quarta-feira, 31 de março de 2010

Cabeça de Porco - Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde


Cabeça de porco cortiço Na linguagem jovem das favelas cariocas, é sinônimo de situação sem saída, confusão.

LUIZ EDUARDO SOARES
MV BILL
CELSO ATHAYDE


(c) 2005, L.E. Soares Criações Ltda. e Mauter Produções Artísticas Ltda. MB.
Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA OBJETIVA LTDA.,
rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro - RJ - CEP 22241 -090 Tel.: (21) 2556-7824 - Fax: (21) 2556-3322
www.objetiva.com.br
Capa Luiz Stein
Designers Assistentes Darlan Carmo Diogo Reis
Foto dos Autores Bruno Veiga
Revisão
Damião Nascimento
Umberto Figueiredo Pinto
Editoração Eletrônica
FUTURA
Digitalização: Vítor Chaves
Correção: Marcilene Aparecida Alberton Ghisi Chaves

A865c
Athayde, Celso... [et al.)
Cabeça de porco / Celso Athayde, My Bill, Luiz Eduardo Soares.- Rio de Janeiro Objetiva, 2005
295 p.
ISBN 85-7302-7302-668-5
1. Criminalidade - Aspectos sociais - Brasil. I. My Bill. II. Soares, Luiz Eduardo. in. Título
CDD 364.981


A Míriam Guindani, fonte de energia intelectual e sensibilidade humana, sem a qual este
livro não teria sido possível


Sumário


Agradecimentos 11

Apresentação 13

I. AQUARELA DO BRASIL 15

Merla no Planalto Central 17

Merla no Planalto, outro ângulo 23

Meninos da Paraíba 30

Os índios do sul 32

Tristeza feliz em Belém 40

Uma noite em Joinville 51

Curitiba: nos fundos da cidade modelo 61

II. FLASHES DO INFERNO E DA REDENÇÃO 69

A violência é o princípio ativo do muro 71

Os neguinhos do buzão 74

O pior sentimento que alguém pode ter 78

Descendo a escada com Bill 84

Guerra na Rocinha 89

As voltas da vida 90

Um nome para sempre: a pena perpétua 95

Vestígios de um homem: a última conversa com Escadinha 97

Conspiração contra a mudança 100

Ódio 109


Notícias dofront 112

Dois reais 114

A esperança como dever 115

A mãe 126

Prisão que liberta 129

Não filma eu chorando 134

Violência na primeira pessoa 140

Espalhar pela cidade o sangue do irmão 146

Recortar e colar: a redenção pelo hip-hop 148


III. SIRENE NA TRASEIRA, ALARDE NA PISTA, SUSPEITOS À VISTA: ... 151

O ALVO NEGRO DA DESCONFIANÇA
Dura SP 153

Forjado de rotina em Aracaju 156

IV. INVISIBILIDADE E RECONHECIMENTO 161

Invisível 163

Estrangeiro: onde mora o perigo 167

Antígona do Humaitá 169

Ortopedias do olhar 171

A relação é o que (não se vê 172

Etiquetas do olhar 174

Invisibilidade, reconhecimento e a fonte afetiva do crime 175

In visibilidade por preconceito ou indiferença 176

Dolorosa realidade da fantasia: por que as expectativas se realizam? 179

Expectativa e ordem social 187

V. O CHORO DO MENSAGEIRO 189

Relato autobiográfico de Celso Athayde e a metamorfose de Alex Pereira 191

VI. CRESCER NOS TRÓPICOS: UMA ODISSÉIA NA PERIFERIA 203

Identidade em obras I: adolescência 205

Identidade em obras II: adolescência e a problemática ardilosa das "causas" da violência
208

Labirinto 212

O menino invisível se arma 215

Enredos da justiça criminal 220


Quer ganhar uma mulher? Bota um fuzil no pescoço 224

Guris e gurias mostram suas armas 226

Várias vezes eu pedi 233

Desfazendo certezas 235

A cultura da paz 237

Disputar menino a menino 241


VII. O Rio DE JANEIRO CONTINUA SENDO 243

Os sentidos da violência, a criminalidade no Brasil e no Rio de Janeiro 245

Bandido trabalhador e os vendados: a ética do crime 250

Negociando a liberdade 252

Os clientes 253

A economia das armas no Rio 254

O crime como organização 257

Vida de traficante: o dono da boca nunca foi ao mar 258

Os polícias 259

A tirania do tráfico e o despotismo policial 261

Polícias fluminenses: longa jornada noite adentro 266

VIII. JUNTANDO os CACOS PARA FAZER UMA NAÇÃO 271

Apenas humanos 273

Reflexões sobre o pesadelo 277

Rasga coração 281

NOTAS

287


AGRADECIMENTOS

Um livro é um longo e difícil empreendimento, que exige muito trabalho e persistência.
Sobretudo um livro coletivo como este. Os autores reconhecem que, de certa forma, todos
os que compartilharam o seu cotidiano, ao longo dos últimos anos, contribuíram, às vezes
sem saber, para sua realização. Registre-se aqui nossos agradecimentos, portanto, aos
amigos, familiares e companheiros de trabalho. Não os nomeamos para evitar as injustiças
que nossas eventuais falhas de memória provocariam. Fazemos questão, entretanto, de
destacar duas pessoas que, para nós, representam a justiça e a generosidade, em pessoa, e
que têm-nos premiado com sua solidariedade há muito tempo: Dr. Arthur Lavigne e Dr.
Marcello Cerqueira. Ambos sabem que a gratidão que lhes devemos não se traduz em
palavras.

Dr. Paulo Henrique Fagundes, Dr. João Tancredo, Dr. Jader Marques, ten.-cel. Antônio
Carlos Carballo lanço e major Júlio Cezar Cônsul merecem o nosso mais sincero
reconhecimento.

Somos gratos também a Japão, Viella 17, Dra. Fernanda S. Telles, Cláudio Rio, André
Goiás, Gaiola, Cuco da F. (em memória), Cláudio Gaúcho, Pablo, Rafael Dragaud, Renata
Moutinho, Simone Oliveira, Rodrigo Veras, Thales Athayde, José Júnior, Luiz Roberto
Ferreira, Júnior Athayde, Jair da Matta Coutinho, Marina Soares, Bundinha, Carol Delgado,
JB, Kenya Pio, Flavia Caetano, Miguel Vassay, Fox, André Du Rap, dona Cristina, Mano
Jucá, João Salles e Ricardo Macieira.

Marilza Athayde merece um agradecimento muito especial. Registramos aqui nossa
gratidão e nossa homenagem.

Somos particularmente gratos a Isa Pessoa, diretora editorial da Editora Objetiva, pela fé
inabalável neste projeto, que um dia até mesmo aos autores parecia improvável. O que
houver de positivo no resultado final deve muito à sua competência. Somos gratos também
a Roberto Feith, diretorpresidente da Editora, pela confiança.

Hélio Raimundo Santos Silva entrevistou para a pesquisa muitos jovens, em favelas
cariocas, com sua rara sensibilidade. Ajudou também a aprimorar o texto com várias
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sugestões. Foi uma honra contar com sua fraterna sabedoria e seu apoio.


A Minam Guindani devemos muito mais do que as ricas entrevistas para a pesquisa, as
inumeráveis sugestões para o aprimoramento dos capítulos e para a organização da própria
estrutura do livro. Ela acompanhou cada passo deste projeto desde o primeiro momento.
Este livro nasceu de uma idéia sua, desenvolveu-se sob a inspiração de seu estímulo
permanente, mudou de rumo algumas vezes graças à sua incansável orientação e se
concluiu, contando com sua participação em cada ponto, em cada tese. Como agradecer?
Trata-se, praticamente, de uma co-autoria. A Míriam, nosso mais sincero reconhecimento.

Este livro e seus autores devem o que porventura tenham alcançado comunicar à boa
vontade dos entrevistados, que confiaram e acreditaram que a causa comum - a segunda
chance e a esperança na mudança - valia riscos e a ousadia de compartilhar as histórias de
vida e os sentimentos. A todos eles, em vida ou em memória, nossa gratidão.

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APRESENTAÇÃO

Cabeça de Porco tem uma dupla origem; é uma espécie de estuário de duas fontes: uma
longa pesquisa realizada em diversos estados brasileiros por Celso Athayde e My Bill,
sobre os jovens na vida do crime e suas razões, sobre a dimensão humana destes jovens; e
um conjunto de pesquisas e registros etnográficos conduzidos por Luiz Eduardo Soares, nos
últimos sete anos, sobre juventude, violência e polícia. Os dois afluentes se encontraram,
porque os valores e a interpretação dos problemas eram convergentes, e os três autores
decidiram completar suas respectivas tarefas com um conjunto de entrevistas qualitativas,
as quais foram realizadas, em 2003, pelos professores Hélio Raimundo Santos Silva e
Míriam Guindani.

Celso e Bill sintetizaram toda a carga de informações sociais e culturais acumulada por sua
pesquisa* em narrativas que preferiram escrever em primeira pessoa, para enriquecer suas
descrições com os sentimentos vividos e as interpretações que as experiências suscitaram.
A esses textos acrescentaram depoimentos memorialísticos, como "Os Neguinhos do
Buzão", "O Pior Sentimento que Alguém Pode Ter" e "O Choro do Mensageiro".

Luiz Eduardo trabalhou as entrevistas, recortando-as, em parceria com Miriam, ou as
redescrevendo, sob a forma de relatos breves. Em diálogo permanente com os co-autores,
teceu a rede dos textos, procurando combinar interpretações com retratos os mais fiéis
possíveis de cenas vividas por um sem-número de personagens, todos verdadeiros, imersos
em situações reais - ainda que sob nomes fictícios e em cenários ligeiramente alterados para
lhes resguardar as identidades, como determina a ética de toda pesquisa social.** Em
alguns casos, não se furtou a reconhecer que era ele mesmo o protagonista. Tomou sua
passagem por governos1 como oportunidades para

* Não apenas pela pesquisa, mas também pela observação critica cotidiana, que suas funções a frente da Central Única de Favelas (Cuia)
proporcionam
f* As respectivas participações estão assim indicadas nos textos de Celso e Bill, explicita-se a autoria Nos textos de Luiz Eduardo, não - o
que basta para distinguir Assinalar as autorias nos pareceu importante, seja para preservar a autonomia de pensamento de cada um, seja
para enfatizar a importância que atribuímos à voz de cada um, a personalidade autoral de cada um. Para nós, a eventual riqueza que
porventura tivermos alcançado terá sido o resultado desta pluralidade, fundada em um forte consenso de fundo
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observação e registro de episódios reveladores do funcionamento subjetivo e social da
violência e da insegurança pública.

O propósito do livro é traçar um vasto painel realista sobre a violência instalada em vários
estados brasileiros. A intenção não é denunciar. É compartilhar com os leitores
preocupações e reflexões, na perspectiva de manter viva a esperança. O inferno está perto
de nós, é verdade. Mas há saída, sim. Basta olhar de perto e sentir o sopro de humanidade
que vibra sob a máscara dos monstros.

Nós não gostaríamos que este fosse considerado um livro sobre o crime e a violência,
melancólico e bonito como flores na sepultura. Desejamos que ele seja lido e usado como
uma ferramenta cheia de vida a serviço da construção das saídas.

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AQUARELA DO BRASIL


muito simpática e falante, fumava um cigarro atrás do outro e começou a contar sua vida,
que ela vendia merla porque precisava, sem que eu perguntasse nada. Parecia que o China
tinha dito pra ela que eu estava fazendo uma entrevista para o Ratinho. Percebi que ele
tinha entendido tudo errado: nossa pesquisa não era sobre adultos, era sobre crianças, sobre
jovens. Mas já que eu estava ali, fiquei quieto para não fazer desfeita, uma questão de
educação, apenas.

Nada me parecia interessante: era uma casa normal, como qualquer outra casa de subúrbio.
A sala tinha uns três metros quadrados; a mesa de centro de madeira tinha vidro no meio; as
cortinas eram dessas de barbantes amarelos, tipo as que se compram nas feiras hippies. Na
parede da sala havia a foto de um homem, magro, de bigode: o dono da casa, pensei. Será
que ele gostaria de nos ver lá? Até que ouvi umas palmas lá fora no portãozinho, que ficava
a uns seis metros da porta da sala, mas a pessoa que bateu as palmas não esperou a senhora
levantar para atender, até porque ela nem esboçou reação de que ia levantar.

Só poderia ser gente de muita intimidade para entrar direto assim. Chegou até a porta e
abriu. Não ouvi nada. Eu estava no sofá menor, de dois lugares, ao lado do Miguel, a dona
da casa estava de frente para mim e para a porta da sala. Acompanhei pelo semblante dela
que a pessoa que chegou estava exigindo anonimato. Ela se levantou, dirigiu-se à cozinha,
onde eu não a podia ver, voltou e foi até a porta entregar alguma coisa para a pessoa.

Não olhei pra ver quem era, mas pude perceber que se tratava de uma criança, pelo
tamanho da sombra. Até aí, tudo normal. Podia ser algum vizinho pedindo algo emprestado
e não queria se sentir desmoralizado por mim. Aí eu perguntei quem era: "É vizinho seu?"

Ela riu e disse que era um cliente. Que não sabe onde ele mora e que não sabe de quem o
garoto é filho, só sabe que quase todos os dias ele volta para comprar mercadoria, a merla.
Disse que ele devia ter uns 12 anos. Me contou que uma vez ela saiu pela manhã e ele
estava desacordado, quase em coma, no quintal. Percebi que ali também tinha o que eu
procurava. Mergulhei de cabeça nas perguntas e na vida daquela mulher.

Ela me disse que o homem na foto da parede é seu marido, que ele é traficante e que foi
delatado por um vizinho que tinha inveja, segundo ela, porque a casa dela vendia mais do
que a sua. Que conversa de doido; tudo muito estranho, mas ela dizia tudo aquilo com uma
sinceridade quase religiosa.

Continuou falando do marido: que ele ajudava muito em casa antes de ser preso; que a
única alternativa que ela tem agora é retribuir tudo que ele fez; que ela o ama muito e sofre
também por sua falta, que precisa


trabalhar porque

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precisa pagar o advogado dele e as propinas nos presídios. Disse que a casa era de aluguel e
que alguns vizinhos já tinham denunciado para a sua senhoria que ela vende droga na casa,
mas ela sempre desmentiu. As horas foram passando e muitas pessoas entravam e saíam o
tempo todo. Era como uma casa que dá doces nos dias de Cosme e Damião. Vinha gente de
todo tipo: velho, velha, criança, casais, tudo...

Em certo momento entrou um senhor pelos fundos. Um português de 70 anos presumíveis,
que mais se parecia com um dono de padaria. Era difícil aceitar. O que aquele homem de
aparência tão séria e familiar estava fazendo ali? A resposta estava no rosto desesperado.
Ele estava tão concentrado naquilo que veio fazer, que a impressão era de que seria
impossível que ele nos ouvisse ou se negasse a filmar. Nem mesmo seria capaz de perceber
a câmera. A merla era maior que tudo, maior que a própria vida dele. Mas ele não era o
único ali. O entra-e-sai era intenso.

A anfitriã recebeu muitas visitas nesse dia. Era um sábado e a rua era muito movimentada,
muitos vizinhos chamavam por ela para falar sobre assuntos normais - por exemplo, para
olhar a filha até que a vizinha voltasse do mercado. Uma outra foi deixar as chaves de casa
para que fossem entregues ao marido que tinha ido jogar pelada com os amigos. Nada de
anormal, fora a merla, que ali também não parecia uma coisa do outro mundo. Vez ou outra
ela dispensava os vizinhos e dizia que estava com visitas. Outros vizinhos se juntavam a
nós por algum tempo e depois partiam. As vizinhas, vendo que nós estávamos gravando
tudo que se passava ali, algumas vezes nos facilitavam a vida, atendendo os clientes que
chegavam, alguns dos quais vinham até a sala, outros passavam para os fundos da casa
direto, fazendo bastante barulho para chamar a atenção de todos e avisar que tinha cliente
na casa. Eu não conseguia entender como todos nós podíamos correr tantos riscos de
sermos presos. Se a polícia chegasse, estaria todo mundo em cana e fim de prosa.

Comecei a me acostumar com as pegadas, barulhos de gente, vozes de viciados e outras
loucuras. O tempo se encarregou de me fazer relaxar. Ela dizia que conhecia os passos de
cada cliente, cada assobio, cada palma, cada voz. Eu não acredito nisso e, mesmo que fosse
verdade, eu não acreditaria.

O desespero que cada viciado imprimia no rosto era trágico demais para o que eu tinha
visto até então. O máximo que eu conhecia no Rio era um tal de "capa preta", um tipo de
cocaína que dizem que é quase pura, por isso mais cara, e, quando os viciados usam, a
favela fica perigosíssima, porque

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todo mundo perde o controle de tudo. Basta uma cafungada que os caras e as minas perdem
a linha. A vida passa a ser um detalhe.

A personalidade e a presença marcante de nossa anfitriã eram tão iluminadas, tão
confortáveis, que não parecia que a morte era vendida, de certa maneira, em sua casa. Mas
era. Ela disse que não sabia direito como era a química da merla, mas sabia que era feita de
soda cáustica e solução de bateria... Então, isso é vida? O que pode ser tão violentamente
destrutivo quanto a merla, tão trágico?

A todo instante, surgiam famílias inteiras para adquirir seus produtos, filhos ainda no colo,
pessoas com deficiência mental ou cheiro do trabalho.

A anfitriã vendia a droga por R$ 5,00, preço único, sem promoção. Ela disse que todas as
coisas que possui e que estão na casa onde mora custaram cerca de R$ 5,00. Pode até ser
algum exagero, mas se a merla é feita dessa mistura, só doido pode usar mesmo... Ela disse
que, na fissura, os viciados levavam para vender ou trocar qualquer coisa: liqüidificador,
televisão, sapato, carteira, computador. A maioria das vezes na madrugada, quando há
menos concorrentes e o risco é maior. Nessas ocasiões, e sobretudo quando faz frio e
chove, eles ficam no limite do desespero e, nessas circunstâncias, uma televisão por cinco
reais pode não ser uma troca tão injusta. Vai depender de que lado do balcão você se
encontra.

Às vezes o movimento parava um pouco, por alguns minutos, e depois voltava mais forte.
A senhora contou que nunca dormia: enquanto houvesse alguém para comprar, ela estaria
ali para vender. Confessou que sentia muita pena daquelas pessoas, mas era a sua
sobrevivência, precisava do dinheiro, era só pelo dinheiro. Justificava a venda na sua casa
afirmando que, se não o fizesse, alguém faria. Parecia tentar se convencer e justificar o
injustificável.

Toda noite era igual, ela dizia. O pico era entre 22 e quatro da manhã, principalmente nas
sextas e sábados, que era quando baixava a fissura dos nóias - é como eles chamam os
viciados em merla.

Enquanto rolava o entra-e-sai de clientes viciados, nós conversávamos no sofá. Ela não
tinha a menor preocupação, o menor medo de ser descoberta, a exemplo de seu marido.
Como não, se todo mundo entra e sai o dia todo? Parecia essas casas que vendem sacolé de
coco e de chocolate. Só que o sacolé que essa senhora vendia era crime. O quadro que se
apresentava era diferente de tudo que eu já tinha visto. Era muito vulnerável pro meu gosto.
Era absurdo confiar naquelas pessoas; era absurdo vender droga dentro de casa e dormir
dentro dela; era absurdo conviver com a possibilidade de ser denunciada. E se a polícia
chegasse e os pegasse em flagrante, como seria?

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Ela explicou que a merla fica na geladeira por causa do processo químico e que, quando a
polícia vai lá, ela corre, joga dentro do vaso e dá descarga. Eu pensei comigo: "Que
mamão", na minha cidade neguinho invade e ainda arrebenta o vaso.

Ouvi uns gritos de criança. Era uma menina de uns 11 anos. Estava chegando da rua. Era
sua filha. Vinha da educação física. Era bonita, tinha o rosto quadrado, morena, cabelos
cacheados e maltratados. Usava uma fita branca. Parecia uma menina bem feliz.

Falou comigo educadamente e se intimidou com a câmera. O tempo se encarregou de fazê-
la relaxar. Ficou amiga da câmera e minha amiga também. Volta e meia ela atendia uns
clientes, até que perguntei se ela sabia o que estava vendendo. Ela disse que não. Depois de
um silêncio, perguntei novamente. Ela olhou para a mãe, buscando algo que a aprovasse ou
reprovasse. Nada encontrou e respondeu com segurança que não sabia. Insisti e quase perdi
sua amizade: "Por quanto você vende a merla?"

Ela me olhou e percebi que fui longe demais. Me arrependi por ter insistido. Mas para mim
era ainda mais triste ver que todos na casa viviam em torno da merla e a merla se confundia
com todos. Minha vontade era resolver o problema delas, mas elas não pareciam ter
nenhum problema - talvez o problema esteja mesmo comigo. Prometi mandar um presente
pra menina, brincamos durante a tarde entre uma entrevista e outra de pessoas que
chegavam na casa. Me emocionei muito com tudo que vi ali.

Um casal, nem sei se era um casal ou uma dupla, chegou com as roupas sujas e comprou a
merla. Perguntei à anfitriã se eles falariam comigo. Ela pediu que fôssemos para os fundos
da casa. Tentei falar com eles. Era impossível a comunicação. Eram inquietos demais. Era
como se estivessem vendo um bicho. Só a merla era capaz de acalmá-los. O coração partia
em pedaços. Pedi para filmar. A moça entrou em desespero e pediu para não passar na
televisão não, que tinha filha na escola. E repetia isso com tanta ansiedade que parecia que
estava sendo crucificada.

Triste, muito triste tudo aquilo. Eu olhava para a dona da casa, por quem eu sentia uma
grande admiração pela força que tinha, pelo talento para falar e pela fé na vida, e ela estava
relaxada, fumando um cigarro, com um leve sorriso. Parecia se deliciar com aquele
desespero. Aquilo me fazia sentir muita raiva dela. Sua casa era um inferno. Na verdade, ali
era o paraíso do diabo. Como eu poderia me sentir em paz naquele lugar? Mas era assim
que eu me sentia, feliz por estar ali na sua companhia, ouvindo as histórias daquela mulher
que vendia merla para sustentar sua filha, que vendia merla

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para destruir a vida das filhas dos outros; da mulher que vendia merla para salvar seu lar,
mas que destruía, com a merla, muitos outros.

Eu estava impressionado, fascinado, estarrecido com as coisas que ela dizia, pela paz que
ela possuía e passava, mas não podia ficar mais, porque tinha marcado dois shows para
ajudar a pagar os custos da pesquisa e, nesse dia, um deles ia rolar à noite. Infelizmente, eu
não poderia ficar para assistir a mais coisas e ver de perto a vida noturna da mulher
calculadamente louca.

Mas o Celso viria mais tarde e, quem sabe?, quando nos encontrássemos pela manhã ele
teria boas histórias. Era aguardar pra ver.

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MERLA NO PLANALTO, OUTRO ÂNGULO

Este relato foi escrito por Celso Athayde, dando seqüência à narrativa de Bill.
Cheguei à casa eram mais ou menos sete da noite. Bill já não estava; tinha ido para um dos
shows que agendei para aliviar os custos da pesquisa. A rua era escura, com poucas
pessoas. O China foi me encontrar no lugar marcado. Apesar de ele garantir o tempo todo
que era tranqüilo, que eu poderia entrar, resolvi não arriscar. Se fosse tão tranqüilo assim,
como ele afirmava, por que eu estaria indo pra lá, já que o que eu queria filmar para a
pesquisa era o terror?

Começamos a caminhar para a casa da Gordinha, que é como eu passei a chamar a dona da
casa. Uma mulher maluca, irresponsável e surpreendentemente encantadora. A casa dela
era uma dessas casas que parecem ter um ímã, que não dá vontade de sair mais. Só que, se
pensarmos bem, não deveríamos nem entrar.

No caminho, o China me falava do trabalho dele, do novo disco de rap que eles estavam
fazendo e do preconceito que existe contra o povo do hip-hop. Dizia que Bill já tinha ido
embora, que o Miguel estava lá à minha espera, que tudo tinha sido muito bom, mas nada
que ele dizia me servia muito, porque ele não sabia o que queríamos de fato, na real - nem
nós sabíamos. Talvez as caras do Bill e do Miguel tivessem acusado essa satisfação.

O China parecia um artistapop, todo mundo falava com ele nas ruas. Ele cortou caminho
por uma rua e acabou dando uma volta mais longa: ele queria me mostrar a chamada "rua
da amargura". Uma rua onde os viciados se encontravam para fumar a merla. Aquelas
pessoas não se pareciam com gente, não viam ninguém, não atinavam em nada. Se a polícia
chegasse ali, todos seriam presos, tamanha era a inércia a que se entregavam. Eram cerca de
quarenta pessoas espalhadas pela rua. Não estávamos num lugar que pudéssemos chamar
de favela; eram casas comuns, construções aparentemente oferecidas pelo Estado. Tinha
gente de todas as idades esparramada pelo chão. Eu já tinha visto coisas parecidas com
aquela e até pior, desde criança, mas nunca vou deixar de me chocar. Eu acho.

Pena eu não ter uma câmera ali. Mas, afinal de contas, essa pesquisa não poderia mesmo
registrar tudo. Era inevitável, tinha que registrar só parte das mazelas. Afinal, era uma
pesquisa, não um documentário - isso seria um outro projeto, como Soldado do Morro e
Falcão. Continuamos caminhando

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para a casa da Gordinha, uma moradia simples, insuspeita. O portão estava aberto, o que
não queria dizer nada, já que estavam nos esperando. Atravessamos o portão; a Gordinha
estava saindo. Fomos apresentados formalmente. Abri um sorriso e ela fez uma brincadeira
muito íntima, como quem quisesse me deixar muito à vontade. Disse que estava indo à
padaria e já voltava. Não tinha nada naquela mulher que a confundisse com uma marginal,
bandida, traficante perigosa. Parecia que esses títulos haviam sido inventados só pra
prejudicar os pobres, que queriam sobreviver das drogas e ficar ricos também. Mas essa
discussão tinha que ficar para um outro momento.

Ela nos convidou para acompanhá-la. Prontamente, peguei as duas garrafas de Coca-Cola
de um litro e virei para o portão, demonstrando toda a minha presteza. China preferiu ficar.
Olhei para a cara dele e me perguntei se seria prudente ir com ela até a padaria; afinal, ela
era traficante de merla, droga pesada, que dá cadeira elétrica, prisão perpétua, forca e outros
bichos. Mas ela era tão alegre que era impossível levar aquilo tão a sério, e eu não poderia
ser tão azarado a ponto de me foder justamente no único dia em que estava saindo com ela.
E mais: ela parecia bem segura do que estava fazendo.

Na padaria só tinha pão velho. Fomos a outra. No caminho ela começou a perguntar por
que a gente estava fazendo essa pesquisa; disse que se amarrou no negão e que queria ir ao
show, mas não podia porque teria que trabalhar duro naquela noite e, como estava esfriando
e era fim de semana, não seria racional fechar a firma. Contou que a mãe dela estava presa,
o marido também, e que, se fechasse, se ferraria mais ainda. Disse também que estava com
muitas dívidas e tinha que pagar o fornecedor de merla, de quem pegava fiado.

Eu não sabia do que ela estava falando, mas ela falava comigo como se eu fosse a pessoa
com quem tivera passado todo o dia. As coisas que eu não entendia eu ignorava, e a
conversa rolava. Passamos por um borracheiro; uma velha estava sentada no canto. A
Gordinha disse que a velha tinha sido a rainha da merla, até ser presa. Apanhou tanto na
cadeia que ficou surda. Perdeu quase tudo que tinha. Pedi para conhecer a velha. Descobria
ali meu fascínio pelos seres da espécie humana.

Atravessamos a rua, ao encontro da senhora. Ela era branca, baixinha, com cara de
nordestina. Usava uns cordões de prata, ou cor de prata, ostentando um certo luxo para o
lugar. Talvez fosse assim quando era a rainha da merla. O diálogo era difícil, porque a
velha era surda e me olhava com muita desconfiança. Mesmo assim ficamos lá uns bons 15
minutos.

Inesperadamente, um rapaz pretinho que estava no balcão do borracheiro gritou para a
velha entrar. Ela não sabia se pulava o balcão ou dava a volta.


Não entendi nada, mas era certo que eu estava numa fria. Torci para que

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fosse a polícia, porque se fosse o bicho o caô* poderia ser pior. Era a polícia. Caralho...
logo eu, feliz por ver a polícia. A Gordinha me abraçou. Uma viatura se aproximava. Os
canas vieram bem devagar até encostarem no borracheiro, e é claro que a velha não era ex-
rainha porra nenhuma, do contrário ela não teria corrido, ou melhor, se arrastado para
dentro do estabelecimento.

Os policiais pararam na porta; não saíram da viatura; me olharam; olharam para minha
esposa - pelo menos é o que a Gordinha queria que parecesse -, se olharam por algum
tempo, conversaram e depois desceram. Pediram os documentos; eu dei; perguntaram o que
eu estava fazendo ali. Não consegui dizer nada; gaguejava a cada tentativa, comprovando
que eu estava errado e me condenando a cada tentativa e a cada pergunta. Meu primeiro
susto foi porque a Gordinha me usou de escudo, me fazendo passar por marido dela, o que
eu não poderia negar, nem mesmo na frente do juiz. O outro motivo para minha hesitação
era o fato de que estávamos no borracheiro mas não tínhamos carro, e ainda para complicar,
a velha, avisada pelo funcionário, correu. Eu ia dizer o quê? Falar chinês ou gaguejar para
ganhar tempo e pensar numa boa desculpa para estar ali, àquela hora?

Mas havia algo de que só a minha amada Gordinha sabia. No borracheiro tinha um telefone
que muitas pessoas usavam. Calmamente, explicou que eu era gago e tinha medo de
polícia, trauma de infância, e as duas coisas não deixavam de ser verdade. Disse que
tínhamos ido ali para ligar para o Rio, porque os telefones mais próximos da casa dela
estavam quebrados. A filha-da-puta da Gordinha falava com clareza, segurança e precisão;
parecia que tinha treinado dias para representar aquela cena. Os caras não acreditaram
muito, apesar do talento de minha cônjuge. Então, nos revistaram sem muita esperança de
encontrar algo. Perguntaram sobre o dinheiro que ela levava - uns 30 reais. Ela contou que
estava a caminho da padaria; queria comprar um lanche para os amigos do Rio, que nos
esperavam. Ter que justificar 30 reais era o fim da picada ou muita falta de assunto, mas era
a nossa penitência. Finalmente, fomos dispensados.

Atravessamos a rua rumo àpadaria. Olhei para aquela mulher com admiração pela frieza,
segurança, esperteza e coragem. Uma mulher que eu nem conhecia, da qual só sabia o que
ela acabara de me contar, que era traficante junto com toda a família. Perguntei se ela não
era pichada na região. Confessei que minha impressão tinha sido que fora reconhecida
pelos policiais, e que eu acabaria indo em cana junto com ela. Disse que não, que já
fora denunciada por vizinhos várias vezes, que sua casa já havia sido invadida muitas vezes
pela polícia, mas que nunca conseguiram provar nada contra ela. Disse que a velhinha é que
é pichada, que os canas sabem que ela voltou a traficar e que o borracheiro é uma fachada,
apesar de funcionar também para esse fim. Eu já não sabia mais se queria realmente ir à
padaria... Mas seguimos em frente. Compramos queijo, bolo de cenoura a quilo, pão doce e
outras bobagens. Na hora de pagar, ela não foi para o caixa; pediu para eu sair; ela pagaria a
conta; o tom era estranho, precipitado, meio urgente. Obedeci e saí. Aguardei na loja ao
lado, onde funcionava um fliperama.

Caô significa história inventada, armação, mentira ou problema (é o caso).
25


Na volta, perguntei se ela realmente tinha pago a conta. Ela disse que não, que a menina do
balcão era conhecida dela e que não precisava pagar, que no fim do mês ela dava para a
garota uns trocados. Ali eu fiquei em dúvida se ela traficava por uma questão de
sobrevivência ou se era uma "fora-da-lei" por instinto.

Chegamos à casa e encontramos Miguel deitado no sofá, o China vendo TV e uma menina
bonita de cabelos compridos brincando com a filmadora PD. Notei que o Miguel estava
muito à vontade; àquela altura, eu também estava. Aquela Magra se tornou, em alguns
minutos, uma velha amiga. Fomos para a cozinha preparar os "comes e bebes".
Comemoramos e brindamos sem motivo aparente; acho que à saúde e à liberdade na
companhia de alguns viciados que chegavam pela porta dos fundos. Comecei a me
acostumar com aquele entra-e-sai de gente, e a me sentir íntimo das pessoas que ainda iam
chegar. Minha relação era com a venda e a vendedora, não com o comprador; eu estava
totalmente integrado ao sistema, estava envolvido com a boca de merla como nunca pensei.

Concordar com aquelas coisas e entrar no jogo da Gordinha era a minha tática para
conquistar sua confiança, só que ela era tão fascinante que o envolvimento era mesmo
inevitável. Talvez ela tivesse usado da minha tática também, e o feitiço virou contra o
feiticeiro.

À meia-noite, o movimento cresceu na casa. Parecia até que ia começar uma festa com hora
marcada. Era como se fosse parte do ritual da merla, mas não era. A Gordinha disse que
àquela hora era mais prudente trancar toda a casa, por duas razões: a magia da noite
enlouquece os noiados e a polícia sempre vinha nesses horários. Foi assim que seus
parentes foram presos. Por isso, ela mandou instalar na sala uma porta grande de ferro com
uma abertura que mal dava para ver o rosto dos clientes, como nessas farmácias 24 horas.
Eu me coloquei de frente para a porta, ao lado do Miguel, e passamos a registrar tudo,
absolutamente tudo. Instalamos um microfone sem fio na Gordinha para viver mais de
perto tudo aquilo. O movimento acontecia em ritmo frenético, assobios, gritos, choros,


brigas de casais, tudo isso se concentrava naquela janelinha.

26


Miguel, apesar de ser um chato, é dotado de uma competência incomum. Ele foi indicado
pela Katia Lund para esse trabalho e não perdia tempo nunca. Quando eu pensava em
chamá-lo para filmar, o sujeito já estava trocando a fita. Ele acabou treinando alguns jovens
da Cufa, que assumiram papéis importantes na fotografia desse trabalho - o Felha é um
deles. A sala ficava escura; quem estava do lado de fora tinha dificuldade de nos ver. Num
certo momento, um rapaz que devia ter uns 30 anos bateu na porta, colocou a cara na
janelinha e tentava nos ver. Não sei por que a Gordinha não levantou para atendê-lo, o que
era estranho, uma vez que ela era como essas moças de loja de noivas, na presença da
patroa. Basta o freguês chegar perto do balcão para ser quase devorado. Mas com esse cara,
não. A Gordinha interrompeu nosso papo, ficou olhando para a porta, quase em transe -
parecia uma jibóia fixada na vítima, prestes a dar o bote (ela tentava, na verdade,
reconhecer quem nos olhava), e correu para a cozinha. Miguel, com um gesto brusco e
mecânico, deslizou a câmera para baixo do sofá. Era certo que a chapa ia esquentar pro
nosso lado. Eu sabia que a Gordinha tinha corrido para esconder os produtos no banheiro,
apesar de não ter escutado a descarga, que era para onde a droga ia quando a polícia
chegava. A essa altura, a menina inocente estava dormindo. Ouvi os trincos da porta da
cozinha... Já era... Fodeu... pensei; ou vai morrer todo mundo, ou vão todos pro xilindró.

Percebi que a porta se abriu com ímpeto; cabia imaginar quem entraria àquela altura. Não
nos mexemos; sequer respirávamos para não fazer barulho; esperamos a morte chegar e os
primeiros disparos. Talvez fosse hora de arrombar a janela e correr. Nesse momento, Deus
foi convocado, mas não parecia que chegaria a tempo de nos salvar. Ouvimos passos no
corredor e percebemos que alguém corria para fora da casa, em direção à porta principal,
onde estava o rapaz. Subitamente, a cabeça dele foi puxada para trás e a paulada começou a
estalar. Era a Gordinha, baixando a porrada no sujeito. O cara era bem mais forte que ela,
mas o medo da represália, o medo dos fornecedores da Gordinha não o deixava reagir. Ela
deitou e rolou. Eu e Miguel nos revezávamos na portinhola para ver a surra que a Gordinha
dava no cara.

Foram vários minutos de coca. Outros nóias chegavam e assistiam sem nada dizer. A
Gordinha olhava para os outros e gritava descontrolada que ali era assim, que ela matava de
porrada quem ficasse devendo à boca. O sujeito tentava dizer umas coisas, mas não
conseguia. Os berros dela e as madeiradas calavam a voz do rapaz, que sucumbia a cada
porrada. A Gordinha usava o cara como exemplo para todo mundo, eu acho que até pra nós
mesmos. O olhar dela acusava. Depois da sessão, o cara


foi liberado e nada falou. Em alguns momentos eu tive a impressão

27


de que ele queria dizer que estava ali justamente para pagar a conta. De toda maneira, ele
poderia ter decidido pagar depois da atitude dela.

A fera deu a volta pela casa, entrou na sala, pediu desculpas e foi tomar banho. Ficamos eu
e Miguel ali, atordoados, perplexos, como dois falcões acima da idade. Enquanto a
Gordinha se banhava, os clientes iam chegando e se aglomerando. Ficamos ali, na sala, sem
saber o que fazer.

A Magra voltou do banho e assumiu seu posto. A clientela só aumentava. Mais tarde,
surgiu um outro homem. Devia ter a mesma idade do primeiro sparríng de Olívia Palito.
Colocou a cara e depois o braço pela portinhola. Portava um cheque de 50 reais. A
Gordinha se levantou, pegou o cheque e começou uma negociação:

- Troca esse cheque para mim? - perguntava ele com um sotaque carregado.

- Tá doido, é? - retrucou a Gordinha, com firmeza.

- Oi, tem 50 contu aí; me dá cinco potocas de merla.

Isso representaria para o rapaz um prejuízo de 50%, considerando que a mercadoria custava
R$ 5,00. A Gordinha disse que não, que ela não trabalhava com cheque, que só aceitava se
ele levasse uma potoca. Fiquei puto com ela. Porra, era pura exploração. O rapaz era cliente
dela; ele tinha dito, inclusive, que não era a primeira vez que trocava e que o cheque era
quente. O cara ficou nervoso e travou uma breve discussão com ela, até que ela perguntou
se ele a estava desrespeitando. Ele se calou, amansou a voz, pediu o cheque e disse que não
queria mais. Agradeceu e foi embora, ostensivamente puto da vida. A Gordinha se voltou
para nós, sentou no sofá ao meu lado e fez críticas ao rapaz: "Esses caras são muito
espertos. Eles querem moleza." Realmente, aquilo era uma outra lógica. Mas, logo ela, que
tinha passado todo o início da noite me provando que tinha um coração enorme?

Na seqüência, outro homem bate à porta desesperado. Aliás, desespero era o que todos os
clientes tinham em comum. As batidas eram fortes. A Gordinha levantou, em seu estilo
briguento, mas ao mesmo tempo acolhedor. Dependia sempre das circunstâncias. Foi até a
porta. O homem colocou pelo buraco da porta um vestido preto, parecia novo. Ela disse que
não queria. O sujeito insistiu, pediu pelo amor de Deus. Meu coração partiu, minha vontade
era de comprar o vestido do homem, mas seria uma solução só naquela noite, e mais: eu
estaria financiando a compra de merla, da desgraça, da morte. Como é que eu poderia ser o
financiador de um produto cuja bula diz que é uma mistura de soda cáustica, solução de
bateria e cloro? Não, não era um problema meu.

A Gordinha me olhou. Ela deve ter-se lembrado que tinha me falado dessa realidade e
resolveu abrir a porta. Miguel estava atento, com sua ferramenta na mão.

28


A porta se abriu e a esperança do homem se intensificou. Ele abriu o vestido - um desses
que as meninas usam nas festas de 15 anos. O sujeito tremia e mal conseguia falar. Pedia
merla, merla, merla... Ele, no máximo, sussurrava. Dava dó, dava vontade de chorar.
Vontade? Pra que mentir? Chorei de dor. Ele nos olhava, olhava a câmera e ignorava
qualquer coisa que não fosse a possibilidade daquela troca.

- Não! - sentenciou a Gordinha. E bateu a porta em sua cara. Antes de sair ele demonstrou
um desconsolo que só nos enterros eu tive chance de ver. A Gordinha era grossa, mas eu
aprendi a aceitar. Não era racional ser cortês em circunstâncias como aquela. E tinha que
considerar que aquela rotina e aquelas madrugadas reservavam muitos mistérios, para o
bem e para o mal.

Aquele homem, ao partir, levou parte da minha fé com ele, levou com ele parte da minha
esperança. Antes mesmo que eu me refizesse do baque, o braço do rapaz do cheque invadiu
a sala através da portinhola. Ele dizia que estava arrependido e que aceitava a proposta da
Gordinha.

Ela se levantou com má vontade e com ar de vencedora, Como se tivesse certeza de que ele
voltaria. Era uma nova teoria comercial que eu aprendia naquele momento, mas que
convém esquecer. Às três da manhã, um cheque de 50 reais vale, no máximo, cinco reais
(ou uma potoca).

O dia amanheceu, mas o trabalho dela não pararia ali: "Enquanto houver cliente e
mercadoria", ela disse, "eu não posso dormir. Posso até deitar, dormir, não".

Despedimo-nos. Aquela mulher, apesar de tudo, era alguém de quem eu sentiria saudades.
Ela nos levou até o portão, mandou abraço para o Bill e nos desejou toda a sorte na vida;
que Deus nos abençoasse. Era nítida a tristeza dela por nos ver partir. Aquela noite tinha
sido importante para ela e para nós. Era uma coisa que não dava para explicar, mas era
claro que uma química humana, um desejo de que o mundo fosse diferente tinha se
instalado naquela despedida. Era como se eu estivesse indo para nunca mais voltar, e foi
assim; era como se ela fosse nossa mulher e nós estivéssemos indo para a guerra. Foda...
Muito foda...

No hotel, Bill estava tomando café da manhã com o pessoal da banda. Ele se levantou e
perguntou:

- E aí, negão, como foi a noite lá na casa da dona? A mulher é foda, né não? Ela é muito
humana, não é?

Sentei, coloquei café na xícara.

- Acorda, negão, a mulher é foda ou não é?

Coloquei o açúcar, passei manteiga no pão. Mexi o café e até hoje não respondi.

29


MENINOS DA PARAÍBA

Celso Athayde escreveu este relato.
Chegamos no estado da Paraíba para descobrir a realidade daquele lugar. Saltamos no
aeroporto e pegamos um barco para chegar a uma das favelas que escolhemos. Não havia
critérios muito claros para essa escolha. Era muito mais na base da intuição e das notícias
que tínhamos tido, quando fizemos shows nesses lugares. Não queríamos desprezar o
formato convencional das pesquisas sobre violência, queríamos apenas aproveitar a
vantagem de não saber a forma convencional, para não parecer com os intelectuais que
tentam patentear as favelas com números absurdos, números que viram verdades quando
vão pra mídia e não são contestados por ninguém. Claro, quem vai contestar os números
dos intelectuais quando são apresentados nos jornais de grande circulação, com tabelinha e
tudo? Vira verdade absoluta e assunto encerrado, mas nós sabemos que eles escrevem
qualquer coisa, e quando escrevem de modo consciente, é porque estão reproduzindo as
lições acadêmicas dos que se encaixam nesse perfil. Radicalismo à parte, entramos na
favela.

Chegamos à favela e vimos alguns jovens jogando futebol, ao lado de um conjunto
residencial, ou melhor, palafitas. Não era possível que existisse tráfico ali. Era muita
miséria, muita desnutrição, muita desgraça. Será que ali também haveria crack sem ser de
bola? Deus, não deixe que tenha..., meu coração suplicava - sem que ninguém ouvisse - que
não houvesse e que nossa viagem fosse uma decepção. Bobagem minha, pura tolice. Bastou
escurecer e os moleques estavam lá, na pista, com seu jeito diferente, seus sotaques
próprios, mas estavam lá, vendendo e consumindo aquelas desgraças igualzinho a todos os
lugares avançados, igual a todas as melhores civilizações do planeta.

Mas uma coisa era certa: aquilo que eu achava que era uma desgraça, de certa maneira fazia
parte da economia daquele lugar; o dinheiro que entrava ali naquele bairro produzia uma
grande quantidade de violência, exatamente porque produzia a riqueza e o ganha-pão de
todos eles. Tudo muito confuso, tudo muito doido.

Pensando bem, eu estava ali para trabalhar, não para resolver a vida deles. Minha
contribuição eu não saberia dizer qual seria, mas alguma coisa precisava
30


acontecer para aquilo melhorar. Eu sabia também que nossa pesquisa não tinha um foco
específico em uma comunidade. Por isso, era muito mais difícil pedir ajuda. Se fosse uma
pesquisa focalizando um determinado lugar, seria menos difícil, mas falar de 27 estados era
missão impossível. Assim como era impossível transformar tudo que vivi e vivemos em
algo que todos pudessem ver. Mas uma coisa era possível, sim: permitir que o Brasil
descobrisse um outro Brasil, que está pelejando e correndo por fora como um azarão, mas
que está no páreo e pode ganhar a corrida. Podíamos permitir que o Brasil soubesse que,
por trás de uma arma, tem um coração batendo; que é preciso uma grande intervenção
política no país para que não estejamos fadados à escravidão de seres humanos; e que essa
intervenção não seja policial, mas em todas as áreas. Não é possível continuar matando
esses jovens como se eles fossem os nossos algozes. Não é possível ficar martelando esses
jovens e os enjaulando como animais em celas frias. Não é possível a sociedade se
escandalizar com as rebeliões dos menores e não ficarmos escandalizados com o fato de
serem zero as chances de suas famílias serem parte de uma sociedade civilizada. Pois, se
achamos que o mundo caminha como deveria e que só os outros é que estão errados, então
seria melhor abrir a boca, escancará-la e esperar a morte chegar - se é que tenho direito à
licença poética.

Começamos a filmar, percorremos as vielas e as casas dos menores. A favela estava
dominada por nós; tomamos tudo de assalto. Impressionante como a comunidade tinha o
traficante local como referência. Ele parecia um daqueles bandidos da antiga, por quem os
moradores oravam. Fizemos entrevistas com uns três moleques no primeiro dia. Fiquei
muito impressionado com eles, com a frieza, a segurança e a seriedade deles. Quando
ganhamos uma linha do trem para conversar com o quarto guri, que estava trabalhando em
um rio, percebi que nossa equipe tinha aumentado. Pois é, os moleques que eu tinha
entrevistado agora eram parte da nossa equipe. Miguel tinha aliciado os jovens bandidos
para a nossa equipe e eles vieram trabalhar com a gente. Carregavam suas armas e nossas
luzes, carregavam suas armas e nossas bolsas, seguravam os microfones e plugavam os
microfones de lapela com o farto conhecimento de quem há pouco tinha sido submetido aos
mesmos procedimentos. Naquele momento eles estavam sujeitos às nossas reclamações e
até a uns esporrinhos. Naquele momento via-se exatamente a diferença entre o homem e o
monstro. Eles não eram nem uma coisa nem outra, eles eram apenas meninos. Meninos da
Paraíba.

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Os ÍNDIOS DO SUL

Este capítulo descreve situações vividas no Rio Grande do Sul. É dividido em duas partes que se completam. Celso Athayde é o autor da
primeira. My Bill redigiu a segunda.
Tudo corria com a máxima lisura. Muitos contatos tinham sido feitos e várias comunidades
nos esperavam. Porém, uma coisa nos intrigava: o fato de que lá, no Rio Grande do Sul,
assim como em outras regiões, não existem facções e as guerras são muito descontroladas e
imprevisíveis. Num mesmo morro é possível conviverem várias quadrilhas rivais,
controlando os pontos de venda de drogas, todas elas inimigas umas das outras. O que
naturalmente contribui para o grande número de mortes dos jovens envolvidos nesse
submundo. Mas nós estávamos ali, tínhamos que entrar, não era a hora mais própria para
análises. Só havia uma alternativa: pagar pra ver.

A chuva era muito forte, o receio não era menor, mas o olhar de cada um de nós encorajava
o outro, mesmo que no fundo soubéssemos que o medo era compartilhado por todos.

Nos morros em que estávamos não havia a cultura dos fogueteiros*, por isso, só iríamos
descobrir o perigo quando não houvesse mais tempo de reação, no nosso caso, de fuga.
Fomos subindo num "bonde"** formado por um só carro. Ganhamos as vielas da favela.
Enquanto subíamos, percebemos que já havia um espírito acolhedor, alguma coisa positiva
no ar. Observamos que as pessoas estavam despreocupadas ou, de alguma maneira,
esperando por nós. De beco em beco, de curva em curva, lá íamos nós, subindo a ladeira.

Chegamos ao alto da colina. Um pequeno grupo de jovens nos aguardava e cercou o carro.
Mais um susto, todos eles tinham cara de bons amigos, mas vai saber... Saímos do carro e
teve início uma longa e alternada saudação, todos se cumprimentando. Cada um tinha uma
maneira de cumprimentar. Uns batiam no peito após o aperto de mão. Outros trombavam os
punhos. Enfim, todos amigos até que se provasse o contrário.

* Fogueteiro é o menino encarregado de disparar fogos de artifício, anunciando a chegada da polícia ou de grupos inimigos.
** Bonde significa grupo, turma, mas freqüentemente se emprega no sentido de quadrilha armada, em deslocamento.
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Fomos levados a um bar, em cujos fundos, uma área bem grande, funcionava um
desmanche de carros, que também servia como laboratório de crack. A parte interna do bar
era oval, com uma mesa de bilhar e um pequeno banheirinho no fundo, ao lado de uma
churrasqueira. Ao entrarmos, tivemos mais uma rodada de cumprimentos com muitos
outros jovens que estavam lá.

Uma coisa me chamou a atenção: enquanto Bill, Miguel e nossos "guias" falavam com as
pessoas, eu observava vários outros jovens numa outra sala no fundo, que parecia estar em
obras. Esses jovens eram diferentes dos outros; pareciam mais assustados, mais sérios, e
não paravam de olhar para todos os lados. Imaginei que aqueles provavelmente seriam o
nosso assunto. Dito e feito. Bill parece que leu meu pensamento e percebeu a direção dos
meus olhos. Dirigiu-se para o fundo do bar/desmanche/laboratório e começou,
imediatamente, a explicar os motivos que nos haviam levado àquele lugar estranho - mas,
na verdade, para encontrar pessoas idênticas às que já tínhamos visto em todos os lugares
por onde passamos.

Tudo devidamente explicado e aceito, resolvemos que Bill não faria as entrevistas. Eu faria,
pois alguém teria que segurar aquele povo que queria ficar perto do Bill e fugir da chuva.
Saímos com os jovens para conhecer sua realidade, suas casas, seus parentes e seu
"trabalho". Sendo franco, não estou certo de que esse trabalho tem de ficar mesmo entre
aspas, mas... Depois de algumas conversas e visitas, descobrimos que a laje do bar era
também o ponto de observação dos falcões. Daí fomos por uma outra viela e ganhamos a
parte superior do bar, onde o Bill continuava com os moradores, bêbados, mulheres,
crianças, bandidos, falando coisas de que eu não tenho a menor idéia.

Ao chegar em cima da laje vimos que existia uma passagem secreta para o bar. Comecei a
ter certeza de que era um bar realmente muito especial. Mas o que nos fazia estar ali
naquele momento era a minha cachaça chamada falcão* - nossa pesquisa e a chance de
mostrar a todo mundo aquela realidade tão próxima e tão desconhecida de grande parte da
sociedade. Nossa pesquisa poderia, quem sabe, apresentar um Brasil ao outro. Começamos
então a conversar com um rapaz que estava ali, na laje, com um guarda-chuva preto e uma
arma na mão. Acho que era um 38. Falamos sobre muitas coisas, Deus, sua família. Ele me
disse que não conhecera seu pai. Aliás, acredito que mais de 90% dos jovens com que
falamos não conheceram seus pais ou não vivem com eles. Falamos sobre muitas coisas.
Ele estava sempre alerta, muito atento e a entrevista foi tensa, todo o tempo, por conta
disso.

* Falcão é o nome que se dá à criança ou ao adolescente que se envolve com o tráfico
33


A chuva castigava o plantão do rapaz; o nosso também, porque nós nos embrenhávamos
tanto naquele mundo que nos tornávamos parte dele; nos tornávamos, de certa maneira,
marginais também. Mas o pior estava por vir.

Ele nos falava das guerras entre as quadrilhas - que eles chamam de gangues -, do
descontrole e da falta de uma lógica que nos pudesse orientar. Justamente quando
falávamos sobre esse assunto, escutamos barulhos de brigas e discussão vindos do bar. Era
difícil entender. Parecia que os jovens que estavam lá haviam se desentendido, o que seria
até normal num ambiente com tanta droga, especialmente com tanto crack. De repente, a
laje foi invadida por vários outros jovens que eu ainda não tinha visto naquela noite. Eles
nos renderam e disseram a mim: "Carioca, chega pra lá. Essa parada não é com você. Essa
fita é nossa."

Fiquei perplexo com o que ouvi. Nunca tinha visto aqueles caras na vida. Eu não estava
sequer com uma dessas camisas que exibem o Cristo Redentor ou o Pão de Açúcar. Como é
que tinham me identificado como carioca? Mas nada disso importava naquele momento. A
guerra não era minha, mas eu estava dentro dela, em seu coração. Miguel, a essa altura,
tinha sumido da laje. Ele contou depois que estava na sombra de uma árvore. Não sei se o
medo não me deixou vê-lo ou se era realmente ótimo o seu esconderijo.

Fomos obrigados a descer da laje e eu tive a certeza de que Deus existe mesmo. Eu e
Miguel, apesar de ele ser uruguaio, somos filhos gêmeos de Deus. Descemos por uma porta
inclinada que parecia um alçapão. Não sabia o que estava acontecendo e não me atreveria a
perguntar; mais cinco minutos de vida naquela circunstância era lucro.

Descemos e, ao chegar ao final da escada, pude ver vários outros jovens devidamente
enquadrados e o Bill junto a várias pessoas encostadas na churrasqueira. Um cara falava e
gesticulava com ele o tempo todo. Não sei o que se passara ali durante todo o tempo em
que andei pelas vielas e estive na laje. Ouvimos disparos que vinham lá de cima da laje.
Ninguém gritou. Ninguém correu. Ninguém chorou.

O tal cara que gesticulava com Bill disse que deveríamos ir embora, porque a polícia
chegaria a qualquer momento. Continuei sem entender nada, pois a minha visão era apenas
da laje e do rapaz que, suponho, foi assassinado a três metros de minha cabeça. Depois o
Bill poderia me dizer o que realmente aconteceu.

Segue-se o relato de Bill:

34


Era uma noite de muita chuva. Nós estávamos no alto do morro e sabíamos que a qualquer momento tudo
poderia mudar. Chegávamos de uma longa semana. Tivéramos muitos problemas em vários estados, naquela
semana. Estávamos chegando a Porto Alegre naquela noite. Não paramos sequer para comer; todo tempo
tinha que ser aproveitado. Nossa desvantagem era jamais saber o que queríamos e jamais nos satisfazermos
com o que tínhamos.

Todas as situações eram interessantes e novas, mesmo quando repetitivas. O cansaço era
grande. Vínhamos de Novo Hamburgo, onde visitamos e filmamos a mãe de um dos 15
jovens que tinham morrido ao longo dos três anos pelos quais já se estendiam as gravações.
Eu estava com muito sono e naquele caô todo, de Bill pra cá, Bill pra lá, tinha que me
manter aceso, porque, naquela hora, eu não era o entrevistador, era o diretor de massa. Um
bêbado perguntava o que eu tinha achado do filme Cidade de Deus, eu respondia secamente
que era maneiro; outro, baixinho, dizia que se amarrava no meu rap, que ele também
escrevia umas rimas e começou a rimar. Era engraçado aquele sotaque gaúcho fazendo rap.
Claro que sei que o rap é universal e que ele se manifesta através de muitos sotaques, mas é
inevitável que soe estranho aos nossos ouvidos. A letra falava de uma mulher que fez um
aborto, mas, no final, acabou tendo o filho. Era muito confuso. Talvez o barulho e o sono
tenham dificultado minha interpretação.

Nós ficamos no bar, um grande bar que lembrava um galpão. Fiquei na companhia dos
falcões que o Celso dispensou e com os moradores que me fariam companhia até o término
das gravações. Imaginava que terminariam ao amanhecer. Não tinha saída pra mim, era
relaxar e deixar o tempo passar. Eu tinha sempre o cuidado de não ficar perto do set de
filmagem, quando não era o diretor, justamente para não atrapalhar o andamento do
bagulho. Pois o mesmo nome que ajudava a abrir os espaços poderia ser também a razão de
o set virar um carnaval.

Por isso, fiquei surpreso quando um falcão chegou pela frente do bar e nos disse para não
falar muito alto e abaixar o som - estava tocando Cultura de Rua, do Da Guedes. Ele disse
que a equipe tinha dado um role* na comunidade e tinha ganhado o telhado do bar, por trás,
para entrevistar um falcão que trabalhava em cima da laje. Abaixamos o volume e
continuamos falando sobre um monte de coisas. Várias vezes o assunto acabava e ficava
aquele monte de gente olhando um pra cara do outro sem saber o que dizer. Foda-se, o
tempo passava do mesmo jeito.

* Dar um role significa dar uma volta ou sair.
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De repente, chegou um maluco* que era de um jornal comunitário não sei se era daquela
comunidade - e começou a fazer perguntas sobre o Free Jazz, sobre o Soldado do Morro.
Ele não se apresentou, nem eu quis saber quem ele era. Tratei de aproveitar para matar mais
tempo e comecei a responder, só que todo mundo passou a perguntar também e virou uma
zona. Todo mundo respondia e todo mundo perguntava, e o bagulho ia que ia. Tudo regado
a cheiro de maconha e longas narigadas**, nada diferente de tudo que vejo desde que nasci.
Tudo ali era muito familiar. Os bandidos sentiam certa necessidade de mostrar que o crime
lá também era sério; que, apesar de não terem tantas armas, eles também eram foda. Eu
pensava comigo que aquilo não tinha mais jeito, que nossa pesquisa não serviria pra porra
nenhuma, exceto para mostrar que a vaca já foi pro brejo. Mas a necessidade de acreditar
que tem jeito me fazia continuar.

Vinham aquelas senhoras negras, desdentadas e com roupas muito humildes, e me
abraçavam, dizendo que tinham me visto no Luciano Huck; outras que tinham me visto no
Serginho Groismann. Aquilo me fazia pensar outras coisas, me fazia pensar no hip-hop,
numa nova estratégia para o movimento. Afinal, os verdadeiros reis das favelas não somos
nós, do rap, que fugimos da mídia. Os verdadeiros reis que fazem as favelas parar e colocar
tapete vermelho são o Alexandre Pires, o Djavan, a Ivete Sangalo, os Titãs. Sei lá, não
quero ser nenhum deles e sei que eles não querem ser eu. Eu pensava, naquele momento,
que ficar fazendo cara de mau é coisa do passado. O rap tinha sido importante até aqui,
desse modo, mas passou. Não dava mais pra ficar vivendo de bico. Temos que ir para as
realizações; chega de blefe. Eu sabia que nem todos os grupos poderiam ir para a mídia,
pois muitos não saberiam o que dizer, como dizer. Então, para muitos, uma boa
contribuição seria mesmo ficar de boca fechada. Lembrei de um projeto do Celso - eu era
contra, inicialmente, mas agora sou a favor e vou dar apoio - que é da gravação de um
grupo de rap assumidamente gay; acho que o nome é Gangsta Gay. Tudo isso passava pela
minha cabeça. Eram poucos minutos, mas muitas reflexões sobre o hip-hop, sobre a vida. O
que não quero é vestir uma fantasia de me e ficar vivendo um Big Brother. Ali éramos eu e
meus conflitos existenciais. Acho que vou montar um projeto social que providencie
sessões de análise nas favelas; eu seria o primeiro da fila. Muitas coisas passavam pela
cabeça sem muita organização.

Maluco é o mesmo que cara, sujeito, uma pessoa.
** Narigada ou dar uma narigada significa cheirar cocaína.
36


Aquelas senhoras traziam mais e mais saudades de minha mãe e da Cidade de Deus. Eu
estava na rua fazia só duas semanas, mas parecia quatro anos. Talvez pelo desgaste
emocional provocado pelo tema da pesquisa; era uma praga atrás da outra, envolvendo
crianças e adolescentes. Tudo sempre igual, tristemente igual e, ao mesmo tempo, diferente.
Especialmente ali. Ver aqueles moleques armados e falando baaá!, tchê!, tri!, era uma outra
história de crime pra mim; me fazia ratificar a consciência de que essa praga é mundial e
também confirmava o reconhecimento de que é patética a maneira como queremos resolver
o problema.

Estava todo mundo relaxado, como se a guerra entre todos eles já tivesse acabado. Mas,
não, a guerra desses jovens é corrente, diária, nem sempre lógica, e quase sempre
sangrenta. Não há espaços para ternura; acabou o afeto. Só restou o ódio.

Naquele dia, a guerra chegaria a cavalo, galopado por seus próprios pares. Como nos
velhos e bons filmes de faroeste, o local foi invadido por mais ou menos 15 jovens, todos
de pistola em punho. Três comandavam a operação. Usavam rabos-de-cavalo que entravam
e saíam pela parte de trás de seus bonés. Pareciam irmãos gêmeos; bonitos, eram uma
espécie de mistura de índios com nordestinos e ostentavam um certo ar de responsabilidade,
apesar de demasiadamente jovens e de carregar aquelas armas. Os garotos que os
acompanhavam se pareciam com todas as outras pessoas que viviam ali.

Chegaram com muita pressão, falando e gritando umas gírias que eu não entendia direito.
Sinceramente, nem sei se eles queriam mesmo ser entendidos ou se desejavam que a nossa
única compreensão fosse o pânico.

Eu sabia que minhas chances de ser descoberto naquele lugar eram grandes, apesar de o bar
estar cheio, mas, a essa altura, não estava mais ligando para o azar - e meu 189 jamais me
deixou passar batido. Minha esperança era que Celso e Miguel estivessem atentos ao
barulho e ralassem de lá de cima, antes de a bala comer, se é que realmente estavam lá.

Um dos rapazes da minha quadrilha - sim, naquela altura ninguém era neutro na parada -
começou a discutir com um dos cabeludos, sem esboçar nenhum sinal de medo. Percebi que
eles não eram tão inimigos assim, do contrário o incêndio já teria começado, já que os dois
lados tinham armas, embora a minha quadrilha estivesse mesmo sem condições de reação,
até pelo fator surpresa. A discussão se acirrou e foi ficando claro que eles tinham vindo
acertar as contas com um "pau no cu" (um vacilão, na língua deles), que estaria na parte de
cima da laje. Ficou claro que os caras faziam parte da mesma quadrilha, mas havia entre
eles um certo racha, por alguma razão.

37


Alguém, que estaria acima de todos ali, ordenara a morte do rapaz que estava, naquele
momento, sendo entrevistado pelo Celso e filmado pelo Miguel.

O rapaz que parecia ser o chefe da minha quadrilha disse a ele que podia ripar* o moleque,
já que a ordem era de um tal de Vaca. Avisou que havia dois caras do Rio de Janeiro
filmando, na laje. Os caras foram receptivos, o que em nada diminuiu minha preocupação.
Até que um senhor, que estava perto de mim - talvez nem fosse tão velho na idade, talvez
estivesse gasto pelas drogas e pela cachaça - e agia como se nada estivesse acontecendo,
tragando sua maconha e apreciando o gosto de sua cerveja, recomendou que eu não
esquentasse, não, que aquilo acontecia todo dia e que eles resolviam sempre entre eles.

Os três índios nordestinos ganharam o fundo do lugar e sumiram, acompanhados de uns
três ou quatro. Foram em direção a uma escada que daria no alto do galpão, onde me
disseram que Celso e Miguel estavam. Eu torcia para que fosse mentira. Passaram-se cinco
longos minutos de falatório, em cima, e de silêncio profundo, embaixo. Só escutava as
vozes dos índios. Ouvi quando alguém pronunciou a palavra carioca; minha atenção
triplicou. Mais dois minutos, ouvimos passos nas escadas e a tampa de ferro da passagem
secreta se abrindo, com a ajuda de dois rapazes que estavam no bar. Alguém ia sair. Para
meu alívio, eram Celso e Miguel, ambos com cara de quem acabara de topar com uma
assombração. Celso me olhava procurando alguma pista; eu olhava pra ele sem ter o que
dizer.

Um pouco antes de eles serem liberados, um cara da quadrilha dos índios, que ficou
embaixo, já havia me identificado e começara a dizer que era meu fã e que eu podia ficar
tranqüilo, que o problema era interno, que éramos bem-vindos na comunidade e que não
levássemos a mal aquela briga deles. O cara era espalhafatoso; falava como se estivesse
brigando comigo. Até rever Miguel e Celso, eu me limitava a assentir com a cabeça, sequer
olhava pra ele, mal conseguia ouvir o que ele estava dizendo. O que eu queria mesmo era
entender o que estava acontecendo e o sujeito não me parecia ser o caminho para a
elucidação. Quanto mais ele falava, mais confuso eu ficava. Depois que meus amigos
desceram, a bala comeu em cima da laje. Não sei se foi o moleque que o Celso entrevistara
que meteu bala nos índios, ou se a lógica prevaleceu, os mais fortes venceram e o moleque
foi pelo ralo.**

O doido que falava se batendo como um polvo, demonstrando grande preocupação com
nossa integridade física, pediu que nós fôssemos embora,

* Ripar significa acabar com, matar.
** Ir pelo ralo significa dar-se mal ou mesmo morrer.
38


porque a polícia poderia chegar depois dos tiros. Atendemos prontamente ao pedido. Juntamos os
equipamentos, guardamos tudo e entramos no carro, já combinando entre nós o que diríamos caso a
polícia nos encontrasse na descida. Entramos no carro e começamos a manobrar. Inesperadamente,
um dos cabeludos veio correndo em direção ao carro. Pensei: fodeu! Ele não via direito as posições
dos ocupantes por causa da forte chuva. Estava tudo embaçado. Ele foi se aproximando, chegou
bem perto do carro. Parecia procurar alguém em especial. Até que gritou: "Bill, Bill..." Ninguém
respondeu. Quem sabe procurava o Clinton, o Gates ou o Rato Bill, que inspirou meu apelido. O
índio continuou num tom mais alto: "My Bill, dá pra você tirar uma foto comigo e com a minha
filha?"

Era impossível acreditar que aquilo estava acontecendo. Todos no carro se olharam e, depois de um
suspiro longo, descobri que os índios matam, mas também gostam de rap. Descobri mais: que não
passara batido em nenhum momento da operação. Saí na chuva e um outro índio se aproximou de
nós dois, com a filha dele no colo. Era uma menina linda; devia ter uns dois anos; tinha o cabelo
liso como o deles, só que mais ruivo. Talvez ele tenha cruzado com uma gaúcha loira, sei lá. Ela
vestia uma roupa preta, parecida com esses conjuntinhos da Xuxa Meneghel. Não havia muito
tempo, a menina estava na chuva e nem tive tino de perguntar seu nome. Segurei a menina e eles
dois pousaram para a foto, que foi tirada por um terceiro: cada um com duas pistolas em forma de
cruz, sobre o peito, como se fossem espadas. Os dois me agradeceram como se eu tivesse acabado
de salvar a vida deles. Entrei no carro sem dizer nada e partimos ainda sob tensão. Saímos da favela
sem saber o que havia ocorrido. Na verdade, nunca saberemos. Paramos num posto de gasolina no
Partenon e ficamos ali, paralisados, horas, refletindo sobre a loucura que é a vida daquelas pessoas e
o quanto somos ingênuos, o quanto somos bandidos, o quanto somos irresponsáveis e o quanto
somos medrosos.

Só que no dia seguinte estávamos, às duas da manhã, no alto de outro morro, no estado do Paraná.
Eu, ali, em silêncio, ouvindo outro jovem que empunhava um fuzil falar sobre sua vida, suas
expectativas. Eu pensava sobre o quanto somos dotados de coragem.

39


TRISTEZA FELIZ EM BELÉM

As arbitrariedades e a corrupção da polícia são endêmicas, espalhadas por todo o país, ainda que com diferenças
significativas de intensidade, extensão e despudor. Os fatos narrados a seguir, em duas vozes e duas versões, sucessivas e
complementares, foram testemunhados e analisados por Celso e Bill. O segmento de abertura foi escrito por Celso; a
seqüência, por Bill.

Domingo, chegamos a Belém do Pará e fomos direto para uma loja de discos. Tinha muita
coisa antiga lá, da bossa nova à bossa velha. Não havia um contato local para as filmagens.
Tomamos a decisão de não fazer contato com ninguém, de chegar no supetão e gravar o
que fosse possível. Claro que batemos em várias muralhas depois dessa decisão, mas era o
risco que resolvemos assumir: chegar aos morros para falar com os moleques poderia ser
ruim se eles já estivessem há meses nos aguardando; nós não queríamos que ficassem
ensaiando no espelho o que mais tarde iriam nos dizer. Além disso, nossos maiores
problemas nas gravações eram as incursões policiais
- pena que nunca combinamos nada com eles...

Conhecemos um sujeito numa loja de discos que conhecia um traficante de merla e de
crack. Depois de muita conversa e da intermediação do dono da loja - a quem devemos
uma caixa de discos da Nega Gizza e da Cufa -, ele ligou para os caras e marcamos um
apontamento para o dia seguinte.

Às 11 da manhã do outro dia chegamos à loja e os traficantes já estavam lá, nos aguardando
desde as dez horas. Não sei se eles chegaram cedo demais para nos impressionar ou para
nos observar antes do primeiro contato pessoal. Eu me sentia como um revolucionário,
subversivo, um militante do MR8 ou da Var-Palmares, na clandestinidade, tentando
arrebanhar mais heróis para a luta - quem sabe eu não venha a ter um destino mais saudável
do que o do Lamarca? Confesso que a adrenalina das viagens me fazia muito bem, mas
também me fazia muito mal. Um deles devia ter uns 17 anos, usava um conjunto de
moletom da Nike branco, desses que os bacanas vestem quando fazem cooper na lagoa
Rodrigo de Freitas ou no Morumbi. Usava cordões e relógio vistosos (só não sei se era de
marca famosa porque não sou muito antenado nessas coisas). Pareciam estar bem alinhados
com a moda. Aliás, o que os jovens das comunidades mais querem é ser iguais aos que
vivem fora dela, e os fora-da-lei acabam tentando ser o espelho dos que moram fora do
morro. E o mais ilógico é que os de fora do morro, de alguma maneira, também querem
xerocar a linguagem dos fora-da-lei.

40


O outro era mais velho, devia ter uns trinta anos, no máximo; era também mais preto, mais
carregado no tempero. Os dois eram supergente boa, nos trataram como irmãos e aquele
título, "traficante", não fazia ali muito sentido. Este título é muito mais agressivo do que as
imagens que aqueles jovens sugeriam. Quando a palavra traficante vem à minha cabeça, eu
associo automaticamente a subversivo, a comunista, embora hoje esta palavra não meta
medo em mais ninguém, muito pelo contrário, mas o fato é que penso em pessoas que
comem criancinhas.

O nome "traficante" nada tinha a ver com aqueles dois que nos recebiam de braços abertos
e que pareciam ter corações bondosos como o do papa, pareciam ser incapazes de fazer mal
a uma mosca. Mas, na verdade, a contradição era minha, estava na interpretação que eu
fazia, pois, afinal, no fundo, eu sabia que a função principal daqueles jovens empresários
era a venda da desgraça para outros jovens da comunidade como eles. No fundo, eu sabia
que eles tinham o sorriso de quem doa leite para os filhos mais novos das famílias e viram
benfeitores das quebradas, enquanto, com a outra mão, viciam seus outros filhos e os
tornam escravos da engrenagem mórbida das drogas.

Aceitamos a carona e nos preparamos para conhecer de perto a realidade do Pará.

Estou me lembrando agora de um menino que entrevistei no Rio Grande do Sul, naquela
madrugada de muita chuva, em cima de uma laje, onde ele fazia uma reflexão sobre isso.
Ele tinha a consciência de que o que fizeram com ele não era certo, que ele se tornara
escravo dos adultos e que tinha matado e visto muitos amigos morrerem, e ele não se
conformava com aquilo. Perguntei a ele o que ele seria quando crescesse. Antes mesmo que
eu terminasse a pergunta, ele respondeu que queria ser um traficante rico, com muitas
mulheres e empregados. Eu voltei à questão que ele mesmo tinha colocado e indaguei se ele
também escravizaria outros jovens. Ele pensou um pouco, como quem não quisesse
responder, mas o que ele não sabia é que ali estava a resposta... E por fim ele disse: "vou,
tchê. Baaá, não tem saída." Aquilo caiu como uma bomba na minha cabeça. Ele tinha total
consciência de tudo que estava acontecendo com a vida dele, mas parecia que o destino era
maior que a razão.

O carro deu uma freada brusca e eles riram, disseram que era pra ver se os cariocas têm
reflexos rápidos. Paramos numa lanchonete e começamos a falar sobre rap, crime,
mulheres e sobre o que estávamos fazendo ali. A imagem do Bill abria todas as portas para
nós. Era impressionante como ele era símbolo em qualquer favela. Nos hotéis, as
arrumadeiras o cumprimentavam

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com orgulho, os subalternos mais humildes dos lugares aonde nós íamos eram exatamente
os que mais o reverenciavam. Acredito que seja porque o Bill faz questão de falar somente
com essas pessoas e elas devem espalhar esta empatia por aí. Nas favelas de qualquer lugar
do Brasil, isso dava uma sensação de imunidade criminal. Por outro lado, pra mim, que sei
o que o Bill prega, era também uma contradição absurda. Se ele recrimina o tráfico de
drogas e critica abertamente essa prática e a escravidão a que esses jovens estão
submetidos, em todos os estados e cidades, por que então ele é herói dos bandidos? Por
mais que ele queira, não acredito que ele tenha a resposta, pelo menos uma que me
convença. Eu tenho as minhas respostas também, mas não estou convencido de nenhuma
delas.

Claro que sei que existe uma grande diferença entre aqueles que têm discurso e aqueles que
praticam o que pregam. Tanto que o mais clarinho, porém preto, disse, entre outras coisas,
quando sentamos na mesa, que viu quando o Bill, no episódio do Soldado do Morro, falou
na TV, no momento mais tenso da parada, que poderia perder sua vida ou sua liberdade,
mas não deixaria de fazer aquilo em que acreditava. Foi a senha de que precisávamos.
Percebemos, ali, que Belém também "estava dominada"...

Pedimos salgados e sucos, a especialidade da casa. Depois que terminei meus salgados,
dirigi-me ao balcão, pedi para a menina, uma paraense belíssima e dona de um sorriso
imenso - sem entrar no mérito da imensidão das outras qualidades da moça, para não ser
acusado de machista -, um bolo de milho e disse alguma gracinha pra ela. Foi o suficiente
para ela ficar íntima e perguntar se o Bill era artista, porque ela o conhecia de algum lugar.
Ela foi além e afirmou que, se não estava enganada, ele era o dançarino do grupo É o
Tchan! A casa do Bill caiu ali mesmo. Nada contra o nosso parceiro Jacaré, mas que foi
foda foi, e como foi, e o crime era testemunha.

Os anfitriões nos convidaram para continuar nosso passeio pela cidade. Eles nos contavam
suas vidas, o porquê de estarem vivendo daquele jeito, como distribuem as drogas e como
seduzem os moleques e os adultos. Eu não poderia ouvir todas aquelas coisas e ficar calado.
Bill também dava suas estocadas, atacando-os moderadamente, dentro de certo limite, claro
- eles tinham armas, estavam na cidade deles e nós precisávamos deles para fazer as
filmagens. Mesmo assim, não dava para ficar calado. Bill perguntou ao motorista se eles
não se envergonhavam de escravizar as crianças? O cara pensou um pouco, desviou de um
caminhão da empresa de lixo que estava parado no sinal e crescia na nossa frente, avançou
e foi em frente. Acho que tem gente que é predestinada a viver no erro, pois mesmo com
todos os motivos para não querer

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levantar suspeitas, com cinco homens no carro e com as armas que portavam, o motorista
ainda encontrou inspiração para avançar sinais de trânsito e chamar a atenção dos "porcos"
- que é como chamavam a polícia. Em seguida, ele equilibrou o carro e fixou os olhos no
pára-brisas. Achei que ele não fosse mais responder ao Bill. Mas voltou ao assunto com
segurança, perguntando ao Bill o que é que ele fazia pelas crianças da comunidade dele, e o
que é que o Estado fazia. Disse que todo mundo acha que dar esmola ou abrir uma creche
para dez crianças é uma maneira de livrar a alma do inferno, mas que só conhece a real
situação da miséria quem a vive. "A maioria" - ele disse "maioria" levantando a voz como
quem tencionasse deixar claro que não estava falando de todos -, "a maioria tem
necessidade imediata de comer, não de estudar. Todo mundo fala que esses jovens tinham
que estar na escola", ele continuou. "Como?", perguntou nervoso. Declarou sem titubear
que sabia que Bill o estava provocando, que sabia que o Bill não concordava com esses
discursos dos políticos que dizem que a culpa é do Estado, quando são justamente eles os
representantes históricos do Estado. Afirmou que não acreditava no Lula e que só confiava
em Deus; só Deus poderia mudar o curso da história. Ele dizia o que o Miguel tinha me dito
em São Paulo: que é preciso vontade de trabalhar, de lutar, de viver, e isso é algo que
também precisa ser ensinado.

Fiquei calado, mastigando tudo aquilo, pensando no que dizer se a conversa viesse pra
mim, pensando em tudo que eu nunca li a respeito daquilo, em tudo que eu vivi e vivo sem
saber direito como decifrar.

Ele perguntava sobre a hipótese de despedir os mais de trezentos moleques que trabalham
pra eles, vendendo crack e merla nas bocas: quem iria empregá-los ou colocá-los nas
escolas? E se esses meninos fossem mortos ou presos, o Estado assumiria a
responsabilidade de substituí-los na provisão dos recursos que eles levavam para suas
casas? Dizia que a maioria desses que, segundo a imprensa, são traficantes, lava o dinheiro
do tráfico em padarias e açougues, comprando um quilo de carne e meia dúzia de pães.

Eu, intimamente, entendia tudo o que ele dizia. O Bill também. Só achávamos errado que
os jovens vendessem a droga, porque isso acabaria representando a morte deles, mais cedo
ou mais cedo. Aí começava uma outra discussão. Combinamos que conversaríamos com os
moleques nas bocas de fumo que eles controlavam. Os amigos traficantes nos davam uma
segurança muito grande, por um lado, e uma grande insegurança, por outro.

