LESLEY OMARA
Organizador da Antologia
TRADUÇÃO DE:
MARIAJOÃO DELGADO
LUISA FEIJÓ
Sigrid Jansen LEITE FARIA
*PREFÁCIO
Não há nada de mais apaixonante para quem goste de gatos como eu do que fazer uma nova antologia de histórias de gatos. Sou um pouco como a Sra. Bond da
história dejames Herriot. Só que ela tem uma casa cheia de gatos e eu só tenho dez! Cada um dos meus gatos é completamente diferente dos outros, na forma, no tamanho
e na personalidade, mas nunca tenho favoritos - não deixo que isso me aconteça. Gostava de poder pensar e falar como um gato, tal como Emile Zola faz na sua história
"O Paraiso dos Gatos".
Os gatos têm tido uma história atribulada. No Antigo Egipto houve uma grande deusa-gato chamada Bast. No Egipto descobriram-se milhares de múmias de gatos,
muitas vezes acompanhadas de múmias de ratos que serviam de comida para os gatos no Além. Depois temos Isabel I e jaime I que metiam todos os gatos que encontravam
em sacos de couro ouferkins e penduravam-nos nas árvores para os archeiros praticarem! Esta a origem, penso eu, da expressão "tirar o gato do saco" porque é evidente
que havia pessoas que gostavam de gatos e tinham coração.
Por falar em coração, O mais espantoso é que se, vivermos com gatos - ou com um gato -, há menos probabilidades de termos problemas cardíacos ou de hipertensão.
Portanto, nós que os amamos e que vivemos comeles, temos realmente muita sorte.
Tenho a certeza que o ler histórias de gatos também lhes vai fazer muito bem; especialmente se o fizerem com um gato a ronronar no colo! Recomendo-vos de
todo o coração a leitura de As melhores histórias de gatos; dará um enorme prazer ás pessoas que, como eu, pensam que os gatos são uma verdadeira ma-ron-ron-vilha"!
Boa leitura!
BBRYL REID OBE
*O PARAÍSO DOS GATOS
Emile Zola
Uma tia deixou-me em testamento um gato angorá que é realmente o animal mais estúpido que jamais conheci. Aqui está a história que o meu gato me contou, numa noite
de Inverno, em frente da braseira.
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Nessa altura eu tinha dois anos e era de certeza o gato mais gordo e ingénuo que imaginar se possa. Nessa tenra idade eu tinha ainda toda a presunção dos
animais que desdenham as doçuras do lar. E, contudo, quantas graças eu devia á Providência por me ter instalado em casa da sua tia! A boa da mulher adorava-me. Tinha,
no fundo de um armário, um verdadeiro quarto, almofada de penas e cobertor almofadado. A alimentação valia a dormida: nada de pão, nada de sopa, só carne, bela carne
mal passada.
Ora bem! No meio de todos aqueles confortos, eu só tinha um desejo, um sonho, que era raspar-me pela janela entreaberta e fugir para os telhados. As carícias
pareciam-me insípidas, a fofura da minha cama dava-me náuseas, eu estava tão gordo que me enojava a mim mesmo. E durante o dia inteiro aborrecia-me de ser feliz.
Devo dizer-vos que, esticando o pescoço, tinha visto pela janela o telhado da frente. Nesse dia estavam lá quatro gatos à bulha, de pêlo eriçado, rabo no
ar, a rebolar ao sol sobre as lajes de ardósia azul, soltando gritos de alegria. Nunca eu tinha visto espectáculo tão extraordinário. Desde então a minha convicção
tornou-se inabalável.
A verdadeira felicidade estava naquele telhado, para além daquela janela que tão cuidadosamente era fechada. E a prová-lo estava o facto de fecharem do mesmo
modo as portas dos armários atrás das quais se escondia a carne.
Decidi então fugir. Devia haver, na vida, coisas mais interessantes do que carne mal passada. Era o desconhecido, o ideal. Um dia esqueceram-se de fechar
a janela da cozinha. Por aí saltei para o telhadinho que se encontrava por baixo.
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Que lindos eram os telhados! Bordejavam-nos grandes caleiras que exalavam perfumes deliciosos. Caminhei voluptuosamente por essas caleiras onde as minhas
patas se enterravam numa lama fina que era infinitamente morna e macia. Parecia que estava a andar em cima de veludo. E estava quentinho ao sol, um calorzinho que
me derretia as banhas.
Não vou negar que tremia como varas verdes. Misturado com a minha alegria havia um terror pânico. Lembro-me sobretudo de uma tremenda emoção que quase me
fez cair à rua. Três gatos que desceram do cume do telhado vieram ter comigo miando assustadoramente. Mas ao verem-me desfalecer, trataram-me de parvo e disseram
que estavam a miar por brincadeira. Pus-me a miar com eles. Era encantador. Os tipos não tinham a minha estúpida gordura. Faziam troça de mim quando eu rebolava
como uma bola pelas placas de zinco aquecidas pelo sol. Um velho gatarrão do bando tomou-se de amizade por mim. Propôs-se educar-me, o que eu aceitei cheio de gratidão.
Ah! como estavam longe os bofes da sua tia! Bebi nas caleiras e soube-me melhor que qualquer leite com açúcar. Tudo me pareciabom e belo. Uma gata passou,
uma gata encantadora, cuja visão me encheu de uma emoção desconhecida. Só os meus sonhos me haviam mostrado aquelas criaturas deliciosas cuja espinha é adoravelmente
flexível. Corremos ao encontro da recém-chegada, os meus três companheiros e eu. Eu ia à frente, preparando-me para apresentar os meus cumprimentos à formosa criatura,
quando um dos meus companheiros me mordeu cruelmente o pescoço. Soltei um grito de dor.
- Pffi - disse-me o gatarrão velho, puxando por mim - ainda lhe hão-de acontecer muitas mais.
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Ao fim de uma hora de passeio, senti um apetite feroz.
- Que é que se come nos telhados? - perguntei ao meu amigo gatarrão.
- Aquilo que se encontra - respondeu ele doutamente.
Esta resposta embaraçou-me porque, por muito que procurasse, não encontrava nada. Vi, finalmente, numa mansarda uma jovem operária que estava a preparar
o seu almoço. Na mesa, por baixo da janela, via-se uma bela costeleta de um vermelho apetitoso.
- Ora aqui está o que me vai servir - pensei eu muito ingenuamente.
E saltei para cima da mesa onde agarrei na costeleta. Mas a operária viu-me e veio atrás de mim com uma vassoura com que me deu uma forte pancada nas costas.
Larguei a carne e fugi, soltando um grito aterrador.
- Você chegou agora das berças? - perguntou-me o gatarrão. - A carne que está em cima das mesas é para ser desejada à distância. É nas caleiras que temos
de procurar.
Nunca consegui entender que a carne das cozinhas não pertença aos gatos. A minha barriga começava a dar horas furiosamente. O gatarrão acabou de me desesperar
dizendo que era preciso esperar pela noite. Nessa altura desceríamos à rua para procurar nos montes de lixo. Esperar pela noite! E ele dizia-me aquilo com toda a
calma, como um filósofo empedernido. Eu sentia-me a desmaiar, só de pensar naquele jejum prolongado.
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A noite caiu lentamente, uma noite de nevoeiro que me gelou. Não tardou a chover, uma chuvinha fina, penetrante, empurrada por bruscas rajadas de vento.
Descemos pelo vitral de uma escadaria. Que feia me pareceu a rua! Já não existia aquele calorzinho suave, aquele grande sol, aqueles telhados brancos de luz onde
era tão bom esticarmo-nos. As minhas patas escorregavam no pavimento oleoso. Recordei com amargura o meu cobertor acolchoado e a minha almofada de penas.
Mal tínhamos chegado à rua quando o meu amigo gatarrão começou a tremer. Agachou-se todo e correu rastejando encostado às paredes das casas dizendo-me que
fosse atrás dele sem demora.
Quando encontrou a porta de um pátio apressou-se a esconder-se aí, soltando um ronronar de satisfação. E, como eu o interrogasse sobre aquela fuga, disse:
- Não viu aquele homem com um saco e um arpão?
- Vi.
- Ora bem! Se ele nos tivesse visto apanhava-nos e comia-nos em espetada.
- Em espetada! - exclamei eu. - Mas, então, a rua não nos pertence? Não se come nada e ainda se é comido!
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Entretanto, tinham vindo despejar o lixo em frente às casas. Desesperadamente, pus-me a escabichar nos montes de detritos. Encontrei dois ou três magros
ossos misturados com cinzas. Foi então que compreendi como são bons os bofes frescos. O meu amigo gatarrão escarafunchava no lixo como um verdadeiro artista. Fez-me
andar até de manhã, a inspeccionar cada laje, sem pressa nenhuma. Durante quase dez horas apanhei chuva, tremendo de frio. Maldita rua, maldita liberdade, que saudades
eu tinha da minha prisão!
Quando raiou o dia, o gatarrão, vendo-me a desfalecer, perguntou com um ar esquisito:
- Então, já está farto?
- Oh, se estou! - respondi eu.
- Quer voltar para sua casa?
- Quero, mas como encontrá-la?
- Venha daí. Esta manhã, quando o vi sair, percebi logo que um gato gordo como você não era feito para as duras alegrias da liberdade. Sei onde é a sua casa,
vou deixá-lo lá à porta.
Dizia isto com toda a simplicidade, aquele digno gatarrão. E quando chegámos:
- Adeus - disse ele, sem manifestar a menor emoção.
- Não - exclamei eu - não vamos separar-nos assim. Você vem comigo. Partilharemos a mesma cama e a mesma carne. A minha dona é uma boa mulher...
Ele não me deixou acabar.
- Cale-se - disse bruscamente. - Você é um parvo. Eu morria nas suas molezas mornas. A sua vida planturosa é boa para os gatos bastardos. Os gatos livres
nunca comprarão pelo preço da prisão os bofes e as almofadas de penas... Adeus.
E partiu em direcção aos telhados. Vi a sua grande silhueta magra estremecer de prazer sob a carícia do sol nascente.
Ao entrar em casa a sua tia pegou no chicote e administrou-me uma correcção que eu recebi com uma alegria profunda. Gozei imensamente a voluptuosidade de
estar no quente e de ser espancado. Enquanto ela me batia eu pensava, deleitado, na carne que depois ela me ia dar.
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- Está a ver - concluiu o meu gato, espreguiçando-se frente às brasas - a verdadeira felicidade, o paraíso, meu caro dono, é estar fechado em casa e ser
espancado numa sala onde há carne.
Falo pelos gatos.
trad. L. F.
*LILLIAN
Damon Runyon
Sempre disse que Wilbur Willard é pura e simplesmente um tipo cheio de sorte porque... que outra coisa poderia ter sido senão a sorte que o fez cambalear pela Rua
49 numa manhã fria e com neve quando Lillian miava no passeio à procura da mãe?
E que outra coisa poderia ter sido senão a sorte que fez com que Wilbur Willard estivesse completamente bêbedo, que tivesse estado a beber uns whiskies com
um amigo chamado Haggerty num apartamento da Rua S9? Porque, se Wilbur Willard não estivesse toldado, veria que a Lillian não era mais do que uma gatita preta e
passaria de largo porque, como toda a gente sabe, os gatos pretos dão azar mesmo quando ainda pequeninos.
Mas, como estava toldado, tal como vos disse, para Wilbur Willard as coisas eram muito diferentes e não viu Lillian como uma gatita preta perdida na neve,
mas sim como um belo leopardo porque um polícia chamado
O'Hara que ia a passar e que conhecia muito bem Wilbur Willard, ouviu-o dizer:
- Oh, que lindo leopardo!
1
O polícia deu uma olhadela, pois não queria nada que andassem leopardos a deambular pelo seu sector, já que era ilegal, mas tudo o que viu, como me disse
depois, foi aquele odre, Wilbur Willard, a pegar num gatinho preto esquelético e a enfiá-lo no bolso do sobretudo; e ouviu ainda Wilbur a dizer:
- Passas a chamar-te Lillian.
Depois Wilbur seguiu aos baldões para o quarto no último andar de um velho hotel na 8a Avenida, chamado o Hotel Bruxelas, onde já vivia há uns tempos porque
o gerente não tinha nada contra os actores, já que a gerência do Hotel Bruxelas era realmente muito tolerante.
Surgiram então queixas nessa mesma manhã de uma das vizinhas de Wilbur, uma velha burlesca que dava pelo nome de Minnie Madigan, que já não trabalhava desde
que Abraham Lincoln fora assassinado, porque ouviu Wilbur a andar pelo quarto atrás de um belo leopardo e ela resolveu chamar o empregado para dizer que um hotel
que autoriza animais ferozes não é respeitável. Mas o empregado foi ver ao quarto de Wilbur e encontrou-o a brincar com, pura e simplesmente, um gatinho preto com
ar inofensivo e a queixa da velha ficou sem efeito, especialmente porque também nunca ninguém reivindicara que o Hotel Bruxelas era respeitável, nem nada que se
parecesse com isso.
É claro que quando Wilbur deixou de estar sob a acção dos vapores do álcool na manhã seguinte, percebeu que Lillian não era um leopardo e efectivamente ficou
espantado por se encontrar na cama com um gatinho preto, porque parece que Lillian estava a dormir em cima do peito de Wilbur para se aquecer. A princípio Wilbur
não quis acreditar no que estava a ver e atribuiu tudo aquilo ao whisky do Haggerty, mas finalmente convenceu-se, meteu a Lillian no bolso e levou-a até ao night
club Hot Box e deu-lhe leite, coisa de que Lillian pareceu gostar muito.
Ora, donde vinha a Lillian? Isso é claro que ninguém sabia. Talvez alguém a tivesse atirado pela janela para a neve, porque em Nova Iorque as pessoas estão
sempre a atirar gatinhos, e outras coisas, pela janela fora. Efectivamente, se há algo que esta cidade tem a rodos, é gatinhos, que acabam por crescer e ficar gatos
e andam a virar os caixotes do lixo, a miar pelos telhados, acordando toda a gente.
Pessoalmente os gatos não me servem para nada, inclusive os gatinhos, porque nunca encontrei nenhum que me trouxesse grandes vantagens, embora conheça um
tipo que se chama Pussy McGuire que tem uma vida de nababo só a roubar gatos, e às vezes cães, e a vendê-los a velhotas que gostam muito dessa companhia. Mas Pussy
só rouba gatos persas e angorás, que são gatos muito finos e, como é evidente, a Lillian não era assim tão chique. Liilian não passava de um gato preto e, nesta
cidade, ninguém dá um chavo por gatos pretos, pois são normalmente tidos como muito agoirentos.
E mais, acontecia que daí a algumas semanas Wilbur Willard podia muito bem passar a chamar-lhe Herman ou Sidney, ou outra coisa qualquer, mas Wilbur insistia
em Lillian, porque era esse o nome da sua parceira - quando ele andara no vaudevilie há uns anos atrás. Falava-me muitas vezes em Liilian Withington quando estava
com os copos, o que aliás era muito frequente, pois Wilbur era um bom copo - whisky, de malte ou não, bourbon, gin, ou qualquer outra coisa que estivesse à mão,
excepto água. Efectivamente, Wilbur Willard era um bebedor de primeira e de nada servia dizer-lhe que neste país beber era ilegal porque isso só o enfurecia mais
e mandava a lei às malvas, só que Wilbur Willard usava uma palavra muito mais forte do que "malvas".
- Ela era como um belo leopardo - contava-me Wilbur sobre Lillian Withington. - Com os cabelos e os olhos pretos e toda encrespada, como um leopardo que
eu vi num número com animais que actuou uma vez no mesmo espectáculo que nós no Palace. Nessa altura éramos cabeça de cartaz - dizia ele. - "Willard e Withington,
o melhor número de dança e canto do país".
- Apanhei-a em San Antonio, que é uma terra no Texas - dizia Wilbur. - Ela tinha saído há pouco de um convento e eu acabara de perder a minha antiga parceira,
Mary McGee, que morreu ali à minha frente de pneumonia. Lillian queria ir para o palco e juntou-se a mim. Uma actriz nata e com uma óptima voz. Mas tal qual um leopardo
- tal qual um leopardo. Havia algo de gato nela e os gatos e as mulheres são ambos ingratos. Amo a Lillian Withington. Queria casar com ela. Mas ela era fria comigo.
Dizia que não havia de passar toda a vida no palco. Dizia que queria dinheiro e luxos e uma boa casa e, claro, um tipo como eu não pode dar essas coisas a uma boneca.
- Rendi-me totalmente a ela - contava Wilbur. - Passei a ser escravo dela. Não havia nada que não fizesse por ela. Até que um dia, em Boston, ela veio ter
comigo e, friamente, disse-me que me ia deixar. Disse-me que ia casar com um tipo rico de lá. É evidente que o nosso número acabou e eu nunca mais tive coragem de
procurar outra parceira e então pus à cinta esta velha garrafa preta e hoje que sou eu senão um artista de cabaré?
Então, ás vezes, ele desatava a chorar e às vezes eu chorava com ele embora, quanto a mim, Wilbur se tivesse safado de boa, livrando-se de uma tipa que queria
coisas que ele não lhe podia dar. Há muitos tipos nesta cidade que andam enredados com tipas que querem aquilo que eles não lhes podem dar mas que, numa tentativa
para as acalmar, se mantêm enredados e humilhados.
Wilbur fazia um bom dinheiro como entertainer no Hot Box, embora gastasse a maior parte em whiskies e nem sequer era um mau entertainer. Eu ia com frequência
ao Hot Box quando me sentia em baixo para o ouvir a cantar "Melancholy Baby" e "Moonshine Valley" e outras canções tristes que me partiam o coração. Pessoalmente
não percebia por que é que as garotas não se apaixonavam pelo Wilbur, principalmente quando ele cantava canções como "Melancholy Baby", bem entrado nos copos, porque
ele era um tipo alto, bem parecido, com grandes pestanas e olhos castanhos, sonolentos, e a sua voz tinha um tom grave, lamentoso que normalmente lhes caía no goto.
É um facto que muitas garotas se atiravam a Wilbur quando ele estava a cantar no Hot Box mas, por qualquer razão, Wilbur nunca lhes ligava porque, e era o que eu
achava, só pensava em Lillian Withington.
Bom, depois de ter encontrado a Lillian, a gatita preta, Wilbur pareceu ganhar um novo gosto pela vida e a Lillian acabou por se tornar bem engraçadinha
e nada feia depois de Wilbur lhe dar boa comida. Era negra que nem um tição, sem uma única mancha branca, e crescia tão depressa que em breve Wilbur deixou de a
poder trazer no bolso e então pôs-lhe uma trela e andava com ela sempre atrás. Foi assim que Lillian passou a ser muito conhecida na Broadway, com Wilbur a levá-la
a todo o lado e finalmente já nem era preciso levá-la pela trela pois ela seguia Wilbur como um cãozinho. E naqueles loucos anos 40 não havia um único cachorro que
se metesse com a Lillian pois ela saltava-lhes em cima num abrir e fechar de olhos, arranhava-os e mordia-os até eles se sentirem felizes por se verem livres dela.
Mas é claro que os cachorros nos anos 40 eram fundamentalmente chow-chows, pequinêses e lulus da Pomerânea ou pequenos cães de água brancos e felpudos que
eram passeados por loiras e que não estavam preparados para enfrentarem um gato esperto. De facto, Wilbur Willard não se dava lá muito bem com nenhuma pequena que
tivesse um cachorro entre Times Square e Columbus Cir, e o que todas queriam era que Wilbur e Lillian fossem dar uma volta ao bilhar grande. Além disso, Wilbur tinha
alguns problemas com tipos que também pertenciam às garotas, mas Wilbur não era nenhum aselha quando se tratava de zaragatas se não estivesse muito toldado e com
as pernas pesadas.
Depois de entreter as pessoas do Hot Box, Wilbur costumava dar uma volta pelos speakeasies que ainda estavam abertos e bebia mais uns copos para além dos
que já bebera no Hot Box, e tinham sido muitos, e embora fosse considerado muito perigoso nesta cidade misturar as bebidas do Hot Box com outras, isso nunca pareceu
preocupar Wilbur. Já de manhã levava algumas garrafas de whisky para o quarto no Hotel Bruxelas e usava-as para atestar e assim, quando Wilbur Willard estava pronto
para finalmente adormecer, tinha tanto álcool deste e daquele tipo dentro dele que dormia que nem um justo.
É claro que ninguém na Broadway censurava Wilbur por ser um beberrão, porque sabiam daquele amor por Lillian Withington que perdera e, nesta cidade, o ter-se
perdido a garota é uma boa desculpa para um tipo beber daquela maneira e é por isso que se bebe tanto aqui, mas ninguém conseguia perceber como é que Wilbur aguentava
tanto álcool sem rebentar. Os cemitérios estavam cheios de tipos que bebiam bem menos que Wilbur, mas ele nem sequer parecia sentir-se mal ou, se é que se sentia,
não o manifestava e não andava pelas esquinas a dizer que era da porcaria do álcool que então se arranjava.
Num Inverno Wilbur fez perder muita massa a uns tipos que frequentavam a Mindy porque, ao fim da noite, começou a ir beber ao speakeasy Good Time Charley,
e os rapazes apostaram 4 contra 1 em como ele não passava da Primavera, pois nunca imaginaram que um tipo que bebia tanto álcool do Good Time Charley conseguisse
sobreviver. Mas Wilbur Willard conseguiu e toda a gente o passou a considerar como um super-homem nato, e pronto.
Por vezes, Wilbur aparecia no Mindy com a Lillian atrás, sempre atenta aos cachorros ou, se o tempo estava mau, em cima do seu ombro, e os dois sentavam-se
ao pé de nós e ali ficavam horas a fio no paleio sobre isto e aquilo. Nessas alturas, Wilbur trazia normalmente uma garrafa à cinta e, de vez em quando, dava uma
golada, mas é evidente que isto para ele não era beber a sério. Quando Lillian estava com Wilbur, ficava normalmente o mais perto possível dele e toda a gente percebia
que ela gostava muito de Wilbur e que ele gostava muito dela, embora por vezes ele se enganasse e falasse dela como de um belo leopardo. Mas é claro que isso não
passava de um lapsus image e era evidente que se Wilbur lhe apetecia pensar que a Lillian era um leopardo, ninguém tinha nada a ver com isso.
- Provavelmente ela foge-me um dia destes - dizia Wilbur, fazendo-lhe festas nas costas até o pêlo começar a estalar. - E. Embora lhe dê muito figado e comida
de gatos, e isto e aquilo, e todo o meu carinho, ela um dia destes diz-me adeus. Os gatos são como as mulheres e as mulheres como os gatos. São muito ingratos.
- Trazem é, normalmente, azar - dizia Big Nip, o jogador de poker. - Especialmente os gatos, e muito especialmente aos gatos pretos.
Havia muitos outros tipos que diziam a Wilbur que os gatos pretos davam azar e aconselhavam-no a atirar Liilian ao North River atada a um chumbo, mas Wilbur
respondia que já tinha tido todo o azar do mundo quando perdeu Lillian Withington e que a Lillian, a gata, não lhe podia fazer pior e por isso continuou a tratar
dela e a Liilian continuou a crescer, a crescer, ao ponto de eu ter começado a pensar que talvez houvesse qualquer coisita de São Bernardo naquela gata.
Finalmente comecei a notar algo de estranho em Liilian. Às vezes parecia muito meiga com Wilbur e outras vezes tornava-se muito desagradável, bufava-lhe,
arranhava-o e tornava-se muito hostil. Dava-me a ideia de que andava bem quando Wilbur estava com os copos, mas ficava triste e irritada quando ele estava sóbrio,
quando estava só um bocado toldado. E quando Lillian se sentia triste e irritada, não dava tréguas aos cachorros da vizinhança do Bruxelas.
Com efeito, a Lillian gostava de perseguir cachorros, de se esgueirar quando Wilbur estava a descansar e de correr atrás dos cachorros de pernas tortas,
especialmente quando encontrava um sem trela. Um cachorro livre era pêra doce para Lillian.
É evidente que isto causava uma enorme consternação junto das donas dos cachorros, sobretudo quando a Lillian apareceu um dia em casa com um pequinês do
tamanho dela pendurado pelo pescoço e com uma loira toda excitada atrás a gritar "seu assassino" à porta de Wilbur Willard, enquanto a Lillian irrompia pelo quarto
de Wilbur adentro, por um buraco que ele fizera de propósito para ela, ainda a arrastar o pequinês. Mas, em vez de ficar furioso com a Lillian e de lhe dar uma boa
sova por tudo aquilo, Wilbur pareceu contente porque acontece que ele ainda estava toldado quando a Lillian apareceu com o pequinês e imaginou que a Lillian era
um belo leopardo.
- Ena! - dissera Wilbur. - Que dedicação! O meu belo leopardo foi à selva e trouxe-me um antílope para o jantar.
É claro que isto era um absurdo porque um pequinês não tinha nada a ver com um antílope, mas a loira do outro lado da porta de Wilbur ouvia-o a resmungar
algo e convenceu-se de que ele ia mesmo comer o seu pequinês ao jantar e a gritaria que fez foi verdadeiramente terrível. Houve uma enorme barafunda no Bruxelas
para aplacarem a fúria da loira que gritava que a Lillian lhe havia roubado o pequinês e o pior foi que o eterno apaixonado da loira, que era um contrabandista bruto
e italiano, chamado Gregorio, apareceu no Hot Box na noite seguinte e quis dar uma sova a Wilbur Willard.
Mas Wilbur enrolou-o com umas bebidas e com a "Melancholy Baby" e antes de sair o italiano ficou muito sentimental com Wilbur e também com a Lillian e quis
que Wilbur aceitasse umas moedas para que Lillian voltasse a apanhar o pequinês mas prometendo não o devolver. Pelos vistos o Gregorio não gostava lá muito do pequinês
e só estava a dar-se ares de brigão para agradar à loira e fazê-la pensar que a amava muito.
Mas percebi que a Lillian era de luas e acabei por perguntar a Wilbur se ele notava alguma coisa.
- Sim - disse-me ele muito triste - parece que não consigo captar o amor dela. Está a tornar-se muito caprichosa. Um tipo mudou-se no outro dia para o meu
andar no Bruxelas, com um garoto, e a Lillian ficou logo muito amiga do miúdo. São grandes amigos. Pois é - disse Wilbur - os gatos são como as mulheres. O amor
deles não dura muito tempo.
Aconteceu que fui ao Bruxelas uns dias depois para dizer a um tipo chamado Crutchy, que vivia no mesmo andar de Wilbur Willard, que havia uns cidadãos que
não gostavam da cara dele e que seria uma boa ideia ele abandonar a cidade, especialmente se insistisse em trazer cerveja para o território deles, e vi a Lillian
na entrada com um miúdo que devia ser o garoto de que Wilbur falara. O garoto devia ter uns três anos, era muito engraçadinho, de cabelo e olhos pretos e fazia judiarias
a Lillian de uma maneira assaz surpreendente já que a Lillian não era um gato que gostasse muito de judiarias, nem mesmo quando feitas por Wilbur Willard.
Perguntei a mim mesmo como é que havia pessoas que levavam um miúdo daqueles para um lugar como o Bruxelas, mas concluí que devia ser o filho de algum artista
e que talvez não tivesse mãe. Mais tarde estava eu a falar com Wilbur acerca disto e ele disse-me:
- Bem, se o pai do miúdo é actor, não está a trabalhar. Fica fechado no quarto durante todo o dia e só deixa o miúdo ir até ao hall da entrada e eu tenho
pena do garoto e é por isso que deixo a Lillian brincar com ele.
Ora aconteceu que estava muito frio e estávamos uns quantos no Mindy por volta das cinco da manhã, quando se ouviu a sirene dos bombeiros a passar. Nessa
altura apareceu um tipo que dava pelo nome de Kansas, que se chamava assim porque viera do Kansas, e que era um jogador profissional.
- O velho Bruxelas está a arder - disse esse tal de Kansas.
- Está sempre a arder - disse o Big Nig, querendo dizer com isso que havia sempre sarilhos bem escaldantes no Bruxelas.
Quem é que havia de entrar então senão Wilbur Willard? E toda a gente percebeu logo que vinha nas nuvens. Devia vir do Good Time Charley e já devia estar
bem atestado. Nunca vira Wilbur Willard tão bêbedo. Não trazia a Lillian consigo mas ele também não levava a Liilian ao Good Time Charley porque o Charley detestava
gatos.
- Ei, Wilbur - disse o Big Nig - a tua espelunca, O Bruxelas, está a arder.
- Bom - disse Wilbur - eu sou um pirilampo e preciso de lume. Vamos à procura de lume.
O Bruxelas ficava apenas a uns quarteirões do Mindy e como não havia nada que fazer por ali, uns quantos de nós foram até à 8.a Avenida, com Wilbur aos baldões
à nossa frente. A velha espelunca estava mesmo a crepitar quando lá chegámos e a vimos de perto, e os bombeiros lançavam-lhe água para cima e os polícias estendiam
as barreiras para impedirem as pessoas de se aproximarem, embora não houvesse lá muita gente àquela hora da manhã.
- Não é uma maravilha? - exclamou Wilbur olhando para as chamas. - Não é como um palácio encantado todo iluminado?
É que Wilbur não percebia que aquilo estava a arder embora houvesse homens e mulheres a fugirem lá de dentro, a maior parte deles meio despidos ou nus e
os bombeiros estivessem a colocar as redes de emergência para o caso de alguém querer saltar pelas janelas.
- É mesmo bonito - disse Wilbur - tenho de ir buscar a Lillian para ela ver isto.
E antes que alguém tivesse sequer tempo de pensar, já Wilbur Willard se dirigia para a porta principal do Bruxelas como se nada tivesse acontecido. Os bombeiros
e os polícias ficaram tão pasmados que a única coisa que fizeram foi gritar a Wilbur, mas ele não lhes ligou. Bom, é claro que toda a gente achava que Wilbur estava
perdido, mas, dez minutos depois, ele saía pela mesma porta entre chamas e fumo com o ar mais calmo do mundo e com Lillian nos braços.
- Sabem - disse-nos Wilbur dirigindo-se ao sítio onde estávamos de olhos esbugalhados - tive de subir a pé até ao meu andar porque os elevadores não funcionam.
O serviço está cada vez pior neste hotel. Hei-de apresentar queixa à gerência logo que pague alguma coisa por conta.
Então a Lillian lançou um fortíssimo miado, saltou do colo de Wilbur, passou a correr por entre polícias e bombeiros com o pêlo todo eriçado e o que toda
a gente viu a seguir foi ela a lançar-se pela porta do velho hotel adentro com uma enorme rapidez.
- Olhem, olhem - exclamou Wilbur com um ar muito espantado - lá vai a Lillian.
E o que é que o doido do Wilbur fez senão dar meia volta e regressar ao Bruxelas e por essa altura já o fumo saía pela porta da frente e era tão espesso
que, em segundos, ele deixou de se ver. É evidente que apanhou bombeiros e polícias desprevenidos porque não estavam acostumados a que as pessoas andassem a entrar
e a sair dos incêndios mesmo à frente dos seus narizes.
Dessa vez quem estava por ali não hesitou em apostar - dois e meio e talvez três contra um - em como não aparecia mais, porque o velho Bruxelas explodia
nessa altura em chamas e fumo vindos das janelas de baixo embora parecesse não haver muitas chamas nos andares de cima. Tudo indicava que já toda a gente saíra do
prédio e até os bombeiros combatiam o incêndio do lado de fora porque o Bruxelas estava tão velho e decrépito que não valia a pena arriscarem-se para salvarem os
andares.
Isto é, estava toda a gente lá fora menos o Wilbur Willard e a Lillian, e na nossa opinião, eles estavam a rilhar algures lá dentro embora o Feet Samuels
andasse por ali a aceitar apostas de treze contra cinco em como a Lillian iria aparecer sã e salva porque o Feet asseverava que os gatos tinham nove vidas e que
era uma boa aposta.
Bom, de repente apareceu uma pequena bonitita, toda histérica, a empurrar e a esbracejar por entre a multidão até às barreiras, a gritar até ninguém se conseguir
ouvir e nessa altura toda a gente ouviu uma voz a fazer io-de-dé-i-ti, como um cantor dos Alpes suíços, vinda do telhado do Bruxelas e, olhando para cima, vimos
Wilbur Willard na beira do telhado, por cima das chamas e do fumo, a gritar muito alto.
Debaixo de um dos braços, tinha um grande embrulho, não se sabia de quê, e debaixo do outro, o garoto que eu vira a brincar no hall com a Lillian. Ao mesmo
tempo que ele estava ali a cantar como um alpino, a pequena bo nitota que estava ao pé de nós, começou a gritar mais alto do que o canto de Wilbur e os bombeiros
apressaram-se a esticar uma rede debaixo do sítio onde ele se encontrava.
Wilbur lançou então um segundo io-de-lé-i-ti e atirou-se todo esticado, com o embrulho e o garoto, mas chegou à rede de rabo e durante alguns minutos ficou
a saltar para cima e para baixo até que parou. O facto é que Wilbur gostava daquele balançar e ainda agora estaria ali não fora os bombeiros terem largado a rede
e o terem deixado cair ao chão.
Então Wilbur saltou da rede e vi que o embrulho era um cobertor enrolado com os olhos de Lillian a aparecerem numa das extremidades. Continuava com o miúdo
debaixo do outro braço, de cabeça para a frente e pernas para trás, dando a ideia de que segurava com mais cuidado a Lillian do que o garoto. Ficou ali a olhar para
os bombeiros com um ar zombeteiro e finalmente disse:
- Não pensem que me apanham na rede se eu não quiser. Sou uma borboleta, e dificil de apanhar.
Depois, de repente, a pequena bonitota que tanta gritaria fazia, atirou-se a Wilbur, arrancou-lhe o garoto e desatou a abraçá-lo e a beijá-lo.
- Wilbur - dizia ela. - Bem hajas Wilbur por teres salvo o meu filho! Oh, obrigada Wilbur, obrigada! O sacana do meu marido raptou-o e fugiu com ele e só
há umas horas atrás é que os meus detectives descobriram onde ele estava.
Wilbur olhou estranhamente para a pequena durante uns segundos e começou a afastar-se mas, nessa altura, a Lillian tentou esgueirar-se do cobertor para fora,
com um ar chamuscado e com um cheiro a condizer, e o miúdo viu a Lillian e desatou a gritar e Wilbur acabou por lhe passar a gata. E como não a queria deixar, ficou
por ali um pouco confuso, a pequena falou com ele e finalmente afastaram-se ambos, Wilbur carregando o miúdo e o miúdo carregando a Lillian e esta sentindo-se mal
com as queimaduras.
E mais, Wilbur estava provavelmente sóbrio, coisa que, àquela hora da manhã, não acontecia há anos. Mas, antes de desaparecer, ainda tive a possibilidade
de falar com Wilbur e das suas palavras depreendi que a primeira vez que fora buscar a Lillian a encontrara no quarto e não vira vestígios do miúdo e nem se lembrara
dele, porque não sabia em que quarto estava pois nunca ligava a essas coisas.
Mas, da segunda vez que lá fora, Lillian estava a cheirara frincha da porta de um dos quartos ao fundo do corredor e Wilbur disse-me que se lembrava de ter
visto algo como umas pingas de água a saírem da frincha.
- E - disse-me Wilbur - como andava a procura de um cobertor para a Lillian e não estava para voltar ao meu quarto, pensei que ali talvez arranjasse um.
Tentei o puxador mas a porta estava trancada e então meti-a dentro com um pontapé, entrei e vi que o quarto estava cheio de fumo e as chamas estavam paulatinamente
a lamber as janelas, e quando tirei um cobertor da cama para embrulhar a Lillian, o que é que me apareceu debaixo do cobertor? O miúdo.
- Bom - acrescentou Wilbur - o miúdo guinchava, a Lillian miava e gerou-se uma tal confusão que comecei a ficar nervoso e portanto achei que era melhor irmos
até ao telhado para acabar com aquele cheiro e vermos o fogo de lá. Pareceu-me ver um tipo esticado no chão do quarto ao lado de uma mesa tombada entre a porta e
a cama. Tinha na mão uma garrafa e estava morto. É claro que não valia a pena andar com um morto atrás e assim, peguei na Lillian e no miúdo e fui até ao telhado
e depois voámos todos como os colibris. Agora preciso de beber um copo - acrescentou ele. - Será que alguém traz no cinto algo que se beba?
Bem, no dia seguinte, Os jornais vieram, naturalmente, cheios de notícias sobre Wilbur e Lillian, especialmente sobre Lillian e ambos passaram a ter o estatuto
de grandes heróis.
Mas Wilbur não aguentava a publicidade por muito tempo porque deixava de ter tempo para si, para os seus copos, com os repórteres e os fotógrafos sempre
em cima dele, a quererem ouvir a sua história e a tirarem mais umas fotos a ele e à Lillian e assim, uma noite desapareceu e a Lillian desapareceu com ele.
Um ano mais tarde acabou por casar com a sua antiga pequena, a Lillian Withington-Harmon, começou a ganhar muita massa e, mais do que isso, deixou de beber
e, fosse como fosse, tornou-se um cidadão muito respeitável. Portanto, toda a gente acabou por admitir que os gatos pretos nem sempre dão azar, embora eu diga que
o caso de Wilbur é um pouco a excepção à regra porque à partida ele não sabia que a Lillian era um gato preto, mas pensava que era um leopardo.
Um dia, por acaso, encontrei Wilbur, todo bem vestido, com boas roupas, jóias e todo janota.
- Wilbur - disse-lhe eu. - Penso muitas vezes como é espantoso que a Lillian se tenha afeiçoado tanto ao miúdo, assim de repente, e se tenha lembrado que
ele estava no hotel e te tenha levado lá, uma segunda vez, ao quarto certo. Se não o tivesse visto com os meus olhos, nunca acreditaria que um gato tivesse discernimento
suficiente para fazer uma coisa dessas, porque acho que Os gatos são muito estúpidos.
- Qual discernimento qual quê - disse-me Wilbur. - A Lillian não via um boi à frente dos olhos. E além disso ela tinha tanta afeição pelo miúdo como por
um coelho. Chegou o momento - disse Wilbur - de dizer toda a verdade sobre a Lillian. Ela foi muito elogiada mas sem o merecer. Vou-te falar agora da Lillian e mais
ninguém sabe disto, a não ser eu.
- Sabes - continuou Wilbur - quando a Lillian era uma gatinha, eu punha-lhe sempre um bocado de whisky no leite, em parte para que ela ficasse boa e forte
e, em parte, porque nunca gostei de beber sozinho, a não ser quando não tinha ninguém a meu lado. Bom, a princípio a Lillian não ligava lá muito ao whisky no leite
mas finalmente começou a gostar e eu continuei a aumentar-lhe a ração até que no fim ela acabava por beber um bom naco já sem leite nenhum, e chorava por mais. Até
que me apercebi de que a Lillian era uma bêbeda, tal como eu nessa altura, e que não passava sem a sua dose e era quando se sentia bem e com os copos que a Lillian
andava atrás dos pequinêses e se tornava violenta.
- Ora - contou-me Wilbur - o momento em que O incêndio começou coincidiu com a hora em que eu chegava a casa todas as manhãs e dava a dose à Lillian. Mas
quando entrei no hotel para a ir buscar pela primeira vez, esqueci-me de lhe dar o whisky, e a razão por que ela voltou a entrar no hotel foi porque ia à procura
da sua dose. E a razão por que ela estava a cheirar à porta do miúdo, não foi porque o miúdo se encontrasse lá dentro, mas porque as pingas que escorriam da frincha
por debaixo da porta, eram pura e simplesmente whisky que saía da garrafa que estava na mão do morto. Nunca disse isto a ninguém porque achei que seria um golpe
à memória de um morto - disse Wilbur. - Beber é uma coisa terrível, especialmente o beber-se às escondidas.
- Mas como é que está a Lillian agora? - perguntei eu a Wilbur Willard.
- Estou muito desapontado com a Lillian - respondeu ele. - Ela recusa-se a reabilitar-se como eu e, a última vez que soube dela, estava com o Gregorio, o
contrabandista italiano, que a mantinha bem alcoolizada e portanto ela agora deve estar a dar uma vida de cão ao pequinês da loira.
A INFÂNCIA DE MISS CHURT
R. Buckley
Miss Churt - britânica, como toda a gente a bordo do Malvern - estava sentada no peitoril de protecção da galeota e, de olhos vidrados, contemplava o Atlântico Norte.
Miss Churt estava mergulhada em meditações sombrias acerca do bife de lombo que o cozinheiro lhe tinha dado. "Come-o todo, bichaninha; é bom" tinha dito
o cozinheiro e Miss Churt não se fizera rogada.
Mas agora - embora o bife estivesse delicioso - Miss Churt estava um pouco apreensiva: uma sensação semelhante a balas de canhão no diafragma apoderara-se
dela...
Miss Churt decidiu ir apanhar um pouco de ar fresco, fazer uma visitinha ao seu amigo Sr. Wharton.
Saltou do seu poleiro e, de rabo alçado, caminhou com passos incertos para as escadas do camarote.
A marcha do Malvern também era incerta e pela mesma razão - uma sensação de peso no diafragma causada não por balas de canhão mas por munições de guerra
muito mais modernas. As suas relações com o leme nunca haviam sido das mais cordiais, mas agora, depois de ter sido bombardeado, abalroado e atacado por aviões,
parecia que tanto lhe fazia ir para aqui como para acolá - o que, aliás, era o que estava constantemente a fazer.
Numa das salas no convés do navio, o primeiro oficial e o chefe maquinista estavam a discutir este e outros fenómenos relacionados com o conforto e o bem-estar
da tripulação. O Sr. Mcivor que, naturalmente, era O maquinista, tinha entrado em Nova Iorque e estava a absorver o pessimismo do Sr. Wharton.
- Ele é uma espécie de mistura de gripe com uma sala da bolsa de valores - disse o primeiro oficial aludindo ao Comandante. - É... bom, você viu-o.
- Vi qualquer coisa - disse Mclvor sem se comprometer muito.
- Só podia ser ele. Sobrinho do presidente; anos e anos esparramado ao sol... vem a guerra... o velho Stokes apanha gripe - mão da divina Providência - e
aqui estou eu a dizer Sim> sim meu Comandante àquela coisa. Se ao menos ele tivesse pestanas não me importava tanto, mas...
Mclvor acenou que sim e o seu sujo cachimbo disse Chlup, chlup.
- E houve algum problema até aqui?
- Submarinos, hem? Não. Olá riquinha. Olá! Vieste ver o Papá?
O Sr. Mclvor, arrelampado, fez um gesto instintivo para alisar o cabelo mas era apenas Miss Churt. O Sr. Wharton foi até à porta, pegou em Miss Churt ao
colo e, antes de se voltar a sentar no seu beliche, estendeu cuidadosamente no tapete um jornal do mês anterior. A página que ficou voltada para cima tinha uma fotografia
do casamento de Lady Fulana com o capitão Sicrano de Tal dos guardas reais; o Sr. Wharton, debruçando-se, com Miss Churt instalada na palma da mão, analisou, com
um olhar corrosivo, flores de laranjeira, sorrisos, dentes, amígdalas e o arco de espadas.
- Pronto, queridinha - disse, colocando Miss Churt em cima deles.
- Você é casado? - perguntou o Sr. Mclvor.
Não. Mas hei-de ser. É ela.
O maquinista entortou um olho para a fotografia que se encontrava em cima da secretária.
- Bonita pequena.
- É como diz. Cónego Hobson e tudo. Olhe lá, viu o nosso canhão de 4.7 no convés da popa?
- Para grande pena minha. Mas que história é essa - disse Mclvor, cuja capacidade de absorver novidades pessoais era muito superior à de as transmitir -
de cónego? Não me diga que a pequena tem uma paixoneta por ele.
- Pelo velho Hobson? Não é desse género - disse o Sr. Wharton e o seu olhar fez Mclvor desconfiar de que não devia ter perguntado. - O facto é que... isso
minha queridinha. Vem ao Papá. Linda menina!
- Parece que você gosta da bichana.
- Sou louco por ela. E ela é doida pelo Harry, não és bichinha?
Miss Churt lambeu uma mão calejada e nodosa. Sabia um pouco a bife temperado com alcatrão, sal, tabaco e Unguento Maravilha de Mallison para golpes e arranhões
superficiais.
- Então onde é que entra tal cónego?
- Todas as raparigas do meu tempo de Liverpool são malucas por ele. Está a ver, ele ensinou-nos a todos o catecismo; o grupo coral das crianças chamava-lhe
ele; nós, os rapazes, saímos logo que fomos crismados mas, quer você acredite quer não, nunca fui um homem de dizer tantos palavrões como seria normal na minha posição.
- Reparei nisso quando andámos aos bordos na corrente - disse o Sr. Mclvor. - Até pensei que às tantas você era bicha.
Um súbito apertão das costelas de Miss Chart suscitou um miado.
- Magoei a barriguinha, foi? - perguntou o Sr. ton. - Pronto, já passou... linda menina. Barriguinha cheia que nem um tambor... Ah, então pensou, foi?
- Até nos conhecermos - apressou-se a dizer o Mclvor. - Mas, esse padre, já não pode ser muito novo?
- Cónego - disse o Sr. Wharton. - Pois não e também não é nenhuma beleza. Mas é a menina dos olhos da Annie e ou é ele que a casa ou não é ninguém, de modo
que até agora não foi ninguém... e agora> ainda por cima, põe-
-me este palerma de suíças cor-de-rosa à perna...
- E que interessa quem é que a casa? Aquilo não leva mais tempo que tirar um dente.
- Ai não leva? Aí é que você se engana. O velho son é todo pelos rituais e essas cenas todas. O que quer dizer véus e flor de laranjeira para a Annie e chapéu
alto e casaca para mim.
- Mas em tempo de guerra não!
- Quem disse que não?
- Se fosse comigo - disse o Sr. Mclvor após madura reflexão - ia ter com o velho e mandava-o dar uma volta.
- Isso é que não mandava - disse o Sr. Wharton em tom sombrio. - Você é que nunca o viu. Não mede mais de um metro e setenta mas é um reguila. Tem um daqueles
focinhos que parece cortado em granito com um martelo-
-pilão. É um bocado parecido consigo.
O maquinista chefe analisou isto cuidadosamente e pousou o copo.
- Pois é - disse ele levantando-se. - É vontade de calculo, que alguns casem e tenham puros enquanto outros esbanjam as suas paixões com gatos malhados.
Boas noites> Sr. Wharton.
Quando chegou à porta voltou-se para assistir à explosão desta bomba de Glasgow. Miss Churt, que tinha sido despertada por algo que parecia um tremor de
terra, piscou-lhe os olhos e voltou a adormecer.
- Temos gente a bordo capaz de operar com o tal canhão? - perguntou Mclvor para encobrir a sua curiosidade mais mórbida.
- Temos - respondeu o Sr. Wharton - e se alguém perguntar quem comanda essa equipa, pode dizer que sou eu. Reserva naval.
- E, por seu turno, você é comandado pelo Comandante Timbs. Bem... boa noite.
- Ouviu falar naquele navio madeireiro que foi torpedeado? - perguntou Wharton.
- Não. Que aconteceu?
- Oh, foi só que pensaram que se calhar ele não se
afundou como devia e que pode andar por aí aos pedaços. O Timbs tem andado a contactar por rádio toda a gente excepto O Churchill e o Presidente Roosevelt mas ninguém
o viu. A noite também está escura. Bem... bons sonhos.
O Sr. Mclvor retirou-se com um ar bastante pensativo mas o primeiro oficial pareceu sentir-se melhor.
Extraiu suavemente Miss Churt do país dos sonhos, segurando-a pela barriga de modo que ela ficou com as patinhas a abanar, fez-lhe um sorriso gigantesco
e deu-lhe um beijo muito pouco higiénico no nariz.
- Então, minha belezinha! - disse o Sr. Wharton. Queres que o Papá case com aquela outra pequena para tu teres uma linda casinha e um jardinzito para poderes
esgaravatar à vontade?
Miss Churt estava extremamente sonolenta; além disso parecia que o bife lhe tinha enferrujado as cordas vocais. Abriu a boca cor-de-rosa mas não emitiu qualquer
som.
- Então estamos combinados - disse o Sr. - E, por falar nisso...
Tinha mesmo acabado de se levantar para apanhar do chão o jornal com as fotografias do casamento quando, vindo do lado da proa, lá fora na noite estrelada,
se ouviu um enorme estrondo.
O Malvem estacou como uma velhota atingida no saco das migas.
Ao mesmo tempo as luzes apagaram-se.
Era, evidentemente, o navio abalroado a flutuar, de quilha para cima, naquilo a que os franceses chamam, de forma tão poética, a flor da água e que os anglo-saxões
intitulam de superficie.
Tendo cumprido o destino que lhe fora traçado por aquelas luzes celestiais que brilhavam lá em cima - Neptuno atormentado por Marte, talvez; quem sabe? -
e metido dentro a proa do Malvem como o fole de uma concertina, o navio madeireiro rolou sobre si mesmo, vomitou mais uma centena de metros de tábuas por um novo
rombo e afundou-se; enquanto, por detrás do pique de vante do Malvern, o Sr. Wharton mais um punhado de marinheiros seminus lutavam para impedir que acontecesse
a mesma coisa à sua barcaça.
Era necessário reforçar uma antepara; mas reforçar anteparas não é tarefa fácil no meio de uma noite de breu.
Levou uma hora até o Sr. Mclvor e a sua horda conseguirem pôr de novo a funcionar o dínamo que fora arrancado do seu lugar; e depois aquilo que a luz das
lanternas apontada ao casco revelou estava longe de ser encorajador.
Não só a antepara cuspia água através dos buracos dos rebites desenraizados, como a própria antepara estava ilsica e visivelmente encurvada para dentro,
de modo que era mais que óbvio que não havia tempo para grandes obras de carpintaria nem para escoramentos delicados.
Os olhos do Sr. Wharton, por debaixo das melenas desgrenhadas, vagueavam desesperadamente pelo porão. A bombordo e a estibordo munições de vários tipos formavam
uma admirável escora dos lados da parede da proa. Mas a meio encontravam-se dois caixotes que haviam posto à prova os estivadores: eram tão grandes e pesados que
poderiam perfeitamente conter tanques de guerra e a notória instabilidade do Malvern fizera com que tivessem sido estivados bem atrás da antepara.
O espaço intermédio estava cheio disto e daquilo em pacotes que pesavam umas meras centenas de quilos.
- Tirem-me esta tralha do caminho! - uivou o Wharton. - Despachem-se, rapazes!
Ele próprio ia pegar num dos caixotes quando o terceiro oficial o agarrou pelo ombro.
- Oiça lá!
- Oiço, uma ova. Mexa-se e empurre aqui qualquer coisa. Vou levantar estas malditas locomotivas ou láo que aquiestádentro.
- Oiça-me! O velho está desvairado a mandar tantos SOS para todo o lado que o éter já está cheio de coágulos...
- Ele que vá para o inferno!
- E agora está a preparar-se para abandonar o navio.
O Sr. Wharton largou o caixote que tinha entre mãos e foi a correr soltar da confusão a caixa das chaves. Por qualquer razão desconhecida, a sua camisa tinha-se
desintegrado e as suas calças compunham-se unicamente de um arremedo de calções e de uma perneira mas, mesmo assim, continuava a não praguejar.
O Cónego Hobson que, nesse momento, dormia pacificamente na longínqua Liverpool com o nariz afilado enterrado numa almofada macia que lhe fizera uma paroquiana
teria ficado muito contente se soubesse tal coisa.
- Que vai você fazer? - perguntou o terceiro oficial.
- Ele já tem prontos todos os papéis do navio e diz que é
o dever dele para com os homens e que se, de madrugada,
não vierem socorrer-nos que manda toda a gente para os salva-vidas.
- Se você não me sair do caminho, de madrugada já fomos todos para Os peixinhos - disse o Sr. Wharton...
- Mas você tem de o impedir.
- E arriscar-me a ser acusado de motim? Não, muito obrigado; eu cá obedeço. Mexam-me essa tralha seu bando de lagostas moles! Venham para aqui seus preguiçosos
morcões. Querem que eu empurre isto sozinho? Tu Fawdry... e tu, Wilson...
Havia agora um espaço vazio entre a antepara e o tanque que, claro, não era um tanque, só parecia sê-lo. De qualquer modo o problema era levar este até à
antepara e o outro a seguir, se possível. E a antepara estava a dar a entender, na sua linguagem de aço torturado, que raios a partissem se ainda ia esperar muito
mais tempo por aquele apoio.
- Não se consegue empurrá-los - disse fracamente o terceiro oficial - e, se conseguirmos, ainda vão pela proa fora e nós atrás.
- Como o Tornado em Coney Island - disse o
Wharton sorrindo. - Lá se foi o MeGinty. Prontos rapazes? Ponham-se em linha, metam-lhe os ombros. É empurrar ou deixar crescer guelras! Agora... um... dois...
O caixote não mexeu.
- O velhote diz... - arquejou o terceiro oficial.
- Cante-nos qualquer coisa - grunhiu um dos homens; e o Sr. Wharton acedeu ao pedido. Quase se podia dizer que a boca falava com a profunda voz do coração.
Não era muito correcto chamar àquilo cantar e o palavreado era pobre e incompleto; contudo no que tocava ao tema, objectivo e - sim - a paixão do amor não correspondido,
o canto do Sr. Wharton podia pedir meças aos romances dos trovadores.
- O Co-o-o-manda-a-ante Ti-i-imbs - entoou ele num rugido desafinado - é um filho da - iça!
A licença dos homens em Staten Island tinha sido cancelada.
- O Co-o-o-manda-a-ante Ti-i-imbs - ecoaram eles entusiasticamente - é um filho da - iça!
O caixote mexeu-se.
- O Co-o-o-manda-a-ante Ti-i-imbs - iça!
O caixote avançou vinte centímetros.
...filho-da-iça!
Mais vinte centímetros.
Lá em cima, na ponte, o tema da canção estava a falar com três graduados da marinha que não tinham ar de gostar dele. Eram os responsáveis pelo canhão de
4.7 que estava na popa e pareciam estar a sofrer do espírito de Nelson ou de Collingwood ou de outro qualquer.
Apesar disso, tudo o que fizeram quanto ao assunto foi dizer que não pensavam que...
- Vocês não têm nada que pensar! - disse o Comandante Timbs.
- O senhor não é o nosso chefe, Comandante - disse o mais velho dos graduados.
- Estão sob as minhas ordens! Se eu mandar abandonar o navio, abandonaremos o navio!
Aqui foi a vez do graduado mais novo.
- Sim, meu Comandante - disse ele. - Se assim o diz.
O Comandante Timbs engoliu um grande e visível nó da garganta.
- São essas as ordens - disse. - Mal amanheça. Temos um rombo enorme.
- O mar está encrespado, meu Comandante - disse o mais velho dos graduados.
- Contactei por rádio um cargueiro sueco; a essa hora estará aqui, de prevenção. Quem raio são vocês a porem em causa as minhas ordens?
-Ninguém, meu Comandante.
- Rua, daqui para fora!
- Sim, meu Comandante - disse o terceiro; e lá foram eles.
O que disseram enquanto desciam é coisa com que ninguém tem nada a ver: meras especulações abjectas sobre quantias pagas pelo governo a pobres armadores
despojados dos seus bens; pragas e palavrões do mais ordinário e vulgar. Podemos, no entanto citar alguns trechos como, por exemplo, ter o mais velho dito que já
estava a amanhecer; o segundo dizer que por acaso até parecia que a barcaça estava com vontade de dar o grande mergulho; e o mais novo, depois de olhar à ré, dizer
que de qualquer modo o navio se afundaria de bandeira içada e canhões vazios.
- Então mais vale ir lá dispará-lo - disse ele.
- Mais vale ires lá abaixo e dar uma mãozinha ao Wharton - disse severamente o mais velho; e assim fizeram.
Pouco tempo depois destes acontecimentos, Miss Churt a quem o bife de lombo tinha enchido o sono de sonhos de ratos gigantescos que a perseguiam por becos
infindáveis, acordou sobressaltada e com um mau sabor na boca.
Bocejou e decidiu, mais uma vez, que um pouco de ar fresco lhe havia de fazer bem. Saltando abaixo do seu poiso, descobriu que o chão não estava exactamente
onde o tinha deixado - tinha agora um declive acentuado e, antes que Miss Churt se habituasse à nova situação, as suas patas dianteiras cederam e ela rebolou para
um canto.
Conseguindo pôr-se mais ou menos em pé, dirigiu-se para a porta e daí foi rebolando em busca de companhia. Já estava dia, de modo que bocejou e esticou-se
da maneira como os gatos fazem para agradecer a Deus cada noite passada ao abrigo - mas havia qualquer coisa que estava errada.
Onde estava toda a gente, para começar?
E porque não estava o convés a vibrar como era hábito? E, normalmente, as gruas da carga funcionavam com um barulho atroador que atirava as orelhas para
trás; agora o silêncio era total - e olhem! quando se passava para lá da casa dos mapas via-se que a antepara dos botes tinha desaparecido e o vento soprava sem
que nada o impedisse.
Havia apenas por ali alguns cabos espalhados...
Miss Churt avançou mais alguns passos e sentou-se como a clave de sol numa pauta de música. Ao longe, por entre a névoa, conseguiu descortinar a silhueta
de um navio parado; e quanto aos botes do Malvern estes estavam na água - e a mover-se, de facto, a mover-se e a afastar-se dela.
E num deles, junto com três graduados da marinha e mais alguns cavalheiros robustos que discordavam do Comandante Timbs e estavam naquele momento a exprimir
tal ideia, o Sr. Wharton estava, também naquele mesmo momento, a lembrar-se de que tinha deixado Miss Chort a bordo.
- Pelos pregos de Noé! - exclamou ele; e o Cónego Hobson que ainda dormia, sorriu nos seus sonhos longínquos. - Ora...
Os remos ergueram-se.
- Esqueceu alguma coisa, Sr. Wharton? - perguntou o graduado mais velho.
- Se me esqueci de alguma coisa? - disse o Sr. ton. - Deixei lá a minha gata.
Das entranhas do bote veio uma gargalhada mal abafada.
- Riam-se de mim que eu dou-vos uma cabeçada disse o primeiro oficial e o silêncio voltou a reinar sobre o oceano.
- Quer voltar atrás, Sr.
- Eu... acho que sim - disse o Sr. Wharton. - Se estamos a salvar a porcaria das nossas peles sem necessidade nenhuma, não vejo por que razão há-de um pobre
animalzinho irracional sofrer. A não ser que alguns destes cavalheiros ponham alguma objecção? Ora então para estibordo, directos ao resbordo da ré. Força, seu bando
de alfaiates!
- O bote do Comandante parou de remar - disse o remador da proa.
- Deixem lá - disse o Sr. Wharton. - Também nos podíamos amotinar daqui a dez minutos. E aquele sueco bem pode esperar. Pelo parente rico... Vamos, força
nesses remos!
Um apelo distante ecoou sobre as águas que, aliás, estavam espantosamente calmas.
- Vou só ali e venho já - respondeu o Sr. Wharton, sem saber que a cerca de uma milha, do outro lado do Malvern, o mar escondido pelo navio estava a ser
rasgado pelo periscópio de um submarino.
O Comandante deste, por sinal um tipo bastante simpático chamado Koenig, com residência habitual em Munique, na Glocknergasse n0. 8, tinha ouvido os frenéticos
apelos transmitidos via rádio pelo Comandante Timbs e perguntara a si mesmo se estes não estariam a prognosticar algo de interessante no seu ramo de negócios. Ele
bem sabia que estavam em fase de escassez temporária de contratorpedeiros naquela área mas, afinal de contas, as coisas estavam a correr-lhe melhor do que o previsto.
Através do periscópio tinha visto a tripulação abandonar o navio e, verificando que no fim de contas o Malvern não se apressava a precipitar-se nos abismos, comentara
para os seus homens, com deleites de alma, quão parca era a valentia marítima dos marinheiros britânicos.
Que não se tratava de um navio camuflado era para ele uma certeza, que lhe advinha tanto da presença do navio sueco como do modo perigoso como o próprio
Malvem adernava. Assim, as suas intenções eram combinar negócios e prazer, dando oportunidade à tripulação em fuga de ver como ele usava o navio abandonado para
exercícios de tiro ao alvo. Decidiu utilizar torpedos de percussão e começar por mandar pelos ares a chaminé.
Quando o submarino emergiu, a tripulação saiu a correr para a proa e começou a preparar o canhão.
Nesse preciso momento, o olhar saudoso de Miss Churt iluminou-se todo ao vislumbrar o Sr. Wharton, mais peludo do que nunca. Miss Churt gostava de gente
peluda, tinham muito mais cantos para um gato se enroscar.
O seu dono, ao desembarcar do bote> não parecia tão bem disposto como de costume; parecia estar preocupado com qualquer coisa; não sorria.
Mas Míss Churt conhecia um bom remédio para isso. Quando alguém tinha um ar triste> ela fugia a correr e o Sr. Wharton corria atrás dela e apanhava-a e chamava-lhe
diabinho e corrigia-se e chamava-lhe diabrete e dava-lhe um beijo na ponta do nariz.
Assim, Miss Churt fugiu a correr, derrapando um pouco por causa da inclinação do convés, de orelhas em riste à escuta dos passos amados em sua perseguição.
E lá vinham eles.
Mas vinha também outra coisa.
Uma coisa terrível. Um barulho que se prolongava, que crescia, que saía do meio de um pulsar distante, que lhe perfurava os ouvidos - tão aterrador - e depois,
um imenso clarão, que levantava o mundo inteiro e o partia em pedaços, que lhe abalava de tal modo o estômago que o bife deixava de ter qualquer importância...
O Sr. Wharton, saindo de trás da casa do rádio, deteve-se por instantes.
Viu um grande buraco irregular no soalho do convés que teve de contornar para seguir o seu caminho.
Ao fazê-lo, viu o submarino do Comandante Koenig, parado aí a uns três quartos de milha de distância.
