Capítulo Um
D
avina Nuttell estava sentada no banco de trás de sua limusine com motorista, lendo sobre si mesma em uma revista de celebridades. Seu rosto rechonchudo, cercado por cartazes de todos os filmes e shows que fizera, sorria na página.
"A superestrela mirim, Davina Nuttell", ela leu, "está de volta à Broadway no espe-táculo de grande sucesso Estrelas em Marte. Depois que a novata Molly Moon surpre-endemente renunciou a sua participação e deixou Nova York, a Srta. Nuttell era a esco-lha óbvia para o papel." Davina ficou furiosa. Estava farta de ver o nome de Molly Moon nas mesmas frases em que mencionavam o seu.
— Pare na sorveteria da Madison — ela disparou para o motorista.
Ele assentiu e abriu caminho por quatro ruas no barulhento tráfego de Nova York.
Davina se sentia particularmente desconcertada. Precisava de um sorvete grande e bem doce. O dia fora ruim no teatro da Broadway onde estava ensaiando uma nova can-ção para Estrelas em Marte. Para começar, sua garganta andava irritada e ela não con-seguiu alcançar as notas altas. Depois, aconteceu o horrível incidente que a deixou completamente abatida. Com raiva, Davina raspou a unha no estofamento de couro creme. Quase nunca precisava de seus pais, mas esta noite estava feliz por eles estarem em casa, para variar.
Que audácia daquele empresário esquisito entrar em seu camarim sem pedir licença e sem ser convidado! Como ele conseguiu passar pela segurança, ela não conseguia i-maginar. E que atrevimento supor que ela ia querer anunciar sua ridícula linha de roupas infantis Casa da Moda. Ele não sabia que deveria falar com o agente dela? E como sua saída do teatro tinha sido vergonhosa. Davina disparara para fora do prédio, frenética, sem a maquiagem de ir para casa, e se atirou na limusine que a esperava.
O sinistro Sr. Cell provocara-lhe arrepios e Davina não conseguia apagá-lo de sua mente. Os olhos dele pareciam ter se insinuado no fundo dos olhos dela, assim como olhar para o sol por muito tempo faz sua imagem aparecer dentro da visão da pessoa. Toda vez que fecha os olhos, ela vê aqueles dois globos oculares furiosos encarando-a. Lembrou a força dele ao agarrar seu braço e a obrigar a olhar para ele. Por um momento, ela olhou. Depois, desvencilhou-se e fugiu.
Davina fez um grande esforço para se acalmar, admirando a foto da revista. Como seus próprios olhos azuis estavam brilhantes e sorridentes. Eram verdadeiramente boni-tos — ao contrário de outro par de olhos de que Davina recordava bem. O par de olhos juntos, verde-escuros de Molly Moon. Então, por que esse nome fazia Davina ranger os dentes de inveja? Molly Moon era apenas uma ninguém de olhões arregalados, nariz de batata, desgrenhada e magricela. O que todo mundo vira nela, Davina não sabia. O que sabia era que Molly Moon tinha roubado seu papel, ganhado milhares e milhares de dólares que deveriam ser de Davina, e virado a cabeça de todo mundo. Embora Molly Moon tivesse deixado a cidade, as pessoas ainda falavam dela como "A Estrela do Sécu-lo XXI" — um título que deveria pertencer a Davina.
O carro parou na frente de sua sorveteria favorita, na Avenida Madison. Davina abo-toou o casaco preto de vison e vestiu as luvas também pretas. Saiu para a noite fria, e fez um sinal condescendente para o motorista. Voltaria a pé para casa. Desfrutando o som dos saltos de suas botas batendo na calçada, ela desapareceu, entrando na sorveteria.
Lá dentro, pediu a especialidade da casa. Chamava-se "Sundae Mondae-Tuesdae-Wednesdae-Thursdae-Fridae-Saturdae". Determinada a expulsar de sua cabeça todos os pensamentos sobre Molly Moon, pegou sua caneta revestida de ouro e começou a prati-car seu autógrafo em um guardanapo de papel. Deveria manter a letra curva ou mudar o estilo?
Quando o sorvete gigantesco chegou, ela o devorou.
Vinte minutos depois, estava caminhando para casa, sentindo-se enjoada. Percebeu que uma noite fria de março não era a melhor época do mundo para devorar um sorvete gigante e congelante.
Pensava no que fazer quando chegasse em casa. Não tinha nenhum amigo para quem telefonar. Davina achava desagradável a idéia de ter amigos. Não gostava da idéia de compartilhar suas coisas, nem da idéia de alguém discordando dela.
A distância, o prédio de seu imenso apartamento destacava-se na rua. Que estranho, pensou Davina — normalmente, a fachada estaria iluminada de verde. Será que as lâm-padas estavam quebradas? O edifício parecia muito malcuidado, todo escuro. Ela recla-maria assim que visse o porteiro. Já podia vê-lo, agora, de pé em frente à porta, com seu bastão de luz para chamar táxis.
Atravessou a grande avenida. A entrada do prédio ficava apenas a cem metros de distância — mas agora eram cem metros escuros, iluminados apenas em um único ponto, onde um poste lançava uma poça oval de luz alaranjada na calçada. Davina caminhou em direção a ela. Gostava de refletores.
Uma coisa branca e retangular estava no chão, sob a luz — lixo, suspeitou Davina — outro motivo para reclamar. Entretanto, à medida que se aproximava, viu que o re-tângulo branco não era lixo. Era um envelope. E quando chegou mais perto, viu uma coisa muito estranha. O envelope era endereçado a ela.
Outra carta de fã, pensou com prazer.
Tirou a luva, pegou o envelope e sacou a carta. Leu:
Querida Davina,
Sinto muito, mas você sabe demais.
De repente, uma mão pesada agarrou seu braço. Ela ergueu os olhos e viu um rosto familiar sorrindo para ela. Petrificou de medo. Seu corpo ficou gelado como o inverno. Seus ouvidos de repente pararam de trabalhar. Já não escutava os sons de Nova York. Era como se os táxis e o tráfego, sirenes e buzinas não existissem mais. Tudo que Davina escutava era sua própria voz — seus gritos, ao se sentir arrastada para um estaciona-mento. Olhou suplicante para o porteiro uniformizado a distância, que levantava seu bastão de luz. Gritou outra vez. — Socorro! Socorro!
Mas o porteiro não fez nada. Continuou imóvel, olhando para o outro lado. E, baten-do e lutando desesperadamente, Davina foi empurrada para dentro de um Rolls Royce com a mesma falta de cerimônia com que se obriga um cão perdido a entrar na carroci-nha. Foi levada para dentro da noite.
Capítulo Dois
E
m um dos corredores do supermercado, Molly jogou para o alto uma caixa tamanho gigante de Biscoitinhos de Trigo e Mel Levemais. A caixa fez um volteio no ar, e a caricatura da abelha gorda desenhada na caixa voou, no primeiro e último vôo ver-dadeiro de sua vida, antes de aterrissar com um estalo alto no carrinho de compras.
Na mosca! Vinte pontos para mim — disse Molly, satisfeita. Uma chuva de chicletes Quebraqueixo veio por cima das estantes de cereais e caiu no carrinho.
Como é que Ruby dá conta de tanto chiclete? — uma voz de menino perguntou do outro corredor de compras. — Ela só tem cinco anos.
Ela prega as fotos com eles — disse Molly, empurrando o carrinho de metal para o setor dos enlatados. — Como é que Roger consegue comer tanta sardinha? É isso que eu quero saber. E fria, direto da lata. Nojento. Não dá para pregar fotos com sardinhas.
Dez pontos para esses chicletes e mais o dobro, Olhos Verdes, porque consegui jogá-los lá do outro lado. — O menino de voz rouca saiu de trás de uma pilha gigante de feijões cozidos. Seu rosto moreno-escuro era emoldurado por um gorro branco com orelheiras. Ele colocou uma garrafa grande de suco de laranja concentrado no carrinho.
Obrigada, Rocky — disse Molly. Suco de laranja concentrado, a bebida favorita de Molly Moon. Ela gostava de tomá-lo puro.
Desemaranhando uma caneta de trás da orelha e do cabelo embaraçado, ela marcou os pontos de arremesso em uma cadernetinha velha.
Molly 45 100 140 175 210
Rocky 40 90 133 189 228
— Tá legal, espertinho. Esta semana, você venceu. Mas, antes da Páscoa, serei eu a campeã.
Depois, Molly consultou sua lista. Lá estava:
Lista de Compras para o Lar da Felicidade Coisas Chatas
batatas pastinaga cebolas alface
tomates berinjelas aipo frango
costeletas salsichas leite pão
manteiga café saquinhos farinha de trigo
de chá
açúcar biscoitinhos de trigo e mel Levemais aveia
ervilhas creme de leite 10 latas de sardinha
congelados
ovos comida comida comida
para para para cachor-ro camundongo periquito
castanha-de-caju
Coisas Interessantes
Quibe bebidas salgadinhos bolachas
efervecentes
Ketchup guloseimas Caramelo Moon
Barras suco de laranja biscoito de queijo
de chocolate concentrado
sorvetes revistas
presentes
Chicletes Quebraqueixo pipoca
creme de barbear e aparelhos de barbear
chocolates
brilho para os lábios branqueador de dentes
O Lar da Felicidade era o orfanato onde Molly e Rocky viviam. Quando era bebê, Molly Moon foi deixada na porta do orfanato dentro de uma caixa de Caramelos Moon, de onde ganhou seu nome. Até recentemente o orfanato se chamava Lar Vidadura e, como o nome sugere, era um lugar extremamente difícil de morar. Mas, pouco antes do Natal, Molly conseguiu um bilhete espetacular de mudança-de-vida. Na biblioteca da cidade vizinha de Briersville, ela encontrou um livro antigo e desbotado encadernado em couro, O livro do hipnotismo, do Doutor Logan. Esse livro mudou a vida de Molly. Depois de aprender os segredos do hipnotismo e descobrir que tinha talentos hipnóticos incrivelmente poderosos, Molly deixou o orfanato e foi para Nova York, acompanhada da minibuldogue Petula. Lá, ela usou o hipnotismo para conseguir o papel de protago-nista em um musical da Broadway chamado Estrelas em Marte. Molly hipnotizou e controlou centenas de pessoas, e ganhou muito dinheiro. Mas um bandido chamado Pro-fessor Nockman descobriu seu segredo. Seqüestrou Petula e chantageou Molly para roubar um banco para ele.
Foi horrível, até Rocky aparecer e ajudá-la a se livrar de Nockman. Molly deixou Nova York para trás, trazendo com ela o dinheiro que ganhou e um grande diamante que apareceu em seu caminho no dia do assalto ao banco. De volta ao Lar Vidadura, as coisas finalmente começaram a melhorar. Molly afastou a governanta víbora do orfanato, o prédio ganhou outro nome, e a doce — embora meio abilolada — viúva chamada Sra. Brinklebury, que tinha trabalhado no orfanato antes, voltou para sempre. Molly lhe disse que o dinheiro que tinha trazido dos Estados Unidos era de um rico benfeitor que queria ajudar o orfanato. Molly também hipnotizou o ladrão de bancos, Simon Nockman, e o trouxe para ser ajudante da Sra. Brincklebury. Nokman tornou-se uma espécie de experimento vivo. Molly tinha a esperança de que, ficando ao lado de uma pessoa tão boa quanto a Sra. Brinklebury e tendo sido hipnotizado para fazer boas ações, ele logo se transformaria e se tornaria uma pessoa genuinamente boa. Até agora, o experimento estava dando certo.
Molly checou sua lista. Já estava quase completa.
Todas as comidas saudáveis, os vegetais e frutas que a Sra. Brinklebury pedira esta-vam esmagados no fundo do carrinho, por baixo do leite e dos refrigerantes. Por cima, estavam os itens especiais — os presentes para as seis crianças do orfanato que estavam fora.
Gordon Furúnklus e Cynthia Redmon estavam fazendo um curso especial de apri-moramento pessoal, para o qual Gordon, querendo ficar com cara de mau, havia raspado a cabeça. Molly comprou creme e aparelhos de barbear para ele, e chocolates para Cynthia.
Hazel Marretta e Craig Redmon, gêmeo de Cynthia, estavam fazendo um curso de danças de salão, portanto Molly lhes enviaria brilho para os lábios e branqueador de dentes.
Jinx e Ruby, ambos com cinco anos, estavam passeando na fazenda de porcos da amorosa irmã da Sra. Brinklebury. Molly ia lhes mandar pelo correio um pacote de pi-poca e chicletes.
Molly coçou a cabeça, temendo estar novamente com piolhos.
O que falta agora é alguma coisa para os que ficaram. Roger precisa de lêndeas... quer dizer, de lentilhas.
Coitado do Roger. Ele está maluco — disse Rocky, jogando algumas latas de casta-nhas dentro do carro. Realmente, Roger Pikuinhas estava maluco. Desde o Natal, ficava cada vez mais perturbado pelo mundo. Passava a maior parte do tempo trepado no alto do grande carvalho do orfanato.
Hummmm — concordou Molly. — Já pegamos meu ketchup e a comida para os pe-riquitos do Sr. Nockman... pegamos o sorvete para Gemma e as bolachas para Gerry. Só faltam nossas guloseimas e as revistas da Sra. Brinklebury.
Molly empurrou o carrinho cheio e pesado pelo último corredor, em direção à frente do supermercado, e pegou uma caixa de barras de chocolate, um saquinho de bengalas doces e um pacote gigante de Caramelos Moon.
Da prateleira de revistas, Rocky pegou 0 Globo das Celebridades e Bem-Vindo a Meu Mundo — em casa com as estrelas.
A pequena Nuttell seqüestrada era a manchete em negrito do Jornal da Tarde de Briersville, mas Rocky não viu os jornais. Ele e Molly empilharam as compras na esteira da caixa registradora. Uma jovem bonita, de cabelos volumosos e mãos ágeis, começou a passar os preços por sua máquina. Molly olhou para seu rosto jovem de camponesa e seu avental de náilon. Parecia uma espécie de pessoa diferente daquelas das capas das revistas lustrosas à sua frente.
Edição Especial do Oscar trombeteava a manchete do Globo das Celebridades, ao lado de uma foto em close de uma mulher com uma cascata de cabelos dourados e um sorriso tão cheio de dentes que Molly pensou que ela deve ter colocado dentes extras. Seus lábios pareciam balas cor-de-rosa reluzentes e os olhos eram como os de um leo-pardo. Molly conhecia bem esse rosto. Todo mundo conhecia.
Suky Champanhe, Indicada para o Prêmio da Academia, Mostra Seus Sapatos.
A Sra. Brinklebury ficaria contente. Sua época preferida do ano era quando se apro-ximava o momento dos prêmios da Academia — a época em que Hollywood concedia seu maior e mais importante prêmio — o Oscar — às pessoas mais talentosas do cinema. Em geral, durante semanas, ela não falava de outra coisa.
Bem-Vindo ao Meu Mundo trazia a foto de um homem que mais parecia deus do que humano. Tinha a pele escura como carvão e usava um sarongue de Tarzan. Estava de pé, sob o sol, em um rochedo sobre o mar e suas tranchinhas compridas voavam per-feitamente ao vento.
— Eu ficaria exatamente como ele, se me enfiassem numa roupa dessas — disse Rocky, sorrindo torto. — Só preciso deixar meu cabelo crescer.
— E de alguns músculos — disse Molly.
Hercules Pedreira nos convida para sua villa em Malibu, era a frase que estava abaixo da barriga reluzente do ator.
Por um momento, Molly sentiu uma pontada de arrependimento. Se tivesse continu-ado com sua carreira de estrela em Nova York, esta semana estaria à beira-mar na Cali-fórnia e na capa de Bem-Vindo ao Meu Mundo — seu talento hipnótico poderia tê-la levado ao topo, mas desistira dessa vida de fama e riqueza para voltar para casa e ficar com seus amigos e sua família. Agora, ela só era especial de uma maneira normal, como a jovem da caixa registradora à sua frente. Molly pagou com duas notas enroladas. Cal-culou, de cabeça, rapidamente, quanto dinheiro ainda havia no Lar da Felicidade e mor-deu os lábios. O dinheiro que ganhara em Nova York encolhia depressa. Sempre parecia haver tanta coisa para pagar — despesas da casa, despesas de decoração, despesas de compras, despesas de roupas, despesas de comida.
Mas quando lembrou do belo salva-vidas pendurado em seu pescoço, parou de se preocupar. Sua mão procurou-o e tocou a protuberância dura, do tamanho de uma a-mêndoa, por baixo da camiseta. Seu diamante maciço. Deveria valer uma fortuna.
Molly pegou o troco, respirou aliviada e, ao sair da loja, jogou todas as suas pequenas moedas no boné de papelão da louca embrulhada no saco de dormir sujo que sempre ficava sentada ali, falando sozinha.
— Obrigada, minha filha — disse ela com um sorriso de dentes quebrados.
Molly não gostava que as pessoas a chamassem de "minha filha", porque não era fi-lha de ninguém — era uma órfã. Mas sentiu-se mal pensando isso da pobre mulher que dormia na porta do supermercado.
— Tudo — disse ela. — Feliz ano n... ééé... Feliz março.
Capítulo Três
A
Sra. Brinklebury tinha parado seu carro verde-oliva fora de moda no estacionamento perto do rio Brier. Molly e Rocky empurraram o carrinho pela ladeira, passando pelo açougueiro, onde muitas vezes compravam sobras apetitosas para Petula, pela loja de fotos e pela padaria. Logo, encheram o porta-malas. Rocky foi devolver o carrinho e pegar alguns parafusos na loja de ferragens.
Molly abriu a porta da frente do carro, enfiou-se no banco de passageiro e vestiu sua jaqueta de brim. Começou a pegar um pouco da espuma que estava saindo do estofa-mento de vinil branco, e pensou no que faria no resto do final de semana.
Poderia ajudar Rocky a fazer um carrinho-de-mão, ou talvez ir até os estábulos para ter aula de equitação. Talvez todo mundo quisesse ir nadar na Piscina de Briersville. Nenhuma dessas idéias realmente inspirava Molly, pois a verdade é que o que ela real-mente queria fazer, o que andava louca para fazer há meses, era um pouco de hipnotis-mo. Mas não podia. Tinha prometido a Rocky que não faria. Molly sabia por que tinha prometido — ela e Rocky concordaram que a hipnose era um instrumento perigoso que sempre os colocaria em encrenca, e não era uma coisa que nenhum deles deveria usar para conseguir vantagens para si mesmos. Rocky podia hipnotizar as pessoas usando a voz. Ele também aprendera com o livro do Doutor Logan. Molly não aprendera a domi-nar direito a hipnose por voz — as páginas com essas lições tinham sido arrancadas do livro quando o leu. Mas seus poderosos olhos hipnóticos eram muito superiores à voz de Rocky. O hipnotismo tinha mudado sua vida, não apenas pelo que ela obteve ao usá-lo, mas também porque, pela primeira vez, ela soube realmente como era ser boa em alguma coisa. Molly tinha saudades desse sentimento bom. Na verdade, tinha uma saudade enorme. A vida não era lá muito empolgante sem hipnotismo. A promessa que fizera a estava deixando maluca.
Outra coisa a incomodava desde o Natal. A pessoa que tinha feito Molly achar e pe-gar O livro de hipnotismo desaparecera. O nome dessa mulher misteriosa era Lucy Logan e ela trabalhava na biblioteca de Briesville. Era a bisneta do famoso autor do livro. Lucy tinha hipnotizado Molly para encontrar o livro na biblioteca e então, depois de aprender as lições e ter algumas aventuras, devolvê-lo a ela. Molly achava Lucy absolutamente brilhante — e com certeza a adulta mais especial que já conhecera. Sentia que lhe devia um grande agradecimento e queria muito fazer amizade com ela. Mas agora Lucy Logan tinha desaparecido. Pediu demissão da biblioteca, e sumiu.
A luz úmida de março refletia-se na superfície fria do rio, onde um pato branco en-cardido e um ganso nadavam. Molly observou-os e tentou distrair sua mente do hipno-tismo e do desaparecimento de Lucy. Ficou imaginando onde seria o ninho deles, e en-tão, como se sua mente de repente tivesse subido uma ladeira, viu-se pensando em algo muito distante dos patos. Tinha começado quando a mendiga a chamou de «minha fi-lha». Sem querer, Molly viu-se pensando pela milionésima vez em quem seriam seus pais.
Esta pergunta era como um mosquito que às vezes tentava entrar voando em sua vi-da. Quando a questão picava, só o que Molly podia fazer era coçar.
Se estivesse de bom humor, imaginaria que seus pais eram pessoas interessantes e divertidas que, por alguma terrível razão fora de seu controle, tinham perdido a filha. Quando estava de mau humor, via seus pais como duas pessoas horríveis que tentaram afogá-la como um gatinho indesejado. Fosse qual fosse seu humor, no entanto, pensar neles era sempre frustrante. Porque por mais que tentasse imaginá-los, Molly sabia que nunca saberia realmente quem eles eram.
Ela fechou os olhos e tentou acalmar os murmúrios de sua mente.
Era muito boa nisso, pois tinha se aperfeiçoado na arte de sonhar acordada desde que era bem pequena. Logo já estava respirando tranqüila e imaginando a si mesma sendo levada como uma nuvem, fora do carro da Sra. Brinklebury, seguindo o curso do rio Brier, passando pelas montanhas e chegando até sua nascente no pico mais alto. Molly imaginou que estava flutuando. Ao sentir o peso da terra e da venerável magnifi-cência das montanhas lá embaixo, pensou em como o mundo era enorme e como suas preocupações não tinham nenhuma importância se comparadas a ele.
Sentindo-se revigorada, abriu os olhos. Depois, pegou uma das bengalas de pão da sacola de compras e tirou a ponta. Abriu um frasco novo de ketchup e despejou um pouco no pão. Por alguns minutos, Molly mastigou seu lanche favorito e olhou para o rio.
Na ribanceira mais distante, havia jardins sem cercas e chalés com terraços nos fun-dos. Molly muitas vezes pensava em como deveria ser bom viver num deles. Um dos jardins era maior do que os outros. Parecia ter dois chalés no fundo. Foi então que Molly notou uma coisa nova.
Sebes verdes e densas, cortadas em forma de animais e pássaros, tinham aparecido recentemente nesse jardim. No topo de uma das sebes, havia um grande pássaro de rabo comprido, feito com ramos e folhas, e a seu lado havia uma sebe em forma de lebre a-gachada, com duas orelhas bem definidas. No alto de uma moita de teixo havia um ca-chorro grande com grandes olhos ocos que parecia estar vigiando a casa.
Os raios do sol da primavera dançavam sobre a folhagem reluzente do cachorro feito de moita. Quando a luz incidiu em um galho polido onde seria sua boca, a criatura pare-ceu sorrir para Molly.
Molly lembrou-se de como foi legal quando hipnotizou Petula, a minibuldogue do orfanato, pela primeira vez, em novembro passado. Suspirou e atirou o último pedaço de pão com ketchup para dentro da boca. Era tão difícil manter sua promessa de não hipnotizar. Era como resistir à vontade de caminhar sobre as mãos quando você apren-dia, ou refrear o impulso para não pular muito alto quando você podia mesmo saltar sobre árvores. Molly estava louca para sentir outra vez a empolgante "sensação de fusão" que passava por ela sempre que seus olhos chegavam ao pico hipnótico.
Agora, enquanto os olhos folhudos do cachorro piscavam para ela, Molly de repente teve uma idéia. Ela só prometera a
Rocky não hipnotizar pessoas. O raciocínio razoável continuou em sua cabeça. Nunca prometera não hipnotizar coisas.
A sensação de fusão era ótima. Fazia Molly se sentir como se um sol tropical corresse por suas veias. A voz na sua cabeça a impeliu a continuar.
Vamos, experimente, Molly. Vai aquecê-la. Hipnotize o cachorro de folhas. Você está com medo de quê? Que ele atravesse o rio e venha mordê-la? Molly encarou a moi-ta. Hipnotizar uma moita? Uma moita não podia ser hipnotizada.
Exatamente, insistia sua mente. Mas você vai se sentir legal.
Assim, descendo o vidro da janela, Molly focou os olhos, à sua maneira especial, no cachorro ornamental de folhas. Encontrou dentro de si mesma a sensação distante que fez com que tudo, exceto o cachorro recortado na moita, parecesse borrado. Depois, tentou achar o sentimento das folhas e ramos dentro dela e, quanto mais olhava para o arbusto, mais as folhas do cachorro pareciam absorvê-la e mais os sons da cidade fica-vam abafados.
Molly sentiu que estava cometendo uma travessura. Rocky não ia gostar se soubesse o que estava fazendo. Teria de ser rápida, antes que ele voltasse. Esperou que a sensação de fusão crescesse lentamente em seu corpo. Por um momento, nada aconteceu. Então, apareceu um sinal da sensação, como se centelhas de uma eletricidade estranha estives-sem passando pela coluna vertebral, pelo cérebro, até por trás dos olhos, onde círculos se formavam e latejavam. Sentiu-se ligeiramente efervescente e minúsculos ruídos de rodamoinhos pareciam arrebentar em seus ouvidos. Fios de eletricidade formavam um circuito dentro dela.
Mas, de certa maneira, alguma coisa estava diferente. Era muito intrigante. A sensa-ção que explodia dentro dela não era a sensação familiar de fusão. Enquanto Molly en-carava o cachorro, os olhos pulsando, a sensação pareceu se agitar e sofrer uma mutação. Em vez de provocar o formigamento caloroso, transformou-se em um frio gelado ferroando debaixo de sua pele, fazendo-a se arrepiar de imediato. Molly arfou em cho-que e saiu do transe.
Um barulho agudo de algo cortando, táque, táque, vindo do outro lado do rio chegou a seus ouvidos, e Molly notou um par de grandes lâminas de aço fechando-se e se abrindo abaixo do bico do grande pássaro ornamental. Não conseguia ver o jardineiro, mas fosse quem fosse, parecia decidido em manter as moitas bem aparadas e arrumadas, desejoso de controlar o crescimento selvagem das criaturas de sebes de teixo e alfeneiro.
Pelo retrovisor, Molly viu a gorda Sra. Brinklebury envolvida em seu casaco de tricô, carregando sacolas de lã e vindo em direção ao carro. Os experimentos hipnóticos de Molly teriam de esperar.
Enquanto a Sra. Brinklebury se aproximava, Molly viu que ela parecia muito pertur-bada.
— Veja que notícias horríveis — ela falou, jogando um jornal no colo de Molly.
A manchete do jornal gritava:
ATRIZ MIRIM DESAPARECIDA
Embaixo, havia uma fotografia da menina-prodígio atriz e cantora, Davina Nuttell, vestida de astronauta para seu papel em Estrelas em Marte.
Davina Nuttell desaparece em frente a seu apartamento em Ma-nhattan. Luva de vison encontrada no local. Polícia de Nova York trata o caso como seqüestro.
A Sra. Brinklebury estava fora de si de preocupação.
— Po-pobrezinha! Coitados de seus pa-pais. Você p-poderia imaginar uma coisa dessas, Molly?
Sim, é claro. Já tivera uma experiência direta de seqüestro, quando sua própria e querida Petula fora seqüestrada em Nova York. E também conhecera pessoalmente a famosa Davina Nutell, portanto a notícia era pra lá de chocante. Mesmo não tendo gos-tado muito de Davina, Molly ficou realmente preocupada.
É horrível — ela engoliu em seco.
Está vendo, a vida dos famosos não é só diversão — disse a Sra. Brinklebury e, fa-zendo um biquinho, deu um beijo estalado na testa de Molly.
Estou m-morta de fome, você não? Tomara que o Sr. N. esteja p-preparando o almo-ço. Olha, peguei uma f-fita de vídeo p-para nós todos assistirmos esta tarde. É com Glo-ria Tiammo. Foi com esse que ela ganhou o p-prêmio de Melhor Atriz no ano p-passado. Ela é maravilhosa. Assim, não pensaremos mais em Davina.
Enquanto dirigia para casa, a Sra. Brinklebury cantava junto com a música que toca-va no rádio, tentando se animar. Estava felicíssima porque o menino cantor pop, Billy Bob Bimbo, estava no primeiro lugar com a música «O Homem Corvo».
Não o deixe roubar seu coração — ela trinava,
Roubá-lo, não,
Faça-o de aço, ooooooohhhh
Não o deixe ter seu coração
Defenda-o a cada pedaço, ooooohhhhh
Faça-o de aço,
Homem Corvo, ooohhhhhhh
Quer pegar o sol, as estrelas e você, ooooohh,
Homem Corvo
Vinte minutos depois, chegaram ao Lar da Felicidade. A fachada do prédio estava cercada de andaimes. Metade do prédio era de um branco novinho enquanto a outra metade ainda estava velha, cinza e descascada como antes.
A Sra. Brinklebury carregou sua sacola de novelos de lã até a porta da frente.
Petula avançou como um míssil peludo e preto. Pulou no colo de Molly, abanando seu toco de rabo esticado para cima, e deixou cair uma pedra de presente. Depois, virou-se, voltou correndo pelo cascalho até a casa e de lá trouxe uma carta entre os dentes.
— Obrigada, Petula — disse Molly, pegando o envelope úmido e dando uma olha-da.
O nome de Molly estava grafado em letras elegantes, com uma tinta verde que tinha ficado borrada, e agora só dava para ler "Mo////// //////N". E o endereço tinha sido com-pletamente lambido. Petula, obviamente, guardara o envelope por um bom tempo.
— Me ajuda aqui com essas sacolas, por favor, Molly? — pediu Rocky. — São tão pesadas que estão cortando meus dedos.
Molly pôs o envelope no bolso e pegou uma das sacolas. Foi por isso que ela só leu a carta mais tarde.
Capítulo Quatro
D
urante toda a vida, a casa de Molly tinha sido uma espelunca. Mas recentemente a espelunca passara por uma plástica. Agora, o Lar da Felicidade estava completamente diferente por dentro. Por exemplo, a velha sala de estar com painéis de carvalho, que durante tanto tempo foi uma sala de reunião cheia de correntes de ar, agora tinha tapetes novos no chão e quadros nas paredes. Estava cheia de poltronas e sofás confortáveis e mesas com livros. Uma lareira sempre acesa durante o dia mantinha-a aquecida. Cheirava a polimento com cera de abelha e hoje estava muito bonita, com flores rosa da macieira nos vasos, colhidas no pomar silvestre nos arredores do vilarejo. Em um dos cantos, havia uma mesa de pingue-pongue e, no outro, uma "cama elástica".
Sentada na poltrona ao lado da lareira, as labaredas do fogo iluminando e se refle-tindo em seus óculos enquanto lia um livro de mistério, estava Gemma, de sete anos de idade. No minuto em que Molly pôs sua sacola no chão, ouviu um ruído de colisão na porta.
— Quanto tempo? — perguntou Gerry, forçando a porta com a roda da bicicleta.
Gemma consultou o relógio.
— Cinco minutos e dez segundos. Pior do que a última vez.
— Foi polque delapei quando passei pelo laguinho. O sino da sala de jantar soou.
— Você pode tentar de novo depois do almoço — disse Gemma, levantando-se. — Acho que está precisando de mais energia.
No refeitório, atrás do balcão de comida, o Sr. Nockman estava de pé, no vapor que subia das tigelas de vegetais quentes, salsichas e batatas e flutuava ao redor de seu rosto, fazendo-o brilhar. Tinha uma aparência dez vezes melhor do que quando Molly o co-nheceu. Seu rosto estava mais magro, com as maçãs visíveis, e tinha um aspecto saudável e corado. O branco dos olhos estava branco — não amarelado, nem avermelhado — e sua careca, reluzente e limpa.
Hoje, ele usava um par de calças frouxas de flanela cinza, e um casaco azul, fechado com zíper, com uma listra vermelha grossa embaixo, nas costas. No ombro, seu periquito, Tilili Tica, assoviava contente, dando um pulinho para o lado de vez em quando para lhe dar uma bicadinha amistosa na orelha. Os meninos recebiam dele seus pratos de comida e iam para as mesas.
Quando hipnotizou o Nockman bandido, Molly descobriu que a única criatura que ele amou na vida fora um periquito chamado Fofo. Esse periquito tinha morrido. Para ajudá-lo a modificar seus hábitos criminosos, Molly bolou uma terapia "periquital" es-pecial para ele, que parecia estar produzindo resultados positivos. Toda vez que Nock-man fazia algo excepcionalmente gentil, alguma coisa genuinamente boa, podia comprar um novo periquito. Molly agora estava começando a ficar preocupada, pensando que a casa logo ficaria abarrotada de pássaros, porque Nockman estava fazendo coisas realmente muito, muito gentis, quase todo dia. Já ganhara vinte periquitos desde o Natal. Em seis meses, provavelmente teria 200 pássaros. Por essa época, suas instruções hipnóticas já teriam se esgotado e Molly tinha certeza de que ele se comportaria bem por vontade própria.
O novo Nockman estava sempre sorrindo, radiante. Estava mais feliz do que jamais estivera em sua vida. Colocou três salsichas perfeitamente cozidas que havia guardado no prato da Sra. Brinklebury.
Gostarria de mais feijons, minha querrida? — ele lhe perguntou com seu estranho sotaque alemão, na verdade um sotaque que Molly o hipnotizara para ter.
Oh, obrigada, Simon — disse ela, enquanto dobrava um guardanapo para lhe dar, no formato de um pássaro.
Depois do almoço, todos se reuniram na pequena sala de TV A Sra. Brinklebury sentou-se na poltrona e todo mundo acomodou-se em almofadas, ou partes de almofa-das, ou no chão.
Nockman balançou o velho aparelho de videocassete para fazê-lo trabalhar, e o filme da Sra. Brinklebury, O verão dos suspiros, começou.
Tirando um intervalo em que três camundongos de Gerry escaparam de sua camisa, todo mundo ficou grudado no filme por duas horas. Quando terminou a última cena, com Gloria
Tiammo atirando-se ao mar de um rochedo, a Sra. Brinklebury chorou e Molly pegou no bolso um lenço de papel para ela.
Redescobrindo a carta que Petula lhe trouxera, Molly saiu do quarto para lê-la. Petu-la foi atrás. Elas subiram até o topo da escada, onde ambas se sentaram.
Molly abriu o envelope. Dentro, havia um cartão meio mastigado com o endereço:
Estrada do "Pantanal, 14 Briersville
Debaixo, em letra verde, havia uma mensagem que alvoroçou o coração de Molly e ao mesmo tempo encheu-a de alívio.
Sexta-feira Querida Molly,
Lamento não ter entrado em contato com você antes, mas estava no hospital, pois sofri um acidente. Não se preocupe, está tudo bem, embora por um tempo tenha sido complicado.
Estou outra vez em casa e gostaria de ver você. Contarei todas as minhas no-vidades, porém o mais importante é que estou louca para saber das suas aventu-ras com o hipnotismo.
E também tem uma coisa muito importante que gostaria que você fizesse.
Poderia vir tomar um chá comigo no domingo, às quatro?
Então, a verei, se é que a verei... Espero que sim... "Perfeitamente Pontual?
Tudo de bom,
Lucy Logan
— Oba... que tal isso, Petula? — disse Molly, dando-lhe um apertão. Estava real-mente contente. Finalmente tinha notícias de Lucy Logan outra vez. Molly estava ansio-sa para vê-la. Perguntava-se por que Lucy pedira demissão da biblioteca, e continuava achando estranho que não a tivesse procurado. Mas talvez ela tenha passado todo esse tempo no hospital. Molly esperava que o acidente não tivesse sido grave.
Molly lembrou-se de como tinha flutuado como um floco de neve até a biblioteca, na calada da noite nas vésperas do Natal, para devolver o misterioso Livro de hipnotismo, como Lucy a hipnotizara para fazer. Lucy a despertara de sua lição hipnótica com as palavras "Perfeitamente Pontual". Molly sorriu ao ler as mesmas palavras na carta.
Molly imaginou o que Lucy queria que fizesse. Quanto a ela, queria agradecer, contar sobre Nova York e conversar sobre hipnotismo. Havia também outra boa razão.
Manter sua promessa de não hipnotizar ninguém estava deixando Molly realmente maluca. Não era só frustrante. Pensar que nunca seria capaz de usar seus poderes outra vez estava começando a fazê-la se sentir como se tivesse perdido algo, como se alguma coisa nela tivesse morrido.
Lucy tinha dito a Molly que usava o hipnotismo para fazer coisas boas para as outras pessoas. Molly e Rocky tinham feito seu próprio tipo de hipnotismo bom antes de deixar Nova York. Eles fizeram um anúncio hipnótico de TV, chamado "Dê uma Sacada nas Crianças de Sua Vizinhança". Pensaram que o anúncio faria as pessoas que o vissem cuidarem melhor das crianças de seu bairro. A empresa de televisão prometera exibi-lo várias vezes e, portanto, provavelmente ele tinha feito algum bem. Molly queria pedir a Lucy para dizer a Rocky que não havia problema com o hipnotismo generoso e altruísta.
Então, talvez ele concordasse em quebrar o acordo que tinham feito de não hipnoti-zar. Ela precisava explicar tudo isso a Lucy, sem Rocky por perto.
Por isso, Molly resolveu ir sozinha ao endereço da Estrada do Pantanal, número 14.
Capítulo Cinco
A
manhã de domingo estava tão clara e cintilante que as árvores de folhas lustrosas do lado de fora da janela de Molly pareciam molhadas. Ela inspirou o ar gelado e se sentiu bem animada. Hoje, ela ia tomar chá com Lucy Logan.
Quando dois tordos pousaram numa moita espinhosa de amoras vermelhas e come-çaram a bicar as frutinhas, Molly viu a figura magricela de Roger Pikuinhas mexendo nas folhas secas e arbustos quebrados debaixo do carvalho. Com seu nariz pontudo e movimentos desajeitados, ele parecia um pássaro bicando atrás de comida.
Roger tinha ficado um pouco doido. Parecia viver em um mundo assustador de fan-tasia, onde as folhas e as pedras sussurravam em seus ouvidos. Perambulava pela cidade, escutando mensagens secretas, e fazia dardos de papel dobrado com coisas escritas. Coisas como Mandem socorro rápido! Alienígenas comeram meu cérebro! Cuidado! As centopéias cerebrais chegaram! e Não julgue seu corpo pela pele.
Ele jogava esses dardos por toda Briersville — nas caixas de correio, nos jardins, dentro dos carros e das lojas. Uma vez, conseguiu passar pela porta de saída do cinema e jogou cinqüenta desses dardos na platéia.
Molly se perguntava se o hábito peculiar que ele desenvolvera — de pegar comida nas latas de lixo de Briersville — tinha lhe dado algum tipo de infecção cerebral, mas o médico disse que tudo de que ele precisava era descanso, boa comida e bondade.
Molly abriu a janela e gritou:
— Roger, você está legal?
Roger, nervoso, olhou para cima e depois por sobre o ombro para verificar se não ti-nha ninguém ouvindo.
Estou, hoje eles não vão conseguir me pegar.
Quer passear de bicicleta?
— Não posso, Molly. Tenho muita coisa para fazer. Quem sabe outro dia.
— Tudo bem, me avise quando puder. Será divertido. Ela fechou a janela e se per-guntou se Roger algum dia ficaria bom.
A manhã deu lugar à tarde.
O passeio de bicicleta ladeira abaixo até Briersville foi agradável e refrescante. A beira da estrada, explodiam brotos verdes de açafrão e de narcisos, e o céu estava azul. Na límpida brisa de março, as árvores floridas inclinavam-se um pouco. Algumas árvores ainda estavam frias e desnudas, mas as pontas de seus galhos, em que as novas folhas estavam prestes a irromper, coloriam-se de rosa-escuro.
Molly passou pelas casas do vilarejo, pela estrada que serpenteava por campos cheios de vacas, pela Escola de Briesville, e entrou na cidade. Como era domingo, tudo estava muito tranqüilo. A Prefeitura, com seu telhado cobre-esverdeado, estava fechada, e a rua larga estava deserta.
A Estrada do Pantanal era uma rua estreita, de pedras redondas, do outro lado da ponte, depois de virar à direita. O número 14 era um chalé com janelas salientes, em uma fileira de casas muito velhas. Molly encostou a bicicleta no muro da frente e, segurando a aldrava de pata de leão na parede, bateu duas vezes. Ao abrir a capa, olhou para a camiseta e reparou que tinha uma mancha do molho que deixara cair na hora do almoço. Estava tentando chupar para ver se a mancha saía quando a porta se abriu devagar. Molly deixou a camiseta cair da boca aberta.
Na sua frente estava uma imagem chocante: uma figura de filme de terror, mas u-sando a elegante saia plissada, a blusa de gola branca e o cardigã azul sem enfeites de Lucy Logan. Toda a cabeça estava envolvida em ataduras brancas, exceto um pequeno trecho dos cabelos na parte de trás, arrumado em um coque elegante. Molly via os co-nhecidos olhos azuis de Lucy e sua boca, mas o resto do rosto estava coberto com algum tipo de atadura.
Lucy estava de pé, apoiada em muletas. No pé esquerdo usava um chinelo, mas toda a perna direita estava engessada, e os dedos, com esmalte rosa, apareciam no final do gesso.
A primeira reação de Molly foi engolir um suspiro de horror, e por um momento fi-cou atônita.
— Oh, Molly, me desculpe. É claro que isto é um terrível choque para você.
Molly assentiu e depois conseguiu dizer:
— Você está bem? O que aconteceu?
Lucy inclinou o corpo para fora da porta e olhou para a esquerda e a direita, preocu-pada. A seguir, puxou Molly para dentro.
— Vou lhe contar tudo, mas entre, rápido, os dedos dos meus pés estão congelando.
Molly viu-se de pé em uma pequena sala. Em uma mesa de cerejeira semicircular, um relógio de consolo tiquetaqueava tranqüilo. Do lado oposto, um pêndulo oscilava, em um antigo e pequeno relógio de pé. Enquanto Lucy tirava o blusão de Molly e o pendurava no espaldar de uma cadeira, ela sentiu o cheiro de torradas e se perguntou por que sua anfitriã tinha tido aquele comportamento tão desconfiado.
Venha para o calor — disse Lucy, andando desajeitada com suas muletas e fazendo Molly passar por uma escada estreita até chegar a uma cozinha meticulosamente arru-mada. Era tão imaculada que Molly olhou para sua mancha de molho e desejou ter tro-cado a camiseta.
Sente-se — disse Lucy, gentil, indicando-lhe um banco em forma de lua crescente, ao lado de uma janela.
Você aceita um chá?
Éé... de laranja concentrada, se você tiver — disse Molly, não ousando pedir o suco de laranja concentrado, que preferia. Não queria que Lucy pensasse que era esquisita.
Ótimo — disse Lucy e colocou a chaleira no fogo.
Molly sentou-se no banco, as mãos metidas entre os joelhos, tentando não olhar de-mais para a cabeça com atadura de Lucy e sua perna e mão engessados. Que tipo de acidente horrível aconteceu com ela? Molly não sabia o que dizer, e as palmas de suas mãos começaram a suar, como sempre acontecia quando ficava nervosa. Lucy quebrou o silêncio:
— Molly, desculpe por não ter lhe procurado. Você deve ter achado estranho eu não ter telefonado. Duas coisas aconteceram. Primeiro, uma coisa muita séria tomou conta de minha vida e eu não podia contar nada a ninguém. E, depois, sofri o acidente. Meu carro pegou fogo. Meu rosto foi gravemente queimado. Ainda não posso comer muito — tenho que chupar a sopa com canudinho e mastigar os biscoitos até que se dissolvam em minha boca. Minha garganta ficou arruinada com toda a fumaça. Minha voz foi afetada, como você pode perceber. Provavelmente, ficarei rouca para sempre, e nunca mais serei capaz de cantar notas agudas. Os médicos dizem que meu rosto ficará com cicatrizes e meu cabelo nunca mais crescerá em alguns lugares. Mas — ela deu um sorriso torto — tenho sorte de não ter morrido, e agora não considero a vida algo garantido.
Molly estava abalada, e em silêncio constrangedor. Nos últimos meses, tinha ficado aborrecida e magoada pensando que Lucy a esquecera. Nunca imaginara que alguma coisa horrível como essa pudesse ter lhe acontecido. Agora, sentia-se envergonhada por seu egoísmo.
Não se preocupe por não ter me procurado — disse, rápida. — Quer dizer, eu fiquei mesmo sem saber para onde você tinha ido, mas estava ocupada pondo em ordem o or-fanato, com a reforma e tudo isso. E tudo isso graças a você, querida Lucy. Tudo está muito mais confortável agora. Todo mundo está mais feliz. A escola está muito melhor porque a Sra. Assapa foi embora. Bom, éé..., na verdade ela foi posta no olho da rua.
Ouvi dizer que foi porque ela saiu dizendo para todo mundo que era uma professora horrível — disse Lucy.
E era mesmo — disse Molly, esperando que Lucy não desaprovasse o fato de Molly ter hipnotizado a tirânica Sra. Assapa para dizer isso. — Mas eu não fiz nenhum outro hipnotismo desde que desci do avião, antes do Natal — acrescentou. Esperava que Lucy ficasse bem impressionada com essa auto-restrição, mas a bibliotecária olhou-a com atenção.
— Você parou? Por quê? Não precisa de nada? Molly ficou sem saber o que dizer.
Eu... bom... não pensei nisso. É só que prometi a Rocky que não faria mais hipno-tismo.
Oh, querida — Lucy ficou em silêncio. Depois, disse: — Pegue sua bebida e esses biscoitos. Vamos para a sala de estar. — Ela passou mancando pela outra porta. Molly foi atrás, e a imponência da sala desviou sua atenção das ataduras de Lucy. A sala era um santuário do hipnotismo.
No centro, havia uma mesa com uma espiral circular de cobre embutida. Molly olhou o padrão. Fazia-a recordar uma espiral semelhante, desenhada em um pêndulo que uma vez possuíra. O desenho de cobre parecia atrair seus olhos para um ponto no centro da mesa. Imediatamente, sentiu-se relaxada. Na mesma hora, estalou os dedos para se recuperar.
Essa mesa é hipnótica?
Pode ser — respondeu Lucy.
Tenho que ficar alerta desta vez — disse Molly, sorrindo. — Foi inacreditável como você me hipnotizou com tanta facilidade em novembro passado, na biblioteca.
Bom, como lhe falei, eu queria que você achasse o livro — disse Lucy. — Mas não se preocupe, nunca mais vou precisar hipnotizá-la de novo.
De qualquer maneira, estou alerta demais para ser hipnotizada — disse Molly, se-guindo a espiral de cobre com o dedo. — Eu acho.
E estava mesmo. Tudo naquela sala fazia com que se lembrasse do incrível poder do hipnotismo. Sobre o consolo da lareira, acima do fogo crepitante, estava pendurado o retrato de um cavaleiro vitoriano empertigado, de fraque e cartola. Do bolso de cima do seu colete saía uma corrente de ouro, ligada a um reluzente relógio de pulso. Molly i-mediatamente reconheceu o velho do retrato de O livro do hipnotismo.
— Sim, este é o grande Dr. Logan, o próprio — disse Lucy, sentando-se em uma cadeira. — Por toda esta sala estão coisas que pertenceram a ele e que foram passando pela família. A mesa e, no armário atrás de você, o relógio que ele está segurando neste retrato. Ele o usava como pêndulo. Dr. Logan viajou por toda a América, e foi assim que fez sua fortuna. Tenho vários retratos dele e do seu espetáculo itinerante de hipnotismo. Tenho a sua coleção de relógios em miniatura, também. Pode olhar.
Molly foi até o armário. Molduras de prata continham fotografias em sépia de pes-soas da época vitoriana. O Dr. Logan estava em um palco, posando teatralmente ao lado de uma figura peculiar. Deitada reta e equilibrada entre duas cadeiras, com a cabeça em uma e os pés em outra, estava uma mulher. Nada sustentava seu corpo. Seu vestido comprido enrolava-se nas pernas, como uma sombrinha fechada, para não arrastar no chão, e ela estava dura feito uma tábua. Molly sabia que era um truque hipnótico cha-mado "A Tábua Humana". Outra foto, com a etiqueta de "Parque de Briersville", mos-trava uma casa enorme, com colunas altas dos dois lados da porta da frente, e degraus grandiosos subindo de um passadiço de cascalho.
Molly examinou o relógio de bolso de ouro e depois inspecionou os minúsculos re-lógios. Na parede, ao lado do armário, havia mais três. Um redondo, um no formato de um farol, e outro de estanho. Todos marcavam a hora certa.
— Nunca vi tantos relógios na minha vida — disse.
— Bom, você provavelmente nunca esteve na casa de um colecionador de relógios — disse Lucy. — Os relógios me lembram que a vida é curta e que não tenho tempo a perder.
Enquanto pensava nisso, Molly olhou para fora da janela da sala de estar. Foi então que notou que o jardim de Lucy era exatamente aquele dos animais ornamentais de fo-lhas que ela vira. A lebre e o cachorro estavam muito próximos da janela, escurecendo a sala mais do que deveria.
Uau! Eu estava olhando para seus animais de planta ontem — exclamou Molly. — Sem saber que eles pertenciam a você. São novos? Eu olho com freqüência para a outra margem do rio, quando estou no estacionamento, e nunca vi nenhum antes.
Sim, são novos. Comprei as plantas já crescidas e eu mesmo podei.
— Gosto do cachorro com os olhões — disse Molly. Lucy riu.
— Era para ser um lêmure. Realmente, preciso freqüentar as aulas de poda orna-mental. — Ela pegou uma torrada. — Sirva-se, Molly. Eu não deveria, na verdade, en-gordei muito desde o acidente. Comi centenas de biscoitos. — Mexeu na saia, pouco à vontade, e abaixou um pouco o zíper. — Os arbustos estão aí por um motivo — acres-centou. — É para fazer as pessoas pararem de ficar olhando para cá.
Lucy de repente parecia nervosa.
— Nunca tenho certeza de quem está me observando — fez uma pausa. Depois, sé-ria, disse: — Molly, tenho coisas demais para lhe contar hoje. Mas primeiro quero saber tudo que você fez depois que leu o livro. É muito importante que eu saiba. Depois, lhe contarei o que estive fazendo. Mas você primeiro. Estava muito ansiosa para saber de suas aventuras.
Claro — disse Molly, curiosa sobre o misterioso assunto de Lucy, mas morrendo de vontade de lhe contar suas espantosas experiências. E, assim, disparou a falar.
Passei por coisas incríveis. Foram mesmo as coisas mais divertidas que fiz na vida, misturadas com as piores também...
Lucy Logan escutou atentamente, mas não estava tão interessada como Molly pen-sou que estivesse no que ela tinha feito em Briersville e Nova York. O que Lucy Logan mais queria saber era quem Molly tinha hipnotizado e como. Fez várias perguntas sobre como exatamente ela hipnotizara uma platéia no show de talentos de Briersville para conseguir ganhar, depois como hipnotizara uma aeromoça, e como tinha hipnotizado os empregados do hotel em Nova York. Queria saber precisamente como Molly tinha hip-notizado seu empresário, Barry Bravatta, e ficou muito curiosa para saber como Molly conquistara todo o público de nova-iorquinos no musical Estrelas em Marte. Queria detalhes precisos sobre os métodos que ela e Rocky tinham usado quando roubaram o Banco Shorings depois que Nockman os chantageou. Suas perguntas eram tão meticulo-sas que era quase como se Lucy a tivesse testando.
— Então — ela disse, por fim —, você devolveu todo o dinheiro e as jóias para o banco. Foi muita honestidade de sua parte. Poucas pessoas teriam feito isso.
Molly não disse nada. Seus dedos automaticamente tocaram o diamante pendurado em seu pescoço. Resolveu não dizer nada a Lucy sobre isso, por enquanto. Não queria que Lucy a reprovasse.
— E você, Lucy? — ela perguntou, em vez disso, limpando a boca nas mangas. — Agora é sua vez de me contar suas aventuras hipnóticas.
— Claro que contarei — respondeu Lucy, pegando outro biscoito. — Mas não ago-ra. — Seus olhos azuis, do fundo de sua moldura branca de ataduras, fitaram Molly, e ela disse com uma voz séria: — Molly, não temos tempo para minhas histórias agora. O trabalho especial que me fez pedir demissão da biblioteca é muito grave. Foi por isso que não entrei em contado com você. Não queria envolvê-la, porque não queria colocá-la em perigo. Mas chegou a hora de você saber o que está acontecendo — ela respirou profundamente. — Você achou que estava vindo para um chá divertido, mas eu a con-videi para lhe pedir para fazer uma coisa muito, muito importante. Estou extremamente preocupada, mas não tenho escolha. O tempo está se esgotando.
Molly engoliu em seco. Não estava gostando do caminho que a tarde ia tomando. Lucy levantou-se:
— Por favor, venha comigo.
Molly seguiu Lucy, saindo da sala de estar e passando por um corredor em cujas pa-redes estavam penduradas outras dezenas de relógios. Um lance de uma escada de pedra levava a um porão. Mancando, Lucy foi descendo devagar.
No fundo havia uma porta com quatro trancas, dois cadeados de combinação e duas fechaduras. Molly se perguntou o que precisava de tanta proteção.
— Aqui dentro tem segredos que devem ficar escondidos — disse Lucy. — Segre-dos que vão interessá-la. Entre.
Capítulo Seis
O
porão não era, de jeito nenhum, o que Molly esperara. Ela associava a bibliotecária a estantes de livros velhos e arquivos, não a esse espaço de alta tecnologia, com suas estantes e fichários de metal. Na parede do fundo havia uma tela de plasma. Lâmpadas ocultas no teto iluminavam o carpete cinza e brilhavam sobre uma mesa no centro do cômodo, que servia de apoio a um teclado branco, um mouse de computador, um apoio de veludo para o mouse e duas árvores em miniatura bonsai. Um mostruário de vidro estava colocado debaixo da tela branca. Continha seis pares de sapatinhos coloridos.
Ah, esses são sapatos de lótus chineses — explicou Lucy, ao ver que Molly os fitava. — Alguns são anteriores à Dinastia Tang do Sul, 920 d.C. Eram usados por meninas cujos pés eram atados para não crescerem. Não são lindos?
Você foi à China em suas.... aventuras? — perguntou Molly, perturbada com os es-tranhos sapatinhos
Não — Lucy sentou-se em uma cadeira giratória de aço cromado e gesticulou para Molly sentar-se na outra. Virou-se para o computador. Ruídos de motor vinham de uma parede com equipamento de aço, e a grande tela mostrou um menu com muitos arquivos.
Molly — disse ela, em tom solene —, eu me afastei da biblioteca porque um ano a-trás descobri uma coisa. E dediquei todo o meu tempo dos meses passados para investi-gá-la. É uma coisa muito terrível que está acontecendo no mundo. Uma coisa que afetará você, eu, todas as pessoas.
Fosse qual fosse essa coisa ruim, Molly sabia que não queria ter nada a ver com ela. Enxugou as mãos pegajosas nos jeans, enquanto Lucy clicava duas vezes em um arquivo da tela. Chamava-se "LA". Apareceu a imagem da primeira página do Los Angeles Times. A manchete dizia: A Criança-prodígio Davina Nuttell Temia Ser Seqüestrada. Ali estava o rosto familiar da menina atriz sorrindo enquanto abraçava um cachorrinho.
Suponho que você deve ter visto essa notícia — disse Lucy. — A polícia não conse-guiu achar nenhuma pista. A pobrezinha desapareceu completamente.
Coitada da Davina — disse Molly. — Ela não era exatamente uma flor de pessoa, mas espero que esteja bem.
Acredito que ela não está — disse Lucy. — Também suspeito de que esse caso de seqüestro não esteja sendo examinado cuidadosamente pela polícia como deveria. Acho que Davina foi levada por uma pessoa que tem uma grande influência sobre a polícia, de uma forma que não há nenhuma chance dessa pessoa ser pega em nenhum momento.
— Quem? — perguntou Molly. — Como você sabe?
— Antes que eu lhe diga quem eu acho que é, quero lhe mostrar umas coisas.
Uma série de fotos encheu a tela. Estranhamente, todas eram fotos publicitárias. Primeiro, apareceu um carro esporte vermelho Primo Veloz, depois um cortador de grama verde Cortabem, depois um computador Compucell, logo um sorvete Barra Céu. Imagens de objetos diferentes, sem ligação um com outro, passaram pelos olhos de Molly. Ela reconheceu muitos deles. Um caneta-tinteiro azul e prata "Inspirações", uma faca Shique Shaque, um vestido infantil Casa da Moda, uma lata de sopa Jovem Esper-ta, um pacote de Biscoitos de Trigo e Mel Levemais, um rolo de papel higiênico Sun-tuosus, um frasco de creme hidratante Frescor Suave, um iogurte Vitabom e um frasco de detergente Muitabolha. Molly se perguntou o que essas coisas do dia-a-dia teriam a ver com o terrível seqüestro de Davina Nuttell.
Lucy perguntou de repente:
Como você escolhe as coisas que compra, Molly?
Sabendo o que eu quero? — respondeu Molly, sem ter certeza se era essa a resposta certa. Uma lata de Qube pulou na tela, como se estivesse querendo ajudá-la.
Mas como você sabe o que quer? — perguntou Lucy. — Existem tantas coisas ma-ravilhosas. Por exemplo, veja todas essas guloseimas. — Lucy apertou uma tecla e inú-meras marcas diferentes de doces pipocaram na tela. Chicletes Quebraqueixo, balinhas Coocooo, gomas Barra Céu. — Como você sabe que guloseimas comprar?
Bom, eu sei de quais eu gosto.
Sim, mas antes de provar pela primeira vez essas guloseimas que agora você sabe que gosta, como sabia que deveria experimentá-las?
Por que ouvi falar delas?
Quem falou?
Amigos.
E...
Os comerciais?
Exato — disse Lucy.
Molly não sabia aonde Lucy queria chegar. Molly não achava que os comerciais eram muito bons. Houve uma época em que tinha pensado que beber Qube ia mudar sua vida, tudo por causa de seu fabuloso anúncio efervescente. Mas tudo o que conseguiu foi arrotar. Todos os comerciais não eram uma espécie de lavagem cerebral?
— É bom que você entenda que os comerciais têm o poder de fazer as pessoas comprarem coisas — disse Lucy. — Agora, quero que você olhe esses rostos.
Na tela apareceu uma seleção de rostos famosos e Molly reconheceu a maioria. Havia artistas de cinema, cantores e celebridades. Gloria Tiammo, a Rainha de Hollywood, Suky Champanhe, a jovem estrela, Billy Bob Bimbo, o menino cantor, Hercules Pedrei-ra, Cosmo Ás, Rei Moose, o boxeador, e Tony Uam, a fera do caratê.
— Gostaria de saber — disse Lucy, parando na foto de uma mulher ruiva com grandes olhos castanhos — se você sabe o que essa mulher gosta de comer depois que vai à academia de ginástica.
Era uma pergunta esquisita, mas Molly compreendeu que sabia exatamente o que Stephanie Guizadim, a cantora cujas músicas eram as mais tocadas nas rádios, gostava de comer. Hazel tinha colocado na lista de compras da semana passada exatamente o mesmo tipo de barra de cereal.
— Barra de Cereais Poder Leve — disse Molly, sentindo-se como se estivesse em um quiz na televisão.
Absolutamente correto — disse Lucy. — E que tal esta, este ator, Hercules Pedreira? Que desodorante ele usa?
Em Sintonia. — As palavras pularam da boca de Molly antes mesmo que ela perce-besse que sabia a resposta. Craig vivia falando de Hercules Pedreira, das coisas que ele comia, do que usava, o que passava em suas famosas axilas.
