Wilson Rocha
O FABRICANTE DE
TERREMOTOS
UM PLANO PARA SACUDIR O MUNDO
Cheio de esperanças, o garoto Diogo chega a Los
Angeles para conhecer sua nova família. Finalmente
aquele órfão brasileiro ganharia um lar de verdade!
Pena que o recente terremoto tivesse causado tantos
estragos e deixado a cidade na maior confusão.
Diogo logo percebe que as coisas não vão ser bem do
jeito que ele tinha imaginado. E, para piorar tudo,
acaba sendo seqüestrado por uma perigosa quadrilha.
Por que alguém pensaria em seqüestrar um garoto
pobre como ele? E por que as pessoas estavam tão
nervosas?
Envolvido em uma trama que pode espalhar morte e
destruição por toda parte, o garoto nem desconfia dos
perigos que o esperam. Prepare-se para viver com
Diogo momentos de intensa emoção, daqueles de
abalar os nervos de qualquer um.
SUMÁRIO
1. VOCÊ SABE O QUE É TERREMOTO?
2. TERREMOTO EM LOS ANGELES
3. SEQÜESTRADO
4. E AGORA?
5. A ORDEM MORTAL DO ESPADARTE
6. UMA DUPLA NÃO DESEJADA
7. FUGA NO HELICÓPTERO
8. OS DELÍRIOS DE O'HARA
9. NO FUNDO DO PINO
10. OLHA SÓ QUEM CHEGOU!
11. DIOGO CHEGA AO PERU
12. GARCIA E PADRE CARLITO CHEGAM PERTO
13. O PODEROSO DON RAUL
14. A GRANDE EMOÇÃO DE JUAN GARCIA
15. OLÁ, CHARO. ADEUS, CHARO.
16. O PLANO DO SENHOR CAOS
17. SOCIEDADE DOS SEQÜESTRADOS
18. UM BOM DIA PARA ESCAPAR
19. TERROR NA VILA MÍSTICA
20. O TIRO CERTEIRO DE PEPE GARCIA
21. O ENCONTRO COM OS JAPONESES DA VILA
22. SABOTAGEM
23. UM NOVO PAI PARA DIOGO
24. AGORA SIM — VOCÊ SABE O QUE É TERREMOTO?
- UM RECADO DO AUTOR
1. VOCÊ SABE O QUE É TERREMOTO?
No final do livro, escrevi um recado para você. Acho que isso vai
ajudá-lo a entender melhor muita coisa que acontece nesta histó-
ria. Talvez — quem sabe — seja até melhor você dar uma olhada
agora, antes mesmo de começar a leitura dos próximos capítulos.
Mas pode, também, deixar para quando acabar de ler tudo. Ou,
quem sabe, dar uma olhada rápida, de vez em quando. Confira. O
recado está lá e é importante.
2. TERREMOTO EM LOS ANGELES
Em uma terça-feira de janeiro de 1994, na Ventura Boulevard,
principal rua comercial da região de Los Angeles (costa oeste dos
Estados Unidos da América), as lojas estavam todas fechadas. As
calçadas, cobertas de vidro quebrado, mostravam o dano causado a
praticamente todas as vitrines da rua. Um cartaz contra o uso do
fumo, que se via em cima da loja Ahas, tinha ruído pela metade. A
marquise de entrada da lanchonete Johnny Rockets estava por um
fio, e era visível a rachadura larga, de alto a baixo, numa quina do
prédio. Em quase todos os estabelecimentos começavam a ser
colocados tapumes de madeira para substituir o vidro. Tudo isso
ainda era pouco, comparado ao que tinha acontecido com outros
edifícios que vieram ao chão, alguns chegando a incendiar-se.
Houve postos de gasolina que chegaram a explodir. A Ventura
Boulevard havia sido o local mais afetado pelo terremoto da
véspera. Em Northridge, epicentro do terremoto, 15 pessoas —
estudantes na maioria — haviam morrido.
No domingo que antecedeu a segunda-feira do terremoto, a
temperatura estivera excepcionalmente alta para essa época do
ano: 27 graus. Como sempre, multidões lotavam o Starbucks —
café freqüentadíssimo que se tornara ponto de encontro da
Ventura, em Sherman Oaks, para quem gosta de expresso e
capuccino entre uma visita à butique Banana Republic ou à loja
de discos Tower Records, ou, então, de um sanduíche no Johnny
Rockets — lanchonete à moda dos anos 50, bem ali em frente.
Durante a madrugada, tudo veio abaixo. Saldo trágico do
terremoto: 34 mortos, 15 mil desabrigados, mil prédios abalados,
500 mil casas sem luz, 200 mil sem água e um prejuízo de 10
bilhões de dólares.
O terremoto danificou duas freeways importantíssimas: a
Interstate 5 (principal estrada da Califórnia no sentido norte-sul) e
a Interstate 10, ou autopista de Santa Mônica, a mais movimentada
dos Estados Unidos. Vários viadutos tombaram em toda a região, e
as autoridades calculavam que os danos causados ao sistema viário
iriam afetar, pelos próximos 12 meses, todos os aspectos da vida
diária dos 9 milhões de habitantes de Los Angeles.
Feridos tiveram de ser atendidos nas calçadas, pois os hospitais
ficaram lotados. Grande parte da cidade estava em ruínas.
Este era o quadro que aguardava o pequeno Diogo, no dia de seu
desembarque em Los Angeles, aonde chegara sozinho, trazido num
avião da Varig, para conhecer seus pais adotivos. Além da
destruição, outro desastre o esperava: o casal Mayerberg, que se
encontrava em seu apartamento durante o terremoto, tinha
morrido sob os escombros do prédio, quando este desabou.
Diogo era órfão, e passara toda a sua primeira infância num
orfanato católico, no Rio de Janeiro. Para ele, o padre Carlito fora
a imagem masculina mais importante. Irmã Dirce fizera o papel de
mãe. O padre, porém, missionário entre os indígenas de toda a
América Latina, vivia no sertão e muito raramente aparecia no
asilo para brincar e dar aulas aos meninos órfãos. Embora
procurasse dedicar tratamento igual a todos os internos, parecia
oferecer um carinho todo especial a Diogo por julgá-lo o mais
carente e indefeso de todos. Qual a razão dessa mal disfarçada
preferência? O fato de Diogo ser gago, e o padre ter se esforçado
muito tentando curá-lo?
O padre Carlito, quando ia ao Rio, costumava passar horas e horas
ao lado de Diogo, conversando, passando-lhe ensinamentos sobre
botânica, geologia, história e geografia. E astronomia também.
Costumavam, à noite, ficar contemplando o céu, da varanda do
orfanato, muito tempo depois de os outros se recolherem. Padre
Carlito falava dos astros, dos movimentos dos corpos celestes, e
sobre sua constituição. A conversa só acabava quando irmã Dirce
vinha alertá-los sobre o adiantado da noite, e Diogo ainda ficava
muito tempo acordado em sua cama, tentando imaginar o
funcionamento da máquina do universo.
Diogo não tinha certeza do lugar exato onde nascera, e muito
menos quem tinham sido seus pais. A cor amorenada de sua pele
era bem típica de grande parte dos brasileiros, mas havia algo no
formato dos olhos, e nos cabelos muito lisos e muito negros, que
lembrava outras raças, talvez indígenas. Diogo bem poderia passar
por um descendente dos primeiros habitantes da América.
Talvez isso houvesse representado mais um atrativo, quando aque-
le casal de judeus americanos, em visita ao Brasil, buscando uma
criança para adotar, o tivesse escolhido.
Não foi tão fácil assim. Para que o orfanato e as autoridades
brasileiras autorizassem a adoção, foi preciso consultar padre
Carlito, que teve de interromper uma de suas viagens à selva, e vir
correndo ao Rio de Janeiro dar seu parecer sobre o assunto. E
padre Carlito só concordou com a adoção após uma série de
investigações, e até uma visita pessoal à casa do casal Mayerberg,
em Los Angeles.
Depois disso, já entusiasmado, o padre deu todos os esclarecimen-
tos a Diogo, passando-lhe total confiança e lhe garantindo que o
casal era gente de bom coração, apta a contribuir para a sua total
felicidade no futuro.
Por isso, Diogo — agora com doze anos — foi colocado no avião,
naquela segunda-feira, no próprio dia em que Los Angeles, a cidade
onde iria viver, era sacudida por um dos piores terremotos de sua
história.
Depois de uma longa espera no aeroporto, até que os funcionários
da imigração — a quem Diogo fora entregue pelos da companhia
aérea — entendessem o que estava acontecendo com ele, o garoto
ficou longas horas passando de mão em mão. Calado (mesmo
porque não sabia o que dizer), e um pouco amedrontado, ele se
deixava conduzir de uma sala para outra, naquele lugar
completamente estranho, com a paciência própria dos órfãos e
desamparados. E, tudo isso, sem saber o que tinha acontecido.
Finalmente, um representante da policia de Los Angeles, o sargen-
to Garcia, foi encarregado de cuidar de Diogo, enquanto as
autoridades resolviam o que fazer com ele.
Com a morte dos Mayerberg, oficialmente seus pais adotivos, esta-
va criado um problema de complicada solução: Diogo voltara a ser
órfão.
E qual seria agora a sua situação legal? Seria ele um americano (por
adoção, embora novamente órfão), ou nada mais que um simples
visitante estrangeiro? Para piorar a situação, os Mayerberg não
tinham parentes na cidade. Deveriam mandar o garoto de volta
para o Brasil? Seria justo devolvê-lo ao orfanato? Bem, o jeito
talvez fosse ouvir a Justiça americana, assim que as coisas se
acalmassem.
Tudo poderia ser um pouco mais fácil, não fosse toda a confusão
causada pelo terremoto. O jeito foi confiar o menino,
provisoriamente, à guarda do sargento Garcia, que deveria
também supervisionar as providências administrativas para
resolver o caso.
A primeira coisa que Garcia fez foi pegar seu bonito carro — que,
apesar de ser uma de suas poucas vaidades, e muitíssimo bem
cuidado, ele também usava em serviço — a fim de levar o garoto
para a sua própria casa. Felizmente, ficava num bairro poupado
pelo terremoto. Assim que chegasse lá, o sargento procuraria
encher-se de coragem para contar a Diogo a dolorosa verdade.
Do automóvel, podiam ver o caos em que a cidade se transformara.
Sem água e eletricidade, e com medo de novos desabamentos,
cerca de 15 mil pessoas haviam acampado em ruas, parques, jardins
e abrigos improvisados.
Diogo estava achando interessante o rádio do carro estar sempre
falando, ligado à central de polícia, mas não entendia patavina do
que dizia. As transmissões informavam, num inglês nervoso, que o
governo decretara estado de calamidade pública na região,
comprometendo-se a enviar ajuda maciça à população. Repetiam,
sem parar, que os trabalhos de recuperação das estradas e avenidas
poderiam levar meses, talvez anos. A presença ostensiva de forças
policiais, em quase todos os quarteirões, era uma demonstração de
que os saques às lojas e aos supermercados seriam combatidos.
Equipes de resgate, com cães treinados e equipamentos sofistica-
dos, procuravam sobreviventes entre as ruínas dos prédios e
garagens.
Parecia impraticável, no entanto, impedir os engarrafamentos
gigantescos. Só colocando, no teto do carro, a luzinha que o
identificava como policial, e fazendo soar uma sirene, foi que
Garcia conseguiu atravessar impunemente um canteiro e passar
para uma pista de menor movimento. Por isso, em pouco mais de
uma hora, haviam chegado à casa do sargento.
Há muito tempo Diogo não entrava em uma casa de família. Aliás,
que se lembrasse, só conhecia um lar assim através dos filmes de
televisão. Garcia tinha um casal de filhos bem pequenos, um deles
quase recém-nascido. A mulher de Garcia era muito simpática e
sorridente, e logo procurou tornar as coisas mais fáceis para Diogo.
Enquanto o marido ligava a televisão e ia tomar um banho, ela
arrumou a mesa da cozinha, preparando uma refeição rápida para
todos.
Diogo também não entendia quase nada do que ela dizia, e estava
aflito para saber por que retardavam sua chegada à casa dos
Mayerberg. Assistindo, porém, ao que a televisão mostrava
insistentemente, distraiu-se, mas começou a perceber que toda
aquela destruição tinha sido a causa de se modificarem os planos
que havia para ele.
— Então, amiguinho. Acho que está na hora de termos uma
conversinha.
Diogo ouviu dizerem isso por trás dele, em espanhol, e voltou-se.
Era Garcia, ainda se enxugando. Esse idioma que o sargento falava
não era português, mas tinha muito a ver com o sotaque do padre
Carlito e, misturando tudo, dava para captar as mensagens
principais.
Garcia sentou-se ao lado dele e segurou-lhe o braço com a mão
enorme, que, no entanto, conseguia transmitir uma doce sensação
de carinho.
— O terremoto estragou tudo, não foi? Mas não fique triste. Pode
contar conosco. Havemos de dar um jeito.
De tudo aquilo que foi dito, a palavra terremoto pareceu ter um
destaque maior e traduzir toda a tragédia que o cercava. Diogo
sentiu súbita vontade de dizer alguma coisa, mas sem saber o quê.
Além do mais, suspeitava de que algo terrível voltara a acontecer
com a sua fala.
Servidos pela mulher do sargento, começaram a comer. Sem que
Diogo entendesse, ela falou em inglês com o marido:
— O que estão pretendendo fazer com ele?
— Eles ainda não sabem. Por enquanto, o chefe me pediu que
cuidasse dele, até as coisas ficarem mais claras. Acham que não
devemos assustá-lo, ainda, falando da morte do casal que o adotou.
Se não fosse o terremoto e toda essa tragédia, logo dariam um jeito
de devolvê-lo ao Brasil.
— Se não fosse o terremoto, isso não seria preciso. Os pais adotivos
estariam vivos. Que tal distraí-lo um pouco, antes de contar-lhe a
verdade? Ele nem sabe nada sobre nós. E nós também não sabemos
nada sobre ele. Pergunte sobre o Rio de Janeiro.
Sorrindo, Garcia alisou a cabeça de Diogo.
— É verdade, amiguinho. Precisamos nos conhecer um pouco
melhor. Muito prazer! Sou o sargento Garcia — disse, estendendo-
lhe a mão grossa.
Diogo ainda hesitou um pouco, antes de estender também a sua.
Uma remota lembrança quase fez com que sorrisse, ao ouvir o
nome do policial. Sargento Garcia. Mas aquele homem atlético
nada tinha do gordo e cômico vilão da história do Zorro. Garcia
pareceu ler os seus pensamentos, arrematando:
— Mas não sou aquele do filme do Zorro!
Aí, então, Diogo sorriu. E todos também sorriram.
Garcia falou:
— Agora me conte. Fale qualquer coisa. Ainda não ouvimos a sua
voz. Como foi a viagem? Diga alguma coisa sobre o Brasil. O Rio de
Janeiro é bonito? Lá também há terremotos?
Como para castigar o sargento da piada de mau gosto, a mesa
tremeu, os copos e talheres balançaram, e uma das crianças caiu da
banqueta onde estava sentada, começando a chorar. O televisor
soltou fagulhas e perdeu a imagem. Diogo viu o terror estampado
nos olhos da mulher de Garcia, que se abraçou aos filhos para
protegê-los. O tremor durou apenas o tempo suficiente para o
policial ficar de pé, apoiando-se com firmeza no solo, como se
pudesse, deste modo, oferecer proteção à sua família.
— Calma! Não há perigo. Foi apenas um tremor secundário. Eles
sempre acontecem depois do terremoto principal. Talvez ainda
haja vários outros. Vocês estão bem?
— Garcia afagou a cabeça dos filhos, e em seguida foi examinar
Diogo. O garoto estava pálido, mas pela primeira vez, desde a sua
chegada, ele falou:
— Garcia afagou a cabeça dos filhos, e em seguida foi examinar
Diogo. O garoto estava pálido, mas pela primeira vez, desde a sua
chegada, ele falou:
— Calma! Foi apenas um tremor secundário. Vocês
estão bem? — quis saber o sargento Garcia.
— P-por fa-favor! E-eu qu-quero me-meus pa-pais! O-onde eles e-
e-estão?
A criança que caíra ao chão parou de chorar e riu. Não entendeu o
que Diogo dizia, mas achou graça no esforço que ele fazia para
falar.
3. SEQÜESTRADO
Apenas um dia depois do terremoto de 6,6 graus de intensidade,
que causou tanta destruição em Los Angeles, centenas de novos
tremores secundários — alguns de 5 graus na escala Richter (que
vai até 9) — voltaram a inquietar a cidade, que é, depois de Nova
York, a segunda maior cidade dos Estados Unidos. À noite, esses
aftershocks ainda provocaram alguns desabamentos, obrigando
muita gente a voltar a dormir na rua, de puro medo de ficar dentro
de casa.
Mesmo assim, corajosamente, a população procurava tentar voltar
à rotina, em meio a prédios arruinados e estradas interditadas, com
as agências de seguro calculando o prejuízo acima dos 7 bilhões de
dólares — o maior da história americana, provocado por um
terremoto.
— E o prejuízo deste menino, quanto irá custar? — perguntava
Maria Garcia ao marido, na manhã seguinte, à mesa do café,
olhando Diogo.
Talvez o garoto não houvesse entendido as palavras, mas percebeu
a preocupação. Estavam com pena dele, algo que lhe era
completamente estranho. No orfanato, isso não acontecia.
Nenhuma das freiras, nem os padres — e muito menos o padre
Carlito — demonstravam qualquer sinal de comiseração pelos
internos. Eram órfãos, sim, mas e daí? Tentavam incutir-lhes a
confiança em um futuro melhor, mesmo para aqueles que nunca
viessem a ser adotados por gente bondosa e rica.
Por que, agora, aqueles americanos de fala espanhola o olhavam
com tanta tristeza?
— Acho melhor você contar a ele, Juan — disse Maria. — Se você
não o fizer, outros o farão, e de maneira grosseira.
— Por que você não conta? — disse Garcia. — Você é mulher, é
mãe. Tem mais jeito. Eu sou apenas um policial.
— Por onde será que eu começo? — disse Maria, já quase
convencida de que deveria ser ela a falar.
— Comece pelo meu exemplo. Diga que eu também fui órfão.
— Ah, então fale você.
Garcia, então, o suspendeu por baixo dos ombros e o carregou até
sua poltrona favorita, sentando-se com ele no colo.
— Bem, rapaz. Vamos ter agora uma conversa de homem para
homem. Ou melhor: de órfão para órfão. Eu também fui como
você, sabia? Tive, um dia, os mesmos problemas. Entende o meu
espanhol?
Diogo balançou a cabeça, confirmando. E Garcia prosseguiu:
— Meus pais eram mexicanos, e minha mãe morreu quando meu
segundo irmão nasceu. Meu pai veio trabalhar nos Estados Unidos,
e me trouxe. Meu irmão, bem menor, ficou aos cuidados de uma
tia. Logo, porém, papai sofreu um acidente de ônibus, veio a
falecer, e eu fiquei sozinho aqui. Fui criado em um orfanato
americano.
— E-e de-depois? Te-teve pa-pais a-adotivos? — perguntou Diogo,
em português.
Garcia fez que não, com a cabeça, controlando a vontade de logo
dizer: nem você. Preferiu, porém, o caminho indireto.
— Você viu o que fez este terremoto? Sabe quando aconteceu? Foi
quando você estava voando para cá. E faz idéia dos estragos que
causou? Gente que morreu, gente que perdeu suas casas, seus
parentes. O terremoto mudou a vida de muita gente. Talvez para
sempre. Vai ser difícil essas pessoas se acostumarem com o
irremediável. Mas o que fazer? Só dando tempo ao tempo,
esperando que novas coisas aconteçam. E sempre acabam
acontecendo. Está entendendo o que eu digo? Eu também perdi
tudo uma vez — quando era ainda menor que você —, e veja: aqui
estou eu, com minha família, sem poder me queixar da vida. E, as
coisas acabaram dando certo para mim. Como vão acabar dando
certo para você.
Disse isso e ficou aguardando a reação de Diogo, que logo falou:
— E-então po-por qu-que nã-não me le-leva logo pro-pros me-
meus pais a-adotivos? Não te-tem o endereço?
Garcia engoliu em seco:
— O endereço não existe mais.
— Não e-existe? Como? Eu te-tenho o en-endereço, quer? Está-tá
no-no bolso do meu blu-blusão. Vo-vou buscar!
Diogo tentou se levantar, mas o sargento o segurou.
— Venha, Diogo. Não adianta. O lugar existe. A rua existe. O
número existe. A casa é que não existe mais.
Diogo pensou uns dez segundos e perguntou, direto, sem gaguejar:
— E o seu Mayerberg? E a dona Sara?
Garcia olhou firme nos olhos dele, treinado em dar más notícias,
mas não disse nada. O menino também não falou. Apenas os
grandes olhos negros molhados demonstravam que alguma coisa
desabava tardiamente dentro dele, como sob o impacto de mais um
aftershock. Um grande espaço vazio nas profundezas de sua
alma era a conseqüência de mais esta catástrofe, que punha em
ruínas o seu grande sonho.
Garcia começou então a atropelar o garoto com esperanças, falan-
do sobre as providências que estavam sendo tomadas, que o
consulado brasileiro entrara em ação, que já estavam trocando fax
com o Brasil, que o orfanato iria mandar alguém a Los Angeles, que
enquanto não viessem ele poderia ficar ali, pertencer à família, ser
tratado como um filho... e foi então que o telefone tocou.
Precisavam de Garcia, na chefatura de polícia. Os problemas eram
muitos na cidade e não podiam dispensar ninguém.
— E o que faço com o garoto?
— Traga-o. O juiz e o consulado entraram em acordo. Foi designa-
da uma assistente social, que virá conhecê-lo.
Que bom se as coisas fossem assim, tão rápidas, em todos os países!
— Mas ele está bem aqui — argumentou Garcia. — Minha mulher
cuidaria dele, até tudo se acalmar. É um bom menino.
— Não podemos assumir esta responsabilidade. Isso criaria
problemas internacionais. Traga o menino!
Garcia não teve outro jeito senão obedecer. Mas prometeu a Maria
ficar de olho, para que nada assustasse ou entristecesse Diogo.
E, depois que o sargento, com uma flanela, deu uma rapidíssima
esfregada na carroceria do carro, lá se foram os dois, novamente,
enfrentando uma nova jornada no inferno das ruas atingidas pelo
terremoto.
Ainda havia 20 mil pessoas desabrigadas, apavoradas com a previ-
são de uma tempestade para os próximos dias, além de novos
tremores. Cansadas e com fome, milhares de pessoas superlotavam
os abrigos abertos pela Cruz Vermelha e pelo governo da
Califórnia. Havia tumultos e brigas, gente disputando fraldas,
galões de água e alimentos distribuídos pelas instituições de
assistência.
Sim, de fato, não era possível dispensar a ajuda de um policial
eficiente como o sargento Garcia.
O difícil era chegar com o carro até a delegacia, driblando outra
vez os engarrafamentos. O trajeto iria demorar, no mínimo, três
vezes mais que o tempo habitual. Pelo rádio, Garcia ouvia os
insistentes pedidos da Prefeitura para que todos os motoristas
cedessem lugar, em seus veículos, à população desprovida de
transporte.
— Os carros policiais também? Bem, olhando o meu, nunca
saberiam, pois não tem distintivos — comentou Garcia, em
espanhol, explicando a Diogo o problema, tentando distraí-lo.
Diogo, porém, permanecia sério e calado. Não dissera mais palavra
alguma, depois da notícia da morte dos Mayerberg. O sargento se
esforçava:
— Para desviar dos congestionamentos, vamos ter que cruzar o
bairro dos milionários. Já viu as mansões de Los Angeles, onde
moram os artistas? Aqui perto há algumas. Vou lhe mostrar, quer
ver?
Sem esperar resposta, fez uma curva, subiu uma ladeira e
desembocou no paraíso. — Estas residências, aqui, parece que
foram poupadas. Mas houve outras, mais além, que sofreram
estragos. Uma até se incendiou e ficou totalmente destruída. Os
terremotos não distinguem entre os ricos e os pobres.
— O-o qu-que é um te-terremoto? — disse Diogo, falando pela
primeira vez.
Garcia freou o carro e o desligou, a poucos metros dos portões de
uma linda mansão. Diogo tinha tocado em uma de suas grandes
vaidades: saber falar sobre terremotos. Criado em Los Angeles,
numa das zonas do globo terrestre mais ameaçadas pelos tremores
de terra, em pleno cinturão do fogo, exatamente acima da
famosa falha de Santo André, o sargento lera e estudara muito
sobre o problema, sem se perguntar por que — mesmo sabendo do
risco que corria com a família — nunca se mudara dali.
Depois de algumas explicações sobre o fenômeno e alguns dese-
nhos mostrando as áreas do mundo sujeitas a terremotos, o
sargento esclareceu:
— Mas o Brasil está fora! Nisso, parece, vocês têm sorte!
Teria Diogo dado um ligeiro sorriso? Bem, estava na hora de ir
embora. Garcia já ligara outra vez o motor, quando percebeu que o
portão da mansão se abrira. Um carro buzinou, querendo sair,
pedindo passagem. Era um carro novo e bem-tratado, porém
comum, sem qualquer luxo — talvez usado pelo pessoal da
segurança — e da mesma marca que o dele. Garcia conseguiu ver
que, dentro do veículo, havia apenas o motorista (estão relaxando!
— pensou), tendo ao lado alguém de pequena estatura,
provavelmente uma criança.
O sargento deu ligeiramente à ré, deixando o outro automóvel
tomar a dianteira, e seguiu atrás, na mesma direção.
Logo a seguir, havia uma bifurcação. O carro da frente fez sinal e
dobrou à direita, enquanto Garcia virava à esquerda.
— Bem, adeus, milionários! — comentou, começando a acelerar.
— Vamos, que já estamos atrasados.
Mas, afinal, atrasados para quê? Para a tal assistente social? Para a
nova vida de Diogo? Se pudesse, o sargento daria meia-volta e
retornaria ao seu mundo, para Maria e os filhos, e incluiria Diogo
entre eles. Que adianta insistir em seguir as regras estabelecidas, se
um simples terremoto, de repente, resolve acabar com elas? Foi aí
que a coisa aconteceu. Dois homens surgiram à frente do carro,
adiante, fazendo sinais para que parasse. Pareciam nervosos.
Querem carona! — pensou Garcia. Para não atropelá-los, teve de
diminuir a marcha, disposto a não atendê-los. Logo, porém,
apareceu um terceiro sujeito, ao seu lado, segurando na porta.
— Ei!
O camarada estava se pendurando na porta, enfiando o braço para
dentro do carro, gritando para que parasse. Prestando atenção
nele, não percebeu a tempo que os outros dois se agarravam à
porta do lado oposto, junto a Diogo.
— Saiam! Saiam! Não tem carona! Não posso!
Só então Garcia viu o revólver. Na mão do cara à sua esquerda. Os
outros dois já estavam entrando, e também armados. Um deles já
segurava Diogo, que se debatia.
— O que é isso?
Um furgão azul atravessou e parou à sua frente. Garcia freou, e ia
levar a mão ao bolso.
— Não tente! — ordenou o homem à sua esquerda, encostando o
aço frio do revólver à sua cabeça.
Suspendeu os braços, impotente, vendo arrancarem o garoto de
dentro do automóvel, e o levarem correndo para o furgão. Ouviu
um estampido, e percebeu que era um tiro para furar um de seus
pneus. Logo estava completamente sozinho, e os demais
personagens — desse drama em quinze segundos — haviam
desaparecido com o furgão, com Diogo, e com seu orgulho de
policial.
4. E AGORA?
— Eu nem estava com a minha arma! Tinha esquecido em casa —
gritava Garcia, possesso, na chefatura, socando um arquivo.
— Calma! Já fez a besteira, está feito! — tranqüilizava Collins, seu
colega, no meio da roda de policiais confusos.
O delegado, porém, não estava tão bonzinho assim. Descendente
de irlandeses de sangue quente, ele tinha um preconceito
inconfessável contra a disciplina e a seriedade profissional dos
chicanos como Garcia, e dos negros como Collins.
— Como está feito! Pensam que vou assumir tudo isso em cima
da minha cabeça? Garcia agiu como um amador. Ou, diria melhor,
como um perfeito idiota! — dizia ele, aos berros. — E não adianta
agora ficar dando murros nos móveis! Ninguém vai ficar com pena
se o quiserem expulsar da corporação!
— Ora, chefe — falou Collins —, também não é o caso.
— Como não é o caso? Desde quando uma criança, sob proteção
policial, é seqüestrada de dentro do próprio carro da polícia, sem a
menor reação? E — o mais grave — o policial responsável havia
esquecido a arma no bolso do outro paletó.
— Não esqueci. Foi minha mulher que trocou, sem me avisar —
defendeu-se Garcia.
— Não diga bobagens, que se complica ainda mais. Jogar a culpa na
própria esposa não vai ajudá-lo em nada.
— Não estou jogando culpa em ninguém. Quero só deixar claro
que... ora, não adianta mesmo! — Garcia sentou-se, com o rosto
entre as mãos.
— É, você disse bem: não adianta! O que está feito está feito!
Temos, agora, é de agir rapidamente para encontrar o menino. Só
que, com esse problema do terremoto, será um milhão de vezes
mais difícil. Onde mora esse garoto?
Garcia abriu as mãos, levantou o rosto e olhou o chefe. Com
vontade de rir.
— Ele não mora.
— Como não mora? Quem é a família dele? Quero um dossiê
completo sobre essa gente. Liguem para o pai do menino. Preciso
saber se já fizeram contato pedindo o resgate. Miseráveis,
escolherem uma hora dessas para...
O delegado interrompeu o que estava dizendo. Olhou em volta e
viu que ninguém se movera.
— Ei! O que está havendo? O que deu em vocês?
Antes que Garcia começasse a falar, Collins tomou a frente e
explicou:
— Chefe, o garoto não tem pais. É órfão. É pobre. É brasileiro.
Chegou ontem a Los Angeles, mas o casal americano que o havia
adotado morreu num desabamento.
O delegado coçou a cabeça.
— Mas... mas então por que o seqüestraram?
Havia cinco homens no furgão onde transportaram Diogo.
Ninguém falou nada durante o trajeto, embora continuassem
tensos, de armas em punho. Um deles ainda tentou amarrar um
lenço em volta dos olhos do garoto, mas outro fez um sinal,
dispensando-o de fazê-lo. Rodaram em alta velocidade,
aparentemente evitando as zonas atingidas pelo terremoto,
afastando-se cada vez mais das áreas populosas.