A vantagem é que passamos por vários policiais e, aparentemente pelo menos, não
manifestaram medo de nada, mesmo quando três policiais militares entraram no local em
que estávamos lanchando. Notei que os caras

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nem franziram a testa. O que nos fazia acreditar que eles não eram fichados. Na verdade, o
mais claro responde por tráfico de drogas, porte ilegal de armas e um assalto. Mas todas
estas broncas ele meteu quando era menor, estavam caindo, agora, com a maioridade
alcançada. Apesar da vida torta, ele está indo religiosamente todos os meses responder na
justiça. O mais escuro era tenente da Marinha; foi expulso por motivos que ignoramos. Ele
continua dando carteirada quando a barra suja para o lado dele. Ou seja, o cara é costa
quente... até que o mundo desabe na cabeça dele.

Começamos a visitar as bocas. Atividade perigosa, porque elas não trabalham com
fogueteiros ou rádios, as ruas são escuras e só saberíamos que os canas estavam na área
quando já não houvesse mais tempo para correr.

A exemplo de outros estados, como Goiás e o Distrito Federal, ali também os jovens
vendem suas drogas nos portões de casa. Eles se valem do fato de os policiais evitarem a
invasão de privacidade. Assim, quando eles correm para dentro de casa, o sufoco passa;
pelo menos foi o que vi e o que eles relataram.

Chegamos a um bairro famoso por concentrar a maior movimentação de viciados. Nossos
amigos são os distribuidores da cidade e cada quadra ou conjunto de quadras é controlado
por outros jovens, os quais, por sua vez, distribuem, com exclusividade, para os moradores.
Estes podem vender onde quiserem, desde que peguem a droga com os contatos locais e
lhes pague por elas. Por isso, tem gente que vende em casa, na esquina, no bar.

Assistimos a uma batida policial durante o dia e vários botecos fecharam as portas, o que
deixava claro que a droga mais consumida no bairro não era a cachaça. As batidas policiais
eram constantes, pelo menos nesse bairro. Todos os dias os canas vão lá.

À noite, conversamos com os líderes locais e começamos a filmar e a falar com os jovens.
Bill afastou-se de nós, acompanhado do Miguel, e foi conversar com um dos jovens. Eu
fiquei com as bolsas, os equipamentos e os parceiros, na boca, junto com os outros caras e
menores que lá estavam. Havia uns vinte moleques, mais ou menos. A boca ficava numa
rua comum, asfaltada, em frente a uma vila de casas simples. Era guarnecida por um portão
pequeno de ferro e um grande de madeira. A largura permitiria a entrada de automóveis. O
portão maior era tomado por aqueles jovens. O dono da boca morava na vila. Nenhum deles
tinha rádios, morteiros ou qualquer coisa que informasse a chegada da polícia.

Do lado esquerdo da vila, depois de umas três ou quatro casas, tinha uma rua que
desembocava na principal, onde a gente estava. Por isso, deveria haver uma "contenção"
para nos avisar, caso sujasse. Me dava uma puta

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vontade de organizar aqueles caras para que eles nos dessem segurança, mas seria demais,
eu estaria me envolvendo mais do que a minha consciência permitia. Eles não faziam nada
por puro relaxamento.

Quando Bill e Miguel voltaram da gravação, pedi para entrevistar dois menores que
estavam entre os vinte. Escolhi um que estava com a camisa do Corínthians e outro que
estava sem camisa. Eles me pareciam jovens demais para estar naquele local, ainda mais
com aquelas pessoas e àquela hora. Quase todos estavam armados com pistolas e 38,
inclusive os dois. Descobri isso durante a entrevista, quando perguntei por que eles não
usavam armas? Os dois me surpreenderam mostrando suas pistolas.

De repente, alguém disse que a polícia estava na área. Foi um comentário despretensioso.
Percebi que havia algum tipo de comunicação entre eles que eu não identificara ou que não
era visível. Descobri depois que a economia daquele lugar era baseada na droga e que 90%
dos moradores, de alguma forma, estavam envolvidos. Mesmo assim, era arriscado demais
trabalhar naquelas condições.

Comecei a ficar preocupado. Interrompendo a gravação, perguntei aos dois moleques, aos
caras da boca e aos nossos "guias turísticos" se havia risco, se havia algum problema. Eles
me tranqüilizaram, dizendo que estava tudo certo, que eu podia continuar as filmagens.
Claro que não estava, isso era evidente nas respostas deles. Minha preocupação maior era
que nossos carros estavam na porta da vila e o Bill conversava com alguns jovens do outro
lado da calçada, na direção da boca.

Segundos depois, enquanto falava com o moleque, fomos interrompidos por uma freada
que vinha da direção da boca: eram eles, os canas, ninguém menos do que eles. Era uma
viatura grande, tipo Blazer, toda apagada. Enquadrou todo mundo na calçada. Olhei para a
outra ponta da rua e vi um farol alto, imaginei que fosse outra viatura. Imediatamente
desligamos a filmadora. Tinha de decidir entre a segurança dos jovens e as imagens. Fiz a
minha escolha. Não podia ser preso com as fitas que traziam as provas e os depoimentos
deles. Peguei a pistola do moleque, que não esboçou nenhuma reação - talvez ele estivesse
sedado pelas drogas -, e joguei por cima do muro de uma casa. Os canas atravessaram a rua
e foram na direção do Bill e dos outros rapazes, que estavam com ele do outro lado da
calçada.

Da distância em que eu estava não se podia ouvir o que falavam. Bill estava com as fitas
que tínhamos gravado até aquele momento. Nossa tática era nunca gravar com as fitas
cheias e sempre ter uma fita com bobagens no bolso, para o caso de sermos abordados e ter
que mostrar à polícia.

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Um cara me puxou pelo braço e disse que deveríamos ir com ele. Eu não sabia quem era,
mas deduzi, por suas roupas e modo de falar, que era amigo. Claro que ele era amigo
naquela circunstância, mas poderia perfeitamente ser o meu maior inimigo em outras. Ele
disse que o nosso amigo Corda mandou a gente sair fora. Fomos para uma casa a 20 metros
do local onde estávamos antes. Entramos e a mãe do rapaz disse para fechar o portão.
Escondemos a câmera e a separamos das fitas. A mulher da casa disse que acompanharia os
acontecimentos do portão. Ouviam-se agressões e muita gritaria. A gente sabia que aquilo
era a rotina deles, era a guerra deles. Não era conveniente registrar aquilo porque não
somos jornalistas nem temos a aparência convencional deles. Se aparecêssemos filmando,
podia dar uma merda ainda maior. Como explicar nossa presença? Nada sabíamos da vida
pessoal de ninguém de lá, exceto dos nossos amigos, o que deporia contra nós.

Ouvi o primeiro disparo. Decidi ir até lá, por preocupação com o Bill. Cheguei até o portão.
Só que, naquela altura, o Bill não poderia ser a prioridade, naquele momento a
solidariedade era o que tinha que prevalecer: ou eu ia lá e resolvia a vida de todo mundo, ou
ficava aguardando o desfecho do caso, covardemente. Fui aconselhado por mim mesmo a
esperar, já que não sabia o que os canas encontraram e seria muito mais prudente ter
alguém solto, caso a chapa esquentasse. Me limitei a ver o que estava se passando pelo
portão, ao lado de vários moradores da vila e de casas próximas, que foram para a rua
assistir ao vivo ao que poderia ser o noticiário do dia seguinte. Minha angústia aumentava e
eu tentava adivinhar o que estava sendo dito, e o que passava pela cabeça do Bill.

Bill escreveu o seguinte relato:

Minha cabeça estava confusa. Estava preocupado com o Celso e com o Miguel, porque eles
tinham saído de perto de mim para entrevistar uns moleques. Eu sabia que os garotos
estavam armados porque, quando Celso se afastou, os malucos comentaram comigo sobre
eles, contaram um pouco da história deles. Contaram que o que estava de camisa branca,
não lembro se era do Santos ou do Corínthians, era um noiado, que tinha perdido o pai um
sujeito que, no passado, trabalhara com eles - e cuja mãe era meio perturbada. Ele vivia
pedindo as coisas na rua até encontrar uma alternativa real de ganhar dinheiro e viver
decentemente... Segundo meus interlocutores, o moleque passara a ter o que jamais tivera
antes: auto-estima.

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Ouvi todas as inversões de valores ou, quem sabe, descobri que os meus valores é que
estavam invertidos. Disseram que o outro, de bermuda amarela, era uma pica voadora, só
andava armado, tinha um filho de dois meses, usava drogas, traficava e assaltava - e o guri
só tinha 14 anos.

Tive certeza de que o Celso conseguiria uma boa história para nossa pesquisa, mas podia
foder a vida dos guris se a câmera fosse apreendida. Essa era a minha preocupação. Vai
saber o que se passa na cabeça do policial no meio da madrugada. Do ponto de vista dele,
provavelmente o certo seria descer a borracha no lombo de todo mundo.

Eu tinha acabado de entrevistar um garoto que me falou da desgraça que era viver daquele
modo, que queria arrumar um trabalho logo, mas que não sabia ler nem escrever. Por mais
que pensasse em dar força, eu olhava pra ele e via o quanto seria difícil dar a volta por cima
- bem, de todo modo, eu não era seu conselheiro, era só seu ouvinte.

Percebi uma movimentação diferente e perguntei o que faziam para evitar a prisão. A
resposta veio curta e grossa: era só correr. Correr era o que todo mundo fazia; a questão
principal era o que fazer para evitar correr tanto? A resposta chegou duas horas depois.

Eu estava em frente à boca, conversando com os caras, esperando o Celso e o Miguel
voltarem da gravação, quando um cara me disse que tinha uma garotada que se amarra em
rap e queria pegar uns autógrafos meus. Eles pararam estrategicamente do outro lado da
calçada e esperaram que eu fosse até lá. Concluí o que estava falando e fui até eles. Fiquei
conversando sobre rap e as maravilhas do Rio de Janeiro. Estava de costas pra rua, em cima
do meio-fio e os garotos na calçada. Não imaginava que a favela pudesse ser surpreendida.

Lá na minha terra, os canas não entram porque também são funcionários da boca. Quando
quebram o "arrego",* a molecada solta os rojões avisando que a favela tem visitas. Por isso,
a minha mente, desde que nasci, associa, mecanicamente, fogos de artifício à presença
policial, e associa o silêncio à ausência da polícia. Só que ali a realidade era outra e, quando
vimos os canas, eles já estavam apontando as armas para todos nós. Só tive um sinal um
pouco antes porque o garoto com quem eu estava gravando viu os canas e correu, mas era
tarde demais.

Os policiais chegaram em duas viaturas, ambas apagadas. Não vieram em nossa direção
imediatamente. Foram direto para a boca. Sabiam que ali era

* Arrego (provável corruptela do espanhol arreglo) significa acerto, pacto clandestino entre traficantes e policiais - o mesmo que
suborno.
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o ponto de venda, mas precisavam do flagrante para realizar seu trabalho. Eles não entram
nas casas sem mandados - no Rio, os caras entram e ainda levam de presente as nossas
tevês e videocassetes. Alguns dos rapazes correram para casa quando viram o meu
entrevistado correr. Ninguém disparou as armas contra a polícia. Aquilo me pareceu um
certo sinal de respeito.

Todos que ficaram, ou melhor, que não conseguiram fugir, foram colocados de cara para o
muro da vila, com direito a tapa no peito, na cara e gritos, muitos gritos. Os menores que
estavam com saquinhos de crack e de cocaína levaram porrada e foram mandados embora.
Era visível que eles sabiam que não adiantaria levá-los para a delegacia. Eu não poderia ser
contra os policiais naquele momento. Eles eram homens - a princípio - a serviço da lei e os
meus companheiros eram bandidos, em bocas de fumo, vendendo drogas. Mas ficar com
raiva da polícia era inevitável.

Deu vontade de perguntar para eles o que o Corda, meu amigo marinheiro me perguntou,
quando a gente dava um role de carro: se eles deixariam alguma colaboração, alguma
vantagem para as famílias de quem fosse preso. Por outro lado, a polícia não tem que
discutir as razões do tráfico, não tem que discutir por que razão alguém se torna traficante.
Ela foi criada para cumprir a lei e fazer o que lhe é determinado. Para prender quem vende
e foda-se. Mas, no fundo, ninguém gosta de polícia, nem eles mesmos. Quem gosta de estar
passeando de carro e ser parado numa blitz, e ter seu carro revistado? Você, com horário
marcado para o lazer ou com fome e estressado, depois de um dia de trabalho. Quem gosta
de ter que levantar dentro de um ônibus e ficar quase de quatro, à mercê de um PM que
subiu, mesmo que educadamente, e achou que você é um suspeito por excelência? Quer
saber? Nossos pais nos "educam para ter raiva da polícia, da mesma forma que a polícia é
educada para oferecer medo à população. Tanto que os policiais usam uma botina e um
uniforme assustador, que amedrontam até os filhos deles.

É uma questão tão complicada que eles mesmos tentam resolver no interior de suas
corporações. Eu mesmo já participei de um longo debate com a Polícia Militar de Minas
Gerais, a convite da tenente-coronel Mirian Assumpção e Lima. Eles tentavam repensar a
postura de seus soldados junto à população de Belo Horizonte. Mas vamos voltar lá pro
Pará.

Estava todo mundo enquadrado do outro lado da rua. Outra viatura estava chegando; vinha
lá do lado do Celso e do Miguel; não sabia se eles estavam dentro da viatura ou não. Até
que um dos polícias nos olhou e grudou os olhos em nós. Eu me voltei para o grupo e pedi
a eles que ninguém dissesse nada, que somente eu falaria, a partir daquele momento, e que
todos me olhassem. A princípio, não tinha nenhum bandido ali, mas eu concordo


que

48


estávamos no lugar errado, na hora errada e no dia errado. Comecei a falar de política
internacional. E olha que eu nem sei que porra é essa. Minha experiência na área era a
entrevista de um maluco, que eu vi na Marília Gabriela ou no Jô, não sei direito. Comecei a
falar sem parar, falei sobre as razões da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, da cotação
do dólar e da política monetária do Palocci, uma zona só. Ia falando sem olhar para trás,
calculando a distância dele ou deles pelas feições dos meus "alunos", que morriam de medo
e desrespeitavam minha ordem de olhar só pra mim.

O cana chegou perto. Dividi a atenção com ele porque não parei de falar, falava como um
louco. Ele tinha que perceber que nós morávamos ali e, se na rua tinha uma boca, não era
um problema nosso, assim como não era um problema dos moradores da vila, em que o
dono da boca mora. O policial entendeu parte da mensagem, me pediu educadamente para
fechar a matraca, revistou todos nós sem arrogância e voltou para o outro lado da rua. Antes
que ele alcançasse o centro da rua, eu retomei a discussão acadêmica para desestimular a
volta dele, caso esta hipótese passasse por sua cabeça.

Na seqüência, saíram várias mulheres da vila, como se fosse uma ação orquestrada, e
começaram a gritar que eles eram inocentes, que a polícia estava querendo levar pessoas
inocentes. A parada virou um rebuliço só. O moleque de bermuda amarela que o Celso
estava entrevistando veio me dizer que eles estavam na casa de alguém conhecido. Fiquei
mais tranqüilo.

A mulherada gritava à vera.* Um dos policiais resolveu colocar ordem na casa e disparou
um tiro. Não adiantou muito, pelo contrário, a rua encheu e os moradores começaram uma
discussão louca com eles. A despeito da confusão, os canas levaram os nove caras do bolo e
ainda distribuíram umas rajadas de cassetetes e tiros para o alto, acuando quem
reivindicava. Alguns gritavam que eram menores, mas eles levaram assim mesmo. Os
nossos acompanhantes estavam perto da boca, mas não estavam dentro dela, e se safaram
também.

O movimento aconteceu na porta de um conjunto de casas, onde um de nossos parceiros
identificou-se como... marinheiro. Declarou que estava esperando alguém da casa e foi
liberado. Os canas ralaram o* peito, levando em suas caçapas os nossos amigos
"traficantes", não antes de informar para qual delegacia os estariam levando.

Aquilo não era rotina pra mim. As sucessivas prisões que eu vejo, em geral, se transformam
em seqüestro. Na minha terra, o normal seria fixar o

* A vera significa muito, pra caramba, pra valer.
** Ralar o peito significa sair.
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valor do acerto, mandar um catuque para o dono da boca e depois alguém trazer a grana.
Ou seja, alguém entregaria o dinheiro dos policiais no DPO ou na viatura que ficaria
entocada em algum ponto combinado. O que acaba sendo bom para quase todo mundo.
bom para o crime, que tem sempre seus soldados soltos; bom para os policiais, que
conseguem aumentar seus orçamentos tão defasados; bom para a cúpula da polícia, que
mantém seus subordinados durante anos em seus DPOs, garimpando e trazendo recursos
para as unidades; bom para o Estado, que não precisa prender, julgar e gastar mais dinheiro
com as burocracias.

Só é ruim mesmo para a população brasileira, que está à mercê de toda essa desgraça sem
culpados, sem inocentes, sem saída, sem vergonha, sem querer. E o pior, sem saber.

Por um lado, eu fiquei triste por saber que foram presas aquelas pessoas que me
admiravam, respeitavam, aceitaram minha proposta de trabalho e me permitiram filmá-las.
Porém, eu tinha que reconhecer que eles eram bandidos, e a polícia de lá me fazia ter
esperança de que a corrupção policial poderia ter fim - acredito que a corrupção é o mal de
todos os males, é o que promove todas as desgraças e faz o problema chegar a cada
esquina. A sensação e a certeza da decência da polícia, de certa maneira, animava minha fé:
me fazia crer que o Brasil tem jeito, ainda que a solução venha do Norte.

No dia seguinte, fui tomado por um sentimento de culpa muito grande. Fiquei me culpando
pelo que aconteceu, pois, no fundo, talvez a minha presença os tenha distraído, apesar de
todos dizerem que não, que aquela não era a primeira e não seria a última vez.

Voltamos lá de táxi, na noite seguinte, para saber notícias dos nossos novos amigos e
ficamos muito felizes quando os reencontramos todos lá. Todos no mesmo lugar,
trabalhando, vendendo seus "produtos" e sustentando suas famílias. De verdade, foi uma
das maiores alegrias que tive na vida, ver aquele monte de gente livre. Cumprimentamos
todos eles, abraçamos cada um deles como que se um golaço tivesse sido feito. Para mim,
foi a grande celebração da liberdade. Celso perguntou ao dono da boca, que não tinha sido
preso na noite anterior, como é que eles saíram... "O advogado do movimento foi à DP e
pagou o resgate", era a resposta. A ficha caiu. Silêncio total. Decepção, alegria, tudo
misturado num caldeirão. Nos despedimos. Na volta, uma pergunta me intrigava (até
quando vai me intrigar?): o Brasil tem jeito?

Eu, sinceramente, fiquei muito triste por continuar tão feliz.


UMA NOITE EM JOINVILLE

Narrativa escrita por Celso Athayde
Era meado de 2001, tinha acontecido um show em Porto Alegre, onde também gravamos
umas coisas para a pesquisa. De lá, esticamos para Santa Catarina. A periferia da região já
era familiar para nós. Nosso contato era o Cláudio Rio, do hip-hop. Ele é aliado da Cufa e
conhece muito bem os contatos de "cima", na região. Não demos muita sorte, por causa da
chuva e das sucessivas incursões da polícia nos morros, que se deviam a um grande número
de mortes de jovens, causadas por brigas de gangues, nos meses anteriores.

Não dava para esperar muito; por isso, fomos para uma favela de Joinville. O Cláudio nos
passou alguns telefones, mas nada rolou. Esse tipo de trabalho funciona de outra maneira.
Lembrei de um amigo que deu aula na cidade e poderia ter bons contatos. Enquanto ele
tentava telefonar, ficamos discutindo para onde seria o nosso próximo vôo. Era uma forma
errada de conduzir o trabalho, mas, por outro lado, era a maneira que nos seduzia fazer; a
falta de organização nos fazia diminuir a depressão que esse trabalho causava. Ligamos
para o número que o Fábio Azeredo nos passou, depois de um breve jogo de empurra para
ver quem não ligava. Fizemos a ligação, eu fiz - sempre sobra pra mim mesmo. Era um
evangélico, um senhor cujo filho era amigo de uma ex-namorada do irmão do Fábio. Só nós
mesmos pra meter a cara numa suruba dessas.

Ele, o velho, não sabia direito o que a gente tinha ido fazer lá; o peixe que tinha sido
vendido pra ele estava sem rabo. Por isso, tivemos que explicar tudo novamente, uma
história que eu estava careca de contar e entediado de ouvir. Podia ter sido pior, o coroa não
tinha por que nos receber; ele nem conhecia o Fábio. Por mais estranho que pudesse
parecer, esse senhor era o nosso único contato para os assuntos "marginais". Eu e Bill
sentíamos que o tal senhor nem de longe parecia a pessoa indicada para nos levar ao morro
com segurança, até porque, para ir sem segurança, a gente não precisava dele. Bill quis
agradá-lo, tentando ser simpático; aí, passamos a ter dois problemas: simpatia não é o forte
do Bill e o coroa fechou a cara. Era evidente que a qualquer momento o Bill se levantaria e
iria embora; eu já tinha visto

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esse capítulo, não exatamente neste trabalho, mas em muitos outros momentos. O velho
estava quase nos jogando na rua. A sorte é que ele era chato mas calmo, tinha cara de paz e
amor, falava o tempo todo em Jesus; era como se fosse o melhor amigo de Deus. Claro que
é uma questão de fé, só que ele tentava se fazer parecer mais íntimo de Deus do que todos
os crentes que conheci até então.

Até aí, era um problema dele; o nosso era subir o morro, com ou sem a Bíblia desse velho,
que, repito, apesar de chato e desencorajador, era o nosso caminho, a verdade e a subida.

Quando ele viu no braço do Bill a tatuagem que dizia "vou NA Fé", ficou olhando com ar
de desaprovação, mas não disse nada. No fundo, era visível que ele estava incomodado com
nossa presença. Começamos a nos arrepender de estar ali, tendo que explicar tudo aquilo
para um senhor que nada tinha a ver com o mundo que a gente queria encontrar.

A saia era justa para todos nós; todo mundo queria esconder a saia e manter a educação,
para tentar uma maneira educada de abortar aquela conversa, que não ia levar ninguém a
lugar algum.

O mal-estar estava rolando, até que o Bill pôs a mão no estômago e disse que estava se
sentindo mal, que achava melhor voltar outro dia. Pela cara do Bill, eu não duvidei, só
faltava o coroa ter colocado veneno de rato na nossa água. Podia ser mentira do Bill, mas
aquele código eu não conhecia ainda; nós não tínhamos combinado aquilo. Fiquei pensando
se o Bill estaria abortando a reunião, ou realmente passando mal. Porra, a última vez que vi
o negão se sentir mal foi antes de um show em Brasília, fazia anos.

O velho tinha uma esposa muito maneira e atenciosa, dessas senhoras que querem entubar
nas visitas todas as comidas encalhadas da casa. Ela estava sempre por perto,
acompanhando nossa conversa. O marido evangélico sempre buscava, no rosto dela,
aprovação para tudo. Às vezes, ficava claro que ela desaprovava algumas coisas e ele
voltava atrás, mesmo nas questões mais simples. Isso me incomodava, pessoalmente. O
nome dela era Marijânia, uma senhora branca, cabelos bem branquinhos. Entre as lavadas
de roupa, sempre aparecia para nos oferecer algo pra comer, chimarrão, café, que a gente
nunca aceitava. Não sei se ela queria nos deixar feliz, ou se apenas queria estar perto da
nossa conversa. De qualquer maneira, ela fez os dois papéis, impecavelmente. Entender
estas questões era a nossa cota de paciência para a pesquisa.

Decidi puxar outro assunto, até que Bill reclamasse de dor, novamente. Comecei a falar
sobre nossas dificuldades em sermos compreendidos pelas pessoas: tanto a mídia quanto as
pessoas comuns que, normalmente,

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se interessam mais pelas tragédias do que pelas partes positivas das histórias. Tudo que eu
falava era verdade. Disse que essa pesquisa exigia uma escala de trabalho que
proporcionasse, depois de cada gravação, um período para nos recuperarmos,
psicologicamente. Várias vezes, cheguei em casa e não consegui comer ou dormir. Cada
vez que ouvia uma nova história, eu me convencia de que era impossível resolver esse
problema, e toda vez que me convencia disso, mais me sentia encorajado para tentar e
tentar. Contei também que existe um serviço de sexo, nas comunidades, no qual as meninas
trocam seu corpo por pó, por maconha. Essas meninas são chamadas de "boqueteiras" e
fazem o maior sucesso com os meninos das favelas. Relatei o caso dos gambás: por não
poderem sair da favela, recebem um serviço especial, uma espécie de delivery. Me
empolguei e fui falando; o olho do velho ia abrindo; ele foi se interessando.

Até que o coroa pediu a palavra, me interrompendo, bruscamente. "Só falta este velho
querer tirar um santo de mim, agora", pensei. Não era nada disso. Ele fez um resumo de
tudo o que a gente tinha dito, fez uma síntese de absolutamente tudo em que ele não parecia
estar interessado, e começou a falar do seu passado: perdera três filhos; um era policial e
tinha sido morto em combate; o do meio sumiu, nunca mais apareceu. Não disse se ele era
envolvido, mas pelo que narrou, imagino que sim; é que os pais muitas vezes fazem
questão de não acreditar, ainda que todas as evidências condenem seus filhos - deve ser
muito doloroso, mesmo, admitir. Já o caçula era envolvido com furto de carros.

Finalmente, dispôs-se a ajudar. Disse que quem tinha ligado para ele era uma pessoa da
família dele, a pedido de alguém do Rio de Janeiro, e essa pessoa o tinha indicado por saber
um pouco do seu passado. Mas ele fez questão de deixar claro que não ia fazer isso por nós,
mas pelos jovens, por Jesus.

Daí o velho começou a prestar uma espécie de testemunho para nós. Falou do passado:
disse que já tinha vendido drogas no morro e que tinha muito pra nos contar sobre seu
arrependimento. Fez uma pausa, olhou para o teto da sala, apontou para as telhas, que
representavam o céu, e concluiu: "Só Jesus salva, meus filhos; entreguem suas vidas a
Jesus."

Eu já tinha visto essa cena muitas vezes na vida; no trem, nos ônibus e até nas camisas dos
jogadores de futebol, na hora do gol. Mas as palavras do velho me balançaram; ele falava
com uma convicção tão grande que dava vontade de me jogar de cabeça na igreja e ser
salvo também.

Toda a história começou a mudar ali; a dor do Bill passou - na verdade, ele nunca sentiu
dor nenhuma. Num passe de mágica, o velho se transformou.


Começou a falar do crime com autoridade, de Deus com amor, do crack com ódio e das
crianças do tráfico com muita dor. Não era mais aquele velho que conhecemos minutos
antes. Decidimos que subiríamos o morro onde ele trabalhou por vários anos.

Senti uma preocupação, porque, por mais que ele negasse, nunca saberíamos se ele tinha
problemas no morro e quais seriam as conseqüências, para nós, se ele fosse, por exemplo,
um vacilão. Já não sabia mais se era vantagem ou desvantagem estar na companhia dele.
Cochichando, compartilhei a dúvida com Bill. "Foda-se, vamos subir", foi a resposta. Topei
apostar.

Na subida, o coroa demonstrou que conhecia todo mundo. Era início da noite. A
movimentação era grande, hora do rush, muita gente chegando com suas marmitas pelas
vielas. O coroa batia o braço pra esquerda e pra direita, sem parar. Era "Deus te guie" pra
cá, "Na paz do Senhor" pra lá, "O Senhor é nosso rei" pra acolá. E a gente ia subindo o
morro.

Chegamos ao local onde se encontravam os profissionais das drogas. Eles estavam quase
todos encostados numa parede, junto a uma bifurcação de vielas. Outros estavam embaixo
da marquise de uma barbearia fechada e outros na varanda de uma casa, conversando com
umas mulheres, que pareciam moradoras. Antes mesmo de serem apresentados, Bill e
Miguel começaram a apertar a mão de todo mundo, para impor educação às relações que se
estabeleciam, nunca subserviência.

O velho parecia orgulhar-se de nós. Ele sabia que corria um grande risco. Afinal, não nos
conhecia. Além disso, tudo que dissemos podia ser mentira. Mas Deus é grande, ele devia
pensar.

O velho, então, nos apresentou aos donos da boca. Contou melhor do que nós mesmos o
que estávamos fazendo lá e disse que éramos de sua total confiança - ele era realmente
louco.

Os caras nos perguntaram algumas coisas, coisas simples. Respondemos a tudo com
coerência e contamos histórias que seduziam os "amigo". Miguel subestimava o perigo e
saía filmando antes do ok definitivo. De qualquer forma, se desse alguma merda, ele não
poderia ser responsabilizado, pois essa iniciativa fazia parte de um acordo nosso, ou
melhor, seguia uma ordem do Bill: "Aí, Miguel, não fica esperando muito não, sai filmando
e deixa o resto comigo, tá ligado?", era isso que ele dizia em nossas raras reuniões de
produção.

Ali mesmo, no início da gravação, vimos o dono do morro: um sujeito carrancudo, mal-
encarado, alto, fumando maconha - acendia um baseado no outro -, tratando mal algumas
pessoas e muito bem as meninas da roda. O tal

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sujeito se dirigia aos subordinados com arrogância; parecia precisar lembrar aos meninos o
tempo todo quem mandava ali. Um método que parecia funcionar muito bem. O único
constrangimento surgiu quando ele pediu para que os garotos comprassem algo para nós,
como cachorro-quente, refrigerantes. Eu não queria que eles fossem tratados daquele jeito
por nossa causa.

Ele usava uma espada muito parecida com aquela que a imprensa mostrou, muitas vezes,
como sendo a que matou Tim Lopes - se era mesmo, ninguém sabe. No início, achei que
fosse coincidência, mas quando começamos a filmar, percebi que eles usavam as mesmas
expressões do Rio de Janeiro. Chamavam os inimigos de "alemão";* diziam-se do
"Comando Vermelho"; seus inimigos eram nomeados 'Terceiro Comando", e muitas outras
gírias totalmente cariocas eram empregadas. Eles reproduziam com precisão o dialeto das
favelas cariocas. Era a primeira vez que tínhamos visto um caso como esse, parecia que os
comandos do Rio de Janeiro tinham uma franchaises espalhadas por lá.

Ali, eu via claramente o quanto a televisão contribui e contribuiu para a nacionalização da
criminalidade; como a televisão massifica e acaba estimulando as pessoas a fazer o que se
estampa na tela. Não estou dizendo que aquele cara seja bandido por causa da TV, estou
dizendo que a forma como as TVs divulgam as notícias acaba sendo a maior fonte de
alimentação para esses jovens, que já têm tendências sociais a essas práticas a partir de seus
desejos e de suas limitações. A TV consolida a informação e as posições deles. Pior que
isso, as TVs não somente fazem as matérias de maneira equivocada - considerando-se o
ponto de vista do qual observo a situação, claro -, como também colaboram para a
manutenção e ampliação do problema, ao desenvolver campanhas de propaganda que giram
em torno da valorização de sexo, status e poder. Mas tudo em nome da liberdade de
imprensa. Então vamos nessa...

Escolhemos vários garotos para entrevistar; os outros ficaram esperando em seus postos.
Quando começamos a andar na comunidade - mais uma ratificação -, nos surpreendemos
com a incrível semelhança com o Rio de Janeiro, que parece ter-se transformado em
modelo da violência para os próprios bandidos. É como se sua educação no crime se
inspirasse na cópia do exemplo carioca, com o estilo carioca, as estratégias e táticas, o
vocabulário e seu falso e mortal glamour. Tinha fogueteiro por todos os pontos da favela, o
que, paradoxalmente, nos dava uma certa segurança para ficar ali. Visitamos todos os
pontos da favela, conhecendo cada garoto, até escolher os nossos favoritos.

* Alemão significa inimigo, no jargão do tráfico carioca.
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Numa das subidas conhecemos um moleque sinistro. Ele estava fugido de uma unidade de
menores. Pedimos para guardar parte do nosso material na casa dele, porque não era fácil
carregar tudo no ombro, naquele morro tão íngreme. Ele disse que tinha uma idéia melhor,
que a casa dele não era segura, que nem ele dormia lá, por conta disso; e nos levou à
primeira casa à nossa esquerda. Não sei se ele tinha liberdade de guardar em qualquer casa,
no morro, ou se foi coincidência ele ter moral com a dona da casa que estava mais próxima.
Fomos apresentados à dona da casa: uma senhora que parecia tia Anastácia, do Sítio do
Pica-Pau Amarelo, até no coração. Perguntei a ela se podíamos correr pra lá, caso
ocorresse algum problema na favela. Eu estava sempre pensando no padre e na missa. Ela
sorriu e perguntou se éramos do Rio. Reconheceu o sotaque, que achava lindo: "Sim, meu
fio, pode vir..." A porta, segundo ela, sempre ficava encostada, prevendo isso mesmo, para
ajudar a fuga dos meninos. No fundo, não acreditava que fosse precisar, mas tinha de
pensar em tudo. Além disso, eu já tinha passado por tantos problemas, que não poderia me
permitir esquecer o básico.

Os garotos garantiram que não haveria problema; os canas não iam lá havia duas semanas.
Por experiência, nós sabíamos que quando a câmera acendia a luz verde, a favela se
transformava e se movimentava muito, a ponto de refletir lá fora. Sem contar com as
pessoas que discordavam do que nós estávamos fazendo, por falta de informação ou pelo
direito legítimo de discordar mesmo. Por isso, em outros estados por onde passamos,
tivemos problemas provenientes de denúncias anônimas de moradores desconfiados,
temerosos de que algo mais errado do que o normal estivesse acontecendo. O melhor era
mesmo deixar a tia Anastácia de sobreaviso.

Eu estava gravando com um garoto que cumpria a função de fogueteiro. Como usávamos
duas câmeras, por vezes eu e Bill gravávamos em lugares diferentes, para aproveitar o
tempo. O garoto tinha a missão de vigiar a rua de asfalto que ficava fora da favela, pela
qual a polícia tinha acesso. Ele falava de sua mãe, que tinha sido abandonada por seu pai, e
da aflição que ele sentia ao ver a mãe lavando roupa pra fora. Não é que achasse
vergonhoso lavar roupa para os bacanas, ele apenas queria ser gente, também. Não se
conformava com a vida que tinha e enfatizava sua grande disposição para correr atrás do
prejuízo.

Os olhos dele deixavam claro que ricos e pobres querem as mesmas coisas. Aí está o
problema.

Pá, pá, pá!, eram os rojões explodindo, recortando as palavras do garoto.

56


Disparou uma correria pelas vielas. Eu estava em pé; o garoto sentado com meia bunda
num muro, os fogos vinham da minha frente. Não vi a luz do morteiro, por isso não tinha
tanta certeza, porém a correria vinha da minha frente também, portanto, era prudente que eu
corresse para onde todo mundo corria. O garoto que eu estava entrevistando sumiu como
um gênio, mesmo sem lâmpada. Não sabia onde o Bill estava, não sabia o que estava
acontecendo com ele; isso era assunto para o futuro. Eu tinha que correr.

Meu esconderijo já estava reservado, só que eu não tinha a menor noção de como chegar lá,
Eu estava perdido com Miguel, em meio ao tumulto. Começamos a correr morro a baixo,
seguindo a "manada". Não era possível que os canas entrassem direto, sem trocar tiros.
Tinha olhado o relógio fazia uns vinte minutos, eram quase duas e meia. Não dava para
olhar agora, mas eu precisava encontrar algum argumento para o caso de ser apanhado.

Os fogos se intensificaram; agora, de outras partes da favela. Eu não escutava tiros, só via
bandidos correndo para todo lado. Como eles não tinham uma direção certa, todos estavam
confusos e descoordenados, eu acabava ficando sem saber o que fazer. Em certo momento,
cerquei um garoto desnorteado e perguntei se tinha visto o Bill. Ele me olhou, balançou a
cabeça negativamente, mas não parou para me dar atenção. Os bandidos pareciam ondas, às
vezes vinham todos juntos, às vezes iam. Eu os tomava como referência. A qualquer
momento eu teria de invadir a casa de alguém; só que depois das explosões dos fogos, a
maioria das casas estava trancada e aquelas que tinham acertos com eles, eu não conhecia.
Minha outra preocupação era que nem todos os falcões me conheciam, o que poderia ser
um perigo, no meio da tensão.

"Eles tão subindo", gritou alguém que vinha da parte de baixo. "Eles estão vindo por cima",
outro anunciava. "Caralho, mata a gente logo e acaba com esse sofrimento", era a voz do
desespero. Alguns lugares em que eu passava estavam escuros; minha vontade era me
esconder; mas ficar sozinho? Não, pelo menos os meninos estão armados, eu teria alguma
chance. O Miguel procurava ficar junto de mim e eu dele. Talvez um completasse o outro,
se fosse preciso. Ficar perto do Miguel podia ser outra vantagem; ele é branco, o que não
quer dizer muita coisa naquela hora, porém, provavelmente seria muito mais fácil atirar em
mim, sozinho, no escuro, do que em nós dois, estando ele, inclusive, com os equipamentos
na mão. Podia até ser neurose minha, ou até crise de complexo de inferioridade, mas o
próprio Miguel tinha presenciado coisas que ele não acreditava fossem possíveis, como no
dia em que chegamos a Brasília, para ver a merla. Estávamos ao lado da esteira, esperando

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as bagagens. Surgiu um homem de seus 45 anos, alto, de terno, com cara de senador. Ele
estivera em nosso vôo. Aproximou-se e pediu para eu abrir a bolsa. Não entendi e perguntei
se ele era da polícia. Ele disse que não, mas queria saber se eu havia guardado, por engano,
o telefone celular dele. Mostrei pra ele o meu telefone, que era bem diferente do que ele
descreveu, o que dificultava qualquer confusão minha. Ele meteu a mão na minha bolsa,
que estava no carrinho; era bagagem de mão. Não deixei. Miguel se aproximou e disse que
eu estava com ele e que a bolsa era dele. O cara ainda ficou meio desconfiado. Perguntou
ao Miguel sobre a chance do engano. Miguel negou a hipótese. O sujeito ainda relutou, sem
nada dizer, e foi embora caminhando devagar, olhando pra trás. Será que se fosse o
contrário, eu teria o direito de abordá-lo? Ele tinha certeza que o celular estava comigo. Se
esse safadão estiver lendo este livro, hoje, e se ele achou o telefone, é bem capaz de achar
que quase foi roubado por mim. Safadão.

Eu já não agüentava tanta expectativa. Os fogos continuavam estourando e os canas não
apareciam. Até que vi o líder do tráfico muito agitado, gesticulando para alguns garotos.
Ele me viu e bateu o braço me chamando. Corri em sua direção, eu e meu parceiro de
muitas fugas. "Entra aqui; entra aqui." Era a casa do garoto foragido. Entramos e nem deu
tempo de perguntar pelo Bill, ele ja havia sumido, parecia mais desesperado do que eu.

O garoto disse que a casa não era dele, que também estava ali se escondendo, que os donos
da casa estavam no quarto. Não vi ninguém, mas me senti culpado por invadir a
privacidade de alguém que nem conheço. Imaginei que aquelas pessoas, provavelmente,
trabalhariam ao amanhecer - em pouco tempo, portanto - e ainda tinham que aturar
desconhecidos no espaço de sua intimidade, sem poder dizer nada. Sim, eu estava sob a
tutela do tráfico, eu era a lei. Se alguém saísse do quarto, o que não aconteceu, eu teria
ainda que fazer cara de mau para não correr o risco de ser despejado. Era a lei da favela, a
lei do cão, a lei da selva. Eu era o leão.

Não tinha dúvidas de que Bill estaria bem. Já tinham acontecido coisas piores e não
morremos, mas até aí...

Não me lembro da hora; até mesmo naqueles momentos olhei para o relógio várias vezes e
não conseguia gravar. Imagino que se passaram uns quarenta minutos; devia ser 3 e 5.

Bum... Bum... alguém batia na porta e o coração quase parava. Bum... Bum... Continuavam
batendo, mas não falavam nada. "Celso"... Agora sim, era a voz do Bill. O garoto abriu a
porta. Olhei para o Bill com a sensação de que não o encontrava havia uns trinta anos.
Ainda vi o bandido-chefe caminhando


rápido, de costas. Entendi que ele tinha ido buscar o Bill, na treta em que ele estava
escondido, para juntá-lo a nós. O garoto fechou a porta. Bill sentou no sofá e disse,
baixinho: "Essa tem que ir pro livro."

Filho-da-puta; como consegue pensar nisso nesta hora?

O maluco que estava com ele queria sair, parecia louco, dizia que era filho do presidente da
associação de moradores, que conhecia todos os policiais e que não éramos bandidos.
Sugeriu que, em caso de qualquer parada errada, nós disséssemos que tínhamos vindo fazer
show na cidade e que só restara aquela hora pra fazer a visita. Era uma boa idéia. Já
tínhamos algo a dizer. Antes de pintar essa idéia, o máximo que podíamos argumentar é
que éramos do Rio e estávamos visitando a comunidade, na companhia de um coroa, e que
não tínhamos a menor idéia sobre onde ele estava, e que o víramos pela última vez no
começo da noite, quando chegamos ao morro.

Continuamos lá; os fogos foram cessando; o sossego foi substituindo o desespero; e todos
os moleques desapareceram. Segundo o líder do tráfico, eles preferem evitar o confronto
direto com a polícia; só partem pra cima se os policiais chegarem aonde eles estão, no
coração da favela, que já foi palco de muitas lutas sangrentas. Ele disse que os canas entram
até uma parte da favela para prender quem estiver de bobeira e alguns viciados. Contou que
quando os fogos estouram, os "hômi" já sabem que a favela está alerta e, nesse caso, todo
mundo perde.

Ante a aparente tranqüilidade, saímos da toca e fomos procurar o velho. Quando chegamos
perto de onde o coroa nos viu pela última vez, alguns moradores corriam em nossa direção
para avisar que os canas estavam subindo por lá também. Eu já nem sabia mais por que
corria, e se precisava realmente correr; era uma questão de instinto, eu acho. Perguntei ao
filho do presidente se não era melhor ir pra casa dele. Ele disse que a casa dele era do outro
lado do morro e que teríamos que passar pelos samangos para chegar lá. Minha
preocupação era que houvesse alguma denúncia de que havia gente filmando os garotos e
que, portanto, eles estivessem atrás de nós, e não dos caras.

A verdade é uma só: os PMs deviam estar com medo também; o dia já estava clareando.
Ficamos numa esquina com alguns moradores, conversando, esperando a poeira baixar.
Afinal, conosco e em torno de nós não havia drogas nem armas, não havia nada que nos
incriminasse. Resolveram que fariam um mutirão de moradores para nos levar até a saída
da favela. Entre eles estariam alguns falcões - é que quando eles guardam suas armas,
viram pessoas normais... O filho de Sua Excelência foi até a boca da favela, ver se a barra
estava limpa e chamar um táxi.

59


O catuque chegou: era um garoto nos chamando, dizendo que o filho do presidente
mandara descer naquele instante.

Ordem não se discute; descemos na hora; não antes de dar uns autógrafos, alguns beijos e
abraços.

Chegamos ao asfalto. Nem sombra de polícia. Na boca da favela estava o maluco, filho do
presidente, e o piloto fora do táxi. Percebi que o relógio do táxi estava correndo e
compreendi: "É, não tem ninguém de bobeira aqui." Agradecemos ao rapaz, demos boa-
noite, e pedimos ao piloto para seguir; só que o Miguel tinha escondido a fita na casa em
que ficáramos escondidos. Saiu do carro e foi, com o rapaz, buscar nosso tesouro. Ficamos
ali, eu e Bill, como dois suspeitos, no táxi, até que os moradores desceram para nos fazer
companhia e garantir nossa segurança.

A porta da favela virou festa; era como se um pagode estivesse terminando.

Miguel voltou depois de uma eternidade, nos despedimos novamente, entramos no táxi e
partimos. O carro fez uma volta na praça e passou do outro lado da pista. As pessoas
acenavam pra nós como se faz na avenida para um mestre-sala nota 10.

Olhei para o Bill e vi que ele estava emocionado. Os olhos do crioulo brilhavam, quase um
chorar perene. Olhei pra ele como quem quer saber a razão. Ele disse: "Solidariedade,
Celso; solidariedade!"

Notícias do velho? Até hoje, nada.

60


CURITIBA: Nos FUNDOS DA CIDADE MODELO

Narrativa escrita por My Bill
Pensei que estaria bem frio naquela região sulista. Me enganei. Estava um calor da porra;
porém, à noite, parecia nevar.

Depois de uma forte turbulência durante o vôo (parece que é característico da região)
brotamos no aeroporto, onde já estavam dois amigos nossos e um outro maluco que eu não
conhecia. Os três ficaram de nos ajudar a fazer contato com os gambás de uma
comunidade.

Ainda era dia e, como as coisas só iriam acontecer ao anoitecer, resolvemos sair pra comer
um "lance". Entramos numa carreta chapadona cor verde militar, parecia um jipe, rodas
gigantonas, carro ignorante... O piloto era um desconhecido que parecia um ventríloquo.
Toda hora repetia a mesma frase: "Minha garota vai me matar." Paramos num restaurante
meio lanchonete, fizemos os pedidos e iniciamos um papo sobre o que precisávamos e o
que teríamos. Conversa vai, conversa vem, e o mais velho da dupla de conhecidos colocou
na mesa uma série de recortes de jornal com matérias mostrando o alarmante número de
jovens mortos na guerra do tráfico. Ao ler os números, pensei: "Teremos bastante trabalho
esta noite"; também pensei no trabalho que o desconhecido com cara de boneco de massa
poderia dar. Pois ele foi xingado pela namorada por telefone, antes de tocar na comida, e
chorava, tentando se justificar. Lágrimas à parte, anoiteceu. Era o nosso horário; "metemos
o pé" direto pra comunidade.

No trajeto, algumas ligações eram feitas, para que se tivesse certeza de que estava tudo bem
desenrolado.* Tocava um CD genérico com as melhores do Zé Ramalho. O piloto vestia
uma camiseta do Che Guevara, um broche do PCdoB e cantarolava todas as músicas (às
vezes atrapalhando a conversa). Cruzando o centro da cidade, eu cá comigo refleti: "Esse
lugar disputa com mais nove capitais a melhor qualidade de vida e, realmente, dependendo
do ângulo de visão, é quase impossível enxergar o que minutos depois eu vou encontrar."
Como num passe de mágica, toda a beleza do centro urbano deu lugar a ruas vazias e
escuras, alguns sobrados, às vezes um

* Desenrolar significa falar com o objetivo de convencer alguém. Bem desenrolado é o mesmo que bem entendido e bem combinado ou
acertado.
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terreno baldio, silêncio quase absoluto (no carro também). Paramos num bar, no meio do
nada: uma mesa de sinuca velha, um coroa preto no balcão e um casal de bêbados tentando
cantar uma música de Bruno e Marrone no karaokê. Não chegamos a entrar, mas todos
pararam o que faziam para observar com espanto. Era mais para estacionar e encontrar com
o "contenção" que fora designado para nos buscar, ali. Tomei o cuidado de pedir para o
boneco desligar o telefone, pois a namorada continuava ligando. Nosso "guetorístico" saiu
do nada, como se já tivesse nos analisado bem, antes de se aproximar. De chinelo, bermuda
preta, camisa branca com propaganda política, ele não parecia levar em consideração o frio
que fazia àquela hora. Eram 11 da noite.

Apresentações concluídas, o jovem externava com facilidade sua satisfação em nos receber.
Estava escrito em seu olhar e se confirmava em seu sorriso. Ele disse que, apesar dos riscos
(porque a polícia estava zoando direto), a rapaziada nos aguardava numa parte da subida
conhecida como "farmácia". Seguimos a pé por alguns minutos, até pararmos diante de
uma ladeira quase vertical. Era impossível enxergar o final da ladeira, por causa da
escuridão, mas sabíamos com certeza que estávamos sendo filmados. Estávamos no lado
oposto à ladeira, portanto, tínhamos que atravessar as duas ruas. Foi quando, numa delas,
passou um bonde de quatro viaturas todas apagadas, em velocidade mínima: policiais sem
rosto (cobertos pela sombra). Canos de fuzil e pistolas apontados em nossa direção e a
dúvida cruel: andamos ou paramos? A tensão psicológica seria menor se tivessem parado e
nos revistado. Pequenos momentos com grande duração... Parecia ser o prenúncio do que
ainda estava por vir.

Depois da tensão, atravessamos as ruas e começamos a subir a ladeira. Logo no início,
havia barricadas com madeira, latões de lixo e sofás velhos. O jovem que nos guiava
apontava para os artefatos e dizia que era pra dificultar a incursão policial. com exceção do
moleque, todos estavam com a respiração ofegante (tipo cachorro) antes de alcançar um
terço da ladeira. Até que chegamos à parte escura que não enxergávamos lá de baixo.
Comecei a ouvir algumas vozes que vinham mais de cima, no fundo rolava Soldado do
Morro, que me deixava tranqüilo. Parecia que eles haviam organizado uma amistosa
recepção.

A música foi ficando mais alta, o lugar mais escuro e as vozes amplificadas. Chegamos. O
beco parecia um corredor polonês. Vários caras encostados nas paredes dos dois lados. Eu
puxava o bonde junto com o nosso amigo guia. A medida que íamos avançando, o volume
de mãos estendidas para eu cumprimentar

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ia aumentando. Apareceram pedaços de papel e canetas. Celso, percebendo a boa entrada
que tivemos, destacou-se com o resto do pessoal pra fazer o reconhecimento da área à
procura de algumas locações. Mais afastado, se concentrava um grupo de uns oito caras,
agachados em forma de círculo. Do meio, saía bastante fumaça, parecia um churrasco.
Junto com essa fumaça, vinha a marola que parecia estar impregnada naquele lugar. Vários
garotos e garotas portavam bem servidos cigarros de maconha. Até que chegou um garoto
meio russo que se comportava como "gerente", dizendo pros caras pararem de jogar fumaça
na minha cara, que estava me sufocando.

Reparei um menor que se escondia no início da multidão que havíamos passado, com uma
pistola numa das mãos e, na outra, cargas de pó, crack e maconha. Ele era o vapor da boca:
vendia enquanto os outros faziam a festa com a nossa chegada. Na verdade, ele era o único
a não ligar pra nossa presença, talvez estivesse mais ligado na tarefa dele. Garotos com
aparência de 12, 13, dez anos, ocupavam lugares estratégicos nas lajes, com fogos de 12 x
1. Não acreditei, pensei que isso fosse cultura carioca. Mas não! E lá estavam os
fogueteiros da boca, no Sul.

com os olhos comecei a procurar aquele que poderia ser o "patrão" daquele morro. Até que
deparei com um maluco branco, alto, meio banhoso, com cara de 18 anos no máximo. Ele
tinha em uma das mãos um baseado da grossura de um dedo e do tamanho de uma caneta.
Tinha cabelo rasteiro e usava costeleta. Bermuda da Cyclone, meias pretas, tênis Adidas
Cooper, camisa cinza com estampa da foto do Mike Tyson. Levava na cintura uma espada
dentro de uma bainha muito bonita com umas pedras brilhantes. Todos ao meu redor me
puxavam na direção dele e quando cheguei ao miolo, em que ele estava, apertou a minha
mão e disse: "É tudo nosso My Bill". Aí não tive mais dúvidas, ele era o cara.

Tentei puxá-lo pro canto pra um desenrolo sobre o que exatamente fazíamos ali, mas não
tive sucesso, a multidão já me aguardava com papéis, canetas e agora máquinas
fotográficas. Por ordem desse maluco que eu vou chamar de "Davi", todos aguardavam na
disciplina sem atrapalhar nossa conversa. Então passei a lhe explicar como surgiu a nossa
pesquisa. Na minha primeira fase da conversa, ele ainda estava meio fechadão, mas logo
começou a viajar na minha idéia, foi desfazendo a cara de interrogação e até arriscou
algumas opiniões sobre o assunto, dizendo que "a sociedade devia olhar pra comunidade
dele e que a molecada procura refúgio no tráfico".

Disse também que ajuda os jovens na guerra contra a comunidade rival, cujos membros são
chamados de "Alemão". Quando Celso percebeu que

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já tinha o ok, pegou uns quatro garotos e pediu pra que eu me mantivesse afastado de onde
ele estivesse, já que a minha presença poderia transformar o set de filmagens em picadeiro.
Davi se comportava como vários caras que conheci; a semelhança com algo muito comum
em meu dia-adia era impressionante.

Ele me confessou que aquele se tornara o dia mais importante da vida dele, pois estava
aniversariando e a minha presença, pra ele, passou a ter um outro valor. Davi me convidou
pra dar uma volta e conhecer sua comunidade de ponta a ponta. Eu concordei em sair
depois que tivesse tirado as fotos pedidas pelas pessoas. Então, começou uma sessão de
muitas fotografias: eu com as crianças no colo, eu com garotas, eu com um montão de
caras, com senhoras. Até que colou a rapaziada chapa quente... Tiraram fotos fazendo sinais
com dedos, simbolizando a facção criminosa local. Moradores que iam chegando e nem
sabiam o que estava acontecendo perguntavam: "Quem é esse negão aí?" "Eu quero tirar
uma foto com esse cara também." O Davi ficava mais acima, não participava de nenhuma
foto, mas, atento, observava tudo. Estava tão atento que se ligou no "boneco, piloto,
desconhecido", que puxou no "sapatinho" do bolso, uma máquina fotográfica e se juntou às
pessoas que também possuíam máquinas. Começou a tirar fotos (eu vendo aquilo não
acreditava) com a máquina apontada para o "Davi", pros viciados, nunca pra onde eu
estava. Me arrependi profundamente de não ter dado uma "geral" nele, ou melhor, de nem
ter deixado ele subir. Davi gritou: "Ei, ei, pára aê..."

Eu pensei, o boneco vai ficar de pedra. O Davi o puxou por trás, pela gola da blusa. O
boneco, assustado e amarelado, não conseguia nem falar ao virar e ver a maldade no o olhar
do maluco. O Davi disse pra ele entregar o filme ou a máquina com a porra toda. O boneco
tremia como bambu na ventania e não conseguia tirar o filme. Davi meteu a mão em uma
das pistolas que carregava na cintura e ficou a olhar pro boneco, que tentava arrancar o
filme da máquina. Ele ainda encontrou clima pra lembrar pra todos que o olhavam inclusive
o Davi - que a máquina era da namorada e que ela pediu pra ele fotografar a favela, pois a
menina nunca tinha entrado numa.

A paciência deu espaço para a deselegância. Davi puxou a máquina da mão do boneco e
começou um rápido interrogatório: "Qual é teu nome?", "De onde tu saiu?", "Veio a mando
de quem?"

Os olhares das pessoas na direção do cara já não eram tão festivos, pelo contrário, eram
tensos, carregados de desaprovação. Era como se o sentimento de Davi se alastrasse pelos
demais presentes. Sem ter envergadura moral pra responder a qualquer pergunta, o boneco
abaixou a cabeça e acatou

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a ordem que era pra "Descer e aguardar no carro". Os outros dois (nossos amigos locais)
eram muito discretos, adeptos da técnica do silêncio, por isso não atrapalhavam o Celso, o
câmera e os meninos. Sumiram naquele bolo de casas de alvenaria. Eu estava torcendo pra,
na hora de dar uma volta, não encontrar com eles.

O episódio anterior não tirou o brilho da visita. Nem o frio nem a hora foram obstáculos
para nossa procissão pelo morro. Parte da subida era de chão cimentado, mais acima era
barro e quanto mais subíamos, mais gente ia engrossando a longa fileira que estava subindo
logo atrás. Cada pedaço de chão, cada beco, cada casa, cada pessoa parecia ter uma história
pra contar. Em cada lugar que passávamos, Davi fazia questão de contar a história,
detalhadamente, e ninguém ousava interrompê-lo.

"Tá vendo ali, Bill? Até hoje o mato tá amassado. Onde o mato tá amassado, foi onde caiu
o filho-da-puta que entregava nós pros homi"... "Aquela casa é onde nós faz o nosso Big
Brother, né? Nós leva as muié pra lá e só sai dois dias depois"... "Nesse beco, morreu o
cara mais responsa do morro; os homi cercaram ele e meteram bala nele na frente de todo
mundo"... "Aqui é a sede da associação de moradores. Quem cuida é o pai de um amigo
nosso, aqui do morro. O coroa não vai muito com a minha cara. Não aceita a ajuda que eu
dou para a comunidade."

A sede ficava no ponto mais alto do morro e era muito bem cuidada, com instrumentos de
percussão e uma mina que se apresentou dizendo ser a professora responsável pelas
atividades infantis. Seu nome era Kelly, muito bonita, aparentava uns 27 anos, era
voluntária, moradora e orgulhosa do que fazia. Em conversa rápida, me deu um envelope
com um projeto pensado por ela e pediu pra apresentar sua família, mãe, irmão, primos,
avó, amiga... e todos começaram a falar ao mesmo tempo sobre as dificuldades pelas quais
eles passam como moradores daquela comunidade. A cada palavra parecia que nossos laços
familiares se encontravam mais.

Fiquei na associação ouvindo as reclamações dos moradores por mais ou menos uns vinte
minutos, até que o Davi veio me resgatar, dizendo que, na descida pelo outro lado,
conheceríamos mais coisas. Era muito grande também o sobe-e-desce dos viciados, que
movimentavam a boca a noite inteira.

À luz do sol, continuamos o processo de descida. No caminho, mais histórias a serem
contadas; dessa vez a história de um coroa que, no período de quaresma, após o carnaval,
toda a noite, se transformava em cachorrolobo e ficava em casa latindo, raivosamente. No
dia seguinte, de manhã, as pessoas iam até a casa dele e então constatavam que não havia
nenhum

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cachorro. O coroa meteu a cara na janela e eu pude perceber o porquê da lenda: ele era muito
sinistro, com cabelos bem brancos cobrindo os olhos, o que dava pra ver do rosto parecia todo
enrugado, cabuloso! Todos gritaram quase que em coro: "Aê, seu Souza!" Ele apenas fez sinal de
positivo, balançando a cabeça, e saiu da janela, fechando-a com toda a força. Depois de mais de
duas horas rodando pela comunidade, todos já estavam mais à vontade, inclusive eu.

Ainda na parte alta, paramos numa pequena horta, onde uma mina toda eufórica, não com minha
presença, mas com o "Skunk" que ela tinha armado pra fumar. Enquanto falávamos de músicas e
videoclipes, ela rapidamente "apertou" um baseado com que o grupo se deliciou, a cada tragada.
Apenas 30% das pessoas prestavam atenção no que eu dizia; o resto estava fascinado pela plantinha.
No final, todos estavam anestesiados. O Davi parecia qualquer pessoa, menos o dono da boca. A
mina que trouxe a "planta" começou a chorar, lembrando de seu marido - a quem chamava de Nem
-, tentando, desesperadamente, ligar de um celular pra dentro da cadeia. Eu tamabem estava cansado
de tanto falar. Bateu saudade do meu apê na Cidade de Deus, das minhas amigas, dos meus
parceiros, do sotaque parecido com o meu. Os que não estavam "chapados" estavam bêbados, e os
que estavam sóbrios, paravam mas não ficavam.

Ao olhar aquela gente tão parecida comigo, eu tentava imaginar qual seria meu destino se não
fizesse rap.

Davi nos convidou a continuarmos a descer, pois não podia ficar parado no mesmo lugar por muito
tempo; se sentia alvo fácil. A descida estava aparintando ser mais tranqüila que a subida. Foi
quando um clarão no céu, acompanhado de 12 estouros e uma décima terceira explosão, que valia
por todas as outras, quebrou a tranqüilidade local. A multidão, em segundos, reduziu-se a um
pequeno grupo de pessoas, que ia diminuindo à medida que ouvia a famosa e temida palavra:
"Sujou!"

Uma senhora me puxou pelo braço esquerdo com muita força e com cara de desespero. Eu não tive
reação pra perguntar pra onde ela estava me levando, mas também não tinha muitas opções. A
senhora abriu um portão de madeira de uma casa. Ela disse que se chamava dona Alaíde e que eu
ficaria seguro ali, em sua casa, porque, se a polícia me pegasse de bobeira no morro eu entraria na
porrada. Enquanto dona Alaíde falava da ação policial, fogos não paravam de estourar, a ponto de
acordar as filhas da coroa, que foram pra sala correndo. Dona Alaíde pediu que nos sentássemos e
nos
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acalmássemos. Mas os fogos começaram a se confundir com os tiros, que faziam um barulho
ensurdecedor.

Começou a bater preocupação com o resto da equipe que eu nem sabia se estavam bem.

A coroa gente fina insistia pra que conversássemos e agíssemos normalmente, mas era impossível.

Os tiros eram muito próximos da casa, as vozes dos PMs e dos bandidos pareciam estar bem perto.
Os passos perto do portão não permitiam que meu coração desacelerasse. O ruído do coturno
batendo no cimento é inconfundível, os tiros pararam, a preocupação não. Dona Alaíde apagou as
luzes. Foi o erro. Isso parece ter chamado a atenção de alguém, que ficou batendo e tentando abrir a
porta, metendo a mão na maçaneta.

Pararam de bater, mas nós ficamos deitados no chão, no escuro, em silêncio por um bom tempo
ainda, até percebermos, pelos sons lá fora, que os canas já haviam partido.

Eu estava me recuperando do susto e preocupadão com o Celso e os outros malucos, quando Davi
bateu na porta. Eu nem tinha dado falta dele, que se destacou na hora em que a dona Alaíde me
carregou. Descemos e encontramos a equipe, que havia se abrigado na casa de uma outra pessoa, na
hora da incursão policial. Eles viram que a polícia estava chegando e conseguiram se esconder com
mais facilidade do que eu, que fui pego de surpresa.

Era o momento de meter o pé.* O dia amanhecia e as pessoas saíam para o trabalho. Sairíamos
misturados com todo mundo. Nos despedimos do Davi e dos caras, e saímos acompanhados por
alguns moradores que haviam tirado fotos comigo, lá em cima. Nosso piloto vacilão estava nos
aguardando do lado de fora do carro, ainda ao telefone.
* Meter o pé significa sair, ir embora.
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FLASHES DO INFERNO E DA REDENÇÃO
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A VIOLÊNCIA E o PRINCÍPIO ATIVO DO MURO

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Celso se levantou, nossos braços se cruzaram e nos tocamos os ombros. Bill acenava do
interior do carro. Eu e Míriam corríamos para alcançar o táxi que atendera o sinal de Celso.
Trocamos de carro e voltamos para a Zona Sul. A noite cerrava o punho negro sobre nós.
As luzes da via expressa, velozes, iluminavam e apagavam os contornos da Barra da Tijuca,
na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Poderíamos estar nos despedindo de nossos
amigos à beira de qualquer highway de Los Angeles ou Miami. O cenário era o mesmo. Os
dramas sociais, não. Passáramos as últimas cinco horas juntos, conversando. Nosso livro, o
que fazer de nosso livro? Nossos projetos, nosso país. O que fazer de nós, neste país?
Individualmente, sim, individualmente era possível romper a barreira étnica.
Coletivamente, não. Celso disse isto no apartamento de Bill, na Cidade de Deus, enquanto
eu imaginava Buena Vista Social Club, os apartamentos dos artistas maravilhosos de
Havana, as paredes roídas de Havana e suas escadas escuras. E toda aquela escuridão
levitando no halo de nossas melhores e piores reminiscências. O mais velho dos quatro, eu
tinha ao menos esse direito: à memória.

Bill: - A saída? Não há. Não tem saída.

Celso: - Não. Não tem. Não tem nenhuma.

- Mas você disse - eu disse - que acredita, que tem fé, que luta, que não desiste, não
capitula.

- É verdade, eu disse - Celso disse -, e não menti. Desistir não desisto. Mas saída não tem.
Individualmente, é possível superar o racismo. A prova está aqui: somos amigos. Os
casamentos interétnicos existem. Coletivamente, não.

Eu ainda tentei costurar uma interpretação otimista - que dificuldade eu sinto para render-
me ao negativo, meu Deus, simplesmente não consigo, é como se fosse contrário à minha
natureza, talvez porque, mesmo sendo de Peixes, meu ascendente seja Sagitário; talvez
porque formei minha sensibilidade em plena agitação vanguardista e messiânica dos anos
60. O fato é que não consigo. Portanto, mais por fraqueza do que por virtude, emendei: o
reconhecimento da falta de saídas talvez seja, em si mesmo, uma novidade e, mais ainda,
uma novidade positiva. Vejam só: estamos aqui, sentados na sala de My Bill, no chão, no
sofá, tomando um suco de manga, conversando, quatro pessoas que têm alguma
representatividade e alguma liderança em

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suas respectivas áreas. Especialmente o Bill, que é um ícone popular, uma liderança
cultural e moral. Mas todos nós, de uma maneira ou de outra, cumprimos trajetórias que
não foram exatamente inexpressivas, para o bem ou para o mal, nem foram propriamente
usuais, previsíveis. Celso foi menino de rua, quase policial militar e jogador de futebol,
antes de se tornar produtor cultural, organizador e estrategista político - criador da Central
Única de Favelas, a Cufa -, e um dos principais intelectuais orgânicos de nosso país (me
permita a liberdade de recorrer ao velho Gramsci e rotulá-lo um pouquinho). Miriam pulou
do conforto dos títulos acadêmicos para o meio do inferno, o sistema prisional, na
perspectiva de reduzir danos, reduzir o sofrimento produzido pelas instituições, e valorizar
o que há de vital e construtivo sob a aparência de pura desumanidade, como ela costuma
dizer, driblando a retórica acusatória que não aponta caminhos e só contribui para reduzir a
pó o resto de auto-estima que ainda reste, aqui e ali, entre destroços humanos e
institucionais.2 Eu sou o "eurocomunista" dos anos 70 que se tornou secretário de
Segurança, investindo na polícia e na literatura, dando aulas em universidades, com a
curiosa pretensão de não ter mudado de lado, nem abandonado os valores libertários de
1968. Digamos que nossos itinerários biográficos não têm sido épicos, mas tampouco
seriam facilmente classificáveis.

Pois aqui estamos, quatro histórias, quatro cabeças infernizadas pela mesma pergunta: a
saída, qual é a saída para a violência absurda, a injustiça desumana, a desigualdade
degradante? E os quatro reconhecemos que a pergunta é maior que nós. Mas também
reconhecemos que essa limitação não nos deve paralisar, porque há muito a fazer até onde a
vista alcança. E decidimos caminhar na penumbra. Nenhum de nós falou da História com H
maiúsculo, nem se arrogou falar em Seu santo nome. Não há, entre nós, dogmas ou disputas
pela verdade. Os tempos são sombrios, sim, mas já eram antes e nem por isso havia
humildade. A onipotência, a arrogância moral do vanguardismo político alimentou, no
passado, mesmo no passado recente, jacobinismos autoritários para todos os gostos e uma
pletora de derrotas e retrocessos.

Nos anos 60 e 70, uma conversa como essa teria sido, no mínimo, improvável. Quem
ousaria reconhecer a superioridade da pergunta sobre a resposta? Há vantagens no
ceticismo, desde que ele não contamine a vontade e nos condene ao imobilismo. Talvez ele
nos force a aceitar a necessidade de dar um passo depois do outro, construindo o que for
viável, com os aliados possíveis e a força disponível, em cada caso, reduzindo o sofrimento
humano e abrindo espaços, progressivamente, para dissolver preconceitos, quebrar
barreiras, abrir picadas progressivas à participação e à democratização.

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Considerando o preço que pagamos pelas certezas, de que dão testemunho os tristes
regimes totalitários que visavam a igualdade e mataram a liberdade, talvez não seja tão mau
assim não saber, não ver saída e viver essa angústia, sem solução, sem salvação. Nos anos
1960 e 70, lideranças de quaisquer níveis sabiam tudo e eram maiores que as perguntas. E
agora, aqui estamos, a questão étnica ainda intocada, cercada de pavor e idealizações; a
desigualdade, fratura exposta, naturalizada; tantas outras questões ainda não enfrentadas.

O táxi vazava o véu de cintilações, na highway, afastando-se da Cidade de Deus.
Mergulhou no túnel Dois Irmãos. Eu e Miriam íamos quietos, ruminando o desafio de
Celso: a barreira, a fronteira, a inexpugnabilidade da outra cidade, o país indevassável, o
enigma do outro lado, a permanência arqueológica das Tordesilhas, a força mítica dos
corpos e das cores, o embaraço dos pronomes irredutíveis - nós, eles -, mesmo que,
individualmente, cruzemos o muro. O muro. Mais um muro. Havia um. Seria preciso
considerá-lo. Respeitá-lo significaria fazê-lo existir, quando teria sido possível pulverizá-lo
e correr para o abraço? Ou ignorá-lo azeitaria a máquina de morte que reproduz a ordem
branca? Somos um, sim, certo, mas somos UM diferentemente. A ponte está no verbo e o
abismo está no advérbio. Um tem muitas cores e todos os sentidos. Pronto, aqui estamos de
volta ao ponto de partida, girando em torno da pergunta angustiante. A pergunta, também
esta, é maior do que nós. Nem por isso, entretanto, deveríamos desistir. Se,
individualmente, é possível estabelecer elos, o livro é possível - sendo, o livro, o espaço de
um a outro. Um fio entre estranhos. Um passo.

Talvez um fragmento de memória de Celso ajude a explicar sua posição atual sobre a
desigualdade brasileira. Ele aprendeu, muito cedo, que desigualdade, no Brasil, tem cor.
Seus sentimentos têm história.

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Os NEGUINHOS DO BUZÃO

Celso cresceu na favela do Sapo, no Rio de Janeiro. A história resumida de sua infância está narrada na parte IV. O texto a seguir a
antecipa, com um retrato em preto-e-branco.
Quando ainda morava na favela do Sapo, minha mãe fazia excursões quase todo mês para
Aparecida do Norte. Eu resolvi fazer a minha também para levantar um trocado - desde
essa época eu já tinha uma inclinação para negócios, pelo menos era o que eu acreditava, já
era metido a negociar as trocas de figurinhas com os moleques da minha idade, e a articular
as transações e trapaças para enrolar os mais otários. Muitas vezes eu descobria, na prática,
que o otário era eu mesmo. Enfim, peguei um ônibus - 870: Bangu/Sepetiba -junto com um
amigo, o William. Esse amigo era muito tranqüilo, era o que vencia todas as corridas de
velocidade nas festas juninas e nas brincadeiras de polícia-e-ladrão. Era muito magro e
branco, tinha vergonha de ser tão branco. Devia ser por isso que ele nunca tirava a
camiseta, mesmo nas peladas de meio de semana no campinho lá da área. Pegamos o
ônibus e rumamos para Santa Cruz, onde ficava a empresa Pégaso, nem sei se existe ainda.

Chegando lá, pedimos as informações a um segurança que nos atendeu pelo interfone. Ele
perguntou ao gerente e este respondeu que a empresa não alugava ônibus para criança.
Fiquei muito puto, porque eu sabia que tinha responsabilidade e era perfeitamente capaz de
juntar a molecada para a viagem e ainda tinhha a vantagem de minha mãe ajudar, se eu não
completasse a turma.

Xingamos o guarda de tudo quanto foi nome feio, sem que ele ouvisse, é claro, e voltamos
para o ponto do 870, só que dessa vez Sepetiba/Bangu, via Senador Câmara. Durante o
percurso do ônibus, subiram dois pretinhos. Estavam mal-arrumados e tinham o corte de
cabelo máquina zero, com um topete na frente que chamavam "crista de galo". Engana-se
quem acha que foi o Ronaldinho quem inventou esse corte. Os neguinhos começaram a
olhar na cara de todo mundo. Tornando mais do que evidente que iriam aprontar alguma
coisa. Mesmo que nada fizessem, já haviam cometido um crime: passaram por baixo da
roleta sem pedir à cobradora. Eles quase que entravam pelas carteiras, bolsos e bolsas das
pessoas com os olhos. Parecia que não tinham a menor intenção de esconder que algo
estava pra acontecer.

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Todos no ônibus ficaram em pânico. Ninguém dizia nada, nem eles. Eu tinha 14 anos nessa
época e eles não estavam longe disso também. Eles entraram na altura da favela Antares e
eu sabia bem como era a região, porque, antes de ser despejado da favela do Sapo, já havia
sido remanejado justamente da favela do Cesarão, que faz parte desse complexo de favelas.
Naquela época, não havia facções criminosas. Era um momento de expansão da Falange
Vermelha. Não ocorriam guerras entre as comunidades ou pelo menos não eram tão
sangrentas como hoje. Os moradores eram poupados, ao contrário de hoje, em que muitos
deles morrem só por morarem em favelas controladas por facções inimigas. Bons tempos
em que o seu Rogério acabava com as brigas no bloco do Dragão de Câmara com apenas
um olhar de desaprovação. Mas vamos voltar pro ônibus pra não perdermos a viagem.

Os neguinhos eram sinistros. Um desespero, porque todo mundo olhava pra eles e quando
eles respondiam ao olhar, era um tal de "neguinho e branquinho" abaixar a cabeça para
disfarçar... Pelo que eu vi, eles não roubaram ninguém. Até ali, só havia dois crimes, o de
passar por baixo da roleta e o crime psicológico, por nos aterrorizar com os olhos.

Quando chegamos a Inhoaíba, eles saltaram e o alívio tomou conta do ônibus, que mais
parecia um avião que acabara de ser libertado de um bando de terroristas neuróticos. O
"buzão" não estava cheio. Era mais ou menos meio-dia. Havia vários lugares para sentar,
inclusive.

Em Campo Grande, um bairro próximo de onde eles ficaram, uma coroa gordinha e branca
ia descer, enquanto dois policiais estavam subindo pela porta da frente. Ela não pensou
duas vezes, começou a me insultar, gritando e dizendo coisas como: "Viu neguinho, os seus
colegas quase me roubaram! Você pensa que eu não sei que você estava com eles? Os seus
colegas desceram e você continuou, o que você quer?"

Meus olhos arregalaram, minha mente disparou. Eu não sabia se me atirava pela janela e
fugia ou se gritava com ela também. Mas ela era branca, estava bem arrumada, além de
revoltada, e parecia ser inteligente. Eu teria desvantagem naquela circunstância. Resolvi
ficar quieto, já que os policiais que estavam subindo não falaram nada. Baixei minha
cabeça e deixei o corpo tremer, era o meu pesadelo. Eu estava no primeiro banco, atrás do
piloto, ao lado do William, o meu amigo branco e de muito boa aparência, segundo o
padrão convencional brasileiro de beleza.

"Por favor, pode dar licença?", disse o policial pra coroa. Eu quase morri no "Por favor",
achando que era comigo. A coroa se curvou para os policiais passarem, contudo, não
desceu do ônibus. Preferiu continuar a me insultar e

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insistir em dizer que eu estava com os "neguinhos" que desceram e que, segundo ela, quase
a roubaram. Ninguém no ônibus falava picas, nem o William, nem o motorista. Nem contra
nem a favor.

Ela não se dirigia aos "canas", sequer olhava pra eles, só pra mim. Claro que ela só falava
aquilo tudo pra chamar a atenção deles. Até que o PM de bigode, que usava aqueles óculos
escuros que só eles usam, modelo Exterminador do Futuro, perguntou o que estava
acontecendo. Eu gelei e comecei a contar, instintivamente, quantos anos pegaria de cadeia.
Não tinha nada a dizer, exceto que era inocente, mas isso não ajudaria muito, porque os
neguinhos diriam a mesma coisa. Ela, então, começou a contar o que tinha acontecido. Eu
assentia com a cabeça, tentando demonstrar respeito e confirmando tudo que ela dizia pra
eles, exceto quando dizia que eu estava junto com eles. Não agüentei por muito tempo,
fiquei nervoso e desandei a chorar e a falar junto com ela, tumultuando o já tumultuado
ambiente, dizendo que eu não tinha nada com isso, que eu tinha ido com o William alugar
um ônibus na Pégaso.

Nesse momento, o policial olhou pró William e perguntou a ele, com muita tranqüilidade,
se eu estava realmente com ele. O meu melhor amigo olhou para o policial, pensou um
pouco e respondeu que sim, sem nenhuma convicção, mas respondeu - sim sinhô, ele tá
cumigo! -, mas era a maior mentira. Ele é que estava comigo; eu é que estava pagando sua
passagem, inclusive. De certa maneira, o que me intrigava é que o William parecia saber
melhor que eu o que estava acontecendo, por sua dúvida e pela forma, ele parecia saber que
estava colocando sobre mim um cobertor em noite muito fria... Independentemente da
temperatura, o fato é que um anjo acabava de descer do céu e cobrir o coração do Wuliam;
de certa maneira, tomou o Buzão de assalto. O policial olhou para o seu colega, depois para
a coroa com sotaque de professora de colégio primário e parecia exigir dela uma
explicação.

A injusta da coroa então se mostrou muito calma e um pouco arrependida pelo que tinha me
causado. Pediu desculpas, não pra mim, mas pró William, me olhou de rabo de olho e
desceu com ar de quem tinha dado uma grande mancada. Todavia, não recebeu uma vaia
sequer. Os policiais mandaram o piloto tocar o bonde e continuamos a viagem. Continuei
tremendo e chorando, só que, agora, de raiva..., certo de que o mundo tinha que acabar ali.
Desejei que o buzão batesse de frente contra vários caminhões que cruzassem a pista
contrária, pois assim morreria todo mundo e tudo aquilo acabaria, mas graças a Deus, o
buzão não bateu e, infelizmente, aquilo parece que nunca irá acabar.

Atrás do meu banco sentava um homem, devia ter uns 45 anos, branco, careca. Levantou-se
e me disse baixinho, num tom amigo,


parecia até meu advogado,

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que aquilo era racismo, que aquilo era só porque eu era preto, pra eu não esquentar a cabeça
não. Eu pensei comigo mesmo: "E você, seu careca filho-da-puta, por que não disse isso
antes do meu amigo branco me salvar?"

com esse episódio eu ganhei muitas coisas na vida. Ganhei, inclusive, a consciência de que
o maior preconceito se dá nas periferias, pois é lá que as pessoas possuem o mesmo grau de
escolaridade, o mesmo nível social, é lá que as professoras são processadas por
discriminação racial, considerando que isso não acontece em escolas de ricos, onde não
estuda preto, é ali que todos são quase iguais perante a lei, pois existe uma coisa que os
difere. Um tem a cor do poder e o outro, da miséria.

Perdi outras coisas também. Uma delas foi a amizade do meu amigo William. É que ele
contou pra mãe o que tinha ocorrido, e ela determinou que ele nunca mais andasse comigo,
porque eu só arrumava confusão. Por esse episódio e outros eu vivia me perguntando: por
que eu tinha nascido condenado?

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O PIOR SENTIMENTO QUE ALGUÉM PODE TER

Bill escreveu o seguinte relato autobiográfico.
Meu primeiro automóvel eu ganhei no meu terceiro emprego. Eu tinha exatamente 13 anos,
tinha rodas rengui-tengui, pneus cromados, barra de direção reforçada, antena telescópica e
uma bandeira do Brasil na dianteira. Essa bandeira era a minha contribuição nacionalista
para o país, apesar dos contrastes e desigualdades que eu via, vejo e verei nele,
infelizmente.

