domingo, 1 de agosto de 2010

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Ossos do Ofício
antónio arnaut

DO AUTOR:

POESIA Versos da Mocidade, 1954
Pátria, Memória Antiga, 1986
Miniaturais / Outros Sinais, 1987
FICÇÃO Rude Tempo, Rude Gente, contos, 1985
A Viagem, Contos do Absurdo, 1988
Ossos do Oficio, 1990
ENSAIOS / DIVERSOS Serviço Nacional de Saúde - Uma Aposta no Futuro, 1978
A Condição Portuguesa no Diário de Miguel Torga, 1984
Onze Anos depois de Abril - Reflexão Política, 1985
Para uma Visão Diacrítica do Romance de Miguel Torga, 1985
O Dia do Encontro - No 4º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 1989
Prototipos Torguianos, 1990

A PUBLICAR
Por este caminho, poesia
As noites afluentes, poesia e prosa
Como um rio de sombras, romance

ANTóNIO ARNAUT

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ossos DO OFICIO

FORA DO TEXTO

Coimbra

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OSSOS DO OFICIO

Autor: António Arnaut

Capa: Estúdios Fora do Texto com base num óleo original do pintor José Daniel Abrunheiro

Fora do Texto - Cooperativa Editorial de Coimbra, C.R.L. Rua D. Afonso Castelo Branco, 8 cave esq., 3000 Coimbra Telefone (039) 26793 - Apartado 241, 3003 Coimbra Codex

@ Fora do Texto 1990

"... para proclamar o direito no país, para destruir o malvado e o perverso, para impedir que o forte oprima o fraco ... para assegurar o bem-estar do povo e fazer justiça ao oprimido..."

Código de Hammurabi (Séc. XVIII a.C.)

"... Havia de escrever um livro sobre as suas vivências profissionais. Um livro que descarnasse os duros ossos do ofício e fosse, por isso mesmo, não o anedotário da vida forense, ou a sua crónica, mas uma alegoria, como um fundo suspiro o é da confissão apenas ciciada. Só o advogado conhece, verdadeiramente, o longo e tormentoso Rio Meandro da Justiça, porque só ele tem acesso aos escaninhos ocultos onde fervem os dramas, paixões e sentimentos dos seus figurantes. Por vezes, é mesmo o único interveniente da lide a tocar a verdade e a saber que ela lhe pode fugir qual pássaro migrante. A verdade é uma virgem ausente, vestida com sete mantos de cores diferentes, e nenhum deles a desnuda, porque sob a última veste, a mais íntima, há ainda uma poalha translúcida, uma tortura de névoa, que é como um vento esquecido e cúmplice... "

Palácio da Justiça

O Palácio da Justiça não era apenas o mastodonte de pedra, a olhar, do alto da sua sobranceria, os telhados humildes da urbe. Era também, e sobretudo, como se dele fossem parte integrante, a figura imponente do porteiro Gustavo, na sua vistosa farda azul, sempre de plantão no átrio, e o maltrapilho do anão Canada a arrastar os farrapos sob a colunata.

Quando me deslocava à comarca, eram aqueles dois que primeiro me davam as alvíssaras do acolhimento. O latagão do porteiro cumprimentava-me com uma vénia, enquanto o homúnculo vinha sacolejando a enorme calva até à distância de me esportular a moeda da praxe e de me farejar os tornozelos. Vítima da explosão duma fabriqueta pirotécnica, que lhe agravou a pequenez, levando-lhe os pés, parecia um réptil gigante, com os cotos envolvidos em trapos, a rastejar a viscosidade balofa sobre os ladrilhos. Exibia a carcaça à caridade pública, a recender a vinho, o rosto encarquilhado, uma sacola suspensa do pescoço, a exalar um cheiro repugnante a sarro e miséria. Naufragado nos
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escolhos da vida, sem família nem amigos, aportara ao
Palácio da Justiça depois de o terem enxotado da Câmara, e ali esmolava a subsistência, apesar do ódio fumegante do porteiro, que o tratava como a cão tinhoso.

- ó doutor, dê-me cinco escudos para uma canada
- rogava ele, na sua inconfundível voz de cana rachada.

Só pedia para a bebida. Parecia que o seu corpo barbaramente mutilado, o ventre entumescido como um odre, o peito arcabuzado pelo esforço permanente da locomoção, se bastava com uns litros diários de vinho. Aquela fórmula impetrante é que o crismara, era simplesmente o Canada, ninguém sabia já a sua graça, mas todos os frequentadores do Palácio o associavam à recordação das suas andanças forenses. Muitos descarregavam nele os insucessos, respondendo com impropérios ao seu assédio, mas outros utilizavam-no para recados a testemunhas retardatárias, gratificando-o generosamente com uma nota de vinte, que enfiavam na garganta sequiosa do saquitéu. O Canada compunha as borrachas que lhe guarneciam as mãos, para se proteger do saibro, e deslizava então para a adega do Gato Preto, logo ali a um passo de cobra, que, ao menos nisso, a providência caprichara, e lá afogava a sorte madrasta com tantas canadas quantas os réditos permitiam. Alguns maldizentes asseguravam que o
adegueiro tinha trato sucessivo com o pigmeu, garantindo-lhe albergaria, caldo e vinho a troco das espórtulas, e que assim o explorava desalmadamente, mas eu
creio que o negócio não era rendoso por causa do defeso
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judicial, em que o saco ficava esquecido no cubículo esconso ao lado das latrinas, onde o Canada espreitava a noite sonolenta pelos interstícios sempre acordados da telha vã.

Diferente, direi mesmo, completamente oposto, na sua pose marcial, era o Gustavo. Antigo fuzileiro, fizera o périplo de África a bordo da Sagres e pisava a terra com a desenvoltura com que pisara o convés de todos os oceanos. Amadurecido nos solavancos de ventos e marés, lograra aquele cobiçado lugar por influência, diziam, do presidente da Câmara, cacique local, a quem servia depois de cumprido o horário do seu mister. Essa dependência criara-lhe a suspeita de ser também informador da PIDE, sobretudo a partir do dia em que um advogado da comarca, o doutor Navarro, foi preso por dois agentes da secreta. O incidente causou justificada indignação no meio, porque aquele causídico era geralmente considerado um homem bom, verdadeiro advogado dos pobres, pois patrocinava gratuitamente todas as pessoas que não tinham para mandar cantar um cego, quanto mais um profissional togado. A indignação subiu as escadas do Palácio da Justiça e chegou à secretaria, tendo o escrivã o tomado a iniciativa de um abaixo-assinado, aberto à subscrição de funcionários e advogados. Foi então que as suspeitas se confirmaram. Tirante o notário, que era vice-presidente da Câmara, o porteiro foi o único funcionário do edifício a recusar inscrever o seu nome na folha de papel selado, com a desculpa, então canónica, de que não se metia em políticas...

Ora, como ia contando, o Gustavo assumia a
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importância do cargo como se fosse, e, de certo modo, era, o dono e senhor do Palácio. Postado invariavelmente no vasto átrio, ao lado do mural que assinalava a concessão do foral ao município, com as chaves de todas as portas a emprenhar-lhe de importância o bolso das calças, lançava um olhar displicente aos vulgares utentes da casa, formigueiro anónimo que ali vinha ultimar velhas contas, fazer e desfazer partilhas, saciar ódios, reclamar justiça ou, simplesmente, tirar uma certidão. Cumprimentava, porém, cerimoniosamente, os magistrados, e com uma vénia mais esbatida, por causa do abuso do papel químico de tanta momice, os funcionários e advogados. Dizia-se que o contacto permanente com a máquina da justiça e os profissionais do foro lhe criara uma espécie de obsessão jurídica, neurose recalcitrante que, por vezes, o mergulhava num estado de grande frustração e, outras vezes, lhe emprestava um mimetismo dessorado, os tiques e as expressões da barra a borbotarem das mãos nervosas, o beiço carnudo a delamber-se com a inocência dos campónios, e era nessas ocasiões, a dar conselhos ou a vaticinar sentenças, que o porteiro assumia aquela altivez emprestada que era a verdadeira marca do seu carácter.

Foi por lhe conhecer o fraco que um juiz herético o nomeou, certo dia, defensor oficioso de um cigano, detido em flagrante conto do vigário, segundo rezava a participação da GNR. Sentado na bancada dos advogados, com um inciso rubor a cortar-lhe o rosto redondo, as mãos desasadas a acentuarem a revelia da fala, o homem contorcia-se num misto de pedantismo e acanhamento. Espectáculo memorável, ainda hoje faz parte
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dos anais jocosos da comarca. Não assisti à cena, mas imagino o Gustavo a estender o braço apelativo na direcção do meretíssimo, e a declamar a frase que o doutor Simões, sempre disponível para todas as facécias, lhe havia esconjurado:

- Senhor doutor juiz, concluo e determino que o
réu está insano de culpa e deve ser absolvido! Justiça, senhor doutor juiz!

O magistrado reteve a gargalhada que lhe insuflava a boca, alisou a cabeleira e suspendeu a audiência para retomar o fôlego. Voltou prestes à sala para ler a sentença, já liberto do colete de forças com que se precatara, a fim de manter a compostura, e ornado dum sorriso matreiro. Ninguém imaginava aquele desfecho. O cigano foi absolvido por falta de provas, com incontido gáudio da tribo e uma despeitada surpresa dos funcionários e do advogado que lhe arengara o sermão.

Este sucesso envaideceu o Gustavo e fez subir a sua cotação. Se até ali já era abordado para aqueles biscates que são, nas comarcas de província, o manancial dos procuradores improvisados, os tais advogados de lareira, como diz o povo, passou agora a ser solicitado para mais altos voos. A breve ensejo já elaborava queixas criminais e relações de bens, tudo numa caligrafia redonda e correntia, que não precisava de levar carimbo para ser logo identificada. Quando, porém, as coisas estavam a atingir o patamar do escândalo, chamou-o o juiz à sua respeitável presença, parece que soprado pelo doutor Meirinho, e advertiu-o de que podia cair nas malhas da lei se continuasse a fazer procuradoria ile-
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gal. Desculpou-se o Gustavo com grande desassombro e dignidade, confessando os factos mas alegando em sua defesa que apenas desejava ser prestável à pobre gente, visto não cobrar um cêntimo pelos seus serviços. E era verdade. Creio que ele praticava aqueles actos, mais por vaidade do que por interesse. Não recebia dinheiro, embora não recusasse o azeite, os salpicões, os queijos e outros mimos da lavra doméstica dos seus assistidos. Dissesse, pois, ele, senhor doutor juiz, se devia recusar os seus préstimos à gente humilde que o procurava, tratando-se, para mais, de miudezas forenses que os próprios advogados não costumavam praticar, e sendo certo que, na comarca, não havia solicitador provisionário ou ajuramentado.

O juiz sopesou a questão com o seu arguto olho jurídico, que era, nele, o direito, porque quando tinha de tomar decisões importantes fechava sempre o esquerdo, assim vendo, simultaneamente, para dentro e para fora, o esquerdo a ler a consciência, e o direito a avaliar o corpo de delito. Amparou o queixo na mão em espalda, alongou o indicador para tactear o nariz, que, nisto de sentenças, o faro também decide, e proferiu o seguinte despacho verbal:

- Em face do exposto, não vejo razão para o proibir de fazer esses favores. Mas tenha cuidado, não abuse. Se me chega alguma queixa formal, tenho de actuar. A lei é a lei...

O Gustavo saiu do gabinete com a consciência limpa por decisão transitada em julgado. Ia ser mais comedido no futuro e, por cautela, pediria às pessoas que não lhe trouxessem as ofertas para o tribunal.
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Estava mesmo convencido de que a inveja nascera, porque viam aqueles primores a romper das sacolas depositadas no átrio. Até o desgraçado do Canada olhava as oferendas com a voracidade babosa da sua fome atávica. Algumas vezes o surpreendera a roubar chouriços ou a chupar os garrafões de vinho. E era sempre a mesma cena picaresca a pintar de insólito a austera Casa da Justiça: o anão a arrastar-se para debaixo da secretária e o grandalhão a despir a farda da compostura e a dar pontapés cegos naquele corpo rendido.

- Seu cão, seu grande cão tinhoso, ainda hei-de esfolar-te vivo!...

O Juiz não voltou a incomodar o porteiro e até o desculpava perante os despeitados ou invejosos. Era um homem bondoso, compassivo, mas ignorava a urdidura que o funcionário fora tecendo. E como o que não está nos autos não está no mundo, lá o ia cobrindo com a sua bondade. É que as aventuras amorosas do Gustavo eram, então, um segredo tão bem guardado como a fórmula do cofre gigante do Conservador, que só o próprio conhecia. Quando tinha de abrir aquele sésamo, virava ostensivamente as costas, alargava a barreira do arcaboiço e manipulava agilmente os quatro botões da velha peça, até que os encaixes das letras soletrassem o mistério da fechadura. Comprazia-se na operação, pois julgava-se o único decifrador da sigla, não imaginando que os subordinados tinham, ao longo dos anos, adestrado a audição aos estalidos indiscretos das letras, e desvendado o código secreto. São assim os segredos: papéis íntimos guardados em escaninhos de que outros têm a chave...
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O segredo do Gustavo eram as suas conquistas, especialmente das jovens viúvas que, por causa do inventário obrigatório, vinham pedir-lhe conselho e
recorrer aos seus desinteressados préstimos. Cedo compreendeu o porteiro que, ao fim de meio ano de ausências, o luto atenuado pelo renovar da vida e pela fraqueza da carne, aquelas inconsoláveis mulheres precisavam de ser consoladas. Se uma ou outra ainda oferecia um esboço de resistência, produto de uma cultura ancestral mais pressentida do que assumida, a maior parte rendia-se aos seus modos citadinos, à sua voz envolvente e, sobretudo, à quentura suave do seu olhar, onde lhes apetecia abandonar-se como numa desfolhada de Setembro.

O lugar da conquista era o arquivo, espécie de coutada de que só o porteiro e o chefe de secretaria tinham a chave. Quando a eleita despontava na esquina do Gato Preto, os passos indecisos e o olhar tímido de quem vem pela primeira vez ao tribunal, e sabe da justiça apenas o que a tradição oral foi acumulando ao longo de gerações fustigadas pela lei, logo o Gustavo engatilhava o seu sorriso cativante e preparava as palavras da abordagem. O pouso estratégico de que dispunha permitia-lhe insinuar-se sem ser atrevido, e cair nas boas graças sem ser notado. Primeiro cumprimentava a eleita, e depois deixava cair uma expressão de condolências pela morte prematura do de cujus, por vezes, até, um lamento judicativo sobre o
destino que lhe arrancara o companheiro. Seguia-se um
silêncio conivente, um espaço neutro mas solicitante, e era então, se o terreno se mostrava propício, que ele
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lançava a semente:
- Se a puder ajudar, já sabe, estou inteiramente ao seu dispor. - Compunha o sorriso e ajuntava - Isto, é claro, sem qualquer interesse...

A mulher dava mentalmente graças a Deus por aquela solicitude que lhe acendia uma luz no labirinto da justiça. Entrar num tribunal com uma intimação no bolso, ainda é, para muita gente, uma aventura ou um salto no escuro.

Havia, porém, um obstáculo que o porteiro tinha de tornear para conduzir a água ao seu moinho: era o Canada. Sempre no átrio, a farejar esmolas e novidades, também a ele lhe luziam os olhos e a careca quando um rabo de saia tremulava no vazio do seu quotidiano. Ficava de orelhas atiladas a sorver as palavras, narinas distendidas a saborear todos os odores, e era então necessário inventar uma desculpa para o afastar dali. Mas o Gustavo tinha artes e manhas adestradas, como todo o conquistador. E arranjava sempre maneira de ficar sozinho com a presa e de a levar ao arquivo com o pretexto de que lá estavam mais à vontade para conversar, ou fazer a relação de bens.

O arquivo era na cave. Entrava-se por uma porta discreta, desciam uns degraus e podia-se então disfrutar um sossego ardoroso e cúmplice entre as prateleiras atafulhadas de processos antigos, que cheiravam a demandas mortas, como o lodo de pântanos exaustos. Na cave ficava também uma cela que servia para as emergências da prisão preventiva, enquanto os detidos não eram transferidos para a cadeia regional. Circunstância fortuita, mas feliz, porquanto estava dotada
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de uma cama que, nas urgências do porteiro, cumpria outro destino, porventura mais adequado à evasão dos corpos e das almas.

Ora, uma certa tarde, monótona e longa como são, em regra, as tardes judiciais, entrou no Palácio uma dessas jovens viúvas a quem o Gustavo já lançara as redes da sedução e aprazara para fazer a relação de bens. Trazia ainda o luto estampado no rosto, mais do que nas vestes normativas, mas os seus olhos negros eram duas fogueiras a crepitar de vida. O porteiro acolheu-a familiarmente e, vendo o campo livre, pois o
Canada tinha desaparecido, encaminhou-a para o local propício. A mulher deixou-se conduzir sem qualquer rubor de desconfiança a tolher-lhe os passos na penumbra. A mão dele guiava-lhe o caminho e esboçava uma carícia nas suas costas. Acercaram-se de uma mesa, ele sentou-se como quem se prepara para escrever, a luz do candeeiro tornava agora nítida aquela mão afogueada e, de súbito, ela sentiu outra mão entre as suas coxas, ávida e quente, apertou instintivamente as pernas, mas esse gesto defensivo fez libertar no companheiro a fome acumulada. A mão intrusa torneia-lhe agora as ancas, são duas mãos a excitar-lhe a lembrança, sente-se confundida, um movimento brusco arranca-lhe as cuecas e uma boca carnuda e possessiva esmaga-lhe as palavras de protesto. E ainda a penumbra do imprevisto lhe ofuscava os olhos, quando se vê transportada para a cela, está deitada na cama de ferro, a saia levantada, os cabelos descompostos, nem entende as palavras ciciadas pelo outro no intervalo dos beijos furtados, sabe apenas que está a ser penetrada por um rio de fogo,
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tenta reagir mas o seu corpo é subjugado por dois braços de ferro, e o grito abafado por aquela boca carnuda, só a alma pode levantar-se, e ouve então o eco interior do seu próprio brado, selvagem, instintivo, no preciso momento em que a ejaculação deslaça a armadura que a envolve...

Não cuide o leitor que esta descrição sumária da última aventura amorosa do Gustavo é mera ficção ou devaneio. Na verdade, o narrador limitou-se a emprestar uma certa roupagem literária à prosaica e enxabida acusação do Digno Agente do Ministério Público contra aquele modesto servidor da justiça, porque, como é sabido, os senhores delegados são, normalmente, mais sensíveis à tipologia criminal, seca e peca, do que à sintaxe dos comportamentos humanos.

Mas, cingindo-me agora e apenas aos autos, a mulher saiu da cave completamente aturdida pelo imprevisto da situação, "cuja não previu nem podia prever", (sic), ficou um momento no átrio a recobrar forças, e tendo-lhe voltado o discernimento, soltou um grito tão prolongado e lancinante que logo acorreram ao local o Conservador, o Notário, todos os funcionários da
casa e os próprios Magistrados, ainda a tempo de a verem compor a blusa e os cabelos, e testemunharem o exórdio daquela vil arremetida do Gustavo.

Feita a denúncia, logo o delegado mandou proceder a exame médico, que detectou, bem visível e incriminadora, grande quantidade de esperma do arguido. Este, honra lhe seja, apresentou-se voluntariamente ao digno acusador, mas negou categoricamente o ilícito, pois tinha mantido relações sexuais com a ofendida por
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vontade de ambos, aliás, previamente acordadas para aquele dia.

O processo seguiu os trâmites habituais e o Gustavo está agora perante o Tribunal Colectivo para responder pelo crime de violação, com as agravantes que no caso confluem. É uma questão delicada, convenhamos, porque embora os indícios sejam avassaladores, há apenas a palavra da ofendida contra a palavra do réu e, na dúvida, deve ser decretada a absolvição. Como vem sendo regra sagrada desde o tempo em que os romanos iniciaram a construção da ciência jurídica ocidental, e exceptuando o negro período da Santa Inquisição, o réu presume-se inocente enquanto não se provar o contrário. Isto, mais palavra, menos palavra, dizia o ilustre advogado de defesa, renomeado ornamento do foro de Coimbra, a rematar a sua oração, durante a qual pôs a descoberto todas as contradições da prova, e salientou as qualidades morais do seu constituinte, ali abonadas por testemunhas idóneas e prestigiadas, incluindo o senhor presidente da Câmara.

A sala está apinhada de impaciências e de palpites. O julgamento arrastou-se durante todo o dia, já as luzes se acenderam, mas ninguém cede ao cansaço. E quando as repartições fecharam, foram muitos os funcionários que vieram engrossar a hoste expectante. As opiniões dividiam-se e o próprio tribunal, via-se bem pela cara atormentada dos julgadores, vacilava sobre o
risco sinuoso que separa a verdade da mentira, a culpa da inocência, pois o Corregedor, findas as alegações, ainda fez mais uma tentativa para dissipar o manto espesso da dúvida:
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- Diga-me lá, senhor Gustavo, mas seja franco, se
a queixosa consentiu em manter relações sexuais, por que lhe rasgou as cuecas?

O porteiro apresentava-se fardado. Apesar de suspenso, caprichara em exibir os símbolos da sua importância, ou por confiar na absolvição, ou por querer despedir-se das suas funções. Assumira desde o início da audiência uma postura ao mesmo tempo solene e humilde, de quem respeita a justiça mas não a teme, porque nada lhe deve. E tão convincente fora nas suas declarações que, certamente, qualquer júri o teria absolvido. Levantou-se cerimoniosamente, e disse com absoluta segurança:

- Não posso explicar, senhor doutor juiz. Como já esclareci, foi ela quem tirou as cuecas...
- E voltou a vesti-las depois do acto! - lançou o advogado, a vincar um ponto importante da defesa: se os factos se tivessem passado como sustentava a acusação, não se compreendia que a ofendida tivesse a calma e o tempo suficientes para vestir as cuecas antes de arremeter no átrio em alta gritaria, como ficou provado pela inspecção visual do Ministério Público...

A tese da defesa era essa: a ofendida consentira nas relações sexuais na esperança de o Gustavo a desposar. Mas porque ele repudiara a ideia, a mulher, ardilosa como a serpente, simulara a violação na tentativa de o forçar ao casamento para se livrar do processo criminal. E a prova é que lhe enviou vários emissários, sugerindo que desistiria da queixa se casasse com ela.
O porteiro, porém, preferira, dignamente, sujeitar-se ao julgamento a ceder à chantagem...
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O Colectivo sentia-se inseguro, porque, terminada a discussão, tardava em retirar-se para responder aos quesitos e lavrar a sentença, como se esperasse ainda que uma nesga de claridade varresse a noite densa da sua perplexidade. Este é o momento mais doloroso de quem tem o pesado fardo de julgar. Decidir sobre a liberdade e a vida quando a prova é escassa, quando as palavras se equivalem nos dois pratos da balança, e o fiel da consciência hesita em discernir a solução, é pior do que encontrar o fio de Ariane e sair do labirinto...

Um silêncio incómodo, apenas riscado pelo tossicar de tantas impaciências e interrogações, abateu-se sobre a sala prenhe de dúvidas. São minutos de grande tensão emotiva, especialmente para os advogados, como quando se espera o resultado de um exame decisivo ou de uma análise clínica, de que depende a nossa vida. E foi neste comenos que o presidente, homem ponderado e justo e, por isso mesmo, exigente em matéria de prova, deixou transbordar a dúvida que lhe mortificava a alma:

- Pois é! Há duas versões e não há testemunhas. Agora o tribunal que deslinde o caso...

Aconteceu então o imprevisto. Levantou-se do silêncio da sala, como se irrompesse do soalho, uma voz de cana rachada a abrir caminho naquela expectativa levada ao rubro:

- Eu vi tudo, senhor doutor juiz! Eu sou testemunha! - era o Canada.

O presidente varreu a turba com os olhos ansiosos, a procurar arrimo. Já não era a primeira vez que o milagre lhe acontecia no derradeiro instante:
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- A pessoa que falou, faça favor de chegar aqui!
O anão rastejou por entre a surpresa de tantos olhos curvados sobre a sua insignificância agora redimida, e alcançou a teia. O oficial abriu-lhe a cancela e ajudou-o a aproximar-se da bancada. Lançou um olhar desapiedado ao réu e, a um gesto do meretíssimo, descreveu minuciosamente a cena, com palavras babadas de prazer, confirmando por inteiro a acusação. Mais esclareceu, a instâncias do advogado, que assistiu a todas as aventuras amorosas do Gustavo, pois vigiava-o discretamente, e quando pressentia o assédio final, dirigia-se para a cave, aproveitando a porta já aberta, e escondia-se debaixo da cama para participar, à sua maneira, nas orgias sexuais do outro...

- Ali, sim! - rugiu o advogado, a espumar de raiva - E que fazia você?

Um brilho lascivo aflorou nos olhos fundos do Canada:

- Eu, senhor doutor... arreava as calças e tocava à punheta!

23A Senhora Gracinda

Sempre que ali passo e lanço um soslaio ao bloco de apartamentos de enfileiradas varandas sobre o mar, proa erecta na enseada do mistério a espreitar a morte de todos os ocasos, a imagem da senhora Gracinda, minha antiga cliente, levanta-se da poeira dos 'arquivos e vem, emblematicamente, reacender a fogueira dos meus casos memoráveis. O arquivo dum advogado é um
acervo de figuras ricas e multímodas a desfilar na penumbra do tempo, como um painel iluminado pelo sol rememorativo da lembrança.

Não conhecia a senhora Gracinda e poucas vezes visitara aquela aldeia piscatória, agora transformada em estância de turismo e veraneio, as velhas casas típicas de duas águas, da cor do mar, substituídas por caixotes residenciais, numa febre de lucro alucinado, fazendo dos barcos da faina artesanal, que ainda remavam contra o tempo, um adorno naíf numa paisagem de cimento armado.

O caso da senhora Gracinda era simples, mas raro.

O marido partira num fim de tarde para a pesca e não
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voltara mais. Na manhã seguinte a frágil embarcação apareceu destroçada entre os rochedos, mas não havia rasto do seu único tripulante. Esperou a pobre mulher, em vão, durante longos e chorados dias que o mar lhe devolvesse o corpo do companheiro de tantos anos, porque tudo o que é da terra a ela deverá reverter. As buscas efectuadas durante uma semana foram infrutíferas, e a esperança de que o pescador solitário dormisse o precário sono eterno sob os ciprestes da encosta desvaneceram-se na sentença de Mestre Cardim: "desapareceu, foi levado pela corrente". De modo que, ao fim de três meses, a viúva apresentou-se no Registo Civil para participar a morte. Mas como a burocracia é esse labirinto de reveses e percalços que todos conhecemos, e faltava a certidão de óbito, tornava-se necessário accionar os mecanismos legais, morosos e trôpegos, para lavrar o assento certificativo. Foi então que a peixeira me apareceu no escritório. O caso era simples, como se vê. Desencadeado o processo, o Conservador riscou o nome do senhor Isidoro do número dos vivos, e o luto oficioso da esposa transformou-se em luto oficial, confirmado por sentença, certidão e selo branco. Uma sentença é sempre uma super-realidade, a realidade indiscutível do Estado, de que não há apelo nem agravo.

