Este livro é o resultado de uma inspiração, de uma
transpiração, de uma parceria entre dois mundos.
O mundo do médium e a mão do editor.
Muitos autores dedicam seus livros a familiares, amigos
ou pessoas ilustres que os inspiraram de alguma maneira.
Quero dedicar este a alguém que por vezes é esquecido pelos
autores e pelos leitores. Dedico-o a quem me inspira e me
faz transpirar, a quem me impulsiona de perto, junto com o
mentor e, algumas vezes, vestindo a máscara do obsessor.
A LEONARD O MÕLLER , ME U EDITOR .
Não sei se eu conseguiria dar uma roupagem tão digna e
valorosa ao trabalho que os espíritos fazem através de mim
sem sua participação, sem que fizesse seu papel.
A você, editor, amigo e companheiro, meu muito obrigado,
meu reconhecimento público e verdadeiro por tudo que
representa em relação ao livro, ao livro espírita em particular.
INTRODUÇÃO pelo espírito Ângelo Inácio,
CAPÍTULO 1 O lado avesso da vida, 14
CAPÍTULO 2 Uma nova civilização, 50
CAPÍTULO 3 Levantando o véu, 84
CAPÍTULO 4 Os Imortais, 130
CAPÍTULO 5 A soma das diferenças, 178
CAPÍTULO 6 Zonas de impacto, 222
CAPÍTULO 7 A festa de Oxum, 292
CAPÍTULO 8 Senhores do caos, 334
CAPÍTULO 9 Cidade dos guardiões, 392
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 456
SOBRE O AUTOR, 458
XI
pelo espírito
ÂNGELO INÁCIO
A VIDA NA erraticidade. Sem vagar entre nuvens de incertezas,
todos nós vivemos e viveremos apesar da morte, da
dor e do sofrimento. Sem nos perder no nada incompreensível
ou diluir a consciência, fundindo-a ao todo inexplicável
pelo vocabulário humano, seja religioso ou científico,
sobrevivemos e sobreviveremos entre as estrelas.
O homem é produto das estrelas e para as estrelas retornará
um dia, quando puder alçar voo rumo ao país da
eternidade. Lá é onde moram os sonhos, onde vivem os
Imortais, onde as luzes se fazem gente e onde os seres são
feitos de pura luz. É onde fica a cidade habitada pelas consciências
que despertaram para a vida além dos limites demarcados
por fronteiras, estandartes ou bandeiras; onde
cessam os partidarismos políticos, ideológicos ou religiosos.
Esse é o mundo onde não há medo, nem culpa, nem
cobrança. Essa é a Amand a de todos os povos, de todas as
gentes, a cidade dos espíritos.
O país das estrelas pode ser cantado em prosa, em verso,
ao som de atabaques ou entre melodias refinadas de
Xll
instrumentos mil. A cidade dos espíritos ou, simplesmente,
Aruanda é o céu, o orum, o paraíso, para muitos. Pode
ser também o fulgor das estrelas, o cantar dos pássaros ou,
então, a habitação de pais-velhos, a terra de caboclos, de
brancos e negros, asiáticos, índios, de peles vermelhas, pretas
ou amarelas; afinal, essa metrópole é a pátria daqueles
que não se sujeitam mais aos acanhados comportamentos
exclusivistas e sectários das sociedades humanas. Ali, entre
as estrelas, é onde o espírito se retempera, onde é capaz de
haurir forças para as tarefas de redenção, auxílio ou intervenção
no mundo dos homens.
Cidade dos agentes da justiça divina — essa é a realidade
da Aruanda. Onde a justiça e a equidade se aliam
para estabelecer o Reino nos corações humanos e na Terra,
em todas as dimensões. Dela partem guardiões, caravanas
que interferem no mundo em nome da divina justiça.
É onde me encontrei, aonde fui conduzido pela espada
flamejante de um guerreiro que descortinou, ante minha
visão estreita, as luzes e os caminhos de Aruanda, também
conhecida por alguns como Ilha Sagrada, por outros,
como Shamballa; para mim, somente Aruanda, a cidade
dos Imortais.
Xlll
Um estilo de vida, um conceito de paz, uma filosofia,
uma política divina — tudo isso faz da cidade dos espíritos
um lugar mítico, uma escola onde se preparam espíritos,
forjam-se heróis anônimos, que lutam pelo progresso da
humanidade. Onde residem encantos e encantados, onde
lendas encontram sua explicação e onde o tipo encontra o
antítipo. Da Amanda, onde me encontrei depois de abertos
os portais da morte e onde até hoje me inspiro e respiro,
quando posso, a fim de retornar à Terra dos meus encantos
e dos meus antigos amores, é de onde trago, na bagagem da
alma, a poesia da imensidade.
ÂNGELO INÁCIO
São Paulo, 3 de março de 2013.
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O PRINCÍPIO ME deslumbrei com a possibilidade de estar
fora do corpo, embora somente aos poucos me desse
conta de que a situação era irreversível. Os pensamentos
das pessoas no velório, familiares pensando em como
ficariam os direitos intelectuais de minhas obras e outras
situações que considerei insólitas naquele momento; tudo
contribuiu para formar um quadro muito diferente daquilo
que eu vira até então. Nunca havia pensado em como seria
cômico, até, poder penetrar nas emoções das pessoas
ou quanto seus pensamentos eram permeáveis. Mas aquilo
tudo não era brincadeira. Aos poucos surgia um sentimento
de saudade, um quê de gratidão pelo corpo que repousava
no caixão. Enquanto isso, outra parte do meu cérebro, se
é que eu ainda tivesse um cérebro depois de morto, parecia
se divertir com a situação ou, se não isso, ao menos observava
com certa curiosidade as pessoas, seus sentimentos e
emoções, e a realidade por detrás da fantasia de sofrimento
habilmente demonstrada por muitos ali presentes. Mas
as emoções... essas eu não conseguiria disfarçar por muito
tempo. Na verdade, disfarçava também por saber, no fundo,
que não havia retorno. Deveria reaprender a viver como
morto vivo e, quem sabe, até mesmo começar tudo de novo,
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soletrar o bê-á-bá outra vez, pois o mundo para o qual fora
transferido de maneira definitiva era algo completamente
distinto de tudo quanto conhecia ou a que me acostumara.
Comecei a pensar em como me comunicar com os possíveis
habitantes deste lugar, deste universo onde agora me
encontrava. E havia outros habitantes. Disso eu não poderia
duvidar, pois a lógica do raciocínio me demonstrava
isso. Se eu estava ali vivo, pensando, raciocinando, apesar
do corpo estendido sobre o leito, naturalmente outros também
haviam sobrevivido à morte. Aliás, se acontecia comigo,
então toda a humanidade sobreviveria; não era eu nenhum
privilegiado, nesse sentido.
Não sofri por estar morto. Senti, sim, uma espécie de
nostalgia ao concluir que tudo o que construíra, todas as
pessoas com quem convivera e a realidade com a qual me
relacionava tinham ficado para trás — para sempre. Puxa!
Para sempre é muito tempo. Muito mesmo! Porém, foi assim
que pensei naquele momento, e esse pensamento foi
suficiente para produzir certa melancolia em minha alma.
Logo, logo me peguei pensando em escrever sobre o assunto...
mas escrever para quem? Por quê? Quem leria minhas
crônicas e poesias, minha produção literária de morto vivo?
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Poderia eu continuar sendo um jornalista depois de morto?
Enquanto a multidão visitava o corpo cujo coração resolvera
entrar em colapso, parar de vez, tive de enfrentar
o avesso das coisas. O outro lado da realidade a que todos
os humanos estavam habituados. E tive de me enfrentar.
Mas Deus me livre de sofrer por isso. Escolhi jamais sofrer,
mesmo depois de morto. Como? Não dei importância aos
pensamentos de dor, tormento, revolta ou culpa. De modo
algum poderia me permitir esse tipo de situação íntima
quando a minha curiosidade por essa vida do Além superava
qualquer possível tendência ao masoquismo. Que sofresse
quem quisesse. Eu, decididamente, não tinha tempo
para isso. E olhe que tempo, a partir de então, é o que não
me faltava. Mas não queria nem poderia desperdiçá-lo com
sofrimentos e lamúrias que a nada me conduziriam.
Notei certo quê de saudade ou de vontade de rever minha
filha, que, quem sabe, estivesse em condições de vir
me ver, já que eu chegava a este outro lado como morador
definitivo. Mas... pensei: "Apesar da saudade dela, a mesma
saudade que te levou à depressão há alguns dias, deixe-
a seguir seu caminho". Outra hora eu voltaria ao assunto.
Agora queria explorar tudo ao meu redor, a começar pelos
2 0
pensamentos das pessoas ali presentes. E curtir a pantomima
a que se entregavam, representando uns para os outros.
Acreditavam piamente que o morto em nenhuma hipótese
poderia conhecer o que pensavam. A maioria nem sequer
cogitava que o morto não estivesse tão morto assim.
E a saudade de minha filha parecia competir infinitamente
com minha curiosidade, sobremaneira exacerbada naqueles
primeiros momentos de vida de morto. Senti vontade de
tomar um vinho. Hummm! Como seria o meu predileto vinho
madeira? Como seria o original dele neste outro lado
do véu de ísis? Mas tive de deixar para depois os martínis,
os vinhos, fossem da Madeira, do Porto ou qualquer outro,
entre tantas coisinhas preciosas, sem falar no reencontro
com minha filha. Afinal, ela também era recém-chegada
a esta vidona de meu Deus e, como viria a confirmar mais
tarde, suspeitei que talvez estivesse se recuperando, digamos,
do cansaço da grande viagem.
Logo, logo me acostumei com a ideia de que as coisas
aqui não seriam exatamente o prosseguimento das que deixara
— ao contrário, pareciam-me bem melhores! Nossos
amores e afetos, embora continuassem amores e afetos, passavam
a ser tão somente outras almas, marujos no mesmo
21
mar, a singrar o oceano desconhecido da imortalidade. Nossas
emoções, caso nos entregássemos a elas, constituiriam o
passaporte perfeito para a infelicidade e o inferno, que trazemos
todos dentro de nós. Por isso, ao me ver de pé ao lado
do antigo corpo, tomei a decisão acertada, segundo avalio
até hoje. Nada de sentimentalismo. Se na clínica, quando
dos últimos momentos, hora ou outra a tristeza havia me
visitado, aqui a curiosidade substituíra por completo a tristeza.
Havia a saudade, mas já que dispunha da eternidade
pela frente e já que o nada inexistia, então, que esperassem
os reencontros, que aguardassem as saudades, pois eu ainda
teria muita coisa a fazer pelo resto de minha vida eterna.
Não escolhi sofrer. E, ao pensar assim, descobri que
neste lado da existência pensava de maneira absolutamente
diferente do que nos derradeiros minutos da antiga existência.
A consciência da morte e, paradoxalmente, do fato
de que continuávamos vivos parecia modificar por completo
a realidade interna, íntima. O pensamento voava; não encontrava
apenas pedras no caminho. Havia muito mais do
que simples pedras no caminho... Havia construções, muito
mais do que areia; havia uma civilização invisível, em tudo
presente, viva, ativa, pululante de vida. E eu agora era par
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te desta civilização extracerebral, extrafísica, extracorpórea.
Isso era incrível e merecia ser celebrado. Mas eu ainda
não tinha acesso a meu saboroso vinho madeira, nem tampouco
ao martíni. Assim, eu comemorava internamente,
com mil pensamentos, com sentimentos novos, com uma
euforia na alma, que dificilmente eu poderia expressar em
palavras. Celebrava o fato de ser um vivo imortal. Não um
imortal vivo, como aqueles da velha Academia de Letras.
Não. Era um vivo imortal. E sem precisar, para tanto, ter
sorvido algum elixir milagroso que prolongasse a vidinha
no corpo físico. Não; não dependia mais do limitado corpo
envelhecido. E foi então que resolvi testar os poderes ocultos
da minha imortalidade.
Concentrei-me por longo tempo. Na verdade, uns dez
a quinze minutos — tempo demais para quem é imortal.
Concentrei-me de tal maneira que revi o corpo que tivera
mais de 20 anos antes. Pensei tão fortemente nele e com
tal intensidade e riqueza de detalhes que, ao abrir os olhos,
surpreendi-me ao constatar que meu corpo se tornara exatamente
igual àquele que visualizei. E tamanha era a alegria
ao descobrir o poder fantástico de minha condição de
imortal que gritei:
23
- Viva!
Cerrei o punho direito e, como um adolescente, gritei
a plenos pulmões e saí correndo em torno do caixão, zombando
do povo que se contorcia para dar o último adeus ao
morto que não estava tão morto como aparentava.
— Ah!! — pulei novamente de alegria... — Que venham
a morte e seus desafios!
Sentia-me resoluto, agora. Desrespeitei meu próprio
velório e gritei e pulei como nunca. A morte até que não
é lá grande coisa, não. Ou melhor: a morte, ao menos para
mim, era o elixir da vida eterna! Decidi naquele momento
mesmo, diante do velho corpo que repousava frio no caixão:
a partir dali não sofreria jamais. Resolvi que aproveitaria
todo o tempo disponível para ser feliz à minha maneira,
isto é, estudando, trabalhando, matando a curiosidade e
escrevendo. Escreveria quanto pudesse para falar da vida
nova da imortalidade, das descobertas e da realidade da
vida além, sem fantasias, sem romantismos, mas da realidade
da vida assim como ela é.
Algum momento, pensaria em como mandar minha
produção para a imprensa do mundo antigo, dos que se
consideram vivos. Mas, por ora, descobrira o poder do pen
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samento, da vontade, da imortalidade. E exploraria ao máximo
a ocasião, aquele novo momento de minha vida, da
existência. Perante o aparente milagre do rejuvenescimento
da alma, esqueci-me inclusive das saudades da filha. E
gritei novamente, como um jovem alegre, inebriado com a
vida nova e com as possibilidades que se abriam diante de
meu espírito ávido por novidades, por novos conhecimentos
e, acima de tudo, por trabalho.
-Viva! !
— Alegre assim, Ângelo?
Virei-me rápido para o local de onde eu julgara ter vindo
a voz. Ainda não vira nenhum defunto vivo, além de mim
mesmo, nem ouvira nenhum pensamento, além daqueles
provenientes das pessoas que se achavam vivas entre os
chamados vivos. Mas ouvir a voz de outro imortal, era a primeira
vez. Virei-me no mesmo instante e vi um homem diferente.
Sorria, mas de alguma maneira ele era diferente.
— Seja bem-vindo ao novo mundo! — falou, sorrindo
um sorriso disfarçado, discreto. Mirei bem aquele ser estranho.
Um habitante do novo mundo, da nova vida e da nova
civilização onde eu aportara. Era alto, cabelos cortados de
tal maneira que me remetia aos militares. Roupas que eram
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estranhas para mim. As calças, semelhantes a bombachas,
lembravam soldados do III Reich. Apenas lembravam, pois
havia uma diferença marcante, que não consegui descobrir
de imediato. A camisa, algo imponente, parecia um traje de
gala ou algo assim: gola de padre, mangas longas, um distintivo
ou símbolo no lado esquerdo do peito. Era diferente
de tudo e de todos os militares que conhecera na Terra.
Mas com certeza era alguém que ocupava um cargo importante
neste mundão novo que eu começava a descobrir. Parecia
alguém de uns 30 a 35 anos, no máximo. Eu analisava
cada detalhe. E ele soube disso. Sorriu agora um sorriso
largo, magnético, enigmático.
— Eu sou Jamar! Muito prazer.
— E eu me chamo Ângelo, Ângelo Inácio. Muito prazer,
também.
Medindo-me, como a penetrar meus pensamentos, e
eu incomodado com esse fato, acentuou bem as palavras:
— Ora, ora! Já que você conseguiu chegar aqui sem o
peso da culpa que muitos forjam em suas mentes, parece
claro que se liberou conscientemente de uma carga muito
pesada. Não percamos tempo; você não pode mais continuar
aqui. Vamos embora!
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— Continuar aqui? Ir embora?
— Ou você pensa que continuará velando o próprio
corpo como esse povo todo aí, ainda mais agora que já descobriu
a inutilidade dessa despedida que fazem? E como
já sabe dos pensamentos que passam pela cabeça daqueles
que o homenageiam, então, por que ficar aqui? Perdendo
tempo? Temos muita coisa pela frente! Há muito trabalho
por fazer e você precisa começar logo. Tem de se preparar
para voltar.
— Voltar para onde?
— Na hora certa, você saberá. Por hora, temos de sair
daqui. Outros espíritos já estão a caminho para fazer o que
tem de ser feito.
Hesitei por alguns momentos, até que o vi envolvido
por uma luz quase mística. Ao redor, irradiações magnéticas
desenhavam o que me pareciam asas, como se fossem
de anjo ou algo do gênero. A visão foi muito rápida, porém
o suficiente para saber que lidava com alguém especial ou,
no mínimo, diferente de tudo e todos que conhecia. Desembainhou
em seguida uma espada, até então não percebida,
e brandiu-a no ar. A medida que intensificava aquelas
energias em torno de si, na forma de asas, conforme inter
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pretei na ocasião, suas roupas pareciam se diluir numa frequência
diferente, numa luz também distinta, mas que lhe
conferia a aparência de um anjo guerreiro, talvez meu anjo,
o anjo de guarda. E minha mente de imediato fez as conexões
necessárias, a fim de que eu não me demorasse mais
ali. Não poderia recusar o convite de um ser desses. Eu era
convidado para ir ao lado dele para sei lá onde, e soube que
não havia como recusar.
— Vamos, Ângelo! — falou, com o sorriso enigmático.
Enquanto falava, com uma mão estendida para mim e a
outra segurando a espada, instrumento que naquele momento
não tive condições de analisar, ele simplesmente
abriu um rasgo no espaço à sua frente. Uma porta no espaço
ou entre dimensões? Não saberia definir, ainda. Mas
a espada de fato abriu uma brecha no universo, quem
sabe, e pude vislumbrar, através daquela fenda, um mundo
diferente, talvez uma cidade, muito distante. Estrelas
que pareciam de outro mundo, estrelas que pareciam
me fitar... e o homem, Jamar, estendia-me a mão, embora
o convite se fizesse mesmo pelo pensamento, que também
rasgava o meu, e penetrava-me internamente como se fosse
o fio de sua espada.
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Eu olhava fascinado pela abertura dimensional instaurada
pela espada do guerreiro, do guardião, como ficaria
sabendo mais tarde. E aquele mundo diferente, iridescente,
cheio de estrelas; aquela cidade, cujo esboço eu via entre
os sóis da amplidão, rebrilhando entre nuvens ou poeira
de estrelas, parecia me magnetizar. E o fenômeno todo
daquele instante parecia diluir minha alma, de tal modo
que, ao tocar a mão estendida de Jamar, senti como se minha
alma toda se abrandasse e engrandecesse; acalmavam-
se meus pensamentos, tranquilizavam-se minhas emoções.
A curiosidade inata repousou por um instante, pois me senti
adormecer como num sono agradável, sereno e povoado
de sonhos. Sonhei com um país diferente, sem ditadura nem
ditadores, sem limites fixados por bandeiras ou fronteiras
hostis. Um país para o qual eu era levado pelas mãos de Jamar,
o anjo que me acompanhava em direção ao início de
uma vida nova, uma aventura espiritual que jamais teria fim.
Quando abri os olhos, fui tomado de surpresa. Encontrava-
me deitado numa espécie de barco, que deslizava
suavemente sobre águas calmas. Seria um mar? Não saberia
precisar, embora, para onde quer que olhasse, percebesse
somente águas e mais águas. Esforcei-me e me pus de
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pé, devagar, sentando-me logo após. E Jamar estava lá, de
pé, ereto, na proa da embarcação, ainda rebrilhando, porém
discretamente, como se quisesse disfarçar sua aparência.
De um lado e outro, dois outros homens remavam com
notável tranquilidade, ambos em pé, e somente eu sentado.
Brisa suave parecia vir de algum lugar; ao longe, à frente
do barco, avistava-se um brilho, um tremeluzir de uma
luz que, a mim, pareciam-me as luzes de uma cidade. Seria
a cidade que eu percebera quando Jamar rasgara o espaço
com sua espada? Seria a cidade das estrelas? Não saberia
dizer. Aliás, eu não sabia sequer como adormecera e nem
como fora parar ali.
— Este é o Mar da Serenidade! — falou Jamar, sem
olhar para mim.
Deliciava-me ao contemplar a paisagem marítima, e
agora tinha a confirmação de que estava diante de um mar.
Águas extremamente claras e de tal maneira translúcidas
que podia divisar golfinhos nos seguindo, pulando ora aqui,
ora ali, ao lado da embarcação, além de diversos outros habitantes
das águas. Ainda sem olhar para mim, mas fixando
longe aquilo que devia ser uma cidade, mas cujos detalhes
me escapavam, Jamar continuou:
3 0
— Estes são guardiões, que estão nos remos. São servidores
como eu e meus outros irmãos.
Olhei para os dois homens que estavam de pé remando,
cada qual de um lado do barco, e os vi sorrir. Um sorriso largo,
aconchegante, espontâneo. Foi o suficiente para me sentir em
casa; era como se conhecesse essa gente de longa data. Até
mesmo Jamar, o anjo que nos conduzia. De repente, fui surpreendido
por um enxame de seres que pareciam borboletas.
— Não são borboletas. Olhe bem, Ângelo!... — falou Jamar,
sem se voltar para mim, ainda fitando ao longe.
Novamente observei e notei que o panapaná — ou seja
lá como se classificasse essa comunidade de seres — parecia
brincar sobre as águas, arrastando-se em grande velocidade.
Eram fosforescentes, a meu ver, e irradiavam uma
tonalidade azulada, quase como neon. Mas pareciam quase
humanos, muito embora o tamanho menor que uma mão
humana. Brincavam, sorriam e dançavam sobre as águas
em bandos, enquanto alguns cavalgavam um ou outro golfinho,
que pelo jeito se deliciavam com a presença daqueles
seres pequeninos. Pensei que estava sonhando, ainda.
— Não está sonhando, Ângelo. São seres reais, são habitantes
das águas e vêm nos recepcionar. Para onde iremos,
31
você se acostumará com a presença deles. São os chamados
elementais.1
Minha mente pareceu um turbilhão. Minhas emoções
arrebentavam de dentro de mim ao perceber a vida abundante
naquele novo ambiente. E minha reação foi a mais
human a possível: comecei a chorar. Só então Jamar voltou-
se para mim.
— Não há como não se emocionar com a riqueza da vida
ao nosso redor. Sinta-se à vontade, amigo. Também choro
muitas vezes diante da manifestação da natureza sideral.
Olhei ao redor e vi os golfinhos levando vários seres na
garupa, os quais se divertiam visivelmente. Eram habitantes
daquele mund o diferente, novo, estuante de vida. E eu
exultava ao presenciar tudo aquilo.
Para maiores esclarecimentos sobre os elementais naturais, agrupados sob a denominação
espíritos da natureza na codificação espírita (cf. KARDEC. O livro dos
espíritos. Ia ed. esp. Rio de Janeiro: FEB, 2005. p. 337-340, itens 536-540), consulte
o volume 2 da série Segredos de Amanda (PINHEIRO. Pelo espírito Ângelo Inácio.
Amanda. 13a ed. rev. ampl. Contagem: Casa dos Espíritos, 2011. p. 86-98, cap. 7). Há
esclarecimentos importantes nesse trecho, inclusive sobre a opção por adotar a nomenclatura
do esoterismo clássico, elementais.
32
— Estamos chegando — informou um dos guardiões
que remavam. Deixaram os remos de lado, e o barco deslizava
sozinho, pelo menos deduzi assim. Mas não! Eram
os golfinhos e os seres pequeninos que conduziam a embarcação
no trecho próximo à hora de atracar. Chegamos
deslizando, lentamente, sobre as águas calmas daquele mar
sereno, em tudo diferente do que eu conhecia. Mais e mais
seres das águas se mostravam às dezenas, às centenas. E o
mar parecia ganhar vida, uma vida nunca antes percebida
por mim ou, quem sabe, ainda desconhecida de todos na
face da Terra. Desembarcamos devagar e meus pés se molharam
naquela água ligeiramente fresca, agradável. Comovia-
me com cada detalhe do mundo novo. Foi quando notei
que havia gente nos recepcionando.
Logo ao pisarmos o solo, um grupo de crianças, adolescentes
e outros personagens diferentes, exibindo trajes de
diversas épocas e estilos, vinham em nossa direção. Alguns
correndo, brincando, soltando gritos de felicidade. No meio
deles, para minha surpresa, Maria, a minha Maria vinha me
receber. Além, um pouco mais vagaroso, como dando tempo
para os demais se apresentarem, notei um homem elegante,
um senhor já de idade, terno branco, alvíssimo, de linho
33
puro. Sorriso largo nos lábios, olhava-nos, enquanto eu recebia
das mãos de uma criança um colar semelhante a um colar
havaiano, porém feito de flores reais, naturais, perfumosas.
Chorei ao rever Maria, minha adorada filha. E a saudade
arrebentou dentro de mim, disputando espaço com
emoções novas. Sem sofrimento, porém. Senti-me renovado
ao abraçá-la.
— Estou aqui apenas esperando a sua chegada, meu pai.
Apenas por um pouco de tempo, para que saiba que estou
bem e viva — disse ela. Abraçamo-nos ali mesmo, e me senti
aconchegado em seus braços por um tempo muito longo.
Ou seria impressão minha? Sei que, quando nos soltamos
um dos braços do outro, sentia-me ainda mais jovem do que
quando mentalizei o corpo de alguns anos antes. E Maria
olhava-me, e falava mais com o olhar do que com palavras.
Logo veio o ancião vestido de terno branco, enquanto
algumas crianças me conduziam pelas mãos. Maria ficou a
certa distância, olhando-me e sorrindo:
— Não se preocupe, meu pai. Você está em casa. Estaremos
juntos, a partir de agora — e senti que isso era verdade.
— Seja bem-vindo ao lar, Ângelo Inácio! — saudou-me
com largo sorriso o ancião que me recebera, acompanha
34
do por Jamar, que curvava levemente a cabeça, como se o
reverenciasse.
— Obrigado pela acolhida generosa! Mas sabe o meu
nome, e eu não o conheço ainda...
— Chame-me de João! Apenas João. Isso é o bastante
por enquanto, meu filho.
— Este é um dos anciãos que compõem o colegiado de
nossa cidade — explicou Jamar.
— Colegiado?
— Mais tarde será devidamente informado.
Olhei ao redor e vi campos, florestas, montanhas. Ao
longe, talvez a alguns quilômetros, ainda, a cidade que se
erguia majestosa, entre bosques, trepadeiras, jardins e rios,
que pareciam escorrer de montanhas; havia também prédios
e outras construções. Era uma paisagem diferente,
exótica, maravilhosa, deslumbrante, em tudo diferente das
cidades que eu conhecera e da própria cidade maravilhosa
de onde viera. Tudo parecia repleto de vida, de cor e de
aromas únicos e inebriantes.
O ancião negro à minha frente segurava uma espécie
de cajado ou bengala, embora não precisasse de nada para
apoiar-se, afigurando-se mais como acessório a compor
35
-lhe o visual do que auxílio à locomoção, de modo a torná-
lo ainda mais elegante. Entre as crianças e adolescentes
que me recepcionaram, pude notar algo curioso: a grande
variedade de etnias ali representadas, num amálgama bonito
de se ver. Negros, mulatos, brancos e ruivos dos traços
os mais diversos, além de indígenas de toda parte, dos
peles-vermelhas aos aborígenes e outros mais, sem falar
nos representantes de povos asiáticos, em toda sua riqueza;
enfim, um mosaico de etnias, povos e culturas que me impressionou.
Ao que me parecia, conviviam todos de maneira
harmoniosa. Seria ali o Céu? A antecâmara do paraíso?
Sorrindo sempre de modo sincero e generoso, João olhou
para mim e, colocando a mão sobre meu ombro direito,
apontou para a cidade ao longe.
— Não é o Céu ainda, Ângelo. Ainda, não! — disse rindo
com um sorriso farto, espontâneo. — Aqui não tem anjos
nem santos — falava pausadamente —, apenas seres humanos
como você, eu e Jamar ou como os bilhões na superfície
do planeta. Aqui também estudamos, aprendemos, erramos
muito, mas muito mesmo, e tentamos acertar ao máximo.
Aqui é simplesmente a Aruanda de todos os povos, de todas
as gentes. Apenas a Aruanda.
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Não saberia dizer o porquê, mas esse nome me tocou
profundamente o coração desde o instante em que o ouvi
ser pronunciado pela primeira vez. Seu eco em minha mente
parecia mexer fundo com meus sentimentos e emoções, e
ainda não havia penetrado os limites da cidade, em si. Estava
na periferia, digamos assim. Enquanto mirava a cidade, que
para mim se afigurava deveras distante, fui insistentemente
chamado por um jovem adolescente, que apontava em determinada
direção, tentando me mostrar ao longe, do lado oposto
àquele onde se via o mar por onde chegáramos. Apontava
as montanhas no horizonte. E me encantei com o que vi.
Choupanas, bangalôs de traçado incrivelmente elegante,
contrastando com a simplicidade de sua estrutura. Eram
casas que, a meus olhos, pareciam feitas de madeira, mas
conviviam tão harmoniosamente com a paisagem natural
que formavam um quadro encantador, em meio a riachos,
cachoeiras e vegetação de tons variados, além de pássaros
e outros animais que jamais imaginava poder encontrar
após a morte, ou após a vida, em outra vida, em qualquer
lugar do universo. Havia também outras construções, que
pareciam feitas de concreto ou alguma substância similar,
mas na ocasião desconhecia pormenores para descrevê-las
37
melhor. Do mesmo modo, exibiam beleza e conviviam pacificamente
com a natureza, denotando que o paisagismo
fora detalhadamente planejado, de forma a preservar tanto
a elegância das construções quanto o relevo e a vegetação
exuberante no entorno de cada uma delas. E me encantei, e
chorei novamente de emoção, de alegria por me sentir vivo
e por saber que faria parte de tudo aquilo, daquela paisagem
extraordinária, diante da qual as belezas naturais da
cidade de onde vinha eram apenas uma amostra, um esboço,
talvez. Nada se comparava àquilo que meus olhos enxergavam.
Nada. Enfim, aquela era a Aruanda da qual João
me falava e que as crianças e jovens me mostravam. Eu respirava
fundo o ar fresco e o frescor que parecia me trazer,
impregnado do aroma de flores de laranjeira.
— As construções que lembram algumas que você já
viu na Terra, Ângelo, feitas de concreto, são museus, onde
os artistas da nossa cidade e de outras expõem suas obras,
produto de criações mentais. No total, são 1,2 mil museus
dispostos em meio às montanhas, vales e planícies. As
choupanas, casas simples e bangalôs são habitações de espíritos,
daqueles que preferem viver em meio à natureza,
de maneira mais direta e intensa, e que não apreciam tanto
38
a vida urbana, isto é, na cidade, propriamente. Adiante —
continuou Jamar, aproximando-se de mim e de João, que
ainda repousava o braço sobre meus ombros — há outras
habitações, laboratórios de experimentos com a natureza,
entre outros departamentos, que você terá bastante tempo
para explorar.
Tudo aquilo era muito novo para mim. Embora me sentisse
à vontade diante das pessoas que me recebiam, àquela
altura percebi-me ainda um pouco fraco. Não sei se devido
ao fato de ter morrido para o mundo, ou desencarnado,
conforme algumas correntes espiritualistas diziam, certo é
que a transição parecia ter afetado de alguma maneira minha
vitalidade. Não era um cansaço profundo ou pesado,
como quando se está esgotado, após uma jornada de trabalho
intensa. Não! Era algo mais ameno, mas que me deixava
claro ser necessário repousar. Repousar? Ali mesmo veio à
tona o questionamento cruel: onde poderia eu descansar?
De que forma encontrar um local para me hospedar ou morar?
Acabara de chegar a este mundo espiritual, conforme
chamavam a vastidão daquele universo de almas e homens.
Não me senti confortável para falar a respeito e logo pensei
em minha filha. Ela chegara poucos dias antes de mim,
39
portanto talvez pudesse ficar com ela; assim, teríamos tempo
para conversar. Mal formulei o problema e João dava
mostras de conhecer profundamente meus pensamentos e
questionamentos:
— Não se preocupe, Ângelo. Você será encaminhado a
um dos nossos hotéis na cidade. Lá se sentirá tão à vontade
que talvez seja difícil convencê-lo a sair de lá, depois. Mas
tudo a seu tempo. Maria o acompanhará, junto com Jamar.
— Hotel? Como assim? Há hotéis por aqui?
— E como não? — falou Maria ao aproximar-se de mim,
tomando o lugar de João e abraçando-me. — Aprenda de vez,
meu pai: o mundo aqui é o mundo original, primordial; lá, na
Terra que eu e você deixamos há pouco, está apenas a cópia.
Lembrei-me de alguns hotéis onde havia me hospedado,
em cidades do Brasil e do mundo. E vários deles foram
bons hotéis.
— Então, se na Terra muita coisa é de boa qualidade,
imagino o original, do lado de cá...
— Pois é, meu querido — retornou Maria, dando-me
maior atenção ainda. — Em pouco tempo me surpreendi
com muita coisa, mas creio que para você, com sua curiosidade
inata, o campo de pesquisa seja muito mais vasto.
4 0
— Por acaso posso continuar escrevendo aqui? Posso
ser jornalista, também?
Antes que Maria me respondesse, Jamar assumiu a
dianteira e falou:
— Claro, Ângelo. Você verá em breve que terá muito
trabalho a fazer nessa sua área. Terá muitos elementos a
pesquisar e um campo bem amplo a ser explorado e comentado
num outro tipo de jornalismo. Poderá, inclusive,
conhecer a redação do nosso jornal e, quem sabe, queira
ser um dos escritores do Correio dos Imortais.
— Então terei como fazer o que mais gosto, escrever...
— Sim! Para os vivos do nosso lado e para os que continuam
na carne — completou ele.
— Não entendi. Quer dizer que não se fecharam para
sempre as portas de comunicação com o mundo dos vivos?
— impressionei-me.
— E você, eu e sua filha, por exemplo, não estamos vivos,
também?
— Eu sei, eu sei, mas falo dos que vivem no mundo, no
mundo que deixei...
— Ah! Sei do que está falando — Jamar se fazia de bobo
de propósito. — Basta por ora saber que você poderá voltar,
41
sim. E muito mais breve do que poderia imaginar!... Mas
vamos ao hotel.
Fiquei duplamente intrigado, curioso ao extremo. Ir
a um hotel numa cidade feita por espíritos e para espíritos.
De outro lado, a possibilidade de retornar ao mundo,
de trabalhar como repórter, escritor, jornalista. Como poderia
ser isso? Minha mente estava febril; antes mesmo das
outras surpresas que viria a ter, parece que meu cansaço
havia passado. Não conseguia pensar em nada mais, a não
ser o que eu escreveria sobre o mundo novo que começava
a conhecer. Mas aquilo era apenas a ponta do iceberg; jamais
imaginaria quais experiências me aguardavam. Mesmo
assim, fui descobrindo pouco a pouco que este mundo
novo talvez fosse mais desafiador, ao menos no que tange
a ideias e descobertas, do que o mundo antigo, que deixei
junto com o corpo físico.
Um veículo aproximou-se rapidamente de nós. E esse
foi mais um desafio para o tipo de ideia que eu ameaçava
fazer da vida de espírito. Era um veículo pequeno, bem ao
estilo dos automóveis que desfilavam nas ruas da Cidade
Maravilhosa e de outras tantas cidades do mundo... Não
fosse o fato de que não precisava de rodas! Deslizava a al
4 2
guns centímetros do chão daquele novo lar. Olhei para Jamar,
que sorria discretamente — aliás, dificilmente o vi sorrir
de maneira mais aberta, explícita, gargalhando, como se
vê entre os chamados vivos. Abriu-se a porta do veículo e
entramos, Maria, o próprio Jamar e eu. Não explicou, apenas
acompanhou meus pensamentos. Naquele ponto, era
claro para mim que ele conhecia os caminhos intricados
que trilhavam meus pensamentos.
— São aeronaves, meu pai — socorreu-me Maria. —
Aqui também existe muita tecnologia. Já vi muita coisa, em
poucos dias.
— Mas não somos todos espíritos? Por que não saímos
voando por aí?
— Não é simples assim. Você aprenderá logo, logo. Fique
quieto que terá outras surpresas por aqui.
O veículo partiu numa velocidade altíssima para os padrões
terrenos. Deslizava com tal facilidade que não percebi
nenhum sinal de movimento semelhante ao que ocorre
com os carros convencionais ao frear ou acelerar. Depois
de algum tempo, elevou-se ao alto e saiu voando, embora
parecesse planar enquanto adentrava a metrópole, propriamente
dita. E fiquei deslumbrado. Seria Niemayer o
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arquiteto mágico de tudo isso? Mas não; ele permanecia
encarnado quando abandonei o corpo físico. Ou teria ele
estudado aqui antes de nascer no mundo? Quem sabe algum
artista, esteta ou escultor entalhara ou projetara aquela
maravilha da arquitetura, como se fosse uma obra-prima
engastada na própria natureza desse mundo imponderável,
invisível aos olhos humanos? Meu Deus!... Fui tomado de
deslumbre ao pensar no autor de tudo o que via.
Edifícios que pareciam esculpidos em cristal ou substância
similar; outros, em uma matéria tão sutil, etérea,
quem sabe de determinada constituição nunca antes detectada,
descoberta ou conhecida entre os mortais. Tudo
brilhava, cintilava entre formas e cores que em nenhuma
hipótese havia percebido ou vislumbrado. No meio da natureza
preservada, cultivada, eis que trafegavam os veículos,
uns imensos, outros menores e alguns outros, vistos ao
longe, rompendo o horizonte, pareciam sair da atmosfera.
Nunca me senti tão pequenino como naquele momento.
E, na Terra, como a gente se gabava de ter construído uma
civilização... Descerrava-se ali a verdadeira civilização do
planeta Terra. Meu coração encheu-se de terna gratidão à
vida, enquanto lágrimas desciam à minha face.
4 4
O veículo se dirigiu a determinado ponto da grande
metrópole, que se assemelhava a bairros residenciais da
paisagem urbana, de certa maneira. Pairamos no andar baixo
de um edifício de linhas modernas, em local que parecia
estar reservado ao veículo que nos conduzia. Jamar desceu
primeiro, abrindo a porta para nós.
Encontramos uma mulher elegante, trajando uma roupa
que lembrava a belle époque e os anos 1920 da antiga Paris,
com um chapéu igualmente elegante emoldurando os
cabelos. Maquiagem discreta, traços fisionômicos que inspiravam
confiança e segurança, ao mesmo tempo.
— Seja bem-vindo, guardião da noite. Sejam todos bem-
vindos. Já estamos esperando por vocês.
Olhei para Jamar como a pedir alguma explicação. Ele
ignorou minha curiosidade.
— Fique quieto, meu pai — falou Maria. — Em breve
você saberá quem é Jamar e por que está abonando nossa
estadia aqui.
Adentramos o ambiente, que à primeira vista não se
diferenciava de um dos ótimos hotéis, diria quase de luxo,
de uma capital europeia. Porém, distinguia-se pela sobriedade,
elegância e beleza incomuns, sem nada que reme
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tesse a fausto e opulência. Havia uma recepção e um balcão,
onde eram registrados os hóspedes, como de costume.
Para lá nos dirigimos, na companhia da mulher que nos
conduzia.
— Já o aguardávamos aqui, Sr. Ângelo! Meu nome é Dayane
e pode ficar à vontade para perguntar o que lhe convier.
Contudo, preciso que preste atenção a algumas informações
que devo lhe passar.
Olhei para Maria e também para Jamar, mas eles pareciam
mancomunados. Deixaram-me a sós com minha
curiosidade quase mórbida, que aflorava a todo vapor.
— Não é necessário preencher qualquer ficha por aqui.
Preciso apenas que o senhor seja submetido ao sensor de
emoções. Mas não demora o procedimento; é algo simples,
cujo funcionamento poderei lhe explicar, mais tarde.
Conduziu-me ao balcão e lá me orientou a colocar a
mão espalmada sobre um aparelho, que tinha a superfície
feita, ainda, de uma variação de um cristal cintilante. Assim
que pus a mão ali, à minha frente se ergueu uma espécie de
tela holográfica, com várias informações sobre minha vida,
e algumas outras que não pude entender naquele momento.
"Altíssima tecnologia", pensei.
46
— Com certeza — afirmou Jamar, rompendo o silêncio.
— Pois bem, senhor — falou Dayane, a dama que nos recebera,
enquanto outras pessoas ou espíritos também eram
atendidos por seres que ali trabalhavam. — Temos aqui
uma espécie de hotel. Na verdade, assim o chamamos para
melhor facilitar o entendimento das pessoas que chegam à
nossa cidade diariamente, tanto advindos da Terra quanto
de outras cidades do espaço. Existem apenas duas regras:
convivência pacífica com a natureza e respeito aos limites.
Não se paga nada; sua estadia é abonada por seres mais experientes
que patrocinam sua vinda à nossa Aruanda. Ficará
aqui temporariamente; mesmo assim, estruturamos um
tipo de apartamento de acordo com suas necessidades particulares
e alguns de seus hábitos na Terra, de tal maneira
que não sofrerá grande impacto no novo ambiente. Fique à
vontade para pedir qualquer coisa através do aparelho de
comunicação que encontrará em seus aposentos.
A mulher saiu para logo começar o atendimento a outra
pessoa que chegava ao local. Não imaginei que fosse
simples assim o atendimento e tão rápido como se deu.
— Voltarei mais tarde, Ângelo. Devo comunicar a alguns
amigos sua chegada. Daremos um tempo para que se
4 7
recupere; porém, fique atento, pois daqui a exatamente 4
horas chegará um médico para ver seu estado energético e
emocional. É alguém muito humano, como você e eu; não
se preocupe. Aconselho que descanse, durma um pouco e
deixe a curiosidade para depois. Terá muita coisa com que
se ocupar breve, breve. Aproveite, pois espero que não fique
tempo demais por aqui — Jamar saiu, despedindo-se
de Maria e de mim e fazendo um aceno discreto para a mulher
que nos recebeu naquele ambiente tão acolhedor.
Olhei mais detidamente em volta e comecei, então, a
notar diferenças mais marcantes em relação às construções
terrenas. Mas eram tantas, tanta tecnologia que eu nunca
vira na Terra, que pensei estar inserido nu m sonho tridimensional
de ficção. No entanto, a presença de minha filha
me fez crer que aquilo tudo era realidade — era a nova realidade
com a qual eu teria de conviver a partir dali. Respirei
fundo. Abraçado com Maria, deixei-me conduzir por ela e
por outro espírito que logo se apresentou, no novo ambiente
onde eu repousaria por certo tempo. Iniciava-se ali minha
descoberta daquela cidade espantosa, maravilhosa e
sobretudo diferente de todas que conheci durante a existência
física. Eis que agora eu morava na Amanda; ao me
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nos por enquanto era hóspede em uma metrópole espiritual
que os humanos encarnados nem sonhavam existir.
Era a cidade dos espíritos, a cidade das estrelas.
53
ESPERTEI EXATAMENTE QUATRO horas depois, ou melhor,
dormi três horas apenas, pois durante uma das horas
a mim concedidas fiquei bisbilhotando o hotel e tentando
obter informações sobre seu funcionamento. Era tudo muito
inusitado e extraordinário para mim, embora estivesse
satisfeito com o fato de estar vivo, apesar da morte. Não
obstante, encontrar uma estrutura tão complexa e ainda incompreensível
para mim era algo que definitivamente me
intrigava e me instigava o espírito aventureiro e a curiosidade
inata, que fazia despertar em mim o interesse por tantas
coisas.
Acordei me sentindo satisfeito, inspirado, quase em
plena saúde. Assim que me levantei, descobri que o médico
já me aguardava na antessala. Alto, claro, magro e vestido
de maneira sóbria, impecável, parecia haver chagado
ali há apenas um minuto. Mas esperava por mim. Mal havia
me colocado de pé e ouvi tocar um instrumento, que soou
para mim como uma campainha, emitindo um som suave.
Apressei-me até a porta e vi o médico em pé diante de mim.
Não demonstrou hesitação: entrou imediatamente no amplo
quarto onde me encontrava e começou a conversa, quase
sem se apresentar:
5 4
— Boa tarde, Ângelo! Não temos muito tempo, meu irmão.
Sou um dos servidores da cidade e estou aqui para
avaliar sua condição energética ou saúde espiritual. Sente-
se, meu caro.
Fiquei um pouco perdido, confesso, mas obedeci quase
cegamente, pois sentia uma ascendência moral naquele homem,
como se fosse um carisma irradiante. Ia esboçar uma
pergunta quando ele continuou por si mesmo:
— Durante o tempo em que dormia, dois de nossos
magnetizadores ficaram a postos no quarto ao lado, manipulando
suas energias, magnetizando-o, de maneira que
pudesse se sentir melhor quando acordasse. Espero que tenha
sentido os resultados.
Enquanto discorria, tirava de uma maleta alguns instrumentos
e os colocava numa mesinha ao lado. Aliás, devo
acrescentar, uma mesinha sem pés, que de alguma forma
eu não havia reparado, flutuava no ambiente como um balão,
a apenas alguns centímetros do chão. Colocou ali dois
aparelhos muito pequenos, menores que uma mão humana,
e, ao tocar-lhes a superfície, sem botões aparentes, foram
acionados e começaram a funcionar. Enquanto isso, retirou
uma espécie de tubo de uns 20cm do mesmo lugar de onde
55
extraíra os instrumentos anteriores. Tocava em mim levemente,
em alguns pontos que para mim não significavam
grande coisa, ao menos naquele momento. Provavelmente,
notando minha curiosidade sobre a forma como praticava
sua medicina, achou por bem esclarecer:
— Nossa medicina aqui é bem mais avançada que a
medicina terrena, isto é, dos encarnados. Do lado de cá
da vida, contamos com especialistas na tecnologia sideral
que desenvolvem instrumentos apropriados para devassar
o corpo espiritual de meus irmãos. Estes dois instrumentos
são usinas de energia que emitem radiação e eletricidade
que seriam suficientes, comparativamente, para abastecer
duas das grandes metrópoles da Terra por mais de 20
anos. Guardam um potencial que não pode ser mensurado
apenas pelo seu tamanho. Quanto à nossa medicina, ela é
energética, psicossomática. Avaliamos com instrumentos
ultrassensíveis os campos de força, as correntes de energia
e a condição das emoções de nossos pacientes. Não utilizamos
em nossa cidade métodos tradicionais como cirurgias
invasivas, injeções ou outros recursos usados na Terra
e também em muitas cidades espirituais. Aqui nosso tratamento
usa técnicas avançadas de magnetismo e alguns pro
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cedimentos mais intensos, em caso de necessidade, porém
não invasivos. Isso também é possível porque nos hospitais
da cidade não temos espíritos dementados ou em condições
de significativo desajuste. Mais tarde, poderá visitar-
nos as instalações médicas, caso queira.
O homem falava enquanto me analisava. Sentia que o
aparelho produzia em mim uma sensação de formigamento,
que até me parecia uma leve anestesia. Porém, o médico
não entrava em detalhes. Mal eu esboçava uma pergunta ou
pensava em falar e logo ele prosseguia:
— Como eu imaginava, algumas sessões de magnetismo
e um acompanhamento detalhado de seu estado emocional
serão suficientes para você se sentir mais pleno e em condições
de trabalhar. Tenho lhe acompanhado desde algum
tempo antes de realizar a grande viagem. O descarte biológico
foi programado detalhadamente por nossa equipe e tivemos
o cuidado de acompanhá-lo nos primeiros momentos
pós-morte, dispersando os fluidos que poderiam ser
mal utilizados por inteligências da oposição. Afinal, você
era alvo dos opositores do Cordeiro. Tínhamos que cuidar
bem de você devido ao potencial para o trabalho e também
ao passado ligado a nós, de certa maneira.
57
— Posso perguntar alguma coisa?
— Mas você está perguntando, meu amigo, só que me
adianto aos seus pensamentos apenas porque não disponho
de muito tempo. Mas pode perguntar, sim. Sinta-se à
vontade, ou melhor, nem tão à vontade assim, pois tenho
compromissos urgentes em outro departamento.
— Qual... — comecei a selecionar bem as palavras, demorando
um pouco a formular a frase. Mas parece que o
espírito à minha frente era mais ágil ou não tinha tanta paciência
assim.
— Joseph Gleber, à sua disposição, meu querido.
E voltando-se em direção à saída, caminhou, detendo-
se mais um pouco somente para acrescentar:
— Existe um gravador ao lado de sua cama. Fique à
vontade para formular perguntas no seu tempo e no seu ritmo.
Quando terminar, basta encaminhar uma solicitação a
Jamar e eu responderei com os devidos esclarecimentos.
Estarei sempre ao seu dispor, mas não posso me deter por
muito tempo. Espero que compreenda que nosso trabalho
aqui é intenso e daqui a cinco minutos tenho de realizar
uma conferência em outra cidade, o que requer minha dedicação
imediata. Deus seja contigo, amigo.
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E simplesmente saiu! E sumiu. E eu ali, boquiaberto,
sozinho, me sentindo um lixo espiritual... nem tanto lixo
assim — tudo bem, seria um exagero —, mas quem sabe solitário
ou, ainda, melindrado com a situação.
"E esse cara entra aqui assim, apressado, sem me fazer
nenhuma pergunta, com esse sotaque rude que me faz
lembrar sei lá o quê... Parece um Sr. Spock do Além, cheio
de parafernálias tecnológicas, quase mágicas, e nem me
mandou respirar fundo, não mediu minha pressão. Afinal,
morto também deve ter pressão arterial e, tendo ou não,
a minha deve estar nas alturas, neste momento." Me senti
desprezado. Não era somente na Terra que as consultas
médicas duravam tão pouco. Parece que aqui, no tal mundo
original e primitivo, as coisas também eram rápidas, muito
rápidas. "Quero protestar. Aqui também deve existir um órgão
de reclamações. Quem esse tal Dr. Joseph Gleber pensa
que é para me tratar assim? Nem me deu chance de perguntar
nada..."
— Eu lhe dei chance sim, meu irmão — ressoou uma
voz em meus pensamentos, deixando-me arrepiado. Arrepiado
mesmo! Descobri ali que espírito também arrepia
de medo, de pavor. O homem já havia saído e demonstrava
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saber o que eu pensava. — Peço-lhe desculpas, amigo, mas
passei apenas para uma visita rápida, uma vez que você
será atendido por outro amigo de minha equipe. Quis apenas
me certificar de que não precisaria ficar internado no
hospital. Mas estou atento a você em todo momento.
— Então por que não retorna para conversarmos?...
— Sinto muito, já não me encontro na mesma cidade
espiritual que você. Estou a mais de 5 mil quilômetros daí,
se assim posso dizer.
Levei as mãos à cabeça e gritei:
— Meu Deus, que horrível é conviver com gente assim!
Esse homem está falando dentro de mim, e está em outra
cidade, a mais de 5 mil quilômetros!... Não posso entender.
— Deixe de dramas, meu irmão! Você não leva jeito
para isso. Tem muito o que aprender e desaprender ainda.
E muito desafio pela frente. Ah! O tal doutor não é nada
mais do que um simples servidor. Não me chame de doutor,
por favor. Fique bem!
E a voz silenciou por completo. Comecei a apalpar minha
cabeça desencarnada, como tentando identificar se havia
um implante de algum microfone ali, mas não identifiquei
nada. Era somente eu, mesmo.
6 0
"Desisto, vou esperar Jamar chegar, pelo menos ele parece
ter algum tempinho para mim..."
Um som de campainha se fez ouvir no quarto. "Também,
parece que por aqui ninguém dá tempo de a gente
descansar!" Atendi a porta, e era alguém ligado à recepção
do chamado hotel.
— Desculpe, meu senhor, mas haverá uma reunião no
salão de conferências, logo após sua primeira alimentação,
que poderá ser servida aqui mesmo em seu quarto ou, se
preferir, junto aos demais que chegaram da Terra, em nosso
refeitório principal. Onde prefere, senhor?
— E espírito come também?
— Por acaso não sente vontade de se alimentar? — redarguiu
o homem à minha frente.
— Talvez um pouquinho...
Sorrindo largamente ele se apresentou, desculpando-se:
— Queira me perdoar, Sr. Ângelo. Não me apresentei.
Sou Bernardo e estagio aqui há bem pouco tempo, por isso
a inexperiência. Desculpe-me a indelicadeza, senhor.
— Mas você não foi indelicado...
— Bem, senhor, notará que trouxe muita coisa de sua
humanidade consigo. E alimentar-se é algo muitíssimo na
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tural e prazeroso em nossa cidade. Que prefere: que sirvamos
no quarto ou no refeitório?
Pensei um pouco, mas não tanto, com medo de o rapaz
à minha frente ler meus pensamentos, igual ao médico
apressadinho, e logo comuniquei minha decisão:
— Creio que prefiro ir ao refeitório. Quero conhecer
outras pessoas.
— Pois não, senhor, assim será feito. Se precisar de algo
mais, eu mesmo estou à disposição neste andar, com meus
amigos estagiários, para servir no que for necessário.
— E em qual andar estamos? Onde fica o refeitório?
— Estamos no trigésimo sétimo andar, senhor. E o refeitório
fica no quinquagésimo, o andar rotativo. Temos 10
refeitórios e mais 5 de apoio, caso seja necessário. Assim
que entrar no elevador será informado como chegar lá. Eu
mesmo esperarei pelo senhor.
— Chame-me de você, meu rapaz!
— Pois não, senhor! Quer dizer, você. Ou melhor...
— Vá, vá, meu caro! Eu entendi.
E ele se foi, deixando um ar de descontração, embora
tenha ficado sem graça. E eu me esforcei muito para não
corrigir o rapaz ali mesmo, no primeiro encontro. Parecia
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boa pessoa. Talvez eu pudesse falar com ele e sugerir que
fizesse um curso de português, de comunicação e expressão...
Quem sabe por aqui também encontre escolas, universidades
ou coisas do gênero?
Entrei no quarto e respirei fundo. Quinquagésimo andar...
Bom, para um mundo de mortos vivos, até que as coisas
aqui eram bem marcantes.
Quando me dirigia à janela, pois ainda não tivera oportunidade
de observar a paisagem no entorno, notei que havia
algo pendurado num cabide, à minha frente. Um bilhete
dizia:
"Meu pai, deixo este traje para que possa usá-lo nos
próximos encontros. Parece que está ainda com um tipo de
roupa igual a que usaram para abrigar o corpo que foi enterrado.
Sei que aprecia algo mais elegante. Use-o, se gostar.
Depois nos levarão às lojas para comprarmos trajes novos."
Assinava Maria.
Minha filha fora cuidadosa, mas como ela deixou o traje
ali? Teria sido levado pelo médico ou pelo Bernardo? Ou
se materializara diante de mim e eu não percebera? E esse
negócio de ir às lojas? Como assim? Naquela cidade havia
lojas, comércio, o mesmo sistema de compra e venda, como
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na Terra? Em todo lugar do mundo espiritual as coisas
eram semelhantes a esta cidade? Eram muitas perguntas
e algumas delas não faziam sentido nem para mim. Mas...
eu teria de aprender a esperar. Com certeza, as respostas
viriam. E eu teria de me preparar para elas. Mas espíritos
fazerem compras em lojas? Não soava fantasioso demais?
Minha filha não estaria delirando? Era uma espécie de
transe provocado pela morte? Preferi nem pensar, pois até
meus pensamentos ainda pareciam os dos vivos incorporados,
encorpados, encarnados ou sei lá o quê. E então? Teria
eu que aprender uma nova linguagem? Haveria aqui também
uma gramática diferente? Acordos gramaticais, sentidos
diferentes para as palavras? Não, eu tinha de parar imediatamente,
senão ficaria louco. Um morto vivo louco.
Preferi desligar esses pensamentos e fui trocar de roupa.
Estava longe de ser o terno mais perfeito que já vestira,
mas Maria nunca foi lá tão boa assim ao escolher roupas
para mim; sempre era preciso fazer ajustes. Pelo jeito, aqui
também deveriam ser feitos os devidos reajustes, mas por
ora era o bastante.
Esqueci-me de olhar pela janela mais uma vez. Virei-
me e fui em direção à porta. O corredor do hotel era ex
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tenso, largo e iluminado. Um tapete de extremo bom gosto
cobria o pavimento, e os detalhes na decoração pelo menos
fugiam à mesmice tão frequente nos hotéis em geral, mesmo
os mais requintados. Bem, eu não conhecia os piores, os
medianos. Mas ao menos ali havia, sem dúvida, um toque
de arquiteto, uma estética delicada, sem exageros e luxo,
de bom gosto. Em seguida, toquei num lugar mais sensível,
apenas iluminado, próximo ao elevador. Na verdade, havia
oito elevadores no corredor onde me encontrava, de modo
que não esperei muito tempo. Logo que a porta se abriu notei
a presença de Maria, que me recebeu com um abraço.
— Que bom que você está bem, papai!
Havia mais de 20 pessoas no elevador... Muita gente.
"Mas, como espírito não deve pesar muito, acredito que
não cairemos."
— Verá como a cidade é bonita e aconchegante. Logo
após a reunião no salão de conferências, teremos a oportunidade
de sair um pouco por aí.
— Pelo jeito, então, nem mesmo aqui a gente está livre
de reuniões...
— É, mas aqui as coisas são um pouco diferentes da forma
como ocorrem na Terra. Verá por si mesmo. Ainda não
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me acostumei, muito embora esteja meio eufórica, apesar
da saudade de casa.
Notei um leve tom de melancolia nas palavras de Maria.
Entrementes, o elevador chegou ao andar sem qualquer
ruído, sem nem mesmo percebermos que se movera. Será
mesmo que se movera? A porta se abriu e fomos recebidos
por uma mulher que aparentava ser mais idosa, porém com
uma vivacidade de dar inveja. Nobre, sobriamente vestida,
trajava um uniforme que lembrava o usado por Bernardo,
que, aliás, estava mais ao longe e fez um gesto com a cabeça
em minha direção. Uma música irritante era ouvida no
ambiente. O volume estava baixo, mas não me agradei da
trilha sonora logo que a escutei. Mas tudo bem, pois ali ninguém
era perfeito. Aliás, eram humanos demais para o meu
gosto. Podia até aparecer alguém assim, mais perfeito, mais
superpoderoso, mais...
— Pai, acorde! Vamos! Vamos para a mesa. Está na hora
do desjejum.
"Essa menina me irrita!" — pensei, sabendo que ela
não tinha superpoderes mentais ainda... ainda! Quase formal
demais para a ocasião com meu costume, dirigi-me à
mesa que apresentava uma placa com nosso nome. E dei
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aquela olhada pelo salão. Vi uma mesa de frutas e sucos e
outra com petiscos; havia até mesmo frios fatiados, jamón
e presunto de Parma, ao lado de queijos variados, mas não
me pareceram bons como os de Minas.
— Que bom saber que há presuntos nobres por aqui!
Então encontrarei também carnes, peixes e coisas comuns
assim aos mortais... mesmo que agora sejam imortais. E
sabe de uma coisa? Sabe o que mais gostei?
— De poder comer, diga logo, meu pai! — falou Maria,
sorrindo.
— Não é nada disso. O que mais gostei é o fato dos espíritos
que até agora conheci não se assemelharem nada com
santos, nem religiosos extremistas, nem serem dados a crise
de santidade. Ser humano e continuar sendo como eu era na
Terra é a melhor coisa para mim... E quando vejo tudo isso a
meu redor, os alimentos todos iguaizinhos aos que conheci,
vejo que poderei ter o mesmo tipo de gosto e as preferências,
o mesmo estilo de vida, sem precisar forçar para ser santo ou
anjo. Ah! Como detesto anjos. Já lhe falei sobre isso?
— Sim, Seu Ângelo! Já me falou diversas vezes, mas
ainda quando estávamos na Terra. Agora, veja se alimenta
esse seu corpinho de espírito. Vá se servir, vá...
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Surpreendi-me com o sabor dos alimentos. Os sucos,
então, sabiam muito mais intensos ao paladar do que aqueles
que experimentei quando no corpo físico. Indescritíveis
eram os sabores. Ai, como eu queria experimentar
meu vinho do Porto. Só para saber se era tão bom quanto...
só para conferir!
Após o primeiro desjejum de desencarnado, sentia-me
bem mais refeito. Foi quando a recepcionista do hotel pediu-
nos, os recém-vindos da Terra, que nos reuníssemos no
salão de conferências. Desta vez fui sem Maria, pois ela já
havia passado pelo procedimento. Alguns esclarecimentos
deveriam ser feitos, a fim de que soubéssemos sobre a cidade
dos espíritos, a maneira de nos portarmos e, também,
as condições sob as quais poderíamos ser admitidos como
moradores do local. Para lá nos dirigimos, um grupo aproximadamente
de 140 espíritos.
Era um anfiteatro que acomodava confortavelmente
mais de 300 pessoas, embora naquele momento estivéssemos
em menor número. À nossa frente, um palco com
todos os recursos de iluminação comuns a um teatro moderno,
além de aparelhos que irradiavam imagens tridimensionais,
como numa projeção holográfica. Definitiva
68
mente, não era uma tecnologia trivial, nem mesmo para os
países desenvolvidos da época.
Observava tudo nos mínimos detalhes. Dayane, a mesma
senhorita elegante que nos recepcionara ao chegarmos
ao hotel, foi quem primeiro subiu ao palco para dar as
boas-vindas oficiais ao grupo de seres recém-chegados da
experiência física.
