segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Sobre deuses e caquis - um belíssimo texto de Rubem Alves

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                            Sobre Deuses e caquis

                                            Rubem Alves

 


Peço desculpas por ter escrito um livro assim tão chato. Eu não queria, porque eu não sou assim. Se escrevi deste jeito foi porque me obrigaram, em nome do rigor acadêmico. Eles pensam que a verdade é coisa fria e até inventaram um jeito engraçado de escrever, tudo sempre no impessoal, como se o escritor não existisse, e assim o texto parece que foi escrito por todos e por ninguém. E foi por causa deste frio que se interditou o aparecimento da beleza e do engraçado nos textos de ciência. O saber deve ser coisa séria, sem sabor.

O que me faz lembrar de um mural de Orozco, pintor mexicano que passou anos ensinando a sua arte num college norte-americano, e foi certamente em virtude daquilo que ele via acontecendo com os moços que pintou A Formatura': o professor, alto, magro, cadavérico, verde,/entrega ao seu discípulo,/ sua imagem,/ também alto, magro, cadavérico, verde,/ a prova final do saber,/ o diploma,/ um feto morto, dentro de um tubo de ensaio.

As coisas mais bonitas que se escreveram em filosofia não seriam aceitas nos círculos acadêmicos nem mesmo como uma modesta tese de mestrado. Assim falava Zaratustra, por exemplo. É um livro que transgride os interditos acadêmicos de várias formas: é belo,/ poético,/ metafórico,/ reticente,/ uma coleção de fragmentos,/ e é escrito com sangue...

Mas se alguém se dispuser a fazer deste poema o objeto de suas dissecções analíticas, então sim, a dissecção virará dissertação, coisa de entrada permitida nos círculos do saber. O que tem vida fica de fora; entram as peças anatômicas, cheirando a formol.

Há aquele ditado Zen: 'O dedo aponta para a lua,/ mas ai daquele que confundir o dedo com a lua.'

Aqui é o contrário: mais vale o dedo que a lua...

Como Nietzsche observou, a condição para se passar num exame de doutoramento é haver desenvolvido o gosto pelas coisas chatas.

Assim escrevi feio, sem riso ou poesia, pois não me restava outra alternativa: estudante brasileiro, subdesenvolvido, em instituição estrangeira, tem mesmo é de se submeter, se quiser passar...

Hoje faria tudo diferente.

Começaria por informar meus leitores de que teologia é uma brincadeira, parecida com o jogo encantado das contas de vidro que Hermann Hesse descreveu, algo que se faz por puro prazer, sabendo que Deus está muito além de nossas tramas verbais.

Teologia não é rede que se teça para apanhar Deus em suas malhas, porque Deus não é peixe, mas Vento que não se pode segurar...

Teologia é rede que tecemos para nós mesmos, para nela deitar o nosso corpo.

Ela não vale pela verdade que possa dizer sobre Deus (seria necessário que fôssemos deuses para verificar tal verdade); ela vale pelo bem que faz à nossa carne.

Ah! Pensam que sou herege... Nada disto. Estou apenas repetindo coisa muito velha, esquecida, da tradição protestante, que diz que 'conhecer a Cristo é conhecer os seus benefícios': de Deus, o único que podemos saber é o bem que faz ao nosso corpo. Com o que concorda o sábio Riobaldo: 'Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. E o aberto perigo das grandes e pequenas horas... Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim, dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença para coisa nenhuma.'

Aqui se resume a teologia; o resto são floreios.

Há palavras que moram na cabeça e são boas para serem pensadas. Com elas se faz a ciência.

Mas há palavras que moram no corpo, e são boas para serem comidas. Chegam à carne sem passar pela reflexão.

Magia. Ou poesia, que é a mesma coisa.

Dito de forma clara, vi pela primeira vez na Emily Dickinson: 'Se leio um livro e ele torna/ o meu corpo/ tão frio que nenhum fogo seria jamais capaz/ de me aquecer,/ eu sei que aquilo é poesia./ Se eu sinto,/ fisicamente,/ como se o topo de minha cabeça tivesse sido/ arrancado,/ eu sei que aquilo é poesia.'

Por isto que, pra mim, poesia e magia são a mesma coisa: a imagem é coisa bruxa que me possui,/ se encarna em mim./ Teologia é um exercício de feitiçaria, variações sobre o tema da encarnação.../ Deus se fez Carne,/ Deus é a Carne em que se revelou,/ Deus acontece quando o poema toma conta do Corpo.

Isto é o único que podemos dizer de Deus. Não que saibamos coisa alguma a seu respeito.

Mas bem sabemos que aquilo que está acontecendo com o nosso corpo é coisa divina, que deveria existir sempre, eternamente, e bem mereceria que o nosso corpo ressuscitasse, eterno retorno, para que o Poema fosse eternamente repetido, gozo, orgasmo, ciclo que sempre volta ao início, canon, contraponto, variações sobre um mesmo tema.

Damos o nome de Deus a este êxtase do corpo (ou da alma; não sei onde é que os dois se separam) possuído pela beleza.

Não há mistérios fora disto sobre que possamos falar.

Cito, como autoridade, outro teólogo, Alberto Caeiro: 'Pensar em Deus é desobedecer a Deus...'

A única coisa que temos é o tremor na carne quando nela acontece a magia, e ela fica possuída pelo poema. É então que as ausências se fazem presenças (fugidias...). Aquilo que Nietzsche sugeriu: 'Será que não percebes que o que amam em ti é o brilho de eternidade em teu olhar?' O crpo vira altar - ou, como diriam os teólogos, 'locus revelationis' - o lugar onde se torna visível que somos habitantes de um outro mundo. Não, não me entendam mal quando falo de 'outro mundo'. Nada a ver com céu ou inferno...

De novo é a Poesia: 'Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim, todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado, feito de tijolos e de tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Sua própria realidade compacta nos faz duvidar: são assim as coisas ou são de outro modo? Não, isto que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, no qual nunca estivemos, já estavam o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que nos recordamos e queríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiqüíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Adivinhamos que somos de outro mundo...' (Octávio Paz)

Se uso a palavra Deus é como metáfora poética, nada que eu conheça, o significante que nada significa, a não ser o espaço vazio onde aparecem as minhas nostalgias e onde se coloca o dizer poético. De Deus só temos o Verbo, Poema, coisa que se diz quando a saudade dói... Isto não é jeito que eu tenha inventado.

Aprendi, lendo as Sagradas Escrituras, onde está interditado o simples pronunciar do Nome Sagrado, que sempre que aparecia no texto era substituído por um outro - Tabu! - e, se o simples pronunciar do Nome Sagrado era blasfêmia, que dizer das tentativas de se escreverem anatomias e fisiologias do Mistério Divino, isto a que se dá o nome de teologia?

Deus é símbolo que marca uma proibição de falar. Onde ele se diz estabelece-se um grande silêncio. E sobre ele surgem as metáforas, que é um jeito de dizer o que não pode ser dito.

Não podemos falar sobre Deus, mas podemos falar sobre as coisas humanas. Teologia são os poemas que tecemos como redes sobre a saudade de algo cujo nome esquecemos.

Qual deles é verdadeiro? Poemas não podem ser verdadeiros. Mas devem ser belos.

E é só por isto que eles têm o poder mágico de possuir o corpo. A verdade é o que é; o que está presente. Mas o corpo se inclina para o que não é - Desejo! - o que ainda não nasceu, ou que já morreu, contornos do 'pedaço arrancado de mim'. E me veio esta idéia insólita de que Deus é o nome que damos a esta ausência que habita o corpo...

O que me leva a uma absurda conclusão: para fazer teologia não é necessário acreditar que Deus exista.

A Cecília Meireles só escreveu sua 'Elegia' depois da morte de sua avó. O poema descreve o mundo mágico que ficou no espaço vazio deixado por um corpo que se foi.

'Teu como era um espelho pensante do universo...' Teologia não é coisa de quem acredita em Deus mas de quem tem saudades de Deus.

Acreditar: sei que Deus existe em algum lugar. Ah! Se não existir, tudo estará perdido...