Mas aquilo de que estava à procura era uma bolinha de pêlo sujo, e encontrou-a, totalmente inerte, mesmo adiante da escada do tombadilho. O mais curioso
era que o Comandante Koenig também adorava gatos e tinha três em casa, na Glocknergasse.
Mas guerra é guerra.
O Sr. Wharton tomou na sua grande mão aquilo que a guerra deixara de Miss Churt, pousou sobre ela a outra mão como se fora a tampa de um caixãozinho e insultou
o Comandante Koenig assim como os seus superiores e
inferiores; levantou, depois, ambos os braços e, segurando ainda na mão direita o corpinho inerte, ergueu a voz num grito capaz de cobrir distâncias.
E, de facto, no Presbitério de Sta. Maria, o Cónego Hobson acordou sobressaltado; olhou para o relógio que estava na mesinha de cabeceira e viu que eram
5.25; voltou-se na cama, mas fosse qual fosse a razão não sentia vontade de voltar a adormecer.
- Sacana de açougueiro de merda! - gritava agora o Sr. Wharton; mas, de repente a voz quebrou-se-lhe. - A minha pequenina...
Uma voz falou mesmo por detrás dele. Eram os graduados que não tinham achado muito correcto que o seu superior fosse a bordo sem escolta e, portanto, tinham
também escalado os destroços e ali estavam. A voz era a
do graduado mais velho, como convinha.
- Que acha de lhe mandarmos também um Sr. Wharton? - inquiriu.
O Sr. Wharton tinha-se esquecido do canhão de 4.7 da ré. Agora que lho lembravam emitiu um verdadeiro rugido de assentimento.
Enfiou o corpo de Miss Churt no bolso lateral do casaco e foi, escada abaixo, seguido pelos três graduados.
Tinham de descer ainda outra escada, atravessar o convés em direcção à popa e depois subir à popa. E foi, então, que o Comandante Koenig os viu.
Numa avalanche de sons em au e numa revoada de terminações em ch, ordenou aos seus homens que alterassem a pontaria e mandassem a Wharton uma boa boiada;
de forma que a questão se pôs muito claramente, em termos grosseiros, em saber quem mandava primeiro uma boiada a quem.
O submarino, que estava já preparado, foi o primeiro a disparar; mas o alvo, assim alterado à pressa, estava muito alto e a bala só não atingiu o navio sueco
por uma escassa meia milha (Relatório de 27 de Março de 1940, parágrafo 2).
Entretanto o graduado mais velho tinha estado a proceder a variadas manipulações de variadas coisas; e agora, com um aceno de cabeça, declarava-se satisfeito.
Olhou, desnecessariamente, para o Sr. Wharton, abriu a boca e estava a pontos de perguntar se podia fazer fogo quando o oficial, (que, evidentemente, não era um
oficial de carreira) o empurrou para o lado, agarrou na alavanca de tiro e disparou.
Foi uma questão de sorte, de pura sorte, para todos os interessados; mas a verdade é que aquela bala inconvencional, quase ilegítima, voou, como se através
de um tubo, direita ao cano do canhão do submarino, dobrou-o, ricocheteou, sem ferir nem o Comandante Koenig nem nenhum dos seus homens, e foi esmagar o bordo da
torre de comando onde explodiu com o abandono típico dos explosivos de alta potência.
Ninguém ficou ferido excepto O Marinheiro Albrecht Otto de Bremen (surdez e escoriações) mas a torre de comando ficou impossibilitada de se fechar. O que
significava impossibilidade de submergir...
E na linha do horizonte, para sul, aparecera e estava a aproximar-se uma nuvem de fumo que prenunciava contratorpedeiros. Assim comentaram entre si os três
graduados.
Entretanto o Sr. Wharton, na outra amurada, estava a exprimir a sua opinião de frenético desprezo contra o Comandante Timbs e contra todos os homens que
se metessem em botes, abandonando gatos em navios perfeitamente sólidos e cheios de preciosas e necessárias munições.
Esta manifestação, para além de chamuscar a pintura (a acreditar no terceiro oficial) dos bancos do Salva-vidas N.o 1, deixou o Sr. Wharton completamente
exausto. E mais pacificado.
Meteu a mão no bolso e extraiu dele os restos mortais de Miss Churt. Os olhos azuis estavam fechados, a cabeça macia caida sobre o pescoço e os bigodes estavam
chamuscados.
- Quer que voltemos para aí? - ouviu-se um coro de vozes por sobre o mar.
- Vão mas é para o inferno! - rugiu o Sr. Wharton de forma que todos se puseram a remar em direcção ao navio.
Mas uma voz calculada para cobrir um quarto de milha é algo de tremendo quando ouvida de perto.
Cada uma das células de Miss Churt começou a vib rar.
O estômago recomeçou a incomodá-la. Nas suas narinas havia um cheiro familiar que se insinuava para além do cheiro a bigodes queimados - tabaco, alcatrão
e Unguento...
Abriu os olhos e disse: - Miau!
Guerra ou não guerra, a verdade é que a igreja paroquial de Sta. Maria estava convenientemente decorada para aquele casamento; embora, tendo em conta as
circunstâncias, o Cónego Hobson tivesse condescendido em atenuar as regras do vestuário no que dizia respeito ao noivo.
A menina Woollard, porém, estava vestida a preceito até ao pormenor da septuagésima nona flor de laranjeira. Mostrava, contudo uma certa propensão a mordiscar
nervosamente o véu. Estava mais nervosa do que estão habitualmente as noivas; mais nervosa ainda do que podia levar a crer o facto de o noivo ter três padrinhos
- o graduado mais velho, o mais novo e o do meio, todos ostentando medalhas que eram apenas inferiores de um grau àquela que fora concedida ao Sr. Wharton.
A causa deste mal-estar tornou-se patente quando o Cónego Hobson, ao abrir o seu livro de orações, começou por reparar, depois ver e finalmente por arregalar
os olhos para o bolso direito do casaco do noivo.
Talvez se devesse aqui mencionar que, para além de uma cara de granito e de um coração extraordinariamente mole, o reverendo senhor era dotado de olhos que
pareciam ter sido talhados em diamante que, depois, fora moído fino.
Fechou o livro de orações e falou numa voz baixa e intrigada.
- Henry - disse ele, enquanto a congregação esticava os pescoços - não pode ser um gato isso que tens no bolso do casaco. Não pode ser um gato?
Isto era uma afirmação um tanto exagerada sobre Miss Churt, que fazia naquele dia seis semanas e que só tinha posto fora do bolso o focinho barbeado pela
bala para apanhar um pouco de ar fresco. Mas a ideia geral era inquestionável.
- É - disse o Sr. Wharton. - É sim.
- Ele tinha de a trazer - tinha - eu bem lhe disse... - gaguejou a noiva; mas o Cónego Hobson não lhe prestou qualquer atenção apesar de ela começar a soluçar.
Ao encontrar os olhos azulados de Miss Churt, porém, as suas pupilas adamantinas sofreram um processo esquisito. Primeiro começaram por pestanejar, cobrindo
o olhar condenatório; depois como que se liquefizeram de tal forma que as suas qualidades de penetração se tornaram completamente nulas. Disse:
- Deverei deduzir que... isso... é alguma espécie de mascote? Ligada, talvez, aos recentes... Que lhe aconteceu aos bigodes?
- Digo-lhe depois, na sacristia - disse o Sr. Wharton. E cruzando o olhar do Cónego, arrependeu-se dos preconceitos da sua juventude.
O Cónego Hobson acenou com a cabeça; abriu o livro que tinha fechado sobre um dedo preventivo e tossicou para aclarar a garganta.
- Queridos noivos - proclamou ele - estamos aqui reunidos...
Miss Churt não conseguiu identificar todos os cheiros (na sua maioria açucenas) nem todos os sons (principalmente o Cónego Hobson) que a rodeavam.
Eram interessantes e ela tinha uma vaga ideia que ainda um dia se viria a interessar por qualquer coisa parecida com aquilo, pelo menos quanto ao seu objectivo
geral.
Mas para já, ainda não.
Ainda faltava muito tempo.
E entretanto já tinha arejado o suficiente.
Retirou a cabeça do ar fresco de Sta. Maria, recolheu-a ao twéed quentinho do bolso do Sr. Wharton e, enroscando-se, preparou-se para dormir.
Trad. L. F.
*A GATA GORDA
Q. Patrick
Os fuzileirosencontraram-na quando, por fim, se apoderaram da velha casa da missão em Fufa. Após dois dias de tiroteio incessante não estavam à espera de encontrar
ali nenhum ser vivo - e muito menos uma gata gorda.
E era de facto uma gata muito gorda, ruiva como um escocês, com enormes olhos de ágata e uma cara redonda e amável. Ali estava, sentada no tapete - ou melhor,
no que restava do tapete - em frente àquilo que havia sido o alpendre da missão, lambendo as patas tão placidamente como se a selva devastada pelas bombas fosse
um relvado de Verão em Nova Jersey.
Um dos homens, lembrando-se da cartilha da sua infância, citou: "A gorda gata sentada na manta".
Os outros riram-se. Não que o comentário tivesse de facto alguma graça mas o riso ajudou a aliviar a tensão e exprimiu o alivio que sentiam por terem finalmente
atingido o objectivo após dois dias de duro combate.
A gata gorda, ainda instalada no tapete, sorriu para eles como para mostrar que não se importava nada que se rissem à custa dela. Depois viu o Cabo RandyJones
e, por qualquer razão só dela conhecida, correu para ele como se se tratasse do dono havia muito perdido. Com um ronronar de frigorífico roçou-se-lhe pelas pernas
cobertas de lama.
Todos voltaram a rir quando Randy pegou na gata e encostou a cara feia ao pêlo macio. Era cómico ver um ser vivo mostrar preferência pelo melancólico e solitário
Randy.
Um sargento estalou os dedos:
- Bichaninha, vem cá. Vamos fazer de ti a mascote da Companhia B.
Mas a gata, empoleirada no ombro de Randy como uma rainha no trono, limitou-se a sorrir lá do alto com um ar majestoso como se dissesse:
- Vocês podem ser os meus súbditos, se quiserem. Mas este é o meu homem - o meu príncipe consorte.
E nunca, nem por um segundo, renegou a sua devoção. Vivia com Randy, dormia com ele, só aceitava comida dada por ele. Quase todos os homens da Companhia
B tentaram seduzi-la com carícias e bocados das rações de combate mas a todas as propostas ela respondia com um bocejo de desprezo.
Para Randy este novo amor era puro êxtase. Velava por ela com a ternura possessiva de uma mãe. Escovava-lhe o pêlo até ficar brilhante; quase se matava à
fome para a manter gordinha. E havia nele, ao mesmo tempo, uma mistura de encantamento e espanto. Porque, sendo o mais desengraçado e desajeitado dos dez filhos
de uma família de mineiros da Virgínia do Oeste, nunca antes tinha despertado qualquer afecto em homem ou mulher. Ninguém tivera importância para ele até aparecer
a gata gorda.
A felicidade de Randy foi, porém, sol de pouca dura. Passados poucos dias, a Companhia B foi escolhida para levar a cabo uma manobra destinada a surpreender
o inimigo e, se possível, a apoderar-se do seu quartel-general que se sabia ficar a uns trinta quilómetros dali, no meio daquela zona de selva densa e infestada
de atiradores inimigos. O avanço seria árduo. Os homens levariam as suas próprias rações de comida e de água e dormiriam em trincheiras individuais. Não teriam qualquer
apoio da base.
O comandante foi categórico quanto á gata gorda:
declarou ao desolado Randy que a presença de um gato poria em grave risco a segurança de toda a companhia. Se vissem que o animal o seguia abatê-lo-iam imediatamente.
Momentos antes da hora marcada para a partida, Randy levou a gata gorda para a messe da Companhia H onde foi entusiasticamente recebida pelo não menos gordo cozinheiro.
Pandy não teve coragem para olhar para trás pois sabia que os olhos ambarinos da gata estavam cheios de uma expressão de censura.
Mas durante todo aquele primeiro dia de perigosa caminhada pela selva a ideia do olhar da gata atormentou-o e Randy sentia o coração desfeito pela separação.
Ao deixar a gata havia abandonado mãe, mulher e filha.
A noite, como um imenso pára-quedas negro, abatera-se já há horas sobre a selva quando Randy foi arrancado ao seu sono de cansaço. Uma coisa macia e quente
roçava-se-lhe pela cara e a trincheira onde dormia ressoava com uma sinfonia de ronrons. Randy estendeu uma mão incrédula mas não, não era um sonho. Real e sólida,
agata estava enroscada como uma bola satisfeitajunto do seu ombro.
O seu primeiro impulso foi de alegria mas, quando se lembrou das palavras do comandante, ficou gelado. A gata, desdenhando os mimos da cozinha da Companhia
H, tinha-o seguido através de quilómetros de selva traiçoeira e o seu destino era a morte quando a luz do dia revelasse a sua presença. Randy sentia-se numa agonia
de dúvidas. Levá-la de volta à base seria deserção. Bater-lhe e enxotá-la era qualquer coisa que a sua natureza simples não podia sequer admitir.
A gata esfregou o focinho na cara de Randy com um miado plangente. Não havia dúvidas que estava cheia de fome depois de tão longa caminhada. De súbito, Randy
percebeu o que devia fazer. Se conseguisse resistir a dar-lhe de comer, a fome obrigá-la-ia certamente a regressar ao santuário do cozinheiro.
A gata voltou a miar. Ele mandou-a calar com um chiu e deu-lhe uma palmadita.
- Não tenho nada para te dar, querida. Vai-te embora. Para casa. Pira-te.
Com um misto de prazer e desapontamento, Randy viu a gata saltar silenciosamente para fora da trincheira. De manhã não havia sinais dela.
Enquanto a Companhia B ia avançando furtivamente, palmo a palmo, através da espessa vegetação, Randy pensou que a visita nocturna da gata devia ter sido
um sonho. Mas, na terceira noite, a visita repetiu-se. A gata voltou a esfregar-se de encontro à sua cara e a mordiscar-lhe a orelha. Quando miou, o som continuava
a ser abafado e cauteloso mas tinha uma nota de súplica que penetrou em Randy como uma baioneta japonesa.
Na primeira visita Randy não tinha visto a gata mas, desta vez, movido por um qualquer impulso, agarrou na lanterna. Voltando-a cuidadosamente para baixo
acendeu a luz. Aquilo que viu constituiu uma provação terrível.
A gata já não era gorda. O corpo estava escanzelado, o pêlo
riço e enlameado, as patas feridas e ensanguentadas. Mas
o pior eram os olhos que o fitavam pestanejando. Não
havia neles qualquer censura, apenas uma expressão de
infinita confiança e súplica.
Esquecendo tudo o resto para além daqueles olhos, Randy tirou do saco uma das poucas latas de ração que lhe restavam. Ao vê-la, a gata lambeu fracamente
os beiços. Randy começou a abrir a lata. E então, de repente, apercebeu-se de que ia assinar a sentença de morte da gata. E, porque tinha de haver um escape para
a emoção acumulada, Randy sentiu uma fúria irracional contra aquele bicho cujo sofrimento ultrapassava tudo o que Randy conseguia suportar.
- Pira-te - rosnou entre dentes. Mas a gata não se mexeu.
Bateu-lhe, então, com a pesada lanterna. Durante alguns segundos, sob a força da pancada, a gata ficou imóvel. Depois, com um pequeno gemido, fugiu.
Na noite seguinte não voltou e Randy não dormiu.
No quinto dia entraram em território verdadeiramente perigoso. Randy e outro fuzileiro, Joe, foram destacados como batedores à procura do quartel-general
do comando japonês. De repente, em plena selva, deram com ele.
Um silêncio profundo pairava sobre a clareira e sobre os dois barracões apressadamente construídos. Espreitando por entre a folhagem espessa viram sinais
de uma evacuação recente - papéis espalhados pela erva, um monte de lixo ainda fresco, uma camisa do exército japonês que ondulava ao vento suspensa de uma árvore.
Em frente de um dos barracões, sob um toldo, havia uma mesa improvisada onde se viam os restos de uma refeição.
- Devem ter-se apercebido da nossa presença e piraram-se - disse Joe.
Randy avançou e, de súbito, estacou ao ver qualquer coisa mexer entre as ervas altas junto da porta do primeiro barracão. E viu então a gata, que em tempos
fora gorda, sair para a luz do sol a coxear.
Uma sensação de perigo iminente lutava dentro de Randy contra o orgulho por a gata não o ter abandonado. Tenso e expectante, ficou a ver a gata desaparecer
dentro do barracão. Passado pouco tempo o animal voltou a sair.
- Nada de japoneses! - disse Joe. - Aquele gato tinha-os posto cá fora enquanto o diabo esfrega um olho.
E avançou resolutamente para a clareira.
- Ei, Randy, está aqui um frango inteiro em cima da mesa. Vai-nos saber lindamente depois das rações K.
Calou-se porque a gata também tinha visto o frango e desajeitadamente, com uma fraqueza que metia dó, tinha saltado para cima da mesa.
Com um berro de fúria, Joe baixou-se para apanhar uma pedra que atirou à gata.
Randy sentiu-se a arder de indignação. Tinha deixado a gata à fome, tinha-a enxotado e, apesar disso, o animalzinho tinha-o seguido com uma devoção cega.
O frango devia, indubitavelmente, ser a sua recompensa. No espírito de Randy, lento e simples, a coisa mais importante do mundo era a sua amada ter um justo quinhão
no festim.
A gata, ao ver a pedra, saltou da mesa e fé-lo mesmo a tempo pois a pedra acertou em cheio no frango, atirando-o para fora do prato.
Randy correu para a clareira. Nesse mesmo instante uma explosão ensurdecedora atirou-o ao chão. Alguns segundos depois, quando se soergueu, não havia mesa
nem barracão, nada, a não ser uns restos de madeira a arder.
Estonteado, ouviu a voz de Joe:
- Havia uma armadilha debaixo do frango. Ena, se o gato não tivesse saltado para o frango eu não tinha atirado a pedra. Tínhamos sido nós a pegar no frango
e agora estávamos no céu. - A voz de Joe transformou-se num murmúrio de admiração reverente. - Aquele gato... Acho que foi pelos ares... Mas salvou-nos a vida.
Randy não conseguia falar. Tinha um nó na garganta. Estava ali, deitado, e sentia-se triste como nunca se sentira na vida.
Depois, atrás de si, ouviu um ronronar satisfeito.
Deu meia volta. Curiosamente a explosão atirara para fora do barracão um tapete de juta que acabara por aterrar na erva mesmo por trás de Randy.
E, serenamente instalada no tapete, estava a gata a sorrir-lhe.
Trad. L. F.
*A QUEDA DO MORNING GLORY ADOLPHUS
N. Margaret Campbell
O Morning Glory Adolphus éo nosso gato mais velho e mais calmo. Tem a sua própria coutada de caça numa ravina arborizada nas traseiras da nossa casa e escorraça
qualquer gato ou cão que a invada. Na sua juventude granjeou a reputação invejável de grande caçador e tinha um método especial de preservar a consideração que lhe
era devida pelos seus feitos. Sempre que caça um coelho, um esquilo, um rato de água ou uma cobra, anda de um lado para o outro até encontrar a dona, e coloca a
presa, orgulhosamente, a seus pés. Esta determinação em ser recompensado pela sua bravura e proeza, torna-se por vezes assaz embaraçosa, especialmente quando arrasta
uma cobra de um metro e meio até à sala de música e a deixa em cima do tapete para grande horror e consternação das visitas. Mas, aconteça o que acontecer, o Adolphus
nunca se priva da publicidade que o seu engenho lhe pode granjear. Se fosse homem, far-se-ia sempre acompanhar, nas suas caçadas, por um repórter e, no regresso,
daria um almoço e convidaria os editores de todos os jornais desportivos. De qualquer maneira, mesmo não tendo qualquer curso por correspondência em publicidade,
o Adolphus sai-se muito bem.
Os actores de expressão corporal fariam bem em procurar o Adolphus para efeitos de estudo da dignidade aristocrática pontuada, por vezes, com uma arrogância
desdenhosa. Pavoneia-se pela rua, sem pressas e sem se preocupar minimamente com a sua segurança pessoal, por entre carros que buzinam e cães que atacam. Quando
aparece um cão estranho e confunde o Adolphus com um gato vulgar que pode ser perseguido só por prazer, o Adolphus costuma abrandar a marcha e estende-se à frente
do Inimigo potencial, assumindo a pose e a expressão da esfinge. É a imagem, por excelência, da serenidade e do perfeito controlo muscular. Apenas brilham os seus
olhos de âmbar, sem pestanejar, sempre fixos no focinho enraivecido do inimigo que o ataca de presas salientes e de pêlo eriçado. Quando a agressão é demasiado feroz
mesmo para o gosto de um cão, e acompanhada de latidos e dentadas histéricas, o Adolphus é conhecido por bocejar no focinho do atacante, propositada e muito delicadamente,
como um cavalheiro bem-educado faria perante a exibição exagerada de uma qualquer emoção. Normalmente, o cão estaca como por milagre a uns centímetros daqueles calmos
olhos amarelos e faz um semicírculo enquadrado por aqueles dois focos, lançando uma espécie de impropérios que vão gradualmente esmorecendo até ficarem reduzidos
a uma lamúria ridícula no momento em que inicia uma retirada indigna, enquanto o Adolphus pestaneja solenemente e passa, sempre fitando o seu cobarde inimigo, em
direcção a um lugar misterioso, jamais profanado por cães barulhentos.
Alguns cães houve que não pararam perante a ordem hipnótica daqueles olhos amarelos. Nessas alturas viu-se um relâmpago de pêlos pelo ar e o Adolphus aterrou
mesmo em cima do cachaço da vítima, com as enormes garras a rasgarem com a precisão de um profissional as tenras orelhas e a testa do aterrorizado cão. Talvez que
a fama desses encontros se tenha espalhado por entre a população canina do nosso bairro pois que nunca a reputação de lutador de um cão foi abalada pelo facto de
se desviar das zonas frequentadas pelo Adolphus.
Durante anos, o estatuto de chefe que o Adolphus detinha entre os gatos da casa, nunca foi posto em causa. E foi então que apareceu o Silver Paws, um jovem
e bonito vádio com um belo pêlo acetinado e reflexos prateados e azulados. Não havia qualquer dúvida, o Silver Paws sabia lidar com as senhoras. Enquanto o Adolphus
ainda o via como um gatito travesso cujo sentido de humor prevalecia sobre o sentido de dignidade, ele foi astuciosamente conquistando todos os corações e, sempre
que aparecia, tornava-se imediatamente o centro de todas as atenções. O Adolphus sentia-se incomodado ao ver o modo como aquela coisita presunçosa arqueava o lombo
sempre que uma mão humana se aproximava para o acariciar.
Se o Adolphus tivesse a mente retorcida de um trocadilhista, teria percebido, ao jeito cínico de quem perde as preferências públicas em favor de um rival
indigno, que a sua glória estava a chegar ao fim. Mas ele nunca foi de se render sem luta. Partiu para a caçada nocturna com o coração frio de um assassino e decidido
a fazer com que a luz dos holofotes voltasse a incidir sobre si. Todos os dias colocava aos pés da dona coelhos cada vez maiores e mais selvagens, ratos mais vorazes
e cobras cada vez mais compridas. Tudo em vão. Fez mesmo o papel de heróico salvador quando o seu odiado rival ficou preso numa árvore por causa do cão do merceeiro.
Trepou calmamente à árvore debaixo de cujo galho o cão corria de um lado para o outro e onde se encontrava empoleirado o Silver Paws, e o cão lembrou-se de repente
que tinha de voltar para a carrinha do merceeiro e que nem sequer era lá muito interessante ficar ali a ladrar a um gatinho estúpido! Quando o Silver Paws desceu
assustado da árvore, o Adolphus dirigiu-se-lhe com o ar farisaico de um cavalheiro benevolente que acaba de salvar uma alma perdida, não porque a alma o merecesse,
mas porque ele era assim por natureza. Esta atitude magnânima conferiu ao Adolphus uma vantagem momentânea sobre o seu rival, mas as volúveis atenções da casa não
tardaram a concentrar-se de novo no jovem sedutor. Então o Adolphus habituou-se a ficar sentado em casa, olhando dignamente para o sítio onde o Silver Paws comia
os melhores nacos de carne, rodeado de todo o tipo de meiguices, e lavando, meditativo, os bigodes com a pata.
Foi por essa altura que o Silver Paws, para grande consternação da família, desapareceu. Foi feita uma busca nas redondezas, mas ele havia desaparecido sem
deixar rasto, como se uma bruxa o tivesse levado na sua vassoura. Muito tristes, juntámos os brinquedos que ele deixara espalhados pela casa - um pedaço de pele
atado a uma corda, uma bola colorida, uns feijões secos que marraqueavam na vagem quando uma pata de veludo lhes tocava - e, com estas recordações, fizemos um montinho
que colocámos na cadeira de baloiço sua favorita.
- Há-de querê-las se algum dia voltar - dissemos nós. Operou-se uma mudança notável no Morning Glory Adolphus. Há muito que o considerávamos como um caçador emérito
e um lutador de primeira, mas achávamo-lo um tudo ou nada insensível, um bocado indiferente e frio, como aliás era natural para quem havia granjeado uma tal fama.
Qual não foi o nosso espanto ao ver que ele se tornara, do dia para a noite, muito caloroso nas suas manifestações de afecto e desejoso de nos fazer esquecer o outro
que havíamos perdido. Era realmente comovedor ver como ele nos seguia por toda a casa, se sentava aos nossos pés a ronronar com um abandono arrebatado sempre que
parávamos para descansar um pouco. Esquecidos estavam os prazeres da caça, o agradável passatempo de meter na ordem cães mal-educados. Durante três dias, dedicou-se
totalmente à actividade da sedução. Se o tentassemos ignorar, ele rojava-se aos nossos pés e ali ficava, de patas no ar, à nossa mercê como a dizer que se entregava
a nós, que, se não o amássemos, até o podíamos matar. Andava pela casa com o ar orgulhosamente possessivo do chefe altivo que regressa aos seus domínios depois de
uma ausência forçada e enrolava-se agradecido nas almofadas onde o seu antigo rival costumava fazer a sesta. Uma vez, encontrámo-lo esticado desdenhosamente em cima
dos brinquedos que se amontoavam na cadeira de baloiço. Devia ser uma cama um bocado incómoda mas o Adolphus tinha um ar contente e confortável.
A suspeita assaltou imediatamente a sua dona.
- Adolphus - disse ela zangada. - Acho que tu sabes o que se passou com o nosso bonito Silver Paws!
O acusado ergueu-se em toda a sua estatura, olhou-a com a expressão gravemente inocente de um diácono ultrajado e depois, virando-lhe deliberadamente as
costas, voltou a cair no sono dos justos.
Mas as suspeitas da família não se aplacaram.
- O Adolphus está a esforçar-se demais por ser bonzinho - diziam eles. - Não é nada natural. Deve ter alguma coisa a pesar-lhe na consciência!
Pois essa era uma das maneiras de Adolphus erguer um escudo protector, de esconder as maldades. Já o haviam constatado no passado. Isso foi uma grande humilhação
para um espírito orgulhoso como era o Adolphus e ele demonstrou o seu ressentimento saindo de casa, batendo com a porta como qualquer macho ofendido.
A família seguiu-o de longe. Ele foi direito à ravina onde costumava caçar e ficou na borda a olhar intensamente lá para baixo, com as orelhas puxadas para
trás, todo ele irradiando um regozijo maldoso, desde os bigodes nervosos até à ponta da cauda agitada. Era dificil acreditar que se tratava da mesma criatura simpática
que há umas horas atrás se insinuava toda para nós. Quando nos aproximámos, ouvimos um choro fraco, lamentoso e triste e, lá no fundo, no meio do arvoredo, descobrimos
o nosso Silver Paws, demasiado fraco e esfaimado para se aguentar de pé e bastante alquebrado pelos maus tratos infligidos pelo seu carcereiro.
Quando o Adolphus nos viu olhar para a ravina, retirou-se aflito pois sabia que a brincadeira acabara. Com um desprezo desdenhoso, ficou a ver-nos recolher
o rival banido, a dar-lhe leite quente, a acariciá-lo e a confortá-lo. Com que terríveis artimanhas tinha o Adolphus mantido o seu prisioneiro no fundo da ravina,
mesmo ali ao alcance dos nossos chamamentos, durante todas aquelas horas em que nos seduzira a seu belo prazer, e que encantamentos lhe lançara para o gatito esfaimado
não ter ousado responder aos nossos apelos?
Entre regozijos e ralhetes vimos que o cão do merceeiro se aproximava, vindo da esquina da casa. Tornara-se mais atrevido durante aqueles dias de fraqueza,
quando o Adolphus andava atrás das senhoras. Mas bastou olhar uma vez para os olhos cor de âmbar do Adolphus para desaparecer logo com um latido pois percebeu que
o lutador estava novamente em forma.
Trad. M. J. D.
*DE COMO UMA GATA FEZ DE ROBINSON CRUSOÉ
Charles G. D. Roberts
A ilha era um mero banco de areia ao largo da costa plana e baixa. Nem uma árvore sequer quebrava a sua planura deserta - nem mesmo um arbusto. Mas os longos
e ásperos caules das ervas dos pântanos cobriam-na por completo acima da linha da maré; e um pequeno ribeiro de água doce que corria de uma nascente no centro da
ilha traçava uma faixa de verdura suave por entre o cinza amarelado, sombrio e seco da erva. Pouca gente escolheria a ilha como local para viver e contudo, na orla,
no outro extremo, encontrava-se uma casa espaçosa, de um andar e com um amplo terraço, com um barracão baixo nas traseiras. A virtude daquele pedaço isolado de areia,
era a sua frescura. Quando no continente mesmo ali ao lado estavam uns dias, e também umas noites, sufocantes, com um calor irrespirável, ali, na ilha, corria sempre
uma aragem fresca. Assim, um sensato citadino apropriara-se daquele pedaço arrancado ao mar e construíra aí a sua casa de Verão, onde o ar puro poderia voltar a
colorir as faces pálidas dos filhos.
A família vinha para a ilha em fins de Junho. Na primeira semana de Setembro, iam-se embora, deixando todas as portas e janelas da casa e do barracão bem
fechadas, pregadas ou trancadas contra as tempestades do Inverno. Um barco espaçoso, remado por dois pescadores, levava-os por aquela meia milha de marés vivas que
os separava do continente. Os mais velhos da família não lamentavam aquele regresso ao mundo dos homens, depois de dois meses de vento, sol, ondas e ervas ondulantes.
Mas as crianças regressavam com as faces riscadas pelas lágrimas. Haviam deixado para trás o seu animal de estimação, a companheira de sempre das suas migrações,
uma bela gata, com cara de meia-lua, listrada como um tigre. O bicho desaparecera misteriosamente dois dias antes, evaporando-se da face da ilha sem deixar qualquer
rasto. A única explicação lógica era ter sido levado por uma águia qualquer que por ali passara. Entretanto a gata estava bem presa, do outro lado da ilha, debaixo
de um barril partido e de quilos e quilos de areia amontoada.
O velho barril, com as aduelas rachadas num dos lados, ficara ali, semi-enterrado, na crista de uma duna que se formara com os ventos dominantes. Aí abrigada,
a gata encontrara um buraco protegido, ensolarado onde gostava de se enroscar durante horas a apanhar sol ou a dormitar. Entretanto a areia foi-se acumulando cada
vez mais por detrás da barreira instável. Até que ficou demasiado alta e, de repente, com uma rajada mais forte, o barril rebolou por ali abaixo atrás de uma massa
de areia e enterrou a gata que então dormia no escuro. Mas, ao mesmo tempo, a parte intacta do barril formou uma espécie de cúpula, cobrindo a prisioneira evitando
que esta ficasse esmagada ou abafada. Quando as crianças, na sua busca desesperada por toda a ilha, chegaram àquele montículo de areia fina e branca, nem sequer
repararam nele. Não ouviram os miados fracos que, de vez em quando, vinham lá de dentro, do escuro. E assim, foram-se embora muito tristes sem sonharem que a sua
amiga estava presa quase debaixo dos seus pés.
Durante três dias a prisioneira lançou constantes apelos de socorro. No terceiro dia o vento mudou e não tardou a transformar-se numa enorme ventania. Em
poucas horas descobriu o barril e um raiozinho de luz apareceu num dos cantos.
Ansiosamente, a gata enfiou a pata no buraco. Quando a voltou a retirar, o buraco já estava maior. Percebeu e começou a esgadanhar. A princípio os seus esforços
não obtiveram grandes resultados mas logo de seguida, quer por mera sorte, quer por sagacidade, aprendeu a esgadanhar com mais eficácia. A abertura aumentou rapidamente
e por fim lá conseguiu sair.
O vento, levantando a areia, assolava a ilha. O mar golpeava a praia com o troar de um bombardeamento. As ervas tombavam formando longas filas ondulantes.
Por cima de todo aquele torvelinho, o Sol brilhava num céu azul, limpo e profundo. A gata, quando enfrentou pela primeira vez a ventania, foi praticamente arrastada.
Logo que conseguiu recompor-se, pôs-se a rastejar e enfiou-se nas ervas para se proteger. Mas a protecção não era muita já que os longos caules se encontravam completamente
tombados. Mas lá avançou contra o vento, por entre aquelas filas, em direcção à casa, no outro extremo da ilha onde encontraria, como pensava, não só comida e abrigo,
como ainda umas meiguices que a fariam esquecer todo aquele pavor.
Silenciosa e abandonada em plena luz do Sol e no meio de ventos desencontrados, a casa assustou-a. Não compreendia aquelas portadas fechadas, as portas mudas,
indiferentes, que não se abriam perante o seu chamamento desesperado. O vento arrastou-a violentamente pelo terraço vazio. Trepando com dificuldade para o parapeito
da janela da sala de jantar, onde tantas vezes estivera, ali ficou por uns momentos miando desesperadamente. Então, entrando em pânico, saltou e correu para o barracão.
Também este estava fechado. Nunca vira as portas do barracão fechadas, e não percebia porquê. Com toda a cautela, fez uma ronda pelos alicerces - mas esses tinham
sido bem construídos e não havia hipótese de se entrar por ali. Fosse por que lado fosse, aquela velha casa familiar só lhe oferecia espaços vazios e muros fechados.
A gata fora sempre tão apaparicada e tão amimada pelos miúdos que nunca tivera de arranjar comida; mas, felizmente para ela, aprendera a caçar os ratos dos
pântanos e os pardais das ervas só por brincadeira. E agora, esfaimada como estava por aquele longo jejum debaixo da areia, afastou-se penosamente da casa vazia
e arrastou-se ao abrigo de uma duna, até um pequeno buraco cheio de erva que já conhecia. Ali, a ventania apenas atingia a parte de cima da vegetação; e era ali,
na calma quente e relativa, que as criaturinhas peludas dos pântanos, os ratos e os musaranhos faziam a sua vida sem serem perturbados.
A gata, rápida e furtivamente, não tardou a apanhar um, aliviando assim a fome. Apanhou outros. E depois, regressando à casa, passou horas a fio num miado
lamuriento, rondando e voltando a rondar a casa, cheirando e espreitando, gemendo desesperadamente na soleira da porta e nos peitoris das janelas sendo, de vez em
quando, atirada impiedosamente contra o chão macio do terraço. Por fim, já sem qualquer esperança, enroscou-se debaixo da janela dos miúdos e adormeceu.
Não obstante a sua solidão e tristeza, a vida daquela prisioneira da ilha, naquelas duas a três semanas, não foi de modo algum dura. Para além da abundante
ração de pássaros e de ratos, ela aprendeu depressa a apanhar peixitos na foz do riacho onde a água doce se juntava à salgada. Era uma brincadeira excitante e ela
tornou-se perita em arpoar, com um golpe seco das garras, o peixe-mocho cinzento e o ligueirão azul-prateado, lançando-os por cima da margem. Mas, quando as tempestades
do equinócio se abateram sobre a ilha, com chuva violenta e nuvens baixas e negras em farrapos, nessa altura a vida tornou-se mais dura. A caça escondia-se em tocas
dificeis de descobrir. Não era nada fácil andar no meio das ervas encharcadas e chicoteantes e, ainda para mais, ela detestava sentir-se molhada. A maior parte do
tempo, ficava sentada, esfaimada, mal-humorada e infeliz, protegida pela casa, olhando despeitada o tumulto furioso e violento das ondas.
A tempestade durou quase dez dias antes de passar. No oitavo dia, os destroços de uma pequena escuna da Nova Escócia deram à costa, já sem qualquer aspecto
de barco. Mas, sendo um casco, trazia passageiros a condizer. Uma horda de ratazanas atravessou a ressaca e enfiou-se pelas raízes das ervas adentro. Instalaram-se
rapidamente, escondidas sob as ervas, debaixo de paus velhos e semi-enterrados, espalhando o pânico nas hostes de ratos e de musaranhos.
Quando a tempestade acabou, a gata teve uma enorme surpresa na sua primeira e grande expedição de caça. Algo havia pisado fortemente as ervas e ela seguiu
o rasto à espera de apanhar um rato especialmente grande e gordo. Quando se lançou sobre a presa e deparou com uma enorme e velha ratazana dos porões, já bem vivida
e viajada, foi selvaticamente mordida. Nunca passara por uma tal experiência. A princípio sentiu-se tão dorida que esteve quase a bater em retirada e fugir dali
para fora. Depois, o seu espírito combativo bem como a chama dos seus longínquos antepassados vieram ao de cima. Lançou-se na luta com uma fúria tal que lhe fez
esquecer as feridas que tinha; e a luta foi breve. As feridas, meticulosamente lambidas, sararam depressa com aquele ar puro e límpido; e depois disso, tendo aprendido
a lidar com caça mais grossa, nunca mais foi mordida.
Durante a primeira lua cheia após ter sido abandonada - a primeira semana de Outubro - a ilha foi "visitada" por um tempo calmo de noites muito frias. A
gata descobriu então que era mais interessante caçar à noite e dormir de dia. Percebeu que nessas alturas, sob a brancura estranha da Lua, toda a caça se agitava
- excepto os pássaros que haviam voado para o continente durante a tempestade preparando-se para a sua viagem em direcção a sul. Nas ervas esbranquiçadas, descobriu
ela, havia um resrolhar contínuo e, por todo o lado, uns vultozinhos imperceptíveis que se esgueiravam aos guinchos por entre as areias brancas, fantasmagóricas.
Também conheceu um novo pássaro que a princípio encarou com uma certa desconfiança e depois com uma ira vingativa. Foi a coruja castanha dos pântanos, que viera
do continente para aí fazer a sua caçada de Outono aos ratos. Havia dois destes grandes caçadores de asas felpudas e olhos redondos, e não sabiam que havia um gato
na ilha.
A gata, ao espiar uma das corujas quando esta volteava silenciosamente para cá e para lá por sobre os bicos prateados das ervas, agachou-se, de orelhas achatadas
para trás. Com aquelas enormes asas bem abertas, parecia maior do que ela; e aquela cara larga e redonda, com um bico curvo e uns olhos ferozes, fixos, davam-lhe
um ar aterrorizador. Todavia a gata não era nenhuma cobarde e não tardou a retomar a caçada, embora com algumas cautelas. De repente a coruja apercebeu-se dela no
meio das ervas - provavelmente viu-lhe as orelhas ou a cabeça. Mergulhou e, nesse preciso momento, a gata saltou em sua direcção, bufando e rosnando violentamente
e atacando de garras em riste. Com um bater frenético de asas, a coruja estacou e recuou no ar, escapando por um triz daquelas terríveis garras. Depois disso, as
corujas dos pântanos tinham sempre o cuidado de a evitar. Perceberam que era melhor não interferir com aquele animal de riscas pretas, de salto veloz e garras afiadas.
Sentiam que havia ali uma ligação qualquer com esse predador feroz - o lince.
Não obstante toda esta caça, a fauna felpuda das ervas dos pântanos era tão fervilhante, tão inesgotável, que a depredação feita pela gata, pelas ratazanas
e pelas corujas praticamente não se notava. Assim, as caçadas e as tropelias sucediam-se sob uma Lua indiferente.
À medida que o Inverno avançava - com fortes vagas de frio e ventos contrários que forçavam a gata a mudar constantemente de refúgio - ela ficava cada vez
mais infeliz. Sentia-se completamente abandonada. Não conseguia encontrar em toda a ilha um canto onde se sentisse protegida do vento e da chuva. Quanto ao velho
barril, a primeira causa das suas desgraças, não podia contar com ele. Os ventos há muito que o haviam virado de pernas para o ar, completamente esventrado e depois
enchido de areia e reenterrado. E, de qualquer modo, a gata teria medo de voltar a aproximar-se dele. Assim, acontecia que só ela, entre todos os habitantes daquela
ilha, é que não tinha um abrigo para lá se enfiar quando o Inverno rigoroso chegou, com nevões que tapavam as ervas e geadas que cobriam a praia com placas de gelo
estaladiças. As ratazanas fizeram as suas tocas por debaixo dos destroços do barco; os ratos e os musaranhos tinham os seus túneis profundos e quentes; as corujas
fizeram ninhos nos buracos das árvores lá longe nas florestas do continente. Só a gata, trémula e assustada, não conseguia senão enroscar-se contra as paredes daquela
casa insensível e deixar que a neve rodopiasse e se amontoasse à sua volta.
E agora, ainda por cima, via-se sem comida. Os ratos corriam à vontade nos seus esconderijos onde as raízes que os cercavam lhes garantiam os alimentos necessários.
As ratazanas, essas, também ninguém as via - andavam a escavar buracos na neve macia na esperança de interceptarem alguns dos túneis dos ratos e, de quando em vez,
papavam um que deambulava por ali distraído. A orla de gelo, desfazendo-se e erguendo-se por debaixo da terrível maré, acabou com a pesca. Ela ainda tentaria apanhar
uma daquelas horrorosas corujas, tal era a fome que tinha, mas estas não voltaram à ilha. Haviam de regressar mais tarde, de certeza, quando a neve endurecesse e
os ratos começassem a sair das tocas e a brincar à superfície. Mas por agora andavam a perseguir caça mais fácil, embrenhadas na floresta do interior.
Quando a neve deixou de cair e o Sol voltou a aparecer, ficou um frio como a gata nunca havia sentido. Acontece que era Natal; e se a gata tivesse alguma
ideia do que era um calendário, teria seguramente marcado esse dia na sua memória já que foi um dia cheio de peripécias. Como a fome não a deixasse dormir, prosseguiu
teimosamente na sua ronda. E teve sorte, porque se tivesse continuado a dormir apenas abrigada pela parede da casa, nunca mais teria acordado. Incansável, foi até
ao outro lado da ilha onde encontrou, numa enseada mais ou menos abrigada e ensolarada que dava para o continente, uma faixa de areia limpa, sem gelo e recém-descoberta
pela maré. Nessa enseada viam-se as minúsculas entradas de vários túneis de ratos. A gata agachou-se ao pé daqueles buracos na neve, trémula de concentração. Esperou
durante dez minutos ou mais sem sequer mexer um bigode. Finalmente, um rato pôs a cabecita pontiaguda de fora. Sem lhe dar tempo para mudar de ideias ou para fugir,
a gata saltou-lhe em cima. O rato, pressentindo a tragédia antes dela se abater sobre si, deu meia volta e enfiou-se pelo orificio estreito. No meio do seu desespero,
a gata, não se apercebendo do que estava a fazer, mergulhou de cabeça na neve procurando às cegas a presa que lhe escapara. Por sorte, apanhou-a.
Era a sua primeira refeição em três dias de jejum. Os miúdos tentavam sempre partilhar com ela as iguarias e o entusiasmo do Natal e normalmente conseguiam
fazer com que ela se interessasse, por mera gula, pelas natas; mas nunca uma guloseima de Natal lhe soubera tão bem.
E aprendeu a lição. Como era naturalmente fina e as agruras por que passara lhe haviam aguçado o engenho, percebeu que era possível seguir a presa, naquela
primeira parte do percurso, por entre a neve. Não sabia que a neve era tão fácil de penetrar. Como tinha praticamente destruído a entrada daquela toca, foi-se agachar
ao lado de uma outra, mas aí teve de esperar muito tempo antes de aparecer um rato atrevido a espreitar pelo buraco. Mas dessa vez provou que tinha aprendido a lição.
Saltou mesmo ao lado da entrada onde o instinto lhe ditava estaria o corpo do rato. Esticou uma pata e tapou a retirada da presa. A táctica foi bem sucedida; e quando
enfiou a cabeça naquela brancura macia, sentiu o rato entre as patas.
Com a fome aplacada, ficou altamente entusiasmada com aquela nova maneira de caçar. Antes, esperara muitas vezes à saída dos buracos dos ratos mas nunca
conseguira rebentar com as paredes e invadir a toca. Era uma ideia fantástica. Ao aproximar-se de um outro buraco, um rato correu rapidamente areia acima e enfiou-se
lá para dentro. A gata, não tendo tempo para o apanhar antes dele desaparecer, tentou segui-lo. Esgadanhando atabalhoada mas obstinadamente, conseguiu enfiar o corpo
na neve. Não viu sinais do fugitivo que nessa altura já corria são e salvo por um outro túnel transversal. Com os olhos, a boca, os bigodes e o pêlo cheios de pedacinhos
de neve, recuou desiludida. Mas nesse momento percebeu que estava muito mais quente ali, debaixo da neve, do que lá fora, naquele ar cortante. Esta foi a segunda
lição e extremamente importante; e embora provavelmente não se apercebesse que a tinha aprendido, daí a pouco teve oportunidade de a pôr instíntivamente em prática.
Tendo conseguido apanhar um outro rato e como não lhe apetecesse comê-lo imediatamente, levou-o na boca até à casa e depositou-o, à laia de troféu, nos degraus do
terraço enquanto miava e olhava desesperada para a porta imóvel e coberta. Em geral, eram animais para esquecer. Mas, apesar disso, ela adorava andar por ali a caçar,
pela vastidão de neve deserta e sem limites.
Então, senhora da situação, viu o Inverno passar sem grandes atribulações. Só uma vez, nos fins deJaneiro, é que o destino lhe ia pregando mais uma partida.
Na sequência de um período particularmente frio, uma noite apareceu na ilha uma coruja branca do desolado Ártico. A gata, que fazia a sua vigia num dos cantos do
terraço, viu-a. Bastou um olhar para se aperceber de que aquele visitante era bem diferente das corujas castanhas dos pântanos. Escondeu-se sorrateiramente no seu
abrigo e até a enorme coruja branca se ir embora, umas vinte e quatro horas mais tarde, ela manteve-se discretamente fora de circulação.
Quando a Primavera voltou à ilha, com o agudo coro nocturno das rãs nas poças baixas e cheias de junça e a erva nova juncada de ninhos, a vida da prisioneira
tornou-se quase luxuosa com toda aquela abundância. Mas agora ela voltava a não ter casa já que o seu abrigo desaparecera com a neve. Contudo isso não a preocupou
muito pois o tempo estava cada vez mais quente e calmo; e além disso, ela própria, sendo forçada a usar mais o instinto, aprendera a contentar-se com pouco. Todavia,
com toda a sua capacidade de aprender e de se adaptar, não tinha esquecido nada. E assim, quando num dia de Junho apareceu um barco cheio de gente vindo do continente,
e vozes de crianças, ecoando por entre as ervas, quebraram o silêncio desolado da ilha, a gata ouviu-as e acordou do seu sono nas escadas do terraço.
Estacou por momentos, à escuta. E então, quase como um cão o faria, e alguns exemplares da sua tribo orgulhosa teriam condescendido em fazer, correu até
ao ancoradouro - para se lançar nos braços de quatro crianças radiantes, ficando com o pêlo num tal estado que só uma hora de meticulosas lambidelas o faria voltar
ao normal.
trad. M. J. D.
*A CAÇA GROSSA DE MING
Patrícia Highsmitb
Ming estava confortavelmente a descansar aos pés do beliche da sua dona, quando o homem pegou nele pelo cachaço, atirou-o para a coberta e fechou a porta da cabina.
Os olhos azuis de Ming abriram-se de abalo e de breve raiva, quase fechando-se depois por causa da luz brilhante do Sol. Não era a primeira vez que Ming tinha sido
posto fora da cabina de forma tão rude, e Ming sabia que o homem o fazia quando a sua dona, Elaine, não estava a ver.
O barco à vela, agora, não oferecia abrigo do sol, mas Ming ainda não tinha calor demais. Saltou agilmente para a cobertura da cabina e dirigiu-se para o
cabo enrolado mesmo atrás do mastro. Ming gostava do cabo como se fosse um sofá, porque podia ver tudo do alto, a concavidade do cabo protegia-o das brisas mais
fortes, e também minimizava o baloiçar e as mudanças bruscas de rumo do Wbite Lark, já que era mais ou menos o ponto central do barco. Mas neste momento a vela tinha
sido arreada, porque Elaine e o homem tinham estado a almoçar, e muitas vezes dormiam a sesta depois do almoço, e Ming sabia que nessa altura o homem não gostava
que ele estivesse na cabina. O almoço fora bom. De facto, Ming acabara de comer um delicioso peixe grelhado e um bocado de lagosta. Agora, deitado relaxadamente
na curva do cordame, Ming abriu a boca num grande bocejo, e com os seus olhos oblíquos quase fechados por causa da forte luminosidade, olhava as colinas beges e
as casas e hotéis brancos e cor-de-rosa que circundavam a baía de Acapulco. Entre o Wbite Lark e a praia, onde as pessoas chapinhavam audivelmente, o sol brilhava
na superficie da água como se fossem milhares de luzinhas eléctricas a acender e a apagar. Um esquiador aquático passou, deixando um rasto de espuma branca atrás
dele. Tanta actividade! Ming dormitava, sentindo o calor do sol no seu pêlo. Ming era de Nova Iorque e considerava Acapulco uma grande melhoria comparado com o ambiente
em que vivera durante as cinco primeiras semanas de vida. Lembrava-se de um caixote com palha onde o sol nunca batia, onde outros três ou quatro gatitos estavam
com ele e de uma janela, atrás da qual formas gigantescas se detinham por alguns momentos, tentavam chamar a sua atenção batendo com os dedos e depois seguiam. Não
se lembrava nada da mãe. Um dia uma jovem senhora, que cheirava agradavelmente, entrou e levou-o para longe do hediondo e assustador cheiro a cão, a remédio e a
excremento de papagaio. Depois seguiram no que Ming sabia agora ser um avião. Agora já estava bastante habituado aos aviões e já gostava deles. Nos aviões sentava-se
no colo de Elaine ou dormia no colo dela e havia sempre petiscos para comer, se tivesse fome.
Elaine passava a maior parte do dia numa loja em Acapulco, onde vestidos, calças e fatos de banho estavam pendurados nas paredes. Este lugar cheirava a fresco
e a limpo, havia flores em jarras e lá fora, nas floreiras, e o chão era de azulejos refrescantes azuis e brancos. Ming tinha liberdade total de dar uma volta no
pátio, atrás da loja ou de dormir no seu cesto num canto. Havia mais sol na parte da frente da loja, mas rapazolas maus tentavam agarrá-lo se estava lá sentado e
Ming nunca se sentia descansado.
Ming gostava mais de estar deitado ao sol, com a sua dona, numa das grandes cadeiras de lona no terraço da casa deles. O que Ming não gostava era das pessoas
que ela às vezes convidava a visitá-los. Pessoas que dormiam lá, muitas pessoas que se demoravam até tarde a comer e a beber, a tocar o gramofone ou o piano - pessoas
que o separavam de Elaine. Pessoas que o calcavam, pessoas que pegavam nele por detrás sem lhe dar tempo para fugir e que o obrigavam a torcer-se e lutar para se
soltar, pessoas que lhe faziam festas violentas, pessoas que fechavam portas, deixando-o trancado. Pessoas! Ming detestava pessoas. No mundo inteiro ele só gostava
de Elaine. Elaine gostava dele e compreendia-o.
Ora, Ming detestava especialmente este homem chamado Teddie. Teddie estava presente a toda a hora ultimamente. Ming não gostava do modo como Teddie olhava
para ele, quando Elaine não estava a ver. E por vezes, quando Elaine não estava por perto, Teddie dizia algo por entre os dentes que Ming sabia ser uma ameaça. Ou
uma ordem para sair dali. Ming não se ralava. Era necessário preservar a dignidade. Além disso a sua dona não estava do lado dele? O intruso era o homem. Quando
Elaine estava a olhar, o homem, às vezes, fingia ser amigo dele, mas Ming afastava-se sempre, graciosamente mas inconfundívelmente, noutra direcção.
A soneca de Ming foi interrompida pelo som da porta da cabina a abrir. Ouviu Elaine e o homem a rirem e a falarem. O grande Sol vermelho alaranjado estava
perto do horizonte.
- Ming! - Elaine aproximou-se dele. - Não estás a ficar assado, meu querido?Julgava-te lá dentro!
- Eu também! - disse Teddie.
Ming ronronou como fazia sempre ao acordar. Ela pegou nele cuidadosamente, aconchegou-o nos braços e levou-o para baixo para a repentina sombra fresca da
cabina. Falava com o homem num tom que não era amável. Pousou Ming à frente da sua tigela de água, e embora ele não estivesse com sede, bebeu um pouco para lhe agradar.
Ming sentia-se aturdido pelo calor e cambaleou um pouco.
Elaine pegou numa toalha molhada e limpou o focinho, as orelhas e as quatro patas de Ming. Em seguida deitou-o no beliche que cheirava ao perfume de Elaine,
mas também ao homem que Ming detestava.
Agora a sua dona e o homem estavam a discutir, Ming percebia-o pelo tom da voz. Elaine estava junto a Ming, sentada na beira do beliche. Por fim Ming ouviu
um chapão que significava que Teddie tinha mergulhado na água. Ming desejou que ele lá ficasse, desejou que se afogasse, desejou que nunca voltasse. Elaine ensopou
uma toalha de banho no lavatório de alumínio, torceu-a e estendeu-a no beliche e colocou Ming sobre ela. Trouxe água e agora Ming tinha sede e bebeu. Deixou-o a
dormir enquanto lavava e arrumava os pratos. Eram sons confortáveis que Ming gostava de ouvir.
Mas em breve houve outro género de bat chap, os pés molhados de Teddie pisavam o convés e Ming tornou a acordar.
O tom da discussão recomeçou. Elaine subiu os poucos degraus até ao convés. Ming, embora tenso, continuava com a cabeça pousada na toalha húmida, mantinha
os olhos fixos na porta da cabina. Eram os pés de Teddie a descerem que ele ouvia. Ming ergueu levemente a cabeça, sabendo que não tinha saida atrás de si e que
estava encurralado dentro da cabina. O homem parou, com a toalha na mão, a olhar para Ming.
Ming esticou-se completamente como se se preparasse para bocejar, o que lhe fazia trocar os olhos, depois, deixou que a sua língua escorregasse um pouco
para fora da boca. O homem começou por querer dizer algo, parecia que queria atirar a toalha molhada a Ming, mas hesitou, e o que queria dizer nunca lhe saiu da
boca, atirou a toalha para o lavatório e começou a lavar a cara. Não era a primeira vez que Ming deitava a língua de fora a Teddie. Muitas pessoas riam quando Ming
fazia isto, pessoas numa festa, por exemplo, e Ming até se divertia. Mas Ming sabia que Teddie se ressentia com isso e julgava a sua atitude hostil e era por essa
mesma razão que Ming o fazia de propósito a Teddie, enquanto no meio de outras pessoas, muitas vezes, era por acaso que a língua de Ming descaía fora da boca.
A discussão continuava. Elaine fez café. Ming começava a sentir-se melhor e voltou para o convés porque o Sol já se tinha posto. Elaine pusera o motor a
trabalhar e vogavam devagar em direcção à costa. Ming apercebeu-se do canto das aves, os gritos estranhos como frases agudas de certas aves que só piam ao pôr-do-sol.
Ming estava ansioso pela casa de adobe no penhasco, que era a casa dele e da sua dona. Ele sabia a razão porque ela não o deixava sozinho em casa (onde ficaria muito
mais confortável) quando ia andar de barco, ela tinha medo que alguém pudesse apanhá-lo ou mesmo matá-lo. Ming percebia. Tinha havido pessoas que tinham tentado
apanhá-lo quase debaixo dos olhos de Elaine. Uma vez, tinham-no agarrado e metido dentro de um saco e, embora ele tivesse lutado o mais possível, com certeza não
teria conseguido libertar-se, se a própria Elaine não tivesse batido no rapaz e arrancado o saco das mãos dele.
Ming tencionara tornar a saltar para cima do tejadilho da cabina, mas após lhe ter dado uma olhadela, decidiu poupar as forças e por isso aninhou-se no convés
quente e levemente inclinado com as patas metidas para dentro a olhar para a costa que se aproximava. Agora ouvia uma viola a tocar na praia. As vozes da sua dona
e do homem tinham-se calado. Por alguns momentos, o som mais alto era o chuca-chuca-chuca do motor do barco. Então Ming ouviu os pés descalços do homem a subirem
os degraus. Ming não virou a cabeça para o ver, mas involuntariamente as orelhas inclinaram-se para trás. Ming olhou para a água que estava ali em frente dele. Estranhamente
o homem não emitia som algum atrás de si. O pêlo do pescoço de Ming eriçou-se e ele espreitou por cima do ombro direito.
Nesse mesmo instante, o homem inclinou-se para a frente e investiu contra Ming com os braços abertos.
Ming ergueu-se instantaneamente, saltando direito ao homem, que era a única direcção segura no convés sem amuradas, e o homem lançou o seu braço esquerdo
que embateu no peito de Ming. Ming voou para trás, raspando o convés com as unhas, mas as patas traseiras caíram fora de bordo. Ming agarrou-se com as patas da frente
à madeira escorregadia e lustrosa que não lhe dava muito apoio, e fazendo força com as patas traseiras contra o casco, cuja inclinação em nada favorecia os seus
esforços, tentou içar-se para bordo.
O homem avançou para empurrar com o pé as patas de Ming, mas nesse instante Elaine subia os degraus da cabina.
- O que é que se passa? Ming!
As fortes patas de Ming estavam aos poucos a conseguir trazê-lo para cima do convés. O homem tinha-se ajoelhado como se fosse ajudá-lo. Elaine também tinha
caído de joelhos e agora segurava Ming pelo cachaço. Ming relaxou agachado no convés de cauda molhada.
- Caiu borda fora - disse Teddie. - É verdade, ele devia estar tonto, tombou e caiu quando o barco se inclinou.
- Foi o sol. Coitado do Ming! - Elaine segurou o gato contra o peito e levou-o para dentro da cabina. - Teddie, guias?
O homem entrou na cabina. Elaine colocara Ming no beliche e falava-lhe com meiguice. O coração dele ainda batia depressa. Ele estava alerta ao homem no leme,
apesar de Elaine estar com ele. Ming apercebeu-se que tinham entrado na pequena enseada onde sempre se dirigiam antes de sair do barco.
Aqui estavam os amigos e aliados de Teddie, os quais Ming detestava por associação, embora estes fossem só rapazes mexicanos. Dois ou três rapazes em calções
chamavam - Senhor Teddie! - e ofereciam uma mão a Elaine para subir para o pontão, pegavam no cabo que estava preso à popa do barco, ofereciam-se para pegar no -
Ming! Ming! - Ming saltou sozinho para o pontão e agachou-se àespera de Elaine, pronto para fugir de uma ou outra mão que viesse na sua direcção; e havia várias
mãos morenas que se lhe dirigiam e Ming teve de saltar para o lado várias vezes. Havia risos, suspiros e o som surdo de pés descalços nas tábuas. Mas também havia
a voz tranquilizadora de Elaine a enxotá-los. Ming sabia que ela estava ocupada a transportar os sacos de plástico e a fechar a porta da cabina à chave. Teddie com
a ajuda de um dos rapazes esticava agora a lona sobre a cabina e os pés de Elaine, calçados de sandálias, estavam ao lado de Ming que a seguiu quando ela se foi
embora. Um rapaz pegou nas coisas que Elaine levava e em seguida ela pegou em Ming ao colo.
Entraram no grande carro descapotável que pertencia a Teddie e seguiram a estrada cheia de curvas até à casa de Elaine e de Ming. Era um dos rapazes que
guiava. O tom de voz usado por Elaine e Teddie era agora mais calmo, mais suave. O homem ria. Ming sentado no colo da sua dona estava tenso e sentia a preocupação
dela pelo modo como o afagava e lhe tocava no pescoço. O homem estendeu o braço e pousou os dedos no lombo de Ming e este deu uma rosnadela grave que subia, descia
e ressoava do fundo da garganta.
- Pronto, pronto - disse o homem retirando a mão, fingindo estar divertido.
A voz de Elaine parou no meio de uma frase. Ming estava cansado, e só queria dormir uma sesta na cama grande lá de casa que estava coberta por uma manta
fina de lã às riscas vermelhas e brancas.
Mal Ming teve este pensamento, encontrou-se no ambiente fresco e aromático da sua casa e colocado cuidadosamente sobre a fofa manta de lã. A sua dona deu-lhe
um beijo e disse alguma coisa que incluía fome. Ming percebeu, tinha que lhe dar a entender quando tivesse fome.
Ming dormitou, e acordou ao som de vozes vindas através das portas de vidro do terraço, situado a poucos metros dali. Já estava escuro. Ming via uma ponta
da mesa e pelo tipo de luz percebeu que havia velas acesas. Concha, a empregada que dormia em casa, estava a levantar a mesa. Ming ouviu a voz dela, depois as vozes
de Elaine e do homem. Ming sentiu o cheiro a charuto. Saltou para o chão e sentou-se por pouco tempo a olhar para o terraço através da porta. Bocejou, arqueou o
dorso, esticou-se e tornou flexíveis os músculos cravando as unhas no espesso tapete de palha. Saiu pelo lado direito e deslizou pela escadaria de pedra abaixo até
ao jardim. O jardim era como uma selva, uma floresta: abacateiros e mangueiras cresciam tão altos como o próprio terraço - havia buganvilias encostadas às paredes,
orquídeas nas árvores, magnólias e várias camélias que Elaine plantara. Ming podia ouvir os pássaros chilrear, agitando-se nos seus ninhos. Às vezes ele subia às
árvores para ir aos ninhos, mas esta noite não tinha vontade, embora já não estivesse cansado. As vozes da sua dona e do homem incomodavam-no. A sua dona, esta noite,
não se mostrava muito amiga do homem, isso era certo.
