segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Hell - Paris 75016 - Lolita Pille

Hell - Paris 75016 - Lolita Pille
Eu sou uma putinha. Daquelas mais insuportáveis, da pior espécie; uma sacana do 16ème, o melhor bairro de Paris, e me visto melhor que a sua mulher, ou a sua mãe. Se você trabalha num lugar "metido", ou é vendedora numa butique de luxo, com toda certeza gostaria que eu morresse; eu e todas as minhas iguais. Mas a gente não mata a galinha dos ovos de ouro. De forma que a minha espécie irá perdurar e proliferar... Sou o símbolo manifesto da persistência do esquema marxista, a encarnação dos privilégios, os eflúvios inebriantes do Capitalismo. Como digna herdeira de gerações de mulheres da sociedade, passo muito tempo na boa vida cobrindo de esmalte as minhas unhas; folgada tomando banho de sol; com a bunda sentada numa poltrona com a cabeça entregue às mãos de Alexandre Zouari, ou olhando vitrines na rue du Faubourg-Saint-Honoré, enquanto vocês passam o tempo todo trabalhando para pagar as porcariazinhas que precisam. Sou o mais belo produto da geração Think Pink: meu credo: seja bela e consumista.

Mergulhada na loucura policefálica das tentações ostentatórias, sou a musa da deusa Aparência, em cujo altar imolo alegremente todo mês o equivalente ao que você recebe como salário. Um dia, vou detonar meu visual. Sou francesa e parisiense estou me lixando para o resto; pertenço a uma única comunidade, a mui cosmopolita e controversa tribo Gucci Prada – a grife é meu distintivo. Sou um pouquinho caricatural. Confesse que você me acha uma tremenda babacona com meu visual Gucci, o sorriso branco de louça de banheiro e os cílios e borboleta. Mas é engano seu me subestimar, essas são armas ameaçadoras e é graças a elas que vou descolar mais tarde um marido que seja pelo menos tão rico quanto papai, condição sine qua non desta minha existência tão deliciosa e exclusivamente fútil. Visto que trabalhar não faz parte da longa lista de meus talentos. Quero me divertir com eles, e basta. Da mesma forma que mamãe e vovó antes de mim. Uma vez dito isso, já faz algumas décadas que a concorrência está pesada no mercado matrimonial de alto luxo. Os bons partidos são disputados a tapa por um exército de manecas, secretárias e outras criadas ambiciosas, cujos dentes brancos

brilham no assoalho e de quem nada consegue demover a intenção de ficar com a parte do leão. A parte do leão = um apartamento com salões na Rive Droite + uma Mercedes esporte + um armário cheio de roupa cafona de grife + mais duas cabeças louras + escarnecer das antigas colegas que não se deram tão bem. É verdade, na zona oeste de Paris, somos todos belos, somos todos ricos. Ricos...isso está na cara para vocês, haja vista o preço do metro quadrado; se não fossemos ricos, não estaríamos morando ali. Já belos, percebo alguma dúvida nas suas cabeças. Mas pensem um pouco. Num mundo em que a ascensão social corre solta a várias gerações por intermédio da cama, as famílias feias foram purgadas graças a casamentos de interesse, nos quais da união de um gordão cheio da grana com uma arrivista gostosa, resulta geralmente uma prole perfeita, já que esta será dotada do físico de mamãe e da conta bancária do papai. É verdade que não dá para gente ter sempre sucesso, pode acontecer de o papai ser passado para trás pelo seu administrador e de os genes da mamãe não se imporem, de forma que o bebê pode nascer feio como o papai e pobre

como a mamãe. É o que a gente chama de azar, mas não vou me estender sobre o assunto. Não vim segurar a pena para descrever a existência de gente pobre e feia: em primeiro lugar, não sei nada a respeito, em segundo, esse não é um dos temos mais divertidos. Vocês sabem de uma coisa? O mundo está dividido em dois: tem a gente, e depois vêm vocês. Isso é enigmático, tenho de concordar... Vou me explicar. Vocês têm família, emprego, carro, um apartamento que falta acabar de pagar. Engarrafamentos, ralar, nanar, com sorte, é só isso que sobrou para vocês. Metrô, Agência Nacional e Emprego, insônia, já que existem problemas de dinheiro para os mal-afortunados. Seu futuro se resume a uma repetição do presente. Os seus filhos, caso se virem, talvez consigam morar num apartamento com cinqüenta metros quadrados a mais do que vocês, e estofarão de couro os assentos da Renault Safrane da família. Vocês ficaram orgulhosos deles. Eles irão com os pequeninos de férias para a casa que, uma vez aposentados e exauridos, vocês comprarão no Sul da França. Vocês são da classe média, você sabe consertar uma televisão e sua senhora cozinha bem. Sorte dela, senão você

já a teria largado por uma cópia mais nova, considerando que faz mais de dez anos que ela usa a desculpa da enxaqueca. A última vez que você a tocou foi durante o último jogou da França contra a Itália, quando agarrou exaltado o braço dela porque a França fez um gol nos últimos trinta segundos, " Desculpe, meu bem". Nos últimos tempos vocês andam com alguns problemas: precisam consertar a máquina de lavar, Jennifer pintou os cabelos de vermelho e anda mais chegada a colocar pierciengs do que a freqüentar a igreja, Kevin anda falando uma linguagem de favelado das mais desagradáveis. Ambos, além de medíocres, são feios. Isso deve ser hereditário. A sua mulher frustrada esquece de propósito exemplares da Men´s Health sobre sua escrivaninha. Você começou a imaginar sua secretária de fio-dental, sua sobrinha de fio-dental, todo mundo de fio-dental. A sua vida não o satisfaz mais.

A coisa podia ser pior. Você podia estar morando num dois-quartos no subúrbio, sem televisão, nem lava-louça. A versão com TV seria ainda pior, visto que seus seis filhos a deixariam o tempo todo ligada com o som no máximo, especialmente durante as transmissões do Big Brother. Você poderia ser um morador de rua. Você poderia também ser um de nós... Mas quem somos nós? Somos simplesmente os herdeiros dos Domini da Roma antiga, dos senhores da Idade Média, da fidalguia do Renascimento, dos barões da indústria do século XIX, uma fração ínfima de privilegiados que são donos em seus refúgios, onde brilham as jóias de Cartier, de 50% do património francês. A propriedade é a origem da desigualdade entre os homens. A gente não se queixa disso. A gente, a gente pode fazer o que quiser, ter tudo, uma vez que podemos comprar tudo. Nascidos com uma colherinha de prata enfiada em nossas bocas VIP, nós transgredimos todas as regras, uma vez que a lei do mais rico é sempre a melhor.

É prazeroso exibir nossa abundância na cara da penúria dura e virtuosa; as bolsas Prada fazem sua festa na sede do Partido Comunista; Jean-Marie Messier, o todo-poderoso dono do Canal +, ele mesmo um dono-do-mundo, exibe suas meias furadas; John Galliano se inspirou nos mendigos do Bois de Boulogne para conceber sua coleção de inverno para o ano 2000... A gente não faz de propósito. Estamos de saco cheio de sermos ricos bancando ricos. Gucci lança pulseiras-algema, os filhinhos de papai fazem o menos possível a barba, o que mais tem é gente andando de boné na avenue Montaigne, Helmut Lang joga tinta em cima de um jeans sujo e o vende por 1.200 francos... Andando a duzentos por hora nas ruas de Paris, onde não é bom parar quando se está dirigindo, misturamos birita com fumo, o fumo com pó, o pó com ecstasy; os caras transam com as putas sem camisinha e gozam depois nas amiguinhas das irmãs mais novas, as quais, de qualquer jeito, ficam o dia inteiro fazendo suruba. Estamos no mais completo delírio, tomados por uma busca desenfreada de consumo gargantuesco e luxo sibarita. A gente toma Prozac como vocês tomam Melhoral, a gente tem vontade de se suicidar a cada

saque na conta do banco, porque é realmente vergonhoso quando se pensa que tem lugar onde crianças morrem de fome, isso enquanto a gente se entope de porcaria ao encher a cara. O peso da injustiça no mundo se escora em nossos ombros de alfenim de ex-crianças delicadas. Vocês... vocês são as vítimas disso tudo, mas a gente não pode censurá-los por isso. De qualquer forma, o que quer que a gente faça, é sempre uma vergonha. E verdade, nós entornamos o conteúdo de magnums de grandes safras datadas goela adentro nas praias de Pampelonne. E daí? Não são vocês que pagam a conta! E além do mais, percebi no último verão que a praia pública colada na da Voile Rouge não se esvaziava. Todo mundo lá, pelado no sol, como se nada importasse, e quando um Porsche passava, ou mesmo um Boxster vagabundo (chamado entre nós de Porsche dos pobres por causa de seu preço, que não passa dos trezentos mil francos), ficava todo mundo assanhado; largavam o gato, soltavam o panini ou o rissole, tiravam o walkman, ficavam de boca aberta, não conseguiam mais respirar e os ohs e os ahs que soltavam abafavam o barulho do motor... Bastava uma Ferrari e, então,

era o infarto em massa. Nem vale a pena negar; eu estava sentada nela, vi vocês direitinho... Seus olhos brilhando, suas mãos estendidas... vocês suavam de inveja, chegavam a trepar na cerca limite para olhar de relance um pedaço de alça de biquini, um perfil ruim de star, respirar os eflúvios deliciosos de um champanhe Dom Pérignon 85 secando num maiô da Erès e a pele bronzeada de uma colunável... Vocês dariam qualquer coisa para estar no nosso lugar. Isso faz mal a vocês. É com um ódio ressentido que vocês largam seus opróbrios sobre nosso comportamento. Querem que a gente fique com a consciência pesada por torrar uma grana que vocês nunca terão. Se deram mal. Eu gostaria de avisar, mesmo assim, que nós pagamos impostos; que, dos 12 meses de esforços extenuantes nos quais a gente tem de ficar dando ordens aos outros, nunca veremos a cor da renda de seis; que o Estado nos despoja para que as crianças de vocês possam ir à escola. Deixem, então, a gente em paz. Enfim, por enquanto as coisas estão indo bem para mim. Minha única preocupação é com a roupa que vestirei hoje. Vou almoçar com Victoria no Flandrin e já deveria estar lá,

mas como ela é tão pontual quanto eu, posso me dar ao luxo de sair daqui a uma meia hora. E aposto minha bolsa Gucci que mesmo assim ainda vou ficar esperando uns bons dez minutos. Tenho, portanto, 45 minutos para me vestir, e não é pouca coisa. Faço o inventário do conteúdo de meu closet e dos meus dois armários. A abundância não é nenhuma dádiva, palavra de honra, o problema sendo a multiplicidade das escolhas. Todos esses modelitos, e nada para vestir. Fico plantada no meio do quarto, só de fio-dental, com um cigarro no bico e quase chorando de frustração isso me deixa PUTA. Sem muita convicção, acabo escolhendo um vestido rosa-chá do Joseph, que já usei uma vez em Sainl-Tropez na Semana Santa, e levo uma hora para encontrar um pashmina que combine. Minhas sandálias Prada ficaram na entrada; aqui, é claro, ninguém arruma nada. Agarro a bolsa Gucci de que falei, e ainda bem que acabei de comprar os últimos óculos da Chloé, o que me deixa de bom humor. Bonita, bronzeada e monogramada, saio saltitando de meu apartamento, com o coração alegre.

Meu celular começa a vibrar. O número é de acesso restrito. Sim? Tudo bem, onde é que você está, minha gata? E só um conhecido; como é que ele tem a petulância de me chamar de gata? Estou saindo de casa, vou almoçar no Flandrin com Victoria. Espera um minuto, eu estou na esquina, vou passar para te pegar. - OK, mas anda logo. Três minutos depois, ele aterrissa no seu Porsche e chega, como de hábito, cantando pneu, enquanto estou no telefone com Victoria, a qual, como eu havia dito, ainda está no banho. Mas grito com ela, de qualquer forma, para deixar as coisas claras. Ela morre de rir, está pouco ligando. A gente se manda como um raio pela avenue Henri Martin, indo a 150 e por pouco não passa por cima de um pastel... Cinco minutos depois, chegamos ao Flandrin. O terraço já está empanturrado de gente, e daí, se não tem mais mesa, os criados criarão uma para mim. Ah, o Flandrin...

Nesta Paris plúmbea do metrô e de gente anônima, existe em algum lugar uma ilha de luxuosa e tranquilizadora alegria. Um porto de páz, local de reencontros, a praia de nosso meio, Saint-Tropez em pleno outono. Os raios de sol nunca se extinguem. É um raio de sol que reflete nos cabelos de ouro da garota esplêndida com o nariz, coberto por um c u ra t iv o cirúrgico, o q u a l , agora m u d a n d o de direção, passa a acariciar os pára-choques polidos da Bentley azul-ferrele de um ex-playboy que almoça, para reverberar, em seguida, sobre as letras douradas de uma bolsa Dior; inflamando com faíscas cintilantes o coração de strass dos meus óculos Chloé, seu brilho excita depois a fivela de um cinto Gucci, brinca com os dois ouros da casa Chaumet de uma libanesa que lê Point de vue e esbarra no meu isqueiro Dupont, perdendose nas bolinhas de mi n h a taça de champanhe... Victoria acaba de chegar. Ela se instala, pede tomates com mozarela e começa a soltar veneno sobre todas as pessoas que estão ali. Ver e ser- visto? Não, massacrar e ser massacrado. Além da qualidade do serviço e da cozinha (exceto pelas sobremesas que, como todo mundo sabe, são infectas), o Flandrin é a feira das vaidades, é o ponto de

encontro de toda Paris, e uma zona inesgotável para a atividade das más línguas como as nossas. Nós, aliás, não somos as únicas. Vocês precisam ver essas meninas em flor e com esse look na última moda, com seus cabelos castanhos de reflexos avermelhados, seus braços e pernas graciosos, maneiras delicadas, cotovelos j u n t o ao corpo e cheias de não-me-toques... Aproximem-se... cheguem mais perto... e escutem suas vozes roucas e intensas... Olha lá, aquela ali está de nariz novo... E o Julian, quem é a piranha que está almoçando com ele? É uma garota Europa Oriental, ele a comprou no Vittorrio... Eu não sabia que Vittorrio fazia tráfico de garotas do Leste... Como é que você acha que ele paga as garrafas dele? Você sabe mu i to bem que ele é de uma família de pés-rapados, sem grana nenhuma, esse cara... Você viu a Cynthia? Está com uma bolsa Chariel de 12 mil... Ela está namorando o Benji, aquele maluco cafajeste que compra tudo para ela... De onde ele tira essa grana toda? Ele acabou de comprar a última M3 da BMW... Da Bolsa, mas isso não vai durar, nem se preocupe... Não olha, o amor da sua vida chegou... Ele está com quem?... Com o amor da minha vida... Eistão falando com a Cynthia... Alô, tudo indo... Estou no

Flandrin... nobody interesting... Você está vindo para cá... OK, um beijinho chérie... Tem creme brûlée, por favor? Obrigada... De quem é aquela Ferrari? Como vai? Senta a qu i conosco... Marbella, acho, eu tenho um amigo venezuelano que alugou um iate de cinquenta metros... Ou então em Bali com meus pais, me desligar um pouco disso tudo, é tudo tão vazio... Uma fortuna no cassino... Não suporto esse cara... Eu estou um lixo, passei ontem na casa do Chris e foi uma cheiração danada... São um barato esses teus óculos Chanel... Obrigada, também comprei um Smart cab para mim... Você não sabe com quem trepei ontem à noite?... Vamos embora?... No táxi que me leva de volta para casa, começo a ter dor de cabeça por ter fumado demais e, estranhamente, tenho a sensação de ter perdido meu tempo. O que foi que eu fiz hoje? Almocei muito bem os tomates com mozarela, um linguado que mandei de volta a primeira vez para a cozinha para que o molho fosse refeito e, de novo, porque havia esfriado enquanto refaziam o molho; devolvi tambem um prato de macarons, a massa de amêndoas estava doce demais.

Eu convidei a Victoria, oitocentos francos para um almoço de amigas, está correto. Um babaca nos mandou uma garrafa de Bollinger, que esvaziamos. Por educação. Julien, por quem tenho uma queda, David, por quem tenho uma queda, e David, por quem não tenho uma queda, porque ele é muito fresco, se juntaram a nós; respectivamente, o filho de um cantor muito conhecido, o filho de um presidente de empresa muito importante e o filho de um ex-ministro. Eu disse "como vai" para 42 pessoas; seis dentre elas eu não conhecia, mas me foram apresentadas. Uma Ferrari Maranello com placa do Luxemburgo chamou minha atenção. O dono, infelizmente, não apareceu. O filho muito fresco do ex-ministro levantou-se para esticar uma fileira no banheiro, e o filho do cantor muito conhecido e do presidente de empresa muito importante ficaram caçoando e contando vantagem sobre a mãe do filho do ex-minislro, a qual foi fodida várias vezes de tudo quanto é jeito pelos pais dos respectivos.

Cheirado e embonecado, o filho do ex-ministro, ao voltar do banheiro, aproveitou que o filho do cantor famoso havia se afastado para xingar pelo celular a oficina da Porsche que não acabava nunca o conserto da caixa de marchas do carro dele, sem conserto, aliás, destruída d u rante uma corrida contra um tal de Andrea na perimetral há dois dias ás três da manhã; foi então que o filho do exministro me contou que o c a n t o r famoso estava duro. - Mas o filho dele mesmo assim a n d a n u m P o r s c h e ? Sinal aparente de riqueza básica, que representa só um nadinha a mais que um Nokia 8.210. - Ah. E vocês que sonham com nossa opulência dourada e esplendorosa... é tudo fajuto, só folheado. A grana, os carros, os amigos, as casas em tudo quanto é lugar, os convites para entrar ern qualquer lugar... E a gente nunca tem o que fazer. E a gente cospe todos uns na cara dos outros. A verdade é que a gente fica completamente de saco cheio sem ter mais nada o que desejar.

O mundo é pequeno demais, com oito anos a gente já deu umas dez vezes a volta nele na classe executiva...

2 O cair da noite e, quando escurece, Paris muda de cor e sentidos. Estou num táxi que corre pela via na margem do Sena e abaixei o vidro para poder fumar. Num instante, estarei sentada em algum lugar como o Avenue, o hotel Costes, o Maison Blanehe, Nohu, Xu, Man Ray, Korova, no Diep, no Market, no Tanjia, no Stresa, ou ainda no Plaza; vou jantar um folheado de caranguejo e, é claro, um vinho suave, ou então não janto e bebo um Cosmos, ou uma vodca pura, fumando um cigarro atrás do outro e dizendo "como vai" às pessoas. Sybille está dos pés à cabeça de Gourrèges e Chloé me mostrou excitada a sua 140 quilos. Eu conto para elas a respeito das últimas "armações" de B. B., mais conhecido entre meus amigos pela alcunha de o Ignóbil B, ou Aquele Que Partiu Meu Coração. nova bolsa Dior. As duas são louras e inteligentes. Nós três juntas pesamos menos de

B tem os olhos cheios de estrelas e um sorriso seráfico que escondem suas más intenções. Numa noite de bebedeira no Queen, eu estava terminando languidamente minha décima sétima vodca enquanto me perguntava por que estava ali, ainda ali, sempre ali, quando, de repente, surgindo em meio aos resíduos da madrugada, percebi o Belo. O belo das cinco da manhã. B, é claro. Larguei o meu copo. Fiz com que me apresentassem rapidamente, e já no fim de semana seguinte estávamos rolando na cama. Deslanchou daí uma semana de plenitude radiante; a cada encontro me era revelada uma nova perfeição em B. B era bonitão. B tinh a uma Aston Martin DB7 Vantage... 3. B era divertido, inteligente, tinha conversa e não me enchia o saco com as questões existenciais habituais de um filhinho de papai boboca sofrendo de existencialismo agudo: "Audemars Piguet ou Jaeger-le-Coultre? A u d i TT ou Boxster? É melhor cinza com estofamento vermelho, ou

preta com estofamento bege? E como conseguir uma mesa em Enghien-les-Bains durante a Fashion Week? E por que as rodas da TT que são as mais bonitas são também as mais baratas?!!! B lia... ele lia livros! B me comeu, e B me conquistou. É verdade, pela primeira e última vez me permiti cair nessa arapuca velha como a Terra, e trago comigo a dor secular da Virtude Traída, que nós, as mulheres, por causa desses monstros ávidos de coito sem futuro, vimos sofrendo há séculos. Mas isso foi só um prelúdio para os tormentos que, daí por diante, o Ignóbil B iria infligir ao meu coração puro e ao meu ego ainda intacto. Ontem à noite, B, sem qualquer escrúpulo, foi se mostrar em Bains com uma maneca russa de l,90m, cujas pernas eram impecáveis, mas cujo rosto era flácido e porcino, de forma que a decepção cedeu lugar imediatamente ao desprezo, v i s t o q u e quem iria ligar para um cara babaca ao ponto de preferir uma id io ta feia com o

prétexto de que ela tem três cabeças a mais do que eu e fala rolando os erres como urna campônia dos Urais? Aparências... Tudo são aparências... Tendo como barulho de fundo aquele trecho melancólico do Sun Trust, How insensitive, compartilho com minhas amigas as minhas reflexões amargas a respeito da elegância de B no seu terno cinzento, da vontade que tive ontem à noite de quebrar a cara daquela puta horrorosa com garrafadas, das minhas lágrimas hoje de manhã na frente do espelho e, em seguida, da minha decisão de enterrar de uma vez essa história, já que é melhor ser indiferente e digna do que infeliz e patética. Chegou o martíni de Sibylle, a Evian de Chloé, minha vodca, dois amigos de B que me perguntam hipocritamente como vai o namoro com B; felizmente, meu celular tocou nesse exato momento, evitando que eu armasse um barraco para cima deles, e era um dos meus conhecidos em Mônaco que me convidava para uma festa numa suíte no Bristol; eu não entendo patavina do seu sotaque de feirante e não sei como fazer para declinar a oferta porque não falo italiano; desligo em seguida com a desculpa de estar passando por um túnel, Chloé conta para Sibbyle que quase furou a sola

enquanto corria atrás de um táxi na avenue Gabriel, e Sibbyle e eu per-guntamos angustiadas em coro: "A sola dos seus Gucci?" Mas ela responde com irritação: "não, a sola do Meu pé", e nós suspiramos aliviadas, mas eu pergunto a Chloé o que ela estava fazendo na avenue Gabriel, uma vez que lá não tem butiques, e ela sai pela tangente, me deixando com a pulga atrás da orelha sobre se ela não está me escondendo alguma coisa, uma vez que B mora na avenue Gabriel. Já faz um bom tempo que nós não nos vemos, de forma que tínhamos um bocado de coisas para contar e falo a respeito de uma maneea que elas detestam e que saiu na seção people da Gala, e Sibbyle me pergunta se eu conheço uma tal de Gudrun que foi capa esse mês da Vogue, uma doida que deu em três semanas para Paris inteira, e o ex de Sibbyle estava, ou não, na lista? A gente concorda em seguida a respeito da alegria que teríamos em massacrar todas as manecas que perseguem o Champs-Elysées e o Faubourg Saint-Honoré, eu as acalmo dizendo que as garotas do Leste só têm os ossos de bonito e que elas chupam mais paus do que fazem fotos, com Cloé acrescentando o fato de que "eles nunca casam com elas, e eu acrescento que, enquanto isso.também não casam conosco, mas isso não faz ninguém rir. E nós não estamos de acordo sobre a problemática de um escândalo político que anda

ocupando as manchetes do momento, tiro da bolsa o artigo da Paris-Match que fala do caso em questão para provar que tenho razão, Chloé então telefona para o filho de um dos protagonistas mais importantes, o qual nos revela a verdade, de forma que ficamos sem soltar um pio durante cinco minutos, tamanho foi o nosso choque. Sibylle me mostra o texto que ela mandou para o namorado no meio da noite, e dou uma bronca nela, pois sou contra esses textos que são enviados às quatro horas da manhã; para mim, eles são uma prova de fraqueza, eles aparecem na tela do monitor em maiúsculas: LEMBRE-SE DE MIM QUANDO OS SEUS FILHOS SE DROGAREM E SE PROSTITUIREM. Eu teria sugerido em vez disso: você vai morrer sozinho e a culpa é sua, ou ainda a canção de Aznavour Mais oú sont passés mes vingt ans?Na sua secretária eletrônica. A gente decide em seguida ir arranhar a pintura da sua Mercedes roadester quando sairmos da boate. Nossos celulares tocam ao mesmo tempo. São nossos amigos que vêm se encontrar conosco daqui a pouco, tempo suficiente apenas para gente falar a respeito das garotas enganadas que têm por hábito raspar a cabeça das suas rivais e uma idéia diabólica começa a germinar na minha mente, mas não deixo que ela cresça.

Então observo as pessoas a nossa volta, cujos vultos aumentaram com o clarão das velas -elas ficariam bem menos bonitas debaixo da luz branca do metrô, a avenue Montaigne está impecável: tem os estrangeiros e a butique Fendi, tem os Porsches com placas monegascas e as Ferraris de Itdas as cores, tem as embaixadas, não tem padarias, e um dos meus falecidos na calçada em frente, é como se houvesse um fundo musical de lounge de hotel que flutua ao anoitecer, e os fornecedores que se parecem com executivos, e os executivos de verdade, e os filhos destes que se parecem com fornecedores, e um Porsehe preto placa 750ONLY75 passa vagarosamente, como se deslizasse, e me lembro de repente de que vou fazer um aborto amanhã de manhã. Foi esse o momento que escolheu o sujeito bemapanhado da mesa vizinha para perguntar a Sibylle e a mim se nós pertencíamos a uma agência; nós demos risadinhas nervosas, para em seguida ficarmos com um ar excessivamente interessado e idiota, discutindo medidas, pesos, desfiles, fotos. Ele acabou nos dando seu cartão, no qual está impresso o logotipo de uma importante agência de modelos, junto com um nome

italiano com o título "recruitment director" nós, então, começamos as três a rir desbragadamente, soltando gritinhos histéricos, que é a nossa maneira de rir, e Sibylletlira a carteira de sua bolsa Courrèges, junto com um cartão de visitas, o qual entrega para ele com um sorriso insolente: Este é o logotipo autêntico da agência do meu pai; quanto ao diretor de recrutamento, ele janta uma vez por semana lá em casa. E não é você. Ele ficou com uma cara de tacho, o impostor, mas logo um sorriso enigmático toma conta de seu rosto e digo com os meus botões que ele tem cara de beócio, de boçal, mas que ele não é mesmo nada mau, nada mau mesmo, olho para Sibylle que também está sorrindo, mas não corno antes, e entendo por que Viltorrio (uma vez que ele deve ser Vittorrio) não perde as estribeiras e acaba por perguntar a Sibylle se o telefone no cartão é o dela ou o do seu pai, e ela responde que é o dela, ele então diz que agora pode ir embora e, de fato, vai embora, e todo mundo o segue com os olhos enquanto ele atravessa a sala.