Diogo percebeu que já quase não se viam edifícios altos. De repen-
te, apareceu o mar. Muito mar. Foi aí que o mesmo sujeito que
impedira o outro de vendá-lo fez Diogo despir a jaqueta que usava,
cobrindo com ela a cabeça e o rosto do menino.
Passaram-se alguns minutos, até que o veículo foi perdendo a
aceleração, e finalmente parou. Um estrondo metálico deu a
impressão de que algo pesado se fechara por trás deles. Como se
isso fosse um sinal, desligaram o motor. Ainda com a cabeça
coberta pela jaqueta, Diogo foi retirado do veículo e levado por
eles, ora puxado, ora carregado. Subiram e desceram escadas
metálicas, portas se abriram e se fecharam, até que, finalmente, o
fizeram sentar-se, e ele teve a sensação de que o tinham deixado
sozinho e em paz.
Mas estavam perto, ali bem em frente a ele, falando em inglês.
Diogo tirou a jaqueta da cabeça e viu. Os indivíduos, agora, eram o
dobro, e havia duas mulheres. Nada de máscaras, nem de capuzes,
mas várias armas, manuseadas com nervosismo. Todos os olhares
do grupo estavam voltados para o líder, sentado a uma mesa onde
havia um computador e um telefone. O líder segurava o telefone,
como esperando ansiosamente que alguém ligasse a qualquer
momento. Ele próprio, no entanto, procurava controlar-se,
pedindo calma aos demais:
— Sem pressa, sem pressa! Kino já vai ligar com a resposta.
— O Kino testou direito esse telefone público? Está mesmo
funcionando? Olha que com o terremoto...
O líder fuzilou com o olhar o sujeito que falara.
— Cale esta boca! O Kino sabe o que faz. Experimentou várias
cabines, em vários pontos, e tornou a experimentar hoje pela
manhã. Está num telefone ótimo, ideal para falar com os pais do
garoto, pedir o resgate, e depois ligar para cá informando. Tudo
isso sem que a polícia possa identificar de onde foram feitas as
chamadas.
— Não sei, não. Com os novos tremores, as coisas sempre podem
mudar.
O líder ficou de pé, bruscamente, largou o telefone e deu um soco
no peito do pessimista, quase derrubando-o.
— Pare de dar azar, seu pé-frio! Quem entrou nessa tem de estar
confiante em que as coisas vão dar certo. Não planejamos tudo? Se
depender de mim, nenhum contratempo irá estragar o projeto.
Agora não há mais jeito de voltar atrás.
Com a pose de um almirante, em plena batalha naval, o líder dos
seqüestradores andava de um lado para outro, arrogante, exibindo-
se à seus comandados. Fazia questão de falar complicado, como um
professor antipático.
— Nossa participação é só o ponto de partida de algo muito maior.
Por isso, vocês foram escolhidos a dedo, entre os profissionais
mais experimentados do ramo. Todos aqui já estiveram em outras
missões desse tipo — não apenas seqüestras, mas assaltos a bancos,
ajuda a fugas em penitenciárias e atos de terrorismo. Nas outras
células da organização, inclusive nos outros países, há gente do
mesmo peso. E todos sabem no mínimo — que serão muito bem
pagos depois que tudo acabar.
O pessimista de antes voltou a perguntar:
— Mas, não pode ao menos nos dar uma idéia do que consiste todo
esse plano?
O líder tornou a fechar os dedos da mão direita, mas antes que
fizesse alguma coisa, o telefone tocou.
— Kino!
Assustado com a campainha, Diogo dera um pulo da cadeira onde
estava, enquanto o líder dos seqüestradores arrancava o fone do
gancho e atendia, sorrindo.
— Alô! Kino? Sim, aqui é o Espadarte! E aí? O que disseram os pais
do garoto?
O rosto do líder foi-se contraindo.
— Como?! Estranharam? Estranharam o quê? Mas... O filho deles
está lá?! Continua com eles?!
Agora, todo o bando se entreolhava, inquieto.
— Kino, você tem certeza de que ligou para os milionários certos?
Perguntou os nomes? Não é possível, Kino. Ligue para lá outra vez,
e mande procurarem direito, saberem no colégio, buscarem na
casa inteira. Esse garoto tem de estar desaparecido! Nós acabamos
de seqüestrá-lo, Kino!
Um dos seqüestradores bufou, impaciente. O pessimista não resis-
tiu e esboçou um ligeiro sorriso de vitória. O líder já estava
perdendo todas as esperanças.
— O filho está no colo deles?!
O líder estava pálido.
— Kino, só mais um pequeno detalhe. Você verificou se esse garoto
é mesmo filho único? Eles não têm outro? Ah, não têm?... Tudo
bem, Kino. Desligue e retorne à base. Hein, Kino? O quê? Se nós
aqui temos certeza de quem foi que nós pegamos?
Sem responder, o líder desligou o telefone como quem baixa um
rifle, com a frustração de um caçador que atirou, bem de perto,
num tigre, e errou. Dirigiu, então, um olhar gelado em direção a
Diogo, e todos em volta fizeram o mesmo. Em sua cadeira, o garoto
encolheu-se. Com a voz quase inaudível, o Espadarte perguntou:
— Alguém me faz o favor de dizer quem é este peste que nós
seqüestramos?
Não houve tempo. Um novo tremor, resultante de outro
assentamento natural do solo, sacudiu a sala, como se Deus
estivesse dando uma grande gargalhada pela peça que pregara nos
bandidos.
Os sismólogos — cientistas que estudam os terremotos — estavam
intrigados com a força desses aftershocks. Dois deles tinham
atingido 5,1 na escala Richter, o que já poderia ser considerado um
tremor de grandes proporções. Alguns aftershocks sentidos em
Los Angeles, após o terremoto inicial, foram tão fortes que já
provocavam os seus próprios aftershocks. Isso não pararia mais?
O mais trágico, porém, é que o número de mortos subira para 55.
Uma boa notícia, no entanto, foi a de que os saques a lojas e
residências pareciam ter sido contidos. A prefeitura, por isso,
cancelara o toque de recolher noturno, que estivera em vigor
desde a segunda-feira do terremoto. Nos jornais, estes foram os
destaques, além dos crimes comuns da rotina de uma grande
cidade, do trânsito ainda caótico, e dos graves problemas da defesa
civil. Uma ocorrência criminal incomum, no entanto, quase
passou despercebida: o seqüestro de um garoto brasileiro, cujos pais
adotivos haviam morrido no terremoto.
Não bastasse estarem às voltas com estes fatos, o delegado Sean
O'Hara e seus subordinados sentiam-se também perturbados com
um mistério inédito nos anais da polícia metropolitana de Los
Angeles: a denúncia de um não-seqüestro.
Ele novamente reunira seus principais colaboradores, e tentava
decifrar a nova charada, antes que enlouquecesse:
— Ponto 1: atacaram Garcia quando ele transportava um órfão sob
seus cuidados, e o seqüestraram.
— Seqüestraram o órfão. Não Garcia — sublinhou Collins.
— Claro! Mas teriam feito isso também se quisessem, sem maiores
dificuldades — ironizou O'Hara e prosseguiu:
— Ponto 2: uma família ligou para a delegacia, informando ter
recebido uma série de telefonemas suspeitos, a respeito de seu
filho, no pressuposto de que o menino havia sido também
seqüestrado. Só que isto, na verdade, não aconteceu. O garoto
continua lá com eles. Mas estão muito assustados, pois julgam que
se trata de uma espécie de ensaio para que o seqüestro,
efetivamente, aconteça.
— Uma nova modalidade de ameaça! — disse Collins.
— Exatamente! Eles pedem proteção, e nós temos de dá-la, apesar
de todas as dificuldades por que a cidade está passando. A família é
esta! — e escreveu um nome no bloco de notas, para fazer
suspense, continuando: — Não preciso dizer mais nada para
saberem que é gente da maior importância.
— E o que você vai fazer? — perguntou Collins. — Sabe como são
esses grã-finos. Se não nos mexermos logo, eles comunicarão o fato
ao FBI.
— Pensei o seguinte: mandamos o Evans para lá, com dois guardas,
para fazer bonito, e o caso do órfão brasileiro nós deixamos pros
federais. Correto? Aliás, vou dar um toque em Patrick sobre isso e
pedir a opinião dele.
Todos ali sabiam que O'Hara se referia a seu irmão mais moço, que
era agente da CIA. Essa ligação familiar facilitava muito a vida do
delegado, que tinha acesso imediato a certas informações,
geralmente fora da alçada da polícia convencional. Cansados,
porém, e doidos para ir embora, ninguém fez qualquer comentário.
Mas Garcia pediu a palavra:
— Só uma coisa, chefe.
Todos se voltaram, e Garcia acrescentou, com o jeito irônico dos
latinos:
— Faltou ainda o Ponto 3.
O delegado, de pé, imponente e arrogante, colocou as duas mãos
na cintura:
— Sim?
— Posso falar? Bem, então, lá vai. Ponto 3: haverá alguma relação
entre o seqüestro verdadeiro do brasileirinho pobre e o seqüestro
falso do americaninho rico?
Ninguém respondeu, e Garcia foi em frente:
— Ninguém diz nada, mas eu digo: sim, há uma coisa em comum!
Talvez várias coisas em comum. Mas eu começo pela primeira: o
local do seqüestro.
O'Hara voltou a sentar-se, sem tirar os olhos do sargento, e deixou-
o falar. Garcia continuou, dirigindo-se a um imenso mapa de Los
Angeles na parede:
— Se notarem bem, fui atacado aqui nesta rua, pouco depois desta
esquina. E a apenas alguns metros desta esquina o que fica,
senhores?
Todos chegaram mais perto. Já haviam adivinhado o que Garcia
queria dizer. A maioria sabia que era ali que ficava a mansão
Warrington.
— Exatamente o que pensaram: o casarão onde moram os
milionários Warrington, cujo filho deveria ter sido seqüestrado,
mas não foi.
— E por que não foi? — perguntou Collins, por perguntar, já
prevendo qual seria a resposta.
— Porque, por engano, seqüestraram o meu órfão.
O delegado se remexeu na cadeira.
— Muito bem, agora pode me explicar com detalhes por que acha
isso?
Garcia, então, começou a contar ponto por ponto, com riqueza de
pormenores, seu passeio pelo bairro das mansões, a parada em
frente ao palacete, o momento em que saiu lá de dentro o carro
com um garoto e o motorista dele, sua marcha à ré para deixá-los
passar, até que os respectivos carros, depois de virarem a esquina,
tomaram direções opostas. E concluiu:
— Em suma: os bandidos confundiram os automóveis. Veículos
parecidos, com um adulto e um menino. Tudo igualzinho.
Esperavam, de tocaia, que o carro com o garoto milionário fosse
passar onde, afinal, passou o meu. Ele mudou o itinerário, foi para
outro lado, escapou, e eu é que fui atacado.
Total silêncio por alguns segundos, até que o corpo grandalhão de
O'Hara balançou-se todo numa sonora gargalhada. Esperaram para
ouvir o que ele tinha a dizer, e então todos, menos Garcia,
começaram a rir igual a ele.
— Só estou pensando na cara daqueles miseráveis ao descobrirem
que pegaram a pessoa errada! E, ainda por cima, pobre!
Riu tanto, tanto, que acabou quebrando a cadeira, e caindo. Aí,
então, Garcia riu também.
Foi em meio a essa pequena confusão que vieram anunciar a
chegada do cônsul brasileiro, acompanhado de dois agentes
federais, disposto a saber de tudo sobre o órfão seqüestrado.
5. A ORDEM MORTAL DO ESPADARTE
— Temos de agir rápido, logo que tudo comece a sair nos jornais!
— dizia o Espadarte, grudado ao modem-fax em sua mesa, no
esconderijo da quadrilha, passando desesperadas mensagens.
Um dos seqüestradores, de plantão ao lado de um rádio, ouvira a
notícia sobre o ataque sofrido por Garcia. Em meio aos demais
destaques sobre os problemas do terremoto, e novos aftershocks
com vítimas, pingavam do noticiário outras informações, já se
admitindo que o assalto ao carro policial fora um seqüestro.
Os bandidos haviam servido uma refeição fria a Diogo, que não
entendia quase nada do que eles diziam ou faziam. Muito
inteligente, porém, percebia que estavam todos confusos e aflitos
porque algum plano saíra errado.
O líder amassava e rasgava os papéis em que rascunhava as
mensagens, antes de passá-las ao monitor, quase quebrando o
teclado.
— Vamos! Respondam alguma coisa! — falava para o computador,
como se ele pudesse entender.
Kino, o encarregado dos telefonemas, acabara de regressar ao
esconderijo do bando, e examinava Diogo.
— É este o garoto? Parece simpático! — disse, com um sorriso para
o menino, em inglês com sotaque.
Diogo não entendeu, mas retribuiu o sorriso. Finalmente alguém
com quem se comunicar! Kino era um jovem louro e parecia mais
esperto que seus companheiros, incluindo o Espadarte. Aliás, duro
e grosseiro com os demais, o líder aparentava ter certo respeito
por ele.
— O que vamos fazer? Devolvê-lo? — continuou Kino.
— Devolvê-lo a quem? — disse o Espadarte. — À polícia?
— Pelo menos, seria bom sabermos quem ele é, e o que fazia
naquele veículo — e perguntou a Diogo, ainda em inglês, alisando-
lhe os cabelos: — Quem é você, hein, amiguinho? Entende o que
eu estou dizendo? Bem, com esses cabelos negros, talvez você só
entenda outro idioma. Que tal espanhol?
E Kino fez as mesmas perguntas num castelhano estropiado, que
Diogo entendeu.
— So-sou bra-sileiro. Me-meu no-nome é Di-ogo — respondeu o
garoto.
Kino compreendeu.
— Diogo? Brasileiro? Futebol? Carnaval? Pelé? — e procurou fazer
graça, requebrando os quadris. — Mas agora me diga: o que está
você fazendo aqui em Los Angeles, no meio de um terremoto?
Encorajado por aqueles sinais de bom humor, Diogo desandou a
falar, contando animadamente, mesmo gaguejando um pouco e
com lágrimas saindo pelo canto dos olhos, um resumo da sua
história. Precisava despejar sua aflição.
Kino tentava contê-lo, procurando entender todas as palavras, e
no fim recebeu um abraço apertado do garoto já esgotado pela
emoção.
— Calma! Calma! Tudo vai se resolver!
O Espadarte aplaudiu com cinismo, ansioso para saber.
— Bravo, Kino. Agora quer contar para nós o que ele disse?
Kino esfregou a nuca. Mas nem precisou contar coisa alguma ao
chefe, pois o próprio rádio se encarregou de dar a notícia, agora
com riqueza de detalhes. A família Warrington recebera
telefonemas misteriosos de um seqüestrador, mas quem havia sido
levado, a poucos metros de sua residência, era um garoto
brasileiro, recentemente adotado, cujos pais haviam morrido no
terremoto.
Os integrantes do bando começaram a falar todos ao mesmo
tempo. Só o líder estava paralisado, diante daquele fato inédito na
história do terrorismo internacional. Um fiasco inadmissível na
execução do grande plano a que ele se referira, e que muito poucos,
ali, faziam idéia do que se tratava. Quando o Espadarte abriu a
boca, foi para dizer:
— O jeito agora é eliminar este garoto aí!
Todos, instantaneamente, silenciaram. Kino parou de sorrir,
dobrou os joelhos e agachou-se junto a Diogo. Como para protegê-
lo, apoiou uma das mãos no ombro do menino e olhou o líder, que
continuou, sempre insistindo em falar complicado:
— Não estou brincando, nem estou louco, se é isto que vocês
pensam. Nosso projeto é grande demais para fracassar por causa de
um engano. E, pior, um engano exatamente do nosso grupo. Nós
temos aqui, reunida, a nata, a fina flor do terrorismo
internacional.
O Espadarte passou a apontar, orgulhoso e delirante, um por um
dos presentes.
— Gamai dinamitou aquele Boeing na Birmânia. Ruiz explodiu
aqueles depósitos nas Filipinas. Mbongo treinou mercenários em
vários países da África. Elsa, sozinha, tirou de Madri aqueles dois
embaixadores e os levou para o Cairo. Kino nunca mais poderá
voltar à Suécia depois que souberem que foi ele que comandou
aqueles assaltos a bancos. É preciso dizer mais? Todos sabem o que
valem e o que já fizeram.
— Mas nunca matamos crianças! — disse Kino e, mesmo sem
entender, Diogo sorriu para ele, pressentindo que era algo à seu
favor.
— E daí? Precisamos seguir as ordens do poder central! — disse o
Espadarte.
— Eles apenas nos encarregaram de seqüestrar o garoto dos
Warrington, e exigir dinheiro por ele. Não falaram em matá-lo.
Por que, então, vamos eliminar este infeliz, que não tem nada a
ver com o peixe?
— Você já está falando demais, Kino — respondeu o líder,
impaciente. — Nosso compromisso é seguir as ordens. E o que você
acha que deveríamos fazer com o garoto Warrington, caso os pais
não entregassem o dinheiro?
Kino parou para refletir. De fato, não tinha pensado nisso. Apesar
de viver na ilegalidade, tinha ainda certos princípios, gostava de
parecer cavalheiresco, especialmente com mulheres e crianças.
Evitava ações onde o objetivo era assassinar. Quando embarcara
naquela missão, tinha como certo que tudo correria segundo o
previsto: os milionários pagariam o resgate, eles ali ficariam com
uma porcentagem, e o resto seria encaminhado aos comandantes
lá no tal poder central, que pareciam precisar de muito dinheiro.
No fim, falou:
— Ok! Até poderia ser. Na hora, a gente iria discutir o assunto. Mas
isso se o garoto fosse o filho do milionário. Este aqui, porém —
volto a dizer! —, é apenas um pobre órfão. Vocês ouviram no
rádio: o coitado tem tanta falta de sorte, que viajou por sobre o
oceano para ser adotado por pais americanos, e os encontrou
mortos. É muito azar! E o Espadarte ainda fala em matá-lo?!
O líder não gostou nada deste final, que o colocava em evidência,
ainda mais porque Kino fizera seu discurso sem encará-lo, mas
olhando nos olhos, um por um, todos os outros membros do grupo.
Aquilo estava parecendo um comício, uma provocação, um desafio
que punha em risco sua liderança. No meio dessa gente é preciso
ser duro.
— Falo em matá-lo, sim, como não hesitaria em matar qualquer
um de vocês que criasse problemas à realização do plano. Quando
foram contratados, vocês sabiam que o regime ia ser esse, e que as
ordens — por mais severas que fossem — deveriam ser cumpridas
sem discussões. O crime nunca é democrático. Os comandantes
querem resultados e não opiniões. Deixem as polêmicas para os
políticos e os governos constituídos. Nós estamos aqui para
desmoralizá-los!
Kino não se deu por satisfeito, nem aceitou o carão:
— E, para provar isso, vamos começar liquidando este pobre
garoto?
O Espadarte deu um soco na mesa, e se levantou.
— Pare de tanto falar em pobre e pobreza! São palavras detestá-
veis! Nosso trabalho tem outras preocupações, que não a miséria
no mundo! Quem sabe, talvez, quando terminarem, eles não vão
dar também um jeito nisso?
— Depois de ficarem bem ricos e poderosos, à custa da morte dos
miseráveis?
Aquilo era demais! O Espadarte sacou sua pistola, engatilhou-a e
apontou-a para Kino, dando uma ordem.
— Gamai, Mbongo! Segurem esse cara!
No mesmo instante, Kino foi agarrado. Em seguida, foi amarrado a
uma cadeira, perto daquela onde estava Diogo, e algemado a um
cano na parede. O olhar do Espadarte era feroz.
— Eu falei: sem discussões! Não podemos correr riscos.
Principalmente depois do último engano. Vamos sair daqui e nos
espalhar. Depois, seguiremos o que foi determinado. Cada um sabe
para onde se dirigir, como está no envelope que recebeu.
Uma das mulheres perguntou, apontando Kino e Diogo com suas
armas:
— E esses dois?
— Destruição completa! — disse o Espadarte, sem contemplação,
abrindo uma caixinha na parede e pondo a funcionar um
dispositivo eletrônico de contagem regressiva.
Apitozinhos incômodos fizeram-se ouvir, marcando os segundos,
enquanto o Espadarte esvaziava as gavetas, enchendo uma pasta, e
os outros bandidos arrumavam apressadamente suas mochilas,
escondendo as armas.
Em seguida, saíram e desceram correndo as escadas, fechando
todas as portas por que passavam, até chegar aos veículos
estacionados lá embaixo no pátio do velho galpão abandonado,
onde tinham estado escondidos. Elsa, mulher parruda, foi a última
a embarcar. Ela escancarou o pesado portão de ferro, deixou os
carros passarem, fechou-o, e só então entrou no furgão onde o
chefe viajava. Aí, então, fugiram em alta velocidade pela estrada
deserta, asfaltada. Lá dentro, tinham ficado apenas Kino e Diogo.
Sentada entre o líder e o motorista do furgão, Elsa ainda se
lembrou:
— Chefe, esquecemos de uma coisa: não amarramos o garoto!
O Espadarte sorriu:
— Não importa. Kino está algemado. E antes que consigam alguma
coisa, a explosão vai dar cabo deles.
Disse isso quando passavam por uma alta ribanceira à beira-mar.
Provavelmente nem tiveram tempo de apreciar
convenientemente a bela paisagem, pois de repente os três
veículos pareceram voar, tragados pelo abismo que se abriu,
quando uma fenda rasgou o asfalto debaixo deles, e a estrada
desabou, esfacelada. Todos então — veículos e passageiros —
mergulharam no espaço, até se arrebentarem nas pedras e
explodirem.
Os aftershocks do terremoto continuavam fazendo vítimas.
6. UMA DUPLA NÃO DESEJADA
— Agora este na Indonésia, chefe! — dizia o detetive Collins,
sacudindo o jornal em frente à cara rosada do delegado. — Que
coincidência!
— E daí? Eu já soube! — respondia O'Hara, nervoso, afastando o
jornal. — Não é a primeira vez que um terremoto é seguido de
outro, em outra parte do mundo.
— Que terremoto? Estou falando de seqüestro!
— O quê??? — o delegado quase arrancou o jornal das mãos de
Collins, e leu.
Em um pequeno quadrado em negrito, sem muito destaque,
noticiavam que um terremoto havia sacudido a ilha Halmahera,
do arquipélago indonésio, derrubando edifícios, destruindo uma
estrada e causando a morte de sete pessoas. O serviço
meteorológico da capital Jacarta calculara a intensidade do tremor
em 6.8 na escala Richter. Maior que o de segunda-feira, ali em Los
Angeles.
— Ora, eu me lembro que, no ano passado, e também numa ilha da
Indonésia, um outro terremoto matou dois mil habitantes. Cadê o
tal seqüestro?
— Aqui embaixo, chefe! Veja! — mostrou Collins.
O'Hara encontrou a notícia. O filho, de doze anos, do embaixador
polonês em Jacarta, havia desaparecido, e pediam resgate.
— Nossa! É uma baita coincidência mesmo! — disse o delegado,
com a expressão contraída, como se isso o lembrasse de alguma
coisa. — Chamem o Garcia! Rápido!
O'Hara podia parecer um brutamontes, mas era um dos policiais
mais espertos de Los Angeles. Era mais sagaz do que um cão
perdigueiro, quando farejava uma pista por mais absurda que
parecesse. Atribuía esse instinto ao fato de sempre ter lido muitos
romances policiais na juventude.
— Mistérios assim nunca acontecem na nossa rotina, só nos livros!
— costumava dizer. — Mas um dia, quem sabe?... É bom estar
preparado!
No fundo, porém, aquilo era uma competição. Uma inveja
inconfessável do irmão agente e sua carreira brilhante.
O sargento Garcia tinha ido ao consulado brasileiro. Julgava-se
responsável por Diogo, e não confiava muito em deixar o problema
nas mãos do pessoal do FBI, em quem o cônsul parecia confiar.
- Mas seqüestro é assunto da esfera federal, sargento! — dizia o
cônsul, sempre querendo parecer prático e obediente às leis, —
Para que se preocupar tanto assim com esse caso? Não tem que
cuidar das vítimas do terremoto?
— Diogo é também vítima do terremoto, doutor Gilberto — insis-
tia Garcia. — O que diria minha mulher, se eu abandonasse agora
o garoto que nos foi confiado?
Em lugar de se sentir importunado pelo policial, o diplomata
encarava com simpatia a sua insistência. Seus assessores também
procuravam ajudar o sargento, ao contrário dos agentes do FBI,
irritados com a teimosia daquele chicano. Garcia não se
preocupava com isso e aproveitava a boa vontade dos funcionários
para obter resultados.
— Cadê a resposta do fax ao orfanato?
— O orfanato é pobre. Não tem fax. Por isso, demora um pouco!
Primeiro, comunicaram-se com o consulado do Rio de Janeiro.
Este mandara um empregado ao orfanato avisar irmã Dirce. Foi
uma tristeza! Já preocupadas com Diogo, por causa do terremoto,
as freiras tiveram um choque ao saber da tragédia com os
Mayerberg. O pior de tudo acontecera agora, com a notícia do
seqüestro. Todas elas, junto a seus alunos, estavam em vigília
permanente, orando pelo menino.
Irmã Dirce, em pessoa, foi ao consulado americano no Rio, e seu
primeiro fax foi categórico: Salvem o menino, e mandem-
no de volta.
Garcia leu o fax, e sorriu com amargura. Salvar o menino! É boa!
Mas salvar como? Tinha insistido nessa comunicação com o Rio de
Janeiro porque considerava o orfanato o verdadeiro lar da vítima.
Não sabia bem o porquê, mas precisava desse contato. Talvez para
confirmar aquilo de que suspeitava: o amor dos responsáveis. Já
estivera trabalhando em outros casos de seqüestro, e o que lhe
dava força para começar era, primeiro, sentir a boa causa. Só
depois disso, impelido pelas lágrimas de dor dos pais da vítima,
entrava em ação, e sempre com bom resultado.
Agora, porém, a coisa estava difícil. Quanta complicação! Com o
fax nas mãos, ele não sabia o que mandar responder a irmã Dirce. E
isso, sem contar com o espírito prático da freira, que, não contente
com a burocracia do vai papel - volta papel, exigira ao
consulado:
— Vocês aí não têm um rádio para eu falar direto com Los
Angeles?
Como por um passe de mágica, tudo ficou mais fácil depois dessa
idéia da religiosa. Em poucos minutos, irmã Dirce e Garcia, ambos
se comunicando em espanhol, estavam no maior papo, trocando
informações e esclarecimentos, como se fossem velhos amigos.
Depois de contar tudo o que a freira queria saber, e esclarecer
outras, o sargento prometeu continuar se esforçando para
encontrar Diogo.
— Estou rezando pelo senhor, sargento! — disse a voz dela pelo
rádio. — Mas sei que será mais difícil por causa do terremoto.
— É o que a senhora pensa, madre — falou Garcia, cheio de
coragem. — Isso pode até ajudar! Com o terremoto, a vida dos
bandidos pode ficar bem mais complicada. Não vê o que acontece
quando se mexe no formigueiro? Aí mesmo é que as formigas
aparecem.
— Assim espero, sargento — disse irmã Dirce. — Agora só mais
uma coisa. Vou aproveitar este rádio aqui e pedir ajuda a outra
pessoa muito importante. Logo ele deve também entrar em
contato com o senhor. É o padre Carlito, que é muito ligado ao
Diogo. Ele deve estar no Peru.
— Tudo bem. Mande ele falar comigo. A bênção, madre!
— Deus o abençoe e ajude! E boa sorte, meu filho!
Foi interrompida a comunicação, no exato momento em que
vieram avisar Garcia que o chamavam da chefatura, com urgência.
O sargento foi ao telefone, falou com Collins, ouviu-o com atenção
e saiu apressado.
— O que foi, sargento? — perguntou o cônsul, curioso, seguindo-o.
— Não me querem mais no caso — mentiu Garcia, para despistar
os agentes do FBI, que se sentiram aliviados por se verem livres
dele.
O cônsul brasileiro, porém, sentiu alguma coisa no ar.
— Espere, sargento. Vou com você! — disse, entrando no carro de
Garcia e partindo com ele sem pedir licença.
No caminho, perguntou:
— Pode me contar o que aconteceu?
Garcia ainda não confiava no cônsul, por isso desconversou:
— Bobagem! Uma maluquice do delegado!
— Alguma pista dos seqüestradores?
— Creio que ainda não. Apenas um palpite, por causa de certas
coincidências.
— Coincidências? Que coincidências?
Garcia encarou o cônsul. Detestava burocratas metidos, embora
aquele parecesse sinceramente preocupado com o problema do
órfão.
— Deixe isso comigo, doutor. É problema da polícia, não seu!
O cônsul também não era fácil, e respondeu:
— O senhor se esqueceu de que eu represento a vítima? Nessa
qualidade, tenho todo o direito de me manter informado, fazendo
perguntas, dando opiniões e cobrando providências.
— Por que não cobra essas providências aos seus amiguinhos do
FBI? Eu estou agindo no caso porque sou amigo do garoto, e devo
isso a ele! — disse Garcia, com mau humor.
— Deve porquê, sargento? Porque se sente culpado? Porque deixou
que o seqüestrassem debaixo do seu nariz?
Antes que Garcia pudesse dizer qualquer coisa, o rádio do carro
chamou:
— Alô, carro 222. Detetive Collins chamando sargento Garcia!
— Fale, Collins!
— Mudança de planos! Antes de vir à delegacia, dê uma passada na
litorânea. Um novo tremor atirou três veículos nas pedras. Pela
descrição dos bombeiros, um deles parece ser o furgão azul do
seqüestro! Pode ir até lá confirmar?
A terrorista Elsa estava com a razão quando lembrou que tinham
esquecido de amarrar Diogo. De fato, estando solto, teria sido fácil
para ele escapar daquele galpão antes que explodisse. Acontece,
porém, que Kino estava amarrado e algemado, e Diogo sabia que,
se não o tirasse dali, o sueco iria morrer.
A primeira coisa que fez foi soltar as cordas, mas não tinha a chave
para abrir as algemas. Tentou quebrá-las batendo nelas com uma
barra de ferro que encontrou, e depois usou-a como alavanca
dentro do aro. Só conseguiu destrancar o pulso de Kino. Durante
essas tentativas inúteis, o bip do reloginho da bomba continuava
apitando.
