quarta-feira, 17 de julho de 2013

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Ossos Verdes - A Guerra da Amazônia
Etros Adaluza
Ossos Verdes A Guerra da Amazônia

Direitos reservados da edição digital à Editco Comercial Ltda.

Copyright (c) by iEditora 20001

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Jiquitaia O dia estava particularmente quente. Um sol desavergonhado ungia, desde as primeiras horas daquele sábado, quase toda a costa oeste dos Estados
Unidos. Após semanas, internado em áreas de selva, acompanhando treinamentos militares, o Major Flening Stark estava de folga. Como de costume, seus dias
de dispensa estavam sendo gozados na comodidade de um hotel à beira mar. Diferentemente da grande maioria dos companheiros de trabalho, Flening não possuía
uma família ou alguém para quem retornar ao

final das missões. Abandonado nas docas de um supermercado de subúrbio com apenas poucos dias de nascido, morou até os três anos em orfanatos. Sua sorte
ensaiou mudar quando

foi adotado por um casal de classe média. Com os pais adotivos Flening conheceu carinho, afeto e, também, recebeu o incentivo para, desde muito cedo, seguir
carreira como militar. Harshey, pai adotivo de Flening era

Sargento do Corpo de Fuzileiros Navais. Homem de poucas palavras, militar de muitas condecorações, ele teve os testículos arrancados por estilhaços de granada,
durante uma operação militar, quando ainda jovem. Fato

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que, anos mais tarde, levaria ele e a sua esposa às portas de orfanatos em busca de uma criança para adoção. Quis o destino que os pais adotivos de

Flening vivessem pouco. Seu pai não retornou com vida de um treinamento realizado no Panamá, segundo o governo a causa morte foi malária. O caixão chegou,
trazido em aeronave militar, já lacrado, e assim foi sepultado. Sua mãe, que jamais se conformara com a perda do companheiro, definhou em vida. Mergulhada
na amargura, inconsolável, da saudade, veio a falecer no ano seguinte. Deixando Flening, então cursando o primeiro ano da Academia Militar, novamente órfão.
No hotel onde Flening estava hospedado, o vai e vem de mulheres bonitas, em diminutos trajes de banho, era intenso, convidando os olhares dos hóspedes
presentes ao parque

d'águas. Sentados em confortáveis espreguiçadeiras, dispostas em torno da piscina, ou de pé, com drinques à mão ou não, homens e mulheres empenhavam- se
em fazer daquele um dia diferente para suas vidas. Flening estava deitado em uma das espreguiçadeiras, próximo ao bar. De sua

posição era possível acompanhar toda aquela movimentação. Perto dali, um jovem se exercitava nas barras paralelas. O rapaz aparentava ter uns

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vinte anos, parecia completamente concentrado na execução dos movimentos. Fingia não ouvir os gracejos disparados por um animado grupo

de moças, vizinhas ao local escolhido por ele para exercitar- se. Observando aquela cena, o major recordou do seu tempo de Cadete, em West Point. À época,
a invejável condição física, tão necessária ao bom desempenho de suas futuras atividades, faziam do então cadete

Flening um objeto de desejo, cobiçado pelas mais belas jovens da cidade. Naquele tempo, parecia ser um enorme desperdício de oportunidades, qualquer romance,
qualquer envolvimento que durasse mais de uma semana. Aos poucos, os olhos abertos deixaram de recolher imagens do mundo exterior. Uma a uma, surgiram
lembranças de rostos e detalhes das muitas mulheres com quem Flening dividira momentos de vida até ali. Algumas das recordações surgiam como pinceladas
de prazerosa nostalgia, daquelas próprias às causas bem resolvidas. A surpresa do toque suave de lábios femininos junto aos seus, retirou, imediatamente,
o major das águas serenas do

mar de recordações. Alguém lhe roubara um beijo. Ao retornar de suas lembranças, Flening, por fim, notou a presença do alguém que acabara de tocar- lhe.
Reconhecer o par de

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diamantes azuis e o contorno suave daquele sorriso, quase moleque, da loura que agora estava inclinada sobre sua cadeira, fez Flening também sorrir. Era
Kate de March. Uma jovem que conhecera durante um vôo para o Brasil. Com aquela linda comissária de bordo Flening

viveu a experiência amorosa de sua vida. A maior, a mais intensa, a melhor e a única acesa até hoje. As lembranças do corpo bem torneado, quente e macio,
de Kate a banhar- se junto ao

seu, sob a luz da lua, nas águas, calmas, da Lagoa de Araruama, litoral norte do Estado do Rio de Janeiro, por vezes se repetiam, para Flening, em longos
sonhos. Aquela mulher, doce e inteligente, o havia levado a descoberta de sentimentos maravilhosos. Amor , desejo e

saudade. Para Flening, Kate, nem de longe, poderia imaginar qual o verdadeiro motivo das constantes idas e vindas suas ao Brasil. Evitando constrangimentos,
para ambas as partes, o major fez uso de uma consistente

história cobertura, mas ele sabia que tal conjectura o impediria de manter um relacionamento afetivo mais profundo. Pelo

menos, por hora. Este contratempo na vida sentimental, apesar de lamentável, não suscitava maiores questionamentos. Flening entendia que o peso

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do compromisso e a seriedade da missão hora assumidos e encarnados por ele valiam a postergação de necessidades pessoais. O sentimento para com o dever
tornava- o

suficientemente forte para ocultar, nas profundezas de sua alma, aquele amor . - Por onde tem andado Flening ? Minhas amigas disseram que tem ido à Manaus
? - Primeiro eu quero saber o quê você , minha princesa dos céus , está fazendo aqui ? Não sabia que voava para a costa oeste. Que surpresa boa! - Acho
que o destino me deu outro presente. Vim de férias, que por sinal estão

quase terminando. Vim conhecer as badalações da costa oeste de seu país. Lá no fundo, eu queria mesmo era te ver novamente, Flening. Algumas horas mais
tarde, Flening sentia novamente o calor e a maciez do corpo de Kate junto ao seu. Com um louco vaivém de quadris, Kate cavalgava, em ondas de prazer, sobre
o

corpo musculoso do Major, que se detinha ao prazer de acariciar, com breves mordiscadas, os seios rosados e rijos de Kate. Após momentos de gozo e sussurros
espargidos, os dois deitados, lado a lado, com os corpos suados trocavam olhares de paixão. Ensaiavam um delicioso estudo do terreno conquistado na

ferrenha batalha quando foram interrompidos pelo som digital do celular de Flening que

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anunciava a chegada de uma nova correspondência. Com cuidado, ele retirou o braço que estava por baixo da cabeça de Kate , pegou o celular e caminhou até
a sacada. A mensagem foi recebida criptografada, exigindo a

inserção de uma palavra chave para viabilizar sua leitura. Após rabiscar algo no visor, o amontoado de letras e números tomou a forma de um texto: "... reporte-
se ao covil , situação

pérola." Durante o vôo para Washington Flening lia longos relatórios, seus olhos absorviam com avidez informações de caráter ultra- secreto. ***

No mesmo momento, no hemisfério sul, em algum lugar da selva amazônica uma patrulha comandada pelo Tenente Ramos Barroso rompia uma densa faixa de vegetação
secundária. Vegetação comumente encontrada em regiões já marcadas pela presença do homem ou próximas a cursos d'água. A grande quantidade de cipós, espinheiros
e arbustos tornavam a progressão lenta e extremamente

desgastante. Mais alguns minutos de marcha e Ramos chama o rádio operador.

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- Guerreiro, envie a mensagem, préestabelecida, para a chegada de ZEUS ao ponto de extração. Seu rádio operador era um homem de

aproximadamente vinte e três anos. Um militar a quem Ramos devia a própria vida e que, afora isso, gozava de grande confiança e apreço entre pares e superiores
hierárquicos. Seu nome era

Mário, um soldado que fora promovido a Cabo por conta de seus atos de bravura, durante missões realizadas na região da fronteira do Brasil com a Colômbia.
Mário era um sujeito de pouca fala, porém muito observador. Filho de caboclos, nascido em terras de Marajó, aparentava estar sempre acima do peso. O que

não o impedia de ser um combatente excepcional e dono de uma resistência aos esforços físicos prolongados acima da média. Instantes após o estabelecimento
do

contato rádio, o tenente Ramos, por meio de um gesto, chamou seu sargento e, em voz sussurrada , mandou que a "carga" fosse preparada para o embarque .
Uma aeronave HM- 1 Pantera cortava os céus em navegação de baixa altitude. Como P1, ou primeiro piloto, estava o experiente coronel Nascimento, oficial
das Forças Especiais, um dos pioneiros da aviação do Exército no Brasil. Também por este motivo, ele era o mais indicado para, ao final do ano corrente,
assumir

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o comando de uma das unidades de aviação do exército. Quando em vôo, impressionava à todos com manobras arrojadas que extraiam o

máximo rendimento de qualquer aeronave. No posto de P2, ou segundo piloto, voava o tenente Donizete, recém especializado naquele tipo de aeronave, fazendo
um de seus primeiros vôos sobre a região amazônica. Donizete fora companheiro de turma de

Ramos na Academia Militar das Agulhas Negras. Ainda estavam vivas as lembranças dos muitos finais de semana passados dentro da Academia, por conta de punições.
As faltas disciplinares variavam do fio de linha solto junto à casa de um dos botões da farda até direção perigosa no interior da AMAN, o que não variava
muito era o nome de guerra dos cadetes responsáveis por elas. Na relação de punidos, Ramos e Donizete, eram figuras batidas. Foi durante um desses finais
de semana

correcionais que um grupo de cadetes, liderados por Ramos, resolveu aventurar- se pelas imensas galerias subterrâneas, espalhadas por todo o complexo acadêmico.
Lanternas à mão, mochilas com frutas e pães, afanados do rancho, e muita adrenalina no

sangue. Mesmo tendo ouvido algumas das lendas sobre os tais subterrâneos, nenhum dos cadetes, jamais, imaginou ser possível chegar até eles. Aquelas horas,
mágicas, de caminhada

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pelos túneis da academia militar valeram pelos quatro anos de internato. Momentos que só ocorreram porque havia alguém maluco o suficiente para quebrar
regras e ainda arrastar outros consigo, alguém como o então cadete Ramos. Hoje, o oficial com maior número de missões reais, bem sucedidas , em toda a
Força Terrestre. O rio das recordações arrastava Donizete, quando a voz rouca do coronel Nascimento

surgiu nos fones de seu capacete. Tinha início o processo de autenticação. Processo sempre realizado antes do toque de aeronaves no solo

do teatro de operações. Procedimento simples, a autenticação servia para constatar se a tropa em terra era realmente amiga e se a situação estava dentro
de um quadro de normalidade. Era fruto de experiências em combate, onde muitas aeronaves caíram em mãos inimigas ou foram destruídas por fogos previamente
amarrados pelo inimigo. Isso, graças à obtenção da

localização da área a ser utilizada para o toque das aeronaves. Informações obtidas durante longas e cruéis sessões de tortura a prisioneiros de guerra
ou por meio de interferência eletrônica. - Zeus, Mutum em posição autentique: Foxtrote Uno - Mutum, Zeus em posição: Yanque Nono

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Confirmada a normalidade da situação abaixo a aeronave mergulhou na selva, realizando o pouso na clareira, sem cortar motores. Em questão de segundos, a
equipe de

terra abandonou o dispositivo de segurança e embarcou. Após o sinal de positivo, feito pelo tenente Ramos, o mecânico informou ao P1 que o embarque estava
concluído. O helicóptero, então, arremeteu, parecendo querer cortar o

tapete verde a sua volta. Durante o vôo até a base, a presença de uma pessoa encapuzada dentro da aeronave despertou a curiosidade do mecânico. ***

Flening estranhava a demora da aeronave para pousar. Voando em círculos sobre Washington há quarenta e cinco minutos o Boeing sete três sete quatrocentos,
em uso pela Agência Central de Inteligência, ultrapassara em muito o tempo de vôo previsto. A aparência do

interior desse avião diferia da usualmente encontrada nos vôos de linha destinados ao transporte de passageiros. Esta aeronave contava com algo mais além
de assentos confortáveis, ela era dotada de recursos de telecomunicações e informática que viabilizavam

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o funcionamento de um escritório da Agência a bordo. No entanto, desta vez, desde a decolagem os sistemas de comunicação insistiram em não funcionar. Mais
alguns minutos se passaram e a

aeronave continuava voando em círculos. Flening levantou- se e foi até a cabine de comando, queria inteirar- se a respeito do atraso. E conseguiu. Foi informado,
pelo comandante, de que a aeronave encontrava- se com problemas de comunicação. Mas não era só isso, havia também um defeito no

funcionamento do sistema hidráulico. Comprometendo a liberação dos trens de pouso. Para completar, havia uma pane em outros aviônicos, úteis ao trabalho
de aproximação para aterrissagem. Como a aeronave decola sempre com uma reserva de combustível, a tripulação estava dispondo destas horas vôo para tentar
sanar a pane. O que viria a mostrar- se como inviável, mesmo

após várias tentativas. Agravando a situação, não havia teto suficiente para qualquer contato visual com a pista, por conta das más condições climáticas.
- Senhor, nosso combustível está se esgotando. Queira retornar ao seu assento e

afivelar o cinto pois vamos tentar uma medida extrema. Solicitou, ao Flening, o piloto.

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Era o bastante, era possível sentir o clima de tensão naquela cabine. No retorno ao seu assento Flening sentiu a porta da cabine fecharse às suas costas
e, por um instante, desejou sorte aos seus ocupantes. De passagem, entrou no gabinete executivo, onde trabalhara

boa parte do vôo. Juntou alguns papéis, seu computador portátil, colocando- os em uma valise. - Senhor, pediríamos ao senhor que se dirigisse ao seu assento.
A voz era doce porém firme. O Major olhou

para a porta, um corpo de silhueta esguia, com sorriso cortez o aguardava indicando, com o braço estendido, o caminho a ser seguido. Era uma jovem comissária.
"Onde andará a Kate agora?" Pensou ele. - Ah, sim! Estou indo, obrigado. Flening abriu uma espécie de algemas, presa à valise, fechando- a em seguida em
seu

pulso. Feito isto, conferiu se a chave estava guardada em seu bolso. Na porta, ainda a sua espera, a comissária refazia mentalmente os procedimentos que
se seguiriam. É difícil espelhar controle e confiança quando se está com o vazio do medo na barriga. A moça acompanhou Flening até seu assento, despedindo-
se com um sorriso atencioso.

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O homem sentado ao lado de Flening, notando a atenção dada ao Major pela comissária, disparou: - Flening, seu miserável, você não perde uma! E olha, desde
que a agência contratou estas comissárias, no lugar daqueles gorilas de antes, ninguém conseguiu dar umazinha! Lá na agência dizem que elas foram recrutadas
em bares de lésbicas. - encerrando sua observação

com uma gargalhada acintosa. Flening restringiu- se a olhar para Tom Kortum com expressão de reprovação. Detestava comentários imbecis e discriminatórios
como aquele. Na voz, aparentemente, tranqüila e confiante do comandante consolidou- se a situação . - Senhores passageiros, pediria um minuto de sua atenção,
por favor. Aqui fala Ken

Katchan o comandante desta aeronave. Por motivo de problemas técnicos em nossa aeronave teremos de realizar, nos próximos minutos, os procedimentos atinentes
a um pouso de emergência, no aeroporto de Dulles. Sigam, a partir de agora, todas as instruções repassadas pela tripulação e mantenham a calma. Obrigado
por sua atenção e boa sorte. O comandante informara, apenas, parte da terrível armadilha do destino. Sorte, todos precisariam de muita sorte.

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Ao olhar novamente em volta, o Major Flening encontrou rostos transtornados, picados pela serpente do medo. Para ele, que escapara ileso da queda de dois
helicópteros, no decorrer da guerra do Vietnã, e ao pouso de emergência de um C- 130 em chamas, nas areias do deserto durante a guerra do golfo, aquela
situação parecia uma refilmagem barata de um filme bastante conhecido. Antes de assumir a posição recomendada pela tripulação, o major ainda teve tempo
de olhar para o passageiro do assento ao

lado. Era Tom Kortum, Vice Diretor da CIA, sem a expressão sarcástica no rosto. "Talvez, aquelas horas com Kate tenham sido concedi das a títul o de úl
timo desej o aqui na

terra". Pensou Flening, começando a esboçar um sorriso. Não houve tempo para completá- lo. Um grande impacto sacudiu a aeronave, um som ensurdecedor tomou
conta do ambiente. Gritos chorosos anunciavam o desconhecido, trazido às suas vidas por obra do acaso. O Homem tem, em essência, pavor ao confronto com
novos desafios. Ele não aprecia o desconhecido, teme a necessidade de estar próximo aos seus limites. Homens que

divergem deste padrão recebem muitos nomes, pois os impregnamos de adjetivos, para assim podermos ocultar nossas fraquezas. Alguns profissionais têm a oportunidade
de testar, repetidas vezes, os seus limites e

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acabam por perder o medo do desconhecido. Os militares, pela natureza de suas atividades, são exemplos típicos. Uma vez sabedores de suas potencialidades
e exercendo pleno domínio de seus nervos estes homens tornamse capazes de se conduzir de maneira quase protocolar, mesmo em situações limite. Dai advém
a maior probabilidade de êxito no cumprimento de suas missões. Ao notar que a aeronave cessou o

movimento inercial, Flening soltou o cinto de segurança, iniciando deslocamento rumo a uma das oito saídas de emergência disponíveis na aeronave. As saídas
mais próximas eram as quatro localizadas sobre as asas. Havia fumaça por toda parte. Os focos de incêndio se multiplicavam, consumindo o oxigênio e

lançando gases possivelmente tóxicos no ambiente. "Não, as das asas não." Pensou o major. "Os tanques de combustível estão nas asas, há

bastante fogo aqui. Vou para as da frente." Ele sabia que, afora o risco de explosão, a toxidez dos gases exalados durante a combustão de

alguns dos materiais existentes na aeronave poderia rapidamente ceifar vidas. Era preciso agir rápido e ventilar a aeronave. No caminho até a saída de emergência,
em meio a fumaça que começava a irritar os olhos e ardia em suas entranhas a cada respirar, Flening deparou- se

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com o corpo de Tom Kortum. Seu rosto estava desfigurado, coberto de sangue, a vida havia sido sugada de seu corpo por um erro primário. Tom não afivelara
corretamente seu cinto de segurança. Mas agora não havia tempo para lamentações. Olhando, novamente, a sua volta, Flening constatou que a cabine de comando
estava fechada. Nenhum movimento se originara de lá desde o pouso. Muitos dos assentos estavam soltos, divisórias dos gabinetes encontraram parada por
sobre

assentos, algumas estavam bem no meio do corredor. As máscaras de oxigênio bailavam penduradas sobre alguns dos assentos. Da

área reservada ao comissariado era possível ouvir uma voz feminina gritando algo. Havia também um som distante, um som igual ao de buzinas em um grande
engarrafamento. A fumaça logo tornaria impossível enxergar além do primeiro palmo. Repentinamente, uma labareda envolveu

o braço direito de Flening, o braço que conduzia a valise. Ao tentar tirar o braço do alcance das chamas a valise travou entre as ferragens de

duas poltronas. Apesar dos puxões dados, Flening não conseguiu soltar a valise e, conseqüentemente, seu braço. A dor, por alguns instantes, tomou conta
de seu corpo. Mas não de sua mente. Com a mão esquerda, ele pegou

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a chave da corrente da valise em um de seus bolsos. Era preciso abrir o tirante de segurança da valise, que estava preso ao seu pulso direito. Inclinando
o corpo por sobre as chamas, Flening sentiu o fogo consumir- lhe os cílios, sobrancelhas e parte do cabelo, até conseguir libertar seu pulso usando a chave.
Com o braço

livre, soltou a valise e arrastou- a para perto do seu corpo. Um arrepio ardido correu suas costas, seu terno estava em chamas. Com agilidade, livrou- se
do que sobrou da veste. Os vapores e a fumaça dificultavam, muito, a

respiração. O campo visual estava restrito a poucos centímetros e os olhos ardiam como brasas. Flening começou a engatinhar. Próximo ao solo o ar estava
menos contaminado. Guiado pelas luzes indicadoras de saída ele dirigiu- se para perto das saídas de emergência vizinhas à cabine de comando. Estas dispunham
de escorregadeiras, facilitando o desembarque dos sobreviventes. Este fora um dos motivos da

escolha do major. As portas pareciam intactas mas a força do impacto, provavelmente, havia causado sérios danos estruturais à aeronave, pois as portas não
obedeciam ao comando de abertura. Um pouco tonto, Flening estranhou que passados cerca de dois minutos, desde a parada da aeronave, ainda não ocorrera
a

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intervenção de nenhuma equipe de socorro do aeroporto junto ao sinistro. De qualquer forma, a situação estava ficando feia lá dentro. Atravessando uma densa

cortina de fumaça, ainda engatinhando, Flening foi para a retaguarda da aeronave. Intencionava utilizar as outras duas saídas com escorregadeiras. Próximo
à saída de

emergência, da asa do lado direito, o major encontrou uma das comissárias caída sob o carpete vermelho do corredor. Um pedaço de metal estava cravado no
tórax da jovem, dificultando, mais ainda, a tarefa de respirar. Ela, apesar de consciente, permanecia imóvel. Ao notar a aproximação de Flening, a comissária
fez um sinal de positivo com a mão esquerda. Era a

mulher que alguns instantes atrás zelava pela segurança e conforto dos passageiros. Não havia muito que fazer ali. Em pouco tempo o oxigênio para os sobreviventes
respirarem estaria extinto ou a aeronave iria pelos ares. Flening prosseguiu, os pulmões ardiam muito, as bolhas em seu braço iam estourando

no contato descuidado com os destroços. Pelo caminho, viu dois de seus homens ainda desacordados. Do meio da fumaça, rastejando em sentido contrário, surgiu
o Capitão Perez. Ele

recobrara a consciência há alguns instantes e

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vinha no rastejo em busca das saídas de emergência. Perez era oficial das forças especiais. Um especialista em assuntos amazônicos, homem chave para a fase
atual da missão coordenada

por Flening. Era um homem de pouca estatura, com o aspecto físico típico de um caboclo amazônico. Perez estava com um pequeno corte na testa e as calças
manchadas com muito sangue. Ao ver Flening, com as roupas queimadas e a pele do braço coberta de bolhas, Perez simplesmente sorriu. Podia ler no olhar
do

major que algo de anormal havia surgido dentro da situação de emergência. Rapidamente saltou por sobre o corpo da comissária para próximo a porta de emergência.
Liberou a trava de segurança que comandava sua abertura. Com um estampido a porta foi arremessada a alguns metros de distância. Em vez de ar puro, labaredas
famintas tomaram de assalto o

ambiente. Era o que o sexto sentido de Flening tentara evitar desde o início. - As saídas sobre as asas não! - gritou o

major para Perez. - Vamos para as de trás, para as de trás. - continuou Flening, arrastando a comissária por alguns metros. O suficiente para ela ficar
à salvo das chamas. Ao ser movimentada a jovem desfaleceu, a dor foi intensa, foi além da conta.

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Os dois continuaram o deslocamento até as portas traseiras. Tudo acontecia dentro de uma medida de tempo paralela. Segundos podiam representar anos de agonia
e tensão. Finalmente, a saída de emergência traseira direita foi aberta. Com a abertura, uma

escorregadeira inflável foi acionada. Após alguns segundos, quando a cortina de fumaça ficou mais rarefeita, foi possível ver, para perplexibilidade de
ambos, as proporções do sinistro. A aeronave havia realizado um pouso forçado, mas o local não era o aeroporto, e sim uma avenida. Repleta de carros retorcidos
e

pessoas correndo em pânico. Um vento gelado, produto da tormenta vindoura, trouxe aos pulmões dos dois o cheiro da vida. O quê teria levado o piloto a adotar
aquela linha de ação? A pergunta percorreu as mentes daqueles veteranos em situações limite. A primeira pessoa retirada da aeronave foi a comissária de
bordo. Colocada no escorregador inflável, ela deslizou até os braços de uma senhora que ofereceu- se para ajudar, provavelmente uma das motoristas de bom
coração e sangue frio. No interior do avião, o ar começava a ficar menos pesado. Porém as chamas aumentavam na mesma proporção da

redução do ar contaminado. Rompendo o barulho do local, dentre os gritos, buzinadas e gemidos, Flening identificou

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o som de sirenes. Pareciam ser sirenes dos bombeiros. Depois de vencerem os empecilhos das vias congestionadas, eles aproximavam- se do local. No entanto,
não havia muito tempo mais. Uma explosão poderia ocorrer a qualquer momento. Flening e Perez, trabalhando com esta hipótese, continuaram a retirar todos
da

aeronave. Mortos ou não, todos eram arrastados até a saída. Onde desciam deslizando pelo escorrega para serem amparados pelos voluntários que, seguindo
o exemplo de uma anônima senhora, tentavam ajudar até a chegada das equipes de socorro. Em volta da aeronave o cenário, também, não era nada animador.
Havia dezenas de

feridos, alguns deles, com ferimentos de menor gravidade, perambulavam atordoados pelo asfalto. Outras vítimas permaneciam agonizando, presas às ferragens
dos automóveis. Em meio a este cenário de caos, alguns jovens delinqüentes aproveitavam a

situação para realizar pequenos furtos nos automóveis abandonados nas proximidades. Agora duas aeronaves de asa móvel desafiavam o mau tempo e pairavam
próximo ao local do pouso de emergência. Delas, equipes de paramédicos e bombeiros desembarcaram. Seus rostos estavam apreensivos, tensos. Não

era necessário ser genial para mensurar a gravidade da situação. A premência de tempo

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para o atendimento às vítimas seria fator condicionante para manutenção de muitas daquelas vidas. No 737- 400, todos os passageiros haviam sido retirados
por Flening e Perez. Mas a cabine de comando ainda estava trancada e o estado de seus ocupantes era uma incógnita. Os dois oficiais, mesmo em meio às chamas,
estavam resolutos. Somente abandonariam a

aeronave quando todos os corpos estivessem fora daquele inferno. Mais uma aeronave de asa móvel iniciava o sobrevôo ao local. A imprensa sensacionalista
tomava seu lugar para cobertura do sinistro espetáculo. Dentro do avião, finalmente, os dois conseguiram destravar a porta da cabine de comando. Seus ocupantes
foram levados, ainda desacordados, até o escorregador. Mortos ou não, os últimos integrantes da tripulação foram retirados da aeronave. Afinal, não havia
tempo

para verificar os sinais vitais. As labaredas esgueiravam- se por todos os cantos, contrariando a vontade dos materiais antechamas e anunciando para breve
o fim. Ao descer pelo escorrega, Flening, o último a sair da aeronave, se depara com um bombeiro. Ato contínuo o major arrasta o bombeiro pela jaqueta
de amianto enquanto lhe

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diz aos gritos: "Área limpa homem, afaste- se que isto vai pelos ares!" Mesmo fazendo uma avaliação que, por muitos, poderia ser considerada precipitada,
fruto do pavor ou do choque, gerado pela queda, Flening estava totalmente correto. As unidades dos bombeiros, incumbidas de realizar o

resfriamento e o abafamento das chamas, estavam presas no trânsito. Não havia mais tempo para acionar helicópteros com missão semelhante. O homem que coordenava
o trabalho dos bombeiros no local ordenou a evacuação. Ele queria menos gente dentro do perímetro de trezentos metros da aeronave. Apenas permaneceriam
as equipes empenhadas na

retirada das vítimas. Pessoas, ainda, presas às ferragens dos automóveis. Mas o controle do local era difícil. Somando- se às características desfavoráveis
do ambiente urbano, estava a indescritível, irresponsável e sádica curiosidade humana diante do sofrimento alheio. Um estrondo sacudiu as imediações do

acidente. Uma grande bola de fogo envolveu a todos que estavam próximos da aeronave. Pedaços de metal retorcido foram lançados a

grandes distâncias. Alguns acabaram atingindo integrantes das equipes de socorro e curiosos. Como fragmentos de uma granada, detonada em meio a uma batalha,
os estilhaços cortavam

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os corpos com a mesma facilidade com que uma faca quente mergulha em um pote de manteiga. Um mar de fogo invadiu as cercanias. A primeira explosão não ocorreu
na

aeronave acidentada. Mas sim em um caminhão, tombado a poucos metros do avião. Era um caminhão tanque, carregado de gasolina. Depois dela, outras aconteceram.
Por sorte, as aeronaves de asa móvel do resgate haviam se retirado do local, levando boa parte dos acidentados. As demais estavam a uma distância segura,
graças à intervenção do chefe dos bombeiros. A mesma sorte não tiveram os muitos paramédicos, acidentados, curiosos e

repórteres que estavam perto do epicentro das explosões. Algumas horas depois, Flening e Perez dividiam um apartamento de hospital. Estavam em observação.
O quadro clínico mais sério era o de Flening. Com queimaduras de segundo grau em quase cinco por cento do corpo. No entanto, enquanto Perez, adormecido,
vivia o papel de paciente, o major, impaciente, lia uma revista emprestada pela enfermeira. ***

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Na Base Aérea de Manaus o Pantera, pilotado pelo Coronel Nascimento, era aguardado por vários militares. Tão logo a aeronave pousou, Ramos foi informado
que as viaturas estavam em posição para realizar a

retirada de sua equipe para a base de operações. Alguns militares, da Base Aérea, conduziram o homem encapuzado para uma

viatura que, acompanhada por outras três, não demorou a partir. Ainda na cabeceira da pista, Ramos reuniu sua equipe, determinando que fosse realizada a
manutenção do armamento e

equipamento tão logo chegassem à base de operações. Designou, ainda, a hora e o local em que ocorreria a avaliação da missão. Todos conheciam a rotina.
O que tornava as recomendações do Tenente repetitivas, mas os subordinados adoravam aquele jeito de pai

zeloso. Sempre buscando recomendar, detalhe a detalhe, tudo o que deveria ser feito. Principalmente nos momentos mais difíceis. A confiança da equipe na
capacidade do

comandante para a tomada de decisões acertadas, em situações de risco, tornava aquela tropa capaz de impulsionar- se nas mais arrojadas missões. Liderança,
palavra tão comentada em bancos acadêmicos, mas tão difícil de encontrar como prática nata. Para alguns militares, uma

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habilidade a ser desenvolvida, para outros uma ferramenta viabilizadora da estabilidade de comando e para alguns, poucos, uma simples faceta de suas personalidades.
Durante operações militares, comandados depositam suas vidas na sólida

base de conhecimentos técnico- profissionais, rusticidade, adaptabilidade e, sobretudo, na liderança de seus comandantes. Hoje, mais do que nunca, as forças
armadas de todo o mundo buscam este valor quando da seleção de homens para o desempenho de funções de comando. Experiências como a dos EUA, no Vietnã,
comprovam que militares, em função de comando, têm de possuir algo mais do que o poder constituído por instituições. Para conduzir, eficientemente, homens
em combate, é preciso

liderança. Emitidas as ordens, Ramos passou o comando da tropa para o sargento. Permanecendo ali, parado, observando seus homens embarcarem no caminhão
que estava estacionado ao lado da pista. Após o embarque

do último patrulheiro, Ramos se dirigiu para a viatura do Comandante Militar da Amazônia. Um furgão na cor verde oliva, identificado pela

insígnia da autoridade à qual servia, uma pequena bandeirola presa sobre o pára- lama dianteiro direito. O motorista da viatura se antecipou, abrindo o
porta- malas do veiculo para

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que Ramos guardasse a mochila e seu fuzil. Em seguida, abriu a porta para a entrada do oficial. - Boa noite, senhor! - Boa noite e parabéns, meu jovem!
- Fui informado de que houve forte resistência. Inclusive, alguns deles conseguiram se evadir do local. Descreva, sucintamente, como foram as coisas por
lá, filho. - Sim senhor. Conforme as ordens recebidas, passamos a realizar o rastreamento em todo o setor centauro. Após doze dias, encontramos os primeiros
indícios da presença da equipe alvo. Nos dois dias seguintes, obtivemos contato visual e, subseqüente, localização de uma de suas bases. Conseguimos, também,
o efetivo e identificação

de pelo menos dois de seus contatos locais. No décimo quinto dia, depois de obter todos os elementos essenciais de informação, iniciamos a Operação Louva
Deus. Assim, no início do

crepúsculo matutino náutico deste dia, a patrulha neutralizou os ocupantes dos três postos de escuta da equipe alvo. Em seguida, o

grupo de captura avançou até a posição da encomenda. Mas sua presença foi detectada e um forte fogo de reação foi desencadeado pelo inimigo. Este foi seguido,
imediatamente, do fogo de cobertura realizado por nossos homens. Como houve a quebra de sigilo, priorizamos a

segurança do nosso grupo, localizado junto à

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posição onde estava a encomenda. Assegurando o êxito da captura. Após alguns segundos de purgatório, o fogo de resistência silenciou- se. A encomenda estava
em nosso poder, sã e salva. - Por que a quebra prematura do sigilo, tenente?

- Havia um dispositivo secundário de segurança no objetivo. Algo que não foi avaliado corretamente por mim, senhor! Trata- se de uma espécie de sensor de
presença, algo capaz de identificar tropa amiga e inimiga. Talvez pelas fardas usadas, não sei ao certo. O aparato

controla, sozinho, duas armas automáticas. Apontando- as e executando o fogo de proteção dentro do perímetro determinado. - Como chegou a estas conclusões,
Ramos? - Bem, digamos que a encomenda

disponibilizou- me estas e outras jóias. O sorriso de Ramos fez o General estremecer. Ele ouvira, anteriormente, comentários a respeito daquele jovem oficial.
Histórias suficientes para concluir que a linha

responsável por manter Ramos sob controle era tênue, trançada apenas com as fibras do amor ao perigo e dos ideais altruístas realizáveis através da profissão.
Franzindo a testa o General questionou, em tom de reprovação:

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- Tenente, suas ordens eram bem claras! Sem interrogatórios preliminares. Então, que diabos você andou fazendo com esse gringo desgraçado?

- Não toquei, um dedo sequer, nele. Apenas negociei. Propus uma noite a salvo dos, supostos, mosquitos transmissores da Leishmaniose Tegumentar Americana.
Ofereci, em troca de algumas respostas, um mosquiteiro sem furos para ele pernoitar. Sabe o que é, General?! Nós naquela noite paramos ao lado de um maldito
igapozal. O mais infestado de mosquitos que eu já vi. Aí, ao cair da noite, o gringo começou a implorar por um mosquiteiro em sua rede. Eu apenas lembrei-
o do preço. O General e o Chefe do Estado Maior soltaram um sorriso de canto de boca, ao

entreolharem- se. - Você é uma figura meu tenente! Prossiga. - Após a saída do grupo de captura, constatamos que dois dos inimigos haviam se evadido do
local. Um deles estava ferido. Provavelmente em uma das pernas. Este não iria muito longe, não sem uma transfusão. Em contraste ao ar da noite, oferecido
pelas janelas do veículo em movimento, Ramos, durante o relato, quase que podia sentir novamente o cheiro do sangue no vapor da

mata. Era um sangue de cor clara, deixado junto

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a algumas das pegadas e, também, pincelado ao acaso nas folhas das palmeiras, sempre na altura das pernas de um homem. - Seguindo as instruções do escalão

superior, não empreendemos nenhum esforço em objetivo secundário, uma vez garantida a posse da encomenda. Passamos, então, à retirada. Seguindo até o ponto
de extração. Aproveitei para trazer o que julgo ser a central de

comando de um destes sistemas de segurança de base. Conhecer aquela máquina pode vir a poupar muitas vidas em ocasiões futuras. O general balançou a cabeça,
demonstrando concordar. Ao se aproximar do Corpo da Guarda do

Comando Militar da Amazônia, CMA, o comboio reduziu a velocidade. No momento em que a viatura cruzava a cancela, o general cumprimentou a guarda com o brado
de "SELVA". Ouvindo, em resposta, outro "SELVA" de muitas vozes. Após descer da viatura, o general

informou: Haveria reunião para o Estado Maior em duas horas. Ramos olhou para o relógio, colocou a mochila nas costas e desfez o silêncio da ordem. - Senhor,
neste horário estarei com a minha equipe na avaliação da missão! - Adie ou cancele, tenente!

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- Com todo respeito senhor, negativo. Meus homens estarão mobilizados até o fim desta atividade. Alguns deles estão há mais de trinta dias sem um bom banho,
uma boa refeição ou contato com seus familiares. Além disso, tenho dois homens que estarão

aguardando a avaliação da missão para, só então, se apresentarem na enfermaria. Estão com malária e o tratamento foi iniciado durante a própria operação.
Desta forma, peço ao senhor que faça a reunião após esta atividade. O general olhou para o chão, coçou o

queixo e, com a testa franzida, concordou. Retificando sua ordem: - Escutem! Faremos a reunião tão logo o Ramos termine com o seu Debriefing. Portanto estejam
atentos. Todos os presentes sabiam o quanto era

difícil, nos dias de hoje, ver um jovem oficial contestar ordens em defesa dos interesses de seus subordinados. Apenas no ímpeto daqueles que praticam liderança
com a simplicidade de quem respira é

que tal atitude poderia estar, tão brilhantemente, respaldada. Para aproveitar o tempo, alguns dos oficiais que participariam da reunião foram para os alojamentos
se deitar. Outros aproveitaram a ocasião para reviver contos da caserna ou apenas ver televisão no cassino dos oficiais.

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Enquanto isso, o general, sentado em seu gabinete, dedicava tempo à leitura das páginas de um jornal de Manaus. A publicação trazia uma

matéria sob a manchete "Amazônia Verde e Amarela! Até quando?" ..." Por muitos anos a sociedade brasileira

esteve de costas para as necessidades de toda a região norte do país, mais especificamente para as necessidades da nossa Amazônia legal. Isto quer dizer
que, quase, sessenta e dois por cento do território brasileiro sofreu e ainda sofre, com os séculos de abandono. Conseqüentemente, criou- se uma das maiores
áreas de neutralidade geopolítica da atualidade, justamente dentro da região que, agora, é

revelada como a grande e, talvez, a última arca de riquezas naturais do planeta". O governo abordou de forma superficial todos os indícios de interferência
velada das grandes nações na região. Mas não foi apenas a superficialidade do governo e também, por que não, de nossa sociedade que marcaram o trato aos
assuntos amazônicos. Tem havido muita inépcia na articulação de interesses. Foi assim no caso ECO- 92, quando, para viabilizar a

realização do evento no Brasil, o governo cedeu à pressões externas e acabou demarcando reservas indígenas como a dos Ianomâmis. Uma reserva debruçada,
perigosamente, sobre

a faixa de fronteira Norte do país. Contrariando

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dispositivos magnânimos, como a Constituição Federal, autoridades brasileiras consentiram o denominar de Nação Ianomâmi à brasileiros, indígenas mas brasileiros,
residentes nestes enormes latifúndios. Por ter acontecido em um país soberano e sabedor de que está diante de

uma comunidade internacional que repudia aparteísmos, ou que assim o faz quando é de seu interesse como ocorreu na África do Sul, tais fatos nos levam a
crer que a demarcação de

territórios indígenas na Amazônia atendeu a algo mais do que preservação de comunidades ou de culturas indígenas. Será que alguém perguntou para estes cidadões
brasileiros, nascidos em comunidades indígenas da Amazônia, se era

desejo deles viver toda uma vida sem as benesses da vida moderna? Por que não podemos fazer como os Canadenses que respeitam seus indígenas, não por meio
de isolamento geográfico, mas sim por meio de um compartilhamento harmônico e enriquecedor de

culturas? Ora, estaremos nós assistindo à criação de um modelo que, de tão arcaico, passaria rapidamente de preservacionista à

segregacionista! E ainda fica uma pergunta no ar, por que será que de uma hora para a outra o índio brasileiro, mais especificamente o índio brasileiro
da Amazônia, ficou tão importante aos olhos da comunidade internacional?

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Assim como tenho nefasta certeza de que cada brasileiro tem as respostas às minhas perguntas, sei que igualmente bem informadas estavam as nossas autoridades
quando

permitiram que grandes jazidas de minério e parques com imensa biodiversidade fossem abrangidos nas demarcações de alguns dos territórios indígenas da Amazônia.
Olhando para o passado, vemos que

desde o século dezoito até os dias de hoje, "pesquisadores" estrangeiros justificam com invulgar facilidade suas incursões à selva amazônica. O governo,
comunidade científica e a própria sociedade assistem, passivamente, a este quadro que, nos últimos tempos, vem recebendo sombrios retoques. A tinta, agora
usada para os retoques, é o emprego maciço da mídia. Anunciando, ao mundo, a total incompetência do Brasil em administrar o "pulmão da terra", o "último
grande manancial hídrico do planeta". Anunciando, da mesma forma, a insensibilidade dos brasileiros para com as necessidades dos povos, das minorias, que
habitam as "nações" indígenas da

Amazônia. As queimadas, realizadas por indígenas, caboclos e ribeirinhos, são apresentadas como causadoras de um holocausto para a mata e para todo seu
ecossistema. Concomitantemente, a falta de pulso de nossas

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autoridades permitiu a penetração na área amazônica de madeireiras conhecidas globalmente pelas técnicas, nada ortodoxas, empregadas nas matas asiáticas.
Fornecendo, assim, justos subsídios para campanhas de

Organizações Não Governamentais que usam slogans como "Preserve a Amazônia, queime um brasileiro!" em alguns países da Europa. Não é difícil ver! Toda uma
geração está sendo educada ao redor do planeta consumindo diariamente informações manipuladas para gerar a expectativa de um basta à má administração dos
recursos hídricos existentes na bacia amazônica. Um basta ao desrespeito às "nações" indígenas e às suas ricas culturas. Expectativa de um basta às chamas
e às madeireiras, pois elas devoram a selva

amazônica. A nós, da imprensa, cabe emoldurar a imagem, desbotada e meio sem vida, de uma tela pintada por artistas que estão muito longe de nossas fronteiras.
Por isso mesmo, eles jamais provarão das cores da incrível aventura

de fazer parte de um país sem segregações. Cores como as de um país possuidor da imensa responsabilidade, Verde e Amarela, que é a de gerir competentemente
a nossa Amazônia..."

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Ao terminar a leitura do artigo o General deu um suspiro , olhou para o relógio e levantouse.

*** Acordado pela enfermeira, Flening olha para o relógio e percebe; sob efeito dos analgésicos, passara mais de doze horas dormindo. - Bom dia! Como está
o braço, a dor diminuiu? - perguntou a enfermeira, com um sorriso suave no rosto. - Sim, estou bem melhor. - O senhor é muito forte, agora tome estes remédios
e repouse mais um pouco. Logo

retornarei para verificar sua pressão, temperatura e ajudá- lo na higiene pessoal. - Uma mula! Forte e teimoso como uma mula velha! A voz tosca cortou o
silêncio, chamando a atenção de Flening e da enfermeira além de acordar Perez. Era o General Peter Maier, velho companheiro de jornadas do Flening, fora
e dentro da caserna. Ele estava encostado na porta, trazia estampado no rosto o sorriso da malícia. - Flening, seu filho d..., você queria

mesmo era toda essa história de atenção e

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enfermeira gostosa te dando comidinha na boca! - Bom dia senhor! Pelo visto, a gravidade

de meus ferimentos começa a atrair os urubus. - respondeu Flening, ao general, fazendo alusão à velha disputa entre os militares que participavam de operações
como pára- quedistas e os que, como Peter, nunca provaram o sabor das nuvens. Estes últimos eram chamados, pejorativamente, de urubus. O general aproximou-
se e aguardou a

saída da enfermeira. Embaixo do braço esquerdo um jornal enrolado destoava da farda impecável. - Você foi grande ontem filho! E você também, Perez! Salvaram
vidas humanas, arriscando as suas para isso. O piloto também teve seu momento de escolha. Graças a perícia

dele o acidente não teve um desfecho muito pior. Ao falar isso, Peter mostrou o jornal que trazia. Na manchete, o acidente com a aeronave do governo. -
Não sei até que ponto o piloto manteve

vocês informados, mas o fato é que a aeronave apresentou uma série incrível de panes. No momento, tais panes estão sendo investigadas pelo FBI. Parece que
o piloto optou por consumir o máximo de combustível e tentar pousar as cegas. O resto os dois sabem melhor do que eu. O importante é que, no momento, vocês
não

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podem virar celebridades. Com os recursos existentes nos meios de comunicação, hoje, poucas horas após a primeira entrevista, os rostos de vocês dois seriam
mais conhecidos do que o do Elvis. Isto em escala global. Flening e Perez ouviam atentamente as palavras do superior. A esta altura, Peter estava sentado
na cama de Perez. De onde prosseguiu com um tom grave em sua voz. - Recebi, ainda há pouco, algumas ligações de membros do Pentágono. Estavam propondo
a substituição dos dois nesta operação, em virtude do acontecido e de seu desdobramento junto a mídia. No entanto, optei por ouvi- los primeiro. O que
me dizem rapazes, abririam mão deste ato de bravura em prol de

assegurar os ideais de liberdade e justiça dos USA? Os dois responderam quase que ao mesmo tempo e de forma imediata. - Sim senhor, general. Os interesses
dos Estados Unidos da América em primeiro lugar. Ao ouvir isso, o general levantou- se e, com a testa franzida, chamou os dois homens que aguardavam fora
do quarto, próximo à porta. Os dois homens traziam curativos idênticos aos feitos em Flening e Perez, além de possuírem uma forte semelhança física com
a dupla hospitalizada.

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- Sabia que vocês não me decepcionariam. Portanto, tomei algumas providências. A CIA vai assumir, imediatamente, a cobertura e eventual manipulação de alguns
detalhes relativos ao acidente. Estes dois senhores são agentes especialmente designados para esta missão. A partir de agora, eles serão vocês. Contem,
para os dois, tudo o que aconteceu e como aconteceu. Vocês tem uma hora, para isso. Uma equipe virá extraí- los ao fim desta hora. Só então o acesso da

imprensa será liberado. Boa sorte e até logo senhores. Ao acabar de falar, sem dar tempo para

perguntas, o general ajeitou sua cobertura e retirou- se do recinto, sem olhar para trás.

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Açaí Somente após a preleção realizada para sua equipe, Ramos foi até o alojamento e tomou o primeiro banho de chuveiro das últimas semanas. Trivialidade
bastante valorizada

depois daquelas duras jornadas no interior da selva. Refeito, tratou de colocar uma farda limpa e seguir para a sala de reuniões, onde o aguardavam para
o início dos trabalhos. No interior da sala, havia oficiais do

Estado Maior do Comando Militar da Amazônia além de alguns vindos de Brasília. Este grupo, vindo da capital, trabalhava em algo muito

especial. Algo que mudaria o destino de muitas vidas. Talvez a própria história da humanidade. Sentado em uma das extremidades da mesa, o General de Exército
Barros de Castro mostrava para o General comandante do Comando Militar da Amazônia um documento elaborado pelo Comandante do Exército. Explicando que tal
documento deveria ser lido

quando da abertura, oficial, dos trabalhos. Juntando anunciação de sua chegada ao pedido de permissão para adentrar ao recinto, Ramos tomou a posição, marcial,
de sentido. No momento, ele estava próximo à porta de entrada da sala de reuniões. O gesto, protocolar, veio acompanhado de um olhar fixo nos olhos do

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General. Um estalo ecoou. Propositadamente, Ramos chocou, de forma enérgica, seus coturnos, bem na altura dos calcanhares. Conseguindo aplacar, com o estampido,
os cochichos do ambiente. Instantes depois, a reunião teve início. Banho tomado, roupas limpas e secas, poltrona macia, fala pausada do General Comandante,
tudo conspirava para que o mais jovem oficial presente à reunião desse vazão ao cansaço. Entretanto, a curiosidade servia como estimulante, mantendo Ramos
alerta. Afinal de contas, por qual motivo ele fora convidado a participar de uma reunião, no meio da madrugada, cercada de mistérios, cheia de rostos tensos
e figurões do alto comando regional? Em breve, haveria respostas. Iniciando a reunião, o General Barros deu

um forte brado de "SELVA". A resposta percorreu as belas paredes, recobertas por mármore. Veio uníssono, grave: - SELVA! - Sabemos do avançar da hora, no
entanto

a situação é de crise. Torna- se imperativo o desencadear de algumas ações sobre as quais deliberaremos nos próximos minutos. Tenho

aqui, em minhas mãos, uma mensagem do Comandante do Exército, para ser lida aos senhores. Antes, porém, quero que todos ouçam

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com atenção os fatos que serão narrados pelo tenente Ramos. - Tenente, começando pelo teor da

missão recebida, faça um relatório verbal dos fatos ocorridos durante a Operação Louva Deus. O Oficial, então, levantou- se e fazendo uso de cartas, croquis,
fotos apostas em grandes pai néi s, passou a expl i car: "... a Operação Louva Deus teve como objetivo localizar e capturar o coronel das Forças Especiais
Norte Americanas Pool Allen que estava operando, com uma

equipe de pequeno efetivo, dentro do setor centauro...". Findo o relatório verbal, Ramos retornou para seu lugar à mesa. Neste momento, o General Barros passou
a descrever as atividades de Pool em território brasileiro. Em seguida, exibiu um vídeo com uma reportagem. - Esta transmissão de vídeo foi

interceptada quando estava sendo enviada, por satélite. O sinal partiu de algum ponto no interior da selva. Hoje, sabemos qual o seu destino. Uma grande
emissora de televisão Norte Americana. E apesar da transmissão ter sido feita há vinte dias atrás, a matéria só foi levada ao ar, pela emissora, no dia
de ontem. - comentou o General, nos instantes iniciais da

fita. - Pool, em sua estória cobertura, é o pastor Marcos. Ele colabora com uma ONG que

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está empenhada em divulgar o desrespeito das autoridades brasileiras aos direitos humanos. Em especial, desrespeitos ocorridos nas reservas indígenas dos
Ianomâmis. Esta organização propaga o conceito de "soberania restrita". Segundo o qual, santuários ecológicos, como a Amazônia, devem ser governados por
um consórcio de países. Garantindo assim sua preservação. - Barros prosseguiu falando, enquanto acomodava- se em sua cadeira. As imagens do vídeo mostravam
ao mundo verdadeiros massacres de índios. Dezenas de corpos de indígenas, da "Nação Ianomâmi", estavam retorcidos, jogados ao chão, sem vida. Índias mortas,
com seus filhos amarrados à cintura, eram exibidas em algumas tomadas. As imagens retratavam uma crueldade

surpreendentemente devastadora. Na fita havia trechos de noticiários exibidos em vários pontos do mundo. Em todos eles, chamava atenção o destaque dado
às imagens- denúncia, feitas com exclusividade pelos participantes da ONG Green Amazon. Imagens conseguidas por acaso. Pois, segundo os ativistas da Green
Amazon, eles, coincidentemente, chegavam para fazer uma visita àquela comunidade quando encontraram o quadro macabro de flagrante desrespeito aos indígenas
da Amazônia.

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As imagens com relatos de nativos revoltados e chorosos eram muito fortes. O repórter, da ONG, perguntava a um dos indígenas o que aconteceu ali. O homem,
nativo, era o professor de português da escolinha da comunidade. Aos soluços, diante dos corpos perfurados de sua mãe, de sua esposa e filhos, ele conta
que tropas do Exército Brasileiro haviam chegado à comunidade, como de costume, de helicóptero. "Daí em diante tudo começou a acontecer. Tudo de ruim veio
junto. Foi informado ao tuxaua

que aquela comunidade não deveria mais permanecer na região. Todos deveriam pegar comida, queimar os abrigos e abandonar a área, subindo o rio. Como o tuxaua
negou- se a explicar tais ordens para os outros, que não entendem ainda muito bem o português, a tropa passou a realizar fogo em todas as direções. Não
poupando ninguém. Quem estava perto levou tiro. Só sobrevivi porque corri para a mata." Conta o professor, lamentando não ter desobedecido ao tuxaua e
traduzido as ordens dos militares para a comunidade. Ajoelhado, junto aos corpos de seus filhos, o professor continuou: "Após isso, o tuxaua foi avisado
de

que só existe um governo no Brasil e que ali, por se tratar de terras brasileiras, todos deviam respeito e obediência a este governo. Aquilo ali era para
servir de lição. Alguns minutos depois a

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aeronave partiu." O índio, muito emocionado, para de falar e começa a chorar abraçando o corpo de um de seus filhos. O repórter continua o passeio funéreo.
Agora, mostrando estojos espalhados pelo

chão, estojos ejetados pelos fuzis dos executores. As imagens revelam o local utilizado pela aeronave para pousar e, também, algumas crianças feridas, recebendo
atendimento médico das mãos de integrantes da ONG. Encerrando a

transmissão, o repórter, visivelmente transtornado, pergunta: "Até quando a humanidade e os seus líderes se omitirão diante de fatos como esse? Fatos que
demonstram o surgimento de um novo ciclo de limpeza étnica. Tão cruel como o desencadeado durante a Segunda Guerra Mundial ou quanto o iniciado em Kosovo.
Esta nova tentativa de limpeza étnica tem de ser detida!" A fita termina. Por instantes o silêncio na

sala é sepulcral. - Ramos, parabéns, mais uma vez, pelo êxito alcançado na missão. Você está dispensado, pode ir descansar. Amanhã conversaremos. - Sim
senhor. Selva! - o brado curto, dado por Ramos, veio acompanhado da continência, prestada em referência respeitosa à mais alta autoridade presente.

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Após a saída do tenente a reunião atingiu seu clímax. - Seguindo orientação recebida está manhã em Brasília, passo à leitura de uma

mensagem do Comandante do Exército aos senhores. As palavras lidas pelo General anunciavam o futuro, tão cogitado e distante, para hoje. Era hora de sair
do seguro e confortável campo do cogitátil e enveredar pelas sombrias e solitárias trilhas das vias de fato. Em seu alojamento Ramos tentava

aproveitar as últimas horas da noite para dormir, mas a despeito do cansaço havia perguntas sem respostas em sua cabeça. Afinal, qual situação levaria aqueles
oficiais a uma reunião, em caráter de urgência, noite adentro? Por quê a Operação Louva- Deus elucidaria o assunto em pauta? Como seria possível a companheiros
da Força Terrestre executar civis inocentes, como aqueles índios da fita de vídeo? Logo indígenas que sempre receberam- no com carinho e

sinceridade, em todas as suas jornadas na selva. Os sons do ar condicionado e dos mosquitos, que rondavam em busca de

alimento, foram ficando mais distantes. Ramos adormeceu. O toque de alvorada anunciava o início de uma nova jornada. Para Ramos, acostumado a dormir poucas
horas por noite, o sono de duas

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horas havia sido recuperador. Na ida para o refeitório observou que as portas da sala de reuniões ainda estavam fechadas. No refeitório, Ramos perguntou,
como quem não quer nada, ao cassineiro: - E aí guerreiro, a reunião acabou?

- Não senhor! Servi café e água, durante toda a noite, para o pessoal reunido. O "negócio" parece estar rendendo lá dentro. O tenente sorriu e dispensou
o soldado

cassineiro. Ainda no refeitório, Ramos viu, estampada nos jornais, a explosiva repercussão da reportagem veiculada pela mídia no dia anterior. Várias páginas
inteiramente dedicadas ao assunto recheavam os jornais. No Brasil as opiniões pareciam divididas. Alguns repudiavam a inexplicável violência

empregada contra os índios, outros, simplesmente, não acreditavam que tal selvageria pudesse ser obra de uma força federal brasileira. "Nosso exército sempre
teve um excelente

relacionamento com os índios amazônidas, principalmente na faixa de fronteira em questão." Afirmava um ex- funcionário da Fundação Nacional do Índio, entrevistado.
Um ex- funcionário do mesmo órgão afirmava, em entrevista, que o governo foi advertido, dois anos atrás, quanto à existência de cinqüenta e cinco grupos
indígenas isolados.

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Etnias que poderiam desaparecer sem que o mundo as conhecesse. Mas não demonstrou nenhum interesse pelo assunto. Ainda segundo o ex- funcionário: "Tudo
isso está acontecendo devido à prioridade dada pelo governo a projetos eleitoreiros. Como foi o caso do SIVAM na

Amazônia Legal. Pois de nada adianta implantar um complexo para defender e fiscalizar os limites do território brasileiro, o meio ambiente, o contrabando
e o tráfico de drogas, se os moradores da região, os índios, não recebem apoio, não são tratados como cidadões. A estes legítimos donos da terra amazônica
o governo

tem negado as condições mínimas de sobrevivência. Preferindo dar apoio à programas pirotécnicos. Sabemos que, na última década, oitenta e

sete grupos indígenas foram dizimados no Brasil. Todos em nome do desenvolvimento. Nós, na FUNAI, sempre procuramos deixar claro

o desagrado com o uso, pelo SIVAM, de terras indígenas. Para se ter uma idéia, estas terras são, ou eram, dezoito por cento do território da Amazônia Legal.
Um total de noventa e dois milhões de hectares. Terras onde, antes, habitavam aproximadamente cento e cinqüenta mil índios. Hoje, como muitos destes índios
desapareceram, temos que dizer que o SIVAM falhou, a FUNAI falhou, eu falhei e a

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humanidade; bem, a humanidade sofreu uma grande perda, porque não teve a chance de conhecer parte de sua origem. Atualmente faço parte de uma ONG que

busca atrair a atenção das autoridades para as necessidades dos povos indígenas da Amazônia. Parte do nosso trabalho está alicerçado no artigo duzentos
e trinta e um da Constituição Federal, que garante ao índio as terras tradicionalmente ocupadas por eles de forma permanente. A Carta Magna brasileira
é elogiada em todo o mundo por estabelecer garantias aos povos indígenas. Enquanto outros países solucionaram o assunto da forma mais fácil e medíocre;
acabando com o índio, nossa constituição soluciona boa parte dos problemas indígenas ao assegurar cidadania aos povos indígenas. O problema é que não se
cumpre a

Constituição Federal. Há muitos anos, uma parcela de nossa sociedade e boa parte do governo tem feito vistas grossas a vários abusos de poder. Principalmente
no trato de questões indígenas. Um bom indicador de nossa irresponsabilidade é que as terras indígenas ocupam atualmente dez por cento do território brasileiro
e são habitadas por trezentos e trinta mil índios. Pode até parecer muito, mas as terras que sobraram para os índios não são suficientes para que este
povo cresça e desenvolva livremente sua cultura.

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Basta lembrarmos que em mil e quinhentos, quando os portugueses chegaram aqui, havia cinco milhões de indígenas no País, hoje a população indígena está
reduzida a menos de dez por cento deste contingente. Segundo dados da FUNAI, existem hoje

no Brasil quinhentos e setenta e uma áreas indígenas. Das quais quinhentos e vinte e cinco estão demarcadas e setenta e nove em fase de demarcação. Na Amazônia
Legal são trezentos e sessenta e três áreas. Sendo que destas duzentos e dezessete estão demarcadas e

quarenta e seis em processo de demarcação. Vinte e um por cento das áreas indígenas da Amazônia Legal encontram- se no Estado do Amazonas, onde há oitenta
áreas em demarcação e sessenta e nove para serem demarcadas." Concluindo, o ex- funcionário, que demitiuse

da FUNAI há dois anos por divergências ideológicas, disse que o governo e a sociedade, puderam assistir ontem, em suas casas, às cenas de uma tragédia há
muito anunciada. Ao lado das duas páginas de entrevista com este ex- funcionário da FUNAI, uma tímida nota do porta voz da Presidência da República rebatia
as afirmações feitas. Dizendo estarem, os números apresentados, desatualizados. "Este senhor está alguns anos atrasado na história. Os números e os demais
dados, por

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ele citados, não retratam a atual situação dos povos indígenas do Brasil. Muito menos da Amazônia. O Senhor Presidente tem se empenhado pessoalmente em
todas as questões de interesse das minorias. Buscando, sempre, garantir- lhes a igualdade de condições. Tal e qual rege nossa constituição." Ramos fechou
o jornal, colocando- o sobre o sofá, depois saiu do refeitório. Queria aproveitar o dia

para colocar assuntos particulares em ordem. Entre estes, matar as saudades da família ligando para seus pais. Jornais de todo o mundo estavam repletos
de notas relativas às imagens do

massacre de índios no Brasil. Representantes de Organizações Governamentais e Não Governamentais, de diversos Países, repudiavam as ações militares desencadeadas
contra os índios amazônidas. Grupos de direitos humanos e algumas ONGs anunciavam o envio

de observadores para a região, com o objetivo de apurar o ocorrido e evitar novos incidentes. No entanto, em todos os jornais não

havia, sequer, uma versão oficial do governo brasileiro para os fatos mostrados ao mundo na noite anterior. Esse retardo trouxe desinformação e insegurança,
acabando por cizalhar a própria opinião pública brasileira. O silêncio do governo atuou como um agente potencializador do veneno que fora,

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cuidadosamente, injetado nas veias das famílias brasileiras. *** O braço, coberto por gases cirúrgicas, destoava do uniforme azul usado pelo homem ao entrar
no pentágono, naquela tarde fria em Washington. Em seu outro braço, uma maleta de couro trazia documentos cuidadosamente estudados. O produto de meses
de trabalho começava a tornar- se palpável. Era apenas uma questão de tempo para o êxito coroar o planejamento meticuloso aliado ao emprego do melhor material
humano existente nos USA e dos mais avançados recursos tecnológicos,. Durante a primeira reunião do dia o

Almirante Taylor, demoveu- o da idéia de que tudo estava correndo como o planejado. Taylor passou para o major uma transcrição do último contato da Equipe
Abutre. Nesta, o Sargento

Kersey, companheiro de Flening em diversas missões das Forças Especiais, reportava ao comando que o coronel Pool Allen havia sido capturado dentro do setor
laranja. Além de informar outras baixas. A mensagem terminava informando que a Equipe Abutre aguardava novas instruções em KL1, no setor verde.

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Como toda a comunicação utilizada nesta operação consistia de um processo no qual uma mensagem era gravada, digitalizada, criptografada, compactada, misturada,
repartida em pacotes e enviada por satélites militares em pulsos equalizados com duração inferior a um milésimo, Flening sabia; aquela mensagem não

podia ser interferência ou engano. A mensagem de Abutre causou desconforto. Principalmente porque o coronel Pool não deveria estar no front. Foi aquele
homem, de um metro e sessenta, com o aspecto típico dos nativos da região Norte do Brasil e de renomada competência e bravura, dentro e fora dos meios
militares Norte

Americanos, que esboçara toda a operação hora articulada. Mas com seu espírito aventureiro e imenso poder de barganha ele conseguiu , só Deus sabe como,
convencer ao alto escalão de

que a sua presença no Teatro de Operações traria benefícios adicionais para o desenvolvimento das ações subseqüentes. - Com a ação de um grupo militar brasileiro
sobre nossa equipe, ainda nesta fase, fica claro que subestimamos, em algum momento, o nosso oponente. - disse o Almirante Taylor, com um ar de preocupação
no olhar. A porta da sala se abriu, um sargento entrou com passos apressados.

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- Almirante, o Presidente dos USA está ao telefone e deseja falar- lhe. O Almirante se levantou e, em tom de voz grave, avisou que atenderia em seu gabinete.
***

A chuva torrencial, típica das florestas equatoriais, castigava a copa das árvores. Um volume d'água grande o suficiente para causar verdadeiras catástrofes,
em muitos dos centros urbanos, despencava dos céus, por horas a fio. No interior da selva, abaixo da copa das árvores, os pingos de chuva eram maiores
e mais esparsos. O som causado pelo choque das gotas de chuva com as enormes folhas da vegetação amazônica era forte. Abafava qualquer outro som da selva.
Conscientes desta vantagem tática, oferecida pela chuva, os homens de um pequeno grupo de reconhecimento aproveitavam para progredir em direção ao objetivo.
Precisavam levantar os elementos essenciais de informação pedidos pelo escalão superior. Objetivo, o Pelotão de Fronteira de São Joaquim, célula integrante
do projeto governamental brasileiro para povoamento e progresso das linhas de fronteira da Amazônia, o Calha Norte.

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O Pelotão de São Joaquim, 3º PEF, fica a cerca de quatrocentos quilômetros à Noroeste do Município de São Gabriel da Cachoeira e

entre esses dois núcleos habitacionais existe, apenas, o vazio verde da imensidão amazônica. A comunidade de São Joaquim está debruçada sobre o Rio Içana.
Um dos afluentes do Rio Negro. O 3º PEF é um dos pelotões destacados do 5º Batalhão de Infantaria de Selva / Batalhão

Forte São Gabriel. Unidade militar incrustada na paisagem serrana do município de São Gabriel da Cachoeira, o 5º BIS fica a seiscentos e vinte e oito quilômetros
de Manaus. Este Batalhão controla, ainda, outros seis pelotões de fronteira. Todos dispostos estrategicamente no perímetro de uma região conhecida como
"cabeça do

cachorro", por conta da aparência de seu contorno nos mapas. A principal ligação entre o Pelotão de São

Joaquim e a civilização acontece a partir de São Gabriel da Cachoeira. Quando em vôos relativamente regulares, uma vez por mês, aeronaves militares abastecem
o pelotão com gêneros alimentícios, materiais necessários à

manutenção do PEF, remédios e encomendas particulares. Nestes vôos também chegam e se vão passageiros, devidamente autorizados pela força aérea, são os
caroneiros. Estes em geral nativos, funcionários da FUNAI ou militares transferidos com suas respectivas famílias.

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Para determinados habitantes da fronteira a aeronave representa um algo mais, algo muito além da compreensão de seu fim prático. Por fazer o transporte
da correspondência, a aeronave acaba sendo vista como mensageira do desprendimento de espírito, emissária dos sonhos. Um outro meio possível para a ligação
do

PEF à São Gabriel é o fluvial. Mas este somente é utilizado em último caso, pois o trecho do Rio Içana a ser percorrido tem quinze cachoeiras. De portes
variados, estas cachoeiras, dependendo da época do ano, obrigam os viajantes a realizar repetidas vezes o desembarque de material e

pessoal para seu translado. Nas costas, através trilha, todo o material e a própria embarcação têm de ser transportados, até o próximo ponto navegável do
rio. Os três homens permaneceram dois dias na posição ocupada para o reconhecimento. Por meio de turnos revezavam- se, de sol a sol, na

observação e tomada de notas. Durante dois dias não houve um minuto de descontração ou bate papo entre aqueles homens. Toda comunicação era feita por meio
de sinais e gestos convencionados ou por meio de sinais em FM. Um pequeno painel acoplado em seus pulsos permitia o armazenamento e a troca de

dados em rede, dentro da equipe. O mesmo dispositivo possibilitava a conexão com a

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estação rádio, do grupo, para o envio do relatório diário. Direto para Washington, via satélite. No entanto, tais relatórios diários jamais conseguiram
sair do interior da selva. Frustrando expectativas otimistas, burlando

planejamentos minuciosos e contribuindo para o aumento do stress. A floresta latifoliada constitui- se em um grande empecilho às comunicações e um fator
de desfavorecimento à superioridade bélica, sobretudo quando a superioridade advém apenas do emprego farto de alta tecnologia. Daquele grupo de reconhecimento,
a

selva cobrava, mais uma vez, o seu preço. Apenas o sistema de comunicação de curta distância apresentava rendimento satisfatório. Assim, o grupo passou
a seguir a conduta estabelecida para o caso de quebra da comunicação com a base de operações. Durante o planejamento da operação

ficou acertado o envio, às duas horas da manhã de cada dia, do relatório de acompanhamento tático. Caso o contato fosse perdido, a equipe passaria a ter
autonomia operacional durante as noventa e seis horas subseqüentes ao último contato estabelecido. Passado este prazo, o

grupo deveria estar no ponto de extração "ZEBRA". No grupo, o mais inexperiente, em operações na selva, era o Sargento Murdok.

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Ranger e especialista em explosivos das Forças Especiais, ele foi destacado para esta missão na última hora. O militar anteriormente escalado sofreu um
grave acidente de carro, na semana que antecedeu ao embarque, ficando impossibilitado de compor a equipe. Murdok jamais estivera em um ambiente

tão hostil quanto aquele. As, infindáveis, horas de treinamento e simulação de combate, dos cursos que fizera até então, pareciam de nada servir quando
diante da imensa angústia que aquele inferno verde estava impondo à sua alma. A preocupação número um para Murdok, nas últimas jornadas, era ocultar dos
outros dois companheiros de missão suas fraquezas, suas dificuldades em ambientar- se à selva. Outro integrante do grupo era o Tenente

Jefrey Tess. Advindo de uma família com muita tradição nas Forças Armadas dos Estados Unidos da América, Jefrey Tess ou apenas Tess, como preferiam os amigos
e familiares, conquistara, por mérito próprio, destaque em sua área de atuação. Era um oficial da

inteligência que adorava o trabalho de campo e por conta disso vivia desencavando aqui e ali situações que viabilizassem seu emprego direto. Achava o trabalho
de analista monótono demais quando restrito à quatro paredes. O terceiro homem era o Capitão Perez, oficial em comando.

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Ao final do segundo dia foi observada uma grande movimentação no interior do Pelotão. Vários disparos, com munição traçante, costuraram o manto de escuridão
da noite. Nos alojamentos, onde moravam os soldados solteiros, na região de casarios, onde moravam os oficiais e praças casados, e na comunidade

indígena, onde moravam com suas famílias alguns dos soldados nativos, pessoas gritavam. A agitação era a negação de tudo que fora observado até então. Acordados,
os três assistiam à tudo, graças ao uso dos óculos de visão noturna associados à lunetas. Em todos os corações pairava a mesma dúvida: "Fomos descobertos?"
Mas os fogos não eram racionais! Partiam de um único ponto. Desde o início, partiam das mãos do homem que comandava o pelotão e eram executados para o
alto enquanto ele vociferava algumas palavras em espanhol ou língua parecida. "Será que o stress aflorara, naquela noite, de forma incontrolável para aquele
oficial? Será loucura ou algum ajuste de contas?" Pensava

Perez. A verdade é que em apenas alguns minutos, que separaram a surpresa do início dos fogos e a compreensão do porquê de sua realização, aqueles três
homens puderam conjecturar centenas de hipóteses para explicar tal fato.

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Indiferente às dúvidas do grupo de reconhecimento estacionado na orla da mata, o Tenente Marcos André realizava naquela noite, ao seu modo, o treinamento
do plano de defesa

do pelotão. Segundo ficou acertado previamente, as famílias também deveriam participar da defesa do pelotão, guarnecendo suas casas, conhecidas como próprios
nacionais ou PNRs. Para tanto, em caso de acionamento do plano

de defesa, todos os ocupantes dos PNRs sairiam por um alçapão, vindo desembocar na parte debaixo de suas casas. Como foram construídos sobre pilaretes,
para evitar a agressiva umidade da região, os próprios nacionais possuíam um grande espaço disponível abaixo do piso de tábua corrida. E era nesta parte
debaixo das casas que as mulheres deveriam proteger as crianças e suas próprias vidas. Contavam, para tal, com uma pistola

calibre nove milímetros, duas caixas de munição e uma barricada construída com latões de duzentos litros cheios de brita. Enquanto elas estivessem guarnecendo
os setores dos PNRs, seus maridos cerrariam aos postos prédeterminados,

de acordo com as funções desempenhadas por cada um dentro do pelotão. No comando do Terceiro PEF há algumas semanas, Marcos André, tomou uma série de providências
para melhorar a segurança do pelotão. Primeiramente, proibiu o livre acesso de

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civis ao pelotão. Indígenas, parentes de soldados, ex- soldados ou prestadores de serviços tiveram de passar a justificar sua entrada e saída do perímetro
do PEF. "Isso aqui é uma unidade militar, pessoal! Não podemos ser tão displicentes com a segurança, só por que estamos isolados no coração da selva. Logo
aqui ao lado vemos problemas com os guerrilheiros da FARC, todos os dias, e, como se isso não bastasse, temos traficantes atuando

na região. Parem para pensar: Qual a Unidade Militar em que vocês estiveram onde todo mundo pode entrar e sair a hora que quiser, sem se identificar, sem
ser revistado?!" Foi o que falou

Marcos André, em uma de suas primeiras reuniões, para os sargentos e demais militares do pelotão. Outras medidas vieram, visando incrementar a segurança.
Foram construídos os alçapões nas casas e barricadas para as famílias sob os assoalhos de cada PNR. Toda a munição, que antes ficava em um paiol a quinhentos
metros da sede do PEF, foi distribuída em cachês de pronto emprego, espalhados estrategicamente na área do pelotão. Cada homem passou a ficar dia e noite
com seu armamento e munição de dotação, assim como as mulheres residentes nos PNRs. Para tornar efetiva a segurança das mulheres no manuseio das armas,
Marcos

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organizou uma gincana. Nela incluiu o tiro de pistola e fuzil para as mulheres dos militares. Em outra prova, ofereceu um prêmio para a

família que ocupasse mais rápido e silenciosamente as barricadas dos PNRs. Passou a conscientizar, à todos, da

necessidade de zelo pela segurança e da importância da presença do Brasil naquela faixa de terra. Assim aquele jovem oficial, nos seus vinte e três anos
de idade, começava a colocar a

casa em ordem. Para alguns sargentos, cabos e soldados, há anos na fronteira, Marcos André era só mais um embusteiro. Um teórico vindo da Academia Militar
das Agulhas Negras, um neófito amedrontado pelos fantasmas do

comando prematuro ou pelas histórias veiculadas pela imprensa sobre a Amazônia. Nada que alguns dias duros não levasse embora. Tal qual ocorrera ao comandante
anterior. Chegou com muito papo. Contraiu malária duas vezes, foi picado por uma surucucu dentro do seu próprio alojamento e, em seguida, pediu por favor
para sair do pelotão na primeira aeronave. A saída dos próprios nacionais sob fogo inimigo era, para Marcos, um dos pontos fracos na defesa do pelotão.
Por este motivo ele fizera modificações na sua estrutura.