-E preciso tomar cuidado com esses caras que usam Rolex Daytona e que saem por aí distribuindo falsos cartões de visita - declara Chloé. -E com garotas que andam pela avenue Gabriel sem que a gente saiba por quê. Foi a minha resposta, a qual me pareceu brusca. Meu celular começa a tocar de novo, um número anônimo. Eu atendo. Ninguém responde do outro lado da linha. Está na hora de irmos ao Nouveau Cabaret. Quando estamos saindo, acabamos encontrando com dois, ou quiçá três, amigos iranianos e milionários que estão indo para o mesmo lugar que a gente, eles vão embarcar em duas Bentleys, enquanto nós seis vamos nos enfiar meio apertados dentro de uma TT e uma Boxter, e ficamos achando que as riquezas não estão lá muito bem divididas. Percebo, na frente da boate, o carro de B e me pergunto se não estaria melhor na minha cama terminando de ler Belle du Seigneur ou escutando um CD do Buddha fumando substâncias ilícitas. A gente entra logo sem problemas, e nos precipitamos escada abaixo. A boate eslá abarrotada e tenho a impressão de

que todo mundo está usando máscaras, a mesma máscara com dois buracos paca os olhos, apenas B está com o rosto descoberto. Vou ficar durante dez minutos dizendo "como vai", só depois é que poderei me refugiar na minha mesa e virar as costas para o Tormento me-tido num pulôver laranja com as mangas arregaçadas. Emprego tesouros de estratégia para dizer boa-noite a quem de direito sem me aproximar de B; estão lá as mesmas manecas de ontem à noite em Bains, os mesmos bookers. ou pretensos bookers, vestidos de qualquer jeito, isso é normal, é a Fashion Week e uma idéia está no ar, ela deixa as pessoas de tal forma obcecadas que se torna palpável...FUCK ME I´M FAMOUS!!! É é a primeira vez que escuto os urros de Marilyn Manson ali, não importa; todo mundo está com um ar desvairado e sei, e u sei que todas as garotas se sentiram HORRIVEÍS ao acordar hoje de manhã, e que todas estão à espera de uma ligação que nunca será completada. E me pergunto mais uma vez o que estou fazendo ali, quando poderia ter ficado tranquilamente lá em casa assistindo a Ally Mc Beal e, então, a coisa melhora quando me dou conta de que se a gente pergutlasse a todas as pessoas presentes o que elas es-

tão fazendo ali, a metade delas cairia em pranto na hora. A outra metade iria responder com impaciência: "Ora, porque é a Fashion Week!?!", 0u então: "Because, it.'s Faaaashion Weeeek!, mas são manecas, é melhor não perguntar muita coisa para elas, as coitadas estão exaustas, desfilaram o dia inte iro, de qualquer forma elas vão voltar para Nova York daqui a dois dias e não vão mais encher o nosso saco ate a próxim. Saison. Esta quente demais e todo mundo fala inglês, dane-se, três vodcas e alguns cumprimentos esnobados mais tarde, e nada mais importa. O que "que ele tem", será que a franja que mandei cortar noToni and guys hoje de manhã às quatro da tarde vai aguentar a umidade do ambiente? E o campo de visão de B, que engloba um pouco a nossa mesa, peço a Sibylle para me dizer quando e com qual frequência ele vira a, cabeça na minha direção, uma vez que gostaria de: l. não tirar onda à toa; 2. mostrar uma indiferença a toda prova, mas sabendo mesmo assim se i/m ou não ele não paára de me olhar. Espera, o cara de antes está aqui - diz ela, deliciada, para mi m.

O pretenso booker da agência do seu pai? A resposta é afirmativa, e é preciso que a gente faça de conta que estamos completamente drogadas, isso quando não temos nem uma fileira, toda essa palhaçada para justificar nossas 15 idas e vindas até os banheiros com o objetivo de passar na frente da mesa de Vittttorrio, visto que mademoiselle Sibylle queria registrar a cara dos amigos dele e o nome na garrafa, se o nome é Vittttttorio? Nada disso, Vittorrio não tem mesmo cara de quem esvazia garrafas. Além do mais, ela está é atrás da garota com quem ele está conversando; será que é bonita? E mais bonita do que ela? Ah, bom, por quê? E o que é que ele pode ficar assim falando com ela horas a fio? Mas digo para Sibylle parar de levar a sério aquela piranha, já que se ele estiver discutindo com ela a porcentagem que irá receber sobre seus ganhos quiméricos quando tiver feito dela uma super top model, o projeto não deve ser levado a sério, uma vez que Vittorrio NÃO é um booker, e ainda por cima a bolsa dela não tem marca. Sybille fica resserenada, posso finalmente voltar para sentar no meu lugar e vigiar B até me fartar. Entre uma coisa e outra, já são quatro da manhã, e Cassandre aparece não sei de onde e para me dizer que está na hora de se mandar desse l u gar que já está ficando vazio.

Eu saio do Cabaret despenteada, topando f a zer qualquer coisa, menos ir para casa, isso apesar da indignação de Sibbyle, Chloé, Julien, David e David, que vão todos para suas casas, no 16ème, no 7ème e no 8ème, e que não entendem o meu vigor: "Você não está de saco cheio de sair... O Queen já não te encheu o saco?... Você ainda não está exausta?..." Eles não são lá muito convincentes, eu seguro o braço que Cassandre me estende, e a gente é engolida no último instante pela Ferrari do melhor amigo do tio dela, o qual continua a sair apesar dos seus cinquenta anos e das duas filhas que têm a mesma idade que a gente e das quais não gosto. O trajeto até o Queen dura menos de um minuto, levando em consideração a velocidade do veículo e a proximidade das duas boates. A gente estaciona no Champs-Elysées, e a placa do carro é 456GT75. Ao que parece, esta é a noite da soirée Ministry of Sound, tem uma fila de cinqüenta metros na frente da porta, é evidente que a gente fura. A música, como de hábito, está tão alta que as paredes dão a impressão de tremer, basta uma olhadela no quadrado da pista para ver que "todo mundo" está lá e a gente parte num segundo para o boxe central, sessenta pessoas nas quatro mesas a nossa volta agarradas na rede se

amarfanham e pulam quando são ouvidas as primeiras notas do barato que é essa canção do Si l icone Soul. Eu reencontro Victoria, que já está de barato; ela me avisa que está com pó e joga a bolsa numa banqueta antes de me arrastar correndo para o banheiro. Victoria tem l,80m de altura, a mãe dela é uma princesa e ela é dotada da personalidade mais forte com a qual já deparei; empurra todo mundo no caminho urrando que é uma very important. person. e que as very important persons não fazem fila para ir mijar, beija o cara que toma conta dos banheiros arranhando o torso dele, e depois me empurra para trás de uma porta me passando um saquinho que deve ter um grama, e fico sem saber o que fazer. Devolvo meio grama ao sair; percebo no espelho que meus cabelos estão cobrindo meus olhos e que meu rímel está borrado. Nón voltamos para o quadrado, eu monto num tamborete e me agarro também na rede, e começo a fa zer coisas amalucadas. Do outro lado do Queen, um cara insignificante encara excessivamente Cassandre, percebo que é um sujeito com quem ela transou há um ano, antes de ir morar em Londres para estudar, digo isso para ela e mostro o cara, mas não adianta nada, ela não o reconhece.

Enquanto me pergunto mais uma vez o que é que estou fazendo ali quando poderia ter ficado tranquilamente em casa fazendo sei lá o quê, dormindo por exemplo, de repente alguém me segura pela cintura, eu me viro, e é A, A em pes-soa, com um sorriso congelado no seu rosto deformado pêlos excessos, quiça 15 vezes mais doidão do que eu, mais doidão sozinho do que todo o Queen reunido. Falo com ele, vejo-o sair cambaleante do quadrado e ouço agora a boate em pianíssimo. Me sento de supetão e esvazio n u m gole minha taça. Cassandre pergunta o que está acontecendo comigo, e eu comunico a ela a presença de A, ela entende tudo sem precisar explicar, mas está doidona demais para me consolar e, de qualquer jeito, eu a teria mandado para aquele lugar. A acabou de reaparecer, é evidente que ele foi cheirar uma fileira - a mesa dele é, de longe, overcrowded do Queen , e eu não consigo, apesar de todo o meu esforço de concentração, distinguir a silhueta elétrica dele em meio às manecas, as babacas, as piranhas, que o cercam e disfarçam; eu me limito a seguir o relógio reverso entre a rede. A está um lixo, ele se joga Nsobre tudo que se mexe com saia perto dele, seu rosto não exprime mais quase nada de humano. Ele fornica literalmente na banqueta com uma inominável suburbana, digo para mim

mesma que ele está de dar dó, tão lamentável que ele não significa mais nada para mim. Isso dura um segundo. Porque depois, A se levanta e dialoga por sinais com um de seus amigos, e aparece aquele sorriso radiante que ilumina seu rosto inteiro abaixando o canto dos seus olhos, fazendo com que eu perceba até que ponto ele ainda é importante para mim e, durante dois minutos, ninguém na boate descola o olhar desse fenômeno, todas as suas ex o fixam com um olhar esquisito, outras garotas o contemplam mesmo que ele mal consiga ficar de pé, e eu percebo que A, não importa o que ele faça, será sempre um vencedor, apesar dos seus caluniadores e da sua torpeza. Não sei por que venho sofrer aqui. Nesse bordel institucional que deixa o amor em frangalhos. Aqui, ninguém vale nada para niniguém. Eu não valho nada para ele. Vou até o banheiro acabar com o pó.

De volta ao quadrado, vou na direção de A. Contorno as piranhas amontoadas, A está prostrado no sofá, o olhar desvairado; ele estende os braços para mim, eu me sento ao

lado dele, pergunto como ele está, não compreendo sua resposta inarticulada, ele balbucia que a gente precisa conversar, que faz muito tempo que a gente não se vê, a gente podia ir para a casa dele cheirar um pouco de pó, conversar, tenho vonlade de dizer não, mas não consigo. Saímos mais uma vez juntos do Queen. Vamos andando um ao lado do outro na direção do

ponto de táxi, ele nunca pega o carro quando sai, sabe que não estará em condições de dirigir, e sou eu quem diz o itinerário ao motorista do táxi, para quem ele estende uma nota amarrotada. O cheiro familiar do seu apartamento, as fotos por t u d o quanto é canto, seus incontáveis amigos, as paisagens distantes e os belos rostos familiares, ícones fragmentos de sua vida de sibarita mundano em que não há lugar para mim. A se alonga sobre o seu canapé que eu conheço m u i t o bem, ele tira do bolso umas pedras de cocaína embrulhadas em papel OCB, as esmaga com um cartão de estacionamento e desenha uma dezena de linhas tão brancas que a genter consegue enxergá-las apesar da esobscuridade. Ele cheira algumas, me estende uma nota cem francos e eu acabo com as q ue sobraram. Em seguida, como de hábito, liga o som e

põe músicas de Brassens e Léo Ferré, e me olha sussurrando palavras. Sempre as mesmas declarações do seu princípio de manter-se eternamente celibatário, as mesmas apologias da libertinagem, tudo isso para que eu compreenda... o que já sei. Durante horas a fio até adormecer, não pensarei em nada, apenas engolir a droga pelo nariz e a fumaça pela boca, e ficar apenas com a noção de ser envolvida pelo seu braço, de descansar no seu ombro, não sinto sequer rneu corpo moído, nem minha cabeça que deveria estar doendo ao ponto de me fazer gritar. O tempo cessou de existir na casa de A, às seis horas da manhã, a ampulheta cessou de medir as horas, imobilizada pela voz dos poetas, as canções de uma outra época, a cocaína intemporal e, sobre o canapé, a garota terá sempre vinte anos. Olho minha sombra laranja dançar na parede, ela podia ser a sombra de qualquer um. A pertence ao mundo dos homens fodidos, tomados pelos paraísos artificiais e pelo pecado venal, apaixonados

por todas aquelas que ainda não possuíram, os quais terminarão sozinhos. Todo esse tempo, todos esses rostos, todos esses gritos de gozo, esses abraços sem a l ma de manhãzinha, quando não é noite nem dia, o seu orgasmo termina então, e seus olhos se descerram, seu quarto é apenas um puteiro, Baudelaire está morto, e quem está nos seus braços é simplesmente uma puta... Sinto frio na jacuzzi. E não bebo o champanhe dele. Velas iluminam nossas carnes umidas, griséus no luscofusco da alvorada que se insin u a através das persianas, um cenário sinistro, sempre o mesmo. Ele me beija, mas fico de olhos abertos e vejo, d a q ui ,flios de cabelos loiro num pente, além de embalagens vazias de camisinha no chão. Sinto enfado. Ele põe La vie dártiste de Ferré e declara olhando para mi m que esta música somos nós, que é a nossa história; seus olhos, esvaziados por excessos. mergulham nos meus e eu busco encontrar minhass lágrimas, mas nada vejo. Essas notas lancinantes que perturbam a aurora e o silêncio são

exatamente a nossa história abortada, risos esquecidos, sentimentos mudos, o arrependimento e sentir que está tudo acabado, e de que não resta mais nada a fazer. "Quero que t u d o se dane" diz baixinho F erré. E A me diz que um dia eu poderei escrever esta canção para ele. Passa-se sempre ao largo da felicidade, Se você me houvesse amado... isso não seria o bastante. E o seu deboche ilude somente por um instante o disfarce do seu desespero. E um. desses males para os quais não há cura... A culpa não é minha. No táxi que me leva de volta para casa, vejo Paris desfilar de ponta-cabeca e fumo um cigarro que não queria. O Concorde Lafayette surge esmagador para mim e lembro-me daquela noite no último inverno, a gente esperava pela hora da sessão de cinema sentados num banco, na frente de um hotel, aconchegados debaixo do seu sobretudo: "A vida inteira a gente vai sempre se ver" foi você quem disse. Toda vez que passo por lá, imagino ver as silhuetas de nós dois abraçados, mas nunca há ninguém sentado naquele banco.

O passado... Eu me revejo à sua espera, paciente, rue du FaubourgSaint-Honoré, na frente do Hermès, você voltava de viagem e queria me ver, estava atrasado, eram duas horas da manhã, mas eu não sentia frio. E quando a gente perambulava por Paris de scooter, depois de terem tomado a sua carteira de motorista, nossos reencontros depois do verão, e aquele jantar em SaintGermain em q u e bebi sancerre em demasia, quando nada conseguia engolir. E todas aquelas noites ao seu lado, a sua cama, com a qual me habituara a ponto de conseguir nela sonhar, como se fosse a minha. E Sinatra, Baudelaire... Agora sei que você lia para as outras também, e foi por isso que acabou. Avisei você tantas vezes, mas desta vez é definitivo, a escolha foi sua. Você optou pela sua vida de babaca, a felicidade nos teria sido enfadonha. Vamos morrer cada um para o seu lado. Pavarotii, Léo Ferré, Paris Dernière e

Agora espero que todos me contem histórias de você, nas quais não sou mais a vedete, os cara...
SEUS

infortúnios, as conquistas

que você faz, e quando falo da gente no passado, as pessoas RIEM
NA MINHA

Porque eu digo sempre "nós". Elas têm razão. Eu me dou conta da nuca do motorista do táxi, do barulho monótono do motor e do tamborilar da chuva no teto do carro. O sinal passou do vermelho para o verde, e etlou apenas tão cansada... Essas ruas desertas com as calçadas molhadas, sair, ir tarde para a cama. toda essa gente, esta sensação de ardor no peito, as pernas em frangalhos. Sinto dificuldade para respirar. Não tenho vontade de fazer nada, não sei o que fazer, não quero dormir, não quero ficar acordada. Não tenho fome. Não quero ficar sozinha, não quero ver ninguém. Tenho a sensação de estar em sursis. Eslou apenas complelamente esgotada. A verdade torna-se lentamente clara e me esvazia... A... mesmo A.... estou pouco me lixando.

3 Saio do hospital, sozinha. M i n h a mãe me deixou lá esta manhã, depois foi embora parl uma reunião. Eu deveria permanecer lá, mas escapei das enfermeiras. Sinto cólicas. Tenho um encontro com Sibylle no bar do Plaza, não consigo encontrar um táxi. E s t o u v e s t i n do uma calça preta de linho, uma camisa preta de gola rulê, Nikes pretos e meu casaco de couro. Meus óculos escuros escondem meu do meu rosto. Não estou chorando, só queria conseguir um táxi. Peço ao motorista para parar no começo da avenue Motlaigne, estou com vontade de caminhar, Não penso em nada. As pessoas correm apressadas, e esbarram em mim. Entro no hotel, o porteiro me conhece e sorri para mim. No hall, tem um saudita que lê um jornal em árabe, cruzo com um conhecido, Tenho a sensação de estar saindo de um sonho ruim, hoje é um dia como os outros. Sibbyle já chegou, está com baskets desenhados para a Adidas por Yojhi Yamamoto, um casaco de vison e. nas orelhas, dois corações Perrin. Por trás de seus óculos escuros, ela está lendo 99francs.

- Você está atrasada, o que é que estava aprontando? - Eu fiz um aborto. Ela não entendeu, ou não escutou, fecha o livro com um gesto brusco e tenta acender um cigarro com o Dupont que não funciona. Preciso tomar um Di-Antalvic, agarro o copo dela pensando que fosse um suco de frutas, engasgo. O que é isso? Belli n i mar tíni. Sibbyle não tem por hábito começar às seis da tarde, eu peço a mesma coisa e pergunto pa ra ela qual é o problema. Meu pai, como sempre. Ela perdera a mãe aos três anos. Suicídio. Mora

sozinha com o pai, o arquétipo do paquerador de cinquenta anos, show-off, drogado, fodido. Sibbyle tira os óculos e desvela seus olhos vermelhos, ela me explica que não aguenta mais ter de suportar suas mudanças bruscas de humor, a violência do pai, toda aquela gente doidona de heroína no salão de visitas de madrugada, tornar o café da manhã com modelos russas de 15 anos, os jantares tête-à-tête sem nada para dizer, voltar do colégio e encon-trar o apartamento vazio, ligar para o pai no celular dele e escutar como resposta que ele se encontra em Bali, ou no Rio, por uma semana, ficar dias inteiros sozinha com a empregada filipina, o iate em Ibiza, que tem a fama de ser o pior lugar nas Baleares, os escândalos expostos na imprensa. Não sei o que lhe dizer, na verdade, estou pouco ligando. Ela c o n t i n u a a se lamentar enquanto traga seu Malboro Light americano: - Ele me deu grana para torrar nas butiques, quero que se d an e o dinheiro dele, estou de saco cheio, não é isso que vai me ajudar, estou no Prozac desde os 16 anos, eu tomo remédio pra dormir, saio todas as noites, bebo, cheiro,

tenho crises histéricas, choro, berro, e ele só me dá dinheiro, dinheiro e mais dinheiro, mas é fantástico!!! Ela tira maços de notas da bolsa e cai em prantos. - Procura uma assistente social, ela dá a emancipação para você, você vai morar sozinha e se livra dele. - Assistente social é coisa de pobre desesperada. O celular dela começa a tocar e quebra o silêncio carregado, ela funga e atende, a conversa só dura alguns segundos. - Era Vittorrio. - Quem? O mesmo Vittorrio, ele me ligou ontem, saindo da boate, eram cinco horas da manhã, eu estava em prantos, trancada no meu quarto, o apartamento estava cheio de velhos babacas e putas que passaram para tomar uma saideira invadindo até os meus aposentos, a música no máximo, rock dos anos 70, papai completamente doidão, pedi a Vittorrio que desse uma passada, teria chamado qualquer um, encontrei pó em cima de uma mesa, cheiramos um pouco e acabamos transando. Ele foi muito gentil, muito compreensivo, conversamos um bocado, balbucia ela,

sobre mim, sobre meu pai, sobre a vida em geral. Não me arrependo de absolutamente nada, foi bom. E u suspiro. - Se você está se dando bem com ele, então tudo bem... - Bem, você sabe, no começo era só para transar, mas no final... Vamos ver... - Mas é claro - digo eu, encorajadota. Ele está chegando - me avisa ela- , eu tenho de ir. No lado de fora, o brilho do sol me ofusca, me despeço de Sibylle e decido passar numas butiques. Quando atravesso a rua, quase sou atropelada por Vittorrio em pessoa no volante de um 993 que, com certeza, não é dele, e é com o coração apertado que vejo Sibbyle entrar no carro que desaparece na place de l'Alma derrapando. E u não posso fazer nada, ela que se dane. Pobre coitada da pequena Sibbyle, bonita demais, rica demais, e para a qual todo mundo está se lixando. Ontem à noite, saí, fui ao Cabarel e ao Queen, depois enchi a cara de pó com A até as oito horas da manhã, dormi três horas e f u i fázer um aborto. Eu receava o depois, mas o depois não te m nada de terrível, tomei um drinque com uma amiga depressiva, e agora vou fazer compras nas butiqu es, hoje é um dia como os

outros. Atravesso para ir à loja Dior, o meu olhar que busca o horizonte pára na place François-ler e penso num caso que acabou antes mesmo de começar, e nos livros de Georges Bataille que emprestei, nunca devolvidos, para grande tristeza minha. Tenho a impressão de que meu reflexo não aparece na vitrine de um luxo calino e ondulado. Hoje não sou capaz de representar meu papel no palco iluminado do meu mundo. Estou chez Dior, com ares de quem está apaixonada pelo novo catálogo de acessórios, mas, na realidade, viro as páginas sem vê-las, vago. Vago por entre os modelitos extravagantes, as bolsas feitas com couro de sela, os D os I os O os R que servem como sinal de fracasso das fracassadas, nesta butique absurda, isso é fácil. As fracassadas estão atrás do caixa, elas se vestem de negro e passam o cartão dourado de um homem com o qual poderiam ter casado no balcão. Apalpo o tecido zebrado de um maiô que perderá totalmente o sentido ano que vem, decido comprá-lo. Caminho por entre libanesas com suas roupas de domingo, sou quem ganha os prêmios da farândola, assim como o Pequeno Polegar marca seu caminho com pedrinhas. Os cabides se acumulam sobre o meu braço de mármore, neles se agitam, como os enforcados de antigamente, andrajos luxuosos os quais não

usarei. Eu os compro mesmo assim. Saio da butique sem saber para onde ir. A avenue Montaigne cintila com uma serenidade imaculada que não me comove. Estou estupidifica-da, meus olhos estão abertos e não vejo nada. Ando alguns metros. Uma outra vitrine. E meu olhar cai sobre um macacão absurdamente pequeno. Não consigo entender. Olho com atenção. O meu punho não passaria pelas pernas da calça minúscula. Continuo a olhar fixamente, abobada. E me dou conta de que a vitrine inteira é feita com roupas do mesmo tamanho, sapatinhos pequeninos, camisinhas minúsculas, um casaquinho tão smart com botõezinhos em alamares... Volto à superfície. Fico sem fôlego, tenho a impressão de ter recebido um soco no meio dos olhos, uma dor atroz toma conta de mi m totalmente, é uma dor que nenhuma palavra, que gesto algum pode consolar e a qual faz com que as lágrimas corram nas minhas faces, são lágrimas amargas, as verdadeiras, cujo sentido a gente se esqueceu de tanto desperdiçá-las por banalidades, lágrimas que choram o bebê quetlive em meu ventre e que jamais nascerá... Soluço de comiseração, na av.nue Montaigne, diante da Baby Dior. Minhas mãos vacilantes apertam minha boca, curvo a nuca, minhas pernas mal conseguem me sustentar, larguei minhas preciosas sacolas de compras...

Alguém me dá um lenço. Levanto a cabeça. Percebo a custo o desconhecido por trás da cortina lacrimejante que estorva a minha visão. Enxugo os olhos e assôo o nariz como uma boa menina. Meus olhos conseguem agora distinguir o meu anjo consolador. Ele bem que tem um rosto belo e bom de anjo. Dois lampejos iluminam seus olhos franjados de cílios imensos, ele tem pouco mais de vinte anos e sorri: - Vai dar para segurar? Ele me estende as minhas sacolas. Na sua outra mão, ainda outras sacolas. Eu estendo a mão. Não, essas são as minhas. Acho que a gente se conhece, é por isso que me permiti perturbá-la. Posso acompanhá-la até a sua casa, ou chamar um táxi para você, caso prefira permanecer só. Você não está em condições de voltar às compras. Balanço a cabeça, sem dizer palavra, e viro meus calcanhares para ele. Já estou me afastando, Há apenas alguns segundos, pensei que nada fosse capaz de me reerguer, minhas pernas ain d a tremem, não sei bem por quê, mas agora não é o momento para me apaixonar. Caminho lentamente. Sei que desta vez, não vou chorar num táxi. Gosto deste sol sobre a m i n h a pele, o cheiro de

limpo dos meus cabelos, este ambiente descontraído e alegre. Sinto uma voracidade pela vida, as provações nos vergam, mas nunca nos derrubam. A vida continua. Depois de alguns metros, eu me viro sorrindo, tenho tempo suficiente apenas para vê-lo entrar num Porsche preto e jogar suas compras no lugar do carona, estou deslu mbrada pelo sol, não consigo de início distinguir sua dele, ele arranca e, finalmente, ela me surge, o número é 75ONLY75. Logo ele desaparece com um zumbido... Eu acendo um cigarro. Enquanto houver um raio de sol na avenue. Montaigne, continuarei tendo vontade de acred ita r na felicidade... 4 Ainda não rne apresentei. Meus pais me chamaram de Ella, e sempre odiei este nome de menina boazinha e mimada que eu não era. Para os meus amigos, eu era Elle, mas também não gostava de ser chamada assim, como aquela garota que passa na ma, ou uma revista feminina, ou uma supertopmodel, ou ela, aquela que fez uma bobagem.

Resolvi então me rebatizar para mim mesma somente, e para aqueles que entenderão. Eu. me chamo Hell; sou uma predestinada Sempre gostei do sofrimento, Eu me comprazia a exacerbar minhas decepções, meus pensamentos amargos; a comunicação torta entre meus pais e mim, a incompreensão das outras crianças, em geral cruéis e limitadas, com as quais eu não podia, por tano, almejar qualquer cumplicidade, numa indiferença que se prolongou até o final da minha adolescência, quando compreendi que era melhor aparentar saber menos que os outros, tudo aceitar, fazendo ar de idiota... foi mais ou menos por essa época que comecei a pressentir que a vida era absurda, o que me foi confirmado por um sem-número de leituras, que eu estava, cutucando o mal-es ta r, que a pergunta "de que adianta?"aparecia cada vez mais, tornando-se intolerável, essas diversas corrupções do ser humano no qual queria acreditar, o buraco negro do futuro que levaria inexoravelmente à morte, e o buraco negro de verdade, e outras reflexões do gnero contra as quais eu nem sequer procurava luftar. Depois,fiz um aborto. Nada, senti de início, apenas um tipo de satisfação abjeta de ver realizar-se esta minha intuição de que fora feita para sofrer. E esta coisa surpreendente: a de que eu não estava sofrendo.

A minha tomada de consciência ocorreu diante daquela loja de roupas para crianças, algumas horas depois da operação. Ficara sem fôlego, com a impressão de que uma girândola faiscante estava pipocando na minha cabeça... A crise que se seguiu deixou apavorada até mesmo a mim.