— Quero dar as boas-vindas a todos vocês, que chegam
à nossa cidade, e dizer que todos estamos aqui como estagiários
a serviço da comunidade de espíritos. Por certo não
ignoram que não mais pertencem ao chamado mundo dos
vivos. De uma ou outra maneira, sabem que a morte visitou
cada um, rompendo definitivamente os laços que os ligavam
ao antigo corpo. Chegaram hoje à nossa cidade; dependerá
de vocês se continuarão conosco ou partirão para
outras estâncias, outras cidades ou mesmo postos de apoio
nesta ou em outras dimensões, mais próximas à Crosta.
Quero lhes apresentar alguém que dará as informações
necessárias para entrarem em contato com o cotidiano de
nossa metrópole espiritual.
Apontando a mão direita em determinada direção, percebemos
um emissário de aspecto africano, um homem ne
69
gro, sorridente, vestido em trajes típicos de algumas nações
daquele continente. Dayane fez um gesto com a cabeça, reverenciando
o homem que assumiu seu lugar, saindo por
outro lado, naturalmente para se dedicar às atribuições comuns
à vida de espírito desencarnado, vocábulo com o qual
eu haveria de me acostumar, quem sabe.
— Pois bem, meus amigos! Sou conhecido como Nassor,
o seu servidor, e venho apenas esclarecer. Não sou nenhum
espírito iluminado, superior ou habitante de regiões
sublimes; somente um companheiro que chegou aqui muito
antes de vocês. Também estou aprendendo a viver na
Amanda, em harmonia com a natureza espiritual deste
lugar. Como disse nossa amiga Dayane, sejam todos muito
bem-vindos à nossa metrópole, à nossa querida Amanda.
Alguns que aqui se encontram tiveram uma formação
cultural espiritualista, outros talvez nunca, durante a vida
terrena, estabeleceram contato direto com alguma religião;
outros, ainda, talvez nem entendam por que estão aqui.
"De qualquer forma, é bom começarmos a esclarecer
que nossa metrópole não é a única em nossa dimensão;
existem diversas outras cidades, redutos, comunidades de
espíritos, colônias ou como queiram denominar a comu
70
nhão de seres com objetivos semelhantes, os quais se reúnem
em coletividades como a nossa. Cada uma das cidades
espirituais têm objetivos bem claros e definidos, por isso a
característica predominante e o tipo espiritual que nelas
habita divergem bastante. Em nosso caso, aqui, na Amanda,
temos uma especialidade. Recebemos aqueles que têm
gosto e potencial para estudar e ajudar a humanidade, cuja
mentalidade já tenha se elevado sobre as preferências e os
debates, as disputas e os apadrinhamentos denominacionais,
religiosos ou de cunho nacionalista. Ou seja, aqueles
espíritos que, em suas vidas e reencarnações, aprenderam,
de alguma maneira, a viver em comunidade, numa comunidade
universal, sem fronteiras, sem barreiras, e não alimentam
a necessidade de brigar por pontos de vista, tampouco
intentam impor sua ótica sobre as demais, ignorando as
verdades alheias. Nesse sentido, não somos uma comunidade
de seres evoluídos, no sentido literal do termo. Somos
humanos a serviço da humanidade; somente isso. Mas humanos
cujas mentes estão, em alguma medida, mais abertas
à procura da verdade no universo. Estamos conscientes
de que não temos aqui verdades absolutas, inamovíveis ou
inquestionáveis.
71
"A fim de que o espírito seja admitido aqui, obrigatoriamente
terá sido avalizado pela confiança de alguém ou
apontado como tendo forte potencial para ser um servidor
da humanidade. Durante dois anos, cada um de vocês terá
acesso a todas as dependências de nossa comunidade. Serão
avaliados segundo os mesmos critérios usados com todos
nós. Entretanto, somente permanecem como habitantes
da Amanda aqueles espíritos que observam três normas
ou aspectos principais, a fim de serem admitidos em caráter
permanente.
"A primeira delas é que se matriculem em nossas universidades
e se dediquem ao aprimorando contínuo, estudando
sempre. Sem estudar, sem se aprimorar, não há como
o espírito permanecer aqui conosco, devido à vocação ou
especialidade da nossa Amanda. Evidentemente, não ficam
desamparados aqueles que não se adaptam ou não se sentem
à vontade com uma das exigências de nossa comunidade.
Temos vasta relação de cidades espirituais cujos métodos
diferem dos nossos e podem muito bem abrigar qualquer
um daqueles que não se sentirem à vontade em nosso meio."
Enquanto Nassor falava, mostravam-se em projeção
holográfica as universidades e escolas da metrópole. Imen
72
so parque escolar, como eu jamais vira. Espíritos indo e vindo
em diversas direções e veículos que desciam e subiam
na atmosfera, transportando pessoas para aquilo que nos
parecia ser um diversificado conjunto educacional. Nassor
apontava para a projeção enquanto se dirigia à plateia. É lógico
que adorei tanto a forma como falava quanto a possibilidade
de estudar, de dar continuidade a muitos projetos e,
quem sabe, aprender muito sobre a vida espiritual e as implicações
de ser, dali em diante, um espírito.
— Temos, aqui na Aruanda, três universidades. Cada
uma delas abrange muitos departamentos espalhados por
toda a comunidade, a fim de que seja oferecida oportunidade
tanto aos espíritos que aqui habitam quanto àqueles que
nos visitam apenas para ensinar e aprender. Todos os estudos
desenvolvidos no planeta podem ter sequência aqui,
nos vários departamentos dessas universidades, sendo possível
escolher entre ramos diversos, tais como: ciências do
espírito, estudo informativo e comparado das religiões e
sua influência no psiquismo e na cultura dos povos, conhecimento
da vida no universo e a evolução entre mundos, no
âmbito dos planetas. Aquele que se interessar pode estudar
sobre as inúmeras possibilidades da reencarnação e espe
73
cializar-se, a fim de desenvolver futuros trabalhos e projetos
em sua próxima vida, começando desde já a estagiar,
nos diversos setores da metrópole, na mesma profissão que
desempenhará quando voltar à Terra, em novo corpo. Para
aqueles que preferem aspectos ligados à saúde, temos amplos
laboratórios que oferecem especialização tanto na medicina
convencional, quanto na naturalista e na homeopática,
entre outros segmentos, que poderão ser escolhidos
conforme a área de interesse individual. Ainda há cursos
ligados à natureza, às ervas, à fitoterapia e à botânica, assim
como os que se dedicam a questões psíquicas, como mediunidade,
paranormalidade, magnetismo, psicobioenergética.
Essas são algumas entre tantas possibilidades oferecidas
por nossas escolas, que, para atender ao número de habitantes
permanentes e aos alunos itinerantes, funcionam 24
horas por dia. Aliás, todos os serviços de nossa Amanda,
devido à grande demanda e à diversidade imensa de seres e
culturas, funcionam dia e noite, em tempo integral.
As cenas se sucediam à medida que Nassor discursava,
e muitos pareciam encantados com a ideia de viver numa
comunidade desse porte e com tais características. Após ligeira
pausa para que pudéssemos absorver melhor e obser
74
var o as imagens dinâmicas que eram exibidas, o espírito
continuou:
— A segunda condição para que qualquer espírito continue
vivendo conosco no período entre vidas é que ele
contribua com a comunidade por meio do trabalho. Não
usamos moeda de troca para conceder benefícios que qualquer
espírito possa usufruir em nosso meio. Isto é, aqui não
adotamos o sistema praticado, por exemplo, em colônias ou
cidades como Nosso Lar, Vitória Régia ou Halo de Luz, as
quais utilizam o chamado bônus-hora.2 Na Amanda, é preciso
que todo espírito trabalhe pela comunidade em alguma
atividade. Porém, não impomos como regra que deva
trabalhar 8 horas ininterruptas, ou qualquer outro número
de horas. Como todas as nossas atividades transcorrem 24
horas por dia, o espírito pode chegar ao seu ambiente de
trabalho à hora que lhe for mais conveniente ou favorável,
segundo o perfil individual, observando a necessidade de
2 A célebre e pioneira descrição da realidade extrafísica que toma por base a colônia
Nosso Lar, em livro homônimo, apresenta a moeda usada ali (cf. "Bônus-Hora". XAVIER,
Francisco Cândido. Pelo espírito André Luiz. Nosso lar. 3a ed. esp. Rio de Janeiro:
FEB, 2010. p. 131-136. A vida no mundo espiritual, v. 1. (ed. inaugural de 1944).
75
conciliar o tempo com os estudos e o lazer. Assim, poderá
trabalhar 1 hora, 10 horas ou dosar sua dedicação conforme
o grau de responsabilidade assumido na tarefa abraçada. O
próprio espírito pode determinar o tempo que empregará
no trabalho. Mas, durante o período estipulado, ele deve
estar 100% disponível para desempenhar a tarefa que lhe
cabe e é intransferível.
"Se pudéssemos classificar nossa metodologia, de maneira
a facilitar o entendimento, nos aventuraríamos a dizer
que somos uma comunidade baseada em um ecumenismo
respeitoso e um método de convivência similar ao que
talvez denominássemos socialismo cristão. Claro, espero
que me compreendam que são apenas termos de referência,
mais a título de comparação; nossa metodologia nada
tem a ver com correntes políticas defendidas na Terra."
Nassor respirou fundo, pois com certeza sabia que nem
todos ali lhe compreenderiam a forma de expor ou o significado
das palavras. Ele prosseguiu, sem esperar nossa
aprovação:
— Por último, a terceira exigência para que qualquer
espírito continue habitando entre nós, na Aruanda, durante
a vida na erraticidade, é o convívio pacífico com a natu
76
reza, respeitando o ambiente onde vive e trabalhando para
que tudo e todos continuem usufruindo de todas as possibilidades
que nossa metrópole oferece, com o máximo de
qualidade.
À medida que falava, as imagens mostravam a vida urbana
da cidade, as pessoas indo e vindo e a natureza exuberante:
árvores, parques, bosques e campos em meio a uma
arquitetura cuidadosamente planejada em cada detalhe, de
modo que as construções formassem uma só composição
com a natureza.
— Temos à disposição dos cidadãos, operando em horário
integral, exatos 128 teatros ou casas de espetáculo,
que exibem uma programação artística bastante diversificada,
dando mostras da pluralidade de culturas aqui representadas.
Tais espaços oferecem uma variada e rica oferta
cultural, revelando talentos de nossa cidade tanto quanto
de outras mais, cujos artistas vêm apresentar repertórios
de alta qualidade para todos os gostos.
"Há música típica dos estilos conhecidos na Terra, visando
atender diversos gostos e afinidades, que vão desde
rock, blues e jazz até os ritmos brasileiros, como samba
de raiz, bossa nova, maracatu, baião e frevo, passando pela
77
música latina — mambo, guajira, rumba, tango etc. —, isso
pra ficar apenas no continente americano. Há ainda muitas
outras tradições, acompanhadas de espetáculos típicos
de dança, como flamenco, os diversos ritmos africanos, sem
falar na música oriental, indiana... Todos têm livre acesso
a essa ampla oferta artística e cultural, desde que estejam
inseridos no contexto da vida em comunidade e de acordo
com a política vigente aqui, conforme apresentei a vocês.
"Além de tudo isso que falei, antes de liberá-los é preciso
esclarecer sobre o método de direção ou a coordenação
da nossa Aruanda."
E as imagens foram então direcionadas a um imponente
pavilhão, à primeira vista situado na periferia da cidade,
que não devia em nada em beleza e elegância às regiões que
pareciam centrais na projeção holográfica.
— Nosso governo é formado por um colegiado, com representantes
de diversos povos e culturas, que aqui convivem
pacificamente. Como poderão observar mais tarde, se
ainda não o fizeram, a maioria dos habitantes da Aruanda
é composta por espíritos procedentes de etnias africanas
ou daquelas derivadas ou influenciadas pela cultura negra
ou afro. O colegiado reflete essa realidade, mas é composto
78
tanto de seres advindos de culturas africanas, como antigos
pais-velhos, quanto de chefes indígenas, monges budistas e
alguns mestres do antigo Oriente.
Dando uma pausa, Nassor fez com que a projeção parasse
e nos surpreendeu, apresentando-nos seres que não
fazíamos ideia estivessem ali ou fossem também nos receber
no nosso primeiro encontro na metrópole espiritual.
— Quero apresentar-lhes alguns espíritos representantes
do nosso conselho, que vêm lhes dar as boas-vindas.
Fiquei surpreso. Em que lugar do universo os próprios
dirigentes de uma cidade como esta, deste porte, viriam
pessoalmente receber novos candidatos a habitantes do local?
Eu nem sabia como avaliar uma atitude assim tão delicada
quanto inusitada.
Mas a minha maior surpresa, e creio que da maioria de
nós ali presentes, foi perceber a singularidade da aproximação
desses seres que compunham o colegiado. Quando
vieram, quase levitando, inicialmente se mostraram a nós
na forma espiritual que tiveram em suas culturas, muitos
com feição oriental ou de antigos sacerdotes de culturas
e civilizações que, decerto, haviam se perdido na noite
dos tempos. Outros vestiam-se de maneira mais exótica ou
79
chamativa, mas igualmente representavam seus povos ou
culturas originais. Entretanto, à medida que se aproximavam
de nós, assumiam a aparência de pais-velhos, mães-velhas,
caboclos e, ainda, houve dois que tomaram forma de
criança, além de outros espíritos que vi, também se transformando
diante de nós, que adquiriam o aspecto e os trajes
típicos de monges tibetanos.
A presença do colegiado ali nos recepcionando marcou
profundamente nossos espíritos. Arrancou da boca de todos
um "Ohhh!" de admiração, espanto e até euforia, devido
à forma como se revelavam a nossos olhos de espíritos
recém-chegados. Eu não sabia o que dizer. Todos se colocaram
de pé quase ao mesmo tempo, ante os seres à nossa
frente. No meio deles reconheci o homem que encontrei
antes; depois da transformação, voltou a se apresentar
como o ancião que me recebera junto a Jamar. Era o senhor
que conheci com o nome de João que estava entre os demais
do colegiado... No entanto, ao contrário do que era de
esperar, que algum deles fizesse um pronunciamento à plateia,
eles outra vez nos surpreenderam. Desceram do palco
e se dirigiram a cada um de nós, abraçando-nos e dando
as boas-vindas individualmente, deixando-nos ainda mais
8 0
boquiabertos com a atitude inusitada, sobretudo porque vinha
de dirigentes de uma cidade espiritual. Era um gesto
diametralmente oposto à atitude dos políticos da Terra, de
qualquer cidade ou nação terrena; não havia comparação.
Ali mesmo, entre seres com aparência de crianças, índios,
negros africanos, mestres orientais e representantes
de outras culturas, a reunião transformou-se numa espécie
de confraternização. Ainda no palco, observando sorridente,
encostado numa pilastra, o homem de aspecto africano
que nos falara no início, Nassor, parecia se divertir com
nossa estupefação, rindo gostosamente da situação. Todos
envolveram pouco a pouco os representantes do colegiado,
que nos receberam de maneira tão incomum, mas nos deixaram
completamente à vontade. Por fim, eles permaneceram
no meio da turma de recém-vindos da Crosta, enquanto
alguns de nós se atreveram a formular perguntas sobre
aquela cidade, que mais parecia feita de estrelas, as quais
foram respondidas com grande solicitude e generosidade.
João me fitava, como a esperar algum questionamento.
Sorriu para mim, um largo sorriso emoldurado pela barba
branca cuidadosamente talhada e os cabelos também brancos,
aparados de maneira exemplar. O terno que vestia pa
81
recia ser feito do mais puro linho, alvíssimo, o que realçava
a sua cor negra de maneira tão bela, tornando a composição
muito harmoniosa. Fomos nos aproximando um do outro,
e naquele momento entendi que ele era alguém especial
naquela comunidade, e que estaríamos de alguma maneira
ligados por laços que, embora invisíveis, já poderiam ser
percebidos naquele encontro, que marcou profundamente
meu ser. Não saberia dizer por quê, naquela ocasião, mas
sinceramente eu soube que havia sido conquistado por
aquele espírito. Meu ser dizia isso, embora não pudesse explicar,
não tivesse palavras.
E assim mesmo, sem palavras, João foi saindo do meio
do grupo de espíritos, sem pronunciar nenhuma frase. Naquele
momento mágico, senti seu magnetismo vigoroso e
fui atraído pela força do seu olhar, olhos negros, grandes, e
pelo sorriso estampado em seu rosto. Segui-o, por ora abstendo-
me de qualquer pergunta. Apenas o segui, ávido por
novos aprendizados, sedento de sabedoria, mas não mais a
sabedoria das universidades, dos homens da Terra; poderia
ser apenas a sabedoria daquele preto-velho. Meu coração,
ah!... Como ele parecia arrebentar de emoção, batendo forte,
como se tambores houvesse dentro dele, tocando, rufan
82
do, fazendo o barulho característico dos filhos da África ou
como o toque cadenciado dos tambores de Angola. O coração
apenas acelerava, e pude me sentir muito mais vivo do
que vivo estava antes, enquanto João me conduzia, sem palavras
e sem perguntas, para ver, para conhecer a Aruanda,
a morada dos espíritos.
87
ESMO ANTES DE sairmos pelas ruas da Amanda e enquanto
os demais espíritos permaneceram no salão conversando
com os dirigentes da cidade, João e eu nos retiramos
devagar, como se estivéssemos passeando, ainda dentro
do hotel que nos acolhera. Foi somente então que observei
mais detidamente os pormenores da decoração. Lustres
deslumbrantes pendiam do teto; arranjos florais de incrível
bom gosto e harmonia coloriam o local. No entanto,
foram as obras de arte que mais me chamaram a atenção.
Belíssimos quadros pelas paredes, assinados por artistas
renomados, emprestavam charme e singularidade ao ambiente.
Um dos quadros em particular me marcou profundamente.
Era assinado por Debret, Jean-Baptiste Debret.3
A tela retratava cenas da colonização do Brasil, embora
nunca a tivesse visto em nenhum museu da Terra. No Rio
de Janeiro e em outras cidades importantes havia visitado
museus com alguma frequência, porém esta tela diferia
das demais que eu vira, do mesmo autor, as quais fizera
quando encarnado. Pois aquela apresentava cores tão marcantes,
e os personagens ali retratados pareciam tão vi
3 Paris, 1768-1848. Viveu no Brasil entre 1816 e 1831.
88
vos que me dava a impressão de que a qualquer momento
saltariam da tela, movimentando-se. O céu tinha aspecto
igualmente vivo; ao olhar atento, suas nuvens deslizavam
— lentamente, mas deslizavam. Seria ilusão de ótica? Enquanto
eu estava ali parado admirando a pintura que me
prendera a atenção, João tocou-me levemente o ombro,
como a chamar-me de volta à realidade, e pronunciou algumas
poucas palavras:
— Esta tela, Debret a pintou enquanto encarnado, nos
momentos de desdobramento, em que visitava nossa cidade,
recém-fundada, à época. Você terá a oportunidade de
conhecer alguns museus e apreciar de perto a obra de diversos
artistas — as originais, como esta.
Sem entender muito bem as palavras do ancião, continuei
seguindo-o pelo hall do hotel. Foi aí que me dei conta
de que poderia lhe perguntar algo que estava de certa forma
incomodando minha dileta curiosidade:
— Não entendo como numa cidade de espíritos exista
até mesmo hotel. E também estes funcionários... Como entender
a existência de funcionários em um local como este,
se aqui, pelo que nos foi explicado, não há moeda, dinheiro
ou outra forma de pagamento?
89
— Nossa cidade, meu filho — iniciou João, respondendo-
me com a boa vontade que eu descobriria ser-lhe
característica, ao passo que nos sentávamos em poltronas
confortáveis, olhando o movimento da rua —, é uma
cidade que atualmente abriga 10 milhões de espíritos de
forma permanente, ou seja, durante seu período na erraticidade,
antes de mergulharem na carne novamente. Mas
recebemos também uma população itinerante de aproximadamente
5 milhões de seres, diariamente, advindos de
outras cidades da imensidão, com as quais mantemos intercâmbio.
Essa população itinerante vem visitar museus,
parques, centros de treinamento, mas principalmente as
escolas ligadas às nossas universidades, as quais funcionam
em tempo integral, conforme foi explicado, como
toda a vida urbana da nossa Aruanda. Os hotéis foram
criados há séculos para receber essa população, mas também
aqueles que chegam da experiência reencarnatória,
como você, no período de adaptação ao novo mundo que
encontram aqui.
Pausando um pouco e dando relativa atenção a alguns
espíritos que passavam próximos de nós e olhavam para
ele, João prosseguiu, sem se apressar:
9 0
— Mas os tais funcionários que você vê neste ambiente
não são funcionários no sentido que se dá ao termo na Terra.
Na verdade, são estagiários, alunos que estudam em nossa
universidade visando à reencarnação futura. Aqui desenvolvem
habilidades interpessoais, pois, ao reencarnar, lidarão
com o público na área de atuação que elegeram. Afinal, lá
na Crosta, existem inúmeras oportunidades de trabalho
profissional em que é requerida a habilidade com pessoas,
com seres humanos. Esse estágio em algumas instituições
do lado de cá ajuda a despertar aptidões adormecidas ou a
desenvolvê-las para, mais tarde, esses espíritos exercitarem
funções como essas. Muitos aqui estudam matérias ligadas
à hotelaria e se preparam para funções que desempenharão;
trata-se de treinamento constante na área escolhida conforme
a preferência pessoal. Quando for a hora de trabalhar, na
nova experiência reencarnatória, já terão impresso na memória
espiritual o que aprenderam aqui. Lá embaixo apenas
praticarão e aprimorarão o conhecimento adquirido.
— Então não são mesmo funcionários, mas estagiários,
como me falou um dos espíritos que me auxiliou...
— Exatamente. Sob esse aspecto, aqui somos todos estagiários,
aprendizes. Isso ocorre em todo o ambiente da
91
metrópole. Há lugar para desenvolver as mais variadas habilidades
que têm probabilidade de eclodir nas futuras reencarnações.
Aqueles que trabalham em nossas lojas de roupa,
por exemplo, o fazem por pura afinidade, seja aperfeiçoando
a forma de atender o público, seja aprendendo alguma
faceta do ofício da moda, desde a produção — desenho, modelagem,
estilismo — até o negócio, mesmo — gestão, administração,
atendimento, entre tantos outros aspectos. Todos
na Amanda estão em processo de experimentação, pois na
universidade escolheram cursos e especialidades de acordo
com seus gostos. Enfim, trabalham aqui para se preparar
para as futuras experiências no corpo físico.
— Mas você falou em lojas. Existe comércio por aqui
também? Insisto: não falaram que não existe moeda ou
qualquer sistema de troca?
— Creio que você precisa visitar urgentemente o bairro
onde se localizam as lojas de roupa. Assim terá uma ideia melhor.
Vamos, meu filho! Eu o acompanho — falou João, meu
instrutor, ao levantar-se. Antes de cruzarmos a porta, dois espíritos
reverenciaram o ancião, e um deles o interpelou:
— Já vai, Pai João? Nos sentimos muito honrados com
sua presença aqui.
92
— Breve retornarei, meus filhos. Vim receber este nosso
amigo que retorna da Terra. Mas breve voltarei para falar
com vocês.
Fiquei meio sem entender a forma como se dirigiram
ao meu amigo João. E não hesitei em perguntar:
— Por que ele o chamou de Pai João? E a forma como
normalmente se tratam por aqui?
— Nada disso, Ângelo. Pode me chamar como quiser;
fique à vontade, filho. Cada um deve se sentir livre para
comportar-se ou falar como melhor lhe convém... — E não
tocou mais no assunto.
Saímos. Na rua à frente do edifício havia intensa movimentação.
Grande número de jovens conversava e caminhava
pelas calçadas muito largas, e nenhum carro na rua,
embora houvesse demarcação para veículos que, no mínimo,
eram daquele tipo voador no qual fui transportado. De
um e outro lado da rua, cafeterias muito semelhantes a algumas
europeias. Não consegui apreender de imediato a finalidade
e especialidade de alguns tipos de loja. Notei um
edifício de arquitetura requintada, que denotava forte influência
da cultura árabe, entre tantos outros prédios onde
espíritos entravam e saíam. Em meio a tudo isso, trepadei
93
ras pendiam dos prédios de maneira que jamais vira, enquanto
árvores frondosas erguiam-se de ambos os lados da
rua. Frequentemente, os ramos e galhos se entrelaçavam no
alto, iluminados por um sol que mais parecia de inverno,
não muito quente, projetando uma claridade nada excessiva
e resultando numa temperatura ambiente extremamente
agradável, eu diria balanceada, sem excesso de calor e sem
o incômodo do frio intenso. Vi animais: cachorros, gatos,
pássaros e outros que, na Terra, decididamente não vi nem
em zoológicos. Todos passeavam guiados por algum espírito.
"Se isso não é o paraíso, é algo muito próximo", pensei.
A população que se via nas ruas era extremamente heterogênea.
Havia africanos ou ao menos espíritos de pele
negra, além de outros com traços fisionômicos indígenas.
Os dois grupos reuniam belos exemplares dos dois povos,
de etnias variadas, e eram maioria. Certos índios lembravam
os peles-vermelhas do continente norte-americano;
outros eram tipicamente brasileiros. Aqueles não envergavam
indumentárias típicas com plumas e peles de animal,
mas ambos se apresentavam muito bem vestidos. Os
trajes remetiam de alguma maneira à origem de cada um e
exibiam notável elegância — aliás, como tudo na Aruanda,
94
ao menos até onde conhecera. Vi jovens e adultos vestidos
como monges, ainda que para mim mais se assemelhassem
a adeptos do movimento Hare Krishna. Um grupo desses
espíritos passava ao longe na mesma avenida por onde agora
transitávamos, um grupo de mais de 50 deles, cantando
músicas de forma alegre e contagiante.
O espírito Pai João não falava nada, apenas dirigia-se
para o bairro das lojas ou do comércio, como eu denominara
o local. Quanto a mim, limitava-me a apreciar a população
de seres exóticos, tão diferentes entre si, porém
usufruindo de uma convivência pacífica. Avistei um grupo
uniformizado, que mais parecia de soldados. Altos, imponentes,
como se rumassem a uma parada militar, porém
sem portar armas. Na cabeça, um quepe de estilo antigo,
mais precisamente um bibico, que trazia alguma insígnia
como decoração. Passaram por nós e menearam a cabeça
para João. Desta vez não aguentei e perguntei:
— Por aqui também há soldados, policiamento?
— Claro que sim, Ângelo. Lembre que aqui é o mundo
original, primitivo.4 Lá embaixo é cópia. Estes que você ob4
Cf. KARDEC. O livro dos espíritos. Op. cit. p. 112-113, itens 84-86.
95
serva são os guardiões superiores. Temos poucos deles aqui
na Aruanda; apenas um contingente pequeno, que vem dar
aulas a aspirantes a guardiões, na universidade. A tarefa dos
aspirantes se restringe a uma área específica... com o tempo
ficará sabendo os detalhes. Mas temos diversos contingentes
de guardiões. Entre outros, há aqueles que chamamos
de sentinelas, e há também as guardiãs, uma espécie de polícia
feminina especializada nos entrechoques vibratórios
que envolvem emoções e sentimentos mais densos. Depois
o levarei até o quartel dos guardiões e poderá ver de perto
a diversidade de categorias existentes e a especialidade de
cada uma delas.
Enquanto prestava atenção na explicação de Pai João
— mentalmente acabei me acostumando a chamá-lo assim
—, interessei-me pela população de jovens espíritos que se
reunia no que me pareceu ser um pub bastante movimentado.
Mais uma vez minha curiosidade foi aguçada... e Pai
João não esperou que a manifestasse verbalmente.
— Está assustado, meu caro? Por aqui a vida social é
movimentadíssima. Não passamos nosso tempo rezando,
recitando ladainhas ou cultivando o fanatismo religioso
salvacionista, querendo ir ao umbral o tempo todo resgatar
9 6
almas sofredoras. A Amanda reúne os espíritos afins com
a proposta da justiça divina. Temos uma vida social muito
mais intensa, interessante e envolvente do que muitas cidades
e metrópoles da Terra. Os pubs e bares são locais frequentadíssimos.
Neles se reúne tanto a população itinerante
quanto muitos dos habitantes da metrópole. Conversam
sobre temas os mais variados, desde as manifestações artísticas
e culturais até os projetos reencarnatórios e familiares,
planejando seu regresso à Terra. Neste pub, especialmente,
é hora de encontro dos jovens alunos de ciências.
Discutem inventos e descobertas, e o debate é acalorado.
Este pub é mais frequentado por estudantes dedicados às
descobertas e invenções tecnológicas. Se entrar lá, com
certeza ficará eletrizado com as discussões. Servem-se bebidas
cujos sabores e aromas lembram muito de perto os da
Terra. E olhe que temos até a velha cerveja, conhecida sua,
e o vinho da mais pura procedência.
— E os espíritos daqui bebem também, como os humanos
reencarnados?
— Somos humanos também, Ângelo! Tanto quanto os
que habitam a Crosta. A diferença é que nossas bebidas não
têm teor alcoólico. Mas afirmo que o sabor é maravilhoso,
97
e as bebidas, cotadíssimas entre os cidadãos, embora toda
a experiência esteja cercada de profundo senso de limite,
mesmo não havendo graduação alcoólica. Entre elas, há algumas
desconhecidas dos homens, mas bastante apreciadas
aqui. Como não há compra e venda, todas são servidas
pelos espíritos que estagiam nesses lugares a quem queira
experimentar, porém uma cota racionada para cada espírito;
nada de abusos por aqui.
— Então há racionamento, controle, uma espécie de
controle de quantidade? —, perguntei sorrindo.
— Não há controle no sentido tradicional, que requer
fiscalização, mas sim um sistema ou método de regulação
que foi adotado pelos fundadores de nossa cidade e que
funciona naturalmente. O princípio é o seguinte: tudo o
que for de uso comum da população não pode estar sujeito
a consumo em excesso, até porque, se há excesso de um
lado, provavelmente haverá escassez de outro. Assim, como
tudo na Aruanda é formado a partir dos fluidos da atmosfera,
dos fluidos dispersos no espaço, caso alguém queira
utilizar uma cota maior do que seu corpo energético tenha
necessidade ou capacidade de processar adequadamente,
aquele mecanismo entra em ação. No caso da bebida,
98
por exemplo, na hipótese de consumo excessivo, o copo e
o líquido na mão do indivíduo se diluem na atmosfera de
modo natural, como que se desmaterializando em suas próprias
mãos. De modo que não há desperdício nem excesso
por aqui. E isso vale rigorosamente para tudo: alimentação,
vestuário e os demais recursos. Todo excesso, por mínimo
que seja, é reintegrado ao manancial da natureza na forma
de fluido, no momento de sua concretização. Isso contribui
para que cada habitante, cada pessoa aqui possa respeitar
os próprios limites. Para nós, esse sistema serve como fator
reeducativo importantíssimo; afinal, todos cometemos
excessos e precisamos desse mecanismo para usufruir das
bênçãos que a vida oferece, com moderação.
— Então a bebida aqui não teria a mesma finalidade das
bebidas alcoólicas da Terra, ou seja, talvez alegrar, despertar
o paladar para novas sensações, ainda que, em alguns
casos, criando dependência.
— Nem sei se essa é uma característica das bebidas na
Crosta ou se os homens, com os excessos que lhes são peculiares,
fizeram do prazer de beber isso que se vê hoje em
dia lá no mundo dos chamados vivos. Seja como for, aqui
o objetivo é experimentar sabores novos, ricos, que des
99
peitem o prazer sensorial no que ele tem de melhor, assim
como a satisfação em conviver e socializar-se. O consumo
na medida certa também faz com que cada um aprenda que
não é o uso da bebida que faz mal, mas o excesso, o que extrapola
o equilíbrio. De todo modo, como eu disse, nossas
bebidas não contêm teor alcoólico, ou seja, não temos espíritos
bêbados por aqui — falou Pai João, sorrindo. — Nem
alimentamos o vício de nenhum espírito. Você ouviu no
hotel as condições para se viver aqui. Não recebemos em
nossa cidade espíritos com esse tipo de comportamento; aí
está uma regra universal na Aruanda.
— É... Também não vi ninguém fumando por aqui —
comentei.
— Em hipótese alguma é permitido o uso do cigarro
em nossa cidade, Ângelo. Já tivemos inúmeros problemas
no passado e fizemos uma espécie de plebiscito há mais
de 150 anos, ocasião em que conseguimos abolir o consumo
do tabaco sob qualquer forma. Espíritos que ainda
cultivam esse hábito são encaminhados a outras cidades
do espaço, onde são admitidos temporariamente, até se livrarem
dele. Quando estiverem livres podem até ser admitidos
na Aruanda.
10 0
"Mas voltando aos nossos costumes aqui, você precisa
conhecer os hábitos noturnos de nossa população. Precisa
vir aqui à noite!"
Olhando para mim, para ver a minha reação, continuou:
— Aqui temos também a noite. E como são lindas as noites
da Amanda... Como a Lua aqui é muito mais brilhante,
parece muito maior e mais vívida do que vista do mundo dos
encarnados. A vida noturna é muitíssimo mais fervilhante.
As trocas de experiência, os encontros de namorados, futuros
parceiros na jornada reencarnatória — tudo isso encanta
na Amanda. Espere até conhecer os lugares especialmente
destinados ao encontro de diferentes culturas, ao intercâmbio
de ideias e experiências que ali se dá, entre espíritos
de etnias e procedências distintas. É algo que encanta,
envolve, apaixona. Não tem ideia de quanto são concorridos
esses momentos por aqui. A noite, aqueles que gostam
podem, ainda, ir a festas, ouvir boa música ou a música que
lhes apetece. Dançar, cantar, expressar sua veia artística ou
simplesmente participar das celebrações em meio a espíritos
ou pessoas, como queira dizer, nesses lugares que de alguma
forma lembram as danceterias do plano físico, embora
dotados de uma tecnologia que você nem imagina.
10 1
Antes que Pai João prosseguisse contando as novidades
da Amanda, chegamos ao local para onde nos dirigíamos.
Ruas largas, espaços naturais e amplos jardins entre
as lojas ou, melhor, lojas em meio a praças ou jardins, com
cafés movimentadíssimos, frequentados por gente bonita
dos mais variados estilos. Seres trajados de modo às vezes
inusitado, charmoso ou apenas diferente do que me era
habitual. Graças a Deus não vi espíritos vestindo mantos
brancos e esvoaçantes!
Antes de adentrarmos alguma das lojas, Pai João deu
algumas explicações:
— Aqui funciona assim, Ângelo: nem todo espírito
tem a capacidade mental de elaborar sua vestimenta simplesmente
a partir da força do pensamento; muito pelo
contrário, isso ocorre apenas com a minoria. Então, há o
que chamamos de parque industrial. Trabalham lá os espíritos
que na Terra desenvolveram ou desenvolverão as
profissões de estilista, designer e outras mais, ligadas à indústria
da moda e à produção de roupas, calçados e acessórios
em geral. Eles exercitam a criação mental, a configuração
e transformação dos fluidos da natureza em
peças de vestuário ou, em certos casos ligeiramente dis
10 2
tintos, em instrumentos e ferramentas de trabalho. Trata-
se de um parque de desenvolvimento do espírito humano
e do potencial do pensamento, onde se aperfeiçoam as
habilidades relacionadas a isso. Criam, inventam, desenvolvem
ideias e produzem itens de acordo com o contexto
e a demanda de nossa metrópole. À medida que o fazem,
capacitam-se individualmente para desempenharem
mais tarde, ao reencarnarem, funções semelhantes às que
aprenderam aqui.
"Pois bem, meu filho, o produto de suas criações é exposto
nas diversas lojas e departamentos existentes na
Aruanda e em outras cidades do espaço. Os espíritos que
não desenvolveram essa habilidade do pensamento ou que
não têm esse interesse vêm aqui e escolhem o tipo de roupa
ou acessório que melhor lhe pareça, tendo em vista a bagagem
cultural e espiritual, os costumes que tinha na Terra
e suas preferências. Como de resto, não há compra e venda,
nenhum tipo de transação monetária, embora entre o
atendente e o interessado haja, sim, uma espécie de negociação...
Você verá. Como foi explicado antes, aos recém-
chegados, como todos trabalham e estudam em nossa cidade,
todos podem usufruir livremente daquilo que está à
10 3
disposição nos diversos centros de distribuição. Basta chegar,
pedir aos estagiários e atendentes, e eles — que investem
no desenvolvimento das próprias habilidades no contato
com o público, visando às futuras experiências físicas
— orientarão da melhor forma que puderem. Mas não espere
perfeição no serviço prestado! São todos aprendizes e
muitas vezes cometem equívocos.
"A uma coisa você deve ficar atento, pois se trata de
uma regra para tudo aqui, em nossa cidade. Como já disse,
não pode haver desperdício. Se você deseja um traje, por
exemplo, de uma marca conceituada, com o melhor caimento,
pode escolher à vontade nas diversas lojas e entre
os diversos modelos. Contudo, se precisa somente de um
traje para a vida social e de outro para o trabalho que desenvolverá,
seja aqui na cidade ou em outras regiões mais
densas, e levar ainda que seja apenas um a mais, terá uma
decepção. O traje excedente se desmaterializará ou se dissolverá
assim que você o guardar em seu alojamento, seja
no hotel ou em qualquer moradia para onde for. O supérfluo
logo é absorvido pela natureza astral, e a matéria da
qual é constituído, fluídica, dissolve-se e se reintegra ao
plano extrafísico no qual transitamos."
10 4
— Ou seja, nada de ter dois ternos Stunner da Brioni
Vanquish,5 por exemplo...
Pai João sorriu largamente, entendendo a ironia.
— Bem, mas eu posso ter, então, mais um terno, quem
sabe da Kiton; algo bem simples, assim...
Pai João me olhou ainda sorridente, entendendo minha
brincadeira esnobe.
— Então vamos lá, Ângelo, pois já é hora de trocar esse
traje com que Maria lhe presenteou, sem que soubesse seu
tamanho certo. Quando aprender ou quiser usar a força do
pensamento para materializar sua indumentária, poderá
dispensar a visita às lojas. Mas confesso que esse é um prazer
que gosto de cultivar. Poder escolher, experimentar, descobrir
novas criações dos estudantes e estilistas da Amanda
e de outras cidades espirituais... Me parece impossível não
sentir prazer com essa experiência. A alternativa de materializar
as coisas pela força mental, sem sentir prazer no que
se faz... Ao menos para mim, fazer qualquer coisa que não
gere prazer e contentamento é algo que não posso conceber.
5 Grife italiana de forte tradição em costumes e ternos de alfaiataria, hoje conheci
da apenas como Brioni.
10 5
— É, a vida social aqui na Amanda é realmente envolvente,
apaixonante. Vamos lá, eu me contento com algo
simples mesmo, acho até que tenho de desenvolver mais a
humildade após a morte do corpo. Não precisa ser nada tão
requintado assim, Pai João. Onde fica mesmo a loja da marca
Ermenegildo Zegna?
Rimos gostosamente e rumamos para as lojas, a fim de
que eu experimentasse a forma de vida da metrópole, a experiência
insólita de escolher meu primeiro traje de morto
metido a vivo.
Comecei por observar a fim de escolher uma loja: ler o
nome, apreciar a logomarca e a comunicação visual, as cores
com as quais o estabelecimento fora pintado, até que
adentramos determinado ambiente. Acho que Pai João não
sabia da minha chatice nem do nível de exigência que me
caracterizava. Não sou nada humilde nem fácil de agradar,
devo confessar. Fomos atendidos por um rapaz que, logo
se via, era iniciante. Assim que reconheceu Pai João a meu
lado, passou a outro atendente a função e ficou nos observando
de longe.
— Bom dia, senhores! Sejam bem-vindos ao nosso centro
de distribuição.
10 6
Não poderia ser mais gentil o espírito. Parece-me que
estava há algum tempo estagiando ali, quem sabe se preparando
para lidar com um púbico tão diversificado e eclético
como o que ia e vinha na metrópole. Havia bastante gente
no departamento de roupas. A decoração era sóbria, chique,
e os trabalhadores ali tinham certo charme e presença.
O espírito que nos atendeu, como a maioria dos habitantes
da cidade, era negro, produto de alguma mistura étnica que
lhe conferira traços finos e delicados. Alto e esbelto, sorriso
farto, dentes branquíssimos, vestia um costume elegantíssimo,
mas ousado, de linhas modernas. Não tinha visto
ainda um traje como aquele. Fiquei impressionado com o
extremo bom gosto.
— Nosso amigo Ângelo quer escolher um tipo de roupa
para usar em nossa cidade — adiantou Pai João, se dirigindo
ao espírito.
— Pois bem! Chamo-me Watambi e serei seu servidor
enquanto estiver em nosso departamento — disse, enquanto
me deixava à vontade para aproveitar meu primeiro contato
social post-mortem. Medi cada detalhe, cada pessoa ali presente
e a fisionomia de cada um. Os trajes usados pelos espíritos
que vinham escolher novas roupas me impressionaram.
10 7
Havia negras vestidas de modo a lembrar as baianas
tradicionais de Salvador. Outras usavam peças fartamente
coloridas, com tecidos enrolados, cuja inspiração era claramente
africana. Cabelos arrojados, num estilo afro impossível
de não ser notado, ostentando a beleza dos povos do
continente africano. Ao lado daquelas figuras, havia uma senhora
requintada, à moda europeia do início do século xix,
embora talvez destoasse dos demais e da modernidade reinante;
a meu ver, era como uma dama retratada por artistas
renomados da época. Homens bem vestidos e alguns jovens
trajando esporte fino. Fiquei impressionado. Nada de espírito
usando longos mantos de cor branca ou azul, que se arrastassem
pelo solo ou cobertos de glória, luzes e auréolas.
Pai João me deixou à vontade. Observei tudo, todos os
detalhes, as expressões fisionômicas e o tipo humano ali representado
por toda aquela gente morta. E para quem esta
va morto até que eles estavam muito bem.
— Senhor Ângelo, aceita um suco ou alguma bebida em
particular, enquanto aprecia nossos trajes?
Olhei para Pai João, e ele sorriu disfarçadamente.
— Apenas água, por favor.
— Algum tipo específico, senhor?
10 8
E eu ainda podia escolher a água? Hesitei, sem saber o
que fazer. Lembrei-me logo da Perrier, mas fiquei encabulado
de demonstrar tanta simplicidade...
— Se me permite — interferiu Watambi —, sugiro que
experimente nossa água da Amanda. Em nada deixa a desejar
se comparada à tradicional Perrier ou à San Pellegrino,
velhas conhecidas de ambiente sofisticados da Terra.
Nossa água é de excelente qualidade — falou, como se adivinhasse
meu pensamento. Para disfarçar minha humildade
infinita, respondi:
— Então pode me servir essa mesmo. Aceito sua sugestão.
E Pai João acrescentou:
— Ele se esqueceu de dizer, Ângelo, que só temos esta
água aqui!... Mas não vai se decepcionar de jeito nenhum
com o sabor, a suavidade e a característica renovadora da
água da nossa dimensão.
Após ser servido de maneira bastante cortês, eu diria
mesmo com serviço de primeira, nosso anfitrião me auxiliou
na escolha do primeiro traje do outro mundo.
— Aqui temos diversos modelos. Devo dizer: os espíritos
que trabalham na criação mental se esmeram no desenho,
na modelagem e na confecção, mas principalmen
10 9
te quando materializam a matéria-prima, que é muito mais
pura e de melhor qualidade do que a encontrada nos tecidos
da Crosta. Afinal, tentam a qualidade ao grau máximo,
pois disso depende o futuro deles na Terra, quando retornarem
e eclodirem as intuições e a vocação para o gênero
de atividade que desempenham aqui.
"Portanto, apresento-lhe o melhor que temos, vindo
diretamente da nossa linha de produção — disse, voltando-se
para determinado grupo de peças. — Sem levar ectoplasma
em sua confecção, mas materializado em nossa, dimensão
através da matéria unicamente mental, criou-se esta textura
muito mais aprimorada do que o mais puro linho conhecido
na Terra. Como sabe — como se eu soubesse —, o
ectoplasma cria uma sensação mais grosseira na materialização.
Os detalhes, senhor, pode observar por si mesmo.
Nenhuma costura pode ser vista, uma vez que os produtores
e executores do projeto mental fizeram de tudo para
ocultá-las e deixar à mostra somente as dobraduras, elegantemente
distribuídas de maneira a realçar mais ainda a
beleza do tecido e a suavidade das formas."
Fiquei perplexo. Diante de mim havia pelo menos 18
tipos diferentes de trajes, desde costumes clássicos até os
11 0
mais modernos, semelhantes ao que o espírito à minha
frente vestia. Difícil escolher. Foi aí que descobri que espírito
também tem dúvidas ao escolher a vestimenta, sua
roupa de morto vivo. Espírito sofre... E que sofrimento é
este, meu Deus! Como Watambi notou minha hesitação ao
optar por este ou aquele modelo, acrescentou outras informações,
talvez pensando em me ajudar na escolha. Depois
do drama mental, da ironia não expressa em palavras, resolvi
ouvir mais atentamente; afinal, eu era assim, difícil de
contentar.
— Este traje aqui, por exemplo, é feito de uma matéria
fluídica especial. Ele se ajusta automaticamente ao corpo
do indivíduo, assumindo a forma mais aproximada possível
dos contornos do corpo.
Não era o meu caso. Mesmo tendo rejuvenescido alguns
anos na aparência, não ostentava lá aquele corpinho
que merecesse ser realçado. Não sei porque, mas me pareceu
que os espíritos ali escolhiam com desenvoltura suas
roupas ou, talvez, não se importassem em escolher muitas,
pois sabiam que o excesso era dissolvido magicamente
nos chamados fluidos ambientes... Mas eu, não! Eu não era
tão simples assim. Não me bastaram as explicações de Wa
111
tambi. Demorei mais de 2 horas e, sinceramente, não consegui
me decidir.
Resolvi procurar outra loja, outros modelos. Despedi-
me do atendente, não esperando voltar ali. Pai João, paciente,
me acompanhou. Ao sair à rua, mesmo movimentada
e cheia de gente de aparências mil, não houve como
não perceber a presença de uma mulher, eu diria, radiante
demais, devido aos trajes de procedência andaluz. Alta,
porém não muito, porte charmoso, magra e com os cabelos
pretos envoltos num tipo especial de véu negro com alguns
fios dourados, desfilava à nossa frente, chamando a atenção
de alguns outros espíritos. Vestido usado por ciganas espanholas,
leque à mão direita, passou por nós e, após alguns
passos, deteve-se bruscamente. Voltou-se para mim, ignorando
por completo a presença de Pai João, abiu o leque de
maneira escandalosa, produzindo aquele barulho característico
de quando se abre um leque, e falou:
— Pelo teu tipo, gajo, deves estar vivendo o maior drama
mental simplesmente para escolher uma roupa para ti.
Imagino o teu sofrimento... maior do que o das almas perdidas
nas furnas umbralinas! E dizem que espírito não sofre
nos planos superiores... — ironizou a mulher.
11 2
Fiquei meio pasmo com o jeito dela, arrojado, quase
atrevido. Abriu o leque novamente, de forma a chamar
mais ainda a atenção, e se apresentou, estendendo-me a
mão, à moda antiga:
— Consuela, encantada!
— Ângelo, Ângelo Inácio — respondi, meio sem saber
como me comportar.
Voltando-se para Pai João, acrescentou:
— Deixe o gajo por minha conta, meu velho. Darei a ele
todo o apoio necessário para a sua visita ao nosso barrio;
sei que tem muita coisa a fazer. Caso queira, quando terminarmos
o levo até onde você indicar.
Pai João parecia já conhecer a mulher, pois, sem dizer
uma palavra, ao menos não palavras articuladas, pois poderiam
muito bem estar conversando pelo pensamento, deixou-
nos, meneando a cabeça para mim. Também, depois
do tempo que gastei na loja, com certeza Pai João deduziu
que não me contentaria indo apenas a um ou dois lugares,
sobretudo porque teria de escolher somente um traje. Fiquei
meio inquieto com o comportamento da espanhola,
mas ela soube me deixar à vontade e me divertir com seu
jeito marcante e irreverente. Tão logo Pai João saiu, dei
113
lando-nos em frente a uma praça, ela curvou o braço, como
me convidando a segurá-lo, e disse-me:
— Não vai deixar uma dama esperando assim, não é,
gajo? Pelo visto você tem estirpe e não fica bem uma dama
de sangue nobre ficar esperando e caminhando ao lado de
um gajo desprotegida assim. E suspirando, num aparente
exagero, acrescentou:
— Ai, como sou desprotegida! Corro tanto risco no
meio desse povo sem estirpe...
Não sei exatamente o que ela pretendia, mas aquele
espírito me conquistou com seu jeito irônico, irreverente
e impetuoso. Dei o braço a ela e saímos em direção a outra
loja. Aliás, outras lojas. Visitamos mais de 20 lojas antes
que me decidisse. E depois de tanto andar, conhecer gente
de todo tipo, voltei à primeira loja, que visitara na companhia
de Pai João. Watambi foi extremamente cortês, auxiliando-
me uma vez mais. Foram mais 90 minutos analisando
e experimentando. Afinal, como dizia Consuela, ela
não ouvira as explicações de Watambi sobre os fios especiais,
o tecido sedoso e os fluidos empregados na materia
ização dos modelos à escolha. Ele teve de explicar tudo
de novo, e ela, ereta, abanando o leque e respirando fun
11 4
do, exigia mais detalhes antes que eu experimentasse cada
traje. Dizia:
— Afinal, não sairei por aí ao lado de um espírito malvestido
e com roupas que não condizem com a estirpe espiritual
a que estou habituada.
Ri gostosamente. Nunca me diverti tanto assim em tão
pouco tempo. Mais tarde eu contaria tudo a Pai João, que
diria somente: "É uma menina muito levada essa minha filha.
Mas é boa gente!".
Saímos dali, eu todo empertigado com meu novo traje
de morto vivo. Afinal, escolhi algo bem prático, simples mesmo,
mas funcional. Consuela adora brincar, fala muito e se
ofereceu para me mostrar algumas das praças da cidade. Foi
um passeio muito interessante. A noite já caía na metrópole
espiritual. Uma espécie de nostalgia parecia querer se instalar
em minha alma, mas Consuela não me deixava tempo
livre para sequer pensar em tristeza. Meu primeiro dia do
lado de cá foi algo realmente fantástico. Muito mais tarde eu
entenderia que fora tudo planejado nos mínimos detalhes,
a fim de evitar que eu me entregasse à depressão post-mortem,
como é comum a muitos espíritos. Mas naquele momento
eu não sabia nada disso. E não era mesmo para saber.
11 5
A primeira praça que fiquei conhecendo foi a chamada
Praça dos Orixás. Jamais vi tamanha beleza e expressividade
da cultura negra. Vários orixás representados em maravilhosa
obra de estatuária. Chegamos a um dos lugares mais
concorridos, onde espíritos de procedências e estilos diversos
se reuniam, a maioria com trajes típicos africanos, muitos
lembrando antigos baianos das décadas finais do século
XIX e das primeiras do século XX. Apresentações teatrais e
exibições de dança afro ocorriam ali, com precisão e beleza
exemplares. Os dançarinos elevavam-se entre 5 e 8 metros
de altura, deslizando na atmosfera ambiente e revolucionando
para, logo depois, pousarem ao som de instrumentos —
congas, surdos, tablas, flautas transversais, violões e diversos
outros que nunca vira, desenvolvidos do lado de cá por
espíritos experientes na criação de instrumentos musicais.
Em dado momento, Consuela, talvez mais para me
mostrar a tecnologia usada na cidade dos espíritos do que
para descansar, convidou-me a sentar nu m dos bancos da
praça. Havia vários outros espíritos sentados, entre eles
casais que mais me pareciam apaixonados, namorados, do
que simplesmente amigos espirituais. Assim que nos sentamos,
comentei:
116
— Puxa, a vida social aqui não deixa tempo para tristezas.
E olha que não conheço nem 1% das atividades realizadas
na cidade! Pensei que vida de morto era um verdadeiro
tédio, indo e vindo entre nuvens e louvores sem fim... Ledo
engano! Ainda bem!
Enquanto eu falava, o som dos instrumentos e da conversa
dos espíritos a pequena distância vinha em nossa direção
obedecendo ao mesmo processo pelo qual o som se
propaga no ambiente da Crosta. Então, Consuela tocou
numa lateral do banco onde estávamos sentados, numa espécie
de botão escondido num nicho. Logo percebi uma película
finíssima erguer-se em torno do banco e, logicamente,
de nós dois, como se fosse um campo de pura energia,
transparente ao máximo, mas perceptível, devido a certo
brilho que irradiava ou refletia. Como por encanto, o barulho
externo cessou. Consuela comentou:
— Assim é melhor. Em todo local público por aqui temos
essa tecnologia, tanto em ambientes fechados, como
pubs e casas de encontro dos jovens, quanto ao ar livre,
como nas praças. Podemos erguer esse campo de compensação,
como é chamado aqui, e somos isolados do som ambiente.
É uma forma discreta de preservar-nos ou manter
11 7
nossa privacidade, sem que outras pessoas precisem participar
da conversa que temos. No momento em que desejar,
pode simplesmente tocar no dispositivo ao lado dos bancos
e voltar a ouvir tudo ao redor.
Não é preciso dizer que já estava estupefato com a tecnologia
usada na metrópole, mas essa simplesmente me
conquistou. Uma das coisas que mais me irritava na vida
terrena era a obrigação de escutar as pessoas conversarem
num volume desconcertante, de ouvir assuntos que não me
interessavam e a impossibilidade de me isolar completamente
quando conversava com alguém. Era simplesmente
irritante isso tudo. Mas aqui... não! Senti-me tão compreendido,
como se essa tecnologia tivesse sido desenvolvida especialmente
para mim... Que máximo! E mais ainda: como
dissera Consuela, em todo local era possível optar por isolar-
se do ambiente, permitindo conversar de maneira harmoniosa,
sem a interferência de música, burburinho ou
outro tipo de som indesejado. Achei isso o ápice da privacidade.
Agora, só me faltaria descobrir como ocultar os pensamentos.
Pois, ao que parecia, alguns espíritos tinham a
mania besta de devassar os pensamentos alheios, de maneira
que deveria rever urgentemente o conceito de privacida
11 8
de. Antes que eu pudesse falar sobre isso, é claro, descobri
que a tal Consuela também tinha essa habilidade.
— Não são todos os espíritos que podem conhecer nossos
pensamentos. São somente alguns, aqueles que desenvolveram
habilidades psíquicas, como a telepatia, por exemplo.
Olhei para ela como que reprimindo o fato de ela saber
o que eu pensava.
— Mas não se preocupe, gajo, aqui aprendemos o verdadeiro
significado daquilo que na Terra é chamado de discrição
e ética. Não devassamos os pensamentos secretos, as
questões íntimas; não conseguiríamos fazer isso, ainda que
quiséssemos.
Olhando para mim com seu leque em modo barulhento
— em oposição a modo silencioso —, acrescentou:
— Na verdade, não são os espíritos com habilidades
mentais que lêem ou penetram pensamentos; as pessoas
é que são permeáveis. Pensam com tanta intensidade que
não há como os mais hábeis e conhecedores das leis do
mentalismo não notarem as formas mentais, os clichês, cores
e formas-pensamento criadas, mantidas ou alimentadas
pela gente despercebida. E como essas formas mentais irradiam-
se além dos limites do corpo espiritual, como elas,
119
por assim dizer, povoam a aura dos espíritos, os mais experientes
percebem, veem, leem nas entrelinhas o que se passa
no mundo íntimo.
— E não tem como a gente evitar que ouçam, entendam
ou leiam o que pensamos?
— Ah! Gajo, isso é outra história! Terá de estudar as leis
do mentalismo em nossa universidade e aprenderá métodos
que chamamos de educação do pensamento e das emoções.
Pois há espíritos que também conseguem distinguir e
interpretar nossas emoções de forma bem precisa.
— Ai, meu Deus! Isso não tem fim? Não há como levantar
uma barreira protetora em torno do nosso cérebro espiritual
ou extrafísico? Algo semelhante ao que você fez aqui
na praça, em torno do banco? Assim, a gente ficaria mais
isolado mentalmente.
— Como lhe disse, gajo, é questão de educar o pensamento.
E isso não sei como ensinar. Você terá muito tempo
para aprender. Aqui, tempo é o que não nos falta.
Fazendo menção de se levantar, fechou seu leque elegantemente,
não sem fazer o barulho característico, e me
convidou, quem sabe meio sem paciência com minhas neuroses
de espírito recém-desencarnado:
12 0
— Está na hora de levá-lo de volta ao hotel. Você já
apresenta sinais de desgaste vital.
— Eu? Euzinho? Estou me sentindo muito bem, se me
permite...
— Nada disso! O velho está dizendo que você precisa
descansar. Será analisado pelos médicos de nossos hospitais.
Afinal, é seu primeiro dia aqui. Precisa dormir. Amanhã
estarei com você novamente. Isto, é claro, se desejar.
E saiu quase me arrastando, enquanto o campo de
compensação se desfazia à nossa volta e o som característico
do pessoal reunido na praça, da música e de todo o contexto
da apresentação artística invadia nosso campo auditivo
e nossos sentidos, embora de forma harmoniosa, sem
causar nenhum mal-estar. Como estávamos mais ou menos
distantes do hotel, Consuela optou por pegar um transporte
público, o chamado aeróbus. Visualmente, era muito
semelhante aos trens rápidos da Europa. Entramos e, logo
que nos sentamos, Consuela começou:
— Aqui temos estes veículos. Os espíritas encarnados
os chamam de aeróbus. Eu odeio esse nome. Prefiro chamá-
lo apenas de veículo aéreo; uma questão de gosto, apenas.
Existem diferentes modelos para finalidades as mais
12 1
diversas. Usar veículos como este — sobretudo quem não
aprendeu a levitar ou não o faz sem grande esforço — evidentemente
economiza um bocado de energia mental, que
pode ser empregada em outras realizações.
Enquanto se desenrolava nossa conversa, o veículo
percorria lugares diferentes; com certeza, pararia próximo
ao local onde deveríamos descer. Mas uma coisa me
inquietou: ao invés de subir na atmosfera, ele literalmente
desceu, como se fosse um metrô, viajando logo abaixo da
superfície da cidade. Minha amiga percebeu meu espanto
de imediato.
— Não fique assim tão chocado com este nosso mundo,
gajo. Como eu disse, existem vários tipos de veículo. Este
aqui, que transporta uma quantidade maior de pessoas,
percorre as vias no subsolo, como os velhos e conhecidos
metrôs da Terra, embora estejam em operação em nossa cidade
desde o ano de 1695. Temos desde veículos que voam
pela atmosfera astral afora até aqueles projetados para descer
a regiões mais profundas do submundo, no conhecido
umbral ou mesmo em lugares mais densos. Pessoalmente,
adoro os que se prestam a sair da atmosfera terrena rumo
à Lua, por exemplo, os quais são potentíssimos, muito em
12 2
bora pouquíssimos espíritos tenham autorização de sair do
ambiente do planeta em direção ao espaço cósmico. Então,
vá se acostumando com as diversas faces da vida espiritual.
Vamos descer numa estação antes do hotel, pois quero lhe
mostrar alguma coisa antes de você descansar.
— Já falei que não me sinto cansado!
— Vamos descer, de todo jeito. — E acrescentou: — De
qualquer ponto onde estiver na cidade, encontrará uma estação
a no máximo 400 metros a pé, onde poderá embarcar
em algum dos veículos. É uma malha de transporte público
que funciona com uma eficiência de nos deixar orgulhosos.
Seja por terra, pelo ar ou pelo subsolo, como no caso deste
comboio, sempre haverá um tipo de transporte ao alcance
dos habitantes da metrópole, de modo permanente.
Descemos num entreposto de transporte ou, como
chamou Consuela, numa estação. Caminhamos pouco. Na
verdade, para chegar à superfície havia a opção de levitarmos,
impulsionados por uma espécie de colchão de ar, ou
subirmos em esteiras rolantes, que eram um charme à parte;
algo bem futurista. Adorei as possibilidades, mas preferimos
ir a pé mesmo, circulando em meio aos pedestres,
que, diante de tantas opções de transporte, não eram em
123
número tão grande assim. Foi uma experiência muito diferente
para um espírito, mas também muitíssimo gratificante.
Em alguns entroncamentos e passagens subterrâneas,
semelhantes a túneis confortavelmente largos, havia
obras artísticas a decorar o percurso. Entalhadas em material
ainda desconhecido para mim, erguiam-se colunas
portentosas, e o teto parecia haver sido pintado, quem sabe,
por algum Michelangelo, tamanha era a precisão nos traços
e a beleza observada ali, bem como nas demais obras
de arte. Em determinado local, pouco antes de emergirmos
à superfície, deparei com um espaço mais amplo, mesmo
dentro dos túneis. Era uma espécie de praça, com algumas
cadeiras dispostas harmoniosamente. Espíritos assentados
admiravam a música de qualidade apresentada talvez por
membros de alguma sinfônica — poucos, na verdade, mas
suficientes para produzir algo que tocava o espírito mais
exigente em relação à boa música.
Subimos, então, o último lance antes de ascender à superfície,
enquanto Consuela chamava a atenção por onde
passávamos, com o traje tipicamente andaluz, elegante
como ela só. E eu totalmente absorvido pela decoração,
pela beleza em cada detalhe.
