Correntes do Destino
Espírito Maria Cecília Alves
Célia Xavier de Camargo
Sinopse:
Maria Eugênia, filha de ricos fazendeiros, descobre que seu
noivo está apaixonado por uma escrava. Descontrolada,
deixa-se arrastar por uma torrente de ódio e vingança.
Traiçoeira, influencia Miguel, escravo apaixonado por ela, a
cometer um crime. O cativo não imagina o preço que pagará
pela satisfação dos seus desejos. Portadora de dons
mediúnicos que deveria colocar a serviço do bem, a
sinhazinha escolhe o caminho do mal, arrastada por aqueles
que, no outro lado da vida, ainda não aprenderam a
perdoar...
Sumário
Apresentação............................... 7
1 Prelúdio da volta 13
2 Os primeiros anos 16
3 Pedido de casamento 25
4 O noivado 32
5 Encarando o sofrimento 41
6 Novas responsabilidades 51
7 Cultivando o ódio 65
8 Auxílio providencial 73
9 Na véspera do casamento 85
10 O casamento 93
11 A viagem 105
12 Enfrentando crises 116
13 Novas informações 126
14 Retorno ao lar 138
15 Mergulho no erro 147
16 Na espiritualidade 158
17 Enfrentando conseqüências 168
18 O louco 179
19 A verdade vem à tona 188
20 Dúvidas 198
21 Novos desatinos 208
22 Reencontrando amigos 220
23 Na Fazenda Santa Clara 231
24 Novas descobertas 243
25 Diva 253
26 O escravo Josias é capturado 265
27 Teófilo 277
28 Complicações 289
29 Recebendo visitas 297
30 Informações inquietantes 311
31 Os mortos falam! 323
32 Socorro do alto 338
33 Libertação 354
34 De volta à espiritualidade 366
35 Epílogo 377
Biografia 386
Apresentação
Que Jesus os abençoe!
Confesso-lhes que nem acredito ter conseguido concluir
esta obra. Não foi fácil. Foi um período longo, em que tive
de aprender a lidar com meus sentimentos e a trabalhar meu
lado emocional, a fim de que pudesse ser o mais isenta e fiel
possível ao relato dos acontecimentos vivenciados. Remexer
no passado é doloroso e requer extremo equilíbrio, para não
comprometer as conquistas que acreditamos já ter efetuado
ao longo do tempo.
Não se trata, porém, única e exclusivamente, do nosso
problema pessoal. É um processo bem mais complicado e
abrangente. Quando recordamos fatos passados, mexemos
num verdadeiro vespeiro. Não que isso seja prejudicial, ao
contrário. Nossas lembranças movimentam vibrações,
sentimentos e emoções que atingem outros seres que
fizeram parte desse passado, não raro necessitados de
socorro, muitas vezes habitando ainda regiões de sofrimento
e dor no Além. Lembrando os dramas ocorridos, eles são
atraídos para perto de nós pelas nossas emissões mentais, o
que propicia o socorro da Espiritualidade Maior.
Graças a estes textos, inúmeros espíritos foram socorridos,
iniciando-se para eles uma nova etapa, com a internação em
unidades hospitalares de recuperação, onde são utilizadas
técnicas de tratamento tendentes a proporcionar-lhes o
reequilíbrio de que tanto carecem. Durante esse período,
são objetos de atenções e carinho, recebem orientações
necessárias ao seu aprendizado e podem, finalmente,
receber a visita de familiares, que restauram as ligações que
julgavam perdidas. São submetidos a técnicas terapêuticas
direcionadas ao restabelecimento da confiança em Deus, em
si mesmo e nos outros. Terminada a convalescença e
apresentados à terapia do serviço, começam a auxiliar em
alguma atividade, passando a ser úteis à comunidade em que
vivem. E, assim, se reeducarão moralmente à luz do
Evangelho.
Muitos, rebeldes, precisam ser conduzidos a reuniões
mediúnicas, em que recebem atendimento com profundo
amor, ocasiões em que, não raro, reencontram algum
familiar querido que há muito não viam. Abrem o coração,
falam dos seus sentimentos, dos dramas ocorridos, até que,
extravasando todo o ódio, acabam por adormecer nos braços
da mãe, do pai, da esposa, ou de algum outro ente querido,
sendo levados para atendimento hospitalar.
Como espírito muito comprometido com as divinas leis,
garanto-lhes que nada se compara ao perdão que temos
oportunidade de pedir nessa hora, libertando-nos da
consciência de culpa que nos cobra pelos danos causados.
Nada se iguala ao momento em que podemos abraçar nossa
vítima, agradecidos diante do perdão que nos concede, ou
quando conseguimos a bênção de perdoar a um inimigo,
aliviando a mente e o coração.
Tudo isso eu consegui por meio do relato de minhas
experiências, limpando o lixo acumulado do íntimo e
tirando os sentimentos negativos do coração.
O drama aqui narrado se passa antes da chegada do
Consolador Prometido que viria, por intermédio da plêiade
do Espírito de Verdade, trazer novos conhecimentos e
esclarecer a humanidade sobre a imortalidade da alma, a
natureza dos espíritos e suas relações com os homens. Esses
conhecimentos, reunidos magistralmente por Allan Kardec,
o Codificador da Doutrina Espírita, em O Livro dos
Espíritos, obra publicada em 18 de abril de 1857, fariam que
os homens pudessem entender melhor a vida presente, a
vida futura e o porvir da humanidade, na aplicação das leis
morais, conforme os ensinamentos de Jesus, trabalhando
pela transformação moral que os levaria à evolução.
No entanto, como esses conhecimentos fazem parte das Leis
Naturais ou Leis Divinas, existiram desde as mais remotas
eras e eram conhecidos das mais antigas civilizações,
conquanto houvessem sido esquecidos ao longo do tempo.
Desse modo, como fatos naturais, a existência dos espíritos e
a comunicação entre os dois mundos, inclusive os
fenômenos espirituais que acarretam, também chegaram ao
conhecimento dos personagens deste livro, que puderam
vivenciar fatos interessantes e inusitados para a primeira
metade do século 19.
Só posso agradecer a Deus, nosso Pai Maior, que, com tanta
misericórdia e sabedoria, encaminha nossos passos para o
que precisamos fazer.
À Jesus, Mestre dos Mestres, que nos tem estendido sempre
os braços amorosos, aconchegando-nos ao seu coração temo
e fazendo que sintamos a consolação, a paz e o amor que
nos vêm da sua presença.
Aos amigos espirituais, generosos e devotados, que jamais
nos deixaram ao desamparo.
Não posso deixar de agradecer também a todos que convi-
veram comigo, que tiveram paciência diante das minhas
muitas dificuldades, que toleraram meus erros, que me
ajudaram nesse trajeto pedregoso e escarpado.
O meu abraço saudoso aos familiares queridos, aos amigos,
aos colegas de trabalho e a todos os que me assistiram no
longo período das hemodiálises.
A todos, a minha gratidão perene. Reservei-me o direito de
não citar nomes, para não correr o risco de ser ingrata com
alguns, visto que seria impossível lembrar-me de todos, e
não quero cometer injustiças.
Espero que estas páginas, grafadas com profundo amor,
possam ser úteis aos eventuais leitores, até para que
entendam minhas dificuldades e limitações.
Que o Senhor os ilumine sempre e os ampare no caminho
do dever retamente cumprido, para que não venham a
sofrer o que sofri.
Aos trabalhadores espíritas encarnados, que fazem parte da
grande falange do Consolador Prometido no planeta, dirijo
um apelo especial: espero que esta obra lhes sirva de alerta e
reflexão. O conhecimento da Doutrina Espírita e do
Evangelho de Jesus são dádivas que não podemos ignorar e
deixar ao abandono. São talentos que precisamos fazer
frutificar a nosso benefício e dos nossos semelhantes; por
isso, não podemos simplesmente enterrá-los, pois, conforme
a parábola evangélica, o medo não justifica o descaso no uso
dos tesouros divinos que recebemos.
"Muito se pedirá àquele a quem muito se houver dado e
maiores contas serão tomadas àquele a quem mais coisas se
haja confiado", nos alerta Jesus.
Assim, empunhemos a enxada do serviço, utilizando o
esforço na vontade de servir, para arar o campo ressequido
da nossa alma, lembrando ainda que a misericórdia divina,
sempre pronta a nos amparar e abençoar, nos concederá
invariavelmente novas oportunidades para a nossa redenção.
"Buscai, pois, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua
justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas", afirma o
Cristo.
Como espíritas, não ignoramos que nosso objetivo é a evo-
lução, que se fará mediante o progresso intelectual e moral.
Dessa forma, é imprescindível modificar nosso íntimo,
acrescentando qualidades que nos direcionem para o amor
em sua mais ampla significação, que é o amor ao próximo,
inclusive aos inimigos, com o que estaremos exercitando a
mais pura caridade cristã.
"Aquele que perseverar até o fim será salvo".
Muita paz!
ROLÂNDIA, 5 DE MAIO DE 2009
Maria Cecília Alves
1 – Prelúdio da volta
Espírito endividado e comprometido com as Leis Divinas,
eu desejava um alívio para minhas mágoas, remorsos e
sofrimentos sem fim. Tanto havia ferido quanto fora ferido
ao longo dos tempos. Agora, ansiava que a bênção do
esquecimento me concedesse paz.
Como a semente que aguarda na terra a hora de germinar e
transformar-se na planta tenra que cresce e se renova sob as
dádivas do calor do sol e da umidade do solo, sonhava eu
também com o recomeço. Não suportava mais. Sentia-me
exausto.
Urgente parar de pensar, de lembrar cenas de um passado
distante que me atormentava o tempo todo. Para tanto, na
Espiritualidade, preparei-me por longos anos sob a tutela
amiga de zelosos benfeitores, que me incutiam bom ânimo e
coragem para a renovação que se fazia tão necessária.
Espírito cheio de imperfeições, somente dessa maneira
conseguiria vislumbrar a esperança de um futuro melhor e
mais feliz.
Mas como vencer o orgulho atroz que me queimava o
íntimo, e que gerara tanto mal, por julgar-me acima de todas
as outras criaturas? De que maneira expurgar do coração o
egoísmo ferrenho que me fazia desejar tudo para mim, com
exclusão dos demais? Como libertar a mente da ambição
desmedida, conseqüência fatal do orgulho e do seu filho
dileto, o egoísmo? Ao longo do tempo, em vestes corpóreas
masculinas ou femininas, por quantas vezes me entregara ao
erro, dilapidando excelentes oportunidades de vida que o
Senhor me concedera?
Sozinho diante do manto estrelado da noite, olhos elevados
para o alto, refletia na minha situação de ser indigno,
enquanto lágrimas quentes de arrependimento lavavam-me
o rosto e a alma. Eu sabia a resposta, tantas vezes estudada
até a exaustão em nossas reuniões: imprescindível
transformar-me à luz do Evangelho redentor, aquele mesmo
Evangelho que tantas vezes plantara a ferro e fogo na mente
de criaturas indefesas, como se fosse um remédio amargo
que devessem engolir à força. Trajando o hábito sacerdotal e
tendo nos lábios um sorriso, quantas vezes mandei pessoas
inocentes para a morte após subtrair-lhes a fortuna! Quantas
vezes criei intrigas para derrubar inimigos mais altamente
colocados na política do mundo, jogando-os na vala da
amargura! Quantas vezes trabalhei nas sombras e atraiçoei
pessoas que se entregavam a mim, confiantes na amizade
que lhes hipotecara!
A maldade, a hipocrisia e a desonestidade se contavam entre
os caracteres de personalidade que eu mais prezava, para
minha vergonha e aversão.
Basta, porém, de lembranças dolorosas! Eu não suportava
mais sofrer e rever as imagens que tanto me afligiam. Não
suportava mais remoer o remorso, proporcionado pelo
sentimento de culpa que não me concedia tréguas.
Desejava esquecer, apagar da mente torturada as recordações
escabrosas. Recomeçar, como uma página em branco;
sujeitar-me a uma nova existência que me proporcionasse
paz e tranqüilidade.
Assim, retornaria ao palco da vida com o coração repleto de
esperança num futuro melhor.
Preparara-me com esmero. Durante dezenas de anos servira
ao próximo em beneméritas instituições da Espiritualidade,
procurando aprender a soletrar o verbo amar, a desenvolver
em meu íntimo, sentimentos mais nobres. Dedicava-me aos
necessitados, praticando o exercício de pensar menos em
mim e mais neles.
O planejamento reencarnatório, um primor de técnica e
eficiência, obedecia às minhas necessidades mais urgentes.
Envergaria um organismo feminino e iria reencontrar na
carne algumas das pessoas que eu mais amava e que me
proporcionariam sustentação afetiva e emocional, compondo
o cenário de cada dia, além de vários desafetos, objetivo
maior da existência, espíritos que me comprometera a
ajudar, resgatando erros de outrora.
Do Além, amigos, companheiros, familiares queridos,
instrutores e generosos benfeitores velariam por mim na
retaguarda, sustentando-me nos momentos mais difíceis.
Aqueles que seriam meus pais e me acolheriam como filha
do coração, ultimavam os preparativos para mergulhar na
carne.
Eles renasceriam no Brasil, o Novo Mundo que se descor-
tinava para todos os condenados como a Terra da Promissão,
fugindo das recordações que o Velho Mundo representava.
Despedi-me deles, reiterando os propósitos de cumprir os
compromissos assumidos por ocasião do planejamento
reencarnatório.
Terminara o primeiro quarto do século 19, que se iniciara
pleno de esperanças. Em 1822, o Brasil se tornara
definitivamente independente de Portugal, pela vontade do
príncipe regente, Pedro de Alcântara, filho de D. João VI,
que passou a ser D. Pedro I, o imperador do Brasil.
2 - Os primeiros anos
As primeiras lembranças que me vêm à memória são
extremamente agradáveis. Um vasto gramado, onde eu
gostava de ficar sob os raios de sol aos cuidados de uma
negra de olhar doce e terno. Havia também uma criança da
minha idade com quem sempre brincava; essa
companheirinha de folguedos era Maria Rita, ou Ritinha,
filha da escrava Dionísia, que eu tratava pelo apelido
carinhoso de Dinha.
Quando me cansava das brincadeiras, nos acomodávamos à
sombra de uma árvore amiga, e Dinha nos servia refresco,
acompanhado de uma fruta, um pedaço de pão ou um doce,
que devorávamos entre risos.
Eu era feliz. Sentia-me segura e confiante.
À hora do almoço, com o sol a pino, voltávamos cansadas,
mas satisfeitas, para o imenso casarão onde eu morava.
Dinha, minha ama de leite, lavava-me e trocava minhas
roupas sujas por outras limpas e mais belas; e penteava com
carinho meus cabelos loiros, compridos e anelados. Ao dar
por terminada a tarefa, afastava-se um pouco e lançava-me
um último olhar crítico, para confirmar se eu estava em
condições de apresentar-me diante de meus pais, e eu a
fitava com os olhos azuis externando meu agradecimento;
depois, satisfeita com a sua obra, levava-me para a sala,
quando eu tinha o prazer de estar com minha mãe.
Era sempre com infinito amor que eu abraçava mamãe.
Dama bonita e elegante, mamãe tinha o rosto bem-feito, terno e
carinhoso; de tez clara, a pele era macia e aveludada; as
sobrancelhas, perfeitas e arqueadas, emolduravam os meigos olhos
verdes; quando sorria, duas covinhas encantadoras surgiam
em cada face, e tudo ao seu redor se iluminava, mesmo que o céu
estivesse escuro e chuvoso. Os cabelos eram longos e encaracolados,
da cor do mel, e eu gostava de penteá-los, sempre que ela
deixava.
Ao me ver, ela abria os braços e eu me abrigava neles,
sentindo seu perfume de alfazema. Naquele momento,
envolvida pelo seu carinho, eu sentia que de nada mais
precisava. Ela era meu sol, minha vida, meu tudo.
Meu pai, porém, inspirava-me medo. Invariavelmente
mostrava cenho carregado, testa franzida, e seu olhar azul
era severo. Alto, usava sempre botas de cano longo, que lhe
deixavam o andar ainda mais firme e pesado. Quando ouvia
seus passos ressoando no lajeado da varanda que circundava
nossa casa, ou suas botas rangendo nas largas tábuas do
assoalho, eu estremecia de medo. Quase nunca ele me fazia
um agrado e, quando o fazia, parecia-me uma atitude
forçada, sem espontaneidade. Seu sorriso, raro, semelhava-se
mais a uma careta, jamais deixando ver os dentes. Isso me
fazia pensar que ele não tivesse dentes. Todavia, como ele
dificilmente permanecia em casa, meus dias eram tranqüilos
e agradáveis.
Na fazenda havia muitos escravos, e eu gostava de ir até a
senzala brincar com as crianças, conquanto não fosse do
agrado de meu pai.
Ao ver-me junto com os meninos, ele ficava ainda mais
carrancudo e com um gesto indicava-me o rumo, enérgico:
— Já para casa, Maria Eugênia!
E eu corria, o mais depressa que minhas pequenas pernas
permitiam. Chegava ao casarão com o coração aos saltos, ofegante e
trêmula de medo. Subia as escadarias e corria para meu
quarto, escondendo-me entre as roupas de um grande
armário lá existente. E ali ficava até que alguém viesse me
buscar, passado o temporal.
Com o tempo, a diferença entre meu pai e minha mãe ficou
ainda mais patente. Ela era toda delicada, elegante, refinada.
Fora educada em Paris e viajara por vários países. Ao voltar
da Europa, seu pai tinha acertado o casamento dela com
aquele que viria a ser meu pai, Felipe de Albuquerque
Figueiroa, rico fazendeiro da região.
O noivo, porém, era muito diferente da doce Virgínia. Como sempre
se interessara mais pela terra, ele jamais se propusera a continuar os
estudos, contentando-se com aprender a ler e a escrever, a
fazer contas e a cuidar da fazenda, dos animais, das lavouras
de cana-de-açúcar, ao contrário de tantos jovens, inclusive
colegas seus, que foram para a Europa estudar. Felipe era grosseiro e
xucro, como seus cavalos. Amava, porém, a terna Virgínia
desde que a conhecera ainda criança. Com ela, era carinhoso
e gentil.
Exatamente um ano após o casamento deles, eu vim ao
mundo, enchendo a casa de alegria e tornando a vida de
minha mãe mais fácil e agradável.
Tudo isso fiquei sabendo por minha própria mãe, nos
momentos em que estávamos a sós, conversando. Curiosa,
eu perguntava-lhe como tinha sido sua vida e ela me
contava. Aos poucos, sua história foi-se delineando em
minha mente, ganhando contornos mais precisos e levando-
me a entender coisas que, até então, eu não compreendera.
Sentada aos pés dela, nas tardes de inverno, enquanto me
ensinava a bordar, eu voltava ao assunto que mais me
interessava, isto é, descobrir seu passado, como fora sua
existência.
— Conte-me, mamãe, como é morar tão distante, no
estrangeiro.
E minha mãe, então, falava-me de lugares longínquos e
encantadores, contava histórias e acontecimentos
interessantes e engraçados. Eram momentos muito especiais.
Eu me perdia em divagações, vendo, por meio de suas
narrativas, aquelas belas paisagens que ela descrevia com
tanto primor.
Certo dia, quando ela me falava do tempo em que aguardava
minha chegada, perguntei:
— Mamãe, se meu nascimento foi cercado de tanta expectativa e
amor, por que papai não gosta de mim?
Ela fitou-me com seus olhos grandes, que nesse momento
me pareceram ainda maiores, e onde notei um brilho de
aflição:
— Não diga isso, minha filha! Seu pai a ama. Como pode
pensar diferente?
— Talvez a senhora tenha razão, mamãe, mas nunca senti o
amor de meu pai. Estou agora com treze anos, e, desde que
me lembro, ele sempre foi rude comigo. Trata-me, às vezes,
pior
do que os escravos, se é que isso é possível.
Minha mãe pôs de lado o bordado, depois se abaixou
envolvendo-me em seus braços com imenso carinho, e
pude ver que o brilho de seus olhos se apagara, enquanto
uma ruga de preocupação marcava sua bela testa.
— Oh, minha filha, seu pai a ama, sim, apenas não sabe
demonstrar esse amor. Tenha paciência com ele.
Calei-me. Não queria entristecê-la. Naquele momento,
porém, decidi que iria procurar conhecer a verdade. Sua
reação mostrara-me que havia algo que eu não sabia. Dinha,
minha querida ama de leite, estava na fazenda havia muitos
anos, ali nascera e crescera, e, se houvesse algum segredo
ligado ao meu nascimento, ela o saberia com certeza.
Mudei de assunto e nunca mais voltei a incomodar mamãe
com minhas dúvidas e questionamentos.
ALGUNS DIAS DEPOIS, surgiu a oportunidade ideal. Dinha e eu
estávamos sozinhas, caminhando pelo parque, e nos
dirigimos para a margem do rio, algumas centenas de metros
ao fundo do jardim. Ritinha permanecera em casa por estar
febril. O céu, sem nuvens, apresentava um tom de azul
intenso, e o sol caminhava para o poente. Aleguei cansaço
em virtude do calor, incomum àquela época, e nos sentamos
à margem. A ama fechou a sombrinha e, sob a copa de uma
grande árvore enquanto leve brisa nos refrescava, ficamos
apreciando o murmúrio das águas, o gorjeio dos pássaros e o
coaxar dos sapos e rãs em meio à vegetação ribeirinha.
Estendi-me na grama e fechei os olhos. De repente, fiz a
pergunta que me martelava na cabeça:
— Dinha, por que meu pai não gosta de mim?
— O que é isso, menina? Seu pai gosta de você, sim,
sinhazinha - respondeu com seu jeito peculiar de se
expressar.
— Sinto que aconteceu alguma coisa e ninguém quer
me contar. E sei que você sabe, Dinha. Por que me esconde
a verdade?
— Sei de nada, não, sinhazinha. Vamos embora. É tarde e o
sinhô, seu pai, não tarda a chegar da cidade.
Insisti, mas ela não cedeu. Levantei-me contrariada, ajeitei
as saias e retruquei irritada:
— Pois muito bem. Eu vou descobrir. Você não é minha
amiga. Com sua ajuda ou não, eu vou descobrir. Ouviu?
A escrava lançou um olhar enviesado e murmurou entre
dentes:
— Pois sim! Sinhazinha quer é me arrumar problema. Não
há nada para descobrir!
Levantei a cabeça e comecei a caminhar apressada,
obrigando-a a me acompanhar. Não conversamos mais. Eu
estava muito brava com ela. Esperava que me ajudasse, e sua
recusa me deixou magoada; mais do que isso, indignada.
Chegamos à casa-grande e corri para meus aposentos.
Precisava arrumar-me para o jantar. Felizmente meu pai
ainda não voltara da cidade.
Quando desci as escadarias, ouvi vozes na sala de visitas.
Uma delas era a de meu pai, a outra, desconhecida. Não
desejando ser vista, procurei esgueirar-me para a cozinha,
quando minha mãe surgiu vinda da sala, impedindo-me a
retirada:
— Ah, é você, Maria Eugênia! Estava mesmo indo procurá-
la. Seu pai solicita sua presença na sala.
Sem saída, respirei fundo e caminhei acompanhando
minha mãe até a sala de visitas. Ao entrar, vi meu pai e outro
cavalheiro que estava de costas. Aproximamo-nos e meu pai
sorriu. Pela primeira vez, consegui ver seus dentes, feios e
amarelados pelo fumo.
— Ei-la que chega! Guilherme, tenho o prazer de lhe
apresentar Maria Eugênia, minha filha. Maria Eugênia, este é
Guilherme, filho de um grande amigo meu.
O rapaz levantou-se, curvando-se elegantemente numa
reverência. Só então pude vê-lo. Tratava-se de um moço alto
e distinto, rosto simpático, olhos e cabelos pretos. Ele sorriu
e pude ver uma fieira de dentes alvos e simétricos.
— É um grande prazer conhecê-la, senhorita.
Gaguejei algumas palavras inaudíveis, corando de vergonha.
Após os cumprimentos, meu pai sugeriu:
— Vamos sentar-nos. Acomode-se, meu caro Guilherme,
por gentileza.
Em seguida, virando-se para a esposa, informou:
— Virgínia, nosso caro Guilherme jantará conosco.
Minha mãe levantou-se, assegurando, gentil:
— É um grande prazer tê-lo conosco, senhor Guilherme.
Peço-lhes licença. Devo verificar se está tudo em ordem na
cozinha. Enquanto isso, mandarei que lhes sirvam uma taça
de vinho.
Voltando-se para mim, com gesto gracioso, mamãe
convidou-me a acompanhá-la:
— Venha ajudar-me, filha.
Saí lançando-lhe um olhar agradecido. Seria difícil ficar
naquela sala enquanto os homens conversavam. Além disso,
eu era apenas uma criança e não estava interessada em
conversas de adultos.
Chegando à cozinha, mamãe ordenou a uma escrava:
— Odete, sirva vinho aos cavalheiros na sala. Depois, colo-
que mais um lugar à mesa. Temos visita para o jantar.
— Sim, sinhá Virgínia.
Aproximando-se do grande fogão de lenha, mamãe
perguntou a Florência:
— Como está o jantar?
— Dentro de meia hora no máximo estará pronto, sinhá
Virgínia.
— Ótimo. Temos visita. Capriche.
Dirigimo-nos à sala de jantar, onde minha mãe passou os
olhos pela mesa para ver se estava tudo em ordem; ela
gostava de esmerar-se nos detalhes e verificava se a toalha
de linho estava bem passada, se a maneira de colocar os
pratos, os talheres, os copos e os guardanapos estava perfeita;
tudo tinha de ficar impecável. Assim fora criada e não abria
mão de seus hábitos. Acertou um ou outro pequeno detalhe
e, satisfeita, encaminhou-se comigo para a sala onde os
homens conversavam sobre negócios.
Sentei-me perto de minha mãe. Sentia-me segura junto dela.
Não gostava de visitas e de gente desconhecida. Guilherme
gentilmente dirigiu-me a palavra:
— O que gosta de fazer, senhorita? Vi um belo piano logo na
entrada. Aprecia música? Se bem que esta bela fazenda há de
ter muitas atividades interessantes...
Timidamente, abri a boca para responder, porém meu pai
adiantou-se:
— Meu caro Guilherme, essa é uma mania de minha esposa.
Ensinou Maria Eugênia a tocar piano, embora eu considere
isso desnecessário. Às mulheres compete apenas aprender a
cuidar da casa, cozinhar, costurar e mandar nos escravos,
para fazerem um bom casamento. Não concorda comigo?
Guilherme, que acabara de tomar um gole de vinho, colocou a taça
sobre a mesa e respondeu:
— Bem, senhor Figueiroa, penso que estudar e aprender é
sempre importante.
Minha mãe ergueu a bela cabeça, lançou um olhar para meu
pai, depois se dirigiu ao visitante:
— Meu marido, senhor Guilherme, acredita que mulher não
deve estudar. Estou procurando convencê-lo a deixar Maria
Eugênia estudar na capital, porém sem resultado. Recusa-se
terminantemente a ceder aos meus rogos.
— E para que lhe serve tanto estudo, minha querida? A
senhora é um exemplo disso. Estudou na França, viajou pela
Europa inteira, aprendeu tantas coisas, para quê? - retrucou
ele.
— Não é só o lado material da vida que importa, Felipe.
Aprendi a pensar, estudei literatura, arte, música e
muito mais. Tudo isso foi muito importante para minha
formação. Os conhecimentos abriram-me a cabeça.
— Para quê, minha querida? Para aprender a dirigir uma
casa, para cuidar do marido e da filha, não precisaria nada
disso. Entende? Tempo perdido!
Minha mãe prendeu a respiração. Desejava retrucar, mas não
deveria fazê-lo. Não diante de um convidado. Segurei sua
mão delicadamente por baixo das dobras do vestido, e senti
que ela tremia.
Guilherme, para minha surpresa, tomou sua defesa,
concordando com ela:
— Dona Virgínia tem razão ao afirmar que o conhecimento
é importante. Nossa vida só será melhor se soubermos
valorizá-la adequadamente, utilizando todas as nossas
potencialidades.
Minha mãe endereçou a ele um discreto olhar de agrade-
cimento. Aos poucos ela foi voltando à normalidade,
enquanto meu pai, sem nada perceber, já mudara de assunto,
enveredando para o terreno que conhecia: os negócios.
Guilherme, aproveitando a ocasião, comentou:
— Suas lavouras estão uma beleza, senhor Figueiroa! Os
canaviais, muito bem cuidados.
— Realmente, meu caro amigo. Tenho orgulho deles.
Percebi que Guilherme, vez por outra, lançava um olhar
cheio de piedade para minha mãe.
Nesse momento, a escrava Odete aproximou-se avisando
que o jantar estava servido, para alívio geral. Fomos para a
sala de jantar, onde as iguarias foram servidas e degustadas
em meio a uma conversa amena e agradável. Em seguida
vieram as sobremesas. Depois, já na sala de visitas, o
cafezinho.
Como já era tarde e estava com sono, pedi licença e retirei-
me para meus aposentos, desejando boa-noite a todos.
3 – Pedido de casamento
Nos dias seguintes, notei algo de estranho no ar, sem,
contudo, identificar a razão. Observei conversas trocadas
entre meus pais e interceptei olhares que me eram dirigidos.
Quando eu me aproximava, eles claramente mudavam de
assunto. Certamente estariam falando de mim, mas o quê?
Quando a sós comigo, vez por outra mamãe me olhava
disfarçadamente, pensativa, como se estivesse preocupada
com alguma coisa.
— O que está acontecendo, mamãe? - Perguntei, incapaz de
me controlar por mais tempo.
— Você saberá quando chegar o momento, minha filha.
Insisti, mas ela não disse mais nada. Minha curiosidade já
estava atingindo um nível insuportável.
Alguns dias depois, à tarde, fui chamada ao gabinete de meu
pai. Entrei. Ali estavam meus pais e um cavalheiro estranho.
Papai apresentou-nos dizendo:
— Maria Eugênia, este é o senhor Valentim Cerqueira, pai
de Guilherme, que você já conhece. Amigo Cerqueira, esta é
minha filha, Maria Eugênia, sobre quem falávamos há
pouco.
O cavalheiro cumprimentou-me inclinando-se, enquanto
me examinava como se fosse um animal de raça que
estivesse à venda. Correspondi com leve gesto de cabeça,
depois aguardei, ansiosa. Novamente senti que algo estranho
pairava no ar; e agora não era impressão apenas, mas certeza.
O que estaria acontecendo?
Meu pai, em seguida, incumbiu-se de responder à minha
pergunta:
— Maria Eugênia, o senhor Cerqueira veio pedir-me a sua
mão em casamento para seu filho Guilherme. E eu a
concedi. Precisamos marcar a data do noivado. Este é um
momento de
grande alegria para todos nós.
Não consegui emitir uma única palavra. Eu estava em
choque; era uma criança ainda, brincava de bonecas e corria
pelos campos. E agora, ia ficar noiva e me casar?
O sangue subiu-me à cabeça, que começou a formigar. Tudo
escureceu à minha volta e teria caído se o visitante, mais
próximo, não tivesse me segurado.
— O que tem, senhorita? Sente-se mal?
Foi apenas um segundo. Voltando a mim, vi a cara de
desagrado de meu pai, e respondi com monossílabos:
— Não foi nada, senhor. Um mal-estar passageiro.
Estou bem.
Sentada numa poltrona, recuperava-me da notícia,
vendo-os conversar.
— Então, está combinado. No próximo fim de semana,
viremos para a festa de noivado - dizia a visita.
— Teremos imenso prazer em recebê-los em nossa casa.
Esta união será muito importante para nossas famílias. Será
um marco na história da região!
Olhei para minha mãe. Ela sorria, mas percebi que era um
sorriso automático, frio. De repente, ela virou-se para mim e
pude ver um ar de piedade em seu olhar, enquanto eu
pensava: "E eu? Ninguém se lembrou de perguntar o que
penso sobre o assunto? Se desejo me casar com o tal
Guilherme, se ele me agrada verdadeiramente? Meu Deus!
Sou uma criança!".
Após a saída do cavalheiro, as atenções se voltaram para
mim:
— Que aconteceu, Maria Eugênia? Que mal-estar é esse que
a acometeu? Portou-se de maneira ridícula perante a visita.
Não percebe a importância desse casamento para sua vida? -
ressaltou meu pai, indignado.
Levantei-me da poltrona, sentindo que uma tempestade se
formava em meu íntimo.
— Por que o senhor, papai, não me consultou sobre esse
casamento? Por que não me preparou para ouvir sua
decisão? Por que não me disse nada?
Com olhar enfurecido ele me fulminou:
— Quem pensa que é, mocinha? Eu decido sobre o que é
melhor para nossa família. Só tem de obedecer, nada mais. E
não se atreva a discutir minhas ordens.
No auge da indignação, sentindo-me impotente diante da
vontade dele, comecei a chorar.
— Isso é um absurdo, meu pai! Só tenho treze anos! O
senhor não pode me obrigar a casar contra minha vontade!
— Posso e o farei. Agora chega de discussão. Virgínia, pre-
pare a festa do noivado. Quero que tudo esteja perfeito nesse
dia - ordenou ele fitando a esposa. - Todos verão a nossa
força.
A união das famílias Cerqueira e Albuquerque Figueiroa
determinará a união de nossas fazendas e ficaremos donos
de grande parte das terras da região sul das Minas Gerais.
— Mas, papai...
— Basta! Vá para o seu quarto! - ordenou energicamente.
Sem alternativa, virei nos calcanhares e subi as escadarias
engolindo as lágrimas. Ao entrar em meus aposentos,
porém, desatei em choro desesperado, jogando-me no leito.
A ama, que me aguardava, cochilando num canto, acordou
com o barulho e apressou-se a me ajudar.
— O que sucedeu, sinhazinha? Por que tantas lágrimas?
— Estou desesperada, Dinha. Meu pai quer obrigar-me a casar.
Decidiu tudo sem falar comigo. Não aceito. Não me casarei.
— Calma, sinhazinha. Sabe que não adianta se rebelar contra
as ordens do sinhô seu pai. Tente conversar com ele
amanhã. Mas agora venha, vamos trocar de roupa.
Conversando tranqüila, com voz meiga e suave que me
embalava desde o berço, Dinha preparou-me para dormir.
Com delicadeza tirou-me a roupa pesada, colocando-me
uma leve camisa de dormir. Cobriu-me com uma manta de
pelo de carneiro, de que eu gostava, e ficou ao meu lado
cantando uma antiga canção de ninar que, desde pequena,
sempre me acalmava. Aos poucos adormeci.
Sonhei que estava num lugar lindo: havia árvores, flores e
um belo gramado. Uma senhora muito bem-vestida
aproximou-se sorridente. Eu não sabia quem era ela; todavia,
parecia-me estranhamente familiar. Trazia os cabelos
castanhos presos na nuca, enquanto na testa um cacho se
soltara e caía de maneira encantadora. Seus olhos eram
azuis, a pele perfeita; o sorriso cativante deixava ver-lhe os
dentes bonitos. Porém, não era só a sua aparência que lhe
dava um ar tão fino e elegante. Havia algo mais que eu não
sabia precisar, como se todo o seu corpo refletisse um brilho
interior. Melhor dizendo, parecia que ela tinha uma luz
interna que se lhe refletia delicadamente em todo o corpo.
Impressionada, eu a vi aproximar-se. Sentamo-nos num
banco e ela passou a conversar comigo como se me
conhecesse de longa data.
— Minha querida, aproveita a oportunidade que se te apresenta
no momento. Mantém a serenidade e não erres mais. Pelo tempo,
muito tens te comprometido e é chegada a hora de agir para o bem
de todos. Não guardes mágoa no coração e perdoa sempre. Mesmo
o que te parecer difícil de aceitar, é para o teu bem. Ao longo do
tempo, tenho estado sempre junto de ti, ajudando-te e amparando-
te nas mais diversas situações. Nossos vínculos afetivos remontam
a antigas encanações. Recebeste a grande bênção de reencamar
novamente. Não falhes mais. Mantém o pensamento elevado, liga-
te a Deus e tudo correrá bem.
Ao ouvi-la falar, das fibras mais profundas emergia um
sentimento de amor intenso, como se estivesse diante de
uma mãe. Chorei em seus braços, queixando-me do
compromisso que me estava sendo imposto.
— Acalma-te, minha criança. Deus sabe o que faz. Nada acontece
por acaso. Nada temas. Confia em Jesus e terás todo o amparo de
que necessitas.
Erguendo-se, a senhora fez um gesto de despedida. Tentei
impedi-la. Queria conversar mais. Precisava saber mais.
Todavia, com terno sorriso, ela acenou-me e foi
desaparecendo.
Chorei. Chorei muito. Desejava que ela permanecesse ao
meu lado. Depois, nada mais vi.
NA MANHÃ SEGUINTE, despertei alegre e bem-disposta. Não
me lembrava do sonho bom que tivera, mas um sentimento
de paz t de confiança envolvia-me como escudo protetor. O
desespero da noite anterior havia desaparecido totalmente e,
no íntimo, um sentimento de suave aceitação passara a
existir.
Dinha me fez a toalete, surpresa com a mudança que se
operara em mim. Conversamos normalmente; eu tagarelava,
como de hábito, e ela ouvia-me, aliviada.
Sentando-me para o café da manhã, mamãe também
estranhou minha boa disposição. Não vi papai. Ele saíra para
cuidar de seus negócios.
Saí para passear na companhia de Rita, minha companheira
de infância, filha de Dinha.
Andando pelos campos, ela observava-me. Certo momento, não
resistiu mais e perguntou:
— Sinhazinha, ouvi dizer que vai se casar. É verdade?
— É verdade, sim, Rita. É da vontade de meu pai e devo me
submeter - respondi resignada.
Com sorriso maroto, ela indagou, espevitada:
— É o rapaz é aquele que esteve aqui na fazenda outro dia?
— Sim, Rita. Chama-se Guilherme.
— Ah! Sinhazinha Maria Eugênia! Que moço bonito e
elegante. Até eu teria prazer em me casar com ele.
Olhei-a surpresa e dei uma risada.
— Mas que assanhada você é, Rita! Fica aí revirando os olhos
para meu noivo.
— Não me leve a mal, Maria Eugênia. Porém esse moço faria
a alegria de qualquer mulher. Nunca vi um cavalheiro tão
bonito.
Rimos as duas e continuamos conversando até chegarmos ao
riacho. Lá, tiramos os sapatos e meias e enfiamos os pés na
água límpida que corria sem parar.
Brincamos um pouco. Depois percebemos que, de repente,
o céu ficara coberto de nuvens pesadas e nos apressamos a
regressar. Bem a tempo. Grossos pingos começaram a cair e
corremos pelo gramado, rindo e achando tudo muito
divertido. Assim que entramos no casarão, a chuva desabou
pesada.
Corri para meus aposentos. Dinha, que me esperava, falou:
— Por pouco não foram surpreendidas pela tempestade.
Venha, vamos trocar essa roupa e secar os cabelos.
— Foram só alguns pingos, Dinha, não tem importância.
— Mas você pode ficar doente, menina, e o sinhô Figueiroa
não vai gostar.
Dei de ombros. Estava contente e ninguém iria estragar a
minha satisfação. Havia muito tempo não tinha o prazer de
sentir os pingos da chuva em meu corpo, como hoje.
Tudo ficou escuro e os escravos tiveram de acender velas e
lampiões, embora fosse hora do almoço.
Sentamo-nos à mesa debaixo de raios e trovões. O aguaceiro
caía lá fora, mas eu estava feliz. Até fazer a refeição do
meio-dia sob a luz de velas me divertiu. Meus pais se
olhavam, intrigados, mas permaneceram calados.
Comemos em silêncio; papai não gostava de conversas à
mesa. Dizia que era falta de respeito, salvo se tivéssemos
visitas, quando ele abria uma exceção.
O dia passou monótono. Enquanto a chuva caía, eu
observava pela janela. Durante todo o dia o aguaceiro
prosseguiu. Minhas esperanças de poder sair para o jardim
não se concretizaram.
Peguei um livro e comecei a ler. Logo caí em sono
profundo.
4 – O noivado
Felizmente na manhã seguinte o sol surgiu. O céu azul
resplandecia e todas as plantas pareciam lavadas a capricho
por um divino jardineiro. Rita e eu aproveitamos para
brincar no campo, correndo entre as árvores. Os dias que se
seguiram foram de grande agitação. Os preparativos para
meu noivado prosseguiam em ritmo acelerado. Enquanto
alguns escravos cuidavam da limpeza do casarão, outros
cuidavam dos pratos que seriam servidos aos convidados.
Temperavam-se carnes de boi, de porco e de carneiro, além
de aves como peru e faisão, todas eram submetidas a
cozimento e depois acondicionadas em barris, mergulhadas
na própria banha, para conservação. Posteriormente, seriam
levadas ao braseiro ou ao forno de lenha para assar. Tudo o
que poderia ser preparado com alguma antecedência, como
tortas doces, frutas cristalizadas e em compotas, bolos e
pudins, era armazenado aos poucos. Além de docinhos,
balas e guloseimas que tanto agradavam a todos, crianças e
adultos.
As modistas, trazidas da cidade, confeccionavam os trajes
que seriam usados na festa. Para tanto, meu pai tinha
comprado os mais finos tecidos, e elas esmeravam-se nas
nossas roupas, especialmente as que executavam os bordados
em meu vestido e no de minha mãe. Passavam os dias de
olhos postos nos tecidos, trabalhando sem cessar, para
terminar a tempo.
E com toda essa agitação, passei a me sentir uma pessoa
importante. Os olhares se voltavam para mim, agora com
admiração e respeito, e meu peito se inflava de orgulho e
vaidade.
Eu era a noiva! Sentia-me com direito a tudo, uma vez que
todas aquelas coisas estavam acontecendo por minha causa.
Era para mim que todos trabalhavam e se esforçavam para
fazer o melhor. Tinha a consideração das pessoas, o que era
novidade, e toda aquela bajulação me encantou.
Gostava de ver as modistas suplicarem para que eu provasse mais
uma vez o traje que vestiria no dia da festa. Só faltava se
ajoelharem a meus pés! E eu as deixava loucas, pois, rindo,
fugia correndo pelos campos e só voltava quando bem
queria. Para mim, aquilo tudo era uma brincadeira. Afinal,
eu não passava de uma criança.
Sábado, logo cedo, alguns hóspedes começaram a chegar
com suas carruagens. Eram parentes que vinham de longe e
ficariam hospedados em nossa casa. Meus avós maternos,
Justina e Felício Carneiro, foram os primeiros a chegar. Em
seguida, tios e tias, primos e primas.
Confesso que no começo gostei de tanta agitação. Cada um
que chegava trazia um presente diferente. E eram todos para
mim!
Com o passar das horas, comecei a ficar um pouco inco-
modada com tanta gente. Já não podia fazer o que desejava,
tinha de dar atenção aos hóspedes, e, na verdade, eram
todos quase desconhecidos.
Por sorte, nossa casa era bem grande e com muitos quartos
para acomodar aquela gente toda. Mamãe designara uma
escrava para servir a cada família, com a tarefa de ajudar
nossos hóspedes naquilo que fosse necessário, como
preparar o banho, passar roupas e outros pequenos serviços.
Diga-se de passagem, isso era absolutamente desnecessário,
visto que cada família trouxera seus próprios escravos para
serviços pessoais. Porém, quando comentei esse fato com
mamãe, ela me explicou que era elegante oferecer a
criadagem da casa às visitas; mostrava refinamento e
delicadeza dos anfitriões com seus hóspedes. Então, entendi
e aceitei, orgulhosa.
O almoço já parecia uma festa, com tanta gente reunida. Os
escravos, satisfeitos com seus novos trajes, discretamente
andavam de um lado para o outro servindo os convidados.
Todos os parentes - muitos deles não se viam havia anos -
riam e brincavam felizes por estarem juntos, lembrando o
passado e contando histórias engraçadas. Eu tinha sido
apresentada a todos, mas sentia dificuldade em lembrar-me
de seus nomes. Afinal, era tanta gente!
Depois do almoço, os hóspedes andaram um pouco pelos
jardins, ou sentaram-se nos bancos para conversar. Lá pelo
meio da tarde, recolheram-se para repousar antes de se
arrumarem para a noite, e respirei aliviada ao ver a casa em
silêncio.
Quando anoiteceu, as carruagens começaram a chegar
trazendo os demais convidados. Eram famílias de
fazendeiros das imediações, autoridades e amigos de meu pai
residentes na cidade próxima.
Dinha ajudou-me nos preparativos. O meu traje era um
vestido rosa de tafetá, longo, cheio de babados
terminados em renda, com mangas bufantes curtas e
decote redondo, finalizado também em renda; nos
acabamentos do decote, das mangas e dos babados,
delicadas guirlandas de flores bordadas. Uma larga faixa de
cetim em tom de rosa mais escuro contornava a cintura,
presa com um buquê de delicadas flores no mesmo tom.
Coloquei o vestido, calcei as meias, as botinas brancas e as
luvas. Depois, a ama arrumou meus cabelos loiros, longos e
encaracolados, ajeitando em minha cabeça uma tiara
de pequenas flores, as mesmas do vestido. Para concluir,
tirou de uma caixinha azul um delicado colar de ouro
engastado de pérolas e os brincos correspondentes, jóias
que recebi de presente dos meus pais pelo noivado. Dando
por terminados os preparativos, Dinha lançou um último
olhar de admiração e colocou-me diante do espelho. Fiquei
pasma! Não podia acreditar. Eu estava realmente linda!
— Sinhazinha será a moça mais bela da festa, pode
acreditar.
Virei para ela, emocionada:
— Devo tudo a você, Dinha. Como poderei lhe agradecer?
— Nem pense nisso, sinhazinha. Sou muito feliz vivendo
nesta casa e tendo o carinho de todos. Agora, vamos. A
sinhá já deve estar preocupada com sua demora.
Ela abriu-me a porta do quarto e, fazendo um sinal para que
eu passasse, disse-me com olhos úmidos:
— Sinhazinha, desejo que seja muito feliz.
Agradeci e passei por ela, descendo as escadarias. O salão
estava repleto de convidados. Ao surgir no topo da escada,
atraí todos os olhares. Foi um momento de glória. Sabia que
estava deslumbrante.
Logo eu o vi vindo ao meu encontro. Guilherme
aproximou-se, estendendo-me a mão, na qual depositou
delicado beijo, enquanto me dirigia palavras gentis. Não
pude deixar de notar como estava elegante em seu terno
preto, a camisa branca de babado aparecendo por baixo do
colete; nos pés, belos sapatos lustrosos.
Corei de satisfação. Depois, meu pai, dando o braço à minha
mãe, chamou os convidados, que fizeram um círculo
à nossa volta. Achegaram-se os pais de Guilherme, senhor
Cerqueira e senhora Leonora. Todos fizeram silêncio. Papai
pigarreou e começou a falar:
— Senhoras e senhores! Reunimo-nos nesta noite para
comemorar o noivado de minha filha Maria Eugênia e
Guilherme, filho do nosso amigo Valentim Cerqueira, os
quais neste momento selam um compromisso matrimonial,
unindo nossas famílias. Brindemos à felicidade dos noivos!
Enquanto ele falava, discretamente os criados passavam
entre os convidados com bandejas, servindo os
presentes.
O brinde se fez para alegria geral, e de todas as bocas se
ouviram votos de felicidades aos noivos. Depois, trocamos
abraços. Todos queriam cumprimentar a bela noiva e
seu elegante noivo. Em seguida, foi servido o banquete aos
convidados.
Após a ceia, os convidados se espalharam em grupos pelas
salas, terraços e jardins da casa. Guilherme aproveitou para
trocar algumas palavras comigo, sua noiva, uma vez que
durante a festa não pudemos conversar, pois atendemos a
todos que queriam nos cumprimentar.
— Vamos caminhar um pouco, Maria Eugênia? - con-
vidou ele.
— Não sei se devo... - respondi reticente.
— Por que não? Agora somos oficialmente noivos e esperam
que nos conheçamos - respondeu com um sorriso.
— É verdade. Então vamos.
Delicadamente, Guilherme ofereceu-me o braço e, assim, de
braços dados, caminhamos para o terraço.
Eu não sabia o que dizer numa hora dessas. Era tímida, e
esse era o primeiro contato que tinha com um homem, com
exceção de meu pai. E Guilherme não facilitava as coisas,
pois também permanecia calado.
Nesse momento, Rita passava por nós com uma bandeja de
taças de vinho. Ao ver-me, parou indecisa sem saber se
deveria quebrar a intimidade dos noivos, e fez menção de
continuar seu trajeto.
— Rita! Sirva-nos uma bebida - pedi com um sorriso.
Enquanto ela se aproximava, expliquei a Guilherme:
— Rita é minha companheira de infância. Dinha, sua mãe,
foi minha ama de leite.
Olhei para Guilherme e vi que ele a fitava de maneira
diferente. Pegamos as taças e depois ela falou com voz
trêmula:
— Desejo-lhes felicidades.
Guilherme olhou para ela, sorriu e agradeceu. Alguma coisa
aconteceu naquele momento. Rita também olhava para ele
e, nessa troca de olhar, senti-me apreensiva sem saber
por quê.
Olhando melhor para Rita, percebi que nunca a observara
direito. Era uma bela jovem, filha de um capataz, de
descendência holandesa, e de uma escrava, e a
mistura lhe proporcionara traços interessantes e olhos
esverdeados. Éramos quase da mesma idade, todavia Maria
Rita, dois anos mais velha, desabrochara mais cedo. Seu
corpo se definira melhor, cheio de curvas, enquanto o meu
era o de uma menina esguia e magra, sem atrativos físicos.
Naquele momento, Maria Rita usava uma blusa ousada cujo
decote mostrava parte dos seios. A comparação me
incomodou. Senti-me em desvantagem.
Levantei-me bruscamente e, agarrando o braço do noivo,
obriguei-o a seguir-me. Disfarçadamente, notei que ele se
virará, lançando um último olhar para Rita, que ficara para
trás, sem entender minha reação intempestiva.
Aquele fato encheu-me de indignação. À muito custo
contive a raiva, sem entender direito por que o olhar de
Guilherme para Rita mexera tanto comigo.
— Parece que essa moça gosta muito de você – ele
comentou, enquanto caminhávamos, quebrando o silêncio
— É apenas uma escrava. Só isso - respondi com maus
modos.
— Você me disse que ela é sua companheira de infância.
— Sim, é verdade. Apenas porque é filha de Dinha, minha
ama de leite. Crescemos juntas.
Nesse momento chegávamos ao salão e alguns convidados se
aproximaram para nos cumprimentar. Eram amigos de
Guilherme e estranhos para mim. Logo os deixei em
animada conversa, afastando-me. Queria um canto mais
tranqüilo para pensar e descansar, mas impossível. Assim,
subi as escadarias procurando a quietude do meu quarto.
Sentei-me no leito, nervosa e pensativa. "O que está
acontecendo comigo? Por que a presença de Rita me fez tanto
mal? Por que essa angústia, esse estranho mal-estar, essa
impressão de perigo que me persegue sem razão?"
Como a respiração se fizera curta, meu peito arfava. Sempre
considerara Rita como amiga, no entanto sua presença
naquele momento tinha-me irritado, sentia raiva dela. Não
conseguia entender.
A porta se abriu de mansinho e minha mãe colocou a cabeça
para dentro do quarto. Ao ver-me, aproximou-se.
— Aconteceu alguma coisa, Maria Eugênia? Você está pálida,
parece nervosa.
— Está tudo bem, mamãe.
Ela fitou-me e retrucou:
— Não. Não está tudo bem. Vi quando subiu as escadarias, e
a conheço o suficiente para perceber que está descontrolada.
Conte-me. O que houve?
— Foi a Maria Rita. Ela portou-se muito mal, mamãe.
Provocou-me, abusando da nossa convivência.
— Rita? Sempre foi discreta e companheira, gentil e deli-
cada. O que ela fez?
Na verdade, não tinha o que reclamar da escrava. Procurei
cortar o assunto:
— O que importa isso agora, mamãe? Esqueça. Já passou.
Hoje é a festa do meu noivado e quero aproveitar cada
momento. Vamos descer?
Com um sorriso, convenci minha mãe de que estava tudo
bem. Levantamo-nos para deixar o quarto e, antes que o
fizéssemos, pedi:
— Mamãe, peço-lhe. Não diga nada à Rita e muito menos à
Dinha. Está bem? Vamos esquecer o assunto.
Satisfeita, mamãe concordou. Também não desejava um
problema com escravas que sempre conviveram na casa e
que ela apreciava bastante.
Conversando, descemos as escadarias mergulhando no
ambiente de risos, perfumes, música. Os convidados
dançavam ao som de pequeno conjunto musical. Ao ver-
me, meu noivo aproximou-se. Curvou-se galantemente,
solicitando-me uma contradança. Tremi de medo. Era a
primeira vez que iria dançar com um cavalheiro, e ainda
mais diante de tanta gente.
Quando a valsa começou a tocar e ele me tomou nos braços,
esqueci tudo. Gostava de dançar e senti verdadeiro prazer
em rodopiar pelo salão junto com meu noivo, sentindo seu
perfume, enquanto todos nos observavam com admiração e
inveja.
Durante o resto da noite, dancei sem parar, algumas vezes
com Guilherme, outras com meus primos ou cavalheiros
que me solicitavam a dança.
A festa ia pela madrugada, quando os convidados come-
çaram a se retirar. Aos poucos foram se despedindo, até que
permaneceram apenas nossos hóspedes.
Exausta, eu não via a hora de dormir. Dinha me tirou
o vestido, trocando-o por uma leve camisa de dormir,
e caí no leito, mergulhando num sono repleto de sonhos
alegres. Parecia-me continuar ouvindo a música, e sentia-me
a rodopiar... rodopiar... rodopiar...
5 – Encarando o sofrimento
Despertei com o sol a pino. Sentia-me cansada, embora
satisfeita. Aliás, todos acordaram muito tarde, com exceção
do vovô Felício e da vovó Justina, que se haviam recolhido
mais cedo. Eles se acomodaram para a refeição, sozinhos,
fazendo jus à grande mesa repleta de guloseimas.
Passava de uma hora da tarde quando os demais começaram
a despertar. Alguns, como os tios Eugênio e Felisberto, com
ressaca, pelo excesso de bebidas alcoólicas; outros,
sonolentos ainda, mas satisfeitos, gabando a noite
memorável e a festa soberba da qual tiveram o prazer de
participar.
Às duas horas o almoço foi servido, para alívio de meu pai,
homem sistemático e acostumado a fazer a refeição bem
mais cedo, que se mostrava incomodado com o atraso.
Sentaram-se todos à mesa, conversando animadamente,
trocando informações sobre as ocorrências da noite, rindo
das situações engraçadas e fazendo pilhérias a respeito de
tudo.
Durante a tarde, os hóspedes se prepararam para a partida. O
movimento era intenso de criados descendo malas e baga-
gens, enquanto outros as acomodavam nas carruagens. Após
tudo arrumado, deu-se início às despedidas, que foram
longas e enfadonhas, com promessas solenes de regressarem
dentro de seis meses para o casamento, a ser realizado no dia
do meu aniversário. Permaneceriam conosco apenas os avós
Justina e Felício, para uma temporada na fazenda, pois
moravam longe e desejavam aproveitar a viagem.
Dentro em pouco, o casarão estava quase deserto e pude
respirar aliviada. Tanto movimento, conquanto prazeroso,
incomodava-me.
A vida retornou à normalidade, agora acrescida da presença
constante de Guilherme. Confesso que me agradavam as
visitas do noivo, a ponto de sentir-lhe a falta quando, por
qualquer razão, ficava impedido de comparecer, ocasião em
que ele se justificava, remetendo-me por um portador um
bilhete carinhoso, acompanhado de lindo ramalhete ou de
um mimo qualquer, desses que as mulheres adoram. Eu
recebia, agradecia a gentileza, mas ficava triste. A presença
de Guilherme cada vez mais se tornava importante e
necessária para mim. Guardava seus bilhetes, relendo-os
vezes sem conta, julgando perceber em suas palavras gentis
o afeto que me dedicava.
Quando estávamos juntos, no entanto, ele me parecia frio e
distante. Sempre gentil e delicado, mas diferente daquele
que me escrevia os bilhetes e me agradava tanto. Analisando
seu comportamento, julguei que fosse comedido por timidez
e que mudaria com o tempo. Como isso não aconteceu e,
com o passar dos meses, ele continuasse a agir da mesma
forma, me acostumei à sua maneira de ser, não dando maior
atenção ao fato.
O casamento se aproximava e precisávamos ultimar os
preparativos. Havia peças do meu enxoval para terminar,
roupas para a festa e para a viagem de núpcias. Iríamos à
Europa, onde ficaríamos por seis meses, aproveitando ao
máximo a oportunidade de ficarmos a sós, sem família e sem
amigos. Essa viagem era um presente de meu pai e, com
grande animação, eu contava os dias e as horas para ver
chegar esse momento. Após a festa, pernoitaríamos ali
mesmo, em aposentos especialmente preparados para os
noivos, e na manhã seguinte partiríamos para a cidade mais
próxima, de lá seguindo rumo ao porto de onde sairia o
navio. Eu estava eufórica! Jamais tinha viajado e a
oportunidade de conhecer Lisboa, Londres, Paris, e tantos
lugares mais, encantava-me.
ALGUNS DIAS ANTES do casamento, eu aguardava a chegada de
Guilherme. Ao vê-lo apontar na curva da estrada, montado
em seu belo cavalo Tufão, corri a seu encontro. Ele apeou, e joguei-
me em seus braços. Alegre e vivaz, exclamei:
— Demorou tanto! Pensei que não viesse mais hoje!
— Pois quase não pude vir mesmo, Maria Eugênia. Os
preparativos para o casamento tomam-me tempo precioso.
Além disso, há os negócios, que não podem ser deixados de
lado.
Você não ignora que, após nosso retorno da viagem de
núpcias, papai me entregará a administração de nossos bens.
Não posso decepcioná-lo!
— Tem toda razão, Guilherme. O importante é que veio...
Com expressão grave, em que notei traços de impaciência,
ele me interrompeu:
— Por pouco tempo. Devo ir ainda hoje à cidade, onde me
aguardam providências urgentes.
—Não tem importância. Aproveitemos os momentos pos-
síveis. Venha, vamos passear-concordei, engolindo a
frustração e abrindo um sorriso, sem desejar aborrecê-lo.
Caminhando de braços dados por entre as árvores, con-
versamos sobre amenidades, acompanhados pelo cavalo.
Logo Odete veio nos avisar que mamãe nos aguardava com
refrescos e biscoitos. Dirigimo-nos para o terraço, onde ela e
meus avós nos esperavam risonhos.
— Venham, meus filhos. Está quente hoje. Bebam este
refresco - convidou mamãe.
Realmente, estávamos sedentos. Acomodamo-nos em torno
da mesa e passamos algum tempo conversando com mamãe,
sempre estimulante, e com os avós Felício e Justina,
simpáticos e agradáveis, especialmente meu avô que,
com a experiência proporcionada pela idade, gostava
de contar passagens interessantes da sua vida,
prendendo a atenção de todos.
Percebi Guilherme desatento e ansioso. Logo, ele se
levantou, desculpando-se:
— Lamento deixar a companhia de tão gentis damas e
do senhor Felício; no entanto, preciso retirar-me. Não
faltarão outras oportunidades.
— Se deve ir, Guilherme, nós compreendemos
perfeitamente - concordou minha mãe.
Meu noivo despediu-se de nós e partiu a galope.
Após Guilherme ter desaparecido na curva da estrada,
experimentei certo mal-estar. Insatisfação íntima apertava-
me o peito, sem que pudesse saber a razão. Pedi licença à
mamãe e aos avós e afastei-me, buscando meus aposentos.
Dentro do quarto, porém, o mal-estar piorou. Julguei que
fosse o calor. Como a temperatura estivesse realmente muito
elevada, incomum àquela época do ano, e nada tendo para
fazer a tarde toda, resolvi ir banhar-me no riacho.
Procurei Rita para acompanhar-me, mas não a encontrei.
Dinha não soube me dizer o paradeiro da filha.
— Sabe como é, sinhazinha, Rita tem o costume de se
embrenhar no mato e só aparece quando quer. Deseja
alguma coisa?
— Não, Dinha. Apenas queria convidar Rita para ir até o
riacho, mas não tem importância.
— Eu vou, sinhazinha - respondeu a ama, tirando o
avental.
— Não, Dinha. Você está ocupada. Não se preocupe. Irei
sozinha. E perto e não tem perigo.
— Se o sinhô ficar sabendo vai se zangar.
— Meu pai não precisa saber, Dinha. Aliás, ninguém precisa
saber.
Mais conformada, a escrava concordou:
— Está bem, sinhazinha, mas tome cuidado.
Peguei uma sombrinha e, como criança a fazer uma
travessura, caminhei pelo campo até chegar perto do riacho
que, bem à frente, descia e aumentava de volume, sendo
usado no engenho para a fabricação de açúcar. Certa ocasião,
Rita e eu descobrimos que, seguindo pela margem, pouco
adiante existia um local bastante aprazível. Numa depressão
do terreno, algo rochoso, o riacho alargava-se formando
uma verdadeira piscina de águas puras e cristalinas. Em
torno, a vegetação cobria-se de exuberantes folhagens e
lindas flores que escapavam por entre as grandes pedras.
Discreto e longe de olhares curiosos, era ali que
costumávamos nos banhar.
Aproximei-me do lugar, eufórica. Já antegozava o prazer de
sentir a água fresca em meu corpo, quando ouvi vozes aba-
fadas. Estranhei. Ninguém vinha por estas bandas. Os
escravos não tinham liberdade de andar por aqui e estranhos
não ultrapassavam as cercas da fazenda.
Curiosa, caminhei com cuidado procurando não fazer ruído
algum.
Depois de andar alguns passos, as vozes aumentaram
gradativamente tornando-se mais audíveis. Ao chegar perto,
escondida pela vegetação ribeirinha, afastei algumas folhas e
espiei. Fiquei pasma! O sangue subiu-me à cabeça e pensei
que fosse desmaiar; precisei de todas as minhas forças para
ficar firme no meu esconderijo.
Ali, juntos, estavam Rita e Guilherme, meu noivo.
Abraçados, mostravam bastante intimidade. Ele a beijava na
boca, com paixão, de um jeito que a mim, sua noiva, jamais
beijara. Fiquei parada, estática, incapaz de acreditar em
tamanha descaramento.
Naquele momento, a escrava mostrava ciúmes, preocupada
com o casamento de Guilherme comigo. E ele, com
expressão amorosa a tranqüilizava, afirmando:
— Rita, minha adorada, nada mudará entre nós. Acredite em
mim! Ao contrário, tudo será mais fácil. Meu sogro me
convenceu a residir aqui, na fazenda, após a viagem. Assim,
poderemos nos ver com mais freqüência.
— Mas você me disse que, após o retorno, deverá admi-
nistrar a sua fazenda!
— É verdade. No entanto, posso fazê-lo daqui mesmo, indo
até lá todos os dias. Não percebe, minha flor, que isso
facilitará nossos encontros? Terei sempre uma desculpa para
ausentar-me.
Embora mais serena e aceitando seus argumentos, Rita ainda
voltou a perguntar:
— Jura que não a ama, Guilherme? Maria Eugênia é mais
bonita do que eu, rica, culta. Sou apenas uma escrava que
não tem direito a nada.
Abraçando-a e beijando-a com loucura, ele retrucou:
— Não, não! Para mim, só você conta, minha flor. Vou
casar-me com ela porque foi um acordo entre nossas
famílias. Só isso. Foi uma escolha de meus pais, pura
conveniência. O amor é outra coisa. Eu escolho a mulher
que quero amar! - afirmou, frisando bem as palavras, e
depois prosseguiu. – Além disso, Maria Eugênia é tão
insignificante, tão sem interesse... ela é apenas uma criança,
Rita. Você é a mulher da minha vida, meu amor.
Não suportando mais tamanha humilhação, ouvindo aquelas
palavras que tanto mal me faziam, caí em pranto, tapando a
boca para não gritar, sofrendo em silêncio. Jurei a mim
mesma que eles me pagariam pela afronta. Eu me vingaria
deles, custasse o que custasse.
Voltando à realidade, lembrei-me de onde estava. Temia que
me descobrissem ali, o que aumentaria ainda mais a
humilhação. Escutara o suficiente. Então, enxuguei os olhos
e procurei afastar-me antes que dessem pela minha
presença. Depois, comecei a correr pelo campo enquanto
lágrimas amargas voltavam a banhar-me o rosto. Não sabia para
onde ir. Não queria que alguém me visse naquele estado. Diante
de tudo o que vira e ouvira, precisava pensar, refletir. De repente,
lembrei-me do caramanchão de rosas que existia no fundo do
jardim e onde costumava ler à sombra refrescante e
perfumada das flores. Encaminhei-me para lá atravessando o
campo às pressas, sem notar o sol ardente que me fazia
transpirar, apesar da proteção da sombrinha.
No caramanchão, suada e exausta, deixei-me cair no banco e
chorei. Chorei como nunca tinha chorado em toda a minha
vida. Esta era a primeira grande dor da minha existência, a
primeira grande decepção. Aos poucos, sob o frescor das
flores, fui me acalmando, a respiração voltando ao normal.
Meus olhos secaram, permanecendo fixos num ponto
qualquer. Com a cabeça recostada no banco, eu pensava.
"O que fazer? O que fazer?... Promover um escândalo,
acabar com o compromisso matrimonial? Reunir as famílias
e contar para todos o que estava acontecendo debaixo do
meu nariz? Não, mil vezes não! Não suportaria ver os
olhares de piedade estampados no rosto de todos. Ninguém
iria rir à minha custa."
Naquelas poucas horas, amadureci, tornei-me mulher. O
sofrimento, o desprezo do ser amado, a humilhação pela
qual passei me fizeram crescer, tornar-me adulta, com
sentimentos que jamais teria experimentado como criança.
Não tinha mais treze anos. Sentia-me velha e sofrida.
Pensei durante um bom tempo até que cheguei a uma
decisão. Sim, eles teriam de pagar pelo que me fizeram.
Assim, o melhor seria agir de modo que ninguém notasse
que algo havia mudado. Prosseguiria com os preparativos
para o casamento, depois viajaríamos. Não abriria mão de
minha viagem à Europa. Enquanto isso, eu teria tempo para
pensar e descobrir a melhor maneira de executar minha
vingança.
Satisfeita com essa decisão, levantei-me do banco, refazen-
do-me. Tirei do rosto os vestígios de lágrimas, ajeitei os
cabelos e a roupa; depois, respirando fundo, caminhei para
casa.
Todos estavam à minha procura, preocupados: mamãe, meus
avós, Dinha, Rita e outras serviçais. Ao vê-los, coloquei um
sorriso no rosto, mostrando tranqüilidade:
— O que está acontecendo?
— Louvado seja Deus! Enfim, está de volta. Você desapare-
ceu, minha filha! Onde estava? - perguntou minha mãe,
aflita.
— Saí para passear um pouco! O que há de estranho nisso a
ponto de causar tamanho alvoroço?
Dinha, limpando as mãos no avental, explicou:
— Talvez a confusão tenha partido de mim, sinhazinha.
Disse-me que iria para os lados do riacho...
Relanceei os olhos para todos, observando especialmente
Rita, pra ver sua reação. Seu rosto estava pálido de susto.
— É isso mesmo. Disse a Dinha que iria me banhar no
riacho. O que há de mal nisso?
— Mas... mas... você foi? - gaguejou Rita.
Percebi que ela estava com medo, apavorada mesmo. Senti
verdadeiro prazer em vê-la aterrorizada. Depois, dei uma
risada e expliquei:
— Não, claro que não. O sol estava tão quente que fiquei
com preguiça de ir até o riacho. Procurei refúgio no
caramanchão. Estava tão bom lá que deitei no banco, acabei
cochilando
e perdi a noção do tempo. Satisfeitos?
— Ah! Esquecemos do caramanchão! Tudo bem, mocinha.
Mas, e se seu pai estivesse aqui? Teria criado o maior
problema para todos nós.
— Eu sei, mamãe. Perdoe-me.
Lançando um olhar sobre meu vestido, minha avó
observou:
— Você rasgou sua roupa, Maria Eugênia! Um vestido tão
lindo! Corno aconteceu isso, minha neta?
Olhei para a saia e, realmente, tinha um grande rasgo.
— Não havia notado, vovó. No trajeto, devo tê-lo prendido
em algum arbusto.
Rita respirou aliviada. Ninguém notou sua reação, seu
nervosismo, mas a mim não passou despercebido esse
detalhe. E, mesmo se tivessem notado, julgariam que se
sentia culpada por ter abandonado sua sinhazinha, quando
seu dever era fazer-me companhia. Se tivesse acontecido
algo comigo, meu pai não a perdoaria.
Após essas explicações, os ânimos se acalmaram e todos
voltaram para o que estavam fazendo. Com ar cândido e
tranqüilo, busquei o refúgio do meu quarto com a desculpa
de que precisava trocar de roupa para o jantar.
Respirei fundo. Agora eu estava no comando. Gostei da
sensação de ter conseguido manter o equilíbrio de modo
que ninguém percebesse meu verdadeiro estado de espírito.
Mamãe teria orgulho de mim. Ela sempre dizia que as
pessoas realmente educadas mantêm a postura, em qualquer
situação, não mostrando os sentimentos diante de outras
pessoas. Na verdade, acho que eu agira como uma
experiente atriz de teatro, como aquelas dos espetáculos a
que minha mãe assistira nas grandes capitais da Europa.
Como era mesmo o nome? Lembrei! Ópera! Isso mesmo! A
diferença é que lá, no teatro, os atores interpretavam seus
papéis cantando. E eu, não.
6 – Novas responsabilidades
A partir do momento em que surpreendi Rita e Guilherme
juntos, à margem do riacho, tudo mudou para mim. Tornei-
me amarga, desconfiada e rancorosa. Por várias vezes notei
mamãe a observar-me discretamente. Ela não dizia nada,
porém mostrava o semblante pensativo, preocupado.
Certo dia, eu estava sozinha no terraço, deitada numa rede,
quando mamãe se aproximou. Sentou-se numa cadeira ao
lado e, depois de alguns minutos, indagou-me:
— Minha filha, já experimentou seu vestido de noiva?
— Não.
Ela ficou me olhando, pensativa. Depois, voltou a perguntar:
— Por que não, Maria Eugênia?
Incomodada com a insistência, respondi irritada:
— Faltou-me vontade. Experimentarei quando quiser.
Estranhando minha reação, nada usual, visto que eu
sempre fora gentil e educada, mamãe ponderou:
— Filha, mas você sabe que as costureiras têm prazo para
acabar o vestido. Seu casamento se aproxima e elas
estão aflitas com sua resistência em provar a roupa.
Procuraram-me agoniadas, afirmando que já lhe mandaram
vários recados para provar o traje, mas você não atendeu a
nenhum deles.
Não respondi. Diante de meu silêncio, ela aguardou alguns
instantes, em seguida perguntou com voz mansa e terna:
— Minha querida, o que está acontecendo? Está muito
mudada, Maria Eugênia. Não reconheço mais a filha que
você sempre foi: amável, carinhosa, benquista por todos.
Agora está sempre de fisionomia fechada, com expressão
amarga e angustiada. Há alguma coisa que ignoro? Se algo
existir, preciso saber, minha filha, para poder ajudá-la. Abra-
se comigo! Sou sua mãe! Sempre nos demos bem. Éramos
tão amigas e, agora, até comigo você está diferente, estranha.
Fechou-se em si mesma e me conserva a distância. Por que,
minha querida? Sou sua mãe e a amo acima de tudo neste
mundo.
Parou de falar por alguns momentos, enxugou uma lagrima,
depois sorriu suavemente, recordando o passado:
— Lembra-se de quando nos reuníamos na sala durante as
tardes de inverno, aquecidas pelo fogo que crepitava na
lareira? Seu pai normalmente não estava em casa, entregue
às suas ocupações. Enquanto eu lhe ensinava um trabalho
manual, conversávamos, rindo por qualquer coisa. Você
queria saber sobre meu passado, minha infância, mocidade,
meus estudos, minhas viagens. E durante horas eu lhe
relatava minhas experiências. Lembro-me até hoje do seu
rostinho de criança, risonho, os grandes olhos azuis
brilhantes de entusiasmo, a respiração suspensa, enquanto
mergulhava nas imagens que minhas recordações lhe
descortinavam. Depois, tomávamos chá com biscoitos
amanteigados. Ah, éramos tão felizes!
Essas palavras fizeram-me voltar ao passado. Sim, àquela
época eu era muito feliz. Tinha diferenças com meu pai, mas
o amor de minha mãe compensava tudo. Lembrei-me das
imagens que me ficaram gravadas na tela mental, de cidades
como Roma, Paris, Lisboa, pelos relatos de minha mãe. Ao
lembrar-me da fase infantil, afloraram-me à memória as
experiências que vivi: como corria pela fazenda e passava o
dia em alegre alarido na senzala com as crianças, brincando
e comendo da comida que as negras faziam; como gostava
de andar pelo mato, andar a cavalo e nadar no rio com meus
amigos. Ah, se minha mãe soubesse tudo o que fiz!...
Um leve sorriso aflorou-me no rosto e o semblante de
minha mãe distendeu-se:
— Que bom vê-la sorrir de novo, minha filha.
Já em outro estado de espírito, afirmei mais cordata:
— Pode avisar às modistas, minha mãe, que amanhã provarei
o vestido.
Ela sorriu satisfeita.
— Ótimo. Vejo que está melhor, minha querida. Mas,
quando quiser se abrir comigo, falar do que a aflige, sabe que
estarei à sua disposição.
— Não está acontecendo nada, mamãe. Estou bem. A
aproximação do casamento deixa-me nervosa. Só isso.
— Está bem, Maria Eugênia. Quanto ao nervosismo, é
normal nessa época de intensas emoções que está vivendo.
Tudo isso passará após o casamento.
Mamãe levantou-se e foi avisar as costureiras sobre minha
decisão. Continuei no terraço, pensativa. Compreendia a
preocupação de minha mãe, mas não poderia abrir-me nem
com ela nem com ninguém. O fardo era meu e teria de
carregá-lo sozinha. Se contasse a alguém, o casamento seria
desfeito e não era essa minha intenção.
Respirei fundo. Precisava ter cuidado. Não poderia esquecer
de manter as aparências para não levantar suspeitas. Será que
outras pessoas teriam notado alguma mudança em meu
comportamento? Esforçar-me-ia para que tudo parecesse
normal. Afinal, eu era uma noiva às vésperas do casamento e
precisava aparentar felicidade.
Ao mesmo tempo, eu pensava. "Como agir? Como destruir a
vida deles? Rita e Guilherme teriam de pagar por tudo o que
me estavam fazendo sofrer. Agora eu não tinha mais
dúvidas: a frieza dele para comigo não era timidez, era
indiferença. Meu noivo não sentia nada por mim. Amava
Rita, uma reles escrava. Ah!... mas eles me pagariam. Iriam
sofrer como eu estava sofrendo. Que digo? Muito mais! Eles
mereciam sofrer mais, porque foram desleais comigo.
Hipócritas! Traidores!". A presença de Rita me fazia mal.
Não suportava mais vê-la. No fundo, admitia nela certas
qualidades que eu não possuía. Eu nunca havia notado o
quanto ela era bela, era bonita de fazer inveja. Quando ela
caminhava com seu andar naturalmente elegante e sensual,
atraindo os olhares de todos os homens da fazenda. Não só
deles, mas também dos hóspedes e convidados de meu pai,
como eu já havia notado.
Senti um aperto no peito. Compreendia agora os senti-
mentos que me agitavam, torturando-me intimamente:
inveja e ciúme. Inveja dos seus quinze anos e de como se
desenvolvera transformando-se em uma bela moça,
enquanto eu continuava tendo o corpo de uma menina; e
um ciúme doentio do amor que Guilherme sentia por ela.
Sim, difícil admitir, mas a realidade impunha-se sem que eu
pudesse impedir. Olhar para dentro de mim mesma era
extremamente doloroso, insuportável, porém não havia
como evitar. Constatar esse fato levou-me a ver uma única
solução: destruir, terminar com a vida daquela miserável.
Sem ela por perto, tinha certeza de que Guilherme acabaria
por me amar.
Mas como fazê-lo? Teria de ser de forma natural, para não
despertar suspeitas. Ninguém poderia ficar sabendo. Porém,
como agir sozinha? Impossível. Precisaria da ajuda de
alguém, não havia alternativa.
Passando pela memória as pessoas conhecidas, desfilaram à
minha frente as amigas, as criadas da casa, os empregados da
fazenda, o capataz, os escravos da senzala, um por um. Nada.
De repente, eu me lembrei! Como pudera me esquecer de
Miguel e de Amaro, companheiros de folguedos na infância?
Eram dois garotos simpáticos e brincalhões, que durante
algum tempo fizeram companhia a mim e a Rita. Quando
meu pai descobriu, proibiu-me de conversar com eles e
ameaçou vendê-los, se eu não lhe obedecesse. Além disso,
deu ordens ao capataz para que eles fossem mantidos longe
da casa-grande. Lembro-me de que, durante algum tempo,
senti muita falta dos garotos. Eram dedicados, leais e prontos
a cumprir nossas ordens. Sempre que eu lhes pedia alguma
coisa - por mais absurda que fosse -, eles cumpriam à risca,
fazendo com que Rita e eu nos dobrássemos de tanto rir.
Com o passar dos dias, a distância fez com que eu me
esquecesse desses dois amigos de infância. Depois, vez por
outra eu os reencontrava no meio dos escravos. Estavam
crescidos, taludos. Especialmente Miguel, que tinha um
porte altivo.
