Título: Uma incrível senhorita
Autor: Barbara Neil
Título original: Lessons for a lady
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1991
Publição original: 1990
O jovem cavalheiro Edward Farrineau compreendeu que enlouqueceria se visse Susanna casada com outro homem. E os lindos olhos verde-acinzentados diziam que ela também
o amava. Mas o destino irónico e cruel fizera dele o encarregado de arranjar e aprovar um marido para Susanna porque a sociedade londrina recusava-se a aceita-la
como uma lady devido a sua má reputação e por ela não ser uma "verdadeira dama"...
CAPÍTULO I
Debutante
Susanna Marlowe encontrava-se no hall, recebendo os convidados. Ao lado dela, sua mãe tentava sorrir e cumprimentar as damas e cavalheiros que por ali passavam.
Do outro lado, seu pai acolhia os recém-chegados com alarde.
Podia-se ouvir o som dos violinos que vinha do salão de baile. Na sala de jantar, pratos requintados e coloridos cobriam as mesas, enquanto o vinho era servido
em abundância. O sr. Marlowe não havia poupado dinheiro para comemorar o aniversário da filha, tornando a ocasião um verdadeiro festival de ostentação e vulgaridade.
Um lacaio, vestido especialmente para a ocasião com um traje escarlate, cheio de babados, anunciava o nome de quem chegava.
Susanna, preocupada em identificar os convidados, não percebia os sorrisinhos maldosos e os comentários de mau gosto que faziam. Ela sabia que os vizinhos
só haviam comparecido ao baile para se divertir com os Marlowe. Queriam estar presentes para assistir ao vexame que a sra. Marlowe, filha de um moleiro, daria. Sabia
que todos se divertiam com os exageros do anfitrião, mas nada disso a perturbava. O que realmente lhe importava era ver um rosto de traços firmes, onde um par de
olhos castanhos brilhavam, combinando com os cabelos fartos, escuros. Cada vez que o criado ia anunciar um novo convidado, rezava para ouvir o nome Edward Farrineau.
Seu coração chegava a disparar, tão ansiosa estava.
Entretanto, depois de muito esperar, concluiu que todos os convidados já haviam chegado. Desapontada, foi até as colunas, na entrada do salão de baile, e
ficou observando os grupos de pessoas que conversavam, esperando o início do baile. Quem sabe Edward se encontrava em algum deles? Talvez ele não tivesse conseguido
cumprimentá-la na entrada e pretendesse procurá-la mais tarde. Tinha certeza de que ouvira o pai dele dizer que o filho prometera comparecer à festa.
Nao muito longe de onde Susanna se encontrava, três moças conversavam, dê costas voltadas para a aniversariante, observando o salão.
- A vulgaridade dela nos dá vergonha de sermos mulheres! - comentou uma das jovens, rindo Susanna reconheceu a voz. Pertencia a Dora Martin, filha de um rico
proprietário de terras da região. A outra, que dava risadinhas esganiçadas, era Mercy Gayle, filha de um nobre. Ela conhecia bem as moças, pois, em toda a cidadezinha
de Cheedham, eram as que mais gostavam de fazer pouco da família Marlowe.
- Nem sei como vamos conseguir sobreviver a este baile! - exclamou Dora.
- Vai ser muito difícil - concordou Mercy. - Mas não é educado rir da anfitriã. Meu pai diz que é inevitável divertir-se com a sra. Marlowe, mas assim mesmo
sinto-me uma hipócrita.
A jovem aniversariante fechou os olhos, mortificada. Sabia que seus pais não tinham o verniz exigido pela sociedade, mas isso não tornava aquele tipo de comentário
menos doloroso e ela não podia deixar de sofrer ao ouvi-lo.
- Você está muito quieta, Lucy! - reclamou Dora. - Não tem nada a dizer?
- Não costumo me divertir à custa da sra. Marlowe - respondeu a moça, com suavidade. - Ela foi muito atenciosa com meu irmão, quando ele ficou doente. Oferecia-nos
maçãs de seu pomar, em Edenhurst, e ensinou-me a assá-las, com açúcar, para animar Lawrence a comer um pouco.
Susanna conhecia Lucy Bledsoe apenas de vista.
- Bem, preciso reconhecer que ela é muito caridosa com os enfermos - concedeu Dora, com desdém -, mas você também tem de reconhecer que a filha dela é uma
sem-vergonha!
- Vi Susanna Marlowe poucas vezes, no centro, faz tempo. Sabe que moro com minha tia, em Londres, há alguns anos... Não posso dizer que a conheço - respondeu
Lucy.
- Mas deve ter ouvido falar no modo vergonhoso como ela se comporta - atacou Dora, fazendo Susanna arregalar os olhos ao ouvir aquilo -, do beijo que
ela deu num jovem cavalheiro...
-Ouvi falar sobre isso, sim, mas não acredito que seja verdade. Muito magoada com o que ouvira, a aniversariante sentiu-se agradecida à jovem Lucy.
- Meu pai garante que é verdade! - esganiçou Mercy. - Disse que o pastor contou a ele! E se pegarmos esta festa como exemplo, você vai ter de concordar que
ela não pode ter sido educada para ser uma dama...
- Nunca ouvi comentários tão maldosos como os que vocês fazem sobre a srta. Marlowe! Mesmo sem conhecê-la, estou disposta a defendê-la desses mexericos cruéis
- declarou Lucy, com frieza.
Depois, disse estar preocupada com o desaparecimento do pai e do irmão, pediu licença e saiu à procura deles.
_ Lucy Bledsoe pode querer se mostrar superior e fingir que não vê a vulgaridade dos Marlowe, mas nem mesmo ela pode ser cega ao ridículo desta família...
- comentou Dora Martin, assim que a outra virou as costas.
_ E duvido que Susanna Marlowe tenha melhorado muito desde o tempo da escola - acrescentou Mercy. - Papai diz que a filha de um novo-rico jamais consegue
ser uma lady.
Susanna, então, saiu de trás da coluna e aproximou-se das duas mocinhas faladeiras. Tossiu para chamar-lhes a atenção, elas se voltaram e olharam-na, aturdidas.
Não acredito que tenha melhorado tanto a ponto de ser capaz de
ignorar seus comentários maldosos - disse a aniversariante, com ar ameaçador.
Deus nos salve! - gritou Mercy, ao notar o brilho zangado nos olhos de Susanna. - Ela vai nos atacar!
- Não vou atacá-las, por enquanto. Mas se ouvir mais uma palavra sobre a minha mãe, mato as duas e ponho os corpos no porão, para serem "devorados por insetos
e ratos!
- Acho que vou desmaiar... - sussurrou Dora, que se abanava, movimentando o leque com incrível rapidez.
- Nem ouse fazer isso! - ordenou a srta. Marlowe. - Não quero que um escândalo perturbe meus pais. Se quisesse isso, daria uma surra em vocês agora mesmo.
É melhor que parem de me aborrecer e pensem no que podem fazer para melhorar seus modos. As duas têm minha permissão para procurar a sra. Marlowe e agradecer-lhe
por terem sido convidadas para esta maravilhosa festa. E cuidado com o que vão dizer, pois estarei atenta!
As duas mocinhas, tremendo, obedeceram no mesmo instante. Susanna ficou observando-as. Não sentia nenhuma satisfação por ter conseguido aterrorizá-las. Seus
olhos encheram-se de lágrimas sentidas, de frustração e raiva.
Nesse momento, alguém segurou-lhe uma das mãos e levou-a aos lábios. Ergueu os olhos, encontrando o sorriso franco de Edward Farrineau.
- Oh! A senhorita está chorando?
- Estou feliz por ter vindo... - disse ela, mudando de assunto, pois
nao queria mentir. - Mas é engraçado você me chamar de "senhorita"...
- Se essas lágrimas são por causa de algum cavalheiro que lhe partiu o coração - insistiu ele -, espero que me diga o nome, quero tirar satistaçoes com ele.
- Soube que esteve na Suíça todos esses anos - comentou ela, sorrindo diante da determinação dele.
- Fm enviado para lá a fim de estudar física e melhorar meu génio, caráter e bom senso com uma família que só falava alemão. Como pode notar, o resultado
superou as expectativas... - E o jovem, com ar de riso, fez continência e bateu os calcanhares, aprumando-se.
Susanna reparou que ele não só tinha aprimorado os modos e melhorado de aparência, como também se transformara num homem. Claro, sabia que ele não poderia
ter permanecido o rapazinho que era na última vez em que o vira, mas era difícil acreditar que se tratava do menino estabanado e de cabelos revoltos que fora embora.
Os braços e pernas, antes compridos demais, tinham-se tornado proporcionais a sua altura, que ultrapassava bem um metro e oitenta. Havia desenvolvido um jeito tranquilo
de falar e quando dissera o nome dela transmitira uma sensação de profunda ternura.
Ela sentira medo de que os estudos no Continente o transformassem num esnobe que não lembrava da companheira de infância, temera não significar mais nada
para o amigo de sempre. Mas o brilho nos grandes olhos castanhos acalmou seus receios. Nenhuma daquelas catástrofes acontecera e ele estava feliz em revê-la.
Por sua vez, Edward reparava que a menina de suas lembranças se transformara numa jovem dama. Usava vestido branco, de cintura alta e decote quadrado; as
mangas bufantes e a barra eram bordadas de rosas amarelas com miolinhos de pérolas. Os cabelos castanho-avermelhados, longos, tinham sido penteados para cima e pequenos
cachos soltos emolduravam o rostinho delicado onde sobressaíam os expressivos e grandes olhos verde-acinzentados. A única jóia que usava era um medalhão que ganhara
da mãe, antes de fazerem fortuna. O efeito era encantador.
- Você está linda! - disse Edward.
- Você também...
Ele riu e corou, sem jeito.
- Sei que não devia ter dito isso - reconheceu ela. - Uma lady não faz esse tipo de comentário para cavalheiros... além do que, vai ficar convencido e insuportável!
- Por quê? Acha que vou pensar que todas as senhoritas da festa estão apaixonadas por mim?
- Pode ser que estejam, mesmo...
Ele sorriu, imaginando que ela estivesse se divertindo com ele.
- Creio que seu carne de baile está todo preenchido, não?
- Acho que vai me julgar uma desmiolada... Reservei todas as danças regionais para você!
- Você é uma desmiolada! - exclamou ele, rindo com prazer. - A desmiolada mais adorável que conheço! - E acrescentou, sério: - Sabia que poderia contar com
você, Susanna. Ainda é a mesma menina espontânea e travessa! Quando me sentia sozinho e infeliz, lá na Suíça, imaginava o comentário engraçado que você faria e acabava
me sentindo melhor.
Beijou outra vez a mão da jovem amiga, antes de se juntar aos demais convidados. E Susana, contrariada, não pôde ficar pensando no querido amigo, pois o pai
aproximou-se para levá-la até sir Dalton Farrineau, pai de Edward, com quem ela daria início ao baile.
Sir Dalton Farrineau de Langfield descendia de Henry Tudor e não apenas pertencia a uma das mais antigas, famílias de Cheedham, como também à mais importante
e influente. A família Marlowe, do East End de Londres, era considerada a mais rica da região. O sr. Marlowe prosperara com a importação de mercadorias originárias
das índias Ocidentais, muito apreciadas no Reino Unido. Ninguém estava a par, com certeza, dos tipos de contato que ele tinha nas longínquas e exóticas terras, sabendo
apenas que com esses negócios acumulara significativa fortuna e, então, mudara-se com a família para uma luxuosa mansão localizada nas extensas terras que adquirira
ali.
O sr. e a sra. Farrineau tinham apenas um filho, Edward, que adoravam e era o herdeiro da mansão Langfield, de terras, casas na cidadezi-nha e outras propriedades.
Além disso, o rapaz era a esperança da família. Sir Dalton considerava-o o mais perfeito e inteligente ser humano na face da Terra. Infelizmente, o velho senhor
era apenas um cavalheiro da corte, não possuindo título algum que pudesse passar para o filho."
Os Marlowe, que também tinham apenas Susanna, adoravam-na tanto quanto sir e lady Farrineau idolatravam o filho. Só que a sra. Marlowe não era cega para os
defeitos da filha e sabia que sua travessa menina teria sérias dificuldades em se adaptar às exigências da sociedade. Meiga e bondosa, ela não dava importância ao
dinheiro, à mansão, aos comentários dos vizinhos. Se queriam rir à custa dela, esperava pelo menos que se divertissem. Mas quando se tratava da filha, ela se transformava
numa leoa disposta a tudo para defender a cria. E isso já se tornara uma rotina, pois Susanna sempre fora muito fértil em imaginar diabruras e realizá-las. Não há
muito tempo, espalhara-se o boato de que ela fora vista beijando o filho do pastor, mas isso nunca se confirmara. Mas a sra. Marlowe sabia que era verdade que Susanna,
aos quinze anos, vestira-se como um menino, disfarçando-se, para poder conhecer um moinho, em Tewkesbury. Apenas uma coisa preocupava mais a boa senhora do que as
travessuras de Susanna. Tinha certeza de que mais dia, menos dia, ela superaria essa fase, se tornaria uma lady e, então, talvez viesse a sentir vergonha de seus
pais.
Logo que os Marlowe se haviam mudado para o campo, sir Dalton
havia consentido em ser apresentado ao sr. Henry Marlowe. Mas isso não significava que viria a ser amigo dele, pois se tratava de um joão-ninguém, vulgar,
que não sabia se comportar como cavalheiro. E, o que era pior, deixava a filha andar pela vila sem acompanhante ou governanta que a orientasse e protegesse.
Entretanto, dois fatos mudaram o rumo dos acontecimentos. Um deles foi a reforma que o sr. Marlowe realizou em Sandhurst, recuperando-a, quando parecia fadada
ao desaparecimento. Então, sir Dalton vira-se na obrigação de visitá-lo e, apesar do mau gosto na decoração, a propriedade, tanto a mansão quanto o jardim, tinha
sido salva e isso estreitou um pouco o relacionamento entre os dois senhores. O outro foi o fato de sir Dalton receber o título de cavaleiro da corte em agradecimento
a serviços prestados à Coroa em negociações com o Canadá, Estados Unidos e índia. Como o único cavaleiro da região, ele precisava manter relações amigáveis com os
proprietários locais: afinal, devia dar bom exemplo à comunidade.
E eram esses dois motivos que levavam sir Dalton a abrir o baile com Susanna na festa de seu décimo sétimo aniversário, quando debutava na sociedade. Conversou
com a jovem sobre vários assuntos e continuou a seu lado quando a dança terminou, mas logo foi interrompido por Ed-ward, que reclamou seu direito à próxima música.
Sir Dalton, então, cumprimentou a jovem dama, cedeu o lugar ao filho, com toda a dignidade, e se retirou.
- Seu pai é muito gentil e bondoso - comentou ela.
- Desde que foi sagrado cavaleiro da corte ele considera uma de suas obrigações ser bondoso...
- Ainda bem! Lembro-me de uma vez que ele ficou furioso comigo. Pensei que fosse me matar...
- Exagero seu, Susanna... Lembro que ele apenas lhe fez um severo sermão. Se fosse comigo, não ia ficar só nisso. Onde já se viu alguém pular diante de uma
arma pronta para disparar?
- Ele ia matar as pobres perdizes com aquela espingarda horrível! Eu tinha de espantar as coitadinhas!
- Sim, mas foi uma atitude tola e perigosa.
- É, eu sei... - replicou ela, com um olhar maroto. - Mas salvei as perdizes!
Ele soltou uma gargalhada, mas em seguida falou, sério:
- Por favor, aceite meus pêsames - a voz soou soturna.
Susanna, que naquele momento sentia-se a pessoa mais feliz do mundo, não entendeu nada e perguntou:
- Pêsames? Por quê, se sou feliz, se tenho sorte...?
- Porque agora você se tornou uma moça e não pode mais defender perdizes. Vai ter de parar de fazer travessuras. _ Será? Não vai me deixar fazer nenhumazinha,
de vez em quando?
- Eu? Claro que sim. Mas a sociedade, não. De acordo com as regras, de agora em diante vai ter de se comportar como uma dama. Acha que vai conseguir?
- Acho que sim. Quando frequentei a Escola para Senhoritas, em Worcester, aprendi que uma dama não precisa de perdizes para se divertir. Ela tem outros divertimentos...
- É mesmo? E quais são?
Apaixonar-se, partir corações de cavalheiros, de outras damas e, por fim, partir o próprio coração!
- E que coração você vai partir primeiro?
O meu, é claro! Acha que pode haver maior divertimento do que esse?
- Não posso permitir que isso aconteça - disse ele, com ar solene, parando de dançar. - Gosto muito de você para deixar que se arrisque numa aventura
dessas.
Ela ficou feliz com a preocupação dele, mesmo sendo brincadeira. E seu coração bateu mais forte quando Edward pegou-a pela mão e foi em direção a uma das
portas do salão.
- Venha! - pediu ele. - Não posso esperar mais!
Levou-a até a varanda e, chegando lá, segurou-a pelos ombros.
- Esperei muito tempo por este momento! - A voz de Edward esta va alterada pela emoção. - Sei que pareço um idiota, mas eu queria lhe dizer isto, antes
mesmo de ir embora para a Suíça.
Susanna sentia-se petrificada, o cérebro completamente vazio de pensamentos, tal era a ansiedade pelo que ele ia dizer. Fez um esforço e conseguia murmurar:
- Oh, Edward! Então, você me perdoou?
- Perdoar você? De quê?
Das coisas horríveis que eu disse a você quando brigamos por causa de Júlio César... Não lembra? Você foi embora antes de podermos fazer as pazes.
Ele começou a rir.
- Você tem de lembrar! - exclamou ela, zangada com o riso do amigo. - u disse que Júlio César era frio e sem coração, que nunca seria amiga dele!
- Bem, fico feliz por nossa briga ter sido algo tão importante! e e acrescentou, ficando sério: - Você é uma pessoa sensível e bondosa. Sou feliz de ser seu
amigo.
Ela sentiu que corava ao ouvir aquilo.
- Mas não vamos falar no passado - continuou ele. - Apesar de tantas lembranças agradáveis, tenho um motivo importante para gostar de estar no presente.
- Então fale - pediu ela, procurando aparentar calma. - Estou ouvindo.
- Como minha melhor amiga, quero que seja a primeira a saber, Susanna! - E ele voltou-se para a porta, onde um vulto de mulher se recortava contra a iluminação
feérica do salão. - Tenho a honra de apresentar-lhe Lucy Bledsoe, a dama com quem vou me casar.
CAPÍTULO II
O Escândalo
A jovem que se encontrava junto à porta aproximou-se, com as mãos estendidas e um sorriso no rosto adorável. Susanna observou a expressão embevecida de Edward
ao fitá-la.
- Gostaria muito que vocês ficassem amigas - disse ele -, pois são as duas mulheres mais importantes da minha vida.
Susanna via-se diante da jovem que a tinha defendido dos comentários maldosos de Dora Martin e Mercy Gayle. Normalmente, ficaria contente em conhecê-la, mas
não naquele momento, com Edward olhando-a como se ela fosse a única do mundo. Nessa circunstância, aquela era a última pessoa que gostaria de conhecer. Observou-a,
atenta, e para seu desespero não conseguiu descobrir um só defeito.
Era muito elegante, tanto no modo de se vestir quanto no de falar e se portar. Chegou até a perguntar, preocupada, se Susanna não se sentia bem, demonstrando
disposição para ajudar. Sua meiguice e generosidade fizeram a aniversariante sentir-se mesquinha.
- Vou deixá-las a sós para que se conheçam melhor - disse Edward, e voltou para o salão.
- Foi muita bondade do sr. Farrineau perder esta oportunidade de dançar com a senhorita, só para nos apresentar - disse a srta. Lucy, dando tempo à outra
para se recuperar da surpresa. - Ouvi dizer que ele é um de seus melhores amigos...
- Sim, mas infelizmente, srta. Bledsoe, nossa amizade só trouxe aborrecimentos e comentários maldosos para Edward.
- Por favor, me chame de Lucy. Sou apenas dois anos mais velha do que a senhorita e_espero não parecer terrivelmente velha...
- Ao contrário! É linda e jovem! Se quer que eu a chame de Lucy, tem de me chamar de Susanna, sem esse antipático "senhorita" junto.
otando o olhar infeliz de Susanna, Lucy forçou um sorriso triste e comentou:
- Tenho a impressão de que não gostou de me conhecer. Confesso estar desapontada com isso, mas não quero impor-lhe minha presença. Se me da licença...
-- E começou a retirar-se.
- Nao. Espere - pediu Susanna, segurando a moça pela mão. -Gostaria de ser sua amiga, sim! Não tenho amigos, a não ser Edward, claro.
- Entendo - respondeu a srta. Bledsoe, com um brilho feliz nos olhos azuis. - Agora tem dois amigos e, quando conhecer meu irmão, Lawrence, terá três!
Susanna agradecia a Deus porque a varanda estava na penumbra e não dava para perceber o rubor em seu rosto.
- Soube que conhece o sr. Farrineau desde criança - continuou a jovem. - Eu o conheci no ano passado, quando levamos meu irmão a Baden-Baden. Ele também estava
na Alemanha e nos conhecemos lá. Então, falou-me muito a seu respeito e disse que você podia garantir que não é um mau rapaz...
- Ele, mau rapaz?! - exclamou Susanna, chocada. - Quem disse isso, mentiu!
- Bem, ouvi dizer que vocês contumavam nadar juntos, mas acho que se trata de boato maldoso. Um bom rapaz não faria isso...
Susanna ficou branca e, nervosa, começou a caminhar de um lado para outro. Afinal, criou coragem, parou e disse:
- Há alguma verdade nisso.
- Meu Deus! Não posso acreditar que o sr. Farrineau tenha comprometido a reputação de uma moça dessa maneira!
- Na verdade, fui eu que comprometi a reputação dele... - suspirou Susanna.
E, vendo a curiosidade de Lucy, contou o que acontecera.
Uma fileira de salgueiros alinhava-se na margem do rio Dance, seus galhos inclinando-se até quase tocarem a água. Aquele era o local preferido de Edward e
Susanna. Naquela tarde de verão, ele encontrava-se meio recostado no tronco de um dos salgueiros, com o livro de latim aberto sobre o peito. Susanna, deitada num
galho grosso da árvore que se projetava sobre o rio, admirava seu reflexo na água e citava, de cor, um parágrafo de A Guerra Gaulesa.
- Entendeu, agora, por que não gosto de Júlio César? - perguntou a menina. - Ele era um homem horrível!
- É natural que uma garotinha de treze anos ache um homem horrí
vel. Afinal, você está se baseando na sua ignorância - comentou Edward, que se achava um sábio no alto de seus dezessete anos. - E não vai cair na água, não é? -
perguntou, preocupado.
- O que tem minha idade a ver com isso? - rebateu ela. - Você mesmo disse que sou uma excelente aluna! O problema não está em mim, mas em Júlio César. Ele
não fez um comentário sequer sobre a morte de seu amigo Devicíaco. Que amizade é essa? Para mim, é deslealdade!
César escreve rigorosamente sobre o assunto que o interessa: a guerra. Ele não se atém a detalhes, tais como quem morreu e quando. Sua concisão e objetividade
é que o tornam um dos maiores escritores da época. - Ele parou de falar e olhou para os raios de sol que se esgueiravam entre os galhos das árvores. - Acontece que
você não vê os fatos como deveria. É nisso que dá negligenciar e educação. Seu pai devia ter posto uma governanta para ensiná-la ou ter mandado você para um internado.
,
Uma vez papai contratou uma governanta, mas ela nos desprezava e tratava mamãe com tanta arrogância que a fazia chorar. E, como ele diz, eu tenho
personalidade forte demais para me adaptar a uma escola.
- Mas alguma coisa deve ser feita a esse respeito!
- Claro! Você pode me dar aulas, Edward!
Posso ensinar-lhe um pouco de latim, de história, matemática...
mas não o que as moças devem aprender! - Ele sacudiu a cabeça, desconsolado. - Você não tem o menor senso de conveniência: diz e faz o que lhe passa pela
cabeça!
- Eu sei... - Susanna suspirou. - Minha mãe, coitadinha, não sabe o que fazer comigo. Mas, diga o que disser a conveniência, eu nunca vou agir como Júlio
César! Você vai ser sempre o meu melhor e mais querido amigo, Edward!
- Acredito - disse o rapazinho, sorrindo. - E tenho certeza de que, mesmo depois de eu morrer, se alguém ousar sussurrar algo contra mim, você fará esse alguém
se arrepender!
- E vou fazer, mesmo! - Ela ficou pensativa por instantes, depois chamou: - Edward...
- O que quer agora, sua molequinha?
- Meus saiotes ficaram presos... Não consigo me mexer...
- Eu avisei, Susanna!
Ele colocou o livro no chão e levantou-se. Depois de avaliar a situação, disse a ela que fosse recuando no galho, bem devagar. Susanna obedeceu e ficQu ainda
mais presa nos ramos. Quando ele se esticou todo e tentou soltar-lhe as roupas, ela perdeu o equilíbrio, começou a escorregar e caiu na água. Edward ainda tentou
segurá-la, mas não conseguiu, e também acabou caindo no rio. Assim que voltou à superfície, ele nadou até a jovem, que boiava de bruços, com o rosto dentro d'água,
numa posição alarmante.
- Susanna! - gritou ele, segurando-a.
Sim? - repondeu ela, erguendo a cabeça e rindo a valer, enquanto se endireitava e jogava água nele.
- Você fez de propósito! - ele exclamou, soltando-a.
- Juro que não! Mas foi divertido, não?
Edward nadou até a margem, segurou-se num galho e subiu no barranco.
- Ainda bem que meu livro ficou aqui, a salvo! - disse.
Pegou o volume e levantou a cabeça. Foi então que viu o rosto severo do sr. Sharpe, o pastor, que caminhou até a margem e ficou olhando Susanna, que brincava na
água.
- Srta. Marlowe, saia do rio imediatamente - ordenou, surpreendendo-a.
Sem demora, ela nadou para a margem. As roupas molhadas dificultavam a movimentaçãoj: ela tremia de frio, pois uma nuvem tinha escondido o sol. Reparando
no tremor dela, Edward pegou seu paletó, que havia ficado no chão, junto do livro, e agasalhou-a com ele.
- Sr. Farrineau, deveria estar se preparando para os exames de admissão em Oxford e não associando-se a elementos inadequados. - Olhou para Susanna e bufou:
- Acompanhem-me! - E saiu andando depressa.
- A culpa foi minha - gritou Susanna, correndo atrás do pastor.
- Não tenho dúvida quanto a isso! - retrucou o homem, azedo.
- Não - interferiu Edward -, a culpa foi minha. Eu a ajudava a ler Júlio César e ela caiu no rio, sem querer...
- O senhor estava ensinando latim para essa menina? - indagou o pastor, ofendido.
- E por que não? - surpreendeu-se o rapaz. - Ela é uma boa aluna e até agora ninguém se preocupou em educá-la.
- Uma menina como ela tem de aprender a cuidar da casa - gritou o pastor, perdendo a paciência. - Se ela quiser, pode ir à escola dominical para aprender
a escrever e a somar. Damas não precisam aprender sobre guerras. Não é à toa que ela sai por aí nadando de roupa: o senhor encheu a cabeça da menina com histórias
de Júlio César!
E antes que Edward protestasse, Susanna interferiu:
- Muito obrigada, sr. Sharpe! - disse, com os grandes olhos verde-acinzentados brilhando. - Fico feliz em não ter de ler sobre oficiais que ignoram os amigos,
assim que eles deixam de ser convenientes morrendo!
- A menina ousa atacar o caráter de Júlio César?! - disse o pastor aos berros, sem conseguir conter a fúria diante de tal comentário. -Como uma menina de
treze anos, filha de um joão-ninguém, pode criticar as atitudes de um dos mais nobres generais?
- Oh, não, senhor! Não tenho nada contra as atitudes dele. Tenho certeza de que agia como um verdadeiro romano. Minha preocupação é com a moral dele, que
deixa muito a desejar.
O pastor ergueu os olhos para o céu, implorando para ter paciência, e levou os dois para Langfield. Algumas horas depois os dois infratores tiveram de enfrentar
os pais, na biblioteca da mansão dos Farrineau. _ Espero que compreenda a gravidade da situação, sr. Marlowe - disse o sr. Farrineau. - Se essa menina não fosse
negligenciada, isso não teria acontecido.
- Senhor - riu o outro -, foi apenas uma brincadeira inocente!
_ Aconselho que dê a devida importância a esta situação - enfureceu-se sir Dalton. - A sociedade local não vai ignorar o fato de meu filho e sua filha terem
sido encontrados nadando, sozinhos. O senhor acha que isso é brincadeira de crianças, mas deve lembrar que eles são grandes o suficiente para produzirem crianças!
Susanna e Edward se entreolharam ao ouvir aquilo. Nenhum dos dois achava o rumo da conversa divertido. A menina sentia-se aturdida. Será que Edward a considerava
uma mulher? Ultimamente havia notado algumas alterações em seu corpo de adolescente, mas como a perturbavam, tentava esquecê-las. Começava a perceber que isso não
era possível.
- Susanna é uma boa menina - comentou o sr. Marlowe, sem dar importância ao fato. - Tem apenas treze anos e minha permissão para se divertir. Terá
tempo suficiente para achar o mundo aborrecido quando for adulta. E quanto ao seu filho, agradeço a ele por ensinar latim a minha menina. É um bom rapaz e confio
em ambos. Entretanto -acrescentou, dirigindo-se ao rapazinho -, como sir Dalton não pensa o mesmo, peço-lhe que não nade mais com a minha filha.
Edward sentia-se solidário com a amiga, que levava toda a culpa, e ofendido com o pai, que o envergonhava. Aflito com a situação, resolveu pedir ao sr. Marlowe
que esquecesse o incidente e, se quisesse falar nele, que esperasse um momento menos tenso.
Antes de sair com o pai, Susanna murmurou a palavra valere para Edward. Esperava que o uso do vocábulo latino, que significa "seja forte", encorajasse o amigo,
que teria de enfrentar o pai sozinho.
Em pouco tempo todos na cidadezinha ficaram sabendo da estripu-lia. E, como sir Dalton havia previsto, o acontecido foi considerado o escândalo de Cheedham.
O sr. Martin achava quê os dois infratores deveriam ser chicoteados, como exemplo para os demais jovens. O sr. Gayle mandou Mercy para uma longa visita à
avó, em Sidmouth. Edward foi enviado para Oxford um.semestre antes do planejado.
Dessa forma, para estar a salvo da má influência da filha de um comerciante, ele foi aprender com os colegas a frequentar as zonas mais sórdidas de Londres.
Susanna foi enviada para a Escola de Senhoritas da srta. Wortle, em Cheedham, onde as professoras conseguiram ensiná-la a ler e a desenhar, mas não conseguiram
incutir-lhe as boas maneiras que uma jovem herdeira de quarenta mil libras deveria ter.
Ao terminar de contar a história, Susanna aguardou a reacão da srta. Lucy, com preocupação. No entanto, a jovem desatou a rir e comentou:
- Aposto como foi a coisa mais divertida que já aconteceu em Cheedham! Os habitantes da vila deviam agradecer a vocês!
Susanna suspirou. Parecia que Lucy Bledsoe era tão liberal quanto bondosa e bonita. Só tinha de admirá-la!
Nesse momento, um tumulto no salão de baile chamou a atenção das moças. Edward apareceu na porta, muito sério.
Sentindo uma estranha angústia, Susanna entrou no salão.
Os músicos haviam parado de tocar e os convidados murmuravam. Seu pai falava com um homem pálido, que gesticulava muito e não parecia ser um cavalheiro. Perto
deles encontravam-se sir Dalton e o sr. Cox, o advogado. Ela correu para o pai.
- Permita-me afastá-la daqui - disse sir Dalton, dirigindo-se a ela.
- Não! Vou ficar. - Ela endireitou os ombros e ergueu o queixinho voluntarioso, enquanto o homem pálido engasgava com a palavra "fraude".
- Vou para as índias Ocidentais agora - disse o sr. Marlowe.
- Não é a melhor atitude - aconselhou o advogado. - Sair da Inglaterra é o mesmo que admitir a culpa.
- O caso precisa ser investigado - acrescentou o sr. Marlowe -, e vão precisar de seu testemunho.
O anfitrião olhou para os dois cavalheiros, sorriu, contrito, e voltou-se para a filha:
- Susanna, querida, tome conta de sua mãe. Temo que nos tornaremos muito pobres, mas vou recompensá-las, filha...
E, antes que pudessem impedi-lo, ele caminhou rapidamente para a saída, seguido pelo homem pálido, que era seu sócio. Sir Dalton pediu à sra. Marlowe que
retivesse o marido.
- Não devo interferir - respondeu a senhora, muito abatida, porém digna. - Meu marido não pediu minha opinião.
- Mas ele vai perder o bom nome! Pense na sua filha!
A boa senhora fitou Susanna, com lágrimas nos olhos.
- Ela melhorou tanto - continuou Sir Dalton -, tem tido um com portamento exemplar. Não permita que ela perca o respeito que merece. Fale com seu marido!
Confusa, a sra. Marlowe percebeu que aquilo resolveria seu tormento: perdendo o respeito, Susanna não poderia entrar para a sociedade, não se transformaria
numa lady e não renegaria os pais. O que seria me-
lhor para ela?, indagou-se. Ter os pais que a amavam perto ou fazer parte de uma sociedade que a desprezava?
As palavras da filha resolveram o dilema:
Se meu pai decidiu ir embora, não podemos nos opor, sir Dalton. Agradeço sua preocupação e peço licença para nos retirarmos.