Não pela, sua veemência, mas porque fora incontrolável. Por um estranho paradoxo, a contemplação das minhas emoções servira como refúgio dos sofrimentos que chamaria de tangíveis, visto que têm uma origem definida, tornara-me uma máquina de ressentimento, chorando quando queria chorar, rindo quando queria rir. Mas a dor provocada pela perda daquela criança não era controlável, e suas manifestações me eram incompreensíveis; por exemplo, o que mais dói quando penso nela é ficar sem saber para onde olhar, e olhar para o céu. Eu tinha 17 anos naquele momento, quando percebi que o sofrimento era somente um meio para escapar à vileza, um meio de ascender ao sublime. Não foi, entretanto, essa provação e a dor provocada por ela, ou ainda as causas das mesmas, que fizeram de mi m o que sou. Ignoro todo esse desespero que urra, contra o qual nada posso. 5 Esta noite, urna bornba explodiu no triângulo de ouro. A avenue George-V, o lado impar dos Cbamps-Elysées e a avenue Montaigne estão parcialmente destruídos, o asfalto está coberto de vestidos de alta-costura dilacerados,

destroços e corpos. Paris é apenas uma lembrança. Sessenta e três industriais, destacados homens de negócios e da política perderam seus filhos na catástrofe, parte da família principesca da Arábia Saudita foi abatida no Four Seasons, o ministro das Relações Exteriores jantava na casa de amigos na rue du Boceador, metade das embaixadas em Paris foram arrasadas, a França, tomada de pânico, foi paralisada, o mundo inteiro está inquieto e tem razão de estar, visto que... NÓS TODOS MORREMOS \NA EXPLOSÃO. - Bip! Bip! Bip! Eu me sobressalto. Minha mão emerge dos lençóis e se fecha sobre essa porra de celular: - ESTOU DORMINDO! violentamente. Venho à tona dez minutos depois. Quero dizer que recomeço a pensar com clareza. Esta noite é domingo, e odeio os domingos. Digo esta noite, e não hoje, porque já são cinco horas da tarde, porque acabo de acordar e já é NOITE, uma vez que estamos em novembro, mês cujos dias acabam antes do início do meu. De forma que perdi um dia da minha vida, isso me irrita, ainda por cima, domingo, urro antes de desligá-lo

não tem nada para fazer, e em novembro faz FRIO, pronto, estou de mau humor. Experimento levantar-me, tentativa infrutífera, todas as partes do meu corpo se unem para suplicar piedade. Ontem à noite, deixei que me arrastassem para uma saideira patética depois do Maison Blanche e cheguei em casa às oito horas da manhã. Então, derrubei uma espécie de vaso monstruoso que estragava a minha volta para casa, e que agora já não estraga mais, visto que se encontra em mil pedaços, o estorvo, mas ele custava mu ito caro e todo esse esporro acordou os meus pais, que urraram por causa da hora, da cara fodida, do vaso, eu disse que a gente conversava amanhã e fui dormir, porque bem que precisava disso. Ligo então para a linha parental disfarçando mi nh a identidade para verificar se eles ainda estão em casa e se, sim ou não, iria haver reprimendas, mas o telefone toca 12 vezes e quem atende é a secretária eletrônica com a mensagem babaca deles. Só preciso tomar um banho e me vestir a jato, em seguida me mandar em speed antes que eles voltem e que tenha início o drama. São oito horas, finalmente estou pronta e tive sorte, muita sorte de eles ainda não terem voltado. Estou usando

um jeans Guess, bolas Prada, um pulôver preto no qual está escrito "glamour" com cristais Swarowski e meu casaco de couro, estou de cara lavada, não tive tempo de me maquiar e disparo pelo corredor, uma vez que o táxi já está a minha espera há dez minulos. Esta noite a gente vai jantar no Coffee e a hora marcada era às oito. Entro no restaurante, sou a ú l t i ma a chegar e Victoria, Lydie, Laetitia, Chloé, Sibylle, Cassandre e Charlotte começam a berrar ao mesmo tempo qu e faz uma meia hora q ue estão me esperando, que elas estão com fome, que já pediram um club sandwich para mim e que, se eu não estiver contente com ele, problema meu de chegar atrasada, merda. Eu me instalo soltando uma mentira, que meus pais tentaram me seqüestrar para me castigar por ter quebrado uns vasos, mas que escapei pela janela fabricando uma corda com meus lençóis amarrados uns nos outros. Ninguém acredita em mim e, de qualquer jeito, se fez um enorme silêncio, porque o garçom acaba de chegar com os pratos, então me dou conta de que Chloé está vestida exatamente da mesma forma que eu, com o mesmo GLAMOUR gritante, o que me exaspera; felizmente o lencinho dela é

com monogramas do Vuitton, enquanto o meu tem detalhes em couro. A voz de Cassandre me tira bruscamente dessas reflexões elevadas, com a boca cheia de crostnim, ela conta para as meninas a saideira que elas perderam ontem à noite. A gente aterrissou às quatro da matina na casa de um amigo do tio dela, um decorador muito badalado, que celebrava seu aniversário numa cobertura esplêndida na avenue George-V, a reunião tin h a começado às dez da noite e, quando nós chegamos, havia cinquenta pessoas de porre e doidonas que erravam pelo apê com uma garr a f a na mão quebrando tudo, com o famoso decorador à frente. Bêbado de cair, este último não parava de berrar: "Construir não é preciso, destruir é preciso!" - Depois a gente descobriu Cnji maluco, sem (lynthia, tinha o seu pai, Sibylle, com o Vittorrio, o Chris, o A e aquele novaiorquino de 35 anos superbonitão, Julian. Eles estavam num estado... A gente se isolou num dos salões e Julian pôs dois gramas em cima da mesa. Eles cheiraram umas fileiras, Hell então se levantou e soprou o pó gritando que isso não se faz e, num instante, a cocaína desapareceu. Todo mundo queria assassiná-la, mas o seu pai, Sibbyle, interveio, e ninguém disse mais nada enquanto Hell urrava de tanto rir em cima do sofá;

ela então se recompôs e passou uma descompostura em todo mundo, chamou Vittorrio de aprontador e de velhaco, disse para o Benji que ele ia acabar no hospício de Sainte-Anne, que a mulher dele era uma puta que havia chupado o primeiro pau por dez mil quando tinha 14 anos, para o Chris, que ele ia virar presunto de overdose, ao Julian, que Paris inteira sabia que ele comprou a mulher dele, e que eles eram aos 25 anos todos grotescos, saindo todas as noites com suas roupa de couro e seus óculos escuros, e ela repetia "vacuidade, vacuidade" e "vocês vão todos morrer sozinhos, exatamente como vocês estão", o seu pai, Sibbyle, nos levou embora e nos acompanhou até em casa. - É com o meu pai que vocês fazem suas saideiras, agora? - Não, Sibbyle - disse eu -, não só com o seu pai não, o seu pai e o seu gato. Sibbyle fica de cara amarrada e não sabe o que responder. Cassandre, em seguida, pergunta a Sibbyle o que ela anda fazendo com Vittorrio, esse gigolô safado que vai limpála até o último tostão. - Pára - interrompe Victoria -, ele não roubou nada dela...

- Obrigada, Victoria. Deixa eu terminar, Sib, ele não tirou nada de você até agora, nem grana, nem televisão, nem quadros, para ele é suficiente ser convidado para jantar quatro vezes por semana, dirigir o ML do seu pai e você só deu de presente para ele um paletó horrível do Dolce & Gabanna que só custou a mixaria de vinte mil francos. - Era o aniversário dele. - E daí - respondi eu-, já faz dez anos que a getec se conhece e você nunca me deu um presente de vinte mil francos, fico muito chateada com isso. - Ele está atrás da sua grana, S i b - intervêm Chloé - , é uma situação clássica, ele não tem um tostão, mas gosta do luxo, você viu o relógio dele? - Por falar nisso, olha só o meu novo Boucheron - diz Lydie, a palhaça, mas ninguém presta atenção. - Eu tenho um fuxico - retoma Cassandre , vocês sabem quem foi que deu para ele aquele horrível Daytona cheio de diamantes? Gabrielle di Sanseverini! - Eu sei, ele leve um caso com ela, mas terminou porque ficou muito desapontado com ela.

- É para ficar mesmo desapontado, um relógio de cem mil. - Assim não dá, ela anda com a tabela da Rolex? - Foi um presente de despedida? - Você não é lá grande coisa perto dela com aquele paletozinho de vinte mil. - Parem de me sacanear- explode Sibbyle -, eu, pelo menos, tenho um gato! -Você me desculpa, mas eu ainda não estou numa de pagar os meus homens - soltou Victoria. -E, além do mais continua Sibbyle, que está ficando explicitamente puta- , eu prefiro gastar a fortuna com Vittorrio a fiçar correndo igual a Hell atrás de maluco, ou de ser uma pobre ninfomaníaca como você, lydie, e quanto a você, Cassandre, você está bancando a espertinha, mas, já que estamos faiando dos Sanseverini, porque Gabrielle dá Rolex de presente para qualquer um, tem também o irmão dela, Andrea, aquele que comeu você e depois a largou como uma puta!

- Que história é essa, Cassandre? - pergunto. Você nunca falou a respeito desse Andrea. Eu não sabia que Gabrielle tinha um irrnão. Elas me encaram incrédulas: - Você não conhece Andrea di Sanseverini? Isso sai ao mesmo tempo das sete bocas como um grito unissoriante. - A que ponto chegamos, Hell - diz Victoria no seu tom compungido -, de tanto sair todas as noites e de frequentar só esses caras horríveis de boate, você não sabe mais nada do que acontece, só conhece o seu Cabaret, seu Queen, seus coroas horrorosos que a "divertem", A, B, e todos os amigos drogados deles. Andrea é nada mais, nada menos, que o cara mais bonito e mais saudável do 16ème, o cara dos sonhos de todas as pobres-coitadas, que ninguém conquistou e ninguém nunca conquistará. - Mas por quê? - Porque ele é um maníaco - responde Victoria , ainda mais maníaco do que você. Já ouvi hiqurias malucas a respeito dele, de garotas com as quais ele fez coisas inacreditáveis... - Conta. - U ma noite numa boate, ele pega a Cynthia, a acompanha até em casa, sobe e não encosta um dedo nela.

Ela fica sem entender, sai para tomar uma ducha, grita para ele ir se juntar a ela, ele recusa, ela sai pelada do chuveiro, se joga em cima dele, tenta tirar a roupa dele, nada feito, passada uma hora, ele diz que precisa ir embora e a deixa a ver navios. No dia seguinte, ele liga para ela, diz que, na verdade, ela o deixara sem jeito, que está com tesão e que q u e r jantar com ela. Marca um encontro no Barfly, que na época acabara de abrir e, como desculpa para não ir pegála, diz q u e o Porsche está enguiçado. Resultado: ele nem apareceu, estava jantando no Stresa com todos os amigos dele, enquanto a pobre-coitada bancava a babaca. Ela ficou até meia-noite esperando por ele, então resolveu ir até o Bash d ar u ma espiada se ele estava lá. É claro q u e estava, ela então começou a berrar para cima dele. Ele fazia de conta que não a v i a e, na quela noite, debaixo do nariz dela, foi descolart a Taliana Roumanov e se mandou com ela. A coitada da Cvnthia os seguiu em prantos até a porta da boate, implorando a Andrea que explicasse por que fizera aq u i l o com ela, parece que chegou até a se agarrar na porta do carro e que caiu no chão quando ele arrancou. - Filho-da-u ta! Ku não acredito. Simplesmente adoro.

- Mas a história ainda não acabou - retoma Victoria- , dentro do carro, ele explica aTatiana que está tomando Prozac e, portanto, anda com problemas de libido e que precisa de um certo contexto para ter uma ereção. Aquela salada da Tatiana promete que fará qualquer coisa que ele quiser, contanto que ele transe com ela, Andrea a leva então para uma orgia no Les Chandelles, eles descem até as salas, ele a incentiva, dá um pouco de cocaína para ela e explica que ela precisa ir na frente dele, que ele precisa espiar um pouco para conseguir ficar de pau duro, e a larga no meio de uma suruba, depois se manda e volta para o Bash. A garota ficou maluca. Tatiana Roumanov é uma espécie de bomba atômica, circula em tudo que é lugar, anda num Porsche e se veste exclusivamente chez Galliano. Eu a detesto. - É isso aí - diz Chloé -, mas e a garota que ele deixou presa com algemas um fim de semana inteiro num aquecedor, quem era mesmo? - O que! - digo eu. Foi a Isolde, a irmã do Chris, ela estava louca por ele e dizzia que fazia qualquer coisa para transar com ele. Então, uma noite, ele liga para ela, d i/ para ela passar na

casa dele, que dá um amasso nela, mas diz depois que só transa com ela se ela ficar algemada no aquecedor do quarto; ela acaba aceitando, ele a prende, e depois d i z que os cigarros acabaram, sai para ir até o drugstore e, no caminho, encontra um dos amigos dele que estava indo para Deauville. -E então? Ele viaja para Deauville, e passa o íim de semana lá. Isolde ficou dois dias sem comer, presa pelada no aquecedor, foi a empregada filipi na que a encontrou na segunda de manhã. -Ela não registrou queixa na polícia? -Não, isso é que é o pior, ela estava apaixonada por ele, não quis dar queixa. -E o Chris? -Chris queria matá-lo, ele o encurralou place Vendôme, na frente do Fred, mas foi Andrea quem quebrou a cara dele. -Mas a troco de que ele fez isso? -Eu estava no Fidès com ele- intervém Laetitia-, e ele me disse uma vez, palavras dele: Eu não amo ninguém e não faço

bulhufas, não quero nem tentar me distrair, ou esconder a verdade, a vida é uma sacanagem de merda, e cada segundo de lucidez é um suplício. Eu sorrio. -E você, Cassandre, o que foi que ele fez com você? Na verdade, você pode se dar por contente que ele tenha transado com você, não é todo mundo que recebe essa dádiva. -Eu me recuso a falar desse filho da puta. Espero que ele morra, eu o odeio. Em seguida, ela mudou de assunto, a gente comparou a eficiência dos nossos isqueiros Dupont, discutimos a moda das meias arrastão que, segundo Charlotte, estavam completamente fora de moda, o que desesperou Laetitia, a qual acabara de comprar um par de Wolford de tramas largas, além de qual era o melhor relógio para a gente ganhar dos nossos pais quando fizermos vinte anos. Um casaco de pele, signo exterior de crueldade, a gente só deveria usar com um nojento yorkshire, ninguém mais ia a Gstaad e um novo hotel, decoração de Andrée Putman, acabara de abrir na rue Pierre-Charron.

-Bom, o que é que a gente vai fazer lá? - diz Victoria, impaciente. Já faz uma meia hora que a gente acabou de jantar, e esvaziamos três garrafas de rosé, está na hora de decidir o que faremos esta noite, uma metade do grupo está com vontade de ir ao cinema, a outra prefere ir tomar um drinque. Depois de dez minutos de conversa-fiada, Victoria decreta que iremos ao cinema e, DEPOIS, tomar um drinque, e ninguém chia. A gente se espreme as oito dentro do ML do pai de Sibbyle, placa CRY 75, que ela dirige sem carteira, e subimos a avenue Victor-lHugo, com Bel Amour tocando no máximo, cantando e urrando, nós vamos assistir a Um Outono em Nova York, Sibylle estaciona no Champs-Elysées. Tem uma fila de dez metros, mas nós compramos os ingressos por telefone, a gente só precisa passar na frente de todo mundo e pagar com cartão. Quando entramos na sala, as publicidades estão terminando, a l u z reacende, e todo mundo se vira fazendo "psiu", já que a gente faz muito barulho. Na hora em que estamos nos sentando, Cassandre, morrendo de rir, me aponta uma fileira de lugares bem no

fundo do cinema, eu me viro e vejo A, acompanhado de uma loura razoável, Benji maluco, a coitada da Cynthia, Julian, Chris e toda a turma que me olha torto como que petrificada, execeto A, que não tem nenhuma razão para ter raiva de mim. Faço sinais para ele perguntando como vão as coisas, ele sorri. Logo estamos cercadas de conhecidos nos chamando de tudo que é canto, alguns se levantam e vêm falar conosco, e aqueles que fi cam sentados nos telefonam, nós estamos no nosso território, Cassandre tem uma desavença com seu ex, Victoria joga pipoca em cima de uma garota de quem ela não gosta, nós aterrorizamos os caretas (caretas: gente que não pertence ao nosso mundo, que não entende como umas trinta pessoas possam se encontrar n u m cinema, numa simples sessão de projeção de filmes cinematográficos com fins de entretenimento, e não sociais. Eles não entendem nada do nosso meio social, eles ignoram que Deus é Social, quem mandou terem ido ao cinema no Champs), é a vez de eles se levantarem, gritam "psiu" e "bando de babacas", sentam de novo, e a animação esmorece com cada um voltando ao seu lugar.

Cinema no domingo, nunca mais - digo para V ictoria, que concorda, e percebemos então que já fazia uns cinco minutos que o fil me hav i a começado. Meia-noite e meia, eu saio do cinema caindo de boca n u m cigarro, o filme foi uma porcaria inominável, todas concordamos com isso, fora Lydie, que adorou. Isso é normal, ela é uma idiota. Ninguém está com sono e a gente decide ir tomar um drinque no Pershing Hall, esse hotel que acabou de abrir na avenue Pierre-Charron, mesmo que um Champs-Flysées deserto nos deixe deprimidas. Cassandre, de repente, cai na gargalhada, segura o meu braço, começa a cantar e me contagia com seu delírio, sem dúvida, efeito colateral das três garrafas de vinho, eu a sigo não sei por quê, e a gente fica dando piruetas patéticas na calçada diante do cinema, quando um Porsche preto surge da rue du Colisée e quase nos atropela, a placa dele é 75ONLY75, e meu coração começa a bater surdamente. O carro freia fazendo um esporro infernal e dá marcha a ré, o vidro se abaixa l e nt a me nt e e a cabeça de um anjo aparece.

- Francamente, cada vez que eu a encontro você está em cada estado... Quer uma carona? Não espero nem um segundo, agarro a porta do carro, mergulhando dentro dele, e a gente se manda Champs-Elysées numa disparada certamente proibida. - Não sei nem mesmo como você se chama. -O nome que você quiser... - Estamos indo bem. - Você não prefere saber onde eu moro? Pensei que você fosse me levar cm casa. Ele pára o carro, desliga o motor e se vira na minha direcão. - Como é que você se chama? - Meu nome é Hcll. - Inferno? - Exatamenle, é isso. Kle arranca de novo. - Andrea. -Como? -Você escutou muito bem. pelo

De repente, tudo fica claro, o rosto lívido de Cassandre quando me v i u entrar no carro, a sensação de que este Andrea, com o seu discurso niilista e a sua evidente peversidade, não me era de todo estranho - vivendo num mundo assim, eu ficaria surpresa se fosse o contrário - e a excitação que senti há dois meses, na avenue. Montaigne, quando acabara de passar pelo pior, a excitação que a culpa fizera com que reprimisse, a ponto de apagar da minha memória aquele encontro, ressurge brutalmente, esta exaltação em perfeita harmonia com o que parece inspirar o personagem que me fora descrito. - Eu tenho uma má reputação, não é?- diz ele. Já fa z um minuto, na verdade desde que me revelou quem ele era, que estou com os olhos mirando o vazio sem dizer nada. -Se você soubesse – respondo. Ele não fala de imediato, espera alguns segundos, virando-se em seguida para mi m com um leve sorriso. - Você também. Logo depois me pergunta se estou com fome e, diante da minha negativa, ele me explica o extremo pudor que reprime sua vontade incontestável de permanecer na minha

companhia, ir visitar alguém é um tabu no nosso meio, tornando-se preciso disfarçar os mais espontâneos sentimentos debaixo de pretextos egoístas, ou melhor, por trás de estratagemas sórdidos, para não ficar com cara de babaca: tenta me convencer de que ele só está procurando alguém, não importa quem seja, para servir de companhia no jantar, ou, pior ainda, que estava com vontade de transar, que aconteceu de ser eu q u e estava lá, e que eu servia, qualquer coisa sendo melhor do que confessar que estava atraído por mim, intrigado comigo, que já faz dois meses que ele não consegue parar de pensar noite e dia em mim, desde aquele encontro-relâmpago na frente da Baby Dior, e que foi a providência que o fez me encontrar lá, naquela rua escura, num domingo à meia-noite e me raptar. Vai logo dizendo que não devo acreditar em nada do que ele diz, que cabe a mim escolher, e eu o olho nos olhos dizendo que estou morta de fome. Ele volta para a avenue Pierre-lr-de-Serbie e estaciona defronte de uma porta pesada de madeira esculpida. Um segurança, uma cabeça de brutarnonte enorme com ar desvairado, abre a portinhola. Andrea deve ser um habitue

do lu gar, urna vez que o cérbero torce a cara tentando sorrir ao vê-lo. Ele nos abre a porta. Um antro, um boteco miserável. Numa sala minúscula de teto rebaixado, estão espalhados alguns mafiosos de baixo calibre, com putas decrépitas do lado. Tenho a vaga sensação de estair numa isbá; os lambris, os móveis eslavos. Se eu sair dali, vou me deparar com uma floresta dos Urais, entre uma alcateia de lobos ferozes e dois fugitivos das minas siberiarias. Nós nos sentamos, vejo de relance a cara dos outros presentes. Escória social. Os homens têm o rosto entorpecido num ríctus amargo. Um gordão com bochechas de porco, duas putas louras de farmácia, mal oxigenadas, os peitos caindo dentro do prato, me olham fixamente com cara de idiotas. Uma delas, uma velha, com o rosto marcado e estragado pela vida difícil. A outra, tem um ar tão jovem... Mãe e filha? A cafetina e sua vítima? A. música é sinistra. Na entrada da cozinha, dois canalhas de idade indefinida estão brigando por um maço de notas estrangeiras, trocando insultos em iugoslavo. Um filme de segunda. Peço um carpaccio e cigarros. Ele diz para trazerem uma garrafa de vodca. Tentativa de entrar no

clima? Pensei que ele estivesse com fome. Não entendo por que me trouxe aqui. O lugar fede a decadência. Quase não toco no carpaccio e as minhas boas maneiras destoam. A música parou bruscamente. O que é que ainda va i sobrar para mim?Um acerto de contas, uma suruba geral? Levanto o nariz do meu prato. No meio da sala, um carcamano horroroso, segurando um violão de doze cordas, estende a mão na direção da jovem meretriz, que cora de vergonha. Ela se levanta, ele estala alguns acordes, um violinista que apareceu não sei de onde segue o ritmo, aparece mais um... Ouço a voz da puta. É uma canção que conheço, uma cantiga russa, magnífica. A puta e o carcamano estão numa harmonia total, os cantos dos dois misturam-se n u m eco infinito. O lugar adquire de repente um aspecto complelamentc diferente. Andrea enche meu copo uma vez, duas. Estou tomada pela beleza inesperada do duo desses dois desvairados, fico arrepiada. Tudo, até as cadeiras carcomidas, adquire um novo sentido. A canção termina, meu olhar iluminado cruza com o do carcamano. Ele se aproxima de mim. — A senhorita canta?

Declino o convite. Ele insiste. Os outros músicos se j un ta m a ele, Andrea também, todo mundo insiste. Estou encurralada. Eu me levanto como num sonho absurdo, seguro o microfone. Perguntam se sou francesa, várias músicas são oferecidas a mim, a única que conheço é a de Léo Ferre. A luz bruxuleante de um refletor vetusto aponta para mim. O silêncio toma conta do lugar. Estou na mira de todos. Contraio meus ombros nus, estou tremendo. A grandiloqüência fora de moda desta canção tão verdadeira e o meu arrebatamento juvenil combinam às mil maravilhas. Titubeio do alto das minhas botas Prada. Fico balançando de uma perna para outra. Entôo os versos: - Avec le lemps... avec le temps va, tout s´en va… Faço ares lânguidos, minha voz adquire um tom

melodramatiço. - Avec le temps... Tudo se esvai com o tempo. Olho para Andrea. - Tout s 'évanouit... Ele me encara, e seu olhar me perturba.

Eu havia conseguido encontrar a chave para a atmosfera oculta deste lugar povoado de estetas decadentes. De agora em diante, sou um deles. - Avec le temps... on n 'aime plus. A gente cessa de amar. A música acabou. Sou aplaudida. Agradeço sorrindo. Um sorriso zombeteiro, no qual caçôo de mim mesma. Vou me sentar de novo ao lado de Andrea, ele me serve uma vodca. Os cumprimentos f l u e m das mesas vizinhas. Dessa gente a que eu nem sequer prestaria atenção se encontrasse na rua. Sorrio mais uma vez, agradecida. E prossegue o desfile. Enquanto converso com Andrea, fico sem entender a ligação eu entre ele e aquelas monstruosidades que Victoria me contou. Falamos de nossos restaurantes predilelos em Nova York, de art déco, ele me diz que ama Paris, que não poderia viver em outro lugar, que havia morado em Londres, em Nova York, mas que ama Paris por causa desse passado sulfúreo que emana dos muros e que flutua nas ruas, por causa da luz de seus postes que reverberam nas calcadas úmidas e dos rostos tristes atrás das vidraças do cafés.

Daí a placa do seu carro, ele me explica: Paris, only Paris, para ele, só os endereços com o 75 de Paris valem; abaixo a província e os subúrbios xenófobos, é só a gente que vale a pena. Eu interrompo e pergunto por que ele maltrata assim as garotas, se ele é bicha, broxa, se ele tem problemas com a mamãezinha dele. Ele dá uma risada e me diz que sou uma grande filhada-puta, e eu pergunto se isso é um cumprimento. Ele diz que sim, que ele mesmo se considera um babaca mimado e que, como tal, procura seu alter ego de babaquinba na putinha que eu sou, ou que, pelo menos, finjo ser. Pergunto então qual é a definição dele de um babaquinha, ele responde que um babaquinba é alguém que procura por todos os meios exasperar as pessoas atividade que se tornou uma arte para ele. Para me explicar em seguida que o vasto mundo em que vivemos é composto de 99% de imbecis, de imbecis que se levam a sério, cheios de vaidade e egoísmo disfarçados, que nada lhe dá mais prazer do que sacanear os imbecis, do que passá-los para trás. Eu o interrogo sobre os meios que ele

emprega; basta, diz ele, não se levar a sério, ter um ar de quem está se lixando para tudo em qualquer situação, transformar em zombaria valores tais como o dinheiro, o status social, o politicamente correto, é preciso cutucar os assuntos tabus, declarar tudo que a gente esconde, tudo o que os outros escondem, não sentir vergonha de nada. - E gosto de perseguiras babaconas. Todas essas peruas inúteis que vivem achando que têm direito a tudo só porque são bonitinhas, apenas faço com qu e elas entendam que o mundo não gira ao redor delas. Eu estou encantada pelo charme dele, tenho a sensação de que sou eu quem está falando. Nunca senti uma empatia igual com quer que seja. A sala se esvaziou a nossa volta, não tem mais ninguém cantando, receio a hora de irmos embora; Andrea se inclina na m i n h a direção, e a única vontade q u e si nt o é de me entregar... Tenho um movimento de recuo, é meu instinto, o instinto de mandar à merda qualquer um que fique por cima, eu me esquivo dele, agarro m i nha bolsa: - Preciso ir embora, obrigada pelo jantar. Ele quase não se abala. Sorri:

- Obrigado a você, até breve. Saio da Calavados, respiro longamente o ar fresço c expiro uma nuvem t ê n u e de fumaça acinzentada... Caminho na direção da avenue Gecorge-V para pegar um táxi. Paro na frente do carro dele... 75ONLY75, ele me faz sorrir. Começo então a dançar na rua, a saltitar, não sinto frio, meu coração está batendo a mil, e isto nunca me aconteceu.

6

Desenganada antes do tempo, vomito sobre os sentimentos artificiais. O que a gente chama de amor é apenas o álibi consolador da união de um perverso com uma puta, é somente o véu rosado que cobre o rosto assustador da Solidão invencível. Vesti uma carapaça de cinismo, meu coração é castrado, sou a Dependência lamentável, a zEbaria do Engodo universal; iïros com uma foice enfiada na sua aljava. Amor, isto é tudo que a gente encontrou para alienar a depressão pós-cófpula, para justificar a fornicação, para consolidar o orgasmo. Ele é a quintessência do Belo, do Bem, do Verdadeiro, que remodela a sua cara escrota, que sublima a sua cexistência mesquinha. Bom, eu o rejeito. Pratico e louvo o hedonismo mundano, ele me poupa. Ele me poupa das euforias grotescas do primeiro beijo, do primeiro telefonema, de escutar uma dúzia de vezes mi simples recado, de tomar um café, uma bebida: as reminiscências da infância, os amigos comuns, as férias na Cote d´Azur, seguidas de um

jantar: os escritores prediletos, o mal-estar de viver, o porque, de sair todas as noites, a primeira noite, seguida de outras mis, não ter mais nada o que dizer, foder para preencher os vazios, perder até a vontade de foder, se afastar; mas ficando mesmo assim junto, brigar, se reconciliar escondendo que no fundo tudo está morto, ir foder com outros, e depois mais nada. Sofrer...