Certo dia, passeava com Rita quando os vi voltando da roça.
Ao vê-los, deu-me vontade de parar e conversar um pouco.
O capataz aproximou-se, pronto para intervir. Afirmei
desejar apenas trocar duas palavrinhas com os escravos, e
ele, a contragosto, permitiu, mantendo-se afastado,
aguardando, enquanto os demais prosseguiam.
Acerquei-me mais deles e disse, iniciando a conversa:
— Miguel! Amaro! Outro dia lembrei-me das nossas
brincadeiras quando crianças. Era uma época boa! Corríamos
pelos campos, brincávamos de esconder...
— Foi há muito tempo, sinhazinha - respondeu Amaro,
respeitoso.
Miguel mantinha-se calado. Resolvi estimulá-los,
perguntando:
— Têm namoradas?
Miguel baixou os olhos, continuando calado. Amaro
novamente foi quem respondeu:
— Eu tenho, sinhazinha. Logo estarei casado, se o sinhô
Figueiroa permitir.
— Verdade? Meus parabéns, Amaro. E quem é a escolhida?
— É a Mercedes, filha da Assunta, sinhazinha.
— Você fez uma excelente escolha, Amaro. Mercedes é uma
boa moça - considerei.
Depois, olhei para Miguel, que permanecia calado.
— E você, Miguel, também tem um amor? - indaguei.
O escravo ergueu a cabeça lentamente, fitando-me nos
olhos.
— Não, sinhazinha. Não pretendo me casar.
Havia tal tristeza em seu semblante que me comoveu.
— E por quê? - insisti.
O jovem cerrou os dentes e não respondeu. Amaro deu um
tapinha nas costas dele e explicou:
— Não liga, não, sinhazinha. Ele tem um amor que não
confessa nem sob chibata no tronco. Deixa pra lá.
Nisso, Roque, o capataz, aproximou-se. A conversa se
estendia mais do que era conveniente. Revirando o chapéu
nas mãos, considerou:
— Sinhazinha Maria Eugênia, se o patrão descobrir que
ficou de prosa com os escravos, não vai gostar.
Melhor não abusar...
Sabia que Roque tinha razão. Mas aquele homem me irritava
profundamente; era truculento, prepotente e violento no
trato com os escravos, o que eu não suportava. Sem lançar-
lhe um olhar sequer, a contragosto dei meia-volta e, com
leve gesto de cabeça dirigido aos dois rapazes, afastei-me,
obrigando Rita a me acompanhar. Enquanto caminhávamos,
eu pensava: qual seria o segredo existente na vida de Miguel?
Talvez dedicasse seu amor a uma mulher casada! Dei uma
sonora gargalhada, que fez Rita me olhar surpresa.
— De que está rindo, Maria Eugênia?
— Quem será a amada de Miguel? - perguntei mais para mim
mesma.
— Sei não, sinhazinha. Deve ser uma das escravas.
Continuamos nosso passeio e, meia hora depois, já havia me
esquecido do encontro.
Agora, a lembrança da conversa, o jeito acanhado de Miguel,
aguçaram-me a curiosidade. Esforcei-me para recordar tudo
o que ele tinha dito, embora fosse pouco, e alguma coisa lá
no fundo ficou me incomodando. Várias vezes, o diálogo
voltava-me à mente, como se algo estivesse me escapando.
Depois, intrigada, entendi que não era o que ele disse, mas o
que ele não disse que era importante, isto é, o que ele sentia
no momento.
Sim! Tornei a ver-lhe a cabeça baixa, parecendo
constrangido com a minha pergunta. Seu olhar intenso,
profundo e triste voltou-me à memória. De repente, uma
idéia surgiu com a força de uma enxurrada:
— Miguel estará apaixonado por mim?... Serei eu essa jovem
que ele ama?
A esse pensamento, quedei-me perplexa. Isso justificaria o
fato de Amaro ter afirmado que Miguel não entregaria seu
segredo nem sob tortura.
Bem, se isso era verdade ou não, eu só ficaria sabendo
buscando informações. Mas era uma possibilidade. Meu
orgulho se revoltou contra essa idéia. Teria ele ousado
levantar os olhos para a filha do patrão? Antigamente,
tratava-os com bondade, brincava com as crianças, comia a
comida deles na senzala. Agora, depois da traição de Maria
Rita, passei a estender meu ódio por todos os escravos,
julgando-os reles e capazes de qualquer coisa.
Mas, ao mesmo tempo, outra idéia me ocorreu. Se o que eu
estava pensando era verdadeiro, então eu poderia ter
chances de obter ajuda para minha vingança contra Rita.
Assim, decidi que no dia seguinte daria um jeito de falar
com Miguel.
POR sorte, o dia seguinte era um dia santo, consagrado à Virgem
Maria, e os escravos não iam para a lavoura nem para o
engenho. Após o café da manhã, nos dirigimos de
carruagem para a cidade, onde assistiríamos à missa na igreja.
Nem prestei atenção no sermão do padre Antônio,
preocupada com meus próprios problemas. Voltamos
debaixo de um sol forte e chegamos à fazenda para o
almoço. O padre veio conosco. Era idoso, gordo, bonachão e
estava sempre com um lenço enxugando o suor que escorria
em bicas pelo rosto. Meu pai, não raro, costumava convidá-
lo para almoçar em nossa casa. Fiquei contente. A presença
do sacerdote era certeza de várias horas de tranqüilidade, das
quais eu poderia dispor sem vigilância. Tendo companhia,
meu pai nem daria pela minha falta.
Assim, almoçamos num clima alegre e descontraído. Após a
sobremesa, com a qual o padre se regalou, pecando pela
gula, deixei-os a sós. Era costume ausentar-me nesse
momento, em que eles iam tomar um cafezinho, parte
reservada aos adultos. Assim, teriam longo tempo para
conversar, e eu, para cuidar de meus interesses.
Discretamente, peguei um livro de poesias, o chapéu e saí
pela porta dos fundos. Ao ver um garoto que brincava ali
perto, ordenei que desse um recado a Miguel: desejava falar
com ele e o esperaria no caramanchão de rosas do jardim.
Antes que o menino saísse para cumprir minha ordem,
ameacei:
— Mantenha a boca fechada, moleque. Não conte para
ninguém ou se arrependerá.
Arregalando os olhos, o garoto tranqüilizou-me:
— Ninguém ficará sabendo, sinhazinha.
Ele se afastou correndo, e eu me encaminhei para o local
escolhido. Sentei-me no banco e pus-me a aguardar, com o
livro aberto. Não demorou muito, ouvi passos de alguém que
se aproximava. Era Miguel.
Ele entrou no caramanchão, tenso e preocupado. A tem-
peratura estava muito alta, e o suor porejava em sua fronte; a
respiração arfante mostrava que ele estava nervoso.
Levantou o braço, enxugando a testa com a manga da
camisa. Depois, conservou-se de pé, aguardando que me
dirigisse a ele.
Estudando bem as palavras, eu disse com calma:
— Miguel, você deve ter estranhado meu convite, porém eu
precisava lhe falar.
— Estou aqui, sinhazinha, à sua disposição. Porém, se
pretendia dar-me alguma ordem, poderia ter dado lá mesmo,
na senzala.
Enquanto ele falava, eu o observava. Era belo, altivo e tinha
personalidade. Concordei.
— Tem razão, Miguel. Porém, o que quero lhe dizer não
deve ser ouvido por outras pessoas.
— Pois muito bem, sinhazinha. Aqui estou. Pode falar.
Não era fácil. Pensei por alguns instantes, depois lentamente
iniciei a conversa:
— Miguel, lembra-se do nosso encontro ontem à tardinha,
quando retomavam da lida? Pois bem. Fiquei com muitas
dúvidas na cabeça.
Ele se mexeu, incomodado.
— Que dúvidas seriam essas? Trocamos poucas palavras. Não
creio que...
— Miguel, seu amigo Amaro afirmou que você ama alguém,
e que é segredo muito bem guardado o nome da moça.
Constrangido, ele respondeu apertando as mãos:
— Não vejo em que isso possa lhe interessar, sinhazinha
Maria Eugênia.
— Mas me interessa. Muito. Gostaria de fazer algo por você.
Pela amizade que existiu entre nós um dia, desejo que seja
feliz. E talvez eu possa ajudá-lo. Diga-me: essa jovem é
aqui da fazenda?
Ele não disse nada, mantendo a cabeça baixa.
— Pelo seu silêncio, a moça é da fazenda. Quem é ela?
Falarei com meu pai e ele permitirá que sejam felizes,
consentindo no casamento.
— Não, sinhazinha, é impossível.
— Impossível? Seria ela casada, por acaso?
— Não, claro que não. Não iria me apaixonar pela mulher de
outro homem, isso não.
— Ah! Estaria noiva, então?
Mostrando grande nervosismo, ele contra-atacou:
— Por que me tortura, sinhazinha? O que espera ganhar com
isso?
Estava tão consternado, e me olhava de uma maneira tão
intensa, que não tive dúvidas:
— Miguel, estaria apaixonado... por mim?
O escravo abriu a boca, pasmo. Tentou menear a cabeça
negativamente, mas não sabia o que fazer nem o que dizer.
E eu compreendi claramente, naquele momento, o seu amor
por mim.
— Miguel, perdoe-me tantas perguntas. Não quero
constrangê-lo, mas sinto-me mais próxima de você do que
de qualquer outra pessoa. Aquelas horas que passamos juntos
na
infância jamais saíram da minha cabeça. E estou necessitada
de um amigo, de um verdadeiro amigo. Sinto-me perdida,
humilhada, e lembrei-me de você. A ninguém mais poderia
abrir meu coração, que sangra. Tenho chorado muito em
busca de uma saída que não encontro.
Ele prestava muita atenção nas minhas palavras. Ouvia-me
preocupado, semblante cerrado, sem entender o que eu
dizia.
— Mas a sinhazinha Maria Eugênia está noiva, vai casar em
breve, e todos a julgam muito feliz. Ai de mim!
— Não é verdade, Miguel. Não sou feliz. Sofro muito. Fui
atingida de morte aqui, no peito - respondi, levando a mão
ao coração e deixando uma lágrima rolar.
Sem se conter, ele se jogou ao solo, agarrando minha mão,
em desespero:
— Diga-me, sinhazinha. O que está acontecendo? Quem a
faz sofrer tanto? Estou disposto a qualquer coisa para vê-la
feliz.
Suspirei melancolicamente, enxugando uma lágrima com o
lencinho perfumado, aparentando grande amargura e
tristeza, enquanto por dentro me rejubilava. Agora tinha
certeza de que ele me ajudaria na vingança. Depois,
murmurei tristonha:
— Ah, meu bom Miguel! As coisas não são tão fáceis assim.
— Diga-me o motivo da sua tristeza, para que eu possa
ajudá-la, sinhazinha.
— Não sei se devo falar, Miguel, abrir meu coração. E, ao
mesmo tempo, sinto que posso confiar em você.
— Pode falar, sinhazinha. Jamais alguém saberá por mim o
que a deixa tão angustiada.
Suspirei, como se ainda estivesse em dúvida. Depois, disse-
lhe:
— Está bem, Miguel. Sei que é digno de confiança. Então,
ouça-me. Todos sabem que estou noiva. O compromisso foi
imposto por meus pais, que planejavam unir nossas fortunas.
Assim, aceitei o noivado, não por amor a Guilherme, mas
por não ter opção. Depois, os fatos foram acontecendo...
Relatei a ele tudo o que tinha descoberto. A traição de
Guilherme e de Rita, que sempre considerara uma amiga, a
mais querida, e como me sentia: traída, humilhada, e sem ter
quem me desse apoio, pois meus pais não poderiam ficar
sabendo.
— Por que não, sinhazinha? O sinhô Figueiroa poderia
libertá-la desse compromisso que lhe foi imposto.
Sorri melancólica:
— Acredita mesmo nisso, Miguel? Numa sociedade como a
nossa em que os homens têm direito a tudo e abusam dos
mais fracos, acha que meu pai se escandalizaria? Não, julgaria
normal o comportamento de Guilherme, envolvendo-se
com uma escrava.
Ele me ouviu sem dizer uma palavra. Quando terminei, sua
expressão mudara. Mostrava determinação e raiva contida.
— Tem razão, sinhazinha. O que deseja que eu faça? Sou seu
escravo para sempre.
— Não sei, Miguel. Tenho refletido bastante, mas não sei o
que fazer. Preciso pensar. Ajude-me a pensar, meu amigo.
Não amo Guilherme, o noivo infame, por quem iria
sacrificar a minha vida inteira. Mas esse miserável, além de
impor-me um compromisso que me repugna, ainda me traiu
odiosamente. Também não posso continuar a considerar
Rita como minha amiga, quando foi capaz de trair nossa
amizade. Num primeiro momento, tive vontade de
matá-la com minhas próprias mãos, tal a dor que me
invadiu o peito. Mas, não posso fazer isso, embora bem que
ela mereça, a traidora. Mas eles têm de pagar pela traição!
Não perdôo, especialmente a ela, Rita, que sempre foi minha
amiga, desde criança. Guilherme não tem tanta
responsabilidade; afinal, também concordou com esse
compromisso por imposição dos pais. Ele não deve me amar,
como eu também não o amo, mas não tinha o direito de
fazer-me passar por essa humilhação. Cuidarei dele
pessoalmente, no momento propício.
Fiz uma pausa, permanecendo pensativa por alguns
instantes. Depois, afirmei, como se estivesse falando comigo
mesma:
— Ah! Mas confio na justiça de Deus, que nunca falha. O
Senhor poderia fazer com que um acidente acontecesse - e
existem tantas possibilidades! - como instrumento para fazer
a amiga ingrata e infame pagar pelo que me tem feito sofrer.
Ela, que come da nossa comida, que se veste com roupas
boas, calçados e jóias que lhe dou de presente, que dorme na
casa-grande, que goza de todas as regalias em nosso lar,
diferentemente dos outros cativos que vivem na senzala...
como você, por exemplo.
Percebi que, à medida que eu falava, o ódio dele aumentava
gradativamente, a expressão e os olhos passaram a refletir o
seu estado de alma, especialmente quando me referi à boa
vida que Rita levava em oposição à dos outros escravos, que
eram tratados com dureza e desumanidade. Estava lançada a
idéia. Dependeria dele o prosseguimento. Se ele era
inteligente, como eu julgava que fosse, teria entendido.
Todavia, também comecei a perceber, na expressão daquele
homem ajoelhado aos meus pés, que uma luta se processava
em seu intimo. O desejo imperioso de me defender contra
os que me causavam o mal em oposição a seus valores
morais, de homem digno, reto, respeitador e de paz, que
jamais fora capaz de agredir alguém. Miguel sofria e se
desesperava interiormente, e essa luta se refletia no seu
semblante.
E eu observava tudo isso, experimentando, pela primeira
vez, o orgulho do poder. Eu, que até há pouco tempo era
apenas uma menina, sentia que despertava dentro de mim a
satisfação de ter um homem sob meu domínio, de me sentir
poderosa, atraente e amada. Sabia que venceria.
Alguns minutos depois, Miguel concordou, vencido:
— Farei o que for preciso, sinhazinha. Pode contar comigo.
Coloquei a mão no ombro dele, dizendo com um sorriso:
— Terá minha gratidão eterna, Miguel. Creio não ser preciso
recomendar-lhe sigilo sobre tudo o que conversamos.
— Sim, sinhazinha. Meus lábios ficarão selados. Mais alguma
coisa?
— Não, Miguel. Por hoje é só. Pode ir agora.
Ele se ergueu e, com leve inclinação de cabeça, deixou o
caramanchão. Ao ver-me sozinha, respirei aliviada. Tinha
dado os primeiros passos para a concretização da minha
vingança. Tudo corria bem. Sentia-me feliz.
Todavia, no fundo, bem no fundo, um ponto de apreensão
surgia, uma agulhada fina, como à aproximação de algum
perigo.
7 – Cultivando o ódio
Procurei esquecer aquela agulhada que me surgia no íntimo
como incômoda sensação de perigo. Tentando espairecer a
mente, afastei os maus agouros, pensando apenas que
conseguira um aliado para concretizar minha vingança.
Retornei para casa feliz e realizada.
Sentia-me satisfeita comigo mesma. Sempre fora infantil,
incapaz de tomar alguma atitude, e agora me reconhecia
mais madura, inteligente, sagaz, forte, resoluta e capaz de
realizar o que quisesse. Estranhava até a mudança repentina!
Repassando mentalmente o diálogo com Miguel, ficava
admirada de pensar em como as idéias foram fluindo, e a
facilidade encontrada para expô-las. Notava a mente mais
lúcida, mais clara, com maior e melhor percepção do íntimo
das pessoas. Sentia-me poderosa e capaz de atingir qualquer
objetivo.
Quando cheguei ao casarão, mamãe procurava por mim.
— Onde estava, minha filha? Padre Antônio quer se
despedir.
— Desculpe-me, mamãe. Estava no caramanchão, entretida
com a leitura de um livro e não vi o tempo passar. Vou falar
com o padre - respondi apressada, abrindo meu melhor
sorriso.
Encaminhando-me à sala de visitas, onde certamente
estariam reunidos meu pai e o pároco, desatei o laço do
chapéu e joguei-o numa cadeira, bem como o livro de
poesias que em tão boa hora levara comigo. Sem me deter,
ajeitei os cabelos, um pouco despenteados.
Ao ver-me, o bom padre levantou os braços com largo
sorriso:
— Ah, minha filha! Não queria ir embora sem despedir-me
de você.
Aproximei-me e tomei a mão estendida, beijando-a:
— Sua bênção, padre.
— Deus a abençoe, minha filha. Não se esqueça de ir à
igreja, confessar e comungar. Temos muito que conversar,
agora que seu casamento se aproxima.
— Irei, padre Antônio, embora não tenha pecados.
O religioso olhou-me longamente, estranhando minhas
palavras, em seguida considerou:
— O orgulho já é um pecado, minha filha. Adeus.
Acompanhamos o religioso até a varanda, onde o condutor
o aguardava com o coche para levá-lo de volta à cidade.
Após acenos de mão, que me pareceram intermináveis, ele
partiu numa nuvem de poeira.
Ao voltarmos para a sala, meu pai cobrou-me, indignado:
— Como se atreve a responder ao padre, Maria Eugênia?
— Apenas disse a verdade, senhor meu pai. Não tenho
pecados, pelo menos não reconheço tê-los. Mais pecados
tem o padre, que come como um porco e bebe como um
gambá.
Meu pai arregalou os olhos, surpreso e horrorizado, en-
quanto seu rosto se cobria de púrpura.
— Como se atreve, sua fedelha? Onde está a educação que lhe
demos? Certamente, esse comportamento é culpa de sua
mãe, que tem sido muito descuidada em ministrar-lhe as
regras de etiqueta.
— Não, meu pai, a culpa é minha por não aceitar mais ser
tratada como um objeto sem qualquer direito e sem voz para
ser ouvida. Estou noiva, vou me casar em breve e, portanto, logo
serei adulta e quero ser tratada como tal.
Saí da sala subindo as escadas, sem esperar que ele
respondesse, deixando-o à beira de um ataque de nervos.
Fechei-me em meus aposentos e caí deitada no leito, dando
uma boa gargalhada, satisfeita com minha coragem. Meu
tempo de escrava de luxo havia terminado.
Nesse preciso instante, ouvi a porta do quarto se abrir, e uma
golfada de vento gelado atingiu-me.
— Quem ousa invadir meus aposentos sem permissão? -
gritei, erguendo-me furiosa.
Todavia, estaquei surpresa. A porta continuava fechada.
Assustada, senti um arrepio gelado que me percorreu o
corpo inteiro, da cabeça aos pés. Encolhi-me no leito, o
coração a bater, apressado, sem saber o que fazer.
Nisso, leve batida soou. Sentei-me no leito, encolhida de
medo, na expectativa do que iria acontecer. Logo, a cabeça
conhecida de minha ama de leite assomou no vão da porta,
pedindo licença para entrar. Trazia nos braços algumas peças
de roupa passadas para guardar. Ao vê-la, respirei aliviada.
— Ah!... Dinha, é você? Quem estava no corredor? Quem
foi que tentou entrar em meu quarto?
Os olhos da negra se arregalaram, e respondeu surpresa:
— Sinhazinha, eu não vi ninguém no corredor. Não há
ninguém nesta parte da casa. Seus pais continuam na sala, lá
embaixo. O que houve?
— Tem certeza?
— Absoluta.
— Onde está Rita?
— Na senzala. Mandei-a levar um recado do sinhô
Figueiroa.
— Ah!...
— Trouxe algumas roupas, inclusive aquele vestido que me
pediu para passar. Aqui está. Vou colocá-lo no armário.
Como eu permaneci calada, retraída, ela perguntou:
— Está passando bem, sinhazinha Maria Eugênia?
Sem parecer ter ouvido a pergunta, indaguei:
— Dinha, você acredita em alma penada?
— Que conversa é essa agora, sinhazinha?
— Acredita?
A ama sentou-se no leito estranhando a pergunta. Ante
minha insistência, respondeu:
— Sinhazinha, meu povo veio de longe e trouxe suas crenças.
Acreditamos que existem entidades boas, que nos ajudam, e
entidades ruins, que fazem o mal. Mas, por que quer saber?
Não costumava guardar segredos para minha ama, mas
naquele momento eu sentia tanto medo que não encontrei
coragem para tocar no assunto.
— Por nada. Bobagem. Quero que fique aqui comigo.
— Está com medo?
— Não. Apenas quero que me faça companhia.
Voltei a me deitar, e Dinha sentou-se perto de mim,
acariciando-me os cabelos, como sempre fazia desde a
minha mais tenra idade. Acabei por adormecer, cansada.
Despertei quando ela veio me avisar que o jantar estava
servido e meus pais me aguardavam.
Levantei-me abatida, indisposta e toda dolorida. Dinha
ajeitou-me as vestes e penteou-me os cabelos. Em seguida,
desci a escadaria ao encontro de meus pais. Sentamo-nos à
mesa e vi que mamãe me observava; depois, comentou:
— Maria Eugênia, está pálida e parece cansada. Não
descansou à tarde?
— Sim, mamãe. Dormi algumas horas. Porém, acho que tive
um pesadelo. Acordei indisposta e com o corpo todo
dolorido.
Meu pai, que levava uma colher de sopa à boca, parou no ar.
— Deve ter sido pelo tempo que permaneceu ao sol. A
temperatura está elevada e você insiste em sair de casa nas
horas mais quentes do dia.
— Não creio, senhor meu pai. Levei o chapéu e a sombrinha
para proteger-me dos raios solares durante o trajeto; além
disso, permaneci o tempo todo no caramanchão que, aliás,
estava fresco e agradável.
— Deseja me contradizer?
— Não, senhor. Apenas explicar o que aconteceu.
Virando-se para minha mãe, ele reclamou irado:
— Está vendo, minha senhora, como sua filha está mal-
educada e respondona?
— Felipe, nossa filha apenas disse o que pensava - Justificou-
se. - Maria Eugênia é uma das moças mais bem-educadas
desta região. Todavia, a refeição não é a melhor hora para
discutirmos nossos problemas. Vamos comer em paz?
Meu pai calou-se e o jantar prosseguiu em silêncio. Logo
depois, recolhi-me a meus aposentos. Desejava ficar só.
Após Dinha trocar-me o vestido pela camisa de dormir e
escovar-me os cabelos, acomodei-me no leito.
— Deseja algo mais, sinhazinha?
— Não, Dinha. Pode ir.
— Então, tenha uma boa noite.
A ama deixou uma vela acesa na mesinha de cabeceira, e
saiu do quarto com seus passos leves, fechando a porta.
Sentada, tendo nas mãos um livro que recendia a bolor, à luz
da vela que colocava reflexos avermelhados nas páginas,
permaneci pensativa. Não conseguia ler. A cabeça, febril,
trabalhava, procurando uma maneira de me vingar da amiga
desleal. Passei em revista nossos hábitos, os lugares onde
gostávamos de estar. De repente, lembrei-me do lago que
ficava a cerca de duzentos metros da casa-grande, e um
plano começou a se esboçar na minha mente. A partir do
casarão, um extenso gramado se estendia, plano; depois, a
certa altura, seguia-se um declive suave até a margem do
lago, onde patos nadavam tranqüilamente e um pequeno
barco para passeios ligeiros balançava ao sabor do vento.
Próximo à margem, o terreno voltava a ficar plano, e havia
uma grande árvore, de sombra agradável e acolhedora; num
dos galhos, forte e resistente, papai mandara instalar um
balanço quando eu ainda era criança, no qual eu e Rita
gostávamos de brincar.
Ali seria o local ideal. Mas qual seria o melhor momento?
Após muito refletir, concluí que a tarde seria a ocasião
adequada. Da casa-grande, seria difícil alguém perceber o
que estava acontecendo; nesse horário, após o almoço, todos
estariam dormindo. Os escravos, trabalhando na lavoura; na
senzala, localizada mais distante, nos fundos, atrás da
cozinha, só permaneciam os doentes, os velhos e as
crianças, porém, de onde estavam, não se avistava o lago,
que dava para o lado oposto, e também estariam recolhidos,
em virtude do calor. Na casa-grande, após o almoço, as
escravas ficavam no pátio perto da cozinha preparando a
próxima refeição; quem não estava envolvida com a
alimentação lavava ou passava roupas ali perto. Assim
ninguém veria nada, porque a cozinha e esse pátio ficavam
localizados no fundo do casarão, do outro lado do lago.
Sim, o plano era perfeito. Resolvi que seria executado após o
casamento, quando Guilherme e eu tivéssemos retornado da
lua de mel. Fiel aos meus propósitos de aproveitar todos os
momentos da viagem, não desejava ter um marido tristonho e
sofredor perto de mim, e, por isso, procuraria tornar-lhe
bem agradável nosso passeio pela Europa. Também queria que
Rita sofresse as penas do inferno, imaginando-nos felizes,
passeando e nos divertindo nas melhores capitais européias.
Ao voltarmos, quando os traidores estivessem satisfeitos e
ansiosos, antegozando o momento do reencontro, eu
colocaria em ação minha vingança.
Assim, agora precisava aproveitar esses dias que me
separavam do casamento para demonstrar alegria, satisfação,
de modo que todos, familiares, parentes, amigos, escravos, e
especialmente o noivo, vissem minha felicidade.
Após tomar essa decisão, fechei o livro do qual não lera
nenhuma página, apaguei a vela e deitei-me para dormir.
Nesse momento, voltei a lembrar-me do fato inusitado
acontecido algumas horas antes e que tanto me deixara
assustada. Foi o suficiente para deixar-me apavorada, não
obstante existir, num canto do aposento, uma pequena
candeia de azeite que sempre permanecia acesa durante a
noite, para que o aposento não ficasse completamente às
escuras e, numa eventualidade, se precisasse levantar,
pudesse fazê-lo com segurança.
Dinha acreditava em seres do bem e do mal, assim como eu
aprendera na igreja que existem anjos, arcanjos e serafins
que ficam no céu, e Lúcifer, os demônios e seres diabólicos
que cuidam do inferno.
Meu coração começou a bater forte. Lembrei-me do que
planejava fazer e enchi-me de terror. E se isso fosse
verdade? E se eu fosse para o inferno? Cruz-credo! Não
queria nem pensar nisso! Fiz o sinal da cruz, agarrando-me
ao rosário, que deixava sempre debaixo do travesseiro para
proteger-me durante a noite.
Depois, pensando melhor, lembrei-me de que bastaria con-
fessar meus pecados ao padre Antônio, que ele me
concederia o perdão, aplicando-me as penitências devidas.
Esse pensamento acalmou-me um pouco.
Mas estava tão escuro! Tinha a impressão de que olhos
horríveis me espreitavam na sombra. A candeia estava acesa,
todavia a chama que bruxuleava era tão pequena que não
conseguia expulsar as trevas. Acendi novamente a vela que
havia apagado, mas não resolveu grande coisa. Eu sentia
necessidade de muita luz.
Tentei rezar, mas não consegui. Não conseguia sequer
pensar. Assim, tremendo de medo, cobri a cabeça com a
colcha e fiquei quieta, escondida, até que o sono chegou e
adormeci.
8 - Auxílio Providencial
Após adormecer, aconteceu-me algo insólito. Senti que
despertava. Sentei-me no leito com os olhos arregalados e
grande sensação de pavor. O aposento estava repleto de
sombras ameaçadoras, vultos horríveis que se aproximavam
do leito, cercando-me.
Uma das figuras, com longa capa preta e capuz puxado à
frente - o que me impedia de ver-lhe o rosto -, vociferou,
furioso:
— Agora não nos escapas, miserável!
Outro, vestido com trajes antigos e que deveriam ter
conhecido dias melhores, qual nobre decadente, com voz
rouca afirmou categórico:
— Estás em nossas mãos, mulher maldita. Serás destruída,
como fizeste com toda a minha família. Com tuas mentiras,
roubaste-me tudo o que eu possuía de mais caro: o amor dos
entes queridos.
Um terceiro aproximou-se gargalhando de maneira assus-
tadora e satírica:
— Por que não dizes nada, infeliz? Tua boca, usada para
caluniar e escarnecer, está cerrada de medo? Por que não
levantas teu braço homicida para golpear? O que sucede
contigo? Pois quê! Estás trêmula de medo! Pela primeira vez
te vemos sem ação. Não é extraordinário, cavalheiros?
Com uma careta grotesca, revirou os olhos para os demais,
provocando novas risadas. E outro, e mais outro, e muitos
mais se apresentaram, cada qual me acusando das mais
terríveis ações, dos mais terríveis crimes, das mais
desprezíveis atitudes.
Em pranto, com a cabeça entre as mãos, recobrei a voz,
gritando em supremo desespero:
— Basta! Basta! Calem-se! Tenham piedade! Não vêem como
sofro?
A gritaria se fez ainda mais intensa. O sinistro bando
gargalhava, divertindo-se com meu pavor.
— Piedade!? Ouvistes, companheiros? O monstro clama por
piedade! - retrucou um dos mais ousados, imitando-me.
Depois, fixou-me com uma careta horrível, os olhos a saltar
das órbitas, enfatizando com voz sibilante:
— Não mereces piedade, serpente venenosa. Levamos
longo tempo para te encontrar. Agora estás em nossas mãos.
Irás conosco e jamais te daremos paz.
Levantou o braço esquelético e, com um gesto de ataque,
ordenou:
— Avante, irmãos! A hora da vingança soou. Ela não nos
escapará!
Percebendo que o bando fechava o cerco, achegando-se
perigosamente do leito, gritei sob terrível pavor:
— NÃO!...
Desejava evadir-me daquele local, afastar-me daqueles
monstros, e coloquei todo o meu desespero e minha
vontade nisso. De repente, senti como se deslizasse por
entre eles em grande velocidade. Logo, vi-me correndo em
pleno ar, fora do casarão, em meio à natureza. Perplexa e
maravilhada, fui dominada por uma sensação deliciosa de
liberdade. Olhei para trás e, como estivesse planando no ar,
da casa-grande só vi o telhado. Olhei para baixo, observando
a senzala, onde os escravos dormiam após um dia de
trabalho estafante. Na noite escura e estrelada, tudo estava
em paz e silêncio. Só se ouvia o ruído de animais e uma ou
outra ave noturna. Não vi nem sombra do bando sinistro.
Reconhecendo-me sozinha, tranqüilizei-me aos poucos.
Desejei sentar-me sob uma árvore para descansar, rezando
mentalmente para que o bando infernal não me encontrasse.
Nisso, caminhando em minha direção, vi uma figura
conhecida que sempre me inspirara confiança: pai Albino,
um velho escravo que, por sua nobreza de coração, tornara-
se líder dos negros da fazenda. Ele era o mestre, o apoio, o
confidente, o amigo, o conselheiro e o pai de todos.
Ao reconhecê-lo, respirei mais aliviada:
— Ah, pai Albino! Graças a Deus está aqui. Não imagina o
perigo que passei.
O velhinho aproximou-se mais; seus passos eram lentos e
apóia vá-se em uma bengala. Olhou-me doce e mansamente,
colocou a mão sobre minha cabeça, afirmando:
— Estou ciente de tudo, minha filha. Acalme seu coração.
Recobre seu equilíbrio. Aquelas entidades que a sinhazinha
viu são antigos inimigos seus.
— Você os viu, pai Albino?
— Eu os conheço de longa data, filha.
— Ah!... Eles me acusaram de coisas horríveis, pai Albino.
Como pode ser?
O ancião balançou a cabeça confirmando:
— Sim, filha, e tudo o que disseram representa a mais pura
verdade.
— Como assim? Jamais conheci qualquer um deles! -
retruquei, indignada.
— Nesta existência, sinhazinha. Todavia, somos seres
imortais e já vivemos inúmeras outras vezes aqui na
Terra. Não se recorda, mas você já fez muito mal pelo
tempo, e essas criaturas agora a buscam para vingar-se.
Eu estava surpresa. Sim, ao ouvir-lhes as acusações,
intimamente sabia que falavam a verdade, embora não me
recordasse de nada.
— E agora, meu pai? - indaguei preocupada.
O ancião fitou-me de maneira firme, conquanto doce,
e considerou:
— Você deve deixar de lado todos os pensamentos
negativos, todo desejo de vingança, Maria Eugênia.
Somente levando uma existência reta e digna,
mantendo o pensamento em Deus, a sinhazinha
conseguirá vencer. Sei que se sente ferida, minha filha,
porém tudo tem uma razão de ser. Você está noiva e vai se
casar em breve, conforme estou sabendo. Pois bem. Esqueça
o que passou e recomece uma existência de paz e
entendimento.
Ao ouvir essas palavras, reagi indignada:
— Pai Albino me pede que esqueça a traição daqueles dois
miseráveis, minha amiga e meu noivo? Jamais!
Naquela hora, nem por um instante estranhei que pai Albino
soubesse de fatos que mais ninguém conhecia. Dialo-
gávamos de forma natural e espontânea.
O ancião passou a mão pelos cabelos brancos, respirou fundo
e, com expressão de profunda tristeza, aduziu:
— O que a sinhazinha considera um insulto à sua pessoa e
uma traição inominável nada é considerando-se tudo o que
já fez de mal a outrem. Além disso, medite e verá que não é
o coração ferido pelo sentimento do amor não
correspondido o que lhe dita as ações, mas o orgulho. A
mágoa de quem se sente preterida, pois se considera melhor
e mais importante que os demais. Assim, minha filha,
procure esquecer, perdoar, e enfrentar a vida com fortaleza
de ânimo. O Senhor saberá cobri-la de bênçãos. Os filhinhos
que virão representam seu resgate e sua libertação. Receba
esses companheiros no recesso do seu lar e construirá para
você uma existência de bênçãos sem fim bem como para
todos os que conviverem com a sinhazinha.
Eu estava atônita. Teria que receber aqueles monstros como
filhos? Todos eles?!... - pensei.
Pai Albino, parecendo ler meu pensamento, completou:
— Apenas os três mais temerosos. E eles não são monstros,
minha filha, mas irmãos de jornada que você feriu no âmago
do ser. Muitos são familiares queridos que espezinhou,
parentes a quem devia amor e, por ambição, roubou; amigos
queridos que traiu... Ah, sinhazinha Maria Eugênia, abra seu
coração e receba-os por filhos da sua alma, sangue do
seu sangue, e reconquistará o amor e o respeito que
sempre lhe dedicaram.
Tocada pelas palavras de pai Albino, curvei a fronte e deixei
que as lágrimas rolassem, lavando-me o rosto. Branda
sensação de paz me envolvia e, no mais profundo do meu
ser, reconhecia que ele estava coberto de razão.
Ao ver-me mais serena e cordata, o sábio ancião abraçou-
me com ternura e em seguida afirmou:
— Agora, minha filha, é tempo de retornar ao corpo físico e
retomar sua existência. Venha comigo.
Conduziu-me até meu quarto e, ao nos acercarmos do leito,
não contive a admiração ao ver meu corpo adormecido,
enquanto eu estava fora dele. Pai Albino sorriu
discretamente e explicou:
— Aquele é apenas o seu corpo de carne, minha filha, que o
Pai lhe concedeu para morada e progresso do seu espírito,
que é imortal. Retome, pois, sua vestimenta carnal e procure
manter
no recesso da alma as informações recebidas nesta noite.
Agora precisa repousar. Que o Senhor a abençoe.
DESPERTEI COM DIA CLARO, sentindo-me em paz comigo
mesma. Doce emanação de tranqüilidade me bafejava a
alma. Intimamente, sentia que tivera noite agitada e cheia de
sonhos. Lembrava vagamente de um pesadelo no qual me
via perseguida por um bando de criaturas estranhas e
assustadoras.
Contudo, não experimentei qualquer sentimento de medo
ao recordar-me delas. Depois, tudo tinha mudado. Estava em
plena natureza, na noite sem lua, cuja branda luminosidade
vinha do manto estrelado. Nesse lugar, encontrara-me com
alguém que me transmitira orientações e explicara-me
muitas coisas; não conseguira retê-las na memória, mas eu
sabia que me fizeram um bem enorme, aquietando-me o
coração.
Levantei-me. Dinha entrou no aposento para me ajudar com
a toalete matinal. Notou que eu estava quieta, pensativa.
— Dormiu bem, sinhazinha? - perguntou carinhosa.
—Nem sei dizer. Apesar de sentir-me bem, estou sem
vontade de me levantar, sair do quarto, fazer a refeição...
— Não se preocupe, minha princesa. Descanse. Trarei uma
bandeja com frutas, leite e biscoitos.
Aceitei, agradecida. Não demorou quinze minutos e a ama
retornou com uma bandeja repleta de coisas que sabia serem
do meu agrado. Sentei-me na poltrona, porém estava sem
apetite. Tomei apenas uma xícara de leite com café, duas
bolachas, e foi só.
Retornei para o leito e mergulhei no sono. Acordei com a
entrada da ama que vinha preparar-me para o almoço. Agora
mais fortalecida, desci para o encontro com meus pais. Feliz-
mente, para mim, meu pai se encontrava ausente. Não viria
almoçar. Assim, mamãe e eu fizemos uma excelente
refeição. Conversamos bastante e, a certa altura, ela indagou:
— Dormiu bem, Maria Eugênia? Noto que hoje você está
pensativa, diferente.
Limpando delicadamente a boca com o guardanapo de
linho, respondi:
— É verdade, mamãe. Tive sonhos estranhos esta noite, e
acordei sentindo-me bem, embora um tanto cansada. Agora
estou ótima.
— Então, aproveite o dia para fazer um passeio, que tanto
lhe agrada. O ar livre lhe dará mais disposição.
Após o almoço, nos dirigimos para a varanda, local fresco e
agradável, onde gostávamos de ficar a essa hora do dia. Notei
que mamãe me observava vez por outra discretamente.
Afinal, não se conteve:
— Não quer relatar-me seus sonhos? Talvez eu possa ajudá-
la, minha filha.
Entre mamãe e mim não havia segredos. Pelo menos, até há
pouco tempo. Só não lhe contara o problema com Rita e
meu noivo.
— A senhora tem razão, mamãe. Porém, não me recordo
direito. Sei que um deles foi muito ruim, verdadeiro
pesadelo, e que fui obrigada a fugir de monstros que me
perseguiam. Depois,
não sei como, tudo mudou. De repente, estava ao relento e,
na noite escura, encontrei alguém que me ajudou,
aconselhando-me e acalmando-me. E isso.
— E quem é essa pessoa?
— Ignoro, mamãe. Quando penso nele - era um homem -,
sinto que o conheço, mas, por mais que tente, não consigo
lembrar-me de quem se trata.
— Interessante. Aliás, sonhos são sempre fascinantes. Sabe,
Maria Eugênia, conheço alguém que poderia ajudá-la a
decifrar esses mistérios.
— Quem? - indaguei curiosa.
— Pai Albino! E de uma sabedoria extraordinária. Tem um
coração bondoso e é muito ponderado. Aliás, confesso que
eu mesma já recorri a ele em várias oportunidades. Sempre
tem a resposta certa para nossos problemas.
— Pai Albino! Gostei da idéia, mamãe. Vou procurá-lo agora
mesmo.
— Faça isso, minha filha. Creio que não se arrependerá.
Quer que chame a Ritinha para lhe fazer companhia?
— Não, mamãe. Agradeço-lhe, mas prefiro ir sozinha.
Levantei-me, entrei na sala, apanhei a sombrinha, que
costumava deixar dependurada no cabide, e saí para o jardim
caminhando sem pressa. Dirigindo-me para o fundo da casa,
contornei o prédio e encontrei Rita, que estendia algumas
roupas no varal. Ao me ver, ela veio a meu encontro.
— Vai passear, Maria Eugênia? Estava ajudando minha mãe a
estender algumas peças de roupas. Deixe-me avisá-la e irei
com você.
Com gesto brusco, eu a impedi:
— Não, Rita. Irei sozinha. Vou somente até a senzala. Não
preciso de companhia.
Ela estranhou-me a reação, mas não disse nada. Prossegui no
meu caminho e logo estava perto do grande barracão que
abrigava os escravos da fazenda. Alguns moleques
brincavam no pátio.
— Pedrinho, sabe onde está pai Albino?
— Sim, sinhazinha Maria Eugênia.
— Pois diga a ele que tenho urgência em falar-lhe.
O menino entrou como um raio na senzala e voltou
dizendo:
— Sinhazinha, pai Albino já vem.
Não demorou nada, e o vi saindo pela porta. Na boca trazia o
cachimbo e apoiava-se na bengala, como sempre.
— Sinhazinha Maria Eugênia! Deseja falar comigo? Estou ao
seu inteiro dispor.
— Sim, pai Albino.
— Pois então, vamos nos sentar à sombra daquela árvore ali
adiante. Mas não tem banco, sinhazinha - justificou-se ele.
— Não tem importância, pai Albino. Sentaremos em suas
raízes, que são tão fortes e hospitaleiras.
Caminhamos alguns passos e nos acomodamos nas acolhedoras
raízes. Sobre nossa cabeça, o canto das aves no arvoredo se
fazia ouvir como sinfonia da natureza. Pai Albino
contemplava o céu, as copas das árvores, os pássaros e os
pequenos animais que se escondiam entre as folhas.
— Então, sinhazinha quer conversar com o velho. Pois pode
falar, minha filha. Estou ouvindo.
Limpei a garganta, ajeitei-me o melhor que pude, pensando
em como começar a falar.
— Tem relação com algum sonho, sinhazinha? - sugeriu,
com os olhos fitando o horizonte que se descortinava ao
longe.
— Como adivinhou, pai Albino? - perguntei intrigada.
— Não adivinhei não, sinhazinha Maria Eugênia. É que a
maioria das pessoas que me procuram é por essa razão -
respondeu, dando uma risadinha.
— Ah! Pois bem. É por causa de um sonho, sim - exclamei
aliviada. Contei ao ancião o que me lembrava do sonho,
relatando que me vira perseguida por uma multidão de seres
maléficos que desejavam destruir-me. Ele deu mais algumas
baforadas e continuou calado. Julguei até que não me tivesse
escutado. Depois, perguntou:
— Foi só isso?
— Não, pai Albino. Depois, surgiu uma pessoa bondosa que
falou comigo e me fez sentir protegida, segura.
— Lembra-se do que lhe disse essa pessoa?
— Não, pai Albino. Tento recordar, mas não consigo. Sei
que era muito importante tudo o que ele me disse.
O ancião balançou a cabeça afirmativamente:
— É verdade. Pena que a sinhazinha não se lembre.
Todavia, o que acontece conosco fica guardado aqui e aqui -
disse, mostrando a cabeça e o coração.
— Sim, pai Albino. Tanto é verdade que despertei hoje me
sentindo outra pessoa, melhor e mais tranqüila.
O idoso virou-se em minha direção, fitando-me com
gravidade:
— Então, é sinal que a sinhazinha deve fazer tudo para
manter esse estado de espírito, não se deixando envolver
novamente por pensamentos negativos.
— Como assim, pai Albino?
Sem pressa, ele prosseguiu:
— Certamente a sinhazinha Maria Eugênia não sabe do que é mais
importante: que todas essas coisas aconteceram realmente.
— Aconteceram como? Que coisas?
— Sinhazinha Maria Eugênia, quando o corpo adormece, a
alma fica livre para cuidar de seus interesses.
Arregalei os olhos, pasma.
— O senhor quer dizer que realmente me encontrei com
aqueles seres demoníacos? Que eles existem de fato?
— Sim, minha filha. Essa é a realidade.
— Não posso crer. Então as almas penadas estão aí, por todo
lado, como já ouvi dizer?
— Sem dúvida. São irmãos nossos que já viveram aqui na
Terra e agora estão no Além, em outro mundo.
— Meu Deus! Valha-me, Nosso Senhor Jesus Cristo! Então,
estou perdida! – exclamei apavorada, fazendo o sinal da cruz.
Com a mesma serenidade, sem se deixar envolver pelo meu
desespero, ele ponderou:
— Sinhazinha se recorda de que também foi ajudada por
alguém, não é?
— É verdade, pai Albino.
— Então, para que esse desespero? As forças do bem são
superiores às forças do mal. Não se esqueça do auxílio
recebido nem o deprecie. Pode ter certeza, sinhazinha, de
que seres
benfazejos a envolvem para que faça o melhor nesta vida e a
protegem na travessia das provações.
Ele falava com tanta brandura e serenidade, que minha
respiração foi se acalmando até que voltei ao normal.
Aquelas informações, porém, iriam mudar minha vida. Mais
tranqüila, perguntei num fio de voz:
— Como sabe de tudo isso, pai Albino?
Com o olhar perdido ao longe, ele respondeu:
— Ah, minha filha, pai Albino já viveu muito, já sofreu
demais e já viu muita coisa. Aprendi bastante com esses
seres que habitam o outro mundo.
Ao ouvi-lo, senti um arrepio de medo percorrer-me todo o
corpo, dos pés à cabeça. Incapaz de permanecer ali por mais
tempo, levantei-me apressada.
— Preciso ir, pai Albino. Agradeço-lhe por me ouvir e pela
ajuda que me deu. Obrigada.
O escravo abriu um sorriso, entendendo a situação. Depois,
alertou-me:
— Sinhazinha, evite tomar qualquer atitude contra alguém,
para não vir a sofrer no futuro. Lembre-se de que o perdão
das ofensas é ensinamento divino deixado por Jesus de
Nazaré. Procure não errar novamente. Curve-se ante a
vontade do Senhor e será feliz.
Afastei-me ainda ouvindo essas palavras que, como uma profecia,
marcariam meus dias e noites. Quase a correr, retornei para a casa-
grande. Subi para o meu quarto e fiquei encolhida no leito.
Que coisa estranha e surpreendente. Tudo o que me dissera
pai Albino era aterrorizante, porém suas palavras de
despedida deixaram-me ainda mais impressionada. Ele sabia!
Ele sabia de tudo! Caso contrário, por que me teria alertado
para perdoar, não fazendo mal a ninguém?
Mas, como ficara sabendo? Ninguém conhecia meus planos!
Teria Miguel aberto a boca? Teria contado o que con-
versamos a pai Albino?
Precisava verificar isso com urgência. Assim que pudesse iria
conversar com Miguel.
Ouvi ligeira batida na porta. Com certeza era minha mãe
que, ouvindo-me chegar, vinha saber do resultado do
encontro com pai Albino.
Fechei os olhos e fingi estar dormindo. Mamãe entrou,
aproximou-se da cama e, ao ver-me adormecida, estendeu
uma manta sobre meus pés e saiu de mansinho, sem fazer
ruído.
9 – Na véspera do casamento
Por alguns dias permaneci pensativa e preocupada. Contudo,
a proximidade da data do casamento fez com que me ligasse
em coisas mais agradáveis.
Quando mamãe perguntou-me como fora o encontro com
pai Albino, disse-lhe que tinha sido bom e que ele me
tranqüilizara afirmando que era apenas um sonho sem
maiores conseqüências. Ela mostrou-se um tanto
decepcionada, mas acabou por esquecer o assunto.
O burburinho na casa era grande; o movimento, intenso. As
escravas corriam com os preparativos.
Na véspera, encontrei Ritinha chorando.
— O que houve, Rita? - perguntei.
— Nada, Maria Eugênia. É a emoção do seu casamento que
me faz ficar assim. Afinal, sempre fomos amigas e a partir de
agora tudo vai mudar. Você terá outros interesses, os cuida
dos com o esposo e, mais tarde, com os filhos... Nada mais
será como antes.
Sorri da sua ingênua preocupação, fingindo que acreditava.
— Não se aflija, Ritinha. Que bobagem! A vida tem seus
caminhos e devemos segui-los. Pode acreditar, estaremos
sempre juntas, aconteça o que acontecer.
A jovem escrava enxugou as lágrimas, considerando:
— Será? Maria Eugênia, noto que desde algum tempo você
se afastou de mim.
Fitei-a investigativamente, tentando adivinhar o que haveria
no fundo de seus olhos.
— E existe algum motivo para isso? - indaguei lentamente.
Desconcertada, talvez achando que tinha falado demais, ela
negou:
— Não. Claro que não. Nada aconteceu, não é?
— Bem. Então, se nada aconteceu, tudo não passa de
imaginação da sua cabeça - completei.
— É. Deve ser. Deve ser - concordou com um sorriso
pálido.
Afastei-me, alegando urgência em cuidar de alguns detalhes
do casamento. No fundo, estava feliz e eufórica. Rita perce-
bia que algo havia mudado entre nós e devia estar
preocupada, uma vez que trazia a culpa dentro de si.
Cantarolando, fui até a cozinha, onde as cozinheiras se
esmeravam em preparar os quitutes que seriam servidos na
festa. Tudo o mais estava pronto.
Mais tarde, após o almoço, meu noivo apareceu. Fui ao seu
encontro, com o melhor dos meus sorrisos. Ele tomou
minha mão, na qual deu um beijo ligeiro.
— Está radiante hoje, Maria Eugênia.
— Pois não deveria estar, Guilherme? É véspera do nosso
casamento, data tão esperada por todos. Mamãe não se
agüenta de tanta ansiedade!
— É natural. Afinal, você é sua filha única! - ponderou.
Eu o conduzi para a sala, onde inúmeros convidados se
entretinham a conversar. Parentes de longe haviam chegado
e o casarão estava cheio de gente circulando por todos os
lados.
Com elegância, meu noivo aproximou-se e cumprimentou a
todos os hóspedes. Apresentei-o àqueles que ainda lhe eram
desconhecidos, e deixei-o entregue às visitas, alegando
urgência em ver alguns detalhes.
Meia hora depois, Guilherme foi me procurar. Eu estava na
varanda verificando a colocação de vasos de flores, como
mamãe ordenara.
— Estava à sua procura, Maria Eugênia - ele disse, meio
contrariado.
— Sim? Como vê, cuidava dos últimos detalhes da festa.
— Podemos conversar um pouco?
— Claro, querido. Tem alguma preferência de local?
— Desejo um lugar sossegado onde não sejamos interrom-
pidos a todo instante - respondeu, um tanto impaciente com
o movimento da casa.
— Entendi. Realmente, a confusão hoje é grande. Pois
muito bem. Sugiro o caramanchão de rosas no fundo do
jardim. É um local tranqüilo e agradável a esta hora do dia. E
lá, certamente, não seremos interrompidos.
De braços dados caminhamos até o local. Percebi que
Guilherme estava tenso e que suas mãos tremiam
ligeiramente, embora procurasse demonstrar serenidade.
Entramos no caramanchão e um agradável odor de rosas
atingiu-me o olfato.
— Ah, como gosto deste lugar! É tão agradável! Sente-se,
querido.
— Você tem razão. E um lugar perfeito para pensar, refletir.
Essas palavras deixaram-me em alerta. Se meu noivo estava
precisando pensar e refletir, era sinal de que algo não ia
bem.
— Querido, o que deseja conversar comigo? Se é sobre as
passagens, estão em meu poder há uma semana.
— Não, não é sobre isso.
— Pois então, pode falar. Meu tempo é curto. Sabe que
tenho uma infinidade de coisas para ver hoje.
Guilherme levantou-se do banco, pondo-se a andar de um
lado para o outro, sem dizer nada.
— Você está me deixando tonta, Guilherme. Fale de uma
vez! Tem alguma dúvida?
Ele parou, olhou-me fixamente e perguntou à queima-roupa:
— Maria Eugênia, você está feliz?
Fitei-o com os olhos arregalados. Não gostei da pergunta;
não àquela altura dos acontecimentos. Coloquei meu melhor
sorriso no rosto e respondi:
— Claro que estou feliz, Guilherme. Que pergunta! Justa-
mente na véspera de nosso casamento!
— Por isso mesmo, Maria Eugênia. Tenho estranhado seu
comportamento nos últimos tempos. Não quero obrigá-la a
nada. Se não está contente, se não deseja se casar comigo,
compreenderei perfeitamente.
Ergui-me de um salto. O maldito estava tentando livrar-se de
mim. Nossa união era-lhe demasiadamente pesada a ponto
de não se incomodar em romper o compromisso na véspera
do casamento!
Levei a mão ao peito ofegante, tentando controlar a emoção,
enquanto lágrimas de ódio umedeceram meus olhos.
— Por que me diz tal coisa, Guilherme? Por acaso não quer
mais se casar comigo?
Vendo o meu estado e julgando que minha reação fosse
ditada pelo amor, ele murmurou:
— Não é isso, Maria Eugênia. Preocupo-me com você. Só
isso.
— Se algum dia lhe dei a impressão de não estar satisfeita,
perdoe-me. E a pressão dos preparativos, tantas coisas para
organizar, enxoval, roupas, festa e tudo o mais. Estou feliz,
sim, meu querido. Quero passar toda a minha vida ao seu
lado.
Pálido e trêmulo, Guilherme revirava o chapéu nas mãos.
Afinal, sem saída, como um honrado cavalheiro, concordou:
— Então, se é isso o que você realmente deseja, tudo bem.
Julguei que, em virtude de nossa união ter sido arranjada por
nossos pais, você não desejasse realmente casar-se comigo.
— Ah! Se é por isso, tranqüilize-se. Está tudo em ordem,
meu querido. No começo, confesso-lhe que não desejava
mesmo este casamento; porém, com o passar do tempo,
aprendi a conhecê-lo e afeiçoei-me a você. Hoje, eu o amo
de verdade.
Guilherme respirou profundamente, mas se manteve calado.
Aproveitei para colocar um ponto-final naquela conversa.
— Então, se está tudo esclarecido, podemos voltar?
Ele concordou com leve sinal de cabeça. Caminhamos de
retorno ao casarão sem trocar uma palavra sequer. Percebi
apenas que seu tremor aumentara. Entrando em casa, deixei-
o integrado numa roda de animadas e alegres visitas.
Intimamente, alegrava-me pela vitória. Pois sim! Se ele
esperava que eu desistisse assim, na última hora, causando
transtornos e cobrindo de vergonha a mim e à minha
família, estava redondamente enganado. Esse homem estava
irremediavelmente preso a mim, e iria sofrer as
conseqüências pela dor e pela humilhação que eu estava
sentindo por sua traição.
Guilherme se arrependeria amargamente por ter-me
rejeitado. Uma mulher ofendida jamais esquece, pensou ela,
rancorosa.
AQUELE DIA, o ÚLTIMO que passaria em minha casa na
condição de solteira, transcorreu rapidamente. Ao me
recolher, estava moída de cansaço.
Dinha ajudou-me nos preparativos. Não conversamos como
de costume. Ela notou que eu estava calada, perdida nos
próprios pensamentos, e respeitou meu silêncio.
Antes de sair, no entanto, com delicadeza disse-me:
— Sinhazinha, amanhã você estará casada. Como talvez não
tenhamos oportunidade de conversar, quero desejar-lhe
muitas felicidades nessa nova vida.
Parada humildemente à minha frente, a ama tinha os olhos
úmidos de emoção. Fitei-a e estendi-lhe meus braços.
— Dê-me um abraço, Dinha. Necessito muito de carinho.
Agradeço-lhe por tudo o que você foi para mim desde
criança: ama de leite, amiga, conselheira.
Ela apertou-me em seus braços, deixando que as lágrimas
vertessem.
— Sempre serei para a sinhazinha a ama devotada que muito
lhe quer, Maria Eugênia.
Agradeci, e ela concluiu:
— Agora durma, minha princesa. Amanhã teremos um dia
cheio e, mais do que nunca, precisará estar descansada e
bela.
A cabeça de minha mãe apontou na porta. Risonha e
radiante, ela entrou.
— Ainda bem que não dormiu ainda, minha filha. Queria
desejar-lhe uma boa noite. Ufa! O dia hoje foi cansativo.
Somente agora o último hóspede se recolheu. Então, aqui
estou.
Mamãe acomodou-me no leito, ajeitou as cobertas e disse:
— Esta é a última noite que passa nesta casa como solteira...
Sorri concordando:
— Dinha disse-me a mesma coisa.
— Eu sei que sua ama também está sentindo a mudança que
ocorrerá em sua existência a partir de amanhã.
— Mas, mamãe, eu vou continuar sendo a mesma e
amando-as do mesmo jeito.
— Sei disso, querida. Contudo, é diferente. A partir do
casamento, terá de seguir e obedecer a seu esposo. Terá uma
vida nova, responsabilidades e deveres que ocuparão seus
dias.
Abracei mamãe com ardor.
— Jamais me separarei da senhora, minha mãe. Conti-
nuaremos sempre unidas, como até agora.
Ela sorriu por entre lágrimas, segurando-me as mãos:
— Minha filhinha, desejo-lhe toda a felicidade do
mundo. Todavia, se algo acontecer, se algum dia precisar de
nós, de mim e do seu pai, esta casa sempre foi e continuará
sendo sua.
— Eu sei, mamãe. Obrigada por tudo.
— Agora, repouse. Durma bem, minha querida. Tenha
lindos sonhos.
Ela levantou-se do leito, diminuiu a claridade do quarto e
saiu, deixando-me sozinha.
Será que mamãe desconfiava de alguma coisa? Dissera
palavras estranhas, como se soubesse que eu poderia ter pro-
blemas! Bobagem. É natural que a mãe se preocupe com a
filha que vai se casar.
Tentei pegar no sono, porém a cabeça fervilhava. E, quanto
mais pensava, pior me sentia.
De súbito, dei-me conta de que o quarto estava cheio de
pessoas estranhas, vultos assustadores, aqueles mesmos do
pesadelo que tive algumas noites atrás. Um murmúrio
abafado soava em meus ouvidos, como se esses vultos me
acusassem de alguma coisa.
Tapei os ouvidos para não escutar. No entanto, eles
continuavam desfilando à minha frente.
Acendi a vela da cabeceira e agarrei-me no rosário. Puxei as
cobertas, escondendo-me debaixo delas, a tremer de medo.
Rezei como nunca na vida.
Perdi a conta das orações feitas naquela noite, até que
finalmente consegui adormecer quando as primeiras tintas
da aurora surgiam no horizonte.
10 – O casamento
Na manhã seguinte, despertei com o corpo todo dolorido,
como se tivesse levado uma surra. Sentia-me exausta, com a
sensação de não ter pregado o olho a noite toda. Vagas
imagens de vultos terríficos que me povoaram a noite de
pesadelos sem fim voltavam-me à memória. Não desejava
levantar-me. Queria permanecer no leito, tão fraca e sem
forças me sentia.
Nesse momento, um grupo alegre invadiu meus aposentos:
mamãe, Dinha, vovó Justina e três primas, Luciana, Eunice e
Valéria. A ama trazia uma bandeja com o café da manhã.
Somente naquele instante lembrei-me do casamento.
Satisfeita e bem-disposta, como sempre, mamãe afastou
minhas cobertas.
— Vamos! Vamos, minha preguiçosa! Acorde! O dia vai ser
movimentado. Viemos desejar-lhe bom-dia! Agora coma,
porque vai precisar de forças para enfrentar este dia, que
desejamos seja muito feliz.
As primas brincavam e riam, felizes. Filhas do tio Eugênio,
irmão de minha mãe, as três eram lindas, mas de tipos
completamente diferentes. Luciana, a mais velha, de tez
clara, cabelos e olhos castanhos, a mais comedida das três, a
mais séria. Eunice, a do meio, de cabelos claros e
encaracolados, olhos verdes e um lindo sorriso, falava
bastante e estava sempre alegre. Valéria, a mais nova, tinha a
pele branca como leite, olhos acinzentados e uma
esplêndida cabeleira ruiva; doce e tímida, quando ria, duas
encantadoras covinhas surgiam nos cantos da boca.
— Como damas de honra, nós somos responsáveis pela
toalete da noiva - afirmou Luciana, com firmeza. Assim,
hoje você está em nossas mãos!
De alguma forma, aquela onda de alegria e barulho fez-me
bem. Tentei comer, mas elas falavam tanto, diziam coisas tão
engraçadas, especialmente Eunice, muito espirituosa. Em
virtude de suas brincadeiras, não conseguia me alimentar.
Tomei apenas uma xícara de leite com café e algumas
rosquinhas de nata, minhas preferidas.
Luciana, Eunice e Valéria cercaram-me o leito.
— Agora, levante-se, sua preguiçosa! Temos muito que
fazer. O tempo urge. Passa da uma hora da tarde e
precisamos prepará-la e embelezá-la para que esteja
deslumbrante na hora do casamento.
Sem poder resistir-lhes, levantei-me cambaleante. Dinha
avisou-as de que o banho estava pronto e elas me enfiaram
na banheira. A água tépida e o perfume das essências
fizeram-me bem. Haviam colocado na água ervas aromáticas
e pétalas de rosas vermelhas recém-colhidas, para relaxar. O
banho pareceu retirar de mim todo o mal-estar, cansaço e
fraqueza. As três deixaram-me sozinha por vinte minutos
para que aproveitasse aqueles momentos de relaxamento,
serenidade e prazer.
Após esse tempo, brincando e rindo, cantando e
tagarelando, as três primas rodearam-me novamente.
Enxugaram-me e depois elas passaram em meu corpo um
creme feito de leite de cabra, de agradável aroma, para
amaciar a pele. Era a última novidade na capital do império.
Vestiram-me as anáguas e o espartilho. Em seguida, com cuidado,
trouxeram meu vestido: um belo traje branco confeccionado
com renda de Bruxelas e tafetá, tecidos que mamãe mandara
buscar na Europa. Após vestir-me, pentearam-me os
cabelos, levando as mechas da frente para o alto da cabeça e
prendendo-as com presilhas de diamantes, deixando o resto
de meus cabelos caírem pelos ombros em cachos largos.
Colocaram-me brincos de brilhantes e um belo colar,
também de brilhantes, herança que me fora deixada por
minha avó paterna para ser entregue por ocasião do meu
casamento. Calçaram-me sapatos forrados de tafetá e, em
seguida, puseram-me o véu e a grinalda na cabeça. Por fim,
depositaram-me nas mãos o rosário de madrepérola e um
belo ramalhete de flores de laranjeira, recém-colhidas, que
exalava agradável aroma.
Luciana, Eunice e Valéria também já estavam arrumadas
para a festa. Espertas, entre uma tarefa e outra, elas se
revezaram cuidando da própria toalete. Vestiam belos trajes
de cores diferentes: Luciana de verde-água, Eunice de rosa e
Valéria de azul. Estavam maravilhosas! Assim, na hora
marcada, tanto eu quanto elas já estávamos prontas.
Postaram-me diante de um grande espelho e prendi a
respiração. Quase não consegui reconhecer-me naquela
noiva encantadora. Realmente estava linda! Orgulhosa, meus
olhos azuis ficaram úmidos e brilhantes de emoção.
Ao descer as escadarias, ouvi um murmúrio de admiração
daqueles que ainda me esperavam. Meu pai aproximou-se,
estendendo-me a mão. Parecia mais sensível, mais humano,
e olhava-me com carinho.
— Está linda, minha filha. A noiva mais bela que já vi. O
coche aguardava para levar-nos à cidade. Ao chegar defronte
da igreja, o veículo parou e o cocheiro abriu-nos a porta.
Meu pai desceu e estendeu-me a mão. Eunice, ansiosa, que
aguardava na porta da igreja, aproximou-se, ajeitando-me o
vestido e o longo véu.
Ao entrar na igreja, ouvi o som do órgão tocando uma
música sacra. Com as damas de honra na frente, trêmula e
emocionada, caminhei lentamente pela nave, apoiada no
braço de meu pai. O templo religioso estava lotado.
Conforme avançávamos, eu notava as pessoas
elegantemente trajadas, via o faiscar das jóias e sentia os
diferentes perfumes que se misturavam ao odor
característico da igreja.
Padre Antônio, paramentado, aguardava-nos. Na frente, os
padrinhos, os pais do noivo, mamãe e, claro, o noivo. O
sacerdote deu início à cerimônia. Enquanto ele falava,
algumas imagens vinham-me à mente. Alguém me dizia
com imenso carinho: "Filha, detém-te! Ainda há tempo. Não
erres mais".
Naquele instante, lembrei-me do sonho que tivera à noite.
Uma mulher, bela e delicada, com vestes flutuantes e
luminescentes, de semblante sereno e muito familiar, e que
eu já vira em outra oportunidade, dizia-me as palavras que,
nesse instante, acudiam-me à memória.
O padre prosseguia no sermão. Senti ligeira tontura. Aquelas
palavras não saíam da minha cabeça, numa repetição
contínua. Justamente nesse momento, o padre perguntou:
— Guilherme de Araújo Cerqueira, é de livre vontade que
aceita Maria Eugênia como sua esposa, para amá-la e
respeitá-la todos os dias da sua vida, até que a morte os
separe?
— Sim, padre - respondeu Guilherme, compenetrado.
— Maria Eugênia de Albuquerque Figueiroa, é de sua livre
vontade...
Sentindo leve vertigem, demorei a responder. O padre
repetiu a pergunta. Percebi que Guilherme tornou-se rubro,
olhando-me inquieto; certamente temia passar por uma
humilhação diante de todos os convidados. Olhei para o lado
e notei a aflição de meus pais. Voltei a fixar o padre
Antônio, que se inclinara para frente, aguardando minha
resposta. Afinal, num sopro de voz, murmurei:
— Sim.
Os presentes, ansiosos e preocupados, respiraram aliviados.
A cerimônia logo terminou, iniciando-se os cumprimentos
aos noivos.
Retornamos todos para a fazenda, onde a festa estava
preparada. As mesas, arrumadas no gramado do jardim,
estavam lindamente enfeitadas com arranjos de flores. Ao
nos verem chegar, os músicos começaram a tocar bela
melodia.
Os alegres convidados formavam grupos, conversando e
rindo animadamente. Os pratos foram-se sucedendo,
servidos por escravos em trajes de gala, que transitavam
entre os presentes. Horas depois, vieram os doces e o
enorme bolo.
Guilherme e eu, agora casados, recebíamos os
comprimentos de todos. Caminhando por entre as mesas,
encontrei minha ama. De Rita, nem sinal. Como fazia
questão de ver como ela estava se sentindo, perguntei:
— Ainda não vi Rita. Onde ela está?
— Ah, Maria Eugênia, minha filha não pôde comparecer ao
seu casamento. Está em seu quarto, doente –
respondeu penalizada.
— Doente? E o que ela tem?
— Sente-se muito mal. Não tem conseguido se alimentar, e
sofre enjôos constantes.
— Ah, que pena! Desejo-lhe melhoras - exclamei,
procurando disfarçar a decepção.
"Mentirosa! Com certeza não quis apreciar o espetáculo da
minha união com Guilherme. Mas ela não perde por
esperar!", murmurei entre os dentes.
Na senzala, os escravos também comemoravam o
casamento da sua sinhazinha. Cantavam e dançavam,
comiam e bebiam, em torno de uma grande fogueira. O
senhor havia liberado a bebida e eles aproveitavam para se
divertir. Era um dia de festa, acontecimento raro na fazenda.
No dia seguinte não iriam trabalhar; era folga para todos.
Diva percebeu que Miguel estava amuado num canto e não
participava da festa. Chamado pelos amigos e pelas jovens
escravas para integrar-se ao grupo, que cantava e dançava à
luz da fogueira, recusara-se, alegando cansaço. Ela pegou um
prato de comida, uma caneca, um jarro de barro com
aguardente e dirigiu-se até onde ele estava.
A escrava era jovem, bonita e tinha uma queda por ele. Toda
faceira, aproximou-se lentamente e entregou-lhe o prato e a
caneca.
— Trouxe para você, Miguel. Notei que ainda não comeu
nem bebeu nada esta noite. Aproveita, homem! Não é todo
dia que temos fartura!
Sentou-se perto dele, mostrando intenção de fazer-lhe
companhia. Incomodado e um tanto descontente, ele disse:
— Agradeço a preocupação comigo, mas não carecia tanta
atenção, Diva. Você é jovem e bela, cheia de vida. Vá para
junto dos outros, participe das diversões. Não serei uma boa
companhia para você. Estou num dia péssimo.
— Também não estou muito para festa, Miguel. Prefiro
permanecer aqui ao seu lado, longe da confusão e do
barulho. Isto é, se você permitir.
Não tendo como recusar, conformado, ele assentiu:
— Se é o que deseja...
Então, Miguel calou-se, não insistindo, sem sequer
endereçar-lhe um olhar. Enquanto os escravos cantavam ao
som dos atabaques, sua mente foi ficando nublada pelos
vapores da bebida. Em certo momento, ele começou a
resmungar, já sem saber direito o que dizia:
— Ela vai para longe... nos braços dele.
O que disse, Miguel? - indagou Diva, interessada.
— Nada... Nada. - e, depois de alguns minutos, prosseguiu: -
Tudo vai mudar. Ah, se vai. Na volta tudo será diferente.
A esperta mocinha, apesar de ficar de ouvidos atentos, não
conseguia entender direito o que ele dizia, mas sabia que
tinha a ver com Maria Eugênia e Guilherme. Ele prosseguia
com voz enrolada:
— Vou acabar com aquela miserável. Traição não se perdoa.
Não se perdoa...
Diva tentou fazê-lo falar mais:
— O que diz, Miguel? Com quem vai acabar?
Ele a fitou, colocando o dedo na boca, a pedir silêncio com
voz empastada:
— Psssiiiu!... Isso é segredo. Ninguém pode saber.
— Concordo com você. Traição não merece perdão. Mas,
quem o traiu? A sinhazinha? - falou ela em voz baixa,
imitando-o, enquanto enchia-lhe novamente a caneca vazia.
Com olhos embaçados pela bebida, ele tentou responder:
— Não... Ela não... Ela é um anjo...
Nesse momento, com um resto de lucidez, temendo falar
demais, Miguel levantou-se e saiu cambaleando para o meio
do mato.
— Não, Miguel! Volte! Volte!...
O rapaz, porém, já se enfiara no meio da vegetação e, com a
escuridão da noite, Diva não conseguiu alcançá-lo. Cheia de
despeito, sentindo-se rejeitada e frustrada por não ter
conseguido que ele falasse mais, limitou-se a voltar para
junto dos outros escravos. Mas o resto da noite não pensou
em outra coisa: "Vou descobrir a verdade, custe o que
custar, ou não mais me chamarei Diva!".
Aos poucos as luzes foram-se apagando. Na casa-grande, os
últimos convidados se retiraram. Cansados de tanta agitação,
também nos recolhemos, ocupando os aposentos preparados
especialmente para nós, os recém-casados. De manhãzinha,
Guilherme e eu partiríamos para a capital da província, em
viagem de núpcias.
ESTAVA CLAREANDO o DIA quando os batuques se calaram na
senzala e todos puderam descansar. O silêncio se fez e só se
ouviam o ruído dos animais e o pio de uma ou outra ave
noturna.
Partimos bem cedo enquanto todos ainda dormiam.
Precisávamos aproveitar o tempo para viajar com claridade,
pois era longo o trajeto até o porto, onde pegaríamos o navio
com destino à Europa.
Somente levantaram-se os mais chegados: Dinha, a avó
Justina e minha mãe. Tudo estava arrumado. Dois escravos
colocaram nossa bagagem na carruagem e Josias, cocheiro
experimentado, iria nos levar até o porto.
Sem que ninguém percebesse, Rita observava nossas
despedidas, ralada de angústia e desespero. Somente eu a vi,
entre os arbustos, e fiz questão de mostrar-me ainda mais
carinhosa com meu marido.
Rita sentia-se só e abandonada. Não acreditava que
Guilherme voltaria para ela. Sabia que a partir de agora
teríamos um relacionamento mais íntimo, estaríamos a sós e
certamente elos mais fortes acabariam por nos unir. Cheia
de ciúme, Rita pensava no que seria sua vida dali por diante.
Seu amado Guilherme, que tantas promessas lhe fizera, não
deixaria a mim, rica herdeira, por ela, uma reles escrava.
Quase de imediato, a jovem sorriu, levando as mãos à barriga
e acariciando-a. Ela tinha um trunfo, que mantinha em
segredo: carregava dentro de si o fruto do seu amor com
Guilherme. Esperava um filho dele e, por certo, o teria em
suas mãos, pois eu, a esposa, não gostaria de saber disso. Se
eu ficasse sabendo, o casamento e o grande negócio que
Guilherme fizera anexando minha fortuna à dele, algo
combalida, já começaria com problemas. Esse era outro
trunfo que Rita também guardava como um tesouro; ele Ire
revelara num momento de fraqueza e com essa vantagem
ela contava poder melhorar sua situação, quando do nosso
retorno.
Conquanto julgasse amar Guilherme, no fundo Maria Rita
não sentia verdadeiro amor por ele. Seus sentimentos eram
uma mescla de atração, interesse e orgulho, e Guilherme
viera representar para ela a materialização de um ideal
acalentado em seus sonhos no desabrochar da vida. Ela
desejava ter uma existência diferente daquela que tinha sua
mãe, sujeita ao jugo de um senhor, e que também lhe estava
reservada. Rita sabia que era bela e desejável, e o interesse
de um homem jovem, elegante, bonito e rico, como
Guilherme, a seduzira, especialmente porque ele era alguém
destinado à sua sinhazinha, de quem sempre, no íntimo,
tivera inveja.
Tudo isso só fui descobrir mais tarde. Naquele momento,
olhei de novo na direção dela, mas Rita havia desaparecido.
Após nos despedirmos dê Dinha, da avó Justina e de minha
mãe, entre sorrisos, lágrimas e promessas de notícias,
entramos na carruagem que nos levaria para uma viagem de
sonho, segundo eu acreditava.
MIGUEL DESPERTOU NO MEIO do mato com o sol alto.
Demorou a entender o que estava fazendo ali, com a cara
enterrada na terra e fiapos de capim grudados no nariz. Aos
poucos, foi voltando à realidade e lembrou-se do que tinha
acontecido.
Sentia-se péssimo, com a boca amarga e o estômago
embrulhado. A cabeça doía-lhe terrivelmente. Levantou-se
cambaleando e caminhou com dificuldade, quase se
arrastando, até a senzala. Deitou-se na sua esteira pensando:
"Como tinha acontecido isso? Logo eu, que não sou dado a
bebedeiras".
Seu amigo Amaro, tão logo o viu entrar na senzala, foi atrás
dele.
— Está com péssimo aspecto, irmão.
— Diva me encheu de bebida.
— Ah, mas você parecia muito bem. Não me aproximei,
pois vi a bela jovem a seu lado e não quis atrapalhar a
conversa. Depois, você desapareceu...
Levando a mão à cabeça, que latejava horrivelmente, Miguel
respondeu:
— É verdade. Para fugir de Diva, embrenhei-me no mato.
Ah, mas como dói minha cabeça. Parece-me que tenho
atabaques tocando dentro dela.
Amaro sorriu, concordando:
— Realmente, irmão. Para quem não bebe, você exagerou
na dose. Mas vou falar com pai Albino, que é conhecedor de
ervas e saberá dar-lhe algo que alivie a sua dor.
Amaro procurou o ancião, que foi ver Miguel na senzala. Pai
Albino trouxe-lhe uma caneca com uma beberagem que ele
tomou fazendo careta.
— É amargo - resmungou.
Não demorou muito, sentiu náuseas e, enjoado, preferiu
ficar quieto, procurando uma esteira mais distante. Já deitado
na esteira, pai Albino recomendou:
— Miguel, meu filho, agora repouse. Logo estará melhor. Depois
conversaremos. Felizmente, hoje é dia de folga para todos.
Miguel dormiu o resto do dia, recuperando as forças. À
noitinha, quando as tochas se acenderam, ele despertou.
— Como está se sentindo? - perguntou pai Albino.
— Bem melhor, meu pai. Bastante fraco, porém sem dor de
cabeça.
— Ótimo. Agora você precisa de alimento para fortalecer o
corpo. Reservei um prato para você. Coma.
Esfomeado, Miguel sentou-se e comeu todo o angu. Depois,
agradeceu.
— Obrigado, pai Albino.
— Não precisa agradecer, meu filho. Não faço mais do que
minha obrigação. Quando temos conhecimento sobre
alguma coisa, precisamos espalhar essa bênção em benefício
de todos
os irmãos. Mas, agora podemos conversar.
Fitou o rapaz longamente, como se vasculhasse sua alma.
— Miguel, sei que está com problemas. Sofre e se desespera
por amor. Contudo, meu filho, evite cometer algo que
venha a prejudicar a outros e a si mesmo, em particular.
Agora sóbrio, Miguel tentou disfarçar:
— Não sei do que está falando, meu pai.
— Sabe sim. Já errou bastante no passado por amor a essa
mesma mulher. Não torne a errar ou irá sofrer muito no
futuro. A própria natureza nos ensina todo dia lição de
grande importância: quem planta, colhe. Entendeu?
— Sim, pai Albino. Entendi. Quer dizer que nos conhe-
cemos de outras épocas? Acha mesmo isso?
