terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Aos fãs de gatos: Dois livros da Joana Belarmino.


Gato de Rua
--Joana Belarmino--

Capítulo I

Gato de Rua chegou muito cedo ao restaurante.
Ele sabia que hoje teria "casa cheia"!
Desde cedo vira filas e filas de mulheres na sede central da companhia
de água, encchendo baldes e panelas.
Entendeu direitinho o recado! Estava faltando água no bairro! Muita
gente viria ao restaurante para o jantar daquela noite.
Vinha vindo um fusquinha amarelo. Gato de Rua firmou-se melhor no
murinho do restaurante e deu com dois olhos cor de mel, compridos
cabelos de um belo castanho claro.
De quem eram os olhos? De quem era o cabelo comprido?
Gato de Rua soube logo. Tratava-se de Lili, menina de dez anos, alegre,
que viera com sua família para o jantar.
Gato de Rua não veio logo para junto dela. Sondou o ambiente. O pai, um
homem de barba cerrada, tinha uns olhos verdes que diziam claramente
"detesto gatos"!
A mãe, também não parecia ser boa companheira dos felinos. A outra
menina, estava a rabiscar desenhos estranhos nos guardanapos e parecia
não se importar com Gato de Rua.
De um pulo postou-se ao lado da cadeira de Lili. Miou sua fome de todos
os jeitos que sabia e ganhou a amizade da menina.
Somente a amizade? Não! ganhou também grandes nacos de carne que ia
devorando ao mesmo tempo em que esticava o pescoço, pedindo mais.
Lili mostrou-lhe o pé enfaixado e lhe contou da partida de voley. Gato
de Rua disse que se o pé não estivesse todo coberto, ele poderia
experimentar um tratamento da medicina gatal. "Umas boas lambidas e seu
pé ficaria novinho em folha".
Trocaram outras confidências. Lili contou que seu pai detestava gatos.
"disso eu já sabia, pensou Gato de Rua". Contou do seu gatinho de
estimação, o Mingau, que fugira de casa por causa das impertinências do
pai. Gato de Rua ficou penalizado. Prometeu procurar o fujão.
"Quando você volta novamente para jantar?", perguntou.
"Na próxima semana", disse Lili.
"Então, até la, eu já terei noticias do seu mingau", prometeu Gato de
rua, esticando o pescoço para o último naco de carne.

Capítulo II

Gato de Rua sabia que não seria um bom Sherlock de barriga cheia.
Assim, decidiu dormir um bom sono de gato, para depois tratar de cumprir
a promessa que fizera a Lili, de procurar o Mingau fujão.
Por onde começar? Onde poderia ter se metido um gato que frequentemente
fora torturado por um homem forte, de voz violenta, que o obrigava a
dormir sobre os telhados, em cima das arvores, mesmo quando a noite era
fria?
Por um instante Gato de Rua teve pena do outro. Mas so por um instante.
Seu coração já pulsava de paixão pelos olhos cor de mel de Lili, e gato
apaixonado chega a ronronar alto de tanto ciume!
E a outra quinta-feira veio vindo, veio vindo, arrastando os longos
fios do tempo por entre os sonhos de Gato de Rua, que mesmo dormindo
sentia a dor de não ter podido cumprir a promessa. Vasculhara o bairro
inteiro. Nenhum gato se chamava Mingau. Nenhum gato tinha em sua
biografia, torturas semelhantes às que a menina descrevera.
A quinta-feira chegou, e mesmo sem as filas de mulheres diante da
companhia de água, Gato de Rua sabia (intuição de felino) que Lili ia
jantar no restaurante.
Correu cedo para la, mas esbarrou num terreno baldio, os olhos
arregalados, a angustia pesando no estomago, junto com a fome.
"Que vou dizer a ela? Lili não vai me perdoar".
Mas de repente uma idéia acendeu faiscas nos seus olhos: "E se eu me
desfarcasse de Mingau?"
Recordou-se de como Lili havia descrito o fujão. "Ele e bem da sua cor,
mas o focinho e menor, mais delicado... (o ciume gemia entre as costelas
de Gato de Rua). "O seu nariz e rosa, esquisito! O nariz de
Mingau era preto!"
Gato de Rua cismava: "Bem, não posso fazer nada com o tamanho do
focinho, mas, quanto ao nariz preto..."
Rumou para uma lata de lixo que estava ali perto. Por sorte, deu com um
tôco de giz preto. Esfregou o nariz nele e mirou-se num caco de vidro.
"perfeito!".
Rumou para o restaurante quando a noite já havia dado ordem as estrelas
para que brilhassem. La estavam os olhos cor de mel, aflitos.
Lili deu um pulo da cadeira gritando: "Mingau! Mingau!"
Gato de Rua veio vindo, o coração aos pulos, esticando as patas para
saudar a menina.
O pai foi mais rapido. Acertou-lhe um pontapé na barriga.
Gato de Rua foi saltando por entre as mesas, ganindo por dentro como um
cãozinho. Agora entendia porque Mingau fugira irremediavelmente para
longe...

Capítulo III

Onde se aprende um pouco da filosofia da vovó Felina e se conhece a
fina trama da cumplicidade entre Lili e Gato de Rua
- "É... Assim, não da mesmo" - pensou Gato de Rua, espavorido. Já ia
fugindo, assim mesmo como gato sobre
rasas. Mas, notou, as brasas, mesmo, lah estavam dentro de seu peito, a
estufa-lo, a vibrar como se Gato de Rua, antes mesmo de cair nas unhas
do pai de Lili, já houvesse virado tamborim. Pensou:
- 'Tem jeito, não.. Gato de Rua e de telhado, de tanto olhar pra lua,
fica romantico, se apaixona fácil, fácil..."
Voltou de mansinho, contornando o salao do restaurante por baixo das
mesas vazias junto as paredes, dando voltas e mais voltas a godeirar
Lili. Percebera que era aquilo que o boboca do Mingau tinha de ter
feito: Mingau, se não come pelas beiradas, pelas beiradas eh comido.
(Pura filosofia da vovó Felina, que ele as vezes deixava escapar por
entre os dentes da alma)...
Criou forças. Ele, não. Tinha focinho maior e azul, mas não era um
qualquer mingau. Era mais ele, Gato de Rua, sim senhor-
Num ponto estratégico, olho no olho de Lili, fez um sinal discreto. Ela
entendeu: "Vou ao banheiro".
Diante da menina, Gato de Rua não escondia seu desespero. E se ela
descobrisse o disfarce? como iria reagir? Teria a mesma força do pai no
pezinho calçado com botas de cano longo? "Ôla, Gato de Rua"! disse ela
na sua voz de gatinha manhosa. Passou o dodói? "Dodói!!! Miouu Gato de
rua cheio de surpresa. Havia esquecido completamente as brasas do peito.
Agora, no lugar delas, uma cançãozinha miava suas silabas alegres: "Ela
e minha cumplice! Ela também me ama!
Lili não tinha muito tempo. Pegou um palito e riscou no chão um mapa.
"É assim que você chega na minha casa. Apareca por la amanhã. Mas
cuidado!
Gato de Rua arregalou os olhos. Havia outros perigos alem da violência
do barbudo? "Ha um perigo muito maior, preveniu Lili. Uma cadela
furiosa, inimiga ferrenha de gatos." "Como farei então, choramingou gato
de Rua, sentindo já, por entre as tripas, os primeiros laivos de uma
diarréia nervosa. "No final da tarde, quando voltar da escola, ficarei
lhe esperando fora do portão. Mas você tem que chegar lá na horinha, do
contrario...
E correu para a mesa, soltando um beijinho para Gato de Rua, que correu
a fucar nas latas de lixo de todo o bairro, à procura de um enfeite
para seu rabo, quem sabe uma pinta para ocultar um ferimento naz costas,
sequela de uma briga recente pela disputa da gata maricota.

CAPITULO IV

Onde vemos apróximar-se o Grande Momento
Gato de Rua acordou, sobressaltado, e percebeu com alivio que não
estava na estrada, mas sim num canto do terreno baldio. Olhou mais uma
vez para uns brilhos minguados que a lua lhe mandava e tornou a
adormecer. Sonhou que corria no jardim da casa de Lili, de mãos dadas
com a menina, que havia prendido irremediavelmente a cadela furiosa.
No meio do sonho, Vovó Felina apareceu e lhe soprou uma frase fluidrica
que o fez acordar de um salto: "Gato escaldado tem medo de água fria".
Nada de mais. A velha so tinha lhe dado um aviso telepatico de que era
preciso abrigar-se, pois vinha chuva, e chuva muito forte!
Gato de Rua fez o seu sinal da cruz de agradecimento e rumou para o
velho deposito, onde sempre estava mais abrigado.
O dia seguinte chegou sem maiores sobressaltos. Cinco da tarde, Gato de
Rua postou-se em frente ao portão de Lili. Trazia um trevo de quatro
folhas na mão, para que ela brincasse o "bem-me-quer" na sua frente.
Encontrara a plantinha largada no caminho e achara que tinha sido um
presente do céu. Mas agora estava apavorado. E que descobrira, na sua
matématica, que, se Lili começasse a brincar, desfolhando a plantinha
pelo "bem-me-quer", a última folhinha seria um "mal-me-quer"!
Isso era terrível, para uma paixão que mal começara.
La estava novamente Gato de Rua mergulhado num dilema insondavel, sem
qualquer fiapo de luz da vovó salvadora, que as vezes, nas horas mais
dificeis, achava de se perder pelos confins do alem, à procura de
fantasmas de ratos.
E eis que o portão se abriu e Lili tomou a plantinha das mãos de Gato
de Rua, toda sorridente.
Desfolhou a primeira folhinha e...

CAPITULO V

Onde oçorre o primeiro Grande Momento e a cadela furiosa experimenta
a sua primeira derrota, epitafiada por Vovó Felina
Comecou a brincadeira, dois dedos começando a puxar a primeira
folhinha:
- Bem... - Gato de Rua gelou! Ia acabar com mal-me-quer!
Latidos furiosos a interromperam. A cadela, a ponta do focinho imenso
metida a investir pelas aberturas das grades, acuava contra Gato de Rua,
acometia contra o portão, que rangia, bimbalhava como, havia ainda
poucos minutos, bimbalhava de felinicidade o coração do gato. Este,
agora, espavorido, menor que seu coração se fazia, embora, para que a
menina não o imaginasse um covarde, um Mingau qualquer, se mantivesse
firme, imperturbavel estatua de pedra a revestir entranhas convertidas
em puro mingau.
Lili, irada, ralhava com a cadela.
- Cala-boca, Doga! Cala! - e, virando-se para Gato de Rua, a arrancar a
primeira folhinha - Mal me quer! Quem não quer bem a meu gato, não me
quer bem!... Cala-boca, Doga! Pra dentro!
E continuou, já na segunda folha: bem-me-quer... mal-me-quer..bem-me-
quer...
- deu um beijo no trevo desfolhado, e o colocou entre os dentes
de Gato de Rua.
- Pronto. Bem-me-quer! Bem-me-quer! MEU gato!
Gato de Rua estava petrificado, mas era agora
uma estatua de ouro, os olhos a brilhar como dois imensos diamantes...
Bem-me-quer! MEU gato! Vovó Felina novamente lhe acudiu: "Menino, tem
outra coisaque você deve aprender: o que e do gato o rato não come...
muito menos o cachorro...
Lili ria contente, explicava:
- A bobinha da Mana aprendeu na escola que cachorro inglês é 'dog".
Como essa ai é cachorra, virou Doga...
A cadela recuou para o fundo do quintal. Queria entender aquela cena em
que um gato cinico e irreverente se punha imovel a fitar sua amiguinha
Lili. Estava ganhando forças para um novo bote. Um bote que fosse
definitivo e fatal. Gato de Rua decodificou os signos daquela mensagem
de recuo e apelou mais uma vez para a proteção filosófica de
Vovó Felina. Na esteira do pensamento, a velha deixou cair mais uma
meada de palavras proverbiais: "Boa ave-maria jj faz quem em sua casa
esta em paz". O ditado, simples, trazia em si um subtexto, que entre os
desões do medo Gato de Rua conseguiu decifrar. Vomitou as palavras
como se golpeasse a língua com dentes de ferro: "Lilizinha, você
já...já... viu o pulo do gato"?
Não deu tempo para a resposta da menina. "Stiplum!" "Stiplaf!!!! Pulo
dentro, violenta fúria a se pendurar nas grades do portão, pulo fora,
fino pulo de gato, que zonzo de medo, ainda se passava por herói, diante
de uma menina que enfeitava a tarde com sua gargalhada infantil.
Onde se lê, "cesões, com s", leia-se com "z", imaginando-se o til.
Desculpem a gagatice.