Esse trabalho era no supermercado Casas da Banha, em Botafogo, mais precisamente na
rua Voluntários da Pátria. Éramos vários garotos; nos chamavam de marrequinhos. Não
havia tantos taxistas como hoje nas portas dos supermercados e dava para fazer muitas
viagens para as madames que moravam perto do estabelecimento. Meu aerrecomóvel era
meu companheiro, meu ganha-pão. Não era a primeira vez que eu fazia esse trabalho. Para
ajudar minha mãe no sustento da casa, fui acostumado a me virar de várias formas, e a mais
comum pra mim, na época, era fazer esses carretos.

Meu salário vinha das gorjetas, que na verdade era o que as pessoas pagavam pelo serviço
prestado. Mas no bairro de Botafogo era diferente; meu trabalho era muito mais valorizado
devido à falta de qualificação profissional e da mão-de-obra local. As madames nos
tratavam mal, mas sempre com um certo receio de nos perder, já que seus vizinhos não se
prestariam àquele papel, que até aquele momento eu entendia como prerrogativa nossa,
direito nosso, um privilégio. Pouco tempo depois eu passei a ver muito diferente. Percebi
que era somente um destino planejado pra nós. Passei a ver que era o caminho natural dos
pretinhos do outro planeta.

Uma vez eu fui chamado para atender uma senhora boa-praça; me aproximei dela com
serenidade para mostrar educação e, por que não?, para demonstrar toda a minha
subserviência. Ela me olhou e disse: "ajuda aí".

- Sim, senhora.

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E comecei a colocar toda a compra no marrecomóvel. Empurrei o carrinho um pouco pra
frente para não atrapalhar as outras pessoas e os outros marrecos-colegas. Ela não sabia se
pagava as compras ou se me olhava, com um puta medo de eu fugir com o carrinho e as
compras dela. Até aí, tudo bem, todas as madames eram assim mesmo e, para ser justo, até
lá nas feiras livres das favelas as coroas pobres ficam boladonas quando os carregadores
locais saem do raio dos seus olhos, viram uma esquina e deixam as donas das compras
alguns milésimos de segundos sem a visão total do carrinho e, portanto, das suas compras.
Esse tempo pode ser o suficiente para um seqüestro relâmpago de uma banana, ou duas
uvas, dependendo do gosto do moleque.

Depois que a madame pagou, começamos a caminhar pelas ruas movimentadas de
Botafogo. A dona era muito impaciente. Ela não entendia que eu não poderia correr com as
compras, entre tantos obstáculos pela frente e pelos lados - cachorros, ônibus, ciclistas,
meios-fios, pedestres -, apesar de eu querer me livrar dela. Ela me olhava como quem me
chamava de molenga, só que eu tinha um bom emprego, tinha o respeito de todos os meus
colegas de trabalho e minha família precisava desse dinheiro. Eu não podia arriscar minha
pele, saindo correndo para agradar aquela mulher e correr o risco de virar o carrinho, por
certo quebrar entre outras coisas os ovos da dona e perder meu trabalho sumariamente, sob
a acusação de ser desastrado - em linguagem automobilística: direção perigosa. Porra
nenhuma, vou devagar e sempre, como faço até hoje, não empurrando carrinho, mas
tocando a vida.

Ela até poderia fazer uma reclamação aos meus chefes, mas eu poderia me explicar
tranqüilamente, sem nenhum estresse, já que eles mesmos davam essa orientação.

Meus chefes eram o seu Joaquim, gerente da unidade, e o seu Luiz, subgerente. Pessoas
muito humanas e justas, apesar de serem xingados e acusados de injustos e de safados por
todos nós, inclusive por mim - dependia da ocasião e do interesse de cada parte. Normal,
chefe é pra essas coisas.

Depois de ultrapassar todos os obstáculos da tarde, chegamos ao prédio dela. Um paraibano
de terno abriu o portão de ferro, nos deu boa-tarde e chamou o elevador de serviço. Dar
boa-tarde pra mim não era muito comum, partindo de um adulto. Achei que o paraibano
pensou que eu era parente da dona da casa; quem sabe ele achou que ela era minha sogra?,
sei lá. O fato é que o paraibano tinha ganhado minha admiração e meu

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respeito, e por isso cabia a mim estufar o peito e fazer cara de dono do AP, cara de bacana...

O elevador chegou, a madame ficou me olhando e assim permaneceu até a saída do
elevador, lá nas alturas, talvez vigésimo andar. Nesses poucos minutos, tive a certeza de
que a dona estava me dando mole: eu olhava pra ela no elevador, ela tava me olhando, eu
desviava o olho, voltava nela, e a coroa continuava me olhando. Então eu comecei a ficar
nervoso, comecei a reparar discretamente nas suas curvas e no seu decote. Nesse momento,
ela já não era mais a coroa chata que tinha me ignorado até aqui; passou a ser uma mulher
como qualquer outra, uma mulher por quem eu poderia perfeitamente me apaixonar, apesar
dos 13 anos. E se isso acontecesse não seria a primeira vez; é que eu já tinha experimentado
dessas paixões antes, por pessoas mais velhas, e as duas vezes anteriores foi com duas
professoras minhas. É verdade que elas nunca souberam disso e se souberam foi porque fui
traído por algum colega de turma a quem eu confiei esses segredos. Eram paixões
relâmpago e, contraditoriamente, duradouras. Hoje, me recordo bem das professoras e me
dá vontade de rir quando lembro.

O elevador abriu as portas, à direita tinha uma porta maneira, de cerejeira, com um coração
enorme no centro, em alto-relevo, com umas coisas penduradas, estilo japonês. Comecei a
caminhar pra lá e a dona disse: "Não, garoto, é essa porta aqui." Garoto? Caiu a casa,
pensei. Mas, por outro lado, foi até melhor mesmo, aquilo acabava meu pesadelo e minha
inquietação. E se foi ela quem desistiu de mim, eu não teria nenhuma responsabilidade,
portanto minha reputação e as obrigações de macho não estariam manchadas.

- Vamos por ali - ela disse, apontando para a porta da esquerda, a porta de serviço. Ela
tocou a campainha e fomos atendidos por uma menina que regulava com a minha idade,
branquinha, lourinha de olhos verdes.

Sorri sem nenhuma maldade. Afinal, nem tudo estava perdido, aquela menina poderia ainda
se tornar a minha enteada. Tirei tudo do carrinho e coloquei no chão, na porta de serviço.
Quando terminei de descarregar, a coroa me deu uma grana, nada que destoasse dos valores
pagos pelas outras madames da região - diria até que ela deu menos do que a maioria das
senhoras do morro Dona Marta, até porque lá era onde eu fazia as melhores entregas e
recebia as melhores gorjetas (muitas vezes até almoço as senhoras me davam, quase
ninguém queria entregar as compras no

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morro, e eu sempre voltava da favela reclamando, para não despertar interesse no meu
tesouro).

A madame começou a levar as compras da porta para dentro de casa, enquanto a garota, a
seu pedido, chamou o elevador pra mim e para meu companheiro, o meu carrinho, a quem
eu chamava, às vezes, de Bat-sofrimento.

O elevador chegou e a porta demorou um pouco pra fechar - era desses elevadores velhos
em que cabem quatro pessoas magras. Enquanto o elevador não se decidia se subia ou
descia, a menina e eu ficamos nos olhando, esperando o desfecho; eu nada dizia, nem ela. A
porta se fechou, o bicho desceu e eu fiz meu caminho de volta, pensando naquela entrega.
Naquela nova história para contar para os marrecos na hora da saída do trabalho; é que
todos os dias na saída cada marreco tinha um monte de coisas pra contar, histórias de todo
tipo. Nesse dia eu diria que fui entregar umas compras e a dona da casa estava a fim de
mim; eu tinha certeza de que eles iriam acreditar porque o Geléia, fiscal da loja, era um
parceiro mais velho, sempre trazia revistas pornográficas pra gente ler com muitas histórias
contadas por mulheres, com temas variados: desde carteiros devorados quando iam entregar
cartas, até homens com seus pênis expulsos das calças por elas dentro de ônibus
superlotados. Por que a dona não podia ter ficado a fim de mim?

No dia seguinte, cheguei para o trabalho e tinha um recado de que haveria uma reunião com
seu Joaquim, antes de pegar no batente. Estavam lá todos os moleques da tarde, unidos,
esperando o nosso amado e odiado gerente.

- Marrecos, temos um problema gravíssimo para resolver e é melhor o culpado se acusar
logo para não respingar em ninguém.

Xiiiii, alguém fez merda, eu pensei, e estava tranqüilão.

- Seguinte. Temos uma reclamação de que ontem um marreco tentou agarrar uma menina
num apartamento.

Caralho, tarado no nosso meio? No meu pedaço perde a cabeça e ainda vai pro poste.

- O marreco estava de camisa amarela. Eu tenho duas opções, mandar o marreco embora
agora ou ela vem aqui com a polícia, hoje.

- Alex, qual era a cor da sua camisa, ontem?

- Amarela, seu Joaquim, e só tinha eu de amarelo, mas não agarrei ninguém, não senhor.

Respondi com toda a sinceridade; e era a mais pura verdade.

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- Tentou sim, Alex. A dona não ia mentir. Pode ir embora, agora, senão ela vai vir aqui e
vai ser pior.

Eu não tinha agarrado ninguém, só olhei pra garota, a culpa era do desgraçado do elevador.
Será que ela tinha achado que eu ia agarrar ela mesmo?

- Seu Joaquim, se foi a dona que eu levei ontem à tarde, deixa eu ir lá falar com ela; eu não
quis agarrar ninguém não senhor.

- Tá maluco, marreco, você quer ser preso?

Percebi que não tinha defesa. Mas percebi também que tinha solidariedade. Até porque eu
contava com uma quadrilha lá dentro - só da Cidade de Deus tinha cinco: Memê, Vaguinho,
Bobo, Nado e Quequé. A grande maioria dos marrecos começaram a dizer que não
acreditavam, que o gerente deveria passar a história a limpo, que eles me conheciam e que
eu não faria isso.

Mas tinha o outro lado da moeda, o Delicado, um negrão com a cara cheia de espinhas,
evangélico, que não gostava de mim porque eu ouvia rap alto e ficava sacaneando ele quase
o tempo todo. Claro que não era só eu; até o gerente sacaneava ele. Delicado disse: "Ele
deve ser tarado mesmo, seu Joaquim; ele é muito rebelde e mal-educado." Todo mundo
olhou pra cara do cagüete, do crente salafrário, mas ele não mostrou um sinal sequer de
arrependimento.

Seu Joaquim me olhou; não parecia acreditar naquele negrão X9 e puxasaco de gerente.

- Alex, pode ir embora. Procura o seu Edmar, avisa a ele que você está demitido e não fica
aqui na frente, fica escondido lá dentro, porque a moça pode aparecer aqui.

Seu Edmar era um senhor gente boa; tinha a língua presa, baixinho e pretinho, trabalhava
como intermediário dos marrecos e gozava de bom relacionamento tanto com os marrecos
quanto com os gerentes. Ele ja conhecia muitas histórias de injustiças das madames e
também de besteiras feitas pelos moleques, então pedi pra ele interceder junto à gerência
em meu favor. Chorei o bastante para encher um balde de lágrimas. Ele não disse nada,
exceto que ia falar com o gerente. Uma hora depois seu Joaquim veio falar comigo.

- Olha, Alex, dessa vez vou te perdoar, mas nunca mais você faça isso. Tentei, sem sucesso,
me explicar, negar a acusação, mas era impossível minha palavra ter algum valor diante de
quem me acusava.

- Sim senhor.

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E me tornei, a partir daquele momento, um tarado regenerado. A partir daquele dia, passei a
ter vários acidentes com meus carrinhos e minhas compras, pois todas as vezes em que via
uma garota da minha idade e loira, eu, mecanicamente, abaixava a cabeça. E esse é o pior
sentimento que alguém pode ter.

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DESCENDO A ESCADA com BILL

Quando saímos de seu apartamento para o pátio, Bill me mostrou, pelo vão das escadas, no
fundo do galpão vazio, o palco em que ele se apresentou pela primeira vez: "Foi ali." Ele
contou que, em seus primeiros shows, as audiências se dividiam: alguns ficavam, outros
saíam. O hip-hop estava longe de ter a penetração e a legitimidade que tem hoje, nos
bairros populares, sobretudo entre os jovens. Talvez a linguagem do rap soasse rascante e
estranha, essencialmente não-musical, por mais que, em seu perturbador estrangeirismo,
fizesse ecoar a tradição nordestina do repente. O rap valoriza a palavra, celebra a palavra,
num momento em que sua posição cultural, no universo dos jovens seduzidos pelo tráfico,
parece ceder à força da brutalidade armada, em cujo campo de experiência predomina o
reducionismo semântico, a mimetização onomatopéica numa escala mental de extremos,
sem nuances e gradações: o grunhido, a gíria elíptica, o esgar, o escárnio e a cauterização
de toda eloqüência. O hip-hop acena com a paz politizada, que se afirma com agressividade
crítica, isto é, com o estilo afirmativo do orgulho reconquistado. A atitude é o avesso da
violência. Mesmo sendo mais abrangente que a linguagem verbal, incorporando as
modulações da coreografia e do grafismo criativo, a atitude cultua a oratória pública e a
riqueza lexical das rimas, pontuadas pelo ritmo.

Curiosamente, a revalorização da verbalidade não é a única afinidade entre as intervenções
rapper e evangélica, mas certamente está longe de ser a menos importante. Foi o próprio
Bill quem chamou minha atenção para a semelhança: "Eu me sentia um pastor, carregando
a Bíblia. Subia no palco como quem vai pregar. Tinha um sentimento de missão. Ainda
tenho."

No pátio, dois rapazes o esperavam: "Puxa, Bill, que bom que você desceu. Estávamos te
esperando há um tempão." Queriam autógrafos e um aperto de mão. O segundo estava
particularmente emocionado: "Nunca tinha vindo aqui, na Cidade de Deus. Estou gostando
muito. É maneiro." Esta frase me tocou. Percebi que ir à Cidade de Deus era mais parecido
com a visita a uma cidade ou mesmo a um país do que a um bairro. Talvez por isso o
carioca prefira a palavra "comunidade" à alusão ao lugar, bairro ou favela.

O táxi chegava ao Jardim Botânico. Quase em casa, mas ainda em desconforto. O muro.
Seria preciso? Seria bom falar dele sem abrir-lhe uma

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fenda? Seria certo identificá-lo sem atravessá-lo com uma ponte, com o sonho da ponte? Sim, o
sonho da ponte, nem que fosse como utopia, o sonho do território humano planetário sem fronteiras.
Por que não? Utopias são tipos ideais regulatórios, irreais, inexistentes, porém úteis como bússolas,
que nos ajudam a descobrir para onde apontar nossos desejos. Mas, por outro lado, por que resistir
tanto à provocação do Celso? Será que não há, nela, alguma centelha da verdade que não
suportamos, no Brasil? Algo que é tão incômodo justamente por ferir o nervo de nossa história?
Não seria esse o ponto cego para um país que se mata, se cobre de sangue, contudo apraz-se em
pensar-se cordial? Nosso país se crê cordial e homogêneo, ainda que desigual. Imagina-se
desracializado por obra e graça do sincretismo que sintetiza interesses, tradições, trajetórias,
sensibilidades e apazigua contradições. Por que não permitir que as palavras de Celso se assentem,
pacientemente, e trabalhem seus efeitos em nosso espírito, antes de exorcizá-las? Por que a pressa
em livrarmo-nos delas, mesmo sabendo-se quão perigosas podem vir a ser e até mesmo por sabê-lo?

Era preciso pagar o táxi. Eu e Miriam traríamos a angústia e o muro para casa. Conviveríamos com
ele. Observaríamos sua inflexibilidade. Arranharíamos sua superfície, mas não adivinharíamos o
enigma contido em seu rigor. E o contemplaríamos, desolados. Finalmente, o abandonaríamos a um
canto até esquecê-lo. Quando, tempos depois, nos deparássemos com ele, numa tarde morna de
segunda-feira, desgarrado de seu significado, de sua origem e de sua natureza, o poríamos para
funcionar nos circuitos cotidianos da casa. Eis o muro, antes casmurro e sintoma da
incomunicabilidade étnica, agora convertido em peça decorativa. Teríamos estilizado o silêncio.
Estetizado o deserto. Funcionalizado o obstáculo. Esterilizado a tragédia. Não é esse o destino de
tantas idéias incômodas? Cuidado, portanto. Conservemos o muro, muro, seja para extrair-lhe as
conseqüências e compreender-lhe as causas, seja para que não percamos de vista a urgência de
derrubá-lo.

O muro é estranho, como são entre si estranhos os que ele separa com sua soberba. Não quero
adocicá-lo, torcê-lo, domesticá-lo. Será nosso cão selvagem amarrado ao pé da mesa. Impedirá que
descansemos. O cão feroz é o princípio ativo do muro. Se relaxarmos, a pergunta morderá nossas
pernas. Aí está a hipótese de Celso, mostrando os dentes.

De um muro a outro. Foi o que me ocorreu quando deixamos o táxi e subimos os degraus até o pátio
do prédio. Subitamente, tive uma idéia - o verbo ter, nesse contexto, não significa possuir ou
adquirir, mas ser tomado,

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atacado ou possuído, assim como se diria de alguém que "teve" um infarto. Arregalei os
olhos. Ante o sintoma, que antecede a satisfação experimentada por quem pensa que
resolveu um problema, Miriam me olhou inquisitiva, a dizer-me que não, não me
precipitasse, deixasse levedar a irresolução incômoda, tivesse paciência pois não haveria
nada mesmo melhor a fazer que reduzir danos. Eu sabia que ela estava certa, como quase
sempre acontece. Mas tive a tal idéia, este era o fato: imaginei outro muro. O que fazer com
ele? Decidi deixá-lo ao lado, olhando o primeiro muro, como espelho do cão selvagem, a
mostrar-lhe que outros dentes ferozes o espreitam, que ele portanto não domina, exclusivo e
sobranceiro, o espaço mental que ocupa. Um muro diante do outro funciona como espelho,
mas também serve a outro propósito, justamente por cumprir a função especular: um
impede que o outro avance, caso ao muro Deus conceda o dom de mover-se. Assim,
imaginando outro muro, pus um muro obstando a vontade de poder do outro, pus um muro
a vigiar o cão - convencionando-se, neste capítulo, que o cão é a forma ativa do muro.

Qual muro imaginei? O muro da Rocinha, aquele que um político "liberal" sugeriu erguer-
se para confinar a favela nela mesma, sonhando assim implodi-la e extirpá-la do mapa.
Erradicar a favela pela guetificação valorizaria o metro quadrado da Barra da Tijuca e,
quem sabe?, tornaria enfim possível a realização do antigo desejo segregacionista das elites
cariocas: afastar-se do lado mau da cidade, mantendo consigo o cartão-postal. Sem a
Rocinha, a Barra branca, limpa e rica, poderia declarar sua maioridade política e anexar-se
a Miami ou postular a autonomia, instituindo-se município independente cujo prefeito seria
para sempre um yuppie branco e conservador, campeão da ordem urbana. Quem propôs o
muro em volta da Rocinha não era qualquer um; era alguém sintonizado com os desejos
conscientes e inconscientes de segmentos do eleitorado. O muro era o símbolo da vontade
de apartação.

Ora, se há a vontade, a separação já é vivida, independentemente da construção do muro. O
muro viria celebrá-la, culminando um processo de afastamento, sempre em curso, sempre
inconcluso. Quando os navios negreiros trouxeram pedaços da África para dentro do Brasil,
embutiram-nos, sob a forma do trabalho escravo, na estrutura da sociedade. Aos negros
coube a senzala: integração subalterna. Nesse caso, as duas palavras são importantes e
revelam aspectos igualmente verdadeiros e contraditórios: não houve separação física nem
a cristalização legal da segregação, na atual Constituição. Pelo contrário. Mas a
subalternidade nunca foi colocada em xeque. A integração deu-se

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como subordinação de classe. Mas a cor da história permanece recalcada e retorna como
sintoma, no muro da Rocinha, símbolo do indizível.

Até hoje, o Brasil fala sem pudor das diferenças abissais entre as classes. São constantes as
denúncias relativas às desigualdades socioeconômicas, ainda que não se faça nada a
respeito. A mídia as acolhe sem maiores problemas. Mas ai de quem ousar mencionar a cor
da desigualdade. A cor é o não-dito, tanto quanto o gênero havia sido, durante séculos.
"Nós não somos como os Estados Unidos", dizem os que reagem às tentativas de colocar as
cartas da cor sobre a mesa. Denunciar o racismo é quase ser antibrasileiro, é quase
impatriótico. Há, sim, racismo, admitem, mas é diferente, completam, o que exige políticas
também diferentes, concluem. Dessa diferença (quem a negaria, ora bolas, se somos outro
país, com outra cultura, outra história? como não haveríamos de ser diferentes, ainda que o
argumento da diferença não valha em outros campos, como o econômico...?), dessa
diferença parecem dizer que se caracteriza pela docilidade, pela moderação. Ou seja,
teríamos uma espécie de racismo doce, cordial. Convenhamos, melhor escancarar os muros
e tirar o imbróglio do armário.

Se parte da sociedade sonha muros3 e os pratica, no cotidiano, há séculos, por que a outra
parte não deveria prevenir-se, imaginando-os à sua maneira
- por exemplo, rendendo-se ao ceticismo quanto à unidade interétnica, que constitui
exatamente a hipótese de Celso? Além disso, como é que se tira um tema do armário?
Como é que se faz emergir o umbigo plantado no fundo mais remoto do inconsciente
coletivo, protegido por fortalezas seculares e racionalizações consagradas? Aceitando a
eterna desconversa adocicada dos brancos? O muro negro cresce à sombra da muralha de
miséria, silêncio e espoliação, que humilhou a bisavó de Bill e o bisavô de Celso.

Por isso me pareceu boa a idéia de opor um muro ao outro: mostrando a Celso que a
linguagem do muro já tem dono, isto é, que a retórica separatista representa a lógica do
racismo contra o qual lutamos, talvez ele recuasse e preferisse abandonar o ceticismo. Já
tem dono este ceticismo quanto à possibilidade de que alcancemos, algum dia, brancos e
negros, a igualdade de uma integração verdadeira. O ceticismo de que falamos não é
conseqüência do fracasso da integração brasileira, mas seu pressuposto. Constitui o cerne
mesmo do racismo. Por isso, representa exatamente o pólo oposto ao pensamento de Celso.
É como eu vejo a coisa toda. Mas, afinal, eu sou branco, nunca, no Brasil, fui hostilizado
por minha cor. Talvez eu visse tudo com outras cores e por outros ângulos, se fosse afro-
descendente. Tenho de empinar, aqui, bem alto, a bandeira da humildade, deixando muito
claro quem

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sou e o lugar de onde sinto e penso. Acho que um verdadeiro diálogo deve começar assim:
cada um deixando transparente seu lugar, seu ponto de partida, para que as posições se
relativizem e os lugares possam vir a ser trocados, na dança das idéias e emoções. É
indispensável marcar as diferenças iniciais, não para as fixar e congelar, mas, ao contrário,
para que a seqüência da conversa possa modificar cada um de nós.

Uma idéia leva a outra, um muro a outro. Na Rocinha, o conteúdo das metáforas pode ser
mais bem entendido se eu contar uma história.


GUERRA NA ROCINHA

"Funeral e Escárnio ou a Comunicação Impossível." Este poderia ser o título de um ensaio
sobre o seqüestro da dor, crime perpetrado pelas instituições da ordem pública contra as
comunidades que moram nas favelas do Rio de Janeiro. Crime que atinge sentimentos e
valores. As primeiras não reconhecem o direito das segundas ao sofrimento. Esse direito é
vetado pela arrogância da polícia e da mídia, que expropriam a dor e a dissolvem no
espetáculo que protagonizam, devolvendo-a, nos noticiários, sob a forma de entretenimento
e desqualificação. Nada mais desumano do que a negação à sepultura, na medida em que
implica a condenação ao esquecimento - esta espécie de morte dentro da morte, que lhe
confere seu sentido mais devastador. Assim entendiam nossos ancestrais gregos, antes da
era cristã. Antígona enfrentou o poderoso Creonte para conquistar o direito de sepultar seu
irmão.

No Rio de Janeiro, em 2004, a comunidade da Rocinha teve de reeditar Antígona para
enterrar um de seus filhos. Não lhe foi recusado o direito de sepultar Lulu, líder do tráfico
local, mas a impediram de fazê-lo com o necessário respeito e a devida manifestação de
luto. A pequena multidão que compareceu ao cemitério São João Batista para a cerimônia
foi exposta a vexames e humilhações, exibida com irônico despudor pela mídia, vigiada e
filmada ostensivamente pela polícia, tratada como um agrupamento de suspeitos. A
imagem e o sentido transmitidos para a opinião pública omitiram o sofrimento e a morte,
como se o cadáver de um homem não testemunhasse a vida suprimida de um homem, mas a
reincidência criminosa dos que o choram.

A Rocinha chegou às manchetes às vésperas do carnaval de 2004, quando um grupo de
criminosos liderados por um foragido da Justiça, apelidado Dudu, lançou uma ofensiva
contra os traficantes que havia anos controlavam o comércio de drogas no morro, cuja
localização estratégica o torna importante objeto de cobiça, posto que lhe permite atender a
uma vasta e próspera demanda. Nesta ofensiva, inocentes foram barbaramente
assassinados. O pânico instalou-se na área e disseminou-se pela cidade. Na realidade, todo
o país sentiu-se inseguro, acompanhando as reportagens sobre a guerra na Rocinha. Depois
de assistir pela TV à cena tocante do menino aos prantos, impedido de voltar para casa, no
morro, com medo das balas traçantes que cruzavam o céu, quem voltaria ao jantar
indiferente? Quem ficaria insensível ao assassinato da senhora, na avenida Niemayer?

Mas pouca gente sabia o que estava acontecendo nos bastidores.

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As VOLTAS DA VIDA

Logo depois que assumi a Secretaria Nacional de Segurança, em 2003, recebi, por vias
transversas, uma mensagem de Luciano, da Rocinha. Ele desejava deixar a vida de
traficante e viajar para longe. Tinha chegado à conclusão de que seu caminho era a
perdição: morreria cedo, de modo cruel, em mãos inimigas. Sua riqueza... qual riqueza? O
que faria com o dinheiro acumulado debaixo da cama? Para quê, aquele dinheiro, se nem
descer o morro ele podia? Queria começar de novo e pedia uma chance. Tratara com
respeito a comunidade, que era, afinal de contas, sua família. A violência, ele a usara
apenas na medida necessária à proteção de seus negócios. Esse era seu ponto de vista, sem
dúvida demasiado edulcorado. Não obstante a possível auto-idealização, o fato é que
explicitá-la, naquele contexto, não deixava de ser significativo, indicando a valorização
positiva do lado certo da vida. Era um negociante clandestino, dizia, não um criminoso
selvagem: alguns traziam uísque do Paraguai; ele vendia outras drogas. Reivindicava uma
diferença importante, no mundo do crime carioca.

Eu mandei lhe dizer duas coisas: como secretário, tinha obrigação de cumprir a lei e
prendê-lo. Mas, como ser humano, via com alegria sua disposição de abandonar aquela vida
e começar de novo. Se dependesse de minha vontade estritamente pessoal e privada, eu
passaria a borracha no passado e o empurraria ao futuro, como o segundo parteiro de sua
biografia. Não foi por outro motivo que iniciei no Rio de Janeiro, em 1999, um movimento
pela anistia, uma anistia sob condições e que comprometesse os beneficiados com um
programa alternativo de vida - em nome do reconhecimento de que seria justo oferecer uma
segunda chance a quem jamais contara com o acesso aos direitos mais elementares. Na
verdade, a sociedade e o Estado estaríamos dando a nós próprios uma segunda chance,
porque todos falhamos. O crime, no Brasil, é a derrota de todos nós - um fracasso
compartilhado. Lulu sabia que eu pensava assim. Por isso, enviou-me a mensagem.

O dever do secretário falou mais alto. Ele recebeu o recado de que o dever institucional de
capturá-lo teria de subordinar meu desejo de vê-lo renascer das cinzas. Minha solidariedade
à instituição que eu representava tinha de se

* Envolvendo um parente de uma empregada doméstica de familiar meu. São curiosas e intrincadas as redes da comunicação social
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impor aos outros sentimentos e valores: assim é a democracia - e ela é preciosa até mesmo para que
se construam condições graças às quais, no futuro, outros jovens possam resistir às seduções do
crime.

A vida dá voltas.

Saí da Secretaria Nacional de Segurança Pública em outubro de 2003 e viajei ao Maranhão para
descansar e dar algumas palestras. Num dia cinza e morno, especialmente triste, alguns amigos me
levaram a um templo de orações e rituais afro-brasileiros. Um deles fora alertado pelos búzios, dias
antes de minha queda, de que algo muito ruim e pesado ocorreria a mim. Desde a divulgação do
presságio ele tentara falar comigo. Quando conseguiu, já era tarde. Eu já havia deixado a Secretaria
em condições traumáticas
- alguns policiais do PT redigiram um dossiê apócrifo com as acusações mais graves que se
poderiam dirigir a uma autoridade da segurança pública para difamá-la e desmoralizá-la, e o
deixaram vazar para a mídia, provocando um grande escândalo, me levando a demitir-me e a
defender-me sem saber exatamente, num primeiro momento, de quê ou de quem.

Mesmo assim, meu amigo saudou a coincidência de eu estar em sua cidade, sem que houvéssemos
combinado. Tantas conexões lhe infundiram a certeza de que havia algo estranho no ar. Essa
impressão eu já a sentia, independentemente de personagens míticos e especulações teológicas. A
traição cava um buraco no espírito e recende a enxofre. Daí ao convite para a visita mística foi um
passo, que eu mesmo não estaria disposto a recusar. Talvez não acreditasse em demônios
desencarnados, mas certamente passara a reconhecê-los encarnados. A problemática do mal
absoluto voltara a ocupar a reflexão e a agenda.

Ao saber que era 101 o número do quarto em que eu estava hospedado, calou-se do outro lado da
linha. Voz grave, embargada, diagnosticou: "É grave. No Tarô, 11 é o número das torres, que
significam derrocada, desastre, morte. Onze duplicado é mensagem infame. Não podemos perder
tempo. Você tem de vir comigo ainda hoje." Quem era eu para desafiar forças cósmicas.

A noite festiva no terreiro se anunciava no movimento febril daquela tarde: o farfalhar ansioso e
alegre das toalhas brancas, esvoaçando entre coadjuvantes que trombavam, aos saltos, antecipando
o rigor estético e luminoso dos ritos.

Recortado contra o fundo das sombras que já se alongavam no jardim, ostentando o cromatismo
luxuoso da primavera, destacou-se um vulto que se dirigia a mim: "O senhor sabe quem eu sou?"
Hesitei. "Luciano, da Rocinha. Consegui sair de lá. Estou aqui de passagem. Vim buscar uma
bênção.

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Vou embora hoje mesmo, para bem longe. Quero que o senhor saiba que respeito o senhor
e os policiais honestos. Vocês estão fazendo seu trabalho, que é o certo. Vou mudar de
vida. Não concordo é com o achaque, a mentira, a falsidade. Bandido fardado é o pior
bandido. Eu dava mil reais por dia para cada policial que fazia a ronda embaixo da
Rocinha. De vez em quando eles subiam para capturar umas armas e mostrar serviço. Era
tudo arranjado. A gente dava pra eles, eles mostravam para os repórteres e devolviam no
dia seguinte. Às vezes, eles ainda cobravam quando devolviam: vendiam pra nós nossas
armas, na frente da comunidade. Perderam a vergonha há muito tempo. Como é que
podiam querer respeito nosso ou da comunidade? Parece que não tem jeito, não é? Mas
agora eu quero ficar longe de tudo isso e começar outra vida. Desejo que o senhor seja feliz
em sua nova vida. Vou buscar outra oportunidade em paz."

Ele estava de partida. Ninguém saberia para onde. Eu sabia que ele não poderia voltar à
Rocinha, sob pena de perder a vida. No íntimo, me comovi com aquele encontro fortuito e
breve, improvável, impossível, surpreendente: duas trajetórias opostas que se cruzam,
gratuitamente. Ou haveria alguma mensagem esotérica naquela esquina do destino? Nos
olhos do rapaz havia uma luminosidade emocionada. Eu desejei que ele sobrevivesse a si
mesmo, resistisse à própria história e fosse feliz.

Quando mencionei o fato para o amigo que me conduzia, ele estancou lívido, mudo. Para
ele, se ainda houvesse uma última dúvida quanto à motivação mística da teia em que nos
envolvêramos, ela se dissipara. Os sinais são esperados e desejados. Mesmo assim, quando
saltam aos olhos, perturbam - é como se os fiéis precisassem de confirmações sucessivas,
ansiando por elas e as temendo. Tomou-me pelo braço e me conduziu à sua guia espiritual.

Em 2004, a saga da Rocinha terminou com a morte de Luciano. Informado sobre as
intenções de seu rival e temendo, por paradoxal que pareça, pela segurança da comunidade,
renunciou ao futuro e rendeu-se ao passado. Como teria sido fácil prever, o retorno
devolveu-o às armas e ao risco. Lulu tombou, diante de dezenas de testemunhas,
assassinado pela polícia que o alimentou e achacou por tantos anos. Localizado em seu
esconderijo, saiu com as mãos na cabeça, gritando: "Perdi, perdi." Identificado pelos
policiais que o cercavam, foi fuzilado pelas costas na frente da comunidade. Encerrava-se
um negócio cuja viabilidade se extinguira para a polícia. O acordo com policiais corruptos
é como o amor para Vinicius de Moraes: eterno enquanto dura. A covardia publicamente
ostentada foi o desfecho de

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uma longa e próspera parceria. Eliminar o sócio sem pudor é a virtude da banda podre, que assim
propaga sua superioridade.

Curiosamente, a grande imprensa não descreveu o triste fim de Lulu. Ninguém contou ao grande
público por que a comunidade da Rocinha chorou aquela morte. A opinião pública não entendeu
tanta dor e revolta. Nunca soube que policiais foram protagonistas do crime e do castigo, nem
ficaram sabendo da vileza da pena. Para a sociedade brasileira, aqueles episódios obscuros se
resumiam a mais um capítulo de nosso faroeste de opereta: mocinhos e bandidos, balas perdidas, a
ordem subindo o morro, fardada.

Cadáveres de rapazes empilhados eram o lixo a varrer para baixo do tapete da consciência nacional:
alguns traficantes a menos; vida que segue; eugenia avança.

Nota: os rapazes eram negros, pardos, pobres.

O próximo capítulo foi um corpo de homem descendo o morro num carrinho de mão, último ato da
obra edificadora do Estado na Rocinha. A mídia repudiou a cena, mas não lhe deu conteúdo, porque
censurou as informações que dariam sentido ao contexto.

Meu encontro com Lulu nos colocara frente a frente quando ambos estávamos dispostos a
abandonar os caminhos que seguíramos até ali. Eu, decepcionado com o nível de vileza a que a
política pode conduzir. Ele, abrindo picadas no labirinto da violência. Ambos terminamos cedendo
à força gravitacional de nossos respectivos passados. Ainda guardo a pergunta que arde no espírito:
Quem é o verdadeiro bandido dessa história? Qual é o ato criminoso mais vil? Vender produtos
proibidos ou montar a farsa hipócrita que encobre os crimes do Estado e estigmatiza toda uma
população? Vender drogas e armas sem farda ou com farda?

Há circunstâncias em que o Estado constrói um cinturão sanitário em torno de grupos sociais
temidos como fontes de perigo pelas camadas superiores das cidades. O propósito é esterilizar a
fonte e apagar do mapa essas comunidades: explorar sua força de trabalho e, ao mesmo tempo,
condenálas à invisibilidade. Nesses casos, a polícia costuma ser usada para fazer o trabalho sujo.
Ela se torna o princípio ativo do muro.

Aconteceu na Rocinha. As calamidades têm seus profetas, e o medo, porta-vozes. No calor da hora,
um ex-prefeito carioca propôs um muro ao redor da Rocinha. Vocalizou a fantasia mais perversa, a
um só tempo óbvia e recalcada, do imaginário coletivo. Inaugurou a linguagem pública dos muros,
liberando os fantasmas da apartação que a cidade cultivava em segredo, envergonhada. Daqui em
diante, os espectros da separação vão nos assombrar à luz do dia.

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O muro materializa uma figura de retórica, uma forma de pensar e um modo de agir. com a palavra,
um economista que prefere manter-se anônimo: "Enquanto os favelados estiverem se matando, não
tenho nada com isso. Eles que se fodam. Meu temor é que uma política de segurança cuide das
favelas, o que os faria descer para assaltar e matar nossos filhos, no asfalto."

Entre "eles" e "nós", o muro: medo, estigma, invisibilidade. E a brutalidade policial.


UM NOME PARA SEMPRE: A PENA PERPÉTUA

Quinta-feira, 23 de setembro de 2004, final da manhã. Toca o telefone. O repórter me dá a notícia
de supetão: "Escadinha foi assassinado", como se dissesse: chove na Gávea. "Eu queria saber", ele
continuou, "se o senhor acha que a morte do bandido encerra um ciclo, na história da criminalidade
no Rio de Janeiro." Depois do soco na boca do estômago, veio a porrada na testa. Fiquei zonzo.
Vinha trabalhando com a entrevista que José Carlos dera a Miriam Guindani para este livro. Sua
voz ainda soava íntima, relatando com amargura e arrependimento os erros passados, antecipando
com esperança a liberdade que se avizinhava. Era pródigo em conselhos para os jovens tentados a
cair no crime e se revoltava com a violência desgovernada, para a qual ele contribuíra. Daí a
intensidade de seu remorso. Recorria ao próprio exemplo para orientar a juventude, em especial
aqueles segmentos mais vulneráveis à sedução do tráfico. Foi chocante ouvir a notícia de sua morte.
Uma vida colhida no ar, alçando vôo.

Respondi ao repórter: "Você quer dizer que uma pessoa morreu, um ser humano foi assassinado.
Ele tem nome e sobrenome, José Carlos Encina. Não é só um rótulo e um apelido. Você chama a
vítima de bandido, mesmo sabendo que ele tinha pago sua dívida com a sociedade? Foram mais de
vinte anos. Faltavam poucos meses para a liberdade. Mas nada disso importa: uma vez bandido,
sempre bandido. Ele será eternamente bandido, independentemente de sua situação legal." Ainda
tive vontade de dizer: "No Brasil, a Justiça não reconhece penas perpétuas." Mas desisti. Lições
telefônicas não mudam ninguém.

Eu imaginava a dor da família ouvindo essa barbaridade: "a morte do bandido".

À tarde, um policial especulava com desenvoltura na TV, exibindo seus dotes de investigador. A
retórica dos brancos abotoava o paletó e ajustava o nó da gravata. Ante a admiração da
entrevistadora, o inspetor refletia sobre a possibilidade de que o assassinato fosse a evidência do
envolvimento de José Carlos com o mundo do crime. Uma vez bandido... A vítima fulminada com
tiros de fuzil no rosto era referida com a sem-cerimônia das qualificações degradantes. A
desfiguração prosseguia. O clima da entrevista se aboletava na ante-sala da chacota. Nenhum
vestígio da solenidade que a morte exige. Nenhum sinal da compostura que um cadáver impõe. A
insensibilidade

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oficial aprontava mais uma das suas: ali estava o embrulho, no açougue midiático. A vítima
empacotada como cúmplice de seu sacrifício. E despachada para a primeira gaveta do
esquecimento nacional.

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VESTÍGIOS DE UM HOMEM: A ÚLTIMA CONVERSA com
ESCADINHA

Tinha sido um processo demorado: contatos, consultas, sondagens. Miriam Guindam fizera
uma rápida entrevista com Escadinha, em março de 2003, registrara seu entusiasmo com a
liberdade depois de tantos anos, seu repúdio ao crime, sua mensagem para os jovens, sua
vontade de ajudar, seu ceticismo. Aquele encontro provocara em Miriam e em mim o
desejo de escrever a biografia de José Carlos. Em julho de 2004, falei com ele ao telefone e
obtive sua aprovação: "Muitos já me pediram para fazer esse livro, mas com o senhor e
Miriam eu topo. Vamos fazer sim. É só marcar." Ficamos envaidecidos com a confiança e
começamos a planejar. Seria preciso abrir espaço de alguns meses nas respectivas agendas.
Não queria começar e interromper. A trajetória de alguém que mergulha tão fundo na
criminalidade e emerge do outro lado do túnel, ainda a tempo de recomeçar - relatar este
destino seria o nosso projeto para 2005. A morte brutal surpreendeu a biografia e sua
escritura. Em lugar do projeto maior e em homenagem à sua vontade de ajudar os jovens
que se iludem e sonham em repetir sua história, reunimos alguns trechos breves da primeira
entrevista:

"Eu acho que estou servindo de exemplo. Graças a Deus, hoje eu consegui dar a volta por
cima, aqui no trabalho.

"Tem um cara da IstoÉ, me liga toda hora. Ele diz: Eu quero uma entrevista com o
Escadinha, eu não acredito! Não acredito, é mentira, ele não pode estar trabalhando. Eu fico
só rindo. As pessoas que não estão perto de mim não acreditam que eu estou trabalhando.
Eu acho que eles são bobos, porque se tivessem passado o que eu passei, não teriam dúvida.
Eu perdi quase a minha vida dentro da cadeia. Estou indo pra vinte anos de cadeia.

"Se eu puder passar também uma mensagem positiva pra essa juventude... Eu fico
apavorado. Da minha época pra hoje mudou radicalmente. Acho que não tem jeito. Acho
que não dá jeito. Devido à pouca-vergonha dos governos, eles perderam o controle. Não
existe mais respeito, porque o cara que está começando agora vê, na televisão, no jornal, a
patifaria que eles vêm fazendo... Se fulano e beltrano estão roubando, eu vou roubar
também, vou traficar, vou fazer e acontecer.

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"Na minha época não tinha confronto com polícia. Agora, eles descem pra dar tiro na
polícia. Não existia isso. A vida não vale mais nada. Nos anos passados, pra tirar uma
vida... Vamos respeitar, uma vida é uma vida e deve ser vivida.

"O pessoal do tráfico não pensa, não raciocina. Esses dias eu saí, cheguei na rua, fiquei
abismado: que é isso? Tudo fechado. Mandaram fechar tudo no Rio de Janeiro. Que loucura
é essa? E o governo não faz nada. Está com a mão atada. No meu modo de ver, tá pior.
Acho que não tem jeito.

"Tem que ter uma atitude radical, pra depois entrar pró social. Se for entrar só pró social,
não adianta. Que social? Não se tem mais domínio. Que social é esse? Isso é conversa.

"Tudo que eu fiz errado me marcou muito. A memória registra tudo. Dói aqui dentro: como
eu pude fazer isso? Como eu pude fazer aquilo? Como eu participei disso aqui? Cada
detalhe tá na cabeça. Tudo, tudo. Não passa nada em branco.

"Eu tenho que agradecer a Deus a humildade que Deus me deu. Isso é muito importante, a
minha humildade. Se tiver que passar uma vassoura aqui, eu passo; se tiver que limpar uma
mesa; se tiver que lavar o banheiro, eu vou lavar. Pra mim não tem essa. Eu quero chegar
ao meu objetivo, que é viver tranqüilo. Como eu estou vivendo agora, apesar das
dificuldades.

"Todo dia eu peço a Deus, quando acordo, pra me dar direção nessa vida, pra eu não
fraquejar em momento nenhum na minha vida.

"O mundo tá precisando de muito amor, muita alegria, muita paz. Se cada um fizer sua
parte, melhora um pouquinho. A gente só cobra, né? Tem que fazer!

"Pretendo fazer meu livro. E depois um filme. No próprio CD, nessa música Fuga, eu tô
mandando meu recado pra sociedade, que eu não tenho dublê, é a minha vida. Vai sair, se
Deus quiser. Eu abro passando uma mensagem pra moçada...

"Quando eu estava em Bangu e não tinha nada pra fazer, eu escrevia muito, principalmente
pro governo. Sempre que o governador aparecia, eu escrevia pra ele, reclamava dele, do
tanto que ficavam me usando pra incentivar o crime no Rio de Janeiro. Eles tinham que me
usar pra passar uma mensagem positiva pra essa juventude largada desse país. Tanta
hipocrisia na televisão, pessoas falando de droga, de bebida, falando de crime... gente que
não sabe de nada, não passou por nada. Por que não investem em mim? Por que não me
levam pra televisão, pra eu falar do crime, da maconha, da cocaína? Por quê?

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"Eu me sinto feliz de poder recuperar um, porque menos um vai praticar o mal na
sociedade. Aqui fora também faço isso. Quando os caras pegam alguém roubando no Bon
Marche, levam a pessoa lá pra cima e me chamam. Eu chego e começo a conversar: Pô,
vocês de bobeira, novinhos. Sabem quem sou eu? Eu sou fulano de tal. Vão pegar uma
mina, um teatro, cinema, curtir um baile. Tenho conseguido ajudar muita gente, arrumando
um emprego, dando uma oportunidade aos meninos. Se a pessoa decepciona, apronta, eu
fico triste. Fazer o quê? De dez, se eu tirar um do crime, tô no lucro. Se a gente conseguir
recuperar um, a gente tem que bater palma. O trabalho está surtindo efeito."

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CONSPIRAÇÃO CONTRA A MUDANÇA

É difícil mudar. Muito difícil. Doloroso e angustiante. Primeiro, porque a ousadia de
mudar-se a si mesmo envolve cortejar a morte. Na mudança, uma parte de nós perece; um
modo de sermos nós mesmos entra em colapso. Segundo, porque enfrentamos a resistência
organizada das instituições e a oposição ferrenha de todo mundo que nos cerca. Unem-se
numa brigada contra a mudança aqueles que, de uma forma ou de outra, nos conhecem, dão
testemunho de nossa biografia e zelam pela imutabilidade.

Engana-se quem imagina que contará com o apoio alheio ao projeto de transformar-se,
mesmo que a mudança seja um imperativo social e um desejo coletivo. Equivoca-se o
sonhador ingênuo que espera estímulo à mudança por parte das instituições supostamente
destinadas a promovê-la, por paradoxal que pareça. Este é o fato: há uma conspiração pela
fixação de identidades e pelo congelamento de suas respectivas qualificações,
especialmente se tais qualificações forem estigmatizantes. Mas a pior notícia é a seguinte:
nós tomamos parte da conspiração; participamos e contribuímos para a blindagem
ontológica que coagula a história e engessa processos biográficos.

A clínica da drogadição é rica em casos surpreendentes, para os quais a abordagem
sistêmica oferece explicações plausíveis: ocorre com muito maior freqüência do que se
poderia imaginar que, por exemplo, a esposa, depois de lutar com todas as suas forças
contra o alcoolismo do marido, durante anos, se desestruture quando finalmente obtém a
cura desejada. Nesses casos surpreendentes, quando seu marido se recupera, abandona o
álcool, retoma sua vida, volta ao trabalho, reencontra uma rotina funcional, a esposa entra
em crise, se divorcia, torna-se alcoólatra ou busca o suicídio. compreende-se: afinal, um
sistema de interações se organizara, alcançara equilíbrio e velocidade de cruzeiro,
conquistara autonomia e se enrijecera, reafirmando valores, distribuindo qualidades,
responsabilidades, méritos e culpas. Enquanto seu marido estivera doente, recolhido à casa
ou a clínicas para tratamento, a mulher tornara-se, diante dos filhos, da comunidade e de si
mesma, líder da unidade doméstica, chefe da família, portadora de autoridade e
responsabilidades especiais, todas cercadas de sinais positivos. Esta valorização de seu
papel compensava o sacrifício e a sobrecarga de trabalho. Tudo isso rui com o retorno à
vida útil e saudável de seu marido - retorno que, paradoxalmente, ela tanto almejara. A
ruína do arranjo social e psicológico,

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moral e simbólico, micropolítico e cultural, proporcionado pela patologia do marido,
reenvia a mulher a uma posição anterior (qualquer que ela tenha sido), posição com a qual
ela não mais se identifica e à qual ela passa a ter grandes dificuldades de adaptação. O novo
sistema, armado pela e para a doença, não pode suportar a cura e não está preparado para
conviver, admitir, acolher e valorizar a saúde.

É por isso que os psicanalistas esperam crises nas relações de seus novos pacientes com a
família e com o círculo de relações íntimas, porque a mera possibilidade de mudança (real
ou imaginária) de um dos membros da rede social a coloca em xeque, na medida em que
pode vir a significar risco de subversão das condições que a tornam possível, tal como ela
existe e se reproduz (com seu equilíbrio e seu desequilíbrio, sua estabilidade e sua
instabilidade). Mesmo que a eventual mudança reduza aspectos negativos das relações e
fortaleça características positivas, há sempre, em jogo, o risco de perdas. Ou seja, todos os
envolvidos numa teia de relações na qual se inocule o DNA da mudança sentem-se, direta
ou indiretamente, atingidos, provocados, mobilizados. Há temor de que os lados sombrios
de cada um sejam tocados, acionados, desnudados; há expectativa de que se desencadeie
um processo fora de controle que ameace certezas e segurança individuais. Em uma
palavra: as pessoas não temem apenas transformações para pior. Temem transformações,
ponto.

Observa-se dinâmica análoga nas escolas. A criança sobre a qual pesa um estigma - quando
dela se diz que "Está sempre atrasada", "É difícil", "Tem dificuldades de aprendizagem" ou
"Apresenta comportamento reiteradamente impróprio" -, terá grandes dificuldades para
fazer com que sua eventual mudança de atitude e rendimento seja percebida, reconhecida,
valorizada e difundida. Como o sociólogo norte-americano Erwin Goffman nos ensinou, ela
tenderá a ser reenviada a sua antiga posição, de novo e de novo, numa espécie de gravitação
perversa, socialmente construída e inconsciente aos oficiantes deste "ritual" macabro. Uma
vez proclamada a condenação "Fulano é assim" -, será complicado alterar as expectativas,
pois estas têm vôo próprio e, costumeiramente, prescindem da confirmação da realidade.
Por exemplo: se a criança costuma chegar atrasada e é por isso rotulada como "atrasada",
quando reverte expectativas e chega cedo, de seu comportamento diz-se: "Nossa, o que
aconteceu? O mundo está virando de pernas para o ar... Fulano foi pontual... que milagre
foi esse? Alguma coisa estranha deve estar acontecendo..." Pronto, desfez-se a mudança e
confirmou-se a qualificação anteriormente produzida e chancelada pela comunidade.

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A criança buscava o silêncio discreto que a acolheria e valorizaria como apenas mais um
estudante, entre tantos - livre, portanto, do destaque provocado pelas luzes da acusação, da
cobrança ou da crítica. Em vez disso, colhe novo destaque, ainda mais severo, que acentua
o suposto fato de que ele ou ela é uma pessoa essencialmente atrasada, como se esta fosse
sua inexorável natureza. Natureza que emerge, inapelavelmente, graças aos observadores
que a redescobrem, mesmo sob o disfarce do seu oposto. Não chegar atrasado passa a ser
mera manifestação de uma essência, ora imediatamente visível, ora evidente por sua
inversão, isto é, presente pelo avesso.

Há, portanto, um conluio da coletividade, uma espécie de surda conspiração contra a
mudança, ainda que esta seja desejada pelas instituições e pela comunidade diretamente
envolvidas no processo. Também aqui funciona um sistema: quando alguém é mau, outros
são bons; se um é louco, outros são saudáveis; se alguém tem problemas, outros não têm.
Além disso, quando uma criança apresenta deficiências - e com ela, por extensão, sua
família -, muitas outras famílias são redimidas de culpas e pecados, e podem celebrar seu
sucesso, assim como todo um conjunto de profissionais - e suas funções se valorizam. Só
haverá vitoriosos se houver perdedores. Se ninguém ocupar esta última posição, será
preciso atribuí-la a alguém, mesmo que ao preço da artificialidade e da crueldade. A
conseqüência mais grave é a crença que se instala no espírito da própria criança acusada de
que ela é, efetiva e essencialmente, assim... Daí em diante, a tendência será a confirmação
do prognóstico. A profecia tenderá a se autocumprir.

Não é diferente a lógica que preside a problemática da reincidência criminal. E com mais
razão. Afinal, tratar-se-á de acusação convertida em condenação, com as implicações
conhecidas. Nesse caso, a conspiração pela reincidência mobilizará empregadores
potenciais, familiares, vizinhos, amigos, instituições e antigos parceiros. E tudo assumirá
contornos mais dramáticos com as conseqüências práticas da marginalização, como o
desemprego e a severa restrição das alternativas para a vida e a autoconstrução subjetiva.

Passo a relatar o caso que me conduz à conclusão que acabo de enunciar.

João Moreira Salles é um dos principais documentaristas brasileiros e também membro de
uma família tradicional, cuja participação na vida pública inclui contribuições relevantes
nas áreas política, econômica e cultural. Seu perfil é discreto e fortemente engajado com
causas sociais, ainda que tenha procurado manter-se distante de militância partidária. No
círculo dos que o conhecem pessoalmente, goza de raro prestígio e se beneficia do
reconhecimento de seu irretocável rigor, quando se trata de respeito

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peito à ética. Ou seja, os brasileiros orgulhamo-nos do João Salles, como profissional e ser
humano.

Digo isso para que se compreenda a dimensão do patrimônio moral que estava em jogo,
quando, em 1999, um grupo de policiais tentou grampear seus telefones no intuito de
chantageá-lo: ou João lhes pagaria soma vultosa ou seriam divulgados à imprensa seus
diálogos com Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP, conhecido traficante de drogas,
desaparecido do Rio de Janeiro, onde costumava liderar uma falange criminosa que
dominava determinada favela da Zona Sul carioca.

Nos últimos meses de 1999, João Salles foi informado de que policiais corruptos estariam
agindo clandestinamente, aproveitando-se de uma situação que o deixara vulnerável a ações
mal-intencionadas, mesmo que, em parte, amparadas pela legislação. Tratava-se do
seguinte: João realizara um documentário, intitulado Notícias de uma Guerra Particular -
aliás, de extraordinária qualidade (político-moral, etnográfica e estética) -, sobre o círculo
vicioso da violência nas favelas do Rio de Janeiro, nas quais policiais e traficantes,
fortemente armados, se enfrentavam e morriam, diariamente, sem que qualquer resultado
positivo derivasse desse confronto trágico. O protagonista do documentário era Marcinho.
As filmagens aproximaram o diretor e seu personagem, cuja biografia fascina qualquer
observador sensível.

Márcio não cabia em estereótipos. Criminoso e violento, sim, mas capaz de gestos
generosos, de idéias virtuosas, de compromissos morais elevados, de grandeza e renúncia.
O protagonista do documentário era profundamente preocupado com as condições sociais e
políticas que condenavam tantos jovens a reproduzir seu destino autodestrutivo. Márcio
sonhava outro Brasil menos desigual e hipócrita, mais justo e verdadeiramente
democrático. Note-se, contudo, que esse personagem ambivalente, complexo e rico,
irredutível a estigmas, passível de graves acusações e de genuína valorização, cresce e se
afirma em um ambiente histórico e cultural refratário a Robin Hoods. Há décadas a trama
da violência criminal no Rio de Janeiro deixou de produzir a figura idealizada do bom
ladrão, que rouba dos ricos e dá aos pobres, e que só é violento com os "exploradores". Este
tipo social desapareceu com o agravamento da brutalidade e o aprofundamento da crise
econômica, no Brasil.

Do mesmo modo, a ruína das utopias revolucionárias apagou do mapa a legitimidade do
próprio processo cultural de idealização do criminoso. Há décadas, no Rio de Janeiro, os
traficantes armados tornaram-se déspotas cruéis, que tiranizam as próprias comunidades
pobres. Glamourizar o criminoso

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converteu-se em gesto simbólico politicamente incorreto e cúmplice da barbárie. Os
traficantes não têm qualquer compromisso social ou político. Já houve, nos anos 60, um ou
outro namoro entre atores sociais que se punham à margem das leis e as esquerdas. Mas o
divórcio já está inteiramente consolidado. Por isso mesmo, o discurso, a postura, as ações, a
biografia de Marcinho são singulares e se destacam, pela diferença que expressam.

A complexidade de sua figura lança desafios perturbadores para a consciência moral e
política dos observadores atentos.4 Márcio escapa ao lugar de "outro" especular e
expiatório para a sociedade "virtuosa" e "legal". Marcinho recusa, performaticamente,
estigmas, rótulos, simplificações maniqueístas e o papel do "outro" expiatório.
Dramaticamente, ele problematiza nossas identidades e crenças, e aciona a reflexividade
social, no sentido crítico e inquietador. Diante de sua carreira criminal, desaba qualquer
idealização unilateral; mas também desabam as classificações grosseiras que o diabolizam,
em face de suas reiteradas transgressões à gramática selvagem e arbitrária do crime, em
face de sua disponibilidade para o diálogo, a crítica, o pensamento, o engajamento solidário
e a autocrítica. O personagem que Márcio representa assombra a boa consciência auto-
idealizadora da sociedade sobretudo porque insinua, em seu modo de ser e de não-ser (o
que dele se espera), a possibilidade da mudança. Possibilidade que, uma vez posta, abre
duas perspectivas ameaçadoras: se é viável mudar para um lado, tampouco se poderia
descartar a mudança em sentido inverso. Em outras palavras: Márcio situa-se
perigosamente perto de nós; pior ainda: ao deslocar-se e problematizar a geografia moral, o
personagem que Márcio representa redesenha fronteiras cue nos tornam próximos do "outro
lado", do "outro mundo". Quer dizer, os espectros que trazemos em nós, nossos potenciais
negativos (ou aqueles que assim definimos), podem atualizar-se, na mesma medida em que
é facultado o trânsito do "outro" diabólico em nossa direção. A temporada de migrações e
metamorfoses está aberta pela mera enunciação de que Márcio está autorizado a ser
"outro", isto é, a mudar. Tememos mais transformamo-nos no "outro", ao qual atribuímos a
malignidade, a monstruosidade, do que a alteração alheia. Esta só é perturbadora porque
ilumina o "outro" em nós. Apenas a contingência nos separa do "outro", não a essência. A
divisão moral não tem fundamento sólido ou substantivo; é construída e reconstruída, na
prática diária da vida e dos gestos fortuitos. Perdemos, assim, garantias. Emerge, vigorosa,
a incerteza. Márcio nos coloca em xeque.

João Salles reconheceu o talento, o valor e o potencial de Márcio, sem iludir-se, entretanto,
isto é, sem idealizar o personagem, cujos crimes conhecia o

104


e, explicitamente, condenava. Nenhuma ingenuidade havia na postura de João, sensível,
desde o início, à complexidade do personagem e à multidimensionalidade de sua biografia.
Dialogando francamente com Márcio, criticou suas opções existenciais e o simplismo de
sua visão de mundo - louvável, porém, pela curiosidade intelectual que revelava e pelas
preocupações sociais que contemplava. Ambos concordaram quanto ao fato de que, com
aquelas inquietações, Marcinho teria tido todas as condições de tornar-se um líder da
juventude, caso tivesse tido acesso à escola, à leitura, ao convívio com grupos sociais que
valorizassem suas interrogações e sua angústia política. Márcio pediu livros a João, que lhe
deu o que havia de melhor: os clássicos da literatura brasileira e do pensamento social
brasileiro, mas também autores estrangeiros. Marcinho encantou-se e, finalmente, aceitou a
antiga proposta que João lhe fizera: se deixasse a vida do crime, João lhe daria uma bolsa
que lhe permitiria sobreviver. O sonho de Márcio era escrever uma autobiografia. João
dispunha-se a comprar-lhe os direitos editoriais, antecipando-os. A bolsa corresponderia a
esta antecipação. Tudo estritamente conforme à legislação brasileira, segundo a qual é
perfeitamente lícito contratar serviços legais de qualquer cidadão, independentemente das
relações deste com a Justiça - observe-se que Márcio já havia sido preso duas vezes,
baleado pela polícia, e fugira duas vezes. Havia, portanto, um mandado de prisão expedido
contra ele. Tratava-se de um foragido da lei. Ainda assim, o acordo entre ele e João, repito,
era lícito. Márcio aceitou a proposta de João e abandonou o tráfico. Fugiu do país para
escrever sobre sua vida e, por assim dizer, recomeçá-la.

Por isso, falavam-se ao telefone. Afinal, seu diálogo jamais cessou. E havia agora a bolsa a
remeter e relatos a compartilhar sobre o "renascimento".

A polícia, legitimamente dedicada à captura de Márcio, interceptou seus contatos com João.
Lícita e justificadamente, a polícia desconfiou de João. Até aí, todos agiam em direções
conflitantes, mas lícita e legitimamente o faziam. Ocorre que segmentos corruptos da
polícia resolveram aproveitarse do possível ilícito de João com finalidades escusas - ou
pelo menos era disso que João fora informado quando me procurou, em dezembro de 1999.

Eu era, então, coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do estado do Rio de Janeiro.
João narrou os fatos e compartilhou o temor de que eventual escuta telefônica estivesse
sendo empreendida com intenções criminosas. Eu concordei com sua posição - disse-lhe
que faria o mesmo, em seu lugar -, comprometi-me a tentar impedir a eventual chantagem,
mas também lhe disse que teria de continuar envidando esforços para cumprir o

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mandado de prisão contra Marcinho, expedido pela Justiça, dever que me impunha o cargo que eu
ocupava. Desse modo, todos agiríamos em conformidade com a lei. Além disso, dispus-me a
defendê-lo, publicamente, contra qualquer insinuação de que sua atitude fosse imoral ou ilegal. João
acreditava no potencial de mudança e apostava no melhor dos mundos possíveis. Sua atitude me
parecia absolutamente correta, do ponto de vista ético. Sugeri a ele que se antecipasse e relatasse
publicamente, num artigo ou numa entrevista, o que estava acontecendo. Desse modo, qualquer
risco de chantagem seria afastado, ainda que houvesse o risco de que sua posição não fosse
compreendida e aceita pela opinião pública. De toda forma, esse risco seria menos grave do que
uma eventual chantagem.

O que se seguiu mereceria análises mais extensas e detalhadas. João deixou-se entrevistar por um
dos principais jornais do país, O Globo. A matéria ganhou a manchete da edição de domingo do
jornal e, a despeito do tom humanizador que o entrevistado imprimiu às respostas e da
complexidade do conteúdo, a foto enorme e estilizada que acompanhava a matéria focalizava um
homem com o rosto coberto, armado com um fuzil, em pose guerreira e ameaçadora. Em uma
palavra, a foto simplificava e renovava o estigma mais grosseiro, na contramão do sentido
emprestado às respostas.

No dia seguinte e por semanas sucessivas, jornais e revistas repercutiram a matéria, com manchetes
escandalosas. Políticos, atraídos pela visibilidade alcançada pelo tema, aproveitaram para destilar
sua retórica demagógica, ela própria parte do circuito da violência, clamando por mais "dureza" no
combate ao crime. Houve ponderações favoráveis, certamente, mas o viés predominante era a
denúncia da cumplicidade entre "o intelectual rico e ingênuo", e "o bandido pobre e selvagem". O
governador do estado tentou prender João e eu acabei sendo demitido - não só por essa razão, bem
entendido...

Um dos principais jornalistas do país, Caco Barcellos, escreveu um livro sobre a vida de Márcio - a
capa reproduzia o guerreiro armado e ameaçador.5 Durante anos, o tema esteve presente no
imaginário coletivo e no noticiário. A tendência dominante era aquela que lembrava aos leitores,
com persistência, que Márcio era a violência personalizada, mesmo que houvesse indícios de uma
vontade de mudança, de um movimento rumo à reinvenção de si e mesmo que o personagem não
coubesse nas classificações simplistas. A sociedade era lembrada e, reiteradamente, reenviada à
imagem ameaçadora e selvagem.

Mas não era só a mídia que aprisionava Márcio em sua identidade criminosa, resistindo a qualquer
sinal diferente ou diferenciador (e problematizador).

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Os criminosos também o faziam. Pior: o próprio Márcio parecia condenar-se ao eterno retorno à
identidade criminosa, reenviando-se ao mesmo lugar simbólico, geográfico e social. Ele foi preso
poucos meses mais tarde, caído em uma cabana abandonada, esfarrapado, famélico, inerte, numa
favela carioca, como se tivesse desistido de fugir da polícia, da lei e de si mesmo - sendo este si-
mesmo uma versão de si amarrada ao passado e aos estigmas: a profecia, mais uma vez, se
autocumpria. Ele voltara ao Brasil e renunciara aos projetos de recomeço, sem buscar readaptar-se
às velhas redes de relações, sem tentar reinserir-se no tráfico e no mundo do crime. Uma
capitulação que não era reincidência, mas que traduzia a reincidência do estigma enquanto
fenômeno introjetado.

Preso, Márcio decidiu voltar às leituras. João lhe fornecia livros. Mostrou-se aplicado nos estudos,
comentando cada texto com argúcia e entusiasmo: Machado de Assis, Lima Barreto, Sérgio
Buarque de Holanda e vários outros. Por ocasião do lançamento do livro sobre sua vida, revelou a
parentes e amigos os riscos que pressentia. Ele ja não fazia parte do mundo ao qual era remetido
pelo confinamento e pelos ardis simbólicos, dos quais era vítima e cúmplice. Temia ser assassinado
não propriamente porque o livro divulgasse inconfidências que envolvessem terceiros, mas pelo
simples fato de ser objeto de um livro, destacando-se, diferenciando-se, ultrapassando fronteiras
simbólicas que o mundo cerrado da comunidade encarcerada erguia. Essas fronteiras invisíveis
eram erguidas justamente para opor-se à diferenciação individualizante - sobretudo quando ela
sugerisse possibilidades de mudança e de superação do universo valorativo compartilhado pela
sociedade dos apenados. Uma coisa é converter-se à Bíblia, que é parte do código cultural dos
apenados, outra coisa é furar a parede cultural com livros, que são armas poderosas e perigosas
porque absolutamente inclassificáveis.

Pouco depois, em 2003, Márcio foi encontrado morto numa caçamba de lixo da penitenciária em
que cumpria pena. Seus livros estavam jogados sobre ele, coroados por um cartaz: "Nunca mais vai
ler".

Márcio estava proibido de mudar por uma conspiração inconsciente e tácita, que reunia os parceiros
mais desiguais e insólitos. Companheiros de prisão não permitiram que ele transgredisse a única lei
inviolável: não serás outro (para que eu permaneça o que sou).

Em seu funeral, havia uma corbeille de flores com as palavras: "Saudades de seu amigo Luiz
Eduardo Soares." Não sendo amigo de Márcio, eu não homenagearia sua memória com flores. As
flores foram secretamente enviadas por policiais que nunca perdoaram minha posição. Sua intenção
era criar uma

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situação comprometedora, que geraria constrangimento qualquer que fosse minha reação. À
época, eu era secretário nacional de Segurança.

Todos os que aceitam o risco da mudança devem pagar por sua ousadia. Os que adotam
postura benigna, lamentam nossa ingenuidade e apontam para o destino de Márcio como a
demonstração derradeira e inexorável de que um criminoso é um criminoso, é um
criminoso: a mídia remetia Márcio ao passado congelado, do qual ele mesmo hesitava em
desligar-se; a opinião pública o reenviava ao estigma; a prisão e a pena remetiam Márcio à
identidade da qual ele buscava afastar-se, para se reconstruir; seus companheiros de
infortúnio impediram-no de ler. De fato, ler custou-lhe a vida, talvez porque livros
simbolizem e realizem, neste universo infernal de reificações estendidas, a mudança
insuportável.

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ÓDIO

O jornalista Flávio Pinheiro me procurou muito preocupado. Eu era coordenador de
Segurança, Justiça e Cidadania do estado do Rio de Janeiro. Volta e meia conversávamos
sobre violência e a política de segurança. Nesse dia, Flávio parecia abatido. Ele conversara
com Marcelo Yucca, o músico, então baterista do Rappa. Claro, eu sabia quem era Yucca,
conhecia o Rappa, minhas filhas não permitiriam que minha ignorância sobre cultura jovem
chegasse a esse ponto. Mas naquela época ainda não havia estado com Marcelo
pessoalmente, ainda não éramos amigos, nem ele tinha passado pela tragédia que marcaria
seu corpo e sua vida com vários tiros, numa esquina da Tijuca. O martírio de Marcelo
esperaria o ano 2000. Eu não poderia imaginar o sofrimento que o destino preparava para
Yucca, nem estava a meu alcance conceber que essa notícia - Yucca, entre a vida e a morte
-, eu a receberia longe do Brasil, distante do futuro que faria sentido para mim naquela
noite no Flamengo, jantando com Flávio.

O que fazia sentido para nós três, já naquele tempo, dezembro de 1999, era a pergunta
sobre a violência: o que fazer com ela? Como compreendê-la e domesticá-la? Como evitar
a espiral que a realimentava, com o combustível do medo e do ódio. Pois este era mais
exatamente o tema que Flávio servia, antes do jantar: o ódio. Este era o novo ingrediente.

Flávio impressionara-se com a observação que Yucca lhe fizera, em conversa recente: "Os
garotos do movimento estão cheios de ódio, numa intensidade que eu não conhecia. Há
algo diferente no ar." Havia mesmo algo diferente no ar, na cidade, no país, nas favelas e
periferias. Alguma coisa fora de ordem, como talvez cantasse Caetano: fora da nova ordem
mundial (ou, pelo contrário, alguma coisa perfeitamente essencial à nova ordem, regida
pelo círculo vicioso das retaliações recíprocas entre o imperialismo belicista e o
terrorismo). Algo diferente na cabeça da juventude e muito particularmente na cabeça
daquele grupo de rapazes e meninos em armas, nos morros do Rio. Ódio sempre existiu.
Ódio está aqui, ali, onde houver vida humana. Violência também está em todo lugar. Crime
é parte da rotina da cidade, de toda cidade. Não se trata disso, dizia Flávio, dissera Yucca
ao Flávio, é diferente. O que está acontecendo é diferente. No Rio, há muito crime violento
há décadas. Isso se sabe. O novo, o que é perturbadoramente novo é o ódio, o volume e a
qualidade do ódio que corre nas veias dos garotos.

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Veio o jantar. Mas o prato do dia era indigesto, intragável. Tirou o apetite e o sono. Quem
mais vai dormir com um barulho desses? Primeiro eram as sirenes da polícia e a pancada
seca das balas, as notícias dramáticas e as histórias de terror. Agora, a novidade: espalha-se
a peste ao sopro do ódio cego, numa escala desconhecida, um ódio cheio de si, autônomo,
inclemente, um ódio torrencial, cada vez mais independente dos fenômenos que um dia o
suscitaram, uma bolha de sangue envenenado, pulsando, fervendo, inchando sobre nossas
cabeças, dentro das cabeças. Uma espécie de ensaio geral para a noite de gala, a Noite com
N maiúsculo - N de nunca, nada, ninguém.

Na história recente do Brasil, praticou-se tortura com método, a tortura como obra do
Estado com fins pragmáticos e simbólicos. Era a política torta da ditadura. Antes, a tortura
era praxe quando os suspeitos eram negros e pobres. A ditadura estendeu o raio de ação das
técnicas sinistras às camadas médias da sociedade. Veio a democratização e com ela o
confinamento dos velhos procedimentos à esfera original. Hoje, são de novo pobres e
negros as vítimas do terror de Estado. O carro volta aos trilhos, aos tristes trilhos de nossa
longa escuridão. Na tortura, há ódio, mas o ódio aplicado com apuro, em canais
institucionalizados, fluindo com ritmo e direção ditados por um regime de distribuição
sistemático e previsível. É o ódio compactado e disciplinado dos profissionais da dor, que
fazem carreira e usam crachá. Um ódio gramatical, de terno e gravata.

No crime também há ódio, mas com régua e compasso, cálculo e estratégia, balanço e
contabilidade. De novo, o invólucro contém a carga explosiva e a submete a uma lógica de
derramamento racional. O que está em jogo é grana e poder. E quando se joga com alguma
finalidade material, cada movimento de peças se submete a um cálculo relativamente
previsível. O ódio mais uma vez é escravo da razão, por mais desumana que ela seja.

Há também a cólera dos traídos e humilhados, a ira dos embriagados, a fúria dos vaidosos
contrariados. Tudo isso flui para as estatísticas do crime, mas está bem codificado em
anuários burocráticos e arquivos policiais. São delitos da paixão. Enredos cujo foco é a
explosão, o risco do fósforo em gasolina, a febre da loucura, o destempero sob o fogo do
álcool, da cocaína ou do desamparo. Não era disso que falávamos. Isso é antigo, da safra da
Dana de Tefé, Mineirinho, Fera da Penha, Cara de Cavalo, variações de temas remotos,
exumados sob a lupa de Beccaria. A praga do Rio era outra, sem registro nos anais da
ciência.

A impressão que ficou da conversa premonitória com Flávio é que o ódio vazou. Está solto
no meio da rua, entre nós, como os demônios de Guimarães

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Rosa. Pois o ódio, este fio solto de meu relato sobre a violência, tem de encontrar seu novelo e
armar um laço com sentido: assim como a invisibilidade provavelmente esteve em sua origem, o
tráfico lhe servirá de conduto e a cumplicidade policial lhe provera o álibi hipócrita, garantindo-lhe
sobrevida com proteção e provocação.

Origem e canalização que cumpre investigar, logo depois de compartilhar com você um pouco
desse veneno derramado em um punhado de histórias verdadeiras. Tão inacreditáveis quanto
verdadeiras.
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NOTÍCIAS DO FRONT

O muro divide. Do lado de cá, chegam notícias dofront.

A empregada doméstica faltou três dias seguidos. Fato inusitado. Ela é querida. Parte da
família. Profissional de primeira, séria, responsável, trabalhadora. Nunca deixara de avisar
e de justificar ausência. Era estranha a falta de notícias. Mensagens, recados, inquietação: a
patroa agitava-se. Finalmente, Glória voltou ao batente e se soube o que ocorrera. Caíra
numa depressão súbita e devastadora, a que dera outro nome: doença dos nervos. Chegando
em casa, sexta-feira, na favela, esperava-a, espetada na grade do portão, a cabeça do
vizinho, dono da pequena oficina improvisada na esquina.

Mais calma, Glória recobrou a acuidade e foi capaz de uma análise surpreendente: além do
abalo provocado pelo grotesco, além do sofrimento suscitado pela empatia humana, tanto
quanto a ferida produzida pela perda de um amigo, havia também e intensamente o
sentimento de vergonha, vergonha da comunidade, do lugar, de morar num lugar em que
aquela barbaridade se praticasse. Era como se ela própria e sua família estivessem
contaminadas por aquela doença medonha. Relatar o episódio a tornaria cúmplice,
involuntariamente, expondo-a à degradação moral. Fechou-se em casa para expiar a dor,
mas também para furtar-se a narrar o inenarrável, o inabordável, aquilo que só se conta,
contaminando-se.

Do lado de lá vê-se melhor o muro, que é imperceptível aos moradores da cidade afluente,
intangível para os navegadores de primeira viagem. É de lá que vêm as histórias ausentes
das coletâneas de Nelson Rodrigues. O Brasil que nosso maior dramaturgo narrava era
outro, mais ingênuo - a crueldade raramente transbordava o risco do bordado familiar. As
tramas cariocas desse início de século XXI são diferentes. Como a de dona Selma e suas
filhas. Sua grande frustração é privar suas filhas da festa de casamento. Uma a uma, elas se
casam em segredo. E comemoram resignadas sua felicidade clandestina. Selma conta que a
grande festa que preparou para o primeiro matrimônio foi interrompida a bala. Os
traficantes que dominavam a favela invadiram o salão, armados, humilharam os noivos e as
famílias, e destruíram o cenário da celebração. Aquela lição serviria para toda a
comunidade. Festas, só com autorização e participação dos donos do morro. Despotismo e
violência arbitrária; ódio, impotência e medo, os males do Brasil são.

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É preciso dizer mais? Está tudo aí, resumido, tudo que, no fundo, importa. Mas se alguém ainda
sente falta de confirmação, registro-a pela via indireta de uma ressalva:

Conheci uma pessoa que, na empresa em que trabalhava, era a única moradora de favela que não
hesitava em revelar o endereço. Orgulhava-se: "Na minha comunidade, só morre quem merece."

A lei e a justiça faltam, sempre. A escolha reduz-se à opção entre a tirania do tráfico e o arbítrio dos
justiceiros. Há também o despotismo da polícia, mas esse assunto fica para depois.

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Dois reais.

Nélio disse que ia pagar e não pagou. Foi lá, conversou com os caras, comprou droga fiado e ficou
enrolando o pessoal. Chegava lá com 10, 15 reais, e não pagava os 2 reais que devia. O cara falou
pra ele: "Tu tá me tirando como otário, né?" Nesse dia, eu estava com ele. Foi bem assim que ele
falou. Nélio era bom de papo e conversou pra caramba: "Não, porra, por causa de quê?" Mas o cara
insistia: "E aquela nossa conta? Dois reais, nego!" O sujeito encarou o Nélio e disse, na minha
frente: "Olha, eu já acertei, já coloquei do meu bolso, agora você tem de me pagar." O Nélio foi
com ele lá pro canto e conversou alguma coisa que não deu pra ouvir. Fiquei com Claudinho,
Neném e Dario, enquanto eles dois estavam afastados, conversando. O cara falou não sei o quê pro
Nélio, e o Nélio deu assim de ombro e veio em nossa direção, dando as costas pro cara. "Você me
aguarde", o cara disse.

No dia seguinte, ao meio-dia, a gente estava almoçando, o cara chegou com mais dois. Apertou a
mão do Nélio, deu um abraço nele e, enquanto abraçava, meteu a mão na pistola, deu dois passos
pra trás e disparou quatro tiros. Nélio ficou sangrando que nem porco. Até morrer. Eu me lembro
que ainda pensei: "Dois reais, porra. Dois reais." Aquilo não me saía da cabeça, enquanto meu
amigo agonizava.

* A história é verdadeira. Foi reescrita com base em entrevista conduzida por Hélio R. S. Silva com o narrador, em 2003
Os nomes citados são fictícios
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A ESPERANÇA COMO DEVER

Não leia. Pare. Olhe. Ali, adiante. Ali. Mais à frente. Um carro voando. Um foguete a 150
por hora. Chispando, zunindo. Soltando faísca. Um brilho no rastro azul. Zás. Pura
adrenalina. Verniz derrapando. Borracha queimando, lambendo o asfalto. A cena voa.
Corações galopam.

Um carro passa a mais de 100 km. Suponha. Imagine. Dois observadores emudecem,
assombrados. Ali adiante, a 200 metros de onde estão os observadores, há um buraco no
meio da estrada. O primeiro observador acredita que ainda haja tempo para desviar e que o
motorista possa evitar o acidente, reduzindo a velocidade e contornando o buraco. Intui a
salvação. Aposta nisso. O outro pensa o contrário: o motorista não percebeu o que vai
encontrar pela frente; o acidente é inevitável. Ambos se agitam. Gritam. Mal expressam
suas avaliações.