— Desista, garoto. Falta pouco tempo! Fuja você! — Kino gritou,
em inglês, puxando a mão presa, desesperado, molhado em suor.
Diogo não deve ter entendido as palavras, mas percebeu o sentido.
Apesar disso, insistiu, pendurando-se no braço preso de Kino,
balançando o corpo para trás, ajudando-o a puxar a mão, na
tentativa de soltá-la. A força do garoto era inacreditável. O pulso
do sueco, porém, era muito mais grosso que o aro da algema, e os
esforços só conseguiam fazê-lo sangrar. A dor era intensa, mas pior
era a certeza da morte próxima. Mesmo assim, ele pensou em
Diogo:
— Faltam uns 30 segundos! Corra!
Diogo resolveu tentar dar mais um puxão. Ou teria dado outros, se
necessário? O fato é que não foi ainda dessa vez que libertou a mão
de Kino da algema. Mas conseguiu o que não esperava: rebentar o
cano e soltá-lo da parede.
Banhados por um repentino jorro de água quente, e atirados ao
chão, eles ainda se abraçaram, às gargalhadas, comemorando a
proeza. Logo, porém, escorregando na poça, levantaram-se e
saíram na disparada. Na passagem, Kino ainda pegou alguma coisa,
e seguiram aos tropeções, descendo ou rolando as escadas, até o
pátio.
Entre eles e a liberdade, havia apenas, agora, o enorme e pesado
portão (Diogo lembrou-se daquele estrondo metálico, que ouvira
ao chegar). E se estivesse trancado? Foram verificar. Não estava!
Puxaram apenas o espaço suficiente para escaparem, e foram
correndo pelo asfalto, tentando distanciar-se, até que Kino se lem-
brou de berrar:
— Deite-se!
Bem na hora! Jogaram-se ao chão ao mesmo tempo em que sen-
tiam o inferno explodir por trás deles.
Foram bombardeados por centenas de fragmentos de pedra,
madeira e ferro. Mas sem maiores conseqüências. Estavam salvos!
7. FUGA NO HELICÓPTERO
— É este o furgão? — perguntou o cônsul, ao lado de Garcia, depois
que os dois desceram o barranco até a base do abismo.
— Não tenho a menor dúvida! Nunca poderia esquecê-lo!
— Mesmo assim queimado e retorcido?
Garcia apenas balançou a cabeça, confirmando o que dissera. Por
toda a área — agora interditada — espalhavam-se os pedaços dos
três veículos, e os bombeiros ainda recolhiam o que restava dos
ocupantes. Para fortalecer a certeza do sargento, haviam sido
encontradas as armas que eles transportavam.
— Era um grupo muito bem organizado! Quando conseguirmos
identificá-los, vamos poder concluir uma porção de outras coisas.
— E o menino? O que aconteceu com o menino?!
— Felizmente, aqui ele não estava.
— Será que... — o cônsul não teve coragem de terminar a frase,
mas Garcia a completou por ele.
— Será que o liquidaram em outro lugar? Bem, é uma possibilidade.
Outra, a de que houvesse mais um grupo envolvido no seqüestro.
— Teriam se separado, então? O garoto estaria com esse outro
grupo?
— Boa pergunta, excelência! O que o senhor acha? Que tal come-
çar também a dar algumas opiniões? — disse Garcia, subindo o
barranco de volta ao seu carro.
Antes que o cônsul chegasse, o sargento ligou o motor, e saiu sem
esperá-lo.
O cônsul ainda gritou:
— Ei! Aonde vai?
Já se afastando com o carro, Garcia respondeu:
— Seguir o seu conselho: cuidar um pouco das vítimas do
terremoto!
Ao se ver a salvo, na estrada, a primeira coisa que Kino fez foi
começar a procurar alguma coisa.
— Quero uma pedra! Um pedaço bem grande! — disse a Diogo. —
Tem que ser bem dura!
Experimentou várias. Não havia muitas, nas vizinhanças. Afinal,
ficou satisfeito com uma delas que Diogo tinha apanhado à
margem, no meio do mato. Kino apoiou as algemas no asfalto do
acostamento, entregou a pedra a Diogo, e mandou:
— Agora bata! Bata bem forte!
Tentaram uns quinze minutos. Diogo quase perdeu o fôlego,
amassando as algemas e ferindo ainda mais as mãos do sueco, até
que finalmente o fecho saltou. Vendo-se livre, Kino sorriu e disse:
— Obrigado, garoto! Acho que vamos ser uma boa dupla!
E, sem perder tempo, saíram caminhando. Percorreram alguns
quilômetros, sem que vissem um só veículo. O primeiro que
apareceu era um caminhão, e parou quando eles fizeram sinal
pedindo carona.
O motorista estava sozinho, na boléia, e deixou que eles se
sentassem no banco ao lado dele. Enquanto dirigia, cantava, feliz
da vida, o que divertiu Diogo, embora não entendesse a letra. Kino,
ao contrário, ia sério e preocupado, de olho na estrada. Mas o
garoto acreditava que o sueco o estivesse levando de volta a um
lugar seguro. Esperava que, ao chegarem nesse lugar seguro, Kino
daria um jeito de telefonar para a polícia. E aí, então, iria pedir que
chamassem o sargento Garcia. O sargento devia ser muito
conhecido em toda a polícia de Los Angeles. E saberia o que fazer
com ele, claro. Logo entraria em contato com irmã Dirce, no
Brasil. E com padre Carlito, onde quer que ele estivesse.
Que falta estava sentindo de Garcia! Agora ele também fazia parte
do grupo de pessoas em quem Diogo mais confiava. Kino talvez
pudesse entrar nesse grupo. Está certo, ele tinha pertencido ao
bando de seqüestradores, mas Diogo acreditava que, depois
daquela aventura, Kino tinha se regenerado.
Quanto tempo faltaria para que chegassem? Felizmente a estrada
estava desimpedida. Bem diferente daquela confusão que ele vira,
em Los Angeles, causada pelo terremoto. De qualquer modo, mais
cedo ou mais tarde, se é que estavam mesmo indo de volta a Los
Angeles, teriam de encontrar tudo aquilo novamente. Quanto
tempo faltaria ainda? — pensava Diogo. Ah, vem vindo um carro
lá na frente, na nossa direção. Até parece o carro do...
Diogo olhou pelo pára-brisa do automóvel, um pouco antes de os
veículos se cruzarem e continuarem velozes em direções opostas.
Os motoristas se acenaram.
— Ei! — gritou Diogo, levando um choque.
Sobressaltado, o garoto girou no assento, ajoelhou-se no banco e
tentou olhar para trás.
— Fique quieto! — gritou Kino, irritado.
O automóvel já ia longe, mas Diogo tinha absoluta certeza do que
vira.
— M-mas aquele é...! — ia começar a falar, mas desistiu, diante do
olhar irritado de Kino.
— Sente-se direito! — e o sueco puxou Diogo, com inesperada
brutalidade, deixando o garoto mais surpreso e assustado.
O motorista tentou tornar as coisas mais agradáveis:
— O garoto conhece aquele tira!
— Que tira? — perguntou Kino, subitamente alarmado, mas
tentando disfarçar.
— O que vai naquele carro, que passou pela gente. É o sargento
Garcia. Também é mexicano, como este garoto.
— O garoto não é mexicano! É brasileiro! — corrigiu Kino. — Não
tem nada a ver com esse sargento!
— Ok! Mas não sabe o que perde. Garcia é um dos melhores
policiais de Los Angeles. Já ouviu falar nele?
Ouvindo o nome de Garcia, mesmo sem compreender as outras
palavras do motorista, Diogo sentiu-se invadido por uma
inesperada alegria. Mais do que nunca, entendia o que irmã Dirce
queria dizer quando, nas aulas de catecismo, tentava explicar a
diferença entre milagres e sinais. Talvez aquilo, que estava
acontecendo, não fosse ainda um milagre, mas era por certo um
sinal de que Deus andava por perto.
Olhou o motorista com um brilho de gratidão nos olhos, ao mesmo
tempo que tremeu ao perceber a sombra que cobria o rosto pálido
de Kino.
— Não. Não ouvi falar! — disse o sueco bruscamente, querendo
evitar que o motorista continuasse a conversa e quisesse saber
detalhes sobre ele e Diogo.
— Bem, é natural. Garcia não é tão importante assim. Mas é um
sujeito esforçado. Pudesse a nossa polícia ter uma dúzia de rapazes
firmes e honestos como ele. Para onde está indo agora? Ou será
que está voltando de alguma confusão? Epa! Parece que tem
qualquer coisa, mesmo, ali na frente!
Kino olhou e, experimentado, percebeu logo que era uma barreira
de trânsito. Apenas algum acidente, ou uma blitz policial para
prender suspeitos? Não podia correr riscos.
— Volte daqui! — ordenou.
— Epa! O que está dizendo? Não vejo por que fazer isso! —
protestou o motorista.
— Volte! Estou mandando! — gritou Kino, e apontou o revólver
que trazia escondido na cintura. Pegara-o no último instante, na
fuga do galpão.
Sentindo que havia se metido em encrenca, o motorista deu uma
freada, e fitou os olhos do sueco. Viu que tinham a expressão fria
de uma serpente, e que ele não hesitaria em atirar. Tentou, então,
argumentar:
— Olhe, se eu manobrar aqui, os caras lá podem ver, e vir atrás.
— Não tem importância. Corremos o risco. Dê a volta. E já! —
insistiu Kino, engatilhando a arma.
Mas o motorista era teimoso.
— Olhe, quem sabe não é nada, apenas um acidente. Podemos
passar numa boa. Garoto, diga a seu pai que...
Kino passou para o lado do motorista, por cima de Diogo, e segurou
o volante, girando-o com violência.
— Eu mandei manobrar!
Tudo pareceu enlouquecer dentro da cabine do caminhão. Eram
quatro braços que torciam, agora, a roda da direção. Os pés do
sueco pisavam os do motorista, forçando os pedais, enquanto o
veículo fazia uma curva de 180 graus, saindo da estrada, escapando
do asfalto, mas retomando-o de novo, aos trambolhões. Diogo
resolveu gritar, num rompante de histeria:
— Não! Não! Pare com isso! Me tirem daqui! Eu quero o sargento
Garcia!
Foi então que sentiu estalar, no meio da face, a bofetada de Kino,
dada com as costas da mão. A dor e a surpresa o fizeram
estremecer, e em seguida emudecer por completo.
O caminhão, a essa altura, já estava rodando regularmente na
direção contrária, e havia pouca probabilidade de ser notado pelo
pessoal lá na barreira. Foi aí que o motorista fez a besteira. Talvez
fosse apenas um reflexo, e ele nem imaginasse que isso poderia ser
seu último gesto em vida. O fato, porém, é que bancou o
espertinho e apertou a buzina.
Buzinas de caminhões fazem muito barulho. Na barreira teriam
ouvido?
Provando que era tão implacável quanto o Espadarte, Kino puxou
o gatilho.
A caminho do centro, sob o sol da Califórnia, Garcia ia pensando
se agira certo, deixando Gilberto a pé. Ora, ele é cônsul, logo iria
conseguir uma carona — pensou. Mas quem iria dá-la? No local do
acidente só havia os bombeiros e alguns recrutas da defesa civil. A
polícia, muito ocupada, ainda não chegara. E a estrada, nessa época
de tantos problemas, estava pouco movimentada. Até agora seu
carro só havia cruzado com um caminhão. Mas que helicóptero é
aquele que vem lá? Ah, é do Departamento. Afinal, nosso pessoal
aparece. Tomara que descubram quem eram aqueles caras do
bando. Agora, é fazer o possível para encontrar o garoto.
O helicóptero da polícia passou por cima dele, e o piloto acenou.
Garcia acelerou e continuou seu caminho. Chega de acenos, por
hoje! Tinha de chegar rápido à chefatura e saber que mistério era
aquele que o delegado inventara.
Com muito mais velocidade do que a do automóvel do sargento, o
piloto do helicóptero já conseguia avistar, no horizonte, o ponto
em que a estrada havia desabado. Mas, antes dele, viu algo
estranho que lhe chamou a atenção: um caminhão enorme, virado
de lado, fora da estrada.
— O que será aquilo? — pensou o policial, percebendo que não
havia ninguém próximo ao veículo. — Bem, não custa nada dar
uma olhada.
E manobrou, fazendo um círculo, aproximando-se do caminhão
para examiná-lo do alto. De onde estava, não conseguia ver
ninguém. Bem, na falta de outros policiais ali, era a ele que cabia
investigar. Baixou então o helicóptero, e aterrissou.
Sem desligar o motor, mas deixando as hélices em baixa rotação, o
piloto desceu da cabine e foi caminhando sem maiores
preocupações, cobrindo os poucos metros que o separavam do
veículo tombado.
Não tinha se lembrado de sacar a arma, mas Kino tinha a sua
apontada para ele.
Com a outra mão, segurava Diogo junto a seu corpo.
Tudo tinha acontecido em poucos segundos. Ao receber o tiro, o
motorista caíra sobre o painel, e o caminhão se desgovernara,
deixando o asfalto e tombando de lado. Foi muita sorte que nada
tivesse acontecido com Kino e Diogo. Talvez o corpo do motorista,
que ficara por debaixo deles na capotagem, os tivesse protegido,
amortecendo o choque.
Não chegaram a desmaiar. Ficaram apenas muito atordoados e
traumatizados, ouvindo o chiado das quatro rodas, que durante
algum tempo continuaram a girar no vazio. Além disso, ouviam
latidos. Muitos latidos.
Kino achava impossível que os sujeitos, na barreira de trânsito, não
tivessem visto aquilo. Por que estariam demorando tanto? Com o
revólver na mão, ficou à espera, segurando Diogo, sem botar a
cabeça para fora da janela acima dele.
Foi então que ouviu o barulho do helicóptero. São eles! Kino se
preparou, de tocaia, pronto para o que desse e viesse, disposto a
não se deixar prender.
Lá fora, o piloto do helicóptero chegava cada vez mais perto. Já
estava quase alcançando a cabine, quando ouviu o chamado e
voltou-se:
— Ei!
Era Gilberto, o cônsul brasileiro, que vinha andando
apressadamente pela estrada. O piloto, então, parou para esperá-lo.
Gilberto chegou até ele, ofegante, e foi logo dizendo:
— Mais essa agora, hein? Eu estava lá, com os bombeiros, vendo o
desastre com os carros dos seqüestradores, quando esse caminhão
veio chegando, mas resolveu dar meia-volta. Aí deu uma buzinada,
fez um ziguezague, desgovernou-se, e então capotou. Estranho,
não é? Acho que só eu vi, porque já vinha caminhando para cá,
atrás de uma carona.
Percebendo que já era hora, o cônsul tirou a carteira do bolso,
identificou-se, mas nem assim parou de falar:
— Um colega seu, o sargento Garcia, me abandonou aqui. E logo
num momento desses, em que estou tentando saber o que
aconteceu com um órfão brasileiro que esses bandidos
seqüestraram. Vamos combinar uma coisa? Eu dou uma mãozinha
ao senhor, depois o senhor me dá uma carona no seu helicóptero,
concorda?
O piloto não respondeu. Resolveu ignorar o cônsul, e continuou
sua tarefa. Foi para a cabine, enquanto Gilberto ia examinar a
traseira do caminhão.
— Que carga será essa? — disse o cônsul, já tentando soltar a tran-
ca das portas.
O piloto apoiou a ponta de suas botas no eixo do diferencial.
Segurando a aba do estribo, de modo a poder alcançar a cabine,
flexionou os braços, erguendo o corpo.
Kino só esperava ele chegar lá em cima, para atirar.
Foi nesse momento que Gilberto conseguiu destrancar as portas
traseiras. O piloto ouviu o estrondo que elas fizeram, quando se
abriram, e voltou-se:
— Ei, o que está fazendo?
Tarde demais! O cônsul não agüentou o peso das portas, e uma das
abas despencou quase em cima dele. Latindo feito demônios,
atropelando-se uns aos outros, mais de trinta cães, que estavam
prisioneiros lá dentro, pularam em busca de espaço e de luz. Eram
de todas as raças e tamanhos, e pareciam disputar ferozmente o
direito à liberdade.
Estarrecido, o piloto não sabia o que fazer, do lugar onde estava,
pendurado à carroceria do caminhão, vendo o cônsul ser
derrubado, com vários cachorros passando por cima dele. Gilberto
tentava se levantar, mas a cainçalha, desnorteada, não permitia.
Um dos animais, por julgá-lo uma ameaça, abocanhou-lhe a perna
e parecia não querer largá-la mais.
Vendo o pobre cônsul debater-se, cheio de dor, o piloto resolveu
ajudá-lo.
— Espere! — gritou, e começou a descer.
Lá dentro da cabine, sem ter a mínima idéia do que se passava,
Kino estava impaciente. Por que esse cara não aparece logo? E
resolveu botar a cabeça de fora.
Olhando de um lado para outro, viu o helicóptero, com o motor
ligado, os rotores rodando. Virando-se para ver atrás do caminhão,
percebeu a confusão. Cães, muitos cães, latindo e correndo. Dois
homens estavam atrapalhados com eles. O policial tentava afastá-
los e arrancar um dobermann grandalhão que se aferrara às
pernas do outro.
— Venha! Rápido! — disse a Diogo. E, puxando o garoto, pulou
pela janela do caminhão virado.
Não foi difícil, para Kino, chegar ao solo e sair correndo em dire-
ção ao helicóptero. Diogo, porém, sentia o corpo inteiro doer e as
pernas responderem com dificuldade aos seus movimentos. Sua
vontade era parar ali mesmo, não obedecer mais ao sueco, gritar
para que alguém o ajudasse. O que aconteceria?
Percebendo a relutância, Kino suspendeu o garoto e o carregou
sem largar o revólver. Diogo resolveu reagir e gritar.
— So-socorro!
Foi o bastante para chamar a atenção do piloto, que acabara de
dominar o cão, fazendo-o soltar os dentes da canela de Gilberto.
— Ei!
Voltando a cabeça para ver do que se tratava, mas ainda sem largar
o cachorro, o piloto deu com o sueco e o garoto, bem à sua frente,
já juntinhos ao helicóptero. E viu também o revólver que Kino lhe
apontava.
Instantaneamente, o piloto soltou o cão, para levar a mão à sua
própria pistola. Não conseguiu, pois o dobermann vingou-se,
dando-lhe uma dentada no pulso, disposto a mantê-lo preso com os
dentes.
Aproveitando-se disso, Kino entrou no helicóptero com Diogo. Era
tudo aberto, não havia portas, e sentaram-se logo. Pelo jeito com
que afivelou o cinto de segurança e começou a apertar botões no
painel de instrumentos, ficou logo bem claro que sabia pilotar um
aparelho daqueles.
Era um helicóptero dos pequenos, de dois lugares, talvez não tão
complicado para manejar. Mal o sueco começou a operá-lo, os
rotores começaram a girar mais rapidamente, prontos para a
decolagem.
A última coisa que Kino fez foi examinar Diogo, no assento ao
lado, para ver se já estava preso pelo cinto de segurança. Fez isso
no exato momento em que o garoto se preparava para saltar do
aparelho. E só teve tempo de agarrá-lo pelos cabelos, e puxá-lo de
volta.
— Ai! — gritou Diogo, em seguida soltando um palavrão em bom
português.
— Hein? — sobressaltou-se o cônsul, agora abraçado ao
dobermann, que não queria soltar a mão do piloto.
O barulho era forte, mas um palavrão daqueles, proferido em voz
esganiçada, não podia passar despercebido aos ouvidos treinados
de um diplomata criado na Lapa.
O órfão! Só pode ser ele! E esquecendo cachorro, piloto e a perna
dilacerada, Gilberto correu para o helicóptero.
— Pare aí! Espere!
O ronco do motor aumentou. O aparelho já decolava.
— Largue essa criança! Você está preso!
Inútil. O helicóptero subia na vertical, procurando o melhor rumo
a seguir. Até o dobermann parou para olhá-lo, soltando sua
presa. O piloto tirou a pistola da cintura, mas desistiu de atirar
— É o garoto seqüestrado! O brasileiro! — gritava o cônsul,
excitadíssimo, esquecendo-se da dor da mordida. — Vamos atrás
dele!
— Como? — disse o piloto, enquanto o helicóptero desaparecia no
azul do céu, e o dobermann, do outro lado da estrada, atrás dos
outros cães.
8. OS DELÍRIOS DE O'HARA
Garcia e Collins estavam reunidos com o delegado. Sobre a mesa
de O'Hara, examinavam o grande mapa que haviam tirado da
parede.
— Já entendi, Garcia — dizia o delegado. — Obrigado por sua aula
sobre terremotos. A televisão já explicou isso um milhão de vezes.
O que eu queria que alguém me explicasse, agora, eram esses
seqüestros. Um aqui em Los Angeles e outro lá na Indonésia, logo
em seguida aos dois tremores de terra. Dois garotos, Garcia! O que
me diz dessa coincidência?
— Bem, só que há uma diferença: um garoto é de família bem
situada socialmente e o outro um pobre órfão — falou Garcia.
— Seqüestrado por engano, não se esqueça. Eles queriam o
milionário. Por quê, Garcia? Pode estar aí a chave de tudo.
Garcia abriu a garrafa térmica e bebeu um gole de café. Vivia em
atritos com o chefe, mas o que mais o incomodava em O'Hara era
aquele seu excesso de imaginação. Achava-o um tanto infantil,
nessas horas, principalmente quando o delegado começava a usar o
irmão da CIA como exemplo.
— Muito bem, chefe. Minha especialidade é a ação. Eu me
conformo em ser um simples policial do município, às voltas com
os problemas habituais da população, e não um agente especial do
governo. Mas vamos lá. Por que não diz logo aonde quer chegar?
— Por isso gente como você não progride — disse O'Hara, em tom
quase ofensivo.
Garcia se irritou, e começou um de seus comícios habituais, meta-
de em inglês, metade em espanhol:
— Ora, O'Hara! Isso o que é? Mais uma alucinação? Me afasta da
investigação para me passar uma teoria, e de repente recomeça
com aqueles seus delírios? Brinque de CIA com seu maninho, e me
deixe em paz com a minha vulgaridade. Lá fora há uma multidão
de desabrigados, os hospitais estão cheios de feridos, os
desabamentos não param, e os mortos continuam sendo
enterrados. Por outro lado, um órfão que eu protegia ainda está
desaparecido. São dois problemas bem diversos, cada um com o seu
tipo de gravidade. Mas um seqüestro é um seqüestro, e um
terremoto é um terremoto!
Disse isto, e ia saindo da sala, quando o delegado falou por trás
dele:
— E se um tivesse acontecido só para facilitar o outro?
Ainda segurando a porta, Garcia parou e perguntou:
— O terremoto facilitar o seqüestro?
O'Hara sentou-se em cima do tampo da mesa, e respondeu:
— Ou o seqüestro facilitar o terremoto!
Ainda sem sair do lugar, o sargento sorriu pelo canto da boca.
Maluco!
Provando que não era tão maluco assim, o delegado pegou uma
pasta de papel, que aparentemente já havia separado, e estendeu-a
a Garcia:
— Lembra-se do Ronnie Eternidade?
Garcia teve um arrepio! Claro que se lembrava. Um maníaco.
Gostava que o chamassem de Senhor Caos — o Reformador. Uma
personalidade obsessiva, voltada para o Mal e para a destruição,
embora por muito tempo tivesse apenas pregado suas teorias,
escrevendo pequenos livros e artigos em jornal, afirmando que o
mundo precisava de uma depuração radical, para ressurgir do Zero
e começar de novo.
Ronnie Eternidade — ou o Senhor Caos, como assinava suas
crônicas — lembrava em muitos pontos um outro lunático, um ex-
pintor austríaco, que há várias décadas publicara um livro
intitulado Minha luta, fizera discursos em cervejarias alemãs,
criara o Partido Nazista, tornara-se ditador da Alemanha, e depois
comandara uma das mais cruéis mortandades da História. Tal
como Hitler, ao alimentar o rancor e o ódio de seus seguidores, e
lhes prometer "um mundo do jeito que queriam", humilhando e
punindo as pessoas de quem eles não gostavam, o fanatismo de
Ronnie visava à conquista do poder total.
Apesar de O'Hara não considerar Garcia muito brilhante, o
sargento — com o mesmo interesse que estudara os terremotos —
costumava ler sobre esse tipo de seitas, agremiações ou partidos
que sempre estavam surgindo em toda parte, prometendo salvar a
humanidade, em prejuízo de algumas minorias que eles
denunciavam como "prejudiciais". Nem sempre esses grupos se
intitulavam abertamente como neonazistas. Era muito comum
seus líderes se esconderem atrás de outros rótulos, disfarçando-se
de defensores de causas populares. Misturando direita com
esquerda, doçura com severidade, dizendo o que seus adeptos
queriam ouvir, Ronnie Eternidade era farinha do mesmo saco.
O Senhor Caos tinha vivido, por um certo tempo, em Los Angeles,
mas procurara não infringir as leis abertamente. Usava outras
pessoas para praticar pequenas depredações, pequenos incêndios,
explodir pequenos prédios — tudo sempre pequeno —, e eram
esses outros que acabavam sendo presos em lugar dele.
No começo de suas agitações, Ronnie Eternidade costumava dizer
que, mais cedo ou mais tarde, gente graúda e poderosa haveria de
financiar seus grandes projetos.
Era isso e várias outras cositas mais sobre Ronnie Eternidade que
constavam do dossiê que o delegado acabara de colocar nas mãos
de Garcia.
— Ronnie Eternidade está morto! — disse o sargento, carrancudo,
voltando a sentar-se, e começando a folhear o dossiê.
— É possível! Mas suas idéias, quem sabe não estão? — disse
O'Hara.
— Por que você foi se lembrar agora do Senhor Caos? — pergun-
tou o sargento, sem perceber aonde 0'Hara queria chegar.
O delegado sorriu e respondeu com outra pergunta:
— Qual foi mesmo a última vez que ouviu falar nele?
Garcia refletiu um pouco, mas não demorou muito a responder:
— Não tenho muita certeza! Creio que foi há uns quatro anos.
— Onde ele estava?
— Eu acreditei, na época, que estivesse no Peru. Mas parece que
me enganei.
Garcia estava tenso. Detestava tocar naquele assunto.
Principalmente por causa de Pepe.
Pepe Garcia era aquele irmão menor do sargento, que tinha sido
criado no México por uma tia. Era ainda pouco mais que um
adolescente, quando veio para os Estados Unidos encontrar-se com
Juan Garcia, que o ajudou a estudar e acabar entrando para a
Universidade. Foi ali que Pepe ouviu uma palestra de Ronnie
Eternidade. Sua primeira reação foi a de achá-lo engraçado,
embora muito inteligente. Daí a admirá-lo e segui-lo foi um passo.
Exatamente como acontecera com milhões de jovens nazistas,
seduzidos pelas propostas de Adolf Hitler, e continua acontecendo
com outros que, hoje, se deixam encantar apenas por belas
palavras, sem perceber o que há de falso e sinistro por trás delas.
Pepe Garcia. Uma vida promissora jogada fora. Se Ronnie
Eternidade não estivesse morto, deveria pagar por isso.
— Lembra-se daquele terremoto, Garcia? — perguntou o delegado.
Em lugar do sargento, quem respondeu foi Collins, olhando o
colega:
— Como ele não haveria de se lembrar? Falou naquilo meses
seguidos!
Claro que Garcia não se esquecera. Ele estava de férias, em viagem
pelo Peru, quando aquilo aconteceu. Mas não tinha sido
exatamente um terremoto. Apenas um ligeiro tremor, mas
acordara e tirara da cama metade dos habitantes de Lima, logo na
noite seguinte à de sua chegada.
O delegado insistiu, buscando fazer Garcia lembrar-se:
— Você havia pedido licença, e ido ao Peru atrás de notícias do seu
irmão desaparecido.
Garcia irritou-se:
— Muito obrigado. Não estou com amnésia!
— Então, bolas, deve se recordar também daquele seqüestro que
houve lá, na ocasião. Você nos contou. A polícia peruana pensou
que era coisa daqueles... daqueles... Como se chamava mesmo
aquela organização terrorista lá deles?
— Sendero Luminoso!
— Isso! As autoridades pensaram que o Sendero havia seqüestrado
o menino — filho de um rico plantador — e que o tremor também
tinha sido conseqüência de uma sabotagem. Os do Sendero
adoravam explodir coisas como forma de conquistar o poder.
— E o governo achou bastante conveniente lançar mais esta culpa
nos seus adversários — disse Collins.
Garcia protestou:
— Mas eu sabia que era um tremor de terra. Vivi toda a vida em
Los Angeles, me preparando para os terremotos. Quase caí da
cama!
— Tudo bem. Garcia. O grupo Sendero também negou qualquer
responsabilidade — disse O'Hara, e continuou com ironia: — Mas
faça mais um pequeno esforço, e tente reconstituir a coisa.
Continue insistindo nessa tecla: seqüestro-terremoto, terremoto-
seqüestro. O que mais aconteceu na sua viagem?
— Ora, todos vocês sabem. Eu tinha ido procurar meu irmão Pepe,
que viajou para lá encantado com os ideais daquele patife. Tinha
me mandado uma linda carta, explicando por que estava largando
tudo para seguir o miserável.
— Conseguiu encontrá-lo, sargento?
— Ora, bem sabe que não! — disse Garcia, dando um soco na mesa,
com os olhos cheios d'água, virando as costas, e indo olhar a rua
pela janela. — Voltei com as mãos abanando, sem ter encontrado
meu irmão, e muito menos o Ronnie Eternidade. Isso depois de
procurá-los por todo o Peru, desde Lima, passando por Cuzco, e
indo até as ruínas de Machu Picchu. Não havia, em parte alguma, o
menor sinal deles nem do seu grupo de fiéis seguidores.
O delegado se levantou e foi para junto de Garcia, abraçando-o
pelo ombro.
— E você não achou isso muito estranho? Por que estariam se
escondendo?
Garcia olhou o delegado:
— Ora, porque... porque... Bolas, eu é que vou saber?
— O que você acha, Collins?
— Bem, chefe, eu nunca tinha pensado nisso. Mas agora que o
senhor botou o dedo na ferida, me parece bem claro. Um grupo de
malucos desordeiros sai dos Estados Unidos e parte para um país
onde, pela lógica, iriam ficar mais livres para fazer suas bagunças.
No entanto, ninguém os vê por lá, mas acontece um seqüestro que
ninguém fica sabendo de quem é a culpa.
— É um terremoto, não se esqueça, Collins — frisou o delegado. —
Aconteceram as duas coisas. Exatamente como na Indonésia e
como aqui em Los Angeles.