Concha estava provavelmente na cozinha e Ming decidiu entrar e pedir-lhe de comer. Concha gostava dele. Uma criada que não tinha gostado dele fora despedida
por Elaine. Ming pensou que gostaria de carne de porco na brasa. Tinha sido o jantar da sua dona e do homem. A fresca brisa vinda do oceano agitou de leve o pêlo
de Ming e este sentiu-se totalmente refeito da horrível experiência de quase ter caído ao mar.
Neste momento o terraço estava vazio. Ming voltou à esquerda, outra vez para o quarto de dormir, e sentiu logo a presença do homem embora não houvesse luz
e Ming não o visse. O homem estava junto do toucador a abrir uma caixa. De novo, involuntariamente, Ming deu uma rosnadela grave que subia e descia e estacou, na
posição em que estava, quando pela primeira vez se apercebeu da presença do homem, a pata direita dianteira no ar para o passo seguinte, as orelhas inclinadas para
trás e estava preparado para saltar em qualquer direcção, embora o homem não o tivesse visto.
- Psiu! Maldito! - segredou o homem. Bateu com o pé, não com muita força, para enxotá-lo.
Míng não se mexeu, ouviu o suave restolhar característico do colar branco pertencente à sua dona. O homem meteu-o no bolso e, passando pela direita de Ming,
dirigiu-se para a porta que dava para a grande sala de estar. Ming ouviu então o tilintar de uma garrafa de encontro a um copo, ouviu o líquido a ser vertido. Ming
saiu pela mesma porta e virou à esquerda em direcção à cozinha.
Aqui miou e foi cumprimentado por Elaine e Concha. Esta tinha o rádio dela a tocar música.
- Peixe? Carne de porco. Ele gosta de carne de porco - disse Elaine, pronunciando as palavras de um modo esquisito como fazia quando falava com Concha.
Ming, sem grande dificuldade, deu a entender a sua preferência pela carne de porco e obteve-a. Comeu com bom apetite. Concha exclamava "Ahh! ohh!" enquanto
a sua dona falava com ela; falou durante muito tempo. Então Concha agachou-se para lhe fazer festas e Ming deixou, sempre a olhar para o prato, até que ela o largou
e ele pôde acabar a refeição. Elaine saiu então da cozinha. Concha deitou um pouco de leite condensado, que ele gostava muito, na tigela vazia e Ming lambeu-o todo.
Depois esfregou-se de encontro ás pernas nuas dela, a modos de agradecimento, e saiu da cozinha, dirigindo-se para o quarto de dormir passando pela sala. Mas agora
Elaine e o homem encontravam-se lá fora no terraço. Ming tinha acabado de entrar no quarto quando ouviu Elaine a chamar:
- Ming? Onde estás?
Ming foi até à porta do terraço onde parou e sentou-se na soleira.
Elaine estava sentada de esguelha ao fundo da mesa e a luz da vela evidenciava o louro dos seus cabelos e o branco das calças. Ela bateu com as mãos no regaço
e Ming saltou-lhe para cima.
O homem disse qualquer coisa em voz baixa, qualquer coisa desagradável.
Elaine replicou algo no mesmo tom, mas riu-se um pouco.
Então tocou o telefone.
Elaine pôs Ming no chão e entrou na sala de estar para atender o telefone.
O homem acabou de beber o que tinha no copo, murmurou algo a Ming e pousou o copo sobre a mesa. Levantou-se e tentou encurralar Ming, ou levá-lo até a ponta
do terraço, percebeu Ming, que também entendeu que o homem estava bêbado - e por isso movimentava-se devagar e desajeitadamente. O terraço tinha um parapeito da
altura da anca do homem, mas em três sítios havia grades com barras suficientemente largas para Ming passar por elas, o que Ming nunca fazia; limitava-se, às vezes,
a olhar por entre elas. Era evidente para Ming que o homem queria enxotá-lo por entre uma das grades ou pegar nele e atirá-lo por cima do parapeito do terraço. Não
havia nada mais fácil para Ming do que trocar-lhe as voltas. Então, o homem pegou numa cadeira e girou-a repentinamente, atingindo Ming no quadril. Foi rápido, e
doeu. Ming tomou a saída mais próxima, que era descer a escadaria que dava para o jardim.
O homem começou a descer atrás dele. Sem reflectir, Ming precipitou-se a subir os degraus, que tinha acabado de descer, mantendo-se junto à parede na sombra.
O homem não o tinha visto, Ming sabia-o. Saltou para o parapeito do terraço, sentou-se e lambeu a pata para se recuperar e restabelecer. O seu coração batia tão
depressa como se estivesse no meio de uma luta e corria ódio nas suas veias. Ódio queimava-lhe os olhos quando se agachou e ouviu os passos incertos do homem a subir
a escada por debaixo dele. Avistou o homem.
Ming preparou-se para o salto e pulou com toda a sua força aterrando com as quatro patas no braço direito do homem perto do ombro. Ming agarrou-se ao tecido
do casaco branco do homem, mas estavam os dois a cair. O homem gemeu. Ming manteve-se agarrado. Ramos quebravam-se. Ming sentia-se desorientado. Soltou-se do homem,
apercebendo-se tarde demais da proximidade do solo, e caiu de lado. Quase ao mesmo tempo ouviu o baque surdo do embate do homem com o solo, depois o corpo rolou
um pouco e em seguida o silêncio. Ming teve que respirar rapidamente com a boca aberta até o seu peito deixar de doer. Do homem vinha um cheiro a álcool, charuto
e o odor forte que significava medo. Mas o homem não se movia.
Agora Ming via tudo nitidamente. Até havia um pouco de luar. Ming dirigiu-se novamente para as escadas, teve que fazer um longo desvio por entre os arbustos,
sobre pedras e areia até onde começavam os degraus. Esgueirou-se escadas acima e achou-se de novo no terraço.
Elaine estava a chegar ao terraço nesse momento.
- Teddie? - chamou. Em seguida voltou para o quarto onde acendeu um candeeiro e continuou até à cozinha. Ming seguiu-a. Concha tinha deixado as luzes acesas,
mas estava agora no seu quarto onde o rádio tocava.
Elaine abriu a porta da frente.
O carro do homem continuava estacionado na entrada, reparou Ming. Agora o quadril de Ming doía-lhe, ou só agora é que voltava a reparar nele, o que o obrigava
a cozear um pouco. Elaine apercebeu-se disso, tocou-lhe no dorso e perguntou-lhe qual era o problema. Ming só ronronava.
- Teddie? Onde estás? - chamou Elaine. Pegou numa lanterna e iluminou o jardim, os grossos troncos dos abacateiros, por entre as orquideas e a lavanda e
as flores rosa das buganvílias. Ming, em segurança à beira dela no parapeito do terraço, seguia com os olhos o feixe de luz da lanterna e ronronava de contente.
O homem não estava mesmo em baixo, nesse local, mas mais para a direita. Elaine dirigiu-se para as escadas do terraço e cuidadosamente, porque as escadas não tinham
corrimão, só largos degraus, apontou o feixe de luz para baixo. Ming nem sequer olhou. Estava sentado no cimo das escadas.
- Teddie! - disse ela - Teddie! - E correu escadas abaixo.
Ming não a seguiu. Ouviu-a inspirar e depois chamar:
- Concha!
Elaine subiu as escadas a correr.
Concha tinha saido do quarto. Elaine falou com Concha e esta ficou nervosa. Elaine dirigiu-se para o telefone e falou durante pouco tempo. De seguida desceram
juntas as escadas. Ming aconchegou-se no terraço que ainda estava morno do sol com as patas debaixo do corpo. Chegou um carro. Elaine subiu a escadaria e foi abrir
a porta principal. Ming manteve-se afastado num canto escuro do terraço, enquanto três ou quatro estranhos passaram pelo terraço e desceram as escadas pesadamente.
Em baixo falou-se muito, barulho de pés, de arbustos a quebrar e depois o cheiro de todos eles a subirem as escadas, o cheiro a tabaco, a suor e o cheiro
familiar a sangue. O sangue do homem. Ming estava satisfeito tal como ficava satisfeito quando matava um pássaro e surgia-lhe este mesmo cheiro a sangue por entre
os dentes. Desta vez era caça grossa. Ming, ignorado pelos outros, levantou-se em toda a sua estatura quando o grupo passou com o corpo e de nariz empinado inalou
o aroma da sua vitória.
E de repente a casa ficou vazia. Todos se tinham ido embora, até a Concha. Ming bebeu água da sua tigela na cozinha e foi para o quarto da sua dona, enroscou-se
de encontro às almofadas e adormeceu logo. Acordou ao som do barulho de um carro que lhe não era familiar. Depois a porta da frente abriu-se e reconheceu os passos
de Elaine e de Concha. Ming deixou-se estar onde estava. Elaine e Concha conversaram baixo por alguns instantes e a seguir Elaine entrou no quarto. A lâmpada continuava
acesa. Ming viu-a abrir lentamente a caixa que estava na cómoda e meter lá dentro o colar branco que fez o restolhar característico. Depois fechou a caixa. Começou
a desabotoar a camisa, mas antes de ter acabado atirou-se sobre a cama e acariciou a cabeça de Ming, levantou a pata esquerda dele e pressionou-a com cuidado até
que as garras sairam.
- Oh Ming, Ming - disse ela.
Ming reconheceu a voz do amor.
Trad. S. F. L. F.
*OS GATOS DA SRa. BOND
James Herriot
Trabalho para gatos.
Foi assim que a Sra. Bond se apresentou na primeira visita que lhe fiz, apertando-me firmemente a mão e atirando o queixo para a frente como a desafiar-me a responder
àquilo. Era uma mulher grande com uma cara forte de malares salientes e com uma presença imponente e, de qualquer modo, eu não me atreveria a discutir com ela, de
forma que me limitei a acenar gravemente que sim, como se compreendesse e estivesse perfeitamente de acordo, e ela conduziu-me então para dentro de casa.
Percebi imediatamente o que ela tinha querido dizer. A grande cozinha-sala de estar estava completamente pejada de gatos. Havia gatos nos sofás e nas cadeiras,
cascatas de gatos transbordando até ao chão, gatos sentados em fila nos peitoris das janelas e, mesmo no meio daquilo tudo, o pequeno Sr. Bond, pálido, de bigodinho
retorcido, em mangas de camisa, lia um jornal.
Era uma cena que viria a tornar-se muito familiar. Muitos dos gatos eram obviamente machos não castrados porque a atmosfera vibrava com o seu cheiro característico
- um cheiro intenso que se sobrepunha mesmo aos odores enjoativos que emanavam de enormes panelas de comida para gato que ferviam sobre o fogão. E o Sr. Bond estava
sempre ali, sempre em mangas de camisa e a ler o seu jornal, uma ilhota solitária num mar de gatos.
Eu já tinha ouvido falar nos Bonds, é claro. Eram londrinos que, por qualquer razão obscura, tinham escolhido o Yorkshire do Norte para se instalarem na
sua reforma. Dizia-se que tinham "uns dinheiritos" e tinham comprado uma casa nos arredores de Darrowby onde, sem se ocuparem da vida alheia, se ocupavam dos gatos.
Tinha ouvido dizer que a Sra. Bond tinha o costume de proteger os gatos vadios, de os alimentar e de lhes dar um lar se eles quisessem e isto tinha-me predisposto
em seu favor porque, na minha experiência, a desgraçada espécie felina parecia ser presa fácil de tudo quanto era crueldade e negligência. As pessoas disparavam
contra os gatos, atiravam-lhes coisas, matavam-nos à fome e atiçavam-lhes os cães, só para se divertirem. Era bom ver alguém que estava do lado deles.
O meu paciente, nesta primeira visita, era apenas um gatinho, uma aterrada bolinha preta e branca refugiada num canto.
- É um dos gatos externos - disse a Sra. Bond no seu vozeirão.
- Gatos externos?
- Sim. Todos estes que está a ver aqui são os gatos internos. Os outros são os verdadeiramente selvagens que se recusam, pura e simplesmente, a entrar cá
em casa. Dou-lhes de comer, claro, mas só aceitam entrar quando estão doentes.
- Estou a perceber.
- Tive imensa dificuldade em apanhar este. Estou preocupada com os olhos dele. Parece que têm uma pele a crescer lá dentro e espero que lhe possa fazer alguma
coisa. A propósito, o nome dele é Alfredo.
- Alfredo? Bom, está bem. - Avancei cautelosamente em direcção ao animalzinho e fui saudado por um turbilhão de unhas em riste e um dilúvio de cuspidelas.
Se não estivesse encurralado no seu canto teria fugido com a velocidade da luz.
Examiná-lo ia ser um problema. Voltei-me para a Sra. Bond.
- Podia arranjar-me um lençol ou qualquer coisa do género? Serve um lençol velho. Vou ter de o embrulhar.
- Embrulhá-lo? - A Sra. Bond ficou com um ar muito desconfiado mas saiu da sala voltando depois com um lençol roto, de algodão, que servia perfeitamente.
Esvaziei a mesa de uma extraordinária variedade de pratos de comida de gatos, de livros sobre gatos, de remédios para gatos e estendi sobre ela o lençol;
depois voltei a aproximar-me do meu paciente. Não se pode ter pressa numa situação deste tipo e levou-me aí uns cinco minutos de muita sedução e Bich-bichinho até
conseguir aproximar suficientemente a minha mão. Quando cheguei ao momento de poder acariciar-lhe a barbela, agarrei-o num gesto rápido pelo cachaço e, finalmente,
consegui arrastar o Alfredo, que protestava amargamente e se debatia com todas as forças, para cima da mesa. Aí, continuando a agarrá-lo firmemente pelo cachaço,
dei início à operação embrulho.
Esta é uma operação que tem muitas vezes de ser levada a cabo com felinos selvagens e, modéstia à parte, tenho muito jeito para tal.
A ideia é fazer um rolo apertado deixando de fora a parte do gato que interessa para o caso: pode ser uma pata ferida, talvez a cauda e, desta vez, evidentemente,
a cabeça. Penso que foi nesse momento, ao ver-me embrulhar rapidamente o gato até só se ver uma cabecinha branca e preta a sobressair de um casulo imóvel de algodão,
que nasceu a fé inabalável da Sra. Bond em mim. O gato e eu estávamos agora a olhar um para o outro, mais ou menos de olhos nos olhos, e o Alfredo estava totalmente
sob o meu controlo.
Como disse, tenho bastante orgulho nesta minha capacidade e ainda hoje os meus colegas veterinários costumam dizer: "o velho Herriot pode ter muitas limitações,
mas não há ninguém como ele para embrulhar um gato".
Afinal de contas não havia qualquer pele a crescer nos olhos do Alfredo. Nunca há.
- Tem uma paralisia da terceira pálpebra, Sra. Bond. Os animais têm esta membrana que serve para proteger os olhos. Neste caso, a membrana não se retraiu,
provavelmente porque o gato está em mau estado. Talvez tenha tido uma ponta de gripe ou qualquer coisa assim que o enfraqueceu. Vou dar-lhe uma injecção de vitaminas
e deixo-lhe um pó que lhe vai pôr na comida se o conseguir manter aqui durante uns dias. Penso que daqui a uma ou duas semanas estará fino.
A injecção não constituiu qualquer problema com um Alfredo furioso mas impotente dentro do seu lençol e, assim, cheguei ao fim da minha primeira visita à
Sra. Bond.
Foi esta a primeira de muitas outras. A senhora e eu estabelecemos uma relação imediata que foi reforçada pelo facto de eu estar sempre pronto a gastar tempo
com os seus variados protegidos, rastejando sob pilhas de lenha nos alpendres em busca dos gatos externos, adulando-os para que descessem das árvores, perseguindo-os
incansavelmente através dos arbustos. Mas, na minha opinião, tudo isto tinha aspectos muito compensadores.
Havia, por exemplo, a variedade de nomes que ela dava aos gatos. Fiel à sua educação londrina, dera a muitos dos gatos os nomes dos jogadores da grande equipa
do Arsenal daquela época. Havia o Eddie Hapgood, o Cliff Bastin, o Ted Drake, o Wilf Copping, mas houve um caso que lhe saiu furado, porque o AlexJames começou a
dará luz gatinhos, com uma regularidade infalível, três vezes por ano.
Havia, depois, a maneira como ela os chamava, quando queria que viessem para casa. A primeira vez que a vi fazer isto foi numa tranquila noite de Verão.
Os dois gatos que ela queria que eu visse estavam lá fora, algures no jardim, e eu fui com ela até à porta das traseiras onde ela parou, cruzou as mãos sobre o peito,
fechou os olhos e entoou num melífluo contralto:
- Bates, Bates, Bates, Ba-hates. - Ela cantava realmente as palavras num tom reverente e monocórdico, dando apenas um ligeiro ênfase no Ba-hates. Depois
voltava a encher a ampla caixa torácica de prima-dona lírica e lá voltava a soltar com o maior sentimento:
- Bates, Bates, Bates, Ba-hates.
Fosse como fosse, aquilo resultava, porque Bates, o gato, lá veio a trotar de trás de um arbusto de loureiro. Faltava ainda o outro paciente e eu fiquei
a observar a Sra. Bond, muito interessado.
Ela pôs-se na mesma atitude, respirou fundo, fechou os olhos, um meio sorriso doce desenhou-se-lhe no rosto e recomeçou:
- Sete-vezes-três, Sete-vezes-três, Sete-vezes-trê-ês.
Era a mesma melodia do Bates, com a mesma subida e descida de tom no final. Desta vez não obteve a mesma resposta rápida e teve de repetir várias vezes a toada;
as notas que pairavam no ar calmo da noite faziam lembrar, surpreendentemente, um almuadem chamando os fiéis à oração.
Finalmente, o seu esforço foi coroado de sucesso e um gato amarelo deslizou, com ar de quem pede desculpa, ao longo da parede, esgueirando-se para dentro
de casa.
- Desculpe Sra. Bond - perguntei eu, disfarçando a minha curiosidade com uma voz indiferente - não percebi muito bem o nome deste último gato.
- Oh, da Sete-vezes-três? - Sorriu, numa reminiscência. - Sim, é um amor. Teve três gatinhos sete vezes seguidas, está a ver, por isso achei que era um nome
que lhe ficava muito bem.
- Ah, pois, já percebi. Um nome esplêndido, esplêndido.
Outra coisa que me enternecia na Sra. Bond era a sua preocupação com a minha segurança. Era algo que eu apreciava porque não é uma característica muito comum
em donos de animais. Lembro-me, por exemplo, de um treinador de cavalos de corrida, que, quando um deles me atirou de um caixote abaixo, foi a correr examinar a
pata do animal para ver se se tinha magoado; da velhinha que parecia anã ao pé do seu pastor-alemão de dentes em riste, que me dizia "Vai ser bom para ele não vai,
e espero que não o magoe porque ele é muito nervoso"; do lavrador que, depois de um parto terrível, que deve ter tirado dois anos pelo menos à minha esperança de
vida, resmungava:
"Você deve ter-me morto essa vaca de cansaço, amigo".
A Sra. Bond era diferente. Costumava vir ter comigo à porta com um enorme par de luvas para me proteger as mãos das arranhadelas e era um alívio imenso encontrar
alguém que se preocupava. Aquilo tornou-se parte do meu padrão de vida: subir o caminho do jardim entre inúmeras criaturinhas fugidias de olhos selvagens que eram
os gatos externos, a aceitação cerimonial das luvas à entrada, depois a passagem para o ambiente pesado da cozinha onde o minúsculo Sr. Bond e o seu jornal mal se
viam entre o turbilhão de corpos peludos dos gatos internos. Nunca fui capaz de perceber qual era a atitude do Sr. Bond para com os gatos - pensando bem, ele nunca
dizia grande coisa - mas a minha impressão era que eles lhe eram totalmente indiferentes.
As luvas foram uma grande ajuda e tempos houve em que constituíram uma verdadeira bênção de Deus. Como no caso do Bons. O Bons era um enorme membro preto
azulado da seita dos gatos externos e a minha bête noire em muitos aspectos. Secretamente, sempre estive convencido de que ele tinha fugido de algum jardim zoológico;
nunca na vida vi um gato doméstico com músculos tão longos e elásticos, com uma ferocidade tão constante. Tenho a certeza de que, algures, no Bons, havia uma costela
de puma.
Foi um dia triste para a colónia de gatos o dia em que ele apareceu. A mim sempre me foi dificil não gostar de um animal; a maior parte daqueles que nos
tentam fazer mal são levados pelo medo, mas o Bons era diferente; era um rufia malévolo e, após a sua chegada, a frequência das minhas visitas aumentou devido ao
hábito que ele tinha de maltratar os colegas. Eu passava a vida a coser orelhas rasgadas e a pôr ligaduras em patas arranhadas.
Praticamente, começámos logo com uma prova de forças. A Sra. Bond queria que eu lhe desse uma pastilha para os vermes e eu já tinha o medicamento preparado
numa pinça. Como lhe deitei a mão é coisa que não sei, mas a verdade é que o icei para cima da mesa e fiz o meu número do embrulho enquanto o diabo esfrega um olho,
enrolando-o em várias camadas de tecido espesso. Durante alguns segundos ao vê-lo olhar para mim com os seus enormes olhos brilhantes cheios de ódio pensei que o
tinha dominado. Mas quando lhe introduzi na boca a pinça com o comprimido ele cerrou com toda a força os dentes sobre a pinça e senti umas garras inacreditavelmente
fortes a rasgar o lençol. Tudo acabou em poucos momentos. Uma pata comprida saiu como uma bala de entre os panos e abriu caminho à unhada sobre o meu pulso, eu larguei
o cachaço e, num abrir e fechar de olhos o Bons enterrou os dentes no meu polegar e desapareceu. E eu ali fiquei, feito parvo, a segurar os pedaços do comprimido
contra os vermes numa mão ensanguentada e a olhar para o monte de farrapos que fora o meu lençol de embrulhar. Daí em diante o Bons não podia nem ver-me e o sentimento
era mútuo.
Mas esta era uma das poucas nuvens num céu sereno. Eu continuava a gostar de ir a casa da Sra. Bond e a vida continuava a decorrer sem incidentes para além
de alguma troça dos meus colegas. Estes não conseguiam entender a minha disponibilidade para gastar tanto tempo com um monte de gatos. E evidentemente esta opinião
era geral porque o Siegfried achava que as pessoas não deviam ter animais de estimação. Ele não conseguia entender a mentalidade dessa gente e impingia este ponto
de vista a quem o queria ouvir. É claro que ele próprio tinha cinco cães e dois gatos. Os cães, todos eles, andavam com ele no carro para todo o lado e gatos e cães
eram alimentados todos os dias pelas suas próprias mãos - não admitia que mais ninguém se incumbisse dessa tarefa. A noite os sete animais empilhavam-se aos pés
dele junto à lareira. Ainda hoje defende com a mesma veemência as suas opiniões antibichos de estimação. Isto, apesar de uma nova geração de caudas a abanar quase
o impedir de ver o caminho quando anda de automóvel e de possuir vários gatos, uns quantos aquários de peixes tropicais e um casal de cobras.
O Tristan só me viu em acção uma vez em casa da Sra. Bond. Eu tinha ido buscar umas pinças compridas ao armário dos instrumentos quando ele entrou na sala.
- Alguma coisa interessante, Jim? - perguntou ele.
- Não, nada de especial. Vou só ver um dos gatos dos Bonds. Tem um pedaço de osso espetado entre os dentes.
O rapaz pôs-se a olhar para mim, a ruminar.
- Acho que vou contigo. Ultimamente não tenho visto muitos animais pequenos.
Ao descermos pelo caminho do jardim senti uma pontada de embaraço. Uma das coisas que ajudara a estabelecer o meu feliz relacionamento com a Sra. Bond fora
a minha preocupação amável com os seus protegidos. Mesmo para com os mais selvagens e ferozes, a minha atitude era sempre de gentileza, paciência e solicitude; não
era uma representação, era qualquer coisa que me vinha naturalmente. Apesar disso, não conseguia deixar de perguntar a mim mesmo o que pensaria o Tristan das minhas
maneiras à cabeceira dos meus pacientes.
A Sra. Bond, que esperava à porta, viu logo qual era a situação e apressou-se a preparar dois pares de luvas. O Tristan ficou com um ar ligeiramente surpreendido
quando ela lhe entregou as luvas mas agradeceu à senhora com o seu encanto característico. Pareceu ficar ainda mais surpreendido quando entrou na cozinha ao sentir
a atmosfera carregada e viu as massas de criaturas peludas que ocupavam quase todos os centímetros de espaço disponível.
- Dr. Herriot, lamento dizer-lhe mas é o Bons que tem o osso nos dentes - disse a Sra. Bond.
- O Bons! - Senti o estômago dar um nó. - E como é que vamos conseguir apanhá-lo?
- Oh, eu fui muito esperta! - respondeu ela. - Consegui atrai-lo com um pedaço da comida de que ele mais gosta para dentro de um cesto de gatos.
O Tristan pousou a mão sobre um grande cesto de vime que estava em cima da mesa.
- Aqui, é? - perguntou displicentemente. Abriu o fecho e levantou a tampa. Durante cerca de um terço de segundo, a criatura enroscada que estava dentro do
cesto e o Tristan olharam tensamente um para o outro, depois um corpo negro e esguio explodiu silenciosamente para fora do cesto e, passando de raspão pela orelha
esquerda do rapaz, foi empoleirar-se no cimo de um armário alto.
- Céus! - exclamou o Tristan. - Que raio foi isto?
- Isto - disse eu - foi o Bons. E agora temos de o apanhar outra vez.
Trepei para uma cadeira, fui estendendo lentamente a mão no cimo do armário e comecei a dizer Bicb-bich-bich na minha voz mais cativante.
Passado aí um minuto, o Trístan achou que tinha uma ideia melhor; de repente deu um salto e agarrou na cauda do Bons. Mas só por um breve instante, porque
o enorme gato se libertou num segundo e desatou a correr em volta da sala num autêntico turbilhão: por cima de armários e de cómodas, trepando pelas cortinas, girando
e rodopiando como um acrobata no poço da morte.
O Tristan colocou-se numa posição estratégica e, quando o Bons passou por ele, atirou-lhe uma mão calçada com a luva.
- Falhei-o, maldito! - exclamou desgostoso. - Mas aí vem ele outra vez... apanha isto diabo preto! Raios, não consigo caçá-lo!
Os dóceis gatos internos, assustados com a barulheira dos pratos e panelas que andavam num rodopio, com os gritos do Tristan e com os seus gestos de braços,
começaram também a correr de um lado para o outro, deitando abaixo tudo aquilo que o Bons deixara em pé. O barulho e a confusão foram de tal ordem que até o Sr.
Bond reagiu: por um breve instante ergueu a cabeça, olhou com um ligeiro ar de surpresa para os corpos que giravam em torno dele e voltou a mergulhar no seu jornal.
O Tristan, corado do calor da perseguição, estava a começar a divertir-se. Eu arrepiei-me todo quando ele me gritou com ar feliz:
- Enxota-o para cá, Jim! Eu deito-lhe a mão da próxima vez que ele aqui passar.
Nunca apanhámos o Bons. Não tivemos outro remédio senão deixar o osso seguir o seu próprio destino, de forma que, como visita de veterinário, aquilo não
foi um sucesso. Mas, quando voltámos para o carro, o Tristan vinha a sorrir todo satisfeito.
- Foi magnífico, Jim. Não sabia que te divertias tanto com os teus gatitos.
Mas a Sra. Bond, quando voltei a estar com ela, não se mostrou assim tão entusiasmada com o assunto.
- Dr. Herriot - disse ela - espero que não volte a trazer consigo aquele rapazote.
trad. L. R.
*O GATO DE DICK BAKER
Mark Twain
Um dos meus colegas, o honesto e simples Dick Baker, garimpeiro de Death-Horse Gulch - mais uma vítima de dezoito anos de labuta não reconhecida e de esperanças
malogradas - era uma das melhores criaturas que já alguma vez carregou a sua pesada cruz por este mundo de Cristo. Tinha quarenta e seis anos, era grisalho cor de
rato, sincero, atencioso, pouco instruído, e andava sempre mal vestido e sujo de terra, mas tinha um coração de um metal mais precioso do que qualquer ouro que a
sua pá pudesse trazer à luz do dia - mais precioso do que qualquer ouro que alguma vez tivesse sido encontrado ou cunhado.
Sempre que estava na mó de baixo e acabrunhado costumava lamentar-se sobre a perda de um gato extraordinário que possuíra (pois, onde não há mulheres nem
crianças, os homens de bom coração afeiçoam-se aos animais, porque têm de amar alguma coisa). E falava sempre na estranha sagacidade desse gato, com o ar de quem
acreditava piamente que o bicho tinha algo de humano, de sobrenatural até.
Uma vez ouvi-o falar desse animal. E foi assim:
"Meus senhores, costumava ter aqui um gato que dava pelo nome de Tom Quartz, que vos espantaria, penso eu - espantava qualquer um. Tive-o aqui durante oito
anos - e foi o gato mais melhor que já vi. Era grande e cinzento, do tipo gatarrão, e tinha mais tino que qualquer homem neste acampamento. E uma senhora dignidade.
Não queria familiaridades com ninguém nem que fosse cá o Governador da Califórnia. Nunca acaçou um rato na vida. Era superior a essas coisas. Nunca gostou de nada
a não ser das minas. Aquele gato intendia mais de garimpagem do que qualquer pessoa.
Não havia nada a ensinar-lhe quanto a estacamentos ou garimpagens - tinha nascido pr'áquilo.
"Seguia-me a mim e ao Jim quando andávamos pelas montanhas a prospectar e era capaz de trotar atrás de nós aí umas cinco milhas, se fosse preciso. E avaliava
como ninguém o terreno a garimpar - nunca se viu tal coisa. Quando começávamos a trabalhar, olhava em redor e, se não lhe cheirasse, olhava para nós como quem diz:
"Bem, vão-me dar licença..." e sem mais aquelas empinava o nariz e pirava-se para casa. Mas, se lhe agradava o terreno, aninhava-se e ficava quieto até qu'a primeira
peneira fosse lavada; então esgueirava-se prá nossa beira, dava uma espreitadela e se houvesse seis ou sete pepitas ficava satisfeito - e era o bastante - e depois
ia deitar-se em cima dos nossos casacos e ressonava como um barco a vapor até darmos co filão e então levantava-se e vinha inspeccionar, a correr que nem um raio
dum lado pró outro.
"Ora, foi por essa altura que apareceu esta mania do quartzo. Toda a gente se meteu naquilo - andava tudo de picareta e dinamite em vez de cavar a terra
à pázada na encosta do monte. Toda a gente andava a abrir poços em vez de esgadanhar cá em cima. Embora o Jim não estivesse nada convencido, também nós tivemos de
meter mãos à obra. Começámos por escavar um poço e o Tom Quartz pôs-se a magicar o que é que estaríamos pr'áli a fazer. Nunca tinha visto garimpar daqueles jeitos.
Estava todo transtronado, como se costuma a dizer, e não havia maneira de intender o que estava a acontecer. Era demais para ele. Mas também se meteu naquilo, podem
crer - de corpo e alma - embora sempre achasse que aquilo era um disparate pegado. Mas é que aquele gato estava sempre contra modernices - não sei porquê mas não
se confirmava. Sabem como é, hábitos velhos! Mas, aos poucos, o Tom Quartz começou a ceder embora nunca intendesse totalmente aquele eterno cavar sem peneirar nada.
Por fim resolveu descer ao poço para tentar decifrar esse mistério. E quando lhe dava a neura e se sentia mesmo na fossa, triste com'à noite - sabendo, como sabia,
que as contas se empilhavam e nós sem ganhar um centavo - dava voltas em cima de um saco de sarapilheira, que estava num canto, e deitava-se a dormir. Ora, um dia,
quando o poço já levava aí uns oito pés de fundo, demos com uma rocha tão dura que tivemos de dar um tiro - foi o primeiro tiro desde que o Tom Quartz nasceu. Foi
então que acendemos o rastilho, trepámos cá para fora, e pusemo-nos a salvo aí aumas cinquenta jardas - e esquecemo-nos e deixámos o Tom Quartz a dormir no saco
de sarapilheira. Passado um minuto, vimos uma baforada de fumo a sair do buraco e depois foi um estrondo enorme, cerca de quatro toneladas de pedras, lixo, pó e
bocados de madeira a subir ao ar, espalhando-se por uma milha e meia, Deus nos acuda, mesmo no meio lá vinha o velho Tom aos rebolões, arranhando, rosnando, bufando
e esgadanhando tudo à sua volta como que possesso. Mas não lhe valia de nada, está a ver, não lhe valia de nada. E foi só isso que vimos dele durante dois minutos
e meio, porque depois, de repente, desataram a cair rochas e entulho e ele caiu, que nem uma pedra, e aterrou a uns dez pés do lugar onde estávamos. Tenho de confessar
que era o bicho mais esquisito a que alguém tenha posto a vista em cima. Uma orelha, no pescoço; a cauda, espetada para cima; as pestanas chamuscadas e todo preto
do fumo, todo sujo de lama e lixo da cabeça aos pés. A bem dizer, meus senhores, não valiaapena pedir desculpas. Ficámos mudos e quedos. Então, mirou-se enojado
e depois olhou para nós - e era exactamente como quem diz: "Pois é, cavalheiros, talvez achem muita piada enganar um gato inexperiente em minas de quartzo, mas eu
não penso assim" - e virando-se, dirigiu-se para casa, sem mais aquelas.
"Ele era assim. E talvez não acreditem, mas depois disto, nunca se viu um gato tão avesso a minas de quartzo, como ele. E, passado tempos, quando conseguiu
entrar de novo no poço, ficariam admirados com a sua sagacidade. Mal acendíamos o rastilho e este começava a sibilar, afivelava um ar como quem diz: "Bem, vão-me
dar licença..." e era espantoso o modo como ele se esgueirava do buraco que nem uma flecha e se ia refugiar numa árvore. Sagacidade? Não é a palavra certa. Era pura
inspiração! "
E eu retorqui: "Bem, Sr. Baker, a aversão dele contra minas de quartzo era realmente uma coisa extraordinária tendo em conta o modo como adquiriu essa aversão.
Nunca conseguiu curá-lo?"
"Curá-lo?! Nã! Uma vez perdido o tino, perdeu-o para sempre - e podia fazê-lo ir pelos ares três milhões de vezes, que nunca o curaria daquela maldita aversão
contra minas de quartzo."
trad. L. F.
*A GATA DA MINHA VIDA
Derek Tangye
A irmã da Jeannie, Bárbara, veio viver connosco em Maio, deixando a sua casa em Cotton-in-the-Clay, perto de Derby. Sempre se referira a Lama como a Princesa; e
quando chegou nessa altura, afirmou que nunca vira a Princesa tão bonita. E era verdade. A Princesa estava gorducha, com o pêlo lustroso como uma amora madura e
a sua cauda gorda fazia com que o objecto que pertencia a Oliver parecesse uma ninharia. O seu focinho pequeno, exceptuando os seus lânguidos bigodes brancos, lembrava
o de um gatinho; e muitas vezes era igualmente brincalhona. De repente, apanhava-a a bater com a pata numa pena de uma das gaivotas do telhado, ou via-a dentro de
casa a perseguir um diabinho debaixo do tapete, enfiando a cabeça para ver se o apanhava. Ainda era nova, segundo parecia, e não mostrava sinais dos anos que já
passara connosco desde aquele dia em que aparecera à nossa porta no meio de uma tempestade. Só que a Bárbara viu um, embora fosse um sinal que, nessa altura, eu
preferia ignorar.
Muitas vezes, quando ela se instalava no meu colo depois do pequeno-almoço ou do jantar, obrigando-me a ficar ali num canto do sofá até ela se decidir libertar-me,
eu aproveitava e punha-me a penteá-la. O pente estava guardado numa gaveta da mesinha Regência à esquerda do sofá e eu tinha de me torcer todo para tirar o pente
da gaveta sem incomodar a Princesa no meu colo.
Depois começava a minha tarefa com toda a delicadeza. Primeiro, passava o pente no lombo, depois entre as orelhas mas com tanta cautela que ela continuava
a olhar sonolenta para Jeannie sentada na cadeira da frente; e depois uma penteadela mais ousada no pêlo mais grosso dos lados, movimento esse que, quando bem sucedido,
arrancava um belo tufo de pêlos sedosos que eu por vezes conservava, guardando-o numa caixa decorada com conchas pois pensava que um dia havia de querer ter uma
recordação tangível dela. Fizera o mesmo quando penteara o Monty e os tufos dele ainda estavam numa tacinha Swansea de pot-poum que se encontra em cima da estante.
Assim, ali ficava no meu canto a cumprir suavemente a minha tarefa até a Lama me mostrar que já estava farta, atacando pura e simplesmente o pente. Então eu parava
imediatamente.
Contudo, esses ataques haviam-se tornado mais frequentes nos últimos tempos. Ela mostrava-se cada vez mais incomodada com o facto de eu a pentear nas partes
em que o pêlo era mais denso, e a razão era fácil de perceber já que, embora à superficie o pêlo parecesse muito liso, por debaixo estava todo emaranhado. Isto era
jáo tal sinal de velhice a que a Bárbara se referira.
Outros referiam-se-lhe de maneira diferente. Visitas que faziam reparos do género:
- A Lama está bem, não está?
- Ainda tem a Lama?
- Ela já tem uma linda idade.
Idade, idade, idade. Os ingleses são obcecados pela idade. Se uma mulher vai na rua, escorrega numa casca de banana, cai e parte uma perna, de certeza que
os jornais começam a notícia assim: "Com cinquenta e cinco anos, a Sra. Dona..." A idade tem de aparecer em todas as notícias. É um ritual. Tornara-se um ritual
perguntar a idade da Lama.ÒÀ. e eu dei por mim a recuar uns anos e a lembrar-me que o mesmo acontecera com o Monty. Nada mudara. O mesmo desconsolo nas perguntas,
a mesma tristeza, a mesma certeza abafada de que eu não queria encarar a verdade. Sim, eu sabia que a Lama estava a chegar ao fim dos seus dias e que se transformaria
num ponto negro na minha memória, mas não gostava que me lembrassem disso. Podia tocar-lhe, pegar nela ao colo, ouvir o seu ronronar e não queria que me lembrassem
que aquelas suaves alegrias não seriam, um dia desses, senão um sonho.
Todavia, esses momentos de depressão não passaram de um leve toldar da felicidade desse Verão. Houve, por exemplo, o divertimento e a confusão causados pelo
Ohver e pelo Ambrose. Já nos tínhamos acostumado a exclamações excitadas do género: "Vimos a Lama no caminho!"... quando, na realidade, quem haviam visto era o Oliver.
Mas ao Ambrose nunca ninguém chamara Monty até que um amigo nosso que já não víamos há anos se assustou ao vê-lo na parte de dentro do parapeito dajanela do celeiro.
- Pensei que o Montv tivesse morrido!
- E morreu... há anos.
- Devo ter visto um fantasma!
Tive sempre a impressão de que muita gente, especialmente os dirigentes de um país, de uma comunidade, ou de uma causa, consideram a lógica como uma espécie
de colete salva-vidas. Tentam desesperadamente acreditar que são donos do seu próprio destino e que conseguem controlar os caminhos desse destino através de uma
planificação cuidada. Assim, a lógica, comprovada por factos e por números cuidadosamente recolhidos, é a base de qualquer relatório sobre todo e qualquer tema;
e os imponderáveis são ignorados já que são demasiado misteriosos para se levarem em conta.
Neste caso, os imponderáveis eram representados por Oliver e por Ambrose. Como é que alguém, por mais astuto e lógico que fosse, explicaria o aparecimento
em Minack de dois gatos vadios e indesejados que eram a exacta cópia dos dois únicos gatos que eu alguma vez conhecera?
As pessoas sensatas explicá-lo-iam certamente dizendo que era uma coincidência, e pronto. As pessoas sensatas tendem a ignorar a existência dessas forças
invisíveis, intocáveis, extra-sensoriais que nos vão empurrando daqui para ali ao longo da vida; e isto acontece porque o mundo ocidental acha que é tão civilizado
que considerar a magia como uma realidade é algo que está aquém da sua dignidade. E contudo muitos de nós já ouviram falar em acontecimentos que não têm qualquer
explicação racional.
Um pároco contou-me no outro dia o caso de uma rapariguinha da sua paróquia, de quem ele gostava muito, que uma manhã foi encontrada pelos pais desmaiada.
Não tivera quaisquer sintomas antes disso e quando chegou ao hospital, os médicos não conseguiram detectar as causas do seu mal. Passados dois dias deixaram de ter
esperanças de a salvar e os pais pediram ao pároco que fosse ao hospital dar-lhe a extrema-unção. Mesmo antes de sair, o pároco telefonou a um curandeiro amigo e
contou-lhe o que ia fazer. Uma hora mais tarde chegou ao hospital e recebeu a notícia de que a menina, que continuava sem sentidos, só devia viver mais alguns minutos.
Ele correu até à enfermaria, parou ao pé da cama dela e disse calmamente:
- Quem sou eu, Jill? Quem sou eu?
Durante uns momentos não se passou nada e então a menina estremeceu e, para grande espanto de todos, murmurou:
- É o Padre.
A partir desse momento ela começou a recuperar e um mês e pico mais tarde já andava de pónei pelos campos junto de sua casa. Terão sido as orações, o curandeiro
ou a magia que fizeram isto?
Quanto à minha própria experiência nestas questões misteriosas, um acontecimento que ainda retenho na minha memória tem a ver com a única altura em que um
quiromante me leu a palma da mão. Ia num vapor de Sidney para Hong Kong quando um dos passageiros, um engenheiro entroncado que ia trabalhar para as docas de Hong
Kong, se ofereceu para me ler a sina dizendo que havia estudado com Cheiro, um famoso quiromante. E ali estava eu no convés, num fim de tarde um tanto ou quanto
fresco, com o vapor navegando pelo Mar Aragura, com as mãos estendidas... e o engenheiro a dizer-me que eu havia de casar com uma rapariga magra e de cabelos pretos
com as iniciais J.E.. Cinco anos depois subia a nave central da Igreja de Richmond de braço dado com Jean Everald Nicol.
Seja como for, fosse qual fosse a explicação para o aparecimento do Oliver e do Ambrose, o que é certo é que eu, um homem antigatos, era agora assediado
por três gatos; e estava em permanente estado de alerta. É evidente que a presença de Oliver desagradava a Lama, embora já não tivesse medo dele; e portanto nós
continuámos a fazer tudo para os separar. Assim, andava permanentemente a dizer: "Não há sinais do Oliver, a Lama pode sair". Ou:
"Deixa a Lama dentro de casa. O Oliver está lá fora". Quanto ao Ambrose, esse continuava arisco, de tal modo arisco que nos punha doidos.
- Vem cá Ambrose - chamava-o eu fazendo barulho com os dedos.
Ou:
- Tenho aqui uma coisa para ti, Ambrose - dizia Jeannie, com um prato de peixe numa mão com a esperança de o apanhar com a outra.
Qual quê.
- Ambrose - dizia-lhe eu zangado - mostra que vales alguma coisa!
As suas riscas, com o decorrer dos meses, tornaram-se mais bonitas, faixas de cores quentes, outonais, com formas que lembravam as correntes no mar calmo.
É verdade que por vezes a sua cabeça, em virtude da pouca idade, tinha um ar magricela, até mesmo o corpo tinha um ar magricela, mas de repente, por uma razão qualquer
como, por exemplo, uma mudança de luz, ou de temperamento, ele adquiria uma espécie de fulgor. Havia de ficar um gato campeão, exactamente como o Monty. Bonito de
se ver e muito inteligente embora continuasse a desconfiar da raça humana e de nós, não obstante tudo o que lhe queríamos dar.
As relações entre ele e a Lama eram de uma calma compreensão e eu apanhava-os muitas vezes, um ao lado do outro, em Monty's Leap a bebericarem no regato;
e quando acabavam, regressavam os dois. É claro que o Ambrose não ousava aproveitar-se dela. Ele sabia que ela era a Rainha. Podia dar-lhe carinho mas nada de liberdades.
Entretanto o Oliver tornara-se pacífico. Continuava a ser o vadio que ansiava por ser acolhido e por vezes dava passos fisicos para o conseguir. Tínhamos
uma armação de arame que havíamos inicialmente colocado para impedir que o Monty saltasse da janela à noite e que havíamos mantido para evitar que a Lama fizesse
o mesmo. Era uma armação pouco segura e mal amanhada mas que chegava para o fim em vista. Mas uma noite fui acordado do meu sono profundo por um estrondo violento
na janela, logo seguido de um baque no chão e depois um choque. O Oliver tinha arrancado a armação pelo lado de fora e saltado para cima da cama.
Jeannie estava meio acordada.
- Que foi? Que aconteceu? - disse ela naquela maneira meio-histérica, típica de quem está mal-acordado.
- Calma - sussurrei eu. - Deixa que eu trato disto. É uma emergência.
Era realmente uma emergência. O Oliver trepara até ao meu lado esquerdo, a ronronar como um motor a pistões de um avião em voo baixo, enquanto à minha direita
se encontrava a Lama.
- Não a acordes - sussurrei eu. - Segura nela com cuidado que eu trato do Oliver.
- Estás em pânico.
- Claro que estou em pânico... os dois assim tão perto um do outro e um a ronronar que nem um louco mesmo em cima do meu nariz.
Então peguei no Oliver com toda a firmeza, saí da cama, levei-o até à porta da sala de estar, abri-a, abri a porta do alpendre que dava para o quintal e
atirei-o para lá. Voltei para a cama.
- Foste mauzinho, não achas?
- Ora essa! - respondi. - Que havia de fazer?
A Lama não se mexera. Continuava enroscada na cama com aquele rosnar abafado tão típico dela quando dormia.
- Acho que foi um bocado demais - disse Jeannie sonolenta, e acrescentou - ele só quer que gostem dele.
- Oh jeannie, tu às vezes dizes cada coisa!
- Cala-te, quero dormir.
Eu demorei uma ou mais horas a adormecer. Fiquei acordado a pensar no que Oliver estaria a magicar e onde é que ele estaria. Mais uma vez a partilhar um
caixote cheio de palha com o Ambrose, com certeza.
Os burros encaravam o Oliver e o Ambrose com uma tolerância divertida. O Oliver, achavam eles, era como a Lama, tinha a seriedade típica da meia-idade que
impedia qualquer hipótese de brincadeira. Contudo, às vezes eles ainda tentavam. Se, quando os levávamos do estábulo e ao passar pela casa avistavam o Oliver, um
deles avançava de focinho baixo, como um cão a seguir um rasto, e investia contra ele. O Oliver, como é evidente, dava às de vila-diogo; e a Penny ou o Fred, fosse
qual fosse, acabava por mordiscar pura e simplesmente as ervas.
Com o Ambrose as coisas eram diferentes. O Ambrose provocava-os, especialmente o Fred. O Ambrose era uma espécie de miúdo traquina que gosta de acirrar os
amigos contra si e depois foge antes deles o poderem fazer. O Ambrose adorava estar em situações de perigo. Se o Ambrose encontrasse o Fred a ruminar erva no campo
acima da casa, ia logo esconder-se atrás dele. Isto era uma espécie de modalidade perigosa da Roleta Russa porque o Fred estava normalmente no meio do campo e quanto
mais o Ambrose se aproximava, mais teria de correr em caso de necessidade. Talvez isso fosse o que o Ambrose queria, experimentar a emoção que é ser-se perseguido
durante x metros por um burro. E não há dúvida que isso dava um imenso prazer a Fred; era uma maravilha perseguir o Ambrose pelo campo fora.
Portanto, nesse Verão em Minack, havia três vidas de gatos que se desenvolviam em paralelo. O Ambrose, evidentemente, era o mais inocente, com anos de aventura,
situações divertidas e idiotas à sua frente. O Oliver, compreensivelmente, sentia-se um bocado confuso sobre o que mais teria de fazer para ser aceite... já que,
tendo optado por se instalar junto de nós, e tendo em conta aquelas noites frias passadas na Wren House e nos ramos de tojo quando a sua casa ficava inundada, os
esforços para nos mostrar a sua afeição, a espantosa recriação como sósia do Monty naquela manhã de um domingo de Outubro, a sua comedida insistência mostrando-nos
que tudo o que queria de nós era que o amássemos..., não era dificil de perceber por que é que ele se sentia tão confuso pelo facto de nós não o deixarmos ser uma
parte natural da nossa vida. Contudo ele tinha o tempo a favor dele. Podia esperar. Podia continuar a seguir uma política de calma insinuação pois levava uma certa
vantagem em relação à Lama. Era mais novo. Talvez sentisse, pelo modo como o tratávamos, que era um cidadão de segunda, mas não se importava com isso. De qualquer
modo, sempre tinha o Ambrose como companheiro. Não estava sozinho.
Entretanto a Lama passava cada vez mais tempo a dormir. Enroscava-se nos seus locais favoritos, no tapete ao lado da minha secretária e ao pé do radiador,
ou então deitava-se em cima da roupa lavada empilhada sobre o radiador no quarto das arrumações, ou então instalava-se no escuro, dentro do armário, no meio das
minhas camisas. Isso não era um sinal de velhice. Tinha o mesmo apetite de sempre e continuava a gostar de dar as suas passeatas, especialmente até ao penhasco.
Lembro-me de uma manhã quente no início de Setembro quando eu e Jeannie decidimos dar uma volta e ir até às rochas apanhar sol; mal tínhamos andado uns metros
pelo caminho que ladeava o campo do Fred quando, para grande surpresa nossa, a Lama passou por nós a correr, depois parou de repente e ficou a olhar para nós. Era
mais uma vez a velha brincadeira do pega-pega que tão bem conhecíamos. Um gesto espontâneo de prazer e de excitação.
- Não me apetecia nada que ela viesse - disse eu.
- Porque não?
- Queria ficar deitado nas rochas a apanhar sol - disse eu. - Queria ficar à vontade sem ter de me preocupar com a Lama.
- Que chato!
Está bem, era chato eu não estar contente pelo facto da Lama ter vindo connosco. Mas eu tinha razão em ter de me preocupar com ela. O caminho, volteando
por entre os tufos de junquilhos, tornava-se mais íngreme próximo das rochas e era nesse ponto que a Lama costumava parar. Não gostava de andar pelas rochas. Assim,
quando nos apetecia tomar banho, um de nós tinha sempre de ficar com ela, caso contrário ela juntava ao piado das gaivotas o seu miado desesperado.
Nessa manhã de Setembro, deixei que Jeannie fosse tomar banho enquanto eu ficava com a Lama, deitado no mesmo lugar onde ela uma vez me avisara de que uma
cobra estava prestes a morder-me. Sentou-se em cima da minha barriga a ronronar; e eu ali fiquei com aquele som a entrar-me pelos ouvidos e o som do mar a acariciar
as rochas, com uma ou duas gaivotas piando desesperadas, e o agudo trinado dos apanha-ostras à minha esquerda para além de Cam Barges. Um momento de rara felicidade,
em que mais nada havia para desejar. Era o tipo de momento pelo qual homens e mulheres, em guerras antigas, estavam prontos a morrer, acreditando que os prazeres
simples e básicos constituem a chave da felicidade. Um momento que ultrapassava as teorias sofisticadas que, hoje em dia, tentam governar as nossas vidas.
Querida Lama, ainda hoje ouço o seu ronronar.
Trad. M. J. D.
*KYM
Joyce Stranger
1
Sempre houve gatos na minha vida, assim como cães. Há muita gente que tenta encaixar os seres nos respectivos cacifos - gatos e cães. Manifestam ainda uma maior
surpresa quando vêm a minha casa e encontram dois gatos confraternizando amigavelmente com dois cães. Os gatos enroscam-se muitas vezes ao pé dos cães para se aquecerem.
Não há nenhuma necessidade de nos privarmos de uma espécie só por termos em casa a outra.
Metemos um cachorrinho numa casa com um gato mais velho e um gatinho numa casa onde já havia um cão adulto. Tivemos ao mesmo tempo cachorrinhos e gati.nhos.
Há sempre um período inicial de adaptação mas, quando são tratados e apresentados como deve ser, acabam por se habituar e normalmente tornam-se grandes amigos.
O primeiro gato de que eu me lembro bem, era o Nipper que coexistia com o nosso cão terrier, o Turk. O Nipper deve ter tido uma vida bem complicada já que
veio para nossa casa quando os gémeos, o meu irmão e a minha irmã, eram pequenos e a minha irmã mais nova era ainda bebé. Andávamos sempre a puxar-lhe as orelhas.
Agora não posso ver um gato a ser maltratado pelas crianças e insisto que na nossa casa os animais sejam tratados com respeito e não utilizados como um substituto
dos brinquedos. Eles normalmente aguentam sem se queixarem mas se reagem, não podendo aguentar mais, as crianças podem ficar bastante magoadas e as culpas recaem
sempre no bicho.
Uma vez, quando eu tinha mais ou menos oito anos, vestimos o Nipper com roupa de boneca e levámo-lo a dar uma volta pelas lojas no carrinho da minha boneca.
Tivemos todo o cuidado para que a nossa mãe não nos visse pois ela ficaria furiosa e ter-nos-ia detido imediatamente; mas acabámos por lhe trocar as voltas. Ela
viu-nos sair e pensou que levávamos a boneca no carrinho.
Exactamente a meio da Bexleyheath High Street, um cão resolveu enfiar o nariz por debaixo da capota. O Nipper deu um guincho diabólico e saltou, de saiotes,
touquinha e tudo, para o meio da rua com os carros a meterem os travões a fundo numa chiadeira de loucos. Houve um eléctrico que quase lhes passou por cima, ao Nipper
e ao cão.
Houve um pandemónio até que um polícia agarrou no gato e nos trouxe. Era um polícia muito grande e muito zangado que me abanou furioso já que eu era a mais
velha dos três - os gémeos só tinham seis anos. A sua fúria ensinou-me mais do que a fúria da minha mãe alguma vez o conseguira. Nessa altura, ninguém contestava
a autoridade da polícia. Se os meus pais tivessem sabido daquilo, teriam ambos dito "É bem feito", e ter-nos-iam castigado não nos deixando, por exemplo, ir ao jardim
zoológico ou tirando-nos a semanada.
Levámos o Nipper para casa e despimo-lo apressadamente. Não tenho bem a certeza se a minha mãe soube alguma vez o que se passou. Tive muito cuidado para
que nada disto acontecesse a nenhum dos nossos gatos quando os meus filhos eram ainda pequenos.
O Nipper era extremamente grande, muito pesado, preto carvão e com olhos verdes. Tinha alguns hábitos insuportáveis, possivelmente por culpa nossa, pois
gostávamos demasiado dele, mimávamo-lo muito e raramente o deixávamos em paz. Havia sempre alguém a fazer-lhe festas.
Uma das suas brincadeiras mais desagradáveis era ficar à espreita na sombra, debaixo das escadas, à espera que aparecessem umas perninhas de soquetes brancos
de menina de escola para atacar. Quando apareciam, ele saltava, cravava as garras e os dentes nas barrigas das pernas e ficava radiante com a gritaria que se seguia,
saltando a proteger-se para o cimo do armário da entrada de onde olhava cheio de curiosidade para quem estivesse cá em baixo a gritar ou a vociferar contra ele.
Tinha uma outra mania extremamente irritante. Mudámos de casa quando ele tinha aí uns seis anos. Fomos para perto da nossa antiga casa, Lyndhurst, em Bexleyheath,
para uma moradia muito maior chamada Broomwood. O Nipper preferia a nossa primeira casa. Vezes sem conta, durante aquele primeiro Verão na moradia nova, quando eu
chegava vinda da escola, a minha mãe recebia-me dizendo:
- O Nipper foi-se outra vez embora. Vais buscá-lo?
Contrariada, lá me enfiava eu pelo carreiro, através dos campos de couves empoeirados, até Lyndhurst. Tinha de trazer o Nipper ao colo, a protestar em altos
berros e a debater-se vigorosamente, durante uma boa milha.
Nunca ninguém apanhava aquelas couves. Uns anos, porque custava muito dinheiro cortá-las e o lucro era pouco, e portanto deixavam-nas ali a apodrecer e cheiravam
que tolhia. Outros anos, porque ficavam alagadas com as chuvas contínuas, a colheita arruinada e deixavam-nas ali a apodrecer e a cheirar mal.
Os gatos pretos e o cheiro a couves podres estão intimamente relacionados na minha memória.
O Nipper morreu com quinze anos e seguiu-se-lhe o Sherry, um grande gato amarelo torrado, bonito, que passou grande parte da vida deitado ao sol.
Houve também o Snowball, assim chamado por ser branco. Nome, aliás, incorrecto já que ele nasceu sem o instinto de se lavar e foi o gato mais porco que jamais
vi.
Adoro gatos. Adoro-os pela sua elegância e graça. Adoro a sua independência e arrogância e a maneira como se deitam a olhar para nós, perscrutando-nos (em
nossa desvantagem, de certeza) com aquele olhar inquietante, sem pestanejar, inquiridor.
Os anos da guerra foram para mim anos sem gatos, excepto quando ia a casa dos meus pais. Eu estava fora num albergue. Nunca passava por um gato sem que parasse
a confraternizar. Com os cães sou mais cuidadosa. E preciso conhecer o cão antes de fazer amizade; ele pode achar que estamos a invadir o seu território. Por muita
experiência que se tenha de cães, nunca é aconselhável aproximarmo-nos de um cão estranho sem antes lhe olharmos para o focinho e para a cauda; os pais que deixam
os filhos fazerem festas aos meus cães sem primeiro me perguntarem se podem, são loucos. Os meus cães não fazem mal a ninguém se as pessoas souberem aproximar-se
deles. Nem todos os cães são de confiança, nem pouco mais ou menos. Muitos não estão acostumados a crianças e assustam-se com o barulho e com os seus gestos bruscos
e descontrolados. Há muitas crianças que são francamente perigosas, ignorando as necessidades dos animais.
Depois da guerra veio o casamento e vieram os filhos. Os gémeos, que chegaram quando o nosso filho mais velho tinha apenas vinte meses, fizeram com que não
houvesse tempo para animais, por muita falta que eles me fizessem. Sabia que não conseguiria dar a um cão o exercício, o treino e a companhia de que ele necessitaria.
Mas queria muito um gato.
Via muitas vezes o Ming, um bicho magnífico, à janela de uma pastelaria da zona. Tornei-me amiga dele e cobiçava-o. Era uma criatura deliciosa.
E assim, quando o meu marido me perguntou, antes do meu aniversário, o que é que eu queria, respondi sem sequer pensar duas vezes:
- Um gatinho siamês.
Nunca pensei que o meu desejo se realizasse. Mas o Kenneth às vezes surpreende-me aparecendo com coisas inesperadas, escolhendo algo de muito exótico que
eu nunca imaginaria.
E foi assim que, seis semanas mais tarde, sentindo-me como se me tivessem oferecido as jóias da coroa, me encontrei sentada no nosso velho carro com uma
coisinha mínima e atordoada que mal cabia na minha mão. Era muito bonito e, como todas as criaturas bonitas, sempre teve consciência disso durante toda a sua longa
e atribulada vida.
O focinho e as orelhas estavam a começar a escurecer. Tinham um leve tom de fuligem assim como as patas e a cauda torta. O resto era de uma cor leitosa.
Quando estava zangado, trocava os olhos, azul forte, e mesmo naquela idade, privado da mãe e dos seus companheiros de ninhada, lançado no mundo apenas com nove semanas,
não tinha um ar desgraçadinho nem patético.
Estava furioso.
Não gostava de nós. Não gostava do carro. Achava que devíamos sentir a sua fúria e miava longamente e em altos berros, com toda a determinação, reagindo
a cada plano que fazíamos para ele.
Detestava-nos, gritava ele. Com toda a clareza. Tentou arranhar-nos. Embrulhei-o então bem numa camisola velha que trouxera para o agasalhar. Estava um dia
muito frio. Estávamos na zona dos pântanos despidos e altos onde ele havia nascido numa bela e rica casa.
Detestava o carro pois fazia alguns ruídos horríveis e havia ainda uns outros ruidos que mais pareciam dinossauros investindo contra nós, muito maiores que
nós, com a intenção de nos atropelarem e destruirem.
Mesmo assim novinho, ele tinha uma voz aguda e a mania de prolongar as lamúrias num tom agudo. Cada vez protestava mais alto.
Tinha frio.
A chuva deslizava pelo pára-brisas não nos deixando ver a rua deserta. As poucas árvores raquíticas e invernosas estavam despidas e torcidas. A estrada serpenteava
por entre colinas nuas onde o feto do ano anterior era agora uma espécie de bolor lúgubre e húmido que dava aos pântanos uma aura de desespero. Uns anos mais tarde
seriam o cenário dos crimes dos Moors. Agora detesto-os. São assombrados pelo horror e por gritos de crianças moribundas.
O carro estava frio e não tinha aquecimento. O Kym enfiava-se na camisola mas não se sentia confortável. Tentava aquecer-se mas não havia ali nenhum pêlo
para ele se aconchegar. A lã tinha um toque diferente. Não havia qualquer contacto com um corpo familiar, nem sequer a língua áspera da mãe para o acalmar. Ele era
uma criatura minúscula no meio de gigantes que não lhe diziam nada e que o tinham tirado da sua casa.
Fugiu da camisola para fora e começou a explorar o meu colo à procura de um sitio para se esconder, em busca do escuro onde não visse tantas coisas novas
e assustadoras.
Descobriu um cantinho muito melhor e mais calmo.
Também era uma camisola mas tinha uma abertura no fundo que uma pata exploradora conseguia levantar. Lá se esgueirou por ali abaixo e encontrou aí algo que
respirava como a mãe costumava respirar, ritmada, hipnoticamente. Não cheirava tão bem como a mãe. E não era fofa. Mas era aconchegado, escuro e agradável e a mão
que aparecia lá de cima acariciava-lhe suavemente o pêlo, acalmando-o um pouco.