Em poucos segundos, o carro se arrebenta no buraco que o engole. Digamos que o acidente
aconteça. Suponhamos que isso tenha acontecido. Isso quer dizer que o segundo observador
estava certo? A existência do acidente dá razão a quem o previra? O fato de que o carro
tenha caído no buraco desautoriza aquele que formulou a hipótese de que não haveria
acidente? O acidente justifica a desqualificação do primeiro observador como equivocado?
Pode-se dizer que, julgando-se as previsões a partir da realidade já configurada do acidente,
a hipótese de que ele não aconteceria estava errada? Não expressaria nada mais que um
otimismo ingênuo? Em outras palavras, o futuro é um tribunal infalível sobre a verdade das
previsões a seu respeito? O futuro, quando se torna presente, é o árbitro irrefutável das
profecias?

A melhor resposta seria: não necessariamente. Depende. Quando a situação observada
ainda permite a intervenção de um fator incontrolável e imprevisível (como a ação humana,
no caso do acidente), cuja participação tem o poder de alterar em um ou outro sentido o
destino do processo observado, as duas previsões são igualmente legítimas, plausíveis,
razoáveis ou racionais. Ou seja, nenhuma hipótese pode ser excluída; tanto a hipótese
otimista quanto a pessimista são realistas, isto é, são corretas, enquanto hipóteses ainda que
o fato de serem corretas não garanta que suas previsões venham a ser confirmadas. Aliás,
isso não poderia mesmo ocorrer, pois o acontecimento futuro necessariamente excluiria
uma das profecias, já que elas são contraditórias entre si.

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Dizendo de outro modo: quando o carro passou, os dois observadores estavam certos em
seus prognósticos, mesmo que depois uma das previsões seja frustrada pela realidade. No
primeiro momento, os dois futuros eram possíveis. Um dos observadores resolveu apostar
no motorista, em sua atenção e perícia; o outro decidiu optar pela hipótese de que a atenção
e a destreza despertariam tarde demais. Quando a liberdade humana e a habilidade de
empregá-la constituem fatores decisivos, nenhuma previsão, por mais plausível que seja,
pode ser absoluta e excluir profecias rivais. Quando a liberdade é uma variável
significativa, em uma equação, nenhum futuro pode ser excluído. Afinal, a liberdade é o
outro lado da imprevisibilidade, da indeterminação e, portanto, da incerteza. Por isso, nas
coisas humanas, onde está presente a liberdade, a ação, a criatividade, não há certeza.
Mudanças são sempre possíveis. A idéia de "fim da história" é uma dessas bobagens que
fazem a fortuna de um autor e consagram a arrogância intelectual no altar da ignorância.

O mesmo vale para o indivíduo: enquanto houver vida, há esperança de mudança, mesmo
que ações não sejam mais possíveis e que a liberdade só possa ser experimentada no plano
da consciência. A salvação é o nome cristão para a mudança experimentada. Outras
tradições culturais a descreveriam com outras palavras, em uma linguagem simbólica
diferente. Mas todas as tradições que valorizam o livre-arbítrio reconhecem o papel da
incerteza, na história, e sua contrapartida: o potencial de mudança.

Se, do ponto de vista racional, uma hipótese positiva não pode ser excluída, do ponto de
vista ético, ela deve ser adotada. É nisso que acredito, quando está em jogo a vida humana,
sua trajetória individual. Ou seja, a esperança é um imperativo ético, quando não
desautorizada pela razão. Dito isso, consideremos uma situação comparável à dos carros.
Um jovem está envolvido com o tráfico. Cometeu crimes. Mergulhou nesse mundo e
passou a adotar a violência como forma de se afirmar e de impor aos outros sua vontade.
Dois observadores fazem conjecturas opostas sobre o futuro desse personagem. O primeiro
crê na recuperação, isto é, na adesão do personagem à vida social regida pelas normas
legais. O segundo acredita que a viagem ao mundo do crime não tem retorno e que o
processo inevitavelmente conduzirá o personagem cada vez mais fundo no abismo da
violência, da destruição e da autodestruição. Digamos que, por hipótese, os dois
observadores façam suas apostas e esperem que o futuro decida quem tem razão. Se o
personagem frustrar a esperança do primeiro observador e voltar a cometer crimes, esses
crimes futuros demonstrarão o erro de quem confia na mudança? Quem

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aposta na recuperação desse jovem verá sua esperança desautorizada pela seqüência de atos
que o conduzirão mais e mais para dentro desse inferno? Ou a esperança nunca será
desautorizada, enquanto houver vida, enquanto existir alguma centelha de liberdade no
espírito desse criminoso?

O poeta Mallarmé dizia: "Um lance de dados não abolirá jamais o acaso." Nós poderíamos
dizer: um ato não abolirá jamais a incerteza, a liberdade humana e a possibilidade da
mudança. Um ato é um compromisso entre liberdade e necessidade - por isso mesmo, traz
consigo sempre, em algum nível, a marca da liberdade. Por mais perverso que seja, um ato
jamais cobrirá todo o repertório potencial das ações de um sujeito, porque, sendo o sujeito
livre.6 esse repertório é infinito. Por mais violento que seja o crime perpetrado, o sangue
derramado não mancha irreversivelmente todo o ser de quem o cometeu. Isso porque esse
ser, esse sujeito não é uma coisa, um objeto pronto e acabado, fechado, nem uma máquina,
mas uma fonte, uma fonte sempre pulsante e aberta, imprevisível, inconstante,
surpreendente, problemática, indecifrável, de treva e luz, de vida e morte, amor e ódio,
grandeza e perversão, civilização e barbárie.

Quando a linguagem religiosa emprega a palavra "alma" para designar essa fonte
inesgotável, esse sujeito imaterial porque criador, algo muito sábio está sendo transmitido.
A própria noção de que a criatura foi feita "à imagem e semelhança" do criador - a alma é o
elo de ligação, o traço de semelhança e continuidade, o espelho do divino - torna o ser
humano partícipe do dom da criação: a criatura é semelhante ao criador porque cria, porque
experimenta a liberdade, porque, em algum nível, age ou pensa além ou aquém das
determinações naturais e sociais. A alma, nas tradições que a concebem, é maior e menor,
anterior e posterior à nossa consciência, nosso conhecimento, nossa cultura, nossos desejos
e interesses. Ela escapa sempre às tentativas de classificação e de explicação positiva, que a
reduza a regras de funcionamento. Ela nunca se confunde com os atos do sujeito - por ser
maior que ele e menor que qualquer fôrma, por situar-se além e aquém
- e o abre à possibilidade ilimitada de atos imprevisíveis e incompatíveis com a série dos
atos anteriores, que construíram sua biografia até aquele momento, quaisquer que tenham
sido eles e por mais coerentes que tenham sido entre si.

Claro que nós sofremos muitas limitações: aquelas que nos são impostas pela educação que
recebemos, isto é, pela cultura na qual somos socializados; as que derivam de nossas
neuroses; as que resultam dos componentes biológicos de que somos feitos; aquelas que
nos são ditadas pelas instituições

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responsáveis por nosso cotidiano, as quais nos atribuem papéis determinados, cada um
deles vinculado a um roteiro pré-definido; e aquelas impostas pelas posições que ocupamos
no sistema econômico. Por outro lado, só é possível falar em ação porque as determinações
naturais, psicológicas e sociais não comandam tudo. Só há o problema da ação humana
porque não conseguimos exorcizar de nossa linguagem a velha idéia metafísica da
liberdade. Bem-vindo, portanto, o problema da ação; bem-vinda, a problemática metafísica
da liberdade.

O outro lado da liberdade é o mistério, é a indeterminação da subjetividade e a contingência
do futuro, sua radical imprevisibilidade. O que não nega todo o imenso território das
determinações e o extraordinário alcance da probabilidade e da predição científica. Mistério
e conhecimento coabitam; incerteza e previsibilidade convivem; impotência e controle
dividem a cena de nossa travessia pela história dos seres e das coisas. O mistério nos
assusta, porque é indevassável, cognitivamente, e porque tudo o que não conhecemos, não
controlamos. O avesso do mistério é nossa impotência, nossa finitude. Por isso o mistério é
perturbador. Ele nos ameaça porque atinge nossa vontade de poder, de domínio, de
controle. Mais uma vez a linguagem religiosa nos socorre, com seu simbolismo eloqüente:
a onisciência foi o pecado pelo qual Adão foi expulso do paraíso; a onipotência, cristalizada
na Torre de Babel, provocou a cólera de Deus e a maldição da incomunicabilidade entre os
povos. Mais difícil do que admitir o mistério fora de nós, é aceitá-lo dentro de nós. É mais
fácil conviver com a incapacidade de controlar o universo do que reconhecer a
impossibilidade de conhecer e controlar a própria subjetividade, a fonte interna de treva e
luz, amor e ódio, violência e compaixão, indiferença e solidariedade.

Se Mallarmé estava certo, se o exemplo das opiniões sobre o futuro do carro que passa a
mais de 100 km estava correto, nenhum lance de dados abole o acaso e nenhum acidente
elimina, retrospectivamente, a razão e a virtude ética de uma previsão positiva.
Conseqüentemente, nenhum crime anula a legitimidade racional (e, portanto, o dever ético)
da esperança, isto é, da crença (e da aposta) na mudança positiva. A idéia de aposta7 vem a
calhar, porque uma hipótese sobre o futuro é, freqüentemente, muito mais do que uma
simples especulação abstrata e descomprometida. Geralmente, é um gesto subjetivo e
objetivo, um movimento do espírito e do corpo, um compromisso e uma prática, os quais
terminam por influir nos próprios acontecimentos que constituem o objeto da hipótese. Por
isso, quem crê contribui para que a sua crença se realize.8 As nossas previsões são parte da

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bagagem com que atravessamos o cotidiano. São instrumentos que nos governam, como
bússolas e que acabam nos orientando e nos levando a intervir nos acontecimentos de modo
a facilitar a realização do que imaginamos que ocorrerá. Daí a importância prática da
esperança - também por isso ela deve ser um imperativo ético, a menos que racionalmente
desautorizada (afinal, ter esperança não pode se confundir com sonhar o sonho impossível,
como um ingênuo alienado). A esperança é uma espécie de parteira do futuro desejado.

O diabo vem agora, cavalgando o avesso negativo dessa conclusão positiva: assim como o
fracasso de uma previsão positiva não anula as boas razões daquela previsão e da esperança
que ela expressa, o sucesso de uma prospecção positiva tampouco nega a razão da previsão
negativa. Quando transferido para nosso mundo interior, o argumento significa o seguinte:
assim como uma longa vida no crime ou uma série de atos violentos não anula o potencial
de mudança do criminoso, qualquer biografia consagrada ao bem pode ser surpreendida
pelos atos mais violentos e sórdidos. Em outras palavras, o que é assustador nesse elogio da
liberdade como motivo de esperança nas mudanças positivas é a emergência de
potencialidades negativas. Por um motivo bastante simples: se a liberdade, por ser aquilo
que é
- impossibilidade de controle e previsão, cognitivo ou prático -, traz consigo a peste, isto é,
traz consigo a possibilidade da irrupção da negatividade na história, individual e coletiva,
louvá-la corresponde a reconhecer e resignar-se com a perda de garantias quanto ao
comportamento social e pessoal. Cada um de nós pode ser atormentado por fantasmas
interiores que nos provoquem a súbita e inesperada traição de toda uma vida coerentemente
dedicada à promoção do bem. Dar aos outros a chance de mudar cobra de nossa cultura um
preço elevado: troca-se a certeza autoritária que exclui irremediavelmente os criminosos da
casa dos homens e mulheres de bem, pelo sacrifício da confiança de cada um de nós em nós
mesmos, como absoluta e irreversivelmente salvos da imersão no mal. O custo da
generosidade compassiva e fraterna é a perda da autoconfiança.

É por isso que, para restituir à sociedade a segurança perdida - segurança cuja raiz é a
autoconfiança -, somos freqüentemente tentados a sacrificar a generosidade e a confiança
nos outros, a crença de que os outros podem mudar, a esperança de que os outros têm todas
as condições para ser, moralmente, iguais a nós. Se acreditarmos em uma linha moral
intransponível, dividindo os seres humanos entre o bem e o mal, acreditaremos também que

119


essa linha divisória servirá de barreira e nos protegerá: sendo intransponível, ela impedirá
que a ultrapassemos. O problema não é evitar que os outros passem para o lado de cá. Este
é apenas o preço que se paga para que se obtenha o que realmente importa, que é o
impedimento de que nós, do lado de cá, cruzemos a linha para o lado de lá. Assim, o grande
medo será apaziguado: nós não somos nem seremos iguais aos outros, àqueles que
personificam o mal extremo da violência criminosa.

Não há pavor comparável àquele que sentimos ante a mais remota possibilidade de nossa
própria mudança. Nós sonhamos com a mudança positiva dos outros, no entanto, tememos
a nossa. Até nossa mudança positiva nós tememos, porque, se ela pode ocorrer, qualquer
outra transformação também pode sobrevir. Por isso nos apegamos ao que achamos que
somos, à imagem que pudemos produzir de nós mesmos - sempre com a ajuda dos outros.
Por isso nos importa o que dizem os outros sobre nós, sobretudo os outros que amamos e
respeitamos. Quão mais inseguros nos sentirmos em relação ao que nós próprios sejamos
ou possamos vir a ser, mais importantes serão, para nós, os comentários alheios. Estes
funcionam como espelhos difusos que nos assustam e nos deslocam dos focos que
desejamos perseguir.

Nosso mundo imaginário é povoado de monstros. Eles não são mais do que o outro
estilizado em caricaturas que sublinham com máximo exagero a diferença. Quão mais
monstruosas as figuras de nossos pesadelos, mais diferentes de nós elas serão. Quando
tamanha distância é enfatizada, nós nos tranqüilizamos: nada naqueles seres se parece
conosco. Portanto, podemos transferir a eles tudo aquilo de que não gostamos, em nós
mesmos, para nos livrarmos de todda culpa que carregamos por nos sentirmos, em função
da complexidade das emoções que experimentamos, capazes de matar, mutilar, impingir
tormentos, trair os valores que defendemos. Se a imagem do outro for ambígua (isto é, se
for mais humana e menos monstruosa, mais parecida com cada um de nós), corremos o
risco de nos identificarmos com o personagem que concentra o mal, o que o levaria a
dividir o mal conosco. Dessa forma, seu papel útil à expiação de nossas culpas, dúvidas e
ambivalências internas se perderia.

Uma anedota real ajuda a esclarecer este ponto.

Conta o psicanalista Bruno Bettelheim a história verdadeira de um pai que não conseguia
fazer o filho dormir, apesar de toda a atenção carinhosa que lhe devotava, aquela noite,
contando-lhe a fábula de que mais gostava: Chapeuzinho Vermelho. O pai beijava o filho e
esticava a coberta, ajeitando-o

120


para dormir, depois de fechar a última página do livrinho infantil. Desejava-lhe boa-noite e,
com o sentimento do dever paternal cumprido, retirava-se do quarto. Mal fechava a porta,
ouvia a convocação lamuriosa do filho. Abria a porta e voltava à cama do filho, acendia a
luz e encontrava o filho trêmulo de medo, pedindo-lhe para ler novamente o final da fábula.
O pai não tinha saída. Ante apelo assim comovente, retomava a leitura, enfatizando as
cenas que conduziam a um final feliz: "E o lenhador abriu a barriga do lobo mau e salvou
Chapeuzinho e sua avó, que viveram felizes para sempre." Sublinhava com a voz o verbo
"salvou" e a sentença conclusiva, "felizes para sempre". Beijava o filho, puxava a coberta,
apagava a luz, saía devagar, fechava a porta... mas não adiantava. Outra e outra vez tinha de
retornar à leitura e intensificar sempre mais o relato da solução feliz da trama. Até que,
cansado de repetir os mesmos movimentos e não sabendo o que fazer para tranqüilizar o
filho obcecado com o final da fábula, largou o livro e disse: "Meu filho, está tudo acabado,
tudo foi resolvido, o lenhador matou o lobo e salvou Chapeuzinho e a vovózinha. Todos
foram felizes para sempre, todos estão felizes. Dorme tranqüilo." O filho esclareceu:
"Papai, eu sou o lobo."

O risco, quando depositamos o mal nos criminosos, é que nos identifiquemos com os
personagens que encarnam o que repelimos. Volta a nós pela janela o que expulsamos pela
porta. Reconhecemos em nós mesmos o mal que tentamos exorcizar e não suportamos olhar
nossa própria imagem refletida no espelho dos criminosos. Intensifica-se, assim, o ódio, a
repugnância: não basta mais classificá-los, julgá-los, afastá-los do convívio social; é preciso
matá-los, eliminá-los, apagar do planeta todo vestígio de sua presença. Desse modo,
tentamos apagar os rastros do mal dentro de nós. Aí está a origem do linchamento e do
fervor vingativo dos que clamam por pena de morte - daqueles que mantêm sua posição,
mesmo quando informados de que a pena capital não inibe a criminalidade.

Não é por outra razão que costuma rondar nossa sociedade o espectro do criminoso sem
ambigüidades, síntese do mal absoluto, isto é, do criminoso monstruoso, hediondo, bárbaro.
Apraz-nos construir a imagem do criminoso sem face humana, coberto pela máscara da
infâmia, da abjeção extrema, desprovido do sentimento de culpa e do mais leve senso de
limite. Concebendo-o assim, como que escovado dos restos humanos, pura inumanidade,
alargado o abismo que nos separa desse personagem animalizado, melhor nos protegemos
do risco de confundirmo-nos com ele, identificarmo-nos com ele, encontrarmos em nós
mesmos traços dessa inumanidade que nos repugna e aterroriza.

121


O mais inquietante, porém, é que não se trata apenas de uma imagem construída, mas de
uma identidade assumida e substancialmente produzida, isto é, posta em ação por alguns
indivíduos que se deslocam para a posição daqueles que ficam à margem, daqueles que se
postam do outro lado de tudo o que a sociedade valoriza, tornando-se anti-heróis ou contra-
referências sociais. Ou seja, não se trata somente de estigmas e preconceitos, mas de
biografias que se constróem à imagem e semelhança de tais estigmas: esses personagens
atuam como espelhos invertidos da sociedade. Estão lá, nas ruas, encarnando o mal para
livrar a sociedade da identificação com esse mal. Sua função social é nos redimir do mal,
chamando-o todo para si, como pára-raios morais. O problema é que não há nenhuma cerca
de proteção separando os símbolos da experiência. Ou seja, os pára-raios assumem o mal e
o praticam, infernizando nossas vidas e destruindo seus próprios futuros. Deixam de servir
à nossa autoconfiança, convertendo-se em riscos objetivos para nossa segurança. Nosso
medo desce o pedestal das imagens simbólicas que povoam nosso imaginário coletivo e se
projeta na vida cotidiana das cidades. Perde a aura de um problema metafísico para se
tornar o combustível prosaico de nosso estresse diário.

Há outro destino para os personagens que encarnam o mal, além do exílio e da destruição.
A reintegração. No contexto da contabilidade social de crimes e castigos, soa inteiramente
irracional o tema religioso do perdão. No entanto, raras são as idéias mais ricas e
libertadoras: o perdão é subversivo porque infenso a códigos, preceitos, normas e regras.
Não há gramática para o perdão, quando concebido em sua feição mais radical. O
verdadeiro perdão é gratuito, é a mais pura gratuidade. Para alguns teólogos, gratuidade
confunde-se com o próprio espírito da religiosidade, mais que a fé, a devoção, a reverência
a princípios, o culto a credos. Gratuidade é, por definição, sem razão e sem motivo, sem
propósito e finalidade, desinteressada; mera expressão da liberdade, que se volta para si
mesma. Uma possibilidade que não está inscrita na ordem das coisas ou das instituições,
nem segue a lei das compensações. É a anti-vendetta. Perdoar implica aceitar o outro,
independentemente de qualquer consideração ou compromisso, antes e além de qualquer
contrato social, renunciando a todo pagamento ou aos benefícios da reciprocidade. Rompe a
lógica do interesse e subverte os engates da ordem social. Prescinde de retribuição ou
reconhecimento. É um gesto unilateral.

Nesse sentido preciso, o perdão introduz na vida laica uma espécie de centelha divina, se
Deus é compreendido como o Outro que escapa à compreensão

122


e às determinações da natureza e da história, abrindo para os seres humanos um novo ponto de
vista, proporcionando à humanidade uma nova perspectiva para a abordagem de si mesma. Um
ângulo novo que estende nossa sensibilidade ao campo ilimitado da criação e da mudança, do
autoconhecimento e da autotransformação, condenando, entretanto, nossa ousadia a ancorar-se no
reconhecimento da finitude. No momento derradeiro da agonia, Dimas, "o bom ladrão", crucificado
ao lado de Jesus, arrependeu-se, foi perdoado e salvou-se, segundo a mensagem simbólica da
tradição cristã. A qualquer um cabe esse dom, até a undécima hora, mesmo depois que se esgotam
os recursos da Justiça, da compreensão, das guerras e dos diálogos; quando a fonte individual se
precipita na noite e abandona toda esperança ali, ainda, ela pode renascer, sem motivo, sem sentido
e sem razão: um improvável e injustificável dom. Ao contrário do que pensava Dostoiévski, se
Deus existe, tudo é permitido.

Mas o perdão nem sempre é um gesto magnânimo e libertador, que eleva o espírito e aprimora a
vida social. Como perdoar aqueles que matam, torturam e chantageiam, em nome da lei e da ordem,
da Justiça e do Estado? Perdoar essa prática equivaleria a justificar uma rotina criminosa e cínica,
legitimando a paradoxal institucionalização da barbárie. Nesse caso, não estão em jogo situações
individuais, mas engrenagens políticas. Aplicada a dinâmicas desse tipo, a tolerância degrada-se em
capitulação ética. E quando o crime se organiza em funções e rotinas? Os operadores de suas
dinâmicas são apenas indivíduos ou são agentes de uma engrenagem que precisa ser interrompida
pela ação do Estado e a indignação da sociedade?

Aqui chegamos a um problema especialmente delicado. Até que ponto nós colaboramos para o
agravamento da violência que gostaríamos de reduzir, quando acolhemos com empatia e
compreensão aqueles sobre os quais a sociedade lança toda a culpa? Eles são muito jovens, quase
sempre, e amargaram muitas rejeições ao longo da vida. Foram privados dos benefícios mais
elementares da cidadania e acabaram cedendo à sedução do crime. São vítimas, também, ainda que
façam outras vítimas, nos crimes que perpetram. Seria muito cínico lavar as mãos, manter as
estruturas sociais como estão, projetar neles todo o mal e mandá-los arder na fogueira. A violência
deixaria de ser o fruto venenoso da sociedade que construímos. Nós nos sentiríamos aliviados de
qualquer responsabilidade. As elites, os políticos, as instituições apontariam o dedo para os
criminosos, exigindo punição e a interrupção da sangria desatada pela adoção de medidas duras. O
drama coletivo

123


do país, a tragédia brasileira da violência se resumiria a um problema de polícia.
Dormiríamos com medo dos rapazes violentos e de suas armas poderosas, mas com a
consciência tranqüila, apaziguada, como compete aos homens de bem. Nada mais falso e
hipócrita. A cidade ferve. A panela de pressão está prestes a explodir. Os alarmes já
soaram. A responsabilidade é do Estado, sim, é dos governos, de todos eles, mas é também
da sociedade, de cada um de nós. Não é aceitável jogar a culpa de tantas deformações e
injustiças nas costas de um punhado de moleques. Por outro lado, não há soluções fáceis. A
recusa à culpabilização unilateral e maniqueísta dos jovens pobres que se envolvem com o
crime não pode mais se traduzir em mera negação de sua responsabilidade. Nem são apenas
os jovens pobres que transgridem as leis. Seus crimes dificilmente existiriam, na escala que
os caracteriza, não fosse a ação dos criminosos de colarinho branco.

Já se foi o tempo da glamourização do banditismo, em que se cultuavam os criminosos
como se fossem heróis populares. Repito o que disse em capítulo anterior, para melhor
trabalhar este ponto: houve um tempo, no Brasil da ditadura, em que Hélio Oiticica podia
conclamar à rebeldia, divulgando sua provocação subversiva: "Seja marginal, seja herói." A
época obscurantista era um convite ao maniqueísmo. Vivemos um outro país, um mundo
diferente. Hoje, o crime ameaça toda a sociedade, indistintamente, mas oprime com mais
brutalidade justamente os mais pobres, aqueles que Oiticica buscava valorizar em sua ode à
transgressão. Nada mais absurdo, hoje, do que a justificação do crime, em nome de um
suposto compromisso democrático com as classes populares.

Foi-se também, felizmente, o tempo do paternalismo, que reproduz o mesmo esquema do
cinismo elitista com sinal trocado: os meninos em armas deixam de ser culpados para serem
vítimas. O mal passa a ser "o sistema" - o capitalismo, as elites, as classes dominantes - e
cada um lhe atribui o significado mais adequado à própria ideologia. O círculo vicioso
permanece inalterado. Bandidos e mocinhos trocam de posição, mas o simplismo
maniqueísta é igual.

A linha do bem penetrou o tecido do mal e a costura tornou os fios indistinguíveis. O que é
que nós estamos fazendo, afinal, para mudar? As comunidades no Rio vivem sob o terror.
A impressão que se tem é que quanto mais tentamos reverter a situação, mais contribuímos
para o agravamento dos problemas. Quanto mais demonstramos compreensão e compaixão,
mais ambigüidade transmitimos aos jovens e mais os desnorteamos. Por outro lado, quanto
mais o Estado mobiliza suas forças, mais precipita a brutalidade

124


e a corrupção das polícias, gerando mais referências ambivalentes. Onde cortar essa trama
envenenada?

O grande desafio está em humanizar o sujeito que comete o crime, sem subtrair-lhe a
responsabilidade; responsabilizar o "sistema", sem eximi-lo da responsabilidade de
distribuir responsabilidades e aplicar penas, segundo as leis, humanizando-as; humanizar o
"sistema", transformando-o, criando condições para que prosperem a solidariedade e a
verdadeira Justiça. Como fazêlo? Mesmo sendo difícil encontrar a saída, o método está
escolhido: a esperança. Como procuramos demonstrar, a esperança é um método, e é nosso
dever. Um carro passou a mais de 100 km por hora. Tem uma pedra no meio do caminho.
No meio do caminho, tem um abismo. Olha o buraco, ali, adiante. Um menino passou por
nós, carregando um fuzil.

O Brasil ainda pode salvar-se da barbárie. É nosso dever acreditar nisso.

125


A MÃE

Sidnei curvou-se sob o sol. Apoiou a mão direita no poste e abaixou a cabeça. As imagens
flutuavam como se o mundo tivesse mergulhado num líquido espesso e claro. Primeiro,
deixou de sentir o calor que antes derretia seus ombros. Em seguida, trêmulo, sentiu
apagar-se a luminosidade vaporosa de tudo - antes, prédios e pessoas resplandeciam como
uma trilha incandescente; os ônibus fumegantes pareciam deslizar numa bandeja de prata.
Finalmente, o grande véu tombou sobre a avenida Presidente Vargas, no centro da cidade
de São Sebastião do Rio de Janeiro. O sol negro fechou os olhos em silêncio. Sidnei
despencou na ilha que divide as pistas. Descalço, cabelos sujos. Vendera os tênis, a camisa,
o relógio e o cordão dourado. Deixara no morro a verdadeira fortuna que lhe rendera o
trabalho do fim de semana: 800 reais, só vendendo cerveja e água. Não comia nem dormia
havia três dias, só droga, droga, droga. Uma boa alma lhe atirou água fresca na cara.
Ergueu-se no abraço improvisado de um ou outro transeunte solidário. Dizem que o Rio é a
cidade mais cordata do mundo, segundo uma certa pesquisa internacional. Deve ser
verdade. Pelo menos com os que sobrevivem.

Era ambulante; trabalhava no trem; fugia da polícia como um cidadão honesto sem carteira.
Sabia o valor de um registro. Seu padrasto o registrara. Ele nunca esquece. Chama-o pai,
porque o outro não quis assumir, não admitiu reconhecê-lo e deixou a mãe quando ele tinha
nove anos - "Aquela história de sempre", dizia. Se tivesse de contar com o laço de sangue,
estaria sem documento até hoje. Não é pouca coisa, um nome, o registro, a filiação
formalizada. Este é o verdadeiro amor de pai. Não quis saber mais do pai natural. O
orgulho e o ressentimento eram mais fortes que a necessidade.

Ele também costumava dizer: "Minha vida é muito complicada. Muito complicada
mesmo." Era a rotina de trabalhador que parecia vida de bandido. De repente, passava o
rapa e levava tudo, até seu dinheiro, ou destruía tudo e lhe dava uma surra. Volta e meia
tinha de comprar sua liberdade, com o troco que lhe restava. Mesmo assim, nunca roubou e
sempre resistiu aos convites do tráfico. Por medo, ele diz, medo de morrer, ser preso,
estragar a vida dos filhos e da mulher. Afinal, não foi fácil escapar do vício. Um longo
calvário.

* A história foi reescrita, mas é verdadeira Foi narrada a Minam Guindam pelo protagonista, aqui chamado Sidnei, em
fevereiro de 2003, numa série de depoimentos colhidos especialmente para este livro O nome é fictício
126


Veio o 384, Sidnei entrou, sentou na escada e pediu à moça para passar por baixo da roleta.
Quando atravessou a roleta, começou a chorar feito criança. Todo mundo do ônibus olhou
pra cara dele, um homem velho, todo sujo, chorando. Sentou num canto do ônibus, imóvel.
Chegou a Anchieta mas não foi pra casa. Tinha vergonha de encarar a mulher. Esteve com
800 reais no bolso e não sobrou um centavo. Foi pra casa da mãe: "Que foi? O que está
havendo?" A mãe danou a chorar junto com ele. Sentou com ela e explicou tudo. Ela
xingou. Ela bateu no filho com a fúria sagrada das mães desamparadas. Mas Sidnei
costumava pensar, sem dar-se conta de que nem ousara apresentar-se à esposa: "Foi a única
que me acolheu." Ela lhe deu banho; a mãe de Sidnei entrou no banheiro com ele e lhe deu
banho. Deulhe uma roupa do irmão e o pôs para dormir. Quando acordou, ela sentou-se ao
seu lado e desembestou a falar... Ele calado, só escutando. Ela disse: "Você não me saia
mais daqui." Sidnei tinha 29 anos. A mãe lhe deu um prato de comida. Ele passou mal
quando a comida bateu no estômago. O irmão mais novo foi o primeiro a chegar. A mãe de
Sidnei mandou chamar todo mundo: irmãos, mulher, filhos, cunhadas. Mandou chamar a
irmã. Todo mundo abraçou Sidnei, enquanto ele pensava: "Cheguei ao fundo do poço; eu
sinto que cheguei ao fundo." A mãe o abraçou.

Sidnei, mulher e filhos foram morar na casa da mãe. Ele ficou quatro meses na casa dela,
dentro de casa. Não saía para nada, nada. Se ia ao banheiro, alguém o seguia. Parecia um
prisioneiro. Sentia-se prisioneiro, mas pensava: "Sou prisioneiro, mas não da casa de minha
mãe, sou prisioneiro da droga." Pensou em fugir. Muitas vezes, pensou em fugir. Imaginou
a fuga, sonhou com a liberdade. Quantas vezes planejou escapar. Revoltou-se. Nos fins de
semana, era um terror: "Podia estar na Providência, agora; podia estar na Mangueira - a
essa hora lá deve estar fervendo de gente." Tremia, tremia. Nesses momentos, a mãe
preferia não arriscar: trancava-o no quarto. Ele via televisão e andava feito um zumbi,
dentro de casa, dando a volta ao mundo e roçando nas paredes, a cabeça girando, dentro da
noite.

Na fase seguinte da recuperação, saía para comprar pão e leite na esquina, mas sempre com
um sobrinho no calcanhar, sempre sob o olhar vigilante da mãe, que se postava no portão,
minuciosa, atenta, incansável.

Há três anos Sidnei saiu da casa da mãe ostentando sua blindagem: não estava mais
vulnerável à droga. Ele não sabe se é cicatriz ou imunidade, mas sente o escudo enquanto
respira e o exibe orgulhoso, invisível e poderoso, comovido com o afago dos filhos. Nunca
mais cheirou pó. E não foi por falta de oportunidade.

127


Do outro lado do sofá, a esposa observa, ouve, cala-se com emoção. Faz do silêncio a
sombra de seu discreto heroísmo. Permanecer ao lado do marido é quase incompreensível,
Sidnei reconhece: dom, entrega, renúncia; sacrifício pelo futuro remoto que, enfim, agora
reina, naquela casa de tábua, em Anchieta. Da água para o vinho, em três anos. É verdade,
eles dizem: agora, o futuro reina. Mas no passado recente o presente parecia engolir
qualquer futuro. Sugava o ar dos poros da casa. Sidnei saía para o trabalho sem previsão de
retorno. Se as vendas fossem boas, dormia na rua ou atravessava as noites nos bares. Os
melhores pontos para ambulantes, como ele, eram estádios e shows, na capital e no interior,
nos fins de semana. Ele seguia a trilha da prosperidade, com seu faro nômade. Quando fazia
dinheiro, adiava a volta ao lar e se esbaldava. No meio de uma noite qualquer, chegava em
casa metendo o pé na porta. Se a mulher esperava-o acordada, ele a agredia; se estivesse
dormindo, ele a insultava e agredia; se buscasse proteger-se, ele redobrava a brutalidade
dos golpes. No dia seguinte, não se lembrava de nada e prometia dias melhores, com
respeito e paz. A mulher afogou-se no medo, essa treva que imobiliza suas vítimas com o
veneno letárgico de longas pinças viscosas. Longe do inferno, ela agora respira e concorda
com Sidnei: é preciso preparar as crianças desde cedo com afeto e verdade. Toda a verdade.

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PRISÃO QUE LIBERTA

Quando a gente olha para o Brasil como nação, surgem logo as grandes questões sobre
história e sociedade. Para estudar e entender o país, nossa Bíblia são os números e as
categorias formais, que definem tendências, padrões, médias e situações definidas por seus
contornos gerais. O esforço metódico que empreendemos nesse tipo de estudo é valioso,
sem dúvida. Mas há um preço a pagar. Claro, até aí nada de novo. Há sempre perdas, nas
escolhas que fazemos. Isso é uma trivialidade. Todavia, quando nosso objeto de
interrogação envolve a violência e as drogas, a perda talvez seja grande demais, porque,
nesse caso, buscamos uma compreensão mais fina e funda das experiências humanas.

A categoria - por exemplo, "dependência química" - evoca um sentido geral porque não
designa apenas um fato singular, mas um conjunto de fenômenos, de um ponto de vista
segundo o qual as características análogas são mais importantes do que aquelas que os
distinguem entre si. Sem este foco iluminando aquilo que é comum, seria impossível pensar
além das unidades isoladas. Quem apenas atentasse para as distinções, acabaria incapaz até
mesmo de calcular: passaria a vida apontando para cada objeto e repetindo, um, um, um. A
operação aritmética mais simples, a adição, só é viável porque sacrificamos a diversidade
em benefício do que é comum: fatos ou objetos, por mais diferentes que sejam entre si, têm,
em comum, o valor da unidade; isto é, valem um, para efeito do cálculo. Até a economia
depende desta operação de equalização formal. Graças a ela existem o comércio e a moeda.

Assim também uma família é igual a outra família, no plano geral em que funcionam as
categorias, porque, quando assim definidos, os grupos humanos perdem suas peculiaridades
singulares e distintivas para se mostrarem apenas nos seus aspectos comuns. Um
dependente químico é igual a todos os outros dependentes químicos, na medida em que seja
descrito por esta definição geral e sintética, independentemente das diferenças entre as
experiências humanas abissais e labirínticas, que se enrodilham em constelações
cmnplexíssimas e sempre diferentes. E assim sucessivamente. As categorias formais e os
conceitos das ciências humanas são indispensáveis para contar a história da vida humana no
planeta, assim como os números são indispensáveis para contar. Contudo, mesmo
reconhecendo a necessidade das categorias que fazem tábula rasa das diferenças para
descrever a realidade, devemos

129


também aceitar, com humildade, que muita coisa fica de fora, nessa operação de
conhecimento. O que se mutila, às vezes, é essencial e faz toda a diferença.

Uma categoria9 funciona como um guarda-chuva: contém e destaca o objeto10 que
descreve, mas também, sob a sombra protetora, por vezes esconde e dissolve aspectos seus,
essenciais.

A história da mãe que prende e salva o filho viciado traz à tona um pouco de tudo que já se
sabe sobre tráfico, violência, desemprego, informalidade no mercado de trabalho, relações
conjugais atormentadas pelas drogas, violência doméstica, proteção exercida pela rede
familiar etc. Neste sentido, apenas ilustra o que já sabemos e lhe infunde o colorido dos
fatos vividos.

Por outro lado, esse colorido talvez faça toda a diferença e nos leve a perceber o que as
categorias gerais dissolvem em sua penumbra envolvente logo elas, destinadas a iluminar e
esclarecer... No episódio intitulado A Mãe, estão presentes A família, O tráfico, A droga, A
dependência química, é verdade, mas de um modo que talvez nos abra a cabeça e nos faça
ver e sentir algo mais. Visto de perto, dizem, ninguém é normal. Vista de perto, a vida
surpreende. De perto, o artigo A é minúsculo e aponta para realidades singulares e
estranhas, que amiúde traem as categorias. Essa estranheza (este excesso que desafina e
transborda limites e classificações, exigindo de nós o refinamento dos instrumentos de
percepção) talvez carregue o que verdadeiramente importa.

com freqüência, as categorias, mesmo a serviço da ciência, acabam rotulando e
estigmatizando grupos humanos e indivíduos. Não existe O tráfico, nem O traficante, e sim
muitas formas distintas de vivenciar o ingresso, a saída, a participação e a liderança no
mundo múltiplo e heterogêneo que designamos com a categoria genérica tráfico. O mesmo
vale para as outras categorias. Não existe O crime nem A droga ou A família, mas
realidades muito diferentes dentro do universo designado por essas categorias. A janela
secreta que devassa a experiência humana está na diferença, está nas qualidades que
distinguem e particularizam, assim como estão aí as chaves para eventuais soluções dos
problemas.

Vamos tomar um exemplo bem concreto, uma situação em que o filho da gente seja o
personagem central. Digamos que a gente descubra que o próprio filho está mergulhado no
vício. Vou me colocar na cena. Se eu disser: "Estou arrasado, meu filho caiu na droga",
talvez eu esteja usando rótulos que deslocam as boas perguntas. Entendo por "boas
perguntas" aquelas que ajudam a esclarecer o que está acontecendo e a reduzir o sofrimento
de todos os envolvidos. Talvez as boas perguntas fossem mais ou menos as seguintes: "O
que

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a relação com a droga significa para meu filho, nesse momento de sua vida?" e "Qual será o
nexo entre a relação que ele estabelece com a droga e a minha relação com ele?". A "droga
em geral" desapareceu, no contexto dessas indagações, e foi substituída pela atenção a uma
vida e a um momento, com significados e emoções, numa teia única de relações. Quando
eu, enquanto pai, passei a formular boas perguntas, o rótulo droga ou A droga, que só serve
para acusações, cedeu lugar à vontade de ouvir e compreender. Ao invés de julgar, eu incluí
a mim mesmo no problema e defini como meu objetivo a diminuição do sofrimento das
pessoas. Falar na "droga em geral", aplicando o nome maldito ao caso do nosso filho, nos
afasta de nossos filhos e nos cega para o que importa. O mesmo vale para os filhos dos
outros. Por isso, nós, dessa vez como sociedade, podemos ajudar ou atrapalhar, dependendo
do modo pelo qual formulamos as perguntas e orientamos as ações.

Temos de entender que o âmago central da experiência pessoal confunde-se com as
qualidades únicas e irrepetíveis que moldam e distinguem os fenômenos. A verdade talvez
habite o subsolo dos fenômenos, onde a luz da categoria não penetra, onde não passa o
filtro que busca suprimir as diferenças e reter aquilo que, sob a diversidade, mantém-se
comum.

Evidentemente, vale insistir, há aspectos comuns nos fenômenos do tráfico ou da
dependência, e, graças a eles e às categorias que os apreendem, podemos estabelecer
referências gerais e pensar as grandes linhas de desenvolvimento da sociedade e de seus
problemas. Entretanto, nas conversas cotidianas, na mídia e na política, as palavras de apelo
geral servem mais para esconder as diferenças, a complexidade e a multiplicidade de
sentidos envolvidos nos processos históricos. Por isso, eu dizia: as categorias perdem sua
função cognitiva e se convertem em estigmas.

O maior exemplo talvez seja a palavra violência. O que fazer com A violência? Como
acabar com Ela? O que A provoca? Num passe de mágica, embutimos numa gavetinha
exígua um mundo vasto de situações. Nesse caso, o resultado é o mesmo: esta redução não
serve ao conhecimento e à solução dos desafios, mas funciona como um analgésico e um
estupefaciente: diminui o incômodo que sentimos e nos distrai do fogo em que arde nossa
consciência, queimando as certezas e arruinando nossa paz interior. É o equivalente a uma
droga. Só que, neste caso, o tráfico é legal, ainda que o consumo embruteça as pessoas e
dificulte soluções.

Assim sendo, regra geral talvez só haja uma: não há regra geral. Portanto, prepare-se para
ouvir cada história. Antes de julgar, ouça. Ouvindo, copreenda

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(antes de julgar). Se achar indispensável, julgue, mas não use o veredicto apenas como um
subterfúgio para consagrar sua própria inocência.

Vamos recordar o que este relato - que reescrevi, sintetizando o que ouvi
- nos permitiu ver de perto: a vida miserável, duríssima, pode ser celebrada com a alegria
dos afortunados, porque foi reconquistada com bravura. A família se uniu e lutou com
unhas e dentes pelo que parecia perdido. O cotidiano mais pesado tornou-se uma bênção,
porque foi recuperado. O esforço para recuperá-lo jogou nova luz sobre o valor de cada
laço afetivo. O perdão restaurou um convívio que fora degradado e estivera
irremediavelmente condenado. Nenhuma recomendação terapêutica foi ouvida. A família
simplesmente improvisou, abraçando-se e construindo a solidariedade como arma contra a
destruição. Na ausência de serviços públicos de saúde, a mãe inventou uma fórmula que
acabou funcionando, naquele caso específico. Prendeu seu filho, preso pelas drogas. Para
libertá-lo, fez dos parentes vigias, no cárcere doméstico que improvisou. Cárcere afetuoso,
que era tudo menos uma condenação, porque soltava, no espírito de Sidnei, a esperança e o
potencial para recomeçar. Não havia grades ou força física que Sidnei não conseguisse
dobrar à sua vontade, caso decidisse voltar às drogas. A única força que havia era simbólica
e significava proteção. Sua mãe a engendrou quando o recebeu, derrotado e andrajoso, num
banho que o rebatizou: entrando com o filho n'água, a mãe não só lavou os males do
mundo como, infantilizando Sidnei, deu-lhe a segunda chance. Renascimento: ele, que se
sentia lixo, pó, vestígio de gente; ele que se desfizera em plena Presidente Vargas, cinza no
olho do sol, no centro do Rio; ele, Sidnei, pôde, finalmente, reencontrar a fonte da vida - a
água e o leite -, depois de verter, simbolicamente, todo o seu sangue, drenando sua vida
pregressa pelo ralo do vício. Sidnei zerou a vida, recuando à origem, para recriar-se. Por
isso, certamente, buscou a casa da mãe e não a sua própria. Antes de reconquistar esposa e
filhos, casa e vida adulta, era preciso reconstruir-se em novas bases - todo seu destino,
passado e futuro, teria de ser reescrito. Sua esposa o aguardaria, Penélope de Anchieta,
enquanto Sidnei-Ulisses enfrentaria deuses e dragões, em sua odisséia mental. Auto-estima
reerguida, homem de pé, retornaria a ítaca, sua ilha, sua casa.

Quando a rotina modestíssima é o triunfo sobre a ruína, ganha novos sentidos. É iluminada
e brilha como um milagre. Sim, ela é a mesma, do ponto de vista material. Mas não é a
mesma para quem a vivencia depois de uma temporada no inferno. A dependência química
significou a oportunidade para uma crise extrema, cujo fruto foi a revalorização dos laços
conjugais e

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familiares e a reedificação da própria identidade individual. Essas pessoas nunca mais serão
as mesmas e jamais poderiam ser encaixadas no jogo de armar das classificações. Em sua
vida, o que antes era falta e precariedade, agora é realização vitoriosa, patrimônio sagrado.
Proximidades perigosas com o tráfico foram abolidas e as possibilidades de futuro se
redefiniram. Tais possibilidades perderam o vínculo original, magnético e aprisionante,
com a realidade socioeconômica. A Realidade com R maiúsculo, para toda a família,
superior a todas as demais condições, passou a ser a vitória comum sobre o desespero. A
condição de que se parte, agora, é o triunfo da vida sobre a morte. Este é o verdadeiro
reencantamento do mundo. Para o indivíduo, não há revolução mais radical.

E o que a felicidade, a satisfação consigo mesmo, não faz? O voto de Sidnei será o mesmo,
depois da recuperação? Sua postura diante dos filhos e da comunidade será a mesma? Sua
família será a mesma? O sentido de família, para eles, permanecerá inalterado?

133


NÃO FILMA Eu chorando.

Sou cria daqui dessa favela, mas não sei direito o lugar onde nasci. Morava com minha mãe
e meu pai. Ele ja era da boca. Meu pai era bandido daqui, mas em sua época, parece que ele
- isso é o que vagabundo fala pra mim - fechava com os alemão. Aí, quando virou outra
facção e tudo, meu pai teve que meter o pé.

Minha mãe, na falta dele, faleceu. Então, fui morar com minha avó e fiquei morando com
ela dos dez aos 15 anos. Agora, estou com 16 e vai fazer dois meses que minha avó faleceu.

A primeira boca que eu plantei foi sem a minha família descobrir. Eu tinha dez anos. Foi na
boca do Ariosto, onde estou até hoje, com 16 anos, seis anos na vida do crime. Nessa boca,
eu fiquei como responsável um tempinho, depois saí, rodei, fiquei um tempão devagar, um
mês devagar, depois formei de novo. A minha vida toda é aqui, só fico aqui, não saio daqui
pra nada, desde quando minha equipe** entra até quando a equipe sai; de lazer eu só curto
baile na favela. Pra falar a realidade, nunca fui pra lugar longe. Pra fora da minha favela eu
nunca fui não.

Quando eu entrei muita gente falou pra caramba; muita gente falou comigo que eu era
muito novo; tinha até uns amigo que reclamava com o patrão: vai botar um menor na boca
com dez anos?

Era difícil a boca aceitar os moleques com dez anos de idade. A maioria aceitava, mas
nessa era difícil. É que os menor não têm muita responsa: eu não tinha fuzil, não tinha
peça***, nada, minha vida era vender, vender e meter o pé. Mas agora você pode ver aí, ó,
tá cheio de menor aqui na boca da gente. Eu não acho isso certo não, tipo se fosse meu
irmão eu não deixava não. Não deixaria alguém de dez anos entrar no tráfico não, porque
ele não estaria preparado. Se, por exemplo, acontecer algum bagulho e os amigo se
entocar**** e ele souber onde tem uma responsa, tipo um fuzil, umas cargas

* Este relato foi registrado, em 2002, por Celso e Bill, e foi preservado, no presente capítulo, com alguns cortes, em sua forma original
Quem fala é um adolescente que tinha 15 anos, à época da entrevista Uma segunda entrevista com o mesmo personagem foi conduzida
por Hélio R S Silva, em 2003. Nela, os mesmos fatos são mencionados, quase exatamente nos mesmos termos. Os nomes mencionados
são fictícios
**Equipe significa quadrilha.
***Peça significa armamento
**** Entocar significa esconder
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de pó, de maconha, e se os homens pegar ele e der um sarava* bonito, ele não vai agüentar
as porradas e vai entregar o dono da favela, vai entregar todo mundo. Então é mais fácil
esperar um tempo até fazer uma idade maneira, ter uma carcaça maneira, que aí ele vai
estar preparado pra entrar no mundo do crime. Eu acho assim.

Menor pequeno assim, quando entra na boca, corre o maior risco de rodar**. Na minha
primeira semana eu rodei, fui pró Padre Severino. O Padre é tipo cadeia; é uma cadeia de
menor; tem visita, tem tudo, não dá pra fugir, só se for rebelião. Melhor fugir do Criam***.
Eu tenho oito entradas no sistema, oito entradas: quatro no Padre, uma no Criam e três no
Ézio. Era uma época que os canas não estavam pegando arrego****, aí eu rodava direto. Eu
ia preso, na semana seguinte fugia e assim ia...

Outro dia um colega meu rodou, rodou na treta dele, o X9 deu ele. Os canas já chegaram
chamando ele de Feinho, que é o apelido dele: "E aí, Feinho, o que é que tem pra perder?"
E ele: "Não tenho nada pra perder." Mas os canas acharam com ele um dinheiro, duas
trouxa e vinte papel de pó de dez. Aí ele desenrolou, desenrolou. Os homens iam jogar ele
na dura. Sorte que ele desenrolou à vera. Aí os canas liberaram ele, mas ele ficou pagando o
cheque seqüestro uma caralhada de tempo. O pior é que, para os menor, os amigo não paga
arrego não, deixa ir de dura, porque é de menor, vai pró Padre e vai sair rápido, mas se é de
maior, se tem 20, 21 anos, ainda mais se tiver uma cadeia nas costas, eles já mandam um
dinheiro pela liberdade. Não manda mil, dois mil, não, manda 500, na continuação manda o
resto. Quando isso acontece, os amigos***** mandam logo uma letra pra tu: "Tu rodou,
né?, então fica ligado na responsa..." Se o cara rodar de novo, tem que pedir a Deus pra não
rodar, porque se rodar vai entrar na porrada e ainda vai conhecer a cadeia. Por isso é que eu
acho que tem que pagar os cheques mesmo e honrar o crime.

De vez em quando acontece comigo. É por isso que eu sou pichado por todos os plantões:
plantão do "fulano", do "sicrano", do "beltrano". O pior plantão aqui é do "fulano": ele
entra na casa de todo mundo; tem uma chavezinha que abre as casas dos moradores. Se o
morador não tiver em casa,

* Sarava é o mesmo que baculejo, uma dura, revista policial bruta - o mesmo, portanto, que salseirar ou passar o pente-fino.
** Rodar significa se dar mal.
*** Criam é a sigla pela qual se tornaram conhecidos os Centros de Reabilitação Juvenil em Regime Semi-aberto.
**** Aceitando propina.
***** Amigos, na linguagem interna ao tráfico, significa traficantes do mesmo grupo.
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ele leva tudo. Isso é errado, a guerra dele tem que ser só com nós. Por isso que os
moradores não gostam de polícia. Eu, por exemplo, estou devendo um dinheiro aos canas.
De mim, eles falam assim: "Aí, se eu pegar o Mariano, é dura"; uns falam que se pegar o
Mariano é morte.

Mas o pior de todos é o PM "beltrano". Quando ele pia na área, vagabundo já vem logo:
"Sujou maloqueiros, ninguém pia na pista, é o beltrano, mane, é o beltrano!" Porque ele é
safado: pega o arrego e depois quebra o arrego, tá ligado? Ele é olho grande. O cara que
fica nessa missão vai lá, leva a grana dos homens pra gente poder trabalhar, aí a gente bota
o bloco na rua e, mesmo assim, "beltrano" e alguns deles entram pra ver se pegam alguém
pra arrumar um dinheiro. Só que aí o bloco já está na rua, cheio de fuzil na pista. Por isso é
que muito morador morre, só por causa do olho gordo deles. Eles metem a maior marra
quando te pegam. O valor quem fala são eles, os canas, tipo se eu for pego não sou eu que
falo o preço não: eles olham assim pra tua cara e falam "Tu vale três mil", faz um contato lá
pra virem três mil pra tu. Se os amigos falar que não têm três mil, a chapa esquenta pró
nosso lado, porque a gente não vale nada, falcãozinho não vale nada.

UM ANO E MEIO DEPOIS

Minha vida não vale dinheiro nenhum; eu não vendo minha vida por nada; eu estou nessa
pra ganhar ou pra perder, mas, na fé, eu peço a Deus que até os 18 anos não aconteça nada
comigo. Eu peço a Deus, quero que não aconteça nada comigo. Se eu sair da boca aos 18
anos, minha ficha vai limpar e eu vou andar assim, todo certo. Quando eles me virem, eu
vou dizer: "Opa, eu sou trabalhador." Vou logo dando carteirada neles. Vou ficar
tranqüilão: "Estou cumprindo quartel e vocês não podem fazer nada comigo, porque agora
eu sou trabalhador." Não vão poder fazer nada.

Eu não vejo chance do crime acabar, porque, se acabar o crime, acaba a polícia. Se acabar o
crime isso acaba com a polícia, porque quem dá dinheiro prós polícia somos nós. (...) Não é
o tráfico de drogas? Se não fosse o tráfico de drogas, hoje, os policiais iam tirar só o salário
deles e eles tiram o salário e também o dinheiro da propina que nós pagamos. Se acabar o
tráfico de drogas, eles vão ter de acabar com a polícia; então, o tráfico de drogas não vai
acabar tão cedo.

Aparece, da as caras
136


O horário em que os canas podem ficar aqui dentro da favela vai de oito da manhã até as
dez da noite. Depois das dez, não pode passar mais. Se eles estiverem no DPO, têm que
ficar vendo televisão. Se botar a cara a gente rasga - tá tudo errado, mas é o crime.

PLANTÃO

O esquema aqui é assim: quando o parceiro está cansado, eu fortaleço ele; quando ele
precisar que eu renda ele pra ele dar uma descansada, eu rendo ele; aí, quando eu estiver
cansado no meu plantão, ele vai lá e me rende também. Se eu quiser dar um dinheiro pra
ele, pra ele marcar pra mim, ou se ele quiser dar um dinheiro pra eu marcar pra ele, eu
marco. E, por exemplo, se não tem ninguém pra me render, eu faço assim: eu vou cheirar
pra não vir algum amigo e me pegar dormindo na atividade. Eu sou bandido, nunca vou
deixar um sujeito dar tapa na minha cara, botar a arma na minha cara e falar tu vai morrer...
Tô ligado em qual é a da responsa. Sou usuário de cocaína e tenho de usar a cocaína pra
não dormir, mas não sou viciado não. Se eu quiser parar, eu paro.

Tem dois meses que eu estou nessa equipe, aqui. Quando eu estou aqui na equipe e começo
a sentir meu corpo cansado, eu vou ter que dar um pra não dormir na atividade. Tem que
ficar acordado pros amigos não vir aqui e me pegar dando mole na atividade, pra não ter
motivo pra eles querer vir me esculachar. Porque eles sabem, quando eu fizer 18 anos, eu
vou sair da boca, então eles podem falar: "Vamos apanhar ele logo, porque quando ele fizer
18 anos ele vai sair da boca." Então eu já fico escaldado*. Não vou dar motivo pra
vagabundo vir me apanhar, me pegar dormindo e querer fazer alguma maldade comigo.

Existe uma lei aqui da favela que tem que ser cumprida: quem tem maldade, tem que
morrer; aqui, todo bandido tem que ser puro. Esse radinho aqui não é só pra polícia não, é
geral**. Quando o cara entra lá na ponta, nós aqui já estamos sabendo. Sabemos aonde ele
foi, com quem falou, tudo pelos radinhos. Cada falcão fica de olho no movimento e vai
avisando aos outros. Todo mundo tem que ficar ligado para não fazer merda, para não atirar
em neguinho que não tem nada a ver. Nós temos que ter certeza para atirar, porque, se for
morador, se for inocente e nós matar, nós vai morrer também: é a lei.

* Escaldado significa ressabiado, com o pé atrás.
** Geral significa todo mundo ou para todos.
137


Se for carro* mandado, nós aplica**, senão nós não pode fazer nada. Se ficar olhando
muito, nós enquadra*** o carro e manda descer: "Desce, desce, desce." E aí nós revira o
carro todinho. Se tiver alguma coisa, arma, qualquer coisa suspeita, já era... Não pode é
errar e atingir inocente, fazer mal ao morador. Se isso acontecer, a gente morre. Se nós
maltratar morador, o morador maltrata nós. Se nós souber levar o morador no talento, se
nós souber fortalecer o morador, o morador fortalece nós. Se precisar de alguma coisa, eles
ajudam; tem alguns moleques que chegam assim botando terror no morador, aí se ele
precisar entrar dentro de uma porta e o morador fechar a porta na cara, vai estar certo...
Aqui, o geral dos moradores gostam de mim, de mim e de outros que tá lá embaixo. Nós
aqui temos o queijo e a faca na mão.

VANTAGENS

A vantagem de estar na vida do crime é arrumar dinheiro. Só isso, ter dinheiro no bolso, ter
dinheiro direto. Estando aqui, nunca vou estar duro; posso estar duro hoje, mas amanhã eu
sei que vou estar com dinheiro. É um dinheiro maldito, mas é um dinheiro rápido que a
gente tem necessidade.

Só que tem as desvantagens também, que é rodar e ser morto, ser morto na mão dos
amigos. Vagabundo botar tu na mancada, falar que tu fez um bagulho que tu não fez. Já
aconteceu comigo: ser acusado de um bagulho que eu não tinha feito. Foi uma vez que os
homens invadiram a favela e eu rodei primeiro, depois o Neto rodou também. Aí os canas
começaram a dar puxão no cabelo dele. Ele não agüentou e dedurou onde estava o dono do
morro e denunciou as mortes todinhas que tinha na favela. Falou tudo pros canas. Aí o dono
da favela já tava desconfiando que fui eu que xisnovei, porque eu apanhei pra caralho: os
canas vieram só de chutão, me amarraram atrás da árvore, só me davam madeiradão. Os
canas falavam assim: "Fala, fala Mariano, fala cadê ele, fala." Eu só repetia: "Mano, eu não
sei de nada; eu não sou da boca, não; não sou bandido; mano, eu não sei de nada..."

Os canas pegaram o chefe. Ele foi para o cativeiro dos polícia e começou o desenrolo de
dinheiro. Vários amigo estavam achando que era eu, só faltava

*carro-Mandado é pessoa ou veículo inimigo, cujo objetivo é prejudicar o oponente.
** Aplicar significa enquadrar.
*** Enquadrar significa revistar, prender ou pegar.
138


a prova. Ouvi várias piadinhas com meu nome. Eu dizia que nunca dei mancada e que não
ia sair da favela, quando o chefe saísse nós ia cair no miolo, todo mundo.

Quando o chefe pagou o arrego, ele ofereceu mais um dinheiro pros polícia dizer quem é
que xisnoveou ele. Os canas pediram cinco mil e mais 60 pra liberdade dele. A mina que
foi levar o dinheiro voltou e disse que não tinha sido eu, disse que eu tinha apanhado pra
caramba mas não tinha dito nada. Pô, família, fiquei fortão no bagulho.

Como o dono da boca era parente do moleque que deu ele, os amigo deram seis dias para
ele meter o pé da favela. O moleque não ralou; ficou de deboche. Isso foi numa segunda-
feira. Na sexta, o patrão estava boladão* com alguma coisa. Pegou a 40, explodiu a testa do
moleque, bum!, e jogou no mato. Eu não sabia de nada, estava dormindo, esperando o meu
plantão pra começar os trabalhos. Ele ligou pra mim: "Mariano, vem pra cabeça de porco
que você tem uma missão pra fazer", e eu falei: "Já é, mano." Mas fiquei escaldado. Fui
com meu fiel, um menorzinho, o Chiquinho. Ele falou assim pra mim: "Olha aí o que está
dentro do mato", aí quando eu levantei o mato, quem tava era o Neto, sobrinho dele. Eu
disse: "Mas qual foi? Qual foi? Por que você derrubou o Neto?" "Porque foi ele que me
xisnoveou, não foi tu. Eu estava desconfiando de tu, mas não foi tu que me xisnoveou não.
Foi mal. Valeu, meu parceiro." Eu falei: "Já é." Aí ele mandou eu picotar o Neto todinho.
Eu não soube picotar um braço, aí ele foi e pá, picotou e deixou o braço mole, aí eu fui e
pá, arranquei, arranquei o outro braço, arranquei as duas pernas e, depois, o outro
menorzinho que estava comigo arrancou a cabeça. Aí nós botamos dentro das bolsas e
jogamos lá atrás do mato. Foi só isso, só dessa vez que eu fiz uma coisa errada. Depois
nunca mais, graças a Deus!

Pode perguntar a quem quiser do meu proceder. Eu sou puro, sou legal, eu não tinha
necessidade de ficar na vida do crime. Eu queria o amor de uma tia, de uma mãe, isso que
eu nunca tive, o amor de uma família, que quando eu precisasse para conversar, ela
estivesse lá, viesse conversar comigo. Mas eu nunca tive. Se eu tivesse uma família pra
conversar, eu não estaria nessa vida não, não estaria não. Desculpa aí, eu não queria chorar
não, não filma eu chorando, não, filma não.

*Boladão é o mesmo que ressabiado, cismado, com o pé atrás.
139


VIOLÊNCIA NA PRIMEIRA PESSOA

Este depoimento nos coloca diante da violência narrada em primeira pessoa, isto é, descrita
do ponto de vista do sujeito que a protagoniza. Trata-se de um relato exemplar, que traduz
com fidelidade aspectos relevantes do universo de jovens e adolescentes envolvidos com o
tráfico de drogas e armas, em favelas de várias cidades brasileiras. Por outro lado, nos traz
a tonalidade única de uma vivência humana singular.

Deixando de lado o contexto e as análises sociológica, antropológica ou psicológica, o que
se destaca no trecho citado da entrevista é o pudor com o choro, em contraste com o
despudor que marca o relato do esquartejamento de Neto, uma criança de dez anos de
idade, da qual participam Mariano e seu pequeno assistente, cuja idade não é mencionada,
mas certamente gira em torno da idade da vítima.

É necessário precisar o sentido do pudor. A manifestação de vergonha, acompanhada do
pedido de discrição - "Não filma..." -, refere-se ao ato de filmar, não à presença dos
interlocutores. Ante tais interlocutores, Mariano se rende sem pejo; para eles, aceita
desnudar sua intimidade, revelando-lhes sua emoção, sua fraqueza. A câmera, entretanto,
traz consigo a presença de um terceiro olhar," que incide sobre a intimidade de uma outra
forma, a qual devemos interpretar, para que não se percam os significados da relação que o
sujeito da violência estabelece com seu ato, ou com a memória do ato, ou com a narrativa
do ato, ou ainda com a memória narrada do ato.

Registre-se que o universo do crime e da violência não é vazio de valores: há uma ética no
crime e mesmo uma moral na violência, ou várias, das quais passagens do relato dão
testemunho. Por exemplo, a lealdade ao líder, que exige resistência estóica à tortura. Nesta
persistência brava em não delatar está em jogo mais que interesses utilitários, como manter-
se no grupo, usufruindo os benefícios deste pertencimento, e preservar a própria vida. Está
em jogo também o apreço por valores imateriais.

Retornemos ao pudor: a câmera corresponde à presença de um terceiro olhar, de um
terceiro ponto de vista, que escapa ao círculo imediato da interlocução face a face: faz-se
presente, portanto, além do emissor do relato, Mariano, e de seus receptores diretos, uma
audiência virtual, atualizada pelo olho vazio da câmera. Este observador externo é qualquer
um e são todas as pessoas - sugiro que este "todos" seja entendido como a projeção
idealizada

140


e multiplicada do indivíduo: qualquer indivíduo, mas, justamente porque as diferenças não
têm importância, igual a todos. Trata-se, portanto, de um indivíduo que não é qualquer,
portanto, mas sempre a expressão do que, em todos, é comum e essencial, isto é, universal.
Todos aqui são, em seu conjunto, a sociedade, a unidade do social, enquanto fonte do
julgamento moral (poderíamos evocar as figuras da Lei, do Juiz, de Deus ou do Pai).

O indivíduo que estará do outro lado da câmera - para quem é filmado e apenas supõe sua
futura presença -, este indivíduo imaginado não é de carne e osso, mas o representante ideal
da sociedade, em seu aspecto mais profundo de unidade, que se confunde com a Lei e a
Moralidade. Conseqüentemente, o observador externo materializado pela câmera precipita
a cena sobre um abismo imaginário, carregado de valores e julgamentos - valores e imagens
oferecidos pelo repertório de nossa cultura.

O outro virtual integrado à cena pela câmera é, portanto, o juízo, a fonte do julgamento
moral. É neste espaço virtual que Mariano deposita o motivo de sua emoção ou a razão pela
qual o relato que o emociona, mesmo não merecendo o encobrimento envergonhado ou a
censura narrativa, provoca lágrimas que devem ser ocultadas. Ocultadas não dos
interlocutores imediatos, vale repetir, mas do outro virtual, deste olhar ausente mas
perturbador, que devassa a intimidade e julga, devolvendo ao narrador o corpo reintegrado
da vítima esquartejada. Vou explicar.

A unidade do corpo de Neto é o espectro evocado pelo observador externo, esta instância
crítica que Mariano imagina e que se faz presente pelo olho mecânico da câmera. A
presença (suposta) do olhar crítico faz com que os atos e gestos mencionados no relato
deixem de ser - como parecem ser, quando ouvimos a fala de Mariano - contingentes,
dissociados entre si, casuais, fortuitos: "Foi só isso, só dessa vez." Deixem de ser, enfim,
desmembrados e adquiram a consistência de um corpo, a unidade de um corpo, a
necessidade vertebradora de um corpo, a indissociabilidade de relações orgânicas,
sistemáticas e funcionalmente articuladas. Todo esse movimento de integração entre fatos e
atos, mencionados no relato de Mariano, ocorre porque os atos e gestos referidos neste
relato passam a remeter a um personagem, Mariano, sujeito da narrativa e da
responsabilidade. Esta remissão deve-se ao juízo moral, representado pelo olhar da
sociedade, que a câmera transporta consigo, ao ligar a luzinha que diz: estamos gravando,
portanto, alguém verá e julgará (alguém que poderá ser qualquer um e que, por
conseqüência, estará no lugar de todos, quer dizer, da sociedade).

141


A narrativa de Mariano reproduz o esquartejamento em sua própria forma, na medida em
que trata a mutilação como episódio fortuito e isolado, em meio ao oceano de fatos que
compõem sua biografia, mas a audiência virtual, presente graças à câmera com-a-luzinha-
acesa, assombra a consciência de Mariano, atormenta-o e repõe diante dele, enquanto
sujeito do ato, não apenas a mutilação do cadáver, mas a relação (entre sujeito e ação) que
estabelece a autoria ou o protagonismo do sujeito. Foi Mariano quem mutilou.

A mutilação de Neto não aconteceu como mais uma lembrança entre tantas, como se não
tivesse sido mais que simplesmente uma cena que se desenrolou diante de Mariano e que
apenas contou com sua colaboração - como se ele se reduzisse a um coadjuvante de sua
própria história. A câmera recusa o tom blasé do Mariano - turista, que finge flanar,
inocente e distante, em sua própria história, mesmo quando o relato maldisfarça o
cataclismo em que se meteu. O esquartejamento foi conseqüência da ação de um sujeito
real, dotado de nome e memória. A unidade que une atos apartados pela narrativa, situando-
os no centro da biografia, é o valor atribuído pelo juízo moral, cuja fonte é a audiência
virtual, inscrita na cena pela câmera. Em outras palavras, é o juízo moral que confere
unidade aos atos, responsabilizando Mariano e o definindo como sujeito, suprimindo, no
mesmo movimento, o caráter aparentemente casual e contingente das ações.12

Contudo, há um deslizamento interessante e revelador no relato. Ainda que a cena central,
objeto das autojustificações - "Eu sou puro, sou legal"; "Quem tem maldade tem que
morrer; aqui, todo bandido tem que ser puro" -, seja o esquartejamento de Neto, o foco se
desloca rapidamente, quando Mariano salta da justificação que relativiza seu ato para as
declarações relativas à falta de amor: "Eu queria o amor de uma tia, de uma mãe, isso que
eu nunca tive, o amor de uma família, que quando eu precisasse para conversar, ela
estivesse lá, viesse conversar comigo. Mas eu nunca tive. Se eu tivesse uma família pra
conversar, eu não estaria nessa vida não, não estaria não. Desculpa aí, eu não queria chorar
não, não filma eu chorando, não, filma não."

O choro não acompanha a descrição do ato de "picotar" a vítima, ainda que venha em
seguida. O choro, de fato, acompanha a referência à falta de uma tia, mãe ou família. E o
sentimento de que o choro constitui um erro (ou o desnuda) mostra-se no pedido de
desculpas: "Desculpa aí, eu não queria chorar não." Logo vem o pedido para que a
filmagem seja suspensa. Portanto, nesse deslocamento, é o choro o ato a ser escondido. Mas
o choro revela não só a emoção que denota a fragilidade de quem chora. O choro também
assinala, revela, sublinha a relação entre o corpo e o sujeito - o corpo

142


com sua materialidade, sua relativa independência, manifestando-se em linguagem própria.
O pranto, através da mediação do corpo, dramatizando a relação entre corpo e atos, registra
a conexão inquebrantável entre o sujeito e seus atos. Ou seja: o pranto é a linha que costura
a unidade entre o sujeito e seus atos, linha que o tom indiferente adotado por Mariano, no
relato, tentara rasgar. Neste sentido, o pranto responsabiliza, porque a linha que tece a
unidade entre sujeito e ação é a moralidade, é o valor.

Corpo e sujeito, sujeito e seus atos: eis as conexões das quais Mariano procura esconder-se,
escondendo dos outros e, em especial, do Outro - com maiúscula -, aqui representado pela
audiência virtual evocada pela câmera.

Recapitulando: por culpa e vergonha, Mariano tenta picotar seu próprio relato, para não se
defrontar com sua responsabilidade sobre seus atos. Se os atos perdem a unidade que os
liga entre si e perdem o vínculo com seu autor, se as ações flutuam separadas, como
acontecimentos sem sujeito, Mariano consegue exorcizar a responsabilidade sobre os
efeitos de sua ação. Quando a câmera acende a luzinha, indica a existência de um auditório
ilimitado. Esse auditório é diferente de um ou outro indivíduo, que se coloque diante de
Mariano, ouvindo o que ele diz e interagindo com ele, que ele pensa poder manipular ou
que ouça o que ele tem a dizer, naquele momento que vai ser sucedido por outros
momentos, até diluir-se na memória - porque são fugazes as memórias individuais e são
sempre muito pessoais os juízos individuais. Por tudo isso, é suportável enfrentar juízos
individuais.

Mas o diabo é a luzinha; é a câmera. Qualquer um estará do outro lado, vendo e ouvindo a
história de Mariano. Qualquer um é o nome provisório e singular que damos a todos; sim,
porque a história, uma vez gravada, torna-se objeto potencial da atenção de todos. Todos é
o nome de um conjunto que traz em si as características elementares dos indivíduos,
eliminando, entretanto, pela sobreposição, os aspectos que escapam ao que é comum.

Desesperado ante a autocrítica que se esboça em seu íntimo - sua estratégia de picotar o
próprio relato não funcionou, superada pela força do juízo crítico implicado no olhar vazio
e carregado da câmera -, Mariano desloca o foco para o vazio de afeto em que naufragou.
Em seguida, chora e mostra pudor pelo choro, não pelo esquartejamento que perpetrara. Em
o fazendo, volta a tropeçar nas próprias pernas, porque o choro exibe e realiza,
simbolicamente - pelas razões já expostas -, a unidade que o esquartejamento do discurso
tinha procurado dissolver.

No relato de Mariano, caem as máscaras. O narrador depõe as armas. Salta aos olhos, pelo
milagre da câmera, a angústia que picota seu espírito.

143


Sua vida está esquartejada: de um lado, o sujeito que mutila, o adulto brutal; de outro lado,
o sujeito mutilado, a criança sem afeto, que reivindica o acolhimento de uma tia, da mãe, da
família, e o reconhecimento social que o conduza à maturidade, à idade adulta, pela porta
da frente. "Se eu tivesse que ser motivo de orgulho pra alguém", ele diz, "queria ser
orgulho pra minha avó." O importante, aqui, é a vontade de ser motivo de orgulho para
quem o amou. Mariano, em seu relato, pelo avesso, clama por redenção integradora, por
unidade. Esta unidade, ele só a reencontrará quando se reconciliar com o valor, a
responsabilidade cidadã, o juízo moral. Mas é provável que estas virtudes estejam
guardadas (e perdidas) no colo da mãe, no abraço do pai.

Ao nos debruçarmos sobre esse pequeno fragmento de discurso, terminamos por registrar
uma cena em que a sociedade se intromete - como um superego crítico - na intimidade do
gesto de um menino, Mariano, pelo abismo de uma câmera, introduzindo em sua
consciência a dimensão do juízo moral. Essa pequena descoberta terá um valor inestimável
quando discutirmos o que fazer para ajudar os jovens violentos a mudar de vida.

Outro ponto de especial interesse no relato de Mariano aparece no último parágrafo:
"Quando fizer 18 anos, eu estou saindo fora. Minha ficha vai cair toda, eu vou ficar todo
limpo, vou ser outra pessoa. Mas enquanto eu não faço, vou levando a vida do jeito que ela
é e não é brincadeira não, neguinho. Essa vida é doida."

Muita gente, justificadamente inconformada com a criminalidade violenta, pede mais
punição, penas mais severas, mais duras, mais longas. Por isso, a frase de Mariano
surpreende. Nela se diz o contrário. O fim da imputabilidade penal significa, para quem
cometeu e comete crimes, a oportunidade de mudar de vida. "Eu vou ficar todo limpo", diz
Mariano, "vou ser outra pessoa." A maioridade é vista como a chance para abandonar o
crime, justamente porque, ao completar 18 anos, expiram ficha e castigo. A equação, aqui,
se inverte: ao fim dos riscos de punição corresponde o fim do envolvimento com o crime.

Aliás, é curioso o que acontece com os defensores do Estatuto da Criança e do Adolescente,
entre os quais me incluo. Muitos se recusam a falar em penas para os jovens menores de 18
anos porque, no vocabulário do ECA, as sentenças judiciais não ditam penas, apenas
determinam medidas socioeducativas, que são cumpridas em instituições socioeducativas.
Não haveria, segundo esses militantes, penas privativas de liberdade, mas internações

144


com fins socioeducativos. Entendo os motivos e as boas intenções. Mas as conseqüências
desse purismo conceitual são paradoxais: a opinião pública acredita no que ouve, compra
gato por lebre e acaba convencida de que os jovens infratores ficam impunes, divertindo-se
com aulas de boas maneiras. Resultado: cobram punições.

Na verdade, quem já freqüentou uma dessas instituições "socioeducativas" logo
compreenderá o que são as tais medidas "socioeducativas". Elas nada têm de minimamente
parecido com o sentido elevado da expressão que os legisladores cunharam, sonhando
outros brasis. A garotada fica mesmo enjaulada, freqüentemente em condições subumanas,
muito pouco diferentes daquelas em que se encontram os presídios - estes estágios
superiores para os quais a prepara e empurra o inferno das Febens e dos Degases.13

Seria mais racional chamar prisão pelo nome, defender a verdadeira aplicação do ECA e
mostrar que, se a meta é castigar e vingar, a violência institucional já está de bom tamanho,
mas se o objetivo é afastar o jovem do crime, seria preciso: (1) oferecer oportunidades para
a mudança; (2) estimular o jovem a se desenvolver, como pessoa; (3) fortalecer sua auto-
estima (este ponto é chave, como veremos adiante); e (4) separar o futuro do passado, ao
invés de amarrá-los um no outro, que é o que acontece quando as chamadas instituições
socioeducativas esmeram-se em treinar os jovens para que realizem, na prática, a profecia
pessimista que sobre eles faz a sociedade.

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ESPALHAR PELA CIDADE o SANGUE DO IRMÃO*

Marco abriu a porta de casa com o ombro. Não havia mais o trinco que seu pai tinha
instalado. Seu pai costumava consertar as coisas da casa. Por absoluta falta de dinheiro,
mas também porque gostava de contar aos amigos suas proezas domésticas. Marco assistia
calado à meticulosa arte paterna, pacientemente. Por curiosidade e porque sentia uma
espécie de prazer difícil de explicar. Mas isso foi na época em que o pai morava com eles.
Há muito tempo a porta abria com um tranco que os mais hábeis davam com o ombro. Era
só acertar o lugar certo da porta e dar a pancada de uma vez. A vantagem era que as mãos
podiam estar carregadas. Por exemplo, com as bolsas cheias de compras. Se bem que para
essa finalidade a pancada de ombro não era muito útil, porque a mãe e Flora, que faziam as
compras da casa, nunca conseguiram aprender direito a técnica da ombrada.

Às vezes, quando a chuva e a lama empenavam a madeira da porta, era preciso forçar com
o pé, enquanto se pressionava em cima.

Marco entrou e saiu calado, indiferente aos sinais de Flora. Em parte, para não acordar a
mãe, tombada sobre a máquina de costura. Em parte, porque não queria mesmo conversa.
Sabia o que Flora ia perguntar. Era melhor deixar que a noite encerrasse em sua treva toda
interrogação. Marco fechou a porta atrás de si como seu pai sempre fizera. Sem uma
palavra. Ele sabia que um dia faria como seu pai: fecharia a porta para nunca mais voltar.

Flora sentia uma angústia danada, que ela chamava "aperto no coração", mas se resignava,
ajoelhada sobre seus recortes de jornal. Ainda bem que ela tinha seus jornais e sua incrível
coleção de recortes. Ninguém entendia uma obsessão assim disciplinada, numa menina de
nove anos: colecionar notícias de crimes, catalogar as mortes, separá-las, juntá-las, compor
os bloquinhos, nomeá-los, datá-los e arquivá-los. Até que uma tia explicou o caso e aplacou
o mistério: "Puxou ao pai." Era verdade, o pai lia jornal. Orgulhosa com a comparação e
honrada com a tarefa de perpetuar uma tradição, Flora gastava com os jornais cada centavo
que arrecadava. Quando não entendia as palavras, procurava no dicionário que a mãe
guardava no armário da sala. Ela

* O relato foi reescrito com base na entrevista que a protagonista deu a Míriam Guindani, em 2003. Os nomes são fictícios.
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tinha certeza de que um dia todo aquele conhecimento a tornaria uma pessoa muito
importante, capaz de ajudar seu irmão.

Era por isso que sentia aquele aperto danado no coração: Flora achava que Marco precisava
de ajuda. Não sabia bem por quê, mas intuía que alguma coisa estava errada. Temia os
meninos que o procuravam. Sentia raiva deles. Dizia que ele não estava, mentia, tentava
afastá-los de Marco. Alguma coisa estava errada. Percebia que ele estava se afastando, indo
embora, devagarinho. Mais tarde, desconfiou que a tal coisa errada eram as drogas. Na
igreja, ouvia falar muito das drogas.

Queria mergulhar o mais fundo que pudesse no mundo das drogas para aproximar-se de
Marco e ajudá-lo a voltar para casa. Sentia um impulso de lançar-se, encharcar-se na lama,
sair com Marco porta afora para, um dia, trazê-lo pela mão, para sempre.