— Tudo bem, chefe. E daí? Qual o lado prático de tudo isso? —
disse Garcia. — Até agora só me contou uma história pitoresca,
que interessaria mais a um autor de livros de espionagem. Ou,
quem sabe, a seu irmãozinho da CIA?
Com toda calma, O'Hara abriu a gaveta de sua mesa e tirou lá de
dentro um envelope pardo, tamanho ofício. Enquanto o abria, foi
dizendo:
— Pitoresco? — e mostrou aos dois a fotocópia de um recorte de
jornal. — Isto aqui é também pitoresco?
Garcia quase estremeceu ao ver o recorte. O'Hara continuou:
— Foi justamente meu "irmãozinho" Patrick que me cedeu. Veja se
identifica este sujeito aí na foto, no meio do grupo. Com essa barba,
ele está quase irreconhecível. Mas o estilo parece o mesmo.
Ronnie Eternidade! Bem poderia ser ele, misturado a várias outras
pessoas, naquela foto tirada algumas semanas antes no Rio de
Janeiro. No entanto, era um jornal brasileiro, e Garcia não
entendia muito bem o português para saber o que dizia a notícia.
— Rio de Janeiro? — disse Garcia. — Mas se é o Ronnie, o que ele
estava fazendo lá no Brasil?
O'Hara não teve tempo de responder. Um policial fardado entrou,
sem bater, e os interrompeu:
— Desculpe, chefe. É urgente! Encontraram aquele garoto!
Instantaneamente, todos ficaram de pé, mas o policial nem lhes
deu tempo de pensar.
— E não adianta ficarem alegrinhos! O seqüestro continua! Um
daqueles malditos o levou num helicóptero!
— Helicóptero?! — bradou o delegado. — Eles têm até
helicóptero?
— Nosso helicóptero! — esclareceu o guarda, não sem ironia.
9. NO FUNDO DO PINO
Qualquer garoto de doze anos teria achado uma
maravilha aquele passeio panorâmico, pelos céus de
Los Angeles, a bordo de um pequeno helicóptero da
polícia.
Certo de que a visão daquela viagem tinha sido lastimável,
descortinando o rastro da morte, com as pontes e os viadutos
desabados, as casas e os edifícios destruídos, dando a impressão de
que um gigante caminhara pela região, fazendo estragos enormes.
Mas a sensação de observar de tão alto uma paisagem ainda
desconhecida era inédita, e poderia ter sido emocionante, se Diogo
não estivesse tão apavorado.
Em sua inocência, naquele galpão, o garoto chegara a acreditar ter
encontrado em Kino um amigo. Tinha sido estupidamente
comprado por um sorriso, pensara que aquilo era cumplicidade,
que havia comovido e modificado o sueco, mas agora sabia que o
caráter de um bandido é mais complicado que o das pessoas
comuns. Aprendera que os criminosos têm outros compromissos
psicológicos, cristalizados, que não se modificam tão facilmente.
Voando ao lado de Kino, lembrara-se de tudo que acontecera no
caminhão e tivera a certeza de que o bandido seria capaz de
liquidá-lo, se isso fosse necessário. O que ele estava fazendo? Quais
os seus planos? Para onde estavam indo? Quando aquilo iria
terminar? Ah, que saudades do padre Carlito! E que fome!
— Tenha paciência. Quando chegarmos, vamos poder comer
alguma coisa — disse o sueco.
Durante o vôo, Kino falara muito pelo rádio. Diogo não entendia
nada do que ele dizia, pois era em inglês. Mas percebeu que, de
repente, o sueco recebeu, pelos fones de ouvido, alguma
informação que o deixou muito alegre. Chegou a urrar e socar o
painel. O que o deixara tão satisfeito? Era a morte do Espadarte e
seu bando, mas Diogo continuou sem saber do desastre. Mesmo
assim, Kino lhe disse:
— Agora podemos ir sem susto! Está tudo limpo no lugar aonde
vamos.
Apesar da aflição, Diogo percebeu quando já não sobrevoavam a
zona populosa e deixavam a área da cidade. Notou que, em vez de
seguirem a costa, junto ao mar, agora se dirigiam confiantemente
para o interior. Só depois da comunicação pelo rádio, ficou bem
claro que o sueco sabia exatamente para onde poderia ir.
Estavam quase no deserto. Depois da notícia que o aliviara, Kino
parecia ter muita pressa.
— De-desce aí! Eu que-quero descer! — gritava Diogo, de vez em
quando, sem que o bandido lhe desse a menor importância, até que
cansou de gritar.
Lembrou-se da primeira vez que as freiras levaram todo o orfanato
a um parque de diversões. Ele entrara na roda-gigante, todo
lampeiro, mas se arrependeu da animação quando a barquinha
parou lá no alto. Também gritou. Depois, acostumou-se, gostou e
quis mais. Agora, porém, não era o caso de se acostumar e muito
menos de gostar. Por isso, resolveu rezar em silêncio, quase morto
de fome e de cansaço, pedindo a todos os santos que tudo aquilo
acabasse.
E os santos, afinal, o atenderam. Adormecido no assento, Diogo
nem sentiu quando o gafanhoto mecânico aterrissou, e os rotores
pararam de girar.
Nunca soube quanto tempo se passou. Quando acordou, não estava
mais no helicóptero. Que lugar era aquele? Tinha a impressão de
estar no fundo de um poço. Mas um poço gigantesco, muito bem
cuidado e seco, cheirando a tinta. A primeira coisa que notou foi
que não havia cantos de parede. Nem a parede era retilínea. Tudo
era uma grande curva, dando uma volta completa, até retornar ao
mesmo lugar. O piso, como um disco metálico.
Tinham-no colocado deitado num sofá sem encosto. Diogo só
precisou olhar para o alto para ver aquela grande chaminé sem
fim, a parede circular toda branca subindo, subindo dezenas de
metros, enfiando-se na zona de escuridão que havia lá em cima,
onde não era possível enxergar mais nada. Uma espécie de canudo
de alumínio, prateado, estava colado ao paredão. Um elevador?
Mal abrira os olhos, tonto de sono, já começara a ouvir a voz de
Kino, falando com alguém, novamente em inglês. Enquanto
retomava a consciência, Diogo distraiu-se, examinando o que
havia à sua volta. Virando um pouco a cabeça, viu que, ao fundo,
uma aparelhagem complicada ocupava toda a base da parede.
Além de muitos, muitos fios. Mas o principal que ele viu, também,
ali bem perto, foi uma mesinha onde havia uma bandeja com um
lanche: dois bules, uma xícara, um prato com torradas, queijo, um
copo com suco. Seria de laranja? Hmmmm! Pela fumaça, saindo de
um dos bules, sabia que tinha sido colocado ali agorinha.
Diogo desejou devorar tudo aquilo — e logo! —, mas teve medo.
Todas as vezes que tomara uma iniciativa, acabara se dando mal. O
que Kino faria com ele, se fosse interrompido? E com quem o sueco
estava conversando? Ah, se pudesse entender o que eles diziam...
— Quando você me informou e confirmei com o grupo do Peru, eu
nem quis acreditar. O Espadarte, morto?! — dizia Kino, fingindo
lamentar o sucedido, e sua voz ecoava lá no alto do poço de
concreto. — E como foi isso?
— Como contei! Os três carros foram tragados pelo desabamento
da estrada, e em seguida explodiram. Ninguém escapou! Ainda bem
que vocês não vinham todos juntos!
Simulando revolta, Kino jogou longe a pequena cadeira onde
estivera sentado.
— Maldição! Onde foi que aconteceu?
O outro explicou, e isso provocou novo acesso no sueco, que
começou a dar chutes em tudo que havia à sua frente, sem se dar
conta de que estava exagerando.
— Agora entendo! Foi por isso que interromperam o tráfego! Vai
ver, o helicóptero que eu capturei nem estava à nossa procura!
Vamos, me conte mais!
— Não há mais nada a contar. E você, tem?
Kino parou de rir e falou sério:
— Claro que não! Ora, não era esse o combinado: que todos nós,
depois do seqüestro, viéssemos para o Pino?
O outro parecia pesar bem as palavras:
— Sim, mas não esperava que viessem separados — respondeu.
Kino, muito desconfiado, sentiu alguma coisa no ar. Disse:
— Foi o Espadarte que preferiu assim!
— Parecia estar adivinhando, não é?
— Adivinhando o quê? — perguntou Kino.
— Que poderia acontecer algo. E que quem sobrevivesse poderia
dar continuidade ao plano no lugar dele. Ele passou a você as
instruções?
Kino sentia que participava de um jogo, e que tinha que dar a
resposta certa.
— As instruções? Que instruções? Do comando supremo, você diz?
— De quem haveria de ser?
Para espanto do outro, Kino começou a rir.
— Ha, ha, ha! E se o comando tivesse ordenado ao Espadarte que
nos matasse um por um, assim que estivéssemos todos aqui, e
destruísse o Pino? Quem iria fazer isso?
O outro riu amarelo.
— Ora, Kino, não é hora de brincar. Você agora é o único sobrevi-
vente do grupo de Los Angeles, é o substituto do Espadarte, e cabe
a você dar continuidade ao trabalho dele, em vez de ficar aí
imaginando besteiras.
Kino fechou a cara, e aquela nuvem cinzenta voltou a escurecer
sua fisionomia:
— Só que você está enganado! Há outro sobrevivente, além de
mim.
— Quem?
— Você!
Diogo sentiu, de repente, o silêncio quando os dois pararam de
falar. Havia uma estranha tensão no ar. Deitado ainda, virou-se no
sofá para olhar. Viu Kino sentado, de costas para ele. Do outro
homem, ele só conseguia ver as pernas e parte da cintura. O sujeito
estava de pé, com a metade superior do corpo na escuridão. Nunca
iria se mover?
Diogo, então, resolveu comer. Não agüentava mais. Apoiou-se num
dos braços, ergueu-se e esticou o outro em direção à bandeja.
Conseguiu fisgar uma torrada, trazendo-a lentamente até a boca.
Faminto como um lobo magro, ele deu a primeira mordida. E isso,
no fundo daquele cilindro de concreto, soou como o ribombar de
mil trovões.
Os dois homens se voltaram para ele,
Ainda com a torrada mordida entre os dentes, Diogo viu que Kino
lhe sorria.
— Acordou? Então tome logo esse lanche antes que esfrie. E
gentileza da casa — falou em espanhol.
— O que você disse a ele? — quis saber o outro, nervoso. — Fale
apenas em inglês.
— Inglês? Ele é brasileiro. Só entende português e um pouco de
espanhol. Esqueceu-se de que pegamos o garoto errado?
— Ah, sim! Aquela burrada! — disse o homem. — Quando você vai
matá-lo?
— Matá-lo? Se depender de mim, nunca. Foi o que eu disse ao
Espadarte antes de nos despedirmos.
O outro surpreendeu-se:
— O Espadarte também queria que você matasse o garoto? E por
que você não o fez?
— Não acho que esse tipo de sujeira faça parte do meu trabalho —
disse Kino, com absoluta calma. — Só se recebesse ordens diretas,
lá do comando, estaria disposto a pensar no assunto. No momento
vou apenas cumprir o que me ordenaram.
O outro parecia impaciente:
— Pois muito bem. Prossiga com a missão. Faça o que o Espadarte
faria.
— Pois então, vamos lá. O que você acha que seria, agora, a parte
do Espadarte? — Kino perguntou, com o olhar fixo nos olhos do
outro.
— Bem, não sei muita coisa. Só sei que, depois de chegar ao
Mojave, e fazer contato comigo aqui no Pino, ele partiria com o
grupo peruano que acaba de chegar naquele jato lá fora.
— E você? Qual a sua parte? — continuou o sueco.
— Eu? Bem... O que você já sabe. Usar o Pino, cumprir as ordens,
fazer o que fiz...
— Isso era antes. Você já fez! Quero saber o que vai fazer agora!
O outro sujeito já não suportava mais aquela insistência de Kino.
O que esse sueco intrometido estava querendo? Não era ele quem
deveria estar aqui. Mas tentou falar com certa tranqüilidade:
— Ora, agora me cabe providenciar que você viaje para a América
do Sul naquele avião, com a tripulação que está lá à sua espera,
com documentos falsos e tudo.
— E depois disso?
— Depois disso, bem, continuar aqui aguardando ordens, cuidando
aqui do Pino...
— ...Até que descubram o Pino? — disse Kino com maldosa ironia.
— Ora, este Pino está bem escondido, nas profundezas da terra, em
pleno deserto do Mojave. Ninguém o encontrará, e ele poderá
continuar prestando bons serviços. Certo?
— Errado! — disse Kino, e sua voz ecoava como a voz de um
demônio, quando ele se ergueu, diante do outro, com a pistola na
mão.
Diogo, que acabara de tomar a última gota do seu lanche, quase
deixou cair a xícara. Não precisava entender o que o sueco falava,
pois já sabia o que ele iria fazer em seguida.
— Há muitas falhas no seu conhecimento do plano! Há outros
detalhes, que você desconhece, e os principais são os seguintes:
primeiro — quanto à sua parte —, o comando deu ordens para
que o Pino seja completamente destruído; segundo — quanto à
nossa parte —, o comando deu ordens para que uma certa pessoa
seja destruída também.
— Quem?
— Outra vez você!
E, sem mais uma palavra, Kino comprimiu o gatilho. Foi só uma
vez, e bastou.
Sem mesmo dar um último olhar ao homem que caía, caminhou
até Diogo e lhe fez um sinal que não admitia qualquer discussão:
— Vamos! Você continua a comer no avião!
E não adiantava mesmo discutir.
10. OLHA SÓ QUEM CHEGOU!
— Uma explosão nuclear?! No deserto do Mojave?! — espantou-se
o cônsul, que estava de ouvidos atentos.
— O quê? Ah, sim... Embora não se trate de uma daquelas grandes,
isso ficou bem claro! Mas não tem dúvidas de que, efetivamente,
foi uma explosão nuclear não autorizada. Ou melhor: uma
implosão! Clandestina! — disse o agente, voltando a colocar o fone
no gancho, já arrependido de ter falado demais na presença dos
outros.
— Teve aquele cogumelo? — quis saber Collins.
— Não mencionaram, e nem nos compete aprofundar. O
Departamento de Defesa está assumindo o caso e nos quer fora
disso.
— E o que eles vão dizer à imprensa? — voltou a perguntar
Gilberto.
— Nada! A imprensa não pode saber de nada! O assunto é
extremamente confidencial. Por favor, esqueçam o que ouviram —
pediu o agente. — Fui imprudente, atendendo o chamado nesta
sala e não num lugar reservado.
— Que tal detê-los aqui algumas horas, Johnson? Seria mais
garantido — sugeriu seu colega.
— Vocês que se atrevam! — gritou Garcia, levando a mão ao
revólver.
— Epa! Guarde essa arma! — protestaram os agentes.
— Não guardo coisa nenhuma, até poder sair daqui. Com vocês do
FBI eu não me arrisco — continuou Garcia.
— Calma, Garcia! Eles têm o direito! - falou O'Hara, tentando
conciliar.
— Lá isso não, delegado! Estamos oficialmente em território
brasileiro. Meu território! E aqui mando eu! Tecnicamente, todos
vocês são convidados... ou invasores — falou o cônsul, com
energia, embora sentado numa poltrona, apoiando num tamborete
a perna enfaixada.
Depois do incidente na estrada, Gilberto logo entrara em contato
com o FBI, enquanto o piloto do helicóptero avisava a central de
polícia. Por esse motivo, os dois grupos tinham corrido ao
consulado e discutiam que providências tomar, quando souberam
por acaso da explosão misteriosa no deserto.
Collins tentou voltar ao assunto que os tinha levado até ali:
— Crianças, estamos perdendo tempo! Por que brigar por causa de
uma explosão no deserto? Ela não tem nada a ver conosco!
Garcia não estava tão certo assim:
— E por que não, Collins? Tudo o que é suspeito nos interessa!
Quem sabe em que direção aquele bandido levou o garoto?
— Hei, não vá me dizer que era um helicóptero nuclear! —
defendeu-se Collins.
— Não banque o trouxa! Só quero saber se eles voaram para aque-
les lados!
— Cedo ou tarde saberemos. Meu irmão está por dentro do assunto
— interrompeu o delegado. — Agora gostaria de ter uma
conversinha com o senhor cônsul. Em particular, se possível. E
muito importante.
Ao dizer isso, O'Hara olhou na direção dos agentes do FBI. Eles
não se moveram do lugar até que Gilberto lhes pediu para saírem.
— Você também, Collins! Pode voltar à base — disse o delegado.
— Mas preciso do Garcia aqui comigo.
Depois que ficaram apenas os três no gabinete do cônsul, o próprio
O'Hara fechou a porta, e tirou do bolso aquele mesmo envelope
pardo, com a cópia do recorte de jornal. Antes de abri-lo,
perguntou ao cônsul:
— Diga-me, doutor Gilberto! Participou da Eco-92, realizada no
Rio de Janeiro?
— A reunião mundial sobre ecologia? Sim, por acaso participei.
Por que quer saber?
Em princípio, porque gostaria de encontrar alguém que tivesse
estado por lá, na ocasião, e fazer-lhe algumas perguntas.
Que tipo de perguntas? Sobre ecologia? Bem, eu não sou um
técnico no assunto. Fui convocado ao Rio apenas como assessor
diplomático, reforçando a equipe na recepção ao seu presidente.
— Sim, isso eu sei. George Bush esteve lá. Um dia apenas. Mas
voltou logo, recusando-se a assinar o tratado da biodiversidade —
disse O'Hara, fazendo Garcia disfarçar um sorriso de ironia. —
Declarou até, na ocasião, que "os Estados Unidos não são mais
xerife do mundo". Pode me descrever o que aconteceu depois,
durante a semana das conferências?
— Quer saber o que foi discutido? — perguntou o cônsul, sur-
preendido de aquele delegado ser tão bem informado sobre
política internacional. — Bem, é só procurar nos jornais da época.
A maioria dos países pregou medidas de preservação do meio
ambiente, muitos projetos foram apresentados pelos
representantes, e realizaram-se incontáveis reuniões e seminários,
defendendo a melhoria da qualidade de vida na Terra.
— E defendendo o contrário, doutor Gilberto?
Ao ouvir isso, o sargento Garcia se remexeu em sua cadeira.
Começava a suspeitar aonde seu chefe queria chegar. Mas o cônsul
não entendeu.
— Defender o contrário? — estranhou. — O que quer dizer?
— Bem, senhor cônsul. Como diplomata e pessoa que circulou bem
próximo ao presidente dos Estados Unidos da América, devo supor
que teve notícia de um reduzido grupo de lunáticos que, durante a
Eco-92, reuniu-se num local afastado para protestar contra a
ecologia.
Gilberto deixou a perna ferida escorregar do tamborete, e deu um
grito de dor quando ela bateu no chão.
— Ai! Ui! Puxa, como isso está doendo! Deixe, deixe, eu mesmo
levanto. Pronto! Mas, o que foi que disse? Um grupo protestou
contra a ecologia? Em plena Eco-92? Só podiam ser loucos.
— Talvez fossem! Mas não se justifica a insensatez das autoridades,
que não os levaram a sério.
— Ora, delegado! Agora sei do que o senhor fala. Chegou ao nosso
conhecimento, tanto dos brasileiros, quanto dos norte-
americanos. Soubemos que alguns intelectuais anarquistas se
reuniram, uma noite, para ataques à Eco-92. Os líderes chegaram a
convocar a imprensa, mas só apareceram alguns gatos-pingados.
Por isso, soube-se muito pouco do que eles pregavam, mas parece
que se posicionavam a favor de... de que mesmo? Nem sei. Era
tanta bobagem que...
Com a fisionomia fechada, O'Hara completou:
— Eles se posicionavam a favor da destruição de uma parte da
natureza no mundo, de uma política radical de terras arrasadas,
visando a dificultar a sobrevivência de várias espécies, inclusive a
humana.
O cônsul estava de boca aberta, sem querer acreditar.
— Como é que é?!
— Exatamente o que ouviu, doutor Gilberto. E é pena que só se
tenha dado atenção agora. Se tivessem mandado prender aqueles
indivíduos, na ocasião, muita desgraça teria sido evitada. Aqueles
patifes, doutor, tomando cerveja num subúrbio carioca, nas barbas
dos maiores ecologistas do mundo, pregaram o extermínio de dois
terços da humanidade. Nem mais nem menos. Sem distinção de
raça ou religião, e nisso ao menos eles são democráticos, mas seu
plano é de que muita gente morra para depurar o mundo, onde
eles acham que há gente demais. Só não disseram como o fariam.
Gilberto ficou de pé. Uma bengala servia-lhe de apoio. E ele
gritava:
— Provas! Quero provas! E nomes também!
Abrindo o envelope, O'Hara mostrou-lhe o recorte:
— Isto serve?
Enquanto Gilberto lia a notícia e examinava a fotografia, o delega-
do contava tudo o que sabia sobre as atividades anteriores de
Ronnie Eternidade, falando de suas posições radicais, e de sua
facilidade em converter jovens á sua sinistra ideologia,
convertendo-os em fanáticos. Como exemplo, citou Pepe Garcia,
relatando toda a peregrinação de seu irmão policial, em território
peruano, tentando encontrá-lo e trazê-lo de volta. E terminou
garantindo:
— E este pilantra aí, nesta foto, à saída da reunião, foi o cara que
liderou a tal reunião antiecológica no Rio de Janeiro. E ele não é
outro senão o Senhor Caos. Eu nunca esqueço um rosto de
criminoso, doutor, por mais que o miserável se disfarce. Hein,
Garcia? Diga a ele o que você acha. Este aqui é ou não é o Ronnie
Eternidade?
Garcia ia responder, mas o cônsul interrompeu:
— Muito bem, muito bem, delegado. Estou perplexo! Só gostaria
que me explicasse, agora, o que toda esta história tem a ver com o
nosso problema principal: o seqüestro daquele garoto!
O'Hara respirou fundo.
— Já vai saber, doutor. Antes, peço licença para mais uma per-
gunta. Permita-me tomar essa liberdade, mas, por favor, me
perdoe, e me responda. Para exterminar dois terços da
humanidade, que meios o senhor usaria?
O cônsul olhou para Garcia, como pedindo ajuda, e voltou a enca-
rar o delegado.
— Bem... Talvez uma guerra. Uma guerra bacteriológica. Sim, se eu
fosse um desses malditos, talvez começasse por aí.
— Um pouquinho medíocre, como método, e de eficiência duvi-
dosa — disse O'Hara, sacudindo-lhe o braço carinhosamente, mas
com firmeza. — Por que não usar, por exemplo... terremotos?
Garcia deu um tapa na própria testa, com a palma da mão,
constrangido. O cônsul, paralisado, nem chegou a responder, pois
nesse momento bateram à porta, e entrou um funcionário bem
vestido, mas em mangas de camisa.
— Com licença, doutor Gilberto. Desculpe interromper, mas
chegou este teletipo. Parece que a terra voltou a tremer na
Indonésia, na ilha de Sumatra.
Antes que alguém pudesse comentar qualquer coisa, uma moça
bonita e muito elegante, também funcionária, entrou trazendo
outras notícias:
— E ainda tem mais! Houve abalos também na China, na província
de Qinghaia — disse ela, querendo impressionar. — Além de outro
sismo de intensidade moderada no Japão, sem vítimas fatais.
— Sim, mas o da Indonésia foi forte: 7.2 na escala Richter. Foi
sentido em Jacarta e Cingapura, e matou 134 pessoas —
acrescentou o outro, olhando a colega, em franca competição.
O cônsul continuava em silêncio, desnorteado, e desta vez quem
falou foi Garcia, querendo provocar o delegado:
— Que espantoso! Abalos na Indonésia, na China e até no Japão. E,
por acaso, não houve nenhum seqüestro, no meio disso tudo?
A moça ia responder primeiro, o rapaz tentou impedi-la, mas ela
foi mais rápida:
— Sim, um seqüestro. Houve um seqüestro em Tóquio. De uma
garotinha, parece. Como adivinhou?
O'Hara deu uma gargalhada e sacudiu o cônsul, enquanto Garcia se
sentava, tirando um lenço do bolso para enxugar o rosto.
Livrando-se das mãos do delegado, o cônsul perdeu o controle e
gritou, dando uma pancada com a bengala.
— Loucos! Vocês estão todos loucos! Não vou embarcar em teorias
malucas! Só me interessa saber onde está o garoto!
— Só vamos descobrir quando tivermos todas essas respostas! —
berrou o delegado.
— Besteira! — disse Garcia. — Me deixem ir ao local daquela
explosão no deserto e eu lhes digo para onde o garoto foi!
Todos discutiam e não perceberam quando alguém entrou. Era
uma figura pequena e séria, mas tinha algo de impressionante.
Moreno, com cara de índio, vestindo com sobriedade um traje
escuro, parecia talhado em madeira. Poucos duvidariam se, logo no
primeiro contato visual, ele dissesse que era padre. Sim, ele era.
— Desculpem — disse ele, em voz baixa, lá no fundo do salão, junto
à porta aberta. E, como não o ouvissem, repetiu um pouco mais
alto: — Desculpem. Alguém pode me atender? Não havia ninguém
lá fora.
Todos pararam de falar e olharam em sua direção. Quem seria?
Mas foi ele quem perguntou:
— Por favor, algum dos senhores é o sargento Garcia? Disseram-
me que eu o encontraria neste consulado!
Garcia não teve a menor dúvida. Diogo o descrevera muito bem.
Aquele homem só podia ser o padre Carlito.
11. DIOGO CHEGA AO PERU
Uma longa viagem, não tão confortável quanto a que o trouxera
aos Estados Unidos. Um avião a jato, porém pouco menor que o
anterior, sem todas aquelas poltronas e passageiros, sem cinema a
bordo ou aeromoças servindo refrigerantes e comidinhas gostosas.
Agora só Kino falava com ele. Os outros homens, mal-encarados,
eram sérios e silenciosos.
Diogo achou interessante a variedade de tipos no grupo que o
sueco chamava de os peruanos (parte da organização que atuava
no Peru): um deles tinha cara de japonês, outro era grandalhão e
de cor muito escura, outro era um magrelo e de olheiras fundas, e
ainda outro tinha olhos azuis, sendo quase tão louro quanto Kino.
Durante o trajeto, Kino dera a Diogo roupas limpas e novas.
Andava sempre de um lado para outro, parecendo aflito para
chegar. Boa parte do tempo, passou envolvido com a produção dos
documentos falsos que, num setor do avião, o outro louro
preparava para ele e o garoto. Depois que fotografaram Diogo,
Kino resolveu levá-lo à cabine do piloto.
Diogo impressionou-se ao ver aquelas nuvens, através do vidro,
parecendo monstros de algodão engolindo o avião. O painel de
instrumentos lembrou-lhe aqueles aparelhos lá do poço. Ainda
ecoavam em seus ouvidos os bips e sirenes alucinados que o sueco
pusera para funcionar, ao abrir um pequeno cofre de aço.
Kino tinha tirado vários papéis lá de dentro, examinou-os,
arrumou-os e colocou-os numa pasta, que fechou e nunca mais
largou. Depois de ter feito isto, percorrera velozmente bancada
por bancada, puxando alavancas e digitando teclados, acionando
novos alarmes, preparando alguma coisa terrível antes de
abandonarem aquele inferno pelo elevador.
Depois, o avião. E só quando estavam a bordo, afivelados aos seus
assentos, e acabavam de decolar, Kino deu um suspiro de alívio.
Diogo não fazia a menor idéia de qual seria a próxima etapa da sua
aventura. Tinha a certeza de que não adiantaria perguntar ao
sueco. Preferiu rezar. Isso o ajudara, até agora, a suportar os
perigos. Quem sabe seria atendido no principal: encontrar
novamente o padre Carlito? Em algum ponto daquele mundo
imenso, lá embaixo, ele haveria de estar. E, quando Deus quisesse,
os dois voltariam a se ver.
Recostado na poltrona, Diogo ajeitou a cabeça no travesseiro e
sorriu, já de olhos fechando. Quanta coisa para contar aos colegas,
lá no orfanato! Pedro Amaral, Inácio de Souza, Luís da Silva... ia
lembrando um por um... até que adormeceu. Dormia fácil, quando
voava. O que o acordou foi um ronco diferente das turbinas.
Tinham chegado.
A primeira coisa que viu foi Kino ao seu lado, grudado à pasta onde
enfiara, às pressas, todos aqueles papéis que tirara do cofre antes de
destruir o Pino.
Diogo não resistiu e perguntou:
— J-já é o Bra-Brasil?
E esticou a cabeça para espiar a janela, vendo um finzinho de mar
antes de o avião alcançar a terra, em seguida os edifícios e
finalmente a pista. Depois do tranco das rodas no solo, repetiu a
pergunta, dando uma cotovelada de leve no sueco.
— É-é?
Já de pé, preocupado em examinar e tornar a fechar a pasta, Kino
respondeu:
— Não. Ainda não!
Ainda não?! O que esse camarada queria dizer? A revolta tomou
conta de Diogo. Pela primeira vez esse tipo de emoção o dominava
em tudo o que acontecera. Sentira medo, angústia, ansiedade —
conformado, achando que era coisa de menino pobre —, mas essa
revolta era nova. Diogo sofria com esse veneno, que tinha gosto de
ódio misturado com desespero, e estivera trancado lá dentro dele,
preparando-se para explodir quando chegasse a hora. Que afinal
chegou. Tinha esperado que, quando o avião pousasse, seria o
Brasil e a liberdade. E não era!
Com aquela revolta na garganta, deixou-se arrastar pela mão,
atravessando ao lado de Kino os salões do aeroporto estranho,
conduzido sabe-se lá para onde, no meio daquelas malas
atravancando o caminho. Ninguém o notava, nem ele notava
ninguém. Como ninguém notara, há poucos minutos, que seu
passaporte era falso.
De repente, por um instante, Kino soltou-lhe a mãozinha suada
para pegar o passaporte no bolso do paletó. Para não colocar a
pasta no chão, deixou-a nas mãos de Diogo. O garoto nem quis
saber de mais nada e se mandou!
Foi uma disparada louca. Pulando todos os obstáculos que surgiam
pela frente, driblando as pessoas — e sem largar a pasta —, Diogo
corria com toda a velocidade de que suas pernas eram capazes,
buscando afastar-se o mais rapidamente possível dos seus
acompanhantes.
— O garoto! Pega! Quero aquela pasta! — ouviu a voz de Kino,
gritando, desesperado.
O segundo grito já soou como um eco distante aos ouvidos de
Diogo.