Os protestos acabaram.
Seguiu-se-lhes um vago som rouco que tomámos por um ronronar.
A partir daí, o esconderijo do Kym, quando ainda pequeno, consistia numa precipitada corrida pela minha camisola acima. E ali ficava, aconchegado a mim,
a tremer, certo de que ninguém nem nada o conseguiria apanhar.
Chegámos a casa.
Éramos agora donos de um gatinho, de um enorme papel onde vinha descrito o pedigree e de uma folha com adieta e com instruções para lhe pormos um caixote
com areia. A areia e o caixote foram comprados a caminho de casa. Ele precipitou-se para lá. A mãe tinha-o ensinado bem. Pusémo-lo no caixote, mostrámos-lhe como
devia esgadanhar com a pata para ele saber para que servia aquilo. Nunca se enganou, mesmo quando muito doente. Os gatitos são muito mais simpáticos nisso do que
os cachorros.
Sentava-se de costas para nós. Sempre foi muito discreto.
Até essa altura, os nossos filhos nunca haviam tido animais. Tivemos uns bichos-da-seda, mas não eram lá muito agradáveis. Os nossos eram muito estúpidos
e degolavam-se invariavelmente com a pele velha quando a mudavam. Não havia nada a fazer. Eram demasiado frágeis.
Arranjámos também, durante uns tempos, uma salamandra em resultado de uma troca na escola. Chamámos-lhe, indecentemente, Ivanhoe por causa de uma série que
dava nessa altura na televisão. A Ivanhoe foi-se finando apesar da sua dieta de dafne e de ovos de formiga e, uma manhã, convencida de que nos iria morrer ali, e
como detestasse vê-la assim presa num aquário, lá consegui que a dona dela viesse comigo colocá-la no lago onde, esperávamos, ela poderia recuperar. Durante todo
o tempo que esteve connosco, ela limitava-se a ficar em cima de uma pedra com um ar tristíssimo.
Os nossos gémeos, o rapaz e a rapariga, tinham sete anos quando comprámos o Kym. Tinham vindo connosco e ajudaram-nos a escolher o gatinho de uma ninhada
de cinco, escolha aliás muito simples pois o Kym aproximara-se logo de nós e começara a confraternizar, coisa que não lhe custou nada fazer, ali com toda a ninhada
à sua volta.
O nosso filho mais velho estava então numa festa.
Decidimos fazer-lhe uma surpresa e portanto ele não sabia que quando chegasse a casa iria encontrar mais um membro da família. Por acaso eu também não sabia até
termos chegado nessa tarde ao nosso destino.
A surpresa foi maior do que esperávamos pois o nosso filho foi encontrar-nos na cozinha, a nós todos e mais uma máquina de lavar a roupa toda desfeita e espalhada
pelo chão. Dissemos-lhe que lá dentro (olhem o que havia de acontecer!), no escuro, estava um gatinho siamês muito pequenino e muito zangado, que se enfiara no único
buraco seguro quando se viu no seu novo ambiente.
Foi nessa altura que o gato deu sinal de si confirmando a nossa história, que até aí se parecia mais com uma partida muito bem planeada.
Passámos parte da noite na cozinha entre peças e mais peças de máquina cheias de óleo. O Kym enfiara-se mesmo para dentro da maldita máquina. Não mostrava
qualquer vontade de sair cá para fora e enfrentar aqueles gigantes aos guinchos, barulhentos, com um cheiro esquisito que o cercavam. Tivemos de bloquear o buraco
da parte de trás da máquina de lavar, o buraco nas traseiras do frigorífico, o exaustor e todas as chaminés.
Passado algum tempo, depois dos miúdos se terem ido deitar, ele já estava cá fora, um trapo sujo e absolutamente irreconhecível, guinchando de fúria, bufando,
esgadanhando e cheio de óleo. Fizemos o melhor que pudemos mas só ao fim de uns dias é que ele ficou de novo limpo.
Não queria comer.
Não nos queria.
Não é que quisesse ficar sozinho mas nós não lhe dávamos aquilo de que ele mais necessitava - a sua antiga casa, a sua mãe e os seus irmãozitos e irmãzitas.
Confortei-o; amimei-o; acariciei-o. Animei-o a comer, só umas dentadinhas, dando-lhe flocos de aveia com leite morno na concha da mão. É uma bodeguice mas faço-o
sempre com bichinhos novos pois o cheiro do novo dono mistura-se indelevelmente com o da comida e ajuda as criaturinhas amedrontadas a reconhecerem quem vai passar
a tratar delas e substituir a mãe e é assim que começam a confiar em nós, o que é essencial em qualquer relação homem-animal.
Ele reconheceu que eu era a sua fonte de comida. Tendo descoberto que os nativos, afinal, eram amigáveis, decidiu logo que a minha única função era a de
tratar dele. Se não lhe fazíamos festas, trepava por nós acima e desatava a protestar em altos berros. Num dia memorável, quando estávamos na caravana, ele trepou
pelo .Kenneth acima quando este estava, de pijama fino de Verão, a fazer o café da manhã.
A gritaria que se seguiu fez com que, durante o resto da nossa estada, fôssemos olhados com muita desconfiança já que era um bocado dificil explicar que
tudo aquilo fora provocado pelo gatinho que se serviu do Kenneth como se fosse uma árvore. O Kym é óbvio que considerava a dor que sentíamos como o justo castigo
por o termos ignorado. Nem sequer lhe passava pela cabeça que pudesse por vezes ser indesejado, ou que tivéssemos outras coisas a fazer. Nós estávamos ali para lhe
agradar. Era capaz de saltar para cima de nós sem qualquer aviso, estivesse onde estivesse, do cimo do armário, do cimo da porta ou até mesmo das sanefas. E magoava
que se fartava.
Também atormentava a nossa filhita que, nessa altura, infelizmente e para nosso grande azar, decidira que detestava gatos e desatava a fugir aos gritos sempre
que ele saltava. Ora, sendo como era, isto fez com que o Kin ainda se atirasse mais a ela. Ele não percebia por que é que ela lhe fugia e assim eu passei uma boa
parte daquelas primeiras semanas com, de um lado, uma rapariguinha encolhida contra mim, e do outro, um gatinho ainda mais pequeno e indignado, enroscado no meu
colo, fixando-a, enquanto eu tentava reconciliá-los. Isto exigiu tanto trabalho quanto os primeiros dias de adaptação de um cachorrinho a um gato.
Uma vez convertida, ela tornou-se a sua servidora mais devota, sempre pronta a salvá-lo de apuros.
Uma vez instalado, a sua única ambição era animar o nosso quotidiano. Havia sempre uma traquinice ou desgraça do Kym para contar ao jantar. Era extremamente
vivo, aventureiro e tinha uma curiosidade que dava para dezanove gatos.
Tinha também o dobro das vidas dos gatos e parecia estar sempre pronto a esgotá-las.
Decidiu livrar-se da sua primeira vida vinte e quatro horas depois de o termos. E sendo quem era, fê-lo o mais meticulosamente possível.
2
Não tínhamos qualquer experiência em gatos com pedigree. Nem nos passou pela cabeça que, para começar, deveríamos saber uma data de coisas; se se tirassem
da mãe demasiado cedo os gatinhos ficariam muito nervosos e podiam ter problemas graves; podiam ser doentes.
Se soubesse, não teria ficado com o Kym. O que aliás teria sido muito aconselhável mas ter-nos-ia privado de anos de prazer; não teria adquirido metade da
experiência de lidar com animais, a qual me levou a escrever muitos dos meus livros e, seguramente, teríamos perdido a oportunidade de conhecer uma "figura".
Fiz o mesmo com um cão, uns anos mais tarde. Também ele foi uma péssima compra. Não obstante, proporcionou-me uma experiência incalculável e mostrou ser
uma "personagem" espantosa.
Portanto, talvez nem sempre seja bom ser-se sensato! Mas isto não isenta de responsabilidades quem tem de educar animais. Os animais doentes são bichos muito
caros e nem sempre têm a sorte de terem um dono preparado para os manter vivos. Há muitos que são mandados abater porque uma saúde débil ou uma deficiência são sempre
uma chatice - e uma despesa indesejada com veterinários e dietas especiais, o que representa uma enorme perda de tempo e dinheiro para quem trata deles.
O Kym só comia da minha mão; e comia muito pouco. No primeiro dia pensei que isso era porque ele tinha saudades da mãe.
No segundo dia recusou-se pura e simplesmente a comer. A sua voz, embora sempre aguda, tinha um tom impaciente. Analisei cuidadosamente o caixote de areia
quando o fui mudar. O que aí vi fez com que o levasse logo ao veterinário, embora só tivesse consulta marcada para as vacinas na semana seguinte.
O veterinário examinou-o.
- Desfaça-se dele - disse ele.
Olhei para o gatinho. Ele olhou também para mim. E pronto, a ligação entre nós estabeleceu-se logo naquelas primeiras horas. Não sabia o que lhe iria acontecer
se eu o devolvesse ao antigo dono. Além disso ele era uma criaturinha determinada e eu também não sou de desistir assim logo à primeira.
Não podia desfazer-me dele.
- Fica à sua inteira responsabilidade! - disse o veterinário. - Tem vermes. Está cheio deles. Tem a boca coberta de pústulas. - Abriu-a e mostrou-me. Toda
a língua e o palato do Kym estavam cobertos por uma espécie de aftas amareladas. - Tem a garganta inflamada. Está com gripe. Não vai conseguir comer com a boca assim.
Não posso fazer grande coisa por ele. Precisa de vitaminas e de antibióticos. Vai-lhe morrer. Está muito mal.
Não ia nada morrer.
E se o devolvesse à pessoa que o deixara ficar naquele estado antes de mo vender, de certeza que morreria, e não se salvaria. Eu também não sabia lá muito
bem como fazer mas ao menos obedeceria às instruções do veterinário ou do médico, já que pagara pelos conselhos e seria um disparate não os seguir. E haveria de
cumprir à letra as instruções que aquele veterinário me dera.
O Kym estava deitado na mesa, parecendo muito pequenino, muito doente e patético. Os seus belos olhos estavam velados pela terceira membrana, que o veterinário
me disse ser sintoma certo de vermes; o pêlo não recuperara do óleo da máquina de lavar; tinha o nariz a pingar e tinha tanto corrimento que a garganta estava tapada
com saliva.
Segurei-o para a primeira injecção.
Furioso, deu um berro. Tinha uma voz bem forte.
A patita bateu raivosamente no homem que lhe havia infligido tal indignidade. Parecia o Pequeno Polegar a desallmar o gigante.
- Parece que afinal ainda tem alguma vida - comentou o veterinário, mas vi pela expressão dele que achava que eu não iria conseguir fosse o que fosse.
Aceito a derrota no caso de um animal velho, no fim da vida, quando é uma crueldade e egoísmo prolongar-lhe o sofrimento, mas não aceito a derrota no caso
de animais novos. Estava decidida a lutar, passo a passo e o gatinho havia de lutar também.
Mas no dia seguinte estava muito doente. Tinha de apanhar injecções todos os dias e, sempre que via a expressão do veterinário, sabia que me achava louca
por andar a deitar fora dinheiro por uma causa perdida. Isso ainda me tornou mais determinada.
O Kym também estava determinado. Podia estar doente, podia sentir-se muito mal mas havia uma coisa absolutamente segura: como a sua mãe não estava ali para
o confortar, eu teria de a substituir. Fosse como fosse que se sentisse, lá trepava por mim acima até ao meu colo, com a cabecita quase bamba e sem vida contra as
minhas mãos, de olhos absortos, fixos na lareira.
Os amigos passaram palavra dizendo que não valia a pena aparecerem já que eu ficara obcecada pelo gatito. Como tinha de lhe dar, de quinze em quinze minutos,
cinco gotas de glucose e de água com a ajuda de um conta-gotas que trouxera da farmácia, não ligava lá muito às conversas. Tinha a cabeça ocupada com outras coisas.
Fiquei rapidamente perita com o conta-gotas.
Enquanto escrevia, o Kym descansava no meu colo. Enquanto andava a tratar da casa ele ficava numa caixa de papelão forrada com um cobertor, debaixo do qual
havia uma botija de água quente. Se começava a choramingar por eu não estar ali ao pé, levava-o comigo e ele ficava a ver-me a fazer as camas e na lida da casa.
Fazia tudo para que ele não perdesse a esperança; se se convencesse de que ia morrer, nada que eu fizesse o conseguiria demover. Tinha de se sentir desejado. Não
era fácil já que eu era uma estranha e durante aqueles primeiros dias houve momentos em que até eu pensei que não ia conseguir. O veterinário nunca duvidou disso.
Disse-me para não andar a perder tempo nem dinheiro e para aceitar o inevitável.
A minha vida girava em torno da glucose, da água e do conta-gotas.
Umas gotitas de quarto em quarto de hora para o manter vivo. Fosse o que fosse que acontecesse a partir daí ele não havia de me morrer nos braços e cada
dia que passava era uma nova esperança. As crianças andavam preocupadas e eu tive de lhes prometer solenemente que o Kym não havia de morrer. Elas sabiam que eu
cumpria sempre as promessas.
O Kym havia de viver.
A sua saudação débil todas as manhãs era como que um sinal de que a luta ainda não estava perdida.
Nessa altura as nossas vidas eram animadas todas as quartas e sextas-feiras com a visita do nosso merceeiro, o Tom, que tinha uma carroça puxada por um cavalo.
Detestava furgonetas e dizia sempre que quando o cavalo morresse ele também morreria. Apenas sobreviveu alguns meses quando finalmente o velho Prince se foi.
O Tom era um camponês. O irmão era um guarda-caça em Cumberland. As visitas do Tom, assinaladas com chávenas de chá no Verão e sopa no Inverno, acabavam
sempre em longas conversas sobre os hábitos dos animais selvagens. Contava como caçara raposas; dois homens, com armas e cães, tentando acalmar a população. Dois
homens numa colina num sábado tinham, sozinhos, matado setenta raposas e ainda havia mais para caçar. Uma raposa pode ter uma ninhada de quinze e se todas sobrevivessem,
algumas morreriam de qualquer modo à fome...
Sempre que o cavalo do Tom tinha cólicas, ele pagava a um rapaz para o fazer trotar em círculo e era ele que puxava a carroça. Conhecia bem os animais; sabia de
cavalos, de cães e de gatos; sabia muitas maneiras de engordar um porco e ele próprio tinha vivido durante muito tempo no campo. Ninguém sabe como é que ele acabou
em merceeiro suburbano. Era um homem tímido mas nunca resistia a falar de coisas do campo e de caça pois sabia bastante de criação de cavalos de corrida e de raças.
Foi por ele que soube que muitos cavalos não correm de acordo com a sua raça!
Nunca tinha havido um animal pequeno na nossa casa. O Tom costumava rir-se dos nossos bichos-da-seda e aconselhou-nos a voltar a colocar a Ivanhoe no lago.
Dessa vez entrou para se aquecer um bocado e inclinou-se para ver o Kym, na sua caixa de papelão ao pé do lume, um velho fogão de cozinha com um forno ao lado e
uma grande guarda metálica de segurança.
- Que é isto? É uma doninha?
Na verdade aquilo não tinha nada ar de gatinho. O Kym estava deitado de lado, de olhos fechados e com um leve mexer de lombo. Foi um dos seus piores dias.
Passava a vida a limpar-lhe o nariz e a boca que estavam constantemente a pingar e tinha um ar péssimo. O Tom virou-o.
- Está meio morto - disse ele. - Não vai fazer nada dele. É melhor levá-lo já ao veterinário. Está a perder tempo.
As pessoas estão sempre a dizer-me o que nunca hei-de fazer. Nunca hás-de escrever um livro. Nunca hás-de aprender a guiar. Nunca hás-de conseguir treinar
um cão...
Não sabem nada. Hei-de mostrar-lhes como é.
- Vai uma aposta? - perguntei eu ao Tom, conhecendo-lhe a sua maior fraqueza.
Aceitou de imediato mas eu preferia ter desistido logo da aposta pois nesse momento não tinha bem a certeza se a iria ganhar.
Felizmente o Kym tinha uma história familiar muito rija. E chegou o dia em que eu apareci orgulhosa no veterinário com um gatinho de olhar límpido, que pela
primeira vez havia comido alimentos sólidos e que tinha todo o ar de ir sobreviver. No fim da semana já tinha o pêlo lustroso, corria pela casa e o veterinário mudara
a opinião que tinha acerca de mim. Tomara-me por louca. Agora sabia que não era assim.
O Tom lá pagou os seus cinco xelins. Nenhum de nós era um jogador irresponsável.
E foi então que começou a brincadeira.
O Kym sabia agora que era o meu gato. Cuidara dele, amimara-o e enfiara-lhe comida pela boca dentro. Tinha sido tão teimosa que lhe restituira a vontade
de viver. De dia nunca saía do seu lado e de noite vinha muitas vezes cá abaixo para lhe dar de comer e para o agasalhar. Levava-o escadas acima quando ia para o
primeiro andar e nunca o deixava sozinho, mesmo quando andava de um lado para o outro.
Assim ele era agora a minha sombra, dedicado que nem um cão. Seguia-me para todo o lado, gritando quando eu ousava fechar-lhe a porta no focinho e o abandonava.
Achei que chegara a altura de lhe mostrar o jardim. Os dias estavam mais quentes e o caixote de areia podia desaparecer. Mas o Kym detestava estar lá fora.
Era muito pequenino e ficava ali sentado em grandes lamúrias porque o vento, abanando as árvores gigantes, soluçava misteriosamente nos ramos de modo que eles erguiam-se
e varriam o céu, assustando-o.
Ele detestava os dedos invisíveis que raspavam no seu pêlo.
Corria para mim, trepava por mim acima, sentava-se no meu ombro, e espreitava para a minha cara, de olhos raivosos, voz excitada, aparentemente debitando
num longo e pormenorizado monólogo tudo o que lhe acontecera. Era tão engraçado que eu ás vezes ria-me, vexando-o imensamente. Detestava que se rissem dele.
Não gosto de humanizar os animais mas não há dúvida que eles comunicam e pode aprender-se muito com a linguagem deles. A minha cadela actual, um lobo-da-alsácia,
faz uma espécie de bailado quando tem a tigela da água vazia. O Kym tinha o seu modo de comunicar. Sentava-se e punha-se a olhar para a porta do frigorífico ou da
despensa para que estas se abrissem; arranhava na porta das traseiras a miar até eu a abrir; sentava-se no lavatório ou na banheira a tentar chegar à torneira sempre
que a tigela da água estava vazia e, na caravana, não tardou a aprender a puxar as correntes que prendiam as tampas dos ralos para não se perderem. Cada gesto era
acompanhado de um miado muito específico e portanto ele mudava de tom sempre que queria coisas diferentes.
A sua maneira de me contar como é que as coisas do mundo iam era extremamente expressiva como quem exclama, sublinha, declara e comenta. Em lugares estranhos,
fazia-nos rir a todos já que conseguíamos perceber onde ele estava pelos sons que emitia, de espanto, de prazer, ou então gritando subitamente por socorro sempre
que aparecia algo de enorme no seu horizonte que era sempre muito mais limitado do que o nosso.
Era como se estivesse em plena selva quando estava no meio da erva crescida; no Verão, numa selva tropical que ia muito acima da sua cabeça. Deitava-se ao
seu nível e o chão era húmido, o ar fétido. Aprendeu a saltar para um ramo e ali ficava, respirando mais à vontade, longe da floresta densa apenas conhecida das
criaturinhas pequenas.
Sempre que algo o aborrecia, trepava para cima de mim. Era tão doloroso que eu engendrei um sistema de aviso prévio logo que lhe ouvia aquele miado angustiado
que anunciava a sua chegada. Era tão pequenino. Podia estar a querer dizer que havia um enorme e feroz cão a olhar para ele do outro lado da cerca, com a longa língua
a salivar, sempre que saltava em desespero, ou então que um gato gigante tinha invadido o nosso território, ameaçando-o, ou pior, perseguindo-o.
Nenhum dos gatos das redondezas gostava do nosso siamês. Naqueles primeiros tempos ele foi impiedosamente perseguido. Cheguei mesmo a pensar que eles o teriam
morto se o tivessem apanhado mas, felizmente, ele corria mais do que eles.
Entretanto o jardim ainda era um território inexpugnado e o caixote de areia dominava as nossas vidas, a minha e a dele. Continuei a tentar habituá-lo a
ir lá fora. Mas ele apenas se aventurava uns metros, depois agachava-se, de barriga no chão, com as orelhas empinadas, olhos penetrantes, como um soldado que entra
em território inimigo e precisa de ter todos os sentidos alerta. Ao menor ruído, ele precipitava-se para mim e a única maneira de evitar que as suas garras tipo
agulhas se espetassem na minha saia, deixando imensas alfinetadas numa linha transversal que mostrava o percurso por onde ele tinha trepado, era estar preparada,
agarrá-lo rapidamente e sentá-lo em cima do ombro.
Era também fatal para as meias e eu praticamente deixei de usar saias. Usava sempre calças de desporto. É mais barato para quem tem gatos ou cães e muito
mais confortável. Mesmo com as calças, as garras do Kym ainda penetravam.
Os vizinhos, os amigos e os vendedores habituaram-se a ver-me abrir a porta com um gatinho vociferante sentado, como um ajudante de feiticeira, de focinho
encostado à minha cara, fazendo os possíveis por interromper a conversa. Ainda era melhor a cortar as chamadas telefónicas. Detestava o telefone. Era óbvio que achava
ridículo ver-me a falar com aquele bocado de plástico sem ninguém à volta a não ser ele. De certeza que eu só podia estar a falar com ele e então tentava fazer com
que eu tivesse um ar menos absurdo respondendo a tudo o que eu dizia antes do meu interlocutor poder fazê-lo.
Numa ocasião memorável, o meu marido telefonou-me a pedir o número do passaporte pois tinha de ir ao estrangeiro. Fui procurá-lo e deixei o Kym sentado no
parapeito da janela ao lado do telefone. Do outro lado da linha Kenneth comentou qualquer coisa com a secretária. O Kym reconheceu-lhe a voz, enfiou uma pata hesitante
no auscultador, inclinou o focinho e disse "Waugh" tão claramente que o meu marido respondeu "Olá doido", o Kym respondeu e eles tiveram uma conversa hilariante
até eu chegar e os ter ouvido. Pode parecer pateta falar ao telefone com um gato mas quem conhecesse o Kym teria de admitir que ele era esse género de gato.
O Kym e eu em breve encetámos um conflito de interesses. O nosso primeiro embate deu-se num belo dia cheio de sol quando eu estava a plantar urzes no nosso
jardim de pedras. Logo que eu plantava uma urze o Kym tirava-a cá para fora em marcha triunfal e passeava-a pelo relvado. Eu recuperava a planta, voltava a plantá-la
até que finalmente perdi as estribeiras e dei-lhe uma sapatada forte nas patas.
Ele bufou-me e arranhou-me e nessa altura eu assumi a condição de mãe-gata e bati-lhe nas orelhas. Ele reconheceu a disciplina de imediato. Nenhuma fêmea
permite que as suas crias tomem liberdades e agora ele sabia que quem mandava era eu. Veio para o meu colo, enroscou-se, lambeu-me a mão e começou a ronronar muito
arrependido. O resto da urze foi plantada sem qualquer problema.
Isto nem sempre resultou.
Ele era o gato mais persistente que jamais conheci, mesmo para um siamês. Agora tenho mais dois mas nenhum é tão teimoso como o Kym. Quando o ignorava ele
inclinava-se para a frente e tentava enfiar-me a pata na boca provavelmente por pensar que isso me faria falar. As bocas abertas articulam palavras e as palavras
tinham muito significado para aquele gato. Adorava-as. Chegava mesmo a perceber algumas delas como "comida", "jardim" e "anda", mas custou-lhe muito a aprender a
respeitar a única palavrinha que é importante para todos os animais, tanto os humanos como os outros: "Não!"
3
O Kym aprendeu cedo a arte da chantagem. Se lhe recusava o colo por estar ocupada ou se lhe recusava comida por ainda não ser a altura, atacava aquilo que
obviamente pensava ser o nosso bem mais querido: o nosso enorme cadeirão que tem um forro ao qual nenhum gatinho resiste para nele aguçar as unhas. O NÃO imperativo,
sinal de que estava a ser visto, era tudo o que ele queria. Só queria que lhe dessem atenção. Às vezes sentava-se ali, de pata erguida, a olhar para mim e eu fingia
que não via. Não fazia qualquer tentativa para arranhar até eu olhar para ele. Logo que tal acontecia, punha a pata em posição e recebia logo um grito de "Não. Gato
mau. Não."
Nessa altura, tendo alcançado o seu objectivo, passava-se para o parapeito da janela com um ar muito presunçoso. E ficava a olhar dali, ostensivamente, como
quem diz: "Também nem sequer o ia fazer!"
Nunca conseguimos que ele deixasse de usar o tapete do fundo das escadas como o seu poiso predilecto para aguçar as unhas. Tinha uns blocos e uns troncos
para o efeito, mas o fundo das escadas, sempre que não estávamos em casa, era um sitio onde ele podia estar deitado de lado, raspando com as patas traseiras e aguçando
as da frente. Um tapete roçado no fundo das escadas tornou-se uma peça obrigatória da casa enquanto o Kym foi vivo. Substituímo-lo várias vezes, mas nunca conseguimos
emendar o Kym. Os meus actuais gatos são angelicais no que respeita a aguçar as unhas; usam sempre umas protecções e nós agora temos uns tapetes muito respeitáveis.
Também rasgava o papel da parede e, se o castigava, sacudindo-o ou ralhando-lhe, ele fugia para a parte de cima da cornija da lareira e, propositadamente,
ia empurrando os meus bibelots, deitando-os ao chão e ficava deliciado a vê-los partirem-se. Olhava então para mim, satisfeito, à espera da minha reacção. Movia-se
tão depressa que eu nunca consegui apanhá-lo a tempo e acabámos por substituir todos os nossos bibelots por outros em madeira que, se caíssem, não partiam. Ainda
hoje os temos. Sempre que os limpo penso em Kym, sentado na cornija da lareira a vê-los cair. Nunca sabíamos quando é que ele se predispunha a espatifar as minhas
coisas, aparentemente para me castigar por eu o ter apanhado nalguma malvadez que acabara de inventar.
Era impossível ignorá-lo. Se o punha fora de um quarto, era certo e sabido que não conseguia suportar o chinfrim que ele fazia pois não se acalmava até eu
lhe abrir a porta e o deixar entrar. Tinha uma voz fortíssima, o que fez com que uma vizinha uma vez me citasse um provérbio que rezava assim: "um gato normal é
capaz de acordar o dono mas um siamês é capaz de acordar a morte". Ela não gostava nada de siameses.
O Kym também não gostava que o pusessem no chão. Mesmo quando já grande e pesando sete quilos, trepava ou saltava para cima de mim, quase me atirando de
cangalhas quando saltava comigo em movimento e não acertava lá muito bem.
Enquanto eu descascava batatas, lá se punha ele em cima de mim, e sempre com comentários. Enquanto fazia as camas, a mesma coisa. Sentava-se-me no ombro,
a soprar para o meu ouvido, intervalando a conversa com umas lambidelas que faziam umas cócegas horríveis e me apanhavam sempre desprevenida. Adorava lavar-me e,
sempre que acabava a sua própria toilette, operação meticulosa e sempre feita à noite, ao meu colo, por volta das nove, lambia-me as mãos e a parte dos braços que
não estivesse coberta, depois punha uma pata em cima da minha mão e ria-se para mim. Isto queria dizer que chegara a altura de lavar a cauda que eu então segurava,
já que ela costumava enrolar-se fora do seu alcance o que o irritava muito. Era uma cauda especialmente incontrolável, segundo parecia, e nem sempre fazia aquilo
que ele queria. Ele adorava quando eu tentava agarrá-la para logo a enroscar longe de mim.
A vida do Kym fora de casa era uma grande aventura. Achei muitas vezes que ele tinha as mesmas tendências dos meus filhos que se deliciavam a contar-me como
tinham escapado por um triz das rodas de um carro, de uma bicicleta, de um camião ou como quase haviam caído da maior árvore do mundo que, por acaso, estava no pátio
onde brincavam e era uma grande tentação para as crianças aventureiras.
De certeza que a vida do Kym também era assim já que lhe aconteciam sempre muitos azares. Havia a rua, que ele aprendeu a atravessar como uma seta. Tentei
muitas vezes que ele se confinasse ao nosso quintal das traseiras mas por detrás das casas, no outro lado, havia campos e uma imensa quantidade de animaizinhos.
Por entre as casas da frente há um caminho que acaba num degrau. Ainda se pode ver um restinho dos campos mas agora há uma nova urbanização que está a tapar
o nosso último espaço selvagem. Pouca gente se apercebeu de como era selvagem. Eu própria não sabia até ter de me enfiar por entre as ervas altas, à procura do Kym,
no sítio onde o gado pastava.
Encontrava aí um território mesmo à sua feição. Havia agriões dos prados que floresciam profusamente na Primavera e os ratitos escondiam-se logo que ouviam
os seus passos. As pegas faziam ninho nas árvores altas e tagarelavam quando o ouviam chegar. Observava todos os movimentos bruscos por debaixo das ervas. Às vezes
aparecia uma doninha, que passava de repente em busca de um esconderijo e desaparecia num ápice. Logo a seguir, o gato entretinha-se em volta de um outro montículo
de erva onde um rato tremia de medo. Não por muito tempo. O Kym era um exímio caçador de ratos embora raramente os matasse. Trazia-os para casa, orgulhoso, e eu
tirava-lhos, elogiava-o, metia-o dentro de casa, dava-lhe de comer e voltava a ir pôr os ratos no campo esperando que eles conseguissem recuperar o caminho de volta
para as suas tocas. Eram ratos do campo e não representavam qualquer ameaça para nós.
Havia coelhos que por vezes saltitavam pela rua abaixo de manhã cedinho, antes de aparecerem os carros em altas velocidades que os assustavam, e sentavam-se
no nosso jardim.
Às vezes, quando a erva estava crescida no terreno das traseiras dos vizinhos onde andavam os setters ingleses, as espigas maduras caíam convidativas sobre
a nossa cerca. Ouvia-se então um chick chick agudo de raiva vindo do gato, sentado àjanela, de olhos fixos, rangendo os dentes em fúria, quando os coelhos se erguiam
nas patas traseiras e puxavam as sementes suculentas para as comerem. Ficavam espantosamente compridos quando se punham assim esticados e nem o Kym nem eu nos mexíamos
até eles acabarem, embora ficássemos ali por razões diferentes.
Depois de eles se irem embora, eu deixava-o sair e ele calcorreava o relvado a cheirinhar o chão por onde eles haviam passado, claramente a aprender tudo
sobre eles.
O gato amarelo dos vizinhos, o Marmaduke, era um grande caçador de coelhos e eu pensei que o Kym havia de ser igual. O primeiro encontro fora de portas do
Kym com um coelho bravo deu-se quando ele era ainda pequeno. Um coelho chegara ao nosso jardim e deitara-se à sombra debaixo da ameixoeira. O Kym tinha acabado de
sair cá para fora. Brincava com uma folha rodopiando e serpenteando, saltitando e volteando, naquela dança de duende que sempre me fascinava tanto e me fazia esquecer
o que estava a fazer, e ficava ali a vê-lo a divertir-se como só o fazem as crianças e os animais pequenos, absorvidos pelo presente, sem pensarem no futuro e apenas
com uma leve memória do passado.
Kym viu o coelho no momento em que este o viu. Era um animal magnífico, adulto e muito grande. Sentou-se, de costas para o gato, olhando-o por cima do ombro
com uns olhos curiosos. Nunca devia ter visto um gato siamês, já que nessa altura o Kym era o único nas redondezas. Estava agora mais crescido, com umas longas patas
escuras, uma comprida cauda escura, um focinho escuro e uns olhos tortos azuis que preocupavam o nosso médico que lhe queria corrigir o estrabismo. Aqueles olhos
iriam levar-me, muitos anos depois, a um dos encontros mais estranhos da minha vida.
O Kym viu o coelho e sentou-se, sem saber o que fazer com aquela enorme fera. Sem saber sequer se era um coelho já que os que vinham mordiscar as
ervas eram muito mais pequenos - provavelmente teriam nascido nesse ano, ainda eram novinhos. Aquele era o Pai, imenso, majestoso, um coelho capaz de acabar com
todos os coelhos.
E aquele Pai sabia de gatos. Continuou a olhar, pronto a fugir se surgisse qualquer tipo de ameaça daquele bicho muito mais pequeno no outro extremo do relvado.
O Kym virou-lhe as costas e sentou-se, aparentemente a pensar. Lambeu uma das patas traseiras, com toda a cautela, de uma ponta à outra, esticando-a no ar e examinando-a
meticulosamente.
Entretanto ia espreitando por cima do ombro.
O coelho, claramente intrigado, espreitava por cima do seu ombro.
O Kym mordiscou freneticamente algo que lhe fazia comichão e começou a bater com a cauda. Talvez que se ele fingisse que o coelho não estava ali,
este se fosse embora. Afinal de contas aquele jardim era dele. O coelho voltou a virar-lhe as costas e ficou a olhar para o horizonte.
O Kym pôs-se a lavar a outra pata.
Muito lentamente, como quem não consegue resistir à tentação, virou de novo a cabeça e descobriu que o coelho também voltara a cabeça para ele. Como que
enfeitiçados, ficaram a olhar um para o outro.
Por essa altura eu já me esquecera totalmente da lida da casa, servira-me de uma bebida fresca e sentara-me no parapeito da janela para ver o que ia acontecer.
Ambos os bichos continuaram a vigiar-se intermitentemente durante quase quarenta minutos. Nenhum deles se mexia do sitio onde se sentia à vontade e em segurança.
Aquilo parecia que ia durar todo o dia. Estava quase a concluir, com relutância, que seria melhor voltar ao meu trabalho, quando ambos os bichos, como a um sinal,
começaram a movimentar-se em direcções opostas.
O coelho avançou com saltos longos e vagarosos. O Kym esgueirou-se, com a barriga praticamente a roçar o chão, até virar a esquina da casa, e então desatou
numa correria desenfreada, entrou pela porta adentro, saltou para cima da mesa e depois para o meu ombro e desatou numa longa e complicada ladainha sobre o que se
tinha passado e como ele tinha visto aquele animal gigantesco e como ficara sentado a olhar para ele.
Sabendo o que sabia, era impossível não perceber que ele estava a fazer um relato circúnstanciado do que se passara no relvado. A voz dele subia e descia,
suave e logo de seguida aguda, e depois exclamatória até eu não poder mais de riso, e então saltou do meu ombro para o parapeito da janela e ali ficou, de costas
voltadas para mim, com a cauda batendo de frente para trás, completamente enraivecido comigo por eu ter ousado rir-me dele.
Encontrou outras coisas no campo. Havia uma lebre com lebrachos embora, felizmente, ele nunca os tivesse apanhado. Estavam sempre bem escondidos mas se me
sentasse e ficasse a observar a mãe era-me normalmente fácil perceber onde é que ela pusera os filhotes. Estavam sempre cuidadosamente separados. Se um dos ninhos
fosse atacado, os outros sobreviviam. O salto que ela dava quando saía dos ninhos era espantoso, um longo salto que eliminava o seu cheiro de modo a despistar quaisquer
cães que a seguissem. Uns anos mais tarde acabou por entrar no Tbe Hare atDark Hallow e nojackanoy.
Havia toupeiras, musaranhos e ratazanas. Havia pássaros. O Kym adorava trazer-me presentes. Habituei-me a tirar-lhos e a soltá-los quando não estavam feridos.
Raramente matava a presa, excepto as toupeiras que apareciam invariavelmente mortas. Talvez lhe resistissem; ou então ele as encontrasse quando já estavam a morrer
em virtude das atenções de algum caça-toupeiras.
Punha sempre o Kym dentro de casa antes de soltar as suas presas. Uma hora mais tarde, lá saía ele para ver se ainda estavam no lugar onde as deixara. Nunca
estavam. Descobri que os animais que ele matava estavam quase sempre feridos e penso que os outros estariam doentes. Matou um melro que só tinha uma pata e que estava
esfaimado; e um tordo que tinha um enorme tumor a retesar-lhe as costas de modo que não conseguiria alimentar-se. Outros animais tinham por vezes antigas feridas
e portanto penso que os gatos, tal como os outros predadores, fazem a selecção natural, eliminando as criaturas doentes do ciclo da criação, melhorando assim a raça.
Por muito que isso nos desagrade, acabamos por nos habituar. É uma coisa natural. Se ele apanhava um pássaro são, eu punha
-o sempre bem alto em cima da nossa mesa dos pássaros, rodeado de grandes quantidades de comida silvestre de pássaro. A presença de outros pássaros que vinham comer
parecia ser um óptimo antídoto para o choque. O pássaro comia, invariavelmente, durante uns trinta minutos e depois voava.
Os pássaros espertos nunca eram apanhados pois apercebiam-se quando o gato se aproximava deles. Eu costumava dizer aos meus amigos que vinham tomar um café
(depois do almoço já que as minhas manhãs são sempre passadas à frente da máquina de escrever), "Só um minuto. O gato vem aí", saia da sala e abria-lhe a porta.
Foi só quando uma das minhas amigas mais chegadas se desesperou e me disse que ela e toda a gente que eu conhecia achavam aquilo um truque esquisito e muito
bizarro, que se coadunava com o meu costume de bruxa de andar com o Kym ao ombro, que eu me apercebi de como são poucas as pessoas que estão conscientes do que se
passa à sua volta.
Para mim era tão óbvio que não conseguia perceber como é que eles também não sentiam o mesmo.
Contudo, quando tentei explicar-lhes, ainda foi pior a emenda do que o soneto.
Os pássaros tinham-me avisado.
Os pássaros?
Os pássaros são uns óptimos guardas no que se refere a animais selvagens. Quando ouvia aqueles primeiros gritos aflitos de "gato, gato, gato" lá longe, do
outro lado dos campos isso queria dizer que o Kym andava na caça.
Depois, os gritos aproximavam-se. As pegas palravam no enorme vidoeiro que se encontrava no meio do terreno; os tordos que faziam ninho na sebe transmitiam
o aviso; o papo-roxo juntava-se-lhes com o seu agudo grito de alerta quando o Kym se aproximava da arrecadação onde o papo-roxo e a sua companheira escondiam os
filhotes; e depois ouviam-se os gritos dos tordos vindos do loureiro que se encontrava no jardim da frente do outro lado da nossa casa.
Então os meus pássaros desatavam a gritar em altos berros e cheios de fúria, ensurdecendo-me com o seu barulho. Diziam-me tão claramente quanto se me estivessem
a falar na minha própria linguagem que o Kym estava a virar a esquina da casa em frente, vinha a atravessar a rua, subia a rampa do nosso jardim e parara à porta
de casa.
GATO, GATO, GATO.
Não podia ser mais claro.
Sempre que ele aparecia, eu saía e metia-o em casa. Se ele andasse à caça dos pássaros no relvado, ainda o metia mais rapidamente em casa. Umas semanas depois,
desde que o Kym começara a sua vida de caçador, o gato e eu passámos a ser identificados como uma só entidade pelos pássaros. Se eu aparecesse era quase certo que
o Kym também apareceria, quer vindo de casa, quer correndo ao meu encontro vindo algures do jardim.
Os avisos começavam imediatamente, mal eu aparecia, mesmo quando o gato não estivesse por ali. Éramos inseparáveis e eu era, como é óbvio, igualmente perigosa.
O mesmo acontecia com um falcoeiro que muitas vezes caçava naquele sitio; os pássaros começavam a gritar não quando o falcão aparecia mas logo que a carrinha dele
surgia. Em breve deixou de ser possível caçar ali; todos os pássaros desapareciam antes de o falcão estar preparado.
Os nossos pássaros mantinham-se ali desde que o gato não aparecesse na árvore.
Agora nunca se manifestam já que os meus dois siameses azulados, a Chia e o Casey se encontram enjaulados numa enorme cerca feita para os cães. Não aguentaria
os problemas que tivemos com o Kym multiplicados agora por dois. Os pássaros ignoram os cães. Eu já não represento qualquer ameaça e já nenhum pássaro me grita.
Uma vez em casa, o Kym divertia os meus convidados, andando de um lado para o outro, de olhos tortos,coma cauda a abanar, declamando em altos brados com
a segurança de um actor nato. Depois de nos informar sobre as suas aventuras, saltava para o meu cólo e, com um suspiro de contentamento, começava às voltas até
se instalar confortavelmente e desatava a lavar-se, com toda a delicadeza, inspeccionando cada pata e mordiscando entre os dedos. Exausto, enroscava-se para dormitar,
começando por colocar pesadamente a pata na minha mão para ter a certeza de que eu não me punha a fazer malha. Ele detestava que eu fizesse malha.
Finalmente, depois de inúmeras batalhas nocturnas durante as quais ele puxava a lã das agulhas ou começava a brincar com ela até eu deixar cair uma malha,
desisti e tornei-me numa ardente devota do St. Michael. Nunca gostara de fazer malha, mas a minha mãe e a minha sogra faziam-me sentir tão culpada por eu não me
meter a fazer essas actividades caseiras que acabei por experimentar. Os meus filhos suspiravam sempre que tinham de enfiar mais uma roupinha mal amanhada e rejubilaram
quando eu finalmente desisti.
Continuei a fazer roupa durante mais alguns anos até que a minha filha foi a uma festa e ao chegar a casa me disse com um ar tristonho:
- Dás-me um vestido como deve ser, comprado na loja, para a próxima festa?
Felizmente também me deixei disso. Agora tinha tempo para escrever com a consciência tranquila. O Kym aprovava essa actividade já que podia enroscar-se no
meu colo ou deitar-se ao lado da máquina de escrever ou ainda sentar-se no armário e, de vez em quando, presentear-me com as últimas novidades felínicas.
Aos oito meses era muito mais independente. Mas ainda precisava que o protegessem do Dusky, o gato do vizinho.
O Dusky era um enorme gato persa que durante alguns anos se apropriara do nosso jardim. Era um gato muito digno e ficou espantado quando eu apareci com um
diabito estridente, que nem sequer tinha ar de gato, nem sequer soava a gato e também não cheirava a gato. Era muito fácil para o Dusky fazer-se caro já que era
vinte vezes maior do que o meu gatinho e bastava-lhe eriçar o pêlo, que era imenso, para imediatamente o pôr a milhas. Nessas alturas emitia um agudo miado.
Com todos aqueles miados do Dusky e os gritos do Kym queixando-se de que o Dusky vinha atrás dele e que por favor o ajudasse, era muito dificil ignorar os
gatos. De vez em quando o meu gatito irrompia cozinha adentro, pela janela em vez da porta, e aterrava em cima da mesa. Uma vez eu estava a fazer uns bolos e o Kym
aterrou em plena taça numa explosão de farinha, o que muito desagradou a ambos.
Ainda pior do que o Dusky era o Beagle. Esta zona há anos que tem vindo a ser dominada por uma sucessão de beagles vadios, provavelmente todos pertencendo
à mesma família, embora eu não tenha bem a certeza disso. Andam por onde lhes apetece, saindo de manhã para espalharem a confusão, obrigando os gatos a treparem
pelas árvores acima, perseguindo outros cães, importunando as cadelas com o cio, entrando pelos jardins adentro onde comem a comida dos pássaros e deixando recordações
desagradáveis no relvado ou na entrada.
Um dos hábitos mais aborrecidos que têm é o de perseguirem os gatos. É evidente que eles são educados para a caça e portanto andam à caça. O beagle que foi
contemporâneo do Kym corria atrás das rapariguinhas quando não tinha gatos por perto. Mas do que ele mais gostava era fazer um desvio para passar pelo nosso jardim
e correr atrás do Kym. Não havia cerca que o impedisse. Saltava por cima dela ou então atirava-se contra a cerca, pois era um cão pesado, fazendo-lhe mais um furo.
Eu gosto de quase todos os cães mas acabei por detestar o Beagle e todos eles. Nunca ninguém lhes ensinou o NÃO.
Normalmente o Kym arranjava maneira de chegar a casa, mas nem sempre. Corria para cima das árvores. Uma vez foi-se espetar em cima de um poste dos telefones.
Foi uma manhã e pêras. Andavam uns homens a arranjar o poste seguinte e tentaram, com todo o cuidado, ir buscar o meu gatito.
Ele subiu mesmo até ao cimo e desatou a berrar:
- Querem-me levar!
Eu corri para fora de casa com um prato de peixe.
- Não lhe toquem, é mau - disse um homem grande enquanto chupava uma arranhadela na mão.
Bati com o prato contra o poste. O Kym desceu, deslizando a maior parte do percurso e emitindo um ronco agitado como que uma sirene de alarme em miniatura.
Aterrou no meu ombro transformando-se, para grande espanto dos homens, num gato ronronante, a derreter-se todo, cheio de obrigado-por-me-teres-salvo e de adoro-te.
- Estava assustado - expliquei eu, o mais dignamente que me era possível com aquele prato de peixe numa mão e um gatito a esfregar-se-me na cara, em equilíbrio
no meu ombro, seguro pela outra mão.
Quando nos afastámos, com o Kym em altos brados gritando que nem um ardina as Últimas Noticias, os homens ficaram boquiabertos.
Nunca gostava de deixar o Kym sozinho quando saía durante o dia. Havia sempre alguma coisa que corria mal. Uma vez cheguei a casa e fui encontrá-lo, muito
infeliz, deitado no meio da alfazema com uma tira de pêlo e pele de cerca de quinze centímetros de comprimento e três centímetros de largura arrancada das costas.
Foi uma ferida que me confundiu a mim e ao veterinário. Podia ter sido feita por um cão, mas era muito grande. Durante anos suspeitei que fora um vândalo qualquer
até falar nisso a um outro veterinário amigo. Ele vira uma ferida semelhante num gato que fora atropelado por um carro; ficara preso numa coisa qualquer que havia
debaixo do carro que lhe provocara aquele ferimento.
Para além dos ferimentos eventuais, se eu ia às compras e o Kym estava no jardim, havia sempre de arranjar uma maneira de eu não ir sozinha. Aparecia de
repente uma sombra pequenina por detrás da última casa da rua e saudava-me efusivamente. Correra através dos jardins sem que eu o tivesse visto. Então saltava-me
para o ombro e íamos assim até casa.
É claro que isto não dava jeito nenhum e eu tinha de voltar acasa, meter o Kym lá dentro e recomeçar tudo de novo. Os vizinhos que não me conheciam devem
ter pensado que eu era louca. Mas quando se tem um siamês, não há nada a fazer. Se lhe apetecia andar no meu ombro, andava no meu ombro. O meu gato actual, o Casey,
só se consegue tê-lo ao colo quando ele quer mas a Chia, essa adora andar em cima dos ombros. Ela também é um caso perdido.
Podia ralhar à vontade com o Kym, mas ele voltava sempre ao mesmo.
Tinha de arranjar uma maneira de o meter em casa, senão perdia muito tempo a correr atrás dele, à procura por entre os arbustos e nas árvores e a chamá-lo,
coisa aliás que não resultava pois se ele não quisesse, não aparecia.
Foi por acaso que descobri uma maneira de o meter em casa. Ele tinha o costume de aparecer como por magia logo que eu lhe punha comida no prato. Percebi,
depois de muito matutar, que era um prato de esmalte e que o seu ouvido apurado detectava o barulho do garfo ou da faca no metal.
Nessa altura não me apercebi que podia usar este estratagema. Um dia estava a bater ovos (para um bolo) numa taça de metal. O Kym apareceu, todo excitado,
certo que eu estava a chamá-lo para comer e ficou tão furibundo por ver que se tinha enganado que tentou roubar-me os ovos. Dei-lhe um bocadinho de peixe e pu-lo
outra vez lá fora sem perceber por que é que ele tinha entrado.
Recomecei a bater os ovos e dessa vez ele entrou ainda mais depressa, certo de que eu me enganara e que afinal estava a preparar-lhe a comida.
A partir daí, sempre que queríamos chamar o Kym, batíamos com um garfo no prato. O som era suficiente para o fazer aparecer em grande correria, com as patas
a andarem tão depressa que pareciam cruzar-se. Era a única vez em que ele perdia a dignidade. Muitos dos nossos vizinhos mais afastados devem ter-se admirado com
aqueles toques frequentes vindos do nosso jardim, assim como os dos parques de campismo que se encontravam demasiado longe para verem o gato aparecer, convocado
como o génio da lâmpada por aquele barulho.
Dava-lhe frequentemente pequenas porções, várias vezes ao dia, pois era melhor saber que ele se encontrava a salvo dentro de casa. Isto foi particularmente
assim quando ele começou a crescer já que se vingou por tudo o que sofreu quando ainda gatinho, tornando-se o rei da rua, insistindo que aquele território era todo
seu e perseguindo os gatos dos vizinhos, hábito aliás que não o tornava lá muito popular embora os respectivos bichos lhe tivessem feito a vida negra quando ele
era pequeno.
A única defesa do Kym, ainda gatinho, era lançar um grito feroz, um guincho esquisito que bastava para assustar qualquer gato intruso que pensara estar a
lidar com uma vítima fácil.
Não tardei a descobrir que se mistifica tanto o gato siamês como, por exemplo, o ter bebés. Disseram-me que são excepcionalmente delicados (os gatos, não
os bebés; estes sofrem de outras particularidades que todos os que visitam as grávidas tão bem conhecem). É raro o frágil siamês sobreviver às primeiras semanas
e portanto, logo que o Kym ficou doente, toda a gente me avisou. É um ser delicado, só consegue engolir coisas como galinha, rodovalho, linguado e, provavelmente,
solha cozida.
Quando sobrevive e chega a jovem, torna-se bravio, indomável, capaz de arranhar os olhos das crianças, esgadanhar a mobilia e despedaçar os cortinados. Faz
também um ruído desagradável, rouco e contínuo.
Eu adoro esse ruído. E também tinha a certeza de que seria capaz de domar um gatinho. Era tudo uma questão de treino; há coisas que se podem ensinar a um
gato mas há poucas pessoas que realmente tentam treiná-los. Todos os meus gatos compreendem o NÃO. E isso dá para muita coisa. A Chia e o Casey também percebem e
respeitam o FORA, que uso sempre que eles entram na despensa ou na sala com as nossas belas cadeiras.
O Kym sobreviveu à sua primeira doença.
Fazia realmente aquele ruído, mas era extremamente meigo não obstante a aparente ferocidade dos seus comentários. Tínhamos brincadeiras diárias, a maior
parte das quais inventadas por ele. Uma das suas favoritas era ajudar-me a fazer as camas. Isto significava que o fazer as camas demorava cinco vezes mais do que
o habitual. O ritual era sempre o mesmo. Todos os animais e muitos humanos adoram os rituais já que estes conferem uma certa ordem a um mundo desordenado.
As brincadeiras começavam com o Kym sentado na cama, de olhos semicerrados, com um ar grave, resmungando algo entre o uivo e o ronronar, até eu perceber
o que ele queria e pousar a mão sobre a sua testa. Ele puxava as orelhas para trás e aconchegava-se à minha mão. Quando eu me começava a fartar daquilo, ele rebolava,
apanhava-me o pulso com a boca e mordiscava-o suavemente, dando pancadinhas com as patas traseiras, de garras recolhidas.
Agarrava-me firmemente os braços com as patas dianteiras que pareciam de veludo. A principio, enquanto ainda pequeno, ficava por vezes superexcitado e desatava
a gritar e a saltar à doida. À medida que foi crescendo, foi aprendendo a controlar-se e a brincadeira acabava com ele enroscado contra mim, ronronando, deliciado
com aquele contacto e esfregando o focinho felpudo na minha cara.
Só então é que começava a actividade de fazer as camas. Tive muitas vezes que voltar a desfazer a cama pois ele, que gostava de se esconder enquanto eu o
procurava, enfiava-se pelo outro lado e ali ficava acocorado no fundo da cama ou então metia-se lá para dentro sem ninguém ver e, aparentemente, desaparecia e eu
andava por toda a casa à procura dele até descobrir aquela protuberância suspeita e quente debaixo dos cobertores.
Por vezes punha-se simplesmente a saltar e desatava numa dança maluca à volta da cama, por debaixo do cobertor a tentar apanhar-me a mão e atirando-se sempre
que eu entalava a roupa. Eu detesto fazer camas mas não há dúvida que o Kym dava uma certa vida a essa actividade e tudo acabava normalmente com uma traquinice desenfreada,
com ele a desaparecer e a reaparecer para implicar com o que eu tivesse então na mão.
Ele ficava à espreita para ver quando nos levantávamos. Dormia na cozinha que era bastante quente já que a lareira ficava acesa durante toda a noite. Tinha
a cama num dos cantos com o caixote de areia de emergência debaixo da mesa. Nunca tínhamos a certeza se ele conseguira resolver todas as necessidades durante a tarde
e portanto era melhor prevenir do que remediar. O caixote é fácil de limpar e os gatos respeitam-no. O Kym nunca fez nada dentro de casa.
Um dia vomitou na entrada e isso aborreceu-o muito. Eu estava a tomar banho. Ele correu escadas acima, pôs-se nas patas traseiras e tentou puxar-me da banheira
para fora. Finalmente, percebendo que ele tinha algo de urgente a comunicar-me e que talvez precisasse de ir lá fora, vim cá abaixo e vi toda aquela porcaria no
chão da entrada. Uma vez limpo, ele acalmou; eu cumprira a minha tarefa e podia acabar o meu banho e ele retomaria a sua soneca. Tinha andado a comer ervas e eu
metera-o dentro de casa antes de ele ter tempo de as deitar cá para fora. Os bichos fazem isso para se purgarem. Não tem nada a ver com má alimentação nem com doença.
Nos animais selvagens funciona como uma desparasitação.
O Kym nunca mordia mas não permitia que ninguém lhe pegasse sem ele querer. Empoleirava-se lá no alto, olhando desconfiado para as pessoas até ter a certeza
de que eram amigáveis. No que toca aos meus amigos, concedia-lhes o privilégio de se sentar ao seu colo, algo que não era lá muito apreciado por quem não gostava
de gatos, mas o Kym ignorava alegremente tal facto.
Mary, que vive no outro lado da rua, é alérgica a gatos. Por uma razão qualquer que só o Kym sabia bem, este escolhia sempre a sua soleira para apanhar sol
e utilizava o jardim dela como um atalho para ir para o campo lá atrás. Teve portanto várias aventuras já que insistia em usar esse jardim como passagem.
Uma vez, tinham atado algodão preto para afastar os pássaros do açafrão que haviam profusamente plantado em grandes e belos tufos de cada lado de umas escadas
de pedra que davam para o relvado. Os gatos não deviam ver o algodão preto pois o Kym tropeçou, deu uma cambalhota pouco digna e aterrou na relva, onde ficou sentado
a olhar para todo o lado furioso e tentando esconder a sua atrapalhação.
Isso não o impediu contudo de voltar a utilizar o jardim. Havia outros gatos que também o usavam como passagem para os campos e um dia a Mary encontrou-me
e disse:
- Viu por aí um gato pelado e amarelo? O Kym andou àbulha com ele no meu jardim. Venha cá ver.
Era impossível que um gato tivesse perdido tanto pêlo e não ficasse todo pelado mas, quando olhei para o açafrão que nos rodeava, parecia intacto. O Kym
tinha uma mordidela no ombro. Daí a alguns dias esta transformou-se no primeiro dos muitos abcessos que nos iriam levar frequentemente ao veterinário e pelos quais
o Kym viria a ser apelidado de "o brigão da rua". Em breve viemos a ser muito conhecidos já que esses abcessos precisavam, invariavelmente, de ser lancetados e injectados
com antibióticos para os desinfectar. Não sei como mas o Kym era sempre mordido em sítios que não se viam até infectarem e por mais cuidado que eu tivesse a examiná-lo
depois de uma bulha, nunca conseguia encontrar senão umas arranhadelas.
Cheguei mesmo a suspeitar que o Kym tinha um sentido de humor assaz estranho pois muitas vezes, depois de uma bulha que parecia uma luta entre dois demónios
furiosos, com uma gritaria capaz de acordar os mortos, descobria que ele voltara para o mundo, quer para o jardim da Mary (aparentemente determinado a fazê-la mudar
de opinião sobre os gatos, embora o fizesse da maneira mais errada possível), quer para a rua, sem responder aos nossos apelos, e ficando por lá tanto tempo que
nós pensávamos que fora dessa vez que tivera uma bulha de morte, ou que fora atropelado ou roubado. Isto é outra coisa que acontece aos gatos siameses, segundo dizem,
embora eu pense que se alguém tentasse roubar o Kym havia de passar por um mau bocado e não conseguiria aguentá-lo depois com toda aquela parlapatice tão típica
dele.
Quando pensávamos que nunca mais o veríamos, ele aparecia, com um olhar feroz, saudando-nos efusivamente e admirado por termos andado à procura dele.
A sua proeza favorita era trepar para a macieira lá no fundo do quintal. Ficava ali sentado, com um ar patético, perdido, preso. Subir era fácil, segundo
o que ele parecia explicar-nos, mas descer era diferente. Era como se nos censurasse por sermos tão lentos e o deixarmos ali quando o que ele queria era estar ao
pé de nós cá em baixo.
Quando as crianças estavam em casa corriam sempre em seu socorro; trepavam à árvore e entregavam-mo com todo o cuidado e ele então aconchegava-se no meu
ombro, grato por mais uma vez ter sido salvo.
Então um dia, depois de ter sido salvo duas vezes, os meus filhos saíram para lanchar. Por estranho que pareça, ele raramente subia à árvore quando eu estava
sozinha. Estava a falar ao telefone quando ouvi uns miados angustiados e percebi que ele estava outra vez preso. Nesse momento não podia fazer nada.
Desliguei o telefone e, surpreendentemente, os lamentos pararam. Pensei que tinha caído e, o que é raro em gatos, se tinha magoado a sério. Não havia qualquer
outra explicação para aquele silêncio já que normalmente ele gritava até alguém aparecer.
Fui ao quintal.
Então vi o meu gatinho, suave e com toda a mestria, como quem já fez aquilo para aí umas cem vezes - o que provavelmente teria acontecido - a descer pela
macieira abaixo. Ele viu-me e estacou, a uns centímetros do solo e recomeçou a miar. "Estou preso, Estou preso".
Ri-me tanto que ele ficou furioso. Saltou os centímetros que lhe restavam e encaminhou-se todo emproado para casa e ficou sentado durante toda a tarde de
costas voltadas para mim com a cauda a abanar furiosa e ritmadamente. À hora de se deitar já me tinha perdoado e já estava a ronronar no meu colo, ajudando-me a
ler.
Isto era um exercício habitual e praticamente inútil já que a sua ideia de ajuda era pura e simplesmente não me deixar mudar de página, certo de que haveria
uma maneira muito mais agradável de lidar com mais uma dessas actividades humanas tão bizarras. Isso fazia com que eu não lhe desse atenção e aborrecia-o quase tanto
como o telefone. Os meus cães miram cheios de interesse o meu livro, cheiram-no e depois afastam-se enojados. Ponho-me muitas vezes a cogitar sobre o que é que eles
pensarão das actividades dos humanos. Um animal vive a sua vida numa permanente aura de mistério insondável, de acordo com regras que jamais compreenderá. Deve ser
parecido com aquilo que sentimos quando estamos isolados num outro país, com etiquetas desconhecidas e sem intérprete, tendo de obedecer pois seríamos castigados
se assim não fosse.
Escrever cartas ainda era pior do que ler livros, na opinião de Kym, mas propiciava possibilidades mais interessantes. Podia brincar com as canetas; podia
roubá-las e escondê-las; podia fazer rabiscos com elas. Isto era particularmente interessante já que me levava a dizer-lhe algo. Pouco importava que esse algo fosse
em tom zangado. O importante é que não o ignorava. Eu sabia que ele estava ali e dava-lhe atenção.
As canetas também podiam ser perseguidas e atacadas.
O papel era algo de maravilhoso para o Kym. Restolhava. O Natal era a época mais excitante da sua vida, quando toda a gente estava cercada de papel; papel
de seda e dourado que se amarrotava, e fitas para brincar assim como todas as bugigangas que se podiam deitar abaixo da árvore de Natal. Mas como não podia ser sempre
Natal, ele contentava-se com o jornal.
Esse também restolhava. Podia saltar-se-lhe para cima e rasgar com aquele gostoso ruído e com o igualmente gostoso grito de fúria do Dono que finalmente
dava atenção a Kym. Aos serões o Kym também gostava de partilhar as atenções de ambos e saltava de colo para colo, certo de que o seu peso ronronante era essencial
para a felicidade dos humanos.
Enroscava-se em cima do tapete da lareira com o ar mais inocente do mundo, a observar. Depois, quando a nossa atenção se concentrava em algo que não nele,
saltava.
Às vezes aterrava debaixo do jornal, a ronronar, e ali ficava à espera, estendendo de vez em quando a pata para bater na mão que virava as páginas. Outras
vezes aterrava, atabalhoadamente, em pleno jornal ou então atravessava-o como num número de circo. Fosse como fosse, ficava sempre radiante com o resultado e quando
o leitor do jornal acalmava a sua fúria, o Kym normalmente era autorizado a brincar ao túnel.
O jogo do túnel era a sétima maravilha e podia prolongar-se durante horas. O nosso limiar de paciência era muito inferior ao do Kym. Ele era capaz de ficar
eternamente ao pé de um buraco minúsculo à espera que um rato aparecesse, enfiando esperançado, de vez em quando, uma pata, certo de que aquela espera seria recompensada,
desconhecendo que aquele orificio se destinava a um poste para a corda da roupa, por exemplo.
O jornal era colocado em rolo no chão, com uma bola de ping-pong numa das extremidades. O Kym espreitava por debaixo do armário, de cauda a abanar de um
lado para o outro, preparando-se para o salto. Havia então uma corrida, um pulo e um restolhar glorioso e então ele batia na bola que rolava pelo chão.