Exato — Lucy disse outra vez. — Então, você percebe como essas celebridades, da mesma maneira que os comerciais, também estão dizendo para as pessoas o que elas devem comprar.
Molly assentiu.
— Milhões de pessoas sabem disso, exatamente como você. E é isso que me deixa preocupada.
Molly não entendia por que Lucy deveria ficar preocupada. Talvez a amiga fosse an-tiquada e achasse que um ator não deveria deixar as pessoas invadirem sua privacidade. Mas o que, pelo amor de Deus, isso tinha a ver com o seqüestro de Davina?
Lucy clicou e dois videoclipes apareceram na tela. Era um anúncio de Poder Leve que acabava com uma pequena Stephanie Guizadim sentada no topo de uma versão gi-gante da famosa marca de cereais. No outro, Hercule Pedreira brandia um bastão de Em Sintonia como se fosse uma espada, lutando com uma multidão de monstrinhos verdes. Vinte anúncios, que iam de batons a máquinas de lavar e a computadores mostravam celebridades do mundo do entretenimento, estrelas do esporte, personalidades da TV Molly reconheceu quase todos.
— E esta é a coisa mais importante: todos os produtos nesses anúncios são feitos por empresas que pertencem a um único homem — disse Lucy. — Cada vez que uma dessas coisas é vendida, ele fica mais rico.
Então, ele deve ser muito rico — comentou Molly.
Não é uma coincidência estranha que tantas celebridades tenham escolhido anunciar os produtos dele? — perguntou Lucy. — Nenhuma delas promove nenhuma outra coisa de nenhuma outra empresa.
Bom, ele provavelmente paga um monte de dinheiro por isso — disse Molly.
Eu acho que ele não paga nada — disse Lucy. Com um súbito giro em sua cadeira, ela se virou para olhar Molly diretamente nos olhos. — Eu acho que ele as hipnotiza.
Você o quê?
Molly, você deve ter percebido como o hipnotismo é poderoso. Deve saber que, se cai nas mãos erradas, pode ser uma arma muito poderosa.
Molly assentiu devagar. Ela não queria ouvir o que vinha a seguir.
— Há muito tempo venho temendo que um dia alguém tentasse ganhar muito di-nheiro com o hipnotismo secreto — continuou Lucy. — Meu bisavô sempre receou essa possibilidade. Ele estava certo. O poder hipnótico vai para os maus assim como para os bons. Os maus, que sabem hipnotizar, são muito ambiciosos e destrutivos. Esse empre-sário é muito perigoso.
Na tela aparecia a cabeça e os ombros gigantescos de um homem alto, muito bem vestido, de cabelos grisalhos, usando um boné de beisebol, de braços dados com dois jogadores famosos.
— Ele é o proprietário da empresa que faz os foguetes Rocket, e as Barras Céu, e Em Sintonia, e Poder Leve e tudo o que você viu nesta tela hoje. É multimultibilionário. Ele é tão rico, Molly, que ganha mais dinheiro em um dia do que todas as pessoas de Briersville juntas em um ano. Seu nome é Primo Cell.
Molly olhou, fascinada, para outras fotos do magnata elegante e bronzeado. Tinha um rosto grande e nariz comprido, queixo cinzelado e a boca era grande. Todos os seus traços eram pouco notáveis, exceto os olhos. Um era turquesa, o outro castanho, e juntos o duo era espantosamente magnético e absolutamente atraente. Molly só queria ficar olhando para eles. Ali estava ele em um safári, segurando um filhote de leão, e ali, em pleno ar, dentro do cesto de um balão de ar quente. Havia montagens de filmes com ele saindo de restaurantes, em festas com as celebridades que tinham aparecido na tela an-tes. Suky Champanhe, Hercules Pedreira, Gloria Tiammo, Stephanie Guizadim e Cosmo Ás.
— Primo Cell é um hipnotizador, tenho certeza — disse Lucy. — Eu também sou, e muito competente. Minha compreensão da arte me fez começar a suspeitar dele já há algum tempo. A partir de então, tenho estudado tudo que posso sobre ele. Desta sala, posso assistir canais de TV do mundo todo. Quanto mais coisas descubro, mais certeza tenho de estar com a razão. Deixa-me contar mais. Doze anos atrás, este homem não conhecia ninguém. Veja.
Apareceu outra foto, sem dúvida do mesmo homem, só que muito mais jovem, u-sando camiseta e jeans, segurando um cartaz que dizia: TORNE SEUS ANIMAIS DE ESTIMAÇÃO VEGETARIANOS. DÊ A ELES "RAÇÃO LEGAL".
— Seu primeiro negócio foi um fracasso ridículo.
Era uma idéia legal, apesar de tudo — disse Molly, pensando em como Petula gos-tava de morangos.
Por isso é que se chamava "Ração Legal". Compare esse homem com o Primo Cell de hoje. Está ficando cada vez mais rico e mais poderoso. Esse mesmo homem hoje tem centenas de empresas e milhões de pessoas no mundo todo compram seus produtos. As estrelas as anunciam alegremente... com coisas que normalmente não seriam vistos nem mortos. Veja esse filme de Hercules Pedreira fazendo limpeza com Muitabolha. Isto não está ajudando em nada sua carreira. Supostamente, ele deveria ser o cara charmoso que jamais tem de levantar um dedo. Ele não faria um anúncio como esse a menos que fosse forçado de alguma maneira.... ou hipnotizado.
A mente de Molly começou a disparar. Ela estava achando difícil acompanhar as i-déias de Lucy.
Você não pode procurar a polícia?
Já fui à polícia. Foi tolo de minha parte. É claro que eles acharam que eu estava lou-ca. "Que tipo de idéia maluca é essa?", disseram. Uma semana depois, sofri o acidente. — Lucy tremeu ao recordar. — Tive sorte em conseguir sair do carro em chamas. Se não tivesse ido à polícia, tenho certeza que isso não teria acontecido. Primo Cell sabe se cuidar, Molly. Alguém que tenha segredos como ele, tem que fazer isso. Tem pessoas sob seu poder nos altos escalões da polícia aqui e nos Estados Unidos. Tenho absoluta certeza de que se eu falar nisso outra vez, sofrerei outro acidente. E Cell, dessa vez, vai se certificar de não me deixar escapar viva. As coisas estão piorando. A influência de Cell está se espalhando como uma onda. Ele controla a mente das pessoas, de perto e de longe, e elas não sabem. A mente das pessoas deve ser um lugar livre, Molly. Meu grande temor é que Cell tenha ambições maiores do que apenas enriquecer. Pessoas poderosas já estão dizendo que ele deveria se candidatar à Presidência.
O quê?! Presidente dos Estados Unidos?
— Exatamente. Você não ia querer ser presidente se fosse um egomaníaco louco pelo poder e se pudesse fazer as pessoas cumprirem todas as suas ordens?
Molly sabia que era verdade.
— Ainda não tenho provas de que ele vai se candidatar a presidente este ano. Mas é muito possível. Poderia conseguir o apoio das pessoas, e tem todo o dinheiro necessário para pagar uma campanha para se eleger.
Uma idéia confusa veio à cabeça de Molly.
— Mas, Lucy — disse ela —, o hipnotismo acaba. Primo Cell não seria capaz de manter milhares de pessoas sob seu controle. Ele teria que ficar hipnotizando todos esses artistas e celebridades e autoridades policiais e políticos e sei lá mais quem.
Lucy concordou.
— A princípio, poderíamos pensar que seria assim, mas Cell já tem inúmeras pessoas sob seu controle, e algumas há vários anos. Eu acho que, de alguma forma, ele descobriu uma maneira de mantê-los hipnotizados permanentemente. Acho que descobriu uma nova hipnose muito mais poderosa do que a nossa.
Molly contorceu o rosto enquanto digeria isso. Era uma idéia assustadora.
Lucy não tinha acabado.
— Também tenho certeza de que Cell está por trás do desaparecimento de Davina Nuttell. Minha pesquisa mostra que ele planejava lançar, esse ano, uma nova coleção de roupas para crianças, em sua empresa Casa da Moda. Encontrei várias fotos dele nos jornais, saindo do Teatro Manhattan, depois de ver o show Estrelas em Marte, em noites diferentes. Cell com certeza queria que Davina promovesse a grife Casa da Moda, como os outros artistas ajudaram a vender seus produtos. Meus instintos de hipnotizadora me dizem que alguma coisa deu errada. Talvez Davina não tenha concordado com seus pla-nos. Talvez tenha descoberto seu segredo. Talvez, de alguma forma surpreendente, ela tenha resistido a seus poderes hipnóticos. Seja o que for que tenha acontecido, minha intuição é que ele teve que se livrar dela. Esse seqüestro marca uma terrível mudança nos crimes de Cell. Controlar a mente das pessoas já é ruim o suficiente, mas seqüestrar crianças é muito pior. O homem perdeu o controle.
Se você alguma vez esteve em uma montanha-russa, conhece aquela sensação terrível que se tem quando sua cadeira é puxada para cima, no topo, antes de se precipitar para baixo de modo aterrorizados Seu estômago enche-se de ondas de apreensão. Os instintos de Molly avisaram que uma descida veloz, tremenda, estava a segundos de distância. Ela se viu agarrando os braços da cadeira.
Lucy colocou a mão no ombro de Molly, como que para prepará-la.
— Temos de descobrir como esse novo tipo de hipnotismo funciona. Como Cell mantém suas vítimas permanentemente sob seu poder.
— Nós — repetiu Molly, fracamente.
— Molly, talvez você não tenha percebido, mas você tem mais do que talento para a hipnose. Você tem um dom muito especial. Sua atuação como hipnotizadora em Nova York foi absolutamente fantástica. Só alguém tão boa quanto você pode enfrentar Primo Cell. Porque, sem dúvida, ele é um mestre do hipnotismo. Qualquer um com menos habilidades seria engolido por ele. Mas você é brilhante. Nunca encontrei ninguém com poderes como os seus. Você é boa o bastante para ajudar, Molly. E como você é capaz de ajudar, esse é o seu dever. Se não, coisas horríveis acontecerão no mundo. E pense na coitada da Davina.
Molly corou com todas as palavras elogiosas de Lucy mas, ao mesmo tempo, estava temendo o convite que sabia estar prestes a acontecer.
O que você quer que eu faça?
Quero que vá a Los Angeles, nos Estados Unidos, o centro de atividades de Primo Cell. — Na tela apareceu a foto de um prédio comercial todo de vidro azul-escuro, com palmeiras na frente. — ´É aí que ele trabalha. E esta é sua casa. — Uma mansão cinza, atrás de cedros altos, com um muro alto e um portão de metal, encheu a tela.
Em primeiro lugar e, antes de mais nada, você deve descobrir se Cell está por trás do seqüestro de Davina. E depois descobrir onde ela está. Ajudá-la, se puder. Investigar Cell. Falar com alguns dos astros que estão sob seu poder. E me informar. — Lucy fez uma pausa. — Você terá de usar muito hipnotismo para conseguir as informações e as coisas. Mas sei que é capaz. Você fará isso, Molly?
Molly pensou em como sua vida era horrível antes de encontrar o livro de hipnotis-mo. E como era feliz agora. Devia essa felicidade a Lucy. Como poderia lhe recusar ajuda? Mas, ao olhar para o impenetrável portão de aço e pensar na doce bibliotecária tentando escapar do carro em chamas, tremeu por dentro. Não queria ir para os Estados Unidos e enfrentar esse homem perigoso mas, apesar da enorme relutância dentro dela, sentiu que estava assentindo com a cabeça.
— Farei isso — disse. Depois, não se conteve e deixou escapar: — E se Primo Cell me hipnotizar?
— Isso tem seus riscos, Molly. Não vou dizer que não. Mas se algo acontecer, eu lhe asseguro, farei tudo para trazê-la de volta.
Molly esfregou as mãos suadas para cima e para baixo em seus jeans.
— Provavelmente você está achando que isto é muito adulto para você — Lucy lhe disse. — Mas não é. Você é um gênio como hipnotizadora. E é uma maravilhosa arma secreta. Vou lhe dizer por quê.
"Anos atrás, minha mãe me deu uma dica. Ela disse: 'Sempre tenha um bom disfar-ce, Lucy. Assim, se precisar de seus poderes, poderá agir sem provocar suspeitas.' Lucy Logan, a rata de biblioteca, era uma máscara perfeita para me esconder.
"Existem muitas outras pessoas como eu, em profissões tranqüilas, atuando no papel de pessoas com pouco poder. Mas nenhuma delas é capaz de fazer esse trabalho, como você. Você, Molly, tem o melhor disfarce para esse trabalho. Pode investigar Primo sem lançar a menor suspeita sobre si mesma, porque é uma criança. Primo Cell nunca sus-peitará de uma criança."
Molly sentiu como se tivesse acabado de engolir uma pílula que mudaria sua vida.
— Então, quando devo ir? — perguntou.
Capítulo Sete
E
ra uma sorte Molly ter farol na bicicleta, porque saiu da casa de Lucy depois que já estava escuro. Amarrou a pasta que Lucy lhe dera na armação traseira e pedalou desanimada, passando por Briersville e subindo o morro já fora da cidade.
Sentia-se enganada. Chegara ao chalé de Lucy querendo realmente escutar histórias sobre hipnotismo. Em vez disso, a tarde tinha sido raptada por Primo Cell. Molly desde já não gostava dele.
O que ela escutara parecia meio irreal. Imagine se alguém juntasse evidências in-questionáveis provando que todos os pássaros na verdade são extraterrestres, que estão aqui para controlar o mundo. Você duvidaria que a informação fosse realmente verda-deira, mesmo que os fatos saltassem na sua cara. Era assim que Molly se sentia em rela-ção a Primo Cell. No entanto, sabia por experiência própria como podia ser fácil contro-lar as pessoas. Bem lá no fundo, sabia por instinto que era verdade o que Lucy lhe disse-ra.
Molly não ficou pensando no que poderia acontecer caso Primo Cell a pegasse in-vestigando-o. Se ele realmente tivesse seqüestrado Davina e dominado outras pessoas, então era mesmo um louco — um maluco — e verdadeiramente perigoso. Ela desejou ter um carro de alta velocidade com várias engenhocas. Em vez disso, estava pedalando uma bicicleta velha.
Mas tinha duas coisas que animavam Molly. Lucy lhe dera uma nova licença para hipnotizar, e Molly ia conhecer Los Angeles.
No Lar da Felicidade, Gemma e Gerry estavam limpando a gaiola dos camundongos de Gerry. Estavam prestes a fazer uma estranha descoberta.
Os dez camundonguinhos de Gerry estavam dentro de uma caixa de papelão, pare-cendo confusos.
Quando foi a última vez que você limpou? — perguntou Gemma, franzindo a cara com o fedor.
Limpei os pedaços pioles quatlo vezes depois do Natal. Não limpei aqueles pedaços ali polque eles não ficam sujos.
Por que eles não ficam sujos?
É onde os camundongos dolmem.
Gemma esticou a mão e apanhou um pouco de palha e trapos. Gerry puxou a pilha de papel do canto limpo.
Está vendo — ele disse. — Este papel palece novo, só um pouquinho moldido nos lados. — Deixou-o cair no chão.
Tem alguma coisa escrita nele — disse Gemma, pegando-o de novo. Ela juntou as páginas rasgadas. — Aqui está escrito, O Livro de Hip... Não consigo ler, parece que foi comido. Nesse pedaço está escrito, Uma arte antiga explicada. O que você acha que isso quer dizer?
Sei lá — disse Gerry, espremendo uma esponja e esfregando a gaiola. — Quem sabe é soble pintula de quadlos antigos?
É uma fotocópia — disse Gemma, puxando devagar as páginas. — Sobre... é sobre hipnotismo. Onde você pegou isso, Gerry? Tem mais lá? — Gemma olhou para o fundo da gaiola.
Acho que tem, mas joguei fola o resto. O que é hipnotismo?
Sabe quando você faz alguém ficar todo sonolento e aí você manda que ele faça um monte de coisas? De onde veio isso?
De um baú. Faz um tempão.
Que baú?
Sei lá, acho que ela de Jinx ou de Locky, são eles que usam papéis... Locky sempre joga fola as letlas das músicas que inventa. Achei que ela uma letla de música. Mas, Gemma, não fica lendo agola, você disse que ia me ajudar.
Gemma estava muito absorvida para continuar trabalhando com os camundongos.
— Isto pode ser importante — murmurou ela. — Vou lá para cima para o nosso es-conderijo para ler isto. Depois, você me encontra lá.
Vinte minutos mais tarde, Gerry e Gemma estavam agachados, de pernas cruzadas, nas pilhas de toalha do esconderijo que era o armário de roupa lavada, com o feixe lu-minoso de uma pequena lanterna focado em uma pilha de restos de papel fotocopiado.
Você acha que podemos mesmo aplender a fazer isso? — perguntou Gerry.
Podemos tentar com seus camundongos — respondeu Gemma.
Agola? Victo está aqui no meu bolso.
Não, primeiro temos que aprender a fazer direito. Pena que nem todas as lições este-jam aqui. Gerry, isto é segredo máximo. Entendeu?
Entendi — ele disse, e os dois bateram os punhos para selar o acordo.
Molly voltou ao Lar da Felicidade, desesperada para falar com Rocky. Torcia para que ele não tivesse saído em um de seus passeios. Ele não estava na sala de televisão onde a Sra. Brinklebury estava assistindo a um programa sobre colchas de retalhos. Foi encontrá-lo na cozinha com Petula no colo, lendo um jornal. Nockman estava perto dele, estudando um manual de treinamento de pássaros.
Pssssst — fez Molly da soleira da porta.
Uh, oh — ele disse, quando chegou com Petula no corredor e Molly agarrou sua manga e o puxou rápida para as escadas. — O que foi? Onde você conseguiu essa pasta?
Molly levou-o apressada até o banco da janela, no final do corredor do andar de ci-ma, e sentou-o. Ali, aos cochichos, contou-lhe tudo o que tinha acontecido na casa de Lucy Logan. Rocky escutou, fazendo caretas enquanto tentava seguir a falação de Molly. Depois, ela abriu a pasta e lhe mostrou as fotos e mapas do bairro de Primo Cell em Los Angeles.
— Lucy acha que ser criança é como um disfarce — Molly terminou —, porque Cell nunca suspeitaria de que uma criança poderia investigá-lo.
Rocky balançou os ombros.
— Toda essa história me parece maluca. Não acredito nisso.
Você não acredita porque não quer ir. É por isso que você não acredita.
Quem disse que eu devia ir? — perguntou Rocky, levantando a voz.
Você tem que ir — disse Molly tranqüila, mas firme. — Você tem que me ajudar, Rocky. Eu não sou a única por aqui capaz de hipnotizar.
Mas eu não sou nem um quinto de você nisso, Molly.
Então, você acredita que isso é verdade?
Eu não disse isso.
— Bom, mesmo que você não acredite, poderá se divertir passando umas férias em Los Angeles — disse Molly, confidencialmente.
— Mas...
— Desde quando Rocky Scarlate vai recusar uma viagem à ensolarada LA? — in-sistiu Molly. — Aposto que lá você nunca terá asma.
— Mas...
— Rocky, eu não vou sozinha de jeito nenhum — disse Molly, mais alto do que pretendia. — Olha, lá é muito mais quente do que aqui, e tem praia. Nós só ficaremos um ou dois meses. Não posso ir sem você, Rocky. Por favor, vem comigo.
Petula, de repente, sentou-se e abanou o rabo com força. Alguém estava no final do corredor.
Gerry e Gema aproximaram-se, envergonhados. Dentro do armário, eles tinham es-cutado a última parte da conversa de Molly e Rocky e agora, embora embaraçados por terem sido pegos escutando, estavam ardendo de curiosidade.
— Que férias? Que praia? Aonde vocês vão? Nós também queremos ir — disse Gemma.
É, sim — disse Gerry. — Não deixem a gente aqui. Da última vez que vocês deixa-ram, foi holível. Lembla?
Vocês não podem ir — Molly começou. Depois, parou. Gemma e Gerry nunca ti-nham tido férias. Ela pensou neles numa praia, com baldes e pazinhas, ou no mar, sur-fando, ou visitando os estúdios de cinema de Los Angeles, e seu coração derreteu. Sem dúvida, eles adorariam, e ela não via como podiam atrapalhar. De fato, poderia ser bom se eles fossem.
Sabe, Rocky, se a Sra. Brinklebury fosse também para cuidar deles, pareceríamos uma família normal de férias. E Nockman poderia ajudar também. — Molly estava pen-sando que, na verdade, o conhecimento criminoso de Nockman poderia ser útil. Ele era particularmente bom em arrombar fechaduras. Na cabeça, Molly somou o dinheiro do orfanato e o que Lucy tinha lhe prometido. Acrescentou a isso o que Lucy sugerira que eles poderiam conseguir de graça, por hipnose.
E os outros? — disse Rocky. — Todos vão voltar dos cursos na semana que vem.
Por que não pedimos à irmã da Sra. Brinklebury para ficar com eles na fazenda? — sugeriu Molly. Lançou a Rocky um olhar de o-que-você-acha e ele assentiu.
Vou ter de conversar com o Sr. Camposo — disse Molly, pensando em como hipno-tizar seu diretor. — Tudo bem, Gemma, quando a Sra. B terminar de assistir a seu pro-grama, eu lhe direi que fomos convidados a ir a LA pelo Benfeitor.
Rocky sorriu.
E eu vou procurar um belo hotel onde todos possamos ficar, e Nockman pode cuidar das passagens de avião, para viajarmos o mais rápido possível.
Isso significa que nós vamos? — perguntou Gerry, não muito seguro do que fora re-solvido.
Claro — disse Rocky
Ôôôôooooooba — gritou Gerry. — Oôôôooooooba — E sem saber o que fazer com toda a empolgação, começou a pular para cima e para baixo como um canguru tomando café. — LA, LA, LA, LA — gritava, correndo pelo corredor e voltando. Depois, por um momento, ele parou.
Onde é LA? — perguntou.
LA é a abreviatura de Los Angeles — disse Rocky. — Fica na Califórnia, nos Esta-dos Unidos.
Uêba, Estados Unidos! Uêba, uêba! — Depois disso, era impossível fazer Gerry ficar parado. Ele descia aos pulos as escadas e corria pelo saguão, voltava a subir e a descer de novo e a subir, gritando: — Não vamos ter aula! NÃO VAMOS TER AULA!
Gemma agradeceu a Molly e Rocky dez vezes e depois foi correndo para seu quarto, fazer a mala.
É a decisão certa — disse Molly. — Porque, se não os levarmos e alguma coisa de ruim nos acontecer lá, então eles nunca terão férias.
O que pode acontecer com a gente? — perguntou Rocky, levantando uma sobrance-lha.
O mesmo que aconteceu com Davina? Não sei. Mas esse Sr. Cell é um maníaco en-louquecido pelo poder. E um hipnotizador brilhante. Caramba, Rocky, no que estamos nos metendo?
Em encrenca — disse Rocky, com a voz fraquinha.
É, em dez toneladas de encrenca — concordou Molly.
Capítulo Oito
N
os três dias seguintes, Molly viu o Lar da Felicidade quase explodir de animação. A Sra. Brinklebury ficou tão deliciada com a idéia de umas férias que jogou o avental no fogo para comemorar. Estava muito animada com a ida a Los Angeles e Hollywood, a capital mundial do cinema, o lar dos astros que ela adorava. Nutria esperanças de encontrar alguns deles.
Gerry estava preocupado com seus camundongos e passou muito tempo fazendo uma caixa portátil para viagem, enquanto Gemma passou horas deitada na cama, lendo as páginas fotocopiadas de O livro de hipnotismo que escondera debaixo do travesseiro.
Você acha que o mar lá é quente, Rocky? — perguntou Gerry, enquanto eles se a-montoavam no sótão procurando malas.
Quente? Deve ser de pelar. Nós estamos indo para Los Angeles, Gerry. Fica na costa do Pacífico, o lado oeste dos
Estados Unidos. É um lugar deserto. Quase nunca chove. Em março, a temperatura pode chegar a 30 graus. Isto é mais quente do que Briersville no verão.
Se é um deselto, como as pessoas vivem lá? O que eles bebem? Não pode tê muita gente — comentou Gerry, examinando um buraco em uma sacola. — Tem um camun-dongo aqui.
Tem montes de barragem nas montanhas atrás da cidade — explicou Rocky — e grandes reservatórios de onde vem toda a água. Nockman me disse que 8,5 milhões de pessoas vivem em LA Aliás, no resto dos Estados Unidos, tem 270 milhões.
Quantos camundongos tem nos Estados Unidos, é isso que eu quelia saber — disse Gerry.
Bilhões, eu acho — Rocky ergueu um baú de estanho empoeirado que estava atrás de uma capota de carrinho de criança vermelho e desbotado.
Quando desceram com o baú e três malas velhas, viram que todos estavam fechados. Assim, o Sr. Nockman ficou brincando um pouco com as combinações e teve que rodar um grampo dentro de todos os buracos das fechaduras para abri-las.
Nockman não estava muito satisfeito em voltar aos Estados Unidos. Até recente-mente, passara toda a sua vida lá e não queria se lembrar de seu passado insalubre, nem dos crimes que cometera. Preocupava-se com a possibilidade de se sentir tentado a fazer uma maldade outra vez, mas a Sra. Brinklebury, que o estava ajudando a se reformar, disse que isso podia ser bom para ele. Assim, ele cuidadosamente construiu uma caixa de viagem para seus 20 periquitos. Molly lhe disse que o Benfeitor estava conseguindo as autorizações de vôo para todos os animais. Nockman automaticamente acreditou nela. Ele sempre respeitava o que Molly dizia, embora não soubesse exatamente por quê. Estava feliz em poder levar os pássaros porque, sem eles, não iria.
Duas questões tinham que ser tratadas com hipnotismo. Uma por Rocky, outra por Molly.
O desafio de Rocky era encontrar quartos de hotel onde pudessem ficar. A viagem deles para Los Angeles coincidia com a semana mais movimentada do ano. A noite da entrega dos prêmios da Academia seria dali a uma semana, quando os melhores atores, atrizes, diretores, produtores e pessoal do cinema ganhariam as cobiçadas estatuetas douradas do Oscar. Todos os quartos de todos os hotéis tinham sido reservados com antecedência.
Detesto fazer isto — disse Rocky, ao pegar o telefone. — Por nossa causa, algumas pessoas vão perder suas reservas.
Você não fica nervoso pensando que pode ter esquecido como fazer hipnose a longa distância? — perguntou Molly. Mas Rocky balançou a cabeça.
Hipnotizar pessoas é como andar de bicicleta, você não acha? Depois de aprender, nunca mais se esquece. — Molly estava espantada com a confiança de Rocky e ficou muito impressionada quando, dez minutos mais tarde, ele saiu da sala da TV com a no-tícia de que agora tinham dois bangalôs e um quarto reservados no hotel Chateau Mar-moset.
Só preciso de um pouco de tempo — disse Rocky. — Assim que me escutam um pouco, todos logo se derretem feito manteiga nas minhas mãos.
Molly, no entanto, estava tremendamente nervosa com seu desafio hipnótico. Tinha que visitar o diretor e hipnotizá-lo para permitir que todos viajassem — ela, Rocky, Gemma, Roger e Gerry para Los Angeles, e o resto das crianças do orfanato para a fa-zenda da irmã da Sra. Brinklebury. Molly receava ter perdido suas habilidades hipnóti-cas, sobretudo depois que teve aquela fusão fria como gelo quando tentou hipnotizar o arbusto.
Molly não precisava ter se preocupado. Porque, na escola, no escritório do diretor, nem precisou enfrentar o Sr. Camposo com seus olhos verdes.
Ela começou explicando que a viagem para Califórnia era educacional. Eles estavam aprendendo sobre terremotos e desertos, e sobre o parlamento americano, chamado Congresso, disse Molly, portanto a viagem seria muito instrutiva. E como a maior parte da viagem seria nas férias da primavera, eles só perderiam as últimas semanas do se-mestre, acrescentou.
— As outras crianças ficarão na fazenda de porcos, onde aprenderão sobre porcos... o senhor sabe... porcos e restos de cozinha e adubo e... bom... agricultura. Isto também será muito educativo.
O Sr. Camposo pareceu achar a idéia sensacional, porque disse:
Estou muito impressionado que você tenha vindo, você mesma, pedir minha permis-são, Molly. Gosto de crianças com iniciativa. Um bom jogador de golfe tem iniciativa. Um sentido de... se você quer que essa bola vá em uma direção, aprenda como batê-la. Não espere que alguém vá bater nela por você... eh, não concorda?
Sim, senhor.
Se quer minha opinião, acho que as fazendas deveriam transformar suas terras em campos de golfe. Você não acha?
Molly não disse nada.
Então, vocês estão de malas prontas para Los Angeles e fazendas. Bem, espero que tenham um período muito educativo e, se puder, jogue um pouco de golfe por mim, hein?
Obrigada, senhor. Sim, senhor.
Com isso, o diretor pegou seu telefone e, levantando-o, acenou para Molly que já poderia sair.
Molly mal podia acreditar. Ela realmente o convencera a dispensá-los das aulas, sem hipnose, a menos que sua mera presença tivesse esse poder. Realmente, ela não sabia por que tinha sido tão fácil convencer o Sr. Camposo mas, sentindo-se muito feliz consigo mesma, voltou para a sala de aula.
E finalmente chegou a manhã, poucos dias mais tarde, em que 38 passageiros enche-ram um microônibus (cinco crianças, dois adultos, 20 periquitos, dez camundongos e um mini-buldogue), cada um em seu lugar. Até Roger estava a fim de ir, feliz, disse ele, por estar se livrando das vozes que andava escutando.
Quando chegaram ao aeroporto, a Sra. B estava em pânico. Nunca tinha viajado de avião e estava dura de medo. O Sr. Nockman segurou a mão dela e lhe disse que morri-am mais pessoas em acidentes com burro, a cada ano, do que em avião. Molly levou seu pequeno grupo até o balcão da companhia aérea e logo a bagagem de todos estava regis-trada.
Foi dito a Gerry e ao Sr. Nockman que, sob nenhum pretexto, deviam mencionar que seus animais domésticos estavam no vôo, caso contrário as autorizações conseguidas pelo Benfeitor não teriam validade. Ambos prometeram não dizer uma palavra. Agora, os camundongos e os periquitos estavam em duas caixas com buracos de ventilação, ao lado do cesto de viagem de Petula, no carrinho de Molly. Todos os demais passaram pelo controle de passaporte e pelos aparelhos de raios X do aeroporto, e chegaram ao saguão das lojas de duty-free.
Molly sentiu-se mal. Desejou ter praticado hipnose com o Sr. Camposo. Pois naquele momento só faria suas bagagens passarem tranqüilamente pelo controle de segurança e pelos aparelhos de raios X se suas habilidades hipnóticas estivessem funcionando normalmente.
Um dos funcionários do raios X estava lhe acenando para se aproximar. Dentro de seu cesto de viagem, Petula dava inúmeras voltinhas, tentando fazer uma cama para si mesma. Molly engoliu em seco e empurrou o carrinho em direção ao funcionário.
Enquanto se aproximava, ela se concentrou em invocar a sensação de fusão e erguer os olhos até o pico hipnótico. Molly já não precisava usar o método antigo de hipnotizar, usando um pêndulo ou falando lentamente com voz indutora de transe. Usava seus próprios talentos especiais, que só requeriam alguns segundos. Esse era o método que tinha que funcionar agora. Eram dois funcionários trabalhando, um examinava a tela de raios X, o outro esperava para revistar os passageiros à procura de armas escondidas. Ela só precisava fixar os olhos uma vez em cada um deles para que se tornassem com-pletamente obedientes, na hora.
Na verdade, Molly estava tão decidida a fazer seu hipnotismo funcionar que calcu-lou mal o olhar. Quando olhou para cima, para os funcionários da segurança, o olhar ofuscante que lhes dirigiu poderia ter hipnotizado um casal de elefantes. Em um segun-do, o homem sentado ao aparelho de raios X ficou rígido de repente, como se tivesse sido eletrocutado, e o que revistava subitamente sentiu-se tão relaxado que começou a cantarolar alto.
Quieto! — sussurrou Molly. Nervosamente, ela olhou para os lados para checar se alguém estava observando. E como não havia ninguém, por alguns segundos deixou-se aquecer na sensação cálida da fusão, dando-lhe as boas-vindas por seu retorno, curtindo a maneira como ela a preenchia da cabeça aos pés.
Tudo bem, vocês dois — disse, com calma. — Vocês vão me deixar passar sem e-xaminar minha bagagem. Depois que eu passar, vocês pensarão que já me examinaram e que tudo está em ordem. Então, despertarão. Compreenderam?
Os dois funcionários assentiram. O momento tenso tinha passado. Molly seguiu para o saguão do shopping. Ria baixinho, e se dirigiu para uma loja de produtos eletrônicos. Precisava de um minicâmera, com montes de filmes.
Dentro do cesto, Petula reconheceu os odores do aeroporto e se perguntou para onde Molly a estaria levando dessa vez. Dentro de sua caixa escura, os periquitos escutaram as campainhas e o reboliço do saguão de embarque, pensando que eram pios estranhos de aves. Os camundongos tentaram dormir em suas tocas, mas não conseguiram porque um gigante distante ficava anunciando:
"Por favor, passageiros para Los Angeles, queiram se dirigir para o portão três."
O vôo não foi nada parecido com o vôo solitário de Molly para Nova York, antes do Natal. Esse vôo foi caótico e barulhento. Quando o jumbo levantou vôo, a Sra. Brinkle-bury começou uma ladainha aos gritos que parou e recomeçou quase o vôo todo.
No meio do Atlântico, Gerry perdeu um camundongo. Victor, seu macho premiado, conseguiu escapar e chegar ao banheiro da aeronave, onde foi fechado junto com uma moça com uma mochila. Quando ela irrompeu do cubículo, gritando que tinha visto um esquilo, Victor silenciosamente abriu caminho de volta à poltrona de Gerry.
— Querida, é impossível um esquilo ter embarcado — garantia uma aeromoça à mocinha. — É um vôo longo. Talvez seja bom você tomar um pouco d'água e fazer alguns exercícios que recomendamos.
Normalmente, Molly ia desejar sair logo de um vôo como aquele, com a Sra. Brin-klebury se comportando de maneira tão embaraçosa mas, tal como era, o que desejava era que o vôo nunca terminasse — pois assim não teria que investigar o perigo que era Primo Cell.
Comentou isso com Rocky.
Se você está assustada — respondeu ele —, pense em como Davina deve estar ater-rorizada, seja lá onde estiver. Se ela estiver viva e se estiver nas mãos de Cell, precisa de você para salvá-la.
É só por causa dela que estou indo — disse Molly. — Eu não arriscaria minha vida para averiguar sobre os artistas. De qualquer maneira, acho que devo alguma coisa a Davina. Tomei seu papel em Estrelas em Marte, antes do Natal.
Molly inclinou-se para baixo para colocar um pedaço de salame no cesto de Petula, que se comportava muito bem em aviões.
Depois de onze horas, o jumbo sobrevoou as luzes brilhantes de Los Angeles. Molly olhou para baixo, para a cidade enorme. Parecia se esticar por centenas de quilômetros, em todas as direções. Não conseguiu deixar de pensar onde Primo Cell estaria exata-mente agora, no meio daqueles milhões de prédios.
Então, os pneus bateram na pista e o avião aterrissou em segurança. Todos voltaram os ponteiros dos relógios em oito horas. Eram sete horas da noite.
Logo, estavam no saguão das bagagens, meio adormecidos, esperando por suas ma-las. Os únicos que ainda tinham alguma energia eram Gerry e Gemma, que estavam fazendo os bonecos de super-heróis de Gerry pegarem carona na esteira das bagagens.
Molly viu uma pequena maleta vermelha ser despejada na esteira rolante. Exausta, deixou seus olhos pousarem ali, absorvendo sua superfície de textura rústica e a cor de suas fivelas embaçadas. Por um momento, o aeroporto pareceu muito distante e era co-mo se ela e a maleta fossem as únicas coisas que existissem sob o teto do terminal. Um momento depois, Molly sentiu como se a maleta estivesse dentro de sua mente. Era uma sensação estranha, mas não completamente nova. Lembrava a sensação que Molly tinha sempre que hipnotizava uma pessoa. Uma sensação rápida, que acontecia pouco antes da pessoa entrar em transe, quando Molly podia, sentia a personalidade do outro enfra-quecendo e começando a pertencer a ela. Era um sentimento que fazia parte do processo de hipnotismo. Molly pensou em como era estranho estar sentindo isso com a maleta, e então, enquanto olhava sonolenta, a sensação cálida e familiar de fusão começou a se espalhar por todo seu corpo. Mas, um segundo depois, a sensação tornou-se fria como gelo. Foi exatamente a mesma coisa que aconteceu com o cachorro de folhas. Chocada, Molly desligou sua atenção da maleta.
Era muito esquisito. Obviamente, isso tinha alguma coisa a ver com olhar fixamente para objetos. O que aconteceria, Molly se perguntou, se deixasse a sensação congelante continuar? O que aconteceria? Descobriria que tinha hipnotizado o objeto para o qual estava olhando? Isso era ridículo. Como uma maleta poderia ser hipnotizada? Da pró-xima vez, decidiu, experimentaria para ver no que a fusão gelada se transformaria.
Todo mundo apanhou suas sacolas e malas e as levaram nos carrinhos de mão. A-turdidos e cansados, dirigiram-se à fila de táxis. Ninguém reparou no carregador de bagagem que se aproximou de Molly.
— Ei, desculpa — disse ele, o rosto brilhando de reconhecimento —, mas vocês dois não são a menina e o menino do anúncio "Dê uma Sacada nas Crianças de Sua Vi-zinhança"?
Capítulo Nove
M
olly ficou atônita. Nunca lhe passara pela cabeça que o anúncio beneficente hipnótico que fizeram para a TV em Nova York, antes do Natal, pudesse ter sido visto por alguém em Los Angeles. Quantas outras pessoas no aeroporto a teriam reconhecido?
— Hum, éé... sim, somos nós — ela respondeu, relutante.
Bom trabalho — disse o carregador sorridente. — Vamos, vou ajudá-los com suas coisas! — Pegou o carrinho de Molly e os conduziu direto para a frente da fila de táxi. Ali, colocou a bagagem no porta-malas do microônibus que aguardava e ficou acenando para eles.
Lá se foi a idéia de Lucy de não levantarmos suspeitas por sermos crianças — quei-xou-se Rocky, quando se afundaram em seus assentos. — Primo Cell provavelmente viu o anúncio e desde então está procurando duas crianças hipnotizadoras.
Molly estava muito abalada pelo incidente para dizer alguma coisa.
— Só nos resta esperar que ele não tenha visto o anúncio — completou Rocky, ten-tando tranqüilizá-la.
Logo o ônibus alugado estava deixando as colunas de concreto em direção à cidade de Los Angeles. Molly sentou-se na frente, com Petula nos joelhos, desejando que não tivessem vindo. Tentou deixar que o trajeto a distraísse, desviando seus pensamentos de Primo Cell. Mas era uma tarefa impossível. Depois que o ônibus deixou o aeroporto, passando por estacionamentos, cercas de arame, hangares para descanso dos jumbos e pequenas empresas que faziam comida de bordo, eles entraram em uma estrada ponti-lhada de cartazes enormes. De ambos os lados, anúncios mostravam as facas Shique Shaque, a sopa nutritiva Garota Esperta e o papel higiênico Suntuosus, onde o boxeador Rei Moose posava como se estivesse lutando contra um rolo gigantesco, A influência de Cell estava por toda parte. Outro cartaz que se repetia muito era o de um político com um chapéu de caubói. Sob a jaqueta vermelha, branca e azul, estava escrito em letras garrafais, Gandolli para presidente em novembro. Pelo menos, pensou Molly, não havia um anúncio de Cell para presidente.
O ônibus entrou na via expressa. Todos os carros eram gigantescos e os caminhões tinham duas vezes o tamanho de um caminhão inglês, e havia quatro pistas de tráfego em vez de três. Colinas marrons, cobertas de vegetação, apareciam à distância e, no to-po, bombas de petróleo, cada uma do tamanho de uma casa pequena. Pareciam pássaros monstruosos, com pernas de metal e bicos pontudos, em forma de gangorra, bicando o chão.
Ao ver as bombas inclinadas, Molly não conseguiu deixar de pensar que Primo Cell talvez já tivesse contratado capangas que estariam bicando por aí, tentando achar as duas crianças que fizeram o anúncio hipnótico. Provavelmente, queria acabar com elas, como talvez tivesse acabado com Davina Nuttell. Os grandes pássaros de ferro sem co-ração fizeram sua coragem vacilar.
Logo pequenos sobrados residenciais começaram a pipocar à margem da estrada e depois outros maiores. Eles passaram por uma rua comprida de lojas abarrotadas de carros usados, e bares, e depois por outra, com butiques de roupas e restaurantes. Um enorme cartaz de um filme com o rosto de Hercules Pedreira anunciava Sangue de um estranho. Letras gigantes proclamavam: Indicado para Três Prêmios da Academia: Melhor Filme, Melhor Atriz, Melhor Roteiro. Molly viu um corredor passar por uma lanchonete chamada Rosquinhas de Emergência — Aberta 24 horas. Não Entre em Pâ-nico. Petula levantou as orelhas para um bando de cinco cachorros que uma moça de patins levava para passear.
Os subúrbios são enormes — disse Molly para o motorista.
Subúrbios? — disse o motorista. — Isto é não é subúrbio. É Los Angeles, a própria. É a Cidade dos Anjos, meu anjo.
Mas onde estão os arranha-céus? — perguntou Molly, certa de que ele estava enga-nado.
Bom, tem alguns no centro, mas esta não é uma cidade de arranha-céus, boneca. É uma cidade de jardins bem-cuidados e verdes, e prédios baixos, o que é melhor, porque a gente tem terremotos por aqui, pois estamos na falha de San Andreas e tudo isso. Mas, já estamos perto de seu hotel e seu hotel está bem no centro de Los Angeles. Em geral, os prédios mais altos por aqui não passam dessa altura.
Mas no centro da maioria das cidades — disse Molly — os edifícios ficam bem jun-tos um do outro.
— É verdade, e isso é porque a maioria das cidades não tem espaço. Esta é uma ci-dade jovem, e sempre teve espaço de sobra.
No final da rua larga, atrás de um cartaz gigantesco em formato de garrafa com um anúncio de Qube, as colinas com prédios iam se distanciando, no final das ruas íngre-mes.
— Lá em cima — disse o motorista — ficam as montanhas San Gabriel e, para lá — apontou para trás —, é o Vale da Morte, onde você não vai querer ir porque é tão quente que um sujeito pode fritar um ovo na capota do carro.
O microônibus encontrou uma brecha no tráfego incessante e subiu por uma ladeira íngreme do outro lado da estrada. Molly viu um pequeno cartaz meio escondido pelas folhas. Chateau Marmoset. Molly olhou para cima e viu um prédio de contos de fada com torres e torreão. As janelas se erguiam até o décimo andar, com pequenos balcões na frente. A entrada era uma garagem meio cavernosa debaixo do hotel, onde três homens que pareciam mais artistas de cinema do que carregadores estavam esperando para tirar a bagagem do microônibus.
— Bem-vindos ao Chateau Marmoset.
Todo mundo estava feliz por ter chegado, embora estivessem todos aturdidos e desi-dratados pela viagem, com os olhos tão secos que pareciam sido enxugados com lenços de papel e depois recolocados em suas órbitas. Ao subir pelo elevador até a recepção do hotel, Molly pensou que eles deviam parecer uma turma excêntrica e ruidosa, com as caixas de camundongos e periquitos, e Nockman com uma sombra no queixo por não ter se barbeado.
A recepção do hotel era muito elegante e escura, com tetos altos e piso de pedra. Ao lado, havia uma saguão grandioso mas aconchegante, cheio de gente. Alguns olharam com reprovação para a confusão de crianças. Nockman afastou-se, procurando o banhei-ro dos homens.
Molly tirou da mochila os passaportes de todos e os colocou sobre o balcão. Um ra-paz da recepção, com a pele feito abacate com casca, olhava preocupado para Roger, que estava abraçando uma pequena palmeira plantada em um vaso.
Ele está com você? — perguntou.
Sim — disse Molly, dando uma olhadela para trás. — Ele se acalmará em um minu-to, só está com um pouquinho de passei-tempo-demais-trancado-em-um-avião.
O rapaz olhou para as cinco crianças à sua frente.
Receio não poder permitir a entrada do grupo de vocês até um adulto responsável chegar.
Hummm... — resmungou Molly. — Francamente, somos tão responsáveis quanto eles. — E, para evitar perder mais tempo, encarou os olhos do homem-abacate até ele estar pronto para fazer exatamente o que ela queria. Em seguida, Molly organizou onde cada um ia dormir. Decidiu que Nockman ficaria com o quarto do prédio principal e os outros ficariam nos bangalôs.
Enquanto o rapaz da recepção sorria obedientemente, a Sra. Brinklebury chegou. Havia se atrasado porque encontrou o famoso ator Cosmo Ás no elevador. Seguiu-o até o sétimo andar, nas salas de ginástica, onde ficou olhando-o pedalar uma bicicleta er-gométrica. Molly percebeu que a Sra. Brinklebury ia amar o Chateau Marmoset.
Nockman pegou a chave de seu quarto e desapareceu nas escadas com seus periqui-tos e sua bagagem. O resto do grupo seguiu um carregador até o lado de fora.
Nos jardins, onde agora estava escuro, condicionadores de ar em aço, como tocos al-tos de sombrinhas, borrifavam vapor nas mesas dos hóspedes embaixo.
Enquanto passavam com dificuldade por um caminho entre vasos de amor-perfeito, Molly escutava fragmentos de conversa:
"Steve disse que adorou seu roteiro, mas quer que Spelkman dirija. Isso convenceria Tinsel Films a fazer o filme."
"Mas Spelkman é péssimo. Seus filmes são medonhos. Ele não consegue um bom desempenho dos atores. Oh, não, isso seria terrível."
"É o único jeito, Randy."
"Você é perfeita para o papel, Sara."
"Mas eu não quero nenhum papel sério, nunca mais. Sou uma atriz cômica", disse Sarah, muito séria.
"Agora, escute bem, Bárbara. Não quero ninguém que coma carne arrumando meu cabelo nem fazendo minha maquiagem nem minhas unhas nem qualquer coisa, está claro? Não quero essa energia ruim perto de mim." "Tudo bem, Blake."
"E o que você vai usar na noite do Oscar, Jean? Lembre-se que o mundo inteiro es-tará assistindo."
"O mínimo possível. Quero aparecer na TV e nas revistas o máximo possível."
Eles passaram por um caminho que parecia estar dentro de uma floresta, com pal-meiras farfalhantes e samambaias dos lados. O bangalô da Sra. Brinklebury e Roger estava localizado perto do solário, que tinha uma cascata caindo das pedras até a piscina. Roger deu umas palmadinhas no tronco de um ficus de folhas largas, e o papagaio do hotel soltou um gritinho em sua gaiola.
Os outros continuaram seguindo o rapaz com a bagagem, até o alto de um caminho estreito com degraus de pedra, e chegaram ao melhor bangalô de todos.
Era perfeito para Petula porque, na frente, tinha um gramado cercado, com um pe-queno portão de madeira. Era uma construção moderna, retangular, com toda a frente de vidro. No interior, uma grande sala de estar, com um sofá em forma de L e uma TV, e uma pequena cozinha em um canto.
— Alguém virá para limpar sempre que vocês cozinharem — disse o rapaz. — Mas, é claro, se não quiserem cozinhar, podem usar os serviços do hotel.
Sobre um balcão, havia uma cesta cheia de biscoitos e doces.
— Sempre que quiserem, reabasteceremos a cesta de guloseimas.
Gemma começou a dar uma olhada no folheto do hotel, encadernado em couro.
— Ger, olha só! Tem uma videoteca no hotel com centenas de filmes para empres-tar. E música... — Gemma passou os dez minutos seguintes ao telefone, ligando para os quartos dos outros. Pediu comida pelo serviço de quarto e, vinte minutos mais tarde, a comida chegou em bandejas com tampas de prata. Bifes, batatas fritas, milkshakes e, como eles não tinham suco de laranja concentrado, Molly quis experimentar suco de romã concentrado. O garçom do serviço de quarto explicou que era um tipo de xarope bem forte que devia ser misturado com limonada e que, quando era misturado com gin-ger ale, os americanos chamavam de coquetel "Shirley Temple".
Molly tomou aos golinhos o suco de um copo cheio de gelo. Ela sabia que Shirley Temple tinha sido urna menina-prodigio atriz dos anos 30, e isso a fez pensar em Davina Nutell. Esperava que estivesse a salvo, onde quer que estivesse. Depois, foi colocar Gemma e Gerry na cama.
Molly acordou no meio da noite, o corpo pensando que era de manhã. Em Briersville já seriam dez horas. Achou difícil voltar a dormir porque os camundongos de Gerry estavam guinchando sem parar e, lá fora, uma árvore estalava ruidosamente.
Queria estar nesse hotel de luxo para curtir as férias, e não para enfrentar uma missão incerta. Em casa, investigar Primo Cell parecia perigoso. Aqui, parecia também im-possível. Molly refletiu sobre o que exatamente ela e Rocky deveriam fazer, agora que estavam no território de Cell. Definitivamente, a coisa mais importante era descobrir se Cell estava por trás do seqüestro de Davina Nuttell e, se estivesse, encontrá-la.
Enquanto Molly tentava voltar a dormir, duas imagens das fotos de arquivo que Lucy lhe dera ficavam retornando à sua cabeça. Uma era de Cell, com roupas de caçada, um rifle meio erguido sob o braço e dois faisões mortos sobre o ombro. A outra era dele em um safári, com uma pistola enorme e os pés apoiados no flanco de um grande antí-lope morto.
Molly pôs a mão debaixo da cama para afagar Petula. Primo Cell com toda a certeza gostava de matar coisas.
Capítulo Dez
C
edo na manhã seguinte, Gerry bateu na porta do quarto de Molly, acordando-a. Estava de calção de banho, bóias de braço e um grande roupão de hotel que arrastava pelo chão.
— Vamos, Molly? O café da manhã é na piscina. Tem panqueca.
Por um momento, enquanto o sol invadia o quarto, Molly teve um leve sonho de que estava de volta ao Lar da Felicidade, em uma manhã escaldante. Então, a lembrança do que tinha que fazer afogou seus pensamentos despreocupados. Ela gemeu.
Meia hora mais tarde, Molly e Rocky estavam sentados de pijamas no chão do quar-to de Molly. O conteúdo da pasta de Lucy Logan estava espalhado na frente deles.
— OK — começou Molly — para descobrir qualquer coisa, vamos ter que procurar na casa de Primo Cell e em seu centro de operações e com os astros que ele hipnotizou. Se fizermos tudo isso, talvez encontremos alguma coisa sobre Davina.
Eu sugiro — disse Rocky — que a gente chame Nockman até aqui, aí perguntamos o que ele precisa para arrombar fechadura e entrar em computadores e, então, esta noite, quando o edifício do escritório de Cell estiver vazio, nós entramos. Se Lucy estiver cer-ta, e se ele estiver planejando nos hipnotizar e continua hipnotizando milhares, talvez milhões de pessoas, e se já tiver centenas sob seu controle, não pode ter todos os ende-reços em sua cabeça. Tem que ter arquivos, ou manuscritos ou no computador. Tem que ter um lugar secreto onde guarda os planos: em um armário trancado ou uma sala tran-cada. Aposto que vamos encontrar alguma coisa que nos dirá se ele tem algo a ver com Davina Nuttell.
Mas por que o escritório dele hoje à noite? Por que não a casa dele?
Porque ele vai estar dormindo lá, Molly. Acorda.
Tá legal, tá legal. — Molly puxou o mapa de Los Angeles para mais perto. — O prédio de escritórios fica em Westwood, perto de Beverly Hills. Podemos pegar o ônibus 67.
Ônibus?
Assim ninguém repara na gente. Levamos Petula e vamos parecer uma dupla de cri-anças levando o cachorro com nosso... hum.... tio.
Trinta minutos depois, o Sr. Nockman estava docilmente à frente deles. Usava uma camisa de manga curta com estampa de pássaros exóticos e uma bermuda estampada com padronagem floral que a Sra. Brinklebury comprara para ele. Estava de boca aberta, e dava para Molly ver que ele tinha seis ou sete cáries. Petula cheirava seus pés cabe-ludos dentro das sandálias.
Detesto ter que fazer isso outra vez — disse Molly. — Ele estava indo tão bem. Es-pero que colocá-lo outra vez em transe não perturbe sua terapia. E realmente espero que fazer uma coisa ilegal não dê saudade da antiga vida.
Não estamos interferindo como auto-aperfeiçoamento dele — disse Rocky. — É só por uma noite e é tudo por uma boa causa. Ele não vai se lembrar do que fizer.
Tudo bem — disse Molly, concentrando-se. — Você, Nockman, vai nos acompanhar esta noite. Diremos à Sra. Brinklebury que você vai fazer um trabalho para o Benfeitor, vai trocar as fechaduras da porta da casa dele.
— Sim. — Nockman assentiu.
— Você deve trazer tudo que precisar para abrir fechaduras, para decifrar códigos de combinação de cadeados e para entrar em computadores e acessar seus arquivos. Imagine que vai roubar um escritório muito seguro. Precisaria de alguma coisa especial? — Ela fez uma pausa enquanto ele pensava.
— Eu... vou precisar... explosivos.
— Bom, sinto muito, mas isso você não vai ter. São muito barulhentos e fazem muita bagunça.
— Alguns cadeados... podem ser... impossíveis de abrir...
— disse Nockman, balançando a cabeça. Molly olhou para Rocky, preocupada. Eles não podiam usar explosivos. Não queriam que Cell soubesse que tinham entrado.
Ninguém deve saber disso — disse Rocky.
Nin... guém.
A gente se encontra na porta do hotel às dez da noite
— disse Molly. — Agora, vá e passe o dia com seus periquitos e com a Sra. Brinc-klebury. Assim que você sair daqui, vai sair do transe.
Nockman assentiu como um robô programado e foi se arrastando para fora.
Molly suspirou e abriu a porta deslizante. Imaginava como os funcionários, lá em-baixo na piscina, estariam arrumando os acolchoados para as cadeiras de banhos de sol e tirando com a rede os insetos mortos na água.
Bom trabalho — disse Rocky, espreguiçando. — Agora o melhor que fazemos é ir para a piscina também. Temos o dia todo pela frente. Quero praticar meu mergulho.
O quê? E sermos reconhecidos outra vez? — disse Molly, brusca. — Quem sabe quem está lá embaixo na piscina? Se Cell realmente é quem Lucy diz que é, deve ter espiões por toda a parte. Não podemos correr esse risco.
Rocky suspirou, exasperado.
— Acho que você tem razão. — Pegou uma foto de Cell e começou a desenhar um bico e asas nele.
A distância, o papagaio do hotel guinchava, "Divirtam-se, divirtam-se!"
Molly fechou as cortinas contra o sol e, pegando o catálogo do hotel de fitas de ví-deo, resignou-se a passar o dia assistindo a filmes.
Capítulo Onze
N
aquela noite, às dez horas, Molly deixou a Sra. Brinklebury desfrutando um drinque cor-de-rosa e beliscando uns petiscos no saguão do hotel, onde ela estava jubilosa de tão feliz, ouvindo ao acaso as fofocas de Hollywood sobre os prêmios da Academia. Não tinha a menor idéia do lugar para onde Molly, Rocky, Petula e Nockman realmente estavam indo.
Do lado de fora, eles foram até o ponto de ônibus do outro lado da avenida, depois da pista que conduzia ao hotel. Molly e Rocky usavam chapéus de lona que ajudavam a esconder o rosto. Nockman usava um casaco preto com capuz e gola alta, e calça preta. Levava uma pequena bolsa de lona que Molly supunha estar cheia de ferramentas.
Você parecc.ééé... profissional — disse Molly.
Grato — disse Nockman.
Ele está no modo arrombador — sussurrou Rocky no ouvido dela. — Espero que não seja demasiado profissional. Não queremos provocar suspeitas. Eu levo as ferra-mentas.
Petula farejou o ar. Por alguma razão, estava cheio de cheiros de alguns cães bem próximos. Olhou em volta e viu, atrás dela, um grande cartaz com a cara de um cachorro. Abaixo, estavam escritas as palavras SALÃO DE BELEZA E HOTEL CANINO PO-ODLE DA BELEZA. Embora as palavras escritas não fizessem sentido para Petula, os cheiros faziam. Seu focinho sentiu um labrador, um Yorkshire terrier, um buldogue e uma raça com cheiro oriental. Havia outras raças que não conseguiu reconhecer. Acima de todos os cheiros, sentia os perfumes de xampu, loções e os aromas de óleos essenci-ais. Obviamente, o lugar era um salão de beleza para cachorro. Petula esperava que de-pois que fizessem fosse lá o que fosse que estava deixando Molly nervosa, ela a levasse lá para um banho e uma escova.
— Auuuuuf! — latiu para Molly, para lhe mostrar o que descobrira. Mas Molly mal a ouviu. Pensamentos assustadores estavam dando voltas e voltas em seu cérebro como serpentes de patins.
Talvez, ela pensou, Primo Cell tivesse outros hipnotizadores trabalhando no escritó-rio — brutamontes enormes que trabalhavam de noite como guardas de segurança. O que ela e Rocky diriam, se fossem pegos? Teriam que fingir que eram apenas crianças das redondezas que entraram no edifício. Mas, então, não teriam que ter sotaque ameri-cano? E como explicariam Nockman, que estaria lá de pé, com cara de palerma e todo hipnotizado? Para Molly, tudo parecia tão terrível quanto pular de um barco no meio de um oceano infestado de tubarões.
Você acha que ele trabalha até tarde? — perguntou a Rocky, nervosa.
Nãão — respondeu Rocky. — Ele gosta de sair à noite com todos os amigos famo-sos. Suas celebridades hipnotizadas, quero dizer. Pode apostar que vai estar em algum restaurante chique por aí.
Tanto ele quanto Molly sabiam que faltava a esse quadro inofensivo toda a sinistra realidade do verdadeiro Primo Cell. Portanto, nenhum dos dois se sentiu nem um pouco melhor.
O ônibus 67, azul e branco, tirou-os de sua preocupação, parando com um suspiro para expirar o ar. Eles subiram e compraram as passagens. Molly ficou feliz ao ver que o ônibus estava praticamente vazio, e também escuro, e não havia ninguém para reco-nhecê-la.
O ônibus foi chacoalhando para o oeste. Dos dois lados da rua, havia construções in-teressantes. O Retiro do Cowboy era uma cabana de madeira com luzes brilhantes de neon. A Coroa de Esmeralda era um hotel no formato de um bolo de noiva com um ta-pete que corria até a rua, como um mar verde, para se encontrar com o mar de cobalto. Passaram por um cartaz de Gandolli para Presidente perto de outro cartaz em forma de lagarto, sobre uma loja de discos. O réptil de cor púrpura da "Só Curtindo" usava óculos de sol e fones de ouvido e parecia muito mais à vontade do que o político de sorriso falso e chapéu de caubói. Multidões aglomeravam-se ao redor da entrada de uma casa de música chamada Balada Sem Fim. Um quadro, ao lado, indicava de quem era a atra-ção da noite.
— Oba, eu gostaria de ver esse show — disse Rocky. Molly estava olhando para uma pessoa sentada sob um letreiro luminoso que dizia, Mapas das Estrelas à venda aqui.
O que são Mapas das Estrelas? — ela perguntou ao motorista.