Surpreendidos, os bandidos tinham dificuldade em romper a
multidão. Isso ajudou o menino. Mas, e a saída? Precisava
encontrar uma porta qualquer. Quem sabe, lá em cima, depois da
escada? Um momento de hesitação quase pôs tudo a perder. Um
dos homens surgiu à sua frente, de braços e pernas abertos,
cortando-lhe a retirada. O que fazer?
Por isso, Diogo era sempre escalado no time do orfanato: com o
mesmo ímpeto com que avançava, virou bruscamente o corpo e
mudou de direção. No momento exato em que o sujeito ia agarrá-
lo! Com o impulso, o bandido rodopiou no vazio, tropeçou num
carrinho de malas e estatelou-se no chão de ladrilhos. Diogo nem
olhou para trás. Apareceu uma porta de vaivém, e o garoto saiu
por ela como um foguete. Estava na rua.
Sem parar de correr, atravessou a pista. Avante! Sempre avante!
Um guarda apitou. Diogo pensou que era com ele. Mas o guarda
apitara para um microônibus que vinha na contramão. O
motorista freou, mas tarde demais. Ele e Diogo tinham chegado
juntos, ao mesmo lugar.
O mais leve dos dois foi atirado à distância.
Diogo mudou bruscamente de direção: com o impulso,
o bandido rodopiou no vazio, tropeçou no carrinho de
malas e estatelou-se no chão.
— Por que acha que eles foram para o deserto, sargento? -
perguntou o padre Carlito, em espanhol, à mesa do almoço na casa
de Garcia.
— Porque descobri que, na mesma hora da fuga, foi detectada a
presença de um helicóptero voando em direção à área —
respondeu Garcia
— Poderia ser um outro helicóptero! — insistiu o padre.
— Por que, então, ele não se identificou? Padre, desde cedo apren-
di que um policial deve seguir todas as pistas. Todas!
O padre sorriu.
— Perdoe, sargento, mas acho que essa sua idéia é teimosia de
jovem. Cabeça dura.
Garcia parou de comer, e ia protestar, quando viu que Maria sorria
junto com o padre.
— O padre tem toda razão! Você é um cabeça-dura! — disse ela,
afagando a cabeça do marido, enquanto colocava outra panqueca
em seu prato. — Por isso, tem tanta dificuldade em conseguir
promoção. Vive discutindo com o delegado, que é uma boa pessoa.
— Boa pessoa! Boa pessoa! — resmungou Garcia. — Aquele sim é
um cabeça-dura, tentando nos convencer de que existe um plano
diabólico por trás dos seqüestras e terremotos. Tudo porque, no
fundo, ele gostaria de estar no lugar do irmão, que é um federal.
Esse assunto é mais da área deles, do pessoal de informações, e não
da nossa.
— Não subestime seu chefe, sargento. Poderia estar também
subestimando a si próprio. Todos têm direito a ter idéias. Veja que
eu sou um padre, um religioso, e estou aqui com um policial que
me pede opiniões. E estou disposto a dá-las. Apesar de não ser da
CIA. Além disso, o senhor mesmo disse, ahorita: um bom policial
deve seguir todas as pistas.
— Mas o senhor concorda, padre? — perguntou Garcia, muito
sério. — Com as teorias do O'Hara?
O padre ficou sério, acabou de engolir, limpou os lábios com o
guardanapo.
— Confesso que ele me impressionou — respondeu. — Para falar a
verdade, acho fascinante a tese de seu chefe.
Enciumado, o sargento se levantou da mesa e foi olhar pela janela.
— Então, se gostou tanto dele, por que, em vez de ficar por lá,
aceitou meu convite para almoçar aqui em casa? — perguntou,
magoado.
— Juan! — ralhou Maria.
— Deixe, senhora! Além de terem a cabeça dura, os jovens
costumam ser malcriados — disse o padre, indo a Garcia. — Eu
preferi aceitar seu convite, sargento, por causa do seu coração.
Garcia não entendeu.
— Coração?!
— Sim, sargento. Veja! — e o padre mostrou a sala, à volta deles. —
Tudo aqui é coração. E um lar amoroso. Uma família. Embora eu
ache que o delegado e o cônsul brasileiro são pessoas de bem, eles
estão usando apenas o cérebro. Encaram o caso profissionalmente,
apaixonados pela solução técnica, sem pensar em Diogo como
pessoa. O senhor, não. Sua principal preocupação é com o menino.
Percebo que sofre pelo que possa estar acontecendo a ele. Noto que
daria até sua vida para salvá-lo. Trouxe-o aqui, tratou-o como um
filho e adoraria abraçá-lo outra vez. Exatamente como eu também
gostaria. E aquelas pessoas, eu acho que nem se importam com isso.
Com os olhos brilhando de emoção, o sargento deu um abraço no
padre.
— Desculpe, agora eu entendo! Mas por que não me apoiou quando
pedi que me autorizassem a ir ao deserto do Mojave?
— Primeiro, porque ninguém pediu minha opinião. Talvez achem
que um padre não possa dar palpite nessas coisas — respondeu o
padre.
- E, segundo, porque, cá comigo, achei a pista já superada! Se eles
foram mesmo ao Mojave, já não devem mais estar lá. Esse tipo de
homens costuma agir com velocidade. Se estiveram no deserto,
fizeram o que tinham que fazer, e saíram.
— E o que acha que eles fizeram? Tem a ver com a tal explosão?
— Quem sabe? Encaixa-se muito bem às estranhas teorias do
delegado, não acha?
— Padre, padre. E por isso que eu queria ir ao deserto. Pena o
senhor ser padre e não poder pedir a eles.
O padre estava distraído, brincando com um dos filhos de Garcia,
que pulara do colo de Maria para os braços dele. O sargento
insistiu:
— Padre, eu não penso em outra coisa senão trazer o menino de
volta. Nunca vou me conformar, se não der uma olhada naquele
deserto. Sou mesmo cabeça-dura... Fui teimoso, do mesmo jeito,
quando Pepe — o meu irmão — desapareceu.
— E adiantou? — perguntou o padre, fazendo cavalinho com a
perna para a criança.
- Bem... Não.
Sem parar de sacudir a criança, o padre o encarou.
— Então não insista para ir ao deserto. Vou lhe fazer um convite, e
preciso da autorização do seu chefe para que o senhor me
acompanhe.
— Que eu o acompanhe? Aonde?
Notou que o padre tinha a mania de responder uma pergunta com
outra pergunta:
— Alguma vez pensou em ser padre, sargento Garcia?
— Madre de Diós! Pobrecito! — todas as vozes, à sua volta, falavam
espanhol.
Apesar das dores e da perna engessada, Diogo estava achando
divertido aquele movimento junto de sua cama. Finalmente se
sentia livre, depois de tantas aflições. Essa liberdade tinha saído
caro, mas, pelo menos, não via mais as fisionomias ameaçadoras
dos seqüestradores. Agora, só aqueles rostos morenos-cobre, alguns
até avermelhados, como de índios, lembrando um pouco o padre
Carlito, e até o seu próprio tipo. As mulheres, então, pareciam
pequenos anjos de cabelos negros em coque, algumas parecidas
como se fossem gêmeas. Sua dedicação demonstrava que estavam
felizes por ele ter escapado.
Eram várias enfermeiras, entrando e saindo da enfermaria para
onde ele tinha sido levado após o acidente. Havia também um
policial, de olhos miúdos, quase completamente encobertos pelo
quepe.
Só tinha recuperado a consciência depois de chegar ao hospital.
Não viu nem sentiu quando lhe fizeram os curativos e tiraram as
radiografias. Mas conseguiu ouvir, assim que voltou a si, a frase
mais importante de todas:
— O cérebro está intacto. A cabeça não quebrou, não sofreu nada!
Foi só a fratura na perna!
— Um milagre!
— Crianças têm sempre um anjo da guarda por perto!
Diogo sorriu, lembrando-se das freiras do orfanato. Vendo-o sorrir,
uma das indiazinhas de branco veio afagar-lhe a testa.
— Acordou? Como se sente?
O policial veio olhar, e já começou fazendo cobranças.
— Se já puder falar, quero que responda algumas perguntas!
— Pobrecito! — censurou a enfermeira, empurrando-o. — Ele
ainda deve estar se sentindo tonto! Como pensa que fica uma
pessoa atropelada por um ônibus?
— Foi ele que atropelou o ônibus! — disse o guarda, sorrindo.
— A-a pasta! — falou Diogo. — Ca-cadê a pa-pasta?
Todos olharam para ele.
— Ah, vejam só! Já consegue falar! — alegrou-se o policial, já
tirando do bolso um caderninho. — Vamos lá, garoto! Preciso
saber: quem é você, de onde vem, e quem são seus pais.
Pais? Por onde começar? Devia mesmo falar? Diogo era apenas um
pobre órfão, que da noite para o dia se vira envolvido numa trama
diabólica, com um terremoto no meio. Talvez nem mesmo ele
estivesse entendendo o que se passava.
— A-a pa-pasta! — repetiu.
— Ele quer a pasta. Mas que pasta? Havia alguma pasta com ele?
Ninguém parecia lembrar-se de pasta alguma, até que uma
enfermeira mais idosa foi ao fundo da enfermaria e voltou de lá,
em silêncio, trazendo uma pasta.
O guarda sentiu-se feliz.
— Ora, afinal! Uma pasta! É sua? O que tem essa pasta? Grande
demais para um menino! Como se abre? Você tem a chave?
Diogo não tinha a chave.
— Bem, parece que tenho que levá-la ao batalhão.
Uma jovem enfermeira protestou:
— Nada de batalhão! A pasta pertence ao menino. Estava com ele,
no momento do acidente. Os pais vão querer saber da pasta!
O guarda se conformou.
— Está certo, então. Mas vou anotar. Quem sabe ele roubou essa
pasta de alguém?
As enfermeiras se revoltaram. Que violência! Achar que era ladrão
um menino daqueles?
— Então alguém me diga quem é esse menino! Preciso botar no
relatório. O comandante vai perguntar!
O fato é que ninguém sabia quem era o menino. Sabia-se apenas
que atravessara a rua correndo, carregando uma pasta, em frente
ao aeroporto internacional Jorge Chavez, em Lima, Peru, e fora
atropelado por um velho microônibus com a tinta descascada.
Havia muitas pessoas que viram o acidente, e outras que se
juntaram à roda de curiosos para assistir ao socorro prestado até a
chegada da ambulância. Ninguém falou nada na ocasião, ninguém
se apresentou como responsável. Nem mesmo um dos
companheiros de Kino, que achou arriscado se comprometer, mas
anotou o número da ambulância e viu o rumo que ela tomou.
Aos poucos, porém, as coisas foram se esclarecendo no hospital.
Com muito jeitinho as enfermeiras acabaram extraindo de Diogo
as informações principais para atender a polícia. E quanto mais
iam sabendo, mais aumentava a sua curiosidade. Chegou-se a um
ponto em que as coisas pareciam tão espantosas, que o guarda só
não bastava, e apareceram uns senhores de terno, além de um
militar de uniforme. Perguntas e mais perguntas. Uns acreditavam
na história de Diogo, outros faziam cara desconfiada. E cada vez
chegava mais gente à medida que conseguiam confirmar alguma
coisa.
Diogo já estava podendo caminhar, com a perna engessada, apoia-
do em uma pequena muleta. Mas nada, ainda, de poder sair do
hospital. Tinha sabido, pelas enfermeiras, que suas informações
estavam sendo verificadas, e que eram dados vários telefonemas.
Mas para onde? Quando conseguiriam avisar o padre Carlito?
Dissera a eles, também, o nome do sargento Garcia, em Los
Angeles. Pensava neles como amigos que se perderam no passado.
Não tinha deixado que abrissem a pasta de Kino. As autoridades
insistiam, mas ele a conservava sempre à vista. Sabia que a pasta
não lhe pertencia e tinha medo do que haveria lá dentro. E medo
da vingança de Kino.
De uma hora para outra, Diogo foi transferido da enfermaria para
um quarto menor. Só depois de instalado se deu conta de que não
tinham trazido a pasta. Já ia reclamar, quando a enfermeira mais
amiga — a quem chamavam Charo — chegou trazendo a pasta e,
com um sorriso que lhe tomava o rosto inteiro, informou:
— Meus parabéns! Tudo resolvido! Está lá na portaria um tio seu,
que veio dos Estados Unidos identificá-lo. Mandei subir.
Tio? Estados Unidos? Diogo sentiu ameaça no ar, o aviso do perigo.
Algo bem semelhante à sensação estranha que tivera em Los
Angeles, na casa de Garcia, três ou quatro segundos antes de aquele
aftershock fazer a casa tremer. Não podia esperar para ver quem
era esse tio! Aproveitando que Charo procurava um lugar para
colocar a pasta, pegou a muleta e saiu para o corredor, quase em
pânico.
Precisava ser rápido! Não sabia ainda como descer aquela escada-
ria, mas primeiro tinha de chegar até lá. A perna quebrada o
retardava, não estava treinado ainda em caminhar com a muleta,
mas o desespero o ajudava. Conseguiria descer todos aqueles
degraus? Chegou a sorrir, com alívio, ao descobrir que havia um
elevador. Que sorte!
Esperou ansioso que o elevador chegasse. A porta então se abriu,
saíram várias pessoas, e finalmente saiu o tio.
Só que não era tio coisa nenhuma.
Reconheceria aquele sorriso até no inferno.
Era Kino.
12. GARCIA E PADRE CARLITO CHEGAM PERTO
Ninguém reparou naqueles dois padres de terno escuro,
desembarcando de um avião de passageiros em Lima. Um era
grande e forte e o outro, bem menor e atarracado, pouco mais
velho que o primeiro. Ambos eram do tipo latino e, por isso, os
últimos a chamarem atenção num país como o Peru.
Mesmo assim, ao atravessar a gare do aeroporto, às vezes eram
obrigados a parar para que uma devota lhes pedisse a bênção e lhes
beijasse as mãos. Afinal, o Peru é um país católico. O padre mais
jovem ficava todo sem jeito, enquanto o outro disfarçava sua
vontade de rir ao vê-lo tão constrangido.
Quando já estavam no meio da rua — aliás, no mesmo ponto em
que dias antes Diogo tinha sido atropelado —, o mais jovem
reclamou:
— Achou engraçado, não achou? Pode rir à vontade! Pensa que me
arrependo? O pecado é seu, que inventou essa palhaçada.
— Eu sei que o pecado é meu, amigo Garcia. Mas espero que Deus
me perdoe, pois é por uma boa causa!
— O senhor e suas idéias malucas! Só espero não ser fotografado,
disfarçado de padre, nem encontrar algum conhecido.
— Aqui no Peru?
— E por que não? Já estive uma vez aqui, lembra-se?
— E fez alguma amizade?
— Bem... Namorei uma moça! — disse Garcia. — Naquele tempo
eu ainda era solteiro. Cheguei a gostar da garota, mas de que
adiantaria? Eu, um policial pobre, morando num país distante. Ela,
com toda a sua vida aqui, estudando, terminando um curso.
— Curso de quê? — perguntou o outro.
Não houve tempo para uma resposta, pois conseguiram pegar um
táxi.
— Para Miraflores! — ordenou o padre Carlito. — Neste endereço!
E estendeu um papelzinho ao motorista.
Viajaram em silêncio, mais por prudência do que por falta de
assunto. Na verdade, teriam muito que conversar, pois Garcia
ainda não estava inteiramente convencido do plano e queria
sempre mais detalhes. Desde o começo, resistira à idéia. Com
O'Hara, tinha sido diferente. Haviam passado horas, os dois, em
companhia do delegado, que se mostrara entusiasmado com a
proposta do padre e reconhecera ser importante liberar Garcia,
apesar dos problemas que ocorriam na cidade.
— Isso que vão fazer pode ajudar Los Angeles! — ele tinha dito,
cada vez mais convencido de suas teorias.
Depois de conhecer todos os pormenores, O'Hara oferecera todo
apoio à viagem secreta ao Peru. O que o divertira, porém, foi saber
que o padre Carlito queria que o sargento se disfarçasse de
sacerdote.
- Mesmo que a idéia pareça um pouco sem pé nem cabeça, como eu
iria explicar estar andando com um detetive de Los Angeles a
tiracolo? É pouco provável alguém desconfiar de um outro
religioso em minha companhia — este foi o argumento do padre,
que acabou por dobrar o sargento.
Começando pela mansão da família de Raul Benavente, esperavam
visitar vários lugares no Peru — igrejas, mosteiros, ou colégios
religiosos, além das plantações nas montanhas —, tentando
encontrá-lo. E, quando o encontrassem, seria improvável o
poderoso Don Raul concordar em receber um policial.
Garcia detestava esse tipo de ricaços, que havia também no
México. Sabia que muitos deles — como Raul Benavente —
tinham ficado milionários à custa de negócios escusos, e gostava de
imaginá-los com um bom par de algemas nos pulsos. Don Raul, no
entanto, era oficialmente um grande fazendeiro e, além do
mais, peruano, o que o colocava fora do seu alcance.
O sargento também precisava respeitar os laços de amizade que
ligavam o homem ao padre Carlito. Especialmente agora que o
padre aproveitava para levar-lhe sua solidariedade pela tragédia
que o atingira: recentemente, o neto querido de Don Raul tinha
sido seqüestrado. Do mesmo modo como acontecera, antes, com o
filho de outro rico proprietário!
Seqüestros demais, em terra de terremotos, uma coincidência
capaz de chamar a atenção de pessoas mais atentas e imaginosas.
Por essa razão, tinham ido ao Peru. Conversando com Raul
Benavente, talvez pudessem chegar bem perto da verdade por trás
daqueles desaparecimentos.
Don Raul, porém, parecia ter-se evaporado após o seqüestro do
neto. Poderia estar em qualquer ponto do território peruano,
oculto em uma de suas fortalezas, ou simplesmente hospedado em
casa de amigos ou parentes. Uma coisa era certa: ele jamais sairia
do país, enquanto seu neto não reaparecesse ou que ele houvesse
feito os seqüestradores pagarem pelo crime.
Olhando a cidade pela janela do táxi, Garcia ia mergulhado em
recordações. Revia lugares onde passeara com a namorada, mas a
paisagem também lhe trazia bastante amargura por fazê-lo
lembrar-se de Pepe. Tinha virado Lima de cabeça para baixo atrás
de vestígios do irmão. Ali, tinha perdido as últimas esperanças de
encontrá-lo.
Em dado momento, o táxi entrou numa rua estreita e o motorista
reduziu a marcha até encontrar a casa aonde iam. Tinha muros
altos, pintados de branco e um enorme portão de ferro. De malas
em punho, depois de despacharem o táxi, puxaram a corrente de
uma campainha.
— Quem mora aqui? Por que não fomos primeiro a um hotel? —
perguntou Garcia.
Padre Carlito levou um dedo à boca, pedindo silêncio:
— Psiu! Não seja tão americano! Aqui as coisas são diferentes!
Antes que precisasse explicar mais alguma coisa, o portão se abriu
e surgiu um empregado sorridente, que os fez entrar:
— Venha, venha, padre. Vá entrando! Fez boa viagem? Deixe que
eu levo as malas. Dona Carmela o espera! Já estava ansiosa!
Mandou preparar o quarto do sótão para o senhor, como da outra
vez!
Com um sorriso, padre Carlito olhou para o sargento:
— Entendeu agora?
Dona Carmela estava na varanda. Uma senhora de idade bastante
avançada, numa cadeira de rodas. Padre Carlito beijou-lhe as
mãos, embora ela tentasse retirá-las.
— Não, não, eu é que devo beijar as suas, padre! — ela resmungava,
recolhendo os dedos magros.
— E me priva, assim, da sua bênção?
O sargento nunca deixava de admirar a habilidade do padre, que
tinha sempre pronta uma frase inteligente e gentil. Como ele
treinava aquilo? Por seu lado, sentiu-se completamente ignorado
pela velha dama, cuja nobreza talvez a impedisse de notar os
subalternos. Mas, que importância tinha isso? Padre Carlito devia
saber o que estava fazendo. Tudo aquilo, inclusive as mesuras, era
estudado e tinha um único objetivo: saber como chegar a Raul
Benavente. E ninguém melhor que a própria mãe do fazendeiro
para dizê-lo.
Precisaram enfrentar todo um demorado ritual de chás e bolinhos,
e também de pisco sour, deliciosa bebida peruana que a idosa
senhora não dispensava. Padre Carlito dava voltas e voltas para
poder tocar no delicado assunto, inclusive para mencionar com
sutileza o seqüestro do bisneto, e ela parecia alheia a tudo. A tática
dos salamaleques não estava dando certo. Foi quando, de repente,
padre Carlito resolveu ir direto ao x da questão.
— Diga-me, dona Carmela. Don Raul está escondido?
E agora? A velha dama fechou os olhos, e calou-se. Eles tiveram de
esperar alguns segundos, desconfiando que a tinham ofendido, até
que ela finalmente falou:
— Um jaguar não se esconde. Um jaguar se põe à espreita!
O padre não se deu por achado.
— Naturalmente! É a atitude que se espera dos fidalgos! Mas os
jaguares, como os nobres, são sábios. Escolhem sempre o lugar mais
adequado onde aguardar o momento de atacar. Por vezes um
rochedo nas montanhas, outras vezes um bosque com árvores
frondosas. Fico pensando que lugar terá escolhido Don Raul
Benavente para acoitar-se, e preparar sua vingança.
Dona Carmela deu de ombros:
— Sabe-se lá?! Jaguares não falam!
— Nem à sua própria mãe?
Dona Carmela, apesar da idade, era muito sabida. Sem responder,
ela chamou o empregado e disse:
— Lucho, pegue as malas dos padres, e chame um táxi! Mande levá-
los a um bom hotel no centro!
E, sem dizer mais nada, nem despedir-se, a grande dama deu um
impulso com as mãos nas rodas, e afastou-se para o interior do
casarão.
Só uma hora depois, já instalados num apartamento duplo do
hotel, tiveram coragem de olhar um para o outro. E então
começaram a rir. Quem se divertia mais era Garcia, que chegou a
rolar no tapete, apontando padre Carlito e debochando da cara
dele:
— Não seja tão americano! Quá, quá, quá! As coisas aqui são dife-
rentes! Quá, quá, quá!
O primeiro a parar de rir foi o padre. Com a cara mais séria do
mundo, abriu sua mala, tirou um livro lá de dentro, sentou-se,
abriu o livro e começou a ler. Intrigado, Garcia perguntou:
— Ué! Vai ler? Não vai fazer nada, não? Nem desfazer a mala? O
que está esperando?
Sem levantar os olhos do livro, padre Carlito respondeu:
— Provar-lhe que aqui as coisas são, de fato, diferentes!
Mal tinha dito isto, o telefone tocou.
Olhando firme para Garcia, com ar de eu não disse?, padre
Carlito atendeu. Uma voz avisava que Don Raul estava disposto a
recebê-los e indicava um lugar, em Lima, onde alguém iria buscá-
los.
Em Los Angeles, O'Hara analisava informações que o irmão da CIA
lhe cedera, sobre calamidades ocorridas no mundo, na última
década. Entre estas, algumas do ano de 85, sobre o terremoto que
quase acabara com a capital do México. Vinte mil pessoas haviam
morrido ali, oito mil prédios foram afetados. Mas não tinha havido
nenhum seqüestro.
— A coisa começou bem depois! — resmungava o delegado, entre
dentes. — Desde que aquele patife sumiu do mapa!
Ronnie Eternidade estava se tornando, para ele, uma obsessão.
O'Hara não achava absurdo relacionar terremotos com
desaparecimentos de crianças. Ao autorizar que Garcia
acompanhasse o padre Carlito ao Peru, tinha a certeza de que, no
fim da linha de tentativas como esta, estariam o Senhor Caos e
algum plano terrível.
O'Hara não conseguia esquecer-se daquela cara. Tivera ordem,
alguns anos antes, de acabar com uma baderna, altas horas da
noite, que incomodava a vizinhança. Prendera todos no local, mas
depois se vira obrigado a soltá-los, pois aparecera um advogado
provando que tudo se tratava de uma reunião política autorizada
e, portanto, legal.
Ao sair da cadeia, o líder do grupo fizera questão de despedir-se de
O'Hara, apertar-lhe a mão com arrogância, olhá-lo bem fundo
com olhos frios de cobra, e dizer:
— Isso não foi nada, delegado! Não seria pior se eu explodisse o
mundo?
Aquele homem era Ronnie Eternidade. Nem por um momento
O'Hara duvidou que ele fosse capaz de fazer o que disse. E tinha
quase certeza de que era isso que ele estava tentando fazer agora.
Só faltavam as provas.
No início, não se preocupara muito com a explosão misteriosa no
deserto de Mojave. O Departamento de Defesa, o Exército, a CIA, o
FBI, e sabe-se lá quanta gente mais da área federal tinha se
ocupado do caso. Mas o irmão de O'Hara sabia de alguns valiosos
detalhes que, extra-oficialmente, deixara escorregar aos ouvidos
treinados do delegado.
A explosão destruíra instalações clandestinas, de natureza e finali-
dade ignoradas. Nada foi encontrado, nos escombros, que
identificasse a quem pertencia. Uma coisa era certa: nada tinha a
ver com armamentos, não sendo sequer algum depósito de
munições. No máximo, seria uma espécie de estação
retransmissora. Mas para retransmitir o quê?
O'Hara incluía mais este item no seu estoque de fantasias, quando
recebeu o fax de Lima. O que leu o fez dar um grito e apertar todas
as campainhas da mesa:
— Collins! Collins!
Collins chegou assustado.
— Veja isto! O garoto está no Peru! — berrou o delegado,
mostrando a folha do fax.
— Que garoto? O brasileiro? Eles o encontraram?
— Não! Nada a ver com o Garcia ou com o padre. Mas é uma
enorme coincidência esse garoto também estar lá! Conseguiu fugir
dos seqüestradores, mas foi atropelado e acabou num hospital.
Collins tentou pegar o papel para ler, mas não conseguiu.
— Então escapou?
— Não! Foi seqüestrado de novo!
13. O PODEROSO DON RAUL
O que trouxe mais problemas a Diogo foi o desaparecimento da
pasta. Era como uma obsessão de Kino.
— A pasta! Onde você botou aquela pasta? — começara logo a
perguntar, ofegante e desesperado, depois que entrou com o garoto
no furgão preto, no qual o levou do hospital.
Foram momentos terríveis aqueles, depois que o sueco puxou
Diogo para dentro do elevador lotado, obrigando a saírem de lá as
pessoas que o ocupavam. Kino — que usava uma capa — tirou de
dentro dela uma metralhadora e apontou para todos que estavam
no corredor, olhando aterrorizados. Entre eles, estava Charo, a
enfermeira, de olhos arregalados de horror e culpa. Como tinha
sido ingênua!
— Fiquem onde estão! Ninguém se mova! Eu atiro!
Tudo aconteceu com uma rapidez incrível. Nenhum guarda ousou
reagir. Em poucos minutos, atravessaram o centro de Lima, e foi aí
que o sueco começou a exigir que Diogo dissesse onde tinha
deixado a pasta.
Diogo se encolhia no banco traseiro, cobrindo a cabeça, certo de
que de repente Kino iria espancá-lo.
— A pasta!
— N-não s-sei! N-não vi!
— Como não sabe? Você saiu correndo com ela quando escapou!
— La-larguei n-no m-meio da rua!
— Não minta! Rodriguez viu quando a ambulância levou você!
Colocaram também a pasta!
— A-a po-policia fi-ficou co-com ela!
Pela expressão encolerizada no rosto de Kino, o garoto percebeu
que era aquilo o que o sueco mais temia. O que haveria dentro
daquela pasta assim tão importante?
Logo, porém, a cólera foi substituída pela frieza e pela crueldade.
Batendo no ombro do bandido que dirigia o furgão, Kino
engatilhou a metralhadora e falou:
— Então está acabado. Dê uma paradinha! Vou liquidar o garoto!
Não precisamos mais dele!
Diogo empalideceu! Sem perceber que aquilo era apenas um tru-
que de Kino, apavorou-se. Assim que o veículo diminuiu a marcha,
ele começou a gaguejar, dizendo:
— E-é me-mentira! A-a pa-pasta fi-icou no quarto co-com a Cha-
Charo!
— Que Charo?!
— A-a enf-enfermeira!
Kino ficou algum tempo em silêncio. Pareceu refletir bastante, a
fim de tomar a decisão mais correta. Depois deu um suspiro,
revelando algum cansaço, e escreveu alguma coisa num
caderninho. Destacou a folha e entregou-a a um dos
companheiros, que desceu do veículo. Em seguida, Kino ordenou
ao motorista:
— Vamos em frente! Já está resolvido! — e acrescentou em voz
alta: — Preciso ter essa pasta de volta antes de sair do país.
Diogo se arrependeu. O que estava resolvido? Sabia do que o sueco
era capaz, e temeu o que poderia acontecer a Charo. Mesmo
consciente de que agira irrefletidamente, sentia remorso. Ódio
também, claro. Só que agora não via jeito de escapar. E, misturada
a todos esses sentimentos, revoltava-o a idéia de ser obrigado a
uma nova viagem.
Em vez de abrigar-se, o furgão afastou-se velozmente do centro de
Lima, tomando uma rodovia asfaltada, na qual Diogo conseguiu ler
uma grande placa com os dizeres: Panamericana Sur. Foi uma
viagem tão demorada, que parecia nunca mais acabar.
Para onde iriam desta vez? E a pasta, tão importante para Kino? O
que fariam com Charo, para pegar a pasta de volta?
O lugar marcado para o encontro com Don Raul se chamava
Barranco. Era, de fato, uma alta ribanceira à beira-mar, debruçada
sobre a praia, que o oceano, lá embaixo, vinha beijar mansamente.
Garcia e o padre Carlito vieram de táxi, pela parte de cima, e a
primeira sensação que tiveram, vendo o mar lá do alto, foi a de
uma imensa paz azul perdendo-se no horizonte. Era um começo
ventoso de tarde, mais apropriado a um passeio turístico do que a
uma reunião de negócios. O sargento não deixou de se lembrar de
que ali estivera uma vez com a namorada peruana. Lembrou-se
também de lugares iguais àquele, na própria Califórnia, aonde
levara Maria e os filhos.
— Será esta a escada? — perguntou, apontando as centenas de
degraus que desciam lá do alto, onde estavam, até a areia da praia.
— Sim. E o encontro deve ser ali! — disse o padre, apontando uma
plataforma muitos metros abaixo, no meio da escadaria. — Vamos!