Não sei se a senhora Gracinda sofreu uma dor profunda com a morte do marido, julgo mesmo que a aceitou com certo alívio, porque a sua vida conjugal era um verdadeiro tormento, como vim a saber. O Isidoro andava sempre bêbado e batia-lhe desalmadamente,
4@era uma escândula", dizia ela, os vizinhos a intervir e a tomar partido, uns porque ela não o zelava como devia,

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outros porque ele gastava tudo nas tabernas, e casa onde não há pão... A verdade é que aquela inferneira só se instalou no casal depois da morte do único filho, também pescador e também naufragado naquele mar, que era o sustento e a sepultura do povoado, e sabe Deus, por culpa do Isidoro, a teimar que o rapaz havia de sair ao largo naquele dia encrespado. O mar não perdoou o ousio, e o seu corpo foi arrojado à praia, ficou deposto nos rochedos, como um protesto, no exacto local onde, anos depois, mesmo em frente da casa modesta, o mesmo barco, agora timonado pelo Isidoro, havia de espumar a sua raiva inútil por mais aquela vida perdida.

Confesso que fiquei com grande simpatia pela senhora Gracinda. A coragem com que enfrentou a desgraça, o afã com que diligenciou oficializar o óbito, a ternura com que guardava os destroços da embarcação, onde depunha regularmente as flores vivas da sua saudade, e o luto que carregou até ao fim dos seus dias, tornaram-na uma figura singular, imagem encanecida da mulher rural portuguesa, fiel, sentimental e corajosa. O advogado nunca é um observador distante e desapaixonado, pois participa dos segredos, das dores e

alegrias dos seus representados. E além da sua ciência, deve dar-lhes a sua compreensão, por vezes, mesmo, o seu afecto, sobretudo quando, como neste caso, era preciso atenuar o fatalismo com o calor fraterno da solidariedade.

Mas o verdadeiro retrato da senhora Gracinda foi-me revelado quando me procurou, anos depois, por causa da expropriação, dizia ela, do quintal e da casa

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onde nascera, casara e sempre vivera. Era uma casa

humilde mas airosa, com logradouro anexo, na extensa orla da praia onde o mar formava uma enseada para ficar mais perto dos pescadores. Uma empresa de construção já tinha chegado a acordo com os proprietários vizinhos e faltava apenas demover a senhora Gracinda para ali ser edificado um grande complexo turístico e residencial. A proposta era sedutora, a própria Câmara patrocinava o projecto, mas a minha cliente, resistira a todas as pressões para vender o prédio. Não estava disposta à transacção, qualquer que fosse o preço. Ameaçada pela Firma com um processo de expropriação, lembrara-se de recorrer aos meus serviços. Fizesse eu tudo o que estava ao meu alcance para salvar a casa, que ela me saberia recompensar...

Olhei a senhora Gracinda com ternura e solidariedade. E tranquilizei-a. Não havia, naturalmente, possibilidade legal de expropriação. Se ela não quisesse vender, ninguém a poderia obrigar. Contudo, como a proposta era aliciante e a Construtora deveria estar disposta a subir o preço, pensasse ela a melhor solução. Com o dinheiro recebido poderia comprar uma casa nova e ficar ainda com as economias suficientes ao seu sustento para o resto da vida...

Fixou-me com os olhos cansados por muitas luas de insônia e sofrimento, e apertou o lenço ao queixo. O seu rosto lembrava-me um retábulo antigo da Senhora das Dores, semeado pelo rasto de viagens tormentosas e naufrágios. A mão trémula começou, lentamente, a dobrar as abas do avental e a senhora Gracinda era agora uma mancha negra e expectante sentada à minha

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frente, indefesa e solitária. Mas a sua voz tinha a firme teimosia de uma quilha rasgando o mar:

- Não, senhor doutor! Não vendo a minha casa por todo o dinheiro que há no mundo. Quero morrer onde nasci!

Pensei que um excessivo sentimento de posse pelo redil nativo não lhe permitia ver as enormes vantagens do negócio, tanto mais que a Construtora estaria disposta a dobrar o preço para realizar o projecto. Pobre, como era, não devia deixar fugir essa oportunidade, e era meu dever aconselhá-la a ponderar a proposta. Contudo, a profissão ensinou-me que a lógica dos sentimentos é, muitas vezes, avessa à jurisprudência dos interesses, por mais legítimos que sejam. Não há dinheiro que pague a paz da consciência. Uma casa modesta, onde o sol penetra pelas fissuras do telhado e ilumina alegremente todos os cubículos da existência, pode ser mais reconfortante do que um palácio. E, por outro lado, há um espaço sagrado, invulnerável, na vontade dos clientes - lá onde os sentimentos se entrelaçam para formar o veio subtil da personalidade - que nem o advogado pode invadir com o seu conselho, por mais útil que lhe pareça. Por isso, não insisti e voltei a tranquilizá-la:

- Fique descansada. A lei não a obriga a vender contra a sua vontade.

- Confio em si, senhor doutor. Mas há outra coisa... - disse com ar de assumida conivência.

- Não há nada que a obrigue a vender - confirmei.

- Tenho um sobrinho, sabe, senhor doutor, e ele

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quer, à viva força, vender a casa. Diz que a Construtora me dá uma casa nova no pinhal e ainda me paga uma

boa indemnização...

- A senhora Gracinda é que decide.
- Não, por nunca ser! Eu quero é que vossa

senhoria o convença, se ele, por acaso, cá aparecer...

- A senhora Gracinda é a dona e, portanto...
- Ele diz que estou maluca por não aceitar o negócio. Ora, senhor doutor, não estou maluca e sei muito bem o que quero!

Disse à pobre mulher que fosse tranquila. Se era

essa a sua vontade, eu me encarregaria de convencer o sobrinho. A senhora Gracinda abraçou-me comovidamente, e eu senti que o advogado deve ser mais do que um simples consultor jurídico, um perito de leis, mas também um intérprete e garante dos sentimentos dos seus constituintes.

Dias depois o sobrinho procurou-me. E, como eu previa, demonstrou-me facilmente que a velha ia perder a única oportunidade que a vida lhe ofereceu para sair da sua crónica pobreza. A Construtora dava-lhe

uma casa no pinhal ou um apartamento no complexo, e ainda lhe pagava uma indemnização.

- Se não aceitar, está mesmo maluca! - repetia o sobrinho, homem atinado, que se libertara do mar e ganhava a vida em terra com uma quitanda de comes e bebes. - E o senhor doutor tem de convencê-la...

- Temos de respeitar a vontade da sua tia!
- Pois é. Mas desperdiçar esta oportunidade é como rasgar um bilhete premiado da lotaria...

Pensei que era a apetência pela choruda indemni30

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zação que o motivava, mas ele logo desvaneceu essa suspeita:

- Eu só quero o bem da minha tia. Vive lá num pardieiro sem quaisquer comodidades e farta-se de trabalhar para subsistir. Até gostava que o senhor doutor lá fosse para me dar a sua opinião, em consciência...

E foi assim que visitei a casa da senhora Gracinda. Era uma casa térrea, modesta, de facto, casa típica de pescadores pobres, com cercadura azul e sardinheiras floridas em rodapé. No quintal, cuidado como um jardim, havia figueiras, uma belga de couve galega e, junto aos muros divisórios, numa profusão de florista, hortênsias, jarros, cravos e rosas trepadeiras. Nas traseiras, entre duas figueiras dobradas de cansaço, aziaga recordação, repousava o barco fatídico, desconjuntado, que roubara a vida ao filho e ao marido, testemunhando ainda as duras fainas do mar, até que a segunda frustração o sepultara em terra. No seu ventre esguio, os dois remos estendidos, como dois corpos jazendo, e sobre eles, a reforçar a similitude de uma campa, as flores votivas da senhora Gracinda.

Comoveu-me aquela ternura pelo companheiro desaparecido, que o mar guardava ciosamente como um tesouro de antigo naufrágio. Não podendo reaver o corpo, a mulher simulava assim a sua presença física para se sentir menos viúva. A história mostra-nos que o culto dos mortos é o mais firme, persistente e sincero de todos os cultos, ainda que dos deuses. Porque os mortos são parte de nós, entraram nas nossas vidas, enquanto os deuses são apenas a vaga recordação dum futuro inventado.

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- Agora que o senhor doutor já conhece isto, diga-me francamente se não é um asneira recusar a proposta da Construtora - observou o sobrinho a chamar-me à realidade.

Olhei à volta. As casas vizinhas já tinham sido demolidas em toda a extensão da enseada, a terraplanagem estava feita e os compressores atroavam fragorosamente os ares, penetrando a rocha com a sofreguidão de faunos selvagens. Em contraste, uma junta de bois arrastando um barco recém-chegado da faina, esmagava com seus cascos pachorrentos a sombra delida do tempo.

- Eia! Eia! - proclamava o pescador-boieiro, esgrimindo a aguilhada, também ele sintonizado com aquela lentidão. As horas só correm velozes para quem não sabe acertar o passo pela natureza.

A velha puxou-me pelo casaco e fitou-me com os olhos súplices. Mas eu não me tinha esquecido do seu apelo:

- Acho que devemos respeitar a vontade da senhora Gracinda. Não é só o dinheiro que traz a felicidade. Esta paz não tem preço...

Um sorriso aqueceu o seu rosto encardido pelo sal do mar e dos olhos. Pegou-me no braço e conduziu-me para a sebe que bordejava a rua. Levantou a mão como se procurasse qualquer coisa no oceano tranquilo, dum azul comovente, mas era dentro de si que um desejo espinoteava:

- Eu até queria pedir ao senhor doutor, e diga-me se é preciso passar uma procuração, que não deixasse vender a casa mesmo depois de eu morrer...

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O sobrinho aproximou-se, resignado, a cortar a confidência, e aquele desejo desfez-se na espuma branca das ondas, como uma breve pegada na areia, pois eu ignorei a inusitada pretensão da senhora Gracinda.

- A tia é que manda. Mas olhe que vai ficar aqui entalada para o resto da vida.

E ficou. Os prédios começaram a crescer em volta do reduto da velha, floresta de vidros e cimento a encurtar o voo das gaivotas, com os cotovelos das varandas a espetarem a nova avenida, e o cocuruto dos elevadores a desafiar o céu. O enclave da senhora Gracinda transformou-se numa espécie de saguão do bloco de apartamentos onde o sol dava apenas uma rápida olhadela quando passava pelo zénite. A terra tornou-se avara, as flores murcharam nos canteiros e as figueiras ficaram mais derreadas, como se os dedos famintos dos seus ramos esgaravatassem o chão maninho, em sinal de protesto.

Mas quem atentasse na urbanização, verificava que o projecto inicial se mantinha e que aquele espaço entre os edifícios, agora interdito pela teimosia da velha, seria absorvido logo que ela fechasse os olhos. O sobrinho devia ter garantido à firma que lhe vendia o terreno quando a lei da vida o tornasse seu legítimo detentor. E por isso, as estruturas e vigamentos, interrompidos à sua volta, nervos de ferro a emergirem do cimento, como se tivessem sido decepados por uma espada gigante, estavam prontos a avançar e a submergir o estranho capricho da actual proprietária, ou o seu sonho de perpetuar a homenagem ao companheiro desaparecido. O que eu não supunha é que fosse tão

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cedo. Ainda não tinham passado dois anos sobre a minha visita, e ainda as máquinas grunhiam na outra ponta da enseada, quando o sobrinho me aparece no

escritório a anunciar a morte da senhora Gracinda. Trazia um sorriso desdenhoso a franzir-lhe a cara, em vez da compostura do luto. Despejou a notícia antes de desfazer o aperto de mão:

- Venho dizer-lhe que a minha tia morreu. Pensei que o senhor doutor gostasse de saber, pois era muito seu amigo...

- Assim de repente? - admirei-me.
- Foi de repente. O encarregado das obras encontrou-a morta de manhã, ao lado do barco. Deve ter morrido de noite. Estava fria e coberta de orvalho.

- E quando foi?
- Há oito dias. Desculpe só agora cá vir...
- Era uma mulher de armas, a sua tia. De coragem. Gostava muito dela - disse para o confortar.

O sorriso descaiu-lhe de súbito, como um pássaro ferido em pleno voo. Percebi que tinha outra coisa mais importante a comunicar-me e resolvi ajudá-lo:

- Agora o prédio é seu. Já o pode vender, finalmente...

- Já o vendi. Para lhe ser franco, há muito que fiz o contrato-promessa e recebi o sinal. Sou o único herdeiro e sabia que mais tarde ou mais cedo...

- Quer dizer que já demoliram a casa?
- Começaram ontem, e foi por isso que eu vim falar com o senhor doutor. Nunca pensei que...

- Algum problema?

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Não, não é nenhum problema. Apenas queria que ficasse a saber que quando retiraram o barco e escavaram o chão, encontraram o esqueleto do meu tio...

35A consulta

Era um sujeito desataviado mas de cuidada barba branca, gestos à flor dos olhos e fala copiosa como um temporal desfeito. Compreendi logo que vinha mais para comunicar do que para ouvir, porque a chuva insistente das suas palavras mal me dava tempo para me ir abrigando numa ou outra interrupção fugaz. Há pessoas assim. Precisam de despejar o saco para desanuviar o espírito e partilhar o remorso na esperança do interlocutor lhes mostrar que o sol ainda brilha para lá do negro horizonte em que bracejam. São como os apaixonados a quem a ausência dói mais do que o desamor, e que também se comprazem no líquido devaneio da sua angústia. Procuram o advogado em vez do confessor, porque sabem que ele não lhes impõe a

penitência canónica, e antes os acolhe com uma palavra de solidária compreensão, ajudando-os a carregar a pedra pela encosta empinada da sua emergência. Uma dor partilhada é sempre uma dor mitigada, sobretudo quando se tem a garantia inviolável do segredo profissional.

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Deixei-o, pois, falar, logo que as suas mãos fogosas alisaram a barba e traçaram na minha expectativa o

gesto eloquente de confidencialidade. Acendeu nervosamente um cigarro e percebi que se arrimava a esse bordão como o viandante que se prepara para uma árdua caminhada:

- A minha mulher engana-me com o meu melhor amigo. As coisas sucederam por acaso, se é que o acaso não é o disfarce do natural, ou seja, o resultado inevitável da conjugação de vários factores de ordem física e

psicológica. Tínhamos casado há três anos e eu ausentava-me pela primeira vez, durante uma semana, para participar num congresso em Madrid. Minha mulher não pôde viajar comigo, mas insistiu em acompanhar-me à estação. E como a distância era curta e o tempo convidava, fizemos o percurso a pé como dois namorados. Por acaso - lá estou eu outra vez a empregar a

palavra enganadora - o Sousa desembarcou no mesmo comboio que me devia levar. Ainda o cumprimentei fugidamente e até lhe renovei algumas recomendações.
O Sousa é meu assistente e, na minha ausência, tinha de tomar certas providências...

- O senhor é professor? - perguntei apenas para dar um sinal de interesse pessoal, enquanto o ia analisando. Pelo camisolão de bombazina e camisa escura, mais parecia um ferroviário aposentado.

- Sim. Sou professor de filosofia, mas isso é mero acidente da minha vida.

Esmagou o cigarro e tirou da bolsa que trazia a

tiracolo um cachimbo já carregado. Acendeu-o com

ademanes de mestre, e uma espessa cortina de fumo

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interrompeu, momentaneamente, o círculo da confidência. Talvez precisasse desse biombo para continuar a sua catarse. E continuou:

- O Sousa acompanhou Lúcia a casa, facto natural, dadas as nossas relações. Mas, imprevistamente, desabou sobre eles uma chuva copiosa, verdadeiro temporal desfeito, que lhes encharcou os ossos até à medula. Minha mulher convidou-o a entrar e, naturalmente, emprestou-lhe um fato meu, por acaso temos o mesmo corpo, embora, é claro, ele seja mais novo. Ela foi ao quarto vestir o robe de chambre, e ele à casa de banho trocar de roupa. Quando Lúcia regressou à sala já ele estava sentado no sofá onde eu costumo instalar-me, e ligara o gira-discos, como eu também costumo fazer. A quinta sinfonia de Beethoven, interrompida com a minha partida, abria todas as portas do imaginário. Ocorreu então um facto estranho, ou talvez não, uma miragem, um delírio poético, ou, simplesmente, uma aguda memória visual despoletada por aquela semelhança do cenário habitual, ou pelo desejo de me ter consigo, pois, como sabe, o amador tende sempre a ver a pessoa amada em qualquer contorno físico. E foi isso que aconteceu, a avaliar pelo relato que, inocentemente, a própria Lúcia me fez: ao entrar na sala convenceu-se que eu tinha regressado e beijou-me com ternura, ou melhor, beijou o Sousa, o qual, aceitando o imprevisto, deixou que o acaso cumprisse todas as fases do acto amoroso...

- Mas sua esposa... - ia eu a intervir de novo, aproveitando um ligeiro embargo na sua voz e pensando naquela curiosa explicação filosófica. De facto, um desejo

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fervente é sempre um começo da realidade desejada. O professor, porém, travou-me o passo com um gesto brusco e continuou a sua peregrina narrativa:

- Durante a minha ausência voltaram a encontrar-se todos os dias à mesma hora, por acaso, a hora em que eu costumo chegar a casa. O Sousa continuava com

o meu fato, talvez por se ter convencido de que eram as vestes que lhe conferiam a minha identidade. A nossa identidade também é precária e, muitas vezes, emprestada... Na véspera do meu regresso até lá jantou, e foi nessa altura que Lúcia teve um lampejo, ou um rebate de consciência, e lhe observou que estavam ambos a viver uma situação fictícia e era preciso pôr termo àquela aventura...

- O senhor professor tem razões de sobra para requerer o divórcio - consegui dizer, aproveitando uma pausa do cliente, momentaneamente distraído a rebuscar qualquer coisa na sua bolsa. Mas ele não se deu por interpelado e voltou ao ataque:

- Quando regressei, minha mulher contou-me tudo e eu aceitei as suas explicações. Todos nós tivemos já as nossas aventuras extraconjugais e sabemos que elas são como o foyer dos grandes teatros: servem apenas para passar o tempo, ou matar a sede, no

intervalo da verdadeira representação. O amor é também uma representação, por acaso, a mais sublime, e não é pelo facto de um dos parceiros desempenhar, fugazmente, um papel menor que se esquece do tema principal...

Começava a sentir-me húmido com tão copiosa e

abstrusa verborreia, e interrompi-o decididamente com

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o gesto inapelável do sinaleiro diante duma manobra perigosa:

- Espere aí, senhor professor, que eu ainda não compreendi bem o objectivo da consulta. Se pretende divorciar-se...

- Ouça, por favor! - disse ele, aparentemente mais calmo, exibindo um papel dobrado à altura acusadora dos meus olhos. - Após o meu regresso, continuaram a encontrar-se, mas agora no apartamento dele, onde a esperava sempre com o meu fato vestido. Minha mulher contava-me tudo, com a candura duma pecadora ingénua, e eu perdoava-lhe, porque aquilo não passava dum devaneio efémero, infantil, e também porque sabia que ela continuava a amar-me. Aliás, nunca as nossas relações foram tão plenas como nesse período. Pensei que se ela precisava dum acicate para melhor nos disfrutarmos, não havia qualquer inconveniente em encontrar-se com o outro. O outro funciona, muitas vezes, como o cigarro para o fumador de cachimbo: é o supérfluo a espevitar o essencial, a aguçar o desejo. Ora, o supérfluo não faz parte da vida.
O que interessa, no meu ponto de vista, não é a chamada pureza do corpo, mas a sinceridade dos sentimentos. O corpo é, por natureza, impuro. Só os sentimentos definem o homem. E, neste aspecto, Lúcia continuava pura e apaixonada como sempre. Aquela sua futilidade era como o patamar das longas escadas, que serve apenas para descansarmos antes de prosseguirmos a subida. E Lúcia jurara ser minha para o resto da vida...

Aliviei o colarinho no gesto maquinal de desapertar o nó de perplexidade que aquela confissão me estava

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a provocar. O advogado ouve muitos desabafos desconcertantes, e deve saber escutá-los com paciência de monge, porque o insólito é que marca a diferença entre a teoria académica e a prática forense. Mas não pude evitar um gesto de enfado, tanto mais que ainda não lobrigara a finalidade da consulta. Ele percebeu e começou a desdobrar o papel com um sorriso decepado e fugidio. Nem era bem um sorriso, era mais o seu revérbero, como o sol que, depois de desaparecer, deixa ainda no céu um rasto fatigado de luz. E foi a minha vez de me socorrer dum cigarro, pretextando falta de lume para forçar uma pausa naquela íngreme subida:

- Dá-me lume, por favor...
O professor vasculhou os bolsos até achar o isqueiro na mão que segurava o misterioso documento. Aproveitou a coincidência para desvendar a mensagem em riste, esquecendo-se completamente do meu pedido.

- Tudo correu bem até ontem. Mas ontem, ao chegar a casa, encontrei esta carta, na qual minha mulher me comunica que optou pelo Sousa e decidiu abandonar-me. Apela à minha compreensão, jura que continua a amar-me e que espera manter comigo as relações amistosas que vem do tempo em que foi minha alunajuntamente com o Sousa. Mas acusa-me de ser eu * culpado da sua dolorosa decisão, pois nunca reclamei * devolução do fato provocador que, por acaso, é o mesmo fato que trazia vestido quando a convidei a vir a minha casa pela primeira vez e a pedi em casamento, depois de ouvirmos Beethoven e de nos termos amado, numa tarde chuvosa e memorável...

Calou-se, como se revivesse o momento primordial

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da sua paixão serôdia e sentisse, outra vez, o sol nos braços. Mas era apenas uma reverberação da memória que lhe luzia nos olhos, uma saudade, talvez, e eu imaginei um velho e conspícuo professor rendido à beleza duma jovem aluna, a desafiar a natureza, sem se lembrar que o tempo havia de cavar entre eles, inevitavelmente, o abismo em que agora parecia afundado. Dobrou a carta impiedosa, restituiu-a à carteira e disse com imprevista desenvoltura:

- Ora, perante isto, há que tomar as medidas adequadas, e eu vim consultá-lo, justamente...

- A solução será requerer o divórcio litigioso, e o senhor professor tem dois fundamentos só lidos, o adultério e o abandono...

- Não! Não é isso! - e uma sombra assustada contraiu-lhe o rosto.

- Claro. Em face das circunstâncias, tudo aconselha que se resolva a situação com o divórcio por mútuo consentimento. Se assim o entender, posso convocar a sua esposa, e estou certo que ela concordará...

Suspirou fundo e encarou-me com os olhos trôpegos de caminheiro fatigado. Havia neles o brilho comovido de quem está prestes a chegar ao fim da jornada.

- O que eu pretendia, e por isso o vim consultar, é que o senhor doutor chamasse cá o Sousa...

- O Sousa?! - estranhei. Os olhos do professor faiscaram de impaciência. Chupou sofregamente o cachimbo apagado e ao ver a inutilidade do seu esforço tirou um cigarro da sacola e

acendeu-o com avidez.

- Sim, o Sousa! Queria que o intimasse a devolver-me o fato. Urgentemente...

43 O preço da honra

Era frágil e graciosa como uma flor silvestre. Tinha olhos azuis, vivos e saltitantes que pareciam dois pássaros em busca do sol. Mas havia um ramo de tristeza a nublar-lhe o rosto. E logo que ela se sentou, ainda a compor o casaco comprido sobre os joelhos rosados, deixou que duas lágrimas furtivas polvilhassem a doce amargura da voz:

- O senhor tem de me valer! Fui insultada, ofendida na minha honra, e sou uma mulher honesta...

Procurei apaziguar aquela veemência com as palavras e os gestos que a vida me foi ensinando. O advogado sabe que, normalmente, vale mais nestes

casos a provisão da palavra concreta do que a previsão da norma abstracta. Levantei, pois, o braço a serenar a tempestade, sorri e disse-lhe com sincera convicção:

- Esteja tranquila, que tudo se há-de resolver. A honra das pessoas sérias pode ser ofendida, mas a verdade da sua vida acabará por se impor.

Olhou-me docemente como se repousasse, inteira, na minha solidária compreensão. E contou que o marido

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desertara da tropa para escapar da guerra colonial, e estava, há cerca de um ano refugiado no estrangeiro, nem ela sabia onde... Ora, valendo-se da situação, um vizinho perverso, parece que informador da PIDE, que já em solteira lhe fizera a corte, aproveitara a ausência do marido para tentar seduzi-la. Fazia-se encontrado nos ermos caminhos da aldeia quando ela regressava da fábrica, e ia-se insinuando com palavras lamentosas da sorte do companheiro, que fora obrigado a deixar uma mulher tão jovem e bonita. Da última vez, porém, revelara as suas verdadeiras intenções, aproveitando o recato da vereda para lhe acariciar os seios. Como resistiu e o desenganou firmemente, o sevandija propalara lá na terra, por vingança mesquinha ou ódio recalcado, que ela era uma desavergonhada, que tinha amantes e o marido era um traidor e um corno...

Tratava-se, afinal, como eu previra, de um vulgar mas grave crime de injúrias. E como a cliente me garantiu que tinha testemunhas idóneas, aconselhei-a, naturalmente, a levar o caso a tribunal.

O ramo de sombra voltou a toldar-lhe o rosto:
- Mas a questão é que eu estou grávida! - disse ela com um rubor inocente a sublinhar a impaciência dos olhos. - E foi talvez por me ver com a barriga grande que ele teve esse descaramento...

Os dados do problema foram radicalmente alterados. Mas, não obstante a desbocação do vizinho constituir crime, pensei que a honra da cliente seria melhor acautelada se calasse a ofensa.

- Sendo assim, é melhor não participar. O processo poderá trazer-lhe alguns riscos e virar-se o feitiço contra o feiticeiro...

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- Mas, senhor doutor, eu estou inocente e sou uma mulher séria. Nunca conheci outro homem senão o meu marido!

Olhei-a longamente nos olhos, a pesar a funda inquietação que os afogava, e apenas vi neles uma paz amedrontada à espera da protecção da lei. O sentimento da honra e a urgência do seu desagravo pareceram-me tão fortes, que logo intuí que não cometera adultério.

- Quer dizer, então, que visitou o seu marido?
- Não. Não o visitei, pois nem sei onde pára...
- Mas isso significa - ia a tirar a conclusão inapelável quando ela se levantou determinada, aproximou-se da secretária, inclinou-se para mim como se fosse revelar um segredo, e disse com sorridente cumplicidade:

- O meu homem veio cá clandestinamente e esteve oito dias escondido lá em casa. Mas olhe que isto é muito confidencial, pois a organização não quer que se saiba...

Também eu sorri de alívio. Agora tinha a certeza de que ela falava verdade e que o brilho dos seus olhos

era o fogo sagrado da inocência.

- Pode confiar!
- Eu sei que posso confiar e, por isso, o procurei. Foi a organização que mo indicou...

Apresentei a queixa criminal e os autos seguiram a sua lenta tramitação dando tempo a que a criança nascesse antes da marcação do julgamento. Quando a cliente voltou ao escritório para saber o estado do processo e mostrar-me o fruto dos seus amores legíti47
mos, senti que o filho, afinal, vinha abalar a consistência moral da acusação e facilitar a defesa do arguido, pois a cliente insistia que, em caso algum, podia revelar o segredo.

Estava nessa altura na comarca umjuiz conservador e situacionista confesso para quem a deserção das fileiras e o adultério - era essa a realidade processual
- mereciam as chamas eternas do inferno, visto já terem acabado as santas fogueiras da Inquisição, e eu sabia que não podia contar com a despreconceituosa aplicação da lei. Comecei, por isso, a duvidar da oportunidade e da eficácia da queixa. E quando o julgamento foi, finalmente, marcado e soube que o Meirinho era o advogado de defesa, logo previ o ricochete da demanda. Aconselhei a cliente a aceitar explicações, caso o réu estivesse disposto a dá-las, a fim de obter uma saída airosa e poupar a pobre mulher às inevitáveis suspeitas e humilhações.

- Não, senhor doutor, por nada deste mundo lhe perdoo! Ele tem de ser julgado para saber que não se pode ofender a honra de uma mulher séria!