Ter saudade: mesmo que não exista lá fora, no meio das nuvens ou no fundo do mar, eu o mantenho como 'pedaço arrancado de mim...' 'Oh! Pedaço arrancado de mim.../ Oh! Metade arrancada de mim.../ A saudade é o revés do parto/ A saudade é arrumar o quarto/ do filho que já morreu...' (Chico)

Teologia, celebração de um vazio que nada pode encher. E só por isto que dizemos que Deus é Infinito. Não porque o tivéssemos medido, mas porque sentimos o Infinito do desejo que coisa alguma pode satisfazer. Daí que estamos condenados a ser eternos pranteadores...

Mas teologia é coisa bela, um sonho...

Sonhamos com Deus e o sonho interpretado deixa ver os cenários que existem nos vazios da nossa nostalgia (ocultos pela bruma do esquecimento). E então nos tornamos poetas...

Acontece que o mundo está cheio de loucos.

Muitos pensam que o que dizem sobre Deus tem conseqüências cósmicas (mais próximos da verdade estariam se se contentassem com as conseqüências cômicas)... O que me faz lembrar a estória de um galo que acordava bem cedo, todas as manhãs, ainda escuro, e anunciava solene aos seus companheiros, bichos de galinheiro: '- Vou cantar para fazer o sol nascer...'

E se empoleirava no alto do telhado, olhava para o horizonte, e ordenava, categórico: '-Co-co-ri-co-có...'

Dali a pouco a bola vermelha mostrava o seu primeiro pedaço e o galo comentava, confiante: '- Eu não disse?...'

E os bichos ficavam boquiabertos e respeitosos ante poder tão extraordinário conferido ao galo: cantar pra fazer o sol nascer. E nem havia sombra alguma de dúvida, porque tinha sido sempre assim, com o galo-pai, com o galo-avô...

Aconteceu, entretanto, que o galo certo dia perdeu a hora, e quando ele acordou o sol já estava lá, brilhando no meio do céu...

Há teólogos que se parecem com o galo. Acham que, se não cantarem direito, o sol não nasce: como se Deus fosse afetado por suas palavras. E até estabelecem inquisições para perseguir galos de canto diferente e condenam outros a fechar o bico, sob pena de excomunhões. Claro que fazem isto por se levarem muito a sério e por pensarem que Deus muda de idéia ou muda de ser ao sabor das coisas que nós pensamos e dizemos. O que é, para mim, a manifestação máxima de loucura, delírio maníaco levado ao extremo, este de atribuir onipotência às palavras que dizemos.

Teólogos são, freqüentemente, galos que discutem qual a partitura certa: que canto cantar para que o sol levante? Neste sentido, conservadores fundamentalistas não se distinguem em nada dos teólogos científicos que se valem de métodos críticos de investigação. Todos estão de acordo em que existe uma partitura original, revelada, autoritativa, e que a tarefa da teologia é tocar sem desafinar. As brigas teológicas são discussões sobre se a tonalidade é maior ou menor, ou se o sinal é bemol ou sustenido. Uns querem que seja tocada com orquestra de câmara e outros afirmam que o certo é tocar com banda. Qualquer que seja a posição, todos afirmam que existe um único jeito de tocar a música. Usando palavras de Lutero, 'unum simplicem solidum et constantem sensum' - o sentido uno, puro, sólido e constante. Desafinações, variações ou modificações trazem consigo o perigo de alguma grave conseqüência.

Eu penso, ao contrário, que não é nada disso.

O sol nasce sempre, do mesmo jeito, com galo ou sem galo.

Assim, o galo pode dormir à noite, sem a angústia de ter de acordar na hora certa. Se dormir demais, o sol vai se levantar do mesmo jeito. O que, sem dúvida, diminui seu senso de importância, mas tem a compensação do sono tranqüilo, o que não é de se desprezar.

Mais do que isso: o galo pode inventar outros cantos, sabendo que o sol não vai se zangar e vai nascer como sempre, no mesmo lugar.

Traduzido em jargão teológico isto significa 'graça': a bondade de Deus continua a mesma, sempre, independente de nossas afinações ou desafinações. Ele nem nasce melhor quando estamos afinados e nem nasce pior quando estamos desafinados... Temos, portanto, a liberdade de fazer o que quiser... Eu não suportaria pensar que o meu pensamento é tão poderoso que, caso eu pense errado, Deus vai ficar torto.

A partitura tem o nome de teologia, mas quem dança somos nós...

Uma outra parábola.

Algumas pessoas discutem sobre uma casa, que todos vêem.

Para um grupo, ela é habitada por um nobre, de hábitos aristocráticos e conservadores...

Outros afirmam o oposto: mora ali um operário, membro de sindicato, revolucionário...

Alguns, por oposição, dizem que ela está vazia...

Eu me aproximo, apontam na direção da casa, pedem minha opinião, e concluo que alguma coisa deve estar errada com os meus olhos, pois não vejo casa alguma, só nossos próprios reflexos, através dos vidros da vidraça.

Tive, no meu aquário, um peixe de cores banais. Mas era um peixe guerreiro, que não suportava a presença de um competidor. Se isto acontecia ele se transfigurava, e o seu corpo era possuído por cores escondidas que ninguém suspeitava morassem nele. Mas como ninguém desejava o combate mortal, a magia podia se realizar com o auxílio de um simples espelho.

Pobre peixe: incapaz de reconhecer sua própria imagem no reflexo.

As batalhas teologais me fazem lembrar meu peixe-de-briga. Por não saberem que tudo não passa de um delicioso e divino jogo de espelhos - coisa própria para o nosso prazer de brincar - os teólogos mudam as suas cores e são possuídos por uma doença já catalogada: odium theologicum. Assim se iniciam as batalhas em nome de Deus. Seria tão mais honesto se reconhecessem que 'Deus' é o nome que dão à sua própria imagem...

Faço meus poemas sobre um vazio, o meu vazio. Não conheço nenhum outro. Em obediência a um mandamento sacramental: que o pão fosse comido e o vinho fosse bebido na dor da ausência. A magia não está nem no pão, nem no vinho, mas nas palavras que dizem a tristeza da falta. O sacramento celebra a ausência de Deus, ele enuncia os limites dos espaços de espera que se dilatam dentro de mim, eroticamente.

É a ausência que me excita.

Ou, nas palavras desta teóloga ímpar, a Adélia Prado: 'Entre as pernas geramos e sobre isso se falará até o fim sem que muitos entendam: erótico é a alma.'

Será isto que é a alma, a ausência que mora em mim, e faz o meu corpo tremer? Não me canso de repetir esta coisa linda que disse Valéry: 'Que seria de nós sem o auxílio das coisas que não existem?'

Estranho isto, que o que não existe possa ajudar...

Deus nos ajuda, mesmo não existindo: este o segredo da sua onipotência.

Teologia é um encantamento poético, um esforço enorme para gerar deuses...

Que deuses?

Os meus, é claro.

São os únicos que me é permitido conhecer.

Lembro-me de Feuerbach. Compreendeu que estamos destinados ao nosso corpo, especialmente os olhos.

Vemos. Mas em tudo o que vemos encontramos os contornos da nossa própria nostalgia, o rosto da alma.

Como Narciso, que se enamorou de sua própria imagem, refletida na superfície lisa da fonte. Também nós: o universo sobre que falamos é a imagem dos nossos cenários interiores. Com o que concorda a psicanálise, e antes dela o Evangelho: a boca fala do que está cheio o coração.

Nossos deuses são nossos desejos projetados até os confins do universo.

'Se as plantas tivessem olhos, capacidade de sentir e o poder de pensar, cada uma delas diria que a sua flor é a mais bela'.

Os deuses das flores são flores. Os deuses das lagartas são lagartas. Os deuses dos cordeiros são cordeiros. E os deuses dos tigres são tigres...

Tudo é sonho. Ou, como diz Guimarães Rosa: 'Tudo é real porque tudo é inventado.'

Também o real é uma invenção...

E o mágico é isto: que o corpo, desprendendo-se das ligações que o prendem àquilo que é, possa ser possuído por aquilo que não é. Aquela coisa pesada, que se arrastava desajeitadamente pelo chão, repentinamente fica leve, transparente, utópica, ao vento. E assim, as coisas que são, é como se não fossem; e as coisas que não são, é como se fossem. (1 Cor. 1:28-29).

Teologia é um brinquedo que faço.