12 4
Quando chegamos à superfície, minha amiga e guia de
turismo do mundo espiritual apontou em direção ao céu. As
estrelas me encantaram. Eram visíveis quase na totalidade
as estrelas da Via Láctea. Uma profusão de luzes inundava
suavemente o campo visual, e vários espíritos ficavam parados,
como nós, olhando, observando, inspirando-se, talvez,
no espetáculo de belezas imortais. Pela primeira vez,
eu chorei. Chorei de nostalgia, de enlevo, completamente
envolvido pela beleza da imensidade, da Amanda. E antes
que meu choro se convertesse em pranto, talvez pela minha
tendência post-mortem de transformar as coisas em melodrama,
minha amiga convidou-me a voltar os olhos para o
lado oposto do firmamento. Notei que diversos indivíduos,
de um e outro lado da rua, também fixavam aquele lugar.
E o que vi me encantou mais uma vez. Grande quantidade
de espíritos se aproximava, levitando na atmosfera da
cidade. Faziam uma espécie de ziguezague ou bailavam ao
se deslocar em suspensão. Lembravam borboletas iluminadas,
radiantes, de estonteante beleza. Na Terra, os relógios
marcavam alguns minutos após as 18 horas. A população
parecia extasiada, olhar fixo ora num ponto, ora noutro,
contemplando a beleza da natureza e a manifestação da
12 5
queles seres que desenvolviam uma coreografia inspirada,
quem sabe, em alguma música que meus ouvidos ainda não
eram capazes de perceber. Eram mais de 200 espíritos indo
e vindo em perfeita harmonia, no espaço acima de nós. Alguns
veículos aéreos interromperam seu curso, pairando
nas alturas enquanto os ocupantes assistiam ao espetáculo
de belezas indescritíveis. Se algo na Terra pudesse se aproximar
muito pálidamente do que presenciei, talvez fosse
uma apresentação do Cirque du Soleil, quando artistas circenses
se elevam ao alto graças a suportes de vida, cabos de
aço ou cordas elásticas. Mas é muito pálida essa comparação.
Seja como for, era impossível não ficar admirado diante
das capacidades do espírito humano. Como a arte expressa
com perfeição uma das faces mais interessantes da criação
e da própria sabedoria divina! Deixei-me tocar intimamente
por toda aquela beleza, e assim ficamos ali por cerca de
30 minutos, parados, na mais absoluta contemplação.
Os pensamentos, naturalmente, eu nem sabia por onde
iam, mas de uma coisa tive certeza: sentia-me imensamente
grato a quem quer que fosse que me avalizou, abrindo a
possibilidade abençoada de viver, estudar e trabalhar nesta
atmosfera de beleza, diversidade e respeito, nesta grande
12 6
escola de convivência mais harmoniosa com a vida universal.
A gratidão brotou no meu coração como nunca percebera
até ali. Gratidão a Deus, à vida, ao universo.
Nem me dei conta, transcorrido aquele tempo, de que
estávamos bem próximos do hotel. Consuela, sem se preocupar
em disfarçar uma lágrima discreta num canto de
olho, convidou-me a caminhar. E caminhamos em silêncio.
Aliás, nunca vi tamanho silêncio como o que percebi naquele
momento. Parece que toda a população da cidade dos
espíritos prosseguia em silêncio rumo aos mais diversos
afazeres. Simplesmente, todos estavam tocados com as impressões
de beleza que cada um tivera, conforme sua situação
íntima, segundo mais tarde me contaria Pai João. Dei
graças por haver percebido aquele espetáculo de maneira
tão intensa.
Aliás, eu sempre fora sensível a tudo que é belo, ao sentido
estético das coisas, das pessoas, de tudo à minha volta.
Mas descobri ali, naqueles momentos de enlevo, que de
alguma forma a morte parecia haver amplificado tudo em
mim. E a beleza fazia muito mais sentido em minha alma,
muito mais do que antes de experimentar a chamada morte
do corpo. E também ali, enquanto caminhava em silên
12 7
cio ao lado de Consuela, pude pensar no quanto a morte e o
morrer abrem as portas da alma, escancaram os sentidos do
espírito, libertam do medo e das limitações do entendimento.
Isso, naturalmente, dependerá da abertura que damos às
oportunidades e da postura mental do indivíduo. Por mim,
estava mais que decidido: dali em diante, não perderia jamais
uma chance de trabalhar e aprender, estudar e progredir
de alguma forma, pois descobri nesta cidade meu verdadeiro
lar. Se havia sobrevivido em mim alguma vontade de
retomar o corpo que ficou na Terra, essa vontade apagou-se
de vez ante as belezas e as possibilidades no novo lar, na pátria
à qual regressara pelos braços generosos da morte.
Adentramos o ambiente do hotel e me despedi da nova
amiga. Não sei para onde ela iria, se tinha uma casa, um
bangalô ou morava na área urbana da cidade. Despedi-
me dela grato por haver encontrado pessoas afins, com as
quais conviveria com satisfação, e deixei-me embalar pelos
pensamentos repletos das novidades que reservava a
cidade dos espíritos, a Aruanda de todos os povos, de todas
as gentes.
Nem me recordo de como cheguei ao quarto. Sei apenas
que, quando passei pela porta, deparei com um buquê
12 8
de flores sobre a mesa, num vaso que nem era lá do meu
gosto, mas não deixava de ser belo. A surpresa trazia um bilhete
subscrito pela equipe do hotel: Seja muito bem-vindo
ao novo lar! Esperamos fazer parte de sua família espiritual.
Que sua estadia entre nós seja uma descoberta diária de felicidade
e satisfação. Conte conosco, Sr. Ângelo Inácio — e várias
assinaturas preenchiam o restante do espaço no cartão.
Não sou muito chegado a esse tipo de manifestação,
de flores e coisas do gênero, mas, confesso, me emocionei.
Ao cheirar as flores, o aroma me tomou por completo e um
leve sono pareceu preencher minhas sensações. Dirigi-me
à cama. Colchão macio, lençóis elegantemente arrumados,
com um tecido de qualidade superior — em cuja composição
naturalmente não entrava ectoplasma, como diria o
atendente da loja que visitei —, com um toque sedoso que
me convidava a deitar-me.
Relaxei assim que me encostei naquele ninho que me
abrigava o espírito. E sonhei. Sonhei com as estrelas de
Amanda e com um país onde todos podiam conviver em
paz, onde reinava uma política diferente, com leis simples,
que bem serviam aos propósitos da população de seres que
ali habitava. Sonhei com uma vida diferente, com uma nova
12 9
civilização, com Maria, minha filha. Apenas sonhei e me retemperei;
refiz meu espírito em meio aos fluidos balsâmicos
da Amanda de Pai João, de Jamar e dos amigos novos
que eu conhecera ali, entre as estrelas.
133
ui ACORDADO POR Jamar, meu amigo guardião ou anjo
da guarda. Ele foi muito discreto e só adentrou o ambiente
do apartamento após me chamar, também discretamente.
Confesso que, se ele tivesse deixado, dormiria até mais tarde.
Era o primeiro sono verdadeiramente reparador depois
da transição e da desativação do corpo físico. Acordei me
sentindo bastante fortalecido, energizado e com uma disposição
íntima excelente.
Jamar me esperava na antessala. Ele precisaria aguardar
por mais algum tempo, na verdade, pois senti vontade
de tomar um banho demorado. Eu não tinha noção do que
ele faria durante o tempo da minha higiene, se ficaria ali
esperando ou sairia para resolver algo. Sei bem que esse
espírito não é lá de ficar aguardando sentado, esperando o
tempo passar.
O fato é que me dirigi ao toalete e encontrei uma banheira
grande o suficiente para me acomodar de modo
confortável. Ao lado, numa espécie de deck onde se alojava
a banheira, alguns vidros continham extratos de ervas, e
pareciam estar ali há pouco. Quem os teria providenciado?
Não saberia dizer. Talvez Bernardo, o rapaz que se dispusera
a auxiliar nos momentos de adaptação. Encontrei diver
13 4
sos frascos com algum conteúdo verde, um tipo de sumo ou
extrato que resolvi experimentar.
Assim que segurei o primeiro deles, notei um rótulo
com as informações: Extrato concentrado de ervas. E havia
instruções: Recomendado para liberar energias densas e
emoções mais intensas e pesadas. Derramar o conteúdo na
água e permanecer imerso por aproximadamente 20 minutos.
O segundo frasco era indicado para se recompor após
o descarte biológico, com propriedades terapêuticas energizantes.
E assim por diante, um a um trazia a indicação específica.
Escolhi o que acreditei me serviria melhor, e, tão
logo a banheira se encheu, o que não demorou, deitei o conteúdo
do frasco. O resultado foi muito semelhante ao que
se vê na Terra, quando se derramam sais de banho na água.
Após me despir, entrei na banheira e fiquei submerso por
alguns instantes, para logo relaxar com a água até os ombros.
Não era hidromassagem, mas nem tudo pode ser tão
perfeito. Respirei fundo e percebi os aromas agradáveis, intensos,
penetrantes. Parecia que alguma coisa se desprendia
do meu corpo espiritual — aprendi ser esse o nome do
novo envoltório que me servia —, mas era algo muito denso.
Fluidos ainda se mantinham impregnados nas células
13 5
ultrassensíveis do meu organismo, segundo me explicaram
mais tarde. Creio que o extrato que escolhi tinha alguma
propriedade terapêutica que liberava ou sugava de meu ser
tudo aquilo que excedia o necessário para minha vida ali,
naquele recanto abençoado do universo.
Relaxei a ponto de não me dar conta do tempo que se
passou. Será que meu anjo guardião ainda me esperava lá
fora ou desistira de mim? Levantei-me de sobressalto e foi
então que percebi quão mais leve eu estava. Caminhei pelo
quarto com a impressão que perdera boa quantidade de
fluido denso, de energia pesada ou sei lá como me referir à
sensação tão agradável e de leveza que experimentei após
o banho. O sabonete era um misto de calêndula, cardamomo
e cânfora, e talvez alguma outra erva, mas não li toda
a composição, no rótulo da embalagem. Sei é que já na banheira
senti uma suavidade incrível em meu corpo espiritual.
Mesmo agora faltam-me palavras para descrever em
sua amplitude a sensação que me dominava. Vesti o terno
que havia sido escolhido tão rapidamente no dia anterior,
na companhia da amiga Consuela, e saí para ter com Jamar.
Ele estava de pé na antessala, embora houvesse ali um espaço
confortável e poltrona para se instalar.
13 6
— Sente-se melhor, Ângelo? Espero que tenha experimentado
o efeito regenerador e estimulante do banho. Aqui
em nossa cidade, a água exerce um papel fundamental para
todos nós.
— Você ficou aí me esperando esse tempo todo?
— Não! Acabei de chegar.
— Mas ouvi a campainha tocar e você me chamar pelo
aparelho de comunicação...
— Ah! Com o tempo você aprenderá muitas coisas por
aqui. Estava ainda no Q G dos guardiões quando você me ouviu
e adentrei aqui exatamente no momento em que abriu a
porta. Não podia aguardar; sabe como são os compromissos.
Lembrei-me do médico que viera no dia anterior me
consultar. Embora o tempo aqui fosse mais dilatado do que
aquele ao qual havia me acostumado na superfície, parecia
que alguns espíritos preenchem seu tempo com tanto trabalho
e responsabilidade que não lhes sobra muito para curtir.
Sofrem de síndrome do trabalho compulsivo, imagino.
Jamar, vestido com um traje semelhante ao que usara
nas ocasiões anteriores, mantinha o porte ereto, sóbrio e,
acima de tudo, a atmosfera em seu entorno. A compleição
física do guardião denotava marcante masculinidade ou vi
137
rilidade, além de uma força descomunal. Numa proporção
muito acima da média, parecia exalar energia yang de cada
átomo do corpo espiritual. Não obstante, era a calma em
pessoa; mantinha-se tranquilo e inspirava segurança e um
quê de paternidade, de modo que estar em sua presença fazia
bem. Forçosamente ocupava uma posição de comando
naquela comunidade.
— Temos de ir, meu amigo. Alguns dos imortais nos
aguardam, e você precisa conhecer algumas pessoas centrais
em nossa comunidade. O trabalho que tem a realizar
não pode ser adiado.
— Trabalho? Mas eu mal morri e já tem trabalho para
mim? E o tal do descanso eterno? Não tenho direitos?
— E deveres, também. Não se esqueça de que conhecimento
e muita habilidade acarretam grande componente
de responsabilidade. Você não veio para nossa comunidade
por acaso. Você não escolheu; foi escolhido.
— Então não vou mais descansar?
— Sente-se cansado?
— Talvez... Depende do que me espera!
— Vamos! Alguns comentários não merecem resposta
— falou sério, mas sem nenhuma expressão de gravidade.
138
Parecia que ele não tinha tempo a perder, mesmo; não era
como Consuela. Não mesmo!
Saímos do hotel, e logo me chamou atenção o veículo.
"Como é mesmo o nome espírita para ele?" Àquela altura,
não pude recordar o nome que Consuela me falou no
dia anterior. Soube apenas que era algo feio, sem elegância
nem criatividade. Enfim, entrei naquela espécie de automóvel
e então notei mais um homem e uma mulher; ela
estava vestida com um uniforme similar ao de Jamar. Era
levemente mais descontraída, embora também inspirasse
segurança e responsabilidade. Jamar nos apresentou:
— Essa é Semíramis, a representante das guardiãs, e
Watab, um amigo servidor em nossa corporação.
Ambos me cumprimentaram sorridentes, porém notei
ainda certa reserva. Watab era alto, magro, com dentes
branquíssimos. O traje, um tanto solene, diferia bastante
do de Jamar. Era um tipo de roupa que se ligava ao
corpo, deixando-lhe as formas e os músculos mais evidentes.
Lembrou-me algum bailarino que havia visto na Terra,
em apresentação. Ri sozinho. Não sei se me perceberam o
pensamento, mas Jamar logo se manifestou, esclarecendo
nosso objetivo e ignorando ou ao menos desconsiderando o
13 9
que pensei. Graças a Deus, pois viver no meio de um povo
que sabe o tempo todo o que você pensa não é fácil, não. E
esse negócio de imortalidade? Meu Deus, como me pareceu
difícil conviver com gente que não morre nunca, nunquinha...
E o pior: sendo assim, eles não têm medo da morte
e, não tendo medo da morte, podem ter medo de alguma
coisa na vida? Jamar interrompeu meus diletos pensamentos
e raciocínio profundos.
— Vamos a uma reunião — dirigiu-se a mim — em que
alguns de nossos mentores e mestres querem conhecê-lo
ou dar-se a conhecer. São seres mais experientes, com um
grau de responsabilidade para com a humanidade do qual
nem sabemos a extensão verdadeira. Sabemos, contudo,
que trabalham numa dimensão muito mais alta e com tarefas
mais expressivas do que a nossa. Mas fique tranquilo;
são humanos, na verdadeira acepção do termo. Riem, brincam
e entendem nossos dilemas e limitações.
— Então podemos dizer que são espíritos de luz? —
perguntei, com certa dose de sarcasmo, reconheço, mais
pelo tom piegas dessa expressão...
— Não os classificamos assim; nós os chamamos de
orientadores evolutivos da humanidade e nossos, também.
14 0
A audiência será rápida, pois não dispõem de tempo para
se dedicar a uma conversa mais demorada.
— Tempo, tempo... Parece que aqui vocês não sabem
aproveitar o tempo eterno que têm pela frente.
— Em breve, você verá que há muito o que fazer pela
humanidade, sobretudo neste período da história. Muitos
lances do grande conflito dependem de nossa ação rápida e
constante. Há muito mais em jogo que nossa simples condição
de espíritos em aprendizado. — A conversa adquiriu
um tom mais grave. Olhei para Semíramis e ela esboçou um
sorriso contido, talvez dando a entender que me compreendia
o jeito humano de falar, não somente humano, mas irreverente;
irônico, até.
Chegamos a um edifício muito estilizado, se comparado
aos demais que vira até então. Formas modernas, arrojadas,
iluminado, pelo sol. O veículo pousou num local
preparado no alto do prédio, que, ao que parecia, situava-
se na periferia da cidade. Descemos numa espécie de elevador,
que funcionava com um sistema semelhante àquele
do hotel, com um tipo tecnologia que não existia nas instalações
da Crosta. Semíramis tomou a dianteira, seguida por
Jamar e Watab, e logo atrás ia eu, caminhando num passo
141
mais lento propositadamente, a fim de observar tudo ao redor.
Minha mente, sempre atenta, registrava cada detalhe.
Adentramos um ambiente acolhedor, com poltronas confortáveis,
onde uma recepcionista nos aguardava. Semíramis
apresentou a si e a Jamar.
— Olá! Somos aguardados pela administração da metrópole.
Trazemos um convidado recém-chegado da Crosta.
Poderia nos anunciar, por favor?
— Desculpe, senhores, senhora, mas ocorreu uma
emergência num dos países do extremo Oriente e nossos
dirigentes tiveram de se dirigir imediatamente para o campo
de batalha espiritual. Pediram para avisá-los que retornarão
em alguns minutos. Por favor, sentem-se enquanto
aguardam. Desejam algo? Alguma bebida, quem sabe?
— Obrigado, minha querida — respondeu Semíramis. —
Vamos aguardar por aqui, enquanto conversamos com nosso
convidado.
Meus novos amigos sentaram-se, enquanto eu notava
os detalhes do ambiente. A mesa de contornos nobres parecia
ter sido desenhada especialmente para aquele lugar.
O tampo flutuava sem pernas aparentes, ao passo que um
discreto dispositivo eletrônico sobre a mesa mostrava ima
14 2
gens ou paisagens desconhecidas para mim. Dirigi-me até
as janelas e observei a vida intensa da metrópole. Daqui era
possível ter um a ideia mais ampla daquela sociedade de seres
que viviam fora do corpo. Era uma verdadeira civilização
espiritual.
Olhando para a direita, via-se a vida na metrópole; veículos
indo e vindo em várias direções e espíritos levitando
na atmosfera, sempre em grupos, percorrendo uma estrada
invisível, como se bailassem ao som de alguma música
que não se escutava. Do lado oposto, incontáveis casas,
bangalôs, parques, campos, bosques e florestas, que se avistavam
mais além, de maneira que, à minha visão, parecia
não ter fim o mosaico de verde e harmoniosas intervenções
humanas sobre a paisagem natural. Pululava de vida aquele
recanto do universo. Pássaros exóticos, outros que já conhecia,
e uma infinidade de seres diferentes avistavam-se
ao longe. Minha visão parecia ter sido dilatada ao extremo,
por algum mecanismo ignorado. Olhei para baixo do
prédio e vi seres estranhos, diferentes não tanto pela vestimenta,
como pela conformação externa, física, a qual diferia
largamente do tipo humano convencional. A esta altura
de minhas observações, Jamar se aproximou e esclareceu:
143
— São nossos irmãos do espaço. Seres extraterrestres,
que convivem aqui conosco, harmoniosamente. Temos
um contingente desses seres nos visitando tanto aqui,
em nossa metrópole, quanto em algumas outras cidades
de espíritos, em torno do planeta. São poucos, mas trazem
enorme contribuição no preparo dos guardiões para o momento
de reurbanização extrafísica ou de transmigração
intermundos.
Olhei sem entender direito para o amigo guardião, e
ele entendeu tanto minha curiosidade quanto minhas dúvidas,
que certamente extravasavam do meu interior.
— Sim, Ângelo. Há vida em outros mundos, e não somente
vida depois da vida conhecida na Terra. No entanto,
as coisas não são exatamente como afirmam alguns grupos
na Crosta. Esses seres estão há tempos em contato com
diversas comunidades em torno do globo, mas evitam interferir
diretamente nas questões planetárias, a menos que
essas questões possam afetar diretamente o equilíbrio da
vida universal.
— Então eles interferem de alguma maneira? Existe algum
caso específico em que porventura tenham agido, de
forma mais direta?
14 4
— Claro! Desde algumas décadas, há países que já sabem
da existência desses seres; alguns destes inclusive já
fizeram contato direto com certos governos do mundo.
Quando da ameaça bastante plausível de uma nova guerra
nuclear, eles interferiram intensa e inesperadamente, como
ocorreu com o governo norte-americano. Estabeleceram
contato com os humanos no poder e ameaçaram uma investida
mais direta, aberta e ostensiva, caso aquela nação
não modificasse a política armamentista. Teriam condições,
tecnologia e autorização cósmica para atuar a ponto
de afetar os equipamentos elétricos e eletrônicos do planeta,
impedindo mesmo que bombas nucleares fossem disparadas
novamente. Poderiam agir na rede de comunicação
do planeta, o que causaria um caos completo. Com isso, alguns
governos resolveram modificar a política e a forma
de administrar os recursos tecnológicos, a fim de evitar a
guerra nuclear. Esse é apenas um dos casos.
— Então certos governos da Terra sabem da existência
de vida em outros planetas?
— Não somente sabem como também têm contato direto
com algumas inteligências extraterrestres atuantes no
sistema solar, em dado tipo de tarefa. Porém, caso admitam
14 5
tal fato publicamente ou provas venham a público de maneira
oficial, decerto ruiriam por completo e imediatamente
muitos paradigmas, sejam de caráter político, filosófico
ou religioso. Imagina o caos que se seguiria, principalmente
em âmbito religioso, de forma geral? Muitas teorias admitidas
como verdades intocáveis cairiam por Terra, e de
modo abrupto.
— Isso significa que o povo nunca saberá ao certo a respeito
desses seres? — indaguei. — Permanecerá na ignorância,
indefinidamente?
— De forma nenhuma, Ângelo. Os próprios governos
e agências de inteligência de determinados países paulatinamente
apresentarão documentos e provas para a população.
Igualmente planejam, sob a pressão dos extraterrestres,
é claro, várias estratégias de ação que visam preparar
o povo para aceitar a existência deles antes que se mostrem
abertamente. Muitas peças de comunicação de massa,
como filmes, por exemplo, são encomendadas por agências
de inteligência de certas nações e patrocinadas por órgãos
governamentais. Mundo afora, programas de televisão vão
ao ar e matérias são publicadas na imprensa visando habituar
lentamente o povo, até que a ideia da existência de se
14 6
res fora do planeta Terra seja admitida de maneira global.
A mudança cultural é gradual, mas consistente, e está em
pleno andamento. Em algum momento no início do milênio,
documentos virão à tona e, mais tarde, provas consideradas
cabais. Não se pode esquecer de que a população
do mundo ultrapassa 7 bilhões de almas reencarnadas; segundo
a contabilidade espiritual, são cerca de 9 bilhões de
desencarnados. Levando em conta a diversidade cultural e
religiosa dos habitantes do planeta, certas situações devem
ser levadas ao público de maneira gradativa, embora constante,
a fim de não provocar colapso em muitos setores da
vida terrena.
Olhei o universo à minha frente e entendi que havia
muito mais coisas a aprender do que eu supunha. Enorme
variedade de conhecimentos novos estavam à minha disposição,
esperando a hora de iniciar o aprendizado.
Mudando radicalmente o rumo de nossa conversa, perguntei
a Jamar:
— E quando poderei me matricular nas escolas da cidade?
Queria fazer um exame para ver em que situação me
encontro e, tão logo possível, colocar-me à disposição tanto
para os estudos quanto para as atividades.
147
— Não se preocupe, amigo. Em breve terá tanta coisa a
fazer que suplicará por momentos de descanso. — E riu um
sorriso discreto, mas imediatamente retornando à seriedade
costumeira.
Passados alguns minutos, meu amigo falou:
— Terá hoje a oportunidade de conhecer alguns de
nossos orientadores espirituais, mentores ou guias, como
alguns preferem chamá-los. São espíritos mais experientes
do que a maioria e do que nós que o convidamos.
— São porventura anjos guardiões? Seres de luz?
— Não falamos assim, por aqui. Esses termos, em geral,
são empregados na Terra por religiosos, que tentam associar
à personalidade de tais espíritos o conceito de santidade
ou elevação elaborado nas religiões. Longe de serem
santos ou seres redimidos, são, como nós, apenas humanos,
muito embora dotados de vasta experiência tanto quanto
de grandes responsabilidades, as quais muitos de nós estão
distantes de compreender. Alguns estão envolvidos com
um tipo de trabalho que transcorre num âmbito bem maior
d o que supomos ou conhecemos. São simplesmente nossos
mentores e orientadores, mas não isentos de lutas pessoais.
Não são anjos, que desconhecemos aqui; tampouco se ca
148
racterizam por aquele tipo de elevação que muitas religiões
da Terra lhes atribuem, e que chega a se confundir com
certa passividade contemplativa.
"Mesmo em meios que teoricamente dispõem de conhecimento
espiritual mais avançado, como o espírita, a
maioria dos adeptos é impregnada ou condicionada pelo
tipo de visão tipicamente medieval. Da mesma forma são
os conceitos, as ideias e crenças que alimentam a respeito
do trabalho tanto quanto da natureza dos espíritos que
nos dirigem. Transpuseram a forma de pensar católica e
os pensamentos seculares, francamente ultrapassados e
obsoletos, para a prática religiosa ou pretensamente filosófica
que adotam. Essa visão arcaica de mundo, limitada
por conceitos moralistas e maniqueístas, permanece como
pano de fundo das consciências; estas, mesmo com a chegada
das luzes esclarecedoras, parecem estar acomodadas
ou rearranjadas de tal maneira que a velha realidade mental
não seja ferida.
"Assim, no discurso a existência de anjos e santos é refutada,
em acordo com os princípios da filosofia espírita; na
prática, porém, os mentores espirituais preenchem o lugar
dos velhos ídolos e são tratados com devoção e veneração,
14 9
como se fossem entes divinos e supra-humanos. Frequentemente,
não se admite em hipótese alguma que tais espíritos
sejam questionados, nem sequer para entender suas
orientações e melhor cumprir eventuais determinações,
quanto mais para discordar ou pedir explicações mais pormenorizadas.
De modo geral, os adeptos são pessoas com
muita boa vontade, mas religiosos ao extremo, apegados
inadvertidamente a conceitos de religiões do passado, que
trazem vivos, enraizados na mente. A verdade é que nossos
orientadores espirituais não são nada disso e parecem
muito pouco com o que comumente se fala a respeito deles.
Verá por si mesmo."
— Devem ser seres muito sérios, compenetrados, cientes
de suas obrigações com a humanidade.
— Sim, é verdade, em certa medida. Mas seriedade não
implica severidade, rabugice, chatice ou falta de bom humor.
Aliás, alguns desses espíritos têm tamanha leveza e
bom humor que se confundem com a população comum.
São superiores, sim, mas não espíritos puros, muito menos
santos, e não detêm sabedoria plena. Enfim, não abdicaram
de sua humanidade, do prazer de vivenciar certas
experiências puramente humanas, tampouco se conside
15 0
ram missionários, como muitos encarnados os consideram.
Como na dimensão física o peso da herança católica é ainda
muito grande nos meios espírita e espiritualista, esses
nossos irmãos encarnados acabam por beatificar espíritos
protetores e aqueles que alcançaram um estágio maior de
experiência. Imputam a eles os mesmos atributos de infalibilidade
e santidade que fiéis costumam atribuir ao papa e
aos santos católicos. Mas quer saber de uma coisa, Ângelo?
Nenhum desses seres a quem chamamos superiores têm
qualquer coisa disso que se diz a seu respeito.
— Então, muita gente, religiosa ou não, quando ultrapassar
os portais da morte pelo descarte do corpo físico,
talvez se decepcione amargamente ao conhecer de perto os
próprios guias ou anjos da guarda, não é?
— Isso ocorre com larga frequência, principalmente
com médiuns que querem a todo custo que seus mentores
sejam mais adiantados, mais evoluídos ou detentores de
tão grande conhecimento que, para muitos, é quase como
se fossem o próprio Cristo. Apresentam seus mentores tão
envolvidos em luzes, irradiando tamanha bondade e detentores
de tal grau de santidade e elevação que, ao ouvir tais
descrições, cabe desconfiar. Será que elas se referem mes
15 1
mo a mentores ou se parecem mais com a descrição de algum
santo católico idealizado?
"Ao chegarem aqui, encontram seus mentores, quando
os encontram, vestidos como homens simples; descobrem
que a visão que tinham de seus orientadores não passava de
uma visão pessoal, requintada pelo orgulho e pelo desejo
de ser especial. Deparam com pessoas de bom coração, mas
ainda seres comuns. E tantos são os médiuns que descrevem
seus mentores de maneira portentosa que muita gente crédula
acredita que se trata da mais pura verdade. Querendo
ser ainda mais diferente, há quem afirme que seus mentores
são extraterrestres, como se isso fosse sinônimo de elevação
espiritual, e que decepção têm ao aportar em nossa dimensão
e constatar que não passam de espíritos familiares. São
pais, irmãos, parentes de outras vidas, cada qual com seu
sistema de crenças pessoais e culturais, como qualquer outro
espírito. Não raro encontramos médiuns desencarnados
totalmente transtornados, decepcionados com seus mentores
reais, em contraposição àqueles idealizados."
— Se é assim, por que não interferem, de maneira a
desmistificar as questões relacionadas à vida espiritual,
aos espíritos em particular? Uma abordagem sem misticis
15 2
mo, sem o componente de religiosismo, talvez servisse para
despertar alguns na Crosta e mostrar a vida do lado de cá
sem mistérios, sem o componente romântico que faz com
que os médiuns, ao desencarnarem, se decepcionem ou entrem
em depressão.
Olhando para seus amigos Semíramis e Watab, Jamar
sorriu mais uma vez discretamente, deixando algo no ar.
— Falei algo errado, porventura?
— Não é isso, meu Ângelo! Você terá oportunidade de
ouvir dos Imortais o projeto de trabalho que o espera. Verá
como eles planejam uma tarefa que trará resultados mais
amplos...
Antes de Jamar ou qualquer dos seus amigos falarem
mais, ousei perguntar:
— Por que vocês chamam esses espíritos de Imortais?
Não somos todos imortais, afinal? Os espíritos não são todos
eternos?
— É apenas uma convenção, Ângelo, uma forma de nos
referirmos àqueles que alcançaram maior experiência e
uma visão mais ampla das questões da vida.
— Também falamos assim — interferiu Watab, pela primeira
vez — ao nos referirmos àqueles espíritos que talvez
15 3
não tenham tanta necessidade de reencarnar, como a maioria
de nós, mesmo porque passam períodos de tempo muito
maiores na erraticidade do que a maioria. Embora voltem
ao palco da vida física como a esmagadora maioria dos seres
que já descartaram ou desativaram seus corpos materiais,
não mergulham mais na carne com as mesmas necessidades.
— Mas podemos diferenciar imortalidade e eternidade
de maneira a entender melhor — falou Semíramis com uma
voz potente, embora feminina. — Consideramos eterno
aquilo ou aquele que não teve início nem terá fim. Portanto,
segundo essa compreensão de eternidade, só o Pai é eterno,
o Criador, em cuja direção todos caminhamos. Imortalidade,
por outro lado, pode ser vista como atributo daqueles
que foram criados, ou seja, de quem teve início, porém não
terá fim. Dessa forma, todos os espíritos são imortais.
"Ainda assim, há outro aspecto a considerar, outro ponto
de vista, quando nos referimos a determinada categoria
de espíritos como Imortais. Eles representam, também,
aqueles seres que já descartaram o segundo corpo, isto é,
o corpo espiritual ou períspirito, de modo que vivem e vibram
na dimensão puramente mental. Não padecem da
necessidade inexorável de adotar um organismo mais ma
154
terial, quer seja de matéria física ou astral, a fim de que a
consciência possa se manifestar, como a maioria de nós;
aqui. Em razão disso, os Imortais são seres cujo compromisso
com a humanidade é muito mais abrangente, e cujas
responsabilidades, em âmbito universal e mental, escapam
por completo ao conhecimento e ao entendimento da maioria
dos seres comuns, como nós mesmos. Em suma, trata-
se apenas de uma forma de distinguir os mais avançados,
aquelas almas cujo comprometimento com as leis da vida
extrapola a noção que temos do assunto. Apesar de tudo
isso, à semelhança do que ocorre conosco, ainda erram, cometem
falhas, embora em dimensão e escala bem diferentes
do que consideramos habitual. Enfim, são autênticos espíritos
do bem, mas de modo algum espíritos puros."6
— Entendi... Então, esses Imortais a que se referem...
Fomos interrompidos pela assistente que nos chamavi
— Desculpem, meus senhores, mas nossos dirigentes já
estão de volta e os aguardam na sala ao lado. Por favor, me
acompanhem!
Cf. "Escala espírita". In: KARDEC. O livro dos espíritos. Op. cit. p. 117-127, item
100-113.
155
Ao adentrarmos o ambiente, elegante, porém minimalista,
tive um choque ao perceber o médico que me havia
examinado anteriormente. Ele estava ali, olhos claros,
meio sério, vestido de branco. Aliás, era o único vestido de
branco entre os demais. O ancião Pai João estava mais recuado,
próximo a um arranjo floral, única peça propriamente
de decoração vista no ambiente. Trajava um costume
bem cortado, na cor azul-marinho, que contrastava
com a camisa branquíssima e a gravata espantosamente
moderna e coerente. Mais outros espíritos estavam ali,
sorridentes. Havia um mais idoso, de barbas fartas, olhos
amendoados, que irradiava uma doçura imensa, mas todos,
absolutamente todos, eram muito humanos para meu gosto.
Todos me observavam silenciosos. Fui apresentado a
Saldanha, Júlio Verne, Anton e alguns outros de aparência
espiritual mais excêntrica, ao menos para os padrões a que
eu estava familiarizado.
Mesmo tendo Jamar e os guardiões falado a respeito
de como esses espíritos eram, eu sinceramente esperava
encontrar anjos ou algo do gênero. Mas... eram humanos,
tão humanos! O sorriso farto nos lábios de alguns desfazia
completamente qualquer ideia preconcebida de que
15 6
os chamados Imortais fossem seres iluminados, radiantes
de energia ou transfigurados em focos de luz iridescente.
Nada disso. De fato, me decepcionei! Esperava mesmo que
Jamar e Semíramis estivessem atenuando a característica
daqueles espíritos apenas para me deixar à vontade. Mas
não! Eram exatamente conforme descrito.
— Seja bem-vindo, Ângelo Inácio — falou o médico
para mim, uma vez que, naturalmente, já me conhecia. —
Sejam bem-vindos todos.
— Estamos felizes por encontrá-los novamente — falou
Jamar, exalando uma aura de tranquilidade e felicidade legítima.
Era contagiante a satisfação que demonstrava, embora
conservasse o aspecto de um guerreiro sempre a postos,
sempre atento a tudo.
— Estes são os nossos amigos Bezerra — falou Joseph
Gleber, o médico que conheci antes e que lera meus pensamentos
—, Séfora, do Oriente, Zarthú, o Indiano, Eurípedes
Barsanulfo e Anton, um dos chefes da segurança planetária.
Você conhece João Cobú, nosso convidado especial, e
os demais — apontou para a equipe —, que mais tarde serão
seus companheiros mais próximos nas tarefas que tem a
realizar. Infelizmente, outros amigos que queriam se apre
15 7
sentar não puderam permanecer, pois situações emergenciais
no extremo Oriente requerem a presença deles.
Todos nos olharam de maneira tão natural e nos deixaram
tão à vontade que pensei estar entre amigos, entre colegas
escritores e jornalistas com os quais convivi no passado.
Me senti em família.
Sem demora, indicando o trabalho intenso que esses
seres administravam, Joseph introduziu a pauta:
— Recebemos aval de nossa coordenadora de uma dimensão
mais elevada, nossa mãe, Maria, para eleger alguém
que pudesse nos auxiliar na transmissão de novas
ideias e de uma visão mais dilatada da vida espiritual, levando
ao mundo essa mensagem, mas principalmente tendo
os amigos espiritualistas como alvo.
Neste ponto da conversa, interveio o espírito Bezerra:
— Nossos amigos espíritas e espiritualistas precisam
expandir o campo de visão, contemplando uma realidade
mais ampla. Por essa razão, nós o temos acompanhado
desde há algum tempo e verificamos que suas disposições
mentais e emocionais provavelmente possam servir para
nos auxiliar como intérprete junto aos encarnados. Em certo
momento, na Crosta, durante o período da internação,
15 8
pessoalmente o acompanhei, quando a depressão o consumia.
Em decorrência disso, decidimos apressar sua vinda
para o lado de cá, em virtude dos trabalhos que precisam
ser levados a efeito.
Desta vez, Joseph Gleber voltou a se pronunciar, enquanto
os orientais Zarthú e Séfora mantinham-se calados:
— Precisamos de suas habilidades com a escrita. Encomendamos
um estudo aprofundado sobre diversos espíritos
reencarnados cuja particularidade no campo profissional
trouxesse elementos que nos pudessem auxiliar.
Atrevi-me a interferir e perguntar:
— Mas por aqui vocês não têm espíritos com essa habilidade
ou competência?
— Espírito é espírito, meu irmão — tornou Gleber —,
tanto no corpo como fora dele.
— Não é só isso! — falou Eurípedes Barsanulfo — "Meu
Deus, que nome!", pensei. — Dispomos, sim, de alguns espíritos,
jornalistas e outros, que até já escreveram através de
médiuns muito respeitáveis entre os espiritualistas. Porém,
apresentam ligação mais estreita com certas correntes do
movimento das ideias libertadoras ou, ainda, identificam-
se com uma tradição já estabelecida, de maneira mais ou
15 9
menos rígida ou engessada. É exatamente esse alvo que nos
propomos atingir com novos escritos, além de outros adeptos
do pensamento espiritualista, que surgem com mentalidade
mais aberta ou receptiva.
— Por isso, caro Ângelo — retomou Joseph Gleber, com
o sotaque carregado, lembrando um alemão tentando falar
português —, você foi indicado, justamente por não ter se envolvido
com a visão espírita padronizada, segundo o enfoque
de determinados médiuns e autores espirituais, por mais
boa vontade ou compromisso que tenham. Precisamos de alguém
mais ligado à literatura de forma geral, e não tanto à
literatura espírita. Mas, entenda, a tarefa não é tão simples
como possa imaginar; e não se trata apenas de escrever. Você
terá de estudar muito aqui, em regime permanente; deverá
se envolver com os guardiões e conhecer muitos aspectos
de suas atividades. João Cobú, a quem você já conheceu, se
encarregará diretamente de conduzi-lo. Apresentará a você
pessoas encarnadas, desdobradas além do limite de seus corpos,
tanto quanto espíritos, que já descartaram o corpo físico,
a fim de que entenda melhor o que o aguarda como tarefa.
"Meu pai!" — pensei, esquecendo que a maioria ali, senão
todos, poderia escutar meus pensamentos — "Então
16 0
minhas férias de espírito acabaram mesmo. Duraram apenas
um dia..."
— Você se preparará ao longo de 8 a 10 anos para escrever
através de um médium. Como no passado participou da
Revolução Francesa, redigindo pensamentos e difundindo
ideias com bastante esmero, e, mais tarde, no último mergulho
na carne, aprimorou esse conhecimento e as habilidades
narrativa e descritiva, escolhemos alguém que tem
algo em comum com suas experiências. Trata-se de um
companheiro do seu passado, velho conhecido nosso e dos
guardiões. Mas terá que preparar esse médium, além de se
preparar. Ele constituirá seu desafio, como espírito. Repito:
não será fácil.
Comecei a ficar temeroso diante daqueles espíritos e
sua proposta. Parece que imediatamente desconfiaram de
meus medos e apreensões, e logo, logo o espírito Bezerra
veio em meu socorro, abraçando-me e sorrindo um sorriso
tão cativante e envolvente que me acalmou os pensamentos
e as emoções.
— Deixemos os detalhes para depois. Primeiramente,
você será apresentado ao trabalho dos guardiões e à universidade.
Assim, poderá ficar mais tranquilo para, oportu
161
namente, decidir. Não se sinta pressionado, meu filho. Porém,
esperamos que esteja atento a cada elemento que lhe
será mostrado. Fará uma excursão, por assim dizer, a certos
recantos obscuros do mundo inferior, acompanhado por
Jamar. Mais tarde, Anton mesmo o levará ao quartel-general
dos guardiões e lhe mostrará as tarefas que realizam em
nível planetário.
— Isso mesmo! — falou Joseph Gleber. — Certamente
se sentirá mais à vontade para decidir sobre nossa proposta
após conhecer mais a respeito da vida espiritual e dos projetos
que levamos avante em nossa dimensão. Mas entenda:
você foi apontado como um dos prováveis seres a desempenhar
um papel importante ao lado de nossa equipe. Aproveite
a oportunidade e, quando se sentir mais à vontade ou
tiver decidido, procure-nos, ou quem sabe se sinta melhor
com Jamar e João Cobú.
Olhei para o ancião, para Pai João, e me senti mais
apoiado, mais envolvido e, quem sabe, seu olhar doce e
tranquilo me transmitisse um quê de serenidade. Confirmei
ali mesmo a impressão de que meu tempo de férias no
outro mundo havia terminado. Meus pensamentos deram
uma reviravolta. Agora, conheceria e examinaria a cidade e
16 2
seus trabalhadores com novo olhar. Bezerra aproveitou minhas
disposições íntimas e acrescentou:
— Enquanto estive abraçado com você, meu filho, não
pude me furtar à análise de sua condição espiritual. Sugiro
que procure uma de nossas unidades hospitalares para se
submeter a um tratamento rápido, porém necessário, a fim de
que se sinta melhor, mais leve e liberto de algumas impressões
físicas naturais de quem é recém-chegado da Crosta.
Olhei para Pai João como a pedir socorro. Ele compreendeu
meu pedido e se aproximou tranquilo, segurando
meu braço esquerdo.
— Eu o acompanho, Ângelo. Não se preocupe, não precisará
ficar internado. Aliás, aqui quase não temos espíritos
em regime de internação. Será submetido a um procedimento
magnético, somente isso. Depois lhe explico.
— Pois bem, meu irmão — voltou a falar o médico alemão.
— Aguardaremos até você se sentir em condições de se
definir. Mas não podemos esperar muito. Outros espíritos
com experiências semelhantes às suas estão esperando até
que se decida e, caso recuse a tarefa, procuraremos um deles.
Mas terá o devido tempo — e, falando assim, o espírito se
dissolveu à minha frente, como se fosse transportado para
16 3
um outro mundo. Da parte dele, deu o caso por encerrado.
Bezerra, Zarthú e Séfora se despediram de mim, sendo
que Zarthú transmitiu um pensamento muito audível para
meu cérebro de morto desencarnado: "Estarei contigo,
meu filho. Fique tranquilo, terá tempo suficiente para tomar
a decisão mais acertada. O que tiver de ser, será". Eurípedes,
por sua vez, saiu da maneira convencional, apenas
meneando a cabeça para mim, ao cruzar a porta. Os demais
se dissolveram à minha frente. Fixei Júlio Verne, desejando
uma entrevista ou um bate-papo, mas não foi diferente;
também ele se dissolveu com as forças do espírito, assim
como Saldanha e Anton. Fiquei com Pai João, além de Jamar,
Watab e Semíramis, que permaneceram quietos durante
a conversa com os chamados Imortais.
Após algum tempo me observando, Pai João rompeu o
silêncio e disse:
— Não se assuste com o jeito dos nossos irmãos. Eles
precisam atender outras urgências e também coordenar
atividades em outras cidades espirituais. Quanto ao método
de transporte que utilizaram, é algo comum entre os
espíritos mais experientes. Eles podem simplesmente caminhar,
como qualquer pessoa, lançar mão dos veículos à
164
disposição em várias cidades do astral ou, então, transportar-
se com o poder da mente, do pensamento. E claro, não
são todos os espíritos que conseguem essa proeza.
Sem registrar os pormenores de muita coisa do que
ocorria à minha volta, fui conduzido pelos amigos a um
complexo hospitalar numa região mais afastada da metrópole,
embora proporcionasse ampla visão de boa parte
dela. Só suspeitei que era um hospital quando já adentrava
o ambiente muito limpo, também minimalista, de cores
suaves e com intenso tráfego de gente morta viva no saguão.
Na presença de meus acompanhantes, fui logo admitido
e, em seguida, novamente conduzido por eles. Foi apenas
quando me vi no andar mais alto do prédio em forma
de "L" que me apercebi: aquele era mesmo o hospital da
comunidade, ou um dos hospitais. Do último andar pude
avistar uma torre de proporções monumentais. Seria um
edifício? Estava muito distante, talvez no centro da cidade.
A torre parecia singrar os céus e a altura dela era completamente
desconhecida para mim. Em meio a devaneios e
tantas cogitações de meu espírito acerca do que ouvira dos
Imortais, fui surpreendido por Jamar, que se aproximou
lentamente de mim.
16 5
— A torre não é um edifício, Ângelo, mas apenas uma
torre mesmo, uma espécie de antena, que capta energias de
planos mais sutis. Tem 300m de altura, a contar do solo, e,
nesta parte, ela capta emanações da energia cósmica e outras
mais, advindas de dimensões superiores à nossa. Embora
em outro plano, localizamo-nos na região da atmosfera
terrestre denominada termosfera, camada mais extensa,
que vem após a mesosfera. Apesar das temperaturas extremas
do ambiente físico, em nossa dimensão a torre de energia
canaliza determinados recursos sutis que nos eximem
dos efeitos de certas partículas da atmosfera e nos deixam
ao abrigo de radiações prejudiciais à nossa vida em sociedade.
Abaixo do solo da cidade, em sentido contrário, a torre
igualmente se estende, por mais ou menos 200m, apontando
diretamente para a superfície do planeta. Somos uma
cidade móvel, ou seja, a cidade inteira pode se deslocar até
outros pontos do planeta, conforme a situação exigir. A torre
inferior, como chamamos a que aponta no sentido da
Crosta, capta irradiações magnéticas advindas do interior
do planeta, ou aquilo que é conhecido como energia telúrica,
armazenando-a na região interna da cidade, em baterias
específicas para esse fim.
16 6
"Essas energias combinadas, de natureza tanto cósmica
quanto telúrica, possibilitam erguer um robusto campo
de proteção em torno da metrópole, e ao mesmo tempo
uma camada de invisibilidade, os quais impedem a localização
e o acesso à cidade por parte de entidades sombrias
ou habitantes de regiões densas. De mais a mais, como nossa
localização geográfica ultrapassa os 500km de distância
em relação à crosta terrestre, torna-se impossível a tais
espíritos atacar-nos diretamente, pois nunca conseguem
alcançar esta dimensão, tampouco esta altitude. Não obstante,
não prescindimos da chamada polícia de vibrações
— Jamar discorria todo o tempo como nunca o ouvira, nitidamente
apaixonado pelo tema que abordava, e isso me
contagiava, tirando-me da situação mental anterior e fazendo-
me conectar o pensamento com a realidade que ele
explicava tão habilmente.
"A polícia de vibrações, como a denominamos, é composta
por peritos que integram a equipe dos guardiões. São
especializados em rechaçar ou, conforme o caso, captar e
transformar qualquer espécie de energia mais densa proveniente
da Crosta. Grande cota de vibrações densas é desencadeada
por guerras constantes no planeta e pela exsu
16 7
dação de ectoplasma proveniente dos milhares de mortes
violentas que decorrem não só das guerras entre as nações,
mas dos conflitos civis, como homicídios e crimes diversos.
Esse volume descomunal de energia, que atinge diariamente
as dimensões mais próximas do mundo, pode interferir
no equilíbrio de muitas cidades espirituais ou colónias que
estejam mais próximas da Crosta."
Eram muitas as informações que Jamar me trazia naqueles
breves momentos de vivência na metrópole espiritual.
Vislumbrei o que me aguardava em matéria de estudo
e iniciação nos temas da vida extrafísica. Tudo aquilo me
encantava, me fascinava, e meu espírito acostumado a formular
indagações, minha curiosidade inata de escritor fizeram
com que meus pensamentos voassem para situações e
proezas mentais jamais imaginadas.
Foi quando Pai João me chamou para os tais exames e
então "aterrissei", de volta ao contexto do hospital. Confesso
que esperava encontrar equipamentos de última geração,
uma infinidade de computadores desencarnados ou extrafisicos,
que fizessem jus à tecnologia dos habitantes desta
cidade de imortais. Mas quando entrei na sala, onde vi
apenas uma maca à minha frente, quase desisti de entender
168
aquele lugar. Em nada combinava com o que vira até aquele
momento; não fazia sentido haver apenas uma maca e uma
decoração tão singela ou nula... Outra vez, fiquei profundamente
decepcionado. Duas mulheres entrarem no ambiente
e me pediram para deitar-me na maca, mais por meio de
gestos que de conversa. Decerto iriam fazer aparecer algum
equipamento oculto em uma das paredes. Esperava algo
que beirasse a ficção científica, no mínimo. Mas não. Elas
tão somente estenderam as mãos sobre mim. E eu, olhos arregalados,
tentava perceber, ver, olhar tudo à minha volta
Mas nada! Apenas as mãos deslizando a alguns centímetros
do meu corpo espiritual. Começavam no alto da cabeça e
deslizavam até meus pés. Em silêncio. E Pai João observava
tudo, também silencioso, medindo minhas reações.
Depois de algum tempo, chamaram Pai João a uma sala
ao lado e deixaram-me deitado. Na verdade, sentia-me mais
e mais leve. Parece que, a cada etapa vivida na nova cidade,
deixava alguma coisa de material, algo não percebido nem
conhecido por mim, mas, com efeito, me sentia bem mais
leve. Após algum tempo, Pai João regressou, auxiliando-me
a levantar-me da maca. Por um instante, pensei que iria flutuar
— e quase flutuei, no verdadeiro sentido do termo.
16 9
— Ceres e Altina são duas excelentes magnetizadoras
de nosso hospital — principiou Pai João. — São especializadas
no diagnóstico das pessoas recém-chegadas da
Crosta e determinam se precisam de tratamento e qual o
tipo de que precisam. Nesta ala do nosso Hospital do Silêncio
não trabalhamos com equipamentos eletrônicos
sofisticados como você esperava, Ângelo — ele leu meus
pensamentos de novo! Decididamente, os leu. — Aqui só
trabalhamos com magnetismo. De todo modo, seu caso
dispensa qualquer intervenção mais drástica, como cirurgias
espirituais, uso de equipamentos da técnica sideral e
outros recursos mais intensos ou sofisticados que tenhamos.
O magnetismo será suficiente e eficaz para liberar
certas cargas de ectoplasma ainda aderidas a seu corpo espiritual,
além de alguns cúmulos energéticos densos, comuns
no tipo de desencarne que você experimentou. Deverá
comparecer aqui pelo menos por dois meses, uma vez
ao dia, a fim de receber o tratamento magnético que lhe
foi prescrito.
"Ah! — acrescentou. — Nossas duas amigas magnetizadoras
pedem desculpas se não o cumprimentaram nem
conversaram com você, meu filho. Elas trabalham em com
17 0
pleto silêncio, concentradas ao máximo, a fim de auscultar
o corpo espiritual do consulente. Escrutinam cada detalhe
do corpo astral e analisam cada centro de força minuciosamente,
verificando também os órgãos perispirituais ou paraórgãos.
Mais tarde, no decurso do tratamento, conversarão
um pouco com você, orientando-o inclusive acerca dos
procedimentos a que será submetido.
"De qualquer maneira — continuou Pai João —, não espere
explicações teóricas ou científicas a respeito do que
lhe será ministrado; isso você obterá nos estudos da universidade
ou, quem sabe, junto ao médium que você visitará no
plano físico. Muita coisa, aliás, poderá absorver da mente
do médium, aproveitando os momentos em que estabelecerão
sintonia vibratória. Tanto ele absorverá conhecimentos
de você, os quais eclodirão na mente dele como intuições
ou informações que brotarão espontaneamente durante palestras
e conversas informais com os companheiros, quanto
você também absorverá muita coisa dele. Sendo assim, conhecimentos
sobre certos aspectos da vida espiritual, que
o médium que lhe foi designado já possui, serão automaticamente
transmitidos a você, tão logo se conecte à mente
dele. Trata-se de uma parceria, um intercâmbio.
171
"Mas não espere que tudo seja dessa forma. Você terá
de estudar muito. Em breve, lhe serão apresentados alguns
autores desencarnados, além de outros encarnados, em estado
de desdobramento, que poderão lhe ser úteis na aquisição
de novos conhecimentos, em suas pesquisas e coisas
do gênero. O trabalho de preparo para a escrita e transmissão
das ideias novas começa já."
Pai João me deixou a cargo de Jamar e sua equipe e retirou-
se dali de maneira tal que não o vi dissolver-se à minha
frente, como os outros espíritos, classificados como Imortais.
Nem mesmo o vi sair à moda convencional. Simplesmente,
quando voltei minha atenção para Jamar e Semíramis, esperando
deles o convite para sair rumo a algum lugar ou, quem
sabe, a fim de receber novas instruções, ao voltar-me para o
local onde antes estava Pai João, de fato havia sumido, desaparecido.
Um povinho metido a desaparecer como este eu
não havia conhecido antes. E o pior é que eram elegantes na
forma como o faziam; nada de fenômenos, nuvens de fogo
ou estrondos de relâmpagos e trovões. Tudo absolutamente
calmo, silencioso, mas nem por isso corriqueiro.
Respirei fundo, como que buscando absorver aquilo
tudo, mas decidi me controlar para não falar nada incon
17 2
veniente. Watab deu uma estrondosa gargalhada, mas imediatamente
cessou. Ficou ali, parado como uma estátua,
como se nunca houvesse emitido nenhum som. Estranho
esse sujeito. E era um dos guardiões mais graduados, amigo
de Jamar. Mas estranho, assim mesmo.
Saímos do edifício, e foi somente então que pude observar
ao derredor. O jardim realmente vasto do lado de
fora dava ao local um ar residencial, nada parecido com o
de um hospital. Imenso bosque no entorno fazia com que
um ar puríssimo banhasse o ambiente hospitalar. Diversas
pessoas caminhando pelo bosque e pelo jardim eram acompanhadas
discretamente por outros espíritos, que pareciam
enfermeiros. Aqui e ali, ilhotas formadas por estátuas
belíssimas, chafarizes e bancos, onde alguns se punham a
ler. Havia livros dispostos nesses recantos, à disposição de
quem se submetia a tratamento, segundo deduzi. O complexo
possivelmente estava localizado no topo de uma
montanha, pois era possível divisar as curvas sinuosas de
montes que comportavam bangalôs e outros tipos de construção
incrustados espaçadamente ali e acolá. Uma coisa
me chamou a atenção: o completo silêncio no lugar. Mesmo
as pessoas conversando, embora num volume baixo e civi
173
lizado, era como se alguma coisa absorvesse o som do ambiente,
dando a sensação curiosa do mais absoluto silêncio.
— Essa vibração que você observa, Ângelo — explicou
Semíramis, que até então permanecera sem falar nada —,
deve-se a nossas plantas, ao tipo de vegetação ao redor.
Elas foram desenvolvidas pelos pais-velhos e mães-velhas
nos laboratórios da Amanda. Quando o vento toca as folhas
das árvores, elas emitem um tipo de som ou uma frequência
registrada somente por nosso cérebro extrafísico, nada
audível. Isso produz em nós a sensação de que há um silêncio
completo no ambiente.
— São produto de modificação genética, então?
— Algo assim — respondeu Semíramis. — Alguns pais-
velhos, mais experientes, são estudiosos da natureza e se
especializaram em plantas e ervas, nos templos do passado,
tanto na Atlântida como em outros centros iniciáticos,
entre eles os de Tebas e Alexandria, no Egito, e os da antiga
Pérsia. Atualmente, vestem a roupagem fluídica de pais-velhos,
em conformidade com a última experiência reencarnatória,
que se deu em países como Brasil, Angola e outras
terras da África. Não obstante, conservam o conhecimento
ancestral e dele lançam mão ao desenvolver pesquisas
174
em nossos laboratórios, compartilhando os resultados com
cientistas da Amand a e de outras cidades de nossa dimensão.
Estas árvores em particular, assim como outras cultivadas
nas proximidades dos hospitais, são fruto dessas experiências.
Isso explica o nome do local: Hospital do Silêncio.
"Este hospital, especificamente, é especializado em terapias
que utilizam o magnetismo, daí a natureza dos pacientes
aqui tratados. Não verá injeções, procedimentos invasivos
no períspirito ou qualquer coisa que se assemelhe
aos tratamentos convencionais praticados na Crosta. Além
disso, este verde exuberante e a presença de espíritos ligados
à natureza, como os pais-velhos que habitam as choupanas,
bangalôs e outras vivendas no sopé das montanhas:
tudo faz deste um lugar especial. Na verdade — acentuou
Semíramis enquanto caminhávamos em direção ao estacionamento,
onde nos aguardavam os carros voadores —, costumo
chamar isto aqui de spa espiritual, e não de hospital.
Como você virá aqui diariamente, terá oportunidade de conhecer
a biblioteca; é uma atração à parte. Terá inúmeras
descobertas e surpresas aqui. Você verá."
O último comentário da guardiã me deixou curiosíssimo.
Uma biblioteca do outro mundo. Fiquei imaginando
17 5
como seriam os tratados, os livros mais antigos, aos quais
talvez pudesse ter acesso; ler originais de diversos autores,
alguns perdidos na poeira do tempo...
De fato, acabei me tornando frequentador assíduo da
biblioteca do Hospital do Silêncio. O procedimento magnético
em si durava apenas 30 minutos por sessão, mas eu ficava
pelo menos duas ou três horas na biblioteca, saboreando
e sorvendo tudo quanto podia. Descobri, ainda por cima,
que aquele era apenas um dos acervos da comunidade.
Sentia-me cada vez mais leve e revigorado. A quase
uma semana de encerrar o tratamento, experimentei pela
primeira vez a levitação. Caminhava pelo jardim do Hospital,
lendo um volume riquíssimo sobre literatura brasileira;
quando me dei conta, havia ultrapassado os limites do jardim
e andava em pleno ar, movimentando as pernas, mas
sobre um precipício logo abaixo de mim. Levitava, sentia-
me como uma pluma. E não é que esse tal de magnetismo
funcionava mesmo? Parecia que os últimos resquícios
de matéria que eu trouxera da experiência física haviam
se dissipado durante os atendimentos com Ceres. Um dia
depois, estava tão concentrado em cima da maca, tão relaxado,
que, quando ela terminou o procedimento magnéti
176
co, eu flutuava sobre o leito, meio abobalhado, sem saber
nem ao menos como me pôr de pé, Ela me olhou sorrindo,
apenas. Entendi que tudo tinha seu tempo. Pouco a pouca
aprendia a lidar com as percepções, os fluidos, a natureza
do corpo espiritual enquanto estudava, estudava, estudava.
18 1
PÓS DIAS DE dedicação aos estudos e à terapia magnética,
pude entender melhor o que alguns espíritos disseram sobre
tratamento não invasivo. Entendi que, em alguns casos,
existe mesmo a necessidade de fazer uma cirurgia nos tecidos
e órgãos do corpo espiritual e recorrer a métodos muito
parecidos com aqueles utilizados na Terra, em hospitais
convencionais. Porém, na Amanda se usava metodologia
bastante diversa. Embora toda a tecnologia à disposição dos
médicos e servidores dos hospitais, ao alcance também dos
demais departamentos da cidade, em matéria de saúde tal
recurso era empregado de forma acessória. Sobretudo, na
composição de diagnósticos e como auxiliar na produção e
manutenção de energias de natureza astral ou psíquica. Ha-
a instrumentos capazes de amplificar a força mental, bem
como de gerar campos energéticos de caráter desconhecido
na Terra, que favorecem a recomposição das matrizes
do organismo espiritual, do seu veículo, que aprendi chamar-
se perispírito ou corpo astral. No Hospital do Silêncio,
não se faziam incisões cirúrgicas, embora existissem outros
hospitais na erraticidade que usavam desse método quando
necessário. Compreendi de fato tal opção após verificar o
talento com que os espíritos radicados na Amand a mane
18 2
javam os recursos da natureza, explorando de modo sábio e
responsável a força das matas, dos rios e das fontes de água
pura, assim como inúmeros elementos dispersos na atmosfera,
curiosamente à disposição de todos, embora nem sempre
conhecidos da multidão de habitantes.
Imerso nesses pensamentos, nas novas descobertas do
período entre vidas, nem percebi a presença de meu amigo
protetor e orientador Jamar, que se aproximou de mim.
conduzindo-me a novas experiências.
— Agora é preciso conhecer algumas questões, Ângelo,
relativas a seu roteiro evolutivo, ou seja, ao planejamento de
seus estudos, como ocorre em qualquer área profissional na
Terra, mas levando em conta as atividades futuras programadas
para você. Creio que é hora de levá-lo até uma das
bases dos guardiões, uma vez que seu trabalho estará intimamente
ligado ao nosso. Antes, porém, é bom que retornemos
à vida urbana de nossa cidade, a fim de nos juntarmos a
alguns amigos que nos acompanharão. Pai João o conduzirá
enquanto faço contato com alguns guardiões; preciso me
desincumbir de algumas tarefas, mas será rápido. Logo nos
reencontraremos nos arredores da metrópole para, então,
irmos a um dos postos avançados de nossa equipe.
183
— Tenho a impressão de que você dá tanta importância
a esse programa de aprendizado, esse meu curso intensivo,
que fico apreensivo em relação ao que me aguarda. Mesmo
tendo lido alguma coisa no acervo da biblioteca, parece que
vem algo muito sério pela frente.
— Não fique assim, amigo. Você terá um tempo generoso
para se habituar com a situação e se familiarizar com as
informações novas. Nada de dramas.
— Não estou sendo dramático! E que noto um tom de
gravidade em sua voz...