A mãe dormia. Passava o dia fazendo faxina. Era preciso muito barulho para despertá-la.
Talvez sonhasse com o dia do casamento. O marido desapareceu com um dos convidados.
Depois de 15 dias, reapareceu magro, frágil, triste. No pesadelo, talvez não fosse um
jogador compulsivo. O enredo, quem sabe?, poderia ser diferente. O sonho não tem que
copiar a vida. Melhor deixá-la dormir.

Flora tinha dois anos quando o pai saiu de casa. A mãe ia para o trabalho quando ainda
estava escuro. Deixava água e comida no chão e trancava a porta. Até os cães descobrem o
que fazer. Por que uma criança não sobreviveria?

Aos seis anos, Flora reencontrou o pai e encantou-se por ele. Nunca mais deixou de visitá-
lo. Ele saía da casa em que jogava para enchê-la de beijos. Despediam-se com um abraço.

Quando viu o corpo de Marco no caixão, Flora decidiu afogar-se num oceano de ódio. Quis
vingar-se dos vermes. Os companheiros do irmão estavam presentes e lhe disseram que
Marco e outros três rapazes foram mortos pela polícia.

Pensou em sair dali direto para a boca, com os rapazes. Nunca mais seria a mesma.
Substituiria seu irmão na gerência do tráfico e tripularia o bonde mais cruel da cidade.
Espalharia pela cidade o sangue de seu irmão. Não fez nada disso.

Todos os dias, a mesma rotina, que ela estava fatigada de recortar e ler, nas rádios
comunitárias. Desde os 12 anos, tornara-se locutora. Perambulava de uma rádio de poste a
outra, contando as notícias que recortava às famílias das comunidades do Rio de Janeiro.
Faltou-lhe voz, naquele dia. Flora cintilava naquele fogo, irremediavelmente
desassossegada.

No sepultamento do irmão, conheceu um rapper famoso, que a convenceu a canalizar seu
desespero para o hip-hop.

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RECORTAR E COLAR: A REDENÇÃO PELO HIP-HOP

Se fosse inventado como um personagem de ficção, Flora, a protagonista deste relato,
soaria artificial e inverossímil. Sua história é quase inacreditável. Ela se situa no extremo
oposto àquele no qual encontramos Mariano. Ele busca exorcizar a culpa, eximindo-se de
responsabilidades pela violência perpetrada, particularmente pelo crime no qual parecem
concentrar-se todos os outros (o esquartejamento de Neto), e o faz adotando uma estratégia
narrativa em que reencena o picotar da vítima, ao trivializar os atos, separando-os da
intenção consciente do sujeito e os relatando como ocorrências casuais.

Flora, ao contrário, procura unir os fragmentos da vida, tanto de sua história quanto da
história coletiva das comunidades com as quais se identifica. Mesmo não sendo responsável
por nada de mau, chama a si a responsabilidade, assumindo o papel de ponto de
convergência dos vários acontecimentos dramáticos que marcam o cotidiano de sua cidade.
É como se ela redirecionasse a si, simbolicamente, as balas que matam, diária e
aleatoriamente. Nada que se passa lhe é indiferente e nada passa, em vão, por seu filtro
vigilante.

Fonte e fulcro, alvo e matriz, alfa e ômega, as duas pontas são amarradas pela tecelã,
devotada a costurar, minuciosamente, uma tragédia na outra, fazendo dos retalhos de
sofrimento o painel da redenção. Fulcro, alvo, ômega: ela recolhe os pedaço" de vida
divulgados na imprensa e os liga, na composição solitária e incansável de um misterioso
quebra-cabeça. Matriz, fonte, alfa: Flora é a origem de iniciativas importantes, a força
motriz que articula e divulga as notícias, organizando-as para lhes atribuir alguma
insondável inteligibilidade e para as salvar do esquecimento. Ela é a memória da
comunidade e a voz que descreve o cotidiano, para que tudo que provoque sofrimento não
passe impunemente pela consciência de seu povo.

Dobrando a realidade sobre si mesma, ao reproduzir os fatos em narrativas que os retratam,
nas rádios comunitárias, depois de costurar as notícias umas nas outras, Flora inscreve um
grão de reflexividade e, portanto, de crítica e autocrítica, no cotidiano da cidade pobre,
embrutecido pela naturalização da barbárie. Em o fazendo, mesmo sem o dizer, ela cria as
condições para que a barbárie se desnaturalize, isto é, seja vista como aquilo que é,
provocando a percepção crítica dos ouvintes e dando voz à sua sensibilidade adormecida.

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Ainda menina, trazendo sempre consigo o pacote com os recortes de notícias mais recentes,
Flora visita cada rádio comunitária, insistindo para que a deixem cumprir sua missão. O
destino quer que ela se dedique a ler e divulgar as notícias, armando, de poste a poste, de
ouvinte a ouvinte, a rede diáfana e invisível da consciência, que proteja a vida dos meninos,
que estimule o senso de responsabilidade das famílias para que defendam as crianças. Antes
mesmo de encontrar na religião o abrigo para sua angústia e a linguagem para sua
esperança, Flora já se comportava como uma sacerdotisa desse estranho e quixotesco culto
à paz e à vida, que ela mesma inventara, na peregrinação diária pelas rádios-de-poste.

A pertinácia religiosa com que Flora se ajoelha no chão, recortando e colando as notícias,
talvez se destine a cobrir um grande vazio que a ausência de seu pai lhe cava na alma. Não
por acaso, ela é comparada ao pai, que também amava a leitura dos jornais. Ela parece
mimetizá-lo para substituí-lo e, assim, apreender no ar o vestígio de sua memória e, de
algum modo, torná-lo presente. Na falta do pai, a função paterna é preenchida: não pela
repetição, em si, de seu costume, mas pelo sentido de que se reveste a forma pela qual Flora
interpreta e recoloca em prática este costume. Ela não apenas lê jornais, como o pai fazia;
ela os recorta, classifica, reorganiza, recompõe sua unidade segundo princípios próprios e
os arquiva para a memória. Seu papel é promover a religação simbólica entre tudo o que
está partido e separado, no mundo. Neste sentido, aliás, seu labor guarda um profundo
significado religioso. O pai retorna, simbolicamente, e o irmão não se afasta nem se perde.

Enquanto a mãe remenda e tece, dá ponto e nó, liga e interliga, em sua máquina de costura,
Flora remenda e tece, liga e articula, unifica e vertebra os retalhos da vida, os pedaços da
família, preparando a memória, que serve também de bússola e de mapa. Graças à
mediação do risco do bordado, Flora esboça o laço supremo que deveria, um dia, garantir a
unidade entre o passado e o futuro, fixando no tempo mítico, congelado, a permanência das
pessoas amadas e do amor que as une, eternamente. Por isso, sua atividade obsessiva e
modesta, no chão rústico da casa, salta da esfera dos brinquedos infantis para o terreno
escatológico e utópico da cultura. Flora é a artista da família. A tecelã da unidade. A brava
resistente; a bravíssima e comovente militante da paz.

Cortar e colar, no chão da sala, parece uma citação aos movimentos do pai distante, viciado
em jogo, que atravessa dias e noites com as cartas nas mãos, combinando pequenas peças
de papel. Flora cita, em sua tecelagem de notícias, os gestos do pai, atribuindo-lhes outros
significados. Enquanto os dele conduzem à dissipação e à decadência, às perdas e à morte,
à separação, ao

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descuido de si e dos outros, à imprevisibilidade e ao acaso; os gestos dela promovem a
integração, a riqueza, o cuidado, a certeza e a necessidade, a responsabilidade e a
preservação do que o tempo consome. Flora joga com o pai, à distância, o antijogo,
invertendo a sorte a que o destino a condenara.

Enquanto ela defende a unidade ameaçada, esgarçada, rasgada pelos episódios de violência
que os jornais noticiam, seu irmão não resiste ao canto de sereia das drogas. O afeto pelo
irmão refina seus sentidos e ela cedo percebe que o jogo do irmão é mais pesado. Ele repete
a sina paterna da (auto)destruição. Flora protege-o de seu destino, procurando mantê-lo
afastado de seus parceiros.

A tática não funciona. Ela muda de método. Tenta lançar-se mais fundo que o irmão no
pântano das drogas. Planeja qualificar-se para resgatá-lo.

Entretanto, como nas tragédias clássicas, o destino bate à porta. O desfecho previsível é
inexorável. O irmão termina se tornando personagem das notícias que Flora colecionava.
Elas se mostram, retrospectivamente, notícias do futuro. Até mesmo porque, quando se
trata da história da violência nos bairros populares do Rio de Janeiro, futuro e passado não
se distinguem. Flora tentara domesticar o tempo, controlá-lo, mantendo-o sob sua ordem
caseira e zelando pela vida do irmão. A realidade desidratada e previsível dos jornais
desidratava a realidade, drenando a fúria incontrolável que ela traz consigo, sob a forma do
tempo ou do futuro.

A dor de Flora mistura-se ao ódio. Ela gira sua metralhadora de ódio para todos os lados.
Todos são culpados pelo assassinato do irmão. Os amigos, falsos amigos; o tráfico que o
recrutara; a cidade repulsiva que segue sua rota de embriague*, cínica e cúmplice. Flora
detém-se quando a raiva acerta a mira mais precisa: o alvo, por excelência, são os vermes,
os policiais corruptos e violentos que negociam com o tráfico, quando interessa, e matam os
meninos do movimento, quando convém.

Naquele momento agudo, Flora pensa em largar tudo e entrar para o tráfico. Deseja armar-
se para que a metralhadora não seja apenas a metáfora do ódio, mas o instrumentalize. Um
amigo rapper captura Flora em pleno vôo sobre o despenhadeiro e lhe aponta uma
alternativa: canalizar sabedoria, experiência, amor e ódio, e seu imenso senso de
responsabilidade, para a arte e a política. Flora concorda. É preciso dar voz às suas idéias e
traduzi-las em atitude, enriquecendo a usina do hip-hop. Vale a pena manter sua presença
nas rádios comunitárias e agir para tornar-se, ela mesma, Flora, um dia, notícia de um outro
tipo, notícia boa, que se possa casar, no quebra-cabeça, com boas novas sobre a cidade.

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SIRENE NA TRASEIRA, ALARDE


NA PISTA, SUSPEITOS À VISTA:


O ALVO NEGRO DA DESCONFIANÇA


DURA SP

Narrativa e reflexões de My Bill.
Não sei qual é a característica de um suspeito, ou sei? Sei lá, o foda é que sempre que os
caras nos vêem seus olhos crescem. Será que é assim com todo mundo? Pois bem, nós
estávamos vindo do interior de São Paulo, indo para o aeroporto de Congonhas a caminho
de Belém do Pará. Entramos num táxi branco, acho que era um Marajó ou algum carro
parecido. Falávamos sobre as filmagens que fizemos e as amizades que deixamos pra trás.
Passamos por um posto de gasolina e lá estavam duas viaturas paradas, fazendo sei lá o
quê.

Em centésimos de segundos os olhos de um PM cruzaram com os meus. Eu não sabia se
baixava os olhos - o que poderia demonstrar medo - ou se os fixava nos olhos dele - o que
poderia parecer um enfrentamento. Nem sei o que fiz, acho que a velocidade do táxi se
encarregou de nos livrar daquela cena.

Fizemos várias curvas e no fundo do peito o coração acelerava indicando o que todos no
táxi já sabiam, mas ninguém comentava para não dar azar. Não deu outra. Sirene na
traseira, alarde na pista, suspeitos à vista. O motorista do táxi disse: "Eu sabia!" Nada falei.
Ficou claro que ele também nos achava suspeitos, ou pelo menos sabia que os PMs nos
achariam. Só havia um flagrante no carro: as fitas gravadas no interior do estado para nossa
pesquisa sobre violência e juventude, mas estavam muito bem escondidas. Só seriam
descobertas se eles encrespassem com tudo e ainda quisessem ver as fitas através das lentes
da nossa câmera, uma PD 150 da Sony, que aliás não estava com a nota fiscal e, como todo
mundo sabe, a negrada tem que andar com nota até de chinelo de dedo.

Parecia uma guerra. Nada de novo pra mim. A novidade é que estávamos em território
estranho. Eram duas da tarde, em pleno sol de Sampa. Os canas pararam o táxi e se
colocaram em pontos estratégicos. Eram dez caras em dois camburões. Mandaram o taxista
sair e em seguida ordenaram que todos saíssem do carro. Pensei: será que somos esse
tiroteio todo? Um coroa que estava com umas divisas no braço - não sei o que ele era, mas
atendi ao que ele disse - me mandou encostar no carro e me deu um puta sacolejo.*
Naquele momento me lembrei dos sacolejos que tomei lá em Goiás, que

* Sacolejo é o mesmo que sarava ou baculejo, isto é, uma dura, revista policial bruta - o mesmo, portanto, que salseirar ou passar o
pente-fino. Sacolejo é usado no Rio, e baculejo em São Paulo.
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nada mais eram do que uma revista grosseira, dessas em que o cara aperta seu saco. Parece
que ele tem certeza de que você é bandido mesmo.

Em seguida eles nos separaram e começaram um interrogatório. Não tínhamos, nesse dia,
combinado nada, pois não havia nada que desabonasse nossa conduta. Eu disse que estava
indo trabalhar no Pará, que canto rap e faço um trabalho com cinema. Ele não acreditou
que eu trabalho com cinema, só que canto rap. Perguntou se eu tinha passagem na polícia
(o que, por sinal, todo mundo me pergunta) e que eu não mentisse pra ele, e que me
limitasse a responder ao que ele perguntava. Puta constrangimento, mas era o trabalho deles
- claro que essas atitudes não são iguais, não são as mesmas com todo mundo. Mas eles são
a lei, estão fazendo o trabalho deles. Afinal, estão resguardando a integridade dos homens
de bem e se eu conseguir provar a tempo, quer dizer, antes de tomar um pescoção, que sou
um homem de bem, essa dura, ou baculejo, serve para proteger a mim também.

Eu não sabia o que os outros estavam falando, mas sabia que não iria acontecer nada com a
gente. Difícil é convencer as pernas que a razão é nossa. Elas não queriam saber de nada,
exceto tremer... Não devo nada, mas não sei por que minha perna treme! Esse filme era
velho. Nós estávamos em quatro pontos distintos: eu, Miguel, Celso e o taxista. Não sabia o
que eles diziam, mas podia imaginar... O taxista devia estar dizendo que não tinha nada
com aquilo, que não conhece a gente e que não quer saber de porra nenhuma! Tipo: "É com
vocês mermo!" O Celso estava tranqüilão, negrão piranha velha*, acostumado às duras da
vida, desenrolava com os canas e parecia que contava umas histórias pra eles: puro 171 !**
O Miguel estava um pouco enrolado do outro lado, é que ele é uruguaio e os caras
encresparam*** com ele, quiseram saber tudo sobre ele e, na verdade, nem nós sabemos.
Sei que o Miguel está no Brasil há pouco mais de dois anos, que nasceu no Uruguai, foi pra
França com a mãe aos dois anos e aos 18 foi parar em Cuba. Parece muito, né?, mas não, é
muito pouco para quem está sendo interrogado.

Os caras cismaram comigo, querendo saber de onde eu conhecia o gringo e onde ele
morava. Queriam saber se o passaporte dele era falso e o que realmente eu estava fazendo
com eles todos... Parecia que aquilo não ia terminar nunca, até que uns moleques
começaram a gritar pelo meu nome e os policiais

* Piranha velha significa malandro velho, astuto.
** Puro 171 ou puro 7 significa pura enrolação.
*** Encrespar é o mesmo que cismar
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perguntaram se eu conhecia aquelas pessoas. Eu disse que não, mas que eles provavelmente
me conheciam, porque, como eu tinha dito, faço rap e tem alguns malucos que me
conhecem e alguns mais malucos ainda que gostam de mim.

A essa altura já tinha se passado uma meia hora de "dura" e eles já estavam convencidos de
que não iam arrumar porra nenhuma com a gente. Só se um passarinho soprasse nos
ouvidos deles que tinha umas fitas na mala com imagens de um monte de bandidos anões.

Aí veio um toque-chave do Celso, uma pedra de gelo na fita. O Celso disse para o policial
com quem eu tinha cruzado os olhos: "Doutor, não leva a mal não, mas esses taxistas são
muitos espertos. Eu queria saber do senhor se quando acabar o sério trabalho de vocês, se o
senhor poderia pedir ao taxista para ele fazer voltar o relógio." O tempo parou, e o policial
ficou pensando por alguns segundos sobre o que o Celso tinha dito. Mandou todo mundo
embora. Agradecemos por nos deixarem ir, mesmo depois de tanta humilhação - claro que é
humilhação, se eu tinha documentos, eu tinha mais é que ir embora mesmo. O homem
chamou o taxista, deu um papo e pediu para ele desconsiderar o tempo parado. Ao chegar
ao aeroporto, o taxista, constrangido, pediu desculpas para nós insistentemente, tentando
deixar claro que nada tinha a ver com aquela dura. Fiquei meio encabulado com aquilo,
mas, ao lembrar do nosso histórico, por que ele deveria ter? Saímos do táxi, entramos no
aeroporto e lá fomos nós para o rabo da fila da Gol.

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FORJADO DE ROTINA EM ARACAJU*

Aracaju, verão de 2002. Eram mais ou menos oito horas da noite. Uma menina que
trabalhava na Prefeitura. Era nosso contato. Estávamos tão cansados de caminhar lado a
lado com bandidos que resolvemos ir para as comunidades de um modo mais oficial.
Sabíamos, lógico, que ela não estaria conosco por conta da Prefeitura, mas de toda forma
ela também era do hip-hop de lá e desenvolvia projetos comunitários, por isso tinha o perfil
que precisávamos para encontrar nossos falcões e estender as filmagens de nossa pesquisa a
Sergipe.

Ela ligou para o hotel. O garçom me chamou na salinha para eu atender o telefone.
Combinamos a fita. Estava um puta calor. O rango estava maneiro, mas naquela noite o
prato era mais uma vez falcão noturno. Marcamos o ponto às 23h30.

Onze horas estávamos eu, Bill e o Miguel, no lugar marcado. Era uma praça escura, poucas
pessoas estavam por lá, apesar do calor. Parecia essas noites de jogo do Brasil na Copa do
Mundo. Ficamos ali trocando idéias sobre o que tínhamos filmado, sobre as coisas que iam
acontecer e sobre um monte de paradas... Nosso carro era alugado, um Pálio azul sem som,
sem ar, sem porra nenhuma, mas também o nosso trabalho era duro mesmo, não tinha luxo
nunca. Várias vezes nós dormimos nas casas dos falcões. Hoje o nosso argumento é que a
força da pesquisa é viver a vida com eles, 24 horas, mas na real algumas vezes era mais do
que nossa intenção. Era impossível ir para outro lugar devido ao nosso orçamento.

Perto da meia-noite e a menina não chegava. Ficamos num entra-e-sai, num sai-e-entra no
carro, ela não tinha celular e a comunicação era difícil. Nosso celular não pegava lá. Até
que chegou a nossa companhia da noite, uma joaninha (radiopatrulha). Tinha dois policiais
no carro. Eles passaram e deram a volta por duas vezes na praça, e ficava claro, a cada
olhada deles, que nós íamos tomar uma dura. Até aí tudo bem, não tinha nada no carro

* O relato que Celso Athayde escreveu sobre sua experiência em Aracaju endossa a reflexão de Bill e adiciona novos ingredientes,
porque, no caso que você vai conhecer agora, a conversa inspirada de Celso não foi suficiente para convencer os policiais de que havia
um engano, de que ele, Bill e Miguel eram homens de bem, trabalhadores. Até aqui, observamos o filtro racista presente nos olhos dos
policiais, em sua escolha do alvo a revistar, nas perguntas que formularam e no tratamento que deram aos estranhos. A seguir, vamos
acompanhar Bill, Celso e Miguel em uma visita ao pântano da corrupção. Eles vão do racismo aos 350 reais, passando pela mutuca
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mesmo, nem existia ainda o nosso maior patrimônio da noite, as imagens dos garotos. Tá
tranqüilo, eu pensava.

O engraçado era que ser de outro estado dava uma certa sensação de ser de outro país. Às
vezes, perdemos a noção de sermos brasileiros e os polícias também. Eles só nos enxergam
como turistas se estivermos na praia tomando água de coco, e até reconheço que faz
sentido. Porra, o que dois cariocas e um uruguaio poderiam estar fazendo ali, àquela hora,
naquele lugar? Mas isso estava só na minha mente, eles não sabiam ainda que tínhamos
todos estes "defeitos".

Os canas pararam do outro lado da praça e confabularam com um magrinho de camisa
branca que estava vendendo doces numa calçada. Não falavam muito nem nos olhavam. Eu
é que não tirei os olhos deles. Os meganhas saíram direto de lá e vieram em nossa direção.
Chegaram e foram mandando todo mundo encostar no carro. O Bill estava sentado no
banco cochilando e o Miguel estava de pé ao meu lado lendo um livro de fotografia - a bem
da verdade, ele estava disfarçando. Encostamos nossas carcaças no Pálio e começou um
educado ritual de revista. Fomos separados. Eu já havia visto aquele filme. A cada dura nós
vamos entendendo melhor a política humana e psicológica dos canas. Eles nem sequer
revistaram o carro ou perguntaram sobre nós. Deram um empurrão no Miguel, que estava
atrapalhando a passagem de um deles. Aí eu senti logo que de racista eles não poderiam ser
acusados, porque o Miguel é considerado branco no Brasil. Daí pediram para o Miguel
abrir a mala do carro, eu disse que a chave estava comigo, então me pediram a chave e
foram para o carro. Eu até pensei em ir com eles, mas pra que provocar mais os caras? Eu
queria é que eles fossem embora logo. Quando me perguntassem o que estávamos fazendo
ali, ia dizer que somos turistas e que marcamos com uma gatinha que nos levaria até outras
gatinhas e foda-se.

Mas, para minha surpresa, os caras voltaram dizendo que encontraram uma parada no carro.
Nenhum de nós sabia do que se tratava. Era um embrulho bem pequeno de jornal, do
tamanho de duas borrachas escolares embrulhadas. O mais velho, sorridente, dizia que
tinha encontrado o que estava procurando. Na mesma hora minha cabeça fez um círculo
sobre ela mesma. Eu sabia do que eles estavam falando, mas logo com a gente? Não, não
podia ser.

Mas era. Pensei sobre tudo que tinha ouvido dos meninos do tráfico: que eles eram
seqüestrados pelos policiais, que os policiais pegavam seus inimigos e os vendiam vivos só
para que eles tivessem o prazer e a "moral" de matá-los. Muitos episódios macabros desse
tipo, que escrevem parte da história do Brasil e que nem mesmo o Brasil conhece. Era o
que eles chamavam de forjado. Eu tinha escutado muitas histórias de jovens e de adultos

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que os polícias, quando queriam prender e não tinham provas, forjavam e os levavam para a
delegacia. Lá, podia-se chorar horrores que a cobra fumava e não tinha mãe que tirasse do
xilindró. Tudo isso passava rápido na minha cabeça. Outra coisa passa agora: como a
palavra de um cidadão de bem, que não tenha antecedentes criminais, pode ficar subjugada
pela palavra de certos policiais que respondem a vários e vários homicídios e acusações de
corrupção? Mas é assim. A lei é a da selva, a selva chamada Brasil...

Voltando à pracinha, lá estávamos nós, não como reis da selva, mas como coelhinhos
acuados esperando o bote da cobra. O policial de bigode percebeu que eu tinha uma certa
responsabilidade pelo grupo, acho que é porque ele viu que o carro estava alugado em meu
nome. Me levou para um canto e veio com a seguinte conversa: "Vou ter que conduzir
vocês até a DP. Sei que você é gente boa. Basta olhar pra você que se vê que você é gente
de família, mas tô vendo, rapaz, que você está andando em péssimas companhias..."

Ele dizia isso e mostrava o tal jornal com umas porras dentro que eu nem vi direito, mas
parecia, sei lá o que parecia! Posso até arriscar e dizer que era crack, mas ele chamava a
parada de "mutuca". Tudo muito ridículo. Ele parecia um paizão dando conselhos pro filho,
só que eu não era filho dele e a qualquer momento eu ia explodir com eles.

Ele me perguntou o que estava fazendo ali. Eu disse e tentei ganhar tempo para ver se a
desgraçada da garota chegava para nos tirar daquela merda. Hoje eu acho que ela ia é se
ferrar com a gente. Eu gaguejava e mentia sem segurança, o que complicou um pouco a
nossa vida. Falei que somos artistas, que somos amigos de um monte de gente importante,
pessoas que poderiam depor a nosso favor. Nada disso era importante para aquele matuto
matuto não porque era de Aracaju, mas porque era meu mais novo inimigo.

Disse que não tinha jeito, que carioca é muito folgado e que a polícia de lá não era mole
igual à nossa não. Eu comecei a sentir falta da PM do Rio. Aquilo tudo parecia um
pesadelo. Eu me perguntava o que eu estava fazendo ali. Olhava pro Bill e me perguntava
se algum deles tinha me traído. Claro que não. Imagina! Mas a tortura continuava a ponto
de eu começar a achar que o carro tinha sido alugado por uns viciados antes de mim.
Comecei a colocar a integridade do Bill e do Miguel em xeque, não pelo uso, mas pela
omissão. Não, eles não! Claro que era uma forma de nos incriminar por dinheiro, um
simples forjado de rotina.

Minha intuição indicava que eu deveria tocar para a frente e levar aquilo até as últimas
conseqüências; acionar o presidente da República se fosse preciso. Afinal, nós três éramos
inocentes, embora não pudéssemos provar.

158


Mas a razão sabia que nem mesmo a minha mãe iria duvidar daqueles caras safados que
falavam em nome da lei. O filho-da-puta dizia que iríamos assinar um 12 e, pela cara deles,
dava pra imaginar que a DP era sócia deles e, pensando bem, não seria prudente arriscar, o
delegado não acreditaria em mim. Todo cuidado seria pouco. Só não acreditava que nossa
vida estivesse em jogo, mas não dava pra subestimar.

Pensei nas visitas que fiz a vários presídios. Muitos homens se diziam inocentes. Ficava
difícil acreditar. Mas eu estava prestes a ser um deles. Parecia aqueles filmes americanos
cheios de poeira e corrupção. Segui a lógica da corrupção: aquele verme estava quase me
convencendo de que a droga era minha. Eu tinha um certo medo de perguntar quanto ele
queria, mas em todos os estados por onde tínhamos passado encontramos policiais
corruptos, em alguns com mais freqüência, em outros com menos, mas em todos os
estados, sem exceção, nos deparamos com tiras corruptos. A questão era saber o momento
certo de perguntar. Antes que eu me decidisse a perguntar, o outro, que fazia o papel de
mau, começou a gritar de longe: "Vamos levar esses caras!" - eu sabia que era joguinho,
pois se quisessem levar já teriam levado há muito tempo.

O coroa, que fazia o papel de meu camarada, perguntou se eu tinha alguma sugestão para
resolver o problema. Era um código grosseiro, era, mas eu ainda precisava de mais certeza,
do contrário aquele sujeito poderia me meter como traficante e como subornador de PM.
Ele viu que eu fiquei pensativo e avançou: "Vocês estão passeando, então devem ter
dinheiro. Vocês vão chegar na DP e com o delegado o papo é diferente. Aqui, somos só eu
e o soldado ali. Lá, não, tem que bancar toda a delegacia, senão tá enroscado. É melhor
resolver aqui igual a homi ou tão fodidos" - começou ele, com um discurso menos militar...

Eu falei com firmeza: "Seguinte, o senhor sabe que nós não somos bandidos, mas eu não
vou ficar aqui nesta conversa a noite toda com o senhor não, eu vim aqui encontrar com as
meninas." E elas nada de chegar... Segui: "Quanto eu tenho aqui? Duzentos e cinqüenta
reais. Nós não somos ricos não. O senhor pode ver aí minha carteira." Eu devia ter uns 350
reais na carteira, mas não dava pra contar porque estava trocado. Ele olhou e parecia que
tinha visto a galinha dos ovos de ouro. Mesmo assim, disse que era muito pouco para o
artigo em que a gente estava sendo classificado.

Pensei que estava resolvido até que o outro policial, atraído pela movimentação de grana, se
chegou, talvez achando que seria roubado pelo coroa. Aí o mais velho disse a ele que não
aceitasse, que nós somos safados e continuou o seu papel de policial malvado. Pediu para o
Miguel ir até o Banco
24 horas e sacar, o que era impossível, até porque o Miguel nem cartão tinha.

159


Sugerimos que eles pegassem o que todos nós conseguíssemos e anotassem o telefone do
hotel para pegar o restante no dia seguinte: no Rio isso é chamado de cheque-seqüestro:
quando os "mineiras", polícias seqüestradores, prendem os bandidos e eles não têm
dinheiro para pagar, negociam um acordo de pagamento mensal. Quando o bandido não
paga e é preso outra vez, ele morre ou vai preso. Mas eu não, não era bandido.

Eles não aceitaram ir ao hotel. Já devia ser uma e meia da manhã. Durante esse tempo,
muitos moradores saíram e entraram nas suas casas para ver o que estava acontecendo. O
folgado do PM mais novo mandava o pessoal entrar. Às mulheres ele às vezes perguntava
se elas não tinham roupas pra lavar.

Depois de forçar todas as barras e ver que não ia cair nada da nossa conta, o mais novo
começou a reclamar e dizer que se pegasse a gente novamente eles iriam meter a porrada e
levar preso. Aquilo era inacreditável... Eles sabiam que nós éramos inocentes. Mesmo
assim, o teatro continuava.

O mais novo excomungou o dinheiro que eram 100 reais a mais do que eles estavam
pensando e saiu de perto reclamando como um louco. O mais velho então nos disse que
tomássemos muito cuidado, porque ali, bem perto, tinha uma favela chamada (...), que era
um lugar muito perigoso. Despediuse de nós apertando a mão e deixando bem claro que era
"acordo de homem e não de moleque". No fundo, ele tinha receio de uma denúncia nossa.
Entraram na radiopatrulha sem a menor pressa, acenderam a luz do salão e conversaram um
pouco. Parecia que contavam o dinheiro. Naquela altura, o mais novo deveria estar mais
calmo, pois deveria ter descoberto que ele tinha direito a 175 reais da propina. Imagino que
eles dividissem em partes iguais. Nada disseram e foram embora, levando na bagagem a tal
da mutuca. Certamente para usar contra outros manes como nós. A menina não apareceu
para o encontro. Se apareceu, desapareceu com medo.

Lembramos depois que a favela de que o PM falou, aquela de que deveríamos ter medo, era
a favela para onde nós estávamos indo naquela noite. Voltamos para o hotel vencidos,
derrotados. Contatamos outras fontes e, por uma questão de moral e teimosia, fomos
exatamente para aquela mesma favela na tarde seguinte. Fizemos um churrasco e, à noite,
lá estávamos nós, filmando na boca e bem recebidos pelos caras que os policiais disseram
que deveríamos temer.

Depois de ouvir muitas histórias daqueles moleques, soube coisas horríveis que eles passam
e também outras tantas que eles fazem as pessoas passar. Percebi que tudo o que vimos e
passamos naquelas 48 horas era fruto de um muro que caiu, um muro que determinava onde
termina o bem e onde começa o mal. Lembrei do que a velha de Porto Alegre tinha dito ao
Bill: "Tá tudo tão errado, tudo tão confuso, que sobreviver nesse


inferno já é um puta de um lucro."

160


INVISIBILIDADE E RECONHECIMENTO


INVISÍVEL

Em 1978, eu estive invisível por algumas horas. A experiência foi rápida mas marcante.
Afinal, não é todo dia que a gente desaparece ante os olhos dos outros. Olhos e ouvidos,
porque fui suprimido do campo de visão e audição. Imagino que estive vetado também
pelos demais sentidos, mas disso não posso dar testemunho. Estava no interior do
Maranhão, fazendo uma pesquisa para minha tese de mestrado. Era o fim de uma tarde
tranqüila e amena de um dia muito especial para a comunidade de bom Jesus: a "Busca do
mastro", 15 de dezembro, data em que se inicia a temporada de festejos, sob proteção de
São Benedito. Nesse dia, o mastro é fixado no centro do povoado, onde permanece até o dia
de Reis, 6 de janeiro, representando a unidade do grupo e celebrando sua relação com o
sagrado.

A peregrinação era alegre, musical, rítmica e exaltada. Todos e tudo em movimento, braços
e ombros se esbarrando, os corpos se misturando em júbilo quase místico. Embarquei na
procissão, rendi-me ao ritmo geral e naufraguei, quer dizer, desapareci. As pessoas que me
tratavam com aquela deferência fraterna, típica do Brasil rural mais fundo e popular,
subitamente deixaram de falar comigo e até de notar minha presença. Sequer respondiam às
perguntas.

Reconheço que eu era um pouco inconveniente; afinal, a curiosidade era meu ofício.
Mesmo assim, no dia-a-dia, nem por isso meus interlocutores perdiam a paciência. Pelo
contrário, davam sinais de orgulhar-se de meu interesse. No ritual, era diferente. Não estou
dizendo que perderam a paciência comigo; simplesmente, me ignoraram, ainda que
ninguém tivesse perdido a consciência ou entrado em transe. O mais inquietante era o
caráter coletivo do fenômeno: todos deixaram de notar-me ao mesmo tempo, sem que
tivesse ocorrido uma deliberação. Tratava-se de um processo involuntário, espontâneo,
sincrônico e unânime. Era algo dotado de objetividade, externo a cada um, a cada
subjetividade; algo a que todos aderiam, introjetando e, por meio da prática, reproduzindo:
um fato social.

De repente, fiquei incógnito entre parceiros, estranho embora íntimo. A sensação não é
nada agradável e seria bastante perturbadora se o mal-estar não fosse compensado pela
satisfação intelectual: era gratificante viver e redescobrir, na experiência direta, o que já
tinha ouvido nas aulas e lido nos livros de teoria sociológica. Eu perdia provisoriamente o
contato com meus

163


amigos da comunidade, mas ganhava um capítulo interessante para minha tese que depois
virou livro. Era como se o chão escapasse sob meus pés, mas outro solo viesse me amparar.
A fé na evidência dos objetos que estão no mundo era subtraída de meu repertório
cotidiano. Aprendi na própria pele que a gente vê o que a cultura e a sociedade permitem
que se veja.

Essas operações não são racionais e conscientes. Ninguém planeja ver o que não via ou, por
livre e espontânea vontade, num estalar de dedos, deixa de ver o que é incômodo ou
impróprio. A gente simplesmente percebe ou deixa de perceber, de acordo com limites e
pressões psicológicas, sociais e culturais. Nossa sensibilidade segue uma disciplina que está
longe de ser apenas cognitiva: é também emotiva, psicológica, simbólica e valorativa. A
cultura é uma espécie de moldura ou linguagem que nos orienta como uma bússola ou um
mapa, articulando os ingredientes naturais e sociais, históricos e institucionais, e
configurando uma pauta, a partir da qual compomos "canções" e "sinfonias". Nos termos
dessa metáfora, a música é o sentido que damos à vida e a nós mesmos, e corresponde à
peculiaridade de nossa travessia - sempre semelhante a outras e sempre singular.

Estas questões são bem mais complexas do que parecem ou do que estou fazendo crer. Para
não induzir os leitores a erro, devo acrescentar uma observação: já afirmei que os
indivíduos não são donos do seu nariz - isto é, não controlam o que percebem ou deixam de
perceber -, por motivos culturais e até mesmo psicológicos. Freud nos ensinou que
censuramos algumas verdades excluindo-as da consciência - porque são dolorosas demais
ou excessivamente subversivas para a ordem que instauramos dentro de nós mesmos. Isso,
entretanto, não significa que os indivíduos sejam simples marionetes da cultura, da
sociedade ou mesmo de comandos inconscientes. Não somos escravos de nossos limites.
Ciência, filosofia, psicanálise, arte e outras práticas humanas como festas e rituais, por
exemplo - podem nos libertar desses limites, mesmo que o façam ao preço de
estabelecerem outros - há sempre um preço a pagar.

Hoje, relembrando a experiência de 1978, eu a revivo com nitidez, apesar do tempo. Ela se
impõe aos meus sentidos como alguma coisa externa e se desenrola com desenvoltura. É
curioso que a sensação predominante não seja de liberdade, mas de perplexidade,
desconforto, perturbação e um mal-estar difícil de descrever. Digo que me parece estranha
a ausência da liberdade ou da sensação de liberdade porque, na adolescência, imaginar-me
invisível era muito divertido justamente porque não-ser-visto era um dom associado a uma
liberdade elástica, do tamanho do desejo. Por isso, o desaparecimento no Maranhão foi
decepcionante.

164


Na comunidade de bom Jesus, vivi o outro lado da invisibilidade, mais obscuro e pesado: a
dissipação. Desmanchar no ar é dose para adulto, ainda que, hoje, no Brasil, este veneno
seja aplicado, com freqüência, em adolescentes.

Ver e ser visto são duas faces da mesma moeda, em geral, nos encontros humanos. Por isso,
as histórias de espionagem nos fascinam e mobilizam tanto. Elas dividem a unidade da
experiência social em duas partes: um personagem vê (sem ser visto) e o outro é visto (sem
ver e sem saber-se visto). A solução da trama depende do esforço titânico do protagonista
que, no último capítulo, consegue inverter a posição relativa dos personagens, redefinindo a
equação: quem observa quem, afinal?14

Já as histórias de terror giram em torno da experiência de ser visto e saber-se visto, sem ver,
que é o oposto paranóico da invisibilidade: é a plena visibilidade, sem sombras, máscaras,
disfarces ou esconderijos. A cena típica é assim: a vítima do medo é vista e não vê; está
inteiramente devassada, sem proteção contra a transparência que a vulnerabiliza, todavia
permanece cega para a fonte do mal, incapaz de identificá-la e contêla, ainda que sinta sua
presença. Se o desaparecimento nos desvaloriza, o enredo do terror supervaloriza quem é
visto, mas o faz apenas para o gozo de um prazer perverso e de sua manipulação malévola.
A vítima reduz-se a objeto e é nesta condição que sua visibilidade é focalizada e enaltecida.
O que se vê não é a pessoa, em sua individualidade, mas o alvo de uma violência iminente
que será desencadeada pelo agente do terror.

Visibilidade análoga é aquela experimentada pelos prisioneiros em uma penitenciária
panóptica. O escritor inglês George Orwell percebeu a importância das relações entre
controle, poder e visão. Em seu livro 1984, os aparelhos de TV funcionam em mão dupla,
difundindo imagens e vigiando os telespectadores. Foi Orwell quem inventou o big brother,
o "grande irmão", nome do tirano que tudo vê - e, conseqüentemente, tudo pode. Às vezes,
tudo o que a gente quer é escapar do pesadelo, exorcizar o medo e afundar na
invisibilidade. Retornar ao útero materno. Portanto, nem sempre a visibilidade é um bem.

Na comunidade de bom Jesus havia uma razão para que não me vissem durante o ritual: o
que estava em jogo era a valorização dos laços que uniam o grupo, promovendo sua auto-
estima e sedimentando sua identidade. O objetivo era reforçar os elos simbólicos com os
antepassados, com a história coletiva, para que o futuro pudesse ser antecipado com
otimismo e, sobretudo, para que, no presente, os direitos comunitários sobre as terras -
herdadas

165


do senhor de escravos - fossem celebrados, reafirmados e garantidos. Nesse contexto, eu era um
marciano, um E.T., um enigma meio indecifrável vindo de muito longe. Um ator sem sentido e sem
função, em busca de um personagem. Não me encaixava nas categorias classificatórias usuais. Era,
na verdade, um elemento de perturbação, ainda que o povo de bom Jesus já estivesse convencido de
minha solidariedade e me abençoasse com seu afeto.15 Não na festa, entretanto. Não naquela festa.
Minha morte simbólica, provisória, foi decretada e executada sem consultas e reflexões, com a
mesma naturalidade com que os corpos começaram a balançar e o coro pôsse a embaralhar vozes. A
comunidade parecia desprender-se do solo como um balão, adernando ao sabor do vento e do ritmo.
Eu me distanciava e acenava do porto, resignando-me a não ser, por algumas horas, parte do grupo,
parte visível do mundo.

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ESTRANGEIRO: ONDE MORA o PERIGO

Quando não se é visto e se vê, o mundo oferece o horizonte mas furta a presença, aquela presença
verdadeira que depende da interação, da troca, do reconhecimento,16 da relação humana. Tudo
aparece apenas à visão, não ao toque ou à troca: o mundo da vida social fecha-se à participação.
Excluídos, tornamo-nos voyeurs. O voyeur é aquele que, olhando de fora, parece estar roubando o
que não lhe pertence, imiscuindo-se no alheio como um intruso esquivo, um fetichista. Não ser visto
significa não participar, não fazer parte, estar fora, tornar-se estranho.

O sentimento de não pertencer, de estar fora, costuma ser doloroso. Há duas maneiras de
experimentar esse sentimento: a mais óbvia, imediata e superficial, e a mais profunda e
perturbadora. A primeira é simples: ser estrangeiro. Quem nunca se sentiu estrangeiro? O modo
mais rápido e drástico de descrever a situação do estrangeiro é esta: ele não sabe falar a língua
nativa; ele não consegue comunicar-se com as outras pessoas; ele e ela não entendem o que os
outros dizem. A vida coletiva se embaralha numa babel de sons indecifráveis e uma parte das
engrenagens que nos fazem funcionar entra em colapso. A segunda é mais complicada: descobrir o
lado estrangeiro de si mesmo, na relação com os mais próximos e consigo mesmo. Descobrir-se
exilado no seu próprio país, na sua própria casa. Saber-se condenado a não se entender, inteiramente
- e, portanto, a não exercer sobre si pleno controle.

Transposta para a sociedade, essa descoberta provocaria um abalo nas ideologias que idealizam a
ordem e a estabilidade. Se os indivíduos não se conhecem a si mesmos, plenamente, a fronteira
entre aquilo que se supõe ser e aquilo que se pode vir a ser não é tão clara e rígida (porque aquilo
que verdadeiramente se é está sempre em processo e sempre se furta a um conhecimento integral).
Sendo assim, a fronteira que separa as pessoas de bem e as demais tampouco é nítida e rígida - a
experiência mostra que pode ser atravessada nos dois sentidos -, como vimos, no capítulo, "A
Esperança como Dever". Portanto, não restaria alternativa à sociedade - que se queira racional -
senão adaptar-se a esta plasticidade dos indivíduos, adotando uma postura menos crédula quanto à
possibilidade de controle e se tornando mais tolerante. Ocorre que este processo adaptativo de
flexibilização implica, por sua vez, um corolário bastante interessante e provocador: assim como os
indivíduos

167


são mais mutáveis e ambivalentes do que gostariam de acreditar, as sociedades também são mais
vulneráveis à mudança do que crêem ser, ainda que as mudanças se realizem a conta-gotas, quase
imperceptivelmente, sem os fogos de artifício das revoluções políticas.

168


ANTÍGONA DO HUMAITÁ

Esta história de ver e não ver é muito relativa. Às vezes, alguém encarrega-se da tarefa de,
ostensivamente, não ver para que os outros vejam com mais nitidez - e absorvam a realidade,
especialmente quando é doloroso absorvê-la. Neste caso, a cegueira seletiva cumpre uma função
nobre. Eu até ousaria dizer: caridosa. Em 1976, poucos anos antes de viajar ao Maranhão, eu
morava numa rua árida do Rio de Janeiro, justamente onde ela terminava, fazendo esquina com uma
ruela agradável e bucólica. Ali, naquela pororoca urbana, confluência da escassez de verde com a
fartura, havia um espaço nada inspirador mas que a vizinhança teimava em ocupar com a intimidade
com que se ocupam as praças. Para todos os efeitos, virara praça, portanto. Menos mal, porque
assim eu podia compartilhar a ilusão e abrir a janela do minúsculo quarto-e-sala como quem se
debruça numa varanda sobre uma praça frondosa e verde. Bem ali, na pracinha imaginária,
acompanhei um drama de que jamais me esqueceria. Drama é a palavra exata.17

Uma adolescente de seus 16 ou 17 anos, no começo da tarde, andou de um lado a outro, gritando
aos prédios e aos vizinhos que passavam um convite para a grande festa que promoveria à noite. O
convite soava um pouco estranho, porque não havia intimidade que justificasse procedimento tão
aberto, tão amplo e inclusive. Por outro lado, havia algo de paradoxal no ar, porque um convite
assim dirigido a todos, em certo sentido, não se dirige a ninguém. Além disso, havia um resíduo
aflito, uma ansiedade mal rasurada no fundo de sua alegria excessivamente teatral. Em seguida e
por horas a fio, cantou, entremeando os números com o anúncio de sua felicidade, reiterado a
plenos pulmões. O que começou simpático e gentil, tornou-se cansativo e incômodo, até saturar.
Aos poucos, outras vozes se misturaram à eloqüência da moça. Pareciam sussurrar, cativá-la,
dialogar com ela, negociar, persuadi-la a sair dali, voltar para casa, demovê-la do escândalo. A noite
aproximou-se, tateou os prédios, a praça, a moça, desceu, impôs-se e fechou seu manto negro. As
janelas iluminaram-se mas a moça resistia, agora um fio de voz. Às nove horas, quando o eco das
novelas já neutralizava a moça, pateticamente obstinada, seu pai levou-a à força para casa, de onde
partiu um grito mais forte e veemente que todos os gritos e cantos anteriores: "Seu irmão morreu. É
verdade sim, é verdade. Seu irmão está morto." Um acidente de moto lhe roubara o irmão. A moça
desabou num choro convulsivo e enroscou-se nele até

169


calar. A família estava calma. Manteve-se calma. Compadeceu-se da loucura da filha que se negava
a reconhecer a realidade e armou-se de toda lucidez e resignação de que seria capaz para domar a
dor implacável da irmã, a pequena Antígona do Humaitá. Domando-a, domou a sua. Ensinando a
moça a ver, a olhar e ver o que ela se recusava a aceitar, apontando o dedo para a cara da morte, a
família pôde vê-la, reconhecer sua realidade, aceitá-la. Na misteriosa economia coletiva do
sofrimento, coube à irmã um papel didático, pacificador, estabilizador, em sua loucura e por sua
loucura. Ao não ver, desobstruiu a visão dos outros e apaziguou seus corações.

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ORTOPEDIAS DO OLHAR

É importante assinalar que nosso olhar é educado, assim como o paladar e a audição. Os europeus,
antes que a tarefa envolvesse toda a humanidade, tiveram de reaprender a ver as pinturas e os
desenhos, depois que a perspectiva foi inventada. Nós todos aprendemos a ver cinema,
especialmente a ver filmes com legendas, o que exige perícia e um treinamento particular, do qual
nem nos damos conta porque transcorre irrefletidamente. As novas gerações aprendem cada vez
mais cedo. É preciso saber onde fixar o olhar para que seja possível captar o conjunto da cena, sem
que se percam os detalhes mais importantes, tudo isso enquanto se lêem as legendas. Não é fácil.
Façam o teste com pessoas mais velhas ou sem o hábito de ir ao cinema. Elas não conseguem nem
distinguir programas e intervalos comerciais, freqüentemente confundem ficção e realidade, assim
como não diferenciam as referências visuais ao passado e ao presente.

Andar por uma grande cidade e observar a multidão fazem parte da agenda turística de milhões de
pessoas, em todo o mundo. Quem se lança nessa aventura nem percebe quantos códigos de
comportamento - e quantos códigos visuais - foram aprendidos e reaprendidos para que a
experiência pudesse um dia ser vivida com prazer e entendimento razoável sobre o que se passa. No
final do século XIX, a multidão ainda era o novo e disforme personagem das cidades que se
expandiam no ritmo acelerado da industrialização. Era assustadora e indecifrável. Foi necessário
aprender a conviver com a multidão, a fazer parte dela e a identificar seus movimentos e sinais.
Ainda hoje, os modos de observar e interpretar a multidão nas ruas são muito diferentes. O pedestre,
o camelô e o policial vêem a mesma realidade com olhos distintos e diferentes focos de atenção, o
que produz imagens diversas, às vezes conflitantes entre si. Aquilo que cada um seleciona e recorta
do conjunto, retém na memória e reorganiza em uma imagem final, depende de muitos fatores -
como já sabemos -, vários dos quais se encontram na ponta do observador, não do observado, mas
todos eles colaboram para estabelecer relações que constituem as matrizes de nossa percepção. Por
motivos que pretendo esclarecer adiante, o decisivo, no olhar, é a relação.

171


A RELAÇÃO É o QUE (NÃo) SE VÊ

Ver ou não ver, eis a questão. Parece trivial, mas não é. Será que aquilo que a gente vê é mesmo
aquilo que a gente vê? Ou a gente vê não o que olha, mas a relação com aquilo que olha? Se for
assim, quando se olha alguém ou alguma coisa, olha-se também para dentro de si mesmo. Em
outras palavras, se este argumento fizer sentido, seria legítimo afirmar que a pessoa ou o objeto que
se olha é também - além de ser objeto ou pessoa - um espelho para nosso espírito, nosso estado
psicológico, nossa educação, valores, emoções, conhecimento, compromissos profissionais,
responsabilidades sociais, posição na estrutura familiar etc. Enfim, tudo aquilo que faz a gente ser o
que é. Pode parecer complicado, mas tudo vai se esclarecer quando esse palavreado abstrato
desaguar em exemplos.

Então, vamos lá: a mulher nua ou o homem nu será visto por alguém. Digamos que esse alguém que
olha seja um médico, que estabeleça com a pessoa observada uma relação profissional.
Suponhamos que eles estejam numa consulta médica. Imaginemos, agora, esse mesmo homem ou
essa mulher diante de um pintor, em um ateliê, posando para uma obra de arte. Imaginemos essa
pessoa nua com seu ou com sua amante. Finalmente, tomemos o caso histórico em que a pessoa nua
está sendo banhada por seus servos, na Europa medieval. O corpo pode ser igualmente belo e
atraente, em todos esses cenários, mas nem o médico ou a médica, nem o pintor ou a pintora, nem
os servos terão uma experiência visual comparável à dos amantes. O objeto corpo pode ser o
mesmo, mas as relações entre quem olha e quem é observado são diferentes.

O olhar dos profissionais da medicina é clínico e técnico: decompõe a unidade da pessoa em órgãos,
funções, sinais e sintomas. O corpo sofre uma metamorfose e se converte em um livro para ser lido
ou em constelação semiológica para ser decifrada. A satisfação que eventualmente resultar do
encontro médico será o restabelecimento da saúde. Aqui, o sexo é uma função fisiológica entre
outras.

O olhar do pintor vai desfigurar o corpo e colocar a pessoa entre parênteses. Sua visão focalizará
fragmentos e aspectos, cujo tratamento gráfico permitirá uma interpretação do corpo e até mesmo
da pessoa. Mesmo que se assemelhe a um retrato fiel, a obra de arte consistirá em uma reinvenção
do corpo observado. Neste caso, o sexo será apenas um dos possíveis sentidos da linguagem
pictórica.

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Nas sociedades européias medievais, os nobres não sentiam vergonha quando se
desnudavam diante dos servos, independentemente do gênero de uns e outros, porque eles
não eram considerados seres da mesma natureza, que pudessem estabelecer com seus
senhores vínculos personalizados. Neste caso, o sexo é vetado. Portanto, mesmo olhado,
não pode ser visto.

Entre os amantes, a nudez é erótica e carregada de sensualidade, na medida em que o sexo
constitui a natureza mesma da relação ou uma de suas dimensões mais importantes.

Mesmo sendo, por hipótese, sempre o mesmo, o corpo será sempre diferente na visão dos
que o observam, de acordo com as relações que se estabelecem entre quem olha e quem é
olhado. Essa diferença não expressa mudanças do corpo observado. O que muda, portanto,
são os olhares, ou melhor, as relações nas quais se projetam esses olhares e as condições em
que esses olhares produzem visões do corpo. Quer dizer, se o olhar transporta para a
imagem daquilo que é olhado um pouco da pessoa que olha, se o olhar transporta para a
imagem a relação entre o que vê e o que é visto, deduz-se que ver é relacionar-se.

Isso é surpreendente para quem pensa que o ato de olhar serviria como uma metáfora
perfeita para designar a suposta objetividade do vínculo entre o sujeito da ciência e seu
objeto. Pelo contrário, não há pureza nem objetividade no olhar. Nossa visão das coisas e
das pessoas é carregada de expectativas e sentimentos, valores e crenças, compromissos e
culpas, desejos e frustrações. Acima de tudo, é necessário reter na memória esse ponto: ver
é relacionar-se. Sendo assim, o que seria não ver, sobretudo em certos contextos?

173


ETIQUETAS DO OLHAR

Outras observações sobre não ser visto. É importante distinguir duas situações. Nem
sempre a gente precisa ser olhado nos olhos por uma pessoa e conversar diretamente com
ela para se sentir notado, reconhecido e respeitado. Nos encontros coletivos, quando várias
pessoas dirigem-se a outras tantas, numa festa, por exemplo, dependendo da disposição
espacial dos interlocutores, todos com copo na mão, formando semicírculos, pode ocorrer
que alguém não fale nem olhe para certa pessoa, mas a faça sentir-se notada, pelo simples
fato de dirigir-se ao grupo em que ela está evitando dar-lhe as costas, incluindo-a, portanto,
com essa cortesia, no grupo que está sendo saudado em conjunto.

Para que a gente valorize o significado dessa cortesia, basta imaginar o caso inverso, em
que alguém não fala com a gente e, ainda por cima, se vira de costas e se dirige justamente
à pessoa com a qual a gente estava falando antes, como se a gente não existisse.

A boa educação manda que não se faça isso, mas há quem faça com a maior cara-de-pau,
talvez por autocentramento, que é o nome sofisticado do egoísmo. Dependendo do contexto
e da tolerância da "vítima", isso pode ser considerado uma pequena indelicadeza, um gesto
deselegante, ou pode ser interpretado como uma agressão pesada.

A ilustração - dar as costas ou não dar - é interessante porque revela alguma coisa muito
mais séria do que aprenderíamos em um manual de boas maneiras, alguma coisa que tem
implicações para a vida coletiva. No fundo, o que está em pauta, nessa problemática, é
aquilo que se chama, às vezes de modo excessivamente pomposo, "civilização".

174


INVISIBILIDADE, RECONHECIMENTO E A FONTE AFETIVA
DO CRIME

Um jovem pobre e negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade brasileira é um ser
socialmente invisível.18 Como já deve estar bastante claro a esta altura, há muitos modos de ser
invisível e várias razões para sê-lo. No caso desse nosso personagem, a invisibilidade decorre
principalmente do preconceito ou da indiferença. Uma das formas mais eficientes de tornar alguém
invisível é projetar sobre ele ou ela um estigma, um preconceito. Quando o fazemos, anulamos a
pessoa e só vemos o reflexo de nossa própria intolerância. Tudo aquilo que distingue a pessoa,
tornando-a um indivíduo; tudo o que nela é singular desaparece. O estigma dissolve a identidade do
outro e a substitui pelo retrato estereotipado e a classificação que lhe impomos.

Quem está ali na esquina não é o Pedro, o Roberto ou a Maria, com suas respectivas idades e
histórias de vida, seus defeitos e qualidades, suas emoções e medos, suas ambições e desejos. Quem
está ali é o "moleque perigoso" ou a "guria perdida", cujo comportamento passa a ser previsível.
Lançar sobre uma pessoa um estigma corresponde a acusá-la simplesmente pelo fato de ela existir.
Prever seu comportamento estimula e justifica a adoção de atitudes preventivas. Como aquilo que
se prevê é ameaçador, a defesa antecipada será a agressão ou a fuga, também hostil. Quer dizer, o
preconceito arma o medo que dispara a violência, preventivamente.

Essa é a caprichosa incongruência do estigma, que acaba funcionando como uma forma de ocultá-lo
da consciência crítica de quem o pratica: a interpretação que suscita será sempre comprovada pela
prática não por estar certa, mas por promover o resultado temido. Os cientistas sociais diriam que
este é um caso típico de "profecia que se autocumpre".

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INVISIBILIDADE POR PRECONCEITO ou INDIFERENÇA

O preconceito provoca invisibilidade na medida em que projeta sobre a pessoa um estigma
que a anula, a esmaga e a substitui por uma imagem caricata, que nada tem a ver com ela,
mas expressa bem as limitações internas de quem projeta o preconceito. Por isso, seria
possível dizer que o preconceito fala mais de quem o enuncia ou projeta do que de quem o
sofre, ainda que, por vezes, sofrê-lo deixa marcas. O processo lembra, em parte, histórias de
terror nas quais o vampiro se apodera do corpo de sua vítima e absorve sua identidade,
depois de sorver sua vida.

Outra forma da invisibilidade é aquela causada pela indiferença. Como a maioria de nós é
indiferente aos miseráveis que se arrastam pelas esquinas feito mortos-vivos,19 eles se
tornam invisíveis, seres socialmente invisíveis. Também por conta de nossa negligência,
muitos jovens pobres, especialmente os negros, transitam invisíveis pelas grandes cidades
brasileiras.

Por favor, não se sinta ofendido. Minha intenção não foi acusar você. Eu realmente acredito
que indiferença e negligência não descrevem apropriadamente seus sentimentos e suas
atitudes. Se não fosse assim, por que você se preocuparia com esses problemas e gastaria
seu tempo lendo este livro, por exemplo? A questão reside exatamente neste ponto: a gente
não precisa ser insensível aos dramas humanos e sociais para atingir este estado de
consciência que eu chamo indiferença, na falta de uma palavra melhor. Pelo contrário,
quanto mais sensível, mais chance a gente terá de bloquear a percepção, entorpecer os
sentidos, anestesiar a sensibilidade e turvar a visão, seletivamente. Trata-se de um
mecanismo adaptativo. Ele funciona sem a nossa autorização e às vezes contra nossa
vontade consciente. Serve para proteger-nos. Para salvarnos do que é doloroso. Para livrar-
nos da dor alheia e poupar-nos do sofrimento.

Observe como é engenhoso.

Você quer fazer um teste para ter certeza de que o mecanismo está mesmo funcionando?
Quer saber se ele funciona não apenas nos outros, mas também em você? Então procure
lembrar de alguma viagem que você tenha feito para o exterior, para países mais ricos que
o"nosso ou menos injustos, ou para outra cidade brasileira com menos problemas sociais
que a sua. Uma cidade que não tenha se habituado com o triste espetáculo dos meninos e
meninas de rua e, portanto, não tenha naturalizado e se resignado a conviver com a
realidade

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do abandono de crianças e adolescentes. Uma cidade melhor que as outras, em que lugar de
criança seja a casa de sua família ou um abrigo saudável.

Agora, procure se lembrar de sua volta. Tente recordar os primeiros dias depois de sua
volta. Pense bem. Será que não aconteceu de você levar um susto com a quantidade de
crianças e adolescentes pobres perambulando pelas ruas? Você não teve a impressão de que
alguma coisa tinha mudado e a condição social havia se deteriorado? Você não levou um
choque quando voltou para sua cidade? Aposto que sim, a não ser que você seja um dos
privilegiados que moram nas raras cidades brasileiras que investem na cidadania para valer.
Nesta hipótese, a sensação é a inversa: você terá se chocado, durante a viagem, com a
realidade que não conhecia e terá aprendido a valorizar mais o lugar onde vive. Não sendo
este o caso, aposto que você levou mesmo um susto com a redescoberta da crise social, em
suas manifestações mais ostensivas, nas esquinas de sua cidade. Espero que você esteja
acompanhando o exercício de memória, porque agora é que chegamos à etapa decisiva:
você percebeu que, a partir da segunda semana, a realidade que motivou seu susto
desapareceu? Você se deu conta de que os meninos de rua que lhe provocaram tamanho
desconforto, logo depois que você chegou de viagem, sumiram?

Pois eu aposto que, se você for às esquinas, às mesmas esquinas, agora, eles estarão lá,
todos eles. Nada desapareceu. Ninguém sumiu. Foi você que deixou de ver. Não é incrível?
Por que isso acontece? Será egoísmo nosso? Insensibilidade? Creio que não. Não quero
provocar culpa. Isso não leva a nada. A culpa não faz ninguém melhor. Quero só
compartilhar um raciocínio.

A gente deixa de ver os meninos porque, se visse, não conseguiria tocar a vida. Como seria
entrar num restaurante, numa noite fria, e levar consigo, dentro de você, a imagem do
menino na rua, com frio e fome, desamparado? Aquele mesmo com o qual você topou na
porta do restaurante. Como portar uma imagem que contrasta tão duramente com o
aconchego que lhe dá prazer? Como extrair prazer da refeição se os meninos estiverem
presentes em sua memória, em sua consciência, em sua imaginação? Você perderia o
apetite. Como trazer para casa a imagem desoladora do menino ao relento? A pregnância
emocional e o magnetismo moral desta imagem invadiriam o sono e o matariam. Como
compatibilizar esta presença perturbadora, constante, dentro de você, com seus pequenos
prazeres cotidianos? Como divertir-se, amar, celebrar a vida, usufruir as amizades? Seria
inviável.

Para nos proporcionar a indispensável paz interior, para nos apaziguar o espírito e devolver
o mínimo indispensável de equilíbrio psíquico, nossa mente nos submerge em uma amnésia
seletiva, cauterizando os canais da

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percepção, sempre seletivamente. A alienação, este alheamento de que falamos, é o preço a
pagar pela modesta cota de felicidade que nos cabe. Eu sei que é ruim, isso, é desagradável
e ainda por cima soa cínico: como é que a felicidade de alguém pode sustentar-se em meio
à desgraça; pior ainda: na cegueira seletiva proporcionada por essa caprichosa negação?
Mas é isso mesmo que acontece, de meu ponto de vista. Mais com uns, menos com outros,
mas acontece.

Mas, se houver mudança, ela terá de atingir as condições sociais e econômicas que
produzem o abandono das crianças e dos adolescentes; ela terá de alcançar e cortar fundo o
mundo da educação. Estas seriam as mudanças possíveis e eficazes. Não digo que sejam
politicamente viáveis, hoje, porque custariam caro e afetariam a lógica econômica
dominante, que privilegia o mercado e o capital, celebrando o lucro.

O mais inacreditável é que o desenvolvimento humano, psicológico, afetivo, educacional e
cultural desse naco da sociedade brasileira interessa, no longo prazo, àqueles que empinam
o nariz e fazem cara feia, hoje, quando confrontados com a fatura do mutirão redentor. Não
haverá verdadeiro progresso econômico, no Brasil do futuro, sem a qualificação da força de
trabalho e a formação de um mercado interno dotado de renda decente para consumir. De
fato, não haverá país nenhum, enquanto parte significativa da juventude, sem acesso a uma
educação digna, for empurrada ladeira abaixo para o desemprego, o subemprego e as
subeconomias da barbárie. O problema, portanto, não é só a deficiência de nossas
sensibilidades individuais. Esta deficiência é o resultado do ajuste da realidade social aos
nossos sentimentos, ajuste que visa calibrar nosso equilíbrio interior.

Antes de prosseguir, para que meu argumento não se complique na abstração da teoria,
vou-lhes contar a história de dona Nilza, na qual tudo é real, menos o nome da protagonista,
que, afinal de contas - ou "apesar de tudo" -, merece nossa discrição.20 Você vai
compreender perfeitamente o que é uma profecia que se autocumpre.

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DOLOROSA REALIDADE DA FANTASIA:

POR QUE AS EXPECTATIVAS SE REALIZAM?

Era uma vez dona Nilza. Ela quase não saía de casa. Preferia receber em casa a visita dos
filhos, recomendar-lhes cuidado, assistir à televisão e curtir o cotidiano pacífico da vida
doméstica, que cada vez mais contrastava com a guerra das ruas. Os netos eram poucos mas
suficientes para preencher-lhe os dias, especialmente os fins de semana. Evitava sair, na
medida do possível. Para as compras, mandava a empregada. Trocara o cinema pelo vídeo.
No máximo, ousava um passeio pelo shopping ou uma visita à casa de alguma amiga. Sua
metrópole espremia-se numa geografia estreita: confinara-se a uma linha sinuosa da Tijuca
a Copacabana. Seu trajeto eventualmente incluía baldeações no centro da cidade ou em
Botafogo para médicos, exames e dentista. Dona Nilza ainda não chegara aos 60 anos.
Morava na Tijuca, bairro de classe média na Zona Norte, cercado por morros e favelas.
Estamos falando da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro em novembro de 1993 - eu
ia dizendo: no ano da graça de 1993, mas a ironia soaria óbvia demais. Como óbvio era o
medo. O medo estava em todo lugar, em todo mundo.

A violência dera um salto extraordinário em 1988 e se estabilizara por vários anos, mas a
impressão generalizada era de escalada irrefreável. A percepção se explicava por algumas
razões: a quantidade de crimes violentos era enorme, ou seja, o patamar em que se
estabilizaram os números relativos à violência era elevadíssimo e não fazia muita diferença
senti-la estabilizada ou em ascensão, ainda que para análises técnicas essa diferença fosse, à
época, e seja sempre muito importante, porque pode prenunciar tendências para o futuro
próximo. É mais ou menos como febre superior a
40 graus; o importante é baixá-la, ainda que seja relevante para o médico medi-la com
precisão e acompanhar suas oscilações, mesmo aquelas que os pacientes nem percebem.

Além disso, há um efeito natural na continuidade de um processo como o que afetou o Rio,
desde fins dos anos 80 - o problema vinha de muito tempo, mas se tornou crítico nesse
período, quando os tráficos de armas e drogas celebraram a união e sentaram praça nas
favelas, impondo seu poder sob a forma de domínio territorial. O efeito "natural" é o
seguinte: aos poucos, ainda que se mantenha a quantidade dos crimes cometidos, aumenta o
número de vítimas. Digamos que cem pessoas sofram algum tipo de agressão. Se a mesma

179


quantidade de vítimas for atingida ao longo de cinco anos (cem por ano), não haverá
aumento da criminalidade (o número cem se repetirá a cada ano, o que significará
estabilização ou até mesmo queda da taxa, caso tenha havido crescimento demográfico21).
Mas haverá crescimento do número de pessoas agredidas - depois de cinco anos, elas serão
quinhentas. Mesmo que haja muita repetição e que diversas vítimas sofram duas ou três
agressões, o número final de pessoas agredidas será sempre bastante superior a cem. E cada
vítima é uma fonte de divulgação dos horrores da violência. Quem sofre um assalto relata a
experiência a parentes, vizinhos e amigos, que a transmitem a terceiros, que a difundem em
escala exponencial. Portanto, mesmo quando a percepção popular não corresponde à
dinâmica dos fatos,22 ela tem a sua razão de ser e não merece ver-se desprezada como se
fosse mera ilusão.

Outros fatores que reforçaram o medo e a impressão de escalada incontrolável, em 1993,
foram a política, em sua manifestação jornalística, e duas tragédias de repercussão mundial.
A rede Globo declarou guerra ao governador Brizola. O sentimento e a disposição eram
recíprocos. A violência era o calcanhar-de-aquiles do governo. Jornais e TV trataram de
mirar o alvo com precisão. Além disso, aconteceram Candelária e Vigário Geral. Os dois
episódios teriam sido suficientes para desestabilizar qualquer governo; nem seria preciso o
tambor da mídia e o canto de guerra de seu segmento mais poderoso. Na Candelária,
meninos de rua foram assassinados enquanto dormiam por policiais militares, viciados na
tradição brasileira do extermínio de negros, pobres e incômodos. Poucos meses depois, na
favela de Vigário Geral, policiais civis executaram dezenas de pessoas, muitas delas
enquanto dormiam em suas casas. Famílias inteiras foram assassinadas a sangue-frio. A
pena capital fora aplicada a inocentes, aleatoriamente, por vingança a traficantes locais.

Essas tragédias provocaram uma comoção. Na mídia, a empatia humana turbinada pelo
interesse político derramou combustível explosivo na porta do Palácio Guanabara. Um ano
depois, o rastro ainda incandescente queimou o que restava da autoridade estadual
encorajando a intervenção branca que o governo federal faria rolar com os tanques do
Exército - goela abaixo do orgulho carioca. O sentimento dominante era um medo amargo.
Acreditava-se que o fundo do poço era aquilo: cidadania assombrada, insegurança
generalizada. Temia-se com hesitante incredulidade hipótese mais sombria: o poço seria
mais fundo; o dia seguinte traria surpresas ainda mais funestas a demonstrar que as coisas
poderiam ficar piores. O cenário em

180


que dona Nilza saiu de casa, pegou o metrô e foi ao centro da cidade não era nada
animador.

Entrou no elevador do edifício comercial sozinha e apertou o botão. Ia ao
vigésimo segundo andar. Na sobreloja, o elevador pára. Entra um rapaz negro, com aspecto
pobre. Corria tudo bem naquela tarde abafada de novembro, salvo pela chatice de sair de
casa, tomar metrô, esbarrar em tanta gente para atravessar as ruas e disputar espaço com os
carros no trânsito selvagem. Dona Nilza nem pressentia a encrenca em que se metera. Mal
o elevador retomou seu impulso para o alto, a pressão na cabeça de dona Nilza começou a
subir. Ela, enfim, se deu conta. Pronto, chegara sua vez. Por que não dera ouvidos aos
conselhos das amigas? Por que não fizera consigo mesma o que recomendava aos filhos?
Não poderia ser poupada? Não merecia uma trégua? Seu problema coronário não lhe valia
um salvo-conduto? Por que diabos não ficara em casa naquele dia? O destino estava selado.
Que fazer? Numa situação dessas não há nada a fazer. Tudo o que se fizer pode piorar as
coisas. Sim, é verdade, é preciso calma, é preciso sobretudo manter a calma. Dona Nilza
aprendera a repetir, ensinando aos filhos: calma, mantenha sempre a calma. Se você fica
nervoso, aí é que tudo complica. Nervosa, provavelmente sob o efeito de drogas, a pessoa é
capaz de tudo. Então, nada de provocar nervosismo. Melhor agir como se nada estivesse
acontecendo.

O jeito com que o rapaz revirava os bolsos e observava o espaço à sua volta, examinando
cada detalhe, olhos vermelhos, dentes cerrados e o peito explodindo de ódio, tudo indicava
a iminência do ataque. O ar escasseava nos pulmões de dona Nilza. Ela sentia o coração
disparar e o chão fugir-lhe sob os pés, e isso não tinha a ver com o movimento do elevador,
que não parava em andar nenhum. Mas que horror, meu Deus. Jesus, por que ninguém
chama o elevador? Por que não entra ninguém? O agressor voltou-se para dona Nilza. Ela
desejou por um instante que ele agisse logo, para estourar a bolsa da tensão. Ela não
agüentava mais a iminência do abismo. Chegou a pensar em apertar o botão do próximo
andar, mas temeu que isso precipitasse a violência, ao invés de impedi-la. Rezou para que
alguém entrasse. Mas talvez fosse pior. Talvez com mais alguém a situação ficasse
totalmente fora de controle. Qualquer movimento em falso poderia ser fatal. A mera
redução da velocidade do elevador poderia disparar a cadeia torrencial da violência. Por
outro lado, ela imprecava: que venha, que venha de uma vez! Era insuportável esperar
mais. O suor brotava-lhe na testa, as mãos suavam frio, o peito sufocava, uma corrente
gelada atravessou-lhe a espinha, revirou-lhe o estômago, ressecou a boca e estreitou-lhe a
garganta.

181


Dona Nilza via tudo escuro e sentia a vertigem tragar-lhe a consciência. Reuniu todas as
forças que lhe restavam para manter-se de pé, os olhos fechados, rezando, entregando o
destino ao Salvador. Depois de temer tanto a violência, seu medo a atraíra sobre si como
uma maldição. No décimo nono andar o elevador parou, o rapaz disse "Boa-tarde" e saiu.
Dona Nilza custou a certificar-se de que não houvera nada. Nada tinha acontecido.

À noite, depois de recompor-se do susto com Lexotan e alimentação leve, ligou para as
amigas: "Você nem imagina, não faz a menor idéia do que me aconteceu hoje: quase, q-u-
a-s-e fui assaltada. Minha filha, foi por um triz. Dessa vez... olha, foi Deus, foi Deus. Essa
cidade... não dá, não tem jeito, realmente não dá mais para morar nessa cidade. Ninguém
tem paz. É horrível, a gente sabe que é, mas não tem idéia de como é mesmo terrível a
violência. Só eu sei o que passei. Só mesmo vivendo pra saber."

E então? O que fazer com o caso de dona Nilza? Claro, não é preciso ser sociólogo ou
antropólogo para formular o diagnóstico: não houve nada naquele elevador; nenhum crime
foi cometido, nenhuma violência foi perpetrada; o que havia mesmo era o preconceito de
dona Nilza, preconceito de cor e classe e até etário, porque o estigma tem cara, cor, idade,
gênero, endereço e classe social. Neste sentido, houve, sim, violência, mas apenas aquela
que subjetivamente dona Nilza promoveu contra a imagem do rapaz. Medo e preconceito
andam de braços dados, como duas senhoras respeitáveis de um bairro tradicional.

Os efeitos colaterais dessa combinação estão todos aí, nesta pequena história que ilustra
bem dois temas: a invisibilidade provocada pelo estigma e a eficácia prática de
expectativas. Dona Nilza não viu o rapaz com quem compartilhou a mais longa viagem de
elevador de sua vida. Olhou para ele mas não o viu. Naquele rosto desconhecido encontrou
o que procurava, o que estava preparada para encontrar. Seu olhar não divisou a outra
pessoa cuja educação lhe daria o tapa com luva de pelica, no décimo nono andar. Divisou o
espelho que lhe devolveu o que era seu: intolerância, racismo, estigma. Produziu,
involuntariamente, o efeito que temia, duas vezes: sob a forma de violência simbólica
contra o jovem desconhecido e sob a forma da vitimização imaginária que experimentou,
com seu rosário de seqüelas. Por medo, dona Nilza oficiou, intimamente, um ritual de
exorcismo que atraiu sobre si a cólera dos deuses: acabou encarnando o mal que
esconjurava. Bebeu o veneno de que fugia como o diabo da cruz, tendo-o cozinhado,
temperado e servido.

O medo funciona no campo da segurança pública como a expectativa de inflação, na
economia: o comerciante prevê o aumento de preços e eleva os seus, antecipadamente, para
proteger-se; em o fazendo, ao invés de defender-se

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da inflação, a produz, ou melhor, contribui para produzi-la. A inflação comercial é o efeito
agregado das decisões preventivas dos que procuram protegerse de seus efeitos. O círculo
se fecha, instaurando um mecanismo de retroalimentação. O prognóstico de que os preços
aumentarão, formulado pelos agentes econômicos, está errado? Não. A decisão individual
de aumentar preventivamente o preço para reduzir o custo da inflação está errada? Não.
Esta ação perfeitamente racional de cada indivíduo, quando se articula com todas as
demais, todas elas igualmente racionais e convergentes, gera um resultado racional,
conforme aos desejos individuais? Não. O resultado agregado é irracional. A profecia se
autocumpre. Os resultados temidos são a conseqüência paradoxal das ações orientadas para
evitá-los ou contorná-los. Ante essa armadilha, em que se chocam racionalidade individual
e coletiva, bem privado e bem público, impõe-se a intervenção do Estado através de
políticas que alterem as condições em que a razão individual opera, ou seja, em que os
cálculos dos agentes econômicos se realizam e as decisões são tomadas. Redistribuindo
custos e benefícios, riscos e vantagens, o Estado pode mudar o horizonte de expectativas,
rompendo o circuito vicioso anterior.

Dona Nilza previa violência e preparou-se para enfrentá-la. Colheu o que plantou. Não
havia racionalidade em sua avaliação particular, somente aquela limitada pelos estigmas
que reduzem o horizonte da vida social às caricaturas e à simplificação. A conseqüência foi
a que descrevi. Imaginemos os efeitos agregados das experiências subjetivas de milhares ou
milhões de donas Nilzas. Os preconceitos ampliam seu espectro de abrangência e se
consolidam; as desigualdades se aprofundam; a incomunicabilidade revigora o apartheid
social; e os preconceitos se retroalimentam. O medo cresce e cobra sua fatura em ódio e
ressentimento. O custo global para a sociedade é mais violência. Se houver armas
disponíveis, os "cidadãos de bem" buscarão armar-se para defender vida e patrimônio; com
isso, mais se exporão a riscos, mais armas levarão ao mundo do crime e mais violência
promoverão. Muitas vezes, antecipando o pior, farão o pior. Temendo os algozes, tomarão
seu lugar. O círculo vicioso realimentará sua própria voracidade.

Bem, eu dizia, não é preciso ser cientista social para extrair lições desse caso. Porém, há um
resíduo persistente e incômodo, que complica um pouco a interpretação: mesmo não tendo
havido nenhum crime no elevador, ainda que a ameaça e a iminência do ataque tenham sido
obra da fantasia de dona Nilza, mesmo que o caso se reduza à paranóia armada na
linguagem do estigma, seu sofrimento foi real ou irreal? A importância desta pergunta não
deve ser subestimada. Nem suas conseqüências para a segurança pública.

183


A resposta é indiscutível: a violência atribuída ao rapaz nunca existiu, foi irreal, mas o
sofrimento de dona Nilza foi real.

Em outra situação, a mera suspeita provocada por preconceitos poderia trazer
conseqüências bastante reais para o rapaz, sob a forma de sofrimentos morais, psíquicos e
físicos, além de inúmeros prejuízos, dependendo do contexto. No caso do elevador, quem
sofreu foi dona Nilza, e a responsabilidade pelo sofrimento foi exclusivamente dela. A falta
de ar, a vertigem, o pânico, a taquicardia: tudo isso aconteceu, provocou sofrimento e
poderia deixar seqüelas. Dona Nilza custou a superar a insônia. O coração poderia não ter
resistido ao susto. Tudo isso é real o bastante para causar sofrimento. Tão real quanto o
elevador, dona Nilza, o rapaz e o medo. Atribuir a dor e as seqüelas às fantasias paranóicas
da senhora não nega dor e seqüelas. A irrealidade da causa não nega a realidade de seus
efeitos.

Uma situação análoga explica o argumento: a notícia da morte de um ente querido provoca
dor. Se, algum tempo depois, descobrir-se que a informação era falsa, o sofrimento
experimentado nem por isso desaparecerá. O sofrimento vivido foi vivido durante o tempo
em que a morte anunciada foi real para quem a chorava. Não há como, aposteriori e
retrospectivamente, desfazer a vivência da dor. Havendo seqüelas, elas tampouco se
dissiparão com a descoberta do engano.

O ponto é este: dona Nilza sofreu com a malfadada viagem de elevador, provavelmente
tanto quanto sofreria se tivesse sido vítima de um assalto. O evento vivido, a despeito de
sua irrealidade, marcará sua memória, seu sono e sua concepção sobre a vida coletiva no
Rio de Janeiro. Pelo que se depreende da conversa telefônica, o caso não lhe serviu de
antídoto ao preconceito, mas de reforço à imagem de uma cidade violenta. É ilusão nossa
crer que a experiência corrige equívocos de percepção, quando estes derivam de
preconceitos fundamente enraizados. Pelo contrário, quando crenças e realidade se chocam,
pior para a realidade. A vida comum não é um laboratório e a observação cotidiana dos
fenômenos não segue as normas da metodologia científica. Crenças não são hipóteses sobre
o funcionamento do mundo e da alma humana. São imagens sólidas e operativas,
carregadas de valor e emoção, que nos governam e ajudam a interpretar os fatos,
adaptando-nos a eles (e aos grupos sociais com os quais convivemos), de acordo com
nossos limites psicológicos. O sonho iluminista é que se desfaz ante o teste da realidade. O
que estou dizendo é que esta palavra, realidade, deveria vir sempre cercada de aspas,
porque ela, a realidade, é sempre aquilo que dela nos permitimos saber, segundo nossas
crenças ou conceitos, nossas práticas e relações sociais. Neste sentido, ela é sempre

184


historicamente condicionada, além de ser, em boa medida, feita por nós registre-se com
especial atenção que nossas crenças sobre ela constituem parte do trabalho coletivo e
intersubjetivo que a produz.