— Exatamente, Miguel. E acredito, sim, em outras existên-
cias, e você também. E lhe digo mais: ela sempre o
dominou. Está na hora de mudar. O Senhor nos deu esta
existência para
que o tempo fosse utilizado de modo a aprendermos as
lições que a vida nos oferece, e nos melhorarmos, tornando-
nos seres bons, pacíficos e fraternos.
— Entendi, meu pai. É verdade. Muitas vezes, ao sentir a
força desse amor que trago dentro de mim, parece-me tê-la
encontrado em outras épocas com roupagens diferentes.
Sinto saudade desse tempo, mas também muito medo,
quando essas imagens me vêm à lembrança.
— Então, cuidado! Não se entregue a esse sentimento, uma
vez que sabe ser impossível, e nem se deixe dominar por
ele. Aproveite, meu filho, a oportunidade que o Senhor lhe
confiou. Ajude a si mesmo, ajudando-a, e também a outras
pessoas envolvidas nesse caso.
O ancião levantou-se e foi embora, enquanto Miguel ficou
refletindo sobre tudo o que havia sido conversado entre
eles.
11 – A viagem
Viajamos até Cruzeiro da Mata, vilarejo mais próximo, em
seguida tomamos o rumo que nos levaria à capital da
província. No trajeto só se ouviam o ruído das rodas e, vez
por outra, o estalar do chicote no lombo dos animais,
acompanhado de uma ordem do cocheiro. Guilherme,
conquanto gentil, mantinha-se em silêncio, falando apenas o
estritamente necessário.
No início da viagem, tentei conversar com meu marido,
discorrendo sobre a festa, os convidados, os aspectos
interessantes ou pitorescos que presenciara. Ele, porém,
respondia-me brevemente. Então, calei-me, acreditando-o
cansado e com sono. Daí por diante, trocamos poucas
palavras. Na penumbra da carruagem, acabei por adormecer
sob o balanço e o movimento rítmico do rodar do veículo
em atrito com o solo.
Algum tempo depois, despertei ao ouvir vozes. Era
Guilherme que, abrindo a janela, falava com o cocheiro:
— Josias, quanto falta para chegarmos à capital?
— Muitas horas, sinhô Guilherme.
— Há alguma estalagem aqui por perto?
— Sim, sinhô. Há uma não muito distante.
— Ótimo. Então, faremos uma parada lá.
— Sim, sinhô.
Guilherme fechou a cortina, voltando a seu lugar; ao
perceber que eu havia acordado, explicou:
— Logo faremos uma parada. Precisamos descansar e comer
alguma coisa. Além disso, imprescindível cuidar dos
animais. Conseguiu dormir?
— Sim, estava cansada. Afinal, dormimos pouco esta noite -
disse, corando.
Guilherme manteve-se impassível.
— Haverá tempo bastante para repousar na longa viagem
que vamos fazer.
— É verdade. Onde estamos? - perguntei, abrindo a cortina
e colocando a cabeça pela janela.
— Numa região de serras, em meio a mata fechada, onde a
estrada é cheia de curvas e a temperatura sempre mais baixa,
pela altitude e pela ausência do sol, que não consegue
romper a ramaria. Logo, porém, chegaremos a um trecho de
planície onde haverá mais claridade e o calor do sol voltará a
nos aquecer.
Realmente, eu estava tiritando de frio. Todavia, em mo-
mento algum Guilherme se aproximou de mim,
envolvendo-me com seus braços, o que teria espantado o
frio e me aquecido o coração. Mantinha-se o mais afastado
possível.
"Não precisaria do sol para aquecer-me", pensei. "Bastaria o
calor humano, se houvesse."
Afinal, notando que eu tremia de frio, delicadamente ele
pegou uma manta que estava guardada em pequena
prateleira no alto, acima de nossa cabeça, desdobrou-a,
colocando-a sobre mim. Agradeci a gentileza,
aconchegando-me à manta de lã de carneiro, que logo me
aqueceu.
Prosseguimos em silêncio; não demorou muito, a carruagem
parou. Josias abriu a portinhola, avisando:
— Chegamos, meu sinhô.
Guilherme desceu e estendeu-me a mão, como um perfeito
cavalheiro que era.
Olhei em torno, encantada. A região era maravilhosa; ao
longe se descortinavam as montanhas em meio a uma
vegetação luxuriante, pintada pelo colorido das flores.
Acercando-me da margem da estrada, próxima ao
precipício, pude notar que estávamos num ponto bem
elevado. Olhei para baixo e vi as encostas recobertas de
plantas e flores, cujo aroma me atingia o olfato no dia limpo
e claro; mais além, notei uma cascata, cujas águas
despencavam de grande altura, e, em seguida, se integravam
a um rio lá embaixo, que sumia pouco depois, serpenteando
entre as montanhas.
— Lindo! - murmurei encantada.
Impaciente, Guilherme lembrou-me de que precisávamos
prosseguir. Não tínhamos tempo para nos deter na
contemplação da paisagem.
— E por quê? - retruquei.
— Há lugares muito mais belos para ver na viagem, minha
querida.
— Se estamos em viagem, Guilherme, parece-me que tudo
deve ser bem aproveitado. Inclusive as paisagens da nossa
terra, por que não? Particularmente, tudo é novo para mim.
Nunca
tive oportunidade de viajar como você.
Talvez me julgando uma verdadeira provinciana, alguém que
nunca saíra do local onde nascera, meu esposo não res-
pondeu. Delicadamente, colocou a mão em minhas costas,
indicando-me a estalagem, cuja porta de acesso ficava a uns
trinta metros de distância.
Entramos. Imediatamente, sentimo-nos revigorados pelo
ambiente, que o calor do fogo aquecia. Sentamo-nos a uma
das mesas rústicas. Logo, o proprietário, senhor gordo e
bonachão, veio nos atender.
— O que tem para se comer?
— Temos carne assada e pão saído do forno ainda agorinha,
manteiga, queijo, geléia e biscoitos.
— Muito bem. E para beber?
— Vinho e aguardente. Se preferir, temos também café,
leite e chá.
— Traga-nos vinho.
Logo uma criadinha veio trazer o pedido. O pão quente
recendia agradável aroma e a carne assada estava ótima.
Depois, tomamos café coado na hora. Tudo nos pareceu
muito bom, certamente porque Guilherme e eu nos
sentíamos famintos. Não havíamos almoçado; comemos
apenas algumas guloseimas da festa, que Florência colocara
numa cesta para viagem.
Adorei o local. Nunca entrara antes numa estalagem e o
ambiente rústico, mas limpo, cativou-me. Descansamos um
pouco e prosseguimos viagem. Descíamos sempre; a estrada,
perigosa, cheia de curvas, permitia-nos ver as ribanceiras, e
um passo em falso dos animais poderia ser fatal. O cocheiro
precisou de toda a sua experiência para manter os cavalos
sob controle, obrigando-os a reduzir a marcha, para não
causar um acidente.
Eu estava assustada. Agarrei as contas do meu rosário, do
qual não me separava, pondo-me a rezar. Guilherme, mais
habituado a enfrentar essas situações, fazia pouco caso do
meu medo. Para meu alívio, depois de um tempo que me
pareceu excessivamente longo, a vista se modificou por
completo. Paramos de descer; a região agora era de planície,
ora com prados e animais, ora com plantações de cana-de-
açúcar.
Fizemos mais uma parada ao anoitecer. Josias avisou-nos de
que não era seguro viajar à noite e que aquela era a última
estalagem em muitas léguas.
O local não nos pareceu tão agradável, mas pedimos o jantar.
Em seguida, nos recolhemos no melhor quarto que ele
tinham para oferecer. Eu estava tão cansada que, mal deitei,
já estava dormindo.
Despertei na manhã seguinte com Guilherme a me chamar.
— Precisamos prosseguir, Maria Eugênia.
Arrumei-me com alguma dificuldade, visto que estava
acostumada a contar com a assistência de uma escrava, mas
tive a ajuda de Guilherme, que amarrou meu espartilho.
Tomamos o café da manhã e continuamos a viagem.
Atravessamos Barra do Piraí e alguns vilarejos, chegando
finalmente ao Rio de Janeiro, capital do Império.
A grande cidade me deixou fascinada. O movimento de
pessoas e de carruagens, as lojas que ferviam de gente, as
construções, tudo me encantava. O veículo rodou pelas ruas
até chegarmos a um hotel. Descemos e nos acomodamos
num quarto a que um criado nos conduziu. Após um banho,
nos dirigimos ao salão para jantar. Achei tudo lindo e bem
ornamentado, evitando demonstrar meu espanto para não
parecer provinciana, já que, para meu marido, tudo era
natural. Os pratos estavam excelentes, e a música era um
convite à dança.
Na manhã seguinte fizemos o trajeto que nos levaria até o
porto. De longe, já pude ver uma grande extensão de água,
que me deixou sem fôlego. Chegando ao porto, que
apresentava intenso movimento, dirigimo-nos ao navio
atracado.
Meu coração batia intensamente. Pela primeira vez
contemplava o mar, e pensar que viajaríamos naquela
grande casa flutuante, sobre as águas, me deixou tensa e
insegura.
O cocheiro Josias, cumprida sua missão, despediu-se de nós,
desejando-nos boa viagem; enquanto carregadores levavam
nossas bagagens para o navio, subíamos as escadas. A bordo,
inclinei-me sobre a amurada do grande navio,
contemplando a multidão que se acotovelava no cais. Algum
tempo depois, soou um estrondoso apito e a embarcação
começou a se movimentar lentamente. A multidão lá
embaixo acenava para os viajantes; muitos choravam de
emoção por se separarem de pessoas queridas; a nosso lado,
alguém sorria por entre as lágrimas.
Logo tudo ficou para trás. A multidão foi ficando cada vez
menor até sumir de nossa vista; depois a cidade com seus
prédios e, por fim, só existia mar à nossa volta.
Instalados no camarote, iniciamos uma vida completamente
diferente. Confesso que, no início, tive dificuldade para me
adaptar. O balanço das ondas e do navio deixava-me quase
sempre com náuseas, sem vontade de sair do camarote ou de
fazer qualquer atividade. Aos poucos, todavia, o mal-estar foi
passando e comecei a aproveitar realmente a viagem.
ENQUANTO isso, NA FAZENDA, Ritinha atravessava momentos
bem difíceis. Sua gravidez logo começaria a dar sinais e ela
temia que a mãe e os demais percebessem; especialmente o
patrão, que iria querer saber o nome do pai da criança.
Embora a gravidez ainda não aparecesse, ela arrastava-se
pelos cantos, temendo que os demais notassem seu estado.
Só tinha algum descanso à noite, ao se recolher, quando se
permitia dar livre curso aos sentimentos e a mente divagava,
voando em busca do seu amado, através do pensamento. Sua
fixação por Guilherme era intensa; acreditava amá-lo com
loucura e sonhava com o momento em que ele voltaria para
seus braços.
POR OUTRO LADO, EU SOFRIA com a indiferença de meu
esposo. Ele cumpria suas obrigações conjugais, contudo me
tratava com desinteresse. Era educado, gentil, delicado, uma
boa companhia, tanto no período em que passamos no navio
quanto nos passeios, nas visitas aos museus, nas compras,
depois que chegamos a Lisboa. Como conhecia os países do
nosso roteiro e se sentia feliz por estar na Europa, era
sempre um excelente guia, alegre, divertido, fazendo
questão de mostrar-me tudo o que havia de belo e
interessante por onde passávamos. Era um companheiro
perfeito, mas só isso. Não existia amor por mim em seu
coração.
Tal situação me fazia sofrer, deixando-me realmente
enciumada, porque eu sabia que ele estava pensando na
escrava que ficara na fazenda. Especialmente quando estivemos na
França, em Paris, cidade que eu adorei e que ele também
apreciava bastante, onde permanecemos mais tempo. Não
raro, quando retomávamos ao hotel, no final do dia, ele se
sentava na pequena sacada para apreciar o movimento e, muitas
vezes, quando o tempo o permitia, o pôr do sol. Nesses
momentos, eu notava-lhe o olhar perdido no vazio e o
semblante que se abria num leve e fugaz sorriso, como se apenas
seu corpo permanecesse ali, mas o pensamento estivesse
longe. Naquele instante, eu sabia que ele estava pensando
em Ritinha, e isso me fazia roer de ciúme e desespero.
Na verdade, eu estava me ligando muito mais a ele do que
pretendia. Aqueles dias adoráveis em que passamos juntos
seriam inesquecíveis. Lisboa, Madri, Roma, e Paris de
maneira especial, quando passeávamos pelas margens do
Sena, no Bois de Bologne ou no Palais-Royal. Quando nos
sentávamos nos cafés ou percorríamos as magníficas lojas da
grande cidade eram momentos extremamente agradáveis.
Guilherme mostrava-se um acompanhante encantador,
cavalheiro, sedutor, e eu estava cada vez mais presa ao
seu fascínio. Sentia que meu amor aumentava sempre, e que
ele se tornara indispensável na minha vida, o que me fazia
sofrer ainda mais, sabendo que não era correspondida.
Atravessei noites em claro pensando numa maneira de
conquistá-lo definitivamente. Minha cabeça fervilhava,
inquieta e angustiada. Passei a controlar todos os seus passos,
temendo que encontrasse outra mulher mais interessante do
que eu. Quando ele estava calado, sentia-me incomodada e
desejava vasculhar-lhe a mente, até o ponto de não me
conter e perguntar:
— Em que está pensando, Guilherme?
Com um sorriso frio, que mostrava seu descontentamento,
ele respondia:
— Maria Eugênia! Não sou obrigado a dar-lhe conta do que
penso. Não basta exigir-me explicações sobre aonde vou,
com quem converso, o que fiz longe de você? Agora quer
desvendar também meus pensamentos?
Observando a insatisfação e o tédio em seu olhar, procurava
amenizar, temendo perdê-lo:
— Não, querido! Longe de mim querer controlar seus
pensamentos. Apenas notei seu olhar distante e julguei que
poderia estar com algum problema, e que, por delicadeza,
não
quisesse me incomodar.
Ao que ele respondia, já arrependido da sua reação:
— Desculpe-me, querida. Estou um pouco cansado hoje. Mas não
se preocupe. Não tenho problema algum, está tudo bem.
— Já que está cansado, poderíamos nos recolher mais cedo
hoje, deixando a ópera para outro dia.
— Como quiser. Concordo, porque realmente, para ir ao
teatro, é preciso estar-se com bastante disposição para
aproveitar o espetáculo.
Assim, naquela noite, nos recolhemos mais cedo para um
merecido repouso.
Todavia, as coisas começaram a se complicar cada vez mais.
Eu não mais me controlava, pois queria mantê-lo sempre à
meu lado e não suportava ficar longe dele.
Certo dia, porém, aconteceu algo que piorou a situação. Dias
antes eu estava tendo dificuldade para dormir. Guilherme
levara-me a um médico, indicado por Pierre e Marie
Legrand, um casal amigo que ele conhecia desde a época em
que estudava em Paris, e que às vezes nos acompanhava nos
passeios. O médico, doutor Maurice, prescrevera-me um
remédio que eu deveria tomar à noite, pouco antes de deitar.
Entretanto, mesmo com a ajuda do medicamento, nem
sempre eu conseguia adormecer.
Nessa noite em especial, passei por um cochilo e depois
acordei. Como não conseguisse voltar a dormir levantei-me
com cuidado, para não incomodar meu marido, e fui beber
um copo de água. Apesar de ser verão, a temperatura estava
fresca; e, vendo as luzes da cidade pela porta de vidro que se
abria para a sacadinha, para lá me dirigi. Abri a porta e o ar
da madrugada me fez bem. Sentei-me. A noite escura aos
poucos ia sendo substituída pela claridade de um novo dia.
Lentamente, as luzes da grande cidade foram-se apagando e
os primeiros movimentos começaram: as carroças levando
produtos para a feira, os empregados que saíam para
trabalhar, as carruagens com o ruído característico dos
cascos dos cavalos no atrito com as pedras da rua...
De repente, bocejei, dando-me conta de que estava com
sono. Contente, deixei a sacada, voltando para o leito.
Quando entrei no quarto, na penumbra, notei perfeitamente
alguém deitado ao lado de Guilherme. Era uma mulher.
Dormia também.
Indignada, comecei a gritar completamente enlouquecida:
— Guilherme, quem é essa mulher?
Ele despertou assustado, sem entender o que estava
acontecendo:
— O que houve? Por que está gritando desse jeito? Mas eu
avancei para cima dele, agredindo-o:
— Canalha! Quem é essa mulher que estava dormindo com
você?
— Calma, Maria Eugênia! Do que está falando? A que
mulher se refere?
— Aquela que está aqui!
— Onde? - indagou surpreso, olhando para todos os lados.
Naquele instante, olhei para o leito e dei-me conta de que a
mulher sumira.
— Não sei! Não sei! Ela desapareceu. Mas vou procurá-la, e
não descansarei enquanto não a encontrar - respondi
perplexa ao perceber que ela já não estava mais ali.
Corri para o quarto de vestir, para o banheiro, procurei atrás
das cortinas, embaixo da cama. Abri a porta da suíte, exa-
minando o corredor. Nada. Ela tinha se evaporado.
Entrementes, Guilherme tinha se levantado, tentando
entender a situação. Acompanhava-me as idas-e-vindas,
passando as mãos pelos cabelos, espantado. Ao ver-me
despencar na poltrona, decepcionada e já mais calma,
indagou:
— Maria Eugênia, agora que está mais tranqüila, pode me
explicar direito o que está acontecendo?
Em lágrimas, com ar de frustração, comecei a falar:
— Também não sei explicar o que houve aqui.
— Muito bem. Então, vamos começar pelo princípio. Pelo
que entendi, você não estava na cama?
— Isso mesmo. Perdi o sono e fui para a sacada tomar um
pouco de ar.
— E depois?
— Fiquei lá algum tempo. Em seguida, notei que estava
com sono e resolvi voltar ao quarto para dormir.
— E o que aconteceu depois?
— Fico arrepiada só de lembrar. Eu vi uma mulher no leito!
Ao seu lado!
— Impossível, querida! Você deve ter dormido na sacada e
sonhou! - exclamou Guilherme, rindo.
— Não, Guilherme! Eu realmente a vi. Era morena e tinha
cabelos escuros. Como o quarto estivesse na penumbra, não
deu para ver detalhes.
Ele levantou-se, vindo a meu encontro.
— Então foi isso! Deve ter confundido com as cobertas, com
as sombras do aposento. Vem, vamos dormir. Ainda é muito
cedo.
Não desejando contradizê-lo e incapaz de provar o que tinha
visto, já que não encontrara ninguém, acabei por concordar
com ele:
— Talvez tenha razão. O melhor é voltar a dormir. Quando
acordar, pensarei no caso.
Guilherme levou-me para o leito, ajeitou as cobertas e
depois se deitou também, respirando mais aliviado. Antes de
dez minutos, pude ouvir-lhe o ressonar. Havia dormido de
novo. E eu não conseguia pegar no sono. As imagens
voltavam-me à mente. Lembrando-me delas, uma forte
intuição segredava-me que aquela mulher era Maria Rita.
Tinha absoluta certeza de que era ela a mulher que vira ao
lado de meu marido na cama. No entanto, como explicar tal
fato? Por isso, nada dissera a Guilherme. Ele me julgaria
louca!
Quando consegui adormecer, o sol já tinha surgido no céu
para sua trajetória diária, expulsando as trevas da noite.
12 – Enfrentando crises
Abri os olhos e olhei em torno; num primeiro momento,
tive dificuldade em reconhecer o ambiente. Em seguida, vi
Guilherme sentado numa poltrona, distraído na leitura de
um jornal.
Tentei levantar-me, mas não consegui. Sentia-me cansada e
sem forças. Ao meu movimento, ele fechou o jornal.
— Como está, querida? - perguntou solícito, aproximando-
se do leito.
— Sem ânimo para me levantar.
— Então, vou pedir algo para você comer. Precisa se
alimentar.
Tocou a campainha e, logo, bateram à porta. Guilherme
explicou ao criado o que desejava e, quinze minutos depois,
ele retorna trazendo uma bandeja com suco, chá, biscoitos,
croissants, manteiga e geléia de damasco.
Sentada no leito, apoiada nos travesseiros, alimentei-me
frugalmente. Depois, mais animada, levantei-me, tomei
banho e cuidei da toalete, procurando mostrar que estava
bem. Notando-me a nova disposição, Guilherme atreveu-se
a tocar no assunto:
— Lembra-se do que aconteceu esta noite?
Fiz um gesto afirmativo com a cabeça.
— Perguntei ao pessoal que estava de serviço, mas ninguém
viu uma mulher estranha no prédio do hotel. Talvez você
tenha sonhado - comentou um tanto contrafeito.
Resolvida a colocar uma pedra sobre o assunto, considerei:
— Nem deveria ter-se dado ao trabalho de perguntar,
querido. Com certeza você tem razão. Devo ter adormecido
na cadeira da sacada e sonhei. Quero pedir-lhe desculpas
pela
confusão que fiz esta noite. Você estava dormindo e eu o
acordei aos gritos. Perdoe-me.
Guilherme sorriu compreensivo e aliviado:
— Não precisa pedir-me perdão, Maria Eugênia. Todavia,
confesso-lhe que fiquei assustado. Ainda bem que tudo
passou.
— Graças a Deus!
— No entanto, tenho uma sugestão a fazer, querida. Julgo
que devemos retornar ao médico. Você não tem dormido
bem, apesar da medicação, e as dores de cabeça se tornaram
mais
freqüentes.
— Se julga necessário, aceito - concordei.
— Muito bem. Enquanto você dormia, procurei me infor-
mar. O médico tem horário para esta tarde mesmo, às quatro
horas. Tomei a liberdade de marcar uma consulta - explicou,
satisfeito.
No horário combinado, tomamos uma carruagem de aluguel
e nos dirigimos ao consultório médico. Dr. Maurice já nos
aguardava. O último cliente havia saído e ele teria todo o
tempo para nos atender, comentou com largo sorriso.
Fez algumas perguntas de praxe sobre minha saúde orgânica,
que respondi, e depois indagou:
— E então, o que está acontecendo madame Maria Eugênia?
Relatei a ele a ocorrência daquela madrugada, sem omitir
nada.
— Como era essa pessoa? Madame reconheceu a mulher
que, supostamente, teria entrado no quarto de hotel?
— Penso tê-la reconhecido, sim.
— Madame estava sonhando, talvez?
Pensei um pouco. Depois, respondi consciente e resoluta:
— Não. Mantinha-me desperta. Em certo momento,
comecei a sentir sono e fiquei satisfeita, porque antes não
havia conseguido dormir. Então, levantei-me da cadeira,
deixei a sacada e entrei no quarto. Nesse momento, eu vi
essa mulher deitada ao lado de meu marido. Ela também
estava dormindo.
— E depois? O que aconteceu?
— Pus-me a gritar, indignada, ao ver uma mulher no meu
leito junto de meu esposo! Guilherme acordou assustado,
interpelando-me sobre a razão dos meus gritos.
Calei-me. O médico indagou:
— E o que aconteceu depois?
— Depois... quando me dei conta, a mulher havia
desaparecido - admiti, constrangida.
Guilherme, que ouvia a conversa calado até esse momento,
interferiu:
— Querida, lembra-se de que depois, mais calma, você
concordou comigo que tudo não passara de um sonho?
— Concordei, é verdade, para satisfazê-lo. Entretanto, não
creio que tenha sido um sonho, Guilherme.
O médico observava-me atentamente. Fez algumas ano-
tações e depois disse:
— Parece-me que, em virtude de madame Maria Eugênia
estar tendo dificuldades para adormecer, isso lhe tem
causado algumas perturbações. Vou prescrever-lhe outra
medicação que, acredito, resolverá o problema. Qualquer
alteração, não deixe de comunicar-me, monsieur Guilherme.
Pegando o bloco, rapidamente fez a receita, que entregou ao
meu esposo. Despedimo-nos.
— Passar bem, madame.
Antes de voltar ao hotel, fomos a uma farmácia para aviar a
receita. O dia estava tão bonito e agradável que meu marido
me convidou para dar um passeio de carruagem. Como
estivesse me sentindo bem, aceitei. Precisava mesmo
espairecer as idéias.
Rodamos pela bela cidade por mais de uma hora. Depois,
paramos numa típica e simpática cafeteria da cidade. Sentamo-nos
numa mesinha de calçada e tomamos um chá, enquanto
apreciávamos o movimento.
Quando retornamos ao hotel, eu me sentia ótima. Esquecera
por completo o que tinha acontecido na noite anterior. Ao
nos recolhermos, Guilherme trouxe-me um copo com água
e o remédio que o médico havia prescrito.
Satisfeita, adormeci com facilidade, mergulhando em sono
profundo. Lá pelas quatro horas da madrugada, acordei com
a sensação de uma presença estranha no aposento. Abri os
olhos e olhei em torno. No canto direito do quarto, na
parede que dava para a sacadinha, eu a vi: estava de pé,
olhando fixamente para o leito onde dormíamos. Levei um
tremendo susto e pus-me a gritar:
— Ah! Socorro! Socorro!
Guilherme deu um pulo e sentou-se na cama, assustado.
— O que houve? O que está acontecendo?
— É ela! É ela! Está aqui de novo!
— Onde, querida? Não estou vendo ninguém. É impressão
sua.
— Não é não. Ela estava ali, naquele canto, de pé, nos
olhando.
— Impossível, Maria Eugênia. Ninguém entraria aqui. A
porta está trancada.
Mas eu chorava convulsivamente, com a cabeça entre as
mãos, gritando:
— Ela quer me enlouquecer. Quer acabar com a minha vida.
Não vou permitir que isso aconteça...
Guilherme agarrou-me pelos ombros, sacudindo-me,
procurando fazer-me voltar ao normal:
— Quem? Quem está tentando acabar com sua vida? Fale!
Naquele momento, caí em mim; não poderia dizer o nome
da mulher. Mais calma, respondi:
— Não sei. Só sei que é uma mulher.
— Você afirmou ao médico tê-la reconhecido. Exijo que me
diga: Quem é ela?
— Não sei, Guilherme! Parece-me conhecê-la de algum
lugar, mas não sei quem é.
— Mostre-me onde ela estava - insistia ele.
Com o dedo em riste, apontei para o canto direito do
aposento, temerosa, mas a mulher havia desaparecido.
— Não está mais ali. Foi embora.
Guilherme largou-me, respirando fundo. Passou a mão pelos
cabelos revoltos, depois sentou-se na poltrona, perplexo.
— O que está acontecendo com você, Maria Eugênia? -
perguntou irritado.
Todavia, ao ver-me encolhida na cama, de cabeça baixa,
olhos parados no vazio, ele procurou se acalmar, penalizado
com meu estado. Levantou-se, pegou um copo com água e
colocou-o em minhas mãos:
— Beba, vai lhe fazer bem.
Levei o copo aos lábios e tomei um gole, voltando à mesma
posição. Guilherme ajudou-me a deitar, cobriu-me,
enquanto eu continuava com os olhos vítreos, distantes.
— Procure dormir, Maria Eugênia.
Sentou-se na poltrona e ficou velando por mim, esperando
que eu adormecesse. Preocupado, temia nova crise.
Ao despertar na manhã seguinte, vi que Guilherme tinha
passado a noite na poltrona. Levantei-me e cheguei perto
dele, tocando-o com a mão.
— Guilherme, vá para a cama. Você está mal acomodado.
Ele abriu os olhos e pulou da poltrona, assustado. Ao ver-me
a fisionomia serena, relaxou.
— O que houve?
— Nada, querido. Estou bem. Vá para a cama.
Ele obedeceu prontamente, deitando-se e voltando a
dormir. Uma hora depois, acordou e levantou-se. Fez a
higiene, arrumou-se e descemos para tomar o café da
manhã. Ele não tocou no assunto.
Convidou-me para sair, mas eu estava sonolenta pelo efeito
do medicamento e não aceitei. Retornamos para o quarto,
deitei no leito e voltei a dormir.
Guilherme escreveu um bilhete, pedindo a um garoto de
recados do hotel que o entregasse no endereço indicado.
Quando o portador retornou com a resposta, ele solicitou
que uma camareira ficasse no quarto cuidando de mim e
saiu, alegando urgência de resolver alguns assuntos.
Dirigiu-se a um café bastante conhecido aonde já fôramos
algumas vezes. Entrou, sentou-se e ficou aguardando. Pouco
depois, nossos amigos chegaram. O casal relanceou o olhar
pelo recinto até descobri-lo numa pequena e discreta mesa
de canto. Com um enorme sorriso, encaminharam-se para
lá.
Após os cumprimentos, sentaram-se, e Pierre perguntou:
— Já pediu alguma coisa, Guilherme?
— Não. Esperava os amigos. O que vamos tomar?
— Quero um café - disse Marie.
— E eu, uma bebida - escolheu Pierre.
— Eu o acompanho, Pierre.
Após os pedidos ao garçom, Guilherme fitou os amigos,
satisfeito:
— Obrigado por aceitarem o convite para este encontro.
Precisava mesmo conversar com alguém. Desabafar.
Preocupados, ambos olharam para Guilherme, notando seu
abatimento.
— Tem a ver com Maria Eugênia? - indagou Pierre.
— Sim, meus amigos. Ainda ontem, retornamos ao consul-
tório do doutor Maurice. A medicação foi modificada e
minha esposa conseguiu adormecer.
Fez uma pausa, diante dos ouvintes interessados, depois
prosseguiu:
— Maria Eugênia acordou por volta das quatro horas da
madrugada, afirmando ter visto novamente a tal mulher!
— No leito? - indagou Marie, perplexa.
— Não. Desta feita, estava de pé, parada num canto do
aposento, nos observando. Não sei mais o que fazer! Estou
tenso e preocupado.
— Não seria melhor avisar nosso amigo Maurice? – sugeriu
Pierre.
— Sem dúvida. Mas como encontrá-lo agora? Estamos quase
à hora do almoço - disse Guilherme, olhando o relógio de
algibeira.
— Não se inquiete por isso. Sei onde encontrá-lo – afirmou
o amigo.
Chamando um desses garotos que vendiam balas nas ruas, e que
entrara oferecendo seus doces aos fregueses do bar, indagou:
— Sabe onde fica o Hospital Saint Paul?
— Oui, monsieur. É aqui perto.
— Pois bem. Entregue ao doutor Maurice Bournier este
bilhete - e passou às mãos do garoto um papel, afirmando:
— Aqui está uma moeda. Se cumprir bem sua missão, no
retorno receberá outra moeda como esta.
— Oui, monsieur. E se o cavalheiro lá não estiver?
— Você receberá o combinado do mesmo jeito. De
qualquer modo, retorne com a resposta. Vá rápido!
O rosto do rapazinho se iluminou. Saiu correndo e, pela
janela, eles o viram dobrando a esquina. Quinze minutos
depois, entrou no estabelecimento o próprio médico, que se
acercou da mesa, cumprimentando-os com familiaridade.
— Recebi seu bilhete, Pierre, e aqui estou. Quanto ao
garoto, dei-lhe a moeda que prometeu e dispensei-o. Saiu
todo feliz, voltando a oferecer suas guloseimas.
— Agradeço-lhe, amigo, a presteza em atender-me a
solicitação. Guilherme está preocupado.
— Ah! O que se passa? Vejo que sua esposa não está pre-
sente. Ela não está bem? - indagou, dirigindo-se a
Guilherme.
— De fato, doutor Maurice.
— Chame-me Maurice, apenas.
— Sim. Maria Eugênia ontem à noite conseguiu adormecer
com facilidade. Porém, acordou pela madrugada vendo a
mesma mulher. Estou tenso, aflito.
O médico balançou a cabeça, concordando:
— Compreendo. Todavia, a medicação ainda não teve
tempo de agir.
— Qual é o problema de minha esposa, Maurice? Pode dizer
a verdade.
O médico pareceu pensar por alguns instantes, depois
explicou:
— Já que me pede, serei bem franco. Ainda não tenho o
diagnóstico preciso de sua esposa, caro Guilherme. Parece-
me que se trata de algum problema mental. E, nesses casos, a
ciência
ainda dá os primeiros passos. Não se conhecem com
precisão as razões desses comportamentos, nem existe
medicação verdadeiramente adequada ao tratamento.
— E o que me sugere?
— Bem. Talvez o estado emocional de madame Maria
Eugênia esteja abalado por razões que desconhecemos. Ela é
muito nova e inexperiente. Provavelmente, o fato de ter
saído pela primeira vez do seu ambiente natural, deixado a
família, especialmente a mãe; o próprio casamento
pode ter mexido com suas emoções, gerando um
desequilíbrio. Tantos fatores podem influir!
— Volto a perguntar: o que me sugere?
— Creio que o melhor seria levá-la de volta para casa.
Perplexo, Guilherme exclamou decepcionado:
— Mas fizemos tantos planos para essa viagem! Voltar para
nosso país, quando mal chegamos à Europa?
— Sim, compreendo sua frustração, Guilherme. Contudo,
volto a repetir. Talvez o melhor para sua esposa seja retornar
ao Brasil, ao próprio ambiente, aos familiares e às pessoas
conhecidas. Quando perguntei, você mesmo afirmou que,
antes, sua esposa jamais apresentara problema semelhante.
— Pelo menos, não que eu saiba.
— Então... Quem sabe não será melhor, para a saúde mental
dela, voltar ao Brasil? Pense nisso!
Tomando um último gole de vinho, o médico disse:
— Bem, agora devo retirar-me. Tenho uma cirurgia logo
após o almoço e meu tempo é curto.
— Agradeço-lhe pela ajuda, Maurice - disse Guilherme.
— Estou à sua disposição. Se precisar de alguma coisa, avise-
me, seja a hora que for. Irei até o hotel se necessário.
Depois que o médico saiu, Guilherme ficou pensativo e
angustiado.
— O que decide? - indagou Pierre.
— Ainda não sei, meu amigo. Vou pensar. Tenho esperança
de que o problema não se repetirá.
— E se voltar?
— Nesse caso, talvez, lamentavelmente, eu tenha de deixar
a Europa. Não me conformo! Depois de tantos planos, de
tantos gastos, não poder aproveitar a nossa viagem de lua de
mel é um absurdo!
— É verdade. Também me sinto frustrado. Esperava que eu
pudesse aproveitar melhor a companhia do amigo que não
encontrava havia tanto tempo - concordou Pierre.
Marie, que se mantivera calada e pensativa o tempo todo,
mais sensível e vendo o lado feminino, justificou:
— No entanto, Maria Eugênia não está assim por vontade
própria. E apenas uma mocinha insegura e que se sente
desamparada. Sinto que algo de muito sério a está abalando
intimamente.
Ela deve estar sofrendo bastante.
— Tem razão, Marie - concordou o amigo brasileiro.
Em seguida, Guilherme levantou-se alegando urgência em
voltar, pois tinha ficado tempo demais longe da esposa.
Agradeceu ainda uma vez a atenção dos amigos, despediu-se
e voltou ao hotel.
Entrando no quarto, perguntou à criada:
— E então?
— Tudo bem, monsieur. Madame ainda não acordou.
Tirando da algibeira uma moeda, Guilherme entregou-a à
camareira, agradecendo o serviço prestado. A moça
inclinou-se numa mesura:
— Se precisar de meus préstimos, monsieur, estarei à sua
disposição. Basta chamar-me. Meu nome é Juliane.
— Merci, Juliane.
Depois, Guilherme sentou-se na poltrona, abriu o jornal e
mergulhou na leitura.
13 – Novas informações
Guilherme procurou ajeitar-se o melhor que pôde na
poltrona, puxando um tamborete no qual apoiou os pés.
Com o jornal aberto, as notícias passavam pelos seus olhos
sem que conseguisse interessar-se por nenhuma delas. O
pensamento vagava em torno dos últimos acontecimentos, e
pôs-se a refletir sobre os estranhos fenômenos que cercavam
o comportamento da esposa.
Interessante que, analisando a situação começou a relacionar
essas ocorrências, que chamava de "alucinações" da esposa,
com o que se passava consigo mesmo.
Guilherme deu-se conta de que, na primeira noite,
adormecera lembrando-se de Rita, escrava com quem
mantivera um relacionamento mais íntimo. Agora, longe da
terra natal, sentia intensa saudade dela. A bela mulata entrara
no seu sangue; passara com ela momentos inesquecíveis à
beira do riacho, e esses momentos lhe voltavam sempre à
memória. Sentia falta da sua presença, do seu cheiro, do
toque da sua pele morena e macia, dos seus beijos. Como
uma obsessão, a imagem de Rita o seguia por toda parte.
Tentava ser um marido amoroso e dedicado para Maria
Eugênia, porém a diferença entre as duas era grande, e, na
comparação, sua esposa levava desvantagem. Maria Eugênia,
pouco mais nova do que Rita, era insossa e sem expressão,
conquanto tivesse excelentes qualidades: era bonita, bem-
educada, elegante, refinada, sabia conversar e como
comportar-se em qualquer ambiente; pelos seus dotes, atraía
os olhares em qualquer lugar onde estivesse e, o mais
importante, ela era muito rica.
Por outro lado, Rita havia nascido sob a sina da escravidão.
Apesar da condição social não lhe dar nenhum direito,
recebera certa educação junto com a sinhazinha e se vestia
razoavelmente bem graças aos trajes que Maria Eugênia lhe
dava. Possuía, no entanto, uma chama, uma vibração
interior, que o conquistara à primeira vista. Tinha um andar
envolvente, o corpo atraente, um olhar fascinante e sedutor
que o encantaram, deixando-o vencido.
Guilherme lembrava-se de que, justamente naquela noite
em que ocorrera a primeira alucinação, ele havia sonhado
com Rita. Feliz por reencontrá-la, abraçara e beijara a
escrava com ardor, passando momentos de intensa
felicidade com ela. Curioso que, no seu sonho, eles estavam
juntos no leito da suíte do hotel! Como poderia ser isso?
Embora Maria Eugênia não houvesse notado, ele se assustara
bastante ao acordar, não tanto pelos gritos dela, mas porque
guardava a lembrança nítida do sonho, e se sentia
intimamente culpado. Enquanto a esposa procurava a
mulher pelo quarto, ele refletia na estranha coincidência que
ligava os dois fatos. Tudo muito estranho e inusitado! Como
explicar isso? Teria realmente acontecido o encontro? O
mais interessante, e que o deixara verdadeiramente
perplexo, é que o sonho lhe parecera tão real como se
tivesse acabado de acontecer! Impossível! No entanto, tinha
ainda a sensação do toque da pele dela, do seu cheiro, do
calor da sua respiração no pescoço dele.
Na segunda noite, quando a esposa vira a "mulher" no canto
do aposento, ele não se recordava de ter sonhado com a
escrava, mas, intuitivamente, sabia que Maria Eugênia estava
vendo Rita.
Depois, a esposa disse que havia reconhecido a mulher
misteriosa, deixando-o assustado. Inclusive, em prantos,
afirmara que essa "mulher" estava querendo destruir-lhe a
vida, mas que ela não permitiria. Ele ficou pasmo. Todavia,
que motivo teria Maria Eugênia para temer Rita, de quem
sempre fora amiga e companheira? A não ser que ela
soubesse dos encontros que ele mantivera com a escrava, à
época. Então, estaria explicado. Contudo, tinha certeza
absoluta de que a esposa ignorava tal fato.
Nesse momento, o jornal caiu-lhe das mãos, e ele levou um
susto. Ao mesmo tempo, eu me espreguicei no leito e
Guilherme se levantou da poltrona, aproximando-se de
mim.
— Como está, Maria Eugênia?
— Com fome.
— Então, vamos almoçar. Passam das duas da tarde. Aonde
quer ir? Não longe daqui há um excelente restaurante.
— Se não se importa, Guilherme, gostaria de almoçar aqui
mesmo, no restaurante do hotel - sugeri, fitando-o com
meiguice:
— Para mim, está bem. Depois, poderíamos sair para um
passeio.
— Ótima idéia. É só o tempo necessário para me preparar.
Chamei a camareira para me ajudar e, quarenta minutos
depois, descemos para o restaurante, que, àquele horário, já
não estava tão concorrido. Almoçamos e saímos de
carruagem pelas ruas da grande cidade. Felizmente, o tempo
estava ótimo. Temperatura amena, céu azul sem nuvens.
Passeamos pelo Bois de Bologne aproveitando a bela tarde de
sol. Ali era um local que congregava a sociedade parisiense
para conversar, namorar ou passear. A pé, a cavalo ou de
carruagem, era um programa agradável e simpático.
Por coincidência, no meio do povo vimos nossos amigos
Marie e Pierre. Abraçamo-nos com alegria. Sempre é bom
depararmos com pessoas conhecidas no meio de estranhos.
Marie e eu caminhamos juntas a trocar idéias, enquanto
Guilherme conversava com Pierre, um pouco atrás. A noite,
como eu me sentisse bem, fomos ao teatro com os amigos e,
depois, jantamos juntos.
A companhia de Marie e Pierre era agradável e nos diverti-
mos bastante. Voltamos ao hotel bem tarde; exausta e
sonolenta, caí no leito e adormeci incontinenti.
Acordei de madrugada. Pela porta da sacada, a claridade da
lua invadia o aposento. Nisso, eu a vi novamente. Ela abriu a
porta de vidro e entrou no quarto, mantendo os olhos fixos
em Guilherme, sem parecer notar minha presença. Passou
por mim e dirigiu-se para perto de meu marido.
Estupefata, comecei a gritar de pavor. Guilherme despertou
assustado, e o vulto da mulher se desvaneceu à minha
frente.
— O que houve? Nova alucinação? - indagou ele.
— De novo, ela, sempre ela. Quer me enlouquecer!
— O que aconteceu desta vez, Maria Eugênia?
Em prantos, contei a ele como vira a mulher.
— Você a reconheceu? - ele perguntou, com voz estranha,
como se receoso de alguma coisa.
Balancei a cabeça negativamente.
— Não.
— Não?... Mas ainda ontem você afirmou que conhecia a tal
mulher!
— Não me atormente, Guilherme! Sim, sei que a conheço,
mas não me lembro de onde.
— Desculpe-me, querida. Também estou nervoso com tudo
isso. Venha, vamos deitar. Por certo ela não voltará a
atormentá-la.
De repente, olhei para a porta de vidro e me lembrei:
— Guilherme! Veja, a porta de vidro está aberta!
— E daí, minha querida? Muitas vezes a deixamos aberta!
— Todavia, ontem, antes de me deitar, lembro-me de que
começou a ventar e fechei a porta. Então, ela esteve aqui de
verdade! Até abriu a porta! Esta é a prova de que não
estou tendo alucinações!
Guilherme pareceu-me assustado; depois, readquirindo seu
equilíbrio, falou-me com serenidade:
— Impossível querida. Tudo deve ter uma explicação lógica.
Já é muito tarde e precisamos dormir. Depois conversaremos
sobre o assunto, está bem?
Por vários dias, a situação se repetiu, deixando-me ainda
mais abalada emocionalmente. A tal ponto, que eu não
queria mais dormir para não ser obrigada a vê-la.
Sem saber o que fazer, também bastante cansado e insone,
Guilherme deixou-me sob os cuidados da camareira e
procurou o médico, que repetiu a sugestão:
— Volto a afirmar, Guilherme, que o melhor para sua
esposa será o retorno às terras brasileiras. Julgo que o
contato de madame Maria Eugênia com os familiares e
o ambiente doméstico que lhe é natural reagirá
beneficamente sobre sua personalidade nervosa.
Despedindo-se do médico, ainda não completamente
convencido, Guilherme foi procurar o amigo Pierre.
Encontrou-o no escritório de engenharia que dividia com
outro profissional. Acabara de atender a um cliente e ficou
bastante contente em vê-lo.
— Que bons ventos o trazem, meu caro Guilherme?
— Peço-lhe desculpas por vir procurá-lo em seu ambiente
de trabalho. Não quero ser inconveniente.
— De maneira alguma. Hoje não tenho mais compromissos.
Estava mesmo para sair e tomar um café. Aceita?
— Com prazer.
— Então vamos. Aqui perto há um lugarzinho calmo e
agradável.
Caminharam pelas ruas até a cafeteria. A hora era excelente.
No local, praticamente vazio, sentaram-se a uma mesinha
perto da janela, da qual podiam ver o movimento da rua.
Pediram dois cafés e, enquanto aguardavam, ficaram
conversando sobre banalidades.
O garçom trouxe o pedido e afastou-se. Levando aos lábios a
bebida fumegante, Pierre fitava o amigo com preocupação.
Em seguida, comentou:
— Sua aparência está péssima.
— É Maria Eugênia. Tudo continua como antes, embora ela
esteja tomando regularmente a medicação receitada pelo
médico. Estou a ponto de enlouquecer!
Fez uma pausa, pensativo, mexendo o café com a
colherinha, sem parar. Sentia que precisava se abrir
urgentemente com alguém ou acabaria por explodir. Pierre,
com delicadeza, considerou:
— Acho que seu café já está bem mexido. Guilherme, meu
caro, sinto que você tem outros problemas. Sabe que sou seu
amigo de longa data. Se puder ser útil de alguma maneira,
estou à sua disposição.
Decidindo-se, afinal, Guilherme confessou:
— Tem razão, meu amigo. O problema é muito mais grave
do que parece à primeira vista. Ouça-me.
E Guilherme passou a relatar, em detalhes, os
acontecimentos dos últimos dias e as reações da esposa. Fez
uma pausa, respirou fundo e continuou:
— Mas essa é apenas uma parte da história. A outra parte
tem relação com a época em que Maria Eugênia e eu éramos
noivos.
Respirou fundo, como se estivesse procurando as palavras, e
depois prosseguiu:
— Nosso compromisso foi firmado por um acordo entre as
famílias.
Deu de ombros e prosseguiu com expressão melancólica:
— Que fazer? Aceitei! Naquela época, não tinha interesse
por ninguém, e isso resolveria o problema financeiro da
minha família. Só que, no mesmo dia do nosso noivado,
aconteceu um fato que mudou minha vida: conheci uma
escrava da casa, que servia Maria Eugênia. Uma bela moça,
que me encantou à primeira vista, e percebi que ela também
se interessou por mim. Alguns dias depois, aproximando-me
da fazenda, ainda na estrada, eu a vi se encaminhando
para o riacho. Como ninguém da fazenda ainda me vira,
pois eu havia parado longe e fora do ângulo de visão de
quem estivesse na casa-grande, resolvi segui-la.
Parou de falar, tomou um gole de café e continuou com
expressão enlevada, como se fitasse um ponto ao longe:
— Nessa tarde deu-se início o nosso relacionamento.
Depois, todos os dias nós nos encontrávamos no mesmo
local e passávamos momentos muito felizes juntos. Ao
contrário do que possa parecer, afirmo-lhe que não agi como
um canalha. Desesperado, na véspera do casamento procurei
até uma desculpa para romper o compromisso com minha
noiva, mas não foi possível.
— Imagino que se sinta culpado por isso, meu caro
Guilherme. Todavia, esses relacionamentos são normais
numa sociedade como a brasileira, em que existem senhores
e escravos. Até onde sei, fatos como esses são comuns e
ninguém se preocupa com eles! - considerou Pierre.
— Quanto à sociedade, sim, tem razão. Mas você se engana,
Pierre, em relação a esse caso. As coisas não são tão simples
assim. Vou contar-lhe o desdobramento dessa situação e
poderá ajuizar melhor. A noite em que minha esposa teve a
alucinação pela primeira vez...
Guilherme relatou ao amigo Pierre tudo o que acontecera a
respeito das alucinações, das coincidências sobre seus
sonhos e a presença da tal mulher. Enfim, da sua certeza de
que a imagem que eu vira não era outra senão a de Rita, a
escrava.
— Será possível?... - indagou perplexo.
— Tudo me leva a crer que sim.
— Mas, como?...
— Esta é a questão. Não sei.
Pierre pensou um pouco, depois sugeriu:
— Quem sabe Marie poderia nos ajudar?
— Marie? Sua esposa?!...
— Sim, ela mesma! Eu sou meio cético em relação a essas
coisas, sabe disso, mas Marie tem mais contato com fatos do
gênero, pois tem estudado o assunto. Se expuser a ela a
situação...
— Por mim, tudo bem. Quando pode ser?
— Agora mesmo. Podemos ir até minha casa, aproveitando
que você está desacompanhado.
Guilherme pediu a nota ao garçom, pagou, e se dirigiram à
moradia de Pierre. Localizada em agradável bairro não muito
distante do centro da cidade, cercada por um belo jardim, a
casa era simpática e agradável. Entretida em cuidar das
plantas no jardim, Marie ficou satisfeita ao ver o esposo
chegar com o amigo brasileiro.
— Guilherme, seja bem-vindo! Por que não trouxe Maria
Eugênia?
Pierre adiantou-se, explicando:
— Precisamos conversar com você sem a presença de Maria
Eugênia, minha querida. Logo vai entender. Vamos entrar e
nos acomodarmos.
Marie percebeu que era uma situação especial e calou-se.
Logo depois, sentados confortavelmente na sala de visitas,
Pierre sugeriu:
— Guilherme, conte a Marie o que me disse. Pode ser
franco, meu amigo. O que disser morrerá aqui.
Guilherme tomou fôlego e começou a falar, um pouco
constrangido a princípio, repetindo tudo o que já relatara a
Pierre. Quando acabou, a jovem senhora estava perplexa.
Como a esposa permanecesse calada, Pierre indagou fazendo
um gesto com as mãos:
— E daí? O que pensa sobre esses fatos, querida?
Lentamente, com extremo cuidado e delicadeza, ela
confirmou:
— Julgo que você pode estar com a razão, Guilherme. Essa
mulher pode ser a escrava Rita.
— Mas isso é uma loucura, Marie! Também pensei nessa
possibilidade, mas o que a leva a achar que isso possa ter um
fundo de verdade? - considerou Guilherme.
— Porque tenho testemunhado outros fatos semelhantes.
Há alguns anos, venho estudando esses fenômenos. A partir
de alguns sonhos que eu tive - e que depois se confirmaram,
como se houvessem realmente acontecido -, passei a me
interessar pelo assunto. Por coincidência, algumas pessoas
relataram-me ocorrências semelhantes, o que fez com que
eu chegasse à conclusão de que, de alguma forma, isso
existe, é um fato. É como se, ao dormir, pudéssemos gozar
de uma outra vida, realizar atividades, passear, visitar
pessoas, e muito mais.
— Será possível? - disse Guilherme.
— Não digo que é possível. Tenho convicção absoluta do
que afirmo. Aliás, eu não disse nenhuma novidade. Sócrates
e Platão, que viveram cerca de quatrocentos anos antes de
Cristo, já acreditavam nisso - respondeu Marie com
gravidade e firmeza.
— Estou absolutamente pasmo! Mas, tudo bem. Tudo bem.
Suponhamos que possa ser verdade. Diga-me, o que leva
esses sonhos a acontecerem? Porque durante minha
existência
já tive uma infinidade de outros sonhos e nada me pareceu
tão "real" assim!
— Exato. Cheguei à conclusão de que o que determina esse
tipo de sonho "real" são nossos interesses.
— Como assim? Explique-se melhor, Marie.
— Você não afirmou que estava sentindo falta da escrava?
— Sim. Lamento confessar, mas é verdade.
— Fique tranqüilo. Ninguém está aqui para julgá-lo, meu
amigo. Certamente, ela também sentia falta de você. Tanto é
que foi ela que o procurou aqui, num outro país, distante do
Brasil.
— Mas tão longe!... E como ela teria me encontrado, aqui,
em Paris? A distância não interfere?
— Aparentemente, não. Afirmo mais: ela o teria encontrado
em qualquer lugar do mundo. Parece que o que conta nesses
casos é o sentimento, é o desejo intenso direcionado para
alguma coisa ou alguém.
Guilherme olhava fixamente para Marie. Parecia que a estava
vendo pela primeira vez. Aquela jovem francesa que sempre
lhe parecera tão comum, como tantas jovens da sua idade,
mostrava agora uma inteligência que ele estava longe de
suspeitar, além de cultura, seriedade, lucidez. Era uma
personalidade instigante.
— Marie, como pode ter tanta certeza desses fatos? – voltou
Guilherme a questionar.
— Como já expliquei, pelo estudo de vários casos. E lhe digo
mais, Guilherme. Pode acontecer de duas pessoas, que estão
em lugares distantes, terem sonhos absolutamente idênticos
e, ao acordar, se lembrarem desse fato. Chegam a falar sobre
detalhes do lugar, das pessoas, do assunto tratado, que
ninguém mais poderia conhecer, a não ser que tivesse
estado realmente lá. Tenho tudo anotado e, se você desejar,
poderei lhe emprestar esse material.
— Extraordinário! Então, duas pessoas que se amam podem
estar juntas em qualquer lugar! Gostaria de poder ter a sua
certeza, Marie - disse com sinceridade.
— Eu o compreendo, Guilherme. Você não é obrigado a
partilhar das minhas convicções. Apenas lhe contei o
resultado de minhas pesquisas. Todavia, eu lhe asseguro,
meu caro, que é tudo muito verdadeiro. E digo mais: não
apenas as pessoas que se amam podem encontrar-se, mas
também as que se odeiam.
— Verdade?
— Sim, sem dúvida, porque o motivo é o mesmo: o
sentimento. Tudo isso pode ser provado. Existem casos,
inclusive, em que a pessoa, ao acordar, vê a prova do seu
sonho, seja uma flor, um objeto qualquer, um detalhe
comprovando que tudo o que ela sonhou é verdade, que
aconteceu de fato.
Nesse momento, atônito, Guilherme lembrou-se do detalhe
da porta.
— Entendo o que quer dizer. Comigo aconteceu algo
semelhante. Certa madrugada, Maria Eugênia viu a mulher
misteriosa entrar pela porta de vidro que dá para a nossa
sacada. Depois, quando acordamos, a porta estava aberta. O
curioso é que minha esposa lembrou-se, com toda a certeza,
de que havia fechado a porta antes de deitar, em virtude de
estar ventando bastante.
— Percebe como detalhes são importantes? - afirmou Marie,
satisfeita pelo fato que comprovava suas pesquisas.
Verdadeiramente incrível! E quanto a Maria Eugênia?
— Acha que retornar para nosso país poderia ajudá-la? –
indagou Guilherme, preocupado em resolver seu problema.
Marie pensou um pouco e considerou:
— Na verdade, não posso afirmar tal coisa em relação à sua
esposa. Talvez retornar ao Brasil possa ajudar no sentido de
que Rita, vendo-o por perto, não precise buscá-lo pelo
sonho.
— É uma hipótese. Como pode acontecer também que, pela
proximidade, ela o procure ainda mais. Difícil saber a reação
das pessoas. Todavia, quanto à Maria Eugênia, Maurice tem
razão quando julga que o ambiente em que ela sempre viveu
junto da mãe e das pessoas que fizeram parte de sua vida,
possa fazer com que se sinta mais segura e confiante.
Conversaram mais um pouco, depois Guilherme despediu-
se, agradecendo a hospitalidade e as informações, e
regressou ao hotel.
No dia seguinte, após refletir bastante, simplesmente me
comunicou:
— Retornaremos ao Brasil no primeiro navio.
14 – Retorno ao lar
Marcada a data do regresso para duas semanas depois,
passamos os dias que ainda nos restavam comprando
lembranças e preparando as bagagens. Despedimo-nos dos
amigos e dos mais belos recantos de Paris e, afinal, com o
coração partido, vimos chegar o momento de voltar para o
Brasil.
O dia amanhecera encoberto e uma leve bruma invadia
tudo. Nossa despedida da bela cidade era melancólica, assim
como eu me sentia. Uma tristeza infinita se me
assenhoreava do íntimo, juntamente com uma sensação de
angústia, de opressão no peito, como se um perigo iminente
nos ameaçasse. Contive-me para não desabar em choro
convulsivo. Não queria que meu marido me visse nesse
estado.
Alugamos uma carruagem, que nos levou de Paris ao porto
de Havre, na embocadura do rio Sena, do qual zarparia o
navio. Pousamos num hotel e, na manhã seguinte, fomos
para o porto, cujo movimento de veículos, carregadores de
bagagens, passageiros, era intenso, sem contar a multidão
alvoroçada que ali se congregava para ver a partida de entes
queridos e de amigos. Subimos a rampa de embarque e
ficamos no tombadilho, debruçados na amurada. Olhando lá
para baixo, as pessoas pareciam um formigueiro e aquela
confusão mexeu com meus nervos, deixando-me atordoada.
Assim, foi com alívio que ouvi soar o apito, indicando a
partida. O grande navio se pôs em movimento com
dificuldade, lentamente, enquanto os passageiros acenavam
para os que ficaram no porto. Aos poucos nos afastamos de
terra firme ganhando águas profundas. Como o mau tempo
não nos permitisse ficar no tombadilho, e o movimento das
ondas agitadas me deixasse nauseada, passei uma boa parte
dos dias dentro do camarote. Guilherme, ao contrário,
gastava as horas conversando e se distraindo com outros
passageiros; quando a chuva não lhe permitia ficar ao
relento, sentava-se numa mesa de jogo e passava o tempo
entregue às cartas.
Da minha parte, descansava e, com incrível esforço,
preparava-me para os almoços e jantares, ocasiões essas em
que as mulheres sempre caprichavam nas vestimentas e nas
jóias, que as transformavam para os momentos especiais da
sociedade ali reunida. Na verdade, eu não tinha vontade de
sair do camarote. Aliás, desde que Guilherme me informara
da sua decisão de retornar ao Brasil, sentia-me tensa,
angustiada, envolvida por um estado de grande agitação que
não sabia explicar.
Procurava vencer, sem resultado, essa sensação que se
apoderara de mim. A viagem foi um tormento, por isso me
senti aliviada quando, após um tempo enorme, atracamos
em porto brasileiro. Guilherme alugou uma carruagem e
assim, do Rio de Janeiro, fizemos o trajeto de retorno, que
agora eu já conhecia, e, após longo percurso por terra -
sacolejos que nem de longe se pareciam aos movimentos da
embarcação -, para meu alívio nos aproximamos da fazenda.
No fundo, estava sentindo falta de tudo o que representava
terreno seguro: a presença de minha mãe, que me transmitia
segurança e paz, meus aposentos, que guardavam meus
sonhos e tristezas, anseios e alegrias. Lembranças queridas
afloraram-me à mente, ampliando o desejo de chegar.
Curioso é que o retorno ao lar, à casa que me vira nascer,
momento que eu tanto aguardava, provocou-me um
aumento no mal-estar. Quanto mais diminuía a distância
entre nós e a fazenda, pior eu ficava. Essa sensação deixou-
me surpresa e angustiada.
Chegamos ao entardecer. As luzes já estavam acesas e, de
longe, pude ver a casa-grande. A única coisa que realmente
me alegrava era poder rever minha mãe, de quem sentia
profunda saudade.
Ao ouvir o rodar de uma carruagem parando à entrada, os
escravos saíram para ver quem se aproximava àquela hora.
Reconhecendo-nos, correram a avisar os senhores. Meus
pais assomaram à porta, surpresos e ansiosos, enquanto os
escravos, ligeiros, tiravam as bagagens do veículo,
transportando-as para dentro de casa.
— Minha filha! - exclamou minha mãe, correndo a abraçar-
me, enquanto meu pai se dirigia ao encontro de Guilherme,
cumprimentando - o.
Naquele momento, não resisti e dei vazão às lágrimas por
tanto tempo represadas. Choramos abraçadas, e minha mãe
me levou para dentro com imenso carinho.
Enquanto nos cumprimentávamos, eu relanceava o olhar
pelo ambiente que tão bem conhecia, sentindo-me, afinal,
de volta ao lar. Na sala de estar, meu pai dizia a Guilherme:
— Chegaram a tempo de jantar conosco, Guilherme. Porém,
foi uma bela surpresa! Não os aguardávamos tão cedo. Pensei
que ficariam mais tempo pelo Velho Mundo...
— É verdade, senhor Figueiroa. Resolvemos retornar antes
do previsto. Estávamos ambos sentindo falta da nossa terra.
— Fizeram boa viagem?
— Muito boa. O tempo prejudicou um pouco as atividades
no navio, mas ainda assim correu tudo bem.
— E você, minha filha, ainda não me disse o que achou da
Europa - indagou a mãe, curiosa.
— Ah, mamãe! É tudo muito lindo e diferente daqui. É
realmente outro mundo. Especialmente Paris, onde
permanecemos mais tempo, é uma cidade encantadora.
Trouxemos lembranças para todos.
Apesar da aparente animação da filha, Virgínia notou que
algo não estava bem. O jeito de olhar, as mãos nervosas e a
agitação mostraram a ela que Maria Eugênia devia estar com
problemas.
— Não se preocupe, querida. Teremos tempo para tudo isso.
Agora vamos jantar, porque sei que a viagem foi exaustiva e
desejam repousar.
Sentados à mesa, que a escrava Odete havia arrumado,
fizemos jus às delícias que Florência cozinhara. Ao terminar,
comentei satisfeita:
— Ah!...Muito bom retornar ao lar. Estava com saudade do
tempero de Florência. Creio que agora tudo entrará nos
eixos...
Aquele comentário casual, embora acompanhado de um
sorriso, soou estranho aos meus pais. Trocaram um olhar de
preocupação, enquanto mamãe nos convidava a passar para a
sala de estar onde, como de hábito, nos serviriam café e um
licor.
Conversamos ainda sobre banalidades por alguns minutos,
depois mamãe sugeriu bem-humorada:
— Teremos muito tempo para saber das novidades. Agora,
se quiserem se recolher, não se acanhem. Percebo que estão
cansados. Os aposentos estão preparados e as bagagens foram
arrumadas.
Aproveitando a deixa, Guilherme levantou-se, fazendo uma
leve reverência:
— Obrigado, senhora Virgínia. Realmente estamos exaustos
e, se não for indelicadeza de nossa parte, vamos nos
recolher. Boa noite!
Também me despedi de ambos e subimos as escadarias,
enquanto meus pais permaneciam na sala. A satisfação que
eu sentia pela volta ao lar misturava-se a um outro
sentimento: o medo.
Dionísia veio ajudar-me a trocar de roupa e nos abraçamos
com carinho.
— Estava desacostumada desses hábitos, Dinha. Nesse
período, fui obrigada a fazer tudo sozinha, e confesso que
tive alguns problemas. No hotel era diferente, pois havia
uma cria
da de quarto que me ajudava, quando necessário. Estava com
saudade de você, minha mãe de leite.
A escrava, em lágrimas, fitava-me com devoção:
— Enquanto esteve lá longe, rezei muito por você,
sinhazinha, para que tudo corresse bem e fosse feliz.
— Obrigada, Dinha.
— Agora durma, sinhazinha. Boa noite!
Ela cobriu-me e saiu do quarto sem fazer barulho. Logo,
Guilherme veio deitar-se também. Adormecemos pouco
depois.
Acordei de manhã cedinho e, como meu esposo ainda esti-
vesse dormindo, comecei a pensar. Agora que estava em casa, temia
que Guilherme se afastasse de mim, por causa de Rita. Lembrei-me
de que deixara tudo combinado com Miguel. Teria de ir procurá-lo e
colocar em ação meu plano. Mais do que nunca, eu queria acabar
com ela. Rita não me dera paz durante a viagem e eu temia
que as coisas piorassem, uma vez que estávamos ali tão
perto.
Levantei-me, fiz a higiene e desci para tomar café com meus
pais, cujo horário eu conhecia de longa data. Estávamos
sentados à mesa quando Guilherme apareceu, todo
arrumado; cumprimentou-nos e acomodou-se também.
Depois, serviu-se de uma xícara de café com leite, pão fresco
e manteiga.
— Não apenas você estava com saudade do lar, querida. Eu
também. Essas pequenas coisas que nos lembram a infância,
a família, o lar são insubstituíveis. Não troco este nosso pão
caseiro, a manteiga, o café com leite, por nada.
— Pois então, não faça cerimônia e sirva-se à vontade,
Guilherme - disse minha mãe. - Estas rosquinhas de nata
recheadas de geléia de laranja estão uma verdadeira delícia!
— Obrigado, senhora Virgínia.
Olhei para meu marido, sentado a meu lado, e comentei:
— Estava dormindo tão tranqüilo que julguei não fosse
acordar tão cedo, Guilherme.
— Quando você desceu, eu já estava acordado, minha
querida. Por falar nisso, levantei porque precisamos ir à
fazenda Santa Clara. Estou preocupado, especialmente com
meu pai,
que não anda bem de saúde.
Ouvindo suas palavras, achei que seria a ocasião ideal para
colocar meu plano em ação; assim, com expressão
penalizada, considerei:
— Tão rápido? Mas mal chegamos de viagem! Lamento,
porém acho que não vou poder acompanhá-lo, querido.
Ainda estou bastante fragilizada e sensível para atrever-me a
entrar
numa carruagem, mesmo que por pouco tempo. Sinto-me
nauseada e, só de pensar em viajar, meu estado piora. Ficará
triste se eu não for com você? - disse com voz macia.
Guilherme, que a princípio tinha mostrado certo des-
contentamento, acabou conformando-se diante de minhas
razões:
— Claro que não ficarei satisfeito de ir sozinho, Maria
Eugênia; todavia, entendo seus motivos. Quanto a meus pais,
certamente ficarão decepcionados, pois lhe querem muito
bem.
— Eu sei, querido. Também gosto muito do senhor
Valentim e da senhora Leonora. Entretanto, diga-lhes que,
assim que for possível, iremos passar alguns dias na Santa
Clara. Ah! Não se esqueça de levar os presentes que
trouxemos para seus pais! Tão logo acabe de tomar meu café,
cuidarei pessoalmente disso. Aliás, estou quase terminando.
Chamei Odete, que me auxiliou a separar os presentes e
trazê-los para baixo, colocando na carruagem as lembranças
que trouxéramos para meus sogros. Dinha já havia feito uma
pequena mala com o indispensável, visto que meu marido
ficaria poucos dias na casa paterna. Em seguida, Guilherme
partiu, com a carruagem carregada de mimos. Despedi-me
dele, mandando mil recomendações para seus pais.
Assim que ele desapareceu na curva da estrada, corri para
dentro. Precisava aproveitar aqueles três dias de ausência.
— Pensei que você estivesse com problemas no estômago, e
agora a vejo toda animada! - considerou minha mãe,
estranhando-me a melhora súbita.
— Realmente, estou bem melhor. Ah! Ainda não entreguei
os presentes para a senhora e para o papai! Aqui estão.
Entreguei para minha mãe um lindo xale colorido terminado
em franjas; para meu pai, um novo e belo cachimbo; para
Dinha, um vestido.
Todos gostaram dos presentes. Dinha agradeceu, em
lágrimas, dizendo que o vestido era o mais belo que já vira e
que lhe serviria direitinho.
Depois, resolvi andar pelo jardim. Sempre me fez muito
bem passear pelas alamedas, respirando o ar puro e sentindo
o aroma das flores.
— Não deixe de levar a sombrinha, pois o sol está forte -
alertou minha mãe.
— Não esquecerei, mamãe. Até mais!
Caminhei um pouco e, dando a volta no jardim, segui rumo
à senzala. Encontrando uns garotos, indaguei por Miguel.
Um deles respondeu-me que o vira trabalhando no depósito.
Tudo estava à meu favor.
Depósito era um grande barracão onde se guardava a
produção da fazenda. Ordenei que o menino fosse avisá-lo
de que eu o esperava no caramanchão.
— Veja lá, moleque. Ninguém pode ficar sabendo disso.
Aqui está uma moeda. Se souber ficar calado, receberá mais.
O garoto saiu correndo, enquanto tomei o rumo do
caramanchão. Não demorou muito, escutei passos que
se aproximavam. Miguel entrou no caramanchão e percebi
que estava trêmulo.
Fitei-o sorridente.
— Muito bem. Gosto que me obedeçam com presteza,
Miguel.
— A notícia do retorno da sinhazinha já correu pela
fazenda. O que deseja de mim, sinhazinha?
— Sabe o que desejo de você. Esqueceu o que acertamos
antes do meu casamento? Agora que voltei, quero saber se
você continua a meu dispor.
Miguel olhava-me de um jeito que não escondia seu inte-
resse por mim. Depois de alguns segundos, ele murmurou:
— Pensei que tivesse mudado de idéia, sinhazinha.
— E claro que não. E você, continua disposto a me ajudar?
— O que eu ganharei em troca? - indagou.
Vendo o jovem à minha frente, percebi que ainda estava
dominado pelos escrúpulos, mas que não conseguia disfarçar
seus sentimentos. Se soubesse agir, ele faria qualquer coisa
por mim. Então, tomei a sua mão grande e calosa entre as
minhas, fazendo-lhe um carinho e disse com voz doce:
— Sabe o que ganhará. Não é o bastante?
Ele estremeceu de prazer, fitando-me de maneira diferente.
— Quando será feito o serviço?
Vencera-lhe as últimas resistências. Respondi baixinho, com
um leve sorriso:
— Hoje por volta das três horas da tarde.
— Hoje?... Sinhazinha, não esperava o seu retorno tão
rápido. E se não for possível?
— É possível. Tem que ser hoje - afirmei autoritária. – Não
quero saber como fará o serviço. Faça-o, apenas. Lembra-se
de tudo o que conversamos antes da minha viagem?
— Lembro. Tenho tudo guardado aqui na cabeça – disse ele,
apontando com o dedo indicador.
— Está bem. Então, pode ir agora. Tome cuidado. Não
admito erros.
Miguel deu alguns passos até a saída do caramanchão.
Depois, voltou-se, envolvendo-me num último olhar:
— A sinhazinha está mais bela do que nunca. Quando
receberei minha paga?
Soltei uma risada, percebendo como ele estava tenso.
— Não se preocupe. Faça o serviço e cumprirei minha parte
no acordo.
O escravo foi embora e fiquei eufórica. Tudo daria certo.
Nada poderia sair errado.
Voltei para o casarão, satisfeita com o rumo dos
acontecimentos. Conversei com minha mãe até a hora do
almoço, contando-lhe detalhes da nossa viagem.
15 – Mergulho no erro
Após o almoço, como era hábito na fazenda, todos da casa se
recolheram. Em meu quarto, quieta, fingi que estava
dormindo e passei a imaginar o que estaria acontecendo lá
fora. Afinal, não resisti e desci as escadarias sem fazer ruído.
Tomei o rumo do lago tendo o cuidado de olhar em torno,
certificando-me de não estar sendo vista.
Bem a tempo. Aproximando-me, pude ver Miguel e Rita que
se encaminhavam para um pequeno barco ancorado à
margem. Escondi-me atrás de uma grande árvore e pus-me a
observar.
Miguel dizia para Rita, que caminhava a seu lado:
— Não fique preocupada, Ritinha. Não tem perigo algum.
— Mas eu não sei nadar, Miguel! - afirmava ela, temerosa.
— Nem precisa. Vamos apenas dar um pequeno passeio pelo
lago. Prometo-lhe que não me afastarei da margem. Além
disso, será bom para perder esse medo.
— Então, está bem - concordou ela, respirando fundo para
ganhar coragem.
Miguel ajudou-a a subir no barco e, depois de soltar a corda,
subiu também. Sentados defronte um do outro, ele começou
a remar. Notei que conversavam, porém, daquela distância,
não conseguia ouvir o que diziam. Ao perceber que estavam
em local mais fundo, ele fingiu deixar cair o remo e
inclinou-se perigosamente para apanhá-lo. Nesse momento,
com o peso do seu corpo, a frágil embarcação desequilibrou-
se e virou. Ritinha, apavorada, soltou um grito. Eu
acompanhava-lhes todos os movimentos. O coração batia
forte, de excitação e prazer ao ver que minha vingança
estava sendo consumada. Lamentava apenas que Rita não
soubesse por que ia morrer. Meu prazer seria completo se
pudesse dizer a ela: Veja! Você morre por ter-me traído.
Roubou-me o amor de Guilherme, meu noivo, porém não
roubará o amor de meu marido. Morra, maldita!
Fixando a atenção no lago, vi quando ela afundou e, depois
de alguns instantes, voltou à tona a se debater, desesperada,
gritando por socorro. Amedrontado agora diante do que
estava fazendo e temendo que alguém a ouvisse, Miguel
agarrou-a pelo pescoço, puxando-a para baixo. De longe,
ainda pude ouvir os gritos apavorados de Ritinha:
— Socorro! Socorro! Não deixem ele me afogar! Não deixem
ele me afogar!
Tudo em vão, porém. Estávamos distantes da casa-grande e
ninguém poderia ouvi-la. Eu era a única pessoa mais
próxima e não a ajudaria em hipótese alguma.
Com os nervos abalados diante da cena que tanto planejara,
comecei a rir de satisfação. Miguel se saiu melhor do que eu
imaginara.
Considerando consumado o ato, apressei-me em fugir dali
antes que alguém aparecesse. Com certeza, logo Miguel se
poria a gritar pedindo socorro, e eu não podia ser vista nas
imediações. O escravo, trêmulo e apavorado, correu
pelo gramado acima clamando por ajuda. Alguém na
senzala ouviu seus gritos e alertou os demais, que
procuraram saber o que estava acontecendo.
Dentro em pouco uma multidão se aglomerava na beira do
lago. Miguel explicava em lágrimas:
— Ritinha quis sair de barco e fiz sua vontade. De repente,
por infelicidade, o remo caiu no lago; inclinei-me para
apanhá-lo, c o barco virou. Tentei salvá-la, mas Ritinha
afundou e não a vi mais. Creio que ficou presa no fundo.
Então, gritei por socorro.
Alguns homens imediatamente se jogaram na água
procurando pelo corpo. Quando se cansavam eram
substituídos por outros que prosseguiam na busca.
— Não estamos encontrando! Onde ela afundou? -
perguntou Ramiro.
— Foi nessa direção - explicou Miguel, indicando o rumo.
Porém, eles mergulhavam, e nada. Com o passar do tempo,
as condições foram ficando mais difíceis, pois, como
atingiam o fundo, a água do lago ficava cada vez mais turva,
dificultando a visibilidade.
Até que, em dado momento, Ramiro voltou à tona
exclamando:
— Encontrei! Encontrei o corpo! Preciso de ajuda
para tirá-lo do fundo.
Amaro, amigo de Miguel, pulou na água e, em pouco tempo,
trouxeram Rita. A jovem foi colocada na grama, sem vida;
estava suja de terra e, na cabeleira molhada e emaranhada,
viam-se restos de folhas e de sujeiras; o semblante
acinzentado, marmóreo, os lábios descorados, a expressão
inerte, impressionaram a todos os que ali estavam. Parecia
impossível que aquela jovem tão bela e cheia de vida agora
estivesse morta.
Dinha, que aguardava o resultado da busca como os
demais, chorando e rezando, se abraçou ao corpo da filha
querida, agora sem vida, em grande desespero.
— Tão jovem e tão bela era minha filha... O que farei sem
ela? O que será da minha vida sem ela, a luz dos meus olhos?
Mamãe e Dinha se abraçavam, procurando dar-lhe consolo e
amparo naquele momento de grande sofrimento.
— Acalme-se, Dinha. O Senhor quis assim. Não se rebele
contra a vontade soberana de Deus.
Aquela mãe, porém, enlouquecida de dor, não conseguia
ouvir a ela e a nenhuma outra pessoa, debruçada sobre a
filha que não voltaria a sorrir, que não voltaria a falar, que
não voltaria a andar e correr pelos campos, que não voltaria
a viver...
Algum tempo depois, transportaram o corpo de Rita para a
senzala, colocando-o sobre uma esteira. Dionísia fez questão
de cuidar da filha, como sempre o fizera. Assim, tirou-lhe as
vestes molhadas, limpou-a, enxugou-a e em seguida vestiu-
lhe roupas limpas e secas. Penteou-lhe os cabelos e acendeu
velas em torno da esteira. Depois, abriu a porta da senzala,
permitindo que todos entrassem para velar e rezar por sua
filha.
ENQUANTO isso, A POBRE RITA passara por momentos
dramáticos e terríveis. Por insistência de Miguel, relutante,
ela havia aceitado o convite para dar um passeio de barco.
Na verdade, nem sabia por que aceitara. Nunca gostara do
lago; desde pequena sentia muito medo de água. Esse foi o
motivo por que não aprendera a nadar como as outras
crianças da fazenda. Só entrava no riacho, em local bem
raso.
Todavia, como era a primeira vez que Miguel lhe fazia um
convite, resolveu concordar. Ao entrar no barco, Rita sentiu
grande mal-estar, como se intuitivamente soubesse que algo
trágico iria acontecer. Miguel, no entanto, acalmou-a
dizendo:
— Não seja tola, Ritinha. Não há perigo nenhum. Ando
nessa embarcação há muitos anos e nunca aconteceu nada.
Ela é segura! Sei nadar muito bem e não permitirei que lhe
aconteça nada de ruim. Além disso, não confia em mim?
Ouvindo-o colocar as coisas dessa forma, embora não esti-
vesse totalmente convencida, Rita ficou constrangida de
descer. "Afinal, ele estava sendo tão gentil! Sabia que seu ro-
mance com Guilherme não tinha futuro, não apenas por
serem de mundos diferentes, mas também porque ele agora
estava casado com aquela que sempre tinha considerado
como sua melhor amiga, Maria Eugênia. Quem sabe esse
convite para o passeio no lago não seria o início de um novo
relacionamento? Era sabido por todos que Miguel não tinha
namorada; sempre arredio, mantinha-se afastado das moças
da senzala. Agora, ele tentava se aproximar dela. Não seria
esse um sinal do destino para mudar sua vida, dedicando-se a
alguém da sua própria condição, e que teria como fazê-la
feliz?"
Assim pensando, olhava-o sentado à sua frente e não podia
deixar de reconhecer que ele era um belo homem: alto e
forte, inspirava segurança; sob a camisa rústica de algodão,
podia notar os músculos salientes do peito e dos braços; as
pernas enrijecidas no labor do campo, plantadas no fundo do
barco com firmeza; o rosto sério, que brilhava de suor, era
bem feito, e os olhos escuros, expressivos; trazia os cabelos
crespos aparados, bem curtos, deixando a testa e o pescoço
rijo à mostra. Sobretudo, porém, era o porte altivo e
vigoroso, a expressão desafiadora, que faziam dele alguém
especial, como se fosse um rei.