CAPITULO Vi

Onde Gato de Rua conhece as dores da sua paixão proibida e planeja
uma façanha inesquecível.
O pulo heróico, produto do medo titânico, o fizera engaiolar-se no
ponto mais alto do muro da Companhia de Água, num local onde se poderia
ocultar numa especie de beiral, onde havia umas tocas ratais junto à
coluna e onde - maravilha! - existia uma emenda mal feita num cano...
Dali, em último caso, poderia jogar água fria na danada da cachorra e
nalgum barbudo atrevido que o perseguisse. 'E' bom eles irem botando as
barbinhas de molhho...'
- engatou um sorriso ao fim do derradeiro pinote.
De lá, a um sinal de Gato de Rua, a menina já ia se dirigindo para o
local apontado quando nova ameaça surgiu na linha do horizonte.
Jornal em baixo do braço, andar descuidado de gaudério pensativo, o
pai de Lili vinha vindo, olhar verde esquadrinhando o mundo. A paz
perfeita a deambular pelas calçadas, mas Gato de Rua, malandro velho,
percebia bem a grossa tempestade oculta na indiferenca do rosto, um
vento de granizo a minar devagarinho, a escorrer, gota a gota, de cada
fio da barba cerrada.
Gato vê muito melhor que poeta, embora alguns deles sejam muito gatos
na arte de esconder as unhas das palavras... Gato de Rua pressentiu,
farejou de longe a carga daquele trovejar, e disse consigo mesmo que
aquela fúria não iria rebentar logo sobre as suas costas. Ah, não iria,
mesmo! Como bem miava Vovó Felina, "gato alerta cão não acerta'...
Sem manhãs nem firulas, desapareceu a correr, sem sequer despedir-se da
sua amada Lili.
- Porque esta na rua a essa hora, menina? - perguntou o pai de Lili.
- Estava te esperando, pai. Trouxe o meu chiclete?
Os dois entraram em casa de mãos dadas. Na cozinha, a mãe preparava uma
sopa de ervilhas que, depois de servida, ganhava novo sabor com o queijo
parmesão por cima.
Gato de Rua não imaginava que as primeiras dores de uma paixão proibida
fossem tão cortantes. Não que ele nunca tivesse se apaixonado. Gostara
da gata Maricota, que sumira com Namorado, um gato do campo que viera
morar na cidade. 'Esse danado deve ter um jeito especial,' pensou com
despeito mas com certo regozijo Gato de Rua,
- 'de que adiantou o Borba Gato ganhar a Maricota de mim?
Ela acabou cortando os bigodes dele e espetando eles na testa dele...
ele... dele...ele... que se lasque ele!'.
Pois é. Encantara-se pela beleza de Minora, uma gatinha do estrangeiro
que esnobava todo mundo, até o gatão Ted, que vivia cercado de carinho,
numa das casas mais bonitas do bairro.
A paixão que experimentava por Lili era completamente diferente. Não
havia aquele desejo sexual, do modo como os gatos faziam sexo, aos
berros, por sobre os telhados. Havia um desejo novo, que pedia caricias
das mãos da menina, olhares compridos, conversinhas miudas, com
silêncios prolongados. Havia toda a novidade do seu mundo, o mundo de um
Gato de Rua, sim, mas cheio de encantos, que, para menina, era como um
livro novo, que ela ia abrindo aos poucos, detendo-se nas gravuras, nas
peripécias, até na parte felinosofica de Vovó Felina, que até ele
julgava, até conhecer Lili, já estar mofada e esquecida.
Lili dissera que o pai era poeta. Dissera isso com muito orgulho.
Do fundo da sua dor, Gato de Rua tentava extrair um poema para dar de
presente à sua namorada. A noite espreguiçava-se no topo do tempo e ele
escrevinhava suas sandices poeticas na areia:
Meu pobre coração quebrado brada
Por um prato de leite para a ceia
Mas um leite que seja cor de mel
Como os olhos de Lili, a flor do céu...
As minhas sete vidas, todas, miam
Por um tapete voador bem raro,
Por um lençol assim, castanho claro
Como os cabelos teus, que me arrepiam!
E minhas patas querem não ter unhas
Para não te ferir a mão, Lili,
E... Lili... Lili... Li...
No transe para encontrar uma rima para 'unhas'.
- 'acabrunhas' era feio demais...
- o poema empacava. Gato de Rua adormecia e pesadelava com a
cadela Doga vindo marcar aquele seu poemiau com um xixi de cheiro
insuportavel.
A semana foi dificil também para Lili. Não tinha podido combinar nada
com Gato de Rua. Na quinta-feira, dia de jantarem fora, teve a
desagradavel surpresa de ter que jantar num restaurante da orla
maritima. A mãe queria experimentar um peixe exotico que Lili nunca
havia comido e não gostava: só o cheiro lhe dava engulhos...
Mesmo que Gato de Rua quisesse aparecer por la, seria impossível
qualquer apróximação entre os dois. Na entrada do restaurante, um guarda
armado até os dentes impedia a entrada de estranhos e bichos que não
fossem "deixa que eu cuido, doutor' ou "que-belezinha-madama!"
Na sua zanga, Lili não curtiu nem o parque que cercava o prédio do nem
quis escutar a musica de um bando de periquitos que passaravam por ali,
pipilando uma alegria de pássaros satisfeitos que não combinava nem um
pouco com a sua tristeza.
Gato de Rua estava, pois, a rondar o outro restaurante, quando recebeu
de vovó Felina uma mensagem: "Quem não arrisca não petisca". As vezes a
velha era dada a essas coisas. Mandava recados comuns, aparentemente sem
nenhum sentido, pura gatarelice de gata tagarela, que mesmo do além,
ficava tocando a vida dos netos com suas arengas palavrais.
A frase ficou ali, suspensa no ar, exibindo suas silabas cor de poeira
cósmica. De repente Gato de Rua compreendeu. Deu um bote na frase,
arranhando o "petisca" com as unhas da alma. A velha tinha toda razão.
Era preciso arriscar uma façanha de gato apaixonado, uma façanha
inesquecível, que pudesse marcar eternamente a sua presença no coração
de Lili. Até porque, pensou meio ressabiado, sua imagem não devia estar
muito limpa depois daquela fuga às carreiras...
A velha tinha toda a razão do mundo! Era preciso chegar à casa de
Lili, burlar a cadela Doga e enfiar-se sorratéiro no quarto da menina.
- Putucum putucum putucum! - dizia o coração de Gato de Rua.
- Plictic plictic plictic! - dizia a corrida de Gato de Rua, a caminho
da casa de Lili. Era preciso aproveitar agora, que hao devia haver
ninguem em casa. Do fundo do tempo, do miolo da esperanca, Gato de Rua
já vislumbrava, ali adiante, ao lado da torre da Companhia de água, os
penachos altos do taquaral, seu arsenal tecnológico para a grande
aventura.

Capítulo VII

Gato de Rua foi diminuindo a corrida quando o muro da companhia de
água disse na sua voz de concreto (inaudível para os humanos) que ele
estava chegando em rota proibida, e que era preciso acalmar o coração e
planejar sua atérrisagem.
Gato de Rua respirou fundo e so então se apercebeu do tamanho da sua
façanha! Teria que burlar uma cadela furiosa, penetrar no quarto de uma
menina, tendo que livrar no pulo, bonecas, vidros de água de colonia,
uma tal Minnie que segundo Lili já dissera, espirrava e tocava
musiquinha. Lembrou-se da velha fabula que a Vovó Felina lhe contava
antes de dormir e que sempre acabava com a celebre pergunta: "E quem vai
botar o guizo no pescoço do gato"???
Tal como num processo kafkeano, sentiu-se a propria assembléia dos
ratos, sendo ele proprio o último a querer segurar o tal guizo.
O muro da companhia de água mascava seu riso de tijolo e cimento,
impecavel na sua paralisia de construção velha.
Uma confusao de pensamentos atropelava o peito de Gato de Rua, sem
ordem, sem nexo, como rebanho de ovelhas perdidas no campo. Mas o
bichano foi despertado desse estado de transe por uma vozinha que
sibilou ao seu ouvido:
- Grande GDR! Velho GDR!
Gato de Rua levou um baita susto. Voltou-se, e deu com dois olhos maus
cheios de uma alegria zombeteira a fitá-lo.
Era primo gatuno, mais conhecido nos arredores como "Gatuninho
Malvadeza", dedo duro, patife 171, o tipico bruxo mal da felinologia.
Sorrindo sempre sentou-se ao lado de Gato de Rua e num relance
compreendeu todo o seu drama.
- Pelo arrepiado, olho de peixe morto, coração aos pinotes... Esta
enrabichado, hen?
Gato de Rua não queria contar, mas o olhar do outro o ia encerrando num
circulo hipnotico e ele desatou a meada das palavras, quase sem
respirar.
- Com que então você precisa burlar a cadela Doga? Conheco sua fúria...
Osso duro de roer... Vaticinou Primo Gatuno.
- Eu sei... Mas ou eu faço isso, ou nunca mais terei coragem de me
levantar de manhã, olhar o sol e dizer: Eu sou Gato de Rua, neto de vovó
Felina, o herói mais corajoso da história da bichanologia...
Por causa da sua longa pratica nas artes da rapinagem, o pensamento de
Gatuninho malvadeza era mais rapido que um relâmpago.
Enquanto Gato de Rua desfiava suas desventuras, ele ergueu-se de um
pulo, deu um formidavel bote num montão de velharias ali perto e sacoo
de la uma comprida taquara.
- Calma garotinho, eu vou te ajudar!
Gato de Rua não entendia nada. Olhou para a taquara como se ela fosse
um objeto voador não identificado. Gatuninho percebeu a confusao do
amigo.
- Faz cara de bobo, não é? Pois é com esse ovni que você vai penetrar
no quarto da sua amada.
E se pos imediatamente a agir. A reentrancia do cano, no alto do muro,
carcomida pela ferrugem serviu de encaixe para a taquara. Coincidência
ou não, um pulo bem dado daquele ponto, elevaria o pulador até o telhado
do último quarto da casa, exatamente aquele onde dormia todas as noites
a princesa Lili.
Gatuninho prosseguiu na sua explicação:
- Eu vou distrair a cadela Doga. Subo no muro e ameaço entrar no
jardim.
Enquanto ela estiver ocupada comigo você da o seu pulo do gato!
Gato de Rua estava muito feliz. Preparou-se para ocupar seu pulodromo,
mas foi interrompido por Gatuninho Malvadeza:
- Tudo dara certo. Você tera sua lua de mel. E eu...
- E você? Perguntou o outro desconfiado.
- E eu, no momento oportuno, saberei lhe cobrar a conta dessa grande
felicidade.
Uma estrela tremeluziu mais forte, la no alto, avisando que um
fusquinha amarelo estava entrando no bairro. Um alarma tocou no coração
de Gato de Rua. Gatuninho Malvadeza subiu no muro da casa de Lili e
despertou a violenta pororoca de latidos e rosnados.
Gato de Rua icou-se na sua Taquara, explodiu num pulo perfeito por
sobre o telhado do quarto de Lili, e, oh! alegria suprema! Mergulhou
forro abaixo, numa queda que veio acabar por sobre o corpo de um enorme
urso de pelucia, vestido de papai Noel.