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O Plano de Defesa anterior parecia ter sido desenvolvido para um mundo de faz de conta! Pois, como em um pelotão de fronteira, cercado pela selva, com poder
de fogo limitado, seria possível sobreviver alguém se sob ataque

de uma força inimiga fosse feito o seguinte: Primeiro, todos teriam de ir ao mesmo ponto, reserva de armamento, para pegar suas armas. Segundo, uma equipe,
no mínimo suicida, teria de progredir quinhentos metros a céu aberto para realizar o ressuprimento de munição. Sob a ótica de Marcos André, as normas de
defesa anteriores à sua chegada mereciam credibilidade apenas dos crentes na paz eterna. Na qual o pelotão não passa de um enfeite para

a bucólica paisagem do Rio Içana. Com todos em posição, Marcos e o sargento adjunto iniciaram a inspeção. Passando em todos os postos, verificavam se havia
algum erro no posicionamento. Se as mulheres e os militares estavam cientes dos setores de tiro a serem batidos por cada arma. Após sanar pequenas dúvidas
e corrigir detalhes o tenente deu alguns minutos de silêncio ao pelotão. Ele sabia que em momentos como aqueles muitos pensamentos incomuns afloravam à
mente humana. Era essa oportunidade que ele desejava aproveitar. A simulação de situações de risco impulsionam

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seus participantes a se questionarem: "E se isso acontecer comigo, meu Deus!?" Do ponto mais alto e central do PEF, a caixa d'água, Marcos André acionou,
por meio de vários silvos de apitos, o que chamou de "minuto de loucura". Neste treinamento todas as armas deveriam executar fogo dentro dos setores de

tiro pré- determinados até que a munição se extinguisse. Maculando o silêncio e a tez da noite, um grande e assombroso estrondo, seguido por sopros de fogo,
invadiu o ambiente. As armas cintilavam em um ritmo frenético e ensurdecedor. Do alto, Marcos constatava que os clarões indicavam trezentos e sessenta
graus do perímetro aproximado do pelotão cobertos por fogos. Logo a munição se extinguiu e o mórbido silêncio do nada, que atravessa a noite, reconquistou
seu território. Para as mulheres, pior do que acordar no meio da noite, tirar os filhos da cama, escorregar para baixo das casas, ficar na mais completa
escuridão

das barricadas, somente o zumbido que passou a povoar suas cabeças após a execução dos fogos. Era horrível! O risco deste tipo de treinamento era

muito grande. Algum indígena ou garimpeiro, desavisado, poderia entrar na linha de fogo. E por estar fora do PEF, na orla da selva, a espreita, matando
sua curiosidade sobre o

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motivo de tamanha agitação, podia ser alvejado. O próprio público interno estava sujeito a acidentes, principalmente as mulheres devido a sua pouca experiência
no manuseio de armas de fogo em situações como a simulada. Agravando os riscos, havia o sono e a pouca

seriedade com que alguns encaravam o treinamento. Marcos sabia dos riscos que impunha aos seus subordinados com tais procedimentos, mas algo lhe dizia para
fazer, mesmo assim. Ele também não queria que a

constância deste tipo de simulação acabasse por confundir os moradores do pelotão, ficando sempre a dúvida: "Será só mais um treinamento?" Não. Isso, definitivamente,
não poderia acontecer. Depois das horas de muita agitação, o grupo de reconhecimento pode concluir que não se tratava de um ataque ao pelotão e muito menos
à sua posição. De qualquer forma eles persistiram na observação, esgotando as últimas horas de escuridão daquela noite. Novamente o sistema de comunicação
se mostrava ineficiente, desta vez era o contato via

FM que apresentava deficiências. Perez tentara contato com o Sargento Murdok, por boa parte da noite, sem sucesso. Nas primeiras horas do dia o

monumental espetáculo do amanhecer amazônico começa a tomar forma. O dourado do

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sol banha a copa das árvores escorrendo em feixes esparsos pelo chão de folhas. Um zumbido estridente anuncia, pela trombeta dos insetos, a chegada de um
novo dia. Hora dos predadores notívagos encerrarem as atividades, buscando lugares seguros para o repouso. Dando a vez a novos predadores que, aliados
a opacidade da luz do dia no interior da selva, começam mais uma caçada pela sobrevivência. O vendaval de aromas soprado pelo vapor da vida, que brota
sem cessar do seio da Mãe Natureza, é fascinante e invade a alma dos afortunados, que presenciam, da selva, o

amanhecer. Com luminosidade suficiente para estabelecer contato visual, o Capitão Perez resolveu sair de sua posição e verificar como estavam seus comandados.
Encontrou o

Tenente Jefrey Tess com os olhos grudados na potente lente, trazendo o pelotão a alguns centímetros de sua posição, e a mastigar um chiclete. Perez acenou,
fez o sinal de OK e

indicou que caminharia até a posição do Murdok para dar uma olhada. O sargento estava no alto de uma imensa castanheira. Camuflado pelo copado ele, habilmente,
preparara um excelente posto de observação. Ao se aproximar o capitão verificou que Murdok havia se descuidado da esterilização da área. Algumas embalagens
de

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ração e uns poucos cartuchos de fuzil estavam caídos logo abaixo de sua posição. Perez recolheu os indícios denunciadores, displicentemente, atirados ao
chão pelo sargento. Enquanto esterilizava a área pensou: "Esse é um dos problemas de se operar com novatos. Mas estes jovens jamais chegarão a ter o status
de veteranos se não houver alguém disposto a pagar o preço do ensino". Depois da longa e cansativa subida, o

capitão chegara aos galhos que sustentavam o posto de observação preparado por Murdok. Nos galhos havia indícios de sangue. Era um sangue

escurecido, grosso como uma gelatina. Um cheiro agridoce, enjoativo e conhecido por Perez invadiu seus sentidos. "Será que Murdok abateu algum animal?"
Pensou o militar ao perceber os indícios de morte. Por entre as varas que sustentavam o sargento, em sua posição, um líquido avermelhado porém menos viscoso
escorria lentamente. Ao elevar um pouco mais o seu corpo, Perez viu a mochila de Murdok, atada a um dos galhos, ao lado carregadores, pacotes de ração
e um bloco de papel de carta. O sargento estava deitado de bruços, segurava em uma das mãos o fuzil e a outra mão estava oculta. Perez deu uma cutucada
nas pernas de

Murdok, mas ele deveria estar exausto em decorrência da noite anterior, pois não esboçou nenhuma reação, provavelmente dormindo um

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pouco. O capitão decidiu, então, subir na plataforma para acorda- lo. A quantidade de formigas e demais insetos passeando por toda a parte era impressionante
e havia muita formiga no uniforme de Murdok. Perez se permitiu quebrar, brevemente, a disciplina de

ruídos sussurrando: - E aí Murdok, servindo de isca para formigas deste inferninho?

Ao se postar próximo às costas do sargento, Perez sentiu a lança da tristeza espetar seu coração. Parte da massa cefálica do

companheiro estava exposta através de um buraco à retaguarda da cabeça e servia de café da manhã para uma gama de insetos vorazes. Virando o corpo de Murdok,
Perez viu o inchaço e o orifício em sua testa, causados pelo impacto de um projétil de sete meia dois milímetros ou cinco cinco meia milímetros. "Provavelmente,
na noite anterior, durante a movimentação no pelotão, Murdok havia sido atingido, acidentalmente, por uma bala perdida." Concluiu

Perez. *** Na manhã seguinte, houve uma grande reunião onde todos do PEF tiveram de comparecer. Os aspectos positivos e negativos

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do treinamento da noite anterior foram ressaltados. Soluções alternativas emergiram das próprias famílias e ficou acertado que se algum dia disparos cortassem
a noite, novamente, não seria um treinamento. Durante a reunião, com duração de quase duas horas, uma pergunta vinda do sargento encarregado do rancho
serviu para revelar parte do perfil do novo comandante do pelotão. Perguntado se o comando do 5º Batalhão de

Infantaria de Selva tinha conhecimento dos procedimentos adotados por ele nos últimos dias, Marcos respondeu, com seu jeito risonho e carismático de ser.
- Quando o Coronel Castelo Branco escolheu- me para assumir o comando do pelotão ele o fez por confiança em meu caráter, minha capacidade profissional
e principalmente

por que não queria um fantoche chorão e perguntador sentado no posto rádio, descrevendo a dureza da vida na fronteira ou lhe

perguntando, a cada instante, o que ou como fazer. Apontando para a pista de pouso do pelotão, Marcos continuou. - Mas, se alguém se sentir ameaçado ou
incomodado pelo meu comando tem plena liberdade de seguir para São Gabriel da Cachoeira, na primeira aeronave, e conversar com o comandante do batalhão.

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Encerrada a reunião, da qual todos saíram estremecidos, em particular aqueles que sorriam para o comandante mas tramavam à suas costas. Tramavam, pois seria
muito melhor atuar sob comando de um oficial mais tranqüilo. Um capaz de cobrar apenas o básico. Um tenente que não levasse ao pé da letra o

lema "Vida, Combate e Trabalho", empregado como filosofia de condução dos pelotões de fronteira. Um oficial apenas preocupado com a "Vida". Portanto, sem
preocupações desnecessárias com o "Combate". "Trabalho", apenas o suficiente para ocupar suas mentes. Assim, todos seguiriam deixando o barco do

tempo deslizar, sem sustos, até o porto seguro da transferência para suas cidades de origem. Este era o conceito de fronteira romântica

cultuado por alguns militares. Geralmente, pessoas trazidas para a região à contragosto. Certamente minoria, mas ainda assim perigosa. *** O caminho até
o ponto de extração era desgastante, cortava várias linhas d'água e estava desenhado sobre uma carta que, apesar de toda a tecnologia empregada em sua
confecção, não mostrava as intermináveis

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subidas e descidas forçadas pelos socavões existentes no relevo da "planície" amazônica. A cada "soca" transposto, Perez tinha mais certeza de que a decisão
de abortar a missão e iniciar o retraimento foi a mais acertada. Conduzir um ferido ou um corpo no

interior da selva amazônica era tarefa difícil e extremamente retardadora. Os espinhos maltratavam as carnes dos militares e os insetos pareciam não dar
a mínima importância

ao repelente usado por eles. A maca improvisada, com duas varas verdes, descascadas, e gandolas do próprio falecido, dificultava a progressão. Ela prendia
nos cipós, entalava nos estreitos labirintos de árvores e tornava as constantes subidas de socavões escorregadios tarefas ainda mais sacrificantes. O saco
usado para conduzir o

corpo de Murdok sobre a maca rasgou. A cada parada mais insetos disputavam o direito por um assento à mesa, vinham atraídos pelo cheiro da morte e suas
secreções. Durante a noite, Perez e Jefrey revezaramse

na guarda da posição. Foi lá pelas três da manhã que Jefrey notou um movimento no setor leste de sua posição. Acordando Perez, os dois permaneceram em alerta
até o dia chegar pois mesmo com o equipamento de visão noturna eles não conseguiam ver o intruso, apenas ouviam alguns sons misteriosos, como rugidos.

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Com o dia claro Perez constatou que havia vestígios, em todo o perímetro, da presença de um felino de grande porte. De certo, atraído pelo odor de seus
corpos há muito privados de um banho. Era imperativo redobrar a atenção e

ganhar nas horas de luz o máximo em progressão. Após o consumo da ração relativa ao café da manhã uma forte chuva veio acompanhar o início da marcha. As
árvores da selva amazônica possuem raízes conhecidas como preguiçosas, por não se aprofundarem no solo. Isso ocorre porque a vegetação tem facilidade em
obter água logo na superfície. Devido a essa peculiaridade, torna- se extremamente perigoso caminhar na selva

durante as chuvas. As árvores, sem a sustentação de raízes profundas, tombam diante dos ventos das tempestades tropicais. Perez e Jefrey estavam em meio
a um dominó gigante. Troncos centenários caiam levando outros consigo. Imensos cipós chicoteavam aqui e ali, espalhando destruição e

abrindo espaço para novas vidas. Mais um ato do contínuo balé da criação. O barulho dos trovões ficava diminuto, comparado ao ronco

enfurecido da mãe natureza abrindo suas entranhas para a saída de mais uma filha. O perigo era grande, mas os dois precisavam continuar rumo ao ponto de
extração. Em poucos minutos surgiu uma imensa clareira, formada

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por árvores tombadas. Por toda parte encontrava- se vida em mudança. Cobras, escorpiões, formigas, animais de pêlo e sangue quente, pareciam entender, resignados,
o motivo de seus despejos. Seguindo para outras áreas. Vez por outra, Perez e Jefrey se viram obrigados a desviar de sua rota para evitar cobras e

troncos recém caídos. Ambos apresentavam ferimentos nos braços, ombros e pernas, causados pela vegetação espinhosa e pelas quedas. O ferimento mais sério
era o de Jefrey. Durante a chuva, ele escorregou na descida de um socavão, só parando vinte metros abaixo, escorado por uma palmeira negra. Esta espécie

de palmeira possui longos e resistentes espinhos em seu tronco. Como resultado Jefrey tivera seu braço direito transfixado por vários espinhos e no ombro,
do mesmo lado do braço, outros tantos espinhos estavam cravados em sua carne. A dificuldade em transportar o corpo do companheiro parecia crescer a cada
passo. O fôlego dos militares era afetado pelo ar quente e úmido da mata, um ar indiferente às necessidades dos forasteiros. O calor, vaporoso, apressava
a exaustão. Os dois marcharam, sem paradas, durante todo o dia. Em silêncio, eles caminhavam, apenas caminhavam. Mesmo no

momento das quedas, como a de Jefrey, o

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sofrimento calava as almas e selava as bocas. Era como se um grande pacto de sofrimento emergisse entre aqueles militares. As dificuldades impostas pela
missão eram absorvidas passivamente pelos seus corpos e

suas mentes eram alimentadas pela perspectiva de entregar o companheiro morto à sua família. Segurança não foi o ponto alto do deslocamento. Os dois conduziam
o armamento em bandoleira, ocupando as duas mãos com a tarefa de conduzir o falecido. Com a chegada da noite a decisão! Era preciso continuar a caminhada,
não

havia tempo para pernoite. Decisão tomada, uma rápida parada para tentar contato com a base de operações. Desta vez, milagrosamente, as comunicações funcionaram.
Aproveitaram, então, para consumir ração e colocar medicamento nos ferimentos. O ambiente

quente e úmido da selva leva qualquer ferimento à purulência em poucas horas e isso associado à debilitação orgânica, própria aos que operam sob condições
tão adversas, pode comprometer a continuidade das ações. Causando baixas e

perda da capacidade combativa de frações inteiras. - Capitão, o senhor tem alguma coisa para passar nos pés? Os meus estão estranhos, parecem dormentes
e enrugados.

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- Não estranhe! Estivemos nas últimas horas com água até os malditos sacos e como se isso não bastasse o solo irregular, cheio de raízes, sementes, descidas
e subidas, maltrata os pés. Tome. Massageie os pés com esta pomada e coloque meias secas. Na hora pareceu besteira. Em meio a

tanta umidade passar mais pomada nos pés e essa história de trocar a meia! Para que? Se dois passos depois elas estariam encharcadas. Mesmo confuso Jefrey
seguiu os conselhos do superior. Descobriria, minutos depois, o quanto valorosas eram as dicas dadas por Perez. Por volta das quatorze horas do dia

seguinte os remanescentes do grupo de reconhecimento alcançaram o ponto de extração. O saco, com o corpo de Murdok, foi o primeiro a ser embarcado na aeronave.
O cadáver endurecido foi colocado no chão com ajuda de um dos tripulantes. Seu invólucro, de

cor preta, apresentava rasgos por onde escorriam líquidos fétidos acompanhados, vez por outra, por formigas.

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Pupunha O despertador tocou, uma, duas, três vezes. Em um último esforço para continuar dormindo Kate virou para o lado, cobrindo a cabeça com o travesseiro.
Mas o algoz das noites, mensageiro dos compromissos, continuava o anuncio estridente, estava na hora de levantar. Eram duas horas da manhã de uma terça-
feira fria e chuvosa em São Paulo. Dentro de minutos Kate deveria estar no Aeroporto de

Guarulhos para cumprir mais uma escala de comissariado. Todo o glamour da profissão de

comissária de bordo era rapidamente esquecido em horas como aquela. Não havia jeito, a solução era levantar e chamar a companheira, também comissária, que
dividia o aluguel do

apartamento e concorria à mesma escala de vôo. - Tirar Márcia da cama, hoje, não vai ser fácil! - resmungou Kate, enquanto dobrava a

roupa de cama, acomodando- a no interior do armário. Aproximando- se da porta do quarto de

Márcia, Kate chegou a conclusão de que naquela noite não seria necessário seu serviço de despertadora. A julgar pelos gemidos animais e o vai- vem das silhuetas
observadas

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pela porta entreaberta, Márcia estava bem acordada e ocupada. Restava, então, um banho bem quentinho, para despertar do sono e prepara- la para as longas
horas de vôo subseqüentes. Sob o chuveiro, a água quente e a

esponja suave deslizando na pele macia, coberta por pêlos dourados, pareciam entorpecer Kate. A lembrança do que acabara de ver no quarto ao lado, brotou
repentinamente em seus pensamentos. Sentindo o corpo envolvido carinhosamente pelo abraço de calor e umidade dos vapores , Kate imaginou o que ainda estaria
acontecendo no quarto da colega. O instinto guiou suas mãos aos pêlos pubianos, loirinhos e cuidadosamente aparados. Em um estremecer lânguido, Kate cerrou
os olhos azuis se entregando ao prazer. Mãos, dedos, seios, seu corpo mergulhava na fantasia de estar nos braços do seu homem. Do amor não

correspondido. Logo uma onda de prazer varreu corpo e alma, um sorriso de menina veio à tona. ***

Com todos os passageiros sentados, a aeronave iniciou o taxiamento. As comissárias, dentro de uniformes impecáveis, demonstravam

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procedimentos para o caso de emergência. A comissária morena, que demonstrava tais procedimentos para os passageiros da primeira classe, parecia meio dispersiva
e lenta ao executar os movimentos. Mesmo a pesada maquiagem não era suficiente para esconder as marcas da noite em claro. Kate, postada na

outra extremidade do mesmo corredor, coordenava outras atividades. Ela sabia o quanto duras seriam as próximas doze horas. Além de aturar passageiros inconvenientes
e mal educados, seria preciso ouvir as lamentações da companheira. Sentindo o cansaço advindo de mais uma

noitada de prazer às vésperas de um vôo, Márcia insistia em tentar convencer Kate de que não cometeria o mesmo erro novamente. Reclamando do sono para quem
quisesse ouvir. - Amiga, este cansaço que estou sentindo

não vale a pena, nem por aquele homem maravilhoso de ontem, nem por nada no mundo. Mal posso esperar para deitar e dormir um pouco. - disse Márcia a Kate
após a segunda decolagem do dia. Nada que o tempo e o sangue apimentado da moreninha de olhos esverdeados, sorriso contagiante e corpo esculpido por anos
de malhação em academias de ginástica, não pudessem apagar.

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Durante o vôo, um dos passageiros pediu à Kate doce de abóbora com coco queimado. A comissária respondeu, de pronto: - Não temos o sabor da terra. Mais
alguma coisa, senhor?

- Não, obrigado. Havia sido realizada a troca de senha e contra senha. Discretamente e em hora oportuna o homem passou e recebeu das mãos de Kate algo semelhante
a um pequeno cartão. ***

Em diversos países, eclodiram protestos, formais e informais, decorrentes das notícias de chacinas contra Nações indígenas da Amazônia. Montanhas de missivas,
ondas de telefonemas chegavam diariamente a Brasília. Cobravam esclarecimentos, buscavam informações oficiais, manifestavam a insatisfação com o

estado de coisas revelado ao mundo nos últimos dias. No continente europeu, fóruns, debates e passeatas, organizados por ONGs, abordavam a forma imprópria
como o governo brasileiro vinha tratando os assuntos relativos às nações indígenas e a própria Amazônia, com seu

incalculável manancial hídrico. Ponto de

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consenso em todos estes fóruns e também nas reuniões realizadas pelos Chefes de Estado de algumas das maiores potências econômicas, a necessidade de ater-
se ao imperativo moral revertendo a tentativa de limpeza étnica e a matança de indígenas amazônidas, começava a ser comentado abertamente. A imprensa internacional
divulgou que as autoridades brasileiras, mesmo diante de

repetidos aclames da comunidade internacional, não teriam apresentado, sequer, uma versão oficial e consistente para o massacre de índios na Amazônia. Aumentando
a indignação pública, cimentando corações e mentes. Por outro lado, o governo brasileiro

começava a perceber a maliciosa permeabilidade seletiva empregada pelas agências estrangeiras de notícias para divulgar informações sobre o assunto. Os
poucos esclarecimentos advindos de fontes oficiais que saiam do país eram, primeiro, destorcidos e, depois, retardados ao máximo. Quando chegavam aos noticiários,
ao redor do mundo, encontravam opiniões já formadas. Era como argumentar para muros e paredes. Alcançados o domínio econômico e o

cultural, parecia ter chegado o momento de uma nova dimensão. Viabilizado pelo caso da Amazônia, estava no ápice o processo de satanização do Brasil.

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Primeira vítima de todas as guerras, a verdade tinha de ser sacrificada. Propagandistas, empacotados como jornalistas, criavam a imagem de um Brasil indiferente
e

arrogante. Estava sendo desenhada a dimensão seguinte do domínio. Seus traços apontavam para a invasão física. Alertado à respeito, o governo brasileiro
fazia o possível para não denotar dúvidas sobre sua soberania. Um grupo de hackers invadiu a página da

ONU, na internet, pendurando em seu lugar um texto intitulado "Os sete motivos". Apesar de haver ficado no ar apenas por algumas horas, este documento foi
pulverizado na rede por meio da ação da comunidade digital. Vindo a repercutir em todo o planeta. Seu conteúdo foi divulgado, posteriormente, pela imprensa
e sua autoria passou a ser atribuída ao governo brasileiro, como uma ação desesperada do tipo cortina de fumaça. O documento afirmava que o mundo possuía
uma dívida para com a Amazônia Brasileira. Algo em torno de sessenta e nove trilhões de dólares. Esta afirmação era justificada por dados estatísticos.
Todos baseados na tese de que a Amazônia Brasileira

foi a única região do mundo responsável por manter o equilíbrio ambiental do planeta Terra nas últimas décadas. Por este serviço, prestado à humanidade,
haveria de ser pago o valor

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referido. Mas o documento foi muito além. Acusou as nações mais desenvolvidas de pretenderem repartir o bolo da Amazônia por meio de uma intervenção militar.
Segundo ele, a cobiça pela região acirrou- se nos últimos anos devido à tomada de consciência, por estes países, do acelerado processo de extinção dos
recursos naturais necessários à manutenção da

vida sobre a terra. Os "sete motivos" apresentados pelo documento eram: 1. Água potável - a maior bacia hídrica do mundo está na Amazônia. Nos próximos
anos não haverá água potável suficiente para atender à demanda mundial, vindo este recurso a tornarse fonte de vida e riqueza. 2. Oxigênio - cinqüenta
e quatro por cento das reservas de oxigênio mundiais estão na Amazônia. Este é mais um dos elementos essenciais à vida humana. 3. Espaço vital - com um
excedente

populacional sobre a terra, a ser alcançado nos próximos anos, surgirá a necessidade de ocupar regiões vazias. 4. Fome - a Amazônia possui a maior área
agricultável do planeta. 5. Carbono - ametal, elemento essencial dos carvões e demais combustíveis de base orgânica. 6. Biodiversidade - grande esperança
de dias melhores para bilhões de pessoas,

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perspectiva de lucros astronômicos para indústrias farmacêuticas que abordarão o tema de forma comercial. 7. Demais riquezas - neste item o

documento apontava diversos outros recursos ainda inexplorados no solo e subsolo da Amazônia. Durante discussões, ocorridas nas mais diversas localidades
do planeta, outros temas correlatos passaram a ser explorados por ONGs e governos. Um deles foi o desvio ou má administração, por parte do governo brasileiro,
dos bilhões de dólares destinados aos projetos ecológicos. Verbas advindas de programas internacionais como as obtidas pelo Protocolo

de Kyoto. Segundo este Protocolo, os países com altas taxas de emissão de gases e, portanto, principais responsáveis pelo efeito estufa passaram a destinar
verbas compensatórias aos países em desenvolvimento. Cabendo a estes países criar projetos de compensação ecológica com os recursos. Jornais de cidades
e países estamparam, capítulo a capítulo , o escândalo do desvio de verbas que deveriam ser destinadas à Amazônia. Relatórios, revelados nas matérias,
denunciavam, em detalhes, o uso destes recursos para outros fins, inclusive pessoais, por autoridades brasileiras. Poucos dias depois,

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o Brasil voltou a ocupar as primeiras páginas. Uma conversa telefônica, gravada e transcrita, revelava a negociação entre ministros, do governo brasileiro,
e empresários. O objeto da negociação era a necessidade de dar um sumiço numa comunidade indígena que estaria

atravancando a viabilização do projeto de interesse dos empresários. Nestes episódios, ficou claro o que se poderia esperar do Brasil

quanto ao trato com os silvícolas. Reveladas as conversas, não demorou muito até que a associação com o massacre dos índios amazônidas ocorresse. A corda
disponível, despretensiosa e, aparentemente, amiga sempre objetivara, na

verdade, a forca. Paralelamente à agitação internacional, ocorria dentro do próprio Brasil o VIII Semi nári o Internacional de Povos Indígenas do Brasil,
Venezuela e Guiana. O evento, considerado há muito o maior encontro de povos indígenas do Norte da América do Sul, tomou proporções gigantescas. A imprensa
mundial se fez presente. Alguns diziam haver mais jornalistas e

fotógrafos, na região, do que índios. Após dias de movimentação e discursos inflamados surgiram os primeiros resultados. Em uma nota, dirigida à imprensa,
os indígenas denunciaram invasões, violência, desapropriações indevidas, desalojamentos e

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saque de seus recursos naturais, culturais e econômicos. Rogaram ajuda internacional para serem respeitados como povos, étnica e culturalmente diferenciados,
com direito e capacidade de definir seus próprios projetos de vida. Dias depois, um documento elaborado

durante o Seminário pôs fim à fumaça da dúvida, propagando as chamas da realidade por sobre a consciência de cada cidadão do planeta. "Diante do estado
de coisas constatado e de nossa impotência para contorná- lo, clamamos à comunidade internacional o ensejo de medidas competentes no sentido de estancar,
imediatamente, a violação maciça e permanente dos direitos humanos de uma minoria representada pelas Nações Indígenas do Amazonas. Que cesse o quanto antes
a

limpeza étnica em curso". Eram as últimas linhas do documento. Elas estavam em perfeita sintonia com o pensamento resumo dos principais Chefes de Estado
da grande rede global. Com o protesto formal dos Chefes de

Estado de diversos países junto a ONU. A consolidação de uma opinião pública globalmente contrária às atitudes do governo brasileiro e favorável à causa
indígena. A representação de uma comissão intitulada

Frente de Salvação das Nações Indígenas do

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Amazonas, composta por líderes de várias Nações indígenas da região amazônica, também junto a ONU. A pressão de quase 600 ONGs "verdes", atingiu- se a massa
crítica de Estados, capaz de ordenar e legitimar uma intervenção militar de caráter humanitário. Assim, o conselho de segurança da ONU

reuniu- se emergencialmente. O governo brasileiro, diante da ineficiência da diplomacia convencional, procurava aparar arestas. Em nota oficial o Presidente
da República declarou desconhecimento e repúdio às ações ocorridas na região Norte do Brasil, veiculadas pela imprensa mundial. Afirmando

estar solidário ao sofrimento dos seus irmãos e compatriotas indígenas amazônidas. Encerrando a nota, o Presidente informou que o

incidente seria apurado com o rigor e a rapidez necessários. Os pronunciamentos oficiais do governo brasileiro escorreram pelos esgotos da comunidade internacional,
encarados com ceticismo e descrédito. Durante a reunião do conselho de

segurança da ONU, o Secretário de Estado dos Estados Unidos da América teceu pesadas críticas ao posicionamento do Brasil diante da questão amazônica. Surpreendeu,
indo além da questão das chacinas de índios. Destacando a política inadequada e arcaica usada pelo

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governo brasileiro para gerenciar questões indígenas, mananciais hídricos existentes na região e combater a narcoguerrilha. Chamou atenção, ainda, para
a necessidade de ações no sentido de frear tanto a devastação da floresta amazônica, hora consumida pelas madeireiras ali instaladas, quanto a contaminação
e

degradação do último grande bebedouro do mundo. Citando a contaminação das águas dos rios formadores da bacia amazônica com mercúrio e outros dejetos químicos,
sem o

devido controle dos órgãos competentes dos países responsáveis. O Secretário de Estado fez referência ao conceito de soberania restrita. Segundo o qual
santuários ecológicos, como a Amazônia, deveriam ser governados por um consórcio de países, como garantia de preservação. Sendo interrompido por aplausos.
"É hora de encararmos o problema de frente e, se preciso for, intervirmos na Amazônia através de uma força multinacional. Salvaguardando mananciais de
valor inquestionável para a sobrevida de nossa civilização nos anos sombrios que virão. Desta

forma, cabe a cada um de nós, a cada habitante da terra, definir até onde os interesses soberanos de um país podem ditar o fim da

esperança de uma sobrevida para a humanidade neste, quase esgotado, planeta. Se dermos as costas a tal questão estaremos

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abreviando o nosso fim." Novamente, uma enxurrada de aplausos, sucedeu as palavras do representante Norte Americano. Discurso transmitido ao vivo por diversas
emissoras de televisão do mundo. No trabalho, no ônibus, na escola, no bar, o assunto do momento passou a ser Amazônia, pulmão do mundo e a limpeza étnica
em curso

contra uma tal Nação Indígena do Amazonas. No dia seguinte, o primeiro- ministro britânico quebrou o silêncio dos representantes daquela comunidade, em
coletiva à imprensa. Na ocasião, expressou repudio aos fatos ocorridos no Brasil, ressaltando que a

humanidade estava novamente diante de um genocídio. Lembrando que desde a guerra em Kosovo não se via uma tentativa, tão clara e cruel, de extermínio de
toda uma raça, toda uma nação. O primeiro- ministro reafirmou sua crença na necessidade do emprego das novas regras globais, com vistas à nova era. - Segundo
a Doutrina da Comunidade

Internacional justifica- se a intervenção militar em questões internas de ditaduras e violações maciças dos direitos humanos. - afirmou. Na prática, a coletiva
abriu caminho para o ultimato, dado em nome da comunidade européia. Enquanto o governo brasileiro não esclarecesse sua posição diante de tamanha abominação
estaria sujeito a retaliações

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comerciais, em um primeiro momento, e militares, caso se mostrasse necessário. Um respeitado analista militar Norte

Americano, quando entrevistado, atribuiu à inadequação da Política de Defesa Nacional brasileira às regras da pós- globalização econômica e à instabilidade
resultante da fragilidade do Estado, a origem da internacionalização da crise doméstica vivida hoje pelo Brasil. ***

Em seu quarto de hotel, Flening desliga a TV, bebe um copo d'água e segue para o banheiro. Seu corpo brilha e uma gota de suor escorre pelo rosto. O pouco
tempo disponível

era aproveitado pelo major para manter corpo e mente afiados, através da ioga. A mesma prática o ajudava a conviver melhor com as queimaduras que, apesar
de cicatrizadas, ainda

doíam bastante. Sobre a cama, a túnica militar indicava a natureza do próximo compromisso. Uma reunião no Pentágono. Mas esta não era uma reunião qualquer
e Flening sabia disso. A campainha toca. Do lado de fora, Perez, fardado, aguarda junto a porta.

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Minutos depois, os dois cortavam a cidade em direção ao Pentágono. - Li o relatório de sua missão. - disse Flening, ao volante. - Major, não tenho dúvidas.
Nosso maior oponente naquela região será o componente

ambiental. A floresta é muito hostil e todo nosso aparato tecnológico torna- se ineficiente ou pelo menos quase ineficiente. E a logística então, melhor
nem pensar. Naquele inferninho transportar é sofrer. - Relaxe capitão, nós não nos interiorizaremos. Não partiremos para combates de baixa intensidade.
Esqueça o Vietnã! Vamos estar cumprindo uma decisão da ONU, compondo força multinacional. Criaremos áreas de exclusão, de onde passaremos a garantir, em
um primeiro momento, a implantação dos projetos ambientalistas e humanitários. Além do

mais, ofereceremos tantas vantagens com nossa chegada que, de pronto, contaremos com o apoio da população local. O dialogo foi interrompido durante breve
parada no posto de gasolina para reabastecimento do carro. Em seguida, Flening retomou- o: - As operações, sob nossa responsabilidade, serão conduzidas
dentro de dois teatros. O "Zona livre um", com sede em Manaus, e o "Zona Livre dois", com sede no alvo

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de seu reconhecimento. Os outros três teatros serão operados pelos consórcios China, Índia e Japão, países europeus e o da Rússia com alguns países árabes.
- O senhor está brincando! Em São

Joaquim? - Exatamente. A essas alturas o General Peter e o Almirante Taylor estão com a definição das equipes a serem empregadas. Sabe o que eu acho Perez?
Quando nós chegarmos lá, bastarão umas palmadinhas nos traseiros de

alguns poucos, que ainda não tenham fugido com o rabo entre as pernas, para que eles desapareçam. - O povo de lá, apesar de viver na miséria, não parece
nutrir desejos separatistas. São sim, pessoas de paz, satisfeitas com o pouco que

têm. Mesmo os indígenas dão a impressão de estar em perfeita harmonia com os pelotões da fronteira. Ainda vou além, Major, e se estes índios resolverem
aderir à causa dos militares, ou os próprios moradores de Manaus demonstrarem resistência à nossa permanência?

- Perez, não estamos falando de regiões povoadas como tínhamos nas matas do Vietnã. Conduziremos operações sobre um imenso vazio demográfico. Território
desprezado pela própria sociedade brasileira.

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Flening era apenas mais um a acreditar que a necessidade de seguir a vontade política, econômica e social Norte Americana, por quaisquer meios, estava clara
não só para o Brasil, mas para o restante do mundo. Principalmente depois das lições Iraque e Kosovo. Quando, mesmo a contragosto, às Nações Unidas somente
restou o papel de órgão dissimulador da unilateralidade. Perez sorriu, se ajeitando no banco do carro. Não estava muito à vontade, os espinhos e ferimentos
espalhados pelo corpo o incomodavam. Os dois cruzaram algumas ruas, em silêncio. - Major, o que aconteceria caso a ONU

decidisse resolver a questão por outros meios que não a intervenção? - Neste caso, Perez, nosso país teria mais uma vez de cumprir seu papel junto à humanidade,
agindo na manutenção da liberdade e da justiça. Como sempre, não nos importaríamos com o lugar ou sob quais condições ocorreriam as ações. Muitos de

nossos irmãos derramaram seu sangue em terras distantes no passado, justamente para manter este ideal de liberdade vivo. Então, companheiro, com ou sem
apoio da ONU seguiremos adiante. O que mudará será a outra

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parte! Talvez, sem o aval da ONU apenas a China nos acompanhe nesta empreitada. Intimamente, Perez, achava um tanto

exacerbado o sentimento patriótico de Flening. O senso crítico dele parecia haver sido devorado, desde a Academia Militar ou talvez até mesmo antes disso.
Resultado da nefasta vontade de servir aos propósitos de seu país. Por vezes, o fato de conseguir perceber isto em alguns dos companheiros de farda assustava
Perez. Levando- o a questionar- se quanto a falta de

disciplina, vocação ou amor à pátria. Como ele adorava a aventura que esta carreira lhe proporcionava, preferia não filosofar muito à respei to.

No Pentágono, traçadas as linhas de ação para aprovação da operação pelo Senado e pela população Norte americana, iniciou- se uma longa exposição para os
envolvidos, direta ou indiretamente, na manobra militar. Foram expostos detalhes necessários ao

desencadeamento de ajustes logísticos e operacionais. Na ocasião, também, foram distribuídas "linhas de conduta" a serem seguidas pelas tropas durante os
trabalhos em território brasileiro. O Almirante Taylor informou que as duas divisões verdes, do Comando Sul, especializadas em operações na floresta amazônica,
já se encontravam na Zona Verde. A reunião estendeu- se por horas.

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Desde que os Estados Unidos da América deixaram o Canal do Panamá, abrindo mão também da Base Militar do Comando Sul, instalada naquele país, a abordagem
das questões relacionadas à narcoguerrilha mudou. Coincidentemente, no mesmo período, os conflitos internos colombianos passaram a

receber cobertura diferenciada. A influente máquina da mídia, colocada a serviço dos interesses do Estado Americano, aliada a

conveniente incapacidade do governo colombiano em gerir suas finanças, negociar com as guerrilhas e reprimir os cartéis do

narcotráfico gerou o resultado esperado. Justificando a presença americana permanente naquela região. O acesso ao espaço aéreo norte da América do Sul,
pelos Estados Unidos, sofreu ampliação suficiente para garantir- lhes total supremacia aérea no espaço aéreo dos países andinos. Bases antes apenas utilizadas
em parceria com o governo colombiano passaram à

condição de Bases do Comando Sul, a Zona Verde. Nas Bases de Palanquero, Apiay, Barranquilla, Três Esquinas e Mantra, esta última no Equador, a bandeira
Norte Americana

estendia seu orgulho à Amazônia. Velho sonho dos militares Norte Americanos, a Zona Verde nada mais era do que uma inocente faixa de terra coberta pela
selva

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amazônica. Local onde militares Norte Americanos ambientavam- se ao combate em selva, testando doutrinas e equipamentos apropriados às especificidades do
ambiente

operacional. Em algum lugar, distante de tudo e de todos, convenientemente plotado ao sul da Zona Verde estavam pousados dois helicópteros. Aeronaves idênticas
às usadas pelo Exército Brasileiro na região. Idênticas até no padrão de

pintura. No mesmo ponto estava estacionada uma pequena guarnição. Quatorze homens que nos últimos meses trocaram, durante as operações, os uniformes do
"US ARMY" pelo

camuflado do Exército Brasileiro. Eles ostentavam pequenas bandeiras brasileiras bordadas em um dos ombros de suas fardas. Eram homens de aparência latina,
português fluente, vivendo em alojamentos improvisados junto às clareiras, onde estavam camufladas as aeronaves. Instalação fantasma, imperceptível mesmo
para vôos à baixa altitude. As ordens para a guarnição vinham de Washington, sendo cumpridas sem questionamentos ou embaraços. Mesmo quando incluíam o
assassinato de crianças, mulheres e homens indígenas. Alvos indefesos, apenas civis inocentes.

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Sob quaisquer circunstancias, as peças do imenso tabuleiro precisavam ser movidas. O xadrez, o jogo não podia parar. Nunca parou. *** Na escuridão do cativeiro,
o Coronel Pool ensaiava, mentalmente, a resistência aos novos interrogatórios. Sua vontade parecia volatilizar- se

diante de tamanho sofrimento físico e mental. Neto de seringueiros do Pará. Pool era filho de um geólogo americano que realizava pesquisas na Amazônia quando
encantou- se com o corpo moreno e sedutor de uma cabocla

amazônida. Da atração irresistível nasceu Pool. Ele passara apenas seus seis primeiros meses de vida morando no Brasil. Quando da morte de sua mãe, vítima
de uma forte virose que a fez sangrar até perder a vida, seu pai decidiu levar o bebê para os EUA e criá- lo junto aos avós. Muitos anos mais tarde, o
pai de Pool tomou conhecimento de que alguns nativos da região do Rio Ebola, na África, morreram apresentando os mesmos sintomas de sua

esposa. Com a notícia, a dor daqueles dias de sofrimento ao lado da amada lhe voltou ao peito e em frente à televisão ele faleceu.

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A pouca idade de Pool à época da morte de sua mãe aliada ao cadavérico silêncio paterno privou a humanidade de um importante rel ato.

Pool cresceu ouvindo o pai contar a história da peste do Amazonas e como ela matara sua mãe ainda jovem. Relato constantemente feito com a voz carregada
de

pesar e amargura. Porque o pai de Pool jamais se perdoara pelo fato de ter recusado o auxílio de curandeiros nativos no tratamento de sua esposa. Apesar
de ter ouvido histórias sobre algumas comunidades indígenas que praticavam a manipulação de ervas nativas ditas como capazes de curar aquela enfermidade,
na

época, ele preferiu acreditar no poder dos medicamentos alopáticos, trazidos dos Estados Unidos. Escolha infeliz, em pouco tempo o corpo da mulher como
que se derreteu, fazendo sangue brotar de suas entranhas em meio à febre. Para o Coronel Pool as ações em andamento tinham caráter pessoal intrínseco.
Ele sentia estar de volta ao seio de sua mãe, na

selva amazônica. Mas não era apenas esta a mola mestra da motivação pessoal. Pool acreditava ser justificável qualquer sacrifício, até a matança de nativos
inocentes, para que o imenso reservatório de curas, representado pela floresta amazônica, passasse a ser controlado e

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estudado por países melhor capacitados. Fossem os EUA ou os países da União Européia. Pois, a depender dos esforços brasileiros muitos ainda morreriam vítimas
de males perfeitamente curáveis pelo feérico manancial farmacológico latente no interior da floresta amazônica. Todo o patrimônio representado pela

biodiversidade existente na Amazônia, para Pool, não deveria pertencer à vaidade de um país, mergulhado em dívidas e corrupção, mas sim à humanidade. Sendo
estudado e explorado, livremente, por países como o seu. Certamente milhares de vidas seriam salvas por novos medicamentos. Milhares de vezes, a vida de
sua mãe. A porta do cativeiro é aberta, a paz se vai. Pool sabia, sua vontade de resistir não duraria

muito tempo mais. *** No alojamento, Ramos é acordado pelo soldado ordenança do general. Estava na hora de receber os jornais do dia. Graças à amizade cultivada,
em pouco tempo, com os integrantes do staff do Comando Militar da Amazônia, nunca

faltava- lhe nada. Os jornais e revistas, depois de

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lidos pelo general, eram recolhidos e levados ao alojamento do tenente. Das chaves do rancho, da sala de musculação e recreação, Ramos dispunha de cópias.
O que facilitava a boquinha

da meia noite e a malhação matinal. Uma das manchetes dos jornais, entregues pelo ordenança, chamou a atenção do tenente. Ela estampava em letras graúdas
"Internacionalização da Amazônia preocupa governo". Ramos sentou no beliche e leu atentamente o conteúdo da matéria. "Começam a se consolidar as antigas
ameaças de internacionalização de parte do

território nacional. Tida, até pouco tempo, como mera manifestação neurótica da casta dos militares brasileiros a internacionalização da Amazônia hoje é
assunto corrente nos altos escalões de nosso governo. Temos consciência de que a Amazônia é uma reserva de material estratégico há muito cobiçada. Por
este motivo, sua defesa sempre foi e continuará sendo prioritária para nós. A afirmação é de um alto oficial do Ministério da

Defesa, que pediu para mantermos sua identidade ignota. Também para nós da imprensa, assim como, certamente, para boa parte da população

brasileira, não restam dúvidas de que o governo vem tomando providências para melhorar a vigilância sobre a Amazônia legal. Até como

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forma de obter maior projeção da afirmação de sua soberania sobre esta região. Grandes somas de recursos públicos, e

quase nenhum recurso privado infelizmente, têm sido alocados para garantir maior vigilância na fronteira, mas ainda existe muita incongruência no trato
deste assunto. Um bom exemplo do comportamento contraditório de nossas autoridades está no fato de que, em breve, o

Brasil desativará as bases de Anzol, localizada no Alto Solimões, e Candiru, em Rondônia. Bases apontadas por especialistas como sendo

as principais responsáveis pela diminuição do tráfico terrestre de cocaína para o Sul e Sudeste do País nos últimos anos. Ambas eram mantidas com verbas
da Polícia Federal. Serão

desativadas por falta de recursos para manter a logística necessária aos agentes que trabalham 24 horas por dia no coração da selva. Outro exemplo da flagrante
contradição

entre intenção, discurso e ações do Governo federal chegou às nossas mãos, aqui na redação, momentos antes do fechamento desta edição. Até mesmo a reedição
da operação

"Porteira Fechada", executada pela Polícia Federal brasileira e forças policiais da Colômbia, Venezuela e Peru, corre risco de ser interrompida, por falta
de verbas. Mesmo com todos os percalços gerados pela política capenga usada para gerir os

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assuntos amazônicos, o governo brasileiro obteve algumas vitórias. De fato, reduziu- se drasticamente o tráfico terrestre e, graças ao redimensionamento
do Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM), pôs- se um fim a rota aérea da droga na região. Houve época em que pelos céus, rios e

trilhas da floresta Amazônica passavam anualmente mais de dezoito toneladas de cocaína, segundo estimativa de órgãos internacionais. Droga que acabava por
abastecer mercados do mundo inteiro, estendendo para além do território brasileiro a

malha de sofrimento e penúria que comumente se abate sobre os com ela envolvidos. Pouco, muito pouco foi feito no entanto

para a melhoria das condições dadas aos verdadeiros donos desta terra, os índios da Amazônia. E menos ainda no campo da ciência e tecnologia visando a utilização,
correta e necessária, do imenso potencial hídrico e de toda biodiversidade da região amazônica. Daí o questionamento recente, por parte de nações desenvolvidas,
sobre a nossa capacidade e

direito de gerir, sozinhos, a Amazônia. Hora articula- se no Conselho de Segurança da ONU uma possível internacionalização de nossa Amazônia. Caso seja
esta a resolução, o que fazer? Assistirmos à partilha da responsabilidade pela Amazônia

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entre os integrantes do Conselho? Contentarmo- nos com o favor, concedido por tais "Impérios", de pelo menos respeitar, por hora, o restante de nossa integridade
territorial, de nossa soberania? Ou será que dentro de

alguns anos estaremos fadados a comprar, destes mesmos "Tutores Imperialistas", minérios e medicamentos? Todos selados como "Made in Amazon"? Diante de
um cenário tão desfavorável aos nossos argumentos para manutenção da soberania, beira o bizarro a triste coincidência contida nos fatos recém ocorridos
na Amazônia brasileira." Ramos franziu a testa e, depois de um longo suspiro, passou à pagina seguinte. Ainda naquele dia, Ramos foi chamado

ao gabinete do Oficial de Inteligência do Estado Maior do CMA. Ao longo de três horas ele recebeu instruções para uma nova missão. Além da equipe do Oficial
de Inteligência, estavam presentes o Oficial de Operações e seu

adjunto. Depois de ouvir o conceito da operação, o detalhamento necessário ao seu cumprimento e um caminhão de recomendações, Ramos, apresentou suas dúvidas.
Alguns pontos não estavam claros o

suficiente. A extração da equipe, que ocorreria após a ação no objetivo, foi planejada para um fator tempo muito justo. Caso ocorresse algum

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contratempo a extração seria comprometida, até mesmo por que o planejamento proposto deixava de fora linhas alternativas de ação. As dúvidas eram coerentes
e foram prontamente

acolhidas pelos Oficiais do Estado Maior presentes. Segundo esses, tais deficiências eram conseqüência da carência de meios disponíveis ante ao porte da
operação a ser iniciada. Coordenação, seria a palavra chave para atender, quase ao mesmo tempo, a necessidade de todos, com poucas aeronaves, poucas viaturas,
poucas embarcações, poucos meios. A missão recebida por Ramos era mais um ponto no quadro da sala de operações, apenas isso. Uma restrição imposta pelo
escalão

superior incomodou Ramos. Seria impossível operar, desta vez, com a mesma equipe da missão anterior. Ele deveria trabalhar com uma outra. Esta equipe, segundo
o escalão superior, deveria ser formada por militares do Centro de

Instrução de Guerra na Selva, o CIGS. Os militares com os quais Ramos vinha operando, até então, eram integrantes dos Batalhões de Infantaria de Selva da
região. Eles estariam inseridos em suas frações constituídas, para o cumprimento de outras missões a serem realizadas simultaneamente. Quando os oficiais
superiores retiraramse

da sala, Ramos deu um longo suspiro, o

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segundo do dia. Pressentia algo de errado, algo ruim a rastejar próximo à sua sepultura. Um arrepio febril correu seu corpo. Por um instante

sentiu um imenso vazio no estômago. Balançou a cabeça, como se tentasse recobrar a razão e voltou a focar. Olhando, no quadro à sua frente, para o

ponto representativo do objetivo de sua missão, Ramos lamentou ter de operar com frações improvisadas todo o tempo. Seria bom operar com um pelotão constituído,
no qual os meses de trabalho árduo e profissional têm como retorno, além do elevado grau de operacionalidade, a formação de uma consciência comum. Esta
consciência é forte, muito forte, capaz de levar a equipe, o time, a

superar- se. Com homens formados à sua personalidade, forjados ombro a ombro, as deficiências e qualidades de cada um da equipe

seriam muito bem conhecidas, conseqüentemente utilizadas com maior propriedade. Por meia hora Ramos se ateve à memorização dos detalhes dispostos na carta
da região, sobre o quadro de operações. Dispensando atenção especial para os cursos d'água circunvizinhos ao objetivo. De volta ao alojamento, Ramos experimentava,
mais uma vez, o som estridente

da responsabilidade a zumbir em sua

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consciência. Sobre os ombros, ele sentia o peso de vidas humanas depositadas, uma a uma. Era hora de selecionar destinos. Citando o nome dos mais capazes
para levar a cabo esta missão. Experiente em operações em ambiente

de selva e possuidor de liderança nata, o nome do sargento Sarmento foi o primeiro a ser lembrado. - Onde andará aquela onça velha?

Sarmento e Ramos haviam operado na mesma equipe. A confiança mútua advinha das dificuldades vividas outrora diante de situações limite. Sarmento era um
dos bons exemplos de

sargento que a despeito do relacionamento amigo e descontraído, cultivado junto aos seus subordinados, sabia colher o que de melhor cada homem poderia ceder
com vistas ao

cumprimento da missão. Quando aspirante, recém egresso da academia militar, Ramos participara de inúmeras operações na região da "Cabeça do Cachorro". Principalmente
ao longo do Rio Içana e do Canal de Maturacá. Ao seu lado esteve, quase sempre, o amigo Sarmento. Ramos colocou o gorro na cabeça e

seguiu para o estacionamento. Precisava obter a relação com os nomes dos sargentos, cabos e soldados hora servindo no CIGS. Preferiu não fazer uso do telefone.
Sabia da capacidade de

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rastreamento, quase que ilimitada, sobre dispositivos de comunicação de que dispunham os países detentores de tecnologia como a do

Echelon. Um sistema baseado no emprego combinado de satélites de espionagem e sensíveis estações de escuta. Ele intercepta telefonemas, fax, telex e correio
eletrônico, além de todos os sinais rádio. No caso do velho

Echelon, o grampo global está sob os auspícios da Agência de Segurança Nacional Norte Americana, a NSA. O vento da liberdade. Ramos deslizava pela estrada
da ponta negra rumo ao CIGS. Adorava sentir a liberdade e o domínio da velocidade sob duas rodas. Ainda não fazia um ano que ele comprara a moto atual.
Um modelo super esportivo. "A Ferrari das motos" como ele mesmo a definia em conversas com amigos. Sob o ronco do motor de seu bólido

vermelho veio o brado uníssono de "SELVA!" emitido pelos soldados da Guarda ao Quartel. Militares de serviço, zelando pela segurança do Centro de Instrução
de Guerra na Selva. - Mano, olha que máquina! - É! Com uma dessas, eu iria fazer a limpa lá perto de casa. - Com uma dessas até você come alguém!! - comentou
um terceiro soldado em voz al ta.

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A chacota foi geral, quebrando o tom solene do serviço. - HOPP! Cessa! - gritou o sargento

comandante da guarda. Fez- se o silêncio. Minutos depois, o ronco do motor da moto anunciava a saída de Ramos. A flecha vermelha, de faróis acesos, avançava
pelos dois quilômetros de asfalto, responsáveis pela ligação entre os prédios da administração e o corpo da guarda do maior e melhor centro de instrução
especializada em combate na selva do mundo. - Guarda, abre logo esse portão! - vociferou o sargento. Ele estava preocupado

com a velocidade da moto, ao cortar a alameda, frente à lentidão, supostamente proposital, do soldado para se levantar e abrir o portão. "Não vai dar tempo."
Pensou o sargento. Ao iniciar a abertura dos portões, já com uma careta armada e olhos arregalados, o

soldado também teve, por uma fração de segundos, a certeza de que sua distração causaria um acidente. Quando do início da abertura dos pesados portões de
ferro a guarda viu, perplexa, a passagem da moto pela pequena brecha

criada. Uma manobra perfeita e arriscada. - Cacete! Este cara é mal uco. - Tem coco de galinha na cabeça!

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- Será que ele não sabe que está em uma unidade militar?

- Deve ser um desses oficiais que pensam que tem um rei na barriga, um almofadinha riquinho. Aqueles soldados seguiram horas comentando e conjeturando à
respeito do

ocorrido. De volta ao alojamento, um banho de água fria foi o recurso escolhido para tirar o suor e o cheiro de macaco guariba velho, deixado em seu corpo
pela farda de combate. Antes porém, a gandola, como é chamado o blusão camuflado

do uniforme de combate, e a calça foram colocados em um cabide e dependurados no beliche. Banho tomado, Ramos passou ao estudo da relação obtida no CIGS.
Dois nomes saltaram- lhe aos olhos: sargento Sarmento e sargento Paulo José, o PJ. Nomes foram sublinhados. Ao lado desses, pequenas anotações salvavam
idéias surgidas durante a

análise. Era hora de dar forma ao time. Estava aberto na tela do computador portátil o modelo de documento, usualmente, utilizado por Ramos para dar corpo
à parte burocrática do planejamento de operações. "Sarmento! Sem dúvida, ele será meu adjunto. Foi sorte minha ele estar disponível.

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Mas não sei se é justo com o Sarmento colocál o nesta. El e tem famíl i a, fil hos ... este cursor piscando parece me interrogar. Cá estou, novamente frente
à difícil missão de escolher vidas." Sobre si recairia a responsabilidade e o

compromisso moral de trazer de volta, ao seio da família, o militar escolhido para acompanhálo. E este compromisso Ramos conhecia de perto, desde os primeiros
dias em que atuou em solo amazônico. Lamentável era o fato de nem sempre ter sido possível, ao fim de cada missão, retornar com todos os seus comandados
à salvo. Os mosquitos não pareciam dispostos a

abrir mão da companhia de Ramos. Sorviam seu sangue e bailavam em torno da tela do computador enquanto o oficial, indiferente, mergulhava noite adentro.
Absorto, apressavase na confecção de todos os documentos necessários ao imediato desencadear da missão. Uma vez vencida a etapa da escolha dos nomes para
o seu time, Ramos elaborou, mentalmente, o roteiro com os passos necessários ao cumprimento da missão, estruturando seu planejamento preliminar. Com a
chegada dos primeiros raios de

sol, alguns dos documentos elaborados foram impressos e entregues ao sargento adjunto do Oficial de Operações. Militar incumbido pelo CMA

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de apoiar logística e administrativamente a operação comandada por Ramos. Havia uma pendência. Um dos sargentos escolhidos para a missão não estava mais
na

guarnição de Manaus, pelo menos no papel. O homem em questão era o sargento Texera. Recém transferido para fora da região amazônica. Ele estava gozando
férias em Manaus e posteriormente se mudaria para a

cidade de Florianópolis. Antes do final do expediente da manhã, após algumas explicações ao escalão superior, Ramos recebeu a confirmação; os homens selecionados
teriam vinte e quatro horas até a apresentação no CMA. O primeiro a chegar foi o sargento Sarmento, seguido pelo Paulo José. Ramos recebeu- os em seu alojamento
e aproveitou a oportunidade para, de início, descontrair. Juntos, os três relembraram o passado, tratando de assuntos amenos e agradáveis. Só depois de
diluída a tensão inicial é que Ramos passou a discorrer sobre a missão e suas peculiaridades. Expondo seu planejamento preliminar, acertou

detalhes para o prosseguimento das atividades vindouras. Aproveitando novas idéias trazidas pelos dois outros profissionais ali presentes. Em meio ao interesse
e a empolgação que Sarmento e PJ demonstravam, Ramos tornou sua expressão séria e preocupada.

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- Escutem bem os dois. Vou fazer uma pergunta direta e quero que vocês sejam sinceros. Pela natureza da missão sabemos que baixas poderão ocorrer, vocês
estão

dispostos a deixar suas famílias e embarcar nesta? Não se trata de uma manobra exercício nos fundos da escola da tia Teteca! PJ foi o primeiro a responder,
coçando a cabeça, com seu jeito moleque e elétrico de ser. - Tenente esperei boa parte de minha vida por algo assim, além do que seria difícil encontrar
elementos com a nossa experiência e sintonia para o cumprimento desta missão. - E também tem um detalhe que o senhor desconhece.... nós casados precisamos
de

umas férias uma vez ou outra. - completou o sargento Sarmento com um sorriso encorajador no rosto. - Bom, fico feliz por estarem nessa comigo. Sarmento,
você será o segundo no

comando da patrulha, será o meu adjunto e o responsável pelo escalão de assalto. E você Paulo será o quarto homem, o responsável pelo

escalão de segurança. - Quem será o terceiro? - disparou Sarmento. - O Texerão. Ele será o comandante do grupo de eliminação. Sei que inverti a hierarquia
ao escalar as funções. Você, PJ, apesar de mais moderno do que o Texera vai estar no comando

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de um escalão ao passo de que ele estará comandando um grupo. Fiz isso para aproveitar, ao máximo, os conhecimentos específicos e as experiências de cada
um. E também por que conheço o meu gado, sei que hierarquia não será nosso problema. Os dois sargentos vibraram. Não só eram amigos do Texera como trabalhavam
de forma

parecida. - Preciso que você, Sarmento, prepare a recepção aos demais integrantes da patrulha e o local para a emissão da ordem preparatória. Enquanto você,
PJ, providencia isto com o

adjunto do E3. - O elemento é um capitão, senhor? Perguntou PJ, pegando o documento das mãos do Ramos. - Não. Não sei o porquê mas quem está respondendo
por adjunto do Oficial de

operações do CMA é um sargento. Coloquei seu nome e telefone no canto inferior direito da úl tima fol ha, Ok? - Positivo. - responderam os dois sargentos,
saindo do alojamento em seguida. - Se precisarem de mim estarei aqui. - gritou Ramos, antes que os dois desaparecessem porta a fora. Aproveitando o tempo
disponível até a

ordem preparatória o oficial prosseguiu ultimando o planejamento preliminar. Quanto

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mais ele olhava para as cartas da área do objetivo mais certo ficava de que nada seria fácil nos próximos dias. Tanto para ele como para seus comandados.
No dia seguinte, os profissionais convocados foram apresentados aos seus companheiros de destino, aos seus comandantes e à missão. Conheceram, também,
o planejamento a ser seguido para o

uso das horas restantes até o embarque. A partir de então, ficaram incomunicáveis. Nada de telefonemas ou saídas à rua. Sob o olhar atento do sargento Sarmento,
parte da patrulha ensaiou, exaustivamente, fundamentos úteis à missão. Enquanto a outra parte do efetivo esteve com o sargento Texera no estande de tiro
relembrando algumas das técnicas necessárias ao cumprimento de tarefas específicas da operação. Paulo José passou horas, envolvido no recebimento e loteamento
do equipamento, munição e explosivo a serem utilizados. Pela segunda semana consecutiva a

temperatura máxima alcançava suas marcas recordes em Manaus. Agravando o desconforto da população frente ao clima quente, uma densa camada de fumaça parecia
estacionada sobre a cidade. Especialistas atribuíam as nuvens incomuns ao resultado de queimadas ocorridas no Estado do Pará e adjacências.

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Calor escaldante, ar enfumaçado e umidade ambiente excessiva. Nada parecia afetar a disposição ao treinamento por parte dos militares escolhidos por Ramos.
A constatação

de que, apesar da atitude mental indiferente ao meio, eles também sofriam com as condições climáticas só era possível pelo suor. Comumente abundante em
suas fardas. O inconsciente coletivo, gerado pela vontade de

dar o melhor de si a cada momento, ajudava a compensar o tempo exíguo para preparação do grupo. Na hora acertada teve início a ordem à

patrulha. Os integrantes da operação foram reunidos em uma sala e ficaram sabendo em detalhes o que fariam, como deveriam agir nas diversas situações possíveis,
onde e quando deveriam atuar e quem levaria o que. Primeiro, toda a missão foi historiada sob a visão das ações genéricas, de interesse do coletivo. Em
seguida, Ramos passou a aprofundar- se, detalhando a tarefa de cada escalão. Depois explicou passo a passo a tarefa de cada um dos grupos, do embarque
ao retorno. Por fim, Ramos especificou, com impressionante

riqueza de detalhes, o que cada um dos patrulheiros deveria fazer do início ao término da missão. Ao longo de quase quatro horas todo o grupo perfez mentalmente
as atividades mais importantes para o cumprimento da missão

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proposta. As dúvidas surgidas foram esclarecidas uma a uma. - Antes de encerrar esta ordem e liberar vocês para o ensaio quero lembrá- los do seguinte:
Desde o momento do embarque nas aeronaves estaremos sujeitos ao peso do imponderável, do imprevisto. Sob esse peso, apenas sobrevivem os que são capazes
de adaptar, improvisar e superar. Sejamos estes então. Boa sorte a todos e... ao trabalho! Ramos não fazia nem idéia da verdade, quase premonitória, aposta
em suas últimas palavras ao grupo. Na equipe, que momentos atrás assistia

a ordem à patrulha, os uniformes ainda molhados de suor espelhavam o esforço físico requerido durante o dia de preparação. Após a ordem, os cabos e soldados
compreenderam melhor qual havia sido a finalidade da revisão de

fundamentos conduzida pelo sargento Sarmento por horas e horas a fio. A noite chegou. Úmida, a brisa varreu as margens do Rio Negro. O grupo não teve descanso,
prosseguiu

nas atividades até o raiar do sol. Ramos conferia o café da manhã de sua equipe, no rancho dos cabos e soldados, quando o uivo estridente de quatro insetos
de metal quebrou o silêncio aquartelado. Eram quatro aeronaves de asa móvel. Anunciadas

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pelo som, inconfundível, dos rotores de cauda do tipo fenestron. Deixando o rancho, enquanto seus comandados ainda consumiam o café, Ramos partiu para a
sala preparada para a ordem à

patrulha, da noite anterior. Onde aguardou a chegada dos pilotos para uma revisão dos procedimentos de vôo acertados para a missão. O ideal seria ter conseguido
a presença

dos pilotos na ordem à patrulha, pois eles também integram a equipe e são fundamentais para o êxito da operação. Mas o ideal nem sempre era possível. -
Alguns dos pontos de bloqueio e reabastecimento, anteriormente acertados, tiveram de ser alterados. - informou o coronel Nascimento, mostrando a localização
dos novos pontos na carta. O coronel Nascimento se auto escalou

piloto da operação de hélitransporte para infiltração e extração da patrulha comandada pelo Ramos e de mais outras seis. Dividindo a carga de trabalho surgida
com os seus comandados, demais pilotos do esquadrão. - Certo. Nada que implique em alteração

para a tropa! - comentou Ramos, olhando para os pontos indicados pelo coronel. O dia escorreu. Rápido como águas de chuva de verão.

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Cordões avermelhados despencavam por entre nuvens, cerzindo nos céus a apoteótica e diária despedida do sol. Quando no horizonte, anunciando a chegada do
véu da noite, despontava o desconhecido. Com todos os homens embarcados, os quatro helicópteros iniciaram os procedimentos para decolagem. Dentro das aeronaves,
soldados espremiam- se, dividindo o exíguo

espaço com mochilas e armamento. O calor, quase sufocante, aumentava o desconforto da tropa embarcada. Úmido e acre, o cheiro das fardas suadas se misturava
ao do querosene, que alimentava os pulmões dos titãs de metal

em seu movimento ascendente. Bastaram alguns minutos de vôo com as portas abertas para o frescor da noite abraçar aqueles corpos suados. Trazendo prazer
à tropa. Na aeronave líder, Ramos, sentado ao lado do mecânico de vôo, ajustava os fones à sua cabeça. Por meio deste equipamento era possível realizar,
se necessário, conversação com a tripulação das aeronaves. Olhando a sua volta, o tenente observava as formas variadas encontradas por seus homens para
passar o

tempo embarcado. Um dos militares observava a expressão fria desenhada no rosto de seu comandante. "Gostaria de saber o que se passa na cabeça dele antes
de cada ação." Pensou o Cabo.

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Absorto, Ramos não notou o olhar curioso de seu rádio operador. Aqueles jovens estavam prestes a colocar suas vidas à prova. Desafiando o desconhecido,
perfilando- se ante aos desígnios do Deus da

Guerra, eles marchariam confiantes sob a terra dos sepulcros. Desde que o fizessem sob as ordens de alguém em quem acreditassem. Mas como confiar, se perguntava
Ramos em sua reflexão, como confiar suas vidas, seus sonhos, a felicidade de seus familiares, seus destinos, ao agouro de um homem ou de uma instituição.
O que tornava- o diferente, capaz de merecer tamanha responsabilidade? Quais valores poderiam estar acima da vida e quem os invocaria? Sob quais bandeiras,
quais argumentos? Em lugar de respostas, Ramos lembrou dos rostos de alguns dos subordinados que não retornaram com vida de

operações. Ainda podia sentir parte da dor de suas famílias ao serem informadas, por ele, das perdas. Das muitas vezes que ouvira a mesma

acusação: "O senhor levou nosso filho daqui com vida e nos trás um corpo! Por que? Por que!?" Dono de uma visão bastante crítica, Ramos jamais permitiu
que fechassem os seus olhos às verdades, embora conhecesse o preço do testemunho silencioso.

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Nas escolas por onde passou, durante a infância, as opiniões precoces do menino chamaram a atenção dos professores. Principalmente nas aulas de história
ou durante

a abordagem de temas atuais, nas sessões de estudo de geografia, quando ele se destacava dos outros alunos por sua capacidade de

compor e interpretar cenários complexos a partir de informações comuns ao grupo. Enxergando, quase sem querer, os motivos, fatos e intenções irreveláveis
contidos nas coisas à sua volta. Mais tarde, a mesma percepção ampliada facilitou- lhe a condução dos relacionamentos interpessoais. Com o tempo, o garoto
aprendeu a não dividir suas opiniões com qualquer pessoa. Concluindo que, na maior parte das vezes, elas não gostavam de ver além da superfície artificialmente
calma e reconfortante do rio da vida. Pois haviam sido educadas para consumir não para pensar, achando enfadonhas e

improdutivas reflexões mais profundas. Para Ramos não havia o tal rio de superfície calma e reconfortante a representar o produto do aproveitamento, pela
humanidade, da oportunidade da vida. A história do Homem apenas mostrava sucessivos abandonos à

essência. Havia sim, o sombrio canal da vaidade, construído pelas mãos do Homem, a banhar sistematicamente as cidades da política,

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da guerra, da ganância, do poder e do desprezo à vida. Consciência dolorida que distante de facilitar- lhe opiniões levava- o a se questionar todo o tempo
e por tudo. A opção profissional feita por Ramos foi o

momento de vida, o ponto de inflexão entre razão contemplativa e destino prático. Mas esta escolha fez dos seus dias um paradoxo. Ao aceitar a inexplicável
vontade de seguir a mais antiga das profissões a serviço do

Homem, Ramos se penitenciou a conflituosa conivência com os valores sujos aos quais seus companheiros de profissão serviram até então. Intuindo que, de
alguma forma ainda

desconhecida, sua escolha faria uma grande diferença para a humanidade, Ramos pôs- se a trabalho dos mesmos valores que, ainda hoje, serviam como justificativa
para o recrutamento

de trezentas mil crianças e adolescentes, nas guerras de diversos países. Justificando, também, os últimos dez anos de história, quando quatro milhões de
menores ficaram mutilados em conflitos armados e aproximadamente cinco milhões foram forçados a viver em campos de guerra. Vez por outra Ramos se questionava,
tentava se convencer a buscar outra atividade, algo que o fizesse útil, de fato, às pessoas. Consciente de tantas coisas erradas, valores tão distorcidos,
ele achava seu silêncio hora acovardamento ou comodismo,

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hora posicionamento estratégico comandado por uma predestinação qualquer, hora apenas silêncio de um jovem normal como tantos outros. Ele estava a serviço
dos valores ditados por uma parte da sociedade que, apesar de se autodenominar desenvolvida, consentiu o uso

da violência atroz para deter supostos massacres étnicos. Bombardeando, incessantemente, por meses a fio pequenos países. Transformando holocausto em palco
para demonstrações do show de tecnologia do terceiro milênio. Elegendo vidas de inocentes como sacrifícios necessários ao espetacular desfile de ego e
vaidade de alguns governantes. E o pior era saber que a outra parte da sociedade era cúmplice de sua empregadora. Pois fora educada para acompanhar sofrimento
alheio como opção de entretenimento. A questão para Ramos era: Como poderia ele, ao mesmo tempo, servir aos propósitos de sua essência e se colocar a serviço
de valores que representavam a negação de tudo em que

acreditava? Embalado pelo sacolejo da aeronave, Ramos imaginou um mundo sem fronteiras. Onde líderes resolvessem suas diferenças por meios pacíficos. E
o surgimento de questões explicitasse necessidades reais de seus representados, jamais a submissão das

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lideranças aos interesses escusos do poder. Um mundo capaz de remir a humanidade, resgatando o amor. Amor ao próximo, amor ao presente que é a vida. Ramos
voltou a enxergar o interior da aeronave. Ergueu o olhar esboçando um sorriso saudoso. Havia estado em um futuro distante. ***

Após o último reabastecimento, as aeronaves retornavam à formação inicial. Dentro de uma delas, Sarmento deslizava o fio de uma de suas facas sobre a pedra
de molar, onde vez por outra cuspia. Sob o olhar de alguns dos soldados, o vai e vem do metal sob a pedra molhada parecia mudo. O ruído da aeronave abafava
qualquer outro som. Até mesmo o som do ronco inconveniente vindo do cabo Mário. Há algum tempo, o vôo passara a

acompanhar o perfil do copado das árvores, fazendo alguns dos patrulheiros sentir náuseas. Para os pilotos, desafiar a tez aveludada da noite em vôos sobre
a região amazônica continha boa dose de risco. Mas comparados ao vôo daquela noite os outros pareciam pouco desafiadores. Em seus capacetes, sistemas de
amplificação de luz residual exibiam os

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contornos da vegetação. Vez por outra, canhões de luz infravermelha, acoplados à proa das aeronaves, precisavam ser acionados. Como em um dia esverdeado
surgia, diante dos olhos dos pilotos, o perfil do terreno a ser percorrido. Olhada através dos óculos de visão noturna, os OVNs, a noite exibia um tom
de esmeraldas perdidas em nuvens cinéreas. - Dois minutos fora, para linha de controle verde! - a voz do coronel Nascimento espetou a cabeça do Ramos.
Deixada para trás a linha de controle

verde, o Rio Içana, Ramos calculava que vinte minutos de vôo com proa Norte, e portanto em aprofundamento ao território colombiano, seria o

suficiente para conduzi- los às proximidades do local de desembarque. O deslocamento das aeronaves, navegando à baixa altitude, desencadeou o

acionamento do plano de defesa de uma das bases da FARC. Cerca de vinte e cinco guerrilheiros acordaram sobressaltados, sob a perspectiva de uma ofensiva
das forças governistas sobre o acampamento. Para eles, a

normalmente curta noite de sono terminará ali. Naquela encruzilhada de destinos. A seguir, veio a tensão da vigília, mata a dentro, até o sol raiar. Sobre
o ponto de desembarque, as aeronaves pairaram muito próximas uma das outras. De dentro delas cabos foram lançados

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em direção à copa das árvores. Segundos depois, homens iniciaram a descida, dois a dois. Os primeiros a descer tinham a difícil missão de safar os chicotes
dos cabos, levando- os até o chão. Precisavam abrir caminho por entre o emaranhado de galhos existente sob seus pés. As mochilas insistiam em prender-
se nos galhos e cipós, no que eram acompanhadas pelo armamento e demais peças do equipamento. A descida dos primeiros homens foi lenta e cansativa. Apenas
depois da

chegada destes patrulheiros ao solo, o restante da tropa foi sendo engolido pela selva. Durante todo o desembarque, o sargento

mecânico de cada uma das aeronaves tinha como missão manter em mãos uma machadinha e postar- se diante do ponto de ancoragem dos cabos. Em condições de,
mediante ordens do piloto, cortar os cabos alijando a "Carga". Após a descida, os patrulheiros adotavam o dispositivo circular de segurança. Um altoguardado.