E a jovem saiu do salão, levando a mãe consigo.
Sir Dalton, que não costumava ser contrariado, previu que a jovem Susanna estaria arruinada para sempre. Os convidados, que esperavam uma noite divertida,
não puderam sequer achar graça na situação, pois a maioria dos cavalheiros ali presentes haviam aplicado dinheiro nas índias Ocidentais, a conselho do Sr. Marlowe.
Estavam preocupados demais com o que se arriscavam a perder para rir do que acontecera na casa dos novos-ricos.
CAPÍTULO III
Ruína
Ao completar os vinte e um anos, Edward recebera do padrinho uma herança de mil libras por ano, uma fazenda grande e bem cuidada e uma casa nos arredores
de Cheedham. Como a casa estava desocupada, pensou em cedê-la para a sra. Marlowe e, apesar de não precisar da autorização do pai, resolveu consultá-lo, pois sabia
que ele ficaria contente com isso.
De fato, sir Dalton ficou contente em ser consultado, mas não gostou nada ao saber que a intenção do filho era não" cobrar aluguel de Susan-na e da mãe, para
morarem lá.
- Elas não vão gostar dessa casinha, depois de morar em Edenhurst - argumentou, tentando fazer Edward mudar de ideia.
- A sra.-Marlowe já viu a casa e aceitou minha oferta. Acha que ela e Susanna ficarão muito bem lá.
- E onde essa senhora pretende arranjar dinheiro para viver? - indagou sir Dalton, com um suspiro.
- Na minha última ida a Londres vendi algumas jóias e enfeites para elas. Foi o que sobrou, depois de venderem tudo que tinham para pagar os credores. Com
o dinheiro das jóias podem comprar alguns móveis e não morrerão de fome.
- Edward, receio que sua generosidade possa ser mal-interpretada...
Um cavalheiro não deve fazer esse tipo de coisa, e a srta. Marlowe é uma moça bonita, atraente...
- Susanna não passa de uma criança, papai, e é como irmã para mim.
Se a sociedade quiser ver algo mais em minha atitude, não posso fazer nada. Não vou abandoná-la agora.
- E o que a srta. Bledsoe pensa dessa situação? O que ela vai dizer?
- Acredito que ficará satisfeita, pois quando lhe contei minha ideia, ela encorajou-me a falar com a sra. Marlowe.
O idoso cavalheiro ficou chocado ao saber que a srta. Bledsoe concordava com aquele plano, mas acabou por aprová-lo já que Edward o colocara em ação.
Susanna ficou encantada com a casa, que era pequena, mas bem construída, clara e acolhedora. Ajudou a mãe, e as duas limparam tudo, arrumaram, deixando-a
um primor. Havia um único defeito: as janelas eram baixas, e como a casa ficava junto à rua, não tinham privacidade alguma quando se encontravam na sala de estar.
Quando as cortinas ficavam abertas, tudo quanto era mulher curiosa, homem intrometido ou criança sapeca parava para dar uma olhada lá dentro.
Susanná notou pela primeira vez que a espiavam numa tarde de verão, quando estava sentada à mesa, com o queixo apoiado nas mãos e o olhar sonhador, distante.
De repente, percebeu que os bisbilhoteiros passavam e davam uma paradinha, olhando. Sentiu-se como se estivesse numa vitrine.
- Mamãe! - chamou. - Já notou como olham para cá?
- Ignore essa gente, minha querida - disse a boa senhora, sem erguer os olhos da costura que fazia. - Se quiser, feche as cortinas.
Entre o grupinho de curiosos que se acumulara diante da janela naquele momento estava Wilfred Sharpe, o filho do pastor.
- Vamos sufocar se eu fechar as cortinas - comentou.
- E por que devemos sofrer se temos vizinhos sem educação?
- Então, não sei o que podemos fazer, meu bem...
A jovem levantou-se e foi até a janela pedir que saíssem, mas Wilfred Sharpe disse uns gracejos e começou a rir. Os demais do grupo imitaram-no. Então, ela.
perdeu a paciência:
- Vão embora! - gritou, e acrescentou, ameaçadora: - Wilfred Sharpe, se não for embora, seu pai vai mandar um criado cortar a sua garganta!
- Tenho ideia melhor - disse o rapaz, bem alto para que todos ouvissem. - Preferia que a senhorita mesmo cortasse minha garganta, pois sei que é boa nisso,
como qualquer selvagem. Agora, melhor, mesmo, seria se me desse um beijo!
O grupo aplaudiu o rapaz* e Susanna, furiosa ao ver o sorriso de triunfo do atrevido, pegou um vaso com lírios e jogou-o na cabeça dele. Ao vê-lo com o rosto
sujo de terra, os cabelos enfeitados por lírios brancos, o pessoal riu mais ainda.
Vermelho de raiva e humilhação, Wilfred olhou para Susanna com maldade e exclamou:
- Não vou esquecer isto! Vai me pagar caro!
Voltou-se, tentando ir embora com dignidade, mas os apupos e risadas acabaram por fazê-lo correr.
Não foi preciso mais do que uma hora para que a notícia do acontecido se espalhasse pelo condado. Como Susanna tinha fama de encrenqueira, o fato não a afetou,
mas a reputaçãodo jovem Sharpe sofreu com isso. Por onde passava, ele percebia que as pessoas mal escondiam o riso. Assim, no dia seguinte passou a ser chamado de
Willy-Lírio.
- Susanna - disse Edward, quando foi visitá-la -, contaram-me que você grita como louca na janela e ameaça os vizinhos de morte...
- Mas sabemos que é mentira! - acrescentou Lucy.
- Não é bem assim, srta. Bledsoe - contradisse ele, com delicadeza. - Conheço Susanna e sei do que ela é capaz. Quer nos contar o que houve? - pediu à amiga.
- Não é mentira... - começou Susanna, e viu horror nos olhos azuis de Lucy. - Começaram a parar na nossa janela e olhar para dentro. Eu pedi que se retirassem
e, como Wilfred Sharpe começasse a zombar de mim, eu disse que o pai ia mandar cortar a garganta dele, se não fosse embora.
- Claro... - disse Edward, rindo.
- Meu Deus! - exclamou Lucy, depois de se recuperar do choque- Verdade? Eu jamais teria tido essa coragem... Você é muito corajosa!
- Susanna, não percebe que fazer isso não ajuda? - perguntou Edward. - Wilfred Sharpe não vai perdoar isso e, o pior, você deu aos vizinhos mais motivos para
falatório. Reagiu exatamente como eles queriam. Como pode permitir que a deixem descontrolada desse jeito? Espero que esteja arrependida.
- Estou arrependida de não ter jogado uma coisa mais pesada nele!
-Srta. Bledsoe - riu Edward -, o que vamos fazer com ela?
Levantou-se, foi até onde Susanna se encontrava, de pé, e levou-a para perto de Lucy.
- Veja como ela é bonita - disse para a noiva. - A pele não é avermelhada, como a da maioria das ruivas. Ao contrário, tem o tom rosado do pêssego.
Não é alta demais e as formas bem-feitas... - Fez Susanna girar. - Enfim, tem tudo para se tornar uma adorável lady, mas quando observo seu comportamento, fico desanimado....
principalmente porque não consigo repreendê-la: acho divertido o modo como ela age.
Procurando ficar séria, Susanna fez uma reverência para o amigo, depois ele e ela sentaram-se. Ficaram em silêncio por algum tempo, Lucy olhando, pensativa,
para os dois.
- Parece-me que o sr. Farrineau vai perder uma fonte de divertimento quando você mudar seu modo de agir, Susanna. Apesar de achar isso uma pena, tenho de
admitir que é preciso... - completou a srta. Bledsoe, com um suspiro.
- O que a se... você - corrigiu-se, lembrando-se do pedido da amiga em sua festa - faria em meu lugar?
- Absolutamente nada.
- Nada? Mas ele foi grosseiro, mal-educado!
- Por isso mesmo. Não podemos deixar que a grosseria dos outros nos force a agir do mesmo jeito. Uma dama deve desdenhar as pessoas mal-educadas, deve ser
superior, não se deixar afetar por insolências e provocações. Garanto que isso deixaria o sr. Sharpe sem ação.
- Que boa ideia! - exclamou Susanna, admirada. - Eu devia ter feito isso: desprezado o insolente. Aí ele ia se sentir um inseto!
As duas moças entreolharam-se e riram. Edward fitou-as, incrédulo, depois começou a rir, também.
- Então, espero que lembre como agir, da próxima vez, Susanna - disse, ficando sério. - Não apenas para fazer o inimigo sentir-se miserável, mas porque isso
é próprio de uma verdadeira lady.
- Por que preciso aprender a me comportar como uma lady? Jamais serei uma delas. Sou pobre, desprezada... Só tenho motivos para me comportar mal.
- Quem a conhece sabe que não é má - disse Lucy, indo sentar-se junto de Susanna, no sofá. - Você é boa, sensível, e jamais faria alguma coisa errada.
- Você e Edward pensam assim porque são bondosos e não enxergam os defeitos das pessoas das quais gostam - respondeu a jovem, sem aceitar os elogios. - No
entanto, todos os demais acreditam que o contrário é a verdade.
- Lawrence, meu irmão, não pensa assim. Ele a admira desde que lhe contei a aventura do rio e confessou-me que sempre teve vontade de nadar no rio Dance...
A saúde delicada dele não permite. Disse que você tem muita coragem e disposição para realizar um desejo, em vez de ficar esperando que ele aconteça.
- É mesmo? - perguntou Susanna, corando e olhando de relance para Edward. - Bem... Eu garanto que ninguém olhou aquele escandaloso episódio dessa maneira.
Seu irmão deve ser muito simpático! Ele pode vir me visitar, se quiser...
- Acho que ele vai gostar muito de conhecer você - disse Lucy, animada.
Lawrence ficou encantado com a ideia da irmã, mas seu pai não permitiu que ele fosse visitar a srta. Marlowe. Não se importava que a filha fosse caridosa
e visitasse os pobres, afinal, a sra. Marlowe havia sido muito atenciosa com seu filho, quando ele estivera doente. Mas a situação era completamente diferente quando
o jovem herdeiro de uma propriedade de quatro mil libras, além de outras na Irlanda, que rendiam muito dinheiro, decidia visitar uma jovem sem dote, sem parentes
importantes, sem qualquer perspectiva futura e, ainda por cima, de má reputação.
Aquela moça era filha do homem que o convencera a aplicar dinheiro num mau negócio, além de não saber se comportar como uma dama.
Atirava vasos no filho do pastor, nadava no rio, com todas as roupas, é verdade, e estudava latim! Não se conformava com o fato de uma mulher ser tão atrevida!
Sendo assim, passaram-se vários meses e Susanna não recebeu a visita do jovem Bledsoe, mas nem sequer lembrou disso, pois a sra. Marlowe adoeceu gravemente
e, no fim do ano, quando parecia que ia melhorar, graças aos cuidados da filha e atenções da srta. Lucy e do jovem Farri-neau, ela faleceu. Fechou os olhos para
sempre num dia chuvoso, com a cabeça apoiada no colo da filha.
Por ser um proprietário de grande influência em Cheedham, além de ser um cavaleiro a serviço do rei, sir Dalton julgou ser sua responsabilidade decidir o
futuro de Susanna. Ela não podia ficar morando sozinha, e o pouco dinheiro que tinha não ia durar. A srta. Wortle, dona e diretora da escola, reconhecia a capacidade
de. Susanna para ensinar latim para crianças, mas recusava-se a dar-lhe emprego, por causa de sua reputação.
A questão complicava-se ainda mais porque Edward se recusava a aceitar as sugestões do pai: não queria que ela se tornasse governanta, pois para isso teria
de ir embora dali, nem que ficasse e fosse trabalhar no asilo dos pobres e órfãos. Infelizmente não havia nada que uma moça, agora quase com dezoito anos, pudesse
fazer para se sustentar. Sir Dalton temia que o filho resolvesse sustentar a srta. Marlowe, o que acabaria de vez com a reputação já abalada da moça e com a oportunidade
de ele fazer um bom casamento. Por isso, decidiu enviar o filho para Londres, a negócios.
De modo geral, ele jamais sairia de Langfield e"m um momento tão delicado, mas estava ansioso por falar com um advogado e ver se conseguia recuperar parte
do dinheiro do sr. Marlowe para Susanna. Se tudo desse certo, a jovem teria uma renda própria e não dependeria de ninguém.
Assim que o filho partiu, sir Dalton dedicou-se completamente ao problema. Queria ser justo, mas não conseguia esquecer as preocupações que aquela jovem
causara. Além disso, temia que causasse complicações no relacionamento de Edward e da srta. Bledsoe. Susanna precisava de alguém de moral e comportamento severos,
que lhe ensinasse algumas regras e a aceitar o bom senso dos mais velhos. Afinal, concluiu que a melhor pessoa para essa tarefa era o sr. Sharpe. Como o pastor,
caridosamente, havia sugerido que ela poderia ser sua criada, o cavaleiro resolveu aceitar a oferta, em nome de Susanna.
- Até que enfim a encontro! - exclamou Wilfred Sharpe com um sorriso que pretendia ser angelical. - Imaginei que ainda estaria aqui na biblioteca, tirando
o pó... Leva tanto tempo para fazer esse trabalhi-nho! Mas a verdade é que mais lê do que tira pó. - E ele riu, encantado com o próprio senso de humor.
É melhor me dar licença, senhor, ou poderá ficar molhado... -avisou Susanna, que passava pano no chão.
Ele hesitou, pois estava de roupa nova e sabia que ela era bem capaz de jogar a água do balde nele.
- Srta. Marlowe - começou, cauteloso -, posso fazer-lhe uma pergunta?
- Infelizmente não posso impedir...
- Por que não podemos ser amigos? - perguntou ele, sorrindo.
- Não foi muito amigável da sua parte ficar espiando minha mãe e eu, pela janela da nossa sala - replicou ela, com ironia, o queixo apoiado nas mãos que
seguravam o cabo do rodo.
- Foi só brincadeira,.. Eu não queria criar problemas. Sempre considerei a senhorita, sou seu admirador... até já rezei para que seja feliz!
- Não sei se devo acreditar no senhor... - E ela acrescentou, com ar maldoso: -- Mas posso dizer que também está presente nas minhas preces.
- De verdade? - perguntou ele, todo contente.
- É. Peço a Deus que o mantenha longe de mim... principalmente agora, pois pode ficar molhado! - E ela pegou o balde, para jogar um pouco de água no chão.
Wilfred perdeu a paciência e resolveu mudar de tática. Aproximou-se e segurou o cabo do rodo, impedindo-a de continuar trabalhando. Ela encarou-o, perguntando
a si mesma o que a srta. Bledsoe faria naquela situação. Será que o reduziria a um inseto, com toda a dignidade? Decidiu que era uma boa oportunidade para tentar
comportar-se como uma lady. Ergueu o queixo e franziu o nariz, fungando, como se algo estivesse cheirando mal. Pegou o balde, o rodo, o pano e foi para o canto que
ainda não limpara.
- A senhorita me deve um beijo - disse Wilfred, seguindo-a. - Precisa me compensar por ter jogado o vaso e criado para mim um apelido
que odeio.
Não dera resultado, pensou Susanna, sem saber o que fizera de errado. Se tivesse usado o método de Lucy do modo certo, o jovem Sharpe deveria tê-la deixado
em paz. Resolveu tentar de novo. Dessa vez, colocou no rostinho bonito uma expressão fria e indiferente, virou as costas e passou a esfregar o chão com energia.
- Vejo que está querendo me provocar - murmurou ele, aproximando-se mais. - Está bem, vou buscar meu beijo.
Ela esticou o braço, impedindo-o de avançar demais.
- O senhor está enganado! - protestou. - Será que é cego, surdo, insensível? Não viu que o ignorei como uma dama deve fazer? Não sabe que numa situação
assim deveria se retirar?
Ele começou a rir, passou-lhe o braço pela cintura e puxou-a para si.
- Estou ardendo por um beijo seu, minha querida!
- Oh! Se está pegando fogo, precisa de um banho frio - retrucou ela, furiosa, despejando a água do balde no rapaz.
Depois, saiu correndo da biblioteca e deu um encontrão em Edward, que fora visitá-la. Pela expressão da jovem amiga, ele percebeu que alguma coisa estava
errada. Perguntou, aflito:
- Meu Deus! O que aprontou agora, Susanna?
E antes que ela respondesse, Wilfred apareceu no corredor, gritando como um selvagem:
- A senhorita vai ver uma coisa! Antes do dia terminar estará trabalhando naquele asilo horroroso!
Calou-se, de repente, ao ver Edward, que caiu na risada ao ver o filho do pastor molhado da cabeça aos pés. Fervendo de raiva, ele voltou-se para ela, ameaçador:
- A culpa é dessa... dessa mulherzinha!
Edward percebeu que a amiga tremia. Passou um braço pelos ombros dela, protetor, antes de perguntar:
- O que o senhor fez? Ela está aterrorizada!
- Aterrorizada? Eu estou molhado, minha roupa estragada, mas o senhor fica sempre do lado dela. Garanto que meu pai vai ver esta situação de modo diferente!
- E saiu, marchando, em busca do pastor.
Edward ficou olhando para Susanna, que evitava encará-lo. Então, sentiu que a jovem tremia mais e ouviu-a soluçar. Seu rostinho pálido estava molhado de lágrimas.
- Se eu tivesse conseguido dinheiro, em Londres - murmurou ele, triste -, você não continuaria aqui.
- Edward... tenho tanta saudade da minha mãe! Ela ia ficar desapontada com o que fiz... a srta. Bledsoe também...
- Não... ela só vai dizer que você devia ter seguido seu conselho - murmurou ele, afagando-lhe os cabelos. - Como pôde agir de modo tão pouco educado, Susanna?
Ao ouvir aquilo, a jovem sentiu-se espicaçada. Fora justamente o conselho de Lucy que acabara por obrigá-la a agir daquela forma. Se tivesse posto aquele
atrevido para correr, logo no começo, as coisas não teriam se complicado.
- Como ousa me dizer isso? - perguntou, com raiva. - O que aconteceu é culpa dela! Lucy me disse para agir com dignidade que ele iria embora, mas não
foi!
- Fico contente por você haver tentado - disse Edward. - Sinto muito por Wilfred Sharpe não ser um cavalheiro. Se fosse, sua atitude teria dado certo. Mas
não deve culpar a srta. Lucy por isso... - E ele sorriu, conciliador.
- Se eia não tivesse me dado aquele conselho absurdo, essas coisas não teriam acontecido! - Susanna sentia-se mais brava ainda por ver o amigo defender Lucy.
- Chega! Daqui por diante vou agir como achar melhor. Não quero ser uma lady! Não quero ser uma dama digna e bem-educada!
- Ora, não fale assim... Essa sua afirmativa boba vai deixar a srta. Bledsoe muito triste.
- E dai? Não quero mais saber de Lucy Bledsoe!
- Por favor, Susanna - pediu Edward, afastando-se dela e encarando-a -, acalme-se. Sabe que não foi culpa da srta. Lucy. Ela
é sua amiga. Você está zangada, assustada, e não sabe o que diz. A srta. Bledsoe é encantadora... Eu a admiro e quero me casar com ela.
- Mas eu não quero a amizade dela! E sei muito bem o que estou dizendo. - Susanna estava a ponto de chorar outra vez. - E se gosta tanto dela, também não
quero mais saber de você! - E correu para a cozinha, com seu balde, esfregão e rodo.
Nos dois dias que se seguiram, nada aconteceu, e isso assustou Susanna ainda mais, que esperava pelo menos uma severa repreensão do pastor. Então, recebeu
uma carta de Lucy Bledsoe e percebeu que Edward contara a briga, mas não o motivo.
"Querida Susanna,
Tenho pouco tempo para escrever-lhe, pois estou arrumando as malas. Lawrence piorou e vamos levá-lo para Bath, a conselho médico. Desculpe-me não ir me despedir,
não dá tempo. Mas queria dizer-lhe que sinto por você e o sr. Farrineau terem brigado. Será que não pode perdoá-lo? Seria tão bom se fizessem as pazes! Da sua amiga,
Lucy Bledsoe."
Susanna adoraria fazer as pazes com Edward, mas ele não fora mais visitá-la e ela sabia que era impróprio para uma dama visitar ou escrever para um cavalheiro.
Não queria fazer nada errado dessa vez.
Passou-se uma semana e o jovem Farrineau não apareceu. Afinal, ficou sabendo que ele acompanhara os Bledsoe a Bath, portanto não adiantava esperá-lo.
Com o filho longe, sir Dalton teve calma e tempo para pensar no problema que o pastor havia colocado em suas mãos. Susanna Marlowe havia pago a caridosa bondade
do sr. Sharpe com a ingratidão: chegara ao atrevimento de jogar um balde de água suja no filho dele. Era impossível compreender por que uma moça a quem todos tratavam
bem, davam tanto apoio e oportunidade de ser alguém na vida, agira com tanta agressão e violência. Era uma ingrata sem remédio!
Depois de muito ponderar, sir Farrineau e o sr. Sharpe decidiram mandar a jovem para o norte. Esperavam que o clima gelado da Escócia e a severidade do pastor
Josiah, irmão do sr. Sharpe, ensinassem a rebelde moça a se comportar como uma dama e a aprender o que significava gratidão. Iria para a casa do sr. Josiah, onde
trabalharia como copeira.
CAPÍTULO IV
Lady Philpott
Susanna não ficou tão assustada com a perspectiva de ir para a Escócia quanto Wilfred gostaria que ficasse, pois nem dizendo que a livraria disso conseguiu
que ela lhe desse um beijo. Na verdade estava curiosa por conhecer as terras altas do norte.
Sir Dalton ia mandá-la de carruagem até Worcester e lá ela continuaria numa carruagem pública. Ele sabia que seu dever seria acompanhar a jovem até o destino,
mas o pastor acabara por convencê-lo que uma moça tão mal-agradecida não merecia tanta consideração. E não fora muito difícil levar o cavaleiro a achar que estava
com toda razão, pois ele não tinha a menor vontade de viajar com Susanna.
Por outro lado, sir Farrineau sentia-se sossegado: seu filho estava longe e só ficaria sabendo daquele arranjo quando fosse tarde demais.
Chegou o dia marcado para a partida. Três baús alinhavam-se na sala do presbitério, esperando pela chegada da carruagem de sir Dalton. Como sabia que só deveria
partir ao meio-dia, Susanna resolveu dar um passeio, ir até à beira do rio Dance, no trecho onde havia os salgueiros em que gostava tanto de subir, quando era menina.
Ainda tinha algum tempo para lembrar dos momentos felizes que passara com Edward.
Ia andando pela estrada, pensando em uma porção de cenas passadas, suspirando de saudade, quando ouviu o som de um veículo se aproximando. Olhou para trás
e viu uma carruagem grande, luxuosa e moderna, que vinha correndo demais, passando logo por ela, numa rapidez que a preocupou. Sem pensar, saiu correndo atrás e
foi encontrá-la logo adiante, com uma das rodas atoladas na valeta ao lado da estrada. Os quatro magníficos cavalos castanhos que a puxavam pastavam, na maior calma.
O cocheiro encontrava-se caído na estrada, inconsciente.
Ela correu para ele e ao chegar perto ficou pasma com o cheiro de álcool que o homem exalava. Tampou o nariz com uma das mãos e sacudiu-o com a outra. Ele
mal se mexeu, resmungando, e com muita dificuldade ela conseguiu arrastá-lo do meio da estrada. Depois, exausta, parou para tomar fôlego e observou a carruagem.
Temia que os passageiros estivessem feridos. Ia abrir a porta do veículo para ver se podia fazer alguma coisa quando viu uma cabeça aparecer à janela. Era uma senhora,
que usava chapéu roxo com plumas prateadas.
- Mocinha, tem ideia de quanto paguei por esta carruagem? - perguntou a dama a Susanna, que fez que não com a cabeça. - E, veja, agora ela está destruída!
- Talvez precise trocar a roda, milady, mas não creio que o veículo esteja destruído.
- O que entende disso? É carpinteira, por acaso?
- Não. Mas tenho olhos e posso ver que a roda apenas atolou na valeta e no máximo pode ter acontecido algum problema com o eixo.
- Comprei os cavalos na semana passada e paguei uma quantia exorbitante por eles. Suponho que vai me dizer que estão machucados, aleijados, que joguei meu
dinheiro fora...
- Não, senhora. Os cavalos estão bem.
- E quanto acha que vai custar para alguém desatolar a carruagem e consertar a roda?
- Não tenho ideia, milady. Mas seja quanto for, essa quantia terá de ser paga, não é?
- Bem, eu acho é que não devia ficar surpreendida pela sua indiferença diante da minha desgraça - comentou a senhora, franzindo o cenho. - Não é o seu dinheiro
que vai ser gasto!
- É verdade. Além disso, não tenho, mesmo, dinheiro.
- Sinto ouvir isso... - disse a dama, com gentileza. - Já fui pobre e garanto que é muito melhor ser rica. A senhorita mora por aqui?
- No momento, não moro em lugar algum... Vou morar na Escócia.
- Só porque não tem dinheiro? - espantou-se a lady. - Não sabia que estavam mandando os pobres para lá, agora. Mas é uma coisa compreensível: ninguém quer
saber dos pobres. Eles são tão perturbadores!
- Madame, eu creio que seria melhor a senhora sair da carruagem o quanto antes. Se os cavalos começarem a andar, ela pode acabar de tombar e pode ser que
se machuque.
- E como quer que eu saia daqui, minha jovem? - perguntou a senhora, avaliando a distância que a separava do chão e a dificuldade de sair da carruagem, inclinada
como estava. - Sou uma lady e, como tal, não posso simplesmente pular.
Naquele momento, os cavalos deram alguns passos e a inclinação da carruagem acentuou-se perigosamente. Depois de verificar que não se machucara, a senhora
deixou que Susanna ajudasse a ela e à criada, que chorava dentro do veículo, apavorada, a saltarem para o chão.
- Será que estraguei meu chapéu? - quis saber a lady, assim que recuperou o equilíbrio e a dignidade. - Comprei-o na semana passada, por preço vergonhosamente
alto. Bem, pelo menos estamos vivas...
A senhora acalmou-se depois de Susanna lhe garantir que o chapéu estava perfeito. Esta abriu seu xale sob a sombra de uma árvore, para que ambas sentassem,
e foi verificar os cavalos. Soltou-os, amarrou três a uma árvore e ficou com o líder, que montou em pêlo, com a maior agilidade. Antes de disparar na direção da
vila de Cheedham, gritou para as duas senhoras:
- Vou chamar um carpinteiro para desatolar a carruagem e consertar a roda!
E logo sumia na distância, galopando com segura e perfeita elegância.
O sr. Mees, carpinteiro, apressou-se em ir socorrer a lady. Mandou que seu ajudante levasse o cocheiro bêbado para a vila, em uma carroça. Quando o garoto
voltou, Susanna convenceu-o a emprestar o precário veículo para levar a dama e sua criada para um lugar mais cómodo.
- Sim! - entusiasmou-se a senhora. - Meu bom homem, será que poderia me levar a Langfield, então? Fica muito longe daqui?
- Langfield? - indagou Susanna, surpreendida.
- É, e a senhorita irá comigo - disse a dama.
- Não posso! Sir Dalton não ficaria feliz com isso.
- Ele também não vai ficar feliz em me ver, mas não dou a menor importância a isso!
- Mas, veja, preciso voltar para o presbitério. Sir Dalton vai mandar a carruagem dele para lá, a fim de o cocheiro me levar para Worcester, de onde tomarei
um coche para a Escócia.
- A Escócia vai ter de esperar - decidiu a dama.
E subiu na carroça, com a prestimosa ajuda do carpinteiro, depois esperou que Susanna e sua criada fizassem o mesmo. Susanna hesitou. O que fazer? Era certo
contrariar o sr. Sharpe e sir Dalton no seu último dia em Cheedham?
- Venha - ordenou a senhora. - Vou comprar-lhe um xale, pois o seu não serve mais. Afinal, não é um artigo caro! - Acrescentou, mais gentilmente: -
A senhorita salvou minha vida. O mínimo que posso fazer é ter certeza de que sua vida é e será feliz. Por favor, venha comigo - pediu, sorrindo.
Há muito tempo ninguém era tão gentil com ela. A última vez fora Edward, antes de brigarem. Susanna não resistiu mais e subiu na carroça.
Sir Dalton ficou tão chocado ao ver a lady chegar que nem reparou em quem a acompanhava.
- Onde está a minha cunhada? - perguntou a senhora, acomodando-se num sofá, sem a menor cerimónia.
Susanna pensava seriamente em sair da casa antes que o cavaleiro a notasse.
- Já mandei um criado chamar lady Farrineau - replicou sir Dalton. - Ela não me informou de sua vinda, lady Philpott!
- Na verdade, ela não sabe. Não os informei de minha vinda porque não pretendia visitá-los. Ia apenas passar por aqui, a caminho do sul, mas minha
carruagem quebrou e suponho que sou obrigada a aceitar a hospedagem que me oferecerem.
- Claro... Meu cocheiro vai ajudar a consertar a sua carruagem -prontificou-se o cavalheiro.
- Obrigada, Dalty. - Ele fez uma careta ao ouvir o diminutivo íntimo de seu nome. - Sei que quer que eu vá embora o mais depressa possível e ficarei feliz
em satisfazê-lo.
- O que faz aqui, srta. Marlowe? - quis saber sir Dalton, que só então reparara na jovem.
- Ela veio comigo - interferiu a lady. - Essa mocinha salvou a minha vida.
- Coisa mais inoportuna! - Ele não parecia grato pela salvação de sua parenta. - Há dez minutos mandei a carruagem pegá-la no presbitério, senhorita!
Susanna começou a desculpar-se, mas a senhora interrompeu-a:
- Que história é essa, Dalty? Por que vai mandar uma moça tão corajosa e bonita para a Escócia?
- Ela só tem causado problemas aos moradores da vila e tínhamos de solucionar o caso, lady Philpott!
Nesse momento, lady Farrineau entrou na sala e sorriu amarelo ao cumprimentar a cunhada.
- Sally, o que sabe sobre esse negócio de Escócia? - indagou a senhora. - É vergonhoso exilar uma moça inteligente, educada, de boas maneiras e sensível como
esta!
- Não interfiro nos negócios de meu marido - retrucou a outra, fria.
- Pois eu interferia nos do meu!
. - É... Meu irmão sempre dizia que desejava casar-se com uma mulher ativa e participante - disse lady Farrineau.
- Verdade? E eu que pensei que ele se casou comigo apenas para contrariar a família! Afinal, eu era pobre e não muito educada... Mesmo assim, não entendo
por que vão mandar uma menina tão encantadora para o norte. Será que ninguém quer tomar conta dela? Algum viúvo rico talvez gostasse de tê-la para alegrar-lhe a
velhice. Um casamento pode ser arranjado.
Susanna empalideceu ao ouvir a sugestão, mas sir Dalton socorreu-a, declarando que não havia quem a quisesse nem por uma semana, quanto mais por uma velhice
inteira. E acrescentou:
- Além disso, quem iria se casar com uma moça pobre?
- O irmão da sua esposa casou, não é? - lembrou lady Philpott. E eu o fiz muito feliz.
Sir Dalton ergueu os braços, exasperado. A esposa, tentando acalmar os ânimos, resolveu servir um chá.
- Espero que a senhora não insista em interferir no caso desta moça, só para nos irritar - resmungou sir Dalton, olhando furioso para a senhora. - Garanto
que pensei bem antes de resolver mandá-la para a Escócia.
- Apesar de adorar irritá-lo, Dalty - disse lady Philpott, suavemente -, não é essa a minha motivação agora.
Aproximou-se de Susanna e pegou-lhe uma das mãos.
- Já que ninguém tem o bom senso de querê-la, a senhorita vai ficar comigo. - Voltando-se para o casal que a observava, pasmo, declarou:
- Ela vai ficar aqui, como minha convidada, até que a carruagem fique pronta. Depois, se tornará minha acompanhante de viagem.
Lady Farrineau ficou incerta. Apesar de não costumar interferir nos negócios do marido, achava que na ausência de Edward alguém deveria se preocupar com Susanna.
Lady Philpott era impulsiva e temia que largasse a jovem em qualquer lugar, caso $ç aborrecesse com ela. Resolveu . intervir e se aproximou:
- Diga-nos, srta. Marlowe, o que quer fazer? Tem escolha, não precisa aceitar a oferta de lady Philpott.
Susanna olhou de um para outro. Se realmente tivesse possibilidade de escolha, ficaria em Cheedham, onde conhecia todo mundo; além disso, Edward voltaria
e ela poderia pedir-lhe desculpa. Mas como sabia que não a deixariam ficar ali, estava indecisa sobre o que fazer.
- Srta. Marlowe - tornou a falar lady Farrineau, cautelosa -, percebeu quais são suas oportunidades? Na Escócia terá a chance de começar de novo. O que quer
que tenha acontecido no passado, não importa, estando lá. Por outro lado, se for morar com a minha cunhada, a quem mal conhece, não sabe por quanto tempo ficará
em segurança, pois ela não esclareceu isso. Nem sequer disse para onde pretende levá-la!
- Fala como se eu não soubesse o que faço, querida cunhada! - A dama divertia-se com a situação. - Garanto-lhe que sei pensar e planejar o que faço. - Voltou-se
para Susanna. - Quer ir comigo, querida?
- Para onde a senhora vai? - indagou a jovem.
- Bem, aluguei uma casa em Bath e estou indo para lá. Acha que gostaria de ir para uma estação de águas?