— Desculpe meu jeito, mas é que ao mesmo tempo em
que estou aqui conversando com você devo me manter
atento, com os olhos abertos, se posso dizer,7 pois existem
outras situações mais complexas que dependem de mim
neste momento. Mais tarde compreenderá.
Falando assim, partimos em direção à região central da
cidade, onde já nos aguardava o amigo Watab. Jamar nos
deixou a sós por um tempo; parecia absorto em pensamentos
que decididamente eu não queria nem tinha condições
7 0 personagem faz alusão à ubiquidade dos espíritos (cf. KARDEC. O livro dos espí
ritos. Op. cit. p. 114-115, item 92).
184
de sondar. Ele ficou em completo silêncio, como se espreitasse
alguma coisa.
À nossa volta, espíritos iam e vinham nas diversas atividades
cotidianas da Amanda. A esta altura, eu já via a
vida da comunidade de maneira diferente. Não estava a
passeio, de férias, tampouco a esmo na minha dileta eternidade
ou no período entre vidas. Não sei por que, mas, desde
o encontro com os Imortais, minha vida mudou. Meus
pensamentos pareciam abarcar novas situações, que antes
nem imaginava conhecer; mais ainda, um senso de responsabilidade
parecia tomar conta do meu ser, de maneira incomum,
e numa dimensão muito mais ampla. Não havia
como encarar aqueles seres, ter um encontro tête-à-tête
com eles e continuar do mesmo jeito. Como se não bastasse,
Jamar, ao me falar sobre o programa de estudos, deixou-
me profundamente interessado, mas, ao mesmo tempo,
deveras preocupado. Como eu me sairia como novo aluno
de uma escola de vida, muito mais abrangente, como esta
que encontrei? Aqui, meus estudos, minha formação conquistada
na Terra pareciam apenas um ensaio numa escola
de pré-primário — ou pré-escola da vida. Teria muito pela
frente: um período mínimo de 8 anos consecutivos de estu
185
do, sem grandes intervalos, visando atualizar meus conhecimentos
para ser, com sorte, admitido num estágio como
colaborador dos guardiões, possivelmente. Somente com o
tempo saberia maiores detalhes.
Foi absorto nesses pensamentos que Pai João me encontrou.
Chegou a meu lado, tirando-me do silêncio que
havia sido estabelecido entre Watab e mim:
— Ora, Ângelo, não se atormente com pensamentos tão
sérios nem se cobre tanto assim! Em nossa realidade aqui
na Amanda, vamos trabalhando pouco a pouco, aprendendo
sempre e desaprendendo aquilo que for necessário. Ah!
Meu filho... — enfatizou o pai-velho — há tempo para tudo!
0 essencial é que continue estudando, que não desista;
quanto ao resto, Deus saberá nos usar na medida certa em
que estivermos preparados. Não espere saber muito, filho.
Faça o que pode e como pode, sabendo que ainda iremos
errar muito antes de acertar. É preciso ter compaixão consigo
mesmo.
"Em tempos remotos, a Amanda era apenas um campo
de treinamento, uma comunidade onde eram acolhidos
espíritos advindos de experiências reencarnatórias difíceis
ou amargas, principalmente em países onde a escravi
18 6
dão havia se espalhado como erva daninha. Com o passar
do tempo, a administração da cidade foi especializando os
espíritos, de tal maneira que, hoje, em nossa abençoada comunidade,
reúne-se quem pretende desenvolver atributos
de força mental e espiritual em benefício da humanidade.
Em outras palavras, estabelecem-se aqui, de modo mais ou
menos permanente, seres que já passaram por esferas inferiores
na jornada entre vidas e buscam aprimorar-se, rumo
a recantos mais iluminados, a estâncias mais felizes dos
mundos invisíveis. Na Amanda, essas consciências encerram
uma grande etapa da caminhada individual e se preparam
para atuar em favor da humanidade de forma mais
abrangente, destituída de fronteiras, bandeiras e barreiras
erguidas pelas civilizações. Mas somos humanos, Ângelo, e
nunca se esqueça disso! Com efeito, aqui termina uma fase
do processo evolutivo, baseada em modelos típicos de esferas
inferiores à nossa, o que implica dizer que foram superadas
dificuldades ou limitações de determinado gênero.
Mas, se essa constatação é verdadeira, é igualmente verdade
que aqui se inicia um ciclo de grandes desafios para tais
espíritos, cuja consciência já está preparada para voos mais
amplos em serviço incondicional à humanidade."
187
Respirei fundo, sentindo certo alento ao ouvir o que
Pai João falava a respeito dos habitantes da metrópole espiritual
e dos objetivos de um estágio nessa dimensão.
— As experiências vividas pelos espíritos antes de chegarem
até esta dimensão da Amanda, ao menos pela maioria
dos que aqui se encontram, geralmente determinaram
o desenvolvimento de um bom conjunto de qualidades íntimas.
De uma ou outra maneira, atuam como espíritos familiares
e auxiliares da evolução; aos olhos daqueles que
se movimentam em dimensões mais baixas, são figuras de
referência, uma vez que superaram barreiras e obstáculos
que afligem os membros de seu círculo de atuação. Esse
é um dos fatores que os capacita, agora, a se dedicarem a
nova etapa de aprendizado. Em grande parte, portanto, são
espíritos com potencial para serem admitidos como protetores
ou guias de muita gente, até mesmo de grupos e comunidades
por todo o mundo.8 Talvez, na Terra, meu filho,
os espíritos ligados à nossa metrópole espiritual sejam conhecidos
mais como anjos de guarda, mesmo que todos
8 "Anjos de guarda, espíritos protetores, familiares ou simpáticos". In: KARDEC. O
Livrodos espíritos. Op. cit. p. 317-330, item 489-521.
188
aqui precisemos muito de aprender e de desaprender tanta
coisa arquivada em nosso psiquismo. Concluindo: temos
pela frente o desafio de ajudar o mundo sem impor barreiras,
derrubando preconceitos, desconstruindo mitos ou
destronando ídolos erguidos pela ignorância humana. Esse
lema é o que norteia tudo e todos por aqui, é nossa principal
meta entre as demais, relacionadas às lutas individuais.
Enquanto Pai João falava, minha mente se ocupava em
absorver o que podia. Talvez, mais tarde, pudesse me sentir
mais integrado ao ideal nobre que motivava a Amanda e
em condições similares às dos espíritos ali residentes, partilhando
de sua visão e de seus objetivos.
Saímos andando, caminhando pelas ruas da cidade espiritual
que me recebia — um campo de atividades, uma oficina
de trabalho e uma universidade de vida incomparável.
Incomparável, sim, ao menos para mim, que sentia, agora
numa dimensão bem maior, o novo gênero de desafios que
se abria diante de meu espírito. Fiquei sensibilizado diante
da postura do pai-velho, de não exigir que eu estivesse
pronto, preparado desde já para o que me aguardava.
Foi assim, caminhando entre árvores, prédios e paisagens
daquele mundo novo, que alcançamos um bosque.
18 9
sempre acompanhados de Watab, sempre silencioso, seguindo
atrás de nós.
Chegando ao bosque — belíssimo, por sinal, com imensas
sequoias e tantas outras árvores e plantas desconhecidas
para mim —, avistei diversas pessoas passeando, outras
lendo ou estudando debaixo das árvores; de alguma maneira,
acho que todos estavam estudando. Aqui e ali, grupos
de espíritos orientados por quem parecia mais experiente
demonstravam estudar a rica flora naquele recanto cheio
de verde e de vida. Outra turma claramente recebia aulas
de desenho e pintura, pois os vi desenhando a paisagem,
as pessoas, as árvores e os animais que compunham aquele
bosque. Havia uma atividade intensa e, ao mesmo tempo,
um quase silêncio no entorno, como nunca vira em ambientes
assim, no mundo físico.
— Aqueles são estudantes de botânica e fitoterapia —
esclareceu Pai João. — Aprendem aqui, junto à natureza, as
matérias que estudaram na universidade. Depois irão para
os arredores, onde entrarão em contato com pais-velhos e
mães-velhas, caboclos e índios habitantes de nossa Amanda,
que orientarão os alunos com seu conhecimento mais
apurado do assunto que escolheram estudar.
19 0
Decerto notando minha curiosidade a respeito da fauna
e da flora e sobre o objetivo dos espíritos reunidos na
Amanda, o amigo Pai João foi um pouco mais longe em
suas considerações:
— Esta cidade, em sua estrutura atual, através do variado
programa de serviço, estudo e realização que oferece,
serve ao propósito de mesclar seres advindos de regiões
extrafísicas, como o plano astral, ou de cidades aí localizadas,
àqueles provenientes de dimensões superiores. Componentes
de ambas as esferas passam a conviver, por um
período mais ou menos dilatado, embora aqui o tempo seja
calculado de modo um pouco diferente de como é na Crosta.
Aqueles que se destacam nos estudos e no trabalho, que
alcançam um desempenho maior, podem se orgulhar de
descer a planos mais inferiores não apenas como socorristas,
mas como agentes da justiça divina. Outros, guias que
vêm se instruir e acabam por se especializar na função de
instrutores espirituais, espíritos protetores ou mesmo figuras
de inspiração, conseguem oferecer aos assistidos
ou pupilos maior grau de experiência. Ou seja, caso se sobressaiam
no programa evolutivo, numa espécie de curso
intensivo cá na Aruanda, têm a chance de contribuir com
191
mais capacitação e eficácia do que a massa de espíritos que
comumente assiste os encarnados.
— E qual é o papel que lhe cabe aqui na cidade, Pai
João? Tanto quanto o de Jamar, Watab e os Imortais, ante
os quais me vi como uma criança espiritual?
— Nossa tarefa aqui, Ângelo, é de trabalho intenso, esforço
constante e estudos ininterruptos. Enquanto aqui
estagiamos, por períodos de tempo administrados exclusivamente
por espíritos superiores, mantemos uma mão erguida
em direção ao alto, por assim dizer, absorvendo conhecimento,
alimentando nossos espíritos e tocando de
perto a aura de planos mais avançados, enquanto a outra
permanece apontada para regiões inferiores, onde exercitamos
algum reflexo de amor, no exercício de doação que
procura impedir que o mal dissemine sua vibração pelo
acampamento dos homens.
À medida que eu ouvia Pai João, que continuou falando
da vocação da comunidade conhecida como Aruanda, e
sobre o trabalho e o significado da presença dele nesta esfera,
como ele mesmo se refere à cidade dos espíritos, pude
compreender por que tantos seres de outras dimensões a
procuram, habitantes de outras paragens espirituais que ali
19 2
aportam em busca de conhecimento nas diversas escolas
da universidade local.
Entrementes, chamou-me a atenção determinado grupo
de pessoas que analisava, na presença de um instrutor,
a natureza que vicejava com esplendor naquele bosque,
que mais parecia um jardim ou parque de proporções mais
amplas que os demais, que conhecera na cidade. Notei, em
meio aos que ali transitavam, casais de espíritos de mãos
dadas, alguns trocando beijos e afagos comedidos, mas sobretudo
demonstrando carinho e afeto, de uma forma que
não esperava encontrar entre os chamados mortos ou desencarnados.
Pai João me surpreendeu os pensamentos,
vindo a meu encontro:
— São casais que escolheram ter uma vida em comum
aqui em nossa comunidade, Ângelo.
— Mas por aqui as pessoas se casam, como na Terra?
— E por que não, meu filho? Somos todos humanos, na
mais pura expressão do termo. Almas encontram afinidades
entre si e escolhem viver juntas em seus recantos, em
suas habitações, e muitos até oficializam a união com cerimônias
matrimoniais, qual ocorre na Terra. Só que aqui
as cerimônias visam muito mais ao convívio social, como
193
celebração e confraternização entre amigos, uma vez que
a verdadeira união é entre almas, motivada pela afinidade
de gostos e pensamentos, propósitos e sentimentos. Talvez
possamos dizer que a cerimônia seja apenas a oficialização
de algo que já existe dentro daquelas duas pessoas.
Complementando a ideia, Pai João acrescentou:
— De acordo com a ligação religiosa ou espiritual, os
indivíduos podem celebrar a união em conformidade com
a fé e as tradições que têm ou que dizem respeito à identidade
energética e à busca de espiritualidade de cada um.
Como temos, aqui em nossa Amanda, representantes de
diversas culturas, pode-se escolher desde uma cerimônia
oficiada por um espírito que teve experiências como padre
católico até uma conduzida por um sacerdote druida, por
exemplo, passando por opções tão distintas como as tradições
muçulmana, protestante, budista ou indígena. Como
dispomos dessa tremenda variedade e riqueza cultural, re"
osa e de espiritualidade, as pessoas elegem livremente
o que querem, de acordo com suas preferências. E isso não
é tudo. Acontece, também, de escolherem fazer tal evento
e m outras cidades espirituais com as quais temos convivência
mais estreita.
19 4
— Mas é casamento mesmo ou apenas uma encenação?
— Como encenação, filho? Casam-se mesmo e passam
a viver juntos, preparando-se para a existência física, quando
então poderão executar os planos que traçaram aqui, em
nossa dimensão. Aqui é o mundo original! Na Terra é onde
temos um tipo de ilusão dos sentidos necessária para levar
avante os projetos iniciados ou delineados do lado de cá. A
Terra, como você a deixou e como a conhecemos, o mundo
físico, este sim é o reflexo ou a representação do que vivemos
no plano da imortalidade. Jamais se esqueça, Angelo:
aqui é o mundo real, primitivo, original.9
— Se é assim, considerando-se os espíritos de forma feminina,
existe gravidez do lado de cá? Ou qualquer coisa
parecida com um parto?
— Não exatamente da forma como se observa na Terra.
A semelhança é que, tanto aqui como lá, o espírito não
9 "O mundo espírita [ou dos espíritos] é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente
e sobrevivente a tudo. O mundo corporal é secundário; poderia deixar de
existir, ou não ter jamais existido, sem que por isso se alterasse a essência do mundo
espírita" ("Introdução ao estudo da doutrina espírita". In: KARDEC. O livro dos
espíritos. Op. cit. p. 31, item vi).
195
produz outro espírito, ou melhor, não o concebe, propriamente,
mas lhe fornece um envoltório corporal que o capacita
a usufruir das experiências naquela dimensão. Ocorre
que muitas almas, advindas de regiões inferiores e tendo
vivido experiências infelizes, perdem seus corpos espirituais
e transformam-se naquilo que chamamos de espíritos
ovóides — trata-se de um processo complexo, que você terá
oportunidade de estudar em nossas escolas. Grande parte
dos casais que se juntam do lado de cá, transcorrido mais
ou menos tempo da união efetiva, aliam o desejo de formar
um núcleo familiar e os preparativos para a reencarnação
à vontade de fazer algo por aqueles que vivem semelhante
drama. Sendo assim, muitos espíritos femininos, como você
denominou, oferecem o útero perispiritual para que os espíritos
ovóides ou em processo de ovoidização possam ser
acoplados a ele, magneticamente, dando origem a uma espécie
de gravidez extrafísica. Na verdade, aqui denominamos
essa experiência de gravidez espiritual ou energética.
Nos seres desencarnados, o útero materno é uma câmara
de materialização divina, que proporciona ao espírito
ovoide a possibilidade de recuperar a forma original, humana,
recompondo as matrizes do períspirito. Este assume
19 6
a conformação humana lentamente, qual se dá numa gravi dez
na Terra. Depois do tempo previsto de 9 meses, o espírito
é desacoplado do útero de sua mãe espiritual, por meio
do magnetismo, e então ela o recebe no lar, como filho ou
pupilo, à semelhança também do que ocorre, ao menos teoricamente,
com as crianças que renascem na Terra. Como
o pai e a mãe desencarnados já possuíam um lar construído
aqui em nossa cidade espiritual, juntos eles se tornam
responsáveis diretos pela reeducação daquele ser, guiando-
o como podem, até que, num tempo mais ou menos breve,
seja reconduzido a novo corpo físico, no mundo."
Acho que Pai João notou que era muita explicação para
mim naqueles primeiros momentos, embora eu conseguisse,
de algum modo e até certo ponto, entender o que ele falava.
Mas eram muitas informações que chegavam de uma
vez só. Por outro lado, creio que esse bombardeio ocasionava
uma espécie de tempestade cerebral ou extracerebral,
mental, íntima, resultando numa integração cada vez maior
ao modus vivendi do lado de cá. A vida na Aruanda era uma
surpresa atrás de outra.
Mal o pai-velho encerrou aquelas explicações, fui surpreendido
por um grupo de homens que passavam de mãos
19 7
dadas, alguns trocando afagos discretos, carinho e demonstrando
um afeto tão natural que me surpreendi com o que via.
Outra turma menor, de mulheres, espíritos femininos, também
passeava abraçada, lado a lado, ou também de mãos dadas,
evidenciando certo tipo de comportamento social que, à
época, ainda era muito mal compreendido na Terra. Tratava-
se decididamente de homossexuais. E isso me chocou, pois
não sabia que do lado de cá encontraria com tamanha naturalidade
espíritos que se definiam sexualmente dessa maneira
ou adotavam esse tipo de identidade — nem soube como dizer.
— Aqui todos são vistos com a mesma naturalidade,
Angelo. Fora da matéria, não há por que ninguém esconder-
se com medo de ser rejeitado. É certo que encontramos
ainda algumas cidades espirituais cujos administradores
são muito religiosos e ligados a uma forma de pensar arcaica
ou medieval, vamos dizer. Nesses casos, espíritos que,
diante de sua constituição energética, identificam-se como
gays ou homossexuais, provavelmente não serão vistos com
a naturalidade com que os vemos aqui.
Antes que Pai João continuasse, fomos abordados por
dois namorados, espíritos em forma masculina, que pedim
licença para se dirigir ao pai-velho.
19 8
— Desculpe, meu pai — falou um dos rapazes. Permaneceram
de mãos dadas com a maior naturalidade, decerto
sabendo que não seriam discriminados nem recriminados.
— Queríamos que o senhor pudesse nos dar a honra de
abençoar nossa união.
— Claro, meus filhos! Afinal, vocês terem se reencontrado,
depois de tantas dificuldades, e reatado seu amor é algo
que merece ser festejado. Para quando será a cerimônia?
Preciso me preparar, sem que afete outros compromissos.
— Quem sabe possamos fazer assim? O senhor consulta
seus compromissos, sua agenda, e no tempo que estiver
disponível nós organizaremos tudo, faremos os convites
e oficializaremos nossa união. Já temos inclusive o local
onde iremos morar.
— Que bom, meus filhos. Assim fica melhor para mim e
espero que para vocês, também. Quero ser o primeiro a visitar
sua casa; não deixem de me convidar. Quem sabe nosso
amigo aqui — apontou para mim —, que se chama Ângelo
Inácio, também não possa ir comigo?
— Caso queira — respondeu um dos rapazes —, você é
nosso convidado! Meu nome é Camilo e este é meu namorado,
Mike. Estamos nos preparando para a futura vida fí
19 9
sica. Estudamos juntos e pretendemos realizar um trabalho
conjunto, tão logo estejamos de volta ao plano físico.
Enquanto isso, pretendemos ser admitidos na equipe dos
guardiões. Se conseguirmos, a experiência nos capacitará
para nosso projeto na Crosta, ao reencarnarmos.
— Por falar em guardiões, Ângelo — lembrou Pai João
—, Jamar já deve estar de regresso.
Voltando-se para Mike e Camilo, convidou-os:
— Caso queiram vir conosco, vamos visitar um dos postos
avançados dos guardiões em regiões inferiores. Sintam-
se à vontade, caso seus afazeres o permitam.
— Temos de nos apresentar às atividades na universidade,
meu pai. Hoje será a primeira fase da prova de admissão,
a fim de ingressarmos na equipe de guardiões. Depois,
eu e Mike assumimos um compromisso junto a um grupo
de espíritos com tarefas num país islâmico. Na próxima vez
que nos convidar, com certeza iremos, ou melhor, vamos
nos programar para isso. Por ora, espero que compreenda.
— Sintam-se à vontade, meus filhos. Eu os recomendarei
a Jamar pessoalmente, afinal, vocês já têm um currículo
com serviços e estudos que dificilmente seria menosprezado
pelo guardião da noite. Vão em paz. Se precisarem de
20 0
algum reforço na tarefa, por favor, não se acanhem; podem
me procurar.
— Obrigado, meu pai! E você, Ângelo, é nosso convidado
para o evento que prepararemos.
Olhando para Watab, que continuava silencioso como
ele só, acrescentaram:
— Não se esqueça: você também, guardião, é nosso
convidado — Watab meneou a cabeça em agradecimento.
Jamais eu esqueceria algo assim. Um casamento de dois
espíritos, na dimensão extrafísica. E dois espíritos de aspecto
masculino! Assim que os dois se foram, muitas dúvidas
e questionamentos surgiram em minha mente febril
Não tive coragem de olhar diretamente para Pai João, pois
sabia muito bem que ele conhecia meus mais secretos pensamentos.
Era novato naquela comunidade de seres, na cidade
dos espíritos; ainda não aprendera a ocultar minhas
emoções e pensamentos. E Pai João sabia disso muito bem.
Minha mente fervilhava.
— Fique tranquilo, meu filho — confortou-me Pai João.
— Você terá suas respostas em breve.
Ele foi discreto por demais. Não ousou mais do que
isso, deixando-me entregue aos mais intricados pensamen
20 1
tos, conjecturas e indagações acerca da natureza humana,
da forma como era vista, no mundo espiritual, a união dos
seres e dos sexos, e sobre o próprio conceito de casamento
entre desencarnados. Tudo isso mexia comigo de uma
maneira que nunca imaginara. Cheguei a suspeitar que Pai
João me levou àquele lugar já de caso pensado, ou melhor,
levou-me ao encontro daquele casal já vislumbrando algo
no futuro mais ou menos distante.
Com o tempo, percebi que aquele espírito, que dia a
dia eu aprendia a reverenciar e respeitar, sob o nome de Pai
João, não fazia nada sem um plano ou uma finalidade, sem
que fossem ponderados os detalhes, visando ao crescimento
e às tarefa futuras. Quando ousei levantar a cabeça e fitar
seus olhos negros, eles brilhavam fortemente. Ao lado
dos cabelos brancos, tão bem combinados com a barba alva
como a neve, em contraste com a epiderme negra, e junto
com o sorriso farto, os olhos do pai-velho ocultavam a sabedoria
milenar escondida por trás daquela roupagem de um
simples ancião.
Logo após nossa chegada a uma região mais afastada
da metrópole, pude ver grande quantidade de casas, bangalôs,
choupanas e outras construções, a maioria parecendo
20 2
ser feita de madeira ou algum material similar. Perdiam-se
de vista as construções em meio aos bosques, florestas, jardins
e montanhas. Aquele estilo arquitetônico parecia ser a
maioria absoluta ali na metrópole, ao contrário do que imaginara
antes, ao ver os prédios enormes do espaço urbano,
embora tão bem integrados à paisagem, respeitando o princípio
de tudo na Aruanda: a convivência pacífica com a natureza.
Mas ali, onde nos encontrávamos a convite de Pai
João, é como se minha visão do entorno ou dos subúrbios
da Aruanda tivesse se dilatado, e pude apreciar a vastidão
da cidade espiritual. Aliás, os arredores da cidade dos espíritos
eram encantadores, verdadeiro paraíso em meio a
montes, vales, rios, matas e lagos. Pássaros exóticos, desconhecidos
por mim; animais domésticos e outros como leopardo,
onça e leão, além de cavalos, zebras, girafas e uma
fauna muito variada — todos os bichos pareciam conviver
amigavelmente, soltos pelas campinas, planícies e ambientes
cheios de vida e verde. Vi crianças caminhando ao lado
de pacíficos leões ou montadas sobre eles, guiados por algum
outro espírito — algo impensável no mundo físico.
E não havia zoológicos. Por todo lugar, observava-se vida
exuberante, e os animais integravam o cotidiano da comu
20 3
nidade de maneira tranquila e natural, como nunca imaginara
possível.
A cada dia, a cada hora, fazia contato com as surpresas
de um mundo novo, de uma cidade espiritual na qual
me fixaria e que se tornaria a base para atividades futuras.
Morar na Amanda era uma ideia que dia após dia tomava
mais corpo; era realidade. Fascinavam-me as oportunidades
de aprendizado e estudo que se desdobravam diante
de meu espírito.
— Antes de encontrar Jamar, visitaremos uns amigos
em nossa cidade, para você ter uma ideia de como funciona
a vida em família por aqui, em nossa dimensão.
Enfim teria oportunidade de ver de perto uma família
de espíritos. E isso me excitava. Dirigimo-nos a uma casa
belamente construída numa espécie de bairro residencial.
Não havia muros, apenas jardins separando uma casa da
outra. Era o tipo de projeto urbanístico que lembrava bastante
o dos subúrbios de algumas cidades norte-americanas.
Todas as residências da região pareciam ser construídas
de madeira ou algo muito semelhante, ainda que
estruturadas em fluidos desta dimensão. Havia um espaço
generoso entre uma casa e outra, e isso me fez pensar na
20 4
extensão da cidade como um todo. Neste momento Watab
rompeu seu silêncio e falou:
— Hoje, a Aruanda tem mais ou menos a dimensão da
Grande São Paulo, porém um número bem menor de habitantes.
Por isso, como pode ver, há espaço para todos confortavelmente,
sem incorrer na alta densidade demográfica
que se observa em cidades tão populosas como a capitai
paulistana.
— De qualquer forma, meu filho — completou Pai João
—, como vivemos em uma dimensão extrafísica, o problema
do espaço aqui é diferente do que ocorre na Terra. A população
é monitorada, de maneira que não ultrapasse muito
a marca dos 10 milhões de habitantes. Há um fluxo razoável
daqueles que reencarnam e outros — embora poucos,
se comparados a outras cidades — que vêm da Terra e de
outras metrópoles espirituais para cá. Ou seja, temos uma
população balanceada, um número compatível com uma
vivência tranquila e sadia junto à natureza. Já pôde reparar
que a área urbana de nossa cidade é ampla, mas ainda
assim a maior parte da população prefere viver nas casas e
em outras construções semelhantes ao redor do centro, da
região mais densamente povoada.
20 5
Enquanto caminhávamos rumo à visita à família espiritual
da qual Pai João falara, perguntei algo que, de certo
modo, causava-me estranhamento:
— Não vi igrejas por aqui. Onde os religiosos se reúnem
para rezar e adorar a Deus ou suas divindades?
— É porque adotamos um tipo de estrutura espiritual
que difere de outras cidades no mundo extrafísico. Não há
templos semelhantes aos que existem no plano físico. Cada
grupo afim se reúne em meio à natureza; incentivamos os
espíritos a se reunirem em família. As formalidades dos
cultos, conforme existem na Terra, deixaram de existir por
aqui há mais de 200 anos. Mas, caso algum espírito ou grupo
de espíritos queira, existem diversos recantos, belíssimos
por sinal, verdadeiros paraísos, que podem ser utilizados
por quem pensa e reza de maneira semelhante, ou seja,
irmãos de fé. Todos são livres para adorar a Deus ou não,
segundo crêem. Há até mesmo liberdade para não se envolver
com qualquer manifestação de religiosidade, embora
por aqui não existam ateus. Para muitos espíritos, a ciência
é a religião que adotam para perscrutarem a verdade do
universo; outros necessitam de certos aparatos, rituais e
crenças; há, ainda, quem prefira se dizer sem religião. Sob a
20 6
ótica da administração da cidade, tudo está bem, desde que
sejam respeitadas as poucas regras de convivência pacífica.
— Então existem espíritos que não professam nenhuma
religião?
— Sim, pelo menos nenhuma religião que se identifique
com alguma das denominações existentes ou com o
que estas ensinam. Não podemos forçar ninguém a acreditar
em nada. Mas temos como regra o estudo das leis universais.
Sob esse ponto de vista, podemos dizer que, para
muita gente, a religião verdadeira está dentro de si; trata-
se de uma forma pessoal de se conectar à divindade e de se
relacionar com as leis sublimes da vida. Respeitamos quem
assim procede, como não podia deixar de ser.
Fomos impedidos de continuar o assunto, pois chegamos
a uma das casas da região onde nos encontrávamos.
Pai João e Watab pareciam ser velhos conhecidos ali. Assim
que se aproximaram da construção, um tipo de sobrado
com trepadeiras adornando a fachada e algumas flores dispersas
pelo jardim, as quais demonstravam o cuidado dos
moradores do lugar, uma mulher saiu de dentro da casa,
saudando efusivamente o pai-velho e o guardião. De súbito,
senti certa emoção me envolvendo, de modo a recordar
20 7
minha antiga família na Terra. Parecia que estava voltando
para casa depois de uma viagem muito longa.
— Sejam bem-vindos, todos. Que honra recebê-lo, meu
velho! — falou a mulher, visivelmente alegre ante a presença
de Pai João. — E você, guardião silencioso, meu querido
Watab, quanto tempo, hein?
— Estamos de volta, Laura! Estamos de volta... E você,
como está? E as crianças?
— Estamos muito bem, meu pai... Vamos, entrem! Entrem,
logo — convidou-nos festiva.
— Este é Ângelo Inácio, nosso amigo recém-chegado
da Terra — apresentou-me Pai João.
— Então você é o escritor e jornalista? Já ouvimos falar
de você, meu caro. Seja bem-vindo!
Não sabia o que dizer diante de tanta naturalidade e
boa vontade com que fui recebido. Parecia a hospitalidade
mineira. Em instantes me habituei com o jeito de Laura.
— As crianças estão na escola, Pai João. E Alberto está
agora nas fábricas, treinando um processo de criação mental
e manipulação de fluidos visando à construção de habitações.
Quando reencarnar, ele pretende ser arquiteto. Imagine
quantas oportunidades terá nas fábricas de formas mentais...
20 8
Depois de um breve silêncio, eu talvez tenha percebido
uma sombra de preocupação em seu semblante, logo disfarçada
com a conversa, que parecia ser interessante:
— Estou me ocupando mais intensamente do nosso
menino, o Régis. Assim que o adotamos em nosso lar, e após
o período de desenvolvimento do corpo espiritual em meu
útero de mãe, ele logo começou seu tratamento magnético.
Mas temo que precise ser transferido a outra comunidade,
a uma outra cidade, meu pai.
Enquanto sentávamos numa poltrona confortabilíssima,
Laura confidenciou suas preocupações, agora mais plenamente
visíveis.
— O Régis é um espírito que não tem nenhuma afinidade
com nossa família. O adotei porque estava muitíssimo
necessitado de recompor sua forma perispiritual e eu ansiava
pela oportunidade de ser mãe novamente. Confesso,
meu pai, que foi mais por egoísmo de minha parte do que
por amor...
Pai João colocou sua mão sobre a mão de Laura e confortou-
a com um jeito bem paternal:
— Mas não importa isso agora, minha filha. O mais importante
é que ajudou nosso Régis a se recompor espiri
20 9
malmente, pelo menos no que tange à forma espiritual. E
você não desistiu de encarar outra etapa, abraçando também
a condução do seu espírito.
— Pois é, meu pai... Ocorre que, como sabe, ele veio diretamente
de uma situação em que foi submetido ao trato
hipnótico por um dos habilidosos magos das regiões inferiores.
Tinha o psiquismo totalmente nublado, num processo de
amnésia espiritual forçada ou induzida. Assim que o retiramos
do contato mais direto com meu períspirito, por meio do
magnetismo, isto é, assim que renasceu em nossa dimensão,
num corpo de criança mais reestruturado, parece que seu cérebro
perispiritual começou a recobrar memórias. Nem imagina
as situações que temos enfrentado em nosso lar para
aconchegá-lo e conduzi-lo a um estado mais harmonioso.
— Confesso que nem imagino, Laura. Mas podemos falar
diretamente com a equipe de educadores da Nova Galileia,
pois eles detêm recursos educativos e uma forma de
abordar o psiquismo de seres nessas condições, que você
precisa conhecer. É realmente bastante eficiente a metodologia
que usam.
— Ah! Meu pai... Sabia que sua vinda aqui seria uma
bênção para nossa família. Já tinha ouvido falar nessa esco
21 0
la, mas não tive a oportunidade de conhecer nenhum espírito
ligado a ela...
Voltando-se para mim e Watab, a anfitriã falou, cheia
de cuidados:
— Me perdoem vocês dois, meus queridos, mas sabem
como é o coração de mãe. Do lado de cá da vida, Ângelo, as
coisas não são tão diferentes do que acontece com a maioria
das mães, na Terra. Vou preparar alguma coisa para nós.
Fiquem à vontade ou, então, me acompanhem até a cozinha...
Por favor!
Levantamo-nos e a seguimos até a cozinha. Lembrei-
me mais uma vez dos costumes que vi em Minas Gerais,
mais precisamente no interior. A cozinha era imensa. Uma
bancada ficava no meio, com diversos apetrechos comuns
a uma cozinha qualquer, embora houvesse alguns equipamentos
que eu desconhecia. Mas a geladeira, o fogão
moderno por demais... Porém, não vi fogo no fogão. Parecia
que o calor irradiava da boca do fogão, sobre a qual se
apoiava um vasilhame em tudo semelhante às panelas que
conhecia, embora parecesse ser feito de louça, e não de
metal. Sentamo-nos em torno da bancada, numa conversa
animada. Foi somente então que vi Watab descontrair-se,
21 1
entrando na conversa e auxiliando Laura a preparar alguma
coisa para comermos. Na verdade, eu não sentia fome,
mas os sucos e os bolinhos preparados pareciam ressuscitar
em mim o paladar e a vontade de degustar quitutes caseiros.
Nunca havia experimentado sabores tão intensos e
bolinhos tão saborosos. Sentia-me em casa. Em determinado
momento de nossa conversa, Laura dirigiu-se a mim de
maneira especial:
— Então você está ainda num hotel, Ângelo? Ainda não
considerou morar em sua própria casa? Um chalé, um bangalô
ou, quem sabe, pelo seu jeito, um loft?
— Ainda me sinto muito novo neste mundo de espíritos,
Laura. Aliás, não me habituei complemente ao fato de
ser um espírito.
— Então, quem sabe não podemos ser mais úteis a esse
processo de adaptação do lado de cá? Caso queira, poderá
ficar conosco por algum tempo. Alberto, meu marido, com
certeza ficará extremamente feliz com sua presença em
nosso meio, pois adora seus poemas e é um homem muito
dedicado a estudar; é muito culto, por sinal, ao contrário de
mim, que sou apenas uma dona de casa e colaboro em serviços
mais simples da nossa comunidade.
21 2
— Laura não está se valorizando como merece, Ângelo.
Ela é excelente artista; toca piano como nenhum espírito
que eu conheça — falou Watab.
— Na verdade, uso a música para acalmar corações e
emoções; só isso. Mas acho que preciso alargar meus horizontes.
Tenho me dedicado de maneira insuficiente a estudar
outros importantes ramos do conhecimento. Acabo
usando como desculpa o fato de precisar me dedicar mais
aos filhos espirituais.
Queria muito conhecer de perto o dia a dia de uma família
de espíritos e parece que esta seria uma chance ímpar
para mim. Pai João notou meu interesse em estar mais perto
da família de Laura e falou, dirigindo-se a mim:
— Pois é, meu filho! Acho que as oportunidades são excelentes
para você. Se desejar, podemos providenciar uma
casa para você por aqui. Quem sabe se sinta à vontade no
hotel... no entanto, chegará a hora em que desejará um lugar
todo seu, que tenha sua cara.
— Acho que, se me derem a chance, vou preferir morar
neste bairro residencial. Talvez possa ficar mais próximo
da família de Laura e, assim que me for possível, construirei
ou reunirei minha própria família espiritual.
21 3
— Que seja assim, Ângelo! — exclamou Pai João. —
Laura e sua família poderão ser pra você uma espécie de
ancora ou referência em seu novo estágio na erraticidade.
— Ficaremos felizes em poder ajudá-lo, de alguma forma,
a se instalar mais definitivamente aqui na Aruanda. Podemos
lhe mostrar a cidade com mais detalhes enquanto
você se encaixa em alguma atividade ou grupo de estudos.
Fiquei emocionado mais uma vez. Senti-me em casa,
aconchegado por uma família e contente com a perspectiva
de construir um lar. Diante dessa possibilidade, não me
via mais como um visitante ou apenas um espírito itinerante,
que estivesse de passagem para estudar na cidade; com
efeito, sentia-me um habitante daquela comunidade de espíritos.
Com a construção do novo lar e a reunião da família
espiritual, eu me sentiria integrante e participante ativo da
vida espiritual da metrópole. Isso me fez um bem imenso,
principalmente porque, em breve, seria apresentado a outra
realidade, ao trabalho dos guardiões amigos da humanidade.
Era importante que estivesse integrado ao modo de
vida da Aruanda. Dessa forma, com minha autoestima reafirmada
ou elevada, poderia colaborar com mais qualidade
nas tarefas que me aguardavam.
21 4
Após nos despedirmos de Laura e tomarmos o caminho
de volta, pude observar melhor a vegetação que compunha
os jardins em torno das casas. Sinceramente, nem mesmo
com modificação genética e avanços de mais 100 anos seria
possível ver, na Terra, algo que ao menos se assemelhasse à
natureza das plantas e, até mesmo, de minerais, pedras e da
própria terra que pisávamos. Algumas flores pareciam cantar,
emitindo certa sonoridade à medida que passávamos
perto delas. Novamente pude perceber seres pequeninos
esvoaçando em torno de flores e plantas, sentados sobre as
pedrinhas que compunham os jardins, adornando fontes
ou mesmo demarcando espaço para algum arranjo diferente
de arbustos e flores exóticas, a meu ver.
Uma vez que permanecia em silêncio, num silêncio
criativo, pensando intensamente em tudo que vira e ouvira,
no convite de Laura e na proposta de Pai João, Watab rompeu
a quietude, falando direto a mim:
— Aqui, Ângelo, como verá em todo lugar em nossa cidade,
tudo quanto na Crosta era classificado como sem vida
ou inanimado, sem inteligência e pertencente a reinos biológicos
inferiores ao humano, na verdade está cheio de vitalidade,
de energia, uma energia radiante, que interage com
21 5
tudo à volta. Dessa maneira, as plantas, as flores e até mesmo
as pedras e o solo abaixo de nós respondem aos estímulos
mentais e emocionais dos habitantes. As cores modificam-
se de acordo com o teor do pensamento dos espíritos mais
próximos; a tonalidade do verde se intensifica ou esmaece
de acordo com o sentimento e a aura de quem se achega. Do
mesmo modo, as construções, elaboradas a partir do fluido
cósmico, dos fluidos mais sutis da atmosfera do planeta, refletem
a qualidade emocional dos moradores. Lentamente,
as formas se modificam. Nas cores das paredes, nos móveis
mais ou menos elegantes, nas linhas mais arrojadas ou singelas,
evidencia-se a característica de cada morador ou de
cada pessoa que entra em contato direto e constante com
tais criações. Enfim, tudo aqui vive e vibra; nada é morto,
nem as pedras, nem as montanhas, nem o ar que respiramos.
Tudo vive e está cheio de vida, em todo lugar.
Junto com minhas impressões sobre a vida familiar,
brotava em minha alma um respeito por tudo o que via ao
meu redor. A natureza, as coisas mais simples até as mais
complexas: tudo para mim renascia sob novo prisma, e me
fazia sentir cada vez mais vivo, embora também me percebesse
pequenino naquele momento, ao atestar a riqueza a
21 6
meu redor. A estrutura íntima da matéria — se é que posso
chamar assim esse tipo de material que via no entorno —
na qual fora erguida e edificada a cidade era algo impressionante
e, ao mesmo tempo, para mim, inexplicável, tendo
em vista o conhecimento reduzido sobre o funcionamento
das coisas nesta dimensão.
Enquanto me diluía em sentimentos de respeito e gratidão,
tocado intimamente por tudo, extasiado perante a
estrutura que me cercava, Pai João complementou a palavra
de Watab, o guardião:
— Também chamamos matéria os elementos que temos
à disposição nesta dimensão.1 0 Pode-se dizer matéria
mental, astral ou mesmo fluid o mais ou menos condensado,
assim mesmo segue sendo um tipo especial de matéria,
desde a substância componente dos trajes usados pelos espíritos
até aquilo que é empregado nas construções da ci10
"Mas a matéria existe em estados que ignorais. Pode ser, por exemplo, tão etérea
e sutil, que nenhuma impressão vos cause aos sentidos. Contudo, é sempre matéria.
Para vós, porém, não o seria" (KARDEC. O livro dos espíritos. Op. cit. p. 81-82,
item 22). "O que te parece vazio está ocupado por matéria que te escapa aos sentidos
e aos instrumentos" (Ibidem, p. 88, item 36).
21 7
dade. Se lhe disséssemos que as construções não são tanto
uma forma, mas um sentimento cristalizado ou coagulado,
talvez você me interpretasse, meu filho, como falando por
parábolas, usando uma figura de linguagem, devido à sua
formação acadêmica e profissional. Pode-se dizer, apenas
para efeito de comparação, que nossas construções são feitas
de luz — luz líquida ou coagulada, que é moldada pelos
sentimentos dos moradores. Em algum momento você
compreenderá melhor, provavelmente quando estiver em
sua própria casa, segundo o desenho que escolher, isto é,
quando emoções e pensamentos mais profundos se refletirem
em tudo a seu redor: nas paredes, nas cores, nos móveis
e nos utensílios. Aí, verá como seus sentimentos estão
intimamente relacionados com o ambiente particular. Assim
é a Amanda; assim, o Invisível, o mundo dos espíritos.
Conforme caminhávamos e meus sentimentos pareciam
se dilatar, minha visão da cidade e dos arredores parecia
dilatar-se, também. Com pouco esforço, pude ver ou
perceber pormenores das montanhas ao longe; sobre colinas
distantes, erguiam-se majestosas construções, que davam
a impressão de templos, embora templos ali não houvesse.
Apresentavam-se na forma de torres, arcos, pátios e
21 8
cúpulas, em meio à vegetação farta que eu percebia. Mais
uma vez, Pai João me socorreu, à medida que nos aproximávamos
do ponto de encontro com Jamar:
— As cúpulas e torres que você vê, Ângelo, cuja cintilação
impressiona os olhos e o brilho encanta a alma, são
constituídas de elementos que, na Terra, seriam classificados
como pedras preciosas. Decerto já ouviu alguma vez,
em leituras da Bíblia, a referência à Nova Jerusalém,1 1 cidade
espiritual que o apóstolo João descreve no livro Apocalipse:
ruas de ouro, portas de pedras preciosas e coisas
semelhantes.1 2 É que aqui, numa esfera de vida além da conhecida
na Crosta, as possibilidades do espírito são ilimitadas.
A exuberância da vida coloca à disposição, numa escala
bem mais ampla, incontáveis recursos da natureza. São
fluidos condensados ou energia coagulada pela força mental
dos espíritos construtores, que modelam, através desses
mesmos fluidos, elementos que são conhecidos na Terra,
porém numa dimensão diferente da que se observa entre
os encarnados. A luz coagulada pode assumir praticamente
11 Cf. Ap 21.
12 Cf. Ap 21:11,18-21.
21 9
todas as formas conhecidas no mundo físico, mas aqui são
muito mais intensas, precisas e harmoniosas.
"As construções são museus, onde, em diversos deles,
trabalham e estudam seres de nossa cidade ou de outras,
que vêm em busca de conhecimento arquivado nos bancos
de dados ou sob a forma de acervo. Cada pedra preciosa,
cada gema, independentemente do tamanho e da forma,
têm um significado. As gemas preciosas refletem as auras,
os pensamentos e emoções, sentimentos e características
de cada visitante ou trabalhador do local, bem como das
obras expostas nos museus. Essas construções, sim, talvez
fossem confundidos com templos pelos mais religiosos, tão
significativas são a arquitetura, as exposições e o acervo ali
oferecido aos estudiosos da ciência do espírito."
Pai João despertava em mim admiração e respeito
como nunca tivera, nessa medida, por nenhum ser com o
qual convivera. De outro lado, havia a gratidão, sobretudo
por fazer parte deste lugar, que, somente agora, descobria
em maiores detalhes, ainda que soubesse faltar grande número
de coisas para conhecer na natureza da vida extrafísica.
Havia muito que aprender. Certamente, o encontro com
Jamar, que me apresentaria uma base de apoio dos guar
22 0
diões, descortinaria novos conhecimentos e mais reverência
perante a grandeza da vida e as tarefas que me a
davam no porvir. Nunca imaginei que morrer era viver,
viver com intensidade.
22 5
UANDO JAMAR CHEGOU, já me encontrava bem mais tranquilo
e integrado ao tipo de vida que a cidade espiritual
oferecia. Eram muitos fatores recentes e novos para mim.
Primeiramente, a visita ao lar de Laura, que revelara pormenores
da vida familiar e doméstica na Amanda, desde
a forma de se alimentar até a maternidade. Antes mesmo
disso, deparar com vários casais, contemplar a vida conjugal
no Além e observar a diversidade e a pluralidade dos
tipos humanos foram coisas que me fizeram refletir sobre
o modo como todos eram tratados e se tratavam na Amanda.
No que diz respeito à vida afetiva, pude observar tanto
espíritos que tiveram experiências na heterossexualidade
como seres com identidade energética voltada à homossexualidade,
mas ambos na mais singela normalidade, como
se esse aspecto não fizesse a menor diferença; parecia ser
mesmo irrelevante. Cada casal levava a vida conforme melhor
lhe parecesse, com respeito mútuo; traçavam planos,
usufruíam de todas as oportunidades que a comunidade
lhes podia oferecer.
Junte-se a isso a enorme variedade de manifestações
culturais e religiosas, de aparências, estilos e preferências
dos espíritos, bem como de elementos étnicos e raciais, e
22 6
me peguei por muitos momentos admirando a capacidade
desta gente de conviver com o diferente e a diversidade.
De abrigar, acolher e encorajar tamanha riqueza do espírito
humano, sem moralismos ou códigos de conduta que
se pautassem por outra coisa senão os valores mais nobreque
todos conhecem: amor genuíno, harmonia no convívio,
educação e gentileza, respeito às escolhas e ao jeito de cada
um. Enfim, nada que segregasse, confinasse o espírito aos
limites estreitos das crenças e concepções particulares ou
ditasse regras rígidas e insensatas, que sufocassem a vastidão
das possibilidades humanas.
Tantas vivências e reflexões descortinaram diante de
meu espírito toda uma maneira de pensar razoavelmente
distinta do que conhecia e cultivava antes, quando encarnado.
O sentido de lar e família deveria ser refundido, reescrito,
pois aqui começara a divisar novo horizonte e nova
concepção, mais larga, do que vem a ser lar. As construções
da Aruanda, então, impressionavam-me a cada momento.
A matéria da qual eram feitas merecia estudo à parte. E as
plantas, as flores, os animais e todo o resto? Simplesmente,
não poderia formar uma ideia exata sem me aprofundar
em estudos da ciência universal, e não somente da ciência
22 7
humana dos encarnados, que avançava dentro dos rígidos
limites de paradigmas antigos e ortodoxos, dedicando-se
apenas à realidade material, que era ainda mais estreita.
Este plano ou dimensão não seria um mundo à parte
do planeta? Outro continente no espaço, quem sabe? Uma
extensão do orbe ou uma realidade paralela? Estava longe
de obter respostas para tantas perguntas que emergiam de
meu interior; porém, para que elas viessem, era necessário
de estudar. E então compreendi o porquê da obrigatoriedade
dos estudos neste mundo novo.
Um lugar onde a própria natureza irradia cores, sons,
música. Descobri que o som tem cores e a cor emite som e
faz música. Mas isso jamais será compreendido por quem
pensa o mundo apenas por meio dos sentidos, restrito pela
visão material. Somente libertando-se da ilusão da matéria
— da convicção da vida material como realidade absoluta
— é possível compreender algo que transcenda os estreitos
limites dos cinco sentidos. Conheci cores muito diferentes
daquelas que são vistas no mundo físico, embora todas que
conheci na Terra aqui estivessem, em intensidade e nuances
surpreendentes e superiores. Ao ser introduzido no
ambiente onde residiam Laura e sua família, e observando
22 8
o tipo de habitação dos demais espíritos, entrei em contato
com o significado e a harmonia das cores. Soube que, de
acordo com os sentimentos dos habitantes, com o trabalho
e a ocupação a que se entregassem, seja de caráter mental
ou não, as diversas cores se misturavam, formando outras,
que passavam a imprimir na atmosfera, no ambiente a sua
volta, a marca profunda ou a aura particular daquele espírito.
Esse mecanismo explica por que as casas e construções
da Amand a vibram e respondem ao pensamento do
morador. A matéria sutil em que são elaboradas é tão sensível
à ação da mente que as paredes, o mobiliário e tudo o
mais que cerca o espírito dão resposta imediata ao influxo
de pensamentos e emoções. Aí está um fator ou mecanismo
que favorece, a todo instante, a reeducação das emoções e
dos pensamentos dos habitantes da cidade.
E como a música faz parte da vida dos moradores... É
tão importante que de tudo emana som, música, melodia.1 3
13 "A música possui infinitos encantos para os Espíritos, por terem eles muito desenvolvidas
as qualidades sensitivas. Refiro-me à música celeste, que é tudo o que
de mais belo e delicado pode a imaginação espiritual conceber" (KARDEC. O livro
dos espíritos. Op. cit. p. 207, item 251).
22 9
As flores cantam, as folhas emitem vibrações sonoras e a
Aruanda é toda musicalidade, que penetra no âmago dos
espíritos e auxilia na pacificação dos seres que aí habitam.
A música é parte da vida, da energia, da substância da qual
é construída a cidade e a comunidade. E não há filho da
Aruanda que não se deixe envolver e não se envolva com
música, arte e poesia. Em poucas palavras, a música emana
da alma dos espíritos desta cidade. Assim como emana
da própria natureza desta dimensão, deste outro mundo,
e também das flores, das plantas, das águas, dos seres
de todas as formas. Cores, músicas e sons não são coisas
inanimadas, mas detentoras de vida própria, de ritmo, harmonia
e vibração perfeitamente palpáveis, perceptíveis e
mensuráveis.
As edificações residenciais, conforme verifiquei no
lar de Laura e, mais tarde, nos demais locais onde passei,
não foram erguidas para a proteção das pessoas ou dos espíritos,
conforme acontece na Terra. Não. Tudo é feito de
modo a concentrar as energias dos moradores; trata-se de
uma espécie de condensador de emoções, emissões fluídicas
e pensamentos, ou melhor, da qualidade dos pensamentos
dos que ali habitam. Assim, a energia peculiar a
23 0
cada morador, concentrada nas paredes, no teto, nas cores
e na substância mesma das residências, faz com que estas
se tornem uma pilha energética particular, de onde cada
inquilino pode haurir forças e reabastecer-se. Pode, ainda,
direcionar o recurso ali armazenado para quem dele necessite
ou enviá-lo, sem perda de qualidade, a lugares distantes,
movido pela necessidade ou pelo desejo de ajudar. Isso
é uma maravilha por si só! Difere de tudo e de toda concepção
do plano físico a respeito de engenharia civil, de função
da habitação e de critérios para a escolha do ambiente
onde se vai viver e morar. Não posso dizer que exista alguém
que não se encante com a natureza deste mundo chamado
Amanda.
Quando ainda hoje penso naqueles primeiros momentos
de contato com a natureza sideral deste universo novo,
encho meu espírito de gratidão e não há como impedir que
verta uma lágrima de emoção diante de tamanha diversidade,
tamanha pluralidade e grandeza da vida espiritual. De
modo que, em minhas reflexões, cheguei à seguinte conclusão:
era preciso ir além das convicções terrenas e refazer as
concepções de certo e errado, de virtude e pecado, de natural
e subversivo. Onde me encontrava, ou refazia minhas
231
ideias de normalidade e anormalidade ou, simplesmente,
não conseguiria me incluir entre os agentes do Cordeiro
que trabalhavam numa dimensão mais ampla do que aquela
na qual transcorre a vida na Terra.
Por ora, não conhecia ainda outras cidades espirituais.
Apenas ouvira falar de Nosso Lar, Grande Coração, Vitória
- Régia e outras mais. Também ignorava como se comportavam
os habitantes daquelas cidades ou colônias, como
se costumava chamar as comunidades menores. Mas aqui,
na Aruanda, não havia como permanecer com as acanhadas
formas de pensar e agir, tal qual a maioria dos humanos
encarnados e, também, desencarnados. Tudo o que vira
até então serviu para alargar os horizontes do meu conhecimento
e refundir conceitos, abrindo minha mente para
uma forma mais universalista de pensar. Até mesmo a maneira
de lidar com as questões humanas, sem o peso da culpa
e sem cobranças, foi para mim um tipo de bênção.
Ante meu passado cheio de equívocos, não me senti cobrado
por nenhum tribunal, tampouco deslocado ao realizar
meu aprendizado na metrópole, em tarefas ou condições
diversas daquelas às quais estava acostumado. Fui
respeitado intimamente, inclusive nos gostos, no tempera
23 2
mento e no jeito de ser, mesmo com as manias e a acidez característica,
ao criticar tudo e todos à minha volta. Não precisei
abdicar do meu humor, do jeito de me expressar. Tudo
isso foi respeitado como aquisição da minha alma, e assim
me senti mais humano. E foi somente a partir de então que
senti vontade de modificar alguma coisa dentro de mim,
de fazer uma reavaliação íntima, sem nenhuma imposição
nem discurso moralista, muito menos o peso religioso que
presumivelmente pudesse acompanhar certos ensinamentos
transmitidos a mim nesta outra vida que encontrei. Não!
Mudei apenas porque cheguei à conclusão de que queria
mudar. O tempo todo ouvi que eu era apenas humano.
Pai João, Jamar, Watab, Consuela, da qual não posso
esquecer jamais, o encontro com Laura em seu lar, com Camilo
e Mike, sem falar nos Imortais que dirigem os destinos
desta comunidade — nenhum deles, em nenhum momento,
jamais se apresentou a mim como portador de grande
elevação espiritual ou de uma santidade incompreensível.
Deparei tão somente com seres humanos comuns, embora
dignos de respeito e consideração. Nenhum espírito havia
que se dissesse elevado ou que fosse tido como um primor
de evolução. Encontrei-me entre humanos, e isso fez toda a
23 3
diferença dentro de mim. As mudanças começaram a acontecer
naturalmente, sem cobrança nem força, sem imposições
nem pregações religiosas, santificacionistas ou "espiritualizadas".
Segui apenas o curso comum e natural, sem
pressa e sem martírio.
Os espíritos com quem travava contato não se cansavam
de dizer que ninguém ali era anjo e não se ocupava de
desacertos e erros de quem quer que ali estagiasse. Em nenhum
momento, entre os habitantes da cidade espiritual,
senti sequer um traço de dor moral, do peso e do rigor típicos
das posturas de culpa e cobrança. E isso me conquistou
de vez. Sentia-me integrado à vida da metrópole espiritual,
com seus mais de 10 milhões de habitantes, de todas
a s etnias e povos do planeta. Eram indivíduos que haviam
palmilhado, cada qual a seu tempo, diversos caminhos, dos
mais corriqueiros aos mais extravagantes da humanidade.
Haviam superado — ou ao menos se colocado em via
d e superar as barreiras do preconceito, da culpa, das preferências
religiosas e, principalmente, da necessidade de
fazer proselitismo religioso ou político. Definitivamente,
vivia numa comunidade de seres comprometidos mais
intensamente com o bem da humanidade, e não com uma
23 4
doutrina ou filosofia em particular. Assim eram os habitantes
da Amanda. E havia outras Aruandas no universo,
no Invisível.
— Desculpe interromper suas reflexões, meu amigo
— falou Jamar, delicadamente. — Mas é que temos de partir
para as zonas inferiores, onde você terá contato com a
realidade de nossa escola de guardiões. Precisamos tomar
precauções, pois sairemos dos limites da cidade espiritual
e mergulharemos num tipo de vibração em que nos sujeitamos
ao impacto dos pensamentos, tanto de encarnados
quanto de desencarnados, os quais podem comprometer o
equilíbrio do grupo.
Fiquei pensando em que consistiria essa chamada zona
de impacto. Seria uma espécie de inferno? Um purgatório,
conforme ensinava a igreja? Estava longe de ter uma ideia
mais acertada a respeito. Jamar continuou:
— Semíramis irá conosco, pois as guardiãs são especializadas
em dissolver formas-pensamento e emoções cristalizadas;
além disso, detectam habilmente influxos energéticos
carregados de forte teor emocional, os quais advêm de
planos inferiores. Pai João tem outras atividades ao lado do
colegiado, na administração da cidade; assim, não poderá
23 5
ir conosco nesta escala pelas regiões ínferas. Watab se encarregará
de você particularmente, ampliando o escudo de
proteção à sua volta, até que tenha condições de fazê-lo por
si próprio. Alguns outros amigos irão conosco, mas a eles
você será apresentado no caminho.
Demonstrando pressa ou até urgência para começar
nossa jornada, Jamar ordenou:
— Vamos! Não podemos perder mais tempo.
— Temos de aproveitar — acentuou Semíramis, que
estava acompanhada de mais três guardiãs. — Neste momento,
há um intervalo regular no influxo das formas-
pensamento. Aproveitaremos a zona neutra, entre um feixe
e outro, para passarmos sem maior prejuízo ou desgaste
energético.
Assim que Jamar deu a ordem, Watab estendeu as
mãos acima de mim, e logo depois desceu ambas lentamente,
formando uma espécie de círculo ou bolha em torno do
meu organismo espiritual, a qual, naquele instante, eu ainda
não conseguia enxergar. Fiquei pensando se seria algum
ritual excêntrico, mas não. Depois percebi que havia se formado
em torno de mim uma espécie de película, que se ligava
diretamente à cabeça de Watab por um fio finíssimo.
23 6
Mais precisamente, tal fio de energia parecia entranhar-se
entre seus olhos, ligando-se à mente do guardião. Senti certo
conforto, que não saberia descrever minuciosamente; de
qualquer maneira, notei uma sensação de tranquilidade e
uma resposta emocional interessante. Minha confiança naquela
equipe havia aumentado de maneira extraordinária.
Seria fruto da ação de Watab?
Entramos num veículo aéreo cuja forma diferia da de
todos que eu vira até ali. Havia, na parte da frente, aberturas
circulares, que me pareceram apropriadas para canhões,
fato que me provocou estranhamento. Tive receio
de perguntar. Não sabia, ainda, que existia armamento de
tal porte naquela dimensão, quanto mais adaptado aos veículos.
Era novidade a maioria das coisas que presenciava.
Entrementes, nos limites da Aruanda, o veículo levantou
voo e saiu com relativa facilidade. Tão logo deixamos o perímetro
da cidade, as coisas começaram a se modificar. Nuvens
mais espessas e de tonalidades fortes apareciam de
um lado e outro do veículo. Leve tremor lembrava os momentos
de turbulência em viagens de avião, embora fosse
um tipo especial de turbulência, que os aviões terrestres
talvez nunca experimentassem.
23 7
— Vamos ficar atentos — ressoou a voz de Jamar. — Estamos
em alta velocidade e começamos a adentrar as zonas
de impacto mental e emocional.
O veículo balançou ainda mais intensamente. Quando
olhei, vi bolhas de luz, uma luz fosca, de um vermelho
escuro, vindo em nossa direção. Mas não atingiu o veículo
diretamente.
— Erguer os campos de proteção! — gritou Semíramis
para a guardiã que pilotava o veículo. Balançamos novamente
e, quando o petardo de energia quase nos atingiu,
formou-se uma barreira energética em torno da nave, distribuindo
o impacto que parecia fulminante. Certa dose
de medo ou apreensão tomou conta de mim. Medo semelhante
ao que ocorre com alguém dentro de um avião que
enfrenta turbulência. Algo assim. Meu coração de desencarnado
começou a bater mais intensamente. Watab olhou
para mim tranquilizando-me, mas não conseguiu fazê-lo
totalmente. Outro petardo veio em nossa direção, mas a
condutora do veículo desviou a tempo, porém não conseguiu
desviar-se de raios que riscavam os céus daquela região,
os quais atingiram em cheio a nave que nos conduzia.
Balançamos feito folhas ao vento, e eu me segurei em al
23 8
gum lugar, um tipo de aresta do veículo, própria para isso.
Arregalei os olhos.
— À esquerda, cuidado! — falou novamente Semíramis,
sempre atenta. — Ativar os canhões de energia! — comandou
a guardiã, enérgica.
E eu ali, sem entender nada de nada. Eles não me explicaram
que ocorreria algo dessa natureza. Estávamos sendo
atacados? Era uma guerra? Nem tive tempo de perguntar
— e confesso que não conseguiria mesmo. Quase molhei as
calças do meu sagrado terno duramente conquistado nas
lojas da cidade. Aliás, pensei mesmo que houvesse me molhado.
Mas não. Espírito nunca se molha. Elimina ectoplasma!...
Só acordei para o perigo real da situação quando vi
os canhões emergirem à frente da nave, das aberturas que
notara mais cedo, e cuspirem fogo ao redor. As bolhas de
luz avermelhadas explodiam antes de nos atingir. Os raios
pareciam ter sido interceptados pela energia dos canhões,
da qual nada sabia, nem sequer a respeito de sua natureza
e seu poder de impacto. Apenas presenciava, com o coração
quase saindo pela boca. Pouco a pouco as coisas foram
se acalmando. Jamar manteve-se em silêncio o tempo todo
durante o ataque energético.
23 9
— Pronto! Cruzamos tranquilos a zona neutra... Breve
chegaremos à base de apoio dos guardiões.
Zona neutra? Tranquilos? Será que nenhum deles me
viu, por acaso, quase molhando as calças do meu elegante
traje de desencarnado? Aquilo porventura era uma zona
neutra? Jamar olhou para mim e me senti envergonhado.