Grupo por grupo os comandantes iam acolhendo seus homens e repassando o pronto do efetivo ao sargento Sarmento. Tudo como foi ensaiado. Em uma das aeronaves
a leitura de painel

mostrava aos pilotos ser terrivelmente arriscado manter a aeronave pairando. Era necessário arremeter, buscar ar frontal para o motor. No

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tênue e solitário momento da decisão, julgou o piloto: "com a queda da aeronave, além das baixas causadas em pessoal, estarei

comprometendo o sigilo da missão. Perdoe- me meu Deus." Com a voz embargada pelo desgosto da decisão mas empurrada pela urgência da situação, veio a ordem,
em comunicação interna para o mecânico. - Alijar carga, repito alijar carga. Foi como se ao descer a machadinha

sobre os cabos o mecânico soltasse as amarras do titã enfurecido. Que zuniu, rompendo o pacto de espera aos demais. No mesmo instante, dois corpos entraram
em queda livre, em meio à escuridão. O restante da tropa continuou o

desembarque até que o último homem tocasse o chão. Momento anunciado pela partida das outras aeronaves. Aos poucos pode- se ouvir a sinfonia da selva. -
Grupo de destruições pronto! - Grupo de eliminação de sentinela pronto! - Segurança um e segurança dois prontos! Um a um, os prontos iam sendo sussurrados
ao pé do ouvido do Sarmento.

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Alguns minutos se passaram e o silêncio persistiu. Ramos se aproximou do Sarmento ali

permanecendo. Imóvel e silencioso, por algum tempo. Ele aguardava o pronto da operação de desembarque. Pronto que demorou demasiadamente para chegar. Notando
que poderia haver algo de errado, resolveu interceder. Sarmento sentiu a mão de alguém tocar em seu ombro. Uma presença que até então

não havia sido notada. Por isso mesmo, Sarmento sabia de quem se tratava. - Não senhor! Ainda não estamos prontos. - sussurrou Sarmento. - O quê houve?
- Faltam dois homens! Dois homens do grupo de assalto. - completou o sargento. - Acione um vasculhamento da área. Empregue o escalão de segurança e o restante

do grupo de assalto. Os militares designados iniciaram um movimento coordenado, superando as limitações da vegetação e da falta de luz. Guiando- se por
azimutes sucessivamente corrigidos, os homens percorreram rotas espiraladas. Partindo do centro do alto guardado, onde aliviaram o peso deixando suas pesadas
e volumosas mochilas.

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Não demorou até ocorrer o primeiro contato. Um dos patrulheiros, que participava do vasculhamento, tropeçou no corpo do companheiro. Ele estava caído no
chão, estendido em meio à folhagem. Agachando- se próximo ao corpo, verificou

seus sinais vitais. Ele tinha pulso e respirava sem dificuldade aparente. Enquanto isso, o patrulheiro que se deslocava ao seu lado retornou ao centro do
dispositivo e informou que um dos homens havia sido encontrado e parecia estar bem. Um pouco mais a Leste da posição onde

foi encontrado o primeiro patrulheiro, o cabo De Paula, do grupo de assalto, deparou- se com uma das cordas utilizadas para o desembarque. "Ela está presa
à copa das árvores." Pensou De Paula inicialmente. Mais alguns instantes de observação levaram- no à

conclusão correta. A corda estava presa ao corpo do companheiro e este preso em uma galhada a cerca de três metros do solo. Novamente consciente e refeito
do susto

o patrulheiro que fora encontrado primeiro tentava encontrar uma explicação para o ocorrido. - Eu estava rapelando, muitos dos galhos estavam travando,
arrastando em minha

mochila. Foi quando senti a sustentação do

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cabo desaparecer, um vazio e aí a porcaria da mochila ... seu peso me puxando para o chão. Por que!?

- Calma. O importante é que está tudo bem com você. - disse o companheiro do acidentado, tentando acalma- lo. Mas ele prosseguiu descrevendo o susto. -
Pensei, estou ferrado! Mas no momento

seguinte um solavanco travou a minha queda. Voltei a ser sustentado. Foi como se o cabo voltasse a estar ancorado. Infelizmente foi só por um instante,
aí ouvi o barulho de madeira rachando e acordei com vocês aqui. Eu podia

estar morto... e as costas... como estão doendo! - Você está sentindo alguma pressão no

pescoço, militar? - era a voz do sargento Sarmento. De imediato, cessou a lamúria do

soldado. - Não senhor, parece não haver lesão na cervical. - respondeu o soldado, filho de pai médico e mãe enfermeira. - OK! E quanto às pernas?

- Ai! Pô! - gemeu o soldado. - Bom, muito bom. - murmurou Sarmento, guardando uma de suas facas, com um largo sorriso no rosto. - Sargento eu podia ter
morrido, essa corda vagabunda...

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- Calma guerreiro! Está em condições de prosseguir? - interveio, firmemente, Ramos. Até então acompanhando, calado, ao diálogo. - Sim senhor, acho que foi
só o susto. Não estou sentindo muita dor. - Então levante- se e vá para perto do

grupo de destruições. Fique por lá até nós terminarmos o vasculhamento. E guarde as reflexões para mais tarde. - Sim senhor. - sussurrou o soldado, ficando
de pé com a ajuda do Sarmento. Mais a Leste o sargento Paulo José e o cabo De Paula coordenavam o resgate do outro militar acidentado. Usando peconha,
o cabo De Paula e o soldado Passos subiram em uma árvore próxima de onde estava o companheiro. Chegando mais perto do acidentado foi possível

avaliar melhor a situação. Ele estava preso em uma teia de cipós e galhos retorcidos. Não se mexia, não emitia nenhum som. Parecia inconsciente. - Como
estão as coisas por aqui? - perguntou Ramos, abordando o PJ. - O elemento está todo enroscado nos cipós, lá encima. O De Paula e o Passos vão

trazê- lo para baixo. De Paula ancorou um dos chicotes do cabo, ainda preso ao assento de escalada do amigo inconsciente, a um dos galhos da árvore em que
estava. Em seguida, saltou agarrando o

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corpo. Passos ajudava cortando cipós e galhos, tentando liberar a descida, a ser comandada por De Paula com o uso do freio em oito do próprio acidentado.
Depois de muitas tentativas, foram cortados os cipós e galhos que sustentavam De Paula e o corpo do acidentado. Isto feito, a dupla iniciou a descida.
Abraçado ao amigo de tantas tardes de futebol e cerveja, De Paula sabia. Não

mais tornariam a jogar. Em diversos pontos do corpo do amigo, era possível sentir ossos partidos e expostos. Quando os dois chegaram ao solo, os patrulheiros
envolvidos no salvamento retiraram os galhos e cipós atados a eles. O corpo do militar acidentado foi colocado

deitado sobre as folhas que cobriam o terreno. Ouvia- se o ranger de ossos ao move- lo. Seu abdome e seu tórax tinham a mesma consistência gelatinosa. Havia
pouca luminosidade, apenas vultos podiam ser percebidos. Quase tudo tinha de ser feito através do tato.

- Verifiquem o pulso dele. - sussurrou Passos. - Não é necessário! - retrucou Ramos, após notar o pescoço deslocado cento e oitenta

graus de sua posição normal. Ele quebrou o pescoço na queda, levem seu corpo para o alto guardado.

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De Paula chegou perto do PJ e disse: - Sargento, a mochila dele não estava junto do corpo. O senhor sabe se alguém achou a danada?

- Bem lembrado. Veja se algum elemento achou e retorne para o dispositivo. No centro do alto guardado, Ramos reuniu os comandantes de grupo. Em breves palavras
expôs a situação. Seria necessário

locar, com ajuda do GPS, o ponto onde estavam. Ali enterrariam, provisoriamente, o corpo do soldado. Até que, posteriormente, pudesse ser resgatado e entregue
à família. Por hora, precisavam prosseguir. - É a melhor solução! - exclamou

Sarmento, diante da proposta colocada em discussão. - Vai ter que ser por aí. A gente deixa o elemento aqui e depois volta para pegar. Ele não está com
cara de quem vai ficar impaciente. - disse PJ, com sua irreverência de costume. - E você Texera, o que diz? - perguntou

Ramos, trazendo o sargento à participação nas decisões de comando. - Na brigada pára- quedista, nós temos um lema, jamais abandonar o corpo de um companheiro
em território inimigo. Concordo com a decisão do senhor desde que todos os homens recebam as coordenadas deste ponto. Assim se nós falharmos vai restar
alguém para

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pegar o corpo. E se todos falharmos, nos vemos no inferno. Texera media pouco mais de um metro e setenta e cinco, possuía cabelos castanhos alternados com
o grisalho emergente. Um homem de olhos saltados, rosto quadrado, físico trabalhado por vinte anos a serviço das fileiras pára- quedistas. Onde começou
na vida

militar ainda como soldado recruta. Ao longo dos anos o menino em busca de aventura à porta de aviões tornou- se um sargento de carreira. Hoje um militar
respeitado por sua experiência profissional, diversidade de cursos realizados e por sua sinceridade tosca ao tratar superiores ou subordinados. Passados
vinte minutos a patrulha iniciou

seu deslocamento. Por sobre suas cabeças, nas copas das árvores, as imensas folhas orvalhadas espelhavam as primeiras gotas douradas. A aurora anunciava
um novo dia. Preocupados com a segurança, os militares da patrulha em deslocamento não aproveitavam o espetáculo oferecido. Sem paradas, os homens marcharam
selva adentro. Para trás, apenas o suor era

deixado. A tropa progredia sem alterar o ambiente. Três eram as preocupações de todos enquanto marchavam. Orientação, segurança e não deixar indícios de
sua passagem.

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Mesmo para uma equipe ambientada a primeira hora de marcha no coração da floresta amazônica é sempre dolorida. A alça da mochila parece não ter posição
conveniente, sobre os ombros. Os cipós parecem perseguir as arestas do equipamento, o tropeço constante em raízes e troncos caídos acompanha os mais desatentos,
minando- lhes a paciência. ***

Alguns metros além da coluna de marcha, dois esclarecedores progridem. Exigindo o máximo de seus instintos. A cada passo eles buscam indícios de atividades
recentes na região. Indícios da passagem de tropa, simples deslocamento de pessoas, passagem de animais, existência de armadilhas, minas ou da aproximação
de pontos críticos. Acidentes do terreno que exponham a tropa a emboscadas ou a ação de atiradores de elite. Normalmente lugares de difícil transposição.
O nível de stress à que esses homens são expostos é muito elevado obrigando o

comando da patrulha a realizar constante rodízio de esclarecedores. Determinadas situações táticas fazem minutos à frente da tropa parecer horas para os
esclarecedores. Eles sabem,

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qualquer descuido pode custar a vida de toda a patrulha, ou, na melhor das hipóteses, as suas. Com cinco horas ininterruptas de marcha, Ramos autorizou
a primeira parada. - Cinco minutos fora! - sussurrou Sarmento para o patrulheiro imediatamente à

sua frente. Este repassou o aviso para o companheiro da frente, na coluna de marcha. Quando o aviso chegou aos seus ouvidos, Ramos identificou a conduta
previamente

amarrada com o adjunto. A chegada do aviso, instantes após a parada, servia para constatar que a integridade da coluna de marcha havia sido mantida. Sarmento,
último homem da coluna, desencadeava também a contagem da equipe

antes do reinício dos deslocamentos. Medidas visando coordenação e controle, mesmo as mais elementares, nunca eram demais. Principalmente quando os homens
não dispõem de rádio comunicação interna e outros meios de base tecnológica para reduzir as dificuldades de coordenação impostas pelo terreno de selva.
Durante o alto, os homens aproveitavam os preciosos minutos. Alguns aliviavam os equipamentos, consumiam água e rações rápidas, como biscoitos e balas.
Outros, simplesmente, sentavam- se com as costas apoiadas nas mochilas.

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Ao fundo, um pássaro conhecido como serralheiro emitia de tempos em tempos um assovio estridente. - Elemento, desencoste sua mochila desta árvore! - disse
o sargento Paulo José para um soldado que estava sentado ao seu lado. - Por que Sargento? - perguntou o

soldado Orildo, virando o corpo na tentativa de ver se havia algo de errado com sua mochila. Ao colocar- se de joelhos, de frente para o

tronco, constatou o porque da preocupação do sargento. Um grande fluxo de formigas rompia por todos os cantos de sua mochila. Explorando parte de um novo
território, estariam por presumir os pequenos insetos. - Ah não! Que azar. - resmungou Orildo, enquanto tentava afastar as visitantes. De Paula, que até
então observava em silêncio, aproveitou para disparar sua frase

preferida. - Vai morrer gente! Com um gesto de Ramos a tropa pôs- se de pé e, em seguida, reiniciou o deslocamento. Vez por outra, uma das novas amigas
do Orildo resolviam aventurar- se fora de sua mochila. O fim da aventura era quase sempre o mesmo: uma nova picada no pescoço do soldado. A marcha continuou
até que a luminosidade no interior da mata não mais

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permitisse a manutenção da velocidade de progressão. Com ajuda dos últimos raios de luz foi estabelecida a base de patrulha para o

pernoite. *** Na manhã seguinte, após o consumo da ração, as redes de selva foram desatadas e todo o material guardado nas mochilas. A área utilizada para
base de patrulha foi minuciosamente verificada pelos comandantes de grupo. Não deveria haver vestígios de

passagem de tropa por ali. Os sargentos conferiam a esterilização de área como cães farejando caça, nenhum descuido passava despercebido. Muito se pode
dizer de uma tropa através do estudo de seus vestígios. Por isso a preocupação, em todos os níveis, acerca deste detalhe. A equipe liderada por Ramos tinha
o compromisso de progredir, até o objetivo, tal qual o vento. Sem rastros, sem presença física, apenas impulso. Com a conferência de esterilização

concluída, foi dado o pronto para o sargento Sarmento. Em seguida, os três sargentos e o

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tenente permaneceram alguns minutos reunidos diante de cartas do terreno. Elas foram abertas sobre folhas sem vida e raízes entrelaçadas, formando um mosaico
inusitado. Das diversas peculiaridades do combate na selva, a dificuldade de orientação e navegação por terra merece atenção especial. Pressuposto básico
para o sucesso de qualquer operação, desenvolvida ou não em uma floresta como a amazônica, chegar ao objetivo nem sempre era tão fácil quanto loca- lo
em uma

representação topográfica. Em agravo, pouca ou nenhuma utilidade tinham os obsoletos aparelhos de apoio à navegação conduzidos pela equipe comandada por
Ramos. Os leitores portáteis do sistema de posicionamento global com tecnologia semelhante aos dos leitores usados por todos os países, a exceção dos Estados
Unidos da

América, jamais funcionaram satisfatoriamente no interior da selva. Os aparelhos, responsáveis pela realização da leitura de dados coletados e

enviados a partir de satélites, dificilmente obtinham leituras claras quando usados no interior da mata. Quase sempre sendo necessário encontrar imensas
clareiras ou aventurar- se em rios para obter leituras de posicionamento confiáveis. Os militares especialistas em guerra na selva, sabedores da desvantagem
tecnológica

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frente ao primo rico do norte, tornaram- se exímios orientadores por meios convencionais. Usando prioritariamente a velha e difícil tríade

carta, bússola e terreno os combatentes de elite, formados no Centro de Instrução de Guerra na Selva, sentiam- se à vontade quando navegando na mata. Ela
fazia parte do sangue de suas vei as . No dia anterior, a patrulha avançou dois quilômetros e meio por hora. Nada mal para o

ambiente operacional em questão, mas ao iniciar o deslocamento da jornada seguinte Ramos determinou à tropa maior velocidade de progressão. Não poderia
haver atraso. Tanto para a ação no objetivo quanto para o retraimento até o ponto de extração. Onde eles seriam resgatados por helicópteros. Passava das
dezesseis horas quando um dos esclarecedores ergueu o braço esquerdo

com o punho cerrado. Era o sinal convencionado para congelar. Um a um, os homens repassaram o sinal para trás. Em instantes, cessaram movimentos, cessaram
sons, que

não os da mata em seu entardecer. De Paula, estava como esclarecedor, mais à frente. O dedo polegar de sua mão direita deslizava lentamente em direção ao
registro de tiro e segurança de seu fuzil. Ele estava encostado em uma árvore de tronco largo, coberto por musgos, cipós e folhas de parasitas.

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Por entre a vegetação era possível ver quatro homens. Eles usavam peças de farda misturadas a roupas civis. Um deles estava de pé e parecia explicar aos
demais algo sobre o objeto em sua mão. Os demais, sentados, riam e descuidadamente faziam comentários em voz alta. De onde observava, De Paula não via

armas, nem equipamentos com características militares. Junto aos homens, o Cabo conseguia identificar quatro grandes objetos, parecidos com mochilas. Apoiadas
sobre um tronco caído, as supostas mochilas pareciam estar recheadas com volumes embalados em sacos plásticos de cor escura, todos com o mesmo

volume aparente. O grupo estava a vinte metros do De Paula, em uma pequena clareira formada pela queda de grandes árvores. - O que você acha?

A voz sussurrada próximo ao ouvido do De Paula, apesar de conhecida, quase o levou ao acionamento do gatilho de seu armamento. Completamente concentrado
na observação do

quadro à sua frente, ele não notara a aproximação de seu comandante. Distração que poderia ter custado a sua vida. Pensou por um instante o Cabo, antes
de responder tentando demonstrar tranqüilidade.

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- São mulas! Pararam para fumar um porronca e descansar um pouco. O senhor está vendo os jamaxis? Estão presos por tiras de envira. É coisa de nativo e
garimpeiro. Além do que os volumes transportados ... Veja, aqueles sacos pretos. Eles têm a mesma forma, parecem cuidadosamente embalados. É coca tenente!
- Não são partes de nosso alvo, mas podem comprometer a missão. Fique de olho

neles. De Paula esboçou sorriso sádico em sinal de atendimento à ordem de Ramos e este iniciou a progressão de volta aos seus comandados. "Será que estão
sozinhos? E se for uma isca? Tenho apenas três supressores de ruído na equipe..." A cabeça de Ramos fervilhava em suposições no silencioso caminho de volta.
Foram metros de pura efervescência cogitátil. Quando chegou ao primeiro homem da

coluna de marcha, o Tenente encontrou os três sargentos reunidos, à sua espera. A situação à frente foi descrita em detalhes e ao final seis olhos aguardavam
uma decisão. Não tiveram tempo de sequer piscar. - Sarmento e PJ, retornem com os homens até o último ponto de reunião e

aguardem- nos até às vinte horas. Se não

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retornarmos, contorne esta área e prossiga rumo ao objetivo. Dúvidas?

- Não senhor! - Texera, providencie supressores de ruídos e miras noturnas para você, Cabo De Paula e o Soldado Elenaldo. Nós quatro faremos o seguinte...
A luz do sol começava a desaparecer, por entre o copado das árvores, quando os homens finalmente colocaram os jamaxis nas costas, ataram a tira de envira
na testa e inclinaram o

corpo para frente, começando a caminhar. Um deles trazia um fuzil que até então ficara jogado no chão, em meio às folhas. O fuzil parecia muito mal tratado,
havia tabatinga em seu quebra chamas e a bandoleira era um cordão de náilon de cor azul. Os outros três não traziam armas de fogo, apenas terçados. Eram
três mulas e um cobrador de mandatas. Os mulas trabalhavam para o cartel de Cali, há muito

propalado como desmantelado mas ainda ativo e poderoso o suficiente para agir além de seus domínios. O cobrador de mandatas exercia a

ligação entre os cartéis do tráfico de drogas e as forças paramilitares corrompidas. As guerrilhas sujas. Grupos paramilitares atolados até o pescoço na
lama do comércio ilegal de armas, seqüestros, assassinatos, verdadeiros braços longos e violentos do poder das drogas. Poder

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dos dólares movimentados com o comércio internacional de drogas. Formando em coluna, os primeiros metros de mata foram rompidos. As passadas, curtas devido
ao peso da carga, aproximavam os carregadores da tropa à espreita. O homem que

levava o fuzil se deslocava à retaguarda dos demais, mas não empunhava o armamento em condições de pronto emprego. "Esses desgraçados vão caminhar como?
Noite adentro, na selva!" pensou Texera ao ver os homens desfilarem alguns metros à sua frente. Uma pequena língua de fogo anunciou a queda do último homem.
Sua cabeça foi sacudida e o tampo de seu crânio saltou junto ao movimento do corpo, sem vida, rumo ao chão. Os outros dois, os que estavam imediatamente
a sua frente tombaram quase ao

mesmo tempo. Então ouviu- se um sibilar distinto, cortando o início de noite. O primeiro Mula iniciava uma reação de fuga, diante da tomada de consciência
do perigo iminente, quando uma pequena flecha metálica lhe foi cravada no peito. Foi o suficiente para ele cambalear, caindo de joelhos. Uma fina linha
de sangue escorria por entre seus lábios quando um segundo impacto, desta vez um projétil de fuzil, atingiu- lhe a cabeça pondo fim à sua agonia.

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De Paula saltou sobre os corpos com uma faca em punho. Um a um, todos os alvejados tiveram as gargantas cortadas e as línguas puxadas para fora através
do corte. O resultado bizarro, era a conhecida gravata colombiana. Sinal usado para marcar as vítimas de acertos de contas dentro do sub mundo do narcotráfico.
Texera e Elenaldo faziam a segurança aproximada da equipe. - Tenente, agora começou a ficar bom! - sussurrava De Paula, sorrindo. Ramos estava ao seu lado
recolhendo os jamaxis. - Acabou com as gravatas, De Paula?

- Sim senhor. - Então me ajude aqui! Estes jamaxis estão muito pesados! Conduzindo a carga e o fuzil dos infelizes tombados, Ramos e sua equipe retornaram,
em marcha noturna, para o ponto onde o restante da patrulha aguardava o desfecho da emboscada. Após a troca de senha, contra- senha e sinal de reconhecimento,
a equipe seguiu para o centro do dispositivo. A noite escondia formas e cores, destacando outros sentidos. Os sargentos Sarmento e Paulo José mais o cabo

Mário estavam sentados perto das mochilas, no centro da área de reunião improvisada. Os três experimentavam o silêncio da tensão,

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aguardando o retorno dos emboscantes. Ao aproximar- se do trio, Ramos soltou um dos jamaxis e orientou os demais membros de sua equipe para fazerem o mesmo.
- Tudo bem aí Sarmento? - perguntou o Tenente, tirando os óculos de visão noturna de seu suporte e deixando- o pendurado ao pescoço por meio de um tirante.
Cego, é como se sente o usuário de um equipamento destes ao retirá- lo em meio à

noite. A intensificação de luz residual cessa e os olhos demoram algum tempo para acostumarse à escuridão, antes pincelada em tons brilhantes de verde e
cinza por conta dos OVNs. - Sim senhor, sem alteração. E com sua

equipe, correu tudo como o planejado? - Correu, só não imaginávamos que eles fossem demorar tanto para iniciar o

deslocamento. - PJ!? - Na área! - Escale alguns de seus homens para ocultar o material capturado. E ... PJ, sem vestígi os OK? - Está na mão. - Quanto tempo
vocês precisarão? - Esses elementos cavam como tatus. Uma hora e o serviço estará liquidado! - Sarmento! Informe à tropa, partiremos às vinte e três horas.
Não podemos permanecer

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nestas redondezas a noite inteira. Precisamos nos afastar daqui. Mesmo a passos de tartaruga. - Texera, De Paula e Elenaldo, muito boa a atuação de vocês!
Estão dispensados, sabem dos planos de partida e o horário então aproveitem o tempo, descansem! Mesmo sem combinar absolutamente coisa alguma, minutos
depois de dispensados pelo tenente cada qual iniciou a manutenção do armamento, equipamento e por fim dos pés, com uma generosa massagem. "Mantenha seu
corpo, armamento e

equipamento em boas condições". Uma lição das selvas respeitada e seguida pelos sábios guerreiros. - Quando da volta comprarei uma destas. - disse Texera,
apontando para a balestra usada

na ação por Ramos. Quase não havia luminosidade para distinguir gestos, mas Ramos sabia qual o objeto de desejo do companheiro. - É, ela vale o investimento.
É pequena, de

fácil manutenção e bem potente no lançamento. - E a mira laser? Veio junto ou o senhor comprou separado? - Não Texerão. Essa é adaptação minha. - Combinemos
o seguinte. Compre a balestra e eu faço uma destas para você.

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- Ok, vou cobrar. Acho que vou dar uma olhada nos homens do meu grupo. Selva! - Selva!! - sussurrou Ramos. Fechando

sua mochila no justo instante da chegada do PJ. - Pronto, tenente. Se germinar, vamos ter o maior pé de porcaria da história. - ironizou o sargento, comparando
os pacotes à sementes. Ocultando a droga, Ramos encobria, por simulação, os indícios de ações militares nas proximidades de seu objetivo. Por isso, os
corpos não foram escondidos. Pelo contrário, foram deixados no meio da mata. Caso fossem encontrados mutilados, com as línguas expostas à altura das gargantas,
os homens pareceriam vítimas de mais um acerto de contas do perigoso mundo das drogas. O sumiço do

carregamento reforçaria as suspeitas quanto a um possível acerto de contas entre traficantes, ou levantaria à hipótese de simples roubo de

drogas entre concorrentes. Descaracterizando o quadro normalmente esperado como resultante de um encontro fortuito com forças militares regulares. - Preparar
para partir! - cochichou Ramos, dando início a um longo deslocamento noturno.

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Açutuba Área testemunha de ocupações sucessivas desde sete mil anos antes de Cristo. Localidade que conheceu seus últimos ocupantes por volta de mil seiscentos
e cinqüenta, quando provavelmente seus habitantes foram aprisionados e vendidos como escravos para comerciantes portugueses ou holandeses. Açutuba é um
sítio arqueológico, vestígio de uma aldeia de mesmo nome, localizado na margem oposta de onde, hoje, está Manaus. Da poeira do passado, sob as pegadas
deixadas em Açutuba com seus dois quilômetros e meio de comprimento por um quilômetro e meio de largura, surge o nome de

Ajuricaba. Um homem, um indígena, que viveu entre o céu e o inferno. Herói de sua causa, carrasco das alheias. Nascido na época do

comércio escravo, no qual índios eram mercadorias valorizadas. Ajuricaba viveu em um tempo onde grupos indígenas aprisionavam os próprios índios para vende-
los aos holandeses ou aos portugueses. Ele era um guerreiro indígena por natureza, um comerciante escravagista por obra da ilusão. Riquezas e status, iscas
oferecidas pelos holandeses, seus aliciadores e parceiros comerciais.

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Quando da tentativa portuguesa de ocupação do Médio Rio Negro, em idos de mil setecentos e vinte, ocorreu uma guerra. Neste embate os índios manáos enfrentaram
os portugueses e seus aliados, os índios do

Tapajós. A guerra ceifou vidas de vinte e cinco mil índios, sendo o primeiro registro, conhecido, de uma guerra nativa travada em defesa do

território amazônida. Ajuricaba foi o chefe da rebelião deflagradora de tal embate e, em decorrência de suas ações durante o conflito, ficou conhecido como
um dos heróis nativos da

região do Amazonas. Três mil anos antes das pirâmides do Egito serem erguidas, já se caçava, pescava e plantava mandioca na região hoje ocupada pela cidade
de Manaus. Persistindo ante aos desafios da natureza rigorosa e das levas de

cobiça alienígena, os nativos mantiveram suas gerações espalhadas como sementes. Levadas ao sabor da correnteza dos rios. Homens e mulheres nascidos sob
a vontade dos mitos e lendas da mata. Cuidados e curados pela sabedoria dos espíritos da mata com suas ervas. Perfeita simbiose da existência humana com
a natureza, o povo do amazonas ensinou por gerações e gerações como seus filhos deveriam explorar o solo, cultivando- o. Seus filhos aprenderam como aproveitar
a

primazia dos cardumes de jaraquis, oferecida

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pelo Rio Negro, com a pesca. Repassaram, intuitivamente, a sustentabilidade de sua raça em meio ao respeito da vontade do maior, do mai s forte. A s el
va! Talvez, tais fatos possam explicar parte do orgulho ímpar hoje compartilhado pelos filhos desta terra. Uma forma de amor extremado, uma exsudação permanente
de alegria, perseverança e culto aos seus. Interessante o fato de existirem muitos filhos desta terra espalhados pelos quintais, terreiros, asfaltos e
praias do Brasil sem a

menor idéia de suas origens. Isto por que a escravidão indígena foi comum na Amazônia. Os índios eram presos e vendidos como escravos no mercado do Pará.
Na época foi vendido índio

para todo o Brasil e até para outros países. Intenso, o mercado escravo contribuiu para o despovoamento da Alta Amazônia em favor da Baixa Amazônia. A esta
movimentação humana somou- se a explosiva miscigenação ocorrida em todo o território brasileiro ao longo dos últimos séculos. Em sua trajetória, Manaus,
esteve província do Pará, quando ainda não passava de

uma vila cuja alcunha era Vila de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro. Posteriormente foi transformada em Cidade de Nossa Senhora da Conceição
da Barra do Rio

150

Negro e somente em mil oitocentos e cinqüenta e seis tomou o nome de Manaus. O desenvolvimento local sempre esteve condicionado ao aproveitamento das riquezas
naturais, vindo a ocorrer em ciclos. De mil

seiscentos e sessenta e nove à mil oitocentos e cinqüenta e seis, a cidade viveu do ciclo das drogas do sertão, quando o principal produto era

o pirarucu seco, vendido para Belém. Mas também era comercializado o cacau, a manteiga de tartaruga, feita da gordura dos ovos de tartaruga e usada para
a iluminação pública e frituras, além de produtos medicinais como, quina, cumaru e o anabolizante puxuri. Com o início da navegação regular à

vapor no Amazonas, no ano de mil oitocentos e cinqüenta e três, com os navios da Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas, fundada pelo Barão de Mauá,
teve início a

viabilização do próximo ciclo de desenvolvimento da região. A subida de Belém para Manaus passou

a ser feita em sete dias, frente aos cento e vinte dias das embarcações à vela. Assim, surge a possibilidade de explorar em escala comercial a oferta natural
de borracha. Neste período ocorre o aumento mundial de demanda pelo insumo borracha. Navios de até novecentas toneladas garantiam o transporte da borracha
extraída,

151

com técnicas não predatórias, do Alto Amazonas para Belém e de lá para Boston, nos Estados Unidos, e algum tempo depois de Belém para o mundo. Era o ciclo
da borracha. O abandono do extrativismo animal e a ascensão do extrativismo vegetal. Manaus era o único mercado produtor com escala suficiente para suprir
a necessidade

da especiaria dos tempos modernos. A bolha de prosperidade econômica gerada neste ciclo sustentou por quase três décadas a artificialidade suntuosa de um
estilo europeu de viver, no coração da Amazônia. Também trouxe as epidemias. A de febre amarela, vinda da África, foi introduzida na Amazônia pelos dinamarqueses.
Quase simultaneamente veio a

grande epidemia de cólera. Com sementes contrabandeadas do Brasil, a Ásia passou a produzir borracha em escala superior ao amazonas, aplicando técnicas
de plantio e transporte mais avançadas. Em pouco tempo a Ásia conquistou a liderança na produção da borracha, empurrando seus preços para o fundo do poço.
Local do qual jamais retornariam. O ano de mil novecentos e dez foi marcado pelo declínio do ciclo da borracha. Manaus possuía cem mil habitantes, frente
aos mil e duzentos do início deste ciclo. Aos moradores da ilha de desenvolvimento, em meio

à floresta tropical, restou a certeza de que não

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era mais possível retroagir. Formas alternativas de sustentabilidade foram estudadas. Entre mil novecentos e vinte e mil novecentos e cinqüenta, Manaus
esteve imobilizada. Até que no governo Castello Branco foram criadas condições excepcionais com vistas à retomada do crescimento. Surgindo, então, a refinaria
de petróleo, a SUDAM e a

Suframa. A cidade saltou dos duzentos mil habitantes para um milhão e trezentos mil. No entanto, com o advento da globalização e suas pressões comparativas,
o parque industrial instalado na Zona Franca de Manaus foi desmantelado. As ilhas de prosperidade do nordeste e sudeste brasileiro impuseram ao governo
federal o fim da política de incentivos oferecidos à Manaus. Como as indústrias aí instaladas não aproveitaram os anos de condições excepcionais para estar
à

frente das tendências de mercado, sucumbiram ou buscaram novas áreas com melhores condições. Manaus, de joelhos, foi abandonada. Deixada para trás. Anos
se passaram, a estagnação sócioeconômica pairou outra vez por sobre as terras dantes defendidas pelas gerações de Ajuricabas. Até que, em um dado momento,
as sementes plantadas durante anos de projetos governamentais, os não eleitoreiros,

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começaram a germinar. A cidade despertava para o mundo novamente. Desta vez como capital do conhecimento e desenvolvimento de biotecnologia. Atraídas pela
biodiversidade local, gigantes da indústria farmacológica invadiram Manaus. As principais Universidades brasileiras e internacionais passaram a realizar
pesquisas sediadas na cidade. Laboratórios e centros de

pesquisa privados atraiam pesquisadores do mundo todo. Os resultados obtidos encantaram a sociedade internacional e engordaram os bolsos dos realizadores.
Concomitantemente

aumentava a escassez de um produto que todos os humanos sobre a face da terra precisam. Um produto sem o qual, em questão de dias, a população do planeta
fenece. De utilização quase ilimitada; industrial, culinária ou medicinal, o Homem despertou para a importância da água. Com sua oferta limitada e demanda
ilimitada. Estando a água na natureza distribuída

com noventa e sete vírgula dois por cento nos oceanos e mares, dois vírgula quinze por cento nas geleiras e icebergs polares e somente zero vírgula sessenta
e três por cento disponível para consumo humano, acordou o Homem para as conseqüências dos anos de convivência abusiva com o meio ambiente.

154

A constatação de que deste zero vírgula sessenta e três por cento de água disponível para o consumo ainda estariam próprias para a ingestão apenas os quarenta
e nove por cento referentes às fontes subterrâneas, abaixo de oitocentos metros, e os um e meio por cento referentes aos mananciais hídricos originados
nos rios, lagos e cursos d'água, causou

preocupação entre estudiosos. Mas foi a descoberta da contaminação, quase total, das fontes subterrâneas de grande profundidade a

responsável pelo ressurgimento das previsões apocalípticas para o futuro da humanidade. Colocando por terra a maior esperança da comunidade científica mundial
para abastecimento de água, à longo prazo, a contaminação teria ocorrido pela infiltração dos dejetos de nossa sociedade através do solo. Estes resíduos
atingiram as fendas abertas na

crosta terrestre, as ditas diáclases, chegando às reservas de água mais profundas do planeta. O Brasil, possuidor de quatorze por cento das águas doces
do mundo, passou nos últimos anos a administrar melhor seus recursos hídricos. Diante das oportunidades e responsabilidades geradas pela crise mundial
de desabastecimento d'água potável, governo e iniciativa privada passaram a trabalhar em conjunto. O governo esforçou- se na viabilização

155

de projetos verdes, em resposta às pressões da comunidade internacional. Apesar desses esforços, cresceu o

questionamento sobre as possíveis conseqüências da entrega dos destinos de toda humanidade a um país em desenvolvimento como o Brasil. O governo brasileiro
procurava recuperar a boa imagem criando condições para gerir convenientemente os recursos naturais em seu

território, visando reduzir as margens para questionamentos. O setor empresarial, por sua vez, com vistas aos lucros volumosos, auferidos com a exploração
comercial da água e

biodiversidade amazônica, fomentava novos investimentos na região. A fragilidade econômica vivida pelo Brasil, ainda às voltas com as metas de implantação
e sustentabilidade da moeda única do Mercado Sul, levou a iniciativa privada a assumir parte da responsabilidade pela manutenção da soberania sobre a Amazônia.
Manaus e toda a região do Amazonas seguiram firme, rumo ao desenvolvimento. O modelo de sustentação da economia local era

diferente do imaginado há décadas atrás, mas ainda assim parecia uma alternativa viável. Era um puro sangue, um modelo desenvolvimentista produto da determinação
dos governos regionais e do valor da população nativa que

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jamais deixou de acreditar na superação dos obstáculos surgidos. Postada na dianteira do desenvolvimento biomolecular e consciente da riqueza representada
pelas águas de seus rios, igarapés, igapós e lagos, Manaus abraçou o novo ciclo. O ciclo da biodiversidade.

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Tucandeira "Exatamente como o descrito nos documentos utilizados para a elaboração da ordem à patrulha". Pensou Ramos ao avistar o objetivo durante o primeiro
reconhecimento. Foi levado à frente, para reconhecer o objetivo, o menor número de homens possível. Ramos fazia uso de uma falha da vegetação e de uma

elevação do terreno para obter visada direta sobre o conjunto de abrigos, construído com material da própria selva, erguido alguns metros adiante. O reconhecimento
possibilitava a verificação das condições atuais do objetivo e, se fosse o caso, a adequação dos planos às novas circunstâncias. Por conta de sua importância
para o cumprimento da missão os riscos e dificuldades de uma aproximação do objetivo sem quebrar o sigilo tinham de ser impostos à patrulha. Os homens
precisavam obter posicionamento a pequenas distâncias do

objetivo. O suficiente para vencer os obstáculos naturais à observação em área de selva. A equipe de reconhecimento, então, se misturou aos contornos do
terreno. Fundindo a silhueta humana ao ambiente, eles fizeram- se invisíveis,

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aproveitando as folhas secas do chão, os troncos, sombras e cipós da mata. A preocupação com a segurança refletia a consciência coletiva de que qualquer
erro poderia colocar tudo a perder. Porque a quebra prematura do sigilo levaria a perda da superioridade oferecida pelo fator surpresa. Um aliado poderoso,
indispensável. Salientando a importância do sigilo, Ramos antes de partir para aquele

reconhecimento relembrou ao grupo a lei da guerra na selva a que se referira, também, durante a ordem à patrulha. "Lembrem- se: Procurem a surpresa por
todos os modos." Disse ele. Os patrulheiros tinham a sensação de

ainda estar ouvindo a mesma frase, à cada passo dado. Não havia movimento nas instalações, as aeronaves também não estavam em terra. Mas tinha de ser aquele
o local. A navegação foi

rigorosa e acompanhada de perto por vários integrantes da patrulha para reduzir as margens de erro. Além do mais, a abertura do copado das árvores nas imediações
denunciava a operação de helicópteros. Seria uma infeliz coincidência encontrar no meio do nada instalações outras além das de seu alvo.

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Ramos resolveu prolongar o reconhecimento, aguardando o possível retorno das aeronaves. Corpos esquecidos estacionaram. Os lugares ocupados eram os mais
inusitados pontos das vizinhanças do objetivo. Os insetos, exploradores curiosos e incansáveis, divertiamse

com os visitantes pintados. Homens que, indiferentes às investidas dos pequenos enxames particulares, utilizavam todos os seus sentidos nas tarefas de observar
o alvo e de detectar presenças atentatórias à segurança do grupo. - Tenente, tem alguma coisa errada! - era

o comandante do escalão de assalto, sargento Sarmento. Ele quebrava o silêncio do turno de quase três horas de paciente observação. - Sem sentinelas, tudo
muito fácil, não é?

- Sim senhor. - Mesmo que eles estivessem usando aquela engenhoca, deveria haver algum movimento. - Do que o senhor está falando?

- Em minha última missão, capturei um equipamento de segurança utilizado na cobertura de perímetros em acampamentos. Ele permitia ... Esse aparelho poderia
estar sendo utilizado por esta equipe, entende?

No retorno do reconhecimento, os homens envolvidos se reuniram compartilhando

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experiências e opiniões. Em seguida, apenas com a presença dos sargentos, foram discutidas as linhas de ação viáveis diante das circunstâncias encontradas.
Tomada a decisão, Ramos instruiu os sargentos. Queria que eles fossem minuciosos ao repassar as informações do novo contexto para seus comandados. Havia
consciência do risco representado pela permanência da tropa naquelas condições. Estacionada nas proximidades do objetivo, em meio à selva. Mesmo assim,
Ramos e os sargentos foram unânimes em decidir pela espera. Aguardariam quarenta e oito horas em posição. Caso a tropa ocupante das instalações não aparecesse,
a missão seria abortada. As mesmas quarenta e oito horas eram o limite de tempo disponível para permanência na região. Além dele, ocorreria o comprometimento
do tempo necessário para deslocar a patrulha até o local de extração. O desafio imposto à tropa aumentava

proporcionalmente ao tempo de permanência na região. A idéia de estabelecer uma base de patrul ha, com seu di sposi ti vo e artífices de segurança, precisou
ser descartada, diante da situação tática. Em seu lugar surgiram pequenas áreas de reunião clandestina, devidamente adaptadas à dualidade da missão: reconhecer
e preservar suas vidas.

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Por dois dias, equipes se revezaram na observação do objetivo, enquanto os demais realizavam a segurança aproximada do

perímetro. Foram horas longas e desconfortáveis. A espera o é por natureza, mas adversidades contribuíram para o agravamento

do quadro de tensão e desconforto. Aqueles homens sentiam o peso do imprevisto em detrimento do planejado. Mantidos bem informados, compreenderam a situação
atual de maneira participativa, concorrendo nos mínimos detalhes para o sucesso da missão. Após uma marcha forçada, graças a qual

havia tempo disponível para a espera, os homens superaram as câimbras, o frio das madrugadas encharcadas, o calor dos dias, a vontade de defecar e seus
fantasmas. Tudo por conta do valor pessoal inserido no contexto da missão a ser executada. ***

- Vai morrer gente! - disse De Paula para o soldado ao seu lado. Eram quatro horas da manhã, chovia torrencialmente. Os dois militares, deitados lado a
lado, compunham uma das equipes de observação do quarto de

162

hora. Sobre seus corpos dois ponchos ensaiavam a tentativa de reter algum calor, evitando as tremedeiras. Contumazes queimadoras de energia. Óculos de visão
noturna tornavam possível a observação das imediações da posição. Por precaução os óculos vinham sendo usados no modo passivo, sem a emissão de luz infravermelha,
dificultando a localização da tropa por inimigos que estivessem utilizando equipamento similar ou contra medidas de rastreamento óptico. - O que o senhor
falou Cabo?

- Eu disse que vai morrer gente! O cão está só esperando. O soldado fez um longo silêncio. Era a

primeira operação ao lado deste Cabo com mania de falar em morte e capeta. Apesar de admirar a competência e a desenvoltura do superior, desde o primeiro
contato, o soldado discordava, em silêncio, de suas manias. Muito religioso ele pedia perdão em suas orações para a alma do cabo De Paula. Eliminar os
responsáveis pelo

assassinato das crianças e mulheres indígenas, este era um dos poucos pontos comuns entre aqueles dois homens. - O senhor acredita em Deus, cabo? - No da
Guerra, dos Exércitos Fortes. Este é o meu Deus. Por que a pergunta? - Por nada.

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- Humm, acho que você está com medo do cão, soldado! Não houve resposta. A chuva, enfim, parecia diminuir de

intensidade. A Leste da posição ocupada por De Paula, uma outra equipe de observação realizava o rodízio de tarefas. Era uma equipe composta por três militares,
dentre os quais estava Ramos. Diferentemente da outra equipe, interessada em superar o frio, esta lutava contra outro óbice. Equilibrados nas forquilhas
de uma

imensa faveira, os três homens tentavam superar o desconforto das acomodações sem despencar de cima da árvore por descuido ou sono. Não que o frio, comum
à selva naquele horário, não os incomodasse, era apenas uma questão de prioridades. Os três sentiam dor no corpo e, ao

mesmo tempo, lutavam contra o relaxamento da musculatura. Mesmo nos momentos destinados ao descanso não podia haver descuidos. Para minimizar os riscos
de queda, o trio preparou

ancoragens individuais. Mas não convinha utiliza- las. Lá de cima, durante o dia, se avistava toda

a clareira à frente. Contudo, parte da visada sobre as instalações inimigas ficava obscurecida pelo copado de outras árvores. Ramos achou compensador tirar
proveito da

164

posição, recobrindo- a por meio de outros postos de observação. Com a interrupção da chuva, um som abafado começou a tomar conta das cercanias. Em poucos
minutos ele ficou intenso e assombroso. Parecia vir de todos os lados. - Cabo, Cabo! O senhor já dormiu? - era o parceiro do cabo De Paula. - Eu não durmo
militar, só descanso os olhos. Por que?

- O senhor está ouvindo isso? - É o cão, eu não disse que ele vinha. - sussurrou De Paula com seu sorriso sarcástico. Veio um breve intervalo. O som agora

parecia vir de uma serenata de urros sobrepostos. Assustado, o soldado sentiu algo atingir sua cabeça. Em seguida outro toque em suas costas e mais um na
cabeça. O militar não se conteve. - Cabo. - O que é infeliz?! - Acho que tem alguém por aqui! - Se eu te explicar o que está acontecendo, você cala a matraca
e deixa de ser cagão? - Hum!? - São macacos. Pelo som deve ser um bando de Guaribas ou Roncadores, esta é a sua

165

companhia. Eles costumam jogar sementes na gente. De Paula ainda de olhos fechados virou

para o lado, sentindo a farda encharcada e fria encostar em seu corpo, pensava à respeito do motivo para alguém tão inexperiente como o militar ao seu lado
compor os quadros da missão. Ele, filho de italianos, nascido em São João Del Rei, terra distante da Amazônia, escolheu os mistérios da região norte do
país como combustível para sua vida e a caserna

como o veículo das aventuras, do risco. Era um militar de grande iniciativa, conhecedor dos segredos da selva e dotado de amplo conhecimento profissional.
Foi preciso muito esforço pessoal. Esforço empreendido na adaptação à doutrina de combate na selva, nas horas de convivência com caboclos, indígenas, garimpeiros
e nos muitos dias zanzando pelas matas, só para ouvila.

Dizia De Paula, aos muitos que, curiosos, lhe perguntavam como um soldado que não era nativo conhecia tão bem os segredos da Amazônia. Entre seus superiores
e subordinados havia opiniões distintas, quando o assunto era o

Cabo loiro, com pele de lagartixa, narigudo e cheio de manias estranhas. Alguns o admiravam, conquistavam sua amizade e não conseguiam imaginar melhor companheiro
para

166

missões arriscadas. Outros, simplesmente, desprezavam sua existência. Na faveira, os três homens recebiam a visita de dois macacos. Próximo aos galhos onde
estavam os militares, os animais deram uma parada, pareciam desconhecer a presença da equipe. No entanto, a distância foi mantida durante toda a visita.
***

Chuvas depois, o prazo de quarenta e oito horas estabelecido como limite para a espera, se esgotou. Nada de novo foi observado no objetivo desde a chegada
ao local. Ramos se reuniu com os sargentos, colheu informações a respeito das condições de cada um dos grupos e de seus homens e analisou as hipóteses
sugeridas para explicar o que estava ocorrendo. A reunião foi feita ao lado de uma árvore de raízes tipo sapopema. Essas raízes são altas, parecidas com
paredes de

compensado erguidas do chão, criando compartimentos em torno da árvore. Em um destes compartimentos, os quatro homens conversavam ajoelhados sobre o tapete
marrom de folhas secas. Encima das coxas eles aparavam os fuzis.

167

O calor do início da manhã aumentava a sensação de abafamento. Filetes de suor escorriam em seus rostos e braços. Carapanãs, mosquitos próprios à região,
faziam da reunião

uma festa. Aproveitando a tolerância dos combatentes às suas picadas, eles sugavam sangue do pescoço, rosto e braços. - Texera! Quero que você faça nova
leitura com o GPS. Vamos confirmar as coordenadas obtidas quando da chegada. - Ok, tenente. Vou fazer a leitura lá do posto da faveira, fica mais fácil
conseguir sinal. - Sarmento! Prepare a patrulha. Partiremos em trinta minutos. - PJ! Começaremos o deslocamento para

o ponto de extração com esclarecedores do seu grupo. Alerte- os. Quero velocidade no deslocamento. - Sim senhor. Vou aproveitar o tempo e

mandar desativar as armadilhas. - Isso PJ, mande. - enquanto respondia ao sargento, um outro pensamento pipocou na cabeça de Ramos. - Ouçam! Mantenham o
moral dos homens elevado. Alguns devem estar decepcionados com a espera, sem a ação

prevista. Sustentem estes homens em situação. Alertem eles para os riscos de um possível encontro com grupos guerrilheiros, narcotraficantes e com o próprio
exército

168

colombiano. Afinal estamos operando dentro de outro país na mais pura clandestinidade. Até chegarmos aos helicópteros é por nossa conta. Ok, moçada?

Minutos mais tarde, com a patrulha em condições de partida, o sargento Texera retornou do posto da faveira. - Olha tenente, tentamos fazer a leitura até
agora. - E aí? - perguntou Ramos, interessado na possibilidade de erro nas leituras anteriores. Fato capaz de explicar o ocorrido nas últimas horas. Apesar
de lhe parecer extremamente

improvável. - Tem alguma coisa errada! Todos os aparelhos indicaram ausência total de sinal, é como se os satélites não estivessem mais na órbita da terra
ou o sinal tivesse sido codificado. - Pode ser algum problema temporário. Vamos levar em consideração as leituras anteriores. Tenho certeza de que fizemos
um trabalho competente de navegação por azimutes e carta. Estas instalações aqui ao lado só podem ser o nosso objetivo. Bom! Perdemos muito tempo por estas
bandas. Obrigado, Texerão. Junte- se ao seu grupo, partiremos em breve. ***

169

Ramos começava a ser pressionado pelo tempo. Progredindo com rapidez, superior ao

normal, a patrulha percorria quatro quilômetros a cada hora, quando a velocidade média de marcha para a região é de dois quilômetros e meio por hora. A
rota escolhida para este deslocamento facilitava, em parte, o bom desempenho da fração, pois o terreno era pouco

acidentado. Apresentando cursos d'água de fácil transposição. A vegetação, espaçada e pobre em cipós ou arbustos rasteiros, também corroborava para uma
maior velocidade no

deslocamento da patrulha. A navegação estava sendo feita apenas por meio de azimutes e contagem de distância pelo processo do passo de caçador. Neste processo
para avaliação de distâncias, dois homens de passos aferidos contam suas passadas até completarem o número de

passos necessários à medida de cem metros. A cada cem metros eles dão um nó em um dos pequenos cordões amarrados em seus equipamentos e recomeçam as contagens.
Com dez nós o comandante é informado do novo quilômetro percorrido e um novo nó é dado em um outro cordão, responsável pela marcação da distância total
em quilômetros. Em seguida os dez nós, do cordão das centenas, são desfeitos para dar continuidade à contagem.

170

Erros de mensuração, causados pelos escorregões e tropeços, eram reduzidos por Ramos com o emprego de médias entre os resultados obtidos pela dupla. Antes
de partir para a missão os homens aferiram suas passadas com a distância de cem metros nos mais diferentes tipos de terreno. Qualquer um poderia ser escalado
para a tarefa de "homem passo". Apesar de rudimentar, a técnica do passo de caçador era a mais confiável pois os passômetros disponíveis não funcionavam
corretamente em deslocamentos através selva. Durante a progressão, Ramos e os comandantes de grupo, pela comparação carta

terreno, mantinham- se informados quanto a posição atual. Traços sutis do terreno palmilhado serviam de referência a olhos expertos. Os altos, realizados
por cinco minutos a cada cinqüenta de marcha, eram utilizados por eles para a conferência de orientação e

efetivação de correções necessárias no azimute. Um dos maiores desafios para a orientação através azimutes é reduzir o erro causado pelo desvio padrão de
cada um dos homens que ocupa a função de navegador. O fantasma do desvio lateral acumulado. Ao caminhar no interior da selva os homens encontravam obstáculos,
troncos, pedras, cupinzeiros, que os obrigam a realizar pequenos

171

desvios laterais. Estes, uma vez somados, traziam risco à navegação por causar um grande desvio de rota, dada a distância percorrida e a pontualidade do
objetivo. Para diminuir a margem de erro, Ramos empregou a técnica do "off set". Escolhendo um ponto de extração próximo a um curso d'água

bastante volumoso, ele designou como objetivo intermediário um ponto, qualquer, à direita do ponto de extração. Assim ao se deparar com o rio bastaria caminhar
para a esquerda, próximo ao seu leito para chegar ao objetivo principal. ***

O sol iniciava seu mergulho no horizonte quando um dos esclarecedores levantou os dois braços por sobre a cabeça, unindo a ponta dos dedos. Era o sinal
convencionado para indicar ponto crítico à frente. A coluna de marcha se desfez. Ramos olhou para trás e, mesmo sem ver nada além do movimento de algumas
folhas, deu três tapas com a mão direita em seu ombro

esquerdo. Em seguida, girou o braço direito sob o eixo do cotovelo diversas vezes, mantendo os dedos apontados para o céu. Ele comunicava, desta forma,
seu desejo em reunir- se com os comandantes de grupo.

172

Um a um, os sargentos surgiram da mata. Vinham engatinhando, com o armamento em mãos e sem as mochilas. PJ, o primeiro a chegar, estava com o olho direito
coberto pela carne inchada. Ele se desentendera com um inseto pouco amistoso durante a jornada da

noite anterior. - E aí PJ, tudo tranqüilo? - Tudo na paz. Os elementos do meu grupo estão prontos para outra! - respondeu o sargento, com o otimismo de
costume. - Bom PJ! E o olho, incomoda muito?

- Não, só incomoda quando eu tropeço na sobrancelha ... Ramos e os demais sargentos não

contiveram os risos. - Moçada, acredito que o rio a nossa frente seja a linha de controle para execução do "off set". Estamos a quatorze horas da hora cegonha.
Vamos seguir para a esquerda, acompanhando o contorno desta margem do rio, assim encontraremos o ponto de toque das aeronaves. - Tenente! - interrompeu
Texera. - Fal a Texera.

- Concordo com a conclusão do senhor. Este ponto crítico à nossa frente deve realmente ser o rio, nossa linha de controle. Mas acho que não deveríamos arriscar
aguardando a hora cegonha.

173

A hora cegonha era a hora determinada como limite. Na qual, independente de contato rádio, ocorreria aproximação das aeronaves de resgate. Assim, mesmo
que algo saísse errado durante a missão ou ocorresse pane no sistema de comunicação, haveria hora e local conhecidos por todos para a extração. - E vocês,
o que acham? Concordam com o Texerão? - falou Ramos, fitando os olhos de

cada um dos companheiros. Sua expressão não demonstrava sentimento algum. Era como se ele tivesse acabado de chegar à selva. Não

havia demonstração de cansaço, sono, irritação ou coisa parecida. Isto inspirava, profundamente, os seus comandados. Contribuindo, também, para algumas
das lendas a seu respeito. - Acho que nós poderíamos tentar o

contato rádio. Não é uma boa ficarmos muito tempo por estas bandas. - disse PJ, coçando a bola de carne que cobria seu olho. Sarmento, trazendo um pequeno
bloco de

anotações à mão, fez longa pausa antes de responder. Ele parecia procurar algo anotado. Os outros aproveitaram o momento para

acomodar seus corpos em meio à superfície irregular desenhada por cipós, folhas mortas, raízes e troncos podres. - Vejo dois pontos à favor do contato e
um contra. Os favorávei s são fatos. Observamos

174

indícios da presença de grupos de homens deslocando- se em direção perpendicular à nossa. Isso ocorreu hoje às treze horas e depois às quatorze horas e
vinte e sete minutos. Provavelmente grupos paramilitares, pelo tipo de

calçado e técnicas usadas para não deixar indícios denunciadores de sua passagem. As condições climáticas e a hora são favoráveis à propagação das ondas
do rádio. O ponto desfavorável é apenas um palpite, por enquanto. Acho que a mesma fonte causadora do não

funcionamento do GPS vai interferir no funcionamento do rádio também. - Sim, mas e aí? - perguntou PJ em tom conclusivo. Ramos apenas ouvia atentamente
os comentários feitos. - E aí que corremos risco aqui. A aeronave

provavelmente não vai poder dispor do GPS de bordo para encontrar a agulha no palheiro que é esta clareira. E, sem o rádio, orientar a sua aproximação ou
acioná- la para a extração fica inviável. - Por que você aposta no não

funcionamento do rádio? - era o Texera curioso com a origem de tal crença. - Bem, se entendi corretamente, todos estão de acordo com o acionamento da

aeronave em vez de aguardarmos a hora cegonha. E a questão passou a ser o

175

funcionamento ou não do rádio e a dificuldade de aproximação da aeronave sem o GPS. - disse Ramos, antes que Sarmento respondesse à

pergunta. Todos os três sargentos ouviam atentamente, acenando com as cabeças em sinal de concordância. - Quando acertei o planejamento da missão com os
pilotos, decidimos estabelecer o ponto de extração também levando em conta sua fácil localização por helicópteros em vôo na modalidade furtiva. Os pilotos
me afirmaram: São capazes de encontrar este ponto de

extração mesmo sem GPS. Agora, quanto ao uso do rádio ... estaremos atraindo atenção de todos os nossos vizinhos. E até este momento somos perfeitos fantasmas,
gostaria que continuássemos assim. Nossas comunicações são muito rudimentares e podem ser facilmente

detectadas por um dos ouvidos do Tio Sam. Lembrem- se, planejamos só acionar as aeronaves por meio rádio se houvesse perigo real. - E os indícios ... - perguntou
PJ. - Normal, esta área passou a ser controlada pelas FARC desde a ofensiva do ano

passado. Quando pressionados pelas forças legais os guerrilheiros tiveram de vir para o Sul do país. Exatamente onde estamos. Aqui, tanto

176

os americanos, os traficantes, quanto os guerrilheiros podem vir a nos causar problemas. Ramos foi interrompido pela chegada de um soldado. Era o soldado
Orildo, seus olhos antecipavam o motivo da intromissão. Más notíci as. - Tenente, Tenente! - Diga Orildo. - Um dos homens foi picado por cobra. Foi no
pescoço, ele pediu para chamar o senhor. O cabo De Paula está lá com ele. Chegando no local, Ramos viu um grande

tronco apodrecido caído no chão. Ao lado estava o soldado atacado pelo ofídio. De Paula correu os olhos pelos rostos dos recém chegados, levantando em seguida
a cobra responsável pela picada. Aparentemente era uma cobra coral, com seus anéis vermelhos, brancos e pretos. Devido à dificuldade anatômica imposta
à

espécie para a inoculação da peçonha e a proteção oferecida pelo fardamento e equipamento, dificilmente ocorriam acidentes envolvendo militares e este tipo
de ofídio. O soldado, começava a demonstrar certa

dificuldade para manter os olhos abertos, como se estivesse com muito sono, ensaiou a pergunta. Em seu íntimo, conhecia a resposta. - Tenente, o que o senhor
acha? É grave, é falsa coral?

177

O oficial tinha consciência da dificuldade em diferenciar estas espécies entretanto reconhecera os primeiros indícios da ação neurotóxica e curarizante
da peçonha de uma elapídica. - Calma campeão! Está tudo bem. Você está notando algo de diferente?

A picada era fruto do descuido, do relaxamento do soldado por ficar se encostando em tudo pelo caminho. Mas não cabiam críticas ao fato consumado. A conclusão,
silenciosa e

coletiva, serviria de ensinamento para oportunidades futuras. Sem a soroterapia apropriada a vida de

seu subordinado estava perdida. A impotência diante da situação irritava Ramos ao extremo. "Aliviar o sofrimento" pensou o oficial, estimando o tempo de
deslocamento da

aeronave até o ponto de extração e concluindo: "estará morto bem antes disto". - Sarmento! - Selva. - Procure folhas de taubá e corte umas duas braçadas
de cipó alho. Vai! - De Paula, está com a tua panelinha aí? - Essa panela eu não largo... - Então a coloque em ação. Vamos fazer aquele chá igual ao que
você tomou lá no Curicuriari.

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De Paula olhou por um instante bem no fundo dos olhos de Ramos. Parecia em dúvida. Então, em um lampejo, como se lembrasse de

algo. - Ah! Sim aquele chá, é para já. Tendo escolhido um local aparentemente confortável para fazer sua parada durante aquele alto, o soldado negligenciara
a segurança. Em ambiente de selva o conforto do corpo é o atalho

do perigo. Encostado em um tronco apodrecido, em meio à folhagem esparsa, o militar abriu mão de uma rápida inspeção visual do ambiente o qual invadia.
Se o fizesse, certamente teria percebido a presença de uma moradora em uma das frestas do tronco apodrecido. Ao encostar- se, relaxando, ofereceu o pescoço
ao

instinto de defesa do animal. - Texera! - chamou Ramos. - Selva. - Quero que você estabeleça o contato com a base. Acione a aeronave, OK?! Não vamos aguardar
a hora cegonha. - E PJ! Providencie para que todos os homens mantenham a segurança e

permaneçam informados. Em pouco tempo, naquele local só restaram o vitimado, o oficial e De Paula, que aquecia a água em seu fogareiro.

179

- Dói? - perguntou Ramos colocando o dedo indicador próximo aos orifícios criados pela picada. - Não senhor. Dormente. Estou com muita

saliva na boca... um gosto estranho. - falou o jovem com muita dificuldade. E continuou. - Esse chá é para mim? - É sim. - É bom?

- Se é bom?!! Está vendo aquele cara ali. - Ramos, com um sorriso amigo, apontava para De Paula. - Ele só está vivo graças a este chá! As folhas e cipós
pedidos chegaram. De

Paula se incumbiu de prepará- los, cortando em pequenos pedaços, antes de colocar na água fervente. O soldado começou a demonstrar dificuldade respiratória.
Seus olhos não

conseguiam ficar abertos. A ptose palpebral estava intensa. Foi quando Ramos levou à boca do rapaz o caneco com o chá. Enquanto De Paula erguia sua cabeça.
Os dois tiveram de despejar um pouco do líquido pela garganta do soldado. Pois ele não conseguia engolir voluntariamente devido ao adormecimento do

corpo. - Pronto! Agora é só esperar. Rapidinho ele vai começar a fazer efeito. Não é De Paula? - perguntou Ramos olhando para o cabo.

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- Uns cinco minutos e você vai sentir um alívio do cão! - disse De Paula, dando dois tapinhas no peito do soldado. Fez- se silêncio. O soldado com a cabeça
amparada por De Paula continuava agonizando. Ramos chamou Sarmento, um pouco afastado do local onde estava o soldado acidentado. Mandou o sargento providenciar
uma maca, organizar as equipes de condução

até o ponto de extração e preparar para partir em quinze minutos. Dito isto voltou para próximo ao soldado, lá permanecendo em silêncio com sua mão direita
sobre o peito do companheiro. - Tene.. tenente. - Fale, estou aqui, estou com você. O soldado falava com muita dificuldade. A respiração parecia esforçar
em demasia o seu

corpo. Uma saliva abundante, além de espessa, insistia em brotar- lhe à boca. Obrigando os presentes a posicioná- lo de forma a evitar asfixia pela própria
saliva. - Tenen... Ta fazendo efeito.. o chá! Não estou sentindo mais nada. - Eu disse esse chá é bom mesmo. - e falando isso Ramos abraçou o corpo do soldado.
Sabia que o fim estava perto. Com um suspiro interrompido o soldado

se foi . Os sargentos não entenderam o que acontecera diante de seus olhos.

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Ramos mandou chamar a equipe com a maca . Queria o corpo do soldado transportado até o ponto de extração. Enquanto conversava com os militares da

primeira equipe do rodízio para o transporte da maca, passando- lhes dicas de como progredir conduzindo o corpo sem sofrer desgaste físico

excessivo, chegou a informação: não houve êxito no contato rádio. Tanto os GPS quanto o sistema de comunicação SSB da patrulha estavam inoperantes. Seria
necessário, então, aguardar a

hora cegonha. Com poucos minutos de progressão, à cavaleiro do rio, a patrulha se deparou com a clareira descrita durante o planejamento como o "ponto alfa",
o local de extração. Mesmo não tendo ocorrido a ação no

objetivo, como planejado, os homens sentiam orgulho pela superação das metas previstas para cada uma das fases da missão. O êxito obtido na orientação através
selva, depois de percorrer grandes distâncias, com recursos tecnológicos limitados, e visando alcançar objetivos pontuais, figurava como ponto de honra

da equipe. As baixas ocorridas não deixaram de ser lamentadas. Porém, foram entendidas como perdas factíveis, desde o recebimento da missão.

182

Nenhum homem embarcou nas aeronaves sem conhecer os riscos de operar, de forma não autorizada, em território inquestionavelmente colombiano. Ninguém deixou
de ser alertado sobre a possibilidade de acontecer um embate com guerrilheiros ou traficantes. Boa parte da motivação, no entanto, advinha justamente das
possíveis dificuldades. Resultado do prazer em superar obstáculos reais, em vivenciar aventuras. A condição de

desafio, o surgimento de situações novas à cada instante, isto definitivamente seduzia à quase todos os integrantes daquela equipe. Outro fator motivacional
era a informação. Por determinação do comando, todos os homens eram mantidos informados de tudo, todo o tempo. Com o dispositivo de segurança

estabelecido em torno da clareira, o consumo de ração por faxina foi autorizado. Os homens revezavam- se. Parte deles cuidava da segurança

enquanto os outros comiam a primeira refeição quente, desde a chegada a selva. A proximidade do curso d'água lhes garantia facilidades no preparo da alimentação
e na higiene. - Pena só ficarmos aqui uma noite. É o

melhor ponto de parada, tem água e a vegetação é baixa. O senhor não acha cabo Chaves?

183

- Você quer saber mesmo o que eu acho Ricardo?

- Sim senhor! - respondeu o soldado interessado na resposta do militar misterioso. Para Ricardo, o cabo Chaves era um referencial de postura militar. Disciplinado
mas sem excessos, rústico, silencioso como uma pedra, inventivo, excelente atirador, arrojado e

com um jeito meio marginal de falar, Chaves comandava pelo exemplo. A admiração de Ricardo pelo superior cresceu ainda mais, depois de trabalharem juntos
repetidas vezes. Apesar de se esforçar para impressionar e conquistar a amizade do velho cabo, Ricardo

sempre achava estar abaixo das expectativas de Chaves. As tentativas públicas de impressionar o

superior e a assimilação dos seus trejeitos fizeram Ricardo ficar conhecido, entre os outros soldados, como "o filho do cabo Chaves". A conotação sarcástica
do apelido não incomodava Ricardo, de fato a comparação recompensava parte dos esforços. - Acho que se você não calar a matraca e

abrir bem os ouvidos logo, logo, teremos mais de duas baixas nesta operação! O soldado parou de falar. Concentrando sua atenção na tarefa de integrar o
dispositivo de segurança, voltou o rosto para a escuridão e

184

aguçou seus sentidos. Principalmente a audição. As sombras errantes da noite criavam fantasias bem diante dos olhos dos patrulheiros. Materializando silhuetas
de

homens em deslocamento, assombrações de fórum íntimo e outros vultos inexplicáveis. Os óculos de visão noturna da patrulha

estavam inoperantes. As baterias alcalinas, necessárias ao seu funcionamento, foram descarregadas pelo uso durante a espera, no objetivo. Sem este valioso
recurso, Ramos empregava postos duplos de escuta para realizar a segurança da base. - De Paula! Venha cá, elemento. - era a voz do sargento Paulo José.
O cabo concluía a arrumação da própria mochila. Iniciada imediatamente após a manutenção do armamento, rotina seguida sempre que havia tempo livre. Ao
ser chamado, De Paula deixou seu material na posição, seguindo os poucos metros até o sargento

apenas com o fuzil em mãos. Os outros dois sargentos, além do PJ, o aguardavam. Eles estavam sentados formando uma pequena roda. Só era possível ver os
vultos, mas as vozes aliadas a certos comportamentos ajudavam no reconhecimento. Um dos integrantes do grupo esfregava, ritmadamente, uma lâmina sobre
uma superfície

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áspera. "Só pode ser o sargento Sarmento", pensou De Paula. - Selva! Cabo De Paula pronto. No dia a dia De Paula e PJ costumavam deixar a formalidade de
lado. Tratavam- se muito mais como velhos amigos, companheiros de aventuras, do que como superior e subordinado. Entretanto quando na presença dos outros
sargentos ou superiores hierárquicos o

tratamento voltava aos parâmetros convencionais. Exceção feita às ocasiões nas quais o terceiro militar presente era o Ramos. - Que gororoba foi aquela?
O tal do chá. - perguntou PJ. - É, que história foi aquela do Curicuriari? - era a voz do sargento Texera. Sarmento continuou em silêncio, cuidando do
fio de uma de suas facas. Seus sentidos apontavam a presença de uma quinta pessoa naquele grupo. Uma presença conhecida. - Ah, o chá é? Ele é bom mesmo.
Não sei

como não fez efeito! - falou o cabo, estranhamente sério. Não satisfeito com a resposta PJ continuou. - Como é que tu nunca me contaste isso? Sempre disse
não ter sido picado por cobra!?

- E é verdade! - a voz vinha exatamente da quinta presença pressentida pelo Sarmento. Era

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a voz do Ramos. Ele estivera ali, sentado em seu banquinho, nos últimos vinte minutos. Protegido pelo silêncio, abrigado na escuridão. - Tenente!? - confirmou
Texera, voltando seu olhar para a direção indicada pela chegada da voz. Não viu nada além do nada. - Sim sou eu! A voz continuou. - De Paula nunca foi
picado por cobra, muito menos em operação no Curicuriari. O grupo permaneceu em silêncio, enquanto Ramos prosseguiu com a narrativa. - Aquele chá é usado
para atenuar dor de

barriga. O escolhi por que identifiquei seus ingredientes a poucos metros de nossa posição. O que contribuiria para um rápido preparo. A morte do nosso
companheiro era uma questão de tempo. Nestes casos, sem o soro adequado não ha muito o quê se possa fazer, além de trazer um pouco de conforto à

vitima. E tem mais; mesmo que a aeronave tivesse sido acionada, não chegaria a tempo. A peçonha da coral atua impiedosamente. Ao invés de informa- lo de
sua má sorte e me sentar ao lado dele esperando os minutos de agonia

ceifarem sua vida dei- lhe conforto. No passado, vi índios agonizarem até a morte depois de serem picados por cobra coral, acreditem: não é um fim justo
para um guerreiro. Assim, dei ao combatente esperança e nada traz mais conforto

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do que a esperança. Se preciso for, façam o mesmo por mim! - Pode deixar tenente, vamos até começar a pensar em um chá bem ruim para o elemento. - disse
PJ descontraindo o ambiente. - Mas o motivo que me trouxe aqui foi

outro! Sinto algo de errado no ar. Aquela base clandestina abandonada, os GPS fora de funcionamento e as comunicações cortadas. O fato é: não estou nada
tranqüilo com as possíveis causas destas dificuldades. Texera entrecortou a fala de Ramos: - Pode ser parte de um conjunto de

medidas do governo colombiano para combater ao narcotráfico ou à guerrilha! O que o senhor acha? - Não sei. Seria uma tremenda coincidência, estas medidas
terem início justo durante nossa operação. Embora explicasse parte do que está acontecendo. - É, explicaria a falha dos GPS e das comunicações. Mas não
explicaria o porquê do

abandono da base. - enquanto falava, PJ separava pelo tato alguns rolos de filme fotográfico. Acondicionando- os em pequenos invólucros impermeáveis, confeccionados
por ele com marcações em alto relevo para facilitar o

manuseio em condições de pouca visibilidade. Fotógrafo de talento, Paulo compensava os parcos rendimentos do salário de sargento

188

com a venda de fotos tiradas durante treinamentos e missões militares para os companheiros de caserna. As fotos faziam sucesso por retratarem detalhes inusitados
da

rotina militar. Passagens de perigo e beleza que sem as fotografias seriam inimagináveis para os familiares e amigos. Depois de guardar a faca no suspensório,
Sarmento, aproveitando a pausa no diálogo, falou: - Todos vocês me conhecem, sabem que

eu não sou nenhum seca pimenteira mas... se a aeronave não vier amanhã, na hora cegonha... bom; Aí, vou começar a acreditar que não somos os únicos em dificuldades!
Podemos ter nesse momento, pelo menos, outras três milhões de pessoas em dificuldades! - Do que você está falando Sarmento? - perguntou Texera. - Ele está
falando de algo possível. De algo que pode estar acontecendo. Juntem as peças! Analisem o cenário deixado para trás quando de nossa partida de Manaus.
Suponham que face às graves, incontestáveis e maciças agressões aos direitos humanos os Estados Unidos tenha resolvido, mesmo que unilateralmente, intervir.
Os homens do grupo deixaram escapar murmúrios, Ramos continuou:

189

- É, intervir! Invadir a Amazônia para fazer cessar os crimes humanitários em andamento. Isto sim justificaria tudo o que vem acontecendo. - Tenente... agora
o senhor pegou pesado. - PJ até parou de separar os rolos, diante do interesse pelo assunto em discussão. - Também acho meio difícil tenente! - era o Texera
falando. - Acho muito radical essa idéia de intervenção militar, assim de uma hora para a outra. Mesmo se acreditarmos nesta hipótese, como explicar a
falha dos GPS? O senhor acha

que eles desligariam os satélites? E a aviação comercial, a navegação do resto do país e do mundo, concordaria em simplesmente parar?