A carruagem passou pela ponte sobre o rio Avon e entrou na cidade. Lady Philpott e suas acompanhantes foram para a estalagem White Hart, onde permaneceram
durante dois dias, antes de se mudarem para a casa alugada. Era um dia ameno, refrescado por uma brisa suave e perfumada. Enquanto se dirigiam para a casa, Susanna
observava as luxuosas moradias, entre as árvores, olhando pela janela da carruagem. Lady Phil-pott não conhecia Bath, pois seu marido não apreciava esse tipo de
lugar. Soubera que as lojas ali eram ótimas e pretendia visitá-las para adquirir um guarda-roupa para sua jovem acompanhante. Claro, não pretendia gastar demais,
porém queria coisas bonitas e de qualidade.
Uma vez estabelecidas em Sydney Place, a lady demonstrou desapontamento com a localização da casa. Ficava longe do centro comercial e das termas. Prometeu
que ajustaria contas com seu agente, que tratara da transação.
No dia seguinte, Susanna deu um passeio a pé pela rua onde ficava a casa e descobriu os encantos do local. Bem em frente de onde estavam ficava o Sydney Garden,
onde poderiam tomar café ou almoçar, nos dias de sol. Um pouco adiante era a Great Pulteney Street, um elegante centro de compras. Ao lado da casa havia um canal,
às margens do qual poderiam passear.
Nos primeiros dias, enquanto suas roupas não estavam prontas, lady Philpott exigiu que Susanna ficasse em casa e saiu sozinha. Assim, ela teve muito tempo
para pensar em Edward. O que devia contar a ele, quando se encontrassem? E o que ele diria? Será que iria querer falar com ela?
Certo dia, ao voltar para casa, lady Philpott estava irritada.
- Detesto fazer compras sozinha. Tudo é tão caro e não tenho com quem reclamar dos preços! Não é nada divertido!
Sentia-se frustrada, também, por não ter encontrado o sobrinho. Enviara-lhe um bilhete e lhe haviam respondido que ele se encontrava ausente. Susanna pensou
em sugerir que procurasse os Bledsoe, mas não sabia o endereço deles.
Enquanto esperava, ela se divertia caminhando pelas redondezas da casa.
- Não entendo como consegue andar tanto! - reclamou, um dia, lady Philpott. - E como gosta da natureza! É uma coisa que me aborrece, ficar andando
e olhando o céu, as flores, pássaros... e outras belezas que a natureza oferece. Prefiro olhar as lojas!
Assim que as roupas de Susanna chegaram, a lady levou-a a passeios pela cidade. Bath já não era um local tão na moda, mesmo assim a senhora fez o possível
para serem vistas por todos. Foram ao Pump Room, onde se exibia uma orquestra excelente, mas Susanna não gostou da água medicinal que precisou tomar lá. Visitaram
a biblioteca Meyler & Sons e, afinal, foram a um baile no Sydney Garden.
Certa tarde, quando as duas conversavam sobre os preços de umas fitas que haviam descoberto na Milsom Street, lady Philpott foi abordada por um jovem cavalheiro.
Susanna foi apresentada a ele, lorde Blessington, que depois de avaliar sua aparência e roupa, perguntou:
_ A senhorita vai à festa, hoje à noite?
_ Suponho que sim - respondeu a lady, em lugar de Susanna -, se o senhor fizer a gentileza de nos levar.
Eu pensei em levar a srta. Orton - respondeu o rapaz, depois de
hesitar um pouco -, mas como ainda não falei com ela, creio que posso levá-las. Serei perdoado convidando-a para dançar, depois de dançar com a srta. Murchen-Hill...
- E com a srta. Marlowe - insinuou lady Philpott.
- Claro! - concordou o cavalheiro, depois de olhar de novo para ela. - Será uma honra para mim. Aceitará, senhorita?
Susanna fez que sim com a cabeça, depois tornou a olhar as fitas na vitrine, indiferente. O jovem lorde despediu-se e foi embora, depois de informar que as
pegaria às nove horas.
- Mocinha - sussurrou a senhora, os bonitos olhos verdes brilhando, marotos -, devia ter sido mais atenciosa para com lorde Blessing ton. Ele é rico
e ficou interessado!
- .,Oh! Espero não ter sido grosseira - lamentou Susanna. - Tenho evitado falar, ao máximo...
- É, notei que anda muito calada. Faz isso de propósito?
- Faço, milady... Parece que sempre que abro a boca acabo ofendendo alguém.
- Bem, não falar muito é bom, pois os cavalheiros preferem ser ouvidos a ouvir. Mas de vez em quando a senhorita precisa dizer alguma coisa, pelo menos para
demonstrar que está acordada! Sei que é inteligente e sabe falar bem. Só precisa aprender a tocar nos devidos assuntos.
- Tenho medo de dizer as coisas erradas!
- Tolice. A senhorita só precisava ter perguntado a lorde Blessington se ele estava gostando de Bath, se conhecia muita gente na cidade...Garanto que depois
disso ele não pararia mais de falar e, daí, era só mostrar-se interessada no que ele dissesse.
- Por quê?
- Ora, porque é assim que uma dama arranja marido!
- Oh! Isso é incrível, milady... E a senhora acha que pretendo me casar?
- É claro que sim! Tem de pretender. Se não, como vai viver? Espero que não esteja pensando que vou sustentá-la a vida toda.
- Não, certamente não... - E Susanna baixou os olhos.
- Não que não goste da sua companhia, querida, mas manter uma moça custa caro.
Será que está pensando em me casar com lorde Blessington? Não acredito que ele concorde com a ideia, quando souber do escândalo de meu pai, que não tenho
um cent nem mesmo uma boa reputação...
- Ele não vai saber de nada sobre seu pai e o seu passado. É muito importante mantermos isso em segredo.
- Eu acho que devo contar-lhe, não vou mentir.
- Tem toda minha permissão para contar a ele o que quiser - disse a lady, sorrindo maquiavélica -, depois do casamento. Bem, o que acha das fitas? Vão ficar
bem no seu novo chapéu, não?
A entrada do Upper Room estava tão repleta de cadeiras, frequentadores e empregados que o trio formado pelas duas damas e o cavalheiro demorou a entrar. Lorde
Blessington praguejou baixinho, depois disse, em voz alta, inconformado:
- Perdemos as danças antes do chá... Eu pretendia tirar a srta. Du-
Mar nessa primeira etapa.
Olhou ao redor, procurando a dama em questão. Susanna, que também olhava, não entendia como se poderia reconhecer alguém naquela multidão. Não teve muito
tempo para avaliar a situação, pois o lorde encontrou dois lugares para elas diante da lareira, no Octagon Room. Enquanto as duas tomavam seu chá, ele saiu à procura
da srta. DuMar.
Susanna ficou observando, encantada, as damas e cavalheiros elegantíssimos que circulavam pelo salão, ao passo que lady Philpott discursava sobre o preço
que cada vestido luxuoso deveria ter custado.
Lorde Blessington voltou pouco depois, desanimado com o fracasso.
- Acho que devemos ir para o salão de reuniões, onde talvez a srta. DuMar se encontre. Se não estiver lá, irei convidar a srta. Murchen-Hill para dançar.
- E os três dirigiram-se para o salão de reuniões do clube de alta classe, onde se realizava o baile. Depois de serem anunciados pelo mestre de cerimónia,
conseguiram uma mesa perto dos músicos. Nessa posição privilegiada, viam todos que entravam no salão. Susanna mantinha os olhos fixos na porta, como se esperasse
ver Edward surgir a qualquer momento. Afinal, lorde Blessington achou a dama que procurava e saiu às pressas atrás dela. Voltou pouco depois.
- A srta. DuMar está comprometida para todas as danças - explicou. - Cheguei tarde demais.
- Nesse caso, o senhor tem minha permissão para tirar a srta. Marlowe para dançar - comandou lady Philpott.
O lorde olhou para Susanna como se só .então a estivesse vendo e a convidou para dançar, cortesmente.
A entusiasmada senhora piscou para a protegida, encorajando-a. O par caminhou para o centro do salão onde começava-se a dançar abou-langer, dança complicada
que não permitia muita conversa entre os dançarinos. Quando terminou, o lorde viu uma dama conhecida, falou sobre ela para Susanna, entusiasmado, e, quando a jovem
olhou para a senhorita em questão, viu Edward olhando-a fixamente.
A princípio, Susanna pensou que o jovem Farrineau não a reconhecera, tão sério ele estava. Mas apesar da distância em que se encontravam, pôde perceber, pouco
depois, pela expressão dele, que sabia muito bem para quem olhava. Como também se surpreendera ao vê-lo, ela esqueceu de sorrir-lhe e quando lembrou de fazê-lo já
não era possível: os pares se movimentavam, para a nova dança, encobrindo-lhe a visão. E não conseguiu mais encontrá-lo.
CAPÍTULO V
Treinamento
- Srta. Marlowe... - disse uma voz atrás dela.
Susanna teria reconhecido aquela voz em qualquer lugar. Ao voltar-se e encontrar os profundos Olhos castanhos dele, não pôde dizer uma palavra. Queria pedir
desculpas, contar que sentira sua falta, tudo o que havia acontecido, mas não podia fazê-lo na frente de lorde Blessingtqn. A última coisa que desejava era pôr Edward
em má situação, com seus ímpetos.
- Como tem passado, Farrineau? - cumprimentou o lorde, com familiaridade. - Conhece a srta. Marlowe?
- Conhecemo-nos desde crianças - respondeu Edward, sem tirar os olhos de Susanna.
Foi então que lady Philpott viu o sobrinho com a jovem e se aproximou, chamando-o. Lorde Blessington aproveitou a oportunidade para escapar e ir em busca
da srta. DuMar.
- Edward, como pôde ausentar-se de Bath assim que chegamos? -indagou a tia. - Parece que quis nos evitar...
- Não sabia sobre sua chegada, titia. - Finalmente, ele tirou os olhos de Susanna. - Tinha uns negócios a resolver em Langfield.
- Por quê? É um pouco inconstante de sua parte, não? Primeiro Bath, depois Cheedham, Bath de novo...
- Recebi uma carta comunicando-me que a srta. Marlowe havia sido mandada para a Escócia. Naturalmente, não perdi tempo: corri para casa.
- Grande coisa! Se você tivesse tentado convencê-los a não mandá-la para o norte, nem teriam prestado atenção. Foi uma sorte minha carruagem ter caído naquela
valeta, ou a pobre criança estaria passando frio neste momento! - E milady sentiu um calafrio ao imaginar a si
tuação.
Edward ficou sério, mas não retrucou.
- No fim, tudo deu certo - disse lady Philpott, com um profundo suspiro. - Meu caro rapaz, por que não a convida para dançar? Do jeito que encara essa
menina, vai acabar assustando-a...
Os jovens sorriram e encaminharam-se para a pista de dança. Executaram uma série de giros lentos e graciosos, acompanhando a música, durante os quais Edward
tinha os olhos fixos nela. Sua expressão era tão intensa que Susanna chegou a temer que ele ainda estivesse bravo com ela. Ele agia de modo cortês, mas frio. Será
que nunca iria perdoá-la? Ao chegar a essa conclusão, ela sentiu uma dor profunda no peito. Nos dois últimos anos havia sofrido duas grandes perdas e não sabia se
suportaria mais uma.
Ela fechou os olhos por instantes e jurou solenemente nunca mais brigar com Edward e aprender a se controlar, pois não concebia a vida sem seu grande amigo.
A dança obrigou-os a se aproximarem e darem-se os braços. Então, ele aproveitou a oportunidade para dizer:
- Susanna, nunca mais vou deixá-la sozinha, como na última vez! Se tivesse ficado, eles não teriam ousado nem sequer mencionar a palavra Escócia. Foi minha
culpa o que aconteceu... - Havia carinho nos profundos olhos castanhos.
- A culpa não foi sua - disse ela, com fervor. - Minha idiotice obrigou-o a afastar-se. Nunca mais farei isso!
- Pode ser, mas eu não devia ter me afastado. Não vai acontecer de novo - disse, amargo -, nem que você me mandasse ir embora.
- Nesse caso - sorriu ela -, não vou mandar.
Afinal, ele soltou uma gargalhada pela impertinência dela.
- Pelo que vejo, você está ótima. Não a reconheci quando a vi. Não é mais a garota de Cheedham...
- Lady Philpott comprou-me roupas, mandou ajeitar meus cabelos e cuida de mim. O mérito da mudança é dela.
- Eu também vou cuidar de você, prometo!
- Já que estamos falando em promessas, gostaria de lhe dizer que reconheço que estava errada quando brigamos.
- Fico feliz em ouvir isso, pois gostaria muito que você e a srta. Bledsoe fossem amigas. Eu a pedi em casamento.
- Oh!
- E da próxima vez que pedir, pretendo fazê-la aceitar.
- Quer dizer que ela recusou? É impossível!
- Estou lisonjeado, Susanna, mas eu acho que você é suspeita. Amiga minha demais para julgar, neste caso.
- Ela disse por que não aceitou?
- Quer me conhecer melhor, pois não julga muito sábio aceitar alguém com um passado tão instável quanto o meu.
- Instável? Mas você a ama há tanto tempo! Ainda lembro quando a apresentou a mim, dizendo que ia casar com ela. Já faz quase dois anos...Se você continuar
a me valorizar dessa maneira, vou ter de acrescentar "convencido"' na lista dos meus defeitos.
Susanna ia protestar, dizendo que ele não tinha razão, mas lembrou-se da promessa que fizera a si mesma e calou-se. Não diria mais uma palavra sobre aquele
assunto.
Os Bledsoe foram apresentados a lady Philpott, que se deu muito bem com o pai de Lucy, pois, enquanto a viúva avaliava os preços dos trajes das damas que
estavam no baile, ele avaliava a fortuna de quem os usava.
Edward tirou a srta. Bledsoe para dançar, deixando Susanna entretida com Lawrence, que não fazia nada para esconder a profunda admiração que sentia por ela.
- Espero que me desculpe por não convidá-la a dançar - disse ele -, mas o médico me proibiu.
- O senhor ainda não está bem? Oh! Esqueci que algumas pessoas vêm a Bath por questão de saúde. Acho que me convenci que todos vinham para cá a fim de fazer
compras e encontrar amigos e conhecidos...
- Meu objetivo ao vir para cá era tomar daquela água de gosto horrível...
- Deve ser ruim, mesmo. Lady Philpott diz que se sente mal quando a toma.
- Acredito que milady se tenha confundido: essa água cura doenças e não as causa. Amanhã vou tomar a água da Fonte Helting. Se o cheiro e o gosto dela não
me matarem, deverei tomar mais uma dose e estarei liberado... - Fez uma pausa, depois continuou: - Há tempo queria pedir-lhe desculpas por não ter ido visitá-la
por ocasião da morte da senhora sua mãe. Ela foi tão bondosa comigo, quando fiquei doente! Lembra-se quando a acompanhou a minha casa? Um criado levou uma cesta
de maçãs do pomar de Edenhurst e, enquanto a senhora sua mãe entrou para ensinar Lucy a assar as maçãs para mim, a senhorita ficou cuidando da cesta, no jardim...
- Tenho a impressão de que vai contar uma das minhas travessuras - suspirou Susanna, com ar contrito.
- Oh! Não foi culpa sua o que aconteceu. - O jovem sorria. - Wilfred Sharpe apareceu e disse-lhe alguma coisa que não pude ouvir. Quando a senhorita respondeu,
ele soltou um uivo e começou a jogar as maçãs num canteiro de margaridas. No começo, a senhorita tentou recuperar as frutas, mas como não conseguia dar conta, pulou
em cima dele, segurou-lhe o nariz e puxou-o, sem parar, até que ele gritou que se rendia. Fiquei contente quando soube do novo apelido daquele fanfarrão... Willy-Lírio!
Ele mereceu!
- É, eu não lembrava mais disso - comentou Susanna, sorrindo. - Foi divertido, mesmo.
Nunca conheci uma moça que age e se expressa como a senhorita! _- confidenciou ele.
Estou tentando superar esses defeitos, senhor - explicou ela. - Desculpe se o ofendi com meus maus modos.
Oh, não! Eu gosto. ,É muito interessante.
Ela observou o jovem, pensativa, e lembrando-se dos conselhos de lady Philpott achou que aquela era uma boa ocasião para pô-los em prática.
- Está gostando de Bath, senhor? - perguntou.
Ele disse que sim, falou das atrações que a cidade oferecia e sobre as bonitas paisagens do campo. Susanna ficou encantada ao ver que dava certo. Fez a segunda
pergunta:
- O senhor tem muitos conhecidos aqui?
Ele discorreu sobre antigos e novos amigos que fizera ali. Então, viu que ela sorria e perguntou:
- Do que a senhorita está rindo?
- Fui muito bem, não é? Quero dizer, lady Philpott ensinou-me essas duas perguntas para desenvolver uma conversa amigável e distinta com cavalheiros. Parece
que deu certo...
Ele concordou, esforçando-se para não rir.
- De fato - disse, por fim -, fomos tão bem que devemos repetir a dose em outra ocasião.
Prometeu, então, que logo iria visitá-la e continuaram a conversar. No final da noite, Susanna cumprimentou a si mesma pelo bom comportamento em sociedade
e por ter feito as pazes com Edward. Há muito tempo que as coisas não davam tão certo para ela como estavam dando agora.
Edward e os Bledsoe foram a Sydney Place no dia seguinte. Lorde Blessington também foi, mais tarde, e não havia ninguém em casa, pois todos tinham saído para
um passeio a Landsdown Hill.
O dia estava tão bonito que até lady Philpott, que tinha horror a excursões pelo campo, concordou em ir. Deixou-se convencer a andar até um lugar de onde
se tinha uma vista excepcional da cidade. Mas quando os jovens resolveram subir numa colina para apreciar melhor a vista, ela achou que já havia andado o suficiente
por um dia e ficou na carruagem, fazendo companhia a Lawrence, que não podia se cansar. Sendo assim, os outros quatro do grupo puseram-se a caminho.
Na frente caminhavam Edward e o sr. Bledsoe; mais atrás vinham as duas jovens, protegendo-se do sol com suas sombrinhas. No início, elas caminharam em silêncio,
pois a subida era íngreme. Quando o caminho se tornou mais fácil, Lucy comentou:
-Não pude deixar de pensar na sua situação, Susanna... O que pretende fazer?
- Nem eu mesma sei!
- Foi muito bom lady Philpott acolhê-la. O que ela lhe propôs? A sua situação é tão incerta! E se ela se cansar da sua companhia, qual será o seu futuro?
- Milady acha que preciso arrumar um marido em condições de me manter.
- E você quer se casar?
- Eu não diria que sim, mas seria uma solução para meus problemas, pois não estou preparada para trabalhar. Minhas qualificações são boas demais para eu ser
copeira ou cozinheira. Em Cheedham ninguém queria me recomendar como governanta... Poderia tornar-me acompanhante de uma senhora, mas essa não é uma posição muito
segura. Receio não ter outra saída, senão casar-me.
- Oh... Você não diria isso se soubesse como um casamento desencontrado pode ser desolador e triste. Pretendo pensar muito antes de me unir a alguém.
- É verdade que não tenho experiência a esse respeito, mas trabalhei como criada do sr. Sharpe e mais de uma vez tive de dormir com fome.
Se o casamento me garantir um teto, comida, certa independência e dignidade, tudo estará bem.
- Em quem milady pensa para seu pretendente?
- Ela tem esperanças quanto a lorde Blessington, mas ele nem repara em mim.
- Esqueça-o. É um parvo se não notou você!
Susanna suspirou. Às vezes desejava que Lucy não fosse uma amiga tão leal, pois não se sentia da mesma forma em relação a ela. Sabia que sempre iria sentir
um pouco de ciúme de Edward.
- Por que não quer se casar com o sr. Farrineau? Não entendo por que recusou-o... - disse inesperadamente.
- Porque talvez ele mude de ideia e resolva casar com outra moça - respondeu Lucy, sorrindo meigamente. - Na verdade, não sei se o amo. Respeito-o muito,
mas não acredito amá-lo. Talvez meus sentimentos em relação a ele fiquem mais claros quando o conhecer melhor.
- Para ser sincera, isso me surpreende...
- É tão difícil assim, para você, acreditar que uma moça pode resistir ao encanto do sr. Farrineau?
- Bem, acho curioso alguém ser tão racional em uma situação em que os sentimentos é que são importantes. O sr. Farrineau é muito bonito, tem boa renda, em
breve será rico, tem um nome respeitado e bom coração. É interessante, bem-humorado e leal. Não vejo dificuldade em se ter adoração por um homem assim. Poucas moças
o recusariam.
- Está me julgando insensível e dura, não é? Mas procure ver a situação do meu ponto de vista. Não vejo o sr. Farrineau como amigo leal e tenho razões para
duvidar de seu caráter. Ele estava ciente de sua situação e abandonou-a, sabendo que fazia uma coisa errada. Se não fosse por lady Philpott, agora ele não teria
sossego.
- Mas eu o insultei, Lucy! Disse que não queria mais saber dele.
- Mesmo assim, ele devia ter agido como cavalheiro, sem deixar que os impulsos o dominassem. Quero me casar com um homem capaz de controlar o próprio orgulho
e agir sempre como cavalheiro. Entretanto, reconheço que talvez ele tenha se perturbado com a sua atitude, pois a amizade de vocês é muito forte. Se você pode perdoá-lo,
devo fazer o mesmo.
- Não o julgue tão severamente. Lembre-se de que ele cedeu aquela casa para minha mãe e eu morarmos. Quando soube que eu ia ser mandada para a Escócia, correu
em meu socorro. Isso não demonstra bom caráter? .
- Suponho que sim.
Susanna perguntava a si mesma como terminaria aquela situação, ela tendo de convencer a srta. Bledsoe das boas qualidades de Edward. Decidiu que dali por
diante ficaria calada.
As moças caminharam em silêncio, até que os cavalheiros pararam e perguntaram se estavam cansadas e queriam voltar. A decisão foi pela volta. Lucy e Edward
ficaram mais para trás, pois pareciam querer conversar entre si. Susanna caminhava, calada, ao lado do sr. Bledsoe. Podia perceber que o cavalheiro estava perturbado,
mas não imaginava sequer por quê. Na verdade, era porque ele temia ser visto passeando ao lado da filha de Henry Marlowe. Mas como ela não sabia disso e encontrava-se
muito interessada em treinar suas habilidades de se tornar uma dama, peguntou:
- Está gostando de Bath, sr. Bledsoe?
Inicialmente, o cavalheiro alarmou-se com a pergunta, mas em seguida decidiu responder, fazendo um longo relato de tudo, dando opiniões. Quando terminou,
já haviam andado metade do caminho e Susanna fez a segunda pergunta, sobre os conhecidos dele em Bath, o que resultou em uma longa e detalhada resposta sobre todos
os ricos residentes na estação de águas, suas dívidas e suas fortunas.
O sr. Bledsoe acabara de terminar a resposta quando Lucy e Edward juntaram-se a eles. Os quatro seguiram juntos, até que o caminho se estreitou e Lucy foi
à frente, com o pai, que lhe sussurrou, dizendo que ficara muito surpreendido com a garota Marlowe, que não só sabia conversar como também fazia perguntas muito
inteligentes.
Edward passou a andar mais devagar e, quando notou que não seriam ouvidos, disse:
- Lucy contou-me que você pretende se casar. É verdade? É isso que minha tia quer? - Diante do aceno positivo da jovem, ele continuou:
- Vou falar com ela. Essa é uma ideia absurda!
- Sua tia já esteve em situação semelhante a minha e resolveu-a se casando. Não me parece assim tão absurdo.
- É o que você deseja?
- O que mais posso fazer?
- Tem de haver um modo de uma mulher honesta se sustentar, sem ter de se tornar governanta ou esposa.
- Receio que não há, a não ser que a mulher tenha sobrinhos, pois daí é permitido que continue solteira para cuidar das crianças...
- Não me refiro a uma situação hipotética, Susanna. Estamos falando de você! Não estou de acordo que deva se casar. Casamento é algo muito sério.
- E, eu sei. Lucy Bledsoe já me mostrou a seriedade dessa situação e agora sei que uma moça precisa pensar muito sobre isso e sobre seu futuro.
- Suponho que ela, então, falou a meu respeito... - Ele parecia confuso.
- Lucy é tudo o que uma lady deve ser! - exclamou Susanna, arrebatada. - Não é à toa que você se apaixonou por ela!
Sem dar resposta a isso, ele comentou:
- A srta. Bledsoe não concorda com essa ideia absurda de se casar para resolver a situação.
- Bem, ela não gostou da ideia, mas creio que percebeu seus méritos.
- Vou falar com ela e com minha tia... Quero que saibam que sou contra essa solução.
Susanna estava a ponto de lhe pedir que não fizesse isso quando percebeu que a conversa entre os dois encaminhava-se para uma briga e resolveu ficar quieta.
Não era de sua natureza evitar discussões nem pensar antes de falar, mas fez um esforço. Depois, quando a irritação passou e pôde raciocinar com clareza, viu que
estava contente por Edward ser contra a ideia de seu casamento.
A carruagem de lady Philpott deixou o sr. Bledsoe e Lawrence no Marl-borough Building, onde estavam alojados, pois o rapaz precisava ir à Fonte Helting, para
tomar sua dose diária de água medicinal. Lucy foi com os demais para Sydney Place, onde pretendiam tomar chá e apreciar a vista dos jardins.
Edward terminara seu chá e começara a caminhar pela sala, de um lado para o outro. A srta. Bledsoe também parecia preocupada. Susanna tinha o ar perdido,
pensativo. Somente lady Philpott monologava sobre a paisagem, reclamava sobre a impossibilidade de ficar à janela, cumprimentando amigos, vendo quem passava, pois
aquele era um lugar onde ninguém ia passear. Devia ter alugado uma casa perto do centro de compras, dizia, pois por lá sempre havia animação e os aluguéis não eram
tão caros quanto pensava.
Susanna culpava-se por ter deixado seus dois amigos aflitos. Preocupavam-se por ela, pela possibilidade de ser casada contra a vontade. Tinha medo de imaginar
o que ia acontecer daí por diante. Tentando desanuviar o ambiente, disse:
- Lady Philpott, deixei as pessoas que mais gosto preocupadas. Preciso de seu conselho para acertar essa situação...
Edward e Lucy olharam-na e depois se entreolharam perplexos. A boa dama, depois de fazer mais um comentário desgostoso da vizinhança, quis saber o que havia.
- Espero que não tenha jogado um balde de água em ninguém, Susanna. A sociedade local não apreciaria isso, principalmente porque há estabelecimentos de banhos
medicinais!
- Não fiz nada disso, milady. Não dei banho em ninguém, mas falei de casamento.
- Casamento? De quem? - quis saber a lady.
- Do meu. Aquele casamento que deve me tirar da situação difícil em que estou.
- Ah, sim! Acho qu arranjaremos marido para você até o fim da temporada. Mesmo assim, acho que a ajuda da srta. Bledsoe e de meu sobrinho seriam bem-vindas.
- Não tenho intenção de cooperar com um plano desses! - exclamou Edward. - É muito cruel.
- Não entendo o senhor - disse Lucy, levantando-se. - Por que eu posso me casar e Susanna não? Tenho certeza de que ela será muito melhor esposa do que eu.
Algo no tom de voz dela magoou o rapaz, que pareceu ficar chocado e agitado.
- Não foi minha intenção falar mal de Susanna. Tenho certeza de que ela será uma boa esposa.
- Então, por que não quer vê-la casada? - insistiu a srta. Lucy, intrigada.
- Não é que não queira vê-la casada - respondeu Edward, procurando controlar o nervosismo. - Não quero que tome uma atitude precipitada e idiota. Quero que
ela seja feliz.
Concordo - entusiasmou-se lady Philpott, afastando-se da janela. - Queremos que a srta. Marlowe seja feliz. Ela não vai ser obrigada a casar com qualquer
um: é inteligente e quando quer sabe ser encantadora.
Lucy e Edward defrontavam-se; pareciam estar tendo sua primeira discussão. Aliás, Susanna achava que era a primeira vez que discordavam sobre alguma coisa.
- Ficarei feliz em ajudar Susanna a encontrar marido, apesar de não concordar com a ideia. Na minha opinião, ela merece ser feliz com um companheiro que a
ame - determinou Lucy.
- Srta. Bledsoe, reconheço seu bom senso - concordou Edward, franzindo as sobrancelhas grossas. - Farei tudo para ajudar Susanna.
Desculpem minha explosão. Espero não ter ofendido ninguém.
- Perfeito! - exclamou lady Philpott, batendo palmas. - Se nós três nos esforçarmos, teremos sucesso. Em três meses tudo estará resolvido!
- Mas tem de ser um homem bom e gentil - exigiu a srta. Bledsoe.
- E rico - acrescentou a lady. - Não fazemos questão de título, mas dinheiro é essencial.
- Deve ser um homem que Susanna possa respeitar - sugeriu Edward. - Se não tiver caráter, nem senso de humor, ela não conseguirá suportá-lo.
- Não pode ser um velho! - acrescentou Lucy.
- E precisa ser bonito! - exclamou lady Philpott, agitada. - Não concordam?
- Tem de ser educado, culto, pois Susanna tem conhecimentos de mais para aceitar um homem estúpido - lembrou Edward.
Susanna sentia-se aturdida. Nunca imaginara que aquilo ia acontecer. Quisera, apenas, tranquilizar os amigos e eles se haviam unido para casá-la com um monstro.
Devia ter ficado quieta, sem abrir a boca. Agora, estava numa encrenca.
- Vai haver um concerto terça-feira - comentou Edward. - Vou comparecer para ver se descubro alguma coisa.
- Nós vamos - pontificou a tia. - Também gosto de barítonos, e três pares de olhos têm mais chances. Então, estamos combinados! - A dama voltou-se para sua
protegida e abraçou-a. - Tudo vai dar certo, minha criança. Vamos tomar conta de você.
CAPÍTULO VI
O Estranho
Susanna aguardava lady Philpott, que fora cumprimentar uns conhecidos. Enquanto isso, observava os espectadores que chegavam. O tráfego diante do teatro era
intenso. Das carruagens, landaus e coches desciam damas e cavalheiros muito bem vestidos.
No meio da confusão, um veículo parou bem à frente dela, chamando-lhe a atenção. Um garotinho de rua correu a abrir a porta para o passageiro descer. Apareceu
um cavalheiro elegantemente vestido de preto. À primeira vista, parecia ser um homem de certa idade, pois seu cabelo era grisalho. Mas quando ela pôde vê-lo melhor,
sob a luz de um lampião, notou que era bem mais moço que seu pai e muito bonito.
O cavalheiro colocou a mão num bolso, pelo jeito procurando dinheiro para pagar o cocheiro da carruagem, e ficou muito irritado ao não encontrar nada. Virou-se
e ergueu o garotinho de rua pela gola da camisa, fazendo-o derrubar a lanterna que tinha na mão e sacudiu-o, gritando:
- Seu demónio! Roubou a minha carteira!
O menino, magro e pálido demais para ser um demónio, dizia ser inocente e pedia ao cavalheiro que o revistasse, para ver se achava a carteira.
- Você já deve tê-la passado para um companheiro! - exclamou o homem.
Largou o garoto e informou ao cocheiro que teria de ir recuperar seu dinheiro a fim de pagá-lo. O homem protestou, logo apareceram colegas dele e rodearam
o cavalheiro, ameaçadores,o que deu oportunidade ao ladrãozinho para fugir, desaparecendo na escuridão. Susanna, que observava tudo, começou a temer pela segurança
do cavalheiro. Tomou uma decisão e aproximou-se do grupo. Precisou empurrar uns três homens para conseguir chegar ao cocheiro colérico. Abriu a bolsa, tirou todo
o dinheiro que tinha e que lhe fora dado por lady Philpott, "para seus alfinetes", como ela dizia. Colocou-o na mão do senhor, que não sabia o que fazer.
- Pronto. Pague o homem - disse a ele.
- Uma bela veio me salvar! - exclamou o cavalheiro, sorrindo e admirando-a. - Está com sorte, meu rapaz - disse, então, ao cocheiro.
Rezando para que ninguém tivesse visto quando dera o dinheiro ao senhor, Susanna afastou-se rapidamente e foi em busca de lady Philpott. Um minuto depois,
o desconhecido encontrava-se atrás dela.
- Não pode fugir sem me deixar agradecer, senhorita!
Calada, ela olhou a mão que ele colocara em seu braço e o homem apressou-se a retirá-la, dizendo em seguida:
- Quer se casar comigo?
Depois de endereçar um olhar assustado ao rosto simpático e risonho, Susanna correu à procura de sua protetora.
Na sala de concerto, as duas foram imediatamente procuradas por Edward e os Bledsoe. Depois de sentar-se, Susanna percebeu que encontrava-se entre o jovem
Farrineau e o sr. Bledsoe. Esgotou seu novo repertório de perguntas com o encantado cavalheiro e, então, voltou-se para o amigo, mas antes que pudesse falar com
ele, lady Philpott exigiu do sobrinho:
- Levante-se, meu rapaz. Quero ver se convenço lorde Blessington
a sentar-se junto de Susanna. Afinal, foi para isso que viemos, não?
Edward levantou-se e, como não achou outro lugar vago, ficou de pé junto à parede, de onde sorriu para a amiga, cujos grandes olhos verdes brilhavam. Logo
a dama conseguiu fazer o lorde sentar-se ao lado de sua protegida. Ele cumprimentou as duas, depois seus olhos ficaram percorrendo a assistência, em busca da srta.