- Mas é um grande risco! Ainda que ele seja condenado, toda a gente vai supor que você enganou o seu marido. É um preço muito caro...

Por momentos, os seus olhos fixaram-se nos meus, duas lanças de fogo a romper caminho e a proteger-me os flancos da dúvida.

- A honra não tem preço! Poucas vezes encontrei uma pessoa com tanta determinação e confiança na Justiça. Mas eu continuava a debater-me no sombrio labirinto da descrença. Com48

petia-me desagravar a dignidade ofendida da minha constituinte e não lograva convencer-me da utilidade do processo. Era como se tivesse na mão uma arma carregada sem a saber manobrar. E aquela confiança mais me atormentava. Sentia que a tinha arrastado para um barranco.

- Só vejo uma solução para sairmos desta encruzilhada. é revelarmos o segredo da vinda do seu marido...

Encarou-me meditativa, os olhos ausentes, e aconchegou o filho ao peito:

- Isso é que não pode ser! A organização proibiu-mo terminantemente. Ele veio cá numa missão especial e ninguém pode saber!

Compreendi. Alguns mancebos da região tinham desertado, e a PIDE andava de narinas afiadas para encontrar o fio da meada subversiva. E, por estranha coincidência, a central eléctrica tinha sido sabotada tempos antes...

De modo que, no dia do julgamento apresentei-me no tribunal, mais na veste de advogado de defesa do que de acusação. A minha cliente, porém, ostentava aquela serena confiança dos injustamente ofendidos que acreditam na Justiça. Conseguira fazer sentar o réu no banco da ignomínia diante da vizinhança curiosa, e parecia segura da punição do despeitado galanteador. Trazia um vestido vermelho e os longos cabelos caíam-lhe em volutas de ouro sobre os ombros semi-desnudados. No seu rosto sorridente, agora mais belo, os pássaros dos olhos cantavam a alegria do triunfo. E a forma como apertava ao peito o seu menino, envolto num manto

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branco, e o exibia à assistência como fruto legítimo do amor conjugal, dava-lhe um ar casto de Imaculada Conceição. Ainda hoje, vinte anos volvidos, recordo a sua imagem impressiva, mas confesso que, nesse dia, senti um arrepio ao ver aquela pura irreverência no austero templo da Justiça. Parecia uma provocação. E logo o juiz, de cenho ameaçador, confirmou os meus receios:

- Vá lá fora entregar o menino, que não tem culpa nenhuma, e cubra-me esses ombros!

A audiência decorreu, infelizmente, como eu previa: o réu a escudar-se na amizade que dizia manter com a queixosa e no correspondente dever de a admoestar pelo seu comportamento, isto, é claro, sem a menor intenção de a ofender:

- O que eu disse e repito, senhor doutor juiz, foi que esta mulher devia dar-se ao respeito, pois andando o marido fugido, não podia ser dele o filho que trazia na barriga, e que aí está para mostrar a minha razão...

As testemunhas fizeram prova bastante, embora titubeassem perante o enigma de uma mulher parida em tal situação:

- Lá que o réu disse que a queixosa tinha amantes e que o homem era um corno e um traidor à Pátria, é verdade. Mas também é verdade que a queixosa andava pejada e tinha o marido ausente...

O Ministério Público remeteu-se a um prudente silêncio com um sorriso eloquente que bem expressava o que não queria dizer. Eu compus o ramalhete como pude, mas nunca me senti tão embaraçado. Pisava um pântano armadilhado e era prisioneiro dum segredo.

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Nem o bordão da lei deu grande convicção às minhas alegações.

O Meirinho estava no seu terreno preferido e fez a rábula do costume, tomando a assistência por júri e parecendo declamar o papel de marido enganado num auto medieval. Explorou a fragilidade ética da queixa e a falta de intenção dolosa. O réu havia sido a voz avisada da consciência popular numa época de devassidão, e se alguém devia ser punido, não era o seu constituinte,

mas a queixosa, por ferir tão profundamente a moral pública e o dever de fidelidade, que é um dos esteios da civilização cristã e ocidental...

A plateia ouvia a prédica com sagrada unção. No piedoso silêncio da sala, o Meirinho era mais sacerdote-acusador do que advogado-defensor, apostrofando as almas expectantes, rendidas àquela oratória inflamada:

- Diga-me, senhor doutor juiz, e digam-me todas as pessoas respeitadoras do direito e da moral: que nome se há-de dar à esposa que concebe fora do tálamo conjugal, e ao marido que desertou da Pátria para se furtar ao dever sagrado de a defender?! O nosso povo tem as palavras exactas para estes casos! Tenho pena desta mulher e deste homem, mas talvez a Providência os tenha querido punir para que o labéu da deserção e do adultério fique gravado a fogo na sua consciência e acompanhe para sempre este filho ilegítimo...

Foi então que a sala tremeu e o tempo parou como se fosse abalado por um trovão ou um grito de supliciado. Um homem de barbas e óculos escuros irrompe lá do fundo, afasta a chusma, galga a teia e aponta o dedo acusador ao advogado de defesa:

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- Cale-se que esta mulher é séria e esta criança tem pai!

- Prendam este homem! - ordenou o juiz desvairado - Quem é você?

Um guarda republicano investiu. contra o intruso, enlaçou-o pelo peito com os braços em garra, a boca a espumar de raiva ou de cio, deixando a assistência arrepelada de pasmo. Mas o homem sorriu para a minha cliente e lançou-me um soslaio tranquilizador:

- Eu sou o marido da queixosa - disse calmamente, como se aceitasse a prisão redentora. - E fiquem todos sabendo que não sou como e que o meu filho há-de honrar-se do pai que teve!...

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O alibi

O doutor Navarro pousou o telefone, descansou os grossos óculos de míope, alisou a cabeleira branca como se domestica-se um mau pensamento, mas as palavras viscosas do Meirinho continuavam a desassossegar-lhe o espírito.

- Preciso urgentemente de falar com o senhor doutor por causa do processo do seu cliente Anselmo Crespo - acabara de dizer o outro.

- Qual processo?
- Qual havia de ser! O homicídio.
- Mas o colega não é o advogado do Crespo?
- Pois sou. O senhor doutor recusou o patrocínio...
- E então, que tenho eu agora a ver com o processo?

- O doutor Navarro tem conhecimento de factos importantes. Talvez possa ser testemunha... - insistiu o Meirinho.

- Testemunha?! Você está doido! Onde é que se viu o advogado ser testemunha do cliente!

- O Crespo não é seu constituinte neste caso!

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- Mas é meu cliente habitual. Não o defendo por razões particulares, e até estranho como ele o consultou sem me dizer nada... E se não o defendo como advogado, também não o defendo como testemunha!

- O senhor doutor lá tem as suas razões para recusar o patrocínio. Mas não pode recusar o seu depoimento para esclarecimento da verdade...

- Desculpe. Eu não sirvo para isso! E, de resto, não sei nada que possa interessar à sua defesa - rematou, agastado. A invocação da verdade, por parte do Meirinho, soava-lhe a falso, como o nome de Deus na boca dum incrédulo.

- Mas se me permite, eu voujá ao seu escritório. Tenho a certeza que depois de me ouvir poderei contar com o senhor doutor...

Eram ambos advogados na comarca, quase vizinhos, mas o outro tratava-o com certa cerimónia, não apenas pela diferença de gerações, mas sobretudo pela diferença de concepções sobre a advocacia. O Navarro firmara a sua reputação ao longo de quase quarenta anos como profissional honesto, competente e conciliador. Nunca recebia testemunhas, nem dava falsas esperanças ao cliente. Recusava as causas que lhe pareciam injustas e patrocinava gratuitamente os que não podiam pagar. Tinha um entendimento ético do direito que o tolhia de falsear os factos ou de invocar em

vão as normas jurídicas. Os que deturpam a verdade, moldando-a aos seus interesses mesquinhos, ou tripudiam o ordenamento com interpretações tendenciosas, são verdadeiros contrabandistas do foro, mais perigosos do que os vulgares falsificadores, porque

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estes traficam mercadorias e assumem o risco da descoberta, enquanto os outros ofendem os valores sagrados da Justiça e movem-se com total impunidade. Por tais qualidades, e também pela sua modéstia e esmerada educação, era respeitado por colegas e magistrados.

O doutor Meirinho, pelo contrário, aceitava todas as causas e, por ligeireza ou ambição, talvez o fizesse sinceramente. Batia-se como um gladiador na defesa dos seus constituintes, ainda que fosse óbvia a sua falta de razão. Bisneto de um antigo meirinho, devia ter herdado dele, juntamente com o patronímico, o vírus da litigância a toda a brida. Montava cenários, criava factos, ensaiava testemunhas e considerava a lide como um combate que é preciso vencer a todo o custo. E, por ter os olhos vesgos para o direito, esgaravatava todas as hipóteses, parecia um furão à cata da norma no túnel comprido da sua ignorância. Mas, apesar disso, ou talvez por isso, às vezes ganhava a causa. E como rematava sempre com alegações vibrantes para a plateia, improvisado tribuno da plebe, o rosto congestionado, as mãos apelativas a emergirem da negrura da toga, criara a sua reputação junto daqueles que vêem o tribunal como um palco, e o advogado como actor, a representar o papel que eles próprios lhes reservaram...

O doutor Navarro acendeu um cigarro cogitativo, sem discernir o verdadeiro motivo da visita. Conhecia a personalidade do Meirinho, as suas manhas e limitações, rato de tribunal a untar as mãos aos funcionários e a escapulir-se por entre as malhas da lei, mas a deixar, por vezes, o rabo de fora, porque nunca

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essas malhas são tão largas que nelas caibam, sempre, todas as manobras. Qual seria agora a sua esperteza? Ser testemunha de um cliente, ainda que meramente abonatória, não é um acto normal, e poderia mesmo prestar-se a interpretações dúbias, sobretudo sabendo-se que recusara defender o Crespo, certamente por julgar que ele não merecia, neste caso, o seu patrocínio. A menos que, como o outro dissera, tivesse conhecimento de factos importantes para o esclarecimento da verdade...

O industrial Anselmo Crespo era dos seus mais antigos e fiéis clientes. Homem sério e empreendedor, muito considerado na praça, prosperara na vida graças apenas ao seu trabalho e persistência. Começara como alfaiate e tinha agora uma fábrica de confecções e uma loja de pronto-a-vestir. A fortuna não lhe subira à cabeça, porque continuava a levar uma vida modesta e a dar ainda uma demão no corte. Todos os seus problemas, comerciais e particulares, eram do conhecimento do Navarro, que os acompanhava e resolvia com a sua conhecida lisura e proficiência. Por isso, era mais do que seu advogado. Era um amigo e confidente. Daí a estranheza com que todos encaravam a sua recusa em defendê-lo no caso mais grave da sua vida, que dera brado na região, justamente, o crime de homicídio voluntário premeditado na pessoa do seu antigo sócio, Raimundo Lopes, tanto mais que o réu protestava a sua inocência e tinha a seu favor a generalidade da opinião pública.

A questão era melindrosa. O Crespo consultara-o há tempos por causa de um arrendamento e, finda a

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consulta, assumiu um ar solene, quase severo, a voz estaladiça como um vime seco:

- E agora, senhor doutor, tenho um assunto muito particular, que só posso confiar a um amigo...

- Esteja à vontade.
- O doutor Navarro é um advogado muito experiente, estudou muito, tem tido tantas causas, conhece todas as malhas da lei como eu conheço todos os recantos da minha fábrica...

- ó amigo Crespo, não o estou a conhecer, deixe-se de rodeios e diga o que pretende. Sabe que pode confiar em mim.

- Bem, senhor doutor, queria saber se há alguma maneira, uma forma de a gente praticar um crime e não ser descoberto...

O advogado fechou o dossier e franziu os olhos como se procurasse ver com nitidez todos os vagos contornos daquela insólita consulta.

Não estou a compreender! É muito simples - disse o Crespo com o suor a empapar-lhe os gestos. - Há ou não uma maneira de matar um homem sem se descobrir quem o matou?

Navarro acendeu o cigarro esquecido no cinzeiro.
O morrão, esfriado e grosso, exigiu-lhe a teimosia de dois fósforos, e esse compasso de espera do vício acendeu-lhe também a compreensão pelo cliente. Sabia das suas divergências com o antigo sócio, interviera nas longas e difíceis negociações para a cedência da quota, vira até que ponto se cavara entre eles um abismo de ressentimentos, e pareceu-lhe que a ave agoirenta daquela estranha pergunta era ali que se acoitava. Levantou-se,

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pôs a mão benevolente no ombro do Crespo, o homem continuava de cabeça baixa, era um desconhecido que ali estava, e então disse-lhe:

- Não há crime perfeito. Todos os crimes, como todas as acções humanas, deixam rasto, indícios, pegadas, e o criminoso acaba, normalmente, por ser descoberto. E quando não é o tribunal a puni-lo, é a

própria vida. Há um sentido imanente de Justiça, uma ordem natural, a que alguns chamam providência, que se encarrega de repor a verdade, às vezes por forma e

caminhos inimagináveis. Sei de casos de pessoas que escaparam durante anos e acabaram por ser denunciadas ou traídas por um gesto ou uma confissão num momento de fraqueza. A vida dá muita volta. Por isso, amigo Crespo, se teve um mau pensamento, esqueça, afaste-o! Não queira sujar o seu nome com um feio acto de vingança!

- O senhor doutor fala assim porque não sabe o que se passa!

- Nunca há razão para matar!
- Mas se eu lhe contar, talvez me dê razão... Desatou o colarinho, aligeirou a gravata, passou a mão pela cara, da testa ao queixo, gesto que tanto podia ser de fuga como de alívio, e contou que o Raimundo desde que lhe vendera a quota, vinha todos os meses à fábrica, em dia e hora previamente marcados pelo telefone, exigir-lhe cinquenta contos, exactamente a

quantia que antes recebia como gerente, sob a ameaça de revelar à mulher e ao público a aventura amorosa que ele tivera com uma empregada, e o aborto que ela fora obrigada a fazer, deixando-a entre a vida e a morte...

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- O senhor doutor está a ver, não posso aguentar esta chantagem. Qualquer dia dou-lhe dois tiros no coração...

- solução. Se você resistir à chantagem, ele acabará por:deixá-lo em paz.

E se o canalha dá com a língua nos dentes? Já viu a minha reputação? E o que fará o marido dela?

O marido não desconfia de nada?
- É emigrante.
- Mas pior do que tudo isso, é o senhor perder a cabeça e cometer um crime e ir para a cadeia, e calar aquela boca suja! Olhe que até o meu filho me dá razão...

São, pelo menos, dez anos, contando com as
atenuantes. E nenhum desforço, nenhuma vingança, por mais justa que pareça, vale a nossa liberdade...

- Mas há-de existir uma maneira de fazer as coisas pelo seguro. Eu não sei, mas o senhor doutor, se quiser, pode ajudar-me.

- Não seria seu amigo se lhe desse qualquer esperança. E não seria um verdadeiro advogado se o aconselhasse a meter-se por esses caminhos. Aliás, devo adverti-lo que depois desta conversa não me sentia em condições de o defender em tribunal...

- Mas o Ramiro do Café matou o cunhado, toda a

gente sabe, e o senhor absolveu-o! - lançou o Crespo com os olhos em tição, a voz contorcida de desespero.

- Não fui eu que o absolvi. Quem o absolveu foi o

tribunal, porque o crime não se provou - objectou o Navarro, voltando a sentar-se e acendendo outro cigarro.

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- Mas foi o senhor doutor que o defendeu!
- Defendi-o porque me convenci que estava inocente, e estava, como se provou!

- E como sabia que ele estava inocente?
- Porque tinha um alibi!
- Um quê? - volveu o Crespo, os olhos acesos como se descobrisse um esconderijo no fundo do pensamento.

- Um alibi. Quer dizer, havia duas testemunhas idóneas, insuspeitas, que o viram longe do local do crime, exactamente à mesma hora e, portanto, comprovaram a sua inocência. Isto é que é um alibi. Um alibi perfeito.

O Crespo repetiu o gesto de há pouco, agora vagarosamente, esfregando primeiro a testa como se agarrasse uma ideia, e deixando depois a mão ardente escorregar até ao queixo como se limpasse a cara de um mau olhado. Apertou o colarinho, compôs a gravata, respirou longamente e levantou-se de supetão.

- Vou pensar a minha vida...
- Pense bem, meu amigo, e acabará por me dar razão.

**Saffi, aparentemente descontraído, um sorriso incipiente a lavrar-lhe o rosto magro, a tempestade a desvanecer-se no caloroso aperto de mão da despedida.

- Muito obrigado! Vou mais descansado... Dias depois a sua voz retomara a calma, a saudá-lo cordialmente, na outra boca do telefone.

- Doutor Navarro, preciso de falar consigo, amanhã!

Cliente assíduo, costumava aparecer sem mar60

cação. O advogado ficou, pois, curioso:
- Algum imprevisto?
- Nada de especial. Tenho aqui uns clientes atrasados que precisam de ser chamados à pedra.

- E quanto ao resto?
- Tudo bem. O senhor doutor não é só um bom advogado. É também um bom amigo...

- Venha então às onze horas.
- Convinha-me às três. Três em ponto, está bem? Navarro consultou a agenda. Tinha uma marcação para as duas e meia, um caso de divórcio, não devia ser demorado, e aquiesceu.

- Está bem. Cá o espero.
- Mas marque na agenda, senhor doutor, não vá esquecer-se...

O advogado escreveu "Anselmo Crespo" na linha das quinze horas. É assim a vida, o tempo repartido em consultas, conferências,julgamentos, diligências outras,

como o pobre que reparte o pão pelos filhos e não lhe sobra nada, apenas as migalhas, e há ainda os prazos, sempre a correr, implacavelmente, como os rios, que nunca chegam à foz, porque o fluxo se renova, e só a morte, a secura da fonte, os transforma numa recordação tranquila quando a erva irrompe do seu leito exausto e submergem de verde estático, silencioso, o

fresco e azulado cântico de outrora.

No dia seguinte, à hora marcada, o Crespo compareceu no escritório, cumprimentou familiarmente a

empregada, consultou o relógio em voz alta, três horas em ponto, menina Rosa, diga ao senhor doutor que já cheguei, espere um bocadinho, senhor Crespo, faça

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favor de se sentar, o tempo escorre lentamente na ampulheta da sua ansiedade e, entretanto, a porta abre-se, ora viva, amigo Crespo, desculpe a demora, estou às suas ordens...

O Crespo sentou-se, divagou sobre aquele calor abafado e tirou um molho de facturas da pasta.

- É para escrever uma cartinha a estes clientes, e se não pagarem, tribunal com eles.

- E veio cá o senhor por causa disso! Podia mandar o guarda-livros.

- Ora, senhor doutor, quem quer, vai, e quem não quer, manda...

O advogado desfolhou as facturas, espreitando o outro, discretamente, por cima dos óculos, a sondar-lhe a alma. Tinha um ar tranquilo e o mesmo sorriso começado a rasgar-lhe o rosto cansado. Mas os olhos tremeluziam de impaciência como se quisessem fazer qualquer revelação ou ocultassem qualquer segredo. E foi então que o silvo instante de uma ambulância, a reclamar prioridade, feriu aquela modorra, apagando o sorriso do Crespo.

- Mais um desastre, senhor doutor, ou um incêndio...

A ambulância gania na rua, como se estivesse bloqueada e tentasse romper o cerco com os apelos desesperados da sua urgência. Os silvos foram esmorecendo à medida que se afastavam a caminho do hospital, deixando no escritório o rasto acidulado da sua recordação fugaz. A frequência daqueles apelos, sobretudo na época estival, com o trânsito enfurecido e os incêndios nas matas a pintarem de negro o quotidiano,

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tornara-os banais. A banalidade é a repetição do insólito.
O Crespo despediu-se, já é tarde, senhor doutor, tenho de voltar à fábrica, mas ainda devia ir a caminho quando a empregada trouxe ao advogado a notícia fumegante, no preciso momento em que o relógio da matriz dava as quatro horas:

- Mataram o Raimundo! Encontraram-no na azinhaga da fábrica de confecções, a sangrar, com dois tiros de caçadeira no peito...

- Dois tiros?! - e o doutor Navarro sentiu o fragor dos dois disparos a percutir-lhe a lembrança, dúvida interrogativa a dilacerar-lhe o espírito, como se o impossível tivesse acontecido.

Anselmo Crespo, casado, industrial, de cinquenta e sete anos de idade, foi preso no dia seguinte. Operários da fábrica, que ouviram os tiros e descobriram o cadáver, declararam ao delegado que, na véspera, o patrão discutira acaloradamente com a vítima, e dissera, ao desligar o telefone, um arremedo de palavras ameaçadoras que o magistrado, unindo-as pelo fio lógico da suspeita, o faro acusador a guiar-lhe a investigação, traduziu por "acabou-se a mama" e "venha, venha, estarei prevenido". Estes indícios, conjugados com as conhecidas desavenças entre ambos e com a circunstância de o arguido ter sido visto na azinhaga, cerca das dezasseis horas, em atitude comprometida, qual fera que busca o rasto perdido da sua presa, justificavam plenamente os mandados de captura e a subsequente acusação.

Fortes indícios - concluiu o doutor Navarro, rememorativo, no momento em que o trangalhadanças do Meirinho entrava no seu gabinete, sobraçando a negra

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pasta e estendendo a mão cumprimentadora.
- Desculpe, mas este assunto não podia ser tratado pelo telefone. Por isso, vim pessoalmente expor-lhe as razões por que tenho de o indicar como testemunha. Até pela muita consideração que me merece...

Sentou-se sem se fazer rogado, alisou as compridas melenas e abriu a pasta, ritualmente, como se ela contivesse um mistério que não podia ser revelado. Retirou o processo, os próprios autos ainda em segredo de justiça, e entregou-lhos com um sorriso alvar.

Navarro examinou o corpo de delito, lendo simultaneamente as laudas tabeliónicas da instrução preparatória e as linhas entumescidas que lhe falavam na memória. Meirinho vigiava-o ostensivamente, a sorver-lhe a respiração da leitura, as pausas de reflexão e as contracções do rosto.

- Já calculava. O Crespo está em maus lençóis - disse o Navarro.

- Não acho. É uma absolvição de caras! - contrapôs o outro, na sua forma ligeira de analisar as questões mais complexas. - Como viu, não há testemunhas presenciais e a arma do crime não apareceu. Além disso, o Crespo nunca teve caçadeira...

- E depois?
- Depois, há um argumento decisivo. - Rasgou o

sorriso até à eclosão de uma gargalhada, fria e sarcástica quanto uma rajada de vento. - O Crespo tem um alibi!

- Um alibi?
- Sim. Um alibi perfeito! À hora exacta em que está acusado de cometer o crime, estava aqui no escri64

tório do senhor doutor!
- Não compreendo onde quer chegar - gemeu o doutor Navarro com um arrepio.

Meirinho arrebatou o processo com a mão papuda, possessiva, cinco garras cravadas na presa fácil, ficou assim o tempo de duas respirações ofegantes, lambeu os dedos vorazes e folheou os autos, freneticamente, até chegar à linha decisiva da querela onde a unha comprida e suja do seu indicador, como um ponteiro fulminante, apontou as quinze horas do dia cinco de Junho como sendo o momento inquestionável em que o Crespo teria desfechado no inditoso Raimundo Lopes os dois tiros que lhe ceifaram a vida.

- Ora faça o favor de abrir a sua agenda no dia cinco de Junho e veja quem cá esteve às três horas da tarde! - disse o Meirinho.

Navarro abriu a agenda e viu, com os olhos aterrados de lucidez, na sua inconfundível letra nervosa, como se conferisse uma certidão do seu próprio punho, o nome de Anselmo Crespo a marcar a hora em que os dois referidos tiros haviam feito parar o coração do Raimundo e tolhido os ponteiros do tempo.

- Não diga mais... - articulou, por fim, a tentar desatar aquele nó na garganta.

- E um perfeito alibi, não acha? Com o seu depoimento e da sua empregada, vamos safar o homem! E o senhor doutor não pode recusar o seu testemunho em abono da verdade, não acha?

A gargalhada do Meirinho estrugia ainda nas paredes repesas do escritório.

65Testemunhas de pedra
*/*
O juiz era novo, de proveniência urbana, e nunca tinha ouvido falar em testemunhas de pedra. Franziu o sobrolho com aquela carregada desconfiança que os magistrados sempre revelam quando lhes surge, tirada da manga do imprevisto, uma prova superveniente.

- Testemunhas de pedra?!
- Sim, senhor doutor juiz! - confirmou o advogado. - Mande escavar mais fundo que elas aparecem.

Era um vulgar caso de demarcação e o julgamento realizava-se no local- Não havia marcos entre os dois prédios e discutia-se a posse de metro e meio de terreno. As testemunhas já tinham sido inquiridas, três de cada lado, umas a darem razão aos autores e outras a porfiarem que a faixa litigada era dos réus. Como é frequente nestas acções, a prova revelara-se inconcludente, e a verdade continuava recatadamente oculta num novelo de dúvidas e contradições.

O juiz dera a entender que ia repartir o mal pelas aldeias, aplicando o preceito legal que manda, em caso de dúvida, dividir por ambos os litigantes o terreno em

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questão. Este desfecho não convinha aos réus, porque os obrigava a tapar as janelas da sua nova moradia, abertas para a courela confinante, e que eram, verdadeiramente, o cerne da demanda. Foi por isso que o

advogado, persuadido pelo cliente, requereu que se

fizessem escavações na linha divisória para tentar descobrir o marco antigo, que o réu garantia ali se encontrar. Os autores não se opuseram ao requerido, cientes como estavam de que nunca ali existira qualquer marco. O meretíssimo, embora contrafeito pela inesperada diligência probatória, que iria prolongar o julgamento, deferiu a pretensão dos demandados e ordenou as escavações. Foi o próprio réu que se encarregou da tarefa.

- Se ele diz que está lá um marco, que cave ele! - sentenciou ironicamente o autor.

O réu não se fez rogado. Cavou afanosamente no local do marco imaginário, como se procurasse um tesouro escondido. Tinha já aberto um extenso rasgão de dois palmos de profundidade, parecia o começo duma sepultura, mas a pedra almejada não dava sinal de vida nem de morte prematura. Os autores e os seus apaniguados riam daquele esforço inglório, enquanto ele limpava as bagas de suor que lhe escorriam do rosto amargurado.

- Há-de aparecer! O meu falecido pai sempre me garantiu que havia aqui um marco!

Descansou uns minutos, tirou o casaco, cuspiu nas mãos calosas para amaciar o cabo da enxada, inclinou a cabeça à procura da suposta estrema e disse, como se justificasse a sua teimosia:

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- O marco há-de estar no alinhamento daquele carvalho...

- ó homem, desista! - alvitrou o juiz ao verificar que perdia o seu precioso tempo.

- Deixe-o cavar! - pediu o patrono dos autores,
* rebolar-se de gozo.

- Nada se perde em tentar. O que nos interessa é
* verdade - adjuvou o mandatário dos réus, a dar uma demão moral ao seu constituinte. O certo é que também ele não estava muito esperançado, pois o réu só agora falara no marco quando viu a causa perdida.

- Hei-de encontrá-lo! - volveu o homem. - Quem é vivo sempre aparece! - e retomou as buscas ao lado da cova inútil.

Cavou, escavou, obsecadamente, à direita e à esquerda da fronteira da sua teimosia, os olhos vidrados de ansiedade, os dedos frenéticos a esgaravatarem a terra húmida, até que a enxada deu um golpe certeiro e tilintou nos ouvidos dos espectadores.

- O marco já falou! - disse o réu com um sorriso de posse antecipada.

- Qual marco, nem meio marco! - contrapôs o autor. - Aposto a minha vida que não há nenhum marco!