- Talvez não seja preciso. Talvez haja formas de neutralizar apenas algumas áreas ou coisa assim. Infelizmente não tenho a resposta para todas as perguntas.
Se a intervenção

ocorreu, ela não foi decidida de uma hora para a outra, os detalhes devem ter sido estudados para causar níveis mínimos de transtornos aos não envolvidos
diretamente. Os seus mentores não desejam colateralidades técnicas interferindo negativamente na opinião pública. - Bom, se esta hipótese for verdadeira
logo mais não teremos condução. Aliás, passaremos a ser tão clandestinos em nossa terra quanto aqui! - Sarmento, definitivamente, colocara lenha suficiente
para alimentar as chamas das especulações por muitas horas.

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E assim, o grupo prosseguiu. Tecendo suposições e discutindo possíveis linhas de ação para cada uma delas. A prosa se alongou, avançando pela noite. De
tempos em tempos, Ramos ou um dos sargentos saía para circular entre os postos de escuta, voltando à conversa mais tarde. As rondas não eram realizadas
com o intuito de

apenas fiscalizar a conduta dos militares durante o período de guarda. Objetivavam, primeiramente, proporcionar aos homens o conforto e a segurança da presença
de seus comandantes durante as horas mais difíceis do serviço. Nos postos eles conversavam sobre assuntos amenos, espantavam o sono mastigando algo ou
simplesmente dividiam o silêncio do dever de guardar o descanso dos demais. A presença amiga e constante dos superiores hierárquicos fortalecia o moral
do

grupo. Era à noite que os medos e as dúvidas marcavam mais forte a presença na cabeça daqueles jovens. Sob os esparsos riscos de luz, pintados em um céu
de folhas, muitos aproveitavam o tempo para refletir sobre suas vidas ou sobre fatos menos importantes. Coisas do dia- a- dia, da rotina da cidade, coisas
que ali não pareciam ter tão pouca importância. Sozinhos, cansados e próximos da natureza os homens refletiam seus feitos, planejavam

191

mudanças e ruminavam seus temores. Tudo, quase sempre, esquecido quando da volta para casa ou do início de um novo dia. Em contrapartida, os sargentos e
o próprio Ramos usavam estas ocasiões para conhecer um pouco mais seus companheiros, compartilhando suas experiências de vida.

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Guariba

Ouvidos atentos buscavam sinais de aproximação das aeronaves. A hora cegonha passou. O dia passou sem que as aeronaves previstas para o resgate aparecessem.
Nos rostos dos patrulheiros a tensão da espera

esculpira diferentes expressões. Muitas foram as tentativas de obter contato rádio ou de usar o GPS para confirmar a posição atual. Todas frustradas. Durante
a noite foi decidido: haveria mais um dia de espera; depois partiriam rumo sudoeste em uma marcha com o objetivo de

alcançar o Rio Içana e por conseguinte o território brasileiro; o corpo do soldado seria escondido próximo à clareira para posterior resgate. Agindo igual
a criança em véspera de

natal, poucos foram os homens à desfrutar das horas de sono. A ansiedade não permitiu. Um dos homens acordou o sargento Texera e metade da selva, às quatro
horas da madrugada, dizendo ter ouvido a passagem de duas aeronaves em vôo próximo ao copado. Foi o suficiente para que os demais desistissem de tentar
o sono. Pela manhã, Ramos chamou o militar responsável pela quebra da disciplina de ruídos,

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ocorrida na noite anterior, para tomar o café junto com ele. O conteúdo da conversa jamais foi conhecido pelos outros integrantes da patrulha. Eles apenas
viram o tenente dividindo o café de

sua marmita com o companheiro. Mas o soldado Honorato foi sacudido em sua alma. Ramos tinha um jeito único para iniciar e

terminar suas descomposturas. Em operação, sempre aplicava a reprimenda enquanto dividia a comida de sua marmita. Seus ouvintes saiam conscientes do erro,
estremecidos pela responsabilidade com o grupo e orientados para a correção de atitude. Nestas horas, Ramos parecia ter um vocabulário, uma história e
um tom de voz sob medida para cada caso, para

cada homem. E nunca precisou advertir duas vezes um mesmo companheiro. Diferentemente de outros oficiais, que insistiam em ameaças vazias de punição disciplinar
ou outros procedimentos burocráticos à cada erro de seus subordinados, Ramos preferia a conversa das refeições. Os soldados mais acostumados a operar com
ele diziam ser enfeitiçada a marmita do tenente; "Usou dela, um abraço! Vai comer esterco e agradecer." O dia de prazo se foi e o resgate não

apareceu. A apreensão marcou a longa e i nfrutífera jornada. No sepultamento provisório do militar acidentado, a tristeza muda superou a tensão da espera.
O corpo foi enterrado no fim

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da tarde e junto com ele as esperanças de voltar mais rápido para casa. Na manhã seguinte, Ramos, abrindo mão da segurança por alguns instantes, reuniu
todos os homens para explicar de própria voz a situação atual do grupo, assim como a linha de ação a ser seguida doravante. Reações diversas brotavam no
intimo dos integrantes da patrulha. Alguns lamentavam ter de participar da

caminhada cansativa e perigosa proposta como solução. Estes maldiziam a incompetência dos pilotos ou a má qualidade dos meios de comunicação conduzidos
pela patrulha. Outros tentavam imaginar o que estaria acontecendo, o porquê de todos aqueles desencontros. Ainda havia o grupo dos satisfeitos, para eles
o destino ofertava algo único. O desafio de suas vidas. Qual fosse o motivo dos fatos desvendados, o melhor ainda estava por vir e

viria a cada metro percorrido, após cada socavão superado. Encerrada a preleção, a patrulha iniciou o

deslocamento. *** "Mais duas vidas. Mais dois jovens tirados de casa, do conforto de suas famílias, e

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confiados à mim. Não posso falhar! Se a navegação for bem conduzida iremos alcançar a região onde surpreendia os garimpeiros vindos daqui de cima. Daquele
ponto para o Rio Içana é

rápido. Mas as rações!? Só teremos rações para uns dois dias mais... isso não é problema estamos caminhando em meio a comida." A mente de Ramos fervilhava
em pensamentos. Dentro da rede de selva, montada próximo ao

centro do dispositivo da base de patrulha, o oficial não conseguia adormecer. O silêncio e a solidão da noite transbordavam para as redes, massageando

mentes e espíritos de seus ocupantes. Algumas vezes, o zunido de insetos, tentando vencer o bloqueio do mosquiteiro, quebrava a harmonia ambiente. O cansaço
levava a maioria dos homens a adormecer rapidamente, depois de

recolhidos às redes de selva. Outros poucos se valiam do espetacular ambiente selvagem para refletir, pensar na vida. Ramos era um destes, passava horas
dentro da rede ou sentado ao lado da mochila tecendo idéias. - Meu joelho bichado está doendo pra caramba! - queixava- se Texera à PJ. - É elemento, estás
ficando velho para isso. - Isso o quê?

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- Essas aventuras. Teu negócio agora é cuidar dos netinhos, pilotar um computador e resolver assuntos burocráticos. - É?! E aí quem iria ensinar algo de
bom para meninos como você? No meu tempo na

brigada pára- quedista as coisas eram diferentes, no meu tempo... Paulo José, deitado em sua rede de selva, provocava o amigo Texera. Por este caminho, o
diálogo rendeu horas. Puxando a sardinha para o seu prato, Texera, sentado logo abaixo da rede do PJ em um pequeno banco articulado, expôs mil motivos
comprobatórios da superioridade dos páraquedistas

da velha guarda. Em meio a empolgação sussurrada, Texera demorou a perceber que seu suposto ouvinte dormira há muito. *** Os dois dias a seguir foram marcados
pelo excelente desempenho na progressão. A vegetação e o terreno favoráveis permitiram deslocamento à velocidade de três quilômetros e setecentos metros
por hora, em média. As boas condições encontradas possibilitaram rapidez sem desgaste excessivo dos homens.

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Para manter a performance os militares adaptaram. Faziam uma refeição por dia, caminhavam durante todo o período de luz disponível e descansavam somente
depois dos rotineiros procedimentos para ocupação das bases. Dependendo do terreno e da vegetação existentes no local escolhido para a base de patrulha,
o estabelecimento do dispositivo de segurança chegava a ocupar metade do tempo destinado ao descanso. Mesmo com o desconforto do sono perdido, as orientações
dadas para a ocupação da base eram seguidas a risca, sem ponderações. O único problema de saúde estava no

joelho do sargento Texera. Ramos, sem demonstrar ter conhecimento das dores e inchaço no joelho do sargento, administrava o caso pessoalmente. Mantendo
Texera sempre ao seu lado, próximo à testa da coluna de

marcha onde não ocorria flutuação de passada, sob o pretexto de que ele, como melhor orientador, seria o responsável por conduzir a navegação. Com essa
medida o comandante também poupou Texera do rodízio das mochilas dos falecidos. O sargento com seu ego inflado, anestesiado pela responsabilidade da missão
a

ele confiada, não percebia a sutileza da ação de comando do Ramos.

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Com o passar dos dias as mochilas foram ficando mais leves, acabavam as rações. Os corpos progrediam com maior desenvoltura. Para trás ficavam as frustrações.
As lembranças do objetivo vazio, da espera em vão pelas aeronaves, foram sendo tornadas menores à cada passo, principalmente pelos soldados. Na cabeça
deles tais amarguras cederam lugar ao desafio estabelecido por Ramos: "Chegar à São Joaquim no menor tempo possível e sem mais baixas". Por outro lado,
metro a metro, crescia a

saudade de casa. As mentes vazias eram preenchidas pela constante presença de Ramos. Nos altos para descanso, nos quartos de hora do serviço noturno, nas
refeições ou durante os trabalhos de ocupação das bases de patrulha ele sempre repartia seu tempo com alguém. Ouvindo muito, muito mais do que o normal.
Mas quando falava Ramos despejava otimismo, informações e bom humor sobre seus subordinados, afastando a

tensão de preocupações desnecessárias. Desafios intermediários, renovados dia após dia, passaram a ser estabelecidos. Coisas simples, como o aumento da
distância a ser percorrida a cada jornada, a melhora do padrão

de ocupação das bases de patrulha entre os grupos de combate ou a manutenção do sigilo durante o deslocamento, eram propostas ao

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grupo. Desafios que contribuíam muito para motivar a equipe. O repto mais comum feito aos homens incluía a realização das progressões limpas, com nível
de indícios beirando o zero, sem abrir mão da velocidade e da segurança. Nestas ocasiões, Ramos, deslocava- se, por alguns minutos, a retaguarda da coluna
de

marcha. Como último homem, avaliava a quantidade e a qualidade dos indícios deixados quando da passagem de seus comandados. Seus olhos, experientes, detectavam
pequenos detalhes como cipós rompidos, raízes descascadas pelo atrito dos solados de botas ou equipamentos, troncos apodrecidos macerados, galhos quebrados
e folhas secas caídas no chão com o lado úmido voltado para

cima, interpretando- os como indícios da passagem de sua tropa. Rastros que possivelmente seriam encontrados por inimigos bem preparados e que se assim
o fossem dariam ao inimigo a vantagem da surpresa. As observações feitas eram anotadas e

repassadas aos subordinados durante os altos. Mesmo não havendo referências a procedimentos semelhantes na literatura estudada na academia militar ou em
qualquer outro curso, Ramos fazia uso deles. Certas atitudes suas contrariavam unanimidades apresentadas como regra. Ramos ousava ir

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além das convenções, acreditando e seguindo seu instinto. ***

Ainda restava claridade quando o cabo De Paula e o soldado Honorato ocuparam uma espera para caçar. O apoio escolhido ficava três metros acima do chão,
em uma árvore. Onde

galhos serviam de assento para os dois. Logo abaixo de seus pés um igarapé de água cristalina formava uma pequena praia com areia branca como neve. O local
escolhido para a espera prometia

fartura de caça. Nele foram encontrados rastros deixados por antas e veados. Pegadas destacadas pela areia, alva, que ciceroneava a água corrente do bebedouro
formado. Mesmo que a caça não estivesse a procura d'água, ainda assim haveria um bom motivo para ir até o local; a presença de árvores com frutos e flores
comestíveis. A flor de pequiá, abundante nas redondezas, fazia parte da dieta alimentar dos veados. Por isso, os dois militares esperavam abater pelo menos
um desses animais durante a caçada.

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A ausência de vegetação rasteira na orla do igarapé permitia a iluminação do terreno pelo luar. Com a lua na fase crescente e o contraste da coloração da
areia, ficava facilitada a identificação visual da caça, mesmo à noite. Somando mais um ponto favorável ao local

escolhido. Enquanto aguardavam a chegada de algum animal, os dois militares sentiam em seus rostos a força do vento canalizado pelo corte do curso d'água.
Este mesmo vento aumentava as chances de êxito da caçada. A corrente de ar tapeava o olfato dos animais de

pêlo e sangue quente, dificultando a detecção das alterações do hábitat natural e conseqüente sinais de perigo. Ocultando o odor desprendido dos corpos
suados dos dois marmanjos dependurados nos galhos de uma das árvores da vizinhança. Um quilômetro a jusante do mesmo

igarapé foi estabelecida a base de patrulha daquela noite. Próximo ao curso d'água, iluminado pelo luar, Paulo José, ajudado por dois companheiros, fazia
a pescaria mais farta

de sua vida. Com um pequeno pulsar improvisado por PJ, quilos de camarão foram conseguidos. Durante o ápice do luar, os três sentiam o choque do pescado
de encontro às suas pernas. Com as calças arregaçadas até o joelho e sem os coturnos eles pescaram

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camarão em quantidade suficiente para alimentar toda patrulha por uma refeição. Sem as rações especiais ou as de

consumo a frio, Ramos se viu obrigado a utilizar medidas alternativas para preparar a refeição principal. Em especial quando esta refeição passou de principal
à condição de única refeição do dia. Mesmo ficando aceso apenas durante o

tempo necessário ao preparo da comida, o uso do fogo atentava contra a segurança da patrulha. Alguns dos homens sugeriram amenizar os efeitos do fogo com
a confecção de rabos- dejacu.

Nome dado ao abrigo construído com palhas sobrepostas e inclinadas sobre uma trave feita com varas de madeira. O rabo- de- jacu pode ser utilizado para
isolar as chamas da água das chuvas, quebrar um pouco da intensidade luminosa da queima dos troncos em meio a escuridão, ou ainda dissipar a

fumaça criada pelo fogo evitando o efeito chaminé. Mas o fogo não combinava com a situação, com os riscos do momento. O uso do rabo- de- jacu acrescentaria
mais problemas do que soluções. Sua confecção envolvia alterações no meio ambiente difíceis de disfarçar. Ocultar as palhas cortadas para o rabo- de- jacu,
dissimular os indícios do uso de lâminas nas palmeiras e ainda sumir com as

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varas usadas na montagem da armação são tarefas que incorporam um custo muito elevado para um benefício pequeno, muito pequeno, oferecido pelo abrigo. Sumir
com as brasas e demais indícios de fogo, ao partir das bases, não seria difícil. Ainda assim persistia a questão do cheiro, do

calor e do clarão provocados pelas chamas. Mais cedo ou mais tarde a segurança da patrulha ficaria comprometida. As soluções surgidas deixavam arestas,
deficiências capazes de alimentar possíveis rastreadores com informações à respeito da equipe. A importância do consumo de comida

quente pesava na decisão de Ramos. Alimentados, aqueles homens seriam capazes de alcançar a Antártida. Com organismos imunodeprimidos, por desnutrição e
esforços físicos continuados, além do estresse, não iriam resistir às enfermidades da floresta. Sob estas condições os homens não renderiam, em ação ou
em deslocamento, o quanto são capazes. Mesmo com o objetivo da missão ficando para trás, Ramos agia de maneira a manter seus comandados prontos para um
novo combate ao final dos deslocamentos diários. Para ele, acima da importância da chegada de uma marcha estava as condições para o combate que poderia
vir a sucede- la.

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Ramos optou por alterar o horário da refeição. Doravante os homens despenderiam as primeiras horas do dia para preparar a

comida. A medida atrasava o início do deslocamento, obrigando a patrulha a permanecer estacionada durante preciosas horas de luz. Em compensação, durante
o

amanhecer a mata é mais benevolente. As chamas não são visíveis a grandes distâncias e a fumaça facilmente pode ser confundida com o efeito resultante das
inversões térmicas, causadoras do fenômeno das chaminés da

floresta. Com o novo horário, Ramos tentava atenuar a redução da segurança causada pela necessidade de uso do fogo. Foi proibido o uso do rabo- de- jacu,
evitando o corte de palha e conseqüente

aumento de indícios. Em caso de chuva o fogo deveria ser protegido por um abrigo improvisado, do tipo meia água, construído com ponchos e fixado por cordéis
alguns metros acima das chamas. A obtenção da caça ou do

pescado ocorreria durante a noite à cargo das equipes de caça. Seus integrantes seriam escalados dentro dos grupos da patrulha, a critério dos sargentos.
Realizando rodízio entre as equipes de caça, dos diferentes grupos da patrulha, ficava garantida a equidade de tarefas. Além de manter presente o espírito
de salutar competição,

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incentivado pelo comando. Também havia o rodízio diário de cozinheiro e equipe de cozinha. Para matar a fome das noites, em vigília

de espera pela hora da comida, tornou- se comum a discreta coleta de frutas e sementes durante as jornadas diurnas. Ao ocupar a base o alimento coletado
era entregue aos sargentos que, matematicamente, dividiam- no entre os integrantes da patrulha. ***

Passado o horário crítico, a quantidade de mosquitos e outros insetos diminuiu o suficiente para permitir à dupla na espera um pouco de sossego. A pele
de suas mãos, rostos e pescoços, estava repleta de caroços. Os olhos, aclimatados às condições de pouca

luminosidade, conseguiam perceber o movimento das folhas embaladas ao vento. Suas armas tinham supressores de ruídos fixados no final dos canos. Enquanto
aguardava o surgimento de

alguma caça, De Paula recordava. Foi em uma noite como essa, com este cheiro de folha de oari- açu chegando em seu espírito, que ele caçou pela primeira
vez lado a lado com os índios curipacos. Na época, estava

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servindo no Pelotão de Fronteira de São Joaquim. O correr dos dias o aproximou das comunidades indígenas dispostas ao longo do

Rio Içana. Em pouco tempo, De Paula conquistou a confiança, principalmente, da comunidade curipaco, vizinha ao pelotão. Certa vez o tuxaua o convidou para
uma

caçada, o grupo sairia para caçar macacos. Macacos barrigudos, um grupo deles havia sido avistado próximo a uma das alças do rio. De Paula aceitou de pronto,
pediu permissão ao comandante do pelotão, naquele tempo o aspirante Ramos, para conduzir uma das armas de calibre vinte, com cartuchos carregados com chumbo
fino, no que foi atendido. Quando de sua chegada à aldeia, para

reunir- se com o grupo de caça, o cabo conduzia uma pequena mochila e a espingarda a tiracolo. Os índios riram bastante. Eles riam da presença

da arma de branco trazida por De Paula para a aventura. Um dos nativos lhe explicou o motivo da graça. "Com aquela arma só pegariam um animal pois ao fim
do primeiro disparo até os espíritos iriam embora." Assim, foi demovido da

idéia de levar a arma. Recebendo, em seu lugar, um desengonçado mauepe e um punhado de pequenas fisgas de madeira. Eram os dardos, eles tinham algo parecido
com lã enrolada em sua retaguarda e uma ponta bastante fina. O mauepe, uma espécie de zarabatana

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confeccionada com caule vegetal, media quase dois metros e meio. A perfeição geométrica oferecida pela natureza e aproveitada pelos nativos como ferramenta
de caça, impressionava. A lembrança dos macacos despencando, um a um, da copa das árvores veio à mente do

Cabo. Não era possível esquecer a perícia com a qual os dardos eram soprados através dos mauepes. Ou a sabedoria na justa medida da morte animal, apenas
em quantidade capaz de satisfazer a fome da comunidade. Mesmo havendo mais animais para serem abatidos, em determinado momento os sopros cessaram. Caçara-
se o suficiente para alimentar a

comunidade, os demais macacos deviam seguir. Os únicos sons ouvidos durante toda a caçada foram os dos sopros e os dos corpos despencando das alturas. De
Paula até tentou ajudar na caçada mas seus pulmões despreparados mal conseguiram impulsionar o dardo para fora do mauepe. Mas ter estado ali sem atrapalhar
foi o bastante. A conduta silenciosa do De Paula

agradou aos índios. Àquela jornada de caça, muitas outras sucederam. De Paula aprendeu os segredos da confecção dos mauepes, dos dardos e foi apresentado
aos mistérios dos venenos

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naturais. Passados de geração em geração, há séculos, mistérios como o da obtenção do curari, utilizado nos dardos das caçadas, davam provas da riqueza
cultural daquele povo. Quase

explicando o porquê da sobrevivência das populações nativas ante aos desafios de uma região tão inóspita. O som de um galho quebrando devolveu De Paula
à espera de hoje. Honorato olhava para a direção de onde veio o ruído, tentando identificar algo entre as sombras. Em seguida, ouviram um outro estalo,
este mais perto da

posição ocupada pelos dois. "Beleza, agora vai!" Pensou Honorato, comemorando a chegada da caça. Lentamente seu dedo indicador direito foi de encontro à
tecla do gatilho. O frio de momentos atrás desapareceu por completo, os sentidos afloraram à pele. Ao seu lado o mesmo

acontecia, mas o motivo era outro. De Paula não identificara o som, de instantes atrás, como produzido por animais silvestres. Parecia mais com o som do
bicho homem. Da orla da mata surgiram três vultos falantes. Com uma postura bastante displicente, o grupo parou para abastecer os cantis. A noite não permitia
a identificação de

detalhes, apenas vultos. Os homens à beira do igarapé conduziam fuzis e usavam fardas em bom estado de

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conservação. No lugar de gorros ou outras coberturas convencionais eles traziam panos amarrados à cabeça. Um dos homens, o que estava com um pano preto
servindo de cobertura, instruía os outros dois, visivelmente mais jovens. Ele mostrava a forma correta de encher o cantil sem deixar contaminar a água
coletada. Os olhos de Honorato estavam saltando à

órbita, o esforço de visão retornava contornos de pouca definição. Seu dedo indicador direito parecia possuído, insistindo em pressionar a tecla do gatilho.
Só não o fizera, até então, por que aguardava o desencadear da ação pelas mãos do superior ao seu lado. - Cabo nós podíamos ter surpreendido

eles! - sussurrou Honorato, quando os três vultos se afastaram atravessando o igarapé. - Visto cobra se deslocando no mato? - perguntou De Paula. - Sim
senhor! Mas... - Pois é, caminhe como uma cobra! Sem ruídos, sem perda de tempo. Vá até a nossa base e fale para o tenente vir até este ponto dentro de duas
horas. Você entendeu?

- Entendi, entendi! Mas cabo... - Sem mas, vá logo demônio! Ao ser informado do ocorrido, Ramos resolveu, de imediato, desocupar a base de patrulha. Homens
lutavam contra o tempo. Nem

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o sono, nem o cansaço ou o desacerto de arrumar tudo para a partida sem luz alguma, interferiram na pronta resposta à ordem. Sabendo que seria um alvo mais
fácil ao

progredir na ausência de luz com um efetivo como o seu, Ramos optou por ocupar um dispositivo de segurança alguns metros ao Sul

da base desocupada. Afastando a tropa do curso d'água, aproveitando um terreno coberto por cipós, raízes do tipo sapopemas, ele tentava

oferecer, ao inimigo, condições de aproximação desfavoráveis. Sua outra preocupação era com tempo. As duas horas pedidas por De Paula. Tudo acontecia rápido,
muito rápido. As decisões fluíam. Ao Ramos bastava indicar a

linha de ação e logo Sarmento, PJ ou Texera colocavam as ordens em prática. Os homens foram dispostos lado a lado no terreno, formando um grande círculo.
Em cada posição ocupada uma nova adaptação ao meio era exigida. Os patrulheiros tentavam aproveitar ao máximo o terreno. Pensamentos mil varriam as mentes
daqueles guerreiros. Não sabiam ao certo o que

esperar. Qual o inimigo. Sabiam algo sobre perigo iminente, parecia ter acontecido alguma coisa com De Paula durante a espera. Um ataque, talvez? Havia
sono e desconforto.

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- Vou até a posição com o Honorato. PJ! Eu quero cada um dos homens informados dos acontecimentos até aqui. Saímos da base meio às pressas, eles devem estar
cheio de dúvidas, satisfaça- as. Sarmento! Você assume. Não coloque a equipe em risco. Se nós não retornarmos até o amanhecer... prossiga no azimute de fuga.
Dentro de algumas horas vocês encontrarão um curso d'água de grande

dimensão, ele não consta de nossas cartas, mas nesta época do ano sei que ele estará lá. Transponha- o! Depois dele restará mais uns oito dias de marcha
e vocês encontrarão o Içana. Sigam para o Pelotão de São Joaquim e informem o ocorrido. - Ramos sussurrava suas ordens com as mãos sobre os ombros de Sarmento
e Texera enquanto PJ completava o círculo com os braços sobre os outros dois sargentos. Os quatro estavam com suas testas encostadas uma nas outras. Os
corpos, aquecidos pela ação, faziam as fardas liberar vapor. O cheiro era uma mistura de suor, suor com chuva, suor com mato, suor com terra. Suor com
camarão. Texera, aproveitou a pausa de respiração

dada por Ramos para propor: - Tenente, o senhor não acha mas prudente resguardar o comando deixando um de nós ir no seu lugar?

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- Não. Ele espera a mim. Não se preocupem, eu conheço De Paula. Ele pode ser meio maluco mas morreria mil vezes antes de colocar em risco a vida de qualquer
um de nós. As recomendações são apenas procedimento padrão, OK?

- O elemento está é nos enrolando na sua bandeira, para variar!! - sussurrou Paulo José descontraindo. Todos riram. ***

Contrastando com o silêncio guardado na noite, um diálogo em espanhol vinha da área indicada por Honorato como a prainha da espera. Havia, no mínimo, três
pessoas a beira do igarapé. "Uma das vozes é do De Paula". Pensou

Ramos. Em um erro de avaliação, Ramos, fez sinal para o Honorato; ele deveria aguardar naquele ponto. O soldado, porém, não viu a instrução passada pelos
gestos de seu superior. A escuridão só lhe permitia ver a silhueta de Ramos. Ao notar o soldado ainda progredindo ao seu lado, Ramos percebeu a falha ocorrida
na comunicação. Corrigindo o mal

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entendido, o oficial foi até Honorato fazendo- o compreender a ordem. A faixa de areia, sem cobertas ou abrigos, impedia maior aproximação. "Não há como
chegar mais perto do grupo no qual está De

Paula, sem ser visto." Pensou o tenente. Para evitar, também, qualquer equívoco causado pela tensão, Ramos optou por fazer um pouco de barulho anunciando
sua chegada. De Paula compreendeu a artimanha e adiantou- se em apresentar o vulto saído da mata a um dos homens com quem conversava. - Comandante Ramon,
este é o tenente Ramos de quem lhe falei. Ramon estendeu o braço, em um gesto de cumprimento. Apresentando- se em um português sofrível. - Seja bem vindo
tenente Ramos, sou o comandante Ramon das FARC. Ouvi muito a seu respeito. Parte aqui pelo meu compadre De Paula, parte pelos nossos homens e mulheres
que foram recebidos em seu pelotão quando

desciam o Inírida. A recepção citada por Ramon datava do período em que Ramos comandou São Joaquim. Alguns meses antes de deixar o comando do pelotão, foram
recebidas no PEF quase cento e cinqüenta pessoas vindas da Colômbia. Eram homens e mulheres, eles alegavam ser garimpeiros e estar fugindo das

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ações de repressão à guerrilha, pois temiam ser confundidos com guerrilheiros. Apesar de não possuir acomodações adequadas, nem efetivo suficiente para
controlar cento e cinqüenta possíveis guerrilheiros, o pelotão acolheu a todos. Enquanto a informação sobre a chegada do grupo ao pelotão, passada por
rádio ao comando do Quinto BIS, não resultava em algo concreto, pois os burocratas demoravam a acreditar no ocorrido, Ramos tomou algumas providências.
Montou um campo de triagem, destinou um dos galpões ociosos ao abrigo das pessoas, estabeleceu regras de conduta. Manteve os visitantes alimentados e informados
durante todos os dias em que permaneceram no PEF. Ao fim de alguns dias, uma aeronave da

Força Aérea Brasileira pousou na pista do pelotão, sua missão era conduzir os visitantes para Manaus. Durante a estada no pelotão e mesmo

momentos antes da despedida, aquelas pessoas insistiam em oferecer quantidades de ouro além de outros pertences pessoais em agradecimento ao tratamento
recebido. Ouviram sempre a mesma resposta, vinda do Ramos: "Fiquem com o que é de vocês, estamos apenas cumprindo com o nosso dever." - Seu português é
muito bom Ramon! Mas me diga uma coisa. Quem encontrou quem? Você encontrou o compadre De Paula ou... -

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Ramos não conseguiu concluir a pergunta, interrompido por Ramon. - Foi esta peste aqui. Segundo ele, eu arruinei sua caçada. Ainda bem que ele conhece minha
voz. Passados os primeiros momentos, desde o início do diálogo, a situação foi sendo

esclarecida. Ramos, constatando a existência de um quadro mais positivo do que imaginara, sentia- se aliviado. Enquanto conversava, uma

mistura de felicidade com relaxamento espraiava em seu corpo. Era uma das respostas do organismo às torrentes de adrenalina nele

injetadas até minutos atrás. Na roda formada para a conversa, além do De Paula, do Ramos e de Ramon havia mais um guerrilheiro. Ele não foi apresentado.
Provavelmente não falava o português ou sua posição hierárquica não lhe permitia participar do diálogo, pois calado permaneceu. Por ordem de Ramon, um
outro guerrilheiro retornou à mata antes da chegada do Ramos, ficando à espreita. Enquanto ouvia Ramon contar a origem de sua amizade com De Paula, Ramos
correu o olhar por sobre a vegetação adjacente ao curso d'água. Tentava plotar algum movimento denunciador. Sabia que para estar vivo, fazendo da guerrilha
sua rotina, Ramon de manso só deveria ter a fala.

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Convidado para ir até a base comandada pelo guerrilheiro, Ramos decidiu informar aos seus homens o desenrolar da situação. Aliviando- os de tensões desnecessárias.
- Vamos sim. Só vou precisar de um instante para ... De Paula, tens papel higiênico, aí? - Ramos sabia que De Paula sempre conduzia no bolso da blusa de
combate, assim como ele, uma pequena quantidade de papel

higiênico enrolada em sacos plásticos, para evitar a umidade. - Ah! Sim a natureza chama! - disse, em tom de piada, Ramon. - Tenho. Está aqui tenente. -
respondeu

De Paula, entregando o embrulho ao seu comandante e propositalmente tocando no bolso da blusa de Ramos. Lá estava o volume correspondente ao papel higiênico
do oficial. De

Paula não sabia qual o objetivo, mas havia percebido a artimanha do oficial. Daí por diante tratou de manter Ramon distraído até a volta de Ramos. No interior
da mata, novamente, Ramos foi direto ao local onde Honorato o aguardava. Passou algumas instruções ao soldado, retornando, em seguida, ao grupo, ainda
ajustando acintosamente o equipamento. Ramon passou a guiar os convidados em direção à sua base.

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Ao atravessar o igarapé, Ramos notou movimentação vinda da mata à frente. Durante o deslocamento ouviu em duas ocasiões o estalar de folhas e galhos secos
na dianteira do grupo. "Definitivamente existe um terceiro guerrilheiro cumprindo o mesmo itinerário." Pensou Ramos. No percurso do igarapé até o

acampamento guerrilheiro ocorreram duas checagens de segurança com troca de senha e contra senha. Podia- se ouvir a abordagem feita pelos postos de escuta.
Elas eram respondidas pelo terceiro guerrilheiro que caminhava alguns metros à frente do grupo. Por obra do destino, as duas tropas estavam estacionadas
a dois quilômetros uma

da outra. Ramon, conduziu os convidados até o centro do dispositivo da base guerrilheira, local onde ficava seu alojamento. A pouca luminosidade impedia
Ramos de identificar melhor o ambiente a sua volta, apesar do

esforço. O acampamento possuía alguns melhoramentos. Uma mesa e dois longos bancos, feitos de varas extraídas da mata, foram escolhidos pelo anfitrião para
acomodar os convidados. Ramon tirou o rádio portátil, até então preso ao seu equipamento na altura do peito, colocando- o sobre a mesa. Para ele, tal

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equipamento representava algo mais do que funcionalidade. Era um ícone de status. - Ramon, você está conseguindo falar pelo rádio? - perguntou Ramos logo
após sentar- se ao lado do líder guerrilheiro. - Tenente, nossos rádios estão com problemas. - Acredito haver problemas mas estes não

estão em seus rádios. - Não entendi. Vá adiante. - Estamos testemunhando ações de guerra eletrônica. Alguém com tecnologia superior está no jogo. Entende.
- Há alguns dias atrás ocorreu mais um sobrevôo. Porém desta vez foi di ferente...

- Diga Ramon, o que você notou de diferente?

- Aeronaves, talvez umas quatro. Elas sobrevoaram o nosso acampamento, voavam muito perto da copa das árvores, mas não patrulhavam. A velocidade era muito
alta para este fim. Estranhei a hora daquele vôo! Não havia luz alguma, ainda estávamos dormindo quando os desgraçados passaram. Foi um corre- corre dos
infernos. De Paula, ouvindo calado a conversa, pensou: "estes desgraçados do compadre; somos nós." Veio uma vontade de rir da situação descrita pelo guerrilheiro.
Enquanto a conversa continuava, De Paula imaginava a cena do fuzuê.

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"Gente correndo de cueca, guerrilheira de calcinha com fuzil na mão e olho arregalado. Não!! Deve ter sido um susto. Mas eles não

dormem sem as calças, também por isso ainda estão vivos. Nem a guerrilheira deve ser tão gostosa quanto a da minha imaginação fértil. Se liga, presta atenção
na conversa!" - Mas Ramon qual a estranheza deste fato? Não é comum o patrulhamento ou

deslocamento de tropas por aeronaves nesta região? As tropas do governo não agem assim. Seja no combate às FARC, seja no combate aos narcotraficantes? -
perguntou Ramos, identificando o movimento descrito pelo guerrilheiro como sendo o da infiltração de sua equipe. - Eles não voam àquela hora. Sem luz,
só com a ajuda dos gringos. - Então os gringos. Eles podem estar operando em conjunto com as forças federais aqui nesta região! - Não tenente. Os gringos
realmente voam à noite, mas nunca tão baixo. Desde que nós derrubamos aquele avião deles, o tal que dizem ser invisível, eles passaram a só voar alto.
Se borram de medo dos nossos sucatados mísseis russos. Com o avançar da hora, a luz oferecida

pelo luar esgotou- se. Sem nenhuma outra fonte a iluminar o ambiente, os três homens

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continuaram a conversa. Apenas o som de suas vozes rompia o silêncio. Mais tarde, foi possível ouvir o ruído metálico de panelas sendo manuseadas. Em seguida
um cheiro de café invadiu o ambiente. Antes do amanhecer foi servido um saboroso desjejum. Junto ao café, meio ralo, foram colocadas na mesa porções de
bolinhos de farinha de mandioca fritos e bananas cozidas. De Paula não deu muita importância

pois tinha preferência por comida de sal. Ramos, no entanto, devorou quase todos os bolinhos. Entre um quitute e outro arrancava risadas de Ramon ao elogiar
a culinária das FARC. No primeiro anúncio de sol, Ramos e De Paula se despediram de Ramon. Ao apertar as mãos de Ramos o líder guerrilheiro ofereceu uma
pequena equipe para guiá- lo até a trilha do Inírida. Segundo Ramon, esta trilha levava à um ponto do rio que não aparecia em nenhuma das cartas topográficas.
Um braço d'água capaz de

ligar o Inírida ao Rio Içana. - Sua amizade me basta Ramon. Sei que sua guerra está longe de terminar, poupe seus guerreiros. Nossa guerra é outra bem diferente
da deles, da sua. Agradeço mais uma vez. "Lá vem o tenente com a sua vaselina" pensou De Paula enquanto aguardava a despedida de seu comandante para poder
falar

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com Ramon. De Paula admirava Ramos por sua capacidade de convencimento. Às vezes flagrava- se tentando resolver suas contendas por meio da palavra, como
o tenente o faria. Deixando de lado, assim, o ímpeto inerente à

sua natureza de resolver tudo pela força. Na saída da base guerrilheira, um guia os aguardava. Ele recebera a missão de conduzir os dois brasileiros até
o igarapé. Para trás ficou um acampamento em ritmo de alvorada. Para trás ficavam vidas não vividas, destinos sepultados em atendimento à ideais tomados
como seus. Peças usadas e descartadas, todos os dias, no jogo do poder. Ao atravessar o igarapé, sentindo a água gelada em seus pés, Ramos pensou: "não
há ideal capaz de justificar vidas não vividas. Será que eles não percebem! A busca pela liberdade

ou a melhora de um sistema pode refletir, quando muito, a insatisfação de apenas um homem e, mesmo assim, em um determinado instante de sua vida. Nunca
a perpetuação da busca de um horizonte perdido. Não existe ideal humano capaz de satisfazer à coletividade, simplesmente por que não existem dois homens
infiltrados pelas mesmas circunstâncias de vida e, portanto, iguais. Melhor seria o Homem resolver suas diferenças, se é

que elas precisam ser resolvidas, sem o uso da

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força." Mais uma vez estava sendo contraditório, pois fizera de sua existência um braço desta força. "Isso não me impede de ver a verdade, ver o quanto
tenho a evoluir como pessoa!" Ramos olhou para trás. O guerrilheiro caminhava em direção à orla da mata, na outra margem do igarapé. Ao alcançar a metade
do caminho até a base de patrulha o oficial quebrou o silêncio. - De Paula! - Selva tenente. - Tome, não precisei usar. - Ramos entregou a De Paula o saco
plástico com o rolo de papel higiênico dentro. - Sabia que só podia ser desculpa do senhor. - o cabo ainda colocava o volume no bolso de sua blusa de combate
quando foi questionado. - Você disse ao Ramon ou ele te perguntou, em alguma ocasião, qual o motivo de

estarmos aqui? - Tenente, esse cara é filho do capeta. Não perguntou por que não queria ouvir mentira. Ele sabe que nós não somos o seu problema. - Hum...
pode ser. Para os dois não houve reposição das horas de sono perdidas.......... após colocar os sargentos a par dos fatos transcorridos nas últimas horas,
Ramos determinou o início da marcha.

223

*** Às onze horas daquele mesmo dia a patrulha ouviu o som de algo parecido com aviões de caça voando a alguns quilômetros a

leste, a baixa altitude. No fim da tarde o mesmo estrondo voltou a ser ouvido. Desta vez os caças sobrevoaram exatamente o local onde a patrulha

estava. Eles voavam com proa voltada para o sul. - É! Os gringos parecem ter perdido o

respeito pela pontaria das FARC! - comentou De Paula durante uma das paradas. Ramos, sentado com as pernas sobre a

mochila, chapéu de selva caído intencionalmente encima do rosto, mostrou sua concordância sacudindo positivamente a cabeça. Sabia que aquela afirmação do
amigo era para ele. Nos dois dias seguintes a movimentação

aérea só fez aumentar. Mesmo durante as noites, vários eram os sobrevôos registrados pelo pessoal em terra. Alguns mais próximos, outros longínquos quase
não podiam ser ouvidos em contraste com os sons da mata. Para os militares em terra, aqueles vôos suscitavam muitas dúvidas. Afinal, como os caças se orientavam
para a realização de vôos noturnos se o sistema de posicionamento

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global estava fora de operação? Por que tamanha movimentação aérea ao lado da fronteira?

*** O terreno confirmava a continuidade de uma suave inclinação. O esclarecedor fazia um deslocamento cauteloso. Mantinha seus sentidos alerta. Os pés estavam
latejando, ele

sentia muito desconforto quando pisava nas raízes entrelaçadas, mas não havia como evitálas. Alguns quilos mais magro, o soldado Passos lutava, ainda, contra
uma enorme assadura formada entre suas pernas. Ele

procurava esquecer o corpo, focando nas responsabilidades de esclarecedor. Continuando a descida imposta pelo terreno, Passos avistou algo diferente reluzindo
em meio à folhagem alguns metros à frente. Em um primeiro momento pensou ter encontrado

uma clareira. Passos preferiu progredir mais, na tentativa de obter melhor visada, antes de informar a situação aos demais integrantes da patrulha. O segundo
esclarecedor, progredindo alguns metros a sua retaguarda, parecia ter avistado o mesmo pois fixou o olhar naquela direção.

225

Depois de descer um pequeno socavão, o primeiro esclarecedor pode, enfim, vislumbrar o contorno do terreno com clareza. Imediatamente levantou as mãos fazendo
o sinal de ponto crítico para o segundo esclarecedor, ainda no topo do socavão, e este repassou o sinal para os homens da retaguarda. Assim, antes mesmo
de adentrar no novo compartimento, a tropa foi informada do perfil do terreno que estava por vir. - É o tal igarapé. - murmurou Ramos. - O senhor quer
alguma coisa? - era o

cabo Mário, suando horrores, com a estação rádio orgulhosamente conduzida, em uma armação do tipo mochila, presa ao peito. Um equipamento defasado tecnologicamente.
Seu

tamanho e peso avantajados, frente ao sofrível rendimento, confirmavam isto. Entretanto, Mário não aceitava as insistentes propostas de Ramos ou dos sargentos
para realizar rodízio na condução do rádio. "Fui escalado para a missão por ser rádio- operador, sem o rádio não estaria aqui!" dizia ele, diante das propostas
dos superiores. - Não Mário. Estava apenas pensando

alto. Acho que sei qual ponto crítico os esclarecedores encontraram. - O que é? - Um volumoso igarapé. Ouvindo o diálogo ao lado, PJ, com a carta topográfica
presa entre os dentes, retirava a

226

mochila de suas costas. Ele retornava da posição onde estava o soldado Passos. Como era o segundo homem da coluna de marcha, no

momento do alto, tomou a iniciativa de ir adiante verificar, em loco, qual o problema. - Tenente, o elemento encontrou um rio

bem aí na frente! - disse PJ, ajoelhado ao lado do comandante. Suas mãos suadas, vestidas em um par de semiluvas pretas, amparavam uma carta do terreno.
A bússola, em material

transparente, estava presa ao suspensório do sargento por um cadarço vermelho, ela balançava como um pêndulo perfeito espalhando seu suor por sobre o papel
plastificado da carta topográfica. - Um rio ou um igarapé? - perguntou

Ramos franzindo a testa. - É um rio e dos largos. Ele não consta aqui nesta nossa relíquia topográfica. - disse PJ ironizando o fato de só possuírem, na
patrulha, cartas topográficas desatualizadas e de péssima qualidade. Cartas que pareciam ignorar a sazonalidade das águas do amazonas. Parecia óbvio ser
necessário haver cartas para operar no período das cheias e cartas para operar no período da vazante. Viabilizando a correta orientação em todas as estações
da região amazônica. Óbvio, mas não para as autoridades brasileiras.

227

Os dois analisaram a reprodução do terreno por alguns instantes. Receberam companhia de Texera e Sarmento. Enquanto

discutiam as alternativas, um grupo de helicópteros sobrevoou a copa das árvores sobre suas cabeças. - Eles estão caçando. - disse Sarmento. - Não! Estes
são helicópteros de

transporte, não operam com os caçadores. Sua manobrabilidade é muito pequena além de ... - Tá bom Top Gun. - era o PJ interrompendo a explicação de Texera
com sarcasmo. - Vamos de bubuia! - falou Ramos. Os sargentos entreolharam- se. Ramos lhes explicou, então, como fariam para transformar o obstáculo natural
encontrado

em vantagem. Muito foi falado com o objetivo de melhorar as condições de segurança da tarefa proposta. Algumas idéias surgiram e foram aproveitadas durante
o detalhamento da

execução. A patrulha passaria a utilizar o curso d'água para realizar seu deslocamento. Os dias seriam para alimentação e repouso, as noites para deslocamento
fluvial. Os homens, dispostos em levas, desceriam o rio em uma

formação semelhante ao desenho de uma espinha de peixe. Suas mochilas, auxiliadoras

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de flutuabilidade, seriam conduzidas à frente do corpo, sobre estas o armamento estaria em permanente condição de emprego. Varas de

madeira teriam de ser colocadas por dentro das armações das mochilas. As varas ligariam cinco mochilas lado a lado, garantindo assim que enquanto os homens
estivessem segurando suas mochilas não se desprenderiam dos demais. Houve consenso em torno do não uso

de cordéis ou qualquer outro meio físico para ligação entre os homens, evitando restrições ao movimento de resposta ao fogo inimigo ou diante de possíveis
acidentes. A dificuldade de coordenação e controle

seria o maior inimigo. Para assegurar a parada de todos no mesmo lugar, ao fim de uma jornada de descida, foram estabelecidas três medidas. Primeira; a
liberação das levas ocorreria dentro de um intervalo de dois minutos, garantindo a não ultrapassagem entre os homens de cada uma das levas. Segunda; a

leva da frente ao atingir o horário limite de cinco horas da manhã, ou obstáculo que atentasse contra a segurança dos demais integrantes da

patrulha, deveria buscar a margem direita, balizando o local para a chegada das outras levas. Terceira; à partir das quatro horas e cinqüenta minutos todas
as levas deveriam passar a deslocar- se o mais perto possível da margem direita do rio.

229

Em questão, uma cartada audaciosa. Uma vez entregues aos braços da correnteza, sob as cortinas da noite, aqueles homens deixariam para trás suas referências
de navegabilidade. Passando a depender da existência de uma ligação entre o curso d'água, hora utilizado como via, e o Rio Içana. Tal qual

Ramos afirmara durante suas explanações, ainda na ordem a patrulha, e Ramon comentara no acampamento das FARC. Caso a conduta resultasse em insucesso haveria
dificuldade para a retomada da

orientação. Sem poder contar com o GPS e sem referências àquele curso d'água na carta topográfica, a patrulha saberia apenas que estava em algum lugar entre
o Brasil e a Colômbia. ***

Durante os preparativos para a primeira noite de descida os homens pareciam indiferentes aos riscos contidos na tarefa proposta. Possíveis corredeiras,
pedras, madeiras de meio de rio e até mesmo os traiçoeiros rodamoinhos ficavam em segundo plano na cabeça daqueles jovens. Importava a

230

missão, a aventura, a possibilidade de extrapolar limites. Antes do despencar do dia, os sargentos fiscalizaram, homem por homem, detalhes como flutuabilidade
das mochilas e confecção

das amarrações de soltura rápida nos calçados. O dispositivo para a navegação foi ensaiado ainda em terra. O cabo Mário recebeu a ajuda de Ramos na preparação
de uma pequena jangada, feita

com talos de buriti, para a condução do equipamento rádio da patrulha. Os dois, em total silêncio, trançaram os cipós por entre talos de buriti de mesmo
tamanho. Afora a rapidez com que suas mãos realizaram a tarefa o resultado

impressionou pelo zelo, comum aos mínimos detalhes. Assegurando, assim, a confiabilidade desejada frente à importância da carga transportada. Durante os
trabalhos, Ramos projetava seus pensamentos até um ponto

distante, muito distante dali. Eles estavam no ponto da provável reunião de águas do rio a sua frente com as do Rio Içana. Ramos desejava, como nunca, estar
certo. Não queria

decepcionar seus subordinados, comprometendo o cumprimento da missão proposta. Sentia as toneladas do pesado fardo da decisão de comando pesarem sobre seus
ombros. A experiência das muitas vezes em que teve de tomar decisões sob circunstâncias

231

semelhantes parecia não ajudar em nada naquele momento. Um luar entrecortado por pesadas nuvens testemunhou a entrada dos primeiros homens nas águas escuras
do rio.

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Candiru O cheiro da carne exposta ao calor das chamas aumentava a expectativa. Os homens não envolvidos na segurança da base de patrulha estavam sentados
em torno do fogo. O calor de meio dia parecia não incomodar, até ajudava na tarefa de secar as fardas encharcadas. A fome, porém, não lhes permitia gozar
de um sono recuperador. Primeiro era preciso comer algo. Abrindo mão da conduta usual, a caça daquele dia, dois caititus com cerca de oitenta

centímetros de comprimento cada um, não foi cozida, mas sim assada. Os homens estavam aguando por um bom pedaço do assado. Amassando algumas folhas com
sal e

frutos do buriti, Ramos obteve um óleo de cor arroxeada, devido à presença do buriti. O óleo improvisado serviria de tempero para o trato da carne. O aspecto
assustador do "tempero" fez boa parte dos soldados imaginar que o tenente

estava era inventando um jeito de estragar a carne da caça. Temeridade dirimida pela lembrança das boas experiências de outros pratos preparados pelo tenente.
Sempre carregados no tempero, mas muito saborosos. O caititu é uma espécie de porco- do- mato, ele tem cauda curta, pernas delgadas e seu

233

corpo e recoberto por cerdas rijas de cor pardacenta com salpicos brancos. No pescoço as cerdas adquirem coloração amarelada, lembrando o formato de uma
coleira. O caititu anda em varas de cinco a dez animais e é menos agressivo que a queixada. No fogo sua carne brilhava, exalando um cheiro delicioso. Quando
Ramos, que era o cozinheiro do

dia, avisou aos homens para trazerem as marmitas, pois a bóia estava pronta, uma onda de sorrisos surgiu. Momentos depois, generosas fatias de carne foram
servidas acompanhadas por banana pacova cozida. Estas bananas enriqueceram a refeição com seu sabor exótico. Elas foram colhidas, cuidadosamente, em um
local próximo à base, evitando assim a criação de indícios da ação do

homem na área. A iniciativa da coleta partiu de alguns soldados do grupo do sargento Paulo José. Os militares, ao terminarem o consumo

de suas etapas partiam, voluntariamente, para substituir os companheiros no serviço de guarda. O resto da tarde foi de sono e descanso, interrompidos apenas
quando era chegada a vez do serviço. Ramos e os sargentos prolongaram o bate papo do almoço. Trocaram horas de sono, em suas redes de selva, por outra
aquecida sessão de suposições. Falavam em

234

voz baixa, sentados em seus banquinhos articulados montados por entre as raízes. No fim da tarde, o sol cedeu lugar à nuvens carregadas. Foi um atalho para
a noite. Atalho balizado por trovões e relâmpagos. Quando a chuva teve início as redes de selva já haviam sido desarmadas e colocadas nas mochilas, os
detritos enterrados e os indícios de fogo enterrados ou camuflados. O som da chuva, ouvido do interior da mata, era algo singular. Momentos antes, folhas
secas vindas do alto das árvores caíam ao chão, anunciando, com pequenos estalos, a chegada

do enxame de gotas. Qualquer instrução a ser passada aos homens precisava ser transmitida ouvido a ouvido. A força da natureza abafava quaisquer outros
sons que não os seus. Uma hora mais tarde a tormenta ainda não demonstrava estar perto do fim. A patrulha aguardava ordem para entrar na água encrespada
do rio. Pedaços de vegetação desciam apressados, carregados pela força crescente da correnteza e podiam ser vistos quando relâmpagos iluminavam o céu.
Parados, com os corpos expostos à chuva

gelada, os homens não demoraram muito para começar a tremer. O frio levava- os a querer entrar logo no rio. As experiências das noites anteriores mostraram
ser mornas suas águas.

235

E foi também tremendo de frio que Ramos liberou os primeiros grupos para a entrada na correnteza. Colocando sua mão direita sobre o ombro do primeiro militar
de cada linha, ele encorajava os homens com frases curtas, liberando o grupo para o início do

deslocamento. Quando não restava mais ninguém em terra além dele mesmo, o oficial fez o sinal da cruz sobre sua face e, pedindo proteção divina para seus
comandados, caminhou para dentro d'água. Poucos passos depois da margem, teve o mesmo destino dos subordinados; foi arrastado pela correnteza. ***

Com mochila e fuzil seguros próximo ao peito o sargento Sarmento liderava a primeira leva. Ele mal conseguia abrir os olhos. "Parece

estar chovendo de baixo para cima!" Pensou. Os pingos de chuva ao caírem no rio formavam respingos e estes eram tão intensos a ponto de dificultar a visão
de quem estava junto à superfície. A correnteza estava mais forte

nesta noite, impondo forte tendência de giro aos grupos de homens. Para evitar o excesso de rodopios os militares movimentavam as pernas

236

compensando os desacertos da precária navegação. Nas noites anteriores o corte do rio, indicador da direção desejada, podia ser identificado através do
contraste gritante entre a

silhueta negra das árvores nas margens e um fundo azul, pontilhado de estrelas. Naquela noite, entretanto, não havia contrastes. A escuridão somente era
rasgada pelos apressados relâmpagos, despejados impiedosamente em todas as direções. À retaguarda do grupo comandado por Sarmento, Ramos, que navegava
sozinho, foi

apanhado por um rodamoinho. A força da correnteza girava seu corpo seguidas vezes. Seguro à mochila, ele batia os pés freneticamente na tentativa de libertar-
se de tal

armadilha das águas. Como uma formiga dragada pelo ralo de imensa banheira, Ramos lutava com todas as suas forças para não ser engolido. Não havia para
quem pedir socorro nem tão pouco ele queria colocar mais alguém em tamanha enrascada. Sob a luz de um relâmpago ele viu, incrédulo, as proporções do

rodamoinho no qual fora aprisionado. Apesar de rodar no que parecia ser a superfície d'água, ele estava mais de um metro abaixo do nível do rio. Tal constatação
foi o suficiente para dobrar a

adrenalina circulante em seu corpo, próximo da exaustão, e inspirar uma alternativa de

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sobrevivência mais ousada. Caso contrário, ele feneceria em poucos instantes. Enchendo os pulmões com todo o ar possível o oficial soltou sua mochila, agarrando

firmemente o fuzil com as duas mãos e colando o queixo ao peito. Ao fazê- lo, afundou como uma pedra. No início da descida, Ramos ouviu um chiado macabro.
Um som forte e intimidador, porém quanto mais fundo seu corpo mergulhou

no desconhecido mais o tal chiado deu lugar a um silêncio quase celestial. Ele não estava apenas afundando, também estava sendo

arrastado pela correnteza. Quarenta segundos após ter soltado a mochila Ramos sentiu seu ombro bater em algo muito denso. A turbulência e a pressão d'água
não estavam mais presentes, pelo menos não com a mesma intensidade. Percebendo a oportunidade ele resolveu usar a mão direita para explorar o obstáculo
encontrado. O tempo era importante, precisava de ar, precisava respirar. A superfície suavemente rugosa, polida pela vaidade da mãe natureza, parecia ser
a de uma pedra. Aturdido pelos rodopios, Ramos perdera

completamente a noção de onde ficava o fundo do rio e onde estava o ar tão desejado. Tentou soltar uma bolha do precioso ar, sabia que era só seguir a bolha.
Mas que bolha? A escuridão a sua volta e a correnteza não contribuíam em

238

nada para o emprego de tal técnica. Como a idéia da bolha não funcionou e lhe restava pouco fôlego, resolveu seguir seu instinto batendo as pernas e acompanhando
com a mão o traçado

da pedra encontrada. O jovem oficial tentava manter a todo custo o equilíbrio entre instinto e lógica, até por saber que o pânico contribuiria apenas para
abreviar a morte em tal situação. "Não! Assim não." Pensou Ramos, resistindo à possibilidade de fenecer daquela

forma tão imbecil. Como se qualquer outra não o fosse.

Enquanto nadava na direção ditada pelo instinto, sorte ou por algo acima de sua compreensão, ele chegou, por um instante, a cogitar o abandono de seu fuzil
e parte do equipamento para aumentar sua flutuabilidade. Suas pernas pareciam concretadas. Uma

vontade imensa de inspirar havia de ser contida a cada segundo. Antes de decidir largar o fuzil, sentiu a cabeça sair da água. Estremecendo em longos suspiros,
Ramos saciou a necessidade

de respirar. Parecia terminada sua agonia. Respiração restabelecida depois do extenso período em apnéia, aos poucos o corpo foi voltando à calma. Firmando
os pés em uma pedra, e com metade do corpo fora d'água, Ramos percebeu que havia algo de diferente no refúgio salvador. Ali não chovia, o ar estava

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parado e um cheiro parecido com o do mofo empestava o ambiente. Por mais alguns minutos Ramos permaneceu imóvel, precisava se recuperar do esforço. Estava
em meio a mais completa escuridão. Além de sua respiração e do tilintar da água de sua farda a retornar para o rio, era possível ouvir um som semelhante
ao produzido pelo eco de gotas em cavernas. Só então Ramos percebeu o eco vindo em resposta a cada som produzido. Segurando o fuzil com a mão direita,
ele

iniciou o deslocamento para explorar o ambiente à sua volta com outros sentidos além da audição e do olfato. Ele acreditava estar em uma espécie de câmara
ou caverna. Seu coração estava disparado. Era uma situação nova, mas também uma fantasia de criança. Achar a

própria caverna, repleta de mistérios e surpresas, igual a dos contos lidos na infância. Um velho sonho recorrente voltou à cabeça do

Ramos. Por muitas noites ele acordara aflito depois de ver- se vagando perdido por cavernas. O pior destes sonhos era a certeza de que algo

ruim o perseguia, sempre muito de perto. Na primeira passada, a pedra lisa não ofereceu o apoio esperado. Ramos escorregou por entre as rochas caindo nas
águas do mesmo poço de onde saíra momentos atrás. Na queda o fuzil bateu na testa abrindo um pequeno

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corte. Molhado, novamente, Ramos não percebeu o sangue oriundo do ferimento a lavarlhe o rosto. Refeito o trabalho de escalada até o ponto anterior , teve
início nova tentativa de progressão. Desta vez engatinhando. Outro escorregão levou homem, armamento e orgulho direto para o poço. Depois de murmurar alguns
palavrões, foi

reiniciada a escalada. Fora d'água, Ramos avaliou a possibilidade de usar a lanterna para apoiar o deslocamento. Sem luz a tarefa simples de caminhar alguns
metros poderia seguir improdutiva por horas. Tomada a decisão de quebrar a disciplina

operacional de luzes, diante da necessidade de melhor reconhecimento do terreno, Ramos lamentou o fato de a lanterna maior haver ficado

junto da mochila que precisou ser abandonada. Remediaria a situação a pequena lanterna existente em seu suspensório. Feita em alumínio, do tamanho do dedo
indicador de um homem adulto, pintada na cor preta e equipada

com diminuta lâmpada alógena, essa lanterna, apesar de liliputiana, quando acionada revelou em verdadeira grandeza os detalhes do ambiente, até então ocultos
pelas sombras. Uma imensa câmara, tendo por teto uma

abóbada rochosa, foi a primeira impressão colhida. Ramos ficou admirado com a perfeição do espaço acima de sua cabeça. Não era

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formado por várias rochas. Parecia ter sido escavado em um único bloco de rocha. À direita e, intrigantemente, acima do nível

de sua posição atual, havia uma praia. A areia branca parecia agradecer o focar da pequena lanterna. Junto a areia, mansas águas repousavam. Longo de praia,
algo

semelhante a uma caverna chamou atenção, mas não foi possível definir o que era aquela mancha escura. O foco da lanterna não alcançava muito além da praia.
Seria necessário caminhar por sobre o

amontoado de pedras lisas e arredondadas para chegar a tal praia. Ela parecia ser o ponto de partida para a exploração do local. "Quanta beleza!" Pensou
ele enquanto iniciava o reconhecimento. Com o fuzil em condições de pronto emprego e a lanterna na mão esquerda, ele mal conseguia conter a euforia causada
pela consciência da oportunidade de viver um momento como aquele. Assim, o aperto, vivido momentos atrás, foi totalmente esquecido. Exceção aos cuidados
para não escorregar. Ao se aproximar da praia foi possível

avistar duas entradas de cavernas. Dois imensos arcos serviam de portais para os caminhos recém descobertos. As galerias formadas pela natureza impressionavam
pela altura e perfeição de curvas. O teto do

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compartimento onde Ramos estava deveria ter uns quatro metros de altura no ápice da concavidade. Os compartimentos das cavernas eram mais baixos. Aparentavam
ter uns dois metros e meio de altura. Em toda a areia da prainha não havia

nenhum rastro, ou indício outro, que comprovasse a presença de animais ou de homem na região. Também não havia vegetação alguma. Apenas silêncio, pedras,
areia e água tomavam o ambiente. Intrigado, Ramos parou, coçou a cabeça e

se abaixou. Levando com a mão um pouco do líquido até sua boca. As conchas espalhadas pela areia e a exotismo local fizeram- no esperar o inesperado. Água
salgada talvez! Mas o sabor revelado foi o de água mineral. Ele não achava

explicação para o cenário diante dos seus olhos. Fixando o foco da lanterna por sobre o espelho d'água, tentou iluminar o local de onde viera. A praia estava
a um nível muito mais elevado do que o do buraco, por entre as pedras, pelo qual chegara ali. Ramos desejou, por um minuto, saber a resposta para aquela
travessura da

natureza. De certo, aquela experiência suscitaria brincadeiras maldosas se descrita, nos por menores, aos amigos. Tinha tudo para ser mais uma estória de
pescador. Alimentada a curiosidade, Ramos resolveu escolher uma das duas entradas para

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executar o reconhecimento seguinte. Precisava encontrar a saída, seus subordinados o aguardavam rio abaixo. Pela primeira vez, desde a liberação da tropa,
Ramos olhou para o relógio. Surpreso, constatou que as horas haviam galopado. Dentro em breve o sol seria

anunciado para um novo dia. Para escolher em qual das cavernas deveria executar primeiro o reconhecimento, Ramos sacou de seu equipamento um pequeno tubo
plástico. No interior dele estavam alguns fósforos e duas lixas de acendimento coladas sobre lâminas plásticas. Não havia sinal de umidade no interior
do tubo, as tampas rosqueadas sobre um anel de silicone garantiam a integridade de seu conteúdo frente às intempéries do ambiente operacional amazônico.
Um fósforo foi aceso, por vez, em cada

uma das entradas. O primeiro, aceso na entrada da direita, queimou até a chama do palito alcançar os dedos de Ramos. Neste a chama permaneceu, quase todo
o tempo, na vertical com uma leve tendência a inclinar- se para o interior da caverna. O mesmo processo foi repetido, cuidadosamente, na caverna da esquerda.
Desta vez a chama inclinou- se, timidamente, na direção da praia e quase no fim do palito apagou, soprada pelo invisível.

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A caverna da esquerda seria a primeira a ser reconhecida. Por ali, aparentemente, chegava o ar. Indicando ligação com o meio

exterior. Após percorrer os primeiros cinqüenta metros, a luz da lanterna ficou fraca. Obrigando Ramos a parar de progredir. Como de costume, ele conduzia
em um porta- carregador de seu

equipamento mais duas recargas além da em uso. Havia, ainda, um suplemento na mochila, mas esta agora estava perdida. Enquanto trocava a bateria lembrou-
se do dito popular da região amazônica: "Nesta selva quem tem um não tem nenhum!" Com mais trinta minutos de progressão, surgiu uma nova bifurcação. Ao
todo eram três rumos possíveis. Dois deles seguiam terreno

abaixo. Pareciam mesmo dirigidos ao centro da terra. Eram rampas bastante inclinadas, lembrando um tobogã. Na caverna do meio, Ramos ouviu algo parecido
com o som de uma

imensa cachoeira, a despejar arroubos d'água. A escolha recaiu sobre a caverna mais à direita. A exploração desta galeria revelou um piso cada vez mais
inclinado. Caminhando

ladeira acima, as paredes se estreitaram rapidamente, obrigando Ramos a rastejar. Quase vinte minutos de rastejo depois a passagem estreita e inclinada,
daquela caverna,

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deu a primeira boa notícia ao Ramos. O surgimento de vegetação, ainda que de pequeno porte, era o suficiente para indicar a proximidade de uma saída. ***

Os homens da segunda leva batiam as pernas para aproximar- se da margem direita. Apesar de não estar mais chovendo a correnteza anormal ainda maltratava
os patrulheiros, obrigando- os a fazer mais força no deslocamento. A hora limite para navegação pelo canal do rio foi alcançada. Agora boiando junto à
margem os militares deslizavam com menor velocidade. Vez por outra eles se deparavam com troncos, galhadas e cipós, bastante

comuns nas margens inundadas dos rios daquela região. Estes obstáculos demandavam atenção redobrada para evitar, em meio ao cansaço, ferimentos, extravio
de material ou mesmo o extravio de membros da equipe. Observando a margem à direita, as levas buscavam o balizamento de aproximação. Esta tarefa cabia
à primeira equipe, hoje comandada pelo sargento Sarmento.

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- Ali! Ali! A luz vermelha piscou logo ali na frente! Disse um dos soldados da segunda leva para seus companheiros ao ver um pequeno

ponto luminoso, de cor vermelha, cintilar em meio à muralha de sombras à sua direita. Instantes mais tarde a patrulha estava fora das águas do rio, com
exceção do comandante. Na margem, os homens conferiam material, equipamento e armamento, enquanto os sargentos conferiam o efetivo de seus grupos. Sarmento
era o responsável pela operação de acolhimento daquela noite e, como tal, cuidava dos pequenos acertos para que tudo

corresse bem. A vegetação à beira do rio era um emaranhado de cipós, espinhos e troncos retorcidos. Dificultando o movimento dos combatentes com seus desajeitados
fardos. Mesmo cautelosos, os movimentos dos militares, logo após saírem das águas, causavam situações das mais constrangedoras que, para sorte de muitos,
encontravam o fim de noite como cúmplice. Protagonista de uma destas situações, o soldado Passos, ao se afastar da margem em direção a área de reunião
indicada pelo balizador, caminhava com dificuldade. As assaduras entre as pernas, ainda em processo de cicatrização, e o cansaço da noite de nado

tiraram parte da paciência necessária ao

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deslocamento em um ambiente como aquele. Suas passadas vinham lentas, em um esforço ineficaz para manter as pernas afastadas, evitando mais dor. Um tronco
atravessado no caminho servia

de ponto para um novo balizador. Este informava da necessidade de transpor abaixado o tronco com espinhos para se chegar a área de reunião. - Cuidado! Passe
por baixo dos espinhos, ultrapasse o tronco, dê mais quinze passadas e

você estará no ponto. Ao chegar reúna- se com seu comandante de grupo. Ao ouvir a recomendação, Passos se deslocou um pouco para a esquerda, inclinando
o corpo para transpor o obstáculo. Desequilibrado pelo peso do equipamento ele bateu com a testa no tronco. Apesar da dor, tentou manter o bom humor. Ainda
caído, próximo ao tronco, tateou até encontrar algum ponto que lhe permitisse a ultrapassagem. Nada, não encontrou nenhum ponto onde o

tronco se afastasse do chão suficientemente para a passagem de um homem por baixo. Impaciente, resolveu retornar ao balizador para

saber onde estava a tal passagem. Quando levantou o corpo sua cabeça acertou um galho espinhoso, até então desapercebido graças à escuridão. Em uma impetuosa
segunda tentativa de se levantar, o mesmo galho perfurou

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com seus espinhos o ombro direito de Passos, rasgando- lhe a farda e a carne. - Arrego! Cadê a porcaria da passagem, balizador? - Que passagem? - A por
baixo do tronco que você disse! Foi quando o soldado responsável pelo

balizamento segurando na mão esquerda de Passos mostrou o obstáculo ao qual se referira. Uma árvore de tronco espinhoso e curvo, a um metro e meio do chão.
A mesma responsável

pelos furos na cabeça e os cortes no ombro de Passos. Percebendo a falha na comunicação e a chegada de mais um patrulheiro àquele local, Passos resolveu
engolir o orgulho ferido

seguindo em frente, sem mais delongas. Tomando a frente do companheiro, que ainda ouvia as recomendações cochichadas pelo balizador, Passos abaixando a
cabeça, passou por baixo do maldito galho espinhoso. Em um movimento contínuo lançou sua perna por sobre

o grande tronco caído, como se montasse em um cavalo, e em seguida juntando- as do outro lado empurrou seu corpo para longe do apoio, iniciando a caminhada
novamente. Ainda praguejava o ocorrido, momentos atrás, quando seu pé direito foi travado por um cipó, trazendo seus setenta e dois quilos ao chão novamente.
Uma imensa vontade de soltar tudo e sair correndo, aos berros, invadiu sua mente. Neste

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momento ouviu, de bem perto, uma voz murmurada. Era uma voz conhecida. - Tudo bem aí caboclo? Estava esperando por você, como estão as assaduras?

A voz do Cabo Chaves trouxe o exato acalento do qual precisava o sofrimento de Passos. Mais ainda, fez o soldado se sentir, por um momento, sob a guarda
zelosa de uma

família. Em um instante corpo e alma estavam sãs novamente. - Comigo, está tudo bem sim senhor! *** Aos poucos a noite foi dando lugar à manhã reveladora.
Cantos e recantos iam sendo despejados do anonimato cinzento. Frente ao renovado banho de luz, por toda parte surgiam detalhes. Junto com o alvorecer daquele
dia, um grito mudo ecoou na cabeça de todos os integrantes da patrulha. As horas de atraso na

chegada do último homem da equipe soavam como um mau presságio. Sarmento, antes das sete horas da manhã, reuniu- se com PJ e Texera. Foi traçado um plano
contendo condutas alternativas, frente ao novo imprevisto. Mesmo exauridos pela noite em tormenta, todos queriam tomar parte das equipes de acolhimento.
Trocadas a cada hora, estas

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equipes, formadas por três combatentes, ficavam postadas na margem do rio. Tinham como missão acolher o tenente Ramos, quando de sua chegada. Texera estava
indo verificar a situação da equipe à beira do rio quando viu Orildo correndo em sua direção. - O que foi Orildo? O tenente apareceu?

- Não, não senhor. Acho que a mochila dele passou bem aqui na frente. - Como assim? - O cabo Chaves e o Honorato estão lá

tentando arrastá- la. Ela está presa em uma porção de galhos e outras sujeiras. - Faça o seguinte, vá até a base e informe

isto para o Sargento Sarmento. Depois retorne para cá. Orildo desapareceu entre as folhagens. Chaves, amarrado por um cabo na altura da cintura, tentava
vencer a correnteza para se aproximar da pedra onde o entulho, no qual

estava a mochila, ficara preso. Vendo o volume de galhos e cipós em torno da mochila de Ramos, Texera deduziu que provavelmente ela fora abandonada durante
o pior momento da tempestade da noite anterior. E, de certo, o fato de sua chegada até aquele ponto do rio era, por si só, um golpe de sorte. Ela poderia
muito bem ter ficado presa em qualquer lugar à montante dali.

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"O que teria levado o tenente a abandonar justo o seu principal meio de flutuação? Poderia haver alguma mensagem no interior da mochila, ou alças estouradas
que justificassem seu extravio?!" Pensava Texera, assistindo ao resgate. Depois de algumas tentativas frustradas, Chaves conseguiu agarrar- se à mochila

liberando- a do novelo de galhos e cipós. A partir de então Honorato e Texera, soldado e sargento, ombro a ombro, braçada a braçada puxaram para a margem,
arrastados pela corda, Chaves e as esperanças de que tudo estivesse bem com o comandante, com o amigo. *** A mochila de Ramos estava no centro do dispositivo
da base. Texera levantava hipóteses para os fatos acerca da noite anterior. Seus ouvintes, os dois sargentos e o Cabo De Paula, entreolhavam- se vez por
outra. - Cheguei a pensar que ele tivesse colocado alguma mensagem dentro da mochila. Mas nós revistamos cada milímetro dela, e

nada! - prosseguiu Texera, com a testa totalmente franzida e um tom grave na voz.

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- Talvez a mochila seja a mensagem! - disse PJ. - Continue PJ. - murmurou Sarmento, olhando fixamente para o centro da base. - E se o elemento ao liberar
a mochila pela soltura rápida, como parece que ele fez, estivesse nos dizendo: "olha a minha melhor opção foi afundar, mas não se preocupem foi intencional."
- Para que afundar PJ? Se ele veio pelo mesmo rio que nós... - retrucou Sarmento. De Paula, até então calado, entrou na conversa. - Sargento, o rio que o
senhor deixou para trás não foi o mesmo que eu deixei e vai por aí a fora.