Tudo aconteceu em fração de segundos. Estavam conver-
sando, quando notou que um dos remos, escapando da mão
de Miguel, caíra no lago. O rapaz se inclinara para apanhá-lo
e ela gritou assustada; a frágil embarcação virou e, quando
deu por si, apavorada, estava na água debatendo-se e
afundando cada vez mais; o ar lhe faltava e o peito parecia
que ia explodir; depois de um tempo que lhe parecera sem
fim, atingiu o fundo e, lentamente, começou a subir.
Enchendo-se de esperança, ela batia os braços lutando para
conservar-se à tona. Nesse momento, sentiu a proximidade
de Miguel e procurou agarrar-se a ele, na tentativa de salvar-
se. No entanto, com horror, sem entender o que estava
acontecendo, notou que seu companheiro ainda a puxava
para baixo. Lembrou-se de ter gritado:
— Socorro! Socorro! Não deixem ele me afogar! Não deixem
ele me afogar!
Entretanto, quanto mais ela gritava, mais lutava para
conservar-se à tona, mais Miguel a empurrava para
baixo, até que não viu mais nada. Sentiu a água penetrar em
seus pulmões, por todo o corpo, impedindo-a de respirar... e
perdeu a consciência.
Rita não notou quando dois vultos diáfanos e luminosos
mergulharam no lago, aproximaram-se dela e,
delicadamente, retiraram o espírito daquele que seria seu
filho, envolvendo-o carinhosamente.
— Pobre irmã! Ainda não foi desta vez que conseguiu
melhorar. Comprometeu-se, comprometendo o
planejamento reencarnatório do nosso querido amigo, que
se preparava para voltar à carne com o objetivo de ampará-
la. Que Deus a ajude. Nada podemos fazer por ela neste
momento. Partamos!
Em seguida, subiram à tona e alçaram-se no espaço,
levando nos braços o pequeno ser adormecido.
De repente, Rita sentiu que despertava. Lutou para sair da
água, mas, com indescritível horror, sentiu-se presa. Via os
escravos que mergulhavam, procurando-a, e tentava
chamar-lhes a atenção, pedindo ajuda, mas não conseguia.
Até que viu Ramiro, seu amigo, que se aproximou tentando
soltá-la. Ele não conseguiu e afastou-se, retornando pouco
depois com Amaro, que a segurou fortemente, enquanto o
companheiro soltava sua roupa dos ramos que a prendiam,
libertando-a. Finalmente, cheia de esperança, sentiu-se nos
braços de Amaro que subia, até que chegou à tona, e,
imediatamente, outros braços a retiraram da água.
Aliviada e agradecida, percebeu que a arrastavam,
colocando-a sobre a grama, à margem do lago. Sentia-se
extremamente cansada e sonolenta. Aproveitou aqueles
momentos para descansar. Por sorte, tinham conseguido
salvá-la!
Exausta, entrou em sonolência e não viu mais nada.
De súbito, acordou e viu-se estendida na esteira, no
ambiente conhecido da senzala. Quanto tempo teria
dormido? Olhou em torno e percebeu que seus amigos
rezavam à sua volta. O que está acontecendo? - pensou. -
Será que me julgam morta?
Tentou falar com os que estavam por ali, seus amigos,
chamar-lhes a atenção, mas não conseguiu. Pareciam não
vê-la. De repente, viu Miguel, que entrava na senzala
lentamente. Não era mais aquele homem seguro e resoluto,
era um ser inseguro e acovardado, de ombros caídos e
cabeça enterrada no peito; seus passos eram indecisos e a
expressão, temerosa. Correu a encontrá-lo, gritando:
— Por que fez isso comigo, Miguel? Por que queria me
matar? Sempre fomos amigos! Todavia, você não conseguiu.
Estou viva e todos ficarão sabendo o que você fez, maldito!
Eu confiava em você, e você me traiu. Por quê? Por quê?...
Rita batia em Miguel, que não conseguia vê-la, mas ele
começou a sentir grande mal-estar, arrepios gelados
percorrendo-lhe o corpo e uma sensação de tontura, que o
fez sentar-se no chão de terra batida para não cair, enquanto
ela prosseguia revoltada:
— Por que não me olha, miserável? Por que seus olhos
fogem dos meus? Infeliz de você, porque o denunciarei ao
sinhô Figueiroa. Não ficará impune!
Rita continuou falando e falando, repetindo as mesmas
coisas. Como não recebesse resposta, ela se cansou e foi
acocorar-se a um canto da senzala, desalentada.
Eu NÃO PODERIA DEIXAR DE comparecer ao velório, pois o feito
chamaria a atenção de todos. Desse modo, em determinada
hora, acompanhei minha mãe. Eu observava o sofrimento
dos escravos, via suas lágrimas, ouvia suas rezas misturadas
com cânticos, e meu coração continuava frio e insensível.
Nesse momento, Rita me viu chegar. Foi ao meu encontro,
procurando ser ouvida:
— Maria Eugênia, ajude-me! Aconteceu uma coisa horrível!
Miguel tentou me matar e, por pouco, não conseguiu. Estou viva
porque outros me tiraram do lago. Quero que todos saibam desse
fato. Vou denunciar esse criminoso para o sinhô Figueiroa. Por que
não me responde, sinhazinha? Responda-me, pela nossa amizade!
Você não me ouve? Também me despreza, como os outros? Todos
me ignoram, até você! O que está acontecendo?...
Rita parou de falar, pensativa. Nem a amiga lhe dava
atenção! Diante da gravidade desse fato e, com a consciência
culpada, resolveu abrir seu coração, julgando que, de alguma
maneira, a sinhazinha tivesse ficado sabendo dos encontros
no riacho. Então, extremamente envergonhada, prosseguiu:
— Será que é por causa de seu esposo, Guilherme? Perdoe-me,
pois traí sua confiança, mas ele era sedutor e eu fui muito fraca.
Não dei sinal de ter ouvido sua explicação. Perplexa, Rita
continuou falando e procurando justificar-se. Todavia, como
não obtivesse resposta, cansada, afastou-se em prantos,
acreditando que sua sinhazinha não lhe perdoara, visto que
nem sequer aceitara dar-lhe atenção. Voltou a acomodar-se
num canto da senzala, observando todos os que entravam e
saíam.
NESSA HORA, o CADÁVER DE Rita não estava mais na esteira.
Haviam trazido uma mesa, onde estenderam seu corpo. Mais
tarde, aproveitando um momento em que não havia
ninguém por perto, acerquei-me dela e fitei-a. Ainda não a
tinha visto de perto desde que chegara de viagem. Nem viva
nem morta. Inclinando-me de mãos postas, fingi que rezava
por intenção de sua alma. No fundo, porém, só desejava ver
como ela tinha ficado agora que ultrapassara os umbrais da
morte.
Fitei seu rosto marmóreo, que aparentava um estranho tom
cinza-esverdeado, os olhos cerrados, as mãos de cera
cruzadas sobre o peito, as unhas roxas, e disse baixinho, não
conseguindo controlar o desejo de tripudiar diante daquela
que odiava:
— Oh, Rita, onde está sua beleza agora? Que é feito do seu
porte elegante, do gingado que conquistou meu noivo?
Ah!... Julgava que eu ignorava tudo, não é? No entanto,
sempre soube do seu envolvimento com Guilherme. Eu vi
vocês dois juntos à beira do riacho, miserável, e desde
aquele dia passei a odiá-la. E, por isso, mereceu morrer! Não
poderia permitir que continuasse viva para desfrutar do
amor de meu esposo. Acreditava mesmo que eu aceitaria
dividir o que é meu com alguém, especialmente com uma
reles escrava?... Agora, ele será só meu para sempre, e você
terá o destino daqueles que morrem: a terra, onde será
devorada pelos bichos. Estou satisfeita. Você teve o que
mereceu. Adeus.
O que eu não poderia imaginar é que Rita, no momento em
que eu me aproximava da mesa, foi atraída para lá, deixando
o canto do barracão e, com supremo horror, tinha ouvido
tudo.
À medida que eu falava, lavando a alma e saboreando minha
vingança, Rita acompanhava com atenção e assombro tudo o
que eu dizia. Tentava retrucar, pedir-me perdão, mas eu não
podia escutar. Nesse momento, Rita percebeu que fora
vítima de uma vingança atroz; que Miguel agira sob minhas
ordens, e que eu era a verdadeira culpada por tudo o que lhe
acontecera.
Alucinada, só naquele momento Rita fitou o corpo esten-
dido, ao qual por duas vezes tentara voltar, mas que, por
uma estranha razão, apesar dos seus esforços, não tinha
conseguido.
"Estou mortal", pensou, assustada.
No entanto, como se sentia cheia de vida, pensando, gritou-
me em plena face:
— Pois se engana, megera. Apesar de seus esforços e do seu
cúmplice, não conseguiram me matar. Aqui estou eu, viva! Eu não
morri! E, tanto quanto gostava de você, agora vou odiá-la até o fim
dos meus dias. Estou apenas adormecida, fato que já aconteceu
antes, e, quando eu acordar, você terá o que merece. Eu juro!
Nesse momento, eu fazia o sinal-da-cruz para afastar-me.
Como eu não reagisse, nem lhe respondesse, ela prosseguiu
febril e rancorosa:
— Talvez você gostasse de saber que estive até em seu quarto,
quando estava viajando? Não sei como isso acontece, mas posso
movimentar-me durante o sono e ir para onde quiser.
Como eu continuasse muda, Rita ficou possessa de raiva:
— Também me despreza, sinhazinha, como os outros? Pois terá o
que merece, maldita!
E, alucinada, passou a agredir-me com socos e pontapés,
tentando rasgar-me as vestes, arrancar-me os cabelos bem
penteados, atingir-me de alguma maneira. Sem conseguir
fazê-lo materialmente, suas vibrações de ódio causaram-me
tremendo mal-estar. A cabeça rodopiou e teria caído ao
chão se meu pai, que chegava naquele momento, não tivesse
percebido que eu não estava bem. Ele segurou-me e,
afastando os que se aproximavam, curiosos, carregou-me
para fora da senzala, seguido por minha mãe.
Meu pai levou-me até o banco de madeira mais próximo,
onde me colocou com cuidado. Ao ver-me abrir os olhos,
indagou preocupado:
— O que houve, minha filha?
— Não sei, papai. De súbito, senti um grande mal-estar e
minha vista se turvou. Pensei que fosse cair.
— E teria realmente caído se eu não a tivesse amparado. Foi
imprudência de sua mãe trazê-la ao velório.
— Felipe, Ritinha era amiga de nossa filha. Maria Eugênia
precisava vir orar por ela! - justificou-se Virgínia.
— Sei disso. No entanto, a aglomeração era grande, o am-
biente estava muito quente, abafado, sem ar. Creio que foi
isso. Como está agora, filha?
— Estou bem, meu pai. Acho que já posso caminhar.
Ladeada por meus pais, andei até o casarão. Depois, subi para
meu quarto, onde deitei, sob os cuidados de minha mãe.
Ajeitando-me as cobertas, mamãe disse:
— Vou mandar trazer-lhe um copo de leite morno, que lhe
fará bem. Agora, descanse. As emoções foram muitas para
um único dia.
"É verdade. Muito mais do que a senhora imagina", pensei.
16 – Na espiritualidade
Na senzala, confusa e desorientada, sem entender o que
estava acontecendo, Rita prosseguia no seu martírio. Sentia-
se viva e, ao mesmo tempo, via seu corpo estendido sobre a
mesa improvisada, julgando-se adormecida e a sonhar.
De repente, ela lembrou-se de que estava grávida.
— Meu filho! Será que ele está bem? Terá sido afetado pelo
que sofri no lago?
Nesse momento, a recém-desencarnada notou que algo se
desprendia dela e vinha para o seu colo.
— Meu filho? Mas, ele não está bem! Está gelado, não respira...
Socorro! Socorro! Preciso de ajuda para meu filho!
No entanto, por mais que pedisse, por mais que gritasse,
ninguém a atendia, e ficou vagando de um lado para o outro,
em desespero, a suplicar ajuda para o bebê que trazia nos
braços.
Cansada de tanto bradar por um socorro que não vinha, sem
forças, acabou por entregar-se a um sono invencível; depois,
de repente acordou e prosseguiu na sua luta, alternando-se
seu estado entre o sono e a vigília.
De manhã cedinho, Rita despertou e percebeu que alguns
escravos se aproximaram e a envolveram com o lençol que
recobria a mesa, mandado por sinhá Virgínia. Depois a
carregaram, e todos os presentes puseram-se a caminhar
lentamente até o local onde eram enterrados os mortos,
chamado de campo-santo.
A morta ouvia as pessoas conversando, falando a respeito
dela como se não estivesse presente. Alguns criticavam seu
comportamento e ela tentava em vão justificar-se, mas não
lhe davam a menor atenção.
Notou as lágrimas de Miguel e escutou-lhe as palavras de
arrependimento:
— Perdoe-me, Ritinha. Eu não desejava matá-la, mas fui
fraco. O amor me perdeu. Maria Eugênia me induziu a fazer
o que fiz. Se pudesse, voltaria atrás. Estou muito
arrependido,
mas agora não tem mais jeito. Espero que sua alma encontre
o descanso que merece.
E ela, ouvindo-o, retrucava:
— Mas não estou morta, Miguel. Estou viva! Olhe para mim!
Felizmente não conseguiu me matar. Ajude-me! Estou sofrendo e
ninguém me escuta, ninguém atende aos meus rogos. Não sei o que
está acontecendo. Parece-me que estou tendo um terrível
pesadelo, do qual tento desesperadamente acordar, e não consigo!
Se o seu arrependimento é verdadeiro, me ajude, eu lhe imploro!
Mas Miguel também não lhe respondia, e Rita observava
tudo isso sem entender o que estava ocorrendo.
— Terei ficado louca?
Às vezes, se via sendo carregada no lençol; outras, analisava
a situação de fora, como se estivesse acompanhando os
demais, caminhando ao lado deles no meio das árvores.
Tentou afastar-se, correr para o meio do mato, mas não
conseguiu; quando deu por si, estava lá, no meio deles,
inapelavelmente.
O campo-santo ficava um pouco afastado, em meio a um
bosque agradável, e a procissão seguia lentamente. De
súbito, ao se aproximarem do local, Rita viu uma cova aberta
e, notando-lhes a intenção, se pôs a gritar, desesperada:
— Não estou morta! Estou viva! Piedade! Piedade! Não
enterrem a mim e ao meu filho! Socorro! Socorro! Alguém
pode me ouvir? Meu Deus! Será que não vou acordar deste
sonho maldito? Socorro! Acudam-me!
Contudo, como não conseguisse ser ouvida, seu desespero e
pavor eram tantos que acabou por perder os sentidos,
mergulhando na inconsciência.
DALI POR DIANTE, A VIDA DA pobre moça passou por
modificação atroz. Em virtude do ódio que sentia por mim e
por Miguel, vinculou-se a nós de tal forma que só conseguia
pensar em vingar-se de nós dois. Então, ela, cujo espírito
poderia se libertar, visto que não provocara, mas que sofrerá
uma violência, sentiu-se ligada tanto aos desafetos quanto ao
corpo que acabara de deixar.
Por reconhecer-se viva, pulsante, pensando, falando e
agindo, Rita não entendia por que a consideravam morta.
Supunha ter sido vítima de algum erro e desesperava-se ten-
tando fazer seu corpo retornar à vida. Apegada à idéia de
que estava sonhando, lutava por acordar. Não entendia por
que via a si mesma de pé, diante do corpo, que reconhecia
como seu e ao qual tentava retornar para prosseguir
vivendo. Nos acessos de loucura que a dominavam, não
obstante o horror e o medo que sentia, obrigava-se a entrar
na cova para fazer o corpo levantar-se, tentando colocá-lo
de pé, por acreditar ser a única maneira de prosseguir
vivendo, o que, evidentemente, não conseguia. De outras
vezes, ao perceber que o cadáver continuava inerte, tentava
libertá-lo da sua prisão, cavando a terra com as próprias
mãos, crendo assim trazê-lo ao mundo dos vivos para que
pudesse respirar.
Em outros momentos ainda, se sentia presa ao corpo, sen-
tindo os vermes a corroerem suas carnes e o cheiro de
podridão atingindo suas narinas, e punha-se a gritar e a
chorar, enlouquecida, não entendendo a razão de tamanho
sofrimento.
Em outras ocasiões, via-se junto de mim, na casa-grande,
ameaçando-me e cobrando-me por seu sofrimento atual,
jurando vingança; ou junto de Miguel, que perseguia pelo
mato onde ele se escondia, acusando-o da mesma maneira e
jurando vingança. Ou então, éramos nós, eu e Miguel, que,
com a consciência culpada, buscávamo-la em sua cova,
víamos sua situação de morta-viva e, horrorizados, fugíamos
apavorados.
Quanto tempo ela assim permaneceu, não saberia precisar.
Poderia ser um mês, um ano ou um século. No tempo, que
lhe parecia infindo, vivia nesse ir e vir constante, sem
possibilidade de se afastar do corpo; muitas vezes fora da
cova, outras vezes dentro, sem saber como tal processo se
dava.
Certo dia, em que se encontrava mais desesperada,
sentou-se numa pedra à beira do túmulo para chorar.
Cansada de suas tentativas para reanimar o corpo de carne,
ali ficou, com a cabeça entre as mãos, sofredora e aflita, até
que, em determinado momento, sentiu-se atraída por algo
que a chamava. Sem se dar conta de que se libertava enfim
daquele martírio, caminhou rapidamente em direção à
senzala. Próximo ao barracão viu alguém que, de cabeça
baixa, sentado na relva, orava por ela. Era pai Albino.
Rita aproximou-se dele, sentindo, pela primeira vez em
muito tempo, uma sensação de paz e reconforto que ele lhe
transmitia. Experimentou gratidão pela oração que ele fazia e
pelo bem-estar que lhe deram suas palavras. Escutou quando
ele disse:
— Sinhô! Tem piedade da nossa querida Ritinha, que tanto
sofre e que está passando por momentos muito difíceis. Eu a
vejo solitária e sofredora, junto do corpo que abandonou,
sem conseguir libertar-se dele. Ajuda-a, meu Deus, para que
a infeliz encontre um alívio para suas aflições.
Rita ajoelhou-se perto dele e começou a soluçar, lentamente
colocando a cabeça em seu colo.
Com a sensibilidade de que era dotado, pai Albino notou-lhe
a presença e viu quando ela se acomodou no seu regaço, a
chorar como uma criança precisando de consolo. Suas
vibrações de amor envolveram-na com carinho, e orou
ainda com mais fervor, agradecido ao Senhor por ter
atendido às suas preces.
Depois desse momento, Ritinha entrou em sono profundo,
ficando abrigada ali mesmo, nas imediações, numa gruta que
pai Albino usava para fazer suas rezas e trabalhos.
Após muitos dias, ela despertou, sentindo-se bem melhor, e
pôde dar alguns passos pelas imediações. Estranhou não mais
sentir a presença do bebê em seu colo. Quando perguntou
ao escravo onde estava seu filho, ele informou:
— Não se preocupe, minha filha. Seu filho foi socorrido e
está bem.
A sensação de alívio e alegria era intensa ao perceber que ele
a escutava e que podia responder-lhe, esclarecendo suas
dúvidas. Era a primeira pessoa que a via e que falava com ela
em muito tempo. Animada por retomar o contato com
alguém, perguntou:
— Pai Albino, o que está acontecendo comigo? Não entendo.
Tenho sofrido tanto! Parece-me estar vivendo um pesadelo sem
fim! Quero despertar e não consigo! Existem horas que chego a
acreditar que morri; porém, reconheço-me viva, penso, sinto!
Como pode ser isso?
E pai Albino, com infinita doçura, esclareceu:
— Pois não morreu mesmo, minha filha. Ninguém morre.
Você deixou o corpo de carne que usava e agora está num
outro inundo, numa outra vida, que é a verdadeira.
— Ah! ... Então é por isso que ninguém me ouvia?
— Sim. As pessoas, de modo geral, não percebem os que já
partiram.
— Mas pai Albino é diferente. Me ouve, responde quando falo, ora
por mim e me ajuda.
— Sim, Ritinha, porque tenho a condição de sentir e ver
esse outro mundo que nos cerca e onde você vive agora.
Apesar de reconhecer-se melhor por saber, finalmente, o
que acontecera com ela, Rita não podia deixar de sentir a
ausência do corpo físico, a saudade da convivência com as
pessoas, com sua mãe, com seus amigos. Por isso, passou a
chorar sentidamente. A lembrança de que devia, a mim e a
Miguel, o seu estado atual e os sofrimentos por que passava
fez que uma mágoa e um ressentimento profundos a
envolvessem. As emanações de ódio, como conseqüência,
fizeram que seu estado, que era tão promissor, voltasse a
piorar. Retornou para a gruta emocionalmente
enlouquecida, mas auxiliada pelas orações de pai Albino e
favorecida pela misericórdia divina, novamente mergulhou
em sono benéfico.
Aos poucos Rita foi melhorando, agora consciente do seu
estado de desencarnada.
Todavia, como cada um acha o que procura, assim as
lembranças desagradáveis voltaram gradativamente à mente
de Rita. Pai Albino alertava-a para que não se deixasse
dominar pelas recordações negativas, que procurasse
esquecer, porém ela não conseguia se libertar.
— Minha filha, perdoe aqueles que a prejudicaram, con-
forme ensina Jesus de Nazaré. É a única maneira de você se
libertar deles. Esqueça o que passou e aproveite a nova vida
que o Pai lhe concedeu.
Mas Ritinha, ao contrário, sentia verdadeiro prazer em
relembrar os fatos, atraída pelos meus pensamentos e de
Miguel, visto que a consciência culpada não nos permitia
esquecer o trágico acontecimento.
ASSIM, PRESA POR NOSSAS ondas mentais, não raro se via no
casarão, onde eu atravessava momentos dolorosos, pela
sensibilidade que eu possuía para perceber o mundo
espiritual.
Espírito endividado, desde criança eu sempre sentia a
presença dos espíritos que me perseguiam e me causavam
infinito pavor durante noites insones. Ao atingir a
adolescência, fiquei noiva, continuando a sentir os mesmos
problemas. Antes do casamento, ao descobrir a traição do
noivo e da amiga de infância, deixei-me envolver pelo ódio
e pelo desejo de vingança, vinculando-me ainda mais
fortemente aos inimigos de épocas passadas, estado que
perdurou na viagem de núpcias, inclusive provocando nosso
retorno mais rápido ao lar.
Poderia ter-me contentado em expor à rival a posição de
esposa que passei a ostentar, enquanto ela era simples
escrava. No entanto, meu ódio era tanto que prossegui com
os propósitos de vingança, destruindo-lhe a vida. Depois de
realizar meu desejo, com a cumplicidade de Miguel,
aumentou muito a minha responsabilidade, e a consciência
não mais me concedeu paz.
Debilitada mentalmente, após a morte de Rita, passei a
alternar momentos de lucidez com momentos de loucura,
ocasiões em que afirmava estar vendo a antiga companheira
de infância dentro do túmulo, em grande sofrimento.
Certamente, ninguém me dava crédito, julgando que eu
estava enlouquecendo. Junte-se a isso a humilhação que fui
obrigada a suportar, ante a reação de meu marido ao retornar
da casa dos pais, logo após o enterro de Rita, e ficar sabendo
do ocorrido. Lembro-me bem.
NAQUELE DIA, GUILHERME entrou no casarão, dependurou o
chapéu no cabide perto da porta, respirou fundo e viu-me
caminhar a seu encontro. Abraçou-me, dando um ligeiro
beijo em minha face, enquanto me cumprimentava. Notou
que eu estava diferente, parecia estranha.
— Aconteceu alguma coisa, Maria Eugênia? - indagou.
Respirei fundo e respondi, tentando conter a satisfação:
— Pois não sabe? Acabamos de perder Ritinha, que morreu
afogada.
Diante de meus olhos, vi Guilherme fraquejar. De repente
ficou pálido, a respiração se lhe alterou; levou a mão ao
peito, onde o coração pulsava descontrolado, e notei que ela
tremia. Deixou-se cair numa cadeira e, ao ver-lhe a reação,
eu disse com uma ponta de ironia, como se estranhasse a
atitude dele:
— O que houve, querido? Parece-me que você não está
bem!
— É verdade. Acho que é porque viajei sob um sol
extremamente forte. Foi um mal-estar passageiro. Estou
melhor.
— Ainda bem, Guilherme. Pensei até que a morte de minha
escrava fosse a causadora de tal reação da sua parte...
Com um sorriso amarelo, Guilherme tentou desfazer a
impressão, alegando:
— De maneira alguma, querida. Afinal, conheci Ritinha
superficialmente; apenas cruzei com ela algumas vezes aqui
dentro de casa.
Ele fechou os olhos, respirou fundo e, mais sereno,
perguntou:
— Mas o que aconteceu com a pobre moça?
Minha mãe, que chegara naquele instante e ouvira a con-
versa, após cumprimentar o genro, respondeu
delicadamente, para poupar-me da explicação:
— Foi um fato terrível e inexplicável, Guilherme. Ritinha
sempre teve medo de água e nunca se aproximava nem da
margem do lago. Naquela tarde, aceitou um convite de
Miguel para dar um passeio de canoa. Por uma dessas
fatalidades que só Deus sabe a razão, o remo caiu na água,
escapando da mão de Miguel, e ele, tentando apanhá-lo,
desequilibrou o barco, que virou, jogando Rita na água. Foi
uma desgraça! Os escravos
fizeram de tudo para salvá-la, porém não conseguiram.
Quando a retiraram da água já estava morta. Dinha está
desolada.
Mamãe parou de falar, olhou para mim, tomou-me a mão na
sua e disse:
— Está bem, minha filha?
Guilherme, observando o cuidado de minha mãe para
comigo, indagou:
— Maria Eugênia está com algum problema?
— Minha filha ficou muito abalada com a tragédia que se
abateu sobre a nossa casa. Não ignora que ela era muito
afeiçoada à falecida, e, como é sensível, tem estado um
pouco nervosa.
Intimamente, eu agradeci a desculpa que minha mãe deu
para meu estado. Era uma maneira de justificar-me as
reações, sem me comprometer. Felizmente, ela e os demais
estavam bem distantes da verdade.
ESSE DIÁLOGO OCORREU LOGO após o retorno de Guilherme.
Depois disso, as coisas só pioraram. Vezes sem conta eu o
encontrava com o olhar perdido ao longe, entregue aos seus
pensamentos, e vê-lo assim me deixava ainda mais nervosa e
irritada. Sabia que ele estava pensando em Rita, lembrando-
se dela e lamentando a sua morte prematura, no auge da
mocidade e da beleza.
Para controlar meus impulsos, passei a fazer uso de bebidas
alcoólicas. Meu pai tinha uma vasta e bem suprida adega, e
cm nossa sala havia um armário com farta exposição de
vinhos. Notei que, quando tomava um gole, conseguia ser
mais natural e enfrentar as situações com tranqüilidade, sem
me desequilibrar. Assim, fui aumentando aos poucos as
doses até chegar a um ponto em que não podia mais passar
sem elas. Ao mesmo tempo, a presença da alma de Rita se
tornou mais freqüente, constituindo-se num verdadeiro
pesadelo para mim.
17 – Enfrentando conseqüências
Minha existência virou um suplício inenarrável. Eu via o
vulto da escrava falecida ao meu lado, ameaçando-me e
acusando-me pela sua morte. Desejava ela que eu me
penitenciasse, confessando o crime que cometera com a
cumplicidade de Miguel. Isso, no entanto, estava fora das
minhas cogitações. Então, eu fugia. Corria pelos corredores,
subia as escadarias e andava a esmo pelo terraço de cima, de
onde descortinava o lago, límpido e calmo, mas que me
parecia tão ameaçador.
Rita vinha ao meu encontro, torturava-me, reclamava do seu
estado, do seu sofrimento, chorava desconsolada, e eu
procurava esconder-me para não mais vê-la nem ouvi-la.
Contudo, ela sempre descobria meu esconderijo, e a
perseguição prosseguia cada vez mais acirrada.
Quando tudo começou, mamãe ia ao meu encontro ten-
tando acalmar-me.
— O que está acontecendo com você, minha filha? Por que
essa correria pelos corredores da casa?
E eu, apavorada, fazia sinal para que ela se calasse. Depois,
em voz baixa, explicava:
— É ela, mamãe. Ela quer me pegar.
— Ela quem, minha filha?...
Com expressão de pavor no semblante, eu respondia:
— Ela! Ela! Não posso dizer-lhe o nome.
Aconchegando-me em seus braços, minha mãe, com
carinho infinito, afirmava cheia de piedade:
— Não há mais ninguém aqui, minha filha. Só você e eu.
Olhe! Estamos sozinhas!
E eu levantava a cabeça e arriscava a olhar em torno. Como
não via nada, mais encorajada, eu procurava atrás das portas
e das cortinas, debaixo das camas, até que, afinal,
tranqüilizava-me.
— É verdade, mamãe. Ela foi embora. Sua presença fez com
que ela desaparecesse.
E esses diálogos se repetiam vezes sem conta. As pessoas na fazenda
evitavam tocar no assunto, compreendendo meu estado de
desequilíbrio mental. Notavam, contudo, que Miguel sofria
também de alucinações, como se estivesse ficando louco. Ligaram os
fatos, percebendo que eles haviam começado à mesma
época, isto é, por ocasião da morte de Ritinha, que, qual
alma penada, era vista vez por outra caminhando pela
fazenda, na senzala e até na casa-grande. Porém, não
entendiam por que Miguel e eu estávamos sendo mais
atingidos pela infeliz morta.
Muitos escravos da fazenda, acreditando na imortalidade da
alma e na possibilidade de comunicação entre os dois mun-
dos, sabiam que esses fatos tinham relação com o dom de
ver e ouvir aqueles que já haviam deixado a Terra. Por isso,
encaravam como fenômeno natural as aparições de Ritinha e
as alterações que se efetuavam em várias pessoas,
especialmente em mim e em Miguel.
O tempo foi passando. Meu pai mal conversava comigo.
Sentia vergonha do meu desequilíbrio, que ele
absolutamente não entendia, julgando-me "fraca das idéias",
como se dizia. Por esse motivo, nunca mais recebemos
visitas em casa para aqueles saraus e festas tão apreciados por
nossa família e pelas pessoas das redondezas. Ele, o grande
Felipe de Albuquerque Figueiroa, uma das pessoas mais
importantes da região, não queria que soubessem que sua
filha única estava louca.
Guilherme se tornou a sombra do que fora. O filho que
desejávamos, e que poderia ter conservado nosso
casamento, não veio. Não suportando meu desequilíbrio,
meu marido passou a sair com freqüência, permanecendo
cada vez mais tempo fora de casa. Quando eu exigia uma
explicação, ele inventava uma desculpa, alegando ter passado
o tempo a jogar com amigos, ter ido à vila, ou qualquer
outro motivo.
A grande verdade é que somente ele desejava um filho. Eu
odiava a idéia de ficar grávida e ver meu corpo alterar-se dia
após dia até ficar enorme, gorda e disforme, como via
acontecer com as negras da fazenda.
Por esse motivo, na primeira vez que percebi a falta das
regras, fiquei desesperada. Ansiei alijar-me do fardo
incômodo e indesejado. Lembrei-me, então, de uma escrava
"fazedora de anjos", como tinha ouvido dizer desde criança.
Certa ocasião, brincando com Rita perto da senzala, ouvi
uma conversa entre duas escravas, em que elas comentavam
sobre uma terceira, que resolvia "certos problemas"
indesejados. Essa escrava, Joana, não era bem-vista na
fazenda, talvez exatamente por suas ações. Recordando-me
desse fato, fui procurá-la. Bastante idosa, ela atendeu-me.
Depois disso, por três vezes recorri a seus serviços, pois
jamais desejei ser mãe. Às vezes, ela me dava uma
beberagem preparada com ervas, e o problema era resolvido.
De outras, quando a gestação estava mais avançada, era
necessário algo mais radical. Então, procurávamos lugar
discreto, tomando cuidado para não sermos vistas por
ninguém. Ali, no meio do mato, ela fazia o serviço, e eu
retornava para a casa-grande, sentindo-me fraca e cheia de
dor. Deitava-me e, não raro, diante da hemorragia, Dinha se
assustava, e eu alegava ser um fluxo mensal mais intenso.
O tempo foi passando.
Certo dia, dois anos depois, a tragédia novamente visitou
nossa casa.
Estávamos em 1843. O filho do escravo Honório, um
menino de oito anos de idade chamado José, estava pegando
uma fruta do pomar para comer. Por infelicidade, meu pai
passava pelo local e o viu. Puxou as rédeas, fazendo o cavalo
parar, e chamou a atenção do menino aos berros:
— O que está fazendo, José?
— Sinhô, eu estava com fome! - defendeu-se o garoto,
assustado.
Com o olhar coruscante de ódio, segurando as rédeas com
firmeza para conter o cavalo indócil, ele respondeu:
— Não quero saber se você estava com fome, moleque
safado! Ninguém tem direito de roubar frutas do meu pomar!
Cambada de desocupados!
— O pomar é grande e tem tantas frutas, sinhô! Eu não
estava roubando, não sinhô! Estava pegando do chão. Veja,
elas caem do pé e apodrecem, sendo comidas pelos bichos.
— Não é da sua conta, moleque petulante! Prefiro que as
frutas apodreçam no chão a alimentar o bucho dos escravos!
Depois, tirando o chicote da cintura, ia dar-lhe uma
chibatada quando o cavalo, por causa de uma pressão maior
nas rédeas, empinou, relinchando. Manteve-se por alguns
segundos quase na vertical; depois, ao descer, atingiu o
menino com as patas. O garoto foi arremessado ao solo, todo
ensangüentado.
Alguns escravos, que capinavam ali perto, viram quando o
patrão chegou e gritou com o menino no pomar. De
imediato, um deles se apressou a alertar Honório, que estava
a uns cinqüenta metros. O escravo largou o que estava
fazendo e veio correndo. Aproximando-se, ainda teve
tempo de ouvir as últimas palavras do patrão e, ao mesmo
tempo, com grande pavor, ver a cena trágica do filho
atingido pelas patas do cavalo.
Lançou um olhar dolorido para meu pai e jogou-se no chão
ao lado do menino, gritando:
— Meu filho! Meu filho! Acorde, meu filho! Responda, José!
No entanto, o menino permanecia prostrado, Honório viu a
fenda que se abrira na cabeça do filho e o sangue que dela se esvaía
aos borbotões; notou a ausência de respiração e percebeu
que a vida já abandonara aquele pequeno corpo.
Aconchegando o filhinho nos braços, com infinito amor,
chorou convulsivamente.
O fazendeiro, indiferente à sua dor de pai, apeou do animal
afirmando:
— Teve o que merecia. Quem mandou vir roubar frutas?
Não sabe que é proibido?
Ao ver tanta insensibilidade, revoltado com as palavras de
meu pai diante daquela tragédia causada por uma simples
fruta, enlouquecido de ódio, Honório perdeu a cabeça. Foi
tudo muito rápido. Abandonando o corpinho do filho
estendido no solo, Honório relanceou o olhar esgazeado em
torno e viu um galho caído, aí perto. Apanhou-o e,
enquanto o sinhô, de costas, ajeitava as rédeas para montar e
ir embora como se nada tivesse acontecido, deu-lhe uma
paulada na nuca.
Felipe de Albuquerque Figueiroa caiu estatelado no chão,
sem soltar um gemido.
Ao perceber o que fizera em um momento de ódio, Honório jogou-
se sobre o corpo do filhinho morto, vertendo lágrimas amargas. Os
escravos, que tinham acorrido ao local, se depararam com a trágica
cena: o menino morto de um lado e o sinhô caído do outro. E, no
meio deles, Honório, em choque, sem saber o que fazer. Os
amigos, preocupados com sua segurança, aconselharam-no a
fugir para não ser preso.
— Vá, meu amigo. Cuidaremos da sua família. Fuja rápido,
antes que o capataz o veja - afirmou Amaro.
Honório embrenhou-se pelos matos e nunca mais tivemos
notícias dele.
MAMÃE E EU TIVEMOS conhecimento da tragédia no
momento em que os escravos chegaram com o corpo de
meu pai, sem vida. Mamãe ficou desesperada, jogando-se
sobre ele a gritar e a chorar, porém nada mais podia ser feito.
No fundo, sempre imaginamos que isso poderia acontecer
um dia, porque meu pai era extremamente autoritário e rude
com os escravos, que o detestavam.
O feitor informou minha mãe da tragédia, contando-lhe os
fatos conforme lhe narraram os escravos que foram
testemunhas, e deu-lhe ciência dos procedimentos que iria
tomar:
— Sinhá Virgínia, diante do acontecido, Honório, o assas-
sino do sinhô Figueiroa, fugiu. Mas não se preocupe. Estou
organizando um grupo de homens para caçá-lo. A sinhá
pode ficar
descansada que encontraremos esse criminoso onde ele
estiver e o traremos de volta para que tenha o castigo que
merece.
Com firmeza, minha mãe ordenou:
— Basta de tragédias, Roque! Que a justiça se encarregue de
perseguir o escravo, não nós.
Assim, apesar de descontente, o capataz, louco para pôr suas
mãos no fujão e levá-lo para o tronco, teve de obedecer às
ordens de minha mãe, que, com a morte de meu pai, era
agora a patroa.
O velório transcorreu normalmente. Como meu pai era
homem de prestígio na sociedade da região, muita gente
compareceu ao seu enterro. Não posso dizer que lamentei a
morte dele. Nunca fôramos muito ligados um ao outro.
Confesso até que senti certo alívio.
Passados os primeiros tempos de tristeza e luto, mamãe se
tornou outra pessoa: mais segura, mais firme em suas
decisões, mais experiente e também mais calma. Depois de
tantos anos, dominada pela personalidade férrea de meu pai,
voltou a ser ela mesma.
Quanto a Guilherme, com a morte de Rita, tornou-se ainda
mais distante e, certamente por influência dela, agora
desencarnada e que destilava seu ódio por mim, ele me
rejeitava. Nada havia que nos prendesse um ao outro, pois
ele não me amava nem nunca me amou.
Percebia no seu olhar o quanto me era indiferente, até que
ele acabou por abandonar-me, indo morar na fazenda junto
com seus pais.
A maior parte do tempo, porém, passava em viagens pelo
Velho Mundo.
MAIS TRÊS ANOS SE PASSARAM na ampulheta do tempo. Corria
o ano de 1846.
Mamãe se tornara uma mulher forte e muito querida por
todos. Administrava nossa propriedade com pulso firme e
competência. Sob sua autoridade, Roque teve de baixar a
cabeça, respeitando os escravos, que passaram a ter uma
existência mais fácil e confortável. Sem dúvida, ele não
gostava daquilo, pois tinha temperamento violento e às
vezes reclamava. Certo dia, particularmente inconformado,
ele desabafou:
— Sinhá Virgínia, esses escravos estão muito moles, não
querem trabalhar direito, porque têm vida muito boa. É
necessário dar-lhes um corretivo para que aprendam a
respeitar a autoridade. Eles não têm mais medo de mim nem
temem o tronco, que não serve mais para nada. Há quanto
tempo ninguém recebe umas chibatadas nesta fazenda?
Sentada atrás de sua mesa no escritório, minha mãe colocava
em ordem alguns documentos e, ao mesmo tempo, ouvia o
capataz que, parado à sua frente, falava revirando o chapéu
nas mãos, irritado e nervoso.
Largando os papéis sobre a mesa, mamãe deixou que ele
falasse sem interromper, depois considerou com seriedade:
— Roque, eu entendo que sinta falta da época em que
trabalhava sob as ordens de meu marido, todavia penso de
forma diferente da dele. Se você está desgostoso e não de
seja permanecer aqui na fazenda, é livre para procurar um
trabalho mais de acordo com suas tendências de violência e
agressividade.
Arregalando os olhos, o feitor parou de rodar o chapéu,
assustado:
— Não, sinhá Virgínia! Longe de mim querer deixar o
serviço aqui na fazenda. Apenas julguei que, talvez, uma
atitude mais dura de vez em quando colocaria todos em seu
devido lugar. Só isso! Não me entenda mal! Gosto de
trabalhar aqui, onde estou desde criança. Cresci e substituí
meu pai como capataz do sinhô Frederico de Albuquerque
Figueiroa, pai do seu falecido marido, sinhô Figueiroa. Não,
sinhá Virgínia. Não quero ir embora.
— Então, Roque, prossiga com suas atividades normais. Os
escravos estão bem, trabalham com afinco e mostram grati-
dão pela maneira como são tratados. Não se esqueça de que
os
escravos, apesar da posição de inferioridade que ocupam, são
pessoas como nós e, por isso, merecem uma vida digna.
— Sim, sinhá - concordou ele baixando a cabeça.
— Muito bem. Mais algum assunto?
— Sim, sinhá Virgínia. O Miguel.
— O que tem ele?
— Continua do mesmo j eito, acuado no mato, mal a gente o vê.
Foge de todos e vive como um bicho. Fala coisas sem
sentido. O que faço com ele?
— Se Miguel não representa perigo para ninguém, deixe-o
como está. Ainda é pai Albino que cuida dele?
— Sim, sinhá.
— Então, não precisa se preocupar. Cuide para que nada
falte ao pobre louco e a pai Albino.
— Entendido, sinhá.
— Mais algum outro assunto?
— Não, sinhá Virgínia.
— Então está dispensado.
— Obrigado, sinhá. Até mais ver.
Com uma leve inclinação de cabeça, Roque deixou o escri-
tório. Entrei na sala, encontrando mamãe parada, olhos
perdidos ao longe. Não pude deixar de notar que o tempo
fizera bem a ela. Tinha alguns fios de cabelos grisalhos nas
têmporas, que usava presos na nuca, em um coque; sua pele
continuava sendo bela e fresca, como se o passar dos anos
não a tivesse afetado; seus olhos eram mais doces, mais
ternos, embora firmes, e o sorriso continuava a ser o de uma
menina. Dei uma volta na mesa, abraçando-a.
— Está triste, minha bela mãe?
— Não, minha querida. Pensativa, apenas.
— Foi a conversa com Roque que a deixou assim?
— Sim, Maria Eugênia. Lembrou-me dos tempos em que seu
pai estava aqui conosco e falou-me também da época em
que trabalhou para seu avô Frederico, há muitos anos. Dinha
conta que, conforme a mãe dela afirmava, sua avó Heloísa
era muito boa. Quanto a seu avô, era cruel e violento,
mantendo todos debaixo de sua chibata.
Deixei-me cair em uma cadeira de braços, após servir-me de
um copo de vinho.
— Não pude deixar de ouvir uma parte da sua conversa com
Roque. Perdoe-me, mamãe. Eu cheguei e fiquei aguardando
que ele saísse.
— Não precisa me pedir perdão, Maria Eugênia. Meus
assuntos com Roque não são sigilosos, dizem respeito à
fazenda e, aliás, seria bom que você estivesse inteirada de
nossos problemas.
— É mesmo? Então, confesso-lhe que, de certa maneira,
penso como ele.
Mamãe olhou-me séria, vendo o copo em minhas mãos.
— Sim? Em que sentido, minha filha?
— Concordo com ele que os escravos estão muito moles,
indolentes e que algumas chibatadas de vez em quando lhes
faria bem.
— Pois lamento discordar de você, minha querida. Aqui nesta
fazenda, enquanto eu viver, os escravos serão bem tratados.
Depois, mudando de assunto, sem dar-me tempo para
retrucar, recriminou-me:
— Já está bebendo tão cedo, Maria Eugênia?
— E por que não, minha mãe?
— Você tem bebido demais, filha.
— Não, mamãe. Só quando me dá vontade.
— Está estragando sua vida, Maria Eugênia!
Levantando o copo, fitava-o pela claridade que vinha da
janela, observando os raios de sol que incidiam sobre o
líquido e colocavam luzes em seu interior. Respirei fundo e
murmurei:
— A senhora não sabe como o vinho me faz bem. Afugenta
as imagens indesejáveis, dá-me calma e segurança para
enfrentar o dia.
Mamãe olhava-me preocupada e cheia de piedade.
— Como está hoje, minha querida? Dormiu bem?
— Como posso estar? Do mesmo jeito que estive ontem e
anteontem. Sinto-me péssima! Angustiada, nervosa,
sem objetivo na vida.
— Precisa procurar vencer esse mal-estar, minha filha. O
trabalho é excelente fonte de bem-estar e alegria. Venha
comigo! Vamos percorrer a propriedade. Tenho de ver as
plantações.
Além disso, quando eu me for, você será dona de tudo;
assim, deve estar inteirada da administração da fazenda.
Com carinho, mamãe deu a volta à mesa e, acercando-se de
mim, tirou-me o copo da mão. Depois, abraçando-me
ternamente, incentivou-me a levantar-me e a acompanhá-la.
18 – O louco
Mamãe sempre teve influência fundamental em minha vida.
Ao lado dela, tudo mudava, tornava-se melhor e as
amarguras deixavam de existir.
Embora sem vontade, concordei em acompanhá-la em sua
visita pela fazenda tão só para satisfazê-la. Florência
rapidamente providenciou uma cesta com farto lanche.
Tome preparou-nos os cavalos e, após vestirmos uma roupa
mais apropriada, colocamos o chapéu e saímos.
O ar fresco da manhã fez-me um bem incrível. Depois de
cavalgarmos pelos campos e vistoriarmos as lavouras, fomos
até o engenho, onde mamãe precisava dar algumas ordens;
depois, paramos debaixo de algumas árvores para repousar.
Ríamos a respeito de tudo e de nada em particular; colhemos
frutas e as provamos.
Então, debaixo daquelas árvores, comemos, bebemos e nos
deliciamos. Satisfeitas, nos deitamos na grama, observando
as aves que voavam no céu azul. De repente, comecei a rir
sem parar. Mamãe quis saber o que me causara o acesso de
riso, mas eu não conseguia falar; e ela, contagiada, me
acompanhou no repentino bom humor, tão raro. Afinal,
respirando fundo, expliquei:
— Estava pensando, mamãe, qual seria a reação de papai se
porventura nos visse aqui, deitadas na grama como duas
pessoas quaisquer...
— ... Como escravas, talvez, você quer dizer. Com certeza
ele iria estranhar. Não é o comportamento que se espera de
duas damas da sociedade.
E rimos novamente, cheias de alegria, como crianças
travessas que tivessem feito arte.
Eu me sentia feliz como havia muito não acontecia. A
cabeça estava leve, a mente livre de pensamentos nocivos.
Ao lado de mamãe, voltei a ser a menina que fora um dia.
Montamos, iniciando o caminho de volta para casa, con-
duzindo os cavalos lentamente. No meio da tarde, sob o sol
forte, nos sentíamos cansadas, suadas, mas satisfeitas. De
súbito, cerca de quinhentos metros antes de chegarmos à
senzala, mamãe e eu vimos um vulto que surgiu
repentinamente do meio do mato. Assustei-me. Porém, do
mesmo jeito que apareceu, ele sumiu. Era um homem.
Mamãe procurou tranqüilizar-me:
— Não é nada, filha. Deve ser o pobre Miguel, que se esconde de
todos, mas que não faz mal a ninguém.
Miguel! Há quanto tempo não ouvia falar dele! De repente, tive
vontade de vê-lo, e esse sentimento foi mais forte do que
eu. Desejava saber como estava, uma vez que não mais
tivera notícias dele.
Decidida, escorreguei do animal e caminhei na direção que
o vira tomar. Pisando com cuidado, sem fazer barulho,
aproximei-me de uma grande pedra e notei que, do outro
lado, quase imperceptível, havia alguém recostado nela. Dei
a volta e deparei-me com ele. Ao notar a presença de
alguém, ele tentou fugir. Fiz um gesto com as mãos,
enquanto dizia:
— Não! Não fuja, Miguel!
Ao ouvir-me a voz, ele levantou a cabeça, que mantinha
escondida entre os braços, mostrando temor no olhar.
Então, pude examiná-lo melhor. Extremamente magro,
cabelos desgrenhados, roupa esfarrapada, imundo, ele tinha
um ar de loucura que me impressionou. Nem de longe
lembrava aquele homem que fazia suspirar as mocinhas da
fazenda. Em seus olhos havia um ar distante e fugidio. Não
saberia dizer se me reconhecera. Resolvi perguntar:
— Lembra-se de mim, Miguel?
O pobre louco olhou para outro lado, como se não tivesse
ouvido minha pergunta. Mamãe, que se aproximara,
murmurou ao meu ouvido:
— Deixe-o em paz, filha. Vamos embora. Miguel não a
reconheceu.
— Não, mamãe! Preciso falar com ele! - respondi com
determinação.
Nesse momento, não sei se pela minha firmeza, ele enten-
deu que eu não iria embora sem alcançar meu objetivo.
Lentamente Miguel virou-se e, ignorando minha mãe, fitou-
me nos olhos e disse em um sussurro quase inaudível, como
se aquela conversa só a nós dois dissesse respeito:
— Ela não me dá paz.
— O que diz? - indaguei pensando não ter entendido direito.
— Ela não me dá paz. Culpa sua. Tudo culpa sua. Ela sofre e
me faz sofrer. Eu a vejo. Caminha como louca, gritando e
suplicando ajuda por todo lado. E a culpa é sua, maldita!
Mamãe, surpresa, não conseguia entender a razão daquelas
palavras que ele dizia, mas eu sim. E Miguel prosseguia:
— Ela está aqui. Ouve? Quer agarrar a sinhazinha e levá-la
junto com ela para o Inferno, onde vive. Algum dia
conseguirá, diz ela.
Um repentino temor me envolveu, como se um perigo real
me ameaçasse. Não podia mais permanecer ali ouvindo
aquela voz. Trêmula, comecei a correr e minha mãe me
acompanhou:
— Espere, minha filha. Não corra assim. Pode machucar-se
nessa vegetação cerrada!
Todavia, eu não a ouvia mais. Esquecera-me do cavalo, da
minha mãe, e corria como louca. Queria chegar o mais
rapidamente possível ao casarão, onde me sentia segura.
Cheguei à casa-grande com os braços arranhados pelos
espinhos e pelos galhos, as roupas sujas e estraçalhadas, visto
que, na pressa, por duas vezes havia caído ao chão. Subi as
escadarias correndo e escondi-me em meus aposentos, em
pânico.
Dinha, que no momento ajeitava um vaso de flores na sala,
ao me ver chegar naquele estado, deu alguns passos ao meu
encontro. Em seguida viu entrar mamãe, completamente
sem fôlego após a corrida desenfreada. Então parou,
assustada:
— O que aconteceu, sinhá? - indagou a escrava.
Caindo em uma cadeira, sem forças, mamãe pediu:
— Dinha, cuide dela. Estou sem condição de subir as escadas.
Preciso me refazer um pouco. Pegue a caixa de curativos e
tire-lhe o traje que está todo rasgado e sujo. Irei o mais
rápido possível.
— Sinhá Virgínia precisa de ajuda?
— Não, Dinha. Faça o que lhe pedi. Socorra minha filha.
A escrava subiu as escadarias correndo e entrou em meus
aposentos, preocupada. Depois de verificar como eu estava,
com imenso carinho, a ama tirou-me as roupas
delicadamente, enquanto eu gemia de dor. Em seguida, ela
limpou e lavou as feridas e arranhaduras com cuidado e
enxugou-me a pele, passou um ungüento e vestiu-me uma
camisa de dormir.
Mamãe, que já estava no quarto, recuperada, acompanhava
os cuidados que me eram dispensados. Nesse momento
alguém bateu à porta.
— Entre.
— Sinhá Virgínia mandou me chamar? - perguntou Tomé,
colocando a cabeça para dentro do aposento.
— Sim, Tomé. Vá buscar os cavalos. Eles foram deixados
naquele mato cerrado que existe na direção do fundo da
senzala.
— Sim, sinhá.
Foi a última coisa que ouvi. Naquele dia e noite delirei sem
parar. Trêmula, agitada e nervosa, com os olhos
esbugalhados, falava sobre coisas que ninguém entendia.
O doutor Teófilo, chamado em caráter de urgência,
receitou-me um calmante e acabei por adormecer.
Amanhecia. Os primeiros raios de sol tingiam o céu em tons
de rosa e laranja.
AINDA SONOLENTA, ABRI os olhos lentamente. Olhei em torno
e reconheci meu quarto: a penteadeira, com todos os objetos
de toucador de que eu apreciava; e as cortinas, entreabertas,
que deixavam entrever a claridade do dia.
Espreguicei-me, passando a língua pelos lábios ressequidos.
No mesmo instante, ouvi um farfalhar de seda e, quase ao
mesmo tempo, um perfume suave bem conhecido de
alfazema atingiu-me o olfato:
— Mamãe!
— Estou aqui, minha filha.
Respondendo-me ao chamado, seu rosto querido inclinou-se sobre
mim, e seus lábios deram um beijo em minha testa.
— Como está, minha querida?
— Estou bem. Sinto apenas os lábios secos e um gosto
amargo na boca.
Mamãe concordou:
— É do remédio que está tomando. Vou mandar servir-lhe
alguma coisa. Está com fome?
Concordei com um gesto de cabeça. Tentei mexer-me, mas
soltei um gemido.
— Ai! Por que estou tão dolorida? Sinto-me toda
machucada.
— Ainda é do dia em que você correu no meio do mato.
Não se lembra?
— É verdade. Foi ontem. Recordo-me de que desejava falar
com Miguel.
— Exatamente. Entretanto, esse fato aconteceu há três dias.
— Como assim? Parece-me que foi ainda ontem, mamãe.
— Compreendo sua estranheza, filha. Sucede que você
dormiu por três dias consecutivos. O médico afirmou que
era imprescindível para sua recuperação. E com certeza
estava com razão, pois você está muito bem.
Nesse momento, Dinha entrou trazendo uma bandeja com
refeição leve. Um prato de canja, um copo de suco de
laranja e uma fatia de pão fresquinho recém-saído do forno.
Sentada no leito, apoiada em travesseiros, fiz a frugal
refeição com prazer. Depois, satisfeita, voltei a sentir sono.
Acomodei-me de novo e adormeci.
Algumas horas depois, despertei animada e bem-disposta.
Toquei a sineta e levantei-me do leito. Logo Dinha
atendeu a meu chamado. Alegre por me ver de pé,
banhou-me e vestiu-me com capricho; em seguida, me
penteou. Quando terminou, sorriu:
— Agora está linda para se apresentar à sua mãe.
Dei uma última olhada no espelho e corri para a porta, mas
uma tontura repentina me fez parar. Teria caído ao chão se
Dinha não tivesse me amparado a tempo.
— Maria Eugênia, cuidado! Está muito fraca. Talvez deva
permanecer no quarto por hoje.
— Não, Dinha. Nada de quarto. Quero sair daqui – respondi
com firmeza.
— Então, ande devagar, com cuidado. Venha, apóie-se em
mim.
Assim, desci as escadarias sob o olhar surpreso de minha
mãe.
— Enfim, acordou! Vamos cear juntas esta noite. Estou
muito feliz, Maria Eugênia. Como se sente?
— Bem, mamãe. Um tanto fraca, mas estou bem.
— Então vamos para a sala de jantar, minha querida. A ceia
está sendo servida.
Mamãe conduziu-me até a sala contígua, sentamo-nos e
conversamos sobre trivialidades. Sempre ótima companhia,
junto dela o tempo passou de forma tranqüila e agradável.
Retomei minha vida, procurando fazer coisas interessantes e
que me davam prazer, como ler e cavalgar. Mamãe não
tocou mais no assunto.
Alguns dias depois, após o almoço, estávamos no terraço
aproveitando a temperatura amena e a aragem fresca da
tarde, quando mamãe perguntou:
— Maria Eugênia, posso lhe fazer uma pergunta?
— Sem dúvida, mamãe.
— Lembra-se do que aconteceu no dia em que se
machucou?
— Sim, lembro-me.
— Pois bem. Então se recorda do que conversou com o
pobre Miguel?
Retesei os músculos do corpo, colocando-me na defensiva.
Notei que mamãe pisava em ovos, procurando com
delicadeza a melhor maneira de abordar o assunto.
— O que deseja saber, minha mãe?
— Naquele dia, Miguel lhe disse palavras incompreensíveis
para mim. Ele falava muito baixo, mas me deu a impressão
de que a acusava de alguma coisa. E quem era a pessoa a
quem
ele se referia?
Minhas mãos começaram a tremer e segurei-as, procurando
evitar que mamãe percebesse, enquanto buscava febrilmente
uma desculpa para lhe dar.
— Não sei, mamãe. A senhora mesma disse que ele está
louco! Como posso saber o que ele quis dizer? Também não
entendi! Pareceu-me desnorteado, confuso, louco. Na
verdade, mamãe, creio que devemos tomar cuidado com ele.
Nunca se sabe o que alguém nessas condições poderá fazer.
Pode tornar-se perigoso. Talvez devamos pensar em afastá-
lo em definitivo daqui.
Minha mãe fitou-me longamente. Notou que a pergunta me
deixara nervosa e procurou mudar o rumo da conversa.
— Bobagem minha achar que você tivesse entendido,
minha filha. Certamente Miguel precisa de cuidados, mas
não o considero perigoso. É um pobre diabo que não faz mal
a ninguém.
Talvez preocupada comigo, percebi que mamãe procurou
mudar de assunto.
— Gostaria de lhe fazer um convite, Maria Eugênia.
Lembrei-me de que preciso fazer algumas compras amanhã
cedo. Quer acompanhar-me à cidade?
— Pode ser, mamãe. Se estiver bem, irei. Será bom sair da
fazenda e ver outros ares.
Continuamos a conversar, mas eu sabia que, no fundo,
minha mãe estava intrigada. Pelo seu olhar, notei que ela
tinha certeza de que eu mentira, que eu sabia exatamente o
que Miguel dissera. Ela não quis, porém, acuar-me, temendo
colocar em risco meu frágil equilíbrio, tão duramente
recuperado.
NAQUELE DIA, MAMÃE COMEÇOU a juntar os fatos. Os
problemas, tanto os de Miguel quanto os meus, surgiram por
ocasião da trágica morte de Rita. Até essa época, tudo estava
bem. As palavras de Miguel e a maneira como foram ditas
não lhe saíam da cabeça. Tentando lembrar-se do que ele
dissera, mamãe acabou por ficar assustada com o que
percebeu. Claramente o escravo acusava-me pela morte
dela. "Quem seria essa ela? Quem morrera? Rita! Então, essa
ela só poderia ser Rita! Quem mais?". Recordava-se muito
bem das palavras dele: "Ela não me dá paz. Culpa sua. Tudo
culpa sua. Ela sofre e me faz sofrer. Eu a vejo. Caminha
como louca, gritando e suplicando ajuda por todo lado. E a
culpa é sua, maldita!"
Por que a culpa seria de Maria Eugênia? O que minha filha
teria a ver com isso? O acidente acontecera no meio do lago,
e na canoa só estavam Miguel e Rita. No entanto, ele fora
muito claro. "E a culpa é sua, maldita!" - dissera ele.
"Interessante", pensava Virgínia, "em suas crises Maria
Eugênia igualmente se refere a alguém que chama de ela.
Quem será essa ela!"
Cansada de raciocinar, com a cabeça confusa, incapaz de
entender o que existia por trás dessas palavras, mamãe
pensou: "Se pelo menos eu tivesse alguém que pudesse me ajudar a
decifrar esse mistério..." De súbito, ela levou a mão à cabeça.
— Pai Albino! Por que não me lembrei disso antes?
Então, decidiu que procuraria o ancião no dia seguinte.
Quem sabe ele poderia ajudá-la?
Mamãe adormeceu naquela noite sentindo-se mais serena e
cheia de esperança, embora uma vaga sensação de medo a
invadisse sempre que pensava em descobrir a verdade.
19 – A verdade vem à tona
Na manhã seguinte, aconteceu um fato estranho. Eu levantei
e, depois de me vestir, dirigi-me à sala para tomar o café da
manhã. Como mamãe sempre me esperava para fazermos
essa primeira refeição juntas, estranhei a ausência dela e
perguntei a Odete.
— Mamãe já se levantou?
— Sim, sinhazinha. Sinhá Virgínia tomou café faz tempo, e
saiu para a lida.
— Ah! Que pressa! Pode dizer-me para onde ela foi?
— Isso eu não sei dizer, sinhazinha.
— Viu que direção ela tomou?
— Não vi não, senhora.
— Está bem. Traga-me um leite quente, que este já esfriou.
Pensativa, tomei lentamente meu café. Não havia motivo
para estranhar a ausência de minha mãe. Responsável pela
fazenda, teria muitas coisas para fazer. Contudo, lá no fundo
alguma coisa ficou me incomodando.
Acabei de tomar o café e sentei-me na sala com livro nas
mãos. No entanto, não conseguia fixar-me na leitura.
Saindo DA CASA-GRANDE, mamãe pegou seu cavalo que já
estava pronto como de costume, porém não se dirigiu
às atividades costumeiras. Caminhando, levou o animal
pela mão, indo direto para a senzala, onde se entreteve a
conversar com os escravos, como vez por outra fazia, para
inteirar-se de suas dificuldades, da família, se estava tudo
bem. Informava-se sobre a saúde de um, interessava-se pela
ferida resistente de outro, conversava com as crianças.
— Mercedes, como vai o pequeno?
— Vai bem, sinhá Virgínia. Andou meio caidinho, mas pai
Albino deu um chá que foi muito bom. Joãozinho ficou bom
logo.
— E Amaro? Melhorou da perna?
— Ah, sinhá! Ainda está muito inchada e vermelha. Hoje
não foi nem pra lida, de tanta dor. Estou passando um
ungüento e, com a ajuda de Deus, vai melhorar.
— Onde ele está?
— Aqui em casa, descansando.
— Agora, na fazenda, os escravos casados tinham direito a
uma moradia separada dos demais, que ficava junto da
senzala. Mamãe entrou na casa e, em um canto, deitado em
uma esteira, viu um homem.
— Bom dia, Amaro. Como vai essa perna?
— Sinhá, me perdoe, mas não pude ir pra roça hoje. Está
doendo muito.
— Estou vendo. Realmente, a ferida está com mau aspecto -
disse, examinando a perna do escravo. - Como está tratando,
Mercedes?
— Sinhá Virgínia, faço como pai Albino mandou: lavo bem
a ferida, depois coloco um ungüento feito de folhas; em
seguida, pego um pano limpo e amarro para os mosquitos
não
assentarem.
— Então, continue com o tratamento. Vou ver se o
médico pode vir à fazenda para examinar Amaro e outros
que estão precisando. Já está mesmo no tempo de ele vir. A
propósito, preciso conversar com pai Albino, Mercedes.
Sabe onde ele está?
Cheia de boa vontade, a escrava informou com um sorriso:
— Sei sim, sinhá Virgínia. Vi pai Albino caminhar por aquele lado.
Acho que ele foi colher ervas. Quer que a acompanhe?
— Não, Mercedes, obrigada. Se ele tomou aquele rumo, sei
onde encontrá-lo.
Montou no cavalo e, conduzindo-o com cuidado para não se
ferir nos arbustos, ela chegou até o local onde pai Albino
cultivava suas plantas medicinais.
Quando ela se aproximou, o ancião estava agachado,
retirando algumas ervas daninhas que cresciam no meio da
plantação. Ao vê-la, ele parou o que estava fazendo e sorriu.
— Bom dia, sinhá Virgínia. Que bons ventos a trazem por
aqui hoje?
Ela sorriu ao vê-lo, amarrou o animal em um arbusto e
respondeu:
— Bom dia, pai Albino. Resolvi sair para ver como está o
pessoal. Sua plantação está uma beleza!
Ela sentou-se em um tronco de árvore que havia ali perto,
tirou o chapéu e enxugou o suor da testa com a mão,
enquanto ele dizia:
— Bondade sua, sinhá. Já esteve melhor, mas a época não é
boa, pois a chuva tarda e as plantas se ressentem.
— É verdade. O calor está intenso e, mesmo com a presença
de nuvens, a chuva não vem.
Pai Albino acocorou-se no solo, à sombra da árvore; sem
pressa, tirou da algibeira uma palha de milho, um
punhadinho de fumo que trazia embrulhado em um pedaço
de pano e colocou na palha, enrolando com delicadeza.
Depois, levantou-se e, aproximando-se da pequena fogueira
que ele mantinha acesa, pegou um graveto e acendeu o pito.
Em seguida, tirou algumas baforadas, sentou-se e só então
perguntou:
— O que a traz aqui, sinhá Virgínia?
— Bem, estou precisando de alguns galhos de alfavaca para
fazer um chá. Florência está com uma tosse danada.
Ele, pensativo, voltou a dizer:
— Mas pra isso não carecia a sinhá ter-se dado ao trabalho
de vir até aqui. A Florência sabe onde encontrar as ervas de
que precisa. A não ser que a sinhá precise de outras
informações...
Vendo que não conseguia enganá-lo, ela explicou:
— Tem razão, pai Albino. Estão acontecendo coisas que não
entendo, e necessito da sua ajuda.
— Pois pode falar, sinhá. A dúvida é muito cruel, não é
mesmo?
— Sim, é verdade. Por isso, vou direto ao assunto. Pai Albino, qual a
relação que existe entre a morte da Ritinha, minha filha
Maria Eugênia e Miguel?
O ancião ficou pensativo, e depois respondeu com outra
interrogação:
— Sinhá, essa é uma pergunta difícil de responder. Por que
quer saber?
Mamãe relatou ao idoso escravo o que tinha acontecido no
dia em que ela e eu saímos e encontramos Miguel no meio
do mato. Contou detalhadamente o que houve aquele dia, a
conversa que tivemos e a minha perturbação. Contou também o
diálogo que teve comigo, quando se surpreendeu com meu
medo e percebeu nitidamente que eu estava mentindo.
Depois, concluiu:
— Pai Albino, sua sabedoria é grande e sei que nada ignora
do que acontece. Tem um poder que ultrapassa meu
entendimento e sei também que fala com aqueles que já
morreram. Então, por
piedade, esclareça-me. Preciso saber o que aconteceu
realmente com a Ritinha e que envolve Maria Eugênia e
Miguel.
O ancião baixou a cabeça, pensou um pouco e respondeu:
— Minha filha, existem coisas que não dependem de mim.
Esse segredo não me pertence. Não me obrigue a falar do
que não devo nem posso.
— Então, é verdade que existe um segredo!... Pai Albino
conhece a verdade, mas não pode falar. É isso?
— Sim, filha. A sinhá terá de descobrir por si mesma.
— Pai Albino pode, pelo menos, mostrar-me como agir para
ajudar Maria Eugênia?
— Reze, sinhá, reze muito. Não apenas para auxiliar sua
filha, mas para ajudar também os outros envolvidos.
Ela balançou a cabeça. Tinha entendido. Teria de rezar para
Deus ajudar também Miguel e Ritinha. Mas por quê?
Percebendo que o ancião nada mais diria, afastou-se
refletindo em tudo o que ouvira. Ela teria que descobrir o
que acontecera. Mas, como?
Nesse momento, lembrou-se de Miguel. Sim, o pobre louco
poderia esclarecê-la.
Saindo dali, encaminhou-se para o local onde tinha
encontrado Miguel. Era um lugar chamado de Pedra Grande,
porque lá havia uma imensa pedra, exatamente onde eu
tinha visto Miguel. O local era evitado, pois os mais velhos
afirmavam que era ali que o antigo fazendeiro, Frederico
Figueiroa, castigava seus escravos, longe da casa-grande, para
que a esposa, Heloísa, bondosa e amante da paz, não
presenciasse as crueldades do marido. Defensora dos cativos,
ela não aceitava que os prendessem ao tronco, nem que
fossem torturados. Assim, o velho fazendeiro utilizava
aquele lugar para castigar seus escravos.
Mamãe sentiu um arrepio de medo percorrer seu corpo. O
local lhe dava mal-estar. Todavia, era ali que Miguel se
refugiava quando desejava ficar só. Não queria assustá-lo.
Então, deixou o cavalo pastando a pouca distância e
caminhou até mais perto; logo o viu sentado no chão,
entretido em chupar uma fruta.
Os ouvidos aguçados do jovem perceberam o abafado ruído
de folhas secas sob os pés. Era alguém que se aproximava.
Ele ergueu a cabeça e, ao ver a sinhá, ameaçou levantar-se
para fugir. Com um gesto rápido, ela o impediu:
— Espere! Não fuja, Miguel. Preciso lhe falar.
Ele parou e voltou a sentar-se, olhando-a assustado.
— Não tenha medo, Miguel. Quero saber apenas se precisa
de alguma coisa.
Ele fez um gesto negativo com a cabeça. Ela prosseguiu:
— Desejo ajudá-lo. Gostaria de saber onde você dorme, o
que come... como vive...
Ele a fitou de novo, agora mais longamente, como se a
examinasse para saber sua real intenção. Então, mamãe
resolveu falar sobre o assunto que a interessava. Sentou-se
no tronco mais próximo e perguntou:
— Miguel, ela continua a perturbá-lo? Continua a vê-la?
Ele tirou a manga da boca, assustado. Depois fez um gesto
afirmativo com a cabeça. Ela exultou. Miguel tinha
respondido à sua pergunta.
— Conte-me. Talvez possa ajudá-lo, mas preciso saber: O
que ela quer de você?
Miguel encolheu-se ainda mais de encontro à grande pedra,
escondendo a cabeça por alguns minutos. Mamãe achou até
que ele não fosse responder, mas depois lentamente, em voz
baixa, ele disse:
— Ela me acusa. Não tive culpa. Não tive culpa...
Encorajada pelo resultado que obteve, rainha mãe
prosseguiu:
— Sim, eu sei. Claro que você não teve culpa. Acredito em
você. Mas então, quem é o culpado?
Ele permaneceu calado por alguns segundos, depois
respondeu:
— Sinhazinha. Ela é a culpada.
"Meu Deus! Então não entendera errado. Ela, fosse quem
fosse, acusava Maria Eugênia. Mas, de quê?". Então,
perguntou com medo:
— A sinhazinha é culpada de quê, Miguel?
Nisso, Miguel começou a ficar agitado, nervoso:
— Ela está aqui! Ela quer justiça! Deseja vingar-se...
Aproximando-se dele, mamãe pegou-o pelos ombros.
— Olhe para mim, Miguel. Preste atenção: Ela deseja vingar- se de
quê, Miguel? Quem é ela? O que a sinhazinha fez contra ela?
Com os olhos vidrados, como se estivesse longe dali, vendo
outras imagens, ele respondeu:
— Pois a sinhá não sabe? Ela é Ritinha. A pobre Ritinha que
morreu afogada.
"Jesus Cristo!... Então, era exatamente o que eu pensava.
Todo o problema tinha relação com a morte de Rita, a filha
de Dionísia."
Entretanto, mamãe ainda tentava fugir da verdade que se
revelava, por ser extremamente cruel.
— Mas foi um acidente, Miguel! Não se culpe!
— Não! Não foi um acidente - respondeu ele, balançando a
cabeça.
Desse ponto em diante, dava a impressão de que ele falava
diretamente com alguém invisível que ali estivesse:
— Vá embora! Se afaste de mim! Está morta e nada posso
fazer por você, Rita. Sim, sei que sou culpado e a
consciência não me concede paz. Mas Maria Eugênia é a
verdadeira culpada. Foi ela que me induziu a matá-la naquele
dia. Claro, ela sabia que você tinha medo de água e que não
sabia nadar. Então, me convenceu a convidá-la para um
passeio de barco. Rezei para que você não fosse... Mas você
aceitou meu convite... Ao chegar mais no fundo, deixei cair
o remo e fiz o barco se desequilibrar... e você caiu no lago.
Mas você lutou e fui obrigado a empurrá-la para baixo até
que não voltasse mais. Por que não me deixa em paz? Vá
embora!
Minha mãe ouvia as palavras do infeliz Miguel em lágrimas.
Embora sentisse necessidade de ouvir a verdade,
contraditoriamente tapava os ouvidos para não escutar as
barbaridades que ele relatava sobre a morte de Ritinha.
Ele prosseguia:
— Depois, você não mais me deu paz. Perdoe-me, Rita.
Perdoe-me. Estou arrependido do que fiz. Não me maltrate
assim... Veja! Eles chegaram! As almas penadas do antigo
fazendeiro. Não me castiguem! Não me castiguem, por
piedade! Misericórdia!... Misericórdia!...
Sem poder ouvir mais nada, mamãe afastou-se do local em
choro convulsivo. Não sabia para onde ir. Não desejava
voltar para casa, onde encontraria a filha. Não se sentia em
condições de enfrentar Maria Eugênia, a filha querida que
ela nunca acreditara capaz de tamanha atrocidade.
Correu pelo mato, gritando e chorando até cair de cansaço
perto de uma árvore, em cujo tronco se acomodou. Seu fiel
cavalo a acompanhou, sem que ela desse pela presença dele.
Ficou ali chorando, enquanto as palavras do infeliz Miguel
ressoavam ainda em sua mente, repetindo vezes sem conta
os fatos que comprometiam sua filha.
Aos poucos, acalmou-se, depois de muito orar e pedir a
ajuda de Jesus Cristo. De olhos fechados, ali permaneceu por
algum tempo. De repente, sentiu a presença de alguém.
Abriu os olhos e encolheu-se, assustada.
— Não tema, sinhá Virgínia. Sou eu.
— Ah!... Pai Albino! Que sofrimento, meu Deus! Tenho a
alma em frangalhos e não sei o que fazer, meu pai. Agora
compreendo porque não pôde dizer-me a verdade.
— Tenha calma, minha filha. Deus é Pai e não nos aban-
dona. Para tudo há um jeito e uma solução.
— Estou estarrecida! Não posso acreditar, pai Albino. Maria
Eugênia sempre foi tão dócil, tão boa... O que pode tê-la
induzido a praticar um ato tão monstruoso?
— Quem sabe, filha? Pense e encontrará a resposta para
todas as suas dúvidas. Agora, regresse ao lar. A sinhá é
aguardada com ansiedade. Há muitas horas que de lá saiu e
todos estão preocupados. Procuram a sinhá por todo lado.
Vá, filha, porém evite tocar nesse assunto com quem quer
que seja.
— Eu sei, pai Albino. Especialmente com minha filha, cujo
equilíbrio é tão frágil. Agora entendo o sofrimento dela
nesses anos todos. Ela também está percebendo a presença
de Ritinha, que a persegue e a tortura.
— Sim, filha. Todavia, eu lhe asseguro: para ajudar a
sinhazinha Maria Eugênia, é preciso ajudar Miguel e,
especialmente, Rita. Depois falaremos sobre isso. Vá agora, e
que Deus a acompanhe.
Mamãe levantou-se, ajeitou as roupas amarfanhadas, passou
a mão pelos cabelos, pelo rosto, retirando os vestígios de
lágrimas; depois, respirou fundo, enchendo-se de coragem.
A verdade era difícil de suportar. No entanto, ainda não
estava de posse de toda a verdade. Precisava saber mais.
Com o coração apertado, ela ainda procurava encontrar a
resposta para uma pergunta crucial: "Por quê? Por que Maria
Eugênia planejou a morte de Rita, especialmente Ritinha que
sempre fora sua amiga? Ou não? O que teria acontecido
entre ambas para redundar nesse trágico drama?".
Cansada de refletir, montou no cavalo e iniciou o trajeto de
volta para casa. Ao chegar, encontrou-me na varanda, à sua
espera.
— O que houve, mamãe? Demorou tanto!
— Não aconteceu nada, minha filha. Tive problemas para
resolver no engenho.
— Mas está toda suja, a roupa amassada, os cabelos em
desalinho. O que sucedeu?
Ela procurou rápida uma desculpa plausível:
— Distraída, ao passar debaixo de uma árvore, bati em um
galho velho e caí do cavalo, batendo a cabeça em uma
pedra; devo ter ficado desacordada por algum tempo. Mas
agora estou bem, não se preocupe.
— Mamãe! Precisa ter mais cuidado. Não deve sair sozinha,
ainda mais tão longe, para as lavouras ou o engenho. Com
tantos empregados!
— Foi um incidente apenas, filha. Distração minha, não se
aflija. Como disse, estou bem. Agora vou subir. Estou cansada,
preciso tomar um banho e descansar um pouco antes da
refeição.
Depois que ela se afastou, entrando em casa, fiquei pen-
sando. O que teria acontecido? Ela me parecia muito
estranha. Eu não a vira desde cedo, mas algo me
incomodava de forma especial, e não conseguia entender o
que era.
Afinal, depois de muito pensar, acabei por descobrir: mamãe
não me olhara nos olhos, como sempre fazia. Seu olhar fugia
do meu! O que estaria acontecendo?
20 – Dúvidas
No dia seguinte, pela manhã, inesperadamente Guilherme
chegou a nossa casa.
De quando em vez, ele aparecia na fazenda para nos visitar.
Nutria especial carinho por minha mãe, com quem gostava
de conversar. Apesar de estarmos separados, preocupava-se
conosco, especialmente após o falecimento de meu pai.
Da janela do meu quarto, no primeiro andar, pude vê-lo na
estrada se aproximando. Desci rapidamente e fiquei
escondida, observando. Ele apeou do cavalo e entregou-o ao
escravo que estava ali por perto.
— Tome, cuide dele. Não deixe que lhe falte água.
— Sim, sinhô Guilherme. Pode ficar descansado.
Depois, caminhando para a entrada, tirou o chapéu, pegou o
lenço na algibeira e enxugou a testa. Mamãe o viu
aproximar-se e, passando por mim sem notar minha
presença, foi ao encontro dele.