Depois recuava e voltava a preparar-se atrás do armário, à espreita até nós pensarmos que ele tinha adormecido. Quando relaxávamos e nos decidíamos a retomar
a leitura dos nossos livros, ele irrompia como um pequeno demónio, atravessando o túnel e saltando para cima dos móveis até toda a gente, menos ele, ficar exausta.
Havia mais uma fonte de entretenimento ao serão. A televisão normalmente aborrecia-o, excepto um programa. Adorava o Tony Hancock! O Tony tinha uma boca
muito grande - que abria muito sempre que falava. O Kym passava todo o programa em cima do aparelho de televisão a tentar apanhar a língua do Tony que, na sua ideia,
seria um rato no buraco. Quando o programa acabava nós estávamos normalmente histéricos mas nem sempre por causa do seu conteúdo. O Sidjames não produzia o mesmo
efeito!
trad. M. j. D.
*UM SÍTIO ÓPTIMO PARA A GATA
Margaret Bonham
A carrinha verde aparecia na aldeia duas vezes por semana. Nesses dois dias a Sra. MilIer levantava-se às oito e meia e ia pôr-se à janela da sala de estar. Com
o seu cabelo liso e as cortinas esverdeadas e já desbotadas esvoaçando ao vento, lá se punha ela à janela da sua sala para ver os gatos, pois a Sra. MilIer, embora
fosse uma mulher gorda, feioza e nada prendada, gostava tanto de gatos que se levantava mais cedo uma hora, ou até mais, duas vezes por semana, quer fosse Verão
quer fosse Inverno, e nada mais a conseguia demover.
A Sra. Miller raramente olhava, conscientemente, para o peixeiro e o mesmo acontecia com as outras mulheres que saíam das respectivas cancelas com um prato
e com uma bolsa de couro na mão. A Sra. MilIer ficava a olhar para os gatos da sua janela, e as mulheres, colocando-se uma a uma ou aos pares na parte protegida
da portada semi-aberta da carrinha, olhavam as mãos dele a pesar, depois olhavam para os arenques e para as cavalas, para a balança e para a passagem do prato da
balança para os seus pratos; ele era bem capaz de, ali mesmo à frente dos narizes delas, atirar sorrateiramente um bocado de arenque ao Tab da Sra. Rhys que miava
desesperadamente a seus pés. Quando ele se distraía um momento, as mulheres enxotavam o Tab da Sra. Rhys à chinelada e o Tab da Sra. Rhys esgueirava-se por detrás
das pernas do peixeiro e nessa altura a Sra. MilIer, da sua janela, deitava a língua de fora ás mulheres.
Nem a Sra. Miller nem nenhuma das mulheres que apareciam para comprar arenque ou cavala vos poderia dizer fosse o que fosse sobre o peixeiro a não ser que
ele gostava de gatos, que era de estatura média e magro, que usava um fato castanho e um avental azul, que tinha o cabelo pardo ou acinzentado e que trazia sempre
gatos atrás. A aldeia, à excepção da Sra. Miller, considerava-o meio louco. Meio louco neste caso significa alguém que dá aos gatos aquilo que pode vender ás mulheres.
Às terças e sextas-feiras, quando a carrinha verde vinha até à aldeia, o gato do Seven Stars ia-se pôr à espera em cima do pilar de pedra ao fundo da ponte.
O peixeiro descia do lugar do condutor, trepava e abria as portas da traseira e nessa altura o gato do Seven Stars, já de pé e de focinho empinado, batia-lhe com
uma pata na perna, pronto a apanhar qualquer chicharro que o peixeiro lhe quisesse atirar e que ficava a balançar, com a cabeça e o rabo pendentes de cada lado da
sua boca triangular. Então, gato e chicharro desapareciam que nem flechas pelo pátio da estalagem e o vendedor, desinteressado, punha-se a pesar solha para o dono.
Nas traseiras da casa da Sra. Miller, ao fundo da rua, todos os outros gatos se punham à espera ás portas.
Todos os outros gatos lá estavam à espera do peixeiro e do chicharro ao sol da manhã, no meio do cheiro do pequeno-almoço, da cera e do importantíssimo
cheiro a peixe. Nas casas as crianças estavam sentadas à mesa com bigodes de leite e, da sua janela, a Sra. Miller via o peixeiro a passar pela casa vindo do Seven
Stars em direcção às outras casas até à porta da igreja, e da porta da igreja outra vez pela rua abaixo até parar finalmente à sua porta. Embora ela não gostasse
de peixe, comia-o ao jantar todas as terças e sextas-feiras, na saleta que estava suja e desbotada como as cortinas esverdeadas e com um círculo escuro no papel
de parede pardo onde ela encostava, quando acabava, a cabeça oleosa contra a parede, com um Woodbine no canto da boca e o gato Henry no colo a pescar espinhas do
prato e a rilhá-las de lado em cima do seu casaco de algodão todo manchado. Henry era um gato velho; já se haviam passado anos e anos depois da idade lhe ter tirado
a boa forma e, por natureza, não era inteligente; nem sequer aos olhos da Sra. Miller ele era nada de especial; não tinha nada a ver com o tipo de gato do qual se
sente orgulho ao vê-lo sentado, na parte de fora do portão, à espera do peixeiro; mas ela gostava dele. O peixeiro, olhando para o Henry escondendo-se por detrás
de uma pescadinha, dizia sempre com uma certa tristeza:
- Os gatos não deviam envelhecer, Sra. Miller.
É verdade, pensava a Sra. Miller; mas dizia:
- E, mas a gente afeiçoa-se a eles.
No Inverno o Henry morreu. A Sra. Miller chorou-o e recusou-se a ficar com um gatito vadio do Seven Stars; mas as visitas do peixeiro começaram a não ter
qualquer sentido com aquelas conversas sobre os gatos dos outros e, com o decorrer do tempo, ela começou apensar em arranjar um outro para si. Reflectiu muito e
imaginou-se com um gatarrão mais bonito do que os dos vizinhos, do que qualquer outro gato da terra. O peixeiro debruçou-se sobre o portão, no meio da neve, e disse:
- Quando é que tem um outro Henry, Sra. Miller?
- Qualquer dia - respondeu-lhe ela, olhando lá longe para as árvores escuras guarnecidas de branco que se perfilavam contra o céu escuro atrás dele. Levou
os dois arenques num prato e lá foi de chinelos a bater pela rampa cheia de neve acima até à saleta para aí acender a lareira. Colocou os arenques no tapete ao seu
lado e acocorou-se, puxando por detrás do balde do carvão o papel amachucado onde o bacalhau de sexta-feira tinha vindo embrulhado. Mas, uma vez na grelha, a palavra
GATOS apareceu-lhe por entre as barras e ela puxou-o cá para fora e alisou sobre os joelhos a primeira página do The Times. Apalpando um cigarro amachucado no bolso
da bata, pôs-se a ler:
"Vende-se gata siamesa com pedigree, 4 meses; treinada para viver dentro de casa; 3 1/2 gns, transporte pago. Letchley, Elm House, Hastock, Shrops."
A Sra. Milier, com um Woodbine apagado no canto da boca, sentou-se a olhar para a grelha vazia vendo nas suas profundezas carcomidas a imagem nítida da sua
entrada e um gato elegante avançando por ela acima numa pose heráldica, e com uma cauda que mais parecia uma pluma de avestruz, de um dourado escuro a adejar contra
a neve. A Sra. MilIer nunca vira um siamês na vida. Levantou-se do tapete, esquecendo-se do arenque, e foi em busca da máquina de escrever do seu desgraçado marido
pois sabia que a sua caligrafia não era a mais apropriada para encomendar um siamês com pedigree. A carta foi curta mas demorou-lhe toda a manhã. Quando acabou,
enfiou um casaco por cima da bata, saíu, foi levantar algum dinheiro da sua conta dos Correios, juntou-lhe mais um tanto do dinheiro da casa e foi comprar vales
postais por três guinéus e meio. Depois colou um selo na carta, regressou a casa e acendeu o fogão de sala.
- Então quando é que temos o novo Henry, Sra. Miller? - perguntou o peixeiro na sexta-feira, debruçando-se na cancela branca.
E a Sra. MilIer, olhando para as árvores, respondeu:
- Daqui a uns dias aparece aí um gato especial que eu arranjei - disse ela, continuando a olhar para o céu que se fechava como uma concha de ostra sobre
a aldeia - um gato de categoria - acrescentou ela apertando a bata suja contra o pescoço por causa do vento frio.
- Isso é que é uma boa noticia, Sra. Miller - disse o peixeiro. - É um gato persa?
- Não - disse a Sra. Miller. - Não é um persa. É uma coisa muito especial; quando ele vier vai ver como é.
- Espero que venha rápido - retorquiu o peixeiro. Estou morto por saber.
- Talvez na terça-feira - disse a Sra. Miller. - É uma gata - acrescentou ela por cima do ombro, subindo a rampa.
A carta lá veio, dizendo quando é que o novo gato fino chegaria à estação. Havia alguma coisa que dizia à Sra. Miller que devia arranjar-se melhor para aquele
primeiro encontro com o gato e assim ela vestiu o seu melhor fato azul, pôs brincos de pérola e o casaco com uma gola de pele; enrolou o cabelo com os dedos e meteu-se
à estrada e caminhou durante uma milha pela neve até à estação com os seus sapatos pretos de tacão alto. Esperou durante meia hora sentada na sala de espera, pois
o comboio veio atrasado, mas quando este finalmente chegou com a única carruagem coberta de neve fumegante, ela precipitou-se para a secção das bagagens e reclinou-se
no balcão que nem uma dama, enquanto o Sr. Jones, que fazia tudo naquela estação, trazia para dentro uma bicicleta, um cesto com galinhas e um cesto mais pequenino
como os de piquenique. O Sr. Jones colocou o cesto mais pequeno em cima do balcão e ouviu-se um grito plangente; um grito em tom menor, de gelar o sangue nas veias.
- Santo Deus! - exclamou o Sr. Jones recuando para cima da bicicleta. - O que é que vem aí dentro, Sra. Miller?
- Um gato - disse a Sra. Miller sem grandes certezas e inclinou-se para a frente, apontando para a etiqueta que se encontrava atada à asa e onde se lia GATO
DE ESTIMAÇÃO.
- Eu acho que isto não é nenhum gato - disse o Sr. Jones -, os gatos miam. Vamos dar uma espreitadela - acrescentou ele pegando no cordel com todo o cuidado.
Mas a Sra. Milier, hipnotizada pelo grito, exclamou rapidamente:
- Não Sr. Jones, vou levá-lo já para casa. E se ele fugia?
O Sr. Jones abanou a cabeça e disse:
- Não devia abrir o cesto sem ter um homem em casa, Sra. Miller. Eu vou consigo e fico de vigia com o atiçador em riste.
- Não admito que ninguém fique de atiçador em riste para o meu gato de raça, Sr. Jones - exclamou a Sra. Miller recuperando a sua pose - e eu sei de certeza
que é um gato; comprei-o pelo jornal; ele está a gritar com medo do seu comboio velho.
E pegando no cesto com firmeza, saiu para a estrada cheia de neve; quando chegou a casa já se habituara àquele som estranho do gato e mal podia esperar por
abrir o cesto e ver aquela criatura exótica e elegante com um pêlo dourado e fofo e uma cauda que mais parecia uma pluma de avestruz.
Assim, colocou o cesto em cima da mesa da saleta mesmo antes de tirar o casaco, e desapertou a etiqueta, o cordel, o fecho e abriu a tampa para trás; e então
cambaleou em direcção à lareira com um gesto melodramático, teatral, gritando:
- Deus me acuda! - Apercebendo-se que tinha sido levada como uma pata e que lhe tinham vendido uma espécie de macaco. Lá se foi o sonho da Sra. Miller de
ter um ser com um pêlo dourado e cauda de plumas; sentia-se tão envergonhada a imaginar o que é que o peixeiro iria dizer, e os vizinhos, sem saber se aquela criatura
lhe ia saltar para cima aos guinchos, pois ela só conseguia ver-lhe a parte de cima que espreitava do cesto. De certeza que aquilo não era um gato, pensou a Sra.
MilIer; que gato é que tem um pêlo tão curto que nem um coelho esfolado e um focinho tão pontiagudo que nem um queijo e uns olhos vesgos, azuis de porcelana? E que
gato é que tinha o nome de Tulan Caprian de Hastock e não Henry ou Tab ou Smut? Isto lera a Sra. MilIer na etiqueta. E assim se manteve desconfiada a olhar para
ele, e ele para ela; desconfiada ainda, articulou - Bicho...? - e recuou mais um passo quando Tulan saltou do cesto para cima da mesa. A verdade é que a Sra. Miller
não se teria admirado se ele tivesse quatro patas verdes e uma cauda vermelha bifurcada na ponta e praticamente não ficou nada surpreendida ao ver aquelas patas
magras que nem uma bailarina vitoriana de meias pretas e uma cauda que não era mais grossa - era a ideia que dava à Sra. Miller (que ainda não rejeitara totalmente
a ideia da pluma de avestruz) do que um cordel. "Bem, que Deus me salve, devo estar doida", disse ela para consigo colocando a chaleira ao lume sempre com um olho
em Tulan. Tulan sentou-se em cima da mesa com aquela cauda enrolada em volta daquelas patas e fez uma tentativa de lançar um miado amigável. A Sra. Milier deu um
salto ao som daquela nota aguda, foi buscar rapidamente um prato de peixe ao armário e colocou-o em cima da toalha.
- Bem - disse ela meia sufocada - não há dúvida que és um monstrozinho muito esquisito.
Foi até à cozinha e preparou uma chávena de chá que, aliás, não era o que ela queria, mas o Seven Stars estava fechado.
Passaram a noite sozinhas na saleta, numa espécie de campânula de luz eléctrica e de lareira, longe do exterior escuro e cheio de neve. Tulan confiante e
a Sra. Miller com uma desconfiança semiabalada. De cada vez que olhava para aqueles olhos azuis vesgos, para as patas magricelas e escuras, para a cauda castanho
escuro parecida com a de um macaco e para o pêlo raso cor de farinha de aveia pálida com um brilho que lembrava o sol na neve, pensava no que os vizinhos iriam dizer
e, principalmente, no que o peixeiro iria dizer no dia seguinte. Tulan estava sentada em frente ao fogo com as orelhas pontiagudas e escuras espetadas, virando a
que se encontrava mais próximo para a Sra. Miller sempre que esta suspirava ou murmurava, como que num gesto de delicadeza para não perder pitada do que ela dizia.
Aquilo era enervante; a Sra. Miller ficou em silêncio fumando cigarro atrás de cigarro. Às nove e meia voltou a fazer uma chávena de chá e a Tulan saltou-lhe, pela
primeira vez, para o colo, enroscando as patas escuras por debaixo do peito de penugem pálida, a ronronar. Às dez e meia, não podendo ficar sozinha, à solta, nem
na cozinha nem na saleta, foi dormir na cama da Sra. Miller.
Por causa do peixeiro, pôs o despertador para as oito e um quarto. A Sra. MilIer acordou e viu logo Tulan à frente dos olhos, a uns escassos palmos da sua
cara. Recuou e saltou da cama para fora. De súbito lembrou-se do peixeiro e desejou que ele já tivesse passado e ela estivesse de novo sozinha; mas disse para consigo:
"Hei-de safar-me, vai ser uma chatice, ele vai de certeza rir-se da criatura, mas eu hei-de safar-me desta." Vestiu-se e enfiou a bata gasta e foi com a Tulan até
à cozinha.
Depois de acender o lume foi até à saleta e espreitou pela janela. Lá estava a furgoneta verde à porta do Seven Stars e o gatarrão preto (um gato que se
podia ver comparado com aquela coisa que rilhava a orla da toalha nas suas costas) galopava com o chicharro na boca por entre os pilares vermelhos cheios de neve
da entrada. E a furgoneta verde lá foi rua abaixo, parando aqui e acolá a vender o peixe às mulheres que saíam para o frio com pratos brancos e narizes encarnados,
parando e dando peixe aos gatos normais que miavam como gatos e esfregavam os seus costados bem felpudos nas botas do peixeiro; lá foi rua abaixo até ás portas da
igreja, vigiada com uma apreensão crescente pela Sra. Miller por detrás das cortinas esverdeadas e manchadas, deu meia volta e subiu até à casa dela. A Sra. Miller
olhou desesperada para Tulan, pegou no prato de esmalte e saiu lá para fora.
- Então, Sra. Miller - disse o peixeiro pondo a mão na cancela - já cá está esse novo gato?
A Sra. Milier olhou para as árvores e disse contidamente:
- Lá chegar chegou, mas não é nada o tipo de gato que eu esperava. Admira-me - disse ela de sopetão, preparando-o para o pior - que seja um gato.
- É pena, Sra. Miller, que não seja o que esperava - respondeu o peixeiro - mas talvez ainda não se tenha recomposto da viagem.
- Ah, não - retorquiu a Sra. MilIer a pensar na toalha da saleta - está bem, só que não tem nada o aspecto de um gato.
Tamborilou no prato de esmalte e voltou a olhar para as árvores em silêncio, mas o peixeiro pôs-se a olhar por cima do ombro dela para a porta. Olhou para
a casa e para a porta aberta e gritou com uma tal surpresa que ela até se assustou.
- Mas, Sra. Miller, ela é uma beleza!
A Sra. Miller voltou-se e viu a Tulan, parecendo muito pequenina, a andar com o seu passo de bailarina de meias pretas em cima da neve, de orelhas escuras
empinadas ao cheiro do peixe, de cauda escura fininha erguendo-se como um ponto de interrogação do seu torso magricela. A Sra. Miller olhou para ela e verificou
pasmada que era realmente uma beleza. Agora todos os outros gatos lhe pareciam grosseiros e desajeitados. Mas não disse nada, apenas ficou a olhar para a Tulan,
a tamborilar no prato de esmalte; e Tulan saltitou até ao peixeiro e lançou o seu grito de chamada.
O peixeiro estava encantado; pegou nela ao colo e disse:
- Sra. Miller, esta é a gata mais bonita que eu jamais vi. A sério. Bendito seja, Sra. Miller, e ainda me estava a dizer que ficou desapontada com uma gata
assim!? Que raça é?
- É siamesa - disse a Sra. Miller, apanhada de surpresa e ainda um bocado zangada. - Eu pensei que seria um gato grande, com uma majestosa cauda de plumas.
- Santo Deus - exclamou o peixeiro. - Olhe-me para estes olhos azuis! Que é que fazia com um pêlo comprido e sem ossos? Dê-ma, Sra. MilIer, se não a quiser.
- Quero - retorquiu a Sra. Miller rapidamente -, hei-de habituar-me a ela, é só uma questão de tempo.
Olhou para Tulan, depois para o peixeiro e sorriu; olhando-o nos olhos por cima da cabeça de Tulan como duas pessoas num filme que se olham por cima da cabeça
de uma criança apaziguada, a Sra. Miller fitou pela primeira vez o peixeiro de frente e viu que os seus olhos eram tão azuis quanto os do gato; e, por seu turno,
o peixeiro achou que os olhos do gato não eram mais azuis do que os dela. Tulan cheirou o peixe por cima do ombro dele e desatou a gritar.
- Bom, Sra. Miller - disse ele virando-se para a furgoneta - vamos lá ver de que é que o gato gosta.
Pegou num chicharro pelo rabo e aproximou-o da Tulan que se abraçou a ele como um macaco e, segurando-o com as patas e com os dentes, baixou-o até ao chão.
A Sra. Miller e o peixeiro ficaram ali na neve a verem o chicharro desaparecer num abrir e fechar de olhos.
Não havia dúvidas de que Tulan estava encantada com o peixeiro.
- O que é que o seu marido diz de um gato assim? - perguntou ele de repente.
A Sra. Miller esbugalhou os olhos tão admirada como se tivesse sido a própria Tulan a fazer a pergunta; nunca imaginara que ele fosse capaz de falar de outra
coisa que não fosse de gatos, de peixe ou do tempo.
- Não faço a mínima ideia - respondeu ela - porque ele não está cá.
- Está na tropa, presumo - retorquiu o vendedor.
E a Sra. Miller respondeu:
- É possível, se eles não forem lá muito esquisitos; há três anos que não lhe ponho a vista em cima e não gostava nada de o voltar a ver.
- Lamento por si, Sra. Miller - disse o peixeiro -,lamento muito saber isso, mas todos nós cometemos erros.
A Sra. MilIer olhou para a copa das árvores e, depois de uma pausa, disse:
- Bem, vou para dentro.
- Fique com mais um peixe para a gatinha bonita disse o peixeiro inclinando-se maravilhado para Tulan e colocando um chicharro enorme no prato de esmalte
da Sra. MilIer - e na sexta-feira volto a ver a gata. Agora tenho assuntos a tratar aqui, Sra. Miller - disse ele, com o cotovelo sobre a cancela, vendo as duas
a subir a rampa, a Sra. MilIer a arrastar as chinelas e Tulan saltitando atrás dela, miando, sacudindo as patas de trás. Tanto ele como a Sra. MilIer (em uníssono)
tinham-se esquecido dos dois arenques que a Sra. Milier viera comprar para o jantar.
Ao aceitar Tulan, a Sra. MilIer descobriu também o significado da palavra "trabalhão". A obsessão de Tulan era definitivamente estar sempre em primeiro plano.
Não lhe agradava ficar esquecida horas a fio e depois receber uma festa e um prato de peixe de consolação; tinha de se estar sempre a falar com ela e a dar-lhe toda
a atenção; detestava ficar sozinha. A Sra. Miller deu por si a fazer brincadeiras patetas nas escadas, dobrada a uns meros centímetros do chão, apanhando patadinhas
na testa, ajogar com bolas de papel para que a Tulan as caçasse, ás corridas à volta da sala sem praticamente tocar no chão. Em breve, como a Tulan desatava a chorar
logo que ela saía, a Sra. Miller começou a levá-la consigo às compras, embrulhada numa prega do casaco. As pessoas, críticas, chamavam-lhe "o macaco da Sra. MilIer".
Agora a Tulan dormia na cama com a cabeça encostada ao pescoço da Sra. Miller, na almofada, e esta punha um bocadinho mais de creme de noite para a Tulan lamber.
A Sra. MilIer era uma criatura pouco sentimental e meia desleixada e a companhia da Tulan agradava-lhe especialmente; era a coisa melhor, logo a seguir ao homem
ideal, e até dava menos trabalho.
O peixeiro ficava cada vez mais tempo debruçado sobre a cancela às terças e sextas-feiras a conversar com elas; os presentes que trazia a Tulan eram cada
vez maiores de tal modo que a Sra. MilIer não se admiraria se um dia o visse aparecer com um tubarão.
- Tenho andado a pensar que um dia destes tenho de arranjar um gato como este, Sra. MilIer - disse ele. - Vê-lo só dois dias por semana, não chega.
A Sra. Miller encostou o cotovelo ao poste podre da cancela e pôs-se a olhar para um ponto acima da cabeça dele.
- O que é que a sua mulher ia achar? - perguntou ela. E o peixeiro olhou para a Tulan com um chicharro quase do tamanho dela e respondeu:
- Não tenho nenhuma mulher em casa, e nunca tive.
- Então quem trata de si? - perguntou a Sra. Miller. E ele respondeu:
- Ora, eu é que trato de mim. Tanto se me dá ter as coisas de uma maneira ou de outra - disse ele. - Um gato ou dois, muita comida e um bom foguinho e já
me chega.
- Tem razão - disse a Sra. Miller, enfiando os dedos entre as orelhas de Tulan. Olhou para ele com aquele seu cabelo oleoso a cair-lhe para os olhos e sorriu
sorrateira, mostrando-lhe os dentes brancos. - Chega a qualquer um, de certeza - disse ela.
A neve derreteu e Tulan duplicou de tamanho e às vezes o peixeiro ficava a conversar durante uma hora ou mais. Sempre que Tulan estava demasiado cheia de
peixe para pedir mais, sentava-se no ombro dele e lavava o seu focinho oriental e a Sra. MilIer recostava-se no poste, que continuava podre e que rangia com o seu
peso, e conversavam de gatos até terem a garganta seca. O tempo que a furgoneta demorava parada à porta da casa era objecto de grande falatório em toda a aldeia;
mas nunca a Sra. Miller nem o peixeiro se aproximaram de casa mais que uma jarda, e portanto não havia mais nada que pudesse alimentar esse falatório; e, quanto
a si, a Sra. Miller sentia-se segura e tanto se lhe dava que falassem como não. Agora, fixando os olhos num ponto ligeiramente acima da cabeça do peixeiro, e olhando
para as árvores alinhadas no cimo do monte, ela reparou que estas estavam escuras, e tinham a cor avermelhada da Primavera que se aproximava.
- É com este tempo que eu gosto de passear - disse ela ao peixeiro.
E este retorquiu rapidamente, como quem estava só à espera daquilo:
- Quer dar uma volta na furgoneta?
A Sra. Miller continuou a fixar as árvores em silêncio e finalmente disse:
Era engraçado, para variar; para onde vai daqui?
- Terei muito prazer em levá-la onde quiser - respondeu o peixeiro - mas, se quiser, podemos levar a Tulan para ela ver os meus gatos. Não é lá uma casa
muito bonita, a minha, mas ela havia de gostar.
- Isso também havia de ser uma mudança interessante para ela - disse a Sra. Miller olhando-o cautelosa e sentindo-se contente com o que via.
Lá foi chinelando rampa acima até à cozinha, vestiu o casaco, tirou da chaleira que estava na prateleira dezoito libras e nove pence e a caderneta de poupança
que se encontrava no meio de uma enorme confusão por detrás da calandra, enfiou tudo numa carteira suja, saiu e fechou a porta atrás de si. O peixeiro continuava
debruçado sobre a cancela e Tulan sentada no seu ombro começava a miar por mais chicharros já que a primeira dose tinha sido há uma hora e ela já tinha espaço para
comer mais.
-Julgo que ela nunca andou de carro - disse o peixeiro enfiando-a debaixo do braço. - Então, está toda a gente pronta? - perguntou ele olhando para a Sra.
Miller. E a Sra. Miller respondeu:
- Tudo pronto - e fechou a cancela com um estrondo que partiu definitivamente o poste.
A Sra. Miller sabia, e o peixeiro sabia, que não voltaria ali a não ser para arrumar definitivamente todos os assuntos; mas ninguém disse nada.
- Tenho aqui um óptimo sítio para a gatinha bonita
- disse o peixeiro e pôs a espantada Tulan na parte de trás da furgoneta junto das espadilhas, dos chicharros e dos arenques, e fechou as portas.
- É um sítio óptimo, não há dúvida - disse a Sra. Miller que, sentando-se a seu lado na parte da frente, numa almofada toda amarrotada e a cheirar a peixe,
se pôs a olhar para Tulan pelo postigo no momento em que passavam à frente do Seven Stars e saiam da aldeia.
Trad. M. J. D.
*A BANDEIRA AZUL
Kay Hill
A sorte, calculada pelo ponteiro dos minutos de um relógio, medida por uma régua de escola, e sem mais qualquer outra razão por detrás senão a absurda ferocidade
do trovão, é capaz de mergulhar, sem qualquer aviso, um estábulo de cavalos de corrida no caos. E no entanto é dificil de acreditar, mesmo perante o juramento de
um grupo de pessoas reconhecidamente inteligentes e seguramente honestas, que uma criaturinha insignificante, descrita no dicionário como um pequeno quadrúpede carnívoro
doméstico, que caça ratos, etc., perseguido pelos cães e, segundo se diz, com nove vidas, seja capaz, por artes inimagináveis das quais não se exclui a perspicácia,
de prever o futuro de maneira a virar a sorte de uma cavalariça.
Todo e qualquer estábulo de cavalos de corrida é, evidentemente, um alfobre de superstições; e não é de espantar que o da National Hunt, perante os problemas
adicionais das cercas, das vedações e do mau tempo, seja o pior de todos. Pegas, funerais e até um carburador entupido quando se vai para uma reunião, são tidos
pelos rapazes do estábulo como uma desculpa para o fracasso desse dia dos cavalos que estão a seu cargo.
Talvez o treinador perceba melhor as coisas. O velho Dasman, por exemplo, talvez tenha aprendido tanto sobre corridas que já deixou de ser genuíno, excepto
naquelas raras ocasiões em que está bem-disposto; ou a égua baia que, tendo perdido um pouco de velocidade com a idade, é apenas capaz de ganhar uma corrida de três
milhas se o passo for suficientemente lento para ela acompanhar. Assim, há que aproveitar ao máximo o material que se tem à mão, e há sempre a possibilidade - com
sorte - de se ganhar uma corrida.
Há alturas, contudo, em que mesmo um treinador sente que os golpes do destino vêm de algo que escapa totalmente ao seu controlo. Os nervos e o mau humor
típicos da primeira noite e da véspera de qualquer corrida, transformam-se num pavor inusitado. E esse sentimento espalha-se por toda a cavalariça; mesmo quando
os cavalos estão convenientemente alimentados, lhes é dada a água necessária, se encontram a descansar, e todos os perigos foram afastados, a inspecção da noite
pressagia sempre uma desgraça latente.
Com este receio em mente, e depois de completada a última ronda, Donald Forster encontrou-se na baia vazia do Chantry, à escuta, como se (embora as suas
mãos e os seus olhos lhe dissessem que estava tudo bem) qualquer alteração do ritmo confortado da ração da noite viesse alertar os seus nervos supertensos para um
qualquer problema jamais imaginado. Um rato restolhou e chiou no meio da palha debaixo dos seus pés e fora do círculo de luz lançado pelo foco que trazia na mão,
e a sua sombra ergueu-se enorme e distorcida por cima da manjedoura.
Não valia de nada, pensou ele, ficar ali a matutar. Teria sido muito melhor se tivesse ido dar uma volta com a Nan; se se tivesse misturado com a multidão
e tentado esquecer tudo aquilo. É claro que não iria conseguir isso, com aquela corrida sempre a aparecer-lhe à frente dos olhos como um placard de notícias a desfilar
continuamente à frente de um público enjoado.
Era como se os estivesse a ver ali à frente dele: Chantry e a favorita lançados, com duas cercas para transpor. A favorita de freio nos dentes e pressionada,
e o Mike, ojovem jóquei que montava o Chantry, ia a passar um mau bocado. Uma voz gritava das bancadas, aflita: "Três milhas de pura agonia". O facto de ser dono
da favorita não era, obviamente, nenhuma consolação.
Com esta certeza de que Chantry era de confiança, Donald deu por si com os óculos a tremer, todos embaciados nas mãos.
Ouviu a barreira estalar quando a favorita arrancou; viu-a, quando a vista se desanuviou, estraçalhar a sebe no meio de uma chuva de rebentos de vidoeiro,
cair de joelhos do outro lado e debater-se na lama revolvida para se pôr em pé; enquanto Chantry, completando o arco num salto perfeito, com a sua penugem branca
ressaltando por momentos contra o fundo escuro da cerca, caía-lhe em cheio em cima e ela rolava exausta a seus pés.
Houve uma confusão de cavalos e de jóqueis - e depois aquele silêncio terrível, o agitar frenético de uma bandeira junto ao obstáculo, a confirmação do desastre;
e a multidão, instável e subitamente odiosa, aplaudia o vencedor na meta.
Do outro lado do estábulo, a casa escurecida iluminou-se de repente, inundando o pavimento molhado e desenhando uma alegre passagem oblonga, chamando Donald
à realidade. Nan tinha chegado; e, pelos sons que se ouviam na cozinha, trazia alguém com ela. Ainda bem, pensou ele. Tudo o que pudesse evitar que ele descarregasse
em cima dela, como vinha a acontecer há uma semana, era bom. Mesmo as coisas que amava nela o enfureciam. A sua coragem e honestidade, a sua recusa em falar ou em
remexer no passado; até mesmo aquela expressão de desafio que ela tinha e que o havia encantado e fascinado a principio, como se ela conhecesse - e onde ia buscar
forças - um mundo onde ele nunca conseguiria entrar. E contudo, aqueles traços não tinham nada de fluido nem de indefinido; ela tinha uma estrutura óssea tão perfeita
que até a sua mão desajeitada conseguira fazer uns esboços reconhecíveis dela em papéis mata-borrão, em blocos de notas, nas costas das apostas e em envelopes; enfeitiçado
por aquela qualidade que ainda o perturbava.
A velha Lady Galtres, essa velha catatua vivida, quase que acertara no vinte no Verão passado na festa do tenis.
- Adoro ver a Nan disfarçada - dissera ela - com um casaquinho de malha, de lenço na cabeça e olhos que mais parecem os da serpente do Nilo.
E aproximara-se da verdade - bem morninho.
"Calma - pensou ele - se continuo assim ainda acabo a acreditar em duendes e em todas essas tretas irlandesas!"
Pegando no foco e fechando a porta da baia atrás de si, atravessou o pátio em direcção a casa e, parando por momentos encadeado com a luz da cozinha, ficou
surpreso por ver que Nan estava sozinha.
Estava ajoelhada à frente da lareira a conversar e a rir, com o cabelo escuro caindo-lhe sobre a cara. Olhando-a nos olhos, de um cesto que coroava a lareira,
estava um gatito branco.
- Um gatito branco - exclamou ele subitamente enfurecido. - Que diabo vais fazer com isso?
- Não é branco - respondeu ela - é um siamês, com um pedigree que até tu gostavas de ter.
- É mesmo a melhor altura para trazeres uma coisa dessas para cá - disse ele - com um moço mais que supersticioso em relação a gatos e da maneira que as
coisas andam entre nós. Há-de ter uma rica vida, e curta, se o Shover o vê. Sabes muito bem qual é o destino dos gatos que nascem aqui no estábulo, vão direitinhos
para dentro do balde!
- Vai ter uma rica vida - disse Nan com firmeza - e tem os olhos da cor da bandeira do vencedor. A sorte virou, Donald e olha que eu nunca me engano! A Minette
veio trazer-nos sorte.
- Santo Deus! - exclamou ele. - Ai agora os gatos também vêm de França?
- Ela veio para ficar - respondeu Nan - e a sua hoinónima também vinha de uma óptima família; era irmã de Carlos II e chamavam-lhe "A Rainha das mil festas";
portanto a gatita deve saber aplaudir um vencedor.
Aquilo mantinha-se sentado no cesto a olhar para a ala sem demonstrar qualquer receio. Donald fixou aqueles inacreditáveis olhos azuis e ao fazê-lo teve
a sensação espantosa de que estava perante alguém que já havia visto.
De repente aquilo fechou os olhos e, abrindo a boca, lançou um grito agudo, lamentoso e arrastado; como se um tocador tivesse adoptado a sirene do Queen Mary.
- A coisa tem fome - disse ele. - É capaz de só gostar de caviar. Por amor de Deus, arranja-lhe qualquer coisa de comer, se for preciso, arrasa tudo à procura
do melhor isco que tivermos, mas despacha-te. Vou buscar a Maria ao Instituto.
Nan suspirou de alivio quando a porta se fechou. Para dizer a verdade, ela estava um bocado assustada com aquela nova responsabilidade. Onde estavam as almofadas
de seda, as carpetes fofas e todo o luxo que deveria servir de pano de fundo àquela criatura exótica? Tudo o que lhe podia oferecer era uma sala decrépita com um
chão frio de tijoleira e umas mantas em cima das poltronas; e lá fora, todos os perigos de uma cavalariça e, acima de tudo, o Shover.
Pegando num foco, foi até à despensa e procurou nas prateleiras a ver se encontrava qualquer coisa apetecível. Uma lata de sardinhas, uma outra de bife,
um bocado de natas, de certeza que havia de lhe agradar alguma coisa. Colocou tudo em pratinhos separados e transportou-os cerimoniosamente até à sala. De repente
ouviu um barulho de algo a estalar. A mesa da cozinha era uma bodega de bolachas de água e sal e queijinhos. Deliciando-se com aquela refeição plebeia com uma gulodice
descarada, o distinto hóspede saudou-a calorosamente e depois, rematando o jantar com uma golada de água do prato do cão, voltou a trepar para o cesto, enrolou uma
pata enfarruscada por debaixo do focinho, com um ar que deu imediatamente a Nan a ideia de estar perante uma sedução estudada, e adormeceu de imediato.
A visão de uma tal inocência, falsa ou não, levou Nan a cair num erro pelo qual haveria eventualmente de sofrer durante os anos de um curto tempo de vida.
Pegando no cesto com a gatita a dormir, levou-o lá para cima para o quarto.
Quatro horas de sono não são suficientes para nenhum ser humano e são, seguramente, muito pouco para um marido enfurecido.
Consciente de algo que se passeava para cá e para lá em torno da sua almofada, de um ronronar entusiasmado e de uma pata teimosamente insistente a afastar-lhe
os lençóis da cara, Nan aceitou a derrota. Esticada ao comprido a seu lado na cama, com a cabeça enfiada por debaixo do queixo de Nan, o tiranete instalou-se finalmente
para uma noite de luxo.
Quando nasceu o dia, o quarto já estava vazio e a janela que dava para o jardim aberta de par em par.
Nan correu escadas abaixo ao mesmo tempo que enfiava o roupão.
- Se anda à procura do gato - disse Martha com a familiaridade de quem já serviu duas gerações - não precisa de se preocupar. Está no muro do jardim a tomar
o pequeno-almoço com os gatos do estábulo e com toda a gritaria que faz para entrar e para sair, tenho andado aqui numa roda-viva.
- Mas ela não pode tomar esse tipo de pequenos-almoços - disse Nan. - Come comida muito diferente da dos outros gatos.
- Pois olhe que está a comer - disse Martha - e da última vez que a vi estava a safar-se muito bem. Vá ver.
Nan escancarou a porta da frente e saiu para a manhã molhada de início de Primavera, dando a volta à casa pelo jardim até ao muro que nascia da janela da
cozinha.
Os gatos do estábulo estavam sentados a uma distância respeitosa das suas malgas de leite com sopinhas de pão. Nigger, um gato velho e batido, com a sua
orelha roída e o nariz lembrando o de um aristocrata romano devido às várias mordidelas de rato, estendia timidamente uma pata em direcção ao seu prato. Tal movimento
foi acolhido por um ronco rabugento e, antes de Nan ter tempo de se mexer, Minette, cuspindo pão e leite entre recriminações, disparou uma pata calçada com uma luva
escura da última moda e esmagou a pata de Nigger em cima do seu petisco escolhido, espalhando sobre o seu focinho espantado a única refeição do dia.
- Bem - disse Martha quando o ladrão era transportado são e salvo para dentro de casa, casa essa que ele parecia encarar como um edificio especialmente concebido
para o acolher com todo o conforto - o que é que eu lhe disse? Não precisa de se preocupar com essa coisa aí. Ela trata de si, e de nós também, se não me engano
muito.
- Martha - disse Nan - és um anjo.
- Se sou - resmungou Martha - é por estar aqui, gelada, e não por gostar dessa aí. Espere até o Shover aparecer. Vai meter tudo na ordem.
Shover, cujo verdadeiro nome já ninguém recordava ou talvez nunca se tivesse sabido (a tal ponto que um velho amigo uma vez, ao telefonar para o estábulo
a perguntar pelo Sr. Richardson, recebeu a resposta de que ninguém trabalhava ali com aquele nome), adquirira aquela alcunha por ter sido, na sua juventude, chauffeur
de um duque.
Os rapazes do estábulo em grandes correrias pelo pátio, espalhando palha pelo cimento recém-varrido ou cavalgando com os joelhos encostados ao queixo a imitarem
os seus heróis do Turfe, apanhavam um raspanete com esta frase que não admitia resposta:
- O Duque havia de estar aqui a ver isso.
Aparentemente, não havia nenhum pormenor relativamente à gestão do estábulo que escapasse ao duque, e não havia dúvida que, segundo Shover, ele tinha passado
todas as horas do dia ali plantado como um velho carvalho carcomido, no meio do pátio do estábulo.
Quer o duque tivesse existido quer não, o certo é que alguém teria dado instruções a Shover para não se poupar nem a si nem aos seus subordinados. Era um
homem baixo, encorpado, de olhos escuros e a passada rápida, típica de um cavaleiro. Nunca ninguém o vira de casacão, a sorrir em momentos de vitória, ou a queixar-se
da derrota.
Minette conheceu Shover no quarto dia. Esse momento inesquecível foi testemunhado por Donald, a desfazer-se em riso mas sentindo um respeito crescente pela
força de vontade indomável da gatita.
Shover tinha desmontado e estava a levar o Steel Tram, o seu grande orgulho, para os estábulos depois do treino matinal. Acocorada à porta da baia, com um
obstinado olhar azul que parecia dominá-la completamente, Minette não parecia nada disposta a sair dali. Shover avançou inflexível por entre um matraquear de tacões
e bater de pés até que o cavalo, ao sentir que havia ali qualquer coisa de estranho, hesitou por momentos e depois, ligeiramente trémulo, lá foi abrindo caminho,
passo a passo, por cima do gato até que se precipitou com um resfolegar de terror porta adentro em busca de abrigo.
A partir desta vitória, a atracção da Minette pelos estábulos era tão forte que, durante algum tempo, Nan pensou que perdera a sua companhia; para logo ver
essa companhia renovada e aumentada numa espécie de acordo subtil jamais testemunhado por nenhum estranho.
Para grande gáudio de Nan, Donald era tratado de uma maneira totalmente diferente. Os seus gritos reclamando silêncio, reforçados por murros na mesa ou com
um encontrão, eram acolhidos com um terror simulado. A disciplina era apenas aparentemente reinstaurada já que a acusada, invisível e muda, ficava à espera do mais
ínfimo sinal de relaxamento na sua expressão ou no tom da sua voz.
- Esta gata - disse Donald uma manhã depois da cena habitual - é uma dama vitoriana, só que neste caso ela quer ser ouvida e não vista.
Foi repentinamente recompensado com um som levemente adulador que vinha de trás da sua cadeira favorita, seguido de um ligeiro movimento que revelou dois
olhos com uma expressão lânguida como a de uma escrava olhando para o seu príncipe oriental.
- Ela adora-te - disse Nan - de uma maneira absolutamente indecente. - Eu faço-lhe tudo, preparo-lhe a comida, lavo-lhe os pratos, abro e fecho portas, aguento-lhe
as fanfarronices, e contudo, sempre que está cá gente de fora, ela ignora-me e põe-se a exibir-se para ti. O pior é quando as pessoas dizem: "Os siameses são mesmo
muito diferentes dos outros gatos e dedicados como cães." E há sempre um que responde: "É, são muito dedicados, mas de uma maneira subtil, diferente dos cães", e
finalmente o que recebemos em troca é um olhar indiferente e ás vezes maléfico.
- Com essa não me enganas tu - exclamou Donald.
- Apanhei-vos no outro dia desprevenidas quando estava
a fazer as entradas da corrida. A gata tem uma vontade de
ferro, é imbatível, isso é que a caracteriza. Faz o que lhe dá
na gana, quando e como quer.
Nessa noite ele olhara para dentro do quarto iluminado e vira Nan enroscada na poltrona, absorvida a ler um livro. A gata, calada, em perfeita harmonia com
Nan, esticava uma patita por cima do braço de Nan, partilhando o virar das páginas. Nan olhava por instantes para baixo, sorria e, em resposta, recebia uma espécie
de murmúrio esquisito que Donald nunca ouvira em Minette, acostumado como estava à barulheira tipo sineta com a qual ela costumava saudar as primeiras movimentações
familiares da manhã. Enquanto as observava, viu-as trocarem um olhar que dizia muito mais do que qualquer palavra e depois voltarem a ficar em silêncio.
- Sabes o que se diz dela nos estábulos? - perguntou Donald vagarosamente, como se tivesse finalmente decidido revelar algo da maior importância. - Que seja
qual for a baia que ela escolhe, produz sempre um vencedor num prazo de quinze dias. Sei que é um disparate. É evidente que ela anda é a mudar de terreno de caça,
mas seja como for...
- Primeiro ganhou o Dasman - disse Nan -, depois foi a vez da égua cinzenta.
- A Minette esteve na baia do Dasman. Eu vi-a lá disse Donald. - Depois de ele ganhar, ela atravessou o pátio e foi para a baia da égua cinzenta. O Dasman
ganhou mais duas vezes, mas isso não interessa. A égua ganhou na primeira vez, não estava preparada mas houve aquela confusão no fosso e... ganhou. A seguir a isso,
a gata foi para a baia do lado para o de quatro anos e ele ganhou a corrida de obstáculos à vontade.
- Onde é que ela está agora? - perguntou Nan como se já conhecesse a resposta.
- Está exactamente há quinze dias na baia do Steel Tram. E mais, dorme empoleirada em cima dele. E eu não sei como é que uma criatura com unhas de prerodáctilo
trepa para cima de um puro-sangue em plena forma sem ser imediatamente trucidada. O cavalo adora-a; sopra-lhe para cima, como um aspirador, até os pêlos dela ficarem
todos em pé, e ela só ronrona. O Shover também sabe o que se passa. Apanhei-o a fazer-lhe uma cama de feno no outro dia, para ela não sair da baia. Ele dizia-lhe
- "Uou,
bicha, calminha", - como se estivesse meio amedrontado. Os moços chamam-lhe Ministra da Agricultura e das Pescas e todos eles, incluindo a aldeia em peso, acreditam
que o cavalo vai vencer amanhã na Corrida da Caça.
- Ainda não te disse - acrescentou Donald - mas digo-te agora. O Steel Tram é um cavalo dos diabos: será um Aintree no próximo ano, se tudo correr bem. E
há ainda outra coisa; a pista é perto daqui, mas eu não vou arriscar. O Shover e eu estamos a preparar tudo para irmos esta noite com o cavalo, o que quer dizer
que tu não podes lá estar para o conduzir à pista. É preciso que fique cá alguém enquanto nós não estamos.
- Está bem - disse Nan. - De qualquer maneira eu ficaria divididíssima. Os gatinhos da Minette devem nascer no domingo. Imagina só, um siamês para cada cavalo.
- Quem dera - disse Donald.
Depois do burburinho da partida ter desaparecido, Nan deixou-se ficar na cama tentando em vão dormir ou, pelo menos, tentando captar, no silêncio da noite,
essa certeza que por vezes a invadia antes de um acontecimento importante na sua vida.
O luar entrava pela janela aberta com uma inquietante luz pálida; e, vindo de uma das baias do outro lado do pátio, ouviu o pisar nervoso de um cavalo.
Ouviu-se um restolhar de folhas de árvore lá fora, um ruído surdo, e um gato fantasmagórico, fosforescente e sinuoso como uma cavala num mar estival, saltou
suavemente do luar para cima da cama. Sem fazer qualquer som nem saudação, aninhou-se sob a protecção do braço de Nan como se o medo não tivesse qualquer poder dentro
daquele círculo.
A manhã trouxe a Nan a sensação de que tanto ela como Minecte caminhavam por um túnel escuro em direcção a uma luz intensa. Cada uma se ocupou, à sua maneira,
das tarefas corriqueiras como que para protelar a hora marcada. Minette, rasgando pedaços do Calendário das Corridas, transformou o seu cesto em algo de parecido
com o Epsom Dawns num Dia de Derby. Nan, indo buscar os seus utensílios de jardinagem, começou a tirar as ervas daninhas do canteiro que se encontrava junto à porta
da entrada, bem pertinho de casa, atenta a qualquer ruído vindo de dentro. A relva) aquecida pelo sol da Primavera, exalava um cheiro a turfa esmagada, lembrando-lhe
de imediato a pista de corrida.
Era como se estivesse a ver as colinas lá atrás, com as sombras das nuvens em disparada afastando-se em direcção à Muralha Romana, formando um anfiteatro
que acolhia a cor e o barulho de uma corrida. O seu lugar favorito na cerca, de onde podia esticar a mão e tocar nos cavalos à medida que eles passavam pela bancada
dos juizes, era bem longe da confusão histérica dos corretores de apostas.
Donald passava à sua frente, circunspecto, absorto, com uma seriedade nada própria da sua idade, sem a ver. Como um espanhol, pensava ela, um matador; pois,
tal como um toureiro, preparava-se para um esforço físico extremo, no qual o cérebro desempenhava um papel de clarificação e o peso e equilíbrio do passo e da endurance
do animal representavam a medida da sua perícia. Para além de tudo isso, restava ainda a eventualidade de ficar para sempre aleijado e até o risco da morte.
O sol desapareceu do jardim e começou a elevar-se do solo uma aragem, reminiscências do Outono, tão fria quanto a apreensão que sentia. Lentamente, juntando
as ervas daninhas que recolhera, receando regressar a casa, Nan apercebeu-se de repente de que se sentia totalmente relaxada. Ficou parada por momentos à escuta
e lá longe, para além da aldeia, ouviu o soar prolongado de uma trompa a aumentar de volume, reforçado pelo rolar de um veículo pesado na estrada. Apareceram então
uns faróis no portão e, quando Nan correu para a cabina do condutor e olhou para a cara, inexpressiva e sem sombra de um sorriso de Shover, teve a certeza de que
o vencedor estava a chegar a casa. Seguiu o homem e o cavalo quando estes atravessaram o pátio e ali ficou a olhar para eles enquanto Shover passava a mão pelas
preciosas patas de Steel Tram.
- Está óptimo - disse ele. - Podia recomeçar a corrida. Quando o trouxe estava que nem conseguia apagar uma vela. Saí logo que pude, aparecem sempre uns
amigos da onça quando se tem um vencedor como este, e deixei o patrão ficar até ao fim. E olhe que ele não estava nada contente. Fez uma boa corrida; foi o primeiro
a passar a primeira barreira para evitar sarilhos e depois avançou calmamente. Aquele tipo que ia no cavalo do Dobson partiu que nem uma seta, à doida; e levou uma
data deles atrás. Ao subirem a colina, o Steel Train e a favorita estavam em quarto, no sítio onde a pista começa com as curvas e quando apareceram da primeira vez,
o capitão e todos os que vinham à frente, vinham agora atrás e alguns tinham caído. Havia um ou dois cavalos à solta a atrapalhar, mas desapareceram quando passaram
à frente do paddock. Na segunda subida da colina, o patrão passou para terceiro lugar e quando começaram a descer para a mata, os que vinham à frente desembestaram;
ficaram apenas os três e os outros continuaram a fazer uma corrida à parte. Ao sair do fosso, ele deve ter deixado o cavalo descansar um bocado. Eu não tinha binóculos
e portanto não conseguia ver se ele estava cansado ou não, o que me enervou um bocado. Um tipo atrás de mim desatou aos berros: "Anda lá beleza, é o Steel Tram que
vem ali que nem uma locomotiva" e logo a seguir ele já tinha saltado a última barreira e ia com dois comprimentos de avanço e estava a aumentar a vantagem até que
passou a meta de orelhas empinadas.
- Parece que tenho de te dar os parabéns - disse Nan
- por todo o trabalho que tiveste e por acreditares nele mesmo depois de todos os revezes que sofremos. Quem sabe - acrescentou ela só para se meter com ele - a
gata também deu uma ajudinha...
- É a melhor caçadora de ratos que jamais aqui apareceu - exclamou Shover, relutante. - Basta ver um no meio de um palheiro que ela mergulha imediatamente
e caça-o num abrir e fechar de olhos, e lambe-se por mais.
Um som muito débil fé-los olharem para um dos cantos da baia. Avançando com uma lanterna de cavalariça, Shover afastou com uma forquilha um pedaço de palha
e recuou horrorizado.
Regalada, no êxtase sem-vergonha da maternidade, olhando-os com um orgulho descarado, Minette revelou uma fila de gatinhos pretos que nem carvão, alinhados
tipo leitões ao longo dos seus flancos.
- Ora esta! - exclamou Shover áspero, deixando contudo que um leve sorriso reservado para os potros recém-nascidos suavizasse, por momentos, as suas feições.
O Duque despachava-os a todos. Não havia de deixar que um dia assim acabasse em tragédia.
Trad. M. J. D.
*A HISTÓRIA DE WEBSTER
P. G. Wodehouse
Gatos não são cães!"
Só há um lugar no mundo onde se podem ouvir verdades deste tipo lançadas displicentemente no meio de uma conversa e esse lugar é o bar do AnglerÒÀ Rest. Foi aí,
estávamos nós todos sentados à volta da lareira, que um pensativo Copo de Cerveja proferiu a afirmação acima registada.
Embora até àquele momento a conversa estivesse a incidir sobre a Teoria da Relatividade de Einstein, as nossas mentes ajustaram-se rapidamente a esse novo
tópico. Uma frequência regular das sessões nocturnas às quais o Sr. Mulliner preside com tanta dignidade e inteligência tendem a criar em nós uma grande agilidade
mental. Lembro-me de uma discussão no nosso pequeno círculo sobre o Destino Final da Alma que, em quarenta segundos, se transformou numa polémica sobre a melhor
maneira de manter tenro o presunto.
- Os gatos - continuou o Copo de Cerveja - são uns egoístas. Tratamos deles semanas a fio, satisfazemos-lhes todos os caprichos e depois, vão eles, e abandonam-nos
só porque encontraram uma casa onde o peixe é mais frequente.
- O que eu tenho contra os gatos - disse uma Limonada, falando com ar ressentido como se tivesse queixas pessoais - é não podermos confiar neles. Falta-lhes
honestidade e não fazem jogo limpo. Temos um gato, chamamos-lhe George ou Thomas, tanto faz, até aqui, tudo bem. E depois, uma bela manhã, acordamos e encontramos
seis bebés gatos na caixa dos chapéus e lá temos de reabrir o caso, analisando-o por um ângulo completamente diferente.
- Se querem saber qual é o problema com os gatos disse um homem de cara vermelhusca e olhos vidrados que estava a bater na mesa pedindo o seu quarto whisky
- é não terem qualquer tacto. É esse o problema deles. Estou a lembrar-me de um amigo meu que tinha um gato. Gostava mesmo dele, lá isso gostava. E que aconteceu?
Qual foio resultado? Uma noite voltou para casa bastante tarde e estava a tentar abrir a porta com o saca-rolhas e, imaginem, o gato escolheu esse preciso momento
para saltar da árvore em que estava empoleirado para as costas dele. Falta de tacto!
O Sr. Mulliner abanou a cabeça.
- Estou de acordo com tudo isso - disse ele - mas, na minha opinião, vocês ainda não chegaram ao cerne da questão. A verdadeira objecção à maioria dos gatos
é o seu insuportável ar de superioridade. Os gatos, como classe, ainda não perderam o snobismo de terem sido adorados como deuses no Antigo Egipto. Isto torna-os
demasiado propensos a arvorarem-se em críticos e censores dos frágeis e perdidos seres humanos cuja sorte partilham. Olham-nos com ar de desdém. Analisam-nos com
preocupação. E, num homem sensível, isto às vezes causa efeitos desastrosos e pode induzir complexos de inferioridade gravíssimos. É engraçado que a conversa tenha
sido desviada para este assunto - disse o Sr. Mulliner, bebericando o seu whisky com limão - porque esta mesma tarde estive a pensar no estranho caso do filho do
meu primo Edward, o Lancelot.
- Eu conheci um gato... - começou um Fino.
- O filho do meu primo Edward, o Lancelot - continuou o Sr. Mulliner - era, na época de que estou a falar, um garboso jovem de 2 primaveras. Órfão de tenra
idade, tinha sido criado em casa do tio Theodore, o santo diácono de Bolsover; e foi um imenso choque para aquele bondoso homem quando Lancelot, ao chegar à maioridade,
escreveu de Londres a comunicar que tinha alugado um estúdio em Bott Street, Chelsea, e que ia ficar na metrópole e tornar-se artista.
O diácono tinha uma fraca opinião dos artistas. Como membro proeminente do Comité de Vigilância de Bolsover, tinha tido recentemente o desagradável dever
de assistir a uma sessão privada do super-superÒÀfilme Paletas da Paixdo; e respondeu à comunicação do sobrinho com uma carta vibrante em que sublinhava a grande
pena que lhe fazia ver alguém da sua carne e sangue enveredar deliberadamente por uma carreira que, mais tarde ou mais cedo, o levaria inevitavelmente a pintar princesas
russas deitadas em divãs, seminuas, abraçadas a jaguares domesticados. Instava Lancelot para que regressasse a casa e seguisse a carreira eclesiástica enquanto ainda
era tempo.
Mas Lancelot estava decidido. Lamentava a discórdia que se instalara entre ele e um parente que sempre respeitara mas, diabos o levassem se voltava para
um ambiente onde a sua individualidade sempre fora abafada e a sua alma amarrada por grilhetas. E, durante quatro anos, reinou o silêncio entre tio e sobrinho.
Durante esses anos Lancelot fez progressos na profissão que escolhera. No momento em que começa esta história, as perspectivas que tinha à sua frente pareciam
brilhantes. Estava a pintar o retrato de Brenda, filha única do Sr. e da Sra. B. B. Carberry-Pirbright, residente no n.o 11 de Maxton Square, South Kensington, o
que equivalia a trinta libras sonantes contra a entrega. Tinha aprendido a cozinhar ovos com presunto. Dominava praticamente a arte da guitarra havaiana. E, além
disso, estava noivo de uma jovem e destemida poetisa vers libre, de seu nome Gladys Bingley, mais conhecida por a Doce Cantora de Garbidge Mews, Fulbam - uma rapariga
encantadora que parecia um limpa-canetas.
Para Lancelot a vida era algo de pleno e belo. Vivia alegremente no presente sem pensar minimamente no passado.
Mas é bem verdade que o passado está inextricavelmente misturado no presente e que nunca se sabe quando detonará a bomba ao retardador que nos colocou debaixo
dos pés. Uma bela tarde, quando Lancelot estava a introduzir certas alterações ao retrato de Brenda Carberry-Pirbright, a noiva entrou na sala.
A visita não era inesperada, já que Gladys ia viajar naquele dia para passar três semanas no Sul de França e prometera passar lá em casa a caminho da estação.
Lancelot pousou o pincel e olhou para ela com um intenso afecto, pensando pela milionésima vez que a adorava até à mais pequena mancha de tinta no narizito dela.
Ali à porta, de pé, com o cabelo espetado em todas as direcções como o de um espantalho, era uma imagem que falava ao mais íntimo da sua alma.
- Olá, Réptil! - disse-lhe amorosamente.
- Olá, olá Verme! - disse Gladys, com uma devoção virginal a brilhar por detrás do monóculo que usava no olho esquerdo. - Só cá posso ficar meia hora.
- Ora, meia hora depressa passa - disse Lancelot. - Que trazes aí?
- Uma carta, seu burro! Que pensavas que era?
- Onde a encontraste?
- Encontrei o carteiro à porta.
Lancelot pegou no envelope e examinou-o.
- Bolas! - disse ele.
- O que é?
- É do meu tio Theodore.
- Não sabia que tinhas um tio Theodore.
- Claro que tenho. Há anos que o tenho.
- Porque é que ele te escreveu?
- Se quiseres ter a bondade de ficar calada durante dois segundos, se é que sabes como se faz tal coisa - disse Lancelot - talvez te possa dizer.
E, numa voz clara que, como a de todos os Mulliners, mesmo dos ramos mais afastados, era lindamente modulada, Lancelot leu o seguinte:
"The Deanery" Bolsover, Wilts
"Meu caro Lancelot,
"Como, com certeza, já viste no teujornalda Igreja ofereceram-me e aceitei o Bispado de Bongo-Bongo, na África ocidental. Parto imediatamente para assumir
os meus novos deveres que, tenho fé, Deus há-de abençoar.
"Nestas circunstâncias torna-se necessário encontrar um bom lar para o meu gato Webster. Infelizmente está fora de questão ele acompanhar-me, já que os rigores
do clima e a falta de confortos básicos bem poderiam minar uma constituição que nunca foi robusta.
"Envio-o portanto para a tua morada, meu querido sobrinho, num cesto forrado, na convicção de que serás um anfitrião bondoso e atento.
"Com cordiais desejos de felicidade.
"O teu tio muito amigo,
Theodore Bongo-Bongo".
Durante alguns instantes, após a leitura desta comunicação, pairou no estúdio um silêncio pensativo.
Finalmente Gladys falou.
- Oh, que grande lata! - disse ela. - Eu, se fosse a ti, não aceitava.
- Porque não?
- Que queres tu fazer de um gato?
Lancelot pôs-se a pensar.
- É verdade - disse ele - que, se pudesse escolher, preferiria não ver o meu estúdio transformado numa gataria ou num caixote do gato. Mas pensa nas circunstâncias
que são especiais. As relações entre o tio Theodore e eu, nestes últimos anos, têm sido um tanto ou quanto tensas. Na verdade, pode até dizer-se que nos separámos
de candeias às avessas. Parece-me que ele quer fazer as pazes. Eu descreveria esta carta mais ou menos como sendo um ramo de oliveira. Se as coisas me correrem bem
com o gato não ficarei em situação de, mais tarde, me abotoar com uma bela maquia?
- É rico, esse gajo? - perguntou Gladys, interessada.
- Extremamente.
- Então - disse Gladys - considera sem efeito as minhas palavras. Um cheque repolhudo vindo de um amante de gatos agradecido era ouro sobre azul. Ainda podíamos
casar este ano.
- Exactamente - disse Lancelot. - Claro que essa é uma perspectiva realmente atroz; mas já agora, como resolvemos fazê-lo, quanto mais cedo despacharmos
a coisa melhor.
- Sem dúvida.
- Então, está resolvido. Aceito ficar com o gato.
- É a única coisa a fazer - disse Gladys. - Entretanto podes emprestar-me um pente. Será que tens um objecto desses no teu quarto?
- Para que queres tu um pente?
- Apanhei com sopa no cabelo ao almoço. Não demoro nada.
Gladys saiu da sala e Lancelot, voltando a pegar na carta, descobriu que não tinha lido a continuação no verso.