É possível plantar jardins, pintar quadros, escrever poemas, jogar xadrez, cozinhar, fazer teologia... Claro que um jogo não exclui o outro. Alguns dirão que isto não é coisa séria.

Eu os conheço muito bem e já havia advertido o leitor contra eles.

Quem se leva a sério é, no fundo, um inquisidor. Está só à espera de que a ocasião apareça.

As grandes atrocidades que se cometeram contra as pessoas foram todas levadas a cabo com espírito grave, com um senso de missão, de salvação do mundo.

O diabo está sempre vestido de paletó e gravata e, a se acreditar em Nietzsche, ele nem sabe contar piadas e nem sabe dançar: é o espírito da gravidade. Já com Deus é o contrário, porque a oração começa com o riso.

Jogo de contas de vidro. Não são lindas, as contas?

O vidro sempre me fascinou. Como é possível isto, que haja algo tão duro e que seja transparente?

Em especial, os pesos de papel. Tenho vários.

A forma lisa, arredondada, me faz lembrar um seio juvenil.

Já as bolhas que vejo, lá dentro, e que mudam seus reflexos de acordo com a posição da luz, me fazem lembrar luas e sóis. Galáxias, universos.

Tudo dentro de um seio. Não seria bom que fosse assim? Elas não dizem nada, por isto podemos dizer tudo. Tudo é inventado. Tudo é real. O corpo treme..

Sonho. Teológo: brinco com vidros coloridos sagrados, e deixo que a luz passe por eles, e apareça multicolorida, mostrando sua beleza escondida.

Também eu sou um vidro, transparente, peso de papel.

Há, de fora, a superfície do meu corpo e, de dentro, universos que desejo iluminar.

Para isso é preciso luz...

É que é escuro.

Profundidades de fundo de mar.

'Nosso olhar é submarino./ Nossos olhos olham para cima/ e vêem a luz que se fratura através de águas inquietas.' (Eliot)

Com o que concorda a Cecília: 'Mas, neste espelho, no fundo/ desta fria luz marinha,/ como dois baços peixes,/ nadam meus olhos à minha procura...'

'Tudo é nebuloso,/ neblina misteriosa,/ como se tudo víssemos na superfície embaçada de um espelho mal/ polido'. (São Paulo, 1 Cor. 13.12)

Ou sombra de mata encantada.

'Os bosques são belos, sombrios, fundos...' (Frost)

'...seu mundo interior, caos selvagem, bosque antiqüíssimo e adormecido, sobre cujo silencioso despertar verde-luz, seu coração se erguia.' (Rilke)

O brinquedo é este.

Não da luz total, que faz sempre mal aos olhos.

Coisa que me ensinou um poeta, o Heládio, que lia meus textos com espanto e dizia: 'Luz demais, estou ofuscado, é preciso trazer um pouco de neblina...'

Achei que ele era doido.

Depois aprendi: Mallarmé, Debussy, Boulez.

E lembrei-me do mestre que lera tanto, mas nunca entendera, justamente porque eu queria entender: Kierkegaard. E preciso não dizer. Só a obscuridade modorrenta... E não é justamente aí que se caçam sacis e os faunos aparecem, lúbricos, para as ninfas ardentes? O encanto da hora da modorra, quando o corpo não está nem dormindo e nem acordado. Aí aparecem as visões...

Vocês, que leram O Saci, sabem que, para apanhá-lo, é preciso jogar peneira de cruz trançada sobre o olho do rodamoinho, pois é aí que o Saci fica pulando. Depois, enfiar o gargalo de uma garrafa por uma fresta da peneira, o Saci não resiste e passa. Arrolhar bem arrolhada, com rolha com cruz cortada a faca. E, depois, olhar... E vem o desapontamento. Não tem Saci nenhum que se veja, dentro da garrafa. É que Saci é moleque mágico, não se mostra à toa. É preciso ir para o mato, depois do almoço, aquele calor de se fazer nada, as cigarras zinindo no ar, e ficar debaixo de uma árvore, sem pressa, o sono vai chegando, e o Saci começa a aparecer. Acontece o mesmo com as ninfas e os faunos - tanto assim que Mallarmé e Debussy fizeram seu poema erótico-onírico acontecer neste mesmo tempo em que o corpo fica suspenso entre dois mundos.

As contas de vidro: nelas se misturam lisuras eróticas e funduras de sonhos, seios e galáxias, saudades de paraísos. E a gente vai inventando o real, construindo o mosaico, experimentando com as cores, costurando distâncias com a luz, enchendo os espaços vazios com as criaturas da fantasia, e o nosso avesso vai aparecendo, terrível e maravilhoso.

A teologia que faço é o avesso da minha carne. Deus é o meu avesso...

Não, não é que Deus seja o meu avesso. Ele é mistério grande, proibido. É a metáfora, o ponto que dou, com cor e luz, no jogo dos vidros. Digo o meu avesso com o auxílio de um outro nome, que não o meu. Eu não sou eu. Sou mais. Diferente. Mais bonito. Mais feio (porque no avesso também mora o diabo...).

Por que faço este jogo?

Pelas mesmas razões por que se jogam todos os jogos.

Puro prazer.

Vejam que absurdo: para vir escrever estas coisas, neste teclado de máquina de escrever, silenciei um outro teclado, que se tocava no aparelho de som, sonata de Mozart. Achei quase sacrilégio. Mas que posso fazer? Não sei brincar com os sons como Mozart sabia, mas sei brincar com palavras, imagens, contas de vidro. Recebi um elogio tão grande, dias atrás, que até vou vencer a modéstia que se deve ter, por educação, e dizê-lo. Foi o Benito Juarez, regente, comentando uma coisinha que escrevi, e ele disse: '- Tenho a impressão de que você faz com as palavras o que Mozart fazia com as notas. Pura brincadeira. Dá-se um tema e a sonata aparece.' Claro que fiquei feliz e quero que seja assim. Fazer música. Teologia é uma música que faço com palavras, um móbile de contas de vidro, uma tapeçaria de luz. Faço por razões estéticas. E é por isto que nem mesmo necessito crer. Para se amar as Variações Goldberg não é preciso acreditar em nada. Basta ter ouvidos na alma (por favor, nunca se esqueça de que 'erótico é a alma'. Há excelentes ouvidos que só percebem ruídos, barulhos, guinchos e colisões). Para se amar Chagal também não é preciso acreditar em nada, basta ter olhos na alma. Se os olhos estão cegados por catarata, a leitura de Bachelard, sobre o mundo de Chagal fará a devida magia. Não é preciso acreditar em nada para se gozar um copo de vinho: basta ter olhos para ver o vermelho que a luz atravessa, olfato para deixar que parreirais maduros entrem nos lugares mais primitivos da memória corporal, e gosto para sentir a forma como o líquido agrada ao corpo.

Não é preciso acreditar em nada. Basta sentir.

Teologia é um morango que se colhe e que se come, pendurado sobre o abismo - sem nenhuma promessa de que ele nos fará flutuar...

Pode parecer coisa irresponsável, num mundo tão cheio de graves problemas.

Mas eu me pergunto se a gravidade dos problemas não é causada pela gravidade das pessoas que julgam que o destino do mundo depende de sua ação.

Justificação pelas obras.

Se elas não se levassem tanto a sério talvez não construíssem tantas armas e não fossem tão implacáveis na cobrança dos seus juros e tão autoritárias na imposição dos seus pensamentos.

Teologia é um exercício de beleza e de humildade. Brincamos, como a própria Santíssima Trindade que, nos jogos intelectuais do venerável Santo Agostinho, só fazia uma coisa, nas transas intratrinitárias: brincar. Auto-erotismo.

É preciso expulsar o espírito de gravidade que aparece nas gravatas e nos rostos dos senhores constituintes, nas roupas coloridas dos senhores cardeais, na eloqüência estudada dos senhores pastores, nas fardas heróicas dos generais, na fala científica de professores catedráticos, nas contas implacáveis dos banqueiros, no rigor educador das mães e dos pais...

Levar a vida a sério é compreender que 'tudo é real porque tudo é inventado'...O que não se pode dizer sem que um riso enorme tome conta do corpo...

Escrevi para me dizer. Brincadeira comigo mesmo.

