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Um Assassinato, um Mistério e um Casamento
Literatura em Minha Casa
Clássico Internacional
Volume 4
Mark Twain
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Impressão braille em volume
único, do volume 4, da Editora
Objetiva Ltda
<F+>
Volume Único
Ministério da Educação
Instituto Benjamin Constant
Av. Pasteur, 350/368 -- Urca
22290-240 Rio de Janeiro
RJ -- Brasil
Tel.: (0xx21) 2543-1119
Fax: (0xx21) 2543-1174
E-mail: ~,
ibc@ibcnet.org.br~,
~,http:ÿÿ
www.ibcnet.org.br~,
-- 2003 --
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Copyright 2001 by Richard A. Watson e Chase Manhattan Bank como curadores da Fundação Mark Twain.
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Tradução, Apresentação e Notas:
Ana Maria Machado
Revisão:
Tereza da Rocha
Coordenação Editorial
Isa Pessôa
ISBN 85-7302-416-X
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Objetiva Ltda.,
Editora Objetiva Ltda.,
Rua Cosme Velho, 103
Rio de Janeiro -- RJ --
CEP 22241-090
Tel.: (0xx21) 2556-7824
Fax: (0xx21) 2556-3322
~,
www.objetiva.com.br~,
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¨ I
Nota Oficial da Comissão
Brasileira do Braille (CBB)
A transcrição desta obra está de acordo com a "Grafia Braille para a Língua Portuguesa -- Braille Integral", constante da publicação CDU 376.#ceb, editada em tinta e em braille pelo Ministério da Educação e aprovada pela Portaria Ministerial n.o 2678, de 24 de setembro de 2002, com vigência a partir de 01 de janeiro de 2003.
O referido documento foi elaborado pela Comissão Brasileira do Braille e pela Comissão de Braille de Portugal após prolongados e criteriosos estudos técnicos.
No final desta nota você encontrará uma listagem com símbolos estabelecidos pela "Grafia".
A maioria deles já é do seu conhecimento, mas existem alterações e alguns símbolos novos.
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As alterações e a adoção de novos símbolos basearam-se principalmente nos seguintes critérios:
<R+>
1. Ajustar a grafia básica a novas necessidades da representação braille.
2. Adequar a escrita braille às modificações realizadas nas representações gráficas decorrentes do avanço científico e tecnológico e do emprego cada vez mais freqüente da Informática.
3. Evitar a duplicidade de representação de símbolos
braille.
4. Ajustar a grafia básica, considerando o "Código Matemático Unificado" (CMU), adotado no Brasil desde 1997.
5. Garantir a qualidade da transcrição de textos para o Sistema Braille, especialmente dos livros didáticos.
<P>
¨ III
6. Favorecer o intercâmbio entre pessoas cegas e instituições de diferentes países de Língua
Oficial Portuguesa.
7. Atender às recomendações da União Mundial de Cegos (UMC) e da UNESCO quanto à unificação das grafias por grupos lingüísticos.
<R->
Em caso de dúvida, você poderá consultar a "Grafia Braille para a Língua Portuguesa", em cujo texto encontrará todos os símbolos adotados, as respectivas normas de aplicação e diversos exemplos ilustrativos.
A seguir, listagem de símbolos adotados pela "Grafia". O número entre parênteses que acompanha um símbolo novo ou alterado indica o parágrafo da "Grafia" em que se estabelece a sua norma de aplicação.
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<R+>
é, vírgula
é; ponto-e-vírgula
é: dois-pontos
é' ponto (32); apóstrofo
é? ponto de interrogação
é! ponto de exclamação
é''' reticências
é- hífen ou traço de união
é-- travessão
• círculo
`( `) ou ( ) abre e fecha parênteses (35)
`[ `] ou [ ] abre e fecha colchetes (35)
é" abre e fecha aspas, vírgulas altas ou comas (36)
éý" abre e fecha aspas angulares (36)
é$" abre e fecha outras variantes de aspas
(aspas simples, por exemplo) (36)
é* asterisco
& "e" comercial (39)
é/ barra (40)
é| barra vertical (40)
:> seta para a direita
<: seta para a esquerda
<:> seta de duplo sentido
¨ V
é Euro (18.1)
é$ cifrão
% por cento
‰ por mil
§ parágrafo(s) jurídico(s)
é+ mais
é- menos
é× multiplicado por
é÷ dividido por, traço de fração (17)
é= igual a
é~÷ traço de fração (17)
o maior que
õ menor que
é° grau(s)
ü minuto(s)
üü segundo(s)
é{ sinal de maiúscula
é{{ sinal de maiúscula em todas as letras da palavra
:{{ sinal de série de palavras com todas as letras maiúsculas
é~ sinal de minúscula latina; sinal especial de translineação de expressões matemáticas
(22.1)
é$ sinal restituidor do significado original de um símbolo
braille (42)
# sinal de número
â sinal de expoente ou índice superior
í sinal de índice inferior
é* sinal de itálico, negrito ou sublinhado (30)
é~: sinal de transpaginação (55)
@ arroba (apêndice 1`ã
é~, sinal delimitador de contexto informático (apêndice 1`ã
<R->
<P>
¨ VII
<R+>
T969~a
Twain, Mark
`( 1835-1910 `)
¨ Um assassinato, um mistério e um casamento / Mark Twain;
tradução de Ana Maria Machado. -- Rio de Janeiro : Objetiva, 2001
63 p. -- ( Literatura em minha casa ; v. 4 )
ISBN 85-7302-416-X
Tradução de: A murder, a mistery and a marriage
1. Literatura americana -- Novela. I. Machado, Ana Maria ( tradutora ).
II. Título. III. Série.
¨ CDD813
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<P>
¨
Os autores clássicos nunca saem de moda -- e esse é o caso de Mark Twain, o grande clássico da literatura infanto-juvenil dos Estados Unidos. O jovem Twain precisou trabalhar muito cedo e logo inventou uma maneira diferente de escrever para ganhar a vida.
Twain escrevia como as pessoas falavam, e nunca usava termos complicados. Também deixava sua imaginação voar -- assim nasceram personagens inesquecíveis como Tom Sawyer e Huckleberry Finn. Aqui o mestre americano nos envolve com um mistério, tão intrigante que a gente lê rápido pra saber o que acontece, sem conseguir parar.
<P>
¨ IX
Seu Livro em Braille
Este é o livro utilizado em sua classe, produzido em braille para
você. Ele contém as mesmas informações que estão no livro do seu
colega, porém, enquanto o livro comum apresenta ilustrações, cores
e tamanhos variados de letras (grandes, pequenas, arredondadas,
retas, inclinadas, ligadas umas às outras, separadas), o seu livro em
braille apresenta descrições substituindo ilustrações e, em muitos
casos, figuras são explicadas, procurando fazer você compreender o
que elas representam.
Dicas para estudar no seu livro
em braille
1ª -- As páginas ímpares deste livro apresentam duas numerações na
primeira linha: a que fica à direita é a do próprio livro em braille e a
que está à esquerda é a do livro comum. Por esta, você pode
se localizar, de acordo com a orientação do professor, ou quando
estiver estudando com outros colegas.
2ª -- Em alguns momentos, você precisará contar com a
colaboração de alguém; por isto, foi colocada a frase "peça
orientação ao professor" para sugerir que você solicite informações
ou esclarecimentos a seu professor.
3ª -- Sempre que você encontrar nos textos alguma informação
visual e tiver dúvida, pergunte a seu professor ou a outra pessoa
capaz de esclarecê-lo.
4ª -- Quando você encontrar o sinal _á e, depois dele, uma frase
terminada pelo sinal _ú saiba que se trata de uma explicação
especial chamada "nota de transcrição", empregada nos livros em
braille.
<P>
¨ XI
5ª -- Leia com atenção a Nota Oficial da Comissão Brasileira
do Braille, na página I. Ela informará você sobre algumas alterações
dos sinais braille, em vigência a partir de janeiro de 2003, facilitando, assim, a
leitura dos textos.
Tire o melhor proveito deste livro e procure conservá-lo. Ele é
uma fonte permanente de consulta.
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<Tassassinato casamento>
<T+1>
<R+>
Mark Twain: um autor clássico que gostava de inventar
Ana Maria Machado
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Há alguns escritores que são considerados clássicos. Quer dizer, nunca saem de moda. São sempre interessantes, e mesmo que a gente leia e releia os livros deles muitas vezes, acaba sempre encontrando alguma coisa nova. No Brasil, por exemplo, o grande clássico da literatura infanto-juvenil é Monteiro Lobato. Nos Estados Unidos, é Mark Twain.
Quando Mark Twain nasceu, em 1835, numa cidadezinha à margem do Mississipi -- o maior rio da América do Norte --, ninguém podia imaginar que aquele menino um dia iria ser um grande autor de livros para jovens. Até mesmo porque não existia esse conceito de literatura infantil e juvenil. No máximo, as crianças ouviam e liam contos de fadas, cantigas e fábulas ou histórias que ensinassem uma
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lição. Mas alguma história divertida, passada numa realidade próxima dos leitores, com personagens semelhantes a eles? Isso era coisa que ainda precisava ser inventada. Pois Mark Twain ajudou a inventar. Aliás, ele era mesmo
um pioneiro, um grande inventador de moda. Não só porque foi o primeiro escritor em toda a história a mandar para uma editora os originais de um livro todo datilografado, numa época em que todo mundo escrevia à mão, mergulhando a pena da caneta num tinteiro. A invenção principal de Mark
Twain foi muito mais importante. Muitos escritores respeitadíssimos -- como Ernest
Hemingway, que mais de um século depois ganharia o Prêmio Nobel de Literatura -- garantem que toda a literatura norte-americana começou mesmo foi com os livros de Mark Twain, porque ele era capaz de observar bem a paisagem, as pessoas, as situações à sua volta, e contar tudo o que via em seus livros. Mas também tinha outra coisa, muito importante num escritor: o estilo, a maneira de escrever. Ele usava a linguagem de uma forma em que as pessoas se reconheciam, porque era do jeito mesmo que elas falavam todo dia nos Estados
Unidos e não com os termos difíceis que os escritores da Inglaterra usavam e as escolas ensinavam. Mais ou menos como se fazia no Brasil nesse tempo, em que queriam que a gente copiasse a linguagem de Portugal, igualzinha, já pensou? Ainda bem que sempre apareceu algum escritor para ajudar a dar um jeito nisso.
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Mas, na infância do menino
Samuel Clemens (que depois ia inventar um nome novo, Mark Twain), nada indicava que ele ia ser escritor nem famoso. Era um menino comum, que dividia o seu tempo entre as brincadeiras, os amigos, a casa e o colégio. No começo da adolescência foi que a vida lhe deu um tranco. Quando estava com 12 anos, seu pai morreu, e ele teve que sair da escola para trabalhar e ajudar a sustentar a família. Era o começo de uma longa vida de trabalho, em que teve muitos empregos e profissões diferentes. Em todos eles foi aprendendo alguma coisa que mais tarde usaria em seus livros. Começou como aprendiz de tipógrafo, para um jornal. Em pouco tempo, inventou de viajar numas barcas enormes, que transportavam carga e passageiros pelo rio. Sua função era procurar pequenas notícias nas diversas paradas da barca, e depois botar no jornal. Como sempre tinha gostado muito de ler, estava acostumado com a escrita e foi desenvolvendo também um jeito de escrever bem. As coisas que ocorriam com os habitantes das pequenas cidades ficavam parecendo acontecimentos interessantes. Sempre que possível, com um toque divertido. É que Mark Twain não seria apenas um ótimo escritor, mas também um grande humorista -- mais tarde, fez muito sucesso percorrendo o país em apresentações que lotavam auditórios e levavam a platéia às gargalhadas.
Chegou um momento, porém, em que ele não se satisfazia
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mais com as viagens nos livros e nas barcas que subiam e desciam o rio. Resolveu ser pintor ambulante e saiu viajando por terra, conhecendo várias cidades do país. Nessa época, ouviu falar no Brasil e resolveu vir para cá, em busca de aventuras e fortuna. Nas vésperas da viagem, porém, mudou de planos porque encontrou um piloto de barco no Mississipi que lhe ofereceu um emprego que era o seu sonho de menino. Largou tudo e aceitou: foi ser barqueiro durante seis anos. Conheceu então todo tipo de gente.
Nessa época, os Estados Unidos debatiam a questão da escravidão. Os estados do Norte se industrializavam, precisavam de quem comprasse os produtos que fabricavam, defendiam que os trabalhadores recebessem salários. Por isso entravam em choque com os estados do Sul, que viviam da agricultura baseada no trabalho escravo. O país acabou entrando numa guerra civil. Mark Twain passou uma temporada no Exército, e depois foi para o Oeste, para ver se encontrava ouro. Não achou ouro nenhum, mas comprou parte de uma mina, comerciou com madeira, se meteu em uma porção de coisas diferentes sem conseguir ganhar dinheiro. O jeito de sobreviver era fazer o que sabia: volta e meia escrevia alguma coisa para algum jornal. Uma dessas histórias, de 1867, sobre um concurso de rãs saltadoras num lugarejo perdido do interior, era tão divertida que foi se espalhando de uma
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cidade para outra. Fez o maior sucesso em todo o país, e ele começou a ser convidado para publicar novos contos e fazer conferências em toda parte, até mesmo na Europa. E virou escritor profissional, podendo viver das histórias que inventava.
A partir desse momento, os livros se sucederam. Vários livros de contos, romances históricos, e os grandes sucessos juvenis, com as aventuras de Tom Sawyer e de Huck, que iriam consagrá-lo para sempre. Histórias que celebravam a liberdade e criticavam a hipocrisia.
Este livro que você vai ler agora é posterior. E é uma novidade. Embora Mark Twain tenha morrido em 1910, esta novela estava inédita até 2001. O manuscrito de *Um Assassinato, um Mistério e um Casamento* ficou perdido por uns tempos e, quando apareceu, teve que passar por uma atribulada luta judicial entre os herdeiros e dois homens que o tinham comprado num leilão. Só agora é que está sendo publicado. Você está sendo um dos primeiros a ler.
É uma história muito divertida. A idéia para ela surgiu de uma brincadeira que Mark Twain quis fazer com outros escritores. A proposta era apresentar um resumo do tema para vários deles, e cada um o desenvolveria à sua maneira. Como numa aula de redação. Mas isso acabou não dando certo e só ele escreveu a sua versão, que você agora vai ler. Exatamente como o título promete, é
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a narrativa de acontecimentos que levam a um casamento, passando por um assassinato e um grande mistério. A história se passa numa cidadezinha do interior americano, entre criadores de porcos e velhos rabugentos ou gananciosos. Trata do romance entre dois jovens e dos problemas trazidos por um forasteiro que ninguém sabe de onde veio nem como chegou ali de repente, sem nenhuma condução que o transportasse. O mistério é intrigante e a gente fica lendo rápido, sem conseguir parar, querendo descobrir a solução logo, mas sem conseguir imaginar qual pode ser.
Além de a própria história ser interessante, com personagens que parecem gente de verdade, ainda há outro aspecto delicioso. É que Mark Twain adorava ler, como já vimos. Em vários de seus livros, ele gosta de brincar com o que tinha lido nas obras de outros escritores, fazendo referências a outros livros e a personagens criados pela imaginação de outros autores. Hoje em dia isso não é muito surpreendente, é até mesmo uma característica da literatura atual. Tem gente que chama de intertextualidade, porque é uma espécie de conversa entre textos. Muito moderno. Mas, na época de Mark Twain, fazer isso era espantoso. Foi outra das coisas que ele ajudou a inventar.
Neste livro, o autor com que ele resolve brincar é o francês Júlio Verne, outro clássico da literatura juvenil,
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autor de *A Volta ao Mundo em 80 Dias* e muitos outros livros. E, pelo jeito, Mark Twain não gostava muito dele. Implicava, mesmo. Achava que seu colega francês era um exagerado e tinha vontade de mandá-lo para o inferno. Mas sempre sem xingar, com muita elegância, com seu senso de humor muito especial. Leia com atenção e veja se você descobre, no final, as pistas dessa má vontade de Mark Twain em relação a Júlio Verne. E depois responda: será que o título do livro está certo ou na verdade são dois assassinatos?
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Capítulo 1
Nos confins de um vilarejo remoto e distante, no sudoeste do estado de Missouri, vivia um velho fazendeiro chamado John Gray. O vilarejo se chamava Deer Lick. Era um povoado desgarrado e sonolento, com uns 600 ou 700 habitantes. Essas pessoas sabiam, de um modo vago, que lá fora, no vasto mundo, havia coisas chamadas ferrovias, barcos a vapor, telégrafos e jornais, mas não tinham travado nenhum conhecimento direto com elas, nem mostravam por esses itens maior interesse do que o que tinham pelos problemas da lua. Seus corações estavam totalmente, voltados para porcos e milho. Os livros usados na primitiva escola da aldeia tinham servido a mais de uma geração. O idoso ministro presbiteriano, reverendo John Hurley, ainda tratava do fogo e do enxofre de uma teologia obsoleta. (1) Até mesmo o corte das roupas das pessoas não mudara até onde qualquer memória humana pudesse alcançar.
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John Gray, aos 55 anos, tinha exatamente a mesma situação econômica de 30 anos antes, quando herdara sua fazendola. Trabalhando muito, a duras penas conseguia sobreviver com sua terra. Por mais que se matasse de esforço, jamais conseguira passar disso. Tivera ambições em matéria de riqueza, mas a esperança de adquiri-la por meio da labuta de suas mãos fora gradualmente morrendo, e ele se transformara num homem desanimado e lamuriento. Restava-lhe apenas uma chance, uma única. Ou seja, a possibilidade de casar sua filha com um homem rico. Com satisfação, observava que uma certa intimidade ia surgindo entre Mary Gray e o jovem Hugh
Gregory, pois Hugh, além de ser bom, respeitável e trabalhador, ficaria em situação bastante boa na ocasião em que chegassem ao fim os dias de seu pai, já de idade avançada. John Gray encorajava o rapaz, por razões egoístas; Mary o encorajava porque ele era alto, honesto, bonito e de bom coração, e porque cabelos castanhos avermelhados, cheios de cachos, eram os seus preferidos. Sarah Gray, a mãe, o encorajava porque Mary gostava dele. Estava sempre disposta a fazer qualquer coisa para agradar Mary, porque vivia apenas por meio dela e para ela.
Hugh Gregory tinha 27 anos, Mary tinha 20. Era uma moça gentil, de coração puro e bonita. Cumpria suas obrigações e era obediente, e até mesmo o pai a amava,
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na medida em que era capaz de amar alguma coisa. Aos poucos, Hugh começou a aparecer todo dia para ver Mary; os dois davam longos passeios a cavalo quando o tempo estava agradável, e de noite tinham conversas confidenciais em voz baixa num cantinho da sala. Os mais velhos e Tom, o irmão caçula de Mary, ficavam junto da lareira e nem reparavam nos dois. O mau humor de John Gray foi amolecendo. Gradualmente foi deixando de resmungar e implicar. Sua fisionomia trancada começou a exibir um certo ar de satisfação. Estava até sorrindo de vez em quando, de uma forma experimental.
Numa tempestuosa noite de inverno, a senhora Gray veio resplandecente para a cama, uma hora depois do marido, e sussurrou:
-- John, finalmente, as coisas estão seguras! Hugh detonou a pergunta!
John Gray disse:
-- Diz de novo, Sally, de novo!
Ela disse de novo.
-- Quero me levantar e dar vivas, Sally! É bom demais! Agora quero ver o que Dave vai dizer! Dave pode ir pastar com aquele dinheiro dele, ninguém está ligando...
-- Isso mesmo, meu velho, ninguém está ligando. E ainda bem que não está, porque agora mesmo é que
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seu irmão nunca mais vai nos deixar dinheiro nenhum, porque ele odeia Hugh feito um veneno... desde que ele tentou enganar o pai de Hugh com aquela fazenda de Hickory Flat, e Hugh se meteu no meio e não deixou o negócio ir em frente.
-- Não se preocupe mais com nenhum dinheiro de Dave que a gente possa ter perdido, Sally. Desde aquele dia em que eu discuti com Dave, há 12 anos, ele vem me detestando cada vez mais e eu também o detesto cada vez mais. Briga de irmão não passa fácil, minha velha. Ele não pára de ficar cada vez mais rico e eu vou detestando isso. Eu sou pobre, e ele é o sujeito mais rico do condado... e eu o odeio por isso. Não fique achando que havia a menor chance de Dave nos deixar algum dinheiro.
-- Sei lá, ele agradava muito a Mary antes de vocês brigarem, então eu achei que talvez...
-- Bobagem! Era só agradinho de solteirão... Nunca ia sair algum dinheiro dali para a Mary, pode ter certeza. E mesmo que fosse sair, agora acaba tudo, como você disse, porque ele jamais daria a ela um centavo em que Hugh Gregory pudesse um dia botar as mãos.
-- Dave é mesmo um velho sovina, sempre arruma um jeito de se dar bem. Sabe? Eu gostaria de que houvesse algum outro lugar onde o Hugh pudesse pernoitar quando vem à vila, sem ter que ficar debaixo do mesmo
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teto que Dave Gray. Bem que o pai de Hugh tentou ver se o Dave mudava o escritório dele e saía de lá, fez o que pôde, mas não teve jeito, e o velho continua alugando o lugar. Dizem que ele está sempre na porta da frente, desde de manhã cedo, prontinho para insultar Hugh, quando o rapaz desce a escada. A senhora Sykes me contou que ouviu Dave insultar Hugh há umas seis semanas, na frente de três ou quatro pessoas que estavam passando. Ela ficou olhando, para ver Hugh partir a cara dele, mas o moço não fez nada. Ele manteve a calma e só disse: "Senhor Gray, um dia desses pode ser a gota d'água!". Dave olhou para ele e zombou: "Ah, é? Você já disse isso antes, por que não faz logo alguma coisa? Pra que ficar só falando, falando?".
-- Nós também, minha velha. Vamos tratar de dormir.Mas acho que agora, finalmente, as coisas estão melhorando para o nosso lado. Que Hugh e Mary tenham muita sorte e uma vida longa, nossas crianças, Deus as abençoe.
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Capítulo 2
Já eram quase oito horas da manhã do dia seguinte quando o reverendo John Hurley chegou diante do portão de John Gray, apeou do cavalo e subiu os degraus da frente. A família ouviu o barulho das botas batendo no chão, para sacudir a neve, e o senhor Gray lançou um olhar maroto para Mary, dizendo:
-- Estou achando que Hugh está chegando mais cedo a cada manhã, não é, querida?
Mary ficou vermelha, e seus olhos brilharam de prazer orgulhoso, mas essas coisas não a impediram de voar até a porta para receber... o homem errado. Quando o velho sacerdote foi levado à presença da família, anunciou:
-- Bem, amigos, tenho uma notícia esplêndida para vocês!
-- Tem, é? -- falou John Gray. -- Pois então trate de dizer logo qual é, porque eu garanto que vou ganhar, com uma notícia ainda melhor que tenho para lhe dar.
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Olhou com ar brincalhão para Mary, que baixou a cabeça.
O velho ministro disse:
-- Pois bem, a minha boa notícia primeiro, e a sua em seguida. Você sabe que David Gray está já há um mês em South Fork, cuidando da propriedade dele por aquelas bandas. Bom, na outra noite, ele esteve lá na casa de meu filho e, conversa vai, conversa vem, acabou deixando escapar que fez o testamento dele há um ano e está deixando toda a fortuna, até o último centavo... imagine para quem? Para nossa querida Mary aqui presente! E pode ter certeza de que não perdi um minuto, assim que recebi a carta de meu filho. Vim aqui correndo contar para vocês. Porque, afinal, fico me dizendo, uma coisa dessas vai unir para sempre esses irmãos que se afastaram e, com a graça de Deus, estes meus olhos ainda hão de ver os dois em paz e uma vez mais se amando muito. Eu lhe trouxe de volta um amor de sua juventude que você considerava perdido, John Gray. Agora me dê uma notícia ainda melhor, se for capaz! Vamos, me conte as novidades!
Toda a animação desaparecera do rosto de John Gray. Ficara com uma expressão dura, perturbada, aflita. Quem visse até podia pensar que tinha acabado de saber de uma calamidade arrasadora. Ficou mexendo os dedos na própria roupa, evitando os olhos inquisidores
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pousados nele, enquanto tentava gaguejar alguma coisa e não conseguia. A situação já estava ficando embaraçosa. Para aliviá-la, a senhora Gray veio em seu socorro, dizendo:
-- A nossa boa notícia é que a nossa Mary...
-- Segure a língua, mulher! -- gritou John Gray.
A pobre mãe se encolheu, muda. Mary ficou confusa e silenciosa. O jovem Tommy Gray se afastou, recuando, como costumava fazer quando o temperamento do pai explodia. Não havia nada a dizer. Por conseguinte, ninguém disse nada. Ficou um silêncio constrangedor durante alguns momentos, e, em seguida, o velho pastor retirou-se do local com tão pouca graça e tão pouco à vontade quanto seria possível a qualquer outro homem que tivesse levado um chute quando esperava um cumprimento.
John Gray ficou andando de um lado para o outro por uns dez minutos, passando a mão pelos cabelos e resmungando consigo mesmo, meio selvagem. Depois se virou para a mulher e a filha, amedrontadas, e disse:
-- Escutem bem: quando o senhor Gregory vier para saber da resposta, digam a ele que é *não*! Ouviram bem? Digam que é não! E se não tiverem coragem de dizer a ele que prefiro que nunca mais apareça por aqui, podem deixar que eu mesmo digo. Eu digo.
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-- Pai, não é possível que você esteja querendo dizer que...
-- Nem uma palavra, Mary. Eu vou mesmo dizer... Ponto final. E não se fala mais no assunto.
Encerrando a conversa, saiu pela porta afora, deixando Mary e a mãe em prantos e de coração partido. Era uma manhã clara de inverno. A pradaria plana que se estendia da casa de John Gray até o horizonte era um assoalho macio e branco de neve. Estava intacta como a tempestade da noite anterior a deixara -- imaculada, sem nenhum tipo de pegada ou rastro.
John Gray saiu fazendo seu caminho pela neve, direto para a pradaria, sem notar que direção tomava, nem se incomodar com isso. Seus pensamentos seguiam mais ou menos esta linha:
"Tinha que ser assim, com a sorte que eu tenho! Uma coisa dessas *tinha* que aparecer justamente no momento mais errado, é claro! Mas não é tarde demais, não é tarde demais ainda! Dave logo vai ficar sabendo que não tem nenhuma base nessa conversa sobre Mary e Gregory -- se é que ele já ouviu falar nisso, mas sei que não ouviu, porque, se soubesse, ele a tinha tirado do testamento no mesmo minuto. Não, ele só vai ficar sabendo é que ninguém da tribo dos Gregory pode ter a Mary, nem mesmo olhar para ela. Uma coisa boa é que ela nunca vai ser capaz de dizer sim para ele
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nem para nenhum outro homem, enquanto não souber que eu estou de acordo. Vou cortar as asas desse senhor Gregory, e é para já! E posso muito bem espalhar isso logo para todo mundo. Imaginem, se o dinheiro de Gregory pode se comparar com o de Dave! Dave pode comprar todos os Gregorys 20 vezes, e ainda ficar com um dinheirão. É só se espalhar a notícia de que Mary vai herdar a fortuna de Dave e ela pode escolher quem quiser, nos seis condados em volta. Ei! O que é isso?"
Isso era um homem. Um jovem, com menos de 30 anos, pela aparência, vestido numa roupa fora do comum, estirado no chão sobre a neve. Imóvel. Evidentemente, estava... sem sentidos. Seus trajes tinham o aspecto de coisa muito cara e estava cheio de jóias e enfeites. Perto dele havia um casaco de pele, pesado, e alguns cobertores. A uma pequena distância, uma valise. Em volta do corpo, a neve estava um pouco revirada, mas em todos os outros lugares continuava lisinha. John Gray olhou em torno, procurando o cavalo ou o veículo que tinha trazido o estranho, mas não havia nada de parecido à vista. Mais que isso: não havia rastros ou marcas de rodas, montaria ou de qualquer pessoa, a não ser as que ele mesmo deixara ao vir de casa. Era mesmo um espanto. Como esse estranho chegara até ali, a mais de 400 metros de uma estrada ou casa, sem romper a neve ou deixar pegadas?
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Será que o furacão o trouxera pelos ares até aquele lugar?
Mas não era hora de ficar investigando detalhes: algo tinha que ser feito. John Gray pôs a mão no peito do forasteiro: ainda estava quente. Começou a friccionar as têmporas geladas. Puxou e virou o paciente, e esfregou neve no rosto dele. Alguns sinais de vida foram começando a aparecer. O olhar de John Gray bateu num frasco de prata, caído na neve junto aos cobertores. Pegou-o e derramou parte do conteúdo entre os lábios do estranho. O efeito foi animador: o homem se mexeu um pouquinho e deixou escapar um suspiro. John Gray continuou com seus esforços: ergueu o homem até deixá-lo sentado e, em pouco tempo, os olhos fechados se abriram e contemplaram o que estava em volta, com uma expressão ofuscada e opaca. Em seguida, detiveram-se um momento sobre o rosto de John Gray, e um pouco mais de vida apareceu neles.
"Seria bom que ele falasse...", murmurou John Gray consigo mesmo. "Estou louco para saber quem é esse sujeito e como é que ele veio parar aqui. Ótimo... vai falar."
Os lábios se afastaram e, após o esforço de uma ou duas tentativas difíceis, saíram deles estas palavras:
-- *Où suis-je*? (2)
A expectativa ansiosa dos olhos de John Gray se
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apagou, deixando seu rosto vazio. Estava seriamente desapontado.
"Que droga de língua é essa?", falou com seus botões.
Apressou a volta do outro à consciência com mais um gole do frasco. Os belos olhos do estrangeiro pousaram perplexos em John Gray por um momento, e depois se seguiu esta pergunta:
-- *Wo bin ich*? (3)
John Gray ficou olhando com ar estúpido, e sacudiu a cabeça:
"Não é um cristão", pensou. "Pode ser que nem seja humano. Se não fosse pelo jeito que está arreado, eu até diria que o caso é esse mesmo, mas..."
-- *Donde estoy? Dove sono? Gdzie já jestem?* (4)
Uma expressão dolorosamente aborrecida estendeu sua amplidão branca sobre o rosto de John Gray e o estrangeiro percebeu, com evidente frustração, que mais uma vez não conseguira se fazer entender. Fez força para ficar de pé e acabou de minar a já combalida razão de John Gray com uma série de sinais graciosos mas complexos, que foi buscar na linguagem dos surdos-mudos. Depois, começou a ralhar com Gray, numa língua estrangeira particularmente bárbara, censurando-o por estar ali à toa com aquela cara de idiota, quando devia estar se mexendo e fazendo
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tudo o que pudesse para ajudar um infeliz forasteiro. Pela primeira vez, Gray falou em voz alta:
-- Deus do céu, o homem finalmente acordou! E acordou por completo desta vez! Não tem dúvida nenhuma...
-- Ah, você é inglês! Inglês! Que bom! Por que não disse logo? Vamos, me estenda a mão! Ajude-me a levantar! Ainda valho por uns dez mortos, vamos! Me bata, me esfregue, me chute! Me dê uma bebida!
Espantado, o fazendeiro obedeceu às ordens vigorosamente, esporeado pelo tom dominador do estrangeiro. Enquanto isso, a língua do paciente continuava correndo solta, às vezes em um idioma, às vezes em outro. Finalmente, ele conseguiu dar um ou dois passos apoiado em Gray, depois parou e perguntou, em inglês:
-- Meu amigo, onde estou?
-- Onde o senhor está? Ora essa, está no meu pasto, na pradaria, nos arredores de Deer lick. Onde pensou que pudesse estar?
-- Pradaria? Deer lick? -- repetiu o estranho, intrigado.
-- Não conheço. Em que país eu estou?
-- Em que *país*? Ora essa, onde já se viu? O senhor não está em *nenhum* país, está é no
Missouri. E é o estado mais importante da América, eu acho.
O forasteiro apoiou as mãos nos ombros de John
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Gray, numa pose solene, manteve-o à distância de um braço por um momento, olhou-o firme nos olhos, e depois sacudiu a cabeça umas três vezes, com ar satisfeito.
Uma hora depois, estava numa cama na casa de John Gray, virando-se de um lado para o outro num sono inquieto, ardendo em febre e murmurando sem parar umas palavras entrecortadas em quase todas as línguas, menos inglês. Mary, a mãe e o médico do vilarejo cuidavam dele zelosamente.
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Capítulo 3
Pulamos seis meses e continuamos com nossa história.
O velho pastor tentara muito unir os dois irmãos, mas não conseguira. David Gray recusara-se terminantemente a fazer ou aceitar qualquer abertura. Disse que não tinha nenhum afeto por ninguém da família do irmão exceto Mary.
Mary Gray se permitira uma escapadela fortuita para uma conversa com Hugh Gregory, simplesmente para garantir a ele que, qualquer que fosse o dever que seu pai a obrigasse a cumprir, seu amor por Hugh permaneceria intacto, inalterável, enquanto vivesse. Houve uma troca de retratos e madeixas de cabelos, uma despedida dolorosa e, com isso, um final. Os namorados trocavam olhares na igreja e em outros lugares de vez em quando, mas nunca trocavam palavra. Ambos pareciam apáticos e cansados da vida. (5)
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Enquanto isso, o estranho adquirira grande proeminência. Estabelecera-se como professor de línguas, música e um pouquinho de tudo aquilo que era novo e maravilhoso para aquela comunidade perdida no interior. Durante algum tempo, continuou misteriosamente calado sobre sua origem. Mas gradualmente deixou escapar uma ou outra palavra nos ouvidos dos Gray enquanto estava convalescendo. Depois que ficou bom, suas visitas à casa eram freqüentes e bem recebidas, pois tinha uma certa graça de postura típica dos bem nascidos, que causava inveja e admiração a todos, e também uma língua capaz de fascinar uma imagem de pedra. Atraía as atenções de Mary Gray por sua gentileza, suas maneiras cheias de consideração, sua pureza de sentimentos, sua vasta cultura, sua adoração por poesia. Os velhos ficavam encantados com o respeito, na verdade a reverência, que marcava sua conduta em relação a eles. Estava sempre surpreendendo o menino Tom com maravilhosas invenções em matéria de brinquedos científicos, e por isso o garoto era seu aliado fiel. Gota a gota, o senhor George Wayne -- pois assim se chamava -- foi-se revelando confidencialmente aos velhos, e estes confidencialmente passaram os fatos a seus amigos particulares, que imediatamente os distribuíram confidencialmente pela comunidade como um todo. (6) Um dia, a senhora Gray trouxe novidades quando foi para a cama. Disse:
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-- John, tive uma conversa com o senhor Wayne! O que você acha disso? Mas escute, não diga nada a ninguém... nem uma palavra, ouviu?.. não deixe escapar nada nem para ele mesmo... porque ele disse que não queria que ninguém ficasse sabendo.
-- Desembuche logo, sua boba, desembuche! Não vou contar para ninguém.
-- Bom, você sabe que ele sempre se fechou em copas toda vez que alguém perguntava de que país ele era... Às vezes a gente achava que ele era italiano, depois achamos que era espanhol, e uma ocasião até pensamos que fosse árabe. Mas não é. É francês. Ele mesmo me contou. E não é só isso, de jeito nenhum. A família dele é muito rica e poderosa.
-- É mesmo? Eu bem que desconfiava. Sempre disse isso cá comigo.
-- E isso não é tudo. O pai dele é nobre.
-- Não!
-- Verdade! E ele é nobre também.
-- Céus!
-- Tão verdade quanto você estar aqui deitado. Ele garantiu. É conde! Imagine só!
-- Puxa! Mas então, por que saiu de casa?
-- Deixa eu contar, vou chegar lá. O pai queria que ele se casasse com uma moça muito importante, por causa da riqueza dela e da família. Mas ele não queria.
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Disse que só se casaria por amor, ou então ficaria solteiro. Aí os dois discutiram... Também houve uma coisa qualquer de política misturada. Ele era contra o rei, ou o imperador, sei lá, e descobriram, e ele teve que sair do país. Ele não pode voltar para lá durante dois anos... até que passe o tempo da lei... que é para não ser mandado para a prisão e ainda ter que pagar um dinheirão.
O senhor Gray se sentou na cama, animadíssimo:
-- Minha velha, quero cair aqui mortinho se eu já não me disse umas 40 vezes: "Esse cara na certa é um rei ou alguma coisa assim..." E é mesmo, Deus do céu! Eu sabia! Alguma coisa estava me dizendo isso o tempo todo. Mas isto é uma sorte!
-- Bem, de minha parte, eu sempre achei também que tinha alguma coisa fora do comum e importante a respeito dele.
-- Velha -- disse ele, abaixando a voz --, você não reparou? Ele está de olho na nossa Mary. Vai dizer que você não sabia?
-- Bom, já que você falou nisso, eu meio que tinha achado, às vezes... mas ele sendo tão importante assim, e tão rico...
-- Não ligue para essas coisas. Ele não disse ao pai que jamais ia se casar se não fosse por amor? Pois então. Trate de apoiá-lo, é só isso. E eu vou cuidar do assunto, pode apostar.
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-- Mas, marido, ela mal está se recuperando do coitado do Hugh... e se pudesse *mesmo* ser verdade, eu preferia que...
-- O coitado do Hugh que se enforque! Daquele ela escapou por pouco. Na última hora. Você quer fazer tudo o que puder para sua filha, não é? Pois eu também. Imagine só, ela sendo a esposa de um nobre como esse! Não sabe que ela não vai ficar se lembrando por muito tempo do Hugh Gregory?... Mas é claro... Me diga uma coisa: qual é o *verdadeiro* nome dele?
-- Pelo amor de Deus, marido, você não pode contar a ninguém. É conde Hubert dee Fountingblow. Não é um nome lindo?
-- Claro que é! Imagine se eu não ia gostar de ter um nome desses. John Gray! Meu nome não vale nada. Escute aqui, Sally, não deixe escapar nem uma palavra sobre essa história dele ser conde. Nem uma palavra, está ouvindo? Tudo quanto é moça, num raio de 60 quilômetros, ia ficar atrás dele.
Conversaram um pouco mais. Depois, aos pouquinhos, a conversa foi mudando e caindo na relação do conde com Hugh Gregory. Parecia que os dois tinham ficado bem amigos e se visitavam com freqüência. A senhora Gray contou que ouvira dizer que o conde já tentara várias vezes fazer as pazes entre Hugh e o velho David Gray, mas nunca conseguira. David tinha
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gostado do conde e gostava de recebê-lo no escritório para conversar, mas continuava firme em sua recusa de aceitar o jovem
Gregory.
Pouco a pouco, o senhor e a senhora Gray foram parando de conversar e começaram a cair no sono. Nesse ponto, John Gray se levantou de repente e cochichou no ouvido da mulher, com voz rouca:
-- Escute aqui, Sally, tem mais uma coisa. Desde o dia em que eu encontrei o senhor
Fountingblow lá jogado na neve, todos nós ficamos em cima dele, de um jeito ou de outro, para descobrir como é que ele tinha chegado lá sem deixar pegadas... mas ele sempre se fecha em copas e muda de assunto quando a gente chega nisso. Então me diga: como foi que ele chegou lá? Ele não contou?
-- Não. Só disse que prefere contar na hora certa. Disse que a história poderia se espalhar e ele tem suas razões para não querer que ninguém saiba. Mas prometeu que a nós, um dia, ele conta.
-- Bom, se não tem outro jeito, vai ter que ser assim. Vou ter
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que agüentar um pouco mais, mas fico morrendo de curiosidade.
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Capítulo 4
Tinha um vazamento em algum lugar. Em uma semana, todo mundo sussurrava sobre o "conde
Fontainebleau" e sua incrível riqueza. Diziam também que o conde evidentemente estava dando muita atenção a Mary Gray e que John Gray pressionava Mary fortemente (e sua esposa fazia o mesmo fracamente) para que olhasse essa corte com bons olhos.
Na verdade, Mary estava vivendo um problema. Bem que tentava se amoldar aos desejos paternos, mas de noite, em segredo, se descobria beijando um certo retrato e chorando ao olhar certa madeixa de cabelo.
Um dia, o conde passou uma hora no escritório de David Gray, conversando com ele sobre várias questões. Pouco a pouco, foi levando o assunto para o lado do casamento e ia justamente falar em suas esperanças em relação a Mary Gray, quando de repente David foi chamado por alguém. Desatento, o conde
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ficou se distraindo com a inspeção de uma mixórdia de documentos que estavam por ali em cima da mesa, ou aparecendo em gavetas meio abertas. Leu um dos papéis com muito interesse e depois disse:
-- Foi bom ter certeza, e agora estou satisfeito. Não era verdade.
Despediu-se e se encaminhou para a casa de John Gray. Perguntou por Mary e lhe disseram que ela estava no pomar. Foi até lá, e andou a esmo até que, num cantinho remoto, vislumbrou um pedaço de roupa feminina saindo de detrás de uma árvore, onde havia um banco rústico, que dava para acomodar duas pessoas e tinha sido muito útil em algumas ocasiões durante os últimos 12 meses. Aproximou-se e, de repente, apareceu diante de Mary. Ligeira, ela escondeu o retrato de Hugh Gregory no peito, e se ergueu, levando o lenço aos olhos -- porque estava chorando.
-- Mary, minha amiga tão honrada e adorada -- disse o conde, segurando a mão dela com seus modos educados. -- Seu coração está partido, e eu sou a causa. Ai, foi fatal te conhecer, antes de saber que você o amava... a ele. Te amo desde que te vi, isso ninguém podia impedir. Depois, quando soube que seu pai tinha proibido o casamento, achei que meu amor não podia mais ser algo errado em relação a você ou ao pobre Hugh... Tinha a louca esperança de que, pouco a pouco,
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você fosse capaz de me dar um lugar em seu coração. Mas receio que isso não vá acontecer nunca. Suas lágrimas, sua dor são por Hugh, e Deus sabe como ele é digno de tudo isso. Então, tenho que tentar desistir de você. Por amor a você, que adoro mais que minha própria vida, fortuna, reputação, mais até que minha própria alma! Tenho que tentar essa coisa impossível! Não, não diga nada, eu lhe imploro! Não posso ouvir a música da sua voz e manter minha resolução. Sou uma criatura de impulsos. O espetáculo de sua tristeza, neste momento testemunhada por mim, de repente despertou em mim a força para este ato de auto-sacrifício, e no mesmo repente eu devo cumpri-lo e me afastar da visão de seu rosto e do som de sua voz, senão eu não vou conseguir. Vou embora... Faço um esforço... Que Deus me envie uma morte rápida, é tudo o que peço! Não, não diga nada, nem uma palavra! Nem uma palavra, eu imploro! Adeus, eu desisto de você, minha preciosidade! Minha querida, minha querida, adeus, e que Deus te abençoe! (7)
Com o lenço no rosto, no momento seguinte estava correndo em direção da casa. Mary Gray, imóvel como se estivesse paralisada, ficou olhando enquanto ele desaparecia, e depois soluçou:
-- Ah, como eu o conhecia tão pouco! Ele é mil vezes mais nobre por sua própria natureza do que pelo sangue
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elevado e a linhagem antiga. Há cinco minutos eu quase o odiava. Agora... agora eu quase seria capaz de... amá-lo! Vou respeitá-lo, honrá-lo, reverenciá-lo todos os dias de minha vida... Que coração sublime, puro, nobre!
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Capítulo 5
Durante três dias, os Gray não viram o conde. O pai e a mãe ficaram intrigados, mas preferiram não falar nada, pois observaram que Mary estava mais animada do que de costume, e por isso concluíram que as coisas entre ela e o forasteiro deviam estar melhorando.
No terceiro dia, após anoitecer, o conde estava parado numa esquina do povoado conversando um instante com David Gray quando Hugh Gregory passou; parou; hesitou; voltou e perguntou ao conde se iria se recolher logo. Antes que o conde pudesse responder, David Gray disse:
-- Não perca seu tempo comigo, conde, quando existem pessoas melhores, mais puras e mais gentis com quem pode conviver. Por mim, pode ir logo.
-- O senhor está se referindo a mim? -- perguntou Hugh.
Vários passantes se detiveram para ouvir.
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-- É a você mesmo que estou me referindo, mocinho. *Você* não parou aqui para falar com o conde. Parou porque achou que isso podia *me* fazer uma afronta. E sabe que conseguiu. Está sempre fazendo isso. Você acha que pode ser que eu não conheça seu tipo. Era gente da *sua* laia que queria Mary Gray, não era? E só por amor... imagino... Não fazia nenhuma idéia de que eu ia deixar para ela minhas economias. Não, claro que não... Mas vou lhe ensinar umas coisinhas, rapazote. É só eu viver mais 48 horas e vou fazer um novo testamento e deixar Mary Gray de fora. E não fique me olhando de cara feia, porque não vou tolerar.