— Guilherme! Que surpresa! Bom dia! Bem-vindo à nossa
casa.
Inclinando-se elegantemente com reverência, ele beijou a
mão que ela lhe estendera e disse:
— Bom dia, senhora Virgínia! Precisei ver umas terras por
estas bandas e não resisti ao desejo de saber notícias suas e
de Maria Eugênia.
— Então, entremos. O sol está forte e o calor é intenso.
Mandarei que nos sirvam um refresco, enquanto
conversamos.
Sentaram-se na sala de visitas, e ele perguntou:
— Como vão os negócios, senhora Virgínia?
— Não muito bem, Guilherme. Mas, por certo, conhece o
problema, uma vez que também é fazendeiro. Atualmente,
os prejuízos são grandes com a lavoura, que sofre pela
estiagem
demorada. O engenho está parado; há uma peça quebrada. E
os animais, estando o pasto seco, perdem peso a cada dia.
Vamos ver até onde podemos agüentar.
Ele concordou, pegando o copo de refresco que Odete
servira:
— Também em nossa fazenda as coisas estão difíceis. Os
problemas são semelhantes. Mas esperamos que a chuva não
tarde. Como está Maria Eugênia? - perguntou, tomando um
gole do refresco.
O meu relacionamento com Guilherme não era o que se
poderia chamar de tranqüilo, e exatamente por isso ele se
afastara, indo morar com os pais. Nas vezes em que ele viera
nos visitar, eu evitava aparecer e, quando o fazia, o encontro
acabava em brigas e recriminações. Portanto, a pergunta
dele nesse momento fez com que minha mãe se lembrasse
de tudo o que já acontecera. Respirou fundo e respondeu
simplesmente:
— Ela está bem, obrigada.
Guilherme continuou olhando-a firme, como se analisasse
suas reações:
— Está bem mesmo? - insistiu. - Perdoe-me, senhora
Virgínia, mas da última vez em que estive aqui achei Maria
Eugênia muito nervosa.
— É verdade, Guilherme. Mas agora ela está bem melhor.
Fique para almoçar conosco.
— Infelizmente, hoje não posso, cara senhora Virgínia,
Nada me daria mais prazer do que provar a comida da
Florência. Todavia, tenho coisas importantes para resolver.
Como é do seu
conhecimento, meu pai não está bem de saúde e tenho
estado à frente dos negócios desde que cheguei.
— Por isso fiquei surpresa ao vê-lo hoje! Não sabia que tinha
voltado da Europa.
— Não tive alternativa, tendo em vista a gravidade do caso.
Quando meu pai piorou, eu estava em viagem e fui chamado
às pressas. Assim, procuro adaptar-me à nova situação,
tentando fazer o melhor, mas sinto falta de viajar, o que, na
atual circunstância, é impossível. Pelo menos, enquanto ele
não apresentar melhoras.
— E como está agora o senhor Cerqueira?
— Sofre muito com a dor nos ossos. Por falar nisso, devo ir-
me. Meu pai não pode andar, mas continua comandando
tudo da sua cadeira.
— É pena que não possa ficar, Guilherme. Transmita a ele os
nossos cumprimentos e votos de pronta recuperação, e um
abraço à querida Leonora. Diga-lhe que sinto falta dos
nossos
encontros. Ou melhor, diga que a espero um dia desses para
tomarmos chá e passarmos algumas horas agradáveis para
colocar os assuntos em dia.
— Transmitirei, sem dúvida. Até mais ver. Aceite meus
cumprimentos, senhora, extensivos à Maria Eugênia.
Mamãe levou-o até a porta. Depois, parecendo querer falar-
lhe a sós, acompanhou-o até o cavalo, o que não era usual. E
antes que ele se fosse, ela perguntou, baixando a voz:
— Posso fazer-lhe uma pergunta?
— Sem dúvida, senhora Virgínia - respondeu surpreso.
— Guilherme, durante o tempo em que você morou nesta
casa, notou algo estranho entre Maria Eugênia e Rita?
A expressão dele mudou, e pareceu-me que seus lábios
tremiam quase imperceptivelmente ao responder:
— Como assim, senhora Virgínia?
— Presenciou algum desentendimento, ou teve
conhecimento de alguma discussão, uma briga entre elas?
Guilherme permaneceu calado por alguns segundos, como
se pensando no que ia dizer. Depois respondeu lentamente:
— Absolutamente não. Mas, por que pergunta? Aconteceu
alguma coisa?
— Não, não aconteceu nada, Guilherme. Bobagem minha,
esqueça. Adeus.
Notei que ele titubeou, como se desejasse falar, mas ficou
indeciso se deveria ou não fazê-lo. Depois, colocou o
chapéu na cabeça e afastou-se a galope.
Mamãe retomou para dentro pensativa. Saindo do meu
esconderijo, cruzei-lhe a frente. Ela deu um grito:
— Ah! Que susto! É você, Maria Eugênia! Não perde o
hábito de escutar atrás das portas?
— O que ele queria? - indaguei curiosa e irritada.
— Apenas saber notícias nossas, minha filha.
— Não acredito. Guilherme sempre tem algo por trás de suas
atitudes.
Tentando contornar a situação, que poderia se complicar,
mamãe respondeu:
— Pois Guilherme me pareceu bem. Está até trabalhando!
Assumiu a administração da fazenda agora que o pai está
quase entrevado.
Dei uma gargalhada, comentando com ironia:
— Gostaria de ver meu querido esposo trabalhando! Tudo
isso deve atrapalhar-lhe as viagens, pobrezinho!
— Realmente. Segundo afirmou, não pode mais viajar. Pelo
menos por enquanto. Bem, vou cuidar de minhas
obrigações - respondeu mamãe, colocando um ponto
final no assunto.
Joguei-me em uma poltrona, refletindo em tudo o que
ouvira. Primeiro, desgostara-me bastante Guilherme
perguntar sobre mim, pois não tínhamos mais nada em
comum; em segundo lugar, achei estranho que minha mãe o
acompanhasse até o jardim e que eles ficassem conversando
em voz baixa. Por quê? Apesar do cuidado deles e da
distância, eu tinha conseguido ouvir alguma coisa. Notei a
perturbação de Guilherme e a preocupação de minha mãe.
Pareceu-me escutar o nome da Ritinha aliado ao meu. Seria
possível? Qual a razão? Saberia mamãe mais do que deveria
saber sobre esse assunto? Fiquei intrigada. Teria de ficar
atenta desse dia em diante.
Levantei-me e fui para a cozinha, onde mamãe dava algumas
ordens para Florência. Peguei um copo de refresco, sentei-
me e fiquei observando as duas. Mamãe olhava-me vez por
outra com expressão diferente, como se estivesse me
analisando. De repente, sentindo um misto de ciúme e raiva,
com voz autoritária, eu lhe disse:
— É preciso separar o bezerro da Malhada ainda hoje. Já
passou do tempo de desmamá-lo. E também vi que a cerca
está quebrada. Mande consertá-la.
Estranhando o tom com que eu me dirigira a ela, como se
estivesse lhe dando ordens, ela indagou-me surpresa:
— E desde quando se interessa por esses assuntos, Maria
Eugênia?
— Desde sempre.
Levantei-me e saí pisando duro. Florência, de olhos
arregalados, me observava, e quando saí ainda pude vê-la se
benzer. Mamãe, igualmente surpresa, não sabia o que
pensar.
Você notou, Florência, o comportamento de Maria
Eugênia? Não entendo! O que é isso? Tive uma
sensação estranha! Juro-lhe que me pareceu estar diante de
meu falecido marido! A mesma maneira de falar, o mesmo
olhar, a mesma arrogância.
A escrava benzeu-se novamente:
— Socorra-nos, Nosso Senhor Jesus Cristo! Também senti a
mesma coisa, sinhá Virgínia. Cruz-credo! A alma do sinhô
Figueiroa não tem paz, sinhá.
Mamãe permaneceu calada por alguns minutos, pensando.
Depois disse:
— Já sei o que fazer, Florência. Vou avisar padre Antônio
para vir rezar uma missa aqui na fazenda em intenção da
alma de meu falecido marido.
— Pois faça isso, sinhá. Faça isso.
MAIS TARDE, QUANDO O SOL baixou um pouco, vi minha
mãe saindo de casa sem dizer nada. Resolvi segui-la. Ela
tomou o rumo da senzala, e fiquei pensando o que iria fazer
lá. Minha curiosidade foi logo satisfeita. Ah! Ela foi procurar
pai Albino! Como não pensei nisso antes?
— Eles trocaram algumas palavras e puseram-se a caminhar.
Lentamente dirigiram-se para um campo aberto, local onde
poderiam estar sozinhos sem que ninguém os pudesse ouvir.
Inclusive eu. Fiquei irritada. Sentaram-se debaixo de uma
árvore e ali ficaram conversando. À distância, embora os
visse, não conseguia escutar o teor do diálogo.
Somente muito mais tarde, fiquei sabendo. Era mais ou
menos isto o que conversavam. Dizia minha mãe:
— Pai Albino, perdoe-me trazer o senhor para o meio
deste pasto, porém estou assustada! Sinto que Maria Eugênia
me vigia em todos os momentos. Normalmente, ela tem
estado estranha, perturbada e cheia de medo. Hoje, no
entanto, seu comportamento foi sem dúvida diferente.
Suas atitudes mudaram, seu jeito está diferente, seus olhos
têm outra expressão. Mostrou-se forte, autoritária,
observava-me com ciúme e raiva. Pareceu-me que, depois
de tanto tempo, eu estava na presença de meu falecido
esposo. Senti-me apavorada. Estarei ficando louca?
Pai Albino a ouviu, sereno. Depois, explicou-lhe:
— Sinhá Virgínia não está ficando louca, tranqüilize-se.
Acontece que em alguns casos, como esse, as almas dos que
se foram continuam aqui conosco, tanto se sente afeto
quanto
ódio. Assim como Ritinha, o sinhô Figueiroa também sofre e
precisa de ajuda. Ele não sabe que já morreu e continua na
casa-grande.
— Meu Deus! Então é verdade?!... Pai Albino, o que faço?
Vou mandar padre Antônio rezar uma missa pela alma dele.
Será que vai resolver?
— Vai ajudar, filha. Tudo ajuda. Mas resolver não vai.
— Por que, pai Albino?
— Porque sinhô Figueiroa tem de mudar o coração, aqui
dentro - disse, batendo a mão no peito. - É preciso muita
oração pela alma dele e de Ritinha. E também pela alma do
pai dele,
o sinhô Frederico, que ainda não encontrou paz por causa
das maldades que fez.
— O senhor os vê, pai Albino? - indagou perplexa, arre-
galando os olhos.
— Vejo sim, com estes olhos. Porém eles não me atendem,
não me escutam.
— Ah!... Pai Albino, quando estive com Miguel, ele se
referiu "às almas penadas do antigo fazendeiro". Entendi que
ele se referia a meu sogro, Frederico Figueiroa. É possível?
— Não só é possível, como é verdade, minha filha. Seu
sogro continua preso a estas terras e continua comandando
aqueles que executavam suas ordens.
— Meu Deus!... Estou horrorizada, pai Albino. E quanto ao
meu marido, o que posso fazer?
— O que já lhe afirmei, sinhá. Faça muita oração por ele.
— Só isso?
— Por enquanto, é suficiente. Vou ver se consigo ajudá-lo.
— Está bem, pai Albino. E Maria Eugênia? O que faço
quando ela ficar estranha como ficou hoje?
— Mande alguém me avisar, sinhá.
— Está bem. Obrigada, pai Albino.
— Não tem de que, filha. Que Deus a acompanhe!
Percebi que a conversa terminara e apressei-me em fugir dali. Não
queria que me encontrassem, ainda mais bisbilhotando.
Dei a volta, tomando outro rumo, a caminho do lago.
Sentei-me em um banco por alguns minutos, dando o tempo
necessário para minha mãe chegar ao casarão.
Aquele lugar, porém, não me trazia boas lembranças. Logo a
imagem de Miguel, desesperado, gritando por socorro,
voltou-me à mente. Em seguida, vi os escravos que
retiravam o corpo de Rita de dentro do lago, colocando-o na
grama.
Um mal-estar terrível tomou conta de mim. Senti-me angustiada,
sufocada, como se alguém me apertasse a garganta.
Com medo, saí correndo. Cheguei ao casarão sem fôlego. Ao
me aproximar da varanda, respirei fundo tentando voltar à
normalidade. Mamãe, vendo-me afogueada, perguntou:
— O que houve, filha? Parece assustada!
— Não aconteceu nada, mamãe. Resolvi ir até o lago e fiquei
sentada observando a paisagem. Todavia, aquele lugar não
me traz boas lembranças...
— Compreendo, minha filha. Mas se você sabe que não lhe
faz bem ir até lá, é melhor evitar.
— Eu sei, mamãe. Mas, como já faz tanto tempo, julguei que
nada iria acontecer. E a senhora, foi passear também?
— Não, filha. Fui conversar com pai Albino sobre uns
problemas que andam acontecendo na senzala. Nada grave,
não se preocupe.
— Ah!... Posso saber que problemas são esses?
— Não vale a pena, filha. São coisas que eu mesma vou ter
de resolver. Não quero encher sua cabecinha com assuntos
sem importância.
— Está bem, mamãe.
Notei a perturbação de minha mãe, que, se eu insistisse,
ficaria em dificuldades para esclarecer o assunto, e teria até
de mentir. Nesse momento, Tome veio avisar que padre
Antônio estava chegando, e mamãe ficou toda feliz e
aliviada.
— Ah, que bom! Há tempos que padre Antônio não aparece
aqui na fazenda. Vamos recebê-lo?
O sacerdote descia de sua charrete quando chegamos à porta
principal. Aproximou-se de nós todo vermelho.
— Bom dia, padre Antônio! Sua bênção. Bem-vindo à nossa
casa!
— Bons dias, minhas senhoras! Tive de vir por estes lados e
aproveitei para fazer-lhes uma visita.
— Chegou em boa hora, padre. Almoçará conosco. Vamos
entrando.
Já na sala, o idoso padre entregou o chapéu a Odete e
despencou em uma cadeira. Depois, enfiando a mão na
algibeira, retirou um lenço todo amassado e enxugou a
transpiração abundante da testa, enquanto perguntava:
— Como estão as coisas, senhora Virgínia? Por aí, nas outras
propriedades, só se ouve reclamação. Espero que por aqui
esteja melhor.
— Infelizmente não, padre Antônio. A falta de chuva tem
castigado toda a região, e aqui não é diferente. A água está
escassa, e os níveis do riacho e do lago baixaram bastante.
Mas o que o senhor nos conta de novo? Ficamos aqui
encerradas na fazenda e nada sabemos sobre o que acontece
em Cruzeiro da Mata e na região.
— Pois vou lhes contar tudo e depois não digam que falo
demais! Senhora Virgínia, a Matilde ganhou um novo bebê.
— Não diga, padre Antônio! Que maravilha! Fazia muitos
anos que ela desejava ter mais um filho e não conseguia.
Preciso ir visitá-la.
— A sua amiga Esmeralda vai casar-se, sinhazinha Maria
Eugênia.
— Quem é o noivo, padre?
— O José Bitela.
Caí na risada, sem poder acreditar.
— Mas justamente ele, padre Antônio? Ela não suportava a
presença dele!
— As coisas mudam, minha filha!
— Estávamos assim conversando, despreocupadamente,
quando Odete veio avisar que o almoço estava pronto.
Dirigimo-nos para a sala de refeições, serenos e bem-
humorados.
21 – Novos desatinos
Desde a vinda de Guilherme à nossa fazenda, eu não
conseguia pensar em outra coisa que não fosse o segredo que
trazia guardado dentro de mim. O temor de que tudo viesse
à tona deixava-me insegura e angustiada.
Todavia, a presença de padre Antônio em nossa casa fez-me
espairecer um pouco as idéias. Ele era um homem que
gostava de conversar e, para nós, que quase não saíamos da
fazenda, uma fonte perene de novidades, pois suas vindas
tinham o dom de nos colocar a par do que estava
acontecendo fora dos limites da nossa propriedade.
Sentados à mesa, conversávamos descontraídos.
— Aceita mais um pouquinho do guisado, padre? - per-
guntou gentilmente minha mãe.
Entre uma garfada e outra, padre Antônio disse:
— Florência é a melhor cozinheira da região! Estes quitutes
estão divinos, sinhá Virgínia! Tudo está perfeito. Porém, o
assado com farofa, o meu prato predileto, está supimpa!
Ele fez uma pausa, limpou a boca com o guardanapo e
declinou com um sorriso, enquanto, de mãos postas, olhava
para o alto:
— Agradeço-lhe, mas não devo aceitar mais nada, sinhá
Virgínia. Estou satisfeito. Não devo entregar-me ao pecado
da gula, ainda mais quando sei que as sobremesas aqui são
sempre tentadoras.
Mamãe também sorriu.
— De vez em quando não tem importância, padre. O senhor
vem tão poucas vezes nos visitar! Mas, se realmente está
satisfeito...
Com um gesto, mamãe deu ordem a Odete para tirar a mesa.
Em seguida, vieram as sobremesas: compotas frutas, doces e
doce de leite cremoso; como acompanhamento, queijo
branco. Ao ver os doces, o religioso arregalou os olhos e
novamente elevou as mãos postas com olhar súplice, como
que pedindo antecipado perdão a Deus pelo pecado que ia
cometer. Quando a escrava se aproximou para servi-lo, ele
pediu:
— Odete, minha filha, sirva-me só um pouquinho. Pretendo
experimentar todos eles. E que o Senhor me perdoe! Depois,
terei de fazer penitência.
E mergulhou nos saborosos doces que ali estavam na mesa.
Logo depois nos levantamos e passamos para a sala de visitas,
onde seria servido o café, que o velho pároco não
dispensava. Com a xícara na mão, o religioso saboreava o
café. Ao terminar, ele comentou:
— Encontrei-me com Guilherme outro dia na cidade e
ele contou-me que irão receber visitas na fazenda Santa
Clara!
— Ah, sim? E que visitas são essas, padre? – indagou minha
mãe.
— Um casal de amigos que mora na França.
— O nome deles seria Marie e Pierre Legrand, padre
Antônio? - sugeri.
— Exatamente, minha filha! Você os conhece?
— Sim, padre. Quando viajei com Guilherme em lua de mel,
fiquei conhecendo esse casal. São pessoas muito agradáveis e
simpáticas.
— Estranho Guilherme não ter me falado sobre isso quando
aqui esteve - murmurou minha mãe, pensativa.
— Com certeza deve ter se esquecido. Bem, não posso
demorar-me. Tenho outras propriedades para visitar,
— Descanse um pouquinho, padre. O sol está tão quente!
— Ah, minha filha! Não sabe como gostaria de cochilar um
pouco na rede da varanda. Contudo, meu tempo hoje
é realmente curto.
— Bem, se é assim... não o prendo por mais tempo. Todavia,
espero que venha outro dia, padre Antônio. Preciso que
reze uma missa pela alma de meu falecido marido, e com
tempo para visitar a senzala, abençoar casamentos e batizar
as crianças que nasceram.
— Com muito gosto, sinhá Virgínia. Virei no primeiro
domingo do próximo mês, sem falta. Pode preparar tudo.
— Excelente, padre Antônio. Será um dia especial para
todos nós aqui da fazenda. Faremos uma grande festa.
Nesse momento, mamãe fez um leve sinal para Odete, que
entendeu perfeitamente. Como de hábito, sempre que o
religioso vinha à fazenda, retornava levando sacos de
alimentos e uma quantia em dinheiro para as despesas da
igreja.
Quando saía da casa-grande, Florência, Odete e os outros
escravos se aproximaram para despedir-se do padre. Com a
charrete devidamente carregada, ele partiu abençoando a
todos.
QUANDO A CHARRETE DO PADRE desapareceu na curva da
estrada, entrei em casa, voltando a lembrar do meu
problema, ainda mais que ele contou sobre seu encontro
com Guilherme. Então Marie e Pierre viriam ao Brasil! Mais
do que nunca me sentia insegura e angustiada. Marie tinha
dons estranhos. E se ela descobrisse meu segredo e o
contasse a Guilherme?
Refleti bastante e decidi: precisava destruir as provas do meu
crime. E a única pessoa que poderia denunciar-me era
Miguel. Assim, não tinha saída. Imprescindível dar um jeito
no meu cúmplice. Mas, como?
Durante horas não fiz outra coisa senão pensar. Até que tive
uma idéia. Havia um escravo na fazenda chamado Josias, o
cocheiro que nos levara até o porto, no Rio de Janeiro.
Algum tempo depois, ele passara a beber e adquirira péssima
reputação. Ele bebia, brigava com os outros escravos e criava
caso com todo mundo. Em virtude disso, ele perdera o posto
de cocheiro para Tome, que inspirava mais confiança.
Depois disso, passara a beber ainda mais, degradando-se a
cada dia.
Sim! Josias! Por que não? Certamente ele não se negaria a
prestar-me um favor em troca de um pouco de dinheiro.
Depois... depois eu daria um sumiço nele.
Tendo decidido o que fazer, mandei um garoto chamá-lo
para conversar comigo no caramanchão de rosas. Josias
chegou todo sem jeito.
— Sinhazinha Maria Eugênia mandou-me chamar?
— Sim, Josias. Gostaria de ganhar uma boa soma em
dinheiro?
Os olhos do servo brilharam de cobiça, e ele respondeu sem
demora:
— Sim, sinhazinha. O que preciso fazer? A sinhá manda e
eu obedeço.
— Estaria disposto a fazer qualquer coisa?
— Sim, sinhá.
— Então, preciso que acabe com Miguel.
Ele fitou-me em dúvida sobre o que acreditava ter ouvido.
Depois perguntou:
— Não sei se entendi bem, sinhá.
— Entendeu muito bem, Josias. Quero que mate Miguel.
— Mas por que, sinhá? O pobre coitado está doido e não faz
mal a ninguém...
— Por isso mesmo. Se ele está louco, para que viver? A vida
deve ser-lhe um fardo demasiadamente pesado. Afinal,
aceita ou não a incumbência? Se não aceitar, outro o fará e
você perderá um bom dinheiro.
Ele baixou a cabeça, resignado, diante das vantagens que
teria.
— Se é assim... aceito, sinhá. O que devo fazer?
— Isso é com você. Mas preste atenção! Quero que pareça
natural, um acidente talvez. Quem sabe poderia usar um
chá? Com tantas ervas venenosas pelo campo, não seria
difícil que ele morresse envenenado.
— Muito bem, sinhá. E quando receberei a recompensa?
— Após a execução do serviço. Voltaremos a nos encontrar
aqui e receberá o que lhe prometi. Só uma coisa eu exijo.
— O que, sinhá?
— Que você desapareça no mundo. O dinheiro fatalmente
despertará suspeita nos demais escravos. Assim, o melhor
que tem a fazer é fugir e procurar abrigo longe daqui.
Josias vibrou de alegria e entusiasmo. Seus olhos
umedeceram-se.
— Sinhazinha Maria Eugênia está me dando a liberdade?
Não serei caçado? É verdade que serei livre?
— Sim, Josias, desde que cumpra sua parte no combinado.
Mantenha segredo. E se alguém ficar sabendo sobre esse
nosso acordo, se você contar isso a quem quer que seja, sua
vida não valerá nada. Mandarei caçá-lo como a um animal.
Ouviu bem?
— Sim, sinhá Maria Eugênia. Fique tranqüila. Farei o serviço de
modo a não despertar suspeitas. Ninguém ficará sabendo.
— Ótimo. Agora vá. Irei em seguida. Não quero que nos
vejam juntos.
O negro agradeceu e saiu do caramanchão, não sem antes
examinar se alguém estaria nas imediações. Permaneci mais
um tempo, saboreando minha decisão e a maneira como
resolveria o assunto. Depois, saí também, abrindo a
sombrinha e caminhando lentamente de volta para casa.
Ninguém nos vira. Aquele recanto do jardim era pouco
freqüentado e por isso mesmo eu o escolhera.
Olhei para o alto. O sol intenso ainda brilhava no céu, mas
pesadas nuvens se adensavam ao longe. O vento começou a soprar e
nuvens negras aproximavam-se, rápidas. Apressei meu
passo, e em breve tudo escureceu. Ao chegar à casa-grande,
a ventania arrancou a sombrinha de minhas mãos,
arrastando-a para longe. Corri para dentro, buscando abrigo
seguro, enquanto as escravas fechavam as janelas e corriam
o ferrolho nas portas.
— Graças a Deus, filha, que chegou. O dia escureceu e,
como tardava, fiquei preocupada com você.
— Estava no caramanchão, mamãe, e não percebi que o
tempo havia mudado.
— Após uma estiagem demorada, são comuns grandes
tempestades. Que o Senhor nos ajude!
Ainda era dia, mas as luzes foram acesas. Em breve, uma
faísca cortou os ares, seguida do estrondo do trovão.
Abraçadas, permanecemos rezando para que nada de mal
acontecesse a todos nós. Os escravos que trabalhavam
dentro de casa também se aproximaram temerosos,
permanecendo no chão, a nosso lado, como se nossa
presença pudesse protegê-los da fúria da tempestade.
Na verdade, eu estava apavorada e não poderia proteger
ninguém. O medo que eu sentia era muito maior do que se
poderia imaginar. Era a consciência culpada que não me
dava paz. Sentia como se Deus soubesse o que eu havia feito
e estivesse me castigando.
Algumas horas depois, o temporal diminuiu, transformando-
se em uma chuva pesada, mas sem ventos, e todos
relaxaram, voltando para suas atividades.
Na manhã seguinte, o céu continuava nublado, mas havia
parado de chover. Tudo estava molhado e as poças se
acumulavam aqui e ali. Roque veio dar contas à minha mãe
dos estragos ocorridos na noite anterior.
— Sinhá Virgínia, uma parte da cerca foi derrubada; o paiol
foi destelhado e molhou tudo o que estava dentro. Três
árvores, das mais velhas, caíram e existe muita sujeira pra
todo
lado. Ah, e uma carroça ficou emborcada. Por enquanto é
isso o que pude verificar. Se souber de mais alguma coisa,
comunicarei à senhora.
— Com os animais, tudo bem?
— Sim, sem problemas.
— Então, Roque, trate de reparar ainda hoje os estragos,
com a maior rapidez. Como nada poderão fazer na lavoura,
convoque todos os escravos disponíveis. As nuvens
carregadas
indicam que ainda poderá chover - concluiu olhando para o
céu, preocupada.
— Sim, sinhá. Farei isso, pode ficar descansada.
— Outra coisa, Roque. Procure saber se Miguel está bem.
Pode ter acontecido alguma coisa com ele, vivendo assim ao
relento.
— Sim, sinhá.
Naquele momento, uma idéia me surgiu na mente desequi-
librada. Sabia onde Josias costumava trabalhar. Era no galpão,
empilhando os sacos de açúcar que vinham do engenho.
Ligeira, corri até lá e falei a Josias, em voz baixa para que só
ele pudesse escutar:
— Não podemos perder essa oportunidade que se nos
apresenta. A tempestade fez muitos estragos, e não seria
difícil que ele tivesse sido atingido. Vá, agora mesmo! Corra
e faça o
que lhe compete.
— Mas sinhazinha, e se o feitor der pela minha falta? Ele vai
colocar-me no tronco!
— Obedeça às minhas ordens. Deixe que do feitor, eu cuido.
— Sim, sinhazinha. Estou indo. Só voltarei com o serviço
terminado.
— E ai de você se não fizer o que combinamos!
Ele saiu rápido como uma flecha. Mais tarde, mamãe e eu
estávamos sentadas na sala, quando se aproximou Roque, o
capataz, revirando o chapéu nas mãos.
— O que houve, Roque? - quis saber minha mãe.
— Sinhá Virgínia, seus temores tinham fundamento. Como
a senhora ordenou, fui até a gruta onde Miguel costuma se
abrigar, e ele lá não estava. Procurei em torno sem descanso.
Nada; sem resultado. Até que, de repente, o encontrei caído
no meio do mato. Estava com uma ferida aberta na cabeça,
provavelmente feita por um galho de árvore derrubado
durante a tempestade.
— E como está ele? - indagou minha mãe.
— Morto, sinhá.
O semblante de minha mãe nublou-se de dor.
— Ah, pobre Miguel! Que infelicidade. Os demais já sabem?
— Não, sinhá. Quis dar-lhe a notícia em primeira mão.
Agora vou até a senzala contar para os outros escravos o que
aconteceu.
— Providencie tudo para o velório e o sepultamento, Roque.
— Sim, sinhá. Pode deixar por minha conta. Mais alguma
coisa?
— Não, Roque. Pode ir.
Somente então minha mãe se deu conta da minha
presença.
— Você ouviu, filha? Miguel está morto!
— Sim, mamãe. Todavia, não se perde grande coisa. Ele não
estava bem mesmo.
— Não fale assim, Maria Eugênia! Miguel sempre foi um
rapaz bom, digno e trabalhador.
— Eu sei, mamãe, mas estava completamente louco. Vale a
pena viver assim?
— Cale-se, filha! Que Deus não a ouça! Só o Criador tem o
direito de decidir se devemos viver ou não.
— Exatamente, mamãe. Foi um acidente causado pela
tempestade. Isso não mostra que o Senhor achou melhor
que ele morresse?
— É. Talvez você tenha razão.
— Acha que devemos rezar por ele, mamãe?
— Claro, filha.
— Escravo tem alma?
— Que pergunta! É claro que tem alma, Maria Eugênia.
— Não sei. Há pessoas que não acreditam que eles tenham
alma.
— E por que não? Eles são seres humanos como nós.
— Bem, isso agora não importa. Vou até a capela rezar pela
alma dele.
— Faça isso, minha querida. Faça isso.
Deixei a sala, encaminhando-me para o local da casa onde
tínhamos um altar e onde costumávamos rezar. Na verdade,
eu não queria que alguém percebesse que eu estava contente
com a morte de Miguel. Ajoelhei-me e, de mãos postas,
rezei, não pela alma do escravo morto, mas em
agradecimento a Deus por ter resolvido o meu problema. Na
minha inconsciência, julgava que aprouvera a Deus
proteger-me dos meus desatinos, retirando a presença de
Miguel que tanto mal poderia me fazer, se alguém ficasse
sabendo dos meus erros. Julgava, na minha insanidade, ser
infinitamente superior às outras pessoas, especialmente a um
cativo como Miguel, e, desse modo, não tinha dúvidas de
que o Senhor, entre um escravo e mim, certamente agiria a
meu favor.
Ainda e sempre vigorava em mim o orgulho e o egoísmo,
que me levaram a cometer tanto mal no passado, por julgar-
me acima das outras pessoas.
Alguns dias depois, enquanto passeava pelo jardim, fui
abordada por Josias, que me cruzou a frente, impedindo-me
de prosseguir. Estranhei o comportamento dele.
— O que deseja, Josias?
— Sinhazinha não está esquecendo de algo?
— Esquecendo de quê?
— Do nosso acordo. Não se lembra de que eu receberia
certa importância depois de executar suas ordens?
— Ah! Isso!
— Exatamente, sinhá. Preciso partir, mas não antes de
receber o que fiz por merecer.
— Está bem. Espere-me à noite perto da figueira. Apesar de
bem próximo da casa-grande, é local deserto e poderemos
conversar sem testemunhas.
— Estarei lá. Não esqueça meu dinheiro, sinhá. Ou...
— Insolente! Está me ameaçando?
— Não, sinhá. Lembrando, apenas.
Fiz meia-volta e retornei por onde tinha vindo. Não gostara
do jeito dele, do seu atrevimento. Melhor seria mesmo que
ele desaparecesse de uma vez por todas.
Mais tarde, depois que o céu escurecera por completo e tudo
era silêncio na fazenda, ainda dei um tempo para que todos
dormissem. Depois, coloquei um manto sobre a camisola,
calcei os chinelos e esgueirei-me para fora do meu quarto.
Desci as escadas e entrei na sala, que era o escritório de meu
pai quando ainda vivo. Em seguida, dirigi-me até uma
parede, atrás da mesa, onde havia um belo quadro a óleo
com a imagem de meu pai no vigor da idade, em uma
moldura primorosa. Procurando não fazer barulho, retirei o
quadro da parede, colocando-o no chão; atrás do quadro,
havia um nicho com uma portinhola. Abri a gaveta da
grande mesa e, de um fundo falso, retirei uma chave que
abriu a portinhola do cofre. Ali havia muitos documentos
importantes, moedas de ouro em uma caixa e jóias em outra.
Peguei um pouco de moedas, despejei em um pequeno saco
e fechei cuidadosamente a abertura, depositando a chave no
mesmo lugar. Recoloquei o quadro na parede e saí do
escritório. Em seguida, com cuidado, abri uma porta que
dava para o lado do pomar. Olhei em torno. Tudo estava
tranqüilo. Caminhei até a figueira, quase encostada na
parede do casarão.
Mesmo no escuro, pude vê-lo. Esperava-me. Entreguei-lhe
o saco de moedas e vi que seus olhos brilharam de cobiça ao
ver seu tesouro.
Mostrei-lhe outro saco maior que preparara com
antecedência e deixara escondido entre as raízes da figueira.
— Já que pela sua condição de escravo não poderá andar por
lugares movimentados com o risco de ser preso, preparei
alguns alimentos para você levar.
— Mas a sinhá disse que eu não seria caçado...
— E não será. Nada farei para lhe impedir a viagem. Todavia, se
alguém o encontrar, poderá julgar que é um fugitivo e criar-
lhe problemas. Assim, viaje à noite e esconda-se durante o
dia.
— Obrigado. Adeus, sinhá Maria Eugênia.
— Nunca mais apareça por aqui. Estamos quites.
Dei meia-volta e retornei sobre meus passos, mas ainda pude
ouvir o ruído que ele fez caminhando até o cavalo. Montou
e escutei, com alívio, os passos do animal que se afastava.
Respirei profundamente, satisfeita. Sentia-me segura e livre
de preocupações. Agora, ninguém mais conhecia meu
segredo.
22 – Reencontrando amigos
Entrei em casa sorrateiramente e dirigi-me até a cozinha.
Estava satisfeita. Meus planos corriam bem. Ninguém mais
poderia acusar-me de nada. Nisso, ouvi uma voz na
penumbra do corredor.
— O que a sinhazinha está fazendo aqui em uma hora
dessas?
Dei um pulo e quase caí sobre uma cadeira.
— Ai, Dinha! Quase me mata de susto! - gritei, levando a
mão ao peito, onde o coração batia acelerado.
— Perdão, Maria Eugênia. Estava com dificuldade para
dormir e, como ouvi passos, vim verificar quem era.
— Também eu não consegui dormir. Assim, desci para
tomar uma caneca de leite.
— Vou esquentá-lo para a sinhazinha. O fogão ainda tem
brasas.
Dinha esquentou o leite e serviu-me um pedaço de bolo de
fubá.
— Coma também, Dinha. O bolo da Florência está ótimo.
A ama serviu-se de bolo, pegou um pouco de leite e
sentamo-nos, ficando a conversar por um quarto de hora.
Depois, comecei a bocejar e ela me disse:
— Melhor se recolher, sinhazinha, que o sono está
chegando.
Acompanhou-me até o quarto e só se afastou quando me viu
no leito.
— Boa noite, Maria Eugênia.
— Boa noite, Dinha.
A ama estava quase saindo do quarto, quando perguntei:
— Dinha, você está sempre muito triste. Ainda sente falta da
Ritinha?
Ela voltou-se surpresa, e vi que seus olhos se encheram de
lágrimas, que não chegaram a cair.
— Estou triste sim, sinhazinha. Não é fácil perder uma filha,
a única que o Senhor me concedeu. Agora, só tenho a você,
que considero minha filha pelo coração.
Naquele momento, percebi a enormidade da minha infâmia,
destruindo a felicidade daquela mulher que, durante toda a
vida, só me fizera o bem.
— Boa noite, Dinha - murmurei com voz sumida.
Após ficar só, na penumbra do quarto, pus-me a pensar, e a
pouca consciência que me brilhara na mente desapareceu,
substituída pelo velho orgulho que se contrapunha: "mas
não faz mais do que sua obrigação tratando-me bem e
amando-me. Afinal, é escrava, e essa é sua função!"
Virei para o lado, puxei as cobertas até a cabeça e fechei os
olhos. Não queria mais pensar em nada.
COMO SUPUNHA QUE NINGUÉM mais poderia me acusar,
julgava-me livre e a salvo de qualquer problema futuro.
Entretanto, as sementes que plantamos brotam e frutificam,
sejam elas boas ou más. Chegando a hora da colheita, somos
obrigados a encarar o produto das nossas ações, gostando ou
não.
Alguns dias depois, vi ao longe, na estrada, um cavaleiro que
se aproximava. Era um escravo, portador de uma carta-
convite de Leonora Cerqueira, mãe de Guilherme.
Mamãe abriu o envelope e um delicado perfume a
envolveu. Tirando a folha, não pôde deixar de admirar a
letra inclinada, firme e bonita. Leu em voz alta:
"A SENHORA
VIRGÍNIA DE ALBUQUERQUE FIGUEIROA. QUERIDA AMIGA, TEMOS o PRAZER DE CONVIDÁ-LA, E
À NOSSA MARIA EUGÊNIA, PARA PASSAR o PRÓXIMO DOMINGO NA FAZENDA SANTA CLARA.
HÁ ALGUNS DIAS, RECEBEMOS HÓSPEDES DA FRANÇA E FAREMOS MUITO GOSTO COM SUA
PRESENÇA. NESSA OPORTUNIDADE, TERÁ A SATISFAÇÃO DE CONHECER O DISTINTO CASAL
LEGRAND, E SUA FILHA MARIA EUGÊNIA, DE REVER AMIGOS FRANCESES.
ROGO-LHE QUE VENHA o MAIS CEDO QUE PUDER, PARA GOZARMOS O PRAZER DA SUA
COMPANHIA POR MAIS TEMPO. ATENCIOSAMENTE, LEONORA ALVES CERQUEIRA"
Após ler o convite, surpresa e animada, mamãe se pôs a
fazer mil planos, enquanto eu, calada, pensava: "Então,
Marie e Pierre haviam chegado!"
— Quem são esses hóspedes, que ela afirma serem seus
amigos, filha?
— Marie e Pierre, mamãe. São amigos de Guilherme desde a
época em que ele estudava na França - respondi, entediada.
— E como são eles?
— Simpáticos e alegres. Boas pessoas. A senhora vai gostar
deles.
Mamãe saiu da sala toda entusiasmada. Era natural. Nossa
vida tornara-se monótona, sem atrativos, pois raramente
saíamos da fazenda Santa Genoveva. Fora-se o tempo em
que abríamos nossas portas para receber os amigos em festas,
saraus ou banquetes, ocasiões em que a casa-grande se
enchia de luzes e movimento. Desse modo, qualquer
mudança era bem-vinda.
Quanto a mim, de pronto pensei em não ir. Sabia que
Leonora não morria de amores por mim e incluíra-me no
convite apenas porque não o poderia evitar. Seria uma falta
de delicadeza imperdoável, já que nossa família resumia-se a
nós duas. Por outro lado, eu sentia apreço por Pierre, mas
não ficaria à vontade na presença de Marie. De qualquer
forma, se eu não fosse, poderia parecer descortesia e talvez
provocar mais comentários sobre minha pessoa. Assim, após
muito refletir, decidi comparecer. E tendo decidido, faria
questão de estar com a melhor das aparências, alegre,
sorridente e esbanjando simpatia.
A reunião seria no domingo. Era uma quarta-feira. Assim,
teríamos três dias inteiros para os preparativos.
Foi um período de muita agitação. No dia aprazado, coloquei
um vestido novo, branco com detalhes em azul, que chegara
havia pouco da modista. Para finalizar a toalete, Dinha
colocou-me no pescoço uma correntinha de ouro da qual
pendia um camafeu, e brincos iguais. Nos pés, delicadas
botinas de couro brancas, presas na lateral por uma fieira de
botões.
A ama penteou meus cabelos com capricho. Coloquei um
chapéu de palha branca trançada, preso ao pescoço com uma
fita azul.
— Está realmente muito bela, Maria Eugênia!
Mirei-me no espelho examinando-me com olhos críticos.
— Acha mesmo? Estou muito pálida!
Colori os lábios com uma pasta carmina e depois levei os
dedos indicador e médio à boca, e, em seguida,
delicadamente bati com eles nas bochechas, o que colocou
um leve colorido em minhas faces.
— Ah, melhorou! Mamãe está pronta, Dinha?
— Creio que sim, sinhazinha.
— Muito bem. Então vamos!
Desci as escadarias. Minha mãe já aguardava na sala. Sorriu
ao ver-me.
— Está encantadora, filha!
— A senhora também, mamãe.
Minha mãe colocara um vestido verde-musgo, discreto e
elegante, como convinha a uma viúva. No pescoço, um
colar de pérolas e nas orelhas brincos iguais. Seus cabelos,
penteados com capricho, escondiam-se sob um chapéu de
abas largas na cor do vestido. Estava radiante.
Tomamos assento no coche que já nos esperava à porta. O
escravo Tome, que nos conduziria até a Fazenda Santa Clara,
estava a postos, todo orgulhoso no seu traje novo, composto
de calças pretas, camisa branca, colete vermelho e um
chapéu na cabeça.
O veículo alegremente rodou pela estrada rumo à fazenda de
meus ex-sogros.
Uma hora depois nos aproximamos da entrada da proprie-
dade, marcada por um grande portão de madeira, encimado
por trepadeiras floridas. No meio das flores, havia uma placa
também de madeira, onde se lia: "Fazenda Santa Clara".
Rodamos por um caminho ladeado de árvores até a sede da
fazenda, onde Guilherme e sua mãe nos aguardavam à
entrada da casa-grande. Minha mãe e a senhora Leonora se
cumprimentaram com carinho, satisfeitas de estarem juntas.
Guilherme e eu nos cumprimentamos de maneira civilizada.
Sentia-me um tanto constrangida, pois um dia, na época da
nossa separação, havia jurado nunca mais colocar os pés
naquela fazenda. Assim, não pude deixar de notar seu sorriso
irônico ao me receber, como se dissesse: "Afinal está aqui,
mesmo contra sua vontade". Ao que eu, ao lhe estender a
mão, de cabeça erguida, com um lindo sorriso no rosto,
escorada no meu orgulho, parecia responder: "Estou aqui sim,
mas muito melhor do que quando parti. Sinto-me ótima. Veja
como estou bela!"
Tudo isso, porém, passou despercebido aos demais. Um
pouco recuados, estavam Pierre e Marie Legrand. O tempo
parecia não ter passado para eles. Estavam exatamente como
eu os conhecera. Leonora apresentou-os à mamãe:
— Querida Virgínia, estes são Pierre e Marie Legrand, ami-
gos de Guilherme há muitos anos, e de Maria Eugênia
também, pois se conheceram na França.
Mamãe abriu seu melhor sorriso, estendendo-lhes a mão.
— Imenso prazer em conhecê-los pessoalmente, uma vez
que já os conhecia de nome. Minha filha fez muitas
referências a ambos.
— Boas, eu espero! - brincou Marie bem-humorada.
— Sem dúvida! Sem dúvida!
Adiantei-me, cumprimentando-os:
— Prazer em revê-los, queridos amigos! Que bons ventos os
trazem à nossa terra? - indaguei com interesse.
Foi a vez de Pierre responder:
— Estávamos planejando viajar um pouco, quando recebi
justamente uma carta de Guilherme convidando-nos
para visitá-lo. Não resistimos e cá estamos. Nosso amigo
Maurice manda-lhe lembranças.
— Ah, obrigada! - respondi com um sorriso, embora a
recordação daqueles dias passados em Paris não me fosse
particularmente agradável.
— E o que estão achando da nossa terra? - indagou minha
mãe.
— Maravilhosa! É um belo país - disse Marie, entusiasmada.
— Noto que domina muito bem a nossa língua, senhor
Pierre - comentou mamãe.
Ele sorriu, explicando:
— Senhora Virgínia, na verdade sou brasileiro, nascido em
Pernambuco, descendente de uma tradicional família
holandesa, que desembarcou no Brasil na época da
colonização,
no século 17.
— Ah! Então tudo se explica.
— Minha família criou raízes nesta bela terra, e aqui
permaneceu, não retornando à pátria de origem, como
fizeram outras famílias. Posteriormente, minha bisavó
casou-se com um francês,
o que justifica o sobrenome Legrand. Assim, cresci aqui,
porém ainda muito jovem meus pais acharam por bem
mandar-me estudar em Paris, onde me adaptei e estou até
hoje. Guilherme e eu fomos colegas de faculdade e nos
tornamos amigos, jamais deixando de nos corresponder.
— E sua família reside onde?
— Em uma pequena cidade próxima de Recife. Daqui,
iremos visitar minha terra natal e rever minha família. Aliás,
eles ainda não conhecem minha esposa.
— Devem estar com saudades. E a senhora, Marie? – tornou
minha mãe.
— Sou francesa, nascida em uma pequena cidade do
interior. Em busca de trabalho, meus pais se mudaram para
Paris, onde cresci e, mais tarde, conheci Pierre, por quem
me
apaixonei.
Sentamo-nos e continuamos a conversar. Eles nos colo-
caram a par do que estava acontecendo pela Europa e
ficaram informados das notícias daqui, inclusive das idéias
abolicionistas que se espalhavam por todo o país.
Deixando Guilherme e eu conversando com nossos amigos
visitantes, mamãe afastou-se com Leonora em direção ao
jardim de inverno, onde se sentaram em confortáveis
bancos de madeira. O local era uma espécie de terraço
ornamentado por plantas diversas, florido e extremamente
agradável. Após se acomodarem, Virgínia perguntou:
— Leonora, como está o senhor Cerqueira?
A anfitriã respirou fundo e seus olhos marejaram-se ao
responder:
— Nada bem, minha amiga. Apesar do tratamento, seu
organismo não tem reagido como o médico esperava.
Valentim sofre muito; as dores são intensas, o tempo todo.
— Pobrezinho! E os remédios? Certamente, ele toma
medicamentos?
— Sim. Não obstante, pouco efeito eles produzem.
Acalmam as dores por algum tempo, mas elas retornam com
força total.
— Tenha fé em Deus, Leonora. Tudo há de melhorar.
A dona da casa balançou a cabeça, concordando.
— Sim, Virgínia. Tenho confiança em que meu querido
Valentim há de sarar. Essa é uma das razões que levou meu
filho Guilherme a convidar Marie e Pierre para vir nos
visitar. Marie
tem alguns conhecimentos diferentes e faz um tratamento
nada convencional. Não sei bem de que se trata, mas
Guilherme acredita que poderá ajudar o pai em sua
recuperação.
— Estou curiosa! Que tratamento será esse? – indagou
minha mãe, surpresa.
— Também não sei, mas poderemos conversar sobre isso
com Marie. Ela é uma pessoa simpática, sensível e agradável.
Valentim gostou dela, o que é fundamental. Como você não
ignora, meu esposo tem temperamento difícil.
— O que depõe a favor de sua hóspede.
— Também penso assim, Virgínia. Mais tarde, podemos
tocar no assunto e pedir que Marie nos esclareça melhor. A
propósito, terá ocasião de encontrar Valentim à hora do
almoço.
Conversaram mais um pouco, até que uma escrava veio
avisar que a refeição estava pronta.
— Pode mandar servir, Luzia. Avise também os moços.
Ergueram-se e dirigiram-se à sala de jantar, para onde nós, os
jovens, também nos encaminhamos.
Como a anfitriã não nos convidou para tomar assento,
permanecemos de pé por alguns minutos. Entendi a razão ao
ver, logo em seguida, dar entrada no salão o dono da casa,
apoiado em um escravo. Ele foi conduzido até seu Lugar, na
cabeceira da mesa, cumprimentando a todos de maneira
geral,
— Boa tarde. Desculpem-me não poder recebê-los como
deveria. Minhas condições não o permitem. Sejam bem-
vindos ao nosso lar.
Mamãe dirigiu-se a ele, cumprimentando-o sorridente:
— Prazer em vê-lo, senhor Cerqueira. Está com ótima
aparência.
— Bondade sua, minha cara senhora Virgínia. Estou
lutando para vencer.
Igualmente cumprimentei o fazendeiro:
— Como está, senhor Cerqueira? Tenho muito gosto em vê-
lo.
— Obrigado, Maria Eugênia. Seja bem-vinda. Mas, por favor,
sentem-se. Vamos almoçar.
Todos se acomodaram em torno da mesa e os escravos
começaram a trazer as travessas com as iguarias.
A refeição foi muito agradável. Os pratos estavam ótimos e a
conversa descontraída. O dono da casa comeu rapidamente
e retirou-se, apresentando suas desculpas:
— Infelizmente, não posso ficar muito tempo fora do leito.
As dores não me permitem. Mas, por favor, fiquem à
vontade e aproveitem o dia - justificou-se.
— Não vai provar a sobremesa, querido? – lembrou
Leonora.
— Obrigado. Estou satisfeito.
O escravo que o trouxera aproximou-se e o levou para seus
aposentos. Após sua saída, a conversa girou em torno das
condições de saúde do dono da casa.
Leonora, tirando um lencinho da algibeira, enxugou
disfarçadamente uma lágrima que ameaçava cair, e
comentou:
— Como podem ver, meu esposo não é mais o homem
que era até há pouco tempo. Dinâmico, trabalhador, cheio
de energia. Agora, raramente sai do leito. Hoje o fez em
homenagem às visitas.
— No entanto, Leonora, a aparência dele está ótima.
Esperava encontrá-lo mais abatido - comentou minha mãe.
Guilherme limpou os lábios com o guardanapo de linho e
comentou:
— Não se engane, cara senhora Virgínia. Manter a aparência
custou-lhe intenso esforço. Quem o conhece bem percebe
que meu pai estava com dores intensas. Normalmente, só se
locomove na cadeira de rodas. Mas hoje...
Todos nós entendemos, penalizados, a situação do dono da
casa, que não quis aparecer diante de seus convidados como
um paralítico.
— E existe tratamento para esse mal, Guilherme? -
indaguei.
— Infelizmente, Maria Eugênia, pouco se pode fazer. A
doença é traiçoeira e resistente aos tratamentos
médicos.
— Lamento - murmurou mamãe, compadecida.
Notando que o ambiente desandava para a tristeza,
Leonora reagiu:
— Não se preocupem, tudo está sendo feito e tenho grandes
esperanças que Valentim se recupere. Agora, nada de
tristezas! Estamos juntos e este é um momento feliz. Se
todos já terminaram, vou mandar servir as sobremesas.
Isso devolveu a alegria dos convidados, que sorriram
satisfeitos, voltando a conversar entre si.
As escravas trouxeram as sobremesas; frutas cristalizadas,
compotas, além de doces cremosos; e, para acompanhar,
queijo e creme de baunilha. Marie reclamou, bem-
humorada:
— Se eu soubesse que a sobremesa seria tão farta e irresis-
tível, não teria almoçado tanto!
Todos riram. Em seguida, Leonora convidou-os para
tomarem o café na sala de visitas, após o que, como os
convivas estivessem satisfeitos, gentilmente colocou à
disposição os quartos da casa, preparados para aqueles que
desejassem repousar um pouco.
Pierre e Guilherme não resistiram e, pedindo licença,
dirigiram-se para seus aposentos, enquanto continuamos
conversando. Leonora ainda insistiu:
— Virgínia, não gostaria de descansar um pouco? Deve estar
cansada, por conta da viagem. Você também Maria Eugênia,
quer descansar?
— Agradeço-lhe, Leonora, mas prefiro aproveitar o tempo
para conversar. Afinal, são tão raras as ocasiões em que
podemos fazê-lo! - afirmou minha mãe.
— Também não desejo deitar-me. Estou bem, obrigada -
considerei.
No fundo, o que eu não queria era deixar as senhoras a sós
com Marie. Temia que a francesinha comentasse os fatos
ocorridos em Paris, sobre os quais minha mãe não tinha
conhecimento. Quanto a Leonora, ignorava se Guilherme
havia-lhe contado. Assim, o mais prudente seria ficar por
perto, e alerta.
23 - Na fazenda Santa Clara
Dirigimo-nos para o jardim, conversando animadamente. A
senhora Leonora conduziu-nos para aprazível recanto,
localizado do lado direito da construção, onde havia uma
pérgula à qual chegamos por um caminho de pedras em
meio ao gramado. Entremeadas de tufos de folhagens e
flores silvestres, trepadeiras graciosas enrodilhavam-se e
subiam pelos pilares de madeira. O fundo da pérgula se
constituía da parede do casarão totalmente recoberta pela
hera. Para completar, três confortáveis bancos também de
madeira, colocados em formato de meia-lua, representavam
um atraente convite para o repouso. Tudo muito agradável e
tranqüilo. Pássaros gorjeavam nas árvores mais próximas e
borboletas multicores voavam de flor em flor.
— Lindo! Ainda não conhecia este lugar! – exclamou Marie.
Leonora sorriu, concordando:
— É meu local predileto. Venho para cá sempre que preciso
pensar, tomar alguma decisão ou simplesmente descansar.
Nessa hora do dia, especialmente, quando a sombra o torna
mais fresco e agradável, utilizo-o para minhas leituras.
— Eu permaneceria aqui por muitas horas sem me cansar.
Este lugar transmite uma sensação de paz, de bem-estar, que
eu não saberia explicar - comentou minha mãe.
— Sinto a mesma coisa. Por isso, também é aqui que,
aproveitando a paz da natureza, penso em Deus e rezo –
considerou Leonora.
Marie ponderou com leve sorriso:
— Faz sentido. Talvez seja essa a razão de ser um ambiente
tão agradável. Tenho notado, através do tempo, que nossos
pensamentos influenciara a nós e ao ambiente em que
vivemos.
Ao ouvir aquelas palavras, voltamo-nos para ela, surpresas.
Permanecemos pensativas por alguns minutos; eu
particularmente - que conhecia aquela pérgula e nunca vira
nada de especial nela -, sem entender a relação existente
entre as duas coisas, até que a dona da casa, quebrando o
silêncio, perguntou:
— Cara Marie! Posso fazer-lhe uma pergunta?
— Sem dúvida, querida Leonora. Se puder responder...
— Fui informada, por meu filho Guilherme, que você co-
nhece um tratamento que poderia ajudar meu marido
Valentim. Isso é verdade?
Com serenidade, Marie respondeu:
— Durante vários anos da minha vida, tenho buscado e
estudado assuntos diferentes, para entender o que se passa
conosco, seres humanos.
— Como assim? Poderia se explicar melhor, Marie?
A francesinha pensou um pouco e seus olhos azuis
focalizaram um ponto ao longe, como se buscasse na
memória a melhor maneira para expor suas idéias. Depois,
começou a falar:
— Desde criança, sempre me preocupou a diferença que existe
entre as pessoas. Por que aquele homem sofre tanto,
enquanto outros estão bem? Por que existem pessoas boas e outras
más? Por
que algumas nascem na riqueza e outras na miséria? Eu
pensava nessas coisas e interrogava meus pais e mestres, mas
ninguém conseguia responder aos meus questionamentos.
Conforme fui crescendo, essas dúvidas me acompanhavam e
continuavam sem respostas; então, passei a refletir com mais
profundidade buscando entender as razões da própria vida: O
que estou fazendo aqui? De onde eu vim? E após a morte,
para onde vou? E as outras pessoas? E, a mais importante de
todas: quem sou eu?
Acompanhávamos sua narrativa, interessadas. Ela afastou
uma mecha dos cabelos de fogo que caíra sobre a testa e
prosseguiu:
— Certa ocasião, papai levou-me para visitar um velho
amigo seu. Diante da moradia fiquei impressionada. Era uma
construção senhorial, enorme, imponente, que devia ter
sido muito bonita e luxuosa, mas que apresentava sinais
inegáveis de decadência. O criado introduziu-nos em uma
sala ampla e bem decorada, com janelas altas recobertas por
cortinas de veludo carmesim, tapetes fofos e macios, que já
deviam ter conhecido tempos melhores. Alguns minutos
depois, o dono da casa surgiu. Era um cavalheiro de estatura
mediana, cabelos brancos curtos e olhos verdes muito vivos.
Cheirava a lavanda. Gostei dele assim que o vi. Era simpático
e agradável. Ao ficar sabendo que eu apreciava leituras,
gentilmente ele me pegou pela mão e levou-me até uma
grande porta, que abriu. Era a sua biblioteca. Fiquei
encantada! A sala era grande e não se viam as paredes,
totalmente recobertas por estantes de madeira que iam do
chão ao teto. Curiosa, indaguei como fazer para alcançar os
livros lá no alto, e ele, sorrindo, mostrou-me uma escada
que eu não havia notado, e que corria suavemente sobre
trilhos. Em cada lado da sala havia uma dessas escadas.
A emoção da lembrança fez os olhos de Marie cintilarem,
como se a cena estivesse acontecendo naquele instante, e
ela exclamou:
— Magnífica! Verdadeiramente magnífica aquela biblioteca!
Depois, enxugando discretamente os olhos úmidos, ela
prosseguiu:
— Então, graças à gentileza de Monsieur Alphonse, que me
permitiu livre acesso aos seus tesouros, tive a oportunidade
de buscar nos livros as respostas para meus
questionamentos.
Conquanto as pessoas afirmassem que tudo isso era
bobagem, que eu deveria me preocupar mais com coisas
femininas, tais como preparar-me para o casamento,
aprender a cuidar de uma casa, a cozinhar, a costurar, a
bordar, entre outras.
Marie deu uma risada, que nós acompanhamos, e seu rosto
sardento se iluminou. Ela ajeitou-se melhor no banco,
tentando avaliar nosso interesse, depois continuou:
— No entanto, deparei-me com uma extraordinária sur-
presa. Fiquei sabendo que os homens sempre se
preocuparam com essas questões!
— Verdade?... - indaguei perplexa.
— Sim! Dei-me conta de que a Filosofia surgiu exatamente
para esclarecer a existência da Divindade e da alma, e para
responder a esses questionamentos! Então, mergulhei no
estudo dos filósofos e de suas idéias, o que me foi de grande
valia.
— E obteve resposta para suas dúvidas? - perguntou minha
mãe, inclinando-se para frente, sumamente interessada.
Marie respirou fundo, balançou a cabeça afirmativamente e
sorriu:
— Aprendi que para tudo existe uma resposta. Dei-me conta
de que os povos mais antigos já tinham a crença na
existência de um Ser Superior que governa tudo, a
quem chamamos Deus, mas que pode receber várias
denominações diferentes, através do tempo, dependendo da
época, da localização geográfica e da cultura dos povos. Que
acreditavam na reencarnação, ou existências sucessivas;
tinham a consciência de que todos somos almas ou espíritos
imortais, que habitamos muitos corpos para aprender e
progredir. Sócrates e Platão falavam sobre esses assuntos.
— Mas isso é uma heresia!... A nossa Igreja não admite tais
coisas, que considera coisas do demônio! – retruquei
indignada.
Marie sorriu tranqüila e depois respondeu:
— Maria Eugênia, estou me referindo a conhecimentos que
existem há milênios, antes da vinda de Jesus Cristo ao
mundo, e evidentemente muito antes que surgisse a Igreja
Católica. Portanto, são conhecimentos que não podem nem
devem ser ignorados.
Incomodada pelo rumo que a conversa tomara, voltei a
atacar:
— Sabe que muitas pessoas já foram queimadas nas fogueiras
da Santa Inquisição, acusadas de bruxaria, por heresias como
essas?
— Maria Eugênia! Contenha-se! - exclamou minha mãe, em
voz baixa, tomando o partido da francesa.
Marie respirou profundamente e seus olhos se nublaram,
mostrando certa tristeza.
— Sim, sei de tudo isso, Maria Eugênia, o que lamento, uma
vez que apenas demonstra a ignorância e o fanatismo da
Igreja. Além disso, eu apenas respondia a uma pergunta feita
pela nossa anfitriã, Leonora, acreditando estar em um grupo seleto
de pessoas inteligentes e abertas ao conhecimento. Porém,
você reage como grande parte das pessoas, supersticiosas e
conservadoras.
No fundo, aquele tema me dava medo. Sofrendo pressões do
mundo espiritual, arrepiava-me diante do assunto que me
constrangia, como se todas as pessoas soubessem das minhas
dificuldades. Assim, incapaz de me controlar por mais
tempo, levantei-me, irritada.
— Com licença! A ouvir balelas, prefiro passear pelos
jardins.
O ambiente tornara-se pesado e desconfortável. Após minha
saída intempestiva, mamãe sentiu-se na obrigação de dizer
alguma coisa, embora tivesse um nó na garganta:
— Querida Marie, nem sei como desculpar-me pela atitude
de Maria Eugênia. Peço-lhe perdão, e também à querida
Leonora. Sinto-me envergonhada. Sem desejar justificar o
comportamento de minha filha, todavia não posso deixar de
explicar que ela realmente não está bem.
— Não se preocupe, querida Virgínia. As palavras de Maria
Eugênia não me abalaram. Entendo o problema dela e sei de
suas preocupações - considerou Marie, serena.
— Sabe?!... - tornou minha mãe, surpresa.
Marie justificou-se, entendendo que falara mais do que
devia:
— Não me leve a mal, Virgínia. Sabe que Pierre e eu
convivemos com sua filha na França e...
— Aconteceu algo por lá que eu não saiba? Por favor, diga-
me! - interrompeu-a, intrigada.
Constrangida, Marie notou que mamãe ignorava os fatos
ocorridos em Paris. Então, com delicadeza, em virtude da
presença da dona da casa, que ela também não sabia até que
ponto estava a par dos acontecimentos, preferiu
desconversar:
— Virgínia, talvez este não seja o momento ideal para falarmos
sobre tais assuntos. Quem sabe em outra oportunidade?
Minha mãe entendeu. Discreta, Marie desejava preservar a
imagem de sua filha. Leonora, que conhecia uma parte dos
acontecimentos por meio de Guilherme, gentilmente disse:
— Vou retirar-me. Preciso dar algumas ordens e verificar
como está Valentim. Assim, as deixarei mais à vontade.
E já se levantava para sair, quando mamãe a impediu:
— Não, minha amiga. De jeito nenhum. Viemos aqui para
estar com você, e podemos dialogar sobre esse assunto em
outra hora. Mas, de que falávamos mesmo? - disse, tentando
modificar o rumo da conversa.
Ninguém se lembrava, e riram. Conversando, não haviam
percebido que pesadas nuvens avançavam, ameaçando
chuva. Nesse momento, alguns pingos começaram a cair e
elas foram obrigadas a deixar apressadamente a pérgula rumo
ao interior da casa, achando graça da situação. Entraram no
casarão, alegres, já esquecidas do mal-estar de pouco antes.
Os cavalheiros estavam reunidos em uma mesa, na sala ao
lado, a jogar gamão, enquanto eu folheava um livro que
encontrara na biblioteca. Na sala de visitas, as senhoras
puseram-se a conversar, comentando as últimas novidades
da corte, inclusive dos escândalos do imperador. Depois,
Leonora pediu a mamãe que tocasse alguma coisa.
Atendendo ao pedido da anfitriã, gentilmente ela levantou-
se, sentando-se com elegância ao piano.
Aos poucos, os acordes musicais tomaram conta do am-
biente, enquanto as mãos delicadas dedilhavam o teclado. A
pianista executou peças clássicas de compositores famosos,
como Mozart, Beethoven, Chopin. Depois passou para as
modinhas em voga, acompanhada pelos presentes, inclusive
os cavalheiros que, deixando a mesa de jogo, se reuniram a
elas, divertindo-se a valer cantando as letras conhecidas.
As horas passaram de forma agradável e alegre. Leonora
mandou servir refrescos para as senhoras e para os
cavalheiros.
Entretidos a conversar, levaram um susto quando uma faísca cortou
o céu, caindo não muito longe, e o ruído de um grande
trovão soou com estrondo no ar, assustando a todos. O céu
se fechara completamente, coberto por pesadas e escuras
nuvens. Os criados se apressaram a fechar as janelas, com
exceção das janelas da sala, que se abriam para a varanda, e a
acender as luzes, enquanto raios e trovões prosseguiam
ameaçadores.
Não demorou muito, a chuva caiu forte. Mamãe olhava para
fora, preocupada com o temporal. Leonora, percebendo seu
olhar, afirmou categórica:
— Virgínia, vocês terão de pernoitar aqui.
— Será? Ainda tenho esperança de que a tempestade
diminua logo...
— Mesmo que isso aconteça, minha querida, você conhece
o problema: a estrada estará intransitável. Não permitirei que
saia daqui com sua filha, nessas condições.
— Tem razão, Leonora. Agradeço-lhe a hospitalidade.
Ficaremos.
A dona da casa mostrava-se alegre e jovial.
— Não posso dizer que lamento esse incidente. O período
de seca já durava por tempo excessivamente longo, e esta
chuva, como aquela que caiu há alguns dias, é providencial. Nossas
lavouras estavam morrendo e os animais emagreciam, sem
pasto e sem água. Além disso, teremos mais tempo para
conversar. Mandarei aprontar os quartos. Agora, dêem-me
licença. Preciso ver como está Valentim e dar algumas
ordens na cozinha. Voltarei breve.
Quando Leonora retornou, vinha mais tranqüila.
— Meu marido tomou seus remédios e já adormeceu. Peço-
lhes desculpas pela ausência dele à mesa. Convido-os para
nos dirigirmos à sala, onde o jantar será servido.
Sentamo-nos e os pratos se sucederam, com finura e deli-
cadeza. Após a sobremesa, Leonora nos levou para a sala ao
lado, onde seria servido o café.
Não demorou muito, cansados, os hóspedes estavam
sonolentos. Pierre foi o primeiro a se retirar, logo
acompanhado por Guilherme. Sentia-me também sonolenta
e, da mesma forma, após desejar boa-noite aos demais,
recolhi-me aos aposentos que me foram designados.
Ficando a sós, as três senhoras conversaram ainda por algum
tempo. A dona da casa, com um sorriso, propôs:
— Que tal continuarmos nossa conversa da tarde,
interrompida? Estou curiosa.
— Bem lembrado, Leonora. Também tenho o maior inte-
resse em saber em que os estudos de Marie podem auxiliar
no tratamento do senhor Cerqueira - concordou minha mãe.
Assim requisitada, Marie não se fez de rogada:
— Têm tudo a ver, minhas caras amigas. Se considerarmos
que a alma é imortal e que a reencarnação é um fato, e analisando a
lição da natureza que mostra que cada um de nós colhe
aquilo que semeia, chegaremos à conclusão de que a ventura
ou a desventura são causadas pela própria alma. Se nós temos
uma doença, em nosso pensamento está radicada a cura ou a
enfermidade.
Leonora e mamãe arregalaram os olhos de espanto.
— Aprendeu isso com os filósofos? - indagou Leonora.
Marie titubeou um instante, como se cogitando da
conveniência do que iria dizer.
— Não propriamente. Aprendi com os anjos de luz que me
aparecem e que me orientam. Eles afirmam, porém, que não
está longe o tempo em que essas verdades serão divulgadas e
conhecidas por todas as pessoas.
As outras duas estavam pasmas e sem ter o que dizer.
— Extraordinário! - disse Leonora.
— Incrível! - exclamou minha mãe, considerando: - Se isso
é verdade, como agir para estarmos sempre bem?
— Cultivando o bem e mantendo o pensamento puro. Esses
anjos me informam que a resposta está no Evangelho de
Jesus.
— Como assim, Marte? Somos católicos, meu marido
sempre foi religioso e todas as semanas ele ia à igreja, assistia
a missas, comungava e confessava. No entanto, por que está
tão gravemente doente? - interrogou a dona da casa.
— Não posso lhe afirmar com certeza, Leonora. O problema
dele pode ser causado por erros cometidos há muito tempo,
em outras vidas, ou causado pela maneira de pensar e agir na
existência atual.
— Não entendo, Marie. Mas o fato de meu marido ser um
católico devoto não pesa a favor dele?
— Leonora, Cristo diz que "a cada um será dado segundo
suas obras". Então, se a pessoa sofre, é porque praticou o
mal. Também afirma Jesus que a pureza está no íntimo de
cada um e não nos atos exteriores que praticamos.
— Você quer dizer então que Valentim agia errado? - inda-
gou Leonora.
— Quero dizer que, muitas vezes, damos mais atenção aos
atos exteriores, quando o importante é como estamos nos
sentindo. Podemos rezar apenas com os lábios, sem que o
pensamento e o sentimento participem do verdadeiro desejo
de orar, que é elevar o pensamento a Deus.
— É interessante o que está dizendo. No entanto, nunca os
padres nos falaram sobre a importância de rezar dessa forma
- considerou mamãe.
— De fato. E é por isso que, às vezes, rezamos e não obtemos
resposta às nossas orações. Mas, volto a afirmar: a resposta
está nos ensinamentos de Jesus.
As três mantiveram-se caladas durante alguns minutos, cada
uma entregue aos próprios pensamentos. De repente,
Leonora voltou a perguntar:
— Marie, se é assim, o que têm a ver nossos pensamentos
com a doença ou a cura?
— Tudo, minha amiga. Se mantivermos pensamentos bons,
nosso corpo acusará bem-estar e melhora. Ao contrário, se
só pensarmos o mal, nosso organismo mostrará o mal-estar
interior
em forma de mal-estar físico.
— Faz sentido - disse minha mãe, perplexa diante da novidade da
informação.
Leonora, que permanecia pensativa, balançou a cabeça
concordando. Naquele momento, repassava na memória o modo
como o marido agia nas mais diferentes situações, e acabou por
concordar com Marie. Apesar de religioso, ele era inflexível
com as pessoas, especialmente com os subordinados e os escravos
da fazenda; estes, por qualquer motivo iam para o tronco,
sofrendo horrores sob a chibata, não raro, a própria morte.
Não perdoava qualquer ofensa, e o orgulho de sua classe
social fazia com que sempre desejasse levar a melhor, em
qualquer situação. Não admitia ser contrariado e, por um
nada, indispunha-se com familiares ou amigos.
— Agora entendo melhor o que você acabou de explicar,
Marie.
Minha mãe olhou para os lados. Tudo estava quieto. Notou
uma escrava que, acocorada em um canto da sala, cochilava,
esperando que elas se recolhessem.
— Bem, parece-me que só ficamos nós, e deve ser tarde. Que tal
também nos recolhermos? Amanhã será outro dia.
Esperemos que a chuva dê uma trégua. Maria Eugênia e eu
precisamos retornar para a Santa Genoveva.
As outras duas concordaram. Leonora perguntou
delicadamente se desejavam um chá antes de dormir, mas as
hóspedes recusaram. Então, Marie, Leonora e mamãe
subiram as escadarias. O primeiro quarto era o da dona da
casa. Depois, em seqüência, o de minha mãe e o de Marie.
Diante dos aposentos da anfitriã, as visitas deram-lhe boa-
noite, agradecendo mais uma vez pela hospitalidade e pelo
dia tão agradável. Ao ficarem a sós no corredor, Marie e
mamãe trocaram um olhar.
— Está com sono, Virgínia?
— Não. E você?
— Também não. Que tal se aproveitássemos o ensejo para
ter aquela conversa que ficou pendente hoje à tarde? -
sugeriu Marie.
— Ótima idéia. Pensei a mesma coisa. Dificilmente teremos
outra ocasião para estarmos a sós - disse a outra.
— Bem, Então, vamos aos seus aposentos. No meu quarto,
Pierre deve estar dormindo a sono solto.
— Sem dúvida. Então, vamos.
24 – Novas Descobertas
Mamãe abriu a porta do quarto e convidou a amiga para
entrar. O aposento, amplo e agradável. Nas janelas, as
cortinas impediam que se vissem os relâmpagos. O
mobiliário compunha-se de um grande roupeiro, uma
cômoda e um leito de mogno; ao lado do leito, uma mesa de
cabeceira com uma candeia acesa; uma poltrona, também de
veludo da mesma cor das cortinas, ficava do outro lado da
mesa. Sobre a colcha, estava uma toalha de banho e uma
camisola, gentileza de Leonora.
Mamãe indicou a poltrona para Marie sentar-se, enquanto
ela mesma se acomodou no leito. Olharam-se, e à luz da
candeia que iluminava seus rostos, ela começou a falar, em
voz baixa:
— Marie, hoje à tarde fiquei com a impressão de que você
sabe coisas que ignoro a respeito de minha filha, Maria
Eugênia. É verdade?
— Diga-me primeiro o que você sabe, Virgínia.
— Esse é o ponto. Sobre o quê, Marie?
Com olhar indagativo, a francesa murmurou:
— A respeito do que aconteceu em Paris.
Concordando com a cabeça, a outra respondeu:
— Ah! Então realmente aconteceu alguma coisa enquanto
eles estavam em Paris? Nada sei sobre isso! Confesso-lhe que
meu marido e eu estranhamos a volta inesperada do casal,
cujo retorno foi antecipado em dois meses, Mas é só! -
informou minha mãe, surpresa.
Marie pensou um pouco e lentamente, pesando bem as
palavras, começou a falar em voz baixa, mas audível:
— Virgínia, não me creia uma bisbilhoteira. Longe de mim
querer parecer uma intrigante. Todavia, desde que a
conheci, tomei-me de viva simpatia por você, em quem
reconheço uma dama sensível, inteligente e de espírito
aberto, mas em cujo olhar noto tristeza e preocupação. Por
isso, ousaria perguntar: Maria Eugênia apresentava
problemas antes do casamento?
— A que tipo de problemas você se refere, Marie?
— Medos, visões, idéias de perseguição... esse tipo de coisa.
— Bem. Minha filha às vezes tinha medo de dormir sozinha.
Mas por que pergunta?
Por alguns segundos, a francesa manteve-se calada,
pensativa, como se analisando a conveniência de abordar o
assunto. Depois, resolvendo, disse:
— Virgínia, não sou mãe. Deus não me deu ainda a bênção
de ter filhos. Não tenho uma filha. Mas, se eu fosse mãe, não
gostaria de ignorar o que estivesse acontecendo com ela.
Por isso, vou lhe relatar o que sei, até para que tenha melhor
condição de entender o que se passa com sua filha e poder
ajudá-la. Foi assim...
E Marie, pesando bem as palavras, passou a narrar os fatos de
que tinha conhecimento, tanto dos que participara quanto
dos que soube na época por Guilherme. Evidentemente,
omitiu as confidencias de Guilherme sobre seu
relacionamento com Rita e a idéia dele de que as visões da
esposa tinham estreita relação com a escrava.
Minha mãe a ouvia com assombro, mas em nenhum mo-
mento a interrompeu. Terminando de falar, Marie concluiu:
— É tudo o que sei, ma chérie. Os fatos são esses, rigoro-
samente exatos.
Mamãe estava paralisada, pálida, sem condições de falar.
Depois de alguns minutos, murmurou:
— E quem seria essa mulher que minha filha dizia ver?
Marie olhou fixamente para ela, depois lentamente
murmurou:
— Esperava que você pudesse me dizer.
Diante dessas palavras, minha mãe se pôs a pensar. "Marie
julga que eu deva conhecer a mulher. Mas, quem? Por mais
que eu pense, não consigo atinar quem ela seja. Sei do
problema acontecido com a Ritinha, que me custou muitas
lágrimas e bastante preocupação, mas isso foi depois que eles
voltaram da Europa. Antes não havia nada, elas se davam
bem, eram amigas!" Então, finalmente murmurou,
desalentada:
— Por mais que eu tente, Marie, não consigo encontrar a
resposta para essa pergunta.
— Pense bem. Segundo o que Guilherme nos passou, Maria
Eugênia mostrava saber quem era essa mulher.
— Não sei. Não sei. Quem poderá ser essa mulher...?
A francesa baixou a cabeça diante desse obstáculo. Tomou
nas suas as mãos da amiga e propôs:
— Ambas estamos cansadas. Vamos repousar. A noite é boa
conselheira. Pense bem e acabará encontrando a peça que
falta para solucionar essa questão. Boa noite!
— Boa noite, Marie!
Após a saída da francesa, mamãe notou uma jovem escrava
que, afastada das luzes, cochilava em uma esteira a um canto
do aposento; saindo da penumbra, mostrou que aguardava
para ajudá-la a trocar de roupa para dormir. Calada, ela
deixou que a jovem tirasse suas roupas e lhe vestisse a
camisola emprestada de Leonora. Depois de lavar o rosto e
pentear os longos cabelos, enfiou-se debaixo das cobertas. A
temperatura estava caindo e sentiu frio. Finalmente, a
escrava apagou as velas, deixando acesa apenas a pequena
candeia na mesinha ao lado do leito. Desejando-lhe boa-
noite, deixou o aposento, para alívio de minha mãe, que
desejava ficar só para pensar.
Na penumbra, de olhos abertos, por mais que refletisse, ela
não conseguia encontrar a resposta. Quem seria aquela
mulher? Sua filha nunca lhe dissera nada, mesmo sem
querer.
No entanto, o curioso é que a imagem da falecida Rita
vinha-lhe sempre à memória. Murmurou para si mesma:
— Por que a imagem da Ritinha não me sai da cabeça? Não,
certamente não era ela a mulher que minha filha vira no
hotel, em Paris. Enquanto Guilherme e Maria Eugênia
estavam na França, Rita estava na fazenda! Não, é
impossível! Minha filha cometeu erro gravíssimo, como a
morte de Rita, mas esse fato não tem relação com os
acontecimentos de Paris. Mesmo porque o trágico
falecimento de Rita só ocorreu depois que Guilherme e
Maria Eugênia retornaram ao Brasil.
Ela virou-se no leito, bocejou, fechou os olhos e depois se
lembrou de um fato que tinha achado estranho na ocasião.
