. Virgem de sangue. N��o feriu ningu��m. Nem sequer viu

a luz dos combates.

Raia o dia 26 de junho. N��o conseguindo conter-se por mais

tempo ela segue com seus homens na dire����o do norte.

Seus olhos agora est��o voltados para Reims. Para Reims, a

cidade da grande catedral. Reims significa a Coroa de Fran��a.

Reims �� a ampola sagrada.

Ao lado de Joana seguem d'Aulon, d'Alen��on, o Bastardo, La

Hire e os jovens pajens. O estandarte branco tremula nas m��os

da Donzela.

Dois dias depois o Delfim e o seu s��quito v��o ao encontro do

ex��rcito que marcha para Reims.

A primeira cidade fortificada aparece. Auxerre. O sol do ve-

r��o doura os seus telhados e as suas torres. Os borgonheses est��o

senhores da cidade.

Ser�� que resistem? ��� e a pergunta que anda na cabe��a de todos

os capit��es franceses.

158

E R I C O VER��SSIMO

La Tr��mouille, que acredita mais no poder do dinheiro do que

na for��a das armas, passa secretamente duas mil pe��as de ouro

para as m��os dos borgonheses, que n��o op��em nenhuma resis-

t��ncia ao ex��rcito do Delfim.

Os franceses se abastecem em Auxerre e seguem para diante.

Chegam a Troyes. �� a maior das cidades que se erguem no ca-

minho que leva a Reims.

4 de julho. Os capit��es do Delfim contemplam a cidade que

se avista a pouca dist��ncia. Ali est��o as muralhas e as torres

fortificadas, defendidas por uma boa guarni����o de borgonheses,

misturada com alguns soldados ingleses. Como receber�� o ex��r-

cito do Delfim?

Joana n��o se det��m em considera����es passivas.

Manda um emiss��rio a Troyes, intimando os seus defensores,

em nome do Rei do C��u, a se renderem e a prestarem obedi��n-

cia ao verdadeiro rei que ainda vai ser o senhor absoluto de todas

as cidades de Fran��a.

Mas a guarni����o de Troyes n��o se deixa convencer como a de

Auxerre:

��� Dizei aos vossos generais que n��o h�� nada que nos fa��a

entregar a cidade.

Mas depois que os arautos de Joana voltam trazendo-lhe esta

resposta, um fato admir��vel acontece.

Irm��o Ricardo, um religioso de Troyes, sai de sua cidade e se

dirige para a Donzela, fazendo o sinal-da-cruz e aspergindo ��gua-

benta para afugentar os esp��ritos da treva.

Joana ao v��-lo gesticular aflito, grita-lhe, rindo:

��� Venha sem medo!

O padre se aproxima.

��� Olhe, bom irm��o, volte para a sua cidade e diga-lhe que

se entregue. Esta �� a vontade do Senhor.

Irm��o Ricardo volta para Troyes mas n��o consegue convencei

a guarni����o que a defende. Os borgonheses sabem que o rei tem

um ex��rcito poderoso mas n��o ignoram tamb��m que lhe falta

alimento.

O Delfim re��ne o seu Conselho. O des��nimo volta a tomar-

lhe conta do esp��rito. Fala-se em retirada. Troyes n��o se entre-

gar��. Os v��veres acabaram. A tropa est�� quase a cem milhas de

Gien.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

1 5 9

Joana �� trazida �� presen��a do Delfim. Fica ao corrente da

situa����o.

��� Nobre Delfim, por que acreditais em tudo o quanto vos di-

zem? Esperai uns poucos dias e a cidade ser�� vossa.

Regnault, Arcebispo de Reims, que faz parte do Conselho, diz:

��� N��o podemos resistir mais de seis dias sem mantimentos.

��� Oh! Tende f��, todos v��s! ��� suplica-lhe a guerreira.

Anoitece.

Joana se enfurna no acampamento e vai de homem a homem,

com- palavras de entusiasmo e conforto.

��� Firmes! Precisamos vencer! ��� diz a uns.

E a outros:

��� Afiem as lan��as! Tenham f�� em Deus!

Mais adiante:

��� Fa��am escudos de madeira para o assalto!

E o acampamento ganha vida. Todos trabalham. Os que es-

t��o quase fraquejando, olham para Joana e, vendo esta menina

de dezessete anos que n��o conhece nem o medo nem a canseira,

��� se envergonham e cobram ��nimo.

Amanhece a segunda-feira. �� primeira luz da manh��, Joana er-

gue o seu estandarte e, diante da tropa que se acha preparada

para o assalto, grita:

��� A eles!

O ataque come��a. Os canh��es rugem. Uma nuvem de setas

escurece o ar. Uma linha de homens vestidos de a��o caminha

firme rumo �� cidade: parece uma muralha em movimento. E o

seu ��mpeto �� t��o forte que a guarni����o da cidade se assusta e

afrouxa na defesa.

Troyes cai. Joana invade a cidade e reabastece fartamente sua

gente.

O ��ltimo obst��culo foi derribado. Ch��lons, que fica entre Troyes

e Reims, n��o ter�� coragem de resistir ao grande ex��rcito.

�� aproxima����o de Reims, at�� o Delfim se anima.

J�� come��a a pressentir na cabe��a o peso am��vel da coroa. Rei!

Rei de verdade! Rei de Fran��a!

No quarto em que descansa, Joana ora. Ora e agradece a Deus

que lhe deu coragem e const��ncia para vencer e para cumprir as

suas divinas ordens.

X X X I X

CHLONS E REIMS C A P I T U L A M

CHLONS n��o oferece nenhuma resist��ncia. Jo��o de Montb��liard-

Sarrebruck, conde e bispo de Ch��lons, sai ao encontro do Del-

fim e lhe entrega as chaves da sua cidade.

O ex��rcito libertador entra na pra��a que capitulou.

Joana est�� contente. N��o se derramou sangue. N��o foi preciso

sacrificar vidas.

As ruas de Ch��lons est��o cheias de povo. Ouvem-se algumas

aclama����es fracas. Mas na maioria das caras h�� uma express��o

de temor e desconfian��a.

Joana vai olhando, divertida, a fileira fervilhante de m��scaras

que se voltam para ela e ficam paradas, fixas, contra��das numa ca-

reta, im��veis como se fossem de pedra. Uns olham para ela

com um ar de respeito religioso. Nos olhos de outros transparece

o temor. V��em-se mulheres que fazem o sinal-da-cruz �� passagem

da Donzela. Um homem alto e louro d�� alguns passos e, correndo

o risco de ficar sob as patas dos cavalos, vai beijar-lhe a m��o.

Joana sorri docemente. E continua a olhar as m��scaras. Homens

de caras barbudas e reluzentes. Gordos e magros. Cabelos ruivos,

negros, castanhos, esverdeados, brancos, cor de f o g o . . . Caras ve-

lhas e mo��as, alegres e tristes, enrugadas e lisas, coradas e p��-

l i d a s . . . Roupas de todas as cores. Pano grosseiro de mistura

com seda. M��os que se agitam. M��os que se erguem na ��nsia de

se aproximarem. M��os que se abrem como a quererem afugentar

fantasmas. M��os de velhos, de mo��os, de mulheres, de crian��as,

de soldados, de camponeses. . . M��os. E caras, mais m��scaras, mais

c i h o s . . . E de repente Joana sente um sobressalto, porque os

seus olhos caem numa fisionomia f a m i l i a r . . .

Jo��o Morel!

Um homem corre na dire����o da Doneela.

��� Joaninha!���exclama ele, rindo de contentamento. ��� Joa-

ninha!

A VIDA DE JOANA D'ARC

1 6 1

Beija a m��o da mo��a e, segurando-lhe a bainha da espada com

ambas as m��os, vai acompanhando �� marcha do cavalo, com o

rosto erguido para a guerreira.

��� Padrinho Jo��o Morel!

��� Em pessoa!

E Joana reflete com tristeza que, apesar de a ter levado �� pia

batismal, Jo��o Morel em Domr��my n��o lhe dava a menor impor-

t��ncia.

��� Papai e mam��e?

��� Est��o bem. Teu pai vai a Reims, ele me disse.

��� Que �� feito da nossa terra?

��� No m e s m o . . .

Jo��o Morel de quando em quando olha contente para a mul-

tid��o e, fazendo com a cabe��a um sinal na dire����o de Joana, diz:

��� �� minha afilhada!

E segue, muito orgulhoso, marchando parelho com o cavalo.

��� Sabes, Joaninha? Pois eu estou muito satisfeito com tudo o

que tens feito.. . Quem havia de dizer, hein?

Joana baixa os olhos para o campon��s e sorri.

Jo��o Morel continua:

��� Sabes, Joana? Eu quero que me d��s uma lembran��a t u a . . .

J�� se viu? Sou teu padrinho e n��o tenho nenhum trapinho da

Donzela de Orl��ans como recorda����o.

Joana bate-lhe no ombro:

��� Eu vou lhe dar o meu vestido vermelho com que sa�� de

Domr��my!

Ao chegar na pra��a central de Ch��lons a multid��o envolve

Joana D'Arc. Todos querem ver, tocar a Donzela milagrosa de

quem se contam maravilhas. Jo��o Morel �� arrastado pela onda

e se perde no meio do povo.

Os habitantes de Ch��lons escrevem aos de Reims aconselhando-

os a receber o rei.

Ao se aproximar de Reims a vanguarda do ex��rcito do Delfim

recebe os mensageiros que lhe v��m dizer que as portas da ci-

dade est��o abertas para receber o rei e os seus soldados.

Joana contempla a cidade desejada. Reims! Daqui deste ou-

teiro ela avista as torres finas da grande catedral. Reims lhe

aparecia bem assim no seu sonho, bem assim com aqueles muros

altos, aquelas torres, aqueles telhados...



1 6 2

ERICO VER��SSIMO

Todos os seus grandes desejos se realizam. Primeiro, o de

ir a Vaucouleurs, �� procura de Sire Roberto de Baudricourt. De-

pois, o de chegar a Chinon a ver o Rei. A seguir: o de libertar

Orl��ans. Agora Reims! Reims e a sagra����o do Delfim!

Quando os cascos do seu cavalo batem nas pedras das ruas de

Reims, Joana sente uma como����o t��o grande que tem a impres-

s��o de que vai c a i r . . .

Ao anoitecer se encontra diante da catedral.

A VIDA DE JOANA D'ARC

163

Tem uma sensa����o opressiva. Perde a fala. Treme. Sente-se

pequenina, humilde, ningu��m. �� como se se visse de repente

sozinha na frente de Deus.

Fica olhando para a silhueta escura e silenciosa que negreja

diante dela.

Por tr��s da catedral o c��u �� dum azul p��lido e esverdeado. Pis-

cam as primeiras estrelas.

Joana est�� em sil��ncio. Parada. Aniquilada. N��o tremeu nem

hesitou nos combates. Nunca teve medo. Agora se sente ven-

cida. Vencida por estas pedras antigas. Mais velhas do que ela,

do que seu pai, do que os av��s que ela n��o conheceu. Foi ali

dentro daquela grande casa severa que S. Rem��gio batizou Cl��vis,

o rei pag��o.

Joana continua im��vel diante da catedral. A luz prateada da

noite come��a a clarear a enorme fachada. As imagens dos santos

ganham relevo. Parecem pessoas vivas, que t��m olhos e est��o

olhando. Olhando e escutando a linguagem das coisas mudas.

Dentro da armadura, o cora����o da Donzela bate-que-bate. Ela

pensa em Domr��my. Num rel��mpago recorda toda a sua aven-

tura. Agora se aproxima o fim. Depois da coroa����o do Delfim,

que ser�� dela?

H�� nos seus olhos esta pergunta ansiosa.

A catedral, parada, enorme, parece uma pessoa rezando, de

joelhos sob o c��u noturno. As duas setas das torres est��o voltadas

para o alto, mostrando Deus. Por cima delas, fa��scam os astros.

Joana ergue os olhos e reconhece as mesmas estrelinhas que ela

via em sua aldeia natal nas noites em que n��o tinha sono e ia

para a janela olhar o c��u.

Tudo agora �� t��o estranho... Parece um s o n h o . . .

Um cavalo entra a galope no largo. O estr��pito de suas patas

acorda ecos atr��s da catedral.

Joana desperta. O encantamento se quebra.

XL

A S A G R A �� �� O

UM DOS IRM��OS de Joana chega com esta not��cia alegre:

��� Joana, papai est�� na cidade!

��� Papai?

O rapaz sacode a cabe��a.

��� Falei com ele h�� pouco.

��� Onde?

��� Est�� parando no "Burro Raiado". Queres ir at�� l��?

Saem juntos.

E agora aqui est�� Joana �� porta do sal��o da hospedaria. Jacques

D'Arc, que se encontra sentado a pequena mesa, diante dum copo

de vinho tinto, ergue os olhos para a porta e fica olhando fixa-

mente para a menina vestida de homem na qual a custo reconhece

a filha.

Seus l��bios tremem. Seus olhos piscam. E ele gagueja:

��� Mi. . . minha filha!

Joana sorri com do��ura. Aproxima-se do pai, que d�� dois pas-

sos na dire����o dela. Abra��am-se.

Jacques D'Arc est�� maravilhado.

��� Mas como �� que eu ia te conhecer? Assim, vestida de ho-

mem . . .

Olha-a da cabe��a- aos p��s. Com respeito. Acanhado. Sem saber

que dizer nem fazer.

Sim, esta �� a sua Joana. Um dia ele disse que havia de afo-

g��-la se ela, confirmando o seu sonho, sa��sse a cavalo em com-

panhia de soldados. E ela saiu. Desde ent��o muitas coisas ex-

ttaordin��rias aconteceram. Coisas que parecem bruxaria. O no-

me de sua Joaninha encheu toda a Fran��a. Dizem que ela ouve

vozes do c��u. Que obedece ��s ordens de Deus. J o a n a . . . A sua

Joaninha com quem freq��entemente ele ralhava. A Joaninha que

muitas vezes foi castigada pelas suas m��os. Por estas m �� o s . . .

A V I D A DE J O A N A D' A R C

165

E Jacques D'Arc olha para as m��os ��speras e calosas. Sim,

por estas m��os. No entanto Joana agora est�� em sua frente e

ele n��o encontra palavras para lhe dizer. Ela est�� mais crescida,

mais forte e at�� mais bonita. Parece uma pessoa estranha. Ele

tem medo de toc��-la. Medo, propriamente n��o. Respeito. ��

como se ela fosse sagrada...

Por tr��s da Donzela est�� Pedrinho. Um homem. J�� tomou

parte em combates. Combates de verdade e n��o de brinquedo,

como as guerras entre os meninos de Maxey e os de Domr��my.

E no meio do seu grande embara��o, Jacques s�� encontra estas

palavras para dizer:

��� Vim ver a sagra����o do nosso rei.

Joana sacode a cabe��a mansamente. E como se sentisse hu-

milde e insignificante demais diante da filha que fez tantas coisas

grandes, Jacques acrescenta:

��� Sim, foi na qualidade de representante de Domr��my que

eu vim. ��� Sorri. Co��a o queixo. ��� Estou encarregado de pedir

ao rei que nos livre de impostos...

E de repente, vendo qualquer coisa brilhar no dedo de Joana,

muda de tom:

��� O anelzinho de lat��o que mam��e te deu?

Joana estende a m��o:

��� Veja. �� ele mesmo. Nunca saiu daqui.. . Nem h�� de sair.

Pedro avan��a, orgulhoso:

��� Muitos l��bios t��m beijado esse anel, papai.

��� Veja s��! ��� exclama o campon��s.

��� Todo o mundo quer encostar a m��o em Joana. At�� gente

de sangue nobre, papai, imagine!

Jacques D'Arc est�� encantado.

E nos cinco dias que se demora em Reims tem muitas opor-

tunidades de ver como o povo adora a sua Joana.

Amanhece o dia 17 de julho.

Joana conversa com o seu confessor, Irm��o Pasquerel, e lhe

diz:

��� Este �� o dia mais feliz de minha vida.

Nas ruas de Reims o povo formiga. Todos querem assistir ��

passagem do cortejo. Festa de coroa����o �� coisa rara. N��o acon-

tece todos os d i a s . . .



166

ERICO VER��SSIMO

Quando aparece o rei com a sua comitiva rebrilhante, o povo

grita: Noel! Noel/

E as conversas explodem em todos os pontos. Num grupo de

comadres algu��m diz:

��� Que pena! Aquela coroa linda de brilhantes e rubis, de

safiras e esmeraldas que andou na cabe��a do Rei Carlos Magno

est�� nas m��os dos ingleses...

��� N��o senhora! Ouvi dizerem que a Donzela fez um passe

m��gico e a coroa voou de volta para Reims.

��� Mentira!

��� Sim senhora!

��� Os ingleses est��o guardando a coroa para o Infante Hen-

rique.

��� D��em um brinquedo para o menino que �� melhor.

Gargalhadas.

Outros comentam:

��� Olhem s�� a cara do Delfim. Parece mais um pajem do que

um rei.

Uma menina loura suspira:

��� Mas conhe��o um pajem que �� mais lindo que todos os

r e i s . . .

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

1 6 7

��� Sossega, bobinha! ��� resmunga uma velha.

��� Olha o nariz dele, mam��e! ��� grita um pequeno, puxando

na saia duma senhora gorda e mostrando o rei que passa no seu

cavalo.

��� Cala a boca, malcriado! ��� sussurra a m��e, beliscando o

filho.

E o cortejo passa no meio das aclama����es.

S��o nove horas da manh��. Carlos de Valois entra na catedral.

Seguem-no alguns pares do reino. As figuras mais ilustres da

nobreza e do clero. O Duque d'Alen��on. Os Condes de Vend��me

e Clermont, os Cavaleiros de Laval e de Maille. O gordo La Tr��-

mouille, nas suas roupas mais finas, ostenta um sorriso amarelo

como o seu ouro. O arecbispo de Reims, o bispo de Ch��lons e

o bispo de Laon, tamb��m est��o presentes.

Joana entra na igreja com o seu estandarte. A fl��mula j�� n��o

ondula ao vento. Parece uma ave branca de asas ca��das, dormindo

um sono leve, leve.

A Donzela passeia os olhos pela nave. Como tudo isto �� lindo!

Mas ��� curioso ��� parece que estes santos, estas colunas, estes

casti��ais, estas pedras todas s��o velhos conhecidos s e u s . . .

O sol da manh�� incendeia os vitrais e inunda o interior da

catedral. Brilham espadas e armaduras. O altar �� uma festa de

ouro.

A cerim��nia da coroa����o come��a.

Carlos de Valois, metido em roupagens bonitas, est�� perfilado

diante do altar, ��� ombros encolhidos, joelhos encostados, fazendo

um esfor��o enorme para imitar o aprumo dos outros cavaleiros.

O arcebispo de Reims, imponente em suas vestes cor de sol, se

ergue entre Carlos de Valois e o altar.

O Delfim, com voz tr��mula, jura conceder paz e privil��gios ��

Igreja. Promete n��o carregar o povo de impostos. (Neste momento

brilham os olhinhos de La Tr��mouille.) Promete governar com

miseric��rdia e justi��a.

O Duque d'Alen��on aproxima-se do seu real primo e arma-o

cavaleiro. Carlos, Sire d'Albert, segura a espada.

Ao lado do Delfim se acha Joana D'Arc.

O arcebispo unta Carlos de Valois com os santos ��leos.

Joana cerra as p��lpebras e recorda. Uma noite sonhou que ela

mesma havia posto uma coroa resplandecente na cabe��a de seu

168

E R I C O V E R �� S S I M O

r e i . . . Uma coroa que havia descido do c��u pela m��o de um

anjo.

Mas ai! A rica coroa de Carlos Magno, toda crivada de pedras

preciosas, est�� em poder dos inimigos da Fran��a.

O arcebispo de Reims toma da modesta coroa fornecida pelo

Cbapitre e, com ambas as m��os, a leva �� cabe��a do rei.

Parece um gesto m��gico. Porque imediatamente um grande

ru��do se levanta. Muitas trombetas soam. O povo come��a -

gritar: Noel! Noel!

Carlos VII est�� coroado.

Joana tem a impress��o de que seus p��s n��o tocam no ch��o da

catedral: seu corpo est�� pairando no ar, como os das suas vis��es

de S. Catarina e S. Margarida. A seu lado o fiel pajem Lu��s de

Coutes sorri como se estivesse enxergando e ouvindo um coro

de anjos. Irm��o Ricardo, o religioso de Troyes, que, fascinado

pelo ar de santidade de Joana, n��o a quis abandonar mais, ajoe-

lha-se e ora.

E as trombetas soltam notas l��mpidas, notas faiscantes que

sobem como uma onda luminosa' e s��o multiplicadas em eco;

por toda a catedral.

��� Noel! Noel! ��� grita o povo. E as aclama����es redobram.

Meio-dia. A cerim��nia est�� finda.

Joana se ajoelha aos p��s de seu rei e, abra��ando-lhe as pernas,

diz-lhe com os olhos cheios de l��grimas:

��� Gentil rei, agora se cumpriu a vontade de Deus que quis

que eu libertasse Orl��ans e vos trouxesse a esta Cidade de Reims

para receberdes o vosso Santo Sacramento, mostrando que sois o

rei verdadeiro ao qual o Reino de Fran��a deve pertencer.

Carlos veste o manto real que �� azul como o c��u da Fran��a tu

primavera, e todo bordado de flores-de-lis de ouro.

Monta no seu corcel e, acompanhado da grande comiriva, per-

corre as ruas de Reims.

Noel! No��l!

Depois do desfile come��a �� distribui����o dos presentes. Um

tapete de cetim verde e ornamentado de veludo vermelho e da-

masco branco ao Chapitre. Um vaso de prata para o airar da

catedral. O t��tulo de conde para La Tr��mouille. O de marechal

de Fran��a para Sire de Rais. O Cap. La Hire e o jovem Laval

s��o tamb��m feitos condes.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

169

Grande banquete na casa episcopal de Reims. Em torno da

longa mesa sentam-se figuras ilustres. Nobres senhores, prelados,

capit��es, funcion��rios do rei. A mesa vai at�� a rua. A festa se

prolonga por toda a cidade.

Nas casas, p��blicas e particulares, nas pra��as e at�� no meio

da rua homens e mulheres e crian��as comem. H�� grelhas acesas

ardendo pelas esquinas. Matam-se v��rias dezenas de bois. Esva-

ziam-se os galinheiros. Abrem-se as pipas de vinho de Borgpnha.

De Borgonha, sim! Vinho dos inimigos do nosso rei!

Bebamos vinho, muito vinho: �� como se estiv��ssemos sugando

o sangue do maldito Duque de Borgonha, inimigo do gentil

Carlos de Valois, Rei de Fran��a!

No��l! No��l!

Em torno da grande mesa os capit��es contam bravatas. O

vinho faz brilhar os olhinhos do rei. La Tr��mouille est�� atracado

com um fais��o dourado.

Os olhos do Duque d'Alen��on percorrem inquietos os rostos

dos convidados, um a um. Mas onde estar�� Joana D'Arc? D'Alen-

��on procura em v��o. A Donzela n��o se encontra entre os con-

vivas.

Come��am j�� a esquec��-la, ��� pensa ele com tristeza. ��� �� o

princ��pio do abandono absoluto, quem sabe se at�� da hostili-

dade. . .

E para abafar a sua m��goa ele emborca o cop��zio de bom Bor-

gonha.

XLI

S I L �� N C I O

CESSOU a m��sica das trombetas. Nas ruas o povo j�� n��o grita

mais. Faz-se um sil��ncio muito grande sobre Reims e sobre a

alma da Donzela.

Joana pensa: ��� A miss��o est�� cumprida. O rei coroado.. As

Vozes n��o lhe sussurram mensagens novas.

Mas seus olhos se voltam irresistivelmente para as bandas de

Paris.

E se o rei decidisse marchar sobre a grande cidade, aproveitando

a confus��o e o abatimento que reina no campo inimigo, conse-

q����ncias das ��ltimas derrotas? Oh! Seria l i n d o . . . Paris voltaria

para o seu verdadeiro senhor. Os ingleses e os borgonheses per*

deriam o seu derradeiro reduto f o r t e . . .

Joana sonha. Fecha os olhos e v�� o rei cavalgando pelas ruas

de Paris reconquistada. O povo o aclama. Noel! Noel! Bandeiras

e len��os coloridos. Lan��as ao sol Elmos e estandartes. Escudos

e espadas. Vit��ria!

Mas em Reims agora s�� se fala em paz. O Duque de Borgo-

nha mandou uma embaixada para saudar o rei rec��m-coroado

e fazer-lhe uma proposta de tr��gua. Carlos de Valois aceitar��?

N��o aceita, ��� dizem uns. Aceita, ��� afirmam outros. E nas ruas

de Reims as conversas se entrecruzam, as opini��es se chocam.

Burgueses barrigudos e consp��cuos dizem com voz grossa:

��� Se eu fosse o r e i . . .

As comadres murmuram. Os capit��es confabulam. Os olhos

se voltam para o castelo onde est�� hospedado Carlos VII.

O soberano repousa. Passa as horas ruminando a sua grande

fa��anha. Passeia pelos grandes corredores do castelo com passo

marcial, det��m-se diante dos espelhos, mira-se neles apaixonada-

mente, recua um passo, dois, estaca, perfila-se, franze a testa, volta

um pouco o rosto para o lado, olha-se de soslaio, sorri: sente-se



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

171

um her��i. Passam-lhe pela mente, numa cavalgada fant��stica,

as recorda����es das ��ltimas vit��rias. Orl��ans, Beaugency, Jargeau,

Meung, P a t a y . . . Oh! P a t a y . . . que vit��ria!

E continua a passear a sua ilustre pessoa pelas salas do cas-

telo. Mas o peso da gl��ria somado ao peso da coroa que o bispo

de Reims lhe p��s na cabe��a ��� come��am a tornar-se insuport��veis.

H�� um momento em que Carlos VII, vergando sob a carga

gloriosa, atira-se pesadamente numa cadeira. �� que lhe invadiu

a mente a id��ia de que mais batalhas vir��o, mais cavalgadas in-

c��modas e perigosas...

La Tr��mouille aparece.

��� Sire, e a embaixada do vosso ilustre primo Filipe, Duque

de Borgonha?

O rei se anima. Seus olhinhos brilham. Sim! A embaixada.

Ele ia esquecendo. A embaixada foi uma surpresa. A mais agra-

d��vel de todas as surpresas.

��� Esse primo Filipe �� mesmo um grande homem! ��� exclama

Carlos de Valois, sorrindo.

La Tr��mouille inclina-se sobre o soberano. Diz-lhe que a

Donzela e os seus capit��es pensam em atacar Paris. Est��o ansiosos.

Esperam apenas a ordem de marchar.

O gordo cortes��o insinua, conta, intriga, sugere. �� um barril

com a boca voltada para o rei, despejando conselhos. O rei es-

cuta. O rei pensa. O rei sofre.

172

E R I C O VER��SSIMO

N��o quer contrariar Joana D'Arc. Mas tem um fraco pelo primo

Filipe. Fazer as pazes com o Duque de Borgonha foi sempre o

seu sonho mais acariciado.

La Tr��mouille representa o pensamento da maioria da corte.

��� A pastorinha pretensiosa precisa dum freio, majestade!

��� diz ele, inclinando-se sobre o rei, enquanto suas bochechas

vermelhas e lustrosas tremem. ��� Se nos entregarmos de corpo e

alma �� vaqueira, onde �� que vamos parar?

A d��vida �� um polvo que envolve o rei nos seus tent��culos.

O pobre Carlos VII mergulha mais fundo na poltrona estofada

de damasco. Sente-se pequenino, ao passo que v�� crescer diante

de seus olhos o vulto do conselheiro.

��� O que a Fran��a quer �� a paz.

��� Paz? ��� repete Carlos.

Agita-se na poltrona. Seu rosto resplandece.

Paz? Mas se ele n��o quis outra coisa em toda a sua vida!

��� Precisamos chamar o Duque de Borgonha para o nosso

lado.. . ���sussurra-lhe La Tr��mouille, piscando um olho.

��� Sim, o primo Filipe. . .

��� Sem ele Bedford ficar�� desnorteado.. .

La Tr��mouille sorri. O rei sorri, como se fosse a pr��pria ima-

gem do conselheiro, refletida e deformada por um espelho con-

vexo.

��� V�� falar com os embaixadores de Borgonha, La Tr��mouille.

Discuta com eles uma tr��gua. As condi����es? Sei l��! Ficam a

seu crit��rio. V��! Eu quero o primo Filipe do meu lado. Eu

quero o primo de Borgonha!

O conselheiro sai ao encontro da embaixada do Duque de

Borgonha. Recebe-a na sala do Conselho, de portas fechadas.

David de Brimeu, o chefe do grupo, prop��e a tr��gua. Discutem.

O Duque de Borgonha est�� disposto a esquecer. A morte de

Jo��o Sem Medo? N��o se fala mais nisso. As guerras? ��guas pas-

sadas. Precisamos de paz. Fa��a-se uma tr��gua de quinze dias.

Mais tarde se discutir�� a paz definitiva. Por exemplo, uma con-

fer��ncia em Arras, no m��s pr��ximo, com a presen��a do pr��prio

Duque de Borgonha e dos representantes do Rei C a r l o s . . .

La Tr��mouille fala em condi����es. Sim, porque Carlos VII est��

coroado, tem um ex��rcito poderoso, bons capit��es e pode tomar

A VIDA DE JOANA D'ARC

173

Paris quando bem lhe aprouver. Que �� que o Duque de Borgonha

lhe pode oferecer em troca da paz?

David Brimeu sorri. Inclina-se sobre a mesa na dire����o do

conselheiro:

��� Ao rei, propriamente, n��o oferecemos nada. Mas ao seu

sagaz conselheiro. ..

Pisca um olho. Continua sorrindo. La Tr��mouille compreende.

Firma-se a tr��gua.

Quando o conselheiro lhe traz a not��cia, Carlos VII exulta.

��� Gra��as ao bom Deus o Duque de Borgonha j�� n��o �� mais

meu inimigo! ��� exclama.

Mas de repente seu semblante se anuvia. Uma sombra lhe em-

pana o olhar.

��� Mas o que �� que vamos dizer �� Donzela e aos seus capit��es?

La Tr��mouille encolhe os ombros fofos.

��� Diremos que o Duque de Borgonha em troca da paz pro-

meteu entregar-nos Paris sem resist��ncia.. .

O rei se transfigura. O sol brilha de novo em sua alma. Seus

olhos mi��dos miram o conselheiro com um ar de admira����o

agradecida.

A not��cia se espalha por toda Reims. Tr��gua de quinze dias

com os borgonheses. Paris vai ser entregue ao rei.

Joana recebe as novas com reserva. O Bastardo de Orl��ans, o

Duque d'Alen��on e d'Aulon est��o constantemente ao lado dela.

Caras fechadas. Olhos baixos. Por tr��s destas m��scaras carran-

cudas a Donzela pressente a tempestade. S��o as primeiras sombras

que se estendem sobre o seu caminho. E ela compreende tudo.

Compreende e diz a seus amigos, que n��o ousam contradiz��-la.

Na corte conspiram contra ela. La Tr��mouille a odeia. O rei n��o

a admite, nem a seus amigos, no Conselho. Se n��o se desembara��a

dela de vez �� porque os soldados e o povo ainda a estimam.. .

��� N��o �� assim? ��� pergunta a Donzela aos companheiros.

Eles sacodem a cabe��a numa afirma����o muda e melanc��lica.

Pela mente do Bastardo passa num v��o de p��ssaro esta id��ia:

A miss��o da Donzela est�� cumprida.

Fala-se na paz. Joana n��o �� contr��ria �� tr��gua e mesmo a uma

cessa����o definitiva das hostilidades.

No fim de contas, armagnacs e borgonheses, todos s��o filhos

1 7 4

E R I C O VER��SSIMO

de F r a n �� a . . . Mas com rela����o aos ingleses, s�� h�� uma condi����o

para a paz absoluta: �� a retirada de todos eles do solo franc��s.

Passam-se quatro dias. Quatro dias que o rei perde em ne-

gocia����es com os enviados do Duque de Borgonha.

Joana espera, impaciente. A sua armadura branca jaz a um

canto. O estandarte parece que se morre de saudade da luz e do

vento das batalhas.

A Donzela ora. Sente a seu redor a presen��a consoladora de

suas santas. Elas n��o a abandonaram. Ainda est��o ao alcance de

seus olhos, de suas m��os, de seu cora����o. Mas as Vozes j�� lhe

n��o confiam novas miss��es.

O sil��ncio continua. Um sil��ncio opressivo, de morte, de eter-

nidade. E dentro dessa quietude de cemit��rio s�� se ouvem os

baques surdos do cora����o da guerreira, que pulsa descompassada-

mente.

XLII





S O M B R A S N O CAMINHO


ENQUANTO OS seus embaixadores negociam a paz, o Duque de

Borgonha insidiosamente prepara a guerra. O Cardeal de Beauford

deixa Calais, rumo de Paris, com tr��s mil e quinhentos ingleses.

Bedford vai a seu encontro. Em Paris o Duque de Borgonha con-

centra tropas. D��-lhes muni����es. Arregimenta recrutas.

E tr��s dias antes da coroa����o de Carlos de Valo��s em Reims ���

apesar de ter mandado ao primo uma embaixada de paz ��� Filipe

provoca em Paris uma reuni��o na qual em altos brados relembra

o assass��nio de Jo��o Sem Medo, cuja culpa lan��a sobre os ombros

de seu primo armagnac.

O povo de Paris se inflama de ��dio. Morra Carlos VII! ���

�� um grito que salta com freq����ncia da multid��o assanhada. Pre-

ferem ver o diabo entrar na cidade a ver o rei assassino cavalgando

pelas suas ruas. Seria mil vezes melhor queimar Paris do que

entreg��-la aos soldados de Carlos VII.

O Duque de Borgonha concentra suas tropas nos arredores de

Amiens. E sem respeitar a tr��gua firmada em Reims, continua

enviando recrutas picardos a Bedford. Com o ar mais natural

deste mundo pensa ainda na grande confer��ncia de Arras que

ficou marcada para o m��s pr��ximo.

Enquanto o tempo passa, Filipe o Bom acaricia o seu ardil

e cada vez mais se admira a si mesmo.

Reims de novo se agita.

Passa-se a primeira semana da segunda quinzena de julho.