E começaram a descer, mesmo sem verem ninguém à sua espera.
Bem, alguém vai aparecer! — pensavam. O padre garantia que Don
Raul era homem de palavra, e costumava ser pontual. Mas
chegaram à plataforma, e se decepcionaram. Vazia! A não ser um
casal que subia, e um rapaz que descia, nem sinal do...
Epa! Foram os reflexos de Garcia, longamente treinados, que o
avisaram. Mas tarde demais. Ainda tentou buscar a arma dentro do
paletó, mas não havia arma para sacar na roupa de padre. E
aqueles três, numa ação relâmpago, já os tinham em suas mãos,
dominados.
— Venham! Não façam nada! Depressa!
Foram levados, aos tropeções, degraus abaixo, passando por outros
homens armados que vigiavam a escada. No piso da avenida
litorânea, um grande e brilhante automóvel de vidros negros os
esperava.
— Entrem!
Dois pares de braços lhes protegeram as cabeças, enquanto os
empurravam para o interior da limusine. Lá dentro, além do
motorista, havia apenas um passageiro, sentado no banco de trás,
usando chapéu panamá, óculos escuros e sapatos imaculadamente
brancos.
Padre Carlito reconheceu imediatamente aquele rosto moreno,
com o inconfundível bigodinho fino sobre os lábios e os cabelos
pintados de negro. Don Raul Benavente, afinal!
Não houve troca de cumprimentos. Cantando pneus, o automóvel
arrancou pelo circuito das praias. Os outros homens os seguiram
em mais dois veículos, um tomando a dianteira, e o outro dando
cobertura ao carro do chefe pela parte de trás.
A conversa começou durante o trajeto, depois de umas poucas
palavras formais de boas-vindas, e apresentações respeitosas.
Apesar da pose de fidalgo, Don Raul Benavente era um homem
prático, que não tinha tempo a perder e, por isso, ao seu modo
rude e arrogante, ele foi logo direto ao assunto:
- Lamento, padre Carlito, o desaparecimento desse seu pupilo.
Um grande e brilhante automóvel esperava pelos dois
padres: — Entrem! — ordenou o homem.
— Resta o consolo de que se tratava apenas de um pobre órfão. E os
órfãos não têm pais, nem avós, nem irmãos para chorar por sua
falta. Nem esses meninos pobres têm tanto a perder. Agora,
quando isso acontece com uma criança cheia de futuro como
Javier, meu neto e herdeiro, é uma verdadeira catástrofe, um ato
inominável, que deve ser punido com a morte, com a eliminação
total dos culpados até a terceira geração. É a isso que me propus, e
não descansarei até destruir esses miseráveis.
Sem se mostrar impressionado, padre Carlito perguntou:
— Não prefere primeiro encontrar Javier, Don Raul?
- Encontrar meu neto? Claro! Mas isso eu já tenho como certo.
Conhece minha organização, não conhece, padre?
Padre Carlito apenas confirmou com a cabeça. Don Raul conti-
nuou, vaidoso:
— Então não ignora que se trata de um verdadeiro exército. Não
faço idéia de como se atreveram a afrontar-me. Deviam saber que
minha vingança seria terrível. Onde eles acham que poderão se
esconder e se proteger?
— Talvez onde já estão protegidos: atrás de seu neto! — disse
teimosamente o padre, arriscando-se a irritar Don Raul.
Este, porém, estava confiante.
— Tudo está à meu favor, padre. Colaboradores fiéis e, acima de
tudo, bem pagos. Sabem a recompensa que os espera. E me refiro
também aos colaboradores anônimos, gente simples do povo, que
nem conheço. Sonham com a minha gratidão, e também com o
meu dinheiro.
— Delatores?
— Amigos, padre! Amigos, como o senhor. Amigos a quem tantas
vezes estendi minha mão, por exemplo, para ajudá-los a ajudar.
Padre Carlito engoliu em seco. Podia dormir sem essa. Mas
controlou-se. Teria sido impossível salvar da fome, da miséria e da
morte tantas pessoas se, nos momentos de maior desespero, fosse
escolher de quem poderia ou não poderia receber donativos.
Lembrou-se de como já tinha sido implacável na censura a outros
bem-intencionados que, ontem como hoje, sujaram as mãos
aceitando ajudas de origem obscura, na falta de outro jeito de
socorrer os sofredores. Um dia, porém, também se viu obrigado a
fechar os olhos pelas causas nobres. Pecado? Sim, sua postura ética
e religiosa o fazia sentir-se culpado. Por isto ele sempre procurava
todas as formas de sacrifício como penitência.
Don Raul continuava a falar:
— Devo, porém, ser justo. Também tenho muito que agradecer ao
senhor. Por suas orações e por seu apoio moral à minha família.
Por isso, achei meu dever vir ao seu encontro para lhe dar algumas
informações preciosas. Descobrindo onde está meu neto, talvez
possamos saber também aonde levaram o seu aluno. São sempre os
mesmos seqüestradores.
— Sempre?! O que quer dizer com isto?
— Lembra-se daquele outro seqüestro, aqui no Peru, há uns dois,
três anos?
Garcia se remexeu, inquieto, no banco da frente, atraindo o olhar
desconfiado de Don Raul, que deu uma cutucada no braço do padre
Carlito, como quem pergunta: "E ele? É de confiança?"
Padre Carlito balançou a cabeça, confirmando, e Don Raul
prosseguiu:
— O menino era o filho mais jovem de um amigo meu, Tomás
Zamora. Embora todos ajudássemos, o menino nunca foi
encontrado. Na ocasião achamos estranho que os seqüestradores
não tivessem feito qualquer exigência.
— Talvez fosse apenas uma ameaça a vocês todos! — arriscou
Garcia, lá na frente.
— Não me diga! — debochou Don Raul, irritado com o palpite. —
E que mais?
— Bem, talvez quisessem demonstrar sua força, para em outro
seqüestro serem atendidos. Mas isso é apenas uma suposição —
explicou o sargento, encabulado.
— Não diga bobagens. O senhor não sabe de nada! — reagiu Don
Raul, quase gritando.
— Então por que não nos conta?? — indagou o padre.
— Entenderia melhor se eu lhe mostrasse uma coisa, que é tão
surpreendente quanto inexplicável. Estaria disposto a viajar
comigo ao interior?
Antes que padre Carlito respondesse, Garcia gritou, ao lado do
motorista, quase lhe arrancando o volante das mãos:
— Pare! Espere!
O séquito de automóveis estava parado num cruzamento, esperan-
do a mudança do sinal. Na esquina havia uma banca de jornais.
Distraidamente, o sargento lia, à distância, as manchetes quando
sentiu seu coração gelar.
Como se uma descarga elétrica o impulsionasse, Garcia abriu
bruscamente a porta, saltou da limusine e correu até a banca,
criando pânico entre os seguranças de Don Raul. Todos eles
desceram de seus carros, já engatilhando as armas, enquanto
aquele padre grandalhão arrancava o jornal do grampo que o
segurava, e conferia o que tinha lido.
Sem mesmo lembrar-se de pagar ao jornaleiro, Garcia berrou para
o padre Carlito, sacudindo o jornal. Havia, em seu rosto, um largo
sorriso.
— É ele, padre! Só pode ser ele! Diogo! Num hospital!
14. A GRANDE EMOÇÃO DE JUAN GARCIA
Pesadelo ou um "trailer" do purgatório? Quantas vezes, nas aulas
de catecismo, as freiras do orfanato tentaram descrever aos alunos
as penas sofridas pelos pecadores, em sua passagem por aquela
nebulosa zona de transição? Diogo nunca conseguiu entender
como podiam conhecer tantos detalhes daquilo, se elas ainda não
tinham morrido.
Em meio a todo o seu recente calvário, Diogo afinal tinha a
resposta. Já estava sendo purgado, com tantos sustos e
desconfortos — inclusive aquela perna engessada — e se sentia
pronto para merecer o paraíso. Quem sabe, até, virar santo?
Viajando outra vez em companhia dos seus carrascos, nunca mais
apanhou, nem sofreu ameaças, nem passou fome. Sempre se
lembravam de trocar-lhe a roupa, e dar um jeito de ele tomar
banho, e cuidar da higiene. Não podia dizer que fosse maltratado.
Aliás, nem merecia.
Comportava-se, obedecia direitinho ao que mandavam. E,
principalmente, nunca fazia perguntas, apesar da sua enorme
curiosidade. Para onde o levavam?
Na falta de respostas, o que confortava Diogo era a Fé. Um dia
aquele martírio haveria de acabar, e ele iria, então, rever todos os
seus velhos amigos: padre Carlito, irmã Dirce e as freiras, sargento
Garcia e a mulher dele, os colegas do orfanato... Podia sonhar, não
podia? Nunca, porém, sonhou que um dia iria encontrar Mitsuko.
Mitsuko era uma japonesinha da idade dele.
Como Diogo conheceu Mitsuko?
As pessoas imaginam que aconteçam coisas terríveis com os
seqüestrados, conduzidos de lá para cá. Pois acreditem: é tudo
terrível mesmo! E com Diogo ainda foi muito pior, pois participou
de uma viagem bem mais confusa do que o comum, além de longa e
cansativa.
Na liderança do grupo, Kino dava a impressão de estar inquieto,
sem uma idéia precisa do que fazer ou para onde deveria ir. Essa
indecisão fazia o sueco viver mudando de lugar. Estaria fugindo de
alguém? Ou aguardando instruções? Ou esperando que lhe
trouxessem de volta a pasta perdida antes de partir? Talvez todas
estas coisas.
Quanto à pasta, aliás, várias vezes o sueco a mencionou. Parecia
estar inconformado por tê-la deixado para trás, e acreditar que, na
falta dela, corria perigo de vida. Por quê? Kino vivia telefonando,
ou falava pelo rádio, geralmente em inglês, viajando sem parar,
trocando de carros, e até de companheiros. Mas nunca largou
Diogo.
Enquanto estiveram no Peru, subiam e desciam montanhas,
paravam em lugares incríveis, dormiam em cabanas, ou
acampavam em florestas ou picos gelados. Quem sabe até, já
tivessem cruzado alguma fronteira e trocado de país? Dava a
impressão de estar dando voltas, enquanto Kino esperava uma
resposta. Esperava a pasta?
Até que, segundo parece, ele não teve outro jeito. Fizeram, então,
uma viagem de trem, chegando a uma cidade onde havia um
aeroporto. Foi ali que eles — Kino, Diogo, o piloto e mais um
sujeito — tomaram um pequeno avião a jato, particular, de quatro
lugares.
Durante o vôo, Diogo notou mudanças em Kino, que, aos poucos,
até se tornou mais alegre e descontraído, voltando a sorrir.
Quando aterrissaram, o sueco soltou um ufa!, como quem
terminou uma tarefa difícil, conseguiu livrar-se de uma
preocupação, ou resolveu conformar-se com o destino, fosse ele
qual fosse.
O pouso não foi em nenhum aeroporto profissional, do tipo a que
Diogo já estava habituado. O jatinho desceu numa pista de terra
vermelha e deserta, espremida entre duas muralhas pedregosas,
verticais e altíssimas, dividindo duas montanhas, que depois se
encontravam e formavam um paredão só, gigantesco, perdendo-se
no horizonte. Pelo menos foi a impressão que o menino teve:
— Qu-que lu-lugar é este? — teve coragem de perguntar.
— Não reconhece? — respondeu Kino com outra pergunta.
— N-não!
— Claro! Como haveria de conhecer? Este lugar é tão longe de
tudo, que nem os nascidos neste país conhecem. Ou só uns poucos!
Mas o ar é bom de respirar, hein? — e Kino soltou sua mochila no
chão, e inspirou com força.
— Faça o mesmo! — disse, incentivando Diogo.
Pouco interessado em encher os pulmões, o garoto queria era
descobrir aonde o tinham levado desta vez.
O piloto e o outro sujeito pareciam estar esperando alguém. Um
deles se sentou numa pedra para fumar. Chegaram a abrir a garrafa
térmica e tomar o café, que provavelmente esfriara durante a
viagem. Calados. Até que um deles apontou e falou:
— Lá vêm eles!
Diogo olhou e viu uma nuvem de poeira, levantada por um
caminhão. A distância, já se percebia ser um veículo gigantesco,
rebocando uma estrutura metálica. Ninguém disse nada até que o
estranho comboio chegou e freou junto a eles, com vários espirros
de ar comprimido.
Diogo não agüentava mais bandidos antipáticos, e teve uma nova
decepção: eram, outra vez, sujeitos mal-encarados que chegavam.
Felizmente, porém, um deles sorria. Um sorriso meio perverso,
mas um sorriso que se via de longe.
Saltando da boléia do caminhão, ele veio se aproximando à frente
dos outros, com passos largos e firmes, peito estufado e as mãos na
cintura. Usava uma roupa safári cáqui, de mangas curtas, e não
tinha chapéu sobre os cabelos negros, repartidos ao meio, colados
ao crânio. De repente, parou e curvou a cabeça num estranho
cumprimento, falando em alto e bom som:
— Bem-vindos ao chapadão da Eternidade!
A grande surpresa foi que ele disse isso limpidamente, num idioma
que Diogo já não ouvia há muito tempo e que lhe era
absolutamente familiar. Aquele homem estava falando em
português.
Foi uma loucura. Dominado pela ansiedade, depois que leu o jor-
nal, Garcia não queria mais acompanhar Don Raul a parte alguma.
Sua vontade era ir correndo até aquele hospital, ver quem era o
garoto da notícia. Padre Carlito tentou ser prudente:
— Calma, padre Garcia! Pode não ser ele!
— Como não? Seria muita coincidência! Um garoto brasileiro,
atropelado próximo ao aeroporto de Lima, depois de fugir a um
seqüestro nos Estados Unidos, e que depois de ser levado ao
hospital foi novamente tirado de lá por bandidos armados! Quer
coisa mais clara que essa?
Discutiam dentro da limusine de portas abertas, os carros da
segurança parados, os guarda-costas esperando, sem saber o que
fazer. Embora a vontade do padre Carlito também fosse ir direto
ao hospital, não parava de olhar para Don Raul, que estava
visivelmente irritado com a situação.
Por isso, habilmente, dominando os sentimentos, padre Carlito
falou:
— Muito bem, padre Garcia. Vá você. Investigue o que houve.
Agora é de meu dever e interesse acompanhar Don Raul
Benavente para ver o que ele quer mostrar. À noite estarei de
volta.
— Talvez não hoje à noite. É distante aonde vamos — resmungou
Don Raul.
— Ou amanhã, então! — determinou o padre ao sargento, piscan-
do um olho. — Verifique, tome providências e me aguarde.
Garcia concordou, pois não havia outro jeito, e despediu-se:
— Boa sorte!
Os três carros saíram numa direção e Garcia na outra, procurando
um táxi, ou em último caso um ônibus que o levasse ao hospital.
Em pouquíssimo tempo estava lá.
— Por favor, sou americano e gostaria de ter informações sobre
aquele garoto seqüestrado — falou na recepção.
As palavras americano e seqüestrado ditas em voz alta
despertaram a atenção de dois homens que estavam ali perto. Sem
que Garcia tivesse tempo de reagir, eles o cercaram e começaram a
revistá-lo, talvez à procura de uma arma.
Felizmente ele carregava um passaporte que não o identificava
como policial. Mais tranqüilos depois da revista, eles se
explicaram:
— Desculpe, padre. Mas temos de tomar precauções, depois
daquela invasão aqui dentro. Gostaria de nos acompanhar?
Conduziram-no ao chefe da segurança, a quem Garcia se
apresentou como secretário de um outro padre, que cuidara de um
certo garoto, seqüestrado em Los Angeles. Contou tudo sobre o que
acontecera a Diogo nos Estados Unidos, e disse que estava ali só
para verificar se a criança, levada à força do hospital, era a mesma.
— Muito bem, padre — falou o policial. — É bem provável que o
menino tirado daqui seja quem o senhor procura. O nome do seu é
Diogo, não? O do nosso também.
Apesar de já esperar por isso, Garcia quase caiu da cadeira. O
homem continuou:
— Talvez o senhor já estivesse em viagem quando tudo aconteceu.
Logo depois de ouvirmos o menino, contactamos a polícia de Los
Angeles, e informamos que ele estava aqui. Lamentavelmente,
houve o novo seqüestro e também o comunicamos.
O'Hara, a essa hora, devia estar maluquinho, querendo entrar em
contato com eles. Garcia já ia pedir para fazer uma ligação
internacional, quando o chefe da segurança acrescentou:
— Gostaria que o senhor ouvisse ainda mais alguns pormenores,
com a enfermeira que cuidou do garoto. Mandei chamá-la.
E apertou um botão, fazendo vir um guarda, a quem ordenou:
— Faça entrar a enfermeira!
Assim que a porta se abriu e a moça de branco entrou, Garcia teve
a impressão de que ia desmaiar. Não fosse ele um sujeito grande e
forte, acostumado a emoções violentas, isso teria acontecido.
Porque, quando o seu olhar e o da moça se cruzaram, ele a
reconheceu imediatamente: aquela enfermeira jovem, morena e
bonita, cheinha de corpo, não era outra senão a sua ex-namorada.
— Charo!
— Juan!
Trêmulos da cabeça aos pés, os dois precisaram se controlar,
dominar a descarga de adrenalina, para não terem de explicar-se
ao segurança. Este olhava, de um para outro, cheio de curiosidade
e espanto. Teriam, ao menos, de lhe dar algumas desculpas
esfarrapadas, dizendo por que — e desde quando — se conheciam.
A pior tarefa, no entanto, a mais difícil, seria a de Garcia: o ter de
contar a Charo como se tornara padre.
15. OLÁ, CHARO. ADEUS, CHARO.
O padre Carlito conhecia bem o interior do Peru. Inclusive já
estivera, há uns dez anos, naquela região aonde Don Raul e seus
homens o levaram. Na época, era um lugar deserto. Continuava
deserto agora, a não ser por aquele monte de escombros.
— O que acha? — perguntou Don Raul, apontando as ruínas, assim
que desceram do carro.
Que buraqueira é essa? Parece até que jogaram uma bomba aqui.
Don Raul, com as mãos na cintura, deu uma risada abusada, e disse:
— E jogaram mesmo! Aliás, eu que mandei jogar! Padre Carlito
olhou para Don Raul, espantado.
— O senhor?! Bombardeou como? E por quê?
— Não foi um bombardeio! Apenas dinamitei e botei abaixo tudo o
que havia aí.
Por mais que olhasse para aqueles enormes fragmentos de pedras,
amontoadas e calcinadas, padre Carlito não conseguia decifrar o
que aquilo poderia ter sido antes da destruição. Um enorme
edifício? Um hangar? Uma fortaleza? Um subterrâneo? Um abrigo
antiaéreo? Que tipo de instalação? Tinha que perguntar.
— O que era isto, Don Raul?
Um poço! Ou coisa parecida. Ele chamava isto aí de Pino!
— Pino?! E de quem o senhor está falando?
Don Raul pegou o padre pelo braço, e o levou para longe dos
escombros.
— Venha! Já viu o suficiente. Para entender o resto, só depois que
eu lhe contar.
O padre Carlito estava ansioso para ouvir a história.
— Conte, conte!
— Vamos a uma propriedade que tenho a uns cinqüenta
quilômetros daqui. Lá poderemos comer e conversar!
Meia hora depois, num pequeno rancho cercado de seguranças por
todos os lados, o padre ouvia de Don Raul tudo o que precisava
saber sobre o plano sinistro do Senhor Caos.
Que homem seria aquele? Quanto mais o olhava, Diogo pensava
que era assim que desde pequeno imaginara o demônio. Teve até
vontade de se benzer assim que o viu. Apesar de o sujeito viver
sempre sorrindo. Ou quase sempre.
Quando olhava para Kino, por exemplo, o homem fechava a cara e
franzia a testa.
— Por que trouxe este menino? — foi a primeira pergunta que ele
fez, na boléia, logo que o enorme caminhão começou a rodar.
Ora, Ronnie! — desconversava Kino. — Deixe as perguntas para
depois, está bem?
O homem quase deu um grito.
— Não me chame de Ronnie! Aqui sou apenas o Senhor Caos!
Sim, Senhor Caos! — suspirou Kino, impaciente, acendendo um
cigarro.
— E jogue isto fora! — berrou o Senhor Caos, ou Ronnie,
arrancando o cigarro da boca do sueco e atirando-o pela janela. —
Você está me devendo muitas explicações! O que, de fato,
aconteceu com o Espadarte e os outros? Por que falhou o seqüestro
do filho do milionário? E por que trouxe este outro?
Novo suspiro de Kino.
— Puxa, tenho mesmo de repetir o que já informei pelo rádio?
Nada mais fiz que cumprir as suas ordens. Mas, já que você quer, e
começando pelo Espadarte, ele...
— Começando pelo seqüestro fracassado, seu imbecil!
— Bem, então vamos lá...
E Kino começou desde o início, contando ao Senhor Caos o que
acontecera em Los Angeles. Prudentemente, evitou mencionar o
desaparecimento da pasta.
Diogo conhecia a maior parte daquela história, pois a tinha vivido.
O pouco que pegava da conversa, no entanto, fazia-o desconfiar
que as coisas eram muito piores do que tinha imaginado.
Todos, na comitiva, iam calados. Apenas Kino falava. Às vezes, o
Senhor Caos interrompia e perguntava algo. Enquanto isso, o
pesado veículo rodava, levando a reboque, sobre a estrutura
metálica, o avião onde tinham vindo. Quando só faltava Kino
explicar por que tinha trazido Diogo, chegaram ao fim da viagem.
Era uma espécie de cidade artificial, encravada na parede do maior
rochedo, ao fundo do chapadão. A distância, tudo aquilo era
praticamente imperceptível. Ao se aproximarem, porém, ficaram
bem visíveis centenas de perfurações no despenhadeiro. Eram
muitas cavidades regulares, em vários níveis, lembrando ninhos,
ou mesmo favos de uma colméia de abelhas, revestidos de
concreto.
De perto, todo o conjunto brilhava ao sol, parecendo mármore.
Pessoas iam e vinham, de uma abertura para outra, atravessando
passarelas metálicas suspensas. Na base do penhasco, uma entrada
maior, como a de um imenso hangar, acolheu-os depois que uma
enorme porta de correr se abriu mecanicamente. Ali penetraram
com o caminhão, reboque, avião e tudo, e se viram, de repente, sob
uma enorme abóbada, fartamente iluminada, lembrando a nave de
uma catedral.
Enquanto a porta se fechava, todos foram descendo do caminhão.
O Senhor Caos foi andando na frente, ordenando a Kino:
— Daqui a uma hora, esteja no meu gabinete. E entregue o garoto
às assistentes para que o instalem junto aos outros.
Diogo não gostou nada, ao ver a tal assistente que veio buscá-lo:
uma mulher mal-encarada, atarracada, vestida com um uniforme
estranho, cáqui como o do seu chefe.
- Venha! — disse ela, com uma voz grossa que o fez tremer.
E ele não ousou recusar-se a acompanhá-la. Mesmo assim, ainda
deu um último olhar a Kino, que sorriu, e deu um sorriso amigável.
— Vá!
Diogo foi. Aos pulinhos, mas foi. Só agora percebeu que tinha
perdido a muleta. Dirigindo um olhar à sua perna e continuando a
andar, a assistente antipática lhe disse:
— Vou mandar o doutor dar uma olhada em você. Talvez já possa
tirar esse gesso!
Diogo sentiu-se maravilhosamente feliz. Não exatamente pela
idéia de tirar o gesso, mas porque aquela mulher também falava a
sua língua. Passou a notar que todos ali, por onde quer que
passassem, falavam português. Incrível!
Tomou coragem e perguntou:
— Desculpe! Po-pode me-me in-informar? Nó-nós esta-tamos no-
no Brasil?
A mulher quase parou. Olhou. E balançou a cabeça, como quem
diz: "qual!".
Mesmo gaguejando, ele insistiu:
— Es-tatamos o-ou não es-tatamos?
Ela então disse, controlando o mau humor:
— Claro que estamos, boboca! Onde acha que fica este chapadão?
— Não, Charo! Eu não sou padre, já disse! — insistia Garcia, em
espanhol.
— Então por que está vestido assim?
— Olha, Charo. Aqui no hospital não podemos conversar! Vamos a
outro lugar?
Resolveram ir até o Museu de Antropologia, como nos velhos
tempos, usando o pequeno automóvel dela. No caminho, a
dificuldade foi saber por onde começar.
— Então, você conseguiu se formar em enfermagem. Parabéns!
— Obrigada! E você? — ela perguntou. — Não é padre, mesmo?
— Claro que não! Continuo sendo o que sempre fui: um policial.
Tal como quando nos conhecemos! Mas, por favor, não conte a
ninguém! Quer que eu explique do começo?
Garcia fez, então, um resumo de tudo, desde o terremoto até aque-
le momento. Quando terminou, não conseguiu mais conter-se, e
foi direto ao que mais lhe importava:
— Agora me diga! E Diogo? Como ele está? Como foi a coisa?
— Não acha melhor que eu pare o carro para contar o que sei?
Pararam, sem notar que um outro carro, que os vinha seguindo,
parava também do outro lado da rua. Não desceram e, ali mesmo,
dentro do automóvel, Garcia ouviu a história de Charo.
Impaciente e emocionado, ele se remexia no banco, comovendo-se
com o sofrimento de Diogo, com o acidente, com a perna quebrada
e com a violência do segundo seqüestro. Seria o mesmo grupo que
pegara o garoto em Los Angeles e o trouxera ao Peru? Charo não
sabia nada sobre o que tinha acontecido antes. Diogo não tinha
falado nada. Só o que fazia era segurar, todo tempo, aquela pasta.
— Pasta?! — o velho faro deu a Garcia um sinal.
— Sim, uma pasta. Não lhe falei? E mesmo, tinha esquecido. Ele
vivia agarrado àquela pasta.
— O que aconteceu com a pasta?
Charo notou que ele começara a alterar o tom da voz. Deixara de
ser a do ex-namorado, do amigo. Voltava a ser a voz seca, formal e
autoritária de um sargento da polícia de Los Angeles. Ela não
respondeu, olhando-o com uma ponta de decepção, e Garcia
insistiu:
— A pasta foi com Diogo? Ou a polícia a pegou?
— Nem uma coisa nem outra. Ela ficou comigo. Eu guardei. Está no
meu armário de aço, no vestiário lá do hospital.
— Alguém abriu? Você abriu?
— Claro que não! Nem saberia como!
Já dominado pela curiosidade profissional, ele não resistiu, e pediu:
— Você se importa se voltarmos daqui?
Charo nem precisou perguntar aonde iriam. Manobrou o
automóvel e tomou a primeira rua de volta ao hospital. E o carro
misterioso, que os havia observado, foi novamente atrás deles.
Viajaram calados, e em menos de dez minutos já estavam lá.
Estacionaram, desceram, fecharam o carro e foram caminhando a
passos largos pelo pátio. Antes de entrarem, Charo segurou Garcia
pelo braço e, delicadamente, o deteve:
— Posso lhe fazer uma pergunta? Uma só?
— Claro!
— Você se casou?
— Sim!
— Tudo bem! Creio que, então, podemos cuidar de Diogo sem
complicar as coisas!
E continuaram subindo os cinco degraus que levavam ao saguão. A
primeira pessoa que viram foi uma outra enfermeira, que veio
avisar que havia um telefonema urgente, chamando Garcia. O
sargento foi atender, entrando numa cabine. Só podia ser o padre
Carlito. Era!
— Garcia! Finalmente!
— Padre Carlito! O que houve?
Do outro lado da linha, o padre não podia conter o nervosismo e a
excitação.
— Estava louco, querendo falar com você! Já sei de tudo!
— Tudo?! — percebendo a gravidade, Garcia olhou Charo, que
continuava a seu lado. — Onde o senhor está?
— Isto agora não importa! Vá para o hotel e me espere!
Garcia também estava aflito para contar coisas:
— Padre, eu também consegui novidades aqui no hospital. O tal
menino é mesmo o Diogo.
— Falamos nisso quando eu chegar! Precisamos agir agora!
Imediatamente! Temos de falar com o delegado O'Hara! Para ele
usar o irmão dele na CIA. Ou pedir a ajuda do FBI, sei lá! Até das
Forças Armadas! O caso é mais grave do que você pensa! Don Raul
me contou. O que aconteceu com ele é a chave de todo o mistério!
— Mistério? Bem, eu talvez tenha algo, também, para nos ajudar.
Uma pasta!
— Uma o quê?!
— Uma pasta! Estava com Diogo, e uma enfermeira guardou. É só
uma possibilidade, mas acho...
— Possibilidade?!! — o padre quase gritava. — E eu tenho uma
certeza! Estou num posto de gasolina, a caminho de Lima, e
quando chegar ao hotel eu lhe conto tudo! Vá na frente e comece
tentando comunicar-se com O'Hara! É urgente! Muito urgente!
— Mas... — tentou ainda dizer Garcia, mas o padre havia
desligado.
O sargento, então, pegou a mão de Charo, deu-lhe um beijo no
rosto e lhe disse com carinho:
— Desculpe! A pasta fica para mais tarde. Onde está mesmo? No
seu armário, não é? Deixe-a lá, por enquanto! Eu não demoro!
Charo apenas sorriu, vendo-o afastar-se. Ao dobrar um corredor,
ele ainda fez um sinal de me espere, que eu volto!
Nem de longe imaginava que essa era a última vez que a veria.
16. O PLANO DO SENHOR CAOS
Faltava pouco para Diogo conhecer Mitsuko.
Antes disso, ele ficou conhecendo aquelas instalações muito
amplas e estranhas, distribuídas em vários andares ligados por
passarelas, rampas e elevadores. Estavam cheias de gente com a
cara muito séria, servidores obedientes do chefão sorridente com
olhos de demônio. Todos usavam aquelas roupas cáqui e falavam
pouco. Pareciam viver debruçados para dentro de suas almas,
como quem participa de uma cerimônia religiosa. Mas que tipo de
sacerdote era o Senhor Caos, e o que faziam ali todas aquelas
pessoas?
Diogo pegava uma palavra ou outra, e aos poucos foi tendo certeza
de que o lugar ficava no interior do Brasil. No orfanato, tinha sido
bom em geografia, por isso, agora, queria descobrir em que região
ficava o tal chapadão da Eternidade. Mas a grande curiosidade,
mesmo, de Diogo era saber para que serviam aquelas instalações.
Todos ali pareciam muito ocupados. Principalmente numa área
central, mais escura, cheia de painéis iluminados. Diogo fazia uma
idéia de como eram salas de controle, fossem em estações de
televisão ou submarinos, onde se operavam aparelhos eletrônicos.