Infelizmente ele sabia o que eu pensava, ou sentia. Jurei
um dia aprender como me proteger mentalmente.
— Não se preocupe, Ângelo! Terminaram os ataques —
falou Semíramis para mim, enquanto a mulher na direção
do veículo ria gostosamente das minhas reações. — Eram
somente formas-pensamento dos encarnados. Nem experimentou
ainda o ataque de entidades perversas. Aí, sim,
você vai se molhar todo! — e riu também. Todos riram. Eu
ri de raiva e nervosismo. Tive raiva de Semíramis saber o
que eu pensava. Será que raiva era pecado aqui?
— Fomos atingidos pelos impactos das formas mentais
vindas diretamente de encarnados — explicou Jamar,
agora mais descontraído, embora eu não pudesse dizer se
ele estava alegre ou triste; apenas descontraído. — Estamos
nos aproximando de uma de nossas bases. Observe o arredor
para não criar nenhuma expectativa quanto à natureza
240
deste lugar. Não estamos mais na Amanda. Este é o início
das zonas inferiores, conhecidas pelos espíritas como umbral
— arrematou.
— E olhe que, ainda assim, trata-se de uma região tranquila,
se comparada aos locais onde estamos habituados a
trabalhar e enfrentar espíritos criminosos e outros tipos
que mais tarde você conhecerá — disse Watab.
Então nem tudo eram flores no mundo dos espíritos.
Se conheci de perto o conforto e a vida social relativamente
tranquila da Amanda, agora entrava em contato com a realidade
das chamadas zonas ínferas.
Ainda suava frio, após vivenciar os impactos de energia
discordante que vieram em direção ao aeróbus. De repente,
um feixe maior daquela substância veio em nossa direção.
Algo horrendo e de tal proporção que o veículo balançou
muito mais do que nas descargas anteriores. Parecia que
pegara os guardiões desprevenidos.
— Vamos sair do veículo! — gritou Jamar, em meio à
fumaça e ao estrondo, que parecia vir de dentro do próprio
carro voador. Saímos um a um, e Watab sempre próximo de
mim, envolvendo-me num campo protetor.
— Vez ou outra isso acontece, embora a frequência dos
241
ataques esteja menor a cada dia — falou Semíramis.
— Sim — arrematou Jamar. — Precisamos ficar atentos,
afinal, estamos numa zona purgatorial. Continuar com o
veículo será chamar a atenção das entidades sombrias que
vivem nessa região. Vamos deslizando nos fluidos ambientes
ou mesmo caminhando entre os vales sombrios.
— Enviarei um sinal à nossa equipe para que venha a
nosso encontro — falou uma das guardiãs, dirigindo-se a
Jamar e Semíramis, que, pelo visto, eram os líderes entre
os guardiões. Mantive-me em silêncio, temendo que meus
companheiros soubessem quanto medo eu sentia. Escorria
suor em minha fronte. Jamar me olhou, transmitindo segurança,
porém dessa vez ficou calado, guardando para si o
que talvez ouvira de meus pensamentos. Senti-me confortado
na presença dele, como sempre.
Descíamos por uma região que parecia sombria demais,
se comparada com qualquer experiência que tivera
até então. Abaixo de nós e no entorno, surgiam camadas de
nuvens de cores variadas, mas sempre de tonalidade mais
escura. Do cinza passavam ao vapor negro; as avermelhadas
se mesclavam a uma cor que talvez pudesse ser chamada
de roxo — talvez, pois acredito que era uma cor des
242
conhecida para quem acabara de vir da terra dos mortais.
Olhando mais intensamente ou concentrando minha atenção,
era como se visse uma espécie de auréola em torno do
planeta, ao longe, no horizonte, mas não luminosa nem cintilante.
Em meio àquelas sombras e à medida que nos aproximávamos,
notei que o próprio globo estava envolvido
num tipo de escuridão, como se pairasse entre nuvens de
fuligem e vapores. Nesse momento, Semíramis adiantou-se
e posicionou-se a meu lado e de Watab, tentando explicar o
que ocorria:
— São criações mentais ou formas-pensamento carregadas
de emoções fortes. A grande maioria advém de regiões
da Terra onde a guerra vem ceifando a vida de habitantes
do mundo, além de espalhar luto, miséria e dor entre
os que ficam.
— Parecem vivas as nuvens.... Sinto como se houvesse
um movimento ordenado, talvez até programado ou mesmo
inteligente.
— As formas mentais inferiores são, por si sós, um perigo
para a vida dos habitantes do mundo. Associam-se naturalmente
a seres dementais e, como ocorre entre a droga
e o usuário, viciam os espíritos da natureza que vivem
24 3
nestas regiões. Por isso você nota certo movimento naquilo
que classifica como nuvens, Ângelo. Na verdade, são egrégoras,
ou seja, a união de um sem-número de formas-pensamento.
Nesse caso em especial, lidamos com pensamentos
e emoções gerados em meio ao sofrimento das guerras.
— Só para você ter uma ideia, meu amigo — acrescentou
Watab —, no presente momento ocorrem mais de 180
conflitos armados espalhados por diferentes recantos do
planeta. Isso, sem contar os embates existentes do lado de
cá, na dimensão astral onde agora estamos. — Dando-me
um tempo para absorver o que falavam, pois para mim tudo
era novo, Watab logo continuou. — Considere, por um instante,
a quantidade de pessoas que desencarnam abrupta
e violentamente em todas as guerras, bem como daquelas
que permanecem vivas entre os mortais, mas cheias de dor,
ódio e rancor, devido ao horror que vivem nesses eventos.
Assim, pode imaginar quanto as descargas mentais de milhões
de espíritos, dos dois lados da vida, povoam e contaminam
a atmosfera psíquica do orbe.
A fala de Watab parecia abrir em minha mente uma
nova porta para observar a realidade do mundo, de modo
totalmente diferente do meu habitual. E aquilo era somen
24 4
te uma parte da realidade, que se descortinava diante de
meu olhar de espírito.
— Você está começando a entender, meu caro — falou
Jamar, voltando-se para mim.
À medida que caminhávamos, com imensa dificuldade,
a paisagem se desdobrava ao redor. Ainda não havíamos
deparado com entidades ditas das sombras, mas somente
com energias, formas mentais dos encarnados e desencarnados,
além das miríades de dementais, que organizavam
as formas-pensamento e emoções. Mesmo alguns deles se
tornando viciados, acabavam por evitar que as egrégoras
densas pudessem regressar e afetar com intensidade brutal
a morada dos homens.
A paisagem tornava-se mais e mais escura e densa.
Os fluidos daquele ambiente se assemelhavam, a meus
olhos, a faixas de gaze sujas ou a formas quase liquefeitas,
como tiras gigantes de tecido a se arremessarem aqui
e ali, desordenadamente. Formas escuras, verdes, vermelhas;
algumas vezes, percebi a coloração marrom em meio
àquelas nuvens de emoção e pensamento conturbados, as
quais se originavam do ódio e da amargura excretados pelas
almas em sofrimento. A nosso redor, movia-se alguma
24 5
substância cuja natureza eu nem sequer imaginava, mas,
pelo que me explicaram os guardiões, eram raios mentais,
energias direcionadas, e não apenas dispersas aleatoriamente,
que se dirigiam contra os causadores das guerras.
Movia-se gelatinosa aquela substância de densidade
absurda, considerando-se que estávamos todos numa dimensão
astral, fora da matéria. Ia e vinha de um lado para
outro, e por vezes tínhamos de nos afastar, baixando-nos
para evitar que tais criações, que agora pareciam serpentes
do inferno, pudessem nos tocar o corpo espiritual. Vi-
me coberto de fuligem, uma espécie de pó, subproduto da
atmosfera daquele plano.
Foi quando avistamos os exércitos dos guardiões. Dispostos
em forma de meia-lua, marchavam em perfeita ordem,
com alguns espíritos destacados do conjunto, à frente,
carregando aquilo que me pareceram baterias elétricas
ou algo do gênero. Suas vestes rebrilhavam e, a mim, pareciam
espalhafatosas por demais, em cores vivíssimas, quase
lembrando tons fosforescentes. Talvez por isso, eram
plenamente visíveis, em meio a tantas e tenebrosas nuvens.
Um batalhão de polícia feminina parecia vir de dois lados
ao mesmo tempo; eram as guardiãs. Semíramis emitiu um
24 6
assobio nu m volume tão alto e num tom tão agudo que me
incomodou. Logo mais, Jamar se pronunciou:
— Para lidar com as formas-pensamento e emoções
cristalizadas nesta dimensão, somente as guardiãs. Repare
como elas lidam com a situação de maneira habilidosa.
Observei e vi como muitas das mulheres-soldado se revolviam
no ar, por entre os fluidos do ambiente astral. Subiam
sibilando, ao passo que os fluidos densos envolviam
cada uma, adquirindo forma de caracol, para em seguida
serem sugados em lugar ainda mais alto, desconhecido por
mim naquele momento. Imediatamente depois, uma explosão,
semelhante a uma fornalha ardente, consumia as formas
mentais inferiores em pleno ar, enquanto as guardiãs
voltavam levitando, suavemente, com seus bastões ou armas
energéticas em punho. A região ficou muito mais limpa e
agora era mais fácil se movimentar através dela. Com a limpeza
do ambiente, sobressaiu a vegetação raquítica de um
chão pedregoso em alguns lugares, ressequido em outros,
com rachaduras que lembravam o solo sertanejo do Nordeste
brasileiro, no auge da estiagem. O batalhão de guardiões
chegou e um de seus representantes parou diante de
todos, cumprimentando Jamar e colocando-se às ordens.
247
— Estamos a postos, Jamar! As guardiãs seguirão pelos
flancos, enquanto dividiremos nosso batalhão em dois. Um
seguirá à frente, e o outro, ficará na retaguarda. Não serão
incomodados nem surpreendidos na caminhada restante.
— Obrigado, guardião. Fiquem todos à vontade. Vamos
logo ao nosso campo de apoio.
Prosseguimos a jornada escoltados e, portanto, mais
tranquilos. Pelo menos eu estava mais tranquilo, pois não
notara da parte de Jamar, Semíramis e suas amigas, tampouco
de Watab, qualquer insinuação de que estivessem
assustados. Mantinham-se sempre vigilantes, atentos, mas
não tensos nem assustados. Penso que eram habituados a
situações do gênero. Continuamos pela paisagem astral, caminhando
rumo ao quartel dos guardiões. Mesmo assim,
ainda se observava no entorno algum resquício daquela
substância repugnante que descrevi. Enquanto eu examinava
ao derredor, refletindo sobre a natureza dos pensamentos
e como influenciam o mundo, Semíramis falou baixinho,
dirigindo-se somente a mim:
— Não podemos desanimar ante as lutas na Terra, meu
amigo. Não é preciso temer quando presenciamos fatos
como esses ou outros com os quais você terá contato bre
24 8
vemente. Nosso trabalho consiste em implantar a política
do Cordeiro, a base do Reino no mundo todo, em todas as
dimensões da vida.
"Esta substância escura e repulsiva, que representa a
soma dos pensamentos de angústia de nossos amigos encarnados,
bem como da massa de desencarnados em aflição,
está na própria Terra. O planeta geme como quando
se está para dar à luz um novo ser. Nesse caso, trata-se da
geração de um novo homem, uma nova humanidade. Mas
essa escuridão toda é apenas a extensão do que vai dentro
do homem. E seu lado sombrio, nada mais."
Calando-se por um breve momento, visivelmente emocionada,
Semíramis prosseguiu num tom ligeiramente diferente,
carregado de sentimentos que pareciam irradiar-se
de sua aura:
— Precisamos dar as mãos e desenvolver, quanto pudermos,
respeito, amor, amizade e compreensão das diferenças.
Somente assim, deixando para trás as barreiras do
preconceito e as de ordem denominacional, religiosa e política,
é que conseguiremos renovar o mundo ao nosso redor.
A Terra espera por nós, e nossa ajuda é incrivelmente
necessária neste mundo que todos amamos.
24 9
A fala de Semíramis tocou-me profundamente. Não
conseguia imaginar como a humanidade, como os homens
conseguiam viver e respirar em meio àqueles elementos
mentais e fluídicos, que pareciam se aglutinar
em torno de sua morada. Como se movimentar e interagir
em meio a esse caldo de formas-pensamento e emoções
tão densas e carregadas de dor e sofrimento? A cada
momento podia compreender melhor a extensão do trabalho
dos guardiões do bem, daqueles que eram comprometidos
com a humanidade. Sem eles, sem as guardiãs e
os guardiões, não é exagero dizer que a vida na atualidade
seria impossível na crosta terrena. Invisíveis aos olhos
humanos, trabalhavam diuturnamente para manter certa
cota de equilíbrio no organismo sensível do planeta, que
gemia, segundo o dizer de Semíramis, sofrendo o parto de
uma nova geração de homens mais conscientes. Mas era
um parto; talvez este fosse o momento das dores e contrações,
que antecedem o parto cósmico, propriamente. De
todo modo, até que o homem novo nascesse, aprendesse a
viver em paz com o mundo, atingisse a maturidade espiritual,
muito trabalho esperava pelos guardiões e por todos
os espíritos representantes da política superior, que inspi
250
rava os seres da Aruanda e, evidentemente, de tantas outras
cidades espirituais.
Jamar deteve seu olhar sobre mim um instante, talvez
sabendo de meus pensamentos, minhas reflexões. A esta altura,
eu já não me importava que qualquer um dos guardiões
ou dos Imortais conhecesse meus mais secretos pensamentos.
Queria fazer parte daquele time; aliás, eu fazia parte daquela
equipe, que trabalhava pela renovação do mundo.
Já nos aproximando do ambiente no qual se localizava
o reduto dos guardiões, Jamar falou:
— O que nos cabe, Ângelo, é aprender quanto pudermos,
absorver ao máximo o conhecimento advindo das experiências
da humanidade, tanto boas como más, aprendendo
a transmutar tudo à nossa volta, do mesmo modo
como a planta absorve a luz solar e do ar retira elementos
que favorecem a manutenção da vida. Após o labor nosso—
e das miríades de exércitos do Senhor que trabalham
nas regiões inferiores — provar a existência ou determinar
quais casos são temporariamente insolúveis, estes serão
conduzidos a regiões mais profundas da vida astral. Trata-
se de um lugar em alguma medida comparável à concepção
de inferno dos católicos. Ali, alguns espíritos aprende
251
rão, com outros professores da vida, a reavaliar a conduta e,
quem sabe, acordarão para as claridades de uma vida com
maior qualidade. No que tange a nós, estamos a salvo não
porque tenhamos resolvido todas as questões íntimas ou
porque talvez tenhamos enfrentado as próprias sombras
internas. Não! Isso ocorre apenas porque trabalhamos do
lado vencedor, e estamos sendo capacitados para nossa tarefa;
então, estamos a salvo na medida em que lutamos do
lado de nosso líder, o Cristo.
Pela primeira vez na vida ouvi uma referência a Cristo
sem ser com forte conotação religiosa. Ele era apresentado
ali, nas palavras de Jamar, como o líder máximo dos exércitos
dos céus. Era algo muito novo para mim esse tipo de
abordagem. Fiquei satisfeito, pois constatava, a cada passo,
que eu também fazia parte desse exército do Cordeiro.
Astrid, uma das guardiãs que acompanhava Semíramis
mais de perto, apontou ao longe, e olhei, juntamente com
todos de nossa equipe. Olhamos e vimos, parado em torno
de uma imponente muralha, numeroso grupo de seres, os
guardiões que nos esperavam em um local que mais parecia
uma pequena cidade, uma fortaleza em meio a tanta paisagem
desoladora.
25 2
Abaixo de uma cadeia de montanhas, localizava-se a
base dos sentinelas do bem. Longa escadaria levava diretamente
para a fortaleza, onde Jamar parecia ser a referência
para aquelas centenas de almas que se capacitavam continuamente
para o trabalho de Cristo. A visão das montanhas
era algo impressionante. E a escadaria parecia levar não somente
até o local onde os guardiões se reuniam, como também,
segundo pude enxergar naquele momento, subia até
o pico do monte mais imponente entre os demais. Um tipo
de luz impenetrável jazia no topo deste monte que se sobressaía.
Parecia impenetrável para mim, considerando-se
minha visão ainda não acostumada aos efeitos da dimensão
extrafísica. Por certo, tanto Jamar quanto outros mais
de sua equipe eram capazes de perscrutar profundamente
aquela luz que encobria o cume.
Assim que chegamos à cidade dos guardiões, base onde
se reuniam mais de 10 mil espíritos sob o comando de Jamar
e Semíramis, pude ver em detalhes os exércitos que
ali estavam albergados sob a bandeira do bem. Por sobre
as escadas, morro acima, centenas de seres aguardavam
seu comandante, que retornava ao campo de apoio. Não
sei quantos lugares como este existiam naquelas paragens
25 3
ou espalhados pelo plano astral, mas sei que a visão dos seres
acima da escadaria e dos outros, em frente às muralhas,
causou-me forte impressão. E eu chorei. Ali mesmo, ante
a imagem fantástica de tanta gente boa trabalhando pelo
bem da humanidade, chorei de emoção. A cena era arrebatadora,
em grau ainda mais elevado quando adentrávamos
as muralhas da cidade.
Perto de nós, víamos os espíritos, uma legião deles,
vestidos de uma roupa tecida de fluidos radiantes. Outra
equipe usava uniformes de cores e matizes desconhecidos
por mim, e não conhecia palavras capazes de descrever
as nuances inusitadas. Os guardiões a postos, no topo
das escadarias, as quais levavam montanha acima, sugeriam
tamanha imponência em seu porte, que era comparável
apenas à das vestes que ostentavam. Parecia haver
diversas ordens de guardiões, pois envergavam trajes distintos,
certamente conforme o agrupamento a que pertenciam.
Alguns eram atarracados, outro grupo mais parecia
de pigmeus; outros, ainda, lembravam na aparência certos
povos asiáticos. Estavam todos ali aguardando-nos, no
espaço dedicado ao quartel dos guardiões da noite, como
mais tarde vim a saber. Tratava-se de um local de estudos,
25 4
de aprimoramento; a escola onde era formada a maior parte
dos espíritos que trabalhavam nessa falange de soldados
do bem.
Fui acolhido de maneira generosa. Conduziram-me a
um aposento espaçoso, onde pude me limpar da poeira comum
à dimensão onde transitávamos. Logo depois fui me
alimentar, junto com os guardiões. Confesso que esperava
uma refeição semelhante à que encontrei na Aruanda, mas
aqui as coisas eram um tanto diferentes. Estávamos numa
zona de transição, cujas vibrações eram muito densas. Encontramo-
nos num amplo saguão daquela construção ímpar.
Nem tive tempo de observar direito a parte externa,
pois me sentia cansado. Ali o clima era de descontração e
riso, mas muitas perguntas:
— Então você é o escritor que veio da Terra recentemente?
Trabalhará conosco? — perguntou um guardião,
sentando-se a meu lado.
— Sim, sou eu mesmo, Ângelo Inácio. E você, quem é?
— Sou um estudante da escola dos guardiões. Não tenho
patente ainda, ou seja, não terminei minha especialização.
Meu nome é Ferreira. Mas você irá mesmo se integrar
à nossa escola?
25 5
— Não sei exatamente o que me aguarda. Por ora, fui
apenas convidado a conhecer de perto este posto avançado
dos guardiões. De resto, espero que Jamar me oriente a respeito
de tudo.
— Você é amigo do chefe? Que bom! — falou quase aos
berros outro sentinela, que foi logo se aproximando; igualmente
descontraído, deixou-me mais à vontade ainda.
Logo, logo se formou em torno de mim um grupo de
espíritos, cujo comportamento era parecido com o dos soldados
da Terra. Contudo, respeitoso, sem nenhum excesso.
Riram, brincaram e me deixaram muito à vontade. Entre
uma conversa e outra, pude notar algo peculiar. Eram bastante
instruídos, estudavam com afinco e conheciam a vida
astral em profundidade. Certamente, com qualquer um daqueles
que se encontravam no salão de refeições eu aprenderia
muito.
Em meio ao clima de alegria, entrou uma guardiã. Uma
voz ressoou no ambiente:
— Uma guardiã! Todos a postos!
Todos se levantaram quase ao mesmo tempo, fazendo
um gesto com o braço direito, colocando a mão sobre o peito.
Bem, o grupo era composto por uma espécie de militar
25 6
do plano astral; de fato, até seus gestos pareciam de militar,
embora sem o rigor costumeiro visto na Crosta por parte
de cadetes frente a seus comandantes.
Tão logo se levantaram, um dos guardiões cedeu o lugar
à mulher, que entrou elegante, vestindo uniforme azul-
cobalto e um tipo de capacete. Tirou o capacete e colocou-o
sobre uma das mesas, dirigindo-se aos demais. Como todos
fizeram silencio, ouviram-na facilmente.
— Sintam-se à vontade, companheiros. Sou Astrid, da
força-tarefa das guardiãs do hemisfério norte. — Todos se
sentaram, continuando a conversar alegremente, após a
apresentação de Astrid. Já a vira antes, no veículo junto
com Semíramis; parecia que ocupava uma posição de destaque
no agrupamento. Assim que me viu, deixou seu lugar
e se dirigiu aonde eu estava.
— Então já se enturmou com nosso pessoal?
— Não tem como não se sentir à vontade por aqui. A
turma parece bem animada.
Havia um grupo de mais ou menos 15 espíritos a meu
redor. Não dava para ignorar a energia feminina emanada
de Astrid; por isso, alguns olhares, bem humanos, por sinal,
voltaram-se para ela de maneira especial.
257
— Rapazes!... — falou Astrid, alto e bom som, sorrindo
em seguida.
— Desculpe, senhora... — respondeu um dos espíritos,
quase gaguejando de vergonha.
Astrid riu gostosamente, entendendo a situação e deixando
a rapaziada descontraída. Em seguida falou comigo,
deixando que a turma ouvisse claramente o que dizia:
— Bem, são humanos, Ângelo, como todos aqui. E homens,
também — olhou rindo para um deles. — Bem, quase
todos, não é?
Não entendi naquele momento a brincadeira; somente
mais tarde consegui interpretar a insinuação de Astrid,
pois entre os guardiões havia espíritos que viveram, quando
encarnados, como homossexuais. E ali havia muitos
deles. Porém, o comentário da guardiã denotava razoável
intimidade com esses espíritos, não havendo nenhuma conotação
depreciativa.
Os rapazes a nosso lado se abraçavam, riam e conversavam.
Um deles, que se apresentou com o nome de Kelsey,
de procedência nitidamente inglesa, cedeu lugar para
a guardiã. Enquanto Astrid conversava comigo, abraçados
como velhos amigos, começaram a cantarolar uma canção.
258
Brincavam, implicavam uns com os outros, faziam gracejos,
mas tudo como se fossem amigos de longa data, como
realmente eram — vim a saber em seguida. A guardiã, sentindo-
se à vontade a meu lado, disse num tom mais baixo,
deixando a música dos guardiões ao fundo, mesmo que eles
estivessem tão próximos de nós:
— Estão aqui há um bom tempo, meu amigo. Neste
posto de especialização, todos estudam intensamente.
Nestes momentos de folga, quando se reúnem para refeição
e descanso, se mostram como crianças. São necessários
momentos assim, de descanso e descontração, senão
ninguém aguenta. O programa de estudo dos guardiões é
intenso. Dedicam-se pelo menos 10 anos seguidos a estudos
elementares, antes de serem admitidos definitivamente
como guardiões. Por isso, Jamar permite estes momentos.
Os grupos se revezam: enquanto estes estão aqui, os outros
treinam, estudam ou atuam em campo, montando guarda
em algum recanto obscuro do astral.
A música dos rapazes parecia estar cada vez mais interessante,
pois não somente o grupo ao nosso redor estava
cantando, como também um número cada vez maior parecia
se deixar envolver com a canção. Era algo que inspirava
25 9
saudades, que falava da vida na Terra e da falta que sentiam
de seus lares, porém num tom nada triste, embora inspirasse
um sentimento de nostalgia.
— Vê que sentem saudade das famílias terrenas e dos
antigos lares?
— Puxa vida, Astrid! Nunca imaginei que os espíritos
pudessem se comportar de maneira tão humana assim...
Astrid riu, olhando para a turma, que, abraçada, balançava-
se, mexendo uns com os outros, divertindo-se na
companhia alheia, numa franca expressão de carinho.
— Formam uma família espiritual. Entre eles, encontram
o sossego das emoções. Muitos deles, Ângelo, deixaram
o corpo físico durante batalhas no seu país de origem
ou longe dos familiares queridos, pois haviam sido enviados
para guerras ou missões em nome da pátria. Despertaram
do lado de cá da vida cheios de saudades do lar. Foram
aconchegados por outros guardiões e lhes foi oferecida a
oportunidade de trabalhar, estudar e lutar por uma causa
maior, por um mundo sem fronteiras, por um ideal universal.
Assim aportam aqui dezenas de espíritos, e Jamar os
acolhe com sua equipe. Semíramis os adota como pupilos,
enquanto aprendem sobre questões relevantes para o tra
26 0
balho que desempenharão em algum momento da jornada.
— Mas você falou antes que estudam durante 10 anos
consecutivos até serem admitidos como guardiões? Não é
muito tempo? Isso deve desencorajar muita gente.
— Aqui não, Ângelo. Esse tempo é o mínimo necessário
para entrarem em contato com o conhecimento básico, essencial,
e também testarem em campo o que aprenderam.
Afinal de contas, especializam-se em assuntos muito delicados
e complexos; precisam de tempo para aprofundar
seus estudos.
Concedendo-me um instante para pensar, enquanto
ouvíamos novas canções dos cadetes a nosso redor, Astrid
continuou:
— Afinal, que são 10 anos diante da eternidade? Muitos
passam até 100 anos do lado de cá da vida sem reencarnar e,
conforme a especialização de alguns, até bem mais tempo.
— Como assim? Demoram tanto a voltar? Não existe
um limite máximo para esses espíritos ficarem aqui?
— Nada é absoluto, amigo. Com o tempo, verá que tudo
depende de você mesmo, da dedicação, das responsabilidades
assumidas e assim por diante. Por exemplo: examinemos
o caso daqueles espíritos que manipulam ectoplas
261
ma diretamente, seja junto aos encarnados, seja associados
a inteligências sombrias, as quais usam esse combustível
quase material para levar a cabo seus projetos. Uma vez
que lidam cotidianamente com efeitos mais materiais ou físicos,
tais espíritos demoram mais a reencarnar. Isso se dá
porque o contato estreito com fluidos de natureza material
ou semimaterial, como o ectoplasma, lhes proporciona relativa
sensação de materialidade, na comparação com outros
desencarnados. Lidar com ectoplasma, do modo como
me refiro, é como se fosse uma reencarnação em menor espaço
de tempo, uma minirreencarnação.
— Você fala em ectoplasma assim, como se eu fosse um
entendido do assunto!
— Ah! Me desculpe, Ângelo. Esqueci que você ainda
não começou os estudos e não teve, na Terra, uma formação
que lhe transmitisse conhecimento na área.
Assim que Astrid falou essas palavras, um guardião
de olhos claros, alto e corpulento, intrometeu-se em nossa
conversa, de maneira até respeitosa, mas assim mesmo intrometendo-
se, e falou baixinho, em meu ouvido:
— Prepare-se, camarada. Você ficará muito tempo conosco
estudando antes de começar a trabalhar. Dez anos é
262
um tempo considerável, mesmo aqui em nossa dimensão —
olhando de soslaio para a guardiã, afastou-se lentamente,
talvez esperando uma repreensão que não veio.
Naquele momento, outras guardiãs penetraram o ambiente,
e a música parou de vez. Todos os rapazes olharam
para as mulheres, sempre respeitosos, logo esquecendo Astrid
e eu. Elas entraram em formação militar e em seguida
se dispersaram e se sentaram à mesa junto deles. Nada daqueles
comentários bobos ou piadinhas sem graça que se
ouvem na Crosta, entre os homens, quando um grupo de
mulheres adentra um ambiente predominantemente masculino.
Riam, conversavam como antes, mas conservavam
certa discrição na presença das guardiãs.
Em seguida, veio a refeição. Como já disse, foi decepcionante
para mim, que esperava algo igual ou bem próximo
do que usufruíamos na cidade dos espíritos, a Amanda.
Serviram-se sucos e outras bebidas semelhantes àquelas
conhecidas na Terra. Porém, ao tomá-las, notei que tinham
conteúdo altamente revitalizante, pois, logo após o primeiro
copo de suco, já me sentia refeito e plenamente satisfeito.
Foi distribuída uma espécie de comida com aparência
muito próxima a pão, além de algumas guarnições — pou
26 3
cas, aliás. Com o suco já me senti deveras saciado, mas assim
mesmo experimentei o novo alimento, que em nada
lembrava a fartura da Aruanda. Felizmente, nada de sopinhas
ou caldos. E me senti quase empanturrado ao ingerir
a refeição oferecida ali.
Um dos guardiões aproximou-se e falou baixo, mas
quase alegre demais:
— Acostume-se, amigo. Aqui as coisas são muito mais
racionadas do que lá em cima — apontou para o alto. E eu
compreendi que falava da cidade espiritual. — Mas temos
algo de maior qualidade nutritiva, pois nestas regiões necessitamos
de um alimento muito mais calórico, vamos assim
dizer. Lidamos com energias mais densas. No campo
de batalha, então, as coisas mudam. Levamos conosco outro
tipo, mais concentrado, de alimento fortificante. Logo
você saberá, se ficar conosco.
Após pequena pausa no comentário inesperado, o
guardião de nome Yurik, decerto advindo da antiga União
Soviética, arrematou, quase num convite direto:
— E esperamos que fique entre nós! Temos muita
curiosidade e vontade de aprender por aqui e, também,
queremos ter notícias da velha Terra.
264
Neste ponto da conversa, Watab entrou no ambiente,
e logo todos se colocaram de pé. O guardião fez um gesto
com a mão, e todos se sentaram novamente, descontraindo-
se e continuando a conversa.
— Está na hora, Ângelo! Jamar pede que se apresente
para conhecer de perto nosso esquema de segurança
— aproximou-se de mim e de Astrid, colocando a mão esquerda
sobre meu ombro. — Aqui parece que você já se enturmou.
Ao que tudo indica, os rapazes ficaram contentes
com sua chegada. Só se ouve falar de você em vários departamentos.
Isso ocorre quando a pessoa que chega traz certa
bagagem de conhecimento, pois para eles significa a possibilidade
de se aprofundarem nos estudos.
Olhando à volta, como a conferir alguma coisa, Watab
convidou-nos:
— Vamos, então, amigos? — dirigindo-se a Astrid, convidou-
a também. — Se desejar ir, será boa companhia para
nós. Venha, Semíramis também está à espera. Vamos deixar
os rapazes e as meninas à vontade. Afinal, eles têm só mais
alguns minutos, antes de se apresentarem ao trabalho.
Saímos, rumo ao pátio onde Jamar nos aguardava. Somente
então pude notar a grandeza das instalações, a im
26 5
ponência que transmitiam. Os guardiões, um numeroso
contingente deles, dividiam-se em tipos humanos e especialidades,
até onde puder deduzir. Dispunham-se, conforme
a procedência cultural, em pelotões de mais ou menos
500 soldados. Agruparam-se no hall do colégio dos guardiões
ou do prédio central.
O hall apresentava formato circular com um ligeiro
alongamento num dos lados, quase se confundindo com
uma forma oval. Era realmente enorme, pois, mesmo contando-
se as pessoas aos milhares, tanto homens quanto
mulheres, havia espaço de sobra. Os guardiões marchavam,
fazendo revoluções diante de nós. Era algo belíssimo de se
ver, pois o faziam de tal maneira que não havia nenhuma
quebra ou interrupção no ritmo. A polícia feminina, se assim
posso chamar as guardiãs, esteve irrepreensível durante
a apresentação. Os rapazes também se esmeraram, como
se estivessem imbuídos de um ideal mais profundo, algo
que hoje em dia muito raramente se vê na Terra, entre os
encarnados.
Existia uma tribuna à frente. Estávamos ali Jamar, Watab,
Semíramis, Astrid e eu. Havia outros representantes
dos guardiões, também, a quem mais tarde eu seria apre
266
sentado; eram líderes de falanges de espíritos. De repente,
algum som foi ouvido, como o soar de uma trombeta, e os
diversos grupos de guardiões, cada qual uniformizado de
maneira diferente, posicionaram-se em perfeita ordem à
frente da tribuna onde nos encontrávamos.
— Nem sempre é assim, Ângelo. Convoquei os guardiões
especialmente para apresentar a você nossos contingentes.
Isso será de grande valia para seu aprendizado e
para o desempenho das tarefas que lhe competirão. Afinal
— falou Jamar sério, como um general frente a seus subordinados
—, um escritor do Além precisa de muitos elementos
para poder se reportar aos futuros leitores.
Sinceramente, não entendi direito ou completamente o
alcance das palavras de Jamar. Mas fiquei tão impressionado
com o que via, que nem me arrisquei a perguntar nada,
por medo de perder trechos das apresentações.
Um espírito foi chamado à tribuna, uma espécie de artista
ou cantor. Ele começou um hino, num ritmo tão envolvente
que me fez chorar, pela segunda vez; vi também
algumas lágrimas discretas nos olhos dos guardiões a meu
redor. Todos os demais acompanharam o hino, e somente
então uma bandeira foi hasteada no pátio, enquanto todos
26 7
a fitavam, com certa reverência. Era uma flâmula de fundo
branco, que trazia a imagem do planeta Terra em três dimensões,
ao que me pareceu, de tão real se mostrava. Em
torno do planeta, várias estrelas de um amarelo suave, quase
dourado.
— O símbolo da Terra unificada — falou Semíramis
perto de mim —, da Terra pacificada.
Os guardiões pareciam hipnotizados, tal era o ardor, o
fervor com que cantavam o hino. Não conseguiria reproduzir
a letra aqui nestas páginas, pois ainda agora, quando
me lembro do evento, emociono-me profundamente. Era
algo verdadeiramente belo. Este grupo de seres vivendo
fora da matéria, unidos em favor do bem da humanidade,
e a bandeira hasteada, que não era de nenhuma pátria, de
nenhuma nação em particular, mas do planeta todo, da humanidade,
enfim — isso era emocionante de se ver. Após o
hino, cada equipe passou a se apresentar perante seu líder
ou chefe de falange, como me explicaria Semíramis, mais
tarde. Uma falange, neste posto de guardiões, era composta
de 500 espíritos. Uma legião seria algo em torno de 12 mil
entidades. Portanto, ali havia uma legião de guardiões com
diversas falanges a serviço do Cordeiro. Enquanto se apre
268
sentavam aos seus comandantes, Watab falava baixo, para
que somente eu escutasse:
— Aqui valorizamos muito a música e a utilizamos
muitas vezes em nossas investidas nas regiões das trevas e
do abismo. Além de tocar os corações mais empedernidos,
a música, principalmente em forma de hinos e marchas,
movimenta recursos fluídicos tais que nos facilitam o trabalho,
que não raro é penoso, em regiões ainda bem mais
densas do que esta onde estamos.
Durante o silêncio que logo se fez nas falanges de guardiões,
notei que os grupos se moviam lentamente, em perfeita
ordem e sincronia. Alguns ficaram de pé, mais ao fundo.
Outros, no meio, sentaram-se em pequenos bancos, que
eu nem percebera como foram postos ali. Pelo visto, ainda
teria inúmeras surpresas nesta dimensão da vida; não poderia
me incomodar com isso. A frente, outro contingente
assentou-se em lugar mais baixo, de modo que cada grupo
estava num patamar diferente, não atrapalhando o de
trás, que poderia ver tão bem quanto o da frente. Um e outro
guardião e guardiã eram chamados à frente, a fim de entoar
uma canção de sua respectiva equipe. À medida que
cantavam, uma a uma as falanges exibiram uma coreografia
26 9
própria, à frente dos demais, que ilustrava características
do trabalho sob sua alçada. Assim, fiquei sabendo que havia
arte ali, também. Mesmo nas regiões mais inferiores, a arte
era ensinada, estimulada e valorizada, de maneira a atuar
como instrumento para enfrentar os desafios apresentados
pelas entidades sombrias.
Enquanto se davam as apresentações artísticas das diversas
equipes de guardiões, Jamar falou comigo num volume
em que todos da tribuna ouviam, porém sem incomodar
ninguém:
— Todos os guardiões, no início de nossas atividades
no planeta, fomos preparados com muita pressa, a fim de
entrarmos logo na peleja do bem, contra a propagação do
mal. Aceleradamente, as primeiras equipes de guardiões
foram convocadas e, ao longo dos séculos, gradativamente,
formou-se a estrutura maior, atuante hoje nas diversas
dimensões da vida terrena. Nos dias atuais, nosso colegiado
dispõe de recursos quase ilimitados, uma vez que estamos
trabalhando com maior sintonia junto aos governadores
espirituais do orbe. Emanando do próprio Cristo e de
Miguel, o representante maior da justiça divina no mundo,
as virtudes e os poderes são transferidos e infundidos nos
270
diversos departamentos da segurança planetária. Este aqui
é apenas um dos diversos agrupamentos responsáveis pela
segurança energética da Terra. À proporção que os espíritos
se integram, estudam e se dedicam ao trabalho, sua capacidade
magnética também aumenta, de maneira que representam
considerável obstáculo aos representantes das
sombras. Nesse aspecto, somos de tal forma estimulados
por nossos superiores, por Miguel em particular, que nossa
capacidade de visão comumente é ampliada, quando estamos
a serviço nas zonas mais inferiores, na subcrosta.
"Devido à necessidade de intervenção nessas regiões e
de fazer contato com as inteligências mais sombrias e criminosas,
nossa capacidade de ver e ouvir é muitas vezes
maior do que a dos orientadores evolutivos das pessoas, ou
seja, dos mentores habituais. Há regiões no abismo mais
profundo aonde nem mesmo certos mentores têm autorização
para ir, assim como muitos nem detêm treinamento
para lidar com os agentes do mal ou as energias poderosas
presentes em seus redutos.
"Sendo assim, talvez você consiga entender — falava
Jamar, solene — a necessidade de nos dedicarmos por tanto
tempo aos estudos em regiões como esta. Temos de desen
271
volver nossa capacidade de atuar nas esferas mais densas,
abaixo de nós, tanto quanto de elevarmos nossa frequência
a regiões mais altas da espiritualidade, a fim de nos abastecermos
com as inspirações que nos orientam as tarefas."
Ao ouvir a exposição de Jamar sobre a natureza das
atividades realizadas pela equipe, enquanto observava a
apresentação dos guardiões, impressionei-me com a grandeza
do trabalho desses espíritos e da estrutura a seu serviço,
ou seja, o poder que representavam. Após ligeira pausa
para que eu assimilasse o que explicava, o guardião da noite
continuou:
— Trabalhamos profundamente ligados às estruturas
de poder superiores, aos Imortais. Deles vêm as deliberações,
as inspirações, e vez ou outra recebemos a visita de
um dos Imortais, que nos brindam com sua presença nas
regiões de transição. Servimos em sintonia com o comando
supremo dos guardiões, que mais tarde lhe apresentarei.
Aqueles que se ocupam de tarefas em regiões mais inferiores
ou densas, em lugares comumente ignorados ou mesmo
vedados a espíritos comuns, recebem intuição e orientação
dos espíritos mais avançados, que assumem encargos
em dimensões mais etéreas, menos materiais. Jamais estão
272
sozinhos os que atuam na frente de combate ou defesa. Há
uma estrutura espiritual invejável, coordenada pelo próprio
Cordeiro de Deus e por seu emissário maior, Miguel, o
príncipe dos exércitos celestiais.1 4
— Então, são todos guerreiros a serviço de Cristo? —
perguntei.
— Isso mesmo, guerreiros do bem. E assim seremos até
que a Terra esteja completamente renovada pelas diretrizes
apresentadas pela política divina.
Jamar silenciou-se por um tempo, durante o qual eu
assistia, cada vez mais interessado, às apresentações. Neste
momento, as guardiãs entraram em cena e, elevando-se ao
alto, apresentavam interessante coreografia no espaço logo
acima de nós. Semíramis parecia orgulhosa de sua equipe.
E era realmente para orgulhar-se, pois nenhuma outra
equipe se igualou à das guardiãs, especialistas singulares da
equipe geral. Em seguida, Jamar me apresentou algumas
das falanges e sua especialidade. Muitas delas estavam representadas
na Amanda, pois na universidade local davam
1 4
Cf. Dn 12:1; Ap 12:7. Cf. PINHEIRO. Pelo espírito Ângelo Inácio. A marca da besta.
Contagem: Casa dos Espíritos, 2010. p. 605-614.
273
instruções e formavam espíritos, a fim de que, mais tarde,
integrassem a grande hoste do bem formada pelos servidores
de Cristo nas regiões inferiores.
— Primeiro é necessário que você conheça a inspiração
ou concepção da estrutura montada no planeta — retomou
ele — para, depois, entender nossa própria especialização
como guardiões.
"Ninguém ignora que a maioria dos habitantes da Terra
é composta por pessoas cujo passado religioso tem grande
peso em sua formação espiritual e cultural, a tal ponto
que a maior parte é de religiosos ou ex-religiosos. Designamos
esses espíritos como agentes da misericórdia divina
quando se colocam a serviço da humanidade ou de Cristo,
ainda que conservem cada qual sua cultura espiritual ou
sua maneira de ver e pensar segundo antigas convicções.
De maneira geral, são seres que se destacam por apresentarem
característica íntima do tipo emotivo. Desenvolveram
em si a capacidade de auxiliar, embora nem sempre auxiliar
signifique amar. Descem às regiões umbralinas e exercitam
aquilo que a religião ensinou, no que concerne ao
amor ao próximo. Fundados nessa tradição, criaram cidades,
colônias e estruturas de governo do lado de cá da vida,
27 4
no intuito de acolher, conduzir ou orientar, exortar ou doutrinar
espíritos necessitados, convalescentes ou em sofrimento,
que buscam trazer das zonas de purgação. São muitas
as equipes de socorro que se reúnem sob a alcunha de
agentes da misericórdia. Mesmo entre os encarnados, são
maioria absoluta. E notável como progride na Terra, atualmente,
o número de iniciativas de ordem assistencial, de
promoção humana e de socorro aos necessitados, nos mais
diversos recantos do globo. E assim precisa ser, pois ainda
há muito sofrimento nos dois lados da vida. Não obstante,
geralmente tais servidores se encontram ligados à forma de
pensar e de ver a vida segundo o movimento religioso que
fez parte de sua história pessoal."
Jamar falava de tal maneira que eu percebia imagens
mentais a ilustrar o que me dizia. Será que ele estava realmente
projetando em minha mente tudo aquilo? Era telepatia
esse fenômeno intrigante e especial? Sem me responder
as indagações, o guardião da noite prosseguiu:
— Contudo, Ângelo, os guardiões fazem parte de outro
time, embora sempre sob a orientação de Cristo. Somos
o que se pode caracterizar como agentes da justiça divina.
Encarnados tanto quanto desencarnados, não nos detemos
27 5
para ouvir o pranto dos oprimidos nem tampouco socorrer
os aflitos. Nossa atuação visa recompor a ordem e a disciplina,
evitando que o caos se estabeleça no mundo, nas várias
dimensões. Nosso trabalho não se antagoniza com as
tarefas dos agentes da misericórdia; pelo contrário, lhe é
complementar. Enquanto um grupo se especializa em determinado
aspecto, como auxílio e amparo, ajudas humanitárias
e erguimento dos caídos, a outro grupo compete
evitar o caos. Também somos conhecidos, em algumas dimensões,
como agentes d e vibrações. Seja lá qual for o nome
pelo qual nos designam, nossa tarefa principal é fazer oposição
ao mal e estabelecer as bases da política divina, de
maneira que possamos auxiliar a Cristo na administração
e na renovação planetárias. Essa é a forma mais resumida
possível que encontrei para lhe apresentar, meu amigo, ambas
as faces do governo oculto do mundo.
"Por um lado, os agentes da misericórdia se caracterizam
pela natural propensão a ajudar sempre, quase sem
olhar a quem auxiliam, e por imprimir nas atividades certa
conotação moral e religiosa. Por outro lado, a maioria desses
espíritos entendem a própria sombra como algo indesejável.
Costumeiramente, referem-se a seu passado cul
276
poso e à necessidade de se reformarem; em seu discursa
salientam quão longe estão de atingir os objetivos supremos
do amor e das virtudes. De modo geral, com raríssimas
exceções, são espíritos que trazem um sentimento de
culpa profundamente arraigado, justamente devido à forte
influência da cultura religiosa na formação espiritual. Por
isso, não raro, nota-se em sua fala a ênfase na necessidade
de trabalhar muito e sempre, de não descansar jamais ou
quase nunca, de estudar o Evangelho o tempo todo, restringindo
a ele as conversas e explanações. Não gostam de tocar
em assuntos considerados polêmicos ou controversos e.
com frequência, são bastante políticos, pois desejam agradar
a todos, em nome da paz, do amor e da união fraternal.
"Evidentemente, isso não é um mal em si, mas difere
largamente da característica espiritual dos agentes da justiça
divina, os quais adoram entrar numa briga, desde que
ela seja útil e resolva a situação. Não são nada políticos,
quando muito se esforçam para ser diplomáticos, visando
a determinada estratégia. Definem-se abertamente a favor
da ética, mas de modo algum são moralistas a ponto de
classificar as coisas mais sérias da vida segundo um sistema
simplista de bem e mal, certo e errado, virtude e pecado.
27 7
Os agentes da justiça não temem enfrentar o mal, mesmo
que este esteja disfarçado de bem, e entram em discussão
acalorada para solucionar os distúrbios de emoção, de
comportamento ou de intrusão do mal. Embora se deixem
sensibilizar com a dor do outro, sua tarefa consiste muito
mais em enfrentar os opositores do bem no campo de batalha
do que em enxugar lágrimas. Tipicamente, não são de
falar manso, baixinho ou de forma discreta; incomodam e
polemizam quando há alguma discussão ou manifestação
de ideias. Tendem a ser mais seguros de si, pois precisam
defender o que é ético, sobre o qual têm plena convicção.
Nós, os guardiões, como já disse, somos agentes da justiça
divina, como pode notar.
"Dito isso, meu amigo, vamos à apresentação de alguns
poucos grupos entre os guardiões. Não haveria tempo de
lhe apresentar todos; eis os que mais se destacam em nossa
corporação."
Fiquei boquiaberto diante da explanação de Jamar.
Não imaginava tão grande abrangência do método de trabalho
do lado de cá da vida. Antes que ele continuasse ou
começasse a me apresentar as diversas faces dos guardiões,
ousei interrompê-lo e perguntar:
27 8
— E como classificar os espíritos que vivem na Amanda?
São agentes da justiça ou da misericórdia?
Jamar olhou para mim, como que intrigado por eu
não ter percebido isso ainda. Mesmo assim, respondeu-me
sem hesitar:
— Claro que a Amand a é uma região espiritual onde
se reúnem agentes da justiça divina. Se quiser conhecer os
amigos nossos que trabalham como agentes da misericórdia,
deverá se dirigir a Nosso Lar, Vitória Régia e outras cidades
do Além.
Sem me dar tempo para réplica, introduziu os guardiões.
Apontando cada guarnição de soldados da justiça divina,
explicou:
— Aqueles vestidos de verde-oliva são os guardiões da
noite, espíritos especializados no trato com magos negros,
os mais cruéis obsessores conhecidos no submundo — Jamar
levantou a mão, e logo uma guarnição de mais ou menos
100 soldados do astral adiantou-se em direção à tribuna,
tornando possível observá-los detidamente.
O traje que usavam impunha respeito. A calça masculina
lembrava aquela usada pelo exército alemão na Segunda
Guerra, uma espécie de bombacha. No entanto, a jaqueta
27 9
diferia bastante desse estilo; tinha traçado mais moderno,
design arrojado para a tradição militar. Mostrava gola
de padre, algumas poucas insígnias no ombro, cuja função
parecia ser distinguir a especialidade ou determinar a classe
de guardiões a que esses espíritos pertenciam. As mulheres
ou espíritos femininos que compunham esse pelotão
de especialistas desfilavam com um figurino não menos
impressionante. Todas traziam cabelos curtos, uma espécie
de quepe adornando a cabeça, calças compridas e também
usavam insígnias, porém do ombro direito. Todos, homens
e mulheres, portavam algum tipo de arma, que somente
mais tarde vim a saber tratar-se de equipamento de segurança
que utilizava radiação. Oportunamente, Jamar explicou-
me que lhe davam o nome de arma d e pulsos, cuja
finalidade é enfrentar os magos e cujo efeito é fazer desmoronar
seus campos de invisibilidade.
— Os guardiões da noite são hábeis na utilização de
magnetismo e eletromagnetismo dispersos na atmosfera
astral. Conseguem manipular com extrema eficiência esses
fluidos, independentemente de empregarem ou não equipamento
para tal finalidade. Podem usar as mãos, como se
fossem antenas, ou instrumentos guiados pelo pensamen
28 0
to — habilmente treinado durante pelo menos 40 anos, antes
de enfrentarem o campo de batalha; assim, aglutinam
raios de grande poder. Por meio dessa técnica, são capazes
de formar campos de força e de contenção em torno de espíritos
e ambientes. São eles, também, os responsáveis diretos
pelo colégio dos guardiões, na Amanda.
Fiquei impressionado já com a descrição resumida que
Jamar fazia da habilidade daqueles espíritos. Não imaginava
que fosse tão minuciosa a capacitação de seres do plano extrafísico.
Se era assim, é porque existia demanda, ou seja, decerto
havia um sistema de poder nas regiões inferiores que
precisava ser enfrentado da maneira mais eficaz possível.
Antes que meus pensamentos pudessem voar nas reflexões
produzidas pelo que eu presenciava, o guardião
continuou a apresentação. Levantou a mão e deu novo sinal.
Aproximaram-se agora os espíritos de formação cultural
nitidamente indiana. Vestiam calças brancas e jaquetas
muitíssimo diferentes das anteriores. Traziam inscrita no
peito, assim como numa flâmula branca que carregavam,
uma cruz azul, símbolo da ligação com determinada hierarquia
espiritual. Turbantes azuis encimavam a cabeça; eram
notadamente sérios, e transmitiam certa segurança e fascí
28 1
nio com sua presença. Desfilaram diante da tribuna como
os outros, apresentando-se de maneira irrepreensível, com
movimentos quase robóticos de tão alinhados. Obedeciam
rigorosamente ao ritmo da marcha; até mesmo a expressão
facial parecia sincronizada.
— Esta é a Legião de Maria — falou Jamar, empertigando-
se e respondendo ao sinal apresentado por aqueles espíritos.
Era algo como um cumprimento militar, embora muito
diferente do que se vê na Crosta. — Eles são coordenados
por Zura, um dos nossos mais competentes guardiões, que
agora está em tarefa junto aos encarnados. A maior especialidade
desses espíritos é lidar com quem cometeu suicídio
ou habita vales de dor e sofrimento. A eles coube reestruturar
os vales existentes no plano astral. Organizaram a
reurbanização do vale dos suicidas, em particular. Mediante
a colaboração de espíritos de outras áreas, transformaram
a região em um posto de socorro avançado, com hospitais,
escolas e toda uma estrutura de apoio àqueles seres,
cuja carga tóxica exige depuração, além da necessária reeducação
espiritual, mental e emocional.
"Os legionários de Maria sabem como ninguém resgatar
almas mantidas em cativeiro pelos magos negros, em
282
prisões localizadas nas zonas abissais ou na região astral
correspondente às águas oceânicas mais profundas. Agem
sempre em grupos de mais de 50 espíritos e trabalham sob
a inspiração de Maria de Nazaré. Também detêm grande
habilidade na defesa direta, à frente do campo de batalha.
Através de suas lanças, projetam poderosa radiação, emitida
por elementos radioativos retirados do interior do planeta
e ainda desconhecidos dos encarnados. Tais radiações
são capazes de desestruturar, em instantes, as construções
mentais dos magos e cientistas da oposição, além de causar
o colapso dos campos de força que estes mantêm através de
equipamentos eletrônicos e tecnologia científica."
Logo depois, outro grupo de espíritos se apresentou,
vestindo roupas semelhantes às que usavam alguns povos
asiáticos no início do primeiro milênio. Pareciam feitas de
peles de animais, embora o traço rústico não se fizesse presente
na maneira de desfilarem. Era um pelotão composto
por mais de 200 espíritos, e o ritmo como marchavam à nossa
frente lembrava muito o estilo e a disciplina observados
nas forças armadas chinesas e japonesas, nos dias atuais.
— Estes são os mongóis — explicou Jamar. — Seu comandante
é conhecido pelo nome de Gengis Khan, em ho
283
menagem ao líder mongol. Como instrumentos de combate
nas regiões inferiores, usam formas extrafísicas de
animais, tais como cavalos, os quais cavalgam numa velocidade
alucinante, deslizando sobre os fluidos mais pesados
com notável habilidade. Costumam surpreender legiões de
espíritos maus com seu armamento favorito, o arco e flecha,
tendo seu arco o formato típico dos asiáticos, bastante
curvo Na verdade, trata-se de um equipamento de alta
tecnologia forjado com esse aspecto. Quando atiradas durante
o cavalgar nas regiões mais densas, as flechas abrem
caminho, rasgando e queimando os fluidos ambientes. Ao
atingir o alvo, como, por exemplo, as construções extrafísicas
de entidades sombrias, provocam sensível estrago. Levam
a substância astralina da qual tais construções é feita a
explodir, esfacelando muralhas, casas, castelos ou qualquer
edificação das entidades do mal.
"A falange dos mongóis é muito temida nas regiões ínferas,
nos lugares onde se reúnem antigos políticos e seus
exércitos de seres sombrios. Tem agilidade e capacidade
defensiva e ofensiva comparáveis somente às dos nossos
amigos índios peles-vermelhas, que você conheceu na
Aruanda, Ângelo. Os mongóis são ciosos de seu dever e es
28 4
pecialistas nas culturas da Ásia, conhecendo mais que outros
grupos de guardiões não apenas a cultura, mas o território
astral daquele continente. Também são nossos
aliados nos planos abissais que correspondem a determinada
região do Oceano Pacífico, bem como nas profundezas
do Mar Cáspio, locais onde se reúne numeroso grupo de
magos que se graduaram nos colégios iniciáticos da Ásia.
Geralmente, entram em ação apenas quando a harmonia e
a disciplina estão ameaçadas, embora trabalhem em estreita
associação com os guardiões da noite em suas investidas.
Como disse, constituem um dos grupos mais temidos e respeitados,
notadamente naquelas regiões do submundo. O
símbolo, que pode ver desenhado na bandeira dessa falange,
consiste num lobo que parece vivo, apesar de ser apenas
um desenho."
Não havia como não se impressionar com aquele pelotão
de guardiões. Era realmente estonteante imaginar o
que era capaz de fazer. Assim que terminaram de passar à
nossa frente, outra equipe da mesma categoria veio do alto,
com seus integrantes montados em cavalos negros, crinas
bem visíveis. Fizeram uma revolução nos fluidos acima de
nós, para logo em seguida baixarem, aterrissando diante de
28 5
todos com seu armamento de guerra contra as hostes sombrias
à mostra. Eu estava eletrizado com o que via. Porém,
não se encerrou aí a apresentação dos guardiões. Logo após
veio outro grupo, desfilando com grande orgulho, disciplina
e altivez. Eram os legionários romanos, pelotão formado
por soldados do primeiro e segundo séculos, além de espíritos
cristãos daquele tempo de perseguição, que se ofereceram
para defender a política do Cordeiro.
— São orientados por Sérvulo Túlio, chefe desta legião.
Estão a postos por toda a Aruanda e são muito respeitados
nas regiões umbralinas mais próximas à Crosta.
Especializaram-se em lidar com espíritos vândalos e alguns
componentes energéticos mais densos advindos de
regiões inferiores, emitidos sobretudo por desencarnados
— tanto por aqueles em sofrimento quanto por bandos
conhecidos como quiumbas, segundo a nomenclatura
de algumas correntes espiritualistas. Os romanos sabem
rebater os dardos inflamados enviados por tais espírito e,
se preciso for, vão abertamente, à frente dos demais guardiões,
na luta contra as hostes que se opõem ao trabalho
do bem ou que investem contra as obras comunitárias, sociais
e de grupos religiosos.
28 6
Talvez para não ficar cansativo demais, Jamar passou
a me fornecer explicações antes mesmo de os espíritos se
apresentarem. O grupo do qual ele falou em seguida nem
mesmo estava presente no quartel, mas Jamar fazia questão
de falar sobre eles.
— Há também os puris. São antigos índios, não espíritos
superiores ou esclarecidos como alguns caboclos, mas
índios guerreiros primitivos, porém conduzidos e orientados
ao bem pela figura de antigos comandantes, caciques e
chefes de falange. Entre eles, temos guerreiros, no verdadeiro
sentido da palavra. Flecheiros e guerreiros das antigas
tribos de tupinambás, guaicurus e tupis-guaranis, além
de representantes de algumas nações indígenas da América
do Norte. Os puris são, por excelência, os combatentes
dos obsessores. Não são muito esclarecidos quanto a
questões de ciência ou magia, mas trabalham como recrutas,
soldados de campo de batalha, que saem pelo umbral,
sob o comando dos caboclos, em cavalos brancos, invadindo
as bases sombrias e driblando as forças das trevas. São
muito temidos por quiumbas e hordas de obsessores, pois
detêm uma força bruta invejável, além de manipularem
habilmente os fluidos mais grosseiros da natureza. Foram
28 7
exclusivamente índios, selvagens, por assim dizer, em suas
últimas encarnações.
"Como chefes dessa falange, temos os caboclos mais
ilustrados. Estes, sim, espíritos mais instruídos, em cujo
passado espiritual viveram diversas experiências como comandantes,
especialistas em ciências naturais ou, então, foram
verdadeiros iniciados de tradições ainda mais remotas,
e escolheram reencarnar entre as nações indígenas como
orientadores evolutivos. Esses caboclos são muito comumente
vistos nas ruas da Aruanda. Com certeza, em breve
saberá maiores detalhes sobre eles."
Queria muito ver tais espíritos em ação algum dia, pois
me fascinava, em larga medida, pensar sobre a cultura indígena
e ver como foram valorosos em alguns países, resistindo
à invasão do home m branco. Indignara-me numerosas
vezes, quando encarnado, ao constatar como as nações
europeias de conquistadores dizimaram a maior parte da
população e da cultura indígenas. Mais ainda, eles continuam
trabalhando no mundo oculto, mas agora em prol do
equilíbrio e da harmonia dos ambientes onde os homens da
civilização ocidental vivem e labutam. Que atitude louvável,
de tirar o chapéu...
288
Enquanto refletia a respeito dessas questões, Jamar
deu um sinal e, então, veio à frente um batalhão de mais de
700 espíritos.
— Estes são apenas os chefes de falange de outro grupo,
que é o dos exus. Os que aqui se apresentam trazem nomes
com conotação cabalística, escritos e pronunciados numa
linguagem mística, embora saibamos seus nomes particulares,
usados fora dos círculos de encarnados. Também são
conhecidos como guardiões de rua, pois sem eles a situação
nas cidades, nas rodovias, no ambiente humano, enfim, seria
insustentável, incapaz de se administrar com a mínima
ordem e disciplina.
E, como se eu hesitasse, ele reiterou.
— Sem a atuação desses espíritos, seria impossível
manter o controle e o equilíbrio nas cidades e em tudo o
mais que envolve de perto a população humana. Os chefes
ou mentores receberam especialização nas escolas da
Amand a e de algumas poucas cidades do astral superior.
"O papel mais importante que desempenham os exus.
de modo geral, é promover a limpeza energética e mental
do ambiente dos homens, além de auxiliar na manutenção
da ordem e da disciplina nas ruas e nos locais públicos. São
28 9
os guardiões que mais se assemelham à figura dos soldados
ou dos policiais conhecidos no mundo físico."
Notei que se vestiam elegantemente — pelo menos todos
ali, os chamados chefes de falange. Apresentavam-se
com ternos e trajes que lembravam seguranças de elite, que
se encarregam da proteção de autoridades e personalidades
em ambientes públicos. Ou seja, à paisana, porém elegantes,
com um porte que denotava força, domínio e autoridade.
Jamar esclareceu que os espíritos mais comuns
dessa falange, à exceção evidente de seus orientadores ou
líderes, nem sempre eram espíritos esclarecidos, mas eram
bem intencionados e guiados pelos guardiões que lhe são
imediatamente superiores.
— Bem, Ângelo, aqui você teve uma descrição resumida
de diversas equipes de guardiões que trabalham mais
particularmente ligadas a nós, aqueles que representamos
a política do Cordeiro, a que denominamos política divina.
Será convidados um representante de cada equipe que aqui
se apresentou para um momento mais íntimo com você, no
qual terá oportunidade de tirar dúvidas e se instruir mais a
respeito. Entretanto, não temos um tempo muito dilatado
à nossa disposição, pois a Amanda chama por você — aliás,
29 0
Pai João, que tem outras questões a lhe mostrar, que farão
parte de seu projeto de trabalho futuro.
Depois de um período razoável de conversa e orientações
sobre o trabalho dos guardiões, retornei à Amanda;
mais do que nunca, trazia o espírito decidido. E agradecida
imensamente agradecido por fazer parte dessa equipe de
agentes da justiça divina. Sentia-me muito envolvido com
o trabalho dos guardiões. À noite ainda teria um encontro
particular, sob a orientação do pai-velho, é claro. Aguardava
novas sensações na descoberta da vida espiritual. Queria
me preparar logo, estudar muito e me sentir o mais útil
possível, nem que fosse apenas dentro de 10 anos, como os
espíritos me disseram. Mas eu queria começar já. Na verdade,
meus estudos já haviam se iniciado, embora naquele
momento não soubesse disso.