O réu pousou o enxadão e com as mãos ávidas tacteou o rebordo da cova, pondo a descoberto o cocuruto alvinitente de uma pedra, com a ternura do parteiro que sente o latejar da cria no berço improvisado dos seus braços.

- Cá está ele! - gritou, triunfante.
- Isso não é um marco! É uma pedra nascediça 69

gracejou o adversário, cada vez mais divertido.
- E um marco, sim senhor. O meu pai sempre disse que havia aqui um marco. - Ora veja, senhor doutor juiz...

Aproximaram-se todos. A fenda cavada na terra parecia uma vagina gigante, com o clitóris saliente da pedra a provocar o orgasmo do cavador.

- Eu tinha razão! Eu tinha razão!
O autor, vendo fugir-lhe o terreno debaixo dos pés, lançou-lhe o último desafio:

- Só é marco se tiver as duas testemunhas de pedra!

Foi então que o juiz perguntou, entre surpreso e

confuso, pois era a primeira vez que julgava uma acção de demarcação, de que testemunhas se tratava. Explicaram-lhe que o povo chama assim às duas pedras mais pequenas, uma de cada lado, que atestam a autenticidade do marco e indicam a sua orientação. Constituíam a prova de que uma qualquer pedra, do feitio de um marco, não era um seixo avulso, enterrado por acaso durante as cavas, mas o sinal evidente da estrema consensual entre duas propriedades.

O réu deu mais duas cavadelas à volta do marco, calmas e precisas, como se conhecesse as cartas do baralho, e descobriu as duas preciosas pedras.

- Aqui estão as testemunhas! - proclamou categórico.

- Não há dúvida! - corroborou o advogado.
- De facto, parece um marco - admitiu o patrono dos autores, com a mão resignada a sopesar aquela prova definitiva.

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A questão foi, pois, resolvida a contento dos réus, graças ao contributo convincente e decisivo das testemunhas de pedra, cuja idoneidade foi devidamente realçada na douta sentença: "O homem pode enganar-se, esquecer-se ou equivocar-se, pois é frágil o barro da consciência, e são mudáveis os ventos ao sabor do interesse ou da conveniência das testemunhas, mas o depoimento objectivo duma pedra é, no caso dos autos, a voz antiga da verdade a apontar o recto caminho ao julgador...".

- Você teve sorte! - disse o causídico, quando o réu, mais tarde, o procurou no escritório para pagar os honorários. - Se o marco não aparecesse, tinha perdido

a causa...

- Eu sabia que ele estava lá, senhor doutor! Era trigo limpo...

- Como?! - admirou-se jurista. - Quando você me pediu para contestar a acção não me referiu que houvesse qualquer marco!

- E não havia...
- Essa agora! Pois o seu pai não lhe disse que o marco estava lá?

O homem teve um sorriso largo de sabedoria campónia:

- Eu vou contar-lhe tudo, senhor doutor. O senhor doutor lembra-se de me ter dito que a acção estava perdida se as testemunhas não fossem firmes, e que se o outro também não fizesse prova, o terreno seria dividido ao meio?

- Sim, lembro. É que eu não gosto de enganar os clientes...

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- E de me dizer que só um marco nos poderia salvar?

- Claro! Já cá ando há muitos anos e sei que, normalmente, nestes casos, só os marcos decidem a questão.

O homem puxou do lenço tabaqueiro e esfregou as mãos suadas, a ganhar fôlego para a inesperada confidência:

- Pois não havia marco, mas passou a haver!
- Não compreendo... Contou-lhe então, "mas isto fica só entre nós, senhor doutor, pois nem a minha mulher o sabe", que ao

ver a causa perdida e tendo a certeza de que o terreno era seu, "a certeza, certezinha", decidiu colocar o marco. Aproveitou uma noite escura e chuvosa, escavou sorrateiramente no local pretendido, "olhe que nem um centímetro lhe tirei, senhor doutor", e enterrou a pedra, acompanhada das duas testemunhas. Alisou cuidadosamente o terreno revolvido, colocou por cima um lençol de folhas secas, "para ficar tudo como estava", e deixou que a chuva e o tempo disfarçassem a escavação...

- Mas a pedra era mesmo um marco! E via-se que estava lá há muito tempo! - estranhou o advogado, a tentar esclarecer a artimanha.

- Pois era! É que eu já tenho o rabo pelado e fui arrancar um marco de outra propriedade para lá pôr... E tanto que era um marco a sério, que o senhor doutor juiz acreditou!

- E porque não me disse?
- Ninguém podia saber, nem eu próprio! O senhor doutor não reparou que me fartei de cavar antes de encontrar o raio do marco?

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- Então quer dizer que as testemunhas de pedra também mentem! - ponderou o advogado, a acentuar a falibilidade de todos os meios de prova e a precaridade da Justiça.

O cliente alargou o sorriso até às orelhas argutas:
- O terreno era mesmo meu, senhor doutor. E às vezes é preciso uma mentira para repor a verdade ...

73A vingança

O sargento da Guarda tinha um cão chamado Tigre. Um cão insolente e volumoso, de rabo interrogativo, pêlo de burro, orelhas oblíquas e uma baba escorrente que parecia sincelo a derreter-se ao vento. Ele dizia que era arraçado de pastor-alemão, mas não passava dum plebeu lusitano, mistura abastardada dum Serra da Estrela e duma fêmea caínça vira-latas. Gosto dos animais domésticos, e em particular dos canídeos, por serem, em suas maneiras aprendidas e nos seus latidos de almas primitivas, o espelho fosco duma frustrada antropomorfia. E compreendo que muitas pessoas amem os cães a ponto de os fazerem seus companheiros privilegiados. A solidão, o medo, a carência de ternura e até a necessidade de partilhar o silêncio, são os motivos ocultos dessa paixão, especialmente das viúvas tristes e das solteironas, que choram lágrimas de sangue quando a morte arranca os companheiros dos seus braços caídos. Excluo os caçadores, porque esses conservam os animais com amor a prazo e com a mesma desmesurada indiferença com que lim-
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pam o cano das espingardas. Mas nunca compreendi por que precisava o

sargento da Guarda de um rafeiro a lamber-lhe as botas. Não era por medo ou solidão, pois usufruía da convivência de dois cabos e doze praças. Não seria também por carências afectivas, porque, apesar de ser solteiro, as suas mãos sapudas só sabiam acariciar o

Código das Posturas e o talonário das multas. De resto, o nome que lhe dera, a evocar as soturnas ferocidades do seu subconsciente, afastava qualquer resquício de amorosidade. Por isso, muito antes do Tigre me entrar metaforicamente no escritório, embrulhado na acusação criminal contra o meu constituinte Francisco da Silva, o Xico Maneta, já eu me interrogava sobre as causas profundas da posse do carnívoro e, sobretudo, da petulância do sargento em exibi-lo publicamente como um adereço ou complemento da sua personalidade. E, excluindo as razões precedentes, que nele, manifestamente, não cabiam, concluíra que era a necessidade de ser e sentir-se obedecido por alguém que não discutia ordens, por mais disparatadas que fossem. Um cão domesticado tem essa vantagem impagável: empresta-nos a ilusão da omnipotência e ainda por cima nos

lambe as mãos.

O nosso sargento trouxera o Tigre na bagagem da transferência. E a primeira coisa que fez quando chegou, ainda a criada arrumava as malas, foi passear o

cãozarrão pela Praça, preso a uma trela, certamente para o adaptar à nova topografia. E todos os dias ao despir da tarde, durante o ano do seu já longo e antipático consulado, trazia o companheiro a farejar o

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centro cívico da terra e a dar mijadinhas imprevistas em

tudo o que lhe permitia encostar as patas traseiras. Mijava à esquerda e à direita, alçando os membros peludos com a presteza e compunção dum carteirista. Quem se sentia roubado no seu sossego e higiene eram os passantes e quitandeiros por não poderem dar um pontapé no descarado. Se o gesto natural lhes aflorava os olhos, logo lhes morria nas pernas ao verem a carranca do dono, onde sempre parecia borbotar um riso trocista. Inimigo declarado do cão, confessando o pecado nas barbas do sargento, era porém, o Xico Maneta, que tinha uma frutaria na Praça. O animal corria para os caixotes arrumados à porta e farejava os mimos ali expostos, deixando-lhes impregnado o selo da vistoria através dos fios imperceptíveis da sua baba.

- Tenha cuidado, nosso cabo, não vê que o rafeiro me estraga a fruta!?

O sargento sentiu-se duplamente ferido na sua dignidade, pois tanto ele como o Tigre haviam sido despromovidos, mal acabavam de chegar. Subiu-lhe das botifarras a raiva antiga das marchas forçadas, escorreu-lhe do peito o suor dos exercícios nocturnos e ecoou-lhe nos ouvidos o fragor corrosivo dos clarins:

- Veja como fala, porque eu sou sargento e este é um pastor-alemão! - e o riso trocista transmudou-se num esgar de trovão. - Ora mostre-me cá a sua licença para ocupar a via pública!

O pobre do Maneta viu logo que o perigo não estava no cão, mas no lobo fardado que lhe segurava a corrente e agora se lambuzava mais do que o outro. Desfez-se em desculpas e salamaleques, palavras arrancadas a ferro

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pela necessidade de sobrevivência: ignorava que sua

senhoria era sargento, o Posto sempre fora comandado por um cabo e 'além disso, não andara na tropa para conhecer as divisas. Também nada sabia de raça de cães e era a primeira vez que via um animal assim tão bem parecido e estimado. Desculpasse, pois, meu sargento, não tinha licença, confessava a falta, mas era hábito seu expor os produtos no passeio, e nunca a senhora Guarda nem o senhor Presidente da Câmara o advertiram, e todos faziam o favor de ser seus clientes...

O sargento armou em compreensivo. Por esta vez estava desculpado, não queria desfazer no seu antecessor, mas cuidasse de obter a licença, não só para ocupar a rua, mas também do toldo, que quem não queria problemas com a autoridade devia cumprir a lei e os regulamentos. E ele estava ali para fazer que todos respeitassem as normas...

A autoridade, ou uma certa autoridade, também

se exerce perdoando, porque o perdão é sempre levado a crédito da sua espada faminta. Ainda não tinha passado uma semana e já o sargento descarregava o

montante sobre o quitandeiro:

- Então já está legalizado? Ora mostre-me cá essa licença, essa licençazinha...

- ó senhor cabo, perdão, meu sargento, é que eu estive doente e ainda não pude ir à Câmara, mas se vossa senhoria me permite, amanhã trato de tudo...

Pagou a multa, é claro, e os legais acréscimos, porque as coimas são como as crias, que trazem sempre um rabo de tripas no encalço do nascimento. Mas o verdadeiro acréscimo havia de vir mais tarde, como se

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verá. O sargento continuava, impante, a passear a rês, e esta, sempre que adregava alcançar os caixotes, mergulhava o focinho frio na quentura daquelas delícias.
O dono fazia-se distraído, e a mesma marca babosa polvilhava a pele adocicada dos frutos. O Maneta engolia a fúria, apertava o punho remanescente atrás das costas e deixava escapar dos beiços arrepanhados uma outra e consistente baba:

- Mato o filho da puta do cão, ai isso mato! - cuspia, por fim, quando o sargento se afastava a bambolear as nádegas e a acertar o passo pelo do quadrúpede.

O que mais irritava o Maneta e lhe fazia mesmo turvar o sangue, não era tanto esse pendor mimético do animal, mas, sobretudo, a desfaçatez do dono. Convencera-se, com efeito, que ele industriara o canídeo a conspurcar-lhe a fruta, pois notara que, ao aproximar-se, dava sempre um certo jeito na trela, como se transmitisse uma ordem precisa. O Tigre punha-se logo aos saltos, distendia as narinas e soltava a língua de palmo como se advinhasse a proximidade dum pitéu. O sargento fazia-se distraído, o peito inchado de importância, e quando passava pela porta da loja era certo e sabido que os caixotes da rua ficavam varridos por aquele asqueroso farejo.

- Mato o filho da puta do cão, aí mato! - era o escape rotineiro da sua raiva, já não segredada mas bramida, como um calhau a rolar-lhe dos olhos irados.

Mas uma vez o sargento ouviu a prédica, parou no meio da Praça, deu meia-volta-volver e regressou ao local do crime com o passo atabalhoado de cão sem dono:

- O que foi que você disse? Ora repita lá para ver se eu ouvi bem!

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O desgraçado do Francisco da Silva, que tinha mais língua do que coragem, acobardou-se atrás dos caixotes e exibiu um sorriso deslavado:

- Diga, meu sargento...
- Não se faça desentendido, que eu bem o ouvi! Mas olhe que se isto volta a acontecer, depois falaremos a sério. Mas no Posto, entendeu?

Puxou o Tigre com o braço impetuoso e firme, como se remasse contra a maré. O animal farejava o Maneta, a significar, na eloquência do gesto, que lhe perdoava a

ameaça. Os mirones gozavam em surdina e a conveniente distância. Ninguém gostava do sargento nem do seu cão atrevido. No outro lado da Praça, o ajudante da farmácia ria para a concha da mão.

Os autos de processo-crime que agora folheio, num

misto de obrigação profissional e de prazer individual, não descem, naturalmente, à minúcia deste arrazoado. Dizem apenas e em resumo que a hora indeterminada da manhã de tantos de tal, o réu Francisco da Silva, por alcunha "O Maneta", solteiro, vendedor de fruta, nesta residente, agindo deliberada e premeditadamente, ministrou ao cão do senhor sargento, comandante do Posto da Guarda Nacional Republicana, uma substância venenosa imbuida num pedaço de carne, cuja ingestão causou, como efeito directo e necessário, a morte fulminante do animal, assim cometendo o crime previsto e

punido, etc., etc:...

A prova era simplesmente indiciária, Já que, como se calcula, ninguém tinha visto o arguido dar o petisco ao malogrado Tigre. Baseava-se apenas nas suas repetidas ameaças, nas declarações do ofendido e da criada,

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no exame às vísceras e na circunstância, deveras comprometedora, do Maneta ter sido visto a sair sorrateiramente do quintal da residência do sargento, situada nos subúrbios, horas antes do canídeo ser encontrado morto pelo dono, ainda com uns restos de carne proibida atravessada nas goelas.

O Maneta sempre jurou a sua inocência e conseguiu convencer-me. Aliás, é muito difícil enganar o advogado, porque ele conhece o processo e deve saber pesar todas as reticências do cliente, como o médico que advinha as palpitações cardíacas pela respiração do doente. A acusação era meramente dedutiva, e a vida ensinou-me que uma cama feita a preceito nem sempre é uma cama bem feita, pois se a lógica deduz, só a vida produz... De resto, na falta de prova inequívoca, a palavra do réu deve prevalecer contra a palavra do ofendido. Porque o ofendido desconfia, enquanto o réu porfia. E, no caso em apreço, por muito que valesse a desconfiança do sargento, devia valer mais a confiança no arguido, embora ele fosse um modesto vendedor de fruta. O princípio da confiança no cliente é a ara sagrada do oficio de advogado. Se o cliente não merece essa confiança, é melhor que o advogado recuse o patrocínio.

Defendi, por isso, o Maneta com a arreigada convicção de quem cumpre um dever. E, porque os indícios não lograram converter-se nas sólidas premissas do silogismo criminal, sem as quais um juiz consciencioso não pode tirar a conclusão cominatória, o réu foi absolvido e mandado em paz com ostensivo júbilo da assistência, a qual, embora desconfiando da mão lépida do Maneta, que um acidente de trabalho ainda lhe

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poupara, já o tinha previamente absolvido no tribunal da sua consciência, por ver nela a mão castigadora da arrogância do sargento. Valha a verdade que a criada do dito, uma mocetona da região de Viseu, a avaliar pela pronúncia sibilante, e que não se livrava da fama de ser

amante do patrão, muito contribuiu para o esclarecimento do tribunal. De facto, numa postura digna, que o meretíssimo muito elogiou, reconheceu que o réu, cerca das nove horas, tinha batido à porta para indagar se

precisava de fruta, como fazia diversas vezes, mas o

Tigre estava vivo e bem vivo quando ele saiu, pois até o ouviu ladriscar na sua casota do quintal!...

A verdade é que também aquela geral desconfiança me assaltou o pensamento como ácido corrosivo. Não me parecia ser inteiramente crível que o Maneta fosse a casa do sargento perguntar se ele precisava das suas bananas. Era uma gentileza descabida, porque não era seu hábito vender ao domicílio. Por isso, quando ele apareceu no escritório após o julgamento, forcei um

pouco a nota para serenar a consciência:

Senhor Silva, agora que está tudo arrumado, diga-me lá francamente e só aqui entre nós, se foi você que envenenou o cão...

Abriu-se num largo sorriso de inocência maliciosa, levantando a mão desirmanada à altura da cabeça,

como se impetrasse o testemunho divino.

- Então o senhor doutor também desconfia de mim?!

- Não desconfio. É apenas para confirmar cá uma coisa...

- Pois não fui eu, não, senhor advogado! Acredite que eu até começava a gostar do diabo do bicho...

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- Ainda bem. Assim fico mais tranquilo.
- Pode ficar, senhor doutor! Eu seja cego se não estou inocente, completamente inocente!

- Mas lá que havia uns certos indícios contra si, havia!

Deu uma risada conivente e fresca, como um menino de coro em ablativos de pregar uma partida ou desvendar um segredo.

- Mas se o senhor doutor quer saber, eu sei quem fez o trabalhinho...

- Não me diga!
- Foi o ajudante da farmácia! Ele próprio mo confessou...

A dúvida metódica não desaparecera completamente e ainda tinha o rabo entalado numa fenda do pensamento. Lancei, pois, o último dardo:

- E o que foi você fazer àquela hora a casa do sargento?

O Maneta engasgou-se como se tivesse sido apanhado num laço. Ficou a contorcer-se como a presa imprevidente, e uma sombra desceu-lhe dos olhos a arrepanhar-lhe a boca.

- ó senhor doutor, isto é um grande segredo, porque se o sargento sabe, então é que me mata... É que eu ando metido com a criada!

Não pude evitar uma gargalhada tranquilizadora:
- Olha o maroto! Quem havia de dizer...
O Maneta riu também, numa solidariedade reconfortante:

- Foi a minha vingança, senhor doutor, foi a minha vingança. Sujar-lhe também a fruta que ele anda

a comer...

830 jovem advogado

A mulher vestida de negro, olhos inquietos como

pássaros aprisionados, parou em frente do prédio de azulejos, espreitou as tabuletas suspensas da fachada e, como não sabia ler, interpelou timidamente um transeunte:

- Desculpe, meu senhor, sabe dizer-me se é aqui que assiste um advogado novo chamado doutor Cristóvão Duarte?

- Por acaso é aqui no segundo andar - disse o interpelado, confirmando a informação com um soslaio sobre a placa de letras douradas em fundo negro. Mas, vendo que se tratava de uma mulher do povo, cujas vestes e fala denunciavam tal condição, quis levar mais longe a solicitude, porventura não inteiramente desinteressada: - se a senhora procura um advogado, posso indicar-lhe um muito bom. É já aqui ao virar da esquina... 1

- Muito agradecida. E só com este que eu quero falar.

Subiu os quatro lanços da escada, sorveu, pelo

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caminho, o odor forte dum cabeleireiro, ajeitou o lenço da cabeça e entrou na sala de espera onde meia dúzia de cadeiras vazias aguardavam pacientemente a sua

justificação. Ia a sentar-se quando se abriu uma porta e surge, no limiar do gesto, o jovem advogado em pessoa. Habituados a soletrar as sombras, os olhos astutos da mulher reconheceram imediatamente quem procurava.

É o senhor doutor Cristóvão? Sim, sou eu - disse o causídico, acariciando o

bigode espesso, como se ele fosse o timbre da sua personalidade.

- Se fizesse favor de me atender, queria pedir-lhe um conselho.

- Por acaso estou livre... Entrou no escritório, acomodou-se numa cadeira, as mãos indecisas sobre o regaço segurando a maleta de plástico, os olhos circunvagando pelas estantes como se procurassem o fio invisível da meada que ali a trazia. Tantos e grossos livros, e talvez em nenhum deles encontrasse a solução...

- Faça favor de dizer, minha senhora. A mulher contou que fora, durante muitos anos, criada dum casal, pessoas de estimação, e que, aí há uns dez anos a sua senhora faleceu, mas ela continuou ao serviço da casa. Começou a ganhar quinhentos escudos por mês, também era ainda uma criança e eram outros tempos, senhor doutor, mas a soldada foi aumentando e estava num conto e quinhentos quando a senhora se finou. Porém, como uma desgraça nunca vem só, pouco depois o patrão adoeceu, esteve de cama durante meses, os dois filhos em Lisboa, o senhor doutor sabe como é a

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vida, só vinham vê-lo de tempos a tempos, visita de médico, e era ela quem cuidava de tudo, até lhe dava banho, e o patrão que era uma excelente criatura, não desfazendo, quando arribou fez-lhe o favor de subir o ordenado para dois contos de réis...

O advogado ouvia atentamente, a tentar descobrir o tal fio da meada, o cerne do problema, que às vezes é mais intuitivo do que conclusivo. Estava ainda no princípio da carreira, mas aprendera já que as pessoas, regra geral, antes de abordarem a questão concreta, perdem-se em solilóquios e considerações marginais, como o morcego à volta do ninho. O caso parecia configurar um despedimento injusto, ou falta de pagamento de salários, mas não queria adiantar opinião. Já uma vez um consulente o arrastara, durante uma hora, para uma hipótese de direito criminal, descrevendo-lhe as desavenças com um familiar, agressões e injurias, ameaças e marcos arrancados, para, afinal, lhe perguntar a que distância da fonte pública podia plantar eucaliptos...

- A senhora ainda trabalha na casa? - perguntou, descansando os olhos sobre o código civil luxuosamente encadernado e ali sempre à sua dextra, a tentar compreender o objectivo da consulta para ir pensando na solução. A missão do advogado é delicada, sobretudo nos primeiros tempos, porque a teoria é escassa e a prática ainda não ensinou aquele conjunto de regras que resolvem a maior parte das dificuldades. E ele aprendera já que os clientes gostam da resposta imediata, a inspirar confiança, e mostram-se geralmente desiludidos quando o jurista, que é suposto conhecer

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todas as leis, como o padre todos os passos da Bíblia, hesita ou folheia discretamente os códigos. Os livros, aliás, não respondem a todas e complexas questões da vida. Abordam apenas os casos paradigmáticos, e só a experiência, a grande mestra, ajuda a desatar os apertados laços do novelo. Por isso, sempre que era consultado, ia joeirando as hipóteses, cardando a teia e elaborando mentalmente a solução, segundo um critério de razoabilidade, para a ter pronta a disparar, como dum exame se tratasse. O advogado, de resto, está sempre a prestar provas, e os clientes são mais exigentes do que os professores, pois não perdoam hesitações nem se deixam enredar por teorias abstractas, é o seu caso concreto que desejam ver esclarecido, como se ele fosse a espinal medula de todo o sistema nervoso que é o direito. Isto aprendera já o jovem advogado e, seguindo o conselho do seu patrono, arriscava sempre uma resposta de bom senso, segundo o direito natural, e só depois procurava a norma para confirmar ou adaptar o parecer. O cliente ficava então completamente seguro, porque o senhor doutor até lhe lera o livro da lei...

- Não, senhor advogado, já lá não trabalho, e é sobre isso que eu queria a sua opinião. Mas deixe-me contar o sucedido - disse a mulher, a retomar o andamento, como se a conclusão do relato tivesse de passar pelos atalhos de todas as premissas da memória.

- Diga, diga - condescendeu o jovem advogado, a prever a resposta fácil, porquanto devia tratar-se de um simples caso de falta de pagamento de salários.

- Ora, então, como ia a contar, o meu patrão

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subiu-me as soldadas mas nunca mais me pagou...
- E só agora, depois de dez anos, é que você se vem queixar?! - e alisava o bigode com um sorriso de profissional complacência.

A mulher fez um tímido gesto de defesa, levantando a mão à altura do pensamento. Respirou fundo e disse com um ressaibo de emoção:

- É que há outra coisa, senhor doutor, não sei como hei-de explicar...

- Esteja à vontade e diga toda a verdade. Quem mente ao advogado está a enganar-se a si próprio.

- Eu conto tudo, senhor doutor. E contou, ciciando as palavras como uma menina no confessionário, que o patrão, quando recobrou forças, a chamou à saleta, senta-te aqui ao pé de mim, rapariga, e lhe propôs, como havia ela de dizer, que deixasse de ser a sua criada para ser a dona de casa, pondo e dispondo como se fosse a mulher dele, está a compreender, a mulher em tudo. Porque eu já estou velho, rapariga, mas se tu me estimaste na doença, também me saberás estimar na saúde, e eu não te faltarei com nada, hei-de compensar-te, o que tenho tanto pode ser dividido por dois, ou por três, um homem precisa de companhia, disse ele, senhor doutor, e apertou as minhas mãos, e

sorriu para mim, eu quero estimar-te como estimei a minha falecida, e abraçou-me, o senhor doutor está a

ver como eu fiquei, estou, sim, pois ainda agora um rubor indiscreto lhe enfeita o rosto sisudo. Deve andar pelos quarenta anos, vê-se que foi bonita, os olhos ternos, a voz suave de quem teve muitas desilusões mas continua a acreditar na vida...

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- Então, quer dizer...
- Foram dez anos, senhor advogado, nunca antes tinha conhecido homem, ganhei-lhe amor e sempre o respeitei. Até os filhos concordaram, porque sabiam que estava bem entregue, bem zelado, e ele sempre me tratou como sua mulher, levava-me para todo o lado, chegou a dizer que casava comigo, eu é que tive vergonha por causa da idade dele, que podia ser meu pai...

- Mas não lhe pagou, e agora vossemecê é que vem falar com o advogado!

- Ele morreu, senhor doutor - desculpou-o a mulher, com uma tristura de sol posto a nublar-lhe a voz, compondo as vestes negras, luto carregado do marido que não teve.

- Morreu?
- Pois se ele não tivesse morrido assim de repente, outro galo me cantaria! Foi sempre muito meu amigo. Já tinha o testamento marcado para me fazer a casa, mas levou-o Deus sem dar tempo de pôr as coisas no limpo.

O advogado refundiu a solução que mentalmente configurara. Por acaso, tinha um processo idêntico, já com julgamento marcado, em que defendia a posição contrária. É assim o ofício forense: ora dum lado, ora do outro, margens siamesas do mesmo rio da Justiça.

- Então, e os filhos não querem pagar?
- Pois não. O advogado deles diz que eu deixei de ser criada para ser amante, e que perdi os meus direitos. Veja lá a sem vergonha, senhor doutor!

A questão era essa, pensou o causídico, amparando o queixo indeciso sobre as duas mãos unidas. Se

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uma serviçal deixar de o ser para se transformar em concubina do patrão, pondo e dispondo como a mulher legítima, poderá mais tarde retomar o avental de criada para exigir os salários que, mercê da sua nova condição, deixaram, naturalmente, de ser pagos? No outro processo ele sustentava que não, porque cessando o vínculo laboral, o contrato de trabalho, cessa o dever de retribuição. A lei pode ser injusta, mas é a lei...

- Caso curioso! - disse o advogado, a pensar nos caprichos e contradições do oficio.

- Mas, senhor doutor, acha justo que eles não me paguem? Dez anos de trabalho e sacrifício, estragar a minha vida e não receber um tostão!