Capítulo VIII

Onde Papai Noel realiza um antigo desejo e Gato de Rua respira o
mesmo ar da sua amada
Arremessado pelo peso daquela estranha tempestade, Papai Noel colidiu
violentamente contra a Minnie e a abraçou fortemente, realizando um
antigo desejo. O abraço fez com que o espirro disparasse e em vez de
dizer "ai! Meu nariz!", como fazia sempre que Lili a apertava a
Minnie exclamou: "Atchim!! cheiro de gato!" Gato de Rua olhou para os
brinquedos, todos sobressaltados, apontando suas etiquetas "made in
China" como se fossem troféus de guerra, todos querendo explicações para
aquela invasao tão insolita.
Já ia começar a trabalhar com as unhas, desfazendo cabelos, barrigas de
lã e pernas de borracha, quando um pensamento lhe acudiu o cérebro, pura
vulgarização das lições felinosoficas da vovó Felina: "Em terra de
brinquedo quem tem vida se ferra". Guardou as unhas, amansou a fúria do
olhar, afinou o miado das apresentações.
- Boa noite, gente. Eu sou de paz! Vim da parte de Lili. Ela quer que
eu passe uns dias por aqui, por causa de um Dom Ratão que ameaça
destruir todos os seus brinquedos. É um tipo esquisito. Ele chega de
mansinho, beija um brinquedo na face e pronto. Lá o coitado começa a se
desfazer e adeus beleza!
O barulho do fusquinha entrando na garagem fez com que se desfizesse o
cenario mágico. Os brinquedos recolheram seus medos. Papai Noel reteve a
meio o gesto de apertar a pata de Gato de Rua. O quarto reassumiu sua
imobilidade de móveis e coisas enquanto a chave girava na fechadura.
Somente o coração de Gato de Rua trepidava feito usina de força. Era
preciso ocultar-se, do contrario, toda sua façanha estaria perdida.
Enfiou-se debaixo da cama de Lili e esperou, olhos cerrados, respiração
presa.
Lili foi entrando no quarto e atirando com as botas de cano longo e as
meias, quase acertando a cabeça de Gato de Rua. Abraçou sua Minnie,
deu-lhe um apertão no nariz, "atchim! Meu nariz!" disse a boneca e se
pos a tocar sua musiquinha, enquanto a menina já fechava os olhos
adormecendo profundamente. ,
Quando a casa se quedou completamente silênciosa, Gato de Rua saiu do
seu posto e teve uma surpresa. Nana, a irma de Lili, inteiramente
acordada, rabiscava desenhos num grosso caderno. Ela reconheceu
imediatamente Gato de Rua. Alargou um sorriso e o chamou para junto de
si.
- Você não é aquele gato do restaurante? perguntou em voz baixa.
- Sou eu mesmo. Vim fazer uma visitinha à LlllLili, ààa
vvvvovvvocês.
Nana estava encantada com a novidade.
- Mas como você conseguiu entrar aqui? A cadela Doga...
- ah ah ah ah! sorriu Gato de Rua. Eu sou um gato muito valente! Ta
certo que tivemos que nos enfrentar... Na primeira unhada que lhe dei, a
sua cadelinha sentiu a força da minha fúria... Ah ah ah!
Nana não queria acreditar no que estava ouvindo. Olhou bem para o gato
e então...
Incrível! O nariz de Gato de Rua comecou a crescer, crescer, de tal
sorte que daqui a alguns minutos chegaria no quarto dos pais de Lili.
Uma calamidade!
Nana falou na sua voz tranquila:
-bmentira tem nariz comprido! Pinoquio que o diga!
Gato de Rua estava apavorado! Empurrava o nariz, torcia o nariz, mas o
danado continuava crescendo, crescendo.
Nana então teve pena do coitado e surgiu com o remédio salvador.
- Calma! Você já brincou de faz-de-conta?
- Nãão! Miou Gato de Rua numa voz terrívelmente gutural.
- Faz de conta que você não mentiu. Faz de conta que o seu nariz não
cresceu.
- Faz de conta que eu não menti. Faz de conta que o meu nariz não
cresceu. Repetiu Gato de Rua e milagrosamente o seu nariz voltou ao
tamanho normal.
Ele fungou, fungou e se olhou no espelho do armario. Tudo bem. Teria
que contar?
Os olhos de Nana pediam a verdade de um modo inquisidor.
- Bom... Um amigo me deu uma força. Ele distraiu a cadela Doga e eu
pude chegar até aqui sem perigo.
Não diria nada sobre a ficha suja de gatinho Malvadeza. Tambem não
falaria sobre a sua divida. Divida? Aquela lembrança, um filete agudo de
dor escarafunchou suas tripas.
- Ótimo, assim esta melhor. Vou lhe preparar uma cama de jornais. Você
deve estar morto de cansado.
Gato de Rua agradeceu o apoio. Estava de novo feliz e apaziguado. Dali
mesmo, da sua cama de jornais, podia ver Lili dormindo, podia respirar o
mesmo ar que ela respirava, podia, com alguma sorte, entrar no sonho
dela e lhe contar da sua grande paixão. Foi assim que Gato de Rua
desastradamente adormeceu, sem pensar no dia seguinte, com a luz do sol,
as janelas abertas, o pai caminhando pela casacom sua passada larga e
decidida.

CAPITULO IX

Onde Don Ratão ataca em fúria de gual extrema, esquecido de que o
afobado come cru, cru, e Gato de Rua se afirma como grande herói
Decididas?!
Decididas era pouco! O homem andava em passadas furiosas, que acordaram
um espavorido Gato de Rua de olhos esbugalhados, a murmurar ao ouvido de
Lili em voz gatural:
- Lili, Lili, seu pai!
- Meu pai? que que tem meu pai? - a menina esfregou os olhos, confusa,
a sair do ninho das cobertas, rosada como uma jovem maçã.
- Seu pai! - instou desesperado Gato de Rua. - Ele vem vindo pelo
corredor! Vai me achar aqui, logo no seu quarto! Vai me dar outro chute
nas costelas! E ainda vai brigar com você!
Vovó Felina relampejou-lhe na lembrança: "Memino, aprenda uma coisa:
toda donzela tem um pai que e uma fera..."
Lili despertou de repente, e nem pareceu espantada com a presença de
Gato de Rua.
- Vem ca, meu herói, fica aqui debaixo do edredon, ele não vai me
descobrir numa manhã fria dessas.
Mal Gato de Rua se refugiara entre as cobertas e os braços de Lili
- suprema ventura, aquele aroma! -, a porta se abriu e o barbudo entrou
de sopetão no quarto, um riso imenos a boiar nos olhos verdes,
antegozando a docura do beijo matinal que dava nas filhas. Lili fez um
gesto como se fosse levantar-se.
- Não, minha filha, fique ai e não se levante até eu ou sua mãe
mandarmos. Depois dos beijos o semblante e os gestos modificaram-se.
- o homem andava por todo o quarto, olhava por baixo das cadeiras,
atras das almofadas, no baú dos brinquedos.
Finalmente, ajoelhou-se e se pos a vasculhar meticulosamente todos os
objetos e espaços sob a cama, exatamente ali onde, minutos antes, Gato
de Rua dormia ao abandono de seus sonhos de apaixonado...
- Não... não... aqui não esta! - o homem parecia a um tempo
decepcionado e satisfeito.
- Não esta o que, pai? - perguntou Lili, a voz da inocência.
- O rato! O ratão que anda solto por ai, a roer tudo!
Lili teve vontade de comentar que... no tempo de Mingau.. coisas
assim... um gato...
Conteve-se. A ira do pai mostrava que qualquer comentario seria
inoportuno, tomado como atrevimento. Ao contrario, demonstrou certo
panico.
- Ra...rato! Ai, pai, de" um jeito nisso!
- Vou dar, minha filha. Mas, enquanto isso, fique ai bem quietinha,
sim?!
- e saiu, batendo a porta depois de acrescentar:
- O bandido roeu ati ums papéis escritos que deixei na mesa! so porque
um deles estava meio umido e adocicado por uns pingos de chá!
Passados alguns minutos, animaram-se a falar. Gato de Rua contou menina
as suas peripécias até chegar ali, a assembléia dos brinquedos, o apoio
de Nana. Evitou, naturalment, a passagem constrangedora do
nariz-sanfona.
- Foi mesmo, meu gato?! Que bom que o meu herói venceu tudo e esta aqui
comigo!
Gato de Rua sentia-se no décimo-quarto céu, que aquilo era sétimo-céu
duas vezes! Rouronou baixinho, lambeu as mãos da menina.
- Ai, Gato! Seus bigódes dão uma 'cosquinha'...
Agora, que o quarto fora todo inspecionado, ficara um abrigo seguro.
Lili remanejou com habilidade os modulos da estante dos brinquedos,
colocou uns livros grandes e papelões como anteparos, e la estava Gato
de Rua em seu novo castelo.
Naquele dia, a mãe das meninas estranhou um pouco a inusitada aplicação
e eficiência de Lili no cuidar pessoalmente da limpeza e arrumação de
seu quarto.
- Você tem razão, mãe, a gente tem de aprender e acostumar a cuidar das
nossas coisas, e so aprende fazento. Deixe comigo!
E assim, aboletado e alimentado, la ficou Gato de Rua até a noite,
quando saiu à caça de Don Ratão, pelo buraco secreto no forro do
quarto.
La em baixo, na sala, o pai de Lili reclamava, furioso.
- Maldito rato! So pode ter sido ele a dar sumiço aos meus papéis!
- Ora, Léo, - ponderou a mulher - quem já viu rato dar sumiço num
caderno de poemas? Só se for um rato critico, desses que tem tantos por
aí, nos jornais...
O marido ignorou o que podia ser uma gozação na segunda parte da frase.
- Mas é, mulher, se nem você nem as meninas mexeram, onde pode ter ido
parar a massaroca? E havia ali um monte de poemas originais, que eu nem
tinha passado a limpo ainda! Claro que foi o rato, Pelo tamanho das
marcas ali, onde caiu o caldo da buxada de boe, e ele deixou pegadas,
não se trata de um ratinho qualquer, nem mesmo de um ratão, é uma
ratazana criada, daquelas de ministério...
Gato de Rua tremeu nas bases. Enquanto ouvia o discurso do pai de Lili
uma nova façanha se desenhara, em sua cabeça, como uma possibilidade de
conquistar um lugar à sombra naquela casa, mas com uma ratazana de
ministério não contava... nessas, nem CPI da jeito!
- Éh... mas... e Lili? - pensou. - Lili não vale a pena? E uma vitória
ainda apagaria aquela desagradavel lembrança do nariz-sanfona...
Gato de Rua se ergueu nas patas, espreguiçou-se para criar animo, saiu
à caça.
Em poucos minutos, num quarto remoto da casa. um daqueles que Vovó
Felina chamava de 'quarto dos badulaques', descolou um precioso objeto
debaixo de uma vellhissima geladeira. Já estava de bom tamanho, mas era
preciso localizar o bicho roedor.
Não teve dificuldades em encontrar a pista do rato. O que não foi fácil
foi não desmaiar ao ver o tamanho do bichão que teria de enfrentar.
Enorme!
Vovó Felina de novo lhe acudiu.
- "Menino, para forte, so cuca...",
Lembrou-se, então, de como Tio Gatilho havia conquistado a Tia
Gagata, o estratagema celebrado em verso e prosa na família. Tio
Gatilho? Seria Tio Gatilho mesmo? Ou teria sido Primo Gatuno, na
conquista da gata Glicerina? Não se lembrava ao certo, mas não fazia
mal: o importante era que o estratagema lhe houvesse ocorrido.....
Sorriu, ao verificar que as janelas da casa eram daquelas de
guilhotina, uma interna, de vidraças, uma veneziana externa, ambas
mantendo-as suspensas apenas por linguetas moveis.
Gato de Rua foi sorratéiro à cozinha, pescou um pedação de queijo na
queijeira de palha que medeava entre duas antigas moringas de barro, e o
colocou estratégicamente no peitoril de uma das janelas, depois de
verificar qual a que tinha mais frouxa a lingueta de baixar/levantar.
O pulo-do-gato o levou à pequena plataforma do oratório, em que
São Jorge secularmente não se cansava de tentar matar o dragão, e lá
ficou de tocaia, enroladão na cortina que esbordava da janela.
Por um momento receiou que a ratazana o pudesse farejar, mas achou que
o cheiro das flores, diariamente renovadas no oratório, mais o
apaixonante aroma de chulé' do queijo, disfarçariam seu odor gatal.
Não demorou muito, a ratazana apareceu, primeiro com infinitos cuidados
e lentidão, depois a pouco e pouco mais audaz, até saltar para uma
banqueta, e dai para a janela.
O brilho nos olhos da ratazana, diante do queijo, trouxe à mente de
Gato de Rua uma história que Tio Gatilho, que era saido a Gato de
biblioteca, contara certa vez, sobre um tal de Escritor Simenon, que
havia dito sobre um outro daqueles horrendos queijos 'camember': "Oh...
les pieds du bon Dieu!..."
Gato de Rua, que, de tanto ver desenhos de Tom & Jerry nas tevês dos
bares e restaurantes, só arranhava um pouco de inglês, não alcançava o
total sentido da frase do tal escritor, mas o brilho dos olhos da
ratazana, logo ali, era incontestavelmente igual!
Continuou mais alguns segundos à espreita, a avaliar bem distancias,
posições, e a sorrir intimamente: É... não penduro um guizo, mas ponho
uma janela no pescoço de Don Ratão...'
Zas.. era o momento! Uma esticada de pata...um leve arranhar de garras
na lingueta frouxa... e la desabou a janela, guilhotina de verdade, bem
no pescoço de Don Ratão, a mandar a imensa ratazana para o inferno,
'ou, ao menos, para o Purgatório...', sorriu Gato de Rua com ar
vitorioso.
A janela, ao cair, não fez o estrondo que esperava para chamar a
atenção dos da casa. mas Gato de Rua não se apertou.
De um pincho estava à porta da sala, onde as duas meninas e os pais
tomavam sorvete de sapoti como sobremesa do jantar. Parou à porta, miou
alto, ensaiou uma especie de bailado e, ao ver que Lili e o pai,
saltando cada qual de sua cadeira, embarafustavam em direção à porta,
seguidos de
Nana e da mãe, deu meia-volta em disparada.
Quando a família entrou sala adentro, Gato de Rua estava em pleno salto
para a plataforma do oratório e, a um novo esticar de pata, deslocava a
lingueta da janela externa, a de veneziana, que, agora sim, tombou com
estrondo, fazendo mingau do que restava do queijo no peitoril
- e, pensou ele, 'espero que também da lembrança do outro Mingau e das
resistências do barbudo...'
- Gato de Rua! Meu herói! Ta vendo, pai? Gato também é cultura...
Os quatro espiavam perplexos para baixo, onde a ratazana dormia sua
morte por overdose de janelada.- Lili ja ia tomando o gato nos braços,
mas ele escapuliu passando entre as pernas do estupefato dono da casa e
parando, em novo misto de miados e bailado, no mesmo limiar de porta no
qual, dois minutos antes, chamara a atenção da família.
A estupefação dos pais, e mesmo das meninas, congelou-os por um minuto,
e depois sairam todos atras do gato, que, a cada soleira de porta,
ensaiava novo balé e concerto de miados, pondo-se de novo a correr.
A sedução/caçada findou no "quarto dos badulaques", onde Gato de Rua,
finalmente, meio que se escondeu, meio que ficou a chamar a atenção
entre os pés da velha geladeira.
Quando Lili esticou as mãos para, enfim, recolher o vitorioso, este lhe
puxou uma delas para baixo do movel, fazendo-a tatéar por ali.
- Pai! Tem alguma coisa aqui!
O que havia embaixo do velho movel que punha tanto desespero no focinho
de Gato de Rua???