7 Mais um despertar difícil. Fico durante dez minutos amaldiçoando todas as noites passadas em branco, os copos a mais, os cigarros de que não tinha vontade, as fileiras de pó que não me serviram de nada, e torno a resolução de nunca mais sair, de parar de beber, de fumar, de ir cedo para a cama, de só comer sushis e frutas frescas. Ainda com os olhos fechados, acendo um cigarro e começo o círculo. De repente, o pior me vem à baila. Vou almoçar com os meus pais d a l i a uma hora. Por q u e eu, por que hoje? Preciso me arrast a r até o banheiro e tomar u m a d uc ha quente qu e não alivia nem um pouco m i n h a cabeça expl od indo de dor, beber um copo d´água, tomar três DiAntalvic, colocar um CD do Bob Sinclair para me sacudir (ineficaz), e fazer de tudo para ficar com uma cara apresentável, visto que vou almoçar de qualquer j ei to com quem abre e fecha a carteira e pretendo anunciar um prolongamento do meu ano sabático 2000-2001. Secar os cabelos com produtos Nickel para o dia seguinte de noitadas, máscara inútil de Terracotta, após exame minucioso no espelho do armário virado para a

janela, decisão de ficar de óculos escuros durante todo o almoço. E, que merda, a agenda de hoje estava carregada de sobra: tinha encontro com Carita para depilação, limpeza de pele, manicure, queria fazer ultravioleta e tinha prometido a Sibylle que ia com ela comprar pó, uma vez que ela tem medo de ir sozinha ao fornecedor dela. Ligar para a Carita com voz de moribunda cancelando e filtrar até amanhã as ligações de Sibylle. Quanto aos ullravioletas, vamos ver. Se tiver energia. Enfio um jeans Chloé desbotado, tênis Nike prateados, um suéter de malha branca da Paule Ka e meus óculos Gucci, pego minha sacola Vuitton com monograma na qual jogo uma be-bidinha, um número de Voici, maquiagem, minha agenda e meu estojo de óculos, parto depois em disparada, já que estou 45 minutos atrasada. Pego um táxi e vôo como um raio até o Murat, onde meus pais estão me esperando com toda a certeza já estressados. - A gente acabou de chegar... uma vez que marcamos com você à uma da tarde, a gente achou que, chegando às quinze para as duas, teria o prazer de esperar por apenas dez minutos. Desabo no lugar em vez de me sentar. Não es-

tou em condições de dar uma resposta digna para esse tipo de observação, num espírito vaga pela avenue Montaigne na Calavados, e fico observando as placas dos Porsche negros pela vidraça... - ...começar este ano com um pouco de seriedade, você já tirou seis meses de férias, três meses a mais, não se esqueça de que é o seu futuro que está em jogo e você pode fazer o favor de tirar esses óculos escuros enquanto estou falando? Balanço a cabeça em negativa. Eles acabaram de fazer os pedidos e peço um maço de cigarros, a simples idéia de comer me dá vontade de vomitar, mas, se eu não comer nada, minha mãe vai continuar pensando que estou com anorexia. Eu peço uma sopa de camarões com coco e ci-tronela antes de dizer ao meu pai que não penso de jeito nenhum em fazer qualquer coisa este ano, que os exames finais me deixaram exausta, que iria acabar jubilada por ausência e que não iria fazer porra nenhuma na faculdade, já que o quadro docente é uma porcaria, que só tem xenófobos babacas, que o sistema escolar não presta para mim, e que eu preciso experimentar o significado do vazio de não

fazer porra nenhuma para ter vontade de verdade de fazer alguma coisa, algo que a longo prazo se mostrará positivo e que nada, absolutamente nada, vai fazer com que eu mude de idéia. Meu pai está arrasado, ele protesta. E daí? Não toco no meu prato, o que deixa mamãe alarmada e aquilo que eu receava acontece, vem de um fôlego só: - Você não está comendo nada, está doente? Você não pára de fungar, deve estar resfriada, você devia ir ao médico, quer que marque uma hora para você? Ainda que, com a vida que você leva, não é de um médico que você precisa, mas sim que a gente proíba você de sair, afinal, você já viu como estão as suas olheiras, está emagrecendo a olhos vistos, está sempre no mundo da lua, espero não que seja anorexia. - Não, é droga mesmo. - Está bancando a engraçadinha? Acendo meu quarto cigarro e bebo um copão d´água, estou com dor de garganta.

Foi então que percebi que estávamos sentados numa mesa para quatro, tem um lugar vazio do meu lado. Para quem será que está destinado este lugar?!?? Eu temo o pior, e o pior acontece, Catherine entra no restaurante e entrega sua capa Burberry à recepcionista. Catherine é a melhor amiga de minha mãe, e o ódio que cultivo por ela é em muito proporcional à afeição injustificada que mamãe tem por ela; ela é uma Amanda Woodward na contramão que ainda não entendeu que o gênero executive woman acabou junto com os anos 80, malcasada, divorciada, sem filhos e que projeta em mim, que projeta... Eu a suporto há dezoito anos, em todos os jantares, nas férias, ela estraga todos os meus aniversários, por causa dela não tenho o direito de fazer uma lipoaspiração; eu a detesto! Ela se instala, fala comigo, ela me cansa, não estou em condições de me esforçar... de forma que me torno desagradável. E a tempestade estoura, meus pais dão finalmente rédea solta á sua histeria latente (via de regra, eles são por demais educados para explodirem, mas neste caso faltei com as regras mais elementares de educação, eu disse à minha segunda mamãe para, por favor,

parar de me encher- o saco), no meu caso, eu estou com dor de cabeça: prefiro engolir tudo cm silêncio até que a coisa fica insuportável, levanto a voz e grito: - Então é isso, vão me cortar minha ração e eu vou rodar holsinha para sustentar minhas necessidades para vocês ficarem contentes! Morrendo de vergonha, por causa das mesas vizinhas, de ter provocado uma doida varrida, meus pais finalmente se calam, e posso acender um cigarro na santa paz do Senhor. Este pequeno a surto, Catherine, infelizmente, que cai de não boca passou nessa

despercebido

oportunidade de exercer seus talentos frustrados de psicanalista fracassada. Ela me enche de perguntas, sem sequer escutar minhas respostas monossilábicas, fila um dos meus cigarros, e sinto a minha raiva subir, eu me seguro ela me deu de presente uma bolsa Gucci no Natal... Pronto. Ela se mete com meus casos com os homens: "Você está lembrada quando Vivian diz em Pretty Woman que o apelido dela era o de amante de bostirrhas"... E, ainda por cima, ela tenta enfiar em mim a carapuça dela... E ela me fala de meu pai... Fico em pé de guerra. Preciso

de um cigarro, mas as garras vermelho-sangue dela se fecham sobre a última, é a gota d"água... - Escute aqui, Catherine, desde que você e a sua turma leram Freud, vocês ficaram caolhos e passaram a ver coisas. O menor objeto oblongo que seja passou a ser um símbolo fálico, o carro esporte mais vagabundo, uma compensação fálica, com uma espécie humana que "só pensa nisso". Era Freud quem só pensava nisso, aquele velho tarado. A gente f az análise, é o que há de mais chique, mas daí a analisar os outros, isso é um pé no saco. Estou farta de ficarem me mostrando n u m tom peremptório que sou vítima de um "Édipo mal resolvido", em primeiro lugar, eu sou uma garota, e não um menino, de forma que, se eu t i ver alguma coisa mal resolvida, essa coisa deve ser o meu complexo de Electra, e não de Édipo, senhoras e senhores os distintos aprendizes da psique. Ah, mas estou apaixonada pelo meu pai e é claro que transaria com ele se não fosse meu pai? Já que você começou, que t a l me aconselhar a roubar as chaves do Jaguar dele, de capotarmos juntos no carro e ficarmos rolando um em cima do outro até ordenhar os colhões dele e, depois, armada com o líquido seminal colhido na batida e a virilidade fálica

representada pelo carrão que custa caro, violentar virtualmente minha mãe até conseguir procriar aquela babaca da Antígona. Parricídio, incesto e lesbianismo, finalmente terei exprimido todos os meus fantasmas reprimidos e, ainda por cirna, serei a feliz mamãe de minha irmãzinha. Pronto. O meu celular toca neste exato momento e eu me mando. Não reconheço o número e produzo u m "alô" interrogador, mas já sabendo quem está do outro lado da linha. - Onde você está? - No Mural. Família. Acabei de almoçar. Pego as minhas coisas e vou embora sem me despedir. Do lado de fora faz frio, eu fico em pé encarando o vento, oferecendo meu rosto à chibata, simplesmente feliz de esperar por ele. Ele pára cm fila dupla e entro no carro. - O que você está a fim de fazer? Minha imaginação, normalmente, trans-borda de

idéias, mas no momento estou sem inspiração, o meu "o que você quiser" é lamentável. - O que eu quiser? Tudo o que eu quiser?

- É claro que não. - Tinha as minhas dúvidas. Que se dane, se a gente não vai transar, vamos nos distrair de alguma forma. É, uma pena que você já tenha al moçado, estou morrendo de fome. - Eu não comi nada. - Então vamos almoçar. Você está com vonla-de de comer o quê? - Italiano. Ele pega a perimetral e passa pela Porte Maillot, onde é que ele vai, não existe nada depois da Porte Maillot. Eu achava que ele fosse me levar ao Relais du Bocador, ou ao Carpaccio du Royal Monceau. As entradas da cidade vão passando e Paris vai sumindo, Andrea pôs a música a todo volume, impossível falar com ele, a gente está indo a duzentos por hora e os carros se afastam da pista da esquerda como se tivessem medo da gente, eu me deixo embalar pela velocidade, nada me importa, ele pode me levar para onde quiser. Ele pega uma auto-estrada e a saída perto do Le Bourget; de repente, entendo tudo. Nós voamos para Mônaco num Falcon 50. Aterrissamos em Nice, onde o motorista do tio monegasco dele foi nos

apanhar para nos levar aoRampoldi. Ficamos quatro horas almoçando, bebendo vários amarrrrettos, sem que eu sentisse o tempo passar, nem percebi que anoite-cia, nós estávamos sozinhos no mundo e eu estava fascinada. Depois fomos embora na Mercedes 600 do tio, eu não quis beijá-lo. Em algum momento no meio disso tudo, adormeci nos braços dele. Era meia-noite quando ele me deixou em casa. Nós fomos na manhã seguinte esquiar em Saint-Moritz, no dia seguinte fiqnei esperando um telefonema dele o dia inteiro. Ele tinha se recusado a me dar o número dele para controlar a situação, e fiquei me remoendo até as dez da noite, hora em que ele veio me pegar para irmos ao cassino de Deauville, onde perdemos cinquenta mil sorrindo, na quinta-feira, ele me levou para lazer compras em Milão, seguiu-se mais uma vez a Côte e jantar a bordo do iate do tio dele ao largo de Saint-Tropez. Quanto mais os dias passavam, melhor a gente se entendia, mas a m i n h a obstinação ia crescendo com o tempo, e eu me recusava sempre a ceder... Longe de ficar desestabilizado, ele permanecia calmo, seguro de si, nunca sem ter uma anedota

ou uma idéia novas. Minhas recusas o divertiam e isso estava me deixando exasperada. Passamos a semana desfrutando todas as cidades da Europa e nos esquecemos da mais bela. Sábado à noite, descontração: nada de jet nada de destino surpresa, jantamos no Maison Blanche, um cherne e uma quantidade excessiva de chablis, depois saímos para passear d u rante horas por Paris, da rue du Faubourg-Saint-Honoré ao Panthéon, do cemitério Père-Lachaise até Montmartre e saímos do carro em frente ao Sacré-Coeur para admirar a vista. No caminho de volta, ao passarmos pelo Louvre, eu sufoco. Sinto uma vontade repentina de ir passear nos jardins do Carrousel ao lado. Conversamos então sobre a nossa vida de crianças mimadas, o excesso de chablis me subira a cabeça e me sinto naquele estado em que o raciocínio se perde e tudo se torna detestável. Caminho arrepiada, o olhar vagando pelo calçamento e penso em voz alta: - A gente tem uma vida... uma vida de babacas. Comemos, dormimos, transamos, saímos. Sempre a mesma coisa se repetindo... Cada dia é a repetição inconsciente do

anterior: a gente come uma coisa diferente, a gente dorme melhor, ou pior, transa com uma outra pessoa, vamos a um lugar diferente quando saímos. Mas é igual, sem obje-tivo, sem interesse. Nós continuamos e nos determinamos objetivos materiais. Poder. Dinheiro. Filhos. A gente perde a cabeça tentando realizá-los. Mas, ou a gente nunca consegue alcançá-los, e fica frustrada para o resto da vida, ou, quando consegue, percebe que não dá a mínima. Depois a gente morre. E fica com a boca cheia de terra. Quando a gente se dá conta disso, a vontade que dá é de encher logo a boca de terra, para não ficar lutando em vão, para pregar uma peça na fatalidade, para escapar da armadilha. Mas a gente tem medo. Medo do desconhecido. Do pior. Então, quer queira, quer não, a gente fica sempre esperando alguma coisa. Do contrário, já teríamos apertado o gatilho, engolido a caixa de comprimidos, pressionado a lâmina da navalha até o sangue jorrar... A gente tenta se distrair, fazer a farra, a gente procura o amor, acha que o encontrou, e depois vem a recaída. De muito alto. A gente tenta brincar com a vida para fingir que a domina. A gente anda rápido demais, andamos à beira do abismo. Cheiramos pó em demasia, beirando a overdose. isso assusta os

nossos pais que vêem seus genes de banqueiros, grandes executivos, homens de negócio, se degenerarem a esse ponto, é uma coisa inacreditável para eles. tem uns que tentam fazer alguma coisa a respeito, outros desistem. Tem uns que nunca estão presentes, que nunca abrem a boca, mas que assinam o cheque no final do mês. E são detestados pela gente por tanto e tão pouco. Darem tanto para que a gente se foda por aí e tão pouco daquilo que realmente importa. De forma que a gente acaba sem saber justamente o que importa. Os limites se perdem. A gente é uma espécie de elétron sem núcleo.Temos um cartão de crédito no lugar do cérebro, u m aspirador no lugar do nariz, e nada no lugar do coração, vamos às boates muito mais do que às aulas, ternos mais moradias do que amigos de verdade e duzentos n ú meros de telefone nos nossos caderninhos para os quais nunca ligamos. Nós somos A Jeunesse dorée. E a gente não tem o direito de se queixar, porque aparentemente temos de tudo para sermos felizes. E a gente morre lentamente nos nossos apartamentos grandes demais, com sancas no lugar do céu, fartos, entupidos de cocaína e antidepressivos e um sorriso nos lábios...

Ele não responde, joga o casaco sobre meus ombros e me aperta nos seus braços. Ele me beija na testa. Uma lágrima rola na m i n h a face, seguida de uma outra. Não consigo mais me segurar, é o excesso de emoções contraditórias que ferviam dentro de mim e que transborda sem que eu possa fazer alguma coisa. Vi v i demais cedo demais, e por demais solitária. Eu não mereço qu e cuidem de mim. Fico sem entender. Não preciso de ninguém. A gente procura o amor, acha que o encontr. Depois vem a queda. De muilo alto. E melhor cair do que ficar sempre no chão? Você está fazendo da sua vida um calvário. Os rostos suplicantes, a solidão, as mãos sujas, um bebê que chora, a noite, o vazio... O vazio é uma questão de ponto de vista... Os braços que me apertam e anulam minha aflição, sinto uma carícia nos meus cabelos, nos meus olhos que queimam, no meu rosto inundado, nos meus lábios sôfregos. Não sei mais por qu e estava chorando. Já não choro. Já não mesmo? As lágrimas continuam a correr, mas porque não posso contê-las. Sinto-me tão bem. A esperança renasce do fundo do abismo. Re-deslumbrada. Quiçá estas lágrimas sejam de alegria...

Eu não sei. 8 O que dizer sobre a felicidade? Nada. Isso enche o saco de todo mundo. A felicidade de uns faz a infelicidade dos outros. Vocês iriam ficar com inveja, mesquinhos. Por que é que as coisas estavam indo tão bem assim para a gente, e não para vocês? Eu também não vou contar para vocês a respeito da minha cara de paleta sorrindo, viu? Isso não se conta, um sorriso, sobretudo com cara de pateta. Eu não vou transcrever para vocês as tolices adoráveis que a gente fica trocando um com o outro ao longo das noites, nem descrever a maneira dele de recolocar as mi n h as mechas atrás da orelha, a suavidade do rosto dele contra o meu, e seu olhar mergulhado no meu... Como estão vendo, eu caio rapidamente nos piores clichês. Rostos grudados, olhos nos olhos, mão na mão... Como a gente fica babaca quando apaixonada! Como ficamos paletas, melosas, românticas, inativas, improdutivas, egoístas, cegas e surdas! Eu passeio a minha cabeça de autista feliz pelas ruas de Paris, pouco

ligando se estou ou não chocando meu séquito que cessou de existir, ou os passantes que nem sequer vejo. A única coisa que importa é a opinião de Andrea, e seu rosto é a réplica exata do meu, um ar beato, inclusive com um sorriso indo de orelha a orelha, de forma que seria surpreendente se ele formulasse qualquer crítica a respeito do meu. Seis meses de felicidade. Compar-tilhada.

Lembranças desordenadas, e aquela sensação de um buraco no ventre quando são evocadas por mim... Uma confusão de risos, pernas e fumaça entrelaçados... Os eflúvios de Dolce & Gabanna e Allure misturados... um acorde langoroso de piano... o inverno seguido da primavera... minhas mãos crispadas sobre sua pele... sua voz que me enlouquece... a obscuridade radiante que reina no meu quarto quando durmo nos braços dele... a febre que nos excita, nossas conversas exaltadas e nossos abraços sôfregos... o desejo latente que fora velozmente satisfeito... o esquecimento total deste mundo insignificante... apenas ele... apenas eu... nossos membros misturados... nossas risadas sincronizadas em harmonia... E a gente rola no chão na cascata de penas virgulais de um travesseiro furado... eu me esquivo de

brincadeira... para em seguida me entregar e recair de costas na cama... minhas pernas nuas no ar... Depois do gozo, o abraço... e afogar meu olhar nos seus olhos límpidos... e oferecer meu pescoço aos seus lábios ávidos... acender um cigarro que dividimos... sem nada mais desejar... sem nada mais recear... a saciedade imperfectível do corpo a corpo... do coração no coração... acalentada pela música extática das palavras de amor que me são destinadas... lassidão que freia por alguns momentos o entusiasmo da paixão... nossos dois seres exauridos jazem um ao lado do outro... em silêncio... e exultam unicamente por estarem juntos... Ele brincando irrefletidamente com meus longos cabelos espalhados por cima do travesseiro... eu passeando meus dedos ao longo da curvatura da sua virilha... e a força serena do seu corpo estendido que basta para inflamar minha pele e minha alma... não, nada me amedronta quando estou nos braços dele... nada... transformo meu fôlego no eco das balidas do seu coração, meu corpo no reflexo do corpo dele e a sua perna que me envolve transforma-se numa corrente invencível... eu o olho dormir e a sombra dos seus cílios sobre seu rosto mal barbeado, seu

jeito de criança, sua mão abandonada liberam em mim paixões desproporcionais... Logo eu que fugia do amor, que o fustigava sem parar. Isso por desconhecer a existência de Andrea. Nós somos a mesma alma em dois corpos e formamos, quando eles se unem, somente um. Fiquei sem sair durante seis meses. Sem nada beber e sem cheirar nada. Nenhuma ânsia. Eu me saciara devorando a pele dele, minha necessidade de esbórnia foi consumida na chama dos seus olhos. Viver de amor, Evian e Marlboro Light. E achar que isso basta. Mas não bastava. Nós eramos a tábua de salvação um do outro. O parapeito que evitava o abismo. Eu havia compreendido rapidamente que os

pensamentos dele eram a imagem exata dos meus e, se ele tentava combater minhas convicções, seu único objelivo estava em erradicar um mal-estar parecido com aquele de que ele mesmo sofria, de cujos efeitos deletérios queria me preservar. Mentiras piedosas... A quem ele achava que estava enganando? Contudo, nossa existência mútua aniquilava

nosso sofrimento comum e, ainda que profundamente ferida e teo-rieamente devota de um arraigado spleen, surpreendi a mim mesma sentindo-me feliz. O nosso desespero inexpugnável caía, pouco a pouco, na letargia... Ao final de seis meses, nós quase nos tornamos "banais". Se é que isso poderia ser verdadeiro... Seis meses de felicidade? Não. Seis meses de condicional... Uma insatisfação estridente recomeçara a surgir dentro de mim, para em seguida rosnar, e rapidamente berrar... logo que eu abaixava minha guarda. Como antes. Nós tínhamos saído só para jantar. N u m desses lugares metidos, onde uns poucos casais se arriscam a ir para se empanturrar com a hecatombe das caras despeitadas que se expõem diante do espetáculo dual da felicidade dos dois, fabricada a partir de t a n t a s coisas deles. Umas rameiras louras estão se exibindo, as pernas decotando debaixo do f r u f r u das sedas, a gente se entope de comida e observa em meio ao barulho metálico dos copos e talheres se entrechocando, o tilintar fazendo as vezes de música ambiente e as vozes cristalinas que grasnam, dilacerantes.

Hotel

Costes,

239

rue

Saint-Honoré,

também

conhecido como o lugar em que se acaba sempre indo quando não se tem nenhuma idéia sobre onde jantar. A gente só queria escapar de nosso refúgio. A gente precisava respirar. Mas não deveríamos ter transplantado nossa empatia para esta atmosfera completamenle poluída. Já a tínhamos frequentado em demasia. Fico insensivelmente impaciente diante do desfile dessas peruas que passam afetadas pela nossa mesa lamentando que ele tenha desaparecido. Cynthia, Isolde, Tatiana, elas me dirigem um sorriso velhaco, a sobrancelha arqueada e a mecha caindo no olho, antes de irem embora rebolando a bunda moldada no couro ou na pele de cobra, agarrando suas bolsas Fendi como se precisassem delas para se equilibrar. Cumprimento Andrea pela sua relação com tantas mulheres badaladas. Ele responde que nem sequer transará com elas. Não acho isso engraçado. Eu me sirvo de vinho. Uma olhadela circular basta para perceber todo mundo lá: B está com uma camiseta Corinne Cobson e uma puta autêntica. Benji Maluco, Julian e Chris estão chegando, eles

também flanqueados de putas de verdade, e vão sentar com B. Bem na minha frente, do outro lado da varanda, Vittorrio está servindo água mineral no copo de vinho de Sibylle, que faz questão de me ignorar; eu a reconheço por seu vestido Valentino que compramos juntas. Ao que parece, ela desbloqueou a herança da mãe paraVittorrio começar um negócio qualquer. Cassandre, alegando que sou "instável", parou de falar comigo desde que passei a sair com Andrea, e conseguiu que Sibylle fizesse o mesmo. Neste momento, Cassandre percebe a minha presença, abaixa seus Gucci e me fuzila com o olhar. Às onze da noite, todos eles já estão com um ar desvairado. A dança macabra que executam entre a varanda e os banheiros lembra-me aquela que outrora me animava. Eu me sirvo de vinho. Meu ar radiante destes últimos meses se apagou. Estou bebendo mais do que o razoável. O meu reflexo no espelho à m i n h a frente me dá a impressão de se desagregar l en t a me n t e , como um quadro sobre o q u a l jogaram ácido. Meus cabelos ficam encrespados, meus olhos b r i l h a m numa

agitação doentia, minhas faces queimam, minhas mãos tremem e pensamentos terríveis estão comprimidos debaixo de mi n h a cândida testa. O meu mau génio de outrora começa progressivamente a tomar conta de ruim. Eu me sirvo de vinho. A gente continua, mesmo assim, a conversar, e a conversa soa falsa, simulacro desesperado de um relacionamento mais que perfeito que se tornou mera lembrança. Falamos dos outros, ainda bem que existem os outros... Andrea me conta que o negão que veio dizer olá no começo do jantar é f i l h o de um chefe de Estado africano, que ele usava um Rolex de ouro (sic!} quando estavam no colégio em Roches e que ele chorava todas as noites porque o room mate dele, filho de um chefe de Estado vizinho, tinha um Rolex de ouro com diamantes; que Vittorrio esteve em cana e o pai dele é um florista; que Julian foi posto para fora do Bristol porque fazia uma zona grande demais; quanto a Chris, há dois anos, ele passou por cima de um cara na frente do Keur Samba porque estava muito doido, mas o pai dele abafou o caso; e o pai de Cassandre, minha ex-melhor amiga, é comerciante de armas e, segundo o pai dele, vai em breve ser acusado; não dou a

mínima para tu do isso e o interrompo e imponho a ele a crônica passada das minhas piores aprontações. Mostro para ele com um movimen-to de cabeça todos os meus antigos companheiros de sacanagem... Aquele ali me comeu. E aquele lá, e aquele outro, e aquele... De ressaca, surubas às dez horas da manhã, orgias de dez gramas de pó; exagero, chego quase a inventar. Ele permanece impassível. Termina a garrafa e pede uma outra. Quando chega o café, já estou completamente bêbeda. Ele não está em melhor estado, mas se segura. Estou sufocando, preciso de ar fresco. Eu me levanto titubeante, tento disfarçar meu crescente mal-estar atrás de um sorriso triunfal, atravesso altiva o restaurante abarrotado de gente, sem que ninguém perceba que estou prestes a me desfazer. Minha saia é curta demais, meus saltos altos demais. Estou indo na direção dos banheiros: - Hell! Tudo bem? É o A. - Tudo bem, e você? - Faz dez anos que eu não te vejo! - É, eu andei meio enterrada nos ú l t i m o s seis meses.

- Dizem que você está de caso com esse cara da Porsche GT3 que mora na avenue Foch, o Andrea. - É. - Já faz quanto tempo? - Seis meses. - Isso diz tudo. - Com certeza. - Vocês vão esticar em algum lugar depois? - Acho que não, não estou me sentindo muito em forma... - Você sempre soube como se livrar desse tipo de probleminha... - Eu estou sem. - Toma. Ele me passa um saquinho. - Valeu. Não precisa me esperar, eu devolvo na sua mesa.Também quero dizer olá para o resto do pessoal. E n t r o nos reservados que são decorados no gênero bordel de luxo. Um esquadrão permanente de peruas está lá dentro se dando o tempo todo cotoveladas, enquanto

tentam refazer a aparência puxando suas rugas precoces e aplicando generosamente Terracotta por cima das manchas de sol. É lá que geralmente a gente descobre as impostoras: o forro das bolsas delas não é monogramado, e elas tiram dali descaradamente o pó-de-arroz e o batom comprados no supermercado... Perdão, com licença, eu gostaria de cheirar o meu pó, obrigada. Eu me tranco e t iro, tremendo, o saquinho da minha bolsinha Vuitton. Recupero num instante meus reflexos de outrora e um emprego esquecido para o meu cartão de crédito. Bato uma fileira com as pedras de coca em cima da tampa abaixada da privada. Enrolo febrilmente uma nota de duzentos. Eu me ajoelho e contemplo as cinco carreiras alinhadas. Cheiro... Vai uma. Vão duas. A euforia cresce. Dou um tempo. Três. Quatro. Cinco... Por que me privei disso durante seis meses? Um sucedâneo de felicidade: seiscentos paus o grama. E u me levanto e, na confusão interna, minha cabeça bale na parede; eu não senti nada. Abro bruscamente a porta que bate de encontro a uma outra porta. Sob uma luz favorável, o espelho me devolve a imagem da beleza do diabo, uma gota de sangue escorre pela m i nha fronte. Volto para enfrentar meus demônios.