Se outros gostarem do jogo das contas de vidro, são bem-vindos.

Só que não adianta e nem faz sentido tentar me entender. Nem sei se eu mesmo me entendo. Quem é dono dos próprios sonhos? No jogo o importante não é compreender a conta de vidro. Ela não se oferece para ser objeto de análise. Num jogo de palavras impossível de ser dito em português: a questão não é to understand it, mas antes to stand under it.

Não os meus pensamentos, supostamente escondidos naquela conta de vidro, mas os seus pensamentos, que aquela entidade mágica evocou. É preciso pensar os próprios pensamentos.

Assim, é como se fosse um duelo de improvisadores-repentistas: um vai dizendo seus temas, e o outro vai contraponteando com os pedaços seus que vão aparecendo.

Que ninguém me acuse de heresia, pois não tenho a menor pretensão de dizer verdades sobre entidades do outro mundo. Este mundo me basta. Prá dizer a verdade, o outro mundo me provoca sempre profundo terror, acho que deve ser chatíssimo - se por acaso existir. Sou um ente deste mundo. Lembro-me da Cecília Meireles, angustiada, indagando se depois de muito caminhar a algum lugar enfim se chega. 'O que será talvez até mais triste. Nem barcos, nem gaivotas, apenas sobre-humanas companhias...' O que eu quero é esta terra. Abro de novo a Suma Teológica da Adélia Prado: 'Depois da morte...eu vou querer o prato e a fome, um dia sem tomar banho, a gravata pro domingo de manhã...Quando eu ressuscitar, o que quero é a vida repetida sem o perigo da morte, os riscos todos, a garantia; de noite estaremos juntos, a camisa no portal. Descansaremos porque a sirene apita e temos que trabalhar, comer, casar, passar dificuldades, com o temor de Deus, para ganhar o céu.'

Minha teologia nada tem a ver com teologia. É vício. Há muito que deveria ter abandonado este nome. E dizer só poesia, ficção. Descansem os que têm certezas. Não entro no seu mundo e nem desejo entrar. Jardins de concreto me causam medo. Prefiro a sombra dos bosques e o fundo dos mares, lugares onde se sonha... Ali moram os mistérios e o meu corpo fica fascinado.

Era uma tarde comum, na cidade de Nova Iorque. Fim de um ano de sofrimentos. Tinha deixado esposa e filhos no Brasil para fazer um mestrado. Mas a saudade era grande demais. Arrumei minhas malas várias vezes para voltar, convencido de que nenhum grau acadêmico valia a dor da separação. No meu quarto eu havia colocado um calendário regressivo, com o número dos dias que ainda faltavam para a volta. E, pela manhã, a primeira coisa que fazia era riscar mais um. Agora eu estava feliz. Faltava só um mês. Já terminara todos os meus compromissos acadêmicos, inclusive a tese de mestrado. O seu título revelava o que nadava pela minha cabeça. Aqueles eram anos de fervilhamento político-social no Brasil, e a gente sabia, com uma convicção escatológica, que era inevitável que alguma transformação profunda acontecesse. E foi com estes pensamentos que escrevi A Theo/ogical interpretation of the meaning of the revolution in Brazil. Agora, tudo terminado, eu podia me entregar aos prazeres que aquela cidade oferecia: os museus, os concertos, as livrarias e o simples andar pelas ruas. Estava voltando para casa, contente e sonolento, num trem de metrô. Preparava-me para um curto cochilo até a rua 119, onde deveria saltar. À minha frente um homem lia o seu jornal. E foi então que fiquei instantaneamente congelado, o medo circulando pelo corpo, o vidro liso estilhaçado por um golpe de pedra. Lá estava, letras enormes, na primeira folha: 'Revolution in Brazil'.

Era o dia 1o de abril de 1964.

Em um segundo fiquei sem saber se poderia regressar.

Pátria, este lugar que a saudade enche de coisas boas, se transformou em terra invadida: gigantes verdes, dragões amarelos. No seu lugar, uma noite permanente, as prisões, as delações, o crime de se pensar, de ter idéias diferentes.

Meu pensamento enlouquecia, na solidão do quarto, dando voltas sobre si mesmo, amarrado e impotente.

O medo e o ódio se transformaram em diarréia, olhos arregalados pelas noites, náuseas, claustrofobia.

E não era possível me comunicar com o Brasil. Falar e escrever se tornaram coisas perigosas. Em 1984, um homem foi preso porque falou enquanto sonhava. A ficção se transformara em realidade. Era preciso cuidar para que nenhuma palavra traísse o pensamento - hábito que veio a se transformar num estilo, por muito tempo. Cartas e telefonemas eram confissões de crimes...

Passou-se o mês mais longo de minha vida. O tempo se esvaziou de qualquer coisa que nele pudesse ocorrer e se transformou em espera, no seu estado puro, todos os minutos sofridos no seu conteúdo de medo e raiva.

Eu conhecia a psicologia daquele momento que se vivia no Brasil: 'caça às bruxas'. Eu a aprendera no estudo e na experiência das Inquisições, períodos em que desaparece a inocência e a simples delação já constitui veredicto. A política eclesiástica aparecia como profecia da política secular. As duas são uma mesma coisa. A diferença está em que se numa os deuses aparecem com vestimentas sagradas e perfumes de incenso, na outra as roupas são de outras cores e os rituais litúrgicos seguem outros ritmos.

São momentos metafísicos, em que o sentimento do absoluto é respirado, de forma embriagadora, pelos inquisidores. Na verdade seria possível definir um inquisidor como alguém que 'cheirou' o absoluto, e ficou fora de si. A experiência é psicodélica: a pessoa fica possuída pela certeza de estar pisando em terra santa, no centro mesmo do universo, no lugar onde se decide o futuro da história. Ali, naquele lugar, naquele momento, está se travando a batalha pela salvação do futuro. Ela e Deus - não importa o nome que se lhe dê - se con-fundem numa mesma coisa.

Ocorre então uma fantástica transformação na imagem que as pessoas fazem de si mesmas. As mais insignificantes, perdidas no sem-sentido do dia-a-dia que se repete, se descobrem participantes de uma coisa enorme. Elas podem ser cúmplices daqueles que empunham a bandeira divina, na luta contra o Mal. Os vitoriosos, é claro. Porque os perdedores são sempre definidos pelos nomes do Demônio: bruxas, hereges, subversivos, comunistas, pequeno-burgueses. Tanto a direita quanto a esquerda possuem os seus deuses, só que adoram em altares diferentes e seus textos inspirados são outros. Efetua-se uma operação algébrica: aparece um conjunto daqueles que participam do triunfo do Bem contra o Mal - uma nova Igreja. E, como na matemática, são essenciais os símbolos que afirmam esta relação de pertinência. Na religião são os atos sacramentais, as mesmas formas litúrgicas repetidas, os gestos idênticos: assim os 'irmãos' se dão a conhecer. E assim também os que não pertencem se deixam trair: não participam dos mesmos sacramentos, não repetem as mesmas ladainhas e nem fazem os mesmos gestos. A diferença é a prova da cumplicidade com o demônio, porque quem não é igual a nós só pode ser contra nós.

O mundo se divide entre Deus e o Diabo,/ Verdade e Erro,/ Salvação e Perdição,/ Nós e os Inimigos.

Os momentos de 'caça às bruxas' são sempre religiosos, apocalípticos. Confronto entre o Bem e o Mal, no Armagedon. Tudo é absoluto. E com o Mal absoluto não se pode ter nem complacência e nem escrúpulos éticos. A ética é suspensa porque, para ser aplicada, é preciso que haja, por parte das pessoas envolvidas, o reconhecimento de uma qualidade comum, que liga todas elas. A ética nasce da empatia, esta capacidade que temos de sentir aquilo que está acontecendo com o outro. Mas isto só é possível se se acreditar que somos parecidos, moradores de um mundo comum, de alguma forma irmanados.

A 'caça às bruxas' abole este elo de ligação. A 'bruxa' é uma emissária de um mundo infernal que não tem direitos. Por isto a luta contra ela é semelhante à luta contra a AIDS: algo contra o qual todos os métodos são válidos. Contra o sujo não há 'guerra suja'. Contra os emissários do Inferno todas as torturas se justificam. Assim, quando os torturadores se defendem, alegando inocência, eles estão absolutamente certos. No mundo em que viviam, e que agora se encontra retraído provisoriamente aos seus espaços mentais, não podia existir a ética, porque o inimigo era uma entidade de um outro mundo, não-humano.