295
UANDO CHEGUEI À Amanda, minha mente fervilhava com
tantas ideias e tanto conhecimento que haviam me transmitido
ao longo dos últimos dias. Era tal o número de coisas
novas que, sinceramente, até tentei me deitar naquela que
seria minha última noite no hotel, antes de me mudar definitivamente
para a zona residencial da cidade dos espíritos,
bem próximo à família de Laura. Insisti no propósito de
conciliar o sono, mas não consegui me acalmar mentalmente
e, então, resolvi sair, sabendo que a vida social da cidade
funcionava 24 horas por dia, ininterruptamente. Mesmo assim,
fui tomado de surpresa, pois não imaginava que era tão
intensa. Ao sair do hotel encontrei novamente a amiga Consuela.
Elegante e extravagante ao mesmo tempo, ela conseguia
juntar essas duas características de maneira ímpar.
— E então, gajo? Qual foi sua impressão das atividades
dos guardiões?
— Você já sabe que estive numa das bases dos nossos
amigos?
— Como não? — falou abrindo seu leque de maneira
chamativa.
— Puxa, as notícias parecem correr muito mais velozes
por aqui. Mal cheguei e você já sabe de tudo?
29 6
— Inclusive, sei que esta será sua última noite no hotel.
Amanhã já estará em sua própria habitação — olhou de soslaio
para mim, como me tentando a dar maiores detalhes.
— É, você sabe mesmo!
— Brincadeira, gajo! É que andei conversando sobre
você com o velho.
— Pai João?
— E quem mais? Parece que ele e o guardião estão decididos
a tutelar você por uns tempos.
Ri intimamente, de satisfação.
— Mas não fique assim tão eufórico com a situação.
Essa gente tem cada mania que você nem imagina. Trabalho,
trabalho, trabalho... descobrirá logo.
— O pior é que já descobri... Nem me deram tempo
para umas férias do lado de cá. Estou adorando. Mas e você,
Consuela, onde mora aqui na cidade?
— Nem imagina, gajo! Sofro muito só de pensar nisso.
E lá sou por acaso um espírito superior? Vivo na humildade
e na pobreza absoluta e voluntária. Me contento com uma
casinha lááá nos arredores da cidade. Discretíssima e pobre
como só!...
— Discreta? Sua casa?
29 7
Suspirando fundo, Consuela continuou, como se fosse
a mais sofredora de todos os espíritos do umbral:
— É uma casinha assim! — gesticulou com as mãos, formando
um quadrado no ar. — Retinha, comunzinha, tão
pobre, meu Deus, que nem sei ainda por que os superiores
não atentaram para tanta humildade que vai dentro de
mim. Deviam se inspirar em minha vida de absoluta pobreza
e simplicidade.
— Quero ver onde você mora, Consuela. Será que você
me convidaria algum dia destes?
— Ah! Gajo! Não sei se com seu bom gosto suportaria
ver tamanha singeleza... — falou com tanta ênfase e teatralidade
que me senti realmente tocado por suas palavras. —
Mas se é assim que quer, podemos ir lá tomar um chá ou
comer umas tapas acompanhadas de alguma bebida de sua
preferência.
Após o breve diálogo, dirigimo-nos à zona residencial
onde Consuela morava. Assim que adentramos essa parte
da cidade, realmente, como ela havia me falado, era possível
notar nos arredores a diferença em relação ao local
onde residia Laura. Eram casas belíssimas, embora a de
Laura também fosse bela. No entanto, aquelas ali pareciam
298
de outro porte, mais suntuoso. Procurava com os olhos a.
casinha da pobre Consuela, entre as demais que apareciam
à medida que avançávamos.
É que, na Amanda, o espírito escolhia viver num local
de conformidade com seus gostos; cada um idealizava o lar
de acordo com a inspiração, o momento, os sentimentos c
as emoções que lhe caracterizassem. E não havia nenhum
juízo de valor, caso alguém optasse por viver num apartamento
na região central da cidade, num bangalô singelo
nas montanhas, nem tampouco numa mansão. Em suma,
cada cidadão buscava viver em local mais compatível com
sua identidade energética, e isso sem nenhuma culpa ou
sentimento de inferioridade, ou mesmo de superioridade
Todos tinham igual acesso a tudo.
Esperei por alguns instantes ver a casa de Consuela, o
local onde ela escolhera viver com maior simplicidade. Ela
trazia estampada na face uma expressão que inspirava tamanha
comiseração que concluí que, no caso dela, lhe fora
imposto viver num casebre próximo àquelas elegantes casas
do bairro residencial, a fim de aprender alguma lição.
— Puxa, como são bonitas as residências aqui — comentei.
— E aquela casa ali, então?
29 9
Apontei para uma construção que sobressaía, de contornos
majestosos. Devia ter sido projetada por algum arquiteto
renomado. As linhas sofisticadas da edificação,
muitos vidros ou coisa parecida, rodeada por enorme jardim,
com trepadeiras que recaíam sobre as laterais da mansão.
Algo que impressionava os sentidos. Uma beleza clássica.
Assustei-me quando Consuela se dirigiu justamente
para aquele local. Acompanhei-a com meus pensamentos
em revoada. Será que ela conhecia os moradores? Me apresentaria
aos donos?
— Vamos, gajo! Mas não se assuste, está tudo una confusión;
não tenho tempo de arrumar nada. Sinto até vergonha
de lhe receber em minha humilde morada...
Meu Deus! Era o lar de Consuela!
— Ai, como sofro aqui. Fico envergonhada com meus
vizinhos. Ainda bem que eles são almas boas e entendem
minha escolha de viver num lugar tão singelo — falava quase
chorando e num tom tão dramático que parecia realmente
estar padecendo horrores.
— Mas Consuela... — ameacei falar alguma coisa enquanto
entrávamos na belíssima casa onde morava. Ela me
interrompeu:
300
— Nem me fale, Ângelo! Nem precisa falar! Bem que
eu merecia algo mais elaborado, mas devo ser um exemplo
de humildade para os que sofrem. Até tentei ser diferente
— respirava fundo, enquanto eu ficava abismado com tanto
requinte, embora sem opulência, mas assim mesmo com
tremenda beleza à volta. — Mas sabe como são as coisas
por aqui, não? A gente tem de se esforçar ao máximo para
ser referência perante aqueles que sofrem e os mais simples
de coração.
A mansão — era esta a palavra correta para descrever
a morada "humilde" de Consuela — era uma obra de arte
em si mesma. Tudo à volta, ainda que o ambiente interno
revelasse um quê minimalista, era de extremo bom gosta
Quadros impressionantes nas paredes lembravam obras
de Salvador Dali, Pablo Picasso e El Greco, além de outros
desse naipe. Consuela notou minha admiração pelas obras
de arte e logo, logo se explicou:
— São cópias muuuito mal feitas. Não tenho méritos
para ter um original destes autores...
Impressionei-me com a beleza das obras. Não havia
como não admirar algo tão majestoso. Inspirava qualquer
espírito e arrebatava a visão. Aliás, pouco a pouco percebi
301
que toda a casa se assemelhava a uma galeria de arte. Embora
no formato de uma residência, cada pormenor ali fora
disposto de modo a conceber uma galeria com a exposição
de alguns dos mais renomados artistas espanhóis. Havia
obras atribuídas a Diego Velasquez, Francisco de Goya,
Joan Miró e outros mais, talentosamente distribuídas pelas
paredes. Em meio àquilo tudo, móveis que remontavam
a épocas diferentes, conforme os cômodos da residência e
galeria. Não tive dúvidas: Consuela, com toda aquela "humildade",
era alguém ligado à arte, talvez curadora de algum
dos museus da cidade. Mas ali ela era toda humildade,
simples como ninguém. E pensar que, por um momento,
acreditei que ela realmente estivesse falando de si com sinceridade,
sobre a renúncia em viver num lugar paupérrimo
por escolha própria.
Ainda quando eu formulava esse pensamento, quase
me derretendo numa gargalhada mental, ouvi o suspiro e
o barulho do leque de Consuela atrás de mim. Na verdade,
fiquei tão absorto pela beleza do lugar e pelas obras esplêndidas
que nem me dei conta do tempo que transcorrera
desde que entrei naquele ambiente tão simples...
— Veja como sofro aqui, Ângelo! Eu mesma escolhi vi
302
ver neste casebre cheio de objetos antigos. Nada de superficialidade;
acho que tudo deve refletir a beleza interior, a
simplicidade de alma que vai dentro de nós — e falando assim,
enquanto me virava para ela, ainda não acreditando no
que via, na sua casinha tão singela, continuou. — Sei que
você me entende. Afinal, meu amigo, nós, pessoas como
eu e você e alguns poucos espíritos no mundo, sabemos o
que significa viver num local totalmente diferente da nossa
natureza; algo assim — enxugou uma lágrima invisível no
canto do olho, respirando fundo e em profundo lamento —.
incompatível com nossos mais secretos gostos e elevação.
Mas tudo bem. Já falei para o velho que aceito de bom grado
a tarefa de que fui incumbida.
Ela exagerava caricaturalmente na expressão de sua
humildade infinita. Meu Deus!... Como adorava a cada hora
viver na Amanda. Havia lugar para tudo e todos, sem cobranças
de santidade — aliás, era o que mais faltava ali, em
minha amiga sofredora. Virando-se rapidamente, com leque
em punho, o sofrimento parece ter cedido com extrema
rapidez a outro estado de espírito.
— Vamos tomar uma bebida, Ângelo. Acho que você
merece, depois de tanto penar.
303
E me trouxe minha bebida favorita, meu sagrado e aromático
vinho madeira.
— Claro que não é nada comparável aos nossos vinhos
de Espanha, mas...
— Eu aceito este sofrimento, Consuela! Eu aceito! — falei,
irônico.
E ela, brindando charmosamente, deixou de lado as
brincadeiras e exageros ao levantar a taça do mais puro
cristal e sorvermos, juntos, o delicioso vinho com o sabor
mais acentuado que já provei em toda minha vida de encarnado
ou desencarnado.
— Como disse o velho, meu amigo, aqui é o mundo original
e tudo aqui é muito original mesmo; o da Terra é que é
a cópia. E lá, pelo que sei, para aproximar-se ao máximo do
que temos no mundo primitivo e original, as bebidas precisam
ficar em barris de carvalho, passar por um processo
especial, envelhecer e otras pequenas cosas. E tudo isso
somente para se aproximar do sabor original, que é este
acá — ela falava numa mistura de espanhol e português ou
um portunhol perfeito. Rimo-nos gostosamente. E eu apreciando
o extremo bom gosto do lugar, até que alguém se
anunciou. Era o velho, como ela chamava Pai João.
304
Ele vinha acompanhado de um sujeito estranho. Aliás,
pela primeira vez vi alguém que não me pareceu habitante
do lugar. Era alto, esguio, cabelos longos e um olhar curioso,
aliás, muito mais curioso do que o meu.
— Este é um amigo encarnado, Ângelo! Está aqui desdobrado,
fora do corpo, e o trouxe para que possa conhecé-
lo — informou Pai João, após cumprimentar Consuela.
Fomos apresentados, e o sujeito à minha frente pareceu
encantado como eu pelo estilo de Consuela, impresso
em cada detalhe da decoração.
— Puxa! — exclamou. — Isto aqui é pura Espanha...
— E como não, chico? — respondeu Consuela, tomando
o rapaz pelo braço e mostrando-lhe cada cômodo.
Enquanto isso, eu e Pai João conversávamos.
— Não imaginava que Consuela vivesse num lugar destes,
lindo assim.
— Era o sonho dela quando chegou aqui na Aruanda.
meu filho. Queria fazer uma galeria de arte e viver e respirar
em meio à arte. Ela queria respirar beleza e viver assim,
recebendo visitantes que quisessem aulas de arte espanhola.
Então, nada melhor do que construir uma residência que
servisse também como galeria. Consuela é um dos espíritos
305
responsáveis, na universidade, pelas aulas de arte. Ela conhece
muito bem a história da arte, não somente espanhola,
como também de outros países da Europa. E mestra no
assunto, e não se assuste se algum dia a vir por aí desfilando
ao lado de Pablo Picasso, que vez ou outra vem nos visitar
em nossa comunidade. Consuela conhece muito bem a colônia
dos artistas e tem relacionamento estreito com eles.
Mas prefere, como diz, esconder-se por trás de seu manto
espanhol da mais profunda humildade.
— É, dá para notar a simplicidade dessa pobre alma —
brinquei, rindo gostosamente.
— Mas você notou o rapaz aí? Nosso amigo encarnado?
Queria muito que você o conhecesse melhor. Seria de muita
valia para seu futuro trabalho.
— E quem é ele? Alguém em especial?
— Alguém que servirá a você de instrumento e companheiro
de trabalho, ao mesmo tempo.
— Não entendi.
— Não precisa se apressar, meu filho. Mas como ele é
o instrumento que trabalhará junto a você, compete-lhe
aproximar-se dele, fazer amizade, estabelecer laços e moldá-
lo, como se molda uma escultura, já que estamos falan
306
do de obras de arte. Pense nele sobretudo como um amigo e
aproxime-se o máximo que puder. A partir de hoje, ele virá
aqui, a nossa cidade, pelo menos três vezes por semana.
Nós o traremos através do desdobramento, enquanto estiver
dormindo. Frequentará nossa universidade e, assim,
você terá maior tempo para aproximar-se devidamente e
fazer do médium um instrumento mais afinado. Mais tarde,
Zarthú, nosso amigo do colegiado, lhe trará mais detalhes a
respeito dele.
— Ele é médium? Sabe que está aqui na Aruanda? Tem
consciência disso?
— No momento, não! Tivemos o cuidado de interferir
em sua consciência, de maneira que as lembranças ficarão
impressas, porém inacessíveis quando estiver em vigília.
Somente no momento oportuno ele se recordará do encontro
com você. Por ora, é o que basta a ele. Mas vocês precisam
aproximar-se um do outro.
— Então ele é médium... Que estranho é o sujeito.
— Bem, é o que temos no momento. Você verá o porqué
assim que estiver mais próximo dele. Terá mais ou menos
10 anos para prepará-lo e achegar-se o máximo possível
de nosso amigo. Depois... bem, o trabalho intenso, os desa
307
fios naturais do intercâmbio. Coisas assim, como diria Consuela
— ao falar nela, acercou-se de nós novamente, ainda
de braços dados ao médium. Mas ele parecia estar absorto
com tudo ao redor. E quem não estaria?
— E o rapaz aí, Pai João? Ele sabe do trabalho que o
aguarda?
— Sabe sim, meu filho. Ele conviveu com os guardiões
no período entre vidas e sabe muito bem o que o aguarda.
Só que a mente dele foi preparada antes de reencarnar para
que as lembranças aflorem no momento certo. Mas não lhe
resta dúvida quanto à tarefa que tem a desempenhar.
— Quer dizer que neste exato momento ele não tem
consciência do trabalho que nos aguarda?
— E por aí! — respondeu Pai João, sorrindo para o rapaz.
— Ele é um velho amigo. Cuide bem de fazer uma amizade
sólida e não se assuste com o jeito dele. Com o tempo,
irá se acostumar.
— Como assim? Acostumar?
— Você descobrirá com o tempo — Pai João riu, discretamente.
— No mais, você será apresentado em breve
à equipe encarnada com quem trabalhará. Mas vamos por
partes; cada coisa tem sua hora.
30 8
Levantei-me e entabulei uma conversa com o rapaz,
enquanto Consuela, com todo aquele sofrimento íntimo,
confabulava com Pai João, talvez sobre alguma matéria que
ministrava na universidade local. Vez ou outra, ela nos fitava
com olhar enigmático. De repente, o rapaz começou a
dissolver-se à minha frente, e fiquei intrigado com o fenómeno.
Pensei logo no jeito do espírito Joseph Gleber, sair
assim, sumindo feito fantasma...
— Ele está com fome, Ângelo. Por isso o corpo físico o
puxou de volta. Neste momento, um dos guardiões o acompanha
até a base física. Não se preocupe. Esta é uma das
coisas com que você terá de se acostumar.
— Com esse tipo de sumiço? Essa dissolução total,
completa, irreversível?
— Não, chico! — intrometeu Consuela, rindo e abrindo
seu leque de maneira estrondoso. — Com a fome dele! É
algo sobre-humano...
E Pai João, juntamente com Consuela, riu uma risada
que dava gosto de ouvir, embora eu não entendesse nada
naquele momento. Mas descobriria brevemente o que significava
tudo isso que envolvia o rapaz médium. Havia outras
surpresas também... muitas outras. Afinal, seriam 10
30 9
anos de preparo! E estavam apenas no inicio.
Depois de algum tempo conosco, numa alegre conversa,
Pai João convidou-me:
— Bem, Ângelo, está na hora de irmos. Temos ainda alguns
amigos para lhe apresentar. Acho que terá uma noite
muito intensa por aqui.
Despedimo-nos de Consuela, que abanava seu leque
suspirando de tanta humildade, enquanto enxugava uma
lágrima sentida e invisível, e saímos Pai João e eu rumo às
choupanas ali perto, localizadas num dos bosques nos arredores
da cidade.
Eu via beleza em tudo, mas as choupanas e chalés eram
algo especial. A harmonia arquitetônica fazia jus ao nome
de construção ecológica. Muitas árvores no entorno, jardins
belamente floridos, crianças por todo lado... Mesmo
sendo noite na Aruanda, eu as via alegres, festivas e sempre
acompanhadas de algum adolescente, que talvez fosse
a forma como os educadores se mostrassem a elas, acompanhando-
as de perto. Imagino que assim se sentissem mais
à vontade.
Havia dezenas e dezenas de espíritos nos aguardando
num local a curta distância de uma choupana em particu
310
lar. Parecia-me um lugar de reunião ao ar livre, uma espécie
de praça ou uma clareira em meio a matas e bosques e
à estonteante paisagem natural ao redor. Seria alguma reunião
planejada, também com a finalidade de me orientar,
ou somente uma recepção, por parte de espíritos que não
conhecera ainda?
Grande era a movimentação no ambiente. Muitos espíritos
estavam ali reunidos, naquilo que parecia ser alguma
comemoração. E havia algo a comemorar em toda a cidade,
pelo jeito. Pelas conversas, deduzi que era apenas o início
de uma série de eventos em toda a comunidade, a fim de
homenagear alguém ou comemorar algo. Era o começo das
festividades.
Estranhamente para mim, ao menos pelo que observei
à primeira vista, naquele recanto havia somente espíritos
com aparência de índios brasileiros, sul-americanos e norte-
americanos, além daqueles que se mostravam como negros
de várias etnias. Os peles-vermelhas vestiam-se com
trajes que lembravam, em alguma medida, as vestimentas
típicas de suas nações indígenas, ao passo que os sul-americanos
traziam mantas de cor branca, creme ou amarela
jogadas sobre o corpo. Nenhum deles usava os célebres pe
311
nachos ou qualquer apetrecho comumente observado nos
indígenas dos diversos povos ali representados. Tão despo
jado quanto as vestes era o porte da maior parte daqueles
seres, embora se notasse em alguns um tipo espiritual gar
boso, que sugeria representarem uma hierarquia mais alta
no sistema de vida daquela comunidade.
Os negros chamavam a atenção pela aparência. As
mulheres, na maioria, vestiam trajes típicos africanos, co
loridíssimos, com os cabelos estilizados e adornando be
lamente a cabeça. Outras vestiam-se conforme o costume
observado nas baianas típicas de Salvador e do Pelourinho,
embora sem excesso de balangandãs. Era uma vestimenta
linda de se ver, de uma alvura inacreditável, ou então em
tons pastel, especialmente amarelo suave. Os bordados e
rendas eram de uma riqueza e um nível de detalhes en
cantador. Sempre, como tudo o que via na Aruanda, a be
leza e a elegância dominavam, tanto na aparência quanto
na expressão.
Alguns dos espíritos apresentavam-se nitidamente com
aparência de mais idade que os demais, porém sem que o
peso dos anos lhes roubasse vitalidade, como ocorre com
a maior parte das pessoas idosas na Crosta. Empertigados,
312
esguios em sua maioria, denotavam certo charme, vestindo
ternos e costumes claros, muitos em tecidos semelhantes
ao linho, o que lhes conferia uma aparência tropical ou
descontraída. Outros tinham roupas mais simples, porém
de extremo bom gosto. Não vi nenhuma extravagância por
ali, como de resto.
Fiquei por alguns momentos observando ao redor, enquanto
limpava meus preciosos óculos de morto metido a
vivo entre os imortais. Pai João deixou-me à vontade por
alguns instantes, pois decerto sabia de minha curiosidade e
de como eu examinaria cada detalhe. Ele, o pai-velho, sempre
muito elegante em sua forma de se apresentar, vestia
terno branco e tinha cabelos e barba bem aparados, como
se fosse para uma festa importante. E, afinal, era uma festa
muito importante, como logo pude descobrir.
Quando Pai João voltou-se para mim, sorridente e animado,
vinha juntamente com uma senhora que aparentava
ter entre 60 e 65 anos de idade, embora com o viço de
uma jovem mulher. Óculos grossos, como se precisasse deles
para enxergar alguma coisa. Sabia que ela não precisava;
no entanto, talvez fosse um costume trazido da última
experiência física. Adornada belamente com roupas que
313
lembravam as baianas praticantes do candomblé, todas de
renda, encimava-lhe a cabeça um lenço ornamentado e disposto
de maneira um tanto exótica. Teria algum significado
aquele adereço? Alguns colares de contas coloridas enfeitavam-
lhe o pescoço, mas de maneira discreta. A composição
toda inspirava bom gosto e harmonia.
— Meu Deus!... — pronunciei, num misto de admiração
e surpresa. — Será quem estou pensando? Será mesmo?
Pai João sorriu novamente, em silêncio, enquanto a
mulher veio me abraçar num abraço longo, demorado,
cheio de vida, calor e energia.
— Esta é nossa querida Maria Escolástica, a nossa Menininha
— disse Pai João, apresentando-nos formalmente.
Como admirava essa personalidade e como queria encontrar-
me com ela!
— Salve, meu filho! — falou-me Menininha, com um
sorriso cativante, irradiando uma luz suave em torno de si,
como se fora iluminada pelas estrelas.
Enquanto ela colocava o braço em torno do meu, fomos
em direção aos outros representantes daquelas culturas
tão incompreendidas pela maioria dos encarnados,
mas que ocupavam um lugar de destaque entre os filhos da
314
Aruanda. Achegaram-se a nós alguns espíritos de cultura
indígena, os quais me foram apresentados por Pai João:
— Estes são nossos amigos Pena Verde, Pena Branca,
Tupinambá, Nuvem Vermelha, Cobra Coral e Nuvem Cinzenta.
São nossos amigos de longa data e representam diversas
hierarquias espirituais dentro das nossas tarefas na
Aruanda. Podem ser chamados de caboclos ou, simplesmente,
por seus nomes de procedência indígena. Fique à
vontade, Ângelo.
Notei que alguns traziam o semblante muito sério.
Outros sorriram, embora a firmeza dos traços e a aparência
que inspirava certa altivez, própria daquela gente. Ao
sorrir, mostravam uma dentição invejável. Nenhum deles
usava a plumagem costumeiramente observada em fotografias
e gravuras dos livros. Fui convidado a ficar ao lado
de Menininha e Nuvem Vermelha, além de dois outros espíritos
de procedência africana, que me deixaram muito
à vontade.
Parecia que algum evento estava prestes a começar.
Todos silenciaram-se e alguns se posicionaram a nosso
lado, porém de forma a ver muito além, de onde parecia vir
uma nuvem se movimentando, aproximando-se da plateia
31 5
de espíritos. Não demorei muito a perceber que a nuvem
era, na verdade, um grupo de espíritos, que vinha deslizando
nos fluidos da Amanda rumo ao local onde estávamos.
Cavalgavam velozes cavalos, que pareciam galopar em pleno
ar, até se colocarem à nossa frente, como um exército de
índios — estes sim, com o figurino completo, conforme os
costumes de cada tribo. Julgo que houvesse pelo menos 5
mil espíritos em completo silêncio, dispostos como tropas
numa formação perfeita, como se fossem guerreiros prontos
para o combate.
A nossa frente, enquanto eu permanecia ao lado da
mais bela das oxuns, o Chefe Tupinambá tomou a iniciativa
e leu algum tipo de manuscrito, talvez uma reedição da antiga
carta de um velho cacique, dirigida aos homens brancos.
Desta vez, porém, eu a ouvia redirecionada, como um
apelo aos espíritos de índios, caboclos e peles-vermelhas,
concitando-os a trabalhar e ajudar os irmãos de humanidade.
A cada palavra eu me emocionava, em cada letra podia
ver, viva, a memória de um povo. E foram estas as palavras
pronunciadas pela boca de um cacique, de um espírito cuja
vida se voltara para a ajuda àqueles que um dia massacraram
seu povo e suas esperanças:
316
— Em nome do Grande Espírito do universo, queremos
hoje assegurar a amizade, a benevolência e a generosidade
de todos os caboclos com os homens da Terra. Embora saibamos
que o homem no mundo dificilmente imagina o que
nos inspira a amizade, estaremos a seu lado no momento
de despertamento da consciência espiritual. Se algum dia
as armas dos homens tiraram nossa terra e nos tiraram nossa
gente, temos a compreensão de que foi uma transição
necessária para estabelecer uma nova etapa na vida dos povos
do mundo. Nossa palavra e nossa dedicação são como
as estrelas; não empalidecem nunca.
"Aqui na Aruanda, na terra dos caboclos e de todas
as gentes, sabemos a grandeza e o valor dos nossos céus.
do ar que respiramos e do calor que aquece nossas almas.
Aqui sabemos que não somos donos da pureza do ar ou do
brilho da água. Somos apenas espíritos que os preservam,
e que um dia utilizamos tais recursos em favor de nosso
povo. Toda a Terra e seus habitantes são e serão sempre
sagrados para nossa gente, do mesmo modo como a
Aruanda representa para nós o céu onde os guerreiros se
reúnem em nome do sagrado, em nome da vida e do Grande
Espírito.
317
"Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada
véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos
os insetos a zumbir são sagrados em nossa Amanda, tanto
quanto na Terra que amamos, segundo as sagradas tradições
e crenças dos nossos ancestrais.
"Sabemos que o homem no mundo não compreende
nosso modo de trabalhar em seu favor; os religiosos muitas
vezes nos rejeitam, pois desconhecem o valor de nosso conhecimento
ou não acreditam que possamos ter sabedoria.
Mas não importa! Eles, nossos irmãos brancos e de muitas
raças, ainda ignoram que um torrão de terra é igual ao outro.
Que somos todos iguais perante o Espírito do universo.
"A terra é nossa irmã, é nossa amiga e, depois de cultivá-
la com sabedoria, o homem branco a deixará renovada
para sua descendência, e virá ele também algum dia para a
Amanda, onde verá o fruto de seus dias e o valor da natureza
à sua volta. É preciso preparar os homens para a plantação
da sabedoria, numa Terra que será a herança para seus
filhos, e o respeito a ela reverterá em seu próprio benefício.
"A lembrança dos antepassados e a ciência dos espíritos
garantirá aos nossos irmãos na Terra o direito de viverem
num mundo renovado, quando então, talvez, possamos
31 8
retornar em novos corpos, um dia, para ajudar nossos irmãos
a semearem um novo tempo, uma nova humanidade.
As cidades dos homens, cheias de vida e de conhecimento,
precisam de nós, a fim de lhes garantirmos uma vida de
paz — não a paz enganadora do silêncio, mas a paz que será
construída com muito trabalho, suor e nossa contribuição.
"Não se pode encontrar paz sem a tomada de consciência
da vida espiritual, sem saber que somos todos espíritos,
filhos do Grande Espírito, e assim respeitar nossa divina
herança.
"Aqui na Amand a é o lugar onde atualmente podemos
ouvir o desabrochar da folhagem na primavera, o zunir das
asas dos insetos ou o barulho da revoada dos pássaros; é
onde podemos conviver de maneira pacificada com o lobo.
o leopardo e a serpente. E aqui é o lugar a partir do qual
inspiraremos o ser humano para que possa aguçar seus ouvidos
e voltar a ouvir voz do Grande Espírito dentro de si
mesmo; quem sabe reaprender a ouvir a voz dos rouxinóis
e da cotovia?
"Sei que nossos espíritos preferem ouvir o suave sussurro
do vento sobre as águas e sentir o cheiro da brisa, purificada
pela chuva ao meio-dia, com o aroma do pinho, da
31 9
alfazema ou do limão. Mas voltaremos à Terra para levar essas
aragens benfazejas aos sentidos de nossos irmãos brancos;
é nossa tarefa protegê-los de seus inimigos íntimos ou
espirituais. Quem sabe auxiliemos os homens no mundo a
voltar seus sentidos para as paisagens internas, até que um
dia possam vir para a Amanda, ou para outras terras no espaço,
reaprendendo a viver como filhos do Grande Pai.
"Sabemos que o homem, nosso irmão, carece de valores
que somente daqui, da Aruanda, podemos lhe inspirar.
Assim como o ar é precioso para o homem vermelho, porque
todos os seres vivos respiram o mesmo ar — os animais,
as árvores e as flores —, os homens nossos irmãos também
são preciosos para nossos espíritos, e os abraçaremos
como irmãos quando aqui aportarem, depois de atravessar
o grande rio da vida.
"Somos considerados por muitos como selvagens, que
não compreendem como as descobertas e invenções do novo
mundo dos brancos possam ser mais valiosas que a natureza,
da qual nós, peles-vermelhas, usufruímos um dia na medida
certa, o suficiente para sustentar nossa própria existência.
"Que é o home m sem nossa ajuda? Poderá sobreviver
a si mesmo? Aos seus inimigos íntimos e espirituais? O ho
32 0
mem precisa de nós, os caboclos, os índios, os considerados
selvagens, e de todos os que habitam a Amanda, de todas
as gentes e todos os povos, para que não morra de solidão
espiritual. Não podemos permitir que o que aconteceu e
acontece com os animais na Terra aconteça também com
os homens, seus filhos e seus espíritos. De alguma maneira,
temos de ajudar nossos irmãos a sobreviver, sem afetar
a vida em torno de si. Sobreviver com o máximo de qualidade
que lhe for possível. Para isso, nossas falanges de espíritos
da natureza precisam limpar o ambiente psíquico da
morada humana, senão dentro em breve será difícil para o
homem branco respirar no próprio mundo onde vive. Lembremos,
meus irmãos índios, peles-vermelhas, puris, caboclos
de todas as nações indígenas, que tudo quanto fere a
Terra, fere também os filhos da Terra, os próprios homens,
nossos irmãos.
"Se vossos filhos viram um dia os próprios pais humilhados
na derrota, ante a exterminação de nossa raça, é
hora de nossos guerreiros, que sucumbiram sob o peso da
vergonha ao florescer a civilização dos brancos, recuperarem
sua glória, ajudando o mesmo homem a manter viva a
chama da fé no Grande Espírito e manter a Terra em paz.
32 1
Um dia retornaremos ao mundo em novas roupagens e precisamos
auxiliar agora, a fim de encontrarmos um mundo
pelo menos um pouco melhor do que aquele que deixamos.
"De uma coisa sabemos com absoluta certeza, caboclos:
o homem branco vem do mesmo Grande Espírito que
nós todos viemos, e um dia, com certeza, ele irá descobrir
que nosso Deus é o mesmo Deus. Julga, talvez, que pode
ser dono Dele, da mesma maneira como desejou possuir a
própria terra e outros seus irmãos. Então, avante, guerreiros
de Aruanda! Vamos em direção à morada dos homens,
vamos com nossos arcos e flechas, nosso grito de guerra,
limpando o caminho espiritual de todos os povos, de todas
as gentes e ajudando nossa raça — a raça humana — a melhorar-
se, a sobreviver e viver com harmonia, mesmo ante
a realidade invisível que muitos ainda desconhecem."
Encerrando sua fala, Tupinambá aproximou-se de Menininha
e falou, emocionado:
— Nosso tributo de gratidão em nome de todos os líderes
espirituais de nossa terra, do povo de Aruanda, à mais
doce de todas as oxuns, à mãe espiritual da nossa Aruanda.
Não havia como não se emocionar. Chorei, chorei, deixei
abertas as represas da alma e mergulhei meu espírito
32 2
naquela sabedoria milenar expressa ali, nas palavras de
um caboclo, um dos habitantes mais respeitados da cidade
dos espíritos.
Pai João, tomando agora a palavra, falou para mim, enquanto
as falanges de espíritos se revezavam, indo e vindo
no espaço, numa coreografia realizada sobre nossas cabeças,
de modo a nos deixar perplexos perante o movimento
que faziam, num tributo a Mãe Menininha, que visitava
a Amand a numa passagem para outros planos, outras dimensões
celestes. Pai João aproveitava a comemoração feita
pelos espíritos para me esclarecer:
— Na Aruanda, trabalhamos com uma diversidade cultural
muito grande. Os espíritos que dirigem esta falange
de caboclos e índios são, na verdade, espíritos mais experientes,
que viveram sob o sol de outros continentes, continentes
perdidos. Geralmente, Ângelo, apesar de vestirem
a roupagem espiritual dos povos que floresceram nas Américas,
como a dos índios norte-americanos e tupiniquins,
entre outros, trata-se de grandes iniciados do passado e de
antigas civilizações. Detentores de um conhecimento ancestral
invejável, muitos deles assumiram a conformação
de pais-velhos, bem como de chefes, xamãs e outras figu
32 3
ras representativas dessas raças. Com isso, intentam auxiliar
esses povos em sua caminhada de aprendizado e crescimento
espiritual. Muitos, inclusive os chefes de falange
dos espíritos que viveram no Brasil como índios, não quiseram
reencarnar entre os homens da civilização moderna.
Preferiram retornar à Terra em meio a esses povos considerados
primitivos ou ultrapassados, justamente porque aí
encontraram um espírito virgem, por assim dizer, tal como
a pedra bruta, isto é, não enredado pela maneira como os
homens brancos construíram sua cultura e civilidade. Mas,
sobretudo, porque entre os índios encontraram solo fértil
para deitar nos corações a semente da sabedoria milenar.
Enquanto as comemorações da noite prosseguiam, homenageando
a ialorixá das mais representativas da cultura
afro, Pai João prosseguiu:
— Temos aqui, em nossa cidade, os espíritos mais representativos
das nações tupinambá, tupi-guarani, apache,
comanche, navajo, dakota, sioux, pawnees e miccosukee, entre
outras tribos, além de representantes dos antigos astecas
e maias, também considerados civilizações e espíritos
primitivos por alguns, que desconhecem o verdadeiro sentido
da ciência e da sabedoria desses povos. Muitos estu
324
diosos ou iniciados da ciência pretérita — magos brancos,
sacerdotes e outros sábios — assumiram voluntariamente a
vestimenta perispiritual de caboclos daquelas tribos, assim
como de negros de etnias africanas, e hoje são os grandes
representantes desses espíritos perante o governo oculto
do planeta. Quando chegam a se manifestar através de médiuns,
nas poucas vezes em que travam contato com os habitantes
da Crosta mais diretamente, levam mensagens gerais,
de cunho moral e direcionadas à comunidade, e não
propriamente a pessoas em particular.
Como minha curiosidade sobre o tema havia sido despertada
com todo o vigor, perguntei a Pai João algo que me
causava certo incômodo:
— E qual é a especialidade desses espíritos nesta dimensão
da vida, já que conservam a aparência e o conhecimento
oriundos de suas experiências como indígenas?
— Aqui, meu filho, temos imensa variedade de contribuições
que eles prestam a nossa comunidade e a outras
do espaço. Falando de maneira abrangente, os caboclos são
grandes guardiões, defensores da lei e da disciplina, que
combatem as falanges do mal ou daqueles que se opõem ao
progresso e ao bem comum. Se necessário, investem contra
32 5
as bases das sombras, principalmente os índios puris e os
antigos guerreiros em geral. Com o poder de manipular eficazmente
as energias da natureza, representam uma força
considerável, ante a qual se dobram os agentes do mal. Os
comandantes e líderes caboclos são detentores de grande
magnetismo e, por essas razões, entre outras, são respeitados
e temidos pelas entidades do mal, desde os chamados
quiumbas até mesmo os magos antigos, que ainda persistem
em empregar seu conhecimento em oposição ao progresso
do mundo.
"Alguns, mais ligados à libertação e à reeducação do
ser humano, lideram falanges que trabalham com o sentimento
e as emoções, operando diretamente na ruptura de
imantações magnéticas que vinculam indivíduos a formas-
pensamento e entidades perversas. Entre os mestres ou líderes
espirituais dessas falanges, há muitos cientistas que,
sendo conhecedores da natureza, atuam nos laboratórios
da Aruanda e de outras comunidades do espaço, de modo
a auxiliar a humanidade. Contudo, quando se mostram a
médiuns encarnados ou em outros momentos, como sucede
agora, transfiguram-se e assumem a aparência que mais
lhes faz sentido, de acordo com o que realizarão."
326
— E com relação ao que se passa aqui, meu pai, o que
está ocorrendo, na realidade? O que se comemora com a
presença de tantos de espíritos, verdadeira legião de seres
que aqui comparecem esta noite? Noto que chegam mais e
mais espíritos de todo recanto da cidade.
Pai João, olhando mais a meu lado, apontou para Menininha
e falou:
— Os representantes das culturas negra, indígena e outras
mais de nossa cidade vêm prestar reverência e homenagem
à mais conhecida e respeitada missionária da cultura
afro no Brasil. Oxum nos honrou passando o último ano
aqui conosco, na orientação de muitas almas advindas desse
celeiro cultural; aproveitou a estadia em nossa comunidade
para realizar conferências dirigidas a grande número
de espíritos. Hoje recebe nossa homenagem e despedida.
Daqui, logo partirá rumo a altos planos, em regiões por nós
ainda desconhecidas.
— Lembro-me bem da música, ou melhor, da oração de
Dorival Caymmi dedicada a ela.
E Menininha, a meu lado, apertou meu braço discretamente,
como dizendo para não comentar nada mais. E me
calei. Mas não poderia deixar de lembrar aquela maravilha
32 7
de saudação, de homenagem e reverência à personalidade
missionária da oxum do Gantois.
Logo após, os espíritos negros, africanos, baianos e outros
representantes da cultura afro, desfilaram, tocaram
atabaques e outros instrumentos, ao som dos quais muitos
interpretaram uma coreografia maravilhosa em pleno
ar; em seguida, desceram majestosamente à frente da sacerdotisa
do Gantois, iluminando os céus da Aruanda. Enquanto
a saudavam, flores iluminadas caíam sobre toda a
plateia de espíritos; pétalas de rosas exalavam um perfume
indescritível e derramavam-se sobre nós. Reverenciavam a
oxum mais bonita entoando canções numa língua que me
era desconhecida; elas falavam da generosidade, do trabalho
e da grandeza dessa alma que viera ter com seu povo na
cidade dos espíritos. Pais-velhos, mães-velhas, caboclos e
tantos mais se uniam numa sinfonia da cultura negra e dos
orixás, e apresentavam-se na mais bela comemoração que
já presenciei até hoje.
Depois de tudo, ainda ouvindo ao fundo as músicas e
melodias entoadas por uma espécie de coral de seres de
procedência nitidamente africana, eis que surgiu alguém
entre nós, descendo do alto. Fazia-se acompanhar por
32 8
mais de uma centena de espíritos de ex-escravos, negros
e mulheres vestidos de maneira sui generis, de conformidade
com os costumes do candomblé de kêtu. Caminhando
numa estrada de flores — rosas brancas, lírios e outras
mais, que se mesclavam ao formar um tapete iluminado
e perfumoso —, vinha a entidade com os braços abertos
na direção da oxum mais bela entre todas as oxuns. Menininha
se despedia da Aruanda para rumar a outros sítios
do universo. Uma voz melodiosa, que tocou o coração d e
todos nós, formava o pano de fundo para se despedir d a
alma iluminada que desceu até aquele lugar abençoado. á
semelhança de um diamante encravado entre as estrelas
do firmamento.
Menininha abraçou cada integrante das nações africanas
ali presentes, abraçou e abençoou cada uma das entidades
representativas das comunidades da Aruanda. Na ponta
do rastro de luz que descia sobre todos, ela alçava voo a
outros recantos do mundo espiritual — insondáveis, ao menos
por ora, ao menos para nós. Não houve quem não ficasse
profundamente tocado diante daquela cena. Pela primeira
vez, vi Pai João chorar. Os demais caciques, xamãs e
líderes espirituais das falanges da Aruanda ajoelharam-se
32 9
respeitosamente, saudando a mulher que, com seus encantos
e encantados, deixou sua marca eterna no coração e na
vida de tanta gente.
Naquela mesma noite, em homenagem à mais linda
estrela da Bahia e em nome do colegiado de espíritos
da Amanda, Pai João inaugurou uma reserva natural, um
museu a céu aberto nu m dos lugares mais belos de nossa
cidade espiritual, que foi batizado de Museu Natural Menininha
do Gantois. Tratava-se de um tributo aos negros
ex-escravos, aos povos que trabalharam e viveram sob o regime
da escravidão e, uma vez libertos, brilhavam, muitos
deles, como estrelas na eternidade, mas principalmente na
Amanda, pois era este o caso de grande parte de seus habitantes.
Ao longe, os tambores rufavam, e novo espetáculo
de dança contemporânea era realizado por artistas da cultura
afro, que saíram bailando atrás da comitiva que conduzia
oxum a seu orum.15
Amanda estava em festa. Pais-velhos, mães-velhas e outros
cidadãos reuniam-se para conversar sobre as características
daquele museu e para apreciá-lo, uma vez que fora
15 Orum. Do ioruba: mundo dos espíritos, Além.
33 0
especialmente projetado, nos mínimos detalhes, visando representar
os povos da mãe Africa com o máximo de deferência.
Tremulando sob o pórtico dos orixás, as bandeiras
de todas as nações do continente africano formavam um espetáculo
à parte.
Retirei-me da multidão de espíritos verdadeiramente
emocionado. Vi os pais-velhos caminhando e confabulando
entre si, muito embora não se portassem da maneira caricata
comumente observada nos terreiros, isto é, curvados e
usando palavreado de pessoas idosas e sem escolaridade. Ao
contrário, apresentavam-se eretos e articulados, cada qual
se vestindo segundo as preferências pessoais. Alguns trajavam
terno branquinho, parecendo de linho, enquanto outros
seguravam um cajado, ou então uma espécie de bengala,
e outros, ainda, simplesmente andavam, portando-se
como um idoso saudável dos dias atuais. Demonstravam
uma beleza incomum, uma alegria e um sorriso contagiante.
Muitas vezes, presenciei gargalhadas entre eles, talvez
observando este ou aquele aspecto das coisas a seu redor
ou, quem sabe, do comportamento excêntrico de certos espíritos.
Pude vê-los, naquele momento e em outros, geralmente
em intensa atividade por todo o ambiente social da
331
cidade. Pelo que pude notar, gostam muito de se vestir de
branco, inclusive as mães-velhas, tanto as que se mostram
negras como as que se apresentam como brancas. Assim,
não encontrei aqui apenas pretos-velhos e pretas-velhas.
Também havia ali muitas brancas-velhas; muitas índias
idosas, que conservavam esse aspecto porque talvez lhes
recordasse algum momento precioso que viveram em alguma
de suas existências.
Ainda quando eu fitava os habitantes daquela joia espiritual
a que chamávamos Amanda, Pai João aproximou-se
de maneira lenta, quem sabe para não atrapalhar minhas
reflexões. Pela primeira vez, percebi sua aproximação sem
precisar me virar para vê-lo. Ri intimamente de alegria,
pois já conseguia entrar em contato com a aura do outro espírito,
percebendo-lhe a presença. Caminhando a meu lado
por um bom tempo, sem dizer palavra, Pai João respeitou
meu silêncio até que lhe dei um sinal, um pensamento apenas,
e ele falou:
— Estes são os fundadores da nossa cidade, meu filho.
Representam os povos que um dia aportaram do nosso
lado da vida e ergueram as bases de uma civilização na
parte mais etérea dos fluidos do planeta. Tenho certeza de
332
que um dia, num futuro bem próximo, você dará voz a muitos
deles através da pena, da escrita, falando das belezas da
imensidade ao mundo dos nossos amigos encarnados, ajudando
a retirar o véu do preconceito, que nubla a mente de
muitos dos filhos da Terra.
— Eu, Pai João? Não me sinto preparado para uma tarefa
de tamanha responsabilidade. Diante de tudo que têm
me mostrado, da realidade dos guardiões, dos pais-velhos,
caboclos e outras entidades que trabalham pelo bem da
humanidade neste mundo invisível, sinto que terei de reaprender
muita, muita coisa. Toda minha cultura mostra-se
ínfima perante a riqueza e a diversidade cultural que encontrei
aqui.
— Pois é, meu filho, todos temos muito a aprender. Mas
é preciso ter coragem para devassar o mundo invisível sem
a visão preconceituosa e deturpada que muitos fazem da
vida espiritual. Em breve, você será chamado à luta. Novos
horizontes se abrirão a seu olhar espiritual, e nós, os mensageiros
da Aruanda, jamais o abandonaremos.
Abraçando-me como a um filho, senti-me aconchegado
nos braços amigos da entidade que aprendi a admirar e
respeitar, sob o nome de Pai João de Aruanda. Quando abri
333
os olhos, depois desse aconchego de almas, vi a nosso lado
o médium que o pai-velho me apresentara em casa de Consuela.
Estava junto dela e fora trazido ali pela própria espanhola,
que viera participar da festa.
Ao longe, as estrelas do firmamento pareciam festejar
a passagem de Menininha pela Amanda, ao passo que por
toda a cidade havia festa, música e apresentação de vários
artistas da imensidade, muitos advindos de outras cidades
espirituais. Fervilhava de gente nossa comunidade.
Levando em conta a presença de Pai João a meu lado,
de Consuela e do rapaz com o qual deveria me habituar,
com vistas a uma parceria, aproveitei para passear pela cidade
e conhecer aspectos da vida espiritual ainda ignorados.
Era uma oportunidade ímpar para entrar em contato
com espíritos de procedências as mais variadas, analisar
aspectos da cultura espiritual em incontáveis pormenores
e matizes; enfim, me enturmar, como diriam alguns amigos
na Terra. Eu renascia entre as estrelas, mesmo que para renascer
tenha sido necessário morrer primeiro, a fim de despertar
para esta tão intensa vida, em outra dimensão.
337
STAMOS CANSADOS DE esperar os acontecimentos na Terra!
— falou o guardião Antony Heppkins para a guardiã
Merlíades, com um timbre de voz que demonstrava irritação.
— Já há um ano temos vigiado bem de perto a situação
e visto como se complica dia a dia a política e as relações
internacionais desses países que o guardião superior
pediu que observássemos. Estamos praticamente sem notícias
sobre o que nossa base principal na Lua tem avaliado,
visando intervir na região em que detectamos a possibilidade
de um conflito iminente. Gostaria de saber se Jamar já
está no lado oculto da Lua, se preparando para a interven
ção ou, ao menos, se obteve permissão do governo do planeta
para isso.
A base móvel dos guardiões continuava girando sobre
a região espiritual no Oriente Médio, entre a península da
Arábia e o Irã. Mais precisamente, a fortaleza voadora dos
guardiões policiava a corrente astral em determinado ponto,
localizado geográfica e estrategicamente acima do Golfo
Pérsico. O comando da estação móvel estava sob a responsabilidade
da guardiã Merlíades, especialista nos conflitos
da região. Um dos especialistas de plantão, espírito bastante
esperiente em matéria de possibilidades mentais e telepa
338
tia, de nome Ashter, tentava captar pensamentos ou formas-
pensamento dos líderes dos países vizinhos e dar-lhes as
devidas interpretações. O resultado das observações era encaminhado
diretamente para a base principal dos guardiões,
situada no satélite natural da Terra. A mente de Ashter permanecia
atenta ao que ocorria junto aos governos da região:
Emirados Árabes, Arábia Saudita, Bahrein, Kuwait, Qatar.
Irã e Iraque. Tanto Ashter quanto Merlíades eram especialistas
na cultura, na mentalidade e na política dessas nações.
— Recebemos ordem de esperar e ficar de olho na região,
pois há um conjunto de fatores que indica a presença
de magos negros e alguns outros representantes de poder
do submundo a se concentrar nesta região astral. Um conflito
é iminente, não há dúvida.
Antony Heppkins passou a mão entre os cabelos perfeitamente
aparados, de cor acobreada, num claro gesto de
impaciência.
— Está bem, está bem, Ashter. Acontece que eu sou um
guardião, e não um animalzinho que fica sentado à espera
do dono, nem me presto a ficar inerte enquanto forças da
oposição se reúnem, colocando em risco a segurança energética
do planeta.
33 9
— Sua fala significa algum tipo de insinuação sobre a
responsabilidade de nosso comandante, Jamar? Porque, se
for assim — intrometeu-se Merlíades —, sua postura será
interpretada como insubordinação e indisciplina, guardião.
Antony pediu desculpas pela forma como falara ao especialista
e tentou se justificar. Mas a guardiã era intransigente
e não permitiu que ele continuasse com a postura
inquieta. Passou-lhe uma reprimenda à altura da responsabilidade
assumida por eles. Alguém na base voadora deu
uma gargalhada estridente, descontraindo o ambiente.
Os especialistas em visão à distância Mário Pitanga e
Simon Ormutz entreolharam-se, mas ficaram quietos. O
primeiro era expert em política internacional, e ambos pertenciam
ao grupo de força psíquica do exército especial dos
guardiões. Admiraram-se de que Antony tivesse ficado tão
quieto assim após a repreensão da guardiã, pois lhe conheciam
o jeito de agir e reagir às situações. Com a cara mais
inocente do mundo, depois de um tempo mais longo, Antony
fez um comentário, como se não houvesse falado nada
anteriormente:
— A base lunar está cada vez mais capacitada. Parece
que Anton e seus auxiliares recebem a cada dia mais e
34 0
mais tecnologia de dimensões superiores. Imagino até que
saibam de algo iminente e comprometedor sobre esta região
do planeta.
Outra base móvel dos guardiões, ainda que de proporções
bem maiores, orbita o planeta, em velocidade pouco
maior do que a da rotação da Lua, porém em sentido contrário
a este movimento, a uma distância aproximada de
200 mil quilômetros da superfície do planeta. Isto é, pouco
mais da metade da distância que separa a Lua da Terra.
Nessa base, outros guardiões observam detidamente
a ação de entidades perversas e sombrias que tentam influenciar
de modo decisivo a estrutura de poder nos governos
do mundo. Existem várias bases espalhadas estrategicamente
pela região astral da Terra. A base sob o comando
de Merlíades era uma das mais importantes, pois se localizava
estrategicamente num dos pontos de maior conflito
do Oriente Médio e, afinal, de todo o globo. Todos os guardiões
nesse centro de operações especiais usavam o mesmo
uniforme, e dificilmente se distinguiria o posto ocupado
por eles através de sinais externos.
— Como faremos para intervir no caso de uma guerra
entre os países envolvidos no jogo de poder desta região?
34 1
— Já disse anteriormente — falou Merlíades, sabendo
que seu nome era alvo de brincadeiras entre os guardiões,
pois era de procedência persa, algo que a maior parte não
entendia, de modo que soava estranho aos ouvidos deles. —
Só agiremos depois que nosso comandante Jamar trouxer
as ordens da Lua. Até lá, faremos todo o possível para entender
a situação por aqui, anotar cada lance que ocorre nos
bastidores da vida, no que tange aos países observados, e,
com base nisso, elaborar estratégias de ação para sugerir no
caso de deflagrarem a guerra que se esboça no horizonte.
Antony tentou mais uma vez interferir:
— Conforme vinha dizendo... — esboçou ele.
Mas a guardiã foi mais ágil e ardilosa e, pela primeira
vez, Merlíades o surpreendeu, quase mudando o rumo da
conversa ou, talvez, dando-lhe novo enfoque:
— Que tal pedirmos a Jamar que entre em contato com
a Amanda? Como se trata de uma metrópole itinerante,
ou seja, que pode se deslocar nos fluidos do planeta, talvez
possam nos auxiliar mais diretamente nesta região.
Antony ainda refletia sobre o que pretendia dizer
quando o novo comentário de Merlíades modificou completamente
o rumo de seus pensamentos. Mas como lhe
342
era característico em certos momentos, pensava uma coisa
e falava outra completamente diferente. Dessa forma, somente
Merlíades e Ashter, capacitados a se aprofundar nos
pensamentos de outros, conseguiram interpretar de forma
correta o que o guardião queria efetivamente dizer. Os demais
ficaram sem compreender o sentido de suas palavras:
— A esta altura, a situação deve ser ainda mais difícil
em relação aos espíritos das regiões sombrias, já que os magos
se intrometem junto com cientistas que desenvolveram
a habilidade hipnótica... Talvez somente especialistas
consigam ficar imunes aos hipnocomandos desses seres. Se
Amanda enviasse alguns de seus peritos!
Merlíades olhou para Ashter, trocando impressões que
ficaram somente no nível mental mais profundo, imperceptíveis
aos demais guardiões.
— Entrarei em contato imediato com Jamar — falou a
guardiã, de certo modo reconhecendo a habilidade de Antony
em prever certos lances de um conflito de caráter mais
abrangente. — Com certeza ele saberá como proceder ao
entrar em contato com os administradores da metrópole.
Antony sorriu intimamente. De alguma forma conseguira
influenciar a opinião da guardiã. Ele tinha absoluta
34 3
convicção acerca da urgência que cercava os acontecimentos.
Enquanto Merlíades assumia o posto de comunicação
da base, Antony comentou num tom mais baixo que o usual:
— Se continuarmos sentados só observando, talvez ocorra
uma tragédia muito maior do que esperamos. Os governantes
da região e de outros países que lhes são antagônicos
talvez sejam induzidos por comandos hipnóticos dos
especialistas da oposição. Os magos e cientistas do astral
inferior não brincam em serviço. Não podemos ficar dando
uma de espiões, apenas. Temos de advertir as diversas
cidades no espaço, a fim de ficarem em prontidão, pois
uma guerra se precipita e não sabemos a extensão dos danos
nem a quantidade de espíritos que poderão abandonar
o corpo físico de maneira brutal. Eis um problema difícil de
enfrentar, até mesmo para os poderosos guardiões.
O especialista Simon Ormutz acrescentou:
— Temos de contar com a estação móvel dos guardiões,
que descreve a órbita em torno do planeta. Com seu potencial
de trabalhadores e especialistas, talvez consigamos interferir
decisivamente no palco dos conflitos.
Foi nesse momento que Ashter comentou, talvez soando
como se estivesse advogando a causa defendida por Antony:
344
— Como você disse, amigo, a base móvel descreve uma
órbita em torno do planeta, mas, obedecendo ao conjunto
de forças naturais do orbe, não pode nem acelerar nem
reverter sua trajetória. A base não pode se virar constantemente
para a Crosta. Por isso, acho acertada a presença
de uma metrópole que possa controlar seus movimentos
para onde quer que sejam necessários. Além da Aruanda,
temos mais duas outras cidades espirituais que podem nos
socorrer. Uma está sobre os céus da Europa e outra, sobre
a Antártida. Elas também podem se deslocar, em caso de
necessidade.
Ashter conseguiu convencer os guardiões com seus comentários.
Mais uma vez, Antony riu silenciosamente. Ele
sabia da urgência da situação. O Golfo Pérsico era um barril
de pólvora prestes a explodir.
Quando Merlíades conseguiu contato com a base dos
guardiões, localizada em regiões mais profundas do plano
astral, Jamar já estava atento e imediatamente convocou
enorme contingente comandado pelo oficial Watab. A
nave ou, melhor dizendo, o carro voador que transportava
um contingente invejável de guardiões da noite tinha mais
ou menos 300m de diâmetro e era protegido por um gigan
34 5
tesco campo energético, imperturbável e impenetrável. Representava
um poder que não poderia ser ignorado pelas
forças do mal e da oposição à política do Cordeiro. Havia
um transmissor montado no portentoso aeróbus, desenvolvido
especificamente para enfrentar tempos de guerra.
Emitia constantemente um chamado para diversas cidades
e colônias astrais, principalmente as mais próximas da região
onde o confronto se desenhava.
Próximo ao local onde ficava o transmissor, numa sala
mais ampla, estava um destacamento de vanguarda dos
guardiões, que partiria rumo aos lugares críticos e a determinados
países, que haviam se aliado para enfrentar a
possibilidade da guerra, mas que, no final, teriam participação
mais intensa. Estados Unidos, Grã-Bretanha, França,
Arábia Saudita, Egito e Síria eram os alvos principais para
onde o grupo seria enviado, na tentativa de administrar
ou amenizar a provável intervenção internacional na região.
Outro comando de guardiões ficou de prontidão junto
aos governos do Irã e da antiga União Soviética, procurando
incitá-los de alguma forma a intervir, numa tentativa
de paz entre os países envolvidos. O conflito do Golfo estava
armado, e as forças dos guardiões, de prontidão, deslo
34 6
cavam seu exército composto de espíritos das diversas falanges:
mongóis, legionários de Maria, guardiões da noite e
outros especialistas. Além do mais, aguardavam uma equipe
de pais-velhos peritos no trato com os magos, pois a região
espiritual nas imediações do evento que se precipitava
constituía um ponto de concentração de antigos magos das
remotas civilizações da Pérsia e da Babilônia.
A nave dos guardiões percorria o espaço dimensional
entre os planos astral e físico, cercada pelo campo defensivo
iluminado numa cor azul-turquesa intensa, que a protegia
contra qualquer ataque. A Aruanda, respondendo ao
chamado dos guardiões, deslocava-se, qual fortaleza poderosa,
movida por forças gravitacionais direcionadas e devidamente
controladas por técnicos especialistas. Enquanto
realizava uma manobra ligeira, imperceptível aos habitantes
da comunidade, foram evacuados mais de 5 milhões de
espíritos visitantes, que estavam na cidade apenas para estudo
ou lazer. Restaram apenas os habitantes da cidade.
O conflito no plano físico era dado como certo, principalmente
devido às posturas do ditador da região, que se
envolvera em antigas disputas territoriais. Ele assumia esse
posicionamento naquele momento histórico perigoso com
347
a desculpa de defender sua política de preço do petróleo.
Além disso, exigia absurdas indenizações do país vizinho.
No meio daquele confronto de dimensões espirituais e
históricas foi que tive meu primeiro contato com as forças
que costumeiramente os guardiões chamam de forças da
oposição. Esse termo fora cunhado para designar as hostes
inimigas do bem, contrárias à política do Cordeiro, nome
dado ao governador espiritual da humanidade, mais conhecido
entre os homens pelo nome de Jesus Cristo.
Estava a bordo do poderoso comboio, que mais parecia
uma nave de guerra. Havia especialistas por todo lado. Da
Amanda, chegaram também diversos pais-velhos, que, tão
logo se materializaram no ambiente da nave, transformaram
a vestimenta perispiritual, de modo a assumir a aparência
que tiveram em encarnações mais recuadas, como
magos brancos e sacerdotes dos colégios iniciáticos antigos.
Precisavam enfrentar os magos que se reuniam numa
localidade entre os rios Tigre e Eufrates, onde no passado
existiu importante centro de iniciação espiritual.
O enorme comboio se colocou acima dos Montes Taurus,
na Turquia, numa região logo ao norte da ilha de Chipre,
e aí fixou a base dos guardiões. Antes mesmo que fos
348
se decretada a guerra, Pai João, secundado por sua equipe
especialista no trato com os magos, juntamente com Jamar.
localizaram uma base dos temíveis magos negros numa dimensão
subcrostal que ficava abaixo da região de Al-Qurna,
no sudeste iraquiano. Ali foram concentrados os esforços
dos guardiões e dos pais-velhos. As cidades espirituais
do Velho Mundo foram todas acionadas para ficarem em
estado de alerta, caso houvesse descarregamento de uma
cota extra de ectoplasma na atmosfera espiritual do planeta,
devido aos prováveis desencarnes em massa. Havia mui
ta tensão no ar.
Voltando sua atenção para mim, Jamar falou, não me
dando margem para discordância:
— Você permanecerá conosco por um pouco de tempo.
Ângelo. Não convém que se exponha diretamente e de maneira
intensa ao embate de forças discordantes. Pelo menos,
ainda não. Portanto, não estranhe se, depois de algum
tempo, o convidarmos a retornar à cidade e ficar ao abrigo
das energias aqui desencadeadas.
— Mas eu gostaria de participar...
— Como eu disse — acentuou Jamar —, ficará certo tempo
conosco, mas não podemos colocar em risco sua integri
349
dade espiritual, pois é recente sua estadia conosco. É preciso
entender que nem tudo pode ser conforme queremos.
Não havia como debater com o guardião. Meu anjo protetor
não deixava dúvidas quanto à sua decisão. Só me restava
calar e torcer para que pudesse ver a maior parte dos
lances do conflito iminente. Precisava recolher informações,
mas não sabia até que ponto minha presença seria útil
a mim ou prejudicial à ação dos guardiões. Eu esperaria.