O rei resolve movimentar o seu ex��rcito. �� um sacrif��cio. Ao

pensar na jornada, o soberano suspira. Vida boa era aquela de

Chinon! Delfim. Sem cuidados. Comendo, dormindo, bebendo,

ouvindo as intriguinhas da Corte, recebendo impostos magros,

levantando empr��stimos gordos, vendo o rio correr pregui��oso

1 7 6

ERICO VER��SSIMO

ao sol, ��� sem o perigo de guerras, sem o inc��modo de longas

cavalgadas, sem o peso da armadura, sem o peso da coroa, sem o

peso de nada.

Ao saber que o ex��rcito vai marchar, Joana cobra ��nimo.

��� Paris! ��� murmura ela.

E os seus pajens se entreolham, admirados, vendo como de

novo se inflama e empertiga a menina que, nos dias que se se-

guiram �� coroa����o, andava tristonha, silenciosa e de olhos baixos.

Joana manda polir a armadura. Vai ao est��bulo onde est�� o

seu cavalo alaz��o. Bate-lhe no lombo. O animal infla as ventas

e relincha. Suas crinas se eri��am.

��� Vamos para Paris! ��� exclama Joana, como se o cavalo pu-

desse compreend��-la.

Move-se o ex��rcito armagnac. Outra vez o estandarte sagrado

tremula ao vento e ao sol. As lan��as e as armaduras enchem os

campos de faisca����es. O tropel dos cavalos se mistura com os

gritos da popula����o. N��o s��o gritos apenas de incitamento ou

de alegria. S��o gritos em que h�� tamb��m um pouco de desespero.

O desespero de quem pressente que vai ser abandonado ao perigo.

Ao lado de Joana cavalga o Duque dAlen��on que lhe diz no

momento em que perdem Reims de vista:

��� nimo, companheira! Vamos para Paris!

Joana volta o rosto para o duque, e sorri tristemente. A d��vida

outra vez o assalta. Maus pressentimentos. . . Ela como que en-

cherga sombras no seu caminho. Tem a intui����o de que seus de-

sejos n��o se v��o realizar.

O ex��rcito chega a St. Marcoul.

Manda-se �� importante cidade de Compi��gne uma intima����o.

Ela deve abrir suas portas ao rei e ao seu ex��rcito. Id��ntico ul-

timatum se expede a Ch��teau-Thierry.

Carlos VII e sua tropa entram em Soissons.

Uma nuvem de tempestade pesa sobre o acampamento.

Em cada canto uma conspira����o.

Joana sente que est�� sendo tra��da. Os favoritos do rei, che-

fiados por La Tr��mouille, procuram desviar o ex��rcito da estrada

de Paris. Tra��am seus planos sem convidar Joana para o Con-

selho. Os campos se dividem.

A Donzela est�� inquieta. Como se sua armadura fosse de ferro

em brasa.



A VIDA DE J O A N A D ' A R C

1 7 7

Uma manh�� a not��cia de que o rei ordena uma retirada se es-

palha pelo acampamento, como se fosse soprada por trombetas.

Joana procura o rei. Carlos VII lhe diz:

��� Voltamos para as margens do Loire, Joana. N��o te aflijas.

Temos t e m p o . . . O primo Filipe prometeu entregar Paris. N��o

te amofines. Temos tempo.

Joana pede. Joana suplica. Joana invoca nomes, recorda vit��rias,

oferece a sua vida.

Mas o rei est�� com os olhos voltados para o Loire pac��fico e

pregui��oso, onde h�� seguran��a, paz e descanso.

��� Paris!���exclama ela. ��� O nosso rumo deve ser o de Paris.

Dentro de poucos dias a cidade ser�� vossa, Majestade.

Carlos VII olha para La Tr��mouille implorando aux��lio. O

Conselheiro avan��a.

��� Seria loucura atacar Paris agora, ��� diz ele. ��� A guarni����o

da cidade foi refor��ada. Novos socorros vir��o. A aventura pode

nos custar muito sangue, muitas vidas.

178

ERICO VER��SSIMO

Os olhos de Joana cintilam.

��� Mas n��o disseste que o Duque de Borgonha prometeu en-

tregar a cidade sem luta?

La Tr��mouille morde o l��bio. Gagueja uma explica����o. Fica

vermelho. Cala-se. Volta as costas e vai embora.

Mas a marcha se inicia, evitando a estrada de Paris.

Carlos VII e seu ex��rcito atravessam o Marne e entram em

Ch��teau-Thierry.

��� Cempi��gne est�� nos esperando de bra��os abertos, Sire ���

diz-lhe Joana D'Arc, suplicante.

��� Sim? ��� desconversa o rei, arregalando muito os olhos.

��� Compi��gne �� uma cidade t��o importante como Orl��ans, ma-

jestade!

��� Veja s��!

��� Devemos seguir por Cr��py e Senlis.

��� Vamos v e r . . . ��� d i z o rei, vagamente.

E na presen��a da Donzela sente um grande mal-estar. N��o

tem coragem de encar��-la firme. Sabe que ela pode ler-lhe os

pensamentos. Sabe que ela conhece a sua fraqueza, a sua covardia.

Ao mesmo tempo n��o esquece que deve a sua gl��ria, a sua coroa

( e tamb��m as suas afli����es... ) a esta menina de dezessete anos

que possui a bravura de um homem (mas de um homem que

n��o seja como ele, Carlos VII) e o discernimento dum guerreiro

velho e experimentado.

Apesar de tudo a marcha para o sul continua.

Entra o m��s de agosto.

Joana n��o pode suportar a ina����o. Vai de novo ao rei.

��� Sire, eu vos garanto que Paris ser�� nossa!

E, desconversando o rei envereda por outro assunto:

��� Uma vez, Joana, teu pai me pediu que perdoasse a Greux

e Domr��my o pagamento de impostos... Eu n��o lhe disse nada

de positivo. Pois agora, em homenagem �� tua pessoa, e como

recompensa dos servi��os que pretaste �� Fran��a, eu livro para

sempre �� tua aldeia de todo e qualquer imposto!

Joana se cala. O rei respira fundo. Julga-se eximido de qual-

quer compromisso moral para com a Donzela. Pagou. Favor com

favor.

Desanimada, a guerreira se retira. O rei se felicita pela vit��ria.

XLIII





A F U G A DE PEDRO CAUCHON


CONTINUA a marcha para o sul.

O ex��rcito do Rei de Fran��a entra em Provins.

Os capit��es de Carlos de Valois contam com a ponte de Bray

sobre o Sena para lhes facilitar a marcha que j�� vai tomando

ares de retirada.

Passam-se os primeiros dias de agosto.

Chegam not��cias de Reims. O povo est�� desesperado, julgando-

se abandonado pelo seu rei. O inimigo �� forte. A cidade est��

desprotegida. Os ingleses e os borgonheses a qualquer momento

podem tom��-la de assalto e ent��o a popula����o sofrer��, pagando

caro a ousadia que teve de coroar o Delfim.

A tropa de Carlos VII se dirige para o Sena. Os vanguardei-

ros voltam a todo o galope para dizer que o ��nico caminho para

o sul est�� cortado. Uma for��a inglesa tomou conta da ponte de

Bray. N��o h�� rem��dio sen��o voltar, ��� decidem os capit��es ���

voltar para o norte.

��� Para o norte! ��� exclama Joana, animada. ��� Para as bandas

de Paris novamente!

Gra��as aos ingleses...

O rei suspira, contrariado. Oh meu doce e calmo Loire de

��guas mornas e remansosas! Quando te verei outra vez? Quando

poderei olhar-te novamente das janelas do meu castelo?

Aqui v��o os soldados do Rei de Fran��a marchando na estrada

de Paris.

Joana dita uma carta para Reims. Entre muitas outras palavras,

diz estas:

Queridos e bons amigos, bons e fi��is franceses, a Donzela

tos envia suas noticias. Eu n��o vos abandonarei enquanto esti-

ver viva. �� verdade que o rei fez uma tr��gua de quinze dias com

o Duque de Borgonha e que, ao expirar esse prazo, Filipe deve

e n t r e g a r - n o s pacificamente a Cidade de Paris.



180

E R I C O V E R �� S S I M O

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

1 8 1

O ex��rcito armagnac conserva o rumo do norte. Dirige-se

a Cr��py e Fert��. Nem de leve passa pela mente de Carlos VII

e de seus favoritos atacar Paris. A cidade est�� bem defendida.

�� grande demais. Para cerc��-la eficientemente, seriam necess��-

rios muitos mil homens, muitos canh��es e muitos v��veres.

Joana, entretanto, segue mais animada, na ilus��o de que dentro

em breve estar�� assediando Paris.

A seu lado, e todos devotados �� sua pessoa, cavalgam os capi-

t��es com que ela pode contar. S��o Dunois, o Bastardo de Or-

l��ans, Ren��, Duque de Bar, o Conde de Vend��me e Guy de Lavai.

J�� correu um m��s depois do dia da coroa����o.

O rei e seus favoritos marcham taciturnos.

Ao trote do cavalo, as bochechas moles de La Tr��mouille ba-

lou��am incessantemente. Carlos VII est�� macamb��zio. De quando

em quando, com saudade e desalento, volta a cabe��a para o

s u l . . .

Agora o ex��rcito acha-se entre Cr��py e Fert��.

Nesta regi��o a alegria �� grande �� passagem do rei. Homens e

mulheres acenam e gritam para Carlos VII: Noel! Noel! Noel.!

Agitam-se len��os e bandeiras de todas as cores. O contenta-

mento �� t��o intenso que d�� id��ia dum dia de grande festa. To-

das as fisionomias est��o iluminadas. Os camponeses abandonam

c trabalho, largam o arado, os rebanhos e se aproximam da es-

trada para ver passar o rei e os seus soldados.

Joana cavalga entre o Arcebispo Regnault e o Bastardo de Or-

l��ans.

��� Que povo bom, este! ��� exclama ela, sorrindo. ��� Eu seria

feliz se, quando morrer, pudesse ficar sepultada nesta terra!

Seus olhos passeiam pela paisagem que o sol doura, pelo cam-

po dum verde suave que se estende, todo dobrado, cortado de

estradas e pontilhado de bosques at�� se perder longe, dissolvendo-

se azul no azul do horizonte.

O arcebispo se volta para a Donzela:

��� E onde e quando achas que vais morrer, Joana?���pergun-

ta ele.

��� Quando Deus quiser. O lugar e a hora, sei tanto como v��s.

De novo o olhar da guerreira envolve a paisagem.

Este vento do campo, estes bosques, estes c��us lhe lembram a

sua aldeia natal.



1 8 2

E R I C O VER��SSIMO

Suspira.

��� Assim quisesse Deus ��� continua ela ��� que a minha miss��o

estivesse cumprida e eu pudesse depor as armas e voltar para

minha casa, para junto de meus pais, para junto dos meus re-

banhos .

O Bastardo olha de soslaio para a companheira. Novamente

um pensamento r��pido lhe cruza a mente: Sua miss��o est�� cum-

prida.

Chega a Carlos de Valois uma carta de Bedford.

Antes de l��-la o rei tem um suave pressentimento. Deve ser

um convite para a paz definitiva. Ele vive sonhando com a tr��gua

eterna. Todas as noites seus sonhos se povoam de mensageiros

que v��m trazer cartas amigas assinadas pelo tem��vel Bedford.

A VIDA DE JOANA D A R C

183

Mas a mensagem do regente ingl��s �� dura. Carlos VII a l��

e estremece. Tu que te dizias Delfim e que agora te intitulas

rei ��� reza a carta. E mais abaixo: . . .levas contigo gente

supersticiosa e vagabunda, uma mulher desabusada e de m�� vida,

dissoluta de costumes, vestida de homem.. .

Joana l�� a carta e sofre. Carlos VII est�� aniquilado, n��o pelas

palavras ofensivas de Bredford, mais sim porque a carta n��o ��

um convite �� paz.

O Ex��rcito franc��s se aproxima de Senlis, localidade que os

ingleses ocupam.

Anoitece. Joana, com o Duque D'Alen��on, o Conde de Ven-

d��me e outros capit��es, re��nem os seus seis mil homens nos altos

de Montepilloy.

A noite entra com escaramu��as. O luar d�� um brilho fant��stico

��s lan��as, ��s espadas e ��s armaduras. E que cor estranha tem o

sangue derramado no campo �� luz da l u a . . .

Amanhece um novo dia.

Os franceses ouvem missa em campo aberto.

�� a festa da Assun����o. Mal termina a missa, rompem a tocar

as trombetas dando ordens para o ataque.

La Hire, que comanda a vanguarda da tropa da Donzela, avan-

��a com um grupo de cavalaria.

Bedford acha-se abrigado atr��s de forte pali��ada. Tem nove

mil homens. �� in��til atacar.. . Seria repetir o desastre de Rou-

vray, ocorrido h�� alguns meses, no tempo em que Joana ainda n��o

tinha tomado armas.

La Hire retrocede.

De repente Joana se transfigura. Uma for��a insopit��vel se

apodera dela. Esporeando o cavalo a Donzela se precipita como

um dardo na dire����o das fortifica����es inimigas. O vento agita

o seu estandarte e as crinas de seu cavalo. O sol lhe incendeia

a armadura. Com a m��o direita Joana tira da espada e fere com

��mpeto a pali��ada, numa provoca����o. A velha l��mina se trinca. A

guerreira a rep��e na bainha sem nada perceber.

Volta para os seus e, com d'Alen��on, dita uma mensagem aos

ingleses. Que Bedford saia com seus homens para campo livre!

Os franceses se retiram para que o inimigo possa escolher posi����o

livremente.

Um arauto leva a mensagem.

184

E R I C O VER��SSIMO

Os soldados de Fran��a esperam.

A alguma dist��ncia, na retaguarda, encolhido em cima de seu

cavalo, o rei olha o campo, nervoso. Para que toda esta com-

plica����o, todos estes perigos? N��o �� muito melhor deixar que as

coisas fiquem como est��o? O Castelo de Gien, com as suas

salas confort��veis, o seu sil��ncio, a sua p a z . . . No entanto est��

agora a gente aqui de quadris doloridos, com o cora����o pulsando

descompassadamente, esperando a cada momento receber uma

frechada, um ponta��o de lan��a ou de espada... Oh!

La Tr��mouille contempla as fortifica����es inglesas que s��o

apenas um ponto escuro, longe. E de quando em quando olha

com o rabo dos olhos para Carlos de Bourbon, o bravo comandante

que se acha aqui ao lado com seus homens, protegendo o rei.

Escoa-se mais um dia. E quando uma nova manh�� nasce, Bed-

ford se retira com seu ex��rcito na dire����o de Paris.

Os franceses entram em Senlis.

Em Beauvais o Bispo Pedro Cauchon, grande amigo dos in-

gleses, est�� no seu rico gabinete em estado contemplativo. Sonha

com gl��rias indescrit��veis. Com um prest��gio pol��tico t��o grande,

t��o firme e t��o largo que a sua autoridade prevale��a acima da de

qualquer Duque ou Rei ou Regente que venha a governar a Fran-

�� a . . . E o seu devaneio se prolonga. �� como um enorme lago

tranq��ilo parado ao sol, sereno dessa serenidade das coisas imor-

tais. Pedro Cauchon sonha. Mas de repente lhe vem uma id��ia

que como um tuf��o faz uma tempestade doida no seu lago calmo.

Joana D'Are! E ent��o o sonho �� um castelo que se esboroa. E

o Bispo de Beauvais se lembra das vit��rias das tropas armagnacs

conduzidas e inspiradas pela Donzela. Vaqueira! Bruxa!

Pedro Cauchon d�� um murro no bra��o da poltrona. Ergue-se,

agitado. Que fazem os ingleses que n��o det��m o ex��rcito do

Delfim? Ele tinha esperan��as em Bedford. Pensava tamb��m que

Senlis desistisse... Qual! Uns covardes! Abrem as suas portas

ao rei, recebem-no com festas... Aquele bastardo! Aquele d��bil

mental!

No mesmo dia um mensageiro esbaforido vem avisar a Pedro

Cauchon que as tropas da Donzela se aproximam de Beauvais.

O bispo estremece. Num relance compreende a situa����o. N��o

pode, n��o deve cair nas m��os dos armagnacs... Sai por toda

casa a dar ordens apressadas.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

185

Est�� vermelho, ofegante, furioso. E dentro de poucos minutos

se encontra na estrada, tendo j�� passado as portas de Beauvais.

Vai ruminando a sua raiva. Longe da sua cidade, volta a cabe��a

por um instante. Seus olhos fuzilam.

��� Ela me paga! ��� murmura, fazendo um gesto truculento.

Corre a carruagem episcopal, aos solavancos pelas estradas,

erguendo poeira, sacolejando no seu bojo adamascado o senhor

Bispo Pedro Cauchon que vai engendrando sinistros projetos

de vingan��a.

Beauvais recebe o rei cordialmente.

Compi��gne, cidade mais importante ainda, abre-lhe tamb��m

as suas portas. E seu povo aclama Carlos VII com alegria. Nas

ruas a gritaria n��o cessa. O rei est�� deslumbrado. Nunca ima-

ginou encontrar tanto entusiasmo, tanta dedica����o...

Compi��gne �� um para��so. Por algum tempo Carlos de Valois

esquece Gien.

XLIV

A ESPADA Q U E B R A D A

DEFINE-SE a situa����o. O Rei Carlos VII est�� senhor de Compi��gne

e Compi��gne est�� contente com o seu rei. O Conde de Vend��me,

os Marechais de Rais e de Boussac comandam as for��as francesas

que se apoderaram de Senlis. Joana D'Arc e o Duque d'Alen��on

suspiram por Paris. Carlos VII sonha firmar a paz definitiva com

seu primo, o Duque de Borgonha. Bedford retirou-se com sen

ex��rcito para Paris, deixou ali alguns soldados e foi com o grosso

da for��a para Evreux, chave da Normandia.

Carlos de Valois e seus cortes��os conspiram. Dum lado �� pre-

ciso conquistar as gra��as do Duque de Borgonha e prolongar a

tr��gua; por outro lado �� preciso n��o desgostar a Donzela, que tem

prest��gio entre os soldados e que deseja a todo o transe tomar

Paris.

Em Compi��gne Joana se hospeda na casa do procurador do

rei. A esposa deste �� Maria Boucher.

��� Parente de Jacques Boucher? ��� pergunta Joana. Maria faz

um sinal com a cabe��a. Sim, �� prima de Jacques Boucher, te-

soureiro de Orl��ans. Joana relembra o carinho com que foi tratada

na casa de Jacques.

Passam-se os dias. A Donzela anda desinquieta.

Uma tarde, diz a dAlen��on:

��� Belo duque, aparelha a tua gente e a dos outros capit��es,

porque eu quero ver Paris mais de perto.

O duque sorri tristemente. Ele sabe das intrigas da Corte.

Entrementes, Carlos VII negocia em segredo com o Duque de

Borgonha uma tr��gua que deve durar um ano.

Agosto est�� a findar.

A Donzela, o Duque d'Alen��on e um punhado dos melhores

capit��es do ex��rcito real saem de Compi��gne com uma poderosa

for��a e enveredam pela estrada de Paris.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

187

Tr��s dias depois chegam a St. Denis, depois de se terem reu-

nido ��s for��as de Vend��me, que se encontravam em Senlis.

E em Senlis, ao p�� de seus velhos muros, Joana se confessa ao

Irm��o Pasquerel. E aqui comunga dois dias seguidos.

St. Denis fica a duas l��guas de Paris, ao norte.

Joana vai visitar a sua velha abadia que tem tr��s s��culos de

idade.

Aqui est��o guardadas as rel��quias precisosas. �� neste lugar que

os reis de Fran��a t��m a sua sepultura. �� tamb��m aqui que eles

tomam a auriflama. Os religiosos de St. Denis guardam na sua

santa abadia um peda��o de madeira da verdadeira cruz de Cristo.

Um caco de c��ntaro que continha a ��gua que Jesus transformou

em vinho, nas bodas de Can��. E muitas, muitas outras rel��quias...

Joana tudo v�� e examina com respeito.

No dia seguinte combina com d'Alen��on o plano de ataque a

Paris. Envia for��as para escaramu��ar ��s portas da grande cidade.

S��o duas, tr��s sortidas por dia.

Enquanto isso, o duque em pessoa vai repetidamente a Com-

pi��gne pedir ao rei que siga para St. Denis.

Joana estuda as fortifica����es de Paris, procurando escolher

um ponto para o grande assalto.

Um dia, percorrendo o acampamento, se defronta com uma

mulher de m�� vida que passeia por entre as tendas abra��ada a

um soldado. Seu rosto todo pintado �� uma m��scara repelente.

Uma fileira de dentes escuros brilha foscamente por tr��s dos

l��bios grossos, gretados e muito vermelhos.

Joana se inflama de indigna����o. D�� alguns passos na dire����o

do par. O soldado se afasta r��pido da companheira e foge. A

Donzela tira da espada, ergue-a no ar e desfere um golpe no

ombro da mulher. E a l��mina trincada se parte. No mesmo ins-

tante Joana se arrepende do gesto. Baixa a cabe��a, enquanto a

mulher se afasta, cobrindo o rosto com as m��os.

A espada das cinco cruzes est�� partida. Joana contempla com

tristeza seus fragmentos. Ergue os olhos para os c��us e pede

perd��o a Deus pelo gesto violento.

Passa alguns minutos agoniada pelo remorso. E s�� se tran-

quiliza um pouco ao se lembrar de que Cristo um dia fustigou os

vendilh��es do templo.



1 8 8 ERICO VER��SSIMO

Chegam not��cia de Compi��gne. Terminou a tr��gua de quinze

dias.

Joana escreve ao rei, suplicando-lhe que venha fazer-se vis��vel

em Paris. O duque n��o prometeu entregar-lhe sem luta a grande

cidade, quando expirasse o prazo da tr��gua?

Intimamente Joana n��o se fia nessa promessa e, para n��o

perder tempo, continua a fazer escaramu��as e a estudar um plano

de assalto.

A 28 de agosto firma-se a nova tr��gua pelo prazo de um ano.

Carlos VII declara no documento: Nosso primo de Borgonha

poder��, durante a tr��gua, dedicar-se, ele e sua gente, �� defesa da

cidade e a resistir aos que lhe fizerem guerra ou lhe quiserem

infligir preju��zos.

��� Temos paz com o primo Filipe! ��� exulta o rei.

La Tr��mouille sorri. Seus desejos est��o satisfeitos.

No seu grande contentamento Carlos VII se torna magn��nimo

��� Vamos oferecer at�� Compi��gne ao primo de Borgonha!

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

189

La Tr��mouille sonha com novos lucros.

��� Foi a sabedoria que falou pela vossa boca!

A not��cia se divulga.

Mas o povo de Compi��gne se insurge. As ruas se enchem.

Fervem. Gritos de protesto. N��o queremos os borgonheses! Antes

a morte! Somos dos armagnacs! O nosso rei �� Carlos VII!

Do seu castelo o rei olha a multid��o assanhada.

��� Que gente incompreens��vel... ��� murmura ele, penalizado.

Os protestos continuam. Compi��gne mant��m-se fiel a Carlos

VII. Ao soberano i n f i e l . . .

Joana vem a saber dos termos do tratado de paz.

Seus olhos claros de menina se agrandam. Ela reflete. ..

Por mais que se esforce, n��o compreende...

O rei negocia a paz com os borgonheses. Entrega Paris ao Du-

que de Borgonha. Reconhece-lhe o direito de se defender contra

quem atacar a c i d a d e . . . E ao mesmo tempo, com o ar mais ino-

cente desta vida, autoriza a sua Donzela a atacar P a r i s . . .

Joana n��o penetra no mist��rio. Fica a pensai ainda alguns

minutos.

Uma trombeta soa longe.

A sonhadora desperta. A guerreira renasce.

Para Paris!

XLV

O A T A Q U E DE P A R I S

OITO HORAS da manh��.

O grande ex��rcito de Carlos de Valois se acha entre St. Denis

e Paris.

Uma luz oleosa e amarelenta inunda a paisagem. O ar �� macio

Sopra uma brisa mole. O c��u est�� muito alto e �� dum azul dilu��do.

Os grandes capit��es cavalgam em fila ��nica.

O Duque d'Alen��on, os Marechais de Boussac e de Rais, o

Duque de Bourbon, o Conde de Vend��me, os Sires de Lavai, de

Gaucourt, d'Albret. Falam e gesticulam. Coruscan armaduras e

espadas. E uma estranha fileira de caras severas se movimenta

ao trote dos cavalos.

Longe de todos, como se n��o pertencesse a esse ex��rcito, Joana

D'Arc cavalga solit��ria. Est�� sem elmo. O vento lhe revolve os

cabelos escuros.

E ela pensa.

V��o a caminho de Paris, mas seu cora����o est�� triste. Os ge-

nerais se re��nem em conselho e n��o a consultam. Os favoritos

do rei conspiram contra ela. Onde est�� aquele entusiasmo de

soldados, capit��es, aquele entusiasmo doido que venceu em Meung.

Beaugency, Jargeau, Patay?

Joana volta a cabe��a. As for��as se estendem pelo campo a

perder de vista. Sobem e descem colinas, desdobram-se pelos va-

les, somem-se nas florestas, parecem uma serpente cuja cabe��a

s��o os capit��es e cuja cauda se perde longe, al��m do horizonte

Doze mil homens. . . E armas, e espadas, e bestas, e canh��es e

bombardas.. . De que vale tudo isso se a f�� morre e o entusiasmo

se apaga?

Joana olha para a sombra t��nue que a acompanha. Na sombra

ela e o cavalo se confundem num ��nico corpo.

A marcha continua.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

191

��s onze e meia da manh�� atingem as colinas dos Moinhos, ��

vista de Paris.

O ex��rcito faz alto. Chegam as carretas que trazem escadas

e feixes de lenha e muni����es e mantimentos. Alinham-se os

canh��es.

Joana ferve de impaci��ncia. �� assim que se combate? N��o.

Positivamente, os capit��es n��o querem tomar Paris. Se quises-

sem, desde a madrugada os canh��es estariam roncando, com as

bocas voltadas para Paris. Teriam sa��do na noite anterior de

St. Denis.

Agora tudo se faz com lentid��o. Nem parece que o inimigo

est�� a pequena dist��ncia. Ningu��m se apressa. Ningu��m se en-

tusiasma.

As horas passam.

O cavalo de Joana nitre, sacode nervosamente a cabe��a, escarva

o ch��o, como que contagiado pela impaci��ncia da guerreira.

Joana freme. E se agita. Porque sabe que se os capit��es qui-

serem, Paris ser�� deles em poucas horas.

L�� est��o os muros cinzentos da cidade cobi��ada. Apontam vul-

tos nas ameias. Os campan��rios e as terras se erguem sobre o

casario, avan��am para o c��u. Ouve-se um som de sino que vem

de longe. Uma calma enorme envolve Paris.

Chegam mais carretas, rechinando pregui��osamente. Os ho-

mens gemem e suam, puxando os canh��es.

��� Mas os tiros n��o alcan��am os muros da cidade! ��� exclama

Joana, medindo a dist��ncia com os olhos.

Um dos comandantes encolhe os ombros indiferente e se afasta.

Joana procura d'Alen��on:

��� Mas, meu bom duque! Isto �� guerra ou �� uma feira?

O duque sorri com benevol��ncia.

��� Que queres?

Os olhos da guerreira suplicam. D'Alen��on volta a cabe��a para

a grande cidade.

��� O rei tem esperan��a de conquistar Paris com um s o r r i s o . . .

��� diz ele. ��� E s�� dar�� ordem para atacar em ��ltimo caso.

��� Mas que �� que o rei espera? ��� pergunta Joana.

��� Espera que o povo, de medo, lhe entregue a cidade, �� apro-

xima����o de nossas f o r �� a s . . .

A Donzela faz um gesto desesperado.

192

ERICO VER��SSIMO

��� E se isso n��o acontecer, qual �� o plano de ataque?

��� A porta de St. Honor��.

Sil��ncio.

��� Duque! Em nome de Deus, vamos ao ataque! Paris ser��

nossa dentro de poucas horas.

Nos muros de Paris se agitam estandartes, surgem vultos. E uma

grande bandeira branca com uma cruz vermelha de S. Jorge tre-

mula por um instante contra o c��u dum azul luminoso.

�� vista da bandeira o sangue de Joana referve.

��� Duque! N��o podemos perder tempo!

D'Alen��on est�� impass��vel. O tempo se escoa. As carretas con-

tinuam a chegar. Mais canh��es. Mais colubrinas. Alguns soldados

come��am a descarregar as escadas.

A artilharia e o grosso da for��a se acham abrigados atr��s das co-

linas dos Moinhos.

Duas horas da tarde. D'Alen��on manda romper o fogo. Aos

primeiros estrondos os cavalos estremecem e pinoteiam.

Os canh��es de Paris respondem. Ao abrigo dos tiros, o grosso

do Ex��rcito franc��s espera, im��vel.

Um destacamento sob o comando de Saint-Vallier e de v��rios

outros capit��es ataca a Porta de St. Honor��, ocupando-lhe o bou-

levard exterior e pondo em debandada seus poucos defensores.

D'Alen��on e Charles de Bourbon, com uma parte do ex��rcito

guardam a Porta de St. Denis, por onde �� de se esperar uma sor-

tida.

Joana olha e sofre. V�� a maior parte da for��a do rei imobili-

zada e in��til como um rebanho de carneiros que se juntam e se

encolhem num bloco medroso.

Ela sabe que se se fizer um ataque inteligente, aproveitando to-

dos os homens, Paris cair�� em pouco tempo.

A companhia do Marechal de Rais avan��a na dire����o da muralha

Leva grandes pranchas e fardos e escadas para atulhar os fossos e

tentar a escalada. Joana ergue o estandarte, esporeia o cavalo e toma

a dianteira da companhia atacante. Com gritos e com gestos in-

cita os homens.

Esqueceu o capacete. Sua cabe��a est�� descoberta. Seus cabelos

esvoa��am. E em torno deles zunem setas negras que uivam uma

can����o de morte.

Entre a Porta de St. Denis e a de St. Honor��, a Donzela e os

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

193

homens de Rais desmontam. Descem o primeiro fosso e o ven-

cem com facilidade. Chegam �� beira do segundo e de repente se

encontram expostos ao fogo dos defensores de Paris. Caem pedras

e frechas que se chocam com ru��do nas armaduras. Alguns soldados

tombam.

Joana olha num relance para o segundo fosso. �� mais largo que

o anterior e est�� cheio d��gua.

A Donzela se ergue e grita com toda a for��a para os muros da

cidade:

��� Entreguem a cidade ao Rei de Fran��a!

E sua voz musical se mistura com o vu-vu das frechas, com o

estr��pito dos estilha��os, com os gritos ferozes dos que combatem

e com os gemidos dos que caem.

Mais forte ainda Joana berra:

��� Entregai-vos por ordem de Jesus!

Nas muralhas surgem caras desfiguradas pelo ��dio.

Caras barbudas, dentes �� mostra. E chovem setas. E canh��es vo-

mitam fogo.

Joana entrega o seu estandarte a um soldado que ela sabe va-

lente e forte. Toma duma lan��a e come��a a sondar a profundidade

da ��gua.

��� Se os homens se atirarem aqui, morrem afogados ��� reflete.

Sua lan��a mergulha, a ��gua chega j�� at�� os dedos de Joana e a

ponta da haste n��o encontra o fundo.

O tempo passa. Chegam refor��os para os defensores. O fogo

redobra. Agora o ar escurece porque se estende nele um cortinado

de frechas.

Joana se acha �� beira do fosso, de p��. Sua armadura branca �� um

contraste contra a terra escura.

Numa das seteiras da muralha um borgonh��s de cara selvagem

vislumbra o belo alvo. Seus olhos chispam. Ele al��a o corpo, puxi

a corda do arco, mira e despede a seta que, r��pida, fende o ar, entra

pela armadura de Joana e crava-se-lhe na coxa.

A Donzela solta um ai, ao sentir a dor aguda. Cai. O sangue

come��a a brotar.

Em seguida o homem que segura o seu estandarte tamb��m ��

ferido. Para melhor ver donde partiu a frechada, ele ergue a viseira.

De repente uma frecha com um ru��do surdo se lhe crava no olho.

O soldado cai com o estandarte.

194

ERICO VER��SSIMO

O ataque arrefece. A princ��pio os franceses procuram atulhar

o fosso. Mas compreendem que todo o esfor��o �� in��til. Cada feixe

que rola para o fundo da vala leva consigo um homem, uma vida.

A ��gua est�� se tingindo toda de vermelho vivo.

Estendida no ch��o, Joana continua a gritar e a incitar os seus

homens.

��� Para a frente! A cidade �� nossa! Hardi!

E sente na coxa uma dor aguda. O sangue continua a escorrer.

Mas ela s�� pensa em Paris. Seus olhos claros se voltam para a re-

taguarda. L�� atr��s daquelas colinas se esconde um ex��rcito pode-

roso. Muitos capit��es de nomes sonoros e de grande fama est��o

parados com as espadas inertes nas bainhas. Se quisessem...

Oh! Joana n��o pode compreender a atitude deles.

Os soldados aqui est��o morrendo como ratos e o socorro n��o

vem.

Faz um esfor��o desesperado para se erguer. Mas a perna n��o

obedece e ela cai de novo.

��� Para a frente! Coragem! Vamos! Paris �� nossa! ��� grita.

E a sua voz de menina ouve-se no meio da batalha como um

sonido que vem dum outro mundo, formando palavras de uma

l��ngua diferente.

Dois companheiros a arrastam para um ��ngulo morto.

��� Avante! Entulhem o fosso! Escalem as muralhas...

A voz da guerreira vai ficando cada vez mais d��bil. Aos p��s dela

se estende um pequeno lago de sangue. O sol pinta estrelinhas

douradas na superf��cie vermelha e polida. Muito p��lida, quase da

cor da armadura, Joana continua a g r i t a r . . .

Escurece. Aparece a lua. A noite envolve a cidade e os campos.

O gordo La Tr��mouille vem com muitas precau����es aconselhar a

retirada.

O Duque d'Alen��on manda buscar Joana.

��� N��o me tirem daqui! ��� exclama ela com energia. ��� Este ��

o meu posto. N��o vou!

Os homens insistem Erguem-na nos bra��os.