A ética só existe quando se aceita que todos oscilamos entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo. Todos somos tentáveis, seres divididos, misturados, permanentemente se defrontando com a necessidade da decisão e da culpa. Mas no mundo absoluto da 'caça às bruxas' tal situação não mais existe, porque Bem e Mal se separaram. Todas as decisões já foram tomadas e não existe a possibilidade de culpa. Assim, é possível torturar pela manhã e brincar com os filhos à tarde...

Voltar ao mundo anterior à culpa é, de certa forma, recuperar o paraíso; a participação nesta comunidade sagrada (que pode ser tanto uma igreja, um partido ou uma organização de torturadores) é algo que produz muito prazer: a sensação de poder, de verdade, de estar ao lado do futuro...

É aí que a violência se transforma em ato sacramental. Por meio dela se definem lealdades, se delineiam conjuntos. Os que torturam são irmãos. Recusar-se a torturar é afirmar-se como não pertencendo ao conjunto. Como rejeitar o pão e o vinho. Disseram-me que, num país da América Latina, encontravam-se cadáveres perfurados por muitas dezenas de balas. É evidente que a função de tantas balas não era prática: para matar basta uma. Sua função era outra: unir todos os participantes num mesmo ato sacrificial. Cada bala no corpo da vítima era um elo que ligava os participantes uns aos outros. Torturas, massacres, linchamentos, mais que puros atos políticos, são atos eclesiais: por meio deles se estabelecem laços de conspiração entre os membros de uma comunidade que se define como vivendo nos últimos tempos, além das misturas entre o Bem e o Mal.

A delação é também parte desta liturgia de participação. Delatar é dizer ao carrasco quem é que deve ser sacrificado. E, com isto, uma nova operação matemática: sou diferente dele, separo-me do inimigo, entrego-o ao sacrifício, e assim afirmo-me como membro do corpo sacerdotal. A delação faz isto: ela afirma a pertinência a um grupo através do estabelecimento prático do ódio a um outro. Delatar, portanto, não é transgredir a ética; é enunciar uma metafísica e confessar uma lealdade.

E era disto que eu tinha medo.

Somente muito tempo depois compreendi os fundamentos sociais dos meus temores. A Igreja Católica tem uma eclesiologia forte - na verdade é uma eclesiologia forte. Suas fronteiras institucionais e sua teologia delimitam um espaço e um tempo imensos, transbordando das limitações apertadas dos espaços e tempos políticos. Ela aprendeu a arte da sobrevivência. E esta arte tem a ver com a manutenção da integridade institucional, sempre que algum perigo surge. Assim, em meio à 'caça às bruxas', a Igreja Católica se constituiu numa 'cidade refúgio', 'santuário' onde os perseguidos encontravam abrigo. O fato de pertencerem à Igreja era mais forte que sua pertinência ao Estado. Mas com as Igrejas Protestantes a situação era diferente. Comunidades pequenas, marginais, sem reconhecimento, desejosas de 'pertencer' a algo maior: nada melhor que uma situação de 'caça às bruxas' para afirmar, perante o Estado, a sua lealdade, garantindo assim o seu direito de participar do poder. E que melhor prova de lealdade pode existir que entregar os seus próprios filhos ao sacrifício?

Voltei ao Brasil.

Comecei a aprender a conviver com o medo. Antes eram só as fantasias. Agora, sua presença naquele homem que examinava o meu passaporte e o comparava com uma lista de nomes. Ali ficava eu, pendurado sobre o abismo, fingindo tranqüilidade (qualquer emoção pode denunciar), até que o passaporte me era devolvido. No caminho do aeroporto para a minha casa, no carro de um amigo, o início das confirmações: 'Olha, Rubem, foi enviado ao Supremo Concílio um documento de acusações a seis pastores, e você é um deles. E circula também o boato de que você foi denunciado à ID-IV, de Juiz de Fora...'

Era o início de uma grande solidão.

Primeiro, eu tinha de voltar à paróquia da qual eu era pastor, lá em Minas. E eu me lembro daquela noite, no ônibus, a caminho de Lavras, a viagem interrompida pelos militares que fiscalizavam a Fernão Dias, e eles, pausadamente, indo de pessoa a pessoa, no escuro, eu não podia ver os seus rostos, as lanternas iluminando a lista dos procurados, que traziam nas mãos, iluminando os documentos de cada um e, finalmente, o foco de luz sobre o rosto. Eu já vira coisas assim no cinema: a qualquer momento a possibilidade de ser arrastado para o escuro, sem saber se voltaria.

Estas coincidências: justamente naquele dia a cidade tinha sido tomada. Militares vindos de fora realizavam o seu trabalho. O quartel da polícia já estava cheio de presos. Como explicar, quando chegasse a minha vez, os livros da minha biblioteca? Foi uma noite inteira abrindo caixotes, separando livros, queimando, enfiando outros em sacos para serem jogados no rio. Lembro-me que um deles foi Communism and the theologians, de Charles West, coisa perfeitamente inocente. Mas a capa era vermelha, e havia a foice e o martelo. Lá se foi ele, consumido pelas chamas - e em tudo o sentimento de um grande e absurdo pesadelo. Cedo, de manhã, meus amigos me aconselharam a sair da cidade. Só voltei um mês depois. E havia aquelas acusações contra os seis pastores junto ao Supremo Concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil. Dirigi-me à autoridade competente, solicitando uma cópia do documento. Foi-me dito que eu não podia ser informado das acusações que pesavam sobre mim. Só obtive uma cópia do mesmo porque um amigo a furtou. Eram mais de quarenta acusações: que pregávamos que Jesus tinha relações sexuais com uma prostituta, que nos deleitávamos quando nossos filhos escreviam frases de ódio contra os americanos, nas latas de leite em pó por eles doadas (eram os anos do programa 'Alimentos para a Paz'), que éramos subvencionados com fundos vindos da União Soviética. O bom do documento estava justamente na sua virulência: nem os mais obtusos podiam crer que fôssemos culpados de tantos crimes. Mas o trágico era precisamente isto: que pessoas da igreja, irmãos, pastores e presbíteros, não tivessem um mínimo de sentimentos éticos, e estivessem assim tão prontos a nos delatar.

Depois foi a delação direta aos militares. Era uma tarde bem fria, sábado. O Sílvio Menicucci, prefeito, amigo, telefonou-me.

'- Venha aqui ao Hotel Central. Há um advogado de Juiz de Fora com documentos que são do seu interesse.'

Não disse mais nada. Não precisava. Compreendi. E gelei. Lá estava o dossiê, resultado da incursão militar de meses antes. Eu era um dos indiciados. O que mais doeu foi que uma das peças básicas da denúncia era um documento da direção do Instituto Gammon, escola protestante, que funcionava numa chácara que pertencera ao meu bisavô, e que a vendera aos missionários que fugiam da epidemia de febre amarela em Campinas, nos fins do século passado. As acusações não eram frontais. Sugestões. Nada temos a ver com este senhor. Mãos lavadas. Vim a Campinas, para pedir que o Board diretor me defendesse. Mas o que encontrei, de novo, foram mãos bem lavadas. E foi sempre assim. Parecia-me que os protestantes tinham horror absoluto a qualquer pessoa que estivesse sendo acusada. 'Quem não deve não teme': o temor já era prova suficiente da culpa. Além do mais, é muito perigoso ser amigo de quem foi delatado. Está lá no Cancioneiro da Inconfidência: 'Quando a desgraça é profunda, que amigo se compadece?' Amigo de bruxa deve gostar de bruxaria. Quem apareceu para ajudar, de forma absolutamente gratuita, foi o Eugênio, maçon, que eu mal conhecia. Enfermeiro, parteiro, destas pessoas que conhecem a cidade inteira. Bateu à minha porta. Fui atender.

'- Nós soubemos que o senhor está em dificuldades. Queremos nos oferecer para ajudá-lo...'