Todos pararam para ouvi- lo. - Eu quero dizer que o rio muda de humor com facilidade, principalmente em uma noite como a de ontem. O senhor disse não ter
encontrado nada de estranho, mas talvez um grande sumidouro pode ter se formado perto do tenente e arrastando- o para o fundo. - Aí seria, por muito mais
forte razão, suicídio. Abandonar um meio auxiliar de flutuação justo quando boiar é vida. - falou Texera, batendo com os dedos da mão direita na palma
da esquerda. Os demais homens da patrulha

empenhavam- se na manutenção do fardamento

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e do equipamento. Uma pequena equipe preparava a refeição do dia. Após o consumo das etapas de comida, os rostos, nem de longe, lembravam aqueles esboçados
em dias anteriores. Havia um grande

desconforto na alma da maioria dos homens. Com o passar das horas, sem nenhum outro sinal da presença do tenente, a apreensão só fez crescer. Vez por outra
alguns dos homens flagravam- se tentando adivinhar o que teria ocorrido. Eles quase sempre eram interrompidos pelo Honorato ou pelo De Paula. Os dois compartilhavam
de contagiante

serenidade e otimismo, com relação ao atual estado de seu comandante. Ambos transmitiam esta confiança aos companheiros. Os sargentos tentavam disfarçar.
Sustentavam como podiam o espírito de

cumprimento de missão. Esforçavam- se para gerar mensagens de otimismo, a todo instante. Porém, qualquer observação mais atenta

bastava para captar a amargura e a tensão desencadeadas pelo episódio. Sozinho, sentado ao lado de uma

palmeira, uma paxiúba, Sarmento passava o fio de uma faca sobre a pedra de amolar. Ao lado do corpo, deitadas em cima da mochila, outras três lâminas aguardavam
a oportunidade de ter o corte, novamente, exacerbado. Aquela pedra

havia sido um presente do amigo Ramos. Tinha

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em sua base de couro a inscrição - "Ao amigo de longas jornadas um divã portátil." - acompanhada das iniciais do nome do

Sarmento. Ramos ao lhe entregar o presente comentou: "Líderes tem direito a um divã próprio, usando- o para compartilhar e até amenizar o

peso da solidão do comando. Este, pelo que te conheço, será o seu." Naquele fim de tarde, a mesma pedra, a mesma frase, pareciam apertar o coração do sargento.
Mas também cobravam a firmeza necessária para dar prosseguimento à missão. - Não é que ele estava certo? - murmurou

Sarmento, com um sorriso no canto da boca. Ali, em instantes de introspecção, Sarmento reviu as seguidas horas de análises feitas com PJ e Texera a respeito
das linhas de ação para o caso. Voltando a desabafar em voz baixa: - Éh! Por maior que seja a colaboração

dos amigos para o sucesso do meu comando, apenas a mim cabe o peso da decisão. Não era como decidir a respeito da compra ou venda de algum produto. Não
parecia ser tão simples quanto à tomada de decisões em um meio empresarial, onde executivos ficam famosos pelo seu estilo arrojado ou pela

capacidade de motivar, reunir e manter equipes de alto desempenho em torno de uma tarefa. Até os indicadores de desempenho, usados para avaliar os resultados
de suas decisões de

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comando, tangiam o sinistro. Encostando a cabeça na paxiúba e fechando os olhos, Sarmento se lembrou de seu irmão. Um bem sucedido homem de negócios. Sentiu
um fio de

inveja. Queria, assim como seu irmão, tomar decisões que não repercutissem de maneira tão imediata e radical na vida dos subordinados. "Melhor ainda seria
não ter ninguém dependendo de minhas decisões além de mim". Pensou. Abrindo os olhos, deu uma boa observada

à sua volta. Respirou profundamente por duas vezes aí, então, retornou ao divã. Os braços trabalhavam no hipnótico movimento junto às facas enquanto a mente
flutuava liberta, rumo à descoberta do eu verdadeiro. Sarmento voltou a pensar nas decisões, vendo- as sob nova perspectiva. Não parecia ser, enfim, tão
diferente a natureza de suas decisões comparadas às dos executivos. Em ambas o grande desafio era

travado no campo da mente humana. De certo que as decisões incorretas de um gerente precipitado dificilmente ocasionarão a perda de vidas, mas isto é apenas
mais um pano de fundo. Mais uma condicionante. O que realmente pesa sobre as decisões é a natureza humana. A vaidade, repreendendo veementemente

qualquer brecha para o fracasso pessoal. A impotência do homem, diante da

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pseudolinearidade do agente desconhecido chamado futuro. Sarmento concluiu; "Não há diferença

entre a dificuldade da decisão. Tomadas por um líder, decisões terão sempre o mesmo peso. Seja ele um chefe de estado, um capitão de um time de futebol,
um alto executivo ou um comandante militar em operação. Aliás não há a menor diferença entre os impasses decisórios. Sejam eles vividos por quem for, representando
ou não uma determinada situação de liderança. Pois também estarão aí, as pequenas decisões tomadas no dia- a- dia. Decisões quanto ao que

vestir, ao que comer e a que horas dormir. Serão momentos de escolha, exercícios de livre arbítri o." De volta à selva, encruzilhada particular, Sarmento
sentiu a confiança necessária para

tomar as decisões exigidas pela situação. Foi como se ouvisse a inspiração da boca do próprio criador. Minutos mais tarde, foi informado aos patrulheiros;
eles passariam a noite em uma

base de patrulha a ser estabelecida perto daquele ponto. Em um local menos debruçado sobre o rio. Com menos insetos e vegetação mais aberta. A patrulha
aguardaria quarenta e oito horas pela chegada do tenente. Caso ele não aparecesse, prosseguiria rumo ao pelotão de fronteira.

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Enquanto retornavam aos seus postos, depois da reunião com o comando da patrulha, os homens mostravam- se satisfeitos com a linha de ação adotada. Apesar
de abatidos psicologicamente devido à ausência do comandante, os militares mantinham um elevado padrão disciplinar, evitando erros ou qualquer outro desabono
perante seus comandantes de grupo. Contavam com a chegada de Ramos a qualquer instante e esta expectativa era boa o suficiente até para justificar a ocupação
de uma nova base de patrulha. Além de mais alguns dias de atraso no retorno ao lar. As tarefas para preparação da nova área

de pernoite consumiram energia e tempo de todos. O trabalho pesado, orientado de perto pelos sargentos e cabos, afastou qualquer tendência à baixa do moral
do grupo. Aos poucos, os detalhes do ambiente

foram desaparecendo. Sumiram, engolidos pela noi te.

Nas palavras do cabo Mário - "Foi um anoitecer macabro. Anunciando uma noite de sofrimento". O cabo não voltou a fazer este comentário, não em público.
Pois logo na primeira vez, o

desabafo foi ouvido pelo sargento Sarmento. Rendendo ao cabo uma repreensão severa. Mário tentou explicar, dizendo que não se tratava de pessimismo ou de
corda negativa, mas sim

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de um mau presságio. Comum em sua família quando o perigo estava por perto. Mas de nada adiantou, Sarmento havia feito a sua interpretação e esta não fora
nada boa. Mário vinha intuindo que algo de ruim ocorreria. No entardecer, a sensação aumentou. O cabo vomitou compulsivamente, até que todo o

almoço fosse expulso de seu estômago. E mesmo assim continuavam o enjôo e os arrepios. Estes últimos lhe subiam pela nuca, estremecendo seu corpo com gélidas
mãos invisíveis. Alguns dos homens, vizinhos à rede do Mário, relacionavam o estado do companheiro com a má qualidade da comida servida no almoço. - Rapaz,
a bóia devia de estar braba

mesmo! Até os bichinhos lá da fossa de detritos estão devolvendo. Renomado glutão, Mário sempre estava disposto a aproveitar os restos deixados pelos amigos
nas marmitas. Não recusava comida nem costumava ser sensível à variações de sabor. Hábitos que resultaram no apelido "fossa de detritos" dado ao cabo pelos
amigos. Ainda durante a tarde, numa tentativa de

livrar- se dos maus pensamentos, Mário chamou Passos para juntos revisarem o material de comunicações da patrulha. O trabalho manteve

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sua mente ocupada, mas o enjôo se fez constante. A nova base foi estabelecida em um altiplano localizado a setecentos metros da anterior. Para operar o
posto de acolhimento um grupo foi escalado. Ele passaria a noite acampado próximo ao rio. O comando deste grupo foi muito disputado. Tendo que ser decidido
entre os três sargentos através da sorte, usando- se o jogo do palito. Texera, o ganhador, escolheu dentre os voluntários os militares que comporiam sua
equipe. Em seguida reuniu- os para acertar detalhes. - Olha pessoal, escolhi vocês por estarem em melhores condições do que os demais, menos desgastados
física e emocionalmente. Pois a noite de hoje vai ser longa. Mal Texera acabou de falar, De Paula, colocando a mão direita na nuca do cabo Mário, retrucou:
- Mas o senhor não acha melhor nós pouparmos o Mário? Ele passou mal o dia

inteiro! - Não senhor! Peço ao senhor que me mantenha na equipe. Entendo a preocupação, mas jamais seria voluntário para uma missão se suspeitasse não estar
a altura dela. - Mário carregou suas palavras com muita emoção. Texera, balançando seu queixo largo e

quadrado em um lento sinal de concordância

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com o exposto por seus subordinados, prosseguiu com as orientações. Com voz grave e fala cadenciada, ele seguiu, pormenorizando detalhes para a noite de
vigília. A continuidade dada ao discurso indicava, de maneira sutil, que a equipe escolhida seria mantida. ***

O rosto coberto de areia, suor e pequenos pedaços de raízes, retratava parte do esforço empreendido por Ramos nas últimas horas. Com a faca de trincheira
ele escavava a terra da lateral de mais algumas pedras. Tentava ampliar a saída da caverna o suficiente para a passagem do corpo de um homem. A caverna
escolhida terminara em um pequeno e pedregoso respiradouro. Um orifício, com o diâmetro de uma bola de futebol, formado

por pedras e raízes entrelaçadas, separava Ramos da liberdade. O trabalho de escavação consumiu as horas de luz do dia. Ramos, de estômago vazio, controlava
ao máximo o consumo da água

restante nos cantis. Deitado em um espaço exíguo, parecia estar dentro de um tubo inclinado e apertado. As dores nas costas e nas mãos aumentavam a cada
minuto. O movimento

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dos cotovelos e da cabeça era limitado, dificultando a escavação e a própria permanência naquele local. Todo o material retirado da abertura tinha que ser
colocado abaixo de seus pés ou arremessado para fora do buraco de saída. Com o retorno da noite, a lanterna

novamente acesa testemunhava, solitária, o esforço ecúleo empreendido por Ramos para escapar da armadilha preparada pela natureza. Durante os trabalhos,
o oficial tentava

imaginar como estariam seus subordinados, o que estariam eles fazendo, quais os procedimentos adotados por Sarmento ao

assumir o comando. "Provavelmente irão passar a noite de hoje estacionados em algum ponto à jusante, esperando por mim. Se eu não aparecer até amanhã vão
prosseguir rumo ao pelotão de fronteira. Será que eles acharam a minha mochila?" Junto com a areia, retirada das laterais da

abertura, vinham algumas formigas e outros pequenos insetos. Todos pareciam apreciar a companhia, menos Ramos. A lama em seu rosto e braços oferecia uma
certa proteção aos ataques dos mosquitos e das formigas, mas não os impedia de explorar outras partes do

corpo. Assim, picadas nas costas, nas pernas e no pescoço ocorriam a todo instante. As investidas freqüentes seriam capazes de minar

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a paciência de um homem menos preparado, mas não a de Ramos. Ele parecia usá- las como combustível para a tarefa proposta. Encolhendo os ombros, ao máximo,
Ramos conseguiu passar pela abertura criada. Em seguida, usando um cabo de nylon ele içou o fuzil e o equipamento. Enquanto batia a farda e colocava o
suspensório com o cinto, observou o terreno a sua volta. A escuridão não facilitou. Nada de relevante pode ser observado. Resolveu, então, abrir mão da
justa medida da

segurança em favor do ganho de tempo. Se tudo estivesse correndo como ele imaginava, seria preciso alcançar sua tropa ainda nesta noite, quiçá até o entardecer
do dia seguinte. Acendendo a lanterna ele viu, além das pedras jogadas para fora durante a escavação, muitas outras. O terreno lembrava o leito seco de
um rio

pedregoso. Pondo- se a caminhar, notou o desnível do terreno. Descendo, encontrou um pequeno

córrego e este o conduziu a outro, de maior porte. Em pouco tempo de procura Ramos encontrou o rio. Ao entrar em suas águas, se lembrou dos momentos de
aflição da noite anterior. Fechando os olhos mergulhou, aproveitava o reencontro para se lavar. Sem a agitação da noite anterior, criada pela tormenta,
o rio apresentava outra vez águas calmas e desprovidas de surpresas. Visando

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facilitar a flutuação Ramos amarrou seus dois cantis vazios ao fuzil. Tomando cuidado para não atrapalhar o funcionamento do armamento com a amarração improvisada.
O deslocamento em bubuia estava sendo feito no meio do rio, aproveitando a velocidade da correnteza

existente no canal. Para saciar a sede, Ramos simplesmente abriu a boca. Saborear momentos como aquele, com a água virgem a refrescar sua garganta, matando
a sede na pedida do desejo, compensava o dia de cão e tantos outros ainda por vir. "Definitivamente nada se iguala à vida. Estar vivo é poder sentir nas
presenças, mesmo

nas mais simples, os contornos da perfeição infinita." Ramos aproveitava a solidão para refletir. Os olhos varriam a margem direita em busca de um possível
grupo de acolhimento

plantado por Sarmento para facilitar seu retorno. A noite clara oferecia um espetáculo à parte para Ramos. Durante a descida do rio, o céu formava um sinuoso
tapete de veludo negro, onde a luz de mil vaga- lumes desfilava. À beira do mesmo rio, alguns quilômetros abaixo, Texera, os cabos De Paula e Mário

davam inicio à fase noturna de operação do posto de acolhimento. Junto com eles estava Honorato empunhando uma lanterna e usando óculos de visão noturna.
Ele era o responsável,

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nos próximos vinte minutos, por verificar e alertar à equipe quanto a ocorrência de qualquer movimento anormal. Movimentos indicadores da aproximação de
Ramos ou de outros elementos estranhos à patrulha. Texera determinara o rodízio permanente de funções a cada vinte minutos. As baterias para o OVN foram
obtidas junto aos patrulheiros. Eram baterias do estoque pessoal, conduzidas com o objetivo de alimentar lanternas, rádios, máquinas fotográficas e outros
equipamentos particulares. ***

Na base de patrulha, visando uma possível aproximação de Ramos por terra, também foi reforçado o número de postos de

escuta. Um pequeno grupo de homens procurou Sarmento. Pediam autorização para preparar macaxeira cozida e suco de graviola. - Sargento, o pessoal está meio
triste... um pouco de comida pode levantar o astral. Conseguimos colher bastante coisa durante a ocupação da base, se o senhor autorizar, vamos

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fazer um cozido com carne que vai entrar para a história como estimulante de mamute. - dizia o soldado Orildo, porta voz do grupo, agachado ao lado da rede
do sargento. - Indícios? - a pergunta veio seca. - Não senhor, tudo foi colhido com o

cuidado de sempre. - Escutem. Nós havíamos abandonado este procedimento de pernoite noturno justamente pela dificuldade de preparo da ração sem o comprometimento
da segurança. Sinceramente não vejo com bons olhos uma

fogueira acesa aqui neste altiplano. Ela poderia ser captada a milhas de distância, apesar da cobertura vegetal. Além do que vocês têm visto o quanto é
grande o número de aeronaves realizando vôos noturnos nesta região. Elas poderiam confundir- nos com guerrilheiros ou

traficantes; e aí babau! - Nós não queremos nada disso. O senhor pode ficar tranqüilo, vamos preparar um fogo discreto, igual àquele da primeira noite de
retorno. Ele vai ficar aceso o menor tempo possível. O senhor pode ficar tranqüilo! - Quando me dizem: "Pode ficar tranqüilo!" É aí que eu devo me preocupar!
Mas... tudo

bem! Preparem o tal jantar e sejam rápidos. Orildo e os demais saíram dali felizes como crianças ao conquistar junto aos pais o passeio desejado.

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Sentado ao lado da rede de selva, Sarmento sentia- se só novamente. Na rede ao lado, PJ repousava, sua respiração era pesada, podia ser ouvida a metros
de distância. Durante alguns minutos Sarmento permaneceu imóvel. A frase dita, horas atrás, pelo cabo Mário ainda ecoava em sua mente. - Que diabos está
acontecendo comigo?! - murmurou. Com um pedaço de pau o soldado

Passos ia amassando a polpa de cor branca. Seu ombro doía bastante, as pontas de alguns espinhos ainda estavam fincadas em sua carne. A dor não o impedia,
porém, de participar com empolgação dos trabalhos da equipe. No momento, ele preparava um suco de graviola. Pesando quase dois quilos, a graviola usada
por Passos era um bom exemplo de generosidade nativa. Sua polpa suculenta e um pouco fibrosa, depois de dilacerada e misturada

à água produziria suco suficiente para toda patrulha. Ao lado de onde o suco era feito, outros homens preparavam um local para iniciar o fogo. Eles afastavam
folhas, forrando o buraco aberto no chão com varas de madeira verde. Apesar de trabalharem em ambiente de

pouca luminosidade, quase não era possível ouvir barulhos, além dos normais à selva.

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*** Após o jantar, os homens não empenhados no serviço do primeiro turno de guarda foram para suas redes de selva. O dia havia sido desgastante e eles,
agora de barriga cheia, queriam esticar as canelas. Uma mesma oração, feita de diferentes formas à diferentes destinos, preencheu os últimos instantes
antes do sono de cada um dos patrulheiros. Oravam pedindo por Ramos, para

que tudo estivesse bem com ele. Pedindo que o tenente estivesse entre eles na manhã seguinte.

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Canguçu

Estalos, parecidos com os produzidos pelo caminhar sobre galhos secos, acordaram Sarmento. Diferentemente da hora em que foi dormir, agora não havia mais
o leve alento de brisa, tão raro por aquelas bandas, tornando a permanência no interior da rede de selva difícil. O calor era grande e Sarmento, ao acordar,
sentiu seu corpo molhado de suor. Ainda na

rede, olhou para seu relógio. Eram três e meia da manhã. Dois estalos ao sul de sua posição tornaram à chamar- lhe a atenção. A selva estava calada, os
grilos e sapos matraqueadores estavam estranhamente quietos. Pegando a

pistola, companheira de rede, cuidadosamente abriu o zíper até que a fenda permitisse a saída. Do lado de fora da rede, apertou as amarrações dos coturnos,
colocou o suspensório, conferindo

uma a uma suas facas e, por fim, pegou o fuzil no compartimento inferior da rede. Ao iniciar o deslocamento na direção de onde vieram os últimos estalos
ouviu novos, esses vinham de

algum lugar a oeste. Nas outras redes os homens se recuperavam das cansativas jornadas dos dias anteriores. A base estava adormecida. Não havia nenhum indício
de quebra da disciplina de luzes e ruídos no dispositivo composto pelas redes.

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"Talvez algum homem indo mijar! Mas a direção estabelecida como portal único para saída e entrada da base fica ao Norte?" Sarmento progredia lentamente,
o corpo

arqueado e as passadas cuidadosas como as de uma canguçu tornavam- no parte da mata. Todos os sentidos estavam em alerta. Caprichosamente, quando Sarmento
se aproximava do posto de escuta sul, quis o vento voltar a soprar em sua direção. Trazendo consigo um cheiro diferente, parecido com o de repelente sem
flagrância. Era um odor incomum, artificial. Parecia imitar o cheiro de mato amassado, mas dava para notar que se tratava

de algo artificial. O sargento chegou a imaginar que o militar do posto sul estivesse descumprindo a determinação de não usar repelentes quando em operações.
Isso fez seu sangue ferver, pois o cheiro denunciava sua presença, tornando não

apenas o seu posto vulnerável como também toda a patrulha. Engatinhando entre as folhagens e os cipós, Sarmento chegou bem perto do militar que guarnecia
o posto sul. Próximo do tronco, no qual o homem escorava o corpo, ele sentiu o cheiro de sangue e não mais aquele cheiro parecido com repelente disfarçado.
O homem do posto estava sentado. O fuzil, atravessado sobre as pernas, era seguro

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na altura do guarda mato pela mão direita. A cabeça pendia para frente. Por sobre o nariz escorria um filete de sangue. A testa, entre as sobrancelhas,
exibia um pequeno buraco de onde fluía o líquido da vida. A cena, alarmante, não serviu ao Sarmento. A visão pouco ajudava no interior da mata, mesmo em
noites como aquela, revelando apenas vultos, quando muito. Ao tocar no ombro do militar, Sarmento

ouviu outro estalo. Desta vez, vindo da área de redes. A descoberta do corpo sem vida bastoulhe.

Os indícios, peças do quebra cabeças, se encaixaram. "É repelente! Não são estalos. São disparos! Estamos sendo atacados!" Pensava durante o rastejo para
o centro da base. "Preciso despertar os outros, preciso acabar com a

vantagem da surpresa." No outro lado da base, nas imediações do posto norte, surgiram os primeiros disparos sem supressores de ruído. Em instantes, todo
o perímetro se tornou cenário de pequenos embates. Os estrondos e os clarões das rajadas de fuzil disparadas ao léu pelos homens da base contrastavam com
os estampidos secos dos disparos precisos e discretos dos agressores. Pela doutrina da guerra na selva não se defende base de patrulha, abandona- se. Por

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muito mais forte razão se a base estiver fincada ilegalmente em território de país vizinho e soberano. Sarmento sabia disso. Mas ele sabia, também, que
aquele embate seria decidido em poucos minutos. Muitos homens, arrebatados pela

confusão, não sabiam nem a qual fogo responder. Alguns, desorientados, realizavam disparos para dentro da própria base. À sua direita, Sarmento viu um diminuto

lampejo, denunciando a presença do inimigo. Até então oculto pela noite. Ainda agachado, apontou o fuzil na direção de onde veio o lampejo e disparou em
rajada. O grito de dor veio instantaneamente como resposta. Sarmento saltou sobre o homem atingido que urrava caído ao chão. O primeiro contato com o inimigo
foi feito por uma de suas facas. Por sorte, a lâmina encontrou, certeira, o

coração. Continuando o ataque, a mesma faca correu até o pescoço do combatente cortando- o profundamente. Sarmento tirou o capacete do inimigo morto e colocou-
o sobre sua cabeça. Não se tratava de um capacete qualquer, era

uma peça com alta tecnologia agregada, e ele notou isso assim que completou o movimento de colocação. Pouco mais pesado do que um capacete

normal, o capturado por Sarmento oferecia recursos de áudio, para comunicação entre os

272

homens da equipe, visão noturna e informações escritas à direita do campo de visão. Uma espécie de viseira servia de monitor para a projeção dos textos
assim como para a visualização do ambiente externo. Ao olhar em volta, Sarmento descobriu, estupefato, que as posições ocupadas pelos outros inimigos cintilavam
no visor em cores contrastantes, provavelmente para evitar erros de identificação positiva de alvos. Deveria ser algo na farda deles. Algo como uma assinatura

digital para o sistema daquele capacete. Sarmento não titubeou. Tirou a blusa de combate do homem morto, constatando, ao olhar para o corpo despido, que
o visor não indicava mais a presença cintilante no local do corpo, mas sim na mata ao lado, onde estava a ves te. ***

De dentro d'água, Ramos ouviu o som dos disparos. Eles vinham da margem direita. Pareciam estar próximos ao local por onde passava. Batendo as pernas o
mais depressa que pode ele tratou de sair da água. Da margem, o tiroteio parecia mais intenso ainda.

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"Estão sendo atacados. São eles, meus homens!" A vegetação ribeirinha complicava o deslocamento de Ramos. Guiado pelos sons, ele tentava correr na direção
de seus companheiros. No caminho, arrastava cipós com os peitos e pernas, trombava com palmeiras, troncos e espinhos, mas nada

parecia impedir- lhe. Seu corpo, dormente, estava blindado pela vontade de acudir seus subordinados. A diante de seu rosto ele não conseguia enxergar nada
além de uns dez centímetros de sombras. Isto parecia não fazer a menor diferença. Os cantis, ainda amarrados ao seu fuzil, batiam contra a vegetação durante
o deslocamento. Um deles havia se desprendido da amarração original, estando pendurado pelo cadarço de meio metro. Não demorou para ele ficar preso numa
forquilha de árvore. O puxão da inércia do fuzil quase retirou- o das mãos de Ramos. Com o tranco para trás, ele caiu sentado. Sacou a faca do cinto e,
sem perda de tempo, cortou o cadarço que o ancorava. Aproveitando o movimento para se livrar também do outro, ainda fixado às placas do guarda- mão

de seu fuzil. Os disparos pareciam estar escasseando. Dentro em pouco, seja qual fosse o embate, de nada serviria sua presença, pois já teria ocorrido uma
definição. Sabendo disto, Ramos não deixava nada impedir sua

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progressão, nem dor, nem terreno, nem a falta da luz. De pé no centro da base de patrulha um atirador com fuzil, pequeno e silencioso, disparava incessantemente.
A cada tiro um novo

corpo tombava. O homem parecia não se preocupar com seu destino. Nem sequer procurava abrigo, ele apenas atirava. Na altura do ombro esquerdo havia um ferimento
que por hora ele desprezava. Sua única preocupação era matar, matar e matar. E não foram poucas as vidas ceifadas por ele naquela noite. Deitados atrás
de um tronco estavam Mário e Texera, a leste destes estavam De Paula e Honorato. Eles haviam acabado de chegar. Atraídos pelos disparos. Com exceção do
Honorato, os homens do grupo de acolhimento não sabiam em quem atirar. Só viam os clarões e ouviam os gritos, muitos deles abafados pelo som de novos disparos.
"Tudo é tão rápido e confuso" Pensou

Mário apertando seu fuzil entre os dedos. - O que você está vendo Honorato? - Tem uns caras de capacete, eles estão por toda a parte. São eles, são eles!!
- ao dizer isso Honorato começou a atirar em várias direções. Trocava o carregador e continuava a

disparar. De Paula, consciente do melhor aproveitamento do companheiro graças a

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vantagem do OVN, ajudava- o no remuniciamento. - Espere! Tem alguma coisa de errada. - O que foi, Honorato?

- Tem um deles, um dos de capacete. Bem aqui na frente, esse cara está atirando contra os outros, não contra os nossos. Acho que é um dos nossos. Estão
cercando ele. Vão matar ele! De Paula ... - ao olhar para o lado Honorato não encontrou mais o cabo. Saindo, então, de trás do abrigo Honorato fez- se fogo
em movimento na direção do inimigo. Aos berros, sua voz rouca repetia sem parar: - Pro inferno seus miseráveis! De Paula, já com um capacete, recolhido

de um inimigo que ainda agonizava quando de sua chegada, entrou no jogo a tempo de impedir que o atirador do centro do dispositivo fosse alvejado. Com uma
rajada, dada a queima roupa, ele dilacerou o abdômen de um militar no

momento em que este apontava para as costas do atirador identificado pelo Honorato como fazendo parte da tropa amiga. Vista pelo capacete, a silhueta daquele
homem cintilava como as dos outros inimigos. Mais próximo e com auxílio do sistema de visão noturna, De Paula conseguiu identifica- lo. Tratava- se, para
sua surpresa, do Sargento Sarmento. - Capeta esperto!

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Mudando de lugar rapidamente, De Paula se jogou por sobre dois corpos. Eram os corpos de Passos e Orildo. A posição dos cadáveres contava parte da história
de suas mortes. Passos parecia estar socorrendo o Orildo

quando foi, também, alvejado. - Amigos, vocês não vão mais precisar disto. - disse De Paula enquanto recolhia os carregadores no equipamento dos companheiros
mortos. Atrás de uma árvore, cinco metros à sua frente, De Paula viu um dos inimigos procurar abrigo. O homem parecia estar encontrando problemas com o
armamento. Atirando do centro da base, Sarmento fazia fogo sobre o tal inimigo, tirando lascas da árvore que o abrigava. De

Paula se aproveitou da cobertura de fogo dada pelo sargento para tentar flanquear o que parecia ser o último inimigo vivo. Mário, deitado entre algumas
raízes procurava estancar o sangramento no pescoço do Sargento Texera. Por entre seus dedos o

sangue jorrava em fartura. Texera, ainda consciente, insistia para que Mário o deixasse em paz e fosse ajudar os outros, pois ele estava bem. Recebendo
fogo de vários pontos distintos, o último dos agressores estava aferrado ao

terreno. Deitado atrás de um tronco ele esperava a oportunidade ideal para fugir, rompendo contato com a patrulha. Através do visor de seu

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capacete, ele identificava os corpos, imóveis, dos companheiros de equipe, espalhados à sua volta. Estranhamente a única presença amiga, ainda com vida,
acusada pelos sensores de seu equipamento insistia em lhe atacar. Confuso, experimentava desconfiança e medo. Sentia- se desamparado por uma possível falha
em seus sistemas de apoio ao combate. O silêncio no canal de comunicação interno da patrulha também era um mau sinal. Tudo levava a crer que ele era o
último homem vivo entre os integrantes de sua equipe. Quando os tiros escassearam o militar abandonou o abrigo da árvore e, de início com o

corpo semiflexionado, correu o mais rápido possível. Em sua mente só havia o pavor de morrer tão longe de casa, sem ninguém para contar a história daquela
noite. A sua retaguarda, ele não ouvia mais os sons dos disparos. "Ou eles desistiram de mim ou estão

vindo silenciosamente em meu encalço. Mais rápido, mais rápido! Não vão me pegar, não vou morrer." O Cabo Wittley, das Forças Especiais Norte Americanas,
era um militar experiente. Participara de ações no golfo pérsico, na Bósnia

e atuara além das linhas durante todo o período de ataques a Kosovo, onde salvou muitas famílias da morte étnica. Recém casado, ele

jurou à esposa que a participação nesta força de intervenção seria a última aventura militar de sua

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carreira. Depois iriam fundar e administrar, juntos, a empresa de software idealizada pela esposa. As experiências anteriores não ajudavam muito agora.
Nada, mas nada mesmo, era

parecido com o desconforto infernal daquela mata.

A possibilidade de perder a felicidade, recém conquistada nos braços de uma esposa, para a morte anônima, naquele fim de mundo, perturbava Wittley. Pela
primeira vez, ele percebia o quanto tola e desnecessária seria sua morte. Aquela não era a sua causa, ele só queria ser feliz e amar. Wittley abaixou a
cabeça para desviar- se

de alguns galhos. Ao levantar o olhar, percebeu o vulto de um homem correndo na direção oposta. Ele trazia um fuzil, pelo padrão de silhueta não destacada
apresentado pelo visor do capacete, parecia ser da força inimiga. Wittley não pensou duas vezes; abriu fogo. Ramos viu surgir, do nada, pontos incandescentes
poucos metros adiante. Com a mesma velocidade com que vinha correndo se atirou no chão, escorregando sobre as folhas antes de parar totalmente. Meio desorientado,
pelo giro do corpo, tentou localizar a origem dos disparos para o revide. Apenas ouviu os passos apressados de alguém rompendo a mata, próximo a ele.

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"Seja lá quem fosse, ou era amador ou estava com pressa e cometeu o erro de não se dar ao trabalho de conferir o resultado de seus tiros." Ramos se levantou,
saindo no encalço do

agressor. "Esse miserável não deve ser guerrilheiro! Parece que está usando equipamento para auxílio à visão noturna, mas de nada vai adiantar tal recurso.
Ele irá tombar!" Ramos estava caçando Wittley. Pensamentos, sentidos e sentimentos tornavam- no um componente letal do ambiente operacional à sua volta.
Dentro de instantes, a vontade de viver do inimigo seria sobrepujada. Os dois homens varavam a mata no

mesmo ritmo frenético. Wittley, apesar de ver o caminho, encontrava na vegetação forte resistência à progressão. Arrastando ruidosamente cipós e arbustos
com as pernas, braços, pescoço e peito, ele corria sem direção. No momento, queria apenas romper contato. O barulho do capacete se chocando com a vegetação,
aliado aos demais ruídos produzidos no deslocamento, não permitia a

Wittley ouvir e se dar conta da presença de Ramos em seu encalço. Em meio à vegetação, Wittley viu surgir o

contraste de referência digital, próprio aos uniformes utilizados pela tropa amiga. O visor de seu capacete revelou, em seguida, mais um e

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depois outro companheiro de equipe. Todos imóveis, caídos ao chão. "Ah, não é possível! Andei em círculo!" De súbito Wittley sentiu náuseas. Se não lhe
fosse cara a vida, passaria alguns minutos ali mesmo pondo- se a chorar. Impotência, foi o que sentiu o cabo frente ao real significado de sua descoberta.
Wittley estancou. Fez meia volta e

começou a correr novamente. Ainda viu algo se movendo na sua direção, quando levantou a cabeça, logo após o reinício do deslocamento. Foi um movimento assustador.
Como se a selva tivesse criado vida. Com um tranco na barriga, ele sentiu uma queimação diferente, seguida da dor mais aguda que jamais provara. Instantes
depois, alívio e um imenso prazer tomaram- no de assalto. Ainda semiagachado Ramos retirou, sem encontrar resistência, o fuzil das mãos de

Wittley. O cabo, ainda ofegante, se estremecia por inteiro. Os seus noventa quilos desmoronavam, arqueados, sobre a violência da

lâmina que lhe invadia o ventre. Antes de o corpo chegar ao chão, Ramos arrastou a faca em direção à cabeça de Wittley. O movimento, vigoroso, só parou
ante a resistência dos ossos da caixa torácica , rasgando toda a vida que encontrou no caminho.

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A faca foi retirada. O cadáver foi apoiado até alcançar o solo. Alguém se aproximava. Ramos voltou à

caça, sumindo por entre sapopemas. De trás das raízes, Ramos ouviu o ruído de pegadas leves. Alguém vinha exatamente na sua direção. Mais ou menos ao lado
do corpo de Wittley a progressão foi interrompida. De onde estava podia até ouvir a respiração do estranho. Antes de neutraliza- lo, queria assegurar-
se de

não haver mais ninguém por perto. Pelo menos, perto o suficiente, a ponto de detectar sua ação. Sentindo que o momento chegara, Ramos apertou o cabo da
faca entre os dedos, se preparando para o ataque. No último instante, uma voz conhecida surgiu. - Tem mais um miserável aqui! Era a voz rouca do Soldado
Honorato. - Traga aqui para o centro, rápido! Disse Sarmento, retirando, com dificuldade, a blusa de combate que tomara emprestado no início da ação. Dela
escorria sangue em abundância. Era o sangue de seus ferimentos misturado ao sangue do antigo proprietário. Com cautela para evitar um incidente

indesejado, Ramos se fez notar. Saindo lentamente de trás das sapopemas enquanto anunciava sua presença em tom moderado de voz.

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*** Enfim a longa noite, de sangue e confusão, cedia lugar a um novo amanhecer. A luz do dia ajudou a revelar, aos remanescentes da patrulha, alguns dos
macabros detalhes da

batalha há pouco finda. Pegos de surpresa, era o que confessavam os corpos dos ocupantes da base. Estirados aqui e ali, misturados às folhas, às raízes
e aos insetos, os cadáveres pareciam suplicar atenção às histórias de seu extermínio. Em cada um, vestígios da proclamação, silenciosa e anônima, do heroísmo
altruísta. Últimos legados daquelas vidas de existência

curta. Talvez, deixados na esperança muda de que algum dia pudessem chegar aos ouvidos dos seus. Ramos, De Paula, Honorato e Mário

trabalharam em ritmo acelerado. Hora recolhendo e loteando equipamento, armamento e munição, hora preparando covas para todos os corpos. Durante os trabalhos,
daquela manhã, Sarmento permaneceu deitado, em repouso. Ele perdera muito sangue, fruto de dois ferimentos. Um tiro de raspão na barriga, que deixou um

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rastro na carne por onde passou. Mas sem maior gravidade, apesar de sangrar bastante. A aparência deste era a de um grosso arranhão horizontal. O ferimento
que inspirava maiores cuidados, no entanto, estava três dedos abaixo do ombro esquerdo, próximo à clavícula. Por sorte, o projétil entrou pelo peito e
saiu pelas costas sem causar estragos no coração, pulmão ou nos ossos. Sarmento, meio ranzinza, ainda esboçou

a intenção de ajudar nos trabalhos. Mas foi demovido de tal idéia perante à argumentação de Ramos. Segundo a qual ele seria mais útil ao grupo se repousasse
algumas horas para estar em condições de prosseguir no deslocamento

que ocorreria mais tarde. Embora soubessem dos riscos de permanecer naquele local, após o ocorrido, eles não abriram mão de enterrar todos os corpos. No
centro da base foram enterrados os sargentos Texera e Paulo José. E ao longo do

dispositivo circular da base foram enterrados os outros patrulheiros. Todos sepultados em covas rasas, cavadas exatamente embaixo dos locais onde haviam
montado suas redes de selva para o pernoite derradeiro. Junto à cada um deles, foram colocadas as mochilas e os fuzis, fincados no chão de ponta à cabeça
sem o embolo.

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Aos inimigos mortos Ramos prestou uma singela reverência, enterrando- os também. Só que em um local fora da base. - Merecem respeito, nos levaram algo

infinito ao preço de suas vidas. Tudo em cumprimento do dever. Foi o que disse Ramos ao iniciar a preparação do local para enterra- los. Alguns dos itens
de suas fardas, equipamento e armamento, porém, foram recolhidos para serem aproveitados. Em menor número, com pujante superioridade tecnológica e fazendo
uso judicioso do fator surpresa, aquela pequena equipe operacional Norte Americana causara pesadas baixas à sua patrulha. Restava ao Ramos e aos demais
aceitar o ocorrido, sujeitando- se aos imponderáveis da profissão, e prosseguir na missão. Durante os trabalhos, mergulhados no

silêncio do pesar, rebanhos e mais rebanhos de dúvidas povoavam as cabeças. Teria aquele embate sido fruto de um encontro fortuito? Ou teria sido fruto
de

rastreamento desenvolvido sobre indícios deixados por eles pelo caminho? Teriam sido eles confundidos com guerrilheiros ou o ataque foi uma ação planejada
pelos mesmos que operavam a base abandonada, lá do objetivo? E se fosse ação de repressão à guerrilha ou ao narcotráfico por que todos usavam uniformes

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identificados como sendo Norte Americanos, onde estavam os militares colombianos? Por que tanta movimentação aérea, envolvendo caças, aeronaves de carga
e helicópteros? E por que a comunicação com os pelotões de fronteira, e demais unidades de apoio do Comando Militar da Amazônia, tornara- se impossível?

As respostas para algumas de suas perguntas poderiam ser encontradas quando da chegada ao Pelotão de São Joaquim ou quando retornassem à Manaus. Outras
jamais encontrariam respostas. Uma segunda mochila foi preparada para

cada um dos homens. Ramos determinou que fossem conduzidos nelas os capacetes, as unidades com painéis foto- ativos para recarga

das baterias dos capacetes, um conjunto de uniformes, coturnos e fuzil inimigo por homem, além de toda a munição encontrada, tanto as de

dotação de sua patrulha quanto as recolhidas entre os inimigos. O peso a ser conduzido por cada homem aumentou consideravelmente. Ramos contava com o trunfo
de poder realizar o deslocamento restante pelo rio e não por terra. Viabilizando a condução de uma sobrecarga sem ocasionar desgaste excessivo dos homens.

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Foi estabelecida uma nova base. Desta vez, ao lado do rio. Perto do local onde na noite anterior estava o grupo de acolhimento. De Paula e Honorato, após
prepararem suas mochilas para a flutuação, partiram para a

confecção de uma jangada, à base de talos de buriti. O objetivo era poupar, ao máximo, o sargento Sarmento de esforços físicos. A idéia agradou Ramos, que
ao ver o trabalho dos dois, ainda inacabado, passou a ajudá- los com empolgação. Foi a primeira vez, desde a

madrugada, que surgiram questionamentos em torno do seu extravio. A pergunta partiu do Honorato, mas De Paula até parou de laçar o cipó entre os talos de
buriti para ouvir a resposta.

- Tenente, o que aconteceu para o senhor desaparecer daquele jeito? Não muito distante dali, Mário cuidava dos ferimentos do Sarmento. Trocando os curativos
e dando- lhe comida. A hemorragia estava controlada há horas e não havia nenhuma

alteração na temperatura corpórea, nem muito menos na pressão arterial. A cada meia hora, ambas voltavam a ser verificadas e suas leituras anotadas em um
bloco, impermeável, preso ao

lado da mochila do sargento por um cordel. - Você está se saindo bem como puxa saco. - dizia Sarmento, satirizando a ajuda do companheiro.

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- É que eu quero que o senhor fique bom logo. Mas não é bondade não. Só não quero ter de carregar essa mochila do senhor, ela vive cheia de quinquilharias
pesadas. - Então me faça um favor. - Qual, sargento? - Me ajude a levantar. Eu estou cem por cento! Depois de muita negociação, Mário convenceu- o de,
por hora, apenas ficar sentado. Ramos e os outros, quando terminaram a preparação da jangada, encontraram Sarmento sentado. Ele limpava, com dificuldade,
a lâmina da faca utilizada na noite anterior. Por sobre o preto fosco da faca, deslizava de um lado para o outro uma pequena flanela verde oliva umedecida
em óleo. Sem cessar a limpeza, Sarmento cumprimentou os companheiros, com uma reverência feita com a cabeça. Seu braço

esquerdo estava completamente imobilizado, mas a mão desse braço ajudava na tarefa. Ainda restavam algumas horas antes da chegada da noite. De Paula, Mário
e Honorato subiram em três árvores diferentes, montando guarda até o momento da partida. A exceção do sargento Sarmento, convencido da importância da alimentação
para um pronto restabelecimento, nenhum dos homens quis comer. Durante todo aquele fim de tarde, Ramos se dedicou a prestar cuidados ao amigo ferido e

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a percorrer, de hora em hora, as posições ocupadas por seus homens para segurança aproximada. Entre o oficial e o sargento dois assuntos foram tratados
com especial atenção. O relato do que ocorrera nas últimas vinte e quatro horas, feito por ambas as partes, e a avaliação das condições atuais da equipe
projetando as linhas de ação viáveis, para dar prosseguimento a

missão. *** Assim que escureceu, a equipe entrou no rio. Formando apenas uma leva, com a

jangada- maca do Sarmento no centro do dispositivo, os cinco militares tiraram os pés do chão, quase que ao mesmo tempo. Deixando para trás a base, palco
de funestos acontecimentos, onde repousavam os seus amigos, subordinados e superiores. Agora

convertidos ao pó das lembranças. Impulsionada pelas águas do rio rumo a um futuro cada vez mais incerto, aquela pequena equipe, formada por um oficial,
um sargento, dois cabos e um soldado, levava consigo as memórias de cada um dos companheiros

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mortos. O respeito a estas memórias fortalecia a equipe, acrescentando novo significado ao retorno às linhas amigas, ao território brasileiro. O desencadear
de uma operação para resgatar os corpos e entregar- lhes às suas famílias. Nas primeiras horas de descida, correnteza abaixo, em meio à escuridão, cada

um dos homens passou algum tempo imaginando como seria o momento do retorno. Exercitavam a mente, criando quadros detalhados com as imagens das últimas
homenagens aos que morreram. Deitado, com a barriga voltada para cima e com o corpo coberto, até o pescoço por um poncho, Sarmento fazia força para não

adormecer. A jangada- maca fora, cuidadosamente, revestida, em sua parte superior, com folhas secas. Colocadas dentro de um saco de dormir, as folhas tornariam
mais macias as longas horas de deslocamento que estavam por vir. O silêncio só era quebrado pelo som das marolas se chocando contra a jangada. Formadas
pelos movimentos dos corpos dos militares que nadavam ao lado da maca, elas produziam pequenos estalos. As estrelas, de luto, faziam- se

imperceptíveis em um céu de ébano. Junto à clavícula, a região perfurada pelo projétil latejava sem parar. Era uma sensação

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incomodativa, mas Sarmento insistiu em não tomar os analgésicos oferecidos pelo seu comandante. As dores eram decorrência do trauma ocasionado no organismo
pela violenta passagem de um corpo estranho. Sem febre alguma, há mais de doze horas, a dor fazia parte do quadro, apesar de ser inconveniente. ***

Com todos os seus subordinados de joelhos, enfileirados, Sarmento com uma de suas facas enterrada no próprio peito, um pouco acima do coração, era interrogado
por um homem, do qual só via os olhos. De início, ao

negar- se a responder as perguntas feitas pelo homem, sentia a lâmina ser agitada dentro de seu peito. A dor era imensa, mas Sarmento não a demonstrava
aos olhos do interrogador. Então, como não respondia, seus homens começaram a ser executados, um a um, com tiros na cabeça. E Sarmento, também de joelhos,
nada

conseguia fazer para evitar a execução de seus amigos. Ele até tentava falar, mas não havia voz, só o eco dos disparos. Em instantes, todos estavam mortos.
Restava apenas o vulto ao lado, que Sarmento sabia ser amigo, mesmo sem olhar diretamente para ele. Fazendo grande

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esforço, ele virou o rosto para a esquerda, onde estava o vulto. Seu pescoço parecia engessado pela dor. O homem ajoelhado ao seu lado era o Tenente Ramos.
Quando o reconheceu, Sarmento sentiu uma paz imensa. Tudo mais pareceu ficar pequeno. Mas a felicidade e o alívio

duraram pouco. Uma arma apontada para a nuca de Ramos disparou, sem aviso. Sarmento sentiu os pedaços do amigo salpicarem sua face, eram pingos gelados.
Gelados como a morte. - Não! - gritou o sargento, abrindo os olhos. Aparando a cabeça do Sarmento e

trazendo- a de volta ao encosto, Ramos acalmou o amigo, em meio aos pingos de uma chuva gelada que começava a cair. - Calma, calma. Está tudo bem, deve
ter sido só um sonho. O sargento voltou ao silêncio, mas não

sem antes resmungar algo. Ele não conseguiu voltar a dormir. As imagens daquele sonho e as lembranças da noite anterior vagavam em sua mente como uma assombração.

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Caiçaca

- Na noite de ontem deixamos para trás o igarapé. Ao que tudo indica, estamos no Rio Içana. Hoje vamos ficar atentos às margens. Principalmente aos detalhes
da margem a

nossa direita. - E o que devemos procurar, tenente? - perguntou o cabo Mário. - Indícios. Indícios de comunidades indígenas. Canoas, rampas, descampados
ou currais de pesca. Não devemos estar muito longe do pelotão e de certo passaremos por pelo menos uma das comunidades indígenas localizadas a montante
dele. - O senhor vai abordar o PEF por terra, não é mesmo?

- Exatamente De Paula. E sabem por que? Os três homens espremeram os beiços e balançaram as cabeças, em sinal de negação. - Porque ele pode não estar mais
sendo

operado por nossas forças. Honorato, com a testa franzida, emendou: - Mas o senhor vai dar um nó na gente. Não entendi chongas. - Vocês não acham estranho
o fato de estarmos há tantos dias tentando contato com o

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PEF sem jamais obtermos sucesso? E toda essa movimentação aérea vista nos últimos dias? Ela não estava prevista nos nossos relatórios da inteligência. Acompanhem
meu

raciocínio; se tudo estivesse bem, mas não houvesse como deslocar uma aeronave para nos exfiltrar, a providência óbvia seria enviar uma voadeira descaracterizada,
rio acima, para buscar contato. Estou supondo que a ação daquela patrulha sobre nós pode não ter sido uma infeliz coincidência. Ela pode ter partido de
uma base próxima, para nos neutralizar, tão logo obteve a nossa localização por rastreamento nas comunicações. - Mas nem conseguimos usar o rádio! - disse
Mário. - É, não houve conversação, mas o

combinado foi acionado diversas vezes durante as chamadas. - emendou De Paula. - Talvez tenham usado outro meio. Os satélites de rastreamento de fontes
térmicas, por exemplo. Eles poderiam identificar, facilmente, o padrão de nosso deslocamento. Com descanso e preparo das refeições durante

o dia e mudança noturna de posição. - concluiu Ramos. - Então o senhor acredita que o pelotão foi

invadido? - perguntou Honorato. - Pode até não se tratar de uma invasão física. O pelotão poderia, apenas, ter sido

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neutralizado. Mantido em cheque por alguma artimanha desconhecida, ficando sitiado. Sarmento repousava ao lado de onde os companheiros conversavam. Antes
de

adormecer, ele se queixou de dor de cabeça e febre. Seu corpo era ventilado pelo constante abano de um grande leque feito em palha. Os homens se revezavam
na tarefa de abanadores, amainando o desconforto do companheiro ferido, durante as horas mais quentes do dia. A ventarola afastava também os insetos de
asa. Seu organismo reagia bem. Os ferimentos estavam secos, não havia sinais de

infecção outros, além da febre repentina. O que era por si só uma vitória, considerando- se o rombo aberto nas costas do Sarmento quando da saída do projétil,
as parcas condições de higiene, a debilitação física e o próprio meio amazônico, extremamente propício à proliferação de fungos e bactérias. - Caso isto
se confirme, o que nós vamos fazer? - inquiriu Mário. - Calma, calma. São apenas suposições. Estamos antecipando, evitando novas surpresas. Mas vamos com
calma. O que

faremos? Vou dizer o que faremos! ***

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Na noite do mesmo dia eles partiram. Sarmento estava se sentindo bem melhor. Condição alardeada a todo instante por ele. A febre, que durara pouco menos
de duas horas, desaparecera por completo. Mesmo assim, muito a contragosto, ele continuava a ser poupado de qualquer esforço. Passados poucos minutos da
meia noite, a equipe identificou uma área mais clara no terreno à direita. - Deve ser uma roça de mandioca! Vamos cerrando para a direita, vamos sair do
canal. - sussurrou, Ramos, para os seus subordinados. Mais próximos da margem, os homens começaram a encontrar galhos de árvores submersas e galhadas arrastadas
pelas águas do rio. O deslocamento ficou mais lento, meio confuso, alternando a dificuldade na transposição dos obstáculos entre cada um dos homens. Comprometendo
a manutenção da

integridade do dispositivo em linha. A jangada- maca vinha se prendendo em todos os obstáculos imagináveis, parecia um imã para as galhadas e troncos. Ramos
e Mário detinham- se à difícil tarefa de garantir que a jangada ultrapassasse, em segurança, aquele trecho do rio. Para o deslocamento conjunto, importava,
apenas, manter o sigilo da aproximação e evitar dispersão excessiva. Individualmente o

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deslocamento demandava cuidado. Os galhos submersos podiam causar ferimentos, os acima d'água faziam barulho quando partidos por movimentos afoitos. Os
galhos também ameaçavam a flutuabilidade do equipamento, do

armamento e da munição. Pois caso os sacos de ar, colocados dentro das mochilas, para auxílio à flutuação, fossem furados por uma estaca, tudo poderia afundar.
A ultrapassagem daquele cemitério fluvial

de árvores demandou paciência e consumiu toda uma hora, do tempo de deslocamento noturno da patrulha. Adiante, depois de uma alça do rio, começaram a surgir
pequenas concentrações de espuma. Elas boiavam por toda à parte. - Tem pedras com corredeira aí na frente. Escutem o barulho, olhem o espumeiro! - sussurrou
o cabo Mário. A sua volta, apesar da

pouca luminosidade, podia- se ver pontos mais claros a boiar. Diante do alerta, Ramos alterou a direção do deslocamento. Passando a rumar, mais ainda, para
perto da margem a sua direita. Seus comandados entenderam a sutil alteração de curso, acompanhando- o. A jusante, algumas pedras desenhavam algo parecido
com a forma de uma agulha, disposta perpendicularmente à direção do rio. Elas formavam uma enseada, para onde os

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patrulheiros foram sendo empurrados pela correnteza. Saltou aos olhos dos militares, o brilho da

camada de areia que recobria generosamente as pedras da enseada ao lado. Era impossível não comparar a forma e a cor do recanto diante dos seus olhos com
as de uma lua crescente. Vista da água, a enseada parecia não ser real, seu encanto estava na simplicidade divina, própria ao acaso, perfeito, da natureza.
A lua caída, incrustada na escuridão

solitária da floresta, servia, talvez, de acalento aos homens que ousavam desvendar os limites do inexplorado. De Paula, Mário, Honorato e Ramos digeriram,
cada qual à sua maneira, a visão

deslumbrante revelada pela selva. Desejavam poder compartilhar tamanha paz, tamanha beleza com suas famílias, suas namoradas e seus companheiros mortos.
Sarmento, adormecido, perdeu aquele momento mágico. Parados, ocultos pela escuridão, os patrulheiros se preparavam para a abordagem. Ramos determinou que
De Paula e

Honorato atrelassem suas mochilas à jangadamaca. Os dois realizariam o reconhecimento à praia e circunvizinhanças. Instantes depois, o cabo e o soldado

desapareceram nas sombras, nadando lentamente em direção à mata vizinha a praia.

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Eles levavam, além do armamento e do equipamento, contido no conjunto cinto suspensório, duas pequenas sacolas impermeabilizadas. Dentro delas, iam os capacetes
capturados com seus valiosos recursos de apoio. - Acho que sei onde estamos. - disse Ramos. - Deve ser uma das comunidades acima

de São Joaquim. - completou o cabo Mário. - Isso mesmo! Mais exatamente aquela em que o filho do tuxaua foi assassinado, a golpes de facão, por um suposto
garimpeiro. - Sim senhor. Nós estivemos aqui na

época. Viemos junto com o pessoal da Fundação Nacional do Índio. - É uma comunidade grande. E sabe o

que mais, Mário? - O que tenente? - Eles tinham uma trilha ligando, em uma de suas ramificações, a comunidade ao pelotão. É uma trilha considerada sagrada
para eles. De

cuja entrada me foi revelada pelo tuxaua. Segundo ele, a trilha atravessa o coração da mata e por isso é guardada dos impuros pelos espíritos protetores.
- Mas o senhor disse para nós que essa trilha era só uma lenda! - Disse mesmo.

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- Naquele tempo eu vivia perguntando, aqui e ali, a respeito das tais trilhas secretas. Ouvi dizer que elas eram do tempo de civilizações como a dos incas
e dos maias. Parece terem sido usadas como rotas para condução de suprimentos e escravos. Estes últimos eram capturados aqui, entre as etnias menos guerreiras,
e forçados a trabalhar, até a

morte, na construção das grandes cidades de pedra. Contam ainda as lendas que grandes tesouros em ouro e prata foram escondidos ao

longo da trilha sagrada como forma de fugir à pilhagem dos invasores espanhóis. - De fato, Mário, são grandes varadouros, abertos abaixo da copa das árvores,
imperceptíveis mediante observação aérea. Não

sei se são os mesmos relatados nestas suas lendas, mas alguns deles, dizia o tuxaua, iam até a água que não se bebe. Este lugar pode ser o mar do Caribe,
com sua água salgada, ou qualquer igapozal perdido no meio da mata. -E por que o senhor não nos contou isso na época? O pessoal do pelotão iria adorar
explorar esses caminhos! - sussurrou o cabo, em tom lamurioso. - Foi justamente por isso que mantive sua

existência em segredo. O tuxaua, ao revelar parte dos varadouros, me disse ser aquele um dos tesouros do seu povo. Deixando claro que só o estava revelando
porque recebeu, durante

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um sonho, orientação dos protetores da mata para tal. No sonho foi dito ao tuxaua que um homem com voz de trovão viria chefiando outros homens na tentativa
de encontrar a causa de uma grande tristeza que estava por se abater sobre a comunidade e sobre sua família, em especial. A este homem deveria ser mostrado
o caminho até o coração da mata. De certo, Mário, o tuxaua não gostaria de ver as trilhas servirem de parque de diversões a uns bichinhos orelhudos como
vocês! Mário começou a rir. - Sim senhor, voz de trovão! Os dois conversavam debruçados sobre

as mochilas. Fora d'água, apenas a cabeça e os braços, que empunhavam o armamento. Seguros a um tronco, eles negavam o fluxo da leve, porém insistente,
correnteza existente no local. No mesmo tronco foi ancorada a jangadamaca.

As muitas horas com os corpos submersos, realizando movimentos de natação vestindo fardas, traziam um desconforto a mais para os homens. Os mamilos ardiam,
a sensação era a de charutos sendo apagados ali. O roçar entre as pernas, braços e axilas, também causava dor. Assaduras feitas pelo

atrito e excesso de umidade devoravam- lhes o couro. - Ué, eles estão voltando, tenente!

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- Deve haver algo de errado! - comentou Ramos ao constatar o retorno dos esclarecedores. Em condições normais bastaria

o sinal luminoso pré- estabelecido para liberar a abordagem à praia. Depois da chegada, os dois militares ficaram calados por alguns minutos. Seguros a

jangada, eles voltavam à calma, enquanto Mário e o tenente aguardavam para descobrirem o motivo do retorno. Com um pouco mais de fôlego, refeito do

esforço, De Paula foi o primeiro a falar. Ele sussurrava para os dois vultos agarrados às mochilas e a jangada- maca. Ainda não tinha

identificado qual deles era o seu comandante. - Senhor, o capeta esteve por aqui! Não sei se o senhor se lembra, mas esta é aquela comunidade do corno sem
cabeça. O tal do filho do tuxaua que além de perder a mulher, perdeu a cabeça. - Sim, desconfiei que fosse. Mas e daí? O que tem de anormal?

De Paula, orientado pelo som da voz, pode identificar os vultos. - Acontece que eles sumiram, desapareceram. - Está tudo lá. Redes, algumas frutas, mandioca
e até alguns pedaços de peixe moqueados. - completou Honorato. - Sinais de violência?

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- Negativo, senhor. - respondeu De Paula. - Canoas ou outras embarcações? - Tem duas regionais. A menor está fazendo água e a outra parece estar em bom
estado. Elas foram deixadas na saída do

igarapé, amarradas em uma galhada seca. - explicou De Paula. - Na palheira do centro tem um rabetinha. Junto a ele estão dois reservatórios de combustível
e uma caixa com ferramentas. Mas não há combustível algum. - disse Honorato. - E as frutas? O que elas contam?

Honorato franziu a testa. Por um instante duvidou da seriedade da pergunta feita por Ramos. Mas ao ouvir a resposta, quase

imediata, dada pelo cabo ao seu lado, Honorato sentiu um misto de inveja e vergonha por não haver alcançado tal desempenho. - Indicam que o sumiço deve
ter ocorrido

há cerca de oito dias. E pela quantidade e tipo das frutas, eu acho que eles iam fazer uma daquelas festas. Com muito cachiri. Os tachos estão emborcados
ao lado das palheiras centrais. Além disso, tem mais esteira de palha

reunida na comunidade do que seria o normal. - Esteiras. Que tipo de esteiras De Paula? - Parecem comuns. Iguais as usadas nas comunidades desta região.
Não notei nada de anormal nelas.

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Seguro à jangada- maca, Ramos permaneceu em silêncio por alguns minutos. Enquanto ele pensava, os outros se reuniram em torno de uma das mochilas. Ajustavam,
dentro do possível, o equipamento e especulavam sobre o que teria acontecido aos integrantes da comunidade. - Se não há sinais de violência é por que eles
simplesmente abandonaram. Mas e as esteiras? O senhor sabe para o que foram feitas, não sabe? - era a voz do Sargento Sarmento. - Sua onça velha, estava
aí só na espreita?! - Sim senhor. Não agüento mais esta história de múmia. - Eu sei, mas é para o seu bem. Como estão as dores?

- Que dores, tenente? - Sarmento, você é um mentiroso descarado, quando o assunto é a sua saúde. Agora fale a verdade, como você está se sentindo?

- Melhor, não estou mais sentindo o ombro latejar. Sério! E o que o senhor pretende fazer, continuar descendo ou parar aqui? Chegamos em território nacional,
não precisamos mais progredir somente à noite. Podemos até dar uma esticada e antes do meio

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dia estaremos passando na frente do pelotão de São Joaquim, o que o senhor acha?

- Tem algo de errado acontecendo aqui. Antes de prosseguirmos, é melhor darmos uma boa olhada. Conheço bem essa gente, eles não abandonariam a aldeia a
troco de nada. Ainda sob cumplicidade da noite, Ramos conduziu sua equipe para a praia. A abordagem, feita pelas pedras, teve como objetivo minimizar possíveis
vestígios. Caminhando sobre as rochas, eles abandonaram o rio. O chiado dos pingos d'água, que se desprendiam das fardas e dos equipamentos encharcados,
espatifando- se de encontro às rochas, perseguiu- os até que atingissem a orla

da mata. Quando romperam o denso emaranhado vegetal dos primeiros metros de mata.

Pouco a pouco, a jangada- maca foi avançando floresta adentro. Enquanto dois dos homens conduziam Sarmento, os outros dois tentavam facilitar a passagem,
cuidando

também da segurança aproximada. Cada homem conduzia o seu equipamento e mais a sobrecarga da mochila e armamento adicionais. Os movimentos, fora d'água,
eram desajeitados e cansativos. Obrigando- os a parar de progredir, a todo

instante, para que se soltassem das mãos invisíveis dos cipós e galhos. A tarefa hercúlea

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foi abrandada, em parte, graças ao emprego dos sistemas de apoio à navegação noturna existentes nos capacetes capturados. Mais tarde, depois de estabelecida
a base de patrulha e realizada a troca dos curativos no sargento Sarmento, Ramos retornou sozinho à comunidade. Queria, ele mesmo, garimpar indícios capazes
de explicar o porquê daquela

comunidade estar vazia. Olhou por todos os cantos. Entrou em cada uma das palheiras. Mas parecia não haver explicação mais plausível do que a cogitada em
sua mente, na noite anterior, ante a revelação da presença abundante de esteiras no interior da comunidade. Segundo as crenças locais, as esteiras eram
deixadas para trás pelas famílias que

tomavam o rumo da grande jornada. Elas serviriam de oferendas aos protetores da mata. Como forma de pedir por uma viagem segura. Ramos ouvira do tuxaua
que a grande jornada precisava ser autorizada pelos espíritos da mata. Caso contrário, os viajantes não chegavam ao destino com vida. Mas a lembrança de
um detalhe do diálogo com o tuxaua martelava sua cabeça. Na mesma ocasião em que o tuxaua revelou estes segredos de seu povo ele também lhe disse que há
muito não se fazia mais a grande

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jornada. Desde o pai do pai dele, ninguém da comunidade seguiu o caminho sagrado. - Então por que todos decidiriam quebrar este jejum ao mesmo tempo? -
murmurou

Ramos. Caminhando em direção às pedras da beira do rio, Ramos ouviu o som de aeronaves em rota de aproximação. Eram pelo menos duas aeronaves de asa móvel.
O deslocamento

parecia estar sendo feito sobre o leito do Rio Içana, em direção à montante. Provavelmente teriam partido do pelotão de fronteira, uma vez que este não
está a mais do que cinco minutos de vôo daquela comunidade. Segundos separaram o momento da

identificação do som e a decisão de colocar o corpo em movimento para buscar cobertura junto à vegetação. Foi tempo suficiente para

Ramos cogitar a hipótese de permanecer ali e tentar chamar a atenção dos pilotos, afinal estava em território nacional. Seria o fim das longas jornadas,
com o resgate do que sobrou

da patrulha por aqueles helicópteros. Por outro lado, aquelas aeronaves poderiam ser justamente as que ficavam guardadas na clareira do objetivo de sua
missão. Talvez a presença delas fosse o motivo do misterioso abandono da comunidade indígena. A ação violenta e covarde daqueles farsantes,

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apresentados ao mundo como sendo militares brasileiros, poderia ter se repetido ali. Optando por agir com maior cautela, Ramos penetrou alguns metros na
mata. Propositadamente no lado oposto ao da mata onde estabelecera a base de patrulha, ficando em uma posição que lhe permitia observar sem ser observado.
Quanto aos seus subordinados estava tranqüilo. Sabia que eles não executariam movimentos, ante a aproximação de aeronaves, sem que recebessem ordens. E
caso ele notasse qualquer ameaça a posição da

base de patrulha, teria condições de desencadear ação diversionária capaz de dar tempo aos seus subordinados para dirimirem as vantagens da surpresa e de
uma possível

superioridade em efetivo inimigo. Por isto escolhera o outro lado da mata, em relação à comunidade. Eram três as aeronaves. Dois helicópteros de combate
e um de transporte de

tropa. Todas de bandeira norte americana. Enquanto a maior permanecia pairando a uma altitude mais elevada as outras duas fustigavam por toda a parte, pareciam
besouros enfurecidos. A manobra de reconhecimento e escolta

foi facilmente identificada pelos homens ocultos na mata.

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Uma das aeronaves de combate ficou pairando junto a orla da mata, em frente ao local onde Ramos estava. Artilhada até os dentes, aquela máquina de guerra
não deixava dúvidas quanto ao seu poder mortífero. O vento gerado

pelo rotor causou a queda de algumas árvores. Uma delas caiu bem perto do Ramos. Mesmo assim ele permaneceu imóvel, segurando o fuzil, com um dos pilotos
na alça de mira. A tensão somente diminuiu quando as três aeronaves se afastaram, prosseguindo em direção ao Norte, ainda sobre o Rio Içana. - Esses miseráveis
estão por toda parte! - resmungou Ramos, se livrando da teia de cipós e galhos, criada pela queda das árvores, para

poder progredir. Na volta à base de patrulha Ramos encontrou exatamente o que esperava. Nada. O local era aquele, mas não havia indícios da sua tropa. Onde
deixara seus homens não havia nada além de árvores, folhas, cipós e alguns insetos. Tudo do jeito que a mãe natureza colocou. - A área está limpa, podem
sair! Um a um os homens foram surgindo dos lugares mais inusitados, ganhando contorno em meio à floresta. Mesmo em plena luz do dia

seria impossível vê- los se eles assim o desejassem.

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- Muito bem pessoal, mas cadê o sargento Sarmento?

- Ih, o sargento! Disse Honorato enrugando a testa. No mesmo instante os três correram na

direção de um grande tronco caído. Com dificuldade, levantaram uma das abas do tronco, que se abriu ao meio como um grande baú. Lá de dentro eles retiraram
o Sarmento, com jangada- maca e tudo mais. - Arrego! Que lugar mais fedido, deve ser a latrina de todos os gambás da floresta! - disse Sarmento tão logo
a parte de cima do tronco foi

levantada. - A febre voltou. E está bem forte. - continuou Sarmento. - Ele está pelando tenente! - falou De Paula, com a mão direita sobre a testa do sargento.
- Mas os ferimentos estão secos, não há

sinal de infecção. - disse Honorato. - É por que não há infecção alguma. O problema dele é malária! Diante desta afirmação, quatro pares de olhos pousaram
atentos sobre o nariz do Ramos. Todos ali sabiam que de malária e doenças tropicais Ramos conhecia o suficiente. Afinal fora acometido de malária oito
vezes e permaneceu dois anos afastado das atividades profissionais por conta de uma misteriosa

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enfermidade contraída na selva amazônica. E de tanto servir de cobaia para médicos, alguns deles recém formados prestando o serviço

militar obrigatório nas regiões de fronteira, Ramos resolveu estudar profundamente não só a malária como muitas das doenças tropicais existentes na Floresta
Amazônica. Poupando ele e seus subordinados de diagnósticos bisonhos e tratamentos desastrosos para o organismo no futuro.

- Estes são alguns dos sintomas típicos. Febre alta que aparece sempre por volta do mesmo horário e desaparece tempo depois, mesmo sem o uso de medicamentos.
É o ciclo do plasmódio! Vamos iniciar a cloroquina agora mesmo, antes que o organismo dele esteja mais debilitado ainda. De joelhos, com a mochila aberta,
Ramos sacou um recipiente plástico, hermeticamente

fechado. Na tampa, pelo lado de fora, havia uma cruz vermelha pintada e as inscrições "Doenças tropicais". A mesma tampa trazia, em seu

interior, uma completa relação dos medicamentos existentes no recipiente, data de validade, indicação de uso, posologia e uma valiosa descrição dos principais
sintomas dos males mais comuns na região. - De que são estas raspas aqui? - perguntou Honorato apontando para um dos pequenos tubos, contidos no interior
do kit

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aberto, enquanto Ramos pegava água no cantil para dar pequenos comprimidos brancos ao Sarmento. - Espere aí, vou ver qual é. - respondeu

Ramos. Sarmento, ajudado por De Paula, inclinou o tronco o suficiente para facilitar a ingestão dos comprimidos. Ele suava em demasia e não conseguia conter
os tremores em seu corpo. - Isso! Beba um pouco mais de água. Logo esta febre vai baixar. - disse Ramos. - Está doendo tudo, desta vez ela veio com vontade.
- resmungou Sarmento, voltando a se deitar aparado novamente por De Paula na

descida do corpo. - Quem eram eles, o senhor conseguiu identificar? Não era uma de nossas aeronaves, era? - perguntou o cabo Mário. - Trazia a bandeira
dos Estados Unidos da América. Pareciam estar em patrulha. - Mas como? Aqui é Brasil! O que estes gringos estão fazendo por estas bandas, tenente?

- Não sei Mário, mas tenho a impressão de que logo saberemos. - Espero que não descubramos tarde

demais. - disse Honorato. Como um garoto curioso, em dia de arrumação no armário dos pais, ele ainda estava de cócoras, debruçado sobre o kit do seu comandante.

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- Marupá! - O que foi tenente? Ma o quê? - perguntou Honorato. Todos os demais voltaram atenções para a resposta. - Isso aí, dentro deste recipiente, é
Marupá. É o pó da casca de uma árvore chamada Marupá. É um ótimo cicatrizante, tão bom quanto a seiva da Andiroba. - Então o senhor também tem remédio
de curandeiro no kit? - Deixe de ser bisonho, Honorato. Não existe esse negócio de remédio de curandeiro! No fundo todos os medicamentos foram copiados
da natureza. Substâncias usadas, de

alguma forma, há muitas gerações apenas receberam nomes bonitos, embalagens coloridas e preços salgados. O efeito curativo é coisa da natureza não do Homem.
- interveio De Paula. Honorato, após ouvir o companheiro, volveu o olhar para Ramos, em busca de

confirmação. O oficial balançava a cabeça lentamente, mostrando concordar com o dito. Depois de alguns minutos em silêncio, reajustando e conferindo equipamento,
armamento e munição, Ramos comunicou: - Pessoal, passaremos a noite aqui! Até descobrirmos o que está acontecendo,

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considerem- se em área vermelha. Não queremos ser surpreendidos uma vez mais, portanto: ração fria, recarreguem as baterias dos capacetes enquanto é dia
e renovem os seus suprimentos d'água antes do entardecer. Depois, descansem o mais que puderem. Partiremos às duas da manhã. A partir de agora

estou de guarda à base. *** Vinte e três horas. A noite não estava quente, como de costume. O desconforto das horas de espera até a partida ficou por conta
dos insetos, principalmente dos mosquitos. Desde o cair da noite, eles chegaram e não mais se foram. Naquele local parecia haver mais mosquitos famintos
do que em todos os outros recantos da floresta amazônica. Os homens, exaustos, renderam- se a um sono recuperador, protegidos da voraz faina vampiresca
das nuvens de mosquitos pelos mosquiteiros de

suas redes de selva. O único movimento humano na base era o de Ramos, ainda de guarda. Quase imperceptível, a movimentação necessária à guarda do local
ocorria, invariavelmente, junto à folhagens e troncos. Sempre no ritmo das

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sombras. Acompanhado, bem de perto, pelos novos e inusitados companheiros de serviço, já quase irmãos de sangue: os mosquitos. ***

- De Paula! De Paula! - Hum, que? - Uma e quarenta da manhã. Vinte minutos fora! Acorde os demais, diga- lhes para vestirem as blusas de combate capturadas,
colocar os capacetes e se apresentarem no

centro da base, depois assuma o posto. Eu vou dar atenção ao Sarmento. Ok?

- Sim senhor. A febre de Sarmento havia desaparecido, por completo, desde o meio da tarde do dia anterior e, se tudo corresse como o esperado, não mais
retornaria. Pelo menos não com tamanha intensidade. A cicatrização dos ferimentos continuava a superar a mais otimista das previsões. Principalmente levando
em conta

o ambiente e as parcas condições de higiene disponíveis. - Sarmento! - disse Ramos ao se aproximar do abrigo, montado para que Sarmento repousasse a salvo
dos insetos

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mesmo ainda estando deitado na jangada- maca e não em uma rede de selva. Não houve resposta, nem movimento. Então Ramos enfiou a cabeça por entre o mosquiteiro,
olhando o interior do abrigo. Na escuridão, pouco era possível identificar, mas parecia não haver ninguém ali. - Por que o senhor não experimenta usar
um destes capacetes. Eles facilitam o serviço! Era a voz de Sarmento, vinda da

retaguarda de Ramos. - Sarmento! O que você está fazendo de pé?

- O mesmo que o senhor, de guarda à base e pronto para partir desde já! - Mas você...

- Sem mas, por favor tenente. Eu já estou em condições e tenho o pressentimento de que as coisas vão esquentar um pouco antes de tudo melhorar. - Também
acho, amigo. Também acho. Mas por hora nada de mochila para você. Vamos ajudar esta sua sorte de elefante. - Sorte de audaz. "A sorte acompanha os audazes",
lembra- se disto tenente? - perguntou

Sarmento, abaixando- se ainda com uma certa dificuldade, para desfazer seu pernoite. No que passou a ser auxiliado por Ramos.

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- Sim, lembro. E gostaria de ter ele aqui. Aquele Forças Especiais adoraria repartir este abacaxi conosco! - Sim senhor, o Major Adauto daria a mão direita
para estar nesta com a gente. O senhor sabe por onde ele anda?