Capítulo X

A frase de Lili ficou por um momento suspensa no ar, abanando o
espanto dos outros com sua longa exclamação. Finalmente o pai se moveu.
Empurrou a velha geladeira e a luz se fez sobre o grosso e velho caderno
que procurara durante todo o dia pela casa.
Lili pulava de contentamento:
- Pai! Foi ele! Foi o meu querido herói quem o encontrou!
A fúria escorria lentamente por entre os fios de barba. Um riso imenso
alargava o rosto, formando estriazinhas de risos novos no canto dos
labios. No oratório, Gato de Rua abanava levemente a cauda, sim! Porque
agora sabia que tinha cauda! Não era mais um simples Gato de Rua, de
rabo pelado, ah, isso não!
O pai saiu do quarto levando seu precioso achado, seguido pela mãe.
De fato, a vida de Gato de Rua sofreu uma profunda transformação. Não
que o pai de Lili permitisse que ele vivesse na casa. Podia sim,
aparecer sempre que queria. Tinha comida, soneca na cama de jornais,
afagos da sua amada e o que era ainda melhor, tinha liberdade para
longas andanças, porque Gato de Rua que se preza, sempre amara uma
cobertura de lua e estrelas, saltos por sobre os muros, corridas e
pandegas com seus irmãos de liberdade.
E nova quinta-feira chegou, com brisa fina, uma imensa lua cheia e o
trote alegre da família para o restaurante. Naquele dia, estranhamente,
Gato de Rua não havia aparecido para o almoço, nem à tarde, viera
roronar suas gatutices no ouvido de Lili. A menina andava apreensiva.
Nana, por sua vez, profunda entendedora da cultura gatal, sabia que
cedo ou tarde, as visitas iriam se prolongando, prolongando, até...
O jantar ja ia em meio, quando Lili deu um berro:
- Olhem la! E Gato de Rua! Vem trazendo uma coisa...É um jornal!
Uma veia latéjou na face do pai, primeiro indicio de uma indisposição
com o felino. Gato de Rua veio vindo, cuidando para não tropeçar,
encolhendo o corpo por entre pés de mesas, pilares e plantas. Chegou
finalmente junto à cadeira de Lili e deixou cair o jornal sobre sua
perna.
O pai, cuja veiazinha da face ainda latéjava, já ia pegar o jornal para
atirar no lixo, quando...
- Pai! Tem você aqui no jornal! Parece que...
E a menina leu em voz alta: "O primeiro lugar no concurso de poesias do
Sesc fica com o Poeta do Absurdo. Léo conseguiu ser imbatível, entre os
mais de quinhentos inscritos!".
A veiazinha da face acalmou-se completamente. Um espanto novo, cheio de
alegria, tornava o rosto do poeta resplandecente de luz.
Do seu proprio prato, pescou um belo naco de carne, que de proprio
punho, ofereceu a Gato de Rua. Nesse momento ele compreendeu. Estava
selada a paz entre ambos.
Houve algazarra grossa na mesa do jantar. Lili e Nana puxaram seu canto
de saudação, enquanto o pai e a mãe tocavam com os talheres:
- GDR é um bom companheiro, GDR é um bom companheiro, GDR é um bom
companheeeeeeiro, ninguem pode negar.
As previsões de Nana não se confirmaram. Gato de Rua passou a morar na
casa, de onde so saia para breves passeios. No fundo, no fundo, um
pequeno filete de medo ainda o perturbava.
Não se tratava da cadela Doga. Esta já entendera os novos habitos da
família, e, embora de dentes cerrados, assistia impassível ao ir e vir
do Gato de casa para a rua e da rua para a casa.
O que o inquietava era a última frase de Gatuninho Malvadeza, soprada
em seu ouvido, com fina ironia, na noite em que o ajudara a entrar no
quarto de Lili. Aquela frase passeava dia e noite por entre as suas
viceras, vasculhava sua alma, inventava sotaques novos, a meio das
silabas, somente para o atormentar:
- Tudo dara certo. Você tera sua lua de mel. E eu...
- E eu, no momento oportuno, saberei lhe cobrar a conta dessa grande
felicidade.
E qual seria mesmo a conta da sua felicidade? Sondava o cósmos,
espreitava a brisa fina, escutava por horas a fio os segredos que as
palhas do coqueiro desfiavam ao léu... Vovó Felina havia misteriosamente
desaparecido. Nenhum fiapo de felinosofia para acalmar sua alma, quem
sabe elucidar sua teia de duvidas...
A conta veio de repente, de modo imprevisível, como um relampago, um
estampido. Gato de Rua estava entre dormindo e acordado, tentando
acompanhar o passeio de uma nuvenzinha branca, pequeno farrapo de
algodão, quando... estipum! Escancarou os olhos e viu diante de si o
riso mau de primo Gatuno, a linha dos dentes à mostra. viu ainda o medo
da pequena nuvenzinha que desapareceu na quilha do horizonte. Ambos
estavam embaixo do coqueiro. As palhas também se calaram. Seriam
testemunhas mudas daquela cena ancestral em que dois gatos acertavam
suas contas.
- Chegou a hora, grande GDR.
- O que você quer? Posso agora te pagar aquela conta. A voz saia aos
bocados, quase sem pausas, como se Gato de Rua fosse um narrador de
futebol. Posso te assegurar um mes inteiro de carne e queijo. Posso te
dar jornais para uma boa cama... Posso arranjar para você um
..lugarzinho na garagem... Posso o que você quiser. Agora sou um gato
rico, gordo, tenho um amigo poeta e minha amada...
- Sei de toda a sua trajetória. Imagino que você não esqueceu que deve
tudo isso ao seu amigo aqui, não?
- Claro que não. Não esqueci. No fundo, Gato de Rua sabia que somente
devia ao Malvadeza a idéia do pulodromo e as distrações da cadela Doga.
O resto, o resto da sua felinicidade, ele conquistara sozinho, com sua
inteligência e esperteza. Não disse nada. Engoliu as patas do orgulho.
Gatuninho sacou do bolso uma longa folha de planta, cheia de letras. Ia
estendê-la para Gato de Rua, quando Lili apareceu na janela. Olhou para
os dois e não se conteve:
- Mingau! Mingau! Nana, Mingau voltou!
Gatuninho Malvadeza estremeceu. Ergueu-se de um salto e num pulo
rapido, passou para o muro da companhia de água e de la, para uma
corrida sem tréguas que o levasse para bem longe daquela casa.
Lili correu para o quintal e encontrou Gato de Rua ainda tremulo,
picando na mão uma folha de crote do jardim da mãe.
- Onde ele esta? Fugiu novamente?
Gato de Rua consolou-a como pode. Depois, contou-lhe toda a saga de
Gatuninho Malvadeza. Agora entendia porque nunca havia encontrado
mingau. Gatuninho Malvadeza, dedo duro, 171, era o gato boboca que fugiu
da casa de Lili. Aquele que não "comeu pelas beiradas e pelas beiradas
foi comido". Sabia que já nada devia ao gato, mas agora, era o grande
proprietario do seu segredo, o segredo da sua identidade.
Oulhou para Lili e de novo temeu pelo seu amor. Com muito receio, do
fundo do coração, puxou uma pergunta:
- Você ainda o ama, Lilizinha?
- mmnàu... Disse Lili com uma voz gatural, uma lagrimazinha no canto
do olho.
- Você ainda o ama, disse Gato de Rua cheio de tristeza.
- Não. Disse Lili, com voz firme, vendo já uma lagrimazinha no canto do
olho de Gato de Rua.
Ambos sorriram. O gato aninhou-se nos braços da menina e ficaram os
dois a escutar a dança invisível da natureza na sua eterna reinvenção do
novo...JOANABELARMINO

Dartanhan
um Gato com Gosto de Pinto

-
EDITORA
MOdERNA

2? EDIÇÃO

FrAso
Alvzs

Sumário

ii


1.Apresentação .............................
2.A praga da galinha.........................
3. Gluglu à procura de Dartanhan . . . . . .. .. . . .. . .
4. Gluglu na pista de Dartanhan . . . . . .. . . . ... . . .
5.Os dois voltam.............................
6.A escola de Dartanhan ......................
7. Dartanhan faz confidências a um vaga-lume . .. . . .
8. Os sete fôlegos de Mimo Dartanhan . . . . . . . . . . . .
9.Um gato com gosto de pinto.......,,,.,,,,,,,
10.O discurso do vaga-lume....,,,,,,,,,,,..,,,,

São muitas as histórias que se passam nos terreiros de
galinhas, principalmente no verão, quando as aves passam
as tardes nas sombras, ou estão no banho que espalha grãos
de areia pelo ar. Nessas horas as galinhas cantam diferente,
como se conversassem, como se quisessem encher as sombras
de palavras preguiçosas, que se a gente tiver o cuidado de
juntar darão belas histórias.
Quantas vezes, no nosso terreiro, não surpreendi as
galinhas nessas conversas àtoa, que até o galo vinha escutar.
Ficava lá, bicando o chão e, quando as galinhas davam por
ele, o orgulhoso galo dava um cocoricó zangado, de repreensão, chamava
as galinhas de fofoqueiras e saía. Galo bobo!
Quem é que não gosta de histórias, mesmo quando elas são
contadas pelas galinhas?
Pois bem, eis a minha história, colhida no nosso terreiro
de galinhas. Nela, algumas personagens são reais, como é o
caso de Mimo Dartanhan, o nosso bonito gato angorá, que
eu mesma batizei, mas que um dia tivemos de soltar, ou
então ele dava cabo de todos os nossos pintos. Gluglu é
aquele pintinho bonito que vimos virar galo. O pato que,
na história, aparece como jornalista, um dia o almoçamos
ao molho, quando eu voltava de uma viagem que fiz a Vitória
do Espírito Santo.

9

1

O gato de rua, a Lili, a floresta com seus animais e o
temo vaga-lume são invenções que trouxe para a história,
para tomá-la mais divertida.
Enfim, se a minha história for uma invenção, não me
culpem, porque é verão e há muitas conversas no terreiro de
galinhas. Invenção ou não, quero dedicá-la aos meus alunos
da 1ª. série, Beto, Basto, Marinalva, Severino e Toinho, que
já leram comigo os originais e disseram ter gostado muito.
Dedico-a, ainda, à memória de uma gorda galinha que em
breve dará mais prazer ao nosso almoço de domingo.
Chega. Vamos conhecer de perto Mimo Dartanhan,
esse gato que não sei se é mau ou se é guloso, vocês que o
julguem...