Hargreaves. Em seguida, o concerto começou, encantando Susanna com as canções italianas, principalmente as interpretadas pela soprano.
Quando a primeira parte terminou, lorde Blessington acompanhou-a até o salão. Susanna percebeu que Lucy, lady Philpott e Edward mantinham-se longe deles de
propósito, para que desse início à conquista. Mas seu acompanhante não parava de olhar ao redor, sempre em busca de alguma dama, o que começava a desesperá-la.
Olhou para os amigos, percebendo que eles não a perdoariam se deixasse escapar aquela oportunidade. Tinha de fazer alguma coisa. Suspirou fundo e indagou:
- Diga-me, milorde, está gostando de Bath?
Ele pareceu muito surpreso, como se jamais lhe tivessem feito tal pergunta. Depois de pensar um pouco, respondeu que não estava muito contente, pois seus
conhecidos estavam sempre ocupados, quando os visitava, ou não os encontrava em casa.
Depois de ter certeza de que ele havia terminado de falar, ela tomou fôlego e atacou a segunda pergunta:
- O senhor tem muitos conhecidos aqui?
Dessa vez o lorde precisou pensar um pouco mais para responder, mas logo passou a falar sem se deter, com ar mais satisfeito. Ao fim de alguns minutos, reconhecia
que não se sentia mais tão irritado com a cidade balnearia E à medida que ia enumerando os conhecidos, chegava conclusão de que eram muitos, esquecendo-se do fato
de quase nunca encontrá-los.
- Notável! _ exclamou ele, eufórico, depois de falar por quase dez inutos. - Não me lembro da última vez em que tive uma conversa tão agradável!
Susanna notou, então, que ele a fitava com admiração. Seus amigos iriam ficar contentes, pensou. Mas ela só ficaria contente quando se livrasse de lorde Blessington.
_ Oh! Acho que vi a srta. Hargreaves - disse, esperançosa.
- A srta. Hargreaves é muito boazinha, mas não sabe conversar -explicou ele, sem tirar os olhos dela, encantado.
- Olhe, a srta. Murchen-Hill está ali, do outro lado. O senhor não queria ir cumprimentá-la? - tentou ela, de novo.
- Não vou deixar sua companhia por causa da srta. Murchen-Hill - declarou ele, em tom firme.
Se não conseguisse escapar logo, Susanna sabia que acabaria por livrar-se dele de maneira rude, pois acabara de notar que o nariz de lorde Blessington era
adunco e que a ponta revirada quase encostava no queixo. Aflita, pediu-lhe que fosse buscar uma xícara de chá e respirou quando ele se afastou.
- Pensei que jamais fosse livrar-se dele! - disse uma voz alegre, atrás dela.
Voltou-se e viu o estranho de cabelos grisalhos.
- Espero não ter me livrado dele para ser importunada por um desconhecido! - retrucou ela, altiva. - Começo a me arrepender de tê-lo ajudado.
- Espero que não me compare a lorde Blessington! - exclamou ele, seguindo-a. - É um idiota. Olhe, não estou brincando: quer casar-se comigo?
Susanna corou violentamente e Edward aproximou-se, encarou o desconhecido e afastou-se com ela.
- Por que lorde Blessington a deixou sozinha? Não devia!
- Eu já havia perguntado a ele tudo que podia, então, pedi-lhe que fosse buscar um chá para mim.
O jovem Farrineau lançou um olhar ameaçador ao cavalheiro de preto, que continuava imóvel. O outro respondeu com um sorriso amável, cumprimentou-o e se afastou.
- Quem é aquele homem?
- Não sei.
- Mas você estava falando com ele...
- Não tem importância, Edward.
-Ele não ousaria abordá-la se lorde Blessington estivesse junto -- insistiu ele, zangado.
- Se ele ficasse comigo, algo horrível ia acontecer, pois eu só conseguia pensar na ponta do nariz dele encostando no queixo!
A irritação de Edward dissolveu-se numa risada.
- E você estava pensando em fazê-los encostar logo, aposto.
- Oh, não! Edward, estou tentando o melhor que posso, mas não é fácil agir como uma lady!
- Está indo muito bem. Não se preocupe. Querida, não precisa casar com lorde Blessington, se não quiser. Mesmo assim, pode conversar com ele, para praticar...
O intervalo terminara e as pessoas voltavam aos seus lugares. Susanna perguntou:
- Vai sentar conosco? Não gosto de vê-lo de pé.
- Titia reservou o lugar a seu lado para os pretendentes e, além disso, de onde estou posso ver você bem...
Nesse momento, Lawrence aproximou-se e foi com eles até as poltronas. Edward afastou-se e Susanna perguntou ao jovem se havia melhorado com as águas medicinais.
Ele disse que sim, apesar de o cheiro delas sufocá-lo a ponto de desmaiar.
- Conte-me sobre a senhorita - pediu ele. - Como vai?
- Acho que preciso mais do que águas medicinais para aguentar esta farsa!
- Que farsa?
- Essa, de dar impressão a todos de que sou uma dama.
- É claro que a senhorita é uma dama!
- Sua irmã não lhe contou? Desculpe, pensei que soubesse do plano.
O jovem parecia intrigado e um tanto apreensivo.
- Bem, trata-se de me casar - explicou Susanna. - Preciso me comportar como uma dama para arranjar marido. Se isso não acontecer em três meses, voltarei a
minha condição de pobre, sem ter como me sustentar.
- Oh! Nem sei o que dizer... - murmurou o jovem, confuso.
- Eu não devia ter lhe contado. O senhor tem problemas suficientes, para se preocupar com os meus. Mas parece que não consigo manter a boca fechada!
Lawrence Bledsoe observou Susanna durante alguns momentos, em silêncio. Ela começou a ficar inquieta, achando que o havia chocado. Não se surpreenderia se
ele parasse de visitá-la. Naquele momento, Lucy chegou e o irmão pediu licença para se retirar. Assim que ele se afastou, ela perguntou à amiga quem era o cavalheiro
com quem conversara no salão.
É um desconhecido - respondeu Susanna, corando, arrependida
do impulso que a fizera ajudar o cavalheiro.
- Ele é tão elegante e bem-apessoado! - observou Lucy. - Quem o apresentou a você?
_- Você vai ficar desapontada comigo, mas ninguém nos apresentou. Ele resolveu conversar e pronto. Sei que foi impróprio de minha parte responder... Só peço
que não se zangue.
- Não estou zangada, querida. - E Lucy abraçou-a, ao perceber-lhe a aflição. - Só queria saber quem é ele, pensei que soubesse seu nome.
Susanna negou com a cabeça. Nunca mais queria vê-lo, mas seu desejo não foi atendido. Logo depois, lady Philpott aproximou-se em companhia dele. E as moças
foram apresentadas a sir Vale Saunders. Susanna cumprimentou-o, depois passou a ignorá-lo; Lucy conversou com ele:
- O senhor aprecia música? - perguntou.
- Aprecio os que gostam de música - respondeu ele, fitando-a com atrevimento.
Lady Philpott, que desaparecera depois de apresentar sir Vale, voltou acompanhada por Edward e o sr. Bledsoe, para que também o conhecessem. O jovem cumprimentou-o
friamente, mas o sr. Bledsoe, que já fora informado por milady sobre a renda anual do cavalheiro, foi efusivo até demais.
Sir Blessington chegou com o chá para Susanna, mas como o segundo ato ia ser iniciado, todos sentaram-se rapidamente. Lady Philpott esclareceu que não era
de bom tom tomar chá durante o espetáculo e mandou-o de volta com a xícara. Graças a esse estratagema, sir Vale conseguiu sentar-se ao lado de Susanna. Lorde Blessington,
ao voltar, não se deu por achado e, depois de perturbar vários espectadores, obteve o lugar do outro lado da jovem.
Durante a apresentação ela tentou ignorar os olhares dos dois homens. Do lado direito, onde estava sir Blessington, os olhares eram ardentes; do lado esquerdo,
eram divertidos, meio irónicos, até. E, para seu completo desassossego, não conseguia ignorar os olhares de Edward, profundamente infelizes, que a observava de seu
lugar, de pé, junto à parede.
Ela começava a achar que tinha feito alguma coisa errada. E na verdade, tinha. Provavelmente Edward desaprovava o fato de ter conversado com um desconhecido
que se atrevera a dirigir-lhe a palavra.
A certeza de que o amigo a observava, apesar de já não poder distingui-o no escuro, era tão intensa que ela ficou ruborizada. Para assegurar-se de que a sensação
era verdadeira, olhou para ele e viu-o acenar-lhe de eve, com a cabeça. Baixou o olhar, depressa, para as próprias mãos, ansiosa por entender o que o olhar de Edward
significava.
Na manhã seguinte, lady Philpott não permitiu que Susanna desse seu passeio de sempre pelo canal. Alegou que logo iam chegar visitas e não queria que os cavalheiros
ficassem desapontados com a ausência dela. Não esperaram muito. O primeiro visitante foi Lawrence Bledsoe. A senhora deixou-o no sofá, conversando com Susanna, e
foi para a janela, apreciar a paisagem.
Os dois decidiram jogar gamão e sentaram-se um de cada lado da mesinha de jogo. Na sua vez de jogar os dados, em vez de fazê-lo, o jovem cavalheiro inclinou-se
para a frente e disse, em voz baixa:
- Não consigo parar de pensar no que me contou ontem...
- Estou feliz por saber que continua a querer me ver depois disso. Pensei que estivesse chocado.
- Não imaginei que me julgasse amigo desleal!
- O que diz me toca a tal ponto que tenho vontade de deixá-lo ganhar o jogo... - tentou brinoar Susanna, comovida pela demonstração de amizade. '
- Não é preciso: pretendo ganhar sem a sua ajuda. - Ele ficou sério, antes de continuar: - A senhorita sabe que sou doente. Por isso, há anos decidi não me
casar.
Susanna engoliu em seco, assustada com aquelas palavras.
- Está me avisando para não considerá-lo meu pretendente? - tentou gracejar, de novo.
- Imagine! - exclamou, horrorizado. - Espero não ser tão convencido ou ridículo. Queria dizer que adoraria casar-me com a senhorita e livrá-la das preocupações,
mas não ouso fazê-lo, pois iria sacrificá-la. Mas quero que saiba que se precisar de minha ajuda, basta dizer.
- Agora, vou ter de deixá-lo ganhar, mesmo! - riu a jovem, os olhos brilhando com lágrimas de emoção. - Essa foi a declaração mais nobre que já ouvi. E se
o senhor continuar, vou acabar me desmanchando em lágrimas...
- Que bom a senhorita não ter ficado brava! Temi que resolvesse jogar o vaso de lírios na minha cabeça! - riu ele.
- Ainda bem que não podemos nos casar - replicou ela, rindo também -, o senhor iria morrer de aflição pelas vergonhas que eu o faria passar, desajeitada como
sou.
Continuaram conversando e jogando, até que sir Vale foi anunciado. Encerraram o jogo e Lawrence Bledsoe foi embora.
Lady Philpott ficou agitada, tentando imaginar uma desculpa a fim de deixar os dois a sós. Mas nada encontrou. Por fim, o cavalheiro ajudou-a, convidando
as duas para um passeio pelo Sydney Garden. A senhora recusou o convite, mas insistiu para que Susanna fosse. Depois de ajeitar várias vezes o chapéu e a capa da
jovem, a lady acompanhou-o até a porta.
Sir Vale de acordo com seu título de baronete, estava muito elegante com camisa branca, colete verde-escuro e casaca curta, preta. O chapéu preto de pele
de castor, contrastava maravilhosamente com os cabelos fartos e prateados.
Caminharam em silêncio até o magnífico canteiro central de rosas amarelas, orgulho do imenso jardim. O cavalheiro parou, tirou umas moedas do bolso e colocou-as
na bolsa de Susanna.
- Estou devolvendo o dinheiro que me emprestou e, até que concorde em ser minha esposa, só posso dizer-lhe "obrigado", por ter salvo minha vida...
- Não é educado de sua parte me atormentar com essa brincadeira sobre casamento, senhor. Não é engraçado.
- Nem devia ser. Não estou brincando.
- Claro que está. Como poderia pedir uma jovem completamente estranha em casamento?
- Pretendo conhecê-la melhor depois que nos casarmos. Por enquanto, sei que é uma moça bonita, cheia de coragem e generosa.
- Isso é absurdo! - exclamou ela, depois de cheirar uma das rosas.- Coragem e generosidade são necessárias para quem é um César e precisa governar gauleses
e bretões. Mas não são boas bases para um casamento, onde é preciso que exista uma forma de pensar em comum e valores que se combinem, além de uma afeição sincera.
- É isso que procuro. Vim a Bath com o objetivo de encontrar uma esposa.
- Que estranho!
- Por que estranho? Já estou com quase quarenta anos e me diverti tanto durante minha vida que o divertimento se tornou tedioso. Quero uma vida mais calma,
sossegada.
E estranho, porque também vim para Bath em busca de um marido...
Os dois encararam-se e puseram-se a rir.
Devemos nos casar imediatamente. Assim resolvemos nossos problemas, poderemos parar de procurar nossas caras-metades e começar a nos divertir.
Ele estendeu a mão para Susanna, que inclinou a cabeça e não a pegou. Disse, sincera:
-Receio não poder responder agora. Realmente, não o conheço. O senhor pode não ser rico, pode ter dívidas, amantes e até filhos ilegítimos. Preciso conhecer
sua vida e seu caráter antes de resolver se vou aceitá-lo, pois me disseram que é o caráter que faz de um homem um bom marido. Preciso tomar cuidado...
- Quem lhe deu essa informação? - indagou ele, desgostoso. Quem se mostra tão cuidadoso e desconfiado?
- A srta. Bledsoe. Ela abriu meus olhos e só tenho a agradecer por isso.
- Se não me engano, trata-se daquela moça elegante demais, com um irmão doente e pai avarento...
- Elegante demais? - rebateu Susanna, já alerta. - Ela não é mais elegante do que o senhor.
- Talvez seja isso que me perturba. Não gosto de ter concorrência.
Caminharam até uma fonte de mármore.
- O senhor é muito estranho.
- Não sou estranho, sou apenas vaidoso. Gosto de ter vantagens e não me agrada ser superado no que é importante.
- Então, é por isso que me pediu em casamento? Serei o contraste perfeito para a sua magnificência. Vendo-nos juntos, seus conhecidos não vão poder deixar
de comentar sobre a provinciana que tomou como esposa.
- Se a beijasse, a senhorita compreenderia que não é isso que me atrai... - insinuou o cavalheiro, puxando-a para a sombra de uma enorme árvore.
- O senhor não vai me beijar - garantiu ela, afastando-se. - Não o conheço há muito tempo, mas já sei que é descuidado com sua segurança e grosseiro com os
que considera de classe inferior, além de desdenhar nos outros as qualidades que considera adequadas para si. Essa não é a imagem do homem que mereça ser beijado.
- Observações bastante racionais, senhorita - apreciou ele, aproximando-se mais -, porém não disse que não quer que eu a beije.
- Se quer saber, mesmo, não quero. Embora eu ainda tenha muito que aprender para ser uma lady, sei que devemos fazer os cavalheiros desejarem nos beijar,
mas não permitir que o façam.
- Minha cara - riu ele, divertido -, não precisa aprender nada. É perfeita assim como é!
Em geral, as palavras de sir Vale eram impróprias e a deixavam embaraçada, mas aquela era a primeira vez que a faziam corar.
Ao voltarem para casa encontraram a srta. Lucy e o jovem Farrineau, que esperavam impacientes. Ele mal cumprimentou-os e parecia preocupado, também. A moça
queria saber tudo que tinham feito e o baronete disse que haviam visitado as rosas.
- Eu queria ter ido - comentou Lucy -, gosto muito de rosas.
- Mas a senhorita não iria gostar dessas. São muito grandes, pouco elegantes.
Impossível uma rosa ser deselegante, mas como não tive o prazer de vê-las, não posso discutir com o senhor.
Ao ver que o debate sobre as rosas se prolongava, Susanna sugeriu sir Vale levasse a srta. Bledsoe para vê-las, então parariam de discutir sobre elas. Assim
que os dois saíram, lady Philpott expressou o entusiasmo pelo
novo pretendente de sua protegida.
_ Milhões de moças da alta sociedade estão interessadas no baronete e ele gostou da srta. Marlowe! Aposto que até setembro ele a pedirá
em casamento.
- Não sei por que tanto entusiasmo, tia! - criticou Edward, carrancudo.
- E por que eu não devia me entusiasmar? - perguntou a senhora, aturdida. - É um homem rico, importante...
- Não o conheço profundamente - Edward relanceou os olhos para Susanna, antes de se voltar para a.tia e continuar -, mas conheço a reputação dele. Soube do
escândalo que o fez vir de Brighton para cá. Bath não é o tipo de lugar para o qual o baronete viria nesta época do ano.
- E daí? Pelo que sei, todo cavalheiro saudável e interessante é um tanto mulherengo e libertino, até casar...
- Não acredito que ele possa ser um bom marido, tia!
- Ora! Ele é rico, bonito, educado, bem-nascido e alegre. É tudo o que desejamos. E se tem pequenos vícios, Susanna saberá ignorá-los, eu garanto!
- Está enganada, titia. Susanna seria infeliz com um homem como o baronete. Não gosto dele.
- E você não gosta de lorde Blessington, também! Acho que não gostaria sequer de sir Galahad, se pudéssemos apresentá-lo a Susanna, Pois saiba que eu gosto
de sir Vale.
- Receio ter de interferir, então, minha cara tia.
Quê? Pensa que pode vir aqui e mandar? Por acaso, é você quem paga os vestidos dela? Tem ideia de quanto custa vestir uma mulher?
O importante não é o gasto, tia... - murmurou Edward, os olhos castanhos fitando a jovem com imensa ternura.
A não ser que você passe a arcar com as despesas, é do gasto que vamos falar, sim! E se não tem um pretendente melhor que sir Vale para nos oferecer, por
favor, não interfira! - E lady Philpott saiu da sala, indignada.
Susanna ficou olhando o amigo andar de um lado para o outro. Seu rosto parecia talhado em granito, tão duro estava. Afinal, ele parou de costas para ela e
disse:
Lady Philpott tem razão. Não é meu direito interferir. Mas, por favor, Susanna, tenha cuidado!
- Você tem todo o direito de dar opinião, pois é o meu único e querido amigo.
- O que eu disse sobre sir Vale é verdade. Trata-se de um homem perigoso e quando souber do que aconteceu com seu pai é capaz de querer tornar você apenas
sua amante.
- Prometo ser cuidadosa, apesar de jamais ter conseguido isso. Sabe que sempre fui uma descuidada...
Ele puxou uma cadeira e sentou-se ao lado dela.
- Vou aconselhá-la da melhor forma que posso. Quando o que sir Vale disser, ou o tom de voz dele, deixar você confusa ou aflita, procure-me imediatamente
e conte-me o que aconteceu. Isso é muito importante.
- Não sei se devo fazer isso...-- murmurou Susanna.
- Por quê? - Ele ficou alarmado. - Sabe que pode confiar em mim!
- Sei... Mas você vai ficar infeliz e detesto vê-lo zangado e triste.
- Já estou zangado e triste por não poder ajudá-la. Tem de se casar para sobreviver e eu não tenho como impedir!
- Bem... Então, tenho algo a contar sobre sir Vale...
- Eu sabia! - exclamou Edward, erguendo-se de um salto. - Ele já tentou transformá-la em sua amante, não?
Ela negou, com a cabeça, depois murmurou:
- Pior ainda... ele me pediu em casamento!
CAPÍTULO VII
A Surpresa
- Ele a conhece há menos de um dia! - espantou-se o jovem Farrineau.
- Eu o lembrei disso, mas ele não deu importância.
- E o que você respondeu?
- - Bem, recebi tudo como se fosse uma bricadeira. Agora, pensando melhor, acho que era mesmo pura brincadeira.
- Por que tem de ser brincadeira? Por que ele não pode estar gostando mesmo de você? - perguntou ele, sério.
Nunca passara pela cabeça de Susanna que o baronete poderia estar apaixonado por ela. Acreditava que ele estava flertando, apenas. Talvez achasse isso porque
era mais fácil pensar assim. Mas se o cavalheiro houvesse falado sério, precisaria pensar na proposta com cuidado. E, a princípio, o que menos desejava era se casar
com ele.
- E... - declarou Edward, depois de pensar um pouco. - Talvez você tenha razão. Pode ser brincadeira. Um homem como ele é bem capaz de sair distribuindo propostas
de casamento, e uma mulher inteligente não deve acreditar nele.
- Foi o que pensei, mas ele já me pediu em casamento cinco vezes. E não sei se vou conseguir controlá-lo, na próxima vez que tentar.
- Cinco vezes?
- Sim. Ele disse que está à procura de uma esposa.
- Susanna... pelo amor de Deus... Espero que não tenha dito a ele que também está à procura de um marido!
Ela fez que sim com a cabeça, assustada, e ele franziu as sobrancelhas, preocupado. '
- Então a coisa é muito pior do que eu pensava. Quer se casar com ele, Susanna? Se realmente estiver apaixonada, não vou opor objeções...
Ela levantou-se, foi até a janela e observou a rua.
- Não o amo - disse, por fim -, mas não espero mesmo amar o homem que vai se tornar meu marido. Se ele for bom e não me deixar passar fome, estarei contente.
- Mas eu não! - exclamou ele, aproximando-se dela.
- Você está querendo demais! - ela explodiu, perdendo o controle.
- Quer me arranjar marido em apenas três meses, quer que ele seja perfeito, de acordo com seus pontos de vista, e ainda por cima quer que eu o ame?!
Edward abraçou-a, tentando acalmá-la, pois ela tremia incontrolavel-mente, tão nervosa estava.
- Nem sei mais o que quero... - sussurrou ela. - Não sei se quero que sir Vale me ame ou que só me peça em casamento...
Edward beijou-lhe os cabelos sedosos, perfumados, enquanto ela se abandonava ao prazer de ser confortada pelo amigo. Mas ouviram as vozes de sir Vale e Lucy,
que voltavam, e se afastaram um do outro.
Depois de acompanhar a srta. Bledsoe ao Marlborough Building, Edward resolveu ir andando para sua hospedaria. Estava tão imerso nos pensamentos que nem notava
os conhecidos que o cumprimentavam. De repente, começou a chover e ele entrou numa doceria para abrigar-sé. Sentou-se a uma mesa e ficou pensando no que fazer com
Susanna.
Claro que ela devia estar confusa, pois não sabia o que queriam dela nem em quem acreditar. Sem querer, haviam feito tudo para confundi-la ainda mais. Principalmente
ele, que usara a amizade que os unia para impor suas opiniões. Emitira argumentos que contradiziam sua disposição de ajudá-la a encontrar um bom marido.
Na verdade, não sabia nem mesmo se ele próprio queria isso. Desejava que Susanna fosse protegida, sabia que um marido era a melhor saída para isso, mas não
gostava da ideia. Detestava-a, não apenas por obrigar uma moça inteligente e bonita a se contentar com pouco, mas também por essa moça ser Susanna.
Imaginou-a sendo levada para uma casa enorme, escura. Lá dentro encontrava-se uma sombra, o marido, que era bem mais velho, tinha voz aveludada, maneiras
sedutoras e olhos sinistros.
Edward sabia que esse quadro era digno das novelas da sra. Radclif-fe, que exagerava... Mas percebeu claramente que temia pela jovem. Não sossegaria até encontrar
um modo de Susanna poder sobreviver sem se casar. Só então teria paz de espírito. Poderia, assim, pensar em seu casamento com Lucy, de quem descuidara nos últimos
dias.
Durante as semanas seguintes a sra. Bledsoe promoveu vários passeios para o grupo formado por sua família, os amigos de Cheedham e sir Vale. Os planos eram
tantos que lady Philpott começou a reclamar que não tinha tempo para mais nada.
Numa tarde quente e bonita, eles foram para o Sydney Garden. A da-, ma não protestou contra o tédio da natureza, como costumava, pois a iluminação e a música
natural das fontes e cascatas distraíram-na. Ape-
sar de não ter gostado muito do intrincado labirinto formado por arbustos, comentou o fato de ser uma ótima invenção para namorados se perderem durante horas,
podendo, assim, ficar a sós.
Aproveitando a ideia, sir Vale convidou Susanna para dar uma volta no labirinto e, com a ajuda da lady, conseguiu se afastar do grupo com ela.
- Esta é a primeira oportunidade que tenho de lhe falar a sós, depois de tantos dias - disse ele e, vendo que ela concordava, prosseguiu:
- Suponho que lorde Blessington seja seu pretendente favorito, na opinião de lady Philpott...
- Milady julga-o um bom candidato, se outro melhor não aparecer -esclareceu ela, sorrindo.
- E a senhorita o considera um bom pretendente?
Susanna refletiu por um momento e notou que ainda não pensara no lorde como um candidato a sua mão. Tinha esperanças de que alguma coisa acontecesse, impedindo-a
de casar com ele. Mas não sabia o que seria essa coisa.
- Bem, na verdade - disse, por fim -, confesso que não vejo lorde Blessington como um candidato.
- E quanto ao sr. Lawrence Bledsoe? - perguntou o baronete, satisfeito com a primeira resposta.
- Também não. O sr. Lawrence é uma excelente pessoa, mas seu estado de saúde não lhe permite pensar em casamento.
- Um bom rapaz! Espero que a doença o aflija ainda durante bastante tempo. E o sr. Edward Farrineau?
Susanna parou, surpreendida por essa pergunta.
- Ele não é meu pretendente. É meu amigo!
- Por acaso está sugerindo que um verdadeiro amigo não seria cruel a ponto de se tornar seu marido? - perguntou ele, rindo da reação assustada.
- O sr. Farrineau pretende casar com a srta. Bledsoe...
- Então, por que ele vive vigiando a senhorita?
- Isso não é verdade! - protestou ela, enrubescendo.
- Não só é verdade, como também é irritante.
- Eu acho que ele apenas quer tomar conta de mim, para que não crie confusões. Quer que eu seja feliz e não admite que me case com qual quer um.
- E, por acaso, eu sou "qualquer um"? - perguntou o baronete, enquanto recomeçavam a caminhar.
- De acordo com Edward, o senhor é pior do que qualquer um...-respondeu ela, sem pensar, pois sentia-se aflita com o rumo da conversa. - Ele sabe da sua reputação
e tem medo que eu me torne infeliz se vier a ser lady Saunders.
- Muito galante da parte dele! - riu sir Vale. - O que será que Farrineau imagina que vou fazer com a senhorita?
- Ele teme que queira me tornar sua amante.
O homem deteve-se, bruscamente, e encarou-a.
- E, por acaso, a senhorita consentiria em ser minha amante?
- Não acredito que essa seja uma situação vantajosa para uma mulher - retrucou ela. - Sendo uma acompanhante de senhoras, minha insegurança seria a mesma,
mas em compensação eu seria mais independente.
- Então, suponho que aceita meu pedido... - insistiu o baronete.
- Foi pensando no que acaba de dizer que não lhe fiz a oferta de ser minha amante. Além disso, eu já determinara que quero me casar.
- Eu não o amo, sir Vale.
- Isso não é o mais importante. Até prefiro, pois será interessante fazê-la apaixonar-se por mim.
- Creio não poder considerá-lo um pretendente.
- Mas deve, senhorita. Jamais fui recusado por uma mulher.
- Então, minha recusa será uma experiência nova para o senhor.
- Srta. Marlowe, estou determinado a torná-la minha esposa - declarou ele, achando o debate divertido. - Soube, pela srta. Bledsoe, que se encontra em uma
situação desesperadora e, deixe-mé ser sincero, temo pelo seu futuro. Se não casar comigo, o que pretende fazer?
- Vou ser governanta - respondeu ela, os luminosos olhos verde-acinzentados fitando-o com profunda sinceridade. - Gosto de crianças.
- Crianças?! Só significam encrenca! Sua vida seria um horror, cheia de encrencas!
- Veja, sir, durante toda minha vida estive envolvida em encrencas, portanto, sou a pessoa mais indicada para cuidar de crianças. Se não encontrar um marido
adequado até o fim do verão, vou me candidatar a um posto de governanta.
O elegante baronete não conseguia esconder que sentia-se zangado. Como uma moça podia preferir as agruras de um emprego de governanta ao privilégio de se
tornar lady Saunders? Convidou-a para voltarem e não fez qualquer outro comentário que não fosse sobre o tempo, o jardim, as flores. Assim, Susanna teve oportunidade
de avaliar a possibilidade de, realmente, arranjar um emprego.
Por mais que tentasse afastar a ideia, ela voltava. E o que mais a atraía nela era poder educar crianças do modo que gostaria de ter sido educada, encorajando-as
a pensar, a aprender, a usar sua criatividade. Mas tal situação teria desvantagens. Governantas de crianças precisavam pertencer a boas famílias e, desde o escândalo
de seu pai, dificilmente seu
nome poderia ser considerado respeitável. Mesmo que lady Philpott a ajudasse a arranjar uma colocação, haveria outro obstáculo difícil de superar: não apenas
teria de controlar crianças, como também precisaria controlar seu temperamento impulsivo, seu modo de agir e suas opiniões atrevidas. Precisaria tomar muito cuidado.
E desde quando Susanna Marlowe era uma pessoa cuidadosa? Não conseguiria ficar no emprego mais de um mês. Era besteira pensar nessa possibilidade.
Nas últimas semanas Susanna havia pensado nessa ideia várias vezes e chegara sempre à mesma conclusão: sua única saída era o casamento. E se não tinha escapatória,
o que isso significava? O fato de se casar, em si, não a assustava. Seus pais tinham sido felizes no casamento e, apesar de sua mãe ter se perturbado com o fato
de enriquecerem, não se modificara intimamente: continuara gostando de cuidar da casa e da família. Diante disso, achava que poderia ser razoavelmente feliz, mesmo
que seu marido não fosse o homem que amasse, desde que pudesse admirá-lo pelas boas qualidades e ele respeitasse seu modo independente de ser e seus pequenos deslizes.
Afastando os pensamentos, olhou de relance o perfil de sir Vale. Era provável que ele lhe desse a independência que desejava, pois dessa forma garantiria
sua própria independência. Não iria querer controlar seus pensamentos e opiniões. Tinha certeza de que ele perdoaria seus pequenos deslizes, pois no segundo encontro
já dissera algo que ela não esquecera: que era perfeita e que achava que não precisava de lição alguma para se tornar uma lady. O baronete a considerava atraente
o bastante para lhe propor casamento, sabia que não era rica, conhecia seu passado, não temia que criasse confusões e tinha vontade de beijá-la. Tudo isso tornava-o
um forte candidato a sua mão, principalmente se comparado a lorde Blessington.
- Ah, enfim chegaram! - disse Edward, interrompendo os pensamentos da amiga. - Pensamos que tivessem se perdido.
Pelo jeito, todos estavam ansiosos pela volta deles, principalmente Lucy que, como os demais, queria assistir à queima de fogos de artifício.
- Vi os fogos no ano passado, no anterior e nos demais antes deles - comentou sir Vale, com indiferença.
- A visão é ótima da sacada do belvedere do jardim - sugeriu Lucy, ansiosa. - Já está escurecendo e os fogos começarão logo. Não quer ir vê-los, Susanna?
Quando a jovem disse que gostaria de assistir ao espetáculo, o baronete também demonstrou um súbito interesse, mas não pôde acompanhar as moças, pois o sr.
Farrineau o deteve. Depois que os demais foram embora, o jovem observou atentamente o homem mais velho e para sua tristeza não descobriu nada que o desabonasse.
- Susanna disse-me que o senhor deseja casar com ela - disse, por fim.
- Perdoe-me, sr. Farrineau, mas eu gostaria de saber o porquê de seu interesse nisso. Não sabia que é parente dela ou, por acaso, seu tutor.
- Susanna é minha amiga de infância e, apesar de não ser responsável por ela, preocupo-me com seu bem-estar.
- Entendo. Então, não tem direito legal de interferir na vida dela.
- Não. - Edward ressentiu-se da colocação, mas continuou, cordial: - Mas creio que tenho influência sobre essa jovem, devido a nossa longa amizade.
- Mas ela pode fazer o que quiser, não?
Edward não pôde negar e o cavalheiro prosseguiu:
- Então, gostaria de esclarecer que o senhor não tem o direito de interferir, mas vou levar sua preocupação em conta, porque é evidente que a srta. Marlowe
é uma pessoa que o senhor... ama. - A expressão do baronete era irónica ao dizer isso, e seu sorriso, arrogante.
- O que o senhor quer dizer com isso? - perguntou Edward, encarando-o com ar ameaçador.
- Não me interprete mal, sir. Refiro-me a um amor desinteressado: a amizade. O senhor a ama como irmã, então é compreensível que assuma o papel de irmão impertinente...
- Por que o senhor resolveu ser tão cordato, de repente?
- Porque não pretendo lhe dar motivos para fazer a srta. Marlowe voltar-se contra mim. Gostaria que fôssemos cordiais um com o outro, pois temo que se ela
tiver de escolher, irá preferir escutar o senhor, mesmo que isso não seja de seu interesse. Por isso, prefiro que nos entendamos.
Os fogos começaram a explodir, enchendo o céu escuro de cores luminosas. O pipocar contínuo de explosões aumentava de volume à medida que os dois homens caminhavam.
Apesar de não gostar de sir Vale, Edward compreendia que era melhor manter-se em bons termos com ele. Se o convencesse a adiar a data do casamento, teria
mais tempo para descobrir uma saída alternativa para Susanna. Mas se, afinal, ela resolvesse mesmo casar-se com o baronete, pelo menos ele teria certeza de que não
iria fazer isso por desespero.