Num plano dimensional próximo à Crosta, diversos
servidores do Cordeiro se reuniam na base móvel dos guardiões,
o grande comboio, com o intuito de discutir temas
importantes para o momento, em que a guerra era por demais
significativa e determinava, no cômputo do tempo, o
inicio de uma nova etapa do processo de seleção e colheita,
como se referiam ao período intenso de atividades vivido
pela humanidade. Jamar expedira um boletim no qual,
além da dar notícia dos acontecimentos que se desenrolara
m no plano dos homens, convocava as comunidades do
espaço a somarem esforços para enfrentar os horrores de
uma guerra iminente e de graves consequências globais.
Vieram representantes de várias colônias e cidades do
Além, reunidos em prol da humanidade. Entre os espíritos
35 0
ali presentes, Merlíades e Antony, Asher e outros mais da
equipe aguardavam os próximos lances.
Entre os desafios apresentados tanto por Jamar quanto
por Semíramis e Pai João, estava a necessidade de ampliação
das áreas adjacentes às cidades espirituais e colônias
do plano astral. Era preciso capacitar as cidades vibratoriamente
mais próximas da Terra a receber os milhares de
espíritos que desencarnariam em condições traumáticas e
em pequeno espaço de tempo. E isso não exclusivamente
naquela guerra que fora decretada pela insanidade de um
tirano, mas também em cataclismos como terremotos, tsunamis,
maremotos e outros mais, cuja incidência aumentaria.
A isso se somariam outros conflitos bélicos e revoltas,
atentados e outros atos de violência, patrocinados pela insensatez
humana, redundando no aumento do número de
desencarnes em massa.
— Precisamos invocar o auxílio dos espíritos construtores,
pois haverá necessidade de ampliar as áreas de
socorro nas colônias, cidades espirituais e metrópoles do
plano astral mais perto da Crosta — falou Pai João, agora
numa roupagem fluídica diferente da habitual. — Os chamados
postos de socorro, localizados em regiões inóspitas
351
do conhecido umbral e em dimensões mais densas, não
somente devem ser ampliados, como também devemos
formar mais trabalhadores. Temos na Aruanda o cadastro
de numerosos seres, ainda encarnados, que poderão servir
de auxiliares desdobrados. Colocaremos nossos registros
desses filhos à disposição das diversas cidades e colônias
do astral.
Olhando atentamente os espíritos que participavam da
reunião emergencial, o pai-velho continuou, acentuando
mais ainda suas palavras:
— As várias cidades espirituais que se apresentaram
para colaborar nos eventos críticos que enfrentaremos precisam
aprimorar a rede de comunicação, estabelecendo
intercâmbio eficiente entre elas tanto quanto com todo o
sistema de cidades do plano astral do planeta, a fim de receber
e compartilhar recursos e orientações do Alto. Uma
rede de comunicação estreita e funcional deve entrar em
operação urgentemente.
Após dar um tempo para os diversos espíritos processarem
as ideias, o pai-velho continuou:
— Nós, da Aruanda, podemos oferecer nossa universidade
e seus diversos departamentos para a formação de
35 2
trabalhadores, que poderão ser encaminhados para servir
nas diversas frentes de batalha espiritual. Nosso amigo Anton,
um dos representantes maiores dos guardiões, enviará
o registro de médiuns e trabalhadores de diversos países, a
fim de que se faça um apelo para que unam seus esforços
neste momento crítico.
Quanto a mim, ficava o tempo todo somente ouvindo,
pois ainda não tinha adquirido nenhuma habilidade para
me dispor como servidor nesta hora grave. Observei como
os representantes de algumas cidades espirituais estavam
muito sensíveis ao que se desenrolava no Oriente Médio.
Foi quando Semíramis tomou a palavra e complementou
a fala de Pai João:
— Algo também me preocupa a partir deste momento,
que, para nós, é somente o início das provações coletivas.
Falo, ainda, sobre a necessidade de preparação das cidades
espirituais. A readequação das cidades e a capacitação de
mais trabalhadores precisam ocorrer de maneira planejada
e inteligente, a fim de formarmos trabalhadores com competência
e discernimento, e não somente com boa vontade. Assim,
teremos a possibilidade de socorrer e amparar os seres
que desencarnarão com o máximo de habilidade e eficácia.
35 3
"Não podemos esquecer que quem virá da Terra nos
próximos anos, em levas ou desencarnes coletivos, será proveniente
das experiências mais variadas, no que concerne a
religiões e cultos. Então, pergunto: como promover a adoção
de uma linguagem que, se não todos, ao menos a maioria
compreenda? Creio que precisamos nos reunir, tanto os administradores
quanto os líderes de equipes das diversas cidades,
a fim de ajustar um método eficaz de cumprir a missão
que está diante de nós, além de estabelecer uma cadeia
de auxílio mútuo, levando em conta os desafios de abrigar e
conduzir milhares de espíritos que reclamarão amparo."
Entendi que nem para os espíritos mais experientes
era fácil lidar com culturas espirituais tão diversas como
as que existiam em torno do globo terrestre. O problema
cultural e religioso persistia, além da sepultura, como um
grande desafio, agravando-se nos momentos de crise espiritual
e resgates coletivos.
Ainda com o mesmo pensamento, Astrid pediu a palavra
para comentar:
— Sei que pode ser prematura esta proposta, principalmente
numa hora de urgência como esta, mas aproveito a
presença de representantes das diversas comunidades do
35 4
espaço para fazer um apelo. Precisamos enfrentar um desafio
muito grande, mas que, encarado em conjunto, pode
surtir um resultado valioso e facilitar o trabalho no futura
O desafio que vejo se esboçar é o de inspirar os servidores e
aprendizes dos diversos cultos e religiões, principalmente
os de cunho espiritualista, onde ocorra atividade mediunica
ostensiva, a se unirem e deixarem de lado as diferenças
em prol de um ideal maior.
Notei que alguns espíritos se entreolharam, pois, entre
os que faziam parte da assembleia naquele momento, alguns
não pertenciam a ramos que admitiam declaradamente
a prática mediúnica. Havia, por exemplo, cinco espíritos
representantes da crença católica, provenientes de cidades
espirituais que foram construídas dentro desse ideal, além
de dois membros de colônias de feição manifestamente
evangélica. E a palavra de Astrid pareceu mexer muito com
eles. Pai João, habilmente, conseguiu deixá-los mais à vontade,
embora vissem alguns dos espíritos da Aruanda com
certa reserva. Mesmo assim, colaboraram ante o apelo dos
guardiões e se colocaram prontos a servir. Pelo menos ali e
naquele momento, deixaram de lado os pontos de vista discordantes
para auxiliar como podiam.
355
Além deles, pais-velhos, caboclos e espíritos que se apresentavam
neste momento com forma diferente da habitual,
todos atenderam ao chamado deflagrado pelos guardiões.
Havia colaboradores do extremo oriente asiático, médicos
do espaço e espíritos comprometidos com o bem ligados à
religiosidade do povo brasileiro. Ainda se viam espíritos procedentes
de alguns países da Europa, inclusive do leste europeu,
que ali se reuniam também para ajudar quanto pudessem.
Todos conversavam sobre estratégias para aumentar o
contingente de trabalhadores, reurbanizar diversas cidades
do Além, preparando-as melhor para receber, educar e auxiliar,
da melhor maneira possível, os espíritos da Terra.
Receberam de bom grado a proposta de Jamar e João
Cobú, bem como de Antony, Ashter e Merlíades, que participavam
da reunião na base voadora dos guardiões. Não
somente naquele momento crítico da guerra que estava
em andamento, embora em fase inicial, mas também nos
eventos futuros, precisavam aprofundar a união. Os espíritos
especialistas precisavam de mais colaboradores com o
máximo de capacitação e responsabilidade, mas sobretudo
que não ficassem brigando por seu ponto de vista sobre a
vida espiritual.
35 6
Disse João Cobú, acentuando a opinião de espíritos
que trabalhavam sob a feição espiritual de pais-velhos:
— Temos de ficar muito atentos, pois do lado de cá ainda
temos nossas diferenças culturais e espirituais muito marcantes
e, principalmente nesta região onde estamos agora,
no Golfo Pérsico, a diversidade cultural e religiosa é enorme.
A composição étnico-linguística é na maior parte árabe, com
uma minoria curda. Devemos estar atentos ao lidar com esses
espíritos, uma vez que mais de 90% da população de encarnados
e desencarnados teve ou tem formação religiosa
islâmica. Mais ainda: pelo menos nesta região, a maior pane
de nossos amigos muçulmanos, de um e outro lado pertencem
à facção xiita. Assim como os demais, todos dignos de
consideração em nossos planos de auxílio, constituem um
povo cioso de seus costumes e interpretações religiosas, que
perpassam de forma marcante todos os aspectos de sua vida.
"Também é importante lembrar que é necessário atuar
nos países que se opõem ao regime e à política do ditador
que começou o conflito, isto é: Estados Unidos, Reino
Unido e os outros — cerca de 30 nações — que formam a
coalizão liderada pelos norte-americanos. Seus governos
precisam ser acompanhados por nossos representantes.
357
Sabemos que este será um marco importante, que determinará
o inicio de um período de lutas intensas para os povos
da Terra. Então, meus amigos, é hora de selecionar os espíritos
mais competentes e que mais entendem de política
internacional, pois devemos manter contato com os líderes
mundiais e, de todas as maneiras possíveis, buscar amenizar
a situação que se desenha. Não podemos esquecer que,
entre os representantes espirituais da cultura islâmica, temos
valiosos colaboradores, tanto entre desencarnados
quanto entre encarnados. Fora do corpo, muitas vezes, estes
podem colaborar com mais celeridade, sem as rivalidades
que vemos entre os homens."
Fiquei olhando a expressão dos espíritos ali presentes;
não havia como não notar certa aversão aos membros
da cultura islâmica. Esse sentimento, ao que tudo indicava,
havia se dilatado para este lado da vida. Ou seja, aqui
também vi que, entre os representantes de diversas cidades
espirituais, havia aqueles nos quais persistia alguma nódoa
de preconceito. Os religiosos, principalmente, pareciam
ter dificuldade de se liberar dos pontos de vista pessoais e
doutrinários, de comungar com quem pensava diferente ou
rezava por uma cartilha distinta. Mesmo assim, eram espí
358
ritos dispostos a servir, a auxiliar nos momentos de crise
política e espiritual. Talvez observando o mesmo que eu.
foi Jamar quem tomou a decisão:
— Distribuirei especialistas da noite que trabalham
mais intensamente com as lideranças mundiais ao lado
dos respectivos líderes de cada país envolvido no conflito.
Sabemos que, por trás das ações de diversos governos do
mundo, existem inteligências sombrias, espíritos inteligentes
e astutos, principalmente magos negros, que intentam
dominar o planeta, de alguma maneira. Por isso, acho mais
apropriado que sejam os guardiões a assumir essa responsabilidade
em particular. Mas também porque — acentuou
Jamar —, como guardiões, não podemos agir motivados por
doutrinas religiosas ou atitudes sectárias. Nossos parceiros
são todos os homens de boa vontade, ou melhor, aqueles
que se irmanam em prol da humanidade. Os pais-velhos.
como especialistas da nossa metrópole na abordagem dos
temíveis magos negros, sugiro que assumam essa questão
mais intensamente. Quanto aos demais, durante a guerra,
dediquem-se ao aspecto que mais lhes diz respeito.
Todos concordaram. A decisão de Jamar havia trazido
certa tranquilidade a alguns representantes de outras cida
35 9
des espirituais. Eles não teriam de lidar diretamente com
questões que certamente emergiriam, em razão da diversidade
cultural e religiosa dos espíritos que seriam envolvidos
na guerra iminente.
Mudando de assunto de um momento para outro, Jamar
apresentou uma proposta aos iniciados da cidade dos
espíritos ali presentes:
— Aproveito a oportunidade para pedir a colaboração
dos habitantes da Aruanda. Estamos de posse de mapas
que indicam uma base muito preciosa dos nossos velhos
conhecidos magos negros. Como muitos iniciados são
exímios magnetizadores, conhecedores de leis do mundo
oculto que muitos espíritos, mesmo alguns especialistas,
desconhecem, venho pedir-lhes a contribuição. Não
se faz necessário apenas desarticular recantos usados pelos
magos. Será preciso também levar a eles o ultimato
concernente tanto a esta guerra em andamento, que terá
uma repercussão insuspeita na sociedade dos encarnados,
quanto aos efeitos desse acontecimento na estrutura
de poder nas regiões inferiores. Para essa missão, não
vejo nenhuma categoria de espíritos mais indicada que
os pais-velhos.
360
Após longa discussão que se seguiu, a respeito da política
na região e da influência mental e espiritual dos espíritos
do mal sobre governos e governantes, ficou bem claro
que os pais-velhos teriam toda a autonomia para agir nos
ambientes inferiores, onde determinados magos mantinham
bases e laboratórios. Ficou acertado que Pai João organizaria
a equipe, juntamente com mais três pais-velhos,
além de recorrer a um médium para auxiliá-los na tarefa,
desdobrado, caso precisassem de energias mais animalizadas
ou de uma cota de ectoplasma mais intensa, algo que
não pode ser descartado quando se trata de ações visando
aos magos negros.
Deixando o grupo debatendo a situação que ocorria no
campo de lutas no plano dos encarnados envolvidos com
a política, entre os cidadãos dos países comprometidos no
conflito, Pai João retirou-se e eu o segui, sempre observando,
muito embora intimamente receoso, ainda ignorando
os ardis dos chamados magos.
João Cobú acionou alguns guardiões ligados a seu trabalho,
depois de analisar documentos compartilhados por
Jamar, muito importantes para os próximos lances do conflito
em dimensão próxima à Crosta. O pai-velho soubera
36 1
de uma reunião de um grupo de magos que pretendia fazer
frente aos chefes de legião das sombras, nas eternas disputas
entre facções existente dentro da oposição; para cumprir
o intento, eles tentariam arregimentar forças entre os
encarnados, após os conflitos que patrocinavam e inspiravam
diretamente. Como o império do mal a cada dia era
questionado e parecia soçobrar como uma nau num oceano
em tempestade, havia diversos grupos pretendendo formar
um domínio à parte; estruturas de poder de uma política
cada vez mais delirante. Por isso, aqueles magos ousaram
influenciar um de seus médiuns ou, melhor dizendo, uma
de suas marionetes no plano físico. Resolveram, também,
lançar mão de outros instrumentos humanos, preparando-
os para desencadear uma guerra mais mortal e absurda.
Recorreram a um governante do Oriente e outro do Ocidente;
ambos seriam o estopim para o que intentavam.
Esses espíritos precisavam saber que os representantes
do Cordeiro, os guardiões, estavam atentos e tinham condições
de intervir de forma a cercear a ação dos magos nas
zonas umbralinas e na superfície, entre os chamados vivos.
Aceitando a incumbência apresentada por Jamar em
nome do governo oculto do planeta, os pais-velhos parti
362
ram em direção às regiões ínferas, que conheciam muito
bem, enquanto equipes socorristas iam e vinham, de
um lado a outro, preparando-se para receber as vítimas da
guerra. Entrementes, num plano muito mais sutil, espíritos
construtores começavam o trabalho de expansão da estrutura
espiritual da Amanda, visando ao acolhimento de
almas com determinada identidade energética que viriam
da Terra. Da mesma forma, outras equipes trabalhavam em
outras colônias e cidades do astral, ampliando as estruturas
de trabalho, como hospitais e campos de apoio, forjando
mais equipamentos e arregimentando número maior de
trabalhadores.
Os calendários da Terra marcavam o dia 17 de janeiro
de 1991 quando um maciço ataque aéreo dava início a uma
represália à terra dos califas. Depois disso, mais de meio
milhão de soldados foram enviados à guerra, que geraria
um pesado tributo de dor abrindo caminho para outras batalhas
que viriam trazer o terror a um povo que sofreria por
longo tempo com um governo aterrador. Foi esse, exatamente,
o dia em que descemos rumo ao recanto do abismo
onde se refugiavam os temíveis obsessores do submundo
da escuridão.
363
Ao transitar por regiões inóspitas e seguir diretamente
a um dos redutos assinalados nos mapas cedidos pelos
especialistas do mundo superior, os pais-velhos chegaram
a um entroncamento energético que parecia esconder a tal
base do grupo sombrio. E foi aí, exatamente, que encontraram
o precioso segredo guardado a sete chaves pelos magos
negros.
O local parecia uma caverna, incrustada numa rocha da
paisagem astral, em regiões profundas da subcrosta. No entanto,
por fora, a tal caverna gozava de um disfarce: uma espécie
de crosta de musgo a envolvia, embora fosse uma vegetação
um tanto distinta daquela composta por elementos
conhecidos do reino vegetal. Em alguns minutos de observação,
um dos médiuns que nos acompanhava, desdobrado
e acompanhado de um dos pais-velhos, sentiu suas forças se
esvaírem. Algo decididamente sugava suas energias, deixando-
o quase desacordado, em questão de minutos. Foi o pai-
velho conhecido como Rei Congo quem o socorreu, eliminando
de sua aura os elementos sutis exalados pelo musgo.
Tratava-se de um gás, além de outros elementos invisíveis,
perfeitamente sentidos pelo médium; pareciam ser expelidos
de dentro da caverna disfarçada. Passaram-se mais de
364
duas horas até que ele recobrasse os sentidos e a lucidez
fora do corpo. Por várias noites retornaria àquele campo de
batalha espiritual, até que o conflito estivesse decidido.
Enquanto eu anotava tudo, observando sempre cada
detalhe e cheio de curiosidade, João Cobú acercou-se de
dois pais-velhos — todos modificados em sua forma espiritual,
que se transfigurara na aparência de antigos magos
— e fizeram o reconhecimento da área. Certificaram-se de
que se tratava exatamente do local apontado pelos mapas
dos especialistas.
Os elementos da flora astral ali presentes guardavam
a característica de absorver energia e fluido vital de qualquer
médium eventualmente desdobrado. Talvez fosse uma
modificação da substância componente dos vegetais, produzida
em laboratório pelos magos que dominavam o local.
Além do perigo que representavam para os viventes, havia
indícios de que entidades vampiras estivessem a postos,
também disfarçadas, para a guarda daquele sítio. O que não
combinava de forma alguma com uma base dos magos era
o fato de haver um campo de forças envolvendo o lugar, rebrilhando
discretamente, de maneira tal que somente espíritos
mais experientes como os pais-velhos pudessem per
36 5
cebê-lo, pois era quase invisível. Isso naturalmente era obra
de entidades que lidavam mais diretamente com a ciência, e
não de magos negros, cuja especialidade era a manipulação
de forças mentais e seres elementais, além de algumas leis
do mundo oculto, desconhecidas da maioria. No entanto, ali
estava o tal campo. Erguia-se como uma cúpula em torno da
montanha onde estava incrustada a caverna. Teriam de ter
cuidado, pois a natureza daquele campo era ignorada.
Após observações mais acuradas, o espírito conhecido
como Pai Joaquim notou que aquele campo fazia com
que a montanha toda — e não somente a entrada da caverna,
que descobriram por acaso — assumisse aspecto diferente,
como se desaparecesse ou fosse aplainada e se misturasse
à paisagem no entorno, formando um ilusório vale
profundo. Esse era o segredo do estranho campo de força:
ocasionava no observador uma espécie de alucinação e, por
isso mesmo, suscitava dúvidas sobre o que ele via, se era
realidade ou uma ilusão dos sentidos. A montanha ora estava
ali, diante dos olhos de quem observasse, ora deixava
de existir, pelo menos visualmente, revelando um extenso
vale. Leve tremeluzir marcava o momento em que a formação
desaparecia, como se o campo energético estivesse
366
prestes a entrar em colapso. Tratava-se de um recurso antigo,
empregado por certos magos ao criar ilusões, imagens e
projeções mentais, de maneira a confundir quem quer que
fosse. Caso os pais-velhos estivessem corretos em suas percepções
e conclusões, a base dos magos propriamente dita
estaria ainda a considerável distância; ali era somente a entrada,
camuflada e repleta de perigos e armadilhas criados
pelos donos do lugar. Não poderia ser de outra forma, pois
assim agiam os magos tradicionalmente, segundo Pai João
pôde explicar. E foi ele quem assumiu a frente do grupo,
tão logo Pai Joaquim relatou a descoberta.
Primeiramente, João Cobú fez um pedido diretamente
à Aruanda e a Jamar para que enviassem mais guardiões
e especialistas. E parece que Jamar já estava de prontidão,
atento a tudo e a todos os detalhes, pois não tardou a chegar
o reforço requerido. Na sequência, os pais-velhos se colocaram
em pontos estratégicos em torno da montanha,
mesmo que sua visão se alternasse com a do vale projetado
pelos magos. O representante do colegiado da Aruanda deixou
o médium que doava energias animalizadas necessárias
ao trabalho, sob a custódia dos guardiões, por ora evitando
que fosse exposto desnecessariamente.
367
Foi somente depois de confirmar que ele estava em segurança
que os pais-velhos começaram a bater no solo do
astral com seus cajados, que, segundo mais tarde vim a saber,
eram condensadores energéticos de grande potência. A
batida cadenciada e cada vez mais ritmada, mais forte e intensa
provocou a queda do campo vibratório que envolvia
a montanha sagrada dos magos, o local que escondiam de
quem a observasse. A cena lembrava a entrada dos israelitas
na terra prometida de Canaã, quando Josué, o comandante
guerreiro, sitiou a cidade de Jericó. Na ocasião, os soldados
de Israel marcharam de modo cadenciado em torno das
muralhas e, ao tocarem trombetas, também obedecendo ao
ritmo determinado por seu líder, as muralhas da cidade ruiram.
1 6 Assisti a algo semelhante, e não era obra de magia,
mas de uma lei da física, porém levada a cabo numa região
astral bem próxima da Crosta, por competentes guerreiros
da luz, que sabiam manejar com maestria seus instrumentos
de trabalho disfarçados de cajados ou coisa similar.
Ao som dos instrumentos utilizados na ofensiva ao laboratório
dos magos negros, ocorreram fenômenos dig
16 Cf. Js 6:1-20.
368
nos de nota. À medida que os cajados se chocavam contra
o chão, despejando no solo astral energias por mim desconhecidas
na ocasião, a estrutura energética do campo de
força cedia, pelo poder e conhecimento dos pais-velhos.
Primeiramente, surgiram faíscas; pequenos raios pipocaram
em diversos pontos da redoma energética, como se a
técnica empregada houvesse provocado curto-circuito em
equipamentos que regulavam a estabilidade da fonte mantenedora
da proteção eletromagnética da base oculta. Logo
após, ocorreram explosões em locais onde o campo tocava
o solo astral, para em seguida todo o complexo ruir, ao som
cadenciado dos cajados dos pais-velhos, que desencadearam
forças acumuladas em seus instrumentos, as quais penetraram
o solo sob a redoma com poderosa vibração.
Assim que a estrutura energética ruiu, causando um
ruído estrondoso, instaurou-se verdadeiro colapso nas defesas
das entidades, que não contavam com a presença ali,
na região, de pais-velhos e altos iniciados de templos do
passado remoto. As entidades vampiras foram vistas; seu
disfarce pôs-se a descoberto no mesmo instante em que a
redoma dos magos se desmantelou. Ao notarem que ficaram
sem a proteção da invisibilidade temporária, ensaia
369
ram um ataque aos guardiões, pais-velhos e ao próprio médium
desdobrado. O vivente era o alvo mais cobiçado, pois,
sendo detentor de força vital, desejavam a todo custo vampirizá-
lo. Entretanto, a providência tomada por Pai João,
convocando o reforço de guardiões, mostrou-se eficaz.
A equipe de sentinelas que veio da Aruanda assumiu
a frente e, sem nenhum escrúpulo, investiu contra os espíritos
vampiros. Resultado: nem sequer as entidades esboçaram
o ataque e logo foram completamente dominadas
pelos guardiões, que as atacaram com poderoso arsenal
magnético de armas elétricas, que despejavam raios sobre
a turba de obsessores, causando entorpecimento dos sentidos
espirituais. Adormeceram logo que foram atingidos
pelas descargas das mais de 50 armas. Em meio a gritos e
pontapés, desferidos pelas entidades vampiras que escaparam
ao furacão dos raios narcotizantes, os sentinelas enviados
de Aruanda os prenderam magneticamente, de maneira
que não mais pudessem representar qualquer perigo
para a equipe.
Entrementes, os pais-velhos cessaram o movimento
com os cajados, pois a vibração no solo astral poderia fazer
toda a caverna ou sua entrada ser destruída.
370
Meu coração parecia querer sair pela garganta, de tal
forma fiquei envolvido pela situação e, honestamente, com
medo do desfecho que se daria. Se já naquele ponto da jornada
encontramos tamanha resistência das entidades que
defendiam os magos, que dizer, então, dos próprios magos
negros? Confesso que meu primeiro contato com as
regiões inferiores não foi nada confortável nem tranquilo
para mim. Por muitos dias, permaneceria revendo aquela
cena na cabeça.
Ao tempo em que esses acontecimentos ocorriam nas
regiões sombrias próximas à Crosta, Anton resolvera sair
da base principal no satélite lunar e visitar o campo de
guerra. Juntamente com Jamar, conversava com um dos
guardiões do Oriente, sob a supervisão de Zura, a respeito
da situação dos países envolvidos no conflito do Golfo
Pérsico e sobre o que essa guerra representava para o futuro
político e socioeconómico do planeta. O Oriente Médio
causava grande preocupação nos guardiões naquele momento;
além de Iraque e Kuwait, palco dos conflitos, observavam
Israel e as demais nações palestinas, e sobretudo
países árabes da África setentrional, como Egito e Líbia.
Falavam sobre os ditadores que cairiam e aqueles que se
371
riam fantoches manipulados pelos magos negros no exercício
do poder.
Nos EUA, na sede da ONU, na Grã-Bretanha e no restante
dos países aliados, poderosos guardiões montavam
guarda, pois sabiam que tais países remeteriam tropas
cada vez mais letais para a região. Havia uma movimentação
intensa dos dois lados da vida. Os especialistas de
Jamar desarticulavam estruturas erguidas em torno dos
governantes, em seus gabinetes de governo — aparatos engendrados
pelos magos negros e seus asseclas. Os habilidosos
representantes do poder em lugares ocultos sabiam
bem como manipular os homens, que acreditavam piamente
na própria autonomia ao tomar decisões. Havia, no
entanto, um fluxo de influência intenso, por meio da habilidade
hipnótica dos magos, antagonizando Oriente e
Ocidente, a ponto de cumprirem o intento de desencadear
uma guerra que assinalaria o início de um período de agravamento
das animosidades, gerando intensas dores e provas
para a população global.
Enquanto isso ocorria nos bastidores da política internacional,
os guardiões interferiam. Após confabular com
Anton, que trazia informações preciosas da base principal
372
dos guardiões, Jamar assumiu a dianteira pessoalmente.
Elevou-se ao ar com sua aura rebrilhando como potente irradiação
magnética, e todos os guardiões o viram elevar-se
como um anjo guerreiro. Plainando sobre o local do confronto,
sobrevoou cidades importantes do Oriente Próximo
enquanto rasgava os céus do planeta, rumando ao cerne da
guerra de Saddam Hussein.
Ao mesmo tempo, Watab e um grupo de guerreiros dirigiram-
se ao continente norte-americano, postando-se
lado a lado com George H. W. Bush, ocasião em que liberaram
agentes do governo das garras de entidades associadas
aos magos, bem como desarticularam sofisticados equipamentos
das sombras, instalados diretamente na Casa Branca,
sede do poder estadunidense, a fim de manter a força
hipnótica sobre os homens daquele governo e de muitos
outros da coalizão. Mas a ação de Watab não se limitava a
esse continente. Ele ia e vinha numa velocidade alucinante,
entre o continente norte-americano e o palco dos confrontos,
no Golfo Pérsico, sempre que era necessária uma atuação
mais decisiva e conjunta com o chefe dos guardiões.
Jamar mergulhou no cerne do conflito. Quando desceu
sobre o abrigo de Hussein, mais de 20 magos, de plantão
373
ao lado do ditador, viram a luz imortal brilhando, a emanar
potentes forças magnéticas, enquanto o guardião desem
bainhava a espada e rasgava, com um só golpe, o campo de
força formado por magos e científicos em torno do coman
dante iraquiano. Uma comitiva de magos elevou-se a alguns
metros do solo, emitindo vibrações intensas contra o guer
reiro que descia em nome da política do Cordeiro. Um deles
conseguiu atingir Jamar com a irradiação poderosa e quase
fatal ao seu equilíbrio, não fosse o fato de tal golpe ter sido
desferido exatamente contra o mais capacitado chefe da se
gurança espiritual. Jamar desviou-se para o flanco esquerdo,
enquanto duas outras entidades o envolveram num campo
vibratório potentíssimo. O guerreiro contorceu-se, envolto
numa energia desconhecida, que cerceava seus movimen
tos. Gargalhadas foram ouvidas ressoando no ambiente en
quanto o guardião detinha seu voo e concentrava-se. Mais
alguns minutos de completa imobilidade e ele literalmente
explodiu o campo de forças, imediatamente começando a
girar, cada vez mais rápido, pegando o grupo de magos des
prevenido. Duas entidades aparentemente especialistas em
ciência apontaram o alvo, que se libertara do robusto cam
po energético, mirando nele com armas invencíveis, segun
374
do consideravam. Jamar parou o giro em torno de si mesmo,
notando que um furacão parecia varrer a base inimiga.
Enquanto isso, na Crosta, acontecia a operação que ficou
conhecida como Tempestade no Deserto. Duas ousadas
empreitadas ocorriam simultaneamente. Em um e outro
lado da vida, acontecimentos singulares marcariam o
fim de um período sangrento de batalhas.
O guardião da noite concentrou-se mais uma vez e,
em voo rasante, zinguezagueando, despistou a artilharia
dos científicos e pairou suavemente, como se usasse paraquedas,
logo acima das cabeças dos magos e seus aliados.
Observou com olhar atento as entidades que envolviam
Saddam e ficou impassível ao que ocorria, num tremendo
esforço de concentração. Aguardava as notícias de Pai João
e sua equipe de iniciados, que se encontravam nas regiões
inferiores do planeta, a fim de dar o golpe final. Os magos
não entenderam a repentina imobilidade do guerreiro. Não
suspeitavam do que sucedia mais abaixo vibratoriamente,
entre os seus aliados no submundo, no lugar onde a guerra
era arquitetada pelos detentores do poder na região.
Em outros recantos do mundo, guardiões especialistas
assumiam controle sobre a situação, no que tange aos lide
37 5
res governamentais. Nos Estados Unidos, envolviam Colin
Powell, o então militar de mais alta patente no Departamento
de Defesa, e o Comandante-em-Chefe General Norman
Schwarzkopt; além deles, cercavam o ministro da defesa
egípcio Mohamed Tantawi, assim como o premiê britânico
John Major e o rei saudita Fahd. Ao lado desses e de outros
expoentes do poder temporal, grupos de 5 guardiões
foram estrategicamente posicionados, no intuito de aniquilar
qualquer ação dos magos dirigida a esses membros da
comunidade internacional, peças-chave no conflito em curso,
visando desfazer o que pudessem da estrutura de domínio
hipnótico sobre eles. Do mesmo modo, guardiões cercaram
as famílias dos atores principais da guerra. Mohamed
Hussein Tantawi recebeu especial atenção dos guardiões,
pois, através dele, magos mais habilidosos montaram um
aparato especial, desmantelado com dificuldade. Pretendiam
usá-lo mais intensamente em seus planos na região.
Jamar, ainda impassível acima dos magos no escritório
de Saddam, acompanhava tudo, dando ordens aos seus oficiais,
à distância, a fim de que tomassem as devidas providências
e liberassem o marechal egípcio da influência articulada
pelos magos. A partir de então, trariam diariamente
37 6
o estrategista desdobrado a uma das bases dos guardiões,
na tentativa de explicar-lhe os lances e as implicações do
conflito que se desenrolava, e conscientizá-lo da importância
de sua ajuda no futuro político da região. Todavia, dependiam
do Marechal Tantawi sintonizar-se com a proposta
dos guardiões.
Semíramis, acompanhada de mais 10 especialistas e algumas
guardiãs lideradas por Astrid, partiram em direção
à Arábia Saudita, montando guarda junto ao Rei Fahd bin
Abdul Aziz Al-Saud. Ali Semíramis reuniu suas guardiãs e
libertou o rei das amarras impostas por um grupo seleto de
magos. Desdobrando-o, ela lhe apresentou uma proposta
de reformas políticas, visando desencadear a receptividade
a novas interpretações da religião islâmica. Semíramis e
Astrid pessoalmente se envolveram com Fahd e sua equipe
mais próxima, na tentativa de conduzir o governo a uma visão
mais aberta. O resultado dessa ação, era claro para elas,
somente seria visto no futuro, a partir de 30 anos. Mas as sementes
foram ali plantadas, enquanto os guardiões competiam
com o grupo de magos da antiga Babilônia que montavam
quartel no palácio do governo. Watab, requisitado por
Semíramis, encarregava-se pessoalmente das questões poli
377
ticas mais prementes, inspirando Sua Majestade a dar apoio
à campanha para liberar a região das forças de Saddam.
Jamar coordenava tudo, envolvido em seu campo de
energia particular. Dali, conversava mentalmente com cada
equipe disposta em vários recantos do mundo. Os magos
hesitavam, sem saber o que fazer, impotentes para atingir
o guardião.
Pai João, por sua vez, acompanhava tudo por meio da
conversa mental do guardião da noite. No cenário do planeta,
na Crosta, a situação geopolítica exigia providências
imediatas. Mais de 30 mil mortos e muito mais de 70 mil
feridos na guerra despejavam na atmosfera uma cota maciça
de ectoplasma, decorrente dos desencarnes coletivos
que ocorriam em meio a uma atmosfera de medo, dor e sofrimento
indizíveis. Carga tóxica de proporções monumentais
derramava-se na região astral. Ante essa realidade, a cidade
de Aruanda entrou em ação.
Na estrutura psicofísica da metrópole itinerante, havia
duas grandes torres ou antenas: uma, erguida em direção ao
alto, captava energias advindas de regiões superiores; a outra
descia abaixo da superfície da cidade dos espíritos, em
direção à Terra. Ambas foram acionadas. A inferior absor
37 8
via o conteúdo energético de diversas regiões do Golfo, sugando
a cota excedente de fluido vital, exsudada em razão
das mortes violentas de milhares de vítimas. Ao se concentrar
o excesso de energia na base da estrutura da Aruanda,
evitava-se que tal recurso fosse utilizado pelos magos como
combustível para suas atividades repulsivas. Ao mesmo
tempo, espíritos de antigos caboclos, em conjunto com os
legionários de Maria, realizavam verdadeira varredura astral,
dispersando, no ambiente astral, elementos residuais
da guerra. De outro lado, equipes de espíritos socorristas
levavam grande contingente de seres para a periferia da
Aruanda, onde eram atendidos por pais-velhos e mães-velhas,
além de índios, que auxiliavam os seres recém-desencarnados
fazendo com que adormecessem, visando evitar
tragédias desnecessárias em nossa dimensão. Após serem
atendidos em caráter de emergência, eram conduzidos a
outras cidades e colônias do espaço, mais capacitadas a lidar
com indivíduos daquele perfil espiritual, os quais deixavam
o corpo no campo de batalha. A Aruanda não era o
destino final desses espíritos, mas ali eram atendidos e levados
aos mares, às cascatas e florestas, a fim de reabaste
cerem as forças nos recantos naturais da metrópole.
379
Fora construída ampla rede de auxílio entre as cidades
espirituais. Caso alguém do plano físico pudesse ver, observaria
naves portentosas decolando com inúmeros espíritos
a bordo, voando em direção a outras cidades da imensidade,
onde os desencarnados seriam mais detidamente amparados.
Muitos deles nem sequer puderam ser ajudados,
pois preferiram ficar prisioneiros nos campos de combate,
jungidos mentalmente à dor e ao sofrimento, à angústia e
à sede de vingança. Todavia, mesmo ali, junto aos escombros
de guerra, comunidades foram levantadas e espíritos
benfeitores auxiliavam no resgate e na assistência a quantos
quisessem ajuda.
Jamar coordenava tudo, mentalmente ligado a todas as
equipes, enquanto Anton dava cobertura com seu destacamento
de especialistas.
No momento em que os pais-velhos adentraram o
grande laboratório de experiências paracientíficas dos magos
negros, encontraram o horror estampado no olhar de
um dos nove iniciados do passado. Pareciam hipnotizados
diante de uma câmara, onde flutuavam à sua frente figuras
representativas de membros do alto escalão de diversos governos
mundiais.
38 0
Uma substância gelatinosa parecia se adaptar e revestir
o corpo espiritual totalmente deformado dos seres diante
de nós. Um deles sobressaía aos demais. Era curvo, alto,
sem cabelos; tinha a pele totalmente ressequida e enrugada.
Nitidamente exercia um domínio fantástico sobre os
demais, que se localizavam num nível abaixo deste que parecia
ser o líder. Estranho manto descia sobre as costas do
ser hediondo à nossa frente. Estremeci.
A cor dominante no ambiente era roxa, a fim de favorecer
a concentração dos magos. Eles acreditavam estar totalmente
a salvo de quaisquer invasores, e essa crença tão
forte, decerto alimentada por boa dose de presunção, não
permitiu que percebessem de imediato nossa aproximação.
Ademais, estavam sobremodo concentrados nos líderes
mundiais, a tal ponto que tudo o mais escapava a seu
conhecimento.
O mago alfa, como chamei mais tarde aquele que sobressaía
aos demais, sem dúvida alguma era o chefe do
grupo. Pai João confirmou tal fato. Olhos negros sombriamente
expressivos, porém estáticos, davam-lhe um aspecto
bizarro e ao mesmo tempo temível. Os globos oculares
refletiam a luz do ambiente, muito embora não se deixas
381
sem inebriar. Apesar do aparente transe em que se achava
seu dono, aqueles olhos denotavam um processo mental
complexo e tremendo, ao qual se agarravam com afinco o
mago e sua equipe de iniciados. A alma desse ser parecia
um oceano abismal de superlativos de horror — e tal realidade
transparecia em seu olhar. Um fanatismo hediondo,
calcado no desejo de governar o mundo, jorrava na atmosfera
mental que absorvia o grupo, mas sobretudo da aura
do mago sobre o qual concentrávamos a atenção. Qualquer
tentativa de expressar com exatidão o conteúdo de seu ser,
ou de descrever a força empregada para impor suas ideias
fanáticas e extravagantes seria improdutiva. Os pensamentos
exalados e as imagens mentais que eram refletidas no
ambiente, como se fossem flashes ideoplásticos, falavam
por si sós acerca da degeneração daqueles espíritos e da
impossibilidade de exprimir através de qualquer vocábulo
a hediondez das intenções que alimentavam. Conectavam-
se entre si de tal maneira que davam a impressão de ser
uma única inteligência.
Parte da mente dos magos, condicionada e dirigida
pelo chefe da horda, estendeu para além de si laços mentais,
os quais se alongavam até outros países, passando por
38 2
uma dimensão invisível aos sentidos humanos. A consciência
dos nove dirigia-se exclusivamente aos chefes de estado
e seus auxiliares mais próximos, principalmente àqueles
que serviriam de modo mais direto aos planos de transformar
a guerra em algo nunca antes visto pelos humanos encarnados;
de levá-la a proporções inéditas, se não inimagináveis.
A vantagem que detinham sobre os governantes era
exatamente a invisibilidade e a capacidade nada desprezível
de estimular e influenciar, a partir de sua dimensão, as
mentes que se lhes associavam, num processo complexo de
obsessão ou compartilhamento de intenções. A consciência
diabólica do mago que chefiava a quadrilha armazenava as
informações colhidas no contato parapsíquico estabelecido
com as autoridades dos países em foco. Enquanto isso,
comandantes de esquadras, generais, ministros de guerra e
estadistas de nações como Estados Unidos, França, Reino
Unido, Bélgica, Egito, Canadá, Paquistão e algumas outras
coligadas desempenhavam suas atividades totalmente induzidos
ou hipnotizados pelos magos, que se conectavam integralmente
a suas marionetes, jogando uns contra os outros,
na tentativa de fazer a guerra alastrar-se por territórios cada
vez mais amplos, até finalmente tomar os cinco continentes.
383
De repente, Pai João e um grupo de iniciados de primeiro
grau, representantes de um alto colegiado de sacerdotes
que compunha a equipe proveniente da Amanda e de
outras cidades, dirigiram a atenção, em conjunto, ao mago
principal. O fluxo mental dos pais-velhos, antigos sábios e
sacerdotes, penetrou como lanças ou tentáculos na mente
altamente concentrada do mago negro. Um pesadelo sacudiu
a consciência do ser demoníaco, ao perceber uma intrusão
mental em seu ambiente psíquico. O subconsciente
agitou-se e rebelou-se, mas os pais-velhos não seriam demovidos
de seu intento tão facilmente. Concentraram-se
mais e mais intensamente. Verdadeira batalha espiritual se
travava numa dimensão que eu desconhecia por completo.
O consórcio de mentes hediondas foi por fim rompido,
devido à pressão psíquica, num embate que já durava mais
de três horas. A tensão espiritual pareceu atingir o clímax
quando os magos começaram a gemer, agonizar, sem que
fosse interrompido, de maneira definitiva, o processo mórbido
de influência à distância que exerciam sobre os líderes
internacionais.
Um dos magos, entretanto, não suportou a intromissão
mental levada a cabo pelos mensageiros da Aruanda. Estre
384
meceu mais que os oito restantes e, sobressaltado, sucumbiu,
acordando do sonho-pesadelo, do estado de transe autoinduzido
a que se entregara juntamente com os demais.
Cambaleou, caiu ao chão, recobrando a consciência muito
lentamente e percebendo que seu reduto fora descoberto,
que havia seres poderosos interferindo em seu lúgubre
plano de dominação. A concretude do que acontecia pareceu
detonar uma bomba mental no íntimo de seu cérebro
extrafísico. O ser sucumbia à dor, uma dor indescritível. A
constatação peremptória de que seus planos haviam sido
descobertos e, mais ainda, de que havia representantes dos
poderosos guardiões ali, no reduto mais sagrado dos magos,
lhe fez sentir como se um pedaço de metal incandescente
tivesse sido cravado no próprio peito. Mas não havia
como acordar os outros do transe a que estavam entregues.
Pai João voltou-se para o mago que rolava no chão de
pavor e dor e intensificou seu pensamento sobre ele, de
maneira a amenizar o efeito que sentia na mente em franco
colapso. Tentáculos mentais apalpavam a sede da consciência
do mago negro, que, incapaz de evitar a torrente de
pensamentos intrusos do mago branco, buscava escapar a
todo custo da força que lhe invadia o ser, rasgando-o e des
385
nudando-o, de forma a patentear-lhe as intenções tão abertamente.
Pai João concentrou ainda mais o pensamento e
conseguiu afastar o pavor e o medo que dominavam o mago
negro, que o levavam à beira da loucura. O famigerado ser
tombou definitivamente, impotente diante da força mental
que o assaltara e dobrara. Assim que o mago se prostrou,
Pai João voltou a somar-se a Vovô Rei Congo, Pai Joaquim e
os demais espíritos, altos iniciados do passado. Era noite na
esfera dos homens.
Nesse exato momento, Jamar tornou a movimentar-
se como se fosse um pião, girando em volta de si mesmo.
O movimento repentino surpreendeu os magos. O guardião
desembainhou sua espada e ergueu-a no ar num gesto
ameaçador. Dela saíram raios, relâmpagos, e, por algum
mecanismo ignoto, o instrumento do guardião da noite rasgou
o espaço dimensional à sua frente, subitamente engolindo
os temíveis magos que montavam guarda no gabinete
de Saddam. Jamar elevou-se novamente e rumou ao pelotão
de guardiões que guardava posição no gabinete de governo
norte-americano.
Entrementes, os pais-velhos liderados por Pai João
concentravam ainda mais a atenção nos outros magos. Estes
386
pareciam totalmente absortos. Os pais-velhos concentravam-
se progressivamente, penetrando mais e mais em sua
mente. A comunicação do grupo do terror com os governantes
manipulados, levada a efeito pela obstinada associação
dos magos, finalmente sofreu a ruptura necessária, muito
embora os sacerdotes da destruição ainda mantivessem
estreita sintonia entre si, auto-hipnotizados e hipnotizando,
de alguma maneira. No momento em que o elo mental se
quebrava e os principais alvos eram libertos da ligação aterradora,
a força de coalizão atacava mais uma vez, no plano
físico. O patriarca do grupo de magos não saberia explicar,
depois, como o consórcio mental fora invadido, como outra
união de mentes, investida de habilidades psíquicas superiores
às suas, se imiscuíra nessa rede de comunicação..
O monstro principal, o ser mais hediondo que eu conhecera
até aquele momento, o principal dos magos, ameaçou
se mexer, embora não conseguisse expressar nenhum
pensamento perceptível, nem tampouco emitir qualquer
som. Apenas abriu quase lentamente demais os olhos negros
e sombrios, que refletiam o mais obscuro dos sentimentos.
Abriu-os sem poder entender o que se passava ao
redor de si. Demorou um tempo dilatado até que logras
38 7
se sair do transe ao qual se entregara. Nesse momento, os
olhos cheios de um terror impossível de descrever pareciam
transformar-se em fogo, num fogo ameaçador, porém
impotente para queimar além da própria consciência. As
veias em sua cabeça calva e enrugada pareciam querer arrebentar,
tamanha a concentração e o nervosismo. As jugulares
tremiam no pescoço e a criatura infernal contorcia-
se toda, ao perceber o que sucedera a seu precioso grupo.
De repente, ante um influxo de pensamento mais tenaz dos
pais-velhos, o ser à nossa frente imobilizou-se por completo.
Olhos vítreos, se eu não soubesse se tratar de seres fora
do corpo, poderia jurar que ele estava morrendo, desencarnando.
Não obstante, não havia como deixar de notar que
o coração da estranha criatura, se é que ainda possuía um
coração, batia de forma alucinante, quem sabe por sentir-se
sobrecarregado das emoções descontroladas e ensandecidas
de seu dono.
Em determinado momento, quando os pais-velhos se
deram as mãos, formando uma ligação ainda mais intensa
que anteriormente, uma substância gelatinosa e cinzenta,
com rajadas negras, parecia verter do corpo de cada mago,
como se estivesse se derretendo.
388
— Meu Deus! — exclamei, em voz alta, num misto de
pavor e curiosidade...
À minha visão inexperiente de recém-chegado da dimensão
física, era como se seus corpos se desintegrassem.
Mais tarde, soube que os magos negros rejeitam a reencarnação
durante séculos e até milênios, de modo que os
corpos deformados ao extremo são mantidos tão somente
pela força do pensamento, eventualmente favorecido pelo
auxílio de alguns equipamentos, como era o caso daquela
horda, em particular. Uma vez que a guerra mental lhes
esgotava as reservas energéticas, as células perispirituais
se desestabilizavam ante a força mental dos pais-velhos,
que buscavam promover a todo custo o colapso do consórcio
de pensamentos das entidades perversas. Parte da
substância semimaterial constituinte de seus períspiritos
dissolvia-se, desagregava-se perante nossa visão espiritual.
Os magos resistiam à ação dos pais-velhos, porém, ao empregar
o poder mental para defender-se ou atacar os pais-
velhos, sucumbiam a qualquer tentativa de conservar a
forma espiritual.
Forte abalo sacudiu a montanha onde estava incrustada
a caverna. Muitos espíritos de vampiros, que se esguei
389
ravam na escuridão, caíram ao chão, à medida que os próprios
magos negros deixavam-se tombar, um a um, devido
à concentração mental dos pais-velhos. Um série de abalos
sacudia ainda mais fortemente a montanha, no mesmo instante
em que os magos se agitavam e estremeciam no chão.
Pareciam sofrer violento ataque epiléptico; convulsionavam-
se em estertores. Um dos magos, após o incrível fenômeno
que eu presenciara, abriu os olhos finalmente e, ao
divisar os representantes da Amanda, iniciados tal como
ele, mas embaixadores de um poder superior, deu um grito
assustador, aterrador e logo desmaiou.
Mais tarde, ao conversar com Jamar, Watab, Semíramis
e os demais para saber o que ocorrera nos outros campos
da luta em que estiveram trabalhando, não consegui tirar
a imagem dos magos negros de minha cabeça. Fiquei por
muitos dias impressionado e requisitei voltar ao Hospital
do Silêncio para novas sessões de magnetismo. Precisava
me recompor. Porém, Pai João notou minha dificuldade em
absorver tantas informações e evocou para me auxiliar um
guardião que respondia pelo nome de Sete. Este conduziu-
me aos pórticos de Amanda e, em meio aos campos e à natureza,
fui me retemperar, aguardando o desfecho da guer
39 0
ra, que, no futuro breve, Jamar me relataria. Era demais
para mim, naquele momento. Deveria estudar muito, avançar
no aprendizado, mas eu sinceramente vibrava, delirava
de alegria por poder pertencer a tal grupo de pessoas, comprometidas
com o bem da humanidade.
Entre as estrelas da Amanda, prossegui meu aprendizado,
confiante de que, futuramente, quem sabe em alguns
poucos anos, pudesse compor de maneira definitiva a equipe
de guardiões ou de agentes da justiça divina. E este era um
motivo muito especial para que me dedicasse aos estudos.
Tinha a eternidade pela frente, e a Amanda como pátria.
39 5
RANSCORRIDO CERTO TEMPO após entrar em contato
com a realidade espiritual, pude notar que toda verdade
tem o lado sombra e o lado luz, e que lado sombra não significa
necessariamente lado ruim, negativo, como se precisássemos
lhe atribuir juízo de valor. Também descobri
que há algo que nos impele a compreender e conviver com
nosso próprio lado sombra, incita-nos a aceitar que somos
como somos, que faz parte de nós o elemento humano, vulnerável,
permeável, comum a todos os seres. Tanto quanto
existe em nós o aspecto divino, superlativo, transcendente,
com infinitas possibilidades, embora não esteja completo,
ainda. Ele requer dedicação para crescer e frutificar. Contudo,
desenvolver nossas habilidades divinas não implica
matar, negar ou sufocar nossa humanidade, nem mesmo
nosso lado sombra.
Foi assim que descobri um aspecto interessante. Se por
um lado os mentores, os chamados Imortais, podem ser
classificados como o que há de mais representativo em matéria
daquilo que chamamos de luz — por falta de um termo
mais refinado ou preciso —, por sua vez os guardiões
sintetizam a justiça, a equidade, o fiel da balança. Portanto,
lançando mão de uma alegoria — igualmente devido à es
39 6
cassez de vocabulário para melhor caracterizá-los —, talvez
possamos chamá-los de lado esquerdo de Deus.
Traçando um paralelo, a Aruanda não é somente o que
vi nos planos mais sublimes, nesse meu primeiro contato
com a vida além. Aruanda é também a região escura, onde
os guardiões têm seu refugio, seu campo de experiências e
de trabalho. Aruanda é também orum, o Céu ou as regiões
mais sublimes ainda, das quais somente ouvi falar; Aruanda
é a erraticidade para uns, o lugar mais sagrado para outros.
Pode ser, simplesmente, o paraíso sem formas, o mundo
mental, sobre-humano, onde as aparentes discordâncias, os
aparentes paradoxos se encontrem, fundam-se, unam-se,
de tal maneira que humano e divino façam parte de uma só
entidade; que luz e sombra sejam vistas com a mesma naturalidade,
despidas da visão moralista e maniqueísta que
elege um como bom e outro como ruim.
Verifiquei que estar em sintonia com o Alto não significa
obrigatoriamente concordar com tudo que vem do
Alto, não implica pensar de modo idêntico, tampouco formatar
o cérebro, seja físico ou extrafísico, para falar o mesmo
idioma espiritual ou professar a mesma doutrina filosófica.
Há beleza na diversidade. Há uma beleza terrífica
397
nas sombras, tanto quanto há algo de atemorizante na luz,
dependendo da cor e da intensidade que tiver, até porque
luz nem sempre significa claridade. Descobri muitas coisas
nesse pouco tempo de vida no Além.
Mas minhas descobertas não pararam por aí. Foi quando
me reencontrei com minha filha Maria que me dei conta
de que meu lugar não era entre os anjos, nem os santos,
nem mesmo entre os Imortais:
— E agora, meu pai? Qual será o próximo passo? Que
fará a partir daqui?
— Não há mais como ficar aguardando as oportunidades
aparecerem. Creio, Maria, que terei de criar minhas
próprias oportunidades. Que tal ir comigo à universidade?
— Não poderei, meu pai. Me desculpe! Porém, tenho
de compartilhar algo com você.
— Não me diga que vai voltar ao mundo físico, isto é,
reencarnar?
— Não é isso, meu pai. Eu vou morar em outra cidade
espiritual!
— Como assim? Por que não fica aqui, na Aruanda?
— Desde o início eu sabia que não poderia ficar aqui.
Os administradores me chamaram apenas para ajudá-lo, de
398
alguma forma, a se sentir em casa. Mas não é aqui o meu lugar.
Tenho outro tipo de aprendizado diferente do seu.
— Não sei o que dizer, Maria...
— O melhor de tudo é que poderemos nos ver, como
ocorre na Terra quando as pessoas que se amam moram em
cidades diferentes.
— Mas para que local você irá? Já sabe em qual cidade
ficará morando, aprendendo e estudando?
— Vou para uma região mais próxima da Terra, vibratoriamente.
Já fui visitar o local. É uma colônia, na verdade;
não uma metrópole grande como esta. Mas preciso ir para lá,
pois tenho muitos laços afetivos que preciso reatar, e as pessoas
com quem devo conviver mais de perto, tanto quanto
as experiências que preciso vivenciar, sei que as encontrarei
por lá. Mas o seu lugar é aqui. Um dos guardiões me falou,
papai. Sabia que você seria preparado para algo importante.
— Não importante, filha, mas necessário. Prefiro pensar
assim. Mas se você já se decidiu, acho que devo lhe oferecer
apoio, como sempre. Bom, pelo menos temos carros
voadores e comboios através dos quais podemos nos locomover
entre as dimensões. Não estaremos isolados, de
qualquer forma.
399
— Além do mais, podemos nos falar constantemente,
através dos aparelhos de comunicação.
Maria convidou-me a acompanhá-la até o local onde
pegaria o veículo para viajar até a cidade onde passaria a
residir. Fomos rumo a um tipo de aeroporto. Batizei-o de
astroporto, por estar no limiar das dimensões astral e espiritual,
propriamente dita, ou dimensão mental. O lugar era
surpreendente. Via-se grande diversidade de veículos voadores,
alguns enormes para os padrões terrenos. Observei
desde equipamentos voadores mais simples, semelhantes
aos helicópteros da Terra, embora sem as hélices, até outros
imponentes, de formato totalmente diferente daquele
que vira na cidade. O espaço onde estavam pousados era
circular. E os carros voadores não precisavam taxiar, à semelhança
do que ocorre com os aviões na dimensão física.
Tão somente levantam voo na vertical e, depois, deslizam
na direção do local desejado. Os maiores equipamentos
de voo eram de formato esférico, imponentes, de proporções
realmente singulares. Não soube qual a finalidade deles,
mas com certeza deveriam ter uma função específica,
e eram poucos esses gigantes da técnica astral. Vi também
veículos menores, pilotados por espíritos experientes e tri
400
pulados por guardiões. Com estes eu já havia tido contato
quando fomos visitar a base dos guardiões.
Tanto Maria quanto eu estávamos maravilhados com
as possibilidades técnicas dos espíritos. Decerto eu acabaria
descobrindo para que servia cada tipo de veículo. Por
ora, precisava desfrutar da presença de minha filha. E foi
num hall muito grande, uma espécie de sala de embarque,
onde centenas ou até milhares de seres chegavam e partiam
da Amanda, que me despedi de minha filha, uma despedida
sem dor, sem sofrimento, apenas com leve quê de
melancolia ou saudosismo antecipado. Não cheguei a pensar
que ela se integraria aos trabalhos apresentados a mim
pelos guardiões. Ela nem sequer participou de alguma das
visitas que fiz ou de qualquer reunião junto comigo.
Maria tivera um papel naquilo tudo. Ela apareceu logo
no início de minha chegada e em seguida sumiu, talvez
para entrar em contato com sua própria realidade espiritual.
No meu caso, me envolvi de tal maneira com as novas
experiências que acabei não sentindo mais a saudade
imensa de Maria que sentira nos últimos momentos de minha
vida no mundo físico. Eram tantas as coisas apresentadas
a mim que a saudade em si ou foi disfarçada em meio
401
aos acontecimentos ou, então, diluíra-se definitivamente.
Como eu sabia que minha filha e eu não estávamos mortos,
nem terminantemente separados, com efeito essa constatação
serviu para diluir de vez qualquer resquício de aperto
emocional. Estávamos vivos, e isso era o que importava.
Após me despedir de Maria, dirigi-me à universidade.
O prédio principal era um edifício imponente, com uma arquitetura
que lembrava bastante um templo rosacruz em
sua fachada ou, quem sabe, os traços egípcios. Era dotado
de pórticos impressionantes e um pátio muito maior do
que qualquer universidade que eu conhecera na Terra. Os
demais prédios apresentavam aspecto que me remetia aos
museus da velha Europa.
Havia muitas cúpulas e a arquitetura privilegiara a
construção de vários salões e bibliotecas. O prédio central
era cercado por jardins muito bem cuidados e as flores que
ornamentavam a entrada cintilavam como pedras preciosas
de muitas cores. Havia estátuas dispostas como num
grande museu, formando extenso corredor, e fontes e chafarizes
refrescantes, tudo com intenso movimento de pessoas
por todo lado. De modo geral, os espíritos movimentavam-
se em grupos. Raramente se via alguém sozinho. A cor
402
dominante nas construções era o dourado, embora outras
se mostrassem em alguns arranjos na cidade universitária.
Sim, trata-se de verdadeira cidade o complexo educacional.
Dentre os vários edifícios, escolhi aquele onde encontraria
meus orientadores. Logo que me aproximei do hall
de entrada, fui recebido por um dos dirigentes do local.
Novamente percorri os olhos em derredor e me apaixonei
pelo conjunto que via. Tive a nítida sensação de que nunca
me cansaria de observar os prédios clássicos, os quais provavelmente
exigiriam semanas a fim de serem completamente
conhecidos.
Ao longe, envolvendo o conjunto da obra, havia muros
altos, que se estendiam em forma de meia-lua. Sobre os
muros, mantendo considerável distância entre si, havia observadores
ou atalaias, como se diz por aqui. Encarregam-
se de noticiar quando chegam visitantes de outras cidades
ou colônias, além de organizar as diversas manifestações
dos alunos, que, de tempos em tempos, constituem grupos
para realizar práticas e estudos no pátio principal.
O preceptor notou minha curiosidade e quanto me deliciava
observando o ambiente em volta. Talvez mais para
captar minha atenção, comentou:
403
— Ora, ora, Ângelo! Então já sabe da notícia?
— Notícia? Que notícia? Vim apenas discutir sobre o
curso intensivo. Fui informado de que deveria procurar a
direção da universidade.
— Ah! Me desculpe se interferi, adiantando a surpresa.
— Que surpresa, meu amigo? Vamos, fale! Não me mate
de curiosidade...
— Não há como matar ninguém aqui, Ângelo... Você já
morreu, lembra?
— Você me entendeu — falei, quase morrendo de verdade.
A curiosidade era meu fraco.
— Então, vamos até a recepção e logo saberá. Não quero
quebrar o encanto. Lá encontrará alguns amigos.
Desisti de perguntar alguma coisa mais. Resolvi que
iria direto ao setor responsável para discutir, se fosse o
caso, meu projeto de estudos na Amanda.
No momento em que adentramos o ambiente — um
local arejado, com janelas grandes, através das quais era
possível contemplar todo o pátio da escola —, notei a presença
de alguns espíritos que já haviam sido apresentados
a mim. Além de Jamar, estavam ali Júlio Verne, Watab e
outros mais.
404
Jamar, alto, forte, cor de bronze, ficou segurando a espada,
um instrumento de alta tecnologia que ele parecia
não largar, como se estivesse o tempo todo preparado para
entrar em ação. Seus olhos penetrantes fitavam ao longe ou
profundamente, como se devassassem o interior da alma da
gente. Outro guardião se encontrava ali: era Zura, dos legionários
de Maria, ao qual fui apresentado em seguida. A
indumentária do sentinela era algo que impressionava. Ele
era a imagem de um guerreiro das hostes celestiais. Um gigante!
Corpo maciço, acobreado, cuja aura brilhava como
um relâmpago, semelhante à de Jamar. Refulgia com a luz
que o envolvia, de maneira que lhe percebi a elevação. Assim
como o guardião da noite, trazia um instrumento em
forma de espada, que segurava apoiada no chão, descansando
uma das mãos sobre ela.
Fiquei preocupado, pois não sabia que havia necessidade
de tantas pessoas importantes assim; além do mais,
minha intenção era somente discutir meu programa de estudos
no curso intensivo.
— Estamos esperando por você, Ângelo. Temos novidades
muito interessantes que lhe dizem respeito, pessoalmente
— principiaram.
40 5
— Não me digam que desistiram de mim?!
— Nada disso, meu amigo — falou Jamar enquanto eu
cumprimentava a todos, e me postava ao lado de Júlio Verne.
— Conversamos entre nós sobre a necessidade de você
se especializar em alguns assuntos. A tarefa que lhe cabe
requererá intenso preparo, que já começou aqui na cidade.
No entanto, como sabe, nossa metrópole engloba outros
campos de trabalho e laboratórios de experiência.
— Não sei aonde você quer chegar.