Dona Coruja leu primeiro a notícia. Depois ela foi lida
por todos os leitores do jornal do Senhor Pato. Angorá, ou
Mimo Dartanhan, seu nome de batismo, já fora manchete
várias vezes. Quando paquerou a gata Lila, namorada do
gato preto, quando pegou uma briga com a mãe da gata Lila.
quando comeu o primeiro pinto.
Quando veio para aquela casa era ainda criança, um
primor de gato! Corria pela casa, brincava com qualquer
coisa que se mexesse, adorava pendurar-se na vassoura en-
quanto ela varria. Era também curioso. Ficava olhando as
coisas do terreiro, o poço, a água correndo da torneira, a
ninhada de pintos passeando com Dona Galinha. Ah, os
pintos! Era neles que os olhos do gato mais se demoravam,
compridos, arregalados, enquanto seu coração dava pulinhos,
tentando acompanhar o bole-bole dos bichos.
A galinha não gostou daqueles olhos compridos e até
comentou com o. galo:
- Aquele gato tem um jeito esquisito de olhar pros
meus filhos. . .

O galo contou a história de um gato que tinha o mau
costume de comer pintos. Ela fez o sinal-da-cruz, acrescen-
tando:

- Ele que se arme de méxer com os meus filhos, ele
que se arme...
Dartanhan crescia, mimado em casa, correndo pelo
terreiro, dormindo enrolado no sol das manhãs. A curiosi-
dade pelos pintos não acabara, pelo contrário, transforma-
ra-se em obsessão. Via-os o dia todo no terreiro e à noite
sonhava com eles. Eram sonhos terríveis, com sua boca cres-

cendo, ficando do tamanho do poço e os pintos entrando nela
todos de uma vez. E como eles tinham a carne gostosa!. . .
, Ele acordava horrorizado, passando a pata na testa para
expulsar as visões.
Numa manhã de junho, um dos pintos, o amarelinho
predileto do galo, extraviou-se das asas da mãe e foi bicar
uns grãozinhos de arroz junto à pia da cozinha. Dartanhan,
que estava embaixo da mesa, ouviu o pipilar do bichinho e
deu um salto, para ter a certeza de que não estava sonhando.
Envolveu o pinto num olhar brilhante e de repente era
como se o sonho entrasse nele. Seus olhos cresceram, viraram
poço que engolia e desengolia o pinto numa ânsia febril.
Bem que ele tentou resistir àquele delírio, mas o sonho insis-
tia, empurrava-o, sussurrando-lhe ao ouvido o quanto era
deliciosa a carne do bichinho.
Quando a dona da casa chegou, o gato já havia engo-
lido os últimos pedaços da ave. Penas ensangüentadas no
chão contaram-lhe a triste história do pintinho amarelo.
O susto de Dartanhan também foi grande. Ele não
queria crer no que as penas diziam, julgando ser mais um
dos seus pesadelos.
A vassoura nas mãos da senhora, ou melhor, a primeira
vassourada, disse-lhe que ele estava bem acordado e que era
preciso fugir, antes que o corpo pagasse pelo terrível crime.
Logo a notícia varou o terreiro, circulando de bico em
bico. No outro dia foi lida por todos os bichos acrescida de
detalhes que o Senhor Pato inventara.
E, nessa conversa, o gato deu cabo de doze pintos.
Vinham os sonhos à noite, vinha o pinto sozinho na cozinha
ou nalgum canto do terreiro, vinha o susto, vinham as vas-
souradas, vinha o arrependimento.
A partir do sétimo pinto, Dona Galinha já não chorava.
Trazia os olhos secos de ódio, como costumava dizer a umà
amiga. Mas havia de se vingar do assassino, ah, se havia!
Trouxera o catimbó no sangue, herdado de uma tia baiana

P, 1,
Na noite do décimo segundo ela não dormiu. Rezou
suas feitiçarias, encomendou uma praga para Dartanhan. E
a praga pegou, como vocês bem viram no jornal do Senhor
pato_

Dartanhan acordou jururu, sem vontade pra nada, a
cabeça oca. A raiva dos donos da casa cresceu, não o que-
riam mais ali, que se fosse embora de uma vez.
Ele se foi numa tarde de outubro amolecido e sem
vontade. Deixou-se meter numa caixa e se foi.
Nenhum bicho presenciou a partida de Dartanhan. No
outro dia, todos compraram o jornal para ver o que o pato
escrevera acerca do fato.
A notícia parecia ter sido feita naquela hora, pois a
tinta ainda estava fresca. Dizia assim:


Seria verdade? Seria mentira? Um artigo muito bem
feito, uma síntese, como dizia o peru, professor de Português,
mas que não informava nada aos bichos, ávidos por mais
detalhes.
Os detalhes não vieranl e Dartanhanl foi esquecido.
Dona Galinha, porém, ganhou fama de feiticeira e sua casa
vivia cheia de frangas e galinhas que vinhanl procurar seus
serviços.
O jornal do Senhor Pato, este andava magro de notícias
e de leitores, e de vez em quando ele dizia com uma pontinha
de fé:
- Ah, se aparecesse por aqui outro gato comedor de
pintos...

14

Agora o terreiro estava em paz e outra ninhada de pintos
passeava feliz, sob as asas de uma Mamãe Galinha meiga e
orgulhosa de seus filhos. Tinham nascido há dois dias e pela
primeira vez vinham ver o Sol, o terreiro, o poço e os outros
animais.
Pipilavanl baixinho os nomes que Mamãe Galinha a
sorrir lhes ensinava.
- Vejanl, aquele é o peru. É uma bela ave. Vamos,
repitanl seu nome.
- Pi. . . pi.. . pi. . . - diziam eles num sotaque en-
graçado de pinto recém-nascido.
- Aquele é o Senhor Pato. Já foi muito respeitado
por causa do seu jornal, mas agora não vende um número
sequer.
- Pi... pi... pi...
Eles queriam saber por que o pato não vendia os seus
jornais.
- Não há mais notícias neste terreiro desde que Dar-
tanham se foi - explicou Mamãe Galinha enquanto fazia o
sinal-da-cruz e aconchegava mais os filhotes a seu corpo
quente.
- Quem é Dartanhan?
- Vocês não precisam saber quem é ele. Sua memória
deve ser varrida para sempre deste terreiro.
Se Mamãe Galinha fosse mais experiente, não teria dito
aquilo, porque suas palavras ficaram mexendo e remexendo
na cabeça de um dos filhos. Ela não poderia adivinhar que,
dentre os nove pintos chocados numa mesma época, um saíra
curioso, pensativo e inquieto. -

15

De

Era Gluglu. Mamãe Galinha não percebera que, já
naquele primeiro passeio, ele andava catando aventuras no
chão, no ar, na cor da água do poço e nas raízes da grande
mangueira solenemente enterradas no solo.
Gluglu estava achando o passeio monótono e já por
duas vezes quisera fugir de debaixo das asas, mas Mamãe
Galinha o empurrara para o abrigo, com conversas de que
o terreiro andava cheio de perigos e de que os pintinhos não
saberiam se defender sozinhos.
- Mamãe é medrosa - pensou Gluglu.
Mas ele ainda não sabia pensar baixo e Mamãe Galinha
ouviu o que dissera. Ficou irritada, disse que tinha um filho
muito malcriado, e com os olhos cheios de lágrimas acabou
o passeio e levou os filhos para o ninho.
Os oito estavam cansados e adormeceram logo. Mas
Gluglu não. Ele ficou pensando naquela conversa da mãe e
repetia o nome de Dartanhan sílaba por sílaba.
- Dar-ta-nham. . . Dar-ta-nham. . . Quem sabe ele
não é um bicho feio e grandão, que ronca de noite e mete
medo na bicharada toda?... E se for um galo enorme de
unhas pontudas? Ah, tenho de descobrir! Tenho de des-
cobrir!

Os dias passavam-se iguais. De manhã, o xerém de mi.
lho, a água no caco, os passeios pelo terreiro. Agora os pintos
novos tinham maior liberdade. Andavam sozinhos ou em
bandos, mas quase sempre sem as asas protetoras da mãe.
Gluglu não esquecera o nome Dartanhan e sempre
se afastava dos irmãos para pedir informações. Primeiro,
indagou das outras crianças, pintos, patos, perus e marrecos,
que nada tinham a dizer. Um peruzinho sugeriu que Darta-
nham era a dona da casa, porque na noite anterior vira sua
mãe se referir a ela com os olhos cheios de medo.
- Não, não creio. Quando mamãe falou em Darta-
nham deu a entender que ele era do sexo masculino.
- Então não sei.
Com os adultos não houve jeito. Eles não queriam con-
versa com o pinto e o chamavam de garoto intrometido e
chato. O galo, um dia, até ameaçou de bicá-lo quando ele
perguntou sobre Dartanhan.
Assustado, Gluglu saiu correndo e do susto nasceu uma
idéia que lhe pareceu boa. Entrou correndo na casa do pato,
que remexia em velhos jornais, e gritou:
- Senhor Pato, apareceu Dartanhan!...
- O gato? Onde está ele?
- Ah, então é um gato?! - gritou Gluglu com um
grande sorriso no bico. .
- Vamos, menino, diga: onde está ele? Ah, já sei.
Deve ter ido à casa da galinha feiticeira. Meu Deus, preciso
fazer uma foto! Uma grande foto colorida! Dartanhan no
terreiro! Acabou-se a paz das galinhas-mães. Ah, ah, ah,
ah. . . Amanhã vendo todos os jornais. . . Menino, me ajuda
aqui! Me ajuda! Preciso encontrar aquela máquina!
Mas Gluglu já ia longe. Seu coração acompanhava o
correr de suas pernas em direção à casa da galinha feiticeira.
O sorriso no bico, a cabeça cheia de pensamentos atropelados
e uma pontinha de vaidade inchando-lhe o peito.
"Sou o pinto mais corajoso deste terreiro. Não tenho
medo da feiticeira e vou descobrir a história de Dartanhan."

Gluglu era também sensível. A história de Dartanhan,
contada por Dona Galinha, tirou-lhe o sossego. Queria saber
o que tinha acontecido ao gato, onde estava ele agora. A
velha galinha cacarejou pausadamente:
- Só o velho pato jornalista insiste em dizer que Deus
o matou. Pelo que sei, Mimo Dartanhan está bem vivo, gordo
e feliz, numa casa da cidade onde não se criam pintos.
- Pois alguém precisa vingar-se. Alguém precisa en-
sinar a esse bandido o caminho do inferno.
Um brilho fraco iluminou os murchos olhos da feiticeira.
'- Como tentei! fiz mil catimbós, rezei mil orações do
fim pro começo e nada. Quando olhava nas cartas, o mise-
rável me aparecia sorrindo, os olhos brilhantes de vida. Quem
sabe você possa fazer alguma coisa? É jovem, corajoso, o
primeiro pinto que transpõe a soleira da minha casa, quem
sabe. ..

Aquela noite foi difícil pegar no sono. No seu cantinho,
Gluglu pensava num meio de encontrar o gato, vingar o ter-
reiro e trazer um pouco de alívio para os últimos anos da
velha feiticeira.

"O que fazer? O que fazer?", era a grande interrogação
que piava dentro dele ininterruptamente.
No dia seguinte acordou tarde e assustado com a gri-
taria de patos e pintos. Olhou em volta e viu os olhos assus-
tados da mãe e os outros irmãos encolhidos de medo.
- O que houve mãe? Por que tanto barulho?
- É o comprador, veio da granja com dois cestos
enormes.

18

19

- Comprador? O que é isso?
- É o homem queleva os pintos para a granja. Lá,
eles crescem, vão para o me.rcado, e são comprados por mu-
lheres que de faca em punho os transformam em almoço e
jantar. Uma tristeza.. .
Mas, para alívio da galinha, seus filhos não foram es-
colhidos.
- São muito pequenos - disse o homem -, podem
morrer na granja.
Gluglu olhava o cesto cheio de aves e, de repente, uma
idéia surgiu, no meio daquela orquestra de pios e cacarejos.
"E se eu fosse à granja? Lá eu cresceria, viraria frango,
ia ao mercado, no mercado me comprariam e. . . Quem sabe
não iria parar na mesma casa onde vive Dartanhan?"
Olhou para dentro de um dos cestos e viu Goelinha, a
pintinha pintada que lhe ensinara o pai-nosso e brincava de
pega-pega na grama com ele. Encaminhou-se para perto do
cesto e falou:
- Goelinha, chegue aqui na borda, preciso falar-lhe.
- O que quer, Gluglu? Minha vida acabou. Vou sentir
tantas saudades de você. . .
- Ora... - Gluglu ficou vermelho. - Goelinha,
deixe-me ir, deixe-me ir no seulugar. Não é justo que uma
ave tãolinda acabe na ponta da faca de uma dona-de-casa
qualquer.
- Ah, Gluglu, como você é bom. Mas agora não tem
mais jeito, mamãe até já se conformou, sabe?
- Mas, Goelinha, eu preciso ir, preciso ir! Você não
imagina como essa viagem me fará bem. E, depois, eu não
vou morrer. Quero ensinar ao homem da granja e às donas-
de-casa como um pinto deve ser respeitado.
O homem pegou o outro cesto e o colocou na cami-
nhonete. Goelinha roía as unhas, indecisa.
- Não sei, Gluglu, não sei. . . E depois, se você mor-
rer, eu também morro de remorsos.
- Tudo bem, você morre, mas me deixe ir, me deixe
ir! Veja, o homem vem vindo, pule daí.