-- Não adianta dizer palavras sensatas para um lunático -- disse Hugh, numa calma forçada. -- Vou seguir meu...
A bengala do velho zangado se abateu em cheio sobre a cabeça de Hugh quando o rapaz virou as costas, fazendo-o cambalear e interrompendo sua frase. No momento seguinte, o punho de Hugh disparou de seu ombro e derrubou David Gray ao comprido no chão. Num frenesi de raiva, Hugh avançou para continuar o ataque, mas foi agarrado por várias pessoas que o afastaram dali, enquanto ele lutava para se soltar e gritava:
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-- Me larguem! Deixem que eu me acerte com ele! Esse cara já me insultou mais de 50 vezes, e agora chega! Nada vai me impedir de acertar as contas!
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Capítulo 6
Por volta das dez horas da manhã seguinte, o conde entrou na casa de John Gray, cujo coração se alegrou de novo. Sua Senhoria tinha um ar cansado, gasto e exausto. Disse:
-- A ausência desta casa é uma desgraça, só aqui existe felicidade! Meu coração está faminto... Quero ver Mary!
Seu pedido foi prontamente atendido. Mary veio, os outros se foram. O conde disse:
-- Oh, eu tinha que vir... Não consigo viver onde você não está! Tentei tanto... por amor a você... desistir, mas estava além das minhas forças. Olhe para mim. Contemple em cada fio de cabelo de minha cabeça e em cada traço de meu rosto uma testemunha das torturas que suportei. Não consegui dormir, não consegui descansar. Vim para me jogar a seus pés e pedir clemência, suplicar sua compaixão, implorar pela minha vida. Não posso viver sem você. Tentei
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tanto, tanto mesmo, mas é cruel e não consegui. Tenha pena de mim.
A compaixão de Mary foi atingida em profundidade, e suas lágrimas caíam como a chuva. Tentou dizer coisas consoladoras. Ele respondia com juras apaixonadas. E assim continuou o doloroso combate, até que John Gray irrompeu na sala, exclamando:
-- David foi assassinado! Hugh Gregory foi preso por isso!
Mary desmaiou.
O dia inteiro, o vilarejo ficou num tumulto. Todas as atividades foram suspensas. Uma multidão ficou parada por horas diante do escritório de David Gray, falando no assassinato, e esperando pacientemente por uma oportunidade fortuita para entrar e contemplar o lúgubre espetáculo lá dentro. O morto jazia num mar de sangue. A mobília revirada mostrava que tinha havido luta. Sobre a escrivaninha, estava uma folha de um formulário legal, na qual David Gray começara a escrever uma frase que não vivera para concluir:
"Eu, David Gray, em perfeitas condições mentais e..."
Ao lado do cadáver fora encontrado um fragmento de tecido que se encaixava exatamente com um canto vazio da aba do paletó de Hugh Gregory. Várias pequenas gotas de sangue haviam sido encontradas nas calças de Hugh. E lá estava a frase de abertura de um testamento
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que iria varrer para sempre a fortuna em perspectiva da moça que Hugh Gregory esperava desposar um dia. Murmurava-se que o pai de Hugh, nos últimos tempos, vinha se metendo numa situação financeiramente complicada. O encontro da véspera era rememorado e dissecado por todos. Alguém lembrou uma coisa que Hugh dissera certa vez, que se David Gray continuasse a insultá-lo, "um dia podia ser a gota d'água".
Era óbvio que Hugh Gregory era o assassino. Todos admitiam isso e lamentavam o fato. Entretanto, a maioria das pessoas acreditava que ele não fora movido por nenhum impulso sórdido, mas por um incontrolável desejo de vingança, após uma longa e contínua série de injúrias. Hugh declarou sua inocência com toda a firmeza, diante do acúmulo fatal de provas circunstanciais que o apontavam como criminoso. Sua declaração de inocência tinha tal aparência de honestidade que alguns dos moradores do povoado chegaram até a ter suas crenças abaladas por uns instantes, mas só por uns instantes; pois lá pelo meio da tarde uma faca ensangüentada, que todos sabiam muito bem que pertencia a Hugh, foi encontrada, muito bem escondida no pé de sua cama -- uma manchinha vermelha quase insignificante chamara a atenção para o pequeno rasgo que fora feito com o propósito de admitir a faca no interior do colchão de penas.
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Agora, não havia ser humano que ainda acreditasse na inocência de Hugh Gregory, exceto Mary Gray, e até mesmo a confiança dela estava diminuindo. Hugh lhe mandou uma carta implorando que tivesse fé em sua falta de culpa, pois com certeza Deus iria revelá-la em Seu momento, com Sua imensa misericórdia. Mas essa carta caiu nas mãos de John Gray e não seguiu adiante. Durante vários dias, desesperada, Mary esperou pela resposta a um bilhete que escrevera a Hugh, implorando por uma palavra de consolo. Mas nenhuma resposta veio... até ela. Tommy Gray prometera que daria um jeito para que a carta de Mary chegasse a Hugh, e cumprira sua missão. Mas o Gray mais velho não tirava os olhos do menino: capturou a resposta e aterrorizou o garoto a tal ponto, que ele se dispôs a contar a Mary que Hugh amassara seu bilhete nas mãos e declarara que, se ela realmente o amasse, estaria movendo céus e terras para tirá-lo dali, em vez de jogar fora um tempo precioso com perguntas sobre sua culpa ou inocência.
Seguiram-se vários dias e noites de angústia, sem qualquer consolo para a moça, a não ser o que eventualmente pudesse aceitar das atenções gentis e palavras amáveis do conde. Finalmente, ela desistiu de toda e qualquer esperança, resignando-se à amarga convicção da culpa de Hugh. Sua mãe estava convencida da
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mesma coisa. E então o nome de Hugh Gregory deixou de ser mencionado naquela casa.
Entretanto, Mary constatou que o crime não matava o amor. Ela ainda amava Hugh Gregory -- era um amor que não diminuía. Mas nunca poderia casar-se com ele, disse. Agora aceitaria o que viesse, disse. Não ligava mais para aquilo que o destino pudesse lhe reservar.
À medida que as semanas se passavam, foi aprendendo a gostar do conde, pois era mais em companhia dele do que de qualquer outra pessoa que ela ainda conseguia chegar mais perto de algum descanso.
Seria muito longo contar as súplicas, juras e pressões que finalmente acabaram vencendo a resistência de Mary Gray e a levaram a consentir em casar com o conde Fontainebleau. A posse da riqueza que veio para as mãos de Mary com a morte do tio -- e, assim, para toda a família -- apenas acirrou o desejo paterno de ascender ainda mais e se associar à nobreza estrangeira. A questão de fixar a data começou a ser discutida. Mary disse, desanimada:
-- Escolham qualquer dia. Para mim tanto faz. Só me dêem um tempinho para descansar antes.
Foi marcado o dia 29 de junho. Seria uma cerimônia íntima, na casa de John Gray. E desde o dia em que isso ficou resolvido, Mary Gray deixou de sair de casa e de ver qualquer pessoa que não fosse da família ou o
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conde. Na presença dela, ninguém fazia qualquer referência às novidades ou aos mexericos do povoado. Uma única coisa prometida pelo futuro tinha algum interesse para ela. Tinham lhe garantido que o julgamento de Hugh seria adiado por um ou dois anos por meio de manobras de advogados, e que provavelmente ele não sobreviveria tanto tempo, pois sua saúde já estava lhe faltando.
Mas, na verdade, o julgamento veio muito rapidamente, e esse fato foi ocultado de Mary. O veredicto de culpado foi proclamado a 22 de junho. O dia marcado para o enforcamento foi 29... justamente o dia do casamento!
Que confusão! O que se podia fazer? Adiar o casamento? Não. Não seria necessário. Todo o vilarejo estava fervendo de preocupação. David Gray fora geralmente detestado, Hugh Gregory universalmente amado. A expectativa era de um veredicto apenas de homicídio involuntário e pena de prisão. Mensageiros já estavam se despencando pelo país afora em direção à capital. Sem dúvida haveria uma suspensão da pena, possivelmente um perdão. Então, por que adiar o casamento? Mary não sabia nada do veredicto, nem mesmo do julgamento. (8)
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Capítulo 7
O grupo que se reunia, sentado em casa de John Gray, no final da manhã de 29 de junho, estava muito pouco à vontade, pois todos, exceto Mary, sabiam que o adiamento não fora concedido. Até mesmo John Gray tivera um arrepio com a idéia de dar em casamento uma moça que não suspeitava de nada, para um homem que ela não amava, enquanto o homem que ela amava caminhava para uma morte vergonhosa. A senhora Gray passara a semana doente, de cama, arrasada com o temor da possibilidade de que a suspensão da sentença ou o perdão não saíssem. O velho ministro se recusara a celebrar a cerimônia, e um estranho fora trazido para substituí-lo. Foi recebido na porta por John Gray, que conversou com ele recomendando que não estragasse a alegria da ocasião com qualquer referência ao triste acontecimento que se desenrolava no povoado. Em voz baixa, o estranho garantiu:
-- Nem precisava fazer qualquer recomendação. Ninguém
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pode mesmo tocar nesse assunto num momento como este. Eu passei pela forca quando vim para cá. Aquelas pessoas todas reunidas ali... Não tinha uma que não estivesse comovida. Homens e mulheres, estavam todos chorando. O rapaz estava de pé no cadafalso, entre os xerifes, a corda balançando ao vento por cima da cabeça. Ele estava pálido e abatido, mas ereto e de cabeça erguida, como um homem de bem. E falou, também. Proclamou que era inocente. Disse que aquelas eram as últimas palavras de um homem que ia morrer e que, diante de Deus, não tinha culpa. De todo lado, começaram-se a ouvir vozes: "Acreditamos em você. Acreditamos em você." Duas vezes ele disse que estava pronto, e os xerifes pegaram a corda e o capuz preto, mas nas duas vezes se ouviram gritos muito altos: "Esperem! Esperem! Pelo amor de Deus! A pena vai ser suspensa! Esperem que o perdão já está chegando!". Depois, em todo canto, eu via gente no alto de carroças ou trepada em galhos de árvores, protegendo os olhos com as mãos, para fazer sombra, olhando em direção à pradaria, e a toda hora dizendo: "Lá vem! Não é um homem a cavalo?... Não... Sim... Estou vendo uma poeirinha lá longe! Com certeza é um cavalo!". Mas depois sempre vinha o desapontamento. Até que, finalmente, os xerifes puseram o capuz preto na cabeça dele, taparam a cara do rapaz, e a multidão toda gritou, se
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lamentando. Eu não agüentei mais e saí dali. Que coisa! Como todos gostavam do rapaz, como todos os corações maternais que lá estavam tinham pena dele...
O pastor e John Gray entraram na sala. Começou-se por uma bênção e, em seguida, Mary se levantou, pálida e apática, entre o conde de Fontainebleau e o pai. A cerimônia de casamento continuou:
-- Conde Hubert de
Fontainebleau, aceita esta mulher como sua legítima esposa, prometendo honrá-la e amá-la até que a morte os separe?
O conde assentiu com a cabeça.
-- Mary Gray, aceita este homem como seu legítimo esposo, prometendo ser fiel e...
Já havia alguns segundos que um rumor longínquo vinha murmurando nos ouvidos do grupo, e aumentando rapidamente de volume, como se sua causa estivesse se aproximando. Agora já explodia numa sucessão de gritos de alegria e vivas, bem fortes e próximos, e num instante uma multidão de habitantes do povoado, aos gritos, entrou pela casa, com Hugh Gregory e os xerifes na frente.
Bastou um olhar e Mary Gray leu nos olhos de Hugh toda a alegre verdade, e imediatamente estava nos braços dele. No mesmo momento, os xerifes agarravam e algemavam o conde Fontainebleau. John Gray teve que fazer suas perguntas com o olhar, porque ficou mudo de espanto. Um xerife disse:
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-- Não se preocupe. Está tudo bem. O assassino é esse diabo. Teve um cúmplice, e esse cúmplice amoleceu e abriu o bico, quando viu Hugh a ponto de balançar na ponta da corda. Contou a história todinha. E bem quando estava acabando de falar chegou a ordem de suspensão da pena do governador. Estou me metendo aqui, eu sei, mas é claro que a primeira pessoa que eu queria ver agora era esse pilantra.
Hugh disse:
-- E eu não preciso explicar por que este era o primeiro lugar aonde *eu* queria vir e exibir minha cara limpa, de um homem sem culpa!
O pastor ia se retirando discretamente.
-- Pare! -- disse John Gray. -- Volte e continue com o casamento. Levantem-se, Mary Gray e Hugh Gregory, e quero que a terra me engula se algum dia eu fizer qualquer coisa para ficar no caminho de vocês dois. Ou não me chamo John Gray! Aí vem minha velha, tudo está completo agora... Pastor, amarre estes dois, e amarre bem apertado, porque é para sempre! (9)
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Capítulo 8
A confissão do conde
Sentenciado à morte pelo assassinato de David Gray, que cometi há um ano, conto agora a verdadeira história de minha vida. Meu nome é Jean Mercier. Nasci numa aldeia do sul da França. Meu pai era barbeiro. Aprendi com ele e segui esse ofício por algum tempo. Mas tinha talento e ambição. Sem a ajuda de ninguém, dei a mim mesmo uma espécie de educação universal. Aprendi muitas línguas, me dei muito bem com as ciências, e me tornei uma espécie de inventor e mecânico. Aprendi a navegar pelos mares. Aos poucos, fui experimentando ser um tipo de guia. Levava turistas a todas as partes do mundo. Finalmente, num momento infeliz, caí nas mãos de um certo senhor Júlio Verne, (10) um escritor. Foi aí que meus problemas começaram. Ele me pagava um ótimo salário e me mandava de lá para cá, de um lado para outro, em todo tipo de veículo desagradável, e depois ouvia minhas aventuras e transformava cada viagem minha
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num livro. Não haveria nada de mais nisso, se ele tivesse se limitado aos fatos. Mas não, nada servia para ele, tinha sempre que exagerar. Transformava minhas experiências mais simples em maravilhas extravagantes e distorcidas. Isso me humilhava além do que posso explicar, pois eu era muito sensível a essa questão de verdade e honestidade -- nessa época. Todos os meus amigos sabiam do meu emprego e acreditavam que todas essas histórias tinham sido escritas exatamente como eu tinha contado para o autor. E assim, um por um, foram começando a fingir que não me conheciam e acabaram cortando relações comigo. Várias vezes eu argumentei com o senhor Verne, mas não adiantou nada. Esse homem me mandou descer o Sena numa remendadíssima barcaça de carregar areia. Quando voltei, me ouviu com atenção, começou a trabalhar e transformou meu relato naquele livro desgraçado chamado *Vinte Mil Léguas Submarinas*. (11) Em seguida, comprou um balão de segunda mão e me despachou nele. A bexiga velha subiu uns 200 metros e depois teve um colapso, eu caí num quintal e quebrei a perna. O resultado literário dessa viagem foi o livro chamado *Cinco Semanas num Balão*. Ele ainda me mandou em mais um ou dois vôos idiotas naquela coisa esmolambada e escreveu livros extravagantes sobre eles. Acabou me enviando mais longe, num carro de bois, até uma cidadezinha
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miserável nos cafundós da Espanha. Fiquei quase um ano na estrada e nem sei como não morri de desespero e fome antes de voltar. Qual foi o resultado? Bem, *A Volta ao Mundo em 80 Dias*! Depois, remendou o tal balão desgraçado e me mandou em mais uma viagem. Fiquei encalhado no meio das nuvens, em cima de Paris, sem sair do lugar durante três dias, esperando que houvesse vento, e depois despenquei num rio, tive que ficar de cama mais de três meses. Deitado ali, fiquei remoendo minhas desgraças, e aos poucos fui me acostumando com uns pensamentos assassinos -- que me davam muito prazer, devo confessar. Quando fiquei bom, ele disse que tinha consertado o balão, da maneira mais perfeita, e que ia fazer comigo a viagem seguinte. Fiquei contente. Tinha esperanças de que os dois quebrássemos o pescoço. Ele carregou o balão com sua mala, um casaco de pele e uma porção de provisões, bebibas e instrumentos científicos. Bem na hora da partida, pôs em minhas mãos a distorção de minha última viagem -- um livro intitulado *A Ilha Misteriosa*... (12) Olhei aquilo... e foi demais. A natureza humana tem seus limites. Dei um empurrão e ele caiu lá embaixo, uma queda de uns 30 metros. Espero que tenha morrido, mas não tenho certeza. É claro que eu não queria ser enforcado, então joguei fora os instrumentos científicos para diminuir o peso, vesti as
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boas roupas do senhor Verne e comecei a me divertir com suas iguarias finas e seu bom vinho. Mas acho que o balão tinha ficado leve de mais, e subiu tanto que eu fui ficando com sono, e depois desmaiei. Não sei de mais nada que me aconteceu até que acordei no pasto de John Gray, no meio da neve. Não sei o que houve com o balão. Mas, pelas datas, sei que fiz a viagem da França ao Missouri em dois dias e 21 horas. E John Gray pode entender agora como foi que eu consegui viajar pela sua pradaria sem deixar rastros... ele sempre teve a maior curiosidade em relação a isso, coitado. Mas eu achei que, se contasse, a história ia se espalhar, poderia sair em algum jornal, ir parar na França, e algum enxerido poderia querer saber se aquele balonista estrangeiro não seria capaz de lançar alguma luz sobre os últimos momentos do senhor Verne.
Concluí que o melhor para mim seria adotar um nome fictício e ficar em Deer Lick pelo resto dos meus dias. Mas não conseguia me conformar com a idéia de dar aulas numa escola para ganhar a vida. Por isso, quando ouvi dizer que David Gray fizera um testamento deixando para Mary Gray todos os seus bens, aticei o pai dela com minha riqueza e nobreza falsas e comecei a fazer a corte à moça. Um dia, David Gray me deixou sozinho por um instante em seu escritório e dei uma olhada em volta, descobrindo um documento
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em que ele deixava tudo para um parente distante, e não para Mary. Meu amor esfriou e eu imediatamente disse a ela que tentaria arrancá-lo de meu coração, por dedicação a ela. Mas, quando Gregory e David Gray discutiram em minha presença, descobri que eu tinha visto um testamento antigo, e que existia outro mais novo, que realmente deixava os bens para Mary. Então resolvi de novo casar com ela, e sabia que podia conseguir.
Aquele desagradável do velho Gray poderia estar vivo agora, e eu estaria pacientemente esperando que ele batesse as botas de modo natural, se não tivesse feito a besteira de jurar que ia para casa mudar o testamento e deserdar Mary. Com isso, ele me fez achar que o melhor era que fosse logo para a caminha, dormir perto dos pais. A idéia de matar vem fácil a um homem cuja mente ficou perturbada por torturas como as que o senhor Júlio Verne me infligiu. Imediatamente contratei um cúmplice para ficar de vigia na porta David Gray, enquanto eu dispusesse dessa pessoa. Ia dar uma fazenda a esse auxiliar. Se ele não é hoje um proprietário de terras nesta encantadora e intelectual comunidade de devotos criadores de porcos, só tem a si mesmo para agradecer. Bom, à meia-noite peguei emprestada uma faca com o senhor Gregory -- aquele caipira dorme como um túmulo e ronca como uma locomotiva -- e em 13 minutos David
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Gray já se afastara para sempre de qualquer empreendimento ativo. Mal tinha começado a fazer seu novo testamento -- e se, depois desse dia, eu recebi algum agradecimento do senhor e da senhora Hugh Gregory por ter permanentemente interrompido o documento em sua primeira frase, a circunstância escapou por completo de minha memória. Na briga, ganhei um ou dois arranhões na mão, mas sempre usei luvas (costume que eu era o único a ter nesta região deselegante), e assim eles não foram percebidos por ninguém. Devolvi a faca ao senhor Gregory. Ou, pelo menos, a coloquei em sua cama. Em seguida, tomei emprestado um pedaço da aba de seu casaco, para deixá-lo junto ao cadáver. Após lhe dar boa-noite, ao que ele só respondeu com um ronco, deixei umas manchinhas de sangue em suas calças e fui-me embora. Sabia perfeitamente que esta comunidade não dispõe de cérebros, e, portanto, a faca escondida e as manchas de sangue constituiriam provas suficientes contra o roncador. Cérebros teriam dito: "Só um louco deixaria manchas na própria roupa e esconderia a faca em sua cama, além de chamar a atenção para o lugar exato, com uma rodela de sangue." Portanto, adeus, seus criadores de porcos, estou pronto para ir, e consumido pelo desejo de perguntar ao finado senhor
Júlio Verne quantos capítulos de seu *Dezoito Meses na Fornalha* ele já escreveu, bem como de saber quem ele
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empregou para circular por lá reunindo os fatos enquanto ele torra em seus aposentos particulares e exagera tudo. Acima de tudo, eu quero é saber onde ele bateu quando caiu.
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Notas explicativas
(1) O autor deixa bem claro que aquele povoado é um lugar aonde as coisas modernas não chegavam. Nem no plano material nem no espiritual, pois até a religião era apresentada de forma antiga, com referência às chamas e ao fedor do inferno.
(2) "Onde estou?" O estranho, coberto de sinais de riqueza, fala francês.
(3) "Onde estou?", em alemão.
(4) "Onde estou?", em espanhol, italiano, outras línguas.
(5) Essas juras apaixonadas, trocas de retratos e cachos como lembranças, os suspiros e olhares dos namorados proibidos, tudo mostra como eram os amores românticos naquele tempo em que os pais é que decidiam os casamentos e os filhos tinham que obedecer.
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(6) Essa repetição de "confidencialmente" não é um erro, é de propósito. Assim o autor usa ironia para mostrar como cada um ia traindo a confiança e passando o segredo adiante -- como, aliás, fazia todo o vilarejo.
(7) O conde fala de um jeito tão grandioso e exagerado que até parece discurso. Mark Twain usa esse recurso para que o leitor perceba que o personagem está passando da conta e sinta que "assim, também, já é demais". Qualquer um desconfia que essas palavras são falsas. Menos a bobinha da Mary. É como se o autor piscasse o olho para o leitor sem ela ver.
(8) Esse trecho cheio de palavras jurídicas explica que, como todos no vilarejo gostavam de Hugh, achavam que ele não seria condenado a morrer enforcado (como se usava naquele tempo nos Estados Unidos), mas apenas à prisão, por ter matado sem querer. Numa época em que não havia telefone, mensageiros foram mandados à capital pedir perdão, ou, pelo menos, uma pena mais favorável.
(9) Pronto, aqui acaba a história do casamento. E já sabemos quem cometeu o assassinato. Falta explicar como, e resolver o outro mistério: como o conde chegou lá? Como, claramente, aqui é o fim de uma parte, o autor conta o resto da história de outra maneira, e passa a usar "eu", o pronome de primeira pessoa, na confissão do conde.
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(10) O francês Júlio Verne escreveu vários livros que podem ser considerados os fundadores da ficção científica. Imaginava tecnologias avançadíssimas que ainda não existiam na época e serviam de apoio para fantásticas aventuras, como *Da Terra à Lua* e *Viagem ao Centro da Terra*.
(11) Livro de Júlio Verne que conta as aventuras do capitão Nemo e sua tripulação, num submarino chamado *Nautilus*, enfrentando monstros marinhos e vivendo várias outras peripécias emocionantes.
(12) Todos esses são títulos de livros que foram escritos por Júlio Verne e fizeram muito sucesso, com aventuras maravilhosas, bem diferentes dessas coisas sem graça que o conde conta.
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Fim da Obra
Rex Stout
Um Cadáver
de Luxo
Tradução de
MARIA HELENA PIRES
Título original:
DEATH OF A DOXY
© 1966 by Rex Stout
Direitos adquiridos para a língua portuguesa, no Brasil, pela
EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.
Rua Maria Angélica, 168 — Lagoa — CEP: 22.461 — Tel.: 286-7822
Endereço Telegráfico: NEOFRONT
Rio de Janeiro — RJ
Revisão:
MARIA DE FÁTIMA BARBOSA
NEIDE ROMANA MOREIRA
PAULO GUANAES
http://groups.google.com/group/digitalsource
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Stout, Rex.
S888c Um Cadáver de luxo / Rex Stout ; tradução de Maria
Helena Pires. — Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1984.
Tradução de: Death of a doxy
1. Ficção policial e de mistério (Literatura estadunidense) I. Título
84-0127 CDD — 813.0872
CDU — 820(73)-312.4
CONTRA CAPA
Viva, Isabel Kerr era cobiçada por todos os homens. Morta, se transforma num incômodo. Principalmente para aqueles que a tinham protegido. A fim de abafar o escândalo de uma ligação amorosa que envolveu a jovem e um dos homens mais importantes dos Estados Unidos, Nero Wolfe é chamado para enfrentar um dos maiores desafios de sua carreira. É essa a trama de Um cadáver de luxo, de Rex Stout, o mesmo autor de Um discurso fatal, com que a Nova Fronteira relançou no Brasil os casos do "mestre dos detetives particulares americanos".
ORELHAS DO LIVRO
Um cadáver de luxo
No chão atapetado de um luxuoso quarto cor-de-rosa, um cadáver de mulher. Contrastando com a delicadeza de seu cabelo e os olhos azuis, o sangue do crânio afundado pelo peso de um cinzeiro de mármore. Rendas sensuais envolvem o corpo inerte de Isabel Kerr, ex-corista de teatro e amante de um homem muito influente. Que motivos haveria para matar a linda Isabel? Quem seria o assassino, numa manhã fria do inverno nova-iorquino?
Esta a trama central de Um cadáver de luxo. Lembra um roteiro de cinema em suas primeiras cenas, com um misto de tensão, mistério e intriga, à maneira do mestre Alfred Hitchcock. No entanto, o que as páginas iniciais desse livro anunciam é o segundo romance da série começada por Um discurso fatal, com o qual a Nova Fronteira relançou no Brasil as aventuras do famoso detetive Nero Wolfe.
Gordo, bebedor de cerveja, requintado gourmet e criador de orquídeas, Nero Wolfe é o personagem principal de 46 títulos de Rex Stout. Graças a ele, Stout — antes malsucedido em três romances 'de idéias' — enveredou pelo gênero policial, foi traduzido no mundo inteiro e vendeu até hoje 80 milhões de exemplares.
Constantemente comparado a Agatha Christie, principalmente pelo bom gosto, raciocínio lógico e a dose certa de suspense e violência, esse americano avesso ao contato social e à mediocridade é responsável também pela criação de Archie Goodwin. Eficiente e destemido auxiliar de Nero Wolfe, ele se torna peça indispensável para destrinchar casos enigmáticos, como o que empolgará o leitor de Um cadáver de luxo.
Capa: Jader Marques Filho/Victor Burton
Ilustração: Ingrid Von Steurer/Gilberto Zavarezzi
Um Cadáver de Luxo
CAPÍTULO I
FIQUEI DE PÉ, olhando à minha volta. É de rotina, ao sair de um lugar onde não se deveria estar, supor se e onde se tocou nas coisas, mas desta vez era mais do que uma simples rotina. Precisava ter certeza. Havia muitas coisas na sala: cadeiras ornamentadas, uma grande televisão de luxo, uma lareira de mármore, sem fogo, uma mesinha de café em frente a um grande sofá com várias revistas, e assim por diante. Quando me certifiquei de que não tocara em nada, virei-me e entrei no quarto de dormir. Quase tudo nele era macio demais para guardar uma impressão digital: o tapete de parede a parede, a colcha cor-de-rosa na cama de tamanho acima do comum, as cadeiras estofadas, a frente de cetim cor-de-rosa nas três peças de mobília. Fui dar mais uma olhada no corpo de uma mulher, no chão, a uns sessenta centímetros da cama, deitada de costas com um braço dobrado. Não precisara tocar para verificar que era um cadáver, nem precisara ver a parte afundada do crânio, mas haveria a chance num milhão de eu ter colocado os dedos no cinzeiro pesado de mármore? Os tocos e cinzas que estavam lá antes encontravam-se agora espalhados, e era quase certo que ele afundara o crânio da mulher. Abanei a cabeça; eu não teria sido tão estúpido.
Saí. Obviamente tive de usar meu lenço na maçaneta, na parte de dentro e na de fora, e chamei o elevador com o nó dos dedos e, dentro do elevador, fiz o mesmo quando apertei o botão 1. Limpei o botão 4, que apertara ao subir, com o meu lenço. Não havia ninguém no pequeno saguão lá embaixo, e como usava luvas quando entrara, não me preocupei com as maçanetas do lado de fora da porta. Tomei a direção oeste, para a avenida Lexington, e coloquei as luvas. Era o dia mais frio do inverno, com um vento penetrante.
Não tento pensar muito quando estou andando, pois se esbarra nas pessoas, mas em todo caso nem precisava adivinhar nada, quanto mais pensar. Eu precisava, sim, fazer umas perguntas, e a pessoa a quem fazê-las morava no segundo andar de um prédio sem elevador, na rua 52, entre a 8.a e a 9.a Avenidas. Como estava na rua 39, teria que andar treze pequenos quarteirões para cima e quatro longos quarteirões transversais. Pelo meu relógio eram 16:36h. Apanhar um táxi a essa hora do dia é um inferno, e eu não tinha pressa. Ele estava trabalhando. Fui a pé.
Faltava um minuto para as cinco horas quando entrei numa cabine telefônica de uma lanchonete na 8.a Avenida e disquei um número. Quando Fritz atendeu, pedi-lhe que o chamasse na estufa, e, depois de esperar um pouco, ouviu-se um grunhido:
— Sim?
— Sou eu — disse. — Encontrei um obstáculo com esse trabalhinho particular e não sei quando voltarei. Provavelmente não chegarei a tempo para jantar.
— Está em apuros?
— Não.
— Se precisar de você, posso lhe falar?
— Não.
— Muito bem. — E desligou.
Ele estava sendo tolerante, pois se tratava de um assunto meu e ele nada tinha a ver com isso. Detesta ser incomodado quando está com as orquídeas, e se estivesse fazendo um trabalho para ele, diria que eu deveria ter falado com Fritz.
Após sair e andar mais meio quarteirão para oeste, com o rosto gelado, mas o sangue circulando bem, entrei num vestíbulo e apertei o botão marcado com o nome Cather. Mesmo depois de ter apertado mais duas vezes, o porteiro eletrônico não funcionou — conforme eu esperava. Estava frio demais para ficar ali, por isso voltei à 8.a Avenida, pensando em tomar cinco ou seis dedos de bourbon. Mas só gosto de tomar bourbon para relaxar, não quando tenho de ficar alerta; assim, dirigi-me ao balcão de uma lanchonete e tomei café.
Após o café, fui a uma cabine e disquei um número, e desliguei depois de o telefone ter tocado dez vezes sem resposta. Voltei ao balcão e tomei um copo de leite. Fui novamente à cabine; não obtive resposta e pedi um sanduíche de pão de centeio com corned beef e café. Nunca se compra pão de centeio na velha casa de tijolo da rua 35 Oeste. Só às 6:20h, na minha quinta visita à cabine, depois de comer o segundo pedaço de torta de abóbora e beber a quarta xícara de café, uma voz disse alô.
— Orrie? Aqui é Archie. Você está sozinho?
— Claro. Estou sempre sozinho. Você foi lá?
— Sim. Eu...
— O que você pegou?
— Prefiro lhe mostrar. Estarei aí em dois minutos. — Que diabos, eu vou...
— Estou perto. Dois minutos. — Desliguei o telefone.
Não parei para vestir o casaco e as luvas. Um bom teste de habilidade de sobrevivência é ficar dois minutos num vento de zero graus. Ao apertar o botão no vestíbulo, ouvi imediatamente o clique de abrir a porta. Quando entrei e comecei a subir as escadas, Orrie falou lá de cima:
— Que diabos, eu podia ter ido.
Uma vez Nero Wolfe, querendo se exibir, me disse:
— Vultus est index animi — e eu respondi: — Isso não é grego.
— Não — disse ele — é um provérbio em latim. 'O rosto é o espelho da alma.'
Bem, depende do rosto e da alma. Numa mesa de pôquer, à sua frente, o rosto de Saul Panzer é uma amostra do nada. Mas continuamos tentando e era o que eu fazia com o rosto de Orrie Cather, depois que ele me disse para entrar, tomou meu casaco e chapéu e nos sentamos. Fiquei a olhá-lo, até que perguntou:
— Não sabe quem sou?
— Vultus est index animi — respondi.
— Ótimo — disse ele. — É o que sempre imaginei. Que diabos há com você?
— Simples curiosidade. Será que está brincando comigo?
— Ora, vamos. Brincando como? Para quê?
— Eu gostaria de saber. — Cruzei as pernas. — Está bem, aqui está meu relatório. Fiz tudo o que o roteiro mandava. Cheguei às 4:15h em ponto, apertei a campainha diversas vezes e, como esperava, não tive resposta. Usei a chave que me deu, fui ao quarto andar de elevador, usei a outra chave e entrei. Não havia ninguém na sala e fui até o quarto. Não digo que tivesse alguém lá, pois um cadáver não é alguém. Estava no chão, não muito longe da cama. Nunca vi Isabel Kerr ou um retrato seu, mas creio que era ela. Usava uma coisinha cor-de-rosa com rendas e sandálias rosas, sem meia. Alguns...
— Quer dizer que estava morta?
— Não interrompa. Alguns centímetros acima de um metro e meio, 55 quilos, rosto oval, bem-feito, olhos azuis, o cabelo dourado cor de mel e orelhas pequenas...
— Meu Deus. Meu Deus!
— É ela?
— Sim.
— Pare de me interromper. O Sr. Wolfe nunca interrompe. Não tive que tocá-la para me certificar. Havia um ferimento na testa e um achatamento do crânio, alguns centímetros acima e atrás da orelha esquerda. No chão, a uns dez centímetros de seu ombro direito, havia um cinzeiro de mármore, suficientemente pesado para afundar um crânio mais grosso que o dela. Num braço e numa perna havia manchas roxas. Lividez cadavérica, caso não saiba. A testa já estava fria e...
— Você disse que não a tocou.
— Eu toco com os dedos. Colocar um pulso contra uma testa ou uma perna não é tocar. A perna, também fria. Já era um cadáver no mínimo há cinco horas, talvez há mais tempo. O cinzeiro estava vazio. Havia tocos e cinza no tapete, mas nada no cinzeiro. Fiquei lá dentro uns seis minutos. Não me agradava a idéia de ficar lá para procurar alguma coisa. — Pus a mão no bolso e apanhei uma coisa. — Aqui estão as suas chaves.
Ele nem as viu. Os dentes estavam cerrados. Abriu-os para dizer:
— Brincando com você. Pelo amor de Deus. Brincando com você.
— É claro que estou curioso.
Ele se levantou e saiu por uma porta. Atirei as chaves na mesa e olhei em volta. Era um quarto de bom tamanho, com três janelas, e a mobília servia para um solteirão não muito exigente. A única luz provinha de duas lâmpadas presas à parede, mas havia uma lâmpada, ao lado de uma poltrona, que não estava acesa. Orrie voltou com uma garrafa e dois copos, oferecendo-me um, mas eu recusei, agradecendo, pois acabara de jantar. Colocou um copo sobre a mesa e no outro colocou bebida, deu um bom trago, fazendo uma careta, e sentou-se.
— Brincando com você — repetiu. — Tolice. Pode me perguntar onde eu estava desde as oito horas da manhã e se posso provar.
Abanei a cabeça.
— Já que só estou curioso, isso seria demais. Se eu quisesse ser desagradável teria começado gritando alguma coisa como: "Por que deixou o cinzeiro no chão?" É claro que temos de considerar os fatos, um deles é que eu talvez seja a única pessoa, além de você, a saber que a morte dela é como se cravassem um espinho na sua carne. Um espinho bem fundo. Por isso, é claro que estou curioso sobre um detalhe. Você a matou?
— Não. Meu Deus, Archie, pensa que sou trouxa?
— Não. Você não é um gênio, mas não é um trouxa. Afinal de contas, se você me chamou, sabia que eu ia lá hoje. Seria ótimo se você pudesse provar onde estava.
— Não posso. — Olhava em minha direção, mas provavelmente não estava me vendo. Tomou um grande gole de uísque e engoliu duas vezes. — Conforme lhe disse, estou fazendo um serviço para Bascom. Saí às oito horas, e um pouco antes das nove achei o suspeito, a quem segui o dia inteiro. Foi...
— Seguiu sozinho?
— Sim. Simples rotina. Das 9:15 às 12:35h fiquei no saguão de um prédio.
— Sozinho?
— Sozinho.
— Então ainda estou curioso. Se as nossas posições fossem inversas, você também estaria; mas é só isso, só curiosidade. Quer me perguntar alguma coisa?
— Sim, quero. Você estava de luvas e tinha as chaves. Sabia que havia acontecido alguma coisa lá. Por que não deu uma olhada rápida?
Sorri para ele:
— Você não está realmente falando sério.
— Lógico que estou.
Acenei com a cabeça:
— De vez em quando você é realmente um trouxa. — Levantei-me. — Como sabe, Orrie, e como eu também sei, você acha que seria ótimo se tivesse o meu emprego. Está certo, não há nada de errado na ambição. E se você ficasse ambicioso demais? E se você soubesse que não havia nada lá que o inculpasse? E se você tivesse arranjado tudo para que um homem, eu, chegasse lá às 4:15h e outro homem, talvez um policial que tivesse recebido um telefonema anônimo, chegasse uns minutos mais tarde? Não seria acusado de assassinato, pois a autópsia provaria a hora da morte, mas estaria com as chaves e as luvas de borracha, e com isso eu teria conseguido uns dois anos de cadeia. É claro que não acreditei realmente nisso, mas como sou do tipo nervoso...
— Bolas. — Ele continuava no mesmo lugar, a cabeça atirada para trás. — O que você vai fazer?
Olhei para o relógio:
— O jantar já deve estar quase no fim, e de qualquer maneira já comi. Vou para casa saborear e repetir o crème Gènoise. Você pega oito biscoitos de amêndoas feitos em casa e deixa de molho em meia xícara de conhaque. Coloca duas xícaras de leite puro, meia xícara de açúcar e a casca de meia laranja, cortada bem fina, dentro...
— Deixe de palhaçada! — gritou ele. — Você vai contar para Wolfe?
— Preferia não contar.
— Vai?
— Do modo que as coisas estão agora, não.
— Ou vai dizer para Saul ou Fred?
— Não. Nem a Cramer nem a J. Edgar Hoover. — Fui até o sofá apanhar meu casaco e meu chapéu. — Não faça nada que eu não faria. Você sabe o que os médicos chamam de ética profissional?
— Sim.
— Bem, espero sinceramente que você não precise.
E fui embora.
CAPÍTULO II
O NEW YORK TIMES sabe como escrever as coisas: "Ao que tudo indica Miss Kerr não trabalhava em lugar algum nem exercia qualquer atividade." Não se pode colocar as coisas melhor, deixando a mente aberta a todos os tipos de pensamentos.
Na mesa da cozinha, onde tomo café, com o Times à minha frente, coloquei melado de Porto Rico sobre os bolinhos de aveia e disse a Fritz:
— Seria um bom assassinato para se trabalhar.
Na mesa grande, inspecionando cogumelos secos enquanto me observava para ver quando precisaria fazer mais bolinhos, Fritz abanou a cabeça e disse:
— Nenhum assassinato é bom de se trabalhar. Quando o caso é de assassinato, a campainha da porta me assusta e nunca sei se você vai voltar vivo.
Disse-lhe que estava me enganando, nunca o vira com medo, espetei mais um pedaço de bolo com melado e comecei novamente a ler o artigo do Times. Eu sabia mais do assunto do que o jornal, o que me parecia ótimo. Os únicos dados novos para mim era que o corpo fora descoberto por Stella, a irmã de Isabel Kerr, que Stella era a mulher de Barry Fleming, professor de matemática na escola Henry Hudson, que Stella fora ao apartamento um pouco antes das sete da noite de sábado, menos de três horas após eu ter saído de lá, que Isabel morrera aproximadamente entre oito horas e meio-dia, que Stella não queria falar com os repórteres e que o escritório da polícia e o do Promotor Público haviam começado uma investigação rigorosa. O retrato de Isabel provavelmente fora desencavado numa agência teatral, pois exibia um sorriso de corista. O de Stella fora tirado quando um policial a conduzia pela calçada.
Até aí, tudo bem. Mas se o que eu fizera pelo Orrie não fosse brincadeira, se ele não estivesse me enganando, e eu realmente não acreditava que ele estivesse, logo haveria brigas e discussões. Terminei o café e fui ao escritório, onde liguei o rádio. No noticiário das dez horas não havia nada. Quando Wolfe desceu da estufa, às onze, o rádio ainda estava ligado. Dirigiu-se à sua escrivaninha e sentou-se na única cadeira onde seu corpo volumoso realmente sente-se bem acomodado, olhou aborrecido para o rádio e depois para mim, perguntando:
— Há alguma coisa urgente?
— Sim, senhor — respondi. — Será que os Bravos vão jogar em Milwaukee ou em Atlanta? Além disso, hoje é domingo, dia de descanso.
— Pensei que você tivesse um compromisso.
— O compromisso é às treze horas e talvez eu não vá. O almoço deve ser bom, mas depois tem um sujeito que vai ler poesia,
— Poesia de quem?
— Dele mesmo.
— Ugh!
— Certo. Acredito que Miss Rowan sabia que ele estava com fome e apenas queria dar-lhe o que comer, mas aí o sujeito disse que faria um grande favor a ela e a seus amigos, e ela não pôde recusar. Ele chama de epiton porque é um poema épico e leva horas para recitar.
O canto de sua boca elevou-se meio centímetro.
— Bem feito.
— Sim. O que ela fez no carro aquela noite foi por obrigação, mas você nunca a perdoará. Talvez eu não vá.
— Vá — disse ele, com um gesto.
Pegou sua cópia do Times de domingo e começou a ler. Recebemos três exemplares, quase dez quilos de jornal — um para ele, um para mim e o outro para Fritz.
Ao ouvir no noticiário do meio-dia que não diziam nada de novo sobre o crime, decidi que seria tolice ficar sentado a tarde inteira brigando com o Times, prendendo a respiração a cada meia hora ao ouvir as notícias, e subi os dois andares até meu quarto. Como já fizera a barba, tinha só que mudar de camisa e vestir um dos meus quatro ternos. Ao descer, avisei na cozinha e no escritório que já ia sair. Fui à garagem na 10.a Avenida onde guardamos o Heron que pertence a Wolfe, mas que eu dirijo. Aos domingos, muitas vezes se encontra onde estacionar. Às 4:25 eu estava sentado numa cadeira confortável na sala do apartamento dúplex de Lily Rowan, ao alto de um prédio na rua 63, recostado, com os olhos fechados, tentando decidir qual deles eu preferia ter no meu time, Willie Mays ou Sandy Koufax. O poeta, um cara de rosto longo de barbicha, que não parecia estar com fome, pois acabara de fazer uma boa refeição, ainda recitava, mas há mais de uma hora que eu não o escutava. Era apenas um barulho ao fundo. Sentindo que me cutucavam no ombro, abri os olhos e vi Mimi, a empregada. Mexendo os lábios, pronunciou a palavra "telefone" sem fazer ruído. Levantei-me, dirigi-me a uma porta no canto da sala e entrei no escritório onde fica a escrivaninha, na qual Lily faz os cheques para as causas que os merecem. Peguei o telefone e falei:
— Aqui é Archie Goodwin.
— Creio que leu sobre o assassinato de uma mulher chamada Isabel Kerr? — respondeu a voz de Wolfe.
Respondi que sim.
— Eu também. Parker está aqui. Ele recebeu um telefonema de Orrie Cather, pedindo que fosse à delegacia de polícia na rua 20, o que ele fez. Orrie está sob custódia como testemunha do crime. Ele deu ao Sr. Parker algumas informações, não muitas, e lhe disse que perguntasse a você. Por quê?
— Porque sim. Parker ainda está aí?
— Sim.
— Chegarei dentro de vinte minutos.
Desliguei, fui à cozinha e disse a Mimi que avisasse a Lily que eu precisava sair, apanhei meu casaco e chapéu na entrada, saí e chamei o elevador. O carro estava logo após a esquina da Avenida Madison. Ao entrar, tomando a direção oeste, disse a mim mesmo que era melhor continuar pensando em Willie Mays e Sandy Koufax. Não havia nada que pudesse fazer até ter conversado com Parker. Ao entrar na garagem, decidi definitivamente ficar com Willie Mays. O braço de Koufax era muito problemático. Portanto, sentia-me como se tivesse realizado alguma coisa de valor quando subi os degraus do pórtico, entrei, tirei o casaco e o chapéu, e me dirigi ao escritório.