Meu passo é seguro. Corto a sala com desembaraço, tenho a impressão de estar despertando de um longo sono. Devolvo a cocaína para A, com meio grama a menos... Digo isso para ele um pouco confusa, ele fica sem d i z e r nada, tanto faz. Faço a volta da mesa, digo olá para todos estes cafajestes escrotos da noite, estes ex-companheiros de saideiras abjetas, lembranças de caras esverdeadas, irreconhecíceis, de frases sem pé nem cabeça e desarticuladas, de coitos abortados com lágrimas. Eu me sinto ligada a eles. Volto para a minha mesa. Mas meu lugar está ocupado. Andrea conversa o mais ingenuamente possível com uma amiguinha da irmã dele que acha que sua proximidade com a família lhe dá o direito de sentar a bunda em cima do meu pashmina rosa. Fico parada na f rent e da mesa e pego um cigarro no meu maço que deixei lá, eu o acendo batendo com força a tampa do meu Dupont, aspiro uma longa tragada n u m gesto brusco. - Boa noite - digo expelindo a fumaça. - Ah, boa noite, peço mil desculpas, fazia tanto tempo que eu não via Andrea que me permiti sentar por um instante no seu

lugar - diz ela toda metida, enquanto abre os olhos enormes de um azul transparente. - Se você está gostando do meu lugar, pode ficar com ele. Ele sorri, com um ar angustiado. - Ela está brincando. Ele se levanta. - O que foi que deu em você, não vai ter um chilique porque uma amiga da Gabrielle sentou um segundo no seu lugar, não é? - De qualquer maneira, no fundo, esse lugar não é meu. - O que deu em você para ficar paranóica assim? Cheirou alguma coisa? - Sim, meu amorzinho. Meio grama, meu amorzinho. E daí? Estou morrendo de vontade que ele fique com raiva, que ele perca por um instante que seja esse autocontrole que me exaspera. Em vez disso, ele me olha quase com desprezo, pedindo desculpas por m i m à idiota que

continuou plantada como um vaso olhando a gente brigar; sem ousar partir antes de dizer até logo. Ponho o meu pashmina. Andrea me segura pelo braço. - Aonde é que você está indo? - Estou com vontade de sair. Eu vou ao Cabaret. - Muito bem. Vou com você. Ele paga. A gente se manda. Ele segura a minha mão. Eslá quase me carregando. Baixo os vidros, o ar fresco me faz bem. Ponho meu assento para trás e estico as minhas pernas. Começo a c a n t a r aos berros e a rir, a morrer de rir! Faço caretas incríveis. Ele não consegue evitar de rir também. Pego a garrafa de champanhe que a gente não tinha terminado e que carreguei comigo escondida debaixo do meu pashmina. Bebo no gargalo que nem uma pinguça e imploro a ele que faça a mesma coisa. Ele me imita. Nós estamos com um ar e tanto... Ele esvazia a garrafa e a joga pela janela na calçada da place de Ia Concorde, onde ela explode com um som apocalíptico. Eu me degrado com alegria e estou fazendo com que ele me acompanhe na minha queda.

Chegamos à boate com um ar imbecil e pretensioso. Ele joga as chaves do carro para o manobrista, numa dosagem perfeita de pretensão e desenvoltura. Este pula nos braços dele e se derrete cm cumprimentos. Para encurtar esse reencontro comovente, resolvo falar com um sotaque ridículo e petulante de uma perua estrangeira, e o intimo com uma ordem de me seguir: - Amor, você vem ou não vem? A irritante comédia das mundanidades vai começar. Ainda por cima já faz seis meses que a gente não sai. Tanta gente que perdi de vista e para quem tenho de explicar onde foi que jantei antes de vir, onde é que me meti esse tempo todo, o que foi que andei fazendo, se este verão vou para Saint-Tropez, ou para Marbella, ou Ibiza, ou para a Sardenha, ou para os quatro lugares, se ainda vejo fulano, por que foi que sumi, onde foi que comprei meu vestido, como foi que conheci Andrea... Quero, quero sim um drinque. Vodca com gelo, por favor... Suco de laranja... Não, eu não perco os bons hábitos... Bem, calma aí, eu não sou uma alcoólatra também... Neste caso, eu realmente me segurei... É isso ai, me empresta o teu saquinho, você é um amor...Tudo bem... E você... Não, nada disso, eu não casei não, por que você

está dizendo isso... Não, não me esqueci nem um pouco... Eu não liguei para você porque... porque... Sim... vodca, por favor... Quais são as novidades... nada, como de hábito... Quem foi que pediu champanhe... não, já bebi demais... OK, não precisa ficar exaltado, mas só uma taça... Ora essa, como vai você, meu coração... É verdade, já faz muito tempo... Você não tem uma fileira... A gente se vê daqui a pouco... Você está negro... De onde foi que você chegou... Que tal... Você sabe que eu me sinto uma babaca com um copo vazio na mão... Vodca com suco de laranja, muito obrigada... Andrea, meu amor, eu estava procurando por você em toda parte, onde você estava? - Na saída de serviço, deixando a minha ex chupar o meu pau. - Ainda bem, então você está conseguindo se distrair um pouco? - Muito. Há séculos que eu não me via n u m estado igual. O salão gira ao meu redor, o oceano de rostos me engole, quase caio toda vez que dou um passo, mas não estou nem um pouquinho ligando para o meu estado de embriaguez mórbida. Pelo contrário, adoro.

Quatro horas. O Queen, as mesmas figuras babacas; elas estão bêbadas de cair e as roupas delas estão sujas. Esta é a única diferença. Cansada de ficar esmolando, comprei dois gramas de pó, já que o preço caiu e ando me mimando. Atravesso o fosso para ir ao banheiro, torsos anônimos e melados se esfregam em mim, duas bichas da pior qualidade estão abraçadas no ú l timo grau do êxtase, eles salivam e me lançam olhares agressivos por debaixo dos piercings no sobrolho, os olhos turvos dos dois me provocam calafrios. Finjo que estou passando mal para furar a fila. O cara que cuida dos banheiros me dá uma bala. Eu detono meu nariz. Reapareço, des-vairada e com as gengivas anestesiadas, mas muito satisfeita comigo mesma. Retorno à pista de dança. Caminho rebolando e chutando sem remorsos os obstáculos feitos de carne decrépita e pegajosa que me barram o caminho. Reencontro Andrea. Ele está com uma garota em cada perna e de novo com aquele sorriso sardônico que o faz ficar com uma cara de escroto. Ele bebe como um ralo. Passo por cima da mesa derrubando alguns copos. Um parasita reclama, e Andrea o põe imediatamente no seu lu gar. Expulso com violência as duas pistoleiras dos joelhos dele e tomo conta dos seus lábios. Eu o beijo intensamente, com minhas mãos

escorregando por debaixo da camisa dele para acariciar esse corpo que conheço de cor. O mundo a nossa volta desaparece. Solto um a um os botões do jeans dele e somos levados pela nossa paixão mútua e irresistível, que somos incapazes de controlar, escorregamos devagarinho para um aperto inevitável... E a gente transa. Bem no meio do Queen. Meu orgasmo é mu l t i plicado por dez devido à proximidade da m u l t i dão. O sobe-e-desce de nossa cópula lasciva parece ser um simulacro, meus gritos de gozo se perdem em meio à música forte demais... Saio de cima dele e me sento ao seu lado. A lgumas pessoas nos olham fixamente, com um ar horrorizado, e nós explodimos nu ma gargalhada diabólica. A gente não respeita nada, nem n i n guém, nem sequer nós mesmos, e a gente se sente dotado de um poder especial; livres para sempre do jugo da interdição. Não consigo parar de rir. Estou ébria de champanhe e depravação. E quero mais. Eu não estou satisfeita. Tenho vontade de ir além, de superar a intensidade e o impossível. Nós saímos da boate. A ida do Queen até a porta do carro é interminável, conjugamos o que sobrou dos nossos

equilíbrios respectivos para não cairmos de boca no paralelepípedo. Somos duas figuras fazendo desenhos involuntários no ar carregado de eletricidade e, pouco a pouco, a idéia de que somos grotescos começa a se imiscuir na minha cabeça. Grotescos. Duas marionetes gesticulando. Eu me jogo no assento. O Champs-Elysées gira a minha volta e procuro fechar os olhos para escapar deste picadeiro estonteante do qual o centro sou eu, mas as tenazes que apertam as minhas têmporas obrigam-me a olhar com os olhos esbugalhados o lastimável espetáculo da minha decadência. Um corpo prostrado agitado por sobressaltos, mais ou menos coberto por um vestido cujos paetês estão embaçados. Com mãos que se torcem. Um rosto destruído. Os olhos afundados em olheiras, desvairados. Uma boca com os dentes trincados. Uma tez macilenta mareada por um filete de sangue coagulado debaixo da arcada da sobrancelha. Busco nos meus olhos o brilho que me é familiar. Ele inexiste. Estou olhando para uma estranha. Uma estranha cujos olhos se apagaram. E Andrea que consegue ainda avançar... fico pregada no meu lugar, não posso me mexer. Ele me estimula a fazê-lo. Eu me recuso. Ele acaba por me puxar suavemente pela mão, e

consigo ser extirpada do carro. Meus movimentos bruscos são ridículos. Acabo em pé na calçada. Um momento. Vacilo em cima das minhas pernas moídas e me esvaio. Sinto vontade de vomitar. Ela cresce dentro de mim como um sentimento de fúria, tenho vontade de lançar meu nojo, meu ódio e os litros de álcool ingeridos. Estou ajoelhada, dobrada em dois, e vomito sem condições de parar os meus excessos desta noite e da vida de sempre e emporcalho meu vestido Lolita Lempicka de imundícies sórdidas, e o silêncio pesado de de-glutições atrozes. E ele esguicha como num pesadelo, ponho para fora litros de vodca, litros de champanhe, minhas ilusões perdidas, os fantasmas que me assombram, e tudo espirra no asfalto negro com um ruído de explosão líquida e suja que repercute na minha cabeça como a sentença fatal da minha indignidade. E fico prostrada. Não quero levantar de novo, não quero suportar o seu olhar. Minha cabeça abaixada dissimula minhas lágrimas escaldantes. Quero morrer aqui. Andrea me levanta, passa um braço por baixo dos meus joelhos e o outro debaixo dos meus ombros, ele me carrega e me leva. Estou afogada na minha exaustão e vergonha, deixo minha cabeça cair no seu ombro, pareço um cadáver. O cheiro familiar do apartamento dele me acalma. Ele me guia pisando

devagar através dos cômodos até o banheiro. Ele me faz sentar na beira da banheira e passa uma esponja molhada sobre o meu rosto maculado de maquiagem e lágrimas. Pacientemente, até que todos os traços desapareçam inteiramente. Até que o espelho me devolva a imagem de uma criança pálida de olhos tristes nas suas olheiras. Ele escova os meus dentes. -Cospe. Eu cuspo. Em seguida, desembaraça meus cabelos sem me machucar. Tira os meus escarpins Prada e meu vestido. Ele me enfia uma camisa enorme. Pega a minha mão e me leva para o seu quarto. Ali sou estendida com a cabeça bem no meio dos travesseiros e ele me cobre até o queixo. Não larga a minha mão. Lembro-me da doçura imaculada dos lençóis e do contato proetor da sua mão dentro da minha. Para logo depois mergulhar no sono. No dia seguinte, tudo recomeçou. E foi ainda pior...

9 Eu não aguento mais Nós não estamos mais vivos, isso é um engodo.

Nós caimos de boca na noite e na cocaína. Assombramos os lugares sórdidos da zona Leste, naqueles bairros cuja existência era até agora ignorada por nós, chafurdamos na imundície dos outros, nos alimentamos de vapores esverdeados, de encontros vazios e desta putrefação onipresente da alma que a gente só encontra a noite, a qual, mesmo assim desejamos. Nós representamos a comédia da vida, mas estamos mais mortos que vivos. Cadavéres animados. Estou sem folêgo...meu desejo de prosseguir foi sincopado. Eu não aguento mais... Tomo um trago. A cada dia assisto à degradação do homem que amo, sua testa que bate na mesa, suas mãos trémulas que esvaziam o saquinho, que esticam as linhas antes de elas desaparecerem num décimo de segundo no gesto brusco que ele faz para cheirar, inteiramente donas do seu ser, onde sou uma intrusa. As narinas cheias, os olhos vazios.

A gente nem sequer transa mais. Tenho permanentemente um gosto metálico na garganta, não sinto mais minhas gengivas, meu nariz sangra todas as manhãs. É um mundo fechado, uma autarquia. Nosso único contato é com o nosso fornecedor. A gente tenta experimentar de tudo. Ontem, a gente fumou crack. Placa de vidro, nota enrolada, cristais imaculados. Ele roubou meu vício. Isso não se vive a dois. A gente se arrasta por lugares abjetos, a gente se diverte com os miseráveis, os mais desesperados. Seis horas da manhã, em algum lugar perto de Montmartre, lixeiras e gente. O dia parece que vai amanhecer. Mas é a noite para sempre. Sou a única a perceber. Talvez ele também saiba, eu não pergunto, a gente não se fala mais.

Seu gesto enfastiado ao abrir as portas do carro. Entro mecanicamente. E a gente escuta Aerodinamic, música Dajt Punk, e dá vontade de ir muito rápido para muito longe; e a gente afunda o pé a duzentos por hora nas pistas à beira dos cais desertos, e tudo fica para trás como um raio, e eu digo pra mim mesma que quero morrer, que estou pouco ligando para quando será, morrer ao lado de Andrea a duzentos por hora, arrebentada pelo pó e a velocidade, com as guitarras urrando Daft Punk que saturam o ar do ambiente, atirar-se do alto da ponte des Arts, uma vez que o nosso destino se tornou indistinto aos nossos olhos cromados, plantar-se na Cour Carré, aos pés do obelisco, debaixo do Arc de Triomphe, place Victor-Hugo e arrombar o portão do museu Marmottan para dar o último suspiro na frente do Impression soleil levant, arrebentar com os olhos em lágrimas ao lado da alma irmã, diante de uma obra-prima, e me dou conta de que o meu nariz está urinando sangue, e que os sinos dobram, e que nós chegamos...

10

Acabou. Eu desisti. Não agüentava mais. Acho que a gente acabou se detestando. Acabamos sem vida. A rotina, a horrível rotina,a certeza da gente acordar todo dia lado a lado, errar na companhia um do outro, o tédio... Tentar enganar esse tédio preparando as drogas, ensandecer para que exista alguma outra coisa entre nós além do nosso "amor", apegar-se às substâncias, odiar ao outro por estar sempre aí, ao mesmo tempo receando que ele vá embora... Vá adiante. Acabou.

"No meu coração estúpido, a estupidez canta estourando a garganta." Hoje, fui fazer a ronda das butiques. Comprei dois jeans Cavailli, leggings na Colisée de Sacha e um paletó Barbara Bui, mais toda a vitrine da Paul and Joe, uma calça Joseph, um par de sapatos Prada, e na Dior uma vigésima bolsa, a carteira combinando e óculos tipo ray-ban, eu até comprei pochete Fendi monogramada que nunca vou usar, a não ser aos domingos para ir ao cinema. Esta noite, tenho quatro jantares: um é beneficente para a j u d a r uma associação de caridade no Les Bains, o tipo

de noite em que a gente usa um longo de q u at r o zeros, e na qual a gente se entope de comida em paz com a consciência, uma vez que a nossa presença significa que pagamos quinhentos paus o lugar, e que graças à grana trinta criancinhas africanas estão salvas. Mas não vou a esse jantar, o Les Bains é muito longe. Eu também f u i convidada para os vinte anos de Sultan. Sultan não é nome nem de cavalo, nem de cachorro, ele é um dos meus amigos de infância de quem eu pensava ter conseguido finalmente me livrar, mas que insiste em me convidar todos os anos para o aniversário dele, onde sei de antemão que vou encontrar todos os degenerados malucões que evito desde que atingi a idade da razão, boicotando os ralies e a rue de Passy. Vou fingir que morri. O terceiro convite, o drinque tradicional a n tes na casa de Chris, avenue Montaigne; a gente faz os pedidos no Diep, bebe alguns copos e bate algumas fileiras para ficar no ponto antes de ir para a boate. Eu nem sequer pensei em ir ao quarto jantar, organizado por um produtor de vídeos pornôs que arrasta

uma asa para Victoria e quer que a gente conheça os atores dele. Esse jantar só foi citado para mostrar como sou realmente disputada. De fato, tenho quatro jantares, mas todos eles são mais ou menos um saco de ir, de forma que não sei o que fazer: estou com vontade de ir ao Market, o novo ponto de JeanGeorges, mas me deu vontade também de comer uns sushis, porém não no Nobu, e quero beber doses de vodca com malabar rosa, que só são preparadas no Zo e no Bindi, e por que não um frango com coca-cola? Além do mais, se ouço um criado dizer "está saindo" em vez de "imediatamente", e se leio num cardápio a palavra "toque"": "com um toque de caldo de cenoura feito na h o r a , ou "um toque de parmesão'", sou capaz, de cometer um assassinato. É mais prudente, portanto, que eu fique em casa. Na dúvida, ligo para Victoria por sua linha privada. - Alô? vocifera ela com um sotaque americano

acentuado. - Hell, darling, olha só, eu estava acabando de organizar meus números de tele-fone e pus você em Very VIP, você tem um toque de telefone exclusivo e...

- Vicky, querida, estou com um problema sério e estou me lixando para os seus números de telefone da mesma forma que para a minha primeira calcinha comprada na La Perla: o que a gente vai fazer esta noite? - A gente vai para a casa do Chris encher a cara e cheirar tudo o que os nossos narizes puderem, depois a gente vai ao Cabaret encher a cara e cheirar, depois a gente vai ao Queen en... - Eu me recuso a ir para a casa do Chris. - Como assim, Hell, você está com problemas com meu namorado? - Deixe de onda, fui eu q u e apresentei seu namorado a você. Eu adoro o Chris, mas não quero ver nem o amigaço dele Julian, o nova-iorquino mongol, nem o amigaço dele Benji, eleito melhor cliente de Sainte-Anne no ano 2001, nem A, meu ex, nem B, meu ex, nem os outros babacas malucos com quem ele se dá. Esta noite estou com vontade de conversar, en tendeu? - Bom, eu estou com vontade de transar. - Você pode transar depois.

- Pára com isso, Hell, você sabe muito bem que Chris só consegue transar entre as nove e as onze, depois ele fica tão doido que não consegue ficar de pau duro... - Então não conte com a minha companhia. Desliguei. De que adianta? faço a ronda das butiques e das lojas, seguem-se os modelitos diferentes, eu os visto para ir ás festas em que a gente dança, a gente bebe sem conversar, ou volto para casa sozinha ou mal acompanhada, e todo mundo está nas últimas. Minha vida parece um passeio em Paris ás quatro horas da manhã, olhando ruas desertas, escutando músicas imbecis que ficam chorando uns amores de merda. Andrea sempre escutava no carro Night clubing do Iggy Pop e I need you tonight, do INXS, ou ainda Radiohead, sobretudo Creap e High and dry, ele adorava Sting e U2, mas exitava. Eu o converti para as músicas ambientes, dei de presente o duplo de Cruel Intention, mas ele nunca escutou.

Quando Andrea era criança, o pai dele saiu de casa para morar no Ritz... Uma noite, ele acordou, saiu de casa escondido, foi a pé até oRitz e trouxe o pai de volta. Ele tinha oito anos. Hoje, ele tem 22 anos, descolou uma lourinha babaca e insignificante, com cara de pastel, uma "garota de família". Agora, ficam me tratando em Paris como se eu fosse uma viúva. Quando me dizem bom-dia, parece que estão me dando os pêsames. Acabou. Eu não estava nem aí nas férias. Passei com meus pais em Saint-Tropez, Ibiza e, depois, em Bali. Fingindo que estava rindo, me diver-tindo, enquanto bebia e cheirava de manhã à noite, até mesmo na praia, no navio. No fundo do poço... Prefiro esquecer aquilo que fiz durante as férias. Há duas semanas, ele me ligou. Fazia três meses que a gente não se via. Ele queria saber das novidades. Que novidades? A gente marcou um encontro à meia-noite no bar do Prince de Galles, a gente tin h a certeza de q u e não iria encontrar com ninguém.

F u i vestida toda de bege, íiquei horas me maquiando para esconder minhas olheiras e meu ar de moribunda, e descolei um sorriso radiante. Ele já estava lá quando cheguei, sempre o mesmo, de terno preto, com aquele ar inacessível. Estava lendo A filosofia na alcova e não tinha tocado na sua vodca tônica. Banquei a putinha, fumei um cigarro depois do outro, com ar de quem não estava nem ali, me virando para examinar o bar. Dois sauditas vieram me dizer boa-noite. Andrea me falava das férias dele em Miami e do processo do pai. Naquele bar forrado de feltro, cercada por uma gente insípida, nós éramos duas pessoas insípidas que não haviam vivido nada. Foi então que me levantei, o agarrei pelo punho e o arrastei para fora, até o carro dele. - Para a minha casa. Foi a única coisa que eu disse. Ele ligou o som, eu apertei o stop, nos fomos para casa apenas com o ruído do motor quebrando o silêncio. Foi só tirarmos nossas roupas, e transamos.

Muito mal. Em seguida, ele me explicou calmamente que tinha pela idiota dele todos os sentimentos que "acreditara" sentir por mi m, a i n d a bem que fora eu quem tomara a iniciativa, porque h a v i a sido um erro a gente ficar j u n to s, mas mesmo assim ele está contente que tenhamos quebrado o gelo esta noite, de forma que, no futuro, podemos ter uma relação de amizade. - Diane é a mulher da minha vida, Diane é a mãe dos meus filhos. Será que ele quer que eu grite? Nem isso, está pouco ligando. Ele está tão apaixonado por essazinha sem sal, que não consegue ficar sem falar nela. Sem chance, nesta cama só existe eu, eu que enfio minhas unhas na palma da mão até sangrar para reprimir a dor que me afoga lentamente, eu que estou condenada a escutar da boca do homem q u e amo o panegírico da minha rival, isso depois de ele ler me usado como xepa num abraço enfadonho. Sua voz que tanto amei marca o ritmo do desmoronamento completo de minhas últimas esperanças. Uma

só palavra, um único gesto da parte dele, e eu teria me aberto, confessado tudo a ele, a razão de minha fuga, meu amor inabalável. Uma vontade monstruosa de chorar, eu me seguro. Meus olhos talvez brilhem um pouco mais, é um fulgor úmido que ele não percebe. Faço um esforço. Permaneço combativa. Substituo minha dor inofensiva por um desejo de vingança. Quero que ele sofra como eu sofro, Eu me sento na beirada da cama, acaricio os cabelos dele, minha voz cresce no silêncio, sou incapaz de reconhecê-la. - Ame-a, essa garota, essa bostinha, ame-a, já que ela finalmente pode fazer com que você ame a vida. Talvez, graças a ela, você seja capaz de deixar o seu nariz em paz, você deixe de fo-der as putas, talvez, para convencê-la de que presta para alguma coisa, você consiga até mesmo começar a trabalhar, talvez, quando você apresentá-la aos seus pais, eles o considerem de novo como filho deles. O seu pai irá parar de pensar em deserdar você, sua mãe não irá ficar chorando noites inteiras porque a empregada não consegue limpar os vestígios de cocaína na sua mesinhade-eabeceira que só serve para isso, ela vai parar de tomar Prozac, talvez até pare de beber.

"Tudo vai acabar da melhor maneira possível. Você vai levantar todos os dias na hora em que costuma deitar, vai trabalhar de limusine e v a i escutar as notícias nos engarrafamentos. Va i sentar sua bunda bem cuidada n u m a poltrona de couro e vai dirigir galanteio à secretária que cospe no seu café porque não aguenta mais espanar o pó todo dia do porta-retrato da sua foto no seu barraco em S a i n t Trop, você, a sua mulher, os seus dois moleques medrosos e o cachorro. Você vai ler os jornais, vai adquirir opiniões políticas sob medida e vai votar nos programas que reduzirão impostos sobre a sua fortuna. A noite, vai regressar ao lar sem nem mesmo se dar conta do absurdo da sua vida, vai vestir um suéter Polo Golf rosa e vai jantar com a otária, com a conversa girando a propósito da epidemia de adultérios que se espalha entre os amigos de vocês, omitindo que ela se estende até o seu santo lar. Vocês vão roncar lado a lado no transatlântico de quatro metros quadrados que faz as vezes de cama, sem sequer roçarem u m no outro. Você estará pouco se lixando porque prefere ir ao puteiro ou às putas no boulevard Lannes. Você vai virar os seus pais.Você será um clichê ambulante.

"Espera aí... Você não está achando realmente que tudo vai acabar tão bem assim! "Você está sonhando, Andrea, isto seria fácil demais. O ideal burguês ainda é coisa boa demais para você, você não é nem capaz disso. Você fracassa ern tudo em que mexe, até esse seu nome, Andrea, é coisa de fracassado, uma caricatura. É isso que você é, a caricatura de um babacão que tem trr]]udo e que não é nada. "Bastou seis meses para eu ficar de saco cheio de você. Por que você acha que fui embora? Porque eu não encontrava um jeito de dizer para você que tinha acabado, não queria que você me implorasse para ficar e acabar ficando por pena. Fui embora, era mais fácil. E o pior é que você não é nem capaz de manter os seus senti-mentozinhos de merda; quanto tempo levou para você se juntar com a sua puta, um mês? Você se esqueceu dos seus recadinhos desesperados com os quais entupia minha secretária dizendo Volta, volta!!!!? "E agora, está contente, soltando piruetas, achando que está apaixonado, quando na verdade você come umas dez piranhas suburbanas por semana, enquanto a sua bobalhona fica sonhando contigo nos lençois de Barnbi

dela! Você cai de boca na droga de manhã à noite, você que controlava tudo...Você está achando que é um cara equilibrado que está vivendo um romance formidável com uma garota e n c a n t a dora? A gente sabe m u i t o bem, nos dois, que isso é uma mentira daquelas. Você, equilibrado? Você tem cada u ma, é para rir! "Afora isso, quais são as novidades nesta sua vida de merda? Você está mais deprimido do que ontem e menos que amanhã. Passa o dia inteiro dormindo, e não aproveita nada das suas noites. Você enche a cabeça de droga achando que v a i escapar do seu destino original, de filhinho de papai que se prepara para ser dono de banco, que não frequenta boates, que tem a cara cheia de espinhas? Mas o seu destino não era esse. O seu destino verdadeiro, você já está mergulhado até os cabelos, pobre idiota, você é prisioneiro dele, do seu destino, seu destino de fracassado! "'Coitadinho do Andrea que está dando uma de espertinho, que pensa poder escapar da fatalidade andando a duzentos por hora no Porschezinho de merda dele! Ele acha que é resistente como o aço, mas ele está cada dia mais a f u n d a d o nos delírios existencialistas dele. A

fa talidade, queridinho, anda muito mais rápida que um GT3! "Esse nome ridículo! Andrea di Sanseverini,

aristocracia decadente, empobrecida pela consanguinidade, deliqüescência da elite; mamãe maluca, papai playboy, filhinho degenerado, a única que vai escapar desse lixo é Gabrielle. "Por outro lado, Andrea tem amigos de todos os sexos e Andrea tem suas paixões, os primeiros são os fornecedores e as putas, são eles que lhe dão os meios de satisfazer as segundas, tudo em troca de uma retribuição substancial. Andrea tem até uma namorada, ela se chama Diane, ela é loura e chifruda. A ambição de Andrea é comprar o Queen e morar lá dentro. A situação financeira de Andrea: trinta mil francos por mês que ele descola com o pai para comprar pó, enxergar mais alto. Se este último está começando a ficar de saco cheio de ter gerado um tamanho degenerado, e está pensando em parar de ser fiador dos agitos estéreis do primeiro cortando os recursos, Andrea vai preferir sacrificar o seu Laio em vez dos seus gostos de luxo, vai mandar o fornecedor dele - o qual faz uns extras de vez em quando tirar a vida daquele que o gerou. Vai se tornar rico, porém

torturado, com as Erínias não largando mais do seu pé, acabando por cortar os pu nhos, se encher de Lexomil, explodir os miolos com a espingarda de caça... E claro que não vai conseguir, visto que fracassa em tudo, e vai terminar a sua vida de vegetal no Hospital Americano, onde Diane vai ficar levando os bombons antes de tornar-se religiosa nas Ursulinas... Pronto. Uma vida, um homem, refrigério e decoro, Requiescat in Pace, boa noite e fora!" Ele nem pestanejou. Levantou-se e f o i embora. Cada palavra que escapava de m i m era um golpe de p u n h a l q ue perfurava meu coração; quando ele partiu, eu estava exangue. No dia seguinte, ele pegava um a v i ã o para as Maldivas. Com a puta dele. Eles voltaram na úl tima quinta-feira, depois de dez dias de amor e sol. Para mim, dez dias trancafiada, dez dias de abjeta depressão e morte. As suas pequeninas agressões mesquinhas são como facadas na água... você é como uma criança que se machucou e que tenta empurrar os amiguinhos no cercado de areia para que eles também se machuquem... Sábado à noite, faz duas semanas que eu não saio, tenho medo de enfrentar o mundo sem ele ao meu lado. Sei que não

vou encontrá-lo ao lado dela, ela não sai, "isso não é coisa que se faça". Não, ele sai sozinho e a engana com as putas. Ela não percebe que sou eu quem ele cornei a com ela. Eu também não vou sair esta noite. Tenho medo da indiferença no olhar dele. Arejo o apartamento, uma lufada de ar fresco expulsa a fumaça da sala, mas o negrume das minhas idéias permanece. Chloé está no hospital, tomou uma overdose. O pai de Cassandre está sendo procurado pela polícia por trálico de armas, ele fugiu durante a noite no jatinho dele. Cassandre ficou, ela ganha seu sustento bancando a criada no Costes, com uma vida secreta de puta no Fatien, a última novidade é que ela está simplesmente transando com o pai de Sibylle. Por falar nisso, Sibylle tentou se suicidar, o pai e o fato de Vïttorrio ter se mandado com os milhões da herança da mãe dela foram demais para ela aguentar. Não vou conseguir dormir. Ligo a vitrola... Avec le temps... avec le temps va, tout s'en vá... Com o tempo tudo se vai, a gente esquece o rosto e esquece a voz,

Quando o coração pára de bater, não vale a pena continuar a procurar É preciso deixar passar e tudo está muito bem. A vec le temps... avec le temps va, tout s 'en. va... Aquele que a gente adorava, que a gente buscava debaixo da chuva, Aquele que a gente adivinhava com um golpe de vista Em meio às palavras, em meio às linhas e sob o disfarce De um juramento mascarado que vai perturbar sua noite Avec le temps... tout s'évanouit... Lembro-me da Calavados, quando o melhor ainda estava por acontecer... lLembro-me do seu olhar e dos rostos dos músicos. Lembro-me da minha fuga. Alguma coisa explode em mim, eu me sento agarrando os lençóis, as palavras são urradas por mim, minha voz some... A culpa é minha. Eu quis acabar com o pretexto de que a gente estava se destruindo mutuamente, fui eu quem engendrou nosso fracasso, trabalhei pela minha própria infelicidade. Acabou.