Era do seguinte teor:
"P.S. Ao instalar o Webster em tua casa move-me um outro motivo que não o simples desejo de ver o meu fiel amigo e companheiro decentemente tratado. Tanto
de um ponto de vista moral como educativo, estou convencido de que a companhia do Webster será para ti de um valor inestimável. Atrevo-me a pensar que, de facto,
a sua chegada será um ponto de viragem na tua vida. Vivendo como vives, incessantemente no meio de uma boémia depravada e imoral, encontrarás neste gato um exemplo
de uma elevada conduta que só poderá agir como antídoto à taça do veneno da tentação que, sem dúvida, é constantemente erguida aos teus lábios.
"P.P.S. Leite só ao meio-dia e peixe nunca mais de três vezes por semana."
Estava ele a ler estas palavras pela segunda vez quando soou a campainha da porta. Era um homem com um cesto na mão. Um miado discreto, vindo lá de dentro,
revelou o seu conteúdo e Lancelot, levando o cesto para o estúdio, cortou as cordas que o amarravam.
- Ei! - gritou ele, à porta da sala.
- Que é? - gritou lá de cima a sua prometida.
- Chegou o gato.
- Está bem, já desço.
Lancelot voltou para o estúdio.
- Olá Webster! - disse alegremente. - Como vai o meu amigo?
O gato não respondeu. Estava sentado de cabeça baixa, fazendo a sua toilette, coisa que uma viagem por caminho de ferro torna tão necessária.
A fim de facilitar estas operações tinha levantado a pata esquerda que se erguia, rígida, no ar. E então, passou pela mente de Lancelot uma velha superstição
que lhe fora transmitida por uma das amas que tivera na infância. "Se, tinha dito essa mulher, puxares pela pata de um gato quando esta está erguida e pedires um
desejo, esse desejo realizar-se-à dentro de trinta dias."
Era uma ideia agradável e Lancelot achou que podia muito bem pôr à prova a teoria.
Assim, avançou cautelosamente e estava prestes a estender a mão para puxar quando Webster, baixando a pata, se voltou e ergueu os olhos.
Olhou para Lancelot. E, de súbito, com um choque, este apercebeu-se da imperdoável liberdade que estava a pontos de tomar.
Até àquele instante, embora o P.S. da carta do tio o devesse ter prevenido, Lancelot Mulliner não tinha tido qualquer suspeita sobre o tipo de gato que acolhera
em sua casa. Agora, pela primeira vez, vira-o tal como ele era.
Webster era muito grande e muito preto e muito sereno. Transmitia a impressão de ser um gato com sérias reservas. Descendente de uma longa linhagem de antepassados
eclesiásticos que sempre haviam cortejado à sombra das catedrais e dos muros dos palácios episcopais, tinha aquela atitude delicada que se vê nos altos dignitários
da igreja. Os seus olhos eram claros e firmes e pareceu ao jovem que o penetravam até às raízes mais profundas da alma, enchendo-o de uma sensação de culpa.
Uma vez, havia muitos anos, na sua infância turbulenta, Lancelot, que estava a passar as férias de Verão no presbitério, chegou a tais extremos, à custa
de cerveja e de maus instintos, que se atrevera a disparar, com a sua espingarda de pressão de ar, contra a perna de um cónego e descobrindo, ao dar meia volta,
que um arquidiácono que viera de visita e estava mesmo por trás dele - havia testemunhado todo o incidente. Aquilo que sentira, então, ao encarar o arquidiácono
era o que sentia agora sob o olhar silencioso de Webster que o mirava de alto a baixo.
É verdade que Webster não tinha erguido as sobrancelhas. Mas isso, achou Lancelot, devia-se ao simples facto de não as ter. Recuou, corando.
- Desculpa! - murmurou.
Houve uma pausa. Webster continuava a examiná-lo firmemente. Lancelot recuou para a porta.
- desculpa-me... com licença... só um instante - tartamudeou ele. E, escapando-se da sala, correu escada acima.
- Ouve - disse Lancelot.
- O que é? - perguntou Gladys.
- Já não precisas do espelho?
- Porquê?
- Bom... é que... acho que... - disse Lancelot - acho que preciso de fazer a barba.
A rapariga olhou para ele espantada.
- Fazer a barba? Mas ainda anteontem a fizeste!
- Eu sei. Mas de qualquer forma... quer dizer... acho que... por uma questão de respeito... quer dizer... aquele gato...
- Que é que tem o gato?
- Bom, parece-me que ele está a contar com isso. Claro que não disse nada, mas sabes,... vê-se pelos modos dele. Pensei fazer a barba e talvez mudar-me,
pôr o fato de flanela azul.
- Se calhar, ele tem é sede. Porque não lhe dás leite?
- Achas que posso? - disse Lancelot com ar de dúvida. - Quer dizer, eu nem sequer o conheço bem. - Fez uma pausa. - Olha lá, miúda... - continuou com uma
leve hesitação.
- Sim?
- Sei que não te zangas se eu disser isto, mas a verdade é que tens umas pintas de tinta no nariz.
- Claro que tenho. Tenho sempre pintas de tinta no nariz.
- Bem... não achas que... se desses uma esfregadela com pedra-pomes... quer dizer... sabes como são importantes as primeiras impressões...
A rapariga escancarou os olhos.
- Lancelot Mulliner - disse ela - se pensas que vou pelar o meu nariz até ao osso só para agradar a um gato tinhoso...
- Chiu! - exclamou Lancelot, muito aflito.
- Ora deixa-me ir lá abaixo vê-lo - disse Gladys em tom petulante.
Quando entraram no estúdio, Webster estava a olhar com ar de sereno desdém para uma ilustração de La Vie Parisienne que ornamentava uma das paredes. Lancelot
apressou-se a ir arrancá-la.
Gladys olhou para Webster com ar de poucos amigos.
- Então é este o sujeitinho?
-Chiu...!
- Se queres saber a minha opinião - disse Gladys - acho que este gato anda a viver bem demais. Anda a tratar-se à grande e à francesa. Se fosse a ti cortava-lhe
a ração.
No fundo, a critica de Gladys não deixava de ser justa. Não havia dúvida de que Webster possuía mais do que um vestígio de embonpoint. Tinha aquele ar de
bem estar imponente que se associa a quem vive junto às catedrais. Mas Lancelot encolheu-se, pouco à vontade. Tinha esperado tanto que Gladys causasse boa impressão
e ali estava ela, logo no primeiro encontro, a dizer coisas sem o mínimo tacto.
Estava ansioso por explicar a Webster que aquilo era apenas uma atitude. Que, nos círculos boémios dos quais ela era um dos mais belos ornamentos, aquele
tipo de ironia bem-humorada não só era aceite como era apreciada. Mas era tarde demais. O mal estava feito. Webster deu meia volta com ar ofendido e retirou-se silenciosamente
para trás do sofá.
Gladys, numa total inconsciência, estava a preparar-se para partir.
- Ora bem, meu velho - disse ela em tom ligeiro. - Até daqui a três semanas. Calculo que, mal eu vire as costas, tu e esse gato vão direitos para o engate.
- Por favor! Por favor! - gemeu Lancelot. - Por favor!
Tinha visto a ponta de uma cauda preta a espreitar por detrás do sofá. Oscilava levemente e Lancelot lia nela como num livro aberto. Com uma sensação agoniante
de desespero, percebeu que Webster tinha julgado instantaneamente a sua noiva e a condenara como frívola e sem valor.
Aí uns dez dias depois desta cena, Bernard Worple, o escultor neovorticista, que estava a almoçar no Puce Ptarmigan, encontrou Rodney Scollop, o jovem e
prometedor surrealista. E, depois de falarem de arte durante um bocado, Worple perguntou:
- Que é que se passa com o Lancelot Muiliner? Andam por aí a contar uma história perfeitamente disparatada, que o viram de barba feita a meio da semana Não
é verdade, pois não?
Scollop estava com um ar grave. Ele próprio tinha estado a pontos de falar de Lancelot porque gostava do rapaz e estava altamente preocupado com ele.
- É perfeitamente verdade - disse.
- Parece impossível!
Scollop inclinou-se para a frente. O seu rosto fino mostrava-se perturbado.
- Posso dizer-te uma coisa, Worple?
- O quê?
- Sei que é um facto comprovado - disse Scollop - que agora o Lancelot Mulliner faz a barba todas as manhãs.
Worple afastou o esparguete que estava a entrançar à roda da cabeça e, através do buraco entre os fios, olhou para o amigo.
- Todas as manhãs?
- Todinhas. Eu próprio o fui visitar outro dia e lá estava ele, todo bem vestido de sarja azul e barbeado de fresco. E mais. Tive a nítida impressão de que
ele pôs pó-de-talco depois de ter feito a barba.
- Não pode ser!
- Podes crer. E queres que te diga mais? Havia um livro aberto em cima da mesa. Ele bem tentou escondê-lo, mas não foi a tempo. Era um daqueles livros sobre
boas maneiras.
- Um livro sobre boas maneiras!
- Comportamento delicado por Constance, Lady Bodbank.
Worple tirou um fio de esparguete que tinha ficado preso à orelha esquerda. Estava profundamente agitado. Tal como Scollop gostava muito de Lancelot.
- Só lhe falta vestir-se de cerimónia para o jantar! - exclamou.
- Tenho boas razões para pensar - respondeu Scollop gravemente - que ele já se veste para jantar. Pelo menos alguém muito parecido com ele foi visto a comprar
furtivamente três colarinhos engomados e uma gravata preta nos Hope Brothers em King's Road, na terça-feira passada.
Worple empurrou a cadeira para trás e levantou-se com ar decidido.
- Scollop - disse. - Tu e eu somos amigos do Mulliner. É evidente, pelo que me dizes, que há influências subversivas a agir sobre ele e que nunca ele precisou
tanto da nossa amizade como agora. Porque não vamos visitá-lo imediatamente?
- Era isso mesmo que eu ia sugerir - disse Rodney Scollop.
Vinte minutos depois encontravam-se no estúdio de Lancelot Mulliner e, com um olhar significativo, Scollop chamou a atenção do companheiro para o aspecto
do dono da casa. Lancelot Mulliner estava bem vestido, com um certo requinte até, com um fato de flanela azul, de calças bem vincadas, e o seu queixo - reparou Worple,
chocado - brilhava, macio, à luz da tarde.
Ao ver os charutos dos amigos, Lancelot deu mostras inconfundíveis de preocupação.
- Tenho a certeza de que vocês não se importam de apagar os charutos - disse ele em tom suplicante.
Rodney Scollop ergueu a cabeça altivamente.
- E desde quando - perguntou - é que os melhores charutos de Chelsea, a quatro pence cada, não são suficientemente bons para ti?
Lancelot apressou-se a acalmá-lo.
- Não sou eu - exclamou. - É o Webster, o meu gato. Por acaso sei que ele é contra o fumo do tabaco. Tive de desistir do meu cachimbo por deferência para
com as opiniões dele.
Bernard Worple resmungou:
- Estás a querer dizer-nos - disse desdenhosamente - que Lancelot Mulliner permite que um maldito gato lhe dê ordens?
-Chiu...! - gritou Lancelot, tremendo. - Se soubessem como ele detesta que se fale mal!
- Onde está tal gato? - perguntou Rodney Scollop. - É este o animal? - disse apontando para o pátio, para lá da janela, onde um gatarrao com ar feroz, de
orelhas roidas miava pelo canto da boca.
- Santo Deus, não! - exclamou Lancelot. - Esse é um gato vadio que aparece por aqui, de vez em quando, para almoçar no caixote do lixo. O Webster é completamente
diferente. O Webster tem dignidade natural e uma grande compostura. O Webster é daqueles gatos que se preza de estar sempre aprumado e cujos altos princípios e sublimes
ideais lhe brilham nos olhos como a luz de faróis. - E depois, de repente, com uma abrupta mudança de atitude, Lancelot foi-se abaixo e em voz abafada continuou:
- Diabos o levem! Diabos o levem! Diabos o levem! Diabos o levem!
Worple olhou para Scollop. Scollop olhou para Worple.
- Vá, meu velho - disse Scollop, pousando suavemente a mão nas costas curvadas de Lancelot. - Somos teus amigos. Confia em nós.
- Conta-nos tudo - disse Worple. - Que se passa?
Lancelot teve um riso amargo, sem qualquer alegria.
- Querem saber o que se passa? Então oiçam: estou dominado por um gato.
- Dominado por um gato?
- Nunca ouviram falar de casas onde quem manda é a galinha? Pois, cá em casa, quem manda é o gato.
E numa voz entrecortada contou a sua história. A história da sua vida com o gato desde que este entrara no estúdio. Confiante em que o animal não estava
por perto abriu sem reservas o coração.
- É qualquer coisa nos olhos do animal - disse em voz trémula. - Algo hipnótico. O bicho enfeitiça-me. Olha para mim com ar de censura. Pouco a pouco, pedacinho
a pedacinho, vou degenerando sob a sua influência, passando de um artista íntegro e que se respeitava para... bom, nem sei como chamar-lhe. Basta dizer que deixei
de fumar, que deixei de usar chinelos de ourelo e de andar por aí sem colarinho, que nem sonho em sentar-me a comer o meu frugal jantar sem primeiro me vestir -
aqui engasgou-se - até vendi a minha guitarra havaiana.
- Não pode ser! Isso não! - disse Worple empalidecendo.
- É verdade - disse Lancelot. - Achei que ele a considerava frívola.
Houve um longo silêncio.
- Mulliner - disse Scollop. - Isto é mais sério do que eu pensava. Temos de meditar sobre o teu caso.
- Talvez seja possível - acrescentou Worple - encontrar uma saída.
Lancelot abanou a cabeça sem esperança.
- Não há saídas. Já explorei todas as vias. A única coisa que poderia talvez libertar-me desta servidão insuportável seria apanhar o gato, nem que fosse
uma só vez, descontraído. Se uma vez, ao menos uma vez, na minha presença, ele abandonasse a sua austera dignidade por um só instante, acho que o feitiço se quebrava.
Mas que esperança posso ter? - exclamou Lancelot apaixonadamente.
- Há pouco viram aquele gato vadio no pátio. Ali está um que não se poupou a esforços para quebrar o autodomínio desumano de Webster. Ouvi aquele animal
dizer-lhe coisas que nunca imaginaria que um gato com sangue vermelho nas veias pudesse ouvir por mais de um segundo sem reagir. E o Webster limita-se a olhar para
ele como um Bispo Sufragâneo olharia para um menino de coro apanhado em falta. Vira a cabeça e cai num sono revigorante.
Calou-se com um soluço seco. Worple, sempre optimista, tentou com os seus modos bondosos, minimizar a tragédia.
- Ora bem - disse ele - é mau, claro. Mas suponho que não é morte de homem uma pessoa barbear-se e vestir-se para jantar, etc... Muitos grandes artistas...
O Whistler, por exemplo...
- Esperem! - gritou Lancelot. - Ainda não ouviram o pior.
Levantou-se febrilmente e, dirigindo-se ao cavalete, destapou o retrato de Brenda Carberry-Pírbright.
- Olhem para isto - disse. - E digam-me o que pensam dela.
Os dois amigos analisaram em silêncio o rosto à frente deles. Miss Carberry-Pirbright era uma jovem de aspecto afectado e glacial. Era em vão que se tentavam
descobrir razões para que alguém assim quisesse ver o seu retrato pintado. Seria uma coisa muito desagradável de ter em qualquer casa.
Scollop quebrou o silêncio.
- Amiga tua?
- Não posso nem vê-la - disse veementemente Lancelot.
- Então - disse Scollop - posso falar com franqueza. Acho que ela é uma pústula.
- Um furúnculo - disse Worple.
- Uma brotoeja e um fleimão - disse Scollop, resumindo.
Lancelot riu-se, num riso curto e seco.
- Vocês descreveram-na a primor. Ela representa tudo aquilo que mais repugna à minha alma de artista. Detesto-a com todas as minhas forças. Vou casar com
ela.
- Quê!? - gritou Scollop.
- Mas tu vais casar com a Gladys Bingley - disse Worple.
- O Webster acha que não - disse Lancelot com amargura. - Na primeira vez que se viram avaliou a Gladys e achou que ela não estava à altura. E, no momento
em que viu a Brenda Carberry-Pirbright, pôs a cauda em ângulo recto, emitiu um gorgolejo cordial e esfregou a cabeça de encontro à perna dela. Depois virou-se e
olhou para mim. Eu bem vi o que dizia aquele olhar. Percebi o que lhe ia no espírito. Daí em diante tem feito tudo o que pode para concretizar esta união.
- Mas, Mulliner - disse Worple, sempre ansioso por fazer sobressair o lado luminoso das coisas - porque havia essa rapariga de querer casar com um tipo mal-amanhado
e pobretão como tu? Tem coragem, Mulliner. Daqui a nada já ela te acha repelente e ascoroso:
Lancelot abanou a cabeça.
- Não - disse ele. - Tu falas como um verdadeiro amigo, Worple, mas não estás a perceber. A velha Carberry -Pirbright, a mãe deste estojo, que a acompanha
às sessões de pose, descobriu cedo o meu parentesco com o tio Theodore que, como tu sabes, tem dinheiro a rodos. Sabe perfeitamente que um dia virei a ser um homem
rico. Conheceu o meu tio Theodore quando ele era vigário de St. Botolph em Knightsbridge. E, desde o primeiro instante, começou a tratar-me com aquela repelente
intimidade de uma velha amiga da família. Está sempre a tentar atrair-me aos seus serões, aos seus almoços de domingo, aos seus jantarinhos. Uma vez chegou mesmo
a sugerir que eu devia acompanhá-las, a ela e à horrenda filha, à Academia Real.
Teve um riso amargo. As criticas mordazes de Lancelot Mulliner à Academia Real eram conhecidas desde Tite Street no Sul até Holland Park no Norte e para
Leste, até Bloomsbury.
- A todas estas propostas - retomou Lancelot - respondi sempre com um rotundo não. A princípio, a minha atitude era de fria indiferença. Na verdade não dizia
com estas palavras todas que antes queria morrer na sarjeta do que ir a um dos serões dela, mas as minhas maneiras mostravam-no claramente. E estava a começar a
pensar que ela tinha desistido, quando - pás - apareceu o Webster e estragou tudo. Sabes quantas vezes fui àquela casa infernal na semana passada? Cinco! O Webster
parecia querer que eu fosse. Digo-vos, estou perdido.
Enterrou a cabeça nas mãos. Scollop deu uma cotovelada a Worple e os dois retiraram-se silenciosamente.
- Isto está mau - disse Worple.
- Muito mau - disse Scollop.
- Parece incrível!
- Mas não é! Casos deste tipo são infelizmente muito comuns, naqueles que, como Mulliner, têm em alto grau a delicadeza e a sensibilidade do temperamento
artístico. Um amigo meu, decorador de interiores, acedeu um dia, inconscientemente, a ficar com o papagaio da tia, quando ela foi visitar uns amigos no Norte de
Inglaterra. Era uma mulher com ideias evangélicas muito firmes, ideias essas que tinha transmitido ao pássaro. O bicho tinha uma maneira de pôr a cabecinha de lado
e de fazer um barulhinho que parecia uma rolha a sair de uma garrafa e estava sempre a perguntar ao meu amigo se estava em paz com a sua alma. Resumindo, fui visitá-lo
um mês depois e ele tinha um órgão no estúdio e estava a cantar hinos antigos e modernos numa bela voz de tenor enquanto o papagaio, numa só pata em cima do poleiro,
o acompanhava em tom de baixo. Um caso muito triste. Ficámos todos muito transtornados com aquilo.
Worple estremeceu.
- Estás a assustar-me, Scollop. Não haverá nada que possamos fazer?
Rodney Scollop pôs-se a pensar.
- Podíamos mandar um telegrama à Gladys Bingley a dizer-lhe que voltasse imediatamente. Talvez ela consiga trazer o pobre homem à razão. A doce influência
de uma mulher... Sim, podíamos fazer isso. Passa pelo correio à ida para casa e manda um telegrama à Gladys. Eu pago-te metade.
No estúdio de onde os amigos tinham saído, Lancelot Mulliner olhava estupidificado para uma forma negra que acabava de entrar na sala. Tinha todo o aspecto
de um homem acossado.
- Não! - gritava. - Não! Diabos me levem se o fizer!
Webster continuava a fitá-lo.
- Porque deveria fazê-lo? - perguntou Lancelot em voz fraca.
O olhar de Webster não se alterou.
- Pronto, está bem - disse Lancelot tristemente.
Saiu da sala em passos arrastados e, subindo ao quarto, vestiu o fato de passeio e pegou na cartola. Depois, com uma gardénia na botoeira, dirigiu-se ao
número 11 de Maxton Square, onde a Sra. Carberry-Pirbright servia nesse dia um dos seus cházinhos íntimos ("só meia dúzia de amigos") em honra de Clara Throckmorton
Stooge, autora de O Berjo de t£m Homem Forte.
Gladys Bingley estava a almoçar no hotel em Antibes quando chegou o telegrama de Worple. Ficou preocupadíssima.
Não conseguia perceber exactamente o que se estava a passar porque a emoção tornara Bernard Worple bastante incoerente. Ao ler o telegrama houve momentos
em que Gladys pensou que Lancelot tinha sofrido um acidente grave; outros em que a solução do enigma parecia ser que ele tinha enlouquecido a tal ponto que os manicómios
se disputavam arduamente pela sua custódia; outros, ainda, em que Worple parecia sugerir que Lancelot se tinha associado ao gato para abrir um harém. Mas havia um
facto muito claro: o seu namorado estava em sérios apuros e os seus melhores amigos concordavam que só o imediato regresso de Gladys o poderia salvar.
Gladys não hesitou. Meia hora depois de ter recebido o telegrama já tinha a mala feita, tirado um bocado de espargo que lhe caíra na sobrancelha e estava
a tentar arranjar lugar no primeiro comboio que partia para Norte.
Ao chegar a Londres, o seu primeiro impulso foi ir ter directamente com Lancelot. Mas uma natural curiosidade feminina levou-a, antes de ir a casa do namorado,
a procurar Bernard Worple para que este lançasse alguma luz sobre certas passagens mais abstrusas do telegrama.
Worple, na sua qualidade de autor, talvez tivesse uma certa tendência para ser obscuro mas, quando se limitava à palavra falada, conseguia contar uma história
em termos simples, claros e límpidos. Cinco minutos na sua companhia fizeram com que Gladys se apercebesse perfeitamente dos factos mais importantes e, no seu rosto,
surgiu então aquela expressão sombria e determinada que se vê apenas nas caras das noivas que regressam de umas breves férias e se apercebem de que, na sua ausência,
o ente querido se afastou do caminho estreito e certo.
- Com que então a Brenda CarberryÒÀPirbright?! - disse Gladys, com uma calma cheia de presságios. - Eu já lhe dou a Brenda Carberry-Pirbright! Santo Deus,
se já nem podemos ir apanhar ar até Antibes sem que o nosso prometido comece para aí a portar-se como um mórmon, onde é que irá parar este pobre mundo?
Bondosamente Bernard Worple fez os possíveis para a consolar.
- A culpa é do gato - disse ele. - Na minha opinião, o Lancelot está a ser mais prejudicado do que a prejudicar. Considero que ele está a agir sob influência
ou coacção.
- Isso é mesmo de homem! - disse Gladys. - Atirar tudo para as costas de um pobre gato!
- O Lancelot diz que ele tem qualquer coisa na maneira como olha.
- Bom, quando eu estiver com o Lancelot - disse Gladys - ele vai descobrir que eu também tenho qualquer coisa na maneira como olho.
Saiu a deitar fogo pelos olhos. Worple, muito triste, suspirou e retomou a sua escultura neovorticista.
Tinham passado aí uns cinco minutos quando Gladys, ao passar por Maxton Square a caminho de Bott Street, estacou de repente. Aquilo que tinha visto faria
estacar qualquer noiva.
Pelo passeio que levava ao número 11 vinham duas figuras. Ou melhor, três, se se contasse um cão de aspecto taciturno, de estilo semicão de água, que as
precedia, atado a uma trela. Uma das figuras era Lancelot Mulliner, muito garboso no seu fato de tweed de espinha e de chapéu de coco novo. Era ele quem segurava
a trela. Gladys reconheceu a outra figura, a do retrato que vira no cavalete de Lancelot, como sendo a moderna Du Barry, a famosa destruidora de lares e assaltante
de ninhos de amor, Brenda Carberry-Pirbright.
No momento seguinte subiam as escadas do número 1 e desapareciam lá dentro, para tomarem chá acompanhado certamente por um pouco de música.
Foi talvez uma hora e meia depois que Lancelot, tendo conseguido escapar com dificuldade do antro dos Filisteus, se dirigiu de táxi para casa. Como sempre,
depois de um longo tête-a-tête com Miss Carberry-Pirbright sentia-se tonto e desnorteado como se tivesse estado a nadar num mar de cola e tivesse engolido uma grande
quantidade do líquido pegajoso. Só conseguia pensar claramente que lhe apetecia uma bebida e que essa bebida se encontrava no armário por trás da poltrona no seu
estúdio.
Pagou o táxi e precipitou-se para casa com a língua seca a bater nos dentes. E, ali, à sua frente, estava Gladys Bingley que ele imaginava muito, muito longe.
- Tu! - exclamou Lancelot.
- Sim, eu! - respondeu Gladys.
A longa espera não tinha ajudado a restabelecer o bom humor de Gladys. Desde que chegara ao estúdio, tinha tido tempo de bater o pé três mil cento e quarenta
e duas vezes na carpete e os sorrisos amarelos que lhe tinham passado pelo rosto eram em número de novecentos e onze. Estava praticamente pronta para a batalha do
século.
Ergueu-se e encarou-o, com os olhos a faiscar.
- Muito bem, seu Casanova! - disse ela.
- Seu quê? - disse Lancelot.
- Qual seu quê qual carapuça! - exclamou Gladys. A Brenda CarberryÒÀPirbright. Ofereço-te um lar onde podes fumar na cama, deitar a cinza para o chão, andar de pijama
e chinelos durante todo o dia e só fazer a barba ao domingo de manhã. E dela, que tens tu a esperar? Uma casa em South Kensington, possivelmente em Brompton Road,
e provavelmente a viver com a mãezinha. Uma vida que será uma longa sucessão de colarinhos engomados, sapatos apertados, fatos e chapéus altos.
Lancelot estremeceu, mas ela continuou, implacável.
- Estarás em casa às quintas-feiras de quinze em quinze dias a servir sanduíches de pepino. Todos os dias irás passear o cão até te transformares num passeador
de cães profissional. Irás jantar a Bayswater e passar o Verão a Bournemouth ou Dinard. Escolhe bem, Lancelot Mulliner. Vou deixar-te a reflectir sobre o assunto.
Mas, uma última palavra. Se, às sete e meia em ponto, não te apresentares no número 6a de Garbidge Mews, pronto a levar-me ajantar ao Ham and Beef, saberei com que
contar e agirei em conformidade.
E, sacudindo do queixo a cinza do cigarro, encaminhou-se altivamente para a saída.
- Gladys! - gritou Lancelot.
Mas ela já tinha saído.
Durante alguns minutos, Lancelot Mulliner não se mexeu, cilindrado. Depois, veio-lhe à lembrança a recordação insistente de que não tinha, afinal, tomado
a tal bebida. Correu para o armário e sacou uma garrafa. Desarrolhou-a e estava a começar a servir-se, num jorro apetitoso, quando um movimento no chão, lá em baixo,
lhe chamou a atenção.
Lá estava o Webster a olhar para ele. E os seus olhos tinham aquela expressão familiar de tranquila censura.
- Não foi de maneira nenhuma a isto que fui habituado lá no Presbitério - parecia dizer.
Lancelot ficou paralisado. A sensação de estar amarrado de pés e mãos, de estar encurralado numa armadilha da qual não havia fuga possível, tornara-se mais
dolorosa do que nunca. A garrafa escapou-lhe dos dedos sem forças e rolou pelo chão, entornando o conteúdo num rio ambarino. Mas Lancelot estava demasiado transtornado
para se aperceber do que quer que fosse. Com um gesto de desalento, como o de Job ao descobrir uma nova pústula, foi até à janela e olhou melancolícamente para a
rua.
Depois, voltando-se com um suspiro, olhou novamente para Webster - e o que viu deixou-o petrificado.
O espectáculo que se lhe deparava era suficiente para petrificar um homem mais forte do que Lancelot Mulliner. A principio nem queria acreditar nos seus
olhos. Depois, lentamente, foi-se apercebendo de que aquilo que estava a ver não era uma mera ilusão de uma mente perturbada. Aquela coisa inacreditável estava mesmo
a acontecer.
Webster estava agachado junto ao lago de whisky que ia alargando cada vez mais. Mas não fora o horror ou a náusea que o tinham feito agachar-se. Pusera-se
nessa posição porque, assim, estava mais perto dos acontecimentos e tinha mais facilidade de acção. A sua língua entrava e saía da boca como um pistão.
E depois, subitamente, durante um brevissimo instante, parou de lamber e olhou para Lancelot e, pelo seu focinho, perpassou um sorriso rápido, tão cordial,
tão intimo, tão cheio de camaradagem jovial que o rapaz deu por si, automaticamente, a retribuir-lhe o sorriso e, não só a sorrir-lhe, como também a piscar-lhe o
olho.
E, em resposta, Webster piscou-lhe também um olho. Uma piscadela alegre, malandra, que dizia tão claramente como se fosse expresso em palavras:
- Há quanto tempo dura isto?
E, com um pequeno soluço, voltou à tarefa de lamber a bebida antes que esta se entranhasse no soalho.
Na alma sombria de Lancelot Mulliner entrou de repente um grande raio de sol. Era como se tivessem retirado dos seus ombros um enorme peso. A obsessão insuportável
dos últimos dois meses desvanecera-se e era, de novo, um homem livre. Na décima primeira hora surgira a libertação. O Webster, aquele aparente pilar de austera virtude,
pertencia, afinal, ao grupo. Nunca mais Lancelot se dobraria sob os seus olhos. Estava outra vez nas suas sete quintas.
Webster, como o peru na véspera de Natal, já tinha bebido a sua dose. Saiu de junto do lago de álcool e pôs-se a andar em círculos, lento e meditabundo.
De vez em quando, soltava uns miados hesitantes como se estivesse a tentar dizer "anticonstitucionalissimamente". Pareceu ficar divertido por não conseguir articular
as sílabas pois, no fim de cada tentativa, emitia uma espécie de riso lento e bem-disposto. Foi mais ou menos nessa altura que se pôs a dançar ritmadamente uma dança
que lembrava a antiga Sarabanda.
Era um espectáculo interessante e, em qualquer outra altura, Lancelot teria ficado a observá-lo desvanecido. Mas agora estava sentado à secretária, muito
ocupado a escrever um bilhete à Sra. Carberry-Pirbright cujo conteúdo era: que se ela pensava que ele alguma vez voltaria a pôr os pés perto da horrenda casa dela,
nessa ou em qualquer outra noite, estava redondamente enganada e desconhecia por completo as capacidades criativas de Lancelot Mulliner no que tocava a encontrar
atalhos por onde se escapar.
E quanto ao Webster? O Demónio do Álcool dominava-o por completo. Uma vida inteira de abstinência tinha
-o tornado uma vítima de eleição do líquido fatal. Chegara agora à fase em que a cordialidade dá lugar à beligerância. O sorriso tolo desaparecera-lhe da cara e
fora substituído por um agressivo franzir de sobrolhos. Durante uns breves segundos ergueu-se nas patas traseiras à procura de um adversário à sua altura; depois,
perdendo qualquer vestígio de autodomínio, correu cinco vezes à volta da sala a altíssima velocidade e, indo de encontro a um banquinho, atacou-o ferozmente, sem
poupar dente nem unha.
Mas Lancelot não assistiu a tal espectáculo; Lancelot já não se encontrava ali. Lancelot estava na rua, em Bott Street, a chamar um táxi.
- Para o número 6.A de Garbidge Mews, Fulbam - disse Lancelot ao motorista.
Trad. L. E.
*SÓ COMPLICAÇÕES
Doreen Tovey
Sugieh teve cio pela primeira vez em Setembro, quando estávamos na Escócia e ela tinha ficado outra vez com os Smiths. Já receávamos que isso acontecesse. De acordo
com o livro, podia acontecer com uma precoce gata siamesajá no quarto mês, e como a Sugieh tinha sete meses nessa altura, e era tão precoce que até metia nervos,
era óbvio que se estava a poupar para uma ocasião especial.
Com a ajuda dejames fê-lo de uma maneira magnífica. Emitiu o seu primeiro clamor no meio de um jantar e pregou um susto de arrepiar os cabelos a toda a gente,
incluindo a ela mesma. Depois dos Smiths, que perceberam o que se estava a passar, terem conseguido sossegar os convidados mais nervosos, dizendo-lhes que a gata
não estava doida, ela miou de novo, ainda mais alto. O resultado, contaram-nos eles com o olhar fixo pela lembrança, foi que o James ao ouvir a voz da gata por entre
a névoa do sono e esquecendo por momentos que já não era o gato que fora, saíra galante, da caixa do gramofone e tentara fazer a mor com ela no tapete, e Sugieh,
alarmada, trepara para cima do candeeiro de pé e caíra com ele por cima das costeletas.
O facto de continuarmos amigos, depois disto, abona muito em favor dos Smiths. Nem nos deixaram pagar o candeeiro. Preveniram-nos, no entanto, que a Sugieh
era, nos termos deles, uma "clamadora" excepcional. Consequentemente, tiveram que a fechar no quarto de hóspedes e embora permitissem ao James ir visitá-la sempre
que ele quisesse e ele tivesse conseguido, após dois dias, convencê-la que havia outras coisas na vida para além do amor enquanto durou ninguém se conseguia ouvir
- ela saiu, disseram eles, tão plácida como se nada se tivesse passado, bebeu uma tigela de leite para arrefecer a garganta e foi feliz e contente fazer buracos
no jardim com o James.
Passou-se bastante tempo antes que nós próprios a ouvíssemos. Depois daquele primeiro esforço, ela passou tanto tempo sem voltar a clamar que ficámos intrigados.
Aquelas noites de luar do mês de Outubro quando ela se recusava a entrar e nós nos íamos deitar, sem ela, e não dormíamos, preocupados com as raposas e os texugos,
até que por volta da meia-noite ela subia as escadas vociferando que não fazia a mínima ideia das horas e indagando porque é que não a tínhamos chamado. Não teria
ela ido inocentemente para o bosque e sido "atacada" por algum D. Juan felino, ao abrir a boca para emitir um trémulo chamamento? Ou teria ela, o que era o mais
provável, conhecendo-se a Sugieh, abafado as suas angústias de amor e ido, de propósito, procurar um gato, percebendo com base na sua experiência com os Smiths que,
se ela emitisse um som que fosse à nossa frente, nós a fecharíamos a sete chaves, es tragando-lhe todo o gozo?
Sugieh sabia, mas não queria dizer nada a ninguém. Com o passar das semanas ficámos cada vez mais intrigados - não havia dúvidas de que estava a ficar mais
cheiinha, embora isso se pudesse dever ao facto de estar a crescer ela limitava-se a sorrir recatadamente e a esticar-se de modo a que a pudéssemos ver bem. Quando
lhe perguntávamos severamente o que tinha andado a fazer ela semicerrava os olhos e miava baixinho.
O Natal aproximava-se, Sugieh continuava sem clamar, e não havia dúvidas nas nossas mentes. Enquanto mais acima na rua o Padre Adams esfregava as mãos e
preparava alegremente o feliz desenlace da Mimi, nós abanávamos a cabeça acusadoramente a Sugieh e preparávamo-nos para ocultar o seu acto vergonhoso.
Aconteceu que nos enganámos redondamente. Para grande tristeza do Padre Adams, a Mimi teve uma falsa gravidez e não produziu gatinho nenhum, enquanto Sugieh
satisfeitissima por nos ter enganado, entrou triunfantemente em cio no dia de Natal rugindo como um leão. Parecia que os acontecimentos sociais tinham esse efeito
nela. Depois de ter comido o peru (nunca me irei esquecer do ar de espanto dela quando viu um peru pela primeira vez; podia-se vê-la pôr de lado mentalmente os faisões)
foi dar uma corrida até ao bosque para ver se ainda lá haveria mais perus, jogou uma rápida partida do Jogo da Glória, que ela ganhou, pois espalhou os dados e os
marcadores pelo chão, e de repente, deitou-se de costas e desatou numa cantoria. O meu cunhado olhou para ela alarmado e perguntou o que se passava. Ciente da presença
das crianças, olhei para ele significativamente e disse NADA. Por vezes, ela tinha destas coisas quando estava excitada. Os meus sobrinhos gémeos de nove anos, olhando
horrorizados um para o outro, puseram o jogo de lado e explicaram que ela estava a fazer aquele ruído porque queria um marido.
Os Smiths tinham toda a razão ao dizerem que ela era uma clamadora fora do normal. Sugieh sempre teve um timbre poderoso, mesmo para uma siamesa e o seu
clamor amoroso era excruciante. Durante o dia ela seguia-nos gritando pela casa e deitava-se esperançosamente de costas sempre que olhávamos para ela. À noite andava
às voltas no quarto de hóspedes berrando ainda mais furiosamente, porque, como não estávamos para aguentar aquela gritaria toda num espaço tão exíguo, recusávamo-nos
a tê-la no nosso quarto. Ao amanhecer do dia 26 de Dezembro já não aguentávamos mais. Charles vociferando audivelmente contra todos os gatos siameses, levou-a para
baixo e fechou-a no quarto de banho.
A nossa casa é antiga e o quarto de banho não só fica no rés-do-chão, como também fica separado da parte original da casa por uma parede de pedra de 60 cms.
Quando, algum tempo depois, os clamores, que agora eram abafados, terminaram completamente, convencemo-nos que a Sugieh não era parva, sabia quando tinha sido vencida.
Pela primeira vez em dois dias preparávamo-nos para dormir em condições.
Um décimo de segundo mais tarde, começou no jardim o pai e a mãe de todas as bulhas de gatos e nós ficámos com os cabelos em pé.
- Sugieh! - guinchei, mal tocando no chão ao sair da cama e descendo as escadas a correr.
- Depressa! - incitou Charles, parando contudo para calçar os chinelos e apertar o roupão antes de me seguir.
Sugieh estava bem. Não tinha, como suspeitávamos que seria capaz, passado pelo ventilador ou aberto ajanela com a ajuda de uma alavanca. Estava, sim, sentada
no parapeito da janela do quarto de banho, como uma rainha de um torneio medieval, olhando encantada de soslaio para os dois campeões lá fora que, entre os narcisos,
lutavam pelos seus favores.
O cio demorou uma semana e todas as noites, com uma regularidade infalível, havia uma luta de gatos em frente da janela do quarto de banho. Passados quinze
dias ela começou a clamar de novo. Tínhamos decidido esperar que ela tivesse um ano antes de a acasalar, mas isto era demais. Aos onze meses Sugieh, com grande entusiasmo,
ficou noiva.
Foi acasalada - o gato da empregada tinha o focinho muito achatado para o nosso gosto, e o Ajax com um abcesso na orelha não tinha um ar muito romântico
com um gato chamado Rikki, num centro de gatos siameses, situado a 40 milhas da nossa casa. Os donos do Rikki disseram-nos que ela era a gata mais atrevida que tinham
conhecido. Também era, disseram eles, a mais barulhenta. Normalmente demorava quatro dias para se ter a certeza que as jovens rainhas, muitas vezes nervosas, acasalassem
em condições, mas ao fim do segundo dia eles telefonaram para informar que não havia dúvidas nenhumas quanto à Sugieh e para pedir que a fôssemos buscar o mais rapidamente
possível, pois ela incomodava todos os outros gatos, enquanto Rikki longe de ser o macho triunfante, andava de um lado para o outro com um olhar acossado, estremecendo
sempre que ouvia a voz dela.
Até que enfim, pensámos nós nessa noite a caminho de casa com a Sugieh atrás a soluçar histericamente pelo seu querido marido. Os donos dele tinham-nos aconselhado
a mantê-la fechada durante dois dias, porque embora perdida de amores ou não, ela poderia consolar-se com o gato da quinta vizinha e ainda poderia vir a ter gatinhos
vadios. Até que enfim que aquilo acabara e finalmente iríamos ter sossego.
Estávamos sempre a fazer planos destes sobre a Sugieh, e enganávamo-nos sempre. Após o acasalamento mais ruidoso na história do centro de gatos, a Sugieh
envolveu-se numa gravidez que não teria sido mais absorvente mesmo que ela tivesse lido o manual médico. Em primeiro lugar, depois de dois dias a sonhar saudosamente
com oRikki - não podia perder mais tempo, pois só tinha nove semanas para mostrar o que valia - começaram os enjoos matinais. Ou foi isso, ou então foi de repente
acometida de uma vergonha imensa ao pensar no seu comportamento escandaloso no centro. De qualquer modo o resultado foi que deixou de comer, ficou para ali sentada
com um ar frágil, baloiçando com os olhos semicerrados - e por fim, com uma temperatura de 40 graus, teve de ser levada, durante uma tempestade de neve, a uma clínica
veterinária para receber injecções de estreptomicina.
Logo que a conseguimos safar daquela - "Quando se gosta de animais acabamos por nos tornar seus escravos", disse o veterinário olhando sentimentalmente para
os olhos azuis dela, mas nem ele poderia prever a cena que se seguiu quando, tendo recuperado a meio da noite o apetite, ela insistiu em comer pasta de caranguejo
sobre a almofada de Charles e começou a ter uma paixão por tartes de compota. Tinham de ser tartes de compota embora nunca comesse a compota; e tinham que ser roubadas.
Se lhe dávamos uma, ela dava um vómito realista, virava-lhe as costas e ia-se embora. Sozinha, contudo, era capaz de dar cabo de um prato inteiro num dia, roubando
uma a uma da copa e levando-as cuidadosamente para o quarto de banho, onde comia a massa das bordas deixando o recheio, e o Charles, distraído, calcava-as e sujava
a casa toda.
Inspirada, julgávamos nós, pelo desejo de que os seus gatinhos fossem todos Seal Points, como o Rikki - um gato do tipo Yul Brynner, com maciças espáduas
negras e uma cabeça triangular - também bebia mais café do que seria possível a um gato, e, por alguma razão insondável, começou a mastigar papel; um hábito que
nos trouxe muitos aborrecimentos no dia que comeu o telegrama enviado pela tia do Charles, Ethel.
Quando a tia Ethel se decidia visitar um membro da família, anunciava a sua chegada iminente por telegrama. deste modo a família não tinha chance de se esquivar.
No nosso caso, como vivíamos segundo ela nos lembrava constantemente, no fim do mundo, o telegrama também indicava a hora de chegada do comboio, para que Charles
a fosse buscar à estação.
Por isso, quando ela apareceu teatralmente à porta principal, numa noite fria e molhada, olhando-nos severamente por cima dopince-nez gotejante e informando-nos
que não só tinha esperado em vão uma hora inteira, como ainda o táxi, que tinha sido Forçada a alr'gar, tivera uma avaria ao chegar à alameda (acontecia sempre isto
a estranhos; Fred Ferry não tinha intenções de estragar a suspensão nos buracos da nossa álea), sabíamos que estávamos feitos.
Não quis acreditar que nós não tivéssemos recebido o telegrama. Ela enviara-o, disse ela, e basta. Também não ajudou quando Charles telefonou para os Correios
- bastante zangado, para impressionar a tia Ethel - e perguntou o que diabo acontecera ao telegrama. O chefe dos Correios, que era um homem temperamental, perguntou
que diabo achávamos que tinha acontecido. Fora ele que tinha metido o telegrama por debaixo da porta, quando fora dar um passeio a pé, e tinha ficado com a mão arranhada
por aquele maldito gato. E porquê, gostaria ele de saber, não tínhamos nós uma caixa de correio como todas as pessoas normais?
Nós tínhamos caixa de correio, que estava afixada na porta da cozinha, como o carteiro habitual bem sabia. Charles mudara-a da porta principal após Blondin
ter sido quase decapitada ao ter enfiado a cabeça através da ranhura e não ter sido capaz de a retirar. Se o telegrama fora introduzido por debaixo da porta principal,
por engano, só uma coisa poderia ter acontecido, disse Charles ao surpreso chefe dos Correios, o nosso gato deve tê-lo comido.
E tinha. Enquanto Sugieh observava estrategicamente do cimo das escadas e a tia Ethel esperava dramaticamente uma resposta ao fundo das mesmas, encontrámos
a prova concludente - um canto de envelope molhado e mastigado - debaixo da cadeira da entrada.
O que aconteceu então foi um pequeno milagre. A tia Ethel ia começar uma torrente de palavras indignadas - nunca gostou muito dos nossos animais desde o
dia em que a Blondin de ânimo leve a molhou enquanto ela dormia uma sesta na cadeira e isso, informou-nos com um tom gelado, tinha sido a gota de água - quando a
Sugieh se levantou e, sonolenta, desceu as escadas.
Nesta altura o seu corpo tinha a forma de uma pêra, embora isso, até à data não a tivesse importunado nada. Ainda na semana anterior tinha atravessado o
jardim tão depressa atrás de um pássaro que foi de encontro a uma campânula e feriu o nariz. Nada sério mas o suficiente para que ela parecesse mais estrábica do
que o habitual, durante uns dias, de tanto olhar para a ferida. Também ainda subia às árvores como o vento, sem dano para ninguém a não ser para o Charles que resmungava
e agarrava a cabeça sempre que ela embatia com a sua valiosa - pensávamos nós - carga de gatinhos de encontro a um ramo.
Agora, para grande espanto nosso, desceu cuidadosamente as escadas como se quase não tivesse forças para se manter de pé, olhou pateticamente para a tia
Ethel e disse:
"- Miaaah!"
Talvez estivesse genuinamente indisposta. Talvez tivesse sido o resultado de ter comido o envelope cor-de-laranja. De qualquer modo não tivemos mais sarilhos
nessa visita. De noite, a tia Ethel dormia com a Sugieh aninhada nos braços carinhosos. De dia tratava dela, no seu colo, afagando-lhe ternamente as orelhas e dizendo-lhe
que tinha uns donos muito maus, que a haviam deixado naquele estado.
A pobre coitadinha suspirando sem comiseração como só um gato siamês sabe, aquiescia de corpo e alma com tudo. Quem a ouvisse, era como se nunca tivesse
querido casar na vida e nós a tivéssemos arrastado pelos cabelos da sua inocente cabeça até Dorset.
Não nos importámos. Pela primeira vez em meses o que era um fenómeno com a Sugieh e a tia Ethel dentro de portas tivemos um pouco de paz.
A CHEGADA DOS QUATRO GLADIADORES
Sugieh teve os gatinhos no fim de Março. Nasceram mesmo depois da meia-noite, após uma noite tormentosa em que procurámos persuadi-la a tê-los num caixote
de cartão forrado com jornais, como recomendava o livro de gatos, mas ela igualmente persistente, continuava a sair dele e ia lá para cima com as orelhas descaidas
para o lado, indignada com a ideia. E na nossa cama - de outro modo ela não os dava à luz, disse ela, - enquanto Charles e eu estávamos sentados um de cada lado
dela, com o livro de gatos nas mãos, esperando por complicações.
Não houve nenhumas. A não ser o facto do último a nascer ter a metade do tamanho dos outros três - e isso, disse-lhe o Charles, era só culpa dela; ele tinha-a
avisado, vezes sem conta, para não subir às árvores - tudo se passou calma, eficiente e rapidamente.
Foi a última vez que algo decorreu calmamente na nossa casa durante muito tempo. Na manhã seguinte acordámos perante a descoberta deprimente de que a Sugieh,
que nunca fazia nada pela metade, tinha decidido ser uma mãe exemplar.
Enquanto durou foi o purgatório. Nos primeiros dias quase que não deixava os gatinhos. Quando queria comida punha-se a berrar do cimo das escadas. Quando
lha levávamos, ou ela estava de novo no cesto a amamentar os gatinhos como se fossem lírios quase a desvanecerem-se aos olhos dela, ou andava de um lado para o outro
como se fosse um caixeiro-viajante à espera de um comboio.
Os gatinhos também não ajudavam nada. A única vez que a conseguimos persuadir a vir para baixo e estar connosco um bocadinho, mal teve tempo de fazer uma
careta ao Shorty, como era seu costume, logo se ouviu um lamento lancinante lá de cima e lá foi ela, galgando as escadas de dois em dois degraus, dizendo olhem o
que acontece se os deixamos sós por uns momentos. Agora estavam a ser raptados!
Só quem viesse de um manicómio teria vontade de os raptar, e ela sabia-o bem. A partir do momento em que cada um abriu um olho, dias antes do previsível,
olhando de soslaio para o mundo como um bando de piratas Fu Manchus, era óbvio que nada de bom nos esperava. Entretanto isso veio trazer um estímulo formidável ao
cenário. Mais do que mãe exemplar, a Sugieh tornou-se numa mãe exemplar defendendo os seus filhos contra raptores.
Ninguém estava livre de suspeita, neste caso. Quando o prior vinha tomar chá, ela já não se aninhava no seu colo, enchendo as calças pretas dele com pêlos.
Mantinha-se no hall, olhando-o sinistramente pela porta. Quando vinha o rapaz do talho, em vez de correr à frente de toda a gente para ter uma conversa particular
com ele, sobre a qualidade do fígado, fixava-o da janela, e vociferava "Mais um passo e chamo a Policia".
Quando a polícia realmente veio, na pessoa de P. C. McNab que trazia uma multa para Charles que, não era para admirar, tinha ido à cidade numa manhã num
estado de total esgotamento, e deixara o carro debaixo de um sinal de estacionamento proibido durante duas horas, ela armou um tal banzé que não ficámos nada surpreendidos
quando uma vez lá fora no relvado, McNab retirou o seu bloco de notas e assentou algo que indubitavelmente tinha a ver com a perturbação da paz. E, quando a tia
Ethel veio passar o fim-de-semana de propósito para ver os gatinhos e os trouxemos para baixo, pensando que com ela tudo ia correr bem pois era amiga da Sugieh,
qual quê, a Sugieh ia dando em doida.
Ela pegou nos gatinhos pelo cachaço, um após o outro, o mais rápido possível, e pó-los ostensivamente no quarto de hóspedes. Durante esse ano, à hora de
ir dormir, a Sugieh lamentara-se alto e bom som que o quarto de hóspedes era uma prisão horrenda e que ela própria poderia muito bem ser a Maria Antonieta. Agora,
parecia que era o único lugar no mundo onde os gatinhos estavam a salvo. Quando a tia Ethel foi atrás dela, à laia de desculpa, com o cesto e um gatito que encontrara
nas escadas, a Sugieh corajosamente na soleira da porta, rosnou-lhe de tal modo realístico, com a cauda entufada e os pêlos das costas eriçados, que a tia Ethel
desceu as escadas mais depressa do que alguma vez a vira mexer-se na vida e tomou o comboio seguinte para casa.
Penso que até a Sugieh achou que tinha ido longe demais dessa vez. Ou isso, ou estava farta de brincar às mães exemplares. De qualquer modo, na manhã seguinte,
às sete horas, despejou as crias na nossa cama, tão despreocupada como se nunca tivesse ouvido falar de raptores na vida, saiu e foi para o bosque e só apareceu
às nove. Daí em diante deu claramente a entender que nós éramos tão responsáveis pelos gatinhos como ela.
Desde então, muitas vezes nos perguntámos se o facto de os gatitos terem caído tantas vezes de cabeça durante aquelas semanas que se seguiram, teria alguma
relação com o modo como cresceram. Pelo menos um deles, caía com um baque todas as manhãs quando Sugíeh trepava furiosamente para a cama colocando os gatitos entre
os meus braços, o mais depressa que podia, e embora não exagerássemos como a Sugieh, ao ponto de dizer que aquele estava estragado - ela nunca tinha o cuidado de
apanhar o que tinha deixado cair; só olhava para ele com um olhar aborrecido e ia buscar outro. Era óbvio que não lhes fazia bem. Também era significativo que o
que era deixado cair mais vezes era o Salomão.
Todas as pessoas que o conhecem, já nos perguntaram, uma vez ou outra, porque lhe demos o nome de Salomão. A resposta é o resultado de uma partida da mãe
dele. Como ela sabia muito bem que queríamos ficar com um macho da primeira ninhada para o levar a exposições e chamá-lo - brilhantemente, pensámos nós - o Selo
de Salomão, ela obsequiou-nos com três machos para podermos escolher, e que foram observados com um interesse profundo durante duas semanas. Com o livro sobre gatos
na mão, examinámo-los minuciosamente e discutimos qual o gatito com que devíamos ficar; muito se riu ela quando tivemos que ficar com aquele que tínhamos posto de
lado por ter umas patas grandes demais e umas orelhas que pertenciam a um morcego e estúpido que nem uma porta. Os outros dois e a fêmea mínima eram siameses azuis.
Para além de todos os outros defeitos o Salomão tinha bigodes manchados; muito antes que as manchas pretas aparecessem no focinho e nas patas para nos avisar
que era nosso para o resto da vida, era pelo bigode que o distinguiamos dos outros. "É como uma orquídea", disse a tia Ethel quando o tirava do balde de carvão durante
a visita seguinte, após ela e a Sugieh terem feito as pazes, e a Sugieh ter colocado a sua guinchante e inquieta família no colo da tia Ethel como sinal de paz e
ter, como de costume, deixado cair o Salomão. Como um bambu seria mais próximo da verdade. Nunca vi na minha vida um gato tão parecido com o Popski. Bambu ou orquídea,
era pelos bigodes que reconhecíamos aquele que sempre se alimentava deitado.
Quase que desmaiámos quando demos por ela - três gatitos a mamarem sofregamente de pé, para chegarem melhor, por cima do quarto que parecia estar inconsciente.
Após o termos puxado para fora para que respirasse, ficámos intrigados quando ele, passado alguns minutos, desapareceu por debaixo da mãe, outra vez. As nossas suspeitas
confirmaram-se quando tirámos os três gatinhos de cima dele e espreitámos. Enquanto os outros guinchavam, arranhavam e lutavam por um lugar em cima, o que tinha
patas grandes e bigodes às manchas estava deitado, feliz, de costas, mais abaixo, com as tetas inferiores todas só para ele.
Claro está que estas ininterruptas refeições resultaram em que depressa se tornou o maior da ninhada e era por isso, e porque era o favorito de Sugieh, que
esta estava sempre a deixá-lo cair.
Quando ela se queria exibir - e embora detestássemos admitir que era encantadora - era sempre o Salomão quem ela carregava até ao relvado, sorrindo brandamente
por cima da sua cabeça larga e branca aos nossos louvores. Mas como as saídas dela eram da mesma índole de uma actriz de cinema a empurrar o carrinho do bebé no
Hyde Park para o beneficio dos fotógrafos, mal ela voltava, deixava-o cair no caminho e deixava-o lá para que nós o levássemos para dentro. Às vezes ela vinha pelo
muro e deixava-o cair na vala. Ela deixava-o cair invariavelmente quando decidia tentar uma manobra mais difícil, como por exemplo saltar para a cama. À medida que
ele ia crescendo ela ia deixando-o cair mais vezes. Quando o levava escadas acima, o seu corpo branco e gordo embatia em todos os degraus. Numa dessas ocasiões a
tia Ethel, tendo tentado em vão tirá-lo à força da boca de Sugieh, predisse soturnamente que ele iria ficar mal da cabeça quando adulto. Claro que ela não se podia
enganar; nenhum gato siamês é bom da cabeça. De qualquer modo quando Salomão ficou adulto tinha mais esquisitices do que um gato siamês comum - incluindo um desejo
irresistível de ser puxado pelo cachaço.
É incrível como aqueles gatinhos sobreviveram, pois uma vez que Sugieh deixou de ser a mãe exemplar, agia mais como se necessitasse de um curso de puericultura.
Quando queriam ser lavados, ela lavava-os tão intensamente que quase ficavam sem pêlo. Quando eles a aborreciam, ela mordia-lhes com tanta força que gritavam por
perdão; todos menos o Salomão que a mordia também e quando ela ia atrás dele, deitava-se de costas e esbracejava as suas quatro pantufas pretas de um modo tão arrebatador
que recebia uma mamadela extra quando os outros não estavam a ver.
Não fazia ideia do que era nutrição. Quando os gatitos tinham quatro semanas, e de acordo com o livro, devíamos habituá-los ao leite de pacote, ela dizia
que não lhes fazia bem e bebia-o ela. Quando tinham seis semanas, nós íamos desesperando porque - seguindo, sem dúvida alguma, as instruções de Sugieh - eles fechavam
firmemente os olhos e as bocas mal viam uma tigela e, desanimámos de os desmamar até que a encontrámos, uma manhã, a dar-lhes sub-repticiamente bocados de coelho,
do seu próprio pequeno-almoço, e observando-os orgulhosa quando lutavam como tigres por um pedaço.
Ela sabia muito bem que era errado. Quando lhe demos um sermão sobre os estômagos delicados dos gatitos, ela olhou-nos por debaixo das pestanas e disse que
fora o Salomão. Neste caso podia muito bem ter sido ele. Preferíamos nem saber que o Salomão cuja alimentação nos preocupava mais porque era um gatito muito grande
e que se aguentava só com o leite materno, estava nesse momento enterrado até aos joelhos no meio da tigela de coelho sorvendo-o como se se tratasse de esparguete.
De qualquer modo ele era o eleito - não por mal, mas pelo simples facto que ela o achava tão maravilhoso que o tornava irresistível - de ser o culpado de tudo, a
partir desse dia.
Quando ela roubou um par das melhores peúgas amarelas de Charles e mostrava aos gatitos deleitados como se faziam buracos por todos os lados do cano da meia
até que ficasse como um funil, foi o Salomão - quando ela realizou o que tinha feito - o indigitado a levar-nos os restos das meias enquanto os outros esperavam,
trémulos no cimo das escadas, prontos para fugirem.
Quando, uma noite, fomos ao cinema e desastradamente os deixámos deitados na nossa cama, porque estava frio e eles estavam tão queridos aninhados juntos
por cima do edredão, foi o Salomão - os restantes, guiados pela Sugieh, esconderam-se debaixo da cama no momento que nos ouviram subir as escadas - que ficou numa
solidão esplendorosa para dar uma explicação sobre uma série de buracos feitos num cobertor novinho em folha. Teve um trabalhão para o fazer. Só havia um gato cuja
boca poderia ter feito aqueles buracos húmidos - e ela estava colada ao chão, debaixo da cama, pretendendo fazer parte da carpete. Também só havia um gato com força
suficiente para puxar a colcha e o edredão para trás e tirar o cobertor para fora. O Salomão ouvia com as orelhas de morcego bem abertas enquanto nós lhe dizíamos
quem ela era, o que ela era e o que lhe iríamos fazer quando a apanhássemos. Obviamente algo devia ser feito rapidamente se quisesse salvar a Mamã de um castigo
para a vida inteira - e fê-lo sem pensar. Enquanto eu segurava no cobertor aberto, queixando-me que já não servia para nada, ele saltou para a frente, com os olhos
brilhantes de determinação, e meteu uma patita gorda e preta pelo buraco. "Era assim que estávamos a brincar antes de vocês chegarem", disse ele. "Foi por isso que
a Mamã tinha feito aqueles buracos e era muito divertido. Por que é que a não desculpam?"
Sempre fomos levados por aquela carinha preta de amor-perfeito. E desculpámos. A cama transformou-se nos minutos seguintes numa massa hilariante de gatinhos
a correr de um lado para o outro sobre o edredão e metendo as patinhas pelos buracos do cobertor, enquanto a Sugieh, reaparecendo como que por magia, uma vez passado
o perigo, pegou no Salomão pelo cachaço e deixou-o cair negligentemente sobre a almofada como recompensa.
E não foi a única recompensa que ela lhe deu. Quase que desmaiei quando nessa noite, depois do jantar, ele entrou orgulhosamente na sala de estar com os
bigodes de um lado do focinho bem tufados e os do outro lado inexistentes. Nessa altura só tinha oito semanas e nós pensámos que os bigodes tivessem caído por ele
ter comido coelho a mais. Não sabíamos que as mães gatas siamesas faziam por vezes isso aos filhotes favoritos quando estavam particularmente contentes com eles.
Foi o veterinário quem nos disse - de um modo bastante seco, achámos nós, uma vez que era suposto ele gostar de gatos siameses - às onze e meia dessa noite.
Trad. £j. L. F.
*HEATHCLIFF
Lloyd Alexander
Donde veio e em que circunstâncias Heathcliff passou os seus primeiros anos de vida, não sei. Apareceu já crescido; adulto, nem muito novo nem muito velho. Nunca
cheguei a apurar se seria um gato perdido, um gato empreendedor que decidira mudar de vida, se fora abandonado ou simplesmente o resultado do desleixo do dono anterior.
Podia ter pertencido à raça persa azul, embora fosse muito mais cinzento que outra coisa e o seu pêlo um pouco curto demais para o ideal. De qualquer modo tinha
classe e linhagem, a qual permaneceu sempre um mistério. Já que os persas não são normalmente criados em ambientes humildes, podia ser que já tivesse vivido em opulência,
mas dava a impressão de que o seu passado era assunto que preferia não ver mencionado.
Numa tarde no fim do Inverno, aconteceu ver Rabbit a brincar no relvado com um gato desconhecido. Saí para investigar e o recém-chegado refugiou-se atrás
de uma hortênsia. A maior parte dos gatos não se aproxima afoitamente dos humanos. A possibilidade de armas escondidas, paus ou pedras, faz com que se tornem desconfiados.
Os gatos vadios em especial - infelizmente com alguma razão - consideram os humanos como inimigos. Há que pôr em prática um grande cerimonial e expor várias antenas
diplomáticas antes de se chegar a uma situação de tréguas. Heathcliff, porém, transpôs os preliminares com celeridade. Saiu do arbusto, andou várias vezes à minha
volta e, finalmente, roçou a sua cabeça contra as minhas pernas e deixou-me observá-lo de perto.
Era um gato de melodrama. Desbotado pela chuva, tinha os pêlos laterais, abaixo das orelhas, sobressaindo da cabeça maciça e uma cauda que se agitava como
uma vara com farrapos dependurados. O pescoço parecia um velho cachecol esfarrapado e as patas traseiras, farfalhudas, davam o aspecto de calças de montar. O pêlo
comprido dava-lhe uma corpulência ilusória. Quando o afaguei senti pouca carne e ossos proeminentes.