Nathaniel Parker, o advogado que Wolfe utiliza em caso de necessidade, estava sentado na poltrona vermelha, e na mesinha ao lado havia uma garrafa de uísque, uma de soda, uma vasilha com gelo e um copo. Wolfe estava à escrivaninha, bebendo cerveja. Como aos domingos não sobe para ver as orquídeas na estufa, é o dia em que bebe mais cerveja. Há mais de dois meses que não via Parker e ele se levantou para apertar minha mão. Eu disse a Wolfe:
— Isto vai ser pior do que ouvir poesia.
Fui até a minha mesa, girei a cadeira, sentei-me e disse a Parker:
— Se você vai soltá-lo, preferia esperar até vê-lo.
— Você iria esperar muito tempo — respondeu Parker. — Acho que vão ficar com ele. Ao menos é o que parece, pelo modo que falam...
— Acusação de assassinato?
— Ainda não, mas acho que será em breve. Talvez amanhã.
Wolfe grunhiu, em minha direção:
— Foi ele quem matou aquela mulher? Foi esse o seu assunto pessoal de ontem?
— Vamos ficar calmos — sugeri. — Se ele disse para me consultar, quero saber exatamente o modo como falou. — Virei-me para Parker: — Quer explicar, por favor?
— Lógico. — O advogado tomou um gole e pousou o copo na mesa. — Ele não falou muito. Disse que não responderia a nenhuma pergunta, nenhuma mesmo, antes de falar comigo. É claro que conhece todas as regras. Mas nem comigo se abriu. Nem ao menos me disse se conhecera a mulher ou se tivera alguma relação com ela. Só me disse três coisas. Um, ele não a matara nem estivera perto dela ou de seu apartamento ontem em hora alguma; dois, onde ele estava ontem. Três, eu deveria vir aqui e você decidiria o que me dizer. Quando saí de lá, ficou combinado que ele contaria onde estivera e o que fizera ontem, e ficaria mudo sobre qualquer outro assunto, e que amanhã, após ter falado com você, eu iria vê-lo.
— Você é advogado dele?
— Concordei com isso. Condicionalmente, até ter falado com você.
— Então sou eu quem decido?
— Sim. Ele me pediu para lhe dizer que quer que você decida como vai proceder.
— Isso é ótimo. Aprecio muito isso, alguém confiar em mim desta forma. Deixe-me coçar o nariz.
Cocei-o com a ponta do dedo, com os olhos fixos no globo vermelho em cima da estante, mas sem realmente vê-lo. Não demorei muito tempo, porque na realidade era muito simples: ou tudo ou nada, e não tinha importância se Parker ouvisse agora ou no dia seguinte. Levantei-me:
— Pensei que aos domingos, no inverno, você jogasse bridge.
— E jogo. O chamado de Cather interrompeu o jogo.
— Minha sugestão é voltar e continuar a jogar. Decidi como agir. Vou contar tudo ao sr. Wolfe. Prefiro que ele me olhe aborrecido enquanto eu conto para ele, do que quando eu contar para você. Mais tarde eu ou ele lhe contaremos. Amanhã de manhã seria ótimo. Se preferir, pode esperar na sala da frente, mas vai demorar um pouco.
Os lábios de Wolfe estavam tão comprimidos que quase não os via. Pegou a garrafa e pôs um pouco de cerveja no copo. Parker apanhou o copo e o esvaziou, colocou-o sobre a mesa, levantou-se, olhou para mim e disse:
— Gostaria que você me dissesse só uma coisa, confidencialmente: foi ele quem a matou?
— Mesmo que soubesse — respondi — não seria confidencial. Não sou seu cliente.
Encaminhei-me para a entrada, mas fiquei segurando seu casaco nas mãos alguns minutos enquanto ele falava com Wolfe. Finalmente apareceu, levou algum tempo ajeitando o cachecol, abotoando o casaco e pondo as luvas, e encolheu os ombros quando uma lufada de vento o atingiu ao atravessar a soleira da porta. Ao voltar ao escritório, vi que Wolfe reabrira o livro que lia agora, Convite para um inquérito policial, de Walter e Miriam Schneir. Era infantil. Ele estava acentuando o fato de que sua leitura de domingo fora estragada, primeiro por Orrie, depois por mim. Ao sentar-me, disse-lhe:
— Se estiver no meio de um capítulo, não tenho pressa alguma.
Resmungou, pôs o livro na mesa e olhou-me, aborrecido.
Comecei a falar:
— Anteontem, sexta à tarde, Orrie me telefonou e marcou um encontro comigo à noite. Talvez você se lembre que eu, infelizmente, não estava aqui para ajudá-lo a comer o frango Souvaroff. Encontrei-me com Orrie às sete horas no Giordano, um restaurante na rua 39 Oeste. Agora...
— Não faça resumos.
— Não farei. Agora vou lhe dizer o que ele me disse. Ele estava numa enrascada. Ia se casar com uma garota chamada Jill Hardy, uma aeromoça. Mostrou-me um retrato dela. Haviam marcado para o princípio de maio, quando ela teria férias. Mas havia um obstáculo. Uma outra moça, de nome Isabel Kerr, estava criando objeções. Ela mesma queria se casar com ele, e achava que ele era, ou seria, o pai da criança que ela esperava para daqui a sete meses. Queria brigar por isso, em público, se necessário. Disse que tinha em seu poder, talvez numa gaveta trancada no seu apartamento, certos objetos que podia usar. Um desses objetos era sua licença de investigador particular, que retirara do bolso dele uma noite, cerca de um mês atrás. E também uns retratos e cartas, e talvez outras coisas que Orrie não sabia quais seriam. O problema principal não era que ela pudesse fisgá-lo, mas sim que estragaria seu relacionamento com Jill Hardy.
— Ela não podia obrigá-lo a casar-se. Para que casar? — Wolfe resmungou.
— Está bem, esse é o seu ponto de vista, mas não era o de Orrie. Ele queria aqueles objetos e tinha quase certeza de que estavam no apartamento. Sabia que ela ia ao cinema de tarde, duas a três vezes por semana, e quase sempre aos sábados. Tinha as chaves do apartamento. A idéia dele era que eu iria lá no dia seguinte, sábado, que agora é ontem, às 4:15h, tocaria a campainha; ninguém viria atender, entraria e daria uma espiada. Não gostei muito da idéia. Se fosse para Saul ou Fred, faria com prazer, porém, apesar de não ter nada contra Orrie, não pediria suas meias emprestadas. Explicou que não me envolveria, acontecesse o que acontecesse. Se ela estivesse lá e atendesse à porta, eu iria embora. Era quase certo que ela não voltaria antes de eu ir embora, mas se ela ou outra pessoa entrasse, eu seria delicado e diria que não tinha arrombado a porta para entrar, eu usara as chaves que ela lhe dera.
— Então você foi — falou Wolfe, zangado.
— Não me apresse. Disse a ele que não faria nada se não soubesse de tudo. Demorou algum tempo e fiz muitas perguntas, mas precisava saber se Isabel Kerr era procurada, podia ser a filha fugitiva de um embaixador. Não. Há três anos tinham-na retirado da fila de coristas e a colocaram no ninho de amor que ainda ocupava. O detalhe mais difícil de conseguir foi o nome de quem a salvara. Orrie dizia não saber, mas era claro que sabia, e insisti. O nome dele é Avery Ballou, presidente da Federal Holding Corporation. Aparentemente Isabel tinha alguma qualidade apreciada por ele, pois ainda pagava o aluguel, a conta do armazém e ia vê-la duas ou três vezes por semana, de noite. Mas ela sabia que esse tipo de relação não dura para sempre, e de qualquer modo queria Orrie. Tinham se encontrado em algum lugar, isso é irrelevante, há cerca de um ano, e ela vinha... bem, alimentando-o com a comida de Avery Ballou, e decidira que o queria para sempre. Acreditei nisso. As mulheres não se apaixonam por Orrie com a fúria e rapidez que acredita, mas não é feio e às vezes os olhos das mulheres se fixam nele.
— Então você foi.
— Sim. Não estou me desculpando, mas parecia aconselhável. Embora ele não seja como Saul Panzer, há anos que trabalha bem para você... está bem, para nós. Fez alguns trabalhos muito bons e nunca nos enganou, pelo menos que a gente saiba. Então ontem à tarde eu fui lá, de luvas, com um punhado de chaves, e cheguei exatamente às 4:15h. Ninguém respondeu ao toque da campainha e por isso entrei e subi. É uma dessas casas de quatro andares remodelada, elevador sem cabineiro, não tem porteiro nem empregado, e ninguém me viu. Já que leu o artigo no Times, sabe o que encontrei. Não fiquei lá para usar as luvas ou chaves; eu achei que Orrie não valia tanto assim. De qualquer forma, mesmo que achasse os objetos, era natural que encontrassem suas impressões digitais, já que três dias antes ele estivera lá durante horas. Por isso, fui-me embora.
— Alguém o viu?
— Não. Telefonei para você não me esperar para o jantar e...
— Isto foi às cinco horas.
Isso era bem dele. Nunca parece reparar em nada, mas sabe de tudo. Acenei com a cabeça.
— Sim. Caminhei quase meia hora até chegar ao endereço de Orrie, ou perto. Esperei ele vir, subi ao seu apartamento, contei-lhe o que acontecera e devolvi-lhe as chaves. Perguntei se ele a matara e me respondeu que não. Seguira uma pessoa para Bascom o dia inteiro, mas não pode fornecer provas. Durante as horas importantes, de oito horas até o meio-dia, ele está sem cobertura. Queria saber por que eu não procurara as coisas. Espicacei-o um pouco, não muito, voltei para casa e servi-me duas vezes de crème Gènoise. Sabia que o iriam apanhar. Se não fosse por mais nada, por suas impressões. Isso foi o urgente no rádio hoje de manhã.
— Você devia ter-me dito.
— De que adiantaria? Só iria estragar o seu dia.
— Por isso você foi ouvir um homem ler poesia.
Inclinei um pouco a cabeça:
— Olhe, é bom esquecer de mim. Você está aborrecido e quer um alvo, mas não sou eu. Se você se esquecer de Orrie, não terá nenhum alvo e vai poder voltar para o seu livro.
Olhou o livro, apanhou-o e depois o colocou de volta na escrivaninha. Pegou o copo de cerveja, franziu a testa porque já estava sem espuma, mas bebeu-o assim mesmo até o fim, colocou o copo novamente na bandeja e a empurrou para longe.
— Orrie — disse ele. — Maldito seja. O caso é: será que ele a matou? Se matou, o problema é do sr. Parker e podemos deixá-lo com ele. Se não matou, estamos...
O telefone tocou e girei minha cadeira para atendê-lo.
— Residência do sr. Nero Wol...
— Archie, aqui é Lon. Estou espantado de você estar aí.
— Não deveria estar?
— É claro que não. Com seu companheiro na gaiola?
— Não sei do que está falando. Passei a tarde num recital de poesia e acabo de chegar.
— Você quer dizer que não sabe que Orrie Cather foi preso no caso do assassinato de Isabel Kerr?
— Foi mesmo?
— Sim. Se for de ajuda ter alguma coisa publicada, estou às ordens. Não espero que me mostre todas as cartas de Wolfe, mas se houver alguma coisinha que...
— Lógico. Com toda a certeza. Logo que souber de alguma coisa quente, ou mesmo morna, lhe telefono. Agora estou ocupado. Estou contando ao sr. Wolfe sobre um lindo poema que o homem leu.
— Aposto que está. Não há nada que dê só um parágrafo?
— No momento, não. Obrigado por telefonar.
Desliguei o telefone, girei a cadeira e contei a Wolfe:
— Lou Cohen tentando pescar alguma coisa, deve estar em casa já que hoje é domingo. Uma das matérias de amanhã da Gazeta vai começar assim: "Orrie Cather, detetive particular, assistente de confiança de Nero Wolfe, está sendo mantido como testemunha em conexão com o assassinato de Isabel Kerr. O sr. Cather tem sido um colaborador importante no sucesso espetacular de muitos casos famosos de Nero Wolfe. Archie Goodwin, que é apenas o menino de recados de Nero Wolfe, disse..."
— Cale a boca!
Levantei os ombros e suspendi as mãos, com as palmas para fora.
Ele deu um murro na mesa com tanta força que a garrafa tremeu, enquanto gritava:
— Ele a matou?
— Passo o lance! — respondi com firmeza.
— Isso não basta. Quando esteve com ele na sexta à noite, estava planejando um assassinato? Quando o viu ontem à noite, ele se sentia culpado?
— Passo assim mesmo. Na sexta à noite, ele podia não ter planejado nada. Pode ter ido lá ontem de manhã, não se sabe por que, e ter perdido a cabeça. Quanto a ontem de tarde, o que você quer dizer com 'se sentia culpado'? Já sentaram-se aqui assassinos, que olharam você nos olhos e responderam a suas perguntas, e quando saíam você não tinha certeza. Agora eu é que não tenho certeza. É claro que você quer um veredicto, mas eu não o tenho.
— Você gosta de dar vantagens. Qual é a vantagem?
— Posso apostar a mesma quantia e aceito ele ser culpado ou não. É claro que, fazendo assim, estou ignorando minha preferência pessoal. Preferia que ele não o tivesse cometido. Preferia não ver a manchete ASSISTENTE DE NERO WOLFE CONDENADO POR HOMICÍDIO — e você também não gostaria. As pessoas que só lêem as manchetes poderiam pensar ser eu.
— Você se recusa a solucioná-lo.
— Sim.
— Então chame Saul e Fred para virem aqui logo que puderem.
CAPÍTULO III
WOLFE ESTAVA FAZENDO um discurso às 9:50h.
Saul Panzer, 1,70m, setenta quilos, nariz e orelhas grandes, cabelos cor de ferrugem, estava sentado na cadeira de couro vermelho com uma garrafa de Montrachet 1958 na mesinha ao lado, tendo na mão um cálice. Fred Durkin, 1,73m, 95 quilos, careca e volumoso, estava numa das cadeiras amarelas, em frente à escrivaninha de Wolfe, com uma garrafa de Canadian e uma jarra d'água na mão. A água não fora tocada. Eu não tinha o que beber. Desde cedo Fritz saíra para tratar de assuntos particulares, e por volta de sete horas Wolfe e eu comemos, concentrando-nos principalmente num prato de carne temperada e gelatina, feito com cabeça e pé de porco. Creio que, no total, já passei mais de dez horas olhando Fritz fazer esse prato, tentando descobrir por que o dele é tão melhor do que o de qualquer outra pessoa, inclusive o que minha mãe costumava fazer em Ohio, mas finalmente desisti. Talvez seja o modo como segura a colher quando retira a gordura.
Saul e Fred já haviam recebido todas as explicações, exceto uma, o nome do homem que salvara Isabel Kerr do mundo do teatro. Orrie não gostaria disso, mas dissera a Parker que eu decidisse como resolver as coisas, e se os dois deviam tomar uma decisão tinham de saber de todos os fatos. O nome do 'padrinho' não tinha a menor importância. Após terem feito algumas perguntas e recebido as respostas, Wolfe começou a falar.
— Não é apenas uma questão de pensar num método de defesa eficiente. Se Orrie matou aquela mulher para evitar que ela interferisse em seus planos pessoais, nem eu nem vocês somos obrigados a enganar os agentes da Justiça. Certamente podemos ter simpatia com a desgraça, mas não com contravenção de Nemesis. O sr. Parker é um advogado competente e podemos deixar o caso com ele. Mas se não a matou, tenho uma obrigação que não posso ignorar. Sou levado a isso não só pela sua longa associação comigo, mas também por meu amor-próprio. Vocês devem saber que não sinto nenhuma afeição por ele; freqüentemente ele me embaraça; não tem a dignidade de um homem que encontrou o seu lugar e o ocupa, como você tem, Fred; nem a integridade de um homem que reconhece sua superioridade, mas a restringe a áreas que lhe são aceitáveis, como você, Saul. Mas se não matou aquela mulher, pretendo libertá-lo.
Levantou a mão com a palma para fora:
— A questão é: foi ele quem a matou? Como não possuía uma opinião própria definida, perguntei a Archie. Pensei que ele ao menos tivesse palpites, sim ou não. Ele sempre tem palpites, mas desta vez falhou. Disse que apostaria o mesmo dinheiro. Archie? Isso foi há quatro horas. E agora?
Abanei a cabeça:
— Ainda passo. Que diabo. Vá em frente, comece alguma coisa e vamos ver o que conseguimos!
— Não. Teríamos assumido um compromisso e cometeríamos enganos. Fred, você conhece Orrie há mais tempo do que eu. Já lhe descrevemos toda a situação. O que você acha?
— Jesus! — disse Fred.
— Isso não ajuda nada. Ele apenas diria a Orrie que não pecasse mais. Será que ele a matou?
Fred pôs o copo na mesa e mexeu-se na cadeira. Olhou para Saul, depois para mim, e novamente para Wolfe:
— É muito difícil. Será que entendi bem? Se decidirmos que ele a matou, você fica de fora e Parker se encarrega do caso. Se decidirmos que é inocente, você tentará provar isso, e a única maneira de prová-lo, obviamente, seria encontrar o assassino e prendê-lo. É isso?
— Sim.
— Então minha resposta é de que ele é inocente.
— Essa é sua opinião verdadeira?
— Para ser franco, não. A única forma de se ter certeza de que ele a matou seria se confessasse, e Orrie nunca confessaria. Mas nós conhecemos Orrie. Ele sempre fez o que quis com as mulheres, e elas consentiam. Quero dizer, elas não podiam evitar de proceder assim. Mas agora, aparentemente, está fisgado e quer se casar. Por isso, se essa Isabel Kerr se metesse em seu caminho, se realmente o atrapalhasse... bem, eu não sei. Quero dizer, acho que realmente sei. Mas você nos chamou para ajudar a decidir, não foi?
— Sim.
— Então eu digo não. Ele não a matou.
Wolfe nem mesmo fechou a cara para ele. Se eu desse um palpite desses, receberia o que merecia, mas ele sabe como funciona a mente de Fred e portanto recebera o que pedira. Disse apenas:
— Isso não é nada decisivo. — Virou a cabeça e perguntou: — Saul?
— Não — disse Saul. — Para falar como Archie gosta, aposto um contra vinte como ele não a matou.
— É mesmo? — respondeu Wolfe, surpreso. — É uma opinião ou só uma aposta?
— Chame de uma conclusão. Dou de cinqüenta a um. Não estou dizendo que seja superior a Archie. Como ele sabe tudo o que sei, você pode ficar imaginando por que ele não se decidiu, mas isso é óbvio. Ele está envolvido pessoalmente. Não é vaidoso.
— Tolice. Você o está lisonjeando.
— Não, senhor. Deixe eu explicar direito. Primeiro, digamos que Orrie tenha planejado tudo. Quando estava com Archie, na sexta à noite, pretendia ir lá de manhã e matá-la, e quando Archie fosse de tarde, com luvas e chaves, ou encontraria o corpo ou, se alguém o tivesse descoberto antes dele, encontraria os carros da polícia do lado de fora e uma porção de policiais lá dentro. Isto é totalmente impossível. Não sei se sabe, mas Orrie acha que Archie é o mais rápido e esperto agente que existe. Não há a mínima chance de que ele, deliberadamente, sentasse à sua frente e pensasse nesse tipo de situação. De qualquer modo, para quê? Se ia matá-la, para que toda essa confusão com Archie?
— Está bem, pode eliminar isso — respondi. — Eu já pensei nisso. Na sexta à noite ele não estava nem ao menos pensando em vê-la, quanto mais matá-la. Mas se no sábado de manhã, sem pensar nas conseqüências, tivesse resolvido isso? E se ela o provocou?
— E ele a matou — Saul confirmou. — Se ficou para revistar o apartamento a fim de procurar os objetos que queria ou não, voltou depois à sua tarefa de seguir alguém. Deveria tomar uma decisão difícil, telefonar para dizer que não fosse, dando um motivo qualquer. Admito que não conseguisse pensar num motivo bastante bom e ter decidido que seria muito arriscado. Seria melhor deixar você ir. Mas aí entra o ponto principal. Você o conhece, assim como eu. Sabemos exatamente como a sua mente funciona. Você ouviu quando perguntei ao sr. Wolfe se alguém lhe telefonara ontem entre 4:30 e 6:30h, e ele disse que não. Esse é o ponto decisivo.
— Ótimo. Formidável.
— É muito simples. Você não percebeu, pois está pessoalmente envolvido. Aqui temos Orrie no seu trabalho de seguir alguém, já tendo cometido o assassinato. Decide não avisá-lo. Ele sabe que quando você for lá e encontrar o corpo vai ficar imaginando coisas sobre ele. Sabe que você o imagina com a respiração suspensa até que você diga que objetos achou e apanhou. Sabe que, se não tivesse ido lá para matá-la, estaria terrivelmente ansioso para saber como você tinha se saído, digamos de 5:30h em diante, e ele teria lhe telefonado. Portanto, ele o chamaria. Mas não chamou. Essa é a questão.
— Espere um pouco — disse eu. — Assim não pode ser. Se ele não a matou, por que não me chamou?
— Ele teria chamado talvez assim que chegasse em casa, mas você ligou primeiro. Se ele a tivesse matado, não esperaria até chegar em casa. Como você sabe, o pior defeito dele é o de se adiantar muito. Sabia que a coisa mais natural seria lhe telefonar e, adiantando-se, provavelmente seria em torno das cinco horas. Com toda a certeza até as 5:30h. Que diabos, ele não é uma pessoa estranha sobre a qual damos palpites; nós o conhecemos como a palma de nossas mãos.
Virou-se para Wolfe:
— Como você e Archie não se decidiram e Fred disse sim e não, o meu voto é decisivo. Se acreditar nisso, resolver levá-lo adiante e quiser me encarregar disso, não cobrarei nada, nem despesas. Não gosto de Orrie tanto quanto vocês, mas é claro que gostaria de reforçar meu voto.
— Eu também — disse Fred. — Eu votei não.
Era uma oferta extraordinária. Saul, que cobra dez dólares a hora e é o que recebe, podia fazer essa oferta, mas Fred não ganha tanto e tem uma mulher e quatro filhos.
Wolfe levou os olhos em minha direção, firmando-se nos meus.
— O caso — disse eu — é que estou pessoalmente envolvido. Tudo depende, em parte, em como Orrie pensa que sou esperto e rápido, e isto limita os meus movimentos. Mas depende também em como considero Saul esperto e detestaria causar-lhe embaraços. Vou mudar meu voto e dizer não, mas não aposto vinte a um.
Ele deu uma inspiração profunda pelo nariz, prendeu o ar por três segundos e depois o expeliu através da boca aberta. Virou a cabeça para olhar o relógio de parede, segurou as extremidades dos braços da poltrona com os dedos crispados e emitiu um Grrrhhhh! Era duro de roer. Já se passara um mês sem nenhum negócio, e agora ia ter de trabalhar de graça. Olhou para Saul:
— Quando pode começar?
— Agora — disse Saul.
— E você, Fred?
— Terça-feira — disse Fred. — Estou com um trabalhinho, mas amanhã posso terminar tudo.
— Já sabem da situação — Wolfe grunhiu. — Não temos nenhum dado. Nunca tivemos tão pouco. Nem ao menos sabemos o que a polícia encontrou, se é que encontrou alguma coisa, que envolva Orrie. Nesse ponto o sr. Parker pode nos ajudar. Archie, a polícia ainda está infestando a vizinhança?
— Lógico. Sem dúvida estão se concentrando em Orrie, tentando encontrar alguém que o tenha visto ontem pela manhã. Para conseguir provas contra ele é preciso que alguém o tenha visto lá.
Virou-se para Saul:
— Teremos de começar com banalidades. Quais são os outros moradores do prédio? Quem foi visto entrando ou saindo ontem de manhã? Alguém viu Archie entrar ou sair ontem de tarde? Isso talvez seja um ponto importante. Você começa nisso amanhã, e Fred irá se encontrar com você na terça, mas é melhor telefonar duas vezes por dia, para saber se pensamos em alguma coisa melhor.
Virou-se para mim:
— Você vai ver alguém. Quem é?
— Jill Hardy. Se estiver disponível. Se não estiver em Roma ou Tóquio — respondi, depois de cinco segundos.
— Se estiver, fale com a irmã. A sra. Fleming, não é?
— Talvez, mas prefiro falar com Jill Hardy. Quer vê-la?
— Só se você julgar necessário. — respondeu com uma careta.
Empurrou a cadeira para trás e levantou-se:
— Que diabos, vou para a cama. Aprecio a sua oferta, Saul, e a sua, Fred, mas a responsabilidade é minha. Pagarei o de costume e, é claro, as despesas. Boa noite.
Dirigiu-se para a porta.
CAPÍTULO IV
ENQUANTO EU TOMAVA o café da manhã às 8:10h de segunda-feira, comendo brioches, presunto grelhado e geléia de uva, pensava em diversas coisas ao mesmo tempo.
Primeiro, por que Fritz era tão teimoso a respeito de sua geléia? Por que, ao menos uma vez, não experimentava fazê-la com metade do açúcar e o dobro do sauterne? Há anos vinha lhe pedindo isso.
Segundo, por que os jornalistas eram tão preguiçosos? Se o Times achava que devia dar prosseguimento à notícia do assassinato com uma fotografia, com certeza podiam ter arranjado uma do Orrie, mas tinham a audácia de exibir a de Wolfe tirada há mais de oito anos. Ele devia processá-los por invasão de privacidade. Ele não fora preso. Pelo que os jornais sabiam, nem estava na história. Podia não ser preguiça, é claro; talvez ainda estivessem aborrecidos por causa de uma carta que uma vez escrevera ao crítico de restaurantes.
Terceiro, eu devia lhe falar pelo interfone ou subir, antes de sair? Fritz nada me dissera quando desceu com sua bandeja vazia, por isso, aparentemente, eu tinha de prosseguir conforme as instruções, mas não custava nada verificar.
Quarto, onde estava Jill Hardy? Orrie me dissera que trabalhava na Pan Am, mas com um simples telefonema não me forneceriam o seu endereço. Na noite anterior tentara localizá-la nos catálogos dos cinco distritos, mas não havia nenhuma Jill Hardy. Parker poderia consegui-lo quando falasse com Orrie, mas para isso eu deveria esperar. Assim que terminasse a segunda xícara de café estaria pronto para partir e quanto mais cedo eu...
O telefone tocou. Fritz ia atender: ele e Wolfe consideram, de comum acordo, que ao se fazer uma refeição nada nem ninguém deve interrompê-la. Mas estiquei o braço e atendi.
— Escritório de Nero Wolfe. Quem fala é Archie Goodwin.
— Oh! Eu... É mesmo Archie Goodwin?
— Certo.
— O Archie Goodwin que trabalha para Nero Wolfe?
— Deve ser, já que a senhora ligou para o número de Nero Wolfe.
— É claro. Meu nome é Jill Hardy. O senhor provavelmente... o senhor já deve ter ouvido esse nome.
Sua voz era o que Lily Rowan chama de mezzotinto, boa e cheia, mas com limites definidos.
— Sim, creio que sim.
— Através de Orrie Cather.
— Certo.
— Então o senhor sabe quem eu sou. Estou chamando... acabei de ler o jornal da manhã. É verdade o que houve com Orrie? Ele foi preso?
— Pode-se dizer que sim. Ele está detido como testemunha. Isso significa que a polícia acha que ele sabe de coisas que não lhes contou e querem que conte.
— Sobre um assassinato?
— Aparentemente.
— Devem estar loucos!
— É possível. Está em casa, srta. Hardy?
— Sim, no meu apartamento. Sabe...
— Um momento, por favor. Como acabou de dizer que viu no jornal, imagino que a polícia ainda não foi vê-la. Mas irá. Pelo menos, é possível. Preciso lhe fazer uma pergunta. Pelas coisas que Orrie disse, presumi que vocês pretendem se casar. Talvez não tenha entendido direito...
— Entendeu, sim. Vamos nos casar em maio.
— Todos já sabem? Já contou a alguém?
— Disse a algumas pessoas... amigos. Vou continuar trabalhando durante algum tempo e uma aeromoça não pode...
— Eu sei. Mas se Orrie contou aos seus amigos, e contou a mim, você vai logo, logo receber visitas. Se quiser...
— Quero saber por que foi preso! Quero saber... ele estava trabalhando para Nero Wolfe?
— Não. Há mais de dois meses que não faz um serviço para o sr. Wolfe. Se quiser...
— Por que vou ter visitas?
— Preferia não lhe contar por telefone. É muito complicado. Se quiser saber o que aconteceu antes de a polícia ir lhe fazer perguntas, por que não vem aqui e me faz as perguntas? Escritório de Nero Wolfe, rua 35 Oeste, 938. Estarei...
— Não posso; às 10:30h tenho de partir num vôo para o Rio.
— Então vou apanhá-la e poderemos falar a caminho do aeroporto. Sou um bom motorista. Qual é o endereço?
— Não creio... — Silêncio. — E se Orrie... — Mais silêncio. — Veremos. — Desligou.
Comi outro brioche e uma fatia de presunto, sem perder tempo. Talvez ela se decidisse em poucos minutos. Quando Fritz trouxe o café, disse-lhe que, quando se quer ver alguém e não se sabe onde está, tudo o que se tem a fazer é emitir ondas, e ele perguntou se tínhamos um cliente.
— Sim e não — respondi. — Um trabalho para alguém, sim. Um freguês que possa receber a conta, não. Você me ouviu falar o nome de Orrie, de maneira que é bom saber que ele se encontra numa situação difícil e nós vamos tirá-lo disso. Como se diz em francês 'a irmandade dos homens'?
— Isso não existe em francês. Então seu assunto pessoal no sábado era esse. Prefiro que seja Orrie do que Saul ou Fred, mas mesmo assim...
O telefone tornou a tocar. Atendi.
— É Jill Hardy de novo, sr. Goodwin. Já arranjei tudo. Estarei aí em meia hora.
— Que bom. Importar-se-ia de me dar seu telefone e endereço? É só para termos em mãos.
Ela não se importava. O endereço era rua Nutmeg, 217, no Village. Ao terminar o café, fui para o escritório e o escrevi num pedaço de papel, e pensei no problema: deveria colocá-lo na pasta de Orrie? Decidi que não, apanhei uma nova pasta e coloquei CATHER , ORRIE, CLIENTE. Dentro de dez minutos Wolfe estaria entrando no elevador para ir à sua sessão matinal com as orquídeas, de nove às onze, por isso chamei-o no interfone. Demorou a atender.
— Sim?
— Bom dia. Creio que gostaria de saber que, quando descer, é possível que Jill Hardy ainda esteja aqui. Ela chegará dentro de uma hora, ou menos.
— Já a encontrou?
— Ora, claro. É fácil quando se sabe como procurar.
— Pretensioso — disse, e desligou.
Enquanto limpava as mesas e cadeiras, retirava as folhas velhas dos calendários, mudava a água da garrafa na mesa de Wolfe e abria a correspondência, decidi que Jill Hardy seria alta, rígida, olhos rápidos e argutos, tipo de um sargento, mas o canto dos olhos seria um pouco amendoado devido a algum oriental que entrara em seus ancestrais. Devia ser uma pessoa fora do comum para prender Orrie dessa forma, mas havia outra razão por que ela teria de ser assim. Como já havíamos decidido eliminar a culpa de Orrie, quanto mais cedo achássemos alguém para lhe tomar o lugar, melhor. É claro que Jill Hardy era candidata ao posto, e se parecesse uma vilã simplificaria as coisas.
Diabos, ela não era assim. Quando a campainha tocou, logo após as 9:30h, fui à entrada e, através do vidro da porta, que só permitia ver de dentro para fora, vi uma moça manequim 40, com casaco de couro preto e gola de pele, um rosto pequeno e oval, rosado pelo frio, grandes olhos cinzento-azulados e um chapéu de couro e pele. Depois que abri a porta, e ela entrou e tirou o casaco, parecia ainda menor no terninho azul-escuro muito bem-feito. Ela devia atingir, raspando, o limite mínimo de altura para o seu trabalho. No escritório, pedi-lhe que sentasse numa das cadeiras amarelas. A poltrona de couro vermelha fica muito longe da minha escrivaninha.
— Agora estou mais calma — disse ela, ao se sentar. — Você se parece um pouco com Orrie. É do mesmo tamanho.
Isso não me pareceu o modo ideal de se iniciar uma conversa amigável. Eu não me pareço com Orrie. Ele é bonitão e eu não sou. Meu nariz é pequeno demais para o meu rosto, mas deixei de me preocupar com isso quando tinha doze anos. Disse-lhe então:
— Não estou surpreso que Orrie tenha decidido se amarrar, agora que a conheço. Vou dar-lhe de novo os parabéns quando estiver com ele.
Ela não ligou para a lisonja.
— Quando irá vê-lo?
— Não tenho certeza. Talvez hoje à tarde.
— Queria vê-lo, mas não sei como fazer. O que faço?
— Se eu fosse você, não tentaria apressar as coisas. Pode ser que ele consiga fiança. O advogado dele é bom. Quando foi a última vez que o viu?
— Por que o prenderam? — perguntou ela. — O que ele sabe de assassinato? Você disse que ele não estava trabalhando para Nero Wolfe?
— Sim, não estava. Não creio, srta. Hardy, que possa lhe dizer alguma coisa que já não saiba, pois leu o jornal. Creio que aquela mulher, Isabel Kerr, estava envolvida em algum caso no qual ele estava trabalhando, mas é pura adivinhação de minha parte. Outro palpite é que ele esteve no apartamento dela recentemente, e encontraram as suas impressões e o detiveram. A senhorita sabe que, às vezes, os detetives particulares entram em alguns lugares para revistá-los, mas se esse fosse o caso Orrie não teria deixado impressões, pois teria usado luvas. Pode ser também que ele não estivesse lá a negócio, apenas socialmente. Sabe se ele conhecia a srta. Kerr?
— Não. — Sua testa estava franzida.
— Nunca mencionou seu nome?
— Nunca.
— Quando o viu pela última vez?
Ela ignorava as perguntas muito bem. Ainda estava de testa franzida.
— Você disse que preferia não dizer, pelo telefone, por que motivo alguém iria me ver. No entanto, parece que não está me contando nada de novo. O senhor é amigo íntimo de Orrie, mas não parece saber de nada. Por que alguém iria me visitar? Quer dizer, seria a polícia?
Decidi que, se continuasse pisando em ovos, não conseguiria nada:
— Não quero assustá-la, mas creio que deveria saber como está a situação.
— Eu também. Penso exatamente da mesma forma.
— Ótimo. Quando um homem é preso, tem direito a chamar um advogado. Orrie chamou Nathaniel Parker; Parker foi vê-lo e depois veio aqui conversar com o sr. Wolfe e comigo. Orrie sabia que ele iria fazer isso. A polícia não segura um homem, sem direito a fiança, só porque imagina que sabe alguma coisa. Ele está lá porque pensam que matou Isabel Kerr. Eles não acreditam apenas que ele saiba alguma coisa sobre o assassinato, acham que o cometeu.
Seus olhos estavam fixos em mim, bem abertos:
— Não acredito.
— Se não acredita que foi ele, eu também não. Se não acredita que pensam que foi Orrie, pergunte a eles. Ou ao seu advogado. Como o sr. Wolfe não acredita ser ele o assassino, pretende trabalhar no caso e descobrir quem o cometeu. Sobre a sua pergunta, por que motivo irá receber visitas, vou lhe dizer: assim que os tiras descobrirem que Orrie vai se casar com você, e isso não vai demorar muito tempo, vão querer lhe fazer perguntas. Como as que lhe fiz: sabe se ele conhece Isabel Kerr, e como a outra que não respondeu, quando o viu pela última vez? Só perguntei duas vezes, mas eles vão ficar insistindo. Vão querer saber onde e como passou a manhã de sábado; é esse o tipo de mentalidade que eles têm. Vão começar a pensar se a senhorita esteve lá com ele, e talvez até a tivesse segurado enquanto ele apanhava o cinzeiro. Também tenho esse mesmo tipo de mentalidade. Como penso que Orrie não a matou, tenho de descobrir quem o fez, e poderia ter sido você. Onde estava no sábado de manhã?
Seu queixo tremia:
— Pensei que fosse amigo de Orrie — disse. — O senhor não falaria assim comigo se ele estivesse aqui.
— Claro que sim, e ele entenderia. Não iria gostar, mas entenderia. — Inclinei-me em sua direção, os cotovelos encostados nos joelhos. — Ouça, srta. Hardy. Gosto de sua aparência e de sua voz. Suas mãos são bonitas. Disse que nunca ouviu falar de Isabel Kerr, e não tenho prova alguma de que isso não seja verdade; assim, aparentemente, está fora de suspeita. Mas, na verdade, gostaria muito que me dissesse quando viu Orrie pela última vez e onde esteve no sábado de manhã.
— Por que eles pensam que ele a matou? — perguntou ela. — Por que iria matá-la?
. — Não sei. Pode ser que mais tarde tenha alguma idéia, talvez hoje à tarde, se conseguir vê-lo, pelas perguntas que lhe fizeram. Talvez pensem que sabem de algum motivo, mas não necessariamente.
— Como poderia ter um motivo?
— Vai ter de perguntar a eles, não a mim, pois acho que eles estão por fora. Suponho que seja possível condenar um homem por assassinato, sem provar o motivo, mas os jurados não gostam dessa idéia.
— Jurados? Quer dizer que eles... vai haver um julgamento?
— Sinceramente, espero que não.
Seus olhos me fitavam:
— Acho que realmente pensa assim.
— Penso mesmo.
— Sábado de manhã estava em casa, na cama, onde fiquei até depois do meio-dia. Vim num vôo de Caracas, que deveria chegar à meia-noite, mas só aterrissou depois das duas da manhã. Vi Orrie naquela noite. Jantamos num restaurante. Quando estou a bordo de um avião tenho de responder a tantas perguntas que em terra mal as escuto. — Levantou-se e deu um passo em minha direção: — Levante-se e ponha seus braços em volta de mim.
Era uma ordem, e eu obedeci. Ela não levantou os braços para que pudéssemos nos abraçar, mas quando eu estava com os dois braços ao seu redor, segurou meu paletó pelas lapelas com as duas mãos, e escondeu o rosto no meu peito. O terninho azul-marinho parecia de lã, mas hoje em dia nunca se sabe. Não a apertei, apenas segurei-a de uma forma amiga e firme, tentando descobrir se sabia que estava em apuros e tentava me conquistar para seu lado, ou se estava tentando me seduzir, caso a culpa de Orrie fosse definitivamente eliminada ou se era apenas um hábito. Não usava perfume, ou usava só um pouco, e tinha um cheiro gostoso. Nunca se sabe quanto tempo teria durado se não fosse pela campainha da frente.
Educadamente, retirei meus braços, fui até o corredor, vi quem era, voltei para a sala e lhe disse:
— É um tira, um que eu conheço. Já que não está com pressa de encontrá-lo, é favor se esconder. — Abri a porta da sala da frente: — Fique aqui. Não precisa ficar preocupada com nenhum barulho, é a prova de som. Pode até espirrar.
De um modo geral, as aeromoças sabem como reagir. Sem uma palavra, apanhou a bolsa, que deixara cair ao chão quando me abraçou, dirigiu-se à porta que eu segurava e passou para a outra sala. Ao fechá-la, a campainha tocou de novo. Não bati nenhum recorde indo até a porta, e se o inspetor Cramer notasse o casaco de couro preto no cabide, isso era com ele. Era a mim que queria ver, pois sabia que Wolfe nunca estava disponível antes das onze, e uma pergunta a mais sem que eu respondesse não tinha importância alguma. Abri a porta e disse:
— Desculpe, estava ocupado bocejando — e deixei-o entrar. Seu rosto redondo e grande estava mais vermelho que de costume, por causa do frio. Às vezes não quer que eu o ajude a tirar o casaco, pois quer ficar com os olhos fixos em mim, mas desta vez consentiu que ficasse atrás dele para ajudá-lo, enquanto se dirigia ao escritório. Não reparara no casaco de couro preto, mas notou a cadeira amarela perto de minha escrivaninha e, ao abaixar seu grande assento na cadeira de couro vermelha, perguntou:
— Visita?
Acenei que sim:
— Já veio e já foi. Você liberou Orrie?
— Não. Ainda não e não tão depressa assim. A não ser que você possa me dar uma boa razão. Pode?
— Claro. É inocente.
— Continue.
— Parker veio aqui após vê-lo ontem; Orrie lhe disse que era inocente. Conhecemos Orrie há muito tempo e sabemos que não é mentiroso. Portanto, o sr. Wolfe vai investigar o caso. Sem dúvida veio por isso, para perguntar se ele vai se intrometer. Ele vai.
— Não preciso perguntar isso. Vim conseguir informações. — Ajeitou-se melhor na cadeira: — Quando foi que viu Cather pela última vez?
Abanei a cabeça:
— Sem comentários.
— Alguma vez lhe falou de Isabel Kerr?
— Passo.
— Alguma vez lhe falou de Jill Hardy?
— Sem comentários.
— Você não vai conseguir nada com isso, Goodwin. Se um homem é acusado, ele pode calar a boca, mas você não foi acusado de nada. Mas, que diabo, você pode ser acusado.
— Parece que vou bocejar de novo — eu disse. — Vamos ter que passar por isso tudo de novo? Não estou dizendo que não responderei a pergunta alguma sobre Orrie Cather. Se me perguntar onde ele compra seus sapatos ou quando foi a última vez que o sr. Wolfe deu-lhe um trabalho, terei prazer em lhe dizer, até por escrito. Mas esse tipo de perguntas que está fazendo, não. É claro que se demonstrar que ele cometeu assassinato e prová-lo, e se puder provar que eu possuía informações úteis, pode me autuar por obstruir a Justiça, e estarei perdido. Mas se, ao contrário, ficar claro que, em vez de obstruir a Justiça, eu lhe presto um favor, tentando ajudar o sr. Wolfe a descobrir quem realmente matou Isabel Kerr, ele e eu deveríamos ser festejados com uma parada, cheia de papel picado, mas não insistiremos nisso.
Abriu os lábios, que estavam muito apertados, para dizer:
— Você já tentou isso antes.
— Sim. Por isso é que pergunto se temos que passar por tudo de novo! — Olhei para meu pulso. — O sr. Wolfe vai descer dentro de vinte minutos. Fique, se acha que pode assustá-lo mais do que a mim.
Começou a bater com a ponta do seu pesado sapato no chão, enquanto olhava a cadeira vazia de Wolfe. Isso não era muito satisfatório, pois no tapete grosso não fazia barulho como no linóleo do seu escritório. Olhava a cadeira e não para mim, pois não era a minha atitude o que o preocupava. Já tinha a resposta a uma pergunta — qual seria a atitude de Wolfe — e agora a pergunta era: por quê? Será que tínhamos alguma coisa e, se tivéssemos, qual era?
— Ocorreu-me que podíamos fazer um trato — disse eu. — Teria de receber a aprovação do sr. Wolfe, mas tenho certeza de que aprovaria. Prestaremos um depoimento, cuja última sentença dirá que inclui tudo que sabemos, e tudo o que Orrie disse e fez de que tenhamos conhecimento, sobre qualquer assunto que se relacione com o assassinato, e trocaremos tudo só para dar uma olhadela em seu arquivo. O arquivo todo. Seria um achado para nós dois. Você saberia exatamente o que temos e nós saberíamos por que você se arrisca a conservá-lo preso sem fiança. Não acha justo?
— Ora, bolas — disse Cramer. Levantou-se: — Vim por uma razão, para dizer a Wolfe uma coisa, mas você pode dizer a ele por mim. Diga-lhe que é uma pena que eu não possa lhe mostrar o diário de Isabel Kerr. Se ele o lesse, mudaria de idéia quanto a se intrometer no caso. E aqui vai um aviso para você. Quando decidir matar alguém, assegure-se primeiro de que ele não mantém um diário. Ou ela. — Virou-se e saiu do escritório.
Fiquei onde estava. Seria uma pena estragar uma deixa de saída tão boa. Quando ouvi a porta de frente abrir e fechar, fui até o corredor dar uma olhada, para ter certeza de que ele estava do lado de fora quando a fechou, depois voltei ao escritório e pensei numa coisa: deveria deixar Jill Hardy na poltrona vermelha quando Wolfe descesse? Se eu a deixasse na sala da frente e dissesse o que acontecera, era quase certo que se recusaria a vê-la, e era melhor que a visse. Dentro de três minutos seriam onze horas. Decidi trazê-la, por isso abri a porta e olhei para um quarto vazio. Ela saíra sem uma deixa, pela porta que dá para o corredor. Fui dar uma olhada no cabide: seu casaco sumira. O interfone chamou no escritório e fui atender. Era Wolfe, na estufa, querendo saber se ela já se fora. Respondi que sim, e em um minuto ouvi o barulho do elevador descendo. Entrou, trazendo na mão as orquídeas diárias para a sua mesa — um cacho de Odontoglossum hellemense que, de acordo com os registros que faço, é um enxerto de harvengtense e crispum. Para quem gosta de orquídeas, esta é uma maravilha, mas no momento não me interessavam. Sentei-me, em ponto de ebulição, enquanto ele as colocava no vaso, acomodava-se na poltrona e olhava a correspondência. Quando terminou de ler a carta de um homem do norte que envia carne de veado, o único item importante, eu disse, em voz um tanto alta:
— A srta. Kerr mantinha um diário.