Na última vez que Guilherme fora à fazenda para visitá-la,
conversaram e, nas despedidas, ao acompanhar o genro até o
jardim, perguntou-lhe se, durante o tempo em que ele
morara naquela casa, soubera de alguma discussão ou desavença
ocorrida entre sua filha e a escrava Rita. A expressão dele havia
mudado, mostrando surpresa e susto a princípio, depois
perturbação. Notou que seus lábios tremiam e ele,
gaguejando, respondeu que nada sabia.
Que estranho! Por que tal reação? A não ser que ele sou-
besse de alguma coisa e não quisesse lhe contar!
De repente, ela arregalou os olhos no escuro. Uma idéia lhe
aflorou na mente. E se Guilherme teve alguma coisa com a
Rita? Sim, porque sua reação foi, no mínimo, estranha,
como se tivesse sido pego desprevenido, em flagrante. Ao
pensar em Rita, a imagem da escrava surgiu na sua tela da
memória. Sim, lembrava-se bem dela. Era jovem, danada de
bonita e os rapazes da fazenda viviam atrás dela. E não era
difícil um fazendeiro se interessar por uma escrava; ao
contrário, era bastante comum. Lembrava-se até de um
amigo de seu falecido marido que, certa ocasião, visitando a
Santa Genoveva, ao ver a jovem, ficou encantado e quis
comprá-la, oferecendo grande soma por ela. Felipe rejeitou,
considerando que Rita era criada de sua filha, Maria Eugênia,
que jamais aceitaria abrir mão da escrava, por quem tinha
grande apreço.
Minha mãe prendeu a respiração a esse pensamento.
"Sim! E se tivesse acontecido exatamente isso: um
relacionamento entre patrão e escrava? Não justificaria a
atitude criminosa de Maria Eugênia, mas poderia explicar seu
ódio por Rita, que sempre fora sua amiga."
Refletiu por mais alguns segundos, depois rejeitou esse
pensamento.
"Não. Não é por aí. Mesmo porque Rita só morreu depois
que o jovem casal retornou ao Brasil, e Maria Eugênia via
essa 'alma penada de mulher' na França. Preciso pensar,
encontrar uma resposta."
Com a cabeça em fogo, ela não conseguia dormir. Saiu das
cobertas e, ajoelhando-se ao lado do leito com seu rosário
nas mãos, rezou suplicando o amparo de Deus para a vida
delas e ajuda para desvendar esse mistério. Mesmo assim, o
sono tardava. As primeiras luzes da aurora já começavam a
surgir quando ela conseguiu cochilar um pouco.
NAQUELA MANHÃ, TODOS SE Levantaram um pouco mais
tarde, aproveitando o barulho da chuva que caía. Lá pelas
dez horas desceram, menos Maria Eugênia, que continuava
dormindo.
Tomaram café e reuniram-se na sala para conversar. Pierre,
após pegar um livro, optou por ler na sala íntima. Guilherme
e Leonora, pedindo licença às hóspedes, foram reunir-se na
biblioteca com o capataz, que lhes fazia um relatório dos
estragos havidos na fazenda: telhados destruídos, árvores
arrancadas e animais machucados.
Ao ficar sabendo dos prejuízos que a tempestade causara na
Santa Clara, mamãe ficou preocupada. O que teria
acontecido na Santa Genoveva? Todavia, como não podia
ainda pegar a estrada, ficou com Marie a conversar na ampla
varanda da frente, observando a chuva que caía calma, mas
pesada. Algum tempo depois, os pingos diminuíram e, não
demorou muito, uma nesga de céu azul surgiu, alegrando e
dando esperança.
Minha mãe, a sós com Marie, aproveitou para comentar:
— Demorei para dormir esta noite, pensando naquilo que
conversamos. Confesso-lhe que não descobri ninguém que
tivesse morrido e que pudesse ter ido assombrar minha filha
em Paris.
Marie, depois de pensar um pouco, considerou:
— Não precisa necessariamente ser alguém que esteja
morto, Virgínia.
— Como assim?
A francesa explicou-lhe que qualquer pessoa poderia ter-me
visitado no hotel. Que, quando dormimos, a alma se liberta e
vai para onde quiser, geralmente onde estão seus interesses.
— Verdade, Marie?... Tem certeza?...
— Absoluta.
Mamãe pareceu pensar por alguns instantes, depois
comentou:
— O curioso é que, à noite, toda vez que eu pensava no
assunto procurando uma resposta, vinha-me à memória a
figura de uma jovem escrava chamada Rita, criada de minha
filha, que
estava viva durante a viagem de Maria Eugênia e Guilherme.
Ambas sempre foram muito amigas e, de repente, não sei
por que, a amizade terminou.
— Interessante. Você disse que ela estava viva àquela época.
Por que, morreu?
— Sim. Logo em seguida ao retorno do casal. Foi um choque para
todos nós.
— Ah!... E essa Rita morreu de quê?
— Foi muito triste, Marie. Ritinha morreu afogada no lago
da fazenda. Maria Eugênia ficou muito abalada com a morte
dela. Depois, afirmava que a via por todo lado.
— Aconteceu alguma coisa entre elas? Um
desentendimento?
— Não que eu saiba. Inclusive, certa ocasião, perguntei a
Guilherme se tinha ciência de alguma briga entre as duas, e
ele respondeu que não.
— E você... ficou convencida disso?
— Não sei. A reação dele foi muito estranha. Ficou trêmulo
e me pareceu nervoso e abalado. Nunca mais voltamos ao
assunto.
— Por que não volta a falar com ele? - insistiu Marie, com
expressão grave.
— Você acha que ele sabe de alguma coisa? – indagou
mamãe, intrigada.
Marie baixou a cabeça e continuou calada. Virgínia
estranhou a reação dela, lembrando que a francesa, em Paris,
teve muitas ocasiões de conversar com Guilherme, e
insistiu, voltando a perguntar:
— Você sabe de algo, Marie? Guilherme lhe contou alguma
coisa? Se for isso, por favor, me diga! Eu preciso saber!
Marie respirou profundamente, e respondeu com voz
pausada:
— Somente ele poderá lhe responder a essa pergunta, amiga.
Nesse momento, o diálogo foi interrompido. Leonora se
aproximou, satisfeita. Os estragos tinham sido menores do
que supunha. Havia parado de chover e o sol surgira,
possibilitando a reparação dos danos. Depois, comentou:
— Virgínia, meu filho mandou dois escravos verificarem o
estado da estrada. Se a pequena ponte que separa nossas
propriedades não caiu, lá pelo fim da tarde a estrada estará
em condições de passagem.
— Boa notícia, Leonora. Agradeço-lhe. Realmente, além de
tomar ciência sobre possíveis estragos que a tempestade
causou, tenho assuntos urgentes a resolver na Santa
Genoveva, e preciso voltar o quanto antes.
— Não se preocupe, Virgínia. Pela direção que veio a
tempestade, deve ter passado na sua fazenda sem tanta
violência. A propósito, minhas amigas, os cavalheiros
desejam aproveitar o lindo sol para cavalgar um pouco. O
que acham? Vamos?
Marie e mamãe trocaram um olhar, sorridentes.
— Sim, vamos! - concordou Marie, desejando aproveitar ao
máximo os dias que passaria na fazenda.
— Sim, gostaria muito. Mas, não tenho traje apropriado! -
justificou-se Virgínia.
— Ora essa! Isso não é problema! Providenciarei um traje
para você. Então vamos nos arrumar. Já dei ordem para
prepararem os cavalos - informou Leonora, satisfeita de
proporcionar uma atividade agradável aos hóspedes.
As senhoras subiram as escadarias, eufóricas. Minha mãe até
esqueceu da conversa que tivera com Marie pouco antes e
que tanto a preocupara Não demorou muito, o grupo alegre
saiu para andar a cavalo. Convidada, preferi ficar, entretida
com a leitura de um livro.
Os homens iam à frente e as mulheres um pouco atrás,
conversando animadamente. Aos poucos, a água empoçada
foi desaparecendo do solo e dos pastos, até ficarem secos.
Na volta, em dado momento acabaram se separando, e
mamãe alcançou o cavalo de Guilherme, que apresentou um
problema em uma das patas e tinha ficado para trás,
afastando-se dos demais. Como os outros estavam bem à frente,
fizeram o resto do trajeto lado a lado.
Nesse momento, ela lembrou-se do diálogo com Marie no
início da manhã, e aproveitou a ocasião para perguntar:
— Guilherme, lembra-se da última vez que esteve em casa?
Aliás, você estava com muita pressa!
— Claro que me lembro. Ia ver umas terras que estavam à
venda e, depois, tinha que ir à cidade encomendar alguns
produtos.
— Isso mesmo. E as terras, você as comprou?
— Não. O preço era muito alto e não valia a pena.
— Ah! Lamento!... Você pareceu-me bastante interessado.
A propósito, nesse dia recordo-me de que lhe fiz uma
pergunta. Lembra-se?
Na sela, Guilherme ficou tenso. Suas mãos se contraíram,
segurando as rédeas com firmeza.
— Não. Não me lembro.
— Não? Ah!... Perguntei se você sabia de algum desenten-
dimento ou briga entre Maria Eugênia e Ritinha.
— Ah, sim. Lembrei-me agora. Mas, o que tem isso?
— Sua resposta continua a mesma? Não se recordou de
nada?
— Não. Não me recordo de nada.
Sem perdê-lo de vista, mamãe observava-o cuidadosamente
e notou que ele começou a suar e que seus lábios tremiam.
Estava evidentemente nervoso. Por quê?
— Estranho seu interesse nisso, senhora Virgínia. Em que
isso pode importar agora? Rita está morta há tanto tempo.
Ele havia parado debaixo de uma árvore para fitá-la, e
apertara tanto as rédeas que o cavalo empinou, levantando as
pernas dianteiras e quase o lançando ao chão. Notando esse
detalhe, ela concordou:
— Tem razão, Guilherme, bobagem minha. Nada mais
importa agora.
Retornaram em silêncio para a sede da fazenda, ao encontro
dos demais. No entanto, ela agora tinha certeza de que algo
acontecera e que ela ignorava. Naquele instante decidiu que,
custasse o que custasse, iria desvendar o mistério.
25 – Diva
Fatos novos viriam complicar ainda mais a situação na
fazenda Santa Genoveva.
Após a morte de Miguel, Diva, uma das escravas da fazenda,
sentia-se infeliz. Desde criança, sempre fora muito afeiçoada
a Miguel. Com o tempo, a amizade transformou-se em amor.
Ela tornou-se uma mocinha bonita, faceira, e tentava de
todas as maneiras atrair a atenção do rapaz, sem sucesso.
Mantinham um bom relacionamento, conversavam e,
quando havia festa na fazenda, eles até dançavam juntos.
Mas era só isso. Miguel nunca revelara seus sentimentos.
Diva não se conformava com a indiferença do rapaz.
Tentava provocar-lhe ciúmes, utilizando-se de todos aqueles
recursos que as mulheres costumam usar. Afirmara estar
apaixonada por Amaro, o melhor amigo de Miguel, sem
qualquer resultado. Ele nem lhe dava atenção!
Inconformada e frustrada em seus mais caros sentimentos,
Diva tentou descobrir o que se passava no coração dele, pois
sentia que, lá no fundo, ele sofria por alguém. Notava-lhe o
ar distante, o olhar perdido no vazio e uma certa tristeza que
não saía de seu rosto. Mas, quem? Qualquer uma das jovens
escravas ficaria feliz se fosse escolhida por ele, mas Miguel
parecia ignorá-las, como ignorava a ela, Diva.
No dia do casamento da sinhazinha, ele estava muito
estranho, mais arredio do que de costume.
A senzala estava em festa, pois também havia comemoração
para os escravos, que estavam eufóricos; havia fartura de
comida, de bebida, música e dança ao redor de uma grande
fogueira; alegres, aproveitavam para se divertir, pois raro era
o dia que o sinhô Figueiroa oferecia fartura para os escravos.
Só em ocasiões especiais. Como no dia seguinte o sinhô
concedera folga para todos e ninguém iria para a lida,
aproveitaram para comer, beber e dançar, o que só
terminaria lá pela madrugada.
Diva - que não tirava os olhos de Miguel - percebeu que,
amuado em um canto, só ele não participava da festa. Ela
pegou um prato de comida, uma caneca, uma jarra de barro
com bebida e dirigiu-se até onde ele estava.
Toda faceira, aproximou-se lentamente e entregou-lhe o
prato e a caneca.
— Trouxe para você, Miguel. Notei que ainda não comeu
nem bebeu nada esta noite. Aproveite, homem! Não é todo
dia que temos fartura!
Sentou-se perto dele, mostrando intenção de fazer-lhe
companhia. Incomodado e um tanto descontente, ele disse:
— Agradeço-lhe a preocupação comigo, mas não carecia
tanta atenção, Diva. Você é jovem e bela, cheia de vida. Vá
para junto dos outros, participe das diversões. Não serei uma
boa companhia para você. Estou em um dia péssimo.
Ela mordeu os lábios, diante da rejeição dele, mas sem se dar
por achada respondeu:
— Também não estou para festa, Miguel. Prefiro
permanecer aqui, ao seu lado, longe da confusão e do
barulho. Isto é, se você permitir.
Não tendo como recusar, conformado, ele concordou:
— Se é o que deseja...
Depois, sem sequer endereçar-lhe um olhar, ele
permaneceu calado, ignorando-a. Diva, a seu lado, pensava:
"Pois sim! Ele está muito enganado se pensa que pode me
dispensar dessa maneira! Não saio daqui de jeito nenhum!".
Assim, ficaram os dois, lado a lado, sem trocar uma palavra,
observando a festa que corria solta: os escravos cantando e
dançando ao som dos atabaques. Observando-o
discretamente, Diva percebeu que Miguel estava mais triste
que de costume, parecendo desgostoso da vida, e que, aos
poucos, ia entornando todo o conteúdo da jarra que
trouxera. Ela notou também que seus olhos ficaram
diferentes, nublados, e ele, mesmo sentado, começara a
cambalear. Até que, em certo momento, Miguel começou a
resmungar, com a cabeça confusa, já sem saber direito o que
dizia, mas ela não perdera uma palavra do que ele tinha dito:
— Ela vai para longe... nos braços dele.
— O que disse, Miguel? - indagou interessada.
— Nada... nada... Tudo vai mudar. Ah, se vai! Na volta tudo
será diferente - disse ele com um meio sorriso.
Apesar de esperta e atenta, Diva sentia dificuldade em
compreender o que ele dizia com a voz enrolada, porém
entendeu perfeitamente que tinha a ver com os noivos.
Quem "iria para longe nos braços dele" era a sinhazinha
Maria Eugênia. Depois ele dissera: "Tudo vai mudar... Na
volta tudo será diferente". "Só pode estar se referindo aos
noivos, que irão viajar, mas que voltarão. Isso estava muito
claro!"
Depois, a conversa mudou. Ele começou a dizer: "Vou
acabar com aquela miserável. Traição não se perdoa. Não se
perdoa." "De que traição ele está falando? A quem se refere?"
Diva tentou fazê-lo falar mais:
— O que disse, Miguel? Com quem vai acabar?
— Pssssiuu!... Isso é segredo. Ninguém pode saber! - falou,
colocando o dedo na boca e pedindo silêncio com voz
enrolada.
Tentando saber mais, ela o imitou, baixando o tom de voz,
enquanto tornava a encher-lhe a caneca:
— Concordo com você. Traição não merece perdão. Mas,
quem o traiu? A sinhazinha?
— Não... Ela não... Ela é um anjo!
Anjo?... Pois sim! Diva não acreditava nisso. Nesse
momento, nos olhos dele surgiu um lampejo de consciência
e, temendo ter falado demais, Miguel levantou-se,
cambaleando, e correu para o meio do mato, tão rápido
quanto suas trôpegas pernas permitiam.
— Não, Miguel! Volta! - gritou ela, ainda tentando fazê-lo
retornar. Miguel, no entanto, ágil como um felino, já
se enfiara no mato. A noite estava escura, como breu; Diva
tentou alcançá-lo, mas não conseguiu.
Cheia de despeito, além de sentir-se rejeitada, estava
decepcionada por ter perdido a oportunidade de ouvi-lo falar
mais. Voltou para junto dos demais escravos, e o resto da
noite não pensou em outra coisa. "Vou descobrir a verdade,
custe o que custar, ou não mais me chamarei Diva".
Depois desse dia, Miguel tornara-se outro homem; alguém
calado, introvertido, que não brincava mais e que quase não
conversava com os amigos da senzala.
Diva tentava entender o que estava acontecendo com ele,
mas deparou-se com um obstáculo intransponível. Ninguém
sabia nada, um verdadeiro mistério. Certa ocasião, ficando a
sós com Amaro, tentou obter alguma informação:
— Amaro, você sabe do carinho que sinto por Miguel.
Tenho notado que ele está muito estranho, arredio, e
estou preocupada. Você, que é um grande amigo dele, sabe
me dizer o que está acontecendo?
Com expressão pensativa e grave, ele respondeu:
— Também não sei, Diva.
— Ele mudou muito, Amaro! Deve ter acontecido alguma
coisa!
— Se aconteceu, Miguel não me contou.
Diante das evasivas dele, Diva afastou-se, entendendo que
Amaro provavelmente não sabia a razão da mudança de
Miguel e, mesmo que soubesse, não lhe diria por fidelidade
ao amigo.
A vida seguiu seu curso. Quatro meses depois, os recém-
casados voltaram inesperadamente da viagem de núpcias. Na
senzala, ao ouvir a notícia, Miguel passou a demonstrar uma
ansiedade que a esperta Diva registrou.
Logo em seguida, aconteceu a tragédia no lago.
Inexplicavelmente, Ritinha foi com Miguel passear no lago e
se afogou, perdendo a vida. Todos os escravos ficaram
consternados. Causou perplexidade geral saber que Rita
encontrara a morte no lago, uma vez que, por medo, nunca
se aproximava da água.
Era notório o pavor que ela tinha do lago! Diva, ao saber que
ela aceitara um convite de Miguel para andar de barco, ficou
mais impressionada ainda.
Refletindo sobre o assunto, Diva não conseguia entender o
que tinha acontecido. Não era ciúme. Claro que ela sentia
ciúme sempre que ele se aproximava de uma das moças,
porém, nesse caso, alguma coisa estava errada. Por que
Miguel - justamente Miguel, que nunca dava atenção a
nenhuma das moças da senzala, muito menos à Rita! - a teria
convidado para passear no lago?...
Cada vez mais Diva se convencia de que havia algo de muito
errado em tudo isso. Não dava para entender.
No velório, acocorada em um canto da senzala, a escrava
buscava uma resposta para essas questões. De repente, ela
viu Miguel que entrara, cambaleando, como se estivesse
embriagado. Seus passos eram trôpegos, inseguros e ele tinha
uma expressão de medo, ao mover-se lentamente pelo
barracão. Penalizada, Diva foi para perto dele, procurando
consolá-lo. Percebeu logo que ele não estava bem; tremia da
cabeça aos pés e estava gelado. Ele balançou, perdendo o
equilíbrio e Diva segurou-o pelo braço, ajudando-o a sentar-
se no chão para não cair.
"Pobre Miguel! Eu não gostaria de estar na situação dele!
Deve sentir-se terrivelmente culpado pela morte da
Ritinha", pensou Diva.
Tentou falar com ele, mas Miguel não respondia, parecendo
completamente perturbado. Seu olhar estava vazio, distante
e com expressão temerosa.
Rita foi enterrada no dia seguinte e, daí em diante, Miguel
deixou de ser aquele homem seguro e resoluto, com porte
de guerreiro, que todos admiravam. Encolheu-se, afastando-
se de todos e tornando-se uma sombra do que fora. Passou a
esconder-se no mato e raramente era visto; falava coisas sem
sentido e julgava-se sempre perseguido por alguém.
Diva, que o amava profundamente, também se tornou uma
mulher triste e sozinha, perdendo toda a esperança de
conquistá-lo e de ser feliz com ele algum dia. Às vezes, ela
internava-se no mato para vê-lo, cheia de saudade, levando-
lhe alimentos e até agasalho, nos dias mais frios. Nessas
ocasiões, tentava conversar com ele, mas o pobre louco -
como agora era considerado - respondia-lhe falando de
alguém que o perseguia, que o acusava por alguma coisa.
Certo dia, ela percebeu que era de Rita que Miguel falava, e
entendeu seu medo: a alma penada de Rita o culpava pela
sua morte.
De resto, outras pessoas na senzala também começaram a
notar a presença da pobre Rita, que, em espírito, vagava sem
descanso e sem paz no outro mundo. Virou um hábito,
quando os escravos se reuniam à noite em torno da fogueira
para prosear, falarem sobre as aparições da morta. Diva se
arrepiava toda quando tocavam nesse assunto, e saía de
perto. Não gostava de falar nem sobre morte nem sobre
pessoas que já tinham morrido.
Por essa época, também começou a correr pela fazenda a
notícia de que a sinhazinha Maria Eugênia estava doente dos
nervos. Pai Albino rezava por ela na senzala, e era comum o
médico vir à Santa Genoveva para ser consultado. Porém as
escravas que serviam na casa-grande - especialmente
Florência e Odete, pois Dionísia mantinha-se calada - diziam
à boca pequena que a sinhazinha era atormentada pela alma
da infeliz Ritinha, que não lhe dava paz, desejando vingar-se
dela.
Ao saber disso, Diva estranhou, pensando. "Por que
desejaria vingar-se? A sinhazinha não tivera nada com a
morte dela! O mesmo não se poderia dizer de Miguel que,
mesmo involuntariamente, fora o responsável por sua
morte, o que justificava a raiva de Rita".
Todos esses fatos mexiam com a cabeça de Diva. Certo dia,
conversando com o escravo Ramiro, lembraram da morte da
Ritinha, e ela disse o que pensava a respeito do assunto:
— Acho estranho que a alma da Ritinha esteja atormen-
tando a sinhazinha Maria Eugênia; pelo menos, é o que
dizem. O Miguel a gente pode até entender, porque foi ele
que a levou para o lago, mas a sinhazinha não tem nada com
isso! O que você acha, Ramiro?
O escravo baixou a cabeça, pensou um pouco, e depois
respondeu com outra pergunta:
— Será que não tem mesmo, Diva?
— Por quê? Você acha que tem, Ramiro?
Ele permaneceu calado por alguns segundos, cocou a
cabeça como se estivesse em dúvida, depois considerou:
— Pode ser que não. No entanto, meu filho contou, à
época dos fatos, que, pelo menos duas vezes, levou recado
da sinhazinha para Miguel ir encontrar-se com ela no
caramanchão de rosas, aquele no fundo do jardim.
— É verdade isso?! - indagou perplexa.
— Meu filho não tem o hábito de mentir, Diva. Um dia ele
apareceu em casa com duas moedas. Preocupado, julgando
que poderia ter roubado de alguém, perguntei onde ele
conseguira aquelas moedas, e meu filho afirmou ser um
presente da sinhazinha por ter-lhe prestado um favor. Que
favor era esse, meu filho? - perguntei. Ele respondeu: avisar
Miguel que ela o esperava no caramanchão de rosas.
— Quando foi isso, Ramiro?
— Logo depois que ela chegou de viagem... e antes da
tragédia do lago.
— Não é possível! Você acha então...
— Não acho nada, Diva. Só achei estranho esse interesse da
sinhazinha em conversar com Miguel.
— É verdade. No entanto, ela poderia querer dar-lhe uma
ordem qualquer, ou incumbi-lo de um serviço...
— Se era esse o motivo, por que razão precisaria falar com
Miguel longe de todos, em um lugar isolado e que
ninguém iria vê-los? E tem mais: recomendando a meu
filho que nada contasse a ninguém?
Diva estava surpresa.
— Seu filho disse isso, Ramiro?
— Sim, com todas as letras. Ninguém poderia ficar sabendo
do encontro dela com Miguel.
"Ramiro tem razão. Por que escolher um lugar tão isolado,
quando ela tinha todo o direito de lhe dar uma ordem? E
fazer disso um segredo?"
Nesse momento, ouviram risos e viram que outras pessoas
estavam se aproximando. Ele murmurou:
— Diva, o que eu lhe contei morre aqui. Ninguém pode
saber sobre o que conversamos.
— Fique sossegado. Ninguém saberá.
Os amigos chegaram e eles mudaram de assunto. Diva,
porém, não conseguia parar de pensar naquilo que ficara
sabendo. Tinha de tirar a limpo a questão. Pensou bastante e
resolveu que só havia alguém que poderia esclarecer esse
enigma: Miguel. Assim, decidiu que iria procurá-lo para
tentar descobrir a verdade.
No dia seguinte, em um intervalo entre suas obrigações,
encaminhou-se para o lado da Pedra Grande. Levava um pe-
queno recipiente com bebida, um bom naco de carne
assada, um pedaço de pão fresco que Florência fizera e
alguns biscoitos. Tudo muito bem acondicionado em um
saco.
Aproximou-se do local sem fazer ruído para não afugentar
Miguel. Sentado ao lado da grande pedra, ele tinha nas mãos
um pequeno coelho assustado.
— Que bonito coelho, Miguel - disse, em voz baixa e calma.
Ainda assim, espantado com a presença de alguém, ele
tentou erguer-se para fugir.
— Não, Miguel! Não fuja! Sou eu, sua amiga Diva,
lembra-se?
Ele ergueu os olhos para ela e pareceu acalmar-se.
Sentou-se, deixando o coelho escapar de suas mãos.
— Olhe! O coelhinho está fugindo!
— Não faz mal. Por que veio aqui? - perguntou ele,
mostrando lucidez.
Diva abriu o saco e mostrou-lhe o que havia dentro:
— Trouxe-lhe algumas coisas para comer. Tome. São
para você.
Miguel pegou o saco, ainda temeroso, Depois, abriu-o e
retirou o pedaço de pão, levando-o à boca e dando uma
mordida. Parecia faminto. Enquanto ele comia, Diva
aproximou-se mais e acomodou-se ao lado dele no chão.
— O que deseja? - indagou Miguel sem olhar para ela.
— Nada. Apenas vê-lo. Conversar com você. Sinto
saudade.
— Por quê?
— Gosto de você, Miguel. Sinto sua falta,
De repente, ele virou-se para ela e Diva percebeu que seus
olhos estavam diferentes, como se fossem de outra pessoa.
— Estão me dizendo que veio aqui para me fazer perguntas.
Assustada, Diva tentou justificar-se:
— É verdade que tudo o que aconteceu mexe comigo,
Miguel. Vê-lo assim, vivendo no mato como um bicho, não
me agrada, e fico pensando o que aconteceu realmente para
deixá-lo
nessa situação.
O escravo olhou-a e Diva notou que estava lúcido, enten-
dera o que ela tinha dito e seus olhos ficaram úmidos.
Depois, de repente, ele levou as mãos à cabeça, como que
atormentado, gritando e gemendo, a bater na cabeça
vigorosamente.
— Não me atormente! Chega! Não suporto mais! Não
queria matar você, Rita. Ela me obrigou! Não! Não me bata!
Chega!
Com o coração acelerado e a respiração ofegante, Diva
ouvia-lhe as palavras sem entender direito. Daí,
Miguel, virando-se para ela, gritou:
— Você pode vê-la? Esse demônio não me dá paz. Veja o
que ela faz comigo!
E ele mostrou o braço, onde, inacreditavelmente, surgira um
grande vergão vermelho como sangue, como se ele tivesse
sido açoitado.
Incapaz de prosseguir ali, Diva ergueu-se e correu pela mata,
fugindo daquela cena terrível. Em território conhecido, mais
perto de casa, agora mais tranqüila, ela parou e sentou-se em
um tronco de árvore para descansar.
Aos poucos sua respiração foi voltando ao normal e as
pernas pararam de tremer. Então, mais calma, ela ergueu-se
e retornou para a senzala, local onde se sentia segura.
Deitou-se na esteira e, encolhida, ali permaneceu até que
alguém, voltando do serviço, deu por sua presença.
— Diva deitada a esta hora? O que pode ter acontecido? Será
que está doente?
Chegando perto e colocando a mão na cabeça dela,
Assunta disse:
— A pobre está ardendo em febre! Alguém chame pai
Albino. Ela precisa de socorro urgente.
Não demorou muito, pai Albino chegou, examinou-a e, sem
dizer nada, saiu da senzala. Logo depois, ele voltou com uma
beberagem que lhe deu para tomar. Diva batia os dentes de
frio. Assunta agasalhou-a e ficou ao lado dela até que
apresentasse alguma melhora.
— Que será que ela tem, pai Albino? - indagou-lhe.
— Não é nada. Cuide dela, Assunta. Faça-lhe compressas
com água fria na cabeça. Se a febre não melhorar, mande
alguém me chamar.
— Sim, meu pai. Pode ficar descansado. Farei tudo como
mandou.
Durante toda aquela noite, Diva delirou. Na manhã
seguinte, a febre havia baixado e ela pôde dormir tranqüila.
Da casa-grande, Florência tinha vindo saber notícias de
Diva, que deixara o serviço sem terminar. Informado do
estado da escrava, o capataz escalou outra escrava para a
lavagem das roupas.
26 – O escravo Josias é capturado
Dois dias depois, Diva estava recuperada, retomando suas
tarefas na casa-grande. Expressão de imensa tristeza, todavia,
se fixara em seu rosto, denotando que uma grande dor a
dominava; sempre pensativa, quase não falava, cumprindo
suas obrigações em silêncio.
As outras escravas, suas amigas, estranharam o seu
comportamento, pois Diva sempre fora alegre e falante.
Agora, uma palidez marmórea cobria-lhe o semblante, e
quando alguém perguntava o que estava acontecendo,
invariavelmente ela respondia:
— Nada. Não está acontecendo nada.
À noite, ao recolher-se na senzala, deitava-se na esteira e
não conseguia conciliar o sono. As palavras de Miguel
ficavam martelando em sua cabeça: "Não queria matar você,
Rita. Ela me obrigou". Perplexa, Diva entendeu
perfeitamente que ele havia matado Rita, mas que a
mandante do crime fora Maria Eugênia.
Por mais que pensasse, porém, não conseguia decidir qual a
melhor atitude a tomar diante do problema. "O que fazer?
Tinha vontade de agarrar a sinhazinha e levá-la até sinhá
Virginia, colocando a par da situação. N o entanto, não
poderia acusar a sinhazinha, pois seria a palavra dela contra a
de Maria Eugênia, que certamente iria negar até o fim as
acusações. Além disso, sua única prova era a palavra de
Miguel. E quem iria acreditar em alguém tido como louco?
Ramiro, que também conhecia a verdade, não abriria a
boca".
Diva sentia-se de mãos e pés atados.
Depois, certo dia, Miguel aparecera morto. Fora encontrado
pelo capataz caído no meio do mato, com uma grande ferida
na cabeça, e Roque, analisando o local, chegara à conclusão
de que ele teria morrido em conseqüência de um galho que
lhe caíra sobre a cabeça durante a tempestade que atingira a
região no dia anterior.
Assim, à dor de saber que seu querido Miguel, a criatura que
mais amava na vida, não mais existia, acrescentava-se a
dúvida quanto à sua morte.
Outro fato estranho aconteceu: Josias, um dos escravos,
desaparecera inesperadamente. A notícia que corria é que
ele fugira da fazenda. Mas, fugira por quê? Josias não tinha
motivos para fugir da Santa Genoveva. Ele tinha alguns
problemas, mas nada que não pudesse ser solucionado. Ele
gozava de péssima reputação, é verdade: bebia, criava caso
com todo mundo, brigava com outros escravos e não
cumpria suas obrigações como deveria. Apesar disso, sinhá
Virgínia, generosa, tinha muita paciência com ele; entendia
que o problema de Josias era a bebida, vendo tudo o mais
como conseqüência do vício, e até tentara ajudá-lo a parar
de beber, pois ele tinha sido excelente cocheiro e só perdera
o cargo em virtude dessa fraqueza.
E uma dúvida se instalou na mente de Diva: "Será que Josias
realmente fugiu? Mesmo que tenha fugido, sem recursos não
irá longe. Será fatalmente apanhado por um capitão do mato,
como acontece com todos os outros que sonham com a
liberdade!", pensava ela.
Diva virou-se na esteira e contemplou o céu estrelado
através das barras da janela. Tudo estava em silêncio; todos
dormiam tranqüilamente após o dia de serviço. Só lhes ouvia
o ressonar, o que dificultava ainda mais seu sono, e, lá fora, o
latido dos cães e o pio de uma ou outra ave noturna. De
olhos arregalados, uma outra dúvida se traduziu em séria
reflexão íntima: "A não ser que alguém tivesse
encomendado a morte de Miguel. Afinal, para Maria
Eugênia seria muito conveniente a morte do escravo, pois
ele constituía sempre um perigo para a sinhazinha. Sim, será
que ela não providenciou para que ele se calasse para
sempre?"
A esse pensamento, lágrimas ardentes jorraram de seus
olhos. Não mais veria seu amado Miguel, e o sofrimento de
tê-lo perdido a atingia fundo, com uma dor quase física.
Cansada de pensar e de chorar, acabou por adormecer. Teve
sono agitado e confuso.
Os dias eram sempre iguais, sem alegria e sem esperança.
Mamãe e eu estávamos em visita à Fazenda Santa Clara
quando, naquela tarde, apareceu o capitão do mato trazendo
amarrado ao seu cavalo o escravo fujão. Sujo, ferido e
exausto, Josias se arrastava. Todos se aproximaram,
penalizados, cercando o capitão do mato, que colocara Josias
no tronco. O capataz Roque chegou logo em seguida.
O capitão do mato, orgulhoso da sua presa, fitava a
todos, arrogante, como a dizer: Vejam! Inútil fugir, porque
serão apanhados. Olhem o estado desta criatura!
Roque, vendo o escravo no tronco, indagou:
— Onde o encontrou, Lupércio?
— A algumas léguas daqui, em uma gruta.
Muito bem. Sinhá Virgínia é contra colocar escravo no
tronco, mas creio que, diante das circunstâncias, não há
outro jeito. Quando ela chegar à fazenda, tomará as
providências que quiser. Venha, capitão, vamos conversar.
Deve estar cansado.
— É verdade. Preciso tomar alguma coisa forte.
Afastaram-se, enquanto os demais continuaram ali, inca-
pazes de acreditar que alguém estava no tronco, prática
abolida pela sinhá desde a morte do marido.
Sentados no quarto do capataz, conversavam:
— Pois é como lhe digo, Roque. Encontrei o infeliz em uma
gruta, nas montanhas. Eu estava voltando de uma
propriedade onde fui entregar outro fujão, quando o céu se
fechou.
Percebendo que a tempestade não tardava, eu procurava um
lugar para me abrigar, quando ela desabou. Achei uma gruta,
entrei nela para me abrigar e, para minha surpresa, encontrei
um escravo lá dentro. Logo vi que era um fugitivo.
Olhando-o bem, eu o reconheci, e ele tentou escapar;
lutamos, e acabei por prendê-lo. O resto você já sabe. Vim
debaixo de chuva para entregar o fujão o mais rápido
possível.
— No que fez muito bem, Lupércio. Vamos esperar o
retorno da sinhá Virgínia. A patroa saberá recompensá-lo
pelo serviço prestado.
Antes do anoitecer, nova tempestade se formou e Roque
achou melhor retirar Josias do tronco, levando-o para um
cômodo bem protegido - que no tempo do sinhô Figueiroa,
em caso de necessidade, era usado como prisão -, até a
chegada da sinhá. Lupércio ajeitou-se em um canto e
dormiu na fazenda.
Em virtude do aguaceiro que caíra na região, ficamos retidas
na fazenda Santa Clara, aguardando que a chuva parasse e a
estrada permitisse passagem.
Na manhã seguinte, o tempo começou a melhorar e logo o
sol surgiu. No final do dia, a carruagem apareceu na estrada
e, dentro em pouco, Tome, todo orgulhoso em sua
vestimenta nova, para o veículo à entrada da casa-grande.
O cocheiro pulou da boleia e rapidamente ajudou-nos a
descer. Logo era seguida, Roque aproximou-se.
— Boa tarde, sinhá Virgínia. Tenho urgência em falar com a
senhora.
Irritada, já me encaminhando para dentro, reclamei com
arrogância:
— Mal chegamos e já quer incomodar minha mãe, Roque?
Não pode deixar para depois?
Ela, entretanto, notando pela expressão do capataz que algo
grave tinha acontecido, indagou-lhe:
— Algum problema, Roque?
— Sim, sinhá.
— Tem a ver com o temporal? Deve ter causado estragos.
— Não, sinhá. O temporal passou de raspão e não causou
estragos. É sobre Josias.
Ao ouvi-lo se referir a Josias, estaquei. Virei-me para trás e
fiquei à escuta.
— Ah!... Vamos conversar no escritório, Roque.
Minha mãe tirou o chapéu, colocando-o no cabide, ajeitou
os cabelos e, sentando-se na sua cadeira de espaldar alto,
dispôs-se a ouvi-lo:
— Pode falar, Roque. Tem notícias de Josias?
Revirando o chapéu nas mãos, ele informou:
— Sim, sinhá Virgínia. Ontem à tarde, Lupércio, o capitão
do mato, que já prestou serviços ao sinhô Figueiroa, trouxe
Josias e o coloquei na cela.
— Ele falou sobre os motivos que o levaram a fugir?
— Não, sinhá. Na verdade, não perguntei. Achei melhor
esperar pela sinhá.
— Fez bem. Preciso me refazer da viagem. Dê-me algum
tempo...
Nisso, entrei intempestivamente na sala.
— Mamãe, a senhora ainda vai dar oportunidade a esse
miserável Josias, um mero escravo fujão, para se justificar?
Ele merece é o tronco e a chibata.
— Minha filha, estava escutando nossa conversa? - retrucou
surpresa.
Desconcertada, desculpei-me:
— Perdoe-me, mamãe, mas também fiquei preocupada e
aflita para saber o que houve em nossa ausência. Considero,
porém, um verdadeiro absurdo a senhora querer ainda falar
com ele. No tempo de papai...
Sem deixar que eu concluísse, argumentou firme:
— O tempo de seu pai era outro, minha filha. Não penso
como seu pai nem ajo como ele. Acredito já ter deixado isso
bem claro em outras oportunidades.
Depois, virando-se para o capataz, ordenou:
— Pode ir agora, Roque. Quando estiver pronta, mandarei
avisar.
— Sim, sinhá, com. sua licença.
Mamãe olhou para mim e percebeu que eu estava
extremamente nervosa, agitada, esfregava as mãos, enquanto
o olhar mostrava certo receio. Inquieta pela minha atitude,
que sugeria uma crise iminente, ela me convidou para irmos
aos nossos aposentos trocar os trajes por outros mais
confortáveis e descansar um pouco, o que aceitei sem
retrucar.
Antes de entrar em meu quarto, fiz-lhe um pedido:
— Mamãe, quero estar com a senhora quando receber
Josias. Posso?
— Não acho conveniente, minha filha. Você não está bem,
parece-me aflita, nervosa e tensa, e temo que a conversa
com Josias possa piorar seu estado. Procure descansar um
pouco,
Maria Eugênia. Nossa visita à fazenda Santa Clara foi
agradável, mas cansativa, por fugir de nossos hábitos. Tome
um calmante e tente dormir, está bem?
Concordei com um gesto de cabeça. No íntimo, porém,
pensava: "Pois sim! Se ela pensa que me deixará de fora está
muito enganada. Não posso deixar de ouvir essa conversa de
jeito nenhum. É bom mesmo que minha mãe pense que
estou dormindo, assim ficarei livre para agir".
Minha mãe deu-me um beijo na testa e dirigiu-se a seus
aposentos. Contudo, algo não estava bem. No ar havia uma
estranha sensação de perigo, que a deixou tensa, como se
algo fosse acontecer.
A criada ajudou-a a trocar de roupa. Deitou-se, procurando
repousar um pouco. Fechando os olhos, parecia-lhe ainda
sentir o sacolejar da carruagem. O sol da tarde estava quente
e o trajeto, embora não tão longo, foi cansativo.
Após descansar por uns quarenta minutos, ela desceu. Tinha
pressa de falar com Josias. Era o primeiro escravo que fugia
da fazenda desde que ela assumira o comando, e isso de
certo modo a decepcionou, uma vez que julgava estar dando
a eles uma vida muito melhor que antes.
Dirigiu-se ao escritório e, cruzando com Odete, ordenou:
— Avise o capataz que traga Josias.
— Sim, sinhá, agorinha mesmo.
Poucos minutos depois, eles deram entrada no seu gabinete.
Minha mãe ficou penalizada ao ver o estado do escravo.
Extremamente sujo, roupas rasgadas e ferimentos na cabeça,
nos braços e nas pernas, ele não teve coragem de fitá-la.
— Josias, levante a cabeça. Olhe para mim! Por que fugiu?
Alguém aqui o maltratou?
O escravo, mantendo os olhos baixos, meneou
negativamente a cabeça.
— Então, por que fugiu?
O escravo não respondeu. Roque aproximou-se dele com o
chicote nas mãos, com intenção de obrigá-lo a falar. Virgínia
fez um gesto, impedindo-o, e prosseguiu:
— Desde que assumi o controle da fazenda, após o faleci-
mento de meu marido, procurei fazer tudo para melhorar a
vida dos escravos. Mandei construir casas separadas para as
famílias;
melhorei a alimentação e permiti que todos colham frutas à
vontade; o tronco permaneceu no pátio apenas como uma
triste lembrança, pois nunca mais ninguém foi torturado;
todo mês o médico da cidade vem para atender os doentes..,
enfim, tenho procurado agir da melhor maneira possível.
Até com você, Josias, que me criou problemas em virtude da
bebida, procuro sempre compreender e ajudar. No entanto,
você fugiu...
Baixando a cabeça, ele começou a chorar:
— Eu não queria, sinhá, mas fui obrigado - murmurou em
voz baixa.
— Foi obrigado?... Por quem?... Quero saber de tudo, Josias.
— Não posso, sinhá. Não posso.
Notando que ele estava com medo e que devia haver alguma
coisa mais grave por detrás da sua fuga, minha mãe ordenou:
— Roque, saia e feche a porta. Não quero ser interrompida.
Vou conversar a sós com ele. Aguarde lá fora e não deixe
ninguém entrar.
— Sim, sinhá.
Após a saída do capataz, ela voltou a perguntar:
— Agora você já pode falar, Josias. Prometo escutar tudo o
que tem a me dizer. Não tenha medo.
Ainda temeroso, ele continuou a afirmar:
— Não posso, sinhá. Se falar, estou perdido.
— Quer dizer que há alguém por trás de sua fuga? Quem o
está ameaçando? Será Roque?
— Não, não!
— Algum dos escravos, então? Você está sempre metido em
brigas!
— Não, sinhá.
— Mas então, quem pode ser?
— Não posso falar, sinhá. Eu juro por tudo quanto é mais
sagrado que não posso abrir a boca.
O medo dele raiava ao terror, ele estava apavorado. Per-
cebendo a gravidade da situação, ela levantou-se e falou com
autoridade:
— Pois agora você vai falar. Ordeno que me conte tudo ou
vou fazê-lo falar no tronco diante de todos.
Diante dessa ameaça, Josias não teve outro jeito.
— Está bem, sinhá. Vou falar.
E, em voz baixa, lentamente, contou que foi procurado por
alguém que lhe pediu que matasse Miguel, Em troca,
receberia recursos para fugir e recomeçar a vida longe dali. E
foi o que fez. Depois, concluiu:
— Como caíra uma tempestade, causando estragos, bati com
um galho na cabeça dele, de modo que parecesse um aci-
dente, o que realmente se pensou. Recebi o combinado e
fugi.
Mas dei azar. O capitão do mato, que me conhecia, me
encontrou e me trouxe de volta. O resto a sinhá já sabe.
— Se você tinha recursos, porque não foi para longe de uma
vez?
— Tentei, mas estava difícil. Outros escravos fugiram de
uma fazenda não muito distante daqui, e as estradas estavam
vigiadas.
— E o que fez do dinheiro que lhe deram?
— Está aqui, sinhá. Veja! Debaixo da minha roupa, amarrada
na cintura tem uma faixa onde guardei meu tesouro. Ainda
bem que o capitão do mato não viu, senão me roubaria todas
as moedas.
Ela se aproximava para tocar a faixa e confirmar a veracidade
do que ele dizia, quando a porta se abriu violentamente.
A mão dela parou no ar, e ela olhou para a porta, assustada.
A entrada da sala, eu, completamente descontrolada,
cabeleira em desalinho, portando uma faca, apontou para o
negro. Josias, de olhos arregalados, apavorado, gritou:
— Não, sinhazinha! Não tive culpa!...
— O que é isso, minha filha? Abaixe essa arma!
Rapidamente, porém, parti para cima de Josias para
atingi-lo, ao mesmo tempo que gritava:
— Não acredite nele, mamãe! Este homem é um miserável!
Merece morrer!
Nisso, Roque, que entrara na sala logo em seguida, tentando
conter-me, correu e tentou segurar-me a mão, mas não a
tempo de impedir-me de atingir o escravo. Josias,
percebendo minha intenção, instintivamente levou a mão
para proteger-se e arrancou a faixa de tecido que se soltou, e
as tilintantes moedas se espalharam pelo chão.
A cena era terrível: Josias desaba no assoalho, que fica
vermelho do sangue que jorra da ferida aberta.
E eu, agora com as mãos atadas pelo capataz, enlouquecida,
comecei a falar sem parar:
— Mamãe, não acredite nele! É tudo mentira! Ele não pode
me acusar de nada...
Com a respiração ofegante, o coração acelerado, a mãe
finalmente compreendeu a razão de todo o medo de Josias.
Olhando para mim, com infinita tristeza, ela sussurra:
— Ele não acusou ninguém, minha filha.
Em choque, percebo, tardiamente, que falei demais. Agora
tudo tinha sido descoberto. Não havia mais como me
esconder. Senti-me perdida. Tudo o que fizera para encobrir
meus atos criminosos tinha sido inútil.
Em crise, aos gritos, me debati nos braços de Roque, que me
segurou com firmeza, até que desmaiei. Pegando-me no
colo, ele me levou para meus aposentos, enquanto Tome
montou o primeiro cavalo que encontrou e correu para a
cidade em busca do médico.
Mamãe, caída em uma cadeira, estava trespassada de dor. A
verdade atingira-a muito duramente. Pálida e desfeita, com
os olhos fixos no vazio, sem mover um músculo,
permanecia calada.
Os escravos, ouvindo o tumulto e o vozerio inusitado no
casarão, correram para o escritório e se depararam com a
trágica cena. De um lado, eu, contida à força por Roque,
gritava sem parar; de outro, mamãe, largada em uma cadeira,
em choque; e no assoalho, o pobre Josias, inconsciente, com
a barriga aberta, enquanto o sangue se esvaía pela ferida.
Também paralisados de horror, os escravos choravam e se
lamentavam diante daquele quadro incomum. Amaro, mais
prático, percebendo que Josias não estava morto, levou-o
para a senzala, pedindo a alguém que chamasse pai Albino.
Não demorou muito, o doutor Teófilo chegou. Informado
por Tome sobre a tragédia, rapidamente medicou mãe e filha
e, em seguida, correu para a senzala para ver o escravo.
Pai Albino já estava ao lado dele, sem poder fazer nada.
Apenas colocou um chumaço de pano na ferida para
controlar a hemorragia.
Examinando-o, o médico pediu que trouxessem água quente
e panos. Preparou tudo, deu-lhe uma boa dose de bebida e,
após costurar-lhe o ventre, deu-lhe de beber algumas gotas.
Depois, lavou as mãos e enxugou-as, respirando mais
tranqüilo.
Vendo que os companheiros de Josias, preocupados com o
amigo, se acotovelavam nas janelas pelo lado de fora da
senzala, acompanhando seu trabalho, disse em voz alta a
Amaro:
— Se tudo correr bem, ele vai sarar. O corte não atingiu
nenhum órgão. Pai Albino, dê a ele algumas gotas deste
remédio sempre que ele estiver com dor. Voltarei amanhã.
Em seguida, dirigiu-se à casa-grande para ver como estava
mamãe. Encontrou-a melhor, com a cabeça recostada no
espaldar da cadeira, mas no mesmo lugar.
— Senhora Virgínia, precisa repousar. As gotas calmantes
que lhe ministrei a ajudarão a descansar. Vou pedir à Dinha
que a leve até o quarto. Tudo está sob controle agora.
Parecendo sair daquele torpor, ela perguntou:
— Josias... morreu?
— Não, senhora Virgínia. O ferimento não foi fatal, graças a
Deus. Ele vai sarar, se tudo correr como espero.
— E minha filha?
— Está medicada e vai dormir até amanhã. Fique tranqüila.
Parecendo que só naquele momento soltava o ar preso no
peito, ela murmurou:
— Obrigada, doutor.
— Então, agora vá descansar um pouco. Tudo está bem. Eu a
verei amanhã cedo. Não se preocupe com nada.
Aproximando-se, Dionísia ajudou-a a levantar-se, conduziu-
a pelas escadarias e a levou até seus aposentos, colocando-a
no leito. Respirando fundo, sentou-se em uma esteira e ficou
cuidando da sua sinhá.
Só deixou o quarto quando notou que mamãe dormia a sono
solto.
27 – Teófilo
Na manhã seguinte, quando o doutor Teófilo chegou, tudo
era silêncio no casarão. Os serviçais se movimentavam
procurando não fazer o menor ruído; temiam incomodar-
nos, eu, mantida sob o efeito de medicação, e minha mãe,
que também dormia, recuperando-se dos trágicos
acontecimentos da véspera. Todos estavam com a atenção
em suspenso e cochichavam pelos cantos, tentando
encontrar o motivo para a terrível cena que presenciaram.
O médico ministrou-me uma nova dose de medicamento,
recomendando:
— Dionísia, dê a ela estas gotas duas vezes ao dia, pela
manhã e à noite.
— Por quanto tempo, doutor? - indagou atenta.
— Até que Maria Eugênia saia desta crise. Mas não se
preocupe. Virei todos os dias visitá-la, acompanhando-lhe o
tratamento. Agora vamos até os aposentos da senhora
Virgínia.
Entrando no quarto em penumbra, o médico caminhou sem
fazer ruído. Aproximou-se do leito e verificou que a dona da
casa ainda dormia.
— A sinhá também deverá tomar o remédio?
— Somente se não estiver bem. Vou deixar o vidro, mas dê-
lhe só em caso de necessidade Sim, sinhô doutor.
— Muito bem, Dionísia. Está tudo sob controle aqui tia casa-
grande. Vou até a senzala ver como está Josias — disse ele,
fechando a maleta e encaminhando-se para a porta.
— Sim, sinhô. Pode ficar descansado que tomarei conta das
sinhás.
O médico lançou ainda um olhar para Virgínia e saiu do
quarto. Desceu as escadarias e atravessava a sala
encaminhando-se para a porta de saída, quando encontrou
Odete que o aguardava.
— O doutor aceita um cafezinho? Foi feito ainda agorinha.
— Aceito com prazer, Odete. Como vão as crianças?
— Muito bem, doutor - respondeu ela com um sorriso,
enquanto colocava o café na xícara, entregando-a ao
médico.
Ele tomou a bebida fumegante e agradeceu com um
sorriso:
— Está ótimo. Bem ao meu gosto, Odete. Obrigado. Agora
vou à senzala ver o Josias e voltarei em seguida.
Saiu para o jardim, deu a volta e tomou o rumo do grande
barracão. Encontrou Josias acordado, embora enfraquecido
pela perda de sangue; ao lado dele, pai Albino, que,
pelo jeito, tinha passado a noite ali velando. Examinou o
ferido cuidadosamente.
— Como estou, doutor? - indagou com voz sumida.
— Muito melhor do que eu esperava - afirmou o médico,
surpreso.
Depois, virando-se para o ancião, perguntou:
— O que fez, pai Albino, para que Josias tivesse uma
melhora tão rápida?
O ancião sorriu mansamente e respondeu:
— Apenas o que sei fazer, doutor: orei por ele.
— Pois então, sua oração faz milagres!
— Deus faz milagres, doutor.
O médico orientou-o para que continuasse a dar a
medicação. Voltou-se para Assunta, que estava ali perto, e
ordenou:
— Providencie retalhos de pano bem limpos para os
curativos, Assunta.
Depois, dirigindo-se para pai Albino, deu-lhe a incumbência
de trocar todos os dias o curativo; em seguida despediu-se,
prometendo retornar no dia seguinte.
Na saída, encontrou alguns escravos que, informados da sua
presença, o aguardavam, pedindo-lhe que fosse até suas
casas ver seus filhos. Como sempre fazia ao vir à fazenda
Santa Genoveva, ele recebeu a cada um. A todos, o médico
atendia com boa vontade e carinho.
Ao terminar a ronda, voltou para o casarão. Queria saber
notícias de mamãe. Como ela ainda dormisse, pegou um
livro na estante, sentou-se na sala e dispôs-se a esperar.
À hora do almoço, Odete interrompeu-lhe a leitura,
avisando-o de que a refeição seria servida. Ele sentou-se à
mesa e comeu muito bem, lamentando apenas a falta de
companhia. A escrava, que se postara um pouco atrás,
pronta para servi-lo, sorria diante do apetite do médico.
— Odete, minha filha, a comida desta casa é divina!
Florência é a melhor cozinheira que conheço.
Florência, que chegara até a porta, ouviu o que ele dizia e
não pôde deixar de sorrir, satisfeita e envaidecida:
— Obrigada, doutor. Padre Antônio, quando vem visitar a
fazenda, diz a mesma coisa. - Depois, sem conseguir
esquecer a cena que tinha presenciado no dia anterior, ela
levou o avental aos olhos para enxugar uma lágrima e
completou: - Só lamento o que ocorreu ontem, doutor.
Como está sinhá Virgínia?
— Todos nós lamentamos o ocorrido, minha boa Florência.
Mas dos males o menor: as senhoras estão bem e Josias se
recupera do ferimento.
— Ainda bem. Mas é tudo muito triste, doutor. Ver a
fazenda com esses problemas, coisa que nunca aconteceu
antes. É muito triste... - comentou, voltando para a cozinha
com a cabeça baixa e o avental no rosto para chorar à
vontade.
Tentando melhorar o ambiente, ao ver que o médico havia
interrompido a refeição, Odete sugeriu:
— Aceita mais um bocadinho de leitão assado, doutor?
— Não, Odete. Estou satisfeito.
— Sobremesa, talvez? O sinhô gosta tanto!
— Não, obrigado. Apenas um cafezinho como aquele que
me serviu antes.
— Sim, sinhô doutor. É pra já. Quer tomá-lo na outra sala?
— Sim, obrigado.
Teófilo deixou o ambiente de refeições e acomodou-se na
pequena sala; minutos depois, Odete entrou com a bandeja,
servindo-lhe o café que Florência acabara de coar, e cujo
aroma a precedera. O médico pegou a xícara e começou a
mexer o café lentamente, pensativo. Depois perguntou:
— Odete, você sabe me dizer a razão do trágico
acontecimento ocorrido aqui ontem?
— Não sei não, sinhô. Mas na senzala só se fala nisso. Parece que
tem muita coisa envolvida...
— Ah! E que coisas são essas?
— Ouvi dizer que tem gente que sabe, mas não fala não
sinhô.
— Alguém aqui da casa sabe? Talvez a Florência? A Dionísia?
— Não sei não, sinhô. Mas, pensando bem, se tem alguém
que sabe de tudo é o Tomé. Eta moleque safado!
— Pois então, mande chamá-lo. Diga-lhe que preciso falar
com ele.
Não demorou muito, o escravo chegou. O médico dispensou
Odete, que saiu, deixando-os a sós.
— O sinhô doutor quer falar comigo?
— Sim, Tome. É verdade que você está sempre a par do que
acontece na fazenda?
— O que posso fazer, doutor, se as pessoas vêm me contar? -
disse ele com um sorriso maroto, rodando o chapéu nas
mãos, um tanto envaidecido.
— Então, deve saber o motivo daquela confusão que
aconteceu aqui, ontem.
— Doutor, isso eu não sei, não.
— Mas me disseram que você é muito bem informado!
— Pois é. Costumo observar as pessoas, como elas agem,
para onde vão, com quem conversam, e garanto ao sinhô
que tem muita coisa estranha por aí. A Diva, por exemplo,
mudou muito. Ela e o Ramiro se encontram, ficam
cochichando e, quando alguém chega, eles param de falar.
Desconfio que ela saiba tudo o que anda acontecendo.
— "Tudo o que anda acontecendo"? Como assim, Tomé?
— Doutor, a fazenda era calma, nunca acontecia nada de
diferente. Depois, parece que tudo desabou sobre nós, sem
explicação: começou com a pobre da Ritinha, que morreu
afogada;
depois, a sinhazinha Maria Eugênia ficou doente da cabeça,
assim como o Miguel, que também ficou louco; não
demorou muito, ele morreu; alguns dias depois, o Josias
fugiu. E daí, ontem, eu ouvi gritos e corri para saber o que
estava acontecendo, e vi uma cena horrível: a sinhazinha
com uma faca na mão, gritando como louca, e o pobre do
Josias, coberto de sangue, estirado no chão, enquanto Roque
a segurava. Não acha tudo isso estranho? Por que a
sinhazinha iria querer matar o Josias?
O médico respirou fundo, tomou o último gole de café e
concordou:
— Tem toda razão, Tomé. É tudo muito estranho. Acha,
então, que quem quiser saber a verdade deve falar
com a Diva?
— Acho que deve ir à senzala e conversar com o pessoal -
sugeriu em tom grave, generalizando para não se
comprometer.
— Obrigado, Tomé. Pode voltar às suas tarefas.
Pensativo, Teófilo colocou a xícara na bandeja que Odete
tinha deixado na mesinha ao lado. Nisso, ouviu um leve
ruído de passos e virou-se. Era a dona da casa. Ele levantou-
se rápido e a cumprimentou, fazendo uma mesura e
beijando-lhe a mão, delicadamente.
— Boa tarde, senhora Virgínia. Não deveria ter-se
levantado. Eu terminava de tomar o meu café e, em
seguida, iria vê-la.
— Não se preocupe comigo, doutor Teófilo. Estou bem.
O médico fitou-a com olhar clínico e notou-a
excessivamente pálida, enfraquecida e algo trêmula. Pediu
que ela se sentasse e examinou-a com cuidado; ao terminar,
perguntou:
— A senhora já se alimentou hoje?
— Tomei um chá com torradas.
— Por ora, está bom. Logo, porém, deve comer algo mais
substancial. Está fraca e precisa de sustentação.
Ela concordou com a cabeça e sorriu tristemente:
— Não consigo, doutor. Parece que tenho um nó na
garganta. Como está minha filha? E o Josias?
— Eles estão bem. Maria Eugênia dorme sob o efeito da
medicação, que é o melhor para ela nestas
circunstâncias, e Josias recupera-se de forma bastante
animadora. Melhor do que
eu poderia imaginar. Confesso-lhe que fiquei admirado!
— Antes assim, doutor. Sinto-me profundamente aliviada. O
senhor já pensou se minha filha tivesse conseguido.... enfim,
o que seria dela... de nós?
Ela estava com os olhos enxutos, mas seu rosto mostrava
uma grande dor. Da noite para o dia, parecia ter envelhecido
dez anos.
O médico aproximou-se mais e, tomando a mão dela nas
suas, confortou-a:
— Minha amiga, não se aborreça tanto. A menina está se
recuperando e Josias ficará bom logo. Tudo está bem. Tudo
passa e essa fase ruim logo vai passar também, como o dia
que sucede a noite, trazendo luz, calor e alegria.
Ela sorriu e seus olhos se umedeceram.
— Agradeço-lhe, meu bom amigo. Sua presença é um con-
forto para mim. Conhecemo-nos há tantos anos e durante
esse tempo tem-nos ajudado bastante, sempre presente
quando mais precisamos. Desde que me casei e vim para a
Santa Genoveva, em todos os momentos difíceis pudemos
contar com seu valioso auxílio. Sou-lhe muito grata.
Todavia, acordei com um grande aperto no coração, como
prenuncio de novas desgraças.
Ela parou de falar, retirou um lencinho perfumado do bolso
da saia e enxugou os olhos lacrimejantes. O médico sentiu
desejo de abraçá-la, de confortá-la, mas manteve-se em seu
lugar, sem saber o que dizer.
Readquirindo o controle, ela prosseguiu:
— Ao chegar, não pude deixar de ouvir o final da sua
conversa com Tomé, doutor. Desculpe-me, não tive a
intenção de ser indiscreta. Porém, foi importante, porque
pude perceber a que ponto os últimos acontecimentos
estão mexendo com todos da fazenda.
Balançando a cabeça negativamente, o médico respondeu
enérgico:
— Cara senhora Virgínia, os fatos não são tão graves
assim. Apenas uma maré de má sorte. Só isso. Quanto à
Maria Eugênia, há anos sabemos que ela é doente dos
nervos, e que esses problemas precisam ser tratados, para
que ela tenha uma vida normal.
Enquanto ele falava, mamãe olhava-o pensativa, depois
considerou:
— Creio que o senhor tem o direito de saber o que real-
mente se passa aqui nesta casa.
Diante da surpresa do médico, que a observava sem
entender, tocou a sineta. Quando a escrava apareceu à porta,
ordenou-lhe que levasse café no escritório.
Ela conduziu o médico até seu gabinete de trabalho, onde se
acomodaram. A escrava voltou pouco depois com o café.
— Pode deixar a bandeja, Odete. Eu mesma sirvo. Preciso
conversar com o doutor Teófilo e não quero ser
interrompida. Cuide para que ninguém se aproxime.
Ninguém.
Entendeu?
— Sim, sinhá Virgínia. Mas, e se a sinhazinha...
— Ninguém, Odete. Nem minha filha. Agora vá, e feche a
porta depois de sair.
A sós, serviu o médico. Calado, ele a observava, e não pôde
deixar de notar-lhe os gestos elegantes e as mãos
ligeiramente trêmulas, embora procurasse aparentar
tranqüilidade. Depois, ela também se serviu e, acomodando-
se melhor na poltrona, tomou um gole. Em seguida, fitando
o seu acompanhante, que aguardava calado, começou a falar:
— Creio que o senhor, nosso médico e amigo, tem o direito
de saber toda a verdade; ou, pelo menos, o que eu descobri a
respeito dos dolorosos acontecimentos que ocorreram
nesta
fazenda, até para que tenha condição de nos ajudar na
solução dos problemas.
— Pode falar, minha amiga. Confie em mim.
— Eu confio, doutor Teófilo. Caso contrário, não estaria aqui
me preparando para contar-lhe tudo o que sei.
Pensou um pouco, como se procurando a melhor maneira
de relatar o que sabia. Depois, em voz baixa, começou a
falar, expondo os fatos de que tinha conhecimento:
— Acho que tudo começou com a morte da Rita. Por mais
absurdo que possa parecer, tenho motivos para acreditar que
minha filha seja a responsável pela morte da escrava.
— Como assim, senhora Virgínia? Pelo que me lembro, era
Miguel quem estava com ela no barco!
— Sim, é verdade. No entanto, tenho razões para crer que
minha filha seja a mandante do crime.
— Crime? A senhora falou em crime?!
— Exato. E ambos, tanto Miguel quanto Maria Eugênia,
ficaram com problemas na cabeça após esse trágico episódio.
— Supondo-se que isso seja verdade, eles podem ter ficado
com sentimento de culpa pelo ato praticado, o que explica
os problemas mentais. Mas... por que teriam resolvido
acabar com a Rita?
— Esse o ponto da questão, que ainda é um mistério. Não
posso afirmar com certeza, por não ter provas, porém creio
que, como tantos outros fazendeiros, Guilherme pode ter-se
interessado por Rita e passado a manter um relacionamento
com ela. Julgo que minha filha ficou sabendo e não suportou
a traição de ambos. Mas, deixe-me contar-lhe tudo.
Então, contou de todos os detalhes que sabia e descobrira a
respeito do casamento da filha, a viagem de lua de mel e o
retorno antecipado para o Brasil e seus desdobramentos.
— Lembro-me de que os problemas nervosos de Maria
Eugênia começaram depois que ela voltou: alterações no
comportamento, medo, visões e atitudes estranhas -
confirmou o doutor.
— Exatamente. Inclusive, em Paris, Guilherme procurou um
médico, que lhe prescreveu medicamentos para que
ela pudesse dormir. Só que percebi que as perturbações de
minha filha tinham a ver com a escrava morta. Julguei que
fosse porque elas eram muito ligadas desde crianças.
Entretanto, notei que os sentimentos dela não eram de
saudade, que poderiam ser, em vista da amizade que as unia,
e Maria Eugênia poderia estar realmente sentindo falta da
companheira de infância. Não! O estranho é que notei que
as sensações de minha filha eram de medo; ela falava
sozinha e reclamava da perseguição de Rita, das acusações
que a morta lhe fazia. E eu não conseguia entender. Até que,
há alguns dias, visitamos a fazenda Santa Clara e fiquei
conhecendo Pierre e Marie, um casal de amigos de
Guilherme, vindos da França para visitá-lo. Conversando
com Marie, fui informada das alucinações que minha filha
teve em Paris, ocasiões em que ela via uma mulher no
quarto de hotel.
— Vamos com calma! A senhora está querendo afirmar
que...
Com expressão grave, circunspeta, o médico questionou:
— A senhora sabe que a menina tem problemas nervosos e
que é dada a visões, alucinações, que podem ter relação com
as pessoas com as quais convive. Supondo-se que ela tivesse
visto essa estranha mulher, ou fantasma, quem poderia ser?
— Não tenho certeza, mas tudo leva a crer que seja a
alma da Rita.
— Pois muito bem. Inúmeras vezes já ouvi falar de casos
como esses durante meus trinta anos de profissão. Mas,
como poderia ela estar lá - na suposição de que seja
realmente ela -, se ainda estava viva e gozando de perfeita
saúde no Brasil?
— Não estou querendo afirmar nada, meu caro doutor
Teófilo. Apenas acho estranho que minha filha tenha tido
essas alucinações durante a viagem. Marie, que investiga há
tempos esses assuntos, afirma que nada impede que alguém
possa, durante o sono físico, ir em espírito para outros
lugares, se assim o desejar.
O médico sorriu, com expressão cética.
— Aí já estaremos entrando em terreno escorregadio e que
depende de comprovação, não lhe parece Virgínia?
Ela concordou, pensativa, e exclamou:
— Tem toda a razão, doutor Teófilo. Todavia, para mim é a
única explicação que faz sentido.
Alisando os bigodes bem aparados, o médico indagou-lhe:
— Tudo bem. Apenas para raciocinar, suponhamos que
tenha sido a alma da Rita a aparecer no hotel, em Paris. Ela
realmente teve um relacionamento com Guilherme?
— Tudo leva a crer que sim. É a única coisa que faz sentido.
Não posso afirmar com certeza, mas quando toquei no
assunto, por duas vezes, perguntando se ele sabia de algum
desentendimento entre minha filha e Rita, Guilherme
mostrou-se tenso, trêmulo e inquieto, fugindo de mim. Da
última vez, quase caiu do cavalo!
— Muito bem. Então, acreditando-se que isso seja verdade, a
traição provocou a ira de Maria Eugênia, que teria
contratado Miguel para fazer o serviço, por ciúmes da
escrava. Existe alguma prova quanto a isso?
— Sim, o próprio Miguel, em seu desequilíbrio, falou em minha
presença como teria acontecido o afogamento de Ritinha.
— Então é verdade mesmo! E, em conseqüência, Miguel
teria morrido para esconder o crime. É isso, Virgínia?
— Pensei nessa possibilidade, doutor. O fato é que o
escravo apareceu morto, após uma grande
tempestade, com uma ferida na cabeça, que meu capataz
afirmou ter sido produzida por um galho que - tudo leva a
crer - teria caído de uma árvore.
— Pode ser verdade. Porém, não lhe parece muito
conveniente o sumiço da única testemunha que
poderia acusar a menina?
— Também penso assim. Além disso, a fuga, estranha e
imprevisível, de Josias, pois ele gostava de viver na fazenda.
Depois, foi encontrado pelo capitão do mato, que o
conhecia, e
trazido de volta. E, finalmente, a agressão de minha filha
contra Josias, que nada explica.
— Precisamos investigar, Virgínia. Se me permite, pretendo
falar com Diva, Ramiro e Josias.
— Tem minha permissão, caro amigo. Agradeço-lhe tudo o
que puder fazer para nos ajudar a esclarecer os fatos. Quanto
a Josias acho importante, mas... o que têm Diva e Ramiro
com
essa história?...
— Ainda não sei. Mas Tomé afirmou que Diva anda estranha
e conversa muito com Ramiro. O rapaz acha que eles sabem
de muita coisa.
Nesse momento, batem na porta. É Odete.
— Pode entrar, Odete.
— Sinhá Virgínia, lamento interromper! A sinhá avisou que
não queria ser perturbada...
— Não se preocupe. Pode falar, Odete.
— É que a sinhazinha acordou, e o doutor deixou ordem
com a Dinha para avisá-lo imediatamente quando ela
acordasse.
— Fez muito bem, Odete - disse a dona da casa.
— É verdade. Obrigado, Odete, irei imediatamente -
agradeceu o médico.
Deixando a conversa para depois, mamãe e Teófilo
dirigem-se para os meus aposentos.
28 – Complicações
Após verificar o estado de sua paciente, o médico saiu a
caminhar sem rumo pelas imediações da casa-grande. Passou
pelo local onde as escravas lavavam as roupas e, ao ver Diva,
que ele conhecia, parou para conversar com ela:
— Como vai, Diva? - cumprimentou.
— Como Deus quer, doutor - ela respondeu, desanimada.
— Diva, eu preciso de umas ervas. Pode levar-me até o local
onde estão as plantas medicinais?
— Não entendo de plantas, doutor. Melhor falar com pai
Albino; ele, sim, conhece tudo.
— Pai Albino está cuidando de Josias, conforme lhe pedi, e
não pode deixar seu posto. Por outro lado, eu conheço
plantas. Só necessito que me leve até o lugar.
— Então, está bem, doutor - concordou ela.
Deixando a roupa na tina, enxugou as mãos no avental e
mostrou-lhe o caminho: - É por aqui, doutor.
Saíram caminhando sem pressa e o médico tentava
conversar com ela:
— Você não me parece muito bem, Diva. Está com algum
problema?
— Não estou nada bem, doutor. Perdi alguém que amava
muito, e nada mais importa pra mim.
— Ah!... É muito triste mesmo perder alguém que se ama.
Passei por essa experiência quando minha esposa faleceu
logo depois que nos casamos. Se pelo menos ela tivesse me
deixado um filho...
— O doutor é viúvo, então? Por que não se casou de
novo?
— Nunca encontrei a mulher certa, Diva. Por isso, resolvi
ficar sozinho e preencher meu tempo com o
consultório, dedicando-me a meus pacientes.
— Deve ter sofrido muito mesmo, porém conviveu com sua
esposa durante algum tempo, amava e sabia que era amado.
Quanto a mim, doutor, aquele a quem eu amava acima de
tudo sempre me rejeitou, jamais quis meu amor.
— Por que diz que ele a rejeitava? - perguntou o médico,
penalizado.
— Amava outra mulher, eu acho. Agora está morto.
— Será que eu o conheci? Para ser amado assim por você
deve ser alguém muito especial.
— E era, doutor. O sinhô o conheceu, sim. Era o Miguel.
— Miguel! Sim, eu o conheci bem. Lamento muito, Diva, o
que aconteceu com ele. Primeiro a loucura, depois a trágica
morte no meio do mato. Agora posso entender melhor por
que você está tão triste e desanimada.
Ela virou-se para ele, surpresa:
— É tão evidente assim, doutor? Tento não demonstrar
meus sentimentos.
— Não me leve a mal, Diva. Como médico, estou acos-
tumado a notar a reação das pessoas, faz parte da
minha profissão - justificou-se.
Logo em seguida, ela apontou para um recanto em meio à
vegetação e disse:
— Chegamos, doutor. É logo ali.
— Obrigado, Diva. Ajuda-me a apanhar as ervas de que
preciso?
— Claro, doutor.
Ele mostrou a ela quais as plantas de que precisava e,
enquanto cortavam os galhos, continuaram conversando.
— Diva, eu apreciava Miguel, e confesso-lhe que não
entendi por que ele ficou doente da cabeça. Sempre foi
equilibrado, seguro. O que pode ter acontecido que mexeu
com ele dessa maneira?
A escrava parou o que estava fazendo e seu rosto mostrava
revolta e indignação:
— Eu odeio aquela mulher! Odeio! Se pudesse, eu acabaria
com ela.
Diva estava parada, de pé, com os olhos vítreos, toda
trêmula. Teófilo, que não a perdia de vista, observando-lhe
as reações, aproximou-se dela e, segurando-a pelo braço,
levou-a até a sombra de uma árvore. Colocou-a sentada nas
grossas raízes e depois se acomodou perto dela.
— Acalme-se, Diva! De quem está falando?
— Daquela mulher horrorosa: a sinhazinha Maria Eugênia.
Teófilo percebeu que havia chegado a hora de saber a
verdade.
— O que tem Maria Eugênia com isso?
— Tudo, doutor. Tudo! Vou lhe contar. Estou com essa
história entalada na garganta e não agüento mais. Miguel era
apaixonado pela sinhazinha. De alguma forma, ela ficou
sabendo e aproveitou-se disso para convencê-lo a
matar Rita.
— Diva, essa é uma afirmação muito séria. Tem certeza do
que está dizendo?
— Tenho certeza, doutor. Ouvi do próprio Miguel, a
quem eu visitava às vezes na Pedra Grande, onde se
abrigava. Ele ficou louco por ser perseguido por
Ritinha, que não lhe concedia perdão e o acusava pela sua
morte.
— Não é possível! - exclamou ele para si mesmo.
— É possível, sim, doutor. A alma da pobre Rita sofre e está
sempre por aí. Na senzala mesmo, muitos sentem a presença
dela, ouvem seus lamentos, seus gritos, seu choro
desesperado. Tem noite que ninguém consegue dormir.
— Meu Deus! E como ele morreu? Será que a Ritinha...
— Não! - respondeu ela discordando com a cabeça -, a Rita
está morta, não teria condições para isso. Foi coisa de gente
viva, e malvada mesmo.
— Como assim, Diva?
— Dizem que ele morreu ferido por um galho que lhe caiu na
cabeça durante uma tempestade. Não acredito nisso, doutor!
— Então, o que acha que realmente aconteceu?
— Não posso acusar ninguém, mas a verdade está vindo à
tona.
— Diga-me o que pensa, Diva. Quem sabe eu posso ajudar
para que tudo se esclareça?
— O doutor vai proteger as sinhás - disse ela com expressão
de dúvida.
— Não, Diva. Sou pela justiça e sempre mostrei que sou
amigo de vocês. Quero o melhor para todos os envolvidos.
— Está bem, doutor, tem razão. Então vou lhe contar. Julgo
que tem a ver com o sumiço do Josias. Ele deve ter feito um
"serviço" para alguém. Pois o sinhô não sabe que ele tinha
um
monte de moedas escondidas em uma faixa, na cintura?
— Moedas?... Não sabia desse detalhe, Diva!... – exclamou o
médico, perplexo.
— Pois é verdade, doutor. Quando ele foi ferido e caiu no
chão, a faixa se rompeu e as moedas se espalharam pelo
assoalho. Todos viram.
Ele a olhava sumamente admirado. Ela sorriu ironicamente,
colocou as mãos na cintura e perguntou:
— Quem o doutor acha que deu a ele aquelas moedas?
Respirando fundo, pensativo e admirado, o médico deixou a
pergunta vibrando no ar.
— Diva, já é tarde. Precisamos voltar.
A escrava pegou os galhos de plantas e, juntando-os, colocou o feixe
debaixo do braço e pôs-se a caminhar, apressada, seguida
pelo médico. Ao chegar perto do casarão, ela parou,
virando-se para ele.
— Doutor Teófilo, não conte a ninguém o que eu lhe disse.
— Não posso prometer-lhe isso, Diva. O assunto é muito
grave. Contudo, prometo-lhe que usarei da melhor maneira
o que me contou, para que a verdade seja restabelecida e a
paz possa
voltar à fazenda Santa Genoveva. Não é isso o que você
deseja?
— Está certo, doutor. Faça o que for melhor. Agora, o sinhô
pode entrar; depois levo as ervas.
Ele agradeceu e entrou na casa-grande. Estava cansado e
cheio de questionamentos íntimos. Vendo-o, minha mãe foi
ao seu encontro.
— E então, meu amigo?
— Vamos conversar em lugar mais reservado? – respondeu
ele, tirando o chapéu da cabeça e enxugando o suor.
Ela o conduziu até seu gabinete, onde ele contou o que
acabara de saber, inclusive sobre as moedas.
— É verdade! Minha cabeça estava tão confusa que me
esqueci das moedas. Creio que Odete deve saber onde elas
estão.
Tocou a sineta e, em seguida, a escrava apareceu.
— Odete, sabe onde estão as moedas que estavam com Josias
e caíram no chão, ontem?
— Sim, sinhá Virgínia. Eu as recolhi e guardei. Como a sinhá não
estava bem, coloquei-as em lugar seguro. Vou buscá-las. Com sua
licença.
Ela saiu e voltou pouco depois com um embrulho.
— Aqui estão elas, sinhá.
— Obrigada, Ode te. Pode ir agora.
Assim que a serva saiu, mamãe abriu o pano,
desembrulhando o conteúdo. O médico ficou extremamente
admirado.
— Virgínia! Mas é um verdadeiro tesouro! Estas moedas de
ouro são muito valiosas.
— Exato, meu amigo. Elas caíram exatamente no momento
em que minha filha entrou e partiu para cima de Josias, que,
para se defender, tentou erguer as mãos amarradas e bateu
na faixa que
lhe contornava a cintura; ela se soltou e as moedas
espalharam-se pelo assoalho. Sob o impacto da trágica
situação, fiquei em estado de choque e nem me lembrava
mais delas.