E lá foi ele comigo, até Juiz de Fora, abrindo portas com os mágicos sinais da maçonaria. Não o esqueci. Mas não havia nada que pudesse ser feito.

Eu estava muito cansado. Compreendi a inutilidade da luta. Queria ir embora, para longe do medo: poder amar e brincar sem sobressaltos, recuperar o prazer perdido de falar meus pensamentos sem virar a cabeça, à procura de ouvidos, sem baixar minha voz...

Foi então que a United Presbyterian Church - USA (Igreja Presbiteriana Unida dos Estados Unidos da América do Norte), em combinação com o presidente do seminário teológico de Princeton, convidou-me a fazer um doutoramento. Não me esqueço nunca do momento preciso quando o avião decolou. Respirei fundo e sorri, descontraído, na deliciosa euforia da liberdade. Ainda hoje, quando um avião decola, sinto de novo aquele momento.

Mas, se na partida está a euforia da liberdade, na chegada está a tristeza do exílio. Aquele não era o meu mundo.

Olhava os meus colegas, passeando pelos gramados, sólidos, claras definições profissionais à sua frente, a luta por credenciais que lhes permitiriam ingressar na hierarquia do saber. Mas o meu desejo estava longe. Parodiando a Cecilia Meireles: O corpo naquelas salas,/ a alma por longe terra,/ em cada vida exilada,/ que surda perdida guerra...

O que o doutoramento exigia de cada um de nós era o domínio de um campo de saber: to dominate the field, scholarship. Acontece que eu sonhava com um mundo que perdera. E me assombrava com as questões que estudantes haviam escolhido como aquelas a que dedicariam quatro ou cinco anos de suas vidas. Para mim eram fantásticas abstrações, que eu não conseguia ligar a coisa alguma. Lembro-me dos famosos colóquios com os estudantes doutorais de ética. As questões mais dolorosas, de vida e morte, eram transformadas em trapézios onde se executavam virtuosismos intelectuais. Porque o que estava em jogo não era nem a vida e nem a política, mas os exercícios analíticos em que se jogava uma habilidade intelectual. Mas não me restavam alternativas: ao exilado só resta obedecer às leis do país que o acolhe. Teria de aprender a jogar o jogo que todos jogavam.

O que eu desejava era pensar o meu destino.

E o pensamento é algo que acontece como na construção de casas. Em São Tomé das Letras, as casas são feitas de pedra, nas florestas elas são construídas com madeira, e entre os esquimós se usa o gelo para fazer iglus. É preciso usar os materiais à mão. O pensamento faz assim também: busca os materiais de que dispõe para com eles representar-se. Os materiais para o pensamento são os símbolos. Cada época se pensa com os símbolos que possui. E nem poderia ser de outra forma, pois o pensar não pode acontecer no vazio. Acontece que os símbolos de que eu dispunha eram, em grande parte, religiosos, precipitados de uma vida, e se eu iria sugerir um 'jogo de contas de vidro', os símbolos religiosos, partes do meu próprio corpo, teriam de aparecer.

Este livro é uma meditação rude sobre o meu próprio corpo: o seu espaço, o seu tempo, seus valores, suas esperanças, suas lutas. Se percorremos caminhos aparentemente tão distantes da carne que ri e chora é porque o rigor acadêmico proibiu que o corpo falasse. E é por isto que, para falar, ele tem de se valer das falas de outros, portadores de dignidade e reconhecimento. Se eu simplesmente digo, isto não passa de minha opinião. Mas se eu cito, já a fala adquire o peso de evidência e comprovação.

Eu precisava encontrar palavras que ajudassem o meu corpo a se gerar de novo, agora nesta triste condição de exilado. Porque eu entendo que teologia é basicamente isto - já o disse -, um exercício de feitiçaria sobre este mistério, de que a Palavra se faz Carne, e isto no sentido mais absolutamente literal.

Aprendi a repetir, como nunca o fizera, aquele salmo terrível, o 137: 'Sentados às margens dos rios de Babilônia,/ ali chorávamos,/ com saudades de Sião./ Nossas harpas,/ já não as carregávamos em nossas mãos:/ nós as penduramos chorosos nos galhos dos chorões.../ Pois aqueles que nos haviam levado cativos/ exigiam/ que cantássemos,/ ordenavam que estivéssemos alegres:/ 'Cantai-nos canções da sua terra!'/ Mas como poderíamos cantar as canções do nosso Deus/ em terra de exílio?/ Babilônia,/ destruidora,/ feliz aquele que se vingar por tudo o que nos fizeste!/ Feliz aquele que tomar os teus filhos/ e os despedaçar sobre as rochas.'

Sei que não é edificante, mas é muito verdadeiro. A nossa verdade nem sempre é bela; às vezes é terrível.

Pensar a espera.

Viver sobre a saudade.

Ser capaz de plantar árvores à cuja sombra nunca me assentaria.

Jeremias o disse por mim. Havia, em Babilônia, um bando de revolucionários que anunciavam para logo o fim do cativeiro. E o profeta lhes escreveu aquela linda-medonha carta, que deve ter sido amaldiçoada como produto de uma mente derrotada e conservadora:
'Plantai árvores,/ comei dos seus frutos./ Construí casas/ e habitai nelas./ Gerai filhos,/ e dai vossos filhos em casamento./ A demora será longa./ Enquanto se espera é preciso viver.'

E então, aquele gesto maravilhoso, Jerusalém sitiada, a invasão era certa. E o profeta toma os seus bens e compra um campo. Seus amigos devem tê-lo julgado um louco. É investimento suicida comprar terra que vai virar morada de chacais, onde vai crescer o capim... Mas ele diz: 'Ainda se plantarão vinhas neste lugar.'

E me pareceu, então, que 'Deus' era um nome que se pronunciava sempre que alguém queria indicar a teimosia da esperança, quando não havia nenhuma razão para esperar, o absurdo do sorriso, quando não havia nenhuma razão para sorrir, Abraão construindo um berço, sendo Sara já velha, de seios e ventre murchos.

'Sei que não há brutos nas figueiras/ e nem frutos nas parreiras./ Não se colhem azeitonas/ e nos pomares não se encontram frutos./ Nos pastos não se vêem rebanhos/ e nos currais não se vê o gado./ Todavia,/ eu me alegro...'

Não, Deus não é um substantivo.

É esta estranha conjunção, todavia, que enuncia a absurda ligação entre a morte que se anuncia e a vida que brota, a despeito de tudo.

Se fosse isto, eu poderia continuar a falar de Deus, como fundamento misterioso de uma teimosia de ter esperança. Foi então que encontrei Bloch como precursor; ele já escrevera aquilo que naquele momento eu estava me dizendo: 'onde está a esperança ali está a religião.'

Eu queria re-inventar as palavras.

Porque as palavras, de tantas repetições, vão ficando gastas e, de repente, nada mais são que cascas de cigarra, vazias, agarradas aos troncos rugosos das árvores, testemunhos de um espaço onde esteve a vida. Era isto que eu sentia, em relação aos símbolos da minha tradição: contas de vidro, opacas e sem brilho. Mas eu as amava. E imaginava que, quem sabe, tal como acontecia com a lâmpada mágica do Aladim, elas voltariam a brilhar transparentes, se fossem aquecidas com sofrimento e esperança. Era esta minha doida-presunçosa esperança: fazer viver uma coisa que, para mim, estava morta.

Este livro é isto: um exorcismo para a ressurreição dos mortos. Quem sabe (eu pensava), estas coisas que vou escrever serão capazes de ajuntar os conspiradores que amo, mesmo sem ver... E não é este o segredo de qualquer livro? Que ele seja capaz de dar nomes e de criar imagens vivas para nossos sonhos de amor? Eu já concordava com Bachelard: para se converter é preciso restaurar às pessoas os caminhos para os sonhos primordiais.

Sonhar Deus de novo, de um outro jeito. O pedaço arrancado do nosso corpo, nome não dito da saudade, satisfação fugaz (como a brisa que passa) do desejo (inesquecível...) Conspiradores: companheiros a quem não precisaria explicar coisa alguma, pois que respirávamos o mesmo ar: con/spirar...

Pois não é assim?

