quarta-feira, 10 de março de 2010

Revista Época: Escrivaninha Xerife, Eliane Brum

** Revista Época- Eliane Brum
ebrum@edglobo.com.br

Escrivaninha Xerife
Minha nova vida precisa de gavetas e da coragem de assumir as cicatrizes
Esta coluna é inteiramente sobre mim. Aviso na primeira linha, que é para nenhum leitor reclamar que estava desavisado. Se achar que não vale a pena, pode parar

por aqui e pular para outra.
Desde pequena, eu sonho com uma escrivaninha Xerife. Não sabia que se chamava xerife a escrivaninha dos meus sonhos. Descobri agora. Esta escrivaninha de madeira

é cheia de gavetinhas e escaninhos de vários tamanhos e tem uma tampa. Quando você para de trabalhar, você fecha e ninguém sabe o que há lá dentro. Não tenho a
menor
ideia de onde eu possa ter visto uma dessas na minha cidade, lá no interior do Rio Grande do Sul.
O fato é que eu sempre achei que essa era a única escrivaninha que um escritor poderia ter. Por causa das gavetinhas e, especialmente, por causa da tampa.
É mágico. Você está lá, escrevendo, todo escancarado e, de repente, você fecha. E até chaveia. Seus anjos e principalmente seus demônios ficam lá dentro, sem risco

de se dependurarem no lustre, esconderem-se em algum lugar onde você não os ache ou mesmo assombrar o resto da família.
Tive várias escrivaninhas ao longo da vida, de fórmica à penúltima, toda modernosa, feita com madeira de demolição. No sábado, comprei minha última, a minha própria

Xerife. Por que só agora? Porque só agora a mereci.
Decidi que vou me enforcar nas cordas da liberdade. Para isso, precisava me reinventar com tudo aquilo que já era meu. Para marcar este ato, queria transformar
algo
da matéria volátil dos sonhos em existência concreta. A escrivaninha dos devaneios da minha infância materializou-se, com tudo de incontrolável que existe quando

nos arriscamos a desentocar os sonhos - com uma vara que é sempre meio curta - e os expomos às intempéries do real.
Foi um ato de profundo simbolismo para mim, que adoro rituais de passagem. Um dia antes da compra, na sexta-feira, deixei a redação da revista ÉPOCA, depois de
dez
anos. Poderia continuar ali por mais 20 (se continuassem me querendo, claro), mas achei que estava na hora de inventar uma nova vida para mim. Deixei Porto Alegre

e a redação do jornal Zero Hora, onde trabalhei por 11 anos, em janeiro de 2000, para vir para São Paulo e para a ÉPOCA. Estava bem confortável lá. Mas há um momento

que, pelo menos para mim, o conforto vira desconforto.
Na ocasião, me perguntavam por que eu deixaria tanto para ir para uma cidade maluca. Eu estava em um ótimo momento. Tinha acabado de ganhar um prêmio Esso (que
para
os jornalistas é muito importante), tinha uma coluna de reportagem (A Vida Que Ninguém Vê) que eu amava, adorava a cidade, tinha mais amigos do que conseguia dar

conta, meu próprio apartamento quitado etc etc. Eu gostava de tudo, mas estava curiosa com a possibilidade de criar uma nova história para mim. Respondia: estou

indo porque não quero saber como será a minha vida daqui a cinco anos. E fui.
Agora, completei dez anos incríveis na ÉPOCA. Fiz reportagens que transformaram a minha vida (e, espero, algumas outras), perambulei por Amazônias desconcertantes

(elas são várias e sempre escapam), viajei pelas muitas periferias de São Paulo e testemunhei pequenos grandes milagres de gente. Hoje, sou povoada pelos personagens

extraordinários com quem cruzei nesta última década. Sou uma Eliane muito mais rica agora do que quando cheguei. E tudo o que vivi dará sentido à nova Eliane que

virá.
Não foi uma decisão intempestiva. Ela vem acontecendo dentro - e fora de mim - há um bom tempo. Há cinco anos tenho trabalhado nas férias e finais de semana em
projetos
paralelos, como documentários, livros, oficinas e palestras. Queria experimentar coisas novas e abrir outros caminhos para fora de mim. Outras maneiras de estar

no mundo. Tenho uma convicção comigo: temos uma vida só, mas dentro dessa, podemos viver muitas. E eu quero todas as minhas.
Em 2008, comecei a escrever sobre a morte, de várias maneiras, em minhas reportagens na ÉPOCA. Olhar o rosto da morte, para mim, era desatar o nó que ainda me impedia

de viver uma vida mais viva. Desde pequena, eu tenho esta característica. Quando tenho medo de alguma coisa, vou lá e faço. Quase perdi algumas partes do corpo
por
causa disso. E certamente perdi algumas porções invisíveis de mim mesma.
Ao fazer a principal reportagem desta série, quando acompanhei uma paciente de câncer até o fim da sua vida, perdi um naco da minha alma de supetão. Levei um tempão

para parar de sangrar, como quem acompanha esta coluna sabe. Mas, um dos meus muitos apelidos é "Tixa", de "lagartixa". Há quem faça fantasias sobre a origem dele.