Ele está envolvido com uma outra coitada e eu estou como uma babaca em casa num sábado à noite. Nem sequer tenho vontade de sair, isso não me interessa nem um pouco, não sinto vontade de ver ninguém, só ele. Ele me faz falta. Afinal de contas, o que é que me impede de ir confessar t u d o para ele? Confessar a razão de eu ter ido embora, de ter falado todas aquelas escrotidões para ele na última vez, por que estava infeliz, ciumenta, pirada, que cada palavra dita para ele era também pra mim e que a gente precisa refazer nossa vida juntos. Eu te amo, isso não é nada, mas é tudo, eu nunca disse isso para ele. Dane-se se ele me responder com frieza e me mandar para aquele lugar. Pelo menos eu desabafaria. Enfio as roupas que comprei hoje à tarde. Ponho também um cinto que ele me deu de presente. Meus cabelos estão úmidos e começam a ficar cacheados, mas essa não é hora de fazer uma escova. Esvazio o conteúdo da minha bolsa Vuitton dentro da minha nova bolsa Dior e saio correndo. Olho-me rapidamente no espelho grande da entrada...

Quando me olhar de novo neste espelho mais tarde ao voltar, já estarei sabendo. Vou em disparada até o ponto de táxi, não tenho a menor vontade de fiçar sete minutos me remoendo em casa. Corro pela rua, meus saltos de metal batendo no asfalto. É meia-noite e meia, ele ainda deve estar em casa; ele sempre manda os amigos fazerem o serviço sujo: pegarem uma mesa à meia-noite, para depois se encontrar com eles às duas, quando o lugar está lotado. - Avenue Foch, na altura do Etoile. O hall, o elevador, o patamar da entrada, a porta dele... A redenção, a absolvição, o fim do t ú nel... Aperto a campainha, freneticamente, mas ninguém vem me abrir a porta. Não tem n i n guém em casa. M i n h a febre desaparece de chofre. Torno-me mais uma vez patética, com as torrentes do meu amor devastador q u e se chocam de encontro a uma porta fechada. Ele não está, deve ter ido jantar fora. Não tenho como fazer a ronda de todos os restaurantes de Paris no estado em que estou. Vou esperar por ele no Nouveau Cabaret.

Desço o Champs-Elysées a pé. Ando rápido, quase correndo com os meus saltos altos demais. Passo na frente de todo mundo no ponto de t á xi. A gente se manda na direcão da Concorde, o caminho parece eterno na rue du Faubourg, o carro dele não está diante do hotel Costes. Acendo uns cigarros que jogo fora um atrás do outro. Chego finalmente a place du Palais-Royal. Desço do táxi.Examino as placas dos carros estacionados: uma porrada de Porshe, duas Ferra ri, eulre as quais, de novo aquela Maranello com a placa da Suíça, e um Modena Spyder azul, placa da Alemanha. O Audi TT de Victoria. Vejamos um pouco essas Porsche negras... 75ONLY75. Ele está aí. Eu entro no antro.

11

Eu me chamo Andrea e moro no 16ème. Sou quase feliz. Ao que parece, tenho tudo: sou Jovem, Bonito, Rico; populações inteiras devem sonhar em ser eu. Ou quase. Sou Jovem, Bonito, Rico e lúcido. E este é o detalhe que põe tudo a perder. Minha vida é só luxo, calma e volúpia; tenho um apê de seis milhões, um carro dos sonhos (pelo menos dos sonhos de vocês) e mais roupas que Madonna, tenho pinturas dos grandes mestres, dois mil CDs e um American Express Platinum, pratico esporte no Ritz e nunca janto na minha casa Tenho 22 anos. Moro na avenue Foch, em duzentos metros quadrados de assoalho, sancas, lareiras e uma lindíssima sala de banhos; nas paredes, os quadros já mencionados dos velhos mestres, mais um desenho de Warhol, que eu mesmo comprei num leilão, e pinturas geniais de artistas malditos; nos tetos, lustres de cristal, as únicas sobras do palácio na Toscaria que durante quatrocentos anos abrigou minha família.

Derrubei algumas paredes para fazer uma sala imensa onde estão largados um pouco soltos, como que abandonados, um piano de cauda, uma mesa de jantar knoll, uma televisão Bang e Olufsen, uns sofás, umas poltronas, mesas de centro de Conran e cinzeiros de Colette. Numa outra sala: uma cama kingsize, espelhos murais, uma foto noturna de Nova York e uma jacuzzi toda de vidro. Ando num Porsche GT3 com a placa 750NLY75, mando fazer os meus sapatos sob medida no Berlutti, só ando com jeans assinados e, faça sol ou chuva, não saio de casa sem os meus ray-ban dos anos 70, sempre uso gel nos cabelos. Sou um artista e a minha obra sou Eu. Minha aparência, meu apartamento, meu carro, meu estilo de vida, minha atitude assinalam o excepcional, não faço nada igual aos outros, ou senão faço melhor. Acordo todos os dias ao meio-dia, pego meu Porsche e vou almoçar em todos esses lugares que vocês não conhecem, vou nadar, em seguida, rio Ritz, ou faço a ronda das butiques, ou vou a um leilão, ou ao escritório do meu pai, depois volto para casa e vou ler um livro ou assistir a um filme, antes de sair de novo.

Saio todas as noites, este é o meu único fraco. Não fui fe ito para passar uma noite em casa, já faz oito anos que isso acontece. Como todo mundo, frequentei uma faculdade, da qual guardo uma lembrança carinhosa por ter sido lá que usei meus primeiros ternos Dolce & Gabanna. Tinha serem catorze anos quando descobri o que achava as famosas noites parisienses; Gilbert Montagné

com cachos, toda Paris vestindo camisas Ralph Lauren, o uísque e suas perigosas virtudes, o Club des Enfants Gâtés, as grandes noitadas temáticas no género "pêrauva-maçã-durante-concurso-de-gravatas-sob-nevascadistribuição-boné-.Jack-Daniels-e-cachecol-Cutty-Sark", resumindo, uma grande bagunça com sacanagem! Eu achava que era Tony Montana quando jun tav a os prêmios e ia pegar a garrafa, um espirro de gente com um dos enormes charutos de meu pai enfiado na boca. Eu tirava um sarro com umas gatinhas adoráveis de boa família e fogo no rabo - sim, porque naquela época para dizer beijar, paquerar, dar um chupão, agarrar, a gente dizia tirar um sarro, do verbo sarrar, e o pior que a gente também conjugava, de forma que eu sarrava com um bando de miniaturas de Machas (MarieCharlotte), de Anne-Cés (Anne-Cécile), de Priss (Priscilla),

umas babaquinhas que v i n h a m me dar uma chupada no banheiro misto, depois de eu ficar dez minutos tirando onda, e que, sem seguida, caíam no choro porque não queria mais saber delas e elas estavam apaixonadas por mim. Logo fiquei de saco cheio da carne jovem, enchi o saco de fiçar escutando canções francesas melosas, enchi o saco sobretudo do dono do Planches, que queria gravar meu nome numa ridícula piaquinha dourada c colocá-la na entrada no hall dos melhores clientes da boate, tudo isso só porque eu era nobre. Eu disse cá com os meus botões que uma boate cujo dono era doido não podia ser boa coisa e disse muito obrigado e até logo. Além do mais, meus amigos e eu tínhamos crescido. Tínhamos até atingido a maioridade. Não valia mais a pena perder nosso tempo numa boate que fica vazia no início do verão porque a clientela foi fazer vestibular. Tínhamos ficado velhos demais. De forma que

fornos obrigados a reconhecer que aquele lugar, onde nos sentíamos como peixe dentro d'água, se tornara doravante desprovido de i n teresse... O aquário se esvaziou e a gente p artiu para serrar fileira nas boates de verdade, onde a gente se sentia como os adultos. Adultos? Na verdade a

gente era visto como animais exóticos. Nossa pouca idade causava espécie, nossa arrogância mais ainda, mas o dinheiro abre todas as portas, e a gente arrasava agora na fauna prostituída dessas boates que pretendiam ser exclusivas.Tem de tudo lá dentro, um verdadeiro remake da Comédia humana, burocratas classe-média que moram dentro de quarenta metros quadrados e que estouram o salário em garrafas para se exibirem, secretárias e esteticistas disfarçadas para à espreita o do jet set, de suburbanos rancorosos que saíram da sarjeta lançando mão de truques sujos manipular sucesso suas músicas vagabundas de rap francês pré-fabricado, discos de ouro, a gente acha que está sonhando, obrigado Barclay e Polygram. Para eles isso é promoção social, para nós, a degradação. lugares VIP, Instalados com voluptuosamente sobrenomes nos nossos e nossos sonoros

impressionantes, somos o 0 , 0 1 % dos l0% mais ricos das estatísticas, aquele que faz babar as i n telectuais desfrutáveis com menos de 50 que domingo espiam O capital, a gente despreza, a gente explode de soberba, a vodca e a sensação de superioridade nos sobem á cabeça, nós somos os reis do mundo, os bambambãs.

Somos uma ínfima quantidade da massa, mas nos sentimos uma legião, visto que ignoramos o que ocorre abaixo da gente; a hora em que você acorda para ir trabalhar é quando vamos dormir, bêbados e saciados de termos estourado numa noite o equivalente à quantia das compras semanais de vocês, mais o seu aluguel e, vai ver, o seu salário. E o pior é que isso é banal, que a gente vai fazer o mesmo na manhã seguinte, e depois da manhã, e todos os dias até nos entediarmos. Isso deixa vocês exasperados? Melhor ainda, a ideia é essa. Eu sou um bostinha, um merda de um bostinha que vive no melhor com seus milhões aos 22 anos. Meu objetivo? Sacanear o mundo, inclusive você. Para mim, sacanear o mundo é a solução, a panaceia contra o tédio. Implicar, provocar, exasperar os hipócritas, os desclassificados, os intolerantes, os pretensiosos sem razão, os vizinhos, os burgueses, os pães-duros, os mitômanos, os medíocres incuráveis, aqueles que compram carrões a crédito, aqueles que falam de política, aqueles que tratam as garotas como putas porque não conseguiram transar com elas, aqueles que criticam os livros que não leram,

aqueles para quem a Igreja é tudo, aqueles que esfregam o dinheiro deles na cara dos empregados, aqueles que detestam a polícia, e chega, basta os piores. Possuo duas armas infalíveis para exercer minh a arte, a primeira é a minha inquestionável superioridade, física, intelectual, financeira e social, que arrasa totalmente meu adversário e rne torna invulnerável a qualquer tipo de ataque, a segunda é que estou pouco me lixando para tudo e não tenho vergonha de nada. Você acha isso pueril? Tenho minhas razões. Eu sacaneio o mundo porque o odeio. Eu o odeio por ele não ser o que eu gostaria que fosse. Sou um idealista que preza valores obsoletos: a coragem, a abnegação e a glória. Minha vida é uma busca por objetivos que não mais existem, meus antepassados eram heróis, eu não passo de um filhinho de papai, um rebelde sem causa, vou morrer nu m acidente com o Porsche ou numa overdose, quando na verdade gostaria de morrer em combate. Combater o quê? Num mundo onde Deus é o Sucesso Social, e as pessoas só são salvas no cinema.

Busco em vão em cada rosto uma fagulha de poesia, busco entusiasmo nos discursos, busco ideais, ou pelo menos idéias, mas as pessoas passam ao largo, elas andam apressadas, malvestidas, os olhos esvaziados por preocupações. Não posso fazer nada por elas. Não posso fazer nada por ninguém. Enlouqueci todas as garotas de Paris, três quartos delas porque nem mesmo as olhei, quanto às outras, aquelas que despertaram a minba atenção por serem bonitas, ou insolentes, ou prctensamenle inacessíveis, foi para a infelicidade delas. As garotas do l6ème vestem casacos de pele e usam relógios Cartier, choram por uma coisinha de nada e fingem orgasmos. Elas começam a namorar aos 14, tocam punheta aos 15 e chupam aos 16. Aos 17, perdem o cabaco para o filho de alguém e fazem a primeira plástica (nariz, lipoaspiração, peitos). Elas sofrem do complexo de Electra e de um ego superdimensionado, escutam uma música de merda, compram todas as mesmas bolsas e detestam seus pais. Aprenderam a ler na Voici, não se misturam com a plebe, passam o dia visitando as amigas e são incapazes de pensar. A única coisa que amam afora elas mesmas e o yorkshire delas é a grana.

Seus olhos transparentes são capazes de atravessar muralhas e inspecionam os sapatos que você usa, o seu relógio, descobrem as etiquetas das suas roupas enquanto elas acariciam o seu tronco, olham discretamente com o rabo do olho a cor do seu cartão de crédito, o modelo do Porsche que você tem e a posição da sua mesa na boate, aquilo que você bebe, a gorjeta que você deixou para o manobrista, conhecem o seu nome, sabem a profissão do seu pai, quanto ele ganha e quanto ele dá a você... São todas putas. Melhor para mim. Eu sou o desafio universal, o cara mais bonito e mais sedutor de Paris, o sonho de todas essas babaquinhas, que nunca pertenceu a n i n guém e que nunca pertencerá. Eu podia transar com todas elas. Mas isso não me diverte. O que me diverte é brincar com os nervos delas, torturá-las, fazer com que fiquem completamente lelés. Fiz disso uma arte (mais uma). E o pior é que, depois, elas me pedem que faça de novo, ficam de marcação cerrada no telefone, suplicando para tomar um café, um copo de vinho, por que precisam falar comigo, têm crises histéricas em público, dizem para todo mundo que estão apaixonadas por mim e que não conseguem entender o porquê de eu fazer tudo isso com elas.

O mais engraçado é qu e todas elas acabam criando a fantasia de qu e eu não transei com elas por excesso de respeito. Só transo com putas, gosto do trabalho bem-feito. Eu só transava com putas, até encontrá-la... Estou na m i n h a sala, sentado de cara para a noile e contemplando a cidade que se ilumina. Bebo uma vodca tônica e penso em Hell. Tinha ouvido muito falar de Hell, em termos tão contraditórios que acabei por ficar intrigado; diziam para mim que ela era estúpida, de uma estupidez que beirava a imbecilidade, em seguida, aparecia alguém que elogiava a inteligência vertiginosa dela, havia rumores de que era internada frequentemente, descobri mais tarde que eram falsos, me contavam as suas façanhas, seus discursos chocantes, tinham medo do mau humor dela. Mas todo mundo estava de acordo sobre dois pontos: ela era bonita e era louca. Eu a encontrei fazendo a ronda das butiques, ela soluçava na frente da Baby Dior, eu n u n c a soube por quê. Estava vestida toda de prelo e de uma beleza de fogo, fiquei dois meses enfeitiçado pelo olhar dela, mas não fiz nada

para re-vê-la. Eu não queria interferir no destino. Nós cruzamos um com o outro à meia-noite de um domingo, eu a levei para jantar no Calavados e ela cantou uma música de Ferré a respeito dos amores acabados me olhando dentro dos olhos como se os estivesse lendo. Daquele dia em diante, eu me fodi, estava preso, sem escapatória. Depender de alguém que não fosse eu, amolecer, me torturar, era tudo o que sempre temi. Passei minha vida atraindo a inimizade dos outros, isso para não acabar diante dessa situação abjeta de não ser amado quando queria ser. Por ser conscientemente odioso, eu mantinha a coisa sob controle, as pessoas me odiavam porque eu desejava que fosse assim. Hell me pegou e não foi de propósito. tudo o que ela queria era escapar, e pelas mesmas razões que eu: tinha medo de m i m , como eu a temia. Mas já era tarde demais. Banquei o bacana; o jatinho, o barco, o cassino. Milão, Deauville, Mônaco, não é que quisesse im-pressiona-lá, mas sim levá-la para longe de Paris, Onde rninha má reputação era onipresente (nunca a amaldiçoei tanto como naquela hora), tentando fazer o impossível para provar a ela que era sincero, que não estava armando urna cilada.

Finalmente, ela cedeu. Quanto tempo a gente passou naquela noite se beijando nos jardins do Carroussel? Durante seis meses, tudo correu às mil maravilhas, eu estava feliz, não há nada a dizer sobre esse período, são lembranças cuja simplicidade me dói até agora. Apenas ela e eu. Basla. E, então, saímos uma noite, o demônio tomou conta dela de novo e, a partir daquele in s ta n te , t u d o f ic ou de pernas para o ar, a gente começou a freq üe n ta r lugares insípidos que a atraíam e a deixavam ao mesmo tempo consternada, ela emergia satisfeita mas mortalmente ferida. Ela queria se sujar, tinha necessidade disso, mas isso lhe era mortal. Ela se enchia cada vez mais de porcarias, e eu também comecei, para não deixar que se afastasse de m i m e, também, porque precisava delas para aguentar tudo o que a gente bebia e suportar os lugares a que a gente ia. Eu estava lentamente acabando comigo mesmo, mas nunca a teria deixado. Eu a amava. Então ela foi embora. Seis meses de felicidade... minha lenta decadência... E uma dia a gente se descobre jogando sozinho. O outro tira suas bolas de gude, toma suas cartas, e você fica plantado lá, como um babaca, diante de uma partida

inacabada... Esperando. Porque é só isso que você pode fazer, esperar. Parar de esperar, isso seria dizer que acabou. Você espera em vão que ela jogue de novo os dados, acha que tem alguns trunfos que ainda não usou, os quais mudarão o curso do jogo. Mas você perdeu. Eu perdi. Não, ou estou perdido. Eu a amo... O tempo todo, sempre, a ponto de morrer. Eu a amo adormecida ou deprimida, eu a amo cheirada, embrutecida, degradada. Ela conseguia, não sei como, permanecer tão pura nas situações as mais degradantes, que me dava vontade de mo ajoelhar na frente dela. Faz quatro meses que acabou. Não sei o qu e dizer. Desde então, saio todas as noites, não controlo mais nada, estou cada vez mais doidão, não sei mais o que faço. Descolei uma lourinha, uma lourinha babaca, eu detesto as louras, racional, sem graça, com um desses rostinhos delicados de camundongo; a antítese dela. Nós transamos uma vez por mês, mal sei como ela se chama.

Diane. Sem qualquer graça. E eu a endeuso, a cubro de presentes caríssimos, todo mundo acha que enlouqueci. Afora isso, nunca saí com tantas piranhas, tran-so com elas sem camisinha, gozo na boca delas e me livro delas. tHá um mês liguei para Hell. Não aguentava mais. Usei o pretexto que voltava de férias, saber das novidades, uma bobagem qualquer... Ela chegou radiante de beleza e indiferença, mal escutava o que eu dizia, ficou o tempo todo olhando para os outros, então, sem nenhuma explicação, ela me puxou para fora até o meu carro e fomos para a casa dela. Por um instante achei que meu coração fosse explodir, que estava saindo de um pesadelo, que havia chegado para ficar para sempre com ela. Mas alguma coisa estava errada, eu tinha a impressão de que ela não era mais a mesma pessoa, que queria me macbucar. Transei com ela. Fiz com que achasse que estava apenas trepando com ela, quando na verdade queria gritar o quanto a amava. Em seguida, expliquei que estava loucamente apaixonado por Diane, que havia encontrado o amor da

minha vida, a mãe dos meus filhos e outras babaquices do mesmo quilate, ela fez como se estivesse cagando e andando. Tudo o que eu queria com isso era chegar até ela, ver brilhar a porra das lágrimas nos olhos dela, que ela chorasse, que berrasse, que fizesse uma cena. Mas ela se levantou cheia de marra e começou a acariciar meus cabelos, enquanto me demonstrava por a + b o ser desprezível que eu era. Eu a deixei. Não sei como descrever o vazio. Apenas os seus efeitos. Me agarrar à minha vida de babaca. Impotência. Saudades do passado. Tudo recomeçar, evitar os erros, que erros? Destinado ao vazio? Está escrito. Fatalidade. E todas essas babaquices. O menor gesto torna-se sem graça. Os olhos nivelados pelo chão. A tudo indiferente. Detestar os objetos. Me distrair, pegar um livro, assistir a um filme, uma hora ou duas de purgatório, e depois mergulhar de novo. Vagar por Paris, andar sem destino, Essas fachadas imutáveis que abrigam tantos amores baratos, essas existências bolorentas que me enojam. A gente... Em algum lugar alguém vive sem mim. O vazio nesta hora, e todos esses dias vazios que esperam por mim, sem que nada tenha im- portância para

mim, e por que, por que, por quê? E por que, quando a gente cessa de ser amado, a gente também não ama mais nada? Adormecer sem ter vontade de acordar, ou acordar com ela ao meu lado. Meu choro na avenue Georges-Mandel, entre a porta dela e o meu carro, alguns passos; e esta derradeira noite... que já pertence ao passado. Vê-la. Ainda mais bela, é porque acabou? Detestar os lugares; aquele quarto de prazer tornado hostil, desabitado. Partir. Porque é preciso partir. Mesmo se a gente não tem vontade. Partir porque é preciso. Como era insuportável, aquela cama que não mais me pertencia, Hell, que não me pertence mais. E a esperança invasora, persistente, agachada no canto da alma, que a gente reprime sem conseguir, sem sucesso, que a gente execra, e que vai diminuindo por conta própria, até o último segundo, até o adeus, até o elevador. Passar a porta. A rua. Em seguida, mais nada. O vazio.