Ele colocou a carta na mesa, levantou os olhos, fitou-me durante cerca de meio minuto e então perguntou:
— Como conseguiu tirar isso dele?
— Dele quem?
— Do sr. Cramer, naturalmente.
Fitei-o, incrédulo:
— Para ver a rua de lá de cima você tem que pôr a cabeça bem de fora.
— Nunca fiz isso. Mas é claro que ele viria, logo, e quem mais poderia fornecer tal informação? Como arrancou isso dele?
— Está bem, vou fazer o meu relatório.
E foi o que fiz, começando com Jill Hardy. Às vezes, ao relatar uma informação, é essencial dizer palavra por palavra; porém, mesmo quando não é, faço dessa forma, pois treinei para isso e acho mais fácil. Como de costume, encostou-se na poltrona com os olhos fechados. Fui em frente, de Jill Hardy até Cramer, já que não houvera interrupção, apenas uma mudança de elenco. Quando terminei, abriu um pouco os olhos, fechou-os de novo e resmungou:
— Nada.
— Certo — concordei. — Quanto a ela, se é uma mentirosa, é das grandes. Orrie tem certeza de que ela não sabe nada sobre Isabel Kerr; se sabe, vamos ter de investigar muito para prová-lo. Se ela não sabe, podemos riscar isso por completo e não serve para nada. Quanto a Cramer, ele provavelmente tem um diário, mas, e daí? Sabíamos que ele tinha qualquer coisa importante, e duvido que o diário diga no fim: "Ele está pegando o cinzeiro e vai me acertar com ele", que é o importante. Talvez Cramer precisasse ter um diário para lhe mostrar que seria ótimo, para Orrie, se ela morresse; mas nós não, pois já sabíamos disso. O que precisamos é de outra pessoa para quem a morte dela tenha sido de encomenda. De certo modo, é bom para Jill Hardy, mas duvido que ela soubesse. Como o senhor diz, nada.
Ele abriu os olhos:
— Você acha que Orrie a matou.
— Não. Examinei sob todos os ângulos o que Saul disse, e concordo. No mínimo, existe uma dúvida razoável, o que já basta para um júri, por isso basta para mim. De qualquer modo, Cramer conhece nossa posição. Se descobrirmos que foi Orrie, nunca o perdoarei. Tiro a garota dele. Ela já pensa que sou parecido com ele.
— E agora? Quem? — Wolfe rosnou.
— Creio que a irmã. Ou Avery Ballou.
— Temos que conversar a respeito do sr. Ballou. A irmã primeiro. — Esticou o corpo e apanhou o volume de Convite para um inquérito policial.
CAPÍTULO V
HAVIA UM BARRY FLEMING no catálogo telefônico do Bronx. Endereço: avenida Humboldt, 2.938. É claro que não disquei o número. De acordo com o Times, ela não falava com repórteres, e sem dúvida pensaria que eu tentava enganá-la. Consultei o guia de ruas do Bronx a fim de localizar a avenida Humboldt e aí ri de mim mesmo, quando minha mão automaticamente se dirigiu a um bolso para apanhar o chaveiro. Por causa de uma coisa deplorável que acontecera há alguns anos, prometera a mim mesmo nunca ir a um encontro que tivesse alguma ligação com assassinato sem levar um revólver, e as regras que você faz consigo mesmo são as mais difíceis de quebrar, mas há um limite. Fratricídio não é impossível de acontecer, mas era exagero imaginar que Stella Fleming poderia ter matado sua irmã e, portanto, estaria pronta para atirar em qualquer pessoa que se aproximasse. Pelo menos era assim que pensava, até que tivesse uma oportunidade de vê-la. Tornei a colocar o chaveiro no bolso, disse a Wolfe que não me esperasse para o almoço, e saí. Ao descer as escadas da varanda, levantei a gola do casaco, embora o trajeto até a garage, depois de dobrar a esquina, fosse curto. O gelo estava se prolongando através do mês de janeiro, e o vento piorava ainda mais as coisas.
Já eram 12:20h quando deixei o Heron num estacionamento e caminhei um quarteirão e meio até o número 2.938. Era um prédio comum, de tijolo, de dez andares, que se encontra em todos os cinco distritos, mas principalmente no Bronx. Talvez não fosse o Barry Fleming que eu procurava, mas isso logo se esclareceria. O chão de cerâmica do corredor não tinha tapete, e sim uma passadeira de borracha. Não havia porteiro, mas o ascensorista estava lá, um sujeito pálido, com um uniforme que há muito não via tintureiro, encostado na parede. Adiantei-me e disse:
— Fleming, por favor.
— Não há ninguém lá — respondeu abanando a cabeça.
— Eu sei que a sra. Fleming não está recebendo pessoas estranhas, mas não sou jornalista. O assunto que quero discutir com ela é pessoal, e tenho certeza de que quererá falar comigo.
No seu caso, o rosto era o espelho da mente. Não ficara impressionado nem iria ficar. A questão era só de preço. Tirei as luvas, apanhei a carteira e retirei um cartão e da carteira de notas tirei cinco dólares.
— Estou falando sério. Quer ver a minha licença? Leve-me lá em cima e, se ela não me deixar entrar, lhe dou o dobro.
Apanhou o cartão, examinou-o, pegou o dinheiro e enfiou no bolso, dizendo:
— Estou falando sério, não há ninguém em casa. Ela saiu mais ou menos às dez.
O que ele merecia era um bom soco, mas não seria a coisa certa naquele momento. Perguntei apenas:
— Sabe onde ela foi?
Abanou a cabeça:
— Não faço a mínima idéia.
— Sabe quando volta?
— Não, não sei.
Dei-lhe um sorriso amável:
— Esta informação não vale cinqüenta centavos, quanto mais cinco dólares. — Tomei a apanhar a carteira de dinheiro e retirei uma nota de dez dólares: — Qual é o andar?
— Sétimo. Sete D.
— Preciso vê-la, e ela precisa me ver. Leve-me até lá e ficarei esperando. Você já está com o meu cartão. Se quiser, apanhe uma almofada de carimbo e tire minhas impressões digitais.
Aí ele me surpreendeu. Em alguma parte do corpo ele devia ter um coração, pois disse:
— Pode ser que ela fique fora o dia inteiro e lá não tem onde sentar.
— Sempre sobra o chão.
Ele me olhou nos olhos pela primeira vez:
— Nada de bobagens, cara. As fechaduras são muito boas.
— Não sei nada sobre fechaduras. Até ela chegar, não há nada lá que me interesse.
Dirigi-me ao elevador e apertei as pontas de todos os dez dedos na moldura de metal, na altura dos olhos:
— Pronto, agora estou fichado.
Ofereci-lhe novamente os dez dólares. Apanhou a nota, seguiu-me até o elevador, fechou a porta e operou a manivela.
Há muitas coisas interessantes a serem feitas enquanto se espera num corredor de um prédio de apartamentos durante quatro horas e vinte minutos. Pode-se contar as manchas e decidir qual é o lado que tem mais, se o direito ou o esquerdo. Pode-se tentar diferenciar os cheiros e decidir, no geral, quantos odores diferentes há. Pode-se ouvir os gemidos da porta do 7B, imaginar se a criança é menino ou menina, qual a sua idade, e o que você faria se estivesse lá dentro. Quando as pessoas chegam ou saem, pode-se encará-las e ver quais as que olham para trás e quais as que fingem que não o viram. Quando uma senhora robusta, de ombros largos, vira-se, após enfiar a chave na fechadura do 7C e pergunta: "Está à espera de alguém?", você pode responder clara e delicadamente: "Estou", e notar a sua reação. No conjunto, o tempo foi bem utilizado. Só fiquei com pena de não ter trazido um tablete de chocolate, cinco ou seis bananas e um litro de leite.
Devo admitir que olhava com freqüência para o relógio. Quando a porta do elevador se abriu e dela saiu um homem, eram 4:50h. Ao caminhar pelo corredor, presumi que iria para o apartamento E ou F, mas parou à minha frente e me disse:
— Soube que está esperando a minha mulher.
Bem, é claro que sim:
— Sim, senhor, isto é, se o senhor é Barry Fleming.
— Ela não quer vê-lo. Está perdendo o seu tempo. Ela não quer falar com ninguém.
Acenei que sim:
— Eu sei, mas creio que falará comigo, se me deixar explicar o que desejo.
Coloquei a mão no bolso para apanhar meu cartão, mas antes de tirá-lo ele disse:
— Sei quem você é. Isto é, vi o cartão que deu para o cabineiro do elevador. Você é Archie Goodwin?
— Sou eu. Em pessoa. Olhe, sr. Fleming, por que não deixa ela decidir? Quando chegar, dir-lhe-ei sobre o que desejo lhe falar, e ela decidirá. Não insistirei, só vou lhe perguntar.
— Sobre o que quer lhe falar?
Preferia dizer a ela, mas marido é marido.
— Sobre um homem — disse eu. — Seu nome é Orrie Cather, e a polícia pensa que ele matou Isabel Kerr. Ele trabalha às vezes para Nero Wolfe, e o sr. Wolfe e eu o conhecemos muito bem, e acreditamos não ser ele o culpado. O senhor sabe que trabalho para Nero Wolfe?
— Naturalmente.
— Estamos investigando o caso e gostaria muito de perguntar à sua mulher se ela poderia fornecer qualquer informação que ajudasse. Sem dúvida ela quer que apanhem o assassino de sua irmã, e o punam, mas se Orrie Cather for inocente, ela não gostaria que fosse condenado. O senhor não gostaria, não é?
— É claro que não. — Estava apertando os lábios e olhando para mim, franzindo a testa. Era de minha altura, de ombros e quadris estreitos, um rosto comprido com maçãs salientes. Continuou: — Não gostaria que um homem inocente fosse punido por qualquer coisa, certamente não por assassinato. Mas duvido muito que minha mulher possa lhe dar alguma informação útil. Ela não está... não aceitou bem o que aconteceu.
— É claro. Acredite-me, não quero tornar as coisas mais difíceis para ela.
— Bem... onde está o seu casaco?
— Ali. — Apontei para ele, no chão, encostado à parede.
— Apanhe-o. Não adianta ficar esperando aqui fora.
Com o chaveiro na mão, foi até a porta do 7D. Ao voltar com o casaco, estava com a porta aberta e eu entrei. O vestíbulo era do tamanho de uma mesa de bilhar. Ele pendurou o meu casaco no armário antes de tirar o seu, e quando pendurava o dele a porta se abriu e uma mulher entrou. Ao me ver, encarou-me por um segundo e em seguida virou-se para ele:
— Barry! Você o deixou entrar?
Pelo seu tom de voz, vi que tivera sorte de ele ter chegado antes.
— Vamos, querida — colocou um braço ao redor de seus ombros e beijou-lhe a face. — Ele só quer umas informações, caso tenhamos alguma. Pensa que...
— Não temos informações para ninguém! E você sabe disso!
— Mas a senhora deve ter uma preferência, sra. Fleming — falei então. — Se um homem inocente for condenado pelo assassinato de sua irmã, o problema é que o culpado fica livre. É isso o que a senhora quer?
Olhou para mim, de baixo para cima, pois tinha pouco mais de um metro e meio.
— Não é de sua conta o que eu quero — respondeu ela, e falava sério.
— Não — disse eu — mas é da sua conta. Não sou um repórter tentando conseguir uma manchete. Sou um detetive particular tentando conseguir alguns fatos. Já tenho alguns. Sei porque a senhora não quer ver os repórteres, porque não tem informação para ninguém. Porque a sua irmã era uma amásia e a senhora...
— Minha irmã era o quê?
— A, M, Á, S, I, A, amásia. Gosto mais dessa palavra do que concubina ou amante. Eu não...
Precisei parar, a fim de proteger o meu rosto. Quando uma mulher voa em cima de você para unhá-lo, a sua reação depende da mulher. Se ela for mesmo feroz, talvez você tenha até de bater, mas com Stella Fleming, de alcance curto, bastava mantê-la longe com o braço esticado e a palma da mão sobre a sua boca. Seu marido segurou-a por trás, pelos ombros, puxou-a e disse:
— É melhor ir embora.
Eu concordava com ele, mas ainda bem que Wolfe não podia ler meus pensamentos em onda curta, pois ele pensa que eu entendo as mulheres. Ela virou-se e começou a lhe bater no peito com os punhos, chiando:
— Não quero que ele vá embora. — E aí, calmamente, sem pressa, começou a tirar o casaco. Quando ele o segurou, ela me disse: — Entre, por favor — muito delicadamente, e tomou a direção da sala. Ele, após fechar a porta do armário, fez um gesto para que eu a seguisse, e eu a segui.
Acendera as luzes e sentara-se num sofá, roendo as unhas. Estivera ocupado demais para ver realmente como era e, ao cruzar para me sentar numa cadeira, vi que não se parecia com a irmã, pois tinha cabelos e olhos castanhos e um rosto redondo. Ao me aproximar, perguntou:
— Por que disse isso?
— Para dar impacto. — Sentei-me. — Tinha de fazer isso. Ou então...
— O que eu quis dizer foi, por que mentiu assim sobre a minha irmã?
Abanei a cabeça:
— Comigo isso é perda de tempo, sra. Fleming. Ambos sabemos que não é mentira, portanto não falemos mais nisso. Não é importante, pelo menos para mim. Eu só disse isso para...
— O senhor conhecia minha irmã?
— Não. Até ontem, nunca tinha ouvido falar nela.
— Então como pode saber...
Dei-lhe mais três segundos, mas ela deixou a frase em suspenso. Fazendo um gesto com a mão, respondi:
— É óbvio. Uma corista abandona...
— Ela era atriz.
— Está bem. Uma atriz abandona o teatro, aluga um apartamento de trezentos dólares, não tem emprego, come bem, veste-se bem, tem um carro, usa um perfume de trinta dólares. Quem não saberia? Quem não sabe? Isso não tem importância, não agora. O que...
— Para mim, é. É a coisa mais importante do mundo.
— Ora, querida — disse Fleming. Sentara-se no sofá ao seu lado.
— Bem, se é importante para a senhora, é sobre isso que quer falar. Vá em frente.
— Ela tinha 28 anos. Tenho 31. Só tinha 25 anos quando... parou de trabalhar. Quando nossa mãe morreu, ela tinha seis anos e eu nove, e quando nosso pai morreu ela tinha doze e eu quinze. É por isso que é tão importante.
— Com certeza. — concordei.
— O senhor não é repórter. William me disse o seu nome, mas não me lembro.
— William é o ascensorista — disse Fleming.
— Obrigado — disse para ele. Para ela: — Meu nome é Archie Goodwin. Sou detetive particular. Trabalho para Nero Wolfe e vim...
— O senhor é um detetive?
— Sim.
— Então o senhor sabe muita coisa. O senhor falou que não gostaria que o assassino de minha irmã não fosse condenado, e não, eu não gostaria, mas se ele for preso e houver um julgamento, ninguém vai falar sobre a minha irmã o que o senhor falou. Se alguém dissesse isso no tribunal, sairia nos jornais. Se alguém vai dizer isso, não deve haver julgamento. Mesmo que ele saia impune. Por isso o senhor não sabia o que eu queria.
Embora por motivos diferentes, ela era a segunda mulher no mesmo dia que não queria um julgamento.
— Agora sei — respondi — e se esse é seu ponto de vista não discuto. Até concordo, pelo menos em parte. A senhora não quer um julgamento, mesmo que apanhem o homem certo. O que eu não quero é que julguem o homem errado, e é isso o que vai acontecer, a não ser que alguém o impeça. É claro que leu os jornais.
— Li todos.
— Certo. Então sabe que prenderam um homem chamado Orrie Cather e que ele já trabalhou para Nero Wolfe. Já viu ou ouviu esse nome antes? Orrie Cather?
— Não.
— Tem certeza? Sua irmã nem ao menos o mencionou?
— Não. Tenho certeza que não.
— O sr. Wolfe e eu o conhecemos bem. Não acreditamos que matou a sua irmã. Não digo que saibamos tudo sobre ele. Pode ser que matasse, pode ser que tenha uns... ahn... contatos que não conhecemos. Pode ser até que ele fosse o sujeito que estava pagando o aluguel do apartamento de sua irmã, e as outras... A senhora está abanando a cabeça.
— Ela não abanou a cabeça — disse Fleming.
— Desculpe, pensei que estivesse. De qualquer forma, pagando o aluguel ou não, não acreditamos que ele a tenha matado, e é por isso que o sr. Wolfe mandou-me aqui para vê-la. Se ele for a julgamento, a senhora sabe o que acontecerá. Tudo que descobriram sobre sua irmã virá à baila. Como a senhora sabe, se houver uma dúvida razoável, o júri deve absolver um homem. Queremos estabelecer uma dúvida razoável para a polícia, a fim de que não vá a julgamento por júri, e pensamos que poderia ajudar. A senhora via sua irmã freqüentemente, não?
— O senhor é muito esperto — disse Fleming. — Mas devo-lhe lembrar que, para minha mulher, o julgamento do homem certo será tão ruim como o do homem errado. Não concordo com ela, absolutamente, mas Isabel era irmã dela.
— Não — respondi. — Não estou sendo esperto. Só precisamos de uma dúvida razoável. Por exemplo, se provarmos à polícia que há outro homem, ou mulher que tinha um bom motivo? Ou se descobrirem que Isabel disse a alguma pessoa... podia ser à sua mulher... que alguém ameaçara matá-la? Se e se e se. Para o objetivo que o sr. Wolfe e eu pretendemos, não precisa ser um motivo suficientemente forte para acusá-lo e julgá-lo, apenas a dúvida. Mas mesmo que o prendam, para sua mulher o seu julgamento talvez não seja tão mal como o de Orrie Cather com certeza será. Sabemos algo sobre o que suspeitam de Orrie.
— O que é?
— Não posso lhe contar. É confidencial.
Ele me fitava, apertando os olhos:
— Sabe, sr. Goodwin, sou professor de matemática e gosto de problemas. Como isto nos atinge de perto, embora atinja mais à minha mulher do que a mim, não é apenas um problema, mas mesmo assim a mente está habituada. — Pôs a mão no joelho da mulher: — Espero que não se importe, querida, admito que gostaria de ajudar neste problema. Mas não o farei. Sei como se sente. Faça exatamente o que tem vontade.
— Bastante justo — respondi. E virando-me para ela: — Via sua irmã freqüentemente, não?
— Sim — respondeu, colocando a sua mão sobre a dele.
— Uma ou duas vezes por semana?
— Sim. Quase sempre jantávamos juntas no sábado e íamos ao teatro ou ao cinema. Meu marido joga xadrez nos sábados à noite.
— De acordo com os jornais, a senhora foi lá anteontem, tocou a campainha, não obteve resposta, e o zelador abriu-lhe a porta. É verdade?
— Sim.
— Esse momento, quando entrou no quarto, é importante. Não quero causar-lhe impacto de novo, sra. Fleming, juro que não, mas é importante. Qual foi a primeira coisa em que pensou, quando viu o cadáver de sua irmã no chão?
— Eu não... não foi um pensamento.
— Primeiro foi o choque, é claro. Mas quando a senhora viu o... quando verificou que ela fora assassinada, seria natural pensar ele a matou ou ela a matou, qualquer coisa assim. Por isso é importante; quase sempre a primeira idéia é a correta. Quem era ele ou ela?
— Não havia nenhum ele ou ela. Não pensei em nada disso.
— Tem certeza? Numa hora dessas nossa mente divaga.
— Eu sei, mas não pensei numa coisa dessas naquela hora ou em qualquer outra, que ele ou ela a matou. Nem tentaria adivinhar quem a matou. Tudo o que sei é que não deve haver julgamento.
— Haverá um julgamento, o de Orrie Cather, a não ser que encontremos um modo de impedi-lo. Sua irmã alguma vez lhe mostrou seu diário?
Franziu a testa:
— Ela não tinha um diário.
— Tinha, sim. A polícia está com ele. Mas como...
— O que há nele?
— Não sei. Não o vi. Como...
— Ela não deveria ter feito isso. Isso torna as coisas piores. Ela não me disse. Devia estar naquela gaveta que sempre trazia trancada. Não tenho o direito de ficar com ele? Não posso fazer com que me entreguem o diário?
— Agora não. Mais tarde, pode. Se houver um julgamento, será uma evidência. É chamado de prova. Como a senhora nunca o viu, vamos para outra coisa. Parece um caso sem esperança, pois só conheço a senhora para me fornecer informações. Sem dúvida a pessoa certa para isso seria o homem que pagava o aluguel do apartamento, o carro, o perfume e todo o resto, mas não sei quem é ele. A senhora sabe?
— Não.
— Isso me surpreende. Pensei que soubesse. A senhora e sua irmã eram muito chegadas, não?
— Certamente.
— Então a senhora deve saber quem ele é. Como disse que não podia adivinhar quem a matou, não vou lhe perguntar isso, apenas quem a conhecia bem. É claro que contou à polícia.
— Não, não contei.
Levantei uma sobrancelha:
— A senhora se recusa a falar com eles também?
— Não, mas não pude lhes dizer muita coisa porque não sei. Era... — Parou, abanou a cabeça e virou-se para o marido: — Conte para ele, Barry
Ele apertou-lhe a mão:
— Pode-se dizer que Isabel vivia duas vidas. Uma delas era com minha mulher, sua irmã, e, um pouco mais afastada, comigo. A outra era com seu... bem, chamemos de seu círculo. Minha mulher e eu sabemos muito pouco sobre ele, mas acreditávamos que seus amigos provinham, na maioria, do mundo do teatro. Obviamente, devido às circunstâncias, minha mulher preferia não se juntar a eles.
— Não era o que eu preferia — corrigiu ela. — Assim é que era.
Isso ajudava muito, um círculo completo de amizades, mas era de se esperar.
— Está bem, a senhora não pode me fornecer nomes que não sabe. Não há ninguém, ninguém mesmo, que a senhora conhece e ela conhecia?
— Não.
— Dr. Gamm — disse Fleming.
— Oh, é claro — falou ela.
— Médico dela?
— Nosso também — Fleming concordou. — Um interno. Ele é, pode-se dizer, um amigo meu. Joga xadrez. Quando Isabel teve uma bronquite séria uns dois anos atrás, eu...
— Quase três anos — corrigiu ela.
— Foi? Eu o recomendei. É viúvo, com dois filhos. Convidamos ele e Isabel aqui para jogar bridge, umas duas ou três vezes, mas ela não jogava bem.
— Ela jogava pessimamente — disse Stella Fleming.
— Não tinha nenhum jeito com cartas — disse Fleming. — Seu nome é Theodore Gamm, com dois emes. Seu consultório fica na rua 78, em Manhattan.
Era de se presumir que ele estava ajudando a resolver o problema e apreciei muito isso; pelo menos, tinha um nome e endereço. Tirei meu caderno de bolso e anotei para mostrar que estava atento.
— Ele não vai poder contar nada — disse ela, perfeitamente calma, mas de repente se levantou, tremendo, os punhos cerrados, os olhos como brasa. — Ninguém pode! Não podem, não podem! Saia! Saia!
Fleming, também de pé, estava com o braço em seus ombros, mas ela não tomava conhecimento. Se eu tivesse ficado sentado, quieto, é provável que em alguns instantes tivesse se acalmado de novo, mas desde o café da manhã eu não havia comido nada. Acenei para Fleming, ele fez que sim também, e fui para a entrada, apanhar meu casaco e meu chapéu, e saí. Ao entrar no elevador, William me disse:
— Então entrou, hein?
— Graças a você, amigo, ao dizer aos dois que eu estava lá — respondi.
Na rua estava ainda mais frio, mas o carro pegou rapidamente, como devia, e fui para a via principal.
Pouco depois das 6:30h, ao entrar no escritório, Wolfe estava à escrivaninha, olhando carrancudo um documento de 5 cm de grossura, parte da transcrição do julgamento Rosenberg, que mandara buscar após ler os três primeiros capítulos de Convite para um inquérito policial. Minha mesa estava limpa, sem memorandos ou mensagens de chamados telefônicos. Arranquei uma página do meu caderno de bolso e a fiquei estudando, até que Wolfe pigarreou, momento em que me levantei e passei-lhe a folha.
— Pronto — disse eu. — O nome e o endereço do médico que tratou de Isabel Kerr quando teve bronquite há quase três anos.
— E...? — ele grunhiu.
— Vai achar mais interessante se eu contar os antecedentes. Passei uma hora com o sr. e a sra. Fleming. Quer agora ou depois do jantar?
Olhou o relógio. Trinta e cinco minutos para se comer uma fritada de anchova.
— É urgente?
— Não, que diabo.
— Então pode esperar. Saul telefonou duas vezes. Nada. Fred vai trabalhar com ele de manhã. Telefonei para o sr. Parker; ele veio depois do almoço e lhe descrevi a situação, tudo o que era relevante, exceto o nome de Avery Ballou. Telefonou depois. Viu Orrie e conseguiu que você o veja amanhã de manhã, às dez horas. Acha que é melhor.
— Orrie foi acusado? De homicídio?
— Não.
— Mas sem fiança?
— Sim. O sr. Parker não quer insistir. — Olhou de relance para a folha que eu lhe entregara: — O que é isso? Este homem a matou?
— Não, ele a curou. Tenho muito orgulho desse nome. Foi só o que consegui.
— Ora... — Largou a folha e continuou a ler a transcrição.
Não se pode falar de negócios à mesa, mas de assassinos e crime sim, e a conversa girou sobre o caso Rosenberg durante o jantar, desde a fritada de anchova, caçarola de perdiz sem azeitona no molho, musse de pepino e a sobremesa. Era uma discussão teórica, pois os Rosenberg morreram há muitos anos; mas os jovens príncipes morreram há cinco séculos e uma vez Wolfe levou uma semana investigando esse caso, e depois tirou a Utopia de More das prateleiras, pois achou que More incriminara Ricardo III.
Só parou quando estávamos de volta ao escritório, depois de beber seu café. Empurrou a bandeja para um lado e perguntou se tinha de ser verbatim. Respondi que sim e comecei. Quando lhe contei do acerto que fizera com William, apertou os lábios, não por objeção, mas apenas reagindo ao fato de que era dinheiro posto fora, pois não poderíamos cobrar de Orrie. Em seguida recostou-se e fechou os olhos, parou de reagir, como de costume, até eu terminar.
Então abriu os olhos e perguntou:
— Você não almoçou? Não comeu nada?
Abanei a cabeça:
— Se tivesse saído, talvez custasse cem dólares para subir de novo. William é um sanguessuga.
Esticou o corpo:
— Nunca faça isso.
— Para mim é bom. Estava com 250 gramas acima de meu peso. Você comenta ou eu?
— Você.
— Primeiro, Stella matou sua irmã? — falei, depois de meio minuto. — Aposto dois contra um que não. Ela...
— Só dois?
— É o máximo. A coisa mais importante do mundo, disse ela. Se ainda é tão importante com ela morta, como era quando estava viva? Descontrolou-se duas vezes na minha frente; simplesmente não consegue suportar isso. Se foi lá sábado de manhã e... preciso explicar?
— Não. Por que dois contra um? Por que não igual ou menos?
— Porque, segundo se sabe, uma mulher só mata a irmã se a odeia ou se tem medo dela. Não é o caso de Stella. Ela a amava e queria... bem, salvá-la. Digamos três contra um. De qualquer modo, mesmo que tenha sido ela, é impossível. Tente provar. Mesmo que conseguíssemos o bastante para nos satisfazer, Cramer e o promotor público nunca acreditariam, quanto mais o júri. Por isso esqueça essa possibilidade. Quanto a ele, não aposto nada. Podia ter um motivo, como qualquer pessoa, mas no momento o único visível é que ele a matou para que sua mulher parasse de se preocupar com ela, o que é inverossímil. Mas por que ele me deixou entrar ?
— Para que ela não o encontrasse no corredor.
— Talvez, mas podia ter-me posto para fora e chamado a polícia, se precisasse. É só um comentário; talvez fosse porque ele gosta de problemas, ou talvez pensasse ser bom para ela. É mais do que um comentário, é uma conclusão: se eles estão por fora, não têm nenhuma idéia de quem estava por dentro. Ela disse que nem tentaria adivinhar, e eu acredito, pois não sabe disfarçar. Quando joguei um verde, dizendo que talvez fosse Orrie que pagasse o aluguel, não foi apenas a expressão do rosto que mudou, chegou até a abanar a cabeça. Mais tarde, disse que não sabia quem era, mas ela sabe. Mas, que diabo, nós também sabemos.
— Se Orrie contou tudo.
— Contou, sim. Ele queria contar tudo o que sabia. Mas guardei o melhor para o fim: a outra vida de Isabel. O círculo.
— Sim — ele resmungou.
— Sim o quê?
— Isso amplia a investigação. Era de se esperar, logo que você soube que suas relações com a irmã eram restritas. Uma mulher que come por tolerância, sem um contrato, naturalmente prefere não comer sozinha. Você está rindo?
— Sim. A maior parte dos homens não relacionaria isso com comida. Está bem, então temos um círculo... como era de se esperar. Dezenas, talvez centenas. Deus do céu! Sugiro mais uma vez que consideremos Avery Ballou.
— Já o estou levando em consideração. Mas queria antes... não importa. Discutiremos isso pela manhã, depois de você ter visto Orrie.
Apanhou a transcrição.
CAPÍTULO VI
QUANDO SE PROCURA um homem sob custódia em Manhattan, o lugar onde está depende parcialmente do porquê ele está lá. Pode ser uma delegacia de polícia, uma sala na prisão da cidade, uma sala no escritório do promotor público ou a gaiola. Não sei quantos policiais chamam de 'gaiola', mas o sargento Purley Stebbins diz assim. É uma sala nua e malcheirosa, com cerca de dez metros de comprimento, dividida ao meio por uma grade de aço, que vai do centro de um balcão largo, de madeira, até o teto, com cerca de uma dúzia de cadeiras de madeira de cada lado, o mesmo tipo de cadeiras para visitas e visitados. Democracia.
Sentado numa das cadeiras do lado dos visitantes, às 10:10h da manhã de terça-feira, eu não estava animado. Pensara que iria ver Orrie numa sala no escritório do promotor público, até Parker me telefonar, dizendo que seria na Prisão Municipal. Pensara, então, que seria numa sala. Mas me levaram até a gaiola, e lá estava eu, com mais quatro visitantes, sendo que o mais próximo, uma mulher gorda, de meia idade, de olhos vermelhos, se encontrava apenas a dois metros de distância. Gostaria de acreditar que estavam apenas mostrando o que pensavam de Nero Wolfe e Archie Goodwin, mas não pude. Haviam decidido que Orrie Cather era um assassino, embora ainda não tivessem proferido a acusação, e não estavam se descuidando. Tinha de tentar fazê-los engolir essa idéia.
Uma porta se abriu na parte dos fundos, do outro lado do balcão com a grade, e Orrie entrou, algemado, com um tira bem atrás. O tira conduziu-o a uma cadeira à minha frente, ficou olhando até que ele se sentasse, e disse: "Quinze minutos", e voltou para a parede, onde outro tira esperava em pé. Os meus olhos e os de Orrie se encontraram através da grade, da melhor forma possível. Suas pálpebras estavam inchadas. Uma vez ele me dissera que levava dez minutos, toda manhã, só escovando o cabelo, mas naquela manhã não escovara.
— Talvez tenha uma escuta — eu disse.
— Creio que não — respondeu. Suas mãos algemadas estavam no balcão. — Arriscado demais. O protesto seria muito grande.
— Bem, tudo que podemos fazer é falar baixo. Parker já lhe disse que o sr. Wolfe, Saul, Fred e eu decidimos que você não a matou e estamos investigando.
— Sim, sei que ele teria de fazer isso. Não sou seu Archie Goodwin, mas, mesmo sendo eu, teria de fazer isso.
— Prefiro me considerar como o 'meu' Archie Goodwin, mas não falemos disso agora. Tenho algumas perguntas a fazer, mas Parker disse que você queria me ver. Então?
— Quero que me faça um favor, Archie, um grande favor. Quero que vá ver Jill Hardy e diga a ela...
— Já falei com ela. Ontem de manhã foi ao escritório, não interrompa, e tivemos uma conversinha. Não sei o que você lhe disse sobre Isabel Kerr, por isso eu...
— Nunca lhe disse nada sobre Isabel Kerr. Ela não sabia que havia uma Isabel Kerr. Raios, o que você lhe contou?
— A mesma coisa que você: nada. Naturalmente, é esse o favor que você ia pedir, e já está feito. Disse a ela que os tiras pensavam que você a matara, e nós achávamos que não, e iríamos investigar, e que nada sabíamos sobre Isabel Kerr. Agora eu tenho...
— Você é maravilhoso, Archie. Maravilhoso.
— Ponha isso por escrito e mandarei emoldurar. Tenho perguntas a fazer e não temos muito tempo. Você contou alguma coisa?
— Não. Estou mudo.
— Continue assim. Como sabe, Parker concorda. O que eles têm? Sabemos que estão com sua licença e outros objetos, já que você não os tem nem eu, as suas impressões digitais e o diário dela, mas isso é...
— O diário dela?
— Sim. Você não sabia que tinha um?
— Deus do céu, não.
— Tinha, e está com eles; pelo menos é o que Cramer diz. Mas não disse o que está escrito. Provavelmente você está nele, mas queremos sua opinião a respeito de outro assunto: será que ela colocaria o nome dele no diário? O nome que tive de arrancar de você?
— Oh... — Pensou um pouco no assunto. — Sei. Talvez isso seja um ponto a verificar. Não creio que ela fizesse isso. É claro que o diário estava escondido; mesmo assim, tenho quase certeza de que não faria isso. É mais do que apenas uma opinião. Digo que não.
Olhei para o pulso. Ainda faltavam seis minutos.
— Agora a pergunta principal: quantas pessoas sabiam sobre você e ela?
— Ninguém.
— Bolas, você não pode ter certeza.
— Pelo que saiba, ninguém. Você já me ouviu esbravejar e falar, Archie, mas nunca me ouviu falar dela. Algumas vezes ela me assustava. Já tive mulheres apaixonadas por mim antes, mas ela era obcecada. Eu gostava dela, era boa, mas obcecada. Depois que começamos o nosso caso nunca estivemos juntos em outro lugar que não fosse o seu apartamento. Ela queria assim, e para mim era ótimo. Mas julguei-a de forma totalmente errônea. Contei-lhe que conhecera Jill, sabe como é, apenas que conhecera uma aeromoça; e então, como um idiota, achei que poderia acostumá-la com a idéia de que ela não poderia esperar ser a minha única garota, já que eu não era o seu único contato. Mas eu fiquei obcecado, pela primeira vez na minha vida. Por Jill. E ela... já lhe disse como aceitou isso. Era ela que tinha de se casar comigo, pelo amor de Deus. Disse-lhe que tudo o que eu ganhava era cerca de metade do que ela gastava naquele apartamento; respondia dizendo que um quarto com banheiro bastaria para nós, mesmo depois que o bebê chegasse. Esse tipo de besteira. Nem por um minuto acredito que houvesse um bebê, e mesmo se houvesse, de quem seria? Estou respondendo às suas perguntas. Não falei a ninguém a respeito dela e duvido que ela tenha contado a alguém sobre mim.
— Mas ela lhe falou sobre outras pessoas, não foi?
— Sobre algumas, sim. Você sabe, só fofoca, falou, sim.
— Qual deles a matou? Quem tinha motivos para matá-la?
— É natural que tenha pensado a esse respeito — assentiu. Se algum dia falou uma só coisa sobre alguém, que pudesse fornecer uma pista, não consigo me lembrar. Sei que só há uma única maneira de você me soltar, e Deus sabe que quero lhe dar palpites, mas juro que não posso. Claro, ela me contou sobre diversas pessoas, homens que tentavam cantá-la, mulheres de quem gostava e algumas de que não gostava, mas já pensei nisso mil vezes e não consigo pensar em nada. Sei que você precisa ter alguma pista para começar e, além de Jill, é sobre isso que eu desejava lhe falar. A mulher de quem mais gostava, e quem mais via, é uma cantora de cabaré chamada Julie Jaquette. Seu verdadeiro nome é Amy Jackson. Na semana retrasada estava no Ten Little Indians, e talvez ainda esteja lá. Talvez seja o melhor palpite. Conseguiu alguma coisa? Qualquer coisa?
— Não. Você chegou a conhecer a irmã dela, Stella Fleming?
— Não. Isabel falava a seu respeito. Dizia que, quando estivéssemos casados, não só ela estaria feliz, mas também sua irmã. Pensava que isso me entusiasmaria, fazer duas mulheres felizes ao mesmo tempo.
— Você deveria ter ficado contente. Ela alguma vez mencionou... — Parei, pois íamos ser interrompidos. O tira se aproximava. Tocou o ombro de Orrie, o que era desnecessário, e disse que o tempo terminara. Falei mais alto:
— Qual o seu nome?
Ele me olhou de cima para baixo:
— Meu nome?
— Sim. Seu nome.
— Meu nome é William Flanagan.
— Outro William. — Levantei-me. — Vou denunciá-lo por brutalidade. O sr. Cather está detido apenas como testemunha material. O senhor não precisava agarrá-lo pelo ombro.
Virei-me e caminhei em direção à porta, e o tira que me trouxera veio para meu lado, assim que peguei na maçaneta.
William Flanagan não interrompera nada importante; eu ia apenas perguntar se Isabel alguma vez mencionara o dr. Gamm.
No táxi, indo para casa, fiquei deprimido. Esperara conseguir alguma idéia de Orrie, pelo menos algum lampejo, mas ao virarmos na rua 35 para o oeste, verifiquei que estava pensando na aparência dele, e nas coisas que falara, procurando alguma pista, o que era tolice, pois estava definitivamente fora de suspeita. O caso é que só se consegue tirar alguma coisa do pensamento colocando outra no seu lugar. A idéia de que Orrie poderia ter acertado Isabel Kerr com aquele cinzeiro entrara na minha cabeça assim que vira seu crânio afundado e, não importa o que eu fizesse, ficaria lá até que tivesse X ou Y como substituto de Orrie. Depois de três dias e noites, ainda não havia um X ou Y que valesse a pena. Mesmo assim, dizem vocês, eu não deveria considerá-lo culpado já que o havíamos inocentado; têm toda a razão, mas vocês não sabem de muita coisa.
A fim de demonstrar como me sentia, ao entrar no escritório não abri a gaveta de cima do lado esquerdo para apanhar o bloco onde lanço as despesas semanais. Por isso teria de pagar a despesa do táxi, três dólares e 75 centavos. Wolfe dissera que assumiria toda a responsabilidade, mas até termos alguma coisa positiva ele nada poderia assumir, e não é só ele que tem amor-próprio. Como já eram onze horas e alguns minutos, acabara de descer da estufa e examinava a correspondência. Quando descobriu que nada havia de interessante, nem cheques nem listas de colecionadores de orquídeas, empurrou a pilha para um lado e deu-me bom-dia. Respondi que nada havia de bom nele, e, para provar, fiz-lhe um relatório palavra por palavra de minha conversa com Orrie, terminando com o comentário de que era melhor ele interrogar o próximo suspeito, já que eu não conseguira nada com as três pessoas com quem conversara, Jill Hardy e os Fleming.
— De qualquer forma — eu disse — o culpado é um homem. Admito que, para você, seria demais entrevistar Julie Jaquette, mas ela pode esperar até que você tenha falado com Avery Ballou.
Ele franziu a testa:
— E o dr. Gamm?
Franzi a testa também:
— Você não pode adiar isso para sempre. Como sabe, concordo com você que alguns casos, como provas para divórcio, são muito sórdidos. Mas qualquer trabalho é sórdido, se o ponto principal for quem dormiu ou está dormindo com quem. Embora seja verdade que Ballou provavelmente não pagava o aluguel para lhe ler poesias, e que se deve presumir que o sexo era o fator preponderante, esse não é o ponto principal e você pode se esquecer dele. Você pode fingir que ele a matou porque ela o ironizou quando ele disse uma palavra errada.
Os lábios dele estavam apertados. Respirou fundo três vezes:
— Muito bem. Traga-o aqui.
— Está certo, mas não sei quando nem como. Dei uma verificada nele ontem à noite. Não é apenas presidente da Federal Holding Corporation, é também diretor de outras nove grandes companhias. Possui uma casa na rua 67, uma em Rhinebeck e outra em Palm Beach. Tem 56 anos, um filho e duas filhas, todos casados. Deveria telefonar ao banco para saber quanto possui em conta, e não queremos anunciar o fato de que está curioso a seu respeito, mas é...
— Eu disse para trazê-lo aqui.
— Eu ouvi. Estou explicando que não seria aconselhável dizer à recepcionista, em seu escritório, e à pessoa subalterna a quem ela me indicasse, que um detetive particular, chamado Nero Wolfe, quer consultá-lo sobre um assunto confidencial demais para qualquer outra pessoa ouvir. Se eu telefonar, vai ser ainda pior. Portanto, preciso bolar alguma coisa e Jullie Jaquette teria de esperar.
— Saul disse alguma coisa? — perguntou Wolfe, com um grunhido.
— Telefonou às nove horas. Fred estava com ele, investigando. Vai telefonar à uma hora.
— Ora, não se pode colocar um prodígio num serviço de rotina. Tire ele disso e diga-lhe que procure a srta. Jaquette. Dela ele conseguirá alguns nomes e então Fred poderá ajudá-lo.
Esticou-se para apanhar uma carta:
— Apanhe seu caderno de notas. A carta daquele imbecil de Paris tem de ser respondida.
CAPÍTULO VII
NAQUELA TARDE, às quatro horas, eu me encontrava de pé num corredor de mármore de um conglomerado financeiro de quarenta andares em Wall Street, esperando em frente ao elevador que marcava '32.° ao 40.°'. Já estava preparado. Trazia na mente uma imagem de Avery Ballou, que vira num número atrasado da revista Fortune, na Biblioteca Pública de Nova Iorque, e no bolso um cartão. Era igual ao que dera a William, o ascensorista, com meu nome no meio e o nome, endereço e telefone de Nero Wolfe em letras menores no canto inferior, porém eu juntara mais alguma coisa. Embaixo do meu nome, batera à máquina: "Havia um diário no quarto cor-de-rosa, e a polícia está com ele." Com isso, o espaço em branco estava preenchido.
Talvez estivesse exagerando. Era possível que a mulher e a família de Ballou soubessem como ele passava algumas noites, sem falar nos amigos e alguns funcionários da empresa. Mas era provável que não soubessem. No artigo da revista alguns adjetivos a seu respeito eram 'astuto', 'arredio', 'conservador' e 'escrupuloso'. Não engulo todos os adjetivos que leio, mas se só a metade deles estivesse certa ainda assim seria um assunto muito delicado. Por isso esperei cem minutos no corredor de baixo, em vez de subir ao 34.° andar. De qualquer maneira, era melhor do que o corredor da avenida Humboldt, 2.938, especialmente depois das cinco horas, quando todos os elevadores despejavam um bando de franguinhas, uma visão muito agradável. Sei que as frangas que põem ovos não formam bandos, mas se usassem elevador em vez de asas teriam de se reunir assim.
Às 5:38h olhei para o meu relógio, e dois minutos depois Avery Ballou apareceu. Um dos que desceram com ele no elevador continuou ao seu lado, conversando enquanto andavam. Seis passos atrás, lá segui eu, esperando que se separassem, e foi o que fizeram, na calçada. O outro homem foi em direção à Broadway e Ballou ficou parado. Aproximei-me, coloquei-me à sua frente e disse:
— Tenho a certeza de que isso o interessará, sr. Ballou. Pode ler com esta luz?
Durante um segundo, pensei que fosse me ignorar, e ele também pensou, mas olhou meu rosto, o rosto másculo e honesto que lançara mil cartões, apanhou-o, inclinou-o a fim de poder ler melhor e focalizou o olhar. Tive bastante tempo para analisá-lo. Seu capote cinza-escuro lhe custara trezentos, talvez quatrocentos dólares e o chapéu cinza-escuro uns quarenta dólares. Sua cabeça era do tamanho certo para o seu corpo grande e forte; o rosto, embora com algumas rugas, não tinha pelancas. Continuava sem pelancas quando acabou de ler o cartão, colocou-o no bolso e olhou para mim.
— Interessará a mim?