Agora os olhos da guerreira est��o molhados de l��grimas. E com

voz sentida ela diz:

��� Bastava s�� um pequeno esfor��o e a cidade seria nossa...

Deixa cair os bra��os e as p��lpebras.

P��em-na em cima do cavalo. Muito encurvada, os olhos fundos,

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

195

Joana segue as for��as que se retiram. A coxa lhe d��i. Ela sente a

perna fria, fria, debaixo da armadura.

As estreias cintilam contra o c��u profundo.

O ex��rcito marcha. Ficaram para tr��s muitas carretas e muitas

escadas e muitos mantimentos.

�� a derrota.

Joana chora baixinho. (N��o faz mal. �� noite. Ningu��m v �� . . . )

Perto da Granja dos Maturins o ex��rcito faz uma pequena parada

para deitar fogo ��s bagagens que abandonam.

Precisam despojar-se de todo o peso, para facilitar a retirada.

Acendem-se grandes fogueiras. E no sil��ncio da noite Joana hor-

rorizada v�� que, de mistura com os grandes fardos que os soldados

atiram para o fogo, v��o tamb��m formas humanas. A Donzela com-

preende. Os franceses est��o queimando os seus cad��veres.

As fogueiras crepitam. E, vendo o clar��o enorme, Joana pensa

no inferno. Os soldados gritam e blasfemam. Em torno do fogo,

s��o como dem��nios.

A Donzela al��a o olhar, buscando socorro no c��u. Por cima

do tumulto, sob a paz das estrelas, S. Margarida e S. Catarina sor-

riem para ela.

Como por um milagre a paisagem horr��vel se apaga. E Joana

agora s�� escuta as Vozes que a animam. As Vozes que s��o frescas

e perfumadas como o vento da primavera.

A Donzela esquece suas feridas.

XLVI





D E S P O J A D A D A A R M A D U R A


MAIS UMA MANH�� nasce indiferente ��s m��goas de Joana. Um

sol de mel se espregui��a pelos cimos dos outeiros e vai aos poucos

se alastrando pelos campos. E como os campos e os outeiros n��o

sabem que h�� guerra e que os homens se estra��alham, a paisagem

�� alegre diante dos olhos da guerreira.

A retirada do ex��rcito de Carlos VII continua. Parece que a

for��a volta duma derrota descomunal. Ficaram para tr��s as car-

retas de muni����es. Os soldados se arrastam sem postura marcial

As lan��as de ponta ca��da andam de rastro e riscam no ch��o li-

nhas sinuosas. At�� as armaduras parecem embaciadas pelo fra-

casso: n��o brilham mais.

Ninada pela marcha lenta e regular do seu cavalo, acariciada

pelo sol morno que lhe bate no rosto e nos cabelos, Joana se

deixa levar num torpor quase bom. E se n��o adormece de todo ��

porque a ferida da coxa ainda lhe d��i um pouco.

Toc���toc���toc... As patas do cavalo batem na terra do ca-

minho. Joana sonha. Sonha que Paris se ergue a poucos passos

de seus olhos. As muralhas est��o embandeiradas. Soam trombe-

tas. Os port��es est��o abertos para receber o Rei de Fran��a. Os

sinos de todas as igrejas badalam alegremente. No��l! No��l! ���

gritam os parisienses que saem para fora dos port��es de sua cidade,

fervilhando como formigas...

Mas de repente o cavalo trope��a, estremece, balan��a brusca-

mente a cabe��a, sacudindo as crinas. Joana desperta. E diante de

seus olhos v�� a grande planura vazia. Paris ficou para tr��s. Esta

marcha �� de derrota: uma r e t i r a d a . . .

Oh! Mas como seria f��cil tomar P a r i s . . . Bastava mais um

esfor��o, um pequeno esfor��o, um n a d a . . .

Joana esquece a dor. Sua testa se franze. O corpo se emper-

tiga. Volta a cabe��a. D'Alen��on...

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

197

Esporeia o cavalo, puxa violentamente as r��deas e galopa na

dire����o do duque. Ao lado dele, faz o animal estacar.

��� Belo duque, mande tocar as trombetas. Ainda podemos

tomar Paris. Ande depressa!

O seu rosto se contrai numa express��o dolorosa de ��nsia, de dor

e ao mesmo tempo de esperan��a. DAlen��on franze a testa, por-

que nestas ��ltimas horas o mesmo pensamento andou a visitar-lhe

a mente. Voltar e atacar P a r i s . . .

Muitos dos chefes est��o inclinados a tentar novo assalto. Mas

o rei n��o os encoraja. E os homens do rei andam espalhados no

meio da for��a, semeando o des��nimo.

��� Ent��o? ��� indaga Joana.

Ergue-se um vozerio �� retaguarda da tropa. Ouve-se o tropel

de uma cavalgada. Tilintar de armas.

Joana e o duque voltam a cabe��a.

Poucos instantes depois um soldado vem dizer a d'Alen��on que

o Bar��o de Montmorency com mais cinq��enta cavaleiros acabam

de chegar para oferecer seus servi��os ao Rei de Fran��a.

Os olhos de Joana brilham. Seu rosto resplende.

Momentos depois Montmorency e os comandantes de Carlos

VII conversam animadamente. Discute-se um novo ataque a Paris.

Estudam-se possibilidades. O entusiasmo renasce.

Afastada do grupo, Joana ora e pede a Deus que inspire os

seus companheiros d'armas.

Do meio duma nuvem dourada de poeira que se ergue da es-

trada surgem Carlos de Bourbon e o Duque de Bar. Trazem or-

dens do rei. Continuar a retirada e levar a Donzela para St.

Denis.

Os chefes compreendem que �� preciso obedecer...

A tropa acampa. Anoitece. Na sua tenda, d'Alen��on n��o con-

segue conciliar o sono. E se antes de marchar definitivamente

para St. Denis se tentasse um novo ataque, passando pela ponte

que ele mesmo mandou construir sobre o Sena? Este pensamento

lhe assombra a mente toda a noite, toda a n o i t e . . .

Amanhece o dia 10. �� um s��bado de sol.

D'Alen��on e Joana re��nem parte da cavalaria e se preparam

para marchar. �� companhia se p��e em movimento. Chega ��

beira do Sena..

A ponte est�� destru��da!

1 9 8

ERICO VER��SSIMO

O duque estremece de raiva. Joana sente como que um pon-

ta��o de lan��a no cora����o.

E o rio corre mansamente ao sol, refletindo um c��u que cada

vez se distancia mais, como se tivesse medo da f��ria destruidora

dos homens.

Outra vez a retirada.

St. Denis.

Joana sente a seu redor um v��cuo enorme. D'Alen��on anda

afastado, como que envergonhado do fracasso. O rei sonha com

o seu Castelo de Gien e com a tranq��ilidade duma vida sem

guerras. E no seu grande otimismo alimenta um sonho: Paris um

dia lhe vir�� ��s m��os por vontade de seus habitantes, sem luta, sem

sangue. . .

Joana conduz o seu cavalo atrav��s das ruas de St. Denis. Na

frente da catedral, apeia. Entra. Dentro do templo a sombra ��

azulada e fresca. Na penumbra dos nichos parece que os santos

lhe acenam com gestos amigos. Sil��ncio. A Donzela caminha

com um cuidado infinito, na ponta dos p��s como se tivesse medo

de acordar o menino Jesus que dormita no colo de S. Jos��.

Bem na frente da imagem da virgem, faz alto. E com l��gri-

mas nos olhos desveste a armadura e de joelhos a vai depor no

altar, aos p��s da santa.

Fica um instante a orar. Depois se ergue de mansinho e sai.

Fora o dia de outono �� t��o macio e claro que Joana caminha

devagar com medo de ferir o ar.

Pelas ruas passam homens e mulheres e crian��as e carretas e

cavaleiros montados em cavalos ajaezados. Pendem tapetes colo-

ridos dos balc��es. De um para outro lado da rua, nas janelas de

suas casas as comadres conversam.

Joana vai andando. Parece um rapazinho sem hist��ria. Um

pajem. Um pobre mo��o rec��m-chegado do campo.

E as criaturas passam por ela sem olhar. E ningu��m fica sa-

bendo que esta que aqui vai libertou Orl��ans, venceu em Meung,

Beaugency e Patay.. . Ningu��m nem por sombra desconfia de

que o rapazito de cabelos escuros e olhos azuis que aqui segue

com os c��lios irisados de l��grimas tem olhos que enxergam e ou-

vidos que ouvem os santos do c��u.



A V �� D A D E J O A N A D ' A R C

199

XLVII

GIEN!

GIEN!

Carlos de Valois respira fundo. Gien! O Loire batendo mole-

mente nos contrafortes do c a s t e l o . . . Os petiscos da cozinha

r e a l . . . Vinhos, intrigas, anedotas, festas. . . Poltronas estofadas,

a companhia da rainha, o sorriso das castel��s, os presentes, a paz. . .

Principalmente a paz! N��o precisar andar escarranchado no lom-

bo duro dum cavalo. N��o correr perigo de vida. . . N��o ter inc��-

modos. . . A paz! Oh Deus, como sou feliz!

Carlos faz quest��o de revisitar todos os compartimentos do cas-

telo. Come��a na adega onde o recebe um cheiro bom de vinho

velho. At�� este bafio ��mido de masmorra �� agrad��vel, familiar,

amigo. Aponta no alto duma pipa a cabe��a dum rat��o. Carlos

sorri para ele. Os rat��es fazem parte da corte. N��o se concebe

uma adega sem rat��es. Tudo que existe em Gien �� bom, logo

os rat��es s��o bons.

Carlos sobe as escadas. Passeia por outros quartos. E �� uma

alegria verdadeira sentar-se nestas cadeiras, olhar estes quadros,

mirar-se nestes espelhos.

E ainda n��o terminou a sua maravilhosa excurs��o e j�� o ins��-

pido La Tr��mouille lhe vem dizer que precisamos tratar de ne,

g��cios de Estado, Carlos VII faz um muxoxo de crian��a amuada.

Que neg��cios de Estado?

As bochechas do conselheiro tremem de surpresa. Que neg��-

cios? O r a . . . Dinheiro para pagar as for��as, novos empr��stimos,

or��amentos, p l a n o s . . .

Na sala do Conselho, Carlos assume uma atitude mais compe-

netrada.

��� Ent��o? ��� pergunta ele.

��� N��o h�� dinheiro, ��� responde placidamente o conselheiro.

Discute-se. Opini��es. Debates. Chegam a uma conclus��o: dis-

solver o ex��rcito.

A VIDA DE JOANA D'ARC

201

Os capit��es voltam cada qual para a sua casa, para as suas

terras.

O Duque d'Alen��on vai ao encontro da esposa, em Bealumont-

sur-Oise.

Joana despede-se com tristeza de seu "belo duque". D��i-lhe ver

parrir o fiel companheiro d'armas.

Fala-se com insist��ncia em que a rainha vem ao encontro do

rei.

A Donzela vai esper��-la em Selles-en-Berry, de onde segue

para Bourges.

Nesta ��ltima cidade se hospeda na casa de Margarida La Tou-

roulde.

Metida agora em roupas de mulher, Joana sempre que se v��

refletida num espelho n��o pode evitar pequeno sobressalto. Pa-

rece que o cristal est�� mentindo e que aquela mo��a de saia e touca

n��o �� e l a . . .

O marido de Margarida La Touroulde �� R��gnier de Bouligny,

general das Finan��as. Um homem importante em Bourges. Sua

casa vive cheia de doutores e conselheiros e comerciantes e fun-

cion��rios.

Joana e Margarida fazem boa amizade. A dona da casa n��o se

cansa de olhar para a h��spede. Entorta a cabe��a, cruza os bra��os

e sorri, sem tirar os olhos do rosto da Donzela.

Ent��o ��� se pergunta ela interiormente ��� esta rapariguinha de

ar tristonho e voz mansa �� a guerreira, a que vestia armadura e

sabia manejar a lan��a e manter-se em cima dum cavalo a todo o

galope? �� esta a Donzela que o Senhor enviou para libertar a

Fran��a?

O cora����o de Margarida se enche de contentamento e de or-

gulho. E sai a espalhar por toda Bourges ��� nas casas das ami-

gas, �� sa��da da igreja ��� a grande not��cia.

��� Olhem ��� diz invariavelmente ��� sabem quem est�� morando

na minha casa? Imaginem s �� . . . Joana D'Arc, a Donzela de

Orl��ans.

As amigas fazem cara de incredulidade. E Margarida, de m��os

nos quadris, sacudindo a cabe��a, confirma:

��� Sim, senhoras! Joana D'Arc!

Os dias passam. Joana fia. Fia e ora. Quando o sil��ncio ��

maior na varanda da casa do general das Finan��as, a Donzela

202

E R I C O VER��SSIMO

escuta as Vozes. Elas lhe dizem palavras de consolo. E d��o con-

selhos de paci��ncia.

O outono avan��a. Dias frescos, de ar sutil, c��u afastado dum

azul muito vago. As folhas amarelecem no jardim. O gato branco

da casa se espregui��a no borralho.

Muitas vezes Joana vai ao confession��rio.

Agora caminha ela aqui ao ��ado de Margarida pela rua prin-

cipal de Bourges. V��o ��s Matinas na catedral.

Pelo meio da rua passa a cavalo um homem metido numa ar-

madura reluzente. Margarida pergunta de s��bito:

��� Mas Joaninha, eu n��o compreendo como tinhas coragem

de tomar parte nos combates.. .

Joana sorri sem dizer nada. A outra prossegue:

��� Naturalmente �� porque tinhas a certeza de n��o morrer. ..

Joana continua a sorrir e depois diz:

��� Certeza? Eu sabia tanto do dia da minha morte como os

outros soldados...

Margarida arregala os olhos, incr��dula.

Continuam a andar.

Vem em sentido contr��rio um homem. Ao dar com os olhos

em Joana, p��ra. P��ra, sorri e vai acompanhando a Donzela com

os olhos.

Joana se espanta.

��� Eu acho que ele me conhece ��� diz ela �� amiga. ��� Quem

sabe se �� de Domr��my? Ou algum soldado que lutou a meu

l a d o . . . Quem ser��?

Volta a cabe��a. L�� est�� o homem parado �� esquina. E faz

agora um gesto galante, quando v�� que Joana se volta.

��� Deve ser um conhecido...

Margarida desanda a rir.

��� Conhecido? Mas que bobinha!

Margarida tem quarenta anos, conhece a vida, conhece os ho-

mens e tudo o que seus olhos dizem.

��� De que �� que a senhora est�� rindo?

��� O homem ficou encantado com a tua pessoa.. .

��� Oh!

Joana acha a observa����o absurda. Porque apesar destes vestidos

de mulher que agora lhe envolvem o corpo, ela ainda se imagina

dentro da armadura.

A VIDA DE JOANA D'ARC

203

��� Mas que tolinha! ��� continua a companheira. ��� Ent��o es-

queceste que no mundo existem rapazes e raparigas que se podem

ver e ficar apaixonados uns pelos outros?

Apaixonado... P a i x �� o . . . Joana franze a t e s t a . . . Ela amava

a sua gente, a sua aldeia, o seu rebanho. Mas de repente o amor

de Deus cresceu dentro dela e submergiu todos os outros sen-

timentos. E foi uma onda t��o forte que conseguiu despertar nela

um amor imenso pela Fran��a, pela pobre p��tria retalhada e in-

vadida. . .

Margarida de Touroulde ri ainda.

Chegam �� catedral. Entram. Findas as Matinas, saem. Um gru-

po de homens e mulheres cerca a Donzela.

��� �� Joana D'Arc! �� a guerreira!

Cochichos. Bisbilhos. Cada qual procura fazer que Joana toque

com suas m��os os ros��rios e santos e os escapul��rios que trazem

consigo.

��� Por favor! ��� pedem. ��� Encoste o seu dedo a q u i . . .

Joana sorri com simplicidade. Faz um sinal na dire����o de Mar-

garida e diz:

��� Tanto faz eu tocar nesses objetos como e l a . . . �� o mesmo.

A custo consegue sair do meio do grupo.

Outra vez nas ruas movimentadas.

O dia �� tranq��ilo e claro, como se em toda a face da Terra os

homens n��o pensassem mais em se matar.

XLVIII

O EX��RCITO INVIS��VEL

JOANA passeia pela alameda. As folhas secas lhe caem sobre a

cabe��a, lhe deslizam pelo rosto e tombam dan��ando para o ch��o.

As ��rvores que se desfolham t��m o ar transido e desamparado

de meninos doentes. O vento �� fresco e brando.

Na n��voa azulada que paira no ar voam insetos coloridos.

Anoitece.

Joana caminha. Estralam folhas sob seus p��s. E lhe d��i no

cora����o esmagar o que quer que seja: at�� mesmo coisas inani-

madas.

Joana devaneia... O outono envelhece. O inverno se aproxima.

E os homens que a cercam parecem mortos e desalentados como

esta paisagem. Bedford ainda est�� em Fran��a. A tr��gua se pro-

longa. Paris continua nas m��os dos borgonheses. O rei passeia

de cidade em cidade, de castelo em castelo. Os guerreiros es-

queceram as armaduras.

Joana suspira. Um p��ssaro corta o ar na sua frente, num

v��o assustado. Soa ao longe uma trombeta.

Joana chega �� beira do rio. A ��gua prende agora todas is

cores do horizonte. L�� na outra margem os arbustos escuros

parecem soldados na tocaia.

Joana se ajoelha e inclina a cabe��a. O seu rosto se reflete no

espelho do rio. E ela se lembra do Mosa. De Domr��my. De

sua c a s a . . .

Maxey ficava na outra margem. Tinha telhados vermelhos e

as p��s de seus moinhos rodopiavam ao vento como doidas.. . E

Hauviette, com seus cabelos louros e suas m��os miudinhas como

passaritos, por onde andar�� a estas horas? Deve estar crescida. . .

Todos os garotos de Domr��my naturalmente cresceram, ganha-

ram caras novas, mudaram de vida. . .

A V I D A DE J O A N A D ' A R C 205

Joana volta a cabe��a. O vulto do castelo se recorta contra o

c��u. Parece um gigante comedor de crian��as.

A primeira estrelinha pisca no c��u. Acendem-se olhos de luz

na cabe��a do gigante.

Joana se levanta e come��a a andar.

Quando chega ��s portas do castelo j�� �� noite fechada. Um

soldado da guarda caminha de l�� para c�� na torre mais alta.

A sua silhueta negreja contra o fundo azul da noite. E a sua

lan��a parece estar arranhando o rosto da lua.

Joana sobe para os seus aposentos. Ajoelha-se diante da imagem

da virgem e ora.

Depois vai para a cama. Dorme.

Outro dia amanhece. Mais um dia torna a morrer.

E assim o outono passa.

O rei manda a Joana muitos vestidos de seda. E colares. E

enfeites com pedras que despedem fagulhas com as cores do

arco-��ris.

Joana contempla tristemente todas essas coisas.

Compreende o que significam os presentes. O mesmo que

estas palavras: Joana, menina tola, n��o penses mais em tomar

Paris, n��o penses em prosseguir nas guerras. Olha que lindos ves-

tidos, que lindas j �� i a s ! Como te senta bem este colar! Vem para

o sal��o de festas do castelo. Ainda n��o tens dezoito anos. Qual

�� a mo��a que nessa idade pensa em guerrear?

Quando encontra o rei, a Donzela l�� a afli����o no rosto dele.

Carlos de Valois fica vermelho, perturbado. E seus olhos lhe

suplicam que n��o fale em novas guerras.

Joana compreende e cala. La Tr��moui��e passa sorrindo. Os

cortes��os sorriem tamb��m. Todos a cumprimentam com amabi-

lidade. Os capit��es lhe fazem mesuras.

E ela compreende.. . S��o gratos. Querem mostrar-se reconhe-

cidos. E s�� temem uma coisa: que a Donzela lhes pe��a para

reunir o ex��rcito e ir atacar os ingleses.

Na aus��ncia de d'Alen��on, d'Albret, irm��o de La Tr��mouille

fica comandando as for��as do Rei de Fran��a.

Um dia Joana sem se poder conter lhe pergunta:

��� Por que n��o vamos operar na Ilha-de-Fran��a e fazer uma

nova tentativa para tomar Paris?

206

E R I C O VER��SSIMO

D'Albret sorri enigmaticamente, encolhe os ombros e faz um

gesto vago na dire����o da Sala do Conselho.

E a vida continua.

O rei passeia pelas suas cidades. Acha muito agrad��vel as

mudan��as de ambiente. Novas paisagens. Novas caras. Pequenas

surpresas de ordem dom��stica.

Joana sofre em sil��ncio. As suas Vozes lhe falam em surdina.

S��o um consolo, um amparo. Mas n��o lhe d��o ordens novas.

Pasquerel, seu confessor, diz palavras de amizade. Pedro e

Jo��o, seus irm��os, a visitam repetidamente.

Chegam not��cias de que ingleses e borgonheses recome��am

a atividade guerreira. O castelo onde Carlos de Valois se encon-

tra com sua corte, fervilha de coment��rios.

O cora����o de Joana bate com mais for��a ao saber das novidades

Os ingleses invadiram St. Denis e arrebataram do altar da Virgem

a armadura branca que a Donzela ali deixara.

O rei se estabelece em Mehun-sur-Y��vre, perto da Cidade de

Bourges, no mais lindo de seus castelos.

Da janela de seu quarto Joana olha para fora.

As colinas verdes semeadas de bosquetes, a curva do rio,

Bourges branquejando l�� longe e por cima de tudo um c��u

de outono, transparente, distante, irreal.. .

Mas a Donzela n��o enxerga a paisagem. Est�� olhando agora

para os pr��prios pensamentos. Ela se rev�� metida na armadura,

montada no cavalo, segurando a haste do estandarte.. . Soam

trombetas. Os homens gritam e os corc��is nitrem. As lan��as

fa��scam. A flor-de-lis fulgura nas bandeiras. E as muralhas de

Paris v��o crescendo diante dos olhos dos soldados de Carlos VII.

Joana desperta. E se encontra diante da paisagem muda e in-

diferente.

No outro dia trazem-lhe novas sensacionais.

O Duque d'AIen��on est�� �� espera de homens para entrar na

Normandia. Mandou pedir ao rei que lhe enviasse a Donzela. O

rei esteve disposto a ceder. Mas La Tr��mouille chegou e disse:

''N��o vai." E o rei repetiu num eco fraco: "N��o vai."

E quando Joana se disp��e a vestir uma armadura e montar a

cavalo para seguir at�� o duque, mesmo sem licen��a do rei, La

Tr��mouille, am��vel como nunca, lhe vem dizer que o Conselho

resolveu que se deve recuperar a Cidade de La Charit��, atacando

A VIDA DE JOANA D'ARC

207

primeiro Saint-Pierre-Le-Moustier que est�� guardada por uma

guarni����o inglesa.

Joana se agita. Parte com d'Albret para Bourges e ali re��ne

homens.

Outubro entra com os primeiros frios. D'Albret e Joana le-

vam o seu ex��rcito a Saint-Pierre-Le-Moustier. Fazem o cerco.

Tentam o primeiro assalto. S��o repelidos.

Joana avan��a a cavalo e desmonta junto dos muros da pra��a.

A resist��ncia dos ingleses n��o afrouxa. O ataque arrefece. A ba-

talha parece perdida. Joana grita. Mas seus homens n��o avan��am.

O escudeiro d'Aulon, que com seu grupo ataca outro ponto

da muralha, recua. Caminha de muletas, porque tem um ferimento

no calcanhar. Os seus olhos se voltam para o ponto em que se

acha Joana. A Donzela est�� s�� com cinco homens. Jo��o e Pedro,

seus irm��os, e mais tr��s infantes. D'Aulon monta a cavalo e se

aproxima do grupo.

��� Sozinha? ��� grita ele para Joana. ��� Mas que �� isto? Por que

n��o recua? N��o v�� que o ataque foi recha��ado?

Joana volta para ele o rosto desfigurado pelo entusiasmo.

��� Sozinha? ��� Estende o bra��o em torno. ��� Mas se tenho co-

migo cinq��enta mil homens?!

D'Aulon olha: s�� v�� os cinco companheiros que cercam a

Donzela. E, al��m deles, o campo deserto e o c��u.

O rosto de Joana est�� iluminado. D'Aulon olha para ela an-

gustiado.

Que estranho ex��rcito invis��vel ser�� este que a guerreira v�� e

que a anima?

Joana ergue os bra��os.

��� A vit��ria �� nossa! Vamos! Atulhem os fossos! Hardi! De-

pressa!

Os homens que a cercam v��o at�� a retaguarda e voltam com

refor��os. Os soldados franceses trazem pranchas e feixes e pedras.

Os fossos s��o atulhados. Joana re��ne os seus homens e faz novo

ataque.

Saint-Pierre-Le-Moustier cai.



208

E R I C O VER��SSIMO

XLIX

D I V E R T I S S E M E N T S . . .

JOANA �� despertada de seu ��xtase pelo vozeir��o de d'Aulon que

entra sem bater em seu quarto e caminha apressado para ela,

apoiado nas muletas.

A Donzela se ergue.

��� Orl��ans! ��� grita ele com os olhos fuzilando! ��� Orl��ans!

P��ra, ofegante, joga longe as muletas e atira-se numa poltrona

rindo, rindo, rindo.

Joana est�� serena.

��� Orl��ans! ��� repete d'Aulon. ��� A nossa brava Orl��ans aten-

deu ao nosso pedido. Mandou homens, canh��es, dinheiro para

soldo, roupas! Que venha o inverno! ��� Ergue-se, esquecido do

ferimento. Mas logo torna a sentar com uma careta de dor. ���

Mas n��o est��s surpreendida? Orl��ans nos ajuda.

Joana sorri.

��� Eu sabia ��� diz.

D'Aulon fica s��rio. Lembra-se do ataque a Saint-Pierre-Le-Mous-

tier e do ex��rcito invis��vel. Olha a Donzela da cabe��a aos p��s e

no seu olhar agora h�� uma express��o estranha. ��le gosta de Joana.

Como gostaria do melhor companheiro d'armas. Quase nunca se

afasta dela no mais vivo dos combates. Um dia chegou a sentir

medo. As setas escureciam o ar. Troavam os canh��es. Os homens

rolavam a seus p��s. Por um momento ele fraquejou, chegou a

voltar a cabe��a para t r �� s . . . Mas encontrou o rosto de Joana. Um

rosto resplandecente: o rosto dum anjo. Nenhuma contra����o

de medo nem de ��dio. Dois olhos azuis de crian��a olhando para

a morte como se olhassem para um brinquedo. Teve vergonha.

Esporeou o cavalo e carregou... Sim, ele gosta de Joana. Mas

esquece, no fim de contas, que ela �� diferente das outras pessoas.

Passam-se coisas extraordin��rias com ela. Contam-se milagres.

Ele mesmo tem visto maravilhas. Uma vez teve ��mpetos de se





2 1 0

E R I C O VER��SSIMO

ajoelhar aos p��s dela como se se encontrasse diante duma s a n t a . . .

Chegou a fazer um movimento, mas imediatamente teve vergonha

do gesto. Conteve-se. Porque Joana estava na frente dele t��o

simples, t��o amiga, t��o n a t u r a l . . . E �� por causa disto que ��s

vezes ele a trata de igual para igual.

D'Aulon est�� em sil��ncio. �� Joana quem primeiro fala.

��� Pedimos aux��lio a Riom e a Bourges... Mas eu sei que

de l�� nada nos v i r �� . . .

��� Mas Bourges? ��� pergunta o escudeiro, admirado.

A Donzela responde simplesmente:

��� La Tr��mouille.

O sil��ncio cai de novo.

��� Com o inverno a campanha vai ser dura ��� comenta d'Aulon.

A sombra dum sonho passa pelo rosto de Joana:

��� O meu caminho era outro.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

211

��� Outro?

��� Paxis.

Joana solta esta palavra num cicio.

��� Paris ��� repete d'Aulon quase sem sentir.

Os dias passam.

Os recursos solicitados n��o chegam. Os soldados se inquietam.

Os capit��es andam taciturnos. Joana sofre.

Novembro avan��a e o frio aumenta.

Chegam carretas de Auvergne e Clermont trazendo o aux��lio

que d'Albret e Joana lhes pediram h�� alguns dias atr��s. E de

mistura com p��lvora, canh��es e lan��as, vem uma espada de pre-

sente para a Donzela.

A 24, mal-armado e mal pago, desalentado e frouxo, o ex��r-

cito de Carlos VII chega ��s proximidades de La Charit��.

D'Albret e Joana escrevem uma carta a Bourges pedindo re-

cursos. O tempo rola e o dinheiro pedido n��o vem.

La Charit�� �� cercada por um ex��rcito j�� desde o in��cio derrotado.

Joana, em cima de seu cavalo, percorre as linhas de frente. A

sua voz fina soa inutilmente dentro do grande sil��ncio de desa-

lento em que submergem as tropas. E a Donzela parece um anjo

tentando reanimar uma legi��o de mortos.

A guarni����o de La Charit�� �� brava e tenaz.

O cerco se estabelece nas piores condi����es para os atacantes.

Dentro de pouco tempo Perrinet Gressart, comandante da pra��a

sitiada, faz uma sortida e levanta o cerco.

E aqui marcha de volta o ex��rcito vencido.

O inverno manda no vento a sua primeira mensagem.

E a- paisagem vai ficando gris como a alma dos homens.

Joana cavalga ao lado de d'Albret que lhe diz:

��� A culpa n��o �� nossa. Sem muni����o e sem mantimentos ��

imposs��vel fazer um cerco em regra. O que foi poss��vel fazer,

se fez.

A Donzela sorri tristemente. Ela agora compreende. Quise-

ram desvi��-la do caminho de Paris. Deixaram-na atacar La Charit��

para lhe dar um entretimento. Um brinquedo...

E a primeira vez que avista o rei e o seu insepar��vel La Tr��-

mouille, lhes diz sem prel��dio:

��� Se queriam distrair a minha aten����o n��o era preciso fazer

isso com o sacrif��cio de v i d a s . . .

212

ERICO VER��SSIMO

As bochechas de La Tr��mouille tremem de surpresa fingida.

O rei gagueja uma desculpa.

��� M a s . . . mas eu n��o compreendo? Distrair? Ora!

Joana reafirma a acusa����o. Conta o desastre de La Charit��.

As l��grimas lhe escorrem dos olhos. O rei est�� perturbado. E

quando a mo��a se cala, com voz meiga ele vai dizendo:

��� Olha, Joana, eu quero provar como n��o te quero mal. N��o

��, La Tr��mouille?���Volta a cabe��a para o conselheiro, como

a crian��a que pede a aprova����o do mais velho. ��� Pois at�� eu

��esolvi dar a ti e �� tua gente cartas de nobreza, n��o ��, La Tr��-

mouille?

Joana est�� impass��vel. As l��grimas lhe deslizam pelas faces,

brilham ao sol e tombam depois sobre a coura��a. O rei prossegue:

��� Determinarei que o teu querido nome, Joaninha, de hoje

em diante seja escrito "d'Ay", n��o ��, La Tr��mouille?

O conselheiro sorri candidamente e sacode a cabe��a.

O rei est�� mais tranq��ilo. Mas seus olhos encontram os olhos

de Joana���azuis, grandes, firmes, claros ��� olhos de quem tudo

v�� e tudo sabe. Olhos de anjo ou de dem��nio?

Carlos de Valois estremece.

AS B O D A S DE HELIOTE

COME��A O ano de 1430.

Sob um p��lido sol de inverno Joana D'Arc entra em Orl��ans.

N��o vem de elmo e armadura, nem de estandarte em punho; e na

sua cabe��a n��o moram mais sonhos de vit��ria. Aparece vestida

simplesmente como um pajem. Um gorro grosso de l�� lhe cobra

parcialmente os cabelos negros. E com os dedos entanguidos de

frio, mesmo por baixo das luvas grosseiras, a Donzela segura as

r��deas.

Mas o povo que sabe de sua vinda a espera e a reconhece.

As aclama����es principiam.

Viva a Donzela de Orl��ans! ��� gritam.

Joana recorda a noite em que entrou aqui, por esta mesma

rua, quando a cidade estava sitiada. Seu cora����o batia descompas-

sado. nsia e temor. E via rostos desfigurados, olhos chispantes,

interroga����es aflitas em cada semblante.

Agora tudo est�� tranq��ilo. J�� n��o se v��em mais rostos angus-

tiados. Acenam-lhe com as m��os, com len��os, com bandeiras.

H�� outros que param e olham, sem compreender.

O sol da tarde beija os telhados, risca faixas douradas nas ruas

e nas pra��as. V��em-se mulheres, homens e crian��as ��s janelas.

Nas ruas centrais a multid��o �� mais compacta. As aclama����es

redobram de intensidade.

��� Joana D'Arc! Deus te guarde!

��� A Donzela de Orl��ans!

��� Viva a Donzela!

A multid��o cerca o cavalo de Joana. Todos procuram tocar-lhe

nas roupas, beijar-lhe a m��o. Os gritos crescem e sobem para

o c��u azul.



2 1 4

E R I C O VER��SSIMO



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

215

Joana olha o mar inquieto de cabe��as que ondula e se prolonga,

claro-escuro, a perder de vista. Trapos coloridos agitados por

m��os fren��ticas. Zunzuns cortados de gritos estridentes...

Esquece o frio. O mar se agita ainda diante de seus olhos como

que encrespado pelo vento. Ela sente uma tontura e �� por um

milagre que mant��m o equil��brio em cima do cavalo que come��a

a pinotear, assustado.

Meia hora depois, livre, finalmente, e s�� no quarto da casa em

que vai ficar hospedada, a Donzela respira.

Aqui reina o sil��ncio. A sombra fresca. A quietude familiar.

Entra uma criada e pergunta:

��� A senhora deseja alguma coisa?

��� N��o, obrigada ��� responde Joana.

A criada sai. �� bem nutrida e tem uma cara gorda e corada.

Deve ser do campo ��� pensa Joana.

Deita-se e fica a refletir.

Do c a m p o . . . Cerra os olhos. E contra o fundo vermelho-roxo

das p��lpebras lhe aparece uma paisagem querida. A casa de

papai Jacques, com a chamin�� fumegando. Nada mudou. �� um

milagre. Cai neve mas o ar �� morno e as rosas enfeitam o jardim.