Entendem não porque expliquemos com clareza, mas porque já o sabiam muito bem, antes que tivéssemos dito qualquer palavra. Dizem que há, permeando as coisas físicas que fazem o corpo - músculos, Sangue, ossos - uma coisa invisível, a que deram o nome de alma. Nunca a vi mas acredito, porque sempre me dói com dor que nenhum remédio pode curar. E ouço, lá no fundo, um grito sufocado contra a solidão. Pois é, nos mistérios da alma mora a nostalgia pelos amigos. Era isto: eu pensava naqueles com quem poderia compartilhar, irmãos por termos comido o mesmo pão amargo. Eles poderiam ser companheiros de batalhas futuras. Numa linguagem teológica, eu buscava os contornos de uma eclesiologia nova, que fosse fiel à minha experiência. O venerável Santo Agostinho, que tem estado a ler as sagradas escrituras por muitos anos, silenciosamente às minhas costas, do poster em que o pendurei na parede, já me havia dito que uma comunidade se define em função de um amor comum. Com o que eu concordo. Não é a origem, é o destino... E como eu me sentia longe e distante daquela igreja que um dia fora objeto do meu amor! Me lembro do primeiro dia quando cheguei a Lavras e entrei na igreja vazia, com seus vitrais coloridos e o órgão de tubos: pensei que seria um bom lugar para passar a vida toda. Agora, que restava da Igreja Presbiteriana do Brasil que eu amara? Absolutamente nada. Meu desprezo era total, irremediável, absoluto. A questão das notae ecclesiae - as marcas da Igreja. Não é nada abstrato. É como quando se sai a procurar um lugar onde se morar, e o coração diz que deverá ter árvores, e a casa deverá ser velha, para contar muitas estórias (casas novas pouco faIam, porque nunca foram cúmplices de mistérios), e será bom se, dela, se puder ouvir, de vez em quando, o sino de alguma igreja, para que a gente não se esqueça nem da infância perdida e nem da velhice que chega. Assim, a boca vai falando das marcas da casa onde a gente gostaria de morar. E a mesma coisa pode ser feita em relação às pessoas com quem a gente gostaria de viver: terão que saber brincar, os olhos com um brilho de eternidade, e haverá tanta confiança que, àquilo que um disser, todos dirão 'amem', sem que haja necessidade de uma comissão de exame de contas. Igreja, aqui na minha teologia, é apenas o nome da comunidade com que sonho. O problema é que tanto Católicos quanto Protestantes pensam que eles já a encontraram. E eu acho diferente: a Igreja é uma ausência permanente, nome de um desejo, horizonte que convida e se afasta...

No princípio este livro era para ser uma eclesiologia. Traduzindo em linguagem que todos entendem: um exercício em utopia, as marcas de uma comunidade que não existe em lugar algum (é invisível) e que, por isto mesmo, está em todos os lugares (é católica, universal), um horizonte do desejo, algo que ainda não nasceu mas que, se nascesse, o mundo todo sorriria. Como o Übermensch de Nietzsche – traduzido como super-homem por uns leitores obtusos e que eu traduzo por 'Homem Transbordante'- homem que ainda não existe, mas que está em gestação dentro de mim.

A vantagem disto? Acho que, sobretudo, abrir o espaço para o sonho. No cativeiro os presos sonham com a liberdade e no exílio aparecem as canções do retorno. Um horizonte de esperança.

E quando se espera, o futuro se torna um julgamento sobre o presente.

Esta tem sido uma das grandes funções da utopia.

Mostrar que um mundo diferente é possível. E, com isto, o absurdo do presente.

O presente se torna objeto de riso. Rir das igrejas, dos partidos, dos estados.

Se a comunidade sagrada é uma ausência, futuro de que se tem saudades, então todas as coisas presentes só podem ser coisas humanas, para sempre.

Não se lhes é permitido erigirem-se como altares. Nada é sagrado: nem torres, nem programas, nem bandeiras. Sagrado é apenas o vazio do desejo.

Os altares têm de se abrir para os espaços livres do futuro, onde moram as coisas ainda não chegadas.

Sobretudo, está vedado a qualquer poder o direito de vida e morte sobre as pessoas.

'Que as espadas sejam transformadas em arados,/ que as fardas tintas de sangue sejam queimadas,/ que as prisões sejam abertas,/ que os escravos sejam libertos...'

A eclesiologia se transforma em política: é política, em sua forma onírica. Senti que a tarefa do teólogo é a de ser o bobo da corte: quando todos proclamam a beleza das vestes do rei, dos paramentos dos cardeais, dos ternos dos banqueiros, das fardas dos generais, ele proclama
a nudez universal.

Quando o Nome Sagrado é pronunciado, todas as fantasias ficam invisíveis.

Só que eu não percebia o perigo da minha proposta: quem se propõe a ser bobo da corte acaba sendo boi para o corte. Lá mesmo o corte começou.

Disseram que eu não poderia escrever uma tese como aquela que me propunha escrever. Tese de doutoramento, alegavam, tem de ser um exercício analítico, pura demonstração de mestria técnica. Trabalhar sobre o pensamento de outros. Mas eu me propunha a pensar meus próprios pensamentos. Minha tese era construtiva. E isto estava interditado.

Acontece que eu vivia em exílio, aguardando a volta; e era preciso pensar a vida. A minha dor não me permitia outra coisa. É sempre assim: o pensamento aparece no lugar do sofrimento. Se o meu coração vai pulsando sem problemas, até me esqueço que ele existe. Mas basta que dê uns tropeções para que se transforme no centro do meu mundo. Ah! Como me torno consciente dele! O pensamento mora no lugar onde o corpo me dói. E o meu doía num lugar diferente: minha dor era a luta para continuar a ter esperanças. Seria terrível se a vida ficasse só tristeza.

Só pude dizer que a minha tristeza não me deixava alternativas, que eu tinha de escrever com o meu sangue os pensamentos nascidos no meu próprio corpo. Faria análise sim, tomando a minha própria carne como texto.

E não é isto que dizem os textos sagrados, que somos um verbo encarnado?

Só que à minha carne faltava a respeitabilidade acadêmica de texto a ser investigado.

Para mim a verdade era bem outra: eu como o único texto merecedor do meu trabalho intelectual.

Não há nenhuma arrogância nisto.

É que não é possível, a ninguém, estar fora de si mesmo: somos nossos temas permanentes. Como dizia Feuerbach: o homem é o seu próprio absoluto.

E assim aconteceu, contra a interdição acadêmica.

Eu sabia que, para se pensar uma comunidade, é preciso pensar primeiro a linguagem. É nela que se encontram os seus sonhos de amor. É somente isto que faz um povo. Os homens e mulheres se dão as mãos quando possuem um objeto comum de lealdade. Assim, dediquei-me a investigar duas coisas apenas: os objetos do desejo (em jargão psicanalítico) ou objetos de fruição (na fala de Agostinho). Uma meditação sobre 'o obscuro objeto do desejo'. E, com isto, as vicissitudes do poder, para chegar ao objeto do amor. Na verdade, parece que este é o resumo de tudo o que existe: o poder e o amor. A vida nada mais é do que uma tapeçaria que se tece sobre estes dois deuses: Marte e Vênus. No meio deles está a nossa bela Terra, onde a vida acontece...

Quando cheguei ao fim da investigação sobre a linguagem, entretanto, já havia escrito mais de trezentas páginas, e o tempo estava se tornando cada vez mais curto. Como disse o sábio do Eclesiastes, 'escrever livros e mais livros não tem limite, e o muito estudo desgasta o corpo'. Pedi então ao meu orientador que aceitasse a minha introdução a uma eclesiologia futura como minha tese. Com o que ele concordou. Já não se tratava então de eclesiologia. Era outra coisa: uma meditação sobre a possibilidade de libertação. E lhe dei, então, o título de Towards a theology of liberation. Era o ano de 1968.

Por que escolhi este nome, que até aquele momento não havia aparecido como título de teologia alguma?