São mapas com todas as ruas de Beverly Hills e Hollywood, onde estão marcadas as casas das estrelas — ele explicou, recolocando no lugar um dos cactos ornamentais do painel.
Como é? — disse Molly. — Quer dizer que os mapas mostram exatamente como você pode chegar à casa das estrelas?
Sim, claro. Você pode ver como são as fachadas das casas, mas não pode chegar perto. Elas têm segurança e guardas, do contrário os fãs invadiriam os jardins.
Molly estava espantada.
— Nós estamos em Beverly Hills agora?
Estamos. Está vendo como as calçadas ficam bacanas com todos esses canteiros? E aquelas ruas lá de cima são mais floridas ainda. Tem palmeiras nas avenidas e gramados, e se você subir até o topo verá as mansões realmente grandes. Mas agora estamos indo para um dos bairros comerciais. — O ônibus passou pertinho de um prédio chamado Hotel Beverly Hills.
Eu teria que gastar duas semanas do meu salário só para ficar aí uma noite no quarto mais barato — disse o motorista.
Logo chegaram a Westwood.
— Prazer em conhecê-los — disse o motorista.
Com um som de ar jorrando, as portas se abriram. E como se tivesse se sentindo ali-viado por ter soltado o ar, o ônibus prosseguiu serpenteando ladeira abaixo. Molly, Ro-cky, Petula e Nockman estavam em uma calçada larga perto da entrada de uma rua me-nor chamada Avenida Orquídea. Meio quarteirão abaixo, grande e cheio de reflexos, com as paredes de vidro azul-escuro, estava "O Centro Cell", o edifício de Primo Cell. Molly reconheceu-o imediatamente. O teto plano era coroado por um emblema dourado gigantesco — um disco enorme que dava a impressão de duas garras negras se retorcen-do e girando uma placa dourada. Molly estremeceu.
No lado oposto, havia um pequeno parque com limoeiros. Tentando passar o máximo possível despercebidos, Molly e Rocky levaram Nockman e Petula até um dos bancos. Petula começou a investigar os cheiros. Era um bom lugar de onde observar a entrada da fortaleza de Cell.
Aquele símbolo no alto parece garras segurando uma moeda — disse Rocky.
Ou chamas negras devorando um mundo dourado — sugeriu Molly.
Deve ser mais como pestanas pretas em volta da pupila dourada de um olho. Mas se você não sabe nada sobre Cell, então é só um desenho esquisito.
Você acha que Cell está lá dentro? — perguntou Molly.
Só há um jeito de descobrir.
Capítulo Doze
O
grupo de investigadores atravessou a calçada de mosaicos até chegar à grandiosa entrada iluminada do edifício de Cell. Sob os pés, Molly notou a imagem em branco e preto de um corvo, feita de azulejos. Nockman seguiu atrás, andando como um pingüim.
A porta preta de vidro se abriu enquanto eles caminhavam em direção a ela, e um segurança corpulento, de cabelo curto e espetado, encarou-os ameaçador, os olhos enca-puzados por sobrancelhas que pareciam um matagal.
Posso ajudar? — perguntou, com uma voz que sugeria que seria mais de seu agrado estrangulá-los.
Sim, por favor — respondeu Molly, educada, mas latejando por dentro. Jamais gos-tou de adultos grosseiros. Quem esse homem-hiena pensa que é? Com toda confiança, ergueu os olhos verdes para encontrar os dele.
O poder hipnótico de Molly estava léguas a frente de qualquer hipnotizador normal. Em poucos segundos, ela absorvia a atmosfera que circundava uma pessoa e descobria onde estavam seus pontos fracos. Podia sentir a quantidade de pressão hipnótica que seria necessário empregar neles para que cedessem. Enquanto deitava os olhos no segu-rança, o nível de fusão dentro dela, como um termômetro e um timer de forno, dizia-lhe que o velho Cabelo-Espigado estava total e completamente cozido. Ele ficou lá, com uma expressão de pasmo, como se tivesse acabado de ver uma deusa.
Você está sozinho aqui? — perguntou Molly.
Sim.
Molly deu uma olhada, procurando por câmeras de circuito fechado, e viu duas.
Quem vê os filmes nas câmeras? — perguntou. — Alguém está olhando agora?
Não. — O guarda balançou a cabeça. — O filme... vai para um banco... de memória e... só é visto... se tiver um problema... Como um roubo... ou um arrombamento... Eu tenho... um botão de alarme... que alerta o vigia... Eles então chamam a empresa... onde o filme... pode ser visto.
Você não deve apertar esse botão esta noite por motivo algum.
Não, senhora.
Tudo bem. Tá legal, moço. Agora você vai nos levar ao escritório de Primo Cell i-mediatamente. Está esperando alguém esta noite?
Não, senhora.
Você recebe visitas inesperadas? O Sr. Cell costuma aparecer?
Às vezes, senhora.
Você sabe onde ele está esta noite?...—cochichou Molly.
Não, senhora.
— Bom, acho melhor o senhor nos levar até lá. Depois de entrar em um elevador com paredes prateadas,
Molly, Petula, Rocky e Nockman viram-se caminhando por um corredor de pedra azul até um átrio circular. Ali, as paredes de mármore tinham a mesma imagem da chama escura, ou garra. Em uma porta preta, o segurança digitou um código no cadeado eletrônico. A porta se abriu suavemente e eles entraram no escritório de Cell.
O cômodo estava banhado por uma luz azul-marinho — a luz das lâmpadas da rua que se filtrava pelas janelas de vidro azul.
Pode voltar para seu posto — disse Molly. — Quando estiver fora de nossa vista, vai se esquecer de que estamos aqui e que está hipnotizado. Vai se comportar normalmente. Se o Sr. Cell chegar, você deve ligar para esta sala, sem que ele escute, para nos avisar de que ele está aqui. Nós vamos sair sozinhos. Qual é o número da porta?
Zero... nove... seis... zero.
— Ótimo. Você já pode ir. O guarda saiu.
— OK, agora ao trabalho — disse Molly. — Onde ele tranca coisas dele?
Ela passou os olhos pela sala moderna. Em um dos cantos, havia uma janela que ia do piso ao teto, com vista para o parque. Em uma parede estava pendurado um enorme quadro a óleo de um lindo corvo, sentado em um ninho de coisas que brilhavam: moe-das, jóias, objetos preciosos de ouro e um diamante enorme, glacial. A parede oposta era coberta de estantes de livros. O piso era listrado de preto e branco. Uma escrivaninha art déco de laca preta estava em frente à janela.
Sobre elas, duas presas brancas de elefantes, engastadas em bases de prata, aponta-vam para o teto.
— Que desagradável — disse Rocky. — Eu preferia estar morto do que ter uma presa de elefante como enfeite. — Depois, olhou para o chão, e sua boca se abriu. Ajoe-lhou-se e passou a mão. — O tapete que vai de parede a parede é de pele de zebra. O tapete todo. — Rocky estava muito estarrecido para dizer o que sentia em relação a isso. Petula cheirou o piso. Tinha cheiro de cavalo.
Sentindo-se um peixe na luz azulada e aquosa, Molly jogou-lhe um par de luvas de borracha Muitabolha.
— Tome — ela disse. — Calce-as. Não podemos deixar digitais. — Usando as suas, ela cruzou a sala até a escrivaninha de Primo Cell e começou a abrir as gavetas. Esperava encontrar uma delas fechada.
Rocky checou se as estantes não escondiam um cofre.
— Talvez ele não tranque as coisas. Tem algum computador por aqui?
Molly balançou a cabeça e passou os olhos por uma pasta cheia de fotografias de grandes esculturas em aço de animais exóticos. Suas mãos estavam começando a suar dentro das luvas.
Nockman estava parado em silêncio ali perto, aguardando instruções.
Na última gaveta, Molly encontrou alguns documentos mostrando as empresas que Primo comprara recentemente. Outros documentos listavam os lucros que suas compa-nhias tinham conseguido. As maiores eram Primoveloz, Compucell e Petróleo Cell, mas até as menores — Sintonizante, Vitabom, Shique Shaque, Casa da Moda e Poder Leve — pareciam ser um enorme sucesso. Molly nunca vira números tão altos como os que apareciam nos extratos bancários de Primo Cell. Mas não eram esses números que eles estavam procurando.
Havia muitas evidências de que Cell era solidamente rico e influente, e possuía em-presas que iam de petrolíferas a jornais, mas nenhuma evidência de que era hipnotizador.
Então, quando Molly ia começar a examinar o que parecia uma agenda de endereços, sentiu algo macio sob seus dedos. Puxou-o. Era uma pequena luva de vison preto. Serviria perfeitamente para Molly.
— Rocky, olha isso. Será...?
Ela procurou na gaveta pelo outro par da luva.
— Por que Primo Cell guardaria uma luva de criança em sua escrivaninha? — ela sussurrou, rouca.
Rocky já ia abrir a boca quando escutaram vozes no corredor do lado de fora.
Capítulo Treze
R
apidamente, Molly puxou Nockman para trás da escrivaninha e o empurrou para o espaço tipo caixa que havia embaixo. Todos eles sumiram, prendendo a respiração, como dois peixinhos e uma lesma-do-mar mergulhando atrás de uma pedra.
— Você ficará quieto como... como um morto — cochichou Molly frenética.
Nockman imediatamente revirou os olhos e pôs a língua para fora.
— Não pode ser Primo Cell — sibilou Rocky — ou o segurança teria nos avisado.
O cadeado eletrônico soou quatro vezes.
— Petula! — Molly sufocou um grito. Petula estava examinando a crina da pele de zebra, no canto da sala. Tinha o cheiro de algum lugar quente e distante. Ela cuspiu a pedra que estava chupando para poder cheirar melhor.
A porta da sala se abriu e uma voz de mulher, subitamente alta, disse:
— O papel higiênico Suntuosus está indo bem.
Molly pediu desesperadamente que Petula viesse rápida até eles, antes que as luzes se acendessem.
— Graças ao anúncio com aquele boxeador... — disse a mulher.
— Rei Moose — completou uma voz de homem.
— Sim, Rei Moose diz que é firme o bastante até para ele. As luzes subitamente resplandeceram. Molly estava tão
assustada que achou que ia desmaiar. A veia do pescoço batia tão forte que sua nuca doía. Se o casal, fossem eles quem fossem, chegasse mais perto da janela, poderia fa-cilmente ver os três, ela, Rocky e Nockman espremidos embaixo da escrivaninha. Quan-to à Petula, era uma campainha de alarme esperando para ser ativada.
As pessoas estavam de pé, perto do quadro do corvo.
— Você viu o comercial? — perguntou o homem.
Rei Moose lutando boxe com um rolo de papel higiênico animado, e perdendo? Vi, e tive que rir.
Este não é um hábito seu, Sally.
Não precisa ser sarcástico, Sinclair. Você também não é nenhum poço de diversão.
O trabalho me deixa sóbrio.
Talvez você devesse exibir mais comédias em seus canais — sugeriu Sally.
Comédia é o que não falta. — disse Sinclair. — Eu só não tenho tempo de assistir. Primo me faz trabalhar demais. Agora, vamos dar uma apressada? Você com certeza sabe onde está o fichário, vem aqui todo dia.
Tudo ficou em silêncio, exceto pelo barulho das pastas do fichário que Sally procu-rava. Molly estava rígida de tão nervosa. Rocky olhava fixo para o chão, tentando ficar imóvel feito uma mobília, esperando ter deixado tudo em ordem.
Aqui está — disse a voz de Sally. — É uma pequena empresa que fabrica relógios. Chama-se Horacert. Primo está me deixando administrar sozinha o projeto. Acha que conseguiremos fazer a Horacert crescer até ser a marca usada por uma em cada duas pessoas dos Estados Unidos. Vou tentar dar tudo de mim para fazer isso acontecer. Vou fazer Tony Uam promovê-los. "O golpe de kung fu tem que ser na hora certa." Será esse tipo de campanha publicitária. Mal posso esperar para contar a Primo.
Você está muito ansiosa para agradar.
Você tem todo o direito de me dizer isso, Xodozinho do Mestre.
Não vamos começar a discutir outra vez. Então, o que você quer que eu faça?
Dar aos relógios um tempo de propaganda gratuita na TV Iceberg, é claro — diz Sally. — Tome, fique com essas cópias. — Molly gelou quando os passos do homem aproximaram-se do outro lado da escrivaninha. De repente, ele disse:
Não acredito no que estou vendo. Aquele cachorro está aqui outra vez.
Petula levantou os olhos de seu canto atrás da porta.
Que cachorro?
Esse cachorro, esse minibuldogue, olha. Eles me falaram que um cachorro tinha en-trado no edifício ontem e olha, aí está ele de novo. Como será que entrou?
Molly escancarou a boca, mas não saiu som nenhum.
Pobrezinho, há quanto tempo será que está aqui? Venha, meu bem. — Molly ouviu Petula arrastando as patas até chegar à mulher desconhecida. Petula sempre adorou ter a barriga coçada.
Ohhh, olha só, que gracinha. Quer que eu coce seu bumbum? Espero que faça um teste para um de seus comerciais de comida de cachorro, Sinclair — Sally riu. — Ohhhh, é tão bonitinha. Veja esse narizinho. Oh, você tem que lhe dar um papel, Sinclair!
Vou chamá-la para o comercial de biscoitos para cachorro, na semana que vem — disse Sinclair, rindo.
— Posso levá-la para casa? Molly mordeu seu lábio.
Não, Sally. Essa cachorrinha vive pela redondeza. Controle-se. Vamos deixá-la lá fora, quando sairmos. — Com isso, as luzes da sala se apagaram. — Vamos, cachorrinha — disse Sinclair, com um assobio. Petula obviamente não se mexeu.
Ela não quer vir. Quer assinar o contrato primeiro — riu Sally.
Vai. VAI, pensou Molly.
Sally deve ter pego Petula, porque o que escutaram a seguir foi a porta se fechando e a conversa entre Sinclair e Sally foi desaparecendo.
Molly e Rocky esperaram vários minutos antes de ousarem engatinhar para fora do esconderijo. Molly viu que suas pernas estavam tremendo. Até se ver presa atrás da es-crivaninha, ela não tinha percebido completamente a seriedade da situação em que esta-vam. Eles se arrastaram de barriga e olharam pela janela. Logo, viram as cabeças de Sinclair e Sally saindo do edifício. A mulher de cabelo escuro pôs Petula no chão, depois riu e apontou, enquanto Petula caminhava diretamente para a porta do edifício outra vez. Parecia mesmo uma atriz canina adolescente que não aceitava um não como resposta. Sinclair, irritado, fez um gesto para a mulher entrar no carro esporte estacionado perto da entrada. Com a rotação barulhenta do motor, eles partiram.
— Brrrrhhhh — Molly tremeu. — Vamos logo com isso. Temos que sair daqui.
Rocky sacudiu os ombros três ou quatro vezes para tentar aliviar o nervosismo.
— Você acha que esses dois eram hipnotizadores?
— Talvez estivessem hipnotizados. Não queria que eles falassem de Petula com Cell. — Molly inclinou-se para Nockman.
Você pode voltar a ficar vivo agora, mas tranqüilo e silencioso, por favor. — Nock-man levantou-se com dificuldade.
Deve haver algum outro lugar aqui onde Cell guarda suas coisas secretas — disse Molly.
— A não ser que ele as guarde em casa. Molly olhou para o quadro do corvo.
Minutos depois, Nockman estava se equilibrando em uma cadeira de veludo e, usan-do luvas Muitabolha, tirou o quadro da parede. Lá, como um segundo quadro afundado na parede, havia um cofre do tamanho de um forno de microondas. No meio, um mos-trador digital cor de cobre, com pequenos números gravados ao seu redor.
— Bing-o — disse Nockman, entusiasmado, batendo sua cabeça contra o cofre.
— Você consegue abri-lo? — perguntou Molly.
— Claro... que sim — declarou Nockman. — É um Glock e Guttman... de 1965. Uma beleza. Já abri... três desses antes... Eles são... como velhas ricas... difíceis de se-duzir... mas valem o esforço.
Valem?
Sim... valem.
— Não acho que a Sra. Brinklebury ficaria satisfeita ouvindo você dizer isso — disse Molly, pensando em como os velhos hábitos criminosos estavam à flor da pele de Nockman. Ele parecia envergonhado.
— Tá, tudo bem, abra — disse Molly.
Nockman assentiu e, meio desajeitado, aproximou o rosto do cofre como se fosse beijá-lo. Bateu o nariz. Depois, encostou o ouvido na roda de cobre e, com a mão direita, começou a girá-la.
Espero que ele consiga fazer isso hipnotizado — disse Molly.
Muuuuuummmmm—matutava Nockamn, virando a roda seis graus para a esquerda.
Como ele faz?
Não faço idéia. Só queria que se apressasse.
— Haaaahh — grunhiu Nockman, como se tivesse acabado de agarrar uma raposa abrindo a porta de um galinheiro.
Enquanto Nockman grunhia, matutava e fazia estalidos, Molly procurou a microcâ-mera em sua bolsa. O que Cell teria escondido em seu cofre secreto? Estava empolgada mas, ao mesmo tempo, aterrorizada.
Súbito, Nockman deu um suspiro. Puxou a maçaneta de tungstênio do cofre e um clique satisfatório reverberou do lado de dentro.
— Aí, pronto — disse ele. A porta se abriu de repente.
Então, seu rosto se cobriu de decepção quando viu que não havia nem diamantes, nem jóias. Em vez disso, quatro fichários pretos, um por cima do outro, estavam lá den-tro, como monstros adormecidos. Nockman passou-os para Molly.
Você primeiro — disse Molly.
Não, depois de você — disse Rocky. Molly abriu um fichário.
— Uau! — Mal podia acreditar no que estava vendo. Olhando para ela, da primeira folha de uma pilha de papéis, havia uma fotografia de Cosmo Ás. Estava pregada sobre o letreiro, "Campanha Barra Céu". Datas e endereços estavam impressos abaixo. Mas este não era o rosto familiar, simpático, dos anúncios de TV Esse homem parecia zonzo, ou drogado... ou hipnotizado.
— Lucy estava certa — disse Rocky, a garganta seca. Com as mãos tremendo, ele e Molly pegaram um fichário
cada um e começaram a examiná-los. Tinham realmente acertado em cheio. Todas as folhas tinham o mesmo padrão — com o nome da pessoa no alto da página e uma fotografia de passaporte de cada um no canto esquerdo, como um selo postal. Molly e Rocky mal conseguiam conter o espanto.
— São tantos! Ele hipnotizou praticamente todos os grandes artistas.
Algumas páginas tinham uma observação em vermelho. Dizia simplesmente, DIA E.
Molly chegou à ficha de Suky Champanhe. Era estranho ver o rosto mundialmente famoso na pequena foto em preto-e-branco. Suky Champanhe não parecia ser a linda e animada figura de sempre. Esta Suky parecia dopada. Sua folha também incluía as pala-vras "Dia E".
— O que você acha que "Dia E" significa? — perguntou Molly.
O dia que ele conseguiu o que queria? Não sei — respondeu Rocky. — Olha, Billy Bob Bimbo também está aqui.
Devo tirar uma foto de cada documento? — sussurrou Molly.
Sim. Eu os levanto e você faz a foto.
Foi o que fizeram. Molly tirou as luvas de borracha e começou a usar a câmera. Fo-tografias de celebridades conhecidas e rostos de desconhecidos passaram por sua câme-ra, a luz do flash iluminando os rostos hipnotizados. Ali estava Hercules Pedreira, pare-cendo meio adormecido, Gloria Tiammo com a boca aberta como um peixinho dourado de aquário. Rei Moose, vesgo, e Stephanie Guizadim sorrindo como boneca de plástico. Mas não tinha só estrelas e atores nos fichários. Havia apresentadores da TV americana, astros do esporte, jornalistas, líderes de empresas, editores de jornais, comentaristas, artistas, escritores, donos de restaurantes, médicos, chefes de polícia, comandantes do exército e políticos.
— Eu não ficaria surpreso se ele quisesse hipnotizar o presidente dos Estados Uni-dos — disse Rocky.
Os documentos estavam em ordem alfabética, e Molly reparou que havia muitas fo-lhas em branco, com nomes no alto, mas sem fotos. Eram pessoas que Primo Cell pla-nejava hipnotizar? Em alguns deles, estava escrito com letra vermelha,
ATIVAR ANTES DO DIA E.
Que Dia E será este? — perguntou Molly outra vez.
O dia que ele está planejando alguma coisa grande. Temos que descobrir o que sig-nifica.
A pior folha que encontraram foi a de Davina Nuttell. Ela olhava para fora da foto como alguém que acabara de ver uma bomba explodir. Uma cruz vermelho-sangue a-travessava a página como a marca de um assassino.
— Oh — Molly engoliu em seco. — Será que ele.... Rocky olhou o papel, horrori-zado.
Então Primo Cell tinha mesmo algo a ver com o seqüestro dela. Mais do que só algo. Ele deve ter ordenado o seqüestro.
Ou ele mesmo a seqüestrou.
Mas por quê?
Tudo que sei é que estamos brincando com fogo e deveríamos sair daqui o mais rá-pido possível.
Rocky e Molly trabalharam com a maior rapidez possível. Agacharam-se, esperando que os flashes da câmera não fossem vistos da rua. Nockman sentou-se em uma cadeira de veludo, murmurando ocasionalmente, "Tique, tique, taque", ou "Clique, clique, cla-que", ou "Huuummm", erguendo os polegares.
Uma hora depois, Molly tinha tirado 760 fotos e o quadro do corvo estava de volta a seu lugar.
Ele nunca saberá que estivemos aqui — disse Molly.
A menos que esteja nos vendo.
Não me apavore — disse Molly.
O prédio estava silencioso como uma pirâmide, a rua calada como um cemitério, ex-ceto pelas buzinas e sirenes distantes do trânsito de Los Angeles. Molly instruiu o segu-rança a chamar um táxi e então, depois que tivessem partido, esquecer completamente que eles estiveram ali. Petula ainda estava esperando em frente da porta de entrada. Molly levantou-a e lhe deu um abraço.
— Você é uma palhacinha completa, Petula.
De volta ao Chateau Marmoset, Nockman foi instruído a também esquecer a noite.
— Você pode dizer à Sra. B. que passamos a noite na casa do Benfeitor, que é mui-to linda, eee... Sabe como é... muito elegante e cheia de móveis caros e tapetes grossos e.... ããã... portas. Sim, muitas portas, que um jovem sobrinho dele tinha trancado e jo-gado as chaves fora, e então você teve que pegar todos os cadeados e fazer novas cha-ves. Você pode dizer que conheceu o Benfeitor, mas só por um minuto, porque ele teve que sair para um jantar de negócios. Diga que ele parecia...
Um velho simpático — sugeriu Rocky.
E, com cabelos grisalhos e bigode, e estava usando...
Um terno cor-de-rosa?
— E, diga que ele parecia um Papel Noel de terno cor-de-rosa. Se a Sra. Bricklebury perguntar outros detalhes, diga que não se lembra.
Molly não pôde deixar de completar:
— E... ééé... Sr. Nockman, parabéns pelo tanto que o senhor melhorou. O senhor é hoje uma pessoa muito mais agradável do que era. Todo mundo gosta de verdade do senhor.
Nockman assentiu. Depois Molly estalou os dedos e despertou-o do transe.
Eles voltaram para seus chalés e esconderam os microfilmes em uma gaveta no quarto de Molly. Ela procurou o número do telefone de Lucy na pasta e começou a dis-car.
— Lucy ficará admirada — disse.
— Tomara que o telefone dela não esteja vigiado ou grampeado — disse Rocky.
Do outro lado da linha, o telefone continuava a tocar sem resposta.
— Ela deve estar acordada, em Briesville são dez horas da manhã — disse Molly. Mas ninguém atendia.
— Imagino que deve demorar séculos para fazer compras com muletas — disse Rocky, bocejando. — Ligue para ela amanhã.
Molly estava doida para contar a Lucy sobre Davina e os astros hipnotizados. Queria perguntar-lhe o que deviam fazer a seguir. Com relutância, desligou o telefone.
— Vejo você amanhã, Caramelo — disse Rocky, dirigindo-se para sua cama e ten-tando afugentar o medo dos dois.
Molly nunca tinha se sentido tão parecida com um caramelo — mole, amassável e aérea como uma nuvem. Estava tão exausta que mal teve energia para trocar de roupa. Pegou no sono assim que a cabeça caiu no travesseiro.
Capítulo Quatorze
O
segundo dia no Chateau Marmoset foi mais quente do que o primeiro. De fato, as temperaturas estavam quebrando recordes. Ventiladores giravam no saguão, onde as pessoas sentavam-se, abanando revisas debaixo dos queixos.
O clima em Los Angeles também estava mais quente, porque os prêmios da Acade-mia seriam entregues na noite seguinte. Nos hotéis e nas casas famosas, diretores, pro-dutores, atores, atrizes, roteiristas, músicos, advogados e agentes já estavam tendo seu sono de beleza e se preparando para o grande evento. Os estilistas, cabeleireiros, maqui-adores, joalheiros, locadoras de limusines, floriculturas, terapeutas de imagem e redato-res de discursos da cidade estavam fazendo hora extra. Por toda a cidade, festas eram organizadas e os nomes dos indicados para o Oscar estavam na boca de todo mundo. Exceto na de Molly.
Ela se apressou, atravessando o saguão. Tinha enfrentado as ruas escaldantes do meio-dia para ir a um laboratório fotográfico mandar revelar os microfilmes. Agora a informação preciosa estava em um grande envelope sob seu braço. Ela mantinha a cabe-ça baixa, porque a cada vez que alguém pisava no chão do hotel, todo o saguão olhava para saber se era alguém famoso ou não. Molly não queria ser reconhecida de novo e, com as informações que haviam conseguido na noite anterior, sentia-se muito vulnerável. Quase esperava encontrar dois brutamontes de Cell esperando por ela do lado de fora do seu bangalô. Mas voltou sem incidentes para junto de Rocky em seu quarto fresco, com ar-condicionado, e se sentou para contar o número de pessoas que Cell tinha hipnotizado.
— São 217 não hipnotizados e 542 já sob seu poder. Portanto, ele está planejando — Rocky rabiscou a soma num papel
— 759 no total.
E depois, hipnotizada ou não, viva ou morta, tem Davina — Molly lembrou-o sole-nemente.
Como você acha que Cell faz isso? — perguntou Rocky.
— Será que usa um pêndulo, ou você acha que ele faz como eu e usa a voz? Ou principalmente os olhos?
Nós não sabemos — disse Molly, estremecendo. — O certo é que nunca consegui-remos desipnotizar 542 pessoas.
Todos os endereços estão aqui — disse Rocky.
Pode ser. Mas, mesmo se conseguíssemos desipnotizar dois por dia, o ano só tem 365 dias. Demoraríamos meses e meses para fazer isso. E se Cell hipnotizá-los todos outra vez? De qualquer forma, como vamos desipnotizá-los sem que ele perceba o que estamos fazendo? Ele virá atrás de nós. E vai nos abocanhar como.... como um crocodilo abocanhando....
Bebês de gatinhas?
É — disse Molly, achando a imagem revoltante.
Ela juntou as fotos e as trancou no cofre do quarto. Do lado de fora, podia escutar a Sra. Brinklebury falando para Roger não subir tão alto em uma árvore. Molly foi an-dando sem pressa para o gramado para ver os outros na piscina lá embaixo. Olhou-os com inveja.
— Seria bom se pudéssemos nadar um pouco, Rocky. Mas é melhor ligarmos para Lucy. Ela pode ter alguma boa idéia sobre como desipnotizar esses artistas. Oh, como seria delicioso não ter nada para fazer, nenhum trabalho, nenhuma missão!
Eles podiam ver a Sra. Brinklebury, com um maiô fora de moda e um chapéu de abas largas, descansando na espreguiçadeira ao sol, com uma pilha de revistas de celebridades no colo. Estava atirando pedaços de salgadinhos para um grupo de melros perto. Um garçom da piscina, de terno branco, colocava uma taça alta com um drinque verde na mesa ao lado. O Sr. Nockman estava no trampolim, prestes a pular. Dava para ver os pés de Roger balançando, pendurados em uma árvore frondosa cheia de galhos, perto do muro. Ele estava prendendo aviõezinhos de papel azul nas folhas.
O Sr. Nockman pulou de barriga na água, fazendo um estardalhaço. Um grito da Sra. Brinklebury pôde ser ouvido a seguir:
— Simon, veja o que você fez! Ensopou minha revista especial sobre o Oscar!
Molly subitamente se animou. Virou-se para Rocky:
Quando é a noite do Oscar, Rocky?
Molly, que pergunta!? O lugar todo está fervendo com a febre do Oscar. A entrega dos prêmios é amanhã. Não acredito que você não saiba.
Bom, acho que sabia — disse Molly, pensativa. — Só que não imaginei que estava tão perto. Quem vai para a festa, Rocky?
Todo mundo vai. Todas as pessoas importantes do cinema.
Sim — disse Molly. Ela se lembrou de todos os clips de televisão que já tinha visto da entrega dos Oscars. Havia tantos prêmios. Prêmios para os melhores atores, diretores, fotógrafos, roteiristas, compositores de trilha sonora, especialistas em efeitos especiais, figurinistas e produtores.
Não sei como não pensei nisso antes. É perfeito. Aonde mais poderíamos desipnoti-zar cada um desses astros estúpidos tão rapidamente? Nós também vamos à festa.
Rocky ergueu as sobrancelhas e sorriu.
Parece divertido.
Divertido para alguns, mas o problema, Rocky, é que para nós é trabalho. Se é ama-nhã, temos que começar a nos preparar. E já que vamos, é melhor parecermos filhos de gente do cinema. Vou precisar de um vestido, nós dois precisamos de sapatos, e você tem que arrumar um smoking.
Um quê?
Um traje masculino para noite. É melhor irmos fazer essas compras rápido. Telefo-naremos para Lucy mais tarde.
Com isso, Molly correu para pegar a mochila.
Ela não podia imaginar que, ali perto, novos alunos de hipnotismo estavam tendo sua primeira sessão.
— Para fazer isso, acho que precisamos de completo silêncio — disse Gemma, ajo-elhando-se no tapete. Nesse momento, escutaram um arranhão na porta. Gerry deixou Petula entrar.
— Tá, Petula, você pode entrar, mas nada de barulho. Petula levantou a cabeça e se sentou perto da cama para observar o que dois jovens humanos iam fazer. Gemma e Gerry
agacharam-se na frente de uma jarra de vidro vazia. Dentro dela, estava Victor, o camundongo maior.
Victor estava chateado por ter sido tirado de sua cama de palha quentinha, onde es-tava dormindo para se recuperar de seu problema de fuso horário, causado pelo longo vôo. Mastigava um pedaço de semente e lançou o que esperava ser um olhar sinistro para os dois seres humanos do lado de fora. Seu humano favorito, o menino que ele chamava de "O Grande", c a menina que muitas vezes estava com ele olhavam-no de volta, os corpos distorcidos pelo vidro. O animal peludo também estava lá.
Tudo bem, então já fizemos a primeira parte — disse a menina. — Você tem certeza que os camundongos têm um guinchado parecido, Gerry?
Tenho. É o tipo de guinchado que fazem antes de pegar no sono. — O menino fez um som sussurrado e guinchado.
Ssssssssiiiiiiik. Faça — disse ele. A menina o imitou.
Exato. Faça isso. — Gerry estudou as fotocópias a sua frente. — Aqui diz — ele leu — "Lepita a voz do ani...mal, como se o estivesse ninando, até que o animal co...comece a se em-embalar em tlan... tlan..." Não consigo...
Transe. — Gema tomou o papel. — É um tipo de sono antes de você ficar hipnoti-zado. Meio como um sonho acordado.
Temos de fazer Victor sonhar acoldado?
Entrar em transe. "Você saberá que o animal está em transe quando sentir a sensação de fusão." Tudo bem. Vamos fazer isso.
Victor coçou a orelha com a pata traseira e se perguntou se ainda haveria algum pe-dacinho de torrada escondido em algum lugar. De repente, a menina do lado de fora do jarro começou a guinchar repetidamente, como um camundongo muito grande.
Depois de cinco guinchados, Victor levantou as orelhas. A menina parecia estar ten-tando se comunicar com ele na língua dos camundongos. Seu tom não era exatamente camundongal. Tinha um sotaque humano muito forte, mas era um guinchado que dava para entender, de qualquer maneira. Parecia algo como "Daarme, daarme, daarme". Vic-tor supôs que ela queria dizer durma, durma, durma. Ficou meio irritado. Era exatamente isso que ele estava fazendo antes de ser despertado aos trancos e colocado naquele troço de vidro.
Petula estava deitada com a cabeça entre as duas patas dianteiras. Muitas vezes, ela escutava os camundongos conversando um com o outro. Mais ainda, Petula também entendia o que Gemma estava tentando fazer. Quando morou com Molly em Nova York, Petula tinha visto, escutado e, mais importante, sentido um monte de gente sendo hipnotizada. O sentimento não estava certo, Petula pensou. A voz da menina era cal-mante, mas não tinha aquele toque extra da voz de Molly.
Petula moveu-se um pouco para frente até poder ver o camundongo na jarra. Deu um leve rosnado.
Victor viu a besta peluda se aproximar. Sabia que não era perigosa, pois muitas vezes já tinha corrido no chão, perto de onde ela estava deitada. Uma vez até correu sobre suas costas, por engano. Mas uma coisa que ele nunca tinha feito era olhar bem nos olhos da besta peluda. Agora, olhou. Os olhos de Petula olharam gentilmente de volta para ele. Victor achou a experiência muito agradável. Era como olhar nos olhos de um queijo amável, grande, amigável, relaxante, gostoso, amigável, agradável, relaxante. E quanto mais olhava para o queijo — ou era uma besta peluda? — mais Victor sentia que estava tombando.
Quando, finalmente, bateu no fundo da jarra, tão confortável como se estivesse dei-tado em um prado florido, sem predadores, sentiu como se tudo o que ele sempre quis fosse ficar deitado naquela jarra, com o queijo peludo sentado eternamente do outro lado.
— Olha o Victor — disse Gemma. — Acho que consegui!
Você acha que ele está hipnotizado? Você sentiu o tal negócio de fundição?
Fusão — Gemma o corrigiu. — Não sei. Mas devo ter sentido. Agora, temos que mandá-lo fazer alguma coisa, Gerry. O que vamos mandar ele fazer?
Eu sei — disse Gerry, e se levantou para mudar a fita no toca-fita.
O prado de Victor de repente se encheu de uma música suave, de flautas de pã. Pela curva do vidro, ele viu O Grande movendo-se ritmadamente, seguindo o som.
Victor estava demasiado relaxado para se mexer. Fechou os olhos e se imaginou sentado em uma pétala em forma de rede, pendurada na grande besta de queijo peluda e maravilhosa.
Gemma e Gerry ficaram decepcionados por Victor não ter dançado mas, pelo menos, acharam que tinham conseguido hipnotizá-lo — o que não conseguiram, é claro.
Capítulo Quinze
À
s cinco e meia, Molly e Rocky chegaram de volta ao chalé. Rocky foi para cozinha pegar algo para os dois beberem e Molly foi verificar o despertador. Queria muito falar com Lucy Logan. Mesmo considerando a diferença de fuso horário, Lucy ainda devia estar acordada. Assim que Rocky voltou com os Qubes, ela discou o número.
O fone foi atendido por uma voz rouca, zonza, só meio acordada.
— Lucy, é você? Sou eu.
A bibliotecária tossiu e limpou a garganta várias vezes.
Sim, sim, é Lucy quem está falando. Molly! Está tudo bem? É de madrugada aqui.
Tudo está bem — disse Molly. — Desculpe por tê-la acordado. Lucy, fizemos al-gumas descobertas incríveis. Você estava absolutamente certa sobre Primo Cell. — Molly disparou a fazer uma descrição detalhada das últimas vinte e quatro horas.
Contou para Lucy o que tinham descoberto no escritório dele. Explicou que planeja-vam ir à festa do Oscar para desipnotizar o máximo de estrelas que pudessem, e para descobrir, se conseguissem, se Davina ainda estava viva. Molly esperava que Lucy sou-besse a que se referiam as misteriosas palavras em tinta vermelha que diziam «Dia E», mas ela não sabia. Depois de dez minutos de conversa, o assunto estava chegando ao fim. Molly perguntou:
E você, Lucy? Teve mais algum problema?
Estou bem. É difícil conseguir dormir, com minhas queimaduras, é só isso. — Lucy suspirou. — Estou admirada com o tanto que você já conseguiu, Molly. Mas, por favor, tenha cuidado. Lembre-se, o homem não é normal. Ele é um monstro.
Terei cuidado. E, Lucy, o dinheiro está chegando logo? Sinto ter de perguntar, mas estamos com muitas despesas aqui.
Claro, Molly. Vou cuidar disso imediatamente. — Depois, acrescentou, carinhosa: — Dê lembranças a Rocky e cuide-se. Dê notícias. Tchau.
Molly desligou o telefone.
E aí, o que ela disse? — perguntou Rocky.
Vou lhe contar enquanto preparamos as fichas para enviar para ela pelo correio. Mas, olha, temos o resto do dia e acho que preciso relaxar um pouco. Vamos nadar.
Tem certeza?
Por que não? Se vamos à entrega dos prêmios, temos que nos acostumar com a idéia de que as pessoas podem nos reconhecer. De qualquer forma, mesmo que Cell tenha visto aquele anúncio que fizemos, tenho certeza de que está ocupado demais com as coisas do Oscar para se preocupar com uma dupla de hipnotizadores esta semana.
Depois de passar, vestidos com roupões de banho, pelo balcão da recepção para or-ganizar a remessa de uma encomenda expressa para Briesville, Molly e Rocky desceram para a piscina. Embora o relógio marcasse quase seis horas, o sol ainda estava quente como um forno.
Não havia muitos outros hóspedes do lado de fora. A Sra. Brinklebury e Gemma a-cenaram para eles de uma mesa à sombra, onde estavam tomando sorvete. Molly e Ro-cky encontraram cadeiras perto da cascata da piscina. Rocky mergulhou na água azul-turquesa para se juntar a Roger, enquanto Molly colocava um chapéu de palha. Deu palmadinhas de leve em suas pernas magricelas e cheias de sardas. Queria que elas fi-cassem bem quentinhas antes de entrar na água.
Fechou os olhos. O calor da tarde, o cheiro de alguma coisa assada na brasa e o som doce dos assovios dos melros por perto fizeram Molly se sentir agradavelmente letárgica. O sol brilhou em suas pálpebras e, visto por trás delas, tudo parecia laranja. Ela ouvia o barulho da água da cachoeira na piscina e começou a relaxar.
Depois de um minuto ou pouco mais, Molly olhou ao redor.
Duas mulheres que pareciam executivas estavam sentadas à mesa sob uma sombri-nha, de costas para ela. Ambas tinham os cabelos penteados e usavam conjuntos — uma, azul-claro, a outra, fúcsia. Ela olhou para o cabelo da mulher de conjunto rosa. Parecia ter mechas brancas e douradas e, no meio, um prendedor de casco de tartaruga, pegando a luz do sol.
O prendedor faiscava e dançava à luz dos raios de sol, e quanto mais Molly olhava, mais o cabelo da mulher parecia a crina de um cavalo maravilhosamente tratado. Caía sobre as costas da mulher, como fios dourados.
Então, enquanto olhava, com o sol caindo sobre ela, Molly detectou um princípio da sensação de fusão dentro dela. E, lembrando-se do que aconteceu quando tinha olhado para o cachorro de arbusto em Briesville e para a mala no aeroporto, perguntou-se se, ao olhar para o prendedor de cabelo de casco de tartaruga, a sensação fria de fusão viria outra vez. E veio. Molly sentiu a estranha mudança de quente para frio. Desta vez, no entanto, o frio não a incomodou muito, porque o dia estava quente.
Quando o formigamento frio começou a subir por sua espinha, um pensamento lhe ocorreu. Talvez, se ela deixasse o sentimento se completar, talvez — ao contrário do que receara antes — em vez de prejudicar seus poderes hipnóticos, talvez os fortalecessem ainda mais. Em um momento de ousadia, Molly decidiu deixar a sensação de fusão fria florescer dentro dela. E assim, olhando para o prendedor como se quisesse hipnotizá-lo, Molly deixou a sensação entrar. O que poderia acontecer?, pensou. Será que o prendedor podia ser hipnotizado? Será que ela podia fazê-lo se soltar e cair no chão?
No começo, a sensação foi tímida, como uma cócega formigando pelo corpo. Depois, começou a subir pelas pernas como uma torrente. E então, em uma repentina onda gelada, inundou o resto do corpo, fazendo-a tremer. Molly parecia parecia ter água mi-neral gasosa gelada nas veias, e o diamante em volta de seu pescoço parecia frio como uma geleira. Era uma sensação muito esquisita. Molly não se sentiu lá muito à vontade, mas controlou a sensação. Olhou para o prendedor de cabelo. Sentiu que o hipnotizara. Será?
Molly reparou que tudo estava silencioso. Muito silencioso. Até a queda da cascata silenciara. Molly se perguntou por quê, será que a cascata tinha sido desligada? Ainda em sua bolha de frio, virou-se para olhá-la.
O que viu a fez saltar. Porque a cascata, na verdade, tinha parado de cair. Mas não de uma maneira normal. Era agora uma camada sólida de água, como se tivesse conge-lado de repente. Só que não era gelo — brilhava como água em estado líquido. Molly olhou à esquerda.
Gerry, que estivera brincando, estava parado como uma estátua, e na posição mais desajeitada. Estava se equilibrando em uma perna, na ponta dos pés, enquanto seu outro pé estava no ar, onde acabara de chutar uma bola. Seus olhos estavam voltados para cima, para onde a bola se pendurara como que de um fio invisível no céu. A sua esquer-da, Gemma dava à Sra. Brinklebury uma lambida no sorvete. A língua da Sra. Brinkle-bury estava para fora da boca como uma minhoca vermelha, meio enterrada no sorvete rosado. Gemma estava no meio do ato de soprar seu chiclete de bola e o Sr. Nockman lhe dizia alguma coisa em aprovação, suas palavras silenciosamente congeladas no ar. A fumaça dos cigarros das executivas estava parada no ar como colunas. O mundo inteiro estava parado como uma pintura, um quadro tridimensional.
A sensação de fusão fria preencheu Molly completamente. Tudo o que escutava era o som das batidas de seu coração e sua respiração assustada. Ela sentiu que, se soltasse, do mesmo modo como "desligava" os olhos quando hipnotizava alguém, a sensação de fusão fria iria embora — pelo menos, ela esperava que fosse. Metade dela estava petrifi-cada de medo do mundo ficar parado assim para sempre, enquanto a outra metade esta-va completamente fascinada.
Molly olhou para Rocky. Ele estava na horizontal, no meio do ar, em seu mergulho na piscina. Petula estava debaixo de uma mesa, no canto da sombra, brincando com uma pedra. Então Molly viu Roger. Estava debaixo da água. Sem oxigênio, podia estar se afogando. Tentando não entrar em pânico, Molly se concentrou e, como se destampasse o ralo de um tanque, instantaneamente deixou a sensação de frio gelado sair de seu cor-po. Desapareceu em um nanosegundo. E, nesse tempo, sem sequer um estremecimento, o mundo começou de novo. Rocky mergulhou, Petula latiu para ele, Roger emergiu, a Sra. Brinklebury lambeu o sorvete e a água da cascata caiu na piscina.
O diamante ao redor do seu pescoço ainda estava gelado, mas Molly sentiu-se quen-te de novo e muito aliviada por tudo estar como era antes. Trêmula, levantou-se, mergu-lhou na piscina e emergiu perto de Rocky. Seu nariz estava entupido de água.
Rocky, uma coisa realmente esquisita acaba de acontecer — ela espirrou.
É, você acaba de mergulhar de camiseta e chapéu — ele disse, antes de plantar uma bananeira sob a água.
Molly tirou o chapéu e fez uma careta.
Não, não é isso, Rocky. Escuta — ela agarrou o braço dele e puxou. — A coisa mais estranha do mundo acabou de acontecer comigo.
O quê? — perguntou Rocky, boiando de costas.
Bom... — Molly titubeou, em um suspiro mal contido. — Eu acho... ah, vai parecer que eu fiquei maluca...
O quê? Conta.
Eu acho que acabei de... acho que fiz... — Molly hesitava.
Fez o quê?
Eu acho que acabei de fazer o mundo ficar imóvel. Acho que parei o tempo!
Capítulo Dezesseis
— E
u não reparei — disse Rocky. — Claro que não, idiota. Você também estava parado.
Quando? Não me lembro.
Você não está prestando atenção — suspirou Molly. — Você estava congelado.
Quando... como dez graus abaixo de zero?
Não, não congelado de frio, só imóvel. Eu é que estava gelada.
Molly apontou para a mulher com o conjunto rosa.
Eu estava me concentrando no prendedor de cabelo daquela mulher, tentando hipno-tizá-lo de algum modo...
Por que você estava fazendo isso?
Por que... Bom, porque eu tive essa sensação pela primeira vez em Briersville, mas não te contei porque achei que você ia pensar que eu tinha quebrado minha promessa de não hipnotizar ninguém. Mas eu não estava hipnotizando alguém.
Eu estava hipnotizando coisas... é isso que faz a sensação de fusão fria acontecer.
As sobrancelhas de Rocky se ergueram.
— E de qualquer maneira — continuou Molly, tentando ignorar seu olhar desconfi-ado —, eu estava hipnotizando o prendedor de cabelo para ter a sensação de fusão fria, e desta vez deixei a sensação entrar completamente. Fiquei realmente fria e, quando olhei em volta, tudo tinha... — Molly olhou para a cara de descrença de Rocky. — Francamente, Rocky, tudo tinha parado. O tempo tinha parado, menos eu. Você tinha parado, Rocky. Você estava na metade do mergulho, parado no ar. Não estou brincando. Então, deixei a sensação ir embora e tudo começou outra vez, e você mergulhou na água.
Rocky olhou preocupado para Molly.
Você bebeu alguma coisa do frigobar?
Não! — Molly olhou ferozmente para Rocky. — Estou te dizendo que isso é verda-de.
Rocky pôs as mãos nos ombros dela.
Molly, acho que é melhor a gente sair da água. Sei que você acha que é verdade o que me contou, mas talvez você tenha tomado sol demais. Eu fiquei assim uma vez quando saí para caminhar muito tempo debaixo do sol, e fiquei com febre e tudo pareci-a...
Poxa, Rocky, às vezes você me deixa louca. Se não acredita, vou provar...
Molly nadou até a borda piscina e se ergueu para sair. Rocky foi atrás.
— Sente-se nesta espreguiçadeira — ela lhe disse. — E olhe para o seu pé.
Rocky lançou-lhe um olhar preocupado, mas obedeceu.
Molly começou a olhar fixamente para o salva-vidas laranja que estava pendurado em um poste. Em poucos minutos, tinha invocado outra vez a estranha sensação de frio. Deixou-a atravessar todo o corpo, até que o salva-vidas laranja pulsando na frente de seus olhos e o resto do mundo desaparecessem em um borrão. Finalmente, com uma onda de frio reluzente, a friagem a inundou. Assim como antes, tudo ficou cm silêncio. Molly tirou os olhos do salva-vidas, mas deixou uma parte dela ainda concentrada na sensação de fusão fria, mantendo-a em seu corpo e visualizando dois tampões imaginá-rios que não a deixassem sair pelos seus pés. Foi necessário um esforço tremendo.
Olhou a sua direita. Tudo estava quieto. A Sra. Brinklebury segurava seu tricô no al-to, examinando-o para ver se tinha buracos. Gerry caía na piscina, os borrifos espalhan-do-se como grandes pétalas de água. Roger estava como estátua em sua árvore. O gar-çom da piscina entregava taças de bebida para as duas executivas.
Rocky olhava para os pés. Molly estalou os dedos na frente dos olhos dele, mas ele não piscou. Ela encostou a orelha na boca de Rocky — ele sequer estava respirando. Ela olhou em volta. Era difícil acreditar que ninguém estava observando — que ela era a única pessoa a se mexer. A única pessoa a respirar. Era apavorante. E se tudo ficasse mesmo parado assim? Mas Molly sabia que tinha que fazer alguma coisa para provar a Rocky que o tempo tinha parado. Com enorme concentração, para não dispersar a sen-sação de fusão, Molly começou a andar em direção à cesta de brinquedos na beira da piscina. Seu corpo formigava. Cada passo era assustador. Manter o mundo parado exigia um esforço espantoso. Molly deu dez passos. Pegou um sapo inflável, um anel de borracha na forma de pato e uma bóia em forma de baleia. Trouxe-os até Rocky e pôs o pato em sua cabeça, como uma coroa, a bóia sob seus pés e o sapo em seu colo. E para ter certeza absoluta de que ele acreditaria nela, pegou três flores amarelas de um vaso e colocou uma entre os dedos do seu pé, uma entre os dedos da sua mão e a última em sua boca.
Por um momento, ela se sentou quieta, como um inseto confuso com as antenas aler-tas, tentando entender o que estava acontecendo. Olhou para além da piscina. Toda Los Angeles estaria parada? O mundo todo estaria parado? A idéia era muito doida para ser pensada. No entanto, Molly sentiu que era isso que estava acontecendo. E então, como um animal que sente a chuva se aproximar, sentiu outra coisa. Por um momento, teve certeza de ter sentido um movimento em algum lugar — em algum lugar bem longe. Depois já não conseguia dizer o que estava sentindo. Seu coração batia demasiado rápi-do e ela estava assustada demais. Desejou desesperadamente que tudo se movesse outra vez, agora.
Desviou sua concentração e desativou a sensação de fusão. Simultaneamente, Rocky pulou, surpreso, e tirou os brinquedos de cima dele. Jogou fora as flores.
— Iauü! — gritou. Virou-se para Molly, espantado. — Como? Como você fez isso? Por quanto tempo fiquei parado? Como você fez isso, Molly? Você achou outro livro?
Molly foi para cama aquela noite sentindo-se exausta e nervosa. A expectativa de entrar de penetra na entrega do Oscar no dia seguinte era assustadora, e estava muito preocupada, temendo que ela e Rocky fossem apanhados. Porém, ainda mais perturba-dora, era a nova habilidade hipnótica que descobrira. Em nenhum lugar do livro do Dr. Logan havia uma menção à possibilidade de parar o mundo. Sem poder recorrer às pa-lavras sábias do Dr. Logan sobre o assunto, Molly sentiu que estava navegando em á-guas completamente desconhecidas. Não sabia se parar o mundo era uma coisa boa ou uma coisa ruim. Não sabia se era perigoso. Com certeza era assombroso. Escutou bate-rem à porta e Rocky entrou.
Estou cansado, mas não consigo dormir — disse ele, sentando-se aos pés da cama de Molly.
Eu também — disse Molly.
Dei uma olhada na TV para ver se a hora estava certa nos outros lugares dos Estados Unidos e no resto do mundo. Estava. Você abraçou um bom pedaço do mundo com as pernas com essa história de parar o tempo — continuou, preocupado. — Estou contente que só você possa fazer isso e ninguém mais. Quer dizer, imagine o que você pode fazer. Pode até cometer assassinatos.
Oh, não — disse Molly, estremecendo e pegando Petula para colocar a seu lado, na cama.
Não quero dizer assassinatos de verdade, só estou querendo dizer que você pode fa-zer todo tipo de truque com as pessoas. Se fosse criminosa, poderia assaltar ou seqües-trar qualquer um facinho. Parava o mundo. Fazia o seqüestro. Para todos, a pessoa sim-plesmente desapareceria de repente. Ou, se você quisesse que seu time de futebol ven-cesse, pararia o mundo durante um pênalti e recolocaria a bola na posição para entrar no gol.
Molly enterrou o nariz no pêlo de Petula. A idéia de que ela, uma pessoinha no pla-neta, tinha feito o mundo inteiro parar, fez com que se sentisse zonza e aterrorizada. Sentiu que tinha um poder demasiado grande para uma menina.
— Vou ligar para Lucy amanhã e perguntar se ela sabe alguma coisa sobre isso — disse. — Vou tentar não pensar mais nesse assunto agora. A gente precisa dormir, Ro-cky. Vamos precisar de toneladas de energia amanhã.
Rocky concordou e apagou a luz.
Sonhe com os anjos, Molly — disse ele, ao fechar a porta.
Você quer dizer, "sorte com seus pesadelos" — disse Molly, e puxou a colcha para cobrir a cabeça.
Capítulo Dezessete
O
dia da entrega do Oscar amanheceu ensolarado e com um céu sem nuvens. No bangalô, Petula acordou antes de todos os outros. Checou a pequena pilha de pedras que tinha escondido atrás do aparelho de TV, escolheu uma parecida com u... m ovo para chupar e saiu dos jardins do bangalô por um túnel na sebe. Dos degraus perto da piscina, ela podia ver o poodle gigante pintado, pulando no cartaz do Salão de Beleza e Hotel Canino Poodle da Bella. Podia farejar um suculento café da manhã de carne que estavam servindo aos hóspedes. Petula olhou para suas patas. Suas unhas definiti-vamente precisavam de um corte. E sua pele estava coçando um pouco desde a viagem de avião. O lugar que cheirava a xampu de cachorro fazia-a recordar uma confortável casa de banhos que visitou em outra cidade grande. Sabendo que um bom trato realmen-te a reanimaria, virou-se em direção à entrada de carros do hotel.
Atravessar as quatro pistas para chegar ao Poodle da Bella foi bastante difícil, e Pe-tula se viu esperando no canteiro central durante cinco minutos até ter um intervalo no trânsito. Mas, logo estava passando pelo portão azul de ferro do salão de cachorros, em-purrando-o com uma pata. Depois de alguna degraus para baixo, havia uma porta. De súbito, a porta se abriu e um homem atlético saiu do salão com uma pequinesa debaixo do braço. A pequinesa cheirava a lírios e tinha quatro laços de fita cor-de-rosa no cabelo. Petula passou elegantemente por eles. Estava cheia de expectativa.
Dentro do salão, tudo era para cães. Havia cabides com coleiras e guias, penduradas como jóias tentadoras. Havia lindas almofadas de couro para os cachorros descansarem, travessas finas para ração, displays com comida especial para cachorro, lanches, ossos para mascar e cigarros comestíveis. Havia pilhas de brinquedos de luxo para cães e fras-cos de fragrâncias caninas, casacos caninos de todos tamanhos e até sapatos para ca-chorros, para os dias em que as patas sujas não eram bem-vindas. Uma loura de cabelos crespos e grandes brincos de pingente estava sentada atrás de um balcão, fazendo uma conta. Atrás dela, o salão, onde um grande e peludo chow-chow estava de pé em uma caixa de vidro especial, secando seu pêlo. Enquanto Petula trotava pelo piso da loja, as unhas compridas faziam um som bem nítido de clique-clique.
Bella, a proprietária do salão, ergueu os olhos, achando que um dos seus clientes ca-ninos tinha escapado da sala do spa, na porta ao lado. Em vez disso, viu Petula se apro-ximando, abanando o rabo. Petula pôs as patas dianteiras nos pés da mulher.
— Que coisinha mais lindinha, peludinha e gostosinha! Onde está sua dona, fofura? Ai, nossa! Suas unhas estão enormes!
Evidentemente, Petula não disse nada. Lançou a Bella um de seus olhares mais en-cantadores, a cabeça inclinada charmosamente para um lado. Bella olhou para a porta, e depois para a minibuldoque preta aveludada.
Por que você está sem coleira, amorzinho? — Bella levantou-se e olhou para fora. A minibuldoque parecia estar sem dono. Petula latiu. Bella sorriu e lhe deu uns tapinhas. Ela podia advinhar quando um cachorro queria um trato. Olhou para o chow-chow, cur-tindo seu secador, e consultou o relógio.
Tudo bem, lindinha. Você é uma coisinha preciosa, não? Venha comigo. Vamos lhe dar um trato.
Foi assim que Petula se viu ganhando o mimo completo que sentia merecer. Primeiro, Bella levou-a para a sala de banho e a lavou com xampu de alecrim. Depois Petula foi massageada, enxaguada, secada, penteada, as unhas cortadas e retocadas, ela toda arrumada até se sentir como um cachorro na Terra da Perfeição. Depois, foi levada para o spa do salão para relaxar.
Lá, conheceu os cachorros que estavam hospedados no hotel canino. Havia um cão de caça afegão gigantesco e sedoso, muito interessado no que Petula havia comido na ceia do dia anterior, um buldogue francês, com orelhas de morcego e nenhuma educa-ção, que cheirou seu traseiro sem ser convidado, o samoieda de pelagem prateada, uma salsicha dachshund e um cãozinho de crista chinês.
O cãozinho de crista chinês cinza e rosa, sem pêlos, foi o que mais interessou Petula. Nunca tinha visto um antes. Ele realmente não tinha pêlo, exceto por um pequeno tufo no alto da cabeça, e as orelhas eram enormes e pontudas. Petula gostou do jeito dele, e com certeza cheirava bem — a salsa e a idéias inteligentes. Petula deitou-se em um divã rosa com ele e fez amizade. Por uma hora, os dois cães se comunicaram como os cães se comunicam, enviando-se telepaticamente pensamentos e lembranças. O cão de crista chinês se chamava Quar Oar e estava no hotel para cachorros porque seus donos estavam dando uma festa para comemorar o Oscar, com fogos de artifício e um monte de gente. Quar Oar tinha total certeza de que preferia ficar distante.
Bella voltou e levou Petula de volta para a loja, onde escolheu uma coleira incrustada de "falsos" diamantes, e a prendeu em volta de seu pescoço.
A campainha da porta tocou, anunciando outro cliente e, sentindo que Molly preci-sava dela, Petula aproveitou a oportunidade para sair de fininho do salão.
De volta ao Chateau Marmoset, Petula encontrou Molly ainda dormindo. Estava emaranhada nos lençóis, bem apertada, gemendo infeliz. Petula pulou na cama e ani-nhou-se bem para confortá-la.
Molly passava por um pesadelo horrível, onde estava em uma jaula, no palco da en-trega do Oscar. Primo Cell estava de pé, ao lado, rindo enquanto o público atirava cor-vos mortos em Molly. Então, a cena congelou e ela era o único ser vivo em um mundo parado, em que nunca mais nada voltaria a se mexer.
Molly acordou e viu que tinha chorado em todo o travesseiro. Sua testa estava quen-te e pesada. Petula lambeu seu rosto enquanto Molly se esforçava para se sentar. Depois, ela pegou o telefone no criado-mudo e discou o número de Lucy Logan.
Podia ouvir o telefone tocando a milhares de quilômetros, no pequeno chalé de Lucy. Tocou sem parar. Ela pensou nos relógios de Lucy batendo, como acompanha-mento. Os relógios. Pela primeira vez, Molly pensou neles. Certamente Lucy sabia al-guma coisa sobre parar o tempo. Se não, por que colecionava relógios? Molly precisava desesperadamente falar com ela, mas ninguém atendia. Deixou tocar até a ligação cair sozinha. Colocou o fone no gancho. Onde Lucy estava? Será que alguma coisa tinha lhe acontecido? Molly pôs a mão na boca. Petula latiu.
— Petula... — Molly abraçou-a. — Você está com um cheiro incrível... e quem te deu essa coleira tão linda? Onde a senhorita esteve?
Petula abanou o rabo, mas Molly ainda se sentia como se estivesse no pesadelo. Não queria pensar na aterrorizante perspectiva dos prêmios da Academia. Mas sabia que tão certo quanto a terra se aproximando de um pára-quedista em queda, a tarde chegaria. E chegou.