Descanso meu copo vazio na mesa de centro. Olho para a torre Eiffel apagada. Tocam a campainha, não sinto vontade de ir abrir a porta. É meia-noite meia, não vou me trocar, tenho um encontro daqui a dez minutos no Nouveau Cabaret. Desço até a garagem, pego o meu carro e vou voando até a boate. Já está lotada; atravesso a multidão e me en- ecntro com os outros, sento-me, sirvo-me de uma bebida em meio a este amontoado de gente, esta gente misturada, esta promiscuidade de corpos. Desde a autoflagelação que o homem nunca infligiu suplício igual com tanta satisfação, e fico me perguntando o porquê dessa necessidade irresistível que me fez entrar febricitante no meu carro e me fez partir com o coração excitado para ficar seis horas de chofre vagando num porão debaixo de uma luz ofuscante, ou de uma obscuridade que esconde as feiúras, embrutecido pelo esporro insuportável de uma pretensa música, a qual só serve como barulho de fundo para tomadores de anfetaminas doidões. Os códigos de comportamento do lugar: pagar por uma garrafa de birita, mais cara vinte ou 25 vezes neste bordel que na mercearia da esquina, pôr esta garrafa em cima de uma mesa, que é menor que o lenço no meu bolso, mesa

sobre a qual estão os copos, cada copo correspondendo a um tamborete e, em cada tamborete, um cara de saco cheio que pagou pela garrafa. O espaço vital de um indivíduo é determinado neste planeta por uma garrafa. M u i t o bem. E é preciso vê-los mostrar os dentes quando alguém se aventura a chegar à mesa deles sem ser convidado. Eles mordem quando é a garrafa que é atacada. Setenta e cinco centilitros de vodca a 1.200 francos, sabendo que misturada com suco de laranja ou Schweppes, isso equivale a cerca de vinte copos, sendo então sessenta francos o copo, dez goles n u m copo, a gente chega a seis francos o gole... Não existe maneira melhor do que essa de se animar, mas o que é que vocês querem? Aqui, as regras são frouxas à vontade sob a condição de respeitar aquela que tem força de lei. Pagar. Pagar para entrar, pagar para sentar, pagar para beber, pagar para transar, pagar para mijar. Ah, sim! Vocês são obrigados! Nada pior que o olhar da madame pipi quando, ao passar diante da cumbuca dela, você se esquece de fazer tilintar uma ou duas grandes moedas. E não tente disfarçar com centavos, essas moedinhas são mais leves e produzem assim um barulho mais

agudo. E a madame pipi, que em vinte anos de carreira teve tempo de classificar todos os valores com seus barulhos correspondentes, vai franzir as sobrancelhas e sair por aí contando histórias sórdidas a seu respeito para a boate inteira. Pior, ela vai procurar o leão-de-chácara quando você estiver esticando tranquilamente uma fileira na tampa da privada, fazendo uma marcação cerrada uma vez que você não está se comportando como deve. De forma que nada é de graça, tudo se paga. A louraça que fica sorrindo para você pelas costas do maridão, não é para você que ela dirige aquele sorriso deslumbrante, é para o gargalo dourado da magnum de champanhe Cristal que ultrapassa o balde de gelo colocado à sua frente. E aquele homem de ombros firmes não é o maridão, mas seu cafetão. E, contudo, você vai achá-la linda, vai ficar encantado, fora de si, no sétimo céu! (Você bebeu um pouquinho.) Ela estava lá, era uma loura, ela sorria. Você mesmo faz uma tentativa de careta amável e lhe oferece uma taça. Em algum lugar no fundo de você, espera que ela não vá aceitar e que poderá fi car sonhando em ter com ela uma grande mansão branca em Montmorency, cheia de crianças barulhentas, acrescida de um cachorro qu e está perdendo os pêlos. Mas, em algum

lugar dentro e apesar de você, você espera com mais v o n t a de ainda que ela aceite batendo os cílios e que tudo vá dar certo para levá-la até a sua casa e trepar com ela. Então ela aceita a sua taça e o maridão cafetão se despede alegando um compromisso e ela se senta na sua mesa, com o resto dizendo respeito apenas a você. Aquela boate é o mundo em miniatura. Em tudo o que ele tem de mais vil, de mais baixo, sustentado por um mercantilismo de bundas. A bunda das piranhas é o passaporte delas, elas precisam, portanto, mostrá-la para os bundões que pagam as garrafas. Com uma carteira polpuda que se avoluma no bolso direito. Cu, grana, eu, grana; isso me dá vontade de vomitar. O clientelismo é sempre atual. Os parisienses de hoje carregam seus puxa-sacos de Porsche, os regalam no Diep, no Barfly, e os chamam pelo doce apelido de parasitas. Estes formam uma legião; manecas de plantão, suburbanas gostosas, patricinhas na pindaíba... A escória do mundo da noite, que por si só já não é grande coisa. Vil simbiose; em troca de uma vida que não teria condições de sustentar sozinho, o parasita, secundado por uma horda de seus iguais machos e fêmeas, cerca o rico homem, feio e insuportável, e satisfaz seu gosto

pela dominação que um carisma inexistente o impede de exercer sobre seus iguais, engolindo sapos de manhã à noite, senão, adeus vitelas, vacas, porcos, vinhos... O bicão parasita é facilmente rcconhecível pelo fato de que ele nunca se senta, está sempre vestido impecavelmente, mas preste atenção nele entre uma semana e outra, ele nunca muda de roupa. Ele conhece todo mundo na boate (é melhor se garantir com um pé em cada mesa), conhece todas as putas (eles pertencem ao mesmo ramo), ele cheira à sarjeta de onde saiu até os ossos... Fornecedores interinos, ótimos batedores, organizadores de jantares de cretinas e de saideiras com putas, não basta fazer presença, é preciso descolar alguma coisa para ser útil. É preciso vê-los surfando na onda do dinheiro tentando conseguir alguma espuma. Que nojo. Depois de ficar avaliando a pista de dança inteira da boate, enquanto conta mui ta vantagem, o bicão volta para o seu quartinho vagabundo de empregada. Vai se deitar para dormir contando as rachaduras no teto. Não consegue por causa de tudo o que enfiou no nariz por conta da princesa. Esse é o milagre da noite, quando um deles consegue descolar uma herdeira. Há dois anos minha irmã aprontou isso comigo, eu me lembro dos esforços caricaturais do sujeito para

fazer bela figura na minha sala, ainda bem que minha mãe estava em Deauville e não presenciou esse pastel arrastando seus Nikes fodidos sobre os seus tapetes persas... Minha irmã tinha ficado caída por ele, isso era o pior. Mi nh a irmã com um ex-fornecedor, alguém que esteve em cana, que dirigia um Smart alugado, ou um 993 emprestado e que contava vantagem a respeito da agência de maneca que tinha, segundo ele, criada uma semana antes de conhecer Gabrielle. E ela, a pobre-coitada, que caía na história... Meu pai deixou a coisa correr até Gabrielle pegar o cartão Amex preto dele e correr até a Rolex para comprar um Daytona de cem mil para esse pastel. Papai, então, pôs a cabeça dela no lugar e ameaçou mandá-la imediatamente de volta para o internato, decretando que ela não ganharia nenhu ma Rav4 pelos seus 18 anos. Ora, se exis-tem duas coisas que Cabrielle idolatra acima de t udo são os carros e exasperar suas amiguinhas. Graças a esse carro de merda, ela tinha como matar dois coelhos com uma cajadada, de forma que acabou por renunciar ao seu dom-juan de esquina, que se mandou com o rabo entre as pernas para paquerar outras patricinhas.

Ele arruinou a ex-melhor amiga de Hell, que tentou se suicidar e se mudou para Punta del Leste. Se deu bem. A boate inteira é uma esparrela, nas mesas da pista, as garotas são de fato turbinadas.Todas parecem ter saído de um anúncio de Calvin Klein, com menos viço e, infelizmente, mais falantes. Minha idéia da perfeição: uma maneca muda. Lindas, gostosas e burras, a harmonia transcendente de seus corpos de deusas só se equipara à venalidade delas; seus olhos brilham como os do Tio Patinhas quando percebem na obscuridade da boate um cartão de crédito dourado. Além do mais, elas sabem muito bem que ouro e prata estão dificilmente separados um do outro, e que um cartão Gold rima quase sempre com têmporas prateadas. Não é que isso importe... "Quantos anos você tem?" "Sessenta e dois." "Me diz com que você anda, e eu direi quem você é." "Bentley." "Você é o homem da minha vida." Piranhas. No centro das mesas, está a pista; angústia olfa-tiva e angústia social. As peruas ficam necessariamente com vinte centímetros a menos, e o que perdem em altura, ganham em circunferência... Estão reunidos lá todos aqueles que escaparam à vigilância dos homens de branco, que não entendem patavinas do que está acontecendo e que se reagruparam por instinto

gregário. Belo rebanho de babacas! Eles fingem animação bem no meio da pista, expostos aos olhares dos VIPs que ficam cheios de si se sentindo bacanas. Entediados, todo mundo fica tentando mostrar a todo mundo uma cara sorridente, eles dançam, riem, a gente fica indiferente. As bocas podem se esticar o quanto puderem de uma orelha a outra, os olhos permanecem vazios. A gente se esforça a qualquer preço, como a gente se sente o máximo no Cabaret! Meu sonho seria que a música parasse de chofre e, no lugar dela, ouvíssemos todos os pensamentos. A respeito uns dos outros, os ódios dissimulados, os segredos vergonhosos, quem quer transar com quem, quem transou com quem... Visto que você não tem condições de imaginar a que ponto roda essa ciranda, todo mundo transa com lodo mundo, é uma gigantesca suruba! E isso fica longe de ter alguma importância, pode crer: tem garotas com quem transei a quem mal digo boa-noite. Dizer boa-noite, ritual lamentável! Ao chegar a qualquer lugar, a gente perde uma meia hora indo estalar dois beijinhos em faces hipócritas que pertencem a babacas para os quais a gente caga e anda, para quem não se tem nada a dizer; que, de qualquer jeito, vimos ontem e voltaremos a ver amanhã. Não suporto mais essa multidão ridícula. À primeira vista, ela é impressionante, os caras sarados, as gatas bem-feitas, com esse

cheiro de grana de origem suspeita. Mas quando se olha mais de pertinho... As garotas são mais feias do que bonitas, emperiquitadas em vestidos de maneca que as tornam grotescas. Esses caras cheios de si, a cabeça posicionada a 45 graus, a testa ainda mais altiva que os olhos, encarapitados em cima do pangaré da importância artificial deles. É só tirar o terno Hugo Boss pendurado nos ombros, a Mercedes, o Rolex e não vai sobrar muita coisa desse ar imponente. Em vez disso, você terá um grande magrelo pelado, de olhar vazio e ar insignificante, bastante desamparado de se ver sem sua panóplia de homem poderoso. Já faz duas horas que estou aqui, e estou de saco cheio. Estou de saco cheio de fazer de conta que estou me divertindo, de arvorar um ar bem-humorado que estou longe de ter. Enchi o saco desses olhos ávidos que ficam espreitando meu rosto e se detêm sobre meu relógio Audemars Piguet. O couro em cima do meu assento está rasgado e o estofamento branco está saindo. Isto é o Cabaret, estofo de má qualidade coberto com couro de má qualidade. Simbólico. Tenbo uma espécie de tomada de consciência, sou tomado por uma única vontade, ir-me embora, a solidão é preferível a este fingimento de festa. Ficar só e pensar em Hell.

Os olhos bovinos dos meus amigos exprimem a mais completa estupefação. - Mas afinal de contas ainda são duas e meia da manhã e está bombando! "Está bombando", bando de imbecis. Eu me mando, caio fora deste lugar de perdição. Um último olhar na boate bolorenta, e a vejo. Vestida como uma puta com o cinto de couro que eu dei de presente, ela se inclina diante da maré humana sentando-se desengonçada num tamborete, ela não pára de fungar. Está entre Julian e Chris e abraça Victoria, a amiguinba dela que não suporto. Ela ri, bate palmas, bebe de um gole a metade do copo, os cantos da sua boca descem em seguida e, por um instante, antes que recupere sua máscara de alegria, percebo a expressão do desespero nos seus olhos velados. Sou o único que percebe. Por um instante, sinto vontade de ir até ela e de tirá-la deste lugar, mas não consigo. Vou embora. Sem me despedir, sem me virar para trás. Subo as escadas e passo pela porta. Uma lufada de ar fresco bate na minha cara. Eu o inspiro com volúpia. Olho para o céu

pensando em todos aqueles que estão dormindo e fico muito contente de ir me juntar a eles. Acendo um cigarro. Descubro um significado novo em cada um dos meus gestos. Sinto-me livre. O barulho desarticulado de meus pés no asfalto gelado, a claridade dos postes e dos restaurantes ainda abertos. O manobrista me pergunta o que há de errado. Eu dou cem paus para ele, uma resposta mais do que suficiente. Esboço um sorriso quando ele me dá, boa-noite. Me sento ao volante do meu carrinho na calçada defronte, duas putinhas ficam espreitando o jovem motorista de um Porsche, eu mesmo. Piranhas vagabundas! Passo por cima de uma poça e, de passagem, dou um banho nas duas. Subo pela rue de Rivoli fazendo o motor rugir. Tirei os meus CDs de costume, piratas que eu trouxe de Ibiza, discos do Buddha, os embalos me deprimem, em vez disso, excuto a gravação de Cruel intention, n° 9. Foi Hell quem me deu este CD de presente. Eu o ponho para tocar e não me canso de ouvi-lo. Triste. Eu também estou. Mas não só triste. Estou calmo, como fazia mu i to tempo que não ficava. Paris desfila diante dos meus olhos que se abriram de repente. Decido não ir já para casa, mas dirigir pela

capital.Três horas da madrugada. Posso pisar fundo na mais completa segurança. E só tomar cuidado com os canas. Eu amo Paris. Os prédios imponentes, uma sucessão de raios brancos numa cidade que nunca está complelamente escura. Olho à mi nha frente. São poucos os apês iluminados. Uma visão de quadros e espelhos. Vontade de invadir esses lares que não são os meus. Será que a gente lá é feliz? Estou andando a 150. Nã o sei do que estou fugindo, nem atrás do qu e estou correndo. A velocidade me inebria. Amanhã, tudo vai mudar. Estou de saco cheio, não aguento mais. Perseguir todos os dias um objetivo inexistente, me eutorpecer, cheirar, jogar, transar, sair, quero romper com esta engrenagem infernal. Amanhã, paro com a cocaína e tomo coragem para fazer alguma coisa. Quero ter uma razão para me levantar de manhã. Amanhã, vou me livrar dessa altivez babaca que não serve para nada e vou até ela confessar a verdade, dizer como eu a amo, que nunca deixei de amá-la. E, se ela cagar e andar, pelo menos eu disse. E então poderei fazer algo de novo, parar de me torturar, viver... Já está mais do que na hora. E se ela não cagar e andar... Amanhã não será

igual a ontem, como hoje, como todos os dias perdidos da minha miserável vida. Quem sabe amanhã estarei com Hell. Um sinal vermelho. Place de la Concorde. Nunca tem ninguém. De qualquer forma, não tenho como frear. Vou rápido demais. Um carro preto aparece à esquerda. Ele também está pisando fundo. A parte mais bonita da canção. Só tenho tempo de aumentar ao máximo o som antes de sentir meu pára-brisa explodir, minha porta explodir, e eu... Amanhã teria sido um outro dia... parecido.

12 Eis que chega o tempo em que, no caule virgem... Quatro horas da manhã, a gente está saindo do Queen e estou doidona. Eu não podia ficar sequer mais um minuto naquela boate de merda, gente demais, aquele calor

insuportável, só havia caras agressivas, todos esses babacões que só pensavam numa coisa: me comer, aquele produtor de fi l me pornô qu e me perseguia mostrando o pau e oferecendo uma nota de q u i nhentos. A totalmente pinel, e todos os piores cafajestes de Paris bebendo, cheirando e contando vantagens em cima de três mesas, e Chris deu um grama para a Victoria, é normal, ele e o namorado dela, e fomos as duas esticar (o grama) no banheiro, o pó estava amarelo e malhado com não sei o quê, de forma que estou com as mandíbulas tão contraídas que tenho dificuldade em falar, cinco pessoas convidaram a gente, Victoria, Lydie e eu, para uma saideira, mas a gente berrou com elas, já que não somos o tipo de garota que se mete em saideiras, e fornos embora com Chris e Julian encontrar com um dos amigos milionários dos dois na suíte dele no Ritz; na última hora, o pai de Sibylle, para quem eu t i n h a pedido pó a noite inteira, me passou uma pedra enorme q u e escondi, decidindo não contar nada nem pra Victoria, nem para Lydie, senão elas iam cheirar TUDO e não deixar NADA p ra mini. Estou ligadona. Victoria também. Lydie também. Cada flor se evapora como um incensório...

A gente sai do Queen, o ar fresco me deixa um pouco lúcida, eu me acalmo. Acho que me acalmo. Toda vez que cheiro, fico me dizendo que foi a última vez, porque fico terrivelmente paranóica, e recomeço todo dia, recomeço, recomeço. Neste instante tenho a impressão de me controlar, isso porque saí da boate e porque estou com amigos que não me querem mal, mas se cheiro mais, não controlo porra nenhuma, e vai acontecer algo de HORRÍVEL comigo, não sei o quê, seria incapaz de dizer o quê, mas tenho MEDO, e Julian segura o meu braço e me leva até o Warwick, onde o carro dele está estacionado, e Lydie te m vontade de me MATAR, sei disso, tenho certeza disso porque ela está apaixonada por Julian, que transou com ela ontem á noite e que está pouco se lixando para a cara dela. Não faz muito tempo, bebi um coquetel chamado screaming orgasm, mas não tenho condições de me lembrar onde foi, e fico me perguntado como é que o pó, uma substância, pode exercer um efeito nos meus pensamentos que são abstratos. De qualquer jeito, estou cagando para o Julian, ele é um babaca, um drogado e ele quer me FODER.

Victoria e Lydie estão atrás da gente, não gosto que elas fiquem atrás da gente. Enquanto o manobrista tira o carro de Julian, um enorme Mercedes quase nos atropela, dois caras pinto-sos, 25 anos, tenho certeza de que eles fizeram isso de PROPÓSITO. Victoria se manda para cima do carro, arranca o casaco de couro vermelho dela, se esparrama em cima do capo com seu vestido comprido, cola os peitos no pára-brisa e grita: - E aí, os gatos querem me levar para casa? O carro arranca, o que lança Victoria no ar, ela caí em cima de mim e eu a seguro do jeito que posso, mesmo que não sinta a menor vontade. Uma vez que percebo Chris ficar pálido e que eles vão acabar por nos largar ali por conta das babaquices dela. Julian senta no volante de um lindíssimo ML 55 AMG com a placa MAD75, fico me perguntando onde foi que ele; descolou o carro, já que não t e m um tostão, pergunto isso para ele, ele fica pu to e não me responde e, de qualquer jeito, quero que ele se foda. A gente se instala, Victoria, que vocifera ao meu lado, me empesteia com seu bafo de uisque e seu perfume Mugler, forte demais e desvirtuado pela fumaça e o champanhe que encharcam as roupas dela.

Os ruídos e os perfumes circulam no ar da noite... Não sei do que falamos até chegar ao Ritz, só me lembro de Victoria sacudindo a bolsa Fendi dela enquanto berrava: - Olhe só para este belo objeto de design italiano! - Cale a boca, Victoria, CALA A SUA BOCA! - Vá se foder, sua PIRANHA! - Hell disse para você calar a boca, Victoria, então FIQUE CALADA! Em seguida, Lydie abriu a porta com o carro andando na frente do Gucci e tentou descer, enquanto Victoria e eu caíamos na gargalhada, e Chris cheira pó usando uma chave como pá, e a gente perturba de maneira vergonhosa a serenidade da rue Saint-Honoré. Acendo um Lucky Strike, esses cigarros horríveis que me venderam no Queen. E de repente esta revelação atroz que põe tudo a perder, mas da qual estou plenamente convencida e nada nunca mais será PORQUE A FELICIDADE NÃO EXISTE. Place Vendôme, a gente rola para fora do carro e estamos pouco nos lixando para o olhar dos manobristas. Passo pela porta que roda sem problemas e nem um só músculo da cara do a mesma coisa depois disso: SE OS RICOS NÃO SÃO FELIZES, É

recepcionista se mexe quando Chris diz a ele o número do quarto e um nome que parece ser uma senha: Derek Delano. A música do elevador não tem nada a ver com o ambiente, berro que o Matisse no corredor é falso e que estão gozando com a nossa cara. Nós adentramos uma das mais belas suítes do hotel; trezentos metros quadrados de dourações, parquês e espelhos, e a vista para a coluna Vendôme na praça me deprime. É o mordomo do senhor do lugar que nos recebe, ele se apresenta como Mirko e nos informa que Derek Delano está dormindo e não deve ser acordado. Em seguida abre uma caixa monogramada na mesa de centro, eu nunca vi tanta cocaína na minha vida. Enquanto ele esmaga as pedrinhas com um cartão Amex negro, tenho a oportunidade de observá-lo à vontade, ele é H O R R O R O S O , mais nenhu m sinal de pupila nos seus olhos azuis aguados, tem enormes bíceps, uma cara torcida, dificuldades na fala, engole a metade das palavras e se esquece de inserir os verbos nas frases. Nós nos instalamos. É a confusão; tem Lydie que manobra para ficar próxima de Julian, Victoria dançando no

meio da sala. Mirko que continua a bater ardentemente o pó e Chris procurando por copos limpos e garrafas cheias. Valsa melancólica e lânguidas vertigens. Ligo para o room service e peço um Big Mac, ouço, do outro lado da linha, o recepcionista engolir em seco e me dizer que é impossível, peço então umas bobagens: maços de Marlboro Light, framboesas, champanhe Cristal rosé e caviar branco, que eles não têm, que não sabem nem o que é, eu ataco de Beluga. Mirko, que acabou de bater dez gramas de cocaína, se dá conta de que deve ser certamente o bastante para seis pessoas, ele se levanta e põe Just a littlee more love, o CD de David Guetta. Geme o violino como um coração aflito. Começo a entrar numa deprê. Em ambientes assim, a excitação chega ao nível da insanidade, sinto meus nervos tensos, meu coração bate rápido demais, um gosto amargo invade as minhas mandíbulas trancadas e eu levanto meus olhos para o céu em busca de ajuda. O céu está triste e belo como um grande altar.

A única coisa que encontro é um enorme lustre de cristal com pingentes. A chegada do room. service interrompe minha bad trip. Eu não tinha a menor vontade de caviar, pego um maço de cigarro e acendo um, enquanto observo Victoria que, esquecendo sem dúvida que está namorando Chris, cavalga Julian com esporro. O seu sutiã escapuliu para fora do vestido e este se abriu Na excitação do momento, desnudando inteiramente suas coxas um pouco musculosas demais. Eu não estava com vontade de vir. Um coração terno odeia o vasto vazio negro! Observo Lydie, que perde a cabeça, já que, sendo traída pelo ídolo, fica sem saber na frente de que santo vai se ajoelhar. Safada, tenta uma reaproximação com Chris. Ela está de joelhos, ele em pé, ela põe as mãos nos quadris dele e levanta os olhos na direção dele. De cara fechada, ele se livra dela com um movimento. Sinto vontade de rir. Só vontade. - Victoria - pronuncio suavemente, ali tem pó. Ela dá um pulo, descabelada e quase pelada. - Onde? Ela se dá conta de Mirko esticando as fileiras. Pula uma poltrona que está no caminho e cai de joelhos, rasgando o

vestido, antes de mergulhar o nariz em cheio dentro da mesa. Fica toda lambuzada. Escuto ela fungar avidamente. Lydie vai atrás dela e, durante alguns minutos, ninguém abre a boca. Elas estão dobradas em dois, com a nuca agitada, em plena atividade. Victoria mudou o seu alvo, quem tem o pó é Mirko, é para Mirko que ela deve dedicar suas atenções invasoras. Por que ela quer sempre mais e é capaz de fazer qualquer coisa por um miserável grama. Ela acaricia, apalpa e dá beijinhos nesse quarentão nojento, juntamente com exortações emocionantes, pedindo que ele solte as reservas de cocaína. Ele faz objeções inaudíveis. Atrás de Victoria, Chris está atarefado com todos os vestígios de uma orgia. Ele esvazia os fundos de garrafa, uísque, gim, tequila, martíni branco, e, entre um copo e outro, cheira uma fileira. Victoria arranca a garrafa de Cristal da minha mão e vai levá-la para ele, ele faz um gesto de recusa e, feliz da vida, ela enfia o gargalo na boca, se interrompendo de vez em quando para articular, a boca cheia de espuma, protestos incoerentes de ternura. Lydie não perde seu rumo, cia se joga sobre Julian. Ele se livra de seu abraço indesejável, atravessa a sala e se instala na poltrona ao lado da minha. Pergunta para mim qual é o

perfume que estou usando. Estou

usando Allure

da

Chanel, diz que combina muito bem comigo, resumindo, ele constrói uma frase para mim e eu respondo que não tenho a menor intenção de transar esta noite, e com quem quer que seja. Lydie, com a cara deformada de ódio, insulta Julian e diz "vai tomar no cu, vai tomar no cu, vai tomar no cu", ela é babaca e vulgar, e digna de dó, e está me enchendo o saco, e eu estico duas ou três fileiras. Os ruídos e os perfumes circulam no ar da noite... Começo a não conseguir suportar mais. O único interesse nesse gênero de noitada está em a gente estar ligadona para ficai ligadona em alguém. Eu já estou suficientemente ligadona assim e, se continuo, não sei como é que vou acabar, mas não vou parar enquanto houver cocaína em cima da mesa. Cheiro tudo, e Victoria pula em cima de mim furiosa, não sobrou mais nada dos dez gramas e Mirko não contava sem dúvida com cheiradores iguais à gente. Victoria leva Mirko para um quarto e explica que, se Deus criou a cocaína, foi para que fosse distribuída igualitariamente entre todos os seus cordeiros. E eu o escuto berrar: "No coke anymore, agora, suruba everywhere"

Dou de ombros e decido conhecer o lugar, entro numa outra sala e piso em cima de alguma coisa... É a Lydie, eu não a vi, uma vez que a sala está mergulhada na escuridão, ela jaz no assoalho como um monte de merda largado lá por acaso... Meu salto, ao penetrar no tornozelo dela, deve ter sido a gota d'água, uma vez que, no momento em que estou prestes a pedir desculpas, um grito superagudo perfura os meus tímpanos, os quais já haviam sido cruelmente massacrados no Queen, logo seguido de uma sucessão de soluços roucos. A pobre coitada levanta na minha direção um rosto de parca, os sulcos escavados pelos seus transbordamentos lacrimais em meio à maquiagern pesada que o torna grotesco, a gente poderia dizer que é um palhaço infeliz. - VOCÊS QUEREM TODOS ME MATAR! Eu a deixo com a paranóia dela e continuo o meu passeio, entro no banheiro. A jacuzzi está funcionando, mas não tem ninguém dentro da banheira, eu me sento em cima da pia, com as costas viradas para o espelho, e balanço minhas pernas no vazio. Vou acabar esta noitada sozinha.