A igrejinha branqueja al��m do cemit��rio. E o bom cura sorri

para a menina Joana que passa com uma bra��ada de flores para

216

ERICO VER��SSIMO

Nossa Senhora de Bermont. Os porcos brincam no charco e o charco

batido de sol parece respingado de j��ia��. Jo��o e Pedrinho vol-

tam da escola de Maxey. V��m todos esfarrapados. Estiveram brin-

cando de guerra. Papai os espera carrancudo, de bra��os cruzados.

Pega dum chicote. Os meninos tremem, come��am a chorar. Mas

mam��e Isabel sai de casa: Deixa os pobrezinhos, Jacques, eles

n��o fazem mais travessuras!

Joana abre os olhos. A paisagem se some. Agora ela s�� enxerga

c teto do quarto.

Mas'uma id��ia lhe brinca na mente. Mandar buscar mam��e

Isabel para Orl��ans. Arranjar-lhe uma casinha modesta... Sim,

tudo isto �� poss��vel.

Ergue-se e dita uma carta para o rei.

Os dias passam.

Os maiorais de Orl��ans oferecem a Joana um banquete. Iodas

as personalidades importantes da cidade est��o ao redor da mesa.

Funcion��rios p��blicos e comerciantes. Capit��es e doutores.

Come��a o supl��cio para Joana. Responder a todas as pergun-

tas com o rosto sorridente.

��� Gosta de fais��o?

��� Um pouco.

��� Por que n��o bebe mais vinho?

��� Obrigada.

��� Sentiu medo alguma vez na guerra?

��� Acaso sou diferente dos outros?

Os capit��es, depois do terceiro cop��zio de vinho, come��am

a ganhar batalhas. Os doutores sorvem os licores e despejam

sabedoria. Os comerciantes sonham com lucros fabulosos. U:n

funcion��rio come��a a chorar, queixando-se de que n��o recebe h��

muito os seus vencimentos.

E enquanto os convivas falam e discutem e riem, as perdizes

e os fais��es assados erguem para o alto as pernas mutiladas, e

uma cabe��a de leit��o olha desconsoladamente para as bochechas

dum doutor em Teologia.

O banquete termina. E nasce mais um dia. E v��m outros dias.

O inverno continua. A tr��gua entre o Rei Carlos e o Duque de

Borgonha se prolonga.

Um dia Joana se lembra de Heliote, a filha de Hamish Power,

o escoc��s que lhe pintou o estandarte. Vai visit��-la em Tours.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

217

Heliote fica encantada.

��� Ent��o, n��o se esqueceu de mim?

Quer beijar a m��o de Joana, que n��o o permite.

O pintor aparece, cheio de mesuras. E com o seu franc��s tr��-

pego procura dizer a Joana, da melhor maneira poss��vel, que

teve muito prazer em saber que ela deu uma boa sova nos intro-

metidos ingleses de Bedford.

Heliote sorri. Est�� mais linda. Os seus olhos lembram a Joana

o verde lustroso e fresco da relva de Domr��my que cresce em

torno da Fonte-dos-Groselheiros.

��� E o noivo?

A filha do pintor conta que as bodas se realizam dentro em

breve.

De volta a Orl��ans, Joana escreve ��s autoridades da Cidade de

Tours pedindo-lhes cem escudos para o enxoval de Heliote.

Chega a data do casamento. Os maiorais de Tours n��o est��o

em melhores condi����es financeiras do que o Rei Carlos VII. Fa-

zem um prodigioso torneio de ret��rica para dizer a Joana que

precisam do pouco dinheiro que t��m, para a manuten����o da

cidade. Mas que, em aten����o �� Donzela de Orl��ans, v��o pessoal-

mente assistir ��s cerim��nias nupciais e que h��o de oferecer ��

noiva p��o e vinho.

E assim acontece.

Na almofada em que os noivos ajoelham ao p�� do altar, Hamish

Power pintou em ouro e vermelh��o uma frisa de querubins gor-

duchos de m��os dadas.

Joana assiste �� solenidade. A igreja se enche de vozes, que

cantam em coro.

Heliote parece um l��rio. A seu lado o noivo, muito alto e de-

sempenado, baixa os olhos para ela com ternura.

Joana r e c o r d a . . . Um dia um mo��o lhe prop��s casamento.

Foi na primavera. Havia ��rvores floridas nos bosques. Ele era

moreno e trabalhava no campo, de sol a sol. Falou rude e firme

como quem n��o admitia recusa.

��� Joana, voc�� vai casar comigo!

E ela fugiu. N��o queria casar, n��o gostava de ningu��m a

n��o ser dos pais, dos irm��os, e dos santos do c��u. Andava com

o pensamento nas Vozes e nas apari����es. O mundo real n��o sig-

nificava nada para ela. A proposta do campon��s era absurda.

2 1 8

ERICO VER��SSIMO

Mas ele insistiu. Perseguiu. Chegou a queixar-se ��s autoridades,

indo a ponto de mentir que ela lhe prometera casamento...

Joana abre os olhos. O padre aben��oa Heliote e o noivo, de-

clarando-os marido e mulher.

Quando a igreja se esvazia, a Donzela fica a olhar para a ima-

gem de S. Catarina e se recorda de que um dia N. Senhora lhe

apareceu em sonho com o menino Jesus no colo e lhe perguntou:

"Catarina, queres tomar este aqui como teu esposo?"

LI

"ANTES DE S. J O �� O C A I R �� S PRISIONEIRA!"

DE NOVO a primavera.

Ao erguer-se uma manh��, Joana a encontra com surpresa na

andorinha pousada no ramo duma ��rvore toda cheia de brotos

verdes. O vento embala o perfume das flores. Grandes nuvens

b��iam no c��u como caravelas.

E ent��o a Donzela fica a recordar o longo inverno de inativi-

dade. Not��cias de pequenas escaramu��as. O vento uivando. Os

ser��es intermin��veis. A neve. Noites agitadas. Sonhos incom-

preens��veis: uma cidade ��� parecia Paris ��� dan��ando diante dela,

dan��ando.. . Ela estendia a m��o e a cidade fugia, fugia, punha-se

a correr. E Joana queria tamb��m correr mas tinha nos p��s sa-

patos de ferro, correntes que a prendiam �� terra. E o inverno con-

tinuava. .. Os pobres vinham bater-lhe �� porta e tudo que tinha

ela lhes dava de cora����o alegre. Sempre que se via a s��s, orava.

E era um consolo ver que suas santas n��o a abandonavam. Di-

ziam-lhe palavras amigas. E quando a Donzela lhes pedia instru-

����es, fazia-se a seu redor um sil��ncio de gelar o sangue.

Joana encontra-se em Sully com o rei. Esta �� a terra de La

Tr��mouille.

Mar��o. Aproxima-se a P��scoa e o fim da tr��gua com o Du-

que de Borgonha.

No castelo do gordo conselheiro, onde est��o hospedados Carlos

VII e a Donzela, toda a gente sente o influxo da esta����o nova.

A luz jorra pelas grandes janelas de vidros coloridos. Os criados

tagarelam animadamente. O rei respira fundo e n��o se cansa de

elogiar os m��veis, os tapetes e os quadros do castelo de La Tr��-

mouille.

Combinam-se grandes partidas de ca��as ao javali. E os bos-

ques dos arredores de Sully se enchem do som agudo das trom-

betas, do tropel dos cavalos e dos gritos dos ca��adores.



2 2 0

ERICO VER��SSIMO

As ��rvores exibem um verde novo. Em algumas brotam flores.

Cantam passarinhos. O sol �� claro e o vento �� fresco.

O Rei Carlos VII volta da ca��a. Com um ar feliz e glorioso de

quem retorna duma batalha. La Tr��mouille est�� mal-humorado

porque caiu do cavalo, fazendo afundar a terra com o peso de

seu corpanzil. Os curandeiros do pal��cio aparecem com medicinas

esquisitas. La Tr��mouille bufa e geme.

Joana espera e enquanto espera sofre.

Chegam novas inquietadoras.

Os habitantes de Reims escrevem-lhe carta desesperada em

que lhe dizem do grande temor de que a cidade que coroou o rei

seja sitiada por ingleses e borgonheses.

No castelo de La Tr��mouille os cortes��os cochicham intrigas.

Quando Joana se aproxima dos grupos, os homens se calam ou

mudam de assunto, principiando a falar de coisas f��teis: proe-

zas de ca��a, qualidades de vinhos. ..

Mas Joana fica sabendo por d'Aulon que se prepara em Paris

uma conspira����o contra a Inglaterra. O plano �� simples. . . Intro-

duzir sorrateiramente arqueiros escoceses na cidade. Depois pro-

vocar um levante popular.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

221

A Donzela dita uma carta aos habitantes de Reims. Que fiquem

tranq��ilos os seus bons e queridos amigos. Ela n��o os abandonar��

nunca e nunca. Em breve estar�� batendo ��s suas portas.

No fim da carta Joana se lembra da conspira����o de Paris. E

dita:

Se eu n��o tivesse medo de que essa carta fosse roubada em ca-

ninho, eu lhes daria uma not��cia muito boa.

Os dias passam.

Sabe-se no castelo de La Tr��mouille que Bedford cedeu ao

Duque de Borgonha toda a regi��o da Champagne.

O Rei Carlos re��ne o Conselho. La Tr��mouille exp��e a situa-

����o. Com a m��o nos rins e gemendo de quando em quando ���

porque o corpo ainda lhe d��i da queda ��� ele vai expondo:

��� Bedford vai trazer para a F r a n �� a . . . ��� ai! ��� o Rei Hen-

rique VI com um fone ��� ui! ��� ex��rcito... ��� Faz uma careta.

��� O Duque de Borgonha quer conservar Paris a todo o p r e �� o . . .

Interrompe o discurso para gemer. D'Albret termina:

��� E para isso vai procurar retomar todas as pra��as das pro-

ximidades de Paris que est��o em nosso p o d e r . . .

O Rei Carlos VII, como se despertasse dum sono profundo,

exclama:

��� E isso porque Paris n��o poder�� contar com essas cidades

para se abastecer!

Olha, sorrindo, para o conselheiro, que, em resposta, sacode

a cabe��a, aprovando. Carlos de Valois fica satisfeito consigo

mesmo. Acaba de dizer uma verdade. Mostrou que compreende

a situa����o. Lavrou um tento. Afirmou-se.

Joana, que foi admitida excepcionalmente no Conselho, es-

cuta em sil��ncio.

Os conselheiros discutem. La Tr��mouille conta que lhe chegou

a not��cia de que se prepara uma conspira����o contra os franceses

em R e i m s . . .

O rei estremece. Os olhos de Joana brilham.

Alguns minutos depois o Conselho debanda. E a vida reco-

me��a como se nada de grave se estivesse passando.

Ceias despreocupadas. Cavalgadas. Passeios. Festas. Vinha��as.

E a primavera rebentando em brotos, flores, folhas e venta-

nias descabeladas.

Joana escreve aos habitantes de Reims dizendo que o rei

222

E R I C O VER��SSIMO

tinha ouvido falar duma conspira����o borgonhesa na cidade mas

que sabe que os bravos moradores de Reims h��o de ficar fi��is

�� Fran��a.

Uma noite a Donzela confia a d'Aulon o seu plano.

��� Antes da semana da P��scoa sigo para Lagny-sur-Marne.

��� Sem ordem do rei? ��� pergunta o escudeiro.

��� Sem ordem do rei ��� confirma Joana.

Faz-se um sil��ncio longo.

A noite �� clara. Palpitam as estreias. Ouve-se longe os

gritos dos guardas que se revezam. Em torno do castelo a cam-

pina dorme.

DAulon quebra o sil��ncio para dizer numa insinua����o:

��� Falam que o Rei da Inglaterra vir�� com um forte ex��rcito

de dez mil homens... Gente bem armada, bem municiada;

soldados descansados; tropa fresca. ..

Joana compreende e sorri. Seus olhos se voltam para o c��u.

��� N��o tenho medo, d'Aulon. Acaso o meu ex��rcito de cin-

q��enta mil guerreiros n��o me acompanha?

DAulon estremece de leve, lembrando-se de Saint-Pierre-Le-

Moustier.

Separam-se.

Joana vai para o quarto. E durante muito tempo fica a ouvir

as suas Vozes. E em v��o espera alguma ordem, a sugest��o dum

r u m o . . . Nada. Quietude. Imobilidade.

No dia seguinte chegam not��cias decepcionantes: foi desco-

berto o compl�� de Paris!

O rei fica consternado. Sempre lhe foi repugnante, �� ver-

dade, a id��ia de tomar a grande cidade pela for��a. Chegou a

alimentar a esperan��a de que um dia os habitantes de Paris

por suas pr��prias m��os e por sua pr��pria vontade lhe ofere-

cessem a pra��a. .. Por fim, sempre repelindo a id��ia dum ataque

direto, chegara a consentir que se tramasse a conspira����o, que

se provocassem motins dentro da cidade. . .

E agora, a decep����o...

��� Ingratos! ��� murmura Carlos VII para si mesmo. ��� In-

gratos! ��� repete, embora nem ele mesmo saiba com clareza a

quem se est�� referindo. ��� Ingratos!

A VIDA DE JOANA D'ARC

223

E vai �� cozinha pedir um fais��o dourado para o almo��o, �� guisa

de consola����o.

Joana manda chamar os seus dois irm��os. Aqui est��o Pedro

e Jo��o, perfilados diante da Donzela.

��� Meninos, eu resolvi partir sozinha, sem ordem do rei. Sigo

para Melun.

Os rapazes se entreolham.

��� Voc��s n��o t��m obriga����o nenhuma de ir comigo. Se quise-

rem, podem voltar para Orl��ans.

Uma express��o de surpresa dolorosa nos dois rostos queimados.

Uma pausa curta. Depois Pedro fala:

��� Maninha, n��s vamos com voc��.

��� Olhem que �� arriscado, vou quase s �� . . .

��� N��s vamos com voc�� ��� repete Jo��o.

Joana fica pensativa um instante. Depois sorri e estende ambas

as m��os para afagar de leve a cabe��a dos rapazes.

Finda o m��s de mar��o.

Sem avisar o rei, Joana sai de Sully acompanhada de d'Aulon,

de seus dois irm��os e de um pequeno grupo de lanceiros.

Aqui vai a Donzela, metida de novo na sua armadura. As

estradas est��o inundadas dum sol p��lido e morno. Os cavalos

nitrem.

Na semana da P��scoa, Joana se acha junto aos muros de Melun.

Correm rumores de que a cidade, alvoro��ada com a aproxima����o

dela, vai entregar-se ao Rei Carlos VII.

A Donzela olha as muralhas escuras. Em torno dela, sil��ncio.

De repente um clar��o surge diante de seus olhos e dentro do

clar��o, pairando no ar, Joana v�� as imagens de S. Catarina e S.

Margarida, que lhe falam docemente:

��� Joana, antes de S. Jo��o cair��s prisioneira.

A Donzela estremece, quer falar mas n��o pode, a voz lhe foge.

Ali no ar, com suas vestes dum azul puro, as coroas rebrilhando

na cabe��a, as duas figuras queridas, bem como a menina Joana

as vira pela primeira vez em Domr��my, bem como continuara

a v��-las depois, atrav��s de muitos a n o s . . .

A Donzela faz um grande esfor��o e consegue dizer:

��� Se eu for presa, acho que morro l o g o . . .

��� �� preciso que se cumpra o que Deus decretou. Ser��s presa

e ter��s paci��ncia. Deus te ajudar��.

224

ERICO VER��SSIMO

A luz se apaga. As imagens se somem. E diante de Joana

se desenham agora os muros negros. E por tr��s dos muros se

ergue um clamor. N��o s��o gritos de guerra. S��o vivas. O povo

de Melun resolve entregar a pra��a �� Donzela.

D'Aulon vem correndo trazer a boa not��cia.

Joana monta a cavalo para entrar no reduto que se rende.

E n��o lhe saem mais da mem��ria as palavras de suas santas:

��� Antes de S. Jo��o cair��s prisioneira.

L I I

O MILAGRE DE L A G N Y

JOANA se acha em Lagny, cidade que h�� oito meses est�� em

poder dos franceses.

Os habitantes da cidade a adoram. Vivem a bater-lhe �� porta.

E os pedidos chovem:

��� D��-me uma mecha de seu lindo cabelo!

��� Toque com seus dedos a minha cabe��a.. .

��� Venha ver o meu marido que est�� d o e n t e . . .

��� Os meus porquinhos n��o engordam: fa��a o favor de ben-

z��-los . . .

Joana agora est�� com os olhos voltados para Compi��gne. De

noite tem sonhos horr��veis, em que a cidade lhe aparece em

chamas ��� mulheres gritando e arrastando os filhos pelas m��os,

as casas ruindo, choro, impreca����es e sangue, enquanto borgo-

nheses e ingleses riem, riem, r i e m . . .

Em Lagny, Joana encontra excelentes companheiros d'armas:

Baretta, Kennedy, Ambroise de Lor�� e seu lugar-tenente Fou-

cault.

��� Quantos homens tens, Baretta? ��� pergunta-lhe Joana um

dia.

��� Quase cem entre alabardeiros e lanceiros...

Diz isto rindo, orgulhoso, como se dissesse: tenho doze mil

soldados.

Joana fica pensando. Seu rosto entristece. Lembra-se do po-

deroso ex��rcito que se estendia pelos campos de Fran��a como

uma longa cobra de a��o, tendo na frente guerreiros como Dunois,

La Hire, Boussac, d'Alen��on. Sim, d'Alen��on principalmente!

Oh!, se ao menos o duque estivesse aqui!

Um dia Jo��o Foucault vem dizer a Joana que em Paris se

fala com alvoro��o na aproxima����o da "Donzela de Orl��ans". Os

borgonheses e os ingleses est��o inquietos. Entre o povo e os

226

E R I C O VER��SSIMO

soldados corre de boca em boca a lenda de que ela �� uma feiti-

ceira que tem a seu servi��o uma legi��o de anjos do inferno.

Joana faz um gesto desamparado.

Todos os dias ouve as Vozes que lhe repetem:

��� Antes de S. Jo��o cair��s prisioneira.

E Joana ora, pede com fervor que Deus n��o permita ela

tenha vida longa depois de cair nas m��os dos inimigos. E outra

vez as santas lhe sussurram ao ouvido:

��� Ter��s a coragem da paci��ncia. Deus n��o te abandonar��.

Entre os capit��es de Lagny encontra-se Kennedy, bravo sol-

dado que tem sob suas ordens um punhado de escoceses. Os

olhos de Kennedy lembram a Joana vagamente os olhos de uma

outra pessoa... A Donzela pensa um instante. Olhos verdes,

dum verde lustroso e p u r o . . . S i m . . . Heliote, a filha de Ha-

mish Power!

��� Kennedy ��� diz-lhe Joana um dia ��� eu quero ver como

brigam os teus escoceses!

��� H��s de ver, companheira, h��s de ver!

E o dia da prova n��o tarda.

Chega a Lagny a not��cia de que um grupo de trezentos a

quatrocentos borgonheses e ingleses, que andavam burlequeando

pela Ilha-de-Fran��a, agora voltam para a Picardia.

��� Precisamos cortar-lhes a retirada! ��� decide Jo��o Foucault.

Os soldados de Lagny saem de sua cidade sob as ordens de

Foucault, Kennedy e Geoffroy de Saint-Bellin.

Joana os acompanha. A seu lado cavalgam d'Aulon e mais os

dois irm��os D'Arc, Pedro e Jo��o.

��� Que surpresa eles v��o ter���exclama Kennedy, antegozando

o susto dos inimigos.

Mas a pouca dist��ncia de Lagny se d�� o choque. Os ingleses e

borgonheses t��m tempo de se entrincheirar. Seus arqueiros es-

tendem linha e esperam.

As for��as de Lagny carregam.

Os olhos de Kennedy crescem de espanto ao verem Joana

de estandarte em punho esporear o cavalo e precipitar-se como

um p r o j �� t i l . . .

O primeiro ataque dos franceses �� recha��ado. O inimigo est��

em maioria.

Foucault organiza novo assalto. Outro fracasso.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

227

Na terceira carga borgonheses e ingleses afrouxam. Os sol-

dados de Lagny insistem na investida e desbaratam completamente

os arqueiros contr��rios.

Voltam para Lagny com prisioneiros, feridos e outras presas

de guerra.

Joana est�� contente. Porque volta livre. Durante todo o com-

bate n��o lhe sa��ram da mem��ria as palavras de S. Catarina e S.

Margarida: "Antes de S. Jo��o cair��s prisioneira". Soavam mis-

teriosamente mais alto do que os gritos de raiva e de dor dos guer-

reiros, mais forte que o gemido soturno das frechas no ar, mais

agudas que o estr��pito das patas dos cavalos batendo no ch��o,

nas pedras, ou nas cabe��as e nos peitos dos soldados tombados.. .

A Donzela agora repousa.

Foucault lhe vem dizer que entre os prisioneiros se acha um

gentil-homem chamado Franquet d'Arras.

��� Que faremos com ele? ��� pergunta Joana.

O rosto de Foucault endurece.

��� Vai ser julgado por crime de roubo e assass��nio. Andou

com seus homens a atacar aldeias desprotegidas.. Roubou, ma-

tou, depredou...

Joana est�� pensativa. Vem-lhe uma i d �� i a . . . Em Paris deve

estar prisioneiro Jacquet Guillaume. Era um dos implicados na

grande conspira����o que visava entregar Paris ao Rei Carlos VII.

Jacquet era dono do Hotel do Urso, onde se reuniam os conspi-

radores. Os frades de Melun, que teciam a trama habil��ssima, en-

travam em Paris disfar��ados e ali achavam abrigo. Um dia o

compl�� foi descoberto e os principais cabe��as presos.

��� E se n��s propus��ssemos aos borgonheses a troca de Franquet

d'Arras por Jacquet Guillaume?

Foucault faz uma careta de pessimismo. E depois, com a fisio-

nomia mais clara:

��� Joana, tu te portaste bem no combate. Franquet �� teu pri-

sioneiro. Eu to entrego.

Nos dias que se seguem, a Donzela manda emiss��rios a Pa-

ris, com uma carta em que prop��e a troca. Voltam os mensa-

geiros com m��s not��cias. Jacquet Guillaume e mais seis dos chefes

da conspira����o foram decapitados...

Joana se sente invadida por uma onda de tristeza.

Que fazer de Franquet? Soltar o dem��nio, para ele continuar

228

ERICO VER��SSIMO

na sua vagabundagem criminosa, saqueando as pobres aldeias sem

defesa? Por um instante Joana se lembra de Domr��my e de seus

dias de pilhagem e pavor. O pensamento lhe d�� calafrios.

Vai at�� Foucault.

��� Devolvo-te o prisioneiro.

Foucault por um instante fica sem saber que fazer do presente.

��� Mas que destino se vai dar ao homem?

Joana encolhe os ombros.

��� Eu me desinteresso. Fa��am o que quiserem, contanto que

n��o o s o l t e m . . .

Foucault, em vista dos crimes cometidos por Exanquet d'Arras,

instaura um tribunal para o julgar.

Os dias passam. A Donzela ora e medita. E as Vozes lhe repe-

tem: "Antes de S. Jo��o cair��s prisioneira."

Uma tarde batem-lhe aflitamente �� porta do quarto.

No instante seguinte a guerreira �� cercada por um grupo

de mulheres assanhadas que falam e gesticulam sem cessar. E

Joana v�� a seu redor rostos congestionados, olhos que saltam das

�� r b i t a s . . . E as comadres falam, falam, f a l a m . . . Pacientemente

a Donzela espera. As mulheres s��o como catapultas, lan��ando

contra a guerreira palavras que t��m a for��a de pedradas.

As comadres repetem sem cessar: Morreu pag��! Morreu pag��!

Choros. Gritinhos nervosos. E por fim as mulheres se ajoelham

em torno da Donzela. E quando o sil��ncio se faz ��� sil��ncio que-

brado apenas pelos solu��os abafados ��� Joana pergunta placida-

mente.

��� Que foi que aconteceu, boas mulheres?

Uma delas lhe explica com voz entrecortada. A sua comadre c

vizinha teve um beb��. Crian��a linda, gordinha, parecida com o

pai. Ia ser um encanto... Mas ��� pobrezinha! ��� morreu pouco

depois de ver a luz do d i a . . .

��� Foi de noite ��� interrompe uma das comadres.

Sem tomar conhecimento da interrup����o a primeira continua

a narrativa. E desfia um colar de lam��rias. N��o �� mesmo uma

grande desgra��a morrer sem ser batizada? Oh! Deus deve com-

padecer-se da pobre alminha que a estas horas decerto j�� anda

nas proximidades do i n f e r n o . . .

Joana escuta. E depois, deixando cair as m��os num gesto de-

samparado, pergunta:

A V I D A DE J O A N A D A R C

229

��� Mas que �� que eu posso fazer?

Das mulheres ajoelhadas sobe para ela um clamor que �� quase

um urro. Depois cada qual come��a a falar. Sim, a Donzela pode

fazer um milagre. Um milagre! N��o �� ela Joana D'Arc a en-

viada do Senhor? N��o conversa com os santos? N��o ouve as Vozes

dos c��us? O rosto de Joana exprime tristeza.

��� Eu s�� posso orar e pedir a Deus que se compade��a da crian-

cinha. ��� De repente, mudando de tom, resoluta, como se, es-

tando no campo de batalha, de s��bito resolvesse fazer uma carga

de cavalaria, acrescenta: ��� Levem o beb�� para a igreja e ponham-

no diante do altar de Nossa Senhora.

As mulheres saem correndo, sacudindo os bra��os e cacarejando

como galinhas perseguidas.

Na igreja Joana encontra uma multid��o cercando a crian��a

morta. A not��cia se espalhara por toda Lagny. Joana D'Arc, a

Donzela de Orl��ans, ia obrar um m i l a g r e . . . Ningu��m tinha

d��vidas. A f�� e a curiosidade contagiam o povo.

Abrem-se alas quando Joana se aproxima do altar.

E ali aos p��s da imagem de Nossa Senhora encontra-se um pe-

queno fardo envolto em l��s. Joana se inclina e olha. Um rostinho

enrugado e enegrecido, dois olhos parados, vidrados, mortos.

Em torno, sil��ncio. Ao lado do cad��ver, uma mulher chora

baixinho. Muitas raparigas ajoelhadas pedem a Nossa Senhora

que interceda junto a Deus para que ele devolva a vida ao cor-

pinho inerte.

Joana se ajoelha e come��a a rezar.

Para ela nada pede, nada quer. Sabe que seu fim se aproxima.

Sua miss��o est�� terminada: foram cumpridas as ordens do Arcanjo.

A metade da Fran��a est�� em poder de seu verdadeiro rei. Ama-

nh��, ela sabe, o ��ltimo ingl��s ser�� expulso e ent��o a sua querida

p��tria estar�� livre! Mas, Senhor, por que n��o dar um pouco de

vida a esta crian��a morta? Ao menos por algumas horas, para

que ela seja batizada e para que sua alma depois possa voar para

o c �� u . . .

Por muito tempo a Donzela fica a rezar. Depois se levanta,

aproxima-se do cad��ver e suas m��os, como duas asas cansadas,

pousam na testa fria da crian��a.

O sil��ncio �� profundo. Todos esperam, sustendo a respira����o.

E de s��bito estremecem. Porque da boquinha entreaberta se

230

ERICO VER��SSIMO

escapa um gemido, e outro e mais outro. O rostinho negro vai

aos poucos empalidecendo e por fim a crian��a come��a a esper-

near.

De joelhos novamente, agradecendo a Deus o milagre, Joana

n��o ouve nem v�� o alvoroto de gestos e vozes que se faz em

torno do rec��m-nascido. Tamb��m n��o percebe que um sacerdote

vem e leva �� pia batismal a crian��a que emergiu h�� pouco do

fundo da morte.

Quando Joana sai de seu ��xtase, j�� �� noite fechada. A igreja

est�� deserta. O luar entra pelas janelas.

Amanh��, que acontecer��?

Joana caminha para fora.

As estrelas brilham sobre Lagny.

LIII

QUEM ESCREVE �� D E U S . . .

DESDE a P��scoa a grande tr��gua entre Carlos VII e o Duque de

Borgonha est�� terminada.

La Tr��mouille sonha com novas aventuras douradas. Carlos

VII acaricia ainda a id��ia de fazer uma grande, uma imensa, uma

eterna paz. Mas tudo isto n��o �� t��o, t��o f��cil? Reunir, por exem-

plo, os representantes das duas grandes pot��ncias em Auxerre para

discutir e firmar uma paz h o n r o s a . . .

��� Se eu ao menos, como queria, tivesse conseguido dar de

presente Compi��gne ao primo de Borgonha! ��� exclama o rei ao

seu conselheiro, em tom lamuriento.

La Tr��mouille sorri enigmaticamente.

��� Mas aquela gente �� dura! ��� continua Carlos VII. ��� Voc��

j�� viu coisa mais tola do que essa mania de fidelidade ao rei, La

Tr��mouille? Ora, ora! Pois se o rei diz: Fiquem com os bor-

gonheses, eu n��o quero voc��s, Compi��gne me servir�� melhor se

passar para as m��os do primo Filipe! Mas qual! Os homens

n��o se entregam.

La Tr��mouille continua a sorrir em branco.

Em Lagny os franceses conseguem reunir as tropas de muitos

chefes e levar a Senlis um ex��rcito de mil cavaleiros. Joana os

acompanha.

Ingleses e borgonheses, agora que a tr��gua findou, concentram

for��as numerosas e uma artilharia possante em Montdidier. O

seu objetivo atual �� tomar Compi��gne, grande cidade, a chave de

Paris. E ingleses e borgonheses querem a todo o custo conservar

Paris. Carlos VII faz ainda tentativas desesperadas para entregar

Compi��gne ao Duque de Borgonha.

��� Prometi ��� diz ele sem cessar aos seus conselheiros. ��� N��o ��

uma vergonha deixar de cumprir a promessa?

Emiss��rios v��o e vem do rei para Compi��gne. Mas a brava

cidade recusa render-se ao inimigo.

232

E R I C O VER��SSIMO

E ent��o Carlos VII, como compensa����o, entrega Pont-Saint

Maxence ao Duque de Borgonha.

E fica muito satisfeito, julgando-se desobrigado, e imagindo

que agora est�� aberto o caminho para a grande paz.

Mas o Duque de Borgonha n��o desiste da id��ia de atacar Com-

pi��gne. E com um belo ex��rcito se encaminha para a cobi��ada

cidade. Leva muitos canh��es e bombardas.

Joana fica aflita ao saber que seus amigos de Compi��gne cor-

rem perigo. A sua lealdade ao rei a comoveu. E a Donzela agora

s�� tem pensamentos para a pra��a amea��ada.

Guilherme de Flavy, o comandante da cidade, prepara a defesa.

Nas ruas e nas casas p��blicas j�� se murmura contra o rei que n��o

se move para socorrer Compi��gne.

O Duque de Borgonha de Montdidier marcha para o ocidente,

ocupando Noyon. A meia l��gua deste lugar fica a Fortaleza de

Pont-1'Ev��que, pomo estrat��gico precioso, que se acha ocupada

por uma guarni����o inglesa.

A 13 de maio Joana entra em Compi��gne pelo sul.

A sua presen��a d�� ��nimo aos defensores da cidade. Como se

ela valesse por uma legi��o de vinte mil soldados.

Chegam not��cias assustadoras: os borgonheses sitiam Choisy-,

le-Bac, pra��a forte que fica abaixo de Compi��gne.

Os arcebispos de Reims e Vend��me se encontram nesta ��ltima

cidade. Joana se alegra ao v��-los. Encontra-os na noite de sua

chegada, na casa de Guilherme Flavy. Combina-se um ataque a

Pont-1'Ev��que. �� necess��rio tomar a fortaleza e cortar as linhas

de comunica����o dos borgonheses ao sul, atrav��s do Oise.

Madrugada. Uma tropa de tr��s mil homens sai em sil��ncio de

Compi��gne. A noite �� clara. O vento, fresco. Joana vai ao lado

de Poton de Xaintrailles, que comanda a for��a.

O ataque come��a ao romper do dia. Os ingleses resistem.

Os franceses desde os primeiros minutos ganham terreno.

E diante do inimigo Joana pensa: ser�� hoje?

Mas afugenta a id��ia e, esporeando o cavalo, c a r r e g a . . . De

repente recebe ordem de retirar. �� que a guarni����o borgonhesa de

Noyon teve not��cia do combate e vem em socorro dos ingleses.

Os atacantes voltam para Compi��gne. A manh�� �� clara. Mas

Poton de Xaintrailles est�� sombrio:

��� Trinta mortos ��� diz ele. ��� Sem proveito n e n h u m . . .

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

233

Tr��s dias depois, esta nova: Choisy-le-Bac se rendeu aos bor-

gonheses.

Em Compi��gne re��nem-se os chefes franceses para combinar

uma ofensiva.

��� Precisamos atacar os borgonheses pela retaguarda ��� pro-

p��e Vend��me.

Guilherme de Flavy ergue para ele os olhos ansiosos:

��� De que modo? ��� pergunta. ��� De que modo?

Joana interv��m:

��� Vamos at�� Soissons! A cidade �� nossa. L�� atravessamos o

Aisne e ca��mos sobre a retaguarda dos borgonheses!

Re��nem-se todas as for��as de Compi��gne para a grande ofen-

siva. Inicia-se a marcha rumo de Soissons. Joana cavalga entre

o arcebispo de Reims e o Conde de Vend��me.

Nas proximidades de Soissons a decep����o na forma de um

arauto vem ao encontro dos franceses. Guiscard Bournel, um

picardo que comanda a guarni����o francesa da cidade, manda dizer

ao Ex��rcito de Compi��gne que n��o lhe permitir�� a entrada em

Soissons. Os tempos andam maus. O dinheiro �� pouco. A cidade

n��o tem recursos para dar mantimentos �� tropa.

S�� o arcebispo de Reims e o Conde de Vend��me �� que s��o

recebidos por Guiscard Bournel. Joana, com sua companhia, per-

noita no campo.

O acampamento dorme. Uma fogueira crepita, o vento fresco

da noite faz bambolear as chamas. Os vultos escuros dos guardas

se silhuetam contra o c��u.

Joana passeia por entre as tendas. Pensa. . . Agora tudo cami-

nha para o fim, aceleradamente. Acabaram-se as cavalgadas glo-

riosas. A entrada em Orl��ans... a coroa����o do rei em Reims.