20

Goelinha deixou-se empurrar pelo pinto, que por sua vez
pulava para o seu lugar dentro do cesto.
- Adeus, Goelinha. Guarde este recado para minha
mãe. Diga-lhe que vou vingar o terreiro, diga-lhe que trarei
Dartanhan para ser morto por todos nós, ouviu? Dartanhan,
ouviu?
O homem ligou o carro e partiu, sem que Gluglu
pudesse ver duas lágrimas que Goelinha aparava no gra-
cioso bico.
Naquele dia o Senhor Pato vendeu alguns jornais. É
certo que sem nenhuma foto, porque ainda não conseguira
achar a sua máquina. A fuga de Gluglu e o seu recado deram
uma boa notícia. Só Mamãe Galinha não tivera coragem de
ler e chorava dizendo:
- Um pinto estranho aquele. Catando aventuras. Vai
acabar na faca. Um menino tão bonito, tão inteligente. . .
Na granja, Gluglu pensava:
"Vida do diabo, Goelinha, vida triste, mamãe. . . Nada
de sol, nada de poço, nada de correr na grama. É só pinto
piando, fazendo cocô no chão. . . Uh! O jeito mesmo é espe-
rar até virar frango!"
Mas não foi preciso virar frango para sair da granja.
No outro dia mesmo, uma menina gordinha, com laço de
fita no cabelo e riso na cara corada, pegou o pintinho nas
mãos e disse:
- Ah, mamãe, que bonitinho! Compra ele pra mim!
- Ora, Lili, é muito pequeno.
- Mas eu quero, mamãe, nunca criei um pintinho!. . .
E tanto chorou e beijou Gluglu, que ele até se esqueceu
de Goelinha. No carro, nas mãos de Lili, Gluglu mexia-se
de ansiedade.
"Estará lá o gato? - Estará lá o velho Dartanhan?",
pensava.
Na casa foi difícil livrar-se da menina, que lhe dava
água, alpiste e o acariciava, tudo ao mesmo tempo. Só à
tardinha, quando o pai chegou, Gluglu teve sossego. Aí co-

20

meçou a sua busca. Andou por toda a casa à procura de
Dartanhan, como se ele fosse pequenino e estivesse metido
em alguma fresta. Nada. Decididamente não havia gato ne-
nhum ali.
Gluglu suspirou de tristeza e foi dormir. Deitou-se e
repetiu baixinho uma frase que ouvira do Senhor Pato:
- Amanhã será outro dia.
E repetia isso todas as noites, enquanto os dias passa-
vam-se iguaizinhos, com Lili enchendo-o de carinhos e não
dando brecha pra ele fugir. Ele estava maior, mais forte e
agora o seu piar era meio rouco. Às vezes vinha uma sau-
dade doida do terreiro, da mãe, de Goelinha, e ele não comia,
e Lili chorava dizendo que o pinto não gostava dela.
- Não gosto não, você me atrapalha a vida.
Fugiu uma noite, cansado de esperar por uma boa idéia
que não vinha. Não sabia para onde ir e ficou vagando pelos

arredores da casa. Depois achou que seria melhor ir para
longe, bem longe dos carinhos de Lili. Gluglu até sentiu
uma pontinha de pena da menina. Lili haveria de chorar
muito quando desse por sua falta.
Estava escuro e fazia frio, mas Gluglu não tinha medo
de nada. Batia no peito ou esfregava as mãos para se aquecer
e dizia em voz alta:
- Não sou carioca, mas sou da gema e do ovo. . .
De repente, ouviu um miado. Deu um pulo para trás e
esticou as unhas para se defender. Pela primeira vez sentiu
medo, essa coisa estranha que sempre fizera os pintos enco-
lherem-se a tremer, agora o levara a recuar. Mas lembrou-se
dos doze pintos mortos, da velha galinha a preparar vingan-
ças inúteis e tentou resistir ao medo. Foi então que viu o
brilho nos olhos do gato e escutou o que ele dizia a miar:
- Ei, chefe, guarde as suas unhas, eu sou de paz.

- Como pode você falar de paz? Você não passa de
um bandido. Comeu doze pintos indefesos e ainda fala
de paz?
- Doze pintos, eu?... Pra seu governo, meu caro,
eu não como há três dias. O último pedaço de carne que
comi, há uma semana, estava no lixo e cheirava mal.
Gluglu olhou o corpo magro do gato e quis acreditar,
mas só por um momento. De novo voltou sua carga de ódio
contra ele.
- Sim, começa a pagar pelos crimes. Tinha vida de
principe lá no terreiro, vivia bem, por que foi se meter com
os da minha raça?
- Escuta aqui, cara, você está maluco? Nunca estive
em terreiro algum, nunca vivi bem e, se quer saber mais,
pra mim, carne de galinha, só guisada ou assada. Acho bom
você ir dando o fora, porque eu estou à espreita de um rato
e se ele me foge você me paga.
- Vai me comer? Vai me comer, como fez aos outros
doze? Você não me engana, Mimo Dartanhan. Se virou
mendigo, ainda é bem pouco para a sua maldade.
O gato deu um salto e sorriu:
- Ah, eu bem vi que você estava me confundindo,
mas olhe que isso até é um elogio, viu? Confundir-me com
um angorá...
- Mas você não é angorá? - perguntou Gluglu, lem-
brando-se de que a feiticeira falara em angorá quando se
referira ao gato.
- Não, não sou. Meu pêlo é de uma cor comum e está
ralo. Veja como o meu rabo é curto. O dos angorá é longo
e felpudo. O de Dartanhan, então, é tão bonito que me
causa inveja.
O pintinho aproximou-se do gato e achou-o de fato
muito feio, magro, parecendo doente.
- Como é seu nome? Você conhece Dartanhan? Ago-
ra estava com medo de que o outro fosse embora zangado.

24

- Nome... eu? Nasci na rua, guri. Já me safei de
boas, mas acho que no próximo carnaval não escapo.
- Por quê?
- Se eles me pegam dando sopa, tiram meu couro
pra tamborim.
Gluglu tentou imaginar o gato sem couro, mas a idéia
o arrepiou todo.
- Escuta, você conhece Dartanhan?
- Conheço, sim. É um belo gato. Ouvi dizer que sua
dona o pôs na escola para corrigi-lo de um horrível defeito
de comer pintos. Ouvi dizer também que, daqui a seis meses,
ele recebe diploma de professor.
- Professor de quê?
- De pintos, ora essa.
- Eu preciso encontrar esse gato, preciso matá-lo.
- Você é um pintinho pirado mesmo, né? Cara, se
Dartanhan e você se agarram numa briga, ele desmantela
os seus ossos em dois tempos.
- Você acha?
- Não, não acho, eu tenho certeza. Desista, meu fi-
lho. Ou você não tem amor às penas?
- Mas eu preciso falar com ele, será que você não
pode me ajudar?
O gato deu um pulo e fugiu. Daí a pouco voltou com
os restos de um ratinho entre os dentes.
- Quer?
- Não, obrigado. Nós, da minha raça, não comemos
outros animais.
- O quê? Conheci um galo que comia umas mil mi-
nhocas e umas duas mil baratas por dia.
- Mas, diga-me, não há jeito de eu falar com Dar-
tanham?

- Bem, eu posso tentar. Ele não gostá de ser impor-
tunado, mas quando lhe disser que se trata de um pintinho
lá do seu terreiro, quem sabe. . .

25


i ¡
1

Gluglu não percebeu o tom irônico na voz do gato.
Estava cheio de esperanças e até lhe estendeu a mão respei-
tosamente quando ele ia embora.
- Fico esperando por você aqui. Mas não lhe diga
nada da nossa conversa, ouviu?

Já era meio-dia e nada de o gato aparecer. Gluglu,
impaciente, ciscava a terra, bicava pedrinhas e engolia restos
de grama. Só mais tarde é que o outro apareceu e vinha exci-
tado, trazendo qualquer coisa entre os dentes.
- É queijo que roubei da casa dele. Estava dando sopa
na pia da cozinha e eu. . , nhac. Quer?
- Não, não. Estou ansioso para saber o que você con-
seguiu. Diga-me, ele vai me receber?
- Calma, calma, pintinho. Deixe-me primeiro sabo-
rear esse pitéu, só depois é que eu falo.
Para Gluglu, durou séculos a refeição do gato. Depois
de ter comido o queijo bem devagar, ele ainda lambeu a cara
e as mãos cuidadosamente até elas perderem o sal. Por fim,
deitou-se e olhou para a cara aflita de Gluglu.
- Sinto muito, mas Dartanhan não poderá recebê-lo.
- Por quê? Tanto tempo para me dizer isso! Por que
ele não vai me receber?

Depois de uma longa pausa, quase teatral, o gato res-
pondeu:
- Ele viajou. Virou professor e viajou.
- Sim, viajou, mas pra onde?
- Ah! isso eu não sei. O papagaio não soube me dizer.
E depois tive de correr de lá às pressas, porque. . , bem, você
sabe que os gatos não gostam nada das donas vassouras.
Também pela primeira vez Gluglu chorou. O gato dor-
mia a ronronar e o pinto deixou que o pranto lhe molhasse
as penas.
- Vou voltar para casa... Sou um derrotado...
Como poderei matar um gato, um gato professor?. . .

26
5. Os dois voltam

Foi quando viu passar na estrada a velha caminhonete
da granja. Ergueu~se e voou para lá, escondendo-se num can~
to da carroceria, ainda a beber as lágrimas.
- Vou voltar para casa, sou um derrotado!. . .
Ao chegar no terreiro, pulou do carro e se escondeu
entre velhas telhas, até ver o homem sair com seus dois cestos
enormes cheios de pintos. Aí foi para casa, as pernas bambas,
a cabeça baixa. Sua mãe o recebeu entre abraços e lágrimas.
- Gluglu, como você cresceu! Você já é um frango!. . .
Havia muitas notícias. O comprador levara quatro dos
seus irmãos, a velha feiticeira morrera, e. . .
- E. . . ?

28

- Ele voltou. Ele voltou. Dizem que vai montar uma
escola para ensinar aos pintos novos, dizem que...
A conversa foi interrompida com a entrada de Goeli-
nha. Estava linda. As penas limpas e claras, o corpinho roli-
ço. . . O mesmo riso infantil no bico gracioso.
Uma semana depois os dois se casavam, e Mamãe in-
cluiu na lista de convidados o nome do Professor Dartanhan.
Alguns meses e Goelinha já tinha a sua ninhada, e queria
que suas.asas fossem bem grandonas para abrigar os filhos
e escondê-los dos perigos do terreiro. Gluglu, quase galo,
pensava:
"De nada vale coragem em cabeça de pinto. O negócio
é nascer, crescer, virar frango, casar-se, ter filhos e até se
submeter a vê-los comidos por um gato angorà ou transfor-
mados em almoço e jantar."
Mesmo assim, contara sua história aos filhos e lhes
ensinara a célebre frase, que eles diziam em coro:
- Não sou carioca, mas sou da gema e do ovo. . .