Mas é bem menos picante. Passei a vida deixando a cauda em sustos pelas esquinas de mundo. Sempre acabo me regenerando, ainda que leve tempo. Todos somos lagartixas

em alguma medida, apenas que eu abuso um pouco dessa vantagem evolutiva.
Minhas incursões no universo da morte deram-me maior clareza sobre a natureza da vida. Algumas pessoas comentavam que eu devia ter algum problema para ser tão mórbida.

Bobagem. Morbidez é outra coisa. Não se fala da morte por causa da morte, mas por causa da vida. Lidar bem com a certeza que todos temos de morrer um dia, mais
cedo
ou mais tarde, é fundamental para viver melhor. E para compreender a natureza fugaz e preciosa da vida.
A vida rugiu com mais força dentro de mim depois dessas várias reportagens sobre a morte. A última delas, que encerra um ciclo, sairá em breve na revista. Faço
44
anos em maio. Fiz uns cálculos e descobri que preciso me apressar se quiser conhecer o mundo inteiro - e eu quero. E também para escrever o tanto que sonho. Como

já disse mais de uma vez, escrever não é o que faço, é o que sou. E estava na hora de comprar minha escrivaninha Xerife e mudar de cenário.
Vou continuar fazendo reportagem. Apenas de um outro jeito, num outro tempo. Sou repórter até os confins da minha alma - e um pouco além. Se conseguir escrever
ficção,
como também sonho, só será possível pelo tanto de vida real e personagens de carne e osso que conheci nestes últimos 21 anos de reportagem. Só o real é absurdo.

A ficção é sempre possível.
Estou com medo, muito medo. Volta e meia choro com saudade de uma vida que já não há. Mas eu não tenho medo de ter medo. Deixo um emprego seguro, numa revista onde

respeitam o que sou e o que faço, com um bom salário e todos os benefícios, para me entregar ao vazio. Sei que tudo pode dar errado, sempre pode. Mas se der, eu

invento outro jeito de seguir adiante. Esta é outra convicção que tenho: prefiro fazer as coisas do meu jeito e cometer meus próprios erros. Tanto quanto os acertos,

os erros também devem nos pertencer.
Esta nova vida que começa hoje vem sendo construída há muito, mas só no final do ano passado descobri que a hora era agora. Não sei como foi. Nem se houve um momento

exato. Lembro de dois pequenos episódios, apenas. Num deles eu corria para algum lugar com o João, meu marido, quando ele interrompeu meu passo marcial e disse:

"olha". Eu olhei para todos os lados e nada vi. Até que, com a ajuda dele, localizei uma florzinha diminuta no meio do concreto. Nós nos acocoramos e ficamos olhando

o tanto de detalhes que ela tinha. Como era especial e linda e única. Aprendi isso com o João, que se esquece de tudo para passar intermináveis minutos vendo a
forma
de uma flor ou de uma nuvem ou de uma fatia de bolo de chocolate. Nunca vi ninguém enxergar tanta beleza no mundo quanto ele. Somos tudo o que somos. Mas as pessoas

que amamos exacerbam algumas partes de nós, para o bem e para o mal. E o João tem este efeito sobre mim, de me tornar o melhor do que sou.
Naquele instante, percebi que corria tanto para fazer as tantas coisas paralelas que tinha inventado, que estava esquecendo daquilo que sempre deu sentido à minha

reportagem, à minha vida: estava esquecendo de olhar de verdade.
O outro episódio aconteceu no final do ano. Eu estava com os meus pais na casa de praia que eles alugam a cada verão. E ficava olhando para eles. Me dava enorme

prazer ver os dois se mexendo. Observar o jeito que cada um funcionava com relação a si mesmo e naquele casamento tão amoroso. (Eles andam de mãos dadas depois
de
56 anos de casados e o pai dá flores pra mãe no aniversário de "conhecimento"). Num certo momento, fiquei olhando para o cabelo da mãe, o cabelo do pai, o jeito

que o vento batia neles. E descobri que não podia mais continuar numa vida que eu não tivesse tempo para olhar o cabelo deles se mexendo com o vento.
Quando voltei para São Paulo e para a ÉPOCA, soube que tinha chegado a hora de partir. E agora lá vou eu. Não sei bem para onde, mas sei que é para mais perto de

mim mesma.
Comecei então a procurar minha escrivaninha. Entrei no Mercado Livre, o site da internet que vende tudo, e coloquei na busca: "escrivaninha antiga". E aí veio de