Os dois gatos davam-se tão bem, às corridas e às caçadas, que cheguei a pensar que Heathcliff seria um amigo do "clube" vindo fazer uma breve visita social.
Porém, reparei que se manteve no relvado toda a tarde, evidentemente sem outros compromissos. Às horas das refeições apresentou-se juntamente com Rabbit à porta
da cozinha.
Não tinha intenção nenhuma de adoptar um gato novo. Fiquei a gostar tanto do Rabbit no correr do ano, que ter outro me parecia uma traição. O Rabbit satisfazia-me
plenamente e eu ainda não tinha percebido que as carências de um viciado em gatos são infinitamente expansíveis. Mas não lhe podia recusar uma refeição. A visão
de Rabbit a devorar carne, no seu lugar habitual por cima do escoadouro da loiça, era para o outro tão aflitiva que, apesar dos avisos dejanine, enchi uma tigela
com carne e coloquei-a no alpendre.
Até esse momento nunca tinha ouvido falar do contrato segundo o qual quem der de comer a um gato uma vez é obrigado a continuar a prática até que um dos
dois morra. Heathcliff conhecia a lei melhor do que eu e insistia para que fosse cumprida à letra. Desapareceu ao anoitecer mas, na manhã seguinte, encontrei-o no
alpendre à espera do pequeno-almoço. Com o seu ar pomposo, olhar de mocho e cauda esfarrapada fez-me lembrar um actor desempregado que à custa de muito falatório
e logro, consegue entrar num restaurante um pouco antes dos outros convivas, e espera em frente à mesa vazia, de guardanapo posto, procurando parecer disposto a
pagar e pensando quanto tempo faltará para ser posto na rua. Quando me viu, deitou-se de costas e começou a ronronar alto. Dei-lhe um pires de leite.
Depois disso estava sempre a encontrá-lo. A nossa casa tem três portas - a da frente, a do lado e a da cozinha nas traseiras, e Heathcliff parecia estar
em todas elas. Se eu saía pela da frente, ele tentava esgueirar-se para a sala de estar; se eu saía pela porta lateral ele aparecia-me por detrás de uma coluna do
alpendre; pela porta da cozinha, lá estava ele pendurado e esparramado na grade. Em qualquer outro lugar, logo que me visse ou sentisse ele vinha a correr o mais
que podia, com os bigodes ao vento, para pedir ser admitido dentro de casa.
Resignei-me a dar-lhe de comer mas continuava convencido a não o deixar entrar. E o Rabbit também. Embora Heathcliff tenha sido o único.gato a quem demonstrou
um afecto imediato, Rabbit nunca lhe permitiu completa liberdade. Se Heathcliff tentava entrar pela cave, por uma entrada privada, Rabbít bloqueava ajanela e afastava-o
com as patas erguidas. Às vezes Heathcliff esgueirava-se lá para dentro e o Rabbit perseguia-o por entre barris e caixotes e expulsava-o antes que ele tivesse uma
chance de descobrir o caminho lá para cima. Nos outros lados, Rabbit defendia a sua propriedade por métodos nem sempre considerados tradicionalmente elegantes.
O telhado do anexo, perto de casa, constituía uma excelente torre de vigia e Rabbit costumava tomar lá banhos de sol, a certas horas do dia. Tinha descoberto
um meio de subir para o telhado, segurando-se com uma pata dianteira no peitoril da janela e balançando-se cuidadosamente sobre o beiral. Heathcliff decidiu que
seria agradável partilhar o lugar no telhado com Rabbit, mas não tinha aprendido as manobras necessárias para lá chegar. Tentou escalar directamente a parede. Não
sendo um gato ágil, Heathcliff fazia-me lembrar um homem com uma capa de Inverness subindo desajeitadamente uma escarpa íngreme. Mesmo assim quase conseguia, chegando
até ao beiral. Mas não dominava a técnica de Rabbit de baloiçar e ficou pendurado, segurando-se com as unhas das patas dianteiras. Rabbit, observando os acontecimentos,
levantou-se por fim e golpeou Heathcliff. Este perdeu o apoio e caiu no chão. Sempre que aparecia no beiral, o Rabbit empurrava-o até que Heathcliff desistiu.
Noutra ocasião, Heathcliff deve ter quebrado uma etiqueta qualquer e Rabbit escorraçou-o para cima de um bordo. Enquanto Heathcliff andava de um lado para
o outro em cima de um ramo, muito zangado, Rabbit esperava em baixo, pronto a lançar-se sobre ele. Manteve-o lá em cima até à hora do jantar.
À parte algumas poucas desavenças, as relações entre eles eram muito cordiais e pensei em contratar Heathcliff como assistente de Rabbitt, para o ajudar
nos trabalhos que os gatos fazem nos quintais. Converti a velha casota do cão numa casa para gatos, mas Heathcliff recusou usá-la. Concordou em viver no anexo; de
má vontade, pois tinha-se-lhe metido na cabeça algo de melhor: o seu fito era, nada mais nada menos, um posto, com todas as honras e proveitos, dentro de casa.
Heathcliff foi sempre um gato de enredos, intrigas e esquemas grandiosos; durante a primeira semana explorou todas as possibilidades de entrar em casa: tentou
tornar-se invisível e entrar para a sala de estar atrás de Rabbit. As poucas vezes que Rabbit se punha a miar para que lhe abrissem a porta em vez de entrar pela
cave, Heathcliff passava-lhe à frente para se introduzir pela nesga da porta entreaberta, ou então, sentava-se simplesmente no alpendre e berrava.
A sua admissão, não obstante o seu planeamento cuidadoso, aconteceu por acaso. Uma noite, já tarde, acordei ao som de um piar frenético. Da janela podia
distinguir uma vaga forma a esvoaçar à volta das amoreiras. O piar era de tal modo desesperado que desci a correr lá para fora sem perder tempo a vestir-me. Dei
com o Heathcliff a perseguir um pintarroxo que mal sabia voar. Embora jovem demais para voar eficientemente, o passarinho estava a dar que fazer ao gato, esvoaçando
e sempre em movimento de um lado para o outro. Normalmente, um pássaro jovem e saudável consegue voar aos círculos à volta de um gato, mas eu sabia que neste caso
as vantagens iam para o gato, por isso apanhei e peguei no Heathcliff ao colo. Como o anexo tinha um buraco de tamanho suficiente para o Heathcliff passar, tinha
a certeza que ele voltaria para acabar o que não acabara logo que me fosse embora. E da cave podia ele sair sem complicações. E porque estava em pijama e com tanto
frio que não dava para raciocinar, trouxe o Heathcliff para dentro de casa e tranquei-o na cozinha. Depois voltei para o relvado, consegui apanhar a avezinha, pu-la
sobre um ramo da amoreira e voltei para a cama.
Esqueci-me de mencionar o acontecimento àJanine e a sua surpresa, na manhã seguinte ao entrar na cozinha, só se igualou à do Rabbit. Quando este entrou para
comer o pequeno-almoço, a visão inesperada de Heathcliffdentro de casa - feliz, a lamber o prato de leite - siderou-o. Rabbit pôs-se logo em posição de ataque, cuspindo
e bufando, e perseguiu o intruso até à sala de estar. Heathcliff refugiou-se debaixo do sofá e recusou-se a sair dali.
Despeitado, Rabbit comeu depressa e saiu. Heathcliff manteve-se perto do seu santuário o resto do dia. Nessa noite, estando eu sentado no sofá a ler, o Heathcliff
saiu do seu refúgio e saltou para o meu colo, como se fosse um hábito de anos. Eu tinha adquirido um segundo gato.
Dois gatos podem viver com o mesmo que se gasta para um, e o dono deles diverte-se a dobrar. No principio, pensei nos problemas que poderiam surgir em manter
dois gatos crescidos debaixo do mesmo tecto. Nesse tempo não acalentava a ideia de capar gatos, e os machos adultos são notoriamente agressivos quando juntos. Mas,
tirando a reacção precipitada daquela primeira manhã, continuaram a entender-se e nada mais grave aconteceu para além de umas brigas amigáveis. Os gatos resolveram
os problemas entre si, e dividiram a casa e o terreno como dois potentados.
Como se tivesse sido combinado, Rabbit continuou a exercer total autoridade no exterior; Heathcliff apropriou-se do interior. Após a longa luta para se tornar
um gato de casa, suponho que não queria arriscar-se a ficar fechado lá fora outra vez e, durante muito tempo, raramente ia mais longe do que o alpendre.
Gostava particularmente do peitoril da janela do meu escritório. O sol batia lá a maior parte do dia e ele podia relaxar num luxo indolente, a sua imensa
cauda em volta dele, olhando-me a trabalhar à secretária. Também apreciava o sofá da sala de estar e, claro, a cama.
Nada o fazia sair do lugar onde estava a não ser o aspirador. Em qualquer outra ocasião, quando queríamos que ele se mexesse tínhamos que pegar nele ao colo
e fazer nós mesmos a remoção. Mas o ruido do aspirador aterrorizava-o. Logo que o ouvia procurava um esconderijo o mais longe possível do barulho. Rabbit deve ter-se
rido secretamente pois instrumentos mecânicos não o incomodavam de modo algum, e brincava afoitamente com o fio eléctrico enquanto Heathcliff tremia debaixo do sofá.
Outra área que o fascinava muito era a cozinha. Não lhe tinha levado muito tempo para descobrir que este lugar, em especial, era a fonte e origem dos deleitosos
pratos de carne e pires de leite. Manifestava um interesse de proprietário nela e gostava de se certificar de que tudo corria como devia, de que as refeições apareciam
em quantidade e a horas. Gostava de espreitar para dentro do frigorífico e arriscava-se a ficar com a cabeça presa na porta. Também costumava saltar para cima do
fogão, o que suspendeu após ter queimado a cauda.
Quando ouvia o som de loiça na cozinha, dirigia-se para lá e quedava-se no meio do chão, não se importando que se tropeçasse nele ou que lhe pisassem a cauda.
Quando via encher o seu prato começava uma espécie de dança de guerra indígena, miando, emproando-se, dando voltas e sacudindo as suíças farfalhudas.
No principio, sempre que lhe dávamos de comer, ele devorava a comida tão depressa que, ocasionalmente, tinha que lhe retirar o prato para lhe dar tempo de
engolir o que tinha na boca. Rabbit comia metodicamente, muito cuidadoso em manter a comida no prato e, não sendo exactamente lento, era eficaz; enquanto Heathcliffatacava
uma porção de carne com molho com tal ansiedade que o prato virava. Mais tarde, quando percebeu que as refeições seriam um acontecimento permanente na sua vida,
deixou de as considerar tão desesperadamente importantes e comia mais pausadamente; saboreando cada bocado, cheirando e lambendo os bigodes. Em comparação, Rabbit
teria comido o dobro no mesmo espaço de tempo.
Heathcliff também instituiu a ceia na nossa casa. Antes, dávamos de comer a Rabbit duas vezes por dia: leite e ração para gatos de manhã, às vezes juntávamos
um ovo cru; carne de cavalo moída ou fígado às seis da tarde. Passado pouco tempo após Heathcliff ter vindo para nossa casa, começou a dirigir-se para a cozinha,
a altas horas da noite, fazendo sons inquisitivos para o frigorífico. Achou-me fácil de convencer, pois correspondia sempre à sua sugestão dando-lhe um petisco qualquer.
Quando Rabbit descobriu que se servia a estas horas invulgares, tornou-se um defensor entusiástico da terceira refeição e a ceia transformou-se rapidamente num banquete.
Janine e eu até os acompanhávamos, comendo sandes e bebendo café enquanto esperávamos que os gatos acabassem.
Depois dos pratos arrumados e dos dois gatos se terem certificado de que esta era a nossa última aparição como maitres dÒÀôtel, Rabbit vadiava até ao clube
e Heathcliff embrulhava-se na sua cauda.
O programa de dormidas de ambos podia fazer parte de uma ópera cómica na qual dois locatários dividem, sem o saber, o mesmo quarto a horas diferentes. Embora
Rabbit não desse passeios extensos a partir do Natal e se tivesse mantido perto de casa durante o tempo frio, a chegada do tempo quente chamava-o irresistivelmente
para o mundo exterior. Havia muitos grilos, jovens ratinhos, sapos e outras criaturas nocturnas a circular lá fora para que um gato com o temperamento dele perdesse
tempo num descanso inútil.
Heathcliff, por outro lado, devia ter visto o suficiente na sua vida passada porque preferia passar as noites na cama tomando o velho lugar de Rabbit, esticado
sobre os meus pés.
A minha mulher queixa-se de eu ter um sono irrequieto. Eu nego, mas não contesto; na realidade sofro de uma leve insónia e admito que dou voltas e reviravoltas
antes de adormecer. Heathcliff aceitou os meus hábitos sem se queixar. À medida que me vou virando para o lado esquerdo e para o direito, de costas ou de bruços,
que encolho e estico as pernas, ele lá vai aguentando como pode, agarrando-se com as garras à coberta do mesmo modo que um náufrago se agarra à bóia salva-vidas.
Uma ou duas vezes emitiu uns sons reprovadores quando achou que eu exagerava, mas na manhã seguinte encontrava-se sempre no seu lugar.
Ao raiar da alvorada, hora em que Heathcliffnormalmente começava a acordar, vinha o Rabbit para dormir uma soneca antes do pequeno-almoço; saltava para o
lugar ainda quente do Heathcliff, enquanto este bocejava, se espreguiçava e afiava as unhas na carpete e se lavava com vagar. Se Heathcliff decidia dormir mais uns
minutos, o Rabbit deitava-se simplesmente por cima dele.
Os horários deles também coincidiam algumas vezes durante o dia como, por exemplo, às refeições; mas a uma certa hora, mesmo antes do anoitecer, os gatos
estavam alerta sem mais que fazer a não ser desporto no relvado. Rabbit costumava aparecer, sem falhar, na esquina do anexo e emitia um chamamento tipo campainha.
Normalmente, o Heathcliff esperava sentado no peitoril da janela aberta da cozinha, à escuta do sinal. Já tinha ultrapassado o medo de ficar fechado lá fora
e respondia de boa vontade ao Rabbit. Saltava para o solo, aquecia os músculos com uns exercícios preliminares e depois começava a competição atlética.
O programa incluia uma mistura de várias modalidades como boxe, esgrima, ju-jitsu, savate francês e luta greco-romana.
O estilo dos dois gatos era notoriamente diferente; Rabbit, um espadachim, atacava rapidamente com uma pata em riste ou em incursões céleres, mordiscando
as orelhas ou o pescoço do oponente. O seu pêlo curto e brilhante, liso como o maillot de um acrobata, tornava-o semelhante a uma flecha castanha e branca quando
dava cambalhotas, rodopiava ou estacava antes de investir de novo.
Heathcliff, entretanto, imitava o Leão de Lucerna inclinado para um lado em posição de defesa. A juba azul desgrenhada, os olhos amarelos observando cada
pirueta, esperava uma chance de acertar nas patas do bailarino Rabbit. Heathcliff era um lutador de corpo a corpo; se Rabbit se descuidava, o gato azul envolvia-o
e agarrava-o num golpe de luta livre aplicado pela frente. Às vezes roubava a iniciativa a Rabbit e perseguia-o com grande estardalhaço. Eram tão realistas na sua
luta que eu temia que um se pudesse magoar; mas invariavelmente terminavam agitados mas sem feridas. Tanto quanto eu me lembre, as diversas competições acabavam
com empate.
Continuavam a guerrear-se depois do sol posto e, ao observá-los na penumbra, os arbustos normais tornavam-se facilmente numa vegetação mais selvagem e os
meus dois amigos em dois tigres fantasmagóricos ameaçando-se mutuamente sem tréguas num mundo mais primitivo.
Nas semanas seguintes tornou-se óbvio que Heathcliff era o MEU gato. Quase não podia ir de um lado para o outro sem que ele me seguisse; se o deixava na
cama ou no peitoril da janela a dormir e fosse para outra divisão da casa em breve ouvia um som surdo e, pouco tempo depois, o grande gato felpudo estava à minha
beira. Quando me debruçava para o afagar deitava-se de costas alegremente - uma das suas posições favoritas de afecto. Ao contrário de Rabbit, gostava que lhe pegassem
ao colo e deixava-se agarrar voluntariamente. Descansava a enorme cabeça mesmo debaixo da minha clavícula, enquanto a cauda envolvia o meu braço como um velho xaile
azul.
Pela minha parte, dava-me sempre prazer vê-lo. A minha afeição por Rabbit não tinha diminuído, mas admito que me lisonjeava ter um gato que gostava tanto
da minha companhia. Com o bom tempo, os afazeres de Rabbit lá fora aumentaram e passava-se a maior parte do dia antes que o víssemos, de relance, dentro de casa.
Heathcliffporém, estava normalmente à mão, quer estivesse na disposição de mimos ou não. Parecia saber que, mais tarde ou mais cedo, eu viria ter com ele e ele gostava
de estar a postos.
Mas adulações e esperas pelas pessoas não são facetas fortes nos felinos; mesmo em casa, Heathcliff podia estar tão distante como se estivesse a milhas dali.
Às vezes, talvez para me ensinar a não o ter como certo, não me ligava minimamente: ao procurar afagá-lo fugia, indignado, como se eu quisesse assassiná-lo. Usualmente
permitia-me uma quantidade de brincadeiras, desgrenhá-lo ou beliscar a sua enorme cauda mas, quando de mau humor, dava um grunhido grave e levantava as patas dianteiras
mostrando as garras e provando que não estava para ali virado. Felizmente, essas ocasiões eram raras e depois recompensava-as com ronronares mais altos e demonstrações
de carinho ainda mais entusiásticas.
Não faço a mínima ideia daquilo que leva um animal a escolher uma pessoa numa família, a escolher irrevogavelmente um indivíduo como companhia constante
e excluir por completo todos os outros. Rabbít, quando tinha tempo, dividia imparcialmente as suas boas graças; contente em ver a minha mulher, contente em ver-me
a mim. Se achava que era o momento de ronronar e dar marradinhas, fazia-o em excesso. Nunca era tímido perante as pessoas estranhas, tratava as visitas polidamente
e, por vezes, podia ser induzido a brincar com crianças.
Heathcliff mantinha-se à minha beira e tinha uma atitude definitivamente negativa perante as visitas; embora nunca fugisse delas, sacudia a cabeça com desdém,
se alguém, além de mim, o tentasse afagar. Na presença de visitas aninhava-se aos meus pés ou no meu colo, piscando os olhos sem parar. Se acontecia eu demonstrar
interesse especial pela conversa, ele pressionava o corpo dele contra o meu, chegando a espetar de leve as garras para me lembrar que estava ali; ou então, carregava
o sobrolho malignamente, lançando olhares terrivelmente negativos que chegaram a assustar a mulher de um amigo meu. E, por isso, não gozava nem de longe nem de perto
da popularidade do simpático Rabbit. As pessoas que chegavam a conhecer melhoro Heathcliff, acabavam por apreciar a sua personalidade, mas outras perguntavam frequentemente
como é que eu tolerava um gato tão desagradável.
O favoritismo e parcialidade que Heathcliff me devotava até deu origem a algumas criticas por parte deJanine. Ela sentia, com razão, que tinha sido ela que
me introduzira no mundo dos gatos e que eu ainda não tinha ultrapassado a fase do estágio; por isso ela achava, e bem, que de todos, era ela quem devia ter uma ligeira
prioridade nos favores de Heathclif. Certamente que os merecia, porque cuidava mais do bem-estar dele do que eu, dando-lhe de comer, mudando-lhe a areia quando lho
pedia, e desfazendo os nós do seu pêlo - algo que eu não conseguia.
De facto, Heathcliff aproveitava-se da própria indiferença; para tentar ganhar os seus favores, Janine subornava-o com petiscos extra.
Ele tinha a consciência absoluta de que Janine reinava na cozinha. Pedia-lhe a ela, e não a mim, de comer, abanando a cabeça e quase apontava para o prato.
Se ela se atrasava na preparação da ceia, o método dele para lhe chamar a atenção seguia um esquema demorado. O Rabbit mostrava a sua fome saltando simplesmente
para o escoadouro. O Heathcliffpreferia um processo mais complicado:
primeiro arranhava a carpete, um meio infalível para chamar a atenção da minha mulher; depois fazia um sem número de partidas falsas em direcção da cozinha. Nesta
altura era suposto que aJanine o seguisse. Se ela hesitava ou parava no meio da sala de estar, ele voltava, circulava à volta dela e tornava a dirigir-se para a
cozinha. Às vezes, para o arreliar, ela fingia não perceber o que ele queria. Então Heathcliff redobrava as arranhadelas na carpete e os seus movimentos em direcção
da cozinha. Quando ela, por fim, acedia, ele ia à frente como que dançando, triunfante.
Quando acabava de comer, refastelava-se no meu colo e durante o resto da noite não ligava mais àjanine.
Apesar da afeição que tinha por mim, Heathcliffconsiderava que eu tinha defeitos. Tomou medidas para os corrigir e mostrou a mesma perseverança que tinha
usado para ter entrada dentro de casa. Nunca imaginei que os meus hábitos fossem pouco razoáveis, mas Heathcliff achava que sim e nunca perdia uma oportunidade para
me indicar o bom caminho.
Em primeiro lugar protestou contra o meu horário irregular. Nesse tempo trabalhava como escritorário e fazia também alguns trabalhos de tradução. Já que
os dias me pertenciam, podia-me organizar como bem entendesse, deitava-me tarde e mantinha um horário muito flexível. Começava a trabalhar ao fim da tarde e continuava
até à meia-noite ou uma da manhã, levantando-me no dia seguinte às oito horas. Mas na maior parte das vezes, continuava a trabalhar até muito depois da hora estabelecida
e, nesses casos, dormia até perto do meio-dia. Depois do almoço, recomeçava e passava o resto da tarde sentado à escrivaninha. Conforme a evolução do trabalho, tudo
estava sujeito a mudanças sem aviso prévio. Podia trabalhar a tarde inteira, continuando pela noite dentro, comendo quando me apetecia. A minha mulher censurava
este meu procedimento desde o começo do nosso casamento, mas foi necessária a perseverança de Heathcliff para me fazer rever os meus hábitos.
Para começar, em relação ao Heathcliff, eu fazia tudo ao contrário. Contrastando com o Rabbit, Heathcliff era um gato que gostava do dia. Levantando-se cedo,
tomava o pequeno-almoço logo que conseguia persuadir a minha mulher a prepará-lo. Fortificado com leite e ração para gatos, sentia-se na disposição para exercícios
e brincadeiras matinais. Embora ele nunca protestasse quando, durante a noite, eu me virava e revirava, eu era uma presa fácil para ele quando dormia durante as
manhãs. Ele voltava sempre ao quarto de dormir, depois do pequeno-almoço, para ver o que eu estava a fazer; se eu fizesse o mínimo movimento durante o sono, ele
saltava para cima de mim, brincando com os meus pés, por cima da coberta ou dava corridas para a frente e para trás por cima da minha barriga. Se parecia determinado
em ignorar as suas investidas, ele aninhava-se relutantemente junto a mim e, daí a pouco, recomeçava as suas práticas; mas o impacto de um gato saltar para cima
de mim era normalmente o suficiente para me acordar de vez. Ele continuou com as suas investidas até que, em defesa própria, comecei a trabalhar às seis da manhã,
indo mais cedo para a cama.
Não contente com isto, também condicionou as minhas tardes. Heathcliff defendia firmemente a sesta; a sua hora era às três e meia, o local era o meu regaço.
Eu não podia fazer grande coisa com ele esparramado sobre os meus joelhos e ele tinha o ar de quem estava tão confortável que comecei a pensar que talvez aquilo
não fosse de todo má ideia. E assim, o Heathcliff e eu dormíamos juntos uma hora de tarde.
Gradualmente, mudei o meu programa original, trabalhando de dia e tomando as refeições a horas normais e humanas. Consegui isso e tornei ajanine e o Heathcliff
consideravelmente mais felizes.
Num ponto, contudo Heathcliff e eu não chegámos a um compromisso: o meu violino. Comecei a tocar violino como um hobby e como uma forma de relaxe. Como todos
os amadores, levava às vezes a minha vocação ao extremo, roçando e serrando até que me sentia mais exausto do que relaxado. Mas praticava religiosamente uma hora
por dia, após o jantar.
Não acredito que as vibrações das notas firam os ouvidos dos gatos, porque Rabbit nunca protestou. Mas Heathcliff não tolerava o ruído. Achava o próprio
instrumento desagradável, e pior ainda, detestava-o e não se preocupava em demonstrá-lo. Se ele estava comigo quando começava a afinar o instrumento, chegava-se
a mim, miando, tentando convencer-me a pôr de lado a rabeca, esfregando-se nas minhas pernas, arqueando o dorso para ser afagado. Se isso não desse resultado, propunhajogarmos
um jogo. Como eu tocava no meu escritório, Heathcliff encontrava sempre algum papel amarrotado com o qual podia brincar: trazia-o até ao meio da sala, atirando-o
para aqui e ali, lançando-me olhares convidativos. Finalmente, quando tudo tinha falhado, recorria à acção directa: levantava-se nas patas traseiras e enterrava
as garras nos meus joelhos. Quanto mais eu tocava mais ele enterrava, uivando e rosnando ao mesmo tempo. Tentei treinar-me com um violino mudo, mas também não gostava
desse.
Não valia a pena pô-lo fora da sala. Por muito que ele detestasse o violino, sempre que o ouvia vinha ter ao escritório, da cozinha, do quarto, de qualquer
lugar onde estivesse nesse momento. No Verão, com as janelas abertas, ao ouvir os sons da rabeca ele interrompia as suas actividades para vir demonstrar os seus
protestos.
Como sempre, rendi-me e acabei com o violino. Tal como a minha mulher lhe tem de dar graças por me ter obrigado a um horário respeitável, tenho a certeza
de que os vizinhos ficaram igualmente gratos pelos resultados que obteve quanto à minha ambição musical.
Os gatos causam-nos impressões que aumentam a nossa imaginação. Não é nenhum crime e gostamos mais deles por isso mesmo. Mas nunca encontrara um gato que
exercesse tanta variedade de efeitos como o Heathcliff. Primeiro, com o seu pêlo desgrenhado e o seu andar absurdo, fez-me lembrar Mr. Micawber. Ou um vigarista,
um impostor e trapaceiro. Com o seu ar misterioso, as suas longas meditações, transformava-se facilmente num poeta romântico. Também encontrei semelhanças com um
filósofo, um aristocrata falido ou um velho depravado.
Mas, no fundo, para mim, ele foi sempre o Heathcliff. Via tanta liberdade nele com o seu aspecto taciturno e cigano, que nunca dei muita credibilidade às
outras semelhanças. Embora estivesse a ler O Monte dos Vendavais quando ele apareceu, e as suas personagens me viessem imediatamente à mente, penso que me lembraria
de qualquer modo desse nome como o único possível.
Heathcliff tornou o livro numa fonte de comparações. Por piada, lia uns extractos para a minha mulher, dando ênfase ao nome sempre que este aparecia no texto.
O efeito era ainda mais notório quando acontecia Heathcliff estar à nossa beira.
Encontrava uma passagem como "... na aparência é como um cigano moreno, no vestir e nos modos um senhor; um senhor como muitos fidalgos rurais, bastante
desleixado talvez, contudo não parecendo mal na sua negligência, porque tinha uma figura direita e agradável; e bastante taciturno".
Entretanto, o nosso Heathcliff piscava os seus olhos amarelos de mocho como se aprovasse.
O que começou como um divertimento, tornou-se-me uma obsessão. Até aos dias de hoje não consigo ler a passagem: "os seus olhos de basilisco estavam
quase fechados... os lábios cerrados com uma expressão de tristeza infinita..." ou "o Sr. Heathcliff austero e taciturno" sem pensar no meu bom amigo.
Mas acho que isso não vem prejudicar o livro. Apenas me faz abordar de uma maneira diferente a obra de Emily Bronte.
Trad. J. L. F.
*O GATO QUE ANDAVA SOZINHO
Rudyard Kipling
Isto passou-se e aconteceu e deu-se e foi, ó minha Bem-
-Amada, quando os animais domésticos ainda eram selvagens. O Cão era selvagem, o Cavalo era selvagem e a Vaca era selvagem, a Ovelha era selvagem e o Porco era selvagem
- o mais selvagem possível - e todos eles andavam nas húmidas florestas selvagens, cada qual com os da sua espécie; mas o mais selvagem de todos os animais selvagens
era o Gato. O Gato andava sozinho e todos os lugares eram iguais para ele.
Claro que o Homem também era selvagem. Era terrivelmente selvagem. Só começou a ficar domesticado quando encontrou a Mulher e porque esta não gostava da
maneira selvagem como ele vivia. A Mulher escolheu uma gruta seca e confortável em vez de um monte de folhas molhadas para dormir e no fundo da gruta fez uma fogueira
agradável e pendurou à entrada uma pele seca de Cavalo Selvagem, com a cauda para baixo e disse: "Limpa os pés quando entrares para termos a casa em ordem."
Nessa noite, Bem-Amada, comeram Carneiro Selvagem assado nas pedras quentes da lareira e temperado com alho e pimenta brava e Pato Selvagem recheado de arroz
bravio e funcho silvestre e cominhos bravos e ossos de tutano de Boi Selvagem e cerejas bravas e groselhas silvestres. Depois o Homem foi dormir todo contente junto
do fogo mas a Mulher ficou acordada, sentada, a matutar. Pegou no osso da omoplata do carneiro, o grande osso chato e largo, ficou a contemplar as maravilhosas marcas
que o osso tinha, pôs mais lenha no fogo e fez uma magia. Fez a primeira Magia Cantante do mundo.
Lá fora, nas húmidas florestas selvagens, todos os animais selvagens se reuniram num ponto de onde conseguiam ver a luz do fogo ao longe e perguntavam a
si próprios o que poderia ser aquilo.
Então o Cavalo Selvagem bateu com a pata no chão e disse:
- Ó meus amigos e meus inimigos, porque é que o Homem e a Mulher fizeram aquela grande luz naquela grande gruta e que mal nos poderá aquilo trazer?
O Cão Selvagem ergueu o focinho e farejou o cheiro da ovelha assada e disse:
- Vou erguer-me e caminhar, e ver e ficar lá: porque penso que é bom. Gato, vem comigo.
- Nérias - disse o Gato. - Eu sou o Gato que anda sozinho e todos os lugares são iguais para mim. Não vou.
- Então não voltaremos a ser amigos - disse o Cão Selvagem e partiu a trote em direcção à gruta.
Mas passado um bocado o Gato disse para com os seus botões:
- Todos os lugares são iguais para mim. Porque não hei-de eu também pôr-me a caminho e ver e vir-me embora?
E assim rastejou em silêncio atrás do Cão Selvagem e escondeu-se num sítio onde podia ouvir tudo.
Quando o Cão Selvagem chegou à entrada da gruta soergueu com o focinho a pele de cavalo seca, farejou o maravilhoso cheiro do carneiro assado e a Mulher
ouviu-o, riu-se e disse:
Aqui vem a primeira coisa selvagem saída da floresta selvagem. Que queres tu?
O Cão Selvagem disse:
- Ó minha inimiga e mulher do meu inimigo, que é isto que cheira tão bem na floresta selvagem?
Então a Mulher pegou num osso do carneiro assado, atirou-o ao Cão Selvagem e disse:
Coisa selvagem vinda da floresta selvagem, prova e experimenta!
O Cão Selvagem roeu o osso e era mais delicioso que qualquer outra coisa que ele comera na vida; disse:
- Ó minha inimiga e mulher do meu inimigo, dá-me outro.
A Mulher disse:
Coisa selvagem vinda da floresta selvagem, ajuda o meu Homem a caçar durante o dia e guarda esta gruta durante a noite e eu dou-te todos OS ossos assados
que quiseres.
- Ah! - disse o Gato que tinha ouvido tudo. - Esta Mulher é muito sensata mas não é tão sensata como eu.
O Cão Selvagem rastejou para dentro da gruta e pousou a cabeça no regaço da Mulher e disse:
- Ó minha amiga e mulher do meu amigo, eu ajudarei o teu Homem a caçar durante o dia e guardarei a tua gruta durante a noite.
- Ah! - disse o Gato que tinha ouvido tudo. - Aqui temos um Cão bem tolo.
E foi-se embora através da húmida floresta selvagem abanando o rabo, sozinho na sua independência selvagem. Mas nunca contou nada a ninguém.
Quando o Homem acordou, disse:
- Que está o Cão Selvagem a fazer aqui?
E a Mulher disse:
- O nome dele já não é Cão Selvagem mas sim Primeiro Amigo porque será nosso amigo para todo o sempre. Leva-o contigo quando fores caçar.
Na noite seguinte a Mulher cortou grandes braçadas de erva fresca nos lameiros e secou-a diante do fogo de modo que tudo ficou a cheirar a feno recentemente
cortado e ela sentou-se à entrada da gruta a entrançar uma coleira com pele de cavalo e olhou para o osso do carneiro - o grande osso chato e largo - e fez uma magia.
Fez a segunda Magia Cantante do mundo.
Lá fora, no bosque selvagem, todos os animais selvagens se perguntavam o que teria acontecido ao Cão Selvagem e, finalmente, o Cavalo Selvagem, escarvando
o chão, disse:
- Vou pôr-me a caminho e ver porque é que o Cão Selvagem não aparece. Gato, anda comigo.
- Nérias - disse o Gato. - Eu sou o Gato que anda sozinho e todos os lugares são iguais para mim. Não vou.
Mas, apesar disto, seguiu o Cavalo Selvagem em silêncio, muito em silêncio e escondeu-se onde podia ouvir tudo.
Quando a Mulher ouviu o tropel do Cavalo Selvagem que se aproximava com a sua enorme crina a ondular riu-se e disse:
- Aí está a segunda coisa selvagem vinda da floresta selvagem. Que queres?
O Cavalo Selvagem disse:
- Ó minha inimiga e mulher do meu inimigo, onde está o Cão Selvagem?
A Mulher riu-se e pegando no osso largo e chato disse:
- Coisa selvagem vinda da floresta selvagem, tu não vieste aqui à procura do Cão Selvagem mas sim por causa desta bela erva.
E o Cavalo Selvagem a tropeçar na sua longa crina, disse:
- É verdade, dá-me a comer dessa erva.
A Mulher disse:
- Coisa selvagem vinda da floresta selvagem inclina a tua cabeça selvagem e usa aquilo que te vou dar e comerás desta erva maravilhosa três vezes por dia.
- Ah! - disse o Gato que tinha ouvido tudo. - Esta Mulher é esperta mas não é tão esperta como eu.
O Cavalo Selvagem inclinou a cabeça selvagem e a Mulher enfiou-lhe a rédea de pele entrançada e o Cavalo Selvagem soprou para os pés da Mulher e disse:
- Ó minha dona e mulher do meu dono, serei teu servo por amor desta erva maravilhosa.
- Ah! - disse o Gato que tinha ouvido tudo. - Aqui temos um Cavalo bem tolo.
E foi-se embora através da húmida floresta selvagem abanando a cauda selvagem, sozinho e independente.
Quando o Homem e o Cão voltaram da caça, o Homem perguntou:
- Que está o Cavalo Selvagem a fazer aqui?
E a Mulher disse:
- O nome dele já não é Cavalo Selvagem mas sim Primeiro Servo porque ele nos transportará de um lugar para outro para todo o sempre. Leva-o contigo quando
fores à caça.
No dia seguinte, de cabeça bem inclinada para trás para não emaranhar os cornos selvagens nos ramos das árvores selvagens, a Vaca Selvagem veio até à gruta
e o Gato seguiu-a e escondeu-se tal como tinha feito das outras vezes; e tudo se passou exactamente como das outras vezes; e o Gato disse a mesma coisa que das outras
vezes e quando a Vaca Selvagem prometeu dar o seu leite todos os dias à Mulher em troca da maravilhosa erva o Gato afastou-se através da húmida floresta selvagem,
sozinho e independente como das outras vezes.
E quando o Homem e o Cão e o Cavalo voltaram da caça e fizeram as mesmas perguntas, tal como antes, a Mulher disse:
- O nome dela já não é Vaca Selvagem mas sim Dadora de Coisas Boas. Dar-nos-à o seu leite branco e quente para todo o sempre e eu tomarei conta dela enquanto
vocês três vão à caça.
No dia seguinte o Gato pôs-se à espreita a ver se qualquer outra criatura selvagem iria até à gruta mas nenhuma se moveu de forma que o Gato resolveu ir
lá sozinho e viu a Mulher a mungir a Vaca e viu a luz da fogueira na gruta e sentiu o cheiro do leite branco e morno.
O Gato disse:
- Ó minha inimiga e mulher do meu inimigo, onde foi a Vaca Selvagem?
A Mulher riu-se e disse:
- Coisa selvagem vinda da floresta selvagem, volta para a floresta porque eu entrancei o meu cabelo e arrumei o osso chato e largo e já não precisamos de
mais amigos nem de mais servos na nossa gruta.
O Gato disse:
- Não sou um amigo nem sou um servo. Sou o Gato que anda sozinho e quero entrar na tua gruta.
A Mulher disse:
- Então porque não vieste com o Primeiro Amigo na primeira noite?
O Gato ficou muito zangado e disse:
- Será que o Cão Selvagem andou a contar coisas a meu respeito?
Então a Mulher riu-se e disse:
- Tu és o Gato que anda sozinho e para quem todos os lugares são iguais. Não és um amigo nem um servo. Tu próprio o disseste. Vai-te embora e anda sozinho
pelos lugares iguais.
Então o Gato fez de conta que estava arrependido e disse:
- Será que nunca poderei entrar na gruta? Será que nunca me poderei sentar quentinho junto ao lume? Será que nunca beberei o leite branco e morno? Tu és
muito esperta e muito bonita. Não devias ser cruel nem sequer para com um Gato.
Então a Mulher disse:
-Já sabia que era esperta mas não sabia que era bonita. Assim vou fazer um pacto contigo. Se alguma vez disser uma palavra em teu louvor poderás entrar na
gruta.
- E se disseres duas palavras em meu louvor? - disse o Gato.
- Tal nunca acontecerá - disse a Mulher - mas se disser duas palavras em teu louvor poderás sentar-te ao pé do lume na gruta.
- E se disseres três palavras? - disse o Gato.
- Tal nunca acontecerá - disse a Mulher - mas se o fizer poderás beber leite branco e morno três vezes por dia para todo o sempre.
Então o gato arqueou o lombo e disse:
- Agora, que a cortina à entrada da gruta e o fogo no fundo da gruta e o pote de leite que está ao pé do fogo se lembrem daquilo que disse a minha inimiga
e mulher do meu inimigo.
E afastou-se através da húmida floresta selvagem, abanando a cauda selvagem, sozinho e independente.
Nessa noite, quando o Homem e o Cavalo e o Cão voltaram da caça, a Mulher não lhes falou do pacto que tinha feito porque teve medo que eles não gostassem.
O Gato foi para muito, muito longe e escondeu-se durante muito tempo, sozinho, na húmida floresta selvagem de modo que a Mulher se esqueceu completamente
dele. Só o Morcego - o pequeno Morcego de pernas para o ar - que vivia pendurado na gruta conhecia o esconderijo do Gato e todas as noites voava até lá para lhe
levar notícias.
Uma noite o Morcego disse:
- Há um Bebé na gruta. É novo, rosado, gordo e pequeno e a Mulher gosta muito dele.
- Ah! - disse o gato, ouvindo atentamente. - E de que é que o Bebé gosta?
- Gosta de coisas macias e que fazem cócegas - disse o Morcego. - Gosta de agarrar em coisas quentinhas quando quer dormir. Gosta que brinquem com ele. Gosta
de todas essas coisas.
- Ah! - disse o Gato - então chegou a minha hora.
Na noite seguinte, o Gato atravessou a húmida floresta selvagem e escondeu-se muito perto da entrada da gruta até de manhã. A Mulher estava muito ocupada
na cozinha e o Bebé chorava e interrompia-a constantemente; então ela levou-o para fora da gruta e deu-lhe um punhado de seixos para ele se entreter. Mas o Bebé
continuava a chorar.
O Gato aproximou-se e pôs a patinha acolchoada na bochecha do Bebé e o Bebé começou a arrulhar; depois esfregou-se de encontro à perninha gorda e fez-lhe
festas com a cauda debaixo do gordo queixo. E o Bebé riu-se e a mulher ouviu-o e sorriu.
O Morcego - o pequeno Morcego de pernas para o ar - que estava pendurado à entrada da gruta disse:
- Ó minha anfitriã e mulher do meu anfitrião e mãe do meu anfitrião, uma coisa selvagem vinda da floresta selvagemestá a brincar com o teu Bebé.
- Abençoada seja tal coisa selvagem seja ela qual for - disse a Mulher endireitando as costas - porque esta manhã sou uma Mulher muito ocupada e ela prestou-me
um bom serviço.
Nesse preciso momento e segundo, ó Bem-Amada, a cortina de pele de cavalo seca que estava pendurada de cauda para baixo à porta da gruta caiu - Pumba! -
porque se lembrou do pacto e, quando a Mulher foi apanhá-la - pasmem! - o Gato estava muito confortavelmente sentado dentro da gruta.
- Ó minha inimiga e mulher do meu inimigo e mãe do meu inimigo - disse o Gato - sou eu, porque tu disseste uma palavra em meu louvor e agora eu posso sentar-me
na gruta para todo o sempre. Mas continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares são iguais para mim.
A Mulher ficou muito zangada e cerrou os lábios e, pegando no fuso, começou a fiar.
Mas o Bebé chorava porque o Gato se tinha ido embora e a Mulher não conseguiu calá-lo e ele esbracejava e dava pontapés e tinha a cara toda roxa.
- Ó minha inimiga e mulher do meu inimigo e mãe do meu inimigo - disse o Gato - pega num pedaço do fio que estás a fiar e ata-o à tua dobadoura e arrasta-o
pelo chão e eu mostro-te um passo de magia que fará o teu Bebé rir-se tão alto quanto está agora a chorar.
- Farei isso - disse a Mulher - porque cheguei ao fim da minha paciência mas não te agradecerei por isso.
Atou o fio à pequena dobadoura e esticou-o pelo chão e o Gato pôs-se a correr atrás dele e a empurrá-lo com as patas e a dar cambalhotas e a atirar o fio
para trás das costas e a persegui-lo por entre as patas traseiras e a fazer de conta que o perdia e atirava-se para cima dele até o Bebé desatar a rir tanto quanto
chorava antes e gatinhar atrás do Gato pela gruta, muito contente, até se cansar e se instalar para dormir agarrado ao Gato.
- Agora - disse o Gato - vou cantar ao Bebé uma canção que o vai deixar a dormir durante uma hora.
E começou a ronronar alto e baixo, alto e baixo, até que o Bebé adormeceu profundamente. A Mulher sorriu, contemplando os dois, e disse:
- Que coisa bem feita! Não há dúvida que és muito esperto, ó Gato.
Nesse preciso minuto e segundo, ó Bem-Amada, o fumo do lume ao fundo da gruta desceu do tecto em grandes nuvens e, quando se desvaneceu - pasmem! - o Gato
estava sentado, muito confortavelmente, junto da fogueira.
- Ó minha inimiga e mulher do meu inimigo e mãe do meu inimigo - disse o Gato - sou eu, porque tu disseste uma segunda palavra em meu louvor e agora posso
sentar-me muito quentinho junto ao lume para todo o sempre. Mas continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares são iguais para mim.
Então a Mulher ficou muito zangada e soltou os cabelos e pôs mais achas na fogueira e foi buscar o osso largo e chato da omoplata do carneiro e começou a
fazer uma magia que a impedisse de dizer uma terceira palavra em louvor do Gato. Não era uma Magia Cantante, ó Bem-
-Amada, era uma Magia Calante; e pouco a pouco o silêncio na gruta foi-se tornando tão grande que um Rato muito pequenino saiu de um canto e correu pelo chão.
- Ó minha inimiga e mulher do meu inimigo e mãe do meu inimigo - disse o Gato - este Rato pequenino faz parte da tua magia?
- Não - disse a Mulher e deixou cair o osso largo e chato e saltou para cima de um banco em frente à lareira e entrançou o cabelo muito depressa com medo
de que o rato trepasse por ele acima.
- Ah! - disse o Gato. - Então o Rato não me faz mal se eu o comer?
- Não - disse a Mulher continuando a entrançar o cabelo - come-o depressa e eu fico-te grata para sempre.
Dando um salto o Gato apanhou o Ratinho e a Mulher disse:
- Mil vezes obrigada ó Gato. Mesmo o Primeiro Amigo não é tão rápido como tu a apanhar Ratinhos. Deves ser muito esperto.
Nesse mesmo minuto e segundo, ó Bem-Amada, o pote de leite, que estava junto ao lume, partiu-se em dois bocados - Pumba - porque se lembrou do pacto e, quando
a Mulher saltou do banco - pasmem!- o Gato estava a lamber o leite branco e morno que tinha ficado num dos pedaços.
- Ó minha inimiga e mulher do meu inimigo e mãe do meu inimigo - disse o Gato - sou eu, porque tu disseste três palavras em meu louvor e agora eu posso beber
o leite branco e morno três vezes por dia para todo o sempre. Mas continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares são iguais para mim.
Então a Mulher riu-se e pôs à frente dele uma tigela de leite branco e morno e disse:
- Ó Gato, és tão esperto como um Homem é, mas lembra-te que o pacto não foi feito nem com o Homem nem com o Cão e eu não sei o que eles farão quando voltarem
para casa.
- Que me interessa isso? - disse o Gato. - Se eu tiver o meu lugar junto ao lume e o meu leite três vezes por dia que me interessa o que o Homem ou o Cão
possam fazer?
Nessa noite, quando o Homem e o Cão voltaram para a gruta a Mulher contou-lhes a história do pacto e o Homem disse:
- Sim, mas não fez um pacto comigo nem com todos os Homens decentes que vierem depois de mim.
E o Homem tirou ambas as botas de couro e pegou no machadinho de pedra (e são três coisas) e foi buscar uma acha e um cutelo (ao todo são cinco) e pôs tudo
em fila e disse:
- Então agora vamos fazer um pacto. Se não apanhares Ratos enquanto estiveres na gruta e isto para todo o sempre, atirar-te-ei estas cinco coisas sempre
que te vir e assim farão todos os Homens decentes que vierem depois de mim.
-Ah! - disse a Mulher que tinha ouvido tudo. - Este Gato é muito esperto, mas não é tão esperto como o meu Homem.
O Gato contou as cinco coisas (e todas elas tinham um aspecto muito bruto) e disse:
- Enquanto estiver na gruta apanharei Ratos para todo o sempre; mas continuo a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares são iguais para mim.
- Não enquanto eu estiver por perto - disse o Homem. - Se não tivesses dito isso, eu tinha guardado estas coisas todas (para todo o sempre) mas, sendo assim,
agora vou atirar-te as minhas duas botas e o meu machadinho de pedra (o que faz três coisas) sempre que me encontrar contigo e o mesmo farão todos os Homens decentes
que vierem depois de mim.
Então o Cão disse:
- Esperem lá. Ele não fez qualquer pacto comigo. - E sentou-se rosnando de forma muito assustadora, e mostrou os dentes e disse:
- Se não fores bom para o Bebé para todo o sempre enquanto eu estiver na gruta perseguir-te-ei até te apanhar e quando te apanhar hei-de morder-te e o mesmo
farão todos os Cães decentes que vierem depois de mim.
- Ah! - disse a Mulher que tinha ouvido tudo. - Este Gato é muito esperto mas não é tão esperto como o Cão.
O Gato contou os dentes do Cão (que tinham um aspecto muito aguçado) e disse:
- Serei bom para o Bebé para todo o sempre enquanto estiver na gruta desde que ele não me puxe o rabo com muita força. Mas continuo a ser o Gato que anda
sozinho e todos os lugares são iguais para mim.
- Não enquanto eu estiver por perto - disse o Cão. - Se não tivesses dito isso eu tinha fechado a minha boca para todo o sempre mas, sendo assim, perseguir-te-ei
e obrigar-te-ei a trepar às árvores sempre que me encontrar contigo e o mesmo farão todos os Cães decentes que vierem depois de mim.
Então o Homem atirou ao gato as duas botas e o machadinho de pedra (o que faz três coisas) e o Gato fugiu da gruta e o Cão foi atrás dele e obrigou-o a trepar
a uma árvore e desde esse dia, minha Bem-Amada, três Homens decentes em cada cinco atirarão sempre coisas aos Gatos quando os encontrarem e todos os Cães decentes
os perseguirão e obrigarão a trepar às árvores. Mas o Gato também cumpre a sua palavra nos termos do pacto. Enquanto estiver em casa matará Ratos e será bom para
os Bebés desde que estes não lhe puxem o rabo com demasiada força. Mas feito isto e nos intervalos continua a ser o Gato que anda sozinho e todos os lugares são
iguais para ele e, à noite, poderão vê-lo a caminhar no seu modo selvagem e solitário abanando a cauda selvagem tal como sempre.
Trad. L. F.
*UM BARCO CARREGADINHO DE GRAÇA
Eleanor Mordaunt
- O gato é algo de especial, único - destacando-se de todo e qualquer indivíduo. - Admitamos como toda a gente que um gato tem nove vidas, - continuou Charlotre
- e que este gato tem nove individualidades diferentes para cada uma dessas nove vidas - o que faz com que haja catorze pessoas a bordo deste barco, contando o gato
por metade.
Quando Charlotte fala deste modo faz-me lembrar Platão; claro que não é tão profunda, mas é de igual modo intrigante e convincente. - Por exemplo, quando
uma pessoa ao tocar, ao ouvir ou ao aperceber-se de qualquer coisa por um dos sentidos, sabe o que é que faz responder os sentidos, e ao mesmo tempo imagina para
si própria uma outra coisa (independentemente daquele conhecimento, mas graças a outro, completamente diferente), não dizemos com razão que a pessoa se lembra de
coisas que lhe vêm à mente? - A Charlotte ouviu dizer que os gatos têm nove vidas; para ela não pode haver uma individualidade sem haver vida; ela apercebe-se que
o gato do barco tem uma forte individualidade, e (independentemente desse conhecimento, e graças a outro conhecimento totalmente diferente, a saber, - o dom da mulher
de tirar conclusões) argumenta que o gato é semelhante em tudo aos nove indivíduos a bordo do barco. O argumento é decididamente tipo Charlotte, não obstante o facto
de as frases entre travessões se encontrarem no Phaedo.
Apesar de tudo, mesmo sem a sabedoria dos anos para apoiar o seu argumento, ela tem razão: há muitos homens - de toda a espécie - a bordo, mas só há um gato,
e que gato! Ela é sempre referida como ele, apesar de, na viagem de regresso, ela ter trazido ao mundo uma data de gatinhos, durante uma tempestade incrível à passagem
do Cabo Hom; e de o Capitão me ter dito que ela os tratava com uma tolerância mínima, "sendo um patife completo, um osso duro de roer, que é muito mais um ele do
que uma ela".
Mas o gato do barco não é só mais um ele do que uma ela, mas também tem mais características de um cão do que de algum gato que já conheci, sendo a característica
principal a devoção inabalável e firme pelo Capitão; isso, apesar de ser arreliado e atormentado, e, o pior de tudo, ser gozado de um modo que alienaria para sempre
a dedicação de qualquer gato.
- Nós, - isto é, o gato e o Capitão, - temos a bordo galos e galinhas, que nos dias de sol se passeiam na coberta de um modo exasperantemente pomposo. Mas
mesmo assim é suposto permanecerem dentro de certos limites, fazendo estes limites as delicias do gato. Logo que o Senhor do Harém conduz a sua comitiva de mulheres
até à popa, irá pagar caro a sua temeridade. Boy não dá de imediato solução ao assunto, mas se o Capitão está em baixo, o gato desce deliberadamente pela escotilha
de descida e entra no camarote dele, olhando-o por alguns momentos, e depois começa a sair às arrecuas miando com ênfase, convencendo-o a vir testemunhar o escândalo
que está a desgraçar o navio "deles". Mesmo assim continua à espera de ordens, ao lado do dono, lá em cima no convés da popa, com o seu pequeno corpo musculoso de
listas tigradas bem definidas, tenso e rígido, com as pupilas dos olhos verdes contraídas como se fossem cabeças de alfinetes pela intensidade das emoções que o
trespassam enquanto olha - não para os intrusos, mas para os olhos do seu deus. Então, de repente, sem um som, como se uma corrente eléctrica passasse entre eles,
o seu dorso arqueia-se, agacha-se um pouco preparado para o salto, tão pronto que dispara como uma bala, mesmo antes que as palavras "A eles Boy" tenham saído da
boca do Capitão.
Por um instante o galo faz-lhe frente - penas rufadas, bico aberto, asas estendidas - mas só por um momento, durante o qual as suas histéricas fêmeas fogem
para todos os lados, sendo a única preocupação de Boy elas não caírem borda fora. E então, é a vez do senhor delas, que é atacado por todos os lados, parecendo a
fúria peluda que o ataca uma visão indistinta de muitos gatos, tão rapidamente o rodeia, salta e investe, arranha e bufa. As asas do galo estão abertas e estendidas
como protecção e já não em atitude de desafio, a sua crista brilhante e erecta torna-se pálida e flácida, as suas penas curvas da cauda, que podiam ornamentar um
chapéu de marechal, estão tristemente espalhadas pelo convés. O galo corre de um lado para o outro, de cabeça baixa, e de repente, deixando cair toda a réstea de
dignidade, arremessa-se para junto das suas fêmeas que se retiram em debandada para os alojamentos no porão, com as caudas fazendo lembrar crinolinas invertidas
devido ao vento.
Ver Boy brincar à bola com um pedaço de cortiça é na realidade um maravilhoso estudo sobre curvas e vitalidade intensa. Ele agacha-se a cerca de 2,5 metros
do seu dono, as pupilas dos olhos iguais a dois poços pretos, orlados vagamente de verde e a sua cauda bate no convés num movimento regular e circular.
- Pronto Boy! - grita o Capitão e ele firma-se, sacudido por um estremecimento que lhe percorre todo o pequeno corpo, no qual cada átomo de vida está pronto
para o salto; é um momento de vida ou de morte e todo o seu ser resplandece de entusiasmo; está ele, a cortiça e acidentalmente, o homem que a atira - nada nem ninguém
mais em todo o universo.
- Agora! - A cortiça é atirada e Boy salta, completamente esticado, depois no meio do ar enrola-se, com as patas dianteiras esticadas como as mãos de um
jogador de cricket, a um metro de altura do convés agarra a cortiça com as patas enluvadas de branco e aterra enrolando-se no convés, pontapeando a cortiça com as
patas traseiras num transporte de perfeita alegria.
E se ele falha? Ah, isso é outra coisa. Suponhamos que somos bem educados e não rimos, ele simplesmente finge estar esquecido que a cortiça fora atirada,
passeia-se no convés, dirige-se a ela como se algo de novo se tratasse, cheira-a como a querer dizer "o que é isto?", olha para o dono "vamos brincar?" e finalmente,
apanhando-a, deposita-a aos pés dele, pedindo-lhe, como se fosse uma nova ideia, que a atire. Mas se alguém, que não seja o dono, se rir, acabou o jogo nesse dia,
e "sua alteza" retira-se amuado, o que também é, na sua intensidade, outro sinal de que o seu sexo real é um equívoco, porque as mulheres quase nunca amuam, pois
normalmente têm muito que dizer sobre o que as aborrece.
Quando isto acontece ele parece ter prazer em colocar-se nas situações mais perigosas, como na parte superior da popa, ou dentro dos botes, com um ar como
quem diz para si próprio: "Vou-lhes pregar um bom susto e eles vão ter pena de terem agido como agiram".
- Sai daí - grita o Capitão. Mas Boy limita-se a dar-lhe uma olhadela e não mexe sequer um milímetro, até que o dono se abaixa para pegar num cabo e então
foge, que nem uma seta, para um lugar mais seguro, porque sabe muito bem que não pode ir para certos sítios, mesmo que o barco, a bem dizer lhe pertença.
Quando se mata um carneiro, a carne fresca é dependurada por debaixo dos botes no convés principal e atrai Boy como um íman, embora nada neste mundo o faça
comer um bocado. Mas se estamos todos, incluindo ele, claro, porque detesta a solidão, no convés da popa e o Capitão puxa do canivete, ele mia selvaticamente e treme
todo de emoção. Que belo exemplo de autodomínio! Ele quer muito, tanto que fica quase louco com a excitação da probabilidade de obter nem que seja um bocadinho.
Ele podia facilmente servir-se a qualquer hora do dia ou da noite, mas nunca o fez. Agora, digam-me, será a moralidade uma questão de alma, que é concedida ao bêbado
mais inveterado, ao ladrão mais obstinado e contudo negado a Boy!? No salão é a mesma coisa: basta o Capitão pegar no boné para que o gato comece a esfregar-se nas
pernas dele miando: - Carne, carne, carne, carne - por favor.
Mas não se trata de um amor interesseiro, porque mesmo que o salão esteja aquecido, o convés molhado, o tempo uma miséria de ventoso e chuvoso, se o Capitão
está no convés, também o gato tem de lá estar. Às vezes quase que lhe falta a coragem e ele fica à espera a ver se o seu ídolo só foi ver como estava o tempo e torna
a entrar; mas não fica descansado, e passados alguns momentos de espera ansiosa, já não quer saber do conforto e só volta quando o seu dono o fizer. Na outra noite,
foi apanhado por um mar agitado, andando de bolandas de um lado para o outro, sem esperança e indefeso até que foi salvo pelo imediato e levado para o salão, um
farrapo miserento e molhado, que teve de ser lavado em água doce e seco junto ao lume. Mas mesmo nessa ocasião ele não descansou; sentado no meu colo, os seus olhos
não deixavam a porta e tornou a sair antes de estar nem meio seco.
E não é por ser fácil estar junto ao seu ídolo, pois está sempre a ser puxado pelas orelhas ou pelo rabo, ou a ser beliscado nas patas, embora ele raramente
retalie com uma arranhadela ou dentada, mas quando o faz fica tão envergonhado que é de se partir o coração ver o seu profundo mal-estar.
Quando chegámos pela primeira vez a bordo, Boy olhou para nós extremamente desconfiado; talvez lhe fizéssemos lembrar o seu sexo, ou talvez fosse simplesmente
um desagrado total pelas saias a roçar no barco dele. Mas tudo mudou desde aquela noite, quando a Charlotte esteve tão doente. Enquanto o Capitão aplicava cataplasmas,
o Boy andava constantemente dentro e fora, subindo ao beliche, reclamando vigorosamente por atenção e explicações, por que o bichano é feminino de sobra neste aspecto
- quer saber o como e o porquê de tudo. E agora que percebeu que éramos toleradas pelo seu dono, ele também nos tolera e chega a aconchegar-se no meu colo, colocando
ocasionalmente as patinhas fofas no meu peito e convidando-me amigavelmente a esfregar os narizes. Mas isto só acontece quando não pode estar sentado nos joelhos
do seu dono, o que de longe prefere, embora pareça e deva ser muito desconfortável, não tendo o volume das saias para lhe dar conforto.
trad. £j. L.
*SOBRETUDO GATOS
Doris Lessing
Vim viver para uma terra de gatos. As casas são velhas e têm jardins estreitos protegidos por muros. Pelas janelas das traseiras de nossa casa vê-se uma dúzia de
muros para um dos lados, uma dúzia de muros para o outro, de todos os tamanhos e feitios. Árvores, erva, arbustos. Há um pequeno teatro com vários telhados a alturas
diferentes. Os gatos proliferam por aqui. Há sempre gatos nos muros, nos telhados e nos jardins, vivendo a sua vida complicada e secreta como a vida das crianças
da vizinhança que se desenrola segundo regras próprias que os adultos nunca conseguem imaginar nem entender.
Eu sabia que teria de haver um gato na casa. Tal como sabemos que se uma casa for muito grande hão-de vir pessoas viver nela, também certas casas têm de
ter gatos. Mas, durante algum tempo, repeli os vários gatos que vieram meter ali o nariz para ver que género de sítio era aquele.
Durante todo aquele terrível Inverno de 1962, o jardim e o telhado que cobria a varanda das traseiras receberam a visita de um velho gatarrão preto e branco.
Sentava-se sobre a neve escorregadia do telhado; deambulava pelo chão gelado; quando se abria por instantes a porta das traseiras ficava sentado à entrada a olhar
para a sala aquecida. Não era nenhuma beleza, tinha uma mancha branca sobre um dos olhos, uma orelha rasgada e uma mandíbula sempre um pouco descaída. Mas não era
um gato vadio. Tinha uma boa casa na rua e ninguém percebia por que razão ele não ficava lá.
Aquele Inverno foi um curso de formação sobre a extraordinária capacidade de resistência voluntariosa dos ingleses.
A maior parte daquelas casas era propriedade da autarquia e, na primeira semana de frio, as canalizações gelaram e rebentaram e as pessoas ficaram sem água,
mantendo-se assim gelado o sistema. As autoridades locais mandaram abrir um cano na esquina da rua e, durante semanas, as mulheres da vizinhança andaram de um lado
para o outro a carregar água em baldes e jarros, pelos passeios cobertos com uma camada de gelo escorregadio, calçadas de chinelos. Ninguém limpava o gelo e a neve
dos passeios. Iam buscar a água à torneira, que rebentou várias vezes, e diziam que a única água quente que tinham era a que punham a aquecer no fogão. Assim se
passou uma semana, duas - depois três, quatro e cinco semanas. E claro que não havia água quente para banhos. Quando se lhes perguntava porque não se queixavam já
que, ao fim e ao cabo estavam a pagar renda, a pagar água quente e fria, responderam que o município sabia das canalizações mas não fazia nada a esse respeito. O
município fizera notar que havia uma vaga de frio; elas concordavam com este diagnóstico. As vozes delas eram lúgubres mas as mulheres sentiam-se profundamente realizadas
como acontece a esta nação quando submetida a actos de Deus perfeitamente evitáveis.