— Bem, você conheceu nossa base de trabalho nas regiões
inferiores. Podemos dizer que é uma parte da Amanda,
embora seja mais um tipo de faculdade, onde os espíritos
se preparam em regime intensivo para tarefas mais
expressivas e determinadas. Lá, Ângelo, é onde julgamos
que você terá mais campo para aprender e aprofundar-se
em situações com as quais conviverá no futuro, e que farão
parte de seu mapa de estudos.
— Então não vou mais viver aqui na cidade?
— Bem, não é exatamente o que pensamos, amigo —
adiantou-se um preceptor responsável pelo estudo de filosofias
na universidade. — A cidade dos guardiões ou base
de apoio está sendo ampliada. Você não a reconhecerá
406
quando lá chegar. Após os eventos da última guerra e do
embate contra os filhos da noite — os magos —, fez-se necessário
ampliar a estrutura do quartel dos guardiões. Por
isso, a chamamos agora de cidade, e não somente de base.
— E de certo modo ela é uma extensão da Aruanda, embora
não esteja na mesma dimensão — falou Watab, olhando
para Júlio Verne, que pedia a palavra.
— Temos de convir que, se você se encarregará de levar
notícias ao mundo dos chamados vivos sobre o que
existe além das fronteiras do romantismo espiritual, então
terá de travar contato direto com a realidade, tal qual ela é.
E nada melhor do que ficarmos juntos numa região como
a que se encontra a cidade dos guardiões — uma espécie
de antecâmara da Aruanda, um posto avançado em regiões
mais densas.
— Isso me preocupa — falei meio sem jeito diante da
proposta. — Já estava me acostumando com a boa vida aqui
na metrópole...
— É amigo, isso aqui vicia qualquer um. Não há como
não se habituar com coisa boa.
— Mas temos de convir que sua tarefa, de maneira específica,
será muito mais abrilhantada com uma estrutu
407
ra de aprendizado ligada diretamente ao palco das lutas
mais ardentes que temos levado a cabo nas regiões inferiores.
Ademais, entre os guardiões, você contará com uma infraestrutura
muitíssimo especializada. E poderá visitar a
Aruanda quando quiser, além de ter aqui o seu refúgio pessoal,
junto ao lago, onde foi construída sua morada.
— E, não há do que reclamar. Se é assim, estou de pleno
acordo.
E falando baixinho, como se tentasse evitar que os demais
ouvissem, Júlio Verne comentou com outro espírito
ali presente:
— Como se houvesse opções disponíveis...
Ignorando a observação, que para mim foi apenas um
gracejo, ousei perguntar sobre determinada coisa que não
ouvira ninguém mencionar, até então:
— Como me disseram que eu teria de preparar o médium
com o qual devo trabalhar no futuro, como ficará essa
aproximação? O rapaz será conduzido também para as regiões
inferiores, ao invés de vir aqui para a cidade?
— Primeiramente, meu amigo, é bom que saiba um
pouco mais sobre os companheiros de trabalho na dimensão
física.
40 8
— Mas não será somente com uma pessoa, um médium,
que trabalharei?
— Bem, de maneira mais íntima, sim. E falo de intimidade
no sentido de compartilhar pensamentos e emoções
com o rapaz que lhe servirá de intérprete. No entanto, nenhum
trabalho se realiza somente com um trabalhador.
Você terá de se afinar com o pequeno grupo de pessoas que
lhe servirá de apoio entre os encarnados. Trata-se dos companheiros
do médium com o qual trabalhará; isto é, terá de
preparar a equipe também, e não apenas o médium.
— Mas não seria mais fácil o ambiente da metrópole para
que o médium fosse preparado? Cheguei a encontrá-lo aqui
algumas vezes... Talvez por aqui se sentisse mais à vontade....
Jamar olhou para mim de maneira significativa, como
se estivesse perdendo tempo precioso. Mesmo assim, ele
prosseguiu calmo, dando-me mais detalhes:
— Ocorre o contrário, Ângelo. O rapaz que terá que
preparar para ser seu intérprete, e nosso também, sente-se
mais à vontade nas regiões inferiores. Com o tempo conhecerá
a história dele no período entre vidas e compreenderá
melhor o que lhe falo. Por outro lado, não é nada fácil desdobrar
o médium e elevar a frequência do seu corpo espi
409
ritual, a fim de que se manifeste em nossa metrópole com
consciência plena ou suficiente. Esse tipo de ação exige
enorme dispêndio de energia de nossa parte. Como ele terá
de se inscrever num curso regular do lado de cá da vida,
além, é claro, de participar de algumas tarefas conosco, ficar
no plano mais próximo à Crosta é muito mais fácil para
ele — e também para nós. Afinal, ele pertence a este lugar,
ao mundo dos guardiões. E na escola que estruturamos na
zona de apoio, mais próxima à superfície do orbe, terão a
disposição não somente as matérias e materiais para estudo
e aprendizado, como também poderão entrar em contato,
na nova cidade dos guardiões, com espíritos de longa
bagagem, no que tange às incursões a planos mais densos.
No momento não entendi bem o que Jamar pretendia
com sua explicação, mas senti que era o melhor para
mim. Só aos poucos clarearam as coisas que antes não faziam
sentido para meu espírito. Foi quando Zura prosseguiu
com o pensamento de Jamar:
— Para quem quer se especializar, os planos mais densos
oferecem recursos de aprendizado que não encontramos
em nenhuma outra dimensão. O contato com zonas de
impacto e com seres mais ou menos materializados, imer
410
sos numa realidade próxima ao que encontramos no mundo
dos encarnados, evoca certa familiaridade. Verá como
seu agente no mundo dos escarnados, quando em desdobramento
junto aos guardiões, guardará mais lembranças
do que entre as estrelas da Amanda.
— Mas eu poderei voltar à cidade quando quiser, para
me retemperar?
— Se você conseguir sozinho... — insinuou Watab, de
maneira reticente. Ou seria irônica?
— O que você quer dizer com isso? — perguntei, ligeiramente
desconfiado.
— Você descobrirá, Ângelo. Chegar à nossa cidade não
é tão fácil assim. Lembra-se de como chegou aqui? Foi trazido
pelos guardiões. Por Jamar, pessoalmente.
Fiquei meio ensimesmado, pensando na oferta de estudos
junto aos guardiões e nas implicações de toda a proposta.
Afinal de contas, não teria obrigatoriamente que concordar
de imediato, mas como havia ali seres responsáveis
e mais esclarecidos que eu...
— Está bem. Vou aceitar a proposta de estudo na base
de apoio dos guardiões. Depois, durante minhas tarefas por
lá, talvez entenda melhor o que quiseram dizer. Aceito!
411
Jamar olhou os demais com certo brilho no olhar. Em
todo caso, ficaria mais perto dele e dos novos amigos que
fiz na Amanda. Uma vez que não perderia minha morada
na cidade, deduzi que, à medida que o tempo passasse, poderia
regressar, com a ajuda de Jamar, à cidade que para
mim era como o paraíso. Se eu tinha uma tarefa pela frente,
que tudo fosse feito em função dessa tarefa.
Deixei a universidade cheio de expectativas, já que
compartilharia da presença de Jamar, Watab, Zura e dos
demais guardiões de modo mais próximo e permanente.
Embora as belezas da cidade dos espíritos, segundo o que
meus amigos explicaram, a cidade dos guardiões era parte
da Amanda, um entreposto dos espíritos que se comprometiam
com a humanidade, com o bem da humanidade.
Então, apesar da diferença marcante, tanto na paisagem
ao redor quanto na distância vibratória, se comparasse a
Amanda ao local onde eu residiria, veria que estávamos conectados
intimamente devido aos ideais.
— Ah! Ângelo, me esqueci de lhe falar. Terá em nossa
cidade uma espécie de instrutor, que poderá auxiliar até
que você se adapte aos fluidos mais densos e ao tipo de vida
mais ou menos militar de nossa cidade. Como estamos lo
41 2
calizados em dimensão hostil, temos de manter certo rigor
no tocante ao modo de vida e aos hábitos, pois nossa cidade
é uma espécie de cidade universitária e militar, onde especializamos
muita gente para lidar com vibrações mais
densas e pesadas ou espíritos mais inteligentes, embora em
oposição à política do Reino.
Um instrutor! Não imaginava precisar de alguém mais intimamente
ligado a mim, mas, considerando o tipo de fluido
com os quais deveria me habituar, até que a ideia não era tão
sem fundamento. E lá fui me despedir de Consuela, de Laura
e dos amigos que fiz neste meu primeiro momento na Aruanda.
Quando conversava com Consuela, ela me surpreendeu:
— E pensa que vai para a cidade dos guardiões sozinho?
Pelo que fiquei sabendo, um grupo numeroso de espíritos
irá junto para formar a equipe com a qual você vai
trabalhar. E conte comigo! Toda vez que sair algum veículo
em direção às regiões mais densas, procurarei ir junto ou
enviarei notícias de nossa humilde morada — como sempre,
Consuela dramatizava.
— Que espíritos são esses? Você os conhece?
— Claro que conheço alguns, mas é um a turma muito
grande. Acho que você os conhecerá assim que chegar. Es
41 3
pero que dê tudo certo. Assim que vier se retemperar nos
ambientes de nossa cidade, seu lugar estará arrumadinho,
tudo no lugar, esperando por você.
Despedi-me dos amigos, menos de Pai João, pois ele
nos guiaria até a base dos guardiões, a cidade dos sentinelas,
localizada nas regiões mais densas. Estava ansioso para
me ver entre o pessoal de Jamar, no local que visitara antes.
Tão logo entrei no veículo, que estava na espécie de
hangar de onde partiam os aeróbus, entrou uma mulher
em tudo diferente de todas as outras que eu conhecera
nos primeiros tempos na Aruanda. Parecia muito mais
uma pessoa encarnada do que desencarnada. Algo era diferente
nela. E a familiaridade com que conversava com
os guardiões indicava serem velhos conhecidos. Mais tarde,
soube que se chamava Irmina Loyola e era um agente
dos guardiões entre os chamados vivos. Atuava fora do corpo
junto aos representantes da Aruanda, em várias frentes
de trabalho. Somente mais tarde eu viria a saber que ela fazia
parte da equipe. Aliás, a equipe dos guardiões era muito
grande e contava com várias pessoas encarnadas, que,
durante o sono físico, colocavam-se a serviço dos emissários
da justiça divina. A rede de trabalhadores em torno do
414
planeta era algo incrível e, mais ainda, não dependia de religião
nem de serem os envolvidos pessoas religiosas. Bastava
estar sintonizado com a proposta de auxiliar a humanidade
de maneira intensa e genuína.
A primeira reunião que presenciei foi presidida pelo
espírito Joseph Gleber, que deu início à sessão com um comentário
que me abriu a mente, de maneira inusitada, para
questões até então desconsideradas por mim. Ele fez um
convite para que eu presenciasse, juntamente com Irmina
e mais dois médiuns encarnados em desdobramento, alguns
eventos relativos ao movimento espírita. Seria importante
conhecer as características do movimento, pois em
alguma medida me envolveria com espíritos espíritas ou
médiuns espíritas. Pai João participava silencioso da reunião,
e um grupo de mais de 100 guardiões estava ali também,
demonstrando interesse no assunto.
— Com certeza não será nada agradável para vocês
perceberem que os amigos encarnados mais envolvidos
com a renovação do pensamento e o esclarecimento espiritual
não são nada resolvidos entre si — falou o médico de
procedência alemã. — Por essa e outras razões, vocês precisam
ficar atentos, pois inicialmente enfrentarão resistência
415
cerrada entre aqueles que dizem representar a luz do progresso
espiritual. Notarão, também, que, embora falem em
progresso e evolução do pensamento, meus irmãos encarnados
no movimento espírita são, de modo geral, os mais
resistentes a novas ideias e à própria característica renovadora
e inovadora da mensagem espiritual.
Sinceramente, não entendi como pessoas que afirmavam
divulgar ideias renovadoras e representar um movimento
de libertação pudessem, em algum nível, combater
ou ao menos contrariar o objetivo da mensagem que diziam
propagar. Não tivera ainda contato mais íntimo com
espíritas. Será que eu teria surpresas pela frente?
De qualquer forma, para mim, e quem sabe para os demais
espíritos ali presentes, seria ótima a oportunidade
de ter contato estreito com a realidade de integrantes do
movimento com o qual lidaríamos. Tratava-se da primeira
aproximação direta; experimentaria a primeira impressão
do campo de trabalho em que militaria.
Joseph Gleber deu prosseguimento à sua fala, discorrendo
sobre a ocasião que teríamos de observar o diálogo
entre um dirigente encarnado em desdobramento e seus
mentores. Pediu que reparássemos na dificuldade enfren
416
tada pelos espíritos responsáveis pela tarefa educativa dos
agentes encarnados ao lidar com as limitações e crenças
pessoais dos pupilos. Após a breve introdução, continuou:
— Os eventos que marcam o final do século xx no planeta
Terra indicam que, apesar de certas conquistas no âmbito
dos movimentos religiosos — tanto aqueles declaradamente
espiritualistas, que trabalham abertamente com a
mediunidade e a comunicação com o Invisível, quanto os
que não admitem tal prática —, apesar do progresso alcançado
e admitido entre os representantes das ideias renovadoras,
no tocante a diversos campos da ciência espiritual,
ainda há muito a ser feito, quando se considera o objetivo
de levar uma visão nova e mais dilatada da vida além-túmulo.
Há muito campo a ser desbravado e muitos mitos a
serem dissipados ou desconstruídos.
"Também se pode pensar o seguinte, a partir do estudo
mais aprofundado do movimento renovador da alma humana.
Levando-se em conta as manifestações de religiosidade
do povo brasileiro, em particular, e as nuances que lhes são
próprias; considerando-se os avanços do movimento espírita
no âmbito mundial e as ações e reações que observamos
no panorama interno desse movimento; tomando-se
417
por base o relacionamento entre médiuns, oradores e demais
elementos que se declaram divulgadores da terceira
mensagem, chega-se a uma conclusão inequívoca: o movimento
espírita está em crise. Numa crise sem precedentes.
"Os espíritas mais religiosos — que se inspiram em
homens-mitos, em indivíduos que tomam como referência
de santidade e comportamento, quase beatificados pelos
conceitos católicos importados para a prática espírita,
que engendram sua visão de espiritualidade — combatem
qualquer um que ouse mostrar uma visão mais ampla da
realidade espiritual e procure lhes alargar os horizontes.
Outros, os que se dizem mais científicos, pretendem fazer
um espiritismo sem espíritos, uma quase-igreja, palco
de disputas, de teorias pseudocientíficas, de pretensões
de pessoas que se acham na vanguarda das interpretações
mais acaloradas e atuais.
"Por outro lado, aqueles que ficam no meio, que tentam
fazer um movimento de qualidade, estabelecendo uma
ponte entre ambos os lados, a partir do conhecimento de
verdades de ponta, que chegam cotidianamente através da
mediunidade, mas que sabem serem relativas, são atacados
pelos dois outros setores."
41 8
Joseph Gleber deu um tempo ao grupo reunido na cidade
dos guardiões, de modo a avaliarmos a natureza do
movimento com o qual iríamos interagir mais intensamente.
Em seguida, continuou:
— Os mais estudiosos, aqueles que se permitiram ir
além das ideias cristalizadas ou meramente reproduzidas
e mimetizadas, que ousaram ultrapassar conceitos engessados
e práticas farisaicas, na medida em que procuraram o
pensamento evolucionário e progressista do codificador do
espiritismo, iniciaram uma transição. Somente com muita
coragem e estudo é que são capazes de avançar nas observações
a respeito de outros sistemas de vida nas dimensões
mais próximas à Terra.
"É tarefa impostergável desta equipe de espíritos aqui
reunida levar ao conhecimento dos meus irmãos encarnados
a realidade tal qual ela é, ou ao menos um retrato dela
que seja o mais fiel possível. É fundamental descortinar,
diante da visão de quem queira se aprofundar nas observações
e estudos, a possibilidade de anteverem o trabalho de
certas inteligências mais sofisticadas, embora voltadas para
uma ética seriamente questionável. É necessário que meus
irmãos encarnados percebam as implicações dos chamados
419
processos psíquicos complexos, no tocante às obsessões, e
possam ir um pouco adiante.
"Vocês terão a oportunidade e a responsabilidade de
mapear o trabalho de inteligências extracorpóreas em regiões
inferiores, na subcrosta e no grande abismo. Este ousado
empreendimento espiritual será uma das maiores tarefas
apresentadas a vocês. Mas não se enganem, pois o
fato de se fazerem porta-vozes de conhecimento mais dilatado,
ou de levarem ao mundo suas experiências mais árduas
do lado de cá, será visto como ameaça por aqueles que
se encontram cristalizados, cujas mentes encaixotadas pararam
numa fase que já deveria ter sido ultrapassada. Paradoxalmente,
temem pelo progresso e querem manter o movimento
renovador estacionário."
Fiquei pensando, após as palavras de Joseph. Se, por
um lado, nós estávamos fora do corpo físico, de certa maneira
incólumes aos comentários malsãos que poderiam
advir de nosso trabalho ou das avaliações a seu respeito,
o que seria dos nossos agentes, os médiuns e a equipe que
nos representaria no mundo? Por certo não seria nada fácil
para eles. Olhei para o lado, onde se encontravam dois
de nossos amigos encarnados em desdobramento, e fiquei
420
imaginando quanta coragem e determinação deveriam ter,
necessariamente, para dar a cara a tapa em nosso lugar.
Exatamente isso, pois seriam eles a receber as agressões
verbais e os ataques nervosos dos opositores do progresso;
mais ainda, a estar na mira da raiva explícita daqueles que
se sentissem ameaçados com o resultado de nossa parceria.
Respirei fundo, apreensivo quanto ao futuro de nossos amigos
no plano físico.
Enquanto tais pensamentos passavam em minha mente,
o espírito amigo retomava a fala, antes de nos liberar
para observarmos certos acontecimentos importantes, a
fim de que formulássemos nossa visão acerca do contexto
espiritual com o qual entraríamos em contato.
— Dia após dia, surgem novos grupos, comandados
por legítimos representantes do progresso da humanidade
e do movimento espírita. Grupos formados por cientistas
da alma, pesquisadores de certas verdades, médiuns
que se sentem na responsabilidade de desmistificar as crendices
a respeito do plano extrafísico, e muitos outros, que
se especializaram no trato com os habitantes da dimensão
extrafísica em algum tipo de abordagem da problemática
humana.
421
"Finalmente — disse com maior ênfase —, grupos de
pessoas que representam organizações não espíritas, de outras
filosofias e religiões, cujo tronco não está diretamente
ligado à gênese do espiritismo, despertarão também para
a necessidade de se unirem num movimento de vanguarda
mundial, a fim de aprofundar as observações e experimentações
que investigam o mundo invisível.
"Contudo, várias batalhas estão em curso e são travadas
entre aqueles que deveriam representar o Cordeiro de
Deus no mundo. Embora todos estejam à procura de melhores
instrumentos e instrumentalidades para serem ativos
colaboradores da renovação planetária, perdem precioso
tempo ao brigar entre si, disputar posições ilusórias ante
as vistas de muitas lideranças e, quem sabe, esperar aplauso
e possível beatificação da parte dos homens. Enxameiam
as pretensões à conquista de um suposto poder e o desejo
de alguns médiuns de ser considerados missionários; graças
a Deus, porém, essa postura não maculará a face verdadeira
da mensagem, que paira acima das manifestações humanas
e do próprio movimento criado pelos homens.
"Esse estado de coisas, comum em agrupamentos humanos
— mas não esperado entre os representantes do
42 2
Cristo, embora presente entre eles —, desperta a atenção de
seres da oposição tanto quanto daqueles que defendem os
ideais nobres esboçados pelo espírito Verdade. De um dos
lados, o desejo de conhecer mais profundamente as fraquezas
dos opositores; de outro, o empenho em pesquisar,
catalogar tais fraquezas, visando dar novo fôlego ao movimento,
de modo a investir no lado bom de cada indivíduo."
Talvez porque estivéssemos muito envolvidos com
a temática apresentada e, mais ainda, porque a situação
enunciada nas palavras do espírito amigo diziam respeito
diretamente ao trabalho que realizaríamos a partir de então,
parece que ele compreendeu como suas palavras despertavam
em nós uma emoção muito intensa. O médico
Joseph Gleber deu por encerrada sua participação nessa
parte de nosso aprendizado, deixando que Jamar e sua
equipe nos conduzissem nos próximos passos do contato
com a realidade íntima de alguns trabalhadores espíritas.
Decididamente, nosso aprendizado, nosso curso intensivo
havia começado.
Dando-nos a conhecer certas particularidades do ambiente
espiritual onde nos movimentaríamos ao levar o fruto
de nossas observações por intermédio da mediunidade,
423
Jamar compartilhou conosco, através de uma projeção tridimensional,
certos arquivos dos guardiões mostrando alguns
poucos lances em dois momentos e dimensões diferentes.
As imagens pareciam tão palpáveis que me lembro
de pensar que dificilmente saberia distinguir se era uma
projeção ou um fato observado i n loco.
— Dentro em breve a humanidade se verá às voltas com
uma crise muito mais de ordem espiritual, diferentemente
da que ocorre nestas três ou quatro décadas que marcam o
final deste milênio e o início do outro, a qual abala as estruturas
sociais e econômicas do mundo — dizia um espírito
representante de esferas superiores ao um amigo de trabalho.
E a conversa entre ambos denotava certa preocupação
com os parceiros encarnados.
— Sim, essa crise talvez anuncie e preceda acontecimentos
mundiais de consequências muito graves, como
ainda não se verificou na história atual da civilização. Veja
a Guerra no Golfo, por exemplo. Não foi uma guerra como
outra qualquer; ela representou muito mais do que se poderia
imaginar. Marca o início de eventos cósmicos, de alcance
mundial. E não há como ignorar que o movimento
espiritualista precisa se erguer sobre bases de verdadeira
424
fraternidade e dar as mãos para enfrentar momentos decisivos
da vida coletiva. Os representantes do Alto ora encarnados
talvez sejam inspirados a deixar de lado as brigas
e disputas, que só têm servido para diminuir a marcha do
progresso, que é inevitável.
— Muitas vezes, me parece que o processo de espiritualização
da humanidade patrocinado pelo movimento
espírita dá sinais de estar em crise, pois deveria ser algo
que ocorresse com maior agilidade e com a união daqueles
que interpretam a mensagem consoladora e de espiritualidade
no mundo. Creio que, atualmente, o movimento
dos espíritas desempenha um papel importante na história
do mundo, mas não podemos deixar de considerar os médiuns
e demais figuras atuantes desse movimento, de forma
particular.
— Na batalha que nos aguarda em prol da implantação
definitiva do Reino1 7 sobre a Terra, temos de considerar
certas diferenças entre os representantes do Cristo no
mundo: espíritas, umbandistas, esoteristas ou espiritualistas,
de forma abrangente. Creio que, por ora, essas parti17
Cf. Mt 4:23; 6:10,13; 8:12; 13:19,38; 24:14; Ap 17:12.
42 5
cularidades exigem de nós maior investimento, investigações
mais aprofundadas, pois as pessoas que se encontram
à frente do trabalho e aquelas que seriam chamadas a participar
mais ativamente nesse movimento mundial têm ficado
perdidas, em meio às disputas particulares. Lutam contra
fantasmas.
Um dos espíritos, mais ligado à área de educação do
espírito, compartilhou sua apreensão:
— Nós, os espíritos, não podemos nos furtar a essa luta.
Muitas vezes, sentimo-nos incapazes de interferir. A forma
de pensar de muitos de nossos representantes no mundo é
tão diferente da nossa que eu, pessoalmente, me vejo aflito
diante da maneira de pensar e agir daqueles que deveriam
ser nossos médiuns e parceiros.
— Sei como se sente! Muitas vezes, nossos médiuns,
tanto quanto bom número de dirigentes, se sentem atacados
toda vez que enviamos recursos em forma de conhecimento,
a fim de que se instrumentalizem melhor. Ignoram
que estão no meio de uma batalha espiritual e querem viver
na fantasia; preferem a visão romântica da vida espiritual,
cheia de fantasias quanto a seus mentores e à realidade. Há
de chegar o dia em que os espiritualistas, e os espíritas em
426
particular, reconhecerão que esse tipo de reação não poderá
ser considerado sadio nem útil para o futuro do movimento
renovador. Chegará a hora em que perceberão que
é necessário se preparar com conhecimentos mais detalhados
e aprofundados, que queremos enviar para a esfera física,
pois precisam estar cientes das táticas dos opositores do
progresso no mundo.
Nesse momento do diálogo, um dos amigos espirituais
se posicionou mais intensamente:
— Ninguém se mantém firme numa guerra de âmbito
mundial e caráter espiritual, com graves consequências,
sem conhecer e mapear o território do inimigo, sem ter
consciência das possibilidades, dos truques, enfim, da capacidade
que este detém. Nossos parceiros no mundo verão
que precisam atualizar e aprimorar a metodologia de
abordagem do mundo extrafísico, o conhecimento e, sobretudo,
o comportamento que adotam perante aqueles irmãos
que pensam de maneira diferente. Caso contrário, os
espíritas correrão o risco de se diluir entre as diversas seitas
e religiões do mundo, perdendo a característica principal,
que é o caráter progressista e de revelação da doutrina
que abraçaram.
42 7
— Esperamos que chegue o momento em que esses diversos
representantes da verdade relativa de ponta, que estão
encarnados no mundo, convivam com respeito e consideração
uns pelos outros. Até lá, pelo menos para nós, teremos
muito trabalho, muito esforço. Precisamos conhecer e acompanhar
de perto a forma como se comportam os representantes
do Cordeiro de Deus, a fim de darmos um impulso
novo, rumo à união de todos no ideal que deveria ser comum.
— Sei, amigo — falou um dos espíritos. — Mas se a nós
nos preocupa a situação do movimento espírita e espiritualista
em geral, há também interesse por parte dos espíritos
representantes da oposição, pois igualmente almejam
conhecer mais de perto nossos pupilos, mapear as reações
psicológicas e as respostas de nossos parceiros, os médiuns
e demais agentes do movimento. Querem saber se eles são
realmente prepostos do Cristo ou simplesmente se comportam
como inimigos uns dos outros.
Após as imagens do diálogo entre os embaixadores das
ideias progressistas, outras imagens foram mostradas, agora
ilustrando o grupo oposto e oposicionista às ideias de espiritualidade.
Num outro lugar, em outra dimensão, novo
diálogo, novas personagens:
428
— Você deverá fazer uma excursão ao acampamento
do inimigo. Esses religiosos de carteirinha pretendem instrumentalizar-
se, tentando enfrentar-nos. Desconhecem
nossas possibilidades reais. Pensam que estamos parados
no tempo, como eles ficaram por décadas. Enquanto permaneceram
isolados do progresso espiritual, concentrando
a atenção apenas em alguns de seus médiuns e em receitas
de paz, de espiritualização e de santidade, e alçando as
questões sentimentais e emocionais ao primeiro plano, nós
progredimos em nossos métodos, atualizamos nossa tática.
Fiquei impressionado ao perceber a tecnologia dos
guardiões. Não contentes em enviar um tipo de agente duplo
à base dos inimigos do bem, dos espíritos que faziam
oposição ao que chamamos sistema do Cordeiro, também
gravaram cada palavra dita por eles — inclusive, percebíamos
as emoções presentes no diálogo das entidades sombrias.
Presenciar os diálogos e as emoções dessas entidades
fez com que eu visse nossa tarefa sem nenhum romantismo,
tal qual seria: um desafio, e dos grandes.
— Eles pensam que estamos ainda na época da inquisição
— falava a entidade. — Acham que estamos com o
pensamento voltado para as questões internas do seu mo
429
vimento, enquanto já formamos aliados no mundo todo,
entre os representantes das nações. Estes seguidores do
Cordeiro estão parados no tempo. Sabem que o mundo físico
progride, usam de tecnologia modestamente avançada
na esfera física e, ainda assim, muitos imaginam que do
lado de cá continuamos com os mesmos métodos de 100
anos atrás. Esse pensamento vem bem a calhar para nossos
propósitos. Sem querer e sem saber, eles colaboram conosco
ao defender técnicas ultrapassadas, ao combaterem entre
si, deixando-nos mais à vontade para agir.
— Ou, então, não agir. Pois, se ficam combatendo entre
si, deixam pouco serviço para nós. Se autodestroem. E o
que é melhor: em nome da própria filosofia e verdade que
julgam defender.
A partir desse ponto da conversa entre as inteligências
sombrias, pude entender o que planejavam — e eu vira somente
uma pequena parte do véu ser levantado. Pude entender,
também, por que aqui, na cidade dos guardiões, era
mais fácil nos instruirmos acerca desses detalhes, que possivelmente
nem interessassem à maioria dos espíritos com
os quais convivíamos na Aruanda. Aqui poderíamos ficar
mais à vontade, nos aprofundar nas observações e estudar
430
a metodologia empregada pelos seres que faziam frente ao
progresso espiritual da humanidade.
Prosseguindo na conversa, um dos espíritos interessados
em minar o movimento de renovação continuou:
— Temos de observar de perto alguns dentre eles, que
têm despontado como representantes de uma ciência dos
superiores. Muitos espíritos foram chamados a reencarnar
no mundo com o objetivo de levantar o véu da ilusão que
encobre a visão espiritual dos dirigentes e dos defensores
da pureza. Precisamos ficar atentos, catalogar todas as informações
que pudermos ter a respeito desses enviados e
de seus seguidores.
"Enquanto observamos, continuaremos nossa investida,
nosso investimento em escala mais ampla, mundial.
Novas lideranças devem subir ao poder entre os representantes
das nações; novas alianças devem ser feitas entre os
políticos, pois os emissários do Cordeiro rejeitam a ideia
de se envolver na política humana. Gradativamente, estabeleceremos
bases e sintonia com os homens públicos, representantes
do povo. Afinal, ninguém no movimento espiritualista
costuma se preocupar em abordar as questões
espirituais desses líderes mundiais.
43 1
"À medida que inspiramos disputas e dissensões entre
os defensores das ideias do Cordeiro, e durante os conflitos
pessoais daí decorrentes, trabalharemos em silêncio, preparando
o caminho para a hora do anticristo. Quando os
parceiros do Cordeiro despertarem para a realidade, já teremos
dominado muitas mentes representativas."
Vi o ardil dos planos excêntricos das entidades perversas.
E pretendiam muito mais.
— Mas também faremos com que nossas ideias penetrem
nesse movimento, e não só em nossos aliados. Enviaremos
alguns hábeis hipnotizadores de multidões, a fim de
defenderem nossos interesses de dentro das fileiras desse
movimento. Queremos estabelecer alianças em todo lugar.
— E o que farei, de minha parte? Tem alguma tarefa especial
para mim? — perguntou uma das entidades sombrias.
— É claro, nobre colega — respondeu o interlocutor,
dando estrondosa gargalhada. Suas unhas afiadas, como
garras, raspavam a mesa que lhe servia de suporte. — Preciso
que você nos represente, fazendo apenas observações.
Quero que siga de perto as reações de alguns representantes
do movimento do inimigo e nos traga todas as impressões.
Não interfira, não gaste suas forças com eles. Aja com
432
prudência, com extrema habilidade política. Queremos
apenas mapear o movimento deles, a fim de sabotarmos,
mais tarde, qualquer plano que nos pareça ameaçador. Isto
é, queremos informações sobre as reações dos parceiros do
Cordeiro, pois aí, na hora certa, agiremos com a estratégia
mais eficaz.
Olhando significativamente para os olhos negros e fundos
de seu colega, disse:
— Entrego-lhe especialmente o cadastro de alguns que.
temos certeza, foram enviados com objetivos bem definidos,
para tarefas no mundo. Quero o máximo de sigilo, de
detalhes e de acerto em suas observações.
"As informações contidas nas fichas dos trabalhadores
que serão investigados foram colhidas durante anos de silenciosas
observações por parte dos chamados 'olhos' ou
agentes duplos. Foram mapeadas emoções, sentimentos,
reações e atitudes desenvolvidas em cada atividade, desde
a profissional até o envolvimento social e familiar de cada
um. Essas fichas constituem, na verdade, mapas mentais
muitíssimo detalhados."
Depois do diálogo ocorrido em regiões inferiores e ignotas
da dimensão extrafísica, o emissário da escuridão
433
partiu em direção ao mundo dos homens. Tinha muito o
que observar, catalogar, registrar. Por enquanto, nada mais!
Afinal, não deveria gastar tempo, por ora, combatendo os
representantes do Cordeiro. Estes estavam muito ocupados
entre si; digladiavam, disputavam títulos e posições, aplau
sos e reconhecimento. Muitos representantes do abismo e
das regiões inferiores poderiam tirar férias, não fossem
seus planos mais ambiciosos, em âmbito planetário. Os es
píritas e espiritualistas, segundo entendiam, estavam numa
luta sem precedentes contra si mesmos; perdiam lon
go tempo fazendo relatórios que condenavam os próprios
companheiros de ideal; divulgavam ideias uns sobre os ou
tros de modo que mais pareciam inimigos. E essa atitude os
espíritos das sombras aplaudiam.
Fiquei abismado ao entrar em contato com aquela realidade.
Não teria podido sequer supor o que nos aguardava
no futuro, especialmente dentro do próprio movimento espiritualista.
Ao ouvir o diálogo das entidades perversas, seu
planejamento estratégico inteligente e minucioso, fiquei a
imaginar como nossos parceiros no plano físico seriam atacados.
Precisávamos realmente estabelecer uma frequência
mais íntima, um tipo de relacionamento mais estreito, uma
434
rede de proteção eficiente, a fim de amparar nossos agentes
encarnados quando as ideias que apresentaríamos fossem
levadas a público. Finalmente, eu começava a ter uma ideia
mais exata do que os guardiões me falaram sobre o preparo
da equipe que deveria trabalhar em sintonia conosco.
— Diante da iminente crise de valores que ameaça os
religiosos e as religiões do mundo, incluindo os espiritualistas
— iniciava nova cena —, faz-se urgente conhecer não
somente as armas e o potencial dos inimigos do bem, do
Reino, mas também suas fraquezas. É preciso, além disso,
tomar ciência do que ocorre em nossas próprias fronteiras,
quais elementos temos dentro de seu perímetro, a fim
de averiguar se podemos contar com obreiros conscientes
e munidos do conhecimento do Alto ou se devemos lidar,
ainda, com irmãos envolvidos em intrigas da política religiosa,
que grassou nos séculos passados. Diante de desafios
em escala cada vez maior, urge conhecer nossas forças internas,
como movimento de renovação, de novos homens.
Em breve, como humanidade, teremos de nos submeter a
provas e desafios que porão em cheque nossa pretensa espiritualidade,
quando o mundo enfrentar os momentos difíceis
da transição planetária.
43 5
"Sabemos que as provas às quais seremos submetidos
nos próximos anos deixarão para trás quaisquer outras que
o povo de Deus, os filhos do Reino tenham passado até então.
As revelações a respeito das artimanhas da oposição,
dos espíritos das sombras, já começam a se disseminar. De
acordo com o que ouvi em conversas de entidades que se
opõem à política do Reino, não há como negar que estamos
em pleno campo de batalha espiritual.
"Muita gente ainda dormita em meio a expressões de
boa vontade, embriagada com conceitos religiosos ultrapassados.
Contudo, somente o conhecimento amplo e irrestrito
das questões ligadas ao grande conflito espiritual
que está em curso — desde as armas empregadas na batalha
de mentes e emoções até as estratégias da guerra que se
passa nos bastidores da história humana — é que será capaz
de proporcionar uma visão acurada e mais precisa dos
desafios inerentes ao tempo em que vivemos.
"No aspecto subjetivo, apenas a firmeza oriunda do conhecimento
de nossas próprias dificuldades íntimas tanto
quanto de nosso potencial poderá proporcionar a vitória
certa contra as ciladas do inimigo, pois, como assevera
o apóstolo dos gentios: Não temos de lutar contra a carne e
43 6
o sangue, e, sim, contra os principados, contra as potestades,
contra os poderes deste mundo tenebroso, contra as forças
espirituais da maldade nas regiões celestes".18
As imagens se sucederam, e outro aspecto foi revelado
na projeção dos guardiões. O ambiente agora era outro.
Creio que Jamar queria acabar, de uma vez por todas, com
qualquer fantasia que alimentássemos em nosso espírito
a respeito de possíveis facilidades na tarefa pela frente. O
que vimos a partir dali era algo que merecia nossa reflexão;
os guardiões e aprendizes estavam todos atentos para o que
se passava em três dimensões.
— Vamos trazer nosso amigo Jaime até aqui — falou um
dos espíritos responsáveis pela orientação do movimento
espírita na região. Era nada mais, nada menos do que Cícero
Pereira, o eminente professor que se dedicara ao movimento
doutrinário. Cícero estava preocupado com a atitude
de Jaime em relação a um grupo espírita envolvido
na divulgação das ideias de renovação. O grupo se formara
por orientação superior e fazia o possível para firmar-se,
1 8 Ef 6:12 (Todas as citações extraídas de: BÍBLIA de referência Thompson. Edição
corrigida de Almeida. São Paulo: Vida, 1995.)
437
em sua estrutura energética, a fim de cumprir as orientações
que recebia de mensageiros da dimensão invisível. O
pequeno grupo ainda teria um papel a desempenhar no
Brasil, principalmente; de maneira mais precisa, traria novos
elementos para que o movimento pudesse repensar sua
metodologia de trabalho e seu compromisso com as esferas
de espiritualização da humanidade.
Jaime, dirigente regional, fizera-se inimigo público número
um desse grupo e de alguns de seus representantes,
em particular. Segundo víamos na projeção, ele não admitia
que alguém ou algum grupo pudesse obter a expressão
que o pequeno agrupamento estava conseguindo em meio
às outras casas espíritas.
— Não podemos permitir que Jaime, que é um bom trabalhador,
se equivoque assim quanto aos compromissos espirituais
de nossos irmãos. Nós o traremos à nossa dimensão
e veremos o que se pode fazer. Dialogaremos quanto
for possível, pois, sem se dar conta, combate nossos representantes,
seus irmãos.
A projeção mostrou a ação dos benfeitores durante o
período de sono do dirigente espírita. À noite, um dos espíritos
responsáveis dirigiu-se à cidade onde residia Jaime,
438
um trabalhador dedicado, porém equivocado e envolvido
na política interna do movimento espírita. Quando a equipe
espiritual de trabalhadores, coordenados por Anastácia,
adentrou o ambiente da casa de Jaime a pedido de Cícero, a
situação que encontraram não era nada boa.
O ambiente doméstico estava repleto de criações mentais,
que fervilhavam em torno do quarto de Jaime. Ele
dormia, mas não um sono tranquilo, pois parecia estar
mergulhado em rancor, expresso através das imagens que
compunham seu quadro íntimo. Anastácia, ao ver a situação,
realçou a importância deste trabalhador, no que tange
aos atropelos de seus desafios pessoais, íntimos, os quais
estavam definindo, muitas vezes, suas reações no movimento
de que participa:
— Jaime está envolvido em fantasias herdadas de seu
passado espiritual. Ficou preso aos conceitos de domínio e
agora amarga as imagens mentais que criou e às quais se
enredou — falou Anastácia ao outro espírito.
— Também, pudera. Segundo temos notícias do histórico
pessoal, Jaime foi alguém muito ligado ao catolicismo
no passado. Parece que ele se ajustou perfeitamente ao papel
de sacerdote da igreja.
439
— É, meu amigo, temos muitos ex-católicos reencarnados
no movimento espírita. Por um lado isso é bom, uma
vez que têm oportunidade de reavaliar sua visão a respeito
de espiritualidade; por outro lado, trazem os resquícios do
passado para a prática espírita. Nesse caso, veja como Jaime
ressuscita a velha fórmula católica de gerir os centros
espíritas. Ele não permite nada novo, nem qualquer coisa
que não passe pelo aval daquilo que convencionou chamar
de movimento oficial, em contraste ao conceito errôneo que
convencionou e que chamou de movimento paralelo.
— Não entendo essa coisa de movimento paralelo,
Anastácia.
— Nem você, nem ninguém. Trata-se de uma invenção
de dirigentes espíritas que querem dominar o movimento,
de espíritos católicos que reencarnaram para atrapalhar a
marcha do espiritismo. Qualquer pessoa ou centro espírita
que porventura se destaque nas pesquisas ou no trabalho
que realiza e que não baixe a cabeça e peça bênção àqueles
que querem ditar normas aos demais, é tachado de paralelo.
Isso é apenas política rasteira que fazem, a fim de manter
um status que não têm mais e, além disso, uma posição
insustentável para a época atual.
440
Ao ouvir o diálogo das entidades que tentavam auxiliar
Jaime, pude vislumbrar melhor o que nos aguardava
no porvir. Não seria fácil nossa tarefa. Jamar parecia saber
disso muito bem, pois não nos poupou, nem sequer aos médiuns
desdobrados, de ouvir um pouco mais.
Deixando de lado os comentários sobre a política de alguns
dirigentes, os dois espíritos dirigiram-se a Jaime. Dispersaram
as formas mentais invasivas que gravitavam no
interior do ambiente doméstico e, em seguida, Anastácia
magnetizou Jaime, com passes longitudinais lentos. À proporção
que o magnetismo agia sobre o homem deitado, seu
corpo espiritual desdobrava-se na dimensão extrafísica,
com aparência bastante diferente. Aparecia um sacerdote
católico, em toda a sua roupagem, vestido com indumentária
representativa para as convenções daquela religião.
— Meu Deus do céu! — pronunciou Nélio, assustado
com o rompante do homem desdobrado.
Jaime trazia sob o braço um exemplar de O livro dos
espíritos, de Allan Kardec — algo que não combinava com a
roupa de sacerdote.
— Olá, meu amigo! — falou Anastácia. — Aguardamos
você para uma conversa séria a respeito de nosso movi
441
mento. Mas, antes, acho que podemos modificar sua aparência.
O que acha?
Olhando para si mesmo, Jaime-espírito também se assustou
com a roupagem fluídica que trazia estampada em
sua aparência perispiritual. A um comando de Anastácia,
Nélio magnetizou lentamente Jaime, tentando modificar-
lhe a aparência ou a indumentária com que se apresentava.
Mas não conseguiu completamente. Alguns elementos
pareciam resistir ao magnetismo.
Olhando para o companheiro espiritual, Anastácia falou:
— Parece que a postura do sacerdote católico está tão
arraigada que, mesmo sob ação externa, não há como desvencilhá-
lo daquilo que para ele representa uma insígnia
de poder. Não obstante, não poderíamos deixá-lo totalmente
como estava, pois essa figura reforça em seu psiquismo
uma posição que não mais detém e que é por demais pretensiosa.
Vamos levá-lo conosco.
As imagens projetadas se modificaram totalmente. Vimos
outro ambiente. Irmina parecia incomodada com a situação.
Talvez porque ela, entre todos nós, era a única que
não teria nenhuma ligação direta com o movimento espiritualista.
Mas diante de um olhar significativo de um dos
442
guardiões, ela se aquietou. A projeção continuou por mais
algum tempo.
Jaime foi conduzido pelos dois espíritos amigos a um
ambiente da dimensão extrafísica onde poderia se expressar
aos benfeitores e também ouvir algo que o fizesse refletir.
— Queremos conversar um pouco com você, meu amigo
— introduziu o companheiro espiritual que pretendia
orientá-lo.
— Não vejo por que me trouxeram aqui; tenho muita
coisa a fazer no movimento espírita. Mas, aproveitando a
oportunidade, trago algumas considerações para as quais
pretendo pedir medida urgente da parte de vocês — o homem
desdobrado fazia suas reivindicações.
Aprendi muito nesses poucos momentos em que presenciava
a gravação que os guardiões exibiam. Era interessante
observar a postura de alguém fora do corpo, ver o
modo pelo qual se expressava como espírito, e não somente
como encarnado.
— Consideramos a situação do movimento espírita e
sabemos que muitas casas espíritas têm surgido e se destacado,
buscando atuar conforme as diretrizes recebidas
de nossa dimensão — falou um dos espíritos mentores do
443
movimento regional. — Segundo informações que detemos,
provenientes de planos mais superiores, nosso movimento
carece de urgente união, e muitas casas, como naus num
oceano, precisam de apoio a fim de se sustentarem, visando
às tarefas que lhes reserva o futuro.
— Existem muitos que estão formando grupos fora do
movimento de unificação. Fazem um movimento paralelo
e tentam fazer espiritismo de uma forma diferente — argumentou
Jaime.
— Mas como pode haver unificação sem união, meu
amigo? Como pretender que todos falem a mesma linguagem
quando colocam argueiros nos próprios olhos, que
impedem de ver as próprias limitações, a deficiência na
maneira de se comunicar com irmãos do mesmo ideal ou,
ainda, as barreiras de caráter político, atinentes à administração
do movimento? Será que não seria hora de, ao menos,
escutar aqueles que você classifica como participantes
de movimento paralelo?
— Não adianta diálogo. Veja o caso da casa espírita
com a qual tenho lidado pessoalmente. Atrevem-se a publicar
livros, divulgar eventos e, ainda por cima, têm ganhado
terreno e público executando um trabalho espiri
44 4
tual para o qual não nos pediram permissão, nem sequer
nos informaram.
— Mas qual é o papel dos dirigentes do movimento espírita?
Seria ditar normas de conduta para os centros? É
gerir internamente aqueles grupos que surgiram com uma
proposta inspirada pelo Alto, embora você mesmo confesse
não se dar ao trabalho de conhecer tal proposta?
Ignorando o que o amigo espiritual dizia, Jaime prosseguiu
com seus argumentos:
— Os dirigentes dessa casa, por exemplo, não têm competência
para decidir a respeito de livros que devem ser
lançados em nome da Doutrina. Estão causando confusão
e abordam assuntos polêmicos; querem divulgar o trabalho
do médium deles sem que o conteúdo dos livros passem
por nosso crivo, o conselho doutrinário.
Eu não sabia que existia um conselho doutrinário. Sinceramente,
fiquei impressionado com a ideia apresentada
pelo dirigente encarnado.
— Mas me responda uma coisa, amigo — insistiu Anastácia,
interessada na conversa. — Baseados em que orientação
ou conselho de Kardec vocês instituíram esse crivo a
que se refere, esse conselho doutrinário? Melhor, ainda: as
445
pessoas que compõem o tal conselho foram investidas de
que autoridade para se julgarem em condição de definir o
que deve ou não ser publicado, divulgado ou pregado?
— Nós temos o dever de zelar pela pureza doutrinária!
— esquivou-se Jaime, desdobrado, convicto, em meio
àquela assembleia.
— Mas você não me respondeu ainda, querido Jaime.
Não encontramos respaldo algum para as pretensões
descabidas de arrogar-se o direito de dar a última palavra
a respeito de qualquer assunto, o que não compete a nenhum
dirigente. Você acredita realmente que está prestando
um serviço ao movimento espírita com essa atitude,
boicotando ou combatendo os trabalhos de uma instituição
que faz de tudo para levar a cabo as tarefas de divulgação
doutrinária que lhe foram confiadas? Acha realmente
que você foi investido de algum poder político ou censor,
papel que jamais passou pelas cogitações do próprio Allan
Kardec reivindicar?
— Se nós somos os representantes legítimos do movimento
de unificação do espiritismo, nos cabe zelar por
tudo aquilo que é difundido, pelo conteúdo dos livros, jornais
e revistas que as editoras publicam, e até mesmo pelo
446
que é ensinado dentro dos centros — falou Jaime, num tom
já nervoso.
Mais pasmo ainda fiquei. Não imaginava que, no futuro,
possíveis mensagens e informações que eu levasse pelo
correio entre os dois mundos teriam de ser submetidas a
um crivo, uma censura espiritual. Estava arrepiado com o
que ouvia. Realmente, Jamar conseguira dissipar qualquer
ilusão de que a tarefa que teríamos pela frente seria simples.
Creio que o guardião percebeu que as projeções mexeram
com a maioria de nós. Ele não prosseguiu muito
mais com as imagens tridimensionais; mesmo assim, ainda
ouviríamos outro trecho do diálogo.
Respirando fundo, como que para dar um tempo até os
ânimos se acalmarem, Cícero interveio:
— Fico preocupado, meu caro Jaime, sinceramente
preocupado com o destino de nosso movimento espírita.
Vejo que temos muitas pessoas de boa vontade combatendo
entre si, como se fossem rivais. E falta diálogo. Pergunto-
lhe, respeitando seu ponto de vista: quando foi que você
visitou a casa espírita que acusa de fazer "movimento paralelo"?
Já conversou com os dirigentes, como amigo, como
companheiro de um ideal que está acima das questões po
447
líticas e administrativas do movimento? Já lhes deu a oportunidade
de se expressarem, de falarem a respeito do trabalho
que realizam? E ainda, como dirigente do movimento
de unificação, você conhece as diretrizes do trabalho espiritual
dessa casa, os projetos que norteiam a fundação da
casa e o trabalho dos dirigentes?
Quase emburrado, não conseguindo esconder na fisionomia
o desgosto de participar daquela reunião, Jaime expressou-
se, num rompante:
— Não tenho de conhecer nada! Eles é que têm de vir
até nós, em nossa sede, e marcar uma reunião conosco, submetendo
suas ideias a nosso Conselho. Não podem fundar
um trabalho assim, sair por aí fazendo divulgação da Doutrina
sem que haja consentimento da direção do movimento.
Afinal — complementou, quase irado —, temos uma diretoria
e um dever maior, que é coordenar o espiritismo
local, não permitindo abusos da parte de ninguém.
Novamente foi Anastácia quem interferiu:
— Vejo que a questão não se atém meramente ao que você
falou, a respeito dos companheiros da tal instituição formarem
um movimento paralelo. Creio, Jaime, que você tem algo
muito malresolvido com a questão da autoridade e do poder.
44 8
Pareceu que Anastácia tocara no ponto fraco e no calcanhar
de Aquiles do dirigente desdobrado. Continuando,
ela avançou em seu raciocínio:
— Com certeza você traz na memória espiritual o registro
de outros tempos, nos quais liderou um grupo religioso;
então, na atualidade, quer fazer de tudo para continuar
exercendo o pretendido domínio em seu círculo de ação.
— Eu não preciso ouvir tamanhas barbaridades! Sou psicólogo,
tenho meu título reconhecido pelo conselho e, acima
de tudo, sou legítimo representante do movimento espírita!
— e, sem considerar a elevação do espírito com quem falava,
sobrepôs sua voz, dando vazão a seu pensamento e ao orgulho
ferido. — Quem é você que pensa poder me influenciar
com seu pensamento antidoutrinário? O espiritismo precisa
urgentemente de pessoas que o defendam dos misticismos e
dos exageros daqueles que pretendem macular a sã Doutrina.
E vocês pensam que podem deter os abusos com seus argumentos
fracos e sem consistência doutrinária?
As imagens cessaram por aí. Jamar observou a plateia
de espíritos que compunha a equipe de divulgação de
novas ideias, que seria responsável por desbravar o mundo
extrafísico de maneira inusitada. Ele próprio, Jamar,
449
um dos comandantes dos guardiões, estaria junto daquela
equipe. Deixando-nos refletir um pouco sobre o que víramos,
o guardião da noite tomou a palavra:
— Acredito, meus amigos, que esta projeção dá uma
ideia bem aproximada do que nos espera durante os próximos
anos. Vamos deixar para trás todo sonho e ilusão.
Me perdoem se estou sendo tão franco, mas esta será nossa
realidade, de modo que cabe a vocês, a partir de agora,
definirem-se ante a proposta apresentada pelos eminentes
espíritos que nos dirigem.
Pai João, ainda calado, olhava-nos, talvez perscrutando
nossos pensamentos no intuito de sentir mais de perto
o terreno de nossos corações. Joseph Gleber se retirara
para outras tarefas. O guardião deu por encerrada esta parte
de nossas atividades. Terminava ali meu primeiro e mais
impactante contato com a realidade do movimento com o
qual eu desenvolveria, a partir daquele momento, profunda
intimidade.
Saímos do ambiente da projeção e fomos rumo ao pátio.
Eu pensava febrilmente sobre o que assistira. Afastei-
me ligeiramente de meus companheiros e me dirigi a um
chafariz no meio do enorme pátio, que era decorado com
450
esmero, embora sóbrio. Notei que a base dos guardiões estava
realmente sendo ampliada. Não era mais apenas um
dos quartéis onde eles se reuniam, mas agora se assemelhava
a uma cidade, com construções à altura. Havia atividade
da parte dos espíritos construtores em ritmo acelerado, visando
ampliar aquele lugar, que, de fato, estava em franca
expansão. Olhei no entorno, percebi os fluidos ambientes e,
logo mais, Pai João se aproximou de mim, segurando-me.
Estava acompanhado por Irmina e pelo rapaz que ele próprio
me apresentara, na casa de Consuela.
Ainda respeitando meu momento de reflexão, diante
dos desafios que enfrentaríamos juntos, o pai-velho olhou
para o alto, expressando talvez um quê de gratidão ou esperança.
Apontou silencioso uma luz que brilhava bem alto,
apesar da densidade vibratória da região onde estávamos, e
pude sentir seu pensamento pela primeira vez:
— Amanda! É o que nos basta saber no momento, meus
amigos. Amanda é a certeza de que não estaremos sozinhos.
Que vocês não estarão sozinhos; afinal, os filhos de
Pai João bambeiam, mas não caem...
Senti o carinho expresso no pensamento daquele ser
admirável. O médium aproximou-se de mim; Irmina, ins
45 1
pirada na atitude do rapaz, também se achegou. Abraçamo-
nos os três, olhando para a estrela que brilhava na imensidão,
reflexo daquele paraíso que nos abrigou. Somente
então o pai-velho comentou, rompendo o silêncio:
— Que venham as dificuldades, que venham as lutas! O
importante, meus filhos, é que permaneçamos unidos. Saibam
que, onde vocês estiverem, estarei junto. Caso caiam,
cairei antes, ao chão me jogarei para ampará-los em meus
braços. Estaremos intimamente ligados pelos mais sagrados
laços de afeto, e, embora as incompreensões naturais
ao caminho dos desbravadores, nossa fidelidade a Jesus estará
acima de qualquer espécie de dificuldade.
Olhando-nos com imenso carinho e, quem sabe, sondando
nossas almas um pouco assustadas diante dos desafios
que nos aguardavam no porvir, complementou, estendendo
suas mãos numa bênção:
— Onde Pai João põe a mão, Deus, que é poderoso, põe
a sua bênção!...
O céu estava claro, limpo de fluidos perniciosos e contaminações
energéticas. Embora não tão claro quanto o visto
da Aruanda, mas imensamente mais claro, se comparado
ao que víamos em derredor, naquela dimensão onde se lo
45 2
calizava a cidade dos guardiões. Iluminada discretamente
com a luz que irradiava da Amanda, que permanecia como
uma estrela vista ao longe, um farol de dimensões mais altas,
e fortalecida com o pensamento dos guardiões que ali
trabalhavam e estudavam, era muito bom ver aquela estância
tão limpa e transformada numa cidade esplêndida, antecâmara
da metrópole espiritual.
Jamar e Watab iniciaram um deslizar suave sobre a
nova cidade. Voavam sobre os fluidos ambientes como se
asas tivessem; pairaram como se suas asas imaginárias
bem abertas estivessem — ou, talvez, como se planassem
de paraquedas, quase preguiçosamente, acima da cidade
dos guardiões, em seu percurso passando sobre a escola de
guardiões. Embaixo, os diversos destacamentos das hostes
dos sentinelas da luz. Os dois guerreiros voavam, planando
cada vez mais baixo sobre algumas construções e, logo em
seguida, subiram o altiplano, aumentando a velocidade lentamente
para depois pairarem mais acima.
Observando-os, vi que, tão logo chegaram ao topo, pareciam
pairar quase imóveis acima de nós, talvez meditando,
perscrutando os detalhes da cidade construída numa
dimensão quase material, mas além das percepções huma
45 3
nas. Em seguida, moveram-se novamente sobre os fluidos
ambientes, modificaram a rota do seu voo e detiveram-se,
enfim, descendo lentamente, feito uma pluma, logo acima
do ponto mais alto da montanha. Jamar apontou para baixo,
e logo uma mutidão de guardiões se posicionou desde
a base da montanha sagrada até pouco abaixo do cume.
Uma legião de trabalhadores, de guerreiros a serviço do
bem da humanidade, sob a supervisão de Miguel, o príncipe
dos exércitos celestes. Dois pontos de luz logo surgiram;
como águias com suas poderosas asas voaram, deslocaram-
se rumo ao local onde estacionaram os guardiões Jamar e
Watab. Eram Semíramis e Astrid, guardiãs que supervisionavam
um destacamento de forças femininas, também sob
o comando do príncipe Miguel, as quais eram especialistas
nos entroncamentos energéticos entre a razão e a emoção.
O batalhão estava a postos. Enquanto Jamar desembainhava
a espada, que rebrilhava em meio à semimatéria
daquela dimensão do mundo invisível, os guardiões alçaram
voo, todos, em conjunto, descrevendo uma coreografia
no ar para imediatamente partir rumo ao planeta dos homens,
ao mundo dos encarnados. Como paraquedistas, pairaram
os milhares de guardiões sobre a cidade erguida sob
45 4
o patrocínio da Amanda, sob as bênçãos de pais-velhos e de
sábios de todas as nações, e então voaram com destino à dimensão
dos filhos dos homens.
Jamar e Watab, Semíramis e Astrid a tudo observavam
com as espadas erguidas; olharam além do véu a humanidade,
e suas almas rejubilaram porque permaneceriam invisíveis,
numa terra encravada entre as estrelas, velando pelo
destino do mundo. E enquanto muitos, milhões dormiam
ou se perdiam em meio ao nevoeiro da ilusão, do maia,
mergulhados e completamente absortos no cenário oferecido
pela dimensão física, entre a materialidade e a realidade
primitiva do mundo original, eles, os guardiões, trabalhariam
para o mundo despertar e para preservar o mesmo
mundo da destruição, das armadilhas da corrupção, das investidas
das forças inimigas do progresso e da evolução. Ali
estariam eles, invisíveis, mas presentes nos gabinetes de
governos, nas regiões mais ignotas, em meio à multidão ou
onde quer que a humanidade deles precisasse. Se porventura
os homens pudessem levantar o véu que separa as dimensões,
veriam os espíritos que velam por eles, os conduzem
e os influenciam, em grau muito maior do que sequer
poderiam imaginar.
45 7
BÍBLI A de referência Thompson. Edição corrigida de Almeida.
São Paulo: Vida, 1995.
a
KARDEC . O livro dos espíritos. I ed. esp. Rio de Janeiro:
FEB , 2005.
PINHEIRO . Pelo espírito Ângelo Inácio. Amanda. 13a ed.
rev. ampl. Contagem: Casa dos Espíritos, 2011. (Segredos
de Amanda, v. 1.)
Pelo espírito Ângelo Inácio. A marca da besta. Contagem:
Casa dos Espíritos, 2010.
XAVIER , Francisco Cândido. Pelo espírito André Luiz.
Nosso lar. 3a ed. esp. Rio de Janeiro: FEB , 2010. (A vida no
mundo espiritual, v. 1.)
459
ROBSON PINHEIRO é mineiro, filho de Everilda Batista.
Em 1989, ela escreve por intermédio de Chico Xavier: "Meu
filho, quero continuar meu trabalho através de suas mãos".
É autor de mais de 30 livros, quase todos de caráter mediúnico,
entre eles Legião, Senhores da escuridão e A marca da
besta, que compõe a trilogia O Reino das Sombras, também
do espírito Ângelo Inácio. Fundou e dirige a Sociedade Espírita
Everilda Batista desde 1992, que integra a Universidade
do Espírito de Minas Gerais. Em 2008, tornou-se Cidadão
Honorário de Belo Horizonte.
OUTROS LIVROS DE ROBSON PINHEIRO
PELO ESPÍRITO ÂNGELO INÁCIO
Tambores de Angola
Amanda
Encontro com a vida
Crepúsculo dos deuses
O fim da escuridão
O próximo minuto
TRILOGIA O REINO DAS SOMBRAS
Legião: um olhar sobre o reino das sombras
Senhores da escuridão
A marca da besta
ORIENTADO PELO ESPIRITO ÂNGELO INÁCIO
Faz parte do meu show
Corpo fechado (pelo espírito W. Voltz)
PELO ESPÍRITO PAI JOÃO DE ARUAND A
Sabedoria de preto-velho
Pai João
Negro
PELO ESPÍRITO TERESA DE CALCUT Á
A força eterna do amor
Pelas ruas de Calcutá
PELO ESPÍRITO JOSEPH GLEBER
Medicina da alma
Além da matéria
Consciência: em mediunidade, você precisa saber
o que está fazendo
PELO ESPÍRITO ALEX ZARTHÚ
Gestação da Terra
Serenidade: uma terapia para a alma
Superando os desafios íntimos
PELO ESPÍRITO ESTÊVÃO
Apocalipse: uma interpretação espírita das profecias
Mulheres do Evangelho
PELO ESPÍRITO EVERILDA BATISTA
Sob a luz do luar
Os dois lados do espelho
PELO ESPÍRITO FRANKLIM
Canção da esperança:
diário de um jovem que viveu com aids
ORIENTADO PELOS ESPÍRITOS
JOSEPH GLEBER, ANDRÉ LUIZ E JOSÉ GROSSO
Energia: novas dimensões da bioenergética humana
COM LEONARDO MÕLLER
Os espíritos em minha vida: memórias
www.casadosespiritos.com
---------- Mensagem encaminhada ----------
De:
Reginaldo Mendes <
O Grupo Allan Kardec lança hoje mais um livro digtal!
Desejamos a todos um boa leitura!
A Cidade dos Espíritos - Ângelo Inácio - Robson Pinheiro
Sinopse:
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