todo o jeito e de toda época, com pés palitos, forma de bambolê, e também a minha, que descobri que se chama Xerife. Havia vários exemplares, mas gostei particularmente

de duas. Uma era do Rio de Janeiro, o frete seria caro. A outra morava em São Paulo. Apostei nesta. O dono me deixou dar uma olhada nela antes de comprar. E lá
fui
eu na quinta-feira com o João num galpão da Barra Funda.
Ela era uma escrivaninha viva. Olhei para ela, ela olhou para mim, e eu soube que era a "minha". Como na história do Harry Potter, em que é a varinha mágica que

escolhe o bruxo - e só há uma varinha, única e singular, para cada bruxo -, a minha escrivaninha era assim, minha. Nasceu antes de mim e pertenceu a outros donos

porque precisava me esperar.
Examinamos, eu e o João, ela inteira. E descobrimos que ela tinha mais cicatrizes do que nos prometeram. E alguns moradores indesejados. Numa das gavetinhas, havia

um ninho de cupins. Nas costas, ela tinha sido quebrada em algum episódio de violência ou mau humor. Mas eu nunca fui uma boa negociante. As coisas práticas não

têm muito efeito sobre mim. A escrivaninha também me receberia com mais rugas e feridas fechadas e abertas do que talvez esperasse. Nenhuma de nós nasceu ontem.

Ambas queríamos - e precisávamos - nascer de novo.
Aceitei as cicatrizes da minha escrivaninha como parte da história de sua vida antes de mim. E fechei o negócio. Ela queria ir embora pra casa comigo já, eu senti

isso. E o João também. Mas eu ainda precisava fazer o depósito e acertar o frete. Enquanto isso, o vendedor providenciaria um exterminador de cupins. Ao contar
para
a Maíra, minha filha, sobre a escrivaninha, eu dizia, toda empolgada: "ela tem cupins, mas também tem uma alma dentro dela!". Com seu senso de humor peculiar, Maíra

comentou: "Se tem alma, não traz para casa!".
O problema é que eu tenho um fraco por almas. Venho de uma família de mulheres que falam com os fantasmas que vagam pela casa com a maior sem-cerimônia. Dava até

pena do meu tio-avô, um homenzinho pequeno que passou a vida inventando objetos mirabolantes e deu a si mesmo um nome de passarinho. Quando ele arrastava os chinelos

pelo assoalho, era despachado pela sua viúva: "Vai-te embora, Graúna, já disse que não te quero aqui!". Para ele, a morte não mudou nada. A mulher continuava mandando

em seu melancólico espectro.
Hoje é o primeiro dia da minha nova vida. Tenho que fazer um rearranjo completo na minha cabeça programada em mais de duas décadas de vida de funcionária. Não sigo

mais uma lógica de segunda a sexta. Posso escrever às 6h da manhã de domingo, como faço agora. E ir ao cinema no meio da tarde de segunda-feira, como pretendo.
Minha
semana não terá mais finais e começos. Posso ficar acordada à noite e dormir de dia. Posso almoçar à meia-noite e tomar café ao meio-dia. Posso apenas ouvir a chuva

batendo no telhado. Posso permanecer olhando para o teto por horas a fio.
O tempo é meu. Esta é a grande mudança. Vou perder dinheiro, segurança, carteira assinada, benefícios, férias remuneradas, décimo-terceiro. Em troca, retomo a propriedade

do meu tempo. Me preparei para viver com pouco. Criei minha filha, comprei apartamento, não tenho um real de dívida. Só tenho agora que manter o meu corpinho. E

ele é bem barato. Três pratos de feijão o deixam todo feliz.
Mantenho esta coluna exatamente aqui onde está. Ela faz parte do meu projeto de liberdade. Queria muito continuar, não sabia se queriam que eu continuasse. A ÉPOCA

e a Editora Globo quiseram. Sou grata por isso. Assim como pela forma extremamente respeitosa com que a ÉPOCA e a Editora Globo trataram minha saída e meu desejo

de reinventar minha vida.
Eu adoro escrever para vocês. E amo a internet. Então, toda segunda-feira estarei aqui, como sempre, logo de manhã, para pensarmos juntos sobre essa confusão que

é a vida do mundo e a de todos nós.
Agora, vou abrir minha escrivaninha Xerife. Estaremos, eu e ela, com todas as gavetas de nossas almas escancaradas. De peito aberto, no vazio. Vamos ver o que conseguimos

fazer juntas.
Torçam por mim! (Por nós!)
*******
Renata Coutinho

"Um livro aberto é um cérebro que fala; fechado, um amigo que espera;
esquecido, uma alma que perdoa; destruído, um coração que chora."
(Rabindranath Tagore)

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