Bandeiras e trombetas e aclama����es. Agora todos os homens a

seu redor t��m o ar de conspiradores. Ingleses e borgonheses ga-

nham terreno. Apertam o cerco de Compi��gne. Dentro em pouco

a cidade estar�� sitiada por todos os lados.

Joana p��ra. Longe brilham as luzes de Soissons.

A Donzela olha para Soissons que n��o a quis receber. Seus

olhos se enchem de l��grimas.

Continua a andar. Por cima de sua cabe��a descoberta, as es-

trelas cintilam. A lua tem uma aur��ola prateada, como se fosse

a cabe��a de uma santa.



234

ERICO VER��SSIMO

Joana se dirige pata a tenda. Diante dela se ergue uma sombra.

��� Quem �� l��?

��� S o u eu ��� diz uma voz.

�� d'Aulon.

Ficam ambos parados um instante. A cara do escudeiro est��

escondida na sombra. H�� um sil��ncio curto. Joana sente que o

seu fiel companheiro d'armas est�� pensando em Soissons.

D'Aulon murmura por entre dentes.

��� Nunca simpatizei com os picardos...

Refere-se a BourneL

��� N��o faz mal, d'Aulon. Os nossos amigos de Compi��gne h��o

de nos ajudar.

��� Compi��gne est�� empobrecida tamb��m

��� Havemos de encontrar dinheiro para pagar as tropas.

A VIDA DE JOANA D'ARC

235

��� Compi��gne mal pode sustentar a gente que a defende.

Pausa.

��� D'Aulon ��� fala a Donzela. ��� Voc�� compreende tudo isto?

Bournel se recusando a nos r e c e b e r . . . O rei parado e indiferente

no seu castelo, desejando mesmo que Compi��gne caia nas m��os do

Duque de Borgonha. . . Voc�� compreende?

D'Aulon sacode a cabe��a negativamente. E depois:

��� �� in��til. Tudo tem de ser assim mesmo. N��o vale a pena

a gente fazer sacrif��cios... ��� E de s��bito, falando mais depressa,

com mais ��nsia na voz. ��� E por que n��o abandona tudo isto?

Por qu��? J�� fez o imposs��vel... Coroou o rei. Restituiu-lhe me-

tade da F r a n �� a . . . Sua miss��o est�� cumprida. Por que n��o de-

siste?

Joana fica um minuto em sil��ncio. Depois faz um gesto desam-

parado e diz:

��� O que tem de ser est�� escrito. E quem escreve �� Deus.

D'Aulon vai soltar uma blasf��mia:

��� Deus?

Mas cala-se, sem for��a para pronunciar mais uma palavra. Ca-

la-se porque agora em torno da cabe��a de Joana h�� um resplendor

prateado, uma poeira luminosa, um h a l o . . . Ser�� ilus��o? Ou a

��� ��a lua?

O escudeiro olha. Como est�� iluminada a cabe��a da guerreira!

Parece uma imagem numa igreja invadida pelo luar. O seu rosto ��

belo e sereno. O vento lhe agita os cabelos.

O acampamento dorme.

LIV

O ��LTIMO COMBATE

No DIA seguinte Joana D'Arc e os chefes de guerra se separam.

Seguem estes com seus homens para Senlis e para as margens

do Marne.

Joana torna a Compi��gne com sua pequena companhia.

Os soldados est��o cansados. Entregam-se a um longo repouso.

Mas a Donzela, inquieta, torna a vestir a armadura e a empunhar

o estandarte e, montando no seu belo cavalo gris, vai at�� Cr��py-en-

Valois onde se est��o reunindo tropas para defender Compi��gne.

Volta com elas para a cidade amea��ada de s��tio. Atravessam uma

floresta que j�� est�� cheia dos ru��dos da primavera. Cantam p��ssa-

ros nas ��rvores copadas. Os esquilos apontam as cabe��as esquivas

por entre galhos. E ��s vezes, ao passar por baixo duma ��rvore,

a Donzela sente cair sobre ela uma chuva fresca e colorida das

flores agrestes.

De Cr��py-en-Valois a Compi��gne a estrada est�� livre. N��o se

encontra um inimigo. Ingleses e borgonheses est��o acampados na

outra margem do Oise.

Outra vez em Compi��gne.

Na frente da cidade, do outro lado do rio, na aldeia de Margny

um destacamento de borgonheses est�� acampado.

Joana r e f l e t e . . . O grupo inimigo parece n��o ser grande. ��s

cinco horas os homens devem estar descansando, despojados de

suas armaduras. Os cavalos soltos. . . Os canh��es abandonados. . .

Uma boa for��a que sa��sse de Compi��gne pela ponte e ca��sse de

surpresa em cima dos borgonheses.. .

A Donzela ergue-se dum salto e, com d'Aulon, vai levar seu

plano a Flavy. Flavy aprova.

��� E quando se vai fazer o ataque?

O rosto de Joana parece uma m��scara de pedra cinzenta.

��� Hoje! ��� diz ela.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

237

Combinam-se detalhes. Para auxiliar a volta das tropas de

Compi��gne, Flavy colocar�� arqueiros, colubrineiros e arbaletei-

ros �� cabe��a da ponte. Por�� a flutuar no rio grande quanti-

dade de barcos cobertos que auxiliar��o a retirada.

Re��nem-se as for��as em sil��ncio.

Joana veste a armadura, cinge uma espada borgonhesa que

arrebatou a um inimigo. Estende a m��o para apanhar o seu es-

tandarte. Mas um pressentimento estranho lhe assalta a mente.

Cerra os olhos e fica um instante com o esp��rito voltado para

o c��u. Mas as suas Vozes n��o lhe falam, as imagens queridas

n��o lhe aparecem.

Joana vai pegar o estandarte. De novo hesita. Um minuto.

Dois. Um tropel na rua. Joana desce com o elmo na m��o. A

porta do quarto volta-se e olha de novo para o estandarte.

��� Joana!

�� a voz de D'Aulon. A Donzela desce as escadas. Monta a

cavalo.

E aqui vai ela �� frente de quatrocentos e poucos homens. A

seu lado cavalgam Jo��o e Pedro, d'Aulon e Poton, seu irm��o.

A companhia atravessa a ponte.

D'Aulon vai descrevendo a posi����o do inimigo:

��� Baudot de Noyelles est�� r.a aldeia de Margny, Jo��o de Lu-

xembourg acha-se em Clairoix com a sua tropa de picardos. ���

Ao pronunciar picardos, os dentes de D'Aulon rangem. ��� Os in-

gleses de Montgomery est��o em Venette, �� beira do Oise.

��� E o Duque? ��� indaga Joana, sorrindo.

��� O Duque est�� em Coudun.

Joana est�� de bom-humor.

��� D'Aulon, e se n��s desta sortida troux��ssemos preso o Duque

de Borgonha?

E solta uma risada musical.

D'Aulon faz uma careta pessimista.

��� N��o adianta prender. Em qualquer caso o nosso bravo rei

c mandaria soltar.. .

Chegam ao fim da ponte.

Instantes depois caem violentamente sobre o destacamento de

Baudot de Noyelles.

Joana esporeia o cavalo e investe. Os cavaleiros a acompa-

nham.



238

E R I C O VER��SSIMO

Os borgonheses, apanhados de surpresa, ficam desnorteados.

Gritos. Correrias. Tinido de ferros. Poeira.

Os franceses n��o arrefecem no ataque. Os inimigos recuam.

No alto duma colina, a poucas centenas de metros de Margny,

surge um grupo de cavaleiros. �� Jo��o de Luxembourg que, com

oito ou dez gentis-homens, chega de Clairoix para visitar Baudot

de Noyelles.

Baixam os olhos. L�� em baixo na plan��cie, a luta enfurecida. As

lan��as, a l��mina das espadas, as armaduras e os elmos coruscam

na luz da tarde. Num relance, Luxembourg v�� tudo e compreende.

Manda meia d��zia de cavaleiros de volta a Clairoix a todo o ga-

lope para buscar refor��os.

Magny j�� est�� nas m��os dos franceses. Os borgonheses deban-

dam.

Luxembourg e seus homens est��o sem armaduras.

J�� agora n��o podem retroceder.

Joana deu pelo ilustre grupo. De espada desembainhada ela

arremessa o cavalo contra Luxembourg e sua comitiva. As crin is

do animal voam ao vento. Joana est�� transfigurada. Ela sabe

que �� o fim. Sabe. Mas que importa? Vai como num sonho,

como se estivesse v o a n d o . . .

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

239

Jo��o de Luxembourg e seu grupo juntam-se ao destacamento

de Baudot para melhor resistir ao inimigo.

�� aproxima����o de Joana, fogem.

Os franceses est��o senhores da aldeia. Ficam-se a examinar os

despojos. Canh��es. Lan��as. Espadas. V��veres.

��� Pod��amos v o l t a r . . . ��� sugere D'Aulon.

Joana responde:

��� Depois que tivermos levantado do ch��o a ��ltima lan��a. Pre-

cisamos armar e municiar tropas de Compi��gne.

Enchem-se muitas carretas com fardos de v��veres e com armas

e outros despojos.

O tempo se escoa.

Os homens de Baudot de Noyelles armam-se como podem e

fazem uma investida. Querem retomar a aldeia. Colhidos de sur-

presa, os franceses recuam. Mas Joana esporeia o cavalo e, de

espada erguida, comanda uma rea����o. Os borgonheses se retiram.

Mas algum tempo depois voltam a atacar. E numa sucess��o de

escaramu��as, num vaiv��m violento e sangrento, o tempo passa.

Avistam-se ao longe as tropas que Jo��o de Luxembourg mandou

buscar em Clairoix. O pr��prio Filipe de Borgonha se aproxima

de Margny com as for��as de Coudun.

��� Estamos perdidos! ��� exclama d'Aulon.

Os franceses abandonam Margny. Debandam. �� in��til resistir.

Agora s�� h�� salva����o na retirada.

��� Deixem as carretas!���grita Joana.

E de repente come��a a brotar no meio dos soldados esta excla-

ma����o desesperada: Salve-se quem puder!

Joana olha para todos os lados, aflita. E de repente v �� . . .

V�� uma linha de cavaleiros ingleses que procuram cortar a reti-

rada dos soldados de Compi��gne. D'Aulon convida Joana para

fugir. Ela recusa. Esporeia o cavalo e, com um punhado de

homens, se lan��a contra os inimigos, para proteger a retirada

dos seus.

P��nico. Os franceses fogem desordenadamente. Muitos atiram-

se �� ��gua, na esperan��a de serem recolhidos pelos barcos. Outros

procuram aproximar-se da ponte. Muitos tombam e ficam esma-

gados sob as patas dos cavalos dos ingleses. Ouvem-se urros de

dor e de raiva.

Dos muros de Compi��gne, olhos aflitos, o rosto contra��do,

240

ERICO VER��SSIMO

Guilherme de Flavy o l h a . . . N��o pode usar os canh��es, pois cor-

reria o risco de matar os companheiros que est��o misturados com

os inimigos.

E a massa de retirantes se aproxima seguida de perto pelos

que atacam. Flavy h e s i t a . . . Que fazer? Esperar que os seus sol-

dados se aproximem da ponte, atravessem-na e se ponham a salvo?

Mas isso ser�� permitir que os ingleses entrem junto e invadam

a cidade.

Flavy pesa as conseq����ncias. E num minuto r e s o l v e . . . Sa-

crificar algumas centenas de soldados para salvar Compi��gne!

Manda fechar as portas da cidade e erguer a ponte levadi��a.

S�� Joana n��o recua. Cercada pelos irm��os, por D'Aulon e por

Poton, ela luta, brande a espada, grita, incita e se defende. E

arrisca a vida para auxiliar a retirada dos companheiros.

��� Vamos entrar na cidade depressa ��� grita-lhe algu��m ��� se-

n��o estamos perdidos.

D'Aulon, vendo que Joana n��o pretende arredar-se de onde

se encontra, segura violentamente das r��deas de seu cavalo e faz

que o animal se volte na dire����o da cidade. Estendendo a perna

direita, com a espora acicata o corcel da Donzela. E o grupo se

precipita a todo galope rumo de Compi��gne.

Tarde demais! As portas fechadas. A ponte erguida.

Soldados picardos se aproximam de Joana.

��� Esses dem��nios ��� berra D'Aulon. E brande a espada cora

f��ria.

Os inimigos avan��am. Joana v�� crescerem diante de seus olhos

caras barbudas, sujas de poeira e de sangue, olhos congestionados,

bocas retorcidas.

E espera, imp��vida.

��� Rendam-se!���grita um dos picardos.

Joana ergue da espada.

Mas uma m��o forte lhe agarra a capa que cobre a armadura.

Um pux��o violento.

Joana tomba.

LV

PRISIONEIRA

SEM ELMO e sem espada, as m��os amarradas ��s costas, aqui vai

Joana D'Arc em cima de seu cavalo cujas r��deas um picardo puxa.

Ao redor dela os soldados ululam. Erguem-se punhos para o

seu rosto. Zunem gritos de alegria. Olha a feiticeira! berra al-

gu��m com uma risada. Outro grita: Chama os teus anjos do

inferno, chama! Gargalhadas.

Olhos fechados, Joana se deixa levar ao abandono. Seja agora

o que Deus quiser. S�� uma coisa lhe d��i. �� saber que Compi��gne

corre perigo. O s��tio se vai apertando. A pobre cidade n��o po-

der�� suportar a luta por muitos meses. Se ao menos ela estivesse

livre para os ajudar ou ent��o para morrer ao lado de seus bons

amigos.. .

O Duque de Borgonha vem em pessoa ver a prisioneira. Ao

se defrontar com ela seus olhos brilham, suas narinas inflam de

contentamento. Faltam-lhe palavras para exprimir a sua grande

alegria.

Filipe o Bom v�� diante de si a Donzela de Orl��ans, a rapariga

dos milagres, a camponesa que diz ter sido enviada por Deus para

libertar a Fran��a. Caiu, enfim, caiu apesar de seus anjos, de seus

santos, apesar de todas as profecias.. .

O Duque de Borgonha mira-a de alto a baixo. E diz:

��� Vencida finalmente, hein?

Joana sorri com serenidade.

��� Tem certeza? ��� pergunta simplesmente.

��� Absoluta ��� responde o duque, come��ando a ficar inquieto.

��� Espera ent��o. Amanh�� estar��s de pazes feitas com Carlos

VII. E n��o haver�� mais tropas inglesas no meu pa��s.

Joana tem os olhos postos no futuro. E o que v�� lhe enche a

alma de alegria. O ��ltimo ingl��s expulso da Fran��a. A p��tria

libertada. A paz.

242

ERICO VER��SSIMO

E seu rosto �� t��o tranq��ilo e tem um tal resplendor que Filipe,

evitando-lhe os olhos, diz aos seus capit��es:

��� Ela pertence a Jo��o de Luxembourg. Levem-na.

A not��cia da captura da Donzela se espalha pela Fran��a. Cor-

rem arautos para todos os pontos.

No seu Castelo de Jargeau, ao saber da not��cia, o rei d�� um

salto:

��� Joana presa? Oh!

Bufa. Sacode os bra��os. Chama La Tr��mouille. E diante dos

cortes��es, declara solenemente que como Rei de Fran��a tudo far��

para libertar a Donzela. Perora:

��� Com repres��lias, com dinheiro ou pelas armas! ��� grita num

assomo de energia de que ele mesmo se admira depois. Mas

encontra os olhos frios e trocistas de La Tr��mouille e arrefece.

Dinheiro? Mas onde est�� o mago para fabricar ouro? Pelas armas?

Onde anda o ouro p a r a pagar e abastecer as trocas?

Durante alguns dias o rei ainda fala em libertar a Donzela.

Tem um ou dois sonos agitados em que a imagem de Joana

lhe aparece amea��adora, prometendo-lhe castigos tremendos no

inferno. Conta suas vis��es pavorosas a La Tr��mouille.

��� E se ela �� santa, La Tr��mouille, que ser�� de minha alma se

eu n��o a ajudar?

O conselheiro sorri.

��� Se ela �� santa ter�� os seus anjos para a libertarem.

E depois de meia d��zia de dias o rei esquece a Donzela.

Luxembourg guarda Joana como um tesouro. Conserva-a qua-

tro dias em Clairoix. Remete-a depois para o Castelo de Beau-

lieu.

E assim anda Joana de lugar para lugar, exposta �� curiosidade

e ao esc��rnio do povo, como um urso de feira.

No Castelo de Beaulieu o fiel D'Aulon fica a seu lado.

Joana vive a pensar em Compi��gne. A todos pede not��cias da

brava cidade. Dizem-lhe que os soldados da defesa ainda re-

sistem.

A s��s no seu quarto de Beaulieu, a Donzela ora. E suas Vozes,

falando-lhe de mansinho, lhe aconselham a resigna����o.

Joana n��o pode conciliar o sono. Fica �� janela olhando a noite.

Longe daqui existe uma cidade que precisa da sua presen��a e

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

243

da sua espada. Uma cidade onde milhares de criaturas sofrem.

Se ela pudesse fugir?

Um dia, encontrando uma porta aberta, foge. Corre sem plano

formado. Fugir! De qualquer modo, a qualquer p r e �� o . . . Ao

chegar a um longo corredor lateral, tombam sobre seus om-

bros as m��os dum guarda. Outros aparecem. Joana deixa cair os

bra��os, desalentada.

Pierre Cauchon, bispo de Beauvais que no ver��o de 1 4 2 9 fora

obrigado a fugir ��s pressas �� aproxima����o das for��as de Carlos

VII comandadas pela Donzela, n��o pode esquecer os inc��modos

e sustos daquela corrida desastrosa em que tivera de deixar para

tr��s a quietude confort��vel de sua casa, os seus quadros, as suas

fofas poltronas e os seus alfarr��bios. Amigo tamb��m dos in-

gleses, vota agora a Joana D'Are um ��dio de morte. Bedford o

encarregou secretamente de arrebatar a guerreira das m��os de

Luxembourg. Cauchon p��e-se em campo. E exp��e as suas ra-

z��es:

��� A Donzela foi aprisionada nos limites da minha diocese...

Seus olhinhos brilham. Seu sorriso �� a m b �� g u o . . .

Mas Jo��o de Luxembourg n��o se deixa vencer. Sacode a cabe��a

numa nega����o.

O bispo persevera:

��� Ela cometeu um crime que s�� a Igreja compete julgar.

Feiti��aria, heresia e idolatria. A prisioneira me deve ser en-

tregue.

��� A prisioneira me pertence ��� declara Luxembourg, seca-

mente.

De Beaulieu Joana �� levada para Beaurevoir, para o castelo

de Jo��o de Luxembourg.

Junho. Claros dias de ver��o. Sombras frescas e azuladas nos

corredores do castelo, sombras trespassadas por setas douradas

de sol.

Na nova pris��o, Joana ora e medita.

A esposa, a tia e a filha de Jo��o de Luxembourg a tratam

com carinho. D��o-lhe um bom quarto. A primeira preocupa-

����o da Donzela ��� porque n��o lhe sai da cabe��a a id��ia da fuga

��� �� ir �� janela olhar para baixo. Muitos metros de altura a

separam do solo. Um salto poderia ser f a t a l . . .

Aimond de Macy, um cavaleiro do partido borgonh��s, vem

244

ERICO VER��SSIMO

muitas vezes ao castelo e faz camaradagem com Joana. Con-

versam longamente. E aos poucos ele vai ficando fascinado pela

menina tranq��ila e tristonha que veste roupas de pajem e que

renunciou ao mundo para lutar pela Fran��a. E o fasc��nio �� t��o

grande que um dia o cavalheiro Macy chega a estender uma m��o

para Joana, na tentativa duma car��cia. Ela recua e o repele ime-

diatamente com gestos e palavras. E num instante a guerreira

ressurge. Aimond de Macy recua, surpreendido. Arrepende-se

do que fez. E se vai embora, vermelho de vergonha.

Os dias passam.

Chegam aos ouvidos de Joana not��cias que lhe descrevem as

manobras do Bispo Pedro Cauchon. Anda ele azafamado dum

lado para outro, a pedir que lhe entreguem a Donzela para

ser julgada pela Igreja.

Joana fica inquieta. Sabe que Cauchon trabalha para Bedford,

para os ingleses. E os ingleses amea��aram um dia de levar a

"bruxa" �� fogueira...

Mais do que nunca o desejo da fuga freq��enta os dias e as

noites da Donzela.

LVI





V E N D I D A


TODOS amam a Donzela no castelo de Luxembourg. D��o-lhe a

liberdade de passear por quase todos os compartimentos. E Joa-

na passa a maior parte de seu tempo na capela, orando.

Aqui segue ela pelo longo corredor cheio de janelas. Ainda

n��o despiu as roupas de homem, apesar de as damas lhe terem

oferecido roupas de mulher.

��� Foi assim que eu vim para a Fran��a pela vontade de Deus

��� respondeu Joana delicadamente ��� continuar vestida deste mo-

do �� manter-me fiel �� minha miss��o.

Joana passeia. Seus passos ecoam estranhamente no longo

corredor. Um mundo de recorda����es a acompanha. E a lem-

bran��a de Compi��gne n��o lhe deixa a mente. Ouviu dizer que

os ingleses amea��am fazer uma grande matan��a de homens, mu-

lheres e crian��as depois que tomarem a cidade. A Donzela sofre.

Anseia pela liberdade. Espera a todo o instante o milagre. Mas

o milagre n��o vem. A d��vida a assalta. Vai para o quarto orar.

E as Vozes lhe dizem que ela deve ter paci��ncia, porque tudo

acontece por vontade de Deus.

Finda o ver��o. Compi��gne ainda n��o se rendeu. Joana chora.

Se ela pudesse estar com os seus bons amigos. . .

Confessa-se repetidamente. Assiste ��s missas.

Entra o outono.

Cauchon continua a assediar Luxembourg. Bedford pretende

levantar altos impostos na Normandia. Manda oferecer vinte

mil libras a Luxembourg em troca da Donzela.

Numa sala do castelo, a tia de Jo��o de Luxembourg dirige-se

ao sobrinho:

��� Meu caro Jo��o ��� diz ela ��� eu quero fazer-te um pedido.

��� Sua voz �� doce. ��� N��o vendas a menina Joana aos ingleses,

sim?



ERICO VER��SSIMO

246



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

247

Entre um pedido da cara titia e as vinte mil libras de Bedford,

Jo��o n��o tem a menor hesita����o. Aceita a proposta de Bedford.

E �� a sua mulher que vai levar a triste not��cia �� prisioneira.

Joana ouve-a em sil��ncio.

Quando se v�� a s��s de novo, toma uma resolu����o desesperada.

Pensa em Compi��gne, que ela precisa ajudar. Pensa no que

ser�� a sua sorte nas m��os dos ingleses.. .

E resolve num segundo. Aproxima-se da janela. Ergue a

perna para saltar. Mas contra o azul do c��u lhe aparece a ima-

gem de S. Catarina, que lhe diz:

��� N��o saltes, Joana. Deus ajudar�� Compi��gne. ��� Joana es-

taca. Ouve. Responde:

��� Se Deus pretende ajud��-los, eu quero estar junto de meus

amigos nesse momento.

A imagem se apaga. Joana hesita um instante. Mas outra

vez lhe vem �� mem��ria o massacre de Compi��gne.

Trepa ao peitoril da janela. Entrega-se a Deus e se precipita.

Ao abrir os olhos Joana v�� os rostos amigos da tia e da esposa

de Jo��o de Luxembourg. Ambas sorriem para ela.

A Donzela se soergue na cama. D��i-lhe o corpo. Torna a

baixar a cabe��a para o travesseiro.

Fala a mais velha das mulheres:

��� Por que fez isso? Podia ter morrido. A janela �� t��o al-

t a . . . Foi por um milagre de Deus que seu corpo n��o ficou

em peda��os.. .

No ��ntimo Joana est�� aborrecida consigo mesmo. Pela pri-

meira vez desobedeceu ��s suas Vozes.

E durante a convalescen��a, o companheiro mais ass��duo que

a Donzela tem �� o arrependimento.

Setembro expira.

Joana �� transferida para Arras.

S�� em novembro �� que Bedford consegue levantar o dinheiro

para comprar a "prisioneira de guerra". Jo��o de Luxembourg

a cede tranq��ilo, muito embora sabendo que os ingleses a que-

rem queimar viva.

Em Paris, na Universidade, reina inquieta����o e ansiedade.

O julgamento deve ser feito o quanto antes.

248

E R I C O VER��SSIMO

Para que tanta demora? Quanto mais tempo continuar com

vida a Feiticeira, mais almas corromper��, mais heresias pra-

ticar�� . . .

Levam Joana a Drugy, ��s cidades mar��timas.

Uma peregrina����o dolorosa. O povo se apinha nas ruas para

a ver. Nas janelas assomam cabe��as, rostos curiosos. Irrompem

vaias. Em Crotoy um popular arremessa uma pedra que lhe

fere o rosto.

Entre uma cidade e outra ��� o campo. O sol sobre as colinas.

Os bosques cheios duma sombra verde e fresca. Os regatos que

correm entre pedras, marulhando e cantando uma cantiga pa-

recida com a do Mosa.

Mas a peregrina����o continua. Outras cidades. Outras humi-

lha����es. Para esquecer a multid��o que grita e gesticula a seu

redor, chamando-lhe feiticeira, herege, filha do diabo ��� Joana

cerra os olhos e ora. E contra o fundo avermelhado de suas

p��lpebras v�� as imagens de S. Catarina e S. Margarida, que sor-

riem para ela e lhe dizem baixinho palavras de consolo.

E a comitiva que leva a Donzela prisioneira atravessa prados,

sobe colinas, vadeia rios, corta aldeias e cidades.

St. Val��ry. Eu. Dieppe. Arques. Longueville.

��� Para onde me levam? ��� pergunta Joana.

E um dos capit��es que a acompanham responde:

��� Para Ru��o.

��� E o que v��o fazer de mim?

O soldado d�� de ombros. A marcha continua.

Ao anoitecer batem ��s portas de Ru��o.

LVII

OS DOIS A C O R R E N T A D O S

NA ENCOSTA da colina de Boureuil, em Ru��o, fica o velho cas-

telo constru��do no reinado de Filipe Augusto. Suas sete torres

negras apontam para o c��u.

E o c��u agora �� escuro e desolado. O vento uiva.

Dezembro.

Luzes nos aposentos principais.

O pequeno Rei Henrique VI da Inglaterra vai dormir. Metido

no seu camisol��o de seda ele se aninha debaixo dos grossos

cobertores. A luz de duas tochas clareia o grande leito de pau

lavrado, mas deixa o resto do quarto mergulhado em sombra.

Na lareira brilha um fogo sem chama.

O reizinho afunda a cabe��a no travesseiro.

O Conde de Warwick acha-se ao p�� da cama. A luz das to-

chas lhe clareia o rosto duro. Carrancudo, ele olha fixamente

para o menino Henrique. Seus olhos lembram ao reizinho os

da cacatua branca que ele tem no seu pal��cio de Londres. Os

cabelos do conde est��o grisalhos: parece que a neve que anda

l�� fora na noite de inverno polvilhou-lhe a cabe��a.

O reizinho olha para o preceptor, cheio de medo.

Warwick faz um sinal com a m��o. Emergem da sombra dois

pajens.

��� Segurem as tochas!���ordena o conde.

Os pajens obedecem.

Warwick olha mais uma vez para o rei.

��� Feliz Natal! ��� diz, seco.

Faz um sinal aos pajens para que saiam com as luzes. Cami-

nha para a porta.

Agora a escurid��o toma conta do quarto.

O reizinho se encolhe todo debaixo das cobertas e come��a

a chorar baixinho.

Desde agosto est�� metido neste castelo de que Warwick ��

250

E R I C O VER��SSIMO

governador. Festas e audi��ncias, cerim��nias cacetes, roupas aper-

tadas, cabe����es de renda, beija-m��o. E rumores de guerra. In-

trigas.

Perdido em pensamentos, o reizinho cessa de chorar. Ontem,

passeando na sua carruagem pelas ruas de Ru��o, viu um grupo

de rapazes que brincavarii e riam fazendo um boneco de neve.

Voltou para o castelo, pensativo. E se ele tivesse a felicidade

de n��o ser rei? Se pudesse sair de roupas grosseiras, sozinho,

livre e ir brincar no meio da rua como os garotos franceses?

Oh! No princ��pio haveria muita confus��o porque os rapazes de

Ru��o falam uma l��ngua que ele n��o entende.. . Mas depois

tudo se arranjaria com gestos e a t o s . . .

Chegam at�� os ouvidos de Henrique os gritos dos guardas que

se revezam.

O reizinho pensa em Joana D'Are. H�� muito que lhe falam

nesse nome. Desde a Inglaterra que essas duas palavras lhe

v��m soando aos ouvidos. E com que ��dio os seus generais e os

seus cortes��os as pronunciam! Certa vez uma das castel��s em Lon-

dres lhe contou as proezas da Donzela. Uma rapariguita do campo

um dia viu e ouviu anjos e santos dos c��us. E esses anjos e esses

santos lhe ordenaram que fosse libertar a Fran��a. E ela foi. Sem

medo. Montou a cavalo, vestida de homem, e seguiu para a

guerra. Venceu muitas batalhas. E todo o mundo passou a falar

dela, de suas aventuras, de seus milagres. E durante meses e

meses contaram-se proezas da Donzela. O Regente falou um dia,

furioso: Se eu pegar aquela rapariga, meto-a na fogueira ou

atiro-a no rio dentro dum saco costurado.

O reizinho sorri no escuro. N��o compreende por que sente

tanta simpatia por Joana D'Are. Sabe que ela �� inimiga de sua

gente, de sua coroa. Oh! Mas �� t��o valente. . . As suas aven-

turas s��o t��o bonitas! Parecem as do Rei Artur. Daqui a alguns

anos haver�� baladas e cantigas que falar��o em Joana D A r c , como

h�� hoje baladas e cantigas que falam no Rei A r t u r . . .

E de repente, ferido por um pensamento, o reizinho se ergue

na cama. Joana D'Are ��� disseram-lhe ��� est�� presa neste mesmo

castelo.

O menino Henrique fica excitado. E n��o consegue conciliar

o sono. E pensa, pensa, pensa.

Como ser�� ela? Bonita ou feia? N��o estar�� sentindo frio,





A V I D A D E J O A N A D ' A R C

251

metida no calabou��o? Oh! Se ao menos ele lhe pudesse mandar

cobertores...

O tempo passa. O reizinho se revolve n�� cama. Fecha os olhos

para ver se consegue aprisionar o sono. Amanh�� �� Natal. Vai

ser decerto o Natal mais triste de sua vida.

O reizinho dorme.

Mas Joana, de olhos abertos, sofre.

As argolas de ferro que tem ao redor do pesco��o e dos tor-

nozelos s��o frias, frias como colares de gelo. E ela sente o peso

das correntes que a prendem �� parede gelada que poreja umi-

dade.

Ouve o ressonar fundo dos guardas que dormem a poucos

passos de sua cama.

2 5 2

ERICO VER��SSIMO

Os minutos se escoam. Nenhum ru��do do exterior chega

at�� aqui. A prisioneira tem a impress��o de que fora destas quatro

paredes limosas a vida parou.

A um canto da pris��o dois ratos se atiram sobre os restos

duma c��dea de p��o. Soltam guinchos finos. Seus olhinhos miu-

dos brilham ba��amente na escurid��o.

Joana sente um frio de morte. Seu pobre corpo maltratado

est�� estendido sobre as t��buas duras da cama. A cabe��a lhe d��i e

lateja, como se fosse estourar.

Sede. L��bios ressequidos. Sede apesar do frio. Sede apesar

da umidade. Um tremor lhe sacode os membros.

Joana se ergue devagarinho. A bilha d��gua est�� a poucos

passos da cama. Joga as pernas para fora. Caindo sobre as lajes

do ch��o, as correntes produzem um tinido forte. A Donzela

estremece. P��ra, toda assustada, contendo a respira����o. Sil��ncio,

e bem no fundo do sil��ncio, o ressonar ritmado dos guardas.

Joana se ergue com cautela. �� preciso n��o acordar os dem��nios.

Porque enquanto eles dormem ao menos reina uma relativa

paz no calabou��o. N��o lhe dizem aquelas coisas horr��veis, n��o

ficam a olhar para ela com aqueles olhos frios e viscosos de cobra.

Joana se ajoelha, inclina o busto, apoia no ch��o a m��o esquerda

espalmada e com a direita tateia a escurid��o, procurando a bilha.

E se arrasta assim de joelhos, ��s cegas. Na ponta dos dedos da

m��o direita sente o contato dum corpo duro, estende ambas as

m��os sofregamente, com um ��mpeto tal que elas deitam a bilha

por terra, de borco. A ��gua se alastra sobre as lajes. Joana vai

fazer mais um movimento... Mas as correntes a prendem �� pa-

rede. Ela estaca. E, num acesso de choro ��� compreendendo tudo

��� atira-se ao ch��o de bru��os, encostando o rosto, que arde, nas

lajes ��midas. E com a boca estendida, rente ��s pedras espera que

chegue at�� ela um fio d��gua, uma gota que seja ��� para lhe molhar

os l��bios gretados.

Os guardas ressonam. Os ratos guincham. O tempo se arrasta.

Joana pensa no Mosa. ��gua, ��gua, ��gua. O rio correndo claro

por entre os seixos e juncos e salgueiros. ��gua fresca. Margens

verdes. Raparigas cantando. Os telhados vermelhos de Maxey,

l�� do outro lado. E os seus grandes moinhos com as p��s enormes

rodopiando ao vento.

Joana chora. E de repente julga sentir contra o rosto a car��cia



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

253

da ��gua. Estende os l��bios. E sente um gosto amargo. S��o as

suas l��grimas que lhe escorrem at�� a boca.

In��til qualquer esfor��o. Agora tudo acabou.

O rei est�� coroado. E suas santas lhe disseram um dia que

dentro de poucos anos a Fran��a expulsar�� de seu territ��rio o ��l-

timo inimigo. Que mais resta fazer?

E baixinho, pela primeira vez nestes ��ltimos dois anos, Joana

em ora����o pede a Deus um favor para a sua pessoa.

��� Meu Deus, eu quero a morte!���murmura.

Seus olhos se abrem escrutando a escurid��o. E fica assim

longo, longo tempo, como se esperasse ver surgir do fundo da

treva o Anjo de asas negras que a deve levar.