- Lá justo, não é...
- Então, há-de haver um ponto de lei... Há sempre um ponto, até porque a promessa duma retribuição e a expectativa do pagamento, alimentada pelos próprios filhos, tinham relevância jurídica. A lógica daquela mulher simples encostara-o à parede inconcussa da Justiça onde as imagens da vida se reflectem, ou deviam reflectir, como no pano branco da consciência. O advogado começou a encarar a outra face da realidade e sentiu que devia honrar a sua nobre função de servidor do Direito e protector dos fracos. O patrono também lhe ensinara que quem tem razão segundo a lei natural, a há-de ter segundo a lei positiva e, por isso, já os jurisconsultos romanos interpretavam as normas com flexibilidade, de modo a resolverem rectamente os conflitos. Aliás, a lei só é legítima se for justa, dando a cada um o que lhe pertence, e assim, quando moralmente se tem razão, não pode o direito

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negá-la, sob pena de se transformar no avesso da consciência colectiva. Vai, pois, pela tua consciência, e não te arrependerás...

Isto cogitava o jovem advogado, ainda desconhecedor dos meandros do foro, e sem saber também que o Direito é como esse rio da Frígia chamado Meandro, por ser de curso sinuoso e imprevisto, e que, por isso mesmo, viu o seu nome inocente, como é o nome de todos os rios, a crismar os charcos da vida. A Justiça é, outrossim, um rio Meandro de curvas caprichosas, baixios e cachoeiras, onde uns navegam e outros de afogam...

- Mas diga, senhor doutor, se acha justo que eu fique de mãos a abanar, diga lá em sua consciência! - insistia a mulher, a quebrar aquela torrente de pensamento.

- É claro que não é justo! - reconheceu, vinculando a sua palavra. - A senhora tem razão e, se quiser, eu tomo conta da demanda.

Disse-o com sinceridade, apesar do outro processo em que ia terçar armas pelos herdeiros ingratos do patrão. Mas se não fosse ele a patrociná-la, era outro advogado. A profissão é assim. O que é preciso é que cada um defenda honestamente o seu constituinte. O juiz decidirá em seu prudente arbítrio...

- Era isso que eu queria ouvir, senhor doutor. E não se esqueça do seu conselho, que para a semana voltamos a falar. Quero pôr a família ao corrente e depois venho cá entregar o caso - concluiu a mulher, abrindo, em fim, o rosto num largo sorriso de gratidão.

- Pode cá vir na próxima quinta-feira.

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- Está combinado. E agora faça o favor de me dizer quanto devo pela consulta.

- Paga depois, uma vez que o assunto é para continuar - e o advogado recostou-se na cadeira estofada.

- Este serviço pago já, que o senhor doutor bem o merece. Nem sabe a alegria que me deu...

Pagou a consulta e despediu-se efusivamente. Parecia transfigurada, como se a esperança lhe desse uma alma nova. Até os olhos se lhe iluminaram. O advogado levantou-se e espraiou a vista através da janela das traseiras no remansoso rio Mondego, que, ao contrário do seu irmão da Ásia, desliza suavemente por entre as margens rectilíneas do seu enlevo. E sentiu-se gratificado por ter transmitido, a troco de quinhentos escudos, um pouco de felicidade àquela humilde cliente. É esse sentimento de préstimo que vale a profissão: ser

chamado (ad vocatu) e responder solidariamente à chamada.

O julgamento do outro processo, o reverso da medalha, era na quarta-feira seguinte. Na véspera, estudou os autos, e considerou um acto normal da profissão estar hoje dum lado e amanhã do outro. É que a razão e a verdade também estão, em regra, de ambos os lados. Ao mandatário forense compete demonstrar a

sua razão. Mas entre a razão da lei e a razão da vida há, muitas vezes, um campo minado que o verdadeiro advogado tem de saber ultrapassar com a pertinência dos seus argumentos, para fazer com que a justiça prevaleça sobre os meandros caprichosos dos silogismos jurídicos.

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No dia marcado, dirigiu-se o jovem advogado para o tribunal, com a consciência atormentada pela flagrante similitude dos dois casos. Onde estaria a verdade? E qual a verdade que importa à justiça, a verdade formal dos pressupostos processuais, que a própria lei define, ou a verdade da vida, caldeada por séculos de sofrimento humano, que impõe o justo pagamento de todo o trabalho?

À porta do Palácio da Justiça viu uma mulher de negro a sorrir-lhe, como se o esperasse, ou como se ambos partilhassem um segredo. Era a cliente de dias antes. Sorriu também, pensando que ela soubera do julgamento e viera, por curiosidade, assistir à audiência, ou para lhe trazer novidades do seu caso.

- Então, por aqui, senhora... - hesitou por não lhe saber o nome, mas apertou cordialmente a mão exuberante que ela estendia, numa desenvoltura de velhos amigos.

- É verdade, senhor doutor, - respondeu a

mulher, alargando o sorriso, um brilho rutilando nos

seus olhos vivos de camponesa.

- Vem assistir a este julgamento? É um caso parecido com o seu...

- Venho sim, senhor doutor. Sou a autora da acção!

O jovem advogado sentiu um arrepio, como se o

tivessem desnudado na praça pública, ou estivesse a ser empurrado para um fosso.

- E não se esqueça do conselho que me deu! - disse a mulher.

94Ojuiz

À segunda-feira a rua do tribunal parece mais comprida e íngreme. Ou é da pasta atafulhada pelos processos despachados no fim de semana, ou é porque o início de uma nova jornada lhe fere o inconsciente com o estilete da rotina ensimesmada: as audiências, os questionários e os despachos, eram os degraus acesos dessa escada rolante que girava no círculo confuso do quotidiano e não conduzia a parte nenhuma. Teia brumosa que lhe doía no espírito, como se os arpões da burocracia se tivessem cravado em todas as fibras das suas ilusões antigas. Não era essa a Justiça, trôpega, contingente e desumanizada, que ele idealizara quando se decidiu pela magistratura. Agenda sobrecarregada e pilhas de processos acumulados na secretária, eram as achas da grande fogueira que lhe consumia a vida e lhe ia queimando, sem remissão, os olhos do corpo e da alma. Nem tempo tinha para espairecer o pensamento nas coisas simples da existência: ir ao cinema, ler um

bom livro, conviver com a família e os amigos, fazer uma viagem ou mesmo deixar que a mão profissional des95

cansasse uns minutos nos cabelos sedosos dos seus dois filhos. A burocracia não contabiliza as decisões amadurecidas e rectas, mas apenas os processos findos, ainda que neles jazam os mais crassos erros. E ele sentia que essa frustração se insinuava em todas as paredes do seu

ser, como o salitre.

Por isso, o juiz parou a meio da ladeira, mudou a

pasta de mão, respirou o ar fresco da manhã e olhou a mole assustadora do Palácio da Justiça pela frincha contrariada da ruela que ligava a Casa dos Magistrados ao forno crematório da sua vida. Quando era jovem pensava no Tribunal como um Templo, onde a verdade era uma deusa deslumbrante e incorruptível. Agora sabia que a verdade é o acaso da contingência. As testemunhas mentem tão frequentemente, os advogados mostram-se, regra geral, tão amarrados aos interesses dos seus clientes, e os juizes tão pressionados pela voragem do tempo e pela frieza da lei, que a figura da Justiça já não está apenas metaforicamente cega para poder levantar a sua espada imparcial e cortar a direito, mas está realmente vesga, a ponto de ferir muitas vezes o são e poupar a gangrena.

O juiz entrou no Palácio da Justiça, atravessou o átrio onde uma mesa nostálgica lembrava o antigo porteiro Gustavo, pensou no anão Canada, que já não conheceu, mas cuja voz de cana rachada ainda ecoa no imaginário forense, sobe as escadas que levam ao primeiro andar, deixa que os olhos se percam no mural alegórico e sente os joelhos acossados pela pasta inchada que o persegue, tal um cão faminto. A porta da sala de audiências aglomeram-se os habituais actores. São

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sempre diferentes, tirante as praças da GNR, mas parecem sempre os mesmos: o fluxo rumorejante de litigantes e comparsas a alimentar a perpétua torrente dos que têm fome e sede de justiça mas raramente serão saciados. Mulheres reboludas e homens sonolentos, quase todos de tons escuros, às vezes uma gravata ou um vestido alegre, enquadrados pela voz gemebunda do oficial de diligências a fazer a chamada. A turba aquieta-se à sua passagem, é o senhor doutor juiz, símbolo terreno da omnipotência divina, porque decide sobre o

nosso destino, sente a verruma desses olhos desconfiados a varar-lhe as costas, acelera a passada e entra

no seu gabinete onde a montanha de processos conclusos ensombra o sol de todas as manhãs.

O escrivão apressa-se, cumprimentador e solerte,

com um braçado de outros processos para despacho, e ainda o juiz abre a pasta com um bocejo e já ele acrescenta a agenda daquela segunda-feira:

- Temos hoje um sumário-crime, senhor doutor juiz... - falava no plural possessivo como se a pesada engrenagem da justiça não rodasse sem a sua preciosa colaboração. E é verdade: se o juiz é o motor, o escrivão é o fogueiro da máquina.

- Um sumário?!
- Sim. Um preto assaltou o mini-mercado e roubou um frango. Foi apanhado em flagrante por dois transeuntes, que o entregaram à Guarda...

- Só me faltava mais essa! E ainda por cima um preto!

- O julgamento é rápido. O homem confessa e não tem advogado...

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- Bem - resignou-se o juiz. - O oficial que leve o preso para a sala e veja se está por aí um advogado para o nomear defensor oficioso.

- Está ali o doutor Meirinho - e ainda a boca retinha a cauda do apelido e já o fogoso causídico entrava no gabinete, insinuante e mesureiro, a toga no

ombro e aquele riso de gengivas descarnadas a salivar a saudação matinal.

- Temos agora um julgamento duma acção do Código da Estrada - disse ele.

- Pois temos, mas o seu colega ainda não chegou e, se faltar, adio a audiência.

- Já não pode ser adiada! - observou o Meirinho, consultando o relógio, para acentuar o atraso do colega.

- O senhor doutor sabe bem que eu nunca faço um julgamento sem a presença dos advogados de ambas as partes. É uma questão de princípio. Além disso, como o

outro advogado é de fora, talvez tivesse qualquer imprevisto...

- Mas não há fundamento legal, pois já houve um

adiamento por falta de advogado - insistiu o Meirinho a forçar a cartada.

- É verdade, senhor doutor juiz - reforçou o

escrivão, entrando no jogo.

- Pois é. Foi adiado por falta sua. E quanto a fundamento, tenho aqui um sumário que tem precedência...

O Meirinho desandou, o escrivão recolheu os processos despachados e o juiz dirigiu-se para o pretório. A participação da Guarda dizia que o réu, de nome Domingos, simplesmente Domingos, natural de Angola, mas ocasionalmente na comarca, fora encontrado às

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vinte e três horas de sábado, no interior do Mini-Mercado Primavera, cuja porta arrombara, com um frango debaixo do casaco e prestes a sair do local do crime "após ter perpectuado o referido assalto, cujo aliás confessa, alegando ter ido roubar para comer, pois já não comia à três dias com secutivos" (sic. fis. 2 V-? dos autos).

Depois dos prolegómenos habituais, foi fácil ao juiz traçar a radiografia do réu. Era um negro anónimo e contrito como são todos os humildes deslocados, de calças justas e coçadas, casaco excessivamente comprido a atestar endosso tardio, de cujas mangas largas emergiam duas mãos atarantadas que se abriam e fechavam como as de um náufrago prestes a afundar-se. Os olhos volitavam nas órbitas fundas e foram pousar no rosto calmo do magistrado, como se procurassem amparo. O juiz sentiu aquele fluxo mendicante, espécie de mensagem apelativa, e sacudiu a incómoda sensação com uma pergunta rotineira:

- Confessa, então, que assaltou a loja para roubar um frango?

- E verdade, senhor doutor juiz. Confesso e peço perdão! Há três dias que não entrava nada na minha boca...

As testemunhas confirmaram o delito, esclarecendo que o réu se deixou apanhar sem resistência. O Ministério Público e o defensor oficioso pediram Justiça. Ia o juiz a aplicar-lhe sessenta dias de prisão não remível quando o mesmo olhar implorativo lhe suspendeu a voz cominatóría.

- O réu quer dizer mais alguma coisa em sua defesa?

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- O frango, senhor doutor juiz, o frango!...
O meretíssimo sentiu um frémito longínquo, como bruma a desfazer-se e a acotovelar-lhe a lembrança:

- Qual frango?
- Zaala! Zaala! - gemeu o negro, duas lágrimas a saltarem-lhe dos olhos, duas pedras a acordarem o lago adormecido da memória.

O juiz encostou-se à cadeira e tapou a cara com as mãos para tentar decifrar aquela linguagem codificada que lhe desenrolava uma dobra do subconsciente e lhe falava dos confins do passado. Encarou o homem e foi então que se abriram dentro de si as luminosas manhãs de África, de há vinte anos, quando era alferes miliciano e um negro chamado Domingos o salvou por duas vezes de morte certa. Era uma dessas manhãs em que o sol abrasava a savana, e o capim da borda das picadas era o único refúgio do pelotão. Estavam há três dias sem

comer, bloqueados pelo fogo inimigo, a escassos quilómetros de Zaala, os soldados iam roendo as rações de combate, mas ele já não podia ver as bolachas e os enlatados. Corria-lhe da boca, grossa do pó e da raiva, uma aguadilha de vómito contínuo. E eis que lhe surge, na mira ansiosa dos binóculos, um negro lépido com um saco às costas a atravessar a clareira. Os seus olhos famintos logo pressentiram alimentos dentro da sacola. Rastejou pelo capim e foi interceptar o incauto. E o milagre aconteceu: dentro do saco estava um frango! Assou-o logo, e ainda a carne estalava das brasas, ingeriu-o tão sofregamente que a respiração se lhe tolheu e o corpo se enteiriçou em espasmos de morte horrível. Já tinha a face arroxeada e os olhos vidrados

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quando o prisioneiro deu um salto e lhe introduziu os dedos na garganta. O frango, mal deglutido, saiu aos pedaços e ele recuperou a respiração, salvando-se. Disse-lhe mais tarde o alferes-médico que tinha feito um "ventre ap-udo" e que, se não tivesse vomitado, morreria. Adoptou então o Domingos como mascote e guia do pelotão. Tempos depois, numa patrulha a Nambuangongo, o Domingos salvou-lhe de novo a vida, mas desta vez arriscando a sua, pois arrojou-se-lhe aos pés quando ele estava prestes a pisar uma mina e a fazer deflagrar o engenho. Foi a partir daí que o considerou como irmão de guerra e lhe fez a promessa solene que agora lhe grita

p 1 dos confins acordados de África:

- Domingos já me salvaste a vida por duas vezes! Pois ouve bem o que te digo e te prometo: tens aqui um amigo e se alguma vez precisares de mim, em Angola, no Puto ou em qualquer parte do mundo, vem ter comigo. Farei tudo o que me pedires!

- Nosso alferes promete, mas vai esquecer Domingos, seu criado...

- Não me esquecerei mais de ti. Mas se não te reconhecer, basta dizeres "Zaala, Zaala"...

A palavra-senha ribomba agora na sua memória, viva e acutilante como o eco duma mina deflagrada num trilho brumoso entre Zaala e Nambuangongo. Um sorriso de gratidão brilha-lhe nos olhos e é como um sol amoroso a iluminar a savana do passado. É o momento de cumprir a palavra. Palavra de cidadão, de juiz e de homem-irmão de todos os homens. É o momento de pagar a dívida. Dívida imprescritível como são todas as obrigações naturais...

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Domingos olha-o com ternura, porque sabe que foi reconhecido. O seu rosto tem agora a doce suavidade dum pecador compreendido. Mas como pode ele despir a beca da objectividade absoluta e vestir outra vez a farda empoeirada da parcialidade relativa? O dever e o coração. O juiz austero e o homem sensível e sentimental. A guerra surda entre os sentimentos e os mandamentos, entre o ser e o dever ser...

O juiz tem de aplicar a lei mesmo nos casos-limite em que a sentença deva ser escrita com o sangue vertido por todas as veras da alma. Houve um general romano que sancionou com a morte um prevaricador. E quando soube que ele era o seu próprio filho, manteve a sentença em preito de rectidão e de respeito indefectível pela lei. Dura lex...

Grossas bagas de suor riscam o rosto do guardião da lei como estiletes incandescentes. Sobe-lhe à garganta uma dor pesada e funda, um travo de indignação e de impotência, um rolo asqueroso de saliva., Mas consegue controlar a voz:

- Domingos, meu velho amigo de Zaala, meu irmão de guerra, desta vez nada posso fazer, porque esta beca negra que tenho vestida cobre-me o corpo e encobre-me a alma e faz de mim um simples braço da lei. Por isso, em face da prova e da tua própria confissão, não posso deixar de te condenar...

Fez uma pausa. O rolo de saliva e de náusea feria-lhe a voz como uma rajada de vento africano.

-...vais condenado a sessenta dias de prisão. Mas depois de cumprires a pena, procura-me que eu te mostrarei que não me esqueci da promessa...

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Um sorriso largo aqueceu o rosto do negro, como nas antigas manhãs luminosas, quando Angola era ainda um destino a cumprir.

O juiz retirou-se para o seu gabinete, despiu a beca, olhou displicentemente os processos cativos do tempo, foi à janela dar uma última mirada à urbe, acendeu um cigarro e sentiu uma agradável lassidão, assim como uma nuvem a desfazer-se ao sol, a invadir-lhe o corpo.

Sentou-se então à secretária e começou a escrever

o seu pedido de demissão.

103Pela boca morre o peixe

Setembro agonizava com Outubro à porta, e os primeiros ventos do outono começavam já a despentear as árvores da Praça. Passado o bulício do verão, com o fim das romarias e dos carros de turistas e emigrantes a atravancarem as ruas e os ouvidos com seus gritos de corças aluadas, a urbe mergulhara na modorra crónica dos dias planos entre a cortina espessa das montanhas que a isolavam do mundo. Até os fogos das matas deixaram de constituir preocupação, porque uma chuva providencial viera arrefecer a gula dos madeireiros.

Foi ao cair duma tarde dessas, vazia e pachorrenta como o comboio da noite, que a infausta notícia trouxe ao burgo o alvoroço dum ciclone: Ruizinho, o filho do farmacêutico, desaparecera ou fora raptado, ou mesmo assassinado, segundo outras versões, pois o seu casaco fora visto abandonado num banco da Estação dos caminhos de ferro. Os relatos coincidiam, porém, em

que ele saíra de casa ao alvorecer, com a promessa dum
4(volto já", mas não regressara ainda nem dera sinal de si. A Guarda, os bombeiros e muitos populares estavam

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agora a passar a pente fino as matas circundantes e o rio, mas as informações chegadas à Praça eram inteiramente desencorajadoras. O próprio senhor Neves, conhecido pelo Brasileiro por causa da pronúncia que ciosamente guardara dos seus tempos em terras do outro lado do mar, e que era amigo íntimo do desaparecido, começava também a perder a esperança. Foi incansável nas buscas e era ele quem ia fazendo o ponto da situação nas suas frequentes vindas à Praça para encontrar voluntários:

- Nada, meus amigos. Nem rasto. Estou desesperando...

- E os bombeiros? - interrogavam alguns.
- Estão devassando o vale e fazendo mergulhos no rio.

- Mas o casaco dele foi encontrado na Estação? Talvez o rapaz tenha tomado o comboio para Coimbra...
- sugeriram outros.

- Ninguém viu o cara na Estação - esclarecia pesaroso o Brasileiro, alisando a barba curta, à passa- - piolho.

Decorreram três dias de buscas intensas e já não havia um recanto para vasculhar em toda a zona envolvente, num raio de cinco quilómetros. Foi então que * boticário admitiu o rapto ou o assassínio, e requereu * intervenção da Judiciária.

O subinspector Políbio chegou a um sábado, acompanhado do agente Mendonça. A presença da Judiciária constituía, simultaneamente, um alívio e um cerco à população. Um alivio, porque lhe trazia a esperança da descoberta do criminoso. Um cerco, porque a partir de

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agora, todos se consideravam sob suspeita e na mira das investigações.

O automóvel dos investigadores parou ostensivamente no centro da Praça, no local reservado aos táxis, com um premonitório chiar de travões. Os seus dois ocupantes fecharam a porta com estrondo, cuspiram as priscas no chão e entraram de rompante no Café, de narinas farejantes, e não foi preciso mais do que uma sorrateira mirada para serem identificados.

- Alguma suspeita, senhor Inspector? - atreveu-se o Inácio da Câmara.

- Toda a gente é suspeita! - retorquiu o Mendonça, tomando a dianteira ao superior, com aquela sem-cerimónia dos polícias auto-comprazidos.

- Temos uma pista - atalhou o subinspector, adoçando a acusação do agente e baralhando os espíritos. - Vamos descobrir o crime. O que é preciso é que todos colaborem...

Tomaram o café e desandaram a caminho da casa do farmacêutico. Ficaram todos a interrogar-se sobre o verdadeiro objectivo da incursão, como se a Polícia precisasse de se fazer notada para ser temida. A Judiciária sempre infundiu nos espíritos fracos o mesmo temor dos lobisomens, com a diferença de que estes andam de noite e aquela bate à porta a qualquer hora para nos meter, se preciso for, num carro celular.

- O cara está querendo dizer que já sabe quem é o criminoso!? - admirou-se o Brasileiro.

- É. Para mim foi essa gente do campismo. Gente esquisita que fumava droga. O Ruizinho não saía do Parque... - alvitrou o Inácio.

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- Lembram-se daquela sueca loura que vinha aqui em calções? - interveio o dono do botequim a dar

a sua achega. - Pois para mim, há nisto rabo de saia.

- Não é sueca, é francesa, que eu bem a ouvi falar
- corrigiu o Inácio.

- Olhe, sinhô José, não foi coisa que já me não lembrasse - volveu o Brasileiro. - Essa moça bonitona estava tendo um caso com Ruizinho...

- Não me parece - volveu o senhor Silva, escrivão de direito aposentado, que até ali se mantivera murcho e meditativo. - O pessoal do campismo era gente inofensiva. O gato deve estar noutro lado. Se não vejamos...

Interrompeu a arenga e começou a enrolar um

cigarro, lentamente, a espreitar a curiosidade da roda. Antigo oficial de justiça, sabia que um crime só apaixona a opinião pública enquanto o criminoso não for descoberto, tornando-se, então, um vulgarfait-divers. É como um passe de magia, que só prende os espectadores enquanto a pomba não salta das mãos do ilusionista.

- Mas diga, senhor Silva, diga...
- Vejamos, pois, os factos: que interesse tinham os campistas, ou essa louraça, em matar o Ruizinho, um

rapaz garboso mas que não fazia mal a ninguém?

- Lá isso é verdade. E depois?
- Segue-se que não há crime sem motivo, isto é, o móbil, como dizem os juristas. Quem mata, ou é para roubar, ou por vingança, ou...

- Está certo. Mas não houve roubo, nem havia motivo para vingança, pois o rapaz era querido por toda a gente - interveio o Inácio.

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%%1@"

- Mas há outra razão. Uma razão, como direi? muito particular...

- O senhor Silva, diga tudo de uma vez! - afligiu-se o Brasileiro.

- Pois bem. Em minha opinião foi esse viajante de Coimbra, esse cara rapada invertido, quem o matou...

E, perante o pasmo céptico dos amigos, foi desenrolando a sua teoria com a argúcia dum investigador encartado, como quem desenrolasse sobre a mesa o mapa dum plano secreto. O tal viajante tinha modos efeminados e fama de homossexual. Já o vira algumas vezes a falar com o Ruizinho, que devia conhecer de Coimbra, dando risadas exploratórias e tentando insinuar-se. Portanto, devia ter aliciado o rapaz para um passeio, e como encontrasse resistência e, talvez, com medo de ser denunciado, matou-o...

- E o corpo? Sim, o corpo... - objectou o Brasileiro que lhe bebia as palavras com a cupidez dum polícia.

- O corpo meteu-o no carro e deve tê-lo escondido a uns bons quilómetros daqui. Um dia destes, o cheiro encarrega-se de denunciar o local... - E o casaco? O que estava fazendo o casaco abandonado no banco da Estação? - insistiu ele, com os olhos arregalados, a penetrarem no mistério, como se uma pomba branca emergisse das mãos loquazes do Silva.

- Ora o casaco! Então não vê que o casaco foi lá posto simplesmente para despistar! Num lado se põe o louro, e noutro se vende o vinho...

- Estou sabendo que o amigo Silva é mesmo uma inteligência!

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E enquanto os ociosos frequentadores do Café exercitavam a sua argúcia, os homens da Judite interrogavam os pais da vítima e a criada, colhendo os primeiros elementos para o seu dossier. Ruizinho não tinha inimigos, nem se lhe conhecia qualquer desavença. Estava prestes a formar-se em Farmácia, mas passava largas temporadas com os pais, convivendo, principalmente, com o Inácio, zelador municipal, com o Brasileiro, que vivia dos rendimentos e tinha sempre tempo livre para devaneios, com o Luisinho, estudante de Medicina, filho do notário, e com o Rolando, serralheiro mecânico, que fora seu companheiro de carteira na escola primária e lhe tratava do automóvel.

- E quanto a mulheres? - perguntou o subinspector, precavido.

- ó senhor doutor! - estranhou chorosa a D. Francelina. - O meu filho sempre foi um rapaz respeitador, de boa formação moral...

- Quero eu dizer, minha senhora, se ele não convivia com raparigas. Isso era perfeitamente natural...

--- Ah? sim concordou o farmacêutico. - É claro que se dava com meninas da sua condição, mas aqui não lhe conhecia qualquer namoro.

- Diz então o senhor doutor que o seu filho recebeu um telefonema cerca das oito horas da manhã, despediu-se da criada com um "até já" e nunca mais apareceu...

- Exactamente, senhor Inspector Políbio. Mas a Joaquina é que pode esclarecer esse pormenor...

A criada confirmou que atendeu o telefone, eram

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exactamente oito horas, porque o relógio da sala bateu as badaladas correspondentes, uma voz masculina pediu para chamar o Ruizinho, e ele depois saiu apressado dizendo, ao vestir o casaco, "volto já, não me demoro ......

- O pobre menino saiu tão acelerado que nem

tomou o café...

- Mas ele disse "volto já", ou também, "não me demoro"? É que há pouco você não disse bem assim! - perguntou o Mendonça, a meter a colherada.

- Era o que eu lhe ia perguntar - reforçou o subinspector.

A criada titubeou, o rosto afogueado por ter sido apanhada em contradição ou omissão, duas lágrimas suspensas dos olhos insones.

- Eu parece-me que o menino disse que não se

demorava. Foi isso...

- Bem. Não tem importância. É apenas um pormenor, mas numa investigação desta gravidade, todos os pormenores podem vir a revelar-se como pistas.
- disse o subinspector, folheando o dossier. E, dirigindo-se ao farmacêutico: - já temos elementos para começar as investigações, mas precisava de ter uma conversa particular com o senhor...

D. Francelina e a criada saíram. Na sala de móveis antigos e tapetes escuros a que as paredes grossas e as

estreitas janelas de cantaria davam um enquadramento conventual, ficou um silêncio carregado de dúvidas. Só o relógio de sala emergia do tédio, resfolegando ruidosamente no seu caminhar intérmino.

- Queria que o senhor doutor me dissesse, sinceramente, se o seu filho consumia droga - perguntou o subinspector.

O interpelado agastou-se. Via-se que a pergunta lhe causou um pesadume no estômago, a avaliar pelo cenho que lhe sublinhou as palavras.

- Nunca dei por isso, senhor inspector!
- É que temos aqui uma informação da Brigada da Droga que o dá como consumidor, e a outra pessoa cá da terra...

- Não tenho conhecimento de nada, nem compreendo a relação entre uma coisa e outra...

- E nunca notou que lhe desaparecessem estupefacientes da farmácia?

- Nunca notei. O ajudante é que faz os registos. Políbio fechou o dossier, meteu-o na pasta e pôs-se a alisar o bigode.