Por volta das quatro horas, Molly e Rocky estavam prontos. Rocky usava seu ele-gante smoking preto e tênis pretos novos. Molly colocou a roupa que comprara. Era um vestido verde-esmeralda com sapatos verdes, combinando.
— Molly, você tem que fazer alguma coisa com esse cabelo. Parece que seu cabe-leireiro era um furacão — disse Rocky.
Ela tentou ajeitá-lo.
Parece um penteado maluco. Você deveria estar um pouco mais, digamos, oscarosa.
Se eu puxar para trás e prender com esta fita, você acha que vai parecer mais arru-mado?
— Suas meias estão com um baita fio puxado. Molly tirou as meias verdes.
— Não tenho outra. Vou ter de ir sem meia. Você acha que alguns filhos de artistas têm pernas cheias de sardas?
Você acha que vamos conseguir entrar? — perguntou Rocky, enquanto se examina-vam em frente ao espelho. — Quer dizer, nós estamos parecendo filhos de artistas? Ele mexeu no nó da sua gravata. — Vou tirar isso. Fico parecendo um idiota e, de qualquer maneira, não sei mesmo como dar esse nó.
Temos que entrar, caso contrário vai levar anos para desipnotizar todos esses artistas. — Molly pegou um cartão branco no qual estava escrevendo e releu as instruções.
— Não vou ser de muita ajuda para nos colocar lá dentro
— disse Rocky. — Seus olhos vão ter de nos fazer passar pelo pessoal da entrada.
— Este cartão vai nos fazer entrar, ou pelo menos espero que faça. Você vai poder ajudar a desipnotizar os artistas lá dentro, Rocky. Vamos encontrar um lugar tranqüilo onde você possa trabalhar com a voz.
Molly tirou do bolso do vestido uma lista de nomes de pessoas de Hollywood.
Quanto tempo demora a entrega dos prêmios?
Seis horas, a Sra. Brinklebury disse — retrucou Rocky.
— É tempo suficiente para ganhar um monte de prêmios.
— É, se não formos nós a ganhar alguma coisa. Petula entrou. Estava pronta para uma noite de passeio e
latiu para Molly, mostrando que também ia. Molly a pegou.
— Você parece mais digna de um Oscar do que nós — disse. — Seu casaco de pe-les está brilhando tanto quanto os seus diamantes!
O telefone tocou e Rocky atendeu.
— Prontos ou não — ele disse —, o carro já chegou. Oscar, lá vamos nós.
Capítulo Dezoito
D
iante da escadaria do hotel, uma limusine preta esperava como um animal reluzente com rodas. Um elegante motorista de terno cinza e óculos escuros abriu a porta do carro e Molly, Petula e Rocky entraram.
Ninguém reparou que eles tinham saído. A Sra. Brinklebury estava pregada em sua televisão, assistindo a um programa de comentários sobre o Oscar, Nockman treinava abrir o cofre do quarto sem saber o número do código, e Gemma e Gerry estavam trei-nando os camundongos de Gerry para correr em uma pista de papelão que tinham feito. Roger estava ocupado em cima de sua árvore, preparando-se para passar a noite lá.
A limusine afastou-se do hotel, em direção ao Hollywood Boulevard. Esta tinha sido a mais importante rua de teatros e cinemas do mundo. Agora, era mais uma lembrança do passado, porém ainda emocionante, com o famoso Mann's Chinese Theatre, com seu telhado de cobre esverdeado no estilo de um pagode. Aqui, os maiores artistas da histó-ria do cinema deixaram mãos e pés impressos para sempre no cimento das calçadas.
Ao continuarem em direção ao Kodak Theatre, local da entrega do Oscar, o trânsito se adensou.
Poxa, olha toda essa gente — disse o motorista, diminuindo a marcha do carro para quase um arrastar. Do outro lado dos vidros escuros das janelas da limusine, Molly via policiais agitando bandeirolas para os carros, apressando a passagem de passageiros admirados, e acenando para outros carros deixarem seus passageiros rapidamente. Na rua, um pouco mais para cima, havia um excesso de veículos estacionados e as calçadas estavam abarrotadas da multidão que tinha vindo dar uma olhada em suas celebridades favoritas. A limusine aos poucos foi se aproximando.
Aposto que vocês dois devem estar empolgados porque vão passar pelo tapete ver-melho.
Molly fez um sinal vago com a cabeça. Esperava que suas pernas se lembrassem de andar sem tropeçar uma na outra. Sentia náuseas. Pensou em todas as câmeras de televi-são e fotógrafos de jornais que estavam esperando nas laterais do famoso tapete verme-lho.
Você não acha que alguém vai me reconhecer do Estrelas em Marte, acha? — sus-surrou para Rocky, nervosa. — Isso pode atrapalhar muito as coisas. Não quero ninguém me fotografando enquanto estou hipnotizando os guardas no portão.
Nova York está do outro lado dos Estados Unidos, e você não ficou tanto tempo as-sim na Broadway — disse Rocky, sem muita certeza, mexendo nervosamente nas calças. — Se as pessoas a reconhecerem da TV pensarão que é a menina boazinha do anúncio de caridade. Só isso.
Quando pararam depois de um Lincoln reluzente, Molly estava em silêncio. O moto-rista saiu do carro, a fim de ver por si mesmo o que estava acontecendo, e abriu a porta de Molly.
— Tenha uma bela noite — disse. — Gostaria de estar no seu lugar.
Molly deu um sorriso, mas ao mesmo tempo, desejou poder trocar de lugar com ele.
O desafio a sua frente agitava seu estômago deixava sua cabeça tonta. Enquanto en-golia o caroço nervoso que havia se acomodado em sua garganta, conseguiu dizer "O-brigada", e desceu do carro. Petula pulou atrás. O barulho de vivas e assovios encheu o ar. Molly tremia tanto que o chão parecia se mover.
Sob seus pés, estrelas de bronze engastadas na calçada marcavam os nomes de ícones do cinema do passado. Depois de 15 passos, empurrando para passar pela aglomeração, Molly, Petula e Rocky pisaram na área protegida e na ponta do tapete vermelho-sangue que corria como um rio até a entrada de segurança. Esse tapete os faria atravessar a parte não cercada do Hollywood Boulevard e chegar ao interior do próprio Kodak Theatre. Agora não havia como recuar.
Só as pessoas que tinham convite para a cerimônia passavam pelo tapete vermelho. Imediatamente, as pessoas ficaram interessadas em saber quem eram ela e Rocky. Pare-cia haver milhares de flashes de câmeras estourando. O tapete transformou-se em um borrão enquanto Molly passava por ele.
— Eles são atores? — ela escutou alguém perguntar.
À frente estavam os portões — arcos baixos cobertos com flores. Ao ver os convi-dados passarem por eles, colocando suas bolsas nas esteiras dos aparelhos de raios X, Molly percebeu que os arcos eram detectores de metal camuflados para checar armas ou explosivos escondidos.
Segurança alta — disse Rocky.
Espero que não seja alta demais para meu hipnotismo — murmurou Molly, pegando seu cartão branco. Para dar sorte, tocou o diamante, escondido sob seu vestido.
Atrás deles, alguém extremamente famoso chegou. A multidão começou a gritar. Is-so foi bom. Deu a Molly uma chance de trabalhar sem ter ninguém observando.
Ela apertou os dentes, virou seus olhos para cima de maneira completamente fixa e se preparou para nocautear um dos guardas do portão. Seu hipnotismo teria de funcionar velozmente, sem que ninguém percebesse.
O homem deste portão era durão e profissional. Mas quando Molly o viu olhar, por sobre sua cabeça, para a celebridade atrás dela, compreendeu que ele não estava tão desinteressado no evento quanto fingia. Auxiliada por sua distração, Molly pôde ficar em pé bem na frente dele e lhe lançar seu olhar antes mesmo que ele sequer olhasse para ela.
Quando ele olhou, o poder de Molly foi como uma pancada na cabeça. Ele ficou pasmado.
— Olhe meu convite — disse Molly, tranqüila e, claro, o homem obedeceu.
No cartão estava escrito:
ESTE É UM LEQÍTIMO CONVITE PARA A CERIMÔNIA DE ENTREGA DOS PRÊMIOS DA ACADEMIA, DEIXE-ME PASSAR COM MEU AMIQO E MEU CACHORRO, SEM CAUSAR NENHUM TIPO DE PROBLEMA.
COMPORTE-SE NORMALMENTE, ESQUEÇA-SE DE NÓS DEPOIS QUE ENTRARMOS.
O homem assentiu e viu exatamente o que esperava ver um convite de luxo, gravado com letras curvas e dourado, e com um desenho da estatueta dourada do Oscar no topo. Ele fez Molly, Petula e Rocky passarem pelo detector de metal. Então, Molly deu o convite para Rocky, que o dobrou colocou no bolso. Eles tinham entrado. O Hollywood Boulevard estendia-se à frente deles, ladeado por palmeiras altas e completamente co-berto pelo tapete vermelho. O caminho parecia um lago calmo, plano, vermelho. E nele estavam centenas de pessoas, sobretudo atores e atrizes que Molly reconheceu, e que pareciam deuses andando sobre as águas. Todos se vestiam impecavelmente com as roupas de gala mais espetaculares e mais caras que o dinheiro pode comprar. Os homens usavam principalmente ternos de seda ou veludo pretos, ou tecidos sofisticados; as mu-lheres usavam deslumbrantes vestidos de noite, dos mais exclusivos estilistas do mundo. Algumas usavam vestidos curtos mínimos, mas a maioria usava longo. E como Molly não podia ver seus pés, elas pareciam estar deslizando no lago vermelho, como cisnes multicoloridos. Atrás de linhas divisórias de latão, havia fileiras de plataformas ou ar-quibancadas nas quais centenas de pessoas estavam em pé, pessoas que tiveram a sorte de conseguir bilhetes para espaços sem cadeira, de onde podiam ver os mais famosos do mundo do cinema.
— Oh, não — disse Molly. — Olha as câmeras. Sobre o bulevar havia uma ponte em arco. Ali estavam pilhas de fotógrafos. As estrelas acenavam para eles e sorriam profissionalmente. Por todos os lados do tapete, havia câmeras de TV e entrevistadores segurando microfones. As estrelas posavam e sorriam, sabendo que o mundo inteiro as observava. Lentes enormes apontavam à esquerda e à direita e, embora ainda fosse plena luz do dia, o ar pipocava sem parar com of flashes eletrônicos.
— Ei — disse Rocky, feliz —, então é assim que é ser uma celebridade.
— Rocky, não podemos perder tempo. Vamos até o final do bulevar para entrar no teatro, o mais rapidamente possível.
Quando Rocky pegou a mão pegajosa de Molly e puxou-a para frente, câmeras vo-razes viraram-se para devorá-los, prontas para enquadrá-los e engoli-los em uma foto.
Por algumas breves semanas em Nova York, Molly tivera uma experiência com o mundo do estrelato, mas sentia-se muito sem prática e muito mais insegura consigo mesma do que Rocky. O que mais a atormentava era o medo de alguém colocar a mão em seu ombro e gritar: "Ei, você não devia estar aqui. Pode parar onde está, imediata-mente, se virar e dar o fora!"
Rocky, você acha que alguém vai perceber que não fomos convidados?
Só se você continuar falando disso — disse Rocky, sorrindo para uma câmera. — Tem gente que sabe fazer leitura labial vendo TV
De fato, a quilômetros dali, em Oklahoma, um garoto surdo chamado Ben estava as-sistindo à entrega do Oscar na TV Ele sempre gostou de ler os lábios das pessoas nos programas. Ser capaz de ler lábios era um das coisas boas de ser surdo. Televisão ao vivo era a mais interessante. Por exemplo, ele conhecia muito bem o presidente e sua esposa porque lia seus lábios e sabia o que diziam um para o outro quando estavam longe dos microfones. Estava particularmente ansioso para ver a cobertura de TV das eleições presidenciais. Esta noite, enquanto assistia a uma entrevista com um diretor de cinema, ele reparou no par de crianças de pé, bem perto, atrás. Viu que estavam falando.
— Apenas divirta-se, Molly. Ninguém vai saber que não fomos convidados. Eu já me convenci que fui — disse o simpático menino negro que, pensou Ben, parecia um jovem astro.
Atrás dele, uma menina de vestido verde com o cabelo emaranhado disse:
Você está certo. Isto é bom demais para eu me preocupar. Mas vamos entrar no tea-tro assim que pudermos.
Vai nessa — disse Ben, desejando poder também estar na TV com os meninos.
Os flashes das câmeras continuavam a estourar. A luz branca e reluzente batia nos dentes perolados que sorriam os sorrisos superperfeitos de Hollywood. Cintilava em colares de diamantes, braceletes de platina e abotoaduras de ouro.
A nova coleira de Petula brilhava, e também Petula. Ela adorava festas. Adorava to-da aquela energia e excitação no ar.
Molly olhou em volta para os rostos famosos. Bem a sua frente, viu cinco ou seis ce-lebridades cujos nomes estavam na lista de vítimas de Primo Cell. Todos estavam se comportando normalmente. Certamente, estariam.
Lá estava Stephanie Guizadim, com um vestido azul-escuro transparente, o cabelo em um coque que parecia uma labareda. Poucos passos adiante, Cosmo Ás, de terno prateado, falava com um jornalista da TV Molly viu Hercules Pedreira, de smoking branco, passando pela multidão de braços dados com uma bela chinesa.
Depois, viu uma coisa que fez seu estômago pular. Poucos metros à sua frente, uma mulher baixinha, de conjunto preto, examinava Molly como se a tivesse reconhecido. Seu microfone tinha uma grande placa onde se lia, THE NEW YORK TIMES. Molly reconheceu-a como a correspondente de artes do maior jornal de Nova York. Ela a entrevistara quando Molly atuou em Estrelas em Marte. Molly puxou Rocky para sair dali, mas já era tarde.
— Oi, desculpe-me, Molly! Molly Moon! — gritou a jornalista, entusiasmada. As cabeças dos cinegrafistas por perto giraram na direção de Molly.
— Molly, que bela surpresa ver você aqui! E também Petula! Todos querem saber quando você vai voltar.
Capítulo Dezenove
O
passado de Molly conseguira agarrá-la, e não havia como escapar da entrevistadora com o microfone.
Então, você e Petula se recuperaram do seqüestro? — perguntou a mulher.
Éeee, sim, obrigada — disse Molly, tentando evitar uma lente grande que tinha feito um zoom sobre ela. Petula olhou para cima e latiu, alegre.
Seu aparecimento aqui é sinal de que está voltando para o palco ou, talvez, para a te-la?
Molly tentou não parecer perturbada.
Éee, não — disse. — Estou aqui só para passar mais tempo com um amigo. Obrigada, tenho que ir.
É o amigo com que você fez o anúncio? Aquele sobre dar uma sacada nas crianças do seu bairro? — pressionou a jornalista.
Sim, sou eu — disse Rocky. — Prazer em conhecê-la. — Ele sorriu para a câmera e teria com prazer dado uma entrevista, mas Molly pisou no dedão dele e lhe deu um sor-riso de "não se atreva!".
Enquanto puxava Rocky dali, Molly escutou a jornalista dizer, "Como sempre, Molly Moon continua misteriosa. Mas é ótimo vê-la de volta. Talvez esteja começando uma carreira no cinema."
Molly conduziu Rocky para dentro da multidão.
Urrrggggh — disse — isso foi assustador. Esses jornalistas realmente têm boa me-mória. — Então, percebeu que Petula não estava com eles.
Oh, não, Petula ficou lá atrás — disse, olhando preocupada por sobre o ombro para as luzes dos flashes atrás deles. — Espero que esteja bem.
Molly não precisava se preocupar. Petula estava se divertindo como nunca. Ela ado-rou a fama quando esteve em Nova York. Era ótimo estar imersa nela de novo. E virava a cara de um lado a outro para as câmeras. Levantou-se sobre as patas traseiras e esperou aplausos. Pulou num pé só, em círculo. Os fotógrafos a adoraram. Então, ela deu um latido manhoso e foi trotando procurar Molly. No caminho, passou por um homem alto, de terno de veludo, muito bronzeado, e de cabelo preto puxado para trás em um rabo. Petula parou — tinha o cheiro de alguém que já encontrara antes, atrás da câmera em algum estúdio de TV em Nova York.
Embora Petula não soubesse, o homem que sorriu para baixo, olhando para ela, era de fato um diretor famoso de Hollywood. Era um italiano chamado Gino Pucci. Seu último filme, Sangue de um estranho, foi indicado como "Melhor Filme". Petula gostou do seu cheiro. Ergueu-se e colocou as patas dianteiras na perna dele e, enquanto ele se abaixava para falar com ela, olhou-o com uma de suas mais charmosas expressões. Era um olhar arrasador. Gino ficou muito admirado para dizer alguma coisa. Petula latiu sedutoramente e depois saiu trotando outra vez para encontrar Molly.
Molly e Rocky estavam agora perto de um pesado arco de pedra — a entrada para o teatro. Uma gigantesca estátua dourada do Oscar, quase tão alta quanto o próprio arco, parecia um ídolo antigo, como se o Kodak Theatre fosse um templo onde as estrelas eram adoradas. O lugar estava tão cheio de famosos que um rosto desconhecido entre eles pareceria estranho e especial.
— Uau — disse Rocky, rindo baixinho. — Tem tantos atores aqui que me sinto como se estivesse em um filme!
Molly estava espantada de ver que muitos atores eram mais baixos do que ela pen-sava. Vê-los nas grandes telas dos cinemas fizera com que pensasse que tinham um ta-manho sobre-humano. Na verdade, muitos eram baixos. De perto, as estrelas eram todas muito humanas. Ali estava uma esfregando o nariz, outra coçando sua orelha. Molly estava surpresa por parecerem todos tão comuns.
— É engraçado, né? — disse. — Conhecemos tão bem a cara deles, mas eles não têm nem idéia da nossa. Pelo menos, espero que não tenham.
Por alguns minutos, Molly e Rocky absorveram a cena, sabendo que era algo que re-lembrariam a vida toda.
— Tá legal — disse Molly. — Chega de admirar as estrelas. Vamos entrar.
Petula já os havia alcançado e os três se apressaram, seguindo em frente.
Mas era impossível driblar os repórteres. A notícia sobre Molly tinha circulado rápi-do.
Oi, Molly! Dê um sorriso!
Oi, Petula! Dê um rosnado!
No Chateau Marmoset, a Sra. Brinklebury deixou seu tricô olhou fixo para a TV
— Simon — ela chamou —, venha ver isto. Acho que vi Molly e Rocky no Oscar. — Na tela, duas crianças exatamente iguais a seus pupilos passaram rápido pela multi-dão. Ela tinha certeza de ter escutado alguém gritar, "Ei, Molly, quem é seu amigo?"
Mas quando o Sr. Nockman chegou, vindo da cozinha, as duas crianças tinham de-saparecido, entrando no teatro.
— Muito bem, Muriel — disse ele. — Agora, chega de beber. O que você está pen-sando? Molly e Rocky estão aqui, no bangalô deles.
Dentro do saguão coberto da Kodak, estava mais fresco e mais tranqüilo. Não era permitida a entrada dos fotógrafos e havia menos gente. O largo corredor à frente deles, que normalmente era um passeio de compras, estava decorado com flores e suas paredes, cobertas de cortinas vermelhas e pingentes. Uma escadaria grandiosa, atapetada de vermelho como uma língua vermelha enorme, conduzia até a entrada do teatro.
Grupos de celebridades estavam por ali cumprimentando-se e avaliando as outras celebridades.
Fez-se um silêncio repentino com a chegada de ninguém menos que Gloria Tiammo. Estava acompanhada por um velho senhor, de aparência ilustre. A multidão em volta se retesou de admiração. Gloria Tiammo era uma estrela de tal ordem que todos que a viam sentiam-se apenas centelhas se comparados a ela.
Nesta noite, ela estava vestida com o que parecia uma serpentina de ouro. Era uma seda brilhante costurada com tubinhos compridos e finos como espaguete que tinham sido espiralados e costurados juntos, compondo um vestido tremeluzente que se unia a cada parte de seu corpo famoso. Seu pescoço de cisne estava envolvido por uma verda-deira serpentina de ouro, de tal maneira que parecia haver uma mola de luxo unindo sua cabeça aos ombros. As mesmas serpentinas cobriam os antebraços. Seus olhos orientais estavam tão belos e misteriosos como sempre. Alguns a cumprimentaram com educados "Boa noite", enquanto outros a olhavam em respeitoso silêncio, desejando também co-nhecê-la. Gloria Tiammo deu seu sorriso glorioso e passou, erguendo os dedos adorna-dos de jóias em um aceno gracioso.
Molly, olhando as espetaculares curvas douradas passarem majestosamente pelo sa-guão, pensou em como era incrível que aquela "Rainha de Hollywood" pudesse ter sido pega na rede de Primo Cell. Parecia tão nobre mas, na verdade, não passava de uma escrava.
Este é o lugar perfeito — disse Molly.
Mas como você vai atraí-los? — sussurrou Rocky. — Não podemos apenas chegar e hipnotizá-los na frente de todo mundo. Além disso, Cell deve estar por aqui em algum lugar.
Molly, nervosa, olhou em volta. Esta era uma idéia extremamente perturbadora, em que ela não quis pensar antes. A idéia de que Primo Cell estava lá parecia tão assustado-ra quanto a de um tigre à solta.
— Temos que encontrar um lugar tranqüilo. — Então, seus olhos se iluminaram. — Já sei onde.
Capítulo Vinte
— M
as, Molly, eu não posso demorar muito no banheiro — queixou-se Rocky. — Não é como o banheiro das mulheres. Não tem muitos cubículos, sabe. Tudo acontece bem na sua frente, se é que você entende o que quero dizer. Não posso ficar com você e Petula?
Pssst!, Rocky, é claro que não pode. Olha, a idéia é boa. Os banheiros provavelmente são tranqüilos e silenciosos. Você pode pelo menos fazer uma tentativa de desipnotizar alguns astros masculinos. Eu cubro as mulheres.
Mas não sou tão bom quanto você. Preciso falar por algum tempo para que minha voz faça efeito.
Rocky, tente. Por favor. Você é realmente charmoso. Pode fazer um monte de per-guntas compridas sobre eles mesmos.
Com relutância, Rocky foi para o banheiro dos homens, do outro lado do saguão. Molly e Petula foram para o das mulheres.
Estava brilhantemente iluminado. Uma sala circular, dl azulejos brancos com pias e espelhos, levava a um corredor comprido e estreito com pequenos compartimentos pra-teados enfileirados, onde ficavam os sanitários. Algumas mulheres estavam retocando a maquiagem. Não repararam em Molly, que se sentou em um banco perto da porta, nem em Petula, que se empoleirou educadamente debaixo da bancada da penteadeira.
Molly sabia que, mais cedo ou mais tarde, uma das estrelas, de sua lista entraria ali. E quando o fizesse, ela estaria pronta.
A encarregada da toilete saiu de um compartimento onde estava arrumando o rolo de papel higiênico para que sua ponta solta formasse um triângulo elegante. Usava um uni-forme engomado de listras, avental branco por cima, e seu bonito cabelo estava penteado em cachos firmes. Era uma mulher grande que poderia engolir dois cones de sorvete de uma sentada, mas esta noite estava tensa e empolgada demais para comer alguma coisa. Esta era a noite mais gloriosa de sua carreira de quarenta anos como encarregada de banheiro em Los Angeles. stava enormemente orgulhosa de limpar os assentos dos vasos depois que os bumbuns famosos sentavam neles. Sempre que uma convidada saía de um compartimento; imediatamente ela entrava para limpar e rrumar.
Estava curtindo tão obviamente seu trabalho que Molly sentiu pena de atrapalhá-la. Mas tinha que fazer seu hipnotismo, e assim que Molly viu que mais ninguém estava na sala, começou a trabalhar.
Logo a encarregada estava sob seu comando.
— Você não me verá hipnotizando ninguém — cochichou Molly. — Vai simples-mente me ignorar e continuar seu trabalho. Depois que eu sair, você se esquecerá que estive aqui.
A encarregada assentiu.
Como é seu nome?
Brenda... Corretta — disse a mulher, devagar.
Bom, Brenda, depois desta noite você vai sentir que fez o melhor trabalho que pode-ria fazer e que todo mundo adorou. Não fique nervosa. Curta.
Brenda assentiu, sorriu sonhadoramente, e saiu deslizando, cantarolando uma canção do musical A Bela e a Fera.
Para surpresa e deleite de Molly, a primeira pessoa a entrar na toilete foi Suky Champanhe. Agora, poderia começar seu trabalho.
A Srta. Champagne vestia um extraordinário traje de sereia. Era verde e prateado, com apliques de flores marinhas aveludadas. Tinha pequenas formas como lágrimas de filó por todo o corpo, uma gola alta, mas era bem curto na frente, com um recorte circu-lar à altura da barriga, revelando o umbigo de Suky com um botão esmeralda. A saia do vestido ia se estreitando tanto nos joelhos que suas pernas só podiam dar passos minús-culos, depois fluía em uma cauda, de tal maneira que parecia estar arrastando atrás de si uma rede de algas marinhas.
Ela se inclinou para o espelho e tirou um batom da bolsa. Então, lançou a si mesma um olhar especial — como se a brisa de uma onda quebrando na praia a tivesse pego de surpresa e a fizesse inalar bruscamente o ar. Satisfeita com sua beleza, tocou a cabeleira comprida que parecia flutuar. Foi então que viu o reflexo dos olhos verdes de Molly olhando para ela.
Em poucos segundos, a boca de Suky Champanhe estava pendendo aberta e seu ba-tom tinha caído na pia.
— Agora — disse Molly, falando o mais rápido possível — Você está sob meu po-der. Completamente, absolutamente, tudo isso.
A porta da toilete de repente abriu-se de novo. Molly prendeu a respiração e se enco-lheu ao ver Gloria Tiammo passar por ela, caminhando mais como uma enguia em sua serpentina dourada. Ao ver Suky Champanhe, mas sem para olhar para ela, Gloria diri-giu-se para o outro espelho.
— Suky, queriiida, parabéns! — falou arrastada. — Parabéns por ter sido indicada! Que noite tão especial para você.
Molly observou Gloria abrir sua bolsinha dourada e tirar uma foto de alguns cachor-ros pequineses, que beijou.
Suky Champanhe, ainda em seu transe, encarou a si mesma no espelho como se seu cérebro tivesse sido removido.
— Você está bem? — perguntou a Rainha de Hollywood, franzindo a testa, embora na verdade não conseguisse franzi-la porque tinha inúmeras injeções anti-rugas de botox ali. Aplicou o batom escarlate com pancadinhas leves em sua grande boca. — Você nem parece estar aqui, queriiiida.
A língua de Suky saiu pelo canto da boca.
— Dddda, dddeee, dddaaa — disse. Rapidamente, Molly bateu no ombro de Gloria Tiammo.
Ela me disse que está se sentindo maravilhosamente bem. E você vai ganhar algum prêmio hoje? — perguntou. Gloria voltou-se imperiosamente para ver quem ousara falar com ela — e quando os olhos de Molly encontraram os da famosa atriz, também a do-minaram. Gloria Tiammo ficou parada, como um animal drogado. Seu "pescoço esticado como uma tábua inclinou-se e ela deixou cair a bolsinha de mão.
Muito bem — disse Molly, olhando para a porta e esperando que nenhuma outra cri-atura de Hollywood entrasse. — Vocês duas estão inteiramente sob meu poder, e quero que vocês façam uma coisa.
As duas assentiram.
— Quero que vocês voltem a mente para o passado — disse. — Pensem em Primo Cell. Ele hipnotizou vocês, não é verdade?
As duas assentiram. O coração de Molly saltou, excitado.
— Quero que vocês se lembrem do que Primo Cell ordenou que fizessem.
Outra vez, elas assentiram.
— Muito bem. Meus poderes são superiores aos de Primo Cell. E agora eu lhes or-deno que esqueçam todas as ordens de Primo Cell. Vocês vão apagar as instruções dele de suas mentes. De hoje em diante, estão livres para fazer como quiserem. Nunca mais obedecerão a Primo Cell. Na verdade, nem chegarão perto dele.
Ela parou por um momento. Gloria Tiammo e Suky Champanhe estavam balançando suas magníficas cabeças e cabelos.
Não... posso — disse Gloria de um jeito monocórdio.
Eu... não... posso... obedecer — ecoou Suky.
Obedecerão, sim — insistiu Molly, sentindo-se como uma professora lidando com alunos rebeldes. — Não vou aceitar nenhuma desobediência — disse, severa, espantada com a maneira como estava falando. Tinha que terminar com essas atrizes antes que outra pessoa entrasse na toilete.
Olhem dentro dos meus olhos!
Ela virou para cima a força de seu olhar fixo até a cabeça de Gloria Tiammo começar a estremecer e o corpo de Suky Champanhe começar a afundar para o chão, os sapatos de salto stiletto torcendo sob seus pés. Petula deu um ganido. Molly realmente não gostava de ver as duas assim, mas não podia evitar.
— Diga-me alguma coisa que Primo mandou você fazer — ela ordenou a Gloria.
Se-gredo-máxi-mo — afirmou a Rainha de Hollywood.
Escuta, Gloria — disse Molly, espantada e preocupada por nenhuma de suas instru-ções estarem funcionando. — Se você sabe o que é bom para você, vai me dizer agora.
Não-posso-dizer-nada — grasniu Gloria, começando a tremer. — É-im-possível.
As duas estrelas estavam vergando sob a pressão de Molly. Normalmente, as pessoas se submetem completamente a esse tipo de poder hipnótico. Essas recusas eram des-concertantes. Se Molly continuasse hipnotizando-as, elas acabariam no chão. Cell as hipnotizara tão completamente que, mesmo com seu maior esforço, Molly não conse-guira libertá-las. Como ele tinha feito isso?
— Está bem — disse Molly, desistindo, e querendo colocar a dupla de estrelas num estado mais digno. — Em um minuto, quando eu estalar meus dedos, vocês esquecerão que estiveram em transe e se comportarão normalmente.
Naquele momento, Molly viu uma oportunidade irresistível à sua frente. Ela real-mente queria apreciar outra vez a estonteante sensação de poder que experimentava sempre que alguém estava sob seu comando. Ainda poderia mudar a vida dessas duas — ou ordenar que fizessem algo por ela.
Ora, poderia fazê-las convidar Rocky e ela para almoçarem em suas casas. Poderia ordenar que insistissem para que ela, Molly, participasse com elas no próximo filme que fizesse. Molly poderia ter dito a Suky Champanhe para participar de campanhas para salvar as florestas tropicais.
Em vez disso, ao escutar Brenda Corretta cantarolando" alegre, em um súbito gesto de generosidade, Molly disse:
— Suky e Gloria, esta noite, vocês duas vão reparar em como a encarregada de toi-lete, Brendan Corretta, é brilhante. Na verdade, vocês lhe escreverão depois para dizer que a noite não seria a mesma sem seu trabalho extraordinário. Podem convidá-la para um chá. Vocês duas vão sentir que ela é a coisa mais inesquecível da noite do Oscar. Agora, sempre que eu disser, "Lufada de Pó", vocês duas estarão sob meu pó... isto é, meu poder de novo.
Molly estalou os dedos mais uma vez e as duas mulheres voltaram ao normal.
Eu disse, você está bem? — repetiu Gloria Tiammo, continuando de onde tinha pa-rado.
Claro. Você sabe que fui indicada por meu papel em Sangue de um estranho?
Sim, querida, acabei de lhe dar meus parabéns.
É mesmo? — Suky Champanhe não entendeu como não tinha escutado o cumpri-mento de Gloria. Depois, deixou escapar um estranho gritinho, o tipo de ruído que um camundongo arrotando, poderia fazer.
Oh nãaao! Deixei meu batom cair e ele se quebrou. Isto é um mau sinal. Willomena Terrarosa criou essa cor de batom para mim. Olha, combina perfeitamente com as flores do meu vestido. Oh, meu Deus! Acho que não vou ganhar o Oscar.
Gloria Tiammo não estava escutando. Quando se inclinou para pegar sua bolsinha, viu Petula.
— Oh, que cachoriiiinha liiinda — falou à sua maneira arrastada. — Ela é sua? — perguntou a Molly. — Normalmente não gosto de buldogues. Sou uma pessoa dos pe-quineses, mas que cachorrinha liiinda. — Abaixou-se, pegou a cabeça de Petula em suas mãos e beijou o focinho. Petula estava completamente soterrada pelo seu perfume e ficou muito feliz quando Brenda Corretta saiu de um compartimento, distraindo a aten-ção de Gloria.
— Breeenda, queriiida — Gloria entusiasmou-se. — Você fez um trabalho maraa-viiilhoso esta noite. Você é que deveria ganhar um prêmio.
Brenda, esmagada pela torrente de elogios de Gloria e Suky, ficou perplexa demais para falar.
Depois de dar mais umas palmadinhas em Petula, mais obrigadas a Brenda por seu magnífico trabalho e borrifos de perfume, as duas atrizes saíram.
Molly voltou a se afundar em seu banco. Sentia-se muito confusa. Tinha feito o maior esforço para desipnotizar as duas estrelas e fracassara. Não podia entender por quê.
No Livro do hipnotismo, não havia nada na hipnose que não pudesse ser desfeito. Molly pensava que todas as pessoas que eram hipnotizadas alguma vez poderiam ser libertadas. Mas, de alguma forma, Cell conseguira uma hipnose permanente. Molly não sabia como ele conseguira. Era como se estivesse diante de uma sólida porta de aço trancada com cadeados de ferro e não tivesse a chave. Começou a entender a verdadeira extensão do poder de Cell.
Os indivíduos que ele hipnotizara estavam perfeita e completamente capturados. Se Primo Cell podia mantê-los sob controle por quanto tempo quisesse, era invencível. Esse pensamento era muito assustador. Primo ficaria cada vez mais poderoso e cada vez mais rico. E controlaria cada vez mais gente nos Estados Unidos — provavelmente em todo o mundo. Ele sabia montanhas a mais de hipnotismo do que Molly. E provavelmente estava no edifício nesse momento. Ela teve medo.
Lá fora, uma voz amplificada chamou as pessoas para ocupar seus assentos no audi-tório. Algumas pessoas entraram apressadas no toalete, antes que a cerimônia começasse. Molly decidiu não perder as esperanças. Talvez outras das vítimas de Cell caíssem na rede — outras que talvez não tivessem sido hipnotizadas com tanta potência. Precisava tentar saber mais do que havia acontecido com elas.
Mas, à medida que a noite passava, suas esperanças não se cumpriam.
Durante toda a cerimônia, as pessoas saíam do auditório para fazer um intervalo. As mulheres entravam no toalete para retocar a maquiagem e ir ao sanitário. Molly encon-trou estrelas maiores e menores, assim como três diretoras, quatro produtoras, cinco roteiristas, uma fotógrafa e uma figurinista. Percebeu que quanto mais famosas fossem as mulheres, mais provável era terem sido hipnotizadas por Cell. Ele tinha hipnotizado duas das diretoras e uma produtora. Também com todas elas as instruções eram firmes e irremovíveis.
A noite seguia seu curso para o público da entrega dos prêmios. Eles viram os clips dos melhores filmes do ano. Prêmios e mais prêmios foram entregues. Pessoas emocio-nadas e comovidas subiam as escadas para recebê-los. Petula rosnava, querendo chegar mais perto para ver.
No final, alguém bateu na porta do toalete. Era Rocky. Estava muito desgostoso. Todos que entraram no banheiro dos homens estavam com muita pressa para conversar com ele.
Foi muito constrangedor — disse, chateado. Molly lhe contou o que tinha descober-to.
Mas como isso é feito? — perguntou Rocky.
— Não sei. Parece que está trancado lá dentro delas. Com a tampa atarraxada. É es-quisito.
É perigoso.
Para mim, chega — disse Molly. — Vamos para casa.
Capítulo Vinte e Um
P
ara deleite de Petula, eles se aventuraram pelo saguão vazio. Dali, podiam escutar o zumbido abafado das pessoas dentro do teatro. Molly e Rocky decidiram dar uma olhada rápida, antes de irem embora. Em silêncio, esgueiraram-se para dentro do auditório e se esconderam atrás de uma cortina, em um canto escuro.
O lugar era enorme — como uma boca vermelha cavernosa e filas de assentos como dentes. Nesses dentes, estavam sentadas centenas de pessoas de smoking e vestidos de gala e jóias, olhando, escutando, aplaudindo e se divertindo. Para Molly, eles pareciam estar sentados na boca de uma fera faminta cujo nome era Indústria do Entretenimento.
Nas laterais do auditório, câmeras detectavam e fotografavam por todo lado. Filma-vam os indicados aos prêmios para ver suas reações no momento em que cada vencedor era anunciado. Cada estrela estava consciente dos milhões de pessoas que a assistiam no mundo todo.
A cerimônia chegara ao prêmio de "Melhor Atriz". A tela gigante mostrou um clipe de Tanya Tolayly em Na selva, e depois o dividiu em quatro. As câmeras ao vivo fize-ram um zoom nas quatro atrizes indicadas para esse Oscar, e seus rostos ansiosos, com três metros de altura, assomaram na tela sobre o palco. Suky Champanhe, claro, estava entre elas.
A apresentadora do prêmio, uma atriz espanhola com um vestido com asas que pare-ciam prestes a voar, segurou o envelope selado do Oscar. Rasgou-o, puxou um cartão... o público prendeu a respiração... e ela anunciou, "E a vencedora é... Suky Champanhe, por Sangue de um estranho"!
Escutou-se um grito agudo entre o público, quando Suky compreendeu que ganhara. Na tela, as três outras atrizes tentavam esconder sua decepção. O público aplaudiu fre-neticamente.
Tremendo, Suky se levantou. Beijou as pessoas a seu lado — sua irmã e o diretor do filme, Gino Pucci —, arrumou o vestido de sereia e tentou deslizar graciosamente pela passagem entre os bancos. Quando chegou ao palco, pôs a mão na boca, em assombro. Durante toda a vida, fantasiara com este momento e agora mal conseguia pensar direito. Depois do que pareceu uma hora e, ao mesmo tempo, um segundo, seu Oscar dourado era colocado em sua mão e a apresentadora estava beijando-lhe as faces.
— Mui bien, mui bien — cumprimentava a atriz espanhola, passando-lhe o microfo-ne.
Suky Champanhe sentiu as câmeras em seu rosto. Sorriu, ciente que seus lábios es-tavam em milhões de telas de TV no mundo inteiro.
No hotel Chateau Marmoset, a Sra. Brinklebury chorava de alegria com a vitória de Suky Champanhe.
— Ela merece cada centímetro dessa p-pequena estátua — disse a Sra. Brinkle-bury. — Ooooh, que noite maravilhosa p-para ela. Com certeza s-sua mãe está muiiito orgulhosa.
Talvez ela seja órfã — disse Gemma.
O que será que ela vai f-falar — disse a Sra. Brinklebury.
— Ela p-parece extremamente nervosa.
Na televisão, o pequeno rosto de Suky parecia estar esperando o aplauso terminar. Na verdade, ela tentava desesperadamente se lembrar do discurso que tinha preparado. O choque de vencer parecia ter esvaziado tudo de sua cabeça.
A Sra. Brinklebury esfregou de leve os olhos.
Obrigada — começou Suky Champagne, passando um pente fino por seu cérebro para achar o discurso perdido. Finalmente, encontrou-o.
Sim — ela suspirou. — Quero agradecer a todos os que tornaram este filme possível. Foi uma experiência fabulosa e, sem todos vocês, eu não estaria aqui esta noite. Portanto, obrigada. Mas, principalmente, agradeço a Brenda Corretta, que está aqui esta noite. Ela cuida tão perfeitamente bem do toalete do Kodak Theatre que eu poderia pas-sar toda a noite lá. Nunca vi assentos sanitários tão bem-cuidados. Sim, Brenda, muito obrigada, você fez de minha noite aqui um completo prazer.
— Que moça gentil — disse a Sra. Brinklebury.
O público não sabia se ria ou não, e alguns riram. Outros compartilharam os senti-mentos de Suky. Sabiam que ela devia estar profundamente comovida com sua vitória, portanto começaram a aplaudir. Alguns diretores prestaram atenção, achando que a Srta. Champanhe era uma atriz muito mais excêntrica e interessante do que haviam imagina-do.
Suky Champanhe sorriu, aturdida, e desceu do palco.
Rocky olhou de lado para Molly.
Comportamento estranho. Certamente não tem nada a ver com você?
Eu não pensei que ela fosse dizer isso — disse Molly, culpada.
Molly, Petula e Rocky assistiram ao resto da cerimônia atrás das cortinas. Por fim, tudo terminou, e uma multidão entusiasmada e ruidosa invadiu o saguão e os corredores. Empurrando daqui e dali, Molly pegou uma beira de uma conversa sobre o seqüestro de Davina Nutell.
Você acha que é rapto? Quero dizer, por que a família da menina ainda não recebeu um pedido de resgate? — perguntou um homem.
Tudo que sei — seu companheiro retrucou — é que contratei um guarda-costa para acompanhar meus filhos à escola. Não os deixo mais sair sozinhos.
Molly e Rocky de repente sentiram que deveriam ter saído mais cedo. Para evitar as cameras, decidiram sair pela entrada de serviço. Foi então que uma mão bateu no ombro de Molly.
Ela se virou. A figura alta e autoritária de um homem de cabelos grisalhos inclinou-se para ela. Molly deu uma guinada e mal conseguiu sufocar um grito.
Primo Cell sorriu.
Sinto muito tê-la assustado — disse. Molly tentou disfarçar o horror em seu rosto. Cell estava olhando direto para ela. Molly reconheceu seus olhos de cores diferentes. Um era turquesa, o outro, de um estranho tom castanho. Molly conseguia ver até os pê-los do nariz dele.
Fico feliz por encontrá-la — disse, com uma voz cálida e amistosa. — Você é Molly Moon, não é? Meu nome é
Primo Cell. Meu filho Sinclair, aqui, me contou tudo sobre seu estrelato em Nova York, no ano passado. Aparentemente, você é a estrela do século XXI. — Atrás de Cell, Molly podia ver Sinclair. Tinha o cabelo bonito, olhos azuis e estava bronzeado e em boa forma.
Olá — ele disse, sorrindo como se seu principal objetivo na vida fosse encantá-la. Petula rosnou. Molly entendeu de imediato que Sinclair era o mesmo homem que entrara no escritório de Cell na noite que estavam escondidos debaixo da escrivaninha. Deu um passo à frente de Petula para escondê-la.
É um prazer conhecê-la — disse Primo Cell. — Sempre estou interessado em jovens estrelas. — Sua voz era fluida e suave como se sua caixa vocal, a língua e os dentes estivessem lubrificados com silicone líquido. Seus estranhos olhos eram grandes e bri-lhantes. Molly não queria olhar para eles. Primo ofereceu-lhe a mão bem-cuidada para cumprimentá-la. Ela não a pegou.
A hesitação de Molly deve ter parecido reserva a Primo Cell, que disse:
— Ah, claro. Você não tem nem idéia de quem eu sou, não é?
Fingindo, Molly balançou a cabeça. Sua voz era horrivelmente sedutora, Molly tinha que parar de escutá-la o mais rápido possível.
— Prazer em conhecer — Molly gaguejou, e começou a se virar.
Primo não se deixou dissuadir. Essa atrizinha adolescente provavelmente tinha sido avisada de que Hollywood era um tanque de tubarões e que todo mundo queria tirar um pedaço dela.
Eu realmente gostaria de conhecê-la melhor — ele ronronou. — Molly, sou o anfi-trião da festa mais badalada de Hollywood esta noite. Todo mundo estará lá. É o lugar para se estar. Eu adoraria se você e seu amigo fossem meus convidados. — Cell deu a Molly dois convites pretos desenhados com corvos dourados.
Espero vê-los lá — Primo Cell sorriu uma vez mais e desapareceu na multidão baru-lhenta.
Molly e Rocky olharam para os convites. Nenhum deles falou.
Finalmente, Molly quebrou o silêncio.
Não precisamos ficar muito tempo.
Não precisamos ir — disse Rocky. — Você viu o jeito como ele a olhou?
Deveríamos ir — insistiu Molly, já decidida. — Pense que isso nos dará a chance perfeita de descobrir mais sobre ele. Temos que descobrir como ele faz essa hipnose que não dá para parar. Talvez alguma coisa na casa nos mostre algo. Provavelmente, ele tem uma sala especial para hipnotizar, que nos dará algumas pistas. Se Cell realmente se-qüestrou Davina, talvez ela esteja trancada no porão ou outro lugar assim. Rocky, sei que é como entrar na toca do leão, mas temos que ir.
Molly, pensar que vamos poder bisbilhotar com segurança pela casa de Cell é como pensar que é seguro brincar numa central elétrica sem ser eletrocutado.
Não — disse Molly, pegando Petula —, por que não vamos brincar, vamos até lá pa-ra apagar a luz.
Capítulo Vinte e Dois
M
olly e Rocky não sabiam muito bem como iriam à casa de Primo Cell. O motorista deles tinha ido embora, e eles perceberam que pegar um táxi na frente do Kodak Theatre seria complicado, porque uma multidão estava aglomerada ali, pedindo autógrafos. Assim, quando viram um velho ator, de pernas compridas, terno azul-escuro e um convite de corvos na mão bronzeada, educadamente perguntaram se poderiam pegar uma carona. Molly o reconheceu de velhos filmes de faroeste, da estante de vídeos do Lar da Felicidade. Seu nome era Dusty Dourado.
— Se não se importarem com meu ferro-velho, adoraria levá-los. Meu carro está parado lá no fundo — disse, um sorriso largo que formava pregas em seu rosto seco.
Felizes por encontrarem alguém que parecia real e que não se importava com a ve-lhice de seu carro, Molly e Roky seguiram Dusty Dourado até a saída dos fundos do teatro.
— Estou surpreso por vocês me reconhecerem — ele disse, com modéstia. — Há anos eu não faço filmes de sucesso.
Por que você veio ao Oscar? — perguntou Rocky.
Uma velha amiga dirigiu um filme que foi indicado para melhor trilha sonora e seu marido não podia vir, está com algum tipo de vírus. Assim, ela me deu sua entrada e seu convite para a festa. Pensei em vir, pelos velhos tempos.
Do lado de fora do teatro, o sol começara a se pôr e estava ficando frio. Dusty levou Molly, Petula e Rocky até um conversível bem surrado. Estava enferrujado, amassado e cheio de lama.
Por que não tem mais pessoas saindo por essa porta dos fundos? — perguntou Molly. — Aqui não tem nenhuma multidão.
Bem, precisamente por isso. As pessoas gostam de serem vistas, especialmente pelas câmeras — disse Dusty. — Quanto mais suas fotos são publicadas, mas famosas elas ficam. Quanto mais famosas ficam, mais câmeras querem tirar suas fotos. É uma espiral que gira e gira, e a maioria quer ir junto. Querem ir mais alto nessa espiral do que nin-guém jamais foi antes. Mais alto do que Marilyn Monroe ou Elvis. Querem se transfor-mar em deuses para os outros. É por isso que quase ninguém sai pelos fundos. — Ele entrou no banco da frente de seu carro, que não estava trancado. — Não estou dizendo que muitas das pessoas aqui não são realmente talentosas. São excelentes atores, e dire-tores de primeira linha, mas a maioria deles é engolida por essa terrível espiral.
Molly e Rock gostaram de Dusty. Tinha os pés no chão e a cabeça bem aparafusada. Entraram em seu Thunderbird, deslizando no banco de couro gasto. Com a mão esquer-da, Dusty pegou o volante de cromo embaçado, girou a ignição e, com algumas mudan-ças de marcha e um ronco do motor, eles partiram.
Era refrescante mas frio estar em um carro sem capota. Dusty deu a Molly um casaco para se enrolar. Petula sentouse em seu colo, lambendo a brisa. Eles voltaram pelo Hollywood Boulevard e pegaram velocidade ao passar por West Hollywood, as luzes reluzentes dos restaurantes, hotéis e bares como se movessem rápidas ao passarem por eles. As orelhas de Petula batiam ao vento.
Vocês gostam de música?
Adoramos — disse Rocky. Dusty ligou em uma rádio de músicas country.
Você toca alguma coisa?
Violão — disse Rocky.
Alguma vez já ficou hospedado ali? — Molly perguntou enquanto passavam pelo Beverly Hills Hotel.
Sim. É muito caro, todo dourado e rosa e cheio de almofadas. É como o interior de uma caixa de papel de seda. — Ele se concentrou no caminho. — Ah, estão vendo lá em cima? Aquela toda iluminada é a mansão de Primo Cell.
Molly reconheceu a casa de Cell pelas fotos de Lucy. Ficava no alto de um morro, enorme e dentro de um parque de cedros. As paredes de pedra cinza e os jardins esta-vam iluminados com holofotes prateados. Enquanto se aproximavam, via-se cada vez menos do local até que, no final, tudo que podia ser visto era o muro alto que cercava a mansão.
Dusty dirigiu o carro até o portão imponente, desligou a música e mostrou os convi-tes para os seguranças.
Nunca estive aqui antes.
Nem nós.
Molly desejou que sua decisão temerária de ir não se provasse também insensata.
Era melhor fazerem logo suas investigações, e rezarem para Cell estar muito ocupado recebendo seus hóspedes para pensar neles.
Dusty seguiu uma fila de carros pela entrada comprida e cheia de curvas, passando pelos cedros e pequenos lagos com luzes coloridas sob a água. Os gramados ondulados estavam pontilhados de esculturas de animais recortados em aço, de tamanho mostruoso, que pareciam estar pastando sob a lua cheia. Aqui e ali, pequenas luzes passavam pela grama.
— Um amante das artes. Suponho que tenha uma senhora coleção lá dentro — disse Dusty, sarcástico. — Portanto, mesmo se as pessoas não forem interessantes, talvez as coisas penduradas nas paredes sejam. E examinando os objetos de arte de nosso anfi-trião, seremos capazes de saber como ele é.
A entrada de carros terminava em uma área de cascalho no alto e atrás do prédio principal, onde um manobrista indicou a Dusty um espaço perto do muro. No meio do estacionamento, havia um grande corvo de pedra, em posição de vôo, no centro de uma fonte. A água caía da ponta de suas asas.
Molly desceu do carro e curtiu a vista. Abaixo deles, estavam os telhados, chaminés e janelas do último andar da casa de Primo Cell. Mais além, a vasta extensão de Los Angeles espalhada como um edredom com milhões de delicadas luzes de Natal, algumas em filas perfeitas, outras uma miscelânea colorida e piscante de néon.
— Já tinha ouvido falar desta vista. Daqui de cima, a cidade parece um painel de circuito de computador, não é? — disse Dusty enquanto passavam por entre tochas chamejantes e desciam a escadaria de pedra que levava aos fundos da casa.
Jardins de rosas ornamentais estendiam-se à esquerda e à direita, e em todos havia mais esculturas de aço. Um pavão encrespou as asas quando Petula passou. No final da escadaria, havia um jardim japonês com lago e árvores floridas. Cachos de glicínias roxas e perfumadas pendiam de uma pequena ponte curva de madeira. No lago embaixo, grandes peixes com pintas laranja e brancas nadavam sob folhas de vitória-régia.
— Carpa chinesa — Dusty apontou, ao cruzarem a ponte. Molly pensou que essa era a primeira vez que ia à casa de uma pessoa realmente rica. Pensou como deveria ser extraordinário voltar todo dia para casa, em um lugar como esse. Passaram sob um arco e chegaram a um pátio circular, pavimentado, onde a escultura de um ovo surpreendeu-os ao soltar, de repente, uma seta de chamas laranja de seu topo. À frente, havia uma porta ornamentada com entalhes. Ali, outro segurança verificou seus convites. Então, Molly, Petula e Rocky seguiram Dusty até uma entrada extravagante.
Eles se viram olhando sobre um balaústre para um grande saguão. Uma enorme es-cadaria de carvalho descia até um piso com um padrão de mármore que dava a impres-são de alguém ter jogado bules no chão. Um som de jazz flutuava, vindo de uma sala mais adiante. Ao descer as escadas, Molly olhou para a esquerda e a direita, até o final do comprido saguão que levava às outras partes da casa. Por todos os lados havia gar-çons e garçonetes, agitados, entrando e saindo das salas, com bandejas de taças e comi-da.
— Vamos lá para frente — disse Dusty, e os conduziu para a sala de estar de Primo Cell.
Os móveis do gigantesco espaço, agora cheio de convidados, haviam sido retirados para a festa. Um candelabro colossal, com peças de cristal penduradas como milhares de gotas de orvalho, ficava no centro do teto. Um conjunto de quatro instrumentos tocava uma música antiga, "I got you under my skin". Dusty fez um passo de dança engraçado quando passaram pelos músicos, e os levou para fora.
Quando saíram para uma sacada do tamanho de uma quadra de tênis, uma voz ex-clamou:
— Ei, Dusty, você conseguiu!
Uma bonita mulher árabe, alta e com um vestido de gaze vermelha, jogou os braços em volta do pescoço do antigo astro.
— Tenham uma noite maravilhosa, foi ótimo conhecer vocês — disse Dusty, pis-cando para Molly e Rocky, enquanto se virava para seguir sua amiga diretora.
Um garçom ofereceu ponche de frutas para Molly e Rocky. Petula comeu uma azei-tona que encontrou no chão. Depois, começou a chupar o caroço. Molly ficou olhando a fachada da casa de Primo Cell.
Tinha quatro andares. Pelas janelas das salas do térreo, podia ver as pessoas come-morando — segurando taças de champagne e taças triangulares de coquetel. Gloria Ti-ammo estava abraçando Gino Pucci; Hercules Pedreira admirava o Oscar de Suky Champanhe; Stephanie Guizadim cumprimentava Rei Moose com um beijinho. Até o político Gandolli, que Molly reconheceu dos cartazes eleitorais espalhados pela cidade, estava lá. Fofocas, risadas e animação enchiam o ar da noite. As pessoas se regozijavam de satisfação por saber que esta era a melhor festa da noite em Hollywood. Muitos esta-vam «trabalhando» nas salas, certificando-se de conversar com as pessoas mais impor-tantes. Atores tentavam encantar diretores, diretores adulavam produtores, produtores procuravam as estrelas que achavam que fariam de seu próximo filme um sucesso de bilheteria.
Mas Molly estava pensando em como tiveram sorte por terem conseguido estar ali em uma noite como esta. No andar de baixo, a casa zumbia com o barulho e os movi-mentos, porém, atrás das janelas dos andares de cima, não havia sinal de atividade. Per-feito, ela pensou, para um pouco de exploração.
Capítulo Vinte e Três
M
olly e Rocky terminaram o ponche e voltaram para o saguão de mármore manchado de café. A escada de carvalho pela qual desceram estava cheia de gente barulhenta, e dois seguranças estavam de pé lá em cima. Por ali, seria impossível chegar aos andares superiores. Molly e Rocky decidiram olhar primeiro no andar onde estavam. Espremendo-se para passar por uma mulher de túnica dourada, larga como uma vaca, e um homem gordo de bigode branco, os dois entraram em uma sala mais vazia. Estava cheia de arte moderna e iluminada por um candelabro de aço e vidro que parecia um Sputnik.
— Lembre-se do que Dusty disse — Rock falou. — Pelos objetos de arte de Cell, podemos saber como ele é.
A esquerda, havia um quadro muito estranho, verde e cinza, de pessoas minúsculas, do tamanho de camundongos, sem roupa nenhuma, exceto por uma trela puxada pelo macaco de um tocador de realejo, que também estava com uma trela.
Do lado oposto, havia um retrato do próprio Cell, tão grande que a tela escondia completamente a parede. Seus olhos, um castanho, outro turquesa, mostravam o reflexo de um corvo voando nas pupilas.
— Onde será que ele está nesse momento? — cochichou Molly, enquanto o garçom aproximava-se com uma bandeja. Nela havia um arranjo artístico do que pareciam ca-ranguejos fritos e uma tigelinha de molho preto.
— O que é? — perguntou Molly.
— Siri mole — ele respondeu. Quando viu o olhar indagador de Molly, acrescentou: — Pode comer inteiro, é uma espécie de caranguejos especial.
Éeee, não, obrigada — disse Molly. Rocky pegou um.
Hmmmmmmm... crocantes — disse.
Rocky agora estava excitado demais com a festa para achar Cell assustador.
Não acho que ele esteja assim tão interessado em nós. Tem peixes muito mais graú-dos para apanhar.
Eu não quero ser apanhada de jeito nenhum — disse Molly, olhando os caranguejos crocantes, enquanto o garçom passava outra vez.
Molly, Petula e Rocky, despercebidos pelos convidados cada vez mais animados, começaram a circular à procura dos cômodos pessoais de Cell. Seguiram pelo corredor de mármore até o final e abriram uma porta que dava para uma estufa de plantas. Uma densa folhagem tropical subia pelas colunas que abrigavam centenas de orquídeas flori-das e o ar tinha um cheiro úmido e doce. Em um dos cantos, havia uma fonte interna, onde três pessoas estavam tocando violão e cantando.
Era um jovem adolescente alto, magro, de nariz comprido e cabelo desgrenhado, uma jovem de cerca de dezesseis anos, com o cabelo cortado como o de um garoto e urna sobrancelha com uma parte raspada. O outro, para surpresa de Molly e Rocky, era Billy Bob Bimbo. Eles pararam para escutar. Molly podia ver que Rocky estava deses-perado para pegar um dos violões sobressalentes e se juntar a eles, mas lançou-lhe um olhar para lembrá-lo da missão mais importante dos dois.
Rocky começou a cantarolar junto.
— Legal, cara — o de cabelo desgrenhado falou, balançando a cabeça e fechando os olhos enquanto tocava.
Então, Rocky começou a falar seguindo o ritmo da música. Molly ficou impressio-nada. Ele estava inventando as palavras na hora e parecia realmente bom. Mas quando ele lhe fez um sinal, ela se afastou com Petula, direto para o outro lado da estufa. Molly não queria ser hipnotizada por Rocky. Esperou alguns minutos. Quando voltou, viu que os três músicos olhavam fixamente para ele.
— Legaaaall — disse o desgrenhado. Todos eles estavam em transe.
Molly deu, a cada um deles, um olhar hipnotizador extra. Depois, perguntou-lhes se tinham sido hipnotizados por Cell. Tinham. Quando lhes instruiu para esquecer todas as instruções de Cell, a garota da sobrancelha falou:
Nem pensar... cara. O que... Primo diz... grava.
Eéé... disse Billy Bob Bimbo. — Primo é legal... Vou fazer... uma música... para ele.
Você já fez, não fez? Sua canção do Homem Corvo é sobre ele — disse Molly, pen-sando no sucesso que tocara nas rádios do mundo inteiro.
Não... cara... essa música é... sobre a mulher que tem... o coração despedaçado. É uma canção... de amor.
Molly percebeu que, na superfície, Bimbo se esquecera do verdadeiro eu de Primo Cell. Mas no fundo, ela pensou, devia entender o tipo de homem que Cell era. Sua can-ção mostrava isso.
— Cante a música do Homem Corvo — ela disse. A voz caramelada de Billy Bob cantou.
Não o deixe roubar seu coração — ele cantou,
Roubá-lo, não,
Faça-o de aço, ooooooohhhh
Não o deixe ter seu coração
Defenda-o a cada pedaço, ooooohhhhh
Faça-o de aço,
Homem Corvo, ooohhhhhbh
Quer pegar o sol, as estrelas e você, ooooohh,
Homem Corvo
Onde Cell hipnotizou você?
Na sala... de cinema — disse Billy Bob Bimbo.
Onde fica?
Lá embaixo. — Ele apontou para um lance de escadas no fundo da estufa.