Um velho, uma mulher de meia idade e uma criança pequena passaram os dias daquele Inverno na loja da esquina. A loja estava ainda mais fria do que aquilo
que mandava a temperatura natural abaixo de zero, porque as unidades de refrigeração estavam em funcionamento e a porta sempre aberta deixava entrar o ar gelado
de novo. O velho apanhou uma pleurisia e teve de passar dois meses no hospital. Tendo ficado muito debilitado, viu-se obrigado a vender a loja na Primavera. A criança
sentava-se no chão de cimento, chorando constantemente por causa do frio e apanhava bofetadas da mãe que estava atrás do balcão com um vestido de lã leve, meias
de homem e um casaquinho fino, sempre a dizer como tudo aquilo era horrível, e com o nariz e os olhos a pingar e os dedos todos inchados e rebentados de frieiras.
O velho da casa ao lado, que trabalhava como porteiro do mercado, escorregou no gelo à frente da porta, magoou-se nas costas e esteve semanas a receber pelo fundo
de desemprego. Nessa casa, onde moravam nove ou dez pessoas, havia um único aquecedor eléctrico com uma só resistência para combater o frio. Três pessoas foram hospitalizadas,
uma delas com pneumonia.
E as canalizações permaneceram rotas, envolvidas numa capa de estalactites de gelo; os passeios mantiveram-se gelados; e as autoridades nada fizeram. Nas
ruas onde habitava a classe média, é claro que a neve era limpa à medida que caía e as autoridades respondiam a cidadãos zangados que reivindicavam os seus direitos
e ameaçavam instaurar processos. Na nossa área as pessoas sofreram aquela situação até à Primavera.
Rodeado de seres humanos condenados a arrostar com as fúrias do Inverno como se fossem cavernícolas de há milhares de anos, as manias de um velho gato que
escolhera um telhado gelado para passar as noites perderam importância.
Em meados daquele Inverno uns amigos receberam de presente uma gatinha. Uns amigos deles tinham uma gata siamesa que tinha tido uma ninhada de filhos de
um gato vadio e estavam a oferecer os gatinhos. O apartamento daqueles meus amigos era minúsculo e ambos trabalhavam o dia inteiro; mas quando viram a gatinha não
conseguiram resistir. Durante o primeiro fim-de-semana alimentaram-na com lagosta enlatada e mousse de frango e viram as suas noites de casal muito perturbadas porque
a gatinha tinha de dormir debaixo do queixo ou, pelo menos, de encontro ao corpo de H, o homem. S., a mulher, anunciou ao telefone que estava a perder as atenções
do marido em favor de uma gata, tal como acontecera à mulher no conto de Colette. Na segunda-feira foram trabalhar deixando a gatinha entregue a si própria e, quando
voltaram para casa, encontraram-na triste e a chorar porque tinha estado sozinha o dia inteiro. Disseram então que nos traziam a gata. E assim fizeram.
A gatinha tinha seis semanas. Era encantadora, uma gata delicada de conto de fadas, a quem os genes siameses tinham conformado a cara, as orelhas, a cauda
e as subtis linhas do corpo. As costas eram tigradas: vista de cima ou de trás era uma bonita gata tigrada em tons de cinzento e bege. Mas a frente e a barriga eram
de um dourado fumado, bege siamês, com duas meias riscas pretas no pescoço. A cara estava desenhada a preto - finos anéis escuros em torno dos olhos, leves riscos
pretos nas bochechas, um narizinho de cor creme com uma ponta rosada, debruado a preto. Vista de frente, sentada com as suas patas muito direitas, era um animal
exoticamente belo. Ali estava, uma coisinha minúscula, no meio da carpete amarela, rodeada por cinco adoradores, sem manifestar qualquer medo. Depois passeou-se
com ar muito digno pela casa a inspeccionar cada centímetro do chão, trepou para a minha cama, enroscou -se numa prega do lençol e sentiu que estava em casa.
S. foi-se embora com H. dizendo:
- Foi mesmo a tempo, senão ainda ficava sem marido.
E H. foi-se embora resmungando que nada era mais excitante do que ser acordado pelo toque delicado de uma língua rosada na cara.
A gatinha desceu, ou melhor dizendo, saltou pelas escadas abaixo. Cada um dos degraus era o dobro da altura dela: primeiro as patas da frente, depois flop,
as de trás; patas dianteiras, flop, patas traseiras. Inspeccionou o andar de baixo, recusou a comida enlatada que lhe foi oferecida e, miando, pediu o caixote. Recusava
aparas de madeira mas achava aceitáveis jornais rasgados, dizia a sua pose altiva, se não houvesse mais nada. Não havia: lá fora a terra estava completamente gelada.
Não comia comida enlatada para gato. Recusava-se pura e simplesmente. E eu não estava para alimentá-la com sopa de lagosta e frango. Conseguimos um compromisso
com carne picada.
Foi sempre tão exigente relativamente à comida como um gourmet solteirão. E vai piorando à medida que vai envelhecendo. Ainda muito pequenina, já manifestava
aborrecimento ou prazer ou a determinação de amuar pela maneira como comia, depenicava ou recusava a comida. Os seus hábitos alimentares são uma linguagem eloquente.
Mas eu penso que é bem possível que a tenham tirado à mãe ainda muito pequena. Se me permitem, sugiro com o maior respeito aos peritos em gatos que talvez estejam
enganados quando dizem que os gatinhos devem ser separados das mães no dia em que fazem seis semanas. Esta gatinha tinha seis semanas, nem mais um dia, quando foi
tirada à mãe. A base do seu dandismo alimentar é a hostilidade neurótica e a desconfiança manifestadas perante a comida por uma criança com problemas. Ela tinha
de comer, achava ela; e comia; mas nunca comia com prazer, só por comer. E partilha também outra característica com as pessoas que não tiveram suficiente amor materno.
Ainda hoje se metera instintivamente sob as dobras de um jornal ou dentro de uma caixa ou de um cesto - de qualquer coisa que abrigue, de qualquer coisa que cubra.
Mais ainda: está sempre pronta a sentir-se insultada, está sempre pronta a amuar. E é uma covarde inveterada.
Os gatinhos que permanecem com as mães durante sete ou oito semanas comem sem problemas e são seguros de si mesmos. Mas é claro que não são tão interessantes.
Em pequena, esta gatinha nunca dormiu fora da cama. Esperava que eu me deitasse, depois passeava-se por cima de mim a analisar todas as possibilidades. Enfiava-se
então dentro da cama, ou junto aos meus pés, ou ao meu ombro, ou escondia-se debaixo do travesseiro. Quando eu me mexia demais, mudava de poiso rapidamente, manifestando
o seu aborrecimento.
Quando eu fazia a cama, ela não se importava nada de ficar fechada lá dentro; e mantinha-se ali, às vezes durante horas, como um pequeno montículo entre
os lençóis. Se acariciássemos o montículo, este miava e ronronava. Mas não abandonava a cama enquanto não precisasse de o fazer.
O montículo deslocava-se pela cama, hesitava ao chegar à borda. Por vezes ouvia-se um miado frenético quando escorregava para o chão. Com a sua dignidade
posta em causa, apressava-se a lamber o pêlo, lançando olhares amarelos flamejantes a quem se atrevia a rir. Em seguida, de nariz no ar, procurava o melhor sitio
para se pôr na ribalta.
Eram horas da refeição, sempre comida com ar enfastiado. Horas de ir à caixa de areia, sempre uma exibição requintada. Horas de pôr em ordem o pêlo de cor
creme. E horas de brincar, algo que nunca era feito pelo puro prazer da brincadeira, mas apenas quando alguém estava a observá-la.
Era tão arrogantemente consciente de si mesma, como uma rapariga bonita que não possui mais atributos para além da beleza: corpo e rosto sempre numa atitude
comandada por um encenador interno - uma pose que vale tanto como uma máscara: não, não, é assim que eu sou, o peito agressivo, os olhos hostis sempre à procura
de admiração.
A gata, na idade em que, se fosse humana, haveria de usar roupa e cabelos como se fossem armas mas sabendo que, sempre que quisesse, poderia regressar à
amimada infância porque o papel se tornara demasiado pesado - a gata posava e pavoneava-se como uma princesa pela casa e, depois, cansada, com um ligeiro ar de desdém,
enfiava-se nas dobras de um jornal ou por detrás de uma almofada, e dali, em segurança, observava o mundo.
O seu truque mais engraçado, usado normalmente quando tinha espectadores, era deitar-se de costas por baixo de um sofá, e aí arrastar-se, com a ajuda das
patas, em sacões rápidos, parando para voltar a cabecinha elegante, de olhos amarelos semicerrados, à espera de aplausos. "Oh! que linda gatinha! Que maravilha de
bicho! Linda bichana!" E depois continuava, com nova exibição.
Ou então, sobre a superficie adequada, o tapete amarelo, uma almofada azul, deitava-se de costas e rebolava lentamente, de patas no ar e cabeça para trás,
de forma a mostrar a barriga e o peito de cor creme ligeiramente ponteado de manchas escuras como se fosse uma variedade de leopardo. "Oh, linda gatinha, que bonita
tu és!" E ela assim continuava até pararem os cumprimentos.
Ou, então, instalava-se na varanda das traseiras, não em cima da mesa que não tinha qualquer ornamento, mas numa floreira onde havia narcisos e jacintos
em vasos de barro. Ficava em pose entre cachos de flores azuis e brancas até que alguém reparasse e a admirasse. Não só nós, claro; também o velho gatarrão cheio
de reumatismo que se arrastava, triste memória viva de uma vida muito mais dura, pelo jardim onde a terra estava ainda gelada. Viu por detrás dos vidros uma linda
gata adolescente. Ela também o viu. Ergueu a cabeça movendo-a para um lado e para o outro; mordiscou um pedacinho de jacinto, deixou-o cair; lambeu o pêlo, displicentemente;
depois, olhando insolentemente para trás saltou da floreira e entrou em casa, escondendo-se dele. Ou, subindo as escadas, empoleirada num braço ou num ombro, espreitava
pela janela e via o pobre bicho tão quieto que, às vezes pensávamos que ele tinha morrido e congelado ali no jardim. Quando o sol começava a aquecer, por volta do
meio-dia, ele sentava-se e começava a lamber-se e nós ficávamos aliviados. Por vezes ela ficava a observá-lo da janela, mas a sua vida ainda era anichar-se nos braços,
nas camas, nas almofadas e nos cantos dos seres humanos.
Depois chegou a Primavera, a porta das traseiras abriu-se, a caixa de areia deixou, graças a Deus, de ser necessária e o jardim da cozinha tornou-se o seu
território. Ela estava com seis meses e totalmente desenvolvida do ponto de vista da natureza.
Era, então, tão bonita, tão perfeita; mais bonita ainda do que aquela gata que, há tantos anos, eu jurara que não tinha rival. E não tinha, claro; porque,
por natureza, essa gata era toda ela tacto, delicadeza, ternura e graça - de tal forma que, como rezam os contos de fadas e dizem as mulheres velhas, tinha de morrer
jovem.
A nossa gata, a princesa, era, ainda é, bela, mas não vale a pena iludirmo-nos, é um monstro de egoísmo.
Os gatos alinhavam-se nos muros do jardim. Primeiro, o velho e escuro gato do Inverno, rei dos jardins das traseiras. Depois um belo gato preto e branco
da casa ao lado, filho do velho ao que parecia. Um gato listado, cheio de cicatrizes de batalhas. Um gato cinzento e branco estava tão certo de ser derrotado que
nunca se atreveu a descer do muro. E um jovem e espectacular gato tigrado que ela admirava nitidamente. Tal não lhe servia de nada, porque o velho gato não se declarava
vencido. Quando ela saía, de cauda no ar, ignorando-os aparentemente a todos mas de olho no belo tigre jovem, este, de um salto, punha-se à frente dela. Mas bastava
ao gato do Inverno espreguiçar-se um pouco lá no alto do muro para o gato jovem recuar de imediato. Isto arrastou-se durante semanas.
Entretanto H. e S. vieram visitar o animalzinho de estimação perdido. S. disse como era terrível e injusto que a princesa não pudesse escolher; e H. disse
que era exactamente assim que devia ser: uma princesa tem de ter um rei, mesmo que seja velho e feio. Ele tem tanta dignidade, disse H.; tem uma tal presença; e
ganhou direito à linda gatinha devido à sua paciência durante o longo Inverno.
Por essa altura, o gato feio tinha sido crismado de Mefistófeles. (Em casa dele, disseram-nos, chamavam-lhe Billy.) A nossa gata tinha tido vários nomes
mas nenhum deles pegara. Melissa e Franny; Marilyn e Sappho; Ci rce e Ayesha e Suzette. Mas em conversa, no diálogo amoroso, miava e ronronava e reagia às sílabas
arrastadas dos adjectivos: hunda; bichaninha boninita.
Num fim-de-semana muito quente, o único de que me lembro num Verão horrível, a gata entrou em cio.
H. e S. vieram almoçar no domingo, e instalámo-nos na varanda das traseiras a observar as escolhas da natureza. Não as nossas. E também não as da nossa gata.
Os combates prolongaram-se durante duas noites, combates violentos, com gatos a gemerem, a miarem e a gritarem no jardim. Entretanto a gata cinzenta instalara-se
aos pés da minha cama, a olhar para o escuro, de orelhas erguidas, e pontinha da cauda a oscilar.
Nesse domingo só o MefistófelÒÀs andava por ali. A gata cinzenta rebolava-se de êxtase por todo o jardim. Vinha ter connosco, roçava-se pelos nossos pés
e mordia-os. Subia e descia à árvore no fundo do jardim. Rebolava-se, gritava, chamava e seduzia.
- Nunca vi manifestação de luxúria mais degradante - disse S. a olhar para H. que estava apaixonado pela nossa gata.
- Oh, pobre gatinha! - disse H. se eu fosse o Mefistófeles nunca te trataria tão mal.
- Oh, H. - disse S. - És nojento. Se eu contasse isto ninguém acreditava. Mas eu sempre disse que és um nojo.
- Então é isso que costumas dizer - disse H. acariciando a gata extática.
Estava um dia muito quente, tínhamos bebido muito vinho ao almoço e os jogos amorosos prolongaram-se pela tarde inteira.
Finalmente, Mefistófeles saltou do muro para junto da gata cinzenta que continuava a rebolar-se e a chamar mas, coitado, falhou redondamente.
- Oh, meu Deus - disse H. que estava realmente a sofrer. - Estas coisas são, de facto, imperdoáveis.
S. angustiada, observava os tormentos da nossa gata e exprimia dúvidas frequentes, em tom dramático e em voz alta, sobre se o sexo valeria tanto sofrimento.
- Olhem para aquilo - disse ela. - Aquilo somos nós. É assim que nós somos.
- Não somos nada assim - disse H. - É o Mefistófeles. Devia ser fuzilado.
- Fuzila-o já - dissemos todos - ou, pelo menos, fechem-no em qualquer sítio, para que o jovem tigre possa ter alguma hipótese.
Mas o belo gato não estava à vista. Continuámos a beber vinho; o Sol continuou a brilhar; a nossa princesa dançava, rebolava-se, subia e descia da árvore
e, quando finalmente as coisas correram bem, o velho rei logrou por várias vezes os seus intentos.
- O que está mal aqui - disse H. - é que ele é velho demais para ela.
- Oh, meu Deus - disse S. - vou levar-te para casa. Porque se ficas aqui ainda és tu que fazes amor com a gata.
- Quem me dera - disse H. - Que bichinho delicado, que criatura encantadora, que princesa! É mal empregada num gato, não aguento isto!
No dia seguinte, o Inverno voltou. O jardim ficou molhado e sombrio; a gata cinzenta regressou aos seus modos enfastiados. E o velho rei ficou no muro do
jardim, sob a lenta chuva inglesa, vencedor de todos, à espera.
trad. L. F.
*A DINASTIA PRETA E A DINASTIA BRANCA
Théophile Gautier
Uma gata trazida de Havana por Mademoiselle A'i'ta de la Penuela, uma jovem artista espanhola cujos estudos sobre angorás brancos possivelmente ainda adornam as
vitrinas das lojas de arte, produziu o gatinho mais adorável que imaginar se possa. Era exactamente como uma borla de pó de arroz de plumas de cisne e, por causa
da sua brancura imaculada, recebeu o nome de Pierrot. Quando cresceu o nome foi aumentado para Don Pierrot de Navarre, muito mais grandioso e majestático.
Don Pierrot, como todos os animais mimados e objecto de muita atenção, tornou-se de um carácter encantador e amigável. Partilhava a vida da casa com todo
o prazer que os gatos sentem na intimidade do lar. Sentado no seu lugar habitual, junto ao lume, parecia que percebia realmente as conversas e que se interessava
por elas.
Olhava para a pessoa que estava a falar e de vez em quando emitia pequenos sons como se quisesse, também, fazer os seus comentários e dar a sua opinião sobre
literatura que era, normalmente, o nosso tópico de conversa. Gostava muito de livros e, quando encontrava um livro aberto sobre a mesa, instalava-se lá em cima,
olhava atentamente para a folha e virava a página com a pata; depois acabava por adormecer mas dava a impressão que estava a ler um romance na moda.
Mal eu pegava numa caneta, saltava para a minha escrivaninha e punha-se a olhar com profunda atenção para o aparo de aço que traçava pernas de aranhiço sobre
o papel branco. Voltava a cabeça sempre que eu começava uma linha nova. Às vezes queria participar no trabalho e tentava tirar-me a caneta da mão, sem dúvida para
escrever ele também, pois era um gato estético como o Murr de Hoffman. Tenho mesmo fortes suspeitas de que escreveu as suas memórias durante a noite, em qualquer
telhado, à luz dos seus olhos fosforescentes. Infelizmente essas elucubrações perderam-se.
Don Pierrot nunca se deitava antes de eu chegar a casa. Esperava por mim à porta e, quando eu entrava no hall, esfregava-se pelas minhas pernas e arqueava
o dorso, ronronando alegremente sem parar. Depois caminhava à minha frente como se fosse um pajem e tenho a certeza de que, se assim lho pedisse, me transportaria
a candeia. Assim, acompanhava-me ao quarto e esperava enquanto eu me despia; em seguida saltava para a cama, punha as patas à volta do meu pescoço, esfregava o nariz
dele no meu, e lambia-me com a linguazinha cor-de-rosa e áspera, ao mesmo tempo que emitia gritinhos inarticulados que exprimiam claramente o prazer que sentia em
me ver de novo. Depois, quando se esbatiam as suas manifestações de afecto e chegava a hora do repouso, empoleirava-se nas grades da cama e adormecia como um passarinho
no poleiro. De manhã quando eu acordava, vinha deitar-se ao pé de mim até eu me levantar. Meia-noite era a hora a que eu devia chegar a casa. Neste aspecto, Pierror
tinha verdadeiramente o espírito intransigente de um porteiro.
Nessa época tínhamos instituído uns serões entre amigos e tínhamos criado uma pequena Sociedade, a que chamámos o Clube das Quatro Velas porque a sala em
que nos reuníamos estava iluminada por quatro velas em castiçais de prata colocados nos cantos da mesa.
Às vezes, a conversa ficava tão animada que eu me esquecia das horas e corria o risco, como a Cinderela, de encontrar a minha carruagem transformada em abóbora
e o meu cocheiro transformado em rato.
Várias noites o Pierrot ficou à minha espera até às duas horas da manhã mas, finalmente, a minha conduta desagradou-lhe e ele resolveu ir para a cama sem
mim. Este protesto mudo contra a minha inocente dissipação comoveu-me tanto que, desde então, passei a vir para casa regularmente à meia-noite. Mas o Pierrot levou
muito tempo a perdoar-me. Queria ter a certeza de que não se tratava de um arrependimento fingido; mas quando se convenceu da sinceridade da minha conversão, decidiu
conceder-me novamente os seus favores e retomou o seu posto no hall de entrada.
Ganhar a amizade de um gato não é coisa fácil. É um animal filosófico, de hábitos regulares e tranquilos, amante da ordem e da limpeza. Não esbanja indiscriminadamente
as suas afeições. Consentirá em ser nosso amigo, se nos mostrarmos dignos dessa honra, mas nunca será nosso escravo. Por muito que goste de nós mantém sempre a sua
liberdade de julgamento e nunca fará nada que considere pouco razoável; mas, quando concede o seu amor, que confiança absoluta, que fidelidade na afeição! Tornar-se-á
o companheiro das horas de trabalho, de solidão ou de tristeza. Permanecerá noites inteiras em cima dos nossos joelhos, ronronando e contente na nossa companhia,
desdenhando a sociedade de criaturas da sua espécie para ficar connosco. Em vão ecoará nos telhados o miar dos outros gatos, convidando-o para uma daquelas festas
nocturnas em que a essência de arenque ocupa o lugar do aroma do chá. Não se deixará tentar, continuará a sua vigília connosco. Se o pusermos no chão, voltará a
trepar rapidamente para o nosso colo, com um ruído de garganta que é como uma doce censura. Por vezes, quando está sentado à nossa frente, põe-se a olhar para nós
com uns olhos tão doces, tão ternos, com um olhar tão humano e amigo, que quase nos assustamos, pois parece impossível que não exista razão por detrás daquele olhar.
Don Pierrot tinha uma companheira da mesma raça, tão branca como ele. Todas as comparações com a neve que se possam imaginar não bastariam para dar a ideia
daquela pele imaculada que faria parecer o arminho amarelado.
Chamei-lhe Seraphita, em memória do romance Swedenborgiano de Balzac. Nunca a heroína dessa maravilhosa história, quando com Minna subiu aos cumes cobertos
de neve do Falberg, foi de um branco tão brilhante e puro. Seraphita tinha um carácter sonhador e pensativo. Passava horas imóvel, deitada numa almofada, sem dormir,
com os olhos fixos, numa atenção desvanecida, em cenas invisíveis para o comum dos mortais.
Gostava de carícias mas retribuia-as com grande parcimónia e só àquelas pessoas a quem concedia o favor da sua estima, que não era fácil de conquistar. Apreciava
o luxo e era sempre na poltrona mais nova ou no móvel que melhor punha em destaque a sua beleza de cisne que a podíamos encontrar. A sua toilette durava horas infindas.
Todas as manhãs alisava cuidadosamente todo o cabelO e lavava o focinho com a pata e cada um dos pêlos do seu corpo brilhava como prata nova depois de alisado pela
língua cor-de-rosa. Se alguém lhe tocasse, imediatamente ela apagava qualquer vestígio do contacto, pois não suportava que a despenteassem. A sua elegância e distinção
sugeriam um berço aristocrático e entre a sua espécie devia ser, pelo menos, duquesa. Tinha uma paixão por perfumes. Mergulhava o nariz em ramos de flores e mordiscava
os lenços perfumados com pequenos paroxismos de satisfação. Passeava-se pelo toucador, cheirando as tampas dos frascos de perfume e, se a deixassem, cobrir-se-ia
de pó-de-talco de violetas.
Assim era a Seraphita e nunca houve gata mais digna de um nome tão poético.
Don Pierrot de Navarre, originário como era de Havana, precisava de uma temperatura de estufa. Dentro de casa encontrava essas condições mas a casa estava
rodeada por grandes jardins divididos por sebes, que um gato podia facilmente atravessar, e com grandes árvores onde bandos de pássaros chilreavam e cantavam; e
o Pierrot, às vezes, aproveitando uma porta aberta, escapava-se à noite para caçar e correr por entre as flores, sobre a relva húmida. Tinha, então, de esperar pela
manhã para poder voltar a entrar porque, por muito que viesse miar para debaixo da janela, nem sempre os seus apelos acordavam os dorminhocos dentro de casa.
Tinha pulmões delicados e, numa noite mais fria do que o habitual, apanhou uma constipação forte que não tardou a evoluir para tuberculose. O pobre Pierror,
depois de passar um ano a tossir, ficou muito magrinho e debilitado e o seu pêlo, que antes era de um branco brilhante, lembrava agora a brancura baça de um sudário.
Os seus grandes olhos límpidos pareciam enormes na cara emaciada e o rosa do nariz empalidecera. Passeava tristemente em passos lentos ao longo dos muros banhados
de sol e ficava a ver as folhas amarelas do Outono rodopiar em espiral. Tinha o ar de alguém a recitar a elegia de Millevoye.
Não há nada que tanto comova como um animal doente; é tão doce e tão patética a resignação com que suportam o sofrimento.
Fizeram-se todos os possíveis para tentar salvar o Pierrot. Foi seguido por um óptimo médico que o auscultava e lhe tomava o pulso. Receitou-lhe leite de
burra que a pobre criaturinha bebia obedientemente no seu pratinho de porcelana. Pierrot ficava horas e horas instalado ao meu colo, como o fantasma de uma esfinge,
e eu sentia os ossos da espinha dele como as contas de um rosário debaixo dos meus dedos. Tentava responder às minhas festas com um ronronar fraco que parecia o
estertor da agonia.
Deitado de lado, ofegante, já quase a morrer, conseguiu ainda, num esforço supremo, erguer-se e vir ter comigo, olhando-me com olhos dilatados em que havia
uma expressão de intensa súplica. Este olhar parecia dizer:
"Não me podes salvar, tu que és um homem?" Depois deu alguns passos, cambaleante, com olhos já vidrados e caiu, dando um grito tão lamentoso, tão cheio de desespero
e de angústia que eu fiquei gelado de horror mudo.
Foi enterrado ao fundo do jardim, debaixo de uma roseira brava que ainda hoje assinala a sua campa.
Seraphita morreu dois ou três anos depois, de difteria, contra a qual a ciência nada pôde fazer.
Repousa perto do Pierror. Com ela extinguiu-se a dinastia branca mas não a família. Este casal branco de neve tinha tido três gatinhos de um preto retinto.
Este mistério que o explique quem saiba e possa.
Precisamente nessa altura estava na moda Os Miseráveis de Victor Hugo e os nomes das personagens do romance andavam na boca de todos. Chamei aos dois gatinhos
machos Enjolras e Gavroche e à gatinha, Eponine.
Em pequenos eram um verdadeiro encanto. Treinei-os, como a uns cãezinhos, a apanhar uma bola de papel amachucado que lhes atirava. Acabaram por aprender
a apanhá-la em cima das cómodas, por trás dos armários ou dentro de jarras, de onde a tiravam muito cuidadosamente com as patas. Quando cresceram, passaram a desdenhar
esses jogos frívolos e adquiriram aquele calmo temperamento filosófico que é a verdadeira natureza dos gatos.
Para quem desembarca na América, numa colónia de escravos, todos os pretos são pretos e impossíveis de distinguir. Do mesmo modo, a um olhar descuidado,
três gatos pretos são três gatos pretos; mas os observadores atentos não cometem erros desses. A fisionomia dos animais é tão variada como a dos humanos e eu conseguia
diferenciar perfeitamente aqueles três focinhos, todos tão pretos como uma máscara de Arlequim e iluminados por discos de esmeralda pontuados de ouro.
Enjolras era, de longe, o mais bonito dos três. Era notável, com a sua cabeça leonina e a grande trunfa, os ombros largos, o dorso alongado e a esplêndida
pluma da cauda. Havia nele algo de teatral e parecia estar sempre a posar como um actor popular que sabe que está a ser admirado. Os seus movimentos eram lentos,
ondulantes e majestosos. Pousava as patas com imensa circunspecção, como se estivesse sempre a deslocar-se sobre uma mesa coberta de bric-a-brac chinês ou de vidros
de Veneza. Quanto ao seu carácter, este não tinha nada de estóico e dava mostras de um amor pela comida que aquele jovem, virtuoso e sóbrio, de quem ele herdara
o nome certamente desaprovaria. Enjolras ter-lhe-ia seguramente dito, como o anjo disse a Swedenborg: "Comes demais".
Eu encorajava esta gula que era tão divertida como a de um macaco gastrónomo e Enjolras atingiu um tamanho e um peso raramente vistos num gato doméstico.
Lembrei-me então de o mandar tosquiar como a um cão poodle, a fim de dar um último retoque à sua semelhança com um leão.
Deixámos-lhe ficar ajuba e um grande tufo na ponta da cauda e julgo que lhe deixámos umas suíças nas patas traseiras como as que Munito usava. Assim adornado,
devo confessar que se parecia muito mais com um monstro japonês do que com um leão africano. Nunca se vira tal extravagância feita num animal vivo. A sua pele tosquiada
adquirira esquisitas tonalidades azuis que contrastavam estranhamente com a juba negra.
Gavroche, como se quisesse fazer lembrar o seu homónimo do romance, era um gato com uma expressão brejeira e ladina de autodomínio. Era mais pequeno que
Enjolras e os seus movimentos eram comicamente rápidos e bruscos. Nele, as cambalhotas absurdas e as posições ridículas faziam as vezes da zombaria e do calão do
gamin de Paris. Deve-se confessar que Gavroche tinha gostos ordinários.
Aproveitava todas as ocasiões possíveis para se raspar da sala e ir para o pátio ou mesmo para a rua, em grandes brincadeiras com gatos vadios,
De naissance quelcon que et de sangpeu prouvé
em cuja duvidosa companhia esquecia completamente a sua dignidade de gato de Havana, filho de Don Pierrot de Navarre, grande de Espanha de primeira nobreza, e da
aristocrática e altiva Dofla Seraphita.
Às vezes, nas suas vagabundagens, recolhia colegas magricelas, esfaimados e trazia-os com ele, oferecendo-lhes, como um grande senhor generoso, de comer
no seu próprio prato. As pobres criaturas, de orelhas coladas à cabeça e sempre a olharem para o lado, cheias de medo de serem interrompidas naquela refeição grátis
pela vassoura da criada, engoliam a correr e, como o famoso cão Siete-Aguas, das posadas espanholas, lambiam o prato e deixavam-no tão limpo como se tivesse sido
lavado e areado por uma das donas de casa holandesas de Gerard Dow ou de Mieris.
Os amigos do Gavroche lembravam-me uma frase que ilustra um dos desenhos de Gavarni lís sontjolis les amis dont vous étes susceptible dÒÀller avec! (Lindos
amigos com quem te dás!)
Mas isto só provava o bom coração do Gavroche, pois ele bem que podia comer tudo sozinho.
A gata que herdara o nome da interessante Eponine era mais delicada e esbelta do que os irmãos. Tinha um nariz bastante comprido e os olhos eram oblíquos
e verdes como os de Palías Atena a quem Homero sempre aplicava o epíteto de Yaio>nç. O focinho era de um negro de veludo, com a textura de uma delicada trufa do
Périgord; tinha os bigodes num estado de perpétua agitação e tudo isto lhe dava uma fisionomia particularmente expressiva. O seu magnífico pêlo preto estava sempre
em movimento e tinha reflexos e matizes brilhantes. Nunca houve animal mais sensível, eléctrico, nervoso. Se lhe fizéssemos duas ou três festas no escuro, viam-se
saltar do seu pêlo faiscas azuis.
A Eponine gostava particularmente de mim, tal como
a Eponine do romance gostava de Marius, mas eu, menos
ligado a Coserte do que o rapaz, podia aceitar livremente
o afecto daquela gata gentil e dedicada, que continua a
partilhar os prazeres do meu retiro suburbano e é a companheira inseparável das minhas horas de trabalho.
Ela vai a correr quando ouve tocar a campainha da porta da rua, recebe as visitas, condu-las à sala de estar, conversa com elas - sim, conversa - em pequenos
sons chilreantes, que não se parecem de forma alguma com os sons emitidos pelos gatos quando falam entre si mas, muito mais, com o discurso articulado dos seres
humanos. Que diz ela? Diz, do modo mais claro possível: "Não se importam de esperar que monsieur desça? Entretenham-se por favor a ver as gravuras ou a conversar
comigo, se isso vos divertir;" Depois, quando eu chego, retira-se discretamente para uma poltrona ou para o canto do piano, como um animal bem educado que sabe o
que é correcto na boa sociedade. A linda Eponine deu tantas provas de inteligência, de boa disposição e de sociabilidade que, de comum acordo, foi elevada à categoria
de pessoa já que era mais que evidente que possuía uma capacidade de raciocínio que ultrapassava o mero instinto. Esta dignidade conferiu-lhe o privilégio de comer
à mesa em vez de comer num prato posto num canto da sala, como qualquer animal.
Assim, a Eponine tinha uma cadeira ao lado da minha, ao pequeno-almoço e ao jantar mas, como era pequenina, tinha autorização para pôr as duas patas da frente
na borda da mesa. Tinha lugar posto, sem faca nem garfo, mas com copo. Comia o jantar todo, prato a prato, da sopa até à sobremesa, esperando a sua vez de ser servida,
e comportando-se com o tino e as boas maneiras que gostaríamos de ver em muitas crianças. Aparecia ao primeiro toque da campainha e, quando chegávamos à sala, já
a encontrávamos instalada no seu lugar, sentada na cadeira, com as patinhas apoiadas na borda da toalha e ar de quem estava a oferecer a cara para ser beijada, como
uma menina bem educada que é delicada e afectuosa para com os pais e as pessoas mais velhas.
Tal como se encontram defeitos nos diamantes, manchas no Sol e sombras na própria perfeição, também a Eponine, devo confessar, tinha uma paixão por peixe.
Tinha isto em comum com todos os outros gatos. Contrariamente ao provérbio latino Catas amatpisces, sed non vult tingere plantas
a Eponine não se importaria de meter a pata na água se, ao fazê-lo, pudesse tirar para fora uma truta ou uma carpa. Ficava quase frenética com o peixe e, como uma
criança excitada à espera da sobremesa, revoltava-se às vezes contra a sopa quando sabia (através de investigações prévias na cozinha) que o prato era de peixe.
Quando tal acontecia, não a servíamos e eu dizia-lhe em tom frio: "Mademoiselle, uma pessoa que não tem fome de sopa, também não tem fome de peixe" e o prato era
impiedosamente retirado debaixo do nariz dela. Convencida de que as coisas não eram a brincar, a Eponine apressava-se a comer a sopa até à última gota, deixando
o prato sem vestígios de migalhas ou de macarrão e, depois, voltava-se e olhava para mim orgulhosamente, como alguém que cumpriu conscienciosamente o seu dever.
Recebia, então, a sua parte que consumia com grande satisfação e, depois de provar de todos os pratos, acabava bebendo um terço do copo de água.
Quando estou à espera de amigos para o jantar, a Eponine sabe que vai haver uma festa antes de ver os convidados. Olha para o lugar dela e, se vir que há
um garfo e uma faca junto ao prato, foge logo a sete pés e instala-se em cima de um banco de piano que éo seu refúgio nestas ocasiões.
Que aqueles que negam capacidades de raciocínio aos animais expliquem, se puderem, este pequeno facto, aparentemente tão simples, mas que contém toda uma
série de ilações. A partir da presença junto do seu prato de instrumentos que só o homem usa, aquela gatinha observadora e inteligente conclui que terá de ceder
o seu lugar, naquele dia, a um hóspede e, imediatamente, se prontifica a fazê-lo. Nunca se engana; mas, quando conhece bem a visita, trepa-lhe para os joelhos e
tenta cativá-la com as suas lindas maneiras para que ela lhe dê um petisco.
Trad. L. F.
*ASPIRINA, O GATO
John Coleman Adams
Isto é uma história verdadeira sobre um gato real que, tanto quanto eu sei, ainda é vivo e anda no mar a ganhar a vida. Espero que me desculpem por tratar este gato
em particular como se fosse uma pessoa, mas há animais a quem preferimos tratar como humanos e há pessoas que às vezes preferiríamos tratar como animais.
Foi deste modo que encontrámos este gato: estávamos nos anos setenta e alguns de nós velejávamos a leste de Boston num iate chamado Eyvor. Tínhamos ancorado
em Marblehead por um dia e uma noite, e a malta fora a terra numa chalupa. Quando atracaram ao cais encontraram um grupo de rapazitos a espetarem paus numa pilha
de lenha, numa caça evidente a qualquer coisa que se encontrava lá dentro.
- O que é que têm aí? - perguntou um do iate.
- É só um gato - responderam os rapazes.
- Então o que é que lhe estão a fazer?
- Estamos a fazê-lo sair! Quando sair vamos apedrejá-lo - foi a resposta num dialecto cerrado de Marblehead.
- Parem com isso. Que gozo pode haver em atormentar um pobre gato? Porque é que não se metem com alguém do vosso tamanho?
Os rapazes foram-se lentamente embora, um pouco envergonhados e um pouco amedrontados com o homenzarrão que falara; e quando eles ficaram fora da vista,
também os marinheiros continuaram caminho e não pensaram mais no gato que tinham salvo. Após terem percorrido as ruas estreitas e emaranhadas da cidade, e feito
uma visita, que todos os bons marinheiros fazem, à mercearia, aos Correios e a um bar, voltaram ao cais para embarcarem. Ali, notem bem, na escota da popa, estava
sentado o gatinho cinzento e branco da pilha de lenha! Tinha saído do seu esconderijo e dirigira-se directamente para o barco dos seus salvadores. Não parecia de
modo algum preocupado ou disposto a sair quando os marinheiros saltaram a bordo, nem demonstrou outra coisa senão prazer quando lhe fizeram festas e o acariciaram.
Mas quando um dos rapazes pegou nele para o pôr em terra, aquele tipo resoluto mostrou as garras; e mal tinha sido pousado no cais, deu meia volta e saltou de novo
para dentro do barco.
- Ele quer ir andar de iate - disse um da malta a quem chamávamos "o Bos'n."
- Mais vale ficarem com o gato - disse um pescador velhote que estava de pé no cais. - Não pertence a ninguém e se ficar por aqui a canalha dá cabo dele.
- Vamos levá-lo - disseram os marinheiros. - Dá sorte ter um gato a bordo.
Se dava sorte ao barco ou não, não sabemos, mas era claro que o gatinho achou que para ele era sorte e aninhou-se no fundo do barco com um olhar que dizia
"vamos a isso!" Evidentemente que ele já tinha pensado no assunto e tinha decidido que eram aquelas as pessoas com quem queria viver; e sendo um gato de Marblehead,
tanto lhe fazia se viviam em terra ou num barco; ele iria onde eles fossem, quer quisessem quer não. Ele ouvira a conversa havida junto à pilha de lenha e decidira
mostrar a sua gratidão indo para o mar com estes seus protectores. Ligando o seu destino ao deles, estava a prestar-lhes a maior homenagem de que um gato é capaz.
Seria o máximo da indelicadeza não reconhecer o seu apreço, e assim permitiram-lhe ficar no bote e foi levado para o iate.
Ao chegar lá houve um conselho, e foi decidido unanimemente que o gato seria recebido como um membro da tripulação e como éramos um grupo de marinheiros
amadores, velejando o nosso próprio barco, cada homem tendo as suas tarefas próprias, decidiu-se que o gato seria nomeado aspirante e que o seu nome teria que ver
com o seu posto; por isso ficou logo e para sempre conhecido por "Aspirina". Todos se interessavam muito por ele, enquanto ele demonstrava um interesse relativo
por todos embora houvesse duas pessoas a bordo a quem ele demonstrava um carinho especial. Uma era o Capitão do Eyvor, um professor calmo e bondoso; a outra era
Charlie, o nosso cozinheiro e o único homem contratado. Como vêem, o Aspirina tinha o instinto natural de um marinheiro para saber com quem devia estar em bons termos.
Era surpreendente ver como o Aspirina se adaptava tão depressa. Agia como se tivesse passado toda a sua vida no mar. Nunca enjoou, por muito bravo que estivesse
o mar ou por muito mal que nos sentíssemos todos. Andava por todo o barco, conforme queria. Às refeições vinha para a mesa com a malta, sentava-se numa mala, bebia
o seu leite e comia o que lhe pusessem à frente, como se tivesse comido assim toda a sua vida. Quando hasteavam as velas, a sua brincadeira especial era saltar para
a caranguejeira e nela ser içado; uma vez manteve-se nesse poleiro até que a vela chegou ao topo do mastro e um de nós teve de ir buscá-lo lá cima. Quando ancorávamos
e tudo estava a postos para a noite, vinha para o convés e pulava para o botaló principal, daí corria para o gurupês a toda a velocidade, depois subia, como um macaco,
até meio dos mastros deixando-se cair então para o convés, ou atirava-se para dentro da cabina onde fazia corridas loucas entre os beliches.
Um dia, quando vagueávamos sob uma brisa agradável de sudoeste, e todos nós estávamos a descansar após o jantar, ouvimos o Bos'n exclamar:
- Parem com isso, rapazes! - e um momento depois - estou a avisar-vos, desistam! Senão vou aí e dou cabo de vocês!
Abrimos os olhos para ver o que se passava. Bos'n estava sentado lá em baixo na cabina, junto à escotilha, a borla do seu boné de lã quase ao mesmo nível
das braçolas da escotilha; e o Aspirina sentado lá fora no convés, remexendo com as garras a lã tentadora e, ocasionalmente, indo tão fundo que arranhava o couro
cabeludo de Bos'n.
Vinda a noite e quando estávamos todos já deitados, o Aspirina fazia invariavelmente a ronda a todos os beliches, a ver se estávamos todos bem, e acabava
a inspecção saltando para cima do beliche do capitão, dando voltas para fazer o ninho entre os cobertores e enrolando-se para dormir. Foi ideia dele escolher o beliche
do capitão como o único lugar possível para ele dormir.
Mas a característica mais interessante do carácter do Aspirina só se revelou após uma ou duas semanas a bordo. Foi uma surpresa para todos. Aconteceu quando
estávamos no porto de Camden. Decidimos ir todos a terra dar um passeio pelos montes, e Charlie, o cozinheiro, também veio para remar o bote de volta para o iate.
O Aspirina descobriu que estava a ser "esquecido", e sendo um gato decidido e resoluto, não demorou muito a decidir o que devia fazer. Correu até a parte
mais baixa da amurada e olhou-nos longa e ansiosamente. Quando o bote começou a afastar-se queixou-se com um longo miado. Acenámos-lhe um adeus e dissemos para tomar
conta do barco e que tivesse o jantar pronto para quando voltassemos.
Foi demais para o seu feitio. Como uma flecha mergulhou no mar e nadou como um cão de água atrás do bote!
Foi a coisa mais espantosa que jamais víramos na nossa vida! Já estávamos habituados a elefantes que sabiam brincar num balancé, a cavalos que disparavam
canhões com um coice, a porcos amestrados e a cães educados, mas um gato que de livre vontade se atira à água como um terra-nova puro-sangue, era algo de que nunca
tínhamos ouvido falar. Claro que parámos o bote e o Aspirina foi içado a bordo, ensopado e a tremer, mas feliz por estar de novo entre os tripulantes. Ele fora ignorado
e menosprezado mas insistira nos seus direitos e logo que foram reconhecidos ficou satisfeito.
Depois disto, ficámos preparados para tudo que o Aspirina fizesse, mas mesmo assim, continuou a surpreender-nos com o seu comportamento independente e intrépido.
Talvez o seu feito mais brilhante tenha sido uma visita que fez, poucos dias após o mergulho no porto de Camden.
Estávamos parados, devido a uma calmaria, na entrada do porto de Southwest e perto de nós, a uns 230 metros, estava outro iate pequeno, uma escuna vinda
de Lynn. Flutuando com a maré, reparámos que o Aspirina estava a ficar muito inquieto e até começou a correr de um lado para o outro no convés, olhando ansioso para
o outro barco. O que é que ele vira ou cheirara que lhe interessava tanto? Não podia ser comida pois não estavam a cozinhar.
Teria ele reconhecido algum amigo de Marblehead? Talvez estivesse um gato compincha no outro barco. Ah, era isso! Ali estavam no convés a brincar e a traquinar
dois gatinhos! O Aspirina tinha-os visto e estava morto para os ver mais de perto. A correr de um lado para o outro miava e cheirava o ar. Ergueu-se na sua posição
favorita quando estava de vigia com as patas dianteiras pousadas no varão, e então, antes que pudéssemos compreender o que ele ia fazer, tornou a atirar-se à água,
e nadou tão depressa quanto sabia e podia até ao outro barco! Já tinha atraído a atenção da tripulação e logo que chegou perto do barco esta já tinha apostos uma
defensa que baixaram até à água e à qual o Aspirina se agarrou, trepando por ela até à amurada, e com um salto estava do outro lado, no convés, travando conhecimento
com os gatinhos.
Como foi recebido, não faço ideia, porque nessa altura já estávamos ao lado do barco a reclamar o desertor. E demos toda a razão ao capitão do Winnie L.
que disse ao entregar-nos o nosso aspirante:
- Isto bate qualquer das minhas histórias de pescarias!
Somente dois dias depois, o Aspirina foi muito asneirento: quando estávamos a lavar o convés de manhã, andou a patinhar nele até ficar com as patas bem molhadas
e depois foi passear-se por cima das cobertas brancas dos beliches. Foi demais para a paciência do capitão. O Aspirina foi trazido à presença dele, e depois de ouvir
uma sarabanda, foi posto no bote que estava atracado à ré, que depois foi empurrado a todo o comprimento do cabo. Foi um castigo muito severo para o Aspirina que
só se sentia bem entre a tripulação; por isso, começou a puxar pela cabeça para sair dali. Viu que bem por baixo do casco do iate, e acima da água, saíam cerca de
10 centímetros do leme; isso bastou-lhe. Não se deteve a pensar se estaria ali melhor, aquilo fazia parte do iate e logo estaria em casa. Mergulhou e nadou até ao
leme, encarrapitou-se nele e começou a miar lamentavelmente para que o trouxessem para o convés; e como era um gato mimado foi logo socorrido e desculpado.
Suponho que terei que pôr à prova o meu poder de convicção em relação a si, leitor, se contar mais epopeias do Aspirina. Mas na verdade ele era um gato muito
especial, por isso o melhor é ter paciência pois não irá conhecer outro igual. O capitão tinha por hábito praticar tiro e gostava de ir a terra atirar a um alvo.
Numa das vezes deixou que o Aspirina o acompanhasse, pela simples razão, suponho eu, do Aspirina ter decidido ir, e ter saltado para o bote juntamente com o capitão.
Uma vez em terra, o atirador encontrou uma rocha plana para apoiar a espingarda e atirou ao alvo. Ao primeiro e segundo tiro o Aspirina ficou um pouco surpreendido
mas não mostrou intenção de fugir. Após a primeira série de tiros chegou à conclusão de que aquela algazarra toda era feita pelo capitão, logo, tinha razão de ser
e não tinha nada que se preocupar. Por isso, como se fosse para mostrar como confiava inteiramente no capitão e nos seus bons propósitos, aquele gato imperturbável
deitou-se e pôs-se a dormir à sombra da rocha sobre a qual a espingarda do capitão matraqueava estridentemente de dois em dois minutos. Se alguém, alguma vez, conheceu
um gato mais calmo e controlado do que este, gostaria imenso de ouvir os detalhes.
Esta crónica deveria só contar os feitos ousados e corajosos do nosso aspirante; mas, infelizmente, a sua conduta não era sempre impecável. Quando tinha
fome esquecia a sua posição de aspirante e portava-se como qualquer outro gato esfomeado. Ou talvez agisse como qualquer outro aspirante teria agido nas mesmas circunstâncias;
como não sei o que um aspirante faz nessas circunstâncias, não o posso dizer. Mas eis a proeza do gato aspirante: numa tarde, a caminho do porto de Wood Island,
ancoradouro para iates pequenos entre Portland e Shoals, como o vento era fraco e estávamos atrasados para entrar no porto, concordámos todos que seria mais agradável
adiar o jantar para quando estivéssemos ancorados. Foi dito ao cozinheiro para manter a comida quente e só pôr a mesa quando estivéssemos dentro do porto. Ora o
prato principal nesse dia ia ser peixe no forno e, infelizmente, estava quase pronto quando o cozinheiro recebeu o recado de atrasar o jantar. Por isso desligou
o fogão, deixou a porta do forno aberta, e foi dormir uma soneca no beliche - coisa que todo o bom marinheiro faz quando pode porque a vida no mar é muito incerta
em matéria de descanso e nunca se sabe quando se poderá dormir e por quanto tempo. Assim, é bom ter uma boa reserva de sono, sempre que se pode.
Parecia que o Aspirina estava alerta e quando viu Charlie a dormir, achou por bem servir-se do jantar. Era evidente que tinha pensado com os seus botões
que não se sabia a que horas seria o jantar e que mais valia aproveitar. Silenciosamente saltou para o fogão e calmamente desceu para o forno começando a comer a
pescada assada.
Deve ter falhado algo ou feito algum barulho nas suas andanças porque, felizmente para nós, acordou o cozinheiro. Pois a primeira coisa que demos conta foi
o Aspirina a fugir como uma seta pelas escadas da cabina acima acompanhado por sapatos, colheres e outros objectos voadores, enquanto ouvíamos Charlie, que tinha
um vocabulário muito grosseiro quando zangado, a usar as palavras mais fortes do seu dicionário sobre "o ladrão do gato!"
- O que é que se passa? - perguntámos em uníssono.
- Chatices, senhor - resmungou Charlie. - Esse gato comeu quase a metade do peixe! É uma sorte ter alguma coisa para o jantar, senhor.
Podem ter a certeza que o Aspirina foi bem castigado, mas temo que o capitão se tenha esquecido de lhe cortar as rações. Ele era bom demais.
Na tarde seguinte, o Aspirina espantou-nos a todos com mais uma demonstração de calma e coragem. Após um dia cansativo de pouco vento, encontrámo-nos ao
abrigo do promontório do Cabo Neddick, onde lançámos âncora. Como o nosso suprimento de água estava muito por baixo, dois membros da tripulação meteram-se no bote,
mesmo depois do pôr-do-sol, e remaram para terra a fim de encherem o barril de água. Com licença especial, o Aspirina foi com eles.
Demorou algum tempo para encontrar um poço e já estava noite escura quando os bidons ficaram cheios. Ao empurrar o barco, quis a má sorte que este fosse
apanhado por uma onda e atirado de novo à praia onde se virou, entornando tudo o que tinha dentro, rapazes e bidons. Na confusão do momento e na pressa de pôr tudo
em ordem o Aspirina foi esquecido, e quando o bote se fez de novo ao mar, ninguém se lembrou do gato. Desta vez tudo correu bem e em poucos minutos surgiu o iate
na obscuridade. Só então é que alguém se lembrou do Aspirina! Não estava em lado nenhum. Nenhum dos homens se lembrava de tê-lo visto depois do barco se virar. Estavam
consternados. Perder o Aspirina era como perder alguém da tripulação.
Mas era demasiado tarde e já estava escuro para voltar e arriscar outro desembarque na praia. Nada mais se podia fazer senão deixar o Aspirina à sua sorte
e esperar pelo dia seguinte para o ir procurar.
Mas quando a proa do bote bateu no casco do iate, debaixo dos assentos traseiros do bote saiu um gato encharcado, enxovalhado e arrepiado, que saltou a bordo
dirigindo-se apressadamente para o calor da cabina. Naquela aventura húmida do quebrar das ondas, o Aspirina tinha sabido tomar conta de si próprio, salvando-se
de um túmulo aquático, saltando a bordo do bote, quando ficou operacional e abrigando-se no canto mais protegido. Fizera tudo isto sem lamentações e sem pedir ajuda
a ninguém. A sua coragem e confiança nele próprio eram extraordinárias.
Entretanto, o agradável mês a velejar estava prestes a chegar ao fim e levantou-se a questão do futuro do Aspirina. Estava fora de questão devolvê-lo a um
mundo frio sem protecção, embora soubéssemos que um gato tão dotado e esperto sobreviveria bem em qualquer lado. Mas gostávamos de acompanhar as suas façanhas e
talvez levá-lo connosco na próxima vez que fôssemos velejar quando ele já fosse um gato adulto e digno. Finalmente ficou decidido que ele passaria o Inverno em casa
de Susan H., uma amiga de um dos rapazes. Ela queria um gato para o seu atelier e ficaria muito satisfeita em ter por companhia um gato tão vivido e viajado como
o Aspirina. Assim, atracámos o iate ao molhe de Annisquam, onde sempre ficava no fim da época, fizemos as malas e quando estávamos prontos para a viagem até Boston,
enfiámos o Aspirina num cesto de viagem e levámo-lo até ao comboio. Suportou o enclausuramento com o mesmo bom senso que demonstrou vivendo connosco, embora eu pense
que o ofendemos com a falta de confiança que lhe demonstrámos; e, na verdade, estávamos um pouco envergonhados, e logo que nos sentámos na carruagem alguém sugeriu
que o soltássemos só para ver como ele se portava. Já deveríamos saber que se portaria lindamente. Depois de ter dado uma vista de olhos, mirado os restantes passageiros,
por cima do encosto da cadeira, e contado o grupo para ver se estávamos lá todos, o Aspirina enroscou-se e adormeceu com a cabeça nos joelhos do capitão e dormiu
até Boston.
Foi a última vez que vi o Aspirina. Foi entregue na sua nova casa em Boylston Street, onde viveu muito agradavelmente por alguns meses, e onde fez vários
amigos por causa da sua maneira de ser agradável e temperamento tranquilo. Mas penso que se aborrecia em Boston. Não se sentia à vontade naquele ambiente estético.
Sempre acreditei que ele ansiava pela vida livre do mar. Gostava de estar sentado no parapeito da janela quando o vento soprava do leste e parecia sonhar com paisagens
longínquas. Um dia desapareceu. Não se encontrou qualquer rasto dele. Podiam-lhe ter acontecido inúmeras coisas, mas tive sempre o pressentimento que tinha ido para
os cais, docas e ancoradouros à procura dos seus velhos amigos e ver se encontrava o leal Eyvor, e como não o encontrou, estou convencido de que embarcou num barco
de grande tonelagem e é presentemente um gato marinheiro do alto mar.
trad. £j. L. F.
*A MELHOR DAS CAMAS
Sylvia Townsend Warner
O gato vivera muitos Invernos, mas nunca nenhum como este. Tinha chovido durante dois arrastados e escuros meses, e agora, na Noite de Natal, o vento tinha virado
a leste, e em vez de chuva, caía neve e granizo.
As duras pedras de granizo batiam nos seus flancos encharcados e aleijavam-no. Correu mais depressa. Quando os rapazes lhe atiravam pedras ele escapava correndo;
mas deste apedrejamento celestial não havia fuga possível. Estava com fome pois não comia desde que tinha deparado com um pardal morto de frio, há três dias. Não
era hábito do gato comer carne morta, mas como estava numa época dificil ficou grato por aquela carne com sabor pouco saudável. Atormentava-o a sede, mais do que
a fome. Aqui e ali parava e raspava a língua na sarjeta. Já não tinha esperança alguma, tinha-se esquecido da sua astúcia. Desesperado, continuava a correr.
As luzes, os passos no pavimento, os autocarros arrasadores, os ágeis automóveis iguais a gatos monstruosos cujos olhos o obrigavam a desviar o olhar, atemorizavam-no.
Embora fosse londrino não estava habituado a estas coisas, porque tinha nascido na margem do Tamisa e tinha passado os seus dias no meio das docas, numa vida modesta
mas proveitosa de caçador de ratos e de boas sonecas dormidas por cima de sacos de farinha. Mas uma noite, o cais onde vivia incendiara-se; aterrorizado pelas chamas,
fumarada e balbúrdia, começou a correr, atéque de manhãzinha estava longe do rio, sem eira nem beira, e totalmente inexperiente para arranjar outra casa.
Uma porta para a rua abriu-se, e ele desviou-se e dobrou a esquina, mas nessa rua também havia portas a abrir, cada porta deixando sair o horror, porque
era a hora de fechar. Uma vez, no princípio das suas perambulações, tinha entrado por uma dessas portas, pensando que qualquer abrigo seria melhor do que continuar
à chuva. Antes que tivesse tempo de fugir, uma mão tinha-o apanhado e uma voz por cima da sua cabeça gritara: - Querem ver que o diabo do gato entrou para beber
uma pinga! - E o gato sentiu o seu focinho mergulhado numa poça de algo abrasador e malcheiroso que lhe fez arder durante horas as narinas e os olhos.
Comprimiu-se de encontro à parede e ficou imóvel até que a última porta se abrisse pela última vez. Só quando alguém passava levando aquele cheiro é que
ele se mexia:
o seu nariz tremia com um asco incomensurável, as suas orelhas grandes colavam-se à cabeça e a ponta da cauda batia fortemente no pavimento. Um cão, consciente do
seu próprio desespero, teria desistido, deitando-se à espera da morte; mas quando as ruas voltaram a estar sossegadas o gato recomeçou a correr.
Houve tempos em que ele corria e saltava pelo simples prazer de o fazer, regozijando-se na sua força como um atleta. Os recursos daquele corpo seco e elástico,
disciplinado pelos dias de caça da sua juventude, tinham-lhe sido favoráveis nos primeiros tempos da sua perambulação; então, acelerando diante de um terrier que
ladrava, ele sentira que se sobrepunha aos seus terrores uma alegria plena e compacta na certeza de poder, tão seguramente, fugir ao perseguidor; mas agora a sua
força só servia para prolongar o seu sofrimento. Embora a fadiga acumulada ardesse em cada um dos seus nervos, os membros empedernidos continuavam a levá-lo, e continuariam
a levá-lo ainda, prisioneiros de si mesmo, a trotar humildemente até ao local da sua morte.
Ele corria ao sabor do vento, virando aqui e acolá de modo a evitar as rajadas cravejadas de granizo que assolavam as ruas. Os olhos estavam fechados, mas
de repente, a um som familiar, parou e ficou especado de medo. Era o som de uma porta a ranger nos gonzos. Cheirou apreensivamente. Havia um cheiro que saía sempre
que a porta se abria, mas não era o cheiro que ele detestava; esperou na sombra de um contraforte embora não se ouvisse som algum de vozes estridentes a confirmar
os seus medos e conquanto a porta continuasse a abrir e a fechar, não se ouviam passos. Cautelosamente, deslocou-se do contraforte para dentro de um pórtico. Aqui
o cheiro era mais forte; era aromático, rico e com um vago odor de fumo. Fazia cócegas no nariz e fazia-o espirrar.
A porta oscilava com o vento. A abertura era estreita, estreita demais para se poder ver através dela, a não ser uma escuridão que não era totalmente escura.
Com uma determinação repentina o gato esgueirou-se lá para dentro.
De toda as sensações uma sobrepôs-se a todas as outras. Calor! Envolveu-o todo e confundiu a sua física e angular consciência do frio, fome e fadiga em algo
de arredondado e indistinto. Meio desmaiado, estendeu-se nas lajes de pedra do chão.
Outro acesso de espirros despertou-o. Levantou-se de um salto e começou a explorar.
O edificio em que se encontrava lembrava-lhe onde vivera. Muitas vezes, caçando à beira do rio, vagueara em lugares iguais a este - imponentes e sombrios,
com chão de pedra e de certeza desabitados. Mas aqueles cheiravam a trigo, a lentilhas, a sebo, a açúcar; e nenhum deles cheirava como este cheirava - adocicado
e fumarento. Aqueles eram frios. Neste estava calor. Aqueles eram escuros; aqui a obscuridade era abrandada por uma estrela vermelha que ardia no meio do ar e pelas
chamas de algumas velas que davam ao ar adocicado o seu cheiro de cera quente.
Como a curiosidade crescia a par da sua confiança, o gato percorria avidamente a igreja: coçou as costas na pia baptismal, analisou os vários cheiros dos
genuflexórios, subiu os degraus do púlpito, saltou para a pedra do altar e afiou as garras numa almofada. Lá fora o vento aumentava de intensidade e o granizo batia
de encontro às janelas, mas lá dentro o ar era ameno e tranquilo e a estrela vermelha continuava a arder suavemente. Encostado ao púlpito o gato encontrou algo que
lhe fez lembrar ainda mais a sua casa - um punhado de palha nas lajes do chão. Vira muitas vezes palha; por vezes montes altos como torres nas barcaças, outras vezes
caída dos bornais dos grandes cavalos de tiro, que esperavam pacientemente no pátio do administrador do desembarcadouro.
A palha parecia ter caido de um caixote pousado sobre um cavalete. O gato ergueu-se nas patas traseiras e tentou espreitar lá para dentro, mas era alto demais
para ele. Deu uma volta, mas a sua curiosidade levou a melhor e trouxe-o de novo; posicionando-se nas patas unidas gingou levemente, avaliando o salto, e depois
pulou, pousando suavemente numa cama de palha. Aterrou tão delicadamente que embora as duas figuras ajoelhadas a cada lado da manjedoura oscilassem por um momento,
não caíram. O gato cheirou-as um pouco com uma certa desconfiança, mas não lhe prenderam a atenção por muito tempo. Era a palha que lhe interessava. Um aroma soporífero
subia do fundo da cama quente enquanto ele misturava e remexia a palha com as patas dianteiras. Isto, isto prometia-lhe o que ele aspirava há tanto tempo um sono
reconfortante, um envolvimento no calor e na calma, um esquecimento nutritivo. Deu várias voltas enfiando-se num ninho apertado, ronronando num tom agudo de alegria.
Ao voltar-se roçou numa terceira figura na manjedoura, mas mal deu conta disso. Já uma modorra de sono tomava posse dele; as duas figuras ajoelhadas não lhe fizeram
mal nenhum, nem iria esta, que repousava. Já a cama parecia feita à sua medida. Pousando a cabeça nas patas, abandonou-se.
Outra carga de granizo bateu nas janelas, a porta rangeu e as velas tremularam por uma lufada de vento que entrou na igreja, como se estivessem a acenar
as cabeças em consentimento; conquanto as orelhas do gato estremecessem uma ou duas vezes contra os pés do Jesus de gesso, estava a dormir tão profundamente que
nem se apercebeu.
Trad. £j. L. F.
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Esta obra foi digitalizada por Angelina Azevedo e revista por Américo Azevedo. Caso esteja interessado em mais obras deste género, contacte com Américo Azevedo -
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Segue uma antologia com algumas histórias de gatos.
Não leia este livro com a visão da paixão de vocês pelos bichanos, mas
conscientes da realidade do felino! (Risos)
Divirtam-se!
Abraços e beijos.
Luís... um velho gato.
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