- Que pensa você disto, Mendonça?
O agente, que se tinha mantido calado, a varrer a sala com a vassoura dos seus olhos atilados, levou a mão

ao cabelo rebelde e sentenciou:

- É preciso primeiro descobrir o corpo e encontrar uma explicação para o casaco abandonado. Neste momento nem sabemos se o rapaz está morto...

- Infelizmente, deve estar. Depois de tanto tempo sem dar sinal...

- O senhor Inspector tem ao menos alguma pista?
- perguntou o farmacêutico.

- Temos alguns indícios. Mas fique tranquilo, as

investigações só agora vão começar.

Durante dias, a equipa da Judiciária, com a colaboração da GNIZ, espiolhou todos os recessos suspeitos, elaborou vários esquemas e inquiriu dezenas de pessoas, quer em depoimentos escritos, quer em conver112

sas informais. A hipótese do Silva, trazida aos autos pelo Brasileiro e pelo Inácio, e acrescentada com alguns pormenores imaginativos, era um caminho aberto e verosímil, pois o viajante agravara as suspeitas ao ausentar-se de Coimbra a pretexto de visitar uns parentes no Alentejo. Estavam confirmadas a sua tara e as abordagens feitas à vítima, a qual, contudo, como referiu o Brasileiro, "era incapaz dessa desbocação sexual". A hipótese da loura (francesa?) e dos campistas estava suspensa em banho-maria, por ter sido de quinhentos e vinte o número de frequentadores do Parque nos últimos dois meses.

Vistos os factos até então recolhidos, à luz da ciência indagatória e da presciência adjuvatória, na expressão do subinspector, poderiam alinhar-se desde já as seguintes conclusões:

Primeira - o telefonema ardiloso foi feito por um amigo, ou por uma pessoa das relações da vítima, assim se compreendendo que o Ruizinho tenha saído imediatamente de casa, sem mesmo tomar o pequeno-almoço;

Segunda - esta circunstância mostra que o interlocutor simulou qualquer urgência ou aflição para conseguir a pronta comparência da vítima (crime premeditado?);

Terceira - O local do encontro devia ser a curta distância, pois a vítima não levou automóvel e despediu-se da criada com um "volto já". (entrelinhado: o automóvel estava desde a véspera na oficina do Rolando para mudança do óleo, mas este

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facto não invalida a conclusão anterior); Quarta - O casaco abandonado na Estação destinou-se a confundir os investigadores, pois a Estação fica * cerca de 1 Km e não seria crível que a vítima fizesse * percurso a pé (nota: a menos que o homem que telefonou o apanhasse de carro nos subúrbios e passasse depois pela Estação, deixando aí o casaco para despistar ... );

As chavetas conclusivas, desenhadas a vermelho numa folha A4 pelo subinspector Políbio, desembocavam nas seguintes hipóteses de trabalho (confidencial):

12 suspeito. -Edgar Brito, caixeiro viajante (oficiar à PJ-Lisboa para averiguar o seu paradeiro);

22 suspeito: - Rolando da Conceição, serralheiro mecânico (só chegou à oficina no dia do crime, depois das nove horas, e não justificou onde esteve antes dessa hora, sendo certo que saiu de casa às oito);

39 suspeito: - Serafim das Neves, o Brasileiro (a insistência com que lança outras pistas e o facto de ter entrado em contradição sobre onde se encontrava na hora do crime, levanta suspeitas; vide a informação sobre droga);

Observação: averiguar se entre os frequentadores do Parque de Campismo não existem indivíduos com cadastro. Telefonar ao agente Mendes, da Brigada da Droga).

Estava, pois, o subinspector numa sala do Palácio da Justiça, onde decorriam os interrogatórios, joeirando as várias hipóteses e fumando cigarros sobre cigarros enquanto o agente tirava pedras de isqueiro do

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nariz, quando o sargento da GNR, em pessoa, bateu à porta com o alvoroço do cão que traz ao caçador a presa apetecida. No caso, não era ainda o nome do suspeito que ele trazia, mas um indício importante que logo conduziu à descoberta do cadáver. As vezes a sorte protege os investigadores criminais.

- Está lá fora um homem que quer falar com o

senhor Inspector. Foi ao Posto, mas eu trouxe-o aqui, porque me parece que tem novidade - disse o sargento com a voz inchada de orgulho.

- Mande-o entrar imediatamente - e um sorriso verde pintou-lhe o rosto, qual lagarto apressado.

Entrou um campónio de boina e jaqueta, as botas cambadas a deixarem no soalho uma marca oblonga e terrosa. Os da Polícia salivaram de impaciência.

- É sobre o crime? Então diga lá o que sabe e não se esqueça de nada.

- Pois, senhor doutor, eu cá vinha dizer que ainda agora ia para regar as couves lá na horta da várzea e vi uma carreirada de sangue no muro do poço e então alembrei-me que...

- Onde é o poço? - perguntou Políbio com o sangue a ferver, levantando-se de um salto.

- É aqui a dois passos - esclareceu o sargento, colaborante.

Feitas as buscas, verificou-se que havia um fio de sangue no rebordo, a escorrer pelo empedrado até ao interior do poço. Foi apenas preciso seguir o rasto para encontrar o corpo submerso nas águas.

- Quem teria sido o malvado?! - Interrogavam-se os populares. Alguns tiravam o chapéu, entre chorosos e indignados.

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- Quem houvera de dizer! admirou-se o Brasileiro.

O Silva, imaginoso, puxou o investigador para fora daquele círculo fúnebre:

- O senhor Inspector já sabe a minha opinião. Mas tenho ainda outro argumento.

- Diga, amigo Silva. E sempre bom ouvirmos as sugestões de pessoas experientes como o senhor.

- São quarenta anos a lidar com processos - ufanou-se o Silva, a justificar a lisonja.

- Mas então qual é o novo argumento?
- Ora veja: o viajante telefonou ao Ruizinho e marcou encontro aqui, a dois passos da residência. O rapaz, que era meio gozão, veio logo a correr para se divertir. E claro que o homem não tinha intenção de o matar. Mas o Ruizinho, ao saber que ele o que queria era pau, deve-o ter ameaçado, e então o viajante empurrou-o para o poço, e ele morreu afogado, porque não sabia nadar. Não sabia nadar, veja o pormenor...

- É uma boa hipótese de trabalho...
O Ruizinho, porém, não morreu de asfixia, mas de um tiro à queima-roupa no coração. A autópsia revelou ainda que tinha ferimentos na cabeça e pelos de barba loura nas unhas da mão direita. A camisa estava rasgada no peito. Ora, pensava o subinspector Políbio, se o viajante era imberbe como diziam, não podia ser ele o homicida. Nem a francesa... Restavam, pois, as outras hipóteses. Só que, a barba do Rolando era negra...

Políbio sentia-se perdido na encruzilhada. Tinha de desvendar o crime para continuar a merecer a fama que disfrutava. Ainda recentemente desmantelara uma

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quadrilha de fabricantes e passadores de nota falsa, e fora esse feito, a que os jornais deram a retumbância de acontecimento de primeira página, que lhe valera a promoção. Tinha, pois, todas as antenas assestadas. E o sexto sentido de que dispõem os investigadores, e que é uma espécie de cata-vento soprado pela experiência e pela intuição, já lhe dissera que o criminoso devia ser procurado intra-muros. Por isso, logo que recebeu o relatório dos médicos legistas, começou a calcorrear o burgo, a entrar nos cafés e tascas, a vigiar a farmácia e a falar com toda a gente. Até à missa foi, aproveitando um domingo soalheiro, como se o recolhimento num templo lhe acicatasse a imaginação. Por vezes as ideias surgem nos locais mais desencontrados com a realidade. E o milagre acontece.

- Bom dia, senhor Inspector! - saudou-o o Brasileiro à saída, amaciando o queixo no seu gesto peculiar.
- Está tudo correndo bem?

Respondeu ao cumprimento e caminhou ao acaso pelas ruas quase desertas. O domingo nas terras do interior é um lago adormecido onde apenas os sinos das igrejas acordam a vida. Outubro chegara e o vento da serra era agora um barbeiro impiedoso...

E, de repente, esse vento que lhe gelava a cara trouxe-lhe o recado que há dias aguardava: o Brasileiro usava uma barba curta à passa-piolho e tinha um vergão na cara como se as unhas de uma mão desesperada lhe tivessem arrepanhado as bochechas e deslizado até ao queixo. Talvez por isso é que ele estava sempre a amaciar a barbicha loura para ocultar a ferida. Eram apenas indícios, mas indícios convincen117

tes. Se aparecesse mais algum elemento...

Correu para a pensão e chamou o ajudante. O Mendonça balouçava ainda no despreocupado sono de domingo e esfregou os olhos de surpresa:

- Alguma novidade, chefe?
- Vamos imediatamente interrogar a criada. Vista-se, que anda mouro na costa...

- Algum elemento de última hora?
- é cá uma ideia...
O farmacêutico admirou-se por aquela visita inesperada. Chamou a criada, e a rapariga surgiu na sala, ofegante e a desapertar o avental.

- Menina - disse o subinspector - tome bem atenção ao que lhe vou perguntar e responda com precisão. Você já nos contou que atendeu o telefone e que uma voz masculina, desconhecida, pediu para chamar o Ruizinho...

- Sim, senhor doutor.
- Não conheceu mesmo essa voz?
- Não, senhor doutor. A pessoa devia estar a disfarçar...

- E o que foi, exactamente, que ele disse? Pense bem...

A criada franziu os olhos para aclarar a dúvida, como costumam fazer os míopes e as testemunhas em aperto de consciência:

- Disse para eu chamar o menino Rui.
- E o que respondeu você?
- Eu disse que ia ver se ele já tinha acordado.
- E o homem disse mais alguma coisa? Veja bem... De novo a criada piscou os olhos, agora como se

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estivesse a ler no restolho da memória. A boca abriu-se-lhe antes da resposta como se preparasse o sulco das palavras:

- Ele disse assim: vá depressa que eu fico esperando...

- Foi mesmo assim que ele disse: "eu fico esperando"?

- Foi, sim, tenho a certeza, agora me lembro...
O subinspector respirou fundo e acendeu um cigarro:

- Mendonça, pode tratar dos mandados de captura contra o Brasileiro.

- O Brasileiro? - admiraram-se todos, como se a descoberta surpreendesse tanto como o crime.

- Sim, o Brasileiro! Só me faltava este elemento para completar o puzzle, mas agora tenho a certeza.

- Mas porquê? - quis saber o farmacêutico, ainda aturdido com a súbita revelação. - Tão amigos que eles eram, e companheiros...

- Pelo gerúndio, senhor doutor, pelo gerúndio brasileiro - concluiu Políbio com um sorriso triunfante. - Então o homem não disse "fico esperando"?

- Fico esperando? - ah, sim!
- Pela boca morre o peixe - rematou o Mendonça.

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O milagre

Não sei se há uma justiça imanente, uma força oculta e inelutável que guarda os homens, como as leis naturais velam pelo harmonioso movimento dos astros, e se encarrega de julgar e retribuir as nossas acções. A sabedoria popular, que é a seiva profunda de que se alimentam todas as filosofias, diz-nos, numa das suas tábuas paradigmáticas, que "elas cá se fazem, cá se pagam", como se ninguém pudesse fugir à inevitável sanção da vida. Duvido da aferição dessa balança, pois conheço muitos crápulas que levaram uma existência regalada e triunfante, repleta de honrarias e prebendas, enquanto muitosjustos mourejaram arduamente o pão da subsistência e enfrentaram as mil agruras do quotidiano. Talvez por isso se tenha inventado o bálsamo consolador de que os ofendidos e humilhados serão retribuídos no outro mundo, que surge, assim, a justificar a necessidade de uma justiça transcendente em face da duvidosa e contingente justiça terrena. De todo o modo, o sentimento da rectidão e da equanimidade, que mandar dar a cada um o que lhe pertence, é uma marca

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comum do género humano, tão vincada como o instinto da sobrevivência. Se não há, pois, uma justiça imanente no comércio da vida, a que o povo chama Providência, há, contudo, uma consciência individual e colectiva que ainda nos permite distinguir o justo do injusto, o direito do avesso do direito.

Às vezes, porém, é a própria vida, ou o que nela há de insondável e misterioso, que se encarrega de repor a verdade e reabilitar a Justiça. Lembro-me dum cliente que acabara de receber uma avultada quantia como desfecho duma acção mal ganha, e saíra do tribunal com o bolso do casaco a empinar-lhe o peito, e um sorriso pérfido a espumar-lhe a boca, voltar daí a pouco com os olhos vidrados de raiva, porque lhe haviam surripiado a carteira num ajuntamento. E também sei de casos extremos em que o moribundo vê chegar à cabeceira a notícia de que, afinal, o crime por que havia sido condenado acaba de ser assumido pelo verdadeiro culpado, como se a morte, para se justificar, precisasse que a vida lhe trouxesse aquele certificado de bom comportamento. São coisas inexplicáveis e que agora trago à colação por causa dum processo em que litiguei contra a mãe de Jesus Cristo, representada em Juízo pela Irmandade de Nossa Senhora das Dores.

O velho e vingativo Felizmino apareceu-me um dia queixando-se de que a Irmandade se apoderara da testada duma sua propriedade, que herdara em folha de inventário, registara na Conservatória e de que pagava os direitos ao Estado. Há anos que ele vinha permitindo, por simples favor e reverência à Santa, que ali se instalasse a quermesse e realizasse o arraial, pois a

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capelinha era cega e não possuía logradouro que albergasse os devotos no dia da sua festa anual. Estava disposto a emprestar o terreno, como sempre tinha feito, até já o demarcara e deixara de pousio para aquele fim, mas não podia permitir o desaforo do novo mordomo lá mandar construir um coreto de raiz, como se o seu chão tivesse mudado de proprietário. Ora, o seu legítimo dono e possuidor era ele, Felizmino, e por isso queria que eu tomasse as providências judiciais para, com urgência, a faixa esbulhada lhe ser restituida.

Fui ao local. A ermida da Senhora das Dores ficava no fundo dum vale e era uma mancha branca, imaculada, entre milheirais e as primitivas casas de pedra enegrecida, ainda cobertas de ardósia. Vista do alto, parecia uma pomba repousando suavemente na quietude verde-negra daquela tarde de Julho. Descia-se por uma quelha sinuosa cavada na encosta, e alcançava-se o povoléu por uma vereda de saibro entalada entre os casebres e cortada pelos atravessadouros da água das regas, tantos quantas as glebas confinantes, pois a todos pertencia o seu quinhão na levada comunitária. A capelinha ficava no centro da aldeia, ou seja, no coração do povo, tomando aqui a palavra em toda a sua genuína compreensão, englobando o lugar e as suas gentes, pois as casas levantavam-se à sua sombra protectora, geometricamente arrumadas em semi-círculo, de modo que Nossa Senhora podia ver, do seu altar sempre florido, todos os seus humildes servos. É certo que nas encostas havia moradias dispersas, pertencentes a emigrantes,

com suas cores garridas e seus telhados berrantes, a marcarem uma nova era. Mas essas pertenciam à

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Aldeia de Cima, assim crismada para a distinguir do núcleo primordial onde o tempo tinha parado, porque o sino da Senhora das Dores não dava horas e só tangia no dia 15 de Agosto para assinalar a alegria do seu reencontro com os descendentes dos homens que, em cumprimento duma promessa, todos os anos renovada, levantaram a ermida em 1870, como proclamavam os rudes algarismos gravados na verga do portal.

Achei curioso que, exactamente cem anos depois, um súbdito da padroeira quisesse profanar o modesto santuário com uma querela judicial, que iria, certamente, desgrenhar a compostura daquela crença antiga, dividir o povo e lançar a semente da incredulidade. E certo que o meu cliente parecia ter razão, porquanto a Irmandade invadira o seu terreno e ocupara uma faixa de uns setenta metros quadrados para a feitura do coreto e arrumação dos romeiros. Mas também é certo que a capela, encostada ao sopé das fragas como uma fonte milagrosa, estava bloqueada por casas e penedias, e só restava aquele logradouro, mesmo ali em frente, para alargar o horizonte físico da Santa, já que o seu horizonte metafísico eram todas as almas que mourejavam num raio de muitas léguas, ainda para lá dos cumes daquele calvário.

Sensível à utilidade pública da ocupação, ao doce olhar da Santa, que deslumbrava um céptico, e aos argumentos dos representantes da Irmandade secundados pela massa veemente do povo, chamei o cliente a deslado e experimentei convencê-lo a ceder o terreno. A Santa precisava, coitada, estava ali emparedada, o terreno era pequeno e de pouco valor, a justiça é cara e

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o resultado da demanda, apesar dos documentos que me apresentava, é sempre duvidoso. Mostrou-se irredutível, sobretudo porque a ideia da ocupação partira do gebo dum emigrante recém-chegado da Alemanha e agora alçado a Mordomo, que morava na Aldeia de Cima e vinha com a cagança de ser o rei do povoado. Sugeri-lhe então que se podia propor a venda do terreno, porque assim se resolviam as coisas com honra para ambas as partes: ele recebia o justo valor e a Santa ganhava o logradouro de que tanto carecia. Ademais, se o cedera há tantos anos, é porque não lhe fazia falta. Que não, quem mandava no que era seu, era ele, não tivesse eu medo de entrar com a questão, pois a verdade viria ao cimo como o azeite, e finalmente, que me tinha mandado chamar e me pagava para eu ser o seu advogado, e não o da Santa...

Ponderados os factos, disse-lhe que propunha a acção. Ia a retirar-me quando uma velha de negro, de grandes patorras descalças e uns fios de barba a escorrer-lhe das comissuras da boca, se abeirou de mim, ergueu as mãos ao céu e disse num latido de cabra pejada:

- O senhor sabe de leis, mas nós aqui temos outras leis. Pois eu lhe garanto, meu senhor, aqui diante da Santíssima Mãe de Deus, que se esse homem nos tirar o adro, há-de penar os seus pecados para o resto da vida...

- Vai-te, bruxa! - ripostou o Felizmino, cuspindo no chão.

- O terreno é da Senhora das Dores - gritou a chusma em assuada, enquanto a sineta tocava a rebate.

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- Veremos, veremos! Tenho os meus documentos! - rematou o Felizmino com o rosto congestionado, arrastando-me daquele vespeiro.

A acção reivindicatória entrou no tribunal com todas as hipóteses de êxito, pois, apesar de prever a

dificuldade da prova testemunhal, a certidão de inventário e o registo predial provavam abundantemente o invocado direito de propriedade erga omnes. Quando, porém, recebi a contestação e pesei as razões ali expendidas na balança objectiva do meu senso jurídico, o

fiel oscilou hesitante e inclinou-se, imperceptivelmente, para o lado da Santa. A Irmandade reconhecia, honestamente, que a área ocupada pertencera ao meu constituinte, mas alegava que há mais de trinta anos ele a tinha doado verbalmente à capela, em cumprimento duma promessa. Na verdade, e resumindo, encontrando-se o Felizmino tolhido de movimentos das pernas e

consumido com dores excruciantes em consequência duma paralisia, para a qual não encontrara cura, prometera solenemente à Senhora das Dores ceder-lhe aquele talhão para seu logradouro e proveito, caso ela o livrasse de tão horrível tortura. A padroeira ouviu a sua sú plica,

e o milagre aconteceu durante a missa festiva de 1939. Imediatamente o Felizmino saldou a dívida, de tal modo que no ano imediato e em todos os anos subsequentes, sem interrupção, de forma pacífica, continuada e pública, a quermesse e o arraial se realizaram naquele local, previamente demarcado. O próprio pároco assistiu à inauguração e agradeceu a piedosa dádiva durante a homilia. Todos estes factos eram do conhecimento geral, tanto dos habitantes do lugar como das centenas de

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romeiros que todos os anos acorrem à festa em honra da Senhora das Dores. Por isso, a pretensão do Felizmino é ética e moralmente reprovável, constituindo um acto de vingança contra o novo Mordomo por causa de uma questão de estremas. O autor devia, pois, ser condenado como litigante de má fé, "porque não há maior aleivosia do que faltar à palavra diante da Mãe de Deus e renegar a fé dos antepassados"...

Chamei o cliente e li-lhe a contestação. O homem tartamudeou, como se prestasse contas ao Padre Eterno, os olhos em revelia, a fugirem ao encalço da conversa, mas acabou por reconhecer os factos alegados pela Irmandade, menos a doação do terreno, porquanto apenas tinha prometido a sua cedência temporária por ocasião das festas. E tanto isto era verdade que todos os anos o mordomo lhe pedia autorização para armar a quermesse.

- E o senhor tem testemunhas?
- Da terra não sei, que estão todos comprados, mas de fora, arranjo.

Aproveitei a maré para insistir numa transacção.
O colega tinha-me sugerido um preço simbólico ou, em alternativa, a colocação duma lápide onde constasse o nome do doador e a gratidão dos conterrâneos.

- Siga para a frente, senhor doutor. Não quero qualquer acordo!

- Mas veja bem! Moralmente, o terreno é da Santa...

- Eu sei que fiz a promessa quando me vi aflito, e que me encontrei curado. Mas quem me garante que foi a Santa!? - os olhos do Felizmino estavam agora

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fixos nos meus, acutilantes, como se tentassem romper o cerco da minha argumentação.

- Olhe que pode perder a causa. E mesmo que ganhe, fica mal visto no lugar...

- Não perco! Os meus documentos valem mais do que todas as testemunhas. E contra eles, a Senhora das Dores nada pode...

- Nunca se sabe...
- Além disso, tenho provas de que todos os mordomos me pediam autorização para ocupar o prédio. Só agora é que o gebo do emigrante se armou em dono do

que é meu...

- Quer então sujeitar-se ao julgamento? - insisti ainda, a ver o fiel da balança oscilar entre a moral e o direito, entre a honra da palavra devedora e a indiferença da lei protectora.

- Quero dar uma lição a esse emigrante e a todos os beatos da freguesia. O milagre vão eles ver...

O Felizmino retirou-se com a destemida agilidade dum gladiador dos tribunais, e eu elaborei a réplica com a frágil convicção dum assador de castanhas: a pecúnia recebida não compensava as queimaduras.

Todos os advogados conscientes da nobreza do seu

mister se debatem, frequentemente, diante da dolorosa bifurcação do iter profissional: o justo desprovido de tutela jurídica e o injusto aninhado na lei. Se opta pelo primeiro caminho, corre o risco do subjectivismo e da deserção. Se prefere o segundo, assume o ónus da conivência e do mecenato. Mas é claro que o advogado, como intérprete e defensor da lei, não pode recusar o patrocínio em nome de arriscados juízos morais que só
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ao legislador compete formular, ainda que a norma, no caso concreto, se revele manifestamente injusta. É o que se passa, de algum modo, com o instituto da prescrição, que dá ao devedor relapso o direito de recusar o pagamento, e ao esbulhador confesso o poder de fazer sua a coisa apropriada...

O processo seguiu os trâmites legais e o julgamento arrastou-se por dois longos e acidentados dias, mobilizando todos os habitantes do lugarejo, novos e velhos, que todos queriam assistir ao despautério, pois nunca se tinha visto qualquer mortal levar ao pretório a Santa Mãe de Deus. Mas ainda ficou na terra, segundo me disseram, a velha das barbas a que chamavam bruxa, bolsando imprecações, atropelando rezas com presságios, torcendo as orelhas do lenço e erguendo as mãos ao céu, como se não acreditasse na justiça da terra e convocasse os antepassados para a cruzada santa contra o renegado.

Quando, dias depois, fui notificado da sentença e, deixando os prolegómenos, li a parte conclusiva e me certifiquei que o Felizmino ganhara a acção, não senti aquela paz remuneratória que é, para os advogados, a verdadeira e decisiva motivação do seu oficio. No fundo de mim, naquele ponto preciso da consciência onde os anos foram gravando o ágio da vida, e a alma da toga se confunde com a raiz do meu ser, pareceu-me descobrir uma sombra temerosa e fria a esfarelar o êxito profissional com os dedos compridos da minha própria frustração.

Só agora confesso: esta acção mareou-me inconsolavelmente para sempre, porque a profissão prevaleceu

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sobre a função, o homem de leis, esteriotipado e insensível, venceu o homem comum, solidário e sensível. E eu penso que quando o advogado deixa de ser, também, um homem comum, é porque a vida se resume nele aos secos normativos, sem alma e calor.

Acendi um cigarro, como faço neste preciso momento em que desenterro o antigo dossier, um dos meus primeiros casos, e alinhavo estas notas ferventes. Reviver o passado não é pisar o mesmo chão, é respirar o fumo saturado das fogueiras reacendidas pela erosão do tempo... Varri aquela sombra e escrevi ao cliente uma carta neutra e profissional, dando-lhe a boa notícia e convocando-o ao escritório para pagar os meus honorários. A felicidade que nele adivinhava mitigou o travo enjoativo da descrença do meu próprio e assumido papel de tornar o mundo mais justo e convivente.

No dia marcado, o Felizmino não compareceu. Mas no dia seguinte, em letras trôpegas de escolar incipiente, recebi dele a carta conclusiva que aqui deixo sem

tirar nem pôr:

senhor doutor advogado

Quem esta carta escreve é minha neta que eu cá recebi a sua muito estimada carta que muita alegria me

deu mas não posso ir ao seu chamado que me encontro à uma semana entrevado na cama com muitas dores nas cruzes e as pernas presas que me voltou aquela maldita paralesia, que dizem aqui que foi a praga da bruxa e

outros que Deus me perdoe que foi vingança da santa que não gostou de ser condenada em tribunal, que o senhor

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doutor juiz bem viu que aquilo era meu.

e agora o que mais me custa é esse jebo do mordomo passar todos os dias à minha porta a guiar a sua espada

e a apitar e a dizer que elas cá se fazem cá se págão e que a providência não dorme, que me trouxe outra vez a paralsia dos nervos pois eu assim que me puder alevantar ai irei senhor doutor ao seu consultóriopara lepagar o seu salário que o senhor bem no mereceu, mas se não puder ir que a santa le pague que eu já me sinto bem castigado.

receba um aperto de mão e muitas vesitas para toda a família que deus le dê saúde como eu desejo para

mim

deste seu contituinte

Félizmino do vale

131Parábola

O senhor Lopes, funcionário público aposentado, veio consultar-me para saber se, em consciência, podia ser testemunha. "Eu realmente não presenciei o crime, mas parece-me que realmente o vi". Era-lhe difícil encontrar a linha divisória entre o real vivido e o real visionado: a verdade ocupava os dois lados dessa linha imaginária, como um rio que não conhece fronteiras e apenas tem por limites a fonte onde começa e a foz donde regressa.

Esta foi a história que me contou. Limito-me a acrescentar-lhe a argamassa literária para unir a narrativa e dar-lhe a forma de uma parábola.

O senhor Lopes já tinha a vista atravancada da mesma paisagem. E não admira. Sentado há longos dias na varanda daquela estância serrana, a ver o tempo parado e a curva poeirenta da estrada florestal sobre a ponte estreita, deixava os olhos fecharem-se ao peso emoliente da tarde e continuava a assistir ao desdobrar da memória como num filme colorido.

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Só o gemer da cadeira de verga e o protesto dos cães à passagem rara de um automóvel rompia aquela modorra. Por vezes, o chiar dos carros ou o tilintar das campainhas dos rebanhos fazia-o levantar as pálpebras, dormentes de monotonia.

Uma dessas tardes, quando o sol já descera do toldo e brincava com os gatos no pátio, foi despertado pela travagem nervosa duma potente mota e viu um tipo de cabeça rapada desfechar um revólver sobre um rapaz de sapatilhas brancas há muito sentado na ponte, como se esperasse o seu destino. Levantou-se de um salto e assomou à varanda, esfregando os olhos, surpreendido. A ponte estava deserta e nem um novelo de pó dava sinal de vida.