- Então, como irmão de Susanna, quero fazer-lhe uma proposta - disse, conciliador. - Os termos são simples. O senhor deve adiar seu pedido de casamento
por um mês, e dou minha palavra de que durante esse tempo não vou interferir em seu relacionamento com ela. A ideia é esperar que durante esse tempo ela o conheça
o suficiente para saber se quer mesmo casar-se com o senhor e se acha que será um bom marido. Por meu lado, não apresentarei nem apoiarei qualquer outro candidato.
Uma nova chuva colorida explodiu no céu. Os cavalheiros subiam a escada que levava ao belvedere.
- Não vejo problema em aceitar esse acordo. Mas exijo que deixe de vigiá-la o tempo todo.
- Do que o senhor está falando, agora? - perguntou Edward, parando de repente.
- Desde minha primeira noite em Bath reparei que o senhor não pára de olhar para a srta. Marlowe, esteja ela onde estiver. E não gosto nem um pouco disso.
- Suponho que uma pessoa tem o direito de olhar um amigo ou amiga a quem deseja proteger. E por que se preocupa com isso, se já prometi não interferir? Não
lhe basta ter o caminho livre? Que mal há se olho para Susanna? A não ser que o senhor seja do tipo que acha que um homem só pode olhar para ela com segundas intenções!
- Não nego. Sou do tipo ciumento. E o senhor também é.
Sem retrucar a isso, Edward voltou-lhe as costas, continuou subindo a escada e foi juntar-se ao grupo que observava os fogos, da sacada. Logo depois sir Vale
aproximou-se.
- O senhor não respondeu - disse, exigente.
O jovem Farrineau olhou-o fixamente nos olhos. O baronete, apesar de ser um pouco mais baixo, sustentou o olhar. Parecia ter a vontade férrea de quem estava
acostumado aver seus desejos satisfeitos. Edward esperou uma nova explosão de fogos para responder:
- Vou fazer o que prometi, mas não me proponho a deixar de observá-la.
- Bom... - resmungou o baronete, sacudindo os ombros. - Acho que preciso me contentar com isso.
Estendeu a mão, Edward olhou-a com aversão, mas acabou por apertá-la, selando o acordo. Depois, afastou-se do grupo e desapareceu na escuridão.
Alguns minutos depois chegou lorde Blessington, dizendo:
- Estive em sua casa, milady, mas não as encontrei. Por sorte lembrei-me de que a srta. Bledsoe tinha falado em fogos de artifício...
Os olhos fitos no céu esplendoroso, Susanna apenas cumprimentou o recém-chegado, que deu um jeito de se enfiar entre ela e a srta. Bledsoe.
- Vamos, meu caro Blessington - interferiu lady Philpott -, permita que sir Vale também veja os fogos!
O lorde reclamou que também queria assistir ao espetáculo, que perdera uma boa parte dele procurando o grupo e que, na pressa, nem parara para cumprimentar
a srta. Murchen-Hill.
A lady não demonstrou qualquer piedade pelas dificuldades do cavalheiro, pois, apesar de filho de um conde e tão bom candidato quanto um baronete, ela preferia
que Susanna casasse com sir Vale e não tinha qualquer escrúpulo quanto ao método de conseguir seu objetivo.
- Daqui também dá para ver bem - disse a srta. Lucy, que, pressionada por lorde Blessington, tivera de recuar e, então, fora ficar ao lado do baronete.
Lady Philpott franziu a testa, contrariada, ao perceber que seus planos não estavam dando certo. O grupo mudara sua disposição e ela não gostava disso. Em
vez de Susanna, era Lucy Bledsoe que se encontrava ao lado de sir Vale e os dois conversavam em sussurros. Seu sobrinho fora embora sem dar nenhuma satisfação quanto
ao que acontecera entre ele e o baronete, pois era evidente que algo tinha acontecido. Sentia-se terrivelmente usada por todos e declarou, em alto e bom som, que
achava fogos de artifício tão tediosos quanto as belezas naturais.
Susanna, por sua vez, encantava-se com o espetáculo. Jamais vira coisa tão linda, e aquela maravilha colorida impedia que continuasse a pensar sobre casamento,
o que era um alívio. E mais: enquanto olhava para o céu, evitava ver o nariz e o queixo de lorde Blessington.
Naquele momento, antes que as luzes azuis e vermelhas da última explosão desaparecessem, um cometa de luz branca cortou o céu. Susanna teve um sobressalto,
não causado pelo espetáculo, mas porque ao forte clarão branco teve a impressão de ver um rosto familiar na multidão.
Ansiosamente esperou que o céu se iluminasse outra vez e, depois de algum tempo, um cometa prateado atravessou o firmamento, dando-lhe nova chance de confirmar
o que vira.
Sim. Era Wilfred Sharpe! E, o que era pior, ele também a tinha visto.
CAPÍTULO VIII
Subjugando o Inimigo
Em resposta a um bilhete de Susanna, pedindo que fossem falar com ela com urgência, Edward e Lucy foram para Sydney Place no dia seguinte, bem cedo. A jovem
foi direto ao assunto, contando que vira Wilfred Sharpe na noite anterior.
- O que ele estará fazendo aqui? - indagou Lucy.
- Vocês me julgariam muito convencida sê dissesse que ele veio só para me atormentar? - perguntou Susanna por sua vez, lidando com a agulha do bordado com
cautela, pois estava nervosa.
- Como o conheço, mesmo que não tenha sido esse o motivo do sr. Sharpe, é o que vai acontecer - comentou Edward.
- É o que penso. Ele não me perdoou o Willy-Lírio, apesar de não ter sido eu a autora do apelido... - explicou ela, dando uma série de pontos errados, que
desmanchou em seguida.
- Se ele ainda guarda rancor, é bem capaz de espalhar a história do escândalo do seu pai pela cidade, sem nenhum escrúpulo - disse Edward.
- Ele que faça o que quiser, não tenho medo! - explodiu Susanna, desistindo de bordar.
- Bravo! .- apoiou Lucy, batendo palmas.
- Muito bem - concordou Edward, nada impressionado. - E quanto ao futuro marido de Susanna, o que ele vai pensar desse escândalo?
As duas moças entreolharam-se, tristes.
- Lorde Blessington eu garanto que não vai aceitar isso muito bem - comentou a srta. Bledsoe.
- Também acho - disse Susanna, recomeçando a bordar. - Vai desistir de mim logo e sair atrás de uma das suas muitas senhoritas. Se isso acontecer, ficarei
grata ao sr. Wilfred Sharpe.
- Já sir Vale não agiria assim - confidenciou a outra.
- Ora, ele não vai querer que um escândalo manche o que imagina ser sua posição na sociedade - discordou Edward, com desprezo.
- Não acredito - rebateu Lucy. - Ele não é orgulhoso e não liga para o que a sociedade pensa e diz.
- Mesmo? Eu gostaria de saber como a senhorita pode ter tanta certeza disso! - comentou o jovem Farrineau. - Foi ele quem disse?
Susanna parou de bordar e ficou olhando para os dois.
- Foi exatamente isso. Lembram-se de quando discutimos sobre a elegância da rosa, há algumas semanas? Conversamos sobre a situação de Susanna na sociedade,
então perguntei se isso afetária seus sentimentos em relação a ela, e ele respondeu que não.
' - Lucy, você não tem o direito de discutir os sentimentos dele sobre Susanna! - repreendeu Edward, zangado.
- Por que não? - Ela demonstrou-se ofendida. - O senhor fez is
so ontem! Não foi por isso que ficaram esquisitos um com o outro?
- Escutem - interrompeu-os Susanna, preocupada com a discussão -, falávamos sobre Wilfred Sharpe... Lembram?
- Ah, sim. Se me permitir, Susanna, vou tentar descobrir o que faz aqui. Então, poderemos pensar num plano e...
- Oh, não! Outro plano?
- Não se desespere, minha querida. Vamos usar a estratégia de Júlio César: calcular a força inimiga, planejar e dominar!
Depois dessa declaração, o jovem Farrineau foi embora. As duas moças olharam-no, da janela, até que virou a esquina.
- Você pensa em sir Vale como marido? - quis saber Lucy.
- Não sei... não o conheço bem. E não gosto muito do pouco que conheço.
- Mas ele é bonito, não é?
- É... Só que quando falamos a respeito de Edward, você disse que o caráter é que importa.
- Disse? - indagou Lucy, surpresa, e corou. - Bem, talvez tenha dito, mesmo.
- E estava certa.
- Estava? Já nem sei mais no que acredito. Só sei que quando um cavalheiro como sir Vale se interessa por uma moça, é difícil recusá-lo.
- Pelo que me lembro, não tive dificuldade alguma.
- Você recusou o pedido de casamento dele? - perguntou Lucy, com os lindos olhos azuis maiores ainda pelo espanto.
- Várias vezes.
- Mas como? Por quê?
- Devo lembrá-la de que também recusou o pedido de Edward... Simplesmente fiz a mesma coisa.
- E verdade... É a mesma coisa.
- Sir Vale é simpático, divertido e interessante. Além disso, é rico. E é difícil resistir quando um cavalheiro diz que uma dama é perfeita... Só que ele
vai longe, rápido demais.
- Isso porque é um homem experiente, que sabe o que quer.
- Se ele fosse um pouco mais paciente, talvez eu me sentisse melhor.Estou acostumada a só me ligar às pessoas depois de conhecê-las por muito tempo. Além
disso, nem sei se gosto dele ou não. Sei que a seu lado posso ser eu mesma e admiro seu senso de humor, além de respeitá-lo e me sentir lisonjeada com suas atenções.
- Sinto-me da mesma forma em relação a ele - concordou Lucy.
- Mas a elegância e a distinção de sir Vale fazem dele um homem difícil de se conhecer. Talvez seja por eu não estar acostumada a receber atenções de um cavalheiro,
mas tenho a impressão de não conhecer seu verdadeiro caráter.
- Pensei muito a respeito do caráter dele e concluí que o baronete Saunders é tudo o que um cavalheiro deve ser. Receio que se você o dispensar, lady Philpott
vai ficar zangada.
Susanna largou o bordado e aproximou-se da amiga.
- Mas você não vai ficar desapontada comigo, vai?
Os olhos de Lucy encheram-se de lágrimas, e se abraçaram, enquanto ela prometia não se desapontar se Susanna resolvesse não casar com sir Vale Saunders.
Enquanto isso, o sr. Edward Farrineau caminhava, com passo firme e decidido. Mas no meio da ponte Pulteney lembrou-se de que não tinha o endereço de Wilfred
Sharpe. Depois de pensar um pouco, imaginou que, se ele viera a Bath fazer algum tratamento, àquela hora deveria estar no Salão das Fontes e dirigiu-se para lá.
Felizmente, não havia muita gente. Ele passou pelas diversas fontes, percorreu os corredores e as salas de lazer. Quando saiu do prédio, chovia. Parou no
pórtico de uma igreja, para pensar no que fazer. Foi então que viu o jovem Sharpe atravessando a rua, um pouco mais adiante. Tratou de segui-lo e logo depois o alcançava.
Cumprimentou-o, fingindo surpresa por encontrar um vizinho em Bath.
- Agora sou o pastor da igreja Walcot - explicou o rapaz, com orgulho. - Pelo menos, por uns tempos, até que o pastor oficial volte de viagem.
- Meus parabéns! Quanto tempo fica por aqui?
- Um mês... talvez mais. Não é uma coincidência termos nos encontrado, sr. Farrineau? Trouxe-lhe uma carta de sir Dalton. Iria procurá-lo ainda hoje, para
entregá-la.
- Espero que meu pai esteja bem. E o seu, como vai?
- Ótimo. Quando saí de lá, os dois estavam bem. Sir Dalton está
pensando em vir logo para cá. Por favor, vamos até onde me hospedo, assim entrego-lhe a carta.
Os dois foram até onde o jovem Sharpe se hospedava. Quando já se encontravam sentados na pequena sala de visitas usada pelos pensionistas, Edward disse, avaliando
o inimigo:
- Provavelmente o senhor sabe que alguns velhos conhecidos nossos encontram-se aqui em Bath, não é?
- É. Ouvi dizer que a srta. Marlowe está aqui.
- Não. O senhor sabe que ela está aqui porque a viu, ontem à noite - insistiu o jovem Farrineau.
- Pode ser... - replicou o outro, erguendo os ombros.
- Alguns amigos dessa senhorita preocupam-se com o bem-estar dela - continuou Edward, com voz suavemente ameaçadora.
- A srta. Marlowe é uma moça de sorte, pelos bons amigos que tem...Acho muito esquisito que isso aconteça, enquanto eu, que moro em Cheedham desde
que nasci, não tenho sequer um amigo devotado. Aliás, quando cheguei aqui em Bath ignoraram-me completamente.
- Não sabíamos da vinda do senhor.
- E se soubesse, teria feito alguma diferença? Talvez os senhores achem que um pastor é pessoa humilde demais. Ou quem sabe a srta. Marlowe andou contando
por aí alguma história mentirosa e depreciativa sobre a minha pessoa...
- Posso assegurar que a srta. Marlowe não disse sequer uma palavra desabonadora sobre o senhor. Ela não é tão rancorosa quanto parece pensar, meu caro.
- Devo concluir que os senhores vão permitir que eu morra de tédio e solidão neste lugar horroroso? Não devo esperar, então, que o senhor e seus amigos ofereçam-me
o mesmo tipo de hospitalidade que oferece ram à srta. Marlowe?
- O que o senhor deseja, exatamente?
- Nada. Apenas um pouco de atenção de meus velhos conhecidos. Até agora, só faço ir de meu quarto para a igreja, da igreja para meu quarto. O que, diga-se
de passagem, não é nada divertido... Não vejo por que vizinhos e conhecidos da minha terra não podem me oferecer companhia e diversão... Ah! E gostaria muito de
renovar minha amizade com a srta. Marlowe. Fico muito satisfeito em saber que aquela pobre criaturinha selvagem aprendeu a se comportar em sociedade.
- Por acaso o senhor tenciona espalhar boatos a respeito dela? Por que, caso pretenda, quero avisá-lo que terá de me enfrentar se o fizer.
- Hum... O senhor está querendo me dizer que o escândalo causado pelo pai dela deve permanecer em segredo? É isso?
- Pretende sair por aí dizendo algo a esse respeito ou não? - rebateu o jovem Farrineau, duro.
- Creio que andou me interpretando mal, sr. Farrineau - disse o rapaz, suave, parecendo a própria imagem da inocência. - Desejo o melhor para a srta. Marlowe...
e acredito que a posição de meu pai, sem mencionar os longos anos de amizade que ele mantém com o seu, dá-me o direito de exigir o mesmo tipo de cortesia que é oferecida
à filha de um trapaceiro!
- Resumindo: o senhor quer trocar seu silêncio pela oportunidade de juntar-se a pessoas com posições melhores do que a sua.
- Pelo que vejo, estamos nos entendendo - replicou o rapaz, fitando o oponente com insolência.
- Vamos ver o que posso fazer a respeito...
Assim que teve oportunidade, Edward informou às damas sobre a exigência de Wilfred Sharpe. Ainda chovia. Aliás, estava chovendo há dias e o plano de irem
ver a guarda, em Royai Crescent, teve de ser abandonado. Reunidos em Sydney Place, depois de explicar à tia a ameaça que Wilfred Sharpe representava, Edward declarou:
- Acho que poderemos mantê-lo sob controle, se conseguirmos suportar sua companhia.
- Não sei como evitaremos que ele cometa uma maldade, se estiver decidido a isso - ponderou lady Philpott, impressionada com o relato do sobrinho. - Gostaria
de poder resolver esse caso como nos velhos tempos: Edward o desafiaria para um duelo, porque o único jeito de ensinar esse patife é cortando-lhe a garganta!
- Espero que a senhora esteja errada - retrucou Susanna -, pois apesar de não gostar dele, quero um pouco de paz.
- Uma trégua, era o que eu pensava - disse Edward.
- Mas, pelo que vocês dizem, não acredito que o sr. Sharpe cumpra sua parte do acordo - opinou Lucy.
- É interesse dele cumprir, se quiser ser recebido por nós - lembrou Edward, sorrindo. - Acho que César aprovaria minha estratégia... Bem, proponho que convidemos
o sr. Sharpe para um dos nossos passeios. Vamos elogiá-lo, fazer com que fique à vontade, assim poderemos mantê-lo sob vigilância.
- Lorde Blessington ofereceu-se para nos levar ao Castelo Blaise -informou Lucy. - Será que Wilfred Sharpe gostaria de ir conosco?
Ela não conseguia imaginar o jovem pastor em companhia de sir Vale Saunders, e Susanna parecia não confiar muito no plano, apesar de Edward achar que ele
aceitaria o convite.
- Não temos ideia do que pode acontecer... - objetou ela, com timidez.
- Por quê? Quais são suas objeções? - perguntou o jovem Farrineau, levantando-lhe o queixo, a fim de fitar diretamente os olhos verde-acinzentados. - Está
com medo?
Susanna não tinha um pingo de medo de Wilfred Sharpe, mas não conseguiu emitir nenhum som, quando se esforçou para falar: a mão de Edward em seu rosto perturbava-a
profundamente.
- Não consegue perdoá-lo, é isso? - perguntou ele, largando-lhe o queixo e sentando-se ao lado dela.
- Não - respondeu Susanna, recuperando a voz. - Pois sei que assim que ele puder, vai me atormentar. Com certeza exigirá que eu o beije, como das outras vezes.
- Ele quer beijar você?! - Edward ergueu-se e aproximou-se da lareira, esmurrando a parede com o punho fechado. - Ele tentou beijá-la? Vejo que fui ingénuo,
que não dá para fazer acordos com aquele.
sujeito! Titia tem razão: é só cortando a garganta dele, mesmo.
- Que nada! Seu plano é ótimo, sobrinho! Se ele quer um beijo da nossa Susanna, tudo vai dar certo.
Todos olharam a lady, espantados, sem entender por que ela estava tão contente. E a senhora explicou:
- Se ele quer um beijo, é porque está interessado na moça. Ela pode flertar com-o rapaz até fazê-lo ficar tão zonzo que não saberá mais o que faz e
esquecerá de tudo.
Trocaram-se olhares e colocaram-se dúvidas. Lucy foi a primeira a concordar com os pontos positivos daquela ideia, mas acrescentou que isso só valia se Susanna
não se opusesse a flertar com o sr. Sharpe.
- Se bem que será algo tão desagradável que não sei se ela conseguirá realizar... - acrescentou, fitando a amiga com dúvida.
- Pode deixar, ela consegue, sim - garantiu lady Philpott. - E será bom treino para uma futura esposa, pois toda mulher precisa aprender a se controlar para
controlar o marido.
- Isso não me incomoda - disse Susanna, que não tirara os olhos do rosto sério de Edward. - Tenho é medo de não controlar meu temperamento. E se fizer alguma
coisa que ponha todo o plano a perder?
- Não fará isso, sossegue! Está tudo combinado, então - concluiu a lady. - Se tiver alguma dúvida de como deve agir, é só me perguntar, minha querida. Garanto
que vou lhe contar todos os meus segredos de encanto e sedução. Vai ver: você será a senhorita mais encantadora e atraente que um homem já teve a felicidade de conhecer!
- Não, titia - opôs-se o jovem Farrineau, sombrio. - Não vou permitir que Susanna faça isso. - As duas mulheres voltaram-se para ele, surpreendidas. Susanna,
que continuara a observá-lo, apenas ergueu as sobrancelhas, curiosa. - É perigoso demais - explicou ele, afobado.
- Duvido que Wilfred Sharpe se contente apenas com a nossa hospitalidade e companhia. Durante toda a vida ele atormentou Susanna, não acredito que pare agora. Nunca
devíamos ter imaginado que um plano como esse poderia dar certo. Reconheço que a culpa é minha, que tive a ideia idiota que acabou dando origem a essa outra do flerte...
- A verdade, meu caro, é que você sempre acaba por rejeitar todas as ideias que nós temos! - irritou-se lady Philpott, sacudindo um dedo diante do rosto do
sobrinho. - Quer saber de uma coisa? Eu já estou ficando cansada dessa sua atitude!
- Mas é que eu não posso permitir que Susanna se coloque em uma situação que virá, com certeza, a magoá-la e torná-la infeliz, titia!
Caladas e pasmas, as duas jovens olhavam, do rosto pálido e sério do rapaz ao rosto vermelho de fúria da lady, quando cada um deles falava.
- Edward - sibilou a senhora respirando de maneira ofegante, sem o menor cuidado para ocultar a zanga -, se deseja continuar frequentando a minha casa
e a dar opinião sobre o futuro da srta. Marlowe, não diga mais uma palavra. Eu não admito voltar a ser contrariada neste caso, quer seja por você ou por qualquer
outra pessoa!
Aflita com a situação e querendo acalmar os dois, Susanna levantou-se e interferiu:
- Não briguem à toa! Vai ser divertido perturbar o sr. Sharpe... Além disso, vai ser bom, para mim, aprender a lidar com ele sem precisar jogar-lhe
um vaso de flores na cabeça ou um balde de água no peito...
Sem responder, Edward aproximou-se da janela e ficou lá, imóvel, rígido, olhando para fora. Mais nervosa ainda, Susanna continuou:
- Edward, vou me sentir mais segura se mantivermos Wilfred Sharpe sob vigilância. É muito triste, para mim, ouvir rumores sobre meu pai, saber que
falam mal dele quando passo... e aqui em Bath não sofri essa humilhação até agora. Se preciso suportar o jovem Sharpe para continuar sossegada, farei isso. Mas se
ele abrir a boca para falar sobre as índias Ocidentais ou tentar me beijar, prometo que conto imediatamente a você... que poderá, então, cortar a garganta dele com
a minha bênção!
Edward não resistiu ao ar maroto com que ela disse as últimas palavras e acabou sorrindo.
- Então, está tudo combinado, mesmo! - exclamou lady Philpott, toda satisfeita. - E, sobrinho, desculpe-me por ter gritado com você, mas é que às vezes consegue
ser tão teimoso! Acho que herdou esse defeito de seu pai...
- Titia - respondeu ele, já então rindo abertamente -, posso ser teimoso, mas se tivesse herdado essa qualidade de alguém, seria da senhora e não de meu pai...
mas como isso é impossível, sou teimoso porque sou.
A impulsiva senhora corou, riu e fez-se a paz.
Lucy e Edward foram embora pouco depois, deixando Susanna e lady Philpott com seus bordados. Trabalharam em silêncio por alguns minutos, depois a jovem largou
o trabalho sobre o sofá e perguntou:
- Lady Philpott, a senhora vai mesmo me ensinar a lidar com um cavalheiro?
- Vou, sim, minha querida. Com o maior prazer!
- Não sei lidar com as pessoas, muito menos com cavalheiros, ainda mais com os que pretendem me beijar...
- É algo irritante, minha filha. Já perdi a conta das vezes que essa situação se deu comigo. O que precisa entender é que as mulheres não só "lidam" com.os
homens que as rodeiam, como também dirigem o mundo!
Os olhos verde-acinzentados da jovem abriram-se muito ao ouvir aquilo. Acomodou-se melhor no sofá, suspirou, e fitou atenta a lady. Jamais imaginara que o
papel das mulheres poderia ser tão importante. Até agora, as que conhecera debatiam-se para se tornarem esposas, governantas ou se conformavam em ficar solteironas.
E se não tivessem uma renda razoável, como ela, nem governantas poderiam ser.
- E como as mulheres dirigem o mundo? - indagou, curiosa.
- Controlando os homens.
- Entendo... - Mas, na verdade, Susanna não entendera nada.
- Bem -.lady Philpott entusiasmava-se com o assunto, seus olhos vivos brilhavam mais ainda -, as mulheres têm uma ideia e enfiam-na na cabeça do cavalheiro
com tal habilidade que ele acha que a ideia foi dele. Deixe-me dar um exemplo... Se uma esposa quer uma carruagem nova, com lacaio elegante, bem vestido...
Susanna prestava tanta atenção que nem piscava.
- ...e o marido, que também lucraria com o novo veículo, não é inteligente o bastante para perceber isso, e teima em não comprá-lo... O que a esposa deve
fazer?
- Já sei! - animou-se a jovem. - Apresenta a ele todos os motivos pelos quais seria interessante fazer a compra!
Não seja ridícula! - esfriou-a lady Philpott. - Ela escolhe um bom momento, assim como depois de ele ter jantado seu prato favorito, fumado um charuto e ter
tomado um vinho do Porto... Principalmente, não discute com ele. Cavalheiros detestam ouvir as razões de uma dama, só se interessam pelo que lhes toca pessoalmente.
Então, ela diz: "Ô senhor já viu a carruagem nova de fulano-de-tal?" Naturalmente, ele responderá que não, pois a carruagem é invenção dela que, em seguida, descreve
a carruagem que deseja. Pouco depois, indaga se o marido viu o novo lacaio do tal fulano... E, assumindo o papel de boa esposa, enumera os motivos pelos quais o
marido merece ter muito mais do que o fulano-de-tal, pela posição e capacidade pessoal...
- E aí, o que acontece? - quis saber Susanna.
- O marido declara: "Tenho uma ideia!", e a esposa espera, paciente, que ele explique como e por que vai comprar uma carruagem e contratar um novo lacaio,
exatamente como ela deseja. É isso, minha querida!
Susanna permaneceu calada, pensativa.
- Não se preocupe, criança - tornou a lady. - Sei que está perplexa, mas vai acabar aprendendo.
- Não estou perplexa... estou horrorizada. Por que uma dama deve fingir e induzir um cavalheiro a fazer o que não quer? O homem não sabe o que é bom para
si mesmo?
- Se soubesse, você acha que eu seria lady Philpott? Minha querida, meu falecido marido jamais imaginou que iria se casar com uma moça pobre, de nível mais
baixo que o dele e que, além disso, não poderia ser considerada uma beleza. Mas mesmo assim casou comigo... e posso garantir que fomos muito felizes.
Susanna não soube o que dizer, pois não conseguia se convencer de que esse era o papel da mulher. Se de fato era, temia pelo futuro do mun-do, pela segurança
da Inglaterra e por seu próximo encontro com Wilfred Sharpe.
CAPÍTULO IX
A Confusão
O encontro com Wilfred Sharpe aconteceu pouco depois. Assim que parou de chover, o sol apareceu e os caminhos secaram. O grupinho, então aumentado pela presença
do pastor, resolveu ir visitar o Castelo Blaise.
Bem antes da hora marcada para saírem de carruagem para Bristol, lady Philpott mandou chamar Susanna, para ir cumprimentar o jovem Sharpe, que já se encontrava
na sala de visitas. Ela cumpriu seu dever com tanta dignidade e cortesia quanto foi possível. Infelizmente, os dois não tinham muito sobre o que conversar e durante
o tempo todo o rapaz manteve a cabeça baixa, numa atitude supostamente humilde, mas de vez em quando lançava olhares fogosos para ela, demonstrando que seus pensamentos
e intenções não eram tão inocentes quanto queria demonstrar. Os demais chegaram e, enquanto planejavam os últimos detalhes do passeio, Susanna e Wilfred foram deixados
a sós. Depois de um longo e torturante silêncio, ela lembrou das lições que recebera e perguntou:
- O senhor está gostando de Bath?
O rapaz respondeu com um encolher de ombros. Ela tentou de novo, fazendo a segunda pergunta de praxe à qual ele reagiu, dizendo que os conhecidos de Cheedham
que se encontravam na cidade haviam sido extremamente negligentes com ele até o momento, e que esperava, a partir de então, ser tratado com a cordialidade que merecia.
Diante daquelas afirmativas, Susanna ficou sem saber o que dizer e até o momento de saírem um silêncio pesado e desagradável tomou conta da sala.
Assim que pôde, sem parecer grosseira, ela saiu, indo para a frente da casa, e permitiu que lorde Blessington a ajudasse a subir no fáeton. Ao ver aquilo,
lady Philpott ficou irritada, pois não fora o que planejara. Seu humor piorou mais ainda ao notar que sir Vale observava, com evidente desagrado, os maneirismos
do lorde com a jovem que ele pretendera conduzir em sua carruagem. A zanga da senhora chegou ao auge quando notou que a srta. Lucy Bledsoe aproximava-se do baronete,
insinuante, como quem nada quer, e pouco depois acomodava-se no fáeton dele.
A carruagem de lady Philpott, que comportava seis pessoas apertadas, levou o restante do grupo. Lorde Blessington liderava a excursão, pois ele já estivera
no Castelo Blaise. Durante o trajeto, conversaram sobre os inúmeros conhecidos e amigos que ele tinha em Londres. Animadíssimo, o cavalheiro enumerou e deu o nome
de todas as damas com quem dançara naquela temporada e nas anteriores, assim como mencionou seus pais, irmãos e demais parentes, dando suas idades e dizendo quantas
vezes já haviam ido à Corte. Sem prestar muita atenção no monólogo.do lorde, Susanna deixou que seus pensamentos voassem. Desde que vira Wilfred Sharpe, na noite
dos fogos, estava com o pressentimento de que alguma coisa horrível ia acontecer. A sensação não era muito clara, mas sabia que não se tratava apenas de medo que
o jovem pastor afugentasse seus pretendentes com o escândalo das.índias Ocidentais. Tinha certeza de que algo muito pior ia acontecer.
Enquanto isso, na carruagem, lady Philpott e o jovem Sharpe conversavam com animação. Ela já ficara sabendo que o rapaz considerava montanhas, campos, rios,
pássaros, borboletas, cisnes, enfim, a natureza} tão cansativos quanto ela. Então, esqueceu que pretendia não gostar dele: era ótimo ter uma pessoa com quem entoar
suas queixas!
Edward observava e ouvia, contente por Susanna estar em segurança com o lorde. Pretendia seguir o jovem pastor como uma sombra, a fim de impedir que ele se
aproximasse de sua amiga. Cada vez que pensava naquele homem querendo beijar Susanna, enfurecia-se e não conseguia se livrar do pensamento.
- Acho que vamos gostar do Castelo Blaise - confidenciou a senhora ao jovem Sharpe -, não vamos ter de andar pelo mato, obrigados a apreciar lagoas e sapos!
Para desespero da lady, não encontrou exatamente o que imaginara. Até Susanna ficou desapontada, quando chegaram ao destino. O castelo, na verdade, não passava
de uma extravagância de um banqueiro de Boston, que o construíra. Para começar, o castelo localizava-se no alto de uma colina que se erguia no meio de um bosque.
Depois de subirem até o topo da elevação, com lady Philpott reclamando o tempo todo, encontraram o simulacro de um castelo. Não levaram mais do que cinco minutos
para dar a volta no castelo de brinquedo, com ameias e torres, tudo em miniatura.
- Onde está o resto? - indagou Lady Philpott.
- Oh! Não há mais nada. Isso é tudo - esclareceu lorde Blessington.
- O senhor me fez atravessar um bosque, escalar a colina, só para ver esta bobagem? Difícil de crer, cavalheiro!
Ela olhava severamente para o lorde, procurando controlar a fúria.
Ninguém ali havia se surpreendido, porque sabiam mais ou menos o que iriam encontrar. Mas lady Philpott, que não se informara, sentia-se decepcionada, enganada.
- O lugar é bonito, não? - perguntou o lorde, tentando amenizar a situação. - Venham, vamos entrar...
E dirigiu-se à entrada do pequeno castelo, seguido pelos demais. Passaram peio hall, peias salas, ala de serviço, quartos, terraço e subiram numa das torres,
de onde se avistava o canal de Bristol. A visita toda não levou mais do que quinze minutos e cada qual ficou imaginando o que fariam durante o resto do dia. Alguém
mencionou esse fato.
- Poderíamos ir a Woodland Lodge - sugeriu lorde Blessington.
- Oh, sim! - concordou lady Philpott, agradecida e animada. - Espero que haja por lá um lugar onde eu possa me sentar, tomar uma bebida gelada... Não há sequer
um banquinho nesta caricatura de castelo!
- Bem, não sei... - respondeu o cavalheiro, desconcertado. - Woodland Lodge está menos preparado ainda para receber visitantes. Seus moradores construíram
a casa com a ideia de ter um recanto rústico, onde passar férias com sossego, apreciando a natureza e...
- Será que existe alguma coisa real nesta cidade ou é tudo falso? -interrompeu-o a lady, com olhar ameaçador.
- A maioria das árvores aqui é.real... quero dizer, as árvores são nativas da região... Mas, por favor, não me peça para identificá-las, pois eu não saberia
- explicou o lorde, disposto a não se comprometer mais.
- Olhem! - exclamou Susanna, que se afastara do grupo e encontrava-se à beira de um penhasco. - Que recanto maravilhoso!
Todos se aproximaram e,.entre as pedras, via-se uma trilha que descia, embrenhando-se no bosque. Edward sugeriu que a seguissem, para ver onde ia dar.
- Francamente, meu sobrinho, está louco! Não vou me enfiar em uma trilha no meio do mato. - A lady voltou-se para lorde Blessington e Wilfred Sharpe,
informando: - Os senhores terão a honra de me acompanhar até a carruagem.
E saiu caminhando, rápida, enquanto o grupo permanecia imóvel, todos aturdidos. Sir Vale foi o primeiro a se recompor da surpresa e sugeriu que seguissem
a trilha. Começou a descer, oferecendo a mão a Susanna, para ajudá-la. Ela relanceou os olhos por Edward, depois aceitou a gentileza do baronete, enquanto nada restou
ao rapaz senão ajudar Lucy a descer, seguindo-os. Como iam mais lentamente, logo perderam o primeiro casal de vista.