Ela pegou uma moeda na mão, examinando-a com cuidado. Depois
disse perplexa:
— Mas eu conheço estas moedas, doutor! Meu falecido
esposo há muitos anos as mandou cunhar, quando foi
descoberta uma mina de ouro em outra propriedade que
temos. Como teriam ido parar nas mãos de Josias? A única
pessoa que tem a chave do cofre sou eu! Teria sido alguém
da casa? Ou a própria Maria Eugênia?
O médico olhou-a com expressão grave. Depois, segurou-lhe as
mãos entre as suas e considerou:
— Virgínia, isso só Josias poderá nos informar. Creio que
agora não há mais como esconder a verdade. Tenho de
voltar para a vila, mas retornarei amanhã cedo. Hoje não
tive tempo, mas amanhã pretendo conversar com Josias.
— Vá, então, meu amigo. O dia todo ficou preso aqui na
fazenda e sei que tem outros doentes que precisam da sua presença.
Ficarei o aguardando ansiosamente.
— Não se preocupe, Virgínia. Tudo acabará bem.
Ele despediu-se, inclinando-se com elegância e beijando-lhe
a mão. Depois saiu, e ela continuou olhando seu cavalo que
trotava pelo caminho e se afastava cada vez mais, até
desaparecer na curva da estrada.
ALGUÉM FOI AVISAR MINHA MÃE de que eu queria falar-lhe.
Respirando fundo, ela subiu as escadarias, preparando-se
para a conversa com a filha que, tinha certeza, seria difícil.
Entrou nos meus aposentos mostrando uma fisionomia serena e
confiante. Sorriu, aproximando-se do leito:
— Boa tarde, minha filha, como está se sentindo?
— Mamãe! Que bom que chegou. Passei muito mal e tive
sonhos horríveis. Preciso conversar com a senhora.
Ela sentou-se no leito e fez um gesto de concordância com
as mãos:
— Pois muito bem, aqui estou.
Procurou esquadrinhar-me o semblante para ver o que
estava passando pela minha cabeça.
— Mamãe, não acreditou no que aquele escravo horroroso
disse contra mim, não é?
— Maria Eugênia, o Josias não falou nada contra você. Por
que insiste nisso?
— Aquele escravo me odiava, mamãe! Mas agora ele está
morto, não é?
Minha mãe encheu os pulmões de ar, como que procurando
ganhar tempo, depois afirmou lentamente:
— Não, Maria Eugênia. Josias está se recuperando, segundo
o doutor Teófilo.
Naquele momento, um medo terrível passou a tomar conta
de mim. Em pânico, completamente desequilibrada, eu
gritava a plenos pulmões:
— Não! Não é possível! Esse médico não sabe nada. Ele tem
de estar morto! Depois de tudo o que fez, só merece morrer mesmo!
A senhora nunca notou como ele me olha com rancor?
Acalme-se, minha filha! Não se preocupe com ele; é apenas
um escravo. Você não pode ficar assim agitada.
Ao mesmo tempo em que falava comigo, mamãe fez um
sinal a Dinha que trouxe o remédio, do qual pingou algumas
gotas na minha boca. Não demorou muito, comecei a sentir
os efeitos do medicamento. Com voz enrolada, ainda
murmurei:
— Ele é um ladrão, mamãe! Roubou as moedas de ouro! Viu
quando elas caíram no chão? Ele não merece viver! Não
merece...
— E como ele teria aberto o cofre, minha filha? – Ainda
ouvi mamãe perguntar, mas não consegui responder.
Novamente mergulhei em sono profundo. Um sono repleto
de pesadelos.
MINHA MÃE ESTAVA ARRASADA. Os olhos marejados de pranto
mostravam a imensa dor que a dominava. A sensação de
impotência, por não poder ajudar a própria filha, aliava-se ao
medo da verdade que estava vindo à tona.
Permaneceu algum tempo no quarto em penumbra,
acomodada em uma poltrona próxima ao leito da filha.
Cansada de pensar, tentando encontrar uma saída para
aquela situação, ela cochilou.
Os serviçais da casa estavam pesarosos e sem saber o que
fazer. Avisada, Dinha subiu e levou o remédio para a
senhora, acordando-a gentilmente.
— Tome, sinhá. Vai lhe fazer bem.
Em seguida, Dionísia levou-a para seus aposentos. Lá, a
criada tirou-lhe o traje apertado, trocando-o por uma
camisola, e acomodou-a no leito. Logo Odete entrou com
uma xícara de chá de cidreira, para relaxar. Depois, correram
as cortinas ficando o quarto em penumbra; saíram, fechando
a porta e deixando-a repousar com tranqüilidade.
29 – Recebendo visitas
Na manhã seguinte, quando Teófilo chegou à fazenda Santa
Genoveva, ao aproximar-se da casa-grande, ficou sabendo
das novidades por Tome, que estava à entrada. Apressou o
passo, encaminhando-se para os aposentos da dona da casa.
Bateu levemente na porta, e Dinha atendeu prontamente.
— Ah! Que bom que o sinhô chegou, doutor.
— Como está ela, Dionísia?
— Ontem a sinhá não passou muito bem, doutor, e tive de
lhe dar o remédio. Mas agora está melhor. Veja! Está se mexendo.
Vai acordar!
Ele aproximou-se do leito, olhou a mulher deitada e achou-a
ainda mais bela. Talvez ouvindo o leve ruído de passos, as
longas pestanas se abriram e dois olhos verdes e sonolentos
o fitaram. Somente então ela deu-se conta do que estava
acontecendo.
— Doutor! O senhor, aqui?
— Sim, minha senhora! Já passa das nove horas. Como
prometi, aqui estou. Pelo jeito dormiu muito bem! Como se
sente?
Ela agarrou a mão do médico, atemorizada:
— Estou com medo, meu amigo. O que será que Josias sabe
que apavora tanto a minha filha?
— Não se assuste, cara Virgínia. Fique tranqüila. Vou ver
Maria Eugênia, depois irei até a senzala. Em seguida, voltarei
com notícias. Agora, tome estas gotas e procure relaxar. Não
me demoro.
Cerca de uma hora depois, ele retornou, encontrando-a
ansiosa:
— E então? Falou com Josias?
— Acalme-se! Falei, sim. Porém teremos tempo para
conversar. A senhora já tomou seu café da manhã?
Dinha, com a liberdade da longa convivência, antecipou-se
e respondeu:
— Não tomou não, sinhô doutor. Quem sabe agora que o
sinhô está aqui, a sinhá Virgínia aceite comer alguma coisa.
O médico sorriu, animado:
— É verdade, Dinha! Com a pressa, também eu ainda não
comi nada.
Mamãe devolveu-lhe o sorriso e estendeu o braço tocando a
sineta. Quando a escrava apareceu, ela ordenou:
— Odete, traga café para dois, sim?
— É pra já, sinhá - disse, saindo do quarto.
Dinha ajudou sua senhora a se vestir. Em seguida, mamãe se
levantou e acomodou-se com o médico em torno de
uma pequena mesa redonda que ela, normalmente, usava
para leituras. Não demorou muito, Odete entrou com a
bandeja, colocando-a sobre a mesa. Teófilo ficou tão
animado diante da fartura que mamãe também se rendeu.
Ambos provaram de tudo. Ao terminar, satisfeitos, um
olhou para o outro e trocaram um sorriso.
— Muito bem. É assim que gosto de vê-la, minha amiga
Virgínia.
— Então, agora que satisfiz sua vontade e alimentei-me
convenientemente, vai contar-me o que conversou com
Josias, meu caro doutor?
Teófilo olhou para os lados, verificando se havia ouvidos indiscretos
ali no quarto. Notando-lhe a preocupação, ela o serenou:
— Não há ninguém aqui, doutor. Odete foi cuidar de suas
obrigações e Dinha foi ver minha filha. Pode falar sem
medo.
Mais tranqüilo, ele relatou o que sabia:
— Conversei com Josias e ele falou-me sobre a sua fuga e
como tinha sido capturado por Lupércio, o capitão do mato,
entre outras coisas.
— O que mais ele lhe disse?
— Virgínia, temos de estar preparados para tudo.
— Como assim, Teófilo? Soube de mais alguma coisa? -
indagou ansiosa.
— Quando estiver melhor, falaremos sobre isso.
— Não. Quero saber já! Sou forte o suficiente para enfrentar
qualquer situação. Diga-me, o que mais ele disse? - exigiu
ela, enérgica.
— Bem, já que insiste. A mim, Josias contou que tinha
recebido as moedas das mãos da sinhazinha, como
pagamento por um serviço realizado.
— Serviço realizado? Que ligações poderia ter minha filha
com esse escravo?
— A senhora não imagina?
— Será por ter... enfim... tem a ver com Miguel?
— Tem.
— Meu Deus! Ele disse isso?
— Sim, com todas as letras.
— Então aquilo que eu suspeitava era verdade!
— Infelizmente! E tem mais... - disse ele, lentamente e com
cuidado, sabendo que iria ferir ainda mais aquele coração de
mãe, mas que ela precisava saber de toda a verdade, como
um tumor que precisa ser extirpado para destilar toda a
podridão.
— Mais ainda?...
— Sim, Virgínia. Josias contou-me que, saindo da pro-
priedade levou um farnel que Maria Eugênia lhe preparara.
Ao sentir fome, parou e abriu a sacola. Ia comer um pedaço
de pão com carne, quando um cachorro se aproximou dele,
faminto; penalizado, deu um pedaço da carne ao animal,
Como estivesse com sede, antes de comer, desceu até o
riacho, lavou o rosto e bebeu água. Ao voltar, o cão estava
morto.
Com os olhos arregalados de susto e medo, ela levou as mãos
à cabeça, desesperada:
— Não posso acreditar, Teófilo! Ela pretendia matar Josias
para eliminar qualquer prova contra ela! Meu Deus, isso já é
demais para minha cabeça, não vou suportar! - gritou em
lágrimas.
Ele abraçou-a, envolvendo-a com imenso carinho.
— E agora, Teófilo? O que será de nós? O que será de Maria
Eugênia?
— Fique tranqüila. Deixe isso por minha conta. Confie em
mim!
— Eu confio! Ah, como eu confio!...
Trocaram um olhar em que havia tanto entendimento entre
eles, que as palavras eram desnecessárias.
Virgínia pensava: "Quantos anos da minha existência eu
sofri com um homem que não me compreendia nem me
amava! Ou melhor, amava-me do seu jeito. E agora, somente
agora, quando já é tarde, encontro alguém que me
compreende e que poderia me fazer feliz!".
De sua parte, Teófilo suspirava, refletindo: "Quantos anos eu
passei sofrendo pela perda de minha querida esposa, sem
conseguir ligar-me a mulher alguma. Agora, que já nem
pensava mais em refazer minha vida, descubro a pessoa que
poderia me fazer feliz! Quem sabe não é tarde demais?"
Estavam assim, abraçados, envolvidos pela descoberta um do
outro. Ela levantou a cabeça do peito dele, afastando-se um
pouco; ele tomou entre suas mãos as mãos dela e fitavam-se
sem nada dizer quando ouviram duas batidas leves na porta e
se assustaram. Era Odete.
— Sinhá Virgínia, o sinhô Guilherme chegou com visitas lá
de Santa Clara.
— Guilherme?... E quem mais?
— Trouxe um casal que eu não conheço, sinhá.
— Ah, sim! Com certeza devem ser Marie e Pierre. Avise as
visitas que estou descendo, Odete. E peça a Dinha que
venha me ajudar.
— Sim, sinhá.
Mamãe tinha os olhos arregalados e a expressão preocupada.
"Visitas logo hoje, que estamos com tantos problemas?"
— O que houve, Virgínia? Parece-me inquieta.
— É que não esperava visitas, Teófilo. Pelo menos, não hoje,
que está tudo tão conturbado aqui em casa!
— Acalme-se, Virgínia. Quem sabe a vinda de Guilherme
não foi providencial? Lembre-se de que precisamos de infor-
mações que só ele poderá nos dar. Talvez a mim ele fale
sobre o envolvimento dele com a Rita. Vou descer e fazer
sala às visitas, enquanto troca de roupa.
— Tem razão, Teófilo. Obrigada. Que seria de mim sem
você?
O médico sorriu, satisfeito diante dessas palavras; saiu do
quarto e desceu as escadarias alegre, mas curioso. Enfim, iria
conhecer o casal ao qual ela se referira no dia anterior.
Ao vê-lo, Guilherme levantou-se sorridente,
cumprimentando-o:
— Bom dia, doutor Teófilo! Que feliz encontro! Não
esperava vê-lo aqui. Tenho o prazer de apresentar-lhe meus
amigos Pierre e Marie Legrand, que estão de visita à nossa
região.
— Ah, sim?... Muito prazer em conhecê-los. E vieram
de onde?
— Da França; mais especificamente, de Paris – respondeu
Pierre, estendendo-lhe a mão.
— Ah! A Europa! Estou com saudade da cultura e da beleza
que lá podemos desfrutar. Infelizmente, toda vez que
programo uma viagem, meus pacientes não concordam e
caem de cama.
Todos riram, enquanto se acomodavam na sala de visitas,
conversando sobre trivialidades.
— Para franceses, falam muito bem nosso idioma - consi-
derou Teófilo.
— Na verdade, sou brasileiro e ensinei a Marie a nossa
língua.
Um quarto de hora depois, a dona da casa desceu bem
arrumada e bela como sempre. Não fosse por leve palidez -
que somente alguém que a conhecia bem poderia notar,
apesar do colorido que colocara nas faces -, não se
perceberia que estava atravessando problemas.
Guilherme desculpou-se por terem vindo sem avisar. Após a
troca de cumprimentos, a dona da casa afirmou:
— Não se desculpe, caro Guilherme. Sinto-me satisfeita por
tê-los aqui em nossa casa e muito feliz de reencontrar os
amigos Marie e Pierre.
O médico comentou que também se sentia satisfeito por
conhecer o casal que viera de além-mar, do qual já tivera
notícias pela senhora Virgínia, ao que Guilherme retrucou:
— O doutor já poderia tê-los conhecido, se não demorasse
tanto a nos visitar.
— Tem razão, Guilherme. Estou em falta com seu pai. No
entanto, devo estar por lá nos próximos dias.
— Essa é uma boa notícia, doutor Teófilo. Minha mãe ficará
satisfeita. A propósito, senhora Virgínia, desculpe-me
perguntar, como está Maria Eugênia? Fiquei sabendo que
enfrentaram problemas um dia desses e cá estou, juntamente
com os amigos, para apresentar-lhes nossa solidariedade e
também ajudar, se possível. Afinal, ainda sou esposo de
Maria Eugênia e me considero da família - disse Guilherme.
— Agradeço-lhe, Guilherme. Sempre foi um filho para mim,
sabe disso. Maria Eugênia está acamada, porém seu estado é
relativamente bom.
— E o escravo Josias, doutor? - ele indagou, dirigindo-se ao
médico.
— Vai muito bem. Recupera-se de forma promissora,
Guilherme.
— Ótima notícia, doutor.
— Sem dúvida.
Conversaram amistosamente durante algum tempo, quando
Guilherme, trocando um olhar com o casal, afirmou que
precisavam despedir-se, ao que a dona da casa reagiu:
— Absolutamente! Não aceito de maneira alguma. Afinal,
esta é a primeira vez que nossos amigos Marie e Pierre
Legrand vêm à nossa casa. São nossos convidados para o
almoço, e não abro mão disso. Temos tão poucas ocasiões de
estarmos juntos, que não podemos perder a oportunidade
quando ela se apresenta.
— Senhora Virgínia, se faz tanta questão, ficaremos com
prazer.
A dona da casa virou-se para o médico:
— Também o senhor, doutor Teófilo, espero que fique. A
não ser que tenha compromissos na cidade...
Ele lançou um longo olhar para ela e sorriu:
— Não tenho compromissos. Reservei este dia para a Santa
Genoveva. Terei prazer em aceitar seu convite, senhora
Virgínia.
— Sinto-me deveras feliz, pois hoje será um dia festivo.
Desde que meu marido faleceu, não recebíamos os amigos
em nossa casa. Então, dêem-me licença. Preciso dar algumas
ordens na cozinha.
Ela saiu e eles continuaram conversando. Odete levou café
para as visitas e, nesse momento de descontração, o médico
ficou perto de Marie, travando diálogo com ela.
— Gostaria de ter ocasião de podermos conversar, senhora
Marie. Virgínia assegurou-me que possui idéias bastante
interessantes sobre a alma humana.
Com leve e descontraído sorriso, Marie afirmou:
— Estou à sua disposição, doutor. Poderemos conversar a
hora que o senhor quiser.
— Ótimo! Quem sabe hoje mesmo, não? Penso que esta
oportunidade não surgiu por acaso.
— Também penso assim, doutor.
— E o senhor Pierre partilha de suas idéias?
— Digamos que meu esposo aceita, com restrições -
respondeu, com sorriso cativante.
O médico examinava-a disfarçadamente. Ela era mais jovem
do que julgara. Tinha uma expressão de menina, os olhos
mais azuis que ele já vira, a pele cheia de sardas e uma
surpreendente cabeleira ruiva. Nada nela era comum, usual.
No entanto, irradiava ternura, sinceridade e falava com
segurança.
Providencialmente, Pierre demonstrou desejo de conhecer a
fazenda, e Guilherme dispôs-se a acompanhá-lo. Marie
trocou um olhar com Teófílo como se dissesse "esta é outra
oportunidade que não podemos desprezar".
A dona da casa retornara da cozinha e acomodara-se em
uma poltrona ao lado de Marie. O médico aproveitou o
momento para sugerir:
— Cara Virgínia, há pouco eu falava com a senhora Marie
sobre o que conversamos ainda ontem. Apreciaria saber a
opinião dela sobre a situação que estamos atravessando e que
envolve diretamente Maria Eugênia. Mamãe aprovou a feliz
lembrança:
— Querida Marie, não imagina os problemas que estamos
enfrentando!
— Pelas notícias que tivemos hoje, posso fazer uma idéia.
— A propósito, como ficaram sabendo assim tão rápido
sobre o acontecido aqui na Santa Genoveva? - indagou o
médico, curioso.
— Parece que um escravo aqui da fazenda estava trabalhando para os
lados da Santa Clara e encontrou um escravo de lá, seu conhecido,
que vinha pela estrada a caminho da vila. Conversaram e
este foi informado do que houve; desistiu de ir para a vila,
que era seu destino, e, voltando para a Santa Clara, contou a
novidade a Guilherme, haja vista o parentesco que une as
famílias.
— É, as notícias correm! Mas, gostaria que me falasse um
pouco de seus estudos sobre a alma - pediu ele, não
querendo perder tempo.
— Falarei, com certeza. Todavia, gostaria antes de ver Maria
Eugênia.
— Claro, Marie! Venha! Vamos até os aposentos dela - disse
minha mãe.
Os três subiram as escadarias e, atravessando o corredor,
chegaram aos aposentos da doente. A dona da casa abriu a
porta, e Dinha, que estava ao lado do leito, veio ao encontro
das senhoras e do médico.
— Como está minha filha, Dinha?
— Ainda dorme, sinhá. No entanto, noto que seu sono não
é tranqüilo, tem momentos em que parece estar tendo
pesadelos. Agora, está mais calma.
— Obrigada, Dinha. Se quiser, pode descer um pouco.
Ficaremos aqui ao lado dela. Se precisar, tocarei a sineta.
— Sim, sinhá. Com sua licença.
Após a saída da criada, eles se aproximaram mais do leito,
onde a jovem dormia. Marie examinou-a atentamente,
depois cerrou os olhos, como se procurando perceber algo
mais. O médico e minha mãe não a perdiam de vista, por
motivos diferentes. Teófilo, interessado em saber como ela
agia, e a mãe preocupada com a filha. Após uns dez minutos,
Marie pareceu sair daquele estranho estado e comentou em
voz baixa:
— Pobrezinha. Ela sofre muito.
— Como chegou a essa conclusão, senhora? - indagou o
médico.
— Vejo-a cercada por seres que desejam destruí-la.
— Como assim? - contra-atacou o médico, com uma ponta
de ironia.
— Não é bom conversarmos aqui, perto dela.
A dona da casa levou-os até uma pequena sala, à entrada dos
aposentos, onde havia um sofá e uma poltrona.
Acomodaram-se, e Marie, fitando o médico, passou a
responder:
— Doutor Teófilo. Sei que não deve acreditar nessas coisas,
mas foi o senhor que me perguntou sobre o que eu pensava
a respeito da alma humana. Então, lhe respondo: o que vi
tem relação com sua pergunta.
— Pode explicar-se melhor, senhora?
— Sem dúvida. Veja! A alma é o ser inteligente que habita
um corpo material, como se fosse uma vestimenta, e é o que
lhe dá vida! Todos nós somos almas que ocupam
provisoriamente
um corpo terreno, para aprendizado e conseqüente
progresso. Quando o corpo morre, a alma se desliga dele e
continua vivendo, de acordo com suas tendências boas ou
más, ou com o que já aprendeu.
— Se bem entendi, quer dizer que esses seres que a senhora
diz que viu são almas que já ocuparam um corpo de carne?
— Exatamente. Neste caso, em especial, tentam vingar-se de
Maria Eugênia, a quem acusam de lhes ter feito muito mal.
— Quando?
— Não sei. Nesta existência ou em outras.
— Em outras existências? A senhora acredita nas vidas
sucessivas, então?
— Parece-me que é a única opção aceitável para podermos
acreditar na Justiça Divina. Como imaginarmos um mundo
em que existem senhores e escravos, homens bons e maus,
doentes e sãos, todos criados por Deus? Como entendermos
tais diferenças, se Jesus nos ensinou que Deus é Pai e que
ama a todos os seus filhos da mesma maneira?
Teófilo estava surpreso com as explicações de Marie. Cru-
zando os braços à frente do peito, prosseguiu questionando:
— E as almas que vivem em nosso mundo, ficam presas ao
corpo que habitam?
— De certa forma, sim. No entanto, quando o corpo
dorme, a alma pode ganhar o espaço e viver uma outra vida,
ir em busca de seus interesses, como um pássaro que
readquire a liberdade.
— Entendo. Quer dizer que alguém pode deslocar-se e ir a
outro lugar, mesmo longe? Pode aparecer para outras
pessoas?
— Sem dúvida.
Teófilo trocou um olhar com mamãe, que não passou
despercebido a Marie, que prosseguiu, esclarecendo:
— Fatos semelhantes aconteceram com Maria Eugênia em
Paris, quando ela teve ocasião de ver uma mulher no quarto
de hotel em que se hospedava com Guilherme.
— Sim, Virgínia falou-me sobre isso. Como médico, ouvi
relatos de fatos do gênero inúmeras vezes em minha
vida, especialmente de doentes graves que,
aproximando-se da hora da morte, viam pessoas
falecidas, parentes ou amigos. Mas, na verdade,
sempre julguei que fossem causados pela crendice
popular.
— Não são. Posso, inclusive, passar ao senhor um material
que coletei e que prova essa realidade. Trouxe comigo para o
Brasil e, se for do seu interesse, terei prazer em emprestar-
lhe.
Teófilo sorriu, agradecido:
— Faça-me essa gentileza e ficarei muito grato. Aliás, por
esses dias devo ir à Santa Clara ver meu amigo Valentim, e
aproveitarei para pegar esse material.
— Ótimo! Sem problemas, doutor,
— Obrigado, senhora. Confesso que estou surpreso com
tudo o que afirmou. São conhecimentos que não se
encontram em livros, pelo menos não que eu saiba. Poderia
dizer-me onde os obteve, ou com quem?
— A princípio, aprendi com os filósofos. Sócrates e Platão já
falavam sobre esses assuntos.
— É verdade. Porém, nunca fui muito ligado à Filosofia.
Sempre tive mais interesse pela Biologia e pela Anatomia,
tanto é que fiz Medicina.
— Entendo. Depois, fui orientada pelos anjos de luz.
— Mas, que interessante! A senhora recebeu orientação de
anjos de luz? A senhora os vê?
Marie sorriu diante da perplexidade do doutor, e seu rosto
sardento se iluminou:
— Sim, eu os vejo, ouço e converso com eles. São almas de
pessoas que já viveram na Terra e que agora habitam outro
mundo, como eles dizem. A diferença entre eles e os seres
que vi há pouco é que esses anjos são bons, procuram ajudar
as pessoas, têm uma moral elevada e só desejam o bem do
próximo. São muito belos, e a luz que os envolve atesta-lhes
a condição de almas superiores a nós.
— E os outros, os que a senhora viu perto da menina?
— São feios, sujos e escuros, denotando a condição inferior
em que vivem.
O médico estava pasmo diante de tudo o que ouvira. A
francesinha crescera agora diante de seus olhos, ganhando
uma aura de credibilidade, maturidade e respeito. Fitando-a
com expressão diferente no olhar, ele confessou:
— Senhora Marie, tenho de refletir muito sobre tudo o que
a senhora afirmou. Prometo-lhe analisar com bastante
interesse as suas idéias. Se puder emprestar-me o material
sobre o qual se referiu, ficar-lhe-ei muito grato.
— Sem dúvida.
— Pensando bem, creio que irei amanhã mesmo à Santa
Clara. Estou ansioso para ter nas mãos esse material.
Mas, quanto aos anjos de luz, somente a senhora pode vê-
los e ser orientada por eles?
Ela balançou a cabeça negativamente, sorrindo:
— Não, claro que não. Tenho certeza de que outras pessoas
também os vêem e ouvem. De resto, eles afirmam que está
perto o tempo em que todas essas verdades serão conhecidas
por todos aqui do nosso mundo terreno.
— Muito interessante! Oxalá venha logo essa era de luz!
Naquele momento, uma onda de vibrações boas inundou o
ambiente de bem-estar, paz e esperança. Marie comentou
com sua voz doce e maviosa:
— Sentem uma sensação boa? Os anjos de luz estão aqui!
Vamos aproveitar a presença deles para orar a benefício de
Maria Eugênia. Eles sempre afirmam que a oração tem muito
poder.
Marie convidou-os para irem ao quarto da doente e, lá,
posicionaram-se em torno do leito, de mãos dadas. A
francesa ergueu a fronte e, fechando os olhos, orou o Pai-
Nosso em voz alta, sendo acompanhada por Teófilo e
mamãe.
Depois, comentou:
— Maria Eugênia foi ajudada. O ambiente agora está limpo e
bem mais agradável, com a bênção de Deus!
Como a hora avançava, a dona da casa convidou-os a
descerem. O almoço não tardaria a ser servido.
30 – Informações inquietantes
Marie, Virgínia e Teófilo desceram as escadarias e, ao
entrarem na sala, encontraram Guilherme e Pierre, que
haviam voltado do giro pela propriedade e conversavam
animadamente sobre tudo o que tinham visto. Pierre estava
encantado e, diante da dona da casa, externou sua
admiração:
— Parabéns, senhora Virgínia! Pelo que pude perceber, tem
administrado muito bem a fazenda, inclusive fazendo
modificações, acrescentando melhorias.
— Obrigada, senhor Pierre. Faço o que posso. Felipe Figueiroa, meu
falecido marido, tinha uma maneira de pensar mais rígida,
sempre avesso a mudanças e, assim, não aceitava novidades. Penso
diferente e busco o progresso. Em relação aos escravos, por exemplo,
acredito que devam ser tratados com mais dignidade e respeito,
como seres humanos que são, e coloco em ação minhas
idéias.
— Sem dúvida. Conversei com alguns deles e pude notar
que se sentem felizes, trabalham sorridentes e, aqueles que
têm família, falam com satisfação das novas casas que
ganharam.
— Procuro fazer o melhor para eles, senhor Pierre. Dessa
forma, todos nós ganhamos. Desde que foram abolidos os
castigos no tronco, os escravos tornaram-se mais tranqüilos
e satisfeitos, trabalham com mais disposição, o que tem
gerado um rendimento significativamente maior.
Pierre, com verdadeiro entusiasmo, prosseguiu:
— A senhora está aplicando idéias humanistas de profundo
valor social. Enquanto houver escravidão, que sejam dadas
melhores condições de vida para os escravos.
Evidentemente, os abolicionistas desejam mais: a extinção
do tráfico e da escravatura, algum dia, será realidade em
nossa terra, a exemplo de outros países. Mas as mudanças
devem começar dessa forma, devagar, de modo a se
transformarem em um hábito para a sociedade e modificar o
modo de pensar e os costumes dos fazendeiros, por atitudes
mais dignas e respeitosas em relação aos seus servos.
Guilherme, que ouvia calado, mas com interesse, afirmou
com ênfase:
— Penso exatamente como você, Pierre. É inadmissível que
ainda tenhamos escravos aqui no Brasil. Estou tentando
modificar as coisas lá na Santa Clara, porém reconheço que,
enquanto meu pai for vivo, será difícil. Ele não aceita
minhas idéias, que considera revolucionárias e prejudiciais
aos nossos interesses.
Concordando com ele, a dona da casa acrescentou:
— É só uma questão de tempo, Guilherme, como afirma
nosso amigo Pierre. Tenho recebido informações de várias
pessoas, donos de terras, que já pensam como nós. Nossa
posição tem recebido valiosa colaboração de todos aqueles
que estudaram na Europa, como nós, e que retornam com o
pensamento abolicionista, não aceitando mais a escravatura
em nossa sociedade, e que irão colaborar na implantação de
novas conquistas. Particularmente, considero vergonhoso o
fato de ainda termos escravos aqui no Brasil.
Em seguida, notando que Odete assomara à porta e lhe fizera
um sinal, levantou-se e, com um sorriso, convidou os
demais:
— Caros amigos, nossa conversa está ótima, porém o almoço
será servido dentro em pouco; passemos à sala de jantar.
Dialogando alegremente, os convidados acompanharam a
dona da casa, encaminhando-se à sala ao lado e
acomodando-se em torno da grande mesa, impecavelmente
arrumada.
A cabeceira, mamãe exercia perfeitamente seu papel de
anfitriã. Ao terminar a refeição, Marie elogiou o almoço.
— Cara Virgínia, os pratos aqui servidos e as sobremesas
agradariam aos mais exigentes paladares!
— Agradeço-lhe as palavras gentis, minha querida. O elogio,
vindo de uma francesa, tem ainda mais valor. Florência,
minha cozinheira, ficará orgulhosa! - disse com um sorriso,
e completou:
- Uma vez que todos estão satisfeitos, passemos à outra sala.
Os cavalheiros, após o café, trocaram idéias sobre negócios e
a situação econômica do país, uma vez que a cultura da
cana-de-açúcar estava em decadência e as plantações de café
surgiam com plena força, gerando lucros extraordinários,
visto que não exigiam grandes e vultosos investimentos,
como a montagem do engenho.
As mulheres, em outro canto, um pouco afastadas, falavam
sobre assuntos mais amenos.
— Lamento profundamente, Marie, que a querida Leonora
não tenha podido acompanhá-los. Seria muito bom se ela
também estivesse aqui conosco.
— Sem dúvida, Virgínia. Todavia, nossa hospedeira não
podia afastar-se do solar, pois monsieur Cerqueira não estava
sentindo-se bem hoje. Ah! Leonora tem sofrido bastante!
— Pobre Valentim! Está muito doente, o que torna a vida de
nossa amiga mais difícil - lamentou minha mãe.
— Sim, mas não me refiro somente à doença, que por si só é
bastante grave. Noto também, Virgínia, que monsieur
Cerqueira é alguém de personalidade muito difícil. A
enfermidade é algo que pode atingir qualquer pessoa, porém
conheço doentes em piores condições que a dele e que são
tranqüilos e resignados. Monsieur Cerqueira, porém, se
comporta pessimamente. Lamento por Leonora, que tenta
disfarçar-lhe as grosserias, as indelicadezas, justificando-lhe
as atitudes.
A anfitriã meneou a cabeça, concordando:
— Compreendo o que quer dizer, Marie. Conheço a família
Cerqueira há longo tempo e posso lhe assegurar que ele
sempre foi assim, difícil e descontente com tudo. Por mais
que a esposa
tente agradar-lhe, não consegue. Por que tal
comportamento? Sempre teve tudo! Lembro-me de
Valentim quando jovem. Era um rapaz bonito, elegante e
muito rico; casou-se com uma das moças mais belas da nossa
região e, apesar do que a vida lhe tem dado, vive insatisfeito,
Marie pareceu pensar por alguns instantes e depois
considerou:
— Virgínia, uma parte desse comportamento é dele mesmo,
isto é, monsieur Cerqueira mostra o que realmente é. Outra
parte é causada por inimigos espirituais, que ele fez com seu
modo de ser, nesta ou em outras vidas.
A anfitriã olhou-a espantada:
— Você os vê?
— Sim, como a vejo agora. Perturbam-no, aumentam-lhe as
dores, provocam mal-estar, angústia e desequilíbrio. É por
isso que ele se sente muito pior do que realmente deveria
estar.
A amiga fitou-a, mostrando que entendera a situação, a qual
lamentava profundamente, e indagou-lhe:
— Marie, o caso de minha filha é semelhante ao de
Valentim Cerqueira, não é?
— De certo modo, sim, Virgínia.
— Foi o que pensei. Diga-me uma coisa: quais almas penadas
você viu junto de Maria Eugênia, quando estávamos nos
aposentos dela?
— Várias almas sofredoras e encolerizadas, como a escrava
Rita, Miguel, o pai dela, monsieur Felipe Figueiroa, monsieur
Frederico Figueiroa e várias outras.
Minha mãe estava surpresa.
— Marie, como sabe que são essas pessoas se não os conhe-
ceu em vida? Meu sogro, especialmente, Frederico
Figueiroa, morreu há muito tempo!
— Eu sei, simplesmente.
— Ah!... E o que dizem essas almas penadas?
— De modo geral, acusam Maria Eugênia por males que lhes
causou. Outros, como o pai dela e o avô, tentam fazer com
que ela reaja e lute, para tomar conta da fazenda, que julgam
mal administrada, entre outras coisas.
— Meu Deus! Então, é verdade que meu falecido esposo está
por aqui?! Por isso notei em minha filha reações e idéias
extremamente parecidas com as dele!
— Sem dúvida. Em Maria Eugênia, que é filha e com a qual
ele tem relações, monsieur Felipe Figueiroa encontrou
alguém maleável e dócil a seus pensamentos, capaz de tomar
atitudes
por ele!
A dona da casa estava assustada.
— Mas então a situação é muito pior do que pensava!
Com serenidade e firmeza, Marie respondeu, tentando
serenar a dona da casa:
— Não diria que a situação é pior, Virgínia, porém que
precisa ser tratada de outra maneira.
A anfitriã ia perguntar que "outra maneira" seria essa,
quando viu Guilherme que se aproximava, falando da
necessidade de se despedirem.
— Querida senhora Virgínia! Precisamos partir agora, pois já
é tarde e tenho providências a tomar ainda hoje.
Marie levantou-se e, olhando para a amiga, as segurou-lhe:
— Obrigada pela hospitalidade, Virgínia. Voltaremos o mais
rápido possível ao assunto sobre o qual falávamos. Não se
preocupe.
Despediram-se e, alguns minutos depois, a carruagem
levando Pierre, Marie e Guilherme desaparecia ao longe, na
curva da estrada.
Com expressão grave, Teófilo aproximou-se mais da amiga,
segurou-lhe a mão e convidou:
— Venha comigo! Vamos caminhar um pouco pelo jardim,
Virgínia.
Com um sorriso, ele ofereceu-lhe o braço e saíram pelas
alamedas, lentamente, apreciando a tarde morna e bela, com
o sol mais ameno.
— Tivemos um dia realmente agradabilíssimo, não é ver-
dade? Tudo foi perfeito. Apesar da contrariedade que sentiu
quando eles chegaram, logo pela manhã, considero que foi
um dia, além de aprazível, bastante instrutivo.
— É verdade - respondeu ela, distraída.
O médico voltou à carga:
— Contudo, para alguém que teve um bom dia, está muito
preocupada. Gostaria de saber o que a deixou com a
testa tão franzida.
Mas ela continuava calada, olhando fixamente para a frente,
imersa em seus pensamentos. Teófilo apertou delicadamente
a mão que se lhe apoiava no braço e insistiu:
— Não me responde, Virgínia?
Parecendo ter voltado a si, afinal ela se deu conta da
presença dele.
— Desculpe-me. Falou comigo, Teófilo?
Balançando a cabeça, ele afirmou:
— Parece que o problema é sério. Nem sequer ouve o que
digo! O que está acontecendo, Virgínia? Foi a conversa que
teve com Marie que a deixou desse jeito?
Ela sentia-se perturbada, tensa. Como estavam perto do
caramanchão de rosas, ela sugeriu:
— Vamos sentar-nos ali. Preciso repousar um pouco.
Acomodaram-se no banco, e Teófilo voltou a indagar-lhe:
— Então, vai me contar ou não o que a preocupa?
Virando-se para seu acompanhante, ela tinha os olhos
marejados de lágrimas.
— Estou com medo, meu amigo.
Ela parecia um passarinho assustado, e Teófilo aconchegou-a
em seus braços. Com a cabeça dela apoiada em seu peito, ele
sentia um calor gostoso invadi-lo.
— Eu estou aqui, Virgínia. Nada tema, minha querida.
Conte-me o que a aflige.
Ganhando ânimo, ela respirou profundamente e começou a
narrar-lhe a conversa que tivera com Marie, e que tanto a
deixara assustada. Depois, sem poder segurar mais as
lágrimas, ela lhe perguntou:
— Será possível? Será verdade o que ela me disse?
— Não sei, minha querida. No entanto, você não afirmou
que Marie viu almas ou seres?
— Sim, isso mesmo.
— Então, como Marie poderia saber que eram Rita, Miguel,
Felipe, seu falecido marido, e até Frederico Figueiroa, seu
sogro?
— É verdade. Concordo com você. Mas tudo isso é um
enigma.
Com expressão grave, Teófilo respondeu:
— Pois pretendo decifrar esse enigma com a maior
brevidade possível. Estou resolvido a ir amanhã cedo à
fazenda Santa Clara. Primeiro, passarei para dar uma olhada
em Maria Eugênia, em Josias e, claro, em você - falou,
endereçando-lhe um olhar cheio de amor, e completou -
depois visitarei Valentim Cerqueira, já que o trajeto é o
mesmo.
A amiga corou sob esse olhar e levantou a cabeça,
interessada.
— Bem pensado, Teófilo. Posso acompanhá-lo? Isto é, se não
for atrapalhar...
Com largo sorriso o médico aprovou:
— Ótima idéia! Iremos juntos. Será um prazer tê-la ao meu
lado nessa pequena viagem. Além disso, teremos ocasião de
conversar com Marie e trocar idéias sobre esses assuntos que
tanto a incomodam.
A dona da casa desanuviou o semblante, mais calma com a
decisão tomada. Eles permaneceram algum tempo calados,
aproveitando a proximidade um do outro, sentindo o
coração bater em único som, até que Teófilo murmurou:
— Lamento, minha querida. Ficaria o resto da tarde aqui, ao
seu lado, porém preciso retornar para a vila.
Ela levantou a cabeça, ajeitou os cabelos e balbuciou terna:
— Eu sei. Amanhã cedo estaremos juntos de novo. Também
preciso tomar algumas providências, uma vez que amanhã
irei ausentar-me. Vamos?
Ergueram-se e voltaram para o casarão, caminhando
lentamente, como se quisessem estender ao máximo os
instantes que lhes restavam. Entraram na casa-grande e o
doutor subiu as escadarias para dar mais uma olhada em sua
paciente. Como ela estivesse dormindo tranqüilamente,
reiterou as recomendações à Dionísia e desceu. Tome trouxe
o cavalo do médico, e ele despediu-se:
— Então, até amanhã, Virgínia.
— Até amanhã, Teófilo.
Após a partida do médico, mamãe chamou seu capataz.
Notificou-o de que precisaria ausentar-se no dia seguinte,
deu-lhe algumas ordens e informou:
— Pretendo ir até a fazenda Santa Clara. Se houver algum
imprevisto e precisar de mim, sabe onde me encontrar.
— Sim, sinhá Virgínia. Não se preocupe. Não vai acontecer
nada.
— Espero. Confio em você, Roque.
— Vá sossegada, sinhá. Tomarei conta de tudo por aqui.
O capataz afastou-se e ela subiu as escadarias para repousar
um pouco em seus aposentos. Antes, foi me ver.
— Como ela está, Dinha?
— Bem, sinhá. Dorme tranqüila há horas. Não percebi mais
aquela agitação de antes.
— Graças a Deus! Dinha, estou bastante cansada e vou
repousar um pouco. Se minha filha acordar, ou se precisar
de alguma coisa, avise-me.
— Sim, sinhá Virgínia.
A senhora entrou em seus aposentos e jogou-se no leito.
Estava com a cabeça confusa e precisava repousar. Os
problemas eram muitos, as preocupações imensas, e, diante
de assuntos que não entendia, sentia-se perdida. Ansiava por
conversar com Marie, pedir-lhe explicações, tentar entender
o que estava acontecendo. Tensa e ansiosa, ela mal
conseguia esperar pelo dia seguinte.
Odete veio avisar que o jantar estava pronto e Florência
queria saber se podia servi-lo.
— Odete, eu não estou com disposição para descer mais
hoje. Traga-me apenas alguma coisa leve: um prato de sopa e
algumas torradas, sim?
Não demorou muito, a escrava retornou com uma bandeja
que continha um prato de sopa de aroma irresistível, mais
algumas torradas e um copo de suco.
A senhora sentou-se à pequena mesa redonda e comeu com
vontade. Depois, a criada tirou-lhe as roupas, vestindo-lhe
uma leve camisa de dormir. Ela voltou para o leito, tomou as
gotas prescritas pelo médico e, em pouco tempo, estava
dormindo a sono solto.
MAMÃE DESPERTOU NA MANHÃ seguinte sentindo-se bem-
disposta e tranqüila. Lembrava-se de ter sonhado com pai
Albino e conversado muito com ele. Então, ela bateu na
testa, dando-se conta: "Como não me lembrei de pai Albino,
justamente ele, que sempre me tem socorrido nas
necessidades? Preciso falar com ele!"
Tocou a sineta chamando a criada para ajudá-la a se vestir.
Logo mais, já estava tomando o café da manhã. Sentando-se
à mesa, pediu a Odete que fosse chamar pai Albino.
Acabara de sentar-se no seu gabinete, quando o ancião
chegou com seu jeito manso:
— A sinhá me chamou?
— Ah! Pai Albino, preciso muito lhe falar. Sente-se, por
favor. Sabe que sonhei com o pai Albino esta noite?
Ele acomodou-se, dando uma risadinha.
— Sei sim, filha. Conversamos bastante.
— No entanto, não me recordo de nada. Despertei bem,
serena, mas de nada me lembro.
— Não tem importância, filha. Sua alma sabe. Vai lembrar
aos poucos, quando precisar.
— Ah!... Pai Albino, estou preocupada com minha filha.
Uma amiga disse-me que várias almas penadas estão
tentando prejudicar Maria Eugênia! O que faço?
— Ore, sinhá Virgínia. Ore. Quanto ao que sua amiga falou,
já conversamos sobre isso, lembra-se?
— Sim, pai Albino. Mas até meu sogro, Frederico Figueiroa,
está junto dela!
— Cada um de nós atrai para perto de si aqueles com os quais
tem ligação, filha. Vá conversar com sua amiga que veio de
longe. Ela poderá ajudar bastante e orientar a sinhá quanto a
esse problema, Todos nós trabalhando juntos podemos fazer
muito pela sinhazinha e por aqueles que já morreram e
continuam presos ao nosso mundo.
— Obrigada, pai Albino. E que Deus nos ajude! Hoje
mesmo vou falar com minha amiga.
O idoso levantou-se e deixou a sala lentamente. Ela, mais
encorajada, ficou mais um pouco ali, colocando em ordem
alguns papéis. Não tardou muito, Teófilo chegou.
Cumprimentaram-se e subiram para os meus aposentos.
Acordada, eu tomava o café da manhã.
— Bom dia, minha filha! Está com ótima aparência hoje.
— Tenho dormido bastante, mamãe.
— Como se sente, Maria Eugênia? - o médico perguntou,
examinando-a.
— Estou bem, doutor. Um pouco sonolenta, apenas.
— É natural. Você precisa de bastante repouso. Se conseguir,
leia um pouco, que lhe fará bem. Mais tarde voltarei para vê-
la.
Mamãe e o médico saíram, após ele ter feito algumas
recomendações à Dinha.
Desceram as escadarias e seguiram para a porta da frente. De
braços dados, caminharam até a carruagem, que estava à
espera. O dia amanhecera limpo e claro. A passarada voava
no alto, enquanto outros gorjeavam nas árvores. Tudo lhes
parecia maravilhoso nesse dia; satisfeitos por estarem juntos,
a sós, trocavam olhares carinhosos. Teófilo, pela primeira
vez, falou dos seus sentimentos:
— Virgínia, nesses poucos dias de maior convivência, eu me
deixei envolver pelo seu fascínio, pela sua presença
encantadora. A verdade é que eu amo você como nunca
amei antes na vida.
Ela deitou a cabeça no ombro dele e corou de prazer ao
ouvir essas palavras.
— Também eu, Teófilo; descobri em você o amor da minha
vida. Jamais amei ninguém antes, pode acreditar. Casei-me
por um acordo entre famílias, não por amor. E, ainda que
honrasse e respeitasse meu marido, ele nunca conseguiu
despertar em mim outro sentimento que não fosse carinho e
amizade.
Teófilo, delicadamente, levantou o queixo de sua
acompanhante e beijou-a com ternura e emoção. Ambos
estavam enlevados e felizes. Uma última reação surgiu nela,
que se afastou um pouco dele, exclamando:
— Não sei se estamos agindo bem, Teófilo. Afinal, tenho
uma posição a manter, uma filha, e não sei...
Ele sorriu, passando a mão pelos cabelos macios e perfu-
mados dela:
— Minha querida, você e eu somos livres! Ambos somos
viúvos e não temos de dar satisfação da nossa vida a
ninguém. Temos o direito de ser felizes.
— Tem razão, querido! Só devemos satisfação às nossas
famílias.
Conversando, nem perceberam o tempo passar. Quando a
carruagem parou, estavam na fazenda Santa Clara.
31 – Os mortos falam!
Leonora andava distraída pelo jardim, contemplando suas
flores, quando ouviu o ruído de uma carruagem que
chegava; ergueu a cabeça e, reconhecendo que era da
fazenda Santa Genoveva, com muita satisfação foi receber as
visitas.
Teófilo apeou, depois se virou e deu a mão à sua
acompanhante, ajudando-a a descer.
— Sejam bem-vindos à nossa casa!
Leonora abraçou a amiga com imenso carinho, em seguida
cumprimentou o médico, eufórica:
— Que lembrança feliz, doutor! Estávamos com saudade do
senhor. Desta vez, demorou muito a vir nos visitar.
Guilherme avisou-me de que o senhor estava por vir e fiquei
contente, pois Valentim tem estado inquieto e nervoso.
Teófilo inclinou-se, beijando-lhe a mão estendida, enquanto
justificava-se:
— Tem razão, senhora Leonora. Estava devendo-lhes
uma visita, porém os compromissos eram muitos e
inadiáveis. Mas não pense que me descuidei do meu amigo e
paciente Valentim,
pois sempre me mantive informado sobre as condições dele
por Guilherme, quando este ia à vila. Ontem, ao
noticiar à senhora Virgínia que pretendia visitar a
Santa Clara nesta manhã, ela não resistiu, animando-se a
fazer-me companhia, saudosa da sua presença. Assim, cá
estamos! Meu paciente está acordado?
— Pois fez muito bem! Não poderia dar-me maior prazer do
que trazer consigo minha grande amiga. Meu marido está
acordado, sem dúvida! Embora nada tenha para fazer,
não perdeu o hábito de despertar cedo. Mas, vamos entrar!
Valentim deve estar em seus aposentos, como sempre.
Quanto a nossos hóspedes, foram dar um passeio pela
fazenda com Guilherme, aproveitando o sol matinal; mas
não devem demorar.
Entraram. Leonora, dirigindo-se à amiga, desculpou-se:
— Querida Virgínia, não se incomoda de aguardar aqui na
sala, enquanto levo o doutor até os aposentos de Valentim?
Sei o quanto esta visita é importante para ele, e não quero
privá-lo desse encontro nem por mais um minuto. Prometo
não me demorar. Enquanto isso, Teresa lhe servirá alguma
coisa.
— Não se preocupe comigo, Leonora. Ficarei bem. Gaste o
tempo que for preciso.
A escrava, que discretamente aguardava as ordens a
certa distância, após a saída da sua sinhá se aproximou,
inclinando-se:
— Sinhá Virgínia, o que deseja tomar? Um café, um chá ou
um refresco?
— Apenas água, Teresa. Apesar de cedo, o sol já está
forte e cheguei acalorada.
— É verdade, sinhá. Se continuar assim, vai acabar
chovendo.
A negra pediu licença e afastou-se, enquanto a visitante se
acomodava no sofá. Logo depois a escrava voltou, trazendo
em uma bandeja um copo com água, que entregou à
senhora.
— Obrigada, Teresa. Pode ir agora; não se preocupe comigo.
— Sim, sinhá. Se precisar de alguma coisa, é só tocar a sineta.
Mamãe ficou só, sentindo o prazer de estar naquela casa e,
ao mesmo tempo, a ansiedade de reencontrar Marie, em
quem depositava tantas esperanças. "Quem sabe, também,
Teófilo conseguiria conversar com Guilherme, já que no
outro dia não surgira oportunidade, arrancando dele a
confirmação do motivo que teria afastado Maria Eugênia de
Ritinha?", pensou.
Dez minutos depois, Leonora retornou sorridente, indo ao
encontro da amiga.
— Deixei o doutor conversando com Valentim. Novamente,
quero externar-lhe o prazer que me causa a sua presença
aqui em nossa casa, Virgínia. Quando a carruagem chegou,
julguei que
estivesse com Maria Eugênia. Como está ela?
— Está tão bem quanto possível, mas ainda acamada em
virtude dos últimos acontecimentos.
Leonora se preparava para responder, quando ouviram
ruídos de vozes e risadas. Pouco depois, Guilherme apareceu
à porta, seguido de Marie e Pierre. Vinham corados, alegres,
olhos brilhantes de prazer pela cavalgada ao ar livre. Diante
da recém-chegada, mostraram a satisfação que sua presença
lhes causava. Cumprimentaram-se e a conversa generalizou-
se, agradável e amena. Logo, o médico veio do interior da
casa para integrar-se ao grupo.
— E então, doutor Teófilo, o que achou de meu marido? -
indagou Leonora.
— Cara senhora, a doença segue seu curso, mas ele está
relativamente bem. Poderia estar melhor, se desejasse
melhorar. Noto, porém, que Valentim não se ajuda e isso
dificulta meu trabalho.
Marie balançou a cabeça concordando. Preocupada com as
palavras do doutor, Leonora virou-se para ela e murmurou:
— O que nosso médico disse tem a ver com o que temos
conversado, Marie?
— Sim, Leonora. Concordo com doutor Teófilo quando diz
que monsieur Cerqueira não se ajuda. Conhecerão-nos há
pouco tempo, mas já pude perceber que a personalidade dele
é difícil, sempre vê as coisas pelo lado negativo, reclama de
tudo, nada está bom. Se agisse diferente, o resultado do
tratamento seria outro.
Surpreso com as ponderações da francesa, o médico
confirmou:
— É verdade, senhora Leonora. Tenho dois pacientes que
estavam em pior situação que nosso Valentim, e que, apesar
da idade, se recuperam rapidamente. Porém, são pessoas que
têm fé em Deus, oram com freqüência, são otimistas,
bem-humoradas e estão sempre alegres. Desejam sarar e
jamais se queixam de nada. Creio que isso faz a diferença,
pelo menos é o que pude perceber.
Leonora suspirou, desalentada:
— Mas, o que fazer?... Tudo o que depende de mim, eu faço!
Todavia, não posso mudar a cabeça de meu esposo!
— Sabemos disso, senhora Leonora - tranqüilizou-a o
médico.
Estavam assim dialogando, cada um querendo dar a sua
opinião, uns concordando e outros discordando dessas
idéias, o que gerou certa agitação, pois falavam todos ao
mesmo tempo, em um vozerio confuso que tumultuou o
ambiente.
Nesse momento, Marie começou a dar sinais de que não
estava bem. Sua expressão se modificou, passou a transpirar
muito e reclamou estar sentindo um calor terrível, enquanto
tentava abrir o botão que lhe fechava a gola alta da blusa.
Sentado diante dela, Teófilo notou-lhe o mal-estar e
aproximou-se rapidamente, segurando-lhe o pulso, e
verificando que estava muito acelerado. O brusco
movimento dele, correndo para junto de Marie, atraiu a
atenção dos demais, que se calaram. Mamãe levantou-se,
pondo-se a abaná-la com um leque que estava sobre a
mesinha ao lado, enquanto o médico auscultava-lhe o
coração, cujos batimentos eram rápidos e desordenados.
— Senhora Marie! O que está sentindo? - perguntou,
enquanto retirava um vidrinho de remédio da maleta, com a
agilidade do profissional acostumado a emergências.
Não teve tempo, porém, de lhe dar a medicação. Quando ia
colocar as gotas entre os lábios de Marie, ela começou a
falar, com voz grossa e rouquenha, totalmente estranha,
acusando modos grosseiros que destoavam
completamente das suas maneiras usuais:
— Vamos nos vingar daquele miserável! Ele não perde por
esperar! Não adianta tentar ajudá-lo! Tudo o que fizerem será
inútil! Ele pagará por tudo o que nos fez sofrer! Maldito!
A fisionomia de Marie mudara completamente: testa
franzida, sobrancelhas contraídas e olhos injetados de
sangue; apresentava uma expressão cruel e a boca,
ligeiramente caída nos cantos, tinha um ar irônico. Após
fazer aquelas ameaças, começou a rir assustadoramente, um
riso escarninho e sibilante, que parecia saído das entranhas
da terra...
Todos estremeceram, apavorados. Minha mãe, um pouco
mais informada sobre assuntos do além-túmulo, notando
que era "alguém do outro mundo" e enchendo-se de
coragem, perguntou:
— Quem é você?
— Isso não importa! Ele sabe quem eu sou e isso me basta!
— Seja você quem for, afaste-se, em nome de Deus!
Diante do nome de Deus, por ela pronunciado sob inspi-
ração de amigo espiritual que se fazia presente, a entidade
fechou os olhos, acalmando-se aos poucos, e acabou por se
afastar. Após alguns minutos, Marie voltou a si, surpresa ao
perceber a expressão assustada dos demais.
— Como está, senhora Marie? - perguntou o médico,
tomando-lhe o pulso e confirmando que normalizara, assim
como os batimentos cardíacos. - Pode dizer-nos o que
aconteceu?
Ela respirou profundamente, ajeitou os cabelos ruivos e
respondeu com voz fraca:
— Não se preocupem, estou bem agora. Comecei por notar
muitos seres aqui junto de nós, alguns bastante irados e
violentos. Um chamou minha atenção de forma especial: era
um escravo todo machucado. Ele se aproximou de mim... e
não vi mais nada...
— Acho que era uma alma penada que conversou conosco,
Marie. Não sei como aconteceu, mas, pelo que senti, trata-se
de um inimigo de Valentim Cerqueira - informou mamãe
em voz baixa, ainda trêmula de susto.
Em lágrimas, Leonora confirmou as palavras da amiga:
— É verdade, Marie! Virgínia tem razão. Também senti a
mesma coisa. Ele deseja vingar-se de meu marido!
Agora mais fortalecida, Marie assumiu o controle da
situação, informando:
— Isso não importa agora. Temos de ter fé. Vamos rezar
pedindo o amparo de Deus para esta casa, para seus
moradores e para todos nós. Pensem em Jesus e, de mãos
dadas, vamos rezar o pai-nosso.
Todos se levantaram e fizeram um círculo. Ela elevou os
olhos para o alto e começou a orar, sendo acompanhada
pelos demais. Quando terminaram, o ambiente havia
mudado radicalmente: estava tranqüilo e cheio de paz.
Eles se olharam, sem entender direito o que tinha
acontecido e, mais ainda, com a mudança do ambiente.
Todos sentiam um grande bem-estar. Ao notar a
perplexidade geral, Marie pediu-lhes que se acomodassem
em seus lugares e explicou:
— Os anjos de luz estão aqui agora, nos protegendo e
amparando.
Ela parou de falar, e seus olhos pareciam fixar um ponto
qualquer a distância. Depois prosseguiu:
— Vejo alguém que se aproxima. É uma mulher bela, jovem
de pele clara, rosto suave e sorriso meigo. Veste um
encantador traje branco de renda. Seus cabelos são pretos e
encaracolados.
Ela leva a mão a um colar que traz no pescoço; é uma
corrente de ouro com lindo camafeu rosado; ela faz pressão
sobre um pequeno botão na lateral; o camafeu se abre,
parece ter a imagem de um homem. Mas, que pena! Por
mais que tente, não consigo ver-lhe o rosto. E ela fez
questão de mostrar-me esse camafeu! Por que será?
Prestando atenção ao que Marie dizia, ninguém notou a
expressão de assombro de Teófilo, até que ouviram seus
soluços.
— É minha falecida esposa! Tenho certeza! Tenho certeza!
Meu Deus!
— Ah!... É verdade, doutor. Sorridente, ela confirma ser sua
esposa. Diz chamar-se Helena e deseja mandar-lhe
um recado - disse Marie.
— Recado? Que recado?...
Marie, agora com suave sorriso no semblante sereno, parece
estar ouvindo alguém. Após alguns segundos, transmitiu
com voz pausada:
— Meu querido Teófilo. Estou muito feliz por poder estar
aqui hoje e ter a oportunidade de falar-lhe. Asseguro-lhe que
a vida não se acaba no túmulo, como você imaginava.
Continuamos vivendo e sendo os mesmos que éramos antes.
Estou muito bem e continuo amando-o como sempre amei.
Seja feliz, meu querido! Você merece a felicidade que não
pude lhe dar, por ter retornado tão cedo à Verdadeira Vida.
Todavia, essa era a decisão de Deus, à qual não pude me
furtar. Tem a minha bênção. Que Jesus os abençoe! Até um
dia.
Quando a entidade terminou de falar, todos estavam
emocionados, especialmente Teófilo e mamãe, que
perceberam a intenção de Helena de libertá-lo do
compromisso matrimonial, rompido com a morte física.
Teófilo desejou falar, conversar com a querida morta, mas
não conseguiu. A emoção o dominava e a voz não saiu, em
razão de um nó a apertar-lhe a garganta.
O impacto da presença das entidades ali, naquele momento,
foi tão grande, tão inegável e tão extraordinário, que todos
permaneceram calados, entregues aos próprios pensamentos
e reflexões.
Guilherme, de cabeça baixa, monologava intimamente,
lembrando-se de que ele mesmo tivera uma experiência
desse gênero e que Marie confirmara a veracidade desses
casos. Percebera a alma de Rita nos aposentos do
hotel. Sim. Não tinha dúvida alguma. Ela, de alguma
maneira, estivera ali com ele. E, tanto era verdade, que sua
esposa, Maria Eugênia, vira a imagem de Rita no quarto, não
uma, mas várias vezes, deitada no leito ou de pé, a um canto
do aposento, a observá-los.
Leonora mantinha-se lívida. Sim, acreditava em tudo o que
acontecera pouco antes, pois a mudança de Marie não
deixava dúvidas quanto a isso. Ela, sempre tão delicada,
gentil, educada, não teria condições de mostrar tanta
grosseria de atitudes. E não era só isso. O jeito, a maneira de
ser, os gestos, a expressão dos olhos e a própria voz, tudo era
diferente! Depois, a delicadeza, a suavidade e a doçura de
Helena, a quem o doutor reconhecera como sua falecida
esposa. Sim, não podia duvidar mais. Entretanto, sentia-se
assustada ao imaginar que seres violentos e diabólicos
estariam desejando vingar-se de seu esposo.
Pierre, que sempre se recusara a acreditar nas idéias da
esposa, mantendo-se distante e observador, agora tivera uma
prova irrefutável de tudo aquilo que Marie afirmava. Decidiu
que, a partir desse dia, passaria a analisar melhor o assunto.
Após essa experiência notável, que jamais supusera possível,
de poder ter notícias da pranteada esposa que ele tanto
amava, Teófilo agora se sentia tranqüilo, em paz consigo
mesmo; a saudade que tanto lhe doera estava acalmada, e o
coração, satisfeito e sereno. Sim, teria de procurar informar-
se melhor sobre esses fenômenos que tantas vezes ouvira de
pacientes, inclusive de alguns em fase final de existência,
histórias essas em que nunca acreditara, pensando ser
imaginação ou alucinação daquele que partia.
De todos, minha mãe era a pessoa que tinha melhores
condições de entender o que havia acontecido, por tudo o
que ela já vivera comigo, pelas conversas tão esclarecedoras
que mantivera com pai Albino e até pelas palavras de
Miguel, que deixara claro estar vendo almas do outro mundo
ali, na Pedra Grande, perturbando sua paz, tirando-lhe o
sossego.
Marie, calada e serena, entendia o que estava se passando na
cabeça de cada um e aguardava que esse primeiro momento
passasse, pois tinha certeza de que logo a crivariam de
perguntas. Teófilo, ainda emocionado, porém retomando a
posição de homem estudioso e interessado em pesquisas,
pela própria formação profissional, levantou a cabeça,
pigarreou e dirigiu-se a ela:
— Cara senhora Marie! Estou ainda tentando entender tudo
o que aconteceu há poucos minutos. Fatos que não nego,
em absoluto! Ao contrário, tenho de lhe agradecer por ter
transmitido o recado de minha querida esposa Helena. Pela
descrição que fez, eu já não tinha dúvidas da presença dela.
Havia reconhecido Helena por cada detalhe que descreveu.
Era como se a estivesse vendo aqui, na minha frente, viva!
Fez uma pausa e prosseguiu:
— Ficou claro que ela não desejava que eu tivesse dúvidas. E
o fez, provando-me cabalmente sua presença pelo colar que
lhe mostrou e do qual a senhora não poderia ter
conhecimento, pois ninguém mais aqui sabia disso. Esse
colar foi um presente que lhe dei no dia do nosso casamento
e do qual jamais se separava. E provou-me isso hoje,
trazendo-o consigo dependurado no pescoço. A jóia
realmente se abre, como descreveu, e a imagem que a
senhora viu e não conseguiu identificar é a minha, com
vinte anos de idade.
Parou de falar, levou a mão à algibeira e de lá retirou uma
corrente de ouro com belo camafeu. E, com a voz
embargada agora pela emoção das recordações, ele apertou
um pequeno dispositivo que o fez abrir e mostrar um
delicado busto feminino:
— Quando encomendei essas peças ao joalheiro, havia
mandado fazer também pinturas em porcelana com a
imagem dela e a minha, que foram incrustadas nas jóias, para
que cada um de nós pudesse estar sempre com o outro perto
de si, mesmo a distância. Vejam!
Passou o camafeu que estava em seu poder, e os demais
puderam ver o belo rosto de uma jovem no auge da beleza.
Todos ficaram emocionados.
Ao pegar a jóia por sua vez, Marie olhou para a linda
mocinha, quase uma criança, que ali estava sorridente.
— Exatamente como a vi, apenas com alguns anos a mais.
Até o vestido é o mesmo!
— Sem dúvida! É o traje de noiva que usou no nosso
casamento.
Depois que todos viram a imagem de Helena, Teófilo
guardou a relíquia e prosseguiu:
— Senhora Marie, poderá responder a alguns
questionamentos nossos?
— Sem dúvida. Com prazer, doutor.
— Bem. Todos nós ouvimos aquele homem fazendo amea-
ças e as mudanças que se processaram na senhora:
fisionomia, modos, voz, enfim, tudo. Depois, vimos a
senhora totalmente diferente - voltando a ser a mesma, eu
diria -, repassando-me o recado de minha falecida esposa.
Por qual processo isso se dá? O que acontece nesse
momento? E por quê?
Os demais se inclinaram um pouco para frente, interessados
nas questões que eles mesmos tinham em mente e nas
respostas que gostariam de ter. Marie sorriu timidamente e
respondeu:
— Não acreditem que tenho todas as respostas, porque isso
não é verdade. E verdade, sim, que tenho procurado
informações, estudado o assunto, mas é tudo muito novo
para mim também.
Sei o que os anjos de luz me dizem: aqueles que já morreram
continuam vivos e podem falar conosco. Cada um deles traz
suas características de quando habitava o nosso mundo,
porque continua sendo o mesmo, até que deseje melhorar.
— Então é por isso que o homem mostrava um compor-
tamento, e a esposa do doutor, um outro mais... refinado, eu
diria - considerou Guilherme.
— Exatamente, Guilherme - concordou Marie,
prosseguindo -, cada um mostra o que é, como viveu,
os valores morais que já adquiriu, os sentimentos, desejos e
defeitos que faziam parte do seu modo de ser.
Teófilo pareceu refletir um pouco e tornou a questionar:
— Até aí posso entender perfeitamente. Todavia, parece que
ambas as... nem sei como dizer...aparições?... manifestações
- talvez seja o termo mais apropriado - foram
diferentes na maneira de se apresentar. Percebe o que
quero dizer, senhora Marie?
Ela balançou a cabeça, concordando:
— Sim. Digamos que o ser masculino, mais rude, grosseiro,
irritado e violento, agiu "tomando meu corpo" de forma
brusca, não me respeitando, agindo contra minha
vontade. Posso assegurar-lhes que raramente isso acontece.
E a senhora Helena, de educação mais esmerada, de
comportamento cordial e atencioso, gentilmente
aproximou-se de mim e solicitou-me, delicadamente, o
favor de transmitir-lhe um recado, o que fiz com satisfação.
Entendeu a diferença, doutor?
Sim, ele e os demais haviam entendido. Conversaram um
pouco mais, trocando idéias sobre o palpitante tema, até que
Teresa veio avisar que o almoço estava pronto. A anfitriã
convidou a todos para se dirigirem à sala de jantar. Leonora
procurou saber se Valentim iria almoçar na mesa com as
visitas. Foi notificada de que o esposo não iria comparecer.
O escravo que o servia informou que seu sinhô, durante a
manhã, tinha sentido muitas dores e depois, estranhamente,
se aquietara, acabando por adormecer. Nesse momento
estava dormindo profundamente.
— Então meu esposo tomou outra dose da medicação?
— Não, sinhá Leonora. O estranho é que as dores passaram
sem que ele tivesse tomado o remédio.
Leonora não pôde deixar de notar que esse fato tinha relação
com o que acontecera na sala, mas absteve-se de comentar
diante dos servos.
Acomodaram-se ao redor da mesa e logo foram sendo
servidos pelos escravos. A conversa transcorreu
amena e agradável, enquanto os pratos se sucediam,
embora a dona da casa e os convivas se mostrassem mais
calados e introspectivos, com a mente ainda sob o impacto
do acontecido pela manhã. Gostariam de prosseguir
falando sobre o palpitante tema, mas diante dos serviçais
preferiram não tocar no assunto que tanto os impressionara.
Em seguida se dirigiram para outra sala. Como de hábito
nessa hora, os cavalheiros puseram-se a conversar sobre
negócios. As damas sentaram-se no jardim de inverno.
Leonora aproveitou esse momento para contar o estranho
fato que sucedera com seu marido. Marie confirmou
que a entidade que falara por intermédio dela fora
socorrida, pois a vira afastando-se bem mais calma, ladeada
por dois anjos de luz.
Mamãe ouviu o que as outras diziam, mas permanecia
calada, pensativa. Ao notar seu estado, a anfitriã indagou:
— Querida Virgínia, o que se passa com você? Notei que
durante a refeição não disse mais do que duas palavras! Quer
falar sobre o que a incomoda?
A visitante sorriu suavemente e justificou-se:
— Peço-lhes desculpas. Não pensei que tivesse me mostrado
tão pouco cordial e participativa durante o almoço. Minha
cabeça estava ainda preocupada com o que tinha acontecido.
Leonora mexeu a cabeça negativamente:
— Nem de longe tive intenção de julgá-la, minha querida.
Apenas fiquei preocupada com você. Pareceu-me tão
inquieta, tão fechada em si mesma!
— É verdade. Os acontecimentos que vivenciamos pela
manhã, tão extraordinários, fizeram-me pensar em minha
filha, analisando tudo o que temos passado e sofrido. Você é
testemunha, minha querida Leonora, das dificuldades
que tenho enfrentado.
Preferiu não comentar, por pudor, que já vira um fato
semelhante acontecer com a filha - diante de Florência -, e
que ambas não tiveram dúvidas em acreditar que as palavras
fossem de Felipe, seu falecido marido, dando ordens a ela,
sua esposa.
Permaneceu calada por alguns segundos, depois se dirigiu
diretamente a Marie:
— Cara Marie, quando vocês estiveram na Santa Genoveva,
falou-me de seres que viu em torno de minha filha. Fiquei
pensando se não poderíamos nos reunir lá em casa e tentar
dialogar com essas almas penadas. O que acha? Poderá ser
benéfico para Maria Eugênia?
Marie fitou-a com gravidade, respondendo:
— Virgínia, você foi direto ao ponto. Creio,
verdadeiramente, que a solução para muitos problemas
esteja no diálogo com esses espíritos. Muitas nos desejam o
mal e tentam nos destruir, porque nos odeiam em virtude de
terem sido prejudicadas por nós no passado, seja em um
passado mais recente, seja em um passado mais remoto.
— Poderia explicar melhor, Marie? - atalhou-a Leonora.
— Pelo que aprendi com os filósofos, todos nós tivemos
muitas existências. Em cada uma delas podemos ter feito o
bem ou o mal. Aqueles que prejudicamos se tornam nossos
desafetos, tal qual acontece na existência atual. Se nos
encontrarem novamente e não tiverem nos perdoado é
provável que tentem se vingar de nós. Entendeu agora?
— Entendi. Quer dizer que, no caso de meu marido, por
exemplo, ele pode estar cercado de inimigos desta ou de
outras vidas, não é?
— Exatamente.
— Bem. Acho que Valentim não precisa de desafetos de
outras existências. Há muita gente que o odeia pelos atos que
cometeu nesta vida mesmo, não só escravos como
brancos também.
As três se calaram, pensativas, diante das palavras de
Leonora. Logo o médico veio informar mamãe que era hora
de se despedirem dos amigos. Antes de partirem, Marie
trouxe uma pasta de couro preto, um tanto desgastada pelo
uso, que colocou nas mãos de Teófilo:
— Doutor, aqui está o material sobre o qual lhe falei. Leia-o.
Conversaremos depois.
Ao se despedir da amiga que partia, Marie prometeu que
brevemente iriam visitá-la.
— Como estou aqui na condição de visita, fico na depen-
dência de Guilherme e Leonora. Prometo-lhe, então, que
lhe será enviado um recado confirmando o dia. Está bem?
Mamãe agradeceu a gentileza, feliz pela promessa. Em
seguida, ela e Teófilo retornaram para a fazenda, com novas
esperanças, após aquele dia de tão importantes
esclarecimentos para todos.
Um novo horizonte se abria na mente deles, mostrando o
amor, a bondade, a misericórdia e a justiça de Deus.
32 – Socorro do alto
Após aquele dia tão cheio de novidades e informações, todos
os envolvidos mantinham a mente voltada para assuntos
transcendentais, por tudo o que tinham visto e ouvido, o
que facilitava o trabalho dos amigos de Além-túmulo.
Na fazenda Santa Clara não se falava de outra coisa. Leonora,
Guilherme e Pierre procuravam entender melhor o assunto,
crivando Marie de perguntas, e ela, de boa vontade, com um
sorriso respondia às indagações.
Teófilo, por sua vez, tendo levado para sua residência a pasta
com as pesquisas e anotações de Marie, nos dias que se
seguiram estabelecera uma rotina. Possuía uma pequena casa
na vila de Cruzeiro da Mata, que utilizava para a atividade
profissional, facilitando o acesso dos doentes, uma vez que
residia em uma chácara nos arredores do vilarejo. Assim,
durante o período diurno atendia seus pacientes no
consultório; ao terminar as consultas, fazia visitas
domiciliares para os casos mais graves e distantes. E, quando
necessário, visitava as fazendas da região. Ao entardecer,
encerradas as atividades diurnas, retornava à sua casa,
tomava um bom banho, limpando-se das tensões do dia, e
jantava. A serviçal, uma boa senhora, antiga paciente sua e
vizinha, dispôs-se a ajudá-lo desde que ele ficara viúvo,
apiedada da sua solidão. Assim, a dedicada Erigida cuidava da
casa, das roupas, do pequeno jardim; tratava das galinhas,
dos patos e do cachorro, e deixava preparada a refeição, a
mesa posta e as panelas no fogão, para que, ao chegar, o
médico as encontrasse aquecidas.
Como os recursos dela fossem escassos, ele convencionou
repassar à boa mulher, no final de cada semana, uma
determinada importância, pequena, mas que certamente a
ajudaria em sua manutenção, Cheia de escrúpulos, no início
ela não queria aceitar a remuneração, julgando-a
desnecessária, mas o doutor insistira com firmeza, e Erigida
acabara por se acostumar, reconhecendo, com o tempo, que
a providência lhe fora de bastante utilidade.
Após a refeição, simples, mas saborosa, ele reservava todo o
tempo disponível para as leituras. Acomodava-s e na sua
escrivaninha e, de tal maneira absorvia-se nos textos, que
passava a noite estudando e fazendo suas próprias anotações
sobre o que lera. Alguns pontos interessantes se destacavam,
sendo o mais importante deles a imortalidade da alma; esta
continuaria a existir após a morte do corpo material e,
aparentemente, com as mesmas características, grau de
conhecimento e sentimentos, habitando algum lugar que se
poderia chamar de outro mundo. Enfim, após a morte, tudo
levava a crer que esses seres continuassem a ser os mesmos,
só que destituídos do corpo de carne; afinal, ele tivera a
confirmação dessa verdade por meio das palavras e da
presença de sua querida esposa, Helena. Assim, existiam
seres bons ou maus, de acordo com o que sempre foram.
Então, ele chegou à compreensão de que, se continuariam
existindo depois desta vida, é porque, provavelmente, teriam
tido outras existências, passando as almas por outras
experiências, conforme relatos de várias pessoas que se
lembravam de ter existido antes, em lugares diferentes. Essa
constatação poderia dar-se por lembranças de outras épocas,
ou pelos sonhos, uma vez que, já que as almas habitavam um
corpo para poder viver, poderiam dele se afastar por ocasião
do sono, ficando mais livres, inclusive para se relacionarem
com outras almas que estivessem na carne ou no além-
túmulo.
Ao amanhecer, cansado, procurava dormir um pouco, pois
sabia que logo teria de ir ao consultório, onde seus clientes o
estariam esperando à porta.
Continuava visitando a fazenda Santa Genoveva, atento aos
deveres de médico dedicado, mas agora por outro motivo
mais pessoal: a necessidade cada vez maior de rever aquela
que despertara seus mais caros sentimentos: Virgínia.
Como eu demonstrara estar bem melhor, Teófilo
experimentou reduzir a medicação, acreditando nessa
melhora, mas foi em vão; voltara a crise. E eu, que durante
alguns dias parecia mais equilibrada, passei a dizer frases
desconexas, fiquei agressiva, falava e discutia com seres que
somente eu via e, não raro, tentava fugir ao assédio desses
seres, correndo de um lado para outro, como acontecera
anteriormente.
Mais esclarecido pelas leituras sobre assuntos espirituais, três
dias depois do reinicio da crise, Teófilo resolveu conversar
seriamente com mamãe. O meu estado havia piorado, após o
dia em que ambos estiveram na fazenda Santa Clara, e minha
mãe não sabia o que fazer, chorando pelos cantos, abatida e
cansada.
Nessa manhã, ao chegar, Teófilo perguntou pela sinhá, e
Odete informou que ainda não descera. O médico dirigiu-se
a seus aposentos e encontrou-a sentada junto da pequena
mesa redonda, fitando um ponto qualquer ao longe através
da janela aberta. O dia estava bonito e o sol brilhava no céu
azul, mas ela não se dava conta. Notando-lhe o desânimo,
ele sentou-se ao lado dela e disse com expressão grave:
— Minha querida, você precisa reagir. Sei que a situação não
é fácil, mas confio que vamos vencer. Entrega-se ao
desânimo exatamente agora que podemos contar com outros
recursos? Lembra-se de que Marie lhe prometeu uma visita,
tão logo fosse possível?
— Sim, lembro-me.
— Pois bem. Creio que chegou a hora. Julgo que teremos
boas chances de sucesso, agindo do mesmo jeito que
naquele dia.
— Como assim? Pretende conversar com os espíritos?
— Sim, Virgínia. Por tudo o que tenho lido, acho que a
solução está em dialogar com esses seres. Eles odeiam sua
filha pelo mal que ela lhes fez, mas se Maria Eugênia lhes
pedir perdão,
temos a possibilidade de resolver esse problema.
— E você acha que minha filha pediria perdão a eles?
Teófilo, mesmo que isso pudesse acontecer, eles aceitariam
o pedido de perdão dela? Por quê?...
O médico levantou os ombros, balançando a cabeça, como
se também em dúvida, mas acrescentou:
— Não sei, Virgínia, Não posso assegurar nada, porém acho
que devemos tentar. Entendo agora, por tudo o que já li, que
depois da morte os seres continuam sendo os mesmos,
tendo a mesma personalidade, a mesma maneira de ser, os
mesmos sentimentos. Então, são pessoas como nós, que
sofrem, que amam, mas que também odeiam. Devemos
conversar com eles, no caso de se apresentarem, apelando-
lhes para o sentimento e a razão.
— Está bem. Se você acha que essa tentativa pode ajudar...