Eu o havia percebido esta noite. Só por um instante. O instante em que ele saía daquela boate de merda aonde fui somente para me encontrar com ele.Tinha ido até lá para dizer a ele que o amo, apenas eu te amo e voltar. Eu o v i , tive vontade de correr até ele... Mas as suas costas que se afastavam de mi m tinham algo de fatal. Fiquei pregada no chão, com a taça de champanhe que tremia na minha mão, e o deixei partir em sonho dizendo a mim mesma que assim era melhor para ele. Estou perseguida pelo nosso último encontro. Tenho a impressão de haver cometido alguma coisa de irreparável. O lusco-fusco, claro-escuro, todos os sentimentos proscritos. Minhas roupas jazem espalhadas em volta da cama. Eflúvios de perfume emanam do travesseiro, cheiros que não lhe pertencem. Ali se mi stura m confidências i mportunas, nós fizemos amor sem alegria. Na fria obscuridade, ele se oferece a mim, eu me calo. Intimidade de uma hora, qu e se evapora ao amanhecer, da mesma forma que as volutas desse cigarro pós-volúpia, cuja ponta rubra mal ilumina a cena lamentável de um amor moldado no ódio. Barulho de fundo, um homem, uma mulher cantam juntos sua paixão que nós emporcalhamos, com nossa malfadada

união, fazendo o amor sem alma. Mentiras corajosas que me matam, pronunciadas nesta cama que assistiu ao nascimento de nosso amor perdido. Lá fora e aqui dentro, é a sombra e a noite, busco o papel de uma mariposa acabada, quero ver sangrar o coração dele. Ele parte; cabeça altiva, e fico com o coração exangue. Na Paris adormecida, apenas ressoa o barulho das lágrimas que pranteiam a inconsistência da minha vida... meu desespero... desespero constante por alguns instantes de alegria... Andrea... Um coração terno que odeia o vasto vazio negro... Do passado luminoso recolhe qualquer vestígio... A música se cala e, de repente, cresce a canção Cruel intention n°9, o hino de nossos primeiros tempos, de um amor que eu ainda não tinha transformado em vitima. Penso nele sereno, intrigado, atraído, a mágica do primeiro beijo que atravessa minhas lágrimas proféticas. Penso na fagulha que brilha nos olhos dele, sua voz, seu jeito de menino contrariado, suas cóleras não controladas; não estou mais no purgatório nesta suíte com toda essa gente ensandecida, à espera de reencontrar minha cama e minha aflição, estou na sala da minha casa, há um ano, e leio a

empatia nos olhos de Andrea, fascinado pelos ecos tristes que prevêem nosso fim. Geme o violino como um coração que se aflige. A luz se apagou. O sol afogou-se no seu sangue que enrijece. E Julian que acaba de entrar no banheiro e se aproxima de mim. Ele me toma nos braços, e eu penso em outros braços. Onde está meu amor? Será que dorme como um bebê na sua enorme cama branca? Ou, assim como eu, existem braços que o apertam sem que você consiga se desvencilhar, uma boca que procura a sua, uma respiração na qual tenta buscara minha? Feche os olhos e pense em mim. Seu rosto contra o meu, seus cílios roçam minha testa. Reconstituo seus traços às cegas enquanto os acaricio suavemente. Seu nariz. Seus olhos. Sua boca. Sua boca... Nossos lábios se tocam num inefável beijo. Cada vez mais rápidos, cada vez mais intensos. Você me carrega e me leva contigo. Tenho os olhos cerrados, mas isto não me atrapalha ao arrancar os botões da sua camisa acariciando-o ali com minhas unhas. E como a cada vez... Jogo minha cabeça para trás e rio, um riso de alegria, de felicidade por estarmos um contra o outro. Nossas pernas entrelaçadas, seus lábios em brasa no meu pescoço. Uma das mãos nos seus cabelos, a

outra no seu cinto e que o atira, junto com o resto, para o outro lado do seu quarto. Tenho pressa, e você também. Faço contorções indescritíveis para me livrar de meu jeans sem interromper o beijo.Tenho a sensação de que, se o perco por um instante, vou perdê-lo para sempre. "Eu te amo", gritam meus músculos tensos pelo esforço que faço para que você alcance o gozo absoluto. Possuo-o inteiramente, e sou sua, e sou feliz. Abro meus olhos. O rosto de Julian, ofegante, a dois centímetros do meu. Estou sentada na borda da jacuzzi, ele está em pé. - Me larga! Me larga! - Quem grita sou eu. Ele não entende nada. Pega os troços dele e

desaparece, fechando a porta atrás de si. Estou pelada e sentada nesta jacuzzi de merda. Vejo a aurora que surge por de trás das persianas abaixadas. Meu sonho despedaçado entope minha garganta e explode em lágrimas ferventes. Não faço idéia de quanto tempo permanecerei ali, a chorar em silêncio, a contemplar meu desespero. Pego a pedra de pó no bolso dos meus jeans, preciso de algo para esmagá-la. Ao lado da pia, tem uma espécie de bisturi. Só preciso esticar minha mão. Meus dedos se

fecham sobre a lâmina afiada, o cabo é grosso. Posiciono a pedra e bato o pó com todas as minhas forças. Ele explode. Esse pó branco que não quer dizer nada. A dor afrouxa meus dedos crispados, o instrumento cai no chão com um barulho metálico. Abri a palma da minha ruão, meu sangue é tão rubro quanto um vestido do Valentino. Ele escorre, desenhando um arabesco ao longo do meu antebraço. Um sol vermelho emporcalha minha droga imaculada. Eu o vejo como um sinal. Não tenho canudo. Uma gaveta cheia de notas verdes. Enrolo delicadamente uma delas. Nós cheiramos tantas vezes juntos. De certa forma, é um pouco como se estivesse ao seu lado. Introduzo o canudo na mi nha narina esquerda, em seguida, na direita. Depois na esquerda... Cheiro tudo.Tudo... Com um pouco de sorte, consigo morrer . Sento-me de novo. Um segundo. Um segundo durante o qual me sinto tão bem. Só um. A saciedade, o esquecimento. Levanto a cabeça. O espelho defronte a mim. Esta garota com os olhos desvai- rados, uma nota amassada na mão, sobras de cocaína na testa, os cabelos embaraçados... E minhas lágrimas que não pararam de escorrer. A garota se levanta, enfia um jeans, fecha um cinto

tacheado, se veste de novo, acende um cigarro. Ela oscila nas suas pernas vacilantes. Sai do banheiro. Eu atravesso o quarto, Lydie ainda no mesmo lugar, adormeceu. Parece uma menina. Gritos de orgasmo. Victoria... e Chris. Ou Mirko. Abro a porta do outro quarto. Os dois. Minha holsa ficara na sala. Eu a pego. E a canção que continua a tocar. Minha garganta é de mármore e metal. Meus passos fazem um barulho monstruoso no parquê. A porta bate e o elevador está lá. O hall, a recepção, a saída, estou do lado de fora. Ninguém. Procuro um táxi. Nenhum táxi. O amanhecer é gelado. Meu celular toca. Tenho um recado. O que é que Gabrielle pode querer comigo a esta hora? Uma angústia surda aperta a minha garganta. Meus dedos entorpecidos pelo frio não conseguem apertar a porra do teclado. A mensagem finalmente aparece. Uma frase. Só uma. Eu a leio. Eu a releio. Já chorei demais, não consigo mais. Desabo. Place Vendôme às sete horas da manhã. Uma garota que morde ajoelhada sua mão ensanguentada. Que berra. Que berra um pranto incoerente, como se o desespero tivesse se materializado. Se materializado n u m grito. Eu grito o fim de um sonho, grito o fim do mundo. Grito o fim do homem que amo e que dançou como um babaca, saindo

da boate, no carro dele de quinhentos mil paus, que nem mesmo fora concebido para resguardá-lo. Morto na hora. Morto. Grito a atroz, realidade desta vida de merda que dá e toma. Grito aquilo que vivemos juntos, aquilo que ainda poderíamos ter vivido. Grito o que ele é. Era. Aquilo que ele poderia ter sido. Grito a minha miséria, meu amor, meu amor, meu amor... Tua lembrança brilha em mim como um ostensório.

13

A humanidade sofre. O mundo é uma imensa planície após uma carnificina, amontoada de moribundos que gemem e se contorcem. Os homens, "as pessoas" vagueiam, anônimas, e dissimulam uma ferida aberta por baixo de seus ares impassíveis. A. felicidade... O homem só percebe as aparências, aquelas que seu próximo tenta oferecer. Mas não fique com raiva da felicidade do vi-zinho. Ele é pedófilo, heroinômano e esquizo-frênico. E, ainda por cirna, fica

fora de si com a imagem de absoluta harmonia que você e a sua família oferecem sempre para ele. Ele ignora que a sua mulher bate em você e que os seus fi- lhos são de outro. A felicidade é uma ilusão de ótica, dois espelhos que refletem entre si a mesma imagem ao infinito. Nem tente buscar a imagem original, não existe nenhuma. Não diga que a felicidade é efêmera. A felicidade não é efêmera. O sentimento que se sente e é tomado como felicidade quando se está apaixonado, quando se teve sucesso em alguma coisa, é uma liberdade condicional antes de conhecer a pena: o ser amado não se parece com nada, o que você conseguiu não serve para nada. Isso não a faz infeliz, mas consciente. A felicidade não acaba, ela apenas se retifica. Nós inventamos a luz, para negar a escuridão.

Colocamos as estrelas no céu, plantamos postes a cada dois metros nas ruas. E lâmpadas dentro de nossas casas. Apague as estrelas e contemple o céu. O que você vê? Nada. Você está diante do infinito que o seu espírito limitado é incapaz de conceber, de forma que você nada mais enxerga. E isso o angustia. É angustiante estar diante

do infinito. Fique calmo; os seus olhos sempre encontrarão as estrelas obstruindo a trajetória deles e não irão mais longe. De forma que o vazio dissimulado por elas será ignorado por você. Apague a luz e arregale os olhos ao máximo. Você nada verá. Apenas a escuridão, a qual é mais percebida do que vista por você. A escuridão não está fora de você, a escuridão está em você. Eu carrego a maldição da lucidez. Os olhos da minha alma estão arregalados sobre a v i da e contemplam o vazio. E, contudo, já brilhou em mim a fagulha e n ganadora de uma esperança indefinida, a q u a l me fazia esquecer, por instantes, o gosto amargo da medula apodrecida do mundo, terna e pequenina fagulha, única barreira entre mi m e a autodestruição. Apesar de destinada aos terrores do pessimismo, aos abismos da verdade, eu vivia. Vinda vivo. Por quê? Não sei. Toda as manhãs, eu me solto dos braços encantatórios de Morfeu, petrificada com a idéia

dessas horas intermináveis que se sucederão lentamente até que eu possa remergulhar no esquecimento benéfico de um novo sono. Como é preciso passar o tempo e i mp ed ir o pensamento, eu me ocupo. Da maneira mais fú - til possível. A superficialidade é a única pana- céia de minha latente depressão. E eu a agito por cima de minha cabeça para expulsar m i nhas idéias obscuras, fiz dela uma arte de viver. Tenho 18 e uso sapatos Prada. Sou uma garota ligada. Arrasto minha carcaça amorfa de café da moda em café da moda, janto todas as noites num desses restaurantes na última moda que pululam na rue Marbeuf e adjacências, a world food me faz vomitar. Quando saio para a vida mundana, o fastio da minha alma me faz vacilar nas pernas. Mas não posso viver sem isso. Parar de sair... é como parar de fumar. Entrei aos 14 anos numa boate para nunca mais sair. Fui mordida pela engrenagem infernal da Noite. Sem possibilidade de condicional. Sou uma toxicômana total. Cheirada por natureza, e perua.

Pirada de mundanismos. Doentia ao extremo. Alcoólatra e cocainômana. Sou atraída toda noite pelo meu vício como um bêbado pela sua garrafa, como um jogador que vai bater as cartas. Afoguei minhas ilusões em rios de champanhe, eu as sepultei debaixo de montanhas de pó, minha virtude se deslocou de mão em mão, de cama em cama... O reverso da medalha do sonho... Os bastidores da festa... Cuspo na cara deste mundo, mas ele me possui inteiramente. E é esta a única maneira... Não vou parar de sair. O que iria fazer do meu guarda-roupa Gucci? Dos meus vinte pares de sapatos Prada, dos meus vinte pares de botas Sérgio Rossi? Das minhas roupas de puta? Não contem comigo para doá-las em benefício de uma obra de caridade. Elton John não tem nada a ver com as minhas coisas. Não preciso fabricar nenhuma boa consciência, não sofro disso. Por outro lado, sinto-me bem na minha casa. Fico o dia inteiro de roupão, metida na atmosfera viciada pelas montanhas de cigarros que fumo, não abro as janelas. Prefiro morrer asfixiada que de frio. Não como porra nenhuma, não

tenho fome. Para me sustentar, tomo D i - Antalvic, as minhas ressacas cessaram, nenhuma dor muscular, nenhuma enxaqueca, cheiro pó para acordar, nenhum cansaço,

nenhuma angústia. Faz três meses que os dias têm sido assim. Gosto do jeito que está minha cara agora; minhas faces estão macilentas, meus olhos não brilham mais e são devorados pelas olheiras, meus lábios são incolores e não sabem mais sorrir. Apenas meus cabelos c on ti nu a ram os mesmos, longos, castanhos e magnificos, como se houvessem absorvido toda a vida que havia em mim. Estou magra e tão pálida debaixo dos raios de sol... Mas gosto desta aparência ectoplásmica, sou a alegoria da m i nha própria deprê, a encarnação do desleixo e do desespero.

Faz três meses que está morto o homem que eu amava. Antes, mal ou bem, eu amava a vida, porque nós a tínhamos em comum. Antes, eu amava a vida, mesmo sabendo tudo o que já sabia, uma vez que, na imensidão do vazio, lá estava ele sorrindo.

Hoje, meu querido é um fantasma, uma lembrança. Ainda nele penso todos os dias, a cada minuto, a cada segundo... Constância absurda. Posso viver o quanto quiser, se é que a gente pode chamar isso de vida, posso transar o quanto quiser, e sair... Eu ainda penso nele. Olho as pessoas, seus passos que as levam para uma finalidade ausente... E, no fundo de mim mesma, sua imagem que me assombra. Eu o conhecia melhor do que ninguém. A gente tinha o mesmo estado de espírito, nós dois desprezávamos a banalidade e a mediocridade, a gente era prisioneiro da grana e isso deixava a gente pirado, e a gente ficava sem saber a razão de existir. Agora que ele não está mais aqui, sei por que eu existia. Existia para ele. Estou fraca, e tenho a impressão de que meu corpo fenece lentamente. Somente minha alma cheia de lembranças ainda tem viço. Prefiro repisar meu passado feliz a me contentar com este presente de merda. Não esquecerei o seu rosto, nunca esquecerei a sua voz.

Definho na minha dor. Seu babaca, você não podia andar mais devagar? Estou no banheiro e pinto o meu rosto com as cores da vida. Manipulo mecanicamente o meu rímel Chanel e meu pó-de-arroz Guerlain. Estou me preparando, vou sair esta noite, como ontem e como amanhã. Ao Cabaret, ao Queen, aos Bains, ao encontro dos neuróticos. Só tenho amigos assim; entre pirados, a gente se entende. Eu me visto. De negro, de couro, de alta-costura. Bolsa Dior roubada de minha mãe. Minha pinta de piranha me encanta. Uma piranha de luto. Transpiro grana e vulgaridade por todos os poros. Tenho nojo de mim. Tenho um flashback ao parar no grande espelho da entrada. Eu me revejo três meses atrás, estava saindo para confessar tudo para ele e me mirei neste mesmo espelho, o coração esperançoso, enquanto perguntava a mim mesma se iria agradá-lo e se iria terminar a noite, uma vez mais, nos seus braços, e ele que nunca terminaria aquela noite. Meu táxi me espera lá embaixo. Eu os peço naG7, que me manda sempre Mercedões; afogo meu fastio nos bancos de couro. Atravesso Paris. Um sinal vermelho no Trocadero. As pessoas estão à espera de um ônibus noturno sentadas n u m

banco vagabundo. Esses pobres coitados que viajam quilômetros para conbecer os belos bairros e pegar algumas sobras visuais de nossa opulência, como esses ratos numa casa de gente rica. Eles caminham por nossas ruas impessoais, por nossas belas avenidas sem nunca entrar na casa da gente, em nossos apês, em nossos restaurantes, em nossas boates. Não volte muito tarde, principalmente não fique resfriado. Eles são como a vendedorazinha de fósforos... O sinal fica verde e o táxi arranca. Minha célula estofada roda suavemente, sem qualquer solavanco, e me leva inexoravelmente ao reencontro de minha vida de sibarita. Chego no Cabaret. Todo mundo está lá. Como de hábito. Todo mundo está sempre lá. Engreno o piloto automático para ir dizer boa-noite. Estou fazendo meu número despreocupada e de garota protegida. Danço de olhos fechados.

Deixo-me levar pela música e os vapores do álcool. Na minha mesa, todos se apressam em me servir novamente assim que meu copo esvazia. Vodca.Vodca.Vodca. Bebo como uma esponja. Todas as noites, já faz dois anos. De forma que lido com o álcool como um velho conhecedor de cinquenta anos. Eles me servem de bebida porque querem transar co-

migo, mas nunca perco a noção do que estou fazendo. Mesmo de quatro vomitando, permaneço consciente de tudo. Eles tentaram me dar uma presença de pó, o meu é melhor que o deles. São três horas, hora de ir para o Queen. O Queen é o meu lugar preferido. A gente toma conta da mesa central no quadrado da pista. Somos uns quarenta, todos em pé em volta das mesinhas, apertados uns contra os outros, segurando a rede, se um entre nós vai ao chão, todo mundo cai junto. O álcool corre à solta, a gente derruba os copos, as garrafas, estica fileiras na mesa, pula, dança, fica trocando enormes sorrisos cheios de beijinhos, porque a gente se ama, mas, se a música fosse menos forte, a gente não teria muita coisa para dizer uns aos outros. Estou caindo de bêbada e danço em cima de um tamborete, mãos insidiosas sobem ao longo das minhas pernas, escorregam por baixo do meu bustiê, lá onde minha pele está nua, isso não me incômoda mais. Meu projeto: sacanear as putas. Eu as enchar-co de champanhe, pisoteio as coisas delas, queimo os seus vestidos com meu cigarro, as empurro, dou cotoveladas, as insulto. Elas me detestam, mas não podem fazer nada contra mim.

Quando se queixam, abro meus grandes olhos inocentes, protesto indignada e elas acabam sendo expulsas da boate por terem ousado me acusar, Não conseguem nenhuma vitoriazinha... Sinto a ansiedade que cresce dentro de ruim, a crise iminente... Você faz da sua vida um calvário... Tenho dó de mim mesma quando percebo que fito fixamente a entrada do quadrado esperando vê-lo entrar. Sei que ele não virá, mas não consigo impedir a mim mesma de esperá-lo. E detesto cada um nesta boate de merda por não ser ele. Eu me levanto, acendo um cigarro. Não havia me dado conta de que já tinha um aceso na mão. Desço para a pista. Quero um homem. Não importa qual. Um desconhecido, um estrangeiro. A boate está com gente saindo pelo gargalo e tenho a sensação de estar sozinha no mundo. Sozinha. No meio da pista do Queen. Aquele. Ele não é tão mau assim. Espero que não seja veado, não tenho a menor vontade de voltar para a casa de mãos vazias, Como ele tem ar cafajeste com seu jeans moldado no corpo e o torso nu, não ouso sequer olhar para os sapatos dele. Que se dane. Vou direto até ele. Me planto na frente dele. Os amigos dele dão risadinhas. Estou pouco me lixando para as opiniões deles, desses rastaqüe-ras, mesmo no quadrado. Eu o olho de cima...

Estendo minha taça de champanhe... Sem d i zer palavra, ele a leva aos lábios... Um facho de luz azul está apontado sobre mim. Minha boca se curva num sorriso diabólico. Meus olhos não sorriem. Fico na ponta dos pés, ele se curva. A taça vazia cai no chão. Eu a esmago com num golpe do meu salto. Ela se estilhaça enquanto eu dou um chupão de língua neste rosto desconhecido. Ele pergunta o meu nome. Diz o dele. Não escuto. Eu o pego pela mão. Ele me segue sem tentar entender por quê. Não tem mais ninguém dentro do quadrado e a maré humana deu lugar aos vestígios imundos de uma orgia de desesperados. Dois ou três pi- rados ainda estão se agitando grotescamente, sozinhos, diante de um par imaginário, e eu percebo o vácuo nas suas pupilas dilatadas. Recupero a minha bolsa Dior largada em cima de um banco e conduzo o desconhecido. Os se-guranças piscara o olho para mim, eles se divertem ao me verem partir com um cafajeste assim. No táxi, a coisa esquenta, e fica horrível. Começo a tocar uma punheta nele. Só tenho vontade de uma coisa, e que ele ejacule nos bancos de couro. Á priori, ele precisa de algo mais. Até que não foi uma escolha tão má.

Sou eu quem paga o táxi, sinto uma alegria doentia. Eu o dispo no elevador. Rasgo a camisa dele torcendo para que seja sua preferida. Ele está surpreso demais pela boa sorte para ensejar qualquer protesto. Crispa os dedos na minha carne dolorida. Debaixo da saia, não tenho nada. Introduzo a chave na fechadura. Eu o levo para a biblioteca. É o meu aposento pre-dileto. Empurro-o para cima de uma poltrona de couro. Arranco meu bustiê. Estou completa-mente nua. Eu me concentro no jeans dele, que faço voar para dentro da lareira. Ele está de pau duro, o imbecil. Eu o monto de uma vez só, as pernas abertas em cima de cada braço da poltrona, quero dominá-lo. Apanho a sua camisa que jaz no chão, faço de conta que quero brincar com ela e a enfio na cabeça dele. Não quero suportara visão apocalíptica desse ríctus lamentável de gozo, desses olhos esbugalhados, dessa boca aberta. Subo e desço, sou eu q u e m faz todo o serviço. Afasto suas mãos que tentam explorar o meu corpo, que acariciam meus cabelos e as mantenho nas costas da poltrona. Só quero o pau dele. Para deixá-lo complelamente traumatizado, pego o controle remoto que está na mesa de centro. Tem um CD de La Traviata pronto para tocar. Ponho o som no

máximo, não tenho vontade de escutar os gemidos dele. Ainda não é degradante machucar-me, o bastante. ferir-me Preciso de forma emporcalhar-me,

irreversível. Quero tornar-me incapaz de voltar a olharme num espelho. Digo para ele fazer comigo aquilo que ele faz com os amigui-nhos dele no Queen. Ele se submete, tem medo de ruim. Eu me viro, meus cabelos se solta m e rolam por cima dos meus rins encharcados de suor, enquanto ele deflora b ru t a l me n t e a única coisa que sobrava de virgem em mim . Estou agora completamente corrompida. Sinto o orgasmo crescer em ondas sucessivas, meu ser se banha inteiro neste sofrimento gozoso, é um orgasmo triste. Uma máscara de dor se fixou para sempre no meu rosto. Eu o empurro. Ele desaba na poltrona com um estertor de prazer e ejacula para todo lado. m cima do tapete, na mesa de centro, sobretudo em cima dele mesmo, e a sua nudez lamentável maculada pelo jato de sua própria imundície me dá vontade de urrar de nojo. Pego um cigarro, que acendo com u m Dupont de ouro, o qual faz com que ele fique com os olhos arregalados. Ele olha a sua volta. O enorme pé-direito, o lustre, os objetos de arte, os quadros,

as estantes cobertas de livros encadernados. Se não lhe agrada olhar para mim, que fique olhando para as paredes! Seu olhar volta para a senhora dos aposentos, que retoma seu fôlego, largada sobre o canapé, e dispersa seus arrependimentos pela pureza perdida, juntamente com a fumaça acinzentada de seu cigarro pós-ultraje. Ignoro a presença dele. Isso não é sequer provocação, não dou a mínima. Encaro a noite através da janela. Ele tenta puxar conversa. - É a casa dos seus pais, aqui? - É. - Onde é que eles estão? - Na Normandia. Você pode parar de ficar me fazendo perguntas, por favor, não creio qu e eu esteja aqui para conversa de salão. - A gente vai dormir, então? Esse grosseirão pensou que ia descansar a cabeça em cima do meu travesseiro e se enroscar nos meus lençóis limpos. - Vou chamar um táxi, você mora onde?

Ele fica sem fala. Eu me divirto com seu ar imbecil. E acrescento: - Não tem importância se você mora m u i t o longe, é a firma do meu pai quem vai pagar. Ele engole o insulto. Deve ser alguém gentil, uma vez que parece estar mais magoado do que com raiva. Por que foi que você me trouxe aqui?

Acendo outro cigarro. Sem dizer palavra, tiro um saquinho com pó de qualquer lugar. Estico uma fileira em cima da mão, que cheiro sem canudo em duas fungadas. Quero estar em plena forma para pôr esse maluco no lugar dele. - Escute aqui, seu coisinha, eu não preciso explicar minha vida para você. Quantos anos você tem, 25, 25 anos? E você está surpreso? Já deve fazer alguns anos que você está saindo, de forma que sabe como funciona. Eu o apanhei na pista do Queen às seis horas da manhã. Você acha que eu o trouxe até a casa dos meus pais para você fabricar uns bebês para mim? Nós não somos do mesmo mundo, queridinho. Esta noite, me deu vontade de ser enrabada como uma pula. Você fez, seu serviço. E não vai ser porque você me comeu que a gente vai ser amigo. Não sei nem mesmo como você se chama, e, para dizer a verdade,

não quero saber. De forma que, agora, voeê vai se vestir, pegar suas coisas e cair fora. Você ganhou uma boa dose de pernas abertas e o seu táxi. O que é que você quer ainda? Quer cigarros, pó, grana? Pega o que quiser e se manda. Quero f i car sozinha, está entendendo? Sozinha. Ele me encara, incrédulo. Enquanto isso, peguei o telefone. Meu pai tem uma conta na agência G7. Esse babaca pode ir dormir na Bretanha se lhe der na telha. Mas quero que ele suma. Peço um táxi. - Você tem sete minutos. Não faz essa cara. Você está escutando a ópera mais bonita do mundo. A Traviata, isso lhe diz alguma coisa? Verdi? Não? Inspirada em A dama das camélias. Está querendo que eu conte a história para você? Você vai aprender alguma coisa e se sentir menos babaca quando for dormir daqui a pouco. Ele não responde. A coisa toda é mu i t o simples. Alfredo ama Violeta. Violeta ama Alfredo. É o amor, a paixão, coisa de pirado. Mas Violeta é urna cortesã. Isso quer dizer puta de luxo.Violeta é puta de luxo e sabe muito bem que Alfredo não possui os meios para sustentá-la. E, como ela não

qu er arruiná-lo, tenta sair dessa vida. Uma grande briga, a reconciliação em meio às lágrimas e a decisão de não se separar mais. Só que chegou a vez de o pai de Alfredo aprontar. Ele exige que Violeta deixe o filho em paz porque o relacionamento dos dois está manchando a boa reputação da família. Violeta, disposta realmente enlouquecido. E ela consegue tão transtornado como a qualquer sacrifício, usa de tudo para afastar dela o apaixonado bem que, este, só ele, faz tantas maldades que ela

acaba morrendo. No meio disso tudo, pinta também a tuberculose. Porque, como toda boa heroína romântica, ela está tuberculosa. Pronto. Uma bela história de amor. Destruída pela morte. È triste, hem? - Sim, é triste. - A continuação, a gente não sabe. A gente não sabe o que acontece com Alfredo depois. A gente não sabe se ele consegue esquecer Violela. Como é que ele faz para aguentar a vida, qu a n do aquela que ele ama morre. Pode ser que, v i n te anos mais tarde, Alfredo esteja casado e seja um modesto pai de família, sofra de vista cansada, uma ligeira calvície se insinue, e, quando o nome de Violeta emerge da confusão nebulosa de suas lembranças, ele o

associe a uma das suas farras da juventude, há muito devidamente expiada, e ele nem saiba ao certo se sua exDulcinéia morreu ou foi simplesmente embora. E se for o caso de Alfredo ter enlouquecido? E se for o caso de ele ter morrido de tristeza? "Nada disso. Eu conheço a continuação. Alfredo vai toda noite ao Queen. Ele afoga sua dor na vodca. Ele bebe como uma esponja e termina a noite sempre de quatro. E pensa naquela que perdeu. "Alfredo descobriu a cocaína e enche o nariz de pó 24 horas por dia. E pensa naquela que perdeu. Alfredo não sabe mais chorar. Porque chorar alivia, e ele não quer se sentir aliviado. Violeta está perdida para sempre e Alfredo se vinga em outras putinhas, em babacas desinteressantes, da morte daquela que amava. Ele transa com elas, ele as perverte, ele as faz sofrer. Bem que gostaria de matá-las, mas não tem coragem para tanto. Elc gostaria sobretudo de se matar, de estourar os miolos. Uma vez que não tem mais nenhuma razão para viver. Mas ele também não tem coragem. Ele é um covardão, um covarde miserável. Ele é incapaz de largar esta existência abominável, prefere viver da pior maneira possível. Alfredo é alcoólatra, drogado e suicida. Ah, mas não precisa se preocupar

com ele. Ele não vai durar mui t o e também vai morrer. De uma overdose, de um acidente de carro, de uma facada num beco, de uma doença incurável... Ele reencontrará de novo o sorriso apenas para dizer adeus. Agora, se manda, seu táxi já deve estar lá embaixo." Eu o acompanho até a porta. Ele murmura duas ou três palavras, sua compaixão me provoca horror. Bato a porta na cara dele. A calma. A solidão, enfim. Enfiei um roupão e volto para a biblioteca me arriando no canapé profanado. Fico imóvel diante da minha lareira, onde nenhum fogo queima, fumo um cigarro atrás do outro. Meus olhos fixos estão voltados para o interior, para o clarão apagado de um passado terminado, para as imagens douradas de uma felicidade apagada. Não esperem que esta história termine em tragédia, não há nenhuma. Ele morreu e mais nada faz sentido para mim. Encaro o f u t u r o como uma eternidade de provações e fastio. Minha covardia me impede de pôr fim aos meus dias. Vou continuar a sair, a cheirar, a beber e a perseguir os babacas. Até que eu morra. A humanidade sofre. E eu sofro com ela.

As músicas citadas são Avec lê temps e L´avie d´artiste de Léo Ferre. Citação extraída do Bleu du ciel, de Geoges Bataille, edições Gallimard. No capíulo 12, os versos citados pertencem ao poema Harmonie du soir, de Charles Baudelaire.

Yasmim Ferreira

Hell - Paris 75016 - Lolita Pille
 
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Sem pudores, a personagem principal da história (Hell) descreve o mundo de prazeres sádicos que envolve a jovem casta da sociedade rica e parisiense. Hell tem 17 anos e está sempre acessível nos lugares mais badalados de Paris (principalmente o Queen), cercada por suas amigas, igualmente ricas e esnobes, aproveita a vida e seus prazeres sem nenhum limite.

Nascida em berço de ouro, tem praticamente tudo o que precisa: roupas, bolsas, sapatos e tudo que colabore para com seu credo: "Seja bela e consumista". Porém, apesar dessa vida pulando de boates em boates por toda a cidade, Hell é completamente seca por dentro. Nenhuma de suas experiências amorosas deu certo, é viciada em drogas, não quer estudar e repentinamente se vê grávida.

Sem nem ao menos pensar duas vezes, Hell se submete à um aborto e logo depois, sai para almoçar com uma amiga e fazer compras....


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M. Loureiro

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"A grandeza de uma nação pode ser julgada pelo modo que seus animais são tratados" - Mahatma Gandhi








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