— É claro que aqui não é lugar para discutirmos isso. O melhor lugar é o escritório de Nero Wolfe. Ele sabe mais coisas sobre aquele quarto de dormir cor-de-rosa do que a polícia, e sobre o homem que a polícia detém, e sobre o senhor. A melhor hora seria agora. Isso é tudo o que tenho a lhe dizer, sou apenas um mensageiro. Mas o senhor deve admitir que foi muita consideração minha não ter ido ao 34.° andar e entregar este cartão para qualquer pessoa levar ao senhor.
Ele virou totalmente a cabeça — para ver se havia um policial por perto? Não. Um automóvel Rolls-Royce se aproximara e parara, e um motorista uniformizado saltava. Ballou virou-se para mim e perguntou:
— Onde é?
— Rua 35 Oeste, número nove-três-oito.
— Está de carro?
— Aqui, não.
— Se for comigo, ficará com a boca fechada.
— Certo. Já disse o que tinha a dizer.
Foi até ao Rolls, entrou e eu o segui. O motorista fechou a porta e se colocou atrás do volante. Quando começou a andar, Ballou lhe disse que faríamos uma parada e deu o endereço. Ao pararmos num sinal na esquina, pensei que era a primeira vez que eu entregava um suspeito de assassinato na velha casa de tijolos no seu próprio Rolls-Royce. Como não conversamos, passei o resto da viagem concentrando-me no carro e concluí que era mais macio que o Heron, mas não arrancava tão rápido.
Chegamos lá depois das seis, de forma que Wolfe já teria descido. Embora não seja tão infantil como ele, a ponto de me exibir, gosto de fazer as coisas bem feitas. Por isso, após guardar o capote e o chapéu de Ballou e o meu, no corredor, entrei no escritório, anunciando:
— Sr. Ballou — e me afastei. Ele entrou, parou, olhou ao redor e perguntou:
— Esta sala tem microfones?
— Diabos — disse Wolfe — em breve será impossível conversar em qualquer lugar sobre qualquer coisa. Posso lhe dar a minha palavra de honra de que o que dissermos não será gravado, e dou-a agora, mas, embora saiba o que minha palavra vale, o senhor não sabe. — Apontou para um vaso: — O microfone poderia até estar ali, mas não está.
Ballou retirara o cartão do bolso do capote e estava com ele nas mãos. Mostrou-o:
— O que existe a respeito de um quarto cor-de-rosa e um diário?
Wolfe fez um gesto:
— É óbvio. É um truque para trazê-lo aqui. Mas não falso; verdadeiro. O quarto é cor-de-rosa, como sabe, já que passou muitas horas nele, e a srta. Kerr escrevia um diário, que está nas mãos da polícia.
Fez um gesto em direção da poltrona vermelha:
— Por favor, sente-se; é melhor quando os olhos ficam no mesmo nível.
— Nunca passei uma hora num dormitório cor-de-rosa.
— Então por que está aqui?
— Porque conheço a sua reputação. Sei que é capaz de manobras complicadas e está claro que pretende me envolver numa delas. Portanto, quero lhe dizer, não tente isso.
Wolfe abanou a cabeça:
— Não adianta, sr. Ballou. O caso não é se eu sei de sua relação, de mais de três anos, com a srta. Kerr, nem é a evidência que tenho em mãos para sustentar o que digo. O caso é, poderia se evitar trazer a público essa evidência e, se podemos, como? Isso é o que lhe interessa. Para mim, é: matou aquela mulher? Se matou, vou provar e o senhor está perdido. Se não, não desejo expor sua ligação com ela, e pode ser que nunca venha a público. Não estou sendo exagerado ao dizer que isso depende principalmente de sua franqueza comigo.
Ballou virou a cabeça quando passei por trás dele a fim de alcançar a minha escrivaninha. Olhou-me quando sentei, olhou para Wolfe, foi até a poltrona vermelha, sentou-se confortavelmente, sem pressa, e disse a Wolfe: — Estou ouvindo.
Wolfe girou a cadeira para ficar bem à sua frente.
— Algumas coisas que vou lhe dizer talvez sejam novidade, outras não. Sem dúvida o senhor sabe que um homem chamado Orrie Cather encontra-se detido como testemunha, mas a qualquer momento será acusado de homicídio. Tenho motivos suficientes para saber que é inocente. Há anos, em várias ocasiões, o sr. Cather vem trabalhando para mim e estou com uma obrigação. Para cumpri-la, devo violar uma confidência. Há cerca de um ano o sr. Cather tem relações íntimas com a srta. Kerr. Visitava-a freqüentemente no seu apartamento com o quarto cor-de-rosa, nas horas em que ela sabia que o senhor não iria, e lá ficaram traços de sua presença e da intimidade que desfrutavam, embora não visíveis para o senhor, mas descobertos por uma busca. A polícia os encontrou e é por isso que o pegaram. Deseja fazer algum comentário?
— Estou ouvindo. — Pelo rosto de Ballou, poder-se-ia pensar que estava ouvindo uma simples proposta.
— A srta. Kerr contou ao sr. Cather muitas coisas a seu respeito, seu provedor, mas naturalmente não lhe contou nada sobre ele, seu amante. Aparentemente ela o colocou no seu diário, mas não o senhor. Se estivesse, já teria recebido a visita de um policial ou do promotor público. Já recebeu?
— Estou ouvindo.
— Assim não serve. Preciso saber, e isto não lhe impõe obrigações. Alguém foi visitá-lo?
— Não.
— Recebeu qualquer indicação de que o seu nome talvez seja importante no assassinato de Isabel Kerr?
— Não.
— Então não está no diário. Só sei de uma coisa sobre o diário: a polícia o encontrou no apartamento da srta. Kerr. Um policial, um inspetor, contou ao sr. Goodwin que estava em poder deles. Nada sei sobre o seu conteúdo, exceto que não o menciona, e isto é sorte. É provável que o promotor público não acuse o sr. Cather de assassinato até descobrir quem pagava o apartamento; pelo menos é isto que a prudência determina. O senhor espera que ele nunca saiba, e para mim tanto faz.
Wolfe inclinou a cabeça:
— Esse é o ponto principal, sr. Ballou. Se o sr. Cather for a julgamento, o senhor será envolvido. Ele vai depor, vai falar e com toda a certeza dirá o seu nome, e aí será um inferno. Talvez haja uma chance, uma chance muito boa, de que se o próprio assassino for denunciado, julgado e condenado, seu nome nunca venha à baila; mas se o sr. Cather for julgado, seu nome se tornará público, com toda a certeza. Presumindo, como eu, que está inocente, não quero que seja julgado, e, agora que lhe descrevi a situação, o senhor também não. Temos um objetivo em comum, e espero que o senhor me ajude a consegui-lo: identificar o homem que matou Isabel Kerr. Se o senhor recusar, naturalmente pensarei que o senhor é o assassino; se não for, perderia muito tempo valioso, e isso seria uma pena. Será que expus tudo com clareza?
O rosto de Ballou parecia mais enrugado, mas não caído. Respirou fundo, passou a palma da mão na testa e disse:
— Posso beber alguma coisa?
Levantei-me, enquanto dizia que sim, certamente, diga o que quer, pois era mais rápido do que chamar Fritz. Respondeu gim com gelo e casca de limão, e dirigi-me para a cozinha. Fritz cortou tirinhas de casca de limão enquanto eu apanhava o gim, o copo e uma vasilha com gelo. Quando entrei de novo no escritório, a poltrona vermelha se encontrava vazia. Ballou estava perto do globo, girando-o com um dedo. Ao colocar a bandeja na mesinha, ele voltou, sentou-se, pôs uma pedra de gelo no copo, despejou o gim, torceu dois pedaços de casca de limão, colocou-os no copo e mexeu. Estava de volta na minha cadeira e ele ainda mexia a bebida. Finalmente apanhou o copo, tomou dois goles médios e colocou-o de novo na bandeja.
— Sim — disse — está tudo bem claro.
Wolfe abriu os olhos e grunhiu.
— É óbvio — disse Ballou — que estou numa enrascada. Não posso verificar nada do que o senhor disse. Desejava um drinque, tomo um logo que chego em casa, mas o que eu queria mesmo era ainda tempo para pensar. Decidi que talvez os fatos sejam como o senhor os relatou, em parte porque não vejo o que o senhor poderia ganhar em inventá-los. A única alternativa é levantar-me para ir embora, e isso eu não posso arriscar. Só tenho uma pergunta: quando a srta. Kerr... quando esse homem, Cather, soube de meu nome?
Wolfe virou-se para mim:
— Temos essa informação, Archie?
— Não, senhor. — Disse a Ballou: — Posso descobrir, se for importante.
— Poderia ter sido há quatro meses?
— Claro.
— Gostaria de saber. Talvez não seja importante agora, mas gostaria de saber. — Apanhou o copo e deu um gole. — Sobre o seu palpite de que talvez eu tenha matado a srta. Kerr, só posso dizer que não fui eu. Será que um homem na minha posição, desta importância... Não, isso não o impressionaria. Para mim, a idéia é simplesmente fantástica. O senhor disse esperar que eu o ajude a identificar o homem que a matou. Se não foi Cather, e se os fatos são como o senhor os descreve, é claro que quero, mas como?
— Primeiro o senhor — disse Wolfe. — Onde estava sábado pela manhã?
— Estava em casa a manhã toda, até as três horas. Tínhamos convidados para o almoço.
— Se necessário, poderia provar onde estava a cada meia hora, a partir de oito até o meio-dia?
— Creio que sim. Houve vários telefonemas.
— E sua esposa pode?
— E por que diabos ela precisaria?
Wolfe abanou a cabeça:
— Não comece com isso. O senhor manteve sua pose maravilhosamente bem; não estrague tudo agora. Não sou eu quem está querendo envolver sua mulher, são as circunstâncias. Ela conhecia sua ligação com a srta. Kerr?
— Não.
— Tem certeza?
— Absoluta. Tomei muitas precauções.
Wolfe franziu a testa:
— Veja como é difícil. Talvez seja desejável que o sr. Goodwin ou eu vejamos a sua esposa, mas com que desculpa, sem implicá-lo? Precisamos arranjar isso, de alguma forma, e o sr. Goodwin...
— Não vai se arranjar nada! O senhor não vai ver minha mulher!
— Olhe a pose. Como o senhor próprio admitiu, está numa enrascada; não esperneie. Se não foi o senhor nem sua mulher, quem foi? Preciso de algum fato, uma sugestão, um nome. O senhor passou com ela muitas horas, intimamente. O senhor talvez tenha de passar muitas horas comigo. Ela deve ter-lhe contado sobre os lugares aonde ia e as pessoas que conhecia. Conte-me.
Um músculo tremia no pescoço de Ballou.
— Eu insisto, insisto, que minha mulher não seja perturbada. É claro que o senhor espera ser pago. Nunca 'esperneio'. Quanto quer?
Wolfe acenou com a cabeça.
— No seu caso, isso é óbvio. Os homens com dinheiro sempre acham que não há outra forma de pagamento. Fui contratado pelo sr. Cather e o senhor não pode me contratar ou pagar. É claro que o estou forçando, mas só para conseguir informações. Só perturbaremos a sua esposa se for estritamente necessário. Do senhor quero todos os fatos, todos...
O telefone tocou. Virei-me e atendi:
— Escritório do sr. Nero...
— É Saul, Archie. Estou...
— Espere.
Descansei o fone e fui até a cozinha, onde falei por outro telefone.
— Temos visitas. Está bem, pode dizer.
— Você vai ter mais visitas. Estou derrotado. Encontrei quem fosse igual a mim. Julie Jaquette. Daria uma semana de pagamento para saber se você poderia ter dado conta dela. O problema é que, em parte, Nero Wolfe é uma celebridade, diz ela, mas é principalmente por causa das orquídeas. Se ele lhe mostrar as orquídeas, ela lhe contará tudo sobre Isabel Kerr. Ela não vai me dizer nada. Nada mesmo.
— Ora, ora. Eu teria levado uns dez minutos.
— Não amole. Eu disse o pagamento de uma semana. Ela...
— Onde você está?
— Numa cabine telefônica na rua Christopher. A cabine do Ten Little Indians tinha uma fila. Ela está de folga até as oito e depois das 9:10h até 10:15h...
— Então é fácil. Traga-a às 9:10h.
— Ao diabo, que é fácil. — O telefone desligou e ele sumiu.
Não espero que acreditem em mim, quando disser as primeiras palavras que ouvi quando voltei a entrar no escritório, mas acho que vocês têm o direito de saber por que obtivemos tão pouca informação de Avery Ballou, como Saul recebera de Julie Jaquette. As palavras ditas por Ballou eram: — Rudyard Kipling.
Ao me dirigir à minha mesa, virei a cabeça para que meus olhos se fixassem nele. Ao sentar-me, Wolfe lhe perguntou:
— Os poemas?
— Principalmente os poemas — disse Ballou — mas algumas das histórias também. E Robert Service e Jack London. Um pouco de outros autores, mas desses três, Kipling, Service e London, eu tinha as obras completas lá, encadernadas em couro. Há uma coisa que desejava perguntar, mas ainda não perguntei, e o senhor deve saber. Será que podem conseguir minhas impressões digitais nessas encadernações? O couro não é liso, é ondeado.
Wolfe virou a cabeça:
— Archie?
— Provavelmente não — disse eu a Ballou — não de couro ondeado, mas suas impressões devem estar em outras superfícies. Suas impressões estão registradas em algum lugar?
— Não sei. Simplesmente não sei.
Os ombros de Wolfe levantaram-se um milímetro e desceram.
— Então, quanto a isso só pode aguardar. Mas não é fácil crer, sr. Ballou, que o senhor passava lá dez ou mais horas por semana, quinhentas horas por ano, durante três anos, e a srta. Kerr nunca lhe tenha falado como passava as outras... vejamos... quase 25 mil horas. Os lugares que freqüentava, as pessoas que via.
— Fui obrigado a lhe dizer — respondeu Ballou — sob coação. Apesar das intimidades físicas, não trocávamos idéias. Mas eu não lia aqueles poemas e histórias só para ouvir a minha voz. Não a obrigava a ouvir. Ela os compreendia, gostava deles, e conversávamos a respeito. O senhor sabe que não estou gostando disto. É a primeira vez na minha vida que tenho vontade de dizer a um homem para ir para o inferno e não posso.
— Mesmo assim, custa-me a crer. Ela nunca falou da irmã?
— Sim. Falou dela, sim, mas ao acaso e muito raramente.
— O senhor não sabia que a irmã dela desaprovava muito essa ligação?
— Não, nem sei agora.
— Ela desaprovava e desaprova. A srta. Kerr nunca mencionou este nome: Julie Jaquette?
— Creio que não. Se o fez, foi casualmente e não me lembro.
— Notável. O senhor esteve com ela, intimamente, freqüentemente, durante um período de três anos. Eu queria e esperava que me desse alguns nomes e o senhor forneceu três: Jack London, Roberto Service e Rudyard Kipling. — Wolfe empurrou a cadeira para trás. — Uma pergunta: por que desejava saber quando o sr. Cather ouviu seu nome pela primeira vez?
— Oh... eu estava curioso.
— O senhor disse que agora não tinha importância. Quando teve importância, e por quê?
— Eu quis dizer importante para mim, não para o senhor, não para o que o senhor pretende fazer. O que vai fazer? O senhor diz que não posso contratá-lo ou pagar, mas por que não? Não há conflito algum entre os interesses de Cather e os meus, pelo que disse. Dez mil dólares agora como sinal? Vinte mil?
— Não — Wolfe levantou-se. — Já estou comprometido.
CAPÍTULO VIII
ÀS 9:15H ESTÁVAMOS novamente no escritório e Fritz já retirara a louça do café; por isso, embora eu ainda não soubesse, a cena estava preparada para um dos espetáculos mais impressionantes que a velha casa de tijolos jamais viu. Após ter levado Ballou até a porta, fui à cozinha e contei a Wolfe sobre o telefonema de Saul. É claro que ele teria apreciado mais a sopa de cebola e o peixe de Kentucky se eu tivesse esperado, mas se eu dissesse na hora do café teria criado uma atmosfera ruim. A pergunta era o que agüentaria mais, o apetite ou a digestão, e é preciso muita coisa para perturbar o seu apetite.
A digestão, obviamente, também sofrera. Bebeu mais café do que de costume, esvaziando o bule, e agora que o tinham levado e eu estava lá — em geral saio às terças à noite —, tentava continuar a conversa do jantar sobre o Vietnã, mas ele não estava realmente interessado no Vietnã. Wolfe teria de suportar não apenas uma mulher, o que já é bastante ruim, mas uma cantora de cabaré, o que é um absurdo. Um modo horrível de passar a noite. Quando a campainha tocou, olhou-me zangado, embora devesse ter guardado o olhar para Saul, e foi isso o que lhe disse ao me levantar.
Mesmo através do vidro, no qual só se via de dentro para fora, ao aproximar-me da porta, ela chamava a atenção. Tinha uns cinco centímetros a mais do que Saul, e se o casaco fosse de pele verdadeira, deveria ter umas cem peles. Ao entrar, deu-me um sorriso ofuscante, e outro após lhe pendurar o casaco. Saul tentava não rir. Ela segurou o meu braço e perguntou: "Onde está ele, Archie?", numa voz modulada e carinhosa, e continuou segurando-me o braço até o escritório, mas então largou-me, dançou até o meio da sala, ficou de frente para a mesa de Wolfe, deixou a bolsa cair ao chão e começou a cantar:
"Homem forte, vá, vá,
Homem forte, fique forte,
Fale forte, aja forte,
A-a-a-a-m-m-m-m-me forte!
Vá-vá-vá-vá-vá-vá
Homem forte, homem forte,
A-a-m-m-m-m-m-m-me forte,
Vá!"
Esticou dois braços longos, nus e bem-feitos para ele e disse:
— Agora as orquídeas. Mostre-as.
Foi realmente impressionante. E devo admitir que Wolfe também foi. Vi que lhe dirigiu a mesma carranca que faz quando uma palavra cruzada não vai para frente. Virou a carranca para mim e perguntou:
— Foi você quem sugeriu isto?
— Não — respondeu ela. — Ninguém nunca me sugere nada. Não precisa. Agora as orquídeas, homem. Vamos!
— Senhorita Jackson... — disse ele.
— Aqui não — disse ela. — Sou Julie Jaquette.
— Aqui não — respondeu ele. — É possível que há muito tempo, em circunstâncias diferentes, eu tivesse apreciado sua apresentação, mas não aqui e...
— Não é uma apresentação, homem, sou eu.
— Não acredito. A pessoa que entrou aqui e cantou aquela besteira é incapaz de comer, dormir, ler ou escrever... ou amar. A senhora pode amar?
— Hum! Se posso!
Wolfe acenou:
— Viu? Há um minuto atrás, a senhora diria: "Se sou, homem." Estamos progredindo. Quanto ao seu desejo de ver minhas orquídeas, isto é fácil. O sr. Panzer ou o sr. Goodwin poderão levá-la numa hora adequada, talvez amanhã. Agora temos outros assuntos a tratar e o tempo é curto. A senhora quer que o homem que matou Isabel Kerr seja denunciado e punido?
— Sim, maldito seja ele, quero. Quero, homem.
Wolfe fez uma careta:
— Não volte ao que era. Também quero descobrir quem é, pois é o único modo possível de libertar um homem que está sob custódia. Orrie Cather. Talvez a srta. Kerr tenha lhe falado sobre ele.
Do alto dos seus um metro e setenta ela o encarava:
— Está doente? — perguntou ela.
— Não. Estou amargurado, mas não doente. Se pensa que o sr. Cather a matou, está errada, não foi ele, e vou descobrir quem foi. Foi a senhora?
Saul e eu estávamos entre ela e a porta. Virou-se para nós e falou, pronunciando bem as palavras:
— Seu rato.
— Não sou culpado — disse Saul. — Desde o princípio você disse que achava que ele a matara. Você também deixou claro...
— Você disse que Nero Wolfe queria que eu ajudasse a condená-lo.
— Não disse. Eu disse apenas que ele queria que você ajudasse. Você também deixou bem claro que não me diria nada.
Ela olhou em volta, foi até a minha cadeira, sentou-se e olhou para Wolfe. Seria difícil tirá-la de lá, por isso sentei-me na poltrona vermelha e Saul foi para uma das amarelas.
— Então acha que irá libertá-lo. Porque ele trabalha para você. Tolice. Diga-me como.
Wolfe abanou a cabeça:
— Não posso. Não sei como. É evidente que a senhora acha que ele é culpado, e naturalmente disse à polícia por que, mas eles ainda não estão satisfeitos. Ele se encontra detido apenas como testemunha. Por que tem tanta certeza?
— Diabos, eu avisei a ela.
— A senhora a avisou que o sr. Cather a mataria?
— Não, mas eu a preveni de que ninguém sabia o que ele faria. Creio que sabe que ele queria se casar com outra moça?
— Sim.
— Estava tudo numa confusão medonha, como acontece quando as pessoas se descontrolam. Os idiotas tinham um lugar perfeito. Quem quer que fosse que lhe pagava as contas, ela nunca me disse quem era, ele mantinha um lugar para ela, onde ia sempre que ele precisava dela e não se pode querer coisa melhor. Ficava lá sozinha a maior parte do tempo, e tinha um homem que a fazia sentir-se bem, e isso é o máximo. Ele tinha uma mulher boa, pronta quase o tempo todo, de graça, e não se pode querer coisa melhor. A situação perfeita. Mas ela decide que tem de casar com ele, e ele decide que tem que se casar com outra mulher, e ela até tem um bom emprego... é aeromoça. Sabe disso?
— Sim.
— E se ela tivesse miolo, desejaria ficar solta. Mas nenhum deles tinha nada na cabeça. Avisei a Isabel que devia se livrar dele, pois estava preocupado e podia fazer qualquer coisa, mas ela não quis me ouvir. Ela o apertou e ele a matou. Quando a cabeça das pessoas pára de funcionar, deve-se cair fora. Mas ele a matou, e agora ele é quem terá de cair fora.
— Já contou isso tudo à polícia?
— É claro que contei.
— E se ele não a matou?
— Tolice.
Wolfe olhou-a. Como seus olhos estavam acostumados a me ver quando olhavam para aquela cadeira, teve de ajustar a vista.
— A senhora joga algumas vezes? Gosta de apostar?
— Que pergunta boba. Quem não gosta?
— Ótimo. Saul, que vantagem você daria à srta. Jackson de que Orrie Cather não matou Isabel Kerr?
Saul nem hesitou:
— Dez contra um. — Tirou a carteira do bolso e começou a tirar notas. — Cem contra dez.
— Talvez ela não tenha dinheiro. Quer...
— Sempre tenho dinheiro. — Abriu a bolsa, colocada sobre a minha escrivaninha, depois de apanhá-la no chão, onde a jogara enquanto cantava. — Mas quem decide?
— O promotor público — disse Saul. — Cem contra dez de que ele nem vai a julgamento. Archie Goodwin pode ficar com o dinheiro?
— Não. Nero Wolfe. — Levantou-se e entregou a Wolfe uma nota e Saul entregou-lhe as dele. Wolfe verificou a quantia de Saul, cinco notas de vinte dólares, abriu uma gaveta e colocou-as lá. Ela voltou para minha cadeira, recolocou a bolsa sobre a minha escrivaninha e disse a Wolfe:
— Agora me conte por que acabei de perder dez dólares.
Ele abanou a cabeça.
— É melhor aguardar os acontecimentos. Queria apenas demonstrar que estamos agindo baseados em conclusões, não em conjeturas. Sente uma certa animosidade contra o sr. Cather?
— O que é animosidade?
— Hostilidade. Raiva.
— É claro que não. Não detesto ninguém.
— Se ele não matou a srta. Kerr, está disposta a perder aqueles dez dólares?
— Por que não? É uma aposta.
— Então, se outra pessoa a matou, preferia que fosse punida com justiça em vez de o sr. Cather ser punido injustamente?
— Sem dúvida.
— Ótimo. Vocês eram amigas íntimas. A srta. Kerr lhe fazia confidências, exceto pelo nome da pessoa que lhe pagava as contas. Que tipo de mulher era ela? Essa pergunta não é feita ao acaso; preciso saber. Como era ela?
— Era um amor. Uma ótima mulher, até cair por aquele cretino. Ela conhecia o jogo e sabia das regras. Sempre conservava a dignidade, até o fim. Tinha um coração grande e bom, mas nunca o deixava sangrar. Prefiro não ter nenhum coração do que tê-lo sangrando por toda a parte. Uma das razões por que éramos tão íntimas é que sabíamos para que servem e para que não servem os homens... até aquele idiota do Cather aparecer.
— A senhora o conhece?
— Não. Nunca o vi nem quero vê-lo.
Wolfe olhou para o relógio:
— Precisa voltar às 10:15h?
— Às 10:10h. Preciso trocar de roupa.
— Então não temos muito tempo. Peço que aceite uma hipótese. Suponhamos que soubesse, com toda a certeza, que ele não a matou. Então quem foi? De quem a senhora suspeitaria?
— Isso é fácil. Do lagosta, é claro.
— O quê? Lagosta?
— Desculpe-me. Do homem que pagava as contas.
— A senhora nem ao menos sabe o nome dele.
— E que tem isso? Ele gastava cerca de vinte mil dólares por ano. Talvez isso o deixasse liso. Talvez estivesse se empenhando. Descobriu a respeito de Cather e a matou. É fácil como o ABC.
— Muito bem, vou pensar nisso. Mas continuemos com a hipótese. Deixemos ele também de lado. Quem seria então? Vocês duas não tinham muitos amigos em comum?
— Sim. Se quiser chamá-los de amigos, por delicadeza. É claro que tínhamos.
— Suponhamos que tenha sido um deles. Qual deles?
Ela disse uma palavra que deveria ter guardado consigo, já que havia uma senhora presente.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Wolfe.
— Quero dizer que os conheço. Não se mata alguém a não ser que se tenha um motivo, e, mesmo sem motivo, é preciso ter peito. Eles não se enquadram.
— Nenhum?
— Não.
— A senhora daria ao sr. Goodwin ou ao sr. Panzer alguns desses nomes enquanto lhe mostram as orquídeas?
— Não podem me mostrar as orquídeas. Tenho de ir embora.
— Talvez amanhã de manhã.
— Teria que trazê-las para mim na cama. Espalhar todas à minha volta. Eu gostaria disso, mas ele não. De manhã, na cama, sou horrorosa.
— Então de tarde. Já conheceu o dr. Gamm?
— Teddy? — Deu uma risada. — Sim, conheço Teddy. Creio que é um bom médico, mas como homem pode ficar com ele. Teve idéia de ficar com Isabel e isso foi mesmo uma idéia louca. Deus sabe qual a idéia que vai arranjar agora.
— Essa não serviu?
— Lógico que não.
— Já conheceu a irmã da srta. Kerr? A sra. Fleming?
Ela fez sinal que sim:
— Aquela formiga. Tive uma idéia. E não é engraçada. Creio sinceramente que ela pensava que Isabel estaria melhor morta. Está bem, se não foi Cather nem o lagosta, foi ela. — Olhou o relógio de parede: — Preciso ir embora. — Saiu da minha cadeira: — Venha comigo. Por que não? Arranjo uma mesa de frente e coloco um refletor em cima de você. Farei uma bruta propaganda. Direi aos trouxas que Nero Wolfe em pessoa está aqui e vai se levantar. Se não quiser, pode ficar sentado, eles que fiquem de pé nas cadeiras para vê-lo. Para mim será um troféu no meu sutiã. Venha. A cerveja é por conta da casa.
A cabeça de Wolfe estava inclinada para trás a fim de poder olhá-la.
— Recuso seu convite, srta. Jackson — disse ele — mas desejo que passe bem. Tenho a impressão de que sua opinião sobre os nossos semelhantes e suas qualidades é bem parecida com a minha.
Levantou-se. Ele quase nunca se levanta para pessoas que chegam ou partem, homem ou mulher. E repetiu:
— Desejo que passe bem, senhorita.
— Grande homem — disse ela. Virou-se: — Venha você, Archie. Este Panzer é um rato.
CAPÍTULO IX
QUARENTA E SETE HORAS mais tarde, às nove horas de quinta à noite, Wolfe colocou a xícara de café sobre a mesa e disse:
— Quatro dias e noites, e nada.
Coloquei minha xícara na mesa:
— Concordo.
Na verdade, havia uma coisa. Os resultados eram zero, mas não os esforços. Em algum lugar dos nove cadernos de notas na minha escrivaninha — escrevo esses relatórios na minha própria máquina, no meu quarto, não no escritório — estão os nomes de quatro homens e seis mulheres, fornecidos por Jaquette-Jackson quando veio ver as orquídeas, na quarta à tarde. Saul e Fred haviam entrevistado as pessoas. Do ponto de vista da utilidade, nada. Sem dúvida, tudo é possível. Era possível que uma das mulheres pensasse que Isabel surrupiara seu batom, ficasse furiosa e a matasse, ou que um dos homens detestasse Rudyard Kipling e não suportava uma mulher que tinha o livro encadernado em couro, mas é preciso alguma coisa mais do que dez bilhões de possibilidades para se trabalhar. Qualquer coisinha serve, mas é preciso alguma coisa.
Estatísticas, por exemplo. Há dois tipos de estatística: o tipo que se consulta e o tipo que a gente inventa. Acho que esta é do segundo tipo: para cada mil assassinatos cometidos por amadores, 83 são de uma mulher matando outra porque roubou o seu marido, ou uma parte dele. Portanto, do ponto de vista estatístico, na lista de nomes que havíamos reunido a única pessoa com um motivo conhecido era a sra. Avery Ballou, e obviamente isso a colocava em primeiro lugar. O difícil era como abordar o assunto. Se eu lhe perguntasse se sabia que há três anos seu marido lia poemas de Kipling para a mulher que fora assassinada a semana passada, Ballou nunca mais falaria conosco, e podia ser que precisássemos dele para alguma coisa. Assim, na quarta-feira, após o café, telefonei para Lily Rowan e lhe perguntei se conhecia a sra. Avery Ballou. Ela disse que não, e do pouco que sabia a seu respeito não tinha vontade de conhecê-la.
— Então não vou insistir — respondi. — Mas preciso descobrir se quero conhecê-la. Isso é só entre nós. Não preciso de uma descrição detalhada, só de algumas palavras, principalmente queria saber quais os assuntos que mais lhe interessam. Por exemplo, se coleciona autógrafos de detetives particulares famosos, pois seria perfeito.
— Não é possível que seja tão idiota assim.
Respondi que poderia ter outro hobby pior, e tinha pressa na resposta, por isso ela me telefonou uma hora depois. Conseguira mais do que eu pedira, por isso vou omitir a maior parte. A sra. Ballou em solteira era Minerva Chadwick, dos Chadwick do aço e estradas de ferro. Casou-se com Ballou em 1936. O filho e as duas filhas estavam casados. Era chamada de Minna pelos amigos. Nunca dava grandes festas mas gostava de receber alguns amigos, poucos, para jantar. Pertencia à Igreja Episcopal, mas raramente ia à igreja. Não gostava muito de Paris e detestava a Flórida. Gostava de cavalos e tinha quatro árabes, mas seu principal interesse eram cães de fila irlandeses, dos quais possuía 12 ou 14...
Perdi o meu tempo e o de vocês, pois obviamente o assunto era cães irlandeses. Tudo o que sabia sobre eles é que eram grandes, por isso chamei um homem que conhece cachorros, e consegui algumas informações. Em seguida liguei para o número do telefone da residência Ballou, que constava na lista, na rua 67. Quando uma voz de mordomo atendeu "Residência da sra. Ballou", disse-lhe que meu nome era Archie Goodwin e que gostaria de marcar um encontro com a sra. Ballou para lhe pedir um conselho sobre um cão de fila irlandês. Disse, então, que ela não podia atender e lhe daria o recado. Dei-lhe o meu número de telefone. Cerca de meio-dia veio um chamado, uma voz feminina bem comercial que disse ser a srta. Corcoran, secretária da sra. Ballou, e que tipo de conselho eu desejava sobre cães irlandeses. Disse a ela que pretendia adquirir um e não sabia qual o canil que possuía os melhores cães, e um amigo me dissera que a sra. Ballou conhecia mais sobre eles do que qualquer outra pessoa no país. Respondeu que, se eu viesse às cinco horas, a sra. Ballou me receberia. Isso era ótimo, pois Jackson-Jaquette iria chegar às duas e meia para ver as orquídeas.
Creio que vocês não têm um grande interesse em passar mais duas horas com Julie Jaquette ou com a srta. Jackson, e já lhes falei sobre a lista de dez nomes que me dera, por isso vou pular esta parte e dar-lhes o prazer de conhecer Minna Ballou. O cenário e os figurantes correspondiam à expectativa: o mordomo que me deixou entrar, com olhos espertos e cuidadosos, que em dez segundos já haviam me analisado; o capacho que protegia os dois primeiros metros do tapete da sala de entrada, maior do que o Keraghan do escritório de Wolfe, que mede 4,20m por 7,80m; a criada de uniforme que torceu o nariz ao apanhar o meu chapéu e o casaco; o elevador com painéis laqueados de vermelho; a srta. Corcoran, de meia-idade, cabelos cinzentos, olhos cinzentos, que me esperava quando saí no 4.° andar; a sala para onde me levou, tendo à esquerda uma escrivaninha, uma máquina de escrever e arquivos, e à direita um sofá, poltronas macias e uma mesa de centro. Espalhados pela sala havia retratos de cavalos e cachorros, mas não vi nenhum de Avery Ballou. Sua mulher estava estirada no sofá, de costas, com um robe de banho vermelho desbotado, que descia quase até os tornozelos. Quando entrei, virou a cabeça e disse:
— Esperava que não viesse. Estou cansada. — Apontou para uma cadeira perto do pé do sofá. — Sente-se ali.
Obedeci à ordem e fiquei de frente para ela. Seus lábios e nariz eram finos, e uma ponta de seu cabelo castanho tingido caía-lhe na testa. Estava descalça e os dedos dos pés eram grossos. Sorri-lhe amigavelmente.
— Não vai dizer nada? — perguntou.
— Se não estiver cansada demais — disse eu. — Creio que a srta. Corcoran contou-lhe o que eu disse ao telefone. Na verdade, é uma amiga minha que quer um cão de fila irlandês. Ela mora em Westchester. Moro na cidade, e creio que um apartamento não é lugar para um cão irlandês.
— Não é mesmo.
— Alguém lhe disse que devia mandar buscar um na Irlanda.
— Quem lhe disse isso?
— Não sei.
— Quem quer que seja é um tolo. Os criadores comerciais na Irlanda têm um tipo inferior. A maior criadora de cães de fila do mundo é Florence Nagle, na Inglaterra, mas não cria comercialmente e tem muito cuidado para quem os vende. Todos os bons criadores fazem isso. Eu só vendo como um favor muito especial. Adoro cães de fila e eles me adoram. Quando estou lá, dormem oito no meu quarto.
Dei-lhe um sorriso:
— E seu marido gosta disso?
— Duvido que preste atenção. Ele não distinguiria um cão de fila de um avestruz. Qual é o nome de sua amiga?
— Lily Rowan. Tem uma casa perto de Katonah.
— Para que ela quer um cão de fila?
— Bem, em parte por proteção. Não há vizinhos por perto.
— Só isso não basta. É preciso amá-los. Você tem de aceitar quando um rabo derruba acidentalmente um vaso ou um abajur. Será que ela sabe que um macho bom pesa cerca de 65 quilos e que quando fica nas patas traseiras tem quase 1,80m? Será que ela sabe que, quando ele pula em cima de alguém porque gosta da pessoa, ela cai? Sabe que ele tem de correr quatro quilômetros e meio por dia e você deve ir atrás numa caminhonete? Diga a ela para arranjar qualquer cachorro, um dinamarquês ou um doberman.
Abanei a cabeça:
— Não acho que isso seja correto, sra. Ballou.
— Eu acho. Por que não?
— Porque acho que a srta. Rowan está preparada para amar um cão de fila irlandês. Faz perguntas sobre canis, mas, não satisfeita, ouve dizer que a pessoa que mais conhece sobre eles é a senhora; e me pediu para tentar vê-la porque acha que, com a senhora, um homem teria mais chance do que uma mulher. Disse-lhe que ela mesma poderia fazer isso, procurando seu marido, mas respondeu que não sabia se ele estava interessado em cães irlandeses. Parece que não está.
Fechou os olhos e abriu-os de novo.
— Meu marido não se interessa por mais nada a não ser finanças e o que ele chama de estrutura da economia. Como é o nome daquela inglesa que escreve livros a este respeito?
— Barbara Ward.
Ela acenou com a cabeça.
— Ela o interessaria, mas nenhuma outra mulher seria capaz disso. Qual é o nome de sua amiga?
— Lily Rowan.
— Sim. Estou cansada. Parece que o senhor é inteligente. Acha que um cão de fila seria feliz com ela?
— Acho, ou não estaria aqui.
— Ela quer um macho ou uma fêmea?
— Ela pediu que lhe perguntasse. Qual aconselharia?
— Depende. Teria de saber... ela mora no campo.
— Não no inverno. Tem um apartamento na cidade. — Não disse que seu dúplex ficava a cerca de quatrocentos metros de onde eu estava.
— Teria de vê-la. — Virou a cabeça para o outro lado. — Célia, tomou nota do nome? Lucy Rowan?
A srta. Corcoran, na escrivaninha, disse que escrevera o nome, e a sra. Ballou virou-se para mim:
— Diga a ela que chame a srta. Corcoran. É isso que deveria ter feito em vez de amolá-lo. Não sei seu nome... não tem importância. — Fechou os olhos.
Levantei-me e fiquei de pé, pensando que seria mais educado agradecê-la com os olhos abertos, mas como não se abriram, agradeci assim mesmo, e ela disse, ainda com os olhos fechados:
— Pensei que já tivesse ido embora.
Se eu fosse um cão de fila, teria abanado a cauda ao sair da sala e quebrado alguma coisa. A srta. Corcoran, que me levou até ao elevador para ter certeza de que eu iria mesmo embora, disse-me que entre dez e onze da manhã seria a melhor hora para a srta. Rowan telefonar.
Há dias que não dava uma boa caminhada, desde sábado, e como ainda não eram cinco e meia, decidi economizar na despesa de táxi. Mas antes precisava dar um telefonema. Por isso, fui à avenida Madison, achei uma cabine, disquei para Lily Rowan, expliquei a situação e disse-lhe que, pela manhã, deveria ligar para a srta. Corcoran e dizer-lhe que decidira comprar um dachshund. O que ela respondeu é irrelevante e pessoal. Ao sair, levantei a gola do casaco e coloquei as luvas. O inverno estava com força total.
Se estão pensando que os auxiliares faziam todo o serviço, Saul e Fred examinando os dez nomes que Julie Jaquette me dera e eu entrevistando uma mulher estranha, não é verdade. Às 6:15h, quando entrei no escritório, lá estava Wolfe à escrivaninha com um livro, e vi logo que não era Convite para um inquérito policial. Era O livro da selva, de Rudyard Kipling. Por isso, encaminhei-me na ponta dos pés para a minha escrivaninha, a fim de não perturbá-lo. Ao terminar um parágrafo e levantar os olhos, perguntei:
— Você não se sentiria melhor lendo em voz alta? Faça de conta que eu sou ela.
Não deu importância a isso e perguntou:
— Saiu-se melhor?
— Não, senhor. A não ser que queira um cão de fila irlandês para caçadas. A sra. Ballou está de fora. Mesmo que alguém lhe tenha contado tudo, com todos os detalhes, ela não teria ido lá decidir a questão com Isabel Kerr porque: (a) estaria cansada demais; e (b) teria esquecido do nome e do endereço. Como a srta. Jackson alargou os seus horizontes em relação às mulheres, talvez não concorde.
Fiz o relatório. Era tão curto que ele mal havia se sentado confortavelmente, encostando-se para trás com os olhos fechados, quando cheguei ao fim — o telefonema para Lily Rowan.
— Há uma diferença entre ela e você — eu disse. — Você fecha os olhos para se concentrar no que estou dizendo, e ela fecha os dela na esperança de que eu não esteja lá. Nem prestou atenção quando, por duas vezes, arrastei o nome do marido dela para a conversa. Juro que poderia ter lhe contado tudo sobre Isabel Kerr e o quarto cor-de-rosa, e quando ele chegasse em casa do trabalho ela nem se preocuparia de mencionar o fato para ele.
Wolfe grunhiu e abriu os olhos.
— Como é que oito cachorros daquele tamanho podem passar a noite no quarto dela? — perguntou.
— Isso também me preocupou — concordei. — Se calcularmos uma média de dois metros quadrados por cachorro, e mais talvez se...
A campainha da rua tocou e fui atender. Era um homem de capote marrom, grosso, de tweed e chapéu liso azul-marinho, de abas estreitas, ridículo, e calculei que era um dos sujeitos que Saul ou Fred descobriram. Mas ao abrir a porta ele disse:
— Sou o dr. Gamm. Theodore Gamm, médico. O senhor é o homem que visitou o sr. e a sra. Fleming na segunda à tarde?
Confirmei e ele continuou:
— Insisto em ver Nero Wolfe — e se eu não tivesse me afastado, passaria por cima de mim.
Sem dúvida, não é assim que as coisas são feitas. Primeiro se diz alguma coisa e depois é que se insiste. Ele nem tinha físico para insistir, o que ficou claro após tirar o casaco. Era todo arredondado, ombros redondos e quadris redondos e rosto redondo, e a careca no topo de sua cabeça mal batia no meu queixo. Coloquei-o na sala da frente, fui para o escritório pelo caminho mais longo, pelo corredor, e disse a Nero Wolfe que o dr. Theodore Gamm insistia em lhe perguntar por que me mandara falar com o sr. e a sra. Fleming. Ele olhou o relógio e resmungou:
— O jantar é para daqui a meia hora.
Respondi que a sra. Ballou só me tomara dez minutos, abri a porta que liga à sala da frente e mandei-o entrar. Ao encaminhá-lo para a poltrona de couro vermelho, Wolfe disse qualquer coisa sobre vinte minutos. A poltrona é funda, e quando viu que seus pés não tocavam o chão, escorregou para a frente, cravou os olhos em Wolfe e disse:
— O senhor está com o peso muito acima do normal.
Wolfe concordou:
— Trinta e cinco quilos. Talvez quarenta. A morte se encarregará disso. Isso é da sua conta?
— Sim, é. — Curvou os dedos redondos nos braços da poltrona. — Qualquer coisa que interfira com a saúde natural é um despropósito e me indigna. — Sua voz era mais forte do que ele próprio. — Foi a minha preocupação com a saúde que me trouxe aqui... a saúde de uma das minhas pacientes, a sra. Barry Fleming. O senhor mandou um homem, aquele homem — seus olhos vieram rápidos na minha direção e voltaram para Wolfe — para atormentá-la. Ela já estava num estado de tensão e agora talvez entre em colapso. Pode me dar uma justificativa?
— Facilmente — disse Wolfe, com as sobrancelhas levantadas. — Tanto para a intenção como para o fato, mas o senhor está reclamando do fato. O estado de tensão da sra. Fleming é causado, em parte, pelo choque da morte de sua irmã, mas principalmente pelo medo de que o seu modo de vida viesse a público. O sr. Goodwin prestou-lhe um serviço, mostrando-lhe que isso será inevitável se não se adotar certas atitudes. Isso deveria induzi-la a reagir, não a ter um colapso, se ela é...
— Que tipo de atitudes?
— O único tipo que adiantaria alguma coisa. Ela lhe contou tudo o que o sr. Goodwin lhe disse?
— Seu marido me contou. Que se o homem que prenderam, Orrie Cather, for julgado, tudo sobre Isabel será revelado. Que Cather é inocente, e a única esperança é conseguir provas suficientes para libertá-lo. Você chama isso prestar-lhe um serviço?
— Se for válido, sim. É óbvio. Tem alguma dúvida?
— Sim. Acho que foi um truque sujo. Por que diz que Cather é inocente? Pode prová-lo?
— Não, mas pretendo.
— Não acredito. Creio apenas que está tentando levantar bastante poeira para que fique difícil condená-lo. Não há motivo para querer agradar a sra. Fleming, mas se quisesse, poderia. Bastava persuadir Cather e seu advogado a não deixarem que certos fatos se tornassem públicos no julgamento. Sei que não o fará, mas poderia.
— O senhor gostaria que eu fizesse isso?
— Lógico. Para a sra. Fleming isto... poderia lhe salvar a vida.
— Mas sabe que não o farei?
— Sei.
— Então por que se deu ao trabalho de vir?
— Porque ela me pediu. Ambos pediram. Acham que foi só um truque, mandá-lo dizer aquelas baboseiras, e eu também acho. Por que diz que Cather é inocente?
Wolfe apertou os olhos:
— Doutor, devia arrumar melhor as coisas na sua mente. Conforme o sr. Goodwin explicou à sra. Fleming, é de seu interesse que Cather esteja inocente, mas o senhor não gosta disso. Discorda. Será que está menos preocupado com a saúde de sua paciente do que com a sua? O senhor matou Isabel Kerr?