Lá fora... no campo de croque — disse Cabelo Desgrenhado. A garota também.
Molly instruiu-os a não se lembrarem desse encontro com ela e Rocky, e os libertou da hipnose. Depois, deixou que continuassem tocando e foi com Rocky procurar a sala de cinema.
Era um fabuloso cine-teatro privée, com poltronas reclináveis do tamanho de sofás. Cortinas de seda suntuosas estavam abertas, mostrando uma enorme tela na qual duas Ferraris
muito velozes perseguiam-se, em uma estrada à beira de um abismo. Um jovem de cara séria estava mostrando, para um famoso produtor, um filme que tinha feito.
Com relutância, Molly e Rocky voltaram pelo mesmo caminho.
Não vamos poder achar nenhuma pista aqui — ela disse.
Queria poder só curtir a festa e ficar vendo filmes a noite toda — disse Rocky, ao sa-írem. Ao lado de um pequeno gramado de croqué cercado por aquecedores solares, eles encontraram três atores famosos, um deles Tony Uam, a estrela do caratê, e os outros dois de grandes seriados da TV americana. Estavam conversando sobre cartas de fãs. Petula cheirou suas calças. Molly foi ver se escutava alguma coisa da conversa de duas pessoas que estavam sentadas debaixo de um limoeiro. Uma velha atriz dava conselhos a uma jovem muito bonita.
Para ser franca, querida, você deveria realçar as maçãs do seu rosto. Eles só colocam um pedacinho de osso sob a pele, mas isso faria toda a diferença para você. E um pou-quinho das maravilhosas injeções de botox em sua testa seria bom, porque então poderia dar adeus a essas insuportáveis ruguinhas que já está começando a ter. Eu fiz botox. Olha só, estou franzindo a testa agora, mas você não vê nada, vê?
Não. Não tem nenhuma ruga.
Exatamente.
Mas não precisamos das rugas? Como o público vai saber que estamos franzindo a testa, com raiva ou triste? — perguntou a jovem atriz.
Não sei, querida, mas eu não vou fazer caretas só porque alguns papéis exigem. Não vou acabar com meu rosto por causa disso.
Molly checou essas duas e descobriu que elas também eram leais a Primo Cell. Também fez a primeira descoberta significativa da noite.
— Onde Primo Cell hipnotizou você pela primeira vez? — ela perguntou à mulher com botox.
Lá em cima, nos aposentos privados — ela retrucou.
Como se chega até lá?
Você sobe... as escadas da frente... e segue para a direita... passando por todos os ou-tros lindos quartos...
São tão lindos... eu fiquei... lá uma vez — suspirou a jovem atriz.
...você segue... em frente até chegar... ao final e encontrar... uma porta especial...
Uma porta... de sonho...
... que dá para... mais escadas...
Escadas fantásticas.
— ... Se tiver sorte... você pode ir até lá... com Primo... e tomar um chá.
— Oh, lá em cima... é o paraíso.
— Você verá os... maravilhosos... aposentos privados de Primo... sua academia, sua biblioteca e seu escritório... ele é um homem... muito interessante, inteligente...
Ele é... brilhante. Deveria... ser presidente.
O homem é... um gênio...
Foi lá que ele... falou comigo.
E comigo.
Molly e Rocky olharam-se. Ambos estavam se sentindo terrivelmente agitados. Pa-recia que praticamente todo mundo na festa estava hipnotizado por Cell, exceto eles. Aventurar-se lá em cima seria muito arriscado. Mas pensaram em Davina Nuttell e sabi-am que, se ela estivesse na mansão e em perigo, eles tinham de tentar encontrá-la.
Capítulo Vinte e Quatro
M
olly, Rocky e Petula esperaram no saguão principal por uma oportunidade para subir até os corredores do andar superior sem serem vistos. Ainda havia convidados chegando e as estrelas estavam ocupadas com pessoas que iam e vinham. Os seguranças mantinham um olhar vigilante. Em um momento, eles foram distraídos por um jornalista que tentava passar sem permissão. Como dois esquilos escalando uma árvore cheia de nozes, Molly, carregando Petula, e Rocky subiram como um raio as escadas e viraram à direita. Segundos depois, estavam arfando atrás de uma coluna, quase na metade do corredor. Por um minuto, olharam para trás para ter certeza de que não haviam sido vistos. Depois, com o coração na boca, esgueiraram-se pelo corredor e seguiram por uma curva. Segundos depois, deram de cara com outro segurança, que Molly logo sossegou, e continuaram.
Passaram por quartos intermináveis e todos pareciam estar ocupados, como indica-vam as diferentes roupas colocadas sobre as camas.
É óbvio que ele gosta de ter hóspedes em casa — cochichou Molly, pegando em uma colcha de seda bordada. — Este lugar parece um castelo, não é?
Não tão frio, eu acho — disse Rocky —, e espero que não tenha masmorras.
É como uma galeria de arte também — observou Molly, enquanto seguiam em fren-te, atentos. Uma série de aquarelas de coelhos sob faróis de carros enfileirava-se na pa-rede. Eram seguidos por retratos de pessoas cujas cabeças estavam rodopiando como se estivessem saindo dos corpos.
É com isso que ele sonha — cochichou Molly —, que todo mundo que hipnotizou perca a cabeça por ele.
Você acha que ele pintou esses quadros? — perguntou Rocky.
Não. Ele é colecionador. Mas esses combinam com ele, não acha? Mostram o que ele tem por dentro.
Eles tinham chegado ao final dessa ala da casa. Ao lado de uma porta fechada, as palavras iluminadas de um letreiro de néon azul diziam, Um ponto no tempo economiza nove. Eles sabiam que estavam prestes a entrar nos aposentos de Primo Cell.
Rocky tentou abrir a porta. Não estava trancada. Atrás dela, subia uma escada de mármore verde.
Molly sentiu que devia ser um tipo de torre de feiticeiro, onde uma sinistra roda de fiar esperava por eles. Fechando a porta atrás de si, seguiu Rocky pela escada. Entraram em uma pequena sala de estar com paredes de couro amarelo e uma lareira acesa. A lenha queimando cheirava a tília e as chamas projetavam sombras e uma luz dançante no teto. Era como se a sala estivesse esperando pelos convidados.
Molly foi até a escrivaninha, que estava cheia de pesos de papel — cada um deles um relógio pequeno em uma bola dura de resina transparente.
Não toque nisso. Provavelmente tem alarme.
Rocky, não vamos descobrir nada se não tocarmos — Molly puxou as gavetas da es-crivaninha. Estavam trancadas.
Deve ser aqui que aquelas duas adoradoras de Cell disseram que tomaram chá com ele — ela disse.
Havia dois outros cômodos. Um tinha estantes com fichários e outros armários, mas também estavam trancados.
— Deveria ter aprendido a abrir trancas com Nockman — cochichou Molly. Mas Rocky não a escutou. Ele já estava no outro cômodo, disposto a sair assim que fosse possível.
Esse cômodo era uma pequena biblioteca, com estantes de madeira do chão ao teto. Havia todo tipo de livros — romances, enciclopédias, livros de referência, biografias, livros de arte, peças e livros de fotografias. Duas poltronas de cor creme estavam dis-postas ao lado da lareira acesa. Em uma mesa baixa havia uma escultura de uma mão tentando agarrar um coração que voava para longe. Dois outros quadros estranhos esta-vam pendurados nas paredes. Um era de um corvo de olhos vendados, usando uma co-roa. O outro era de um corvo voando, suspenso por cordões atados nas asas e na cauda.
Molly leu as palavras tecidas que acompanhavam a borda do tapete marrom.
"Conheça vosso coração
Conhecimento é poder
Conheça vosso coração
Conhecimento é poder
Conheça vosso coração
Conheça vosso coração
Conhecimento é poder
Conheça vosso coração
Conhecimento é poder."
Ela seguiu as palavras pelo chão. Em um ponto, o tapete formava uma protuberância estranha, como se tivesse alguma coisa por baixo. Molly inclinou-se e sentiu o tapete. Sorrindo, levantou-o para descobrir uma chave de bronze. Olhou para a escrivaninha. A chave era grande demais para as fechaduras das gavetas — parecia mais uma chave de porta. Talvez fosse da porta pela qual tinham acabado de passar. Então, Rocky viu o lugar ao qual a chave pertencia. Em silêncio, ele apontou para uma mancha no meio da parede, onde algumas rachaduras finas como cabelo denunciavam a posição de uma porta oculta. Perto do piso, havia uma pequena fechadura. Com o máximo de silêncio possível, Molly colocou a chave e a girou. Ela fez um ruído suave e a porta secreta de repente se abriu. Fosse o que fosse que estivesse ali por trás, era algo que Primo Cell não queria que eles vissem.
O cômodo escondido era outra biblioteca. Era bem menor do que a primeira. No meio, havia uma escrivaninha com tampo de couro castanho-avermelhado e uma cadeira de espaldar alto. Molly, Petula e Rocky entraram.
As paredes estavam completamente cheias de livros. Mas, ao contrário daqueles da outra biblioteca, todos tinham o mesmo tamanho e a mesma espessura. E suas encader-nações eram todas da mesma cor, castanho-avermelhada. Algumas eram lustrosas, outras estavam desbotadas, mas Molly teve a impressão de que todos os livros, um dia, tiveram exatamente a mesma cor. Molly reconheceu a cor, mas não conseguiu situá-la. Quando leu o que estava escrito em dourado na lombada de um dos livros, porém, em um lampejo horripilante ela soube exatamente por que lhe pareceu tão familiar.
— Não acredito! — ela deu um grito sufocado, olhando de um lado a outro das pa-redes.
Pois ali, em cada uma das estantes do cômodo, havia exemplares de um mesmo livro — um livro que Molly e Rocky conheciam muito bem. Primo Cell tinha centenas de exemplares do mesmo livro.
— Eu pensei que o livro de Briersville era o único exemplar que restava no mundo — Molly engoliu em seco.
Eu também — sussurrou Rocky. — Mas originalmente, devem ter sido impressos muitos.
Como você acha que ele conseguiu todos esses? — perguntou Molly. — Devem ter pertencido a pessoas diferentes.
— A hipnotizadores diferentes — disse Rocky.
Algo que Molly tinha pensado que só acontecia em desenho animado, agora estava acontecendo com ela. Suas pernas começaram a tremer tanto que os joelhos praticamente batiam um no outro.
— Onde será que eles estão agora? Rocky não disse nada.
Mortos? — Molly deixou escapar um suspiro rouco como tosse de burro. Petula ga-niu em solidariedade.
T... talvez ele só tenha feito com que esquecessem tudo o que sabiam sobre hipno-tismo e os enviou de volta aos lugares de onde vieram — disse Rocky, sem querer acei-tar que Primo Cell pudesse ser tão mau.
Esses livros são como troféus — sibilou Molly. — São como escalpos de todos os hipnotizadores que ele dominou. — Suas mãos estavam suando como se ela estivesse em uma sauna. — Não estou gostando disso. Temos que sair daqui. — A esmagadora coleção de Cell de O livro de hipnotismo, que tinha mudado sua vida, pertubara-a com-pletamente, confirmando sua sensação de que ela e Cell pertenciam a tribos diferentes. Suas próprias habilidades pareciam brinquedinhos de plástico se comparadas às máqui-nas supermodernas de Cell. Ela afastou a idéia de procurar pistas do paradeiro de Davi-na. Só o que queira fazer era sair da mansão em segurança.
Eles fecharam o cômodo, esconderam a chave novamente e saíram cautelosos pela porta da frente.
No pavimento de baixo, Primo Cell andava de um lado para o outro pela festa. Em-bora estivesse desfrutando essa noite de comemorações, não conseguia relaxar. Para ele, esse evento era apenas outra oportunidade de aumentar seu poder. Gostava de ser o cen-tro das atenções, e de ser íntimo das maiores estrelas de Hollywood. Todas eram pessoas que considerava "dele", mas sua devoção a ele tornava-as menos interessantes. Os convidados que o interessavam mais eram aqueles que ainda não conhecia.
Ele estava brincando com a idéia de hipnotizar um velho ator chamado Dusty Dou-rado, embora não achasse que ele teria alguma utilidade. A pessoa que mais o intrigava entre todas era essa criança aparentemente simples, Molly Moon.
Em Nova York, ela fora manchete dos jornais por sua atuação em Estrelas em Marte. Seu apoio poderia ser muito útil em seu canal infantil. Ele já usava o cantor pop, Billy Bob Bimbo, mas uma menina famosa realmente ajudaria Cell a conquistar o coração das crianças americanas. Tinha lhe passado pela cabeça que a menina sabia hipnotizar. Sua súbita ascensão à fama, seu mistério, seu jeito tão comum e, mesmo assim, seu estrelato, tudo tinha a marca de uma hipnotizadora. Era sempre emocionante encontrar os de sua própria espécie, embora, é claro, no final tivesse que descartar os hipnotizadroes adultos. Era mais seguro assim.
Cell suspirou ao pensar em Davina Nutell. Ele planejara colocá-la como líder de uma grande campanha de promoção de sua marca de roupas infantis. Não entendia por que tinha sido impossível hipnotizá-la. Pior, era como se algo dentro de Davina o tivesse enfraquecido. Molly Moon certamente seria mais fácil de hipnotizar — embora ele tivesse que ser cuidadoso. Ela seria o novo rosto da Casa da Moda.
Onde estava Molly Moon? Primo percorreu rapidamente a sacada e os jardins. Ten-tou imaginar onde uma criança poderia ir em uma noite como essa, mas não conseguia pensar como era antes dos 20 anos. Portanto, em vez disso, começou a procurar pelo minibuldogue preto que a acompanhava.
Um velho roteirista enrugado estava parado perto da porta, fumando um cigarro.
Você conhece aquela criança atriz, Molly Moon? Viu por onde ela anda? — pergun-tou-lhe Primo Cell.
Siiiimm—o homem retrucou — É assim. Grande plano pelo saguão até as escadas de carvalho da porta da frente.
Aparece a menina e seu amigo forçando a passagem pela multidão para ir embora. Close-up no rosto da menina. Ela sorri sem-graça. Alguém a reconheceu. Foco no ca-chorro da menina. Ela segue as crianças pela porta. Vão desaparecendo.
Há quanto tempo foi isso? — perguntou Primo.
Quinze minutos.
Eles estarão em um táxi a essa altura — Primo disse a si mesmo, pressionando a ponta do polegar contra seu dente incisivo afiado.
Da próxima vez — sugeriu o roteirista, soltando uma coluna de fumaça — talvez você deva contratar alguém para entreter as crianças.
Molly e Rocky desceram pela pista de carros, passando pelos portões da frente da mansão de Cell. Decidiram que era mais simples ir a pé de volta para o hotel.
A biblioteca secreta do anfitrião tinha assustado tremendamente os dois.
— Eu me pergunto, por que temos que resolver o problema de Primo Cell? — disse Rocky. — Nunca vamos conseguir detê-lo. Ele é poderoso demais.
Molly concordou.
Realmente, é uma tarefa para alguém tipo um agente treinado — ela disse, olhando do outro lado da estrada o cartaz de um filme de ação. — A idéia de que eu seria capaz de fazer isso é ridícula.
E injusta.
Completamente injusta. Por que Lucy não espera até melhorar para vir e fazer isso ela mesma? — disse Molly.
Aqui estamos nós em um dos lugares mais divertidos da terra — queixou-se Rocky —, e vamos para uma festa que a maioria das pessoas daria o pé direito para ir, mas temos de perder a diversão e, em vez disso, ficar xeretando e correndo o risco de sermos pegos pelo Senhor Esquisitão. Não é justo.
— Nem razoável.
Resmungando essas coisas, os dois amigos caminharam pela noite fresca.
Não encontraram nenhum outro andarilho, porque em Los Angeles só se anda de carro.
De volta ao bangalô do hotel, Rocky preparou umas bebidas — "Shirley Temples" apropriadas para a idade. Molly pegou uma caixa de caramelos de um armário.
Quando vamos telefonar para Lucy Logan e lhe contar que você não pode fazer a ta-refa? — perguntou Rocky.
Agora lá serão sete horas da manhã, não acho que deveria acordá-la como fiz da úl-tima vez. Vou telefonar amanhã. — Rocky percebeu que Molly estava adiando o mo-mento, mas não fez nenhum comentário.
Molly pôs um caramelo na boca e o deixou dissolver. Queria esquecer Cell e pensar em alguma coisa legal, mas não conseguia. Era impossível tirá-lo de sua mente.
Se você fosse ele — disse, desistindo —, o que estaria planejando?
Eu não ia parar — disse Rocky, lançando olhares concentrados, hipnóticos, no rosto das pessoas no jornal em frente a ele. — Eu ia querer controlar todos os Estados Unidos para que todas as pessoas fizessem o que eu dissesse. Eu ia querer ser presidente.
Por que parar aí? E o domínio do mundo? — disse Molly. — Lucy acha que ele está planejando isso. O que é certo é que ele não vai desaparecer de repente ao pôr-do-sol. Aposto que ele quer tudo.
Molly refletiu sobre isso. Olhou para a caixa familiar de Caramelo Moon, caramelo da lua, em sua mão. A lua desenhada na caixa era redonda e branca. A terra embaixo era como uma bolinha de gude azul. Quando Molly era pequena, achava que a lua era feita de caramelo e que todos os caramelos na caixa tinham vindo da lua. Também achava que, no mundo todo, os bebês apareciam em caixas de papelão ou em capotas de carri-nhos de criança, da mesma forma que ela e Rocky. Achava que eles vinham de repente do espaço cósmico, em caixas de papelão voadoras e capotas de carrinhos de criança que voavam pelo espaço.
Você acha que nós somos as únicas pessoas do mundo que sabem o que Cell preten-de fazer? — perguntou.
Eu não sei e não me importa — disse Rocky, afinando o violão.
Molly pegou a caixa de caramelos de tal forma que o pequeno planeta terra se ani-nhou em suas mãos.
Digamos que a gente não faça nada a respeito dele, Rocky. Digamos que ele comece a fazer coisas realmente muito, muito ruins.
Aí veremos o que acontece. Podemos resolver as coisas mais tarde, se for preciso.
— Mais tarde será tarde demais — disse Molly. Molly sentiu-se muito esquisita. Quanto mais olhava o
pequeno globo na caixa, mais se sentia também uma parte do problema de Primo Cell. Pois saber sobre seu poder maligno e não fazer nada significava que era responsável por deixá-lo fazer o que quisesse. Se ela fosse a única pessoa que pudesse fazer alguma coisa, e não fizesse nada, então ela estaria, de fato, ajudando-o. Estaria se comportando como se quisesse que ele tivesse sucesso. E ela não queria. Pensou nos bilhões de pessoas que viviam no mundo, todos os livre-pensadores que Primo queria controlar. O pequeno planeta azul em suas mãos parecia puxar o coração de Molly. Em Briersville, ela ficara obcecada com a idéia de que ela e Rocky deveriam usar o hipnotismo para fazer o bem. Como podia falar assim e, aí, quando o futuro do mundo está ameaçado, virar as costas? Este era um exemplo perfeito de um momento em que ela deveria usar seu hipnotismo para ajudar. Não podia deixar Primo vencer. Estava totalmente fora de cogitação.
— É agora ou nunca — disse para Rocky. — Nós temos que tentar ajudar Davina. Nós temos que descobrir o segredo de como Cell torna seu hipnotismo permanente. Se descobrirmos isso, poderemos libertar as vítimas. Então seu poder começará a desmoro-nar. É isso que devemos fazer. Nunca nos perdoaremos se pelo menos não tentarmos detê-lo.
Rocky olhou com tristeza para o violão e soltou um gemido.
Imagino, então, que teremos de voltar à casa dele. Quando?
Amanhã — disse Molly. — Antes de perdermos completamente a coragem. Você sabe o que eles dizem sobre cair de um cavalo? Você tem que voltar a montar imedia-tamente, antes de perder a coragem. Nós temos que montar nesse cavalo, Rocky.
Minha coragem já está do tamanho de uma ervilha — disse Rocky.
A minha, do tamanho de uma lentilha.
Capítulo Vinte e Cinco
N
a manhã seguinte, Molly e Rocky acordaram com batidas na porta. Por um momento entraram em pânico, pensando que Primo Cell tinha vindo atrás deles. Depois, perceberam que estava claro lá fora e a voz de Gerry pedia que o deixassem entrar.
— Vamos, vocês dois. Hora de acoldar — ele gritava. — Nós vamos pala o palque de divelsão.
Sonolenta, Molly abriu a porta. A luz quente da manhã entrou, junto com um ani-mado Gerry.
Lá tem "O Salto Peligoso". Gemma disse que é a maió montanha-lussa do mundo na água. E também tem "A Volta do Bumelangue" e outlo chamado "O Jaguá". O Sr. Nockman vai levá todo mundo e até o Loge vai, mas tem que ser agola ou as filas vão está gigantescas.
Que horas são?
Dez e qualqué coisa, eu acho, então ponham suas loupas polque a gente tem que saí agola.
Molly balançou a cabeça.
Não podemos, Gerry. Temos que fazer um favor para o Benfeitor.
Outra vez? Ah, que besteila peldê isso, Molly. É legal demais.
Molly suspirou.
— Eu sei, não precisa me dizer. Acredite, eu adoraria ir com vocês, mas não posso. Nem Rocky. Mas olha, da outra vez iremos.
— Tá legal — disse Gerry, desapontado.
Divirtam-se bastante. Não coma muito algodão-doce ou vai ficar zumbindo como abelha, lembra da última vez? E não leve seus camundongos. Eles podem cair de seu bolso nos passeios, e se machucarem.
Tá — gritou Gerry por sobre o ombro, já na metade da calçada que dava para o ban-galô.
Molly e Rocky tentaram se animar com um belo café da manhã no pátio, mas era di-fícil com a montanha-russa do parque de diversão acenando e o problema de Primo Cell refestelado, imóvel, na frente deles como um horroroso monstro gordo.
Molly terminou sua omelete e se serviu de xarope concentrado de romã. Rocky abriu os jornais para olhar a página dos esportes. De repente, Molly sentiu-se meio peculiar. Olhou para o prato e torceu para não ter acabado de comer um ovo estragado, porque naquele mesmo segundo, um arrepio gelado a atravessou. Não era náusea, era... outra coisa. Instintivamente, Molly reagiu e, estupefata, viu que o mundo ao seu redor estava parado. Rocky tinha congelado enquanto coçava a cabeça.
Por um momento, pensou que devia estar sonhando. Mas não estava. Isto era real. Cheia de medo, Molly olhou para as montanhas. Fosse o que fosse que tivesse causado essa parada do tempo, era lá que estava. Muito distante, mas não tão distante assim.
Molly pegou uma vespa imóvel no ar e se inclinou para a frente e escutou.
O mundo estava completamente quieto. Além de sua respiração ansiosa, não havia ruídos. Nenhum trânsito, nem música, nem aspiradores de pó, nem cortadores de grama. Só o silêncio. Por um momento, o mundo inteiro estava em silêncio. Ninguém estava rindo, nem chorando, nem gritando, nem cantando. Os ventos e os mares estavam imó-veis.
Então, subitamente, como se o botão de pausa do aparelho de vídeo do mundo tives-se sido desligado, tudo começou outra vez. A vespa na mão de Molly voou por sua pal-ma e começou a zumbir. Molly deixou-a ir.
— O que você está fazendo, sua idiota? — disse Rocky. — Queria levar uma ferro-ada?
Então, como Molly estava com seu olhar de sapo-amarelo-sentado-debaixo-de-uma-pedra, ele perguntou:
— Você está bem?
Molly inclinou-se para ele, temerosa que o mundo parasse outra vez. Contou-lhe o que tinha acontecido. Foi difícil para Rocky acreditar.
— Talvez as paradas do tempo aconteçam naturalmente, como um terremoto — ele sugeriu. — Este é o lugar dos terremotos, talvez seja um tempomoto. Talvez a terra tenha feito isso sozinha.
Ambos consideraram essa possibilidade geológica. Molly não sabia o que pensar.
— E outra coisa — Molly continuou, muito perplexa. — Sinta este diamante.
Rocky tocou-o.
— Está gelado.
Não é normal os diamantes ficarem tão frios assim, é? — ela perguntou. — Quer di-zer, tudo em volta do diamante está normal. Minha pele está normal. O diamante não deveria estar na mesma temperatura?
Talvez o diamante fique carregado de frio quando você tem a sensação de fusão fria. Talvez ele conserve o frio como, sei lá, o metal conserva o calor quando sai do forno.
Depois do café da manhã, Molly e Rocky vestiram-se com jeans e camisetas. Molly não conseguia parar de pensar na estranha parada do tempo.
Petula provavelmente fora dar um passeio, e Molly concluiu que dessa vez seria me-lhor ela ficar para trás.
Com relutância, eles saíram. O plano deles era ousado. Pretendiam se esconder nos aposentos privados de Cell. Era a única maneira de descobrir como o hipnotismo dele funcionava e, assim esperavam, o que tinha acontecido com Davina.
Tomaram um táxi e logo estavam cruzando a Sunset Strip. Molly olhou pela janela as pessoas de carro fazendo coisas seguras, como indo trabalhar ou fazer compras. Pensou em como todos eles tinham sorte. Uma ou duas vezes, Gandolli, o político sorridente, nos cartazes eleitorais vermelhos, brancos e azuis, arreganhava os dentes para eles. Molly pensou consigo mesma que ele não teria a menor chance de ganhar se Primo Cell quisesse ser presidente.
Na noite anterior, quando estavam indo para a mansão de Primo, Molly tinha hipno-tizado o segurança do portão da entrada para deixar que ela e Rocky passassem quando quisessem. Agora, entraram na área da mansão sem dificuldades.
No entanto, chegar à entrada principal foi extremamente difícil. Era como se a noite passada não tivesse terminado. Havia um movimento constante de carros subindo pela pista de cascalho. Limusines compridas de janelas escurecidas passavam com seus mo-toristas. Molly e Rocky tinham que se atirar atrás das moitas e se esconder a cada meio minuto. O que deveria ter levado dez minutos, levou quarenta.
— Parece que ele está dando outra festa — disse Molly, espiando pela porta da frente sobre o casco da tartaruga gigante que mascava no arbusto de rosas que os ocul-tava.
Um homem de uniforme militar estava saindo de um carro. Eles observaram a che-gada de muitos homens e mulheres de terninhos, com cara de importantes, acompanha-dos de seguranças.
— Eu não me surpreenderia se o próprio presidente estivesse chegando — disse Rocky.
— Aposto que Cell o conhece. Molly dirigiu-lhe um olhar sombrio.
Se isso é verdade, Cell pode ser muito mais poderoso do que pensamos. — Ela exa-minou os convidados que chegavam. — Essas pessoas parecem políticos, não parecem?
É — sussurrou Rocky. — É mesmo, aquele é o governador da Califórnia. Já vi a foto dele nos jornais. O que será que Cell está tramando?
Entrar na casa pela porta da frente era impossível. Assim, Molly e Rocky foram ras-tejando pelo jardim de rosas, Molly, lamentavelmente, por um monte de cocô de pavão. Esgueiraram-se pelas esculturas e o lago de carpas chinesas, até chegarem ao outro lado da mansão cinza. Ali, encontraram uma janela pequena, baixa, que estava aberta. Indo na frente, Molly forçou a passagem. Sentiu que seu pé aterrissou em algo molhado. Ao se contorcer para conseguir colocar todo seu corpo para dentro, viu que estava pisando em uma grande pia cheia de água. Era um depósito para arranjo de flores. Havia vasos, cestas e tesouras na bancada, e buquês de flores exóticas alinhavam-se no chão. Com um pé pingando, ela pulou em silêncio no chão de linóleo e avisou para Rocky olhar onde punha o pé. Com um pano, limpou a sujeira de pavão de seus jeans.
Dizem que cocô de passarinho dá sorte — sussurrou Rocky.
Só se eles caem de cima em você. De qualquer maneira, não sou supersticiosa — disse Molly.
Eles podiam escutar o que parecia conversa de empregados do lado de fora do apo-sento. Não havia lugar onde se esconder entre as flores, portanto Molly moveu-se furti-vamente até a porta, pronta para hipnose instantânea, se fosse necessário. Mas as vozes passaram e, depois de um momento, ela espreitou e viu um corredor pequeno. No final, havia o que parecia uma escada de serviço. Silenciosos como gatos, e felizes porque as paredes eram azuis, pois estavam de roupas azuis que ajudavam na camuflagem, eles fizeram uma pausa e depois se esgueiraram pela escada.
Estavam no canto oposto ao que tinham estado na noite anterior, e podiam escutar o zumbido surdo das conversas e risadas nas salas principais. Furtivamente, subiram rápido o lance seguinte da escada e chegaram a um piso com carpete púrpura. Pegaram a esquerda e seguiram.
Havia portas nos dois lados deste corredor. Quando Molly e Rocky ouviram passos, mergulharam em silêncio no quarto mais próximo e se esconderam atrás de uma cama com dossel.
Viram-se em uma suíte luxuosa, com uma sala de estar e um banheiro anexado ao quarto. Era decorado em branco e rosa, e havia almofadas fofas espalhadas pelas poltro-nas e pela cama. Vasos de lírios cor-de-rosa e diminutas estatuetas de cachorros de por-celana enfeitavam pequenas mesas com laços de fita. O convidado que se hospedava nesse quarto devia se sentir completamente em casa. Na penteadeira, havia uma peque-nina árvore de prata, onde estavam pendurados anéis de diamante. Em uma caixa aberta ao lado, havia três colares de diamantes. Quando eles viram o rosto de Gloria Tiammo sorrindo em uma foto emoldurada, cercada por vários cachorrinhos brancos, compreen-deram que deviam estar no quarto da estrela. Um segundo depois, escutaram um rosna-do.
Molly olhou de novo para a cama. Por cima, o que ela havia equivocadamente to-mado por uma coberta de peles era, na verdade, uma massa de peles vivas ainda ligadas a seus donos vivos. Os dez pequineses de Gloria Tiammo estavam aconchegados um contra o outro, curtindo uma soneca do meio-dia. O do meio tinha acordado.
Molly e Rocky sentiram-se como se fossem fósforos prestes a atear fogo em uma caixa de fogos de artifício muito barulhentos. Tão silenciosos quanto cobras, saíram dali.
Eles descobriram que havia astros hospedados em todas as suítes daquele corredor. Cada um dos quartos estava obviamente ocupado, e tinha até mesmo um estilo particu-lar, como se estivesse adaptado para seu ocupante. Os armários estavam cheios. As ga-vetas abarrotadas.
Em uma escrivaninha de um quarto de homem, Molly encontrou um extrato bancário com o nome de Hercules Pedreira impresso no alto. Embaixo, havia um endereço: Mansão do Corvo, Estrada do Norte, Hollywood Oeste.
— Ele está completamente dominado se é para cá que vem sua correspondência bancária — disse Rocky. — Será que ele mora aqui? — Então, ao ler o extrato, comen-tou: — Poxa, ele não tem que se preocupar com dinheiro. Trinta e quatro milhões de dólares! Está cheio da grana.
Molly encontrou uma lata de aerosol de algo chamado "Bye-bye Calvície". Espalhou um pouco em sua mão e imediatamente um remendo de cabelo preto pareceu crescer em sua palma.
O cabelo dele obviamente está caindo — disse. Olhou para as duas abotoaduras com rubis na mesinha-de-cabeceira e um foto de Hercules Pedreira abraçando Primo Cell.
Cell os mantém aqui como cartas premiadas. Como pássaros em gaiolas. Imagino que eles o divertem. Devem passar várias semanas aqui.
Que diversão espantosa — disse Rocky. — Imagine ter qualquer estrela que você quiser se hospedando em sua casa.
Ainda não encontramos nenhuma pista sobre Davina — disse Molly. — Mas se hoje é, como sempre, dia de trabalho para Cell, é provável que signifique hipnotizar alguém, o que significa que, se quisermos saber como ele trabalha, temos que chegar aos aposentos dele rapidamente, Rocky. Não vamos ficar de bobeira aqui.
Saíram da suíte de Hercules Pedreira e foram para o final da enorme escada de car-valho. Vozes se cumprimentando ecoaram, vindas do saguão de mármore. De onde es-tavam, tinham a visão que os passarinhos têm do alto das cabeças: algumas carecas, algumas meio carecas e outras que pareciam animais peludos bem-cuidados.
— Políticos, figurões militares e celebridades — disse Molly. — Estou entendendo o jogo. Ele atrai as figuras do governo e do exército para virem aqui, prometendo que conhecerão as estrelas. Ele sabe que até os políticos são fascinados pelas estrelas. Não ficaria surpresa se Cell estivesse planejando conquistar mais políticos para seu domínio antes do final do dia.
Como filhotes de aranhas, Molly e Rocky dispararam pelo corredor até a ala de Cell na mansão. Passaram pelos quadros de coelhos atordoados pelo clarão das luzes. Chega-ram à tabuleta de néon azul que ostentava, Um ponto no tempo economiza nove, e então, trêmulos, subiram a escada de mármore verde que levava ao centro nervoso de Primo Cell. Estavam apostando que ele estaria com seus convidados lá embaixo, mas a idéia de que podiam dar de cara com Cell era uma nuvem negra ameaçadora sobre suas cabeças. Os ouvidos de Molly latejavam enquanto seu coração batia forte e fazia o sangue palpitar por sua cabeça.
Mas quando chegaram no final da escada, a área estava vazia. Rapidamente, esguei-raram-se para dentro do escritório que cheirava a limão.
Nesse momento, escutaram duas vozes graves ecoando no corredor. Vinham na di-reção deles.
Capítulo Vinte e Seis
P
erturbada pelo choque, a perspicácia de Molly entrou em greve, e ela não sabia o que fazer. Viu-se olhando para o cesto de lenha da lareira, imaginando se podia se esconder ali. Por sorte, Rocky manteve a cabeça fria e a empurrou para as cortinas abertas. Com um balanço rápido, cada um pegou uma ponta do tecido, enrolando o veludo verde-escuro sobre si e deixando-o cair naturalmente para que as dobras da cortina parecessem naturais. Molly concentrou-se em aquietar a respiração. Ao olhar para cima de dentro do tubo verde de tecido a sua volta, sentiu-se como uma lagarta em seu casulo.
A porta se abriu e fechou depois que duas pessoas entraram. Molly imediatamente reconheceu a voz de veludo fluida de Primo Cell.
— Então, é aqui que faço tudo acontecer — ele estava dizendo. — Meu escritório doméstico. É aqui que penso e descanso. Oh... e onde assino os cheques.
Assustadoramente perto de seu esconderijo, Molly escutou Primo girar uma chave e abrir uma gaveta da escrivaninha. Ela engoliu em seco — dentro de sua cabeça, o ruído era como o da água escoando em um dreno.
— Ah, sim, meu talão de cheques de caridade. Aqui está.
Isto realmente é muito gentil de sua parte, Sr. Cell — disse a voz do outro homem.
De maneira nenhuma, general. É realmente um prazer. Por favor, me chame de Pri-mo.
O peito de Molly se apertou. Até onde se lembrava, general era a patente mais alta do exército.
— Obrigado, e você pode me chamar de Donald.
— Donald, não é nada. Minha própria mãe era viúva, portanto também não cresci com meu pai. Sei de primeira mão o benefício que estas famílias podem ter com sua ajuda caridosa. Por favor, sente-se.
Molly escutou uma cadeira de couro acomodando o bumbum do general e, depois, um rangido quando Primo também se sentou.
— Para quem devo fazer o cheque? — Cell perguntou.
— Para o Fundo das Viúvas do Exército dos Estados Unidos — veio a resposta.
— Dez milhões de dólares serão o suficiente no momento? O general arfou audi-velmente.
— Eéé, claro. Mais do que suficiente. Estou atordoado com sua generosidade.
Por um momento, Molly duvidou se ela, Rocky e Lucy Logan tinham se equivocado completamente sobre Primo. Talvez ele estivesse usando seu hipnotismo para fazer o bem.
Houve um silêncio e Molly ficou atenta. O som de uma caneta no papel riscou o ar. Houve uma longa pausa e depois ela escutou um barulho que soou mais ou menos assim:
"Bdeughhhhh."
Vinha dos lábios do general.
Molly imediatamente soube o que estava acontecendo. Agora eles iam descobrir como Primo Cell trancava seu hipnotismo dentro da pessoa.
— Ótimo — disse Cell, como se estivesse conversando com uma criança. — Agora você, Donald, está totalmente sob meu poder. Você esquecerá que lhe prometi uma doa-ção para sua obra de caridade. Não se lembrará de nosso encontro aqui. Em vez disso, você se lembrará de um maravilhoso almoço em minha casa. Em um minuto, você re-tornará para junto dos outros convidados, pensando que foi apenas ao banheiro. Deste momento em diante, cumprirá minhas ordens. Você ficará sob meu poder para sempre.... sempre.... sempre.
Atrás da cortina, Molly tremeu. Um arrepio tão frio como uma brisa vinda do cora-ção de uma geleira passou por dentro dela e seu diamante subitamente congelou.
Ela deixou a sensação de gelo passar pelo seu corpo, mas não a segurou. E enquanto o tempo parava, ela compreendeu duas coisas. A primeira era o fato assustador de que Cell podia parar o tempo, e a segunda era que era por isso que ele trancava seu hipno-tismo. Ele parava o mundo enquanto suas vítimas eram hipnotizadas e, de alguma ma-neira, isso lacrava seu poder.
De sua cadeira oposta à do general, Primo Cell sentou-se como se alguém tivesse lhe dado um choque elétrico. Os pelinhos de sua nuca eriçaram-se quando ele sentiu uma resistência. Alguém alerta e respirando estava aqui, nesta mesma sala. Ele se levantou e, com três passadas poderosas, atravessou o escritório até a janela. Puxou o veludo para um lado. Molly teria gritado, mas o terror tinha tomado sua garganta.
Por um segundo, Primo Cell pareceu chocado. Até espantado. Raramente encontrava pessoas que podiam continuar se mexendo com o tempo parado.
— Você? — ele gritou. — Molly Moon. Eu deveria ter imaginado.
Recobrando-se do susto, Molly fitou os olhos dele. Ele começou a rir.
— Oh, você me decepciona — disse. — Pensei que poderia ser matéria-prima para discípula, mas posso ver em seu rosto que não é o seu caso. E sem dúvida seu cúmplice também está por aqui. — Cell puxou a cortina do lado de Rocky. — Ah. Imóvel como uma estátua. Não tão completo quanto você, pelo que vejo. — Cell agarrou o braço de Molly. — Logo vocês dois vão desejar ter ficado em casa hoje — sibilou.
Ele empurrou Molly em direção ao general congelado. Depois, colocando a mão no ombro do homem, fez uma coisa surpreendente. Molly sentiu que Primo Cell enviou uma onda da sensação de fusão gelada saindo de si mesmo para o general, de tal forma que o homem se mexeu e, subitamente, podia mover-se de novo.
Pegue o garoto — Primo Cell lhe ordenou. — Mas em nenhum momento deixe mi-nha mão perder o contato com você. — Isto, Molly compreendeu, era para que o homem não congelasse outra vez. O general obedientemente levantou-se e levantou Rocky, que curvou-se como uma boneca de pano sob seu braço esquerdo.
Agora, segure a garota. Não a deixe escapar. — A maciça mão direita do general fe-chou-se sobre o bícepes franzino de Molly. — Ótimo. Agora, temos que nos apressar.
Com sua mão livre, Primo Cell apertou um botão dentro da primeira gaveta da es-crivaninha. Uma estante na sala abriu-se, revelando uma porta.
— Podemos parecer ridículos assim — disse Cell, enquanto se colocava atrás de Molly e do general — mas as aparências podem enganar, especialmente em Hollywood. Veja o meu caso, por exemplo — disse, enquanto os empurrava em direção à porta se-creta. — As pessoas acham que sou uma pessoa maravilhosa. Um benfeitor. Alguém a quem podem recorrer. Mas não sou nada disso. Sou egoísta, ambicioso e assassino.
Molly subitamente recuperou a presença de espírito ao ver um vão de escada abaixo dela. Era esse o lugar para onde Cell trouxera Davina? Ela conseguiu escapar da mão do general e começou a gritar.
— Socorro Alguém ME AJUDE! — Mas, claro, ninguém podia escutá-la. Na gran-diosa sala de estar, políticos estavam imóveis como esculturas, com taças de champagne nas mãos e expressões rígidas de encantamento no rosto enquanto falavam com as estre-las. Se o mundo estivesse se movendo, a algazarra das conversas teria abafado os gritos de Molly. Assim como estava, o ar estava imóvel como um quadro, o som suspenso, portanto os gritos distantes de Molly, enquanto Primo empurrava-a de novo para a esca-da, eram audíveis no saguão.
Uma pessoa escutou os gritos. Uma pessoa que tinha casualmente se afastado da fes-ta paralisada e estava limpando suas unhas com um palito de dentes. Quando colocou o palito de dentes usado na mão estendida de Stephanie Guizadim, o celular de Sinclair Cell tocou. Ele pressionou o botão de "responder".
— Estou indo — disse, com preguiça.
Sinclair, venha imediatamente — disse a voz de seu pai, impaciente. Sinclair viu pela tela do celular o rosto irritado de Primo Cell.
Como você pode escutar, estou tendo um certo trabalho. — Cell virou seu celular para mostrar a figura de Molly gritando e o general com Rocky congelado debaixo do braço. — Venha aqui e me ajude.
Tudo bem. Já vou. O problema é que eu estava conversando com a Sra. Goulash quando você parou o relógio. Quando as coisas começarem a se mover de novo, ela vai se perguntar como desapareci de repente.
Esqueça-a. Ela bebe demais, de qualquer maneira. Vai pensar que teve uma alucina-ção.
Tudo bem.
Molly estava sendo rudemente empurrada para baixo pela escada de pedra. Ela des-cia cada vez mais, como se estivesse numa espiral para o inferno. Seu braço doía com o aperto de ferro do general.
Estava começando a se sentir exausta. Era muito cansativo resistir ao gelo e gritar ao mesmo tempo.
— Me solta — ela gritava repetidamente. Mas seus esforços eram inúteis contra a força de dois homens. Girando, Molly voltou seus olhos para Cell.
Seu olhar de fogo lento batia nele sem penetrá-lo, como água na cera.
— Você tem coragem! Menininhas não deviam brincar com fogo, sabia? Ou com gelo, nesse caso. — Primo Cell de repente fez seu grupo estranho parar. — Tire o cristal.
Molly se perguntou como era possível ele saber que ela usava um diamante.
— Não, não vou — ela disse. — É meu.
— Tire-o de uma vez ou eu mesmo o tiro de você — insistiu Primo, inflexível.
Molly estava espantada. Primo Cell certamente era uma das pessoas mais ricas do mundo e, numa hora dessas, pensava em diamantes. Ele era completamente materialista. Molly supôs que fosse seu pagamento, seu castigo.
— Você é um homem cruel, ambicioso, horroroso — ela gritou. — É ainda pior, é uma escória. Não precisa disso. Mas eu preciso. — Molly pensou nas outras crianças do orfanato, na conta do hotel a ser paga, no dinheiro do Lar da Felicidade minguando, na comida escassa, na dificuldade dos tempos à frente. — Você não pode me tomar isso.
— Você não vai precisar dele no lugar para onde está indo
— disse Cell, indiferente. — Tire-o imediatamente.
Molly escutou o tom ameaçador de sua voz e se acovardou. Estava tão cansada. Não tinha mais força para resistir. Levou a mão até o fecho da corrente em seu pescoço. O diamante tinha absorvido o frio de seu corpo e parecia gelo em sua pele. Ela abriu o fecho, mas ainda segurou o diamante.
Imagino que você o emprestará a Gloria Tiammo, e ela ficará maravilhada. — sus-surrou. — Mas sabe de uma coisa? Se ela soubesse como você realmente é, o odiaria. Todas as suas pessoas hipnotizadas o odiariam.
Oh, poxa, então você não tem idéia do verdadeiro poder de seu diamante? — disse Cell secamente. — Hmmmmm.
— Ele estendeu a mão e tirou a jóia de Molly. E, sem perceber, Molly congelou.
Capítulo Vinte e Sete
O
general agora carregava duas crianças imóveis descendo a escada. Passaram para o subsolo e, à medida que desciam mais, uma luz vinha do fundo. A parede de pedra foi substituída por vidro grosso. E a escada descia como um tubo de gelo em um espaço amplo, branco, do tamanho de uma catedral. Chegaram ao fundo e pararam.
A sala era imponente e moderna, como uma enorme galeria de arte, embora não ti-vesse nenhum quadro nas paredes. Em vez disso, o que parecia uma escultura estranha estava em seu centro. Era uma grande torre de aço. De seu topo, um mastro comprido se estendia paralelo ao teto, com uma coisa grande e pesada fixada na ponta. Aos pés da torre, havia um banco de aço.
Sinclair Cell sentou-se ali, olhando seu reflexo em um espelho de bolso.
— Sinclair, você poderia ter vindo me ajudar, seu sapo preguiçoso — disse Primo. — Agora, me ajude. Amarre os braços deles nas costas.
Cell instruiu o general a pôr Molly e Rocky no chão. O par imóvel ficou esparramado ali como peixe morto, e Sinclair aproximou-se e os amarrou.
Então Cell deixou o mundo sair de seu congelamento. Imediatamente, o tempo de Molly e Rocky começou outra vez. Ambos ficaram chocados ao compreenderem como haviam sido transportados. Até onde Rocky sabia, ele ainda estava atrás da cortina, en-quanto o tempo de Molly tinha parado quando Primo arrancou dela o diamante. Poucos segundos mais tarde, ela engoliu em seco ao perceber o que havia acontecido.
— Então o diamante está relacionado com a parada do tempo!
Primo não lhe deu atenção. Ele estava de pé perto de uma pequena caixa de metal, girando seus mostradores.
Molly e Rocky tentaram sentar-se. Os olhos dos dois foram atraídos como magnetos para o mastro no topo da torre e o objeto pesado em sua ponta. Uma coisa sólida e ame-açadora — toda preta e branca. Ao mesmo tempo, Primo Cell puxou uma maçaneta. A coisa preta e branca começou a se mexer. Logo, começou sua investida para baixo e, em um segundo, um gigantesco corvo de metal com asas abertas em vôo estava avançando em direção a eles.
Voou por cima deles, uma ave de rapina compacta e mortal, o bico grosso, como es-pada, e o corpo opressivo arremessando-se sobre o banco de ferro. Com os olhos, Molly acompanhou seu vôo. Na ponta do mastro comprido, a ave seguiu até o outro lado do teto da galeria, onde pairou como se seu peso tivesse sido deslocado. Depois, quando a gravidade a puxou para baixo, começou sua descida de volta, mirando o banco. Sua cauda afiada como guilhotina cortou o ar com um barulho de ruuuuuuuuuuhhh, fazendo uma brisa passar pelos cabelos de Molly.
Que bom que você não é supersticiosa, Molly — disse Rocky —, porque um corvo supostamente significa má sorte.
Lindo, não é? — disse Cell, como se estivesse lhes mostrando um tesouro sem preço. — É meu pêndulo de corvo. Ele pode até marcar o tempo. Pode girar para frente e para trás o dia todo, e tem um relógio na parede lá em cima. Estão vendo? — Olhando orgulhoso para seu monstro, Cell empurrou um botão e, com um ganido parecido com o de uma ave, porém mecânico, o corvo parou em pleno ar. Cell aproximou-se do banco e deu palmadinhas de leve em seu assento de metal.
Aqui, Molly, sente-se aqui.
Molly balançou a cabeça com horror. Sentar no trajeto do corvo assassino era a úl-tima coisa que queria fazer no mundo.
Traga-a aqui — Cell ordenou ao general que, como um cão de caça hipnotizado, le-vantou Molly, carregando-a para o banco. Sinclair segurou firme Rocky. Assim que os pés de Molly estavam sob o assento, dois prendedores de metal envolveram seus torno-zelos.
NÃO — gritou Molly, com raiva. — VOCÊ NÃO PODE ME SENTAR AQUI. VOCÊ ESTÁ COMPLETAMENTE LOUCO! — Ela se debateu furiosa contra os gri-lhões de metal, mas Cell ficou impertubável como alguém que espera a chaleira ferver. Ele observou Sinclair empurrar Rocky, chutando e gritando, para o banco ao lado de Molly. Sinclair verificou se os dois pares de grilhões estavam bem fechados.
Ativada por um controle remoto na mão de Cell, cintos de metal deslizaram como serpentes malignas, saindo por trás dos prisioneiros e se fechando ao redor de suas cin-turas.
Agora, é hora de um pouco de diversão — disse Cell, com uma gargalhada. Molly ergueu os olhos para o horrível pássaro da morte no alto. Ela e Rocky estavam exata-mente no caminho dela.
Você não se atreveria — ela gritou, olhando de Primo para a caixa de controle e para o controle remoto em sua mão criminosa.
Cell puxou a manga de seu terno de cashmere e olhou o relógio de ouro. Depois, ti-rou do bolso o diamante de Molly e o entregou a Sinclair. Como se por entendimento telepático, Sinclair voltou a colocar a corrente e o diamante no pescoço de Molly. Cell apertou alguns botões no controle remoto.
O Senhor Corvo está programado — ele anunciou. — Daqui a cerca de dois minutos e meio, ele atacará outra vez. Quando o fizer... bem, vocês já viram meu príncipe em ação. Com certeza podem imaginar seu peso. Seu bico é tão afiado quanto a... como é mesmo o nome daquela faca de cozinha que vendemos, Sinclair?
Shique Shaque.
Tão afiado quanto uma Shique Shaque, e sua cauda é mortal. Ambos são absoluta-mente afiados e pesados, portanto não precisam se preocupar, seja qual for a ponta que lhes tocar, será rápido.
VOCÊ É LOUCO! — gritou Molly. Ela estava confusa, sem saber por que Sinclair estava pendurando o diamante em seu pescoço, mas incapaz de tirar os olhos da ave assassina.
Você não pode nos retalhar com seu corvo! Que tipo de lunático você é?!
Mas então ela viu a tampa de um dreno no chão e um rolo prateado de mangueira pendurado na parede. Uma imagem de Davina surgiu em sua cabeça. Ela se virou de-sesperadamente para Rocky. O olhar selvagem e amedrontado que ele lhe devolveu era tão intenso quanto o dela. O lábio inferior de Molly tremeu.
— Por favor, Sr. Cell — disse ela, com a voz baixa, rendida. — Por favor, não faça isto conosco. Se nos deixar ir embora, nunca mais o perturbaremos. Por favor. Por favor, não nos deixe sentados aqui quando o pássaro cair.
Primo Cell ignorou-a
Faço uma correção; em dois minutos, o corvo se moverá outra vez. Você, Molly Moon, certamente pode congelar o mundo. Sinclair lhe deu de volta o cristal. Portanto, você na verdade tem mais do que os dois minutos que estou lhe dando para decidir so-bre seu destino. Por quanto tempo você pode parar o mundo? Pessoalmente, eu acho que dez minutos é meu limite. É muito cansativo, não é? Graças a você, eu agora estou fatigado antes do meu almoço, o que é muito irritante. Gosto de estar sempre bem des-cansado quando trabalho. — Cell afrouxou o nó de sua gravata.
Sabe, Molly, é estranho como você nunca percebeu que os cristais são essenciais para parar o tempo. Você não reparou como ele fica gelado quando é usado? Não sabia que o diamante não é um condutor de calor? Não ensinam nada na escola hoje em dia? — Cell desabotoou o colarinho e, debaixo da camisa, puxou uma fina corrente de prata. Nela estava um enorme cristal claro que refletia e refratava a luz branca da câmara de tortura, irradiando como uma saudação sinistra.
Mostre-lhes o seu — ele ordenou a Sinclair. Sinclair tinha uma fita de couro em volta do pescoço, no qual havia outra grande pedra brilhante.
Agora — disse Cell, arrumando a camisa —, eu adoraria conversar sobre tudo isso, mas realmente devo voltar aos meus convidados. Talvez em outro momento... Ah, me esqueci que você já não estará aqui. — Primo olhou para os drenos. — Que desperdício. De qualquer maneira, Molly, e, ééé... acho que não aprendi o nome de seu amigo... te-nham bons onze minutos. Bon Voyage.
Quando Cell levantou a mão para lhe acenar adeus, Molly reuniu toda a sua força para concentrar poder hipnótico total em seus olhos, levantando-os para Primo Cell. Seu olhar transportou-se pelo ar e o atingiu no rosto. O impacto quase o fez cair para trás.
— Ora, ora, Molly! Eu estava esperando alguma coisa, mas não exatamente isto! — Então ele se virou para sair, repetindo: — Que desperdício.
Fez um sinal para seu filho e o general o seguirem e começaram a subir as escadas. Molly escutou-o dizer:
— Sinclair, esta escada é bonita, mas é irritante para subir. Lembre-me de mandar instalar um elevador.
Capítulo Vinte e Oito
Molly e Rocky estavam sentados rígidos no banco da morte, com os grilhões de ferro em volta dos tornozelos e as cruéis correias de aço segurando firme o corpo. Rocky podia sentir seu peito se apertar. Molly inclinou-se para a frente para ver se conseguiria ficar abaixo do ponto onde o bico do corvo passaria.
É inútil, não posso sair da linha de fogo. — Ela olhou o odioso instrumento da morte com terror. — Rocky, não quero que cortem pedaços de minha coluna. M-mas, mas se ficarmos sentados retos, seremos triturados pelo pássaro.
O bico vai me acertar — disse Rocky, sua voz arfando como se estivesse com asma. — Eu vi por onde ele vem. Vai me trespassar como um espeto... depois as asas vão nos rasgar de cima a baixo. E quando ele voltar, a cauda vai cortar fora nossas cabeças. — Desesperadamente, ele começou a puxar o cinto de metal.
Oh, Rocky! Oh, por favor, alguém... Socorro! — Molly gritou o mais alto que pôde, inutilmente tentando se libertar. — Isto não pode estar acontecendo. Ele está só queren-do nos assustar. Ele voltará. Tenho certeza de que voltará. Ele não pode querer nos... nos....
Nos matar?
Ah, não acredito, Rocky! — arfou Molly. — Ele vai nos matar... Como matou Davi-na. — Molly gritou mais alto do que jamais gritou em sua vida. — SOCORRO! SO-CORRO! ALGUÉM! AJUDE!
Rocky pegou a mão de Molly.
— Os dois minutos estão quase no fim.
Molly parou. Apesar de seu pânico, ela notou como ele estava quieto e calmo.
Ninguém pode nos escutar, não é? — Rocky balançou a cabeça. Tinha lágrimas nos olhos.
Sinto muito, Molly.
Mas deve ter algo que a gente possa fazer — implorou Molly. — Nós temos que ser capazes de quebrar essas coisas... — Todos seus poderes hipnóticos pareciam inúteis. — Isso não pode acabar assim.
De repente, o corvo soltou um guincho assustador. Molly quase desmaiou de medo.
Você pode parar o mundo agora — disse Rocky. — E nos dar um pouco mais de tempo.
É — Molly arquejou. — Claro, claro... sim — Molly olhou para o dreno ao lado de-les e pôs toda a sua mente em foco agudo. Ela só dispunha de poucos segundos. De uma parte de sua mente, uma vozinha gritava, «De que adianta, Molly? O corvo vai acabar acertando vocês». Molly ignorou-a. Com velocidade de um raio, atingiu a sensação de fusão fria. E enquanto ela atravessava seu corpo, Molly sentiu o pássaro começar seu ataque. Viu-o chegando. Com um esforço maciço, levou a sensação de frio a seu auge. Em uma fração de segundo, o pássaro estava sobre eles e, no entanto, não completamen-te. No momento exato, o mundo parou. Trêmula, Molly olhou para cima. O bico do corvo estava apenas a poucos centímetros do pescoço de Rocky. Os olhos dele ainda estavam fechados. Uma das asas estava a pouco mais de um metro do peito de Molly. Ela pôs a mão no ombro de Rocky e, assim como tinha visto Primo Cell ressuscitar o general, enviou a sensação de fusão para Rocky através de seu braço. Rocky abriu os olhos, instintivamente se esticando para evitar o bico de picareta.
Está congelado — disse Molly.
Por quanto tempo? — ele respirou com dificuldade. — Ele vai me abrir ao meio. E como é que estou me mexendo?
Molly segurou a sensação de congelamento dentro dela com mais determinação do que jamais segurara alguma coisa em toda a sua vida.
— Enquanto você estiver me tocando, não ficará congelado — ela lhe disse. — E o corvo ficará parado pelo tempo que eu conseguir mantê-lo assim.
Em algum lugar na casa acima deles, Molly podia sentir Sinclair e Primo Cell resis-tindo ao congelamento. Pensou na irritação de Cell por não poder continuar se exibindo para algum convidado no seu almoço. Teria deixado alguma frase incompleta, e teria que se lembrar do que e como exatamente a estava dizendo, quando o tempo começasse de novo, e se lembrar precisamente em que posição estava antes.
Quando o mundo se movesse de novo... se movesse, Molly e Rocky morreriam. Molly olhou para a máquina assassina branca e preta a sua frente. O mundo tinha mesmo que começar de novo? Claro que tinha.
Rocky tocou a ponta do bico do corvo.
Quantas pessoas esse corvo já matou antes de nós? — Os olhos de metal do pássaro olhavam vazios para eles.
O que podemos fazer? — perguntou Molly. — Quero dizer, se esses são... sabe como é... nossos últimos momentos de vida. — Sentiu vontade de chorar.
Acho que deveríamos estar curtindo — disse Rocky. — Se vamos mesmo morrer, deveríamos tentar. Quer dizer, quando acontecer, Molly, vai ser tão rápido que acho que não vamos sentir nada. Vamos morrer instantaneamente. Portanto, vamos tentar ficar felizes agora.
O que, você quer dizer ficar contando piada um para o outro? — disse Molly, um grande caroço na garganta provocando uma dor no alto de sua nuca. — Ou devemos ficar lembrando dos velhos tempos. — Ela respirou fundo várias vezes. Era preciso uma enorme concentração para conversar e, ao mesmo tempo, manter o mundo parado.
Não há nenhuma obrigação de nada — disse Rocky. Depois, continuou: — Cell não nos deu sequer o direito de um último pedido, como nos filmes. E estamos em Hol-lywood. Isso é que é ser mau.
Molly olhou para o amigo. Rocky parecia realmente estar tentando se alegrar. Quase conseguiu fazê-la sorrir.
O que você teria pedido?
Meu violão. Assim talvez eu fosse capaz de usar minha voz e hipnotizá-lo com uma música. E você?
Um revólver.
Molly sentiu que o mundo parado parecia um daqueles bonecos de mola dentro de uma caixinha pronto para saltar fora, tentando forçá-la a deixá-lo se movimentar outra vez. Ela o forçou a se submeter. Isso a fez se sentir gelada, completamente gelada. Ela gemeu.
Está tudo bem? — perguntou Rocky.
Estou ficando um pouco cansada.
Foi muito bom você ter sido deixada no orfanato anos atrás — disse Rocky de re-pente.
Você também. — Molly sabia que essa conversa ia fazê-la sofrer mais profunda-mente do que jamais sofrera antes. — Rocky, toda a minha vida eu quis saber quem eram meus pais. Agora, estou feliz por não saber. Estou feliz por ser uma órfã, porque, se não fosse, não teria conhecido você, Rocky. Você é o melhor amigo que alguém poderia ter. E é também o melhor cantor, suas músicas são geniais. O mundo teria adorado conhecê-las se... Rocky, como você acha que é a morte?
Acho que é como dormir, mas sem os sonhos. Um sono profundo onde você não pensa nem sente nada.
Para sempre?
Para sempre seria um segundo passando, porque você estaria dormindo.