Joana espera. E a seu redor agora se amontoam os ratos. E

ela sente nos cabelos, no rosto, nas m��os o contato ��mido e repe-

lente dos bichos. Um calafrio lhe percorre o corpo.

Mas de repente, no meio da treva, come��a a brotar uma poeira

luminosa que aos poucos se vai adensando at�� se transformar em

luz ��� luz cegante, mais forte que a do sol. Os olhos de Joana se

agrandam. E ela esquece o calabou��o, a presen��a dos ratos e dos

guardas, a dor de seu corpo, a sede e a dor de sua alma, a umi-

dade e o f r i o . . . Um perfume suave lhe chega ��s narinas. ��� ��

como se de repente rebentasse uma primavera dentro do cala-

bou��o. Joana olha, deslumbrada. E no meio da luz, S. Catarina

e S. Margarida sorriem para ela. E lhe dizem com voz doce que

�� preciso sofrer com coragem. Cristo sofreu. Deus n��o esquece

nunca os que sofrem por amor dele.

Pairando no meio da luz as duas santas sorriem sempre. E a

um gesto de suas claras m��os os olhos de Joana se cerram para

o sono.

Na sua grande cama de pau lavrado o reizinho dorme e tem

o sonho mais feliz de sua vida.

Sonha que n��o �� rei e que Joana D A r c surge num cavalo

branco, toda rebrilhante e em sua armadura de luz, passa pelo

quarto, e o arrebata, levando-o para uma cavalgada maravilhosa. .,

L V I I I

INTERL��DIO

ENTRA o ano de 1 4 3 1 .

Nas cidades borgonhesas, principalmente em Orl��ans, Tours,

Blois e Compi��gne o povo n��o esquece a Donzela. Fazem-se gran-

des reuni��es nas pra��as p��blicas em favor de Joana D'Arc. E

mandam-se mensageiros ao rei, pedindo-lhe que fa��a alguma

coisa em favor da mo��a que lhe p��s a coroa na cabe��a.

Carlos VII permanece no seu eterno feriado, de castelo em cas-

telo, muito preocupado com os vinhos e com as ca��adas. E o

caso da menina Joana a quem ele deve o reino lhe parece uma

coisa t��o remota como as proezas do Rei Artur ou como os p��s

de Merlin.

Os cortes��os tudo fazem para lhe apagar a mais leve sombra

de remorso. Enchem-lhe os ouvidos.. . S. Majestade n��o se deve

preocupar.. . Que queimem e esquartejem a Donzela! Que im-

porta a um Valois de sangue azul o que possa acontecer a uma

rapariga rude da Lorena?

Carlos VII procura esquecer... E bebe, e passeia, e vai ca��ar

javalis, e se refresca �� sombra protetora do gordo La Tr��mouille.

Mas de noite, na quietude sombria de seu quarto, quando a

rainha j�� dorme e a lenha crepita na lareira, o rei pensa. As

palavras prof��ticas de Joana lhe soam aos ouvidos. Sim, ela veio

de Deus. Porque ela sabia, era senhora dum segredo que s�� Deus

podia conhecer...

E com os m��nimos detalhes acodem �� mem��ria de Carlos de

Valois todas as cenas daquela noite em que Joana D'Arc, vestida

como um pajem, entrou resoluta no grande sal��o do Castelo de

C h i n o n . . . E foi direito a ele e o reconheceu, disfar��ado como

estava, no meio de outros cortes��os... E o levou para um canto,

dizendo-lhe ao ouvido o espantoso segredo. . .

O rei se inquieta. O rei perde o sono. E conjetura. Faz planos.

Quando o dia raiar, mandar�� emiss��rios a Bedford. . . Dar�� ordens

A V I D A D E J O A N A D ' A R C 255

para levantar altos impostos com o fim de resgatar a Donzela. . .

Organizar�� um grande ex��rcito para arrebat��-la �� for��a das m��os

dos ingleses...

Mas quando o dia clareia, todos os fantasmas se somem. O rei

retoma a sua vida. Festas e cavalgadas. Banquetes e intrigas. Via-

gens e novos amores.

A muitas, muitas l��guas de Carlos VII, Ru��o est�� agitada.

O povo vibra. A excita����o �� grande. O Rei de Inglaterra est�� na

cidade. . . E no mesmo castelo, presa a ferros, Joana D'Arc, aguar-

da julgamento. . .

Cauchon, o bispo de Beauvais, movimenta os seus fantoches, os

doutores da Universidade de Paris. Prepara-se o grande processo.

Os olhinhos de Cauchon ��� olhos de raposa ��� brilham de ale-

gria. E a casa onde ele se hospeda vive cheia de homens de aspecto

grave, abades, assessores, funcion��rios...

H�� longas reuni��es em que se discute e se escreve. Mandam-se

emiss��rios a Domr��my. �� preciso averiguar os antecedentes da

Donzela, saber como ela vivia," o que fazia antes de vir para a

Fran��a.

��� Precisamos testemunhas... ��� diz Cauchon, piscando o olho

e esfregando as m��os. ��� Precisamos fazer testemunhas...���

sibila cie com uma inten����o secreta na voz.

Est�� contente. Tudo isto para ele �� uma festa. Uma festa rara

que acontece uma vez na vida de cada homem.

E relembra a fuga de Beauvais. . .

Na pris��o, Joana passa os dias orando e meditando.

Quando os guardas se aproximam dela com gestos e palavras

horrendos, a Donzela cerra os olhos e come��a a rezar.

Conserva ainda o traje masculino. Dir-se-ia um pajem. Um

pobre pajem p��lido de olhos tristes que vai murchando por falta

de luz e de ar puro.

E os guardas tem um prazer perverso em maltrat��-la. Passam

horas e horas a inventar tormentos novos e fazem de pequenos

nadas formid��veis instrumentos de tortura.

Agora a menina Joana est�� sentada no ch��o, com as costas

apoiadas �� parede. Na fraca luz que entra pela janelinha que h��

bem alto ha parede que d�� para a rua (�� por ali que Joana v��

quando �� dia e quando �� noite. . . ) o seu rosto p��lido se destaca

de maneira estranha. A roupa escura se dissolve contra o negrume



256 E R I C O VER��SSIMO

da parede e ent��o parece que o rosto est�� suspenso no ar ou in-

crustado na pedra ��� rosto de santo, rosto de m��rtir.

A porta se abre. Joana descerra os olhos.

O Conde de Warwick, governador do castelo, entra em compa-

nhia de mais tr��s homens.

Joana olha.

Os rostos lhe s��o vagamente conhecidos. Se ela fizesse um

esfor��o de mem��ria, por mais leve que fosse, reconheceria Jo��o

de Luxembourg no homem que est�� logo atr��s de Warwick e

Aimond de Macy no outro que se acha no limiar da pris��o, dentro

da zona iluminada pela luz do corredor.

Mas Joana prefere ignorar a presen��a dos rec��m-chegados. ��

melhor assim. A sua cela vive cheia de homens que v��m atormen-

t��-la sempre e sempre com perguntas e insinua����es. Aparecem

advogados solenes disfar��ados de padres, procurando arrancar-lhe

segredos por meio da confiss��o. Ela sabe, ela Gompreende, ela v��.

O Conde de Warwick faz perguntas a que ela responde de

maneira vaga. Os minutos passam. Os quatro homens se entreo-

lham. H�� um deles que est�� de capa preta. Tem os olhos duros,

o nariz fino como uma l��mina de punhal. Fica calado enquanto

os outros falam.

A V I D A D E J O A N A D A R C

257

Aimond de Macy olha para Joana e r e c o r d a . . . H�� alguns

meses atr��s conversou com ela no Castelo de Beauvoir. Achou-a

t��o bonita, t��o estranha, que n��o resistiu. Quis acarici��-la... No

entanto agora o belo pajem est�� aqui, p��lido, emagrecido, abando-

nado, f e i o . . .

Jo��o de Luxembourg dirige-se a Joana:

��� Se eu te prometesse a liberdade ��� pergunta-lhe ��� tu eras

capaz de jurar que n��o pegarias mais em armas contra n��s?

O rosto de Joana se transfigura. A guerreira ressurge por al-

guns minutos. Os olhos brilham. E ela responde firme:

��� Em nome de Deus! Est��s tro��ando comigo. Sei perfeita-

mente que n��o tens vontade nem poder de fazer o que dizes.

Mas Jo��o de Luxembourg insiste. Fala-lhe na liberdade, fala-

lhe no perigo da condena����o.. . Se se visse solta, ela tornaria a

pegar em armas?

��� Eu sei bem que esses ingleses me v��o m a t a r . . . ��� replica

ela com energia. ��� Pensam que com a minha morte v��o ganhar

o Reino de Fran��a.. .

Joana p��e-se em p��. Agora n��o sente mais o peso das correntes.

Ergue os bra��os para o alto. Est�� espl��ndida. Seu rosto se con-

trai. Sua voz enche a pris��o. Transfigurada, eia grita:

��� Mesmo que eles fossem cem mil vezes mais numerosos do

que s��o, n��o haviam de conquistar a Fran��a!

Os olhos duros do homem de capa preta chispam. E ele ergue

para Joana um bra��o rijo em cuja extremidade lampeja a l��mina

dum punhal. O Conde de Warwick segura o bra��o armado e apara

o golpe. Os outros dois homens o auxiliam.

Minutos depois Joana est�� a s��s com seus pensamentos.

E as horas passam. E o seu sofrimento aumenta.

E chega a noite. No recorte da janelinha min��scula, por entre

as grades, brilha uma estrela.

�� noite o pavor aumenta. Joana descobre agora que tem mais

um companheiro. �� um enorme sapo esverdinhado, bojudo, de

olhos v��treos. Caminha aos pulos ��� pof-pof-pof! ��� e muitas ve-

zes chega a pousar nas m��os da Donzela.

E este animal frio e viscoso, este corpo que pulsa, que se move,

que vive, para Joana ainda �� mais suport��vel do que as peludas

m��os dos carcereiros...

O frio �� t��o grande que ��s vezes a Donzela fica entanguida,

2 5 8

E R I C O VER��SSIMO

sem poder mexer com as pernas e os bra��os. Ent��o o sapo lhe

percorre todo o corpo, aos saltos e vai pousar-lhe pl��cidamente no

rosto.

E freq��entemente, quando o azul do recorte da janelinha co-

me��a a empalidecer, anunciando a manh��, Joana ainda n��o fechou

os olhos.

E o sol fulge sobre um novo dia.

E as portas da pris��o se abrem. Visitas. Caras curiosas que ficam

olhando de longe, entre divertidas e temerosas, como se estives-

sem diante da jaula dum bicho raro e feroz.

Nos primeiros dias de janeiro Joana �� entregue a Cauchon, para

ser por ele julgada.

Bedford freme de raiva. E diz:

��� Se os padres a absolverem, n��s havemos de prend��-la de novo

para queim��-la viva!

Cauchon escolhe o seu tribunal.

Dez membros da Universidade de Paris, te��logos de nenhuma

toler��ncia, borgonheses arraigados. Vinte e dois c��negos de Ru��o

��� todos dominados pelo governo ingl��s. E mais alguns monges

de diferentes ordens. Dominicanos. Frades.

Cauchon cuida de seu tribunal com o carinho de quem cultiva

um jardim. D��-lhes instru����es. Exercita-os.

Voltam os mensageiros que haviam sido enviados a Domr��my.

Um dia um dos assessores pede licen��a, levanta-se (�� uma reu-

ni��o animada, preparam-se os doze pontos principais do pro-

cesso) e com voz d��bil, muito t��mido, murmura:

��� Este processo �� i r r e g u l a r . . .

Cauchon salta. Cauchon fica vermelho. Cauchon esbraveja.

E l�� vai o pobre assessor entre quatro guardas fazer companhia

aos ratos da pris��o de Ru��o.

Nas cidades de Fran��a, tanto nas que est��o sob o dom��nio de

Carlos VII como nas que pertencem ao Duque de Borgonha e

ao Rei da Inglaterra ��� a expectativa �� enorme.

Todas as aten����es se voltam para Ru��o.

Os heraldos chegam ��s cidades com not��cias sensacionais: a

21 de fevereiro Joana D'Arc vai ser submetida ao primeiro inter-

rogat��rio.

LIX

O PRIMEIRO INTERROGAT��RIO

O TRIBUNAL est�� reunido.

Trazem Joana D'Arc. Os olhos dela ainda est��o piscos. �� como"

um morcego que cai de repente no meio da luz.

Sente-se leve, agora que j�� n��o tem mais as argolas de ferro

com correntes no pesco��o e nos tornozelos.

Os guardas que a escoltam fazem-na entrar na capela do castelo.

E quando ela d�� os primeiros passos, os ju��zes se agitam. Pare-

cem abelhas assanhadas. Cochichos e exclama����es abafadas. Os

doutores est��o escandalizados.. . Uma mulher vestida de homem!

Sentado num lugar de destaque, imponente nas suas vestes vis-

tosas, Cauchon faz um sinal, pedindo sil��ncio. Os ru��dos morrem.

Joana sente que sobre ela convergem mais de cem pares de

clhos.

S��o oito horas da manh��. O sol jorra pelas janelas. Como

s��o amarelas e cadav��ricas algumas destas caras ��� principalmente

a dos monges, dentro dos capuzes escuros. H�� frades de rostos

bochechudos e rosados. �� uma sucess��o de m��scaras que t��m

todas as express��es imagin��veis. Mas h�� um momento em que

as fisionomias todas se uniformizam numa express��o de seve-

ridade.

Conselheiros, assessores, doutores, bachar��is em Teologia, ba-

char��is em Direito Can��nico, licenciados em Direito Civil ��� todos

se preparam para interrogar a camponesa da Lorena.

Joana continua a esperar. Quis ouvir missa esta manh��. N��o

permitiram. Pediu que mandassem buscar um representante dos

armagnacs para assistir ao interrogat��rio. Negaram. Pediu um

advogado. Nova negativa.

Os ju��zes olham agora para ela. E pensam: o diabo est�� es-

condido no corpo desta criaturinha que tem o ar dum simples

pajem. Dentro daquela cabecinha descoberta, de cabelos revoltos,

existem conhecimentos duma ci��ncia infernal. ..



260 ERICO VER��SSIMO

O Bispo Pedro Cauchon se ergue. O tribunal todo fica de p��.

Joana agora est�� serena. Suas Vozes na v��spera lhe disseram

que n��o temesse nada, que Deus estaria com ela.

O Bispo de Beauvais fala:

��� Joana D'Arc, juras com as m��os sobre os Santos Evangelhos

que responder��s a verdade a tudo o que te for perguntado?

Joana responde:

��� N��o sei sobre que me querem interrogar. E podem me

perguntar coisas que n��o devo dizer.

Um zunzum enche a capela, com uma onda que se vai avolu-

mando. Cauchon exige sil��ncio.

E depois, voltando-se outra vez para a prisioneira:

A V I D A DE J O A N A D A R C

2 6 1

��� Joana D'Arc, jurar��s sobre os Santos Evangelhos responder

com verdade ao que te for perguntado?

H�� uma amea��a escondida no tom de suas palavras. E a voz

de Joana, suave e calma, se faz ouvir agora:

��� Se querem saber quem �� meu pai e minha m��e, eu digo.

Se me perguntarem que era que eu fazia l�� na minha aldeia, eu

respondo a verdade. Posso at�� j u r a r . . . ��� Pausa. Sua voz de

repente endurece. ��� Mas n��o farei nenhuma revela����o das coisas

de Deus. Nunca fiz a nenhuma pessoa al��m do Rei Carlos. . .

E nunca farei a mais ningu��m, mesmo que me cortem a cabe��a.

O interrogat��rio principia.

��� Como �� o seu nome?

��� Joana D'Arc.

��� Onde nasceu?

��� Em Domr��my, na Lorena.

��� Foi batizada?

��� Sim.

��� O nome dos padrinhos?

Joana os enumera... E numa sucess��o de claro e escuro se

prolonga o interrogat��rio: a voz seca e grossa do doutor que per-

gunta e a voz musical e fina da Donzela que responde.

���A sua idade?

��� Parece-me que tenho dezenove anos.. .

Os minutos correm. Novas perguntas. Joana responde sem

hesitar.

��� Sabe alguma ora����o? ��� indaga a voz dura.

E Joana:

��� Sei porque minha m��e me ensinou. Sei o Pai-Nosso, a

Salve-Rainha, o Credo.. .

Os ju��zes come��am a cochichar. E um deles murmura ao vizi-

nho:

��� Mandem-na recitar o Pai-Nosso... Porque se ela �� fei-

ticeira, s�� sabe dizer a ora����o de tr��s para d i a n t e . . .

E ordena-se a Joana que reze o Pai-Nosso.

A Donzela sacode a cabe��a:

��� Nunca. S�� no confession��rio ��� responde.

Tumulto. Cauchon pede ordem. O interrogat��rio prossegue.

H�� um momento em que o bispo lhe diz:

��� Se fugires da pris��o ser��s declarada her��tica!

262

ERICO VER��SSIMO

Joana queixa-se dos maus tratos, do desconforto.

��� Estou presa por correntes, como se fosse um bicho feroz.

Cauchon troveja:

���A culpa �� tua. Est��s acorrentada porque amea��aste fugir.

��� �� verdade ��� responde ela ��� eu quis fugir e quero ainda,

como �� desejo de todo o prisioneiro.

Outro tumulto. Os ju��zes gesticulam e esbravejam, irritados.

No meio da tormenta, Joana sorri mansamente.

LX

COMO UM POBRE A L V O C R I V A D O DE F R E C H A S . . .

J O A N A volta para a pris��o. �� noite v�� de novo as suas santas

e ouve as suas Vozes. Dorme tranq��ila e sonha que est�� em

Domr��my ao p�� do bosque de carvalhos, enquanto os porcos

comem bolotas, fazendo ao esmag��-las com os dentes, um ru��do

p.dormecedor. Gru-gru-gru-gru-gru.. . Joana acorda para des-

cobrir que fora do sonho o ru��do continua. Ergue-se na cama.

Pof-pof-poff �� o sapo verde que vem saltitando.

Na manh�� seguinte a Donzela �� levada novamente �� capela do

castelo.

Os ju��zes. A atmosfera de ��dio.

O interrogat��rio prossegue.

Repete-se, primeiro, a cerim��nia do juramento soore o Evan-

gelho.

��� Com que idade deixaste a casa de teu pai? ��� perguntam-lhe.

��� N��o s e i . . .

Os ju��zes se assanham como vespas. Cauchon exige sil��ncio.

��� Quais eram as tuas ocupa����es em Domr��my?

��� Eu fiava e cosia e cuidava dos rebanhos de meu pai.

��� Tu te confessaste alguma vez?

��� Muitas.

��� A quem?

��� Ao cura da aldeia ou a outro padre, na falta do cura.

De repente, sem transi����o, Beaup��re solta a pergunta como um

dardo:

��� E as Vozes? Dizes que ouviste vozes do c��u?

O rosto de Joana continua liso e tranq��ilo.

E ela conta da voz luminosa, no jardim de sua casa. E das

vis��es que vieram depois... E das visitas que durante muito

tempo S. Margarida e S. Catarina lhe fizeram.

Os doutores engendram perguntas ardilosas, interrompendo a

narrativa de Joana. Mas ela responde com clareza e rapidez, de-

sarmando-os.



264

E R I C O VER��SSIMO

Conta de sua viagem a Vaucouleurs e do mais que se seguiu.

Mostram-lhe a carta que ela dirigiu aos ingleses. Joana reco-

nhece os termos que ditou.

Perguntam-lhe sobre sua vinda a Chinon. Joana narra...

E novas perguntas a interrompem. Como foi que ela reconhe-

ceu o rei no meio dos cortes��os? Alguma indica����o das Vozes?

Ou obra de feiti��aria?

��� Ouves repetidamente as tuas Vozes? ��� indaga Beaup��re, de

s��bito.

��� N��o h�� dia em que eu n��o as ou��a. E elas me fazem muita

falta. S��o a minha ��nica alegria, o meu ��nico conforto. Preciso

mais delas do que do p��o e da ��gua que os carcereiros do Conde

de Warwick me levam todos os dias.

Outras perguntas. Joana mant��m-se imp��vida no meio da sala.

Parece um alvo, um pobre alvo negro em que cinq��enta arquei-

ros desapiedados cravam frechas.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

265

Joana �� levada para a pris��o.

Uma manh�� �� acordada por suas Vozes. �� a v��spera dum novo

interrogar��rio. Joana ergue-se e senta-se na cama. Junta as m��os

para render gra��as ��s duas damas do c��u.

��� Minhas santas queridas, que �� que eu vou dizer aos ju��zes,

que ��?

E as Vozes:

��� Responde com coragem e Deus te ajudar��.

Os guardas acordam. Soltam urros e abrem bocarras em enor-

mes bocejos. Joana sabe que o supl��cio vai come��ar.

��� Ent��o, como dormiu a Santinha? ��� pergunta um deles.

A Donzela fica em sil��ncio.

��� Os anjos apareceram?���pergunta o outro.

Nenhuma resposta.

O primeiro deles irritado, pega dum prato de folha e atira-o

no rosto de Joana. Ela recebe o golpe numa impassibilidade abso-

luta. Seu rosto continua liso, sem a menor contra����o de m��sculos.

Olhos tristes e mansos. L��bios apertados e j�� sem sangue.

��� Perdeu a l��ngua? ��� insiste um dos guardas.

Solta um palavr��o. E se v��o os dois para fora da pris��o.

Joana se ajoelha.

��� Muito doce Deus ��� murmura ela ��� em honra de vossa

Santa Paix��o, eu vos pe��o, se me amais, que me reveleis o que

devo responder a esses homens que me interrogam.

E de novo ouve as Vozes do c��u.

Joana �� levada ao terceiro interrogat��rio. Logo ao chegar ve-

rifica que h�� mais gente entre os ju��zes.

Outra vez Pedro Cauchon pede que Joana jure sobre os Evan-

gelhos dizer toda a verdade.

��� Toda? ��� pergunta Joana. ��� Toda, n��o.

E o bispo n��o consegue arrancar-lhe um juramento completo.

Jo��o Beaup��re se levanta. O interrogat��rio come��a. A voz clara

e a voz escura. A pergunta dura que fere. A resposta doce que

desarma.

As perguntas giram em torno dos mesmos assuntos. As Vozes.

Que �� que aparece junto com as Vozes? Que �� que estas revelam

�� Donzela? Que lhe disseram com rela����o ao Rei Carlos?

E de repente Beaup��re regurgita uma pergunta:

��� Tens certeza de que est��s na gra��a de Deus?

266

E R I C O V E R �� S S I M O

E Joana, sem se perturbar, responde tranq��ila:

��� Se n��o estou, que Deus me admita nela. Se estou, que Deus

assim me conserve.

Murm��rios. Cabe��as que se agitam.

Faz-se sil��ncio. O interrogat��rio prossegue.

��� Que fazia a menina Joana em Domr��my? ��� A voz de Beau-

p��re agora �� macia ao perguntar:���As pessoas n��o te olhavam

como sendo a jovem que o profeta disse ia sair do "Bois Ch��nu"?

Por um instante uma saudade leve, leve dan��a nos olhos de

Joana. E ela enxerga o bosque de carvalhos azulando no alto da

colina.

Mas a imagem familiar desaparece, dando lugar �� figura de

Jo��o Beaup��re.

��� Quando vim procurar o rei ��� responde Joana ��� todos me

perguntavam se havia na minha terra um bosque chamado Ch��nu,

porque as profecias diziam que dos arredores desse bosque havia

de sair uma rapariga para fazer maravilhas. Eu nunca acreditei

nessas hist��rias...

Beaup��re fala em Merlin. Joana lembra-se imediatamente das

hist��rias que o bom tio Henrique lhe contava nos ser��es de Ser-

maize. E bruscamente, como numa cilada, Beaup��re indaga:

��� Joana, queres vestidos de mulher?

��� D��-me um. Eu o tomo e vou me embora. Do contr��rio,

n��o. Eu me contentarei com as roupas que tenho, porque elas

agradam a Deus.

E a sess��o se prolonga. Os que assistem a ela, ficam pasmados.

S��o sessenta e dois os membros do tribunal. Homens graves. Ho-

mens carrancudos. Homens que vivem curvados sobre alfarr��bios.

Homens empanturrados de sabedoria.

Na frente deles, pequenina, tranq��ila, os olhos muito azuis e

c��ndidos, uma menina vestida de pajem...

LXI

A SAVELHA

O P A J E M entra na pris��o, p��e o prato em cima do mocho, perto

da cama de Joana, e diz:

��� Da parte de Sua Reverend��ssima, o Bispo de Beauvais.

A Donzela faz um sinal vago com a cabe��a. O homem se

retira. A porta se fecha.

Joana levanta o pano que cobre o prato. Olha. A princ��pio

n��o enxerga bem.. . Est�� sombria a pris��o. Mas aos poucos o

objeto se define. Um peixe? Joana pega o prato, leva-o at�� mais

perto dos olhos. Sim, �� um peixe. Uma savelha. A troco de que

lhe teria Pedro Cauchon mandado o presente?

Joana olha longamente para o peixe. Lembra-se das trutas

que via passar no fundo do Mosa, quando era crian��a. Eram

verdes e ��geis. Suas guelras palpitavam. Pedrinho e Jo��ozinho

gostavam de pescar. Ela nunca aprovava a pesca. Malvadez.. .

Agora aqui est�� uma savelha morta e frita. Um cheiro agrad��-

vel sobe at�� as narinas de Joana.

Fome. Hoje �� o primeiro domingo da Quaresma. Inicia-se o

jejum.

Joana come��a a comer o peixe.

Sim, ela tem necessidade de alimentar-se. As sess��es v��o con-

tinuar. �� preciso ter for��a para ir at�� o fim sem esmorecer. Se

ela ceder �� vontade dos ju��zes, com que cara h�� de se apresentar

diante de Deus quando, depois da morte, os anjos a levarem at��

o C��u?

Joana mastiga. O peixe lhe sabe mal. �� amargo. Mal tem-

perado ou s��o as l��grimas dela que tombam no prato? Sim, por-

que ela chora. Chora pensando que este peixe decerto �� amigo

daqueles que ela conheceu no seu Mosa distante...

268

E R I C O VER��SSIMO

Agora a Donzela est�� deitada. Fora, no corredor, os guardas

jogam dados e bebem.

Joana adormece. Sonha que est�� em Domr��my, ��s margens

do seu rio. Os juncos s��o tent��culos dum bicho horrendo que

lhe prendem os p��s e as m��os. Ela quer fugir mas n��o pode.

E todos os peixes do rio e mais os peixes do mar se re��nem

diante dela. E um peixe enorme, vestido de p��rpura, se ergue e

lhe diz:

��� Joana, por que comeste nosso irm��o?

Os outros peixes gesticulam e gritam. E Joana quer fugir e

n��o consegue mover um dedo. O peixe grande come��a a lhe

fazer perguntas. E j�� n��o �� mais peixe. Tem a figura de Cau-

chon. E os assessores, por baixo dos capuzes, t��m caras de peixe.

De repente j�� n��o s��o mais assessores nem peixes, mas sim ar-

queiros e alabardeiros. Cai sobre ela uma chuva de pedras. Enor-

me bloco lhe golpeia o est��mago. Uma dor horr��vel. Uma dor

que continua, forte, forte, cada vez mais aguda.. .

Joana acorda. D��i-lhe ainda o est��mago. Ela se soergue na

cama. Diante de seus olhos dan��am grandes manchas dum verde

amarelado, pequenas, grandes, de formas variadas. A cabe��a tam-

b��m lhe d��i. N��useas. Tremor no corpo. L��bios ressequidos.

Febre.

Ser�� que o pesadelo continua? Ou isto �� a realidade?

Joana leva a m��o ao est��mago. Olha em torno. Sempre as

manchas verdes. Quer erguer-se, mas n��o tem for��a. Deixa cair

a cabe��a para tr��s e come��a a gemer baixinho.

Fica assim por muito tempo, num torpor. E quando abre os

olhos, v�� duas caras aflitas inclinadas sobre ela.

S��o os doutores que Warwick mandou para examin��-la, reco-

mendando-lhes:

��� Tratem de cur��-la. O rei n��o quer por nada deste mundo

que ela morra de morte natural.

Os doutores co��am o queixo. Meditam. Conversam. Receitam.

Joana sofre. Est�� p��lida como um cad��ver.

Mestre Jo��o d'Estivet, que acompanha os m��dicos, aproxima

os l��bios do ouvido da Donzela e lhe pergunta:

��� Que �� que tens, menina?

�� necess��rio repetir a pergunta mais uma vez para que Joana

compreenda. Com voz d��bil ela responde:



A V I D A D E J O A N A D A ' R C

269

��� Comi um peixe que Mons. Pedro Cauchon me mandou.. .

D'Estivet se ergue num pulo, vermelho. Solta um palavr��o.

��� Mentira! Tu �� que andaste comendo arenques e outras

coisas indigestas!

Joana n��o reage.

Os m��dicos lhe apalpam o corpo.

��� N��o acho bem os r i n s . . . ��� diz um.

E o outro:

��� Ela est�� com febre.

Co��am a cabe��a. Entreolham-se.

��� Sangria ��� sugere o primeiro.

2 7 0

ERICO VER��SSIMO

��� Sangria ��� concorda o outro.

Ao sabor da prescri����o, o senhor do castelo arregala os olhos:

��� Sangria? Mas nesse estado de fraqueza? Olhem que voc��s

me matam a prisioneira.

Mas a sangria se faz.

Joana passa tranq��ila a noite de domingo.

Ter��a-feira processa-se o quarto interrogat��rio.

A prisioneira est�� mais abatida. Magr��ssima, a roupa de pa-

jem lhe dan��a no corpo.

Outra vez perguntas sobre as Vozes. Depois, o caso do Rei

Carlos VII. Como foi que o Delfim ficou tendo a certeza de que

a Donzela lhe fora enviada pelo C��u? Que sinal lhe levara ela?

Joana responde com evasivas. Cauchon se irrita. As vespas

se assanham. Crescem sobre a acusada, agressivas.

Beaup��re lhe fala nas espadas. Joana lhe conta simplesmente

verdade.

��� Foi o diabo que te indicou a espada que estava enterrada

junto da imagem de S. Catarina em Fierbois?

��� Foram as Vozes.

Murm��rios. Os assessores cochicham que se tratava duma es-

pada encantada pelo dem��nio.

E depois de quebrada a espada de Fierbois, onde achara Joana

a outra?

��� Arrebatei-a a um borgonh��s ��� replica a donzela. ��� Eu a

usava ainda em Compi��gne. Era uma bela espada de guerra.

��� Quantos mataste com ela?

��� Eu nunca matei ningu��m.

O interrogat��rio dura quatro horas.

Exausta, Joana volta para a pris��o e recebe uma visita de suas

Vozes, que lhe aconselham paci��ncia e coragem. Joana est�� t��o

fraca que s�� lhes fala com os olhos e com o pensamento.

Entra o m��s de mar��o.

Pelo vento que se insinua, suave, pela janela da pris��o, Joana

recebe os heraldos da primavera.

Sorri, pensando no campo. L�� fora as ��rvores devem estar flo-

ridas. As raparigas cantam. O sol doura os campos. A vida ��

alegre. Compi��gne, agora livre, trabalha pela gl��ria de seu rei. E

l�� longe, em Orl��ans, que estar��o fazendo papai Jacques e mam��e

Isabel?

A V I D A D E - J O A N A D ' A R C

2 7 1

A quinta sess��o se abre.

Beaup��re esfor��a-se por apanhar Joana em contradi����o.

��� Que dizes de nosso senhor o Papa? E qual achas que �� o

verdadeiro Papa?

Joana imediatamente retruca:

��� Mas ser�� que existem dois papas?

Beaup��re tenta o ataque por outro lado.

��� Joana, disseram-nos os guardas da pris��o que tu lhes fi-

zeste estranhas profecias. . .

A Donzela sacode a cabe��a afirmativamente. E repete o que

disse aos guardas:

��� Antes que se passem sete anos os ingleses sofrer��o uma

derrota muito maior que a de Orl��ans. Perder��o toda a Fran��a,

porque Deus mandar�� uma grande vit��ria aos franceses.

��� Como sabes disso?

��� Sei por uma revela����o que me foi feita. T��o certo como

estar o senhor diante de mim agora.

Novas perguntas sobre as Vozes. Que l��ngua falam? S��o doces

ou ��speras?

O Arcanjo Gabriel lhe apareceu alguma vez? E como est��

vestido S. Miguel? Tem uma balan��a na m��o?

��� N��o me lembro ��� responde ela.

Findo o interrogat��rio, Joana torna �� masmorra.

Um dia, ao passar pela capela, a caminho da sala das sess��es,

Joana volta para Jo��o Massieu que a acompanha, e lhe pede:

��� Deixe-me ir orar ao Senhor.

Massieu concede. Joana entra na capela e ajoelha-se na frente

do santu��rio.

E aqui est�� ela banhada de alegria. Porque o que mais a mor-

tifica na pris��o �� o estar privada dos sacramentos.

Sexta sess��o.

Volta-se a discutir a quest��o do h��bito de homem. A discuss��o

�� animada. Os ju��zes v��em nisso o maior pecado de Joana.

De s��bito, vendo diante de seus olhes esta menina magra e

enfraquecida, desamparada e tristonha, Beaup��re lembra-se es-

pantado de que ela j�� p��s em fuga fortes soldados ingleses e bor-

gonheses.

��� Qual �� o teu segredo, menina?���pergunta. ��� Como �� que

conseguias arrastar os teus homens aos combates?



2 7 2

E R I C O V E R �� S S I M O

Joana responde:

��� Eu dizia simplesmente Avancem afoitamente contra os

ingleses! E ia na frente.

Algum tempo depois fala-se nas pessoas que adoraram Joana

como a uma santa.

��� Eram pobres gentes que vinham a mim de livre vontade,

porque eu n��o as desagradava ��� explica ela.

Uma hora depois o Bispo Pedro Cauchon declara solenemente

que os interrogat��rios est��o encerrados.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

2 7 3

Mar��o avan��a. Joana definha.

Recebe na pris��o a visita de cinco homens sombrios vestidos

de escuro. S��o membros do tribunal. O interrogat��rio prossegue

secretamente. Perguntas. Faces horrendas, graves, contorcidas de

��dio contido. Fisionomias de dem��nios, g��rgulas assustadoras

crescendo fant��sticas diante dos olhos de Joana.