Gamm arregalou os olhos:
— Ora, seu... — engoliu em seco: — Maldita impertinência a sua!
— É claro que acha assim. Mas já que presumi que o sr. Cather não a matou, por motivos que prefiro não declinar, preciso saber quem foi. O senhor pode ser o culpado, pois as repetidas propostas que fez a ela foram recusadas. Humilhações constantes podem se tornar insuportáveis. É tudo uma questão de caráter e temperamento, e nada conheço do seu; teria de consultar pessoas que o conhecem bem, por exemplo, o sr. e a sra. Fleming. Mas posso coletar dados. Onde estava o senhor no sábado passado, de oito ao meio-dia? Se puder estabelecer...
Parou, pois a sua platéia estava indo embora. O dr. Gamm não tinha o físico ou o estilo para fazer uma saída emocionante. Seu andar era como um gingado, mas dirigiu-se à porta e saiu. Levantei-me devagar e fui pelo corredor, e lá cheguei quando ele abria a porta da frente. Após ter saído, voltei ao escritório, levantei os braços para esticá-los, dei um bocejo e disse:
— Mais um eliminado. Ele não teria ido embora, não ousaria ir, se fosse culpado, até descobrir se você sabia alguma coisa e o quanto sabia. Pelo menos, tentaria saber.
Os lábios de Wolfe estavam apertados. Ao falar, afrouxou-os:
— Ou ele é um assassino ou um idiota.
— Então ele é um idiota. Acho...
O telefone tocou e fui atender. Era Saul, dando notícias sobre dois nomes. Disse a ele que também descobríramos dois nomes e desejei que tivesse melhor sorte no dia seguinte.
Nem ele nem nós tivemos melhor sorte. Quinta-feira foi um dia mais vazio do que quarta, embora eu fizesse força, já que Wolfe me elogiara. Em parte era porque ele estava desesperado, mas na quarta à noite disse-me para verificar pelas redondezas. Era a primeira vez que me mandava fazer uma coisa que Saul já fizera, e devo admitir que seria muito satisfatório se eu conseguisse alguma coisa: por exemplo, um porteiro do outro lado da rua, que vira um estranho entrar no prédio no sábado de manhã — poderia ser o dr. Gamm, Stella Fleming, Barry Fleming, Julie Jaquette ou mesmo Avery ou Minna Ballou. Ou um estranho mesmo, e teria de descobrir quem era. Diabos!, afinal de contas são só 12 milhões de pessoas na área metropolitana. Na verdade, foi uma palhaçada da qual ninguém riu. Não só Saul e Fred já haviam falado com todos, como os tiras já haviam investigado, tentando descobrir alguém que vira Orrie Cather nas redondezas. Durante o dia, longo e cansativo, falei com mais de quarenta pessoas, de todas as idades, tamanho e cor, e essas pessoas já haviam respondido tantas vezes às mesmas perguntas que sabiam as respostas de cor. Às seis e meia achei que já era o suficiente e fui para casa jantar. Lá, a única coisa que acontecera foi que Parker telefonara para dizer que vira Orrie de novo, falara com um assistente do promotor público, que lhe dissera não ser aconselhável começar a tomar providências para que ele saísse sob fiança.
Assim, ao voltarmos ao escritório após o jantar, depois de ter bebido o café, Wolfe disse:
— Quatro dias e noites, e nada.
Coloquei a xícara sobre a mesa e respondi:
— Concordo.
— Que diabo — disse Wolfe — faça perguntas.
— Se houvesse alguma pergunta boa, você já a teria feito. Está bem: Jill Hardy. Por que me fez colocar os braços em volta dela? Porque matara Isabel Kerr e ia confessar, e estava me adulando, mas Cramer interrompeu?
— Não quero bobagens. Quero uma pergunta.
— Eu também. Stella Fleming. É sujeita a ataques; por exemplo, quando avançou para cima de mim para me arranhar. Mas se no sábado de manhã teve um ataque e matou sua irmã, será que voltaria aquela noite e pediria ao porteiro para deixá-la entrar a fim de 'descobrir' o cadáver? Não acredito nisso. Mil contra um.
— Isso é negativo. Quero alguma coisa positiva.
— Vamos tentar isto. Barry Fleming. Por que me pediu para entrar, sabendo como sua mulher se sentia? Porque eu lhe dissera que iríamos inocentar Orrie, e ele queria descobrir se sabíamos ou desconfiávamos de que ele matara Isabel. Isso é positivo.
— Mas nada vale sem um motivo.
— Bem, se quer um motivo, a sra. Ballou. Estava fingindo ao conversar comigo. Ela é realmente um terror e louca pelo marido. Está fervendo de ciúme. Só que nesse caso eu sou um trouxa e terá que me despedir.
— Vou pensar no assunto. E o sr. Ballou?
Abanei a cabeça:
— Agora é a sua vez. Você o interrogou.
— Por enquanto, eu o rejeito. Arrebentar o crânio daquela mulher com um cinzeiro foi um ato de paixão, que não é próprio dele. Mais uma coisa: por que queria saber quando Orrie ouviu o nome dele pela primeira vez? Por que já não é mais importante, mas assim mesmo gostaria de saber?
Abanei novamente a cabeça:
— É melhor pularmos isso. Talvez fosse simples curiosidade, para ver se coincidia com uma mudança que notara nela ao lhe ler Kipling, Service e London. Isso não ia lhe interessar. Concordo que o método não combina com ele. Está bem, agora a srta. Jackson. Ela também é sua, desejou até que ela passasse bem.
— Não. Sua.
— Obrigado. Não há nada que não pudesse ou não quisesse fazer, se estivesse com vontade. Mas não consigo imaginar uma razão para querer ver Isabel morta. Se houvesse, ao falar com os amigos comuns, Saul e Fred teriam percebido alguma coisa. E não perceberam. De qualquer forma, está eliminada, já que você desejou que ela passasse bem. Por isso só nos resta o dr. Gamm.
— Bolas.
— Concordo. Não temos nada. No domingo à noite você disse que nunca tivemos tão pouco, e a situação não mudou. Não acontece nada em lugar algum. Estive pensando, durante o jantar, quando você comentava o que pretendem fazer com a ilha Ellis, que talvez você devesse fazer um acordo com Cramer. Falo sério. Seus cientistas não deixaram uma polegada daquele apartamento sem examinar e há uma chance de, quem quer que seja que a assassinou, ter deixado lá suas impressões digitais, uma pelo menos. Descobriram Orrie tão depressa que talvez tenham outras possibilidades guardadas. Ofereça a Cramer trocar os dados que possuímos pelas impressões que eles têm. Com sua palavra de honra, que ele sabe que você cumpre. Não enterraria Orrie mais ainda e talvez nos desse uma pista. Do jeito que estão as coisas, não há nada para fazer amanhã.
Wolfe levantou o queixo:
— Não.
— Não o quê? Você prefere...
A campainha tocou. Fui lá, dei uma olhada, coloquei a cabeça dentro do escritório e disse:
— É o sr. Ballou. Não parece muito alegre.
CAPÍTULO X
SE, DE ALGUM MODO, Avery Ballou perdesse todo seu dinheiro, fosse expulso de seu emprego de presidente da Federal Holding Corporation, mesmo assim não passaria fome. Nunca tinha visto um embrulho mais bem-feito e bem amarrado do que o que ele pusera na mesa de Wolfe antes de se sentar. Qualquer setor de despacho de mercadorias o teria contratado na hora. Presumo que ele mesmo tenha feito o embrulho por causa do seu conteúdo, mas admito que o banco também poderia tê-lo feito. Suas rugas estavam cada vez mais profundas e sua aparência era tão cansada como sua mulher dizia se sentir. Sentou-se, abaixou a cabeça e esfregou a palma da mão na testa, devagar, de trás para frente. Na terça-feira, após fazer isso, pedira uma bebida, mas agora, aparentemente, isso já não bastava. Levantou a cabeça, endireitou os ombros, olhou para Wolfe e disse:
— O senhor falou que eu não podia contratá-lo nem pagá-lo.
— E eu lhe disse o motivo — respondeu Wolfe.
— Eu sei. Mas a situação é... quero que o senhor reconsidere a sua decisão. — Virou-se para mim: — O senhor disse que poderia descobrir quando aquele homem, Cather, soube o meu nome. Conseguiu?
Abanei a cabeça:
— O senhor disse que já não era importante.
— O senhor também disse que poderia ter sido há mais de quatro meses.
— Certo. Ou oito meses, ou dez.
— Quatro é o suficiente. — Voltou-se novamente para Wolfe. — Sei que o senhor tem uma larga experiência, mas talvez não perceba a necessidade de uma boa reputação para um homem na minha posição. Byron disse: "A glória e o nada de um nome", mas ele era um poeta. Um poeta pode tomar liberdades, que seriam fatais para um homem como eu. Como lhe disse, tomava grandes precauções ao visitar a srta. Kerr. Ninguém que me visse entrar ou sair daquele prédio poderia ter-me reconhecido. Confiava inteiramente em sua discrição; financeiramente, fui mais do que liberal com ela. Tinha certeza absoluta de que ninguém, ninguém mesmo, sabia do meu... passatempo.
Parou, creio que esperando comentários. Wolfe fez-lhe a vontade:
— O senhor deveria saber que os únicos segredos em segurança são os que o senhor mesmo já esqueceu.
Ele acenou com a cabeça:
— Suspeito agora de que há muitas coisas que deveria saber e não sei. Não devia ter confiado tanto na srta. Kerr. Fui um tolo. Deveria saber que ela poderia... arranjar uma companhia. Acho que foi isso o que aconteceu com Cather, não? Ela se apaixonou por ele?
Wolfe virou-se para mim:
— Archie?
— Morria de amores — contei para Ballou. — Queria se casar com ele.
— Entendo. Fui um tolo. Mas isso explica por que ela lhe disse o meu nome, e isso é importante. Ela era discreta, mas é claro que com ele não precisava. Não é assim?
Queria uma resposta, e Wolfe a deu:
— Sim.
— Ele sabia meu nome, e mais ninguém. Então é um patife e um chantagista. Há quatro meses venho lhe pagando mil dólares por mês. É quase certo de que também é um assassino. Ele a matou. Não sei por que o fez, mas é um canalha.
Os olhos de Wolfe encontraram-se com os meus. Levantei uma sobrancelha. Seus olhos voltaram-se para Ballou:
— Por que diabos você não me disse isso antes? Há dois dias?
— Não percebi naquele dia. Só agora, depois de considerar a situação. O senhor havia me dado um grande susto. E disse que Cather não a matara. Acho que matou. Ele é um patife. Creio que será julgado e condenado, e é por isso que estou aqui. Da outra vez, o senhor disse que, se ele fosse julgado, meu nome seria inevitavelmente trazido a público, e isso não pode acontecer. Meu nome ligado não só a uma moça, mas a um assassinato que provoca sensacionalismo... Isto não deve acontecer. — Apontou para o pacote sobre a escrivaninha de Wolfe. — Aquele pacote contém cinqüenta mil dólares em notas de cinqüenta. O senhor disse que já foi contratado, mas não precisa ficar preso a um chantagista e assassino.
Parou para dar uma inspiração profunda:
— Esses cinqüenta mil dólares são apenas um sinal. Estou numa situação pior do que imaginava, e tenho de sair dela, o preço não importa. Admito que não sei como isso poderá ser feito, mas o senhor conhece Cather e saberá como lidar com ele. Não estou pedindo nem esperando que faça nada ilegal. Se existem provas para julgá-lo e condená-lo, muito bem, a lei é assim. Mas meu nome não deve aparecer. O senhor disse que, se ninguém me procurou, meu nome não está naquele diário e também é evidente que Cather não mencionou meu nome à Polícia. Não é verdade?
— Sim. — Wolfe beliscava o lábio com o polegar e o indicador. — O senhor está indo depressa demais, sr. Ballou. Concordo que não deva ficar comprometido com um chantagista e assassino, mas será que estou? Preciso saber mais coisas. Descreva o homem a quem tem dado dinheiro.
— Nunca o vi. Mando o dinheiro pelo correio.
— Quando pediu o dinheiro, e como?
— Pelo telefone. Em setembro, uma noite, quando eu estava em casa, disseram-me que um homem, que dizia se chamar Robert Service Kipling, estava ao telefone e desejava falar comigo. É claro que fui atender. Disse-me que não precisava explicar por que usava esse nome e mandou-me ir a uma farmácia perto de casa e aguardar um telefonema. Sabe porque eu fui. Às dez horas, o telefone da cabine tocou e eu atendi. Era a mesma voz. Não preciso lhe dizer o que falou. Disse-me o bastante para me convencer de que sabia de minhas visitas àquele apartamento e sua finalidade. Disse que não queria interferir, mas achava que deveria lhe demonstrar o quanto eu lhe era grato por sua consideração. Ordenou-me que lhe mandasse pelo correio dez notas de cem dólares no dia seguinte, e enviasse a mesma quantia no dia quinze de cada mês. Disse que faria isso.
Esfregou a testa com a palma da mão:
— Sei que é errado, em princípio, submeter-se a chantagem. Mas a ameaça não era contar tudo, não disse que tinha provas em seu poder, apenas deixou bem claro que deveria lhe pagar ou parar de ir lá. Não respondeu às minhas perguntas, como descobrira meu nome, mas era óbvio que não tinha apenas me visto e reconhecido, por causa das coisas que contou. Bastava o que disse: seu nome era Robert Service Kipling. Coloquei o dinheiro no correio no dia seguinte, e desde então faço isso a cada mês. Preferi pagar a abandonar tudo. Agora, sei. Não há dúvida de que era Cather. A srta. Kerr contou tudo a ele.
— É uma suposição bem razoável — Wolfe concordou — porém nada mais. Qual o nome e endereço?
— Obviamente era falso. O endereço era Caixa Postal, Estação Grand Central, na esquina da avenida Lexington com a rua 45. O nome era Milton Thales.
— Thales? T,H,A,L,E,S?
— Sim.
— É mesmo. Interessante. — Wolfe fechou os olhos por um instante e depois os abriu. — Não fez nada para descobrir quem era ele?
— Não. Para quê? De que adiantaria?
— Se fosse o sr. Cather, talvez tivesse evitado isso. Falou alguma coisa à srta. Kerr?
— Sim. Perguntei se contara a alguém, a qualquer pessoa, o meu nome, e ela disse que não. Mentiu. Ficou muito... bem, ficou indignada. Fiquei surpreso com sua reação. Não parecia ser...
Parou, apertou os lábios e franziu a testa, depois acenou com a cabeça:
— Compreendo. É claro. Eu disse que não sabia por que ele a matara, mas é óbvio. Ela sabia que devia ser Cather, contou a ele, disse-lhe que devia parar com isso, e ele a matou. Meu Deus, se eu soubesse... maldito seja. Maldito!
Estava mais emocionado do que pensei que pudesse ficar, e ia lhe oferecer uma bebida, quando Wolfe falou:
— Uma coisa: a voz no telefone? Tem certeza de que era um homem?
— Bem. Ele disfarçava, uma voz em falsete, mas não tenho dúvidas de que era um homem.
— Ele se comunicou outra vez com o senhor? Telefonou?
— Uma vez. No dia 17 de dezembro. O mesmo nome, Robert Service Kipling. Telefonou para a minha casa. Disse que pensou que eu gostaria de saber que o material estava sendo bem recebido, e foi só isso.
Wolfe recostou-se, fechou os olhos, entrelaçou os dedos sobre a barriga e começou a mexer os lábios para dentro e para fora. Ballou começou a falar, e eu fiz sinal para que parasse, mas realmente não tinha importância. Quando os lábios de Wolfe começam a se mexer assim, para dentro e para fora, ele se abstrai completamente e não ouve mais nada. Ballou abaixou a cabeça e fechou os olhos. Foi como se eu estivesse sozinho durante três minutos. Finalmente Wolfe abriu os olhos e perguntou-me se podia chamar Saul e Fred, e respondi que sim, mas não sabia quando. Disse:
— Telefone da cozinha. Mande que venham imediatamente — e eu fui.
Não preciso usar a massa cinzenta para dar uns telefonemas chamando uns caras — tive de tentar três números até achar Saul — e, assim, a minha mente trabalhava em outras coisas. Não imaginava Orrie como um chantagista; isto era tão absurdo que nem valia a pena pensar. O problema era por que Thales seria um nome interessante para um chantagista? Wolfe falara sério; não era o tom de voz que usa quando está fingindo. Se ele achava interessante, eu também deveria achar, já que sei tudo o que ele sabe. Eu daria uma nota novinha de um dólar para saber quantas pessoas que lêem esta história descobrirão. Eu nada havia descoberto, quando voltei ao escritório, embora ainda tentasse durante uns cinco minutos, depois que falei com Saul.
Dei dois passos para dentro do escritório e parei. A poltrona vermelha estava vazia. Perguntei:
— Pôs ele para fora?
Fez que não com a cabeça:
— Está na sala da frente. Deitado. É claro que Saul e Fred não devem vê-lo. Conseguiu falar com eles?
— Já estão a caminho. — Fui até a minha escrivaninha: — É pena que Orrie tenha se rebaixado a praticar chantagem, mas com as despesas do anel de casamento, mobília, licença... as despesas crescem.
— Tolice.
— Você pode dizer isso, com cinqüenta mil na sua frente. Por que é interessante ele ter escolhido Thales como nome?
— Você está pronunciando errado. O sr. Ballou também está.
— Não é Thales?
— Claro que não. É Ta-les.
— Oh, por isso é interessante.
— O Milton também é interessante. Tales de Mileto, do VI e VII séculos antes de Cristo, era o mais importante dos sete 'homens sábios' da Grécia antiga. É de três séculos antes de Euclides. Foi o fundador da geometria de linhas. Foi a pessoa que fez a primeira previsão de um eclipse solar, no dia certo. Foi o primeiro grande nome na história da matemática. Tales de Mileto.
— Macacos me mordam. — Sentei-me e examinei o que dissera. — Macacos me mordam. Foi coragem. Ballou foi à faculdade. Podia ser que gostasse de matemática. Podia saber tudo sobre Tales de Mileto.
— Mas ele sabia que o cunhado da srta. Kerr era professor de matemática?
— Provavelmente não. Quem esperaria que um maldito chantagista tivesse senso de humor? Já contou a Ballou?
— Não. Isso pode esperar. Queria cerveja.
— E eu leite. — Levantei-me. — Agora, sim, temos com que trabalhar.
Fui até a cozinha. Fritz estava lá embaixo, no seu quarto, mas não precisei dele. Enquanto punha o leite no copo, a cerveja e o copo na bandeja e levava para o escritório, só pensava nesse novo mistério, relembrando aquela tarde de segunda-feira, como Barry Fleming agira, sua aparência e o que dissera. Depois de tomar uns dois goles de leite, lembrei-me de que tínhamos um convidado e fui à sala da frente perguntar se desejava beber alguma coisa. Estava estirado no sofá, o braço sobre os olhos. Não queria nada. Neste curto espaço de tempo, Wolfe fora apanhar um livro na estante, um volume da Enciclopédia Britânica, e estava com ele aberto. Ao apanhar meu copo, disse:
— Tales aperfeiçoou a teoria do triângulo escaleno e a teoria das linhas. Descobriu o teorema que os lados de um triângulo, de ângulos iguais, são proporcionais. Descobriu que, quando duas linhas retas se cruzam, os ângulos verticais opostos são iguais e que o círculo é dividido pelo seu diâmetro.
— Puxa! — eu disse.
Fred chegou quase às onze horas. Levei-o para a cozinha, pois Wolfe ainda consultava a enciclopédia, embora talvez já não se ocupasse com Tales há muito tempo. Quando Saul chegou, mandei-o ficar na cozinha com Fred, e disse a Wolfe que nos comunicasse quando estivesse pronto para nos receber. Ele me olhou zangado, pois estava no meio de um artigo interessante. Eu sei que era interessante porque não há uma única página, em todos os vinte e quatro volumes, que ele não ache interessante. Fui à cozinha e trouxe os dois; Saul sentou-se na poltrona vermelha e Fred numa das amarelas.
Que eu saiba, foi o encontro mais curto que já houve com os seus ajudantes. Wolfe começou:
— Peço desculpas por chamá-los tão tarde numa noite de inverno, mas preciso de vocês. O homem que pagava o apartamento da srta. Kerr, vamos chamá-lo de X, está na sala da frente. Veio me dizer uma coisa que deveria ter dito há dois dias. Em setembro, um homem telefonou para ele, exigindo dinheiro. O homem sabia de suas visitas ao apartamento e ameaçou torná-las impraticáveis, caso não pagasse por isso: mil dólares na hora e mil dólares por mês, em dinheiro, a ser remetido pelo correio para uma caixa postal, sob um nome fictício, é claro. O dinheiro foi enviado, um total de cinco mil dólares. X está convencido, e considera suas razões válidas, de que o chantagista é Orrie Cather. No domingo à noite pedi que me dessem suas opiniões sobre se Orrie matara a srta. Kerr. Agora pergunto se acham que ele é um chantagista. Foi ele quem fez a chantagem contra X? Fred?
Fred, concentrado, tinha a testa franzida:
— Foi como o senhor disse? Chantagem pura e simples?
— Sim.
Fred abanou a cabeça:
— Não, senhor, impossível.
— Saul?
— Para ter certeza de que entendi bem — disse Saul — isto foi na época que Orrie ainda a visitava?
— Sim.
— Então a resposta é não. Como Fred disse, impossível. Só um perfeito canalha faria isso.
— Isso é satisfatório — respondeu Wolfe. — Archie e eu já chegamos a uma conclusão e sei, quase com certeza absoluta, quem é o chantagista, mas queria primeiro ouvir a opinião de vocês. Mas não foi só por isso que os chamei; preciso dar umas instruções para amanhã. Archie, eles podem esperar no seu quarto?
Para não se arriscar, não queria que esperassem na cozinha. E se um tigre faminto entrasse pela janela da cozinha e eles fugissem corredor afora e encontrassem Ballou? Disse que seriam bem-vindos ao meu quarto, para esperar, contanto que não mexessem em nada, e se dirigiram à escada. Wolfe esperou dois minutos, para dar tempo de subirem os dois andares, e então disse para trazer Ballou. Ainda estava no sofá, mas, ao me ver entrar, sentou-se e começou a falar. Eu lhe disse que contasse tudo a Wolfe, e ele se levantou, indo para o escritório. Ao cruzar o portal, juro que seu primeiro olhar foi para o pacote na mesa de Wolfe. Mesmo quando se está desesperado, um hábito é sempre um hábito.
Ao sentar-se, começou a dizer:
— Estive pensando no assunto. Respondi a todas as perguntas e lhe fiz uma proposta liberal, mais do que liberal. Ou aceita ou não. Da outra vez o senhor disse que Cather não é um assassino. Não tente me dizer agora que não é um chantagista.
— Está antecipando o que vou dizer — falou Wolfe. — O sr. Cather não é um chantagista.
Ballou fitou-o, espantado:
— O senhor realmente... depois do que eu... — Levantou-se e apanhou o pacote: — Por Deus, o senhor realmente está do lado dele.
— Estou, mesmo. Posso lhe dizer o nome do chantagista. Sente-se.
— Eu já lhe dei o nome.
— Não. O senhor só conhece seu noms de guerre, Robert Service Kipling e Milton Thales. Seu verdadeiro nome é Barry Fleming. O marido da irmã da srta. Kerr.
— Isso é absurdo. Até uma hora atrás o senhor nem sabia que eu fora chantageado.
Wolfe teria de inclinar a cabeça para trás para focalizar seu rosto; mas como não gosta de fazer isso, não focalizava nada.
— Para um homem de negócios, o senhor é extremamente obtuso. Está numa enrascada, e eu sou sua única esperança. Precisa de ajuda, e não pode ir a um advogado ou a qualquer pessoa, sem divulgar a sua ligação com a srta. Kerr e um assassinato. Mas o senhor fala e age como se a situação estivesse sob seu controle. Levanta-se repentinamente e apanha o pacote de dinheiro. Tolice. Provavelmente nada mais tem a me dizer. Ou senta e ouve ou vai embora.
Temos de reconhecer que o presidente da Federal Holding Corporation tinha orgulho e coragem. Se pusesse o pacote de volta na mesa de Wolfe, estaria obedecendo a uma ordem, por isso não o fez. Colocou-o na mesinha ao lado da poltrona e foi ali que o deixou ao sentar-se, já controlado.
— Estou ouvindo — disse.
— Assim está melhor — disse Wolfe. — Primeiro, o sr. Cather, Podemos conhecer um homem bem e isso não exclui o fato de que talvez seja um assassino, mas não um chantagista. Assassinato pode ser repentino, mas não chantagem. Quatro de nós, que conhecemos Bem o sr. Cather há anos... os dois homens que mandei buscar, o sr. Goodwin e eu... concordamos que quem o chantageou não pode ser o sr. Cather. Agora, quanto ao chantagista. Este nome, Milton Thales... pronunciou-o assim e quase todos os americanos o fariam. Mas se eu pronunciar Ta-les, isso aviva a sua memória?
— E deveria?
— Sim.
Ele estava com a testa franzida:
— Ta-les... ora, é mesmo. Um grego antigo... eclipse do sol... geometria...
Wolfe acenou com a cabeça:
— Isso basta. Um nome famoso na história da matemática. Tales de Mileto. Milton Thales. Barry Fleming, cunhado da srta. Kerr, ensina matemática no ginásio. A srta. Kerr disse seu nome para a irmã, e ela contou para o marido. Por isso sei o nome do chantagista.
— Ta-les — disse Ballou. — Tales. Mileto. Milton. Por Deus, acho que acertou. E Isabel... a srta. Kerr me afirmou que não dissera meu nome a ninguém. Ela mentiu. Quantos mais saberão!
— Provavelmente mais ninguém. Essas duas pessoas eram especiais para ela. Acredito que só cinco pessoas sabem de sua ligação com a srta. Kerr: o sr. Cather, o sr. e a sra. Fleming, o sr. Goodwin e eu. E só três pessoas sabem que houve chantagem, além do chantagista: o sr. Goodwin, o senhor e eu. Os dois homens que estão lá em cima, onde nada podem ouvir, sabem sobre a chantagem, mas não seu nome. Chamo a sua atenção para um detalhe. Meu objetivo é soltar o sr. Cather antes que o acusem de homicídio. É provável que pudesse conseguir isso simplesmente contando à polícia que o sr. Fleming estava fazendo chantagem. Pelo menos atrairia a atenção deles para outro lado, mas não pretendo ou desejo fazer isso. Devo-lhe alguma consideração, já que foi por seu intermédio que soube da chantagem. Devo-lhe muito.
Ballou esticou a mão e bateu no pacote:
— E há isto, também.
— É seu. Não o aceitei. Nem aceitarei, até concluir, com certeza, que não matou aquela mulher. Um chantagista não é ipso facto um assassino. Devo-lhe muito, pois gastamos quatro dias inúteis tentando encontrar alguém com um motivo plausível e falhamos. O motivo que sugeriu para o sr. Cather serve admiravelmente ao sr. Fleming. Agora uma pergunta: após o primeiro telefonema do chantagista, quanto tempo depois o senhor contou à srta. Kerr?
— Imediatamente. Um ou dois dias depois.
— Falaram nisso mais alguma vez? Ela ou o senhor?
— Sim. Ela me perguntou duas ou três vezes se ainda continuava. Contei-lhe sobre o telefonema em dezembro. A última vez que me perguntou foi em janeiro. Em meados de janeiro.
Wolfe concordou:
— Ela sabia que deveria ser seu cunhado e disse-lhe que parasse com isso, e ele...
— Melhor ainda — interrompi. — Ela ia denunciá-lo. Contar à irmã. Talvez achasse melhor parar do que matá-la, mas preferia matá-la a deixar que sua esposa soubesse. Talvez não seja ipso facto um assassino, mas ipso Archie Goodwin ele é.
— O sr. Goodwin se precipita, algumas vezes — disse Wolfe a Ballou. — Já viu e conversou com o sr. e a sra. Fleming, durante bastante tempo. — Apontou para o pacote. — Esse dinheiro. Se eu o merecer, quero recebê-lo, mas não pode me contratar agora. Meu propósito é inocentar o sr. Cather; o seu é evitar que seu nome se torne público. Se conseguir servir aos seus propósitos, sem prejudicar os meus, é o que farei. Quando for embora, leve o pacote; aqui, no meu cofre, poderia afetar os meus processos mentais. Há...
— O que vai fazer? — perguntou Ballou, de novo arrogante.
— Não sei. O sr. Goodwin, sr. Durkin, sr. Panzer e eu vamos fazer uma reunião agora. — Olhou o relógio: — Já é quase meia-noite. Se não quer que mais dois homens saibam do seu segredo, vá embora.
CAPÍTULO XI
NA SEXTA À TARDE, à uma hora, eu estava sentado numa cadeira num quarto de hotel, junto a uma atraente jovem, na cama.
Na reunião de quinta à noite, que durara mais de duas horas, foram discutidos vários procedimentos. Dois deles — conseguir um retrato de Ballou para mostrá-lo aos empregados do Correio Geral e descobrir se vinha gastando mais dinheiro do que deveria — foram descartados logo de saída, pois só confirmariam a chantagem, e isso já era considerado como certo.
Um ponto óbvio era descobrir onde estivera sábado de manhã, mas não estávamos prontos para isso. Se não tivesse álibi, seria fácil. Se tivesse, deveríamos esperar para destruí-lo, assim que soubéssemos de alguma coisa que o incriminasse. Teríamos de arranjar três retratos dele, de alguma forma, um para Saul, um para Fred e outro para mim, e percorrer novamente a vizinhança, a fim de descobrir se alguém o vira no sábado de manhã. É claro que os tiras vinham fazendo isso há quatro dias com retratos de Orrie. Fred concordava e Saul estava disposto a tentar, mas Wolfe vetou a idéia. Disse que estava cansado de banalidades.
Daríamos tudo a Cramer. Saul sugeriu, e creio que tinha razão. Podíamos dizer tudo, exceto o nome de Ballou. Não nos prejudicaria, não iria impedir nosso trabalho e daria a Cramer alguma coisa para pensar, e na qual trabalhar, além de Orrie Cather. Se no meio das impressões que estavam no apartamento houvesse algumas de Fleming, ou uma que fosse, o caso iria para frente. Wolfe não concordou. Argumentou que seríamos uns ineptos se chamássemos a polícia para investigar Fleming antes de nós; no mínimo, arrancariam o nome de X de Fleming ou da esposa, e isso nós não déramos nem a Saul e a Fred. Os cinqüenta mil não estavam no cofre, para não afetar os seus processos mentais, mas ele sabia muito bem onde estavam.
Eu fiz a sugestão que lhe deu uma idéia brilhante. A sugestão nada tinha de brilhante; simplesmente traria os Fleming ao escritório para conversar com Wolfe. Como era do nosso conhecimento, muitas pessoas contavam mais do que pretendiam ao conversar com Wolfe; por isso, por que não dar uma oportunidade a eles? Saul e Fred ficariam escutando no buraco na sala da frente, e depois teríamos outra reunião. O único que os tinha visto era eu. Saul e Fred acharam ótima a idéia, mas Wolfe continuou sentado, Olhando-me aborrecido, o que era natural, pois teria outra reunião com uma mulher. Ele continuou sentado e aborrecido, e nós ficamos sentados, olhando-o. Após cerca de meio minuto, falou:
— Seu livro de notas.
Girei a cadeira, apanhei-o e uma caneta.
— Uma carta. Papel timbrado comum. Para o sr. Milton Thales, aos cuidados do sr. Barry Fleming, e o endereço. Caro sr. Thales. É um truísmo que as pessoas dotadas de um aumento repentino de rendimentos frequentemente gastam tudo, vírgula, ou quase tudo, vírgula, em coisas que anteriormente não podiam adquirir. Ponto parágrafo. É possível que o senhor seja um admirador de orquídeas, vírgula, e que gostasse de comprar alguns pés de orquídea com uma parte dos cinco mil dólares de renda extra que recebeu durante os últimos quatro meses. Ponto. Se este for o caso, vírgula, terei prazer em lhe mostrar a minha coleção, vírgula, caso telefone marcando um encontro. Sinceramente seu.
Joguei o caderno na mesa.
— Maravilhoso, isso fará com que ele venha e ela não. Talvez. Se for para o endereço de sua residência e ela estiver lá quando for entregue e ele não, pode ser que venha ela, mas não ele. De acordo com as estatísticas, 74 por cento das esposas abrem as cartas, com ou sem o auxílio de uma chaleira. Por que não mandá-la para a escola?
— São duas horas da madrugada de sexta — disse Saul. — Ele só a receberia na segunda.
Wolfe resmungou. Eu disse:
— Diabo!
— A idéia é ótima — falou Saul. — Ele vai começar a suar antes de vir para cá, e isso já ajuda, e terá de vir. Mesmo que não a tivesse matado, teria de vir. Mas posso sugerir uma correção?
— Sim.
— A carta poderia ser mais ou menos assim... está com o caderno, Archie? Caro sr. Thales. Como sabe, vírgula, eu era a amiga mais íntima de Isabel, vírgula, e contávamos muita coisa uma à outra. Uma das coisas que ela me contou foi como o senhor conseguiu aqueles cinco mil dólares e como ela se sentia quanto a isso. Não revelei a mais ninguém porque ela me disse em confiança... não, mude isso. Mude 'porque ela me disse em confiança' para 'porque lhe prometi não dizer a ninguém'. Depois: talvez o senhor deseje demonstrar a sua gratidão dando-me parte dos cinco mil, vírgula, pelo menos a metade. Espero que os traga até domingo à tarde. Trabalho à noite. Meu endereço está na parte superior e o meu telefone é... Seria assinada por Julie Jaquette. Creio que deveria ser manuscrita; duvido que use uma máquina de escrever.
Fred disse:
— Aí ele a mata e nós o agarramos.
Saul concordou:
— Matará se nós deixarmos, e se matou Isabel Kerr. Se já estiver acostumado. — Para Wolfe: — Creio que seria mais rápido do que se viesse do senhor. Eu sou um rato, não iria conseguir que ela a escrevesse, mas Archie pode.
— Claro — falei. — Direi a ela que lhe mandarei orquídeas no seu enterro. — Olhei para Wolfe: — Você disse que gostaria que ela passasse bem.
— Então você vai levantar dificuldades — disse Wolfe.
— Não, senhor. Gosto da idéia. Estou apenas dizendo que não vai ser fácil convencê-la; se concordar, não podemos perdê-la de vista por um segundo. E se não concordar? Ela mesma disse que ninguém a induz a nada.
— Mas você gosta da idéia?
— Sim. Se não der certo, colocaremos a culpa em Saul.
— Culpar alguém é tolice. O conteúdo da carta é importante. Leia.
Foi por isso que, na sexta à tarde, uma hora, estava sentado numa confortável poltrona, num quarto do 9.° andar do Hotel Maidstone, Parque Central Oeste, na quadra dos Setenta. Julie Jaquette não estava estirada na cama; encostada em três travesseiros, bebia sua terceira xícara de café; já comera torradas, ovos com bacon, pão doce com geléia de morango, enquanto eu lhe explicava o negócio da chantagem, inclusive Ta-les de Mileto, mas sem falar no nome de Ballou. Era um quarto grande e agradável; ainda mais agradável pelo vaso com um ramo de Vanda rogersi que eu lhe trouxera, colocado sobre uma mesa. Colocara uma das flores na frente do decote em V da roupa que usava, uma coisa azul-claro com mangas e sem babados. Dissera que de manhã, na cama, ela era feia, mas na verdade não era nada má. Olhos brilhantes, cara limpa e um tipo de robustez misturado com dureza.
— Pobre Isabel — disse ela. — Isso é que é falta de sorte, um chantagista como cunhado e um assassino como namorado. Meu Deus.
— E um burro como amigo.
— Ela só tinha uma única amiga. Eu.
— Certo. Só a chamei de burra, profissionalmente. Se falasse em termos pessoais, chamaria de gatinha, coelhinha ou cordeirinha. Faça...
— Você se dá conta que isto é uma cama? Que eu podia esticar meu braço e o agarrar?
— Sim, vigio cada movimento que faz. Chamei-a de burra profissionalmente porque, no minuto em que ouviu que sua amiga Isabel fora assassinada, você decidiu que o culpado era Orrie Cather e não se afasta dessa idéia, nem mesmo quando o terceiro detetive mais esperto de Nova Iorque lhe dá uma vantagem de dez a um. Seria...
— E quem são os dois mais espertos?
— Nero Wolfe e eu, mas não diga que fui eu quem contou. Levaria uma hora para explicar por que nós três inocentamos Orrie, e mesmo assim talvez você não mudasse de idéia. Mas agora acho que sabemos quem a matou. O chantagista. Barry Fleming. O marido da irmã dela.
Ela pôs a xícara na bandeja.
— É, você tem suas razões.
— Se quer dizer provas, não. Mas se há outro bom candidato, não pudemos encontrá-lo ou encontrá-la, e tentamos muito. Barry Fleming é perfeito. É óbvio que Isabel contou a Stella quem lhe pagava as contas... X, para você... e Stella contou a Barry, já que ele não poderia fazer a chantagem se não...
— Talvez eu seja burra, mas sei contar até dois e posso dizer o alfabeto de trás para frente.
— Um burro poderia dizer de trás para frente. Quando X contou para Isabel que estavam fazendo chantagem, ela viu que deveria ser Barry. Tentou fazer com que parasse, mas ele não parou. Finalmente, disse que iria contar a Stella; provavelmente já ameaçara antes. Isso foi no sábado pela manhã. Disse-lhe que finalmente decidira contar a Stella, quando a visse naquela noite, e ele a matou. Conte até dois.
— Não me canse. — Empurrou a mesa, o vaso balançou e eu pulei para salvá-lo. Ela escorregou na cama, jogou um dos travesseiros ao chão e colocou a cabeça nos outros dois.
— Você é esperto, e também tem agilidade — disse ela. — Entraria facilmente no teatro como bailarino. Deixe seu nome com a moça na entrada. Contou isso tudo aos tiras?
— Não.
— E por que não?
Achei que não havia necessidade de lhe falar sobre os cinqüenta mil dólares:
— Porque gostam de culpar Orrie, ele está preso e não temos provas. Nem uma só. A razão de estar lhe dizendo isto é que pensamos que você estivesse disposta a ajudar. Você realmente quer que o assassino vá para a cadeia, não quer?
— É claro.
— Então, pode ajudar. Você escreveria uma carta para Fleming, chamando-o de Thales, dizendo que quer os cinco mil dólares tirados de X, ou pelo menos a maior parte. Diga que Isabel lhe contou tudo, talvez até insinue que você presume que ele a matou e sabe o motivo. É claro que ele teria de vê-la e, se matou Isabel, deveria matá-la, e para nós seria fácil conseguir provas disso. E então o pegaríamos. Final feliz.
Ela riu e a risada era tão gostosa que me contagiou e ri também. Quando parou, disse:
— Você não é casado, é?
Abanei a cabeça:
— Não.
— Nunca?
— Não. Já pedi umas mil em casamento.
— Aposto que sim. Fui casada uma vez, e que ano passei! Sabe o que vou fazer quando sair?
— Não.
— Vou ficar de pé na janela e olhar para fora e pensar que é uma pena que isso não vá funcionar. De qualquer forma, se vou ser assassinada, tudo o que você iria conseguir seria uma viagem ao cemitério. Esta carta... exatamente o que quer que eu diga?
Fiz um gesto com a mão:
— Esqueça disso. Uma piada é para se dar risadas, e eu já ri.
— Bolas. — Apontou-me o dedo. — Ouça. ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA. Você veio para me convencer. Não estrague tudo com uma piada boba. Dou dez contra um, vinte contra um, que você e Nero Wolfe já a escreveram e está com ela no bolso. Vamos vê-la.
Ela teria me apanhado, se não tivesse tido o trabalho de decorá-la. Eu disse:
— Graças a Deus, você decidiu não casar comigo. Ficaria exausto só para conseguir me manter ao seu lado. Muito bem, nós conversamos sobre o conteúdo da carta. Mas se você a escrever e eu a colocar no correio, a partir do momento em que ele a receber você se torna uma presa fácil. Amanhã é sábado. Se escrevê-la agora e eu a colocar no correio, ele irá recebê-la amanhã de manhã. Pode ser que se mexa rápido e tente qualquer coisa. Às dez horas, amanhã de manhã, estarei aqui fora, no corredor, e Saul Panzer, o rato, estará lá embaixo na recepção. Quando você sair, sairemos com você, e ficaremos ao seu lado; e você não vai tentar nada só para mostrar para que servem os homens ou não servem. Estaremos lá no Ten Little Indians, assim como Fred Durkin, e um de nós passará a noite aqui, no corredor. E continuaremos assim até que aconteça alguma coisa.
— Isso é loucura. Como poderia acontecer alguma coisa com esses homens todos, esses heróis, aqui?
— Deixe isso conosco. Não podemos tomar conta dos detalhes até que ele reaja. Você está disposta a tentar?
— Claro. Do modo que me convenceu, terei que tentar. De qualquer forma, quero tentar... Nunca ninguém tentou me matar e isso fará com que me sinta importante. Toda a minha vida quis me sentir importante.
— E todo mundo também quer. Mas vamos deixar claro uma coisa: você deve aceitar suges... deve obedecer ordens. Vai fazer exatamente o que mandarmos. Quer jurar na Bíblia?
— Não, alguns dos caras lá são terríveis, e as mulheres também. Um aperto de mão é o suficiente. Apertemos a mão. — Estendeu a mão.
Era um contato puramente profissional, mas na verdade tinha mãos atraentes, e eu lhe disse isso.
— Antes de começarmos a escrever a carta — eu disse — devo mencionar a possibilidade de Stella abri-la e lê-la. A situação, assim, seria totalmente diferente, mas talvez seja até melhor. De qualquer modo, amanhã é sábado e ele provavelmente estará em casa. Agora, quanto à carta: pensamos em endereçá-la a Milton Thales, aos cuidados de Barry Fleming, mas isso seria só uma jogada. O sr. Wolfe gosta de jogadas. Como você o chamaria, Barry ou sr. Fleming?
— Como nunca o vi, sr. Fleming.
— Certo. Em papel timbrado do hotel. Caro sr. Fleming. Como sabe, eu era a melhor amiga de Isabel, e contávamos tudo uma à outra. Ela me falou sobre Milton Thales, como o senhor conseguiu aqueles cinco mil dólares e como ela se sentia quanto a isso. Disse-me também que ia contar à irmã dela, mas que antes o avisaria. Isso não me surpreendeu, pois a conhecia muito bem. Mas fico imaginando se teria alguma coisa a ver com o que lhe aconteceu, e gostaria de saber. Outra coisa, considerando a forma como conseguiu esses cinco mil dólares, não creio que devam ficar com o senhor. Penso que deveria dá-los a mim e eu daria a alguma instituição de caridade. Espero que me procure em breve. Moro neste hotel. Atenciosamente. É claro que podemos alterar as palavras, contanto que todos os pontos sejam cobertos.
Ela estava de testa franzida:
— São muitas mentiras para uma carta tão curta.
— Só uma mentira: que ela lhe contou. Na verdade, quem lhe contou fui eu. Todo o resto é verdade. Você realmente ficou imaginando se isso tinha alguma coisa a ver com o que aconteceu e gostaria de saber. Está se arriscando para descobrir.
— Estou me arriscando porque você, com sua fala macia, me convenceu. Nunca pensei...
— Um momento. Não há possibilidade de minha fala macia convencer você a fazer o que não quer. Você quer fazer isto?
— Maldito seja, quero. — Sentou-se, e a orquídea caiu do V. — Vá para o outro quarto e eu sairei em dez minutos. Não posso escrever na cama.
Tomei nota de quanto tempo levou. Foram vinte e dois minutos. Ninguém é perfeito.
CAPÍTULO XII
EM 1958, UM HOMEM CHAMADO Simon Jacobs não deveria ter sido esfaqueado até a morte e seu corpo arrastado para trás de um arbusto no parque Van Cortland, mas foi, e Nero Wolfe e eu nunca mais nos esquecemos disso. Deveríamos ter previsto que isso poderia acontecer e tomado providências, coisa que não fizemos. Para esse tipo de mancada, uma vez é mais que suficiente, e isso justifica o fato de eu não ter chegado ao Hotel Maidstone às dez horas de sábado. Cheguei às nove e meia. A entrega de correspondência na cidade de Nova Iorque é terrível, mas havia uma chance num bilhão de o carteiro chegar ao número 2.938 da avenida Humboldt mais cedo, àquela manhã, e pelo metrô é rápido.