Vamos dar a volta em torno da cena, deixar dona Nilza sozinha no elevador, no 19° andar,
e acompanhar o rapaz que educadamente se despede. Quem seria ele? Teria percebido a
angústia que inadvertidamente causara? Teria sofrido por isso? Provavelmente, sim. A crise
da senhora tinha todos os ingredientes de uma manifestação perceptível, sobretudo para
aqueles que, ao longo de toda a vida, acostumaram-se a, involuntariamente, provocar esse
tipo de reação e tiveram de suportar o tremendo fardo de conviver com ela. Que sentimento
experimenta alguém que provoca medo e repulsa nos outros, ou em alguns, só pelo fato de
ser quem é? O rapaz foi a verdadeira vítima da situação. Dona Nilza foi algoz e vítima do
próprio preconceito. De todo modo, todos os sofrimentos - repito - foram reais.

Dona Nilza nos conduz a duas conclusões:

(1) Em primeiro lugar, a dimensão subjetiva é parte relevante da segurança pública e deve
ser um dos alvos de qualquer política de segurança que mereça este nome: seja porque as
pessoas sofrem não só pelo que vivenciam no domínio estrito dos fatos criminais, seja
porque sua experiência interior, indissociável da cultura, intervém no mundo prático e gera
fatos de várias maneiras diferentes. Isso não significa - e é muito importante sublinhar este
ponto - que factóides23 seriam justificáveis ou que uma boa política de segurança poder-se-
ia reduzir às preocupações com a dimensão subjetiva da população. Ou seja, isso não
significa que uma política de segurança deveria ser apenas uma política de comunicação.
Entretanto, significa, sim, que uma verdadeira política de segurança tem de incluir uma
política de comunicação. Mais que isso, precisa incluir uma política cultural. Varrer
preconceitos e combater o racismo (na sociedade, nas polícias e em todas as instituições da
Justiça criminal) são empreendimentos indispensáveis para a promoção da segurança.

(2) A ordem social que garante a todos a segurança, ou talvez fosse melhor dizer: a
segurança pública que garante a ordem social é menos que um fato ou uma coisa que se
veja, meça, toque e manipule; é a estabilização24 de expectativas positivas quanto às
interações sociais e, mais especificamente, quanto à segurança pública ou à ordem social.
Segurança é expectativa estável, positiva e amplamente compartilhada de que há e haverá
segurança. Em outras palavras, segurança é confiança. Confiança nos outros,

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na sociedade e nas instituições do Estado. Expectativa compartilhada: estamos no reino da
intersubjetividade, no qual, aliás, se tece a cultura. Segurança não é constatação sobre o
presente, é aposta no futuro - aposta que importa em conseqüências positivas para o
presente. Assim como a segurança, também a ordem é expectativa de ordem. Estamos no
terreno das profecias que se cumprem a si mesmas.

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EXPECTATIVA E ORDEM SOCIAL

Vejamos um exemplo pelo avesso: o mundo segue seu curso, os sistemas políticos e
econômicos se reproduzem, as instituições são estáveis, mas bastaria que segmentos
consideráveis da população ficassem em casa por tempo indeterminado para que toda esta
constelação que parece sólida entrasse em colapso e desmanchasse no ar. Sem um tiro, um
único ato de terror, uma só ameaça. Pacificamente. As instituições não são coisas, são
rotinas, procedimentos, relações regulares, normas respeitadas no cotidiano de sociedades.
Suspendendo-se as rotinas, deixam de existir. Evaporam. São efêmeras e voláteis.
Expressam pactos sociais e os sustentam, representam-nos e os perpetuam. Cessando os
pactos, cessam suas expressões. A anarquia não ocorre porque cada indivíduo que deseja
ficar em casa imagina que os outros irão ao trabalho, o que o leva a imitá-los, para não se
prejudicar. Como todos imaginam o mesmo, nenhum trabalhador fica em casa (a não ser
quando realmente necessário) e a ordem não evapora. A ordem é a expectativa de ordem:
todos imaginam que ela existe e, por isso, ela passa a existir mesmo, na prática. Mas
quando ninguém acredita que haja ordem e segurança, quando todos têm medo, a
debandada é geral, ninguém se entende e todos se tornam violentos para se protegerem da
violência que esperam encontrar em cada esquina. A profecia da desordem se autocumpre e
a insegurança se expande, com motivos cada vez mais concretos.

Observe-se que fato, emoção, interpretação e valor são peças-chave para a formação das
expectativas e, por isso, constituem também elementos estratégicos para as políticas de
segurança. Portanto, não há política de segurança sem conexões estreitas com cultura e
educação - além da comunicação já mencionada. Não basta reduzir o número de fatos
criminais; é preciso trabalhar o sentido que as interpretações lhes emprestam, focalizar os
valores que orientam as interpretações e os comportamentos (de vítimas e agressores) e
trazer para o centro da arena a problemática das emoções (de uns e outros), sabendo-se que
elas são indissociáveis das interpretações, dos fatos e dos valores.

A lição de dona Nilza não se esgota nos dois pontos que destaquei - a importância da
dimensão subjetiva e a fragilidade da ordem social. Há muito mais, ali, no elevador, entre o
céu e a terra, do que sonha a vã filosofia. O sofrimento de dona Nilza tem a mesma origem
de várias abordagens policiais: a suposição de que os jovens negros e pobres são perigosos.
Eu já presenciei

187


várias situações em que o estereótipo sai lá do fundo da mente, num salto, às vezes
surpreendendo até quem abriga o preconceito. Antes do bandido, é o estigma que assalta a
consciência. Por exemplo, diante de um jovem negro atravessando a rua, o motorista fecha
rápido o vidro de sua janela. Eis aí a cena típica: uma reação reflexa, automatizada, que
lembra experimentos pavlovianos - caricatos, previsíveis e mecânicos.

O diabo é que essa modalidade de racismo tem conseqüências que ultrapassam o momento
e transcendem a cicatriz que deixa no espírito de quem se sente assim anulado, invisível e
substituído por uma persona preconcebida, por um estereótipo. Seus resultados se
manifestam nos critérios de seleção que as instituições da Justiça criminal aplicam, em suas
pequenas decisões cotidianas. Nas ruas, nos ônibus, nas periferias, vilas e favelas, na blitz e
na abordagem regular, a realidade é filtrada pelas escolhas policiais, que, na seqüência,
servem ao Ministério Público e à Justiça o prato feito. As sentenças cospem no sistema
penitenciário e nas chamadas entidades socioeducativas os personagens de sempre, "restos"
da sociedade, "sobras" indigestas. Os presidios estão repletos de pobres e negros, do sexo
masculino, jovens.

Será que as elites e as camadas médias não cometem crimes? Ou cadeia no Brasil é mesmo
para os outros? É provável que um só golpe sofisticado, arquitetado por criminosos de
"colarinho branco", renda prejuízo maior para a sociedade e o Estado do que a soma de
todos os roubos e furtos cometidos pelos miseráveis que se embrutecem nos cárceres.
Entretanto, quais são os focos usuais das polícias, o varejo e as quinquilharias à disposição
do flagrante ou as tramas refinadas e veladas, que envolvem o poder e exigem investigação
metódica, paciente, tecnicamente apurada, judicialmente autorizada?

Portanto, muita gente padece do mesmo mal que provocou momentos de agonia em dona
Nilza - e, por motivos diametralmente opostos, em Celso e William (segundo o relato "Os
Neguinhos do Buzão"). Muitas instituições, inclusive. O racismo e o preconceito social, em
suas diversas formas, moldam o que se vê e o que não se vê. Quando visibilidade é um
simples sinal de suspeita, ela é o outro lado da invisibilidade e apenas revigora seus efeitos.
O que o policial vê quando adota a lente do estigma é o retrato da intolerância na qual a
sociedade que lhe paga o soldo o treinou.

188


O CHORO DO MENSAGEIRO


Vou dizer que perdemos o dinheiro. Nunca concordei com aquilo, mas como eu era mais
novo, era melhor ficar quieto e comer a minha cota, porque, se minha mãe descobrisse, a
porrada ia comer no meu lombo, com ou sem culpa. Mas isso não era rotina, até porque
sabíamos que essa grana era para pagar as prestações do ap da Cohab, que financiamos sei
lá como.

Minha mãe era uma mulher muito feliz, apesar das marcas da vida dura que carregava
desde seu nascimento. Hoje, vendo por outro ângulo, percebo que os miseráveis não têm
por que serem tristes, já que eles nunca vêem o que tem do outro lado da cortina. Ela vivia
cantarolando e contando piadas. Aliás, só perdeu esse bom humor após a morte do meu
irmão, não só o humor como uns dez anos a cada mês que passa. Ela jura que foi cantora de
rádio, na época da Maísa e da Dalva de Oliveira. Até que a negona canta bem; e, como ela é
minha mãe, não tenho razão nenhuma para duvidar.

Ela adorava jogar víspora, hoje meio legalizado e rebatizado de bingo. A velha vinha de
uma separação turbulenta com meu pai, Mirão, um negrão responsa do Cabral, onde eu
nasci - fica na Baixada Fluminense, mais precisamente em Olinda. Eu os via brigando, com
freqüência, mas não me lembro de nenhuma razão para as brigas, só de alguns vasos de
planta sobrevoando os cômodos do nosso barraco. Tenho claro na lembrança que ela
sempre dizia, no meio das brigas e berros, que ia embora. Meu pai respondia no mesmo
tom que a porta da rua era serventia da casa - eu nem sabia direito o sentido desse jargão. O
fato é que minha mãe entendia o que ele queria dizer e nós, meu irmão e eu, ficávamos com
muito medo de ela levar aquilo a sério. Até que esse dia chegou. Eu estava dormindo;
acordei com os berros dos dois. Vi minha mãe entrando no quarto e pegando as coisas com
raiva. Não era a primeira vez, mas, como das outras, parecia ser a última. Levantei; vi meu
pai sentado na sala, com uma cara de alívio; voltei para o quarto e vi meu irmão pedindo à
minha mãe para ir junto com ela, enquanto ela respondia que não sabia para onde ia, que
era mais seguro ficar em casa, que ela voltaria para pegá-lo e a mim. Não esperei a segunda
frase; comecei a pegar meus brinquedos e cuecas; em dois minutos minha mala de viagem
estava pronta. Saímos pela porta da frente e não me lembro de ter visto meu pai, e se ele
dissera alguma coisa sobre a nossa ida.

Começava ali a peregrinação que nos levaria para a casa de parentes, em Anchieta, para a
casa de amigos de minha mãe e, por fim, para a própria rua, mais precisamente para a praça
principal de Marechal Hermes. Meu pai nunca soube disso, nunca soube que seus filhos um
dia foram também filhos da rua. Minha mãe, apesar das brigas que os separaram, sempre
nos levava

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para vê-lo. Ela nos soltava numa rua próxima à casa dele e nós dois seguíamos para beijá-lo
nos seus aniversários ou nos nossos, além das vésperas de Natal e Ano-novo. Até que
crescemos e passamos a ir sozinhos. Depois, passamos a ir menos. Hoje, vou quando
consigo. É que os Natais ficaram muito mais concorridos e divididos com o passar dos
anos. Não me lembro de ele ter me dado um presente na vida. Eu sempre reclamava com
minha mãe, na volta das visitas, pois achava que ele deveria retribuir os presentes que a
gente sempre levava, mas ela dizia que ele não era dessas coisas, que um beijo era maior do
que um presente. Ele nunca perguntava nada sobre nós, nunca soube muita coisa sobre
nossas vidas, mesmo depois de crescidos e casados, ele nunca ligou ou foi às nossas festas.
A única vez que o vi fora da sua toca foi no enterro do César, meu irmão, no cemitério do
Murundu. Vi suas lágrimas descendo, vi o tamanho da tristeza daquele homem ausente,
distante, mas que, apesar de tudo, sofria com a mesma intensidade. Lembrei do que minha
mãe dissera sobre os presentes que nunca chegaram.

Minha mãe, meu irmão e eu nos transformamos numa família cigana, mutante, errante, sem
paradeiro, sem futuro, sem destino. Nossa próxima parada após a praça de Marechal
Hermes foi o Pavilhão de São Cristóvão. É que na época houve uma grande enchente na
cidade maravilhosa e a Prefeitura estava recolhendo os moradores de rua e os desabrigados
da cidade. Nós, então, partimos para um barraco de uma conhecida da minha mãe, dona
Tereza. Soubemos que os moradores daquela região seriam recolhidos, também; daí nos
juntamos à sua família e mentimos para a Defesa Civil, dizendo que morávamos todos lá no
barraco. Duvido que isso fizesse diferença para aqueles homens cheios de botas, capacetes
e pranchetas. Pegamos as poucas coisas que havia e fomos todos atirados num caminhão da
Comlurb, onde já estavam outros singelos desgraçados como nós, nem todos derrotados.
Chegamos ao Pavilhão à tarde e os funcionários, imagino que da Prefeitura, organizaram
todos nós em filas; era assim que nos identificavam. Eles distribuíram cobertores e um saco
de lanche com uma maçã, um saquinho de leite e um pão pequeno. Nada daquilo era pior
do que a rua; ali era tumultuado, reconheço, mas eles agora teriam três alternativas: tocar
fogo em todos nós, deixar a gente ali para o resto da vida ou jogar uma caxanga no nosso
peito, mesmo que fosse lá na casa do caralho.

A casa do caralho foi a opção deles e o nosso destino. Depois de algum tempo, fomos
remanejados para um conjunto residencial, o Cesarão. Não me lembro como chegamos,
exceto que era longe pacas. Era a primeira locação; as casas eram branquinhas; a gente
podia trocar de casa sem muita

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burocracia. Foi assim que minha mãe fez com uma vizinha da dona Tereza, que tinha sido
levada para uma rua muito distante de nós. Dois meses depois trocamos nossa casinha por
um apertamento da Cohab em Senador Câmara. Era um conjunto residencial de
apartamentos novos. Ficamos no bloco 45 e depois no 38, onde cresci.

Passaram-se alguns meses e fiquei sabendo que, ali, no Sapo, havia uma rinha que ficava
perto da pedreira, e que a rinha não era de galo, era briga de gente, de garotos. Minha
curiosidade me empurrava pra lá. Só que existia uma história local sobre aquela pedreira:
diziam que as crianças que conseguiam chegar lá não voltavam nunca mais. Isso virou uma
lenda, mas era a maior mentira, era só pra molecada não se aglomerar "nos trabalhos da
rinha" e chamar a atenção dos curiosos e, conseqüentemente, da polícia. Descobri que o
Bagdá, um garoto da comunidade, trabalhava na rinha e poderia ser meu guia na aventura
de descobrir o que rolava atrás das pedras. Apesar de muito novo, ele era grande e
corpulento, causando uma certa ilusão de ótica. Bagdá era o clone do Tony Tornado, da
favela, e assim era chamado, até porque imitava o Tony, na época do movimento soul no
Brasil. Onde tinha confusão, lá estava ele, não brigando, mas separando. Ele era desses
sujeitos com cara de matador, mas espírito de anjo, um exímio apaziguador. Nessa época,
eu morava no bloco 38 e o Bagdá no bloco ao lado. Eu tinha um trunfo na manga e
precisava esperar para usá-lo no momento certo. É que o Carlos (Bagdá) era viciado no
bolinho de aipim da minha mãe e eu vendia sempre fiado pra ele. Fui até a sua casa e o
convenci a me deixar entrar na rinha; ele prometeu falar com seu Rogério. Pode falar com
quem quiser, eu pensava: eu quero é entrar. Nem sei se ele falou, mas o fato é que na
quinta-feira seguinte ele me chamou, como combinamos, e fomos para a pedreira.

Muitos adultos e crianças participavam da "festa". Percebi que a maioria das pessoas que
estava ali não era moradora da favela. A molecada saía na mão como se fosse seu último
ato na vida, os adultos se divertiam e apostavam como se os guris fossem virtuais, como se
fossem jogos de videogame. Era impressionante como tinha gente de todo tipo, mas
ninguém falava alto. A vibração e a torcida eram mais internas, parecia que a disciplina era
algo acima de qualquer organização militar. Era incrível o silêncio, só cortado pelos gritos
dos garotos quando eram golpeados.

Vi naquele negócio uma boa chance de ganhar alguma grana. Na época, como até hoje, eu
buscava novos projetos que me rendessem alguns trocados a mais. Insisti com o Bagdá que
eu teria de participar de alguma forma e, com o tempo, comecei a trabalhar na rinha. Mas
eu achava muito pouco. Meu trabalho

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se limitava a levar a grana dos PMs na barraca de caldo-de-cana, comprar mercúrio e
cigarro a varejo, além de ajudar a socorrer os moleques e leválos para casa, ajudando-os a
mentir aos pais, quando eles se machucavam. Eu costumava dizer que estávamos jogando
futebol no campinho careca. Eu queria mais... Queria lutar, ou melhor, ganhar dinheiro e
ser o Rei da Rinha.

Até hoje, não sei direito se o seu Rogério era o dono da rinha ou se ele era apenas uma
liderança local. Talvez tivesse participação nas ações da firma. Dizem que morreu de
diabetes na cadeia. Era um mulato alto, de bigode, com um porte de uma imponência
poucas vezes vista por mim. Era quase um papa na favela; tinha fama de ser justo e quem o
via comentava como se tivesse visto seu santo favorito. É que ele quase nunca aparecia.
Seu nome, sim, estava sempre presente.

O Bagdá, que hoje continua meu amigo e trabalha conosco, me apresentou a ele e disse que
eu era de confiança. Ele nem me olhou direito; eu não passava de mais um moleque
raquítico a fim de arrumar uma grana, saindo na mão se fosse preciso.

Depois de muita insistência, passei a lutar também. O corpo-a-corpo não era o meu forte,
mesmo assim me tornei um lutador médio. Eu podia até não fazer parte da elite, mas
também não era da turma dos comédias. Quem apostava em mim muitas vezes ficava puto
da vida comigo, como se eu fosse o culpado de perder as lutas.

Lembro que, uma vez - acho que foi minha última luta, me colocaram para brigar com um
gordinho. A família dele tinha chegado de João Pessoa; ele era branco e com cara de mané.
Eu era magro e já tinha alcançado alguma notoriedade na rinha. De antemão eu discordava
que colocassem um garoto que acabara de chegar da Paraíba para apanhar de mim, mas
nem era por isso, eu não me conformava que os garotos da favela levassem tanto tempo
para descobrir aquele ringue enquanto um paraibinha recém-chegado já chegava invadindo
a parada. Mas, tudo bem, a minha vingança seria uma coca nele. Eu passei a mão na terra
para intimidá-lo e também porque aquilo fazia parte do ritual; a terra não servia pra nada,
mas como alguém já tinha feito isso antes de mim, era prudente copiar. O veado do
paraibinha me olhava sem que eu pudesse ler nada nos seus olhos, nem medo nem
coragem. Dei uma aquecida e fiz umas palhaçadas para o bicho-do-mato ficar com medo de
mim antes da luta. Uma coisa era certa: a parada estava ganha, só restaria saber quanto
tempo o bicho-do-mato agüentaria apanhar.

Quem administrava a rinha era a dona Vavá, uma senhora que fumava pra caralho o tempo
todo; passava o dia acendendo cigarro. Era foda, porque ela

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falava com as pessoas soltando fumaça pelo nariz, pela boca e, se bobeasse, pelos ouvidos.
Diziam que ela perdera todos os filhos que tentou ter e que era por isso que ela trabalhava
na rinha, para foder a vida dos filhos dos outros. Foda-se. Eu estava ali pra defender o meu.
Dona Vavá bateu a terceira palma, que era o código para começar o combate.

O miserento do paraíba veio como um louco pra cima de mim, como quem tivesse ficado se
concentrando e me estudando durante anos até esse grande dia. Fixou a ira em mim e me
abraçou. O cachorro do mato nem elegante sabia ser, não tinha tática, técnica; alguém
deveria ter dito pra ele que era preciso deixar os apostadores se deliciarem com a luta, mas
não... O puto do paraíba sequer esperou as mãos da dona Vavá se desatarem das palmas;
deu uns quatro passos e me abraçou, coloquei meus dois braços em defesa e ele abraçou
assim mesmo, o pescoço e os braços. O Lampião do sertão tinha uma força de adulto; o
jagunço escroto tinha uma pegada de trator. Mas Deus ia me ajudar, pensei rápido. Seria
vexatório apanhar daquele branquinho que nem de favela era. Ele passou a apertar minha
garganta e socar a minha barriga como se eu fosse o maior inimigo dele, e não parecia fazer
aquilo por dinheiro, parecia dívida antiga nossa - mas não era. Vou matar este cabra da
peste depois, eu devaneava. Até hoje não sei como me tiraram dos braços dele; só me
lembro da dona Vavá com ar de riso pelo canto da boca. Uma coisa é certa, se não me
tirassem dos braços do paraibinha, eu estaria lá até hoje. Pois é, Deus até pode ser brasileiro
e, se for, deve ser paraibano.

A rinha foi fechada meses depois dessa luta, daí fiquei sabendo que era sempre assim,
sempre que o seu Rogério sumia, o trabalho parava. Apesar disso, passei a fazer vários
favores para a família dele, principalmente para o irmão, Tigi, que nos tratava como quase
filhos. Esses favores passaram a ser a nossa fonte de renda - não fazíamos trabalhos que
comprometessem nossa integridade moral ou física, nada além de ir todos os dias à padaria,
comprar remédios, jogar na loteria esportiva ou buscar alguma coisa no Supermercado Mar
e Terra.

Quando completei 19 anos, comecei a procurar emprego, qualquer um que aparecesse.
Lixeiro, bombeiro, PM, guarda de banco, carteiro, borracheiro, eu topava tudo, mas até ali a
minha especialização era somente vender bolinhos e comprar pão, leite ou cigarro a varejo.
Se pintasse uma batalha que me garantisse uma estabilidade, seria o ideal; se não rolasse,
eu estava disposto a cair pra dentro de qualquer coisa; até terreno de vizinha eu estava
aceitando capinar.

Era difícil por todos os ângulos: não havia dinheiro sobrando para fazer inscrições e eu não
tinha estudo. Parecia que o mundo conspirava contra

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mim. Passei a pedir ao seu Rogério dinheiro para fazer todas as inscrições. Ele ajudou.
Certa manhã, ele descia de um bloco e me perguntou: "Qual é neguinho, e os trabalhos?"
"Eu baixei a cabeça, peguei a carteira e mostrei a ele a minha inscrição da PM. Sabia que
ele reprovaria. Surpreendentemente, ele não reprovou, mas disse: "Deus é quem sabe." Ele
me deu uma grana para eu comprar um short para fazer o teste físico. Inclusive, me
estimulando. Mas não era o que eu queria; aliás, é o que pouca gente quer.

Passei na prova e ingressei na corporação, mas eu não parecia com nada daquilo. Nunca me
sentiria um deles. Confesso que sentia até medo e levava sustos quando os colegas vinham
me cumprimentar. Não me refiro somente aos policiais, mas aos meus próprios fantasmas:
fui induzido a odiar os PMs a vida inteira; por outro lado, parece que eles têm uma
inclinação para odiar os favelados. Eu estava diante da minha contradição. O fato é que eu
seria, no máximo, um civil fardado, nunca um PM de fato. Era como estar de batebola no
carnaval, com medo dos outros colegas mascarados, por não me sentir um deles. Por isso,
antes mesmo de completar seis meses do estágio, eu saí da PM por opção, para virar camelô
em Madureira. Avisei ao seu Rogério que eu não podia terminar o estágio, que eu não
queria virar cana. Senti uma certa decepção nos olhos dele. Mais tarde, ele me confessou
que tinha planos para minha carreira militar. Senti um dos maiores alívios da vida. Viva a
vida, a minha e a dos outros.

Hoje, mais de vinte anos depois, eu acordo feliz por aquela decisão, sábia decisão.

De lá pra cá me envolvi com muitas outras coisas: me tornei camelô na estrada do Portela,
promovi bailes de charme, fiz uma revista black, participei da formação de um partido
político de pretos, o PPPOMAR, Partido Popular Poder para a Maioria, participei da
articulação da Cufa, Central Única das Favelas, ajudei a criar a Maria Maria, organização
de mulheres, participei da criação de um prêmio nacional de rap, de um festival com uma
semana inteira dedicada ao hip-hop nacional, o Hutúz, dirigi e produzi documentários,
assim como videoclipes, fui dono de birosca, joguei futebol, guardei carros em Botafogo,
em frente à CNEN, Comissão Nacional de Energia Nuclear, fui segurança daNuclebrás,
toquei violão na noite, montei escritório de distribuição de discos, fali, desisti, insisti,
respondi a vários processos por apologia ao crime, e ainda respondo, mas também fui
premiado pelos mesmos atos, dentro e fora do Brasil, viajei o mundo, África, Estados
Unidos, Europa. Hoje, ajudo a escrever este estranho livro, sempre carregando comigo a
cultura marginal. Livro que não é baseado em fatos, é o fato real.

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Em 1986, ingressei como agente de segurança numa empresa do governo, a Nuclebrás, mas
a vontade de fazer e viver do rap falou mais alto e resolvi pedir as contas. Uma atitude
totalmente irresponsável, para quem tinha um emprego no governo e família para sustentar.
Era o risco que me chamava. E mais: eu não nasci para ser vigilante. Não descobri, ainda,
qual é o meu papel no mundo, mas vigilante eu sabia que não era. Começaria ali um novo
projeto na minha vida, chamado hip-hop.

Naquele tempo, o Rio de Janeiro não tinha programas de rádio voltados para o hip-hop. Os
grupos do Rio não tinham vídeos, como têm hoje. Fazer eventos de rap representava ter
que vender tudo dentro de casa, porque o prejuízo era certo. Não que tenha mudado tanto,
mas antes era mais trágico. O rap era confundido com ofunke os jovens não se interessavam
pelo hip-hop, o que era bacana para quem queria ser uma tribo e ruim para quem queria ser
um mercado. Fazer um trabalho com o Racionais, por exemplo, era como quebrar pedras
com as mãos.

Entre os jovens que esperavam a abertura do portão das oportunidades estava o Alex
Pereira. Um dia, ele bateu na porta da minha casa e contou as dificuldades pelas quais
passava, os seus problemas. Seus olhos pediam para que eu acreditasse nele, no sonho que
ele tinha. Alex era magro, feio, fechado, ranzinza, aparentemente triste. Era incapaz de
atravessar uma sala repleta de gente. Ele falava pouco e tentava me convencer do seu
talento. Algumas semanas depois, fui convencido pelo Edson de Deus, na época produtor
do Racionais, em Minas Gerais, a deixar o Alex abrir um show do Racionais no Império
Serrano. Eu disse a ele que o deixaria abrir o show e que aquilo era o que todo mundo
queria; ele deveria aproveitar.

Show com Racionais era a única possibilidade de ter público de rap, naquele tempo:
"Tranqüilo, Bill, pode abrir o show. Só que é o seguinte: não tem van nem tem cachê." "Já
é", ele disse, e sumiu como quem tivesse medo de eu mudar de idéia.

No dia do evento, ele chegou junto com os seguranças, de tão cedo que era. Perguntou onde
ele podia ficar e a produção o colocou num camarim. Eu estava no morro da Formiga com
o pessoal do Racionais, visitando um amigo (Passarinho na Gaiola, já falecido). O tempo
passou e não percebemos; vi que não daria pra chegar na hora marcada para o show. Então,
pedi para inventarem uns grupos que quisessem cantar até a nossa chegada. Orientei a
produção que fosse somente uma música por grupo. Quando chegamos ao portão principal
do Império Serrano, uma gritaria tomava conta do salão. Imaginei que alguém tivesse
anunciado na boca de ferro

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que o grupo principal tinha chegado. Continuamos entrando e um som explodiu no salão:
MARQUINHO CABEÇÃO; o público vinha abaixo. Era ele, o neguinho mal-encarado que acabara
de se transformar num bicho, num domador, num guia, Messias. Em determinado momento, ele
parou o show para falar algo. Não sei o que ele dizia; o silêncio tomou conta da quadra da escola;
ele seguia falando; tinha a segurança de quem sabe o que diz; era impressionante ver aquele pastor
pregar. Nos intervalos entre uma fala e outra, todos aplaudiam e gritavam como se ele tivesse feito
um gol de placa. Não era possível que aquele neguinho magricela pudesse ser aquele astro, mas era.
Acabou sua performance aos gritos e aplausos efusivos. Impressionante tudo aquilo.

A essa altura, eu estava no camarote da quadra, para onde ele veio assistir ao show do Racionais.
Levantei e fui ao seu encontro; dei-lhe os parabéns; ele não perdeu a humildade, sequer tocou no
assunto da van ou do cachê. Na semana seguinte, ele foi até minha casa para saber se eu poderia
ajudá-lo. Eu lhe disse que ser um bom cantor era muito pouco, que possivelmente haveria outros
como ele, e que o diferencial estaria fora do palco. Ele não desistiu; voltou à minha casa, dessa vez
acompanhado de um amigo, o Dj TR. Eu estava em depressão, nessa época, por excesso de dívidas;
estava no quarto, deitado, com dor de estômago, ou melhor, dor de dívidas.

Ele entrou no meu quarto e começou a falar dos seus sonhos, que acreditava tanto no que cantava
que chegava a pregar o hip-hop no trem, que isso era mais importante que a vida dele. Falou da
mãe, dos problemas dela, do pai, Mano Jucá, dos inúmeros problemas, disse que não se importava
se eu não o colocasse para cantar, que o que ele precisava mesmo era de um trabalho urgente, que
não tinha nem o que comer em casa. A dor aumentou, passou e voltou. Lembrei do cachê simbólico
que eu não havia pago a ele, do quanto aquela merreca teria ajudado aquela criatura, da van que não
paguei e sabe Deus como ele tinha ido embora do show. Pensei: caralho, não tenho problema
nenhum. Levantei do chão, chamei a Marilza, minha mulher, e lhe disse que, apesar de estarmos
fodidos, deveríamos ajudar o Bill e Deus nos ajudaria também. Ela não concordou muito, pois sabia
que estávamos falidos; mesmo assim, disse a ele que voltasse no dia seguinte para trabalhar na
nossa loja de discos, gravadora e distribuidora. É que, na ocasião, nós distribuíamos discos de hip-
hop. Bill foi contratado para fazer entregas e cobranças por um salário mínimo. Naquelas
circunstâncias, posso afirmar que foi uma contratação milionária, a peso de ouro.

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No dia seguinte, levando meu filho à escola, passei na porta da loja. Lá estava o Bill,
sentado na porta, uma hora e meia antes da hora combinada. Concluí: esse negrão é um
chato. Passei batido e nem falei com ele.

Só que o tempo mostrou que ele tinha um grande senso de disciplina, pontualidade,
inteligência, coerência, dedicação, concentração e, sobretudo, obstinação. Um verdadeiro
obstinado. Eu sabia que aquele rapaz queria ser rapper, ele queria fazer rap, gravar CD; era
a única coisa que ele queria; ele tinha esse sonho e acreditava que eu era o caminho. Por
outro lado, eu não poderia me arriscar a gravar um artista de rap num estado como o Rio, a
terra dofunk. Seria um investimento sem retorno, seria um tiro sem alvo. Mas havia uma
outra coisa a ser considerada: a força que o Bill carregava, a imensa carga de luz que
emanava dele, sobretudo no palco, sobretudo na fala - econômica, mas sempre organizada e
tensa. Uma coisa era clara, ele tinha conquistado minha admiração e meu respeito por seu
sonho. Aceitei embarcar no sonho dele, mas impus uma condição, não existiria um
contrato: "O dia em que você achar que não mereço mais o seu respeito", eu disse, "é
porque você não merece mais o meu. Fechado?" Ele concordou: "Fechado."

O trabalho do Bill era, basicamente, varrer a firma, entregar discos, fazer cobranças, ir ao
banco, ligar para os clientes, atender ligações, tirar xerox, ir ao correio, pegar discos em
São Paulo, organizar o estoque e pressionar nossos devedores.

Certa vez, o gerente de uma loja do shopping Rio Sul ligou, perguntando se o Bill era
realmente nosso cobrador. Marilza disse que sim. Ele pediu que não o mandasse mais
cobrar, porque ele era muito mal-educado. Como o cliente tem sempre razão, decidimos
que o Bill não cobraria mais naquela loja e, quem sabe, em nenhum lugar. Conversaríamos
com Bill, quando ele voltasse do shopping, para decidir o que fazer.

"Bill, o gerente do Rio Sul reclamou de você, disse que você é mal-educado, o que
houve?", perguntou a chefe dele, Marilza. Calmamente, ele respondeu: "Ele está devendo
há quatro meses; eu disse que só ia sair da loja com o dinheiro, e ele pagou. Tá aqui."
Assunto encerrado; Bill virou nosso cobrador oficial.

Por mais equilibrado que ele parecesse, era visível a ansiedade para gravar seu disco.
Sempre que possível, Bill jogava uma indireta.

Afinal, fiz uma reunião com o William, da Zimbabwe, em São Paulo, e fechamos uma
parceria para o seu disco, Mandando Fechado. Vendi uma casa que tinha em Sepetiba e,
para fazer o videoclipe da música "Traficando Informação", dirigido pela Katia Lund -
aliás, seu primeiro videoclipe -, vendi o carro.

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Mas o disco não poderia sair muito rápido, tinha que ser de faixa em faixa. Mesmo depois
que o disco estivesse pronto, começaria uma nova história; seriam necessárias várias coisas,
entre elas, desenvolver a parte gráfica. Tudo isso exigiria dinheiro. Enquanto o trabalho ia
rolando, o sonho ia aumentando.

Dia 2 de junho de 1999, Bill desembarcou na Rodoviária Novo Rio, trazendo um
carregamento de CDs de São Paulo. Pegou um táxi até Madureira, para mais uma jornada
de trabalho, como sempre acontecia: descarregar, separar e entregar, independentemente do
sono e da viagem mal-dormida. Fiz a minha cara de feliz, pois muitos clientes esperavam
os CDs nas lojas; afinal, era a chegada triunfal do Sobrevivendo no Inferno, que me tiraria
também do inferno. Comecei a cantar de felicidade em tom alto; comemorei o fato de o Bill
não ter sido pego pela Polícia Rodoviária, porque eles sempre querem ficar com umas
caixas.

Por fim, olhei para o Bill, com ar de juiz prestes a condenar, quase entrando na caixa de
tanta raiva, olhei para o Bill, novamente, e disse, com todo o desespero que eu podia:
"Caralho, Bill; caralhoooooo! Que prejuízo você me deu, porra, você trouxe tudo errado. O
pior nem é isso; você gastou dinheiro para ir, pra voltar, táxi, tempo, tem um monte de
gente que está esperando a mercadoria, hoje, e eu, aqui, fodido, cheio de contas para pagar.
Ainda tem a questão da palavra; eu prometi que entregaria os discos hoje, caralho. E aí,
Bill, o que eu faço agora?"

Ele tinha duas opções: me mandar tomar no cu e ir embora, perder seu emprego e,
provavelmente, seu sonho, ou engolir mais esse sapo e me mandar tomar no rabo mais
adiante, depois do disco gravado. Ele preferiu me xingar com os olhos. Até o maior
analfabeto conseguiria ler o ódio que ele sentia de mim, por causa das minhas expressões.
Ele levou as mãos à cabeça como quem tem a certeza de que estragou a minha vida. Baixou
os olhos e disse, quase sussurrando: "Foi mal, bucha*, eu vou voltar, agora, para trocar a
mercadoria; pode descontar tudo do meu salário; só te peço para ser aos poucos; foi mal,
bucha, foi mal."

Sentenciei: "Agora, você abre todos os CDs e confere quantas caixas vieram erradas,
qualquer coisa estou lá embaixo."

Virei as costas e saí reclamando alto, quase aos berros, mas deixei a Marilza,
estrategicamente, perto do telefone, para vigiar qualquer gesto dele e me avisar. Sei lá se
ele pegaria uma barra de ferro pra me matar; não era bom dar sopa para o azar.

* Bucha significa subalterno, pessoa que não tem autoridade.
201


O ramal tocou; era Marilza: "Celso, sobe, sobe!"

Subi pelas escadas de ferro, daquelas antigas e curtas, iguais a um caracol. Bill estava
sentado sobre as caixas que trouxera de São Paulo, todas abertas, "o mensageiro" chorava
de dor, de felicidade, de loucura... Parecia uma criança. Descobriu que o que estava nas
caixas nada tinha de errado, muito pelo contrário. Descobriu que eu não era o filho-da-puta
que tinha parecido ser. Eu só queria que ele descobrisse com seus próprios olhos, que as
caixas traziam nada além da sua arte, da sua obra, do seu sonho. Era um momento que
deveria ser dele com ele mesmo. Imagino que deve ter refletido sobre a viagem, que
estivera todo o tempo com a sua obra, sem saber; que já era um "artista".

Quando subi, ele não conseguia se levantar, suas forças pareciam ter sido consumidas pelas
caixas de papelão sob seu corpo. Bill me olhou, se levantou, me abraçou ainda emocionado;
não sabia ou não tinha o que dizer, mas eu tinha. Olhei fixo para aquele jovem
perfeccionista, que raramente vacilava, e disse: "A partir de hoje, você não carrega mais
caixa, aqui, Bill, nem viaja para buscar discos; a partir de hoje, você passa a ser o artista
desta gravadora." Nada que pudesse ser dito substituiria a força que aquele momento
proporcionava. A essa altura, as pessoas que faziam parte da nossa família já participavam
daquela telenovela. Então, todos desejaram a ele boa sorte e sucesso na vida. Nada mais
precisava ser dito; ele tinha que ir para casa e deixar o tempo passar; curtir, pensar, planejar
o novo curso da sua vida. Mesmo assim, eu disse que ele não esquecesse que o seu sucesso
representaria, incondicionalmente, ódio dos desafetos e o desconforto dos amigos; que ele
teria que se preparar para um caminho diferente daquele que todos os grupos tinham
escolhido; que ele não deveria só denunciar, mas mostrar caminhos, criar alternativas, botar
a cara; isso, sim, faria a diferença. Empolguei-me e fui além: disse que ele precisaria ficar
atento e se preparar, porque o sucesso traria muitas coisas boas, mas traria a carga negativa
de todos os que gostariam de estar no seu lugar ou ao seu lado, sem sucesso. A essa altura,
ele não estava escutando mais nada; pegou uma caixa com 25 CDs, um vale transporte e
partiu para a Cidade de Deus.

Ali começou a grande mudança, na minha vida, na vida do Bill e na vida da Cidade de
Deus. Hoje, aquele Alex é o Bill que o Brasil inteiro respeita, e que parte do mundo
conhece. Hoje, posso afirmar que o Bill é um homem, um outro homem. Daquele tempo só
sobraram os seus maiores méritos: a humildade, a simplicidade e sua dedicação verdadeira
ao povo das cabeças de porco.

202


CRESCER NOS TRÓPICOS: UMA ODISSÉIA
NA PERIFERIA


IDENTIDADE EM OBRAS I: ADOLESCÊNCIA

O fato é que há indiferença e ela, assim como o preconceito, encobre, sob um manto
imperceptível, meninos e meninas pobres, especialmente negros.25 Indiferença gera
invisibilidade. Resultado: jovens transitam invisíveis pelas grandes cidades. O que significa
para um adolescente este desaparecimento, este não reconhecimento, esta recusa de
acolhimento por parte de quem olha e não vê?

Sabemos todos, na própria pele - e na de nossos filhos-, como é difícil a adolescência.
Cobranças fuzilam de todos os lados: porque não se é mais criança; porque ainda não se é
adulto. As auto-imagens vacilam, tremem, sem nitidez, mergulham na fantasia temerária,
recuam encharcadas de medo e insegurança, diluem-se na imaterialidade de quase tudo.
Primeiro, crianças, acreditamos em tudo, nos adultos que nos cercam, em seu amor, no que
dizem. Chegamos a crer que somos o centro do mundo. Depois, crescemos e nos treinam na
descrença. Para evoluir e amadurecer, descremos. A marcha da idade avança pela
contramão das convicções da infância. Crescer é descrer. Até que nos tornamos plenamente
adultos: descrentes. O ceticismo é o cartão de visitas da maturidade moderna (ou pós-
moderna). De trambolhada, rola para o ralo a crença em nós mesmos. Durma-se com um
barulho destes.

E por falar em barulho, o cartaz subjetivo que a gurizada ostenta na testa diz mais ou menos
o seguinte: identidade em obras. Esses anos só são dourados depois que passam, quando
olhamos pelo retrovisor, no túnel do tempo. É a memória que idealiza o passado e doura a
pílula.

Identidade é uma palavra enigmática: por um lado, significa a originalidade de alguém, a
singularidade que torna cada pessoa incomparável e única; por outro lado, adquire o sentido
oposto ao designar a semelhança que aproxima duas pessoas. Dois exemplos inversos e
complementares: "Mário se identifica com Raul Seixas, sente uma profunda identidade com
tudo o que ele disse e pensou." Ou: "O processo de construção da identidade é doloroso
porque envolve rupturas e conflitos. Uma criança só se torna uma pessoa dotada de
consciência de si e de identidade própria, ao romper os laços de dependência com os pais e
conquistar sua autonomia. Por isso, afirmar-se é sempre traumático, ainda que seja
saudável." Diferenciar-se e igualar-se, mirar-se nos outros e apartar-se deles são duas faces
da mesma moeda, dois momentos complementares do jogo de espelhos em que nos
formamos.

205


Apropriamo-nos como corsários (quase antropófagos) do que aprendemos ou apreendemos
dos outros; copiamos, em parte, o que recolhemos no butim, e em parte submetemos a
algazarra de sinais alheios à nossa ordem interna, esta que deriva da constelação singular
em que nos constituímos. Assim, criamo-nos a nós mesmos nas interações, seja em
conformidade com os outros, seja em contraste com eles.

Numa direção ou noutra, a identidade para os jovens é um processo penoso e complicado.
As referências positivas escasseiam e se embaralham com as negativas. A construção de si
é bem mais difícil que escolher uma roupa, ainda que a analogia não seja de todo má, uma
vez que o interesse por uma camisa de marca, pelo tênis de marca, corresponde a um
esforço para ser diferente e para ser igual, para ser diferente-igual-aos-outros, isto é, igual
àqueles que merecem a admiração das meninas (e da sociedade ou dos segmentos sociais
que mais importam aos jovens - o que também varia, é claro). Roupas, posturas e imagens
compõem uma linguagem simbólica inseparável de valores. Aquilo que na cultura hip-hop
se chama atitude talvez seja a síntese de uma estética e de uma ética, que se combinam de
modo muito próprio na construção da pessoa.

Há mais um aspecto extremamente interessante: ninguém cria sozinho ou escolhe para si
uma identidade como se tirasse uma camisa do varal. Não é algo que se vista e leve para
casa. Não se porta ou carrega uma identidade, como se faria com uma carteira, um vestido
ou um terno. A identidade só existe no espelho e esse espelho é o olhar dos outros, é o
reconhecimento dos outros. É a generosidade do olhar do outro que nos devolve nossa
própria imagem ungida de Valor, envolvida pela aura da significação humana, da qual a
única prova é o reconhecimento alheio. Nós nada somos e valemos nada se não contarmos
com o olhar alheio acolhedor, se não formos vistos, se o olhar do outro não nos recolher e
salvar da invisibilidade - invisibilidade que nos anula e que é sinônimo, portanto, de solidão
é incomunicabilidade, falta de sentido e valor. Por isso, construir uma identidade é
necessariamente um processo social, interativo, de que participa uma coletividade e que se
dá no âmbito de uma cultura e no contexto de um determinado momento histórico.

Assim como não inventamos uma linguagem, individualmente, assim como não há
linguagem privada, tampouco há identidade de um homem-ilha, de uma mulher-ilha,
apartada de toda e qualquer relação humana. Nos jogos de olhares, palavras e sentimentos,
trocamos sinais e mais sinais, pelos movimentos do corpo e as expressões do corpo.
Estamos imersos em florestas de símbolos, como dizia Baudelaire, e somos seres de
linguagem, como

206


a filosofia, a antropologia e a psicanálise nos ensinaram. Toda linguagem é material e
datada, é construção humana coletiva, em permanente mudança. Por conseqüência, sendo a
identidade uma experiência da relação, que se dá na esfera da intersubjetividade, dos
símbolos, das linguagens, da cultura, ela é sempre uma experiência histórica e social.

Não há como focalizar a problemática da identidade e driblar a questão do pertencimento.
Seria o mesmo que considerar a identidade apenas pela metade, observando-a apenas do
ângulo da originalidade e da diferença, eliminando qualquer referência ao outro lado da
moeda: a semelhança e a aproximação. Quem é algo, é sempre algo para outros; e quem é
algo para outros, relaciona-se com eles e participa, com eles, de alguma experiência
gregária. Eis aí o grupo, no meio da cena, justamente quando esperávamos o indivíduo em
seu momento de isolamento máximo, de recolhimento privado e de absoluta independência.

Resta saber o que é que os dois lados da identidade e o que é que o pertencimento têm a ver
com os jovens vulneráveis e invisíveis que vamos encontrar armados, daqui a pouco.

207


IDENTIDADE EM OBRAS II:

ADOLESCÊNCIA E A PROBLEMÁTICA ARDILOSA

DAS "CAUSAS" DA VIOLÊNCIA

A adolescência é mesmo uma época especialmente difícil da vida. Isso se aplica a todos.
Mas é claro que tudo se complica e fica muito mais difícil quando às vicissitudes da idade
somam-se problemas como a rejeição em casa, vivida à sombra do desemprego, do
alcoolismo e da violência doméstica, e a rejeição fora de casa - a rejeição vivida em casa,
por vezes, estende-se ao convívio com uma comunidade pouco acolhedora e se prolonga na
escola, que não encanta, não atrai, não seduz o imaginário jovem e não valoriza seus
alunos.

A invisibilidade é uma carreira que começa cedo, em casa, pela experiência da rejeição, e
se adensa, aos poucos, sob o acúmulo de manifestações sucessivas de abandono, desprezo e
indiferença, culminando na estigmatização. Essa trajetória é previsível e se repete
diariamente. Não atinge apenas as famílias pobres, nem os pobres são pais menos
amorosos. Mas os pobres têm, sim, menos oportunidades de organizar as responsabilidades
profissionais de modo a privilegiar a presença em casa, sobretudo quando os filhos são
pequenos. Também têm menos chance de contar com apoio terapêutico nos momentos de
crise e dispõem de menos recursos para mobilizar especialistas quando se constatam
distúrbios de aprendizagem, provocados ou não por sofrimento psíquico.

Por definição, mais expostas à angústia e insegurança do desemprego, as famílias de baixa
renda enfrentam com mais freqüência as tensões que desestabilizam emoções e corroem a
auto-estima. Em havendo alguma correlação entre experiência de rejeição infantil e
violência doméstica, entre esta e o alcoolismo, e entre baixa auto-estima e alcoolismo,
deduz-se a conexão entre desemprego e alcoolismo e, portanto, a ligação entre pobreza,
violência doméstica e vivência infantil da rejeição. Ou seja, mesmo não havendo relações
causais, diretas e mecânicas, há correlações entre fatores que pertencem a um mesmo
campo de fenômenos, campo constituído pela força de gravidade que as tendências
probabilísticas representam.

com máxima cautela, até para que não façamos o que criticamos, isto é, para que não
reforcemos os preconceitos que depreciam os pobres, já tão penalizados pela própria
pobreza, é preciso reconhecer que há laços prováveis

208


entre as seguintes realidades - as quais, conseqüentemente, tendem a conviver (ou seja,
quando encontrarmos uma delas, será mais provável que encontremos as demais): (a)
pobreza; (b) menor escolaridade; (c) menor acesso a oportunidades de trabalho; (d) maior
chance de sofrer o desemprego e o desamparo econômico e social; (e) angústia e
insegurança; (f) depressão da auto-estima; (g) alcoolismo; (h) violência doméstica; (i)
geração de ambiente propício ao absenteísmo, à desatenção e à rejeição dos filhos; (j)
vivência da rejeição na infância, o que fragiliza o desenvolvimento psicológico, emocional
e cognitivo, rebaixa a auto-estima, estilhaça as imagens familiares que serviriam de
referência positiva na construção da identidade e na absorção de valores positivos da
sociedade; (1) crianças e adolescentes com esse histórico tendem a apresentar maior
propensão a experimentar deficiências de aprendizado (tanto por motivos psicológicos
quanto pelo fato de que as limitações econômicas dos pais impedem a oferta de acesso a
escolas mais qualificadas, inclusive para lidar com estas deficiências e para estimular os
alunos, valorizando-os); (m) dificuldades na família, na escola, e pressão para o ingresso
precoce no mercado de trabalho (mesmo que seja por uma participação intermitente e
informal) tendem a precipitar o abandono da escola, sobretudo no contexto de desconforto e
inadaptação, e de falta de motivação; (n) a saída da escola reduz as chances de acesso a
empregos e amplia a probabilidade de que o círculo da pobreza se reproduza por mais uma
geração; (o) configurando-se este quadro, aumentam as probabilidades de que o adolescente
experimente a degradação da auto-estima, especialmente se considerarmos o contexto
social e cultural em que prosperam os preconceitos, o padrão da dupla mensagem (da qual
vou tratar adiante) e as artimanhas da invisibilização.

Um ponto muito delicado, muito difícil, para todos os que nos aventuramos nessa área
espinhosa de reflexão e ação política, é o seguinte: quando circunscrevemos determinado
grupo ou indivíduo como vulnerável, exposto ao risco do envolvimento com a violência e o
crime, nossa intenção é protegê-lo, humanizá-lo, abrir-lhe alternativas, evitando a
criminalização repressiva que os estigmatiza, demoniza e condena ao círculo vicioso das
profecias que se autocumprem. Nossa intenção é esta, mas, freqüentemente, caminhamos
sobre o fio da navalha, porque tangenciamos, nós mesmos e contra a vontade, a
estigmatização e a criminalização (que funcionará comprovando a verdade que previra, ao
provocar os efeitos que temia e enunciava).

Ou seja, quando digo que são vulneráveis os pobres e negros, sem autoestima, abandonados
pela família e rejeitados pela escola, sem abrigo afetuoso

209


na comunidade e sem oportunidades, estou enunciando uma tese empiricamente correta, do
ponto de vista sociológico, e estou denunciando as responsabilidades que a sociedade tem
na formação da "delinqüência", da "transgressão", do "crime", estou abrindo espaços para a
defesa e a proteção dos vulneráveis e para a reversão do quadro, das tendências, dos
processos, das carências, do sofrimento etc. Mas, ao mesmo tempo, estou municiando o
policial na esquina, em seu comportamento racista, classista, estigmatizador. E mais: estou
tratando os vulneráveis como problema pela ameaça potencial que representam, ao invés de
enfatizar e defender seus direitos ao acolhimento, a uma vida saudável etc.

A saída, então, seria abandonar o discurso da prevenção e voltar a negligenciar a questão
pública da segurança? Acho que não. Acho que a saída é compartilhar com os leitores,
gestores e com a sociedade, os riscos paradoxais envolvidos no tratamento adequado da
questão, o qual, portanto, jamais chega a ser inteiramente e perfeitamente adequado,
exigindo cuidados, qualificação e a desconstrução crítica, no movimento de sua própria
afirmação. Difícil, certamente, mas inevitável, creio. Em resumo: o jeito é assumir plena
consciência sobre a ambivalência de minha posição, evitar sua degradação no seu contrário,
exibindo, preventivamente, a dimensão crítica que a autoconsciência do problema
comporta.

Retomando o fio da meada: se a adolescência é uma etapa difícil da vida para todo mundo,
com muito mais razão é um momento delicado para meninos e meninas pobres, no Brasil.
Nem todas as sociedades conhecem a adolescência. Historiadores e antropólogos nos
ensinam que ela é uma invenção recente nas sociedades modernas ocidentais e que não
existe na maioria das sociedades ditas "primitivas", nas quais as pessoas transitam da
infância à idade adulta num salto, atravessando o umbral simbolicamente edificado pelo
ritual de passagem. Lá, tornar-se adulto significa estar preparado e autorizado para casar-se,
ir à guerra, ter acesso a segredos religiosos guardados pela tradição e cumprir as obrigações
previstas na divisão social do trabalho. Ou se é adulto ou se é um ser incompleto,
desprovido de história: não há etapas da evolução psicológica ou moral, que progridem de
acordo com a escalada etária. Já no medievo europeu e ainda no Renascimento, as crianças
eram adultos em miniatura. Os quadros do período retratam os pequenos adultos em poses
adultas, vestidos como seus pais. As crianças não são protegidas, tratadas e estudadas como
seres especiais. Esse meio do caminho cheio de ambivalências, a adolescência ao qual
correspondem saberes especializados, um

210


mercado específico, metodologias pedagógicas especiais, uma psicologia e um cardápio de
exigências morais, constitui uma novidade histórica. São poucos séculos de experiência, ao
menos no mundo ocidental. Mas o fato de ser uma criação histórica não lhe retira realidade.
A adolescência é uma invenção cultural recente, mas como dói - assim como a Itabira do
poema de Carlos Drummond de Andrade.

Curioso e paradoxal é que, no Brasil, para os jovens pobres, de um modo geral, não há
adolescência: salta-se direto da infância ao mundo do trabalho (ou do desemprego). É mais
ou menos o que acontece, em nosso país, com as etapas do processo civilizatório. Parece
que estamos vivendo uma regressão, em alguns aspectos, da qual resulta a convivência
entre etapas históricas diferentes, cada uma com suas características sociais e culturais:
hoje, no Brasil, os homens não são treinados apenas para a guerra e os valores dominantes
na socialização dos meninos não são os valores ligados à guerra. Será? Em certa medida,
com a ascensão vertiginosa da violência e do desemprego (no quadro de estagnação
econômica e aprofundamento das desigualdades), com o ingresso cada vez mais precoce
dos jovens na economia informal, será que não estamos gestando um híbrido tropical muito
peculiar, com mais ingredientes tradicionais da cultura masculina belicista e menos
elementos da modernidade ocidental européia em que nos forjamos, como nação? Em
outras palavras, não estaremos combinando, no Brasil, traços avançados da democracia
participativa com a supressão a galope da adolescência e a revalorização da moralidade
guerreira tradicional?

211


LABIRINTO*

Meu filho está perdido. Tem um ano só, pouco tempo. Perdido no mundo das drogas. Há
um bom tempo ele saiu de casa. Ele está com 15 anos. Eu não sei o que levou ele a fazer
isso, não. De repente, ele foi na gangue dos coleguinhas dele, começou a fumar maconha,
cheirar pó... Só não está roubando, ainda não partiu para esse lado, não.

Ele ia para o colégio. Só que nesse ano ele ficou reprovado. Me enganava que ia para a
escola. A gente tem que trabalhar, não tem tempo de olhar as crianças... Aqui, na favela,
quem não tem apoio dos parentes, da comunidade, perde seu filho rápido nas drogas. Não é
nem pro tráfico, é pras drogas. Porque, hoje em dia, a maioria dos menores que tão indo pro
tráfico, tão indo pras drogas, eles vão pro tráfico pra vender e sustentar o vício.

Isso tinha que acabar, o governo tinha que olhar mais por isso aí. Um dia vai atingir eles,
com certeza. Vai virar uma bola de neve que eles não vão parar. E não vai atingir só nós,
aqui, da classe baixa, não. Vai atingir a alta.

Já atingiu, né?, porque você sabe que, na verdade, a droga tem que passar pelos grandes.
Não é possível abastecer um Brasil inteiro sem passar pelas fronteiras. Isso não é feito nas
favelas. Nós sabemos disso, não é feito na favela. Primeiro são os grandes, tem que passar
por eles para chegar nas favelas.

Hoje eu tô chorando, amanhã quem vai chorar é mais um.

Ele é só uma criança. Não tem latrocínio, não tem nada dessas coisas. É só o vício mesmo.*

Ele estava me pedindo muita coisa: tênis da moda, roupa da moda, essas coisas. Eles
pedem, todos eles pedem. Qualquer criança, hoje em dia, não quer saber a marca da roupa...

A gente vive razoavelmente, dá para comer, beber, se divertir. Mas não é igual a um filho
de mauricinho. Não é igual a um playboizinho que pode ir pra praia a hora que quiser com
moto. Hoje em dia, não tem mais bicicleta para o menor, eles querem moto. Se eles entram
para o tráfico, eles conseguem a moto. E eles conseguem isso com muita facilidade.

Eu me sinto oprimido. Não sei como eu vou fazer para retirar ele. Já pedi até aos amigos da
"boca". Mas ele fala na minha cara que não quer sair. "Pô, dá pra tirar meu filho daí?",
"Pode tirar, não quero mais ele.

Depoimento do pai de um jovem traficante.
212


não", eles dizem. "Não, você tá me tirando mas eu não quero sair." E aí? Como é que se
faz?

O gerente da boca me disse: "Pode tirar ele, a partir de hoje eu não quero você mais
vendendo droga, não. Teu pai não quer. Teu pai quer que você saia, então é o melhor pra
você." Mas meu filho respondeu: "Ele não quer mas eu quero ficar. Vai me levar pra casa?
Eu não vou!" Aí o cara fala: "Não tá obrigado, tá aqui porque quer."

Qual a solução? Tem uma saída? Saída tem. Todo túnel escuro tem uma saída... Só ficando
rico e saindo da favela. Tirando ele para uma situação melhor. Não adianta tirar daqui pra
outro lugar, sem ter uma condição de vida melhor. Não adianta fugir, tem que encarar.

A mãe dele é minha esposa. Ela trabalha, tem que trabalhar. Ela trabalha, eu trabalho. Está
sofrendo o dia inteiro, todo dia. Tomando remédio pra suportar o desespero.

Ela diz que eu sou o culpado. Como eu posso ser o culpado? Fala que eu devia olhar mais.
Como que se olha, vivendo numa comunidade que só tem vagabundo que foi criado com a
gente desde pequeno, cresceu, escolheu o outro lado. Como é que a gente vai deixar de
falar com essas pessoas? Se eu moro aqui. Não tem como, eles vão ser meus amigos até
morrer. Eu vou defender eles até morrer. Não foram eles que escolheram essa vida. Tenho
diferença com eles, mas é uma opção de vida, é um meio de vida. Eles não estão ali porque
gostam, porque ninguém gosta de ficar sem dormir, sofrer, correr de polícia. É uma opção
de sobrevivência. Todos eles têm família. Se eles pudessem, saíam.

A televisão atrapalha muito, sabia?, mostrando as coisas que acontecem. Meu filho acha
bonito aparecer como um cara perigoso pras comunidades, pra polícia. Se ele soubesse o
que é um dia de cadeia, ele pensaria duas vezes. Mas eu acho que isso aí não vai ter
mudança tão cedo.

O que mais estimula ele não é nem o dinheiro, é mais ele poder aparecer. Mostrar quem é,
mostrar que pode, entendeu?

E também a pressa de ganhar dinheiro. Hoje em dia, a evolução do mundo está rápida,
muito rápida. Os meninos ficam sabendo desses corruptos que roubam milhões do INSS. E
nada acontece. Quem vai querer uma vida de trabalho duro e honesto?

A televisão mostra muita coisa errada. A gente vê cada coisa bárbara na televisão. Isso aí
serve de exemplo prós pequenos; eles acham que é fácil: os grandões fazem e não dá nada,
vou fazer também. Querem ver um meio mais rápido de ganhar dinheiro. Tudo é a
facilidade de ganhar dinheiro.

213


Não sei. Tem que mudar tudo. De cima pra baixo, não é de baixo pra cima, não. É de cima
pra baixo: presidente, governador, ministro, ir passando um pente-fino neles todos. A
solução é de cima para baixo, senão vier assim não muda nada.

Meu filho ainda vai sair. Tem uns que não conseguem sair. Isso é um labirinto. Pra mim
isso é um labirinto; ele ainda não encontrou a saída, mas vai encontrar.

214


O MENINO INVISÍVEL SE ARMA

Deste ponto, retomo a navegação que, até aqui, nos conduziu a dois temas: a invisibilidade
e a adolescência. O próximo passo vai conectá-los à violência.

Por força da projeção de preconceitos ou por conta da indiferença generalizada,
perambulam invisíveis pelas grandes cidades brasileiras muitos jovens pobres,
especialmente os negros - sobre os quais se acumulam, além dos estigmas associados à
pobreza, os que derivam do racismo. Um dia, um traficante dá a um desses meninos uma
arma. Quando um desses meninos nos parar na esquina, apontando-nos esta arma, estará
provocando em cada um de nós um sentimento - o sentimento do medo, que é negativo,
mas é um sentimento. Ao fazê-lo, saltará da sombra em que desaparecera e se tornará
visível. A arma será o passaporte para a visibilidade.

Vamos imaginar em detalhes esse encontro fortuito e desafortunado, em qualquer esquina
de nossas cidades. Vamos imaginar como seria a cena original, a primeira experiência de
um jovem com a arma diante de um desconhecido, num pedaço sombrio da cidade. A mão
ainda vacilante, trêmula, a respiração embolada, o espírito hesitante. Quando nos ameaça na
esquina, pela primeira vez, o menino não aponta para nós sua arma do alto de sua
arrogância onipotente e cruel, mas do fundo de sua impotência mais desesperada. O
bandido, o bandido frio e brutal, o profissional do crime, não existe. Pelo menos, não existe
ainda. Na esquina, apontando-nos a arma, o menino lança a nós um grito de socorro, um
pedido de reconhecimento e valorização. Surge diante de nós da treva em que o metemos,
desembaraçando-se aos trancos e barrancos do manto simbólico que o ocultava. O sujeito
que não era visto, impõe-se a nós. Exige que o tratemos como um sujeito. Recupera
visibilidade, recompõe-se como sujeito, se reafirma e reconstrói. Põe-se em marcha um
movimento de formação de si, de autocriação. Se havia dívida (fala-se tanto na grande
dívida social), eis aí a fatura.

Há uma fome mais funda que a fome, mais exigente e voraz que a fome física: a fome de
sentido e de valor; de reconhecimento e acolhimento; fome de ser - sabendo-se que só se
alcança ser alguém pela mediação do olhar alheio que nos reconhece e valoriza. Esse olhar,
um gesto escasso e banal, não sendo mecânico - isto é, sendo efetivamente o olhar que vê
consiste na mais importante manifestação gratuita de solidariedade e generosidade que um
ser humano pode prestar a outrem. Esse reconhecimento é,

215


a um só tempo, afetivo e cognitivo, assim como os olhos que vêem e restituem à presença o
ser que somos não se reduzem ao equipamento fisiológico. O olhar (ou a modalidade de
percepção fisicamente possível) que permite ao ser humano o reencontro com sua
humanidade, pela mediação do reconhecimento alheio, é o espelho pródigo que restaura a
existência plena, reparando o dano causado pelo déficit de sentido, isto é, pela
invisibilidade. Esse olhar vê o outro, restituindo-lhe - ao menos potencialmente - o
privilégio da comunicação, do diálogo, da troca de sinais e emoções, da partilha de valores
e sentido, da comunhão na linguagem. Esses olhos que vêem tecem entre as pessoas a
ligação que é matriz do que chamamos sociedade.26

Saltando para fora do escuro em que o guardamos e o esquecemos, o garoto armado
readquire densidade antropológica, isto é, vira um homem de verdade. Antes, invisível, era
um fantasma transparente, portador de uma carcaça porosa e imperceptível. Antes da arma,
do gesto ameaçador, do sentimento que ela desperta, era como se o corpo do garoto não
existisse ou existisse como corpo, não como pessoa, ou se confundisse com as coisas da
cidade, mais uma peça do cenário urbano. Pois agora tudo mudou. Num passe de mágica, o
mundo ficou de cabeça para baixo: quem passava sem vê-lo, lhe obedece. Invertem-se
posições. Quem desfilava sua soberba destilando indiferença, agora submete-se à
autoridade do jovem desconhecido. Celebra-se um pacto fáustico: o jovem troca seu futuro,
sua alma, seu destino, por um momento de glória, um momento fugaz de glória vã; seu
futuro pelo acesso à superfície do planeta, onde se é visível.

Por favor, não me entendam mal. Não estou elogiando a violência nem mesmo a
justificando. Não pretendo defender a agressão. Desejo apenas compreendê-la. Não há
como mudar uma realidade se não a compreendermos. Estou propondo uma chave de
leitura, uma interpretação. Mas não tenho ilusões: nenhum de nós é psicanalista do
assaltante; não somos pais dos meninos em armas. A paciência tem limites. Têm limites a
generosidade e a tolerância. Quando somos vítimas ou amigos e parentes das vítimas, nosso
sentimento não é de solidariedade pelo agressor, por mais que compreendamos seu gesto de
desespero. No calor da hora, sentimos raiva, a raiva mais intensa. Mesmo depois, o ódio é o
resíduo que fica. Odiámos quem nos humilha e agride. Não importa a análise intelectual
que façamos sobre as motivações do que aconteceu. É natural que seja assim. Não peço o
que seria ingênuo e absolutamente irrealista pedir. Ninguém vai passar a mão na cabeça do
criminoso, mesmo imaginando que aquela seja a primeira vez e que ele esteja faminto de
amor.

216


Queremos mudar os jovens que cometem crimes. Muito bem, sabemos que é preciso impor
limites, distribuir responsabilidades e inibir a prática da violência pela aplicação de
procedimentos exemplares, que sinalizem os custos envolvidos na transgressão. Mas
também - e sobretudo - queremos mudar o comportamento violento dessas pessoas, para o
nosso bem e para o bem delas. Até porque aquela cena inaugural, em que se dá o primeiro
encontro do menino com a arma e o outro, numa esquina qualquer, aquela cena é apenas o
primeiro capítulo de um roteiro que, em geral, enreda o jovem numa cadeia de eventos e
compromissos que o condenam à morte precoce e cruel, antes dos 25 anos. Se há ali um
apelo frustrado e contraditório lançado do fundo da impotência e do desamparo, um apelo
por acolhimento e valorização, um pleito por afeto e calor humano, um esforço titânico pela
recuperação da visibilidade, pela reparação da auto-estima estilhaçada, nos capítulos
seguintes da saga do jovem a voz terá outro tom e a linguagem será mesmo a da arrogância
onipotente do profissional da violência. A solução escolhida para reconquistar visibilidade,
esta de que falamos, é a pior possível. Ela é destrutiva e autodestrutiva. Quando se ergue da
sombra com a arma, o jovem veste a carapuça que o preconceito lhe pespegara e compra o
pacote completo de culpas e maldições, porque, agora, com a arma em punho, ele é alguém.
Mas quem? Que tipo de pessoa? Impondo que tipo de "respeito"? Ele é alguém a quem a
sociedade indagará, provocativãmente: "Quem você pensa que é?" Afirma-se mas pelo
negativo de si mesmo, cavando o pior na alma dos outros. Este não é o diálogo dos seres
humanos, não é o reconhecimento sonhado.

Sim, queremos limites; os garotos precisam de limites. Por outro lado e, simultaneamente,
reconhecemos que há esperança ou que, pelo menos, não é inteiramente irracional supor a
possibilidade da recuperação e que, portanto, é nosso dever tentar (a esperança é um
imperativo ético se não se funda numa suposição comprovadamente irracional). Acontece
que não há nada mais difícil do que mudar, sobretudo provocar a mudança em alguém. Não
há aventura humana mais arriscada e radical. Eqüivale a uma pequena morte, porque, para
mudar, matamos algo em nós: aquilo que nós éramos ou parte do que éramos. A
metamorfose é tão exigente e temerária que se confunde, por exemplo, com o próprio
movimento espiritual do artista, enquanto agente da criação.27 As religiões tematizam a
mudança como o problema da conversão. As terapias psíquicas a tematizam como seu foco
central, seja para admiti-la e estimulá-la, seja para redefini-la como aceitação de si ou
resignação à "incompletude". De todo modo, este é um desafio tremendo para a
humanidade.

207


Ninguém tem a chave da transformação e nenhuma ciência desenvolveu uma metodologia
segura para promovê-la. O que sabemos é que se trata de uma experiência humana dolorosa
e complicada.

Uma coisa é certa: ninguém muda para melhor se não calçar em terreno firme a fundação
da nova pessoa que deseja construir. O solo firme, nesse caso, é a auto-estima revigorada.
Para livrar-se de uma parte de si julgada negativa, destrutiva e autodestrutiva, é necessário
confiar na parte saudável e positiva, porque é ela que garante a força indispensável à
mudança; é ela que garante ao agente do processo (protagonista e objeto do processo) que a
morte representará renascimento; é ela que oferecerá a certeza de que não se jogará fora a
criança com a água do banho: algo será preservado e este algo é o que mais decisivamente
se confunde com a pessoa.

Em outras palavras: uma pessoa pode mudar não porque seja fundamentalmente má, mas
porque é fundamentalmente boa - por isso tem coragem para ousar a mudança, tem valor
suficiente para esta audácia suprema, tem por que lutar. Mudar implicará dar a vitória à
parte saudável, que estava sendo hostilizada e prejudicada pelo lado destrutivo, o qual terá
de ser compreendido, elaborado e absorvido, não negado e destruído - ou não haverá
mudança efetiva, apenas uma variação momentânea da correlação interna de forças. Para
mudar, é preciso, portanto, o solo firme da auto-estima revigorada. Como seria possível
edificar sobre o pântano?

Pois é aí que as instituições que dirigem a sociedade metem os pés pelas mãos. Quando
seria necessário reforçar a auto-estima dos jovens transgressores no processo de sua
recuperação e mudança, as instituições jurídico-políticas os encaminham na direção
contrária: punem, humilham e dizem a eles: "Vocês são o lixo da humanidade." É isso que
lhes é dito quando são enviados às instituições "socioeducativas", que não merecem o nome
que têm - o nome mais parece uma ironia.28 Sendo lixo, sabendo-se lixo, pensando que é
este o juízo que a sociedade faz sobre eles, o que se pode esperar? Que eles se comportem
em conformidade com o que eles mesmos e os demais pensam deles: sejam lixo, façam
sujeira, vivam como abutres alimentando-se do lixo e da morte. As instituições os
condenam à morte simbólica e moral, na medida em que matam seu futuro, eliminando as
chances de acolhimento, revalorização, mudança e recomeço. Foi dada a partida no círculo
vicioso da violência e da intolerância. O desfecho é previsível; a profecia se cumprirá:
reincidência. A carreira do crime é uma parceria entre a disposição de alguém para
transgredir as normas da sociedade e a disposição da sociedade para não permitir que essa
pessoa desista. As instituições

218


públicas são cúmplices da criminalização ao encetarem esta dinâmica mórbida, lançando ao
fogo do inferno carcerário-punitivo os grupos e indivíduos mais vulneráveis - mais
vulneráveis dos pontos de vista social, econômico, cultural e psicológico.

Esmagando a auto-estima do adolescente que errou, a sociedade lava as mãos, mais ou
menos consciente de que está armando uma bomba-relógio contra si mesma, contudo feliz,
estupidamente feliz por celebrar e consagrar seus preconceitos. O preço desta consagração
autocomplacente é a violência. Violência da qual, entretanto, a sociedade não pode
prescindir (mesmo sofrendo tanto com ela), porque deseja continuar dispondo do bode
expiatório para expiar seus males e exorcizar sua insegurança mais profunda, aquela que
advém do reconhecimento de sua própria finitude, isto é, de sua mutabilidade - a história é
para as sociedades o que a morte representa para os indivíduos. É preciso manter a todo
custo a geografia moral: de um lado, o bem; de outro, o mal. Pague-se o preço que for,
mesmo que o preço seja a preservação das condições que propiciam a existência do mal.
Tudo para que cada um de nós jamais encontre, em si mesmo, o outro lado; tudo para que a
sociedade e suas instituições possam preservar intocado seu espelho idealizador. A
invisibilidade de uns serve à invisibilidade que mais importa, aquela que sustenta uma certa
visão do mundo.

219


ENREDOS DA JUSTIÇA CRIMINAL

É preciso ter cautela ao avançar no terreno complicado e ardiloso da justiça criminal, desde
logo distinguindo limites e penas. A projeção do discurso psicológico para o campo da
justiça criminal traz grandes contribuições, se evitarmos a sobreposição artificial entre
ambas as linguagens. Caso contrário, pode gerar confusões conceituais e políticas. A pena
visa punir uma transgressão legal, isto é, a perpetração de um crime. Seu sentido não é a
vingança, não é o castigo pedagógico, nem uma injeção de superego num sujeito sem
limites - ainda que muitos criminosos estejam, inconscientemente, em busca de controle
externo, eles mesmos sentindo-se psiquicamente ameaçados pela impotência dos controles
internos.

A pena não é a vingança porque o Estado não é um indivíduo envolvido, moral e
emocionalmente, nos casos objeto de sua intervenção institucionalizada. Não é pedagógica,
porque ninguém aprende sendo humilhado. E não é psicoterapêutica, porque o limite que a
pena representa não corresponde a dinâmicas psicológicas voltadas para a valorização dos
sujeitos individuais. A pena responde à necessidade que a sociedade tem de inibir
comportamentos refratários ao pacto de convivência, cristalizado nas leis (segundo o
modelo ideal). Ou seja, ela não tem nenhum valor para o sujeito sobre o qual se aplica, mas
para os demais, comunicando o seguinte: às possíveis vítimas, que não temam, pois a
violência será freada pelo Estado (pela própria existência da punição aos possíveis
agressores, que não ousem violar as leis, porque pagarão caro por isso.

Outra palavra que tem de ser tratada com cuidado é transgressão. Para as instituições que
zelam pela aplicação das leis, seu sentido é claro. Para a sociedade, nem sempre o é. Para
certos grupos, algumas regras são mais importantes que certas leis. Ou seja, normas de
comportamento e preceitos morais se sobrepõem ao domínio legal. Um desses grupos pode
ser exatamente aquele em que o jovem transgressor cresceu e com o qual se identifica.
Portanto, uma pergunta trivial, mas significativa, se coloca: aquilo que definimos como
crime ou transgressão legal terá o mesmo significado para seu jovem autor?

Na cultura popular, de um modo geral, a lealdade é um valor mais caro do que a
propriedade privada ou o compromisso republicano com a legalidade. Por isso, para boa
parte da população brasileira (talvez a maior parte), não

220


há ato mais abjeto que a delação. Nos Estados Unidos, a criança aprende cedo, na escola,
que colar é imoral e contra as normas, cumprindo-lhe o dever de denunciar qualquer
transgressão que porventura venha a testemunhar. Sua adesão às normas e à Escola - que
neste caso representam a nação e a ordem constitucional - é considerada moralmente
superior às relações de lealdade eventualmente estabelecidas com os colegas. Da mesma
forma, no cotidiano norte-americano é comum a denúncia à polícia de pequenos delitos ou
de transgressões às leis de trânsito.

No Brasil, isso tudo é muito mais complicado. Não está claro, em nosso país, que a lealdade
à nação deva prevalecer sobre a lealdade interindividual. No Brasil, o solo mais firme sobre
o qual erguemos crenças, valores e atitudes são as relações pessoais. O país, a sociedade, a
nação, suas leis e instituições freqüentemente parecem realidades menos sólidas, estáveis,
permanentes e confiáveis do que os amigos e a família, os vizinhos e a comunidade. Até
porque a solidariedade nas emergências se manifestam no espaço das relações face a face.
Os aparatos públicos são distantes e menos prestativos, dificilmente revelam o mesmo grau
de compromisso e responsabilidade solidária que se experimenta em casa ou na
comunidade.29

Disso não se deduz que o brasileiro seja imoral, conivente com a ilegalidade, ou que o
jovem da periferia que se liga ao crime não tenha consciência dos crimes que perpetra, e
que suas ações possam justificar-se por referência a um código de valores particular. Nada
disso é verdade. Entretanto, o fato é que, mesmo não justificáveis, muitos atos têm
significados específicos e atendem a códigos morais também específicos (que não estamos
obrigados a aceitar e respeitar só porque existem e contam com apoio em faixas da
população). A conclusão que desejo sustentar é a seguinte: o foco de nossas preocupações
não deveria ser o comportamento desviante individual, mas a educação dos jovens em uma
cultura refratária à violência.

Também por este motivo, portanto, é fundamental discutir a cultura da violência, quer
dizer, pesquisar seus meios de difusão, suas características, sua lógica moral própria, para
investir nos antídotos, entre os quais se destaca a cultura hip-hop. O problema do
comportamento violento e da disseminação do ódio - como linguagem, postura e valor -
não se enfrenta apenas com polícia, ações socioeconômicas e uma vaga e genérica
educação para a legalidade. Enfrenta-se com a difusão de uma cultura alternativa que
promova a paz e seus valores, numa linguagem jovem e em diálogo com o imaginário da
juventude pobre.

221


Louk Hulsman e Jacqueline Bernart de Celis, dois estudiosos dos sistemas penais,
imaginaram uma cena que nos ajuda a refletir sobre a problemática da punição, sob os
ângulos mais variados. É a história de cinco estudantes que vivem juntos em um albergue,
dividindo as despesas: num acesso histérico de fúria, um deles quebra a TV e os pratos, que
custou tanto trabalho a todos. Os outros quatro reagem de formas diferentes e cada reação
corresponde a um estilo pessoal, mas também a uma abordagem distinta do que seja uma
punição legítima e adequada: o primeiro é puro ódio e se iguala ao agressor pelo ódio,
partindo para cima dele, de forma vingativa. O segundo é racional e político. Diz que a
violência reativa é muito pouco e é ineficiente. Recomenda a expulsão, precedida da
cobrança do pagamento de prato por prato e da televisão. O terceiro representa a solução
terapêutica, que deseja tratar o agressor como um pobre coitado, como a vítima que
necessita de ajuda e apoio. O quarto adota a postura de uma justiça amparada na mediação
e apta a, identificando a complexidade do caso, distribuir responsabilidades entre todos,
sem paternalismo mas também sem render-se à expiação dos males pela atribuição
unilateral de responsabilidades a um bode expiatório.30

Na vida coletiva, as relações formam padrões e funcionam como um sistema - como vimos
no capítulo "Antígona do Humaitá". Quando alguém ocupa a posição do louco, do viciado,
do desviante, da pessoa-problema, outros se beneficiam indiretamente - por mais que
sofram com o sofrimento alheio, porque se credenciam a ocupar o lugar da sanidade, do
equilíbrio e da virtude. Por isso é comum que as famílias contribuam, inconscientemente,
para a instalação e manutenção de padrões neuróticos, conferindo a algum ator a
responsabilidade de representar o personagem problemático, de modo a que os demais
fruam a sensação de superior consternação, protegendo-se de seus próprios problemas. É
freqüente que, quando a criançaproblema saia da crise, outro familiar a substitua e passe a
desempenhar papel análogo, com alguma variação. O equilíbrio nas relações sociais é
sempre tenso e instável, e muitas vezes torna-se perverso. O que acontece nas famílias
ocorre também na sociedade.