Eu havia abandonado completamente a ilusão de que a teologia pudesse ser um conhecimento de Deus. Deus é um grande e inominável mistério e o que podemos dizer se refere apenas àquilo que acontece em mim, ao me confrontar com aquilo que Rudolf Otto chamou de 'O Totalmente Outro', 'Mysterium Tremendum'. Teologia é antropologia; falar de Deus é falar de nós mesmos (Feuerbach). Não, não estou transformando o homem em Deus. Estou só dizendo que Deus é um nome que só é pronunciado nas profundezas do corpo humano. Assim, não me interessava absolutamente o esforço 'científico' de se escrever tratados de anatomia, fisiologia e psicologia divinas, em moda nos seminários. Como é que tal tarefa incrível podia sequer ser imaginada como possível? Porque se acreditava que havia uma revelação escrita, nas Sagradas Escrituras. Tanto teólogos fundamentalistas quanto exegetas crítico-científicos comungam nesta crença comum: se chegarmos à verdade mesma do texto teremos chegado ao conhecimento de um segredo de Deus.

Mas eu não podia pensar assim. As Escrituras me eram Sagradas somente porque elas diziam em linguagem poética aquilo que, dentro de mim, já era um gemido inarticulado: revelação dos meus desejos, do Thánatos que me habita, da vida que me faz brincar e lutar. Somente eu podia dizer isto: são sagradas, divinas, por serem um espelho de mim mesmo; experiência de revelação. Assim, o nome da coisa que eu escrevera não poderia se referir a Deus. Era coisa modesta, humana...

Mas também não poderia ser modesta demais. O amor está sempre em busca de um mundo. A moda, naqueles dias, era a teologia da esperança, de Jürgen Moltmann. Esperança é coisa bela, que amo. Mas ela mora dentro da subjetividade, é coisa interior. E isto não me bastava. Eu não queria só continuar a ter esperança. Queria ser capaz de perceber os sinais de sua possível realização, na vida dos indivíduos e dos povos. Não me bastavam sonhos de jardins: era preciso saber que jardins poderiam e iriam ser plantados. O amor pelos jardins tinha de se transformar em manual de jardinagem. A esperança tinha de se exprimir como política.

Estranho isto: esta metamorfose da teologia em política, este trazer dos céus à terra. Mas eu estava convencido de que, naquele jogo de contas de vidro que estava jogando, esta substituição era possível. Este é o segredo da metáfora: isto é aquilo, este pão é o meu corpo, coisas diferentes são iguais. Mas, de teologia à política? Teologia é política? De que forma executar este salto mortal sobre o abismo? Acontece que a teologia cristã se constrói sobre a absurda afirmação da encarnação: Deus se fez homem, eternamente. O que significa que Deus desaparece, mergulha para todo o sempre na invisibilidade, e a única coisa que resta para ser vista é o rosto do homem e o jardim que lhe é prometido. Não Deus, mas o Reino, não o Rosto impossível de ser contemplado, mas a terra transfigurada. 'Eis que faço novas todas as coisas...' Era isto: falar sobre este fazer que traz um novo amanhã. A esperança saía do interior da subjetividade e se derramava sobre a terra: os desertos se transformam em jardins... E me pareceu que uma bela imagem poética para descrever este movimento era aquela de um povo que fora escravo, caminhando pela esperança, através do deserto. Ou Jeremias, na amargura de um longo cativeiro, comprando um pedaço de terra na sua cidade, sitiada, afirmando a teimosia da esperança. Eu sentia que estas eram metáforas poéticas que reverberavam na minha experiência. Esperança em movimento, lutando por um futuro, (a)feto que deseja sair, mesmo que pela angústia de passagens apertadas, parto: libertação. 'A criação inteira geme, em dores de parto...' E assim eu batizei esta tese/filha: Towards a theology of liberation, nome que se encontra lá no original e no registro de direitos autorais.

A defesa foi uma batalha. Compreendo. Por decisão própria escrevi o que quis. Pecado de 'superbia'. O texto deve ter ofendido gostos acostumados a teologias mais gentis. Alguma punição deveria ser imposta. Desejava-se ou a reprovação ou que eu escrevesse tudo de novo. Meu amigo R. Shaull, entretanto, deixou claro que eu nunca faria isto. Não suportaria um ano a mais nos jardins suspensos de Babilônia. Passaram-me com a nota mais baixa possível. Não sabia que aquele era um primeiro afluente, quase sem água e sem nome, de um grande rio: teologia da libertação...

Um editor católico se interessou pelo meu texto. Ele fez uma reserva apenas. O nome do livro era meio esquisito: libertação, nome sem respeitabilidade teológica, sobre que ninguém falava. O que estava na crista da onda era a teologia da esperança. E ele me sugeriu mudar o título, para entrar no debate. É sempre mais fácil pegar um trem que já está correndo que fazer um outro novo, a partir de nada...
E assim ficou: A theology of human hope (Washington, Corpus Books, 1969). E, com isto, o nome 'teologia da libertação' me escapou... Harvey Cox escreveu o prefácio. Generoso. Nunca me havia visto. Nada sabia a meu respeito. E o nome dele já era chave mágica que abria todas as portas teológicas. E foi assim que ele abriu o que outros quiseram trancar. Foi o início de uma amizade profunda. Ontem, sexta-feira, 10 de julho de 1987, celebrei a Páscoa judaica em sua casa. O sol estava se pondo e sua esposa iniciou a liturgia acendendo as velas e cantando uma canção cujas origens se perdem no passado. Depois foi a vez dele, abençoando o vinho e cantando uma outra canção, em hebraico. Estranho isto: ver um teólogo batista dizendo palavras nesta língua sagrada, numa tradição diferente... Mas ele logo comentou: 'Todos nós pertencemos a este passado...' Senti os bons sentimentos de estar ali comendo e bebendo com con/spiradores, celebrando memórias e esperanças.

Agora sinto-me em paz com algo que já se anunciava no meu texto, mas eu não tinha coragem de dizer, nem mesmo para mim mesmo: acho que consigo viver sem Deus.

Um caqui é um caqui: mágico, erótico. Efêmero. Maravilhosamente divino. Um caqui eterno não poderia ser comido: não seria objeto de gozo.

Gozo o caqui e, para isto, não necessito de provas encontradas mais além das estrelas.

O caqui não tem porquês... Ele é vermelho porque é vermelho. Assim é a vida, assim sou eu, caquis, companheiros de 'barcas e gaivotas', e a sua tranqüila simplicidade de existir. Tem uma tristeza, sim. Todos os pores-de-sol, todos os abraços de amor, todas as coisas belas são tristes. Somos pranteadores. Viver é con-viver com a perda. É isto que nos torna belos: 'o olhar de eternidade...'

Não que tenhamos visto a eternidade, e que ela se encontre morando em nós. É a eternidade do desejo, a imensidão da nostalgia, os espaços sem fim. O Pai nosso mora nos céus, onde voam as aves, espaço vazio, pura permissão, ausência.

Presença de uma ausência.

Por que escrevo teologia, se não preciso acreditar em Deus? Não deve, qualquer tratado de teologia, começar com o capítulo 'Provas da Existência de Deus'? Se houvesse provas eu não precisaria fazer teologia. Quando vou à praia não necessito munir-me de provas da existência do mar e provas da existência do sol. Na praia não penso nem sobre o sol e nem sobre o mar. Simplesmente gozo, usufruo.

Quem precisa de provas da existência do mar e do sol são os habitantes dos infernos, onde não existe nem sol e nem mar.

Quem faz ciência de Deus não deve estar muito confiante: carência de calor, carência do azul...

Na praia o que se faz não é provar: ciência. É gozar: poesia. Poesia é o discurso da fruição, da união mística. Faço teologia por isto. Porque é belo. Teologia é como brinquedo: alegria sem metafísicas... Gozo no próprio texto. Porque ele faz bem ao meu corpo. Sacramento que distribuo aos conspiradores. Um jeito de fazer amor universalmente, espalhar minhas sementes, buscar a suprema alegria de ver, no rosto dos outros, a alegria de se encontrarem no que escrevo. Sou-lhes, pelo meu texto, um caqui. Tomai e comei: isto é o meu corpo.

E é só isto que eu peço, quase 20 anos depois: que leiam este texto pensando no poema que poderia ter sido, mas não foi.

Bem que quis ser poema, mas não sabia como, e nem pôde...

julho/1987
(O quarto do mistério, p. 137)

 

 

Salve Maria!
Eliene
 
"Não tentes conseguir de outra maneira o que não conseguires por amor".
(São Francisco de Sales)
 

 

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