Ficou tão incomodado que resolveu descer ao salão de convívio onde os veraneantes jogavam ou cavaqueavam. E não resistiu a contar-lhes o sucedido. Os companheiros riram-se, e o empregado do bar, com um olho na máquina dos sumos e outro nos clientes, disse para ser agradável:

- Deve ter sido uma visão, pois não me constou nada...

O episódio desvaneceu-se e foi arrumado no sótão das recordações insignificantes. Na véspera da partida, o Lopes resolveu, com outros companheiros, dar um passeio ao vale para apanharem trutas à mão, conforme o slogan turístico da estância. Seguiram o caminho do rio por entre silvedos e milheirais, à sombra dos choupos que dormitavam sobre as águas. Preparavam-se para descansar da caminhada, junto do açude, onde o rio se despede da montanha para acometer a planura,

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quando ouviram gritos aflitivos provindos do lado do hotel. Ainda dormitou sobre a relva fresca, mas em breve retomou o caminho de regresso, acossado pelos companheiros. Um deles comentou com ares de presságio:

- Na véspera da partida é que havia de acontecer. uma desgraça!

Lembraram-se todos do "retornado", que passou as férias a desafiar a vida, olhando a paisagem do alto do terraço: "- Que belo sítio para morrer! Qualquer dia atiro-me às fragas!"

Subiram a vereda no passo lento de quem já se cansou de subir a vida. Quando chegaram ao hotel depararam com uma pequena multidão junto à ponte, e uma patrulha da Guarda a inspeccionar o local.

Foi o empregado do bar quem atarantou a notícia:
- Aconteceu uma desgraça! Um tipo de mota deu um tiro num rapaz e desapareceu no pinhal...

O Lopes sentiu um aperto no peito ao ver um vulto estendido na estrada, coberto com uma manta donde emergiam duas sapatilhas brancas. Sentada numa pedra, no fundo da vereda, uma mulher chorava.

Dirigiu-se para o quarto, agoniado. Não teve coragem de ir à varanda. Aquela paisagem incomodava-o, como um filme já visto e eternamente parado no mesmo cenário. Era uma paisagem morta, carregada de presságios, embora o rio cantasse lá no fundo.

Deitado na cama, o Lopes ficou a olhar o mapa que a humidade desenhara no tecto. É curioso decifrar os traços que o acaso escreve nas paredes. Um rosto, uma árvore, um rio sinuoso ou até um revólver homicida...

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Bateram à porta. Era o sargento da Guarda e o empregado do bar. Este, com a farda vermelha em desalinho, parecia um palhaço. Balançava o corpo como se estivesse numa corda, e passava o boné de uma das mãos para a outra, à espera que a primeira palavra vencesse o seu constrangimento. Por fim, lá adregou, sem grande convicção:

- Este é o senhor que viu o crime. Contou-o no bar...

- Diga lá, então - ordenou o da Guarda. Subiu-lhe pela espinha um frio repulsivo e pegajoso, enquanto o suor lhe salpicava o rosto. Sentou-se na cama:

- Bom... - começou, titubeante. - Eu não vi, propriamente. Mas há dias estava aqui nesta varanda...

As palavras atrapalharam-se na fivela reluzente do cinturão policial que lhe faiscava nos olhos. - Viu ou não viu?

- O senhor Lopes disse que viu o da mota dar um tiro no rapaz que estava sentado na ponte - arriscou o empregado.

- Vi, ou melhor, pareceu-me que vi, mas não foi hoje, foi na quinta-feira - disse o Lopes a perscrutar a

nublosa fronteira da memória.

O sargento bateu no chão com as botas cardadas de impaciência, o faro profissional a descobrir a presa:

- Conte lá então o que viu na quinta-feira.
O Lopes levantou-se e encaminhou-se para a varanda, como a fazer um reconhecimento. A multidão dispersara. Só dois guardas e a mulher de negro - viu agora que estava de negro - faziam ronda à ponte, onde

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o vulto da vítima era o grito de um fantasma acordado. As ideias zumbiram-lhe na cabeça. Parecia-lhe que sonhava, mas resolveu falar para se ver livre do sargento:

- Estava aqui sentado quando ouvi uma travagem brusca e vi o tipo da mota desfechar o revólver sobre o rapaz e depois pôr-se em fuga...

- É capaz de descrever a mota e o tripulante? - perguntou o sargento.

As ideias continuavam a atropelar-se no turbilhão da memória. Não sabia se relatava um facto ou uma premonição:

- Era uma potente mota vermelha e o tipo tinha a cabeça rapada.

O empregado arregalou os olhos e o guarda pareceu satisfeito. Deu uma palmada amigável no Lopes:

- Sei de quem se trata. Volto já! - e saiu com a fúria do investigador triunfante.

O Lopes deitou-se outra vez na cama. A cabeça pendia-lhe como asa ferida, enquanto a ponte balançava entre as duas margens do acaso.

Acordou com o sargento sorridente à cabeceira: - Prendemos o assassino! Já confessou o crime! - deu outra palmada nas costas do Lopes: - ainda bem que houve uma testemunha...

Lembro-me que olhei para o senhor Lopes com indisfarçada perplexidade, como se as rugas do seu rosto fossem as linhas sinuosas de uma fronteira impossível. E ainda hoje não sei se aquela história era real ou fantasiada. Não é do real que se alimenta a fantasia? E não é a verdade, tantas vezes, uma ilha descoberta pela ficção?

137A culpa foi da cabra

A carta do advogado zunia-lhe na cabeça como um chocalho aziago. E uma febre de vento suão oprimia-lhe o peito. A arrematação da Tapada fora marcada para a próxima W? feira e era necessário ir prevenido. A prevenção consistia em levar o dinheiro suficiente para o caso do prédio lhe ser adjudicado. Se não arranjasse o dinheiro, não se queixasse... João dos Santos dobrou a carta pelo vinco eloquente do texto, coçou a cabeça e ficou a ruminar o aviso peremptório que o obrigava a obter cem contos no curto prazo de três dias. Uma sombra funesta ofuscou-lhe o rosto como nuvem assomadiça sobre a eira do quintal em tempo de recolhimento.

- Raios partam a minha vida! - praguejou, compondo maquinalmente um tição da lareira.

Lá fora chuviscava. A mulher fazia a ceia e ia observando com olho doméstico a catadura do marido. Ao fim de trinta anos de vida em comum bastava-lhe uma breve mirada para ler os sentimentos do companheiro. Vira, primeiro, aquela nuvem a toldar-lhe o

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rosto quando iniciou a lenta leitura da carta, e depois, quando a dobrou, aquela tremura da boca a anunciar tempestade. E foi directa ao assunto com a sua rude ternura de camponesa:

- Parece que viste o demo, homem! Nunca te vi assim. Diz lá o que quer o advogado e não fiques para aí com essa cara de defunto.

Nas aldeias beiroas não é costume o marido partilhar com a mulher os negócios da casa. Há uma tradição, antiga como o mundo, que dá ao chefe de família o direito de mandar. A mulher obedece e cuida do lar. Se é o homem quem trabalha de jorna e tem a responsabilidade de aguentar a barca do casal, cabe-lhe assumir o comando. Quem tem o dinheiro, tem o poder. Sempre foi assim. João dos Santos sabe que lhe compete resolver o problema, desatar aquele nó de angústia, mas não tem o dinheiro de que precisa. Sente que o seu poder vacila. Já não é como os velhos carvalhos da Chousa que resistem a todos os temporais e continuam erectos e rijos. Parece uma cana débil da borda do ribeiro a tremelicar de medo. Por isso, resigna-se a confiar à mulher o seu tormento, com a secreta esperança de que ela lhe abra um caminho:

- É por causa da Tapada. Vai à praça na sexta-feira. O advogado diz para eu levar cem contos...

- Cem contos! Para quê? E onde vais tu arranjar tanto dinheiro?

- Não sei. Mas se não o arranjo, ficamos sem a terra!

A mulher atiçou o lume, como se espevitasse a

memória, e limpou as mãos ao avental. Os olhos luziram140

lhe de raiva e a boca contorceu-se num esgar.
- É bem feito! Eu bem te disse para não te meteres em justiçadas. Mas tu não quiseste crer, e agora aguenta...

O agricultor sentiu o azedume das palavras a

tosar-lhe o pêlo como um azorrague e, mais do que as palavras, aquela ira deslavada que parecia granizo em seara tenra. No seu íntimo, porém, reconhecia a razão da mulher, pois ela sempre o aconselhara a resolver amigavelmente o litígio com o irmão. Era mais palmo de terra, menos palmo - dizia. Se vais para tribunal, os advogados e a justiça levam-nos tudo. E olha que para nós, sete palmos de terra, chegam. Quem é pobre com

pouco se contenta...

Mas o João dos Santos não era homem para se deixar comer. Um palmo de terra nossa é um palmo da nossa honra, e a honra não tem preço nem medida. Quem cede um palmo, cede tudo, é como dar a mão e tomarem-nos o braço, ou dar o braço e tomarem-nos o corpo todo. O irmão não brincaria com ele. Se agora se agachasse, o outro cagava-lhe em cima. É sempre assim, quanto mais a gente se acobarda, mais os outros abusam. A terra fora doada a ambos pelos pais, em comum e partes iguais. Não havia marcos, mas a estrema sempre fora definida por uma linha recta tirada da ombreira norte do portão até ao muro das trazeiras. Nunca surgiram problemas, até que há uns quatro ou cinco anos o irmão plantou uma fila de videiras em plena linha divisória. Já nessa altura ele se sentiu melindrado, porque as boas regras de vizinhança mandavam que deixasse uma certa distância. À me141

dida, porém, que as ramadas se foram desenvolvendo, começaram, naturalmente, a invadir o seu terreno. Avisou o irmão, mas ele respondeu com um sorriso manhoso, que era mais palmo, menos palmo... Por isso, um dia ao apascentar a cabra regulou a corda de modo que ela pudesse alcançar as parreiras. O animal não precisou de ser ensinado para saciar a sua gula de folhas viçosas. Quando o irmão deu conta do desbaste, saltou-lhe à porta e aqui d'el rei que não tinha vergonha, que era .um ganancioso e que se não lhe pagasse o prejuízo tinha de sentar o eu no mocho, ou eu não me chame António dos Santos...

Insultado, assim, publicamente, à porta de sua casa, e intimado a pagar o que, em consciência, não devia, pensou que era melhor ser ele a recorrer a tribunal do que deixar ao outro a iniciativa. A mulher bem tentou dissuadi-lo, mas ele tomara uma decisão inabalável, não tanto por causa do palmo de terra, mas sobretudo pelo descaramento do irmão. Falou com o vizinho Tiago, que era homem sabido, pois andava sempre em demandas, e ele aconselhou-lhe o doutor Meirinho, um advogado de truz, que lhe punha tudo no são.

No dia seguinte, ainda a noite dormitava em todas as casas da aldeia, já ele pedalava a caminho da justiça no seu fato domingueiro. Foram duas léguas de cansaço e de expectativa. Era a primeira vez que trilhava esse caminho, e as vozes precavidas dos antigos, avivadas pela lenga-lenga da mulher, segredavam-lhe que quem vai ao advogado fica sempre tosquiado. Mas que havia ele de fazer? Agora tinha de encarar a situação, porque

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quem não se sente não é filho de boa gente, e vale mais um gosto do que três vinténs, também diziam os antigos

e o seu pai que Deus haja. O dinheiro é para as ocasiões.
O Tiago bem o avisara - olha que são preciso três coisas para ganhar uma acção: bico calado, pé ligeiro e dinheiro na mão...

Ainda hesitou à porta do escritório, a remoer o presságio da mulher, "olha que te vais arrepender, homem, nós não temos dinheiro para justiçadas". Mas era a sua honra que reclamava a protecção da justiça. Vão-se os anéis, fiquem os dedos...

O advogado ouviu, ouviu, e ainda ele não despejara o saco, já tinha a receita passada. Via-se bem que sabia da poda, como lhe garantira o Tiago:

- Você está coberto de razão. É metê-lo em tribunal, e já!

- O senhor doutor é que sabe. Por isso me vim aconselhar...

- É como lhe digo. Há toda a vantagem em você ir na frente. E o melhor que temos a fazer é propor uma acção de divisão de coisa comum. Como o prédio está indiviso, resolve-se a questão de uma vez para sempre e acabam as quezílias: o prédio é arrematado e fica para quem mais der. O outro recebe a sua parte em dinheiro...

Assim se fez. A acção percorreu todas as estações da via-sacra forense, a tentativa de conciliação gorou-se, qual dos irmãos o mais teimoso, o povo lá diz que são precisos dois teimosos para uma demanda, e traga mais tantos contos para preparos, até que foi, finalmente, marcada a arrematação em hasta pública.

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- Pois, amigo Santos, chegou a hora da verdade. Como o prédio não é legalmente divisível, vai ser vendido

em praça - confirmou o advogado.

- Quer dizer que eu tenho de comprar o que é meu? -,admirou-se o Santos.

- E como já lhe expliquei. Agora quem tiver unhas é que toca viola.

- E quanto será preciso gastar, senhor doutor?
- Depende. Você não disse que o prédio todo vale aí uns cinquenta contos?

- Sim, senhor doutor - respondeu o Santos, a

deitar contas à vida.

- Pois então, temos de licitar até esse valor, mas se o seu irmão cobrir o lanço e você quiser ficar com a

terra, tem de dar mais.

- ó senhor doutor, o que eu não quero é que o meu

irmão se ria de mim!

- Pois então, previna-se com o dinheiro. E vá descansado que eu depois escrevo-lhe.

Ainda não tinham passado quinze dias sobre esta conversa quando chegou a carta confirmativa. E agora ali estava ele, impotente e derrotado, a olhar as achas fumegantes da lareira, esperando que uma chama providencial lhe iluminasse o caminho da salvação. As suas

economias tinham-se evaporado com as despesas do processo. Podia arranjar vinte ou trinta contos se vendesse um pote de azeite e uns cântaros de vinho, talvez mais dez ou vinte se empenhasse o cordão da mulher... Porca de vida! O Tiago, a quem já sondara sobre a possibilidade dum empréstimo, desenganou-o logo, que tivesse paciência, também ele andava na

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justiça e todo o dinheiro era pouco. O outro irmão, com quem se fizera encontrado à saída da missa, fora ainda mais impiedoso, que isso eram guerras entre os dois e ele não tomava partido por nenhum... Resolveu então ir ao Banco. Nunca ali entrara, mas tinha lá um parente e talvez ele o pudesse ajudar... O homem foi simpático, mas declarou nada poder fazer. O senhor João não tem cá conta, o empréstimo tem de ser autorizado por Coimbra e demora uns dois meses, pelo menos. As portas que conhecia tinham-se fechado e ele sentia-se completamente perdido na imensidão do seu desespero,

como um mendigo acossado pela chacota do rapazio.

- Come ao menos o caldo - disse a mulher, estendendo-lhe o prato.

- Não tenho fome!
O rosto da companheira parecia agora mais sereno e os olhos retomaram a ternura solidária de antigamente. Estava sentada num banco raso, o prato pousado na mão esquerda, a colher repousando na quentura dos feijões, à espera que o homem se decidisse. Só depois dele começar a comer é que ela sentia apetite. Fora sempre assim. Até na comida o homem tinha de dar o exemplo. São gestos tatuados na alma, imponderáveis como um suspiro de amor, a mostrarem a plena dádiva da vida. São gestos de ternura, instintivos, como quando a mulher desnuda publicamente o peito para amamentar um filho.

- Tenho cá estado a pensar que há uma pessoa que talvez nos possa emprestar o dinheiro - disse a mulher, pousando-lhe amorosamente a mão no joelho.

João dos Santos abriu muito os olhos, como se

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descortinasse, finalmente, um ancoradoro no mar agitado dos pensamentos. A partilha das suas preocupações, por parte da companheira, era já um começo. E um sorriso de criança rasgou-lhe a boca.

- Quem? - perguntou ansioso.
- Pois muito me admira que não te tenhas lembrado. O senhor Diamantino...

- Lembrei, lembrei. Mas esse é rico e tenho acanhamento de lhe pedir.

- É rico, mas foste tu que lhe ajudaste a arranjar essa riqueza. De modo que se ele nos emprestar o dinheiro não faz favor nenhum...

O Diamantino era um próspero negociante de azeite e construtor, com prédios em Coimbra e Lisboa. Enriquecera na candonga e através de outros subterfúgios não menos ardilosos. Quando comprava grandes quantidades de azeite, sobretudo na Beira Baixa e no Alentejo, levava sempre o João dos Santos com uma missão secreta: colocar na última pia, depois do envazilhamento, um rato morto. Ao encher a derradeira medida, o Santos dava um grito de repulsa e exibia, perante a dorida surpresa do vendedor, o abjecto animal. O Diamantino fazia então a cena do costume: com largos gestos de desânimo, declarava que já não podia comprar o azeite, pois era um negociante sério e não queria enganar os seus clientes. Por isso, tinha de despejar os bidons e dar o negócio sem efeito, a menos que... _ A menos que? - perguntava ansioso o proprietário, a agarrar-se àquela vaga hipótese.

- Bem. Para não termos o trabalho de descarre146

gar, poderei ficar com o azeite para óleo. Mas por metade do preço, e já é um grande favor que lhe faço...

O outro concordava, a fim de salvar o possível, e o sevandija do Diamantino amealhava, assim, uma pequena fortuna em cada carga. A cena repetiu-se dezenas de vezes, sempre com a preciosa colaboração do Santos, até que um dia, ou fosse por causa do rato, ou por outra causa visceral, sentiu uma profunda náusea a revolver-lhe o estômago e pediu ao patrão que contratasse outro ajudante...

- Tiveste uma boa ideia, mulher. Vou já falar com o Diamantino - disse ele, engolindo apressadamente uma colher de sopa.

- Calma, João! Ceia descansado e amanhã cedinho vai lá. Agora já é tarde e o tempo está ruim.

No dia seguinte, mal o céu clareava, levantou-se tresnoitado e pôs-se a caminho. O outro morava no extremo da aldeia numa vivenda ajardinada, de altos muros circundantes. O tempo estava fresco, a ameaçar temporal. Março, marçagão apresentava a sua feia cara de cão. As nuvens, baixas e gordas, pareciam rolheiros de trigo pousados na encosta da serra.

Bateu ao portão como antigamente, três breves pancadas exploratórias a acordarem a manhã, mas só os cães rosnaram lá do fundo do pátio. Outras três pancadas, agora implorativas, a darem o sinal de urgência. Abriu-se uma janela do primeiro andar e foi como um sol que iluminasse a noite das suas preocupações: era o Diamantino em pessoa, a esfregar os olhos ensonados e a dar corpo à sua esperança.

Quando o dono da casa lhe franqueou o portão e o

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introduziu na saleta, sentiu que pisava terra firme apesar da suavidade da carpete. O amigo não podia negar-lhe o pedido. Depois das desculpas preliminares pelo incómodo àquela hora matutina, atacou directamente o assunto. Resumiu-lhe os incidentes da demanda e disse-lhe que precisava que ele lhe emprestasse cem contos para salvar a Tapada das garras do irmão. Tinha a certeza que o senhor Diamantino não lhe recusaria esse favor...

O outro ouviu-o em silêncio, o rosto frio como a manhã nascente, e quando ele terminou a prédica, tossicou e foi mais seco do que um vime estaladiço:

- Não te posso valer, João. O meu dinheiro anda todo empatado nos negócios. Se fosse daqui a quinze dias...

- Mas eu precisava para W feira...
- Pois é. Comigo não contes.
O agricultor sentiu um aperto no estômago, maior ainda do que, anos antes, experimentara ao sacar do rato morto do fundo da samarra. Não esperava aquela desfeita. E as palavras vieram-lhe sumidas pela náusea, numa tentativa desesperada de encontrar salvação:

- Não me diga uma coisa dessas, senhor Diamantino! Então já não se lembra do trabalhinho que eu

lhe fiz! Olhe que sempre fui seu amigo...

- Paguei-te a jorna bem paga e se não ganhaste mais foi porque te despediste - respondeu o outro enfadado, fazendo menção de pôr termo à conversa. - Agora, como te digo, não tenho dinheiro disponível.

- Arranje-me ao menos cinquenta contos, talvez eu consiga o resto...

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- Olha, João, vou-te ser franco. Ontem esteve cá o teu irmão, também tinha recebido uma intimação do advogado, e veio-me pedir uma quantia igual. Recusei porque sou teu amigo e não queria fazer-te mal. À minha custa não há-de ele arrematar o prédio.

- Ah, ele esteve cá?!
- Pois esteve, ontem à noite. E se recusei a ele, também to não empresto a ti. Arranjem-se lá como puderem, que eu não me meto nisso.

- Deixe lá, senhor Diamantino, que alguma coisa se há-de fazer - disse, resignadamente, ao despedir-se.

As nuvens, encavalitadas, deslizavam mansamente no horizonte pardacento e pareciam agora velhas mulheres desgrenhadas a catarem-se umas às outras. Um raio tímido de sol espreitava por detrás da feia carranca do inverno, como se anunciasse a aproximação da primavera.

João dos Santos parou à sombra imaginária de um carvalho, a enrolar um cigarro e a matutar na vida. Mesmo sem sol, as árvores são sempre um abrigo para as almas atormentadas. Tirou duas fumaças sôfregas e desenhou no saibro um risco com o tacão da bota, como se marcasse uma fronteira. E resolveu saltar o risco e passar a fronteira do ressentimento. Iria a casa do irmão. O dia começava a levantar-se nas chaminés da aldeia. O fogo dos lares é sempre uma promessa de vida renovada.

Deixou o caminho e tomou um atalho por entre os pinhais orvalhados da noite. A casa do irmão ficava no fundo da vereda. Também a sua chaminé já içara a bandeira débil da dejejua. O dia começava naquele lar.

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Bateu à porta, decididamente, como quem ousa o impossível. A cunhada espreitou da varanda, e ele viu-a afastar o lenço da cabeça, como se não acreditasse no que os seus olhos lobrigavam. _ Bom dia, cunhada. Venho falar com o meu irmão...

Ouviu-se um restolhar de passos indecisos, até que a língua da fechadura quebrou aquela expectativa e surgiu o irmão a abotoar a camisa. Ficaram frente a frente, como dois desconhecidos, a medirem a sua incredulidade.

- Tu, aqui, João! - admirou-se o outro, convidando-o a entrar.

- É verdade, António. Venho por causa da Tapada.

Entrou na cozinha, limpou a testa, passou a mão sobre a fogueira acabada de acender e disse numa voz de fogo brando:

- Estive cá a pensar, olha que nem tenho dormido, que temos de acabar com a justiçada, senão ficamos ambos sem a terra. É por isso que me pus a caminho e vim falar contigo...

O irmão levantou os braços à altura da sua perplexidade, e um sorriso infantil brilhou-lhe no rosto.

- Tu é que começaste. Mas cá por mim está bem.
- Pois fui, e tu sabes porquê. Mas agora pensei que o melhor é pormos lá os marcos e fica cada um com sua metade, como quiseram os nossos pais.

- O homem, nem sabes a alegria que me dás! Olha que também eu estava para ir falar contigo para acabarmos com o processo - e os seus braços voltaram a

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levantar-se como se desse graças a Deus. - Pois então vamos já ao tribunal e acabamos com a maldita questão!

- A culpa foi da cabra! - interveio a cunhada, feliz, a limpar uma lágrima de emoção.

João dos Santos deu uma risada, pura e cristalina como a água da fonte, a borbotar, intérmina, do chafariz do povo. Há muito que não sentia uma alegria assim. Uma paz de terra amanhada: qualquer colheita é sempre o fruto amadurecido do nosso dever.

- No próximo domingo vão jantar a minha casa - disse ele. Matamos o raio da cabra e fazemos uma festa de arromba...

151A última causa

O doutor Navarro subiu as escadas do Palácio da Justiça com o andar vacilante, a toga dobrada sobre a pasta, e devia ser esse novelo negro a roçagar-lhe o flanco que lhe adensava a sombra dos olhos cansados. Tinha sessenta e cinco anos e quarenta de advogado: uma vida perdida e encontrada na suave tortura do rodísio forense, onde uns grãos desaparecem na voragem e outros florescem no pão alvinitente da Justiça, mas todos vão deixando a seara exausta.

Pesava-lhe na pasta e secava-lhe a boca um volumoso processo de querela em que era arguido o seu velho cliente, o industrial Anselmo Crespo, pelo crime de fogo posto em casa habitada. Há anos que vinha pensando encerrar o escritório para se libertar daquela tensão permanente e gozar em paz os últimos anos. Mas a reforma era escassa e os modestos honorários que sempre praticou não lhe permitiam encarar a velhice com tranquilidade. O advogado esfalfa-se na defesa de interesses alheios, mas não cura, normalmente, do seu futuro. É como as desprotegidas flores campestres que

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1 . se comprazem com a própria simplicidade e se resignam às contingências da sorte, até que um qualquer temporal as arrasta e leva de enxurrada. Agora, porém, estava firmemente decidido a afastar-se da barra, essa mó trituradora que lhe branqueara os cabelos, sorvera a vida e cavara o rosto, porque a hipótese de um erro judiciário, a incerteza duma sentença, foi-lhe sempre uma espada suspensa sobre a cerviz, um muro espesso a emparedar-lhe a alma. Depois do julgamento viriam as férias judiciais e as férias definitivas para poder, enfim, respirar a vida e realizar alguns projectos que ficaram pelo caminho, como sombras de um tempo perdido.

Havia de escrever um livro sobre as suas vivências profissionais. Um livro que descarnasse os duros ossos do oficio e fosse, por isso mesmo, não o anedotário da vida forense, ou a sua crónica, mas uma alegoria, como um fundo suspiro o é da confissão apenas ciciada. Só o advogado conhece, verdadeiramente, o longo e tormentoso Rio Meandro da Justiça, porque só ele tem acesso aos escaninhos ocultos onde fervem os dramas, paixões e sentimentos dos seus figurantes. Por vezes, é mesmo o único interveniente da lide a tocar a verdade e a saber que ela lhe pode fugir qual pássaro migrante. A verdade é uma virgem ausente vestida com sete mantos de cores diferentes, e nenhum deles a desnuda, porque sob a última veste, a mais íntima, há ainda uma poalha translúcida, uma tortura de névoa, que é como um vento esquecido e cúmplice. Só o advogado tem o segredo de despir a ausência e desvendar os olhos cegos da Justiça...

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Esta devia ser, portanto, a sua última causa. Só aceitara o risco de terminar a carreira com um caso que atingia o gume da escala penal, porque o arguido era um

cliente antigo e dedicado, e também pelo facto de sempre ter considerado o risco como o ágio da toga, o timbre da sua nobreza. Nunca as dificuldades o amedrontaram. A dificuldade do processo é a profunda motivação do advogado que se preza, porque lhe enaltece o brio, ilumina a inteligência e aguça o engenho.