Dois dias depois, nova visita. Num dos homens que a pro-

curam, Joana reconhece o Bispo de Beauvais.

Um deles faz as perguntas. Outro escreve as respostas.

Cauchon espera. Seu rosto se esconde na sombra.

Pela janelinha da pris��o, um peda��o de c��u azul est�� dizendo

que l�� fora o dia �� bonito.

��� Mandamos gente a Domr��my. Contam-nos que teu pai,

Joana, um dia teve um sonho em que te viu vestida de homem,

montada a cavalo e em companhia de homens d'armas...

Joana lembra-se do sonho de Jacques D'Arc. Vem-lhe �� mente

uma id��ia que ela transforma nestas palavras:

��� Por que n��o interrogaram meus pais?

Quando os visitantes se retiram, Joana fica com as suas refle-

x��es amargas e suas feridas. J�� n��o tem mais for��a nem para

chorar.

No dia seguinte suporta mais tr��s interrogat��rios na pris��o.

�� noite n��o consegue dormir, apesar das canseiras do dia.

Os guardas jogam dados e bebem at�� tarde. E a amea��am com

olhares e gestos. E s��o brutais e c��nicos.

No dia seguinte Cauchon desce �� pris��o e vem exortar Joana

a que se submeta �� Igreja militante.

��� Mas tu n��o representas a Igreja!���diz-lhe Joana, sentindo

por um momento renascer-lhe a energia.

Prosseguem os interrogat��rios na pris��o. A porta geme e se

abre para dar entrada a homens soturnos, assustadores e duros.

E Joana �� crivada de perguntas desencontradas, que a envolvem

como redes emaranhadas.

Certo dia, no meio dum sil��ncio que se segue a uma chuva de

palavras cru��is, algu��m lhe faz esta pergunta decisiva:

��� Queres submeter todos os teus atos e palavras, bons ou

maus, �� determina����o de nossa Santa Madre Igreja?

Joana reflete. E responde, com o fio de voz que lhe resta:

��� Quanto �� Igreja, eu a amo e a quisera sustentar com todas

2 7 4

E R I C O VER��SSIMO

as minhas for��as para a nossa f�� crist��; e n��o �� a mim que deveis

impedir de ir �� Igreja nem de ouvir missa. Quanto ao que disse

e fiz foi por ordem do Rei do C��u que me enviou a Carlos, filho

de Carlos, Rei de Fran��a. E haveis de ver que os franceses v��o

ganhar brevemente uma grande vit��ria, mandada por Deus. Uma

vit��ria que h�� de sacudir todo o Reino de Fran��a. Digo isto para

que, quando acontecer, todos tenham mem��ria do que eu disse.

Os homens se entreolham. E h�� uma vaga express��o de pavor

em seus rostos endurecidos.

LXII

O PROCESSO

JOANA �� submetida ao ��ltimo interrogat��rio.

As perguntas s��o como uma dan��a doida ao redor dos mesmos

assuntos. As Vozes. O sinal ao rei. As roupas de homem. A

submiss��o �� Igreja. O salto de Beaurevoir, em desobedi��ncia ��s

mesmas Vozes.

Joana responde a tudo com coragem.

Perguntam-lhe:

��� Achas que se fosses levada diante do Papa responderias

com verdade a todas as quest��es de f�� que se te fizessem?

Os olhos de Joana chispam. Seu rosto se anima, ganha vida.

��� Mas se eu j�� pedi que me levassem at�� o santo Papa! Le-

vem-me! Levem-me que eu responderei a tudo, tudo!

Os doutores se calam. Sabem que, se for at�� o Sumo Pont��fice,

Joana D'Arc estar�� salva.

Aproxima-se o fim de mar��o.

Come��a o processo ordin��rio. O tribunal se re��ne no grande

sal��o do castelo.

Joana �� trazida em bra��os, porque mal se pode suster em p��.

Antes de mandar 1er a ata de acusa����o, Cauchon ergue-se, pi-

garreia, e tomando ares de cordeiro manso declara a Joana, com

voz doce, que ela est�� diante de homens de ci��ncia consumada

��� homens que querem proceder com toda a piedade e mansue-

tude. N��o pensam em vingan��a nem em castigo corporal. Dese-

jam apenas a salva����o da Donzela de Orl��ans. A salva����o do

corpo e da alma. E como a menina Joana n��o �� douta, o Conselho

em sua grande magnanimidade lhe oferece um ou mais assis-

tentes . . .

Joana escuta em sil��ncio. Quando Cauchon se cala ela sacode

a cabe��a, numa nega����o resoluta.

276

ERICO VER��SSIMO

��� N��o aceito ��� diz. ��� Primeiro agrade��o ao senhor e a toda

a companhia pelo interesse que tomam por mim. Quanto ao que

me oferecem, tamb��m agrade��o, mas n��o pretendo me afastar

do conselho de Nosso Senhor. Quanto ao juramento que quereis

que eu fa��a, estou pronta a jurar que hei de dizer toda a verdade

em tudo que disser respeito ao vosso processo.

Cauchon ordena que se leia a acusa����o. Thomas de Courcelles

ergue-se e come��a a ler com voz mon��tona e regular o libelo.

Sobre cada artigo, Joana �� interrogada e responde da mesma

forma como respondeu nos interrogat��rios precedentes.

No ��ltimo dia de mar��o Cauchon desce �� pris��o.

Verifica com surpresa que Joana est�� mais animada.

Recebeu �� noite uma consoladora visita de S. Catarina e S.

Margarida.

Cauchon fala, fala, fala. Joana escuta em sil��ncio.

Cauchon procura convencer. Joana mant��m-se imperturb��vel.

O bispo retira-se vencido.

Entra abril.

Os doutores da Universidade de Paris resumem o vasto libelo

de setenta artigos em doze.

Alguns dias depois re��nem-se na capela do bispado e vinte e

um doutores discutem uma vez mais o processo. Parecem um

bando de cacatuas. Pairam e sacodem as cristas. D��o-se bicadas

e agitam as asas.

Joana na pris��o espera. E quando se sente prestes a desfalecer,

a entregar-se ao des��nimo, a grande luz brota dentro da cela, as

santas aparecem e cai sobre o corpo e sobre a alma da prisioneira

uma paz e uma suavidade t��o grandes que lhe d��o coragem para

continuar a luta.

O Bispo de Beauvais e o vice-inquisidor descem uma tarde ��

pris��o. Com palavras doces (uma do��ura de superf��cie, por

baixo da qual se esconde um ��dio que referve) procuram con-

vencer Joana de que deve submeter-se.

��� A Igreja n��o fecha seu seio a quem volta a ela ��� diz Cau-

chon, erguendo deis dedos para o c��u.

��� Eu lhes agrade��o ��� responde Joana com mansid��o. ��� Sei

que estou doente, em perigo de morte. ��� Seu rosto ensombrece.

��� Que Deus fa��a o que quiser. Eu s�� pe��o �� que permitam que

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

2 7 7

eu me confesse e que fa��am que meu corpo seja enterrado em

terra santa.

��� Se queres confiss��o �� preciso que te submetas �� Igreja.

Joana volta a cabe��a. As l��grimas lhe nascem nos olhos pisa-

dos. E num solu��o ela diz:

��� Se meu corpo morre na pris��o, espero que o mandeis en-

terrar em terra santa. Se n��o fizerdes isso, Nosso Senhor h�� de

fazer.

Cauchon v�� a tristeza de Joana e acha oportuno atorment��-la

com mais perguntas. Joana responde com bravura. Foi ela real-

mente enviada por Deus? Viu e ouviu o Arcanjo Miguel e S.

Catarina e S. Margarida?

��� Aconte��a o que acontecer ��� declara Joana ��� n��o farei

nem direi outra coisa que n��o tenha dito e feito no processo.

Outro maio entra, com suas flores e suas trai����es.

Nova reuni��o dos ju��zes. Joana comparece.

��� Se o processo se prolonga ��� cochicha algu��m ��� a menina

se fina na pris��o.

A Donzela definha.

O corpo morre mas os olhos brilham e o esp��rito est�� aceso.

O tribunal aconselha, exorta e por fim amea��a.

Se ela n��o se submeter �� Igreja, sua alma correr�� perigo e seu

corpo ser�� dado como pasto ao fogo.

Na pris��o, na tarde dum dia que se inicia com nova sess��o,

Joana ajoelha-se e, vendo as suas santas, lhes pergunta:

��� Minhas santas queridas, eu devo me submeter ao que eles

mandam?

E as Vozes lhe respondem:

��� Se queres que Nosso Senhor te ajude, tem f�� n'Ele.

Uma manh�� os guardas arrancam Joana da pris��o e levam-na

para a torre maior do castelo.

Joana estremece. Est�� na c��mara das torturas. �� um quarto

horrendo. Vest��gios de sangue. Um bafio de morte. Os velhos

instrumentos de tortura esperam. Um homem de cara de dem��-

nio explica a utilidade de cada instrumento; com uma min��cia

cariciosa, enumera as torturas. Nove doutores a seu redor es-

cutam. E olham para Joana, frios.

A Donzela est�� serena.

278

E R I C O VER��SSIMO

��� Podem me estra��alhar os membros... ��� diz ela. ��� Podem

me arrancar a alma do corpo.. . Eu n��o hei de dizer mais do que

j�� disse. E mesmo que dissesse, havia de declarar depois que fora

obrigada pela d o r . . .

Cauchon fica decepcionado. N��o tencionava seriamente tor-

turar J o a n a . . . Esperava submet��-la pelo medo.

Manda-a levar, de volta para a pris��o.

��� Alma dura! ���murmura ele para Warwick. ��� Deve ter par-

te com o diabo!

Nos olhos dos carrascos passa uma nuvem fugidia de tristeza.

Seria t��o gostoso, t��o divertido quebrar aqueles ossos de mo��a,

espica��ar aquelas carnes n o v a s . . . E como ecoariam deliciosa-

mente nesta sala de paredes de pedra os gritos estridentes da

menina!

Cauchon e os seus doutores discutem o processo. O bispo pas-

seia dum lado para outro. Est�� intranq��ilo. Decepcionado. Ao

cabo de tanto falat��rio, de tanta escrevinha����o, de tantos depoi-

mentos falsos, a acusa����o resultara fraca, t��o fraca que a id��ia de

levar a Donzela �� fogueira cada vez se afasta mais, amea��ando

perder-se de todo numa impossibilidade. . .

Cauchon reflete.. . E seus pensamentos se voltam para Carlos

VII, para o odioso Valois.. .

E de repente tem uma id��ia. Cauchon estaca como se uma m��o

forte e invis��vel tivesse ca��do pesadamente sobre ele, imobili-

zando-o.. .

E se conseguisse fazer que Joana assinasse uma abjura����o?...

(Cauchon sorri �� i d �� i a . . . ) Uma abjura����o em que, entre muitas

coisas, a Donzela declarasse que Carlos de Valois n��o era o

verdadeiro herdeiro da coroa de Fran��a, mas sim um intruj��o,

um bastardo, um impostor?

O tribunal, outra vez reunido, resolve fazer uma nova admo-

ni����o piedosa �� Donzela.

O Bispo de Beauvais, o vice-inquisidor e o promotor descem ��

pris��o acompanhados de outros ju��zes.

Joana mal se pode erguer quando os v�� entrar.

A doen��a tomou conta de seu corpo. As for��as a abandonam.

Um frio de morte lhe entorpece os membros. A vontade afrouxa.

Pedro Maur��cio, doutor em Teologia, avan��a dois passos na di-

re����o da prisioneira. Pigarreia. E com voz solene, como se se

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

279

estivesse dirigindo a v��rios milhares de pessoas, numa pra��a

p��blica, l�� os doze artigos da acusa����o.

Joana o escuta de olhos cerrados. N��o compreende tudo. Toma

vagamente conhecimento da acusa����o. �� a dan��a de sempre.

Mestre Maur��cio l �� . . .

Os doutores sapient��ssimos da Universidade de Paris acham

que Joana D'Arc n��o viu, como afirma, S. Catarina e S. Margarida,

nem ouviu as Vozes celestes.. . Declaram mais que a Donzela

n��o �� uma enviada do C��u, mas sim impostora, mentirosa, pre-

sun��osa e sedutora.. . E proclamam que o fato de ela vestir

h��bito de homem e usar cabelos curtos �� uma blasf��mia, uma

transgress��o ��s leis divinas, ��s Santas Escrituras e ��s regras can��-

nicas, uma prova de idolatria e um desprezo aos sacramentos. ..

E que escrevendo em suas cartas os nomes Jesus-Maria, Joana

deu prova de perf��dia, crueldade, sede de sangue humano, amor

�� tirania.. .

Pedro Maur��cio 'cala-se um instante para tomar f��lego. O

Bispo Cauchon tosse seco. Num canto da pris��o o sapo verde

d�� um pulo e faz pof! no ch��o. Pedro Maur��cio continua a

l e i t u r a . . .

Artigos 8, 9, 1 0 . . .

O salto da torre de Beaurevoir foi uma prova de covardia, foi

um suic��dio, um ato de desobedi��ncia...

Joana suspira de mansinho. Quisera esquecer tudo. Quisera ser

livre de novo, livre desta pris��o ��mida, da presen��a inc��moda

destes homens horrendos, da companhia destes guardas rudes e

p��rfidos.. . Quisera esquecer esta voz mon��tona, dura, fria, que

lhe transmite todas as ofensas que os doutores da Universidade

escreveram...

E enquanto Pedro Maur��cio fala, Joana se perde em pensa-

mentos. Que importa que os homens possam dizer que ela n��o

viu realmente a Voz luminosa, que n��o ouviu e viu as suas san-

tas queridas, chegando a beijar-lhes at�� a f��mbria dos vestidos?

Os doutores podem dizer o que quiserem... Que significam as

palavras? Tudo o que aconteceu foi t��o bonito, t��o s u a v e . . .

O que ela sente agora �� gratid��o, gratid��o para com Deus que

a escolheu para esta miss��o gloriosa. ..

Pedro Maur��cio se cala.

2 8O

ERICO VER��SSIMO

Dirige-se agora com voz mais suave a Joana. Exorta-a. Fala-lhe

com simplicidade, macio. Pede-lhe que se submeta �� Igreja.

Por que �� que a menina Joana n��o resolve ser boazinha e obe-

diente? Por que, se isto s�� lhe pode trazer benef��cio, se isso

pode livr��-la do fogo que lhe h�� de devorar o corpo e a alma?

Os olhos mal e mal entreabertos voltados para a janelinha

gradeada da pris��o, Joana esquece os ju��zes, as palavras de Pedro

Maur��cio e olha para a nesguinha azul deste c��u de primavera. . .

LXIII

A A B J U R A �� �� O

J O A N A desperta. Mas o seu corpo est�� t��o dolorido, a sua ca-

be��a t��o povoada de horrores, que ela tem a impress��o de que

os pesadelos do sono da noite continuam na vig��lia da manh��.

Jo��o Beaup��re entra na pris��o. Joana reconhece nele o homem

que a interrogou muitas vezes nas sess��es, perante os ju��zes.

Beaup��re fala com brandura:

��� Se ��s boa crist��, deves dizer que submetes todos os teus

feitos e ditos �� nossa Santa Madre Igreja e especialmente aos

ju��zes eclesi��sticos.

Joana sacode a cabe��a mecanicamente, numa afirmativa incons-

ciente.

Entram os guardas para a levar. Joana se deixa ir ao abandono.

Um homem que est�� �� porta da pris��o, ao ver a Donzela pas-

sar, se aproxima dela e diz:

��� Joana, acredita no que te digo. A salva����o depende de ti.

Veste as roupas do teu sexo e faze o que se resolver. Do con-

tr��rio estar��s em perigo de morte. Se fazes o que te digo, s�� te

acontecer��o boas coisas. Ser��s posta nas m��os da Igreja.

Joana mal se pode manter em p��. Os guardas a carregam nos

bra��os at�� a carreta que os espera �� porta do castelo.

Os habitantes de Ru��o se apinham nas ruas para ver passar

a Donzela na carreta dos condenados, cercada por uma escolta.

Gritos. Vaias.

Joana, deitada no fundo do ve��culo, s�� tem consci��ncia dos

sacolejos das rodas sobre o cal��amento desigual. N��o consegue

coordenar id��ias. Os pensamentos se confundem. Ela pensa em

morrer. Mas entreabre os olhos, v�� o c��u claro e se reanima um

pouco.

A carreta p��ra. Os guardas erguem a Donzela.

Joana olha.

282

E R I C O V E R �� S S I M O

�� no cemit��rio de Saint-Ouen. Ao lado dele, uma catedral,

desenhando-se muito serena contra o azul do horizonte.

A princ��pio Joana tem a impress��o de que v�� um mar de ondas

min��sculas e agitadas... A multid��o. E como um mar enfurecido,

ela ulula.

Levam Joana para um cadafalso.

O vento agita os cabelos da Donzela. Um vento perfumado de

primavera. Joana respira fundo. Tem por um segundo a impres-

s��o de que est�� livre. P��ssaros, nuvens, o sol, o espa��o aberto.. .

Mas o peso das correntes se faz sentir nos pulsos, nos tornozelos,

no pesco��o...

Na frente do cadafalso em que se acha a prisioneira, ergue-se

outro maior em que est��o sentados alguns homens sombrios.

S��o os ju��zes. Sentem-se mal por causa do sol, do c��u azul,

do vento perfumado e da primavera. S��o como flores negras que

s�� vicejam na escurid��o viscosa das masmorras. Por tr��s da fi-

leira de m��scaras severas, a parede da igreja. Em torno dos ju��zes,

um bando de doutores, bachar��is e soldados.

Levanta-se um homem l��vido. A multid��o faz sil��ncio.

Come��a o serm��o. �� uma voz que parece que sai de dentro

duma sepultura de pedra. E a voz de cad��vei acusa Joana de ter

pecado contra a Majestade real, contra Deus e contra a f�� cat��lica.

Al��m de pecadora, mostrou-se orgulhosa...

O homem l��vido ergue a m��o para o alto como se quisesse

mostrar Deus. Joana al��a os olhos para o c��u e esquece o ser-

m��o. Vagamente, muito apagadas, chegam a seus ouvidos estas

palavras: feiticeira, herege. . . cism��tica. ..

O peso das correntes chama Joana �� terra. E ela geme baixinho

de dor. Os pulsos e os tornozelos lhe sangram. E agora at�� a

car��cia do vento faz doer as feridas.

O homem l��vido est�� gesticulando como um dem��nio:

��� Ah! Tu foste ludibriada, nobre casa de Fran��a, tu, que eras

a casa cristian��ssima! Carlos que se diz rei e teu governador,

aderiu, como herege e cism��tico, ��s palavras e aos atos duma mu-

lher malfeitora, difamada e de toda a desonra cheia. ��� O orador

faz uma pausa, satisfeito consigo mesmo. E prossegue cinco se-

gundos depois: ��� E n��o somente ele, mas todo o clero que lhe

presta obedi��ncia e senhoria e pelo qual essa mulher, segundo

suas palavras, foi examinada.. .





A V I D A D E J O A N A D A R C


2 8 3


Joana sofre. D��i-lhe ouvir dizer mal de seu rei. Sabe que Car-

los VII nada fez em seu favor. Sabe que os armagnacs a abando-

naram e esqueceram. Mas no seu cora����o n��o h�� lugar para

��dios.

��� �� a ti, Joana que eu falo! ��� g r i t a o orador, furioso porque

a prisioneira parece ausente. ��� E eu te digo que teu rei �� he-

rege e cism��tico.

Joana levanta os olhos mansos para o acusador. E neste mesmo

momento ouve as Vozes que lhe ordenam:

��� Responde corajosamente a esse homem!

E diz com do��ura:

��� Por minha f��, Messire, guardada a rever��ncia, eu ouso di-

zer-lhe e jurar, com o risco de minha vida, que o Rei Carlos �� o

mais nobre de todos os crist��os e melhor do que ningu��m ele

ama a F�� e a Igreja, e n��o �� nada do que dizeis.

O homem l��vido ergue o punho fechado:

284

ERICO VER��SSIMO

��� Fa��am essa mulher calar a boca!

A multid��o urra. As ondas de sons sobem para o alto e es-

pantam os passarinhos que est��o pousados nas ��rvores do cemi-

t��rio. Os guardas se agitam. Fa��scam lan��as e elmos. Uma mulher

solta um guincho. Os ju��zes cochicham.

O homem l��vido termina o seu serm��o. E suas ��ltimas pala-

vras s��o um apelo para que a Donzela submeta seus feitos e ditos

�� Igreja.

��� Tudo o que eu disse e fiz, disse e fiz por ordem de Deus

��� afirma ela.

A turba outra vez se assanha.

Quando o sil��ncio torna a cair sobre o cemit��rio de Saint-

Ouen, a voz de Joana, morna, macia, clara se faz ouvir:

��� Quero que o meu caso seja levado ao Papa.

��� S e r �� ! ��� b e r r a o homem l��vido. ��� Os processos ir��o at��

o Sumo Pont��fice!

��� N��o sei o que �� que v��o botar no processo. Eu quero ir

pessoalmente ao Papa, para que ele me interrogue.

O tempo passa. As correntes pesam. O povo urra. Os ju��zes

confabulam.

O duelo entre Joana e o homem l��vido continua. Querem levar

Donzela a acusar o seu rei. In��til. Procuram fazer que ela

renegue suas palavras e a����es. Em v��o.

O sol brilha com mais for��a. O povo se inquieta.

Os ju��zes t��m duas senten��as preparadas. Se Joana abjura, o

tribunal a declara livre da excomunh��o.

O Bispo de Beauvais se levanta para ler a senten��a.

E enquanto ele l��, os doutores em torno de Joana insistem

para que ela abjure.

��� �� uma loucura!���sussurram eles �� Donzela.���Abjura en-

quanto �� tempo!

E contam-lhe horrores da morte pelo fogo. Descrevem-lhe as

contor����es dp corpo do condenado, a morte lenta, as dores pa-

vorosas e ��� pior do que tudo ��� a destrui����o da alma pelas chamas, a morte sem confiss��o, a morte irremedi��vel.. .

O homem l��vido cresce para ela:

��� Faze o que te aconselhamos e ser��s libertada...

Joana sente uma tontura.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

2 8 5

Al��a o olhar para o c��u. O c��u est�� impass��vel. As suas Vozes

n��o falam.

A Donzela vacila. As pernas lhe doem, tremem, amea��am

vergar. Suas feridas dos pulsos e dos tornozelos sangram.

O sol queima. E ela se lembra da fogueira. A morte l e n t a . . .

A morte da alma. . . A morte sem confiss��o...

Joana luta. Sacode a cabe��a, num desespero. Pedro Cauchon

continua a ler a senten��a.

��� Olha ��� diz algu��m ao seu ouvido, apontando para a en-

trada do cemit��rio. ��� Aquela mesma carreta te levar�� para a

fogueira. N��o entrar��s antes em nenhuma igreja. Nenhum padre

te confessar��. N��o ter��s nenhuma cruz diante de teus olhos.

Pensa bem. A salva����o s�� depende de ti.

Joana pensa nos pais, nos irm��os. E de s��bito lhe vem ��

mente a id��ia de que a Fran��a ainda precisa de sua espada.

Volta o rosto para o c��u, que fulgura. O azul reverbera uma

claridade intensa. Ofuscada, tonta, a Donzela fraqueja e cai de

joelhos.

��� Ela se submete!���grita Cauchon, vitorioso.

Tumulto. Erguem-se bra��os na multid��o. Alguns come��am

a jogar pedras contra a prisioneira. Os guardas investem.

Os ju��zes se encolhem. Os doutores se abrigam atr��s do ca-

dafalso.

A multid��o est�� enfurecida. Se Joana vai abjurar eles ficar��o

privados do grande espet��culo do mart��rio. Ru��o �� uma cidade

ins��pida. N��o tem espet��culos que divirtam. Os mist��rios est��o

vistos e revistos. O Rei Henrique da Inglaterra a princ��pio foi

uma novidade: hoje �� fato trivial. O povo precisa de distra����es.

Se Joana abjura, n��o haver�� fogueira. E o povo quer fogueira.

O povo exige. O povo se amotina.

Mas Pedro Cauchon esquece a multid��o. Sabe que vai conse-

guir a abjura����o. Est�� satisfeito.

O tumulto se prolonga.

Dentro do grande barulho geral, Guilherme Erard l�� a c��dula

da abjura����o. De joelhos, vencida pelo cansa��o e pela dor, Joana

escuta sem compreender. As palavras do homem l��vido s��o de-

voradas pelo vozerio do mar enfurecido.

A abjura����o consta de poucas frases. Erard as l�� ��s pressas,

confusamente: Joana submete-se ao julgamento e �� determina-

286

E R I C O V E R �� S S I M O

����o da Igreja, reconhece ter cometido crimes de lesa-majestade ��

seduzido o povo; promete n��o vestir mais roupas de homem nem

usar cabelos curtos.

O tumulto cessa.

Joana fita no homem l��vido dois olhos vazios de express��o.

Exigem-lhe que assine a c��dula.

��� Mas eu n��o compreendi nada. . . ��� b a l b u c i a ela.

Erard diz a Jo��o Massieu, oficial de justi��a:

��� Aconselha-a a assinar a abjura����o.

��� Oh! S. Miguel, valei-me com o vosso conselho! ��� e x c l a m a

a prisioneira, juntando as m��os.

E a seus ouvidos uma voz blandiciosa ��� a voz de Jo��o Mas-

sieu ��� sussurra:

��� Olha, se n��o assinares ser��s q u e i m a d a . . . Eu te aconselha-

ria a levar o caso �� Igreja universal, perguntando se deves ou n��o

assinar a c��dula...

Guilherme Erard grita:

��� Ent��o! Que diz a prisioneira, Messire Massieu?

O oficial se empertiga e responde:

��� Dei-lhe a conhecer o texto da c��dula e convido-a a assinar.

Mas ela se nega.

Um dos homens que se encontram ao redor de Joana insinua:

��� Por que n��o assina? �� t��o s i m p l e s . . . ��� E dizendo isto, toma

da c��dula e l�� apenas a parte final, acrescentando depois: ��� P r o -

metes vestir roupas de mulher e n��o usar mais cabelos cortados

�� moda dos homens. Em troca desta pequena promessa te livra-

r��s da fogueira. Ent��o?

Por alguns segundos ainda os olhos de Joana tem uma ex-

press��o vaga.

��� Eu quero que a Igreja delibere sobre os artigos ��� diz ela

��� que diga se eu devo assinar ou n��o. Fa��am que a c��dula seja

lida pela Igreja e pelos cl��rigos em cujas m��os devo ser entregue.

Se eles acharem que �� meu dever assinar, eu. assinarei de boa

vontade.

Berra Erard:

��� Assina agora, sen��o ser��s queimada hoje mesmo!

Mas a voz menos ��spera e autorit��ria de Massieu lhe promete:

��� Se assinares, Joana, ser��s posta numa pris��o cuidada por

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

2 8 7

mulheres. Poder��s assistir ��s missas e tomar a comunh��o quando

quiseres. N��o ser��s mais 'posta a ferros...

De repente, estranhamente, Joana come��a a sorrir um sorriso

inexplic��vel. Contentamento? Ou rictus de dor?

Ela se lembra da sua pris��o negra, da perversidade dos guardas,

dos ferros frios que lhe penetram as c a r n e s . . . Seria lindo ir

para uma pris��o da Igreja, ficar no meio de criaturas do seu

s e x o . . . Oh!

D��o-lhe uma pena. A Donzela estende o bra��o e risca uma

cruz na parte de baixo da c��dula.

O Conde de W a r w i c k est�� indignado. Passaram-lhe pela mente

num rel��mpago todos os reveses dos soldados de Inglaterra. Ca-

minha para os ju��zes, muito vermelho:

��� O rei est�� mal servido, pois Joana D'Arc vai escapar.

O Bispo Cauchon sorri com ar enigm��tico. E ignorando so-

berbamente o Conde de W a r w i c k , l�� a senten��a que se resume

assim:

"Joana �� poupada ao fogo e condenada, por alta miseric��rdia,

�� pris��o perp��tua."

Vaias. Gritos. Tumulto. Uma pedra passa zunindo rente ��

cabe��a do bispo. W a r w i c k cerra os punhos e lamenta que a pe-

drada tenha errado o alvo.

Nuvens agora projetam largas sombras sobre o cemit��rio de

Saint-Ouen e sobre as cabe��as da multid��o que se revolta e que

berra, porque a privaram dum espet��culo muito, muito diver-

tido. . .

LXIV

"HOJE ESTAREI COM JESUS NO P A R A �� S O "

JOANA como que desperta dum sono pesado e mau, povoado

de sonhos imposs��veis.

De novo na pris��o. O bafio ��mido. A cama dura. Os guardas

agressivos. E a sombra. A doen��a. O desalento.

Tra��ram-na. Prometeram lev��-la para uma das pris��es da Igre-

ja, dar-lhe mulheres por companheiras. Tudo mentira. Tudo

ardil.

Joar.a olha para baixo, para a longa saia parda .que a Duquesa

de Bedford gentilmente lhe mandou.

Sente um grande mal-estar. Contempla? as roupas de pajem

que se acham aos p��s da cama e tem a impress��o de que est�� fi-

tando um cad��ver.

Sim, ali est�� a Donzela de Orl��ans. A guerreira. A enviada de

Deus. A que nunca conheceu o medo. A que nunca fraquejou.

Joana se ajoelha. Toma das roupas negras com m��os cariciosas

e leva-as aos l��bios. De sua garganta escapa um solu��o.

��� Oh meu Deus! Eu fui fraca...

Come��a a chorar baixinho. L�� fora os guardas discutem e jo-

gam e bebem.

Toda encolhida em cima da cama, Joana cerra os olhos e re-

corda. Uma por uma, com uma nitidez espantosa, v��m-lhe ��

mem��ria as cenas do cemit��rio de Saint-Ouen.

Dominando todas as imagens, maior ainda que o vulto da ca-

tedral, aparece-lhe a cara l��vida; a voz de t��mulo torna a soar a

seus ouvidos. �� uma obsess��o.

Uma voz interior a acusa:

��� Foste fraca!

E Joana se defende:

��� Eu estava quase m o r t a . . .

��� Tra��ste as tuas Vozes. . .



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

289

290

ERICO VER��SSIMO

Elas me abandonaram.

��� Assinaste a c��dula porque tiveste medo da fogueira. Medo,

medo, medo!

��� Eu queria viver!

��� Tu n��o pertences ao mundo, tu pertences a Deus!

��� Minha Fran��a precisa de mim.

��� Tua miss��o est�� cumprida.

Joana se ergue, febril. O rosto lhe arde. Os l��bios est��o secos

e gretados. Ela caminha na pris��o dum lado para outro. E a voz

a persegue:

��� Perder��s o amor das tuas santas.

Joana esconde o rosto nas m��os.

��� Se d'Alen��on, d'Aulon e os outros teus velhos companheiros

darmas te vissem fraquejar?

Joana estaca. Torna a olhar para as roupas de homem que

est��o em cima do catre.

A voz interior continua:

��� Ainda �� tempo. Veste esta roupa. S�� fiel �� tua miss��o

at�� o fim. Pensas que Deus vai te abandonar?

Joana corre at�� a porta e pelas grades da abertura olha para

fora. Longe os guardas jogam, blasfemam e bebem.

A Donzela se volta e num instante tira as roupas de mulher e

mete-se nas roupas de pajem.

No dia seguinte a not��cia se espalha pelo castelo, pela cidad��,

pelos campos. Joana tornou a vestir h��bito de homem!

Os doutores se escandalizam. Cauchon fica enfurecido. War-

wick sente renascer a esperan��a: "Eis o pretexto ��� pensa, sor-

ridente. O castelo fervilha de coment��rios.

Joana tornou a vestir h��bito de homem!

��� �� uma relapsa! ��� sentenciam os assessores.

��� Uma relapsa! ��� concorda Cauchon.

Re��nem-se os doutores. Confabulam. Descem �� pris��o. In-

terrogam a Donzela.

��� Por que tornaste a vestir roupas masculinas?

Joana est�� tranq��ila. Agora nada mais importa. Ela ir�� imp��-

vida at�� o fim.

��� Porque o h��bito de homem me agrada mais.

Sorri. E o seu sorriso no rosto p��lido e machucado �� t��o gro-

tesco e assustador que os doutores estremecem.



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

2 9 1

��� Prometeste e juraste que n��o vestirias mais roupas de ho-

mem!

��� V��s prometestes tamb��m que me levar��eis para uma pris��o

de mulheres. No entanto voltei para esta masmorra horr��vel.

Como posso ficar vestida de mulher no meio de homens?

��� Relapsa!

Joana est�� impass��vel. Com as poucas for��as que lhe restam,

mant��m-se firme de p��.

��� Prometestes que me deixar��eis ouvir missa e tomar a co-

munh��o. Tudo mentira. Com que direito me acusais agora?

O interrogat��rio dura mais alguns minutos.

Os doutores se retiram.

No dia seguinte o tribunal se re��ne na capela do arcebispado.

Perjura. Relapsa. Herege. Feiticeira. Impudica.

Cada doutor condecora Joana D'Arc com um adjetivo.

At�� que o mais grave deles, ao cabo de longa discuss��o se

ergue para dizer:

��� Deve ser entregue ao bra��o secular!

Um abade de ar manso pronuncia estas palavras:

2 9 2

ERICO VER��SSIMO

���Joana �� relapsa. Apesar de tudo conv��m que a c��dula que

lhe foi lida, seja lida ainda uma vez e explicada.. .

Os doutores se entreolham, consultando-se com os olhos. E

muitos s��o da mesma opini��o do abade de ar manso.

O Bispo Cauchon ouve todas as opini��es.

��� Ela ser�� julgada como relapsa! ���conclui.

A noite cai sobre Ru��o.

Joana n��o consegue dormir. Puseram-na de novo a ferros. Os

guardas ��brios a maltratam. L�� fora o c��u est�� baixo e pesado

de nuvens escuras. Uma tempestade se aproxima. Troveja.

No meio da noite Joana �� despertada pelas suas Vozes, que

lhe dizem palavras de amor e de consoio.

A pris��o se enche duma grande luz suave. Um perfume muito

doce apaga o bafio pestilencial. As figuras odiosas dos guardas

desaparecem.