29
A escola ia muito bem, até o dia em que Dartanhan
baixou uma norma estranha. Todos os dias, um aluno teria
de dormir em sua casa, a fim de aprender o latim. As mães
estranharam aquilo. Algumas foram à casa do Senhor Pato
e, entre sussurros, perguntaram-lhe o que queria dizer a
palavra latim.
- Trata-se de uma língua clássica, falada principaL
mente pelos padres.
As piedosas galinhas gostaram da explicação e concor-
daram de pronto com a norma do professor.
O primeiro aluno a dormir na casa do gato, não apare-
ceu para a aula na manhã seguinte.
- Cadê Goelita, professor? - perguntaram os outros.
- É uma pintinha muito inteligente. Mandei-a estudar
para ser freira.
Os pintos-homens, segundo explicações do professor,
iam para o seminário e suas mães até pensavam em fazer
festa quando eles voltassem. Festa que durasse três dias e que
fosse bem melhor do que aquela dada na ocasião em que
Gluglu foi eleito governador do terreiro. Elas iam à casa do
professor, levavam-lhe rolinhas grelhadas e perguntavam
quando os filhos voltariam. O gato estava gordo, criara até
barriga. Fitava o céu com seus olhos brilhantes e dizia:
- Quando Deus quiser, eles chegarão. Estarão lindos,
com batinas branquinhas, cordões de São Francisco na cintu-
ra e até bibliazinhas nas mãos.
Devemos confessar, no entanto, que, apesar das belas
profecias do gato, as galinhas não estavam nada tranqüilas.

30

Do jeito que ia, o terreiro ficaria sem nenhum pinto daí a
dias. E, depois, pra que tanto padre num terreiro onde só
havia um médico, um jornalista, o peru, professor de Portu-
guês que nunca dava aula, e Dartanhan, professor oficial?
Nem igreja havia ali. O que iam fazer os padres sem ter onde
rezar suas missas?
As mães começaram a repartir as preocupações dentro
das casas, em cochichos, e por fim resolveram contar tudo
ao galo-chefe. Ainda era Gluglu quem governava o terreiro,
eleito por sua coragem e inteligência. Ele ouviu as galinhas,
com sua calma habitual, e depois falou grave e pausada-
mente:

- Muito estranho, muito estranho mesmo. Creio que
confiamos demais num professor cuja única coisa que sabia
fazer antes era comer pintos. Voltem ao trabalho, preciso
estar só para pensar.
' O que nem Gluglu nem as galinhas sabiam é que, em
seu quarto, Dartanhan debatia-se entre aquela velha vonta-
de, quase delírio, de comer pintos e os conhecimentos que
adquirira com anos de estudo. Nos primeiros dias tinha sido
fácil. Ele dava aulas corridas, entupia o quadro-negro de
exercícios, sem quase olhar para os alunos. Tudo desabara
uma vez em que uma das filhas de Goelinha viera lhe mos-
trar uma redação sobre a importância do milho na vida das
galinhas.
O gato olhava para a letrinha redonda e miúda, na
folha do caderno aberto, mas só via a pintinha, seu corpo
roliço, cheirando a carne sadia. A ciência caiu por terra, os
anos desmoronaram e Dartanhan se viu menino, a boca
cheia dágua, os olhos do tamanho do poço. O latim foi a
única idéia que lhe surgiu para convencer a avezinha a ficar.
Goelita, por sua vez, convenceu mais rápido ainda a
sua mãe. Ela seria a primeira freira num terreiro de galinhas.
Goelinha concordou entre lágrimas e deu-lhe uma peninha
branca que herdara de sua mãe.

31

E todos os dias travava-se uma batalha na cabeça do
gato, entre a ciência e a gula. A gula vencia sempre e, em
poucos dias, Dartanhan nada mais sabia, tomou-se um gato
burro e gordo.
No mesmo dia em que as mães foram se queixar ao galo,
receberam de seus filhos uma avalanche de queixas muito
mais estranhas.
- O professor não sabe mais de nada. Não pega mais
no giz, não corrige as nossas lições, fica só a olhar para nós,
com olhos grandes, do tamanho do poço. Também estamos
com medo de sermos escolhidos para padre. O professor já
não nos olha como um mestre, mas como um gato faminto
e abobalhado.
Espanto geral. Medo. A preocupação era tanta que na-
quele dia a produção de ovos do terreiro decaiu setenta por
cento.
Aí Gluglu resolveu agir. Foi à casa do gato, com o
pretexto de visitar sua biblioteca. Dartanhan estava dormi-
tando na sala, recostado em sua almofada predileta. O galo
entrou sem fazer ruído e foi até o quarto onde supunha esta-
vam os livros do professor. Qual não foi o seu espanto ao
ver aí um monte de penas, as penas daqueles que as mães
acreditavam já santos padres no seminário.
Ouvindo barulho, Mimo Dartanhan ergueu-se do seu
sono e falou com voz rouca:
- Quem está aí?
O galo correu para ele, prestes a atingi-lo com suas
esporas.
"Estou perdido", pensou o gato, sentindo náuseas e
prestes a vomitar o pinto devorado no jantar. Esqueceu-se de
que a porta estava aberta, preferindo pular a janela. Correu
alucinadamente para o mato, a bela cauda erguida para o ar.

32

Foge,Dartanhan, leva para longe a tua vergonha, a tua
maldade, o horror da morte de mais de cem pintos na cons-
ciência. . . Foge,Dartanhan, te embrenha no mato, bem lon-
ge do canto da revolta das aves, bem longe do poço, bem
longe da carne dos pintos. Corre que as asas do galo estão
enfurecidas e suas esporas afiadas. Corre no escuro e tropeça,
e te arranha. Te embrenha no mato que o galo não te acha.
Te esconde, te cobre de folhas, te encolhe e espera que o
galo se canse.
Ficou duas horas assim, metido entre folhas e arbustos,
respirando difícil, o corpo dolorido da grande corrida. Só os
ruídos da mata se faziam ouvir. Dartanhan saiu do seu
precário esconderijo e respirou fundo até o último fôlego.
- Uf!. . . Acho que escapei também desta vez.
E começou a se lamber com toda cautela, passando a
língua de leve nos arranhões.
- Um gato tão bonito não pode tomar banho no
escuro. Deixe que eu brilho para você. .
Era o belo vaga-lume, estudioso de Física. Agora estava
desenvolvendo um estudo sobre...os efeitos da sua luz em.
outros corpos vivos. '
- Ah, meu caro vaga-lume, como você é gentil!
- Você está com cara de quem fugiu. Fugiu de quê?
- De esporas, bicos e unhas. Eles queriam me matar.
- Eles quem?
- Os bichos de pena lá do meu terreiro.

33
O vaga-lume brilhou na cauda do gato e viu o quanto
ela era mais bela sob a sua luz dourada.
- Não acredito que aves possam querer tão mal a um
gato estudioso, a ponto de tentar matá-lo.
O gato sentou-se nas patas e olhou para o vaga-lume.
Havia em seus olhos uma estranha tristeza que o vaga-lume
julgou ser efeito da sua iluminação e apressou-se em anotar,
numa pequena agenda, as suas impressões sobre o fato.
- Eles têm razão. Eu é que sou um gato desgraçado
que não pode ver um pinto à sua frente sem logo o agarrar e
comer.
O vaga-lume não se espantou com a declaração. Sensí-
vel como era, percebeu que tinha diante de si uma alma
angustiada a precisar de compreensão.
- É lamentável. Mas dois ou três pintos comidos não
podem levar um terreiro de galinhas a tanta revolta.
- Acontece, meu caro, que não foram dois ou três.
Comi mais de cem pintos. Agi como um canalha e o pior é
que hoje eles não acreditariam que estou seriamente arre-
pendido.
O vaga-lume bem viu o esforço que o gato fizera para
segurar as duas lágrimas, mas elas vieram se confundir com
a calma luz do bichinho, que apenas brilhava para o pranto
do outro, compreensivamente.
Era madrugada quando ele apagou súa luzinha e des-
pediu-se do amigo, que quase dorrnia. Voou para o mato e
atrás dele iam algumas formigas que diziam em altos brados:
- Ingênuo vaga-lume, bom vaga-lume, o gato é mau.
O gato é tão mau. . . O gato está no mato. Se ele sentir fome,
também te come. Ele é grande e mau, é um gato guloso. Deu
cabo de cem pintos e se faz de manhoso. Foge, vaga-lume,
guarda tua luz e some, porque o gato é mau e também te
come.
Dartanhan dormia quando o vaga-lume passou por ali,
carregando a sua bagagem, a luzinha e a lanterna. Ninguém
diria que ele estava fugindo, mas ele fugia, fugia. . .

35

O que é ísso que pesa no sono do gato? O que é isso que
ronca na barríga do gato? O que é ísso que abre os olhos do
gato e os faz do tamanho do poço? É a fome. É a fome que
não agüentou mais esperar pelo sono do gato, e esperneou e
roncou feito lobo na barriga seca.
Dartanhan se espreguiçou esticando bem as patas e
olhou para o Sol, pronto para abrir a boca e o devorar. Seu
gesto foi saudado por uma gargalhada:
- Ah, ah, ah, ah. . . O Sol não se come, Dartanhanl. . .
Ele ergueu os olhos e viu em cima da mangueira o sabiá.
Quantas saudades sentia dos pintos!... Até se esquecera
das confidências feitas de noite ao vaga-lume. Um pensa-
mento arrepiou seu.pêlo:
"Se aquele bichinho estivesse aqui, com a fome que
estou, seria bem capaz de comê-lo."
Mas seus olhos se fixaram na avezinha que zombava
dele, no galho mais alto da mangueira.
- Vem conversar comigo avezinha, estou tão triste!. . .
- Bem sei que esses olhos não são de tristeza. Conhe-
ço muito bem os olhos de um gato mau.
E o sabiá ria zombando do gato. De repente, sentiu-se
ameaçado. O gato preparava-se para subir na árvore. De fato,
de um pulo só estava no galho e deu o tremendo bote. Mas. . .
qual não foi a sua surpresa ao notar que agarrara uma manga
verde, que escapou de suas patas e fez pum! no chão.
Ouviu o riso do sabiá bem longe dali e o viu fazendo
voltinhas graciosas no ar.
- Vou fugir, gato mau! Procure minhocas, procure
lagartos, não seja tão luxento. ..

36

Depois do sabiá, Dartanhan se pôs a perseguir as cigar-
ras. Elas também fugiram, estavam acostumadas a se defen-
der de outros bichos. A fome aumentava, roncava latim,
berrava pintos, e ele se lembrava dos mais saborosos que já
comera até então.
- Lagartos. . . Minhocas. . . Nunca comerei tais bi-
chos - dizia ele, cuspindo de lado com nojo.
Andou, andou, o Sol esquentara, o mato crepitava. De
repente, viu numa clareira uma onça grande. Ela estava
comendo. O gato aproximou-se rápido, esgueirando-se por
entre os arbustos, e viu... viu a onça comendo com gosto
um enorme preá. O cheiro da carne o entonteceu e ele apro-
ximou-se miando alto:
- Dona Onça, eu morro de fome! Ajude o seu primo
aqui, dê-me um pedaço dessa carne. . .
- Tá besta?! Lutei pra caçar este bicho, me arranhei
toda e agora você quer que eu reparta o meu almoço? Some
daqui, felino, antes. que eu perca a cabeça e lhe pique em
pedacinhos.
O gato viu o tamanho da onça e fugiu. Já era meio-dia
quando deitou-se, cansado de procurar comida. De olhos
semicerrados, ele pensava:
"É no que dá um gato viver em casa de homens. Não sei
caçar, não tenho forças para nada, até deixei fugir aquele
sabiazinho bobo. Estou perdido!"
Foi quando viu um embuá, no chão, bem atrás da sua
cabeça. Dartanhan virou-se devagarinho e conseguiu prendê-
lo entre os dentes. Tirou-o da boca e começou a examinar-lhe
o corpinho fino e frio. O embuá tremia.
- Está com medo, bichinho? Você vai ser o meu al-
mocinho. . .
Mas qual não foi o espanto do gato ao ver que o embuá
se desenrolava e em dois segundos fugia. Dartanhan engoliu
todo o seu desapontamento, porque não havia mais saliva em
sua boca.
O pega-pega com a lagartixa aconteceu depois das três
horas, quando o gato acordou do seu sono, onde só houvera

37
sonhos com pintos, patos e queijo fresco. Ele viu a lagartixa
em cima de uma pedra grande e perguntou:
- Dona Lagartixa, a senhora não quer vir preparar o
meu jantar?
O réptil balançou a cabeça como sempre faz, mas Dar-
tanham, um gato inexperiente, julgou que ela estivesse con-
cordando.
- Ah, que bom! Tenho tanta fome! E ouvi dizer que
a senhora é ótima cozinheira. Espere que vou buscá-la aí em
cima.
Mas, ao chegar à pedra, viu que a lagartixa se preparava
para correr. '
- Ah, quer brincar de pega-pega? Tudo bem, corre-
remos um pouco antes do jantar.
Concordando sempre, a lagartixa já ia longe. Darta-
nham corria também, mas logo perdeu o animalzinho de
vista.
Foi de noite que a cobra chegou e encontrou o gato a
delirar. Dartanhan dançava olhando para o chão, os olhos
do tamanho do poço do quintal.
- Que coisa estranha! Um gato a delirar! Isso deve
ser coisa de homem e homem mata cobra.
Não pensou duas vezes, picou o corpo do gato e fugiu,
enquanto ele caía ferido por terra.