Neste caso, porém, o risco era duplo. O doutor Navarro sabia que o réu estava inocente, mas era extremamente difícil provar a verdade, despir essa virgem ausente, que às vezes capricha em evolar-se como a ilusão de um sonho. Com efeito, as testemunhas de acusação tinham visto o réu afastar-se da casa em chamas e esconder-se no pinhal circundante. Esse facto parecia tão concludente da sua culpabilidade, tão custosamente explicável, que só um golpe de génio, ou a asa da sorte, podiam salvar o Crespo. Era como se ele tivesse deixado no local do crime a marca indelével da sua própria assinatura. Acrescia que o réu estava de relações cortadas com a queixosa, viúva do seu antigo sócio, Raimundo Lopes, que fora assassinado com dois tiros de caçadeira em condições nunca averiguadas. O processo respectivo, então movido contra o Crespo, terminara com a sua imprevista absolvição, por se ter provado o alibi invocado pelo Meirinho, advogado de defesa. Mas a família da vítima nunca se conformou com o desfecho e começou a enviar ao Crespo cartas anónimas, ameaçadoras e insultuosas. E uma noite em que ele caminhava descuidadamente na azinhaga da

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fábrica, alguém o tentou atropelar atirando-lhe o automóvel para cima. Ao sentir os faróis assestados na ilharga e o ronco enfurecido do motor a pisar-lhe o encalço, como um touro possesso, o instinto ou a mão providencial do destino lançou-o para a mata e salvou-o milagrosamente. Ficou-lhe na boca o saibo azedo da derrapagem, e na alma o vinco terrível do pânico pela morte pressentida. Dois tiros secos, na sua direcção, confirmaram-lhe que estava a ser perseguido. Conheceu o carro, mas não havia vivalma nas redondezas. E o atentado resvalou para a vala comum da impunidade. Até que...

Até que, dias depois, não podendo aguentar mais aquela aflição, contou o episódio ao filho, com o único propósito de aliviar o nó que lhe apertava a alma. O rapaz ouviu, coçou a cabeça, deu um murro na mesa e concluiu que se eles queriam guerra, iam agora saber com quem lidavam.

- Mas eu nem sequer conheci o condutor! - disse o velho a apaziguar o ódio que lucilava nos olhos do filho.

- Deixe comigo! Uma noite destas, lanço fogo à casa. Juro-lhe! _ Não estragues a tua vida e a minha, rapaz! Por amor de Deus!

O Crespo passou então a vigiá-lo com o receio de que levasse por diante tal desígnio. E quando parecia que o filho já se esquecera do temeroso juramento, notou que, uma noite, ele se levantou e saiu de casa com passos leves de clandestino. Teve um pressentimento e vestiu-se à pressa para lhe seguir o rasto. Era uma noite densa e conivente, e só uma brisa cálida servia de

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testemunha à corrida alucinada dos dois homens: um a arder no ódio da vingança, e o outro a tentar chegar a tempo de apagar aquele fogo. Mas, infelizmente, chegou tarde. Quando alcançou as traseiras da casa da viúva, já as chamas engoliam o palheiro anexo. Ia a gritar, a

pedir socorro, mas um alarido calou-lhe a boca. Correu a refugiar-se no pinhal. Foi então que dois homens, que passavam por acaso, o viram e deram o alarme...

- É uma situação trágica - disse o doutor Navarro, quando o Crespo e o filho lhe relataram os factos. - Você vai ser incriminado e só pode salvar-se se contar a verdade. Mas se contar a verdade é o seu filho quem é condenado...

- Prefiro ser eu a assumir a responsabilidade - declarou o Crespo.

- Mas eu não permito! - protestou o filho. - Se alguém deve ir para a cadeia, sou eu!

Navarro alisou as cãs e acendeu um cigarro de tréguas. Estava numa encruzilhada. Como tantas vezes acontecera, a sorte dos clientes poderia depender do caminho escolhido. Começou a pensar em voz alta:

- Acredito na Justiça, apesar de tantas desilusões. Nunca tive um caso em que um inocente fosse condenado. Por isso, parece-me que o amigo Crespo não deve denunciar o seu filho.

- Nunca o faria, senhor doutor!
- Além disso, mesmo que o denunciasse, ou ele próprio assumisse a autoria do crime, nada nos garante que o senhor seja absolvido, pois há duas testemunhas que o viram no local e o reconheceram. Poderia parecer um truque de defesa...

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- Estou de acordo, senhor doutor. E acho que me

devo apresentar às autoridades antes que me venham prender...

- De modo nenhum! Você está inocente e deve negar o crime, embora não possa recusar que esteve no local. Mas não lhe é humanamente exigível acusar o seu próprio filho!

- E se o meu pai for condenado? - objectou o rapaz.

- Confiemos na Justiça. A verdade acabará por vencer...

O Crespo pousou a mão insone sobre a fiada de códigos da secretária, como se tacteasse a lei. O relógio da matriz batia as quatro horas. @ qual é a pena, senhor doutor?

E igual à do crime de homicídio por que você já respondeu. Mas não pense nisso - acrescentou o advogado, a afastar um mau presságio.

Seria esse pensamento negativo que agora lhe entorpecia as pernas e oprimia o peito, ao subir as escadas do Palácio da Justiça e ao ver a viúva com os olhos inflamados, como se viesse ajustar contas antigas.

A sala de audiências estava apinhada como nos grandes dias. Pousou a pasta, vestiu a toga e foi dar um abraço de conforto ao réu, sentado no mesmo banco corrido que conhecera anos antes. Um ruflar de vozes cativas pela austeridade do cenário rompia aquele silêncio expectante, e era como um fio de baba a escorrer das paredes. À cabeceira da sala, sobre a bancada dos magistrados, um painel monumental tentava retratar a Justiça. Era um quadro abstracto onde as cores (sete?)

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se combinavam numa orgia alucinante. Talvez o artista quisesse simbolizar a urdidura complexa dos sentimentos humanos, ou os vários caminhos da descoberta da verdade. Olhando, porém, com atenção, via-se emergir do magma uma figura opalina de mulher levantando uma espada branca, resplandecente, que tocava o céu,

e um braço togado, impetrante, que tocava a terra, figurada em duas personagens estilizadas no fundo da composição.

- Calma, amigo Crespo, tudo há-de correr bem! - disse o advogado.

- Deus o ouça, senhor doutor. Deus o ouça!
O julgamento desenrolou-se como estava previsto.
O réu negou de forma categórica e convincente. As testemunhas de acusação confirmaram os depoimentos prestados nos autos, reconhecendo, a instâncias, não poderem garantir ter sido o Crespo a atear fogo. As de defesa abonaram o exemplar comportamento do réu e a inadequação do seu carácter à prática do crime. O Ministério Público pediu a costumada Justiça, e o doutor Meirinho, representante da assistente, no seu estilo teatral, impetrou a severa cominação da lei, na lógica írrefragável dos factos provados. Finalmente, o doutor Navarro fez uma defesa lúcida e serena, procurando desarticular os indícios factuais, analisando detidamente o conceito jurídico de casa habitada, enaltecendo a personalidade do réu e concluindo pela sua absolvição em preito da verdade e da Justiça, que ele próprio garantia com a idoneidade do seu aval, certo como estava da inocência do seu constituinte. E como devia ser o último julgamento, pois chegara a hora de

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depor a toga ao fim de tantos e atribulados anos, para recuperar a saúde abalada e auferir a paz a que também tinha direito, gostaria de dizer breves palavras de despedida. Fazia-o com a consciência plena de sempre ter honrado a profissão. Nobre e difícil profissão, porque a vida de advogado é uma cadeia de cumes e baixios, varrida pelo vento agreste da incerteza e do risco, às vezes até, da incompreensão. Por mais que lute e labute, por mais dedicação que ponha na demanda, o seu

resultado depende sempre, em última instância, da contingência da prova e do critério falível dos juizes. E se estes, mesmo que errem, podem ficar de consciência tranquila, porque se limitaram a aplicar a lei aos factos provados, o advogado quando perde injustamente a

causa fica sempre mortificado pela dúvida de ter falhado, mais do que o médico a quem o doente morre nos braços, porque, também neste caso, a morte é lei natural e não um facto humano. São os ossos do ofício, as

pedras aguçadas do caminho, e que não podemos atirar para trás das costas porque se transformariam, como

sucedeu a Deucalião, filho de Prometeu, nas almas penadas da nossa memória...

Quando terminou as suas alegações, com uma

despedida emocionada aos colegas, magistrados e funcionários, o doutor Navarro sentiu um aperto no

estômago, uma náusea profunda e visceral, como se um

escalpelo invisível lhe rasgasse as entranhas. Caíram-lhe dos olhos duas lágrimas ardentes.

Os juizes retiraram-se e Navarro acolheu-se à sala dos advogados para aguardar a decisão. Estava exausto e deixou-se afundar num sofá. Começava agora o su160

.1,~,plício da espera, esse tempo longo e pesaroso como uma viagem de destino incerto, que sempre fora para ele o cabo das tormentas profissional. Acendeu um cigarro. A tarde escoava-se no indefinido rumorejar da Praça, e a noite anunciava-se na penumbra que subia nos seus olhos. Quem espera, desespera. Mas não há angústia como a do advogado que espera uma sentença e sabe que ela só pode ter um sentido para ser justa. Quando o réu é culpado, mesmo que não confesse o crime, qualquer decisão realiza o seu fim natural: se é condenatória, decorre logicamente dos factos provados; se é absolutória, resulta logicamente dos factos não apurados. Mas quando o advogado conhece os factos e sabe que só a absolvição salvará a honra da Justiça, que é irmã gémea da Verdade, a simples hipótese dum erro judiciário fá-lo mergulhar nas águas ferventes do desespero. Muitas vezes lhe aconteceu passar por essa provação infernal. Mas este era um caso extremo, e o espinho da dúvida tocava já o cerne do seu ser, como as sombras da noite anunciada tocavam já o derradeiro minuto da tarde que fugia. Ele confiava na Justiça...

Acendeu outro cigarro. O fumo é como a remota memória da vida, rasto de cinza e névoa dum fulgor transitório. Há quarenta anos, nesta mesma comarca: milhares de processos, os êxitos e as decepções, e sempre a mesma rebeldia da toga e a mesma fé na Justiça, que apenas se engana quando os homens a traem. Diante dos seus olhos cansados desfilam figuras e acontecimentos recortados pela luz retrospectiva da saudade, que era já um sino a notificá-lo da partida...

Ainda o tribunal estava instalado no velho edifício

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da Câmara, o escrivão era vesgo, falava com a cara à banda e eu nunca sabia se olhava para mim ou para o vizinho. Havia também um oficial de diligências com a

voz rouca e galopante dos antigos sargentos, que se

perfilava à porta da sala de audiências, e logo que o juiz entrava, solene e majestático, bramia lá no fundo o seu vozeirão de caserna, "alevantem-se!", e a assistência erguia-se de um salto, esporeada pelo grito imperativo. Eu, confesso, descolava apenas o rabo do assento, porque sempre me soaram falso as vozes tonitroantes de comando. Uma vez, o meu constituinte ficou sentado, pobre homem, vestido com uma camisa de riscado e um negalho a apertar-lhe as calças largas, e o juiz que era

presunçoso como um príncipe consorte, quis logo ali julgá-lo por falta de respeito ao tribunal. Foi preciso chamar o Delegado de Saúde para atestar, sob juramento, que o réu era surdo. "Mas não é cego!" - vituperou o insigne guardião do templo. "Devia ter seguido o exemplo dos outros!". Mas como, senhor doutor juiz, objectei com um gesto remissivo. Os outros estão todos atrás dele, e até o exemplo de vossa excelência não servia, porque já estava sentado...

O falecido doutor Policarpo, que trocou a magistratura pela advocacia para não ter de aturar os advogados, e depois trocou a advocacia pelas Conservatórias para não ter de aturar os juizes, é que me ensinou que aos julgadores, nem sorrisos nem rancores. Eles fogem dos advogados como o diabo da cruz, porque não sabem que essa cruz é que disfarça as suas fraquezas. Os litigantes frustrados viram-se, quase sempre, contra o advogado e nunca contra o juiz...

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E havia também o padre Guilherme. Atarracado e untuoso, com seus passinhos levitantes e seu sorriso a brilhar no rosto seráfico, sempre de sotaina, tinha adquirido, por usucapião, a liberdade de interromper os julgamentos para cumprimentar o juiz. Como a tribuna era alta, porque a tradição impunha aqueles dois palmos de carpintaria acima da bancada dos advogados, a alva cabeça ficava-lhe ao rés da glória, e o conspícuo magistrado tinha de se levantar para corresponder à saudação e responder às palavras de circunstância. Só mais tarde é que me apercebi do objectivo da intrusão e daquele ritual. Monsenhor passava por ter grande influência nas Justiças, e os paroquianos aflitos pediam-lhe que desse uma palavrinha ao meretíssimo. Ele simulava a recomendação em plena audiência para os protegidos ficarem cientes da sua actuação. "O juiz já está tocado", pensavam eles ao verem-no sair com um sorriso pendurado e ostensivo ... Até que um magistrado iconoclasta desmascarou o logro. Ia o reverendo muito gaiteiro a deslizar na direcção da tribuna, no seu passo de freira malhada, a piscar os olhos solertes, quando sente os pés atados por uma voz inapelável: acabaram-se os cumprimentos, senhor abade! Fique sabendo que há várias formas de mentira, e a pior delas é vir aqui para enganar os crédulos...

Nesse tempo havia dois advogados na comarca, que disputavam entre si a primazia. Eram amigos, mas guerreavam-se nos julgamentos como dois galos ariscos. A assistência delirava com o espectáculo. Constava que tinham uma lista das causas ganhas e perdidas, como os jogadores de cartas. Num processo impor163

tante para o seu prestígio, por envolver duas famílias gradas da terra, um dos advogados exibiu, à última hora, o parecer dum sapiente Mestre de Coimbra, como quem desfolha um argumento fulminante. Colhido de surpresa, o colega não se deu por achado, abriu a pasta, sacou dum grosso dossier e começou a citar, em abono da sua tese, a lição de dois consagrados Mestres italianos, autores da legislação onde a norma interpretanda fora beber o seu conteúdo. Ganhou a causa. E quando mais tarde o corregedor lhe pediu o Tratado onde colhera aqueles preciosos elementos, a fim de anotar o seu código, respondeu com descarada desenvoltura que a citação era falsa...

- Mas isso não é próprio dum advogado que se preze! - agastou-se o corregedor, ao ver-se apanhado no ardil.

- Garanto-lhe que não queria enganar o tribunal, mas apenas dar troco ao meu colega.

- Troco?! - admirou-se o corregedor, pensando nas notas falsas daquela cantiga.

- Pois. Vossa excelência já pensou no que diria a assistência se eu fico calado, depois do meu colega ter feito figura citando um professor da Universidade!...

Anos mais tarde, já o Palácio da Justiça tinha sido construído, havia o porteiro Gustavo, sempre abotoado no orgulho da sua farda azul, e o mondongo do Canada, sempre a arrastar-se, com a barbela do saquitéu das esmolas a escorrer-lhe do pescoço. Faziam parte da mobília da casa como o grande mural do átrio ou o eco dos passos perdidos dos litigantes. E havia o velho Serafim do Adro, por alcunha, o "olheiro", porque via

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tudo o que se passava na sua aldeia, e vivia de ser testemunha profissional a troco do almoço e dajorna do ofício. Quando alguém precisava dum depoimento falso, era a ele que recorria, pois o homem estava sempre disposto a jurar por Deus que vira tudo, muito bem visto, com aqueles olhos que a terra havia de comer...

Também ele fazia parte da mobília, porque era

raro o julgamento de vizinhos em que não interviesse, depondo com a convicção emprestada de todos os mercenários. Uma vez tive-o como testemunha da parte contrária num processo de ofensas corporais em que o meu constituinte acusava o réu de lhe ter arremessado várias pedras que lhe provocaram graves lesões. O réu alegava legítima defesa por o queixoso ter empunhado uma navalha e correr para ele em manifesta disposição de o atingir. O Serafim confirmou a tese do réu, "eu vi, senhor doutor juiz", e eu senti que a acusação naufragava, porque o juiz era novo na comarca, não conhecia o "olheiro" e estava a acreditar na trapaça. Requeri a acareação com o meu constituinte para desfazer a maranha, mas, surpresa minha, o queixoso reconheceu que, efectivamente, tinha empunhado a navalha! Às vezes até os mentirosos dizem a verdade, como os ponteiros dum relógio parado, que têm razão duas vezes por dia...

E, entretanto, o Meirinho abriu escritório na comarca. Trangalhadanças do foro, cosendo e descosendo a lei e os factos à medida dos seus interesses, citando a despropósito e alegando para a plateia, talvez por saber que os juizes já não o ouviam, ganhara, mesmo assim, a fama de espertalhote e lutador. Há gente que gosta

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dos charlatães, porque vê neles o seu retrato em negativo à espera do banho revelador da própria cara. Para certas causas, certos advogados! Por isso o procuravam quando os outros enjeitavam o patrocínio, ou quando só a batota podia suprir a falta de razão. Foi o que aconteceu com o Crespo no outro processo. Ainda agora usara de tramóia ao fazer com que uma testemunha insinuasse que viu o réu a sair do palheiro, quando, é certo, ele apenas se acercara do local. Aliás, a sua intervenção neste processo era eticamente discutível, pois já representara o Crespo contra a viúva e agora jogava no invés. E um dia não me contive:

- Então você sente-se à vontade para acusar o Crespo depois do que se passou no outro processo?

- No outro processo defendi-o porque o colega não quis. Agora acuso-o e o senhor doutor defende-o. Onde é que está o mal? - Você está sempre na posição errada. Da outra vez o réu era culpado e agora está inocente...

- Bem sei que era culpado, mas safou-se. Arranjei-lhe um alibi...

A razão, meu velho Navarro, e esse teu apego à ética, fizeram de ti um abencerragem. Quando eras novo pensavas que ias salvar o mundo, defendendo os pobres e os justos, mas não sabias ainda que a lei é feita pelos ricos e que os fracos só têm razão quando os outros se distraem. Vá lá, não exageres! Também floriram rosas no teu caminho e recebeste a gratidão de muitos clientes. Agora estás no fim. Dobra-te o corpo essa carga de tantas frustações. Foste impotente e porfiaste. E certo que olhas para ti com a serenidade dum peregrino

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que tangeu as paredes do templo e só não entrou nele porque havia a rodeá-lo uma muralha intransponível. Voltarias a fazer a mesma viagem, apesar do martírio da jornada. Nenhuma profissão é mais desgastante do que a de advogado, pois é sempre acidentado o percurso da demanda, e sempre incerto o seu resultado. Mas também poucas são tão nobres e humanas: além de defender o direito, a honra, a liberdade e a fazenda dos seus constituintes, por vezes só o advogado sabe dar-lhes a palavra solidária que a sociedade lhes recusou...

O oficial vem cortar-lhe o devaneio, e ele levanta-se de olhos vacilantes e uma opressão no peito, como se tivesse acordado dum sonho mau.

- Os juizes estão à espera. Vai ser lida a sentença. A sala regurgita. Trajada do negro das vestes, com as luzes dos candelabros e os olhos avocantes da assistência a pigarrearem sobre o silêncio tenso, espera o momento da verdade.

O corregedor começa a leitura com a voz monocórdica dum pregoeiro cansado. Interrompe-se frequentemente para aclarar a fala e retocar o texto. Resume a querela e a defesa, e ataca os factos questionados, agora com a desenvoltura dum oficiante apressado. Faz uma pausa, e a pronúncia sai-lhe arredondada e solene para significar que se aproxima do vértice, ou do vórtice daquele drama: "Provado ficou, pois, que o réu Anselmo

Crespo, na noite referida nos autos, lançou voluntariamente fogo a um anexo da casa de habitação da assistente, com o propósito de a incendiar, bem sabendo que..."

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O doutor Navarro sente que aquela opressão no

peito é agora um círculo de fogo a esganar-lhe o coração. Levanta a mão num gesto desesperado de protesto, mas o braço afunda-se na lenta negrura da toga. O corpo cai-lhe pesadamente na secretária como uma pedra descarregada do céu. Morreu de enfarte fulminante no

preciso momento em que o magistrado ia a cominar ao réu a pena de dez anos de prisão.

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Pôst-Scriptum

O doutor Navarro morreu. Sucumbiu na sua trincheira como os soldados de Esparta no desfiladeiro das Termópilas, deixando nela o sulco agrilhoado da fidelidade a um juramento. O homem vive a tentar enganar a morte, e essa é a luta onde desaguam todos os combates. É por isso que presta culto aos deuses e às artes. A morte está sempre à espreita da mais ínfima oportunidade para sepultar a vida e ludibriar o homem.
O gesto dos espartanos, como o gesto desesperado do doutor Navarro, redimiu a sua morte. Porque o cumprimento do dever é o único caminho da salvação. E a morte nada pode contra os justos, os que são fieis a si próprios

e ao seu dever, pois eles serão eternamente credores da vida.

Não choro, por isso, o doutor Navarro, um dos últimos abencerragens do foro, homem sensível e justo e, portanto, sábio, embora lamente que a vida não lhe tenha permitido escrever o livro anunciado. Ou, quem sabe, talvez o fim que escolheu, ao morrer calado e em pleno combate, seja a melhor alegoria das suas "vivên169

cias profissionais". Porque a morte também não é a crónica da vida, mas a sua parábola. A única parábola que a vida entende. E o silêncio é a eloquência do desejo...

O advogado tem várias vidas, a sua e a dos seus representados, às vezes, apenas estas, porque a sua vai

estiolando como um livro fechado. Mas é a dar-se aos outros por inteiro que o advogado se encontra como profissional e como homem. Dar-se até ao limite da sua

ciência e da sua sinceridade. Para quando folhear o livro que ficou por escrever, possa descobrir, finalmente, na

brancura imaculada das suas páginas, a alma redimida da toga.

Estou sentado à secretária do doutor Navarro e é como se estivesse ajoelhado diante dum altar. Este escritório é um templo, e sei que ele nunca o profanou. Foi sempre um fiel servidor da Justiça e nunca deu guarida a interesses mesquinhos. Todos os que aqui vieram afirmar a sua razão, tiveram sempre, independentemente da sua condição social ou económica, a palavra avisada, o justo conselho e o gesto solidário que procuravam.

E estou aqui, porque a viúva convidou-me, como antigo estagiário do Mestre, a continuar o escritório. Pesada e irrenunciável herança, que espero honrar, mas que não posso receber a benefício de inventário, pois tenho a ambição secreta de pagar a sua única dívida: escrever um livro sobre o drama da profissão forense.

Descanso os olhos comovidos nas velhas estantes e na fiada de códigos da secretária, onde as lombadas,

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batidas pelos anos, são as notas vivas de uma sinfonia sempre incompleta. O meu pensamento queda-se no mobiliário modesto, num óleo antigo, na Declaração dos Direitos do Homem e na máquina de escrever, agora muda como um retrato esmaecido. E é como se dialogasse com o Mestre...

Os pequenos adereços da secretária - a estatueta da Justiça, o cinzeiro de barro regional, um livro de poemas e o pisa-papéis com a pomba branca da paz a ensaiar o voo do futuro - assumem uma dimensão irreal, e são como o eco, progressivamente acordado, da voz do meu antigo patrono. Penso no seu exemplo e sinto-me diferente, como se a minha alma mergulhasse nas águas profundas daquela humanidade. Quem sabe se, um dia, eu poderei vestir a sua velha toga... "Tenho outra dívida, meu caro", disse o doutor Navarro. "Pesa-me a consciência de ter proposto, há uns dez anos, uma acção de despejo com fundamento na falta de pagamento das rendas, e de ter deixado sem lar uma família pobre. Vim depois a saber que o inquilino não pagava a renda por absoluta impossibilidade..."

- E a lei - contrapus. O advogado nada pode contra a injustiça concreta da lei. Além disso, é preciso não esquecer os legítimos interesses do senhorio... "O advogado deve sentir-se mais comprometido com a Justiça do que com a lei. E em casos como este, deve recusar o patrocínio, como forma de protesto moral e acção pedagógica para alterar a lei. Sendo o direito à habitação um direito natural e um imperativo constitucional, a renda deveria ser assegurada pelo Estado enquanto se verificasse a impossibilidade do inquilino

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em pagá-la. Só assim se garantirá o equilíbrio entre os

dois direitos..."

- Lá chegaremos um dia, quando a lei for ajusta expressão da consciência colectiva esclarecida - disse eu. @@E eram só vinte contos! O homem veio aqui e

disse-me que estava desempregado e não tinha, sequer, dinheiro para dar de comer aos filhos. Nunca me hei-de esquecer do seu nome: chama-se Josefino Miranda...".

A empregada bateu à porta. Três pancadas firmes, espaçadas, como um recado secreto:

- Está ali um antigo cliente do doutor Navarro, que insiste em falar com o senhor doutor. Parece que o conheço...

Era um sujeito alto, arruivado, com um blusão de cabedal e ar de estrangeiro. Parecia ansioso por entregar a carta a Garcia:

- Quero pagar uma dívida ao doutor Navarro. Vim logo que soube da sua morte...

E contou que há cerca de dez anos, o Mestre lhe emprestou vinte contos para se afiançar. Estava na

iminência de ser preso e não arranjava fiador, nem o

dinheiro. Não tinha família, nem amigos. Foi então que o doutor Navarro o ajudou, emprestando-lhe essa quantia e defendendo-o no processo. Mas a fiança foi quebrada, porque ele, com medo da cadeia, escapou-se para França. Vinha, pois, saldar essa dívida moral e pecuniária...

Descobri o processo no arquivo, lembrava-me, aliás, vagamente do caso, dos meus tempos de estagiário, mas

não havia qualquer anotação do facto. O homem, porém,

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teimava em pagar, porque, dizia ele, além de ser um dever, queria também prestar homenagem a quem tinha confiado em si.

- Duzentos contos está bem, senhor doutor? - e

um sorriso de gratidão iluminou a tarde, como se um pássaro de fogo lhe tivesse pousado na negrura do blusão.

Respondi que devia apenas os vinte contos, pois o

escritório não cobrava juros e não havia no dossier qualquer menção a honorários.

- Mas a desvalorização da moeda! A quantia de duzentos contos corresponde à que o doutor Navarro me emprestou há dez anos...

- Sendo assim, está bem. Quando o homem saiu, contente por ter cumprido um dever, pedi à empregada que me descobrisse a acção de despejo contra um tal Josefino Miranda. Talvez eu ainda pudesse atenuar a dívida...

- Lembro-me bem deste processo! O doutor Navarro ficou muito amargurado com o caso, porque os réus foram despejados e não tinham para onde ir - disse a empregada.

Conhece o Josefino? É o cauteleiro. Vive numa velha barraca nos subúrbios. Coitado...

Folheio o dossier e penso no homem que vende ilusões em cautelas e nunca foi bafejado pela sorte. Talvez agora o faça sentir que há ainda uma nesga de esperança por onde se pode olhar a vida...

- Desconte este cheque e entregue o dinheiro ao

Josefino. Deve chegar para uma barraca nova...

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A empregada sorriu comovidamente. "Fizeste bem", disse o doutor Navarro. "Vejo que posso confiar em ti".

- Obrigado! - respondi mentalmente. - Fiz isto porque a uma boa acção deve corresponder outra boa acção. Foi o senhor quem mo ensinou e foi o emigrante quem agora mo veio recordar... "O emigrante foi a forma que eu encontrei para te enviar este recado", disse o doutor Navarro.

Termino o meu primeiro dia no escritório. Arrumei os processos e anotei as diligências marcadas. Amanhã serei outro em busca de mim próprio. Sei que o Mestre me continuará a falar através do silêncio da sua presença adivinhada. Só tenho um problema: no fundo duma gaveta da secretária, guardado como uma carta de amor, encontrei um caderno de capas verdes, que agora me queima as mãos e os olhos. É o embrião do livro prometido - notas avulsas, esboço de contos e... alguns poemas. Não sabia que o doutor Navarro também era poeta! "Poeta é, etimologicamente, aquele que faz. O verdadeiro poeta é o que tenta fazer um mundo melhor", disse o doutor Navarro.

- Que farei com este caderno? - pergunto-me atormentado. "Queima-o e lança as cinzas ao vento. Alguém captará a mensagem, porque as cinzas dum homem são os seus actos. E eles serão a memória da vida", disse o doutor Navarro.

- Não! Este caderno pertence-me! Talvez um dia eu possa escrever o livro anunciado - disse o narrador.

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