O cenário, aqui, lembrava algo assim. Seria uma transmissora? Essa
gente trabalharia para o governo? Governo do Brasil não podia
ser. Quem sabe eles eram espiões?
A tal mulher o tinha levado a um gabinete médico, onde sua perna
foi examinada, radiografada, até que disseram que poderia tirar o
gesso no dia seguinte. Em seguida, a mulher anunciou que iria
levá-lo para a creche.
Diogo estranhou:
— Creche?
Ela riu, mas não fez comentários. Diogo já começou a achar que
iriam usá-lo como babá de recém-nascidos, para trocar fraldas de
bebês, essas coisas. Mas teve uma surpresa quando chegou lá. O que
ela chamava de creche era um recinto fechado, com dois guardas
armados vigiando a porta, e um aviso: segurança máxima. O que
havia lá dentro?
A mulher disse qualquer coisa aos guardas. Um deles pegou um
telefone na parede, confirmou o que ela dizia, e só então acionou
um dispositivo que fez a porta se abrir.
Era uma sala limpa, confortável e bem arrumada, do tipo área de
lazer e recreação. E deveria ser mesmo, porque assim que Diogo
entrou com a mulher, todos que estavam ali pararam o que
estavam fazendo - lendo, brincando ou jogando — e o olharam.
Eram crianças. Uma dúzia delas, talvez dez, não mais que isso.
Meninos e meninas com jeito de bem tratados.
A primeira em que Diogo reparou tinha rosto redondo, olhos
amendoados e cabelos muito lisos e negros. Uma menininha
oriental, da idade dele.
Foi assim que Diogo conheceu Mitsuko.
— Fique aí um pouco com seus amigos. Depois eu volto trazendo
roupas, toalhas e sabonete. Aí tem cama sobrando. Escolha uma! -
dizendo isso, a mulher se foi, e a porta fechou-se atrás dela
automaticamente.
Mal ela saiu, todas as crianças cercaram Diogo. Falavam em vários
idiomas, mas Diogo só entendeu o que falava em espanhol, e lhe
estendia a mão para cumprimentá-lo.
— Meu nome é Javier Benavente! Sou peruano! E você?
— Seqüestrados! Todos seqüestrados! — foi o que disse o padre
Carlito, quando leu a lista mandada por O'Hara, pelo último fax,
em resposta à consulta deles.
Depois de um primeiro encontro no hotel, durante o qual contara
tudo a Garcia, o padre resolvera ir à embaixada brasileira em Lima,
onde tinha amigos. Estavam lá agora. Acharam que seria mais
seguro falar de lá com Los Angeles. Mesmo na ausência do
embaixador, que estava em férias no Rio de Janeiro, foram muito
bem recebidos, tendo telefones e fax colocados à sua disposição.
Foi mais fácil, então, comunicar-se com O'Hara, que continuava
ansioso para entrar em contato com os dois.
Assim que Diogo entrou na sala com a mulher, todas as
crianças o olharam, curiosas.
Lá de Los Angeles, o delegado tinha a contar pouca coisa. De novo,
mesmo, só o levantamento dos seqüestras de crianças em todo o
mundo, coincidindo com terremotos. Mais uma colaboração em
mão dupla com o irmão da CIA, que também começava a
mergulhar no caso. Foram Garcia e o padre que disseram as
novidades.
O'Hara ficou de cabelos em pé, embora o padre houvesse resumido
ao máximo suas mensagens, e até escrito de maneira disfarçada,
quase em código, sem nada dizer abertamente sobre assunto tão
sigiloso. No entanto, no hotel, tinha sido bem claro quando
revelou a Garcia:
— E aquele homem, de quem vocês tanto falaram, que está atrás de
tudo. O delegado tem toda razão!
— O Ronnie Eternidade? O Senhor Caos? — disse Garcia. — Mas
ele morreu!
— Você é que pensa. Don Raul tem certeza de que ele está vivo,
pois foi quem seqüestrou o neto dele! — disse o padre.
— Seqüestrou pedindo dinheiro?
— Não foi bem assim. A história é ainda mais original e diabólica.
— Padre, o senhor está falando demais em diabo! — disse Garcia se
benzendo, por puro reflexo de sua educação católica.
— Mas é o que esse tal Ronnie me faz lembrar. Garcia, ele seqües-
tra crianças para financiar terremotos!
Garcia deu um salto.
— O quê???
— Parece alucinação, mas não tenho mais dúvidas. Há muito ainda
a descobrir, mas o que sei até agora é isso que vou lhe contar.
Segundo o padre, Don Raul tinha começado lembrando mais uma
vez o seqüestro do filho de Tomás Zamora. Primeiro acharam que
os responsáveis tinham sido os terroristas do Sendero Luminoso.
Só que não tinham sido eles. E o único que ficou sabendo disso foi
Don Raul Benavente!
— Mas como? — quis saber Garcia.
— Ele recebeu uma mensagem anônima de alguém que assumia a
responsabilidade pelo seqüestro e exigia um encontro secreto com
Don Raul.
Don Raul, a princípio, não entendeu o que tinha a ver com o caso.
Curioso e corajoso, porém, aceitou avistar-se com a tal pessoa,
sozinho e em lugar neutro, no interior do Peru. E foi assim que
conheceu o Senhor Caos.
— Ronnie Eternidade?
— Claro! Mas não lhe soube logo o nome! Achou-o até muito
cordial, apesar dos olhos maus e do sorriso cheio de falsidade com
que revelou seus planos sinistros.
O Senhor Caos estava pretendendo instalar no mundo um regime
totalitário, sob seu controle e de seu grupo de fanáticos. Tudo
muito organizado, com a mais severa disciplina, e até uma milícia
uniformizada. Algo que lembrava os tempos de Hitler e seu
nazismo, e qualquer outro grupo político ou místico de hoje em
dia, que use as pregações sedutoras e, se preciso, a violência para
chegar ao poder.
Como todos esses enganadores, os lunáticos de Ronnie também
tinham uma ideologia, que era a de purificar o mundo e acabar
com a maioria dos seus problemas, eliminando dois terços de sua
população.
Com os olhos muito arregalados. Garcia não conseguiu conter a
pergunta óbvia que lhe veio aos lábios:
— Provocando terremotos?
— Exatamente! — respondeu o padre Carlito. — Mas Don Raul, ao
ouvir tudo sobre esse plano de desconstrução, riu na cara dele!
— E o Ronnie?
— Não gostou. E disse que iria provar o que estava dizendo, que
Don Raul esperasse para ver. Mas que depois passaria a exigir
muita ajuda em dinheiro, pois seu plano precisava de bilhões de
dólares, e que já estava conseguindo esse financiamento de várias
outras pessoas ricas e poderosas, em várias partes do mundo.
— Nossa Senhora! E aí?
— Aí que se despediram, e no dia seguinte aconteceu, de fato, o
tremor de terra!
— Aquele! Eu senti! Eu estava aqui! — exclamou Garcia. — O
governo aproveitou para dizer que também era sabotagem do
Sendero.
Com pressa de acabar a história, o padre contou que depois o
Senhor Caos voltou a procurar Don Raul, que já o recebeu com
mais respeito, examinando melhor a questão, querendo detalhes,
vendo se extraía alguma coisa mais concreta daquele maluco. A
pergunta lógica era esta: como você faz isto? E Ronnie resolveu
mostrar.
Ronnie levou Don Raul ao mesmo lugar aonde Don Raul, na vés-
pera, havia levado o padre Carlito: ao tal poço transmissor, que ele
chamava de Pino. E enquanto o visitavam, descendo às suas
profundezas, Ronnie explicou rapidamente como funcionavam
aquelas instalações secretas, que recebiam impulsos em forma de
ondas, vindas de uma grande central localizada em um outro
ponto do planeta. Quando as ondas chegavam ao Pino, ele agia
como uma espécie de detonador, provocando outras ondas que
penetravam verticalmente na crosta terrestre, e aí já sabe: um
tremendo impacto nas profundezas! E daí vinha o terremoto.
Depois de contar isso, o padre Carlito precisou parar para beber
água e tomar fôlego. Garcia, também. Não conseguia falar. Quando
conseguiu, perguntou:
— E depois? O que fez Don Raul? Deu o dinheiro ao homem?
— Don Raul primeiro pediu uns dias para pensar, para examinar
melhor a questão. Queria mesmo era ver se encontrava algum
ponto fraco naquilo tudo, e depois mandar prender o homem.
Ronnie, porém, era mais esperto que Don Raul Benavente. Já tinha
experiência nesse tipo de extorsão. As pessoas importantes que ele
procurara com a mesma proposta, em outros países, tinham três
tipos de reação. Umas ficavam tão preocupadas que o atendiam
logo. Outras, eram tão perversas e gananciosas, que cediam, mas
impunham condições, exigindo sociedade em lucros futuros. E,
finalmente, havia aquelas que se recusavam a colaborar.
Ronnie só poupava as pessoas do primeiro tipo. Com as outras ele
era implacável.
— Seqüestrava os filhos deles!
— No caso de Don Raul, o neto! A pessoa que o velho mais adorava
sobre a Terra!
— Mas o senhor não me disse qual foi a resposta final de Don Raul
ao Senhor Caos!
— A mais imprevisível, prepotente e desvairada das respostas.
Querendo mostrar seu poder e desprezo, Don Raul não respondeu
com palavras. Simplesmente mandou dinamitar o tal Pino, para
humilhar o Senhor Caos! Ele me mostrou o que sobrou.
— E, pouco tempo depois, Ronnie seqüestrou o garoto — concluiu
Garcia.
— Desta vez, tinha motivos muito mais fortes para vingar-se. O
filho do outro fora só um aviso.
O sargento começou a dar voltas pela sala e a falar sozinho,
refletindo:
— Quer dizer que... se os tais Pinos causam os terremotos... deve
haver outros Pinos instalados em diversas partes do mundo... em
vários países!
— Certo!
— ... E que, em algum desses lugares, desses países, fica a tal central
geral!
— Certo!
— ... E que provavelmente esta central é a sede do comando da
organização!
— Sem a menor dúvida!
Garcia então se sentou cara a cara com o padre, segurou-lhe os
ombros com as duas mãos, e disse:
— Então, talvez seja para lá que eles levam as crianças. Padre, está
pensando o que eu estou pensando?
— Diogo?
— Sim! — o sargento deu um soco, com uma das mãos, na palma da
outra. — Diogo deve estar lá! Precisamos descobrir onde é esse
lugar!
Ficaram em silêncio alguns minutos. Ali, num país estranho,
Garcia se sentia como um peixe fora d'água, impossibilitado de usar
os recursos de que dispunha em Los Angeles. Em Lima, era apenas
um cidadão comum, e — pior — um estrangeiro. Lembrava-se de
situação semelhante, quando ali estivera em busca de seu irmão.
Ah, se pudesse acionar seus colegas.
Como se houvesse captado estes pensamentos, o fax deu sinal de
que uma outra mensagem estava a caminho.
Era O'Hara novamente. Ele perguntava: — "A propósito, ia-me
esquecendo. Num dos comunicados que recebi da polícia de Lima,
sobre o garoto, mencionaram os objetos que ele tinha em seu
poder. Entre esses objetos, havia uma pasta. Não acham um tanto
curioso? Poderiam investigar que pasta é essa, e informar?"
— A pasta!
Instantaneamente, Garcia se lembrou, pediu licença, saiu em
disparada, pegou um táxi, e já chegou no hospital chamando:
— Charo! Charo!
Percorreu como um louco o saguão principal, onde a tinha deixa-
do. Vieram todos ver do que se tratava, e que padre era aquele que
fazia tanto escândalo. Várias pessoas apareceram.
Menos ela.
17. A SOCIEDADE DOS SEQÜESTRADOS
No chapadão. Ronnie convocara uma sessão especial do Comitê
Supremo da organização. No salão principal da Catedral — era
assim que chamavam o abrigo cavado na base da ribanceira —, os
chefões do grupo se reuniram em torno de uma grande mesa,
vestindo calças e camisas pretas, com discretas braçadeiras brancas
no braço esquerdo. O Senhor Caos liderava, e só ele falava.
Ronnie leu relatórios sobre os últimos sucessos do projeto, e
também dos erros e fracassos. Considerou muito bons os resultados
do terremoto de Los Angeles, segundo ele já um bom passo para o
terremoto maior e definitivo. Lembrou que tinha sido obrigado a
mandar destruir o Pino caríssimo, no deserto do Mojave, para não
deixar pistas até poder colocar em ação a nova tecnologia, já em
fase final de testes.
Enquanto Ronnie explicava este processo, Kino o ouvia,
envaidecido. Velho conhecido de Ronnie, ele tinha sido uma peça
importante no esquema, que, sem sua ação, poderia ter sofrido um
desastre. A traição e a intriga costumam ser muito usadas em
organizações como aquela. Para não ter surpresas desagradáveis,
nenhum de seus membros deve se sentir completamente seguro e
protegido. Nem mesmo os chefes de grupos.
Do alto do seu orgulho, o Espadarte cometera esse erro. Nem por
sombra poderia imaginar que o sueco, há muito tempo, já tinha
ordens secretas, recebidas diretamente de Ronnie, orientando-o
como agir em emergências, sem mesmo esperar aviso. Em caso de
morte ou prisão do Espadarte, Kino teria que substituí-lo no
cumprimento das instruções do Senhor Caos: arrasar o Pino do
Mojave, ativando os dispositivos que fizeram explodir suas cargas
nucleares. As instruções incluíam a eliminação dos próprios
operadores do Pino.
E ele, Kino, não hesitara em participar dessa traição. Depois de
fazer todas aquelas perguntas ao homem no Pino, viu que chegara
a hora de agir, e o fez friamente. O sujeito sabia que o sueco
deveria ocupar o lugar do bandido morto, mas não conhecia os
pormenores do que o comando supremo determinara. Kino tinha
sido perfeito no cumprimento da missão. E verdade que Ronnie
poderia censurá-lo por ter poupado aquele garoto. Nem o próprio
Kino sabia, direito, por que o fizera.
O que mais preocupava o sueco, porém, e até agora lhe tirava o
sono, era o desaparecimento da pasta. E quando Ronnie
perguntasse por ela? Que desculpa daria por tê-la perdido tão
estupidamente, e não ter se esforçado o bastante para recuperá-la?
Nesses momentos, sentia um ódio enorme por Diogo, o responsável
por tudo. Talvez fosse este, embora mesquinho e covarde, um dos
motivos por tê-lo trazido: para que Ronnie se vingasse no garoto, e
não nele.
Mas Ronnie nem parecia se lembrar da pasta. Depois de citar tam-
bém os ótimos resultados com o tremor na Indonésia, passara a
falar em outros problemas. Estavam enfrentando dificuldades no
Peru, onde ficara difícil levar avante os abalos desejados, devido à
guerra particular movida por um velho caudilho local. Don Raul
Benavente se tornara uma espinha na sua garganta. Mandara
dinamitar o Pino entre Huancayo e Huanuco, e parecia disposto a
impedir a instalação de outros em território peruano ou qualquer
atividade da organização. O único trunfo de Ronnie era o neto do
velho, em seu poder, ali na Catedral.
— Don Raul anda mais manso, com medo de que eu faça alguma
coisa de mal ao garoto — disse o Senhor Caos. — Só não fiz ainda,
porque talvez ainda precise instalar um outro Pino, agora próximo
a Lima, ou então Cuzco.
Um dos participantes pegou o seu microfone:
— Não é possível instalar, no litoral, a nova tecnologia?
— Embora o Doutor Fim seja tão bom físico quanto eu sou bom
geólogo, não dominamos a engenharia marítima. Os primeiros
técnicos consultados se recusaram a colaborar, e só agora
conseguimos superar o atraso. O tremor na Indonésia é uma prova
disso, e haverá outros. Estamos nos deslocando, e logo veremos os
resultados.
Outro participante falou:
— Gostaria de falar em nome da minha facção, para novamente
pedir ao Senhor Caos que nos tranqüilizasse quanto aos lugares
sagrados. Lembre-se que prometeu não colocar Pinos terrestres nas
proximidades de locais freqüentados por seitas esotéricas, como
Machu Picchu e outros. Mantém essa promessa, Senhor?
— Mas claro! — disse Ronnie Eternidade. — Por que pensa que
estou levantando todo esse dinheiro, investindo nos Pinos do mar?
Nosso grande plano teria caminhado muito pouco sem a
colaboração de vocês, por isso acho importante manter o
compromisso com qualquer seita que nos apóie. Este nosso centro,
no chapadão da Eternidade, por exemplo.
Teria sido impossível construir aqui esta Catedral, sem o pretexto
de que a base e a Vila Mística não passam de uma área de
meditação, procurada por peregrinos. O interior do Brasil é
enorme, muitas vezes esquecido, mas não é tão abandonado assim.
Até alcançarmos nosso objetivo final — a Purificação Total dos
Dois Terços —, teremos que agir escondidos, ocultos como
criminosos. Todo sacrifício será pouco. E toda mentira será
necessária.
Todos aplaudiram, sem prestar mais atenção ao último homem que
falara. Embora com o microfone já desligado, ele ainda tentava
dizer:
— Quer dizer que considera os místicos mentirosos, Senhor Caos?
Ninguém o ouviu. Ao final da reunião, Ronnie foi cercado pelos
adeptos e muito abraçado enquanto se retirava. Ao passar por
Kino, fez- lhe um sinal:
— Venha comigo! Quero falar com você.
Kino o acompanhou, e fecharam-se os dois no gabinete de Ronnie.
Ronnie não relaxou e foi direto ao assunto. Ronnie nunca
relaxava.
— Muito bem! O que fez com os papéis do Mojave?
Pronto! Tinha chegado a hora! Respondeu, sem demonstrar que
estava com medo:
— Estão a caminho. Mandei pegar a enfermeira.
— Que enfermeira?
— A enfermeira que guardou a pasta, lá no hospital.
— Hospital? Que hospital? E que pasta é essa? — perguntou
Ronnie, já bastante irritado.
— A pasta com os papéis, não lhe falei? — disse Kino. — Aquele
patifezinho a roubou, e estava com ela ao ser atropelado. O garoto!
Atrai problemas! Sabe, não foi fácil trazê-lo até aqui. Pior do que
teria sido com o outro, o milionário. Este aqui conseguiu mobilizar
toda a polícia de Los Angeles, sem falar no FBI e nos meios
diplomáticos. Preferi mantê-lo junto comigo, pois revelou-se um
excelente refém.
Era um exagero, mas foi a desculpa que o sueco encontrou. No
fundo, talvez sentisse pena e se identificasse com o menino. Kino
também tinha sido um órfão, só que criado na rua, onde aprendeu
a mendigar e roubar. No entanto, recusava-se a confessar isso a si
próprio, e admitir um mínimo de generosidade. O importante era
que Ronnie castigasse outro. Ronnie, porém, não foi na conversa.
— Pois você cometeu um erro! — berrou, curto e grosso. — No
começo, o garoto talvez tenha sido útil. Mas ficar com ele talvez
ainda traga péssimas conseqüências.
Kino riu com cinismo.
— Ora, aquele infeliz? É inofensivo. A quem ele poderia prejudi-
car?
Ronnie o encarou com seu olhar de víbora e perguntou:
— Em segundo lugar?!
Segundo? O sueco tremeu, pressentindo a ameaça. E Ronnie
continuou:
— Porque em primeiro lugar já prejudicou você!
— A mim?! Como?
— Roubando-lhe a pasta com os meus papéis! — e, dizendo isto,
apertou um botão que fez entrar dois guardas de sua milícia, que
imediatamente agarraram Kino.
— O que é isto? Está brincando? A pasta já vem. Amanhã vai estar
aqui. Me soltem!
— Depois que a pasta chegar! Podem levá-lo!
E percebendo ser inútil protestar e se debater, Kino foi retirado do
gabinete.
Diogo nem teve tempo de sentir falta de Kino. Adorou os novos
amigos na creche, crianças de várias nacionalidades, que falavam
vários idiomas e misturavam outros. Todos, porém, conseguiam se
entender.
Javier foi quem o apresentou a um por um, segundo seu nome e
origem.
— Este é Aleksander, que nasceu na Polônia, e foi seqüestrado em
Jacarta, na Indonésia; este é Rubito Zamora, peruano como eu, e o
trouxeram de Lima; esta aqui é Rossana, e veio de Gênova, na
Itália; aquele ao lado dela é Jamail, da Índia; o outro ali é Emiliano,
do México...
Assim, o neto de Don Raul — pois era ele — foi fazendo todos
cumprimentarem Diogo. Usando sua prodigiosa memória, Diogo
associava o país de cada um à aula de Garcia sobre terremotos.
Todos ali tinham vindo de regiões sujeitas a tremores,
principalmente do tal cinturão do fogo. Mesmo que, como no
caso dele próprio e do garoto polonês, não tivessem nascido lá.
Sorrindo, e bastante à vontade, sentiu, porém, o coração bater
mais rápido ao notar que, no fim da fila, estava a menininha
oriental. E, afinal, chegou o momento.
— Esta aqui é Mitsuko! — disse Javier. — Ela é japonesa. E não
adianta falar com ela, porque não sabe nem inglês. Só a língua da
terra dela.
Não precisava. Para comunicar-se, Mitsuko tinha as mãos e os
olhos mais expressivos do mundo. A primeira coisa que fez,
ignorando a mão que Diogo lhe estendia, foi curvar-se numa
reverência, e depois apontar a perna dele, fazendo um ar de muita
dor e muita pena pelo que ele deveria estar sentindo.
Foi assim que, nesse dia, Diogo conheceu Mitsuko.
18. UM BOM DIA PARA ESCAPAR
Muito aflito, Garcia tinha perguntado por Charo no hospital
inteiro, até que alguém comentou:
— Aquela gordita? Saiu daqui com um policial fardado. Foram lá
para fora.
Em dois segundos, Garcia estava no pátio, procurando-a
desesperado. Tarde demais! Revoltado, ele já não tinha mais
dúvidas: tinham levado Charo!
Habituado a não permitir que a emoção atrapalhasse a ação,
imediatamente telefonou à embaixada, para prevenir padre
Carlito:
— Temos de agir com cuidado. Impossível saber, aqui, em quem
confiar. A organização é poderosa, e se infiltrou em vários lugares.
Melhor o senhor entrar em contato com Don Raul, e pedir a ajuda
dele e sua gente para encontrar Charo.
— Tem razão! — concordou o padre. — Vou fazer isto
imediatamente. E você?
— Pegar a pasta, se tiver tempo! Logo estarei aí! — e, dizendo isto,
desligou.
Tinha de agir com velocidade, pois a notícia do desaparecimento
da enfermeira tinha se espalhado, e a polícia verdadeira estava
chegando.
Garcia logo encontrou o vestiário das enfermeiras. Só esperava que
o armário particular de Charo tivesse o nome dela.
— Padre! Deseja alguma coisa? — perguntou outra enfermeira,
barrando-lhe a entrada.
— Deus te abençoe, filha! — foi o que disse, afastando-a.
Muito espantada, ela o seguiu, vendo-o examinar os armários,
preocupada com aquela invasão, principalmente porque, pelo
barulho da água caindo, havia alguém no chuveiro. Antes que a
enfermeira começasse a gritar, Garcia falou:
— Pobre Charo! Teve de ir socorrer a mãe que está à morte, no
interior. Recebeu a notícia quando estava se confessando comigo.
Saiu às pressas, sem levar nada. Pediu que eu pegasse sua pasta e a
levasse à estação de ônibus. Onde é o armário dela?
Tremendo um pouco, cheia de dúvidas, a enfermeira apontou.
Este? E a chave? Diabo! Ela não me deu a chave! A sua será que
serve?
A moça começava a ficar aterrorizada. Um padre, falando diabo?
Mesmo assim, deu suas chaves a ele. Garcia experimentou, nada
conseguiu, e resolveu dar um soco. Abriu!
— Pronto! É esta a pasta! Bonita, não? Muito obrigado!
E passando pela enfermeira, paralisada, ele saiu do vestiário,
carregando a pasta. Neste instante, a água do chuveiro foi
desligada, e uma mulher saiu do boxe onde estivera tomando
banho. Da porta, Garcia ainda acenou para ela:
— Deus a abençoe, também!
Não teve problemas para deixar o hospital. Em dez minutos, estava
na embaixada, com o padre Carlito.
— Falei com Don Raul, ligando para o número secreto que ele me
deu. Ficou indignadíssimo com o seqüestro da moça, e já colocou
seus homens em ação. Prometeu varrer Lima inteira à procura de
Charo, inclusive todas as saídas da cidade. Logo dará notícias. E a
pasta?
Garcia a colocou sobre uma das mesas do escritório onde tinham
se fechado, e foi examinar se estavam sendo ouvidos ou vigiados.
Baixando as persianas, voltou à pasta.
Parou para respirar fundo. Padre Carlito benzeu-se. Afinal, ali
estava a tão procurada pasta de Diogo. De onde o garoto a tirara?
Talvez das mãos de seus seqüestradores. Era isso, provavelmente,
que eles agora queriam de volta, pegando Charo. Com muita sorte,
aquela pasta poderia ser a chave de todo o mistério.
— Bem, vamos abri-la!
Não foi tão fácil quanto a porta do armário. Mas, afinal, Garcia
conseguiu. Lá dentro tudo estava bem arrumado, com o requinte
dos dossiês de alto nível. Eram papéis de excelente qualidade, de
várias cores e tonalidades, alguns separados em diferentes kits.
Cada um destes tinha, na capa, um logotipo: a fração 2/3.
Abriram e examinaram um por um, cuidadosamente. Não havia só
relatórios, em vários idiomas, datilografados ou digitados em
computador. Mas também gráficos, plantas, desenhos e mapas.
Naquela farta documentação, tudo estava detalhadamente
assinalado e parecia ser de complicada interpretação.
— O que será isto, meu Deus? — disse o padre.
— Coisa de louco! — comentou o sargento.
— Antes fosse! Se conseguirmos decifrar esse negócio, veremos que
tudo faz sentido. Alguém perdeu uma cópia de todo o sinistro
projeto daquele monstro!
— A purificação do mundo pelos terremotos? O'Hara daria dez
anos de vida para dar uma olhada nisto e mandar o irmão decifrar.
Tenho certeza de que aí está dito o lugar onde ficam todos os
Pinos. E também aonde levaram Diogo. Padre, eu fico aqui para
saber de Charo. Vá o senhor a Los Angeles!
O padre Carlito sacudiu a cabeça.
— Não temos mais tempo. Precisamos descobrir agora!
— Como?
— À moda americana! Com um brain storm!
Padre moderno dá nisso. Arranja logo soluções práticas. Ainda
mais um padre como Carlito que, apesar da enganadora aparência
modesta, era experimentado em situações de conflito.
— Quem olha, não diz o que já rodou esta velha locomotiva! —
comentava sempre, com ar debochado.
Em sua longa carreira missionária, ele já correra países do mundo
inteiro, envolvendo-se em todo tipo de crises, que incluíam
epidemias, revoluções e até guerras, e o constante contato com os
poderosos. Seu conhecimento de brain storms vinha de um lado
mais ameno, como conselheiro de algumas instituições
filantrópicas.
Por isso, sugerira o tal brain storm que, nas grandes empresas,
quer dizer chamar a turma toda, do diretor ao contínuo, para
quebrar a cabeça numa reunião maluca, valendo dizer besteira. E o
padre Carlito se pôs em campo, mandou coar dois bules de
cafezinho, e convidou o pessoal da embaixada para divertir-se. Só
não veio o secretário que respondia pelo embaixador, porque tinha
ido ao aeroporto receber um amigo.
Para começar, foi pedindo, em bom português:
— Pessoal, isto aqui é gravíssimo. Uma organização terrorista
internacional da pesada perdeu seus planos para o semestre. Aqui,
em algum destes mapas, estão suas bases. Podem estar localizadas
até no Brasil. Que tal a gente ser um bom patriota e dar uma
olhada?
Todos toparam na hora.
— Mas com uma condição: o maior sigilo! Fora daqui, ninguém
abre o bico, falou?
Garcia embarcou no trabalho, mas seu pensamento vagava longe
dali. Pensava em Diogo, mas também pensava em Charo. O que
acontecera com ela? Por que Don Raul não dava notícias?
Percebendo sua preocupação, padre Carlito sugeriu que descansas-
se um pouco. Que tal ligar para Maria, saber de seus filhos lá em
Los Angeles? Garcia fez isso, deixando os outros mergulhados no
trabalho, e foi telefonar.
Antes que desligasse, ouviu um berro no meio da sala. Era o padre,
pulando sobre o assento do sofá, com os braços para cima:
— É isso! Só pode ser isso! A base central fica no Brasil!
Garcia foi olhar.
— Como?
Totalmente descontrolado, o padre apontou um dos mapas, com o
resto do grupo mergulhado sobre ele:
— Veja! Estes pontos são os tais Pinos. Há vários espalhados pelo
mundo, em zonas sujeitas a terremotos. Os Pinos são os
detonadores.
— Esses Pinos são assim, olhem! — disse um dos rapazes,
mostrando a planta de algo que parecia um subterrâneo, em forma
de tubo vertical.
Alguém disse também, indicando outro mapa.
— Que torre é essa aqui, no mar? Uma plataforma de petróleo?
O padre não deu importância:
— É. Pode ser! Mas repare nestes sinais! Estas linhas aqui, partindo
dos Pinos — exibiu. — Todas elas apontam para um mesmo lugar,
nesta região! É em território brasileiro! Bem no interior! Talvez
seja a central de onde acionam os Pinos. Só não diz o ponto exato!
Todos no grupo começaram a falar ao mesmo tempo. Agora a
história deixava de ser um jogo e tornava-se algo mais sério. O que
fazer? Comunicar ao governo do Brasil, lógico. Era assunto de
segurança nacional. De segurança mundial. Quem avisaria as
Nações Unidas?
— Calma! — pedia o padre. — Temos de agir com prudência.
Segundo esses planos, o Senhor Caos talvez tenha condições de
acionar vários Pinos ao mesmo tempo, e desencadear inúmeros
terremotos. Já pensaram nas mortes, na destruição? Ele não pode
saber que estamos informados, até descobrirmos onde isso fica e
chegarmos lá.
— Temos que pensar em Diogo! — lembrou o sargento.
De repente, ouviu-se um barulho na porta. Todos se calaram e
olharam. A porta se abriu, e entrou o secretário do embaixador,
trazendo um amigo com todo o jeito de ser também um diplomata.