O gerente de um hotel não gosta quando um hóspede lhe diz que quer colocar um guarda do lado de fora de sua porta porque acha que vai ser assassinado; assim, nada contamos ao gerente do Maidstone. Em vez disso, convidamos o tira do hotel, quero dizer, o agente de segurança, para o quarto, e Julie Jaquette lhe contou que um homem a vinha importunando e dissera que talvez até tomasse um quarto no hotel, e ela não queria encrenca. O fato de ele já ter ouvido falar de Nero Wolfe e Archie Goodwin ajudou, e eu lhe passei uma nota. Ofereceu-se até para providenciar uma cadeira.
Como eu trouxera o Times e uma revista, não precisei inventar jogos para passar o tempo. Nas maçanetas ela colocara avisos de 'Favor não perturbar', e as camareiras não entraram no quarto. Durante toda a manhã o tráfego foi fraco. Espero que não pensem que sou um esnobe, mas decidi que preferia os moradores do 7.° andar na Avenida Humboldt, 2.938, aos do 9.° andar do Hotel Maidstone. Eles também tinham uma aparência de estarem preocupados, mas tinha a impressão de que agüentaria ouvir os seus problemas. É claro que as pessoas em hotéis não são como as pessoas de casa. Tentava responder por que isso seria assim quando uma das portas, a do quarto de dormir, abriu-se o bastante para que ela enfiasse a cabeça e perguntasse:
— O que deseja comer no almoço?
Olhei para o relógio. 11:50h.
— Eu me arranjo. Mais tarde vai subir um empregado. Já está tudo providenciado.
— Ah-ah, você está relaxando. Vou pedir o café. E se ele der um jeito no garçom e envenenar o café? Terá de prová-lo. Senão, para o que você serve?
— Peça dose dupla.
— Sempre tomo ovos com bacon. Vou abrir a outra porta.
E foi o que fez. Num minuto a porta se abriu um pouco, mas não entrei. Lembre-se de Simon Jacobs e dê uma olhada no garçom enquanto ele estiver aqui fora, no corredor. Às vezes acontece de a diferença entre ser sensato e ser tolo não depender de você, mas de alguém ou de outra coisa. Daquela vez era tolice ficar no corredor Para dar uma olhada no garçom. Quando ele chegou, às 12:30h, empurrando o carrinho de comida pelo corredor, fiquei vigiando, enquanto entrava na porta do quarto, e então fui para a outra.
A refeição foi servida no quarto de dormir, ela na cama e eu à mesa que o garçom trouxera. Estava com a mesma roupa azul da véspera, o que me fez sentir em casa. Como Fritz nunca frita ovos, eles me fazem sentir que estou fora de casa. Falamos sobre Isabel, ou melhor, ela falou. Vinha tentando encontrar um modo de persuadi-la a desistir de se casar, e achava que talvez tivesse conseguido. Explicou-me que a razão de não haver um bom marido é porque não existe uma boa esposa, e vice-versa, e como se pode sair dessa situação? Já estávamos comendo pão doce com geléia, e ela me dizia como Isabel tinha razão ao achar que não servia para o teatro, quando o telefone tocou e ela se virou para atendê-lo.
A primeira coisa que disse foi "Alô", e a segunda coisa foi "Sim, sr. Fleming, aqui é Julie Jaquette", e corri para o outro quarto, apanhei o telefone, mas não ouvi muita coisa. Ele disse: "Duas horas, está bem?", e ela disse "Duas e meia seria melhor", e ele: "Está bem, estarei aí." E foi tudo. Ao entrar novamente no quarto, perguntou-me se ouvira a conversa; eu disse que sim e fui até a mesa. Ela falou:
— Acho melhor decidirmos a qual instituição de caridade daremos o dinheiro. Ou já decidiu isso também?
— Isso não tem graça — respondi, servindo-me café. — Vou chamá-la de Julie.
— Isso também não tem graça. Será que ele vai trazer seu próprio cinzeiro?
— Claro. Presumo que ele vem aqui.
— Sim.
— Eu lhe disse que não poderíamos tomar conta dos detalhes até vermos como ele reage. Certamente não pretende chegar, mandar telefonar, tomar o elevador, entrar, matá-la e sair de novo.
— Então você pode ficar no armário. Ou aqui. — Empurrou a mesa que ficava sobre a cama. — Vou me vestir com a minha melhor roupa. Leve o café para o outro quarto..
Obedeci. Para um hotel, a sala de estar não era feia. Havia um tapete verde-escuro, paredes pintadas de verde-claro, cadeiras e um sofá grande, com uma janela para o Parque Central. Depois de terminar o café, fui à janela a fim de dar uma olhada. Era sábado, mas também era fevereiro, e tudo estava parado no parque. Sob as árvores havia ainda um pouco de neve, mas só se podia chamá-la de branca porque não era negra.
Quando Julie entrou, estava de preto: um vestido preto bem simples, com manga curta e sem enfeites. Sei quando as coisas assentam bem, e do modo que assentava nela, demonstrava por que ela o chamava de seu melhor vestido. Elogiei-a e a levei até a janela.
— Vou lhe dar uma ordem — eu disse. — Está vendo aquela parede de pedra ali? A que horas você chega do trabalho?
— Cerca de uma e meia. Minha última canção é a uma hora.
— Ótimo. O parque estará vazio. Por isso, quando chegar em casa hoje à noite, acenda as luzes e fique aqui olhando para o parque, e o homem atrás do muro de pedra, com o rifle encostado na parede, puxa o gatilho e, se ele for bom, você cai. Portanto, você não deve ficar em pé aqui e olhar para fora. Antes de sair, deve abaixar a persiana e fechar a cortina. Isto é uma ordem.
— Uma ordem muito tola. Aqui em cima? Neste ângulo? Pegue um rifle e tente. Você nem atingiria a janela.
— Pois, sim. Antes dos meus 12 anos matei muito esquilo com um 22 em árvores quase desta altura. Vai obedecer às ordens ou não?
Ela concordou, e fomos nos sentar no sofá enquanto discutíamos o que fazer. Ela queria que eu ficasse no outro quarto, escutando, e dava as razões para isto: se ficasse na sala com ela, poderia dizer alguma coisa que ele não gostasse, mas à qual ela não poderia fazer objeção, com Fleming lá. Os ânimos se esquentaram e a uma certa altura ela ameaçou sair da história, deixando que eu o recebesse lá embaixo, mas finalmente concordamos que ficaria presente, para ser visto e não ouvido, a não ser que eu pensasse ser absolutamente essencial. Mal nos falávamos quando o telefone tocou e informaram que o sr. Fleming estava na portaria e queria subir. Fiquei no sofá e não me levantei quando bateram à porta; ela foi abrir e ele entrou. Vendo-os, e não sabendo da situação, pensar-se-ia ser ela, e não ele, que precisava ser vigiada. Ela se virou para fechar a porta e ele se virou para mantê-la sob seus olhos, e só depois de ela passar, ele se virou e me viu.
Ele falou "oh", mas sem saber que dissera alguma coisa. Ficou nos olhando. Julie encarou-o e disse:
— Acho que já conhece o sr. Goodwin. Dê-me o seu casaco.
Sua boca abriu, mas não saiu nenhum som. Tentou novamente e conseguiu:
— Pensei que você... pensei que era particular.
Ela fez sinal, concordando:
— Suponho que preferiria manter isso só entre nós dois, mas pensei que seria melhor ser cuidadosa com um... com o senhor. Está com o dinheiro?
Ele tinha problemas com os olhos. Queria olhar para ela, mas os olhos queriam me incluir também.
— Creio que está havendo um mal-entendido muito sério. Creio que Isabel lhe disse algumas coisas que não são verdade. Receio...
— Que tolice. Milton Thales. Ta-les. Sei exatamente onde arranjou esse nome e de quem o tirou. Só não contei aos tiras porque Isabel não gostaria disso. Ela queria que o senhor devolvesse o dinheiro, e é o que estou fazendo. Creio que também gostaria que contasse à irmã dela, e é o que eu deveria fazer, mas antes quero o dinheiro. Está com ele?
— Não. Realmente, srta. Jaquette...
— Bolas. — Virou-se para mim: — O que acha, sr. Goodwin?
Ainda por cima, toda formal. Podia ter-me chamado de Archie.
— Acho que está perdendo seu tempo — eu disse. — Acho que devíamos chamar o inspetor Cramer para vir buscá-lo. Sugiro Cramer porque ele é o encarregado de homicídios, e talvez esteja interessado.
Levantei-me e me dirigi à mesa onde estava o telefone, levantei-o do gancho e comecei a discar.
A voz de Fleming não era um grito, mas bem alta:
— Não!
Virei-me:
— Não?
— Vou-lhe dar o dinheiro. — Do ângulo em que eu estava, a luz refletia nas maçãs do seu rosto. — Não pude apanhá-lo hoje, o banco está fechado. Trago segunda-feira.
Coloquei o telefone no gancho. Julie disse:
— Quero tudo. Cinco mil.
— Sim, naturalmente. — Seus olhos me acompanharam até o sofá e viraram-se em seguida para ela. — Quando disse... não creio que Isabel quisesse que contasse à minha mulher, agora que ela... tenho certeza de que não gostaria. Prometa-me que não o fará. Vou lhe dar o dinheiro.
Julie abanou a cabeça:
— Não prometo nada.
— Prometa-me que nada lhe contará antes de segunda-feira. Podemos falar sobre isso na segunda. Posso lhe dizer por que... falaremos sobre isso.
Então falei, pois considerava essencial ele saber que ainda tinha algum tempo para gastar:
— Também estou presente. Não posso falar pela srta. Jaquette, mas falo por mim. Prometo nada dizer à sua esposa até que tenha devolvido o dinheiro, contanto que seja na segunda-feira. Então veremos.
— Está bem — falou ela. — A promessa de Archie nada vale sem a minha. Também prometo.
Colocou o chapéu na cabeça. Se tivesse consciência de que colocara o chapéu num quarto de senhora, e com ela presente, ficaria chocado. Queria dizer mais alguma coisa, mas não sabia o quê; virou-se, todo duro, bem devagar, e se dirigiu para a porta. Esqueceu-se novamente de sua educação, pois ao fechar a porta deixou uma pequena fresta aberta. Julie foi lá, empurrou-a até fechar, voltou para o meu lado e perguntou:
— Como me saí?
— Péssima. Você me chamou de sr. Goodwin e depois de Archie. Ele vai pensar que você não sabe o que quer.
— Acho que você é quem não sabe. Pensei que a idéia fosse acuá-lo para me matar.
— Para tentar isso. Assim soa melhor, agora que já estou acostumado com você.
— Está bem, você estragou tudo. Devia ter ficado no outro quarto. Agora ele sabe que terá de matá-lo também.
— Não sabe. Já não lhe expliquei? Sente-se. — Bati com a mão no sofá e ela sentou. — É simples. Ele pensa que não irão prendê-lo por assassinato sem você, pois é a única que pode dar um motivo para isso. Obviamente, você não iria ao tribunal jurar que Isabel lhe afirmara que iria dizer a ele que contaria a Stella sobre a chantagem, mas ele acha que sim. Ele também acha que você irá contar a Stella, não antes de segunda, mas logo após, e aparentemente isso, para ele, é o pior, não sei por quê; ele deve ver nela coisas que não vejo. Por isso você é perigosa, mas eu não sou. Meu testemunho é de ouvir dizer. Sob o ponto de vista dele, só posso contar o que você me disse, mas você pode contar o que a própria Isabel lhe falou. Isso vale tanto para o tribunal como para Stella. Ela provavelmente acreditaria em você, mas não em mim. Não temos uma única prova que o ligue com a chantagem ou com o crime, mas se ele lhe der cinco mil dólares em dinheiro, isso seria uma prova. Ele nunca lhe dará o dinheiro. Por isso você terá de ser calada, mas eu sou só uma amolação. Desculpe.
— Bem, você me envolveu...
— Até o pescoço. Peço desculpas por uma coisa. Devia ter dito que, uma vez começado o jogo, você não poderia sair. Desculpe.
— Não quero sair. Acho que ele a matou.
— É claro que sim.
— O que faremos agora?
— O que você planejou, caso possa levar um acompanhante. São três horas da tarde de um sábado. Se quiser sair, Saul Panzer está lá embaixo. Se ficar, estarei no corredor.
— Joga biriba?
Respondi que sim e assim passamos a tarde, depois de ter descido e dito a Saul que estava livre o resto do dia, contanto que chamasse Fred e lhe dissesse para estar na entrada ou no salão do hotel às 6:55h, preparado para passar a noite no corredor do 9.° andar, depois que voltássemos do Ten Little Indians. As três horas de biriba me custaram 8 dólares e 75 centavos. Ela não era tão boa assim e eu não sou tão ruim, mas como ela ia perder dez dólares para Saul por causa de sua aposta, achei melhor facilitar um pouco. Ela baralhava as cartas melhor do que qualquer pessoa que conheço, exceto Lou Cohen. Paramos às seis horas para os sanduíches e o café, pedidos ao serviço de quarto, e para ela mudar de roupa.
Já conhecia alguns cantos de Manhattan, onde fora em quase todos com Lily Rowan, mas nunca estivera no Ten Little Indians, na rua Monarch. Passei a noite lá dentro, no camarim de Julie, que era muito grande, cerca de cinco por sete e meio, bem de acordo com a atriz principal num lugar que cobrava quatro dólares de couvert. Enquanto ela estava no seu campo de batalha, permaneci na retaguarda, num dos flancos; Fred no centro, perto da porta. Julie merecia o que ganhava, cerca de mil dólares por semana, talvez mais. Isto não é um relatório sobre uma artista, por isso só direi o seguinte: merecia o que ganhava. A multidão de sábado à noite certamente também pensava assim; gostava dela. Por falar nisso, eu também, mas por outros motivos. Um deles gostava tanto dela que apareceu em seu camarim cerca de meia-noite, tão bêbado que tive de ser muito cuidadoso para não derrubá-lo.
Quando nós três saímos para a noite fria de inverno, não tivemos problemas com táxi, pois Julie contratara um motorista de táxi para apanhá-la toda noite, à 1:15h da madrugada. Durante a ida para o hotel, ela e Fred recomeçaram uma discussão iniciada na ida para a boate: haviam concordado que seria uma boa idéia ela alugar um de seus quatro filhos para o verão e estavam discutindo qual deles e qual o preço. Conhecendo-o, eu esperava que ela não acreditasse que ele falava sério, e conhecendo-a, esperava que ele não pensasse que ela falava sério.
Quando paramos na frente do Maidstone, o porteiro lá estava para abrir a porta. Saímos e o táxi foi embora. Não ia entrar; devia substituir Fred no corredor às dez horas e devia já estar na cama há duas horas. Estávamos juntos na calçada, Julie no meio, quando dispararam o primeiro tiro. Reagi ao barulho, um estampido seco e alto, e Fred reagiu a bala, embora não percebesse logo isso. Ele caiu. Não tenho certeza se o segundo tiro foi disparado antes, depois ou enquanto eu me jogava sobre Julie. Vocês acham que minhas maneiras seriam mais delicadas se eu apenas a protegesse. Concordo. Mas para fazer isso direito tem-se de saber de que direção vêm as balas. Depois que ela estava no chão, a protegi. Virei-me a fim de olhar para cima e o idiota do porteiro estava de pé, com a boca aberta, olhando para o outro lado da rua. Não houve mais tiros. Disse a Julie:
— Fique deitada, não se mexa.
Assim que fiquei de pé, Fred disse:
— O danado me acertou.
Estava apoiado sobre um joelho, com a outra perna estendida, segurando-se com a mão. Perguntei onde, e ele disse que na perna. O porteiro disse:
— Veio lá do muro, eu vi.
Julie não disse nada, felizmente. Olhei ao meu redor. Um garoto de recados estava saindo do hotel. Um homem e uma mulher haviam parado na esquina e estavam de olhos arregalados. Na outra direção, um policial vinha a galope. Disse novamente a Julie para ficar deitada e fui até o muro, aos pulos. Ele podia ser louco o bastante para ficar lá, pensando que ela se levantaria e assim poderia tentar de novo. Tive de pular para ver por cima do muro. Praticamente não havia luz, mas neve suficiente para ver uma coisa tão grande como um homem, e ele não estava lá. Quando voltei, o policial, inclinado sobre Fred, dizia ao garoto de recados para chamar uma ambulância. Julie não se mexera. Ajudei-a a levantar-se, disse a Fred que voltaria logo e a levei para o hotel. O tira disse para esperar, queria saber nossos nomes, e respondi que ele me ouvira dizer que voltaria, e continuei a andar. O homem da recepção e o ascensorista lá estavam, e um apanhou a chave enquanto o outro nos levou para cima. Julie tentava não tremer; conseguindo, decidi que ela não queria que eu a segurasse pelo braço enquanto andávamos do elevador até seu quarto.
Dentro, na sala de estar, ela falou:
— Aposto que meu casaco está imundo — e tirou-o antes que eu pudesse ajudá-la.
— É isso mesmo — eu disse — algum dia lhe direi como você é ótima, corajosa, esperta, não deu um pio, mas agora estou ocupado. Se estivesse 18 centímetros para a esquerda e fosse três centímetros mais alta, você agora estaria no céu. Sorte, foi só isso: pura sorte, e sou eu quem devia saber o que fazer. Vou lá embaixo ver como está Fred. Quando voltar, você já vai estar de malas prontas.
— Malas prontas?
— Certo. Vai para o que chamamos de Quarto Sul na casa de Nero Wolfe, o quarto acima do dele; tem três janelas que dão para o sul. Você vai gostar. É muito agradável no inverno.
Ela abanou a cabeça:
— Não... não quero me esconder.
— Ouça, gatinha, cordeirinho, amorzinho. Perdi o direito de dar ordens. Será que tenho de implorar, pelo amor de Deus?
Na calçada, já havia um grupo de pessoas, uma dúzia mais ou menos. Fred estava deitado de costas e o garoto colocara uma almofada sob sua cabeça. Uma mulher dizia que ele iria apanhar uma pneumonia. O policial e o porteiro estavam do outro lado da rua, junto ao muro de pedra. Abaixei-me e perguntei a Fred qual fora a perna, e ele respondeu que era a esquerda, um pouco acima do joelho, e do jeito que doía, devia ter atingido o osso. Perguntei se perdera sangue, e respondeu que não muito, pois pusera a mão em cima e não sentira sair muito, e perguntou:
— E ela, está bem?
Respondi que sim. Continuei:
— Quando voltar do hospital vou levá-la para casa comigo. Não quero...
— Você não vai a nenhum hospital. Leve ela agora. O tira fez umas perguntas, mas eu não sei nada, sei?
— É claro que sabe. Sabe que Nero Wolfe o contratou para ser seu guarda-costas, e só sabe isso.
— E já basta. Ui... Leve-a agora. Já estive em hospitais antes. Não a deixe sozinha. O maldito quase conseguiu pegá-la e nós estávamos ao seu lado. Só queria...
Parou porque o tira chegara. Queria nossos nomes, e dei alguns, os de Fred, Julie e o meu. Mais nada. Só sabia que alguém atirara. Primeiro ele decidiu bancar o durão, mas mudou de idéia, e aí chegou a ambulância. Esperei até que Fred fosse colocado nela. Então entrei no Maidstone e subi ao 9o andar.
Ao bater na porta, ouvi a voz de Julie:
— É você, Archie?
— Não. É um escoteiro.
Então ela abriu a porta e eu entrei. Ao seu lado estava uma mala grande e uma sacola grande.
— Não pedi que as levassem para baixo porque pensei que você talvez mudasse de idéia.
Apanhei as duas malas.
CAPÍTULO XIII
NO DOMINGO DE MANHÃ, às nove horas, entrei na cozinha, dei bom-dia a Fritz, apanhei suco de laranja na geladeira, sentei na mesa do café, bocejei, olhei de lado para The New York Times e esfreguei os olhos. Fritz aproximou-se com um papel na mão e perguntou:
— Estava bêbado quando escreveu isto?
Olhei para ele, piscando os olhos:
— Não, só exausto. Nem me lembro do que disse. Por favor, leia.
Ele pigarreou:
— Três e vinte da madrugada. Há uma convidada no Quarto Sul. Conte para ele. Farei seu café. A. G.
Deixou o papel cair na mesa:
— Contei para ele, perguntou quem era, e o que pude dizer? E você vai lhe fazer o café na minha cozinha?
Tomei um enorme gole de suco. Sugeri:
— Vamos ver se o que falo faz sentido. Só dormi quatro horas, exatamente a metade do que necessito. Quanto a dizer a ele quem é ela, isso é responsabilidade minha. Admito que é sua função fazer o café, mas ela gosta de ovos fritos, e isso você não faz. Vamos ao que realmente importa. Nesta casa há um homem mais alérgico do que ele a mulheres, e é você. Por Deus, eu estou sendo honesto! — Tornei a beber suco. — Não se preocupe, esta mulher tem alergia a homens ficarem na casa dela. Quanto aos ovos, faça-os... você sabe como... com vinho tinto e caldo de carne...
— Vinho da Borgonha.
— É isso aí. Com bacon canadense, Isso lhe mostrará para que servem os homens. Em geral, ela toma café às doze e trinta. Ainda estou disposto a lhe fazer o café, se...
Ele disse alguma coisa em francês, bem alto, talvez fosse um palavrão. Estava no fogão, fritando lingüiça. Peguei o Times.
Como Wolfe só vai à estufa por pouco tempo aos domingos, quando vai, pensei que lá pelas dez horas já teria descido. Mas ainda eram 9:50h, quando ouvi o barulho do elevador e depois seus passos no corredor. Já não o via desde sexta à noite, há quase quarenta horas. Em vez de parar no escritório, os passos continuaram, a porta se abriu e ele apareceu.
— Então, está vivo — disse.
— Mas é só isso. — concordei. — Não conte comigo para nada.
— Quem é a hóspede?
— A srta. Jaquette. Para você, srta. Jackson, Julie para mim. Ela também está viva, mas não é minha culpa. Atiraram nela esta manhã, à 1:30h, na frente do seu hotel, por trás do muro do Parque Central. Não vimos quem atirou. Fred foi atingido na perna e foi levado ao Hospital Roosevelt. Quando telefonei para lá, hoje de manhã, estava dormindo. Ontem à noite, ao chegar em casa, telefonei para a mulher dele. Liguei também para Saul e lhe disse para ficar de prontidão. Trouxe Julie comigo para casa porque, com Orrie preso e Fred no hospital, estamos desfalcados. Além disso, fiquei cansado de ouvir as balas passarem assobiando perto de mim. Ela toma café na cama, Fritz vai prepará-lo e eu o levarei para ela lá por volta de meio-dia e meia. Creio que isso abrange tudo.
— O atirador não foi visto.
— Não, senhor, mas era Barry Fleming. Sua reação à carta foi ir vê-la ontem de tarde. Isso deixou claro que era o chantagista, e o tiroteio provou que é o assassino. Portanto, agora só precisamos de provas. Mas creio que você quer um relatório completo.
Ele concordou e fomos para o escritório. A correspondência de sábado estava sobre a minha mesa, ainda sem abrir. Não sei por que ele faz isso, mas creio que é para me mostrar que não interferirá na minha rotina, se eu não interferir na dele. Fritz também não interferira: a parte de cima da minha escrivaninha estava mais cheia de pó do que costuma ficar num dia. Coloquei meu exemplar do Times na mesa e sentei-me em cima, começando o relatório. Só foi verbatim em certos trechos, os que achei essenciais, pois pensei não haver necessidade de ele saber que ela me perguntara se eu sabia que aquilo era uma cama ou que eu a chamara de coelhinha. Em geral, quando termino, ele abre os olhos e se apruma na cadeira, mas daquela vez ficou um minuto inteiro sem se mexer. Finalmente, recomecei a falar:
— Se está esperando comentários, nada tenho a dizer. Podia dizer que sabemos quem foi, mas não podemos provar; isso é óbvio. Quanto à noite passada, ele possui um rifle, ou conseguiu um, mas onde o conseguiu? Saul e eu vamos procurar as respostas, e depois o que faremos? A primeira bala atingiu o osso de Fred e o atravessou, indo bater no prédio, que é de pedra, e a segunda provavelmente acertou no prédio. Precisaríamos de mais de seis especialistas para identificar as balas como vindas de seu rifle, três de cada lado. Se ele tivesse acertado e a matasse, isso seria...
— Bolas. Isso é besteira. Temos o que procurávamos, isto é, a prova de que nossa teoria de ele ser o assassino está correta. Há alguma dúvida de que agora poderemos libertar Orrie?
— Não.
— Então isso não nos preocupa mais. Suponha que vamos em frente, arranjamos uma prova conclusiva de que Fleming matou Isabel Kerr, é isso o que queremos? Se a conseguirmos, e dermos ao sr. Cramer, o que acontecerá?
— Três coisas. Uma, vão deixar Orrie de lado bem depressa. Duas, Fleming será preso, julgado e provavelmente condenado. Três, tentarão manter o nome de Ballou fora de tudo, mas não conseguirão. Não, são quatro coisas. Quatro, você não vai conseguir pôr mais os olhos naquele pacote de dinheiro.
Ele acenou:
— O que foi que eu disse a ele?
— Se conseguir fazer o que ele quer sem prejudicar seus interesses, você o fará.
— E então?
— Bem, você pode tentar. Hoje são seis de fevereiro, e até agora não entrou nada ainda, nada temos em vista, e sei quanto sai em dinheiro, pois sou eu quem faz os cheques. Quer minha opinião?
— Sim.
— Não sei como iremos conseguir isso. Se vamos libertar Orrie, e é o que faremos, teremos de entregar Fleming, com ou sem provas, e ele lhes dará Ballou, e a polícia deverá visitá-lo. Esse é o problema. Mesmo que mantenham tudo em segredo e não deixem os jornais saberem o nome dele, é lógico que no tribunal o nome vai aparecer, e aí ele vai achar que não lhe deve nada. E você também pensará assim. Como sabe, sou muito a favor de receber pagamento. Detestaria que um cheque meu fosse devolvido por falta de fundos. Mas você pediu a minha opinião.
— Você não entendeu. Quero a sua opinião sobre o risco, não sobre a possibilidade. Será que isto colocaria em risco a nossa finalidade?
— Não. É como se Orrie já estivesse fora da cadeia.
— Então não há risco algum. O problema é expor o assassino sem...
A campainha tocou, fui até o corredor, dei uma olhada e voltei;
— É Cramer. Diga a Fritz para abrir. Vou lá em cima dizer a ela que não cante "Homem forte vá-vá" com a porta aberta.
E dirigi-me para a escada.
A porta realmente estava aberta, embora se encontrasse fechada quando passei por ela às nove horas. Levantei a mão para bater na porta, mas não foi necessário, pois ouvi-a dizer:
— Meu Deus, você já está de pé e todo vestido.
Estava sentada numa cadeira perto da janela. Seu pijama era verde-escuro com listras; os pés descalços, o cabelo todo despenteado. Fechei a porta.
— Sabe — comentou ela — abri a porta só pelo prazer de abri-la. Há anos que não tenho um quarto onde possa deixar a porta aberta. Estou de pé porque acordei. Nunca fico acordada na cama, a não ser que esteja lendo ou comendo.
Respondi, aproximando-me:
— Infelizmente, vai ter de esperar um pouco para comer. O inspetor Cramer está aqui. Ele provavelmente acha que você está aqui, pois o policial a viu sair comigo, mas talvez neguemos isso. Se admitirmos, e ele insistir em vê-la, podemos dizer que isso terá de ser adiado porque, após os acontecimentos da noite passada, você se encontra em estado de choque. Ou pode ser que o traga até aqui e acabemos logo com isso. Como preferir. Achei melhor lhe perguntar primeiro.
Empurrando o cabelo com a mão, observou:
— Um inspetor, hein?
— Sim. Um velho amigo nosso. Ao contrário.
— Preferia acabar logo com tudo.
— Está bem. Provavelmente vai querer vê-la sozinho, e não no escritório, pois sabe que lá existe um buraco onde ouvimos e vemos tudo. O que deseja tomar para esperar os ovos? Serve suco de laranja e café?
— Prefiro um suco de uva.
— Está bem. Fritz vai trazer, e mais tarde trarei Cramer. Ele talvez...
— Aqui?
— Lógico. O quarto tem escuta, mas ele não sabe disso, e estaremos ouvindo. Talvez lhe peça para ir com ele ao escritório do promotor público, mas você não irá. Para levá-la, por lei, precisaria de um mandado, e não o tem. Agora o...
— Como sabe que não o tem?
— Sei de tudo, exceto como ser guarda-costas de uma moça. Agora vem a pergunta principal. Lembra-se do roteiro? Do que dissemos ontem à noite?
— O que você disse. Sim.
— Vamos confirmar?
— Não. ZYXWVU...
— É mesmo, eu sempre me esqueço. Fritz vai trazer o suco e o café. Tranque a porta. Pode ser que o sr. Wolfe decida que você não está aqui, para ganhar tempo, e Cramer vai subir correndo para irromper no quarto. Uma vez dentro, a polícia pode se mover à vontade e ninguém pode impedi-la, mas não pode arrombar portas, ou melhor, não deve. Se alguém bater na porta, não responda.
— Que diabos. Eu devia estar dormindo profundamente.
Saí, dizendo que ela podia dormir a tarde inteira.
Ao entrar no escritório, parei ao ver uma cena inesperada, caseira e muito agradável. Não consegui ver Wolfe à escrivaninha, pois a página do jornal, aberta, o escondia. Na poltrona vermelha, Cramer lia a seção de esportes, com as páginas também abertas. Vendo que Cramer entrara e ainda estava lá, fui à cozinha, disse a Fritz qual o nome da nossa hóspede, pedi-lhe que levasse suco de uva e café, mas que não batesse à porta, só dissesse seu nome. Voltei ao escritório, onde Wolfe ainda estava escondido. Sentei-me à minha mesa e fiquei apreciando a cena alguns minutos. Aí tossi. Imediatamente Wolfe dobrou o jornal, colocou-o sobre a mesa e falou:
— O sr. Cramer quer saber sobre aquele incidente da noite passada. Já que você esteve lá e eu não, insisti em esperá-lo. — Virou-se e perguntou: — Sim, sr. Cramer?
Cramer dobrou a seção de esportes e colocou o jornal na mesinha ao seu lado. Olhou para Wolfe, dizendo:
— Você sabe que desejo saber por que eles escoltavam aquela moça, e de quem a protegiam. Se sabiam que estava em perigo, sabem quem disparou aqueles tiros. Durkin diz que não sabe, mas que você sim. Não preciso que Goodwin me diga isso. É possível até que ele não saiba, e você sim. Ataque com intenção de matar é delito grave, e você sabe quem o cometeu. E eu sou um oficial da lei. Está bem claro?
Wolfe concordou:
— Bem claro. Também está claro que seu verdadeiro interesse não é um ataque com intenção de matar, mas um ataque que já matou. Soltou o sr. Cather?
— Não. E eu não...
— Está pronto para soltá-lo?
— Não! Quero uma resposta. Quem disparou aqueles tiros contra a moça?
Wolfe virou-se para mim:
— Você sabe, Archie?
— Não, senhor, não sei. Posso dar palpites, mas não na frente de um agente da lei. Seria difamação. Poderia ser Orrie Cather, mas como está na cadeia isso o inocenta, a não ser que...
Cramer disse alto um nome que não repito aqui porque suspeito que alguns dos leitores dessas histórias são professoras aposentadas.
— Também não sei — disse Wolfe. — Sr. Cramer, por que não falamos francamente? O senhor veio aqui segunda-feira passada, fingindo que esperava colher informações que fortalecessem seu caso contra o sr. Cather, embora soubesse que nada conseguiria. Pelo menos, não do sr. Goodwin. O que desejava realmente era saber se o fato de eu apoiar o sr. Cather seria mais do que uma simples formalidade. E agora o que o senhor deseja é saber se conseguirá alguma prova que enfraquecerá seu caso contra o sr. Cather. Por que não ser sincero e me perguntar?
— Está bem, vou perguntar. Conseguiu?
— Sim.
— Que prova?
— Não estou ainda pronto a revelá-la.
— Meu Deus, e você ainda admite. Admite que tem provas num caso de assassinato e as está escondendo.
Wolfe concordou:
— Isto é um ponto interessante. Se eu suprimir provas que ajudem a condenar um homem por assassinato, estou atrapalhando a lei, sim. Mas se suprimo provas que ajudariam a libertar um homem, isso também é obstrução da lei? Creio que, juridicamente, essa questão nunca surgiu. Podíamos perguntar a uns...
— Perguntar coisa nenhuma. Se tem provas que ajudariam a inocentar Cather, elas ajudariam a condenar outra pessoa. E eu as quero.
— Isso é tolice. Milhares de homens foram declarados inocentes por terem álibis, sem isso trazer culpa a outros. Não possuo provas, nenhuma mesmo, que ajude a condenar alguém pelo assassinato de Isabel Kerr. Tenho suspeitas, conjeturas, mas isso não é prova. Quanto ao fato de estarmos protegendo a srta. Jaquette, e os tiros disparados contra ela, em que isso afeta seus esforços para in-culpar o sr. Cather? Como o sr. Goodwin afirmou, não poderiam ter partido dele, já que se encontra detido. Sob suspeita de assassinato.
— Ele não foi acusado de homicídio.
— Você está com ele preso sem fiança. Consideremos uma hipótese. Suponhamos que a srta. Jaquette tivesse razões de recear que alguém pudesse usar de violência contra ela, razões essas que não queria revelar, e pedisse proteção e alguém atirasse nela. Acha que poderia obrigá-la a contar seu segredo, ou poderia me obrigar?
— Bolas. — Cramer estava ficando rouco. Sempre fica rouco quando conversa com Wolfe. — Agora é a sua vez de ser sincero. Você pode me dar a sua palavra de honra que a está protegendo e que os tiros disparados contra ela não têm conexão alguma com o assassinato de Isabel Kerr?
— É claro que não. Suspeito que haja uma ligação. Se for verdade, gostaria de conseguir provas.
—- Ainda não as conseguiu?
— Não.
Cramer tirou um charuto do bolso, enrolou-o na palma das mãos, colocou-o na boca, mordendo-o. Mas o ato de enrolá-lo soltara o papel que o cobria, e uma ponta subiu e lhe tocou o nariz. Ele tirou o papel, olhou-o zangado e jogou na direção da minha cesta de papéis, caindo perto. Bateu na borda e correu pelo chão. Transferiu o olhar zangado em minha direção e falou:
— Está bem, Goodwin. Onde está ela?
Levantei a sobrancelha:
— Está falando da srta. Jaquette?
— Sim, estou. Ontem à noite você saiu com ela. E a trouxe para cá.
Acenei, concordando:
— Isso é o que o sr. Wolfe chama de uma conjetura. O senhor não sabe se eu a trouxe, assim como não sei quem disparou os tiros. O senhor está pensando que vou despistar, mas não vou. Ela está no Quarto Sul. Estava lá, conversando com ela, quando o senhor chegou.
— Agora sou eu que vou bater um papo com ela. Vou subir. Sei o caminho.
— A porta está trancada. Pensamos que seria melhor. — Levantei-me: — Mas acho que você merece uma chance. Com um novo prefeito e um novo comissário, você realmente merece uma chance.
Fomos andando. No corredor, parou em frente ao elevador, mas continuei caminhando até a escada e ele acabou vindo também. Os policiais devem se manter em forma. Ao chegarmos ao patamar do segundo andar, gritei o nome dela, e a porta do seu quarto se abriu. Pusera a roupa azul, e estava de chinelos. Apresentei-os, perguntei se queria mais café e os deixei.
Tinha certeza de que Wolfe fora para a cozinha; por isso, ao descer as escadas, virei à direita. Lá estava ele, na única cadeira que Fritz admite na cozinha, cujo assento era suficientemente amplo para mim, mas não para ele. Já abrira a porta de um certo armário e ligara o interruptor. Fritz estava num dos bancos perto da grande mesa, descascando cebola roxa para os ovos com Borgonha, e sentei-me no outro banco.
Ouvia-se a voz de Cramer saindo do armário: — Sei disso, sei que fez. A senhorita fez uma declaração completa, e apreciamos muito este tipo de cooperação. Mas o que aconteceu ontem à noite introduziu um novo tipo de... elemento. Aqueles dois homens, Archie Goodwin e Fred Durkin, estavam lá para protegê-la, não?
JULIE: — Sim.
CRAMER: — Pedira essa proteção a Nero Wolfe?
JULIE: — Sim.
CRAMER: — Quando?
JULIE: — Oh... acho que foi sábado
CRAMER: — Por que precisava de proteção?
JULIE: — É melhor eu contar a verdade.
CRAMER: — Sim, é sempre bom.
JULIE: — Cá entre nós, eu não precisava de proteção. Mas uma noite, creio que foi terça, vim aqui porque Nero Wolfe queria me ver, e encontrei Archie Goodwin. E voltei no dia seguinte, na quarta, e Archie foi me mostrar as orquídeas e conversamos durante muito tempo. O senhor tem certeza de que isto é confidencial?
CRAMER: — É.
JULIE: — Pelo amor de Deus, não diga nada a ele, mas perdi o controle. Que homem! Tinha de ficar com ele. Por isso eu... bem, tomei umas providências. Talvez ele não queira que o senhor saiba disso, mas passou o dia inteiro de sábado lá, no meu hotel, a partir das dez da manhã. Talvez o senhor não aprove. Suponho que seja casado, mas quando quero alguma coisa, geralmente consigo.
Wolfe me olhava, e sacudi a cabeça. Não sugerira nada disso. Só tinha pena de não estar lá para ver a cara de Cramer, zangada.
CRAMER: — Quer dizer que... está dizendo que... a senhorita disse que tomou providências. Que providências?
JULIE: — Disse a Archie que um homem estava me perseguindo, que eu estava com medo e queria proteção dia e noite. O senhor pode entender muito bem por que eu queria dia e noite.
CRAMER: — Qual é o nome do homem que a estava perseguindo?
JULIE : — O senhor não é um inspetor?
CRAMER: — Sim.
JULIE: — Então devia prestar mais atenção. Ninguém estava me perseguindo. Eu não precisava de proteção. Precisava de Archie.
CRAMER: — Se não precisava de proteção, por que alguém atirou na senhorita, tentando matá-la?
JULIE: — Já pensei a respeito. Só porque atingiu Fred, ao meu lado, isso não significa que quisesse atirar em mim. Talvez estivesse atirando em Fred. Ou talvez em qualquer pessoa. Como aquele rapaz no Brooklyn que atirou numa mulher que passava num carro. Gostam de...
CRAMER: — Pare com isso. Não acredito numa palavra do que está dizendo. Sabe qual é a pena por prestar declarações falsas a um oficial que investiga um crime?
JULIE: — Não. Qual é?
CRAMER: — Até cinco anos na cadeia.
JULIE: — Que crime o senhor está investigando? Archie me disse que estava investigando o assassinato de minha amiga, Isabel Kerr, mas não é o que parece. O senhor só me faz perguntas sobre a minha proteção e de alguém disparar uma arma. Devo ser uma estúpida.
CRAMER: — Não, srta. Jaquette, não é uma estúpida. É uma boa mentirosa. Ótima. Espero que saiba o que está fazendo. Sabe que Wolfe e Goodwin são os detetives mais espertos de Nova Iorque?
JULIE: — Não sei nada sobre Nero Wolfe. Sei muita coisa sobre Archie.
CRAMER: — Bem, é verdade. Quanto estão lhe pagando?
JULIE: — Pagando? Bem, primeiro sou uma mentirosa, e agora, o que sou?
CRAMER: — Isso é o que eu gostaria de saber. Ainda acha que Orrie Cather matou sua amiga, Isabel Kerr?
JULIE: — Nunca disse isso.
CRAMER: — Não precisava. Pelo que disse e escreveu na sua declaração, era óbvio. Lembra-se do que disse?
JULIE: — É claro que lembro. Sei o alfabeto de trás para frente.
CRAMER: — Quer fazer alguma retratação?
JULIE: — Não, era tudo verdade.
CRAMER: — Então pensa ainda que ele a matou.
JULIE: — Precisa ouvir melhor o que lhe digo. Eu lhe disse que não falei isso.
CRAMER: — Mas insinuou. Não se esqueça de que temos uma declaração sua assinada. Não se esqueça disso.
Cinco segundos de silêncio, a não ser por um leve ruído que podia ser Cramer, levantando-se da cadeira.
CRAMER: — Vou avisá-la novamente, srta. Jaquette. Prestar falso testemunho a um oficial que investiga um crime de morte é um delito grave. Quer reconsiderar o que disse?
JULIE: — Não, obrigada. Pode deixar a porta aberta.
Outro ruído fraco, a porta abrindo. Saí da banqueta, fui ao armário e desliguei o interruptor. Dirigi-me à porta que dá para o corredor e a abri. Passos pesados desciam as escadas. Cramer apareceu, virou para a esquerda e passou pela porta do escritório sem olhar para dentro. Deve ter me visto ao colocar o casaco, mas não se despediu. Depois que saiu e a porta estava bem fechada, virei-me e disse:
— Foi tudo improvisado. Não havia nada disso no roteiro. Gostei muito de tudo. É melhor preparar os ovos, Fritz, ela deve estar com fome.
Fui em direção à escada e subi os dois andares. A porta estava totalmente aberta. Ela, de cócoras no chão, olhava sob a mesa. Ao ouvir meus passos, virou a cabeça, levantou-se e disse:
— Estou procurando o microfone.
— Você não vai achá-lo aí. Não é tão fácil assim. Ouvimos muito bem.
— Você ouviu?
— Lógico. Não sei por que chamou você de mentirosa. Percebia-se logo que era verdade. Quando quer os seus ovos?
— Agora. Agora mesmo.
— Estão quase prontos. Vá para a cama que eu vou trazer.
CAPÍTULO XIV
OBVIAMENTE NÃO CONTO tudo que acontece; por exemplo, telefonemas que nada têm a ver com a progressão do caso ou da falta de provas. Jill Hardy telefonara duas vezes, dr. Gamm uma, Lou Cohen duas vezes, e Nathaniel Parker três. Mas vou falar no telefonema de Parker naquela tarde de domingo, pois o que ele queria fazer talvez tivesse ajudado ou prejudicado. Decidira que ia pedir habeas corpus na segunda de manhã, para soltar Orrie, e Wolfe levou dez minutos para fazê-lo desistir. Não foi fácil. Wolfe não podia lhe dizer que não estávamos mais preocupados com Orrie, que agora tínhamos outros suspeitos em vista.
Isto é, talvez tivéssemos. Não recebera instruções, não houve conversa, nada, ao ir para a cama no domingo à noite, depois de ganhar US$ 1.25 de Julie no jogo de biriba. Aos domingos o Ten Little Indians ficava fechado. Julie tirara um cochilo de tarde, e eu fora dar uma volta. Wolfe ficou com o Times e um livro, e provavelmente, enquanto eu estava fora, brigou com a televisão, sua briga semanal. Isso pode ocorrer a qualquer noite, quando se aborrece com um livro, mas em geral é nos domingos à tarde, quando a TV deveria estar com bons programas. Passa de um canal a outro, ficando cada vez mais aborrecido, até ter certeza de que os programas estão piorando ao invés de melhorar, e então desiste.
A única vez que ele e Julie ficaram juntos foi durante o jantar, completamente diferente de qualquer outra refeição naquela mesa, pelo menos que eu me lembre. Em geral Wolfe está disposto a conversar bastante, com ou sem visitas, mas naquela vez, desde os bouchées de Netuno até a musse de castanha, ele não só deixou uma convidada, uma mulher, falar o tempo todo, como até a incentivou. Fez-lhe perguntas, dúzias de perguntas, sobre seu trabalho, sua origem e as pessoas que conhecia. Ao chegar o café, concluí que só havia uma única explicação possível: ele decidira que eu não conhecia as mulheres tão bem quanto imaginara, e ele é quem tinha de tomar a dianteira. Podia ter-lhe dito que aquele tipo de aproximação não ajudaria muito, mas aparentemente eu não era mais considerado um especialista.
Por isso foi uma surpresa quando, ao entrar na cozinha na segunda-feira, Fritz me disse que ele queria falar comigo. Subi um andar, bati na porta, entrei e Wolfe disse:
— Bom dia. Será que podemos confiar naquela mulher num assunto que exige perícia e discrição?
— Depois daquele interrogatório todo, você deveria saber — respondi.
— Não sei. Você sabe?
— Sim. Perícia, sim. Você ouviu como ela foi com Cramer. Iria depender se ela gosta ou não da situação, qualquer que fosse. Discrição também depende, isto é, nunca diria nada, se não quer que se saiba. Ela não é do tipo que fala só para ouvir a sua própria voz.
— Quanto existia de verdade no que ela contou para Cramer?
— Nada. Ela nunca pensaria "que homem!", pois acha que nenhum homem é assim.
— Então vou aceitar o risco. Peça a Ballou para vir aqui às onze horas. Diga que só preciso dele por dez minutos. A srta. Jaquette não deverá vê-lo. Você pode se encarregar disso?