- A srta. Bledsoe informou-me que sua situação é ainda mais delicada do que eu imaginava... - disse sir Vale quando já não podia ser ouvido pelos outros
dois. - Desculpe-me por tocar nesse assunto doloroso, mas queria que soubesse que não acho justo as consequências das ações de seu pai recaírem sobre a senhorita.
- Obrigada pela preocupação - agradeceu ela, sem encarar o cavalheiro -, mas não precisa. Estou bem.
Pararam, o baronete tirou o chapéu de copa alta e ficou brincando com ele, distraído. Susanna, de fato, sentia-se honrada, pois sabia que dificilmente um
nobre com o temperamento de sir Vale se interessava pelos problemas alheios.
- Sei que a sociedade considera meu pai um homem' desonesto, mas sei que ele nada fez de errado - disse ela, por fim. - Por isso, prefiro não falar a respeito.
- Espero que não imagine que desisti de casar com a senhorita por isso. Não dependo de ninguém para viver, tenho minha fortuna pessoal, sou dono absoluto
da minha vida. Sendo assim, faço o que quiser, sem dar satisfações. Se a senhorita conseguir ignorar as bisbilhotices e os falatórios que certamente surgirão com
o nosso compromisso e casamento, tenho certeza de que não teremos qualquer problema.
- Ainda não aceitei a sua proposta, sir. Não sei se posso ou se quero me casar com o senhor.
- Eu sei, e decidi que não a pressionaria, por enquanto. Mas daqui a duas semanas pretendo renovar meu pedido... Até lá, prometo ter pa ciência - disse ele,
confiante.
- Creio que será melhor que não o faça... Apesar de o senhor ter me declarado que prefere se casar com uma mulher que não o ama, não acredito que de fato
pense assim. E se pensa, não é o que desejo para o senhor. É muito doloroso amar quem não nos ama.
- A senhorita está apaixonada por alguém? - perguntou ele, sombrio, e ao ver que ela enrubescia, continuou: - Pelo jeito, o problema é esse... Será que se
importa em me dizer o nome do cavalheiro?
Susanna se manteve calada, mas não desviou os olhos sinceros e luminosos dos olhos penetrantes do baronete. Antes que um dos dois dissesse alguma coisa, Edward
e Lucy surgiram na trilha. Ao notar a expressão carinhosa com que Susanna fitava o amigo, sir Vale teve sua resposta.
- Não pode ser! - exclamou ele, baixinho, para que o outro casal não escutasse. - É ridículo e não vai dar certo. Pelo que sei, o sr. Farrineau pretende
se casar com a srta. Bledsoe... - E sorriu abertamente.
Susanna sentiu-se mortificada por aquelas palavras e pelo sorriso. Enquanto Edward caminhava na direção deles, murmurou:
- Lucy não aceitou o pedido dele.
Mas vai aceitar. E mesmo que ele correspondesse aos seus sentimentos, senhorita, não poderiam se casar. O jovem Farrineau não é independente e sir Dalton
jamais aprovaria.
Apesar de tudo isso já ter passado pela cabeça de Susanna, as palavras do baronete a magoaram.
- Sinto se o feri ao dizer que não o amo, sir, mas suas palavras e seu sorriso já me castigaram por isso - sussurrou ela e foi ao encontro dos amigos,
contendo as lágrimas.
Os quatro continuaram descendo a trilha, com as moças caminhando à frente, Edward esperando que se fizesse uma distância e houvesse uma oportunidade razoável
para ficar sabendo sobre o que o cavalheiro con-versara com Susanna.
As duas caminharam em silêncio por algum tempo, de vez em quando olhando para os cavalheiros.
-: Sir Vale contou-me que você o informou sobre o escândalo que houve com meu pai - disse Susanna, afinal.
- Não fique zangada comigo, por favor. Fiz isso porque queria ver se essa informação o faria mudar de ideia, o que não aconteceu. Sir .Vale é um homem de
caráter.
- Eu sei... Mas Edward não gosta dele e diz que não é uma pessoa em quem se possa confiar.
- Foi por isso que eu resolvi verificar se tem sentimentos nobres ou não - explicou Lucy.
- E eu suponho que considera a determinaçãodele em se casar comigo, mesmo depois de saber de tudo, como uma prova de seus sentimentos nobres, então.
- Eu achei que sir Vale não é ruim como o sr. Farrineau pensa...- justificou-se Lucy, os olhos enchendo-se de lágrimas pela dureza com que a amiga falava.
- Estou certa de que Edward só expressou essa opinião por estar preocupado comigo... Não falaria de alguém sem ter algum motivo forte para isso.
- Eu sei. Não culpo o sr. Farrineau e sei que lhe tem muita afeição, Susanna, e o admiro pela lealdade de amigo. E também sofro com esta dificuldade em arranjarmos
um marido para você, querida, pois eu a quero muito, sabe?
Susanna emocionou-se com as palavras da amiga, mas estava triste, também. Doía-lhe ouvir a certeza que todos tinham da amizade de Edward por ela, pois há
pouco tempo descobrira que não era a amizade dele que desejava, mas sim seu amor. Pediu licença, com uma desculpa qualquer, e saiu correndo trilha abaixo bem a tempo:
as lágrimas . enevoavam-lhe os olhos e desciam pelo rosto. Lucy Bledsoe e os dois cavalheiros, aturdidos, não sabiam o que pensar daquela atitude.
Enquanto desciam a trilha, ainda longe das moças, sir Vale e Edward conversavam kabre amenidades, porém o rapaz esperava, impaciente, por uma chance de mudar
de assunto. Como ela não surgisse, decidiu ir direto ao ponto.
- Creio que não é bem sobre essas coisas que pretende falar comigo, sir. Sinto que tem algo a me dizer. O que é?
- Pelo jeito, o senhor não gosta de perder tempo... - sorriu o baronete.
- Não acho que conversar com o senhor, sobre qualquer tema, seja perder tempo - respondeu Edward, procurando sorrir.
- Aprecio sua cortesia e, desculpe-me a franqueza, pensei que fosse um homem de palavra.
- Como assim? Não costumo faltar a minha palavra, sir.
- Ótimo. Então, espero que não tenha se esquecido do acordo que fizemos - lembrou o baronete, sério.
- Claro que não. E lembro-me que, na ocasião, o senhor prometeu não pedir a mão da srta. Marlowe antes de um mês.
- Correto. E o senhor comprometeu-se a não dar opiniões contrárias a minha pessoa e não introduzir qualquer outro candidato...
- Por que esse tom, sir? Estou cumprindo minha parte no trato, o que não quer dizer que o aprovo como marido de Susanna. E tenho esperança de que ela o recuse,
daqui a duas semanas, mesmo sem eu dar minha opinião a respeito.
- O senhor tem certeza de que não mudou de ideia?
- Por que mudaria? - estranhou Edward.
- Receei que tivesse encontrado outro pretendente para a srta. Marlowe, alguém que julge mais capaz do que eu para fazê-la feliz.
- Suas palavras me surpreendem: nunca pensei que fosse modesto a ponto de imaginar que existe alguém mais capaz do que o senhor, em alguma coisa.
- E não sou - confirmou o cavalheiro, sorrindo. - Mas como a srta. Marlowe não me ama, pensei que o senhor quisesse casá-la com o cavalheiro por quem está
apaixonada.
- Susanna não está apaixonada por ninguém. Se estivesse, eu saberia. Vai se casar por conveniência: o amor nada tem a ver com isso.
- Claro que não. Então, estamos entendidos. O senhor é um perfeito cavalheiro e será ótimo marido para a srta. Bledsoe.
- Acontece, apenas, que ela recusou meu pedido.
- Mas acabará aceitando. Ela é sensata e conhece as suas qualidades. O senhor tem sorte em ter encontrado uma dama em posição social à altura da sua. Lady
Philpott disse-me que seu pai aprova esse casamento. Desejo-lhes felicidades.
Fora a essa altura que haviam alcançado as moças e visto Susanna disparar pela trilha abaixo.
Sem fôlego, Susanna parou de correr ao divisar um lago, lá embaixo. Desceu a escada cavada na rocha que ia até lá e parou à margem, contemplando sua imagem
na água. Durante todos aqueles anos em que aguentara castigos, reprimendas e escândalos, jamais sentira pena de si mesma. Mas agora, ao lembrar as palavras e o sorriso
de sir Vale, sentia-se miserável: queria tanto que a ideia de Edward amá-la não fosse tão ridícula e absurda. Queria que o casamento com ele fosse possível.
Sobressaltou-se com um barulho vindo do mato, mas como não se repetiu,achou que tivesse sido causado por um animalzinho. Pensativa, pegou uma pedrinha e jogou-a
no lago, observando os círculos concêntricos que se formavam na superfície tranquila. Ouviu outro barulho e voltou-se, para ver Edward caminhando em sua direção.
- O que houve? - perguntou ele, notando a tristeza profunda nos olhos dela, que balançou a cabeça, indicando que não havia acontecido nada. - Você
tem de me contar o que a perturba: não vamos sair daqui enquanto não o fizer.
Ela fitou-o, em silêncio, e ele indagou:
- É por causa do casamento?
- Edward, tenho certeza de que não devo me casar. Nunca vou ser a dama que se espera que uma esposa seja.
- Vai, sim, desde que se disponha a isso. O que você acha que não pode fazer, Susanna?
- Âssusta-me tanto que nem gosto de falar... Pergunte à lady Philpott, foi ela que me explicou o que uma esposa deve fazer. Se o que ela disse é verdade,
estou perdida: nunca vou poder me casar. E, para dizer a verdade, até gosto disso.
- Não deve prestar atenção em tudo o que minha tia diz, ela é meio... esquisita. - Então, notou que a jovem não estava para brincadeiras e ficou sério. -
Está bem, então me diga: o que minha tia disse que a preocupou tanto?
- Bem, eu sempre usei meus argumentos, sempre defendi minhas ideias sem usar de subterfúgios, e é isso que uma esposa deve fazer! -Os olhos verdes encheram-se
de lágrimas. Ela se dominou para prosseguir: - Por exemplo, faz de conta que somos casados e que quero comprar uma carruagem...
- Você e eu casados? - Edward mal continha o riso. - Então, sra. Farrineau, deve saber que não temos dinheiro para extravagâncias!
- Então, digamos que eu quero comprar alguns artigos caros: como esposa, preciso fazer você querer, também...
- Ficarei feliz em ouvi-la, querida esposa, mas não vai adiantar: não podemos gastar muito porque não temos dinheiro, mesmo! - caçoou. ele, rindo.
- Pare de fazer graça, Edward! Preciso pensar... - E ela tentou se lembrar do que lady Philpótt dissera.
Com os olhos brilhando de animação, ele aguardava, até que ela disse:
- Você já viu a carruagem de sir Vale? É linda, de madeira escura, com quatro lampiões e lugar para seis pessoas. Muito confortável! Os cavalos são
negros, belos...
Ao ouvir o nome do baronete, todo divertimento desapareceu do rosto de Edward, que se tornou sério e sombrio. 1 - Não vi a carruagem, mas sir Vale é um
homem rico - respondeu, com frieza.
- O mais adorável é o lacaio que acompanha o veículo: jamais vi algo igual! - continuou ela, distraída.
A expressão do jovem tornou-se mais fechada. Será que riqueza era assim tão importante para Susanna?, pensou. Se fosse, ela ia sofrer...
- Gostaria que você tivesse uma igual, pois merece bem mais do que ele. Você é um nobre e ele é apenas rico...
Ao ver Susanna comparando-o com o baronete, Edward fitou-a intensamente, como se quisesse ler-lhe na alma. Então, mergulhou, encantado, nos enormes olhos
verde-acinzentados. Estendeu as mãos para ela, mas nesse momento Susanna começou a caminhar de um lado para o outro, agitada, enquanto ele admirava, fascinado, o
corpo elegante, esguio, modelado pelo casaquinho vermelho, as mãos longas e bem-feitas, que seguravam o chapéu da mesma cor, com plumas cinzentas.
- É horrível! - A voz de Susanna tremia de emoção. - É isso que devo fazer, é assim que devo viver? É para isso que vocês se esforçam
tanto? Vou ter de passar o resto da vida mentindo para meu marido, tentando convencê-lo de tudo?
Edward não conseguia prestar atenção no que ela dizia. Acabava de perceber que a menina que conhecera a vida toda, à qual se acostumara tanto, se tornara
uma moça fascinante. E naquele momento, junto ao lago cercado por árvores, compreendeu que enlouqueceria se Susanna se casasse com sir Vale ou com qualquer outro
homem. Nesse momento, ela aproximou-se dele, estendeu-lhe a mão, encarando-o, e disse:
- Não percebe, Edward? É isso que devo fazer, porque toda mulher casada faz. Mas eu não posso!
O jovem Farrineau tomou-lhe as mãos e apertou-as contra o peito, como se fossem um bem precioso. Viu que ela estava a ponto de chorar. Olhou-a com intensidade,
procurando tomar cuidado e pensar bem no que iria dizer.
-Se isso é uma esposa - prosseguiu ela -, se isso é unta mulher,
está claro que não sou nenhuma das duas. Pelo menos, não sei agir como se fosse..Se a argumentação e franqueza são qualidades apenas masculinas, então sou
mais homem do que mulher!
Ao notar que Edward nada dizia, ela fitou-o, aterrorizada. Será que ele concordava, achava que uma esposa tinha de ser daquele jeito? Abrira o coração, certa
de que Edward a entenderia, mas ele se calava, deixando-a esperar em vão, angustiada e temerosa de que seu silêncio era a confirmação do que ela temia.
De repente, Susannà perdeu a respiração ao sentir os lábios de Edward roçarem os dela.
E, então, ele a abraçou e beijou com ardor.
CAPÍTULO X
Resultados
Ofegantes, interromperam o beijo e os dedos trémulos de Susanna acariciaram o rosto emocionado de Edward. Ele apertou-a mais contra si, como se nunca mais
quisesse soltá-la.
Murmurava palavras ardentes junto aos cabelos dela, dizendo que a queria, que não permitiria que se afastasse dele, que não saberia dizer quando começara
a amá-la com loucura, mas sabia que tentara, inconscientemente, afastar essa ideia da cabeça, porém ela sempre retornava. Contava que sir Vale percebera seus sentimentos
por ela muito antes dele... que agora que sabia o quanto seu coração a queria, não iria mais reprimir os sentimentos.
Expressava-se com tanta eloquência que Susanna mal conseguia respirar, tal era sua felicidade. Sentia vontade de rir e de chorar ao mesmo tempo, uma dor deliciosa
se expandindo dentro do peito e espalhando-se pelo corpo todo.
Depois de vários beijos e murmúrios apaixonados, Edward afastou-se apenas o suficiente para olhá-la.
- Como é possível ser tão feliz? - sussurrou ela. Depois estremeceu. - O que vai acontecer com Lucy? Vamos partir-lhe o coração...
- Eu não acho - replicou ele. - Lucy anda muito interessada em sir Vale.
Susanna afastou-se bruscamente e pôs as mãos na cintura.
- Claro que ela vai sofrer! - exclamou, zangada. - Lucy é uma moça sensata e a única atitude sensata nesta situação é ficar desconsolada e sofrer. Perder
um homem como você...
- Só você podia imaginar tal coisa, Susanna! Como gosta de mim não vê meus defeitos.
- Você não tem defeitos... pelo menos, não tem nenhum que eu não adore! -. Nem minha adoração por César? - indagou ele, rindo.
- Acho que como sua esposa terei de ser tolerante. Edward, precisa falar já com Lucy, para eu ficar em paz... E preciso aprender a controlar minhas
emoções, pois uma dama não deve demonstrar seus sentimentos em público.
- Vou falar com ela - prometeu ele, e abraçou-a.
- Então fale agora, meu amor - Susanna sussurou ao ouvido dele. - Não vai haver melhor oportunidade.
- Você é exigente, mesmo! - Relutante, ele a soltou.
Depois que Edward desapareceu, escadinha acima, Susanna suspirou, tentando pôr em ordem tudo o que acontecera. Há dez minutos sofria por achar seu amor absurdo
e, agora, descobrira que ele a amava também. Assim que esclarecesse tudo com a srta. Bledsoe, sua felicidade seria perfeita.
- Bem, acho que agora é a minha vez - disse uma voz atrás dela, que se voltou, assustada.
Era Wilfred Sharpe, que emergia do mato, com seu rosto de anjo, mas expressão maldosa. Conforme ele descia os degraus de pedra, Susanna cerrava cada vez
mais os punhos, os nós dos dedos tornando-se brancos, tal a força que fazia. Era isso. Sentira que algo horrível ia acontecer...
De repente, percebeu o que a perturbava desde a noite dos fogos de artifício, quando vira o rapaz de relance. Não receava o que o jovem Sharpe podia fazer
com sua reputação, mas sim o que ela poderia fazer se ele insistisse em perturbá-la. Não queria perder a cabeça, o que quer que fosse que aquele homem fizesse. Lembrou
a si mesma que devia agir como uma lady, não importava quais as ações dele. Estava resolvida a não tomar nenhuma atitude ultrajante. Se acabasse empurrando Wilfred
Sharpe para dentro do lago ou torcendo o nariz dele, jamais se perdoaria, pois isso provaria que não era digna de se tornar a esposa de Edward Farrineau.
- Acho que esta é a primeira vez que consigo assustá-la, mesmo - comentou o rapaz, vendo que ela tremia. - Ótimo, assim não vai se recusar a me dar
um beijo.
Ela esticou um braço, impedindo-o de se aproximar mais.
- Pelo que vi, não teve qualquer problema em beijar várias vezes Edward Farrineau - declarou ele, malicioso.
- Por favor, queira se comportar, cavalheiro...
- Eu não sou um cavalheiro. - E ele avançou mais um pouco. -Meu consolo por ter sido mandado para este buraco no mundo foi ver que você estava aqui e que
eu poderia tentar várias maneiras de fazê-la se arrepender por ter me posto aquele apelido horroroso, que odeio...
Ele agarrou-lhe um braço e puxou-a, brutalmente, tentando beijar-lhe os lábios, mas ela desviou o rosto, fazendo-o beijar o ar.
- Eu nunca o chamei de Wílly-Lírio! - gritou Susanna, zangada.
- Então, vai se arrepender por ter provocado a invenção desse apelido! - Soltou-a, deixando as marcas vemelhas de seus dedos no braço delicado.
Ela tentou subir a escada, porém ele impediu-lhe a passagem. Ia sair correndo pelo lado, mato a dentro, mas ele a fez parar, gritando:
- Vou contar a sir Dalton tudo sobre você e o filho dele! Garanto que ele acaba com isso!
Angustiada, ela encarou-o.
- É isso - disse Wilfred, frio. - Vai fazer o que eu mandar ou conto tudo. Primeiro, vai suplicar meu perdão pelo que me fez - exigiu, aproximando-se
e segurando-lhe o braço de novo. - Depois, vai me implorar um beijo!
Susanna fechou os olhos, as mãos formigando para dar a Wilfred o que ele merecia. Mas determinou-se a não esbofeteá-lo. Tinha feito uma promessa e ia cumpri-la.
Respirou fundo, fez uma reverência, abriu os olhos e disse, suavemente:
- Lady Philpott deve estar preocupada com minha ausência. Tenho
certeza de que o senhor me dará licença...
Dito isto, tirou os sapatos e, da maneira mais digna possível, entrou na água e rodeou o rapaz, andando na beirada do lago.
Entretanto, a srta. Bledsoe não conseguia resistir e perguntava a sir Vale por que sorria. Ele demorou um pouco a responder, mas o fez:
- Daqui a uns dias vou propor casamento à srta. Marlowe, de novo, e dessa vez serei aceito.
- Talvez esteja sendo um tanto precipitado, milorde... - disse ela, tornando-se muito pálida. - E se o sr. Farrineau a fizer recusar?
- Ele prometeu não interferir, durante mais duas semanas. Não vou ter qualquer problema.
- Desculpe-me, porém acho que Susanna não está preparada para aceitar o senhor - murmurou ela, levando a mão à testa, como se estivesse com alguma dor.
- Vou convencê-la a me aceitar... - Ele calou-se, depois prosseguiu, seguro de si: - Jamais fracassei com as mulheres e esta não será a primeira vez.
- Por que quer se casar com uma moça que precisa ser persuadida?
- indagou a srta. Bledsoe, triste. - Não seria preferível casar com uma que já o ame?
- Mulheres apaixonadas são cansativas. - Ele riu, divertido. - Nunca estive tão interessado numa mulher como estou agora, pela srta. Marlowe.
- Então, prefere quem não o ama... É desprezível de sua parte! - exclamou Lucy, revoltada.
Claro que a senhorita tem direito a sua opinião, mas aconselho-a a seguir o exemplo da srta. Marlowe. Toda dama deveria demonstrar a resistência dela...
.
- Susanna nunca o aceitará - disse Lucy, magoada com a insinuação maldosa do baronete. - Toda sua riqueza e seu charme não bastam para conquistá-la.
E ela não é cega aos seus defeitos, como as demais damas.
- Está enganada... Tenho certeza de que lady Philpott a convencerá a me aceitar. Na verdade, quando fui visitar a querida lady e lhe levei umas pequenas
jóias de presente, ela garantiu-me que serei aceito.
Ao terminar de falar, sem que Lucy pudesse reagir, segurou-a pelos ombros, fechou-lhe os lábios com os seus e manteve-a apertada contra si até ela ceder e
corresponder ao beijo imposto. Então, largou-a, afastou-se e começou a rir.
- Como vê, acabo de provar meu ponto de vista. Submissão é uma fraqueza comum ao seu sexo.
Era evidente que o baronete quisera infligir-lhe humilhação ao beijá-la. Trémula, ela limpou os lábios com a mãozinha enluvada.
- Até me apaixonar pelo senhor, jamais havia me sentido tão envergonhada - murmurou. - Agora, desprezo a mim mesma, tanto quanto o desprezo.
- A senhorita sabe muito bem que não me despreza.
- Eu tive o amor e a devoção de um homem honesto, honrado e recusei. Ele me teria mantido em segurança, longe de pessoas como o senhor.
- Talvez não seja tarde demais para aceitar esse modelo de virtudes. Eu acho que deve ser um cavalheiro muito aborrecido, mas...
- É o que vou fazer! - exclamou a jovem, sem saber o que dizia, tal era sua angústia. - Ele sim, me tratará com carinho e respeito.
A srta. Bledsoe sentia ímpetos, de esbofetear o baronete, que ria cinicamente, quando Edward se aproximou e pediu-lhe para lhe falar a sós. Sir Vale fez uma
reverência como despedida e começou a subir a trilha. Foi então que Edward percebeu que ela chorava e quis saber o que tinha havido.
- É terrível amar! - desabafou Lucy. - As pessoas não deviam se apaixonar.
Edward não pode deixar de sorrir diante de uma declaração tão dramática.
- Está apaixonada, srta. Bledsoe? - perguntou, gentil.
- O senhor sabe o que é amar, não sabe? Não está apenas querendo se divertir, não é? Eu devia ter reconhecido seu bom caráter antes, mas estava cega de amor.
Já não estou mais...
Sem saber do que falava, o jovem Farrineau felicitou-a pela decisão tomada. Num gesto inesperado, ela jogou-se nos braços dele, segurou-o pelas lapelas e
o choro redobrou, mais amargo. Afagando-a, ele deixou que chorasse, até que percebeu que ela se acalmava. Ainda soluçando, ela perguntou:
- É verdade? O senhor prometeu não interferir entre a srta. Marlowe e sir Vale?
- Foi ele quem lhe contou isso? - E diante do aceno afirmativo dela, prosseguiu: - Não se aflija. Já tomei providências e ele não irá perturbar Susanna. Por
que se aflige tanto, minha cara? Nunca a vi assim...
Ela sorriu entre as lágrimas e, recuando, respondeu:
- Eu já podia estar casada com o senhor, se tivesse prestado atenção nos meus próprios conceitos sobre honestidade.
Antes que ele pudesse falar, o baronete gritou, do alto da trilha:
- A srta. Marlowe sofreu um acidente... venham, depressa. - Apesar de sua voz estar firme, notava-se que era grande a preocupação do cavalheiro.
Susanna aproximou-se de lady Philpott, que se encontrava sentada no gramado, perto da carruagem. Não muito longe, lorde Blessington arregalou os olhos ao
notar que parte da saia dela, as meias e os sapatos estavam encharcados. Percebeu que ela batia os dentes de frio. O tempo mudara, soprava um vento gelado, prenúncio
de chuva, e Susanna sentia arrepios lhe percorrerem o corpo todo. Ao ver o estado de sua protegida, a senhora levantou-se.
- Minha pobre criança, o que aconteceu? Está tremendo de frio, vai ficar doente! - Aproximou-se, pegou os sapatos que ela trazia numa das mãos e amparou-a.
- Precisei passar por dentro do lago... - ela ia continuar explicando, mas começou a espirrar.
- É isso que dá se enfiar no mato! - exclamou a lady, olhando furiosa para lorde Blessington.
O lorde mandou um lacaio ao castelo, para ver se havia alguém, na casa do proprietário, que pudesse ajudar. Logo apareceu a cozinheira, com um cobertor de
lã com o qual envolveu Susanna. Levaram-na para a casa e a fizeram acomodar-se junto da lareira, que fora imediatamente acesa. Ofereceram-lhe um cálice de brandy
e, assim que ela se sentiu mais aquecida, lady Philpott fez com que a levassem para a carruagem e voltaram imediatamente para casa.
Lorde Blessington ficou encarregado de explicar ao restante do grupo o que acontecera. Ele aguardou, impaciente, ansioso para contar a novidade. Assim que
viu sir Vale, Edward e Lucy chegarem, gritou:
-A srta. Marlowe andou passeando dentro do lago! Acho que vai ficar muito doente!
- Sabe o que aconteceu? - indagou Edward.
- Não, mas ouvi-a dizer que foi obrigada a entrar na água... Ela deve ter caído no lago por acaso, não?
Os três fizeram uma porção de perguntas que o lorde não soube responder. Mas ao descobrir que conseguira a atenção de todos, fez uma detalhada descrição do
estado em que Susanna se encontrava. Alarmado, o jovem Farrineau pediu que sir Vale o levasse para a cidade. Lucy, que se recusara a ir junto com o baronete, ficou
em companhia do lorde, esperando por Wilfred Sharpe, que apareceu pouco depois dos dois cavalheiros terem ido embora. Ouviu com atenção o relato do incidente e,
ao ver que seu nome não fora relacionado com o caso, ficou tranquilo. Terminada a explicação, os três dirigiram-se para as termas, no fáe-ton de lorde Blessington.
Durante a viagem de volta, o lorde, com intenso prazer, verificou que tinha toda a atenção dos companheiros. Até então, não descobrira que possuía tanto talento
dramático para contar histórias. Afinal, chegou à conclusão de que era um homem muito interessante e ficou encantado com a descoberta. Sentiu-se tão animado com
seu novo talento que, assim que chegaram à cidade, foi para o clube Lower Rooms, onde pôde repetir a narrativa para uma porção de conhecidos interessados em saber
os detalhes daquele acontecimento incrível.
Nesse dia, lady Philpott não permitiu que Susanna recebesse visitas. Ela estava com febre e calafrios. Zangada, a senhora chegou a responsabilizá-los pelo
acontecido, pois se não tivessem ido parar naquele lugar horroroso chamado Castelo Blaise nada daquilo teria acontecido.
Quando Edward voltou para seus aposentos na hospedaria da Milson Street, encontrou o pai à espera. Depois de contar como estavam as coisas e como tinha sido
a viagem, ele disse que iria hospedar-se ali, também. Então, reparou na expressão preocupada do filho, e quis saber o que houvera. Receava que ele estivesse doente
e acompanhava-o, com os olhos, enquanto o rapaz, aflito, andava de um lado para outro.
- É Susanna... a srta. Marlowe - disse, por fim. - Ela sofreu um acidente e não me permitem vê-la. Temo que esteja muito doente... Não consegui informações.
Só sei que caiu no lago de Castelo Blaise.
Ao ouvir isso, o semblante do sr. Farrineau escureceu. Levantou-se, aproximou-se do filho e segurou-lhe os ombros.
- Meu rapaz, está querendo dizer que a srta. Marlowe resolveu nadar outra vez? Havia algum rapaz com ela?
Edward fitou o pai, com descrédito nos olhos escuros.
- Esse é um comentário muito maldoso, pai! - Olhou friamente para o cavalheiro. - Não havia percebido, ainda, que o senhor não tem compaixão!
- Desculpe se o ofendi - disse sir Dalton, magoado com a observação -, mas lembre-se de que essa não é a primeira vez que tal coisa acontece e, certamente,
não será a última.
- Susanna mudou muito, papai. É uma verdadeira lady...
- Essa é uma coisa que ela nunca será. A srta. Bledsoe, sim! Ela é uma verdadeira dama.
- Não quero falar sobre a srta. Bledsoe, pai.
- Mas vai falar. Precisa propor-lhe casamento de novo - insistiu o sr. Farrineau. - Não se ofenda porque ela recusou uma vez. As damas devem agir assim.
- Não tenho condições de pensar em nada, com Susanna doente e sem poder vê-la.
- Não vejo por que isso o impede de pensar sobre seu casamento com uma senhorita... - comentou.sir Dalton, tendo, no entanto, um pressentimento.
O filho, passou as mãos pelos cabelos escuros, num gesto cansado.
- Porque pretendo me casar com a srta. Marlowe e gostaria que o senhor não a desabonasse na minha presença.
Aparvalhado com o que acabara de ouvir, sir Dalton dirigiu-se para uma poltrona, onde despencou, chocado demais para falar.
Fez-se profundo silêncio entre pai e filho, podendo-se ouvir o tique-taque do relógio. Edward perguntava-se se a implicância do pai com Susanna iria separá-lo
dela. Por seu lado, o cavalheiro via-se diante de um futuro negro e desolador. Chegara a Bath há menos de duas horas e seus sonhos mais queridos tinham se desfeito
como nuvens. E de quem era a culpa? Daquela moça insuportável e do pai dela.
Vendo a tristeza do pai, Edward viu-se desesperado. Há poucas horas sentia-se inteiramente feliz, beijando a mulher amada, agora tinha a sensação de ter envelhecido
cem anos. Nada acontecia como imaginara.
- Não vou discutir essa questão, Edward - disse sir Dalton. - Não sei de quem puxou tal teimosia, mas não pretendo intensificá-la com discussões. - Ergueu-se,
com gestos cansados. - Se quiser me ver, estarei na hospedaria White Hart.
- Pensei que fosse ficar aqui, pai - disse o jovem, surpreso.
- Eu queria ficar, mas já que decidiu casar com a srta. Marlowe, acho que devo me retirar.
- Papai, vai acabar gostando dela, se a conhecer melhor. -Aproximou-se do cavalheiro. - Por favor...
Eu não quero gostar dela - disse sir Dalton, com a voz presa na garganta, repassada de ódio. - Pretendo desprezá-la até o último de meus dias.
Dito isso, pegou o chapéu e saiu, esperando que o filho reconsiderasse sua decisão.
Na noite desse dia, a febre de Susanna baixou e ela conseguiu sentar-se na cama, acomodada sobre travesseiros.
- Minha querida, espero que sare logo, não só por não gostar de vê-la doente, mas também porque precisamos resolver vários problemas.... - começou
lady Philpott.
- Conte-me logo as más notícias - pediu Susanna, depois de espirrar violentamente.
- Receio que a notícia de seu acidente se espalhou por todo canto.
Wilfred Sharpe fez um bom trabalho... Tenho vontade de torcer o pescoço dele, de açoitá-lo!
- Pode deixar que eu dou um jeito na situação... - disse a doente, com voz fraca e um suspiro profundo.
- Você não está em condições de dar àquele patife o castigo que ele merece!
- Esse rapaz já infernizou demais a minha vida. Está na hora de eu acabar com isso! - Havia um brilho determinado nos olhos febris de Susanna.
- Besteira! Você não está curada para fazer essas coisas, mas acho que pode muito bem receber a proposta de casamento de sir Vale.
- Proposta de casamento? Oh, não! Não me sinto bem, ainda, para receber sir Saunders!
- Claro que está. Não podemos perder tempo. Com os rumores que andam por aí, não devemos dar chance ao baronete de mudar de ideia...
- Mas ao reparar na palidez da jovem, lady Philpott reconsiderou: -É... Talvez ainda seja cedo demais.
- Há uma pessoa que eu gostaria de ver...
- Se for lorde Blessington, aviso-a de que ele não vai mais pôr os pés nesta casa, depois do que fez!
- Não, não é ele... Gostaria de receber a visita de Wilfred Sharpe. Não posso ver ninguém antes de conversar com ele.
- Aquele homem odioso?! - A lady sentiu-se perdida, sem entender mais nada. - Bem, já que quer, assim -será.
Wilfred Sharpe era muitas coisas, mas ninguém poderia chamá-lo de idiota. Prevendo que Susanna poderia contar tudo o que acontecera, assim que chegasse à
cidade, não perdera tempo. Em seu quarto, tratara de arrumar as malas. Apresentara o pedido de demissão ao pastor oficial e, no dia seguinte, estava pronto para
sair da hospedaria e partir
quando recebeu um recado inesperado de Sydney Place. Tratava-se de um amável convite de lady Philpott, pedindo-lhe que fosse visitar Susanna. Resolveu aceitá-lo
e ver o que acontecia.