Você acha que a gente nunca acorda outra vez?
Não acho que acordamos, não. Acho que nós... nossos espíritos chamados Molly e Rocky estarão dormindo para sempre e nós nem mesmo saberemos disso. Mas talvez a energia que sai de nós quando morremos, a energia que não tem sentimentos nem pen-samentos, talvez isso vá para outro lugar. Como uma bateria. A energia que era a força que nos fazia viver pode esperar até ser ligada em outra coisa. No que você gostaria que a energia de sua bateria fosse usada depois, Molly?
— Nos filhotes de Petula, se ela chegar a tê-los. Rocky alisou a mão de Molly.
Você não deve ter medo de morrer, Molly.
Mas como você sabe tudo isso?
É nisso que eu acredito — disse Rocky. — É só bom senso. Nunca fui muito bom em religião. As religiões têm belas músicas, isso é verdade, e prédios bacanas, mas parece que as religiões fazem as pessoas brigarem demais. Se você trata as pessoas e os animais ao seu redor tão bem quanto pode, acho que é religião suficiente. Você não acha?
Você acha que nós dois tratamos bem as pessoas e os animais bem o suficiente? — perguntou Molly.
— Nós não somos perfeitos, mas você é um encanto, Molly.
Você também... Mas, se tudo morre e vai para um lugar como o sono, qual é o senti-do da vida, afinal?
É como perguntar qual o sentido de um pôr-do-sol bonito, ou de uma sinfonia fan-tástica.
Qual é o sentido dessas coisas, então?
E por que têm que ter um sentido? — perguntou Rocky.
— Talvez tenha um sentido por trás de tudo — disse Molly. — Talvez a gente vá descobrir que sentido é esse.
Molly tremia incontrolavelmente. Sentiu sua força escorregar enquanto o mundo pressionava para que ela o deixasse se movimentar de novo. A pressão de todos os tri-lhões de pessoas e animais e insetos e plantas e máquinas do mundo estava tentando irromper e continuar, seguir adiante. Molly imaginou a imobilidade do mundo todo. Pessoas no meio de uma piada, rindo, mas sem que nenhum ruído saísse da boca. Pes-soas no meio de uma briga, os punhos fechados congelados no ar. Sempre houve guerras no mundo. Balas devem ter ficado paradas no ar, e bombas que tinham acabado de serem detonadas. As coisas violentas eram muito horríveis para Molly pensar nelas. Ela pensou nas coisas boas. Uma criança dando seus primeiros passos. Uma pessoa em um hospital saindo de um coma. Talvez em algum lugar uma pessoa estivesse começando a escrever o número que ganharia o prêmio da loteria. Bebês estavam nascendo, pessoas estavam vencendo corridas, inventores e artistas estavam, nesse momento, tendo suas idéias. Alguns cientistas, neste exato momento, podiam estar descobrindo algo realmen-te importante. E todas essas pessoas e coisas desejavam continuar seu movimento. Molly rangeu os dentes. A cada minuto que passava, a pressão tornava-se mais difícil de suportar. Sabia que já não conseguiria conversar. Oito minutos tinham se passado.
Ela olhou com ódio o pássaro de metal a sua frente, desprezando-o, desejando que ele pudesse simplesmente desaparecer. Sentia-se enjoada e cada vez mais fraca. Seu pé molhado, de quando o mergulhara na água das flores, parecia estar em fogo com o frio. Molly segurou o mundo parado por mais quatro minutos. Depois por mais quatro.
Ela o segurava tão apertado que pensou que pudesse se despedaçar.
Ela estava se segurando na borda de um penhasco, pendurada sobre um precipício, vendo abaixo um desfiladeiro, que era a morte. Rocky parecia estar pendurado em suas pernas, e agora só as pontas dos seus dedos ainda seguravam a borda. Suas unhas raspa-vam a superfície da pedra, tentando encontrar onde agarrar, mas deslizando, deslizando.
— Não posso mais segurar — murmurou. — Estou tão, tão, tão gelada.
Então, ela fechou os olhos e sentiu a gravidade puxá-la para baixo no abismo, en-quanto o tempo a engolia.
Capítulo Vinte e Nove
N
aquela noite, Cell jantou com todos os convidados hospedados em sua casa. Sempre se divertia na companhia deles e, com freqüência, fazia-lhe bem lembrar o quanto era poderoso.
Sentaram-se todos ao redor de sua grande mesa de jantar, tendo à frente conjuntos sofisticados de taças de cristal e talheres de ouro puro, e ele escutava cada um falar de como havia passado o dia.
Gloria Tiammo estava entusiasmada porque Gino Pucci, o diretor do filme que ela passara o ano todo fazendo, tinha encontrado um substituto para o papel do cachorro.
— Sabe, Primo, eu lhe contei como o primeeiro cachorro teve um ataaaque cardíaco? Nós não sabíamos cooomo iríamos encontrar outro tão charmoooso. Eu não podia deixar nenhum dos meus adoraveizinhos ficar com o papel, porque os outros nove iam morrerrr de ciúmes. E agora, Gino encontrou um cachorriiiinho simplesmente fabuloooso para fazer o papel. Um minibuldogue! Vamos refilmar todas as cenas com ele na próxima semana. E o filme vai ficar pronto no comeciiinho de novembro.
Primo enfiou sua colher no ouriço-do-mar cru a sua frente. Tirou seu miolo salgado e o colocou na boca.
— Está ótimo — disse.
Hercules Pedreira olhou para seu prato e franziu a testa.
Não posso comer isso — disse, com uma careta. Como um passe de mágica, seu garçom pessoal apareceu a seu lado. — Pensei que tivesse dito ao chef como quero meus burgers. O queijo por cima da carne, e os pepininhos, entre o tomate e a alface, não em cima da alface. A mostarda vai debaixo da carne, não por cima, e a maionese entre os pepininhos e o tomate.
Sinto muito, senhor — disse o garçom —, mas é muito difícil para o chef se lembrar, pois essa ordem muda o tempo todo.
Não vou comer isto — insistiu Hercules Pedreira, e, como uma criança mimada, vi-rou seu prato na mesa.
Oh, que nojo! — disse Suky Champanhe, do outro lado. — Agora, não vou conse-guir digerir minha salada.
Cosmo Ás foi mais simpático. -
— Não se preocupe, Herc.
Mas Rei Moose, que estava sentado perto de Suky, tirou da sua frente o candelabro de oito velas para poder olhar Hercule Pedreira no olho.
— Tô avisando, Pedreira — ele rosnou. — Mais um comportamento desses e lhe dou um sanduíche de sopapo para o jantar. E sem maionese, nem picles, nem mostarda. Só como é... e vai arrancar de sua boca todos esses seus lindos dentes e daí em diante você só vai poder tomar sopa.
Tente que você vai ver, Moose. Vou te processar — disse Hercules, dobrando os bí-ceps.
Se o assunto é comida, Moose — disse Tony Uam, a estrela do caratê —, o que você acharia de experimentar um de meus espetinhos?
Primo, por favor, faça-os parar. Odeio quando eles brigam — queixou-se Suky.
Basta! — disse Primo Cell. E imediatamente todos os astros da sala baixaram a ca-beça, obedientes. Sinclair Cell chegou e se desculpou por estar atrasado.
Outra briga? — perguntou.
Não foi muito feia desta vez — disse Cell.
Depois do jantar, todos se retiraram para o cine-teatro, no andar de baixo. A grande tela tinha sido desmontada e no espaço atrás havia um palco, com as cortinas fechadas. No palco, um homem de gravata branca e fraque sentava-se à frente de um grande piano.
Todos se sentaram, sabendo exatamente que diversão os aguardava. Era um espetá-culo sobre o qual nunca falavam.
Cell sentou-se em sua poltrona. Esta era sua parte favorita do dia. Bateu palmas e as luzes se apagaram, dando lugar a dois holofotes brancos que brilharam na cortina do palco. O pianista começou a tocar a música favorita de Cell. E então, a estrela entrou.
Davina Nutell saiu dos bastidores. Parecia mais magra e mais cansada do que a Da-vina nas fotos das revistas. Um segurança estava ao seu lado, duro como um soldado de lata.
Ela olhou de modo feroz para o auditório escuro.
— Não vou cantar — disse, desafiadora.
Cell olhou-a e suspirou profundamente. Pela centésima vez, perguntou-se o que havia em Davina que desafiava seu poder hipnótico. Quando tentou hipnotizá-la, ela escapara de seu magnestimo como um lagarto escapando de uma rede. Embora tivesse ficado perplexo, Cell não ficou chateado. Porque havia uma parte em Davina que o enchia de admiração. Ele tinha descoberto que, mais do que qualquer outra coisa, a voz dela tinha o poder de fazê-lo se sentir bem. Por quê, ele não sabia. A voz de Davina tornara-se uma droga tranqüilizante para ele e, agora, não podia passar sem ela.
— Oh, querida — respondeu a voz sedosa de Cell. — Você acha realmente que po-de agüentar outro dia de ouriços-do-mar de café da manhã, almoço e jantar? Você sabe o quanto os detesta. Pense nas outras coisas que poderiam estar no menu. Temos um novo chef maravilhoso que faz um bolo de chocolate delicioso e biscoitinhos caseiros de manteiga escocesa.
Por um momento, os lábios de Davina tremeram. Então, ela bateu o pé.
Eu não sou um rouxinol na gaiola, Cell. Não vou cantar toda hora que você quiser. Não faço isso de graça. E especialmente não farei isso por você. EU ODEIO VOCÊ.
Vamos, vamos, Davina. Uma canção é tudo que eu peço. Depois, você pode viver como uma princesa outra vez. Pode tomar um belo banho com todos aqueles óleos exó-ticos. E pode lavar o cabelo. — Davina olhou para o auditório escuro, os olhos cinza e redondos. Balançou a cabeça, furiosa. Mas sabia que estava vencida.
Está bem, está bem, vou cantar.
Com isso, o pianista recomeçou seu acorde.
Cell inclinou-se para trás. A canção que Davina estava prestes a cantar era a única coisa que alguma vez o fez sentir alguma emoção. Talvez, pensou, sua mãe a cantasse para ele, quando bebê. Não sabia por que essa canção produzia tais sentimentos nele, mas era isso que ela fazia. Sentimentos de arrependimento e saudade. E quando era can-tada por essa menina, por alguma razão tornava-se dez vezes mais poderosa. Davina não era uma criança agradável, mas isso não tinha importância. Ela fazia Cell se lembrar de alguma coisa que tinha perdido. Sua infância, talvez.
A voz pura de Davina cortou o ar como uma brisa suave de primavera.
Estar numa ilha no oceano
Pode parecer liberdade.
Estar numa praia de areia dourada
Pode parecer felicidade.
Parece o paraíso
Mas não é
Oh, não é.
Um bilhão de ondas do mar profundo
Separam você de mim.
Só você pode fazer de meu mundo
Um paraíso sem fim.
Cell suspirou. E Davina continou seu canto sob a luz de prata.
Capítulo Trinta
A
luz era branca como a luz do céu. Molly abriu os olhos e, ao olhar a seu redor, teve um choque. Estava em um lugar completamente diferente do lugar onde estava segundos antes. E soube imediatamente que se sentia de modo completamente diferente.
Não se sentia exausta, congelada, desesperada e pronta para morrer. Sentia-se des-cansada, quente e calma, como se tivesse deixado os estresses e esforços da vida para trás. Sentia-se como se estivesse no paraíso. Seus pés estavam sem sapatos e secos.
Ela já não estava presa no banco de ferro com o corvo assassino a poucos centímetros de distância. Em vez disso, estava sentada em uma velha cadeira, em uma velha cabana de madeira por onde passava uma brisa suave, aquecida pelo sol. Do lado de fora, podia ver um banco velho, pintado de branco, descascando. Mais à frente, um quebra-mar e o azul do oceano.
Rocky estava sentado em uma cadeira a seu lado, também olhando para o mar. Por um momento, os dois ficaram sentados sem se mexerem, escutando o bater distante das pequenas ondas e os gritos das gaivotas.
— Rocky — disse Molly —, estamos mortos. Estamos no céu.
Ela olhou ao seu redor, o quarto branco. Havia duas camas, cada uma com um par de lençóis, um cobertor e um travesseiro. A sua direita havia uma cozinha pequena e, à esquerda, uma porta dando para um banheiro minúsculo. Um violão estava pendurado na parede.
Não me lembro do pássaro nos atingindo — disse Rocky. — Não deveríamos nos lembrar do momento em que o golpe nos matou? Um segundo da dor?
Talvez tenhamos morrido antes da mensagem da dor chegar ao nosso cérebro.
Molly olhou para duas cadeiras perto da parede à sua frente. Algumas roupas esta-vam dependuradas ali. Roupas desbotadas, rasgadas. Debaixo de uma das cadeiras, viu seus tênis. Estavam diferentes — estavam surrados. E sua camiseta tinha um rasgão. Molly levantou-se e, sentindo-se muito irreal, como se estivesse andando no ar, foi até lá e pegou seus jeans. Eles tinham sido cortados até a altura dos joelhos e estavam des-fiados. Será que o céu era um lugar onde você ficava com as roupas com as quais tinha morrido?
— Poxa, Molly, você está tão morena — disse Rocky. — Olha a cor das suas per-nas.
Molly olhou. Em vez de branqueias, as pernas estavam bronzeadas.
Rocky também olhou para as dele.
— Nunca fiquei tão moreno assim antes.
— Nós devemos estar mor... — Molly achou difícil dizer a palavra — ....há muito tempo.
Ela pegou a camiseta de Rocky. Não tinha sinais de morte, de sangue. Estava, agora, com um tom alaranjado desbotado, e suas mangas tinham sido cortadas.
Rocky aproximou-se da porta aberta da cabana. Fora, havia um balcão de madeira desconjuntado com uma cerca em volta. Degraus desciam para um trapiche descolorido pelo sol. Poucos metros adiante, ele terminava. Depois, não havia nada exceto o mar, suas ondas como embalagem de ovo, e o horizonte ao longe com o sol brilhando sobre ele. Molly juntou-se a Rocky e pegou uma grande concha madrepérola no balcão.
Tudo parece tão familiar — ela disse. Lambeu os lábios e provou o ar salgado.
Como se já tivéssemos estado aqui antes — concordou Rocky. Nesse momento, Pe-tula apareceu, vindo de um canto da cabana.
Oh, Petula! — Molly ajoelhou-se e abraçou Petula, mergulhando o rosto em seu pêlo. Momentos antes, havia pensado que nunca mais veria Petula de novo. Petula abanou o rabo e deu uma lambida amiga no rosto de Molly.
Petula deve ter morrido também — refletiu Molly. — Mas espera um minuto. Não me sinto morta de jeito nenhum. Só sinto que já estamos aqui há....
— Há séculos — Rocky completou.
Porque eu conheço esse trapiche. Eu sei exatamente de onde pular dele... — disse Molly, franzindo a testa.
E esta concha que você está segurando — disse Rocky. — Parece que fui eu quem a achou, mas não consigo lembrar como. — Rocky e Molly olharam um para o outro.
A cabana parecia estar no fundo de um penhasco escarpado. Havia uma caverna, mas sem acesso visível por terra. O rochedo continuava por quilômetros. Podiam estar em qualquer lugar do mundo, Molly pensou. Não havia absolutamente nenhuma pista que lhes dissesse onde, exceto a temperatura balsâmica.
Estamos aqui há séculos sem perceber — disse Molly. — Parece que algum tipo de furacão do tempo nos arremessou aqui.
Eu acho que fomos hipnotizados — disse Rocky.
Uma gaivota deu um grito estridente acima deles. Ao mesmo tempo, veio um baru-lho de um dos lados da cabana. Virando-se, Molly e Rocky viram um homem louro, usando um jogging, vindo em direção a eles. Trazia dois copos cheios nas mãos. Era Sinclair Cell.
— Um Qube para você — ele disse a Rocky. — E para você, Molly, um concentra-do de romã com gelo.
Molly achou que seus sentimentos estavam em uma máquina de lavar roupa. Primei-ro, ela havia pensado que estava morta, depois sentiu alívio por não estar, depois o es-panto havia dominado e agora estava muito assustada. Esse homem queria que ela mor-resse. Devia ter vindo para matá-la. Deu um passo atrás, calculando se teriam chance de escapar pulando no mar. Olhou para os drinques nas mãos dele. Será que ele estava pen-sando em envenenar Rocky e ela ao mesmo tempo?
Então seu cérebro em choque pareceu deslocar-se quando percebeu que ele não a matara antes — eles não tinham sido destroçados pelo corvo. E sentiu uma raiva feroz ao compreender que Sinclair os hipnotizara. O ultraje a dominou. Como um camaleão mudando de cor, o humor de Molly passou do medo para a fúria.
— Então você esteve se intrometendo em nossos cérebros, não é? — ela disparou. — Nos tratou como coelhos enjaulados e nos fez lhe contar tudo que queria saber sobre a nossa vida. Há quanto tempo estamos sendo suas cobaias? Duas semanas? Três?
Sinclair pôs os drinques em uma velha mesa de madeira.
— Nossa, bem que imaginei que você podia reagir assim — ele disse, gentil. — Molly, eu salvei a vida de vocês.
Mas Molly estava furiosa. E não sabia como Sinclair ousava tentar ser amigo deles.
— Ainda que tenha salvo a vida de uma pessoa, isso não lhe dá o direito de ficar esquadrinhando seu cérebro.
Sinclair balançou a cabeça.
Não fiz isso.
Você acha que acreditamos em você? — Molly olhou-o com desprezo. — Bom, eu sei o que você fez. Você trocou a vida da gente, não foi?
Sinclair olhou para seus pés.
— Há quantas semanas? — perguntou Molly. Sinclair esfregou a ponta do sapato em uma concha. Ele
temia esse momento.
— Sete meses e meio — disse, calmo.
Molly ficou atônita. Contou os meses na cabeça. Isso significava que ela e Rocky ti-nham vivido sem suas identidades desde meados de março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro e outubro.
Que dia é hoje? — ela perguntou num sussurro. Sinclair lhe disse.
Três de novembro.
Nossa! — exclamou Rocky.
E o que aconteceu com os outros? — gritou Molly. — A Sra. Brinklebury, Gemma, Gerry e todos os outros do orfanato? Onde eles estão?
Todos estão bem. Estão vivendo em Malibu. Aluguei uma casa bem grande para eles no litoral. Os outros voltaram para Briersville. Estão ótimos, eu prometo.
Então, Molly explodiu.
— Você promete? Quem é você para prometer qualquer coisa para a gente? Você acha que vamos confiar em você depois de nos tirar sete meses e meio de vida? Você acha que é Deus ou coisa parecida? Você está louco. Vamos, Rocky. Vamos embora. Deve ter algum jeito de sair daqui.
Ela deu largas passadas na direção de onde Sinclair tinha vindo. Rocky balançou sua cabeça, desgostoso, cuspiu nos pés de Sinclair e seguiu atrás.
— Lamento, Molly e Rocky — desculpou-se Sinclair —, mas vocês têm que me escutar. Antes de mais nada, vou lhes dar de volta suas memórias.
Sinclair bateu palmas e disse, com firmeza:
— Lembrem-se.
Foi como se barreiras contra enchente nos cérebros de Molly e Rocky tivessem sido varridas. Meses e meses cheios de lembranças do verão fluíram por seus cérebros, fa-zendo cócegas em suas sinapses com visões, sons, cheiros e sentimentos dos dias vividos à beira-mar.
Lembranças de pescar peixes e cozinhá-los em fogueiras ao ar livre, de Rocky to-cando violão, dos dois lendo livros, catando conchas, nadando, mergulhando, surfando. De Rocky perdendo uma unha do pé, dos dois soltando pipa, pintando, escrevendo, jogando galhos para Petula pegar, sentando ao redor de fogueiras à noite, cantando, a-prendendo a falar uma nova língua.
Hemos aprendido a hablar Español? Aprendemos a falar espanhol? — perguntou Rocky.
Si — respondeu Sinclair. — Achei que vocês podiam aproveitar para aprender uma língua — explicou.
Molly descobriu inúmeras lembranças encantadoras de Sinclair durante todo o verão — não o filho preguiçoso, fútil e criminoso de Primo Cell, mas um amigo. Olhou para o rosto familiar, o cabelo comprido caindo nos ombros e seus simpáticos olhos azuis e se sentiu confusa.
Mas por quê? — ela perguntou. — Por que nos manteve hipnotizados?
Porque vocês não teriam ficado aqui — respondeu Sinclair.
E se não tivéssemos ficado? — começou Molly. — Nós é que devemos decidir o que fazer da nossa vida. Não você. E mesmo que a gente tenha passado um verão maravi-lhoso, não foi escolha nossa. Essa é a questão, Sinclair. Você deveria ter nos deixado escolher por nós mesmos.
Eu não poderia arriscar.
Por quê?
Por dois motivos. Um, eu não sabia se vocês iriam desistir de enfrentar Primo. Da próxima vez que ele pegasse vocês, ia se certificar de matá-los. Dois, havia o problema da minha própria segurança. Primo me mataria se soubesse que o traí e que vocês dois estavam vivos.
Então, como foi que você nos salvou? — perguntou Molly, calma. Estava começan-do a sentir que podia confiar em Sinclair.
Do alto da escada, vi você segurando o mundo — ele disse. — Eu não podia despro-gramar o pássaro porque só Primo sabe o código. Esperei até você ficar cada vez mais cansada, até quase desistir, e justo antes que isso acontecesse, tomei seu lugar e também parei o mundo.
— Então, havia dois de nós, você e eu congelando o mundo?
— Sim. Enfim, você desmaiou, e congelou, e é claro que Rocky congelou com você — explicou Sinclar. — Quando você desmaiou, o mundo não começou a girar de novo porque eu o estava mantendo parado. O corvo não golpeou vocês porque eu o estava segurando. Então, imediatamente os soltei, e Earl e eu — ele apontou para seu guarda-costas — tiramos vocês dali. E viemos direto para cá, para essa cabana.
— Não ficou com medo de Cell pegar você?
Um pouco. Mas ele achou que eu estava limpando a sujeira. Lavando o sangue com a mangueira e me livrando dos corpos. — Imediamente, ficou enjoado. — Nunca tive que limpar aquela câmara do corvo. Primo usava pessoas hipnotizadas para fazer isso. — Sinclair sentou-se na cadeira de madeira e abaixou a voz. — Sem dúvida, ele matou outras pessoas ali. Não sei quantas.
Ele mata todo mundo que representa uma ameaça? — perguntou Rocky.
Não — respondeu Sinclair. — A maioria das pessoas apenas desaparece. Primo tira a identidade delas, certificando-se de que jamais saibam de novo quem eram. Transforma essas pessoas em almas perdidas que escutam vozes na cabeça. Depois, larga-as em lugares distantes.
— Como se fossem lixo.
— Sim. Ninguém nunca saberá quem eles são, menos ainda eles mesmos.
Sinclair mexeu-se com desconforto; era óbvio que não estava gostando da conversa. Mas Molly tinha muitas questões a esclarecer.
Você nunca tentou salvá-las?
Já, mas Primo nunca me envolvia na remoção das identidades e, portanto, era difícil ajudar. Não sei de quantas pessoas ele se livrou. Para ser honesto, houve alguns que eu talvez tivesse sido capaz de ajudar, mas não tive coragem. Me odeio por isso. Mas, ve-jam, eu não sou um herói. Sou fraco.
Você nos salvou — disse Molly. — Isso foi de grande coragem. Mas por que você não procurou a polícia?
Molly, Primo controla a polícia de Los Angeles. Ele praticamente controla toda a força policial americana. Você não tem idéia de como ele é poderoso. O mesmo quanto aos jornais. A maioria dos editores está sob seu domínio. Se eu fosse a algum repórter e lhe contasse tudo, assim que tentasse publicar a matéria, Primo o neutralizaria. E depois viria atrás de mim.
Você não poderia desipnotizar algumas das vítimas dele? — sugeriu Rocky. Você também pode parar o mundo. Poderia pará-lo de novo e desipnotizá-los.
Parece fácil — disse Sinclair. — O que você não sabe é que Primo usa uma senha secreta especial. É isso que tranca completamente a hipnose dele.
Senhas? — disse Molly.
Sim. Essas são as verdadeiras chaves. Sem essas senhas, as vítimas não podem ser libertadas. Eu não sei quais são as senhas de Primo.
Então por que você finalmente nos despertou? — perguntou Molly.
Porque eu preciso da ajuda de vocês. Desde aquela experiência penosa que tiveram na câmara do corvo, outra coisa aconteceu. Primo ficou muito mais perigoso. O tempo está se esgotando.
É sobre o Dia E, não é? — perguntou Rocky. — Deve estar se aproximando.
Sim.
O que isso significa? — perguntou Molly.
Vocês não sabem?
Não — eles disseram em uníssono.
O Dia E é o Dia da Eleição. — Sinclair olhou para as expressões indagadoras de Molly e Rocky. — Primo pretende se tornar o próximo presidente dos Estados Unidos.
Mas ele não pode — Molly disse, incrédula. — Para ser presidente você precisa do apoio de centenas de pessoas, tem que estar na direção de todo um partido político, tem que ter sido um político no Congresso durante anos.
Não é assim. Qualquer um pode ser presidente — disse Sinclair —, desde que tenha nascido nos Estados Unidos e não tenha antecedentes criminosos. Hoje é o dia 3 de no-vembro e Primo só começou sua campanha em junho, tarde, na verdade, mas de maneira brilhante.
Sinclair continuou lhes contando sobre a campanha de verão de "Cell para Presiden-te". Primo despejou milhões e milhões de dólares nessa campanha, aparecendo como um candidato independente, o que significava que não tinha que pertencer a nenhum partido político. A campanha abarcou os Estados Unidos amplamente e foi tão intensa e pródiga que nenhum cidadão do país poderia deixar de conhecê-lo. Cartazes de "Cell para Presidente" estavam em milhares de paredes. Balões de ar quente com "Cell para Presidente" flutuaram sobre cidades e povoados. Ele tinha ido a todos os estados, e alu-gado estádios onde o público tinha o prazer de assistir ao espetáculo de suas celebrida-des favoritas fazendo discursos. Os astros hipnotizados por Cell falaram de como a vida seria melhor com ele como presidente, e por que votariam nele. Em cada eleitorado, Cell tinha feito um discurso, com seu rosto filmado e projetado de maneira a aparecer ampliado em telas gigantescas. É claro que todos que olhavam a tela eram hipnotizados por ele.
O esplendor e o poder de sua campanha tinham eclipsado completamente a de Gan-dolli e a de todos os outros candidatos.
O desejo de ter Cell como presidente espalhou-se como uma doença altamente con-tagiosa. "Almas Americanas e Células Americanas Precisam da América de Cell."
— Você está falando como se o dia da eleição já tivesse acontecido — observou Rocky.
Sinclair mudou de posição e olhou para os pés.
Já aconteceu.
Já aconteceu? — Molly gritou tão alto que Petula latiu. — E como foi? Ele ganhou?
Sinclair evitou os olhos dela. Jogou-lhe um jornal. Primo Cell Ganha a Corrida Presidencial, dizia a manchete.
— Foi uma vitória arrasadora — murmurou Sinclair. — O Dia da Eleição sempre cai na primeira terçafeira de novembro. Isso foi ontem. Dia 2 de novembro. Este é o jornal de hoje.
Por um momento, houve um silêncio. Então, a língua e o cérebro de Molly se conec-taram.
— Você é louco, Sinclair? Por que esperou tanto tempo para nos despertar? Poderí-amos ter sabotado a campanha, poderíamos ter tentando descobrir suas senhas, poderí-amos ter feito alguma coisa, mas em vez disso você nos deixou aqui. Você é idiota ou coisa parecida? — Molly fez uma pausa. —
Desculpa, Sinclair. É só que me parece que você esperou tempo demais, demais para nos despertar.
— Eu não poderia correr o risco. Meu pai pensava que vocês estavam mortos e foi isso que os manteve a salvo — disse Sinclair. — Mas hoje.... depois de sua vitória... — a voz de Sinclair tremeu. — Eu tinha a esperança maluca de que ele não ganhasse. Mas, claro, ele ganhou. Agora é o homem mais perigoso do planeta.
Molly pensou em Cell como uma enorme criatura de lodo, com tentáculos escorre-gadios alcançando todos os países do mundo.
— Por que ele quer ser tão poderoso? — ela perguntou.
— Porque está louco — disse Sinclair. — Eu não sei. Molly de repente sentiu pena de Sinclair. Devia ser muito
difícil para ele trair seu próprio pai. Também pensou que ele devia ser uma boa pes-soa. Afinal, em sua corrida até o topo, Cell levaria o filho com ele, mas Sinclair não queria aquela carona. Preocupava-se mais com as outras pessoas do que consigo mesmo.
Oh, isso não podia ter acontecido — lamentou Molly. — Não é justo. Para Cell, tudo está dando certo. Para nós, tudo está dando errado. — Então, pensando na câmara de tortura do corvo, arrependeu-se de ter dito isso.
Ele ainda não é propriamente presidente — disse Sinclair, um pouco mais animado. Molly e Rocky olharam, perplexos.
Sinclair explicou.
— Ainda há um resto de esperança. No momento, Primo é o "presidente eleito". Tem alguns meses para escolher seus conselheiros e organizar seu governo antes de lhe passarem as rédeas do poder. É assim que funciona sempre. Ele ainda não é exatamente o presidente até fazer seu juramento no dia 10 de janeiro. Ainda temos tempo de fazê-lo cair do cavalo.
A segurança pessoal de Cell agora vai dobrar, ou triplicar — disse Rocky.
Mas eu sou seu filho, e ele confia em mim — disse Sinclair. — Pelo menos, até o momento ele confia. E não sabe que você está viva, Molly, portanto temos um ás na manga.
Molly estava começando a achar que Sinclair era tão louco quanto Primo Cell. O fato de o hipnotizador sinistro se tornar presidente dos Estados Unidos era mais do que sua cabeça podia agüentar. O que ela, uma criança, poderia fazer a respeito?
Não posso ajudá-lo, Sinclair. Lembre-se do que aconteceu quando eu tentei antes. Não sou a solução mágica para tudo isso.
Você está errada — disse Sinclair. — Há uma janelinha de esperança. Mas não quero falar nisso agora. — Ele deu um pulo, ansioso para mudar de assunto. — Eu lhes conto no carro. — Earl lhe passou um boné de beisebol, um par de óculos escuros e chaves. — E com certeza vocês vão querer saber sobre seu pessoal em Malibu.
Para onde vamos?
De volta a Hollywood. Tem um pessoal especial que quero lhes apresentar.
Capítulo Trinta e Um
A
caverna no rochedo atrás da cabana era impressionante. Sinclair Cell e Earl conduziram Molly, Petula e Rocky por uma trilha estreita até a caverna espaçosa, iluminada por uma luz esverdeada. Dentro, a água tinha cerca de um metro de profundidade e era tão transparente que dava para ver a areia no fundo.
Do teto úmido, cheio de algas, pendiam estalactites. No fundo, mais adiante, havia uma parede de concreto onde uma porta de aço dava para um elevador. Minutos depois, todos estavam subindo suavemente para o alto do rochedo. Ali, uma parede de cor cre-me, forrada de camurça, e uma porta de vidro bem polida aguardavam por eles. Sinclair pressionou um botão na parede. A porta deslizou, abrindo-se, e eles se viram do lado de fora da casamata de concreto que abrigava o elevador. Estava disfarçada para parecer uma grande pedra.
O Aston Martin de Sinclair Cell estava estacionado ao lado. A vista era espetacular.
O Havaí fica logo ali — Sinclair apontou. — Talvez, depois que tudo isso terminar, Primo Cell lhes empreste seu jato particular.
Nós aprendemos a pilotar avião? — perguntou Molly, franzindo o nariz ao tentar se lembrar das aulas.
— Não — riu Sinclair. — O jato vem com piloto. Petula latiu para que ele abrisse a porta do carro. Estava
ventando muito no alto do rochedo e o vento entrava por baixo de seu pêlo. Todos entraram. Sinclair deu partida no Aston. O motor rosnou como um leão. Logo, estavam subindo contra o vento por uma trilha amuralhada até o cume do rochedo. A frente deles apareceu uma estrada.
Esta é a Rodovia da Costa do Pacífico — disse Sinclair. — Ela passa por toda a Costa Oeste dos Estados Unidos. Para lá — ele apontou para a esquerda — é o norte, São Francisco, depois Seattle, até chegar ao Canadá, e para lá — fez um gesto para a direita — é o sul, Malibu, depois Los Angeles, e no final o México.
Poxa — disse Rocky. — Onde estamos agora?
Este é um lugar chamado Praia da Duna. Vamos levar duas horas para voltar a Hol-lywood. Portanto, pé na estrada!
O Aston Martin investiu, pegando a pista da estrada.
Já que estamos passando por Malibu, não podemos parar para ver o pessoal? — per-guntou Molly. Sinclair balançou a cabeça e mudou a marcha para FT — Força Total.
Sinto muito, mas ainda não, Molly. Nesse momento, eles acham que vocês estão trabalhando para o Benfeitor. Tive que hipnotizar a todos para que não se preocupassem com o sumiço dos dois. Espero que não se importem. Mas eles realmente estão bem, e se vocês se reencontrarem hoje há o perigo de Primo descobrir que estão vivos, e não queremos isso.
Molly segurou Petula no colo e se acomodou de novo no estofamento de couro azul. Fechou os olhos. Sentia-se muito estranha. Como se tivesse viajado em uma cápsula do tempo, em um cilindro de estações onde via os meses de verão e outono, mas sem tê-los vivido exatamente. Então era assim que se sentia alguém hipnotizado por um longo pe-ríodo. Molly sentiu-se culpada em relação às pessoas em cujas mentes ela mexera — embora não se sentisse mal por ter hipnotizado Nockman para se tornar melhor. Ele estava curtindo mais sua vida assim, não estava? E logo o hipnotismo dele se esgotaria completamente e ele estaria metamorfoseado em uma boa pessoa.
O que Nockman e a Sra. Brinklebury têm feito? Alguma coisa interessante? — ela perguntou.
Sim, sem dúvida — respondeu Sinclair, sorrindo enquanto pressionava os controles do carro. — Se vocês querem se divertir um pouco no trajeto, olhem a tela.
Uma pequena tela no alto, diante deles, piscou e, para espanto de Rocky e Molly, uma fita de vídeo começou a passar.
Ela mostrava todas as crianças do orfanato em um tipo de festa com o Sr. Nockman e a Sra. Brinklebury. O microfone registrou o final de um discurso que Nockman estava fazendo.
— Agora, finalmente — ele disse —, eu sei como o mundo é maravilhoso.
Todos aplaudiram.
Quem está fazendo aniversário? — perguntou Molly. — Nockman?
Não, é uma festa para comemorar o noivado do Sr. Nockman e da Sra. Brinklebury. Foi em julho.
Comemorar o quê? — Molly e Rocky perguntaram em choque.
Você tem certeza? — disse Molly. — Eles estão, tipo assim..., apaixonados?
Exatamente. Como dois pombinhos.
Que coisa — disse Rocky.
Bom, eles estão muito felizes — disse Sinclair. Molly olhou para Rocky.
Contanto que ele não a leve para uma vida de crimes.
Sem chances — disse Sinclair. — Pelo que vi, o cara está maluco por ela e fará o que for preciso para agradá-la.
Bom, se a Sra. B está feliz, também fico feliz. — disse Molly. — E os outros?
Sinclair passou a fita. Na sala de estar, Gemma e Gerry estavam fazendo uma apre-sentação para as outras crianças do orfanato. Gemma convidou Hazel para vir até a fren-te e disse que ia hipnotizá-la. Molly e Rocky não podiam acreditar no que viam. Gemma e Gerry, então, hipnotizaram Hazel e a convenceram de que estava em cima de um muro muito alto, e toda a vez que Gemma soprava, o muro balançava. Hazel deitou-se no meio do palco, para não ser levada pelo vento.
Mas quem os ensinou? — perguntou Rocky.
Você — respondeu Sinclair. — Bem, indiretamente.
Eu?
Sim — disse Sinclair. — Ao que parece, eles acharam algumas páginas xerocadas que você copiou do livro de hipnotismo original. Eles são muito bons em fingir que são realmente hipnotizadores.
Mas eles realmente são, não são? A apresentação foi brilhante!
Bom, não se decepcione. Hazel está representando. Gemma e Gerry não têm ne-nhuma habilidade hipnótica. Eu verifiquei. Mas são adestrados de animais excepcionais. Vejam isso.
Na mesma sala, havia uma mesa com um parque em miniatura. Tinha pequenos es-corregas e balanços, gangorras e um carrossel. Molly e Rocky viram, admirados, como Gerry fazia seus camundongos descerem pelo escorrega, usarem o balanço, a gangorra e girarem no carrossel. Eles até subiram um no outro para formarem pequenos triângulos de camundongos.
— Gerry realmente consegue controlar esses camundongos — disse Sinclair, quan-do a fita acabou. Petula olhou para a tela e piscou.
Por um momento, ficaram em silêncio. Sinclair concentrou-se na estrada, mas parecia agitado, aumentando a velocidade e depois a diminuindo de novo, dando tapinhas no volante. Parecia estar tentando se decidir sobre alguma coisa. Molly pensou em como devia ser difícil para ele estar traindo o pai.
Então, como se o mesmo assunto estive perturbando Sinclair, ele disse:
Sabe de uma coisa, Primo Cell não é meu pai verdadeiro. Ele me adotou. E a Sally também. — Ele abriu uma pequena caixa embaixo do porta-luvas. Dentro, havia uma geladeira diminuta. Pegou uma bebida.
Adotou? — Molly e Rocky disseram em uníssono. As sobrancelhas de Rocky subi-ram ao máximo. Petula sentiu outro surto de espanto vindo dos humanos.
Exato — disse Sinclair, passando para Rocky uma garrafa de água. — Sally e eu não somos nem irmãos verdadeiros.
Molly e Rocky estavam fascinados. Sendo eles mesmos órfãos, o assunto da adoção dizia muito a seus corações. Mais ainda, nenhum dos dois nunca tinha encontrado al-guém fora do orfanato que fosse adotado, assim os dois ouviram com toda atenção quando Sinclair lhes contou a historia de sua vida.
Ele e Sally tinham sido adotados com a idade de quatro e cinco anos por um casal que era dono de um circo. Era como se fizessem parte de uma enorme família, contou Sinclair. Ele e Sally tinham sido extremamente felizes. O diretor de circo era também um hipnotizador. Lamentavelmente, era tão bom que, quando chamou a atenção de Primo Cell, foi considerado uma ameaça e, assim, Cell se livrou dele. Hipnotizou o casal do circo. Eles agora eram jardineiros na Mansão do Corvo.
Os jovens Sinclair e Sally foram viver com Cell. Ele os seduziu com um novo e glamouroso estilo de vida, dando-lhes tudo o que queriam — carros em miniatura para dirigir, quartos de dormir fantásticos, um lar com cinema e piscina, uma casa de campo com cavalos para cavalgar e férias à beira-mar, onde sempre havia grandes barcos, jet skis e todos os brinquedos que desejassem. Contratou um tutor para eles. Um dia, disse-lhes, eles seriam os donos de seu império. Quando completaram dez e onze anos, come-çou a treiná-los como hipnotizadores.
— Mas — continuou Sinclair, com voz amarga — desde o dia que ele tirou a liber-dade de meus pais do circo, eu o odiei. Vi que não tinha coração. Jurei que faria tudo que pudesse para que ele nunca precisasse me hipnotizar. Fiz a minha parte. Fingi que o amava como um filho ama o pai. Mas, por dentro, não o amava. Eu o odiava. Sally co-meteu erros. Discordava muito dele. Primo a hipnotizou. Mas, a mim, ele nunca hipno-tizou. Gosta de pensar que existe pelo menos uma pessoa no mundo que gosta dele não porque foi hipnotizada para gostar. Mas, como estou lhes dizendo, não gosto dele de jeito nenhum. Eu o desprezo.
Molly olhou o mar distante e os milhões de minúsculas ondulações na água. Não sa-bia como reagir à história da vida de Sinclair. Nesse momento, sentia-se apenas descon-certada por todas as surpresas do dia. Sabia que tinha outras perguntas para fazer a Sin-clair, mas não conseguia lembrar quais eram. Em vez disso, vencida pelas vibrações do carro e o zunido do motor, adormeceu. E Petula aconchegou-se a ela, muito aliviada ao sentir que por fim a verdadeira Molly estava de volta.
Capítulo Trinta e Dois
S
inclair vivia em uma casa nas colinas de Hollywood. O carro rosnava em marcha lenta enquanto transpunha a estrada de três pistas. De ambos os lados, construções confortáveis abraçavam-se às ladeiras.
— Todas essas casas têm segurança contra sismos, o que significa que são constru-ídas para suportar terremotos — disse Sinclair. — A minha também.
Ele se virou para pegar uma pequena entrada. Sua casa era uma construção moderna, em um só bloco, sobre colunas.
Entraram em um pátio de estacionamento por baixo, onde as colunas estavam cober-tas por uma hera tropical e buganvílias. Sinclair conduziu-os até a porta de um elevador.
— Vejo que você não gosta muito de escadas — disse Molly, enquanto o elevador subia.
Então, "Nossa!", ela e Rocky exclamaram ao entrar na sala de estar de Sinclair.
Uma janela panorâmica proporcionava uma vista espetacular de Los Angeles. E o famoso letreiro de Hollywood, parecendo uma legenda gigantesca de um livro de geo-grafia, estava plantado no lado da colina talvez menos de um quilômetro à frente. Um sofá comprido e curvo acompanhava a janela. Petula pulou nele e se acomodou. Molly olhou a vista. Um aqueduto estreito, apoiado em colunas e cheio de água, ondulava, distanciando-se da casa para além das árvores, da colina e da estrada. Logo, porém, fa-zia uma curva e voltava, entrando na casa por uma brecha na vidraça. Dava a volta pelo fundo da sala, onde reencontrava seu começo antes de recomeçar sua rota de novo em direção às arvores, colina e estrada.
Essa é a minha piscina de volta completa — Disse Sinclair. — Eu a adoro. Tem dias que dou a volta toda, saindo daqui e voltando. Tem dias que faço dez curvas.
Que legal! — disse Rocky.
Eu adoraria poder nadar aí — disse Molly.
Pode nadar. Deixe-me mostrar a vocês o resto da casa — convidou Sinclair.
Seu quarto era circular e também a cama colocada bem no meio.
— Já dormiram em colchão d'água? Molly e Rocky experimentaram.
Que esquisito — disse Molly. — É como dormir em uma geléia.
É muito confortável — disse Sinclair, ativando uma tomada. A água dentro da cama começou a borbulhar. — É muito relaxante — disse, mas o balanço da água fez Molly e Rocky darem risadas.
Sinclair vivia com estilo. Tinha tudo.
Ele mostrou para os meninos sua sala de projeção, onde podia assistir aos úlitmos filmes, sua sala de computação e seu laboratório. Fotografias reveladas há pouco esta-vam penduradas em treliças de arame, mostrando que Sinclair tinha tirado fotos recen-temente. Havia fotos de Molly e Rocky remando em um barco, com Petula acomodada entre eles. Rocky tocando violão. Molly segurando uma concha junto ao ouvido, escu-tando o mar. Havia também fotos de Petula. Ela estava sendo beijada por Gloria Tiam-mo.
Eu me esqueci completamente! — exclamou Sinclair. — Enquanto vocês estavam... hum... fora, Petula participou de um filme. Foi dirigida por Gino Pucci. Vejam, é esse, nesta foto. É o italiano.
Petula participou de um filme? — Molly olhou para a foto. — Como assim?
Gino conheceu-a na festa da entrega do Oscar. Aparentemente, também Gloria Ti-ammo — disse Sinclair.
Oh, sim — admitiu Molly. — Nós... a... nós a conhecemos no toalete.
Gloria a adorou e Gino também. Ele descobriu onde ela estava. A Sra. Brinklebury deu a autorização para contratá-la. O filme se chama O retumbar do trovão, e será lan-çado em dez dias.
Poxa! Será que poderemos ir à estréia?
É pouco provável. Não podemos deixar que vocês chamem a atenção de ninguém.
Que cachorrinha! — sorriu Molly. Sentia-se realmente orgulhosa. — Petula, você é uma estrela! E é tão esperta que conseguiu tudo sozinha!
Também foi paga regiamente — disse Sinclair. — Vai poder comer filé-mignon quantas vezes quiser.
Molly deu a Petula um abraço apertado extra-especial. Petula se perguntou por que tanto espalhafato. Então, Molly reparou na foto de um cristal.
Onde está meu diamante? — perguntou.
Tive que entregá-lo a Primo — disse Sinclair. — Ele me mandou tirá-lo, assim que você morresse.
Poxa — disse Molly.
Eu ainda tenho o meu. — Sinclair puxou seu cristal de sob a camisa. — Posso em-prestá-lo, se você precisar.
Obrigada. — Molly estava irritada e aborrecida por Primo Cell estar com o diamante dela, além do dele.
Olha — disse Sinclair —, se conseguirmos de alguma maneira ter Primo sob nosso controle, posso tirar todos os cristais dele, e então você poderá ter dois, ou três.
Poxa, quantos ele tem?
— Dezoito, incluindo o seu. Todos vieram de outros hipnotizadores. Ele se senta so-bre eles como um velho corvo.
Dezoito! Então, ele não sentiria falta do meu, se você o pegasse de volta, sentiria?
Acredite, Molly, eu não posso pegar seu cristal. Desculpe. Você vai ter que esperar.
O que eu quero saber — disse Rocky, examinando a foto — é por que tantos hipno-tizadores têm um cristal? Quer dizer, como todos eles sabem o poder que os cristais lhe dão? Molly não sabia. Ela descobriu o dela por acaso.
A verdade — disse Sinclair — é muito misteriosa. Acho que os outros hipnotizado-res também não sabiam que precisavam do cristal. Acho que os cristais encontram seus donos por si mesmos. Como se tivessem vontade própria. Não têm, é claro, mas acredito que são atraídos, de uma maneira magnética, quase física, para os hipnotizadores.
Eles se movem por conta própria? — perguntou Molly, espantada.
Não. Mas parece que provocam as pessoas para movê-los. Podem manipular as pes-soas para que os levem cada vez mais perto de onde querem estar.
Onde querem estar?
Perto dos hipnotizadores.
Mas por quê?
Para que possam ser usados como devem ser, talvez. Eu não sei. É um mistério completo. Eles têm um instinto de ir para casa, como os pombos.
Pombos?
Bem, não exatamente como pombos, porque os pombos são ensinados. É mais como as enguias.
O que as enguias fazem?
Todo ano, as enguias partem dos rios da Europa, passando pelo oceano Atlântico, até chegarem ao mar de Sargasso, onde reproduzem. As larvas de enguias, então, retornam aos mares europeus, onde se transformam em filhotes e nadam até os mesmos rios de onde vieram seus pais, embora nunca os encontrem. Cerca de dez anos depois, quando esses filhotes cresceram e se transformaram em grandes enguias, seu instinto faz com que nadem de volta ao mar de Sargasso para se reproduzirem. Ninguém diz aos filhotes o que seus pais fizeram. Mas eles sabem o que devem fazer. É claro que esses cristais não estão vivos, mas parecem ter algum instinto embutido, exatamente como os animais. Isso os atrai para hipnotizadores. Pensei que os cientistas soubessem explicar o mistério. Hipnotizei alguns. Cientistas que estudam magnetismo e formações de rochas antigas a estrutura e comportamento do átomo e física quântica. Ninguém foi capaz de descobrir a ligação entre esses cristais, os hipnotizadores e o poder de parar o mundo.
Então, Primo tem uma coleção de cristais — disse Rocky. — Como a sua coleção de livros de hipnotismo.
Exatamente.
É terrível — disse Molly. — Pelo menos, ele não colocou suas mãos ladras no e-xemplar do livro de hipnotismo de Lucy Logan. — Sua voz deu um pulo. — Lucy Lo-gan! Eu disse que telefonaria para ela e há meses não dou notícias. Ela deve achar que estou morta.
Sinclair franziu a testa. Foi então que Molly soube de outras notícias terríveis. Sin-clair lhe contou como, logo depois do episódio da captura, ouviu Primo Cell falando ao telefone com alguém chamado Lucy. Depois da conversa, Sinclair rastreou a chamada e descobriu que o número era de Briersville. Naquele momento, ele nada sabia sobre Lucy Logan, portanto não se preocupou com aquilo. Poucos dias mais tarde, quando a Molly hipnotizada falou de Lucy, ele entendeu quem era essa pessoa que tinha telefonado. E chegou a uma conclusão penosa. Depois que Molly sumiu, Lucy deve ter decidido telefonar a Cell para tentar hipnotizá-lo por telefone. Sem saber que Cell era um mestre na hipnose a longa distância, em vez de hipnotizá-lo, ela é que foi hipnotizada. Agora, disse Sinclair, ela era um dos inimigos.
Molly pôs a cabeça entre as mãos ao tentar digerir essa notícia pavorosa.
— Pelo menos — disse —, imagine que ela não corra mais perigo. Estar do lado de Cell significa, pelo menos, que não terá outro acidente de carro. — Então, Molly sentiu o que na verdade significava Lucy ter passado pela lavagem cerebral de Cell. — Isto é tão deprimente. Pobre Lucy. Ela sabia quem era
Cell, e o odiava. — Molly lembrou-se da tarde que passou sentada no porão de Lucy vendo seus filmes. — Então, Sinclair, Lucy estava certa sobre Davina? Cell a raptou?
Absolutamente certa — disse Sinclair. — Cell foi a Nova York e teve problemas pa-ra hipnotizá-la. Não sei por quê. De qualquer maneira, Davina desconfiou do que ele pretendia fazer, e Cell decidiu que ela deveria ser removida. Usou seu cristal e parou o tempo para que ninguém visse quando a levou. Davina está vivendo na Mansão do Cor-vo desde o ano passado. Ele a mantém como um pássaro engaiolado em aposentos muito luxuosos. Ela tem tudo o que deseja, contanto que cante para ele. Ele a vigia como um falcão. É impossível chegar perto dela. É muito estranho.
Pobre Davina! E quanto a Lucy, não posso suportar isso. Hoje, na praia, me sentia tão bem sem nenhuma preocupação. Agora, estou de novo cheia delas.
Molly, sei como está se sentindo — disse Sinclair —, mas você tem que controlar seus sentimentos. Todos nós temos que fazer isso, porque agora a coisa mais importante a fazer é não deixar que Cell tome posse como presidente. Para isso, temos que quebrar sua pirâmide de poder. Você tem uma missão a cumprir, Molly. Tem que fazer uma coisa de que eu nunca seria capaz. Tem que descobrir uma maneira de achar a senha de Primo.
Mas como posso achar essa senha? Ela está na cabeça dele? — sibilou Molly.
Molly, você tem um dom extraordinário em matéria de hipnotismo. Acho que é um instinto em você, sabe, como nas enguias. Esse instinto, Molly, pode lhe mostrar como extrair a senha de Primo.
Eu não vou chegar perto dele — disse Molly, com as defesas erguidas.
Você não tem que chegar perto dele — disse Sinclair. — A pessoa que eu quero lhe apresentar é um amigo que vai lhe ensinar uma coisa para fazer você entrar na cabeça de Cell sem estar perto.
Molly pareceu alarmada. Será que Sinclair tinha ficado maluco?
Já tentei demais — ela declarou. — Veja o que aconteceu com Lucy. Eu já te disse, Sinclair, eu não sou mágica.
Você está estressada — disse Rocky.
Chegou a hora de conhecer Floresta — disse Sinclair.
Floresta? O que é isso? Um passeio sob as árvores?
Não — Sinclair riu. — Floresta é meu professor de meditação iogue.
Capítulo Trinta e Três
S
inclair foi até a janela e assobiou como um lobo. Poucos minutos depois, apareceu um cara alto, muito magro, de cabelo grisalho com tranças que iam até a cintura, e óculos de fundo de garrafa. Usava uma calça branca de algodão muito larga e um colete com zíper, meias e chinelos nos pés.
— Olá, prazer em conhecer vocês dois, Molly e Rocky. Ouvi muito falar de vocês.
Floresta era professor de meditação iogue havia dez anos. Antes, tinha viajado pelo mundo. Viveu como ermitão em uma caverna na França durante três anos, contemplan-do o significado da vida, comendo apenas castanhas e frutas silvestres, alguns insetos e sopa enlatados. Depois, viajou pelas profundezas da selva amazônica com um grupo de monges cuja crença não permitia o corte dos cabelos. Morou uns tempos com um grupo valente de esquimós e aprendeu a fazer iglus. Passou 11 meses em uma casa no alto de umas árvores no Sri Lanka, viajou de carona pela Índia e fez parte de uma caravana que atravessou o deserto do Kalahari de camelo.
Agora vivia em Los Angeles, onde era o mestre pessoal de Sinclair. Tinha um pe-queno apartamento no andar de baixo, um quintal onde criava galinhas e um ateliê onde soprava vidros. Era o responsável por todas as lindas esculturas de espelhos que enfei-tavam a mesinha da sala. Molly ficou imaginando se Sinclair o hipnotizara para morar ali.
O que é meditação iogue? — ela perguntou quando Floresta sentou-se de pernas cruzadas no chão.
Bom — começou Floresta, com uma voz profunda que fez Molly pensar em um rio das montanhas, cheio de pedras. — A meditação iogue consiste em fazer seu corpo se sentir confortável para que você possa se ligar, e captar as vibrações positivas do uni-verso.
Floresta, de súbito, deitou-se de costas e lançou seus dois pés para o alto da cabeça, prendendo-os atrás da nuca. Sua cabeça aparecia entre a barriga das pernas, e seus bra-ços ficaram estendidos no chão onde deveriam estar suas pernas. Parecia um nó humano.
— Hmmmmm, muito confortável — ele suspirou, fechando os olhos. — Agora, eu me concentro no nada, e quanto mais vejo o nada, mais a luz do nada me preenche até que eu....
Molly e Rocky esperaram.
Até você o quê?
Acho que ele não está mais aqui — sussurrou Rocky.
Ele está meditando — disse Sinclair.
Por quanto tempo ele fica assim? — perguntou Molly.
Uma hora. Um dia. Gostaria de poder fazer isso, mas não consigo. As vezes Floresta viaja longas distâncias em sua cabeça. É o que chamam de meditação transcendental. Ele pode viajar até a Índia para visitar seus amigos e, se eles também estiverem meditando, podem todos ter uma espécie de reunião transcendental.
— Parece uma boa desculpa para uma rápida, digo, longa soneca — disse Molly.
Sinclair ignorou-a.
Às vezes — disse Sinclair — ele se concentra e caminha sobre o fogo.
E sobre a água? — perguntou Molly.
E no ar? — sugeriu Rocky. Sinclair não deu bola para o ceticismo dos dois.
Minha esperança — ele disse — é que Floresta possa ajudá-la a se concentrar e rela-xar para ficar nas melhores condições de surfar nas ondas aéreas do cosmo e telepatica-mente extrair as senhas de Primo.
É mesmo? — disse Molly, como se Sinclair tivesse acabado de lhe pedir para bater as asas e sair voando. Ela ouvira falar do espiritualismo californiano New Age e, pelo que podia ver, era um completo desatino.
Não seja negativa — disse Sinclair. — Floresta colocará você em contato com seu instinto. Espere. Você verá por si mesma.
Sinclair deixou Molly e Rocky examinando o nó humano no chão. Floresta soltou um peido chiado. Rocky e Molly tiveram que engolir o riso.
— Não entendo nada de entrar em contato com meu instinto — disse Molly baixi-nho —, mas o cheiro do dele vai ser inesquecível.
Os dias seguintes foram de calma. Sinclair foi para Washington, na Costa Leste dos Estados Unidos, onde Primo estava organizando sua nova equipe de assessores gover-namentais. Era muito importante que Sinclair mantivesse a aparência de ser o filho leal e o braço direito de Primo, portanto tinha de ajudar quando era chamado. Isso também servia a seus planos de estar perto de Primo, pois precisava saber de seus movimentos.
Na casa da colina de Hollywood, pelo que Molly podia perceber, Floresta não estava lhe ensinando nada que pudesse ajudá-la a extrair a senha da cabeça de Cell. No entan-to, ela estava curtindo o tempo que passava com ele.
Ao lado de seu apartamento-ateliê, Floresta tinha um jardim todo florido. Era um ca-leidoscópio de cores com mosaicos onde colocar os pés e trepadeiras de ervas sobre os muros. Ele apresentou Molly e Rock a suas galinhas e deu um ovo caipira para cada um experimentar. Mostrou-lhes como se faz para soprar vidros. Colocou uma massa fria em um canudo comprido de metal, aqueceu-a numa chama e, com muito cuidado, soprou pelo canudo até o vidro quente formar uma bolha. Floresta também os ensinou a medi-tar.
Rocky tentou se concentrar, mas achou que atirar pedras para Petula pegar era muito mais divertido do que ficar sentado, de olhos fechados, ao lado de Floresta. Molly, por sua vez, achou relaxante. Ela sempre foi capaz de desligar sua mente e flutuar no espaço, portanto era muito boa nisso.
Enquanto sua mente perambulava como uma nuvem, flutuando sobre o letreiro de Hollywood, e continuava subindo até a casa de Sinclair ficar demasiado pequena para ser visível e Los Angeles desaparecer lá embaixo, Molly refletia sobre como era minús-cula. Oito milhões e meio de pessoas viviam em Los Angeles e ela era apenas uma pes-soa de uma enorme população. Enquanto flutuava cada vez mais alto em seu universo imaginário e considerava os seis bilhões de pessoas do mundo, Molly sentia-se cada vez mais diminuta.
Por um momento, deixou-se acreditar em Floresta. Se realmente pudesse fazer o que esperavam dela, então faria algo que não era nada pequeno, seria algo realmente grande, de verdade. Se ela pudesse descobrir a senha de Cell, se eles pudessem impedir que Cell tomasse posse como presidente, que se tornasse o homem mais poderoso do mundo, então a ação dela seria enorme. Mais do que enorme.
Enquanto flutuava, Molly sentia-se microscópica e, ao mesmo tempo, gigantesca, uma combinação atordoante. Mas foi bom, porque o sentimento de pequenez não deixa-va o sentimento de grandiosidade fazê-la pensar que era algum tipo de ser importante, sobre-humano.
Como as pessoas muito famosas se sentem quando sabem que tantas pessoas no mundo as admiram? Elas pensam que são sobre-humanas? — perguntou a Floresta, um dia, enquanto estava sentada no chão, separando as bolhas boas de vidro colorido das bolhas com defeitos.
Os estúpidos acham — disse Floresta. — Os inteligentes compreendem que tiveram sorte de nascerem como são, com talento, e sorte de ter tido situações que os lançaram como catapultas para o topo. Sabem que a fama não faz o famoso ser em nada melhor do que uma pessoa desconhecida. A fama é como uma pirâmide, com as pessoas realmente famosas no topo, pessoas menos famosas no meio, e pessoas completamente des-conhecidas embaixo, mas a felicidade é como um ovo. Você pode dizer que as pessoas mais felizes estão no topo do ovo, os meio felizes no meio e as infelizes, no lado de bai-xo. Muitíssimas pessoas famosas que são infelizes estão no lado de baixo desse ovo. Eu prefiro estar do topo do ovo do que no topo da pirâmide.
Então por que as pessoas acham que a fama é tão especial? — persistiu Molly.
Talvez porque, equivocadamente, pensem que a fama é a chave para a felicidade.
Conheço muitas pessoas que estão sempre lendo sobre as vidas das estrelas. Sabem mais sobre as celebridades do que sobre seus vizinhos.