- Da última vez que tivemos contato ele estava fazendo um curso de aperfeiçoamento de oficiais nos Estados Unidos. Anos atrás. - Aquele nasceu para ser
general. - Ainda bem. Precisamos de alguém assim no comando. Enquanto Ramos e Sarmento

cochichavam, no centro do dispositivo, depois de arrumadas as coisas de Sarmento, os demais patrulheiros ultimavam os preparativos para a

partida. Antes da partida, Ramos explicou, sucintamente, o plano de ação para a jornada vindoura aos homens reunidos no centro da base. Exatamente às duas
horas da manhã, a

patrulha seguiu em direção ao Pelotão de São Joaquim. Ao contrário do deslocamento das noites anteriores, feito por via fluvial, agora os cinco homens utilizavam
a via terrestre. As explicações de Ramos foram as últimas palavras ouvidas por todos até o amanhecer, quando retiraram os capacetes.

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O fim de noite foi marcado pela progressão por um varadouro que mais parecia uma estrada a cortar a selva. A largura do varadouro permitia, com folga, que
mais de quatro homens caminhassem lado a lado. Apesar do terreno limpo, durante o trajeto

não foi possível ver o céu. As árvores fechavam o espaço acima das cabeças, formando um imenso túnel vegetal. Não houve um homem, entre aqueles cinco, que
durante as horas de caminhada não

se deteve, por pelo menos alguns instantes, em imaginar o passado daquele varadouro. Quantos destinos já não teriam rompido este mesmo caminho? Por que
precisariam de uma passagem tão larga?

O homem designado para compor o passo da marcha foi Sarmento. Ramos tentava, assim, respeitar os limites do corpo

enfraquecido do Sargento. Mas, a julgar pelo ritmo adotado desde as primeiras horas de deslocamento, de enfraquecido Sarmento não tinha nada. As horas de
sono deixadas de lado, agora

cobravam seu preço. Ramos se flagrou, mais de uma vez, dormindo durante a caminhada. Depois da última cochilada, ele resolveu dar fim à persistente sonolência.
E foi com uma

mordida na própria língua que ele despertou. A dor o manteve bem desperto pelo resto da

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caminhada. Atrás dele, De Paula e Mário sabiam o porquê dos tropeções de seu comandante e eram profundamente gratos pelo sacrifício silencioso oferecido
por Ramos em prol do bem estar da equipe. Até por isso, agiam como se nada de anormal estivessem vendo, evitando

constranger seu comandante e amigo. Longas horas foram necessárias até que a equipe se deparasse com a pequena bifurcação descrita na preleção feita, ainda
na madrugada, momentos antes da partida. Neste ponto, o varadouro continua para Noroeste e uma trilha, também muito bem conservada, segue para sudoeste.
Esta, segundo o tuxaua

explicou para Ramos, é a trilha que liga as comunidades vizinhas ao pelotão às comunidades do Alto Içana. Com um gesto, Ramos reuniu todos os homens. -
Pessoal, muito bom o deslocamento. Esta é a trilha que leva ao PEF. Devemos estar próximos, pois segundo o tuxaua não são mais do que duas horas de trilha,
talvez até menos. Quero atenção redobrada à partir de agora. Sei que não faz muito sentido, justo quando estamos tão perto de tropas amigas, mas há algo
de errado e nós não sabemos o que é! Estão todos bem?

Todos sacudiram a cabeça, em sinal de positivo.

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- Partiremos em cinco minutos. Mário! - Senhor! - Você passa a esclarecedor. Honorato, você agora é o terceiro homem e De Paula! - Selva! - Cuide da retaguarda.
Cinco minutos fora! Dito isto, os homens, que já haviam abandonado a trilha, aprofundaram- se um pouco mais na mata e estabeleceram um pequeno dispositivo
circular. Cada qual procurava aproveitar da melhor maneira possível aqueles cinco minutos. Mário apressou- se em pedir emprestado

papel higiênico ao Honorato e correu para trás do tronco de uma faveira. Com o terçado ele cavou o pequeno buraco, destinado a ocultar seus excrementos,
ao mesmo tempo em que ia se livrando do equipamento e das calças. Apesar de Sarmento reclamar e resmungar um bocado, Ramos aproveitou os cinco minutos
da parada para trocar os curativos e dar- lhe a nova dose de cloroquina. - Deixe de ser ranzinza! Tome logo esses comprimidos e me deixe trocar estes curativos
em paz. Parece um velho rabugento, ora! - Mas eu estou bem tenente. Não precisa

trocar os curativos... Ramos seguiu nos cuidados, fazendo uma careta irônica para o sargento, simulando concordar com tudo o que ele estava falando.

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De Paula e Honorato, deitados com os fuzis apontados para fora do pequeno círculo e as pernas sobre as mochilas, divertiam- se com a cena ao lado. Trocados
os curativos, a patrulha voltou à

marcha. Progrediam há uma hora na trilha quando começaram a ouvir o ruído característico das aeronaves de asa fixa. O silêncio da mata ajudava a ouvir sons
semelhantes àquele, mesmo quando a fonte sonora estava muito

distante do ponto estação. Passados alguns minutos, os patrulheiros foram sacudidos. Uma aeronave de grande porte passou, em vôo de baixa altitude e velocidade,
sobre a copa das árvores que os abrigava. - Deve ser um cargueiro. Ressuprimento

do pelotão. - sussurrou Honorato. - É. O problema é que nós não temos um cargueiro como esse operando para os pelotões! Aliás, nem devemos ter coisa igual
no Brasil! - retrucou De Paula. - Não tinha pensado nisso. Mais adiante, progrediam Ramos e Sarmento. Ambos concluíram que pelo conjunto velocidade- altitude,
desta aeronave e pelo tempo de deslocamento na trilha, deveriam estar bem perto da cabeceira da pista de pouso do pelotão. A pista de São Joaquim fica
a apenas duzentos metros do PEF. Localização bastante

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cômoda, sob o ponto de vista logístico, uma vez que todo o pelotão foi construído com base no material transportado por via aérea. Mas questionável quanto
aos riscos impostos às famílias dos militares residentes nas casas do

pelotão. Os primeiros indícios da chegada prematura do final de mais um dia, pincelavam a paisagem com tons acinzentados. Ramos olhou para seu relógio de
pulso, passavam- se poucos minutos das dezesseis horas. Outra aeronave de grande porte sobrevoou a patrulha no instante em que Ramos olhava para o relógio.
Algum tempo antes, foi

possível ouvir a primeira aeronave decolar. Com um gesto, Ramos comandou alto. Em seguida informou aos homens que passariam a noite naquele local. Apenas
se afastariam da trilha, por questão de segurança. Na manhã, do dia seguinte, ele e o Cabo De Paula realizariam o reconhecimento no pelotão e na comunidade
indígena vizinha. Antes que a luz do dia se exaurisse por compl eto, Ramos refez os curativos nos ferimentos de Sarmento e o fez engolir alguns comprimidos
de complexo vitamínico. A ração foi

consumida, novamente, fria e em pequena quantidade. Apesar de estacionados ao lado do que outrora poderia até ter sido encarado, por alguns daqueles cinco
homens, como uma

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segunda casa não havia nenhum sinal de otimismo, ou clima de fim de missão. Havia, sim, muita desconfiança com o quanto poderia

ser pesarosa a volta para casa sem os companheiros mortos em combate. Com o quanto de surpresas desagradáveis poderiam retornar, do reconhecimento, o tenente
e o Cabo De Paula. Pouco da noite foi aproveitado para descanso. Quando o sono não era afugentado pela ansiedade, por antever o resultado do reconhecimento
marcado para o dia seguinte, tinha de ser contido para atender as medidas de

segurança estabelecidas que deixavam em segundo plano o conforto. Os quartos de hora foram distribuídos imediatamente após a ocupação da base. Sarmento,
apesar de resistir até o limite da disciplina, foi poupado. Cabendolhe,

apenas as duas primeiras horas do serviço, justamente quando ninguém estaria dormindo mesmo. O sargento precisava de mais tempo para se recompor. As horas
de descanso além de ajudar na recuperação da jornada de marcha também corroboravam para tornar melhor a reação do organismo diante dos ferimentos e da
malária. Cuidados com os pés recebiam atenção

especial, ocupando parcela de tempo

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semelhante à destinada ao consumo da ração, manutenção do armamento ou equipamento. Morando em mochilas por um período prolongado e submetidos à pressões
intensas, os homens tinham necessidades pessoais cada vez mais básicas. - Filha da mãe! - resmungou Honorato, torcendo um par de meias até sentir a água

escorrer por entre seus dedos. - O que foi capeta? Qual o motivo do bico? - disse De Paula, ao ouvir o companheiro. - Cabo o senhor tem uma meia reserva
por acaso?

- Por acaso eu tenho! Por acaso você quer uma? Seu bisonho! - Quero sim, cabo. As minhas não agüentaram e... - É?! As minhas também! Tome estes dois pares.
- Ué! Se o senhor disse que as suas também não agüentaram, como é que ainda tem estas? - Já viu morto andar, soldado?

- Não senhor! - Por isso as tomei emprestado daqueles gringos antes de enterra- los. - Nossa, que horrível! - Ah! É horrível? Então anda sem meia e depois
me conta.

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- Não. Não, senhor. Eu vou usa- las. - disse Honorato apressando- se em vestir as meias. - Hum, vai morrer gente ainda! - murmurou De Paula, em tom funesto,
fechando a mochila, aberta para a retirada das meias. Dando continuidade, em seguida, à manutenção do fuzil. - O que o senhor disse?

- Nada, não disse nada. Massageie estes pés, corte a ponta das unhas e tire a sujeira de dentro do coturno. Assim as meias e seus pés vão durar um pouco
mais. - Sim senhor. Ao mais singelo anúncio do amanhecer Ramos e De Paula partiram. Conheciam detalhadamente as cercanias do terceiro pelotão

especial de fronteira e usariam este conhecimento para observar, bem de perto, o que estava se passando por lá.

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Surucucu No retorno à base, Ramos e De Paula tinham os rostos marcados por expressões pesadas. Não pareciam ser alvissareiras as notícias trazidas do reconhecimento
e, de fato, não eram. Ramos fez sinal para que todos se aproximassem. Após enxugar, o suor que

brotava em seu rosto, com a manga esquerda da blusa de combate, ele passou ao relato do observado durante aquela manhã de reconhecimento ao pelotão. À medida
que falava, seus homens coçavam a cabeça ou simplesmente postavam olhares fixos, endereçados a algum ponto do infinito. Em um segundo momento, o oficial
passou aos seus subordinados suas conclusões à cerca da nova

situação, bem como uma linha de conduta a ser seguida dali por diante. - Acredito não ser esta uma ação isolada. Os norte americanos não estão sozinhos
ou agindo apenas em São Joaquim. Mas sim em uma ação coordenada, multinacional, com abrangência sobre cerca de uns quarenta por cento do território nacional,
que é mais ou menos o que perfaz a nossa região amazônica. São Gabriel, Manaus, Belém, Boa Vista e muitos outros centros habitacionais contidos na área

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amazônica devem estar também sobre o controle internacional. Sejam quais forem os interesses dos invasores eles sabem que a

disputa não deve ocupar o palco do grande vazio ecumênico... - Ecu, o que tenente? - perguntou Mário. - Vazio de gente Mário. Acontece que

diferentemente da população vietnamita os amazônidas não ocupam, não moram em todos os recantos da floresta amazônica. Existem pontos com pequenos centros
de aglomeração humana, cercados por imensos vazios habitacionais. Sabedores disto, os invasores vão querer controlar as cidades e suas vias de acesso.
O restante cairá pela manobra. - Mas será que o Brasil vai deixar isto acontecer, vai perder um pedação sem fazer guerra! - Não Honorato, nossos governantes
devem estar fazendo algo. Só que nem tudo se resume a guerra, ela é apenas o último artifício, mas não deve ser empregada quando

sabidamente levará a uma derrota de maior escala. Eu digo de maior escala porque na guerra os dois lados sempre saem derrotados, seja qual for o resultado.
Com certeza, nós não somos os únicos. Muitos outros militares devem ter penetrado na floresta antes da chegada dos invasores. Eles devem estar colocando
em prática tudo aquilo que a história nos ensinou

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sobre a força de uma resistência bem estruturada. Para trás esses homens e provavelmente algumas mulheres deixaram a cômoda rotina de suas antigas vidas.
Renasceram, se transformaram em estatísticas, notícias ruins para um lado e boas para outro. São fantasmas de uma idéia e nada consegue

ser mais poderoso, como instrumento motivador, do que idéias bem plantadas em mentes humanas. - E o que nós vamos fazer tenente? - perguntou Honorato. -
Retornaremos até Manaus! - Nadando?

- Isso mesmo Mário. Se preciso for, iremos a nado, embarcação regional ou voadeira. No caminho espalharemos tormento e confusão. Chegando em Manaus, descobriremos
como estão as suas famílias e o

nosso povo. Veremos como continuar a ser úteis a el es. Quando Ramos encerrou a preleção e passou a palavra aos seus subordinados, Sarmento foi o primeiro
a falar. Agachado ao

lado dos demais e com um tom sereno de voz ele deu a entender que a situação descrita trazia à tona uma das hipóteses de conflito que justificou, até então,
a existência de elementos como eles. Treinados e mantidos como especialistas em guerra na selva através de

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recursos dos cofres públicos. Tudo o que viveram até aquele momento poderia ser encarado como um grande ensaio. Agora era a

vez do confronto com a realidade imposta, em larga escala, pelo destino. E encerrou dizendo: - Olha pessoal, nós demos uma baita sorte! Para mim, estar
sob o comando do tenente Ramos, combatendo ao lado de vocês, faz tudo parecer mais fácil. Lembrem- se, hoje, nós iniciaremos a escrita de uma história
que deverá ser contada, com orgulho, por nossos filhos e pelos filhos de nossos filhos. - Tenente, se eu entendi direito, o senhor pretende seguir para
Manaus. É isso mesmo? - perguntou o Cabo Mário. - Sim. Aqui nós conseguiremos fazer muito pouco. Não há como estabelecer resistência sem dispor do apoio
logístico. Além do mais a quantidade de homens e materiais observados hoje, durante o reconhecimento, demonstra que os americanos querem ir além da operação
presença e do uso da pista de

pouso pelo seu posicionamento estratégico. - Mas aqui eles estão vulneráveis, tenente! - disse Honorato. - Pensem. Um pelotão como este não possui as fraquezas
ditadas pela capilaridade de centros urbanos. Aqui tudo fica mais simples para os invasores. Afinal, quem está dentro é

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amigo, quem está fora é inimigo e pau nele. Entenderam? - Sim, mas e o nosso pessoal. Será que foram todos mortos? Eles podem estar sendo mantidos prisioneiros
no PEF!? - Não Mário. Acredito que o pelotão foi

tomado sem o uso da força. - Espera aí tenente, o senhor acha que o nosso pessoal simplesmente amarelou, entregou as chaves do pelotão a esses gringos miseráveis
e saiu com o rabo entre as pernas? - perguntou Honorato, desconsolado. - O que o tenente está dizendo é "não foi

possível observar nenhum sinal de luta ou violência no pelotão". E acho bom não julgarmos capeta nenhum. Lembrem- se de que os militares do pelotão não
estavam sozinhos como nós, para o que der e vier, eles moravam ali com suas esposas e seus filhos. - interferiu

De Paula. - Bom, concordo com a questão dos prisioneiros! Podemos fazer um reconhecimento mais detalhado e aproveitar a oportunidade para deixar nosso cartão
de boas vindas. - o coração do Ramos marcava um compasso lento, parecendo totalmente alheio a tensão

imaginável para o momento. Sua mente, voava na dianteira das ações, estruturando o planejamento sumário para a missão proposta. - Tem uma coisa, tenente.

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- Diga Mário. - Estamos quase sem suprimentos e a descida até São Gabriel da Cachoeira, com sorte, pode levar uma semana se feita pelo rio... - E daí? Desembucha.
- O senhor lembra dos cachês que

mandaram a gente construir em volta do pelotão há uns anos atrás? Então, podíamos ir ver se eles ainda existem. Sei exatamente onde eles ficam, ajudei na
instalação, junto com os recrutas. - É uma boa idéia tenente. - disse Sarmento. - Sim, vamos tentar hoje à noite. A movimentação no pelotão era intensa,
podia ser ouvida de onde a patrulha estava estacionada. Por vezes, vozes de frases perdidas eram arrastadas ao interior da selva

chegando aos ouvidos dos cinco militares. Pouco antes do cair da noite, alguns helicópteros chegaram ao PEF. Pareciam ser os mesmos avistados na comunidade
indígena. Eles vieram do Leste, voavam junto à copa das árvores e somente pousaram depois de sobrevoar repetidas vezes as circunvizinhanças. ***

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Nos dois primeiros cachês visitados pela patrulha os suprimentos não haviam sido acondicionados de maneira correta. Toda a comida estava perdida e a munição
provavelmente teria o mesmo fim, em breve. Ao partirem para o terceiro ponto, os homens imaginavam saber exatamente o que iam encontrar. Suprimentos enterrados,
mal

preparados, abandonados à própria sorte, graças a falta de uma doutrina amadurecida para orientar os que tentavam colocar em prática os ditames propalados
nos discursos, invariavelmente, feitos nos salões refrigerados e

polpudamente acarpetados. A doutrina de combate na selva, tratada por boa parte dos militares brasileiros como embuste ou excentricidade, colocada em segundo
plano pelos escalões superiores, agora era questão de sobrevivência. Ramos caminhava a retaguarda do cabo

Mário. Dispostos em coluna, com distância cerrada entre cada homem, os patrulheiros executavam o deslocamento com auxílio dos capacetes capturados. Rumavam
para o último cachê a ser coberto ainda sem a luz do dia. Em breve os primeiros raios de sol

despontariam no horizonte. Para alcançar o cachê antes do amanhecer era preciso andar rápido. Com a ajuda do sistema de visão noturna dos

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capacetes, da vegetação e do terreno, os cinco alcançavam velocidades de progressão bastante parecidas com as obtidas em deslocamentos diurnos. A mão de
Ramos se elevou, quase ao

mesmo tempo que a do Mário, até a altura do ombro. Ambas com os punhos cerrados. Assim permaneceram. Simultaneamente, o movimento

desses dois primeiros homens da coluna de marcha cessou por completo. A mão representava o sinal convencionado para congelar. Havia perigo iminente, qualquer
movimento poderia representar risco para a

patrulha. Instantaneamente, De Paula travou o movimento entre uma passada e outra, sua mão esquerda subiu, copiando o gesto avistado. Em segundos, todos
ficaram imóveis. De Paula, Honorato e Sarmento exigiam de seus sentidos uma resposta positiva quanto a ameaças. Mas nada conseguiam identificar. A diante
parecia

haver apenas mais um trecho de mata igual a tantos outros deixados para trás naquela noite. Entretanto, o perigo estava à espreita, disperso em meio ao
fundo, nada contrastante, da noite na selva. A descarga de adrenalina espantou a

sonolência de final de noite. Com a vigília redobrada, se não triplicada, os três últimos homens da coluna viram a mão esquerda de

333

Ramos sair da posição junto ao ombro e, lentamente, assumir a postura indicadora. Apontando, como uma seta, para o setor noroeste. Só então, Sarmento, De
Paula e Honorato atentaram para as presenças existentes naquela direção. Pareciam ser dois homens, um estava agachado e o outro de pé. A resolução do equipamento
não permitia identificar melhor, mas certamente aqueles capacetes prestaram inestimável serviço ao possibilitar a detecção dos vultos antes que ocorresse
um encontro fortui to.

As fardas dos dois homens não reluziam como a dos americanos. "Talvez fosse deficiência do sistema do capacete" Supôs De Paula. Chegar mais perto, sem a
quebra de sigilo, era pouco provável. A presença da patrulha só passara desapercebida porque os dois homens estavam manuseando folhas secas no momento
da aproximação. As folhas estavam sendo espalhadas, de

forma a dissimular as alterações feitas no terreno. "Eles estão no cachê! Mas o que eles tanto fazem por lá?" Pensava Mário, impaciente. Ramos necessitava
de tempo para dimensionar corretamente a situação. Levantando efetivo e quais as intenções dos

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intrusos. O mesmo tempo o arrastaria para a perda das vantagens possíveis. Vantagens obtidas com emprego da pouca luminosidade, do fator surpresa e da superioridade
numérica

momentânea. Surpresos, os patrulheiros perceberam que os dois vultos abandonam a posição, vindo na direção deles. Os intrusos encontravam as dificuldades
normais aos que andam na escuridão das noites amazônicas, evitando, porém, esbarrões e tropeços na vegetação. Não provocavam barulho algum durante o deslocamento,
contornando os obstáculos encontrados com atenção própria à especialistas. Os dois pareciam muito ambientados à progressão

noturna em ambiente de selva. "Direto para o caldeirão! Vem pro papai, vem!" Pensava De Paula, retirando a faca da bainha. Naquele instante, coisas bastante
diferentes irromperam na mente dos cinco patrulheiros. Havia, no entanto, um pensamento comum: "Sem barulho, sem barulho." A neutralização dos dois homens
tinha de ser silenciosa, mantendo em sigilo a presença da

patrulha. Nos últimos metros da caminhada de aproximação, Sarmento, De Paula e Honorato perceberam que os dois sujeitos não iriam

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passar perto deles. As facas, apertadas entre os dedos não poderiam ser apresentadas àquelas gargantas. A ação ficaria a cargo dos dois primeiros da coluna.
Com os dois homens desfilando exatamente a sua frente, Ramos antecipou o grande engano vindouro. Mário preparava, com a mão direita, um golpe de terçado
destinado a decapitar instantaneamente o primeiro homem. Sabia que

do segundo o tenente se encarregaria. Usando os dois braços, ao mesmo tempo, Ramos explodiu um único golpe sobre a nuca dos dois homens. Com as mãos espalmadas
paralelamente ao solo, Ramos controlou o instante do contato para que, apesar da violência do movimento, o impacto não fosse aprofundado. "O suficiente
para desmaiar, apenas isso!" Pensou Ramos na fração de tempo que

antecedeu sua ação. O facão do Cabo Mário passou assobiando de encontro ao vazio. Seu alvo fora interceptado no instante mágico que define destinos. Os
dois corpos desabaram. Ramos se abaixou ao lado deles. Mário, ao seu lado, demorou um pouco para entender o que de fato estava acontecendo. A cena começou
a fazer sentido quando ele ouviu o tenente sussurrar

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algo, enquanto batia no rosto de um dos homens. - Marcos, Marcos André. - Hum, quem. - Chiii, sou eu Ramos fale baixo. - O que aconteceu? Que dor de cabeça!
- É, você esteve perto de ficar sem ela. Quem é o outro? - É o Sargento Coparra. Será que ele está bem? Após a volta a calma, vieram as explicações de
ambos os lados. Ramos descreveu, sucintamente, o que

ocorrera até ali e ouviu de Marcos André os detalhes referentes ao novo capítulo da história recente da humanidade. Um capítulo do qual ele e seus homens,
apesar de fazerem parte, desconheciam. - Também ainda não estou por dentro de

todos os detalhes. Você sabe como é, eu estava aqui no pelotão quando tudo começou. O que sei, me foi passado pela fonia, pouco antes de iniciarem a obstrução
das comunicações. - Entendo, Marcos. E o que vocês estavam fazendo aqui. Cadê os outros, ou apenas vocês... - Não. Apenas dois militares não se infiltraram
na mata em tempo hábil e acabaram sendo conduzidos, juntamente com as mulheres e crianças, para os postos de triagem em

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Manaus. Acontece que os outros seguiram para São Gabriel pelo rio, nós ficamos para trás por que o motor de popa de nossa voadeira entrou

em pane no momento da partida. Tivemos de redistribuir o pessoal de última hora. Eu e o Coparra ficamos, seguiríamos depois de consertar o motor. As voadeiras
estavam com lotação no limite da irresponsabilidade. - Essas voadeiras são do pelotão, tenente? - interrompeu Sarmento, até então

calado. - Tudo bom, Sarmento? - Selva! - As voadeiras que estão quebrando esse galhão não são as do PEF. Aquelas não

chegariam a metade do caminho. Usamos as embarcações que foram apreendidas com garimpeiros vindos da Colômbia, há algumas semanas atrás. Por sorte nós as
deixamos guardadas nos tapiris abandonados da antiga base, construída para as instruções de vida na selva dos recrutas. À uma hora e meia de caminhada
ao sul deste ponto. - E o que vocês estão fazendo aqui? - insistiu Ramos, pondo- se de pé e ajustando o

capacete na cabeça. - Este é o único cachê decente, nas vizinhanças. Por sorte, possui os itens de reparo necessários ao conserto do motor.

338

- Ração em condições de consumo, tinha alguma?

- Não, infelizmente elas foram mal acondicionadas. Encharcaram. - Mas existem outros cachês! - Estivemos neles. Igualmente

imprestáveis. - disse Sarmento. - Vamos fazer o seguinte, Marcos. Sigamos juntos até o local da voadeira. Não é seguro permanecer por estas bandas, com
dia claro. - Tudo bem, mas não se preocupe. Eles são como caramujos não saem de dentro da

casca do pelotão para nada. - Isso é por enquanto, apenas por enquanto campeão. - disse Ramos, iniciando o movimento na direção dos tapiris que ele próprio
construiu, quando comandou o pelotão. ***

No tapiri central, localizado à beira de um igarapé tributário do Rio Içana, o soldado Honorato e o sargento Coparra trabalhavam no conserto do motor. Honorato
conhecia os meandros da

mecânica de motores. Dos dez aos dezessete anos, ele trabalhara na oficina mecânica de seu

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pai, parando apenas quando se alistou no exército. Em contrapartida, o sargento Coparra era o típico curioso. Possuía pouco

conhecimento técnico mas gostava de mexer em motores. Fossem eles do cortador de grama de sua casa ou de uma voadeira. Constatando a confiança e a destreza
de Honorato, Coparra respirou aliviado. Com a ajuda do soldado o conserto do motor iria sair em pouco tempo. - Para onde seus homens estão indo, Marcos?

- Vão se juntar aos outros. Iremos atuar na Força de Resistência número cinco, na região de São Gabriel. E vocês Ramos, o que vão fazer? - Vamos para Manaus,
temos assuntos inacabados por lá. - O Sarmento parece estar com alguma

dificuldade para se mover, também notei que ele não leva mochila, o que há de errado com ele?

- Foi ferido em ação. Mas foram ferimentos sem gravidade. Ele vai ficar bem, tem boa cicatrização e reage bem ao tratamento à base de quinino. - Não entendi,
qual a relação dos ferimentos com o quinino?

- Alguns dias atrás, Sarmento desenvolveu sintomas de malária. Deve ser uma

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das fortes, três cruzes, pela intensidade das febres. Está tomando cloroquina. - Você deu sorte Ramos, com esta sua equipe dá para chegar em qualquer lugar.
Parece escolhida a dedo. - E foi. Porém, estes são os que permaneceram de pé, sofri pesadas perdas. Fomos surpreendidos pelos gringos quando pernoitávamos
em uma base de patrulha. - Lamento saber Ramos. E seus homens como estão reagindo?

- Bem, até o momento bem. Tudo está acontecendo rápido o suficiente para não deixalos sentir. Além do que, com exceção do Soldado Honorato, eles já provaram
sangue de todos os tipos. São cães experientes. - E os miseráveis? - Como diria o De Paula, foram para o

inferno. - Então eles já sabem da existência de vocês, no mínimo sabem da aniquilação da equipe deles. Devem estar contando os corpos dos dois lados. -
Por que você diz isso?

- Nos primeiros dias, assim que eles chegaram, realizamos algumas ações buscando ir além da inquietação. Queríamos dimensionar suas defesas, sua disposição.
Foi aí que notamos! Sempre após capturarmos alguns dos deles éramos localizados.

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Pensávamos que fosse algo como um emissor de sinais, semelhantes àqueles dos aviões, talvez preso ao equipamento ou ao fardamento. Mas não. Mesmo livrando-
nos de tudo, conduzindo os prisioneiros pelados continuávamos sendo localizados. - São implantes, Marcos. - Sério?! - O De Paula foi quem descobriu. Nós
estávamos enterrando os corpos deles e recolhendo algumas das peças de fardamento, quando ele observou que do ferimento no braço de um dos mortos alguma
coisa reluzia. Bingo! Todos tinham no mesmo braço aquela peça minúscula. - E, então o que vocês fizeram? - Demos asas a cada um deles. - Não entendi! -
As tais peças viraram comida de

passarinho. Cabo Mário cuidou para que cada um dos dispositivos fosse adicionado à dieta de alguns mutuns. Agora mesmo, equipes de resgate estão esquadrinhando
coco de passarinho pelos quatro cantos da floresta. Porque vai ser só isso que eles vão encontrar. - Boa idéia. Por estas e por outras, você é

uma lenda nos pelotões de fronteira. - falou Marcos, contendo as risadas. - Aquilo não era um simples localizador, Mar cos .

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- Não? - Aqueles dispositivos integram informações preciosas em um campo de

batalha. Podem transformar homens em redes de combate, monitoradas em diferentes níveis. Capazes de atender às necessidades táticas e estratégicas dos sonhos
de qualquer exército do mundo. Na prática, ampliam a dimensão de qualquer combate. Foi uma pena descarta- los, tornariam mais úteis os capacetes e as fardas
capturados. - Mas mesmo assim os capacetes quebram um galhão?! - Não estamos usando nem dez por cento

de seus recursos. Os implantes, por exemplo, devem permitir alguma coisa parecida com telemetria orgânica, informando em tempo real as condições de saúde
de cada combatente à base de operações. Imagine, dá para saber qual a exata necessidade de atendimento médico antes mesmo da chegada dos feridos. E por
aí vai ! - Nós chegamos a capturar alguns destes capacetes, mas sem as botas não tivemos como carregar as baterias para mantê- los funcionando. - lamentou
Marcos André. - Gostaria de usar, pelo menos, o sistema

de comunicação de que eles dispõem, mas o bom senso me impede. - disse Ramos, olhando fixamente para o capacete em suas mãos.

343

- Claro! - Por que as botas, Marcos? -O que?! - Por que você disse precisar de botas para recarregar as baterias dos capacetes?

Qual a relação?! - Ué, Ramos! Você não sabe? São elas as responsáveis pela recarga das baterias. - Deve haver algum engano. Encontramos placas, do tipo
das solares, nas mochilas deles. Temos usado elas para manter a carga, com sucesso. - Não! Tenho certeza, as botas deles são especiais. Elas convertem
a energia do caminhar em eletricidade. Talvez as placas usadas por vocês estivessem sendo conduzidas para atender a outro fim ou façam parte de um sistema
alternativo, guardado para

emergências. - Rapaz, eles trouxeram o que de melhor possuem na área tecnológica! - exclamou Ramos, pressionando os lábios, sinalizando admiração, enquanto
colocava o capacete sobre a mochila. - É companheiro, mas nem toda a

tecnologia empregada salvou a pele dos que cruzaram com vocês. - Mas fez uma grande diferença. Corroborou para a morte de muitos dos nossos.

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- o tom destas últimas palavras, ditas por Ramos, foi solene e pesaroso. - Posso perguntar uma coisa pessoal? Apesar de não ser o momento ideal, mas... -
Diga Marcos. - Disseram que você estava muito doente. Ouvi falar até em reforma. Existe alguma verdade

nestes boatos? - Não são boatos. De fato estive bastante adoentado. Foram dois anos de tratamento, mas agora está tudo bem. - E o que era?

- Rapaz, aí está um dos mistérios da vida. Comecei sentindo fortes dores de cabeça. Em pouco tempo não conseguia sequer pensar, tamanha eram as dores. As
medicações usadas para reduzi- las me deixavam entorpecido por mais da metade do dia e mesmo assim tinham pouca eficiência. Não bastasse isso, comecei
a apresentar um estranho sintoma. - Qual?

- Perdi a capacidade de ler! Ou a memória de leitura! - Como assim? - Eu lia um texto, depois da quarta ou

quinta linha não sabia mais o que havia lido nas anteriores. Ouvindo o mesmo texto eu conseguia guardar quase tudo. O problema surgiu apenas na leitura.
- E os médicos, o que disseram?

345

- De início, notava em alguns médicos aquele olhar nojento de incredulidade. Tipo assim: "Nunca ouvi falar em nada semelhante, esse cara deve estar exagerando
ou inventando!" Depois vieram os curiosos. Viam a oportunidade da descoberta de algo novo, o desafio, a projeção de suas carreiras; só não enxergavam o
sofrimento do paciente por trás das experiências. Diversos medicamentos foram testados, com reações quase sempre penosas. Permaneci sem diagnóstico ou
cura durante bastante tempo. Por sorte, descobriram alguma coisa em um de meus exames de

sangue. A partir daí, em questão de meses desenvolveram um remédio para a minha doença. - E o que era?

- Disseram ser um tipo raro de vírus aqui da Amazônia. Mas não sei ao certo, houve muito mistério a esse respeito. Vieram, inclusive, alguns engravatados
de Brasília, pedindo minha

colaboração com silêncio e discrição à cerca da doença. Segundo eles, tal assunto exposto à imprensa poderia gerar pânico devido à associação indevida com
os casos ocorridos na África, quando da epidemia de Ebola. - Bom, pelo menos conseguiram te curar! - É verdade. Depois do diagnóstico, até

estranhei a atenção dispensada pelo corpo médico do exército. Mensalmente recebo visitas

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de uma equipe médica em casa. Eles realizam exames para monitorar as condições após o tratamento. A cada visita um novo questionário, amostras de pele,
saliva, fezes, urina e quase meio litro de sangue. Mas tudo bem. O que eu não quero é voltar a sentir aquela dor maldita. - Aqui no pelotão chegaram a
dizer que

você havia morrido. Depois o ressuscitaram, colocando- o em cadeira de rodas! - Eu imagino. - disse Ramos, sorrindo. Sem o diálogo cochichado, era possível,
da posição ocupada pelos dois oficiais, ouvir o som das águas do igarapé chocando- se com as muitas pedras espalhadas ao longo de seu leito. Perto dali,
algumas maritacas ruidosas faziam uma parada, pousadas junto à copa das árvores. Os homens não envolvidos no reparo do

motor exerciam a segurança aproximada da área, posicionados em torno dos tapiris. Junto aos corpos, pequenas nuvens de insetos foram formadas. Os patrulheiros,
completamente

indiferentes aos ataques da agitada vizinhança, mantinham a atenção na vigilância. As repetidas picadas não mais causavam os pequenos inchaços de outrora,
elas nem mesmo eram sentidas. Jornadas de total internação na selva oferecem à mentes preparadas o conforto

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necessário para compensar o tanto que lhes é retirado dos corpos. ***

Veio à cabeça de Ramos a lembrança de seus pais. Sua mãe iria adorar conhecer um recanto como aquele. Apreciadora da natureza, ela se encantaria com a exuberância
da mata e

das muitas cachoeiras guardadas do Homem pela selva. Sua mãe, mulher de muita fibra, abriu mão de projetos pessoais de vida, dedicando- se exclusivamente
à família. Cobrindo o lar de atenções e carinho. Ramos desejava poder ser menos ausente. Queria passar mais tempo ao lado dos pais. Ultimamente poucas
foram as oportunidades em que ele pode estar perto dos dois. Dar- lhes os carinhos que tanto mereciam e

prezavam. Carinhos sempre retribuídos por mais amor. Além dos compromissos profissionais, Ramos reconhecia haver outro empecilho para permanências mais
prolongadas junto aos pais. Era o desequilíbrio causado na vida do casal, pelas opiniões contrárias à cerca de algumas condutas do pai no relacionamento
conjugal.

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Os sons da floresta, as flagrâncias molhadas e a pequena eternidade da espera, conspiraram para que Ramos examinasse sentimentos. Ponderando acertos íntimos.
Suposições e recordações tornaram pequeno o corpo, extrapolando barreiras do tempo cronológico e do espaço terreno. Fazendo vidas em pensamentos. Às vezes,
nada conseguia tapar o vazio da

saudade da família. Quando isso ocorria, os motivos do distanciamento ficavam claros. Dolorosamente verdadeiros. Apesar de amar o pai e a mãe Ramos mantinha-
se ausente não apenas por conta dos compromissos profissionais, mas também por acreditar que a

distância legava maior harmonia ao lar de seus pais. O pai, um homem de difícil convivência, alternava o humor de acordo com os ventos do seu gênio forte
e da tendência à depressão. A ilusão de posse manifestada pelo ciúme da esposa entremeava de maus momentos o relacionamento dele com as pessoas mais chegadas.
Ramos não entendia por que algumas pessoas, como o seu pai, demonstram o

profundo afeto que dizem sentir pelas companheiras tolhindo- as da própria vida. Sufocando a espontaneidade. Para ele, amar era algo distante da posse.
Pois o desejo de

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controle elimina a mais valiosa das faces de um relacionamento amoroso; o prazer da vida a dois. À medida que a vontade de um passa a subjugar a do outro,
todo o encanto e romance começam a ruir. O ciúme é a alavanca mais comum desses desacertos. Quando na casa dos pais, Ramos não

conseguia ficar calado diante da maneira como sua mãe era conduzida à vida. Sem saber dirigir, morando afastada do centro da cidade, em uma rua sem vizinhos,
ela passava o dia inteiro em afazeres domésticos, dentro de casa. Se necessitasse ir a rua tinha de faze- lo acompanhada do marido, sozinha nem pensar.
Caso contrário, na volta para casa teria de ouvir os impropérios vociferados contra ela, justificando a saída com os motivos mais baixos possíveis. Com
quarenta anos de casamento, desculpando os erros do marido pelas virtudes salvadoras, ela acomodou- se. Pautando suas necessidades pessoais no mínimo,
para evitar causar desarmonia. E a cada metro cedido um novo era requisitado. A posse não conhece

saciedade. Desta forma, seguiam os meses e os anos. O único desejo de sociabilização, repetidas vezes manifesto por ela, era o de poder estar junto à mãe,
viúva e idosa, algumas horas por semana. E ainda assim estas

350

ocasiões serviam de gatilho para deflagrar brigas conjugais. Mesmo compartilhando a vida com alguém que pede tão pouco, o pai de Ramos achava- se exigido,
descrevendo estas poucas horas semanais como abandono do marido. Pois nestes dias ele teria que passar pelo desconforto da solidão. Uma vez que ele não
freqüentava a casa da sogra por não se compatibilizar com as opiniões do cunhado. Assim, dependente da carona para ir à casa da

mãe, pois se ela fosse de ônibus era briga na certa, a mãe de Ramos era obrigada a ouvir do marido as mesmas lamentações egoístas quantas fossem as vezes
que saísse de casa. As desculpas para as discussões eram sempre as mesmas. "É um absurdo eu que sou casado

com ela fico aqui jogado, almoçando sozinho. Ela tem que entender que casou e tem marido vivo!" Dizia o seu pai. Na posição de filho, era impossível para
Ramos sentir- se totalmente confortável na casa dos pais. De que maneira assumir uma conduta de neutralidade, sem tomar partidos, com tanta coisa errada
acontecendo embaixo do nariz. Até a atenção dispensada pela mãe, nas poucas ocasiões em que Ramos ia em casa, era motivo de alteração do humor do seu pai.
Ele

sempre desconfiava estar recebendo menos atenção da esposa ou não estar recebendo

351

tanta atenção de Ramos quanto seria certo. Estado de coisas que só servia para distanciar a relação pai e filho. "Amor não está na medida de quem recebe
e sim na de quem dá!" Pensava Ramos em ocasiões semelhantes. Para algumas pessoas a oportunidade de

ser feliz é desperdiçada por uma miopia sentimental, que só piora com a idade. Mesmo sabendo disso, Ramos tentou aconselhar o pai. A felicidade dele traria
mais felicidade à sua

mãe. Mas o pai perdia a razão ao ouvir seus conselhos, recebendo- os como afrontas, ameaças, vindas de um filho ingrato e petulante. Reação talvez causada
pela intrínseca consciência da imobilidade moral para mudar suas atitudes àquela altura da vida. Ou pelo medo doente, mesquinho, de perder o domínio sob
sua posse mais valiosa; a própria esposa. Da última vez que esteve em casa, ao

tentar expor para o pai o quanto poderia ser danoso ao relacionamento e até à saúde de sua mãe a forma pela qual a vida de ambos vinha sendo conduzida,
Ramos viu o pai se transfigurar. Sentado na calçada em frente de

casa, onde tentava o diálogo, ele testemunhou com pesar a cena mais triste de sua vida. O pai, aos gritos, correu para dentro de casa dizendo

que iria se matar com um tiro na cabeça porque só ele era errado e estava cansado de ser julgado pelos outros.

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Não o fez. Mais uma vez fugiu do assunto com a usual agressividade, mas desta feita matara muitas coisas boas no coração do seu filho. Uma lágrima escorreu
no rosto do

tenente. A vontade de estar em casa, deitado no chão da sala, perto de seus pais apertou o coração de Ramos. O ronco abafado, vindo de um dos tapiris, indicou
o êxito no conserto do motor de popa. Obrigando os homens a abandonar, por hora, lembranças e anseios.

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Tracajá

Amanhecia quando o homem da proa alertou: havia mais um encachoeiramento à frente. No total, ao longo de duas jornadas em deslocamento pelo Rio Içana e
depois pelo Rio

Negro, foram transpostas quatorze cachoeiras. Algumas obrigaram ao desembarque de todo o material para condução por terra, incluindo motor de popa e os
galões com o combustível. Outras cachoeiras, com quedas mais radicais, forçaram o grupo a transportar até a voadeira por terra, seguindo trilhas em barrancos
escorregadios. O encachoeiramento à diante, como os demais encontrados desde que o Rio Negro fora atingido, não exigia mais do que a cautela do

piloto para evitar os rodamoinhos e o choque da hélice do motor nas pedras. Os homens mais sonolentos foram despertados pelo aviso. De Paula, o homem de

serviço na proa daquela hora, recebera o apelido de "De Pedra", pois sempre que ocupava o posto surgiam pedras ou cachoeiras no caminho. Coincidência ou
não, os patrulheiros aproveitavam a oportunidade para descontrair o clima de tensão fazendo piadas a respeito.

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- Mais uma! E tome De Pedra! - resmungou o Cabo Mário, de forma a poder ser ouvido pelo companheiro na proa da embarcação. Sentindo os primeiros pingos
da chuva, recém chegada, pousarem de encontro ao seu rosto, Ramos observava a movimentação na voadeira. Os pingos pareciam mais gelados por conta do movimento.
Mas eles não detinham a

atenção de Ramos, apenas compunham o ambiente. Sentado junto à popa, com o fuzil apontado para fora da embarcação, o oficial analisava a postura de seus
comandados. Vistos assim, os homens embarcados não

pareciam estar diante de uma realidade tão adversa. Pareciam, mesmo, retornar de mais um reconhecimento de fronteira, como tantos outros. Estando cada qual
em sua casa, logo

após os procedimentos usuais de desmobilização. Mas eram apenas aparências. Para alguns deles, poderia não haver mais um lar para onde retornar. Por mais
que atentasse, Ramos não

ouvia o grito das incertezas despontar nas atitudes dos homens sob seu comando. Talvez lhe faltasse os ouvidos, a sensibilidade para interpretar, melhor,
os sinais deixados por eles no dia a dia. E se isso fosse verdade? Por quanto mais concordariam em submeter- se às suas ordens? Por muito mais forte razão
agora,

355

pois a imaturidade ou o temor do embate contra o desconhecido poderia leva- los a crer que pouco se tem a perder com atos de insubordinação e deserção.
Não! Talvez outro grupo, mas este comunga dos mesmos pensamentos. A maior incógnita era a reação do

Honorato. Mas ele, até o momento, estava reagindo bem, muito bem. - Imagino o que se passa na cabeça do senhor! - cochichou Sarmento, colocando a mão sobre
o ombro do Ramos. Ele estava sentado ao lado do seu comandante e há muito observava o olhar distante, perdido no horizonte, impostado pelo oficial. Ramos
respondeu ao subordinado com um sorriso, daqueles em que os lábios são

pressionados um de encontro ao outro, desenhando o sorriso sem dentes. - Na noite em que fomos atacados, desejei muito que o senhor estivesse por lá. Nunca
havia sentido tão claramente o peso do comando. E olha que eu não sou nenhum novato, já estive em muitas missões, comandei grupos e até pelotões, em algumas
situações especiais, mas sempre havia alguém ditando os limites. Nós nunca estivemos realmente por nossa conta e sorte. Acho que foi por isso que

senti tanto o peso daquele dia. Substituir alguém no comando é sempre difícil, mas substituir logo o senhor foi pesado demais para mim. Talvez

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por isso tenha sido bonzinho além da conta, relaxei na segurança e paguei com a vida de todos aqueles homens. Preciso dizer isso para o senhor, foi minha
culpa! Eu não... Ramos interrompeu o relato emocionado

de Sarmento. Ambos tinham lágrimas nos olhos, disfarçadas pela chuva, agora despencando com o vigor comum às torrentes amazônicas. - A vida não nos cobra
culpas, amigo. Isso é coisa da vaidade humana. Sinto a mesma

solidão, a mesma incerteza todas as manhãs. Quando do início de mais uma jornada, sei estar conduzindo não só o meu destino, mas sim influenciando outros
também. Não me julgo o dono da verdade, logo temo, tanto quanto você, pelos meus erros, pelas minhas fraquezas e pelos meus fracassos. Porque eles podem
vir a ser também das pessoas que me seguem. Pessoas que confiam em mim. Mas se isto ocorrer, e já ocorreu comigo, temos de continuar a caminhada. Na verdade,
esses comprometimentos ocorrem todos os dias em todos os cantos do mundo. São aquelas pequenas decepções sofridas anonimamente

nos relacionamentos familiares, nos empregos ou até mesmo com governantes. O importante, amigo, é que a culpa não muda o curso da vida. Melhor é o aprendizado,
pois ele vem liberto do pesar e do rancor. Ele o faz crescer. A vida é um

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presente maravilhoso, a desperdiçamos quando não a encaramos como palco de felicidade, amor e aprendizado. Liberte- se dessas culpas, pense nisso Sarmentão!
- Obrigado tenente, o senhor não pode

imaginar o quanto eu precisava falar isto com alguém, eu precisava falar disto com o senhor! - Entendo. - Ramos deu dois tapinhas na perna do companheiro.
Sarmento sacudiu a cabeça em um gesto afi rmativo.

A chuva tornara- se intensa o suficiente a ponto de limitar a visibilidade a pouco mais de um metro. Da popa era impossível enxergar além do vulto dos homens
na proa. A velocidade

de navegação foi reduzida para evitar acidentes. Mas o movimento não podia cessar. Como em dias anteriores, a equipe expunha- se ao risco de ser plotada
por patrulhamento inimigo, pois prosseguia no deslocamento até o início da tarde. Quando os homens paravam para descansar, partindo novamente ao cair da
noite. Fossem aéreos ou fluviais, os patrulhamentos inimigos representavam uma

ameaça que não podia ser ignorada. No primeiro dia de deslocamento, a voadeira teve de ser enfiada selva à dentro, em uma manobra

arriscada, para evitar seu avistamento por dois helicópteros que sobrevoavam o rio. O motor de

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popa fazia barulho demais. Ele não só denunciava o deslocamento do grupo para as imediações do rio como também impossibilitava aos ocupantes da voadeira
ouvir, com maior antecedência, a aproximação do inimigo. Quando das paradas, Ramos e Marcos se reuniam. Avaliavam a jornada e traçavam metas para o dia
seguinte. A patrulha, durante

as paradas, dividia- se entre a manutenção do motor, arrumação do material no interior da voadeira e a segurança da base. Com efetivo pequeno, a solução
encontrada para manter o padrão mínimo de segurança e ainda executar as demais atividades foi reduzir o tempo de

sono. Ramos dava o exemplo, dormia exatas três horas por dia. Nem um minuto a mais nem um minuto a menos. Os ferimentos de Sarmento estavam secos e os sintomas
da malária não retornaram, desde o início do tratamento. Todos os dias, no mesmo horário, a equipe assistia ao mesmo ritual. Chovesse ou fizesse sol, Ramos
postavase ao lado de Sarmento e, em meio às reclamações ranzinzas do sargento, trocava os curativos e entregava- lhe o remédio da malária

para aquele dia. Aquilo era como uma injeção de família aplicada diretamente na veia dos homens, fazendo- os sentir toda segurança da presença de alguém
sempre disposto a cuidar deles.

359

Passava das duas da tarde quando Ramos pegou o material de higiene pessoal na mochila e se dirigiu para um veio d'água, afluente do Rio Negro, há poucos
metros de

onde estavam estacionados. A beleza do lugar, certamente, jamais tocado pelo homem, despertou a sua atenção. O verde da mata, em diferentes matizes, acolhia
o conjunto de pedras, de cor escura, quase pretas, semi cobertas de limo em alguns pontos. Por entre as rochas, de diferentes tamanhos e formas, deslizava
um filete de água cristalina. Antes de oferecer suas águas ao Rio Negro, o igarapé formava um poço, com pouco mais de um metro e meio de

diâmetro. Um branco imaculado recobria o fundo e as laterais do poço. A areia, finíssima, mantinha, orgulhosa, o registro de alguns de

seus ilustres visitantes. Pegadas de cervos e pacas, impressas na areia, apontavam para o uso constante daquele bebedouro pelos seres da mata.

Tencionando fazer sua higiene pessoal, Ramos retirou da pequena sacola camuflada, colocada sobre uma pedra, o aparelho de barba descartável, uma escova
de dente e o sabonete sem cheiro. As peças estavam enroladas em sacos plásticos que, por sua vez, ficavam dentro de outro saco plástico. Não lhe agradava
muito a

idéia de ensacar a escova de dente logo após o uso, quando ainda estava molhada, mas esta

360

era a melhor maneira de protege- la da contaminação com o meio ambiente. Ao abrir o saco plástico, onde estava a escova, um cheiro levemente acre chegou
às suas narinas, contrastando com o ar local. Ramos sacudiu a

cabeça, em reprovação ao fato, colocando sob uma pedra os sacos plásticos e as presilhas de borracha, usadas para vedar as extremidades dos sacos. Agachado,
apenas com o material

necessário a higiene em mãos e com o fuzil repousado sobre o colo, Ramos apreciou todos os detalhes do cenário. Imaginava quantas pessoas passariam toda
a vida sem jamais conhecer a paz, em estado bruto, de um lugar igual aquele. De certo, não haveria forma de

descrever a essas pessoas o que era estar ali. Palavras, fotografias ou filmagens seriam meios insuficientes para transportar tamanha riqueza de detalhes,
generosa profusão de emoções. "A natureza é perfeita, mas o homem parece deseja- la como passado!" Pensou o tenente, respirando o mais fundo possível.
Parecendo querer absorver parte da paz e harmonia local. Com o caneco do cantil à mão, Ramos ensaiou o movimento de apanha d'água no

poço, mas desistiu da afronta ao perceber, o silêncio recriminatório, momentos antes da borda do caneco ferir a harmonia e a perfeição

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da superfície do poço. O oficial acabou enchendo o caneco com a água oferecida por uma pedra, poucos metros antes do poço. Durante todo o tempo em que

permaneceu naquele local fazendo a barba, escovando os dentes e lavando- se, Ramos teve a sensação de estar sendo observado por mil olhos. Eles pareciam
avaliar a sua postura em relação ao poço, diamante líquido, que refletia sob mil faces mutantes, o esplendor das luzes e cores da floresta. Aqueles eram
olhos conhecidos, invariavelmente pressentidos, por Ramos, quando sozinho na mata. "Deve haver algo como uma consciência

nativa, afinal há tanta vida a nossa volta. Estas sensações devem instigar a imaginação dos indígenas e caboclos, favorecendo a criação das lendas e mitos
que são contados de geração em geração.... Bestei ra! Pura i magi nação, fal ta do que fazer!" Pensava Ramos enquanto ultimava a higiene pessoal. De repente,
um arrepio desceu- lhe a nuca indo até fim da coluna vertebral, sacudindo todo o seu corpo. A selva a sua volta escureceu, por alguns instantes. Ramos
teve a impressão de que alguém ligara e

desligara um disjuntor, chacoalhando seu corpo com uma descarga elétrica. Pegando, de volta, o sabonete, atirado longe involuntariamente, ele achou melhor
reconsiderar. "É, talvez não seja só imaginação!"

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Horas mais tarde, estavam os sete homens de volta à navegação rio abaixo. - Estamos perto de Gabriel! - disse De Paula, apontando com o queixo a Ilha de
Ituí. - É, deixamos para trás as ilhas do Içana e Atim, aquelas duas logo depois da junção do Içana com o Negro, depois veio a Ilha do Andirá. Até São
Gabriel da Cachoeira passaremos por mais umas oito ilhas grandes. Elas são um ótimo indicador de chegada à Gabriel. - explicou

Sarmento ao soldado Honorato. Na passagem por comunidades a montante de São Gabriel da Cachoeira, a equipe foi informada da existência de postos fluviais
para controle de tráfego, montados no Rio

Negro, nas imediações da cidade. Os postos, segundo os ribeirinhos, eram operados diuturnamente pelos americanos. Na comunidade de Carapanã, o contato plantado
pela força de resistência forneceu as coordenadas para integrar Marcos André e Coparra à força. A mesma mulher forneceu ao Ramos as rotas alternativas
para ultrapassar São Gabriel da Cachoeira, obter ressuprimento

e chegar a Manaus sem ter de cruzar os postos de controle. O encontro impressionou Ramos e Marcos André. O emprego de uma mulher, nativa e de idade avançada
para desempenhar o contato foi a primeira surpresa. A quantidade e

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qualidade das informações disponibilizadas, somadas à perfeita atuação da senhora responsável por transmiti- las, também surpreendeu os dois. A região escolhida
para homizio pela força

de resistência de São Gabriel da Cachoeira foi o conjunto montanhoso conhecido por Bela Adormecida. Cadeia de montanhas, a Sudoeste da cidade, cercada por
complexo labirinto de

igarapés e igapós. O nome de Bela Adormecida foi dado pelos primeiros moradores de Gabriel porque visto da cidade o conjunto, ao horizonte, exibe uma silhueta
parecida com a de uma

mulher deitada com a barriga para cima. Os muitos cursos d'água existentes na região serviam a dois propósitos distintos. Na realidade amazônica, onde os
rios são as estradas da mata, eles forneciam à resistência

vias penetrantes de elevado valor tático e estratégico. Em conjunto com as vantagens de defesa oferecidas pelo terreno montanhoso, os cursos d'água, com
seus traçados e dimensões sazonais, dificultavam o planejamento para

aproximação de tropas não ambientadas às condições intrínsecas. Da equipe, o único homem neófito na região da Bela Adormecida era o soldado Honorato. Os
outros militares conheciam muito bem a área. Inúmeras vezes haviam participado

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de patrulhas para a retirada de garimpeiros e suas balsas dos igarapés circunvizinhos. Ouro, pedras preciosas e uma infinidade

de minérios aflorava a terra na área. A generosidade dos veios atraia aventureiros de todos os cantos do país. Eles vinham seduzidos pelas fortunas instantâneas
bateadas por outros garimpeiros. A região, considerada de acesso proibido por constituir reserva mineral

estratégica, foi colocada sob a guarda das forças armadas. O que não afugentou os garimpeiros. Burlando limitações legais, eles invadiam os igarapés formando,
da noite para o dia, pequenas cidades improvisadas sob os toldos multicoloridos das balsas. Com técnicas rudimentares de garimpagem, quase sempre desprezando
o meio ambiente, os garimpeiros poluíam os rios com mercúrio, degradavam nascentes e

geravam atritos com as comunidades indígenas. Usando pequenos igarapés Ramos planejava contornar, em segurança, São Gabriel da Cachoeira e conduzir Marcos
André até o ponto de desembarque marcado no croqui recebido do contato. À partir deste ponto Marcos e Coparra deveriam desembarcar, iniciando a

caminhada para a base da força de resistência. A movimentação de aeronaves nas imediações de São Gabriel da Cachoeira era

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muito intensa. Mesmo passando ao largo, os homens a perceberam. Interrompido diversas vezes, o deslocamento da voadeira teve de ser realizado com cautela.
Buscando não ser avistado, o grupo passou a navegar sob a copa das árvores, perto das margens. Helicópteros varriam os rios da região, abordando embarcações
suspeitas e

cadastrando comunidades ribeirinhas. Em diversos trechos o igarapé se revelou raso demais para o uso do motor de popa, obrigando os homens a desembarcar
e empurrar a voadeira. Imensos igapozais, com águas na cor do café, ligavam os estreitos cursos d'água, testando a paciência e o

conhecimento da área. Chegando ao veio de esmeraldas, conhecido por Fenda da Anta, o grupo desembarcou. Aquele era o local indicado no croqui. A rachadura
com duzentos metros de profundidade e meio quilometro de extensão, rasgava a base rochosa da grande montanha. No precipício, escondido da observação aérea

graças à vegetação e ao movimento de inclinação negativa da encosta, mergulhavam, lado a lado, os jorros d'água de dois igarapés. Formando cachoeiras gêmeas.
Curiosamente, depois da queda de duzentos metros a água

não originava um lago. Ela simplesmente

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desaparecia, drenada por entre os cascalhos sempre sedentos que compunham o piso da fenda. Em meio a estes cascalhos pontos verdes chamavam a atenção. Abundantes,
as esmeraldas depositadas pela natureza

repousavam no abrigo majestoso. Avisados da aproximação da embarcação pelo barulho do motor de popa, os homens da força de resistência que operavam o ponto
guarneceram os postos de segurança. Apesar de conhecer o procedimento, os recém chegados não conseguiram localizar os postos. A camuflagem aliada a escolha
correta das posições entregava grande vantagem tática aos defensores. Depois de abordados pela segurança

local para troca de senha e contra senha, Marcos André e Coparra se despediram dos demais integrantes da patrulha. De volta a voadeira, os homens redistribuíram
a carga, aumentando a estabilidade da embarcação. Sarmento assumiu a condução do motor de popa, recortando o intrincado mosaico hídrico até o anoitecer.
***

367

Próximo à comunidade de Tapuruquara, muitos quilômetros abaixo de São Gabriel da Cachoeira, a voadeira tornou a navegar pelo Rio Negro. Poucos minutos depois
da reentrada no Negro, Ramos encontrou o ponto de reabastecimento indicado no croqui. Era a última informação registrada no documento. Recebidos combustível
e gêneros alimentícios a patrulha seguiu no deslocamento. Navegando dia e noite, com paradas apenas para satisfazer os chamados da

natureza, a patrulha desceu o rio sem encontrar obstáculos. Utilizando a farinha de mandioca e a carne de sol repassados pela força de resistência, os homens
embarcados prepararam chibé para as refeições. Um punhado de grãos da farinha grossa misturado à pequenas tiras do charque, ambos umedecidos com a água
do rio, a temperatura

ambiente. O inchaço da farinha indicava o momento certo para o consumo. Sem fogo ou panelas, o costume dos nativos de preparar o chibé na própria mão atendia
bem às necessidades da patrulha. No final da segunda noite Ramos indicou

a margem esquerda para o cabo Mário. Ainda navegavam no Rio Negro, quilômetros acima do encontro das águas deste com o Rio Solimões. Por precaução, daquele
ponto em diante

seguiriam por terra até Manaus. Seria mais fácil

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a infiltração se a chegada ocorresse pela mata e a abordagem através da periferia da cidade. Os dias embarcados ajudaram na

cicatrização das assaduras. Sarmento estava aparentemente recuperado. Os ferimentos e a malária foram superados pelo envolvimento com a situação. Devidamente
autorizado por Ramos, o sargento iniciou a marcha conduzindo uma

mochila com meia carga. Evitando as trilhas, a equipe seguiu por entre a vegetação. A passada era mais lenta, motivada pela possível presença de patrulhas
inimigas. Também ali, os gritos das turbinas habitavam as alturas. Mostrando em seu excesso o volume anormal de tráfego aéreo, na maioria de origem militar.
Podendo progredir durante a noite, com facilidade e segurança, graças ao uso dos capacetes capturados, a patrulha evitou paradas demoradas para pernoite.
Cumprindo ciclos com uma hora de descanso a cada quatro horas de marcha, os homens encontravam o repouso

recuperador na medida exata da necessidade. Tanto ficara para trás nos últimos dias e tão incerto era o futuro próximo que cada um dos militares ansiava
o movimento, pois só assim venceriam a tendência à imobilidade, à estática do instinto de preservação intrínseco ao Homem.

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*** Identificada a vila que servira de acesso à Manaus, Ramos mandou o cabo Mário realizar o reconhecimento. Antes de partir, o cabo trocou a farda por
roupas civis, comuns à região, conduzidas até o momento na mochila. Sem armamento algum e depois de tomar banho de

igarapé, Mário seguiu para a comunidade. Sentados nos altos galhos de árvores vizinhas os patrulheiros aguardavam o retorno do companheiro. Sarmento e De
Paula formavam uma das duplas, empoleirados eles dividiam a tarefa de vigilância alternando- a com a difícil missão de manter o equilíbrio durante o

sono. Na outra árvore, Honorato olhava para as bolhas de sangue formadas na mão direita. Elas dificultavam o movimento de abertura e fechamento dos dedos.
Eram resultado das horas de escavação que sucederam a partida do cabo para o reconhecimento. Nos buracos abertos foram guardados os fardamentos, armamentos
e demais fardos. Na tentativa de retardar a ação do meio

ambiente todo o material foi impermeabilizado. O armamento recebeu uma camada extra de

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lubrificante, antes de ser acondicionado nos sacos de plástico. - Está doendo muito? - Ôh tenente, pensei que o senhor tinha conseguido dormir! - Me deixe
ver suas mãos! Honorato inclinou o corpo para o lado, tentando tornar a mão próxima ao galho onde

estava sentado Ramos. - É rapaz, temos umas bolhas de respeito aí! Evite estourá- las. - Sim senhor. - O que você gostaria de fazer, agora que chegamos
à Manaus? - perguntou Ramos, enquanto retirava a sujeira entranhada sob as unhas da mão com uma farpa de madeira. - Não sei tenente. Acho que gostaria
de poder ver minha família, saber se eles estão bem. - E o senhor?

- Talvez o mesmo, se eles morassem por aqui. *** No retorno do reconhecimento, Mário relatou para os companheiros as condições encontradas. - A rotina das
pessoas parece inalterada. Não há indícios de patrulhamento ostensivo por

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parte das forças interventoras. Aliás nem parece ter ocorrido uma invasão. Os ônibus e táxis estão circulando normalmente. As lojas estão

abertas e o povo na rua, andando. Existem roçados, pequenas plantações feitas além dos quintais das casas da periferia do bairro, que facilitarão a nossa
saída de dentro da mata. Passando por eles, chegaremos às ruas sem chamar a atenção. Muitos homens e mulheres transitam por ali, tratando do plantio de

mandioca, frutas e verduras. - Puxa vida! Então vai ser mamão com açúcar! - festejou Honorato. - Nem tanto. O fato de não ser ostensiva não quer dizer que
a vigilância inexista. Devem haver olheiros espalhados. - observou Ramos. - Mas nós reconheceríamos, de cara, um gringo branquicela de dois metros sentado
na esquina fingindo ler um jornal! - Exato Mário, e eles sabem disso. Nosso inimigo não é um amador, se você pensar assim tornará as coisas mais fáceis
para ele. A advertência feita pelo tenente incitava o grupo a ser mais cauteloso nas conclusões. - Pessoas da própria localidade podem estar prestando
estes serviços. - completou Sarmento. - Exatamente Sarmento. Simpatizantes à causa ou oportunistas interessados em amealhar alguns dólares podem estar
sendo

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utilizados para estes e outros fins. Devemos ser cautelosos. - E agora, o que vamos fazer? - perguntou o cabo Mário. - Três semanas. É o quanto terão de
tempo para verificar as condições de seus familiares e arrumarem condições para operar isoladamente. Quero vocês empregados e com um canto para morar até
o próximo contato. É possível haver vigilância nas casas de vocês, não se esqueçam disso. Mário, trabalhe e more no setor sul da cidade. Honorato, faça
o mesmo

no setor norte. De Paula, setor oeste. Sarmento, leste. Eu ficarei pelo centro. De Paula e Honorato, dia vinte e cinco às onze horas nos encontraremos na
Ponta Negra, como banhistas, em frente ao bar O amarelinho. Sarmento, Mário, conhecem aquele campo de

futebol lá do distrito industrial? - Conheço! - Aquele perto da distribuidora de

combustível D. L.? - confirmou Mário. - Exatamente! Nos encontraremos lá para uma pelada. Dia vinte e sete às dezoito horas. - Mas a essa hora o lugar fica
lotado! Vamos ficar de fora uma eternidade esperando a

vez. - É essa a idéia Mário. Nada mais natural do que as conversas de beira de gramado dos grupos à espera da vez. - Entendi tenente.

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- Prosseguindo; dia, local e hora alternativos: Vinte e oito, no terminal rodoviário do centro. No ponto da linha para São Raimundo, às quatorze horas.
Até lá, sejam ouvidos e olhos. - O senhor acha, então, que nós não

devemos falar com nossas famílias? Apenas espiar, para saber se está tudo bem? - Não Honorato. Você pode falar com a sua família. Apenas tome as precauções
necessárias, seja discreto. - Hum, sim senhor. Todo o dinheiro da equipe foi reunido e repartido entre os integrantes. O último a alcançar as ruas foi
Ramos. Começava a anoitecer e uma chuva fina caía, quando ele entrou no ônibus.

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Caititu

- Mais um sanduíche, por favor! - Queijo e presunto novamente? - perguntou o garçom. O freguês, entretido com as imagens na tela do computador, apenas balançou
afirmativamente a cabeça. Misto de lanchonete e local para acesso à internet, o lugar estava sempre cheio de pessoas ocupadas demais para olhar para outras
ou para o que comiam. Retornando do balcão o garçom deixou na

mesa, ao lado do computador, uma cesta de palha contendo o sanduíche pedido. - Mais alguma coisa senhor?

- Não, obrigado. Ramos acompanhou com o olhar a ida do garçom até a outra mesa, onde um casal acabara de se acomodar. Depois de morder o pão francês crocante,
recheado com fatias de queijo, presunto, tomate, folhas de alface e uma pitada de orégano, ele voltou à leitura. Navegando pela internet, visitando páginas
de

agências de notícias nacionais e internacionais, foi possível tomar conhecimento de parte dos últimos acontecimentos. Notícias recentes, de dias, semanas
atrás, todas tinham importância.

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Havia pontos de discrepância entre os fatos narrados pelas agências nacionais e as estrangeiras. De qualquer maneira, a essência era a mesma: O Brasil havia
perdido a soberania sobre quarenta por cento de seu território. Uma força de intervenção, liderada pelos Estados Unidos da América e China, agora respondia
pelos interesses locais. Frente

a ameaças de retaliação militar e possíveis embargos, o governo brasileiro resolveu buscar a solução para o caso por meios pacíficos, através de recursos
junto à ONU. Isentando- se, porém, por completo da responsabilidade sobre quaisquer ações de resistência. Olhando nos arquivos dos dias subseqüentes à
intervenção, Ramos encontrou um texto comum. Divulgada em várias línguas, a cópia da nota à imprensa distribuída pelo governo brasileiro correra o mundo.
Na nota

ficava claro que, apesar do repúdio à tamanha agressão a soberania de um país reconhecidamente pacífico, o Brasil não se utilizaria de meios violentos.
A nota terminava

concitando o povo brasileiro, povo digno, ordeiro e pacato, à manter a calma e aguardar a solução da questão pela justiça do Homem, sob a salvaguarda de
Deus. Entre uma página noticiosa e outra, Ramos visitava sites dos mais variados assuntos. Objetivando não evidenciar assunto

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específico de pesquisa, dificultando a ação de programas destinados ao monitoramento de redes que pudessem estar ativos na máquina ou nos provedores. Por
precaução, antes de ir embora, ele se aproveitou do fraco sistema de

segurança da rede local e da própria configuração amadora do computador para apagar os vestígios de sua navegação. Na manhã seguinte os jornais estamparam
nas manchetes o resultado de

ações da força de resistência. As matérias relatavam baixas nas tropas das forças de intervenção em São Gabriel da Cachoeira, Belém e Boa Vista, exaltando
a competência dos heróis desconhecidos, responsáveis por tais ações. "Os onças voltam a atacar." Dizia uma

das manchetes. Aparentemente, não havia censura ou qualquer outra medida capaz cercear a liberdade da população local. Apesar de todo o barulho feito pela

imprensa, nas áreas sob controle das tropas estrangeiras somente a intensa movimentação aérea podia ser apontada como alteração de rotina. No mais, as vidas
seguiam a normalidade. Nos bares e botequins, ouvia- se

comentários de pessoas satisfeitas com as perspectivas de desenvolvimento da Amazônia sob a nova administração. Poucos demonstravam insatisfação.

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Inteligentemente, a simpatia da população local estava sendo conquistada. A campanha informativa, conduzida pela força de intervenção, alcançava o povo
em suas carências. Administração sem corrupção, compromisso com o social, promessa de vertiginoso aumento da renda per capita em curto espaço de tempo.
Canais de televisão, em português, dedicados à divulgar informação e

entretenimento de melhor qualidade foram criados. Em uma semana Ramos viu surgir mais dois. As escolas estavam sendo reformadas. Operários, contratados
com salários muito acima da antiga média nacional, trabalhavam madrugada adentro, de maneira a não interferir no andamento do ano letivo. Nas escolas,
já prontas, computadores, rampas para deficientes físicos, bibliotecas, enfermarias e auditórios, passaram a fazer parte da estrutura de ensino. Mas não
ocorreu apenas o investimento em material. Todos os dias chegavam no aeroporto novos professores, eles vinham de outras regiões do Brasil, atraídos pelos
bons salários. Estavam acontecendo reestruturações no

sistema de saúde. Apesar do curto período de tempo, algumas das ações implementadas começavam a surtir efeito positivo junto a opinião pública.

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A população manauara estava entre o céu e o inferno. Alguns sentiam vergonha por aspirar as benfeitorias prometidas pelos estrangeiros. Estes se achavam
traidores da pátria, mercenários, não merecedores do sangue, outrora derramado em defesa do mesmo

pedaço de terra, por tantos heróis anônimos. Envergonhados, eles faziam o possível para não tomar conhecimento das ações desencadeadas pela força de resistência,
que apesar de não reconhecida pelo governo brasileiro atuava em várias frentes. Outra parcela da sociedade despiu- se completamente do passado. Negando
o sangue

de ideais ajuricabenses, esta parcela estava resoluta em tirar o máximo de vantagem do presente. Criticava ferrenhamente as ações da resistência e, em alguns
casos, colaborava ativamente com os invasores. Um terceiro posicionamento era comum àquelas pessoas de vida dupla. Encenando total

acordo com a nova administração, colaboravam com a resistência fazendo parte da força de sustentação ou da força subterrânea. Na primeira, ajudavam transportando
clandestinamente pessoal e material, prestando apoio médico, ocultando materiais, fornecendo suprimento para agentes avançados ou montando e operando redes
de apoio à fuga e evasão. Na segunda força, os voluntários

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buscavam infringir baixas, dificuldades ou danos aos invasores. Eram os responsáveis por ações de sabotagem e terrorismo. Suspeitando de possível vigilância
sobre os militares desaparecidos desde a intervenção, Ramos evitou movimentar a conta bancária. Pelo mesmo motivo adotou nome falso, deixando crescer a
barba, aparando- a na forma de cavanhaque. Conhecia os procedimentos, e o mais correto no momento era aguardar ser contatado por alguém ligado à resistência.
Não

seria inteligente sair pelas ruas perguntando se alguém sabia onde encontrá- la. Em contra partida, ir até os órgãos do governo brasileiro, ainda ativos
em Manaus, o tornaria carta marcada. ***

Para se manter, Ramos prestava pequenos serviços, compactuando com a informalidade do mercado de trabalho, ele aceitava qualquer ocupação remunerada. Carregador,
chapeiro, faxineiro, sempre em lugares onde um teste e o nome bastassem para a contratação. Nas horas restantes do dia, estudava os movimentos dos estrangeiros
na cidade.

380

*** Eram seis horas da manhã, Ramos e o motorista faziam a última entrega. Descarregando fardos com os jornais do dia e

arrumando- os na calçada ao lado do caminhão. A entrega dos exemplares às bancas de quase metade da cidade permitia o trânsito por vários bairros sem despertar
suspeitas. As vantagens do serviço fizeram Ramos mantê- lo por mais de

uma semana. Enquanto o dono da banca de jornais e o motorista conferiam a entrega para a assinatura do recibo, um homem se aproximou. - Bom dia Zé! - Oba,
tudo bem? Vai o de sempre?

- Isso! Hoje tem caderno do classificados, não é mesmo? Aquela voz Ramos conhecia. Ele acabou de fechar as portas do compartimento de carga do caminhão
e se dirigiu para onde estava o motorista. O freguês, dentro da banca, olhava as revistas expostas. - Valeu mano. Hoje fico por aqui, até amanhã às duas.
- disse Ramos ao motorista, dando dois tapinhas em suas costas.