As serras repetiram o último miado de Dartanhan. As
árvores, as pedras, o mato todo. A cigarra grande até se calou
para ouvir e o mundo ficou estranhamente triste.
Do seu esconderijo, o vaga-lume ouviu a notícia repetida
por um cravo de defunto e percebeu que era de morte aquele
canto.
- Vou chamar os meus irmãos e outros bichos maiores
da floresta. Vamos fazer o enterro de Dartanhan com muitas
luzes e muitas cantigas dos sabiás.
E se pôs a preparar convites que o vento ia levando a
seus destinatários. Em poucas horas, toda a mata estava mo-
bilizada para o enterro do gato.
Foi a nuvem azul que repetiu para o urubu o miado do
gato. A negra ave sorriu e pensou:
"Em breve ele será carniça. Há tanto tempo não sinto
cheiro ou gosto disto aqui no mato. . . "
A nuvem arrepiou-se, deixando cair algumas de suas
gotinhas brancas. O urubu, meio envergonhado, tentou re-
mendar o que dissera:
- Eu sei, nuvenzinha, que todos têm um conceito mui-
to ruim da minha pessoa, porque sou negro, porque como
carniça... Mas eu sou assim mesmo. Eles só vêem o lado
negativo das coisas. Não pensam, por exemplo, que eu limpo
a floresta dos animais podres, que os iriam aborrecer muito
se ficassem por toda a vida ao relento cheirando mal.
Mas a nuvem, que era limpa por natureza, afastou-se
do urubu, porque não podia conceber a idéia de que existia
alguém que se alimentava de carniça. O urubu respirou fundo
~~

e afastou-se, pois ainda estava longe da mata e queria chegar
lá antes da meia-noite.
Ele não sabia que, naquela hora, todos se preparavam
para enterrar o gato. As formigas ficaram encarregadas da
escavação da cova, e isso elas faziam com muito gosto por.
que gostavam de se sentir úteis. Os sabiás ensaiavam numa
árvore ali perto uma triste cantiga para quem morreu, e at
imitavam o último miado de Mimo Dartanhan. Dona Onça
haveria de carregar o gato nos ombros, depois de ele ter sido
vestido pela lagartixa com a mortalha branca que as aranhas
estavam preparando.
O vaga-lume, estudioso de Física, escondido num lugar
reservado da mata, preparava o discurso que deveria ler na
hora em que a última pá de terra fosse jogada ao corpo. Di
vez em quando, parava de escrever para escutar as martela-
das que os pássaros-ferreiros davam na madeira forte, cedida
por'uma velha mangueira, para fazer o caixão.
O urubu, que nada sabia do enterro, pois vinha de longe,
chegou ao local onde estava o gato morto, aterrissou imedia-
tamente a devorá-lo, sem ligar importância aos insistentes
protestos de mais de cem moscas que estavam montando
guarda. Comia e sentia com gosto o cheiro de carniça que já
exalava da carne. O urubu deixou a cabeça para o fim. Que-
ria comê-la devagar, mastigando bem os miolos, porque ouvi-
ra dizer que aquele gato fora em vida um excelente professor.
Abriu o negro bico e já ia abocanhar a cabeça, quando
a comitiva chegou para o enterro e as lanternas dos mil vaga-
lumes quase lhe cegaram a vista. De bico aberto, o urubu
esperou que o espanto cessasse e alguém quebrasse o silêncio.
- Nosso enterro foi pro beleléu. . . O urubu roubou
o corpo. . . - disseram as formigas.
- Malvado Queríamos fazer um bem ao animal morto
e ele não deixou. . .
--os protestos e as queixas vinham de todos os lados. O
urubu ergueu-se no ar, um pouco acima dos outros, e, ainda
segurando a cabeça do gato, disse em voz alta:

41
O medo das mães
não estava apenas no homem da granja
ou no facão da dona-de-casa.

Uma luz, uma luz que falava no terreiro, e os bichos
calados a escutar;

Havia o medo do gato,
tão sagaz, tão certeiro,
..nos seus botes fatais.

44

Um gato capaz de matar,
um gato capaz de chorar. . .
hoje dorme
um sono esquecido
no sangue de um urubu,
que ainda sente na língua
seu estranho gosto,
um gato com gosto de pinto.

Aprendeu a miar latim,
mas não soube transmiti-lo a seus alunos.
O gato não via os alunos, na sua gula.
Eles não eram mais que pintos gorduchos
escolhidos a dedo
para o jantar de cada dia.

Dartanhan os devorava,
vivendo entre o prazer e a dor,
entre o arroto da carne
e o medo da vassoura.

Foram cem pintos.
Foram mil protestos.
Foram milhões de lágrimas,
choradas inutilmente.

Aconteceu a fuga do gato
de bicos e esporas
que o queriam esganar.

Foi a fome do gato, sozinho no mato,
a luta do gato,
a sua corrida atrás da comida
que sempre lhe viera às mãos.

O delírio do gato eram pintos e patos,
e o poço nos olhos
e a fome a miar latim.

A morte do gato veio de noite
na boca da serpente.

Dartanhan morreu

e agora não passa
de um estranho gosto de pinto
na língua de um urubu.

O seu último miado zuniu
entre as folhas das árvores,

nas serras,

na terra. . .

45

>1

1

O seu último miado era
um canto de morte,
pesado e faminto,
gemido,
escondido no mato,

de um gato com gosto de pinto. . .


Uma luz que brilhava calada, para todo o terreiro, ca~
lado, calado. . . Viera trazer a notícia da morte do gato de
uma forma bela, poética, que impressionava a todos. Triste-
za, alegria. O gato morrera e ninguém sabia o que sentia.
Foi o galo Gluglu quem quebrou o silêncio:
- Você fez um belo discurso, pequeno vaga-lume.
Falou como um sábio profeta acerca desta triste história vi-
vida pelo nosso terreiro. Estamos todos muito emocionados.
- Muito emocionados - disseram os outros.
E uma salva de patas seguiu-se àquelas palavras. -
- Quero nomeá-lo professor de Física deste terreiro.
Quero também que você ensine aos nossos filhos a arte da
palavra, aceita?
O vaga-lume pensou um pouco e por fim disse:
- Aceito, Senhor Gluglu, mas com uma condição.
- Qual?
- As minhas aulas têm de ser à noite. Jamais ousarei
brilhar de dia, pois estaria comprando uma briga à-toa com
o sol

- Acertado. As aulas ficam sendo à noite - disse
Gluglu, enquanto uma nova salva de patas enchia o terreiro
e ecoava lá longe.
A partir de então, as aves-crianças tinham aulas todas
as noites e algumas delas levavam muitos puxões de orelha,
de suas mães, quando o sono apertava e elas não queriam
ir à escola. O vaga-lume, que era sensível e inteligente, per-
cebeu que as aulas não estavam rendendo nada, porque, de-
pois de uma hora de ensinamentos, os alunos já estavam
cambaleando.
Com uma semana de experiência, baixou uma norma
que permitia às crianças assistirem às aulas deitadas. Se al-
guém viesse ao terreiro depois das seis horas e olhasse para
o poleiro cheio de aves, diria que elas estavam dormindo.
Ninguém suspeitaria que, ali, os pintos trabalhavam com
palavras, fazendo combinações poéticas de pios e cacarejos.
Mas nem tudo estava bem. Acontece que o Senhor Pato,
que sonhava há muito tempo em ser professor daquele ter-
reiro, porque se considerava a pessoa mais inteligente e mais
lúcida dali, vira seus desejos caírem por terra, no momento
em que Gluglu nomeara o vaga-lume para professor. Naquela
noite mesmo, ele foi à casa da coruja, sua velha amiga, e lhe
disse entre dentes:
- Um bobo, aquele galo. Mal acabou o medíocre dis-
curso do vaga-lume e já confiava a ele toda a formação de
nossos filhos. É sempre assim, nunca dão valor aos de casa.
Eu, que por todos esses anos demonstro a minha inteligên-
cia, através dos artigos que escrevo, nunca recebi nem mes-
mo um elogio. Chega aqui um palerma, fala um monte de
besteiras e já todo o terreiro se apaixona. São uns pobres de

espírito. Claro, não estou incluindo você nisso, você sempre
soube muito bem discernir as coisas.
- Pois eu não acho que o vaga-lume disse besteiras,
ele falou muito bem, de forma simples e bonita.
O pato deu de ombros.
- Aquilo não é dele. São frases copiadas dos livros
que leu. Conheço muito bem esse tipo.
A raiva do pato aumentou no dia em que soube que o
vaga-lume estava usando os seus artigos para fazer leitura
com as crianças. Tremendo de ódio, pegou sua pena e escre-
veu uma carta anônima para o professor de Física:

/

-u

'

48

,1

O vaga-lume recebera a carta às dez da manhã, soprada
pelo pato e trazida pelo vento. Desconfiado já de quem se
tratava, dispunha-se a partir, levando sua antiga bagagem, a
lanterna e a agenda. Ia abrir a porta para sair, quando sua
casa foi invadida por uma porção de pintos, todos fardados,
que diziam todos de uma vez:
- Gluglu mandou chamá-lo. Vai haver o enterro das
penas do pato. . .
O vaga-lume nada entendia naquela balbúrdia.
- Um de cada vez. Não entendo o que vocês estão
dizendo.
O maior de todos ergueu a voz já meio grossa e falou:
- O pato foi morto para o almoço. Dizem que hoje
tem festa. Agora só restam as suas penas, que Gluglu apa-
nhou na lata do lixo. Vamos fazer um enterro com todas as
honras merecidas pelo grande jornalista que ele foi. Gluglu
quer que o senhor nos acompanhe e pede que leve um dis-
curso, para que seja lido quando a última pá de terra for
jogada sobre as penas.
O vaga-lume pensou consigo:
"Ah, que bom. Assim não terei mais de ir embora.
Gosto tanto de ensinar aos pintos..."
Quando a última pá de terra foi jogada sobre as penas
do morto, no discurso do vaga-lume não havia o menor sinal
de raiva ou revolta. Falava do pato como se falasse de um
grande herói, o herói que fizera, por todos aqueles anos, a
história escrita do terreiro de galinhas.

--- FIM ---


* Autor e obra


Joana Belarmino de Sousa
nasceu em Itapetim, no interior de
Pernambuco. É a sétima filha de
Gerci e Mariano Belarmino de
Sousa, um casal de camponeses
que teve treze filhos, sete dos quais
são cegos - ela inclusive.
Viveu os primeiros anos de
sua infância em companhia dos
pais, brincando no campo, toman-
do banho de riacho e travando
conhecimento com árvores, pássa-
ros e os animais domésticos que
sua mãe criava.

Aos seis anos foi internada num colégio paracrianças cegas
em João Pessoa, Estado da Paraiba, onde alfabetizou-se e cursou as
quatro séries do 1.° grau.
Seu interesse pela leitura, efetuada pelo método braile, logo se
evidenciou. Travou conhecimento com o mundo encantado de Mon-
teiro Lobato, e aos nove anos já havia escrito a sua versão de
Reinações de Narizinho, que consistia em um resumo daquela famosa
obra.
Em 1976, concluiu o Curso Normal e, em 1981, recebeu o diplo-
ma de bacharel em Comunicação Social pela Universidade Federal
da Paraiba. Não teve maiores dificuldades para conseguir emprego.
Aprovada por concurso público, passou a lecionar na mesma escola
onde fizera os primeiros estudos, e como repórter foi admitida no
jornal O Norte.
Escreve crônicas, poesias e contos. Seu primeiro livro, editado
em João Pessoa, é uma reunião dos contos infantis escritos na ado-
lescência e tem como titulo O patinho criança.
Através da literatura, Joana procura relatar-nos a sua percepção
do mundo. É ela quem nos diz: "Sempre quis me expandir. Dizer o
que penso, o que sinto, comunicar-me com os outros,.transmitir
informações".


53

EDITORA MODERNA

Textos ilustrados, com fascículos de orientação de leitura:Olá, meninas e rapazes

Mais dois livros sobre gatos.

A autora é a grande mestra e palestrante, Joana Belarmino, da Paraíba.

O livro "Gato de Rua", adaptado por mim, produzido pela Miau e com
seus personagens interpretados por amigos cegos, virou novela e foi
transmitida pela Rádio Dosvox, há alguns anos.

Espero que vocês gostem e se divirtam!

Abraços e beijos

Luís

--
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