Essas revistas estão cheias de titica de galinha. Eu prefiro saber mais da vida de um besouro. Depois de um tempo lendo essas revistas, as pessoas começam a achar que as suas próprias vidas é que são titica de galinha. E isso não é bom, achar que nossa própria vida é titica de galinha. Titica de galinha fede. Eu sei disso.
Molly olhou para uma galinha garnizé que parecia estar botando ovo em uma das botas de Floresta.
A vida é como as férias de verão, Molly. Acaba em um segundo. Todos nós somos feitos de moléculas de carvão que se originaram das estrelas e, em um segundo, quando morremos, viramos de novo a mesma poeira de estrelas.
Então, mesmo não sendo estrelas, todos nós somos poeira de estrelas — disse Molly.
Exato. — Floresta fechou os olhos. — Há um poder que a pessoa encontra quando descobre a poeira em si mesma. Com freqüência, encontra também o seu lado grande.
Molly duvidava de que essas conversas com Floresta sobre a vida a levassem à senha de Primo Cell, mas ele não parecia ter nenhuma lição específica para lhe ensinar a telepatia de que Sinclair falara.
Sinto que sua energia é boa, Molly — ele disse. — Você deve procurar o nano do pequeno...
E quem é o Nano do Pequeno? — perguntou Molly, achando que Nano deveria ser um velhinho enrugado com bilhões de anos de idade.
Não é uma pessoa. Nano significa apenas o menor de todos. Se você procurar o me-nor do menor em você mesma, Molly, ali encontra seu verdadeiro poder.
Ééé... obrigada — disse Molly. — Não vou me esquecer disso.
Às vezes, ela pensava, Floresta era um total esquisitão.
Capítulo Trinta e Quatro
O
s dias relaxantes chegaram a um final abrupto. Primo Cell decidira que seu quartel-general em Washington já estava sob controle. Com seu novo poder, todos os tipos de oportunidades de ganhar dinheiro se abriam e ele estava organizando, em Los Angeles, uma grande conferência para as pessoas ligadas ao comércio exterior.
Sinclair voltou para casa uma manhã parecendo desconcertado. Depois que colocou a maleta no chão e a porta do elevador se fechou atrás, ele disse a Molly e Rocky:
— Falei para Primo que precisava meditar um pouco com Floresta, mas ele não gos-tou.
Seu semblante estava tão sombrio como o tempo lá fora. Estava ficando cada vez mais difícil escapar de Primo Cell, explicou. Primo queria que ele se mudasse para sua mansão para ficar disponível dia e noite. Sinclair não sabia por quanto tempo mais po-deria continuar com sua farsa. Precisava se esforçar cada vez mais para fazer o que Pri-mo lhe ordenava. Recentemente, suas tarefas tinham sido hipnotizar oficiais e altos fun-cionários para remover qualquer obstáculo ao sucesso de Cell. O tempo todo tinha que esconder seus verdadeiros sentimentos, mas certamente Primo logo sentiria o cheiro de peixe podre, e então, sabia, teria os olhos de Cell sobre ele.
Ele havia dado permissão a Molly e Rocky para nadarem em sua piscina de volta completa e caminharem pelo jardim, mas agora, com sua nova paranóia, proibiu-os ter-minantemente de sair. Sinclair temia que Cell pudesse estar espionando em sua casa — várias vezes usara espiões no passado, explicou, e insistiu que os meninos ficassem es-condidos.
Molly e Rocky passaram a um estado de tensão permanente. Molly ficava esperando que as portas da casa de Sinclair se abrissem de repente e a polícia entrasse em peso para prendê-los. Esses pensamentos provocavam-lhe pesadelos.
Agora, sentia-se ainda mais amendrontada, mas também estava começando a ficar furiosa. As expectativas que Sinclair colocara nela eram irreais. Achar que ela poderia extrair, por telepatia, a senha de Cell era um plano absolutamente estúpido. Só um mila-gre faria com que conseguissem a senha. Sentia-se furiosa por Sinclair depender tanto dela e por ainda não terem um plano mais sensato.
Uma neblina baixou. Molly queria sair um pouco da casa. Começou a jogar xadrez com Rocky, enquanto Sinclair dava largas passadas pela sala, ocasionalmente olhando para fora, perdido em seus pensamentos. Depois de um tempo, ele falou:
— Só há uma maneira de parar Primo.
— Você não quer dizer matá-lo, quer? — Molly olhou para o tabuleiro. — Não po-demos fazer isso. Não somos assassinos. E não consigo imaginar nada que faça Primo Cell parar agora a não ser.... a morte.
— E quanto a um bom hipnotizador?
Molly largou o peão que estava prestes a mover e balançou a cabeça, sem acreditar no que ouvia. Sabia o que estava passando pela cabeça de Sinclair.
Sinclair Cell, alguma vez você conseguiu hipnotizar Primo Cell?
Tentei uma vez — ele respondeu. — Quando era mais jovem. Primo achou engraça-do. Ele sabe que nunca poderia hipnotizá-lo. Meu poder não é nada comparado ao dele. Ele tem aquele toque a mais. Só encontrei uma única pessoa no mundo que também tem isso.
Petula rosnou. Ela sentiu que Molly estava começando a ficar agitada.
— Molly, você realmente tem esse toque a mais. Você deve saber que tem. — Sin-clair começou sua investida. — Quando a salvei do corvo, eu só consegui hipnotizá-las porque sua força estava exaurida. Caso contrário, você teria conseguido resistir. Quando vi aqueles comerciais que você fez em Nova York, reconheci seu poder verdadeiro. Seus olhos são tão poderosos quanto os de meu pai.
Molly levantou-se e foi até o canto oposto da janela.
Não me faça tentar hipnotizá-lo, Sinclair — disse ela, olhando para fora. — Por fa-vor, não faça isso. Eu não teria a menor chance. Nem um pingo de chance.
Teria — insistiu Sinclair. — Eu realmente acredito que você conseguiria.
Você tem de dizer isso porque eu sou sua última esperança — respondeu Molly, com tristeza, imaginando Primo Cell tirando as lembranças de sua mente e deixando-a vazia como um saquinho usado de ketchup. — Isso é tão estúpido — disse. — Tem que haver outra pessoa que posssa fazer isso. Um hipnotizador adulto. Eu não quero fazer isso.
Todos os outros foram derrotados por Primo — disse Sinclair.
Exatamente, portanto, que chances eu tenho? — exclamou Molly, desesperada. E começou a chorar.
Desculpe, desculpe — disse Sinclair. — Você não é obrigada a fazer isso. É claro que não é. — Ele colocou as mãos no vidro da janela e se inclinou. — Mas, por favor, pense no assunto. A decisão é sua e eu entenderei perfeitamente se decidir não ten... arriscar. — Virou-se para ela. — Mas, escuta, Molly, eu consigo o acesso a Primo. Ele confia em mim. Podemos nos aproximar quando ele estiver despreparado, quando esti-ver acabando de acordar ou estiver cansado no final do dia. Pense nisso, Molly. — Sin-clair olhou para seu relógio. — Droga! Tenho que ir agora ou ele vai querer saber onde estou. Tenho que ajudá-lo a receber os convidados para um jantar. Ele convidou o dire-tor do FBI e o primeiro-ministro do Japão para conhecer Suky e Gloria. — Sinclair deu um sorriso horrível para Molly e Rocky. — Espero que esta noite não seja a última para mim.
Depois, deu palmadinhas em Petula, respirou fundo e foi pegar o casaco.
Molly, Petula e Ricky ficaram sentados olhando pela janela panorâmica.
Lágrimas enormes desceram pelas bochechas de Molly.
— Sinto muito, Rocky — ela conseguiu dizer, através dos soluços e suspiros —, mas mas eu não sei o que fazer.
Rocky pegou um lenço que tinha amarrado no pulso e lhe deu para limpar o nariz. Sentia-se terrível, vendo sua melhor amiga romper assim em lágrimas.
Tem que haver outro jeito — disse Molly. — Não quero terminar com um manjar branco no lugar de cérebro.
Eu acho que tem outro jeito — disse Rocky, pensativo. — Acho que sei qual é.
Capítulo Trinta e Cinco
A
lguém poderia perguntar como uma pessoa na posição de Primo Cell, e com seu poder imenso, poderia ser vencido sem Molly ter que hipnotizá-lo. A resposta é: atacando-o de uma direção completamente inesperada.
A melhor forma de ataque é sempre a surpresa, e a solução de Rocky dependia disso. Disse que bater de frente com Cell nunca daria certo. Quando Molly tomou conhecimento da idéia dele, recusou-se a deixar Rocky arriscar a vida sozinho e insistiu em executar o plano. Alguém ainda teria que enfrentar Cell, mas era de uma maneira tão surpreendente que Molly queria ser esse alguém.
Dois dias mais tarde, Sinclair saiu para averiguar os arranjos finais para a conferência com os líderes do comércio exterior. A conferência seria realizada no Centro Cell, mas começou com uma recepção formal e almoço em sua casa.
Na manhã daquele dia, um conhecidíssimo maquiador e um figurinista chegaram à casa de Sinclair. Evidentemente, tinham sido hipnotizados.
Os dois profissionais começaram a trabalhar e Molly observou, fascinada, o mestre do disfarce, alto e de dedos longos, transformar Rocky em outra pessoa.
Das oito às nove, ele trabalhou em um novo nariz para Rocky. Usando uma prótese de borracha especial, moldou um nariz majestoso, esculpido no próprio rosto. Das nove às dez, trabalhou com as rugas e o cabelo, dando a Rocky densas sobrancelhas pretas e uma barbicha pequena, escura. Depois, Rocky foi vestido com roupas de baixo rechea-das para torná-lo gordo, e com uma túnica oriental preta, bordada, e um turbante verme-lho e branco enrolado e preso em sua cabeça com uma faixa. O resultado foi fantástico. Rocky parecia um autêntico árabe.
Está muito quente aqui — ele se queixou a Sinclair. — Qual é mesmo o meu nome?
Xeque Yalallá. Você é um dos mais ricos magnatas do petróleo da Arábia Saudita.
E você tem certeza de que o verdadeiro Yalallá não vai aparecer?
— Certeza absoluta. Eu lhe disse que a reunião foi adiada.
E o tamanho? Você tem certeza que ele é tão baixinho quanto eu?
Depois que você calçar estes sapatos de plataforma prometeu o figurinista —, ficará exatamente com um metro e meio, que é a altura exata do xeque.
Bom, talvez eu consiga ter sucesso com isso, desde que não tenha que abrir a boca — disse Rocky, nervoso.
Enquanto estavam dando os últimos retoques em Rocky, Molly fez uma visita ao a-teliê de Floresta. Ele estava mergulhando uma peça de vidro em uma bacia de produtos químicos.
Está quase pronto — disse. Molly pensou em como adoraria passar o dia ali com ele. Como se tivesse lendo sua mente, ele deu-lhe uma tapinha na cabeça e disse:
O nano do pequeno protegerá você, Molly, não se preocupe.
Embora isso não fizesse nenhum sentido, por alguma razão fez Molly se sentir me-lhor.
Depois, no andar de cima, foi a vez de Molly ser transformada. Foi vestida como a senhora xeque Yalallá, a esposa. Como Rocky, foi recheada de almofadas para parecer maior e vestida com uma túnica comprida chamada "abaya" — a de Molly era púrpura. Calçou sapatos de plataforma para ficar mais alta. Mas não precisou de muita maquia-gem, porque sua cabeça ficou coberta por um véu e seu rosto, exceto os olhos, estava escondido por um "niqab" de seda preta. Ao redor dos olhos, sua pele foi pintada com um tom mais escuro.
Por fim, ao meio-dia, sentindo-se muito desconfortáveis com seus novos corpos e roupas, Molly e Rocky entraram em uma limusine preta, com chofer, tentando parecer e se sentir como árabes.
Eles chegaram aos portões vigiados da mansão de Primo Cell. A limusine entrou, suave, pelo caminho que conduzia à casa.
A lembrança da câmara de tortura no subsolo da casa deu náuseas em Molly. Portan-to, tentou pensar em Davina Nuttell, presa em algum lugar dentro daquelas paredes, e em sua alegria quando fosse libertada se o plano deles funcionasse. As esculturas de animais de aço espalhadas pelos jardins reluziam sob o sol do meio-dia, parecendo fa-mintas e malévolas. Ela receou ter que atravessar o estacionamento de pedras com seus sapatos de plataforma. Tanto ela quanto Rocky tinham bengalas, como se fossem árabes velhos, mas será que seriam suficientes para sustentá-los?
Cell vai perceber a farsa — Molly disse para Rocky, frenética. — Estou parecendo uma coisa que acabou de sair das Mil e Uma Noites. Talvez fosse melhor a gente voltar para casa.
Você parece completamente autêntica — garantiu Rocky. — Agora, vamos.
Molly achou que a voz dele estava abafada porque, como ele, enchera seus ouvidos com cera, para tirar o poder de qualquer hipnotismo verbal que Cell pudesse tentar.
Com a boca seca como o deserto de Saara e as mãos úmidas de nervosismo, ela pe-gou sua bengala de prata e, cuidadosamente, saiu do carro.
A entrada estava cheia dos outros carros que chegavam, e os convidados que iam em direção à casa. Através do véu, Molly viu que o lugar estava apinhado de guardas — a segurança, obviamente, fora aumentada por causa dos estrangeiros VIPs. Seu corpo pa-ralisou. Rocky teve que cutucá-la com a bengala de ouro para fazê-la continuar.
O ovo do pátio soltava uma explosão de chamas para lhes dar boas-vindas. Embora Molly já esperasse por isso, cambaleou para um lado.
Sinclair ajudou os árabes idosos a descerem as escadas. Depois, usando a idade deles como desculpa, conduziu-os através do saguão de mármore, onde os delegados estavam se reunindo, direto para a sala de reuniões de Primo Cell. Assim, evitavam qualquer conversa com os outros convidados ou, pior ainda, com Primo Cell. Passaram por uma exposição que mostrava a força dos principais negócios de Primo: Primo Veloz, a fábrica de carros, Computadores Compucell,
Medicina Celular, Petróleo Cell. Fotos enormes ilustravam suas marcas famosas: Biscoitos de Trigo e Mel Levemais, Relógios Horacert, Muitabolha, Barra Céu, Deso-dorantes Em Sintonia, papel higiênico Suntuosus, barras dietéticas Poder Leve, Casa da Moda. A foto que deixou Molly mais nervosa foi a das facas Shique Shaque.
Em uma sala que parecia uma galeria vazia, havia uma mesa enorme arrumada com vinte e oito lugares. Cada lugar tinha um copo, uma garrafa de água mineral em uma bandeja de prata, um recipiente de cristal com gelo e alguns chocolates bem embrulha-dos. Sinclair conduziu Molly e Rocky até o outro lado da sala onde estavam colocados, sobre a mesa, cartões com os nomes de xeque Yalallá e senhora.
— Muito bem — disse Sinclair, baixinho. — Vou deixá-los agora. Vou começar a fazer os convidados e seus tradutores entrarem. Quando todos estivem reunidos, Primo fará sua entrada. Molly, eu a coloquei perto dele, à esquerda. Em geral, ele começa com as pessoas opostas a ele, e depois contorna a mesa no sentido horário, até chegar à pes-soa imediatamente à direita. É aí que ele vai se virar para você. Boa sorte e vejo-os mais tarde.
Molly sentou-se, as pernas tremendo e o coração acelerado. Na mesa a sua frente es-tava o discurso de Cell transcrito para o árabe. Molly pegou o papel e fingiu estar lendo.
Sentados em almofadas que Sinclair tinha colocado em suas cadeiras, Molly e Rocky pareciam convincentemente do tamanho esperado, sobretudo quando dois filipinos muito baixos sentaram-se do outro lado de Primo. Os filipinos estavam muito alegres. Conversavam animados, abrindo seus chocolates. Apresentaram-se a Molly, que assen-tiu, inclinou-se para eles, apertou suas mãos e murmurou, "Sabah alkheir.
Er, kalla doola beelà", com o que esperava ser um sotaque árabe. Depois, começou a mexer no véu e rezou para que eles não puxassem conversa.
Molly espreitou pela abertura em seu niqab e viu a sala se encher. Uma indiana ele-gante, vestida com um sari vermelho e laranja, chegou com seu acompanhante vestido com um terno verde-escuro. Depois, um casal de japoneses sentou-se. A senhora estava com um traje amarelo, cheio de pregas e um chapéu triangular peculiar, todo vincado. Mais e mais convidados tomavam seus lugares. Molly nunca tinha visto tantas pessoas de cores diferentes, nem roupas de colorido tão variado.
Molly sentou-se quieta, a cabeça baixa, fingindo ler, mas as letras dançavam de mo-do enjoativo na frente de seus olhos. Tentou meditar para relaxar, mas a situação era muito dispersiva.
Logo, 25 pessoas do mundo dos negócios estavam sentadas ao redor da grande me-sa. Murmúrios enchiam a sala. Todos se sentiam muito privilegiados e lisonjeados por terem sido convidados para a própria casa do presidente eleito. Cada um esperava obter grandes contratos para suas empresas e ganhar muito, muito dinheiro.
De repente houve um sonoro CLINGUE CLINGUE quando Sinclair bateu na lateral de um copo com uma colher de café.
— Senhoras e senhores! — ele disse, interrompendo a conversa animada. — Por fa-vor, dêem as boas-vindas ao futuro presidente, o Sr. Primo Cell.
Com fina elegância, Primo entrou na sala. Sorriu, inclinou a cabeça e cumprimentou a todos.
Estava usando um terno riscado preto-e-branco e havia uma confiança abrasadora em seus olhos. Parecia imaculadamente equilibrado e calmo, mas Molly sentiu a cobiça furiosa que havia por baixo de seus atos. Ao se sentar perto de Molly, ela mais uma vez tentou expulsar seus temores.
— Que todos sejam bem-vindos — começou Cell. — Bom Dia! Good Morning! Bonjour! Hola! Buongiorno! Konnichiwa! Marhaban! Muito obrigado por terem viajado milhares de quilômetros para estarem aqui, hoje. Fico extremamente agradecido. É maravilhoso ver tantas nações do mundo representadas e estou feliz por agora, como presidente eleito, poder garantir que os Estados Unidos trabalharão com suas empresas.
Os intérpretes ao redor da mesa passaram suas palavras para os convidados, que murmuraram aprovação e esperaram atentamente Cell continuar.
— Nos negócios, é essencial que você possa confiar nas pessoas com as quais ne-gocia. Se olharem dentro dos meus olhos, espero que vejam que sou uma pessoa em que se pode confiar.
Ele estava em ação.
Molly ficou admirada com a rapidez com que Cell estava operando. Todas as pessoas na sala viraram seus olhos para ele, polida e obedientemente.
— Sim — continuou Cell com sua voz de veludo, belamente modulada. — Se... o-lharem... dentro... dos meus olhos... verão... que podem confiar... em... mim... com-ple-ta-mente.
E enquanto falava, começou a hipnotizar todos eles. A cera tanto nos ouvidos de Molly como de Rocky abafava sua voz. Ambos ficaram imóveis, concentrando-se com muito esforço em não ouvir. Molly cantou as palavras da canção do corvo bem alto em sua cabeça:
Faça-o de aço,
Homem Corvo, ooohhhhhhb
Quer pegar o sol, as estrelas e você, ooooohh,
Homem Corvo
Agora, Molly podia sentir a sensação de fusão levantando-se em volta dela, enquan-to Primo Cell, o mestre supremo do hipnotismo, ia sistematicamente trabalhando a mesa, dominando cada uma das pessoas. Como Sinclair disse que ele faria, Cell começou com os convidados opostos a ele. Agora, estava trabalhando com aqueles à sua direita. Derrubava-os como se estivesse jogando boliche.
A hora de Molly estava chegando. Ela tentou respirar da maneira iogue, como Flo-resta lhe ensinara, inspirando por uma narina e expirando pela outra. Mas era impossível ficar calma quando seu coração batia como a perna traseira de um coelho chutando, aterrorizado. Ergueu sua cabeça no ângulo exato para olhar nos olhos de Primo Cell. Em poucos segundos, ele passaria sua atenção do filipino para sua direita, e estaria de frente para ela.
Molly segurava uma ficha de plástico do tamanho de uma moeda. Estava ligada a um arame muito fino que passava por sua manga e subia até o véu. Ela apertou esse botão. Um prato côncavo espelhado, pequeno, manufaturado com perfeição por Floresta e colocado na posição certa sob o véu de seu niqab deslizou como uma pequena porta curva, preenchendo o espaço na frente de seus olhos. O espelho era de duas faces. Atra-vés dele, Molly via Cell em branco-e-preto. Esperaria até o momento em que ele virasse e olhasse direto para ela. Então, fecharia completamente seus olhos.
Primo Cell sentia uma confiança suprema. Como esperara, o grupo de empresários esperançosos na sala era de bobalhões. Só restavam alguns. O xeque e sua esposa eram os próximos. Primo virou a cabeça para a mulher do xeque. Não era comum uma mulher árabe se envolver nos negócios do marido. Talvez ela fosse especialmente boa para tomar decisões. Ele lhe daria um olhar hipnótico especialmente sedutor, do qual ela não seria capaz de se desvencilhar de jeito nenhum. Primo grudou os olhos nos dela.
Os olhos dela brilhavam a partir da fenda no véu e, para sua surpresa, ele viu que ti-nham a mesma cor dos seus. Um era turquesa, o outro castanho. Cell pensou consigo mesmo como essa combinação era rara e atraente.
A mulher do xeque Yalallá encarou Cell com inquebrantável confiança.
— É importante confiar naqueles com quem você negocia — ele insistiu com sua-vidade, sorrindo. Os olhos dela sorriram de volta para ele. Cell vacilou, surpreso. Ela estava resistindo?
Calma e lentamente, Primo Cell repetiu as poucas palavras em árabe que conhecia.
— Marha... ban dikoum. — Através da cera nos ouvidos de Molly, as palavras soa-vam abafadas e como um feitiço.
Já era hora de dar a esta esposa do xeque Yalallá um golpe final e aniquilador. As-sim, com uma energia violenta invocada do fundo de si mesmo, ele lançou um olhar de enorme poder destrutivo direto nos olhos da mulher.
Aconteceu em um segundo.
A bala de seu olhar acertou o visor espelhado de Molly e ricocheteou de volta.
A cabeça de Primo Cell girou para um lado, como se tivesse sido esmurrada por Rei Moose. Com um golpe preparado por ele mesmo, Primo Cell nocauteou a si próprio. Ficou olhando para um copo de água na mesa.
Molly levantou o visor espelhado de seu véu.
— Você conseguiu — disse Rocky, quase sem acreditar no que estava vendo.
À direita de Molly, três outros convidados e seus intérpretes olhavam preocupados para o presidente eleito. Sinclair rapidamente tratou deles. Agora, todos na sala estavam sentados com olhos de vidro encarando Cell, que continuava com o olhar vazio no copo a sua frente. Sinclair aproximou-se dele, fascinado, como se estivesse observando um tigre.
— Funcionou — disse, espantado. — Sempre quis ver Primo hipnotizado, e você conseguiu! Olhe para ele. Parece lobotomizado.
— Lobo o quê?
É como se tivesse uma parte do cérebro removida. Você conseguiu.
Na verdade, foi ele mesmo que se hipnotizou — disse Molly, tirando o véu abafado, o niqab e o dispositivo espelhado. — E a idéia brilhante foi de Rocky e o artefato espe-cial de Floresta. — Ela olhou para Cell com satisfação. — Mas é melhor não perdermos tempo. Ele pode voltar a si.
Molly e Rocky chutaram seus sapatos de plataforma e Rocky, aliviado, tirou o nariz e o turbante. Sinclair atirou-lhes uma mochila com os tênis. Depois, rapidamente, pro-gramou os intérpretes para que inventassem histórias para os empresários estrangeiros, dando a todos uma idéia clara do que tinha acontecido no almoço. Disse-lhes que ele e Primo tinham partido para um longo final de semana nas montanhas e que todos sairiam de seus transes em uma hora. Molly aproximou-se de Primo.
— Vou pegar o cristal dele — ela disse, subindo numa cadeira.
Primo estava em pé, imóvel como uma estátua de cera. Mas ao contrário de uma es-cultura feita pelo homem, ele respirava. Tinha o aspecto de um zumbi, mas um zumbi que de repente poderia despertar e morder. Cuidadosamente, Molly desabotoou a cor-rente de platina, tirou-a do pescoço dele e a colocou em si mesma. Teve uma sensação bem familiar. Primo permaneceu parado.
— Tá legal, hora de parar o mundo — disse ela, colocando a mão no ombro de Ro-cky. — Você está pronto?
Ele assentiu. Então, concentrando-se em uma jarra de cristal, Molly rapidamente respirou a sensação de fusão fria dentro de si mesma e, como uma profissional com prá-tica, parou o tempo sem esforço. Imediatamente, todos ao redor da mesa, incluindo Cell, ficaram parados como um pedaço de madeira. Sinclair sorriu.
— Todas aquelas vezes que Primo fez isso com tantas pessoas! Aposto que nunca imaginou que um dia aconteceria com ele. Espero que possamos fazer isso sem ter que tirá-lo da imobilidade.
Ele empurrou Cell um pouco para trás e o pegou por baixo dos sovacos.
— Poxa! Ele pesa uma tonelada.
Com dificuldade, começou a arrastá-lo para fora da sala de jantar, colocando toda a sua concentração em não transmitir nenhuma fusão fria para Cell através de seus braços. Era muito difícil.
— Você está bem, Molly? Acha que pode manter tudo parado até chegarmos lá fo-ra?
Molly assentiu. Pelo que podia ver, Sinclair era quem poderia ter problemas. Ele es-forçava-se para fazer o presidente eleito atravessar o saguão de mármore. Enquanto ia batendo com o corpo de Primo nos degraus da escada de carvalho, como um manequim vestido, seu mocassim de camurça saiu do pé. Molly, segurando firme em Rocky, pegou-o. Ela olhou para o andar de cima da mansão e pensou em Davina Nutell sentada sozinha em algum lugar por ali. Não podiam salvá-la agora — não tinham tempo. Mas se tudo continuasse segundo seus planos, Davina logo estaria livre.
Sinclair arrastou Cell pelo parque, onde uma chama estável pairava sobre o ovo gi-gante. Chegaram ao Aston Martin e Sinclair fez um esforço supremo para colocar Cell no banco de trás. Limpando o suor da testa, pulou rapidamente para o banco da frente e, com um rugido, acelerou para fazer a curva no caminho de cascalho.
— Aperte o controle romoto! — disse Rocky, e os portões de ferro se abriram bem a tempo de deixar o carro passar por eles.
Minutos mais tarde, eles passaram pela Avenida Sunset, avançando por entre os car-ros imóveis. Onde havia engarrafamentos, eles iam pelo canteiro central ou pela calçada e passavam direto pelos faróis vermelhos. Molly estava começando a tremer com o es-forço de segurar o tempo parado.
De repente, Sinclair aproximou-se da beirada da pista e freou o carro. Molly soltou a parada do tempo e os carros ao lado recomeçaram em plena velocidade de novo. Primo Cell grunhiu, mas permaneceu em transe.
— Foi impressão minha ou você também sentiu isso? — perguntou Sinclair, baixi-nho.
O quê? — disse Rocky. — Um terremoto? Molly olhou, nervosa, pela janela.
Veio do céu.
— Foi muito longe daqui, mas parecia estar se aproximando — concordou Sinclair.
Eu não senti nada — disse Rocky.
Alguém estava resistindo à parada — explicou Molly.
Alienígenas?
Molly sentiu-se empalidecer. Nunca em sua vida tinha realmente acreditado que e-xistissem extraterrestres, mas nesses dias ela aprendera que tudo era possível.
Sinclair não disse nada.
Capítulo Trinta e Seis
M
olly, Rocky e Sinclair sentaram-se no comprido sofá branco ao lado da enorme janela panorâmica da sala de estar de Sinclair. Estavam cansados, mas ao mesmo tempo uma satisfação entusiasmada emocionava a todos. Sinclair mal podia conter seu deleite.
— Isto é tão maravilhoso — disse outra vez, uma frase que estava repetindo desde que finalmente colocaram Cell no elevador e dentro de sua casa. A verdade era que tan-to quanto deliciado, Sinclair estava chocado. Ver Primo, o homem que o havia dominado tiranicamente a vida toda, agora reduzido a uma concha vazia era mais chocante do que ele imaginou que fosse.
Cell sentava-se em uma cadeira com espaldar alto, completa e profundamente hipno-tizado, parecendo ter engolido um litro de concreto molhado. Molly havia lhe dado do-ses perigosamente fortes de seus olhos. Petula cheirava as pernas dele.
O que vamos fazer agora? — perguntou Rocky, com voz baixa.
Temos que tirar dele o desejo de ser presidente — sussurrou Sinclair. — Temos que colocar um ponto final em todas as suas ambições de poder. Fazê-lo parar de querer controlar o mundo, de querer riquezas intermináveis.
Obviamente temos que fazê-lo esquecer como hipnotizar pessoas — disse Molly.
Sim — concordou Sinclair. — E depois teremos que fazer uma hipnose fechada, com uma senha, para que ele fique hipnotizado para sempre.
Molly passou de um pé para o outro, nada à vontade. Jamais gostara da idéia de al-guém ser programado para pensar de uma determinada maneira para sempre.
Não temos de fazer isso. Quer dizer, nós nunca hipnotizamos Nockman para sempre. E veja como ele está melhor. Será que não podemos fazer Cell melhorar a si mesmo?
Cell não é um peixe pequeno como Nockman, Molly. Tem maldade demais em sua cabeça. Seu cérebro não é normal. Não podemos ser bonzinhos e deixá-lo tentar. Não dá para correr esse risco.
Acho que não — concordou Molly, relutante.
A coisa mais importante — lembrou-lhes Rocky — é libertar todas as suas vítimas. Temos que descobrir onde elas estão e qual é a senha dele, para conseguirmos desipno-tizá-las.
Se descobrirmos onde elas estão — disse Molly.
Se elas ainda estiverem vivas — disse Sinclair.
Tudo bem — disse Molly. — Mãos à obra.
Molly ficou de frente para o homem que, até pouco tempo atrás, era uma das pessoas mais importantes do planeta.
Primo Cell, você agora responderá a todas as minhas perguntas — ela lhe disse. — Onde está Lucy Logan? Ela está em segurança? Ela está viva?
Logan... está... na Califórnia. Está hospedada... no Hotel... Beverly Hills.
Uau! — disse Sinclair. — Então ele a deixou por perto para trabalhar para ele quan-do precisasse dela.
Isto é inacreditável — disse Molly. — Mas ainda bem que é assim. Podemos ir logo encontrá-la e desipnotizá-la. — Então, sem ter que se preocupar mais com a pergunta urgente sobre Lucy, Molly ousou fazer uma pergunta ainda mais sombria.
Então, Primo Cell, quantas pessoas você matou?
Oito — disse Cell, tão facilmente como se estivesse lhes contando com quantas pes-soas tinha jogado pingue-pongue. Molly sentiu uma vertigem de horror, mas conseguiu perguntar: — Não sente remorso pelo que fez?
Sinclair suspirou:
Molly, já lhe disse, ele é louco. É claro que não sente.
Remorso? — Cell hesitou. — Uma... parte minha... em... algum lugar... lá no fundo... sente. Mas... eu não tenho acesso... a... esse... sentimento. Davina... Davina Nuttell... é quem me ajuda... a entrar em... contato... com esse sentimento. Mas... fora isso... tem uma parede.
Uma parede? — perguntou Molly.
Uma proibição.
Uma o quê?
Estou proibido de... sentir... meus sentimentos.
Molly franziu a testa. Rocky e Sinclair ajeitaram-se na cadeira. Como um minerador de informações, Molly sem querer parecia ter encontrado um veio inesperado de verda-de.
Você está dizendo, Primo, que alguém o proibiu de deixar seus sentimentos virem à tona? — ela disse, lentamente.
Sim.
Quem o proibiu? — Molly sentiu os cabelinhos de sua nuca se eriçarem com um ca-lafrio estranho e horrível.
Meu mestre — disse Cell.
Quem é seu mestre?
Primo Cell estremeceu como se estivesse tentando se lembrar do nome, mas não conseguisse. Sinclair e Rocky inclinaram-se mais para perto, os olhos arregalados.
Diga — insistiu Molly. Primo começou a sacudir a cabeça como se estivesse tentan-do tirar um tampão da orelha.
A resposta... está presa — ele disse.
Molly pegou a mão de Primo e olhou para seus sapatos.
— Sinclair — ela disse —, ajude Rocky para que ele não congele.
Tão facilmente como se parasse o rolo de um filme em um projetor, Molly parou o mundo.
— Agora — ela disse a Cell — você vai esquecer todas as ordens que recebeu para guardar qualquer segredo. Agora não tem mais segredos. Quem é seu mestre?
Cell começou a babar enquanto se esforçava para dizer o nome.
Slackg Clegg — ele balbuciou. — Slaggg Claack. — Era como se o nome estive preso em suas cordas vocais e não pudesse sair. — Slass Shhhudd. — O sotaque holan-dês ecoou na sala. Petula, dura como um cachorro empalhado, olhava-o fixamente.
Tem uma senha — Sinclair disse, espantado. — O nome foi preso com uma senha. A não ser que ele não esteja nos contando a verdade. Será que ele tem mesmo um mestre?
— Deve haver alguma maneira de descobrir a senha — disse Molly. Ela falou com Cell: — Qual é a senha que tem sido usada para prender as suas instruções?
Não posso... falar — ele respondeu.
Nós vamos ter que adivinhar — disse Sinclair.
Mas isso pode levar um milhão de anos — disse Molly.
— Quer dizer, tem trilhões de possibilidades.
— Faça o mundo se mexer outra vez — disse Sinclair, nervoso. — Aquela sensação de resistência está chegando perto.
— Ele olhou para fora pela janela, para o horizonte de onde a sensação elétrica e formigante parecia vir.
Molly assentiu e soltou o tempo. A água da piscina de curvas começou a fluir, e do lado de fora ela escutou a voz grave de Floresta cantando para suas galinhas.
— Seja quem for que esteja lá fora, controla Cell — continuou Sinclair. — E deve estar procurando por ele neste momento. — Sua expressão era temerosa. — Se chegarem aqui, se for mais do que um, estamos em uma encrenca séria. Eles vão querer o presidente eleito de volta.
A cabeça de Molly girou. Por tudo que sabiam, o mestre ou mestres de Primo Cell podiam estar prestes a irromper pela porta. Se estivessem, havia uma coisa que podiam fazer antes que eles chegassem. Ela pegou um papel e caneta da mesinha de centro e voltou-se com urgência para Cell.
— OK, Primo, quero que você me diga imediatamente todas as senhas que usou com os outros hipnotizadores, com as celebridades, e com todas as pessoas que você hipnotizou, para que possamos libertá-las.
Só existe... uma senha... que sempre usei — sibilou Cell.
Então, qual é? — Molly abaixou a caneta. O ar estava pesado de expectativa en-quanto todos esperavam, mal conseguindo respirar.
— A senha que eu uso é Perfeitamente Pontual. Molly sentiu como se perfurassem seus miolos. Perfeitamente perfurados.
— Perfeitamente Pontual? Mas esta é... — de repente, ela não conseguia mais falar. Essas palavras. Essas duas palavras raramente usadas juntas tinham sido usadas com ela. Usadas para fazer Molly despertar na primeira vez em que foi hipnotizada. Usada por uma pessoa em quem Molly confiava E exatamente essas mesmas palavras eram as usadas por Primo Cell para controlar suas vítimas. Essas não eram as senhas de Primo, eram de outra pessoa.
O cérebro de Molly de repente somou dois mais dois e mais dois. Perfeitamente Pontual era também a senha usada para manter Cell sob controle?
Sem aviso, Molly agarrou as mãos de Rocky e Cell e congelou o mundo outra vez.
— Eu ordeno que você me diga quem é seu mestre — Molly gritou para Primo. — Perfeitamente Pontual.
Esta era a senha que Cell precisava ouvir. A suposição de Molly acertara em cheio. Era não apenas a senha que Cell usava, era também a senha que tinha sido usada com ele.
Imediatamente, Primo obedeceu e disse muito simplesmente:
— Lo-gan é minha mestra.
Capítulo Trinta e Sete
A
boca de Rocky se abriu tanto que se poderia colocar um pedação de queijo dentro dela. Sinclair parecia ter acabado de engolir uma enguia viva. Petula rosnou.
Você quer dizer que Lucy Logan é sua mestra? — perguntou Molly, tentando digerir a informação atordoante.
Lucy Logan... é minha mestra — confirmou Cell. — Quase tudo que faço... é porque Lucy assim... ordenou.
Molly sentiu outra vez a resistência ao congelamento do tempo, mais perto do que antes. Imediatamente, soltou a sensação de fusão e, lá fora, um helicóptero, que fora congelado em pleno ar, continuou seu vôo.
Então Lucy Logan era o inimigo. Lucy Logan, a tranqüila e doce bibliotecária a quem todos pensavam que Cell hipnotizara, tinha sido, durante todo esse tempo, a mes-tra de Cell. E se Sinclair tivesse razão, era Lucy Logan que estava se movendo pelo mundo parado, procurando por seu autômato de ouro, e se aproximando a cada minuto. Molly estava tomada pelo choque. Que o inimigo fosse Lucy era quase impossível de entender. Era a descoberta mais amarga e dolorosa. Ela achava que Lucy era sua amiga.
Todos estavam horrivelmente assustados. Ninguém sabia o que fazer. Deveriam pe-gar Primo e fugir antes de Lucy chegar até a casa? Mas para onde poderiam ir? Não poderiam correr o risco de alguém detectar o presidente eleito hipnotizado. Molly quase podia ouvir o barulho das sirenes de sua captura.
Mas talvez a bibliotecária não tivesse se dirigindo à casa de Sinclair. Talvez ignorasse completamente o fato de Primo Cell ter sido seqüestrado. O que todos sabiam é que suas chances de escapar em segurança seriam maiores se descobrissem o máximo que pudessem de Cell.
Como você conheceu Lucy Logan? — perguntou Sinclair.
Na universidade.
Molly estava freneticamente pensando em uma série de hipóteses impossíveis. Será que Lucy tinha inventado o corvo assassino? Será que Lucy planejara a morte de Molly e Rocky? Claro que não. Lucy estava querendo parar os planos de Cell, não estava?
E de onde é Lucy Logan? — perguntou Molly, na louca expectativa de que houvesse duas Lucy Logans.
Lucy é... de Briersville.
A cabeça de Molly estava a ponto de explodir. Isto não fazia sentido.
— Por que Lucy ia me mandar destruir Primo Cell se era ela quem estava por trás do que ele fazia? — perguntou Molly a Rocky e Sinclair. — Para começar, foi ela quem me fez achar o livro de hipnotismo e aprender a hipnotizar pessoas. Por que teria todo o trabalho de me fazer encontrar o livro se planejava me matar depois? — Molly virou-se para Cell. —Você sabe por que Lucy me mandou ir atrás de você?
O Cell hipnotizado levou um tempo pensando, depois especulou:
Pode ter sido... por causa das... circunstâncias especiais... em relação a Davina Nut-tell. Eu não consegui... hipnotizar Davina. E isto foi algo... fora do comum. Foi... a pri-meira vez... que falhei. Talvez... Lucy tenha suspeitado... de mim por isso. Talvez... tenha se preocupado... achando que a hipnose dela sobre mim... estivesse se... esgotan-do.
Estava?
Não.
Então por que você não conseguiu hipnotizar Davina?
Havia algo estranho nela... a idade... talvez. Algo que me lembrava de... algo que eu tinha... esquecido. Foi quase como se... a amasse... como a uma filha. Meu poder... foi deslocado por ela. Eu não pude... hipnotizá-la, e depois... que ela ficou sabendo... quem eu era... eu não podia deixar... que ela falasse com as pessoas... sobre mim. Portanto... ela teve que ser... raptada. Fiz tudo isso... sem ordens de Lucy Logan. Talvez Lucy... tenha mandado você... para verificar... se eu não estava fazendo... mais coisas sem ordem dela.
— Quando foi a última vez que você viu Lucy Logan? — Onze anos e meio... atrás.
Isto era espantoso. Onze anos e meio atrás foi quando Molly nasceu.
Você quer dizer que ela nunca veio aos Estados Unidos para ver você? Ela ficou em Briersville o tempo todo?
Ela nunca veio me ver. Mas viajou para outras partes do mundo.
— Como ela controla você?
Ela fala comigo toda semana.
E quando foi a última vez que você falou com ela?
Em junho. Logo antes de... anunciar que ia concorrer... à Presidência.
Mas isso foi cinco meses atrás — disse Rocky. — Se ela falou com você todas as semanas durante onze anos, porque de repente parou de falar com você em junho?
— Você sabe a resposta para esta pergunta? Primo Cell encolheu os ombros.
Talvez... Logan tenha achado... em junho... que eu era confiável... e estava tudo cer-to... para a campanha eleitoral... então ela achou... que podia me deixar agir.
Então, depois que você fosse eleito, qual era o plano de Lucy Logan? — Molly per-guntou.
Seu plano... era se tornar a primeira-dama.
Primeira-dama? O que é isso?
É o nome dado à esposa do presidente — disse Sinclair, deixando escapar um asso-bio de espanto.
Minha esposa — disse Primo, com olhar vazio. — Ela planejava... me encontrar logo. Nós devíamos nos... encontrar no "Livros Levam Luminosidade"... um evento de caridade e lá... nos apaixonaríamos. Ela achava que... a idéia... de um presidente român-tico... me tornaria ainda... mais popular... com o povo americano.
Esta era uma idéia tão assombrosa que Molly, Rocky e Sinclair, todos pararam um instante com cara de quem teve o cérebro arrancado a fórceps. Mas, pensou Molly, ela já não se surpreendia mais com os limites da falsidade humana.
— Ela é brilhante — disse Sinclair, com admiração. — Todos esses anos, ela hip-notizou Primo para fazer o trabalho sujo. Para se livrar de todos os hipnotizadores rivais que pudessem ameaçar suas ambições...
Exceto você e Sally — Rocky comentou.
Bem... — pensou Sinclair — ela devia querer que ele tivesse alguns hipnotizadores treinados e domesticados de seu lado, isto é, do lado dela. — Ele ficou soturnamente silencioso.
Pobre Sinclair, Molly pensou. Saber que sua vida tinha sido dominada pelos planos egoístas de uma mulher devia ser horrível.
E então, ela fez Primo enriquecer por ela.
Para que se tornasse tão rico que pudesse gastar mais do que qualquer outro em sua campanha, e vencer — acrescentou Sinclair.
Porque ela queria ser a esposa do presidente — disse Molly. — Devia calcular que na época em que fosse presidente estaria tão rico e poderoso que seria seguro para ela entrar na vida dele. Como primeira-dama, viajaria com ele para todos os lugares. Estaria bem ao lado dele, respirando em seu ouvido e sussurrando o que quisesse como uma serpente. Não era Primo quem desejava dominar o mundo, era ela! — Molly balançou a cabeça com determinação, como se para ajudar a digerir todos os fatos confusos que subitamente haviam se empilhado ali. — Durante todo esse tempo Lucy Logan estava me usando, e no final queria me ver morta — disse, incrédula, e pôs a língua para fora, com repugnância. — E quando fui visitá-la em sua casa, tudo que me disse era mentira. O acidente de carro, a perna engessada, a cara queimada, ela fingiu tudo isso para me convencer a ajudá-la.
Molly lembrou-se daquela extraordinária tarde de domingo. Pensou nas salas cheias de relógios, na câmara secreta, trancada, com as árvores bonsai na mesa e os horríveis sapatinhos de seda na estante de vidro — os sapatinhos usados pelas meninas chinesas cujos pés tinham que ser atados. Tudo isso estava com Logan. Ela era uma atadora de mentes. Molly pensou nas sebes ornamentais, meticulosamente podadas. Agora, em vez de imaginar Lucy como uma pessoa legal cuidando de seu jardim, Molly viu-a como uma espécie de monstro desejoso de controle, cortando as sebes para mantê-las contro-ladas, sem lhes dar sossego com sua natureza selvagem. Molly lembrou-se do grande pássaro de sebe. Era um corvo? Será que representava Primo Cell? E os outros animais — a lebre e o lêmure de folhas e olhões, que Molly pensou que fosse um cachorro. Será que cada um representava uma pessoa sob o domínio de Lucy? Então, um pensamento horroroso lhe passou pela mente. Será que ela também estava sob o poder de Lucy Lo-gan? Era ela o lêmure de olhos grandes?
Você acha que estou hipnotizada por Lucy? — ela perguntou a Rocky e Sinclair.
Não, você não está — disse Sinclair. — Se estivesse, eu teria descoberto isso na praia. Mas é espantoso que não esteja.
É mesmo, não é? — concordou Molly. — Eu me pergunto por quê.
Agradeça a sua estrela da sorte. Mas... — Sinclair subitamente compreendeu que era mínimo o tempo que lhes restava —, pensaremos nisso mais tarde. Agora, é melhor nos concentrarmos em desprogramar Cell.
Essa operação levou um certo tempo, pois tinham que ter certeza de que não havia nenhuma instrução extra escondida dentro dele, com alguma senha diferente. Não havia. Tudo estava trancado com a senha de Perfeitamente Pontual. Era espantoso como a vida de Primo Cell tinha sido controlada.
Molly sentiu pena e quis saber como ele caíra na rede de Lucy Logan.
Mas por que Lucy Logan escolheu você? — ela perguntou.
Porque ela... era apaixonada por mim — disse Primo. — Na universidade, ela me ensinou... tudo o que sei... sobre hipnotismo. Ela me deu meu cristal. Ela... tinha gran-des... planos. Planos... para fazer o mundo mudar e parar... com o sofrimento. Para trazer a paz... ao planeta. Fomos felizes antes.
O que aconteceu? Como Lucy começou com essa loucura?
Foi depois que ela teve o nosso bebê — disse Primo.
Lucy Logan teve um bebê? — espantou-se Molly. — A idéia da nova Lucy assassina não combinava de jeito nenhum com ser mãe. Molly não tinha visto nada em sua casa que sugerisse um filho. Não havia nenhum brinquedo, nem fotos.
Pobre criança. Que mãe para se ter — disse Rocky.
Essa criança cresceu e saiu de casa?
Nosso bebê nunca... viveu na casa de Lucy — disse Primo. — Lucy levou a... criança para... um orfanato. Eu nunca vi... meu bebê. Lucy... nunca deixou.
Que coisa horrível — disse Molly. — Mas em qual orfanato ela deixou a criança? Em outra cidade? — A mente de Molly já tinha peneirado toda criança que ela sabia que esteve no orfanato em Briesville. Se a criança tinha 13 anos, então talvez fosse Cynthia, mas Cynthia era gêmea.
Lar Vidadura — disse Primo Cell.
Ela teve gêmeos? — perguntou Molly.
— Não. Lucy teve... apenas uma criança. Uma menina. Molly pensou. Não poderia ser Hazel. Ela chegara com
seis anos. O coração de Molly de repente latejou de uma maneira densa, dolorosa e uma sensação estranha de acordar de um sonho a transtornou.
— A criança... agora... teria 11 anos e meio — Primo Cell continuou como um rolo compressor.
Molly sentiu flechas imaginárias disparando em volta dela. Mentalmente, tentou se esquivar, porém, por mais que tentasse, não conseguia sair da linha de fogo. A verdade chegara, tão súbita e surpreendente como uma rajada de raios.
Essa criança... ela... foi deixada lá... em., em... uma... em uma — Molly não conse-guiu terminar. Respirou fundo e tentou de novo: — Em uma caixa de caramelo?
Pode ser — disse Primo, simplesmente. — Lucy gostava muito... de caramelos... principalmente... quando estava... grávida. Comia... caixas e mais caixas.
De.... Caramelo Moon? — Molly não queria acreditar em seus ouvidos.
Sim. Essa era... a marca favorita de Lucy — disse Primo Cell, sem nenhuma emoção na voz.
Não. Não, isso não pode ser verdade. — Molly olhou para o outro lado.
Dentro de sua cabeça duas vozes começaram a disputar o domínio.
"Não seja idiota, isso não é verdade", gritava uma, raivosa. "Como confiar num ho-mem desse? Isso não é verdade."
"Não seja imbecil", a outra voz berrava. "De que outra prova você precisa? A ver-dade está bem na sua cara." Molly pôs as mãos na cabeça para conter o barulho ensur-decedor. Rocky colocou a mão no braço dela.
— Você encontrou seus pais — disse, baixinho. Molly agarrou a mão dele.
— Mas... mas quem são eles? — ela disse, atônita. — Não acredito nisso. Não quero acreditar.
Molly sentiu-se totalmente ludibriada. Como uma pessoa que, por toda a vida, pediu uma coisa especial que, de repente, lhe era entregue, mas ao abri-la percebe que estava errada. Molly não gostou do que lhe deram. No entanto, não podia devolver. Era um presente do tipo você-vai-ter-que-engolir e não poderia ser trocado.
Veja só quem eles são, Rocky. Eu não queria encontrar meus pais aqui... agora... as-sim. Eu não quero que eles sejam os meus pais.
Você sempre procurou por eles, Molly — comentou Rocky. — Nós dois. Você tem sorte. Agora sabe quem são seus pais.
Mas meu pai é um assassino — gritou Molly. — Eu não quero ele.
Primo, de olhos vazios, encarava o espaço. Sinclair levantou-se e foi para a cozinha. Não lidava bem com situações emocionais.
Eu não vou contar para ele que sou sua filha. Eu não quero — disse Molly, tremendo com a idéia. Apertava a manga de Rocky. — E, sobretudo, não quero nunca me encon-trar com ela. — Molly pensou em Lucy Logan e se encheu de tristeza.
Você nunca terá de dizer a ele quem você é — disse Rocky. —Você pode tirá-lo do transe agora e ele nunca saberá. Mas, Molly, provavelmente a maior tristeza da vida dele é não conhecer você. Lembre-se, ele foi hipnotizado para não se importar. — Depois, acrescentou: — Você se lembra do que ele disse sobre Davina? Que havia alguma coisa nela que o ajudava a sentir as coisas, apesar de ter sido proibido de sentir. Ele disse que era algo nela, na idade dela, que o fazia lembrar-se de alguma coisa que tinha esquecido. "Foi quase como se a amasse como a uma filha. Meu poder foi deslocado por ela." Lembra que ele disse isso? Apesar de Lucy tê-lo hipnotizado para esquecer você, Davina fazia Primo Cell pensar em você. Entende, Molly? Ele nunca esqueceu você completamente.
Molly assentiu, mas estava transtornada demais para falar. Pegou Petula e saiu da sala para pensar.
Na meia hora seguinte, Rocky e Sinclair terminaram de desprogramar Cell. Disseram que ele agora teria acesso a todos os seus sentimentos, que estava completamente fora das garras de Lucy Logan, que estava livre. Rocky deixou Primo com todos os seus conhecimentos de hipnotismo. E o levaram para o quarto de Sinclair e disseram que dormisse.
Sinclair olhou para Primo Cell desmoronado de bruços na cama circular.
— Ele está exausto devido a tudo o que lhe aconteceu — observou. — Provavel-mente, vai dormir por um longo tempo. Temos que deixá-lo descansar pelo maior tempo possível, assim, quando acordar, sua mente terá absorvido adequadamente a desprogra-mação. E Rocky, no que diz respeito ao país, Primo Cell ainda é o presidente eleito. Devemos mantê-lo escondido aqui, porque se Lucy Logan conseguir pegá-lo antes que ele anuncie que não vai ser mais presidente, ela ainda terá uma chance de conseguir realizar seus planos. Por segurança, vamos trancá-lo no meu quarto. Quando ele recupe-rar a Consciência, e sua cabeça estiver clara, vamos levá-lo ao Estúdio Iceberg para que possa declarar pela TV que não quer mais ser presidente. Assim que fizermos isso, Logan estará perdida.
Assim, trancaram Cell no quarto e passaram a chave. Rocky sentiu pena do homem. Quando acordasse, teria que digerir o fato de Lucy Logan ter roubado 11 anos de sua vida e o usado para seus próprios fins.
Molly quase sentia vertigem com a sucessão de choques que a atingiram. Que Lucy a traiu, que Lucy estava por trás de Primo Cell, já era um choque ruim o suficiente. O fato de Lucy ser sua mãe, a mãe que a queria morta, e que Primo era seu pai, era um choque de voltagem tão alta que Molly não tinha certeza de como iria enfrentar tudo isso. Rocky não podia ajudá-la. Precisava ficar sozinha. Dirigiu-se para o terraço da casa de Sinclair, e sentou-se ao sol.
Capítulo Trinta e Oito
M
olly passou as horas seguintes com Petula, sentada ao sol, no terraço da casa de Sinclair. Fez o possível para digerir suas gigantescas descobertas.
Tentou respirar profunda e calmamente. Fechou os olhos e se deixou levar, como Floresta havia ensinado e, em sua imaginação, olhava para dentro de si mesma. Em sua mente, enquanto ela flutuava sobre Los Angeles, uma grossa linha vermelha a conectava com Primo Cell, e outra linha vermelha reluzente a ligava a Lucy Logan, onde quer que ela estivesse. Molly compreendeu que essas linhas sempre estiveram ali, só que nunca as vira antes. Molly odiava a linha que a ligava a Logan. Mas não havia vontade que pudesse apagar essa linha. Ela estava ligada a Logan, quer gostasse disso ou não. Aquela mulher malvada, implacável, era sua mãe.
Para se sentir melhor, Molly imaginou linhas douradas especiais ligando-a com as pessoas que mais conhecia e amava: Rocky, a Sra. Brincklebury, Gemma e Gerry, e os pequenos
Jinx e Ruby. Molly enviou linhas prateadas, de bronze, verdes, púrpura e azuis para todos os lados. Elas a ajudavam a apagar a horrível linha vermelha que disparava em direção a Lucy Logan.
Lucy Logan. Molly odiava até o nome.
Quando Logan descobrisse que seus planos tinham sido sabotados, com certeza ten-taria colocar tudo de novo nos trilhos. Tentaria fazer de Primo outra vez seu fantoche. Tentaria hipnotizá-lo. Hipnotizaria todos eles. Molly temia pensar como seus poderes hipnóticos deviam ser colossais.
Molly deixou-se subir cada vez mais no espaço, até sentir seu corpo como uma célula microscópica na superfície da terra. Era como se sua mente estivesse flutuando e o-lhando para o lugar onde estava seu corpo, o corpo de Molly Moon. De seu ponto de vista elevado, tentava imaginar onde o corpo de Logan estaria. Fechou os olhos e se concentrou com toda a força, mas, ao mesmo tempo, deixou sua mente relaxar. Molly olhou para as montanhas nubladas de San Gabriel, a distância, mas não sentiu que Logan estava lá. Olhou para o sudoeste, para a praia de Santa Mônica, mas seu instinto lhe disse que Logan tampouco estava ali. Então, ela girou o olho de sua mente diretamente para baixo, para Hollywood. Como se fosse um radar, sentiu que Logan estava ali. E, como quem gira as lentes de um telescópio, Molly focou sua imaginação. Deu um zoom no lugar onde poderia encontrar Logan. Sua mente tornou-se mais clara. Encheu-se da luz do sol e de árvores verdes, como a visão panorâmica de um pássaro. Então, sua visão mental fez aparecer o topo da cabeça de Logan. Molly respirou fundo e deixou a aparição estranha se expandir. Viu Logan subindo por um caminho ladeado de moitas de gerânios e pimenteiras.
Imediatamente, Molly entendeu que estava imaginando o caminho para a casa de Sinclair. E, no momento seguinte, ao abrir os olhos, compreendeu que a visão em sua mente não era imaginária, mas verdadeira.
A campainha da porta tocou. Molly escutou a voz de Sinclair atendendo ao interfo-ne.
Sim?
Sinclair — do lado de fora da porta da frente, veio uma voz grave de mulher. — Sinclair, por favor, você poderia vir até aqui? Sou uma velha amiga de seu pai e gostaria de entrar em contato com ele. Meu nome é Lucy Logan.
Molly mexeu-se imediatamente como se tivesse sido espetada e colocou a mão na boca de Petula, caso ela quisesse latir.
Desculpe — ela escutou a resposta de Sinclair. — Mas se a senhora deseja entrar em contato com Primo Cell, sugiro que marque um encontro com a secretária dele.
Mas, Sinclair, eu tenho que falar...
O interfone fez um barulho de estar sendo desligado. Molly escutou um suspiro frus-trado vindo dali. Lucy tinha sido deixada na soleira da porta. Molly esticou a cabeça e escutou passadas bruscas afastando-se da casa. Assim que percebeu que não corria o risco de ser vista, precipitou-se para a porta do terraço, fechou-a atrás de si, e ela e Petu-la correram escada abaixo para a segurança da casa.
Embaixo, quase caiu em cima de Sinclair e Rocky. Molly pulou.
Molly, tenho....
Já sei. Notícia ruim. Ela está aqui, eu a vi.
Ela deve saber que Primo está aqui — disse Sinclair em pânico, girando o corpo como quem anda sem sair do lugar.
Molly nunca o vira tão assustado. — Você viu para onde ela foi?
Parecia que estava saindo pelo jardim — disse Molly.
O quarto de Primo está trancado? — perguntou Sinclair. Rocky bateu no bolso da calça de Sinclair.
Você mesmo o trancou.
Tranquei também a porta dos fundos. Não tem jeito de ela entrar. É melhor vocês dois ficarem longe das janelas.
Talvez seja melhor acordar Primo e tirá-lo daqui imediatamente — disse Molly.
Arriscado demais — retrucou Sinclair na mesma hora. — Ele ainda está semiconsci-ente. Corremos o risco de prejudicar a desprogramação. De qualquer modo, quem sabe o que vamos encontrar na estrada. — Sinclair começou a esfregar os dedos, como se tivesse trabalhando um pedaço de massa invisível.
Acho que você devia fazer alguns exercícios de ioga. Parece que está prestes a ex-plodir. Você quer que eu chame Floresta?
Floresta! — exclamou Sinclair. — E se Lucy entrou no apartamento dele? Ele cos-tuma deixar a porta aberta. Espero que ele esteja bem.
Ele disse que ia passar a tarde fora — disse Molly.
Espero que tenha mesmo feito isso — sussurrou Sinclair.
Os minutos se passaram. Eles ficaram onde estavam, do lado da porta que dava para a sala de estar, todos lutando contra o medo que lhes subia pela espinha.
— Você acha que ela trouxe mais gente? — disse Molly, torcendo sua manga. — Quero dizer, ela pode ter um pequeno exército pronto para nos emboscar.
Subitamente, Molly e Sinclair sentiram um frio na superfície da pele, embaixo dos cristais que ambos carregavam, e um arrepio percorreu-lhes o corpo. Molly agarrou Ro-cky e, quando o mundo parou, ela o ajudou a resistir. Lá fora, o tráfego parou na auto-estrada do vale. A água na fonte que alimentava a piscina de Sinclair parou no meio da queda. Petula estava imóvel. Tudo estava em silêncio.
— O que ela pretende fazer?
A sensação está vindo daquele lado. — Molly entrou na sala de estar com Rocky, e apontou para o lugar onde as árvores escondiam a estrada que descia a montanha.
Você acha que ela parou um carro da polícia e está hipnotizando o guarda para vir prender você?
— Vou dar uma olhada — disse Sinclair, aproximando-se —, mas não quero me ar-riscar a levar um tiro.
— Acho que devemos pegar Primo e sair agora — disse Rocky. — Se ela está da-quele lado da casa, podemos colocá-lo no carro sem sermos vistos. É possível.