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Ramos entrou na banca e se postou ao lado do freguês. Os dois permaneceram em silêncio, manuseando diferentes revistas, até a

partida do caminhão. - Tudo bem, podemos falar. O Zé está conosco. - falou o homem. - Mundo pequeno heim!? - disse Ramos sem desviar o olhar da revista.
- Pensavam que vocês estavam mortos. Quando o pessoal de Gabriel informou que estavam vivos e descendo em direção a Manaus houve muita felicidade em nossas
fileiras. Há dias existe um mandato de busca para você. O pessoal grande quer te ver. - Sofri pesadas perdas, os integrantes de

minha equipe que sobreviveram estão aguardando novas instruções. - Eu as tenho aqui. - ao falar isso, o

homem apontou para uma das revistas. - O que os peixes grandes querem comigo? - Isso eu não sei, ninguém descobriu. Talvez alguma informação, resultado
desta missão. Ou, quem sabe, tenham uma missão para qual você seja o mais qualificado. - Como sabia que eu estaria aqui? - O Zé nos informou. Já te disse,
existe uma busca por você. E é das grandes. Leia as instruções, vai saber o que fazer. Lembre- se: "A sorte acompanha os audazes."

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Depois de comprar jornal e revistas o homem seguiu caminhando pela rua, misturado aos cidadões comuns que iniciavam mais uma jornada de trabalho. As cigarras
cantavam sem parar, anunciando, das arvores da praça, o dia quente

por vir. - Vou levar estas duas. Ramos pagou as revistas, indo para o ponto de ônibus do outro lado da praça. Ainda estava surpreso. Não tanto devido ao
contato, mas sim por rever o major Adauto. Os dois se conheceram na Academia Militar. Adauto era um dos tenentes instrutores. Comandava o quarto pelotão
de cadetes do terceiro ano do curso de

infantaria, entre os seus subordinados estava Ramos. A amizade entre os dois foi além dos portões da Academia Militar. Serviram juntos na mesma unidade
de fronteira. O aspirante Ramos comandava o Pelotão de Operações Especiais de Selva na Companhia liderada pelo

recém promovido capitão Adauto. ***

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Nos encontros com os homens da patrulha Ramos repassou as instruções recebidas. A exceção do De Paula, todos comporiam células urbanas da força principal
de

resistência. Guiariam ações da força subterrânea. Orientando civis na execução de terrorismo e sabotagem. De Paula deveria retornar à mata. O croqui

entregue por Ramos indicava o local onde estaria o contato que conduziria De Paula ao estacionamento da companhia de fuzileiros de selva à qual ele passaria
a integrar. Àquela altura, os cinco já sabiam que nos momentos anteriores à chegada das tropas estrangeiras manobras realizadas pelo

Comando Militar de Área retiraram os comandos e as tropas não empenhadas, de imediato, para posições fora da área de resistência. Na mesma ocasião ocorreu
a retirada dos familiares de militares. Os quartéis estavam desertos, as tropas haviam cerrado para o interior da selva. A única unidade militar mantida
em funcionamento, quase normal, foi a sede do

Comando Militar da Amazônia. Ali oficiais generais, políticos, advogados e jornalistas trabalhavam dia e noite, quase sem descanso. No que eram acompanhados
de perto por observadores e fiscais enviados pela Organização das Nações Unidas.

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*** - E o senhor tenente? - perguntaram, quase ao mesmo tempo, De Paula e Honorato. - Recebi instruções para seguir até Brasília. Querem alguma coisa comigo,
ainda não sei o que é. Viajo na terça. - Sabe onde vai se apresentar? - questionou De Paula. - Não, receberei de um contato durante o

vôo. Dois dias depois, as mesmas questões foram colocadas por Mário e Sarmento, durante o encontro no campo de futebol. Após jogar uma partida, Ramos, Sarmento
e Mário sentaram na lateral do campo para recuperar o fôlego. Enquanto aguardavam a vez para jogar novamente, conversavam mais um pouco. Os calções estavam
encharcados de

suor. - Estou bem mais tranqüilo! Com a minha família fora daqui posso trabalhar em paz. - disse Sarmento para Ramos. - Sei como é. - Ramos fez uma pausa.
Recolocando o calçado, voltou a falar. - Sabe quem está na área? O Adauto!

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- Eu imaginei que ele não iria agüentar ficar de fora. Mário sacudiu a cabeça em concordância. Os dias fora da mata foram suficientes para ele recuperar,
com sobras, os peso perdido. - Eu, se fosse o senhor, não iria para Brasília! - Por que diz isso Mário?

- Estou com um pressentimento estranho. - Que nada campeão, vai dar tudo certo. É cansaço do jogo. Também estou meio fora de forma. - É melhor ouvi- lo
tenente. Na véspera de sermos atacados ele veio com esse papo e eu pensei ser corda negativa. - recomendou Sarmento. - Bom, sendo assim redobrarei os cuidados.
Vamos jogar mais uma?

*** O Aeroporto Internacional de Manaus estava mais movimentado do que de costume. Era estranhamente grande o número de turistas chegando a cidade. Quando
o esperado, pelo

bom senso, seria o afastamento de uma área sob intervenção militar. Mas toda a polêmica a respeito da Amazônia despertou a curiosidade

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de pessoas dos mais longínquos lugares do planeta. Com a passagem e os documentos fornecidos no contato com o major Adauto, Ramos embarcou sem problemas.
O vôo com destino a Brasília pousara em Manaus vindo de

Miami . Nos primeiros minutos dentro da aeronave Ramos identificou quem o contactaria. Tranqüilo, ele se acomodou no assento indicado pelo cartão de embarque,
afivelando o cinto de segurança. - O que foi Kate? Você parece ter visto um fantasma! - Não foi nada. Acho que vou ficar menstruada, só isso Márcia. -
Tem certeza de que está tudo bem?

- Tenho. Obrigado. Kate de March finalmente reencontrou o homem responsável pelo seu recrutamento e treinamento inicial. Por quem alimentava uma paixão
silenciosa, mais forte que a sua vontade, porém ainda não correspondida. A voz, os pêlos do peito, as pernas musculosas, as opiniões, quase tudo em Ramos
despertava admiração e

desejo em Kate. Mesura involuntária do instinto animal, a comissária prosseguia nas atividades de preparação para a decolagem sentindo a

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umidade a brotar- lhe do sexo. A pele do rosto ardia com o calor de mil brasas. Durante o vôo, Kate entregou ao Ramos um pequeno envelope plástico. Mesmo
estando

claro que o passageiro do assento marcado era o contato, ela fez questão de seguir o procedimento padrão de segurança, trocando senha e contra senha antes
de fazer a entrega. ***

No quarto de hotel, o envelope foi retirado do bolso interno da jaqueta. Havia um papel fixado externamente por meio de fita gomada. Ramos o descolou, com
cuidado para não

rasga- lo. Aquele papel preso ao envelope causou estranheza, não era usual encontrar mensagens fora da área lacrada. Muito menos, fora do cartão inteligente
onde o conteúdo

recebia o tratamento criptográfico conveniente. O papel trazia as inscrições P. do B. e um número de telefone. - Mas que maluca! Murmurou Ramos, rasgando
o papel e jogando os pedaços na privada depois de decorar o número. P. do B. eram as iniciais de perereca do brejo, codinome provisório usado por Kate
nos primeiros contatos depois do recrutamento.

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Ramos o criou como forma de implicar com a jovem irrequieta. Para Ramos, imaginar o que poderia

acontecer ao ligar para a Kate e marcar um encontro, foi o suficiente para iniciar uma enxurrada de hormônios. - É, eu estou precisando mesmo... - resmungou
ele, passando a abertura do

envelope. A libido teria de esperar, outra vez. Novas instruções designavam os detalhes para apresentação do tenente à autoridades militares. O tempo até
o compromisso agendado permitia, no máximo, banho e refeição. Sem dinheiro para a comida, Ramos tomou o banho, partindo em seguida, a pé, para o local
da apresentação. A caminhada por Brasília, atravessando avenidas e calçadas de um contorno urbano inteligentemente planejado, serviu para realçar o contraste
social do momento brasileiro. A visão de homens e mulheres cortando apressados as ruas e a presença em uma realidade tão diferente da vivida por ele, até
dias atrás, levou Ramos a refleti r.

"Substituta do calabouço medieval, a má distribuição de renda é a radiografia do nosso Brasil. Talvez ela explique a indiferença aparente da sociedade para
com os destinos das

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questões de soberania hora em pauta. Se para os moradores daqui, historicamente, a visão distorcida dos fatos fez do norte do país um ônus, para os moradores
de boa parte da

Amazônia o momento de crise pode estar sendo encarado como a oportunidade de ver atendidas suas necessidades básicas. Seria bom metade dessa gente entrar
em um avião e passar alguns dias na Amazônia. Descobririam o muito existente por lá. O povo

capaz, obstinado e as diferenças sociais que ainda os acorrenta à séculos passados." ***

O endereço era de um prédio comercial. Seguindo as instruções, Ramos entrou no elevador localizado ao lado do balcão de informações do saguão. Um homem
operava os botões, atendendo aos pedidos de parada nos andares do prédio. Depois da saída das outras pessoas, Ramos perguntou ao homem se ele

conhecia o andar dos sonhos. Depois da resposta à pergunta com a mensagem predeterminada, o elevador iniciou uma longa

descida. O movimento começou sem que nenhum dos botões do painel de controle fosse pressionado e não foi acompanhado pelo

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mostrador de andares. Este continuava a indicar o oitavo piso, sugestionando estar parado o elevador. Recebido por dois militares fardados, Ramos foi conduzido
a algo parecido com uma

sala de reuniões. Os ambientes percorridos eram amplos, repletos de painéis digitais nas paredes e computadores sobre balcões de vidro. Tudo muito limpo
e arrumado. Havia civis trabalhando ali, ou pelo menos militares que assim como ele estavam à paisana. Uma vez na sala, os dois militares prestaram continência
e se retiraram. Enquanto

aguardava, Ramos aproveitou para bisbilhotar alguns dos documentos achados sobre a mesa ovalada, disposta no centro do cômodo. Entre outras pastas, estava
a intitulada Perfil Profissográfico Tenente Ramos. A porta foi aberta e quatro pessoas entraram. Dois oficiais generais, um coronel e

um civil, o Ministro da Defesa. - Selva! Primeiro Tenente Ramos do Comando Militar da Amazônia! - apresentou- se Ramos, tomando a posição de sentido. -
Apresentado! Vamos nos sentar. - disse o Ministro, apontando para a mesa. - Deve estar curioso para saber o porquê

foi chamado aqui e por qual motivo somos nós a sua comitiva de boas vindas, não é mesmo? -

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era o general comandante da força terrestre, ele falava com dificuldade. A tosse insistia em interrompe- lo. Aparentava estar bastante

gripado. - Sim senhor. - Você é um jovem oficial com uma carreira sem igual! Tem um futuro muito promissor. - enquanto falava, o general folheava a pasta
anteriormente vista por Ramos, destacando alguns dos valores nela descritos. Depois de uma pequena pausa ele desviou o

olhar do documento encarando o subordinado. Ramos estava curioso para saber o motivo de tanta firula, ele achava difícil se habituar à toda aquela rasgação
de seda. Era um soldado, não precisava ter o ego massageado para cumprir o dever. - E acima de tudo um patriota. Por isso, sabemos que entenderá o quanto
importante é o

seu papel para o futuro da humanidade. Ouvindo essas palavras, ditas pelo General Comandante, Ramos teve de conter a vontade de rir. Apesar da seriedade
do momento, a fala do superior beirava o ridículo, parecia ter sido extraída de um folhetim barato

de aventura. Ainda mais ao supor que ele poderia alterar de alguma maneira os destinos da humanidade. - Desde a assinatura do protocolo de

Manaus estamos desenvolvendo um projeto

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ultra- secreto de retaliação biológica à possíveis agressores da Amazônia. Por questões de segurança nacional nós mantivemos as informações restritas a
um pequeno grupo de militares e cientistas. Nem mesmo o Presidente da República tomou conhecimento deste projeto. Em linhas gerais, o agente biológico
desenvolvido por nós visa atingir a opinião

pública dos países participantes de atos contrários à soberania brasileira sobre a Amazônia. A vontade de rir desapareceu. Ramos atento as informações passadas
pelo general, tentava encontrar um ponto de ligação com o

projeto descrito. - Faremos a população destes países acreditar que a doença foi trazida das matas pelos militares envolvidos na força de intervenção. Originando
questionamentos no âmbito interno das sociedades. Vendo seus filhos e parentes adoecerem, sofrendo em casa, devido ao mal trazido de uma terra distante,
a

população se tornará contrária à continuidade das ações militares. Ganharemos a guerra dentro das casas dos nossos inimigos. - E o melhor, sem o comprometimento
da

imagem institucional do nosso país. Entraremos para a história como país que mesmo covardemente agredido, soube manter a postura pacífica e diplomática.
- complementou o

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Ministro da Defesa, na pausa para tossir feita pelo general. - E para que os senhores precisam de

mim? - perguntou Ramos. Os homens sentados à mesa entreolharam- se. A pausa até a resposta suscitava centenas de possibilidades à imaginação do Ramos. Quebrando
o silêncio, o General Comandante do Exército continuou: - Precisamos de você aqui, conosco. Isolado, em segurança. - Segurança do que general?

- De você mesmo. O General Médico aqui vai lhe explicar melhor. O outro general, até o momento calado, olhou para o Ministro, confirmando a autorização

para tomar a palavra. - Ramos, você se lembra de quando esteve doente?

- Sim senhor. - A sua doença era causada por uma forma de vida quase viral, totalmente desconhecida pelo homem. A estrutura e a maneira de agir desta forma
de vida singular foram estudadas por nós, culminando na sua

cura. No entanto os estudos não pararam por aí. Foi vislumbrada a possibilidade de trabalharmos com o código genético humano e a genial simplicidade e adaptatividade
deste novo organismo. Provavelmente, um organismo

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pré- histórico conservado inalterado devido às condições da Floresta Amazônica. Nosso objetivo era criar a arma de guerra definitiva. Como resultado, temos
hoje um agente biológico perfeito, capaz de, ao nosso comando, causar desde os sintomas nativos, iguais aos experimentados por você, até distúrbios neurológicos
que levam a vítima ao suicídio ou à morte por hemorragia cerebral. Variando os estímulos podemos variar os sintomas nas pessoas infectadas. Possuímos dezenas
de possibilidades testadas e catalogadas, prontas para o uso. - Entendo senhor, mas para que precisam de mim? Já não pegaram no meu sangue o tal

vír us ? - Quando eu atribuí às suas caminhadas pela mata a descoberta deste organismo, deixei de fora um detalhe importante. De alguma maneira, que nós
não sabemos explicar, o seu sangue, mais precisamente o seu código genético, se fundiu ao do organismo. Em termos ci entíficos, você hoj e é uma enti dade
biológica diferente do resto da humanidade. E foi

justamente esta particularidade a chave para as descobertas feitas pela nossa equipe. Mas não se assuste com essa estória de ser diferente! Até onde sabemos
está tudo bem com sua saúde.

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- Se entendi direito, não devo sair daqui pois há possibilidade de contaminar outras pessoas? Mas como deixaram eu circular livremente até agora, e os senhores
não estão

correndo risco ao ficar próximo? O Comandante do Exército deu uma gargalhada, voltando a tossir. Em seguida, limpou a garganta, passando a responder as
dúvidas do tenente. - Ramos, não é nada disso! Vou tentar ser mais objetivo. Queremos mantê- lo em segurança porque você representa uma ameaça

para o projeto. No seu sangue existe a resposta para cada combinação criada por nós. Em mãos erradas, uma amostra do seu sangue pode colocar por terra toda
nossa estratégia. ***

Depois da reunião, Ramos foi escoltado até o alojamento onde deveria permanecer até determinação contrária. Ao dar as costas para a porta ouviu o som da
fechadura sendo acionada. Não se tratava de um local para descanso, era

sua prisão. Deitado na cama, ele refletiu durante horas. Apesar de não ter feito nenhum comentário com os superiores, o tenente

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discordava da manobra encontrada para reaver a soberania sobre a Amazônia. Atingir milhões de civis inocentes estava longe de ser uma escaramuça militar.
Era covardia, um crime sujo, cometido em nome de valores diminutos quando comparados à vida. - Eles cometeram um erro. Não deveriam ter me contado nada.
- murmurou Ramos. No dia seguinte, ainda durante o café da

manhã, Ramos se mostrou muito bem disposto no cassino dos oficiais. O general comandante do Centro de Operações o convidou para sentar à mesa do comando.
- Como foi a noite tenente? Está precisando de algo no alojamento?

- Foi ótima, aqui é muito silencioso. Gostaria apenas que não trancassem a porta, afinal posso ser útil ao senhor e ao Centro. - Também achei estranha a
ordem de manter a sua porta trancada durante a noite, no entanto ela me foi passada pessoalmente pelo Comandante do Exército. Deve objetivar te proteger
de um possível espião infiltrado aqui no

Centro. Afinal de contas, pica fumo, você é tropa amiga. Ramos sorriu para o oficial, balançando a cabeça afirmativamente e elevando as sobrancelhas.

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- Mas não se preocupe. Enquanto estiveres acordado pode circular pelo Centro a vontade. - Sim senhor. Obrigado. Os dias foram sendo deixados para trás.
Para alguém enclausurado no subterrâneo, apenas o relógio e a troca de turno dos operadores diferenciava as jornadas. Ao final de um mês, Ramos estava
íntimo de praticamente todas as equipes do Centro. Prestava pequenos favores, assumia

responsabilidades para facilitar folgas, operava máquinas copiadoras, redigia documentos, preparava junto da equipe do rancho algumas guloseimas para serem
consumidas nos intervalos entre as refeições e ainda ouvia os desabafos de alguns dos novos amigos. Grande

parte do tempo era dedicada à conversa com os militares responsáveis pela segurança do Centro. Com eles Ramos discutia sobre armamentos e técnicas especiais,
aproveitando para sondar falhas de formação profissional ou de caráter. Toda a informação de que precisava foi

pouco a pouco caindo em seus braços. Teve acesso às plantas do Centro, planejamento detalhado das ações de transporte e liberação das armas biológicas e
aos métodos alternativos, tudo sem despertar suspeitas.

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Enfim a oportunidade surgiu. O capitão responsável por elaborar a escala de serviço da guarda ao Centro estava com um forte resfriado. A febre alta dificultava
o trabalho, mas havia a

necessidade de entregar, antes da troca de turno, a escala de serviço da próxima semana. Ramos se prontificou a ajuda- lo na tarefa. Preparou a escala exatamente
nos parâmetros desejados pelo capitão. Encaixando, porém, os homens de sua preferência para a guarnição de

quarta- feira. Dia previsto, segundo as ordens de serviço, para o ressuprimento de gêneros e material de expediente das seções. Usando engenharia social
e

bisbilhotando o movimento de digitação durante as inserções de permissão de acesso a alguns dos terminais de rede, Ramos obteve senhas para entrar no sistema
local. Através dos computadores programou uma descida e

subida extras para o elevador do Centro, agendando- as para ocorrer quatro minutos após as dez horas da manhã da quarta- feira. Na noite de terça, Ramos
foi até o alojamento da guarda que assumiria o serviço no dia seguinte. Há semanas, ele cumpria o mesmo ritual. Indo ao alojamento dos militares de serviço
para conversar, contar piadas e

ajudar na preparação do equipamento. Fazendo parecer um acidente, Ramos partiu as lentes dos óculos do homem escalado

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por ele para operar o elevador. O sargento tinha miopia em grau elevado, sem os óculos mal conseguia distinguir a silhueta humana dos vultos das pilastras
e pilaretes. Ele havia

confessado ao Ramos detestar assumir sua dependência das lentes de correção. No café da manhã de quarta- feira, faltava

um dos homens da guarda do dia. Ramos ouviu os comentários dos militares com o oficial responsável pelo serviço. Eles diziam que o sargento não acordou
se sentindo muito bem. Ramos deu mais alguns goles no achocolatado

e se levantou. *** - E aí rapaz, o que houve? - Tenente Ramos, é o senhor? - Sim sou eu. Cadê o seu óculos? - É esse o problema. Ele quebrou e eu não trouxe
o reserva. Odeio estes miseráveis! Agora se eu sair aqui da cama e começar a

andar todos vão perceber, vou ser motivo de risos. - Talvez não! - Como talvez não tenente? Eu mal

consigo vê- lo! - Faremos o seguinte: Eu saio daqui, ando lentamente até o cassino, sirvo uma

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bandeja, coloco na mesa, você toma o café da manhã. Depois caminho até a porta do elevador e espero você entrar. Na troca de postos vou até

lá e o acompanho de volta até o alojamento. Ninguém vai perceber nada e você prova a si mesmo que não depende nem um pouco destas lentes miseráveis. Além
do mais, uma vez no elevador você não precisa enxergar. Já deve conhecer de cor e salteado a posição das teclas no painel de comando e receberá, como de
costume, todas as ordens pelo ponto

eletrônico. - Puxa vida tenente, eu não sei nem como agradecer ao senhor! - Não me agradeça, estará prestando um serviço à todos nós. - Então eu vou só
trocar de roupa. Andando um passo atrás do Ramos, o sargento conseguiu ir até o cassino, tomar o café da manhã e seguir para o elevador. Quando os dois
estavam ao lado da porta do elevador foram interpelados. - Você não estava doente, militar?

Perguntou o capitão responsável por coordenar a troca da guarda. - Estou melhor senhor, posso tirar o servi ço. - E para que óculos escuro?

- Ele está com conjuntivite, eu recomendei os óculos escuros. Evitam o contágio. Interferiu

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Ramos, notando a dificuldade do sargento para responder. - Boa idéia Ramos. Se tiver um tempo de

uma passada na minha sala depois do almoço, tenho umas novidades para te contar. E você militar; bom serviço, mantenha- se atento. Hoje é dia de entrega,
e nada de tirar esses óculos. - Sim senhor. ***

Às dez horas da manhã os homens responsáveis pelo ressuprimento do Centro chegaram. Ramos estava conversando com a sentinela ao corredor de entrada quando
a porta do elevador foi aberta. Três minutos depois o sistema de vigilância eletrônica teve de ser reinicializado, pois uma falha, de origem desconhecida,
estava causando mensagens de

erro no programa controlador das imagens digitais captadas pelas câmeras de vídeo. Duas delas direcionadas para o corredor que ligava o Centro ao mundo
exterior. Depois de reinicializado o sistema voltou ao normal. A imagem da câmera responsável pela cobertura do posto de sentinela do elevador revelou
à equipe da sala de operações a ausência do militar de serviço.

402

- O imbecil do Lima não está guarnecendo seu posto! Chamem ele pelo rádio, quero aquele local coberto agora mesmo! - vociferou o sargento coordenador da
sala de vigilância, onde eram exibidas as imagens captadas pelos quatro cantos do Centro. - Senhor ele não está respondendo. - disse um dos militares da
sala, mostrando o

equipamento rádio. - Então vá até lá e veja o que está acontecendo. Será possível, eu tenho de dar ordens para tudo aqui dentro! Cadê a iniciativa? Perguntem
ao homem dentro do elevador se está tudo em ordem! - Sim senhor, nosso homem de serviço dentro elevador disse que não viu nada de estranho. Apenas o sobe
desce do pessoal da entrega. - Eu sei, já ouvi. Não sou surdo! Eram dez horas e quinze minutos quando

o sargento foi avisado de que a sentinela do corredor do elevador havia sido encontrada desacordada. Seu corpo estava em um dos cantos de parede não coberto
pelas imagens das câmeras de segurança. ***

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A cinco quadras do Centro, motoristas paravam para permitir a travessia de pedestres. Ramos aproveitou o momento para subir na garupa de uma moto. Encostando
a pistola roubada da sentinela na cintura do piloto. - Nem pense em reagir. Perdeu, perdeu. Quando o sinal abrir, siga em frente. Qualquer gracinha eu
te encho de azeitona. - Ramos falava e agia de maneira a parecer- se com um ladrão qualquer. Orientando o piloto até chegar em um trecho deserto da estrada
de ligação entre Brasília e Belém, Ramos manteve a arma todo o

tempo pressionada de encontro ao corpo do motoqueiro. Vendo o lugar ermo escolhido pelo

assaltante, o dono da moto acreditava haver chegado a sua hora. O carona provavelmente fazia parte de uma quadrilha rival. O homem pensou em tentar reagir,
mas a desvantagem era muito grande. O medo o imobilizava. Petrificando os músculos. De dentro do

capacete, ele imaginava o criminoso na garupa. Assassino frio, talvez muito mais forte, talvez drogado, pronto para matá- lo. As lagrimas escorriam. - Olha
cara, eu acabei de entrar nesse lance. Só fiz umas duas entregas para umas meninas riquinhas. Se é o pó que você quer eu

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não tenho mais nenhum aqui, mas posso conseguir o quanto quiser. - Fecha essa matraca e encosta ali, depois daquela placa. Com a moto totalmente parada,
os dois homens colocaram os pés no chão. O rapaz seqüestrado supunha haver chegado a sua hora, iria morrer. Com muita sorte, seu corpo seria encontrado
algumas semanas depois, reduzido a uma carcaça apodrecida e esturricada pelo clima quente e seco do Planalto Central. Nunca mais veria a família. Entraria
para as estatísticas da violência urbana. Do assassino, nem mesmo chegou a ver o rosto. Estava difícil respirar, cólicas tomavam conta do abdome. - Garotão,
vou precisar do cabrito. Depois dos ganhos, abandono ele. Fica pianinho, se me dedar para os homens eu te faço uma visitinha. Sei onde você mora. Minutos
mais tarde, o rapaz recobrou a

consciência. A nuca dolorida incomodava, mas ele estava feliz por haver sobrevivido. O assaltante levara, além da moto, capacete, jaqueta e carteira, o
envelope com todo o dinheiro das entregas do dia, que estava no bolso interno da jaqueta. Ajoelhado, ele olhou para o céu e disse: - Obrigado. Vou sair
dessa vida. Entendi a mensagem. De hoje em diante estou limpo.

405

Enquanto caminhava pelo acostamento, o rapaz tentava encontrar uma boa desculpa para o sumiço do dinheiro das entregas do dia. Sem ele, só mais um milagre
o salvaria do acerto de

contas dos traficantes. *** Dividindo a estrada e os buracos com caminhoneiros, Ramos arriscou seguir em direção à Belém usando a moto roubada. A sorte
de haver abordado um criminoso, aumentou a possibilidade de nada ser informado às autoridades de Brasília. Onde delegacias, aeroportos e estações rodoviárias
certamente

estavam sendo monitorados pelos órgãos de inteligência. A estas alturas, informações mentirosas já teriam sido plantadas pelas autoridades, justificando
a caçada à sua cabeça. "Talvez me acusem de traidor, ou de

espião. Algo capaz de retirar a credibilidade de minhas palavras, de meu testemunho. Uma satisfação interna, tratada adequadamente para justificar quaisquer
medidas contra mim. Preciso chegar à Manaus." Pensava Ramos, conduzindo a moto nas retas e retas da estrada. A paisagem mudava pouco. Mata, dos dois lados
da pista. Vez por outra, um lugarejo

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aparecia. Em geral, trazendo um punhado de casas de tapera, distribuídas ao longo dos dois lados do acostamento. Em determinados trechos da rodovia, os
postos de gasolina encontrados tinham somente o necessário ao funcionamento. Duas bombas, cobertura feita em palha, vendedor e o

chão em terra, avermelhada, batida. Alguns, adaptados à realidade local, vendiam apenas óleo diesel. Atendendo à demanda mais comum, a dos caminhoneiros.
Com a sorte de carona, Ramos passou por vários Postos da Patrulha Rodoviária Federal sem ser parado. Os buracos espalhados pela pista e caminhoneiros sonolentos
à direção forçavam- no a redobrar a atenção. Ao entardecer do segundo dia de viagem, as placas indicando a chegada a Belém finalmente surgiram. Mais três
horas de estrada

e estaria vencido o último trecho. Dali por diante a fiscalização provavelmente seria mais rigorosa. Ramos escondeu a motocicleta na

vegetação vizinha ao acostamento. Enquanto enfiava o veículo mata a dentro, ele imaginava a cara de curiosidade de alguém que viesse a encontrar moto, jaqueta
e capacete abandonados em perfeito estado. "Não, isso aqui é muito isolado. Quando o conjunto for, se for, descoberto já será sucata."

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Caminhando pelo acostamento, ele chegou ao posto de combustíveis anunciado nas placas ao longo da rodovia. Estava encharcado de suor, a noite estava quente,
abafada. Além das roupas do corpo, Ramos levava os documentos de identidade, escondidos sob as palmilhas dos tênis, e o

dinheiro encontrado na jaqueta do traficante dentro da cueca. A moto ficara cinco quilômetros para trás. Por precaução, a entrada na cidade de

Belém deveria ser feita pelo meio mais comum possível. Preferencialmente coletivo e em horário de maior movimento. A Capital do Pará estava sob intervenção
das forças internacionais. As notícias chegadas a Manaus, através da imprensa nos dias anteriores a viagem de Ramos para Brasília, descreviam problemas
no convívio da população com a força interventora. As tropas estrangeiras responsáveis por fazer cumprir a nova ordem em Belém vinham da China e não estavam
sendo tão amistosas com os habitantes quanto as Norte Americanas o eram em suas áreas de responsabilidade. No posto de combustíveis Ramos conseguiu carona
para seguir viagem. A bordo de um caminhão carregado de

frigorificados mais retas e buracos, guardados pela noite, foram sendo invadidos. Durante a conversa na cabine do caminhão, ao longo dos

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duzentos quilômetros até Belém, o motorista descreveu o que encontrara por lá, quando da entrega dos carretos das semanas anteriores. Vivendo das estradas,
o homem simples que transportava mercadorias entre Belém e a

capital do país, tinha uma maneira peculiar de ver os fatos. O jeito fanfarrão da narrativa e os detalhes, exagerados, adornaram informações valiosas. Antes
de entrar no perímetro urbano de

Belém a carreta parou no acostamento. Sonolentos, os dois homens se despediram apertando as mãos. Poucos metros a diante, as placas indicavam a parada de
ônibus. No ponto, abrigado do sereno da madrugada, um homem embriagado alternava entre momentos de repouso e cólera. Nos arroubos de fúria, ele tentava
articular impropérios, dirigido- os à pilastra de

sustentação do telhado. Ramos se aproximou pelas sombras, tomando lugar na parada de ônibus sem ser notado pelo homem. Ruas e esquinas estavam desertas.
A cerração anunciava mais um dia de muito calor. Ramos assistiu o amanhecer sentado no

banco de concreto. Ônibus chegaram, partiram, mas ele permaneceu aguardando. A hora mais adequada era a de maior movimento. Transportes coletivos lotados
e grande fluxo de pessoas pelas ruas, dificultam

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operações de vigilância ou controle. Principalmente quando se tenta combinar as medidas de segurança com a manutenção do cotidiano dos centros urbanos.
***

Passando por todas as barreiras de fiscalização, sem ser incomodado, Ramos alcançou o porto. Formigueiro humano, aquele

lugar devia parecer familiar aos chineses. Por entre os labirintos de barracas, mercadorias, animais e enormes pilhas de madeira, estavam os agenciadores
do transporte mais popular da Amazônia; os regionais. Embarcações de madeira, impulsionadas por preguiçosos motores à diesel, com dois tempos, levavam
e

traziam de um tudo ao coração da floresta. Inclusive pessoas. Estas viajavam deitadas em redes, dividindo o exíguo espaço da superlotação com toda a sorte
de desconfortos. Mas a paciência e bom humor do povo local reduziam as dificuldades a, quando muito, boas piadas. Conversando com os agentes Ramos foi

informado da saída de uma pequena embarcação para Manaus, ainda naquela tarde. Era exatamente o que ele queria. Após estar

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com a passagem em mãos, um pedaço de papel recortado e assinado, comprou a rede de dormir e suprimentos para a viagem. Feito rio acima, o deslocamento tomaria
quatro ou seis dias. Nas refeições, à bordo, o prato servido era

o pescado. Peixes frescos, pegos pela tripulação, foram preparados das mais variadas maneiras. Tudo muito simples, humilde. Nos intervalos entre as refeições,
Ramos ficava deitado na rede saboreando as castanhas e o

leite condensado comprados antes da partida. Na quarta noite de viagem os ouvidos não valorizavam mais os ruídos vindos da casa de máquinas. Eram onze horas.
Recolhidos a suas redes os passageiros dormiam. Através de dois furos feitos na lata de leite condensado, Ramos bebia mais um gole da doçura. Da rede ao
lado, um braço surgiu, vindo pousar sobre sua virilha. - Você deve ter o beijo mais doce do

mundo! - a voz e a mão provocante já haviam sido notadas anteriormente. Pertenciam a uma jovem que viajava, até a última parada, com o marido. A mulher
fazia questão de exibir suas formas arredondadas, desfilando desde o

embarque em trajes mínimos. Vez por outra Ramos a viu cruzando olhares com passageiros. Das pernas ao pescoço, a paraense parecia esculpida. Os seios, rijos,
por

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pouco não rompiam as finas camisetas usadas por ela. E as pernas eram bem torneadas, dando sustentação à nádegas salientes. - E você deve estar com saudade
do seu marido. - disse Ramos tirando a mão da mulher. - É, estou mesmo. Sinto saudade do tempo que ele dava no couro. - Como é?

- Ele não vai para a cama comigo há meses. Posso ficar aí, na sua rede?

- Não! Boa noite. O balançar do barco, o cheiro molhado da mata e a escuridão dividiram as batidas cadenciadas do motor com as redes. Numa delas, Ramos
tentava conter os instintos animais. "Não é não e pronto, Ramos. Vai se deixar levar e pegar uma doença aí, vai! Dorme que é

melhor. Bom, melhor não é, mas..." *** Perto de Manaus, a embarcação foi abordada por lanchas de fiscalização. Por amostragem passageiros foram escolhidos
para serem cadastrados, devendo explicar os motivos da viagem. Entre os selecionados para prestar esclarecimentos estava a jovem fogosa.

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Os militares norte americanos dedicaram atenção especial a sua entrevista. O procedimento ocorreu mais duas vezes antes da chegada ao porto de São Raimundo,
parada alternativa, onde Ramos desembarcou. Os primeiros passos dados em Manaus aproximaram Ramos da realidade das decisões tomadas nos últimos dias. As
conseqüências delas mudariam por completo a sua vida. Decidido a não compactuar com a agressão de

larga escala à população dos países alvos, ele avaliava como sendo ínfimas as probabilidades de sucesso da cruzada solitária iniciada com a

fuga do Centro de Operações. De agora em diante, o mesmo sistema bem sucedido responsável por sua localização e condução à Brasília estaria trabalhando
com ordens expressas para eliminá- lo. A questão era

sobreviver e alcançar autoridades dos países onde os agentes biológicos seriam empregados. *** De saída para o aeroporto, Kate voltou da porta para atender
aos chamados do telefone. Sentada no braço do sofá, a loira cruzou as pernas longelíneas antes de pegar o aparelho.

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Os olhos azuis contornados pela maquiagem acentuada, exigida das comissárias, adornavam os traços de beleza daquele rosto. A pessoa do outro lado da linha
falou pouco. Apenas o suficiente para a identificação. Desligado o telefone Kate voltou ao quarto e refez a mala de viagem. No dia seguinte, às três horas
da tarde, Kate chegou ao local acertado para o encontro. Estava duplamente nervosa. Não tinha certeza

de estar no lugar certo, pois a pessoa ao telefone usou propositadamente referências imprecisas. E achava estar prestes a se encontrar com o homem por quem
alimentava

sentimentos especiais. O dia estava quente, o sol castigava a pele alva de Kate. A amplitude térmica embutida no deslocamento aumentava o desconforto. Na
saída de São Paulo os termômetros marcavam quatorze graus, garoava

e um vento cortante castigava a cidade. Ali na praça, à sombra, as temperaturas oscilavam em torno de quarenta graus, mas a umidade relativa do ar empurrava
o desconforto da sensação

térmica para muito além deste patamar. Kate esperou sentada, em um dos bancos da praça. Guardada pela sombra de uma mangueira, ela acompanhava com o olhar
os movimentos de transeuntes. Depois da segunda hora de espera, o relógio passou a ser consultado com maior freqüência. Ela não era o

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tipo de mulher que passava despercebida, muito menos em Manaus onde raras mulheres exibiam biótipo semelhante. Resolvida a desistir da espera, Kate olhou

em volta. Na praça, as únicas presenças inalteradas eram as das árvores, dos pombos, do velhinho da limpeza pública que há horas rastelava o chão de terra
batida recolhendo as folhas e a sua. "Algo de errado deve ter acontecido. Ou então eu vim para a lugar errado! Ele não ia dei xar de vi r..." Kate pensativa
caminhava em direção ao ponto de táxi, do outro lado da praça. - Boa tarde! A senhora pode me informar as horas. - era o homem da limpeza pública interpelando
Kate. - Pois não. São ...

- Continue olhando para o relógio. Estarei te aguardando em Presidente Figueiredo, na cachoeira dos três furos, amanhã ao meio dia. Pergunte pelo carioca.
Agora vá, corremos risco

aqui. Kate levantou o olhar e, tentando manter naturalidade, prosseguiu na caminhada. Mal conseguia respirar. Estava surpresa. Seu amor esteve ali ao lado,
todo o tempo. Mas a caracterização era perfeita, jamais teria desconfiado do velhinho. Ainda experimentando euforia, com o coração disparado, ela retornou
ao hotel.

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No final do expediente o funcionário da limpeza pública recolheu as ferramentas de trabalho e seguiu empurrando, com dificuldade, o latão de lixo sobre
rodas pelas ruas. ***

Distante de Manaus cem quilômetros, o município de Presidente Figueiredo guarda dezenas de recantos paradisíacos. Lugares onde a floresta intocada abraça
cachoeiras de

águas cristalinas e cavernas capazes de contar parte da história da região amazônica. Apesar da intervenção estrangeira os habitantes da área não tiveram
sua liberdade de ir e vir cerceada. O deslocamento com fins turísticos, ou qualquer outro, nas adjacências de Manaus transcorria com naturalidade. A única
alteração na rotina do viajante ficava por conta das obras promovidas pela nova administração. Estradas de acesso aos municípios vizinhos à Manaus, antes
de mão dupla e pavimentação precária, estavam sendo reformadas. Sem exceções, elas vinham sendo alargadas para receber seis pistas muito bem sinalizadas.
A população recebeu de bom grado mais essas melhorias advindas com a intervenção.

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No trecho de estrada entre Manaus e Presidente Figueiredo dois novos postos de policiamento rodoviário surgiram. Objetivavam, além da fiscalização do trânsito,
prestar serviços aos viajantes. Durante o dia, os veículos particulares eram abordados para a entrega de

panfletos explicando as novidades da pista e os principais atrativos do local de destino. Antes de ir embora os ocupantes dos autos recebiam bebidas isotônicas
geladas. No período da noite os motoristas eram alertados quanto a presença

de animais na pista ao longo do trajeto, recebendo bebidas geladas à base de guaraná. Em todos os casos, as crianças ganhavam uma onça de pelúcia. O brinquedo,
de qualidade, encantava também aos adultos. Sendo objeto de desejo dentro e fora das áreas sob intervenção. A oncinha de sorriso simpático vinha vestida
com roupas em cores alusórias às bandeiras do Estado do Amazonas, mas na bolsa que a acompanhava havia muitas outras opções de vestimentas. Uma delas reproduzia
as cores da bandeira Norte Americana. Dentro e fora dos carros, nas redondezas de Presidente Figueiredo, pessoas circulavam em trajes de banho. Por morar
distante do litoral

o povo amazônida tem o hábito de amenizar o calor banhando- se em praias de rio e cachoeiras da floresta.

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Desde cedo era grande o movimento de banhistas a procura das cachoeiras para aproveitar o dia de sol. O lugar conhecido por cachoeira dos três furos, predileto
dos casais, ficava dentro de uma fazenda de cujo terreno por direito de posse pertencia a um retirante do

sertão da Bahia . Colono humilde, de poucas posses e estudo, ele explorava parte do potencial turístico do recanto cobrando dos visitantes uma taxa de conservação.
O valor da taxa, apesar de baixo, quase irrisório, representava para o fazendeiro a principal fonte de renda depois das roças de mandioca. Naquele dia
porém, as porteiras da Fazenda Chapéu de Couro permaneceram fechadas. Junto aos portões de madeira da sua propriedade estava Zeca Marimbondo. Com um cigarro
de palha no canto da boca, o homem explicava para os visitantes o motivo da não

abertura do local. A cara de poucos amigos, o humor beirando a intolerância e a peixeira presa a cintura justificavam a fama de homem brabo acolhida pelo
senhor José Carlos desde a mocidade. O que lhe custou o apelido de Marimbondo, elevado a condição de sobrenome com o passar dos anos. Faltavam quinze minutos
para o meio dia. O carro alugado por Kate estava com o ar condicionado quebrado, mesmo andando com as janelas abertas o calor fazia o veículo parecer

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um forno. A pele do rosto, ruborescida pelo desconforto, abrigava gotículas de suor entre os minúsculos pêlos doirados. Chegando no lugar indicado no desenho
feito por um homem a

quem pedira informações no caminho ela encontrou os portões de madeira fechados. Desligando o motor, pegou o papel para conferir as indicações descritas.
O lugar parecia ser aquele. - Bom dia, a moça quer alguma coisa. - perguntou Zeca Marimbondo. Surpreendida com a presença do homem na janela do carro,
Kate demorou a responder. O coração estava disparado. - Está tudo bem? A moça parece ter visto

o curupira. - Quem?! Não, deixa para lá! O senhor me assustou. - Hoje a cachoeira está fechada. Tem uma danada de uma onça rondando a fazenda. Kate não
sabia como fazer a pergunta sem parecer maluca. Afinal, que outro tipo de pessoa chegaria, do nada, a um lugar daqueles e sairia perguntando por um tal
"carioca". - O senhor pode me dar uma informação?

- A moça pergunte, faço gosto em ajudar. - Conhece o Carioca? Zeca Marimbondo olhou para a estrada, queria certificar- se da ausência de outros carros.

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- Moça, vou abrir a porteira. Pelo caminho de barro, antes de uma canseira de mula, a moça vai achar o amigo. Guiando através do precário corte de

estrada a sensação era a de estar entrando na garganta de um gigante. O carro deslizava sobre a língua sinuosa da fera e pouco a pouco perdia a vista do
céu. Kate contemplava o contraste do vermelho poeirento do chão com verde do túnel vegetal imaginando a qual distância equivaleria a medida citada pelo
homem da porteira. Afinal, não fazia a menor idéia do quanto a mula

precisava andar para sentir- se cansada. Os buracos e valas escavados no piso pelas águas das chuvas a obrigavam a dirigir com velocidade reduzida, quase
parando. Os vidros do carro estavam totalmente fechados. Por precaução, Kate fechou- os imaginando poder ser real a história da onça a solta, contada na
entrada. Seus cabelos estavam escurecidos, molhados pelo suor. A curva fechada e o chão irregular obrigaram- na a

reduzir ainda mais a velocidade. No trecho havia cipós atravessados na estrada, eles raspavam no teto do carro.

Sem avisos, a porta do lado do carona foi aberta e um vulto saltou para o interior do carro. - Meu Deus! - gritou Kate, estancando o

movimento do veículo. A freada foi a reação

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instintiva diante do susto. Com a velocidade baixa o carro parou quase instantaneamente. - Oi.

- Nossa, quase morri de susto Cordeiro! - De susto eu não sei, mas de calor falta pouco. Qual é a idéia!? Fazer sauna enquanto dirige?

- Fiquei com medo da onça. O tiozinho lá na portei ra di sse...

- Neste caso, você está em perigo. - Por que? - A tal onça sou eu. Ligue o carro, vamos até a cachoeira temos de conversar. Disse Ramos abrindo os vidros
do carro. Despencando de uma imensa laje de

pedra, suspensa a mais de dez metros do chão, por entre três furos, a água gelada e cristalina do igarapé encontrava o espelho do lago contido por cinturões
de areia branca. A visão da cachoeira dos três furos explicava desde o porquê do nome até o motivo da preferência dos casais. O lugar puro e belo inspirava
o amor, sacudindo o íntimo de vidas cotidianas. Depois de mergulhar no lago os dois foram sentar na faixa de areia junto ao espelho d'água. Kate estava
de biquíni. O azul das peças mínimas, no mesmo tom de seus olhos, ganhava realce em um corpo de curvas bem desenhadas.

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De início, Ramos monopolizou a palavra. Por quase uma hora ele explicou o motivo do encontro, além de outros detalhes julgados necessários para a compreensão
do contexto. A mulher ao seu lado, enrolada em duas toalhas, dividia a atenção entre a narrativa e os ataques dos insetos. - Mas se você contar este tal
segredo aos outros países não vai ser traição?

- E o que seria mais honrado? Sentar- me e assistir a desgraça de bilhões de seres humanos inocentes? Não posso concordar com isso! - Você pretende fazer
o que, Cordeiro?

- Ramos é meu nome. Cordeiro foi apenas mais um codinome adotado para os trabalhos a serviço da Inteligência, em Brasília. Kate afastou o rosto, movendo
o pescoço para trás. - Você não tem cara de Ramos. - Preciso da sua ajuda para sair do país. - Mas por que não procurar as autoridades americanas aqui
mesmo, em Manaus? - Não estamos lidando com amadores Kate. Estarei morto ou preso antes de conseguir estabelecer qualquer diálogo. - Então! Os aeroportos
também vão estar sendo vigiados!

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- Exatamente, estarão me procurando entre os passageiros de cada vôo saído de nosso país. Com a sua ajuda viajarei integrando uma das tripulações. - Parece
arriscado. O comandante e os outros comissários vão estranhar. Apesar do

grande número de funcionários, quase todo mundo já se cruzou pelo menos uma vez. Além disso, o comandante recebe a escala da

tripulação com antecedência, alguns conferem pessoalmente até as trocas feitas entre os comissários. Os dois ficaram em silêncio. Ramos mantinha o olhar
perdido por entre a vegetação existente do outro lado do lago. Deixando as toalhas escorregarem, Kate libertou os braços. Em seguida inclinou o corpo na
direção do Ramos passando a acariciar- lhe os cabelos. - Por que me procurou? - a voz de Kate estava mais íntima, mais doce, ao fazer esta pergunta. Ramos
podia sentir a respiração ofegante

de Kate perto do seu ouvido. Desviando o olhar da mata, ele encontrou lábios propositadamente deixados disponíveis. Enfim, era real o beijo desejado, há
muito, por ambos. Tomados pela febre do desejo, os dois fizeram amor nas areias, dentro d'água e sobre o capô do carro. A falta de mais preservativos limitou
o ímpeto dos amantes. Somente então,

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tiveram olhos e sentidos para notar o fim do dia. Precavida, a noite escondera em sua chegada os detalhes de beleza e encanto do lugar, fugindo a cobiça
alheia. - Eu conheço alguém capaz de ajudá- lo! - Quem?

- Um agente ou coisa assim. Ele é Norte Americano, parece ser importante para o nosso sistema de informações. Foi uma de minhas primeiras missões, se estende
até hoje. - Qual tipo de missão?

- Ah, você sabe! Plantar escutas, rastreadores, ganhar confiança... - E como o encontraremos? - Ele me deu um número de telefone para ligar quando eu estivesse
em Manaus. - Humm! Parece ter se saído bem no quesito conquista de confiança. - Nem tanto. E quanto a idéia, acha boa?

- Chegar a ele por você vai revelar os verdadeiros motivos da relação. Você estará exposta. Ele vai sentir, primeiro, a mágoa da traição, depois virá a
sensação de estar desprotegido enquanto você estiver viva. Logo estará resoluto da necessidade de te matar. Se der certo e ele for receptivo ótimo, cuidaremos
dele mais tarde, caso contrário precisaremos eliminá- lo, de imediato, para garantir a sua segurança.

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- Quem te disse que temos uma relação, era apenas trabalho. - Não para ele Kate. Esse telefone é a prova disto. Qual é o nome do homem? - Flening.

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Suçuarana

Sentados à mesa do mais requintado restaurante de Manaus, Flening e Kate podiam ver pelas janelas panorâmicas grande parte da

cidade. A plataforma giratória sob a qual foi erguido o restaurante ficava na cobertura de um prédio de vinte andares, isolando os clientes dos sons urbanos.
A música ambiente e a

iluminação diferenciada tornavam mais agradável, ainda, o lugar. Kate estava nervosa, tinha medo da reação de Flening. Depois do garçom servir o vinho pedido,
Flening tirou uma pequena caixa do bolso. Sem desviar o olhar do rosto da Kate ele colocou a

caixa entre os dedos dela. Na entrega, as mãos se tocaram revelando, nos detalhes suaves do arrasto da pele, a diferença de temperatura e umidade. - Suas
mãos estão geladas, minha

pri ncesa! - Que surpresa é essa? - perguntou Kate, mostrando a caixa entregue por Flening. - Abra. Se eu disser deixará de ser surpresa. - Nossa! É lindo.

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- Deixe- me ajudá- la com isso. - disse Flening, colocando o anel presenteado no dedo de Kate.

O anel confeccionado em ouro branco trazia um diamante acompanhado por duas pequenas esmeraldas. O desenho suave da jóia

lembrava, de alguma maneira, contornos humanos. Kate ficou calada, observando o anel em sua mão. - Gostaria de conhecer você melhor. Passar mais tempo junto.
Queria dividir meu

tempo com alguém especial Kate. Tenho pensado muito nisso. Kate sorriu, segurando as duas mãos de

Flening. - Suas mãos! Elas estão mais geladas ainda. Está tudo bem? - Está. Você me deixa nervosa falando assim. Também gostaria de ter alguém para dividir
meus problemas. - Posso ser eu, se você deixar. - Não sei. Acho que não seria certo

aborrece- lo com meus problemas. - Kate pressentia a proximidade da hora oportuna para abordar o assunto principal. - Experimente. Olha, eu gosto de você.
Sei que pode parecer prematuro, mas fico imaginando nós dois em uma bela casa cuidando de nossos filhos. E isso é o mais perto que jamais cheguei da felicidade.

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O garçom chegou trazendo os pratos pedidos. Os dois recostaram- se nas cadeiras fazendo uma pausa na conversa. *** A entrada do hotel estava deserta quando
Kate desceu do táxi. Eram duas horas da manhã, apenas o funcionário da recepção a viu passar. Ela foi direto para o quarto. No banheiro, tirou o vestido.
Não estava usando roupas íntimas por baixo dele, assim, em um único ato

revelou a beleza de sua nudez para o espelho. Terminado o banho ela pegou a bolsa de plástico que estava sobre a pia. Na cama daria início ao ritual de
todas as noites. Massageando o corpo inteiro com os diversos cremes e loções. Quando saiu do banheiro encontrou Ramos deitado na cama. - Cordeiro! Ai,
Ramos que susto. - Venha aqui... - di sse Ramos dando

tapinhas no espaço vazio ao lado do corpo. - Como você entrou aqui? Ramos tirou o roupão de Kate, revelando o corpo ainda tépido devido ao banho. Ato contínuo
pôs- se a beijar e mordiscar os seios da mulher. Ela o segurava pelos cabelos, hora

enterrando sua cabeça na carne, hora

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ensaiando afasta- la para fuga. Os gemidos tomaram conta do quarto. Saciados, os dois foram para o banheiro. Embaixo do chuveiro Kate contou tudo o que
aconteceu durante o encontro daquela noite. Estavam de comum acordo quanto à relativa vantagem conseguida com a revelação dos sentimentos de Flening. Apaixonado,
mesmo o mais coerente dos homens deixa escapar detalhes importantes. Esta cegueira poderia servi r à Kate.

- Eu falei que esse meu amigo tinha algo muito importante para contar às autoridades, mas corria risco de vida. Flening ficou bastante

interessado e ainda me confortou. Marquei um contato entre vocês para amanhã. - Certo. Amanhã você tem vôo, não é mesmo?

- Tenho, mas assim que completar a última etapa volta para cá. - Negativo. Quero você longe daqui até

tudo isso terminar. Pode deixar, eu te procuro quando puder. - Mas...

- Sem mas, confie em mim. Fora de Manaus você poderá me ajudar muito mais. Ao acordar Kate encontrou um botão de rosa no travesseiro ao lado. Ramos havia
ido embora enquanto ela dormia.

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*** Dada a intensificação das ações de resistência, Flening, por mais apaixonado que estivesse, tomaria todas as precauções possíveis para o encontro com
o amigo da Kate. O lugar escolhido era público, uma estação de

ônibus urbano com grande circulação de pessoas. Ramos, por outro lado, precisava arriscar. O tempo corria contra a saúde de civis inocentes, breve restariam
apenas medidas reparadoras. O grande mal estaria fincado no

coração de milhões de famílias dos países envolvidos na intervenção sobre a Amazônia. Flening chegou à estação na hora marcada, a barraca de venda de tacacá
estava cheia de fregueses. Eles consumiam algo parecido com uma sopa, servida em pequenas cuias. O cheiro forte do preparado, corria as redondezas. Flening
olhou em volta, procurava

entre os homens e mulheres vizinhos à barraca alguém com atitude de espera para o contato. - Ei, o senhor! É a sua vez. O que vai ser? Voltando o olhar
para frente, Flening percebeu; a pergunta era para ele. O homem atrás do balcão segurava uma das cuias e na outra mão uma concha usada para servir o caldo
mal cheiroso.

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- Oh! Não obrigado. Estou apenas dando uma olhada. Parece bom, mas estou sem dinheiro. Dentro da barraca a senhora que ajudava

no atendimento sorriu, falando algo para o outro vendedor em uma língua desconhecida para Flening. A mulher era muito gorda, os cabelos, as feições de rosto
e a cor da pele indicavam tratar- se de uma indígena. Ao alcance das mãos do homem sorridente que servia as porções de

tacacá e conversava com a mulher, estava uma pistola semi- automática. Colocada na prateleira existente abaixo do balcão, a arma não podia ser vista pelos
fregueses. O obrigado, dito por Flening, carregava um quase imperceptível sotaque. - Tome oferta da casa. O senhor vai

gostar. Flening esticou as mãos para pegar a cuia oferecida. A idéia de ter de provar o preparado mal cheiroso veio a cabeça, em seguida, lembrou dos casos
relatados recentemente onde militares e agentes da força

de intervenção foram envenenados em ações assumidas pela Resistência. Ele baixou a cabeça e colherada a colherada consumiu o tacacá. - Gostei! Obrigado.
- disse Flening, devolvendo a cuia vazia.

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A mulher o cumprimentou com outro sorriso, voltando a atender ao grupo recém chegado à barraca. O segundo vendedor havia desaparecido. Flening olhou para
o relógio. O amigo da Kate não deveria ser o tipo de pessoa pontual. Passados quarenta minutos de espera, sem resultados, ele retornou para o local onde

estacionou o carro. O gosto forte do prato exótico ainda voltava a boca. Era uma iguaria e tanto, apesar do cheiro. Talvez, pela resposta negativa

de um dos sentidos ou por preconceito ele poderia vir a passar toda a vida sem jamais provar aquele prato. Flening pensava a respeito enquanto tirava o
carro da vaga. Dois meninos batiam nos vidros do

automóvel pedindo dinheiro. Desta vez foram atendidos. Receberam quantia superior ao arrecadado durante meses da mendicância pelas ruas de Manaus. Os dois
saíram correndo entre os carros, felizes com a ajuda generosa. O mais velho tinha, no máximo, oito anos de idade, mas seu olhar represava a tristeza e
a amargura

do abandono. No final da rua estreita Flening reconheceu o barraqueiro que lhe oferecera o tacacá de graça. Ele estava pedindo carona. Não usava mais o
avental azul, mas ainda tinha o lenço amarrado a cabeça. O sol castigava a pele do homem. Do conforto do carro com ar

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condicionado ligado ficava fácil desprezar as dificuldades de pessoas simples iguais àquela. Negando- se a deixar de retribuir a gentileza feita à instantes,
Flening parou o carro. O homem que pedia carona havia ficado alguns metros para trás. Com a ré engatada, Flening voltou parando o carro ao lado do barraqueiro.
- Aquele tapapa é muito gostoso! Você vai para onde?

- Ali para o centro. O senhor pode me dar uma carona? Somente depois de autorizado por Flening o homem fez menção a abrir a porta do veículo. No primeiro
semáforo vermelho

encontrado, Flening voltou a comentar. - Nunca havia provado o tapapa, acho que se dependesse do cheiro passaria mais algum tempo sem me aventurar. - O
nome é tacacá. Os dois começaram a rir. Quando atingiram a avenida, longe das constantes paradas das ruas secundárias, Flening perguntou ao carona a quanto
tempo ele trabalha vendendo ta- ca- ca. - Um dia. Flening, com as duas mãos no volante, sentiu- se vulnerável. - Temos uma amizade comum. - disse Ramos.

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- Ah, então é você!? Mas para que o disfarce? - perguntou Flening, tentando manter a normalidade. Se o homem ao seu lado quisesse apenas eliminá- lo, o
teria feito envenenando a porção de comida ou com um tiro nas ruas desertas deixadas para trás. Além do mais a vantagem era toda dele, sentado ali

ao lado, com as duas mãos livres, gozando da providência da surpresa. - Não se preocupe, quero apenas conversar. Tinha de ter certeza de que você estava
sem equipes de apoio. Corremos perigo

cruzando as ruas, a Força de Resistência e autoridades do governo brasileiro estão a minha caça. Vamos a um lugar seguro que eu conheço. O homem era um
profissional, quanto a

isto Flening não tinha dúvidas. - É aqui. Pode estacionar. Ao descer do carro Flening chegou a pensar em pegar a pistola presa a lateral externa do assento.
Mas o movimento seria facilmente antecipado por Ramos. - Também estou desarmado. Deixe ela aí. - disse Ramos dando as costas ao carro. - O que tem para
mim? - Primeiro quero saber o quanto você vai

poder ajudar! Qual o seu nível de acesso ao Estado Maior das forças militares Norte Americanas estacionadas aqui em Manaus. - Faço parte dele.

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- É melhor nos apresentarmos. Sou o Tenente Ramos, do Exército Brasileiro. - Sou o Major Flening, das Forças Especiais; Exército dos Estados Unidos da

América. A atitude civilizada dos dois militares passava distante do desprezo e do ódio cultivados na mente do povo, pelos governantes, em meio à beligerância
atual. Mas a cautela, o estudo de cada movimento e a hiperestimulação dos sentidos eram próprios à Homens da guerra. Os dois conversaram durante uma hora.
Flening ouviu, interessado, cada detalhe da

narrativa feita por Ramos. Muitas vezes o interrompeu para esclarecer pontos obscuros. - Mas de acordo com o que está dizendo, essa doença já pode, inclusive,
ter sido levada

para fora do Brasil. Ela pode estar sendo difundida neste exato momento, em estações de metrô e outros lugares de grande concentração de civis. Isso vai
ser um pesadelo! - Um pesadelo de inocentes e

governantes. - E qual o seu interesse nisso? O que pretende obter, compensação financeira?

- Tenho interesse pessoal. Não quero ter na consciência vidas de civis inocentes estampadas como troféus de estratégias bem sucedidas. Não para manter um
pedaço de

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terra, quinhões de riquezas ou valores efêmeros igualmente cultuados. Sou um soldado, não um assassino. - Vai ser difícil convencer o pessoal. Sem provas,
vai parecer uma manobra de contrainformação ou relato de um desequilibrado. Desculpe mas é a realidade. - Eu sou a prova de que você precisa. Foi à partir
do meu sangue que obtiveram a arma biológica. ***

No retorno a Base de Operações, Flening encontrou Perez. - Estava esperando o senhor. Parabéns, Coronel Flening. - Do que está falando Perez. - Olhe isto,
acaba de chegar de

Washington. O senhor foi promovido por merecimento. - Perez segurava uma folha de papel. - Temos algo quente para trabalhar. Localize o General Peter Maier,
precisamos falar com ele. E Perez, é urgente. - Sim senhor.

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*** Na sala estavam reunidos os oficiais de mais alta patente envolvidos no comando das forças de intervenção, além de autoridades civis do governo Norte
Americano e Chinês. - Convoquei os senhores esta noite pois uma grave ameaça paira sobre as cabeças de

nossas famílias! Enquanto combatemos aqui, um inimigo invisível pode estar estabelecendo posição em nosso país. Levando dor e sofrimento a civis inocentes.
O General Peter Maier falava pausadamente, sentado a

cabeceira da mesa ovalada. Flening estava presente a reunião, sentado em uma segunda fileira de cadeiras junto a assessores e outros militares. Pela boca
do General ele ouviu o recontar da conspiração descoberta há dias atrás. - Temos muito pouco de concreto. Não

podemos espalhar o pânico em nosso país ou interrompermos a operação a cada boato surgido. Disse um dos Almirantes sentados à mesa. O Secretário de Defesa
fechou a pasta com documentos. Ficando de pé, com as duas mãos ainda apoiadas sobre a mesa, ele tomou a palavra.

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- General Peter, você fez bem em solicitar minha presença. Senhores, estamos diante de uma ameaça que pode atingir escala planetária, uma vez confirmada.
No entanto, postos reféns de uma possível escaramuça terrorista como esta, ficaremos de joelhos para sempre. E este é o ponto. Se cedermos agora, estaremos
abrindo as mesmas portas de nossas casas, as quais tentamos proteger, para todo e qualquer maníaco com pretensões terroristas. Tenho

certeza de que não é este o desejo do povo da América nem do povo da República Popular da China. Flening e o General Peter Maier entreolharam- se. A fala
do Secretário de Defesa espelhava a opinião pessoal do Presidente dos Estados Unidos da América, com quem estivera ele reunido até momentos antes de embarcar
para o Brasil. Estava claro, a linha de ação

escolhida minimizava possíveis retaliações com armas biológicas advindas do Brasil. - Segundo os relatórios da Agência Central de Inteligência o Brasil
não possui nenhum projeto destinado ao desenvolvimento de armas biológicas. A comunidade científica local vem sendo monitorada de perto, assim como os
atos deliberativos dos Três Poderes. Podemos afirmar: Nenhum projeto desta natureza e porte estaria em andamento aqui sem que soubéssemos. Nas pastas

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distribuídas, os senhores encontrarão as medidas cabíveis para o momento. Concluiu o Secretário de Defesa, voltando a sentar. No final da reunião o Secretário
de Defesa se aproximou do General Peter Maier para falar algo reservadamente. Mais tarde, Flening foi chamado ao

gabinete do general. - Tenho ordens para capturar seu informante. A CIA quer ouvi- lo. Estes dois agentes vão liderar o time responsável pela operação,
coopere no que for preciso. - Não vai ser necessário general. - O que não vai ser necessário?

- A captura. Ele se dispôs, desde o primeiro momento, a prestar esclarecimentos para qualquer de nossas autoridades, onde

fosse necessário. - Melhor assim. - Se me permite senhor!? - ao falar, Flening olhou para os dois agentes postados ao seu lado, indicando a intenção de
conversar reservadamente com o general. - Me deixem a sós com o Coronel Flening. Quando a porta foi fechada, o diálogo reiniciou. - O homem não parece
estar mentindo. Acredito que a ameaça seja real e imediata.

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- Entendo Flening. Talvez esta situação seja a releitura do fio da mesma lâmina. Guardiã e assassina ao mesmo tempo. - Não entendi general. - Sun Tzu, Flening.
O uso de espiões, o

conhecimento detalhado das partes envolvidas, são as lâminas sobre nossas cabeças. Tanto nos aproximam da postura de guarda ideal, permitindo antecipar
e até prever os passos do inimigo, quanto abreviam a nossa degola, graças a presunção do domínio circunstancial. Se este homem estiver dizendo a verdade,
perderemos nossas cabeças. ***

No contato seguinte, Flening expôs ao Ramos a necessidade dele seguir para os Estados Unidos sob a proteção da CIA. Ramos quis saber o que estava sendo

feito para evitar o uso da arma biológica. Mas Flening evitou o assunto dizendo que a CIA o informaria a respeito. Foi marcado local e hora para o contato
com os agentes encarregados da operação de guarda e remoção. Flening se dirigia para o carro quando Ramos fez a pergunta em tom de afirmação. - Eles ignoraram!
Não é mesmo?!

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- Sinto muito estou fazendo o melhor que eu posso. - Guarde seus sentimentos para as vítimas deste engano. Na noite do mesmo dia, Ramos embarcou em uma
aeronave militar com bandeira dos Estados Unidos. Acompanhado

por agentes da CIA e técnicos de órgãos de controle epidemiológico, ele viajou usando trajes especiais. As roupas parecidas com as utilizadas por astronautas
eram um pouco

desconfortáveis, limitavam os movimentos, mas Ramos havia se preparado psicologicamente para enfrentar toda sorte de procedimentos necessários à elucidação
da verdade. O importante era ganhar a corrida contra o relógio, poupando do sofrimento milhões de famílias. O vôo estava demorando excessivamente

para acabar. Apesar de estar sem relógio e de não haver janelas, Ramos calculava ter percorrido o suficiente para ir e voltar aos Estados Unidos. Ou estavam
voando em círculos ou o destino era outro. Médicos aproveitaram ao máximo o longo

tempo de vôo. Os dados colhidos através de sensores ligados à roupa, usada pelo Ramos, e os obtidos por meio do questionamento feito pela médica foram inseridos
em computadores portátei s.

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*** Ramos foi avisado pelo rádio do capacete quanto ao início do procedimento de descida. A voz, feminina, era da médica epidemiologista

responsável pela equipe médica a bordo. - Quando chegarmos precisarei coletar amostras de sangue e tecidos, tudo bem para você?

É claro que tinha de estar tudo bem, concordando ou não, as amostras seriam obtidas da mesma forma. Mas a doutora fazia questão de manter a dignidade da
situação. Depois de descer da aeronave Ramos foi embarcado em uma espécie de furgão. O automóvel, de tamanho semelhante ao de um microônibus, aparentava
estar preparado para

atender até mesmo à necessidade de procedimentos cirúrgicos de emergência. A cabine com espaço para três pessoas, incluindo

o motorista, ficava isolada do amplo compartimento traseiro, para onde Ramos foi conduzido. Sentado em um pequeno sofá, provavelmente colocado ali para
oferecer o

mínimo de conforto à equipe médica embarcada durante deslocamentos longos, Ramos observou os detalhes do ambiente. Muito bem iluminado, o lugar possuía
prateleiras com

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instrumental médico, leito retrátil e um segundo compartimento junto ao teto, no qual estava fixado uma maca. A predominância de cores metálicas conferia
ao ambiente um ar futurista. Junto ao Ramos, na parte de trás do

veículo, entraram mais dois homens usando ternos pretos. Eram agentes encarregados da segurança em terra, substituindo os vindos na aeronave. Nos fones
de ouvido colocados dentro do

capacete a voz da doutora mantinha aberto o canal de comunicação com Ramos. - Estamos nos dirigindo para um local

onde você poderá repousar. - dizia a médica. Ela estava embarcada no veículo da frente, um carro de passeio tipo sedam. Durante o transporte Ramos adormeceu,
eram os primeiros minutos de sono das últimas trinta e oito horas. Acordou sentindo o corpo

sendo projetado de encontro às paredes do veículo. A roupa o protegeu dos impactos da capotagem e também isolou parte do som externo. Entretanto, ainda
assim, foi possível

ouvir sons parecidos com os de tiros. O rádio estava mudo. Após os giros o carro voltou a posição normal. As luzes internas piscaram algumas vezes e depois
deixaram de funcionar. Os dois agentes estavam desacordados. Ramos olhou em volta, as luzes ainda piscavam, recolheu as armas nos corpos e começou a tirar

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a roupa de isolamento. Uma explosão sacudiu o carro. Sem o capacete ficou mais claro o som da ação desencadeada fora do furgão. Tiros e gritos cercavam
o carro. Passados instantes a confusão terminou. O silêncio sinistro anunciava que o pior estava por vir. Perto da porta do compartimento traseiro do furgão
surgiu uma linha incandescente. Avermelhada, a chama seguiu o contorno da

entrada cortando o metal de maneira semelhante ao mergulho da brasa em manteiga. Arrombado o furgão, três vultos chegaram perto da entrada. Estava escuro,
as silhuetas contrastavam com a luminosidade residual existente do lado de fora. O arrombamento produziu muita fumaça, dois feixes avermelhados cruzaram
o perímetro interno do

veículo. O laser dos sistemas optrônicos de pontaria, usados nas armas dos visitantes, ficava exposto ao atravessar a densa cortina de

fumaça. Duas pessoas entraram no furgão, a terceira ficou junto a abertura. Com dois tiros por homem, os agentes foram executados ali

mesmo. O som oco surgido junto aos disparos indicava, para ouvidos experimentados, tiros na cabeça. Aquele grupo usava supressores de ruído, Ramos deduziu
ser da equipe

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responsável pela segurança do comboio os disparos abertos ocorridos até instantes atrás. Os dois homens se aproximaram do macacão branco caído no final
do compartimento. Deitado de barriga para baixo, as mãos retorcidas e sem movimento algum. A pessoa dentro das vestes parecia também estar desacordada.
Havia alguns objetos sobre o

macacão. Direcionando os dois pontos vermelhos para o capacete os homens executaram vários disparos. Um deles se abaixou ao lado do macacão e acendeu uma
lanterna. O outro levantou o capuz, colocou a submetralhadora presa à bandoleira para as costas e começou a tossir. - Vamos logo com isso. Esse canalha

era, a fumaça está me matando. O grupo falava português. O homem parado na porta estimulado pela atitude dos companheiros adiantou- se. - Vocês estão seguros.
Vou passar à fase dois. - ao dizer isto, ele sumiu do campo de visão da abertura. O sujeito agachado ao lado do traje, colocou a arma no chão, passando
a girar o capacete na tentativa de ver o rosto de quem o vestia através do vidro. Esperava ver sangue e um rosto, conhecido, deformado. - Meu Deus! - O
que foi?

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Não ouve tempo para a resposta ou gritos. Ramos despencou sobre os dois, saindo do compartimento da maca, junto ao teto. No caminho, as finas lâminas de
bisturis romperam os pescoços dos visitantes indesejados. Os dois corpos arquearam. Pelas aberturas feitas nas gargantas o pulmão ainda soprou algumas
vezes, misturando o tétrico ronco abafado aos esguichos, cada vez mais fracos, de sangue. As duas submetralhadoras e as granadas de mão

foram recolhidas. Antes de sair do furgão, Ramos retirou o pino de uma granada, colocando- a embaixo do corpo do homem sem o capuz. Iluminada pelo luar
a estrada, emoldurada pelo deserto, mostrava a ferocidade da ação. Veículos fumegantes, pessoas mortas estiradas no asfalto e estilhaços, estavam espalhados
em torno do furgão. Das areias do deserto, Ramos ouviu a explosão. Alguém encontrara o presentinho deixado para trás. Descalço, vestido apenas com bermuda
e camiseta de malha, ele corria o

mais rápido possível. As duas submetralhadoras estavam presas ao corpo pelas bandoleiras, em uma das mãos Ramos segurava o capuz, retirado de um dos homens
degolados, dentro dele iam as granadas e uma

das pistolas. Na outra mão ele segurava a segunda pistola.

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Imediatamente depois da explosão os faróis de dois veículos começaram a avançar rumo ao interior do deserto em sentidos opostos. Um deles vinha para onde
Ramos estava. Percebendo a impossibilidade de ganhar terreno, Ramos parou de correr. Abaixado, ele tirou a camiseta branca e a vestiu no arbusto ressecado
encontrado no caminho. Próximo dali havia um amontoado de pedras. Tropeçando diversas vezes e sempre olhando para o carro cada vez mais perto, ele se abrigou
na formação

rochosa. Colocando as armas ao lado do corpo, ele respirava ofegante repetindo em voz baixa: - Pense e aja como caçador e não como caça. A camionete veio
na direção do arbusto. Chegando ao lado da camiseta reduziu a velocidade. Usando a submetralhadora Ramos disparou duas rajadas sobre o veículo. A buzina
disparou, o homem ao volante foi atingido na primeira seqüência de disparos. Em resposta uma chuva de tiros varreu o abrigo rochoso. Sob fogo intenso,
Ramos lançou duas granadas de mão. Objetivava acertar o terreno

poucos metros além da porta do carona. Ao arremessar a segunda granada ele sentiu uma

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picada no braço esquerdo, que estava apoiado sobre algumas pedras. O farol e a buzina continuavam acionados. Os dois outros ocupantes da camionete

haviam desembarcado e usavam a lataria do carro como abrigo para a realização dos disparos. As explosões sucessivas das granadas extinguiu- lhes a vida.
Cessada a ação, Ramos com muita

cautela foi até o carro, seu braço estava dormente parecia pesar uma tonelada. Encontrou os corpos de dois homens e uma mulher. Usavam roupas escuras. O
homem debruçado no volante foi retirado do assento, motor e faróis foram desligados. Juntado as peças de roupas dos mortos, Ramos vestiu uma

calça, colocou meias e sapatos, deixando o busto nu. O braço esquerdo estava paralisado o que dificultava os trabalhos. Depois de recolher as carteiras
e demais pertences nos cadáveres, Ramos deu a partida

na camionete seguindo com os faróis desligados em direção contrária à estrada. Por sorte nenhum dos pneus fora danificado durante o embate. O luar ajudava,
iluminando parcialmente os raros obstáculos da planície desértica. O braço doía demais. Ramos soltou o volante e correu a mão direita pelo ombro esquerdo,
descendo em direção ao cotovelo. No

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meio do caminho encontrou pontas de ossos expostos. Imediatamente tirou a mão suja do local. A perda de sangue estava causando a sensação de desmaio. Mais
a diante ele parou o carro. Observando em volta não viu qualquer movimento ou luminosidade, havia apenas silêncio e areia. Forçando o cotovelo esquerdo
para baixo, ele conseguiu fazer o osso voltar para dentro da

carne. A confusão de músculos e nervos pressionados na manobra somavam à dor insuportável a sensação de descargas elétricas, irradiadas até o pescoço. Com
o material de primeiros socorros encontrado no porta luvas, Ramos fez um curativo. Em seguida, usou as paletas do triângulo de sinalização para improvisar
uma tala de imobilização para o membro fraturado. Voltando à direção, Ramos guiou a

camionete pelo terreno desconhecido até restar apenas um quarto de combustível. Depois desembarcou levando consigo as armas, carteiras e o estojo de primeiros
socorros. O volante do veículo foi amarrado, de maneira a manter uma trajetória retilínea mesmo sem a presença do motorista. Com a caixa de ferramentas
ao acelerador, a camionete desembestou. Seguiria deserto adiante com a missão de dificultar o rastreamento que, com certeza, seria desencadeado.