O caminho mais promissor para lidar com crises e transgressões, de toda espécie, me parece
o último, aquele adotado pelo quarto estudante. Poderíamos nos enriquecer muito, como
seres humanos e como sociedade, se seguíssemos aquele exemplo. Bastaria reconhecer que
compartilhamos com outros seres humanos a vida no planeta, que não somos ilhas,
precisamos uns dos outros, e que nossa experiência está inscrita em redes de relações

222


que tendem a organizar-se segundo padrões, formando sistemas ordenados segundo lógicas
próprias, geralmente diferentes de nossas intenções pessoais e de nosso entendimento
individual.

Há poder, despotismo, opressão, violência, injustiça, sim, como há também solidariedade e
fraternidade. Porém, o fato decisivo para cada um de nós é este: tudo o que vivemos nos diz
respeito no nível da responsabilidade, em alguma medida, mesmo que nosso esforço e
nossas energias apontem na direção oposta, porque somos cúmplices da sociedade em que
vivemos com seus defeitos e qualidades -, por omissão ou contribuição ativa.

Se não pensarmos assim, assumindo sempre nosso quinhão de responsabilidade, o desejo
de mudar os outros - os jovens que cometem crimes, por exemplo - pode diluir-se em mera
afirmação arrogante e moralista de nossas próprias virtudes. Tanto quanto mudar os outros,
teríamos de nos empenhar em mudarmos a nós mesmos e mudar a sociedade que propicia
aos jovens experiências tão devastadoras, desde a primeira infância.

223


QUER GANHAR UMA MULHER? BOTA UM FUZIL NO
PESCOÇO*

Eu acho que a mulher gosta de viver perigosamente; mulher gosta de uma arma; acho que é
sentimento de poder.

A mina está com o cara com o maior fuzilzão, ninguém olha, ninguém mexe, ninguém fala
nada. Se souber que é mulher do cara, ninguém fala nada. Nessa, ela está cheia de marra, a
calça é da Gang e está tipo gostosona, e ninguém se mete com ela, e ela está na favela, e
todo mundo fumando maconha, aquele fervo. Cheiro de maconha, vagabundo de revólver,
vários carros novos chegando - Audi, Honda, Mercedes,- tudo roubado e tudo com
vagabundo de fuzil, e elas estão no meio. Elas gostam disso. É o fervo, é o fervo.

Tu não imagina, a mulherada chega aqui de Pálio, zerinho, os pais são da Barra, elas
moram na Barra, mas parece que não encontram lá o cara certo, e vem procurar aqui.

Uma vez, veio uma mulher de Ipanema, que mora numa cobertura. Ela veio fazer um
trabalho aqui e um maluco se meteu com ela e cuspiu nela. Ela veio falar comigo: "O cara
me deu uma cuspida ali." Eu disse: "Vamos lá, que eu quero ver quem é esse cara."
Cheguei lá, era um vacilão. Eu falei: "Ô rapaz, como você vai cuspir na mulher? Você
conhece a mulher de onde?" Dei uns tapão no meio da cara. "Tu é vacilão." Levei aos
amigos da boca: "Olha, ele cuspiu na mina, ela veio visitar a favela e ele cuspiu na mina."
Os caras deram um pau nele; ele saiu correndo. Aí a mina ficou minha amiguinha: "Eu vou
botar a minha irmã na sua fita." E então eu disse: "Demorô." Ela me deu o telefone.

Eu liguei para ela:

- Oi, tudo bem?

- Oi, sou Margarete. Eu queria te conhecer, que minha irmã falou muito bem de você.

Aí eu falei:

- Tu mora em Ipanema? Olha que eu sou pretinho, não tenho dinheiro, estou duro,
desempregado.

- Não é nada disso não, eu quero te conhecer.

* Seguem-se trechos do depoimento de um entrevistado
224


- Tá legal - eu disse.

- Olha, eu vou marcar no lugar assim, assim. Conhece Ipanema? Conhece o lugar?

Aí pensei: "Puta que pariu." Peguei minha moto e fui para lá. Quando cheguei no tal lugar, que eu
vi a mulher, eu pensei: é mentira, por que essa mulher quer me conhecer? Mulher loura, toda bonita,
gostosa, que é isso?

- Você não tem marido, não?

-Não, me separei. Eu era casada com o gerente da M.; me separei; tenho dois filhos; agora estou
sem namorado.

Nós saímos e eu fiquei com ela oito meses. Ela se apaixonou.

Aí eu queria um espaço para trabalhar, mas ela não deixava, tudo ela pagava. Eu estava me sentindo
mal, estava perdendo a minha dignidade de homem. Ela não andava de tanque vazio, só tanque
cheio. Então, quando ia abastecer, eu no volante, ela que abastecia; quando ia comer, ela que
pagava.

- Pô, cara - eu disse -, tá certo que tu gosta de mim, tu é maravilhosa, mas eu tenho que trabalhar.

- Tu não vai trabalhar, quem vai te bancar sou eu. Eu falei:

- Porra, eu não gosto disso, não estou acostumado com isso.

Aí eu fui dando um gelo nela. Ela me ligava, eu não retornava. Até hoje ela me liga, me perturba.

No tempo que estive com ela, percebi que as mulheres de Ipanema estão muito carentes de homem,
porque, pelo que percebi, os homens de Ipanema... a maioria dos homens tá tudo virando veado. E
em Ipanema, Leblon, Barra, osplayboys estão muito ligados em carro, embelezar carro, polir roda
de carro. Comentário de mulher, não sou eu que estou falando.

Então, as mulheres estão vindo na favela, porque na favela elas conseguem homem de verdade.
Homem para amar elas de verdade. Porque as mulheres estão carentes de amor, tá entendendo? Não
adianta a mulher estar no auge. Se ela não for amada, vai ficar frustrada.

Na favela, elas encontram toda essa falta de carência, porque o favelado, ele só pensa em sexo, ele
não pensa em outra coisa. Então, essas mulheres vêm atrás disso, só querem fazer sexo com quem
está armado.

225


GURIS E GURIAS MOSTRAM SUAS ARMAS

O jovem pede a carteira; aponta a arma para minha cabeça e pede a carteira. Pede, não.
Ordena. Velha fórmula: a bolsa ou a vida. Leva o dinheiro. com a grana compra um tênis de
marca. Onde está a fome de sentido e valor? Onde o clamor pelo reconhecimento? A arma
é passaporte para a visibilidade e instrumento de auto-afirmação ou é só atalho para o
cofre? O medo é sentimento que fluidifíca os canais da relação congelada, ainda que seja
um mau sentimento, ou é apenas condição para que o atalho leve mesmo ao cofre? O que
está em jogo é a relação ou é a grana? O assalto, afinal de contas, é um ato utilitário, além
de ser uma violação aos meus direitos e liberdades, ou é um gesto simbólico, num contexto
afetivo condicionado pela desigualdade e por sucessivas rejeições? É matéria para a
psicologia ou é caso de polícia?

Perguntas pertinentes, todas elas. Onde está a verdade? Qual a interpretação justa? Enfim,
psicologia ou polícia? Ambas as abordagens são necessárias, adequadas, justas e
verdadeiras e deveriam conduzir a posturas e políticas públicas distintas porém simultâneas
e complementares.

Lado A: o ato do adolescente armado é um contra-senso. Nele, nada se aproveita, tudo está
errado, tudo conspira contra as legítimas aspirações e necessidades do jovem, tudo trama
contra a sociedade, agredindo-lhe, indistintamente, o melhor e o pior. E, no entanto, o gesto
de força e desespero é compreensível - não justificável, insisto: compreensível, carrega um
significado trágico31 que se encerra na voz inaudível do jovem, à cata de escuta
qualificada. Apontando a arma para minha cabeça, o rapaz pede socorro, o menino apela à
minha sensibilidade, o garoto clama por uma centelha de humanidade que ilumine nossa
relação e estenda entre nós a passagem para a travessia, o canal para a comunicação, o
território para a recepção acolhedora. Ao mesmo tempo, apontando a arma, ele provoca em
mim ódio, e comprova, diante da sociedade, a verossimilhança dos preconceitos. Põe em
marcha a máquina da violência que começa com o cárcere privado do estigma
internalizado, prendendo cabeça e coração na armadilha do preconceito,32 segue pelas
trilhas de gato e rato - a polícia atrás -, e culmina com a morte ou com a sentença que o
condena à morte simbólica: a pena. O ciclo freqüentemente replica-se nas sucessivas
reincidências.33 Nada se aproveita. O sofrimento espalha-se por todo lado, perde-se muito
dinheiro, desperdiçam-se vidas e é só. O jovem não se sente nem um pouco melhor com o
crime que comete.

226


Lado B: o dinheiro obtido no assalto troca-se pelo tênis de marca, pela camisa de marca.
Essa frivolidade é uma pista. A camisa com nome e sobrenome e o tênis notabilizado pelo
pedigree apontam numa direção: a grana vai para a marca, não para o calçado ou a camisa,
não para o atendimento a necessidades físicas, como a simples proteção do corpo ou dos
pés. Se os jovens quisessem proteger-se do sol e do frio, se quisessem caminhar com mais
conforto, privilegiariam soluções mais econômicas e eficientes. Não o fazem. Por quê?
Futilidade? Não. O engano está em nossa idéia do que seja efetivamente necessário e do
que seja supérfluo. Vamos ouvir os jovens em sua linguagem, vamos mergulhar em seu
imaginário e suspender por um momento nosso juízo autoritário. No caso, como o que está
em jogo é a busca de reconhecimento e valorização, a marca é o que importa; é a marca o
objeto cobiçado; é ela que atende a necessidade. O vestuário (na moda) interessa como
sinal de distinção, isto é, de valorização. O fetiche da moda cumpre esta função: quem a
consome deseja diferenciar-se para destacar-se, valorizando-se - mal percebe que copia o
movimento de todos, tornando-se, assim, indistinguivelmente banal. De todo modo, mesmo
iludindo-se com o ardil da moda, mesmo enganando-se - como aliás todos os jovens (e os
nãotão-jovens) das camadas médias e das elites -, os jovens invisíveis copiam os hábitos
dos outros para identificar-se com os outros, passando a valer o que eles valem para a
sociedade.34 Inclusão é o sonho; respeito é a utopia. Aí está, o fio da meada nos trouxe da
grana ao símbolo, da natureza utilitária da violência à sua dimensão afetiva e psicológica.
Eis-nos, de volta, uma vez mais, à invisibilidade e aos métodos tortos de resistência.

Claro que nada disso exclui a importância do dinheiro (em si mesma e como símbolo, ele
próprio). Tampouco subestimo a relevância das funções práticas dos utensílios (da moda ou
não). Nem pretendo generalizar juízos e convertê-los em fórmulas de valor universal. Há
casos e casos; cada biografia tem suas peculiaridades; cada contexto, suas características.
Examino uma situação hipotética, porém plausível, que pode servir de modelo para a
compreensão de aspectos freqüentemente negligenciados. Nem tudo reduzse a emprego e
renda, mercadoria e moeda, ainda que estas questões sejam essenciais. Insisto em focalizar
o lado imaterial de tudo isso, exatamente porque a sociedade não lhe dá maior atenção.

Como todos já estamos convencidos da importância da economia, posso aqui concentrar-
me no que vem sendo esquecido. Repito: não para subestimá-la, mas para complementar a
interpretação que, de hábito, suscita. Até porque emprego, renda, moeda e mercadoria
também são itens do repertório

227


cultural, também são investidos de emoção, cercam-se de valores e estão mergulhados em
símbolos. Exemplo: ter um emprego é muito mais que credenciar-se a um salário; é fazer
parte de um grupo, compartilhando uma identidade, escovando sua auto-estima; é merecer
o apreço da família, dos vizinhos, da comunidade; é sentir-se valorizado, porque, segundo
nossas tradições, trabalho enobrece.35 Tanto é verdade que a aposentadoria muitas vezes
detona uma crise existencial, mesmo quando não há perdas materiais envolvidas.

Estas reflexões não são hipócritas e não têm a pretensão de sugerir que não haja fome, só
fome de amor; que não haja necessidade de emprego, renda, vestuário, mercadorias e
moradia, só fetichismo e a procura desenfreada por símbolos de inclusão. Há fome física.
Há miséria e seu calvário. Há um rosário de carências. Quero apenas lhes dizer que não há
só isso e que a história não deve ser contada, unilateralmente, pelo ângulo da economia.

Quando o jovem compra o tênis de marca ganha de brinde o ingresso no grupo - no grupo
dos que reconhecem a marca e valorizam a moda de que ela é sintoma. Lembremo-nos de
que moda, entendida em sentido amplo, envolve determinadas escolhas estéticas mas
também, freqüentemente, algumas escolhas éticas. A moda envolve uma coreografia,
posturas, comportamentos e uma certa agenda. Se for mais ambiciosa - como foram os
movimentos hippie, punk e yuppie -, envolverá até uma ideologia ou um conjunto de
crenças. O que é a atitude do membro do movimento hip-hop se não um blendde
comportamentos, valores, vocabulário e focos temáticos?

Um bom e belo exemplo, inspirador e capaz de exorcizar o bolor ranheta e mesquinho que
meu tom crítico pode sugerir, é a desbravadora Leila Diniz desfilando grávida, de biquíni,
na praia de Ipanema, no início dos anos 70. Hoje, seria trivial. Naquele momento histórico,
em plena ditadura, sob o reinado de uma moralidade cínica e repressiva, no gesto teatral de
Leila sintetizavam-se crenças, posturas e comportamentos que abriam uma agenda - ou a
inscreviam na paisagem. A seminudez da quase-mãe era uma incisão cirúrgica na noite do
regime político: iluminava a dieta de idéias e cauterizava a moralidade careta e machista. A
tanga de Fernando Gabeira, a célebre tanga, muito depois mas no mesmo palco, foi a
resposta masculina à provocação de Leila. Moda? Não, política.36 Blitzkrieg contra o
embotamento do obscurantismo. Assim como há muitas formas de estruturação do poder,
há muitos modos de subverter a ordem e muitos modos de intervir criativamente na cultura,
através de obras, performances, sinalizações e atitudes.37

228


Todos nós nos sentimos reconfortados quando nos filiamos a algum grupo. Participar de
um grupo é gratificante porque fortalece o sentimento de que temos valor e a sensação de
que aquilo que pensamos e sentimos é compartilhado por outros, o que lhe revigora o valor
de verdade e de correção moral. Filósofos já disseram que realidade é ilusão compartilhada.
Nem é preciso ser tão radical para compreender a relevância desse apoio mútuo.

Em geral, somos membros de vários grupos ao mesmo tempo: família, igreja, partido,
sindicato, associação de moradores, clube etc. Cada entidade tem suas próprias regras de
funcionamento e condições de pertencimento. Os grupos se fortalecem quando enfrentam
conflitos externos. A rivalidade vivida fora do grupo aproxima os membros da família, da
Igreja, do partido, do sindicato. O caso exemplar é o do clube de futebol. O que seria do
Cruzeiro sem o Atlético (e vice-versa)? Os clubes se afirmam aos pares, alimentando-se da
rivalidade: GreNal (Grêmio versus Internacional); Fla-Flu; Corinthians e São Paulo etc. O
amor aos clubes precisa da tensão das disputas e do ódio ao rival para prosperar. Quão mais
coeso o grupo, maior a gratificação que se extrai da participação. Por outro lado, a coesão
do grupo será tão mais firme quão mais intensas forem as disputas com grupos rivais. Por
isso, nada como a guerra para unir. Nada como a oposição extrema da guerra para unir
internamente os grupos que se chocam no confronto. Infere-se daí que a guerra proporciona
aos grupos rivais a maior taxa de coesão e, conseqüentemente, a mais gratificante
experiência de pertencimento.

Não parece lógico, portanto, que jovens invisíveis, carentes de tudo o que a participação em
um grupo pode oferecer, procurem aderir a grupos cuja identidade se forja na e para a
guerra? Entende-se o sucesso das facções do tráfico no recrutamento da gurizada. As armas
são fundamentais porque credenciam os adolescentes a experimentar a cena que descrevi, o
encontro personalizado e personalizador com a violência, na esquina - encontro no qual se
realiza uma ação utilitária, com fins econômicos, e um gesto simbólico, como procurei
mostrar. São também fundamentais porque sublinham simbolicamente a virilidade, num
momento de ambivalências, a adolescência, quando a identidade está mais confusa, incerta,
ambígua.

Além disso, as armas indiciam a guerra, isto é, inscrevem os rapazes na linguagem da
guerra e em seus rituais. Funcionam como a carteirinha de sócio do clube. Garantem o
ingresso na festa mórbida em que se celebram o destemer, a lealdade, a crueldade mais
brutal e a disciplina. É bastante para quem vaga pela cidade, ávido por referências. Nem
exige muito esforço explicar ao neófito que as razões do tráfico de armas e drogas são
válidas, uma

229


vez que estas razões contrariam as leis mas endossam alguns valores da sociedade: essencialmente,
o primado do poder e do dinheiro.

Nada mais parecido com o credo capitalista, em sua versão mais fria e socialmente indiferente. A
diferença é que, para o tráfico, o mercado é a selva, é a guerra de todos contra todos, sem
regulamentos - ainda que, aqui e ali, negociem-se alguns pactos de convivência. No tráfico, regras
há, e muitas, mas não para conter a violência na guerra entre falanges. Turnos de trabalho,
hierarquias, processos decisórios, divisão de tarefas, distribuição complementar de
responsabilidades, códigos de comportamento, tudo isso é disciplinado. Já a luta contra o "alemão",
o inimigo, não se sujeita a limites: envolve tortura, humilhação, execução degradante com
sofrimento extremo, inteiramente desnecessário e assim por diante.

A moda e a arma são recursos de poder, objetos economicamente úteis e instrumentos simbólicos de
distinção, valorização e pertencimento - de uniformização, portanto, ao menos no âmbito do grupo.
Calçam a identidade, empinam a auto-estima, selam o pacto de admissão ao grupo, bombeiam a
autoconfiança e desdobram um menu de possibilidades para o sábado à noite. Fecham muitas
portas. Logo, logo, encerrarão o expediente da liberdade, se o felizardo sobreviver e for premiado
apenas com uma condenação.

Por falar em sábado à noite, enquanto tudo são flores (flores oxidadas, regadas a gasolina, mas
flores), o julgamento que importa aos meninos em armas é o veredicto das meninas. Nada mais
importa, porque está tudo aí, tudo está contido na aprovação delas, que se manifesta na bandeira do
desejo e da admiração. Aliás, este não é um destino exclusivo da juventude "do movimento". com
os hormônios em ebulição e a cabeça sem porto, quem escapa ao reinado do desejo das gurias?

Em 2001, fiz uma reunião, em Porto Alegre, com a gurizada das vilas, mais de trinta rapazes, alguns
metidos em encrenca séria. Primeiro, com a jocosidade das brincadeiras; depois, em tom
confessional, houve um consenso espontâneo que me impressionou em torno da centralidade das
garotas, como a grande referência. O desejo delas era tudo o que desejavam os meninos; era a
própria razão de ser das opções radicais da rapaziada. A capacidade de seduzi-las e conquistar-lhes
a admiração era a medida do sucesso pessoal masculino. Durante o ano, organizei mais de uma
centena de reuniões. Ouvi tanto quanto pude. E me dei conta de que o mais importante é dispor-se a
ouvir com os ouvidos abertos, dispor-se a ver com olhos que não julguem, apenas acolham e
procurem compreender. Tudo o que consta neste relato flui pelos poros dos que vivem o drama na
pele. Os canais da verdade são afetivos.

230


Se o desejo das gurias é o desejo dos guris (esta frase permite leitura em duas mãos), a
história entorta quando muitas, entre elas, elegem como modelo o macho violento,
arrogante, poderoso e armado. Porque, sendo assim, muitos, entre eles, vão imitar este
modelo, copiar suas manhas, identificar-se com seus valores. Instaura-se um magnetismo
perverso que enseja a emulação da prepotência armada. As moças, aquelas encantadas pela
estetização do mal, atuam como mediadoras da violência, turbinando a adrenalina de seus
pares. Gravitando em torno dos adolescentes que idolatram e portando-se como elos de uma
engrenagem que se reproduz automaticamente, elas não são os sujeitos do processo. Pelo
contrário, não o conhecem nem controlam. São vítimas e objeto. Convertem-se em
cúmplices, inadvertidamente.

Ilusão pensar que uma solução será desenhada na prancheta dos consultores técnicos.
Ninguém tira um modelo cultural do bolso do colete e o põe a funcionar por obra e graça da
própria vontade. Tecnocracia e voluntarismo, nenhum dos dois extremos serve, neste caso.
A emergência de um modelo cultural depende de uma multiplicidade ilimitada de
intervenções, de apropriações capilares que lhe dão sobrevida e o radicam no solo da vida
social, fortalecendo-o, conferindo-lhe legitimidade e ampliando seu raio de ação. Ele nasce
ou não, brota ou não, da espontaneidade das relações sociais ainda que o empurrão da mídia
valha muitíssimo, evidentemente.

Nossa tremenda sorte é o fato de que, no Brasil, a cultura jovem popular já plantou e colheu
no solo que, espontaneamente, sua história mesma sedimentou. Já há um modelo jovem
alternativo, em pleno funcionamento nos bairros pobres, nas vilas, favelas e periferias. Não
fosse assim, o tráfico e o crime teriam recrutado muito mais do que a minoria que logrou
envolver em suas falanges guerreiras. Há a personagem alternativa que corresponde ao
modelo cultural (e político, eu acrescentaria) alternativo: ela (ou ele) é pacífica e pacifista,
valoriza a solidariedade e a compaixão, difunde a crença na justiça e na igualdade,
criticando duramente o país que estamos fazendo: um Brasil que nega esses valores, na
prática, enaltecendo-os no discurso. O hip-hop, mesclando o break, o grafitti e o rap, é sua
principal forma de expressão e organização. Concorrem para a afirmação desse modelo
alternativo meninos e meninas.

Aliás, é preciso que se diga que as gurias estão se tornando mais do que meras mediadoras
ou muletas que sustentam modelos de identificação para os guris. Elas têm assumido
posições de destaque, freqüentemente como protagonistas, para o bem e para o mal. Ou
seja, têm matado e morrido mais, participando do crime; e têm salvado e morrido mais,
participando dos esforços

231


de paz. O que não significa que, no mundo do crime, elas não continuem sendo oprimidas e
humilhadas. O crime parece concentrar o que há de pior na sociedade: a busca do ganho a
qualquer preço e o machismo mais despudorado e violento.

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VÁRIAS VEZES Eu PEDI*

Até hoje eu me pergunto o porquê de ele ter se envolvido. Porque ele é o único menino que nós
temos, o único menino aqui de casa. Nós fizemos tudo por ele. Até os 14 anos, ele estudava
normalmente. Estudava, trabalhava na farmácia. De uma hora pra outra, ele começou a se envolver.

Ele ficou bastante tempo nisso, quatro ou cinco anos. De uma hora pra outra ele chegou aqui com
um amigo, né?, dizendo que conseguiu um serviço, que queria mudar de vida. Eu não acreditei.
Agora, eu posso dizer que estou bem, estou feliz. Agora, ele está com 19 anos.

Ele entrou nessa com 15,14 anos. Chegava tarde em casa. A gente procurava saber onde é que ele
estava. Sempre vinha alguém: "Olha, eu vi ele ali em tal lugar", e me deixava desesperada. Eu
ficava andando atrás, ia nas bocas de fumo procurar, não tinha paz nenhuma. É assim que a gente
fica, sabe?, a gente pergunta o porquê, não sabe o motivo.

Pelo menos pra mim e pro pai... O pai nunca deixou faltar nada, fazia tudo o que podia por ele.
Queria um tênis, ia lá, pagava em prestação, já pra ele não se envolver.

A maioria dos que se envolvem diz que é porque está faltando isso, está faltando aquilo, o pai e a
mãe não podem dar... A gente sempre procurou fazer por ele. Por isso, até hoje eu pergunto por que
ele se envolveu. Não sei.

Agora, ele trabalha com o André, no escritório, e está superfeliz, está gostando do serviço. Ele
chega aqui, conta as novidades, vive comentando com os colegas da vida, que isso aí não leva a
nada, que agora ele está bem.

Ele saiu da boca numa boa, não ficou devendo nada a ninguém. Ao contrário, os rapazes do tráfico
estão até apoiando muito ele sobre isso, dando a maior força, né? "É isso mesmo, você tinha mais é
que sair, porque isso aqui não leva a nada", a conversa deles...

Até pra mim que sou mãe, eles diziam: "Poxa, tia, seu filho vai sair dessa, não se preocupa, não."
Várias vezes eu pedi: "Se meu filho aparecer, não dá isso pra ele trabalhar." Eles mesmos sempre
respeitaram, não forçaram a nada. Eles não forçam os meninos a fazer nada disso. Todas as vezes
que eu

* A seguir, trechos do depoimento da mãe de um jovem recém-egresso do tráfico.
233


fui procurar meu filho na boca de fumo, nunca teve problema comigo, não. Mas eles continuam no
tráfico, né?

Tem um amigo dele que, por ver ele trabalhando, falou com ele: "Pô, você conseguiu, então eu
também vou fazer isso." Vários amigos dele foram embora (assassinados), tudo novinho igual a ele.
Agora, a gente tá bem.

Eu posso dizer que estou me sentindo uma mulher realizada.

234


DESFAZENDO CERTEZAS

Os depoimentos que você acaba de ler, entremeando os capítulos analíticos, ajudam a
desfazer muitas idéias preconcebidas sobre crime e juventude. Sugerem uma surpreendente
continuidade entre os dois mundos, o legal (da família e do emprego) e o ilegal (do tráfico),
sem negar as diferenças profundas entre as conseqüências de estar ou não envolvido com o
crime. A mãe, por exemplo, circula com facilidade, entra e sai da boca à procura de seu
filho. É recebida e respeitada pelos cúmplices do filho, quando vai à boca procurá-lo. Os
traficantes se compadecem dela ante seus pedidos para que não estimulem seu filho a
envolver-se. Há emoções que todos compartilham. Acatam a decisão do filho de voltar à
vida legal. Alguns mostram-se tentados a seguir-lhe o exemplo, quando o sucesso de seu
retorno demonstra que reconstruir a vida é uma possibilidade. Um dos antigos cúmplices
chega a pedir a mediação do protagonista, porque se sente atraído pela idéia de um
emprego. Deixar o tráfico é uma opção desejável para alguns. A dúvida não parece dirigir-
se à conveniência da opção ou à sua superioridade, mas à sua viabilidade. Os que preferem
permanecer no tráfico, ou não encontram saída, nem por isso negam as vantagens da saída e
o direito de seus comparsas à decisão de sair, desde que não deixem dívidas e não se
tornem alcagüetes.

Esta fluidez, esta ausência de fronteira rígida entre o legal e o ilegal, o grupo do tráfico e o
grupo familiar - ou, abrindo o foco: entre o tráfico e a comunidade -, mostra que, a despeito
das diferenças de valor, identidade, compromissos, posturas, comportamentos, estratégias e
estilos de vida, há emoções, valores e uma linguagem comuns. Por um lado, esta mútua
permeabilidade, esta relativa indistinção, este terreno comum é perigoso: um passo para lá,
cai-se no abismo. Por outro lado, esta continuidade pode nos encher de esperança.
Dependendo dos itinerários de cada indivíduo, nem tudo está perdido. Antes que o sistema
penal interfira, carimbando, criminalizando, distribuindo penas e estigmas, condenando os
rapazes a serem, irreversivelmente, o que ensaiaram ser por um lapso de tempo, e assim
eternizando seu presente e os aprisionando a seu passado, antes que o mundo caia sobre
suas cabeças, seria razoável esperar que, um passo para cá, mesmo tímido e hesitante, os
traria de volta à casa materna e à vida legal. Se é tão tênue o limite, tão frágil a fronteira,
tão fácil cair no abismo, também é muito fácil retornar. Desde que a sociedade e suas
instituições

235


não atrapalhem - depois de terem, por negligência, prestado sua paradoxal colaboração para o pior.

Na constelação de situações abordadas nos breves relatos que você acaba de ler - os quais foram
extraídos de longas entrevistas -, não está, necessariamente, a síntese do que acontece em todo o
universo do tráfico. Há inúmeras variações e muitas delas certamente escaparam aos relatos
destacados, que não correspondem a uma amostra de valor estatístico. Entretanto, os depoimentos
são suficientes para oferecer uma imagem razoavelmente rica sobre uma ampla gama de
circunstâncias significativas. Nessa medida, permitem vislumbrar alguns aspectos relevantes e
questionar conclusões simplificadoras. É preciso cuidado com as generalizações. Se alguma lição se
extrai desta série de testemunhos, certamente esta é uma delas. Talvez a principal. Não há "o
tráfico" e "o traficante", no singular. Nem uma causa para um fenômeno. Há trajetórias, no plural, e
distintas combinações das condições que são mais ou menos comuns a todos.

Outra lição: a liberdade individual, a luta dos pais, a presença deles, o amor, um filho, a
oportunidade inesperada de um emprego, a elevação da auto-estima provocada pelo amor e pelo
filho, o desencanto reforçado pela observação das tragédias que se abatem sobre os colegas, a
emergência de fontes de atração alternativas à gravitação do tráfico, tudo isso pode desempenhar
papel importante.

Estas reflexões nos conduzem a uma interrogação: o que seria a cultura da violência? E o que
poderia ser uma cultura da paz?

236


A CULTURA DA PAZ

A violência se aprende, como se aprende a praticar e orientar-se para a paz. O senso comum supõe
que a violência seja a explosão animal de um fogo interno que arde em nós. Quando atiçado por
humores venenosos e encharcado pelo combustível do conflito, pronto: não fica pedra sobre pedra.
O ânimo ferve e o ódio escorre, torrencialmente, impregnando os sentidos, obliterando o juízo,
cegando a razão, até derramar-se sob a forma da violência. Esta versão naturalista do fenômeno tem
sua parcela de verdade. Há tempos o cientista Konrad Lorenz já nos ensinara que o ser humano é o
animal mais violento, no âmbito intra-específico - ou seja, com a própria espécie.38 É também
original pela crueldade. Duas características distinguem o humano: a linguagem e a crueldade.
Inegável, portanto, a realidade biológica da violência.

Entretanto, as situações que se conformam à descrição naturalista são muito menos freqüentes do
que aquelas em que as mediações sociais e culturais dão as cartas. Estas cartas vão desde a
definição do que é considerado humilhante ou intolerável, a ponto de provocar a cólera, até a oferta
de meios e canais para a manifestação da violência e a delimitação do ponto além do qual não se
deve avançar, em cada circunstância. Elementos de psicologia coletiva e individual, ingredientes
culturais, regras morais, etiquetas sociais, normas institucionais, cálculos estratégicos a serviço da
prudência, tudo isso compõe a plataforma (interna e externa) da qual decola a violência, ou na qual
ela é purgada, sublimada, filtrada, redirecionada, apaziguada. A natureza e suas erupções fazem
parte do complexo, é claro, mas nem sempre o dominam. Pelo contrário, de um modo geral, são as
mediações sociais que predominam e dispõem sobre o momento e as condições em que a natureza
reinará.

Duas ilustrações confirmam a tese: a sexualidade e a expressão obrigatória dos sentimentos,39
Quem, hoje, ousaria dizer, em sã consciência, que o sexo é natural? É evidente que não há sexo sem
natureza - lá estão órgãos e hormônios se agitando até o ponto de ebulição, afetados por múltiplos
processos bioquímicos e fisiológicos. Contudo, necessidade e desejo são distintos, como enfatizam
os psicanalistas. O primeiro é da ordem da natureza; o segundo, não. Não fosse assim, seria
impossível, ante o corpo nu, distinguir o olhar técnico-profissional do médico, a percepção estética
do pintor (para lembrar os exemplos já citados em capítulo anterior) e a atenção maternal.

237


As linhas cruzadas existem, sim, mas correspondem a trocas de senhas e leituras desviantes,
não previstas no "livro de instruções" da cultura. Por excepcionais, apenas confirmam a
regra.

Todo o debate contemporâneo sobre a diferença entre sexo e gênero se apoia no
reconhecimento do caráter culturalmente construído de identidades e desejos, isto é, do
caráter não-natural da sexualidade. Reconhecimento que não necessariamente nega a
realidade de fatores genéticos ou de transmissores bioquímicos, apenas os situa,
circunscrevendo sua eficácia e limitando sua independência.40 Devemos ao movimento das
mulheres e ao movimento pela livre orientação sexual (anti-homofóbico) as conquistas
políticas que ensejaram esse desenvolvimento científico.

Raciocínio análogo se aplica à expressão dos sentimentos. Muitos deles, em diversas
situações, são "obrigatórios", quer dizer, fazem parte da boa educação e geram
constrangimento quando estão ausentes. Sua forma e seu conteúdo, inseparáveis, devem
manifestar-se em festas, funerais, ritos, celebrações etc. Não é preciso chegar ao extremo da
carpideira, que representa uma espécie de terceirização do sofrimento e, nesse sentido,
reproduz a lógica do sacrifício, em que o bode expiatório substitui a comunidade e encarna
seus pecados, para que os males se espantem com sua morte ritual. Basta conhecer o script
de cor e repetir as palavras certas, nas horas certas, para as pessoas certas, com o tom de
voz, a postura corporal e o vestuário adequados à cerimônia ou à natureza da interação. Não
quer dizer que sejamos todos uns farsantes, cínicos, e que sejam máscaras nossas
expressões, ou artificiais, nossas declarações. Não. Somos sinceros, freqüentemente.
Entretanto, isso não basta. Se apenas sentirmos o que os outros esperam que nós sintamos,
com sinceridade, mas sem dar publicidade ao sentimento apropriado, do modo conveniente,
seguindo a gramática cultural, talvez todos se frustrem: eles, por não saberem se nós
sentimos ou não o que deveríamos sentir; nós, por não termos podido comunicar o
sentimento e por sermos injustamente condenados pelo tribunal - mambembe porém
poderoso - que as comunidades costumam carregar nas costas - e que alguns chamam
"juízo crítico da opinião pública".

Infere-se o seguinte: sendo indispensável que sintamos o que os outros esperam que as
pessoas de bem, naquelas circunstâncias especiais, sintam, revelando-se assim bons
cidadãos, que comungam as emoções e os valores da coletividade, melhor que o façamos na
língua da comunidade, ou seja, adotando a coreografia, as expressões corporais e as
legendas convencionais, ou seja, aquelas que todos usam e compreendem. Como dizia o
filósofo

238


Wittgenstein, aprender uma língua não é conhecer o significado das palavras e as regras
sintáticas, mas saber empregá-las de forma apropriada, no momento pertinente. Na mesma
direção, seria possível afirmar que conhecer uma cultura não é saber o significado dos
símbolos, mas aplicá-los de modo a contar com a aprovação dos interlocutores. Portanto,
quando falamos em cultura e emoções, temos de situar-nos muito além da dicotomia
sinceridade-artificialidade, autenticidade-formalismo, espontaneidade natural-regras
sociais.

Por que é mais freqüente a agressão à esposa e aos filhos do que ao patrão, em casos nos
quais a raiva mobilizada seja equivalente? As explosões são menos naturais do que imagina
o senso comum e, em geral, pagam, mais do que deixam entrever, um tributo às regras
sociais e culturais.41 Por que alguns não furtarão, em nenhuma hipótese? Para
determinados grupos sociais e certas tradições religiosas, a honra, a crença, o respeito à
divindade são mais importantes do que a vida. Que papel cumpre, aí, a natureza, entendida
como a fonte mecanicamente voltada para a sobrevivência a qualquer preço? Por que um
indiano pode morrer de fome e ver sua família perecer, mas não ousará matar uma vaca e
comê-la? Por que sociedades não-antropofágicas recusam-se a considerar a hipótese de
matar o semelhante para escapar à fome? Claro que estes limites são flexíveis e as
interpretações morais são elásticas, adaptando-se a exigências extremas. Porém, via de
regra, os limites sagrados são observados.

A pergunta pertinente é a seguinte: seria possível elevar a vida humana ao posto de valor
supremo e protegê-la de toda ameaça? Seria viável fazer o mesmo com as extensões da vida
humana, isto é, com os direitos humanos? Teoricamente, a resposta é sim. Há exemplos,
inclusive. Nós não temos sido competentes para fazê-lo através da educação, quer dizer,
pela difusão dos valores e dos símbolos pertinentes. No Ocidente, pelo menos desde o
século XVIII, lideranças intelectuais, políticas e várias instituições tentaram promover a
introjeção desses valores, em larga escala, via razão - com a filosofia-, via emoção - com a
arte -, via crenças - com as religiões, quando renunciam, elas próprias, à violência. Em vão.
Restou-nos a repressão e a punição das transgressões para inibir tentativas futuras. Tem
sido insuficiente, frustrante e contraditório. Ainda nos cabe experimentar o investimento na
cultura da paz.

Guerra e paz, não há inocência: em ambos os casos, assim como em suas derivações
cotidianas - violência e cooperação -, as sociedades adestram seus filhos para produzi-las.
Soldados ou militantes de ONGs pacifistas, assaltantes ou monges tibetanos, golpistas ou
frades franciscanos, esse elenco

239


e os tipos medianos, todos foram adestrados para assumir posições que as sociedades
produzem e as culturas oferecem, valorizando-os, estimulando-os ou os depreciando. De
vez em quando alguém inova e alarga o espectro dos personagens possíveis. Mesmo a
invenção original acaba se referindo ao repertório tradicional. São variações em torno dos
mesmos temas.

Se é assim, o jovem invisível que recorre à arma para pedir socorro e reconquistar
visibilidade, afirmando-se pelo avesso, só pode fazê-lo porque esta é uma das hipóteses que
nossa sociedade colocou à sua disposição e a cultura sancionou-a. Outros morreriam de
vergonha, em sentido figurado ou real. Desonra mata, se a identidade individual ergue-se
amarrada à baliza da honra. Já aludi ao fato de que o assalto à mão armada seria
inconcebível em outras sociedades e culturas. A sociedade brasileira banaliza o delito e se
aprimora na arte de desmoralizar alguns limites que nossa própria tradição cultural
reverencia, pulverizando referências, diluindo critérios, relativizando responsabilidades e
sedando o espírito crítico. O diletantismo blasé faz com que muitas vezes lidamos com as
questões éticas consagrou uma bizarra combinação entre paternalismo e rigor punitivo.

O fato é que, no Brasil, a violação de direitos trivializou-se, a agressão é quase um
capricho, a violência compara-se a frivolidades, o homicídio rotinizou-se. O mais
desanimador é que dizê-lo também banalizou-se. Na mídia, os heróis quase sempre são
violentos; as heroínas vão pelo mesmo caminho, desde Nikita. Nas vilas e favelas, a
rapaziada do movimento associa armas e violência a virilidade, masculinidade e virtude
pessoal. O cardápio das cenas consagradoras do valor individual inclui o assalto, a
agressão, o encontro da esquina em que o menino invisível pede socorro recorrendo à arma.

O jovem não toca aleatoriamente seu instrumento; segue a pauta que lhe propuseram; dança
conforme a música; faz o jogo de cartas marcadas que lhe vai dar um lugar ao sol, no
mundo do crime, ao preço do futuro e da felicidade - e até da fruição dos bens que
acumular, porque estará condenado a permanecer enrascado nas armas, entrincheirado no
pedaço de chão que ainda estiver sob seu controle. Por incrível que pareça, não é incomum
que traficantes do Rio de Janeiro passem a (brevíssima) vida no mesmo lugar. Nascem e
morrem sem ir ao cinema, à praia, ao Maracanã, sem visitar a cidade, sem sair da favela.
Conhecem a metrópole onde moram pela TV. Para que o dinheiro e o poder? Quanto mais
dinheiro acumulam, mais paradoxal - quase surreal - será sua situação. Presos em liberdade.

240


DISPUTAR MENINO A MENINO

O que é que se faz com isso? Em outras palavras, depois de escrever tantas páginas sobre a
invisibilidade, a importância do afeto, da auto-estima e da participação em um grupo, sobre
a dimensão intersubjetiva do primeiro assalto e o caráter culturalmente construído da
violência, depois de me alongar na remissão a casos exemplares, depoimentos e entrevistas,
aonde eu quero chegar? Que proposta pretendo fazer? O que espero que aconteça no
espírito dos leitores e em suas práticas cotidianas?

Eis o compromisso que gostaria de compartilhar: é nosso dever - porque há razões para
isso; a esperança não é, neste caso, irrealista - é nosso dever, repito, disputar menino a
menino, menina a menina. Competir com o crime e as fontes da violência, oferecendo aos
adolescentes e às crianças pelo menos as mesmas vantagens que o outro lado oferece, mas
com sinal invertido, é claro. Ainda que por motivos ilusórios e passageiros, a violência dá
prazer, fortalece a auto-estima, proporciona a fruição do respeito e da admiração que advém
do pertencimento a um grupo, permite o acesso ao desejo das gurias (e dos guris), garante
ingresso na festa hedonista do consumo. Então, cabe-nos criar condições para que pelo
menos as mesmas vantagens possam ser experimentadas no lado de cá.

Os focos da disputa são o coração e a cabeça dos jovens, não é o bolso, ainda que ele seja
também de grande relevância. O centro da briga histórica que se trava à beira do
despenhadeiro e talvez nos afaste da barbárie, são o afeto e o imaginário das crianças e dos
adolescentes. Esta não é uma disputa contábil. Não se trata somente (nem principalmente,
ousaria dizer) de grana, mesmo sendo a grana fundamental - jamais a subestimemos, até
porque ela é muito mais que instrumento para aquisição de bens e serviços; ela é, em si
mesma, símbolo de poder que confere a quem a possui a aura privilegiada que dignifica,
distingue e valoriza. Não por outro motivo, tende a funcionar nos moldes das profecias que
se autocumprem. O dinheiro vale sobretudo como meio de integração -já vimos como opera
esse mecanismo que diferencia para integrar.

A pergunta seguinte logo se impõe: como oferecer estes benefícios? Através de que
políticas públicas? A sociedade poderia ajudar? Quantos recursos seriam necessários?
Como é que se poderia sensibilizar o imaginário e o coração da gurizada?

Antes de responder, há ainda uma longa jornada pela frente.

241


O Rio DE JANEIRO CONTINUA SENDO...


Os SENTIDOS DA VIOLÊNCIA,

A CRIMINALIDADE NO BRASIL E NO Rio DE JANEIRO

O Rio de Janeiro continua lindo, é verdade; entretanto, o Rio de Janeiro continua sendo, janeiro,
fevereiro, março, o ano todo, atravessado pelo medo, pela bala, pelo fogo cruzado. Este não é um
livro sobre o estado ou a cidade do Rio, porque os problemas de que trata são nacionais - e alguns
transcendem as fronteiras do Brasil. Mas o Rio antecipou a trajetória brasileira em direção à
violência armada e talvez encarne, hoje, o futuro previsível do país. Por isso, é importante pensar
sua história recente. Para exorcizar seus males, ajudar a vencê-los e prevenir a nacionalização de
seu drama. O tráfico de armas e drogas há muito deixou de confinar-se numa ou noutra cidade para
converter-se na principal fonte brasileira da violência criminal. Mas talvez ainda haja esperança de
que a escala assumida pela tragédia, no Rio, não se repita nas outras cidades e estados.

Não tenho a pretensão de contar a história do tráfico no Rio. Alguns já fizeram isso melhor do que
eu faria.42 Gostaria de complementar o conhecimento já acumulado, chamando atenção para alguns
aspectos. Antes, apresento algumas considerações gerais.

Violência é uma palavra que só na aparência é simples. Na verdade, guarda muitos sentidos
diferentes. Pode designar uma agressão física, um insulto, um gesto que humilha, um olhar que
desrespeita, um assassinato cometido com as próprias mãos, uma forma hostil de contar uma
história despretensiosa, a indiferença ante o sofrimento alheio, a negligência com os idosos, a
decisão política que produz conseqüências sociais nefastas, a desvalorização sistemática dos filhos
por seus pais ou das mulheres por seus maridos, as pressões psicológicas exercidas no contexto de
interações opressivas, a orientação econômica que se abate sobre setores da população como um
desastre da natureza e a própria natureza, quando transborda seus limites normais e provoca
catástrofes. Por isso, falamos da violência das águas, do vento ou do fogo, e nos referimos às
desigualdades sociais injustas ou ao abandono de crianças nas ruas como formas de violência. Por
outro lado, quando um pai luta com alguém para salvar a vida de um filho, não o descrevemos

245


como violento, nem entendemos como um exemplo de violência o uso defensivo e bem-
intencionado que ele faz da própria força.

Se reunirmos um grupo aleatório de pessoas e pedirmos que escolham três fatos que
exemplifiquem formas especialmente graves de violência, provavelmente obteremos
respostas muito diferentes, organizadas segundo as hierarquias mais diversas: alguns farão
referência a guerras entre nações e ao desequilíbrio de forças internacionais, outros talvez
mencionem a prostituição infantil, o flagelo da fome e do desemprego, a gravidez precoce,
as condições de moradia, saúde e transporte, o latifúndio improdutivo fechado ao trabalho
dos sem-terra, a injustiça, a impunidade, a destruição do meio ambiente, a corrupção, o
racismo, a invasão cultural, o contraste entre o carro importado e a mendicância nas
esquinas, a homofobia, o descalabro das prisões superlotadas e desumanas, a discriminação
das mulheres, o abandono da juventude, a hipocrisia arrogante dos tecnocratas, a tortura, as
chacinas, a brutalidade da polícia, o salário dos policiais, o cotidiano das periferias nas
grandes metrópoles brasileiras. E é claro que a maioria não deixará de destacar os crimes,
sobretudo as agressões contra as pessoas e, em particular, aquelas cujo desfecho é a morte
da vítima.

Para a população, crimes não são transgressões da lei penal, são violações culpáveis da lei
moral, mais ampla que a lei penal e nem sempre coincidente com suas determinações e seu
espírito. O conceito popular de crime é tão variável e abrangente quanto a concepção
popular de violência. Como não há consenso na sociedade quanto à lei moral, a lei penal
deve ser respeitada como o acordo prático possível, a partir do qual ou por cuja referência
as instituições responsáveis pela manutenção da ordem pública democrática devem orientar
suas ações.

O Brasil é pródigo em manifestações das formas mais diversas de violência, inclusive e
crescentemente, da criminalidade violenta. A sociedade brasileira, em seu conjunto, tem
sido atingida pela violência. Todas as classes, etnias e faixas etárias têm compartilhado o
risco de tornarem-se alvo de algum ato criminoso. Nesse sentido preciso, a violência
criminal brasileira, em suas múltiplas formas, é "democrática": vitima homens e mulheres,
pobres e ricos, negros e brancos, indistintamente.

No entanto, se observarmos atentamente os dados relativos à vitimização letal, isto é, aos
crimes que provocam a morte da vítima, encontraremos um quadro muito diferente. Como
tudo no Brasil, também a morte violenta intencional distribui-se de modo extremamente
concentrado. Assim como renda, educação, moradia, saúde, saneamento, acesso a lazer e
equipamentos

246


públicos, vitimização letal também é privilégio, ainda que perverso, o que implica, nesse
caso, a inversão da pirâmide distributiva: quem mais a sofre são os mais pobres. Tampouco
são os pobres, indistintamente. A vítima letal brasileira típica é jovem, do sexo masculino,
tem entre 15 e 24 anos (ainda que o espectro etário se estenda rápida e perigosamente para
baixo e para cima), mora nas vilas, favelas ou periferias das metrópoles e, freqüentemente,
é negra. Portanto, ainda que haja tantos casos atingindo membros de outros grupos sociais e
outras faixas etárias, o alvo estatisticamente mais provável da modalidade mais grave da
violência tem idade, cor, sexo, endereço e classe social.

Ou seja, a criminalidade violenta é um problema de todos nós, brasileiros, mas é sobretudo
o drama dos jovens, especialmente pobres e, particularmente, negros. Claro que há
inúmeras tragédias envolvendo jovens de classe média. Mas todos os diagnósticos
convergem e apontam a mesma concentração, não nos autorizando tergiversações. Na
realidade, o problema é tão grave que já deixou sua marca na estrutura demográfica. Há um
déficit de jovens, entre 15 e 24 anos, na sociedade brasileira - fenômeno que só se verifica
nas estruturas demográficas de sociedades que estão em guerra. Portanto, o Brasil vive as
conseqüências de uma guerra inexistente e, mais que qualquer outro, determinado setor
social está pagando com a vida o preço dessa tragédia. Este processo pode ser descrito, sem
qualquer exagero retórico, como genocídio: um genocídio paradoxal, autofágico e
fratricida. Jovens pobres matam jovens pobres, numa dinâmica que não conhecem e não
controlam, em que todos são vítimas, mesmo aqueles que ocupam provisoriamente o papel
circunstancial de algoz, no círculo vicioso que os conduzirá à morte precoce e cruel.
Quando completam o trânsito para a posição de vítima e, finalmente, são descartados, a
dinâmica mórbida que realimenta o jogo da violência os substitui como peças de reposição
e o circuito perverso recomeça.

Várias são as matrizes da criminalidade e suas manifestações variam conforme as regiões
do país. O Brasil é tão diverso, que nenhuma generalização se sustenta. Sua multiplicidade
também o torna refratário a soluções uniformes. A sociedade brasileira, por sua
complexidade, não admite simplificações nem camisas-de-força. Em São Paulo, a maioria
dos homicídios dolosos encerra conflitos interpessoais, cujo desfecho seria menos grave
não houvesse tamanha disponibilidade de armas de fogo. No Espírito Santo e no Nordeste,
o assassinato a soldo ainda prevalece, alimentando a indústria da morte, cujo negócio
envolve pistoleiros profissionais que agem individualmente ou se reúnem em "grupos de
extermínio", dos quais, com freqüência,

247


participam policiais. Na medida em que prospera o "crime organizado", os mercadores da
morte tendem a ser cooptados pelas redes clandestinas que penetram as instituições
públicas, vinculando-se a interesses políticos e econômicos específicos, aos quais nunca é
alheia a lavagem de dinheiro, principal mediação das dinâmicas que viabilizam e
reproduzem a corrupção e as mais diversas práticas ilícitas verdadeiramente lucrativas.

Há investimentos criminosos em roubos e furtos de carros e cargas, ambas as modalidades
exigindo articulações estreitas com estruturas de receptação, seja para revenda, desmonte
ou recuperação financiada. Roubos a bancos, residências, ônibus e transeuntes, assim como
os seqüestros, particularmente os seqüestros relâmpagos, têm se tornado comuns e
perigosos, porque, em função, também nesse caso, da disponibilidade de armas, essas
práticas, que, por definição, visariam exclusivamente o patrimônio, têm se convertido, com
assustadora freqüência, em crimes contra a vida - a expansão dos roubos seguidos de morte
ou latrocínios constitui o triste retrato desta tendência.

A violência doméstica, especificamente a violência de gênero que vitima as mulheres,
assim como as mais diversas formas de agressão contra crianças revelam-se tão mais
intensas e constantes quão mais se desenvolve o conhecimento a seu respeito. O dado mais
surpreendente diz respeito à autoria: em mais de 60% dos casos observados, nas pesquisas e
nos diversos levantamentos realizados no país, quem perpetra a violência é conhecido da
vítima - parente, marido, ex-marido, amante, pai, padrasto etc. Isso significa que esta matriz
da violência, apesar de merecer máxima atenção e de constituir-se em problemática da
maior gravidade para os que a sofrem ou testemunham - seja por suas conseqüências
presentes, seja por seus efeitos futuros -,43 não é acionada, de um modo geral, por
criminosos profissionais ou por perpetradores que constróem uma carreira criminal. O
mesmo pode ser dito sobre a violência homofóbica e racista.

Entre as principais matrizes da criminalidade, destaca-se o tráfico de armas e drogas: é o
que mais cresce, nas regiões metropolitanas brasileiras, mais organicamente se articula à
rede do crime organizado, mais influi sobre o conjunto da criminalidade e mais se expande
pelo país. As drogas financiam as armas e estas intensificam a violência associada às
práticas criminosas, e expandem seu número e suas modalidades. Este casamento perverso
entre armas e drogas foi celebrado em meados dos anos 80, sobretudo no Rio de Janeiro,
ainda que antes já houvesse vínculos entre ambas.

Nas grandes cidades européias e norte-americanas também há tráfico de drogas, mas não
circulam tantas armas entre os traficantes quanto ocorre no

248


Rio, nem eles as utilizam para os mesmos propósitos. Nem tanta violência associou-se ao
mercado das drogas. Nestas cidades, o tráfico é clandestino. Os vendedores camuflam seus
negócios e se misturam aos transeuntes em determinados pontos da cidade, praças sombrias
e esquinas. O tráfico varejista é nômade, por excelência, ainda que haja espaços de
referência, e se resume ao negócio da droga: compra e venda. O mal produzido é o
consumo da droga.

No Rio, deu-se um fenômeno curioso que teria grandes conseqüências. Em razão da
geografia social da cidade, favelas situam-se no centro de bairros de classe média. Esta
vizinhança tornou possível uma configuração singular do tráfico, na medida em que
viabilizou economicamente a organização da venda em pólos fixos, as bocas inicialmente
chamadas bocas de fumo, elas mantiveram este nome mesmo quando a cocaína foi incluída
no cardápio. Assim, o varejo pôde se afirmar em um arranjo sedentário - sem que isso
eliminasse a circulação dos "aviõezinhos", que servem os consumidores a domicílio ou em
determinadas vias públicas da cidade, reproduzindo o modelo internacional típico do
mercado de drogas. A proximidade física entre compradores e vendedores foi decisiva na
determinação do formato que o tráfico viria a adotar- por motivos econômicos óbvios, aos
mais pobres o negócio varejista das drogas tornou-se atraente, ainda que o comércio
atacadista exigisse acesso a informações e recursos superiores, e por isso envolvia
criminosos de colarinho branco além da própria polícia.

O sedentarismo do comércio varejista implicou a valorização do território em que se
realizam as operações de venda direta ao consumidor e passou a exigir investimento na
segurança do ponto. A segurança é garantia ao comprador de acesso tranqüilo à boca, sem
risco de roubos, agressões ou batidas policiais; é condição de estabilidade nos negócios,
portanto; é também defesa contra eventuais incursões de grupos rivais - sim, porque a
viabilidade dos pontos fixos de venda converteu o controle sobre eles em patrimônio
valioso e recurso estratégico extraordinariamente significativo, na lógica do mercado de
drogas. Isso os fez alvos da cobiça de outras falanges do tráfico.

Prover segurança às bocas impunha um custo pesado, posto que requeria armas para
prevenir ambições predatórias de potenciais concorrentes e propina para a polícia. As armas
também permitiam o exercício da autoridade sobre a comunidade da favela e facilitavam -
pela sedução que exercem sobre o imaginário jovem - o recrutamento de "soldados" para a
falange criminosa. Em uma palavra, a organização sedentária do comércio varejista levou à
necessidade de que os traficantes se estabelecessem como um poder sustentado no domínio
territorial.

249


BANDIDO TRABALHADOR E os VENDADOS:

A ÉTICA DO CRIME*

Eu comecei a traficar como falcão. Eu ficava com fogos na mão, com fogos e o isqueiro, na
contenção, avisando se a polícia ia entrar ou não, entendeu? Trabalhava 24 horas por dia de
falcão, mas aí vem uma pessoa render, pra gente poder tomar banho, comer, ir em casa ver
a família, antes de voltar para o posto.

Muitas vezes cheirava, sim, porque sabiam que eu usava e vinham: "Cheira aí, mano." Às
vezes, não estava nem na finalidade de cheirar, mas eu cheirava pela mente dos outros, não
tinha a minha opinião: "Tá fazendo, vou fazer também, entendeu?"

Depois de ser falcão, cheguei a vapor. Vapor é o que trafica, é o que fica vendendo. Se o
lucro eram R$ 750,00, R$ 600,00 eram deles e R$150,00 do vapor. Eu não fazia a conta de
quanto ganhava por mês. Numa semana juntava mil e pouco, porque pegava 12 cargas...
cheguei a pegar 23 cargas.** Eu continuava, nesse período, cheirando direto também.
Trabalhava, mas trabalhava meio falho, meio preocupado, meio com medo de morrer, né?

Vendado é aquele cara que está no crime e não enxerga nada, só está no crime e não está
enxergando nada, está enxergando só o crime. O cara fica no crime só pra comprar roupa,
para andar de carrão. Ele não tem uma visão do crime.

Ter a visão do crime é saber que o crime é um meio de sobrevivência pra você e sua
família. Tem muitos que querem andar de carro, mas não vêem a família, que está
precisando. O fundamento é saber que deve tirar a sua família do local, viver uma vida
tranqüila e parar com o crime, assim que possa, não dar continuidade ao crime, porque se
der continuidade ao crime ou vai morrer ou vai parar na cadeia. Isso o cara vendado não
faz.

O cara vendado só está ali mesmo pra pegar mulher, andar com dinheiro no bolso, com
carro, moto, mas não é bandido, entendeu? Não é esperto. O cara pra ser bandido tem que
ser esperto. É pensar mais e trabalhar mais com a mente. Essa coisa de se mostrar, andar de
fuzil pra lá e pra cá, pensando que está abafando, não está com nada.

*Trecho do depoimento de um entrevistado.
** Carga significa porção de droga, e passar uma carga é o mesmo que traficar.
250


O que manda é a mente, não é o fuzil. O que manda é a mentalidade, porque o cara pode ser
trabalhador e bandido; o cara é trabalhador e bandido porque tem uma mente tranqüila, uma mente
que dá pra ele trabalhar e ficar tranqüilo.

Bandido é o cara que tem a visão. Ele sabe que tem que mudar; se não mudar, sabe o que acontece.
A família é tão importante porque te colocou no mundo, né? A família move tudo, sempre está do
teu lado.

Você pode ir preso que a família vai lá, sendo mulher que ama. Só vai lá quem ama. Se não for a
mulher que ama, é a mãe que vai, a mãe, o pai, o parente. A mãe é que está lá, sempre junto.

Dar fundamento no crime é assim. É ajudar a família e se preparar pra se levantar do crime. Tem
que pagar aluguel mas não pode ficar dentro de casa, não pode morar com a família. Tem que
comprar casa pra família e não pode morar, não pode nem ir lá pra não pichar, né? É o que
acontecia comigo. Eu era pichadão mesmo, com polícia de plantão e X9 andando atrás de mim,
querendo me entregar. Eu andava assim agoniado...

É preciso ficar longe da família quando a gente está no crime. Mas o melhor é ajudar a família e,
depois, sair do crime.

251


NEGOCIANDO A LIBERDADE*

No dia da minha prisão eu estava traficando de noite, por volta das sete horas da noite, e
veio uma freguesa, assim, com um jeito de viciada. Pediu dez papéis e pagou com 100
reais. Nesse instante, os homens chegaram...

Eu estava na rua, eu e mais um amigo, com duas pistolas. Tentamos dar tiro neles mas não
demos porque tinha muita criança na rua. Como as crianças estavam brincando, o pessoal
gritava: "Entrem, entrem, entrem crianças." Aí eu falei: "Não, compadre, não dá tiro não,
pra não pegar em nenhuma criança, não gosto de facilitar", e fomos correndo. Meu amigo
correu também sem dar nenhum tiro. Correu, sendo que ele correu direto. Eu corri e me
entoquei numa casa, mas os homens pularam várias casas e me pegaram.

Aí o polícia me pegou nessa casa. Ele disse: "Então, eu quero 3 mil, tô sabendo que você é
gerente, então quero." Falei pra ele: "Não sou gerente, estou aqui nessa vida pra
sobrevivência, procurei emprego em vários locais e não consegui, entendeu?" Ele
respondeu: "Eu não quero saber; eu quero 3 mil, 3 mil até dez horas." Eu mandei pra ele:
"Tenho R 500,00 em casa, guardados, meus mesmo". Ele falou: "R$ 500,00 não vai dar, só
vai dar para você ficar comprando sucata lá dentro da prisão" - sucata são os alimentos
básicos que o familiar leva para o preso ou que ele tem de comprar.

Deu dez horas, o amigo que tava com o dinheiro da boca estava no hotel e desligou o
telefone. O patrão não estava na favela. Não tinha como avisar a ele e eu só podia tirar o
dinheiro com a permissão dele, né? Fiquei preso com eles, rodando, eles indo no Bob's,
comendo, e eu preso na caçapa, rodando, não me levavam pra DP, só pra ver se vinha
dinheiro ou não. Até que eles viram que não vinha dinheiro. Bateram um rádio pra
delegacia, comunicando que tinha um indivíduo... Não puderam tirar o dinheiro de mim e
fui de dura. E fiquei cumprindo minha cadeia.

A polícia me levou tudo. Disseram que era roubado e levaram tudo: geladeira, fogão,
televisão, som, perdi tudo. Eu tinha tudo e quando saí da cadeia, não tinha nada.

" Trechos de depoimento colhido em entrevista realizada para este livro, entre janeiro e abril de 2003.
252


Os CLIENTES*

Os clientes vêm de tudo que é parte: tem daqui, tem de fora, tem da favela, tem cliente que
vem da Zona Sul, tem cliente que vem de todos os cantos. Eles falam assim: "Tô sabendo,
lá em Copacabana, que o produto aqui está bom," O cliente vem: "Tô sabendo, lá em Vilar
dos Teles, que a maconha aqui está boa."

Vem mulher, vem nego com mais idade, vem gente jovem, a maioria é jovem. Tem nego
que vem... eles não falam diretamente que são ricos, mas pela aparência dá pra gente ver.

Já chegou uma vez na minha mão um cara pra comprar, sabe quanto? Trezentos reais só de
pó. Já chegou nego querendo empenhar carro, aqui. Tem gente que fala assim: "Segura esse
celular pra mim, amanhã te pago por tanto. Eu só quero dois pó de dez." Aí chega nego que
vende tudo, que está alucinado pra cheirar. Eu pergunto: "Aí, tu mora onde?" "Moro na
Zona Sul." "Tu éplayboy, cara." Alguns vendem cordão, essas coisas todas. E tem nego
duro.

Vem mulher de tudo quanto é tipo: velha, garota nova, estudante. Tem umas que compram
maconha, outras compram pó. Fico olhando, assim. Não dá pra ter idéia, quando a gente vê
na rua, que a pessoa cheira, fuma...

A gente olha assim, pensa que é uma pessoa que vive uma vida tranqüila; não dá nada por
ela. Tem gente bem de vida que vem aí direto, nego que é repórter e o caramba. Tu olha,
assim, o repórter cheira e não sei o quê, e faz várias reportagens sobre drogas, essas coisas
todas - mas cheira...

Eu fico pensando, fico pensando nessa luta, querendo arrumar um dinheiro, querendo
ganhar um dinheiro rápido para construir uma parada melhor, enquanto nego tá bem de
vida e tá gastando o dinheiro todo com drogas. Eu fico olhando...

Às vezes dá a maior raiva.

* Trechos de depoimento colhido em entrevista realizada para este livro, entre janeiro e abril de 2003.
253


A ECONOMIA DAS ARMAS NO Rio

Antes de considerar a dimensão social deste domínio, desejo focalizar a lógica que enseja a corrida
armamentista entre as falanges do tráfico carioca. Ela é tão importante quanto ignorada e,
freqüentemente, se deixa observar apenas por seus efeitos. Vimos por que a geografia social permite
o "sedentarismo" varejista no comércio de drogas e como esta fixação territorial exige o domínio
territorial como estratégia militar, o qual determina a necessidade das armas numa escala muito
superior ao que seria funcionalmente adequado ao modelo usual da venda "nômade" de drogas.
Além disso, outro fator se impõe: na medida em que o mercado de drogas passa a girar em torno de
focos territoriais, as bocas, que concentram a venda e o acesso aos mercados privilegiados,
convertem-se em objeto da cobiça das falanges que competem pelo mercado e pelo poder de
agenciá-lo - em seguida, o poder destaca-se como valor em si mesmo, relativamente,
independentemente de seu sentido instrumental para os ganhos econômicos, cuja relevância,
todavia, não deve ser subestimada.

Defender a boca é decisivo e a melhor forma de fazê-lo é antecipar-se à invasão e ameaçar os
inimigos potenciais, seja com a mera sinalização de que um ataque seria possível ou mesmo
provável - quando não iminente -, seja com o ataque propriamente dito, que redunde na destruição
dos antagonistas ou em seu acuamento, e na conquista de novos pontos de comércio e novos
espaços de poder. Como a tática agressiva é custosa e arriscada, fragilizando a retaguarda e
impondo custos crescentes para a manutenção do poder conquistado, procura-se evitá-la, até que
haja condições realmente propícias para uma invasão de território alheio, o que pode ocorrer, por
exemplo, quando lideranças das falanges adversárias são presas ou mortas pela polícia - aliás,
eventualmente, ações policiais são arquitetadas em comum acordo com projetos expansionistas de
setores do tráfico. Para inibir os rivais e prevenir ataques no intervalo dos enfrentamentos, isto é,
enquanto a correlação de forças não permite aventuras bélicas, o melhor a fazer é ampliar o arsenal
bélico e ostentá-lo, orgulhosa e despudoradamente. Exibir a própria força é o melhor meio de evitar
seu uso, como a guerra fria e a corrida armamentista nos ensinaram. Claro que o equilíbrio é
precário, os riscos são grandes e as conseqüências freqüentemente fogem ao controle. Mas há lógica
no processo.

254


Assim, os traficantes do Rio, depois de fixar como padrão organizacional e estratégia de
poder o domínio territorial, lançaram-se a uma corrida armamentista incansável.
Interrompê-la significaria mostrar-se vulnerável e capitular. O darwinismo que se instalou
entre as falanges é um jogo pesado, sem retorno, no qual a força depende do exibicionismo
belicista. Portanto, as armas não são apenas instrumentos úteis à guerra; são também e
sobretudo aparato indispensável aos tempos de paz - até para que ela exista, mesmo sem
estabilidade, nem que seja como trégua provisória. E justamente por isso elas existem em
quantidade e poderio destrutivo muito superiores às necessidades práticas, mesmo que se
adote o ponto de vista do tráfico. Há mais armas entre os traficantes do Rio de Janeiro do
que os grupos precisariam para defender-se, agredir rivais e enfrentar a polícia. Este
excesso explica-se por suas funções preventiva e inibitória, simbólica e política, que tem a
ver com os grandes conflitos entre os grupos e a potencial disputa por territórios e
mercados, mas também cumpre papel importante no reforço da autoridade exercida sobre a
comunidade que reside no território dominado.

O ponto mais interessante desta dinâmica perversa é o seguinte: as armas são, em certo
sentido, capital imobilizado e, na medida em que seu uso tende a ser inferior ao seu
potencial produtivo criminoso dado que as pessoas que as portam dormem, descansam e
nem sempre as empunham em práticas geradoras de ganhos econômicos-, instaura-se um
resíduo de irracionalidade econômica, cujo sintoma, a subutilização da arma, é o
equivalente, no universo criminal, da capacidade ociosa que, eventualmente, se verifica na
indústria. Para reduzir esta margem de perda, que se calcula subtraindo-se o ganho efetivo
daquele valor que se estipula como potencial - este, por sua vez, corresponderia ao emprego
pleno da arma, maximizando-a enquanto instrumento econômico -, estimula-se,
permanentemente, a expansão de seu uso.

Pois é exatamente isso o que se vê, nas ruas do Rio: pequenos crimes contra o patrimônio
convertendo-se em crimes contra a vida, por conta do emprego da arma de fogo; as mortes
violentas se multiplicando, por balas perdidas ou deliberadamente endereçadas, num
pandemônio infernal e fora de controle que já virou o problema maior, deixando em
segundo plano os crimes propriamente ditos e seus objetos; ou seja, o tiroteio, o uso
indiscriminado da arma de fogo, sem qualquer adequação funcional às práticas criminosas,
já se constitui no cerne da barbárie carioca, superando com folga a gravidade das
estratégias utilitárias dos criminosos. Quer dizer, o que verdadeiramente importa, hoje, não
são mais os relógios roubados, mas as vidas perdidas, sendo que os relógios eram os alvos
das práticas criminosas das

255


quais entretanto resultaram as mortes, e esta não-intencionalidade originária defíne-as como
acidentes de percurso ou efeitos perversos derivados do uso da arma de fogo.

A todo este conjunto de fatores acrescenta-se o papel dos segmentos corruptos das polícias, cuja
participação na corrida armamentista foi fundamental, ao estabelecer o padrão inicial do armamento
pesado para si mesma, nas operações em favelas, constituindo um modelo para o próprio tráfico. A
participação destes setores das polícias continua sendo essencial, atualmente, ao viabilizar e agilizar
o comércio ilegal das armas, beneficiando-se dessa mediação perversa e, paradoxalmente, morrendo
pelo veneno que cultiva. As armas não chegam às favelas de helicóptero e ninguém carrega fuzis e
armas deste poder debaixo da camisa. Elas chegam aos depósitos, no alto dos morros cariocas,
dentro de automóveis. Deduz-se, portanto, que não chegariam lá, sobretudo na quantidade em que
chegam, sem anuência ou cumplicidade ativa de segmentos policiais.

Uma vez fixado no Rio de Janeiro o novo modelo do tráfico, cuja base é o domínio territorial, ele se
desgarra de seus determinantes geográfico-sociais e se generaliza, tornando-se a forma por
excelência da organização dos grupos criminosos vinculados ao varejo do tóxico. Hoje, espaços
urbanos distantes do mercado consumidor mais ativo também são ocupados e disputados. Não
devemos subestimar o poder de emulação que o sistema carioca exerce em todo o país - por isso,
não é incomum encontrar-se a forma externa do modelo carioca, o domínio territorial e seus
derivados, mesmo na ausência das condições que justificariam sua adoção.

256


VIDA DE TRAFICANTE: O DONO DA BOCA NUNCA Foi AO
MAR*

De que adianta ganhar muito e morrer rápido? Vou perder a liberdade, ficar lá dentro, sem
ninguém visitar, sem ver ninguém; de que adianta estar hoje com dinheiro pra caramba? No
3 (em Bangu 3), tem gente com dinheiro pra caramba. De que adianta? Bangu III, dinheiro
pra caramba, e aí?, cadê o dinheiro? Vai todo pra advogado, contas pra pagar...

Cadê o dinheiro? Mas o trabalhador do patrão, do dono da boca, está aqui, em liberdade,
juntando um dinheirinho, está com o pãozinho dele, com a motinha humilde, está andando
pra lá e pra cá, está indo à praia, curtindo vários locais...

Tu acha que os cara que são donos mesmo de boca de fumo não têm essa vontade de curtir
tranqüilo? de andar tranqüilo? de ficar tranqüilo? Por que eles saem daqui e vão pra outro
país? Saem daqui e vão pra outro lugar pra viverem tranqüilos, porque onde eles estão não
dá mais pra conviver, não dá mais. Eles têm que viver tranqüilos. Então, metem o pé. Como
ninguém conhece eles, pô, tranqüilo, vai dar pra curtir.

O dono da boca, mesmo quando está livre, quando está na rua, nunca foi no mar, entendeu?

" Trecho de depoimento concedido em entrevista.
257


Os POLÍCIAS*

Os polícias? Olha, eu vejo aqui, eu sou bandido, mas se você for avaliar um polícia, você
vai ter mais inquérito que qualquer marginal, porque cada mês ele mata um, todo dia ele
rouba um. O salário de um policial não dá pra ele ter um Honda. Vai no posto. Dá uma
olhada quanto Honda está parado lá. O que eu acho, cara, é que o sistema está todo podre, o
sistema todo está podre, os policiais, os deputados, os políticos. Então, eu acredito que se
os políticos fossem mais cobrados não existiria essa pouca-vergonha toda aí. O político
rouba, não vai preso; o polícia também rouba; o polícia bota bagulho no seu bolso para te
prejudicar...

O que é arregar a boca?

Tem o posto policial da favela, não é? Então o gerente vai mandar R$
5.000,00 para o posto. Aí manda R$ 5.000,00 todo dia. Tem gente que não acredita nisso.
Todo dia, R$ 5.000,00 para o posto. Eles ficam lá no posto; o carro deles está com o tanque
cheio; eles ficam comprando pizza, bebendo Coca-Cola. E ali eles passam o dia todo,
sentados ali, só engordando. O dia que não vai o dinheiro eles querem vir prender. Está
errado, não está errado? O trabalho deles não é prender? Mas o que eles fazem? Eles fazem
assim: vai arregar. Quando é de noite, quer arregar e quer o dinheiro. Eles querem R$
5.000,00. Se não forem os R$ 5.000,00, a boca não funciona. Então o que os amigos têm
que fazer? Dar tiro neles, porque eles são bandidos também, eles também são bandidos. Os
polícias são sócios da boca.

O que é achacar?

Achacar é o seguinte: arregou a boca, aí os policiais viram, mudam de turno de trabalho,
porque isso aqui é um rodízio: quem está hoje no posto, amanhã está na viatura - mas ele
está ligado no arrego. Vamos supor que ele comprou um carro; a prestação atrasa e ele não
está no posto, ele não faz parte do arrego. Então, ele vem achacar.

O que é achacar?

É prender vagabundo numa boca arregada. E aí, quando prende, quer R$
20.000,00, quer R$ 50.000,00, porque os próprios policiais do arrego ligam para eles: "E aí,
mano, tá arregado aqui; se quiser ir lá por sua conta, pode." Aí os caras que estão ligados
no arrego e que hoje não estão no posto vêm achacar. Aí entra, porque abriu o arrego.
Enquanto isso, vagabundo tá na

* Trechos de depoimento colhido em entrevista.
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pista. Então, quando eles quebram o arrego, eles sempre prendem um amigo.* E aí quer R$
15.000,00, R$ 20.000,00, fora o arrego. Então, uns caras desse recebe bala, e o que
acontece quando mete bala, eles chamam reforço. Aí dá a merda que tem que dar; é polícia
para caramba; mas os polícia que chegam de fora não estão sabendo que seus colegas
vieram achacar. É assim: eles vêm achacar e, quando suja, eles chamam reforço, tudo
fardado.

Refere-se a um traficante que integra o mesmo grupo do entrevistado
260


A TIRANIA DO TRÁFICO E o DESPOTISMO POLICIAL

A posse do espaço e a autoridade sobre seus moradores tornaram-se tão mais dependentes
das armas quão mais comuns passaram a ser as invasões de favelas por grupos rivais.
Enquanto os traficantes são membros da comunidade, filhos de antigos moradores da
favela, parentes e vizinhos, afilhados e amigos dos moradores, a rede em que se monta o
poder amansa-o e o adocica, naturalmente. As relações predominantes são familiares e os
vínculos, anteriores à emergência dos negócios. Estas relações geram compromissos, dão
contornos muito próprios à autoridade e limitam o emprego da força. Por outro lado,
garantem a solidariedade da comunidade, que a polícia denominaria cumplicidade.

Quando os traficantes invadem e conquistam territórios, apropriam-se de fatias do mercado
de drogas, tomam posse das bocas do pedaço e se impõem à comunidade como se fossem
um poder colonizador, sem contemplação ou compromissos pessoais. A tirania exercida
pelos antigos soldados do morro, matizada pela história comum e por tantos laços cruzados,
afetivos e familiares, pode ter sido dura e humilhante, mesmo assim freqüentemente passa a
ser lembrada com saudade quando é sucedida pelo despotismo dos desconhecidos. Se um
morro tem dono, qualquer que seja sua origem, nada se faz sem sua permissão. Desde logo,
cortam-se os contatos com instituições públicas cuja presença na favela possa restringir as
atividades do tráfico ou expor os traficantes. Se a mulher for agredida pelo marido, por
exemplo, não poderá chamar a polícia, mas, eventualmente, contará com a "justiça" torta
do movimento, que lhe oferecerá um cardápio de punições: do castigo físico público, com
expulsão ou ameaça de expulsão, à execução sumária do marido. A substituição na
prestação dos serviços do Estado não decorre apenas da ausência dos equipamentos
públicos e da precariedade do atendimento, mas também do veto ditado pelos criminosos
que controlam a demanda dos moradores. Muitas vezes, em razão deste veto, os rapazes do
tráfico assumem o papel de agentes provedores ou mediadores na provisão de vários
serviços.

A censura, as proibições, a substituição do Estado, tudo isso é vivenciado de forma bastante
diversa, dependendo do modo como o poder é exercido pelo tráfico, o que, por sua vez, é
função da história do domínio territorial em vigor em cada bairro popular, em cada favela.
Por outro lado, nada garante
267


que o grupo nativo seja moderado em suas ações, assim como uma falange invasora pode
surpreender pela política de boa vizinhança. Todas as variações são possíveis, ainda que
seja verdadeira a tendência que descrevi.

Via de regra, uma comunidade filia-se à falange que a domina. Não por vontade própria,
bem entendido; tampouco no sentido de que a população local seja cúmplice das ações
criminosas do comando que lhe dá o nome, ou melhor, o sobrenome: favela tal, comando
qual; quem mora ali é do comando, na medida em que, estando sob seu poder, deve-lhe o
mínimo de lealdade. Em outras palavras: por desleal, lhe é vetada a liberdade de denunciar.
Portanto, ser do comando X ou Y não significa necessariamente pertencer a tal ou qual
exército nem participar de suas atividades ilegais e seus negócios espúrios. O vínculo é
análogo, em certa medida, ao laço que liga o membro de um grupo totêmico ao totem e, por
seu intermédio, aos que compartilham a mesma filiação. É similar aos elos que conectam os
torcedores de um clube de futebol e os vinculam às cores e aos ícones do clube.

Nas sociedades chamadas primitivas, pertencer ao clã do tatu implica adotar dieta que
exclui o tatu, adornar-se com alguns amuletos que remetem ao totem e restringir o
repertório das noivas legítimas às mulheres dos clãs que reverenciam totens afins. A
identidade totêmica serve para classificar os indivíduos, afastá-los e uni-los, organizá-los e
conferir sentido à experiência da ordem que resulta desta cartografia de relações. Através
da oposição dos totens entre si, são estabelecidas rivalidades e alianças. Os totens são
apenas uma linguagem simbólica para a articulação das relações humanas.

Quando se diz do morador de uma favela carioca que ele ou ela é do comando X, o que se
indica é sua oposição ao comando Y. O contraste reforça a coesão interna da sociedade
local e limita seu acesso à comunidade definida como rival. As hostilidades podem tornar-
se perigosas e favorecem não só o senso de unidade entre os moradores de determinada
localidade, mas também o sentimento de parentesco simbólico com os donos do poder aos
quais se subordinam. Até certo ponto, esta estrutura simbólica e política neutraliza as
tensões naturalmente envolvidas nas relações autoritárias e militarizadas que cada falange
instaura em seu território. Dizer-se do comando X ou Y - refiro-me ao morador, não ao
traficante - corresponde apenas a reconhecer seu lugar numa geografia artificial que não lhe
pertence, à qual se adapta para garantir a segurança de sua família, a cuja lógica colonial se
submete para sobreviver. O que aos pais é imposição humilhante porém inescapável, nem
sempre aos filhos soa depreciativo ou mesmo desconfortável. Observa-se um processo
acelerado de adaptação das novas gerações ao totemismo

262


do tráfico. O que era violação da liberdade se naturaliza e transforma em signo de status e
motivo de orgulho, que se ostenta por prazer e vaidade - e pelo gosto do risco e da
provocação ao outro. Outro é o "alemão", o representante da falange adversária, com suas
cores e seus símbolos odiados. Didaticamente odiados, no colégio da violência.