Disse que sim, subi um andar para ver se havia sinal de vida. Eram 8:45h, porém, como tinha ido dormir cedo — para ela — talvez estivesse com a porta aberta. Não estava. Pedira que, ao acordar, tocasse o telefone da cozinha ou o do escritório quando quisesse o café, e esperasse meia hora. Fui para o escritório fazer meu serviço.
Não sabia se Avery Ballou era o tipo de presidente que chega cedo, e esperei até 9:45h para chamá-lo. ÊÉ claro, uma mulher respondeu e passou para um homem. Este disse que só daria meu nome ao sr. Ballou se eu dissesse o que desejava: este é um dos modos como os empregados mais novos ficam sabendo o que os mais velhos estão fazendo. Acabei convencendo-o, finalmente, que bastava o nome, e que Ballou gostaria de falar comigo, mas esperei muito antes de ouvir sua voz:
— Goodwin? Archie Goodwin?
— Sim. Sr. Ballou?
— É
— Houve um prosseguimento naquele assunto que discutimos quinta à noite, e precisamos lhe contar o que houve. Pode vir aqui às onze? Mesmo endereço.
— Na manhã de hoje?
— Sim.
— Acho que não posso. É urgente?
— Sim. Serve também onze e meia ou meio-dia, mas onze horas seria melhor. Não deve levar mais do que dez minutos.
— Aguarde na linha... Está bem, estarei lá às onze, ou logo após.
Se o executivo novo estivesse escutando, ficaria imaginando o que poderia fazer Ballou pular assim, e gostaria de saber.
Depois de falar com a estufa para avisar a Wolfe que ele viria, pensei no meu problema. Mesmo que Julie estivesse acordada, não seria aconselhável subir e dizer a ela que vinha um homem, mas que não devia vê-lo, e por isso pedir que permanecesse no quarto com a porta fechada. Ela era uma garota ótima, corajosa, destemida e esperta, e talvez fosse para o meu quarto, que dá para a rua 35, olhar pela janela, só para ajudar. Não seria justo tentá-la desse jeito. Por isso fui à cozinha, expliquei a situação ao Fritz e combinei com ele que, quando a campainha tocasse, eu iria até a porta, ele iria para o patamar do segundo andar e ficaria lá com o aspirador de pó. Se a porta dela estivesse aberta, passaria o aspirador no tapete do corredor. Ele me disse que não podia levar uma hora passando o aspirador naquele tapete, e eu respondi que não precisava.
Na verdade, foram só oito ou nove minutos. Wolfe desceu às onze em ponto, como sempre faz, e eu ainda não terminara de verificar a correspondência, quando a campainha tocou. Esperei até Fritz começar a subir as escadas, então deixei-o entrar, guardei seu casaco e chapéu e levei-o até o escritório. Ficou de pé, dizendo a Wolfe que não tinha tempo para se sentar.
— Gosto que os olhos fiquem no mesmo nível — respondeu Wolfe. — Só leva três segundos para se sentar.
Ballou se sentou.
— Vou ser o mais breve possível — disse Wolfe. — O primeiro ponto é que agora sei que não matou Isabel Kerr, pois estou quase certo de quem a matou. Foi o cunhado. O chantagista. O segundo ponto é que não há mais problemas em atingir o meu primeiro objetivo, isto é, libertar o sr. Cather. Isso já está garantido. O terceiro ponto: gostaria de ganhar aqueles cinqüenta mil dólares. Como posso ganhá-los?
— Pensei que já tivesse entendido. Não quero ser envolvido nessa confusão. Não deixe que meu nome apareça. Não consigo comer, não consigo dormir. Uma dúzia de vezes quis entrar em contato, mas tenho medo de falar ao telefone.
Wolfe abanou a cabeça:
— Precisa haver uma definição. Seu nome já é conhecido agora. Cinco pessoas o conhecem: o sr. e a sra. Fleming, o sr. Cather, o sr. Goodwin e eu. Quanto aos últimos três, o melhor que pode conseguir é a promessa de que não diremos a ninguém. Quanto ao sr. e sra. Fleming, seria melhor criar uma situação que tornasse muito improvável algum dia revelarem quem o senhor era. Não posso abrir seus cérebros e tirar as células onde seu nome se encontra. O senhor compreende isto.
— Sim.
— O senhor seria o juiz da situação. Quero ganhar o dinheiro, não extorqui-lo. Agora o quarto ponto, a razão pela qual precisava vê-lo sem demora. Para ter alguma esperança de êxito, preciso de ajuda. Preciso da cooperação de uma moça chamada Julie Jaquette ou Amy Jackson, que era amiga...
— Conheço o nome. Sei quem é.
— A srta. Kerr lhe contou.
— Sim.
— Ela não sabe seu nome nem precisa saber. Ela o chama de lagosta. Quero pedir que ela me ajude, sem dizer o seu nome, e quero dizer a ela que, se tivermos êxito, receberá cinqüenta mil dólares em dinheiro. O senhor dará?
Ballou olhou para ele de cara amarrada. Wolfe continuou:
— O senhor me disse que os cinqüenta mil dólares eram só um sinal e deixou subentendido que haveria mais, se eu fizesse o que pediu. Não vou pedir mais. Num dia ou dois tudo estará terminado, ou então nada vou conseguir. O senhor só pagará se eu tiver êxito, contra o que já houve antes, para que não haja idéia de chantagem. Além disso, as vantagens são pequenas. Qual é a vantagem contra nós, Archie?
Não perdi tempo em pensar:
— Mil contra um.
— Isso não adianta nada — disse Ballou. — O senhor sabe que estou numa enrascada. Disse que é minha única esperança. O que são outros cinqüenta mil, ou dez vezes cinqüenta? Se o senhor acha que ela pode ajudar, tudo bem. Isso não quer dizer...
Ele não foi interrompido; eu é que fui, pelo barulho do aspirador. Levantei-me e fui até o corredor, fiquei parado junto à escada, não ouvi vozes, só o aspirador. Pensava que, de qualquer maneira, a conversa já terminara, e ia me virar e lhe mostrar a porta, quando ele saiu. Fui ao cabide, e já estava com seu casaco e chapéu na mão quando ele chegou lá. Seu carro estava na frente de casa. Fui com ele até lá, esperei até o carro sair, antes de entrar e subir até o segundo andar.
Fritz limpava o tapete com vontade, e Julie, de pijama e descalça, estava de pé na porta, a olhá-lo. Ele, de costas, fingia não saber que ela estava lá. Desliguei o aspirador com o pé e falei:
— Podia ter esperado até ela acordar.
— Estou acordada — disse ela. — Que horas são? Esqueci de dar corda no relógio.
Ouviu-se um grito vindo de baixo:
— Archie! Onde você está? — Disse onde eu estava, e veio outro grito: — Diga à srta. Jaquette que quero falar com ela!
Não fazia nem três minutos que Ballou saíra, e ele já criava uma situação, que consegui contornar. Disse a Julie que seu café só ficaria pronto dentro de meia hora, e perguntei se ela se importaria de tomar suco de uva e café no escritório, enquanto Wolfe lhe explicava uma coisa. Perguntou-me por que eu não podia explicar, e respondi que Wolfe sabia mais palavras. Enquanto trocava de roupa, desci e agradeci a Fritz ter ajudado numa hora de necessidade, pedi café para nossa hóspede e enchi um copo com suco de uva.
E depois disso tudo, quando fui ao escritório, Wolfe disse que talvez fosse melhor ele me explicar tudo, e então eu explicaria a ela. Não tentei dissuadi-lo. Só disse não. Admito que ainda estava aborrecido, pois fora pura sorte ela não ter sido morta. Acredito em sorte, mas não devemos exagerar. Depois de tudo o que eu lhe dissera sobre abaixar a persiana e fechar as cortinas, deveria ter dado uma espiada atrás do muro antes de ela sair do táxi.
Quando desceu, não com aquela coisa azul, mas num vestido de lã verde, a bandeja estava sobre a mesinha ao lado da poltrona vermelha. Sentou-se, apanhou o copo e disse:
— Estou toda confusa. Esta é a primeira vez em não sei quantos anos que não tomo café na cama. Espero que a sua explicação valha a pena.
Wolfe a encarava, com os lábios apertados:
— Peço desculpas. Mas não podemos perder tempo. Eu disse "nós" porque vou propor um trabalho em conjunto. A senhorita tem todo o dinheiro de que precisa, srta. Jaquette?
Ela parou com o copo a meio caminho da boca:
— Que pergunta mais idiota.
— Mas não sem razão. Nem é impertinente. Preciso saber se a oportunidade, um pouco remota, mas é uma possibilidade, de ganhar cinqüenta mil dólares lhe interessaria. Interessa?
— Essa é ainda mais idiota.
— Interessaria?
— Está me perguntando?
— Estou.
— Cinqüenta mil em dinheiro?
— Sim.
— Menos o imposto de renda?
— Até pagá-lo. Não estou sugerindo nada; estou declarando um fato: seria em dinheiro, e a senhorita não assinaria nenhum recibo.
Ela tomou um pouco de suco:
— Sabe o que eu faria se tivesse cinqüenta mil dólares de uma só vez? Iria para a faculdade durante quatro anos. Ou cinco. — Bebeu mais um pouco de suco. — Creio que alguma boa universidade. Terminei o segundo ciclo. Sinto que há muitas coisas que deveria saber, mas não sei. Sempre sinto isso. O senhor está falando sério?
— Sim. Há uma possibilidade de ganhar cem mil dólares, e repartiríamos ao meio. Viria do homem que pagava as contas de Isabel Kerr... o homem que a senhorita chama de lagosta. Ele esteve aqui agora e...
— Ele esteve aqui? O senhor o conhece?
— Sim. Foi a terceira vez que esteve aqui. Veio duas vezes na semana passada. É um homem rico e de projeção. Será chamado de X, até o fim. Receia que seu nome venha a público em relação com o que ele chama de seu 'divertimento' e um assassinato sensacional, e a senhorita, o sr. Goodwin e eu tentaremos impedir isso. Se conseguirmos, ele pagará. Dou-lhe a minha palavra, pagará. Está com um medo horrível. Devo continuar?
Ela colocara o copo sobre a bandeja, embora não estivesse vazio.
— O senhor está falando sério?
— Sim.
— É mesmo verdade?
— Sim.
— Está bem, continue. Como poderemos evitar isso?
— Esse é o problema. Talvez não consigamos, mas não é inteiramente impossível. Se continuar, irei contar-lhe coisas que não poderá repetir, mas primeiro precisa responder a duas perguntas. Está disposta a ajudar?
— Como? Não vejo como posso ajudar.
— Você já ajudou. Confirmou, sem dúvida alguma, a identidade do chantagista. A do assassino foi estabelecida por uma conclusão lógica. Está disposta a nos ajudar nisso?
Ela me olhou. Não só retribuí o olhar, como fiz que sim com a cabeça. Respondeu para Wolfe:
— Sim, estou disposta.
— Promete guardar segredo sobre o que lhe direi?
— Sim, isso é fácil. Isso eu posso fazer.
— Então a senhorita é um modelo de virtude. Mas há coisas que deve saber. Por exemplo, o sr. Goodwin e eu soubemos o nome de X através de Orrie Cather. A srta. Kerr só disse o nome dele a duas pessoas: Orrie Cather e sua irmã. Podemos presumir isso com segurança, já que nem lhe contou. A sra. Fleming contou ao marido; portanto, há cinco pessoas que conhecem o nome dele. Eu me responsabilizo por três dos cinco nomes: do sr. Goodwin, do sr. Cather e meu. Teríamos algumas dúvidas sobre o sr. Cather se fosse julgado por assassinato, mas não o será. Portanto, sobra apenas o sr. e a sra. Fleming como as únicas fontes que poderão contar o nome de X. Estou explicando, para que fique bem claro.
— E está mesmo. Já lhe disse que sei o alfabeto de trás para frente?
— Já disse ao sr. Goodwin e ao sr. Cramer. Eu também sei. Agora vou lhe contar o fato que nos dá a nossa chance em mil. Há uma pessoa que detesta que se publique o nome de X associado com o da srta. Kerr ainda mais do que o sr. X. Conte para ela, Archie.
Levei cinco segundos, não para calcular isso, mas para perceber que eu nunca encarara as coisas sob esse ângulo. Disse a Julie:
— Stella. No sábado lhe contei como reagiu, não foi? Ela não quer um julgamento nem que apanhem o homem culpado. É claro que o nome de X só apareceria ligado a Isabel. — Olhei para Wolfe: — É mesmo. Com todos os diabos. Mas como?
— É para isso que precisamos da srta. Jaquette. — Seus olhos se estreitaram ao fitá-la. — Quer café? Está ficando frio.
Ela apanhou o copo, bebeu o resto do suco, recolocou-o sobre a mesa, pôs café na xícara e tomou um gole. Olhou para Wolfe e balançou a cabeça:
— Não entendo. O que há de tão formidável nisso?
— Por causa das possibilidades que isso representa. Suponhamos que a sra. Fleming saiba, ou mesmo suspeite, que seu marido matou sua irmã, e sabe por que, e sabe também que pode ser preso e acusado a qualquer instante, e mais tarde irá a julgamento. O que ela podia fazer?
— Não sei. Não a conheço.
— O que ela faria, Archie?
— Também não sei o que ela faria — respondi. — Mas sei que faria qualquer coisa, sem hesitar, para evitar que ele ou qualquer outra pessoa contasse tudo sobre Isabel e X. É claro que não quer que isso vá a julgamento. Não sei até que ponto ela gosta dele. Se gostar muito, a despeito do fato de ter matado Isabel, pode ser que fuja com ele, ou, se pensa que ele vai agüentar tudo e ficar com o bico calado, pode ficar ao seu lado e lutar. Se não gostar dele o suficiente, pode mandá-lo para a China ou mesmo matá-lo. A única coisa certa é que ela faria o necessário para ter certeza, por exemplo, de que Orrie não fosse a julgamento como testemunha da acusação, e ter de responder perguntas sobre Isabel. Ou que X não testemunhasse sobre a chantagem. Obviamente também teremos de contar a ela sobre a chantagem. Para ter certeza dessas coisas, explodiria o tribunal, se tivesse uma bomba — terminei, olhando para Julie: — Portanto, aí está. Diga a ela o que disse ao sr. Fleming naquela carta. Ele, por causa da carta, tentou matá-la com uma arma. Ela não fará isso, mas alguma coisa vai fazer.
Sua testa estava franzida:
— Por que você não pode lhe contar?
— Não acreditaria em mim. Você pode lhe dizer coisas que Isabel lhe contou, mas eu não posso. Conforme disse naquela carta.
— Aquela carta era só mentira.
— A única mentira era que Isabel foi quem lhe contou. O que você afirmou que ela lhe contara era verdade, e ele provou isso. Sabe que Barry estava fazendo chantagem com X?
— Claro.
— Acha que há alguma dúvida de ser ele quem atirou em você?
— Não.
— Acha que tentaria matá-la se fosse só porque você sabia sobre a chantagem e queria o dinheiro, se ele também não tivesse matado Isabel? Lembre-se, eu estava lá, e ele sabia no que eu estava trabalhando. No assassinato. Acho que seria ótimo se você pudesse pegar os cinqüenta mil dólares, mas também pensei que quisesse pegar o assassino de Isabel. Foi isso o que você disse. Acha que há alguma dúvida de que ele a matou?
— Não.
— Então conte até dois.
Apanhou a xícara para dar um gole, mas como já esfriara, bebeu tudo e colocou a xícara sobre a mesa.
— Ele não seria acusado se ambos fugissem.
— É certo — concordei. — Mas estaria perdido, e não se apresentaria para dizer o nome de X. Mas algum dia seria encontrado; e depois? Como disse o sr. Wolfe, talvez não consigamos, mas não é inteiramente impossível.
— Ela mora no Bronx.
— Certo.
— Eu teria de ir lá?
— Espero que não. Ele deveria lhe trazer os cinco mil dólares hoje, e Deus sabe onde está ou o que vai tentar. Durante algum tempo não quero mais ser guarda-costas.
— Traga-a aqui — disse Wolfe.
— Se você acha que não vou atrapalhar, estarei presente — disse a Julie.
— Que homem! — disse ela, enquanto punha mais café na xícara.
Girei a cadeira, apanhei o catálogo telefônico do Bronx. encontrei o número, peguei o telefone e disquei, com esperança que a sra. Fleming estivesse em casa e atendesse* ao telefone. Estava, foi sua voz que disse alô.
— Aqui é Archie Goodwin, sra. Fleming. Talvez se lembre, estive aí há uma semana.
— Eu me lembro.
— Então talvez se lembre de que eu disse que a polícia prendera o homem errado e que estava procurando o culpado. Encontrei-o e gostaríamos de lhe falar sobre ele, e perguntar como deveremos proceder. Sabemos que a senhora espera não haver um julgamento, e queríamos discutir esse assunto com a senhora. Será que podia vir aqui, ao escritório de Nero Wolfe? Agora?
Silêncio. Prolongou-se tanto que pensei que havia desligado. Mas, não. Finalmente eu disse:
— Sra. Fleming? — mas o silêncio continuou.
Por fim ouvi sua voz:
— Sr. Goodwin?
— Sim?
— Qual é o endereço?
Dei-lhe o endereço.
CAPÍTULO XV
FOI UMA DECISÃO DIFÍCIL, e Wolfe levou cinco minutos para tomá-la. E o almoço? Quando desliguei, após dar o endereço a Stella Fleming, eram 12:10h. Será que ela viria imediatamente, e quanto tempo demoraria para chegar? O almoço foi, é e sempre será à 1:15h. Uma situação impossível. Wolfe sentou-se, levou cinco ou seis minutos de cara amarrada para tomar uma decisão, levantou-se e foi para a cozinha. Segui-o, já que também costumo me alimentar. Julie não tinha problema, pois sua omelete e a lingüiça estavam quase prontas. Vencemos bem a crise. Julie comeu na minha mesa de café, Wolfe e eu nos sentamos em banquetas na mesa grande, e comemos esturjão, faisão defumado, aipo, três qualidades de queijo e cerejas ao brandy, com especiarias. Já que era um lanche e não uma refeição, não era proibido falar de negócios, e por isso discutimos o que seria feito. Achava que Wolfe deveria estar presente, e ele achava que não; deixamos Julie decidir e ela concordou com ele. No corredor, do lado da cozinha, há um buraco na parede coberto com um painel deslizante. No lado do escritório, o buraco é coberto por uma gravura de uma catarata, pela qual pode-se enxergar o outro lado. Wolfe ficaria ali numa banqueta. Sobre o outro ponto principal, de ser eu quem deveria chefiar o ataque, fomos unânimes.
Quando ela chegou, à 1:20h, comecei a atacar desde o corredor. Do outro lado do cabide, há uma cadeira e um banco, muito práticos, mas ela não colocou a bolsa ali, enquanto eu a ajudava a tirar o casaco, e não gostei do modo como se agarrava a ela. Além disso, ainda me sentia abalado quanto às balas atiradas contra Julie, embora não fosse minha culpa. Por isso, quando ela se virou, mudando a bolsa da mão direita para a esquerda, agarrei a bolsa. Ela tentou pegá-la de volta, mas segurei-a firmemente, talvez até de maneira um pouco bruta, esquivei-me e abri a bolsa. Reclamando, avançou para mim. Empurrei-a de novo e enfiei a mão na bolsa. Agarrei uma coisa e puxei-a para fora. Ela recuou, ofegante, por isso pude olhar e ver o que era. Era uma automática Bristol, calibre 22, com a coronha trabalhada, e estava carregada. Coloquei-a no bolso do paletó e entreguei-lhe a bolsa.
— Desculpe se fui grosseiro — eu disse. — Devido ao que aconteceu aqui uma vez, sempre revisto as pessoas.
Ela tentava se controlar, e tinha esperanças de conseguir. Encolhera. Não só parecia menor do que há uma semana, mas até o seu próprio rosto havia encolhido. Sua face era cheia, agora estava encovada. Apanhou a bolsa e me disse:
— Dê-me a pistola.
— Não é uma pistola, é um brinquedo. A senhora a receberá de volta. Conforme lhe expliquei, revisto todo mundo, e neste momento fico feliz em tê-lo feito. Há uma moça aqui que vai lhe dizer coisas que não gostará de ouvir, e a senhora é muito impulsiva. O seu nome é Julie Jaquette e era a melhor amiga de sua irmã. Creio que já a conheceu...
— Eu era a melhor amiga de minha irmã.
— A senhora é quem sabe. Vamos entrar. — Apontei com a mão. — A porta é a da esquerda, que está aberta.
Pensei que ia recuar, e ela também. Mas eu estava com a pistola e poderia tê-la carregado debaixo do braço. Virou-se e encaminhou-se pelo corredor, saltos batendo no chão, e a segui. Deu dois passos para dentro do escritório e parou. Continuei e fui até onde estava Julie, que se encontrava de pé ao lado da minha escrivaninha. Tirei a pistola do bolso e mostrei-a para ela.
— Isto estava na bolsa dela — disse, e virei-me para perguntar a Stella: — Onde seu marido guarda o rifle?
Acho que nem me ouviu. Puxei uma das cadeiras amarelas e sentou-se. Julie sentou-se na outra. Devolvi a pistola ao bolso, sentei-me na escrivaninha e disse a Julie:
— Já conhece a sra. Fleming.
Ela acenou:
— Isso estava na bolsa dela? Como tirou de lá?
— Tirando. Os tiros de sábado à noite não foram disparados com ela — virei-me para olhar Stella. — Seu marido atirou na srta. Jaquette no sábado à noite, mas errou. Por isso perguntei onde ele guarda o rifle.
Olhou-me espantada, o queixo caído:
— O quê? Meu marido o quê?
— Tentou matar a srta. Jaquette. Estou lhe contando com delicadeza, pois vêm aí coisas piores. Disse-lhe ao telefone que descobri o culpado. A srta. Jaquette está aqui porque me ajudou a encontrá-lo. Creio que o melhor modo é lhe mostrar uma cópia da carta enviada ao seu marido na sexta-feira passada. — Abri a gaveta e apanhei a cópia. — Quer que eu leia?
Olhou para Julie:
— A senhorita mandou uma carta para o meu marido?
— Sim.
Esticou a mão:
— Deixe-me vê-la.
Entreguei-lhe a cópia. Leu-a rapidamente, e depois a leu de novo, devagar. Olhou para Julie:
— De que se trata? Quem é Milton Thales?
Julie olhou para mim, o que não deveria ter feito. Presumia-se que estivesse colaborando. Arregalei um pouco os olhos e ela voltou-se para Stella.
— Seu marido é Milton Thales. Disse na carta que Isabel me contara tudo, mas a única coisa que não me contou foi o nome do homem que pagava suas contas, por isso vou chamá-lo de X. Você é a única a quem ela disse o nome dele, e...
— Ela não me disse o nome dele.
— Ela me afirmou que lhe dissera. Isabel não era mentirosa.
Assim, sim. Que mulher! Ela continuou:
— Por isso, quando X recebeu o telefonema de um homem que sabia tudo e disse a X para lhe mandar dinheiro, mil dólares por mês, endereçado a Milton Thales, através de caixa postal, e X contou a Isabel, ela sabia que Milton Thales deveria ser seu marido. Pois nenhum outro homem poderia saber o que Milton Thales sabia. Isabel sabia que você deveria ter contado ao seu marido e ele...
— Não contei ao meu marido.
— Deve ter contado, porque se...
Interrompi:
— Não adianta, sra. Fleming. Isso já foi confirmado. Seu marido recebeu essa carta sábado de manhã. Telefonou para a srta. Jaquette no hotel à uma hora. Às duas e meia, foi pessoalmente lá. Eu estava com a srta. Jaquette. Ele nos contou que não trouxera os cinco mil dólares extorquidos de X porque o banco não estava aberto. Disse que traria na segunda-feira. Hoje. Que horas ele chegou em casa no sábado à noite?
Não houve resposta. Ela me olhava fixamente.
— Sei que chegou em casa tarde, pois à uma e meia da manhã estava atrás de um muro no Parque Central com um rifle ou um revólver, atirando na srta. Jaquette do outro lado da rua, quando saímos de um táxi. Trouxe a srta. Jaquette para ficar aqui, por isso não sabemos se ele tentou entrar em contato com ela hoje, e sinceramente isso não nos interessa. O essencial é que a senhora disse a ele o nome de X. Ele fez chantagem com X e Isabel sabia. Isso já está resolvido.
Suas mãos estavam sobre o joelho, e esfregava as unhas nas palmas. Arranhava-as, mas não a mim.
— Não acredito — disse, tão baixo, que mal ouvi. Repetiu, mais alto: — Não posso acreditar.
— É duro, mas ainda vem o pior — continuei. — Isso ainda não está provado, mas será. Agora, só temos o que Isabel contou à srta. Jaquette. Não só lhe contou sobre a chantagem, como lhe disse que iria contar ao seu marido que decidira lhe dizer tudo. Ao ouvir isso pela primeira vez, quando a srta. Jaquette me contou, fiquei imaginando por que a polícia estava prendendo Orrie Cather em vez de seu marido. Mas então a srta. Jaquette me disse que não falara à polícia sobre a chantagem. A senhora pode lhe perguntar por quê. Talvez porque não imaginou o que isso significava. Se falasse à polícia sobre a chantagem, sobre tudo o que Isabel lhe contara, seu marido estaria agora na cadeia, junto com Orrie Cather ou no lugar dele, como suspeito de assassinato. E quando contarmos a eles que seu marido foi visitar a srta. Jaquette no sábado à tarde e tentou matá-la nessa mesma noite, então tudo estará terminado. Eles conseguirão as provas; por exemplo, seus movimentos na manhã em que Isabel foi morta; será preso por assassinato, julgado e provavelmente condenado. No telefone disse que achara o homem certo, e achei: Barry Fleming.
Parara de se unhar e as mãos estavam fechadas em punho e, enquanto eu falava, acenara três vezes: pequenos acenos involuntários, sem saber que os fazia, como quando balançara a cabeça, ao lhe dizer que talvez fosse Orrie Cather quem pagasse o aluguel. Agora murmurou consigo mesma:
— Então é por isso.
Não lhe perguntei que 'por isso' era, pois não estava buscando provas. Precisamos de provas a fim de demonstrar alguma coisa ao promotor público, ao juiz ou aos jurados, e não era isso o que desejávamos. O seu 'por isso' talvez fosse alguma coisa, ou coisas, que ele fizera ou dissera. Por exemplo, onde dissera que estava, mas não estava, na manhã que Isabel morrera. O que quer que fosse, tornou as coisas mais simples do que pensei. Pensei que ela tivesse pelo menos três ataques, especialmente depois que achara seu brinquedinho na bolsa, e lá estava ela falando baixinho consigo mesma. Julie disse:
— Não precisa atingi-la tão duramente.
Isso era desnecessário; não dei importância. Que diabo, ela trouxera uma pistola, mesmo que não tivesse idéia do que fazer com ela. Provavelmente para me derrubar, se chamasse Isabel de 'amásia'. Continuei falando com Stella:
— Talvez tente imaginar por que desejávamos discutir isso com a senhora. Como é praticamente certo de que foi ele quem matou Isabel, por que não dissemos tudo à polícia? Sem dúvida teremos de fazer isso, mas não me esqueci do que a senhora me disse aquele dia: a reputação de sua irmã era a coisa mais importante do mundo. Nada sei sobre o seu relacionamento com seu marido, mas pensei que talvez pudesse fazer alguma coisa. Talvez a senhora possa persuadi-lo a ir à polícia e confessar que a matou, dando um motivo totalmente diferente, alguma razão que não mencionasse chantagem, X e tudo o que a senhora não quer que venha a público. Não sei se isso é possível, mas pensei que gostaria de ter uma oportunidade. Não podemos esperar muito tempo, não mais do que um ou dois dias. Digamos até quarta-feira pela manhã.
— Hoje é segunda-feira — disse ela. Sua voz voltara ao normal.
— Certo.
— Quero aquela carta.
A carta caíra ao chão quando começara a se unhar, e eu a apanhara e pusera sobre a minha escrivaninha.
— É só uma cópia a máquina — eu disse.
— Quero-a.
Dobrei-a e a entreguei. Então pediu:
— A pistola.
— Quando for embora. De quem é, sua ou do seu marido?
— Dele. Ganhou várias medalhas de tiro ao alvo. — Colocou a carta na bolsa, olhou para Julie e disse: — Tudo por causa de gente como você.
— Bobagem — disse Julie. — Qualquer pessoa pode dizer isso a uma outra. Você quer dizer, realmente, que tive má influência sobre Isabel. Fui melhor para ela do que você. Eu realmente a amava, mas e você? Pelo que ela me disse, o que...
Isso foi o bastante. Eu me descuidara um pouco, e ela agiu repentinamente. Atirou-se sobre Julie tão depressa que estava em cima dela antes de conseguir me mexer, e novamente não seria culpa minha se Julie tivesse se machucado ou pelo menos levado uns bons arranhões. Julie levantou os joelhos e, com os pés fora do chão, o impacto a derrubou e a cadeira caiu de costas. Stella ia se atirar sobre ela, mas eu a alcancei e segurei seus ombros por trás. Puxei-a, prendi-lhe os braços, mas ela disse:
— Agora estou bem — e estava.
O ataque terminara tão depressa quanto começara. Julie levantou-se, arrumou os cabelos e observou:
— Por mim, pode até bater nela.
Wolfe então falou, numa voz gelada:
— Senhora Fleming.
Nós todos nos viramos. Ele estava na porta.
— O sr. Goodwin foi generoso demais, dando-lhe até quarta-feira de manhã. Seu prazo se esgota amanhã de manhã, no máximo. Leve-a para fora, Archie.
Stella seguiu-o com os olhos até sua cadeira. Depois ficou a procurar a bolsa. Apanhei-a de onde a deixara cair, coloquei a pistola dentro e lhe disse:
— Na porta lhe entrego a bolsa.
Dirigi-me para a porta e ela me seguiu.
CAPÍTULO XVI
ÀS QUATRO HORAS, Julie estava numa cadeira ao lado da janela no Quarto Sul e, pelas aparências, muito interessada numa revista. Eu estava de pé na porta. Não estávamos conversando. Eu lhe perguntara se devia telefonar ao Ten Little Indians para dizer que ela não podia ir esta noite, ou se preferia telefonar ela mesma. Respondeu que nenhuma das duas coisas, ela ia lá, e eu disse que não ia. A conversa ficara muito desagradável. Em certo momento ela me pediu o número de telefone de Saul Panzer, a fim de que ela o chamasse para levá-la, já que eu receava me expor. Em outro momento eu disse que duvidava se a maioria dos fregueses iria embora quando soubesse que ela não iria aparecer. Em outro ainda, ela perguntou se realmente ela ficaria ali contra a sua vontade, presa à força. Às quatro horas ficou claro que não iríamos mais nos falar.
Ouviu-se então o ranger do elevador, e ela levantou a cabeça para ouvir. Quando o rangido parou e ouviu-se o som da porta do elevador se abrindo, atirou a revista sobre a mesa, levantou-se e saiu andando. Ao se aproximar da porta desviei-me, delicadamente, e ela a atravessou, foi até a escada e começou a subir. Ia pedir ajuda ao dono da casa ou ajudá-lo com as orquídeas; para mim tanto fazia. Desci os dois andares até o escritório, liguei para o Ten Little Indians, disse que a srta. Jaquette estava resfriada e não poderia ir. Não disse onde ela estava, pois poderiam mandar flores, e aqui não se precisava de mais nenhuma.
Já que eu era o carcereiro, não podia dar uma volta, e de qualquer modo tinha de ouvir o noticiário a cada meia hora para saber se algo de novo acontecera no caso de assassinato, como, por exemplo, que um homem chamado Barry Fleming estava no escritório do promotor público para interrogatório, com relação ao assassinato de sua cunhada. Nada aconteceu. Passei as duas horas seguintes na minha escrivaninha e no arquivo, com os registros de germinação. Numa ocasião dessas, é bom ter alguma coisa para se fazer que só precise de uma pequena porção da nossa inteligência, como escrever nos cartões certos itens tais como os resultados de um cruzamento entre Odontoglossum crispo-harryanum x aireworthi ou Miltonia vexillaria x roezli.
Quando voltaram juntos no elevador às seis horas, estava ocupado demais para virar ao menos a cabeça. Notei, porém, uma presença junto ao meu ombro direito, e uma voz perguntou:
— Posso ajudar?
Então estávamos nos falando. Respondi:
— Não, obrigado.
— Telefonou para lá?
— Sim, você está com um resfriado.
— Aconteceu alguma coisa?
— Sim. Aparentemente, fizemos as pazes.
— Oh, eu nunca fico zangada por muito tempo. De qualquer modo, sabia que você tinha razão. Só queria ver até que ponto você chegaria. Eu poderia ter dito uma coisa, poderia ter ameaçado de chamar a polícia. Evidentemente, a única coisa que você e Nero não suportam é que alguém diga qualquer coisa à polícia. Ela já saiu há mais de quatro horas. Que diabo, que estará fazendo?
Esta era a segunda vez que eu ouvira uma mulher chamá-lo de Nero, mas da outra vez fora uma piada. Com Julie, saíra de forma natural. Se ela passava dois dias e duas noites na casa de um sujeito, comia com ele, colaborava com ele, ajudava-o com as orquídeas, seria tolice chamá-lo de senhor. Se ela conseguisse os cinqüenta mil e escolhesse uma universidade que não fosse muito distante, iria visitá-la depois que estivesse lá algum tempo, para ver o efeito que ela causava. Obviamente ela teria mais efeito sobre a universidade do que a universidade sobre ela.
Aceitei a sua oferta em me ajudar nos registros de germinação.
Ao jantar, Wolfe não repetiu a atuação do dia anterior. Não era mais necessário fazer-lhe perguntas, e ele a pôs no seu devido lugar ao discutir a diferença entre imaginação e invenção na literatura. De vez em quando ela conseguia falar alguma coisa. Em determinado momento, enquanto ele estava com a boca cheia de miolo, ela disse:
— Você está falando difícil de propósito. Mostre-me uma coisa num livro e me pergunte se é imaginação ou invenção, e vou acertar sempre; quero ver você provar que estou errada.
Isso não é modo de se falar com um homem que está fazendo o possível para que se possa freqüentar uma universidade.
Enquanto Fritz servia o cafezinho, no escritório, Julie disse:
— Daria uma nota novinha de um dólar para saber o que ela está fazendo. Qual é seu telefone? Vou ligar para ela.
— Pois, sim — respondi.
— Como você não tem nervos, incomoda os meus. Você não daria nem um níquel furado para saber o que ela está fazendo.
— E para quê? — perguntou ele, bebendo café.
Era óbvio que já estavam cheios um do outro; ao terminarmos o café, levei-a até o porão. No porão há o quarto e o banheiro de Fritz, uma despensa e uma sala grande com bilhar. Quando contara isso para ela, respondera que queria aprender a usar um taco. Isso tiraria Stella Fleming de sua cabeça, para não falar da minha. Mas ela não teve a lição de bilhar. Acabara de tirar a coberta da mesa, apanhara um taco e arrumara as bolas, quando a campainha tocou. Se eu não a tivesse segurado pelo braço, teria subido antes de mim, e estava rente ao meu calcanhar quando cheguei no corredor e espiei pelo vidro. Julie disse:
— Meu Deus, ela estragou tudo.
Fui ao escritório e disse a Wolfe:
— Cramer.
Ele levantou os olhos do livro e apertou os lábios. Disse a Julie:
— Vá para a cozinha e fique lá.
A campainha tocou novamente. Julie foi, mas não para a cozinha, e sim para o corredor, onde estava o buraco. Eu lhe disse:
— Se espirrar, queimo você em óleo fervente — e fui abrir a porta.
Pelo olhar que Cramer me dirigiu, estava pronto para me queimar em óleo, caso eu espirrasse ou não. Foi só o que me dirigiu, aquele olhar. Enquanto eu pendurava seu casaco, ele já estava na porta do escritório, e quando lá cheguei, estava sentado na poltrona vermelha, falando:
— ... e você sabia que Barry Fleming disparou aqueles tiros, e quero saber como sabia disso. Você também sabia que Barry Fleming matou Isabel Kerr, e quero saber como descobriu.
Adeus, cinqüenta mil dólares, pensei, ao dirigir-me à minha escrivaninha. Fleming agora estava preso e apostava dez contra um que o fariam falar, não importa o que Stella fizera. Talvez já o tivessem feito falar. Wolfe disse:
— O senhor está furioso, sr. Cramer.
— E estou mesmo.
— Então está em desvantagem. Não quer colocar em ordem os seus pensamentos?
— Quero que responda a umas perguntas!
— Se souber as respostas. O senhor afirmou que eu sabia que Barry Fleming matou Isabel Kerr. Devo lhe lembrar que, na noite passada, disse-lhe que não tinha provas que pudessem condenar qualquer pessoa por aquele assassinato; eu só tinha suspeitas. Repito a mesma coisa. Ainda não tenho provas. O senhor tem?
— Tenho.
— Barry Fleming está preso?
— Não. — O maxilar de Cramer estava rígido. — Olhe, Wolfe, você conseguiu o que queria. Você queria soltar Cather, e conseguiu. Ele está livre. Bem, não preciso de provas para Fleming, mesmo que você as tenha. Preciso de fatos. Quero saber se Barry Fleming disparou aqueles tiros em Julie Jaquette e, se foi ele, por quê.
Os ombros de Wolfe levantaram-se alguns milímetros e desceram de novo.
— Isso é importante? Importante para você? Pois você o considera como assassino... ou será que não pensa assim? Disse que ele não está preso. Se acha que, por acaso, eu estou com ele aqui, esperando por você...
— Ele não está aqui. Está morto.
— É mesmo? Morte violenta?
— Sim.
O canto da boca de Wolfe levantou-se um pouco.
— O sr. Goodwin, a srta. Jaquette e eu não saímos de casa o dia inteiro. Portanto, se pensa que...
— Ora, pare com isso. Ele se matou. Há três horas. Deu um tiro na testa com uma automática Bristol 22. Pertencia a ele, tinha porte de arma. E quero...
— Com licença. Em casa?
— Sim. Eu...
— Havia algum policial lá? Já o haviam interrogado?
— Não. Se você...
— Então como pode saber que ele matou Isabel Kerr? Como pode saber de qualquer coisa? Não espere que lhe esclareça tudo. Já lhe disse duas vezes, não tenho provas.
— Que diabo, não quero provas. Não sobre Isabel Kerr. Se quiser provas a respeito dele, está bem. Quando chegou em casa esta tarde, ele e a mulher conversaram, disse ela, e ele escreveu alguma coisa e assinou. Ela saiu para ir ao mercado comprar umas coisas e ficou fora uma meia hora. Quando voltou, estava morto. Como sei que matou Isabel Kerr? Ela estava com a prova, escrita e assinada por ele.
Apanhou um pedaço de papel do bolso de cima do paletó.
— Já comparamos com a sua caligrafia, mas o laboratório irá verificar. — Desdobrou o papel. — Está assinado. A data é de hoje.
Começou a ler:
"A quem interessar possa:
Declaro que no sábado, 29 de janeiro de 1966, bati na cabeça de minha cunhada, Isabel Kerr, com um cinzeiro e a matei. Não foi premeditado. Fiz isso em um momento de raiva e ressentimento incontroláveis. O ressentimento vem se acumulando há três anos. Ela vive no luxo e minha mulher e eu pagávamos por tudo. Todas as minhas economias já tinham ido embora e logo ficaria sem nada, mas ela não queria saber disso. Minha mulher era tão ligada a ela que não fazia o que precisava ser feito. Naquela manhã de domingo tentei mais uma vez persuadir Isabel, mas não consegui, e perdi o controle. Acertei-a com o cinzeiro. Não pretendia matá-la, mas não espero perdão, nem mesmo de minha mulher. Ela insiste que devo escrever isto para que tenha provas das circunstâncias sobre a morte de Isabel. Ela não me prometeu nada e não sei o que vai fazer com isso.
Barry Fleming"
Cramer dobrou a nota e a colocou novamente no bolso.
— Naturalmente, a primeira coisa que você vai dizer, e foi o que eu disse, é que ele não diz que vai se matar. Não diz adeus. Mas é freqüente não dizerem adeus. A pistola estava lá, no chão, e a bala entrou na têmpora direita no ângulo certo. Ela falou alguma coisa com o policial na delegacia, mas agora está sedada. É claro que mais tarde vamos interrogá-la, mas não espero muito disso. Estou lhe contando porque isso resolve o caso Kerr, e não faz mal que você saiba, mas não resolve tudo. Os tiros disparados contra Julie Jaquette. Ontem você me disse que não sabia quem atirou.
— Não sabia. Ainda não sei.
— Isto é uma mentira deslavada.
— Só minto quando é necessário. Agora não é necessário. Ontem lhe disse que suspeitava haver uma ligação entre o assassinato da srta. Kerr e os tiros disparados contra a srta. Jaquette; eu suspeitava, mas não sabia com certeza. — Wolfe fez um gesto com a mão. — Sr. Cramer, há certos detalhes que não pretendo tornar públicos e, de qualquer forma, o senhor agora não precisa deles e não teria como utilizá-los. O assassinato foi esclarecido e o culpado está morto. Mas o senhor não é apenas um policial, com seus deveres e obrigações, é também um homem curioso, e eu o provoco. Por isso vou lhe contar o seguinte: descobri, não importa como, quem fornecia o dinheiro para Isabel viver uma vida de luxo e riqueza, e certos fatos pertinentes, e isso fez com que eu acreditasse que Barry Fleming a matara. Também descobri, mais uma vez não importa como, que Barry Fleming temia que a srta, Jaquette contasse alguns fatos que ele achava que ela ouvira de Isabel Kerr. Portanto, ela estava em perigo e devia ser protegida. Não sabia se fora ele quem disparara os tiros; nem sei agora. Quanto a eu estar mentindo, dou-lhe minha palavra de honra de que tudo o que acabei de lhe dizer é a verdade. A srta. Jaquette ainda está aqui, e se tiver tempo disponível, poderá vê-la. Presumo que ela o provocaria, como o fez ontem.
Cramer olhou-me. Sabia, por experiência própria, que quando Wolfe dá a sua palavra de honra fala sério. Olhou-me com os olhos semicerrados, testa franzida, até que comecei a imaginar se a minha gravata estava torta:
— Pensei que sempre fizesse tudo certinho — disse ele. — Sempre arrogante. O tiro passou a que distância dela? Trinta centímetros?
O que eu gostaria de fazer não se pode fazer a um tira, especialmente um inspetor. A única coisa que podia fazer era olhá-lo também de esguelha. Ele se levantou e olhou para Wolfe, de cima para baixo.
— Ainda estou curioso — disse ele. — Soube de muita coisa, e, é claro, soube de Cather. Você percebeu que, se ele não tivesse ficado calado, se nos tivesse contado o que lhe contou, tudo, já teria saído há algum tempo, e Fleming estaria preso, mas vivo. Lógico que você sabe. Mas você tinha de agir assim. Para mostrar mais uma vez como é esperto. Como eu desejo... ora, o que adianta
Virou-se para tomar a direção da porta, mas antes de lá chegar parou e virou-se.
— Não acha que devia mandar flores para o enterro?
Se ele não tivesse feito aquela piadinha, eu o teria ajudado a vestir o casaco. O tiro errara por um metro, não trinta centímetros. Ao ouvir a porta da rua fechar, fui dar uma olhada. Ele já saíra. Chamei Julie. Estava com uma cara estranha, como se estivesse tentando dizer o alfabeto de trás para a frente e não soubesse como começar. Parou, olhou para mim, e a peguei pelo braço para levá-la ao escritório. Sentou-se na poltrona vermelha e disse a Wolfe:
— Você sabia que isso iria acontecer. Você sabia.
Olhou-a, aborrecido.
— Não sabia. Não sou astrólogo. Foi Archie, e não eu, quem lhe deu a idéia. "Arranje um motivo totalmente diferente", foi a sugestão dele, e ela fez isso. Brilhantemente. Archie, o que eu realmente disse a X?
— Você disse: "Quanto ao sr. e sra. Fleming, o melhor que eu poderia fazer seria criar uma situação que tornasse bastante improvável que jamais contassem o que sabiam." Fim da citação. E que ele seria o juiz da situação.
— Eu disse que ela era uma formiga — disse Julie. — Meu Deus, ela deve ser... primeiro a irmã e depois o marido. O que você está fazendo, Archie?
Tirei uma moeda do meu bolso e a joguei para cima:
— Estou decidindo uma coisa que não pode ser concluída de outra forma. — Inclinei-me para olhar. — Coroa. Ela atirou nele.
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Livro Um assassinato, um mistério e um Casamento Literatura - Mark Twain
Livro Um Cadáver de Luxo - Rex Stout
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