Joana sorri para as santas.

E o novo dia que nasce a encontra ainda sorrindo.

A tempestade, o vento a levou para o mar. Joana pensa nos

navegadores e reza por eles.

Sol no c��u de Fran��a.

Nas primeiras horas da manh�� um grupo de homens entra na

pris��o. Joana reconhece neles membros do tribunal. Ergue-se a

custo. Est�� cada vez mais fraca e doente.

Fica de p��, esperando.

Um dos homens lhe diz:

��� Joana, hoje morrer��s na fogueira.

E suas palavras pingam uma a uma no sil��ncio.

A Donzela sente o cora����o parar. Os joelhos lhe vergam. Ela

tomba. O primeiro instante �� de desespero:

��� Oh! Por que n��o me esquartejam, n��o me enforcam? pre-

firo mil vezes isso do que ser queimada, ficar transformada em

c i n z a . . . Ai de mim! Deus �� testemunha das injusti��as que te-

nho sofrido!

Entram mais tr��s homens na pris��o. V��m da parte do bispo

fazer novo interrogat��rio.

De repente Joana �� tomada duma coragem enorme. Porque

ela sente a presen��a de suas santas, ouve o murm��rio de suas

Vozes.

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

293

��� Achas que tuas Vozes e apari����es v��m de bons ou de maus

e s p �� r i t o s ? ��� p e r g u n t a um dos doutores.

Joana sorri. Eles n��o v �� e m . . . Se vissem, saberiam que, ali

contra a parede limosa e ��mida da pris��o, S. Catarina e S. Mar-

garida est��o pairando no meio duma nuvem luminosa. Ouviriam

tamb��m suas vozes suav��ssimas dizendo palavras de amor. Mas

eles s��o cegos. T��m a alma dura. Vivem lendo pergaminhos

antigos como o pr��prio tempo. E estudando ci��ncias profundas.

Seus olhos est��o de tal maneira cansados que n��o sabem ver as

maravilhas do c��u. Seus ouvidos est��o de tal modo gastos que n��o

podem ouvir as palavras divinas. Pobres doutores que n��o sabem

nada! Que Deus tenha piedade deles!

Joana responde que suas Vozes e suas vis��es s��o do C��u, s��o

de Deus.

O Pe. Pedro Maur��cio contempla a Donzela. Tem-lhe gran-

de pena. Passou a noite toda a pensar no processo. E, vencendo

a lembran��a das palavras de seus colegas, o rosto tranq��ilo da

Donzela lhe apareceu na mem��ria. E eie sentiu que a d��vida

tomava conta de seu esp��rito. N��o dormiu. Orou. E agora aqui

fala com voz amiga �� prisioneira:

��� Dize, menina, as tuas Vozes s��o mesmo reais?

Joana se exalta. E conta que na v��spera e no dia dos com-

bates, nos momentos de descanso, nas horas de d��vida ��� sempre

as vis��es e as Vozes lhe valeram, dando-lhe coragem e alegria.

O interrogat��rio continua.

E de novo se abre a porta da masmorra.

Cauchon entra. Joana aponta para ele um dedo acusador e

grita:

��� Bispo, morro por tua causa!

Cauchon estaca. Franze a testa. E p��e a����car na voz para

dizer:

��� Oh, Joana, tem paci��ncia. Morres porque n��o cumpriste o

que nos prometeste.

Poucos minutos depois a Donzela de novo se encontra s�� na

pris��o. S��? N��o. A mem��ria duma palavra fria e tremenda per-

manece com ela.

Morte.

Joana sente um calafrio. Lembra-se da senten��a que h�� pouco

ouviu: "Hoje morrer��s na fogueira".

294

E R I C O V E R �� S S I M O

Uma ideia lhe fere a mente. Joana corre para a porta e co-

me��a a bater nela com os punhos.

Um guarda aparece.

��� Traga-me um padre! Quero um confessor!

D��o-lhe um confessor.

Na pris��o dois vultos negros conversam na sombra. De p��,

muito alto, o padre. E ajoelhado ao lado dele, o pajem de roupas

negras.

Um outro irm��o vem administrar a Joana o sacramento da pe-

nit��ncia. Trazem o corpo de Cristo. E no momento de engulir a

h��stia, Joana num segundo se lembra das m��os p��lidas e tr��-

mulas do cura de Domr��my, naqueles domingos de comunh��o.. .

��� Cr��s que este seja o corpo de Cristo? ��� pergunta a voz

profunda do padre.

��� Sim���cicia Joana. ��� E s�� Ele me pode libertar.

As l��grimas escorrem pelo rosto branco da prisioneira.

O Pe. Pedro Maur��cio entra na pris��o. E enquanto Joana faz

suas ora����es, ele se mant��m silencioso a um canto.

��� Padre ��� pergunta ela d��bilmente ��� onde estarei eu esta

noite?

��� N��o tens esperan��as no Senhor? ��� pergunta Pedro Mau-

r��cio.

Joana se ergue, de m��os postas. Seu rosto resplandece. E ela

diz:

��� Hoje estarei com Jesus no para��so!

Maur��cio-baixa a cabe��a e sai em sil��ncio da pris��o, com a alma

em agonia.

LXV





A M A R C H A P A R A A M O R T E


J O A N A est�� s��. Treme como um passarinho molhado. O que

sente �� estranho. ��s vezes um frio de morte lhe percorre o corpo.

Outras vezes �� uma onda de calor que lhe abrasa o rosto e lhe

desce at�� os p��s.

Sil��ncio.

Joana recosta a cabe��a na parede.

De repente tudo muda. . .

�� uma manh�� de ver��o clara de sol. Ela vai na garupa do bur-

rico para Sermaize. Leva um cesto com um pote de mel e bolos

para tio Henrique. Os bosques est��o floridos. Os lagartos verdes

tomam sol na estrada. A sombra do burrico �� suave sobre o ch��o.

E como est�� azul o c��u da Lorena!

De repente diante dos olhos da menina Joana surge a Fonte-

dos-Groseiheiros. A ��gua canta, brotando pura no meio das pe-

dras e da relva verde. Ela tem sede. O sol queima. A caminhada

foi longa.

A menina apeia. Caminha para a fonte. Deita-se de bru��os,

estende os l��bios para beber.

E a parede da pris��o, fria contra o rosto que escalda, chama

Joana �� realidade.

Tudo escurece. E ela est�� deitada nas pedras ��midas. O corpo

abrasado de febre e sacudido de solu��os.

De repente ouve um tropel, o tinir de lan��as e espadas. Orl��ans

ao longe ergue para o c��u as suas torres desamparadas. �� preciso

salvar Orl��ans! O Bastardo diz que �� imposs��vel subir o rio con-

tra o vento. Mas Deus �� o senhor dos ventos. Para a frente! A

armadura fulgura. O estandarte voa como uma ��guia branca.

E Joana se ergue e investe. E de novo a parede da pris��o se

interp��e entre ela e a vis��o.

A Donzela tomba. A testa lhe sangra.

Ela fica estendida no ch��o.

296

ERICO VER��SSIMO

��s nove horas v��m busc��-la. Vestem-lhe uma longa camisola

branca. Cortam-lhe os cabelos e p��em-lhe na cabe��a nua uma

carapu��a de papel onde est��o escritas estas palavras: Her��tica,

relapsa, ap��stata, id��latra .

Joana caminha como num pesadelo. Que for��a misteriosa ��

esta que a mant��m de p��?

Na frente do castelo uma multid��o se agita e algazarreia.

Quando a prisioneira aparece, faz-se imediatamente um sil��ncio

medroso.

Fazem-na subir para a carreta. Os quatro cavalos negros est��o

inquietos.

Joana, p��lida como um cad��ver, est�� im��vel com os olhos fitos

num ponto indefin��vel. Todo o pavor agora desapareceu das

coisas. O que ficou �� uma sensa����o de desalento. Desejo de

ternura. Nenhum ��dio. Abandono. Esquecimento. Resigna����o.

��� Oh Deus!���murmura ela ��� faze que tudo passe depressa

para que eu possa em breve estar contigo.

De repente um padre sai da multid��o, sobe para a carreta, ajoe-

lha-se solu��ando aos p��s de Joana e lhe pede perd��o. �� mestre

Loiselleur, um dos membros do tribunal. O remorso lhe retorce

o rosto. Ele beija o vestido da Donzela. As l��grimas lhe escor-

rem pelas faces. A prisioneira baixa os olhos e sorri, perdoando.

Os soldados ingleses gesticulam e avan��am agressivos para o

padre. Warwick aparece e vem em seu socorro.

Loiselleur desce da carreta e cego de dor sai a correr sem

rumo pela rua, perdendo-se no meio da multid��o.

Acompanhada de tr��s membros do tribunal e guardada por al-

gumas dezenas de soldados, a carreta p��e-se em marcha.

Joana cerra os olhos e come��a a orar. Seus l��bios que mal

se descerram, suas m��os entrela��adas �� altura do peito, o seu

rosto descarnado est��o mais brancos do que o sud��rio de con-

denada.

O cortejo segue pelas ruas estreitas. Joana relembra as caval-

gadas gloriosas. Orl��ans. Jargeau. Meung. Beaugency. Patay.

Reims!

Nas janelas aparecem e desaparecem rostos assustados. Nas

ruas os homens param e olham. Ningu��m fala. Toda a gente na

v��spera estava alvoro��ada, esperando com ��nsia a hora do mar-

t��rio. Mas que mal-estar �� este que oprime todos os peitos? Que



A V I D A D E J O A N A D ' A R C 297

estranho medo subterr��neo est�� agora escurecendo todas as al-

mas?

Como uma santa no andor, Joana D A r c segue em cima da

carreta. As rodas matraqueiam sobre o cal��amento irregular.

Ouve-se o tinido das lan��as dos guardas batendo nas pedras.

O cortejo chega �� pra��a do Mercado Velho. Faz alto.

Joana abre os o l h o s . . . A multid��o que enche o quadrado num

formigamento desinquieto ��� lhe d�� uma sensa����o de tontura. A

Donzela pensa no grande ex��rcito de Carlos VII, o ex��rcito que

libertou Orl��ans, o ex��rcito que a seguiu cegamente...

Escapa-se da turba um uivo profundo e prolongado que sobe

para o c��u numa onda enorme e se perde desfeito nas nuvens.

LXVI

A FOGUEIRA

DOMINANDO todas as cabe��as erguem-se na pra��a tres cadafalsos.

No maior de todos est��o sentadas as autoridades: o bailio de

Ru��o, o Bispo Cauchon, representantes do Rei da Inglaterra e

muitos doutores.

Os soldados fazem Joana descer da carreta. Com a ponta das

lan��as abrem um estreito corredor no meio da multid��o e ao

longo dele conduzem a prisioneira at�� o cadafalso menor.

Joana passeia em torno o olhar cansado. O sol inunda a pra��a.

Parece uma festa. Em cima dos telhados, nos ��ltimos galhos das

��rvores mais altas, v��em-se homens e garotos encarapitados,

aguardando o espet��culo.

Contra o azul fulgurante do c��u da manh��, se silhueta a Igreja

do Santo Salvador. Joana ergue os olhos para as torres. Bem na

extremidade da mais alta delas, agarrado �� cruz, um vulto braceja.

E por um instante a Donzela chega a sentir-se inquieta pela se-

guran��a daquela criatura ��� homem ou menino? ��� que arrisca

a vida de tal forma, s�� para ver a "herege" morrer queimada.

Sorri tristemente.

Cessa o uivo da multid��o. Faz-se um sil��ncio muito fundo.

Uma voz grave fende o ar luminoso e ecoa estranhamente atr��s

da igreja, como se um dem��nio trocista ali estivesse escondido

a repetir as palavras do orador.

Joana olha. . . Os ju��zes, funcion��rios e representantes t��m os

rostos sombrios, os olhos baixos. Na frente deles ergue-se o

vulto escuro do orador, que levanta a m��o para o c��u numa

amea��a e solta violentamente as palavras como canhona��os, ci-

tando S. Paulo:

Et si quid patitur unum membrun, compatiuntur omnia

membra.

E por muito tempo fica a pregar. E de novo Joana ouve dos

l��bios dele a palavra abominada: herege.

A V I D A DE J O A N A D ' A R C

299

L�� no alto da torre o observador arrojado ergue no ar o seu

gorro vermelho, num gesto de impaci��ncia.

O pregador se cala.

O Bispo Pedro Cauchon p��e-se de p�� e l�� a senten��a.

Joana tem a impress��o de que despertou dum sonho, dura

enorme sonho que come��ou naquele dia em que ela saiu de Dom-

r��my rumo a Vaucouleurs.

��� Joana, aonde vais? ��� pergunta Mengette.

��� Vou para Vaucouleurs! Adeus, Mengette! Eu te recomendo

a Deus!

O burrinho trota. Em Domr��my nada mudou. O Mosa corre

tranq��ilo, cantando a sua can����o de ninar. O sino da capelinha

toca as Matinas. As crian��as pulam e gritam em torno da ��rvore-

das-Fadas. Nossa Senhora de Bermont deve estar com os seus

lindos p��s mergulhados em flores. . .

Mas a voz dura de Cauchon apaga a vis��o.

Joana abre os olhos para a realidade. O mar humano ondula

e uiva. Cauchon fala ainda. E a palavra morte sai de seus l��bios.

Cauchon se cala.

Joana solu��a, os seus olhos se enchem de l��grimas e ela

se sente bruscamente invadida por uma onda inexplic��vel de

ternura.

Ajoelha-se. Invoca os seus santos. Pronuncia o nome do Pai,

do Filho e do Esp��rito Santo

E com voz mansa pede humildemente desculpas aos ju��zes,

aos doutores, aos soldados, ao povo, por qualquer mal que lhes

possa ter feito.

Sua voz �� doce. Seus gestos s��o mansos. E ela sorri tristemente,

por entre l��grimas.

Os homens que a julgaram come��am a ficar inquietos. E a

sombra duma d��vida terr��vel lhes escurece as almas. Alguns

choram desviando os olhos da condenada.

Joana estende os bra��os e exclama:

��� Ai Ru��o! Eu temo que venhas a sofrer por causa da minha

morte!

O tempo passa. A multid��o se inquieta. Come��a a erguer-se

u m c l a m o r . . .

Ouve-se uma voz:

��� Ent��o, padre? Queres nos fazer jantar aqui?



300

ER��CO V E R �� S S I M O

O bailio de Ru��o, obedecendo �� tradi����o, ergue o bra��o e diz:

��� Levem-na! Levem-na!

Arrastam Joana para a carreta, que a deixa ao p�� do cadafalso

central, onde se ergue um poste, emergindo dum mont��o de

feixes.

Joana est�� enfraquecida. Mas ao chegar ao primeiro degrau

uma for��a misteriosa a reanima. Ela se empertiga. Uns poucos

degraus a separam do poste do supl��cio. Mas o que a Donzela

A V I D A D E J O A N A D ' A R C

301

v�� diante de seus olhos �� uma escada imensa, luminosa, que a

leva ao Para��so. E tem a impress��o de que o seu ex��rcito de an-

jos desce das nuvens e a ergue nos b r a �� o s . . .

Os guardas se admiram da leveza com que Joana sobe agora

os degraus do cadafalso.

Amarram-na ao poste.

Ela quer morrer contemplando uma cruz. Al��a o olhar para

a torre da igreja. Mas l�� est�� o vulto inquieto a esconder a

cruz.

��� Por amor de Deus ��� suplica a condenada ��� tragam-me

uma cruz!

Um soldado ingl��s faz uma cruz com dois peda��os de madeira

e a entrega �� condenada. Joana a recebe com ambas as m��os,

leva-a aos l��bios e a beija, pronunciando o nome do Salvador.

Depois a enfurna no seio, como quem guarda um tesouro.

Muitos dos ju��zes choram. O Conde de Warwick a custo re-

t��m as l��grimas. O cardeal de Winchester morde os l��bios e

cerra os olhos, penalizado. Os membros do tribunal descem apres-

sados do cadafalso e fogem. Alguns deles escondem os rostos

nas m��os. E todos levam a morte na alma.

A multid��o uiva. Parece um monstro ferido.

O Pe. Pedro Maur��cio chora como urna crian��a.

��� S. Miguel! ��� exclama Joana. ��� �� S. Miguel! Valei-me!

Um soldado se aproxima com duas tochas acesas.

��� Traga-me uma cruz da igreja! ��� suplica Joana ao Irm��o

Isambart, que est�� ao seu lado.

O sacerdote se afasta correndo.

O soldado ateia fogo nos feixes de lenha que recobrem os

p��s da condenada, bem como as flores das crian��as de Domr��my

afagavam na primavera os p��s de Nossa Senhora de Bermont.

Irm��o Isambart volta com uma cruz, que ergue diante do

rosto da Donzela.

A chama da fogueira cresce, lambe os membros inferiores de

Joana, que se retorce e grita de dor. Com os olhos fites na cruz,

vendo por tr��s dela os rostos serenos de S. Margarida e S. Cata-

rina que a animam com um sorriso ��� a condenada continua a

pronunciar o nome de Jesus. E quanto mais forte �� a dor que

sente, mais agudo �� o grito.



302

E R I C O VER��SSIMO

Reina pavor na multid��o. Muitos querem afastar o rosto do

espet��culo horrendo e n��o podem. Ficam com os olhos vidrados,

fixos no vulto branco que se retorce nas chamas, a cabe��a nua

e descarnada, os olhos saltados, o rosto iluminado pela luz ver-

melha das labaredas, pela luz sinistra que lembra o inferno, que

lembra a destrui����o.

Jo��o Alesp��e, chorando perdidamente, murmura tr��mulo:

��� Eu quisera que minha alma estivesse onde creio que est�� a

alma desta mulher.

Num segundo Joana D'Arc rev�� mentalmente toda a sua vida,

que passa numa doida cavalgada. O balan��o do ber��o, enquanto o

Mosa marulhava a sua can����o de ninar. A inf��ncia em Dom-

r��my. A viagem a Vaucouleurs. O encontro com o rei em Chi-

non. A tomada de Orl��ans. A marcha sobre Reims. A semana

de vit��rias. A ��ltima campanha. A pris��o. O processo...

Tudo num rel��mpago...

��� J e s u s ! ��� balbucia ela. As chamas sobem, lambem-lhe a cin-

tura, comem-lhe as carnes. ��� Jesus!

No alto da torre da Igreja do Santo Salvador, agarrado na

cruz, o observador arrojado olha.. . E chega a seus ouvidos, no

meio do sil��ncio que esmaga a pra��a, um grito estridente que faz

seu sangue gelar, um grito que �� de dor, de desespero e ao mesmo

tempo de triunfo:

��� J e s u s !

Anoitece.

A pra��a do Mercado Velho est�� deserta. Tr��s homens que

trazem nas m��os lanternas coloridas, v��m por ordem do Sr.

bailio recolher os restos da condenada. Depois da execu����o o

carrasco deitou-lhes ��leo, enxofre e carv��o, para reduzi-los a

cinzas.

O Sr. bailio �� um homem previdente. H�� muita gente su-

persticiosa na Cidade de Ru��o. Bruxas. Encantadores. Mestres

em magia negra.

Algu��m pode vir na quietude da noite buscar as cinzas de

Joana D'Arc para fabricar feiti��o. . .



A V I D A D E J O A N A D ' A R C

303

Os homens sobem em sil��ncio para o cadafalso. Inclinam-se

sobre o monte de cinzas. Um deles aproxima a lanterna de

fogo verde, cuja luz clareia fantasticamente as tr��s caras ansiosas.

E, eles se entreolham sem dizer palavra. O que agora v��em lhes

rouba a voz. . . No meio das cinzas acabam de descobrir intacto,

enorme, o cora����o da Donzela. O fogo n��o conseguiu consumi-lo.

Com imenso cuidado, tr��mulos e comovidos, eles p��em num

saco os despojos de Joana D'Arc. Descem as escadas do cada-

falso, caminham na dire����o do Sena e v��o at�� o meio da ponte.

Param. E sempre calados abrem a boca do saco e, erguendo-o

por cima do parapeito da ponte, jogam para o rio as cinzas e o

cora����o da Donzela.

A ��gua se agita e dan��a com ela o reflexo das primeiras es-

trelas.

Joana, doce Joana, agora que sa��ste fora do tempo, fora do

mundo, pertences a quem quer que tenha um pouco de f�� ou

imagina����o para te invocar. Sinto neste momento a tua presen��a

como tu sentiste durante os ��ltimos anos de tua vida a presen��a

de S. Margarida e S. Catarina.

Que importa que os outros homens digam que sonho? Que

importa que muitos afirmem que sonhavas?

Minha suave Guerreira, as tuas cinzas se dissolveram nas ��guas

do Sena. E o teu grande cora����o decerto foi levado para o mar.

S��o recorda����es tristes...

Riamos um pouco. Lembras-te do Duque de Borgonha?

Tu bem o previste. Menos de cinco anos depois que teu

corpo foi queimado em Ru��o, o truculento Filipe rompeu com

os ingleses. Foi por ocasi��o do Tratado de Arras. Felizmente n��o

estavas l��. Porque terias ouvido palavr��es horrendos, gestos feios,

caras contorcidas, bocas que espumavam, raiva e afli����o. O Du-

que de Borgonha aliou-se aos franceses. Oh! Devias ver o grande

clar��o de alegria que inundou o rosto de Carlos VII quando lhe

deram a not��cia.

No ano seguinte Bedford morreu. Tu sabes o que �� um ex��r-

cito sem chefe... Os ingleses perdiam terreno sempre e sempre.

As for��as unidas de armagnacs e borgonheses empurravam os in-

vasores para o mar. (Eu acho que era o teu esp��rito que animava

os soldados de Fran��a.. .)

Um dia Carlos VII entrou com suas tropas em Paris e foi acla-

mado nas ruas. N��o achas tudo isto muito engra��ado?

Entretanto, ainda n��o era a vit��ria. Por muito tempo a tua

doce Fran��a sofreu. Mis��ria e peste. Mais sepulturas do que

ber��os.

Mas vieram dias felizes. Carlos VII, cercado de melhores

conselheiros, governou com mais sabedoria. De quando em quan-

do as suas noites eram visitadas pelo teu fantasma, Joana, pela

recorda����o de todas as trai����es que te fizeram. Uma pontinha de

remorso lhe do��a ent��o na consci��ncia. Mas outras preocupa����es

absorviam o ilustre Valois e tu sabes que as vinha��as saborosas, a

ca��a ao javali e as intrigas da corte eram coisas que muito ocupa-

vam o esp��rito do teu pobre rei.

Os anos rolaram.

Um dia���curioso! ��� Carlos de Valois pensou em ti, no teu

julgamento in��quo, no teu sacrif��cio e na tua morte. E lembrou-

se ��� n��o rias ��� d�� reabilitar a tua mem��ria, revisando o processo

que te condenou. Mandou fazer um inqu��rito preliminar. Houve

agita����o. Estou quase afirmando que, mal havia dado os primeiros

passos, f�� o fraco rei tinha o esp��rito invadido pelo arrependi-

mento, A not��cia chegou �� Inglaterra. O Papa mandou �� Fran��a

o seu delegado, o Cardeal d'Estouville. Os ingleses opuseram-se

ferozmente �� marcha do inqu��rito e lan��aram um protesto junto

�� Santa S��. Por algum tempo nada se fez. A iniciativa parecia

ter morrido no nascedouro.

Mais tarde torna-se a falar no caso. Tua mam��e que morava

tranq��ilamente em Orl��ans com Jo��o e Pedro, instada pelo go-

verno de Fran��a, requer a revis��o do famoso processo. O Sumo

Pont��fice, Calixto Hl, indica o bispo de Paris, o arcebispo de

Reims e o bispo de Coutances para, em harmonia com o Grande

Inquisidor, tratar da revis��o. Reuniram-se os prelados e estudaram

os alfarr��bios com gravidade. Chegaram �� conclus��o de que a

culpa reca��a principalmente sobre Pierre Canchon. (J�� ��quele

tempo o antigo bispo de Beauvais havia morrido; seus restos

estavam enterrados na magn��fica Capela da Virgem, em Lisieux,).

Toda a gente, ent��o, come��ou a falar de novo em ti com pai-

x��o. Fizeram-se inqu��ritos em Orl��ans, Domremy, Paris e Ru��o.

Pediram o testemunho de Dunois, de Alen��on e de Aldon. De-

vias ter ouvido as belas coisas que eles disseram de ti. Estavam

comovidos. Decerto sentiam tamb��m tua presen��a no instante

em que prestavam os seus depoimentos.

Por fim o Grande Inquisidor Jo��o Br��hal fez publicar um me-

morandum declarando a tua ortodoxia. Picou anulada a senten��a

de 1431: a Universidade de Paris tinha laborado em erro: eras

inocente de qualquer crime.

Mas nas ��guas do Sena n��o existiam mais vest��gios de tuas

cinzas. E o mar n��o saberia dar conta daquele imenso cora����o

que os rios lhe levaram...

Sabes qual foi o destino de teu rei? Triste, muito triste. No

fim da vida entregou-se �� dissipa����o. Brigou com o pr��prio filho.

E o Delfim, n��o o podendo mais suportar, fugiu da corte. Car-

los Vil ficou desesperado. Mandou cham��-lo com insist��ncia. O

herdeiro n��o voltou. Ent��o o pobre rei passou a viver apavorado

pela id��ia de qut podia ser envenenado pelo filho. Recusava-se a

tomar os alimentos que lhe levavam. Tinha alucina����es horr��veis.

Era a dem��ncia, a heran��a que Carlos VI lhe transmitira junta-

mente com a coroa de Fran��a. Um dia a morte chegou no seu

cavalo negro e levou para os seus dom��nios a alma de Carlos Vil.

Foi em Melun (lembras-te de MelunP) num claro dia de junho.

E o tempo continuou a passar, menina Joana. E houve mais

guerras, muitas guerras mais. E pestes. E reis d��beis e reis for-

tes. E conselheiros bons e maus. Desapareceram pouco a pouco

todas as criaturas de teu tempo; ficaram os descendentes, perpe-

tuando a sua gl��ria ou prolongando a sua mis��ria.

Fins do s��culo XIX. O Papa Le��o XIII passou ao Congresso

de Ritos o expediente de tua beatifica����o, cuja aprova����o defini-

tiva foi decretada em princ��pios do s��culo XX.

Seis anos depois uma tremenda guerra, a maior de todas, es-

talou na Europa. Como era diferente das guerras de teu tempo,

oh minha hero��na! Os homens sempre se estra��alharam com f��ria

igual desde o tempo das cavernas. Mas em 1914 tinham m��quinas

mais eficientes de matar. Era mais f��cil morrer.

Os soldados de Fran��a encontravam-se de novo em campo.

Mas ��� estranho! ��� dessa vez tinham a seu lado os homens loi-

ros da Inglaterra.

No decorrer da luta o teu nome foi muitas vezes invocado.

Contam que um dia certo regimento franc��s que se achava per-

dido, preparava-se para a retirada. De repente os soldados ergue-

ram ao mesmo tempo os olhos para o c��u e viram, enorme contra

as nuvens, a tua imagem. Estavas metida na tua armadura branca,

montada no teu cavalo, e tinhas na m��o um espada refulgente

com que mostravas aos franceses o caminho da vit��ria. O regi-

mento inteiro ficou transfigurado, atacou e venceu.

Deve ter sido ilus��o. Porque eu sei, Joana, que deixaste na

Terra os teus petrechos de guerra.

Depois que terminou a grande matan��a e o mundo come��ou a

cotwalescer, Benedito XV te incluiu no calend��rio dos santos. Foi

em 1919.

Santa Joana D'Arc!

Volto os olhos para o passado, viajo vertiginosamente por

cima de quinhentos anos e te vejo em Domr��my. Tens doze anos.

Levas o teu rebanho para pastar ��s bordas do Bois Ch��nu. Tarde

de sol. L�� do outro lado do rio rodopiam as p��s dos moinhos

vermelhos de Greux. Uma grande paz adormece a tua aldeia. Tu

vais cantando, feliz e livre, e os p��ssaros voam por cima de tua

cabe��a.

De repente me acho de novo dentro do meu s��culo.

Que vejo? Rumores de guerra na Europa onde ainda h�� reis

sem- vontade, conselheiros astutos e homens solertes que tiram

gordos proveitos das guerras. Existem ainda capit��es bravos como

d'Alen��on e soldados ing��nuos que, como os do teu tempo, iam

�� guerra sem saber para qu��. Os tratados se rasgam com a mesma

facilidade com que o Duque de Borgonha quebrava as tr��guas

e mandava embaixadas de paz aos armagnacs enquanto instigava

contra estes o povo de Paris.

Ningu��m mais fala em Merlin. S�� os poetas ou os contadores

de hist��rias de fadas. Porque depois vieram magos muito mais

prodigiosos do que o feiticeiro do Rei Artur. Inventaram um mi-

lh��o de coisas surpreendentes que criam ou que matam, que de-

liciam ou aborrecem; mas um milh��o de coisas, enfim, muito

mais maravilhosas do que os pobres p��s m��gicos de Merlin.

0 gosto pelas profecias ainda perdura. H�� escritores que escre-

vem com ar grave, e leitores que l��em com mais gravidade ainda,

o que vai acontecer ao mundo daqui a cem ou a mil anos.

Domr��my ainda existe. A casinha onde nasceste l�� est��, terri-

velmente restaurada, mostrando inscri����es que te fariam rir. Mui-

tos turistas americanos a visitam todos os anos.

Sobre a tua aldeia agora passam roncando os avi��es que per-

correm em poucos minutos as dist��ncias que os teus bravos cava-

los de guerra, Joana, levavam dias e dias para cobrir. Mas apesar

dos avi��es h�� ainda criaturas que acreditam em bruxarias e que

olham com temeroso respeito para os antigos bosques das fadas

e dos encantamentos.

O Mosa continua a correr mansamente e a cantar a sua can����o

de ninar. Teria esquecido a menina Joana? Mist��rio. Ningu��m

logra sondar a alma dos rios, por mais transparentes que eles

sejam...

Infelizmente, doce Joana, ainda n��o podes voltar ao mundo

apenas com o teu vestidinho vermelho de camponesa, com a roca

na m��o e um sorriso no rosto. Ter��s de usar de novo tua rija ar--

madura forjada em Tours, a tua espada e o teu grito de guerra.

E nem assim estar��s protegida, porque os homens de hoje, minha

iluminada, s��o senhores de artimanhas sobrenaturais.

Agora, minha santa, para que n��o fiques triste com as not��cias

que te dei das coisas de meu s��culo, asseguro-te que nas estradas

da Lorena ainda trotam am��veis descendentes do burrinho manso

e peludo que te levou a Sermaize naquele dia de sol...

I N D I C E

Pequena Biografia do A u t o r V

I ��� A m e n i n a J o a n a . . . 1

II ��� Q u e foi q u e os galos viram? 7

III ��� M e r l i n , o encaatador 12

IV ��� N o s s a S e n h o r a de B e r m o n t 15

V ��� O v i z i n h o doente 18

VI ��� A ��rvore-das-fadas 22

VII ��� J o a n a e os bichos de N o s s o S e n h o r 25

VIII ��� O b u r r i n h o triste 28

IX ��� A hist��ria de S. M a r g a r i d a 32

X ��� A hist��ria de S. C a t a r i n a 35

XI ��� Os h o m e n s s��o mau s 42

XII ��� P o b r e D o m r �� m y 45

XIII ��� U m a hist��ria sem fadas 4 8

X I V ��� A v o z l u m i n o s a 5 5

X V ��� A s vis��es queridas 5 8

X V I ��� U m a v i d a n o v a 6 3

X V I I ��� O s o n h o d e Jacques D ' A r c . . 6 7

XVIII ��� A inspira����o d e S . R e m �� g i o 7 0

XIX ��� A o r d e m do A r c a n j o 73

X X ��� A p r i m e i r a v i a g e m a V a u c o u l e u r s . - . . . . . 7 7

XXI ��� A f u g a p a r a N e u f c h �� t e a u 79

XXII ��� A d e u s , D o m r �� r n y ! 82

X X I I I ��� O u t r a v e z e m V a u c o u l e u r s ' 8 5

X X I V ��� " D e u s aplainar�� o c a m i n h o " 8 9

X X V ��� A j o r n a d a 9 3

X X V I ��� R e i sem coroa, reino sem rei . . . 9 7

X X V I I ��� O Sinal 1 0 1

X X V I I I ��� O conselho dos q u a t r o .* 1 0 6

X X I X ��� C o m o S . C a t a r i n a diante dos doutores . . . . 1 0 9

X X X ��� A espada das cinco cruzes . ' . . . 1 1 4

X X X I ��� A mensagem aos ingleses . �� . . . 1 1 8








De Reginaldo


Olá, pessoal:
                   Este é mais um livro de nossa campanha de doação  e digitalização de livros para atender aos deficientes visuais.
                   Agradecemos ao Irmão Bezerra pela doação e ao irmão  Fernando  pela digitalização.
                    Pedimos não divulgar em canais públicos ou Facebook. Esta nossa distribuição é para atender aos deficientes visuais em canais específicos.


O Grupo Mente Aberta lança hoje mais um livro digital !
Desejamos a todos uma boa   leitura !

A Vida de Joana D´Arc - Érico Veríssimo

Livro doado por Bezerra e digitalizado por Fernando Santos

Sinopse:
Erico Verissimo publica A vida de Joana d'Arc em 1935, alguns anos depois de mudar-se do interior do estado para Porto Alegre. Desde a publicação de Clarissa, em 1932, o jovem de Cruz Alta já conquistara algum renome como escritor. O livro é a primeira das doze obras dedicadas ao público infantojuvenil que escreveria ao longo da vida.

A linguagem utilizada por Verissimo para contar a história da menina de Domrémy deixa bem evidente o carinho do escritor para com seu personagem, a jovem de dezessete anos ao mesmo tempo forte e frágil, crédula e determinada que realizou o feito quase incompreensível de liderar um exército para defender seu rei.

A história da curta vida de Joana d'Arc — queimada na fogueira como feiticeira aos dezenove anos pelos ingleses — é o ensejo para explicar aos leitores um período complexo da história da França: o da chamada Guerra dos Cem Anos. Tendo Joana d'Arc como foco da narrativa, Verissimo pinta um painel político e histórico capaz de fornecer a seus leitores uma noção bastante clara do período.





 



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