Escreve-se assim, por linhas tortas, a história do tráfico, cuja organização deriva também de
outras dinâmicas, entre elas a economia política das armas.

A relação entre a comunidade e o tráfico é complexa, além de diversificada. De um modo
geral, o que impera é o medo e a vontade de livrar-se do jugo dos meninos em armas. São
inúmeros os relatos sobre a revolta e o sentimento de humilhação vividos pelos adultos
trabalhadores, obrigados a pedir licença, demonstrar respeito e obedecer determinações dos
adolescentes armados. O único agente que consegue jogar a comunidade nos braços do
tráfico é a polícia, quando age com brutalidade e exibe com despudor os arranjos corruptos
tão freqüentes ("acertos", "arreglos" ou, na linguagem popular, "arregos"). O morador
prefere a violência local desbocada, sem vergonha e escancarada, ao cinismo arrogante dos
bandidos uniformizados,44 que roubam e brutalizam, arbitrariamente, fingindo representar
o Estado, a Lei, a Justiça e a ordem pública. A polícia merece um capítulo à parte.

Há, nas favelas cariocas, uma dupla tirania, portanto: aquela imposta pelos criminosos e a
outra, mais perversa, ditada pela polícia, ou melhor, por segmentos corruptos e violentos
das polícias, particularmente da Polícia Militar. A tirania policial é mais perversa não só
porque mascara sua natureza sob uniformes, mas também porque é imprevisível.45 Os
traficantes têm seu código e exigem obediência às suas regras. É terrível viver sob a
ditadura de uma falange criminosa e de suas regras arbitrárias. Mas é ainda pior - são
inúmeros os depoimentos neste sentido viver à sombra de um poder policial que não segue
nenhum código, nenhum conjunto definido e publicamente conhecido de regras. Como
adotar uma estratégia de sobrevivência quando as expectativas dos tiranos não se definem?
Hoje, olhar nos olhos do policial, na batida montada na entrada da favela, pode ser
interpretado como desacato à autoridade, ensejando um repertório vasto de punições, que se
estende da surra à prisão, de ameaças à humilhação; amanhã, baixar os olhos, evitando
encarar o policial, na mesma situação, pode suscitar reações idênticas pelos mesmos
motivos, por incrível que pareça. O que se fará no terceiro dia? Que postura a razão
recomendaria? Que atitude seria mais prudente?

263


Quando a atitude do representante do poder é inteiramente aleatória e, portanto,
imprevisível, perde-se a possibilidade de adaptar-se racionalmente, mesmo que ao custo da
dignidade pessoal. Se há regras, mesmo insensatas ou absurdas, mesmo que seja
extremamente desgastante segui-las, é sempre possível evitar a retaliação e proteger-se para
seguir vivendo, acomodando-se à vontade do déspota. Basta aprender o código do tirano e
obedecer às suas regras. Entretanto, se não há regras, resta o medo, o medo puro sem trégua
e sem limite: o terror. A polícia corrupta e o tráfico são igualmente brutais, mas nem por
isso se confundem no imaginário popular. A imprevisibilidade do comportamento policial o
torna mais temido e, conseqüentemente, mais odiado - até porque os bandidos não negam o
que são, enquanto os criminosos uniformizados fingem defender as leis, chamando-se
policiais. A polícia corrupta e violenta é a fonte suprema do terror, para o povo pobre das
favelas, vilas e periferias - e esta conclusão não é privilégio exclusivo do Rio de Janeiro.

A postura negativa das polícias nos bairros mais pobres constitui, em si mesma, uma dupla
mensagem: de um lado, a presença de policiais uniformizados sinaliza a presença do
Estado, da Justiça, da ordem pública, da legalidade democrática, da supremacia dos valores
culturalmente associados ao bem, como respeito, honestidade, dignidade. Não nos
esqueçamos, inclusive, que o policial uniformizado na esquina é a face mais tangível do
Estado para grande parte da população. Parte substancial da legitimidade das instituições
democráticas repousa, portanto, na conduta daquele profissional, ali na esquina. Por outro
lado, confundindo-se, na prática, com bandidos, legitima o crime e enxovalha a autoridade
do Estado. O poder institucional em armas saqueia a confiança popular, pilha o respeito que
lhe devotam, punga a reverência que lhe prestam, ri de si mesmo e se desnuda cínico, cruel,
imoral, velhaco, covarde: a contrafação da democracia instaurando o avesso da república. A
dupla mensagem desnorteia, rasga os mapas e enlouquece as bússolas, impedindo
previsões. Pior que a brutalidade e a corrupção, é a conjunção entre ambas e o uniforme.
Que simbologia cidadã pode resultar da obscenidade do gesto que conjuga ícones estatais
com a arbitrariedade mais cafajeste?

É preciso aqui redobrar a atenção e tomar cuidado com um equívoco comum: dizer que a
polícia é mais temida do que o tráfico, nas favelas, não significa que este seja apreciado
pelas comunidades. Pelo contrário, também é temido. Tampouco implica sugerir que a
polícia seja odiada, sempre, em qualquer circunstância. De jeito nenhum. Quando os
policiais se comportam de modo adequado, agem com respeito aos moradores e
demonstram profissionalismo e honestidade na realização de seu trabalho, a comunidade

264


aprova, apoia e, em alguns casos, chega a vibrar com isso e a enaltecer as virtudes da
instituição. Há, portanto, um espaço imenso para a reconquista da confiança popular. Não é
difícil nem custa caro; basta respeitar os direitos humanos e as leis, estas mesmas leis que
cabe à polícia cumprir e fazer cumprir. Afinal, agir em conformidade com a lei e de acordo
com o que estabelece a Declaração Universal dos Direitos Humanos significa agir com
respeito às pessoas e com honestidade. É só isso que as comunidades desejam. Nestas
condições, dificilmente deixarão de solidarizar-se com os policiais e aplaudir sua presença.
As comunidades sonham com o dia em que se verão livres do tráfico e da violência, das
drogas e das armas, do recrutamento de crianças e adolescentes para a vida do crime.
Sonham com a plena integração à cidadania, com educação e respeito, emprego decente e
uma chance razoável para viver com dignidade. A polícia faz parte do sonho popular, uma
polícia humanizada e justa, educada e inteligente, eficiente e sem cumplicidade, que já se
esboça aqui e ali, mas que ainda é rara e, nos morros, exceção. Hoje, infelizmente, em
grande medida, ela só figura no pesadelo.

265


POLÍCIAS FLUMINENSES:

LONGA JORNADA NOITE ADENTRO

Não poderia ser mais equivocada a idéia de que, se respeitar os direitos humanos, a polícia
será menos eficiente. Pelo contrário, só há verdadeira eficiência policial com a observância
rigorosa deste respeito. Por várias razões. Destaco apenas duas. A primeira delas é a
seguinte: quando uma autoridade da segurança pública ou um superior hierárquico dá ao
policial da ponta licença para matar - julgar, sentenciar e executar o suspeito -, dálhe,
tacitamente, licença para negociar a vida e vender a liberdade. Por que matar ou prender, se
soltar o suspeito pode render uma propina? A violência policial autorizada estimula a
corrupção, que significa impotência no combate à criminalidade. O irônico é que se
autoriza a violência policial em nome da eficiência e do rigor no combate ao crime. Da
brutalidade vai-se à impotência.

A segunda razão pela qual a eficiência policial não é obstada pelo respeito aos direitos
humanos, mas sim tributária deste respeito, é a seguinte: quando se diz que um policial
respeita os princípios assinalados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o
Brasil é signatário, diz-se, na prática, que ele (ou ela) aplica com fidelidade o que aprendeu
na escola de formação, nas aulas nas quais foi instruído a propósito do que, em linguagem
técnica, se chama "gradiente do uso da força".

A polícia é diferente das Forças Armadas porque não é uma instituição organizada e
preparada para a defesa nacional e o confronto bélico. Na guerra, os alvos da ação são
inimigos e esta ação tem por finalidade eliminá-los, fisicamente visando o controle de
armas, territórios e população. Apenas subsidiariamente fazem-se prisioneiros. A polícia,
ao contrário, tem por objetivo proteger direitos e liberdades constitucionais, fazendo com
que as leis sejam cumpridas sem transgredi-las no processo de sua aplicação. Caso o dever
de proteger direitos e liberdades imponha o uso da força, a polícia estará legitimamente
credenciada a empregar a força, desde que o faça com moderação e em estrita observância à
proporção entre a intensidade da força aplicada, a magnitude da ameaça e a intensidade da
resistência.

Contudo, o que caracteriza a polícia é justamente o comedimento no uso da força, porque o
objeto de sua ação, em princípio, não é um inimigo a ser

266


executado, mas um cidadão cuja vida deve ser preservada até o limite em que esteja em
risco a vida de terceiros ou do próprio policial.

De volta ao Rio de Janeiro, convencido de que tudo poderia ser diferente e de que é
possível, sem contradição, ser libertário e defender a democracia;46 convencido de que é
legítimo, ao mesmo tempo, ser libertário e valorizar a polícia - enquanto defensora da
legalidade democrática, destinada a garantir direitos e liberdades para todos -, focalizo
novamente o tráfico, agora descrevendo em mais detalhes sua parceria conflituosa com a
polícia. Parceria cuja fonte principal, como vimos, foram e são as políticas de segurança
que pregavam e pregam a violência policial, escondendo da sociedade a barbárie
institucionalizada, em nome, paradoxalmente, da eficiência. Hoje, estamos, no Rio, como
todos sabem: com mais crimes e instituições policiais em parte degradadas.47

Passo a tratar, agora, da polícia real, de como ela efetivamente tem sido, não da polícia
ideal, concebida nos projetos com que, justifícadamente, sonhamos - nós, os críticos, e os
policiais, aqueles que têm consciência do potencial democrático e humanista de sua
instituição.

No Rio, não faria sentido falar do tráfico sem dar grande atenção à polícia,48 porque
traficantes e policiais formam um sistema, uma única rede infelizmente, o Rio não é
exatamente exceção única, nesta matéria.

Exemplo: o chefe do tráfico de conhecida favela carioca recebe um telefonema. Seu
auxiliar lhe traz o celular usado para contatos especiais - não é o mesmo número do qual
liga para seus parceiros na penitenciária. Ele atende, emite algumas interjeições, um ou
outro palavrão e saúda o interlocutor que está na outra ponta da linha. Era a polícia
avisando que o morro estava prestes a ser invadido. Ato contínuo, determina providências:
"Os homens vão subir em uma hora. Separem uns vinte fuzis, deixem no lugar de sempre e
recolham o pessoal." Uma hora depois, chega a polícia fazendo o barulho costumeiro: tiros,
gritos, movimentos de guerra. O comando avançado identifica o paiol, invade o barraco e
apreende o lote de armas. Missão cumprida.

Nenhuma prisão, os policiais lamentam para a mídia na entrada da favela; mas não voltam
de mãos abanando: um punhado de novos troféus enriquece o currículo da corporação,
mostra eficiência e desmente os detratores da polícia. A imprensa exibirá com destaque foto
da corbeille de fuzis, enaltecendo o esforço do governo do Estado e a ação policial.

No dia seguinte, conforme combinado, os fuzis são devolvidos, mas, neste caso específico,
a ganância plantou um boi na linha: os negociadores da polícia querem cobrar um ágio,
uma espécie de taxa, um preço pelas

267


armas. Curto e grosso: querem revendê-las, em vez de devolvê-las, como previa o acerto,
segundo o qual cada patrulha recebia 2 mil reais por dia. São rompimentos do pacto como
este que provocam confrontos. O mais irônico
- tristemente irônico - é que alguns dos negociadores policiais, mais dia, menos dia, serão
mortos pelas armas que venderam aos traficantes.

Nota importante: a população local sabe disso. Compreende-se, portanto, a revolta que
sentem quando esta mesma polícia os trata com brutalidade, em nome do "cumprimento do
dever". Lá na comunidade, o rei está nu. O discurso oficial desvenda-se como crua
hipocrisia, do início ao fim. Que credibilidade as instituições públicas podem reivindicar,
neste contexto? Imagina-se a sensação de impotência da comunidade e deduz-se, com
naturalidade, sua tendência a pender para o lado dos mais sinceros, na ostentação da própria
desonestidade.

Ante a proposta indecorosa dos policiais, os traficantes reclamavam como se fossem
honrados defensores dos direitos do consumidor: "Isso é uma sacanagem. Não é justo. Será
que ninguém tem vergonha na cara?" Mais um pouco, ameaçariam entrar com ação
judicial. Os paradoxos proliferam. De novo, tom Jobim vem ao caso: "O Brasil não é para
principiantes."

Embaixo de cada morro que abriga um centro de comércio varejista de drogas, policiais
fazem a ronda. No meio da comunidade, erguem-se os postos de polícia comunitária - os
PPCs -, que de comunitário têm só o nome. São lugares inóspitos, atarracados, sem
ventilação, inteiramente vulneráveis ao menor ataque, no qual se revezam pouquíssimos
policiais. Eles sentam por ali, entregues às moscas. O número seria irrisório se o propósito
fosse guardar a sociedade local. Seria irrisório se a finalidade fosse impedir o tráfico e
prender os envolvidos. Resultado: embaixo, quem faz a ronda freqüentemente está
"acertado" com a falange que domina a área: recebe propina para não chatear quem entra,
não achacar quem sai, não abusar de morador, não se meter a besta com traficantes e
manter bem-informado o comando do tráfico local; em cima, nos PPCs, quem dá plantão
uniformizado no coração da fortaleza inimiga necessariamente sobrevive graças ao acerto.
Não há outro modo de garantir a própria vida.

Quem, em sã consciência, criticaria os policiais dos PPCs por aceitarem suborno? Seria
impossível manter-se vivo naquele espaço por mais de alguns minutos, se o tráfico
decidisse agir em peso. Por que o gestor manda seus subordinados para aquelas ratoeiras,
não se sabe. Ninguém jamais descobriu. Talvez para dizer ao grande público que a Polícia
Militar do Rio possui tantos postos "comunitários" e está presente nas favelas. Talvez para
sugerir

268


que o Estado ainda detém o controle sobre todo o seu território. Pena. com este jogo de
cartas marcadas, expõe os profissionais a risco, humilha-os, desonra a corporação, os
desautoriza diante da comunidade e, tacitamente, os condena à corrupção.

Não há tráfico e domínio territorial do tráfico sem a participação policial que azeita a
máquina do crime com imobilismo, provisão de meios, teatro, informação e proteção. A
ponto de uma falange vingar-se de outra ou golpeá-la, acionando campanhas policiais para
enfraquecer a rival e tomar-lhe os territórios. Às vezes, negocia-se com policiais a captura
de um líder de falange inimiga: simula-se a prisão, mas se procede a um seqüestro, pois não
se segue, à captura, a condução à delegacia, mas a entrega do "preso" aos seus inimigos,
para o festim da vingança.

Como se vê, estamos distantes do quadro clássico, em que se defrontam bandidos e
mocinhos, flanqueados por um ou outro quinta-coluna. Trata-se de um único sistema que se
reproduz inteiramente à margem da lei e fora do âmbito de autoridade dos profissionais
honestos, e dos gestores bem-intencionados. Ai de quem não gostar das regras do jogo. Os
bons policiais com freqüência se vêem entre a cruz e a espada.

A anarquia institucional reina sob a aparência de ordem que é produzida pela simbologia
hierárquica, com seus paramentos, vocabulário, rituais, sua estética e a iconografia militar.
A desordem da Polícia Civil é mais evidente e se revela a quem levantar o véu dos
protocolos. A anarquia institucional é o campo fértil onde prospera o crime organizado.
Quem pede mais violência policial talvez não saiba que está alimentando a fera, jogando
lenha na fogueira da anarquia. Prepare-se para colher mais corrupção, cumplicidade com o
crime e ineficiência. A brutalidade policial só na aparência contraria o interesse dos
criminosos: ao contrário, ela cava um abismo entre as instituições policiais e as populações
atingidas e, sobretudo, ao inibir os instrumentos de controle internos e externos, contribui
para a independência excessiva dos que atuam na ponta. Esta liberdade, na ponta, é
indispensável quando se trata de um verdadeiro trabalho policial comunitário, mas é nefasta
quando se afirma por oposição aos controles e à transparência, em benefício do
acobertamento corporativista da violência. Dar o sinal verde para ações brutais significa
autorizar a ilegalidade, o que, por sua vez, implica, como já vimos, a suspensão dos
controles (é preciso que os estratos superiores não vejam, oficialmente, o trabalho sujo que
mata e esfola, embaixo). Portanto, liberar a violência policial corresponde a afrouxar os
laços e estimular a anarquia.49

269


Esta abordagem pode suscitar a idéia de que os policiais são o problema e tudo se resolveria
submetendo-os a vigilância e punição. Engano. Há bons e maus profissionais, como em
qualquer campo de trabalho, mas quando à cultura institucional somam-se deficiências
organizacionais, a corporação vai à breca. Para evitar a degradação das polícias, são
necessárias instâncias de controle, como salientei, internas e externas, além de investimento
em formação, associado à transformação das próprias estruturas organizacionais. Nenhum
esforço, entretanto, será capaz de atingir os objetivos visados por um projeto radical de
reforma, se não vier acompanhado da valorização dos policiais. Eles (e elas) precisam de
estímulos, apoio, reforço da auto-estima, melhores condições de trabalho.50 No serviço
público, de um modo geral, falta motivação. Nas polícias, é mais cômodo arriscar-se menos
e fazer o mínimo, até porque nada além do script monótono e previsível é reconhecido ou
se traduz em pontos computados para promoções e recompensas. A ênfase da agenda de
mudanças não pode ser unilateral e deixar-se interpretar como uma pauta antipolicial.

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JUNTANDO os CACOS PARA FAZER UMA
NAÇÃO


APENAS HUMANOS

Este texto foi escrito por Bill à guisa de conclusão.
Em 1998, Celso e eu começamos a fazer essa pesquisa, que nunca foi uma coisa muito clara, exceto
pela vontade de ajudar as pessoas. Em 1999, resolvemos pegar parte das imagens que trazíamos das
viagens de pesquisa* e colocar na rua, com o título Soldado do Morro. Tratava-se de um vídeo de
13 minutos. Mostrei esse pequeno filme na noite de Natal para os moradores da favela em que
moro, CDD, como é chamada a Cidade de Deus, carinhosamente. No dia seguinte, as imagens
ganharam o noticiário com contornos de crueldade. Começava ali nossa penitência. Eu ligava a
televisão e estavam lá, meu nome e uma tensão louca. Uma simples entrevista com o chefe de
polícia para falar sobre as vans piratas era o bastante para os jornalistas perguntarem se não iriam
prender o Bill. Era difícil viver aquele momento. Era difícil dormir e pior mesmo era acordar
sabendo que o pesadelo continuava. Muitas noites meus vizinhos me chamavam com batidas na
porta da minha caxanga. Eu ficava esperando até que me chamassem pelo nome, depois até que
reconhecesse a voz e, por fim, só abria a porta depois de ter certeza de que eles não estavam
acompanhados pelos canas. Eu já tinha sido avisado que eles viriam à minha casa a qualquer
momento. O que eu não sabia era como eles viriam, se trariam como companhia sua truculência
habitual e a covardia que muitos carregam atrelada às suas almas. O fato é que eles não vieram, pelo
menos nesse caso do Soldado do Morro.

Um belo dia o Celso me ligou:

- Bill, teu telefone tá grampeado.

- Pô, o meu?

No fundo, eu me sentia importante, aquele grampo que nunca foi confirmado me remetia a uma
importância que eu de fato não tinha. Me transformaram num bandido sem arma, sem alma, sem
direção. Não adiantava reclamar; minha mãe desesperada. Era realmente a minha penitência.

Até que, uma noite, o Celso chegou e disse que a Natasha Record, a nossa gravadora, tinha sido
invadida. Eles, os canas, buscavam encontrar o material

* Eu me refiro à nossa parte da pesquisa que, mais tarde, convergiu com a do Luiz Eduardo e resultou neste livro.
273


do crime, ou seja, as imagens do nosso trabalho de mestrado, o tema da nossa pesquisa
social. Se eles tinham invadido a gravadora atrás do material, imagina o que fariam na
minha casa, onde não existem testemunhas?

Celso disse que nessa noite dormiria em minha casa, comigo, só que ele esquecia que era
tão criminoso quanto eu, que era o diretor do vídeo e que sua casa poderia ser invadida
também, com uma desvantagem: seus filhos, Thalles e Júnior, e a Marilza estariam lá,
sozinhos. Não, Bucha, pode ir, eu disse. Então ele me perguntou se eu estava arrependido
do trabalho que fizemos. Eu disse que não e nunca tive dúvidas disso. O único problema
mesmo era convencer as pessoas que podemos fazer essas críticas da mesma forma que
qualquer crítico pode fazer sobre o assunto que escolher. Celso foi embora e eu fiquei lá,
esperando a lei vir me buscar e pensando durante toda a noite em tudo que eu passei nas
filmagens e nas pessoas com as quais filmamos e falamos. No fundo, as pessoas que
desejavam me ver preso não poderiam entender mesmo nada daquilo; afinal, elas pensam
que são diferentes daquela gente. A idéia do filme era somente humanizar os jovens que
sobrevivem da droga, fazer o país refletir sob o ponto de vista deles próprios, sem a
interferência de um antropólogo ou de um rapper, de ninguém. Era a chance de mostrar
aquela realidade sem um pré-conceito. Era uma espécie de olho no olho. Mas nunca achei
que seria fácil dialogar com a parte solidária e amável da sociedade, com as pessoas que
querem um mundo feliz, sem armas, sem drogas e sem violência. Eu sempre soube que
essas pessoas que querem viver no paraíso seriam as pessoas que mandariam me prender
caso entendessem que essa pesquisa em forma de imagem fosse ofender os bons costumes
da sociedade pura. De toda forma, a polícia continuava a perseguição, a busca das imagens
do soldado do morro.

No dia seguinte, descobri que o ministro da Justiça, José Gregori, estaria num evento do
Viva Rio, na favela da Rocinha. Naquele momento, o cerco ao My Bill estava muito grande
e se a polícia queria ver a fita, então a fita ia aparecer!

Peguei uma cópia no esconderijo - claro que não guardaria aquela chave de cadeia na
minha casa - e parti para a Rocinha. Cheguei lá e me juntei a um grupo que falava sobre os
projetos da favela, numa sala enorme e cheia de gente. O ministro estava todo de branco,
acompanhado de várias pessoas. Os mais próximos eram o Olara Othuno, representante da
ONU, o Rubem César, do Viva Rio, e a neta do Ghandi, cujo nome não lembro. Todos eles
estavam ali reunidos para um trabalho no Rock in Rio, mais precisamente na tenda "Para
um Mundo Melhor", onde eu acabei participando e falando uns caôs.

274


Num piscar de olhos, fui até o ministro e perguntei se ele poderia ver uma fita que estava comigo, e
que eu estava sendo procurado por causa dela. Evidente que ele ja sabia do que se tratava, porque o
próprio presidente, Fernando Henrique, já tinha falado a respeito num jornal da Globo, naquela
semana às sete da manhã. Então, o provoquei, dizendo que se a fita tivesse algo que constituísse
crime, que ele deveria me dar voz de prisão, mas, se não tivesse, ele deveria entrar na minha luta.
Ele não sabia o que dizer, mas disse: "combinado, rapaz, coloca a fita..."

Eu acreditava que ele me prenderia se interpretasse diferente do que eu imaginava, então resolvi
ficar bem perto da porta que dava para um corredor que, certamente, daria a quilômetros daquele
lugar. Seria uma fuga espetacular e não creio que o ministro corresse mais do que eu.

Colocamos a fita. Rubem pediu silêncio. Todos olhavam a tela e eu olhava os rostos de todos. No
final do vídeo, houve um grande silêncio. O ministro me procurou com os olhos, eu com os olhos
desconversei. Então, ouvi as primeiras palmas, eram do ministro; todos aplaudiram efusivamente.
Era a primeira vez que o filme estava sendo posto à prova para uma platéia não favelada. Foi uma
jogada de mestre, mesmo já contando com o apoio e a compreensão de outros parceiros - como
Júnior do Afroreggae, Dudu Nobre, Cidade Negra, Caetano Veloso, Djavan, Siro Darlan, Luiz
Eduardo Soares e o grande apoio da "minha" favela -, a chapa tava quente pro meu lado.

Depois disso fiz muitos debates e palestras - pelo menos era assim que chamavam os bate-papos
que aconteceram nas universidades, para juizes, para estudantes de escolas públicas e nas favelas
onde eu ia tocar ou onde eu era convidado a falar.

Nesse momento, eu comecei a ver o verdadeiro sentido do hip-hop, o verdadeiro prazer de militar
por uma causa. Passei então a discursar menos e a produzir mais, muito mais.

Afinal, eu nasci e me criei na Cidade de Deus, lugar conhecido por muitos como um grande campo
de concentração. Foi lá que tive que aprender a me defender e buscar minha sobrevivência todos os
dias. Vi, naquele lugar, muitas situações conflitantes, mas nada que se possa comparar ao que vimos
nessa pesquisa, nada. Nenhum livro substituirá o sentimento que experimentamos durante esse
tempo: fomos felizes, fomos infelizes, mas sobretudo fiquei descrente, infelizmente. Ver esses
jovens alucinados se autodestruindo é como ver uma bomba ser detonada e começar a contar para
então juntar os cacos. É essa a sensação que tenho, uma bomba que vai explodir.

275


Todas as vezes que os homens do asfalto falam sobre esses jovens, falam como se eles
tivessem nascido predestinados à marginalidade. Nossa idéia é outra; é permitir que as
pessoas façam seus juízos do que eles são, mas dessa vez baseados numa outra ótica, na
visão de alguém que se parece com eles, não nas palavras de quem os odeia ou tem pena
desses jovens.

Para chegar às minhas conclusões foi preciso pagar a polícia, negociar com bandidos, viajar
de avião, de barco, partilhar refeições, dividir camas com desconhecidos. Era preciso ir em
busca das nossas respostas. O Brasil precisava ver esse outro Brasil e a partir daí se libertar
dele - com ele.

Pra mim, eles não são vítimas, não são culpados. Pra mim, eles não são marginais nem
santos. Pra mim, eles são apenas humanos, nada mais.

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REFLEXÕES SOBRE o PESADELO

Texto de Celso Athayde
Durante o segundo ano de pesquisa e gravação, a paciência já estava esgotada. E mais:
dado o tipo de ambiente que freqüentávamos, os riscos também aumentavam, na mesma
proporção que o estresse e a depressão.

Nosso estresse era sempre por conta de quem estava perto de nós, e essas pessoas eram
sempre os bandidos, menores ou maiores de idade, a quem tínhamos que nos reportar.
Além disso, conhecer a vida daqueles jovens nos deprimia cada vez mais. Nós viajávamos
em suas vidas e era impossível sair delas: seus problemas, suas particularidades, iam
despertando uma novidade a cada dia. Imagino que não deve ser diferente em outras
pesquisas, se considerarmos que a relação humana é algo fantástico. Só que, ali, o assunto
era especialmente mobilizante e profundo, e envolvia relações alimentadas por grandes
volumes de medo, segredo e sobressaltos.

Tanto os adultos quanto os jovens do tráfico, era natural que fossem as nossas melhores
companhias, afinal, eram eles que abriam as portas das favelas, eram eles que abriam as
portas das mães dos menores, as quais muitas vezes autorizavam seus filhos a falar
conosco. Curioso paradoxo: os filhos eram independentes para cometer crimes e trabalhar
nas bocas, mas em alguns casos consultavam suas mães para saber se poderiam colaborar
com a pesquisa. Enfim, eram os adultos e jovens do "movimento" que nos conduziam com
a segurança de que precisávamos. Isso acabava nos dando uma sensação inevitável de
poder, de participar de algo a que as pessoas não têm acesso, de compartilhar o perigo, sem
precisar amargar todo o estoque de medo.

Por outro lado, eles eram, em geral, pessoas procuradas pela polícia, a maioria respondia
por homicídios e outros crimes, como tráfico de drogas, porte de arma e vai saber o que
mais. A qualquer momento, portanto, poderiam ser pegos, o que aconteceu em Goiás,
quando Bill conversava com dois dos nossos guias do lado de fora de uma casa, enquanto
Miguel e eu entrevistávamos uma senhora que perdera seu filho de 15 anos. Ela nos
contava que ele sustentava a casa, nos mostrava as roupas de marca das quais nunca se
desfizera. Até que ouvi gritos para que todos saíssem da casa. Os gritos aumentaram.

277


A senhora, imediatamente, começou a rasgar as fotos em que o filho aparecia armado.
Miguel parou de filmar; tiramos a fita e a jogamos fora, ou melhor, a escondemos entre as
madeiras do telhado do quarto. Os policiais insistiam que todos da casa deveriam sair, mas
não respondemos. Víamos que várias viaturas estavam na porta e outras ainda chegavam.
Bill estava no portão com nossos dois amigos bandidos. Ambos tinham passagem pela
polícia e respondiam em liberdade - visitavam um juiz todos os meses. Eu queria sair da
casa para salvar o Bill, mas não sabia se deveria ir porque não sabia o que eles tinham dito
aos meganhas. Fiquei quieto na casa, esperando os policiais entrarem, pois em qualquer
lugar humilde do Rio eles teriam invadido.

Por via das dúvidas, deixei os telefones da minha casa e o telefone de algumas pessoas com
a senhora e a sua filha, para ela entrar em contato, caso necessário. Depois de trinta minutos
de expectativa, eles resolveram não entrar, mas levaram Bill e os amigos para uma
delegacia do centro de Goiânia. Eu tinha o telefone do advogado de um dos rapazes, porque
ele tinha nos oferecido um churrasco na véspera. Liguei para ele, imediatamente. O Dr.
Doctor 7, como foi por nós apelidado, resolveu a questão do Bill, que, até ser tudo
esclarecido, estava sendo acusado de fazer parte da conexão Rio-Goiânia. Convenhamos, o
Bill, careca, quase dois metros de altura, às 23 horas, num lugar como aquele e com aquelas
companhias, com "passaporte e sotaque carioca"... com tudo isso, os quatro tapas que
tomou ficaram até barato. Só que os clientes do Doctor 7 não tiveram a mesma sorte.
Descobrimos, 15 dias depois, por telefone, que eles ficaram de molho dez dias no xilindró.
Esse era o preço a pagar; nós estávamos diante do perigo o tempo todo, desafiando o perigo
em todos os momentos. Por mais sedutora que fosse a pesquisa, por mais adrenalina que ela
oferecesse, não dava para fugir da realidade.

A realidade é o risco, que aliás nunca foi novidade. Nunca pensamos que seria refresco
geladinho. Sabíamos que os riscos seriam tantos e numa seqüência tão intensa que
poderíamos nem voltar pra casa. O que quase aconteceu algumas vezes. Lógico. Como
fazer um raio X do tráfico de drogas infantil e juvenil, no Brasil, sem se submeter a essas
loucuras, a esses lugares e à companhia dessas pessoas? Um shopping center não seria o
local mais adequado, nunca. Só que não dava para voltar atrás; os planos já tinham sido
feitos; a alma já tinha aprovado o sonho; então, o único caminho era mesmo pegar a
câmera, o Miguel, o Bill, e partir por esse país afora, à procura dos anões. Deus nem
precisava ser convidado a vir junto.

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Algumas vezes, deixamos de filmar porque não fomos convencidos de que os entrevistados
estavam fazendo por vontade própria. Era uma questão de princípio. Nós decidimos só
entrevistar para a pesquisa os jovens que acreditassem que suas visões pudessem, de fato,
contribuir para o melhor entendimento dessa questão, e para que outros jovens pudessem
ver esse problema antes de decidir ser mais um louco neste hospício gigante.

O incrível disso tudo é que, para nós, nada daquilo era novidade. A grande novidade era
saber que o Brasil possuía algo realmente uniforme, que era a razão pelas quais esses
jovens escravizam e são escravizados. Nada daquilo deveria me assustar, ou tirar meu sono
depois de tudo que eu já havia visto na vida. Eu já deveria estar acostumado. Mas não, a
cada dia eu ficava, e ainda fico, mais indignado. Por mais que eu tenha visto ou veja,
acredito que nunca vou me acostumar com essa degradação humana.

Aqueles jovens temidos no asfalto, e tão indefesos nas refeições noturnas, não poderiam ser
os monstros de que são chamados. Nunca consegui vê-los assim. Quando reflito sobre isso,
não encontro explicações suficientes no discurso dos militantes dos direitos humanos, nem
aceito a visão de seus críticos, que tentam esvaziar as discussões dizendo que o que seus
oponentes ideológicos querem é proteger bandidos e oprimir os cidadãos de bem. É verdade
que eu nunca fui assaltado por esses meninos, nem estabeleci com eles uma relação na qual
eu fosse a vítima. O fato é que não entendo a trajetória deles no crime como uma coisa
premeditada. Parece, a mim, um processo natural, como a lei da natureza, a lei da selva.

Eu, Bill e Miguel fomos nos tornando uma grande família, com direito a brigas, inclusive.
Nossas relações e nossos contatos nos tornavam cúmplices, parceiros, amigos. O tempo e as
circunstâncias se encarregavam de nos fazer sentir, de certo ponto de vista, quase como um
deles, fora-da-lei.

Andar com aqueles caras, naqueles carros, era como despencar numa montanha-russa sem
freio. As chances de ser abordado eram gritantes. Muitas vezes eu me perguntava se não
teria sido melhor ir com outras companhias... mas a resposta vinha na hora: "Celso, acorda,
cara, vocês estão indo para uma boca de fumo encontrar-se com um monte de moleque
louco. Quem poderia levar vocês?" A ficha caía e o bonde seguia.

Sempre fazíamos nossas recomendações e até exigências, como, por exemplo, que eles não
levassem drogas e armas nos carros. Mas nunca soubemos ao certo se eles cumpriram os
acordos.

Nós - Bill, Miguel e eu - passamos a compartilhar com o crime os copos, os problemas, os
medos, as noites e as fugas.

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O medo ronda a vida daquelas pessoas o tempo todo. Elas não vivem sobressaltadas apenas
pela adrenalina do crime, ou pela vigília que lhes garante a liberdade. Existe um medo
muito mais profundo: o medo daquilo nunca mais acabar. Este é o resultado da minha
reflexão. Tenho muito medo de que o medo deles nunca se acabe.

Quando eu e Bill nos unimos ao Luiz Eduardo - velho amigo e aliado para ligar nossa
pesquisa à dele, e para escrevermos juntos este livro, sabíamos que as trajetórias e
experiências pessoais eram diferentes, mas tínhamos a certeza de que compartilhávamos
valores, sensibilidade e o sonho de contribuir para a construção de uma sociedade diferente,
com paz e justiça.

280


RASGA CORAÇÃO

Na noite de 11 de novembro de 2004, grupos de rap, break e grafiti, oriundos de todo o
país, foram homenageados com o prêmio Hutúz. Celso Athayde criou o prêmio para
valorizar a cultura hip-hop, proporcionar encontros entre os grupos, estimular a unidade na
diversidade e conferir visibilidade pública a uma produção que permanece marginal. O
tema de 2004 foi o mercado: entrar ou resistir? Entrar resistindo à pasteurização, que dilui o
potencial crítico? Mas como fazê-lo? Participar do mercado implica, necessariamente,
aderir ao que muitos grupos denominam "o sistema"? O sistema é o dragão da maldade que
devora a atitude dos rappers e os converte em meninos bemcomportados, mesmo que
insistam no estilo cara-amarrada, eu-sou-durão, não-quero-papo? Ou o mercado é mais
aberto e flexível, admitindo tensões e contradições, que também podem ser exploradas a
favor da crítica e da autoafirmação cultural dos jovens negros das periferias urbanas?

Estas interrogações circulavam nas entrelinhas das conversas travadas no Canecão e eram
destacadas pelos premiados, em seus comovidos discursos de agradecimento. As
indagações e contradições eram tão constantes quanto as referências a Deus, ao Pai e à fé.

A vibração que eletrizava o ambiente era única. Tinha gente chegando de viagens
intermináveis: às vezes, mais de vinte horas de ônibus. Todos os sotaques brasileiros se
sobrepunham num alarido alegre e denso: mensagens políticas e declarações de afeto
cruzavam o ar. A casa de espetáculos mais típica e tradicional da classe média carioca
estava totalmente tomada por jovens negros, rapazes e moças.

Enquanto eu me deliciava com a premiação - o Oscar tupiniquim reinventado pela paixão
solidária da juventude brasileira -, Celso, o produtor anônimo mas onipresente, sofria, nos
bastidores, um pico de pressão que o levou ao hospital. Voltou a tempo da celebração final.
Não era fácil administrar aquela Babel de vozes, talentos, vontades, projetos, vocações,
desejos, por vezes corroídos pelo ressentimento. E era preciso cuidado e disciplina para que
o fluxo contínuo de energia vital não provocasse um dilúvio, desorganizando a festa e
dando razão aos céticos, que sempre duvidaram da capacidade de auto-organização da
juventude. Celso estava disposto a arcar com dívidas, mais uma vez, e a atravessar insone o
fim do ano. O importante era não deixar a peteca da auto-estima coletiva cair. Por isso,
Canecão. Por isso, o tema

281


provocador e dificílimo: mercado. Celso percebeu que o movimento hip-hop chegou à
maturidade, a boa idade para enfrentar suas próprias contradições.

Aquele cenário que apontava para o futuro, cuja atmosfera de júbilo e reencontro infundia
autoconfiança e esperança em tantos corações, pareceume ideal para servir de palco para a
conclusão deste livro. Era preciso pôr o ponto final, depois de anos de trabalho
compartilhado. Sobretudo, era necessário fazê-lo com o espírito elevado, em alto-astral,
falando da vida, não da morte, da paz, não do crime.

Por isso, estas últimas páginas se destinam ao futuro, com muita esperança. Apesar de tudo,
mas graças a você, que leu este livro até este ponto, com muitas dúvidas sobre o que fazer,
sobre como ajudar. Talvez até mesmo duvidando se haveria saída. Digo "graças a você"
porque, se você está lendo, isso significa que eu, Celso e Bill não somos os únicos
profundamente preocupados e comovidos com o drama da juventude negra e pobre de
nossa terra. Você ainda se lembra dessa expressão antiga, fora de moda, "nossa terra"? Pois
é, acho que ela se aplica, agora, ao nosso caso. Nosso chão está manchado de sangue e o
sofrimento se espalha, inundando comunidades inteiras. No Brasil, morrem cerca de 50 mil
pessoas por ano, assassinadas.

Quando o chão está manchado, tendemos a baixar a cabeça e fixar-nos na trilha vermelha,
seguindo seu curso. Esse fio rubro e seus afluentes podem desaguar num rastro de ódio,
capturando nossos sentimentos e os lançando ao pântano das emoções negativas e das ações
destrutivas. Se isso ocorrer, nosso espírito e nossa cultura estarão em xeque, na mesma
medida em que nossa vida estará ameaçada pela barbárie. Salvemos nossa capacidade de
nos emocionar com "os sofrimentos alheios e preservemos nossa força criadora, para
salvarmo-nos como civilização e como seres humanos, dignos deste nome. Este é o
primeiro passo.

O segundo passo para salvarmo-nos do círculo vicioso é separar o passado do futuro e
darmo-nos, não só aos criminosos ou quase-criminosos, mas a todos nós, uma outra chance
- afinal, somos todos co-responsáveis. Por que não oferecer ao Brasil a oportunidade de
erguer-se acima da violência, concedendo a cada um de nós o privilégio de recomeçar; e
atribuindo-nos a todos, enquanto sociedade, este mesmo privilégio - de recomeçar, pelo
menos nas áreas mais diretamente ligadas à geração e ao tratamento da criminalidade? Por
que não reconstruir radicalmente as polícias, as chamadas instituições socioeducativas, os
sistemas prisionais, e até mesmo aspectos importantes da perspectiva em que atuam
representantes do Ministério Público e do Poder Judiciário? O promotor não precisa
encarnar o Deus do

282


Antigo Testamento para demonstrar apreço à lei. A compaixão é legal, drena o ódio,
cicatriza feridas, fertiliza a vida. Nada pode ser mais importante contra a violência do que a
empatia com o sofrimento alheio. E atenção: como os autores deste livro esperam ter
demonstrado, não só as vítimas sofrem.

Quando os comportamentos são regidos pelo que Celso denominou "lei da selva", o círculo
infernal do crime e do castigo termina por envolver a sociedade numa teia interminável de
sofrimento, bloqueando possíveis fontes de mudança.

Para pensar o futuro, descobrir o que fazer e imaginar alternativas, as experiências relatadas
e interpretadas neste livro trazem algumas pistas.

Tal qual a menina que se ajoelhava no chão, debruçada sobre os recortes de jornal, cuja
obsessão era recortar e guardar as notícias para compor a memória das vidas que a
violência destruía (alertando as comunidades, uma a uma, pelas rádios-de-poste), nós
também, Luiz, Celso e Bill, nos dedicamos a recortar e colar fragmentos de vida e morte,
para divulgar o sofrimento que a violência provoca e conquistar a solidariedade que o possa
amenizar ou até mesmo extinguir, no futuro, revertendo suas causas. As pistas para a
reversão do cenário sombrio, que esta aquarela amarga do Brasil nos apresenta, são as
seguintes:

(1) Existe já, Brasil afora, uma cultura da violência, gestada, alimentada e reproduzida pelo
tráfico de drogas, que a utiliza seja para recrutar os jovens vulneráveis a seu apelo, seja para
integrá-los a seu sistema de trabalho e poder. Curiosamente, o centro irradiador é o Rio de
Janeiro. Os jovens dos demais estados fixam-se no exemplo carioca e o copiam. É claro que
toda cópia envolve reinvenção, o que torna cada caso diferente. De todo modo, está em
curso um processo de nacionalização do modelo carioca de organização sociocultural da
violência.

Isso não significa, entretanto, que haja fronteiras sólidas e rígidas entre os dois mundos, da
lei e do crime. Tudo é muito mais complicado. Assim como há diferenças de valor e
linguagem, suficientes para falarmos em algo próximo a uma cultura do tráfico, há também
cruzamentos, interligações e sobreposições de todo tipo. Essa garotada ainda está
profundamente imersa na cultura brasileira. A maior parte dos valores ainda é comum. Em
outras palavras, quem quiser sublinhar as diferenças, encontrará boas razões; quem preferir
enfatizar a unidade, terá excelentes motivos. A vantagem da unidade é que ela, se
efetivamente verdadeira, facilita o trabalho de quem busca acesso ao coração e ao
imaginário daqueles jovens atraídos pelo canto de sereia do tráfico.

283


Vale um exemplo paradoxal. Nelsinho, um dos meninos que entrevistamos, vendia drogas e
se revoltava com o sucesso da venda. Como não havia hipocrisia ou cinismo em sua fala, a
contradição apenas desnudava sua própria ambivalência. O copo está, portanto, meio cheio
e meio vazio, dependendo de quem o observa, com que espírito o faz e com qual
expectativa. A ilegalidade invade a legalidade, estabelecendo uma relação promíscua com a
ordem pública e a degradando. Por outro lado, é a marginalidade que reconhece as virtudes
da vida legal, deixa-se sensibilizar por seus apelos, abre canais de comunicação, provoca
diálogos morais e procura caminhos de volta. A promiscuidade tem mão dupla.

(2) Celso mencionou a depressão desoladora que derruba os espíritos, nos bairros mais
pobres das periferias e nas favelas. Canta-se em prosa e verso o Brasil zombeteiro, alegre e
festeiro, que abre espaços para a felicidade, em meio até à miséria, com o futebol e o samba
no pé. Nem tudo é fantasia e folclore, nessa mitologia do hedonismo tupiniquim, mas o
momento exige um pouco mais de cuidado nas generalizações. As palavras de Celso,
repito, são muito graves: a depressão campeia nas favelas. Estamos falando em de-pres-são.
É forte o termo, e dolorosa, a realidade. Cada um de nós sabe o que isso significa. O
abatimento psíquico contamina o corpo, inibe iniciativas, arruina esperanças, reforça o
medo e impõe retraimento. Chega de folclore. Vamos reconhecer e tratar essa dor. Ela é
conseqüência, mas também causa da violência. Aliás, como vimos, as conseqüências em
geral se tornam causas e realimentam o círculo vicioso destrutivo e autodestrutivo. As
próprias drogas; como pensá-las sem mencionar o sofrimento psíquico que produzem e de
que se alimentam?

Por isso, por ser estte o contexto mais profundo - a depressão, a dor rasgando corações -,
por isso, as religiões têm crescido tanto, particularmente nas áreas mais pobres das regiões
metropolitanas brasileiras. Elas ajudam a tornar a vida um pouco mais fácil, na dimensão
prática, graças à cooperação que estimula; mas, além disso e sobretudo, ajudam a controlar
e, por vezes, dissolver o sofrimento interior, devolvendo à vida alguma beleza e o sabor da
felicidade, ainda que efêmero.

Nós costumamos discutir os problemas econômicos e sociais do Brasil, mas é raro
tratarmos do sofrimento interior como uma questão-chave, quando problematizamos a
miséria e as desigualdades. É urgente ampliar o foco. Não questiono a importância dos
temas econômicos, cujo impacto nos sentimentos é óbvio. São conhecidos os vínculos, por
exemplo, entre desemprego, alcoolismo e depressão. Mas é necessário dar verdadeira
atenção ao sofrimento subjetivo.

284


(3) Finalmente, chegamos ao ponto decisivo. A obsessão deste livro, de um modo ou de
outro, é a invisibilidade dos jovens, especialmente dos pobres e, mais especificamente, dos
negros. Invisibilidade que é sinônimo de rebaixamento da auto-estima. Quando socialmente
invisível, a maior fome do ser humano é a fome de acolhimento, afeto e reconhecimento.
Pressionado por esta fome profunda, os jovens recorrem aos expedientes acessíveis, até à
violência. Claro que a realidade é bem mais complexa e que há sempre muitos outros
fatores em ação. Mas a tese da invisibilidade é forte o suficiente para justificar algumas
propostas que dirigimos a você, à sociedade e aos governos.

Se nosso propósito é reduzir a capacidade de recrutamento do tráfico, melhor e mais
realista do que tentar destruí-lo é dispor-se a competir com ele. O tráfico é um pólo de
atração, é uma fonte de energia gravitacional que atrai crianças e adolescentes, todos os
dias, com impressionante facilidade. Se o tráfico recruta, seduz, atrai, é porque oferece
benefícios. Quais? Os benefícios são as evidentes vantagens materiais, como dinheiro e
acesso ao consumo, e são também os bens simbólicos e afetivos, como a sensação de
importância e poder, o status, o sentimento de pertencimento a um grupo dotado de
identidade - tudo isso significa valorização pessoal, reforço da autoestima. Um bem
simbólico especialmente prezado é a masculinidade, aquele tipo quase mágico de virilidade
que se materializa como um diferenciado poder de sedução das meninas da comunidade e
até dos bairros afluentes da cidade.

Ora, se nossa estratégia não for acabar com o tráfico de drogas, mas enfraquecer sua
capacidade de recrutamento e reprodução, para esvaziá-lo, gradualmente, e se nosso projeto
visar, acima de tudo, salvar vidas e mudar as vidas na direção do convívio pacífico,
definiremos nossa política como o estabelecimento de condições para competir com o
tráfico. Investiremos na competição com o tráfico, disputando menino a menino, menina a
menina. Para nos credenciarmos a competir com chances de êxito, teremos de criar um pólo
alternativo, uma fonte gravitacional alternativa, apta a oferecer pelo menos os mesmos
benefícios que o tráfico proporciona (evidentemente, com sinal invertido, isto é, orientados
para a paz): vantagens materiais e simbólico-afetivas.

Portanto, se tencionamos competir, temos de instalar nosso centro de recrutamento de
jovens, preparando-nos para sensibilizar seu imaginário e seus corações, sabendo qual
linguagem empregar e quais recursos mobilizar. Não é fácil. Não bastam empregos,
quaisquer empregos, ou frentes de trabalho.

285


Às vezes, qualquer emprego resolve; em geral, não é bem assim que acontece. com
freqüência, ouvi da rapaziada que não vale a pena repetir a trajetória de fracassos de seus
pais. Eles não querem ser apenas pintores de nossas paredes, mecânicos de nossos carros,
engraxates de nossos sapatos. Eles querem o que nossos filhos querem: internet, música,
arte, dança, esporte, cinema, mídia, tecnologia de última geração, criatividade. Já se foi o
tempo em que bastava acenar com a integração subalterna para calar demandas. Agora,
quem demanda quer mesmo a tal cidadania, que significa pleno acesso ao mundo dos
direitos e a tudo o que nossa sociedade pode oferecer de melhor. Por que não?

Se desejamos competir com o tráfico e recrutar os jovens, sobretudo os mais vulneráveis ao
assédio do crime - e o fazemos para prevenir a violência mas também para salvar-lhes a
vida e garantir-lhes os direitos fundamentais -, teremos de customizar as políticas sociais,
isto é, adaptá-las a cada beneficiário, respeitando-lhes as singularidades pessoais e a
vontade subjetiva de valorização. Como seria possível combinar uma política de massas e
um ajuste fino, individualizante? Pela arte, pela cultura, com a criação estética e cultural,
com as formas expressivas. Daí a importância estratégica do hip-hop, que é genuinamente
popular e ligado às idéias de cidadania, respeito e paz.

Quando as escolas, as comunidades, a sociedade ou os governos proporcionam aos jovens
das periferias e favelas acesso à criação cultural e à expressão artística, na prática, lhes
oferecem um campo em que podem exercitar a própria subjetividade e expressividade,
mostrando-se e inventando-se como pessoas, ante olhares atentos e respeitosos da
audiência, que os valorizam pela mera atenção que prestam. Tudo isso é amplificado se
uma câmera acende sua luzinha, anunciando que, atrás de si, está presente um auditório
virtual ilimitado. A luzinha representa a atenção em si mesma. Esta atenção valoriza quem
se sente ninguém, quem se sente invisível. Ela ilumina a alma e alimenta um saudável
narcisismo, que nada tem a ver com os fetiches das celebridades de um mercado
inatingível.51 Fica faltando o afeto? É verdade. Mas a atenção é uma forma tosca de afeto.
Um primeiro passo.

Forte, com sua auto-estima revigorada, quem sabe o jovem conquista, ele mesmo, ela
mesma, esse afeto, dando-o a outro, dando-se a outrem, apontando-o a outro, em lugar da
arma, como um convite à solidariedade e ao amor?

286


1 Participou do governo do estado do Rio de Janeiro, de janeiro de 1999 a março de 2000, na condição de subsecretário de
Segurança Pública e coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania. Colaborou com o governo municipal de Porto
Alegre, de março a dezembro de 2001, como consultor responsável pela formulação de uma política municipal de
segurança e pela implantação de projeto piloto. Foi secretário nacional de Segurança Pública, do governo federal, de
janeiro a outubro de 2003, iniciando a implantação do plano nacional de que foi um dos formuladores Em
2000, foi pesquisador visitante sobre o mesmo tema no Vera Institute of Justice de Nova York e na Columbia University.
Atualmente, é professor da UERJ e diretor do Instituto pela Promoção do Sistema Único de Segurança Pública
2 Foram fundamentais para o enfoque interpretativo que adotei neste livro os pontos que Miriam Guindam destacou em
sua tese de doutorado, defendida junto ao Programa de Pós-graduação da Faculdade de Serviço Social da PUCRS, em
janeiro de 2002, intitulada Violência & Prisão Viagem em Busca de um Olhar Complexo - que estão aí simplificados nesta
síntese brevíssima
3 Teresa Pires Caldeira escreveu antes e melhor sobre isso, em seu livro Cidade de Muros Crime, Segregação e
Cidadania em São Paulo, EdUSP, 2003
4 Nenhum juízo unilateral é adequado, o que subverte dogmatismos e concepções rígidas Esse tipo de personagem
devolve a sociedade as qualificações, imagens e valores que ela projeta sobre o outro, isto é, sobre o objeto sacrificial
destinado a concentrar e expiar o mal - ajudando-nos a exorcizar nossas culpas ou a conviver com nossa má consciência
5 O livro se chama Abusado, o Dono do Morro Dona Marta e foi publicado, em 2003, pela Editora Record, Rio de
Janeiro

6 A liberdade que caracteriza a natureza do sujeito humano não o torna mfenso às limitações diversas, físicas, químicas,
biológicas, sociais, econômicas, políticas, culturais e psicológicas. Não há, portanto, nessa ênfase tática e estratégica sobre
a dimensão da liberdade, mais idealismo do que seria indispensável (isto é drahsticamente imperioso) para falar do
fenômeno humano
7 Idéia inspirada pelo pensamento do filósofo Pascal
8 Nas ciências sociais, essa curiosa relação entre uma hipótese e sua confirmação futura chama-se "profecia que se
autocumpre" Um exemplo se eu suponho que o outro me agredira, considerando o outro um potencial inimigo, tendo a me
antecipar ao outro, agredindo-o antes que ele o faça. Com isso, termino provocando a violência que eu mesmo temia e
desejava evitar
9 Exemplos de categorias a que me refiro poderiam ser drogadição, criminalidade, tráfico, classe social, família. Elas não
são, necessariamente, conceitos das ciências humanas (podem sê-lo ou não, dependendo do uso a que se submetem e do
sentido de que se revestem, em cada contexto), mas povoam a linguagem com a qual costumamos pensar a sociedade
10 Nesse


caso, considerando-se as categorias referidas, os objetos seriam o fenômeno da dependência química, as práticas ilegais, a
modalidade destas práticas (ou o subconjunto) especificamente
289


dedicada a comercialização ilícita de substâncias psicoativas, o grupo social que compartilha determinada relação com os
meios de produção e os recursos de poder, e o grupo que se forma pela combinação entre laços de consangüinidade e de
afinidade, convivendo ou não na mesma unidade doméstica
Terceiro não do ponto de vista numérico, mas da estrutura das posições alguém fala para alguém que ouve Esta e a dupla
que compõe o núcleo mínimo de uma situação de comunicação Estão presentes emissor e receptor. Estas funções podem
ser desempenhadas por várias pessoas, não importa, serão apenas duas as funções A audiência virtual, ausente mas
presente, graças a luzmha acesa da câmera que filma, representa a terceira posição, responsável pelo cumprimento de uma
função muito importante, que será descrita adiante
12 Em termos técnicos, eu diria a alusão a audiência virtual, promovida pelo filmar, corresponde a instauração de um
nível metalingüístico no interior do próprio discurso do narrador, dimensão que introduz o juízo (auto)crítico e a
experiência da culpa e da vergonha
13 Febem e a sigla pela qual ficaram conhecidas as Fundações Estaduais do Bem-estar dos Menores No Rio de Janeiro, o
Degase - Departamento Geral de Ações Socioeducativas - substituiu a antiga instituição responsável por crianças e
adolescentes em conflito com a lei
14 Por isso, algumas tramas dos romances policiais mais sofisticados tematizam esses jogos do olhar, problematizando e
intercambiando os lugares do sujeito e do objeto da investigação Nesses casos, os enredos se desdobram em um jogo de
espelhos, formando aquilo que os especialistas denominariam "metalinguagem" Bons exemplos são A Trilogia de Nova
York, de Paul Auster, e Perseguido, de Luiz Alfredo Garcia-Roza (ambos publicados pela Editora Companhia das Letras)
Operação Shylock, de Philip Roth (mesma editora), seria outra ilustração, pois trabalha questão análoga em registro não
propriamente policial, ainda que investigativo No cinema, um exemplo clássico é Um Corpo que Cai (Vertigo), de Alfred
Hitchcock, que inverte a unilateralidade \oyeur do fume Janela Indiscreta (Rear Wmdow) quem se da a ver e, na verdade,
quem vê e manipula o observado" Na filosofia, a visão como metáfora do conhecimento é desconstruida pela obra de
Heidegger Enquanto acolhimento e reconhecimento humanizante, o olhar interativo e objeto do pensamento de Sartre e
Levinas
15 A descrição detalhada e a interpretação do ritual e de meu lugar no grupo encontram-se em meu livro, Campesinato
Ideologia e Política, Zahar, 1981
16 O tema da invisibilidade, sobretudo associado ao racismo, foi consagrado em Invisible Man, obra-prima de Ralph
Elhsson (Vmtage International Editor, 1985) A problemática do reconhecimento, mesmo sendo clássica, nas ciências
sociais e na filosofia, foi reapreciada por Axel Honneth, em seu influente Luta por Reconhecimento (Editora 34, 2003 - a
edição original é de
1992)
17 E também o


conceito exato, no dicionário da antropologia
18 É evidente que esta não é uma realidade que se possa generalizar. Descrevo uma situação típica para identificar alguns
padrões, simplificando a diversidade de situações para reduzi-las a um modelo que sirva de ferramenta interpretativa. Nem
todo jovem e igual, nem toda circunstância e igual, nem e igual a reação que provoca e tampouco e igual o sentimento
gerado por cada reação
290


Alem disso, enquanto a madame de classe média não enxerga determinadas realidades, outros personagens humildes das
ruas vêem detalhes que escapariam ao mais atento observador, treinado na melhor universidade
19 E assim que, de fora e de longe, a sociedade os rotula, justamente por não os vir e para não os ver
20 Este exemplo foi mencionado, de forma resumida e em contexto interpretativo diferente em meu livro Violência e
Política no Rio de Janeiro (com colaboradores, publicado pela Editora Relume Dumara, em parceria com o ISER, em
1996)
21 A taxa de criminalidade mede-se dividindo-se a quantidade de crimes pela população
22 Trata-se de fenômeno comum, uma vez que a lógica da difusão das impressões sobre o que acontece guarda certa
autonomia e tem características particulares
23 Factoides são fatos falsos, ilusórios, histnômcos ou bizarros, encenados com o propósito de chamar a atenção, fazer
noticia, alcançar as manchetes e intervir na agenda pública, atuando sobre o quadro político
24 A estabilização de expectativas positivas deve ser convergente, isto e, deve tender a universalização no âmbito em que
se estabelecem as relações pertinentes, quer dizer, na sociedade ou no conjunto de sociedades que formam o contexto no
qual ou por cuja referência moldam-se e são moduladas as expectativas No quadro histórico da globalização, que e o
nosso, o âmbito em que se estabelecem as relações pertinentes tende a se confundir com o próprio planeta
25 E importante, mais uma vez, distinguir preconceito e indiferença Nos dois casos, ha a anulação da pessoa, mas por
meios opostos ao contrario da indiferença, que negligencia a presença de alguém, o preconceito corresponde a uma
hipervisibilidade, que ilumina uma imagem artificial e pré-construida, obscurecendo a individualidade da pessoa, mantida
na penumbra
26 A palavra religião guarda parentesco estreito com a ligação de que tratamos aqui. A religião aspira promover a re-
ligação, quer religar o laço rompido a grande metáfora cristã da ruptura e a expulsão do paraíso, mas ha muitas outras
imagens fecundas, em diferentes tradições. Neste sentido, o espaço simbólico e cultural da religiosidade é bem mais vasto
que Igrejas e doutrinas
27 A metamorfose como metáfora da capacidade que caracterizaria o criador (o poeta) de transportar-se empaticamente a
vivência alheia, é de Elias Canetti Esta em seu livro A Consciência das Palavras, editado pela Companhia das Letras,
1990 (pagina 282) Eu já a empregara no artigo "Os Quatro Nomes da Violência" (escrito em parceria com Leandro Piquei
Carneiro), publicado em Violência e Política no Rio de Janeiro (editado por Relume Dumara & ISER, 1996), e no ensaio
"Metamorfose e Unidade Sintática em um Mundo Só", publicado no numero l, ano l, 1999, da revista de estudos
interdisciplinares Interseções, do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UERJ


No sentido de Canetti, todavia, metamorfose designa a mudança como o fazer-se deslizar até o outro, abrir-se para o
outro, o que credenciaria o sujeito a escrever do ponto de vista do outro, quase convertendo se no outro. Para Canetti, esta
seria a função maior do artista, do escritor, do poeta. Trata-se, então, também de mudança, mas não uma reforma de si
numa ou noutra direção A mudança e uma disponibilidade permanente para a comunicação efetivamente receptiva, para a
aceitação
291


radical que corresponderia aproximadamente ao que, no presente texto, tenho denominado acolhimento
28 Dois livros muito importantes merecem leitura atenta Sobrevivendo no Inferno A Violência Juvenil na
Contemporaneidade, de Carmen Silveira de Oliveira (Porto Alegre, Editora Sulina,
2001), e No Outro Lado do Espelho a Fratura Social e as Pulsões Juvenis, de Norma Missae Takeuti (RJ Relume
Dumara, 2002)
29 Roberto DaMatta, um dos principais antropólogos brasileiros, tem chamado a atenção para este ponto ao longo de toda
a sua obra, desde Carnavais, Malandros e Heróis (republicado pela Editora Rocco, em 1994)
30 Hulsman, Louk & Bernart De Celis, Jaquehne Penas Perdidas O Sistema Penal em Questão Rio de Janeiro Luam,
1993
30 A tragédia aqui referida ultrapassa o eleito retórico do adjetivo que visa amplificar a ênfase dramática. O que ocorre é,
de fato, trágico, na medida em que envolve dois sentidos contraditórios que se anulam mutuamente Ao armar-se, o jovem
desarma-se das condições que eventualmente lhe poderiam proporcionar o apoio de que necessita Ao deparar-se com a
arma, a vítima do assalto sente medo e ódio, afastando-se emocionalmente do agressor, ao qual talvez tivesse devotado
alguma simpatia, em outra circunstância, e com o qual, eventualmente, talvez tivesse chegado mesmo a solidarizar-se A
violência queima pontes e caravelas. Não ha retorno possível. Pelo menos, não no cenário da agressão
32 A armadilha do preconceito está, como vimos, na assimilação, pela vitima do preconceito, do estigma que a vitima.
Assimilação que se da por pensamentos, palavras e obras Ou seja, a pessoa que é alvo do preconceito veste a carapuça,
passa a sentir se em conformidade com o que dita o preconceito, passa a descrever-se a si mesma segundo a linguagem do
preconceito, e passa a agir de acordo com a previsão sobre suas ações embutidas no preconceito. Nesse caso, portanto, as
ações sofrem a "maldição" da profecia que se autocumpre
33 Sena bom usar com prudência a noção de reincidência, pois ela remete a idéia nem sempre verdadeira de um
comportamento repetitivo que reitera seu padrão criminoso, como se girasse em torno de si mesmo Reincidência pode
congelar nossa percepção, impedindo que se identifiquem as condições externas que podem estar cumprindo função
decisiva no que aparece, ao observador superficial, como sendo a mera repetição obstinada de um sujeito viciado em
crime
34 É fascinante verificar a situação paradoxal que se instalou no Brasil se os jovens pobres copiam a moda da elite, os
filhos e filhas da elite copiam a moda dos pobres, que não é mais que uma apropriação estilizada da moda da elite
(internacionalizada) Ou seja, a elite copia a cópia de si mesma e se deixa embalar pelo sabor marginal que este jogo de
espelhos destila
35 Wanderley Guilherme dos Santos


descreveu a função da carteira de trabalho como índice de cidadania, no Brasil, e chamou a atenção para as implicações
políticas dos vínculos entre trabalho, símbolos e emoções, em seu livro já clássico Cidadama e Justiça A Política Social
na ordem Brasileira, republicado pela Editora Campus. em 1987 Marshal Sahhns analisou em detalhes o simbolismo da
economia nas sociedades capitalistas (Cultura e Razão Prática, Editora Zahar, 1976) Karl Marx, ainda no século XIX,
percebeu a carga simbólica inscrita nas mercadorias (seu
292


poder quase mágico e encantatóno de autonomizar-se) e a batizou "fetichismo" (O Capital Crítica da Economia Política,
livro I, dois volumes, Editora Civilização Brasileira, 2002) Sigmund Freud, alguns anos depois, retomou a palavra
modificando-lhe o conceito, mas preservando os sentidos de deslocamento de foco perceptivo (ou cognitivo) e censura
moral (Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade Editora Imago, 2002)
36 Gostaria de sustentar uma posição contra-intuitiva. Acredito que as modas, refiro-me aquelas que se realizaram como
movimentos culturais -, mesmo quando são cooptadas e assimiladas pelo sistema econômico e viram griffe domesticada,
inteiramente confortável nos grandes salões das elites, nem por isso merecem nosso desdém Alguma coisa fica. Ha
sempre um resto não digerido que se acrescenta a química do cosmo cultural e altera o DNA das sociedades, em benefício
da liberdade. Nesse sentido - e felizmente -, somos todos transgênicos, porque trazemos conosco um pouco da ousadia dos
inconformistas cambalizados pelo mercado. Esse excedente de ousadia foi sublimado e refundido, mas, de todo modo,
empurrou a civilização para outro estágio, reconfigurando o cardápio das opções humanas A calça rasgada dos hippies
virou griffe chique, deixou de chocar, mas ajudou a alterar os modelos de interpretação sobre o comportamento humano e
a disciplina em que se confina a liberdade individual
37 Nota pessoal em tom nostálgico e dicção citrada atualmente, quando avenida Paulista com Sierrã Maestra é a esquina
da moda, me recordo com saudade das dunas do barato e do que ainda restava de heroísmo cívico libertário - pacifista,
porem honesto Viva Leila Dmiz1 Salve, Gabeira1
38 Refiro-me ao livro A Agressão uma Historia Natural do Mal, Moraes editores, Lisboa, 1973
39 Este é o titulo de um ensaio formidável de Mareei Mauss, que está publicado em Sociologia e Antropologia, dois
volumes (editado por EPU & EdUSP, em 1974) Dois livros interessantes sobre esta temática, bastante didáticos e
acessíveis aos leitores da língua portuguesa, são O Tabu do Corpo (1980) e O Tabu da Morte (1983), ambos de José
Carlos Rodrigues e ambos publicados pela Editora Achiame
40 O livro de Hélio Raimundo Santos Silva, Travesti a Invenção do Feminino, publicado pela Editora Relume Dumara,
em 1993, analisa a complexa rede de sentidos e experiências, na fronteira entre os gêneros
41 O argumento e ampla inspeção empírica estão em Mulheres Invisíveis, de Bárbara Musumeci Soares (livro publicado
em 1999 pela Editora Civilização Brasileira)
42 Refiro-me, por exemplo, a Alba Zaluar (seu livro A Máquina e a Revolta, entre tantos méritos, foi pioneiro na abertura
de todo um campo de estudos e na ênfase que conferiu a relevância sociológica do tráfico - republicado pela Editora
Brasiliense, em 1994), Paulo Lins (autor de Cidade de Deus, cujos


méritos já foram amplamente reconhecidos - republicado pela Cia das Letras em 2002), Zuenir Ventura (autor de um livro
cuja acuidade analítica acabou por dar nome a síndrome que nos atormenta Cidade Partida (Cia das Letras, 1994),
Antônio Rafael (cuja tese de mestrado feita traz o livro mergulha no cotidiano do "movimento" Um Abraço para Todos os
Amigos, EDUFF, 1998), Luiz Fernando Almeida Pereira (que escreveu a bela etnografia De Olhos Bem Abertos Rede de
Tráfico em Copacabana - FGV, 2003), Aziz Filho e Francisco Alves Filho (autores de Paraíso Armado, que passa em
revista as duas décadas em que a violência sentou
293


praça no Rio - editora Garçom, 2003), Gilberto Velho e Marcos Alvito, organizadores de Cidadania e Violência (editoras
UFRJ e FGV, RJ, 1996), importante contribuição ao debate, do qual participam Hélio R S Silva, Alba Zaluar, Juhta
Lemgruber, Mana Luiza Heilbom, Luiz Mott, Marcos Alvito Pereira de Souza, Roberto Kant de Lima, Hermano Vianna,
Olivia Mana Gomes da Cunha, Mana Lúcia Aparecida Montes
43 As pesquisas mostram que quem se submeteu a violência, na infância, ou a testemunhou, tem mais propensão a
envolver-se com práticas violentas mais tarde (para explicação detalhada e dados consulte-se Mulheres Invisíveis, de
Barbara Musumeci Soares Editora Civilização Brasileira, 1999)
44 Todas as críticas ao comportamento policial dirigem-se a segmentos policiais específicos comprometidos com a
corrupção e a brutalidade, e não têm a intenção de hostilizar ou macular a imagem dos profissionais da segurança pública
ou das instituições policiais. Qualquer generalização seria leviandade e uma injustiça, tanto com as instituições, quanto
com seus profissionais honestos, competentes e dedicados, que amscam a própria vida por salários incompatíveis com a
importância de sua função Estes merecem meu reconhecimento, minha gratidão e homenagem Mas até para valorizá-los e
honrar as instituições policiais, ajudando a criar condições mais adequadas e justas para seu funcionamento eficaz e
respeitoso das leis e dos direitos humanos, é indispensável dizer a verdade distinguir o joio do trigo e mergulhar nos
problemas, com franqueza, clareza e coragem. Iludem-se os que acham que melhor defendem os bons policiais e as
instituições mentindo a sociedade e escondendo tudo o que ha de podre neste universo com esta hipocrisia. infelizmente,
ainda predominante não se chegou a lugar nenhum, apenas se logrou perder a confiança da sociedade e afastar ainda mais
o povo, particularmente as populações faveladas, das polícias
45 Este argumento eu já o expus em meu livro Meu Casaco de General 500 dias no Front da Segurança Pública do Rio
de Janeiro (publicado em 2000 pela Editora Companhia das Letras), citando Primo Levi e sua Extraordinária etnografia
dos campos de concentração nazistas
46 Sena uma ilusão imaginar que a anarquia ofereceria melhores garantias contra a violência e a opressão
47 No estado do Rio de Janeiro, em 2003, 6 624 pessoas foram assassinadas, 179 foram mortas em latrocínios e 195
perderam a vida por conta de ações policiais, a maioria das quais em condições que sugerem extermínio. Chegamos,
portanto, ao espantoso numero de 7 998 vítimas letais da violência 53,8 por 100 mil habitantes Exatamente o dobro da
média brasileira. Isso significa que 18 pessoas foram assassinadas no estado do Rio, diariamente, oito das quais na capital.
As mortes provocadas por ações policiais, no estado do Rio, cresceram


298
3%, nos últimos sete anos foram 300, em 1997, 397, em 1998, e caíram para 289, em 1999 - ano em que implementamos
um conjunto de reformas nas polícias, fomentadas para a modernização, a moralização e a participação comunitária Em
2000 e 2001, os números subiram para 441 e 587, respectivamente A situação agravou-se, em 2002 e 2003, quando os
números saltaram para 900 e 195 Em São Paulo, a violência policial letal cresceu 263% em oito anos O maior salto foi de
2002 para 2003
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60,44% (todos os dados citados têm como fontes as Secretarias de Segurança dos Estados do Rio e de São Paulo)
48 De novo, onde se lê "polícia" leia-se "segmentos policiais", para que não se cometam injustiças com imprópria
generalização, ainda que se possa afirmar que são raros os casos em que um grupo de traficantes se estabeleça com
estabilidade, mantendo negócios, dominando território, pontos de venda e uma comunidade, sem que haja cumplicidade
policial
49 Impossível não lembrar, aqui, mais uma vez, os quatro volumes de Eho Gaspan, nos quais questão análoga emerge da
análise da ditadura militar, no Brasil A Ditadura Envergonhada (2002), A Ditadura Escancarada (2002), A Ditadura
Derrotada (2003) e A Ditadura Encurralada (2004), todos publicados pela Editora Cia das Letras
50 Vale sublinhar a importância de outro gravíssimo problema, que poderia ser definido como a privatização da segurança
pública. Os policiais ganham pouco, assumem um segundo trabalho (o bico), geralmente, no campo da segurança privada,
que cresce com o justificado medo da violência e a ineficiência das polícias. Em o fazendo, os policiais cometem uma
ilegalidade, mas nenhuma autoridade investiga e pune, porque todos sabem que e a segurança privada que financia a
pública, complementando salários insuficientes Na penumbra desta clandestinidade consentida, desenvolve-se todo tipo de
prática ilícita - como o tráfico de armas - e, no limite, aprofunda-se a promiscuidade com o crime Chega-se ao paroxismo
da irracionalidade e do perigo, quando policiais, a serviço de pseudo-empresas informais-clandestmas, são coniventes com
a criminalidade ou praticam crimes, diretamente, em certas ruas, para provocar a demanda por seus serviços privados É
mais comum, entretanto, a forma mais tênue desta perversão, que se da como atendimento dos clientes privados durante o
horário em que se deveria prestar serviço público por exemplo, alterando rotas de patrulhamento, para atender aos
negociantes que contratam, nos dias de folga, os serviços privados. Sublinhe-se que nada disso envolve as empresas serias
de segurança privada, cujo papel não é contraditório com os interesses da segurança pública - aliás, esta
complementaridade poderia ser muito bem explorada, em benefício da sociedade As empresas senas sofrem com esta
situação, pois, muitas vezes, são chantageadas pela autoridade que as fiscaliza (a responsabilidade é da Polícia Federal,
mas, por convênio, alguns estados transferem este poder as suas polícias) Alem disso, têm de enfrentar uma concorrência
desleal e ilegal Enquanto não se resolver este imbróglio, a reforma das policias será apenas um sonho - ou um pesadelo
Um problema conexo e o do regime de trabalho dos policiais 24 horas de trabalho, por 72 de folga, ou 12 por 48, são
esquemas absurdos. Ninguém pode trabalhar tanto,


sem descanso, por outro lado, nenhuma investigação pode ser interrompida por tanto tempo, sem inviabilizar-se De novo.
Nenhuma autoridade ousa propor mudanças, mesmo sabendo que o sistema atual não funciona, porque todos sabem que o
tempo de folga está preenchido, na maior parte dos casos, pelo bico, graças ao qual o Estado pode pagar tão pouco a quem
arrisca a vida pela vida e a segurança alheias Alterações no regime de trabalho das policias desorganizaria a perversa
complementaridade e inviabilizaria a manutenção dos atuais salários, revelando o irrealismo dos orçamentos estaduais
51 Tecnicamente, eu dma que a luzmha acesa corresponde a instalação de uma dimensão metalingüíistica e reflexiva, que
abre espaço para a autovalorização e o amadurecimento crítico-moral de cada indivíduo, se o contexto for adequado
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O rapper MV Bill e o seu empresário Celso Athayde saíram atrás dessas respostas. Com extrema coragem, foram movidos pela obrigação moral de querer entender os vários brasis que, divididos em muros invisíveis, de um lado preservam a vida dos elitizados e, do outro, condenam crianças e jovens a serem presas fáceis para o submundo do crime e das drogas.
Dispostos a mergulhar no convívio com os excluídos, os dois entrevistaram e filmaram vários depoimentos com jovens que vivem do tráfico de drogas em nove capitais brasileiras.
Após sete anos de pesquisa, concluíram um vídeo, Soldado de morro, o documentário Falcão ? Meninos do tráfico o livro Cabeça de Porco, cuja expressão designa, na gíria das favelas cariocas, situações confusas e sem saída.
Como os dois mesmo relatam, a obra é a oportunidade de apresentar um Brasil ao outro, de mostrar uma realidade tão próxima e desconhecida de grande parte da sociedade. A esta pesquisa original, descrita com a emoção que só a voz em primeira pessoa permite, se associam um conjunto de registros etnográficos sobre juventude, violência e polícia escritos pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-subsecretário de Segurança Pública do Estado do Rio e ex-secretário nacional de Segurança Pública.
A violência os três conheciam muito bem do convívio diário nas favelas, caso de MV Bill e Celso Athaide que nasceram na Cidade de Deus e na Favela do Sapo, respectivamente. O que os instigou foi a possibilidade de encontrar outras realidades, outros becos, outros morros e outras bocas de fumo, a quilômetros de distância da cidade maravilhosa, tão estilhaçada, valorizada e usada como modelo de violência pela imprensa.
No Brasil, grande parte das vezes, a desigualdade e a injustiça têm cores pálida e negra e classe social predominantemente pobre. Muitas dessas visitas prosseguiam às batidas policias. Com o risco de serem confundidos com traficantes ou de colocarem seus entrevistados em perigo, as gravações eram interrompidas e, quando percebiam, lá estavam os dois escondidos em algum buraco. Em momentos mais amenos, MV Bill era recebido com papel, caneta e máquina fotográfica.
O resultado final é um trabalho sem idealizar ou prejulgar nenhum dos personagens em seus relatos, entrevistas e ensaios. Sem o peso da denúncia social e política, Cabeça de Porco não oferece soluções mágicas. O seu objetivo é claro: abrir caminhos em nossos pensamentos e nos fazer refletir sobre o circulo da violência e das drogas. Um retrato sincero de três brasileiros preocupados com o destino autodestrutivo, a falta de oportunidade e as condições sociais e políticas que condenam jovens a crescerem imersos no mundo das drogas e dos crimes.
No final de 2002, o livro foi aceito pela editora Objetiva e os três autores se reuniram para desenvolverem melhor o projeto e discutirem as pesquisas. De acordo com MV Bill, esse livro é um documento importante principalmente por não ficar somente debruçado nos acontecimentos, mas assumimos o nosso lado marginal e nossas contradições. Ler esse livro é mesmo que fazer uma viagem ao próprio corpo, que estão tão perto, mas ao mesmo tempo é tão desconhecido.
Para Luís, a cena marcante foi a morte de Márcio Amaro de Oliveira, conhecido como Marcinho VP, pois seu corpo estava numa caçamba de lixo da penitenciária, onde cumpria pena, coberto de livros e um cartaz: Nunca mais vai ler. Márcio voltou a ler com a ajuda do cineasta João Salles há pouco tempo de sua morte. Estava aplicado em obras de Machado de Assis, Lima Barreto, Sergio Buarque de Holanda e outros. Isso significa que o livro tem um papel revolucionário, pois é um instrumento que permite uma mudança social do homem. Isso é uma coisa intolerável para quem vive com o rótulo de marginal, que a pessoa possa mudar. Companheiros de prisão não permitiram que ele transgredisse a única lei inviolável: não serás outro (para que eu permaneça o que sou).
Na opinião do antropólogo, a situação descrita pelo livro deve ser resolvidade uma forma multidimensional. Ou seja, uma união de todos os níveis sociais, econômicas e simbólicos. Nós tendemos a rotular o jovem que comete um crime como um criminoso e o lacramos numa instituição de internação. Não admitimos a mudança desse jovem.
Para ele, precisamos customizar as políticas sociais, ou seja, adaptá-las a cada caso, respeitando a individualidade do jovem e sua vontade. A expressão artística promove o aumento da auto-estima do jovem. A arte, a cultura, a criação estética e cultural. Seriam os pontos principais a serem desenvolvidos. Por isso, tem uma importância o hip hop, grafite e outras alternativas, pois são populares e vinculados a idéia de cidadania, respeito e paz.
 
abraços
 
paulo
 
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