Enquanto ainda se encontrava com febre, Susanna delirara entre imagens terríveis da vingança que encetaria contra o jovem pastor. Mas quando a febre passou,
percebeu que se encontrava fraca demais para pôr em execução qualquer tipo de ataque. Aos poucos, um plano foi se formando em sua mente. Queria resolver aquela situação
sozinha, pois ultimamente parecia não mais poder controlar a própria vida. Para alcançar seu objetivo de livrar-se de Wilfred Sharpe para sempre, precisara não contar
a ninguém a participação dele no incidente do lago.
Quase desistiu do plano ao ver o rosto do rapaz, ao entrar na sala onde o esperava. Precisou fazer um esforço sobre-humano para não agir segundo o primeiro
impulso e se manter tranquila. Pediu a lady Philpott que providenciasse um chá e, quando a senhora se retirou para cuidar disso, encerrou a conversa sobre amenidades
que mantivera até então e foi direto ao ponto:
- Quer dizer que o senhor não se contentou em me forçar a entrar no lago... Teve de espalhar a história, também!
- Eu não disse uma palavra sequer sobre o que aconteceu - garantiu o rapaz, empalidecendo. - Juro!
- Sr. Sharpe, exijo que esqueça seu rancor contra mim. - Susanna ergueu-se e continuou, altiva: - Lembre-se de que o dever de um homem da igreja é perdoar.
Teve de se calar diante de um ataque de espirros e ele, mortificado, afundou-se na poltrona.
- Prometa-me - prosseguiu ela - que nunca mais vai se comportar da maneira abominável que tem feito.
Ficou esperando em vão por uma resposta, pois o rapaz apenas se remexeu, inquieto. Ela se aproximou e perguntou, imperativa:
- O que o senhor deseja de mim? Não acredito que possa ter sido tão cruel durante todos esses anos, desde que mentiu dizendo que eu lhe dera um beijo, quando
éramos crianças, até agora, só porque deseja, de fato, esse beijo...
- Eu não sei o que quero! - respondeu ele, mal-humorado. - Só sei que tenho sido humilhado pela senhorita, que sempre levou a melhor sobre mim.
- E o seu objetivo é me humilhar, como acha que eu o humilhei... É isso? - perguntou ela, depois de pensar um pouco. Quando o viu concordar com um aceno de
cabeça, continuou: - O senhor acha que um beijo resolveria tudo? Eu... É... Acho que sim.
- Muito bem - ela olhou fixamente -, o senhor terá seu beijo.
- Quê?!
- Por favor, tenha a bondade de ser o mais rápido possível. - Ela virou o rosto e indicou-lhe a face. - Vamos, dê-me um beijo aqui e está tudo resolvido.
O rapaz ficou olhando para ela, boquiaberto, depois se recompôs e exclamou:
- Não! Eu não vou beijá-la. Nunca!
- Não disse que queria me beijar, para me castigar do que fiz com o senhor? - perguntou ela, estreitando os olhos, que se tornaram quase duas fendas. - Aqui
está a oportunidade e aqui está meu rosto. O que mais o senhor deseja?
- Assim eu não quero! Você não deveria estar tão sossegada, quase satisfeita! - murmurou ele, com voz rouca. - Teria de tremer de repugnância e medo. Diabo,
não entende?! Estragou tudo quando concordou com o beijo. Não vale mais a pena!
- E o que o senhor pretende? Vamos continuar atormentando um ao outro, pelo resto de nossas vidas?
- Se eu desistir da implicância, me faria um favor? - perguntou ele, cauteloso.
- Não vou mais beijá-lo: o senhor perdeu sua chance.
- Gostaria que acreditasse em mim, quando digo que não fui eu que espalhei a história do lago.
- E por que eu deveria acreditar no senhor?
Ele se levantou e explicou, exaltado:
- Não me nego a assumir a culpa do que fiz, mas não me responsabilizo pelos atos dos outros. Lorde Blessington saiu por aí contando a todo mundo o
que aconteceu no lago. Não fui eu! Por que o faria? Havia o perigo de você contar a minha parte no incidente...
Susanna sorriu diante daquela explosão do velho inimigo. Voltou para o sofá e sentou-se, apoiando cansadamente a cabeça numa almofada.
- Muito bem, acredito no senhor - disse, com dignidade. - E espero que este seja o começo do entendimento entre nós. De hoje em diante, quero que se
comporte como cavalheiro em minha presença. Estamos de acordo?
Ele concordou, com a cabeça.
- Por minha vez, comprometo-me a nunca mais jogar água no senhor, nem agredi-lo de alguma forma - prometeu, com ar solene.
- E pretende contar a alguém o que aconteceu no lago? - perguntou ele, depois de observá-la em silêncio por momentos.
- Se eu contasse, prejudicaria sua carreira de pastor, não é? - ela sorriu, com certa ironia. - Não vou dizer uma palavra sobre o caso, a não ser que seja
forçada...
- Não é do meu interesse forçá-la quanto a isso.
- Então, temos um pacto! - declarou Susanna, séria, estendendo a mão ao rapaz.
Ele enxugou a própria mão no paletó, pois estava suada de nervosismo, e apertou a dela, selando o acordo. Depois, dominado pelo porte majestoso da jovem,
apesar de estar pálida e abatida, os olhos enormes no rostinho branco, inclinou-se, beijou-lhe a mão, pediu licença e saiu.
Quando teve certeza de que Wilfred Sharpe saíra da casa, Susanna saltou do sofá, ergueu as saias e deu alguns animados passos de dança, comemorando o sucesso.
CAPÍTULO XI
Providências Desesperadas
Até conseguir permissão para ir a Sydney Place, Edward ficou andando pelas ruas, praças e parques de Bath, sem destino. Quando, afinal, chegou ao topo da
alameda Beeçhen Cliff e observou a vista da cidade inteira, já chegara à conclusão do que queria fazer.
Casaria com Susanna, assim poderia cuidar dela e teria a companheira ideal. Era fácil perceber que ela era a esposa ideal para ele. Aliás, os dois sempre
haviam combinado perfeitamente.
Só agora percebia como fora cego. Lucy chorara em seu peito, lamentando a própria cegueira e ele agira tão cegamente quanto ela. Susanna sofrera bastante
por causa disso. Bem, é verdade que todas as vezes que pensara em casá-la, também tinha sofrido muito. Não adiantava ficar relembrando o passado. O futuro prometia
ser bem melhor.
Ele chegava a sorrir, pensando no pedido de casamento que faria a Susanna. Aliás, poderia fazê-lo ali, com a cidade aos pés deles. Foi então que lembrou da
promessa que fizera a sir Vale. Ia ter de esperar duas semanas inteiras para falar com sua amada sobre casamento. Precisaria controlar os impulsos de seu coração,
dando respostas evasivas quando ela tocasse no assunto.
Essa ideia o amargurava quase tanto quanto a de Susanna se casando com outro. Ele estava acostumado a ser direto e franco, não sabia mentir. E não tinha qualquer
ideia de como poderia contar a verdade sem trair o acordo que fizera. Seria uma atitude difícil de manter, principalmente para uma pessoa honrada e sincera.
Ao pensar nisso, lembrou-se de dois outros problemas a serem enfrentados: seu pai e a srta. Bledsoe. Tivera esperança de que o interessse dela pelo baronete
resolvesse duas situações: o afastamento de sir Vale de Susanna e o fato de ela não se sentir abandonada, quando lhe contasse que ia casar com a amiga de infância.
Mas pelas lágrimas que presenciara em Blaise, já não sabia se esse raciocínio estava certo.
Quanto ao pai, as dúvidas eram ainda maiores. Sir Dalton não iria aceitar'facilmente como nora uma moça que pretendera exilar na Escócia. E ele gostava demais
do velho cavalheiro para forçá-lo a mudar de ideia de repente.
Voltou para a cidade pensando nesses dois problemas. Como falar com Lucy? Como convencer o pai a aceitar Susanna? As respostas não. haviam surgido quando
ele entrou em seu quarto. E ao fazê-lo encontrou uma carta urgentíssima que o fez esquecer-se de tudo o mais.
Assim que.terminou de ler a carta, Edward foi à casa da tia e ficou sabendo que Susanna já estava suficientemente bem para recebê-lo.
Na sala de visitas, lady Philpott, animada, tratou de entreter os jovens com notícias sobre os rumores que corriam por Bath, tendo como centro o incidente
acontecido com sua jovem protegida.
- Só espero que isso não faça sir Vale desistir - lamentou-se, depois. - Mas acho que ele não se importa com escândalos, não acham? É... Mas qualquer
cavalheiro desistiria. E se ele desistir, o que faremos? Vou ter de sustentar essa menina pelo resto da vida? Não pode ser! Ela precisa se casar com sir Vale!
A agitada senhora monologava, sem esperar qualquer resposta dos jovens. De vez em quando punha-se à andar de um lado para outro. A certo momento, precisou
ir conversar com a governanta sobre o que teriam para o jantar e Edward imediatamente aproveitou para sentar-se ao lado de Susanna. Ela fitou o rosto querido, agora
tão perto do seu. Estava queimado pelo sol do verão e uma mecha dos cabelos negros caía-lhe na testa. Quando sorriu, ela admirou o queixo forte, os dentes luminosos
e os olhos escuros, profundos e expressivos.
- Conte-me, como foi a conversa com Lucy? - perguntou, ansiosa.
- Ainda não falei com ela...
- Não? Por quê?
- Quando fui ao encontro dela, em Blaise, encontrei-a muito nervosa, aflita. Não descobri por que e não deu para falar naquele momento, pois quando ia fazê-lo,
sir Vale chegou com a notícia do incidente. E desde então tenho vivido só me forçando a pensar que você não ia morrer...
- Ninguém morre só porque entra na água, meu amor. - Ela espirrou. _ Se não falou com ela, como vamos poder nos casar?
- Não vamos tratar de casamento, por enquanto - pediu ele, muito serio. - Conversaremos sobre isso quando eu voltar. Preciso ir imediatamente para Londres.
- Oh, Edward! Logo agora? Lady Philpott está me pressionando para aceitar o pedido de sir Vale - ela queixou-se, ansiosa.
- Você sabe que eu não iria se não fosse muito importante... - argumentou Edward, segurando-lhe as mãos.
Ela se aproximou mais e olhou-o com tanta intensidade e carinho que ele sentiu-se tentado a desistir de tudo e beijá-la, entregando-se ao amor que os unia.
No entanto, resistiu. Susanna chegou ainda mais perto, então ele não aguentou e beijou-a, com doçura. Quando a soltou, disse, ofegando:
- Eu queria muito ficar, mas preciso ir. Quanto mais depressa for, mais depressa estarei de volta... - Ergueu-se, encaminhou-se para a porta e antes
de sair voltou-se para dizer: - Eu te amo.
Susanna demonstrou-se tão deprimida nos dias seguintes que lady Phil-pott permitiu-lhe ir passear junto ao canal, fazendo o supremo sacrifício de acompanhá-la.
Quando voltaram para casa, encontraram a srta. Bledsoe, que havia ido visitá-las. Sentaram-se na sala de visitas e durante a conversa a lady ficou sabendo que seu
cunhado estava na cidade e visitara o pai da jovem. Ficou indignada por ser ignorada por sir Dalton. Chegou até a declarar que sentia-se tão deprimida quanto sua
protegida, diante dessa situação grosseira.
- Talvez as notícias que trago as animem - disse a visitante, erguendo das mãos um olhar tenso, que tentou disfarçar com um sorriso. - Resolvi aceitar
o pedido de casamento do sr. Farrineau.
A voz de Lucy tremeu ao fazer o comunicado e, não conseguindo sustentar o olhar de Susanna, voltou a baixá-lo para as mãos, que retorcia nervosamente. As
reações foram diferentes: a srta. Marlowe ficou muito pálida e lady Philpott bateu palmas, contente.
- Que ótima notícia! - exclamou. - Não imagino um casal que combine melhor do que vocês dois, a não ser sir Vale com Susanna.
- Pelo que eu soube, ele fará um novo pedido, assim que Susanna estiver boa, e parece que o sr. Farrineau não oporá qualquer objeção.
- Não compreendo... - murmurou Susanna, sentindo que seu rosto esquentava, e imaginou que estivesse ficando corada. - Quando você mudou de ideia?
- Foi em Blaise, um pouco antes do seu incidente no lago. Não tivemos oportunidade de conversar desde aquele dia, não? - Lucy fazia tudo para dar
impressão de alegria. - Como o seu casamento está quase acertado com o baronete, espero que me deseje felicidades, Susanna. Se há alguém que pode tornar sir Vale
um bom homem, é você, pois ele a ama profundamente.
Susanna ergueu-se da poltrona e foi para junto da janela e, apesar do calor do sol, não conseguia parar de tremer.
- Você e Edward estão noivos, então? - perguntou, afinal, dominando ò tremor da voz. - Não pode ser!
Lady Philpott achou-se obrigada a se desculpar pelo comportamento descortês de sua protegida e disse à srta. Bledsoe que ela ainda não estava completamente
boa.
- Edward contou-lhe sobre o que nós dois conversamos? - insistiu Susanna, tensa.
- Não tenho visto o sr. Farrineau. Ele precisou ir para Londres, a negócios... - explicou Lucy.
- É impossível! - repetiu a jovem Marlowe.
- Impossível, por quê? - gritou a srta. Bledsoe, perdendo o controle, tremendo incontrolavelmente. - Por que é tão difícil aceitar que eu posso ser amada
como você é? Por que não posso ser adorada e protegida por ele?!
As outras duas observavam-na, aturdidas. Jamais esperariam uma reação dessas na contida srta. Bledsoe. Susanna ficou em silêncio, sem saber o que pensar
daquilo tudo.
Então, Lucy Bledsoe, envergonhada com a própria atitude, queria sumir. Mas foi impedida de se retirar pela chegada do baronete, que cumprimentou-as com a
costumeira audácia, dizendo que estava apenas de passagem, pois tinha um compromisso com sir Walter EUiot, em Cam-den Place, mas queria saber se a srta. Marlowe
estava recuperada o bastante para comparecer com ele a uma reunião na noite seguinte. Não obteve resposta, pois Susanna ainda não recuperara a fala.
- Acabo de comunicar a Susanna e a lady Philpott que aceitarei o pedido de casamento do sr. Farrineau - informou ousadamente a srta. Bledsoe.
- Desejo-lhe felicidades - disse o baronete, e olhou ao redor. -Onde está seu noivo? Quero cumprimentá-lo por ter conquistado o coração de uma das mais belas
damas do Reino Unido!
Lucy, que sentia ímpetos de se atirar nos braços de sir Saunders e chorar, controlou-se e respondeu:
- Eu é que devo ser cumprimentada, por ter sido escolhida por um homem honrado e de caráter.
- Claro! Aliás, conto com essas qualidades dele para ter sucesso em certos empreendimentos - riu o cavalheiro.
- É verdade que ele aprovou que o senhor me peça em casamento?- perguntou Susanna, por fim.
- Sim, é verdade - respondeu ele, depois de pensar um pouco. - Prometeu-me que não iria interferir nem colocar objeções. Disse, até, que não lhe apresentaria
nenhum outro candidato.
- Ah, sim... - murmurou Susanna, baixando os olhos.
- Talvez a senhorita não aprove que tenhamos feito acordos sem seu conhecimento, mas sabe que situações desesperadas exigem medidas drásticas.
Abatida, Susanna não tinha ânimo sequer para erguer a cabeça. Sir Vale achava-a mais linda, assim pálida e triste. Satisfeito, pensava que teria de agradecer
à srta. Bledsoe por ter tirado Edward Farrineau de seu caminho.
Nem bem sir Vale saiu, a srta. Lucy desculpou-se, cumprimentou a amiga e retirou-se também, deixando Susanna com as novidades para pensar. Havia cavalheiros
que não se importavam em amar uma moça e casar-se com outra, segundo conveniências. Mas tinha certeza de que Edward não era desse tipo. Sabia que apesar de ser pessoa
suspeita no caso, não se enganara sobre o caráter firme dele.
No entanto, ele se recusara a falar sobre casamento antes de partir e podia ter inventado a história de negócios urgentes em Londres. Será que se arrependera
de ter declarado seu amor por ela? Ou estaria com vergonha por ela ter entrado no lago? Talvez tivesse percebido que ela não era o tipo de mulher com quem devia
se casar e resolvera ir embora em vez de falar-lhe com franqueza.
Levou as mãos à boca para abafar o gemido de tristeza e desconsolo. A culpa era dela, por não saber se comportar como uma lady. Zangava-se consigo mesma
por não saber ser nada além de uma mal-educada encrenqueira.
- Está chorando, minha querida? - perguntou lady Philpott, aflita.
- Não, senhora... É cansaço e o resfriado... - respondeu ela, tentando sorrir.
- Então, vá para a cama sem demora, que amanhã deverá estar linda e bem descansada, para enfim conquistar sir Vale!
Para seu espanto, sir Dalton descobriu que conhecia pouquíssima gente em Bath. Wilfred Sharpe voltara para Cheedham e Edward fora para Londres. Poderia ir
visitar a cunhada, aliás tinha o dever de fazê-lo, mas nada o faria entrar na casa que abrigava a mulher que o separava do filho. Por isso, decidiu ir ao Salão das
Fontes, para ver se encontrava alguém conhecido por lá.
Ao chegar, foi para uma das fontes tomar um copo de água medicinal e lá estava quando ouviu um cavalheiro comentando a última aventura da.srta. Marlowe.
Aproximou-se do rapaz e tomou a liberdade de se apresentar. Lorde Blessington ficou encantado ao conseguir a atenção de um senhor tão distinto.
- Por acaso, o senhor viu essa dama pular no lago?
- Pular? Oh! Não foi isso. Foi um acidente.
- Tenho certeza de que não - discordou sir Dalton. - Por acaso, ela estava sozinha ou algum cavalheiro a acompanhava?
- Juro que ela estava sozinha! - exclamou o lorde, chocado, erguendo-se abruptamente.
- Receio que ela esteja acostumada a nadar com cavalheiros... -sussurrou o sr. Farrineau. - Já fez isso antes. Se não acredita, pode escrever para o pastor
Sharpe, de Cheedham, e ele confirmará a história, pois foi quem os viu...
O jovem lorde coçou o queixo, em dúvida.
- Creio que o senhor não me diria isso se não fosse verdade, sir...
- O senhor ficaria surpreso com o passado da srta. Marlowe -- confidenciou o cavalheiro. - Ela é filha de um trapaceiro!
Lorde Blessington mal podia esperar para ouvir a história da família Marlowe, ansioso como estava por sair informando a última descoberta que fizera.
O vestido de baile de Susanna era verde-claro; as luvas e as flores que lhe ornamentavam os cabelos castanho-avermelhados eram brancas; os brincos e o colar
de pérolas ressaltavam a tonalidade rósea e a suavidade de sua pele.
Estava lindíssima, mas ao ver sua expressão séria, lady Philpott comentou:
- Deus! Você mais parece um fantasma!
Susanna não quisera passar ruge, recusara o colar de esmeraldas que sua protetora oferecera, aceitando apenas as pérolas, mais condizentes com sua personalidade
simples. Estavam adiantadas, então a lady aproveitou para dar conselhos:
- Vamos enfrentar dificuldades, minha querida. A primeira delas serão os comentários sobre o incidente. Com certeza todos irão observá-la quando entrar no
salão...
- Podem me encarar - disse Susanna, entrecerrando os olhos.
- Exatamente. Por isso, devemos dar a eles algo digno de se admirar.
Imediatamente Susanna pensou em várias possibilidades: poderia dançar todas as músicas com sir Vale ou encenar o incidente no lago. Seus olhos brilhavam
divertidos.
- Você está muito bonita - admirou^se a lady -, mas precisa assumir o ar de grande dama, para valer a pena.
Ela sentiu-se quase em desespero. O que mais lady Philpott iria inventar?, pensou.
- Quero vê-la caminhar, meu bem... -pediu a senhora e, depois de observar, declarou: - Está errado!
E nos quinze minutos seguintes Susanna ficou aprendendo como deveria balançar suavemente os quadris, enquanto andava.
- Creio que este não é o andar de uma lady - comentou ela -, mas sim de uma mulher coquete... Que eu saiba, uma dama não deve tentar chamar a atenção dos
cavalheiros deste modo...
- É claro que deve - respondeu a senhora, sorrindo. - Espera-se que ela chame a atenção e flerte... mas apenas com um cavalheiro. Entendeu?
- Sempre achei que uma dama não deve chamar atenção... que deve ser elegante e pôr os demais à vontade...
- Esse é o ideal, não o viável.
Então, quer dizer que devo ser reservada e bem-comportada com todos, mesmo com o cavalheiro que desejo impressionar?
- Isso! Com ele, precisa ser cativante, sedutora.
- A senhora acha, mesmo, que vou aprender isso tudo em alguns minutos, milady?
- Não acho, meu bem, tenho certeza!
A partir daí a senhora passou a demonstrar como Susanna deveria andar, movimentar o leque, bater os cílios, encarar o cavalheiro e ela não resistiu: desatou
a rir.
- Vão pensar que tenho um cisco no olho ou que fiquei louca! -disse, quando pôde falar.
- Absolutamente! Eu garanto que os cavalheiros irão apreciar mui to a sua performance.
- E sobre o que devo falar? Já perguntei a todos se gostam de Bath e se conhecem muita gente na cidade...
- Pergunte o que acham de música, se gostam de dançar, se estão contentes com a companhia... Claro, dirão que sim e vai dar tudo certo. Caso sir Vale não
esteja por perto, procure por lorde Blessington.
- Por quê? Na verdade, não tenho vontade de falar com nenhum desses dois cavalheiros até conversar com o sr. Farrineau.
- Esqueça-o, pois já sabemos que ele é a favor do seu casamento com o baronete. E lembre-se que pode ser que lorde Blessington não esteja com muita disposição
de dançar com você, pois estranhamente ele não apareceu mais por aqui. Não me parece um homem muito firme e pode ter se assustado com os comentários sobre o seu
incidente. Mas se fizer como indiquei, tenho certeza de que ele não irá resistir. E precisamos de um pretendente alternativo, para o caso de sir Saunders desistir
de pedi-la em casamento.
Susanna ficou intrigada, pois lady Philpott dissera as últimas palavras com certa dureza, o que não era o jeito costumeiro dela.
- Acredito que já esteja imaginando o que vou dizer agora - disse a senhora, mais seca ainda. - Por causa do incidente no lago esta talvez seja sua última
oportunidade. Se fracassar, não haverá mais candidatos em Bath e terá de sair da cidade por causa dos falatórios. Então, trate de conquistar um dos dois cavalheiros
esta noite!
- Não tenho medo de falatórios - retrucou a jovem, erguendo o queixinho voluntarioso.
- Mas eu tenho. E não vejo por que tenho de sofrer as consequências de um descuido seu. Não quero ser impiedosa, mas lembre-se de que tive muito trabalho
para chegar a minha atual posição na sociedade e não pretendo perdê-la por sua causa. Desse modo, você consegue um pedido de casamento esta noite ou terá de deixar
a minha casa.
Susanna não precisou pensar muito para compreender o ultimato, claro e diretíssimo. Por isso, vestiu a capa e ficou à espera de sir Vale.
CAPÍTULO XII
Propostas
Sir Vale, lady Philpott e Susanna dirigiram-se para a entrada de Guild-hall, na High Street. Uma longa e larga escadaria subia para um magnífico salão com
as paredes pintadas de branco e colunas douradas que refletiam a luz das velas do imenso lustre de cristal, dos candelabros e arandelas de prata. Ouviam-se as notas
de um minueto. Encantada, admirando o salão, Susanna não percebeu que a dança e as conversas cessaram completamente quando eles assomaram à porta e todos voltaram-se
para observá-los.
Um cotovelo cutucando-lhe as costelas chamou sua atenção para o que acontecia, e lady Philpott sussurrou:
- Não está com medo, não é, minha querida?
- Não. Isso já me aconteceu - respondeu ela, firme.
Só então sir Vale percebeu a situação.
- Creio que eles ouviram falar do acidente da srta. Marlowe e acham um milagre que esteja viva... - a lady tratou de explicar ao baronete.
- A vida desta gente deve ser muito tediosa, para tentarem se entreter conosco - declarou o lorde, em alto e bom som, encarando a atenta plateia.
Então, curvou-se diante de Susanna e deu-lhe a mão, enquanto um murmúrio alastrava-se pelo salão.
- Com a cidade inteira assistindo - continuou, sorrindo -, será difícil conversarmos em particular. Então, vamos dançar, assim talvez eles se cansem
e nos deixem em paz...
O minueto terminara e a orquestra indicava que ia tocar uma quadrilha. Outro cutucão bem aplicado pela preocupada lady e Susanna movimentou-se. Ergueu o queixo
e caminhou, elegante e altiva, ignorando os sussurros e risinhos a sua passagem. Continuava determinada a agir como uma verdadeira dama. Os pares tiveram de tomar
seus lugares e a dança começou. A variedade dos passos não permitia conversas entre os participantes, mas toda vez que se encontravam, ela via encantamento e admiração
nos olhos azuis do seu cavalheiro.
Ela passara boa parte da noite planejando como agiria, encorajada pelo sucesso conseguido com Wilfred Sharpe. Mas daquela vez pudera conversar com o "inimigo"
e não tinha dúvidas sobre a situação. Agora, não havia possibilidade de falar com toda aquela gente e sentia-se insegura, pois Edward encontrava-se em Londres e
não sabia o que ele pretendia fazer. Se o baronete renovasse o pedido de casamento, teria de responder, de decidir sozinha.
De repente, viu os Bledsoe e acenou-lhes, mais animada. Assim que a música terminou e a educação permitiu, disse a sir Vale que gostaria de ir para junto
dos amigos. Indulgente, ele tratou de acompanhá-la até junto da janela onde Lucy se encontrava. Enquanto caminhavam, renovaram-se os sussurros, as risadinhas e muitos
voltavam-lhes as costas. Susanna olhou para seu cavalheiro e viu que ele parecia divertir-se com as demonstrações indelicadas. Sentiu-se grata por seu apoio.
O primeiro a cumprimentá-la foi Lawrence, que demonstrou satisfação ao saber que ela estava bem. Comunicou que também sentia-se óti-mo e lhe pedia a honra
de ser seu par numa dança. O sr. Bledsoe desaconselhou-o de dançar, com um olhar significativo, mas o rapaz ignorou a advertência muda e disse:
- Asseguro-lhe que estou muito bem, meu pai. Não se preocupe. E se por acaso eu tiver de pagar com algum sofrimento esta dança, amanhã, terá valido
a pena!
- Mas creio que a srta. Marlowe não quer dançar, esse... esse falatório todo talvez a faça preferir passar despercebida. Não é só na sua saúde que penso,
Lawrence - insistiu o cavalheiro.
- Sei muito bem no que pensa, papai. É no nosso nome.
E Lawrence deu o braço a Susanna, sorrindo, conduzindo-a para o centro do salão.
Enquanto o sr. Bledsoe observava o filho, preocupado, Lucy voltou-separa o baronete, que lhe sorriu e disse, amável:
- A senhorita fez-me o favor de reconsiderar o pedido de casamento do sr. Farrineau. Vou procurar retribuir-lhe...
- Não o fiz pelo senhor, mas por mim mesma - replicou ela.
- Gostaria de me tornar amigo depois c/ue se casarem, pois acho que temos muito em comum. Acredito que poderemos passar bons momentos juntos, querida senhorita.
A jovem não podia acreditar no que ele dizia.
- Oh, não há necessidade de fingir que não me entende - tornou o baronete, diante do olhar surpreendido dela. - Sei perfeitamente o que sente por mim
e também tenho uma forte atração pela senhorita. Mas, em nome da discrição, acho que só deveremos nos encontrar e dar mos liberdade ao nosso... amor, depois que
ambos estivermos casados.
Não concorda?
Horrorizada, Lucy teve medo de começar a chorar ali, diante de todos. Sem dizer uma palavra, voltou as costas a sir Vale, aproximou-se do pai e pediu-lhe
que a levasse para casa.
Lawrence revelou-se excelente dançarino. O que lhe faltava em energia, sobrava-lhe em elegância. Susanna gostava de estar com ele e sorriu-lhe várias vezes,
o que encorajou o rapaz a propor que fossem ficar junto com lady Philpott, ao terminar a música. Assim poderiam conversar.
Encantada com a sugestão, a jovem aceitou. Assim que se acomodaram nas cadeiras ao lado da lady, ela disse:
- O senhor seu pai está certo. Não devia manchar sua reputação dançando e conversando comigo.
- Qualquer jovem dama das que conheço ficaria fechada em casa, prostrada pelo falatório. Admiro-a por não agir assim e fico feliz, porque isso me dá oportunidade
de ajudá-la a demonstrar-lhe o quanto a estimo.
- Agradeço-lhe de todo o coração, sr. Bledsoe, mas não vejo como poderia me ajudar... - Sentia-se surpresa com a oferta do jovem cavalheiro.
- Lucy contou-me que lady Philpott a está pressionando para aceitar o pedido de casamento do baronete Saunders e que o sr. Farrineau retirou suas objeções
a esse casamento. Não entendo por que ele cometeu esse absurdo, pois sei que conhece sir Vale tanto quanto eu. Mas já que ele não está aqui para ajudá-la, precisamos
tomar outras providências, encontrar uma saída.
- E é fato que Lucy e o sr. Farrineau estão noivos? - indagou Susanna, depois de criar coragem.
- Bem, minha irmã afirmou-me que o anúncio do noivado deles será feito em breve. Mas, como eu dizia, assumi o dever de protegê-la, senhorita, se me permitir.
Faço questão de salvá-la.
- Espero não estar precisando de salvamento, senhor!
- Desculpe, mas creio que exagerei para tentar me justificar, uma vez que lhe disse não pretender me casar por ser uma pessoa muito doente. Mas as dificuldades
pelas quais a senhorita está passando me fizeram mudar de ideia. Talvez seja preferível um marido doente a um marido libertino.
- Por acaso, está me pedindo em casamento, sr. Bledsoe?
- Vejo que consegui me expressar razoavelmente, já que a senhorita me entendeu - sorriu o rapaz, tímido.
- O senhor foi bem claro e me emocionou com sua demonstração de amizade. Mas acho que esse sentimento não é a base ideal para um casamento...Se foi o que
dei a entender, então, realmente, fiz uma confusão...
A senhorita é a moça que mais admiro, desde que me falaram a seu respeito pela primeira vez. Agora que a conheço melhor, posso afirmar que é a dama mais honesta,
alegre e bondosa que já tive o prazer de conhecer, além de ser muito inteligente e segura de si...
- Creio que devo lembrá-lo de que seu pai não me aprova, senhor...- disse Susanna, sentindo que enrubescia, pelo calor que lhe tomava conta do rosto. - Portanto,
acho melhor não continuarmos a falar nisso.
- Isso quer dizer que a senhorita não deseja casar-se comigo?
- É muita bondade sua querer me ajudar. De fato, não era minha intenção casar com sir Vale, mas desde que o sr. Farrineau foi para Londres pude perceber que
ele é gentil, compreensivo e paciente. Por isso, o casamento com o baronete resolverá meus problemas e o senhor não precisa se preocupar.
- Devo esclarecer que salvá-la é o último dos meus motivos para querer que seja minha esposa. Acho que faríamos um bom par e que iríamos nos afeiçoar um ao
outro...
- Senhor, tenho certeza de que o amaria, se já não amasse outro -explicou ela, com suavidade. - E eu...
Foi interrompida pela chegada de lorde Blessington, que a cumprimentou e indagou sobre sua saúde. Lawrence pediu licença e se afastou, enquanto o outro explicava
que não fora visitá-la por estar muito ocupado.
- Soube que o senhor diverte seus conhecidos com narrativas de minha pouca sorte... - disse ela, calma.
- E verdade - confessou o lorde, sorrindo. - Todos me ouvem comtanto interesse que lhe sou grato. Tenho certeza de que não receberia tantos convites se não
fosse a história de seu incidente!
- Receio que suas narrativas só tenham sido benéficas para o senhor, milorde, pois todos aqui me viram o rosto e não falam comigo.
- Meu Deus - espantou-se o cavalheiro. - E fui eu que causei isso? Mas minha versão do incidente foi a mais inocente possível... quer dizer, até que eu soube
do outro.
- Que outro, senhor?
- Bem, do caso em que a senhorita nadou com um cavalheiro.
- Eu nunca nadei com um cavalheiro. Onde obteve essa informação?
- Sir Dalton me contou e eu assegurei a ele que desta vez a senhorita estava completamente sozinha no lago.
- Sir Dalton? Por acaso ele contou quem era o cavalheiro? Por acaso, ele disse que nessa época eu tinha treze anos?-
- Não... Ele não fez referência a esses fatos.
Susanna cerrou os punhos e olhou ao redor, procurando por sir Dalton. Ele conversava com o sr. Bledsoe, do outro lado do salão. Voltando-se para lorde Blessington,
perguntou, abatida e indignada:
- O senhor percebeu o que fez? Espalhou essa história pela cidade inteira! Eu não sabia que o sr. Farrineau me odiava tanto!
A expressão de lorde Blessington era muito infeliz.
- Se fui portador de mentiras deploráveis sobre a senhorita, perdoe-me. E se está zangada comigo, não a censuro, pois mereço. Na verdade, a senhorita deveria
me repreender severamente por ter falado demais e me expulsar de sua companhia, pois não sou digno dela...
- Desculpe - pediu Susanna, com o olhar vago -, o que disse? Eu não ouvi, pois estava pensando.
- Disse que a senhorita deveria estar furiosa comigo.
- Não estou furiosa com o senhor, milorde - ela suspirou. - Estou criando coragem para me aproximar de sir Dalton.