— Talvez devamos correr esse risco — concordou Sinclair. No mesmo instante, o mundo começou a se mover outra
vez.
— Fosse o que fosse que ela precisava fazer parando o mundo, agora já fez — disse Molly. — Não tenho certeza se devemos sair daqui. Quer dizer, ela não sabe que Primo está aqui. Não sabe que Rocky e eu estamos aqui, ela acha que estamos mortos. Se sa-irmos agora, de repente podemos dar de cara com ela ou com algum guarda que ela hip-notizou na estrada. Lucy tirou Primo Cell da gente, e quem sabe o que faria concosco? Temos mais chances se esperarmos que ela chegue à porta. Aqui, temos a vantagem da surpresa. Posso usar meus olhos nela.
Todos se sentaram desconfortavelmente no fundo da sala, em cadeiras de arame em forma de estrela que na verdade não tinham sido projetadas para servirem de assento. Todos esperavam a campainha da porta tocar a qualquer momento. Rocky ficou mexen-do em um buraco no jeans, deixando-o duas vezes maior do que era. Sinclair ficou pas-sando os números de telefone do seu celular como se, ao fazer isso, pudesse conseguir a resposta sobre o que devia fazer a seguir. Molly olhava para o aqueduto que corria a-companhando a sala enorme até a fonte. A fonte constante borrifava suas águas, mas não conseguia apaziguar a tensão. Ondulações vindo da direção oposta encontravam o fluxo da fonte e faziam a água chicotear contra as bordas da piscina. Os olhos de Molly seguiam o aqueduto e sua curva em direção à janela, ela compreendeu, com uma tontura nauseante, que havia outro acesso à casa que eles haviam esquecido. E então ela viu, para seu horror, de onde as ondulações estavam vindo. Alguém estava nadando na pis-cina. Como um pato em uma galeria de tiro ao alvo em uma feira, a cabeça de Lucy Logan estava vindo pela água em direção a eles.
Capítulo Trinta e Nove
D
evagar, a cabeça começou a se erguer e, como uma besta assassina das águas, Lucy Logan levantou-se, pingando água, uma pistola de prata entre os dentes. Já não usava as ataduras nem o gesso que a cobria em Briersville. Petula começou a latir.
Lucy deitou um olhar frio e petrificante em Sinclair, Molly e Rocky. Não parecia em nada a bibliotecária de Briesville que Molly tinha conhecido. Ainda estava usando uma saia de tweed e um cardigã simples — que agora estavam completamente encharcados — e seu cabelo louro estava preso, com sempre, em um coque no alto da cabeça, mas parecia perturbadora-mente diferente. Seus olhos tinham perdido toda a gentileza e seu nariz parecia mais aquilino.
— Não olhe para os olhos dela — arfou Sinclair. Ninguém precisava do lembrete. Molly já tinha fixado os olhos na arma na mão de Lucy Logan.
— E não dê ouvidos a ela.
Mas ela está com um revólver — disse Molly, como se fosse a única a ter percebido isso.
E está carregado — disse Lucy, tão calmamente como se estivesse prestes a fazer um passeio com guia pela casa. Apontou a pistola para Petula. — Faça o cachorro parar de latir ou atiro nele. — Molly agarrou Petula e a fez ficar quieta, instintivamente dando um passo atrás para se distanciar de Lucy. Sinclair e Rocky também fizeram o mesmo.
Onde ele está? — perguntou Logan, erguendo a arma. — Ou vocês me dizem logo onde ele está, ou mato vocês e o encontro, de qualquer maneira.
— Você vai nos matar, seja como for — disse Sinclair. Molly engoliu em seco. A idéia de uma bala, uma bala dura
de aço perfurando seu corpo à velocidade de um raio era aterrorizadora. Mas, mistu-rado com esse medo, outro pensamento a atormentava. Aquela mulher alucinada a sua frente era sua mãe. Logan ergueu a arma.
— Se você atirar, nunca vai descobrir onde Cell está — mentiu Molly. — Nós o desprogramamos e ele está em um lugar seguro, onde nem mesmo você será capaz de descobri-lo.
Lucy Logan abaixou o revólver. Olhou para a cozinha e para a outra porta que con-duzia para fora da sala. O quarto de Sinclair. Encaminhou-se nessa direção, mantendo sua pistola apontada para todos. Tentou abaixar a maçaneta, que não se mexeu. Em voz alta, mas gentil como se fosse lhe dizer que o almoço estava servido, ela chamou:
— Primo?
O que foi? — veio a resposta confusa de Primo. Logan sorriu zombeteria.
Não há dúvidas de que um de vocês tem a chave — ela disse, com polidez.
Molly encarou-a. Era espantoso como agora, porque a odiava, Lucy lhe parecia mui-tíssimo mais feia do que se lembrava.
Ele está desprogramado — disse Molly. — Você nunca mais terá poder sobre ele.
Você subestima minha influência — disse Lucy, friamente. — Assim como subes-timei sua sorte.
Você achou que o corvo tinha nos matado séculos atrás, não foi? — disse Molly.
Sim, pensei que você tivesse morrido. Eu deveria ter tomado minhas precauções e deixado alguma instrução hipnótica em você, caso sobrevivesse.
Você nunca teria me hipnotizado aquele dia na sua casa. Eu estava muito alerta — disse Molly, desafiadora.
Oh, sim, eu teria, se tivesse tentado — disse Lucy. — Eu deveria ter feito isso. Seria muito menos cansativo agora se você ainda estivesse sob meu domínio. Mas as chances de um espécimen como você sobreviver a Cell eram muito pequenas.
Petula rosnou.
Pequenas para você, mas seu microscópio obviamente quebrou — disse Molly. Lo-gan a ignorou e apontou a arma para Sinclair.
E suponho que você teve alguma coisa a ver com o fato de ela ter escapado. Lembro-me de ter visto fotos suas, Sinclair, quando você era um menino maltrapilho de circo. Primo e eu estávamos errados a seu respeito. Pensei que você tivesse potencial. Pensei que fosse confiável. E você — ela disse, olhando para Rocky —, acho que você era mais talentoso do que imaginei.
Os olhos azuis, inflexíveis, passaram pelos três, com desprezo.
— Vocês estão percebendo que tenho que me livrar dos três, ou hipnotizando-os ou metendo-lhes uma bala. Então, qual das alternativas vocês preferem? Meus olhos ou as balas? A decisão é de vocês.
Ninguém disse nada. A paciência certamente não era uma das virtudes dela pois, sem ter resposta, Logan disse abruptamente:
— Na verdade, já não agüento mais vocês. Vou matar os três. Adeus.
Apontou a arma para Rocky.
Molly viu o dedo de Lucy se mexendo para apertar o gatilho do revólver. No mesmo instante, percebeu que isso não era uma brincadeira. Lucy Logan ia atirar em Rocky. Com uma velocidade que não sabia possuir, Molly convocou a sensação de fusão do próprio ar e, instantaneamente, parou o mundo. Naquela fração de tempo, o primeiro nanossegundo de um grande barulho atingiu seus ouvidos.
Tudo ficou imóvel. Exceto Logan, Molly, Petula e Sinclair. E uma bala estava sus-pensa a oito centímetros da garganta de Rocky, como um míssil congelado no ar. Logan sorriu e apontou sua arma para Molly.
— Boa tentativa — ela disse. — Tente parar esta agora. Molly ficou confusa. Ela já estava mantendo o mundo
parado. Poderia pará-lo de novo, por cima do primeiro mundo congelado? Ela man-teve completamente parado o mundo da bala congelada dirigida a Rocky. Olhou para o punho de Lucy, tentando sentir quando ela apertaria o gatilho de novo. Sinclair mergu-lhou para trás de uma cadeira.
Molly viu o tendão do punho grosso de Lucy erguer-se lentamente e viu quando ela escolhia o momento. Outra vez, o tempo parou. Molly tinha calculado perfeitamente. Desta vez, uma bala ficou pendurada no ar entre ela e Lucy. Essa bala estava a caminho do peito de Molly.
— Hummmmmm — comentou Lucy. — Esta teria atingido seu coração.
Molly não podia se deixar vencer por seu medo entorpecedor. Tinha que permanecer lúcida, ou morreria. Até esse momento, ela não sabia que o tempo podia ser parado por cima de um tempo já congelado. Olhou para Sinclair para ver sua reação, mas agora ele também era uma estátua, como Rocky. Molly rapidamente baixou Petula para trás do sofá, onde ela também ficou rígida.
Molly se perguntou quantas vezes seria capaz de parar o mundo. Mas não havia muito tempo para se admirar, porque Lucy estava prestes a matá-la. Lucy disparou sua terceira bala. Outra vez, Molly congelou o tempo. Por um momento, Logan e Molly tiveram sua atenção desviada para resistir ao congelamento.
Logan levou um momento para se ajustar ao novo tempo, depois rosnou:
— Você está se exaurindo, Moon, e logo vou pegá-la. Disparou de novo.
Uma quarta bala. Uma quinta. O terror varria Molly enquanto Logan apontava o re-vólver para sua cabeça, seu coração, a barriga. Molly tremia ao parar o mundo pela oitava vez. Por pouco, não era tarde demais. Uma bala ficou suspensa no ar a dois centímetros de sua testa. Molly se jogou para trás do sofá.
Você agora está quase sem balas — ela gritou através da neblina congelada que es-tava começando a se erguer da água da piscina e encher a sala.
Você está assistindo a filmes demais. Acabei de recarregar — disse Logan. Molly deu uma olhada ao redor do lugar onde se escondia. Logan a viu e atirou de novo, mas o som parou instantaneamente quando Molly congelou tudo mais uma vez. Molly tremia. Logan tremia. A sala estava começando a ficar muito, muito gelada.
Você é uma covarde — disse Molly, arfando. — Isto só seria justo se eu também ti-vesse um revólver.
Não sou covarde — disse Logan. — Mas gosto de ter uma vantagem injusta, só isso. Afinal, eu tenho que vencer, Molly.
Logan franziu a testa. Realmente não gostava de brincar de gato e rato com essa me-nina. Queria terminar logo com isso. Todas essas paradas do tempo eram muito cansati-vas. Pior ainda era reconhecer que nunca suspeitara que Molly fosse tão boa. Parar o mundo tantas vezes requer extrema concentração. Logan nunca pensara que uma criança fosse capaz de fazer isso. Mas também sabia que, como dobrar um pedaço de papel vá-rias e várias vezes, no final seria impossível dobrar mais o tempo. Logan sabia disso e, no final, Molly não teria como escapar de suas balas. Assim, embora sua força estivesse sendo testada ao extremo, sabia também que venceria. Apontou o revólver.
Os dentes de Molly estavam batendo. Cada vez que forçava a sensação de fusão fria era como se o mundo sugasse o calor para fora de seu corpo. Agora uma neblina gelada estava cobrindo tudo na sala. O corpo de Lucy Logan ainda era visível, mas Molly mal conseguia detectar o movimento de seu dedo contra o gatilho da arma. Estava tanto sentindo quanto vendo quando Lucy ia atirar.
A visão de Lucy Logan também estava embaçada. Também estava ouvindo mal. Era como se estivesse em um avião gelado a uma atitude muito grande. Atirou em Molly, mas, dando um passo em falso, viu que tinha atirado no casaco pendurado na cadeira e não na menina. Viu uma figura nebulosa mover-se para sua esquerda.
O mundo congelou outra vez — desta vez antes de Logan atirar. Ao resistir dessa vez, suas pernas ficaram paralisadas de frio. Ela se agarrou ao que estava em sua frente para se firmar. Já deviam estar chegando à dobra impossível. Se ela estava enfraquecen-do, a menina certamente estava prestes a desmoronar. Lucy tinha a vantagem. Treinara a mente durante anos. Ela venceria esse combate, sabia que venceria. Sentiu seu cristal sob o cardigã molhado — mais frio do que gelo. Com grande esforço, falou.
— Então, Molly, órfã Molly, como se sentiria se eu lhe dissesse que sei quem são seus pais?
Por trás de uma cadeira perto da janela, Molly respondeu:
— Diria que é notícia velha. Você chegou muito tarde, Logan... eu sei que você é minha mãe e sei que Cell é meu pai e, não se preocupe, já reneguei vocês.
Molly estava lutando pela vida. Sua espinha dorsal estava fria como um pingente de gelo. Parecia que ia quebrar. O gelo do cristal em seu pescoço feria sua pele, como se congelasse a própria alma. Molly pensou em como odiava Lucy Logan. Não podia acre-ditar que existisse uma pessoa tão louca, tão má. Mas o que tornava tudo mil vezes pior era que aquele vício humano que brandia o revólver era de sua carne e sangue. Durante toda a vida ela quis saber quem era sua mãe. Tinha sonhado com uma pessoa gentil, inteligente, engraçada. A realidade era essa assassina megalomaníaca. Molly a odiava por ter destroçado seus sonhos. Não deixaria Logan destruir também sua vida. Mas es-tava tão gelada.... tão tão gelada... e tão cansada.
Molly fechou os olhos. Por trás deles, viu-se a si mesma na sala com Lucy. Então, como lhe era tão natural, imaginou que se lançava de seu corpo como um foguete pelo espaço. Em um milésimo de segundo estava lá.
Desta vez, o espaço era diferente. Molly viu o mundo inteiro, parado, lá embaixo. Ao seu redor, viu os planetas parados em suas órbitas, as estrelas na galáxia imóveis por um momento no tempo.
Molly sentiu o espaço a seu redor se esticando para sempre, pela eternidade. Nessa vastidão imóvel, sentiu-se mais diminuta que o diminuto, como um grão de poeira, me-nor de que isso. Sentiu-se tão pequena que era praticamente nada. Encontrou dentro de si mesma o nano do pequeno.
E, no entanto...
Os sentimentos de pequenez de Molly mudaram. De repente, Molly ficou impressi-onada com sua grandeza. Por causa dela, o universo estava parado. Por causa dela, todos os elementos — terra, vento, fogo e água — estavam imóveis. Molly sentiu-se pequena, depois grande, muito grande, e outra vez nanopequena e gigantescamente grande. Sen-tiu-se completamente unida ao universo, e um sentimento enorme de amor por todas as coisas a preencheu.
Muito, muito abaixo dela, sentiu o movimento de Lucy Logan no mundo. O mundo pareceu dar a Molly a idéia do Pólo Norte. O gelo, ela compreendeu, não sentia frio. Se ela penetrasse na essência do gelo, talvez também não sentisse frio. Deixou sua mente relaxar, deixou seu corpo relaxar no gelo. E subitamente Molly parou de sentir frio. O cristal em seu pescoço estava quente. Ela soube que poderia parar o mundo outra vez.
Molly não sentiu mais resistência. Era a única coisa que se movia no universo. Em todos os lugares, a vida estava imóvel. Molly sentiu-se tão só que parecia estar morta, só que não estava morta, estava viva. Por um segundo, espantou-se por estar só. Era ela realmente a única criatura consciente na vastidão do espaço e do tempo? Molly sentiu que embora tudo o mais estivesse imóvel, a essência da vida, a força dentro e fora dela, a observava. E agora ela realmente se sentia como um espécimen sob uma lente de au-mento misteriosa e enorme.
Molly abriu os olhos. Agora, em vez de nebulosa e gelada, a sala estava cheia de co-res. Estava clara e parada. E Lucy Logan estava congelada com um olhar de ódio e dor no rosto.
Molly andou pela sala e cuidadosamente pegou cada bala congelada de sua posição flutuante. Atirou-as todas pela janela. Depois, tirou o revólver da mão de Lucy e verifi-cou se havia outra arma escondida em suas roupas.
Satisfeita ao ver que a inimiga já não estava armada, Molly levou os olhos para o pico hipnótico. Posicionou-se de maneira a ter os olhos de Lucy olhando diretamente para os dela. Depois, tocando seu ombro, deixou o movimento fluir para ela outra vez.
Se ainda restava alguma energia em Lucy Logan para combater Molly, ela foi extra-ída em um segundo. Antes mesmo de recuperar a consciência, antes mesmo de compre-ender que tinha congelado e começado a se mover outra vez, os olhos de Molly domina-ram os dela.
Lucy Logan estava hipnotizada.
Capítulo Quarenta
— V
ocê está completamente sob meu poder — disse Molly. — Entendeu? Lucy Logan assentiu e Molly olhou em seu rosto, tentando ver se havia alguma semelhança entre ela mesma e essa criatura horrível. Seu queixo era mais pesado e seu rosto mais ossudo do que Molly se lembrava. Seu corpo era magro e rígido. Molly desejou não ficar assim quando crescesse.
— De agora em diante — declarou —, você concordará em jamais levar a cabo os planos que tinha antes desse encontro. Agora você tem tudo de que precisa. Não vai lembrar mais como hipnotizar nem pessoas, nem coisas. Não vai lembrar mais como parar o mundo. Quando sair desse transe, você vai se comportar tão bem como... — Molly tentou pensar em algo sempre doce e equilibrado... — como um cordeirinho. — Molly parou. O passo seguinte seria essencial para alguém perigoso como Lucy Logan. — É essas instruções estarão trancadas para sempre em você com palavras que você não vai recordar. Essas palavras são... — Molly deu uma olhada na mesinha de centro. — Caramelo Moon. — Depois, acrescentou: — Quando eu bater palmas, você vai acordar.
Molly largou o ombro de Lucy e imediatamente a bibliotecária congelou outra vez. Molly tirou o cristal do pescoço dela. Por fim, ficou em pé com os braços para baixo e relaxou. Deixou a sensação de fusão gelada fluir para fora através das pontas de seus dedos. As camadas de congelamento que ela forçara no tempo se dissolveram, até que o tempo que capturara Rocky e Sinclair e Petula recomeçou seu movimento e também o mundo inteiro. As balas que Molly atirara pela janela explodiram a determinados inter-valos. Molly caiu sentada no sofá.
Rocky e Sinclair demoraram um segundo para registrar onde todos estavam.
— Está tudo bem — disse Molly. — Ela não atirou em ninguém. E já não é mais perigosa.
Logan sorriu benévola para todos eles e disse:
— Béee... béée... béé.
Rocky atirou uma almofada no ar.
— Oba, Molly! Você conseguiu!
Molly deitou a cabeça no encosto do sofá.
— Sim, consegui. Mas, nossa, como estou cansada! Sinclair pegou na mesa o re-vólver prateado de Lucy e o examinou. Depois, levou-o e trancou-o no armário.
Rocky sentou-se ao lado de Molly e pôs a mão no braço dela.
— Obrigado, Molly — disse.
Primo começou a bater na porta do quarto de Sinclair.
— É Lucy? — ele disse. — O que está acontecendo aí?
Podemos deixá-lo sair agora — disse Molly. Rocky abriu a porta.
Lucy Logan está aqui? — perguntou Primo, entrando na sala. — Onde ela está? — Ele olhou para Lucy e depois por toda a sala. — Onde?
Molly olhou para a mulher que tinha hipnotizado Cell todos esses anos. Obviamente, ele não a via há tanto tempo que não a reconhecia mais.
Aí está ela — disse Molly. — Ela ficou mais velha.
Não seja ridícula — disse Primo Cell. — Esta não é Lucy. Esta pessoa é... uma im-postora. — E, indo direto para ela, agarrou-a pelo braço.
Quem é você? Onde está a verdadeira Lucy Logan? — ele perguntou, agressivo.
Com voz de carneirinho, a pessoa zurrou:
— Ela está no Parque Briersville.
Molly ficou perplexa. Examinou a mulher a sua frente e de repente ficou completa-mente claro que essa mulher não era, de jeito nenhum, a Lucy Logan que Molly conhe-cera. Parecia-se muito com Lucy, mas seus traços eram mais grosseiros. Seu nariz, maior. Sua constituição, mais rígida. Molly tinha achado que Lucy parecia mais feia do que a mulher gentil que conhecera na biblioteca, mas não questionou isso. Agora, enquanto examinava o rosto e o corpo, era óbvio que não eram de Lucy. E esta pessoa não era a sua mãe.
A verdadeira Lucy está bem? — perguntou Molly.
Sim, está bem trancada e em segurança.
E então, quem é você?
Eu — a pessoa disse docemente, e então, como se achasse difícil dizer as palavras, afirmou: — Ora, eu sou C-Cornelius Logan.
C-Cornelius? Mas este é um nome masculino — Molly gaguejou.
Sim, é verdade. — A voz da pessoa de repente baixou para um tom mais grave, masculino. — É claro que é um nome masculino. Eu sou um carneiro.
Capítulo Quarenta e Um
— U
m o quê? — disse Rocky, suas sobrancelhas quase saindo da testa. — Você está brincando. Cornelius Logan assentiu.
É verdade. Eu sou um carneiro — ele disse, e começou a pular pela sala, como se contar isso a todos fosse um grande alívio para ele. — Béeee — ele balia e trotava, seguindo ao lado do sofá da janela panorâmica. Petula rosnou para ele.
Um homem? Mas por quê?
Porque foi assim que nasci — declarou Cornelius Logan, a meio galope ao redor do sofá.
Cornelius Logan! — disse Primo Cell. — Há anos não escuto esse nome. — Ele se virou para os outros. — Ele é o irmão gêmeo de Lucy. É por isso que se parece com ela, como se fosse um esboço malfeito da irmã.
Todos olharam para a criatura estranha que agora trotava pelo chão com um casco imaginário. Seu disfarce de Lucy Logan, que durante os últimos 20 minutos os conven-cera — o cabelo em um coque, a saia da bibliotecária discreta e o conjunto de cardigã e pérolas —, estava agora começando a se desfazer. Quando ele balançou a cabeça, a pe-ruca escorregou para um lado. Depois, quando começou a galopar pela beira da piscina, puxou a barra da saia molhada e todos viram que as pernas embaixo eram peludas e tortas e nada tinham de femininas. Quando rasgou o cardigã, apareceu um macacão de manga curta, revelando também seus braços musculosos.
A mente de Molly voltou veloz para aquela tarde em março — para Cornelius vesti-do como Lucy Logan no chalé de Briersville.
De repente, ela compreendeu que esse homem a enganara brilhantemente. O gesso em sua perna e as ataduras tinham sido um disfarce esperto. Cornelius sabia que as cri-anças são ensinadas a não olhar muito para alguém que tenha algum problema. E, claro, Molly não quis ficar olhando para o rosto machucado. Em vez disso, olhou para as unhas pintadas de esmalte rosa nos dedos que saíam do gesso, e foi completamente enganada. Molly concentrou-se. Devia haver alguma pista. De repente, lembrou-se de como Cornelius falou baixinho naquela noite que ela telefonara do hotel — ela o pegara des-prevenido.
Normalmente, você usa roupas de homem? — ela lhe perguntou.
Claro que sim. Você acha que gosto de me vestir de mulher? — baliu Cornelius. — Você acha que gosto de falar nessa vozinha aguda idiota? — Riu com grande alívio. — Bééé! Eu tinha que me vestir de Lucy, tinha que fazer isso para conseguir que Molly viesse investigar Cell, compreendem? Ele estava se comportando de maneira tão estra-nha, não foi capaz de hipnotizar Davina e, depois, com aquele seqüestro que eu nunca autorizei. E é claro que eu tinha que ficar para trás para enfraquecer Lucy outra vez.
— Outra vez? Como assim?
— A verdadeira Lucy Logan, minha irmã Lucy — Cornelius explicou com um ba-lido —, há anos está sob meu poder. Há 11 anos e meio. O mesmo tempo que Cell. Eu tinha Cell e ela sob meu poder. Era genial. Era maravilhoso. Eu planejava enviar Lucy para casar com ele. Ela seria a mulher do presidente. E eu, Cornelius, controlaria os dois. Béééé, rá, rá.
A essa altura, Primo Cell sentou-se. Estava com um tom verde-claro.
— Acho que vou vomitar — disse. E, com isso, lançou-se para o banheiro de Sin-clair.
— Coitado — disse Rocky.
— Isto deve ser um choque horrível para ele — disse Molly.
Cornelius, sem considerar os problemas de Cell, continuou:
— Tudo estava indo bem até Lucy conhecer Molly Moon na biblioteca.
Molly recordou o primeiro encontro das duas.
— O que aconteceu, então? — ela perguntou.
— Bem, algo com que eu não havia contado — baliu Cornelius. — Embora eu a ti-vesse hipnotizado para esquecer a filha, e embora a tivesse hipnotizado permanentemen-te, quando Lucy conheceu sua filha, Molly Moon, e conversou com ela, por algum mo-tivo a hipnose trancada começou a se destrancar e se desemaranhar. Vocês podem bééeé imaginar?
Molly sentiu um caroço na garganta.
Assim que se lembrou béééé do bebê — disse Cornelius — Lucy me desafiou, o que foi tolice dela, pois eu, claro, estava na posição de derrotá-la. Ela sempre se deixou levar pelo coração. Mulherzinha boba! Devia ter usado a cabeça.
O que você fez com ela e quando foi isso? — perguntou Molly.
Eu a tranquei em um quarto em Parque Briesville. Foi no começo de janeiro. Desde então, estava tentando enfraquecê-la e depois hipnotizá-la de novo para que meus planos pudessem voltar aos trilhos. Vocês acham que eu queria usar roupas de mulher para sempre? — Cornelius riu como louco e puxou suas pérolas. O cordão se rompeu e as pérolas voaram pelo chão como feijões derramados. — Eu nunca devia ter deixado béééé Molly Moon achar o livro de hipnotismo.
Por que deixou?
Porque eu estava impaciente para ver quais eram seus poderes. Eu a coloquei naquele orfanato, tantos anos atrás, para que não crescesse de maneira normal. Queria que ela sofresse. Esperei 11 anos para bééé seu poder começar a aparecer. Então, eu a deixei encontrar o livro. Béééé. Que idiotice a minha. Ela era muito parecida com a mãe para ser útil para mim. E, claro, era mais poderosa do que eu. Eu sou gêmeo, portanto, meu poder estava diluído com o de minha irmã, mas o de Molly estava concentrado. Como fui tolo. Não devia jamais ter usado Molly para saber o que estava acontecendo com Cell. Nunca imaginei que seus poderes seriam tão grandes. Tão cedo. — Cornelius co-meçou a puxar seu macacão, com força.
Acho melhor você lhe dar alguma coisa para vestir — Molly disse a Sinclair. — Ele quer tanto voltar a seu verdadeiro ser, que logo vai estar sem roupa.
Realmente, Cornelius Logan já havia tirado o macacão, revelando uma roupa de baixo esquisita. Estava recheada para fazer parecer que tinha seios.
Incrível! — disse Rocky. — Ele não passaria por metade da cidade com esse disfar-ce.
Passava sim — disse Sinclair, que agora estava rindo, aliviado. — Venha, Cornelius, vá até meu quarto e pegue uma das minhas roupas. Tem um conjunto de moletom azul, pendurado no armário, que deve lhe servir.
Em linha reta, Cornelius foi para o quarto de Sinclair. Quando ele desapareceu, Molly olhou para Rocky e os dois começaram a rir. Ver Cornelius trotando pela sala enquanto tirava suas roupas tinha sido muito inesperado e um tanto chocante, mas agora era tão engraçado que não conseguiam parar de rir.
Depois de cinco minutos, ainda estavam gargalhando.
— Não é assim tão engraçado — disse Sinclair. Mas Molly e Rocky sequer o escu-taram, e quando Cornelius saiu do quarto vestido com um conjunto de moletom, mas de peruca e maquiagem, e começou a mordiscar um vaso de samambaia perto da televisão, eles começaram a gargalhar de novo.
Finalmente, conseguiram se controlar.
Poxa! — disse Molly. — Por um momento, eu pensei que esse cara fosse minha mãe.
É, foi horrível — Rocky disse. — Pelo menos agora é só seu tio. — E começaram a gargalhar de novo.
Essa histeria, na verdade, era uma maneira de aliviarem a tensão. Desde que chega-ram a Los Angeles, Molly e Rock tinham estado sob pressão. Era realmente bom se sentirem livres de novo.
Quando conseguiram pôr todas as risadas para fora, Molly foi à cozinha preparar pa-ra si mesma um sanduíche com ketchup e meio copo de suco de romãs concentrado. Rocky preparou um sanduíche com torradas e um copo de Qube. Quando voltaram, Sin-clair estava fazendo perguntas a Cornelius e, relaxados no sofá, eles escutaram a verdade que ia saindo da sua boca pintada de batom.
Cornelius Logan tinha entrado na piscina a partir da estrada que passa por baixo do aqueduto de Sinclair. Parara o mundo para posicionar um caminhão que funcionasse como uma plataforma perfeita de onde subir. Esclarecida essa pequena questão, Sinclair exigiu respostas para as questões mais importantes.
Embora a verdadeira Lucy Logan tenha vivido na casa em Briersville, de onde, em seu estado hipnotizado, fizera a pesquisa para Cornelius, ele vivia no Parque Briesville, uma gigantesca mansão fora da cidade. De lá, controlava as operações. Passara anos estabelecendo as fundações de seu poder e, assim, em vários países já controlava os chefes de polícia, os comandantes dos exércitos, os editores de jornais e os controlado-res das estações de TV
Mas o ponto central dessa estratégia engenhosa estava nos Estados Unidos. O plano de Cornelius era casar Primo Cell, seu presidente hipnotizado, com a discreta e despren-tensiosa bibliotecária, a hipnotizada Lucy Logan. Assim que ela se mudasse para a Casa Branca como primeira-dama, então ele, Cornelius, também mudaria. A partir daí, viajaria pelo mundo com sua irmã gêmea e o esposo, o presidente Cell.
— Nós seríamos... bééé... um trio invencível. Eu seria supremamente importante. Os outros países.... bééé... se uniriam aos Estados Unidos que um dia se chamaria... bééé... Logânia.
Eles escutaram Cornelius contar a inveja louca que tinha da irmã. Na verdade, há anos, quando Lucy Logan estava esperando seu bebê, Cornelius ficara com tanta inveja de sua felicidade que hipnotizou o futuro marido, o jovem Primo Cell e, depois que Lucy deu à luz o bebê, aproveitou sua mente exausta para hipnotizá-la também.
Ele se livrou da criancinha, colocando-a em uma caixa vazia de caramelos e deixan-do-a na porta do Lar Vidadura. E foi assim que tudo começou.
Quando terminou a história, os olhos de Cornelius estavam piscando, exaustos, e sua cabeça ficava querendo se acomodar de um lado.
— Nunca fui bom com ninguém... bééé... Foi por isso que tive que usar Cell como meu presi... béeéé...dente.
Molly estava enjoada de escutar a voz dele. Sentia repugnância por esse louco cruel que tinha desviado sua vida.
— Bom, de agora em diante, você esquecerá seu passado — disse ela, de repente — e ficará feliz em fazer isso. E agora vai tirar uma longa soneca. Quando acordar, não quero ouvir nenhuma palavra sua sobre sua vida horrível, a menos que eu lhe pergunte.
Cornelius Logan assentiu e, se enrodilhando no chão perto da lareira, caiu em um sono profundo. Molly puxou uma manta e olhou para as chamas, seus pensamentos in-terrompendo-se apenas pelos fungados do louco Cornelius.
— Bééé... — ele balia. — Nãããooo — zurrava. E implorava: — Por favor, não me coma.
Capítulo Quarenta e Dois
Q
uando Molly despertou, já anoitecia. Dormira tão pesadamente que um lado de seu rosto estava quente e vermelho. Ao abrir os olhos, viu Cornelius Logan quieto, enrolado no chão. Rocky e Primo estavam sentados à mesa de café, bebendo alguma coisa em canecas, e atrás deles Los Angeles brilhava, elétrica. Primo parecia deprimido. Estava contando a Rocky as coisas que fizera sob as ordens de Cornelius. Molly embrulhou-se em sua manta e se aproximou para se sentar ao lado deles. Por um momento, perguntou-se se Rocky teria contado a Primo que ela era sua filha. Mas sabendo com certeza que o amigo não teria feito isso, relaxou.
Olá, você acordou — disse Primo, sorrindo. Apontou para Cornelius. — Acho que ele está desmaiado.
Hipnotizado — disse Molly.
Ele estava um pouco hipno... passado, não estava? — disse Rocky, e todos riram.
E como — disse Primo, agora sério. — Vou precisar de um longo tempo para aceitar o fato de que, por 11 anos, vivi como um robô com controle remoto. Eu teria levado minha vida de maneira bem diferente se não fossem os cordões puxados por Cornelius Logan.
Molly e Rocky não sabiam o que dizer para fazê-lo se sentir melhor. Os dois sabiam como se sentiram lesados quando descobriram que alguém tinha tomado um tempo da vida deles e decidido como deveriam passá-lo. Primo, eles achavam, tinha se divertido uma parte do tempo mas, ao contrário deles, fora obrigado a se comportar de maneira realmente má.
Tente pensar nas coisas boas que lhe aconteceram — sugeriu Molly. — Quero dizer, você tem um monte de amigos. Agora você pode realmente curtir a amizade deles.
Eles foram hipnotizados para gostar de mim, Molly. Quando eu libertá-los, não me acharão mais tão bem-sucedido, divertido e brilhante.
Alguns acharão.
Talvez.
— E olha, você ainda tem muitas empresas boas que são suas e pode administrá-las. Ainda vai ter suas estações de TV E pode fazer todas as coisas que Cornelius nunca deixou que você fizesse.
— Isso é verdade.
E você é muito, muito rico — disse Rocky. — Pelo menos, tem toneladas de dinhei-ro.
Não há como comprar o tempo de volta — disse Primo, desanimado. — Onze anos de minha vida foram roubados de mim. E, pior do que isso, você não pode comprar o amor. Ninguém me ama. Ninguém. Não tenho nem mesmo um cachorro ou um peixinho de aquário que me ame.
Molly sentiu pena de Primo porque o que dizia era verdade. Não sabia como animá-lo. Só sabia que, por enquanto, não ia contar que era sua filha há tanto tempo perdida. Não queria uma grande cena dramática.
— Escuta, Primo — ela tentou. — Sinto muito por você, e sabe de uma coisa? Não acho que teria esse sentimento se não o amasse um pouco.
— Eu digo a mesma coisa — disse Rocky.
— O amor tem que começar de algum lugar, e como você vê, já começou em nós dois, se é que você entende o que quero dizer. Portanto, você não está sozinho. Estamos com você.
— Petula fez um pequeno barulho de conforto como "Uf", como se também ela amasse Primo um pouco.
— Obrigado a vocês três — disse Primo. — Mas não mereço isso. — Seu rosto fi-cou sombrio e, sem querer, ele tremeu.
— Sinto muito. Fico recordando as coisas que aconteceram e de repente elas me enchem de sentimentos horríveis, oh.... — Primo fechou os olhos, como se sentisse uma dor.
— É porque durante anos você foi proibido de ter qualquer sentimento — disse Molly. — Cornelius proibiu-o de sentir qualquer coisa. Agora, os sentimentos estão saindo aos borbotões das prisões em que estavam.
Primo suspirou, com tristeza.
— Estão mesmo — ele disse. — Não posso acreditar no que fiz.
Molly olhou para seu pai. Compreendeu que, nos próximos anos, ele sofreria. Levaria anos para superar seu passado. Não havia como Rocky, Sinclair e ela ajudarem-no. Então, ela se lembrou de Floresta.
Molly encontrou Floresta no andar de baixo, comendo brotos de alfafa e desembru-lhando alguns cristais regeneradores que trouxera.
— Ei, Molly — ele disse. — Que bom você estar aqui. Pode me ajudar a pendurar este mapa do corpo humano. Veja, se estiver com dor de cabeça, você pode se livrar dela pressionando a protuberância arredondada debaixo do dedão de seu pé.
Acontece que Floresta sabia tudo sobre Primo Cell e hipnotismo. De fato, foi ele quem tinha encorajado Sinclair a romper os laços com o pai. Quando Floresta soube que Cornelius tinha roubado anos da vida de Cell, revirou os olhos e riu.
— Noossa! Tem gente mais louca que galinha sem cabeça. E quando Molly pediu que ajudasse Primo a se recuperar, ele retrucou:
— Molly, isso para mim será um prazer cósmico.
Claro que nem tudo será muito bom — disse Molly. — Ele matou gente.
Matar gente não é bom — disse Floresta. — Mas não se esqueça de que Cell não es-tava no controle de si mesmo quando fez isso. Posso ajudar, Molly, não se preocupe. Lembre-se: eu vivi com canibais.
Molly deu um abraço em Floresta.
E você ajudará também no caso de Davina Nuttell? Descobrir como tirá-la de lá sem que ela saiba onde esteve e tudo isso?
Farei o que você deseja — disse Floresta.
E, Floresta — ela perguntou —, poderia me fazer um último favor? Por favor, não conte a Primo que sou filha dele. Eu não quero passar por toda essa barra pesada agora. Estou feliz do jeito que estou.
Com certeza, está — disse Floresta, passando-lhe um enroladinho de gengibre e nabo com tofu. — Você é uma menina legal, Molly.
Obrigada, Floresta — disse Molly, pegando o trocinho de vegetais. — Isto parece... interessante. Vou comer lá em cima.
Capítulo Quarenta e Três
M
olly e Rocky estavam loucos para reencontrar todos os amigos do orfanato, assim que possível. E, no dia seguinte, a oportunidade perfeita se apresentou.
O retumbar do trovão, o filme do qual Petula participara, teria sua estréia naquela noite. Dirigido por Gino Pucci, e estrelando Gloria Tiammo, a noite prometia estar cheia de artistas, glamour e animação. Primo ainda não tinha desipnotizado nenhuma de suas celebridades e, a pedido de Molly, convidou a maioria a ir. Molly sabia que todos do Lar da Felicidade adorariam isso, especialmente a Sra. Brinklebury e Hazel. Queria lhes proporcionar uma noite da qual jamais se esqueceriam.
Assim, no dia seguinte, enquanto Primo Cell assumia a grave missão de informar ao Congresso e ao mundo que não queria ser presidente, Molly assumiu a tarefa mais pra-zerosa de levar Petula ao Salão de Beleza Poodle da Bella. Depois, foi providenciar roupas para que ela e Rocky tivessem o que usar.
Às seis horas da tarde, Cell estacionou seu Rolls-Royce favorito ao lado do Aston Martin no estacionamento da mansão de Sinclair. Rocky, Molly, Petula, Sinclair e Flo-resta desceram pelo elevador, todos arrumados e prontos para a grande festa. Floresta ainda estava com meias e chinelos mas, como era uma ocasião especial, usava a calça de algodão cru e a camiseta favorita que dizia "Reciclem os Caretas".
Lamentavelmente, Cornelius teve de ir com eles, pois ninguém ficou à vontade com a idéia de deixá-lo para trás. Vestido com um conjunto de moletom cinza e com uma barba espetada, parecia razoavelmente normal, embora acompanhasse a marcha do carro colocando a cabeça para fora e balindo de animação. Todos o ignoraram.
Chegaram ao Hollywood Boulevard, onde todos desceram e se dirigiram ao cinema.
Ao se aproximarem da entrada cheia de gente e iluminada, o coração de Molly bateu forte. Mal podia conter a expectativa de rever sua velha família do orfanato.
E, de repente, ali estavam eles, de pé na calçada, todos bem-vestidos e obviamente tão empolgados quando Molly e Rocky.
Ooooooooh, ali estão eles! — gritou a Sra. Brinklebury, lançando-se em direção dos meninos como um foguete vestido de seda violeta.
Não p-osso acreditar em c-como que senti a falta dos d-dois! — ela disse, pratica-mente batendo a cabeça de um na do outro e sufocando-os com seu abraço.
Molly e Rocky respiraram o perfume familiar da Sra. Brinklebury. Era um perfume de casa de campo, de bolos e colônia de rosas, de baunilha e mel, de lavanda e manteiga. Um perfume que os fazia recordar suas canções de ninar e brincadeiras de esconde-esconde.
Ah, Sra. B — disse Molly, os olhos cheios de lágrimas. — Oh, é tão bom ver vocês de novo.
É mesmo, minha querida — disse a Sra. Brinklebury, dando-lhe um aperto que a fez saber que estava em casa de novo.
E parabéns... quer dizer, pelo noivado e tudo isso.
Obrigada, q-queridinha. Ainda não v-vamos casar t-tão cedo, mas veja só meu anel. — A Sra. Brinklebury mostrou a Molly um botão-de-ouro dourado que ornava seu dedo gordinho.
É lindo!
Molly sentiu um puxão no seu vestido. Ruby e Jinx a estavam agarrando.
Eu já sei ler, Molly — disse Ruby. — E sei escrever. Olha. — Ela abriu um envelope onde estava escrito Benvidus e dentro tinha um cartão com um desenho de Petula.
É para vocês dois — disse, colocando-o na mão de Molly.
Então todo mundo queria abraçá-los.
O que espantou Molly foi como todas as crianças tinham mudado. Todos estavam mais altos, especialmente Gemma e Gerry. Gordon, Cynthia e Hazel tinham emagrecido muito. Craig estava mais musculoso. A mais difícil de reconhecer foi Hazel, que havia pintado o cabelo de louro-claro. E todos pareciam saudáveis, como se também tivessem passado um belo verão ao sol.
Olá, pessoal — disse Hazel, beijando-os.
O que aconteceu com seu sotaque? Você está falando como americana — Molly ob-servou.
Estou praticando para uma figuração que vou fazer em um filme — disse Hazel. — Tenho um monte de coisas para lhe contar.
— Olá, vocês dois, que bom ver vocês — disse Nockman, sorrindo atrás de Hazel. Ele estava com um terno verde de veludo e uma camisa estampada com o desenho de um papagaio vermelho. Molly ficou admirada — seu sotaque alemão tinha acabado, e agora ele estava falando com seu sotaque original de Chicago.
A única pessoa do Lar da Felicidade que estava faltando no grupo era Roger. Molly o viu a dez metros, conversando com uma palmeira. Ele parecia ignorar completamente Cornelius, que balia como louco e trotava em volta dele, gritando:
— Béééé é minha... béééé é minha.... béééé é minha. Sinclair foi até lá acalmá-lo.
Os flashes das câmeras espoucaram quando todos pisaram no curto tapete vermelho em frente ao cinema. As estrelas já haviam chegado. Hercules Pedreira beijou a mão da Sra. Brinklebury e a conduziu por entre as barreiras de fãs enfileirados que ovacionavam. A Sra. Brinklebury pestanejava e acenava para eles como se fosse a rainha. Cosmo Ás apresentou-se a Hazel. Rei Moose entrou com Cynthia, e Stephanie Guizadim pegou pela mão Gordon e um Sr. Nockman todo ruborizado. Dusty Dourado acompanhou Jinx e Ruby, Sinclair teve de lidar com Cornelius, Rocky se viu fazendo amizade com Billy Bob Bimbo e Molly ficou muito feliz por entrar no cinema ao lado de Gemma, Gerry e Primo Cell.
Petula e Gloria Tiammo comportaram-se como as verdadeiras profissionais que eram. Petula latiu para a multidão que aplaudia, ergueu-se nas patas traseiras para os fotógrafos e deixou Gloria sufocá-la com seus carinhos perfumados. Todos a adoraram.
O filme era o melhor trabalho de Gino Pucci até o momento. E, sem dúvida, as par-tes mais divertidas eram com Petula. Todos aplaudiram e deram vivas — especialmente quando ela teve que pular de pára-quedas com Gloria de um avião em chamas.
Depois da sessão, todos saíram com os astros hipnotizados para o jantar de comemo-ração.
Los Angeles é uma cidade maravilhosa para restaurantes. Pode-se escolher comida japonesa, chinesa, tailandesa, espanhola, inglesa, mexicana, indiana, marroquina, árabe e, claro, sempre, americana. Mas o restaurante que Primo Cell escolheu para a festa era francês. Chamava-se Orangerie, e tinha um chef famoso. Era o lugar para se comer a melhor lagosta e escargots no alho, molhos complicados e pratos que levavam horas de preparos, frites e não batatas fritas, suflês altos e pudins levíssimos.
Foi uma noite adorável. Os pedidos foram caóticos, pois ninguém entendia o cardá-pio francês, mas tudo estava delicioso e todos os convidados comeram, comeram e co-meram. Molly e Rocky estavam ansiosos para saber o que os outros andaram fazendo.
— Craig sabe surfar muito bem — disse Jinx, enchendo a boca de batatas fritas. — Mas disse que no começo parecia que ele era uma mosca na descarga de uma privada. Logo eu também vou aprender. Só que não sei se vamos estar aqui. — Jinx virou-se para a Sra. Brinklebury: — Não vamos continuar muito tempo aqui na Califórnia? — perguntou ele.
Houve um silêncio na conversa ao redor da mesa, pois os ouvidos das crianças do orfanato reagiram como um radar à pergunta estridente de Jinx. A sala ficou muda.
— Bem, q-queridinho — a Sra. Brinklebury gaguejou, no meio de uma garfada de salada. — Eu realmente não sei. Q-quero dizer, o que v-vocês todos acham? Molly e Rocky já e-estão de v-volta. Acho que é hora de v-voltarmos para casa. Vocês s-sabem que não p-podemos esperar que o Sr. Sinclair pague nosso aluguel p-para sempre. E Simon poderá ter uma p-profissão e ganhar a vida se f-fizer os exames de serralheiro em Briersville.
Primo Cell interrompeu.
— Vocês todos podem vir morar comigo — disse.
A Sra. Binklebury engasgou com uma folha da alface. O Sr. Nockman deu palmadi-nhas em suas costas.
Claro que a senhora e o Sr. Nockman também estão convidados — disse Primo. — A menos que prefiram morar em outro lugar, mas acho que as crianças sentirão muita falta se vocês morarem fora do portão da casa.
Bem, é uma idéia encantadora — disse a Sra. Brinklebury. — Não é, Simon, queri-do?
O único problema é que temos muitos animais e pássaros — disse Nockman.
É, agola eu tenho tlinta e tlês camundongos — disse Gerry. — Na veldade, Bolabela deve está tendo bebês nesse minuto.
Minha mansão é enorme. Podemos criar um zoológico no quintal — disse Primo.
Assim ficou decidido que deveriam votar. Todos queriam morar na casa de Primo. E o assunto parecia encerrado, até Molly se lembrar de Roger, que estava sentado debaixo de uma laranjeira, no saguão do restaurante.
Roger estava comendo uma tigela de nozes.
— Como você está, Roger? — Molly perguntou, baixinho.
Roger se esquivou e lançou um dardo de papel azul para ela.
Molly abriu-o. Dentro, letras rascunhadas diziam:
Sinto muito, mas eu sei demais.
Sabe demais sobre o quê, Roger? Roger olhou para ela com tristeza.
Demais sobre o ela-ele — Roger respondeu, pesaroso. Lembranças das palavras em outras mensagens escritas por Roger vieram à mente de Molly.
Enviem socorro rápido!
Alienígenas comeram meu cérebro!
Cuidado!
As centopéias cerebrais chegaram!
Não julgue seu corpo pela pele.
Molly pensou na lebre de folhas da coleção de arbustos ornamentais de Cornelius. Era uma lebre maluca, aquela? Será que representava Roger?
Em um momento de puro instinto, Molly parou o mundo. Tomou a mão de Roger e lhe passou uma onda de frio para que ele pudesse se mover, e olhou fundo em seus olhos confusos.
— De agora em diante — disse — você, Roger, não ficará mais sob o poder de nin-guém. Você será você mesmo. — Depois, acrescentou a antiga e bem usada senha, "Perfeitamente Pontual".
Com isso, Roger piscou e a aparência vítrea de seus olhos desapareceu.
Molly deixou o mundo se mover. Roger olhou em volta e pegou a mão de Molly como se fosse difícil se equilibrar. Parecia completamente desorientado, como se tudo na sala estivesse de cabeça para baixo. Depois, colocou sua mão no peito como quem verifica se está mesmo vivo. Em um momento, absorveu o que tinha acontecido.
Oh, obrigado, Molly. Molly, você me salvou — ele gritou. Jogou os braços em volta do pescoço de Molly e a abraçou bem apertado. Ele cheirava a folhas, cascas e grama. — Eu fiquei preso dentro de mim mesmo, foi horrível — soluçou. — O tempo todo eu tentava falar com alguém, mas não conseguia me comunicar. Cornelius fez isso. E me fez ter alucinações. Ele me hipnotizou para pensar que as vozes estavam me perseguindo. Era tão pavoroso. Nem consigo dizer como era horrível.
Não se preocupe, Roger, agora está tudo bem — disse Molly, abraçando-o também.
Obrigado, Molly — Roger acalmou-se. — Você me libertou. Obrigado, obrigado, obrigado. — Por um momento, Roger ficou pregado em Molly. Depois, soltou-a e pôs a cabeça entre as mãos.
Então, você descobriu coisas demais sobre Cornelius Logan? — adivinhou Molly. — Como?
Você se lembra de como eu gostava de entrar nos depósitos — disse Roger. — Aí, entrei no depósito da biblioteca, o depósito de Lucy Logan. Achei as instruções que Cornelius Logan tinha escrito. Vi Lucy Logan discutindo com ele. Eles se pareciam tanto um com o outro. Era sinistro. Eu o vi empurrá-la para dentro de um carro. Ela estava sendo raptada. Corneliu me viu. Eu sabia demais. Ele me hipnotizou. Fiquei maluco todos esses meses.
— Bom, Roger, agora tudo acabou — disse Molly. Molly pensou em Floresta. Ele ia ter dois convalescentes nas mãos nesse inverno. Roger, como Primo, precisaria ficar com Floresta até se recuperar completamente. E a decisão de que todos deveriam permanecer em Los Angeles estava fortalecida.
Exceto em relação a ela. Molly tinha que ir embora. Pois sabia que logo Primo Cell descobriria que ela era sua filha, e ela realmente ainda não estava pronta para isso. Que-ria conviver com a idéia de ter um pai antes de se apresentar a ele. Além disso, tinha uma coisa muito mais importante a fazer.
Mais tarde, naquela noite, quando todos chegaram entusiasmados à mansão de pedra cinza de Primo Cell, que seria a nova casa deles, Molly, Petula e Rocky estavam na pista do aeroporto de Los Angeles. Um jato particular, com um símbolo preto e dourado pintado em sua cauda fina, esperava seu único passageiro.
— Sentirei sua falta — disse Molly.
Eu é que sentirei sua falta — disse Rocky. — Você tem certeza que não quer que eu vá?
Não, Rocky. Isso é uma coisa que preciso fazer sozinha. Não será divertido. Você precisa de umas férias. E Billy... parece estar muito interessado em fazer música com você. Você tem que entrar nessa. Eu volto logo.
Desde que prometa que vai ficar bem, Molly. Mas se precisar de mim para qualquer coisa, a qualquer momento, mesmo no meio da noite, me telefone.
— Sim.
Os dois melhores amigos se abraçaram e, depois, Molly assoviou.
— Vamos, Petula.
Rocky ficou olhando sua melhor amiga subir a escadinha do avião. O motor foi li-gado, Molly acenou mais uma vez, e depois partiu.
Capítulo Quarenta e Quatro
V
oar para casa no luxuoso jato particular de Primo Cell era fabuloso. A cabine principal estava decorada como uma sala de estar, com carpetes cor creme, e mesas pequenas e poltronas de couro verde.
A aeromoça era muito agradável e logo Molly estava com o cinto amarrado, uma bebida nas mãos e Petula a seu lado. Os motores rugiram e Los Angeles, iluminada com bilhões de lampadas e um milhão de pretendentes a estrelas, deslizou rápida abaixo de-les.
Molly passou a maior parte das 11 horas de vôo dormindo em uma poltrona-cama muito confortável. Ao aterrissar, sentia-se completamente desperta.
No aeroporto, um carro esperava e logo ela estava sentada no banco de trás de um Mercedes espaçoso, avançando pelas estradas do campo.
Em cinqüenta minutos, chegaram à casa de Cornelius Logan.
Cornelius não tinha vivido, todos esses anos, em um chalé humilde, como sua irmã. Ele tinha acesso a todo o dinheiro que desejava — dinheiro ganho por Primo Cell. As-sim, fã do luxo e do excesso, comprara para si mesmo uma casa espantosamente grande no campo.
O Parque Briersville tinha uma longa pista de entrada, com mais de dois quilômetros. Depois que Molly hipnotizou o guarda do portão, o carro percorreu-a suavemente. Ela e Peluta olhavam pela janela o rebanho de lhamas no pasto sob os velhos carvalhos. Então, os pastos de lhama chegaram ao fim e o terreno do parque se encheu de arbustos verde-escuros. Eram todos de sebes ornamentais. E cada um era de um animal diferente. Uma moita era de cavalo, outra de elefante, outra de gato, de camundongo, de macaco. Aqui e ali, Molly viu pessoas vestidas de amarelo no topo de escadinhas, com tesouras de jardinagem nas mãos, podando as esculturas de folhas. Molly tinha certeza de que cada um dos animais de folhas representava uma pessoa que Cornelius Logan hipnotizara.
Por fim, o carro fez uma curva fechada e, na frente deles, apareceu a casa. Branca, majestosa, imponente e esplêndida, tinha quatro colunas altas como apoio de seu pórtico palaciano, e degraus que subiam da entrada circular de cascalho. No gramado em frente, os animais ornamentais de folhas pareciam estar querendo entrar. Um corvo gigante de arbusto, podado para parecer que estava voando, crescia no meio do círculo de cascalho.
Molly segurou Petula e parou o mundo.
Saiu do carro e subiu os degraus largos. Passou direto pelo mordomo congelado na porta da frente e entrou no saguão. Cabeças de animais — bisões, tigres, leopardos, antí-lopes e veados — espiavam de onde estavam, penduradas nas paredes. Petula rosnou para eles. Uma vitrine com tesourões antigos lembrou a Molly exatamente onde estava.
Olhou o mapa que Cornelius tinha desenhado para ela e subiu a escadaria principal. Ali, as paredes estavam cobertas de relógios. No final, estava a governanta, imóvel como uma estátua. Molly começou a correr. Correu por um corredor onde havia mesas enfileiradas. Em cada uma havia um vaso com uma árvore bonsai minúscula e antiga. Ela continuou seu caminho, subindo outro lance de escadas.
Agora, estavam no sótão da casa. Ali ficavam os quartos dos empregados. Molly a-pertou Petula para se acalmar e começou a atravessar o longo corredor.
No final, um segurança estava imóvel, sentado em frente a uma porta vermelha.
Por um momento, Molly prendeu a respiração. Então, lentamente, ergueu a tranca.
Dentro, Lucy Logan estava imóvel, parada como a janela de onde olhava para a pai-sagem lá fora. Estava com uma camisola branca e parecia magra e cansada. Mas era, afinal, a verdadeira Lucy Logan — a Lucy com os olhos azuis da cor do céu.
Molly aproximou-se dela. Ao fazer isso, seus olhos caíram em um pedaço de papel com palavras escritas a mão, no parapeito da janela. Eram versos. Molly não pôde deixar de lê-los. Diziam assim:
Estar numa ilha no oceano
Pode parecer liberdade.
Estar numa praia de areia dourada
Pode parecer felicidade.
Parece o paraíso
Mas não é
Oh, não é.
Um bilhão de ondas do mar profundo
Separam você de mim.
Só você pode fazer de meu mundo
Um paraíso sem fim.
Parecia a letra de uma música antiquada.
Molly parou, subitamente consciente de um futuro incerto a sua frente. Imaginou se Lucy Logan seria muito antiquada. Ela esperava que gostassem uma da outra.
Na verdade, agora que estava prestes a despertar sua mãe, Molly não estava real-mente certa de querer uma mãe. Uma coisa era saber quem era sua mãe, e outra bem diferente ter realmente uma. Será que, de repente, ela ia começar a dizer a Molly o que fazer? Não gostava de jeito nenhum dessa perspectiva. Estava acostumada a mandar nela mesma. Por alguns segundos, os olhos de Molly pousaram na canção como se re-fletisse sobre o que seus versos significavam. Bom, pensou, ela teria que deixar seus sentimentos muito, muito claros para Lucy Logan, assim que fosse possível. Só isso.
Molly já estava quase pronta agora. Então, outro medo pôs a cabeça para fora.
Se Molly agora era filha de Lucy Logan e Primo Cell, teria que mudar de nome? Pensar que talvez tivesse que mudar seu nome para Molly Cell ou Molly Logan era ex-tremamente desagradável. Molly já podia se ver subindo nas tamancas para recusar.
Pior do que isso, no entanto, era a idéia de que Molly poderia se tornar outra pessoa, de outras maneiras. Ela não queria se transformar na pessoa que seus novos pais talvez quisessem. Queria continuar sempre sendo ela mesma, Molly Moon.
Sentou-se em uma cadeira. Olhou para os pés de sua mãe nos chinelos e depois para seus próprios tênis. Por um penoso instante, compreendeu que não fazia diferença saber quem eram seus pais. Eles eram eles, e ela era ela, se assim quisesse. O que ela estava pensando? Que seus novos pais a fariam passar por uma lavagem cerebral? Claro que não. Sua mente era um espaço livre, não era?
Foi então, no silêncio do quarto no torreão, que Molly fez um juramento secreto. Prometeu a si mesma que, o que quer que acontecesse, sempre iria tomar as próprias decisões sobre as coisas. Onde quer que o dado caísse, ela sempre seria fiel a seu verda-deiro eu.
Seu eu mutante. Molly viu pela janela as folhas de outono suspensas no ar, e perce-beu o quanto tinha mudado desde que vira Lucy Logan pela última vez. Quase um ano se passara e, nesse tempo, ela quase morreu. Houve momentos maravilhosos, mas vários horríveis também.
Enquanto mantinha o mundo parado, Molly sentiu medo do futuro — preocupada com a incerteza. Estava nervosa por ter de deixá-lo vir. Quem sabia que outras surpresas horrorosas a vida reservava para ela?
Mas a vida sempre foi imprevisível, ela compreendeu. Era isso que a fazia excitante. Ninguém nunca sabia o que estava do outro lado da esquina. Sem dúvida haveria situa-ções ruins, mas a vida era tão cheia de coisas interessantes, de belezas, pessoas inteli-gentes, animais amorosos e amigos engraçados que realmente não havia nada a temer. A vida estava a sua frente para ser vivida, não para ficar presa como um gênio dentro de uma garrafa.
Do outro lado da janela, o céu era de um azul irresistível.
Molly sentiu seu espírito dentro dela como um pássaro destemido querendo voar. Sentiu-se pronta tanto para os raios do sol quanto para as tempestades. Portanto, apro-veitando o momento, tirou a rolha e bravamente soltou o tempo.
Nas colinas de Hollywood, uma garota estava sentada de pernas cruzadas no pavi-mento sujo de um galinheiro. Usava pijama de cor púrpura e óculos de sol. Ao lado de sua mão, uma galinha garnizé ciscava o chão procurando por grãos e, à sua frente, estava sentado um hippie alto e idoso. Seus olhos eram grandes e irrequietos por trás dos óculos de fundo de garrafa. Seu cabelo era comprido e grisalho.
— Mais enroladinho de nabo com tofu, Davina?
— Sim, por favor, Floresta. E podemos comê-lo outra vez plantando bananeira?
— Claro. Para mim, será um prazer cósmico.
02- Molly Moon Conquista Hollywood | |
CAPA | SINOPSE |
Em MOLLY MOON CONQUISTA HOLLYWOOD, Molly irá investigar as estranhas atividades de Primo Cell, um bilionário americano que também é mestre em hipnose. Com um estilo ágil e divertido, Byng cria uma trama com reviravoltas e armadilhas a cada virada de página. Enquanto descobre coisas extremamente alarmantes sobre o vilão — ele pretende concorrer à presidência dos Estados Unidos e, de quebra, está controlando a mente de várias celebridades de Hollywood —, ela acha tempo para um novo talento: Molly pode parar o tempo. | |
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