449

*** Começava a ventar. Em lugares iguais àquele correntes de ar são doloridamente sólidas. A grande quantidade de areia carregada pelo vento machucava o
dorso desprotegido de Ramos. Em questão de minutos não foi mais possível, sequer, abrir os olhos sem o uso de

algum anteparo. Enquanto caminhava com a camisa amarrada pouco acima da ponta do nariz, Ramos sentia arrepios. Eles talvez fossem resposta do organismo
ao frio, acentuado pelo vento. Também era possível que o ferimento o estivesse induzindo ao estado de choque. Sede, vertigens e dificuldade para concatenar
idéias apontavam para a segunda hipótese. Engolidas pela ventania, as pegadas deixadas para trás não serviriam à equipes de

rastreamento. Cada passada foi se transformando em tormento. O corpo insistia em não avançar, a mente estava tão confusa e leve quanto a dança da areia
ao seu redor. Ramos sentia o braço esquerdo explodindo e esvaziando, o latejar aumentava minuto a minuto. Vencido pela

exaustão, ele tombou enterrando o lado direito da face na areia do deserto.

450

*** - O senhor mandou me chamar General? - Sim, Flening. Entre, fique à vontade! - Alguma missão nova?

O General Peter Maier estava com documentos à mão. A testa franzida e o charuto irrequieto no canto da boca, eram típicos de quando ele se achava pressionado.
Enquanto esperava a atenção do superior, Flening se levantou, caminhando até o

detalhado mosaico preso na parede ao lado da porta. As fotos de satélite, trabalhadas com os filtros adequados, mostravam nuances pormenorizados da área
de responsabilidade da

Força de Intervenção Norte Americana. - É um lugar interessante, não é mesmo filho?! - Sim senhor! - Mas começo a achar que a conta da

entrega à domicílio vai ser alta demais. - Do que o senhor está falando? - Lembra daquele teu informante? O cara com a estória de guerra biológica que nós
despachamos para um dos nossos laboratórios militares, por via das dúvidas?

- Claro, providenciamos o embarque e segurança dele há quase uma semana. Pareceu- me bem intencionado.

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- Ele jamais chegou à nossa Base! O comboio foi atacado e o homem simplesmente desapareceu, evaporou nas areias do deserto. - Então ele realmente estava
sendo caçado. - Esse é o problema Flening! Nós sabíamos, tínhamos conhecimento da ameaça

e sub julgamos os nossos inimigos. - Não estou entendendo! - Os relatórios sobre a minha mesa; eles relatam o surgimento de uma estranha virose. Pessoas
com os sintomas descritos pelo oficial brasileiro estão sendo hospitalizadas em vários pontos diferentes do nosso país. Existem casos de vítimas que nem
mesmo chegaram ao atendimento médico. Essas pessoas simplesmente suicidaram- se depois de horas de dor e tormento. Na Califórnia, Texas, Mississipi e Flórida
novos casos estão surgindo

em proporção geométrica. Flening ouvia boquiaberto. - Estamos controlando, só Deus sabe por quanto tempo mais, a veiculação destes casos. No entanto, a
continuar assim o Presidente vai levar a público o assunto. Vai ser difícil evitar arroubos de pânico. Os sintomas descritos nos relatórios são cruéis
mesmo para uma Nação de homens e mulheres fortes como a nossa. - Em que posso ajudar general?

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- Preciso que você encontre aquele militar! Coronel, acredite, poucos homens conhecem o lugar o bastante. A CIA está trabalhando no caso há cinco dias sem
resultados. Viaje ainda hoje, temos um caça em alerta ele será sua carona. - Sim senhor. Em poucas horas estarei

Nos Estados Unidos. Qual de nossas Bases era o destino do comboio atacado?

- Kuwait! - Kuwait, senhor!? - Por questões de segurança estávamos levando o oficial para uma Base Militar no Kuwait. A missão era de conhecimento restrito
aos cientistas envolvidos nos exames, os agentes da CIA e o Comando da Base. Ainda não sabemos a maneira pela qual o sigilo foi quebrado. Sua experiência
na região foi lembrada pelo Estado Maior e eu o recomendei pessoalmente ao Presidente. Você será a solução extra oficial, nem mesmo os órgãos de inteligência
saberão de sua presença no Kuwait. Não podemos explicar às autoridades locais que levamos, sem aviso prévio, um possível

vetor de contaminação para dentro do seu território. Muito menos assumir a perda do controle sobre ele. Já basta toda a celeuma criada com aquela tal "Síndrome
dos Bálcãs". Negamos qualquer ligação entre as doenças e

as mortes dos veteranos que serviram em missões nos Bálcãs e o emprego da munição

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com ponta revestida de urânio reciclado. E mesmo assim ainda encontramos resistência para operarmos novamente junto a OTAN. As mães dos jovens atingidos
pedem até hoje a desativação das bases de onde partiram os bombardeios e culpam também os governos de seus países pela omissão. Não podemos errar novamente!
- Vou trocar de roupa. Com licença, senhor. - Flening, mais um detalhe. Nosso inimigo é o tempo. As projeções feitas pelos especialistas não são nada animadoras.
Na

melhor delas, em noventa e seis horas um terço da população de nosso país terá sido atingida. Boa sorte! ***

Voltando do estado de inconsciência, Ramos com a visão ainda turva, identificou a forma de uma pessoa de pé ao seu lado. Havia cheiro de perfume no ambiente.
As roupas de cama eram macias e limpas. Passados alguns segundos, ele despertou completamente. A nuca estava dolorida. Duas bandagens repousavam sobre
as suas mãos, debaixo de

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uma delas saía o fino tubo incolor do soro fisiológico ministrado por via endovenosa. Ao ver o homem despertar o garoto saiu do quarto gritando algo confuso.
Ramos tentou sentar, mas o corpo estava atado à cama por pequenas tiras de tecido. O esforço da tentativa

fez o braço ferido doer profundamente. A dor trouxe de volta a lembrança dos últimos acontecimentos. Um homem usando terno e um pano branco preso à cabeça
por cordões pretos entrou no quarto falando alto e sorrindo. Ramos olhou curioso para ele. Não conseguia entender o que estava sendo dito, porém a atitude
do homem parecia ser amistosa. Ramos arriscou algumas palavras, voltando a tentar ficar sentado. O desconhecido pôs as mãos sobre o seu peito, indicando
por mímica que seria melhor não fazer esforço. - Você fala inglês? - a pergunta veio em ritmo mais lento, com as palavras postas pausadamente em um inglês
claro. - Sim. Quem é você, por que estou

preso!? - Sou Mourmah Assan, eu e minha família estamos cuidando de você. Tivemos de prendelo à cama para evitar ferimentos durante os delírios. Quando
o trouxeram do deserto estava com as mãos e a nuca bastante feridas pela

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exposição ao sol. Sua sorte foi ter sido parcialmente enterrado nas areias. Meu médico fez uma pequena cirurgia em seu braço, vai ficar tudo bem. - Obrigado.
Por quanto tempo estive desacordado? Estou sedento. - Foi trazido há quatro dias. De onde você é?

- Não me lembro! Disse Ramos, preferindo o anonimato. - Meu médico ficou assustado, disse que você não pode ser daqui! Ramos esboçou um sorriso e franziu
a testa, balançando a cabeça afirmativamente. A resposta veio na forma de outra pergunta. - Mas você também não parece ser daqui! Mourmah olhou curioso
para o homem deitado a sua frente. - Aonde pensa estar, senhor...? - o tom reticente do final da pergunta propunha ao

Ramos completá- la com o seu nome. - Acho que é Ramos. Não tenho certeza. - Então senhor Ramos, onde pensa estar? - Nos Estados Unidos da América. O homem
soltou uma gargalhada, voltando a falar alguma coisa na língua desconhecida. - Sua nave pousou no lugar errado. Disse Mourmah em inglês, ainda rindo.

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- Pousei , foi ?! - Estamos no Kuwait. E você quase matou o meu médico de susto, até mesmo eu só acredito por que vi com os meus próprios olhos. - Viu o
que?

- Quando chegou, trazido do deserto, pensei que não sobreviveria. Mesmo assim mandei buscar o meu médico. Havia um curativo neste braço e muito sangue misturado
à areia. Depois de avaliar o estado geral o doutor propôs leva- lo para um hospital, pedi para resolver tudo aqui em casa mesmo. Trouxemos todo o material
necessário aqui para casa e o doutor começou a trabalhar. De repente ele surgiu na

sala, os olhos estavam saltados. Falava em coisas confusas e me disse que você não era como as outras pessoas...

- Aonde quer chegar? Até eu já estou curioso! - Ramos interrompeu a narrativa de Mourmah, estava ficando difícil continuar a conversa. Os ouvidos estavam
zumbindo e a cada frase dita o esforço era maior. - Seus ossos são verdes. Pelo menos os deste braço são. Ei, está tudo bem?

As luzes se apagaram novamente. Ramos permaneceu desacordado mais algumas horas. Quando voltou a si, um senhor de cabelos brancos e estetoscópio sobre o
ombro falava algo ao lado da cama.

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- Bem! Nosso marciano está de volta! O inglês do doutor era sofrível. Seu olhar inspirava tranqüilidade e confiança. Aparentava ter idade acima dos setenta
anos. A pele do rosto cansada em rugas, de cor acanelada, contrastava com os fios alvos da cabeleira muito

bem aparada. - O senhor pode me desamarrar. Preciso ir ao banheiro. - É só fazer. Colocamos uma sonda, fique à vontade. - Tudo bem, mas ainda assim quero
me sentar. No dia seguinte Ramos saiu da cama. Usando roupas emprestadas e ainda um pouco

zonzo, conheceu em meio à fartura da refeição posta à mesa a família do Mourmah. A forma luxuosa de viver do anfitrião chamou a atenção. Após o almoço,
Mourmah e Ramos ficaram a sós na biblioteca. - É uma bela família, uma benção. Vejo

que gosta de boa leitura. - Sim alguns exemplares estão na família há séculos. É melhor sentarmos! O doutor recomendou- lhe repouso, não vamos abusar. -
Mourmah, por que está me ajudando?

Pelo visto você é um homem de posses. Não acha arriscado trazer para o seio de sua família um desconhecido, encontrado ferido no meio do deserto por um
bando de mercadores? Também

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não entendo a sua falta de curiosidade à respeito de minha origem ou motivo do ferimento. Seria mais conveniente e seguro encaminhar- me para o hospital
mais próximo. Ainda assim terias salvado a minha vida. - Não duraria um dia nos hospitais. - Por que tanta certeza?

- Os homens atrás de você, eles recebem apoio do Mossad. Não sei o que andou fazendo rapaz, mas sozinho sua vida não vale algumas pedras de sal. - Como
sabe sobre o Mossad?

- Quando se tem dinheiro e influência política poucas coisas continuam secretas. Minha família controla metade dos poços de

petróleo do Kuwait. Decidimos a maneira pela qual pessoas do outro lado do planeta irão para o trabalho e até mesmo se eles ainda estarão lá quando elas
voltarem no dia seguinte. - E ainda assim se arrisca?

- Por razões particulares ajudo à qualquer um com problemas com o Mossad. Só não ajudo terroristas e traficantes. Ah, ia me esquecendo, agora ajudo a marcianos
também. - Mourmah apontou para o ferimento no braço do

Ramos. Em seguida colocou a mão espalmada sobre o vidro da mesa. As estantes no fundo da biblioteca se moveram, revelando as portas de um elevador.

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Os dois passaram o resto da tarde conversando nos subterrâneos da casa. Lugares preparados para alimentar mentes curiosas e, se preciso, abriga- las de

bombardeios. Pouco antes das dezoito horas, o elevador os trouxe de volta dos vinte metros abaixo da casa. Mourmah tinha um compromisso, se ausentaria durante
algumas horas. Ramos voltou para o quarto, apesar da

tensão tentava repousar. Segundo o acertado com Mourmah, o dia seguinte seria movimentado. ***

- Ainda está acordado? - Sim, entre. Mourmah entrou no quarto. Ele afrouxava

o nó da gravata enquanto falava. - Estava certo. A CIA está revirando cada grão de areia à sua procura. Precisaremos antecipar o vôo. Acha que agüenta viajar
ainda esta noi te.

- Si m, cl aro. Estou bem, m as como... - Não se preocupe! Mourmah já providenciou a viajem e algumas outras coisas para você. - Quando parto?

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- Pode ser agora? - Sim. - Então coloque estas roupas. Um dos meus aviões, o de maior autonomia, está abastecido e pronto para a partida. A tripulação

receberá o plano de vôo real quando você estiver embarcado. Conversaremos mais no helicóptero, à caminho do aeroporto. Mourmah saiu do quarto deixando sobre
a cama um belo terno cortado em tecido azul petróleo. No lado do braço ferido o paletó não tinha manga, terminando junto ao ombro de maneira semelhante
a um colete. Quando Ramos chegou à sala, Mourmah o aguardava em pé ao lado de um dos sofás. Ele segurava um sobretudo de cor escura. - A solução do alfaiate
também me pareceu estranha, mas é a mais prática para

comportar o uso da imobilização. Tome, use isto sobre os ombros, irá ocultar o braço e tudo mais. Sei que não é a veste mais apropriada para o clima de
nosso país, mas no seu destino faz frio nesta época do ano. A caminho do aeroporto, os dois repassaram o que seria feito. - Não acha possível o Mossad
ou a CIA estar monitorando os embarques privados. - Fique tranqüilo Ramos. Eles de fato estão por toda a parte, mas sempre chegam atrasados.

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Os dois permaneceram algum tempo calados. O helicóptero era silencioso, seu interior havia sido preparado para oferecer conforto aos ocupantes. - Você tem
coisas boas no coração. É difícil acreditar que está arriscando sua vida, sua

profissão pela integridade das famílias de inimigos. Ramos respondeu a afirmação com o

silêncio. Encolhendo os ombros e inclinando ligeiramente a cabeça para o lado, enquanto pressionava os lábio e franzia a testa, ele manteve o olhar fixo
em Mourmah. No aeroporto, momentos antes de embarcar, Ramos se despediu de Mourmah. Sem a ajuda dele ou estaria morto ou prisioneiro em algum lugar esquecido,
muito menos poderia dar prosseguimento à tarefa proposta. - Vá em paz. Quando isto tudo acabar volte, ficaremos honrados em recebe- lo. - Obrigado por
sua confiança Mourmah. Fique em paz. Sei que é um homem bem informado, saberá do andamento dos fatos.

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Jupará No salão oval da Casa Branca, o Presidente dos Estados Unidos ouvia mais más notícias, desta vez trazidas pelo diretor da CIA. - Perderam o sujeito
bem debaixo de nossos queixos e agora não conseguem encontrá- lo. Enquanto isso, milhares de americanos adoecem. São atacados, massacrados em suas mentes
por um inimigo invisível. Essa coisa tem de ser detida e você vem me falar de prazos. Pessoas estão morrendo e eu sou o responsável por elas. A porta da
sala foi aberta. O Secretário de Defesa entrou, ele segurava uma folha de papel. Nervoso, indiferente ao dialogo, o secretário se dirigiu ao presidente.
- Senhor! Esta mensagem chegou aos nossos servidores há pouco. É nominal para o

senhor. Não conseguimos rastrear a origem. - Está bem, deixe- a aí em cima da mesa. - Presidente, é melhor o senhor olha- la o quanto antes. - Mas o que
é afinal! - Um homem dizendo precisar de segurança e uma audiência com o senhor. Assina apenas como Ramos. No final da mensagem tem uma hora zulu e uma

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freqüência. Ou é mais um pirado em busca do minuto de fama ou o milagre de que precisávamos aconteceu. Os homens na sala entreolharam- se. - Pois bem, vamos
tentar. Quanto tempo

até a hora zulu estabelecida para o contato. - Quinze minutos senhor. Voltando a atenção para o diretor da CIA, o presidente entregou o papel recebido das
mãos do Secretário de Defesa. - Quero que coordene as ações. Na hora do contato rádio falarei pessoalmente com ele, me avise. Pode ir. Quando o Diretor
da CIA saiu o Presidente deu a volta na mesa , chegando bem perto do Secretário de Defesa. Passando a falar de maneira menos formal. - Como está a situação?

- Fora de controle, uma epidemia. Já chegou às nossas casas senhor. - Chegou? - Hoje, pela manhã perdi minha filha mais velha. Depois de dois dias urrando,
mesmo sedada, ela não resistiu às dores e morreu. - Sinto muito. Qual foi a resposta dos nossos laboratórios? - O agente é desconhecido, ele parece ter
inteligência de reestruturação genética. A coisa age por caminhos diferentes em cada vítima. Os cientistas estão trabalhando incessantemente.

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Alguns geneticistas chineses vieram colaborar com as nossas equipes. Estão registrando ocorrências semelhantes na China. - O que você acha deste rapaz brasileiro?

- Devemos ouvir o que ele tem a dizer. Na hora marcada o piloto do avião sintonizou a freqüência passada pelo Ramos após o embarque. - O senhor pode falar
quando quiser, estamos na freqüência alvo. Ramos olhou para os números no painel

da aeronave. O mostrador com a hora zulu indicava os breves instantes de resto para o início da comunicação. Os fones ao ouvido estavam em silêncio, a freqüência
escolhida não estava em uso naquele momento por outras pessoas. - Audiência! Aqui fantasma, cambio! Sem haver combinado os indicativos para operar a

comunicação anteriormente, Ramos resolveu improvisar. Depois da primeira chamada ele ficou aguardando resposta. Enquanto esperava, os poucos segundos de
silêncio, levaram- no a

cogitar as causas de um possível insucesso. Talvez Mourmah não tivesse conseguido enviar a mensagem ou talvez os americanos tenham ignorado a sua ajuda.
- É ele presidente! Nosso homem está chamando. Responda com o indicativo "Audiência" senhor. - o Diretor da CIA apertou a

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tecla tornando a comunicação rádio aberta ao sistema de viva voz. Naquele cômodo da Casa Branca o silêncio aguardava as palavras do

presidente emoldurado em olhares aflitos. - Fantasma! Aqui Audiência, recebemos você alto e claro, Cambio! - Fantasma precisa de um ninho, asas cansadas.
Informe coordenadas. Cambio! Depois de ouvir a solicitação feita por Ramos a sala onde estava o presidente ferveu. Assessores e agentes puseram- se à trabalhar.
- Ele deve estar querendo uma pista para pousar. Precisamos garantir a integridade desse vôo. Mandem dois de nossos caças decolarem agora. Quero uma escolta
para o

avião deste rapaz. E quero ele pousando em uma Base militar. - Mas senhor, não sabemos a localização da aeronave. Nem mesmo sabemos se ela já está no ar.
- o Diretor da CIA estava transpirando em excesso, apesar da temperatura ambiente agradável. - Este sujeito, seja lá ele quem for, não

parece ser um amador. Ele pensa e age de maneira a estar sempre um passo na dianteira. Se não fosse assim não estaríamos ouvindo- o. Um dos oficiais de
alta patente presentes propôs a solução. - Senhor, peça um plote. - Pedir um plote?

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- Sim presidente. Se ele estiver em uma aeronave equipada com sistema de iluminação de ponto de destaque em radar o piloto saberá o que fazer. Quando usarem
este recurso, saberemos com precisão a localização do vôo. - Fantasma! Aqui é audiência, cambio! - Prossiga audiência! - Audiência precisa preparar o ninho
no

lugar certo, cambio! O presidente preferiu arriscar o palpite de que o interlocutor leria as entrelinhas. Testas foram franzidas na sala. No avião, Ramos
colocou a mão no

ombro de um dos pilotos perguntando se existia alguma maneira de distinguir aquele vôo dos demais nos monitores dos controladores de

tráfego aéreo. - Sim, temos. - Então faça agora. Minutos mais tarde, dois Caças passaram a escoltar o avião onde estavam Ramos e os pilotos. *** Depois
do pouso, Ramos foi revistado e levado a uma das salas da Base Aérea usada para acolher o seu vôo. Militares fardados

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circulavam pelos corredores em meio a diversos homens à paisana. No momento em que o presidente deixava a sua equipe para ir ao encontro do Ramos, o

Secretário de Defesa interveio. - Senhor, pessoalmente acho arriscado o senhor ir até esse sujeito. Pode ser uma armadilha, ele pode ser um vetor de contaminação
usado para deixar o país acéfalo. - General, temos milhões de americanos contaminados. Condenados à morte, de

maneira semelhante à sua filha. Acéfalo estará os Estados Unidos da América se nós não estivermos dispostos ao grande sacrifício em nome de nossas famílias
- dizendo estas palavras o presidente deu as costas aos homens emudecidos. A mente do homem de muitas responsabilidades fervilhava. A caminhada

pelos corredores de ligação entre o gabinete do comandante da Base, onde estava reunido aguardando o pouso da aeronave, e a sala de triagem serviu ao Presidente
para repassar a abordagem escolhida. Ao entrar na sala o presidente encontrou

Ramos sentado na mesa, com o sobretudo estendido na cadeira ao lado. O terno azul petróleo, chamava atenção pela ausência do tecido sobre o braço esquerdo.
Descobertos, o

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curativo e a imobilização do ferimento de Ramos contrastavam com o figurino. - Ramos, não é mesmo?! - o presidente andou na direção de Ramos com a mão estendida,
propondo o cumprimento pelo aperto de mãos. Ramos pulou da mesa e apertou a mão

do homem de expressão aparentemente plácida. - Precisei envolve- lo pessoalmente nisto. Acho que deve saber do contratempo do Kuwait?

Não sei até onde existem pessoas interessadas em deixar o pior acontecer! - E o que é o pior Ramos? - Já começou. Pessoas inocentes estão morrendo de uma
maneira medonha. As vítimas deste episódio não estarão em campos de batalha distantes, estarão na sala de jantar de suas casas. Vidas do seu povo, consumidas
pela dor, serão ou melhor, já estão sendo

usadas à serviço de disputas que, quando muito, deveriam ficar restritas ao último argumento das Políticas de Estado. - E o que você propõe?

- Temos de vencer a corrida contra o relógio. O senhor deve ter sido informado à respeito da minha participação nisto tudo?! Foi do meu sangue que retiraram
o princípio de funcionamento desta arma biológica. Tive de fugir do Brasil, era a única maneira de evitar a

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culpa pelo assassinato de tantas pessoas. Proponho que estudem o meu sangue. Nele encontrarão a alteração criada por uma doença tropical rara, contraída
na Amazônia, e provavelmente o antídoto para a arma biológica. Os dois conversaram mais algum tempo. O hábil Chefe de Estado, político profissional, poderoso
senhor das milícias interventoras da

Amazônia, dialogava de igual para igual, do alto de seus cinqüenta e dois anos, com o jovem estrangeiro de olhar penetrante e passado anônimo. ***

Apesar das tentativas de controlar a veiculação das notícias sobre a epidemia que assolavam o território Norte Americano e Chinês, aos poucos as informações
foram vazando. Alertas quanto aos riscos de contágio e

enfurecidos pela política de acobertamento, tentada pelos governos dos Estados Unidos e da China, diversos países fecharam seus portos, aeroportos e fronteiras.
Produtos e pessoas procedentes dos territórios onde a peste se alastrava não entravam nos países livres da doença.

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Mesmo os poderosos interesses comerciais e econômicos sucumbiram ante o instinto de sobrevivência. Pactos silenciosos, eqüidade de balanças comerciais,
acordos de cooperação mutua, todos foram cinicamente atropelados. Passados oito dias, desde a coleta da

primeira amostra de sangue do Ramos, os cientistas ainda trabalhavam diuturnamente sem obter progressos. Fora das paredes estéreis dos laboratórios metade
da população dos Estados Unidos da América estava contaminada. O número de mortes crescia a cada instante. Corpos começavam a amontoarse em locais públicos.
A economia estava paralisada, o restante da força produtiva do país buscava no isolamento de suas residências ou

áreas desertas a solução para evitar contaminar- se. O inimigo era invisível. Patrão, o vizinho ou o caixa do supermercado, qualquer um poderia ser o portador
da peste. A pessoa que traria para o seio da família a morte dolorosa. Na China o quadro não era diferente. Até

um pouco mais assustador. Meio bilhão de pessoas mortas em pouco mais de uma semana. Segundo os cientistas, o clima quente tornava mais eficaz ainda a arma
biológica. No entanto a grande alavanca de disseminação da doença na China foi a falta de informação. O

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governo temendo o pânico restringiu o conhecimento do povo, controlando os meios de comunicação. Quando a população despertou para a realidade, cadáveres
já tomavam lugar à calçada. Uma onda de descontentamento varreu o país. E o governo chinês passou a enfrentar duas frentes de combate ao mesmo tempo. A
epidemia e a insurreição da vontade popular, pedindo a deposição imediata dos governantes. O golpe sofrido à retaguarda foi mais forte

do que a vontade de permanecer em combate e muitos dos militares da Força de Intervenção na Amazônia começaram a desertar. Para evitar a perda completa
do controle sobre a situação, os comandantes militares se viram obrigados a

repatriar os combatentes desejosos. Em pouco tempo não havia maneira de sustentar as operações no território estrangeiro. Os militares ainda operativos
estavam com o moral abatido, sem motivação para prosseguir. A batalha em suas casas estava sendo perdida e eles nada

podiam fazer para ajudar, nem mesmo estar presente para oferecer o conforto do calor humano. Acusações de uso de guerra biológica feitas pelos governos
dos Estados Unidos e China contra o Brasil resultaram em amplo debate internacional. O governo brasileiro repudiou, desde o primeiro instante, qualquer
possibilidade de envolvimento seu com os

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lastimáveis acontecimentos hora observados nos dois países. Reiterando, ainda, a conduta de Estado contrário à agressões e a quaisquer outras manifestações
lesivas à vida, integridade e liberdade de seus cidadões e de outrem, como atestado pela dignificante história pacífica do povo brasileiro. A comunidade
científica européia

comentava a possibilidade de estar- se diante de um mal causado pela penetração de homens geneticamente despreparados em uma região

totalmente desconhecida do planeta. Isso explicaria o porquê do surgimento dos primeiros casos justamente nas circunvizinhanças das Bases Militares onde
havia militares envolvidos na Intervenção na Amazônia. Depois de terem estado no coração da Selva, estes militares tiveram contato com parentes, vizinhos,
motoristas de táxi e tantas outras pessoas por fim contaminadas. Mas o Governo Norte Americano tinha o testemunho de Ramos, o seu sangue era a melhor prova
de que os cientistas da Comunidade Internacional estavam enganados. Os estudos começaram a apresentar os primeiros resultados. Várias vacinas passaram
à fase de testes. Ramos estava fazendo a sua

parte, colaborava com as baterias de exames e testes requeridos pelos médicos. Também

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recebia tratamento para o ferimento no braço. Uma nova cirurgia foi feita no local. Apesar de muito pressionado, Ramos se negou terminantemente a pronunciar-
se à respeito do caso com a imprensa. Deixando claro a distância entre o gesto humano de tentar poupar vidas inocentes e a traição. Por ordem pessoal do
presidente, ninguém mais estava autorizado a tocar neste assunto com Ramos. Ele entendia o que se passava na cabeça do

jovem oficial. Todas as tardes os dois conversavam por uma hora ou mais. *** - O meu país está sendo devastado. E o pior é a impotência diante da realidade.
- o presidente falava com as duas mãos nos bolsos da calça olhando para a bandeira dos Estados Unidos existente no fundo da sala onde ele e o

Ramos conversavam. Fazia frio do lado de fora. A neve caída nas últimas trinta horas acumulavase pelas ruas e passeios. - Como estão os estudos? Conseguiram
algo capaz de amenizar, pelo menos, as dores? - Estão tentando. - E nos outros países.

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- Começam a surgir os primeiros casos, apesar dos cuidados tomados. É difícil restringir por completo a movimentação das pessoas. Algumas cruzaram as fronteiras
a pé. Imaginavam estar fugindo do mal, infelizmente eles o levaram consigo. - E o meu país? - Eles negam qualquer envolvimento. Há algo que desejo contar
pessoalmente a você. - O que é?

- Anunciaremos esta noite uma retaliação militar ao Brasil. Em meio a toda essa desgraça a única forma de manter o espírito da nação altivo é alimentar
a sede de justiça. - Se o senhor chama de justiça

assassinar civis inocentes, fazendo por outros meios exatamente o que eu tento evitar aqui, vá em frente. O presidente ficou em silêncio. Por instantes,
foi possível ouvir o chiado das lâmpadas ao teto. *** Anunciada à imprensa a retaliação militar ao Brasil começaram a surgir as primeiras reações. Com
exceção da Inglaterra, a Europa alinhou- se à Rússia e ao Japão, emitindo nota à

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imprensa advertindo que não seria tolerada nova agressão gratuita ao Brasil. Os governantes alertavam para os riscos do surgimento de um conflito em escala
planetária caso os Estados Unidos da América insistisse nas medidas unilaterais anunciadas. O governo chinês permaneceu em silêncio. O momento era delicado
para a própria

existência do Estado. Revoltosos os populares davam mostras da insatisfação, deixando de lado a contagem das vítimas eles iniciaram protestos exigindo a
queda do governo. A violência da repressão às manifestações populares decrescia. À medida que aumentava o

número de simpatizantes da revolta entre os militares das tropas fiéis ao governo, mais perto do poder ficava o povo. A lástima recaída sobre a população
fora atribuída à decisão do governo de participar da intervenção na Amazônia ao lado dos americanos. Nos corações das famílias destruídas pela peste não
havia espaço para

complacência ou medo. Os jornais do dia seguinte ao anúncio refutavam a decisão Norte Americana como sendo uma manobra para a salvação de egos econômicos.
Analistas políticos denunciavam a

escaramuça para salvar a economia e distrair a atenção do povo americano. O esforço de guerra da poderosa máquina belicosa seria a reedição

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da velha solução americana para os problemas vividos em casa. Em convocação extraordinária do Conselho de Segurança da ONU, o representante do governo francês
disse que também a Europa experimentava casos da enfermidade conhecida por Ossos Verdes. No entanto não havia cabimento em se depositar a culpa de seu
infortúnio nas costas de pessoas inocentes, de uma Nação distante. Ele terminou

deixando uma pergunta no ar. "Assistimos, recentemente desta mesma casa de justiça e ordem, o desencadear de ações militares contra o pacífico povo brasileiro.
Omitimo- nos! A ingerência foi justificada sob a bandeira da

manutenção da liberdade. Agora, sinais claros de nova agressão ao Brasil surgem no horizonte, suas motivações aparentam ser menos compreensíveis ainda.
Quanto tempo vai demorar para encontrarmos esta ameaça em nossos quintais?" Acuado o governo Norte Americano

resolveu voltar atrás na decisão de retaliar o Brasil. Indo além, retirou por completo suas forças militares envolvidas na operação de

intervenção na Amazônia. Acompanhando o que havia sido decidido, há algumas horas, pela China. A retirada, feita às pressas, deixou para trás grande parte
da estrutura montada para atender às necessidades de uma intervenção

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planejada para estender- se por um longo período. A atitude cabisbaixa e apressada das tropas nos preparativos sumários para a retirada

não lembravam, nem de longe, a altivez arrogante da chegada. Nos territórios deixados, a população vivia a incerteza dos novos tempos. Temiam a interrupção
das necessárias melhorias iniciadas depois da chegada dos estrangeiros. Por outro lado a reintegração da Amazônia ao

Brasil, aos brasileiros, enchia de orgulho o povo da região. ***

- O senhor tem uma visita. Ramos olhou para o relógio. Àquela hora da manhã somente poderia ser mais alguma equipe médica. Seguindo o guarda, ele atravessou
os corredores entre o aposento improvisado e a sala usada para receber as visitas. - Fiquei sabendo dos problemas ocorridos no Kuwait, mas felizmente você
se saiu bem!

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- Flening!? - Ramos falou o nome do homem na sala de visitas em tom de confirmação. Buscava na memória o seu nome. - Isso mesmo. Como está sendo tratado?

Precisa de algo? - Está tudo bem. Li nos jornais à respeito da retirada, você estava lá?

A pergunta deixou Flening visivelmente desconfortável. - Não. Acompanhei pelos jornais e

conversas de corredores. Agora acha que eles estavam certos? Afinal o objetivo foi alcançado, a força de intervenção se retirou! - Resguardada a soberania
de meu país, ainda assim tratamos de assassinato. Por isto ainda estou aqui! Se tivesse alguma dúvida, não

me arriscaria tanto. Por minha opção serei execrado, banido das fileiras do exército e considerado um traidor da pátria. - Talvez não seja preciso tanto!
Sentado na cadeira ao lado da ocupada

por Flening, Ramos inclinou o corpo para a frente colocando o queixo sobre a ponta dos dedos. O olhar postado no infinito e o silêncio

propunham o desencadear do raciocínio iniciado por Flening. - Temos fortes indícios de que a coisa

toda foi articulada pelo Ministro da Defesa do seu país. O Presidente da República não tomou

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conhecimento dos planos, nem mesmo depois de desencadeada a operação. - Esqueça, seria impossível obter verbas para manter os estudos necessários a um projeto
deste porte sem consentimento do Presidente e do Congresso. - Nós pensamos assim por estarmos fora do jogo do poder. As coisas podem ser arranjadas, acredite.
- Serão os analistas de inteligência responsáveis por tais conclusões os mesmos que subestimaram as ameaças de guerra biológica quando nós a denunciamos?
Ou os mesmos que me enviaram para a morte no deserto, desprezando o orgulho israelense ferido e seus interesses em ver sucumbir os Estados Unidos. - Entendo
a desconfiança. Não antever o

apoio do governo israelense à qualquer um capaz de infringir sofrimento e vergonha aos Estados Unidos foi um tremendo erro. Como poderíamos esperar algo
diferente, depois de ter lhes empurrado goela abaixo as concessões necessárias ao atendimento dos aclames palestinos. Mas a mesma desconfiança não deve
impedi- lo de ter a visão ampliada. - Está certo! E qual o seu interesse nisto tudo? Por que veio até aqui me contar as novidades?

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- Você tem conhecimento, informações que serão úteis em minha missão. - Qual a missão? Se for mentir poupe o nosso tempo! - Vou para o Brasil, começam a
surgir os primeiros casos da doença por lá. Se provarmos que a insanidade de alguns poucos membros do poder foi a responsável pela Ossos Verdes conseguiremos
bater vários objetivos ao mesmo

tempo. Colocaremos os culpados no banco dos réus, poderemos obter a vacina ou coisa equivalente com os próprios cientistas da equipe de desenvolvimento
da arma, restauraremos a verdade ao seu devido lugar e

de quebra ficará mais que evidente a sua inocência Ramos. O povo te absolverá, as vidas salvas não serão apenas americanas, asiáticas ou européias, serão
também brasileiras agora. - Meu trabalho por aqui acabou. Devem estar com litros do meu sangue e boas amostras de tecidos. Aceito ajudar se for junto.
- Mas não vão permitir...

- O acordo é este, ou terão de percorrer o caminho mais demorado. - Vou precisar falar com algumas pessoas. ***

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Os resultados dos estudos levados a cabo nos quatro cantos do planeta não faziam frente à velocidade de avanço da doença. Suas vítimas tinham uma característica
comum, observada durante as autópsias, ficavam com os ossos esverdeados. Por isto desde as primeiras vítimas fatais a doença passou a ser chamada de "Ossos
Verdes". Quase acidentalmente, médicos alemães descobriram um importante aliado. Pacientes infectados, quando em coma induzido tinham suspenso o desenvolvimento
da enfermidade. Desde então, milhares de pessoas em coma induzido passaram a ocupar leitos hospitalares. A técnica salvou incontáveis vidas humanas, mas
logo esbarrou na limitação física dos hospitais. Mesmo os hospitais de campanha, montados da noite para o dia, não eram suficientes para atender ao crescente
número

de pacientes. Muitos médicos e enfermeiras acabaram sendo acometidos pela mesma doença de seus enfermos. A Ossos Verdes usava quaisquer meios possíveis
para alastrar- se. Desenvolvida para

vencer a corrida contra o tempo, a arma biológica não respeitava as barreiras naturais que impediram a extinção da raça humana até então. Com passaportes
e documentação falsos Ramos, Flening e Perez entraram no Brasil.

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Supostamente, faziam parte de um grupo de médicos e cientistas europeus convidados pelo governo brasileiro para realizar estudos conjuntos à respeito da
epidemia. Ramos estava irreconhecível. Desembarcou de volta ao

Brasil careca, usando cavanhaque, óculos e apliques de silicone nas maçãs do rosto. A mudança física foi acompanhada de uma

postura corporal diferente da costumeira. No lugar do peito estufado havia ombros arqueados para a frente e costas ligeiramente curvadas. As passadas longas
e decididas deram lugar ao

caminhar tímido do médico epidemiologista inglês. No caminho até o hotel, ruas quase

desertas e trânsito desimpedido nas principais vias de acesso ao centro da cidade. São Paulo estava anormal. As manchetes dos jornais lidos no período em
que Ramos esteve nos Estados Unidos estavam corretas. O pânico social

desertificara os grandes centros urbanos, destruindo a economia das ruas e intensificando as operações por canais virtuais. Com medo do contágio, poucas
pessoas arriscavam sair as compras ou mesmo ir ao trabalho. Os entregadores das compras realizadas via

telefone ou rede de computadores eram orientados a deixar as mercadorias do lado de fora das casas, somente após terem se afastado os moradores abriam as
portas.

483

Seitas religiosas, anunciando o fim dos tempos, aproveitavam- se do desespero das pessoas para auferir lucros. A fórmula do mal caratismo era a mesma de
séculos atrás. Em troca da redenção dos pecados os seguidores abriam mão dos bens materiais amealhados durante a vida terrena. Grupos de fanáticos eram
incitados a, depois de transferirem os seus bens para os líderes das seitas, realizar suicídio

coletivo. Os supostos líderes espirituais diziam aceitar o sacrifício de ficar com todos os pecados dos seguidores para que estes pudessem ser salvos na
vida eterna. Autoridades e representantes de entidades eclesiásticas sérias faziam o possível para esclarecer a população evitando tragédias ainda maiores,
mas havia muitos corpos a

serem contados e recolhidos em meio aos caos da epidemia. Trabalhando em conjunto e alimentados por informações repassadas pela CIA, Ramos, Flening e Perez
concluíram: A melhor forma de fazer surgir a verdade seria através de um ataque pessoal à cúpula do governo brasileiro responsável pelo desenvolvimento
da Ossos Verdes. Em Brasília, no Ministério da Defesa ocorreria uma reunião onde os principais suspeitos de envolvimento com o projeto estariam presentes.
Era a oportunidade de ouro.

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Avisados a tempo, os três viajaram para a capital do país. As noites e os dias na casa alugada no cerrado foram integralmente consumidos no planejamento
das ações. Agentes da inteligência Norte Americana foram acionados para desencadear a operação apelidada por Flening de Guilhotina de Fogo. Na véspera
do encontro, uma equipe de

técnicos da empresa credenciada pela segurança presidencial visitou as instalações do Ministério. Foram chamados depois de várias reclamações por conta
do mal funcionamento do

sistema de condicionamento de ar das salas de trabalho do prédio. Introduzidos clandestinamente na Sede

do Ministério da Defesa, dentro dos pesados cilindros usados para reposição do gás, Ramos e Perez permaneceram no edifício após a saída da equipe de apoio.
O equipamento necessário para a operação também foi conduzido dentro dos fundos falsos dos cilindros metálicos, sem despertar desconfiança na segurança
do prédio. Flening agiria em outra frente. Para a

Guilhotina de Fogo obter êxito completo, além do acesso à cura, era preciso anunciar ao mundo a conspiração assassina e inconseqüente que resultou na Ossos
Verdes. Imagens, mesmo transmitidas ao vivo, ou gravações não serviriam a esse propósito. Podiam ser facilmente

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alteradas. Porém o mesmo não poderia ser feito com o testemunho de certas pessoas. A reunião estava agendada para as oito horas da manhã do dia seguinte.
Durante a noite da véspera, Ramos e Perez se deslocaram pelos dutos de ar. Precisavam alcançar o andar intermediário ao da sala de reuniões reservada

para o compromisso. O espaço, exíguo para a progressão, dificultava o rastejo cauteloso. Ramos ainda sentia dores fortes no

ferimento do braço. Apesar de ter apresentado uma recuperação espantosa do tecido ósseo, a musculatura local não estava plenamente restabelecida. Evitar
ruídos denunciadores, ao arrastarse

pelos dutos, feitos de folhas metálicas, e combater as câimbras, foram os pensamentos mais comuns nas mentes dos dois até ficarem exatamente sobre a grande
mesa ovalada. No

lugar foi preparado o acesso para a entrada surpresa do dia seguinte. Conferidos, outra vez, o armamento e equipamento restava apenas esperar. Rezar para
que imprevistos não

pusessem o sucesso da operação em risco. Durante a espera, Ramos ponderava os rumos tomados por sua vida. Decisões necessárias à superação dos óbices surgidos
geraram novas situações de mudança, afastando as linhas imaginárias sobre as quais caminham destino e vontade. Das patrulhas na

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Selva Amazônica à decisão de se antepor às ordens de seus superiores hierárquicos. Da paixão experimentada na cachoeira ao prelúdio da morte nas areias
do deserto. Da saudade de sua família ao medo e a vergonha de vê- los acometidos por um mal saído de suas entranhas ou de encontrá- los desapontados com
o filho dito traidor da pátria. Da opinião

truncada quanto aos Norte Americanos ao trabalho conjunto em nome de uma causa maior. São as contradições momentâneas, forçadas por mãos invisíveis, capazes
de

ensinar na exata medida do que nos cabe aprender. Os dutos traziam a lembrança das horas passadas dentro das cavernas encontradas acidentalmente na Floresta
Amazônica. Principalmente as recordações das últimas horas, quando também espremido pelas paredes teve de abrir caminho para a liberdade. O rostos dos
companheiros mortos naquela

noite foram lembrados. - Ramos! O chamado de Perez desfez a monotonia da espera. - Diga. - Tem algo de errado comigo! Estou com muitas dores na cabeça,
os pensamentos estão

ficando embaralhados. Perez falava com dificuldade e apesar de iniciar as frases tentando falar baixo, o

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descontrole o levava a termina- las quase aos berros. Passados alguns minutos, Ramos percebeu que seria difícil manter o sigilo da posição. Perez insistia
na idéia de sair dali. Agitado, ele alternava momentos de lucidez e insanidade. Ramos acendeu a iluminação do mostrador do seu relógio, eram seis horas
da manhã. Em breve o lugar teria vida novamente. - Calma, vai ficar tudo bem. Tente

esquecer as dores, evite falar. Perez estava chorando, as lagrimas escorriam com fartura nas curvas de seu rosto. O macacão preto tremia acompanhando o
desacerto do corpo. As dores e o mergulho em profunda depressão, apenas as partes mais aparentes das alterações químicas desencadeadas no cérebro dos infectados,
reduziram Perez à condição de um inseto agonizante. Não restavam dúvidas, os sintomas apresentados pelo capitão Norte Americano

eram os mesmos descritos como sendo os desenvolvidos pela Ossos Verdes. Pego de surpresa Ramos procurava a melhor solução. O quadro de saúde apresentado
por Perez inviabilizava o prosseguimento da missão. Porém, ao se perder esta oportunidade estariase condenando mais alguns milhões de seres humanos ao
mesmo sofrimento.

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A idéia de deixar Perez desacordado e amarrado até o fim da ação era coerente, mas esbarrava na possibilidade dele se debater depois de recobrar a consciência.
Quando o

expediente começasse haveria mais ouvidos espalhados pelo prédio. Qualquer movimento descuidado feito sobre a superfície metálica dos dutos de ar causaria,
por muito mais forte razão, barulho suficiente para denunciar a presença de

intrusos. A segurança do Ministério não seria complacente com os riscos e a reunião poderia ser adiada ou realizada em outro local. Ramos arrastou- se para
mais perto de

Perez. A mão colocada sobre a perna dele acompanhava o tremor do seu corpo. Perez estava calado há alguns minutos, deixando

escapar apenas alguns soluços forçados pelo choro. Notando a aproximação ele quebrou o silêncio novamente. - Diga a minha família que eu os amo. Me perdoe
meu Deus! Em seguida, o estampido abafado do

disparo de uma arma com supressor de ruídos percorreu os dutos de ar. A mão esquerda do Ramos ainda sentiu a perna do militar contrairse duas vezes antes
parar por completo. Cessados os espasmos, se foram também os tremores, as dores, o sofrimento e os riscos de

ter- se abortada a missão. O suicídio de Perez abria caminho para muitas coisas entre elas a

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preservação de sua própria família, caso o plano fosse bem sucedido. Tateando o corpo do Perez, Ramos procurou o lugar do ferimento. Não precisou

procurar muito. Começou pela cabeça e já em seu topo encontrou uma deformidade. O projétil não chegou a atravessar completamente o osso, estava presa com
mais da metade para fora. O disparo a queima roupa e o comprometimento

da velocidade inicial do projétil, causado pelo uso daquele tipo de supressor de ruídos, evitaram a transfixia que poderia denunciar a

existência de atividade não autorizada no prédio. Usando as bolsas onde vinham sendo transportados os equipamentos, Ramos aparou a cabeça do morto. Queria
evitar que o sangue do ferimento escorresse pelo duto e acabasse alcançando alguma das saídas. Sentindo o sangue secar em suas mãos, Ramos aguardou o momento
da ação. Ainda

que de maneira discreta, um pouco do cheiro da morte tomou conta do ambiente. ***

As mãos viscosas deram lugar ao atrito esfarelento do sangue ressecado e o silêncio da sala de reuniões ao ruído da confraternização

490

entre os participantes recém chegados. Era preciso crer no sucesso da etapa da missão sob a responsabilidade do Coronel Flening, sem ela a sua ação poderia
ser facilmente

rotulada como iniciativa isolada de um desequilibrado qualquer. Na hora marcada um comando emitido pela rede de computadores local trancou a porta da sala
de reuniões, seus ocupantes não perceberam a manobra. Segundos depois, a tela de uma das saídas do sistema de ventilação caiu sobre a mesa. Em seguida
vieram dois cilindros metálicos pequenos. Eles exalavam gases incolores, mas de cheiro forte. O impacto destes contra o tampo de vidro da

mesa o estilhaçou de imediato. Alguns dos presentes, percebendo a anormalidade da situação, correram para a porta. Trancados eles começaram a gritar, soqueando
a porta e o comprido painel de vidro que recobria toda uma parede da sala. A tensão aumentou quando surgiu da

abertura no teto um homem vestido de preto, usando capuz e de arma em punho. Agindo com atitude enérgica, Ramos dominou os ocupantes da sala sem realizar
disparos. Todos foram colocados de joelhos com as mãos sobre a cabeça. Estavam de frente para o grande painel de vidro, apenas Ramos falava. Suas ordens
eram claras e as

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advertências esvaziavam os ânimos de qualquer um disposto a tentar reagir. O Ministro da Defesa aparentava ser o mais assustado, a calça de seu terno cinza
claro exibia uma mancha escura que escorria até o joelho da perna direita. - O que você quer? Logo a sala estará cercada, seja quais forem as suas intenções
não será bem sucedido! A voz era de um velho conhecido de

Ramos, um oficial de alta patente com quem trabalhara anos atrás. Ao reconhece- lo em meio ao grupo responsável pela Ossos Verdes, Ramos lamentou. - Está
enganado. Seja qual for o desfecho

eu já atingi o meu objetivo. Estou aqui apenas para presenciar o primeiro instante da verdade. Para ver nos rostos de vocês a mesma dor a que sentenciaram
metade da população mundial. Surpreendendo os homens ajoelhados, Ramos retirou o capuz. - Ah! Então o traidor resolveu aparecer. Vejo que tentou mudar
de cara, deve ser a

vergonha, não é?! Você é um ingrato mesmo salvamos sua vida e lhe oferecemos a oportunidade de compartilhar o despertar de uma nova era, mas você preferiu
pagar à sua pátria com traição.

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- Se alguém traiu a confiança da pátria este alguém foi o senhor. Como acha que o presidente reagiria ao saber do envolvimento da alta cúpula das Forças
Armadas Brasileiras no desenvolvimento e uso de uma arma biológica igual a Ossos Verdes? Ou ainda, qual seria a

reação dele e do povo ao tomar conhecimento da conspiração assassina dos senhores?

- Fedelho! Quem você pensa que é para nos questionar? Sua palavra não vale nada fora desta sala. Pense bem! Quem vai acreditar em uma trama fantasiosa como
a que tem para

contar. Afinal somos pessoas públicas, pessoas de respeito, parte do poder. E você é apenas um traidor, um jovem neurótico, produto do despreparo emocional
para o tipo de trabalho que precisou executar em nome de seu país. Ramos apontou com o olhar a mancha

escura na calça do Ministro da Defesa. - Ministro, o senhor parece bem mais corajoso agora, depois de abreviar sua ida ao banheiro, mas sinto em ter de
concordar com o que disse! Minha vida não vale um centavo fora desta s al a.

- Exatamente! Mas você ainda pode mudar isso rapaz, abaixe esta arma e nós providenciaremos uma saída honrosa. - disse o Brigadeiro Comandante da Aeronáutica,
ajoelhado ao lado do Ministro. - Agora não há mais volta. Tarde demais!

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- O que está dizendo Ramos? - a pergunta veio do Comandante do Exército. - Os gases daqueles cilindros general, eu

os trouxe aqui para fazer os senhores provarem um pouco do sofrimento que espalharam pelos quatro cantos do planeta. O grupo ajoelhado aguardava, a qualquer
momento, a chegada de ajuda com a abertura da porta e o surgimento de um negociador profissional. Os minutos se alongaram, sem o surgimento do socorro
desejado. - Ele está blefando Ministro! Como teria acesso a arma e por que se arriscaria entrando aqui sem usar uma máscara de proteção? - a advertência
veio de um dos homens ajoelhado atrás de onde estava o Ministro. De pé, com a submetralhadora apoiada

sobre um dos ombros pela bandoleira e segura com a mão direita, Ramos olhou para o relógio no pulso do braço esquerdo. Sua atitude fez aumentar a apreensão
na sala. Ouvidos sobressaltados registraram os gemidos do Comandante da Aeronáutica. Tomado por convulsões, o senhor de cabelos grisalhos atirou- se ao
chão. Os urros acompanhados de movimentos espasmódicos de braços e pernas torturavam as mentes dos outros homens presentes. Ficava clara a ligação

entre os gases liberados na sala e a agonia do militar. A mesma certeza inspirava pavor ao

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forçar o encontro com a consciência de que em breve todos teriam o mesmo destino. - Miserável! Você vai ficar aí apreciando o espetáculo!? Que espécie de
pessoa é você, acha que nos ver morrer como baratas vai trazer de volta as vidas dos outros? O discurso do Ministro não encontrava resposta. Para aumentar
a tensão, confirmando a impotência das próximas vítimas, Ramos se manteve em silêncio. Assim, assistiu ao início das convulsões em mais um dos reféns.
Alguns dos homens começaram a chorar. Lamentos resmungados tomaram conta da sala. - Não faça isso Ramos! Podemos salvar à todos nesta sala e você sabe
disso! Temos a

vacina pronta para uso. Se é a cura que deseja nós podemos te entregar. Agora as pontadas nauseantes atingiam o Comandante do Exército. Por fim a porta
se abriu. Para os reféns ainda não atingidos pelo

mal parecia chegado o momento de encerrar a agonia do cárcere. Militares armados invadiram a sala. Vendo o retomar do controle da situação o

Ministro da Defesa mudou seu discurso. - Prendam esse sujeito! Mas os militares caminharam em direção à ele e aos outros participantes da reunião. Um a
um eles foram sendo retirados da sala.

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- O que estão fazendo? Tirem as mãos de mim! Tirem as mãos de mim, eu vou acabar com as carreiras de vocês. Em meio à cólera o

Ministro começou a sentir as primeiras contrações na região abdominal. Conduzido por dois militares para fora da sala de reuniões, à contragosto, o Homem
responsável pelo suplício de milhares de pessoas imaginou estar frente a frente com o instrumento de sua

ambição. As dores o obrigaram a jogar- se ao chão, iniciando a mesma via crucies dos outros já atingidos. - Levem esses assassinos daqui! A voz era do próprio
Presidente da República. Juntamente com outras autoridades, convidadas por Flening, ele assistiu a confissão dos algozes através do painel de vidro da
sala de reuniões. - Senhor Presidente, ainda não acabou! Precisamos descobrir o local onde está guardada a vacina. Minuto a minuto mais pessoas são infectadas.
Quando Ramos acabou de falar, Flening surgiu ao seu lado. - Onde está o Perez? Não o vi durante

toda a ação! - Ele faleceu Coronel. Mais uma vítima da Ossos Verdes. Se suicidou ainda dentro dos dutos de ar. Sua atitude heróica, ao perceber o possível
comprometimento da operação pelos sintomas da doença, foi o fator decisivo para o nosso êxito.

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Flening ficou calado, deu as costas à Ramos, se dirigindo para baixo da abertura no teto. Ramos arrastou uma das cadeiras para o local e juntos eles resgataram
o corpo de Perez. - Ele pediu, momentos antes de apertar o

gatilho, para que seu amor à família fosse lembrado. - E será, eu prometo meu amigo. - as palavras foram ditas por um Flening comovido, abraçado ao corpo
de Perez. Ramos caminhou para o corredor, paramédicos aplicavam nos homens algemados o antídoto para o gás convulsivante usado na ação para simular os
primeiros sintomas da Ossos Verdes. Autoridades brasileiras e estrangeiras ainda conversavam perto do corredor. Seus rostos retratavam a perplexibilidade
diante da trama recém revelada. Um punhado de homens com acesso à tecnologia de manipulação genética e más intenções foram capazes de alterar, novamente,
o rumo da história. ***

Vinte e quatro horas depois, os governos começaram a receber as primeiras doses da vacina para a Ossos Verdes. As doses

497

produzidas, em regime de urgência, pelos principais laboratórios farmacêuticos do mundo iniciaram o esforço para erradicação da peste verde. Estima- se
que três bilhões de pessoas tenham sido afetadas pela doença. Mais de dois bilhões vieram a óbito antes da revelação da

cura. Outras centenas de milhões, salvas em sua maioria pelo coma induzido, carregarão para sempre as marcas da insanidade do homem, justificada pelo poder:
Seus ossos esverdeados testemunharão às gerações futuras o passado ameaçador no qual ainda era pequeno o valor dado à vida.

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Timbó

- Mande o Tenente Ramos entrar. - a ordem veio do gabinete do Comandante do Comando Militar da Amazônia. A porta entreaberta revelava à ante- sala a imagem
do

General sentado atrás da mesa de trabalho arrumando alguns papéis. - Selva! Tenente Ramos do Centro de

Instrução de Guerra na Selva. - Apresentado! Sente- se. O Comandante do CIGS lhe adiantou o assunto da nossa conversa?

- Não senhor. - Melhor assim. Eu dispensei a presença dele, mas tenho certeza de que seu comandante de unidade, assim como o exército e a nação brasileira
se orgulham muito de ter você em suas fileiras. - Selva! - Tenho muitas notícias boas. Aliás, minha manhã inteira foi dedicada a recebe- las! Você foi
indicado pelo Presidente para receber a

mais alta condecoração militar, também foi indicado para honrarias pelo governo Norte Americano, Francês e Chinês. Fora estas, lhe será entregue em sessão
extraordinária uma condecoração especial pela ONU. E tem mais!

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Chegou um radiograma convidando- o para ser instrutor da Academia Militar das Agulhas Negras pelo próximo triênio. O que me diz?! - Selva! - Rapaz, você
está tendo os seus minutos de fama. Nestes últimos vinte dias foi capa ou manchete dos principais jornais e revistas do mundo. Se usar direito, se souber
agir corretamente poderá preparar o caminho para

uma carreira brilhante. - Preciso de uma equipe de resgate e duas aeronaves de asa móvel, senhor! Depois terei tempo para esses outros assuntos. - Para
quê?

- Tenho homens meus ainda espalhados pela selva. Meu compromisso é dar- lhes as honras de um enterro digno, a altura da coragem com que cumpriram o seu
dever. - Continuo a te perguntar, para que tenente? Sei quais são as suas intenções, até as entendo, mas deixe isso conosco! Estamos cuidando de resgatar
as vítimas deste grande

engano. Eles estão mortos e nada que você faça mudará isso. No entanto, você sobreviveu, pode representa- los aproveitando as oportunidades criadas. Ramos
se levantou. Na posição marcial de sentido, com as mãos espalmadas coladas às coxas, ele voltou a dirigir a palavra ao general.

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- Meus homens não morreram em um engano. Morreram em uma guerra. A minha missão só estará terminada quando os devolver às suas famílias. Farei isso de uma
maneira ou de outra! O general diante do Ramos trabalhou a vida inteira em gabinetes. Era um carreirista incorrigível, apesar de bem intencionado. Foi
indicado para o comando mais pela certeza de que não esteve envolvido com a conspiração descoberta do que por possuir o perfil profissional adequado. Transferido
de Brasília para a chefia do Comando Militar da Amazônia, o general de fartas fileiras de condecorações, tinha a difícil missão de substituir o comandante

anterior, morto quando a base de selva em que estava foi atacada por tropas da força de intervenção. Um herói, para os militares que estiveram sob suas
ordens durante o conflito compondo a resistência. - Calma militar! Fique calmo, resolveremos do meu jeito. - o general falou com um sorriso desdenhoso
entre as palavras. Não

estava acostumado a ver um tenente contestar ordens. O máximo da iniciativa provada à partir destes oficiais de menor patente eram bajulações ou cafés trazidos
sem terem sido pedidos.

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Olhando através da alma do superior, Ramos disse as últimas palavras e se retirou do gabinete, sem aguardar autorização. - Não senhor! Farei do meu jeito.
E a propósito general, as pessoas que já me viram exaltado não tiveram tempo de me pedir calma. Permissão! Depois da saída do Ramos, o general

permaneceu alguns minutos tentando assimilar o que acabara de ver e ouvir. O coração em compasso disparado lhe fugiu ao controle, igual ao tenente impetuoso
e idealista. A boca seca foi tentada à ordenar a prisão do oficial por faltar- lhe com o respeito, mas isso poderia repercutir negativamente para ele mesmo.
Poderia

modificar o seu conceito com autoridades da Capital, com o poder. No dia seguinte duas aeronaves decolaram do Centro de Instrução de Guerra na

Selva levando muitos sacos plásticos pretos. Sacos usados para guardar provisoriamente cadáveres. Entre os militares embarcados estavam Ramos, Sarmento
e De Paula. A morte do Cabo Mário e do Honorato, em ações mal sucedidas da resistência, foi o assunto dos primeiros momentos de vôo. Mais tarde, a volta
a cada um dos lugares onde foram deixados os corpos dos patrulheiros trouxe outras pesarosas recordações para os três remanescentes.

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Os ferimentos e a malária passaram por Sarmento sem deixar seqüelas aparentes. A presença das suas facas, novamente presas ao equipamento, denunciavam o
retorno solitário dele ao bairro da periferia de Manaus onde foram enterradas as mochilas e o equipamento. De Paula, no decorrer da missão de

resgate, anunciou sua decisão de sair das fileiras do Exército. Ele optou por abrir, ajudado pela namorada, um negócio de transporte fluvial. Com duas pequenas
embarcações regionais, muitas idéias na cabeça e amigos espalhados pelos portos locais, o casal planejava operar uma empresa dedicada ao transporte fluvial
de

carga. O objetivo era fazer entregas para os pontos mais inacessíveis do Rio Negro, onde muitas famílias sofrem devido ao constante desabastecimento do
comércio. Ramos e Sarmento apoiaram o cabo, apostando no sucesso da iniciativa. ***

A última vez em que os três companheiros estiveram reunidos, antes da transferência de Ramos para a Academia Militar das Agulhas Negras, foi durante o funeral
dos patrulheiros

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resgatados. Quando consideraram, então, concluída a missão iniciada meses antes. No dia seguinte ao funeral, Ramos voltou ao cemitério. Visitou cada um
dos companheiros e sob a sepultura do sargento Texera ele deixou a sua balestra com a mira laser adaptada. Ao entardecer do mesmo dia Ramos foi à casa
da viúva do PJ e lhe entregou os rolos de filme fotográfico, tão cuidadosamente acondicionados pelo sargento nas pequenas cápsulas de PVC. - São as últimas
fotos tiradas por ele. Acho que o PJ gostaria de vê- las ao seu lado. ***

De carona em um vôo militar, Ramos viajou para o Rio de Janeiro cinco dias depois do funeral. Aproveitando a disponibilidade de carga da aeronave, ele transportou
todos os seus pertences. O que não era muita coisa. Roupas, equipamento militar particular e a moto. Após passar a noite no apartamento

emprestado por uma antiga namorada, Ramos partiu para a casa de seus pais. As emoções fervilhavam sob o capacete vermelho. Os quilômetros devorados sobre
duas rodas derrubavam as barreiras à saudade. Com a brevidade do momento de reencontro, o guerreiro permitia- se entrar em contato com a

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superfície de seus sentimentos, com a saudade dos pais. Agora, sem aprofundar a dor da distância e suas perigosas conseqüências para uma mente responsável
por conduzir outras vidas. Os quilômetros percorridos faziam aumentar a ansiedade. O elmo guardava uma

cabeça de expectativas solitárias. Ramos desejava que tudo estivesse bem com seus pais. Desde o início do conflito ele não tivera mais notícias de casa.
O reencontro seria uma surpresa, pois Ramos não avisara a ninguém de sua chegada ao Rio de Janeiro. Quando entrou na rua de casa, o cheiro de tantas recordações
fez aumentar a emoção do regresso. Da vitória de ainda estar vivo. Diferentemente dos muitos homens e mulheres atingidos, de uma maneira ou de outra, pelos
últimos acontecimentos, ele conservou- se de pé. Tal e qual deve ter sido desejado pelos familiares para cada um de seus subordinados, ele retornava para
dividir as glórias da experiência vivida. Levantando a viseira do capacete, Ramos tentou desafogar as emoções. Estava difícil respirar, até o corpo ficara
pequeno

para conter tamanha felicidade. ***

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Abraçado ao pai e à mãe, na porta de casa, ele respirou aliviado. Ambos estavam bem. Os dias de angústia e expectativa dos dois tornaram- se indeléveis
nas expressões cansadas e sofridas de seus rostos. A mãe era

a mais abatida, olheiras profundas contornavam- lhe parte dos olhos. Com a voz embargada pela emoção as primeiras palavras, carregadas de carinho, foram
sendo ditas pelos três, ainda com os corpos costurados por braços saudosos. Nos dias seguintes Ramos teve muito a contar e ouvir. As férias estavam quase
perfeitas. Faltava apenas rever Kate, completar o espaço restante em seu coração. Mas as ligações para o telefone dela caiam em uma gravação avisando que
o número discado não existia. Resolvido a encontrar a mulher por quem estava apaixonado, Ramos viajou para São

Paulo. Não foi difícil encontrar o apartamento onde ela morava. Uma morena de olhos verdes atendeu à porta enrolada em uma toalha. - Desculpe, estava tomando
banho. A mulher estava com o rosto ruborizado e cabelos secos. A umidade sobre sua pele mais parecia

suor. Enquanto a jovem fechava a porta, Ramos viu surgir no corredor um homem de meia idade também enrolado em uma toalha de banho. - Algum problema aí?

506

- Não, está tudo bem Maurício. É um amigo da Kate. - Ah, está certo. Mas não demora, vou te esperar lá no quarto.- o homem acenou para Ramos como se lamentasse
algo e deu as costas, sumindo no corredor de onde veio. - Sente- se, fique à vontade. Meu nome é Márcia, eu morava aqui com a Kate. Trabalhávamos juntas
e dividíamos as contas. Sabe como é?! Você veio pegar as coisas para a família dela? Eu já estava estranhando, até agora não tinha aparecido uma viva alma
para buscar as coisinhas da menina. - Não, eu não vim aqui para isso. Eu estou

a procura dela. Você sabe onde eu posso encontra- la? A expressão de naturalidade no rosto da mulher desapareceu de imediato, ao ouvir a pergunta da visita.
- Mas você não sabe meu querido?

- Do que? - Ela morreu. Ficou tão doentinha, gritava de dores. Os médicos disseram que era a tal peste. Fui eu quem a levou para o hospital, mas eles pouco
puderam fazer por ela. Diante da notícia Ramos baixou o olhar. - Eu tenho aqui algo que deve pertencer a

você. Quando Márcia voltou, trazia na palma da mão o anel recebido por Kate no encontro com Flening. Ah! Eu tenho também o endereço do

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cemitério onde ela foi enterrada. Se você qui ser... - Não, obrigado. No retorno para a casa dos pais, Ramos pilotava a flecha vermelha sem o prazer habitual.
Diferentemente da vinda, não havia mais as mesmas esperanças alvissareiras de um romance inacabado. A velocidade do bólido de

duas rodas testemunhou a revisão de toda uma vida. Por que foi preciso o conflito para

aproximá- los? Por que quando a recrutou, Ramos nem imaginou a possibilidade de vir a se envolver com a bela jovem. A vacina não chegou a tempo de salva-
la! Assim como na morte de Kate, havia uma

parcela de culpa para Ramos em todas as outras vidas afetadas pela Ossos Verdes. Se não por haver demorado para revelar ao mundo a conspiração, por ter
gerado em seu corpo o fundamento da doença. E ele teria de conviver com a culpa auto- sentenciada. Ruminando- a à

mesa da vida pelo resto de seus dias. Diante do engasgo pelo sentimento de culpa, Ramos relembrou a conversa que teve com Sarmento na voadeira. "A vida
não nos cobra culpas, amigo. Isso é coisa da vaidade

humana. Sinto a mesma solidão, a mesma incerteza todas as manhãs. Quando do início de mais uma jornada, sei estar conduzindo não só

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o meu destino, mas sim influenciando outros também. Não me julgo o dono da verdade, logo temo, tanto quanto você, pelos meus erros, pelas minhas fraquezas
e pelos meus fracassos. Porque eles podem vir a ser também das pessoas que me seguem. Pessoas que

confiam em mim. Mas se isto ocorrer, e já ocorreu comigo, temos de continuar a caminhada. Na verdade, esses comprometimentos ocorrem todos os dias em todos
os cantos do mundo. São aquelas pequenas decepções sofridas anonimamente

nos relacionamentos familiares, nos empregos ou até mesmo com governantes. O importante, amigo, é que a culpa não muda o curso da vida. Melhor é o aprendizado,
pois ele vem liberto do pesar e do rancor. Ele o faz crescer. A vida é um presente maravilhoso, a desperdiçamos quando não a encaramos como palco de felicidade,
amor e aprendizado." Os conselhos à respeito da culpa e tudo mais ficavam mais fácil quando

acalentavam a dor que estava na garganta de outro. Ainda demoraria muito tempo para

Ramos sentir diminuído o aperto doloroso surgido em sua garganta desde o momento em que recebeu a notícia da morte de Kate. Com o

fim das férias, Ramos se apresentou ao Comando da Academia Militar das Agulhas Negras.

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Meses mais tarde, Ramos recebeu passagens aéreas de ida e volta à Grécia. Um pequeno bilhete, escrito em inglês, esclarecia: "Aguardamos o amigo para a
inauguração de

nosso novo hotel." Havia um telefone para contato, mas o bilhete não estava assinado. Do outro lado do papel, escrito à mão, havia as palavras: "Ao marciano".

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Ambé- açu O dia de sol estava próprio ao desfrute das atrações no parque d'águas do hotel. Homens e mulheres circulavam na área das piscinas desde as primeiras
horas do dia. Garçons apressados contornavam cadeiras e mesas com suas bandejas habilmente equilibradas. Um deles trazia o pedido de um cliente de longa
data. Na testa do garçom brotavam gotículas de suor. - Aqui está, com bastante gelo e sem açúcar, do jeito que o senhor gosta! - Ótimo Jhoam! Obrigado.
Quando o garçom se afastou, Flening

provou a laranjada deixada sobre a mesa. Estava realmente ao seu gosto. Apoiou, então, o copo no braço da cadeira e se recostou. Ao abrir a palma da mão
esquerda, ele voltou a contemplar o anel recebido via encomenda internacional. Apertando- o entre os dedos e de olhos fechados, Flening recordou o

beijo roubado por Kate tempos atrás. O cenário era o mesmo, mas hoje faltava o brilho de uma existência. Depois de tomar conhecimento do fim trágico de
sua amada, Flening mergulhou ainda

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mais fundo no trabalho. Procurava nos compromissos militares a fuga para o imenso vazio em que se tornou a vida sem a esperança de rever Kate. Aqueles eram
os primeiros dias de folga

do Coronel Flening após meses de trabalho. A sua missão prioritária, junto a um grupo de notáveis, era evitar a repetição dos mesmos erros de planejamento
ocorridos quando da primeira operação de intervenção na Amazônia. O coronel também prestava consultoria à empresas engajadas, pelo governo, no desenvolvimento
do suporte tecnológico destinado à melhoria das condições de combate

em ambiente de selva. A experiência da intervenção passada ajudou a formar tropas melhor preparadas para os desafios amazônicos. Mas existiam outros motivos
para acreditar no sucesso da investida

seguinte: Um reforço orçamentário para os assuntos de Segurança Nacional, aprovado pelo congresso dos Estados Unidos da América. Apoio de simpatizantes
estratégicos em solo brasileiro. Simpatizantes conquistados por conta das melhorias desenvolvidas para a

sociedade local durante o curto período de tempo da intervenção passada. O ressentimento da opinião pública internacional para com o país de onde teve

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origem a manobra assassina que resultou na morte de bilhões de pessoas. A arma Ossos Verdes, com um único disparo, superou o

número de vítimas de todas as guerras da história recente da humanidade e deixou claro o descontrole do governo brasileiro sobre a fabricação de armas de
destruição em massa. Intensificação das notícias de que os fiscais da Organização das Nações Unidas, enviados para o Brasil para verificar a existência

de centros de produção de armas biológicas, não estavam tendo acesso à certas áreas. Aumentando a desconfiança e o repúdio às atitudes do já desgastado
governo brasileiro. Afora estas excelentes justificativas, persistiam os mesmos interesses estratégicos responsáveis anteriormente pela decisão de intervir
na região. Flening permaneceu sentado à beira da piscina. Alternava visitas ao paraíso particular de suas recordações e momentos de doloroso contato com
o claustro frio e solitário da realidade aprisionadora. Em um abraço de conforto, Flening

adormeceu. Caídos os grilhões da consciência, ele corria por areias de açúcar em direção ao grupo reunido mais adiante. Sua paz e felicidade se confundiam
à placidez do espelho d'água de

uma lagoa sem horizontes. A luz do lugar era

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forte, intensa, mas não lhe feria os olhos. Dentre as pessoas do grupo, Flening reconheceu Kate e um casal que estava de costas. Ele sabia se tratar de
seus pais, não tinha idéia do porquê tamanha certeza, mas aquelas duas pessoas infestadas de vergonha e arrependimento eram os pais que ele jamais conhecera.
Sem conseguir ver- lhes os rostos, Flening pode sentir todo o amor do momento de reencontro. Ao lado dos dois, segurando as mãos de Kate estavam seus pais
adotivos. Os três sorriam, empolgados em uma animada brincadeira de roda. O coração, antes angustiado, agora seguia o compasso da paz.

Do nosso acervo :

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'TUDO QUE É BOM E ENGRADECE O HOMEM DEVE SER DIVULGADO!

PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR."

JOSÉ IDEAL

' A MAIOR CARIDADE QUE SE PODE FAZER É A DIVULGAÇÃO DA DOUTRINA ESPÍRITA" EMMANUEL

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