- Não me odeia, srta. Marlowe? É a dama mais bondosa que já conheci. Estou sempre falando sobre a senhorita, sabe? Desde que tive o privilégio de conhecê-la,
nunca mais me faltou assunto. A senhorita transformou minha vida!
- E receio que o senhor tenha transformado a minha...
- Bem - o rapaz enrubesceu, confuso -, gostaria de compensá-la por isso. Por que não ficamos noivos, senhorita? Isso acabaria com os rumores, não? Ou, pelo
menos, os atuais seriam substituídos por outros.
- O senhor está falando sobre casamento?
- Sim!
- Muito generoso de sua parte, milorde, mas está levando sua culpa longe demais. Mesmo que se tivesse mantido calado, iriam falar sobre o incidente. Além
disso, tenho certeza de que sua família não me aprovaria como sua noiva.
- Todos vão ter de aceitar, mesmo que não gostem. Fui indiscreto, arruinei a sua reputação e devo reparar isso. É o meu dever. Além disso, agora que fiz o
pedido, estou começando a gostar da ideia!
- É muita bondade sua. - Susanna não pôde deixar de sorrir. -Mas não posso me casar com o senhor só para limpar meu nome, que na verdade nunca foi muito respeitado.
- Oh, mas eu gostaria de ser seu marido. A senhorita sempre conversou comigo, coisa que os demais não faziam... pelo menos até que comecei a contar seu incidente.
Prometo que serei bom marido e sou muito rico.
Enquanto o lorde terminava sua declaração, Susanna viu que sir Dalton despedia-se do sr. Bledsoe. Receando que fosse embora, ela pediu licença e encaminhou-se,
determinada, na direção do pai do homem que amava.
Ao perceber que a jovem se aproximava, o semblante do cavalheiro escureceu.
- Sir Dalton - ela cumprimentou-o com uma reverência. - Ouvi dizer que devo agradecer ao senhor o falatório que corre em Bath sobre a minha pessoa e meu acidente.
- Não acredito que tenha sido acidente.
Ela corou, pois de fato não fora um acidente como o cavalheiro suspeitava. Continuou, com suavidade:
- Pensei que o senhor fosse meu amigo. Mesmo quando resolveu mandar-me para a Escócia acreditei que estivesse pensando no meu bem e não agindo por
rancor. Não entendo, senhor. Por que deseja destruir minha vida?
Foi a vez de sir Dalton corar. Ele se julgava um homem de bom cará-ter e teve consciência, de repente, que estivera agindo como um vilão. Mesmo assim, enfrentou
a jovem:
- A senhorita fez com que eu e meu filho nos desentendêssemos.
Susanna olhou ao redor, enquanto absorvia essa informação. Jamais imaginara que poderia ter sido causa de uma desavença entre o sr. Farrineau e seu adorado filho.
- Nunca pretendi causar aborrecimentos entre o senhor e Edward.
- Se realmente gosta dele, deve liberá-lo da promessa de se casar com a senhorita. Peco-lhe que não o destrua, como seu pai destruiu tantos dos nossos.
Vai acabar com Edward, com sua falta de juízo e de compostura.
Apesar de magoada com as duras palavras, ela se controlou, determinada a dizer o que pretendia. Falatório, desprezo e pedidos de casamento não desejados ela
podia suportar, mas não tolerava ser a causadora da separação de Edward e o pai.
- O senhor deve reatar com seu filho, sir Dalton - pediu, sufocando o orgulho.
- Impossível. Certos princípios devem ser respeitados.
- Princípios não dão conforto na solidão, senhor.
Ela percebeu que o havia tocado, mas o cavalheiro esforçou-se por não demonstrá-lo.
- Há mais de dois anos que meu pai foi embora - prosseguiu ela, e sua voz tremia de emoção. - Não pode imaginar, senhor, o quanto lamento a nossa separação.
Afastamentos trazem apenas dor e arrependimento.
- Não entendo como a senhorita jamais censurou seu pai! - O sr. Farrineau estava muito sério e sensibilizado. - Ele arruinou sua vida e a de sua mãe, e a
senhorita se mantém leal, gosta dele...
- Que adiantaria censurá-lo? Não apenas gosto dele, senhor, mas amo meu pai, sinto muito a sua falta... como o senhor sentirá a de seu filho, se mantiver
essa atitude.
- A senhorita é uma jovem incrível! Não me critica, apenas pede que reate com Edward.
- Amo seu filho e quero que ele seja feliz - respondeu ela, com simplicidade. - Sei que ele não quer ficar longe do senhor e por isso...
Sir Vale interrompeu-a nesse momento, pedindo-lhe a próxima dança. Ela precisou acompanhá-lo e sir Dalton ficou pensando, olhando-a afastar-se. Estaria errado
sobre o caráter dela? Aquela moça seria uma pessoa digna do nome Farrineau, apesar do nível simples de seus pais?
Em vez de dançar, sir Vale conduziu Susanna a um canto sossegado e perguntou:
- Pela última vez, a senhorita quer casar comigo?
- Não - respondeu ela e, com suavidade: - O senhor tem sido um amigo leal, representa as qualidades ideais em um marido, porém eu amo outro homem.
- Isso não faz diferença para mim.
Lady Philpott, que os observava, ao ver como o baronete segurava a mão de Susanna e a expressão do rosto dela, aproximou-se, abraçou a protegida e cumprimentou:
- Meus parabéns! Desejo-lhes muitas felicidades.
- Obrigado - disse o cavalheiro, seco -, a senhora está sendo precipitada. De fato, pedi a mão da senhorita, mas ela recusou.
O rosto da lady expressou profundo horror e ela exclamou:
- Você não aceitou o pedido de sir Vale, apesar da situação em que se encontra? Nunca me senti tão chocada na vida! Como pode ignorar seus interesses
e o que me deve?
Susanna teve a sensação de estar afundando: mais uma vez desapontara e ofendera alguém de quem gostava. Sempre, fosse qual fosse o lado para o qual se voltava,
fazia coisas erradas. Mal conseguiu balbuciar, pálida:
- Eu... eu sinto muito.
- Pois procure outra pessoa para sustentá-la. Sydney Place não tem lugar para quem só sabe arranjar escândalos. Quero que se mude esta noite mesmo.
- Tenho a honra de oferecer-lhe hospedagem na White Hart, srta. Marlowe - disse sir Vale. - Provavelmente vão pensar que a senhorita é minha amante, mas acho
isso preferível aos rumores de que não me aceitou como marido.
Susanna avaliou a própria situação. Não tinha para onde ir e não queria pedir ajuda a Lucy, pois não suportaria ouvi-la falar sobre o noivado com Edward.
Poderia aceitar um dos três pedidos de casamento que recebera naquela noite. Poderia viver da caridade alheia. Talvez ainda existisse a possibilidade de ir trabalhar
como criada do irmão do sr. Sharpe, na Escócia.
Olhou em volta e notou que todos no salão observavam os três. Será que esperavam uma reação grotesca de sua parte? Muitas das expressões eram de expectativa.
Os convidados haviam se cansado de dançar e de falar e, agora, esperavam que ela lhes oferecesse outra diversão.
Fechou os olhos, cansada. Fizera uma promessa a si mesma e pretendia cumpri-la. Não tomaria qualquer atitude que pudesse vir a ser reprovada. Então, abriu
os olhos e viu Edward entrando no salão. Ele ainda estava com roupas de viagem e pôde perceber o suspiro de alívio do rapaz ao vê-la. Quando se aproximou, ele disse,
ansioso:
- Venha, Susanna. Tenho uma coisa muito importante para lhe contar.
Tomou-a pela mão e levou-a para fora daquele ambiente pesado que a sufocava, que a fizera quase desejar morrer.
CAPÍTULO XIII
Reencontro
Edward levou-a para uma hospedaria e Susanna ficou surpresa ao descobrir que era a White Hart, mas não fez nenhuma pergunta ou colocou dúvidas. Não o teria
feito, mesmo que a tivesse levado de volta para Cheedham ou a Escócia.
Eles foram conduzidos a uma sala particular, e quando a porta abriu ela viu que um senhor de pele queimada, cabelos grisalhos e usando um manto escuro encontrava-se
em frente à lareira. Ele virou-se e ela parou.
- Entre - disse Edward suavemente. - É o seu pai.
Henry Marlowe caminhou na direção da filha, até que ela atirou-se em seus braços.
- Minha pobre Susanna - ele murmurou várias vezes enquanto a abraçava.
- O senhor está tremendo, papai. Está com febre?
- Não, apenas com frio - ele respondeu rindo. - O clima inglês é gelado, não estou mais acostumado com o frio. - Afastou-se para observá-la. - Meu Deus! Você
se tornou uma bela mulher. Acho que preferiria que não tivesse crescido tão rápido.
- Não se aflija, papai. Ainda sou uma garota encrenqueira... - respondeu, engolindo as lágrimas.
Susanna procurou por Edward, mas ele havia se retirado deixando-os a sós.
- Você se parece tanto com sua mãe, minha querida!
- Gostaria de ser a dama que ela esperava que eu fosse...
- Está enganada, minha filha. O que ela mais receava era que você se tornasse uma dama e fosse obrigada a desprezá-la por ela ser filha de um moleiro.
- Pensei que a tivesse desapontado. É um conforto saber que esse não era o caso.
- Ela é que temia desapontá-la.
Permaneceram em silêncio por alguns minutos.
- O senhor será preso?
- Nunca houve fraude, minha querida. Seu velho pai não é um ladrão, apesar dos rumores alegarem o contrário. Foram apenas alguns investimentos que
não deram certo e isso não é crime. Creio que as pessoas que queriam prender-me estão satisfeitas, pois devolvi-lhes todo o dinheiro, e com juros. Agora sou de novo
um homem rico, minha menina!
- Fico feliz de saber isso, pois estou necessitando de uma cama para passar a noite.
O sr. Marlowe não descansou até descobrir o que a filha queria dizer com aquilo.
- Essa lady Philpott parece ser uma velha megera - disse. - Mas por que ela discutiu com uma garota boa como você? Por acaso foi nadar no rio Dance de novo?
- Muito pior! Ela queria que eu me casasse, então não teria mais de pagar as minhas despesas. Mas eu recusei o pedido de casamento do cavalheiro que a lady
escolheu para mim.
- Quer dizer que um cavalheiro pediu-a em casamento?
- Recebi três pedidos - ela respondeu, sorrindo.
- Diabos! Devem ser cavalheiros de bom senso, já que a queriam para esposa. Mas não se preocupe em casar agora que seu pai está aqui e tem dinheiro suficiente
para sustentá-la.
- Mas, papai, realmente desejo me casar.
- Se é o que quer, não faço objeções: Qual dos três terá a honra de levar a minha menininha?
- Nenhum deles. É outro cavalheiro que desejo, mas, por favor, não me faça perguntas, pois acho que ele não me quer.
- Querida, se fosse minha sócia e esse fosse um negócio, aconselharia a escolher um dos três.
- Mas eu amo o outro.
- Então tem a minha bênção para convencê-lo a pedi-la em casamento.
Edward ficou para jantar com Henry Marlowe e a filha. Foi então que explicou que mantivera contato com o advogado do sr. Marlowe desde a época em que vendera
as jóias da mãe de Susanna. E fora através dele que contatara o pessoal nas índias Ocidentais atrás de informações sobre o sr. Marlowe, até que o advogado descobrira
sobre o retorno de seu cliente a Londres.
- Foi por isso que não pude contar-lhe a natureza de meu negócio em Londres, Susanna. Queria primeiro descobrir se seu pai seria preso. Mas, no fim, pude
trazê-lo até você e tudo correu melhor do que esperava. E agora não tem de se casar para assegurar sua sobrevivência.
- Pelo que ouvi - começou o sr. Marlowe -, os cavalheiros da cidade adorariam assegurar a sobrevivência da minha menina.
- Quê? - perguntou Edward aturdido.
Parece que dúzias e dúzias de cavalheiros pediram-na em casamento. - O pai estava todo orgulhoso. - Imagine agora o que vai acontecer, quando descobrirem
que é uma rica herdeira. Vão ter de marcar hora para fazerem os pedidos.
Edward encarava Susanna, com expressão aflita.
- Não ligue para meu pai. Ele está exagerando.
- Quem a pediu em casamento?
- Lawrence Bledsoe, lorde Blessington e sir Vale.
Ao ouvir o último nome, Edward levantou-se abruptamente. Estava furioso.
- Sir Vale havia me dado sua palavra de que não a pediria em casamento até que o mês terminasse! - exclamou. - Não é possível!
- Deve haver algum mal-entendido. - Susanna estava confusa. -Sir Vale me deu a impressão de que você havia aprovado o nosso relacionamento.
Edward apoiou as mãos na mesa e inclinou-se na direção dela.
- Nunca o aprovei ou dei-lhe minha permissão para pedi-la em casamento. O acordo era de que me manteria calado quanto às minhas objeções e ele não a pediria
em casamento. Eu só queria ganhar tempo. Nunca imaginei que sir Vale Saunders não cumpriria a palavra empenhada. Susanna, como pode imaginar que eu aprovaria?
- Fico feliz que não o tenha feito! - Susanna levantou-se e caminhou na direção de Edward.
Henry Marlowe olhou de um para o outro e percebeu que tinham muito o que conversar. Sendo assim, deu uma desculpa e retirou-se. Nem precisava ter se incomodado,
pois os dois jovens já nem se lembravam mais de sua presença.
- É um milagre que já não esteja casada, Susanna! Eu não devia ter confiado na palavra daquele homem!
- Isso não importa mais. - Susanna foi se aproximando de Edward, bem devagar. - Você podia ter confiado em mim. Não o aceitei. Obrigada por ter trazido meu
pai.
Ele olhou-a com carinho e disse:
- Estou quase tão feliz quanto você por tê-lo encontrado, pois agora não será obrigada a casar.
- Mas não desisti de casar.
- Sim, mas agora que vai morar com seu pai, não precisa resolver nada já.
-- Já decidi.
Ela olhava-o intensamente. Não havia nada que Edward desejasse mais do que casar- com Susanna, assim que os proclamas fossem lidos, mas sentia-se na obrigação
de esperar um pouco. Não queria que ela entrasse num casamento confusa e cheia de dúvidas.
- Susanna, não quero que seja forçada a casar, quero que tenha a chance de escolher com calma.
- É por isso que não quer casar comigo?
- Sei que todo mundo a pediu em casamento e que devo parecer meio estranho querendo esperar. - Ele sorria. - Mas quero que decida com calma o que realmente
quer.
Susanna voltou até a mesa. Sabia que seria mais aconselhável esperar. A situação com sir Dalton tinha de ser resolvida. Lady Philpott tinha de ser apaziguada
e deveria procurar uma casa para o pai, a qual teria de ser mobiliada. Mas, na verdade, não estava ligando para nada disso. Queria casar com Edward. Pensara nisso
a noite toda. Desejava passar o resto de seus dias com ele, desde quando fora beijada no lago. Não, antes disso. Desde que dançara com ela na sua festa de debutan-te...
Não, antes... Desde que sorrira para ela que, pendurada num galho de árvore, lia Júlio César em latim. Ela o amava desde menina.
Entretanto, receava o encontro com sir Dalton e Lucy. A srta. Bled-soe era tudo o que o pai de Edward sempre desejara numa esposa e poderia colocar objeções.
Ela andava de um lado para o outro enquanto pensava nisso tudo. De repente, olhou para Edward e percebeu que ele a observava.
No instante em que seus olhos se encontraram, ele começou a achar que havia sido precipitado ao insistir que ela pensasse no assunto. Por que adiar algo que
já deveria ter acontecido? Eles pertenciam um ao outro. Por que não deveria tomá-la nos braços naquele minuto e sussurrar em seu ouvido? Por que não deveria pedi-la
em casamento? Pelo jeito todos os outros já o tinham feito. Ia abraçá-la quando, para seu espanto, ela começou a andar pelo aposento de maneira insinuante.
Susanna colocava em prática os conselhos que lady Philpott lhe dera. Deixou que os quadris ondulassem. O silêncio no aposento, a sensação de ter Edward observando-a,
atento, a noção de que talvez tivesse algum poder sobre ele se agisse como uma dama, tudo isso fez com que fosse tomada por um entusiasmo elétrico.
- O que você está fazendo? - ele finalmente perguntou.
- Estou andando. Gosta do meu jeito de andar?
Aproximou-se dele e, ao virar-se, sedutora, deixou-o ver parte de seu ombro. Ele começava a desconfiar que Susanna flertava com ele e o espanto se transformou em
divertimento. Sorriu-lhe, encorajador, e disse:
- Acho que nunca vi nada igual.
Lembrando os conselhos de lady Philpott, ela se desesperou. Não podia perguntar a Edward se estava gostando da música, pois não tinham música. Pela mesma
razão, não podia lhe perguntar se gostava da dança. Ela suspirou sem saber o que fazer a seguir.
Ele observou-a franzir o cenho, pensativa. Não conseguia nem imaginar o que inventaria a seguir. Mas tinha certeza de que seria algo ultrajante, divertido
e encantador.
Ela resolveu segurar a barra do vestido de forma que este se movimentasse, conforme movesse a mão. Voltou a andar insinuante, enquanto movimentava a mão graciosamente.
Ficou satisfeita ao notar que os olhos do rapaz brilhavam. Infelizmente não poderia continuar com isso por muito tempo, pois Edward poderia cansar-se de observá:la.
Se bem que, pela forma carinhosa com que a olhava, acreditava que isso ainda não ocorrera. Seu braço cansou de balançar no ar e ela resolveu procurar o leque para
usá-lo como milady ensinara-lhe.
Viu-o sobre uma poltrona, pegou-o e abriu-o. Colocou-o em frente ao rosto de forma que só seus olhos ficaram à vista. Estreitou-os e fitou-o por entre os
cílios.
- Está com sono, Susanna? - perguntou ele, vendo que a jovem estava quaSe fechando os olhos. - Se quiser, podemos continuar esta conversa interessante amanhã
pela manhã.
- Nunca estive tão acordada! - respondeu, rápida.
Caminhou na direção dele, ainda cobrindo o rosto com o leque. Quando chegou bem perto, parou e foi movendo o leque para baixo bem devagar, de forma que seu
rosto foi surgindo pouco a pouco. Finalmente seu pescoço apareceu e, depois, o fio de pérolas sobre seu colo. Edward seguiu o movimento do leque atentamente até
ver o colar e aproximou-se mais dela.
Ocorreu a Susanna que deveria parecer estranho que ela não tentasse manter uma conversa. Precisava fazê-lo falar, pois só assim ele poderia chegar ao ponto,
ou seja, pedi-la em casamento.
- Sr. Farrineau, já que não quer que eu pense em casamento no momento, precisa aconselhar-me. Não sei como devo comportar-me daqui para a frente em
sua presença. Não gostaria que os outros acabassem imaginando que estamos noivos.
Então, ela levantou o queixo exatamente como a lady ensinara.
- Imagino que vai continuar agindo como sempre fez, Susanna. -Ele continha o riso. - Ou seja, de maneira imprevisível.
- Por acaso está rindo de mim, sir?
- Não ousaria! Mas não pude deixar de notar que a senhorita não ficou quieta um só minuto e que está piscando demais.
Sem saber se recebera um elogio ou não, resolveu que seria aconselhável considerá-lo como tal. Depois de fazer uma cortesia graciosa, aproximou o rosto do
dele e disse, ousada:
-Até que o senhor se decida a casar comigo, suponho que terei de tratá-lo como a um estranho.
- Então, deverei chamá-la de srta. Marlowe e fingir que não me divirto com suas encrencas. - Ele aproveitou a proximidade dela para aspirar-lhe o perfume.
- Diga-me, sr. Farrineau, está apreciando sua estada em Bath?
- No momento estou achando que é o paraíso, srta. Marlowe.
- E o senhor tem muitos conhecidos na cidade? - ela perguntou, abanando o leque e refrescando a ambos.
Sem tirar os olhos dela, ele segurou o leque. Susanna era a mais irresistível mulher que já conhecera. Escorregou a mão pelo braço dela, subindo, até que
alcançou seu pescoço e o queixo. Ela fechou os olhos em expectativa, mas quando, depois de esperar alguns minutos, nada aconteceu, abriu-os novamente.
Ele a estudava^. Apesar de não ter mais nenhum escrúpulo quanto a pedi-la em casamento, não conseguia parar de sorrir da maneira que ela flertava com ele.
Susanna afastou-se um pouco, receosa de ter feito o papel de tola.
De repente sentiu as mãos dele em sua cintura e, segundos depois, Ed-ward abraçava-a firmemente. Beijou-a com tanta intensidade que ela não conseguia respirar.
Ficou satisfeita ao notar que sua resistência anterior não tinha nada a ver com falta de amor. Levantou a mão e tocou-lhe o rosto.
Ele soltou-a tão abruptamente quanto a tinha abraçado. Susanna teve de se encostar na parede para manter o equilíbrio. Respirava pesadamente e percebeu que
ele a acariciava com os olhos. Murmurou o nome dele, que a abraçou novamente. E, entre beijos, Edward perguntou:
- Vai casar comigo, Susanna?
Ela sentiu que uma risada alegre ficou presa na garganta, fazendo-a ter dificuldade para respirar. O que mais desejava acabara de acontecer e não se sentia
triunfante. Pelo contrário, estava nauseada. Passou pela sua mente imagens de si mesma andando insinuante de um lado para o outro, usando o leque e abanando o vestido
na frente de Edward. Sentia-se cada vez mais enjoada. Desejava nunca ter ouvido os conselhos de lady Philpott, nunca tê-los utilizado, como se fossem armas, contra
Edward.
Nunca se arrependera tanto de algo que fizera como naquele momento. Nenhuma encrenca em que se metera no passado a envergonhava tanto quanto o que fizera
ali. Tinha seduzido o homem que amava para que fizesse o que ela desejava.
Quem Edward pedira em casamento? A Susanna que conhecia há anos ou a mulher coquete que lhe arrancara um pedido de casamento? Negara-se a aceitar as razões
que ele apresentara para esperarem. Já não se reconhecia na dama ardilosa em que se transformara.
E o que aconteceria na próxima vez que quisesse conseguir alguma coisa de Edward? Ia tentar seduzi-lo novamente? Ia fingir ser uma "dama" de novo? A tentação
seria grande, depois de ter obtido tanto sucesso na primeira tentativa. Mas será que aguentaria fingir o tempo todo?
Empurrou Edward para longe, angustiada. Se casasse com ele agora, não teria paz. Sabia que era uma encrenqueira, que vivia metida em escândalos e que provavelmente
não tinha conserto, mas até aquela noite nunca enganara uma pessoa deliberadamente.
- Não esqueceu minha pergunta, não é, Susanna? - perguntou Edward. E, ao ver a expressão dela, disse aflito: - Você vai se casar comigo, não é, Susanna?
Como não teve coragem de dizer não, ela fugiu da sala, correndo e engolindo as lágrimas.
CAPÍTULO XIV
Lições Finais
Quando Edward entrou em seus aposentos, encontrou o pai a sua espera.
- É verdade, rapaz?! - exclamou o cavalheiro. - Henry Marlowe voltou para a Inglaterra? Soube que em Londres estão todos falando a respeito. E dizem que ele
recuperou seus investimentos.
- É verdade. O sr. Marlowe voltou, e com dinheiro suficiente para pagar todos os investidores.
Sir Dalton teria batido palmas de felicidade se não tivesse notado a expressão carregada do filho.
- Não se preocupe, rapaz - disse, colocando os braços sobre os ombros de Edward. - Retiro todas as minhas objeções ao seu casamento com a srta. Marlowe.
Edward continuou olhando para o vazio.
- Vamos lá! Está tudo bem de novo. Não foi só por causa do pai dela que mudei de ideia. Descobri esta noite que a srta. Marlowe é uma jovem muito generosa.
Ela poderia ter guardado rancor por causa das coisas que lhe fiz, mas não, estava apenas interessada em nos reaproximar. Portanto, pare de se preocupar e vá atrás
da sua amada.
- Acabei de falar com ela.
- Ótimo! Da próxima vez que a encontrar, pode avisá-la de que estou preparado para lhes dar como presente de casamento a mesma quantia que Marlowe der.
- Fico satisfeito que o senhor goste de Susanna, mas receio não podermos falar em casamento.
- Talvez eu deva conversar com ela. Sei que dei a impressão de que desaprovava o casamento de vocês dois.
- Papai, já a pedi em casamento e ela não aceitou.
- Mas ela própria me contou que o amava - disse o cavalheiro, incrédulo. - E olhe que é uma jovem muito franca. Não teria dito o que me disse se não o amasse.
Aliás, foi isso que me fez reavaliar o meu julgamento sobre ela. Provavelmente foi lady Philpott que perturbou a mente da menina! O que vai fazer agora, Edward?
- Não estou entendendo. Num momento ela faz tudo o que pode para chamar a minha atenção. No segundo seguinte foge de mim como se fosse praga! Mas de uma coisa
tenho certeza. Desta vez ela não vai conseguir me mandar embora. Sir Dalton, aflito, observava o filho andar de um lado para o outro.
- Ela não pode flertar comigo de maneira tão ultrajante para recusar-me depois. É quase que uma quebra de promessa.
- Você não está pensando em processá-la, não é?
Edward caiu na gargalhada. Garantiu que só estava pensando em dormir, pois teria muito o que fazer na manhã seguinte.
- Farei o que precisar para ajudá-lo, filho.
- Ótimo! Então pode começar visitando lady Philpott, amanhã, para colocá-la a par da situação, enquanto vou falar com a srta. Bledsoe.
- Edward! Sei que me comportei mal, mas isso é castigo duro demais!
O jovem nem escutou e deu boa'noite, deixando sir Dalton desolado por ter de visitar a cunhada.
Henry Marlowe encontrava-se do lado de fora do quarto de Susanna implorando-lhe que abrisse a porta, quando Edward chegou com sir Dalton, lady Philpott e
Lucy Bledsoe. Tão logo as apresentações foram feitas, ele desceu para sua sala particular.
Lady Philpott endireitou os ombros e começou a bater violentamente na porta do quarto.
- Susanna, vim avisá-la que já não desejo que case com sir Vale. Nunca teria insistido nessa ideia se soubesse que Edward queria casar com você! Ficarei
feliz em tê-la novamente, e a seu pai, em Sydney Place...Portanto, saia do quarto.
Susanna abriu uma fresta da porta e olhou para todos.
- Sinto ter brigado com a senhora, lady Philpott. - Ela sorria tristemente.
- Isso já não importa. Tem de ouvir meu sobrinho. Ele vale mais do que cem sir Vales. Estou determinada a insistir que se casem. E se Dalty lhe der problemas,
pode me chamar que o coloco nos eixos. -Ela lançou um olhar ameaçador para o cunhado.
- Foi a senhora que arrumou problemas para a jovem ao deixá-la cair no lago - retrucou o cavalheiro, esquentado. - Asseguro-lhe, srta. Marlowe, que meu filho
tem a minha bênção para se casar com a senhorita.
Os olhos da jovem encheram-se de lágrimas e ela abriu mais a porta. Foi então que a srta. Bledsoe puxou-a para o corredor e, sorrindo, entregou uma carta
de seu irmão. Susanna abriu-a e leu:
"Minha Cara srta. Marlowe,
O sr. Farrineau me explicou as razões que o forçaram a partir para Londres e, satisfeito, descobri que ele realmente a ama. Sendo assim, espero que não se
ofenda se eu retirar meu pedido de casamento. Fico feliz em saber que, como sra. Farrineau, não terá de passar a lua-de-mel aqui em Bath, tomando águas medicinais.
Por favor, aceite meus cumprimentos. Desejo-lhe felicidades.
Do seu amigo, L. Bledsoe"
Quando Susanna terminou de ler, Lucy abraçou-a e disse:
- Quero que saiba que está livre para casar com Edward. Não ficarei em seu caminho. Prometo.
Susanna balançou a cabeça negando, sem conseguir falar. .
- Quando ele veio procurar-me esta manhã tive de confessar-lhe que resolvera aceitá-lo porque estava desesperada - disse Lucy com franqueza. - Apaixonei-me
por sir Vale contra a minha vontade e bom senso. Sentia-me atraída por um homem que não é um cavalheiro e não possui nenhum senso de honra. Então, voltei-me para
o sr. Farrineau esperando que ele pudesse salvar-me de mim mesma. Mas acredito que agora me sinto bem mais segura em relação aos meus sentimentos e não necessito
ser salva por ninguém. Espero que me perdoe. Não terei paz enquanto não souber que você se reconciliou com o sr. Farrineau.
- Como deve ter sido horrível para você me ouvir contar sobre os vários pedidos de casamento do barão. Não tive intenção de lhe causar sofrimento.
Sinto muito, Lucy!
As duas jovens se abraçaram e enxugaram os olhos. Finalmente, a srta. Bledsoe pediu:
- Vá dizer ao sr. Farrineau que se casará com ele. Está lá embaixo, esperando...
- Não posso fazer isso. Edward e eu não podemos no casar - ela declarou, séria.
Todos olharam-na, surpresos. Seu pai interveio:
- Susanna querida, sua mãe adoraria saber que vai se casar com o homem que as ajudou quando fui embora.
- Eu sei. Todos foram muito bondosos e fizeram o que puderam, mas agora depende de mim. Uma vez prometi que nunca mais brigaria com Edward. Portanto, vou
descer e explicar-lhe minhas razões.
Assim que Susanna saiu, lady Philpott virou-se para Lucy:
- É uma pena que a senhorita não esteja mais interessada em sir Vale, pois ele está livre agora. Pensando melhor, acho que vou apresentar-lhe um marquês
que chegou a Bath recentemente. Ele tem uma renda anual de dez mil libras e não há nada melhor para curar um coração partido do que outro amor.
Edward levantou-se da poltrona assim que Susanna entrou na sala. Ela evitou-lhe os olhos ao falar:
- Acredito que lhe devo algumas explicações. - Levantou a cabeça e encontrou-o encarando-a intensamente. - Sempre fomos francos um com o outro, portanto queria
contar-lhe a verdade.
- Muito bem. Gostaria de ouvir alguma explicação sobre ontem à noite.
Ele sentou e aguardou. Ela sentou numa poltrona em frente dele. Respirou fundo e começou:
- Eu o obriguei a pedir-me em casamento. Não era o que você desejava, mas mesmo assim o fez. Fugi porque enganei-o. Usei de diversos artifícios para forçá-lo
a fazer o que eu queria. Dizem que esse é o comportamento normal de uma dama, mas nunca agi assim e sinto-me envergonhada.
- Artifícios? Que artifícios? - Ele queria abraçá-la, mas achou melhor permanecer sentado.
- Talvez se lembre de que andei pela sala - ela disse, corando violentamente.
- Lembro, sim. - E ele sorriu, com a recordação. - Nunca havia visto nada igual.
- É isso! Andei, usei meu leque, meu vestido, minhas mãos, meus olhos, enfim, fiz tudo o que lady Philpott me ensinou.
- Fiquei imaginando de onde você tirara aquilo, pois com certeza não foi do livro de Júlio César!
- Não entende que fiz o que jurei nunca fazer? Tratei-o como se vo cê não tivesse vontade. Manipulei-o!
- Está pensando que a pedi em casamento porque me forçou a isso com os seus artifícios?
- Eu o seduzi, fascinei... Você não teve como evitar.
- Não sei como posso dizer isso sem ofendê-la, meu amor. Mas você não me seduziu por ter usado bem os tais artifícios, mas sim por usá-los do modo mais desajeitado
que já vi!
- Desajeitado! Mas fiz exatamente o que lady Philpott aconselhou-me. E sei que acabei atraindo-o. Você me pediu em casamento, não pediu? E eu o iludi...
- Oh, sim! Pedi. Mas não por você ter me iludido.
- Então, por quê?
Porque você estava irresistível marchando de lá para cá daquela maneira ridícula - ele disse com carinho. - E cheguei à conclusão de que seria um idiota se
não me casasse com uma dama que tivera tanto trabalho para conquistar-me.
- Pensei que o havia encantado... - disse ela, atordoada.
- E encantou. Você sempre me encanta!
Ele levantou-se e ajoelhou ao lado dela. Tomou-lhe a mão, abriu-a e beijou-lhe a palma, com delicadeza.
- Está com pena de mim. - A voz dela tremia. - Não importa o que faço, sempre consigo me tornar ridícula!
Dessa vez ele não permitiu que ela desviasse o olhar.
- Possuo vários sentimentos em relação a você, Susanna, mas nenhum deles é pena.
Se antes ela nãq conseguia olhá-lo, agora não conseguia tirar os olhos dele.
- Desejava tanto ser uma dama - murmurou.
- Você é uma dama. É honesta, corajosa e tem um bom coração. Não precisa ser mais do que isso. Não precisa ser outra, a não ser a pessoa encantadora que é.
E devo acrescentar que nunca é entediante!
- Todo mundo estava tão determinado a me transformar em uma dama, e todo mundo quer me dar lições!
Ele levantou-se e puxou-a para si.
- Se me permitir - murmurou, carinhoso -, gostaria de lhe dar a última lição, ensinando-a como é amada.
Susanna fechou os olhos e passou os braços pelo pescoço de Edward, que inclinou a cabeça e beijou-lhe a pele macia, junto da orelha rosada. Depois, beijou-lhe
os cabelos e sussurrou:
- Case-se comigo, Susanna!
Beijou-a em seguida e quando, afinal, libertou-lhe os lábios, ela respondeu que sim, que queria casar-se com ele o mais depressa possível.
- Por que essa pressa, amor? - indagou Edward, divertido.
- Porque esta primeira aula me faz ter vontade de passar o resto da vida aprendendo com você...
FIM
Uma incrvel senhorita.txt
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