— Acho. Aliás, foi você mesma que levantou a questão,
solicitando a Marie que viesse até aqui para ajudar sua filha...
— É verdade, Teófilo. Tem toda razão. É que hoje estou
muito cansada de tudo, abatida, triste.
O médico aproximou-se mais e enlaçou-a em seus braços
com extremo carinho.
— Tudo vai passar, minha querida. Confie em Deus, em
Cristo, nos anjos de luz de que Marie nos fala e cuja
presença nós sentimos aquele dia. Creio que são os mesmos
anjos de guarda que os textos bíblicos citam. Tudo vai dar
certo.
Combalida, ela desafogou o peito opresso, pondo-se a chorar
apoiada nele. Se ela pudesse ver com os olhos da alma, teria
visto uma linda figura de mulher, suave e terna, que
delicadamente acariciava-lhe os cabelos com infinito amor.
Das mãos diáfanas da entidade saíam fios luminosos que
envolveram todo o seu corpo. Algum tempo depois,
aliviada, a dona da casa ergueu a cabeça:
— Obrigada, querido amigo. Estou bem melhor. Seu afeto
revigorou-me as forças, dando-me ânimo novo. Vamos
lutar, sim! Nunca fui mulher de deixar-me abater, de
entregar-me sem lutar. Não será agora que farei isso.
Enxugou as lágrimas e afirmou decidida, com nova expressão
no olhar:
— Vou agora mesmo enviar um recado aos nossos amigos.
Levantou-se, foi até a escrivaninha, pegou uma folha de
papel do seu bloco pessoal e escreveu um bilhete:
"QUERIDA AMIGA LEONORA,
A SITUAÇÃO AQUI NA SANTA GENOVEVA NÃO ESTÁ NADA FÁCIL.
PRECISAMOS DE AJUDA URGENTE.
SE NÃO FOR PEDIR DEMAIS, SUPLICO-LHES QUE VENHAM O MAIS
RÁPIDO QUE PUDEREM. SE POSSÍVEL, AMANHÃ.
FICAREI AGUARDANDO RESPOSTA PELO PORTADOR.
ATENCIOSAMENTE,
VIRGÍNIA FIGUEIROA."
Em seguida, dobrou a folha, colocando-a em um envelope, e
tocou a sineta. Imediatamente Odete, que passava pelo
corredor, ouviu e a atendeu.
— Odete, avise Tome que preciso dele.
Poucos minutos depois, o menino apareceu com expressão
assustada:
— Sinhá Virgínia chamou?
— Sim, Tomé. Preciso que leve esta correspondência para
sinhá Leonora, na fazenda Santa Clara. Fique esperando a
resposta, entendeu? Vá o mais rápido que puder. É urgente.
— Sim, sinhá. Pode ficar descansada. Vou pegar o cavalo
Ventania, que é rápido como o próprio vento. Logo estarei
de volta. É um pé lá e outro cá.
O jovem saiu voando, e eles caíram na risada, achando graça
do jeito dele.
Não demorou muito, Tomé estava de volta. Todo contente
com seu feito, apresentou-se para sua sinhá, estendendo a
mão e entregando-lhe a carta. Ela abriu e, na mesma folha,
certamente pela urgência, Leonora acrescentara abaixo da
assinatura da amiga:
"QUERIDA VIRGÍNIA,
IREMOS AMANHÃ CEDO, SEM FALTA.
DA AMIGA,
LEONORA ALVES CERQUEIRA."
Após ler o bilhete, minha mãe sentiu-se aliviada, passando-o
a Teófilo para que se inteirasse da resposta.
— Muito bem. Então, precisamos conversar com Maria
Eugênia, preparando-a para esse encontro.
— Ainda hoje?
— Não. Amanhã será melhor. Entre nossa conversa com ela
e a reunião que vamos fazer com os amigos, não podemos
dar muito tempo, para não corrermos o risco de Maria
Eugênia
mudar de opinião.
— Não entendi. Por que, Teófilo?
— Minha querida, pelos relatos de Marie, tudo parece até
um jogo. Os seres que estão ao seu redor podem fazê-la
mudar de idéia. Mas ainda há algo mais sério: como
convencê-la a pedir perdão a seus inimigos?
Calaram-se e ficaram pensando em uma solução.
Depois, como ainda não me tinham visto, dirigiram-se aos
meus aposentos. Eu estava desperta e, naquele momento,
acabava de fazer minha primeira refeição. Recebi o médico e
mamãe com um sorriso.
— Bom dia, minha filha! Vejo que já se alimentou hoje,
Dormiu bem?
— Muito bem, mamãe. Estava mesmo pensando na senhora
e no doutor Teófilo. Como vai, doutor?
— Bem, mas me parece que você está melhor ainda -
respondeu ele, satisfeito. - Tomou seu remédio hoje?
— Sim, doutor.
— Aconteceu alguma coisa de diferente, para você acordar
assim tão bem?
— Não, doutor, dormi bem esta noite e estou ótima! Gostaria
até de passear um pouco no jardim.
— Estou contente por vê-la assim. Acho que o passeio lhe
será benéfico. Podemos acompanhá-la?
— Certamente, doutor. É só o tempo de me vestir.
— Nós a esperaremos na sala ao lado, minha filha.
Teófilo e minha mãe saíram do quarto e sentaram-se na
saleta. Estavam perplexos. A mudança era extraordinária.
Permanecia a dúvida: deveriam falar comigo sobre o que
pretendiam fazer? Resolveram que nada diriam, achando
melhor deixar as coisas acontecerem naturalmente.
Passearam pelo jardim, conversaram, e acharam que eu
tinha voltado a ser como sempre fora. Retornaram ao
casarão e almoçaram em clima de alegria e descontração. Ao
me ver bem, mamãe mostrava-se alegre e esperançosa.
Após o almoço, o médico, constatando que tudo corria bem,
retornou para Cruzeiro da Mata. O resto do dia transcorreu
sem novidades. À hora de dormir, mamãe me acompanhou
até meus aposentos, desejando-me boa noite.
Dirigiu-se depois aos próprios aposentos, aliviada e tranqüila,
refletindo que talvez tivessem se precipitado; seria mesmo
necessária essa reunião que tinham planejado para o dia
seguinte? A criada arrumou-a para dormir, enquanto ela
pensava que, se acordasse bem cedinho, ainda teria tempo
de avisar os amigos de que não era mais necessária a vinda
deles. Depois, murmurou mais para si mesma, colocando a
mão na testa:
"Mas isso é um absurdo! Seria uma indelicadeza de minha
parte, após ter feito um convite que foi quase uma ordem,
dizer-lhes que não precisam mais vir à nossa casa! Não, o
melhor é deixar que venham. No mínimo, teremos um dia
bastante agradável e feliz. Acho até que a presença de outras
pessoas fará muito bem à Maria Eugênia, que tem
permanecido trancada em seus aposentos por tantos dias."
Com esses pensamentos, ela adormeceu serena com a
sensação feliz de que tudo estava correndo bem e que,
afinal, teriam um pouco de paz e tranqüilidade.
NA MANHÃ SEGUINTE, MAMÃE acordou bem cedo, arrumou-se
e desceu para tomar seu café. Aproveitou para avisar Odete e
Florência sobre as visitas que iriam chegar, dando-lhes
algumas ordens e orientações sobre o almoço.
O primeiro a chegar foi Teófilo. Abraçaram-se e trocaram
idéias sobre os acontecimentos do dia anterior. O médico
perguntou:
— Como está a menina?
— Ainda não sei, Teófílo. Como Maria Eugênia acorda mais
tarde, precisamos aguardar.
— Bem. Esperemos que as boas disposições de ontem
permaneçam - disse ele.
O diálogo foi interrompido pelo barulho do rodar de uma
carruagem. Eram os amigos que chegavam. Apressaram-se
em ir recebê-los. O encontro foi envolto em sentimentos de
carinho, amizade e alegria. Acomodados na sala, após
falarem sobre trivialidades, colocando em dia as informações
a respeito da saúde de Cerqueira, os problemas nas fazendas,
a política, novidades regionais e outras coisas mais;
finalmente, Leonora perguntou ansiosa:
— Virgínia, ficamos preocupados ao receber seu bilhete. O
que está acontecendo?
A dona da casa trocou um olhar com Teófilo, depois fitou os
recém-chegados um tanto constrangida e considerou:
— Lamento tê-los preocupado, meus amigos. Realmente a
situação estava péssima; Maria Eugênia parecia fora de
controle e eu não sabia mais o que fazer. Foi Teófilo que me
recordou a promessa de Marie, acenando-me com a
possibilidade de virem à Santa Genoveva para nos ajudar.
Enfim... essa era a situação até aquele momento.
Marie, que ouvia atentamente, indagou-lhe:
— Algo mudou?
— Sim! Ontem minha filha acordou bem, alegre, como se
não tivesse problema algum! Não entendo o que aconteceu.
Pensei até em avisá-los, mas poderiam não vir e eu não
queria perder o prazer de tê-los aqui conosco hoje.
Desculpem-me. Acho que me precipitei.
Marie sorriu, ponderando:
— Fique tranqüila, Virgínia. Muitas vezes essas mudanças
acontecem por motivos alheios à nossa vontade. Grande
parte das vezes, as próprias entidades que envolvem a pessoa
se afastam,
em uma estratégia de evitar o que queremos fazer.
— Como assim, Marie? Eles sabem o que decidimos?
— Virgínia, pense neles como pessoas como nós, cuja única
diferença é estarem em um outro mundo e invisíveis aos
nossos olhos. Sendo inimigos, tentarão desarticular nossas
ações. Nesse caso, afastaram-se de sua filha para que ela,
longe da influência deles, voltasse a ser o que sempre foi, e
acreditássemos que ela está curada, o que não é verdade.
— Meu Deus! É tudo muito mais sério do que eu pensava,
então - murmurou ela, lembrando que Teófilo lhe falara
sobre isso no dia anterior.
— Senhora Marie, após ler seu farto material de experiências
em casos, que considero importantíssimo para todos nós,
cheguei a essa mesma conclusão. Mas como tudo é novo
para mim, fiquei sem saber o que fazer - afirmou Teófilo.
Abrangendo com o olhar cada um dos presentes, Marie
decidiu:
— Temos de agir. O momento é propício. Virgínia, onde
está Maria Eugênia agora?
— Creio que ainda dorme.
— Muito bem. Seria bom nos dirigirmos para aquela sala
pequena e discreta, mais distante dos servos e fora do
movimento da casa.
A anfitriã conduziu-os até a saleta, que costumavam utilizar
após as refeições e onde os cavalheiros ficavam
conversando. Depois de todos se acomodarem, Marie
informou:
— Os anjos de luz dizem que devemos rezar um Pai-Nosso
para facilitar nosso trabalho. Mantenhamos nossos
pensamentos fixos em Deus.
Ela começou a rezar, seguida pelos demais. Depois, pediu
que todos ficassem em silêncio para que ela pudesse sentir o
ambiente.
De olhos fechados, Marie, com sua sensibilidade para
perceber o outro lado da vida, viu inúmeros seres que já não
habitavam a Terra; muitos escravos, de cuja pele, lanhada
por açoites, ainda escorria sangue vivo; mostravam a cabeça
machucada, membros quebrados, vários deles sem as mãos e
os pés, barbaramente cortados; todos em um sofrimento
indescritível. Viu também Frederico e Felipe Figueiroa,
respectivamente sogro e esposo de Virgínia, antigos
senhores daquelas terras, os quais reconheceu por já tê-los
visto em outra oportunidade. Em torno deles, notou
também a presença de vários homens, que deveriam ser os
executores de suas vontades: feitores e capitães do mato, de
faces truculentas e cruéis. Além deles, ainda o pobre Miguel,
com a cabeça aberta pelo golpe que lhe causara a morte, e
Rita, a infeliz escrava. Todos pareciam fazer parte do mesmo
grupo e mostravam muito ódio nas expressões e nas atitudes.
Registrou também a presença de outros seres que pareciam
pertencer a épocas mais recuadas: senhores vestidos com
roupas que deveriam ter sido luxuosas em outros tempos,
agora sujas e maltrapilhas, com olhos incandescentes e
expressões iradas; outros, esqueléticos, aparência grotesca,
gargalhavam com voz rouquenha, além de uma figura com
longa capa preta e capuz puxado sobre o rosto, o que
impedia a médium de ver-lhe as feições, embora percebesse
seu olhar enfurecido. O bando sinistro antegozava o prazer
daquele momento, de poder estar ali e destilar seu veneno
sobre aquela que odiavam.
Marie passou a relatar parte do que estava vendo, para
surpresa dos demais; prudente, julgou melhor omitir as
cenas mais chocantes para não abalar de forma negativa os
participantes da reunião, limitando-se ao que se relacionava
com a vida atual e os problemas da fazenda.
Rita, que não conhecia todas as pessoas que ali estavam, teve
sua atenção atraída por Guilherme e pela sinhá Virgínia, que
sempre a tratara bem. Ansiando por carinho, aproximou-se
de mamãe e ela passou a sentir a presença da pobre escrava
morta, por quem ela tanto rezara pedindo o socorro dos
Céus. Em seguida, sem saber o que estava acontecendo, em
um impulso, mamãe levantou-se e, em lágrimas, correu para
junto de Guilherme, jogando-se aos seus pés, influenciada
por Rita, que desejava falar com aquele a quem amara com
todas as forças do seu coração e que se casara com outra. Em
pranto convulsivo, a escrava passou a falar das suas dores, de
todo o sofrimento que passara por amor a ele, mas também
das alegrias, dos seus encontros à margem do riacho e do
filho dele de quem estava grávida quando foi morta.
Não se contendo diante daquela cena, Guilherme não teve
dúvidas de que era a escrava morta a falar pela boca da ex-
sogra e se pôs a chorar, suplicando:
— Perdoe-me, Ritinha, não sabia que lhe causaria tanto mal.
Não foi essa minha intenção. Fui irresponsável, admito, mas
não quero que sofra. Eu a amava e não sabia que estava
grávida. Que tragédia, meu Deus! Perdoe-me... perdoe-me...
Nesse momento, eu, que tinha acordado e acabava de descer
as escadarias procurando minha mãe, estranhei ao ver a
porta da saleta fechada e ao ouvir ruído de vozes e de choro.
Aproximei-me e abri a porta, permanecendo parada,
extremamente surpresa por ver todos ali reunidos. Com
capacidade de ver as coisas espirituais, também vi os
espíritos, e senti medo, mas não conseguia sair do lugar,
como se estivesse pregada no chão.
Com as pernas bambas, caí sentada em uma cadeira que
ficava no fundo, mais afastada dos demais e perto da porta;
sem que ninguém notasse minha presença, ali permaneci
calada e perplexa. Entendi que algo de muito sério estava
ocorrendo naquele momento. Vi Ritinha, que chorava aos
pés de Guilherme, e ouvi suas palavras. Ah! O infame
reconhecia sua traição! Nesse momento, Rita sentiu minha
presença e virou-se. Cheia de ressentimento e de ódio, no
afã de se vingar da ex-amiga, ergueu-se e tentou avançar
para cima da rival. No entanto, como estivesse utilizando o
corpo de mamãe, esta ficou em um impasse e titubeou, por
recusar-se a agredir a filha que tanto amava; e entre essas
duas vontades desencontradas, rainha mãe deu um grito e
caiu no chão, desacordada, enquanto Rita corria e atacava
sua inimiga. A dona da casa foi socorrida por Teófilo, que a
abraçou preocupado com seu estado; logo, ela abriu os olhos,
sem saber o que estava acontecendo. O médico ajudou-a a
levantar-se, colocando-a de volta ao seu lugar. E Ritinha -
agora sem utilizar o corpo de mamãe - prosseguia,
despejando sobre a outra todo o seu ódio:
— Miserável! Eu confiava em você, sempre fomos amigas, e
mandou Miguel me matar! Eu te odeio! Eu te odeio! Maldita!
Será maldita por toda a eternidade!
Assustada, vendo Rita que se jogava sobre mim,
defendi-me:
— Como pode dizer que era minha amiga? Você me traiu
com meu noivo! Agora me acusa de ter mandado
matá-la? Mandei mesmo! Você merecia!
— Tudo por causa de Guilherme, que não a amava, que nunca a
amou. Ele era meu! Eu estava esperando um filho dele -
dizia Rita.
Os presentes, ao ouvir a minha voz ali no recinto, incapazes
de ver o que se desenrolava em outro plano, ficaram
estatelados de medo - eles não sabiam da minha presença - e
me verem no chão, como se estivesse falando e lutando com
outra pessoa. E o que é pior: nesse diálogo, eu confessava
um crime.
Ambas choravam, agredindo-se mutuamente. Nesse mo-
mento, Marie viu um escravo idoso coberto de luz que
entrou na sala e aproximou-se de mim e de Rita, acalmando-
nos: era pai Albino que, desprendido do corpo, vinha
ajudar-nos.
— O que estão fazendo, minhas filhas? Ê hora de mudanças.
Pensem em Jesus e acalmem-se. Vocês tiveram problemas
no passado, mas se comprometeram a mudar, a melhorar. O
sinhozinho Guilherme, que nunca conseguiu se decidir por
nenhuma das duas, agora tem a responsabilidade de ajudá-
las.
Aproximou-se de ambas, envolvendo-nos com muito amor
em um abraço, e aos poucos nós nos tranqüilizamos,
acabando com a briga. Com exceção de Marie, os demais
não sabiam o que estava acontecendo; viram apenas que eu,
que me revolvia no assoalho, agora estava parada, quieta.
Logo, mais refeita, ergui-me, sentei-me na cadeira e passei a
observar tudo o que acontecia.
Pai Albino chamou Miguel e conversou com ele:
— Meu filho, o ódio não leva a nada. Quando concordou em
ser cúmplice da sinhazinha Maria Eugênia, você também
errou.
— Eu sempre amei essa mulher, pai Albino - dizia o Miguel a
chorar sentidamente.
— Sei disso, meu filho, mas ela não te ama. Por isso o usou
para destruir Ritinha. Chore, meu filho, mas lembre-se de
que você teve responsabilidade naquilo que fez. Maria
Eugênia é culpada, sim, mas você aceitou porque quis, por
interesse, por desejo de ser amado por ela.
Eu, que escutava tudo em silêncio naquele momento, liberta
da ação negativa dos seres vingativos que me assediavam,
reconhecia minha culpa em todos os dramas ocorridos na
propriedade.
Tudo isso, em voz baixa, Marie relatava aos demais.
Frederico Figueiroa, mantendo a mesma postura arrogante e
orgulhosa de rico senhor de escravos, não entendia a
atenção que se dava a um escravo. Irritado, brandia o
chicote, ameaçando todos ali presentes que, atemorizados,
se encolhiam.
Marie Legrand, apiedada dos espíritos infelizes, dirigiu-se
aos fazendeiros com severidade, sob a influência de pai
Albino.
— Em nome de Deus, deixem estes infelizes em paz! Eles já
sofreram muito.
Depois, passou a repetir a prece do Pai-Nosso, no que foi
acompanhada pelos demais. Em seguida, viu pai Albino, que
se dirigia aos fazendeiros e seus seguidores:
— É chegada a hora da libertação para todos os envolvidos
nesses dramas. Vocês terão de abandonar estas terras onde
tanto mal praticaram. Irão recuperar-se moralmente,
aprender,
modificar-se para, mais tarde, reparar os erros e atrocidades
que cometeram. Que algum dia vocês possam reconhecer
que todas as criaturas são filhas de Deus e nossas irmãs,
merecedoras do nosso respeito e do nosso amor, não
importa a condição social, raça, cor ou crença que
professem, Que o Senhor os ampare!
Como que por milagre, Marie viu anjos de luz que se
aproximaram deles, envolvendo-os. Dentre eles se destacou
a figura de uma dama de beleza peregrina. Suas vestes eram
de uma tonalidade azul luminescente; tinha os cabelos
castanho claros encaracolados e presos na nuca, e cada fio
era luminoso; os olhos azuis brilhavam de lágrimas que não
chegavam a cair, no rosto terno e de pele perfeita que se
abria em delicado sorriso. Pai e filho não tiveram dúvidas em
reconhecê-la:
— Heloísa, minha querida esposa! - disse Frederico, emocionado.
— Mamãe! Quanta saudade eu senti da senhora! - murmurou
Felipe, em lágrimas abundantes, caindo de joelhos.
E a terna entidade, fitando-os cheia de amor, afirmou com
voz cariciosa:
— Sim, meus queridos! Sou eu, que jamais vos esqueci e que
aqui estou para, finalmente, levar-vos comigo! - Depois,
voltando-se com ternura para minha mãe: - Minha querida
filha, sou grata por tudo o que fizeste por meu filho Felipe,
por minha neta Maria Eugênia e por todos aqueles que tens
ajudado. Tudo vai melhorar agora, mercê da infinita
misericórdia de Deus. Ficai em paz. Que Jesus vos ampare
sempre. Adeus.
Apesar de não ouvir as palavras que a generosa entidade
dirigira particularmente a ela, a dona da casa sentia grande
emoção e imenso bem-estar, deixando que as lágrimas
rolassem pelo rosto.
Abraçando os entes queridos, a nobre Heloísa afastou-se
com eles, desaparecendo aos poucos e deixando um
delicioso perfume de verbena no ar.
33 – Libertação
Em virtude da presença de Heloísa e dos outros anjos de
luz, o ambiente se modificara extraordinariamente, e
Leonora, mamãe, Teófilo, Pierre e Guilherme deixaram-se
envolver pelas emanações de bem-estar e paz, sensibilizados
até as lágrimas.
E eu chorava diante de algo que havia muito tempo não
sentia: alívio, emoção, tranqüilidade. Como, por alguma
razão, podia ver os seres do outro mundo, sentia o coração
encher-se de amor e gratidão por aquela que era minha avó
paterna e que somente agora conseguira reconhecer. "Ah!
Por isso ela sempre me parecera tão familiar! Lembrava-me
de ter sonhado com essa dama, que me ajudara em
momentos importantes de minha existência, em
especial quando reagira diante da idéia de casar-me por
imposição do meu pai". Nesse instante, lembrei-me
nitidamente das palavras que ela me dissera:
Minha querida, aproveita a oportunidade que se te apresenta
no momento. Mantém a serenidade e não erres mais.
Através do tempo muito tens te comprometido e é chegada
a hora de agir para o bem de todos. Não guardes mágoa no
coração e perdoa sempre. Mesmo o que te parecer difícil de
aceitar é para o teu bem. Ao longo do tempo tenho estado
sempre junto de ti, ajudando-te e amparando-te nas mais
diversas situações. Nossos vínculos afetivos remontam a
antigas encarnações, Recebeste a grande bênção de
reencarnar. Não falhes mais. Mantém o pensamento
elevado, liga-te a Deus e tudo correrá bem.
Lembrei-me de que, ao ouvi-la falar, de meu ser emergira
um sentimento de amor intenso, como se estivesse diante
de uma mãe. Chorei em seus braços, qual criança
caprichosa, queixando-se do compromisso que lhe estava
sendo imposto. E ela, já se despedindo, concluiu: - Acalma-
te, minha criança. Deus sabe o que faz. Nada acontece por acaso.
Nada temas. Confia em Jesus e terás todo o amparo de que
necessitas.
Sim! Sentia que ela fora minha mãe. Não sabia quando, nem.
onde, mas íntima convicção me assegurava esse sentimento
profundo e verdadeiro. E por que não tinha reconhecido
minha avó Heloísa na dama que vez por outra me surgia,
quando havia na parede da sala um grande e belo quadro a
óleo dela junto do avô Frederico? Refletindo sobre esse
detalhe entendi a razão: o quadro havia sido pintado na
ocasião por exímio pintor que se hospedara na fazenda Santa
Genoveva, e, nessa época, eles já eram idosos. Quando ela
me aparecia, era sempre como uma jovem senhora, bela e
encantadora, tal como vira havia pouco. Em virtude disso,
não conseguira reconhecê-la, embora os olhos azuis fossem
os mesmos.
A reunião parecia não ter terminado ainda. Marie, após
relatar os últimos acontecimentos, mantinha-se calada,
como se concentrada em alguma visão. As entidades antigas,
de nobres decadentes e os esqueléticos, que se haviam
aquietado com a presença dos anjos de luz, agora tinham
desaparecido. Alguns minutos depois, impressionada e
condoída, ela informou o que estava acontecendo:
— Vejo ainda os infelizes escravos, cuja situação é de cortar
o coração. Eles pedem ajuda, sentem-se presos, sem
possibilidade de libertação. Mas como? Por quê?
Os demais acompanhavam suas palavras, aflitos, sem poder
ajudar. Ela parou de falar por momentos, depois prosseguiu:
— Não sei o que está acontecendo. Interessante é que,
apesar de seus algozes terem sido afastados, sinto que os
escravos aqui presentes ainda estão presos a algum lugar,
Que lugar será esse? Não consigo perceber. Ah!... O escravo
iluminado mostra-me um lugar no meio do mato... Ah!...
mas não há nada ali a não ser uma grande pedra.
Mamãe manifestou-se incontinenti:
— Sei que lugar é esse! Chama-se Pedra Grande. Era ali que
meu sogro, Frederico Figueiroa, costumava castigar os
escravos.
— Então, temos de ir Lá! - afirmou Marie, levantando-se,
como se guiada por mãos invisíveis.
A anfitriã e os demais participantes a acompanharam,
inclusive eu. Todos estavam tão impressionados com a
situação que nem se deram conta da minha presença.
Conforme saíram da casa-grande, os escravos da fazenda
acompanharam o grupo de olhos arregalados, surpresos ao
ver a sinhá e suas visitas ganhando o campo em direção do
matagal. A dona da fazenda ia à frente, mostrando o melhor
trajeto e, em quinze minutos, puderam avistar a grande
pedra.
— É este o local - informou mamãe.
Marie espraiava o olhar em torno, procurando vestígio de
onde pudessem estar os corpos, mas nada percebia que
justificasse sua busca. Naquele lugar não havia nada. Ela
parou, concentrou-se e disse:
— Não entendo! Eles têm que estar aqui! Eu sei que eles es-
tão aqui, eu sinto! Vejo os escravos em um lugar escuro e
fundo. No entanto, aqui não há nada parecido com o que
estou vendo!
Após concentrar-se por alguns segundos, de repente ela
gritou:
— A pedra! Temos que tirar esta pedra daqui!
Os outros se fitaram pasmos. Teófilo considerou:
— Como? Esta pedra é muito grande e pesada!
Roque, que acompanhara o grupo a distância, como os
escravos, estranhando aquela caminhada no meio do mato e
prevendo que poderiam precisar dele, ao ouvir o que a
estrangeira dizia, aproximou-se. Ao vê-lo, a fazendeira
ordenou:
— Roque, é preciso mover esta pedra. Traga alguns homens.
O capataz fez um sinal a alguns escravos que, à pequena
distância, observavam curiosos a movimentação e eles se
aproximaram. Ao mesmo tempo, Roque olhou à sua volta
como se procurando algo; caminhou pelo meio da vegetação
até que descobriu uma grande e pesada barra de ferro, toda
enferrujada. Guilherme e Pierre ao vê-lo com a barra na mão
entenderam sua idéia. Tiraram os paletós, arregaçaram as
mangas da camisa e uniram-se a Roque e aos escravos para,
em um esforço conjunto, usarem a pesada barra como
alavanca para mover a grande pedra. Depois de muito
esforço e dificuldade, em bagas de suor debaixo do sol forte,
conseguiram finalmente movimentar a pedra, que deslizou
para um lado, deixando ver, debaixo dela, uma abertura.
Aproximaram-se mais, observando com cuidado. Perplexos,
depararam com um grande e escuro buraco. Guilherme, que
fora o primeiro a examinar, perguntou:
— Será algum antigo poço desativado? De qualquer forma,
parece que há alguma coisa lá embaixo.
— Roque, desça e verifique o que há lá dentro – ordenou
minha mãe.
O feitor, que trazia sempre preso à cintura um rolo de corda
fina, mas resistente, retirou-o e olhou em torno, procurando
a árvore mais próxima, onde amarrou uma ponta da corda e,
com cuidado, aproximou-se do buraco, iniciando a descida
sob os olhares atentos dos demais. Alguns minutos depois
ele voltou, enojado:
— Sinhá Virgínia, tem muitos ossos. São cadáveres que ali
foram jogados.
Cheios de horror todos se afastaram, arrepiados da cabeça
aos pés, sem poder acreditar nessa descoberta,
especialmente minha mãe, que morava naquela fazenda
havia tantos anos e nunca ouvira falar sobre isso. De
longe, os escravos acompanhavam tudo, também
apavorados; ouviram as conversas e viram quando Roque
entrou no fosso e voltou contando que existiam muitos
ossos lá no fundo; os escravos mais antigos tinham ouvido
notícias da história desse lugar que, com o passar do tempo,
ficou esquecida.
Marie Legrand era a única que tinha o semblante sereno e
até alegre.
— Graças a Deus, meus amigos! Era nesse lugar que os
negros que vi estavam presos. Apesar de mortos há muito
tempo, dezenas de anos, consideravam-se ainda
aprisionados. Vejo agora as cenas tétricas: eles eram
torturados e depois jogados nesse buraco para morrer. Por
ordem do senhor Frederico, o feitor tampava o fosso com
galhos e eles ali pereciam de fome, de sede, de falta de
cuidados, sem ar e em grande sofrimento.
Depois, com o tempo, arrastaram essa grande pedra que
existia nas imediações, impedindo que mais alguém pudesse
achar-lhes os corpos. Enfim, os responsáveis morreram e o
segredo ficou bem guardado.
— Até hoje. Mas por que cometeram atos tão
monstruosos? - indagou Pierre, indignado.
A proprietária da fazenda adiantou-se:
— Acho que posso responder a essa pergunta, Pierre.
Recorreram a esse esquema certamente para impedir que
minha sogra, Heloísa, dama bondosa e que não admitia
maus-tratos aos escravos, ficasse sabendo. Frederico amava
sua doce esposa e não queria indispor-se com ela. Então,
arranjou um meio de castigar, ou melhor, de torturar os
escravos, longe da sua presença, para que ela não visse nem
ouvisse os gritos dos infelizes entregues à sua crueldade e
aos seus abusos.
— Que horror! - exclamou Leonora. - Não posso ima-
ginar que existam ou existiram pessoas tão más assim. Estou
enojada.
Pondo a mão no ombro da amiga, mamãe afirmou:
— Concordo com você, Leonora. Se não tivesse visto, não
acreditaria. - Depois, virando-se para o capataz, ordenou: -
Roque, mande retirar as ossadas desse buraco. Vamos dar
uma sepultura
digna a esses pobres coitados.
Em seguida, olhando para os demais, sugeriu:
— Vamos embora? Creio que nada mais temos a fazer aqui.
Marie, que estava calada, absorta, não se moveu.
— Ainda falta uma coisa, Virgínia. Vamos rezar por todos
aqueles que estavam aprisionados e que agora
ganharam a liberdade.
E ali, de mãos dadas, repetiram o Pai-Nosso, pensando em
todos os infelizes que ali tinham encontrado a morte. Após a
prece, Marie concluiu:
— Que descansem em paz!
Ao fazerem meia-volta para iniciar o trajeto de retorno,
viram uma cena emocionante e indescritível: os negros da
fazenda, sentindo no íntimo a dor dos companheiros mortos
de forma tão bárbara, estavam ajoelhados, reverentes e de
mãos postas, também a rezar pelos mortos, enquanto
lágrimas escorriam por suas faces sofridas.
ESTAVAM REUNIDOS NA SALA da casa-grande ainda sob o im-
pacto dos últimos acontecimentos, quando Odete
entrou, comunicando:
— Sinhá Virgínia, o almoço está servido.
Trocaram um olhar, surpresos. Todos se sentiam em uma
outra realidade, com o pensamento preso na experiência que
tinham vivido, que se esqueceram completamente do
almoço. Conquanto sem vontade, dirigiram-se para a sala de
jantar.
A refeição transcorreu quase em silêncio; os convidados
mantinham-se pensativos, falando apenas o indispensável.
De volta à saleta, descontraíram-se um pouco. A conversa,
como não poderia deixar de ser, foi sobre o episódio que
tinham vivenciado naquela manhã e que emocionara a
todos. Em dado momento, Teófilo, observador por natureza,
considerou:
— De tudo o que presenciamos hoje, chamou-me a atenção
um fato curioso. Notaram a presteza com que Roque
encontrou aquela barra de ferro, no meio da vegetação,
como se já tivesse conhecimento dela?
Os demais trocaram um olhar, concordando.
— Sim! E verdade! Também notei esse fato – afirmou
Guilherme.
Nesse instante, o capataz surgiu à porta da sala. Vinha avisar
sua sinhá de que os escravos estavam retirando as ossadas do
fosso, enquanto outros abriam uma grande sepultura no
cemitério dos escravos, onde pretendiam enterrá-los.
— Muito bem, Roque. Diante das circunstâncias, só pode ser
assim. Quando estiver tudo pronto, avise-me. A propósito,
pareceu-nos que você encontrou, muito
providencialmente, aquela pesada barra de ferro. Sabia da
existência dela?
Revirando o chapéu nas mãos, ele justificou:
— Sim, sinhá Virgínia. Em minhas andanças pelo mato, já
tinha encontrado aquela barra. Além disso, quando criança,
ouvia meu pai contar histórias sobre o sinhô Frederico,
inclusive sobre esse lugar, onde castigavam os escravos até a
morte. O tempo passou e acabei esquecendo-me dessas
histórias. Quando a sinhá mandou-me tirar a grande pedra,
lembrei-me da barra; ela é muito antiga e imagino que era
utilizada exatamente para abrir aquele buraco.
— Obrigada, Roque.
Após a saída do capataz, Guilherme perguntou:
— Marie, o que teria levado esses escravos a ficarem presos
até agora, uma vez que morreram há dezenas de anos?
— Guilherme, os anjos de luz me informam que nosso
sentimento é poderoso. Não posso afirmar com certeza, mas
creio que, mantendo o ódio no coração e o desejo de
vingança, presos pelas próprias condições, não conseguiam
sair. Entendem? Eles se acreditavam ainda prisioneiros,
escravos do seu sinhô Frederico! Aqueles que não
cultivaram o ressentimento, a mágoa, e perdoaram a seus
agressores, estes não permaneceram presos. Libertaram-
se! Eu vi, entre os anjos de luz, muitos ex-escravos com
vestes resplandecentes e fisionomia feliz, ajudando a retirar
do fosso a alma dos mortos, levadas
depois para algum lugar, no outro mundo, onde elas poderão
ter melhores condições de vida e ser felizes.
— Se Deus é Pai bom e justo, por que permite que tais coisas
aconteçam, querida? - indagou Pierre, ainda confuso.
— Porque esses escravos fizeram por merecer tal sofrimento
pelos seus atos no passado. Quanto aos fazendeiros, terão de
pagar em vidas futuras pelas atrocidades que
cometeram na última existência.
— Ah! E o que terá acontecido para ocorrerem tantos
dramas? - indagou Leonora.
Ouviu-se uma voz, no fundo da sala, e se voltaram
surpresos. Era eu:
— Creio que sei o que aconteceu.
— Minha filha! Como você sabe? - perguntou mamãe.
— Enquanto estavam conversando, vi a vovó Heloísa, que
me contou o que houve. Há muito tempo, em terras
distantes, havia um povo que lutava por motivos religiosos,
atacando outros povos e conquistando outras terras. Eram
agressivos, invadiam cidades e ateavam fogo nas casas e nas
plantações, matando seus inimigos; aqueles que sobreviviam
eram levados como escravos e obrigados a trabalhar para
eles, sendo torturados sem piedade. Faziam isso para
infundir terror aos seus adversários e aos povos vizinhos e
para mostrar seu poderio. O tempo foi passando e esses
guerreiros voltaram outras vezes ao mundo, até que,
dominadores que foram no passado, renasceram na África e
foram aprisionados, sendo trazidos para o Brasil. Aqui se
reencontraram, não raro, como senhores e escravos, porém
com as posições invertidas. Poderiam ter resolvido o
problema, diz a vovó, se os senhores tivessem agido de
maneira diferente, procurando tratar com respeito e
fraternidade os subordinados. Incapazes, entretanto, de
perdoar, continuaram com o desejo de vingança, agora
alimentando seu ódio sobre os escravos, seus antigos
algozes.
Eu falava e todos ouviam com profunda atenção, surpresos
ao me ver lúcida para externar meus pensamentos. Parei de
falar por alguns instantes, depois prossegui:
— Todos nós que aqui estamos somos parte dessa história.
Alguns, moralmente melhorados, puderam agora participar
do socorro aos que ainda estavam em sofrimento.
Levando a mão aos olhos, enxuguei uma lágrima e prossegui:
— Quanto a mim, reconheço-me muito culpada. Também
faço parte desse grupo, porém assumi responsabilidades
enormes, por traição. Certa ocasião, esse que foi meu pai,
Felipe Figueiroa, por imposição da família tornou-se meu
noivo; descontente e revoltada, eu o traí, entregando-o a
seus adversários, o que fez com que ele passasse a me odiar.
Posteriormente, ambos melhorados, ele concordou em
receber-me em seu lar como filha, para exercitar o perdão,
mas sempre me viu como uma inimiga, nunca gostou
realmente de mim. Mamãe, que tinha sido mãe dele no
passado, aceitou-me como filha para servir de elo entre mim
e meu pai, aproximando-nos. Infelizmente, porém, eu não
soube aceitar os problemas que a vida me apresentava como
aprendizado. Assim, cometi erros inomináveis em relação às
pessoas que conviviam comigo e que de alguma forma me
magoaram, sem que eu conseguisse perdoar. Foi assim com Rita e
com Guilherme. Se eu tivesse relevado a traição deles - uma
vez que também já havia traído no passado -,
compreendendo e perdoando, nada teria acontecido, e
minha vida seria outra. Todavia, ao encher-me de
ressentimento contra eles, atraí os inimigos do passado, que
me envolveram fazendo com que eu perdesse a noção das
coisas, cometendo atos terríveis. Sinto-me culpada por tudo
o que aconteceu... Será que algum dia eu terei paz?
Parei de falar, e os soluços me explodiram no peito. Mamãe
correu para abraçar-me e Teófilo também se aproximou,
com um remédio na mão, temendo que eu tivesse uma
recaída. Colocou-me algumas gotas na boca e ambos
levaram-me para meus aposentos, colocando-me no leito.
Eu não disse mais nada. Fiquei de olhos abertos, fixos em um
ponto qualquer, até ser vencida pelo sono.
Os dois deixaram-me aos cuidados de Dinha e retornaram
para a sala onde estavam os convidados.
— Como está ela? - indagou Marie.
— Não sei. Parece que está em choque. Minha filha teve
momentos de grande lucidez, quando nos relatou fatos
acontecidos no passado. Agora, parece-me ter voltado às
suas condições, o que talvez seja benéfico. A descoberta da
verdade, não raro, faz com que possamos encarar a
realidade, nos posicionando de forma diferente diante da
vida e dos acontecimentos. Vamos aguardar.
Por volta das três horas, Roque veio avisar que tinham
colocado tudo o que fora recolhido em sacos, prontos para o
sepultamento.
A anfitriã e seus convidados, agora acompanhados também
dos escravos da casa-grande, dirigiram-se ao cemitério, uma
área de terra reservada aos escravos. Logo atrás vinham
todos os escravos e suas famílias, inclusive as crianças.
Chegando perto, puderam ver uma grande cova aberta, onde
foram depositados os sacos com os ossos. Depois, alguns
escravos munidos de pás jogaram terra por cima,
terminando por fincar uma cruz. Rezaram um Pai-Nosso e,
em seguida, antes que a sinhá se afastasse com seus amigos,
um por um, os escravos vieram agradecer-lhe, beijando sua
mão, comovidos.
Pai Albino acompanhou toda a cerimônia, um pouco
afastado dos demais. Após o término, aproximou-se da
patroa:
— Sinhá, neste momento, encerra-se uma etapa relativa aos
dramas ocorridos no passado. Todavia, a luta prossegue.
Continue firme, que novos testemunhos virão para o
aprendizado de todos os envolvidos. Que Deus os abençoe!
Marie, vendo pai Albino, reconheceu com emoção que era
ele o escravo idoso iluminado que ela vira auxiliando
durante a reunião na casa-grande naquela manhã.
Aproximou-se dele, reverente, agradecendo-lhe.
— Filha, continue ajudando as pessoas. Trabalhamos de
modo diferente, mas a finalidade é a mesma: encaminhar as
almas para Deus.
Em seguida, ele afastou-se mansamente em busca de suas
ocupações.
Retornando ao casarão, os visitantes se despediram. Era hora
de voltar para a Santa Clara. A anfitriã fitou a todos com
carinho:
— Sou-lhes profundamente grata. Não imaginam o bem que
me fizeram. Este foi o dia mais importante da minha vida e
devo-o a vocês, meus amigos.
Ao se despedir de Marie, mamãe agradeceu particularmente
pelas informações e experiências que modificariam sua vida
para sempre, dando-lhe um novo sentido.
— Querida Virgínia! Agora estamos todos cansados em
virtude dos acontecimentos do dia e precisamos nos
recompor. Contudo, voltaremos ainda a conversar.
Realmente, todos se sentiam exaustos, mas satisfeitos. Era a
satisfação recebida do labor no bem, do socorro prestado a
criaturas sofredoras e aflitas; os amigos da espiritualidade
respondiam, envolvendo-os em emanações de paz, amor e
esperança.
Aquela experiência certamente marcaria de forma
indescritível a existência deles, como prenuncio de uma
nova era que não tardaria a chegar, e que iria confirmar, em
seus postulados, tudo o que tinham vivenciado naquele dia
inesquecível.
34 – De volta à espiritualidade
Os últimos acontecimentos provocariam profundas mudan-
ças na existência de todos os envolvidos, prenunciando
novas conquistas no futuro.
Guilherme, reconhecendo que falhara com a esposa,
levando-a a desequilíbrio extremo, sentia-se culpado. Depois
de muito pensar, resolveu dar a ambos uma nova
oportunidade, um novo recomeço. Quem sabe ainda
poderiam ser felizes? Reconhecia que ela era apenas uma
criança quando se conheceram na posição de noivos; que
deveria ter a cabecinha cheia de sonhos, mas que, ao saber
da traição dele e da amiga, ela enlouquecera de dor e de
humilhação; e, influenciada por inimigos invisíveis, tinha
passado a cometer atos gravíssimos. Repassando tudo isso na
memória, ele admitia intimamente que não era uma pessoa
honesta, sem defeitos; ao contrário, durante a existência já
cometera inúmeros deslizes. Desse modo, perante o que ele
vivenciara nos últimos tempos, principalmente as
experiências transcendentais de que o grupo de amigos tinha
participado, concluiu: que direito tinha para julgá-la, se ela
não agira sozinha?
Conversamos. Ele abriu seu coração. De minha parte, aceitei
a proposta de Guilherme e voltamos a viver juntos, agora
mais amadurecidos, com outra compreensão da vida e
dispostos a mais tolerância, paciência e união.
Mamãe e Teófilo também se casaram, em um lindo dia de
inverno, na presença de alguns amigos mais chegados e de
padre Antônio, que oficiou a cerimônia. A afinidade que
existia entre eles - a identidade de pensamentos, de gostos e
de ideais - fazia com que a vida transcorresse em grande
harmonia, passando o novo casal a viver feliz como nunca,
Apesar dessa onda intraduzível de paz, amor e esperança
inundando nosso coração, eu emagrecia a olhos vistos. No
começo, procurava manter o sorriso no rosto, a animação
nas atitudes, o otimismo diante da vida, afirmando para
Guilherme:
— Temos tudo para ser feliz...
Certo dia em que conversávamos a sós em nossos aposentos, repeti
como se precisasse de uma afirmação:
— O que nos falta para sermos felizes? Nada!
Ao que meu marido respondeu mansamente:
— Um filho, minha querida. Sinto falta de uma criança
correndo pelas salas e pelos gramados.
Baixei a cabeça, amargurada. Sim, o filho que Guilherme
tanto desejava não vinha, como se eu fosse incapaz de gerar
um novo ser. Nesse momento, na tela da memória, revi
todas as vezes que me recusara a ser mãe, tirando do próprio
ventre o fruto do nosso amor; das vezes que procurara
aquela mulher que, no meio do mato, expulsava o
indesejável.
Então, sob o peso do remorso, passei a enclausurar-me em
meus aposentos, calada, triste e melancólica, falando sozinha
e revivendo os erros dramáticos que cometera. Voltei a
tomar a medicação como forma de controlar as crises.
Dinha, agora informada de que fora eu a causadora da morte de sua
querida Ritinha, no início chorou muito, incapaz de
esquecer e perdoar àquela que durante toda a vida tinha
amado como filha, uma vez que a amamentara no próprio
peito. Mas, dotada de bom coração, cheia de piedade, ao me
ver naquele estado, doente da cabeça, reaproximou-se de
mim, perdoando-me.
Mamãe, em conversa com o marido e o genro, falou-lhes do
seu temor quanto às conseqüências dos atos que eu
praticara, e que ela não conseguia aceitar, por ser o oposto
de tudo aquilo em que acreditava, mas Teófilo ponderou:
— Querida, deixemos que as coisas sigam seu curso. Sabemos
que a justiça que realmente importa é a divina, e essa se fará,
queiramos ou não. Então, não sofra por antecipação. Vamos
aproveitar todos os momentos para fazer o melhor,
ajudando-a e sendo felizes. Quem somos nós para julgar?...
Maria Eugênia precisa de assistência, pois não é responsável
por seus atos, como portadora de doença mental, o que
facilmente se pode verificar. Assim, acalme-se. Vamos
confiar em Deus.
Depois, abraçando-a com extremo carinho, concluiu:
— Além disso, para a justiça terrena, desde quando um
senhor de escravos é condenado neste país, quando se tem
direito de vida e de morte sobre os negros?
Ela enxugou os olhos e concordou:
— Tem razão, meu querido. Na prática, é assim que fun-
ciona. Contudo, esperemos que as coisas mudem; a
escravidão terminará no Brasil, e creio que não tardará o dia
em que todos serão iguais perante a lei.
NA FAZENDA SANTA CLARA tudo estava diferente. Marie
ajudara muito a Valentim Cerqueira, orando e impondo suas
mãos sobre ele, por meio da utilização do magnetismo
animal, uma nova maneira de curar, técnica que ela
dominava. Entretanto, chegou o momento em que Marie e
Pierre tiveram de partir. Mas, antes do retorno à França,
fariam uma viagem pelo Brasil, visitando a família de Pierre,
que os aguardava com ansiedade.
Antes das despedidas, Marie instruiu Leonora sobre a apli-
cação do magnetismo, de modo a não interromper o
tratamento de Valentim, a qual ela passou a fazer com
imenso carinho. Apesar das melhoras orgânicas, a doença
seguiu seu curso e ele faleceu dois anos depois.
Após os primeiros meses, em que a tristeza e a saudade eram
uma constante em seus dias, Leonora e Guilherme
resolveram agir. Promoveram benfeitorias na fazenda,
dando aos escravos condições de vida mais dignas;
construíram casas novas, melhoraram a alimentação,
fazendo com que se sentissem mais satisfeitos. O resultado
foi semelhante ao que aconteceu na Santa Genoveva: o
rendimento das lavouras aumentou bastante, trazendo mais
prosperidade a todos.
Guilherme se dividia no atendimento às duas fazendas. A
cultura canavieira estava em declínio, e a nova ordem era
plantar café, que rendia muito mais. Então, estudando o
assunto, tornara-se um apaixonado pela cafeicultura. Cheio
de ânimo e determinação, transformou-se em um novo
homem, decidido, forte e empreendedor.
Franz Anton Mesmer, doutor em Medicina, nascido em
Iznang, Constança, em 23 de maio de 1734, foi o
descobridor do magnetismo animal, definindo-o pela
primeira vez como sendo a capacidade de um indivíduo em
causar efeitos similares aos do magnetismo mineral em outra
pessoa, usando-o para tratamento em doenças, afirmando-
lhe o poder de curar. Mesmer sofreu violentos e injustos
ataques de seus pares, que não aceitavam suas idéias. Foi
Allan Kardec, que estudou profundamente o assunto por 35
anos, quem ressaltou a sua importância, denominando o
magnetismo animal como ciência irmã do Espiritismo. Em O
Livro dos Espíritos, questão 555, o codificador esclareceu:
"O Espiritismo e o magnetismo (animal) nos dão a chave de
uma imensidade de fenômenos sobre os quais a ignorância
teceu um sem-número de fábulas, em que os fatos se
apresentam exagerados pela imaginação. O conhecimento
esclarecido dessas duas ciências que, a bem dizer, formam
uma só, é o melhor preservativo contra as idéias
supersticiosas, porque, ao mostrar a realidade das coisas e
suas verdadeiras causas, revela o que é possível e o que é
impossível, o que está nas leis da natureza e o que não passa
de uma crença ridícula".
Notícias da França chegavam, sempre por cartas dos amigos
Marie e Pierre Legrand, que os colocava ao corrente do que
acontecia no mundo. Certo dia, chegou uma
correspondência de Marie em que ela, era certo momento,
escreveu:
"Lembram-se de que afirmei, segundo ouvi dos anjos de luz
que os conhecimentos sobre a realidade do outro mundo
não tardariam a chegar? Pois já chegaram! Os jornais não
cessam de publicar notícias sobre uma pequena cidade dos
Estados Unidos da América, Hydesville, onde duas meninas
ouvem ruídos, pancadas, e todos estão assustados. Dizem até
que elas encontraram uma maneira de se comunicar com o
espírito que estava provocando os barulhos. Não é
fascinante? Estamos para entrar em uma nova era, em que
tudo aquilo que vivenciamos aí na fazenda será conhecido
por todos."
A missiva continuava pedindo notícias de todos, indagando
sobre mim e terminava enviando lembranças aos amigos,
dos quais estavam saudosos. Junto, seguia um recorte de
jornal parisiense com a notícia.
Mamãe mostrou a carta para Teófilo que, sorrindo,
considerou:
— Sim, era preciso que a realidade da sobrevivência da alma,
da vida no além-túmulo, da possibilidade de comunicação
entre os dois mundos e, certamente, das conseqüências que
esses fatos teriam em nossa vida aqui na Terra, viesse a
esclarecer a sociedade, auxiliando-nos a resolver certos
problemas que, de outro modo, não teriam solução para a
medicina. Assim, quem sabe teremos uma vida melhor!
Apesar dessa onda de novas esperanças, eu permanecia do
mesmo jeito. Cada vez mais magra e pálida, era uma
preocupação constante para todos. Continuava atormentada,
muitas vezes correndo pelas salas e corredores, me
escondendo de inimigos invisíveis. Se alguém perguntava,
eu dizia que eram Ritinha e Miguel, que não me davam paz,
acusando-me pelos crimes praticados. De outras vezes,
escutava choro de bebês pela casa e dizia:
— Estão ouvindo? Ouvem os bebês chorando? Não? Mas eles
estão aí por toda parte! Devem estar com fome.
— Não temos crianças nesta casa. Acalme-se, filha - dizia
minha mãe, penalizada.
— Pois eles estão chorando! Faça os bebês pararem de
chorar, mamãe. Não agüento mais esse barulho.
E mamãe me abraçava ainda com mais amor, acalmando-me com
palavras de serenidade e bom ânimo, julgando que a fixação
em crianças devia-se ao fato de eu não ter conseguido ser
mãe.
Certo dia, inconformada com essa situação, ela me obser-
vava. Entardecia. Sentada em uma cadeira de repouso no
terraço, banhada pelos últimos raios de sol, eu aparentava
estar ainda mais frágil e franzina, embora demonstrasse calma e
serenidade. Mamãe fez-me um carinho nos cabelos loiros e eu
me virei, fitando seus belos olhos verdes, que continuavam
os mesmos. Minha pele branca deixava ver os ossos que
surgiam sob o decote da blusa; as mãos, quase transparentes,
descansavam no colo.
— Filha, deseja alguma coisa? Um chá, um suco, um
biscoito?
— Não, mamãe. Não quero nada.
— Você precisa se alimentar, minha filha! - insistiu minha
mãe, preocupada.
— Para quê, mamãe? Eu de nada preciso. Só de paz.
Nesse momento, fiquei alerta, tensa. Depois, assustada,
comecei a gritar:
— Veja, mamãe! São eles de novo. Afastem-se malditos!
Vocês estão mortos! Deixem-me em paz! Deixem-me em
paz! Eu sei o que você quer, Ritinha. Quer tomar meu
marido, mas
não vai conseguir. Guilherme me ama! Ele me ama!
Minha mãe aproximou-se para acalmar-me, porém descon-
trolada, saí correndo, subindo as escadarias para me
esconder dos meus desafetos. Desalentada, ela deixou-se cair
em uma cadeira, sentindo-se impotente para mudar aquela
situação, Teófilo, que retornava da senzala onde fora visitar
alguns doentes, viu-a de cabeça baixa e aproximou-se,
dando-lhe um beijo.
— O que houve, querida? Sinto-a preocupada, triste...
— É minha filha, Teófilo. Não entendo por que ela continua
nesse estado. Afinal, se é verdade que os inimigos do outro
mundo foram afastados, ela deveria estar bem!
Cheio de carinho, ele aconchegou a cabeça dela em seu
peito, depois considerou com ternura:
— Minha querida, por tudo o que tenho pesquisado em
livros e em meus próprios pacientes, pelas histórias que me
contam, cheguei à conclusão de que o problema está nela.
Nossa mente é poderosa e aquilo que ela entende como
verdade é difícil de ser alterado. Neste caso, embora os
inimigos do outro mundo não estejam mais ao lado dela, a
consciência a acusa pelos atos que praticou, não permitindo
que esqueça. No fundo, a verdade é que Maria Eugênia não
se perdoa.
— Então, nada podemos fazer para ajudá-la?
— Podemos envolvê-la com amor, compreensão, carinho,
para que se sinta segura e confiante. Onde está Maria
Eugênia?
— Pobre da minha filha... Teve uma nova crise e subiu
correndo as escadarias como sempre faz para esconder-se de
seus perseguidores - murmurou Virgínia, sentida.
Nesse momento, Guilherme chegou. Vinha suarento, mas
satisfeito. Perguntou pela esposa, mas antes que Virgínia
tivesse tempo de lhe responder, ouviram um grito pavoroso
vindo do andar superior; em seguida, um baque surdo,
embaixo, como a queda de um corpo.
— Meu Deus! - gritou Virgínia. - O que está acontecendo?
Correram os três, subindo as escadas, seguidos dos escravos
da casa, que também ouviram o grito. Ao entrar no terraço
que contornava o casarão, viram que, em um dos cantos da
construção, o parapeito de madeira estava quebrado,
faltando um pedaço. Aproximando-se, apavorados, puderam
ver o corpo de Maria Eugênia esparramado na grama,
imóvel, em meio aos pedaços da balaustrada.
— Minha filhai Maria Eugênia!...
Gritando e chamando pela filha, Virgínia virou nos
calcanhares, correndo de volta, acompanhada pelos demais.
Descendo as escadarias, saiu pela sala e contornou a casa;
chegando ao local, notou que algo de muito grave tinha
acontecido. Da cabeça de Maria Eugênia saía um filete de
sangue. Teófilo ajoelhou-se e examinou-a com delicadeza.
Depois, ergueu-se, pálido:
— Minha querida, seja forte...
— O que aconteceu com minha filha? Ela vai ficar bem, não
é?
Abraçando-a, o médico deu-lhe a trágica notícia:
— Virgínia, ela bateu a cabeça em uma pedra e não resistiu.
Mas você precisa ter coragem, minha querida. Temos provas
de que a morte não existe e que continuamos vivos. Sua
filha está viva, ela continua viva.
A mãe ficou estática, parada, em choque. Teófilo voltou a
abraçá-la fortemente, consolando-a, infundindo-lhe força e
coragem na travessia daquela provação.
Ao ABRIR os OLHOS, vi QUE algo havia mudado. Todos
choravam. Tentei explicar para minha mãe que eu estava
bem, mas ela não me ouvia. Só chorava. Sentia-me estranha.
Apesar da ferida na cabeça e do sangue que escorria, estava
viva. Tentei caminhar, conversar com alguém, mas ninguém
me respondia, e eu estava muito fraca e sonolenta. De
repente, senti que um sono profundo me envolveu.
Não sei quanto tempo fiquei assim, adormecida, até que ouvi
minha mãe, ajoelhada, rezando o Pai-Nosso. Como sempre
fazia, eu a acompanhei.
Nesse momento, vi minha avó Heloísa ao meu lado. Ajoe-
lhada, supliquei sua ajuda. Sentia-me sozinha, sem saber o
que tinha acontecido. Ternamente, ela aproximou-se e me
disse:
— Não te preocupes, minha filha. Vau cuidar de ti.
Ela envolveu-me em seus braços e pareceu-me que subia no
ar, como se voasse. Novamente perdi a noção de tudo. Ao
acordar, estava em um quarto claro e arejado. Logo notei
alguém que se aproximava. Era uma jovem de branco.
Perguntei à desconhecida por minha avó e ela me
respondeu que, assim que fosse possível, ela viria visitar-me.
Novamente adormeci e, ao acordar, deparei com o lindo
sorriso de vovó.
Conversamos bastante. Ela me informou que eu já tinha
feito a passagem para o mundo espiritual. Chorei muito, mas
acabei me conformando.
Aos poucos, comecei a melhorar. Minha recuperação não
foi rápida nem fácil. Eu sempre fora dona de minha vontade
e não gostava de receber ordens. Desejava ver minha mãe e
não aceitava recusas. Dei bastante trabalho às enfermeiras e
aos benfeitores espirituais. Mas ali era diferente e tive de
resignar-me.
Durante longo tempo permaneci na Espiritualidade, estu-
dando e aprendendo a servir. Compreendi que o que
realmente conta é o nosso progresso moral, e que, na nova
morada, muitos daqueles que eu considerava inferiores e
desprezara, por serem negros e escravos, ali ocupavam
posições de destaque.
Gradativamente, fui-me modificando, entendendo os danos
que cometera contra o próximo, nas pessoas de Ritinha,
Miguel, Josias e tantos outros; inclusive muito sofri pelos
abortos que havia cometido. Estas últimas vítimas eram
espíritos que eu prejudicara no passado e que voltariam
como meus filhos, para que eu pudesse recebê-los e amá-los,
educando-os para a vida e construindo cora eles novos elos
de afetividade.
Chorei muito, lamentando os erros cometidos. A consciên-
cia culpada não me concedia a paz que tanto desejava. O
sofrimento mais terrível que se enfrenta do Outro Lado é a
constatação dos débitos contraídos e a impossibilidade de
voltar atrás, para refazer os próprios passos e consertar os
males praticados.
Os anos se passaram, lentos e inexoráveis.
Certo dia, sentindo-me recuperada e mais consciente do que
me competia fazer, comecei a trabalhar. Passei a integrar
uma equipe de socorro a necessitados do corpo e da alma,
inclusive de apoio aos que se frustraram no divino propósito
de renascer para uma nova existência com vistas às tarefas
programadas. De maneira especial, ajudando futuras mães a
respeitar e a aceitar o fruto de seus amores, não cometendo
o mais terrível dos crimes que se pode cometer contra
alguém incapaz de se defender: o aborto.
Reencontrei parte dos meus desafetos e supliquei-lhes
perdão pelos danos que lhes causara. Em relação a outros,
ainda renitentes no mal, isso foi impraticável, e aguardo a
oportunidade de fazê-lo, ajudando-os anonimamente em
visitas periódicas às regiões do umbral, onde se encontram
presentemente.
Dentro de mim um sentimento se avolumava cada vez mais
diante de todas as informações que já possuía. Consciente da
realidade espiritual, do meu passado de erros, ansiava por
voltar e refazer meus passos no caminho do bem, recebendo
como filhos do coração, aqueles que eu mais prejudicara e
que haviam se desencaminhado. Trabalhei muito tempo para
conseguir a bênção de voltar. Mas precisava ser merecedora
dessa dádiva. A querida avó Heloisa e pai Albino foram
meus avalistas, comprometendo-se a amparar-me e a
sustentar-me nas lutas do mundo.
Vibrava de vontade de vencer ante a nova oportunidade que
se me deparava. Mas não me iludia. No fundo, eu sabia que
não seria fácil.
Conseguiria eu vencer o orgulho feroz que me dominara
sempre? Lograria derrotar o egoísmo rígido e a ambição
desmedida que me nortearam os passos do passado?
Finalmente, aprenderia a trabalhar a fraternidade e o
respeito que devemos às outras criaturas, conforme os
preceitos evangélicos?
Esses e outros questionamentos torturavam meus dias, e eu
orava, elevando a Deus meu pensamento, suplicando ajuda e
assistência na nova encarnação.
Assim, preparei-me e, no tempo determinado, com o
coração a pulsar de novas esperanças e propósitos de
realização das tarefas assumidas, retornei ao planeta Terra
para uma existência de dificuldades, de sofrimentos, mas
também de muito aprendizado.
35 – Epílogo
Renasci para uma nova vida corpórea no segundo quarto do
século 20, mais precisamente em 24 de março de 1933.
Espírito endividado e rebelde, eu trazia o coração envolto
em renovadas esperanças; preparara-me por longos anos e
confiava no amparo dos amigos espirituais que me
hipotecaram a ajuda necessária. Todavia, bem lá no fundo,
preocupava-me com meu desempenho envergando um
novo corpo. Não ignorava que a vida terrena impõe o
esquecimento do passado, que é uma benção para o faltoso,
mas também nos coloca diante da própria realidade. Estaria
eu realmente preparada para essa nova oportunidade que o
Senhor me concedera? As lições que recebera na
espiritualidade, o labor no bem atendendo criaturas
necessitadas de ambos os lados da vida, os estudos e
reflexões em torno das deficiências que me competia vencer
teriam sido assimiladas? Em suma, eu estaria
verdadeiramente confiante no sucesso da empreitada? Esses
e outros questionamentos passavam-me pela mente,
deixando-me angustiada e indecisa. Temia novo fracasso,
não obstante o amparo de amigos devotados.
Grandes transformações ocorreram no mundo das formas
desde a minha última encarnação.
Em setembro de 1871, a princesa Isabel havia sancionado a
Lei do Ventre Livre, que representava a garantia da extinção
do cativeiro de maneira gradual e por meios pacíficos. Era o
começo das conquistas abolicionistas, mas a sociedade exigia
mais. Assim, em 13 de maio de 1888, novamente na posição
de regente, com o afastamento de seu pai, o generoso
imperador D. Pedro II, a princesa Isabel assina a lei que
extingue a escravidão no Brasil, conhecida como Lei Áurea.
Uma onda de novas claridades espalhava-se sobre as
coletividades necessitadas de paz. No entanto, àqueles
espíritos comprometidos com a Lei Divina, que haviam
aceitado colaborar com o progresso do Brasil, ao mesmo
tempo trabalhando pela própria redenção, exigiam-se novos
sofrimentos para burilar-lhes ainda mais o caráter de cada
um.
Apesar da conquista grandiosa, que enchia de esperança o
território brasileiro, renovados sofrimentos viriam marcar
aqueles seres tão infelizes. Os escravos africanos, finalmente
haviam conseguido a liberdade pela qual tanto ansiavam. No
entanto, apesar do grande beneficio que essa lei
representava em termos de conquista social, eles foram
expulsos das fazendas, passando a vagar pelas estradas sem
qualquer recurso, abrigo, comida, água, sem nada; com
exceção de poucos, que foram contratados para continuar
nas propriedades e nas residências, prestando serviços aos
ex-donos, agora como empregados assalariados, não mais
como escravos.
Muitos fazendeiros, porém, não aceitavam ter de pagar pelo
serviço dos libertos, pois, acostumados à situação antiga,
julgavam que já faziam o bastante dando a eles o
indispensável para viver. Por isso, expulsaram os ex-escravos
de suas terras, mesmo porque estavam chegando imigrantes,
especialmente italianos, para trabalhar nas lavouras.
Como uma conseqüência da abolição da escravatura – visto
que os grandes proprietários de terras, descontentes,
deixaram de apoiar a monarquia, migrando para o Partido
Republicano, que ganhava força -, em 1889 foi proclamada a
República, pondo fim ao Segundo Império; e D. Pedro II, o
bondoso imperado de alma republicana, deposto, deixa o
país que tanto amava.
Inicia-se uma nova era para o Brasil, em que o poder passou
a ser do povo, não mais do imperador. Apesar das
expectativas, grande parte dos problemas continuou e alguns
até se agravaram.
A situação dos ex-escravos prosseguiu sem solução, uma vez
que eram estigmatizados duplamente: pela cor da pele e pela
condição social.
Renasci trazendo no corpo e na cor da pele a marca dos
escravos que eu havia prejudicado, orgulhosamente
considerando-me superior a eles. De família extremamente
pobre e sem cultura, meus pais lutaram muito para
sobreviver. Fui muito aguardada. Por oito longos anos,
minha mãe, que intuitivamente sabia que eu iria renascer,
me esperou. Nessa ansiedade, procurou crianças para adotar,
mas nunca logrou seu objetivo. Até que cheguei ao mundo,
renovando-lhe as esperanças. De coração bom e humilde,
meus pais me criaram ensinando a amar a Deus e aos meus
semelhantes, de conformidade com as lições evangélicas.
Eu sentia no íntimo o desejo de realizar coisas boas, de
praticar o bem, de crescer e estudar. Trazia na alma, marcada
com tintas indeléveis, os compromissos assumidos com os
orientadores do mundo espiritual e a responsabilidade do
que me competia realizar.
Protegida pela terna presença de amigos e benfeitores do
alto que adejavam à minha volta, transmitindo-me paz, amor
e esperança, tive uma infância sem problemas e cresci
sentindo-me protegida, segura. Às vezes, porém, reconhecia
as vibrações de seres vingativos, e sentia muito medo; nessas
ocasiões, passava noites sem dormir.
No entanto, o desejo de vencer fez com que eu crescesse
forte e destemida. Desde criança sempre gostei de trabalhar
e, percebendo a situação difícil da família, o esforço de meus
pais que lutavam para ganhar o pão de cada dia, aos seis anos
arranjei um emprego de pajem, ou babá. Meu pai ficou
inconformado, triste, entendendo que não soubera dar-me a
segurança de que eu necessitava. Mas a grande verdade é
que eu não quis humilhá-lo, aliás, nem sabia o que era isso,
apenas me considerava adulta e em condições de ajudar a
família. Daí em diante, nunca mais parei de trabalhar.
Com o conhecimento espírita, que me esclarecia sobre as
realidades fundamentais das Leis de Deus, ainda muito
jovem comecei a dar aulas de evangelização infantil, e essa
atividade me enchia de satisfação e alegria.
Todos os sonhos da mocidade passaram por mim, sem que
pudesse realizá-los. Namorar, casar, constituir uma família,
tudo isso me foi negado. Não entrara nas minhas disposições
reencarnatórias, embora, cheia de esperanças, meu coração
batesse mais rápido ao conhecer algum rapaz mais
interessante. Mas tudo em vão. Via as amigas que se
apaixonavam e comparecia aos seus casamentos; algum
tempo depois vinham os filhos, e eu me encantava ao
segurá-los no colo, suspirando a pensar: "Ah! Se fosse meu"!
Por sentir no mais fundo do ser as promessas feitas antes do
retorno às lides corpóreas, logo a vida encaminhou-me para
o desafio que a realidade me apresentava: diante de uma
criança cuja mãe não tinha condições de mantê-la, senti um
impulso de compaixão, abrigando-a em meu peito e
levando-a para casa como filho do coração. Era uma menina,
e passei a amá-la com ternura e devoção. Como minha mãe
não podia cuidar dela, em virtude dos compromissos que já
lhe pesavam nos ombros, e a decisão fora minha, assumi os
cuidados com a recém-nascida: dar mamadeira, banho,
trocar as fraldas, fazer dormir e tudo o mais que um bebê
exige; e nem poderia ser diferente. Eu teria de assumir a
responsabilidade, sem ser mãe biológica, uma vez que na
última encarnação havia perdido as oportunidades que o
Senhor me concedera.
Depois desta primeira, vieram mais dois meninos, e aos
poucos, fui recolhendo em nosso lar aqueles espíritos que
prejudicara no passado e que me comprometera a ajudar,
reparando os danos que lhes causara.
Por essa época, residíamos nos fundos do Centro Espírita
Luz, Fé e Caridade, na cidade de Marília, Estado de São
Paulo, onde meus pais eram caseiros. Nossa família, antes
pequena, aumentou, tornou-se uma grande família, e as
crianças cresceram como meus irmãos. Certamente não
faltaram problemas, pois vivíamos com dificuldade, mas
conseguimos manter todos juntos, com firmeza, amor e
dedicação. Os anos se passaram, eles cresceram e eu pude
estudar. Minha irmã teve dois filhos, que vieram a
enriquecer ainda mais nossa família.
Além da evangelização infantil, dediquei-me à Mocidade
Espírita Allan Kardec (Meak), que fundamos junto com
muitos outros jovens. Um de nossos objetivos, além do
estudo da Doutrina Espírita e do Evangelho de Jesus, era
trabalhar para construir uma sede para a Meak e um lar para
meninas órfãs, ao qual daríamos o nome de Amélie Boudet
em homenagem à esposa de Allan Kardec, o grande
Codificador, o que logramos realizar com idealismo e
determinação. As dificuldades foram imensas, mas
conseguimos os recursos necessários por meio de
campanhas e peças teatrais, cujas apresentações, nos fins de
semana, nos garantiam boa renda. Assim, encenamos muitas
peças com imenso agrado do público e, finalmente,
pudemos inaugurar o "Lar de Meninas Amélie Boudet".
Bacharelei-me em Direito, integrando a primeira turma da
Fundação Eurípedes Soares da Rocha – diga-se de passagem,
a primeira instituição espírita de ensino superior do Brasil -,
criada em Marília por um grupo de corajosos confrades da
cidade.
Exerci muitas atividades, trabalhei em vários lugares,
inclusive no Instituto Assistencial Espírita de Marília, que
congrega todas as entidades assistências espíritas da cidade;
fui professora, depois passei a trabalhar na Prefeitura
Municipal de Marília, como técnica de intercâmbio, onde,
mais tarde, concluído o Curso de Direito, passei a exercer a
função de advogada.
Os problemas, iniciados bem antes, começaram a piorar.
Uma grande inclinação para a bebida fazia meus dias um
suplício, uma verdadeira tortura, resquício das tendências do
passado. Eu sentia a presença de inimigos desencarnados que
me assediavam e tornavam a existência cada vez mais difícil,
incentivando-me ao vício. Em virtude dos problemas
cotidianos, engolfei-me na área profissional, dando menos
atenção à parte espiritual. Comecei a ter problemas renais,
sendo obrigada a fazer hemodiálise por anos consecutivos.
Fui enfraquecendo, até que meu organismo combalido não
suportou mais.
Deixei a veste carnal, retornando para a verdadeira vida.
Sofri muito ao ver os erros que cometera. Certamente,
conseguira realizar uma parte dos compromissos assumidos,
mas deixei muita coisa para trás.
Recuperei-me, passando a trabalhar no socorro de quantos
precisavam de ajuda, tanto encarnados quanto
desencarnados. Atualmente, colaboro com grupos ligados à
evangelização infanto-juvenil, área a qual me dediquei na
última encarnação. Gosto de trabalhar com os jovens, tendo
grande ligação com o Grupo de Jovens de Céu Azul, que
exercem atividades no Centro Espírita Maria de Nazaré, de
Rolândia (PR), além de grupos de outras cidades, inclusive
Marília.
Como podem ver, errei muito, mas procuro expiar os
prejuízos causados aos meus semelhantes. Ainda existem
inúmeros inimigos meus precisando de socorro em zonas do
umbral. Por não conseguirem perdoar, eles, que foram
minha vítimas, sofrem ainda, o que muito me entristece,
pois me considero abençoada pela misericórdia divina.
Acredito que o relato desta pequena parcela de minhas
vivências e de meus débitos possa ser útil àqueles que
vierem a ler estas páginas, para que consigam entender a
justiça de Deus e sua misericórdia, que me fizeram renascer
para uma vida de dificuldades, pelos erros praticados ontem
contra meus semelhantes. Precisei sofrer as conseqüências
de meus atos na justa aplicação da Lei da Causa e Efeito, para
aprender o respeito que devo ter para com meus
semelhantes e para poder reparar o sofrimento que causei a
outrem. É a Pedagogia Divina que educa por meio do amor,
proporcionando-nos novas oportunidades de aprendizado,
em que, muitas vezes, sentimos na própria pele o sofrimento
que causamos aos outros, pelo mau uso do livre-arbítrio. Isso
não quer dizer que Deus deseja que soframos. Ao contrário.
Deus nos criou para a felicidade, e somente somos infelizes
quando nos afastamos da Lei Divina.
Aos poucos, percebemos que, fazendo o mal, geramos o mal
em contrapartida e sofremos e, fazendo o bem, sentimos
bem-estar, paz e alegria. Então, com o tempo, aprendemos
que, para sermos felizes, devemos fazer o bem, ajudar o
semelhante, enfim, nos pautarmos de acordo com os
padrões evangélicos, lembrando o ensinamento de Jesus que
nos convida a nos colocarmos no lugar do outro sempre que
estivermos em dúvida se devemos ou não fazer alguma
coisa, o que vale dizer, "fazer aos outros tudo o que
queremos que eles nos façam".
A Doutrina Espírita é uma luz inapagável, que prosseguirá
orientando as pessoas, mostrando-lhes as realidades do
Espírito e as implicações que promovem em relação a nós
mesmos e à sociedade. Faz-nos entender melhor o nosso
semelhante, mostrando-nos que cada um de nós está em um
grau evolutivo diferente, mais atrasado ou mais adiantado,
mas que isso não importa, porque todos temos a mesma
destinação: o progresso moral e intelectual, que nos levará à
evolução que buscamos.
Então, diante das misérias do mundo e da violência que se
alastra de maneira assustadora; dos crimes bárbaros
cometidos por seres humanos, não raro dentro da própria
família, da corrupção desvairada daqueles que buscam
apenas defender os próprios interesses, em detrimento dos
que carecem do mínimo para viver, das doenças de causa
desconhecida que assustam a população; dos desregramentos
morais, sexuais, emocionais, que desvirtuam os valores; dos
danos causados ao ecossistema do planeta, e de tantas coisas
mais, quedamo-nos assustados e perplexos.
No entanto, tudo isso representa a condição ainda inferior
de significativa parcela dos habitantes da Terra, situação que
não é definitiva, haja vista que todos são seres em evolução,
aguardando que o tempo infinito os transforme em seres
angélicos.
A Terra está em fase de grandes transformações, necessárias
para elevar este mundo de expiações e provas à categoria de
mundo de regeneração, em que as condições serão muito
diferentes e melhores. Os espíritos que não estiverem
preparados para permanecer aqui, em virtude do grau de
comprometimento com o mal e com o crime, serão atraídos
pelo magnetismo para outro planeta mais adequado às suas
condições morais.
Aos espíritas é dada a tarefa de auxiliar neste momento
glorioso de transformação, com seu exemplo e na qualidade
de agentes de mudança da sociedade na qual estão inseridos,
por meio da divulgação do Evangelho de Jesus e da Doutrina
Espírita.
Finalmente, uma realidade que não deve ser desprezada: não
podemos esquecer que o futuro – o nosso futuro – depende
das crianças e dos jovens, aos quais nos compete oferecer a
melhor orientação, a educação moral necessária para que se
transformem em cidadãos dignos e úteis a sociedade e à
propagação dos ideais que abraçamos.
Que o Senhor nos abençoe a todos e ilumine nossos esforços
rumo a um porvir melhor e mais feliz.
Muita paz!
Maria Cecília Alves
--
Correntes do Destino - Célia Xavier de CamargoDigitalização: Comunidade Romances e livros espíritas
Revisão - Lucia GarciaSinopse:Sinopse: Maria Eugênia, filha de ricos fazendeiros, descobre que seu noivo está apaixonado por uma escrava. Descontrolada, deixa-se arrastar por uma torrente de ódio e vingança. Traiçoeira, influencia Miguel, escravo apaixonado por ela, a cometer um crime. O cativo não imagina o preço que pagará pela satisfação dos seus desejos. Portadora de dons mediúnicos que deveria colocar a serviço do bem, a sinhazinha escolhe o caminho do mal, arrastada por aqueles que, no outro lado da vida, ainda não aprenderam a perdoar...Do nosso acervo :
Muita paz !
Bezerra
Livros:
http://bezerralivroseoutros.blogspot.com/
Áudios diversos:
http://bezerravideoseaudios.blogspot.com/
https://groups.google.com/group/bons_amigos?hl=pt-br
'TUDO QUE É BOM E ENGRADECE O HOMEM DEVE SER DIVULGADO!
PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR."
JOSÉ IDEAL
--
--
Seja bem vindo ao Clube do e-livro
Não esqueça de mandar seus links para lista .
Boas Leituras e obrigado por participar do nosso grupo.
==========================================================
Conheça nosso grupo Cotidiano:
http://groups.google.com.br/group/cotidiano
Muitos arquivos e filmes.
==========================================================
Você recebeu esta mensagem porque está inscrito no Grupo "clube do e-livro" em Grupos do Google.
Para postar neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro@googlegroups.com
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para clube-do-e-livro-unsubscribe@googlegroups.com
Para ver mais opções, visite este grupo em http://groups.google.com.br/group/clube-do-e-
---
Você está recebendo esta mensagem porque se inscreveu no grupo "clube do e-livro" dos Grupos do Google.
Para cancelar a inscrição neste grupo e parar de receber seus e-mails, envie um e-mail para clube-do-e-livro+unsubscribe@googlegroups.com.
Para obter mais opções, acesse https://groups.google.com/groups/opt_out.
Nenhum comentário:
Postar um comentário