E era mesmo. Era o cônsul Gilberto, que acabara de chegar de Los
Angeles.
— Sargento Garcia! — foi a primeira coisa que ele disse. — O
senhor agora é padre?
No chapadão. Diogo tinha retirado o gesso da perna. Mitsukp
acompanhara tudo, dando apoio ao novo amigo. Eram agora
inseparáveis, mesmo um não sabendo falar a língua do outro.
Entendiam-se por mímica, o que deixava Diogo feliz, pois assim ela
não via que ele era gago.
O grupo de seqüestrados fazia o possível para se distrair, naquela
prisão. Apesar de não serem maltratados, e o local ser
razoavelmente limpo e confortável, aquele era um lugar fechado e
triste. Para fazê-los acreditar que não eram prisioneiros, mas
convidados especiais, havia alguns livros, revistas, vídeos e
jogos à disposição. Pretender qualquer outra diversão, no entanto,
era coisa praticamente impossível. À noite, a melancolia apertava,
e alguns até choravam, com saudades de casa.
De vez em quando, uma mulher — que se dizia "psicóloga" da
equipe científica — vinha ter uma conversa com o grupo. Ela
tentava tranqüilizá-los, dizendo que no futuro dariam razão ao
Senhor Caos, e aí falava sobre as teorias de purificação. Insistia em
convencê-los de que a população da Terra viveria melhor se fosse
dois terços menor, e terminava elogiando os líderes do
movimento, destacando o Senhor Caos e seu principal
colaborador, o Doutor Fim.
Pura doutrina, sinistra doutrina, saída da cabeça doentia de alguns
bandidos. A falsa psicóloga terminava a palestra prometendo que,
um dia desses, todos iriam poder tomar um pouco de sol, numa
excursão vigiada que fariam pelo chapadão.
Esse programa seria a primeira chance de Diogo tomar contato
com o ar livre, depois que o trancaram ali. Ele demonstrou sua
satisfação a Mitsuko, abanando o rosto e sorrindo. Mitsuko
também sorriu e segurou a mão dele. Vendo isto, Javier piscou o
olho para o resto do grupo, desencadeando uma bagunça geral,
com assobios, empurrões e gargalhadas. Um momento saudável de
descontração, que ajudou a consolá-los um pouco.
Mas Javier e Rubito interromperam a farra e pediram atenção. Um
falava espanhol e o outro passava para o inglês o que ele dizia.
— Gente! Gente! Silêncio aí! O que foi que nós combinamos? Não
deixar passar um dia sem o nosso treinamento, não foi? Pois vamos
ao treinamento! Todo mundo faz roda aí. Rossana, o mapa!
Todos se sentaram no chão. Rossana, a italianinha, foi pegar um
mapa amarrotado, que alguém havia arrancado de um livro.
Entregou-o a Javier, que o colocou à vista de todos, e aí começou a
apontar país por país para que cada um não esquecesse de onde
tinha vindo. Mais tarde, ele explicaria a Diogo:
— Foi meu avô que ensinou. Ele esteve preso quando era jovem.
Depois foi exilado do país, viveu na França, e só bem mais tarde o
deixaram voltar. Meu avô me disse que, quando a gente está fora
da sua terra, vai esquecendo dela, como ela é, e até onde fica. Mais
tarde, esquece até das pessoas, dos amigos, da família. Por isso,
todos os dias, ele ia olhar o nosso país num mapa, e ficava dizendo
de cor as cidades, os rios, as montanhas, para evitar um dia
esquecer que o Peru existia, e só soubesse coisas da França.
Ficaram mais de meia hora, ali, cada um dizendo de cor, quando
chegava a sua vez, o que se lembrava da terra natal. Esse ritual
patriótico percorreu toda a roda, até terminar em Diogo. Javier
apontou no mapa e o desafiou:
— Brasil!
Diogo imediatamente ficou de pé, fechou os olhos, bateu o pé com
força no chão, e disse, sem gaguejar:
— O Brasil é aqui! Neste chão! Nome oficial: República Federativa
do Brasil. Capital: Brasília. Nacionalidade: brasileira. Forma de
governo: república presidencialista. Situação geográfica: leste da
América do Sul. Área: 8 511 996,3 km2. População: 147 milhões.
E, cheio de orgulho, com ar de missão cumprida, tornou a sentar
no chão, deixando os outros mudos de espanto. Sem que ninguém
esperasse, Mitsuko começou a aplaudir, sozinha, mas logo todos a
imitaram. Ela não tinha entendido nada, mas acreditou que ele
tinha dito alguma coisa linda.
Terminada a reunião, ela pegou o mapa e mostrou a Diogo o Japão.
Ele balançou a cabeça, dizendo que já sabia. Ela então apontou um
pequeno ponto no mar, junto ao litoral japonês, mandou esperar,
foi buscar lápis e papel, e fez um desenho. Diogo logo identificou:
— U-uma pla-taforma? Pe-petróleo?
Ela não entendeu e por isso não respondeu. Mas fez toda uma
mímica, relacionada com o desenho, querendo dar a entender que,
logo que a prenderam, ela tinha sido levada para aquela
plataforma. E que depois a tiraram de lá. Seria isso mesmo?
Ficaram gesticulando, até que Javier falou, cheio de autoridade:
— Gente! Acho bom dormir! Cada um para a sua cama, antes que
aqueles chatos apaguem a luz.
No escuro, Diogo ainda puxou conversa com Javier, que ficava
deitado perto dele:
— Ja-Javier! Co-como que-que é e-esse pa-passeio?
— Passeio? Ah, o que a mulher falou? Bem, eles levam a gente em
picapes, vai outra com os guardas, e aí num lugar eles deixam a
gente saltar, mas bem vigiados. Essa próxima excursão, disseram
que é onde tem pessoas fazendo meditação, peregrinos que nem
suspeitam quem eles são, e outros que são catequizados para
juntar-se a eles. Nós só vamos pra dar uma volta, e depois
voltamos.
Silêncio. Passaram-se alguns segundos, e então Diogo perguntou:
- Nã-não dá pra ge-gente fu-fugir?
19. TERROR NA VILA MÍSTICA
Na embaixada brasileira em Lima, Peru, enquanto padre Carlito e
o secretário traçavam planos de ação, Gilberto conversava com
Garcia. Tinha acabado de saber do sucedido com Charo, e o que ela
significava para o sargento.
— Desculpe, Garcia, pelas minhas implicâncias. Se, desde o início,
tivéssemos concordado, talvez nada disso estivesse acontecendo.
Garcia deu-lhe um tapa amigável no braço.
- Tá legal! Esqueça! E muito bom o senhor ter vindo até aqui nos
ajudar!
— O delegado ficou com ciúmes! Mas não pode largar Los Angeles,
do jeito que as coisas ainda estão por lá. Ele me explicou toda a
embrulhada, e por isso peguei o primeiro avião. Mas como é que
fica o caso da moça?
Garcia encolheu os ombros, deprimido, e, antes que respondesse, o
padre o chamou.
— Já nos comunicamos com o embaixador, lá no Rio. Ele entrou
em contato com os altos escalões para mobilizar as forças de
segurança. Vão vasculhar toda aquela área, tentando descobrir o
tal lugar.
— Com cuidado, padre! Com cuidado! Não vão soltar bombas feito
loucos. As crianças devem estar lá!
- Por isso pedi para ajudá-los. Quero estar presente quando
encontrarem Diogo. Vai comigo, sargento?
— Gostaria muito, padre. Mas Charo... Compreenda...
— Tem razão, meu filho. Vou falar com Don Raul Benavente. Você
deve participar das buscas também — disse o padre.
— E, quanto a mim, acho que o melhor que posso fazer é voltar aos
Estados Unidos — falou o cônsul Gilberto. — Vou ajudar O'Hara a
agitar as autoridades de lá, inclusive o governo. Vão ficar
maluquinhos quando eu mostrar esses planos. Até agora não
conseguiram entender aquela explosão do Mojave. Quem sabe era
um Pino?
— Pelo menos o local está assinalado no mapa — respondeu padre
Carlito. — Sugira que eles investiguem! O que acha, sargento?
Garcia acabara de se livrar do disfarce de padre. Estava muito
abatido, o rosto revelando enorme preocupação. Apesar disso,
aconselhou:
— Sei não, padre. Quem se organiza dessa forma, como o Ronnie,
não vai acabar assim tão facilmente só porque perdeu alguns
papéis. Falta muita coisa que não sabemos. O Diogo, até talvez
saiba. É muito vivo e esperto, e está no meio deles. Por que pegou a
pasta? Será que o plano de Ronnie é só esse? Mande essa gente ir
com calma, antes que provoquem outro terremoto.
Um dos rapazes da embaixada, o mesmo que reparara na "torre de
petróleo" desenhada no mapa, puxou Garcia e o padre Carlito para
um canto, e cochichou:
— Desculpem. Minha mulher diz que eu tenho uma imaginação
meio descontrolada. É que eu leio muito quadrinho de ficção
científica, sabem? Adoro aquelas maluquices. E nesse caso aí o que
não falta é maluquice. As idéias do cara que imaginou tudo isso são
tão malucas quanto as do Hitler. Por isso não custa eu insistir.
Garcia, além de impaciente, estava uma pilha de nervos.
— Por que não vai direto ao assunto?
— Bem, é só um palpite. Mas o que tem a ver aquela torre de
petróleo desenhada nos mapas? Por que colocá-la ali? Se é só um
enfeite, por que não desenhar também museus, parques de
diversões, hotéis de veraneio, fortalezas ou lanchonetes?
Garcia quase se ofendeu:
— Quer brincar numa hora destas, cara?
O padre Carlito, no entanto, tinha extremo bom senso:
Não. Espere! Ele não deixa de ter razão. Qual o seu nome, mesmo?
— Marcos — disse o rapaz.
— Pois bem, Marcos. Agora você me despertou a curiosidade.
Assim como os Pinos estão na terra, essa torre está no mar. Mas o
que uma plataforma de petróleo tem a ver com o plano?
— Pode não ser de petróleo — disse Marcos.
Os três se entreolharam, como se estivessem todos pensando a
mesma coisa. Antes que comentassem, porém, chamaram o padre
ao telefone. Ele foi atender, e quando voltou trazia no rosto uma
expressão muito triste e sombria. Olhando Garcia no fundo dos
olhos, falou:
— Era Don Raul. Quer que vamos ao seu encontro. Ele acha que
encontraram Charo.
Passaram-se alguns dias, até que alguém veio avisar as crianças
que, na manhã seguinte, bem cedo, deveriam estar prontas para a
excursão. Um grupo de guardas de segurança viria buscá-los. Diogo
logo perguntou a Javier:
— E-então? Va-vamos fa-fazer o-o que com-combinamos?
— Está maluco? Eu não combinei nada!
— Co-combinou sim! Mi-Mitsuko es-está de-de prova! — disse
Diogo, dirigindo-se a Mitsuko com meia dúzia de gestos, e ela
balançou a cabeça, confirmando.
Javier estava vivendo um terrível dilema. Orgulhoso igual ao avô,
temia ser acusado de covardia. Como confessar que se arrependera
de ter dado ouvidos á idéia de Diogo por achá-la perigosa?
— Está bem, está bem — disse ele. — Eu ouvi o que você falou
sobre a fuga. Mas só ouvi. Não concordei nem combinei coisa
nenhuma. Fiquei calado na hora para poder refletir, estudar a
coisa antes de responder. Mas agora, já cheguei a uma conclusão. A
resposta é não!
A idéia de Diogo até que era bem simples, mas exigia coragem, algo
que nada tem a ver com tradições de família. Diogo nascera com
essa coragem, e descobrira isso nos últimos tempos, junto a outro
sentimento: o da rebeldia. E é disso — coragem e rebeldia — de
que são feitos os heróis, os que não se conformam diante dos
ultrajes, dos insultos, das ofensas e das injustiças, sem lutar contra
eles. Diogo não estava disposto mais a ser tratado como um escravo
do Senhor Caos.
— Tente você sozinho! — disse Javier, encerrando o assunto e
dando-lhe as costas.
Diogo tinha contado com Javier para combinar uma ação coletiva
do grupo. Ficaria mais fácil se todos agissem juntos, no meio dos
peregrinos. Se cada um corresse numa direção diferente, eles
poderiam pegar alguns, mas outros escapariam na confusão. Mas
como conseguir convencê-los? E se não confiassem nele ou, por
medo, alguém o atrapalhasse ou denunciasse?
No dia da excursão, partiram todos em fila, pelo interior da
Catedral, ao encontro do guia que os levaria. Diogo olhava para
tudo à sua volta, para não perder um só detalhe. Onde estaria
Kino?
Em frente à grande porta da Catedral, totalmente aberta, estavam
quatro picapes para transportar as crianças e os seus guardas, mais
um furgão fechado com a comida do almoço. De pé junto a elas, de
mãos para trás, enorme e imponente como sempre... o sargento
Garcia esperava pelo grupo.
O coração de Diogo disparou e ficou fora do ritmo até que chegou
bem perto do homem. Não era o sargento Garcia, mas alguém
parecidíssimo com o seu amigo de Los Angeles. Bem mais moço,
porém. Diogo pensou em contar a ele. Mas por que contar? Não ia
interessar, ao sujeito, saber que era igualzinho a um policial. Logo
ele, um dos bandidos do Senhor Caos.
O homem se sentou ao volante da picape que iria à frente das
outras, e Diogo aboletou-se ao lado dele, com Mitsuko junto.
Durante toda a viagem, não tirou os olhos do novo Garcia. A
semelhança era incrível! As outras crianças iam tão alegres e
barulhentas, que nem pareciam seqüestradas, e logo o sósia do
sargento estava rindo também. Diogo, então, tomou coragem de
perguntar:
— Co-conhece al-alguém cha-cha-chamado Ga-Garcia?
O homem o olhou muito espantado e respondeu:
— Eu sou Garcia! Pepe Garcia! Por quê?
Deixando Peru e Bolívia bem para trás, o grande jato sobrevoava
agora território brasileiro. Uma parcela importante da vida de
Juan Garcia também ia ficando para trás, e ele tinha um vazio
enorme no coração. Nem ódio ele conseguia sentir. Não havia
espaço, dentro dele, para desejos de vingança. Só uma dor imensa,
de saudade, de compaixão e de perda.
Ao lado dele, no assento junto à janela, padre Carlito viajava cala-
do, pois nada havia a dizer. Olhando o colchão branco das nuvens,
abaixo deles, sabia que, mais cedo ou mais tarde, um novo
horizonte iria se abrir. As nuvens desapareceriam, e pouco a pouco
iriam outra vez se aproximando da terra, da realidade, da vida e da
ação.
A luta para salvar Diogo os esperava e iria reanimá-los. Nunca se
esqueceriam de Charo, e sua lembrança os ajudaria a enfrentar
Ronnie Eternidade. Quaisquer que fossem os perigos, precisavam
acabar com os planos do Senhor Caos, para que muitas outras
Charo pudessem viver.
A viagem de Diogo foi toda uma série de informações,
coincidências e espantos. Não houve solavanco capaz de
interromper a conversa entre ele e o guia. Ele era de fato Pepe, o
irmão que o sargento Garcia julgava definitivamente perdido.
Seduzido pelas palavras de Ronnie Eternidade, tornara-se um dos
seus mais fiéis seguidores. Acompanhara o lunático através do
mundo, onde o ouvira pregar suas teorias, e o ajudara a construir
seu projeto.
Mas não queria falar naquilo. Queria — isso sim — notícias do
irmão, e fez muitas perguntas ao garoto. Parecia muito alegre ao
ouvir falar de Juan, da cunhada e dos sobrinhos, os quais não
conhecia. Pediu detalhes sobre o seqüestro, irritando-se quando
Diogo falava em Kino.
— Aquele sueco é uma cobra, capaz de trair a mãe! — dizia ele, ao
volante, evitando os buracos da estrada. — Tenho certeza de que,
se pudesse, acabava com o Senhor Caos.
— E-e você, nã-não?
Pepe quase perdeu a direção.
— Epa! Que é isso, garoto? Que idéia é essa? — protestou,
perturbado, como quem é de repente apanhado numa falta ou num
segredo escondido.
— Vo-você nã-não é-é irmão do-do sa-sargento?
— Sou! E daí?
Diogo olhou para fora, desconversando.
— Na-nada!
A partir daí, falaram pouco, mas Diogo percebeu que Pepe tinha
algo entalado na garganta. Uma sombra lhe cobria o rosto quando
chegaram à vila. Como a cara de seus colegas, no orfanato,
arrependidos de um pecado e ansiosos para livrar-se dele no
confessionário.
Eram só duas ou três ruas, com casas brancas e pequenas, à beira do
penedo, porém cheias de gente. Havia mais charretes e carroças do
que automóveis ou veículos pesados. Muita gente caminhava, a
maioria em direção ao rochedo ou voltando de lá. As pessoas
pareciam concentradas, voltadas para dentro de si mesmas,
conversando pouco, umas com as outras. Eram os peregrinos.
Quantos deles estariam dominados pelas idéias do Senhor Caos?
As crianças receberam ordens: de saltar, de formar fileiras, de
caminhar juntas até a praça principal, onde deveriam aguardar.
— Va-vamos ao rochedo? — perguntou Diogo a Pepe Garcia.
— Ainda não foi decidido. Há gente demais por lá e é melhor
esperar que esvazie um pouco. Fique com os outros aí!
Diogo achou isso ótimo. Sair dali, para tão longe, poderia prejudi-
car seu plano. Sentou-se num banco, com a japonesinha, e Javier
veio para junto deles.
— Como é, maluco? Desistiu da idéia?
Diogo não respondeu, e Javier continuou:
— Que amizade é essa agora com o guia? Está pedindo ajuda ou
enganando ele?
Sem dar confiança, Diogo se levantou, deu dois passos, mas voltou
falando firme com o companheiro:
— Nã-não quer a-ju-judar, nã-não a-ju-jude. Ma-mas pe-pelo
menos nã-não faz pe-perguntas, tá bem?
E se mandou, com Mitsuko sempre ao lado. De mãos dadas com ela,
fingia passear, observando o lugar. Sua idéia agora era misturar-se
aos peregrinos, sem que ninguém notasse. Como esperava, havia
também crianças entre eles. Notou que os guardas do Senhor Caos
estavam por toda parte, atentos. Outros — Pepe entre eles:—
discutiam o que iriam fazer e aonde levá-los. Mal se distanciou
alguns metros do grupo, porém, foi trazido de volta, quase
brutalmente, por uma mulher guia.
— Aonde pensa que vai?
Não adiantava discutir. Sentiu que, ali, seria sempre bem vigiado.
Mas... e se conseguisse fazer de outro jeito, acompanhar uma fila de
peregrinos?
Foi aí que Pepe Garcia deu uma ordem aos guardas:
— Última forma! Vamos voltar. Hoje não há segurança para
ficarmos aqui!
As crianças foram reunidas rapidamente, e começavam a voltar às
picapes, quando o tiroteio começou. Os tiros vinham de trás do
furgão de alimentos e eram de metralhadora. Alguém, que viajara
escondido lá dentro, tinha escapado e, ao ser surpreendido por um
dos guardas, tirara a sua arma, e agora enfrentava a equipe do
Senhor Caos, que respondia ao fogo.
Os peregrinos entraram em pânico, enquanto as balas zuniam de
todos os lados, picotando a poeira e quebrando vidraças. Os guias
tentavam proteger as crianças e colocá-las nas picapes, ainda a
tempo de participar da luta, junto aos guardas. O atirador já
derrubara pelo menos dois deles e corria de um lado para outro,
como um demônio, procurando abrigar-se. Diogo já ia entrar na
sua picape, quando o reconheceu:
— Kino!
Esta hesitação o atrasou o tempo suficiente para que o sueco tam-
bém o visse, e tomasse uma decisão. Numa rápida disparada,
chegou à picape e puxou Diogo para junto dele.
— Que coincidência! — disse, com ironia, e ia afastar-se, quando
foi seguro por trás.
Era Pepe Garcia.
— Largue o menino!
Um gesto inútil, pois o sueco era mais leve e mais ágil. Girando o
corpo, livrou-se das mãos enormes de Pepe, dando-lhe um soco
que quase o derrubou. No mesmo movimento, apontou-lhe a
metralhadora, e ia puxar o gatilho quando Diogo se pendurou em
seu braço:
— Não!
O gesto do garoto não lhe deu tempo para mais nada, pois Pepe já
ia sacar sua arma. Kino teve só um segundo para sair dali, levando
Diogo a reboque, enquanto varria o chão da praça com outra
rajada de balas, furando os pneus que podia.
A sorte — que sempre o ajudava — ajudou mais esta vez. Um jipe
vazio, com a chave pendurada no painel, foi o caminho que
encontrou para a liberdade. Para Diogo, porém, foi outra vez o
caminho do desespero.
20. O TIRO CERTEIRO DE PEPE GARCIA
Na Catedral, Ronnie Eternidade teve de interromper uma reunião
do Comitê Supremo.
— Temos problemas, senhores! Um de nossos insubordinados
escapou e está dando tiros na Vila Mística.
— Alguém foi ferido?
— Talvez dois ou três guardas. Vou mandar reforços, antes que a
coisa piore. Logo que tudo se acalme, voltaremos a nos reunir.
E, sem dizer mais nada, levantou-se e foi para a sala dos monitores,
onde o Doutor Fim o esperava.
— Como estamos com o Tirano, doutor?
— Continua se deslocando, senhor. Em pouco mais de 24 horas vai
estar a postos.
— Quando poderemos agir?
— Assim que o ancorarmos. Tentaremos colocá-lo exatamente no
ponto que determinou.
— É o lugar ideal. O impacto ali será terrível — disse o Senhor
Caos.
— O que está havendo na Vila Mística? — continuou o Doutor
Fim. Aquele maldito sueco que estourou o Pino do Mojave! O tal
Kino! Eu já devia ter acabado com ele. Perdeu a pasta com os
planos, trouxe para cá o garoto errado, e não bastassem esses erros
é um desordeiro e um assassino perigoso.
Não acabou de falar, e foi interrompido por um de seus auxiliares
diretos:
— Senhor Caos, já há quatro vítimas fatais, na Vila. Três delas são
guardas, e a outra, um peregrino não-comprometido.
— Miserável. Acabem logo com ele!
— Talvez não seja tão fácil! Ele conseguiu deixar a Vila, em direção
aos rochedos, levando com ele uma das nossas crianças.
— Qual delas? Quem é o pai?
— Não tem pai, senhor. É aquele órfão. O pequeno clandestino!
Ronnie não queria acreditar. Outra vez? Antes que dissesse alguma
coisa, outro auxiliar lhe trouxe uma nova informação.
— Comunicado de nossa agência em São Paulo, senhor. Coincide
com este outro informe que recebemos ontem de Brasília, mas que
não tinha sido confirmado.
O Senhor Caos pegou os comunicados e os leu. Diziam, ambos, a
mesma coisa. Ronnie amassou os papéis e gritou ao Doutor Fim:
— Temos que agir depressa, doutor. Acelere o Tirano! Já
encontraram a nossa pista.
De longe, o desfiladeiro parecia uma parede lisa, mas não foi difícil
encontrar um caminho entre as fendas da rocha, e começar a
subir. Havia lugares em que foi preciso pisar com cuidado para não
cair, e outros que funcionavam como verdadeiros degraus. Depois
da primeira etapa da subida, um pouco complicada, encontraram
uma passagem inclinada que conduzia a um platô. Dali, podiam ver
tudo o que se passava lá embaixo, sem que ninguém os visse.
— Aqui está bom para passar a noite, garoto — disse Kino. —
Amanhã, resolveremos o que fazer.
Ficaram calados, por algum tempo, ouvindo apenas o vento, e
vozes distantes. Depois, ouviram motores de veículos, saindo ou
chegando. Kino tinha certeza de que os homens do Senhor Caos
não descansariam enquanto não os encontrassem.
— Esse maluco não vai me pegar! Fugindo daquela cela, na
Catedral, decretei minha sentença de morte. Desta vez, se ele me
pega, acaba comigo! Mas eu ainda tenho um trunfo, sabia?
Diogo não respondeu. Não sabia nem o que era trunfo. Kino
explicou:
— Isso se diz num jogo de cartas, quando um jogador esperto tem,
como reserva, um naipe especial para vencer o jogo. Eu tenho um
trunfo contra o Senhor Caos, e vou usar contra ele, se achar que
não tem mais jeito. Tendo tempo para isso, lógico. Descobri esse
segredo lá nos planos do Mojave. Ei. por falar nisso, o que você fez
com aquela pasta?
Diogo encolheu os ombros.
— Que importa agora? — disse Kino, fazendo o mesmo gesto. —
Mas foi aquela maldita pasta que me derrubou, sabia? Eu nunca
devia ter saído de lá sem ela. Meu erro foi mandar outros pegá-la,
em vez de ir eu mesmo. Demoraram tanto, para depois falhar.
Incompetentes! Fiquei, afinal, sem saber o que aconteceu. Soube
que pegaram a enfermeira, e depois mais nada. Bem, está feito. Não
interessa mais!
Um arrepio percorreu o corpo do garoto. Não por causa do frio.
Era a revolta de novo. Veio-lhe à mente a imagem de Charo. O que
teriam feito com sua amiga? Olhou o sueco e achou que não ia
sentir pena de Kino se o Senhor Caos acabasse mesmo com ele.
Quando escureceu, Kino se deitou, disposto a dormir com
tranqüilidade. Acreditava ser melhor companhia para Diogo que
os homens do Senhor Caos. Seria mesmo? Houve um momento em
que o garoto acreditou que Kino havia sido mandado por Deus,
para ajudá-lo na fuga. Agora achava impossível Deus usar aquele
homem tão frio e cruel. Ou estaria querendo pô-lo à prova?
Quanta falta fazia o padre Carlito para esclarecer essas dúvidas!
Diogo estava cansado, mas não sentia sono. Charo. Como é possí-
vel conhecer alguém, e em tão pouco tempo gostar tanto dela?
Lembrava-se da voz de Charo. Ela sempre entrava no quarto e já
vinha dizendo primeiro o seu nome: Diogo! Como está?...
Diogo.
- Diogo! — ouviu a voz feminina, misturada ao vento soprando nas
pedras. — Diogo! — A vozinha vinha, fina, subia pelas pedras e
parecia voltar, cair sob o peso do eco. Diogo levantou-se, inteiro.
— Mitsuko! Mitsuko, já vou!
Era ela. Tinha vindo atrás dele. Precisava ajudá-la para que não
caísse.
Nem se lembrou de Kino. Bandidos cansados também têm sono
pesado. Escorregando, agarrando, gadunhando pedras e capins, lá
se foi até onde ela poderia estar pendurada, talvez morta de medo,
porém nunca arrependida.
— Mitsuko! Por que você fez isso?
Ela não sabia, nem precisava responder. Deixou-se simplesmente
puxar por ele, e ser levada até o platô e a relativa segurança. Já
estavam quase chegando, quando viram aquela mão branca
esticada, oferecendo ajuda para a última arrancada. Era Kino.
— Ora viva! Mais um para o bando!
O sueco, a princípio, julgou tratar-se de outro menino. Com a
jaqueta, as calças jeans, e o cabelinho curto ela seria facilmente
confundida com um japonesinho fujão, do grupo de seqüestrados.
A memória fotográfica de Kino, porém, era excelente. Fazendo
uma rápida contabilidade dos seqüestras, ele logo chegou a uma
conclusão:
— Tem o polonês da Indonésia..., tem a italianinha que eu mesmo
seqüestrei em Gênova..., tem os dois garotos do Peru..., o da
Índia..., o do México..., o da Espanha..., você do Brasil... Estranho!
Não me lembro de nenhum japonês. Do Japão, quem veio foi... Ei!
Uma japonesa! — e olhando firme para Mitsuko, arregalou os
olhos e perguntou: — Qual é o seu sexo?
Ela não entendeu, mas Diogo ofendeu-se:
— Não se meta com ela! — disse em alto e bom som, sem gaguejar.
Kino deu uma gargalhada:
— Ora, ora, quem diria? Uma menina! E é sua namorada, malan-
dro? Sabidinho, hein? E deve ser uma grande paixão, para ela se
arriscar a vir até aqui. Parabéns, garoto. Estou aprendendo muito
com você!
Indignado, Diogo sentou-se no meio, entre Kino e Mitsuko, cruzou
os braços e não falou mais nada. Só queria saber o que iriam fazer,
no dia seguinte, quando amanhecesse. Descer, seria impossível.
Ficar, também não poderia, ali sem água e sem comida.
Continuariam, então, a subir? Enquanto ele pensava, o sueco
falava.
— Essa japonesinha aí deu trabalho. Foi escolhida porque o pai
dela é um dos empresários mais poderosos do Japão. Estava
pagando direito ao Senhor Caos, mas de repente tomou coragem e
parou. Veja você. Isso atrapalhou o projeto mais importante da
Purificação dos Dois Terços: os Pinos marítimos.
Diogo não resistiu e olhou curioso para Kino. Pinos marítimos?
— É o segredo mais bem guardado da organização — disse o sueco.
— Elimina a necessidade e as dificuldades de manter Pinos
terrestres. Como aquele que eu explodi no deserto do Mojave,
lembra?
Kino, agora, parecia não querer parar mais de falar. Era uma espé-
cie de embriaguez, de quem de repente descobre não ter mais nada
a perder. Nessas horas, o sujeito resolve contar tudo o que sabe e
lhe vem à cabeça, não importa quem esteja ouvindo. A mesma
compulsão de alguém cheio de problemas, num ônibus, abrindo-se
com o desconhecido que viaja a seu lado. Mesmo que o estranho
não faça a menor idéia do que se trata.
— Um Pino marítimo é bem mais fácil de instalar — continuou. —
E só construir e lançar no mar. Parece uma plataforma, uma torre
daquelas que procuram petróleo no fundo do mar. Só que o nosso
Pino provoca terremotos. Sabe como?
Diogo balançou a cabeça, negando.
— Com um impacto nas fendas frágeis, abaixo da crosta terrestre.
Bum! E vem tudo abaixo, por quilômetros e quilômetros. Podem
fazer assim com a cidade que eles quiserem. Não precisam
construir Pino nenhum perto dela, como o do Mojave. E só fazer o
Pino marítimo navegar até lá, que nem um navio, ancorá-lo em
frente ao litoral da cidade escolhida, e aí... Bum! Manda ver! O
subsolo desaba, e adeus cidade!
Kino ria muito, imaginando prédios, avenidas e viadutos
desmoronando, soterrando pessoas.
— Por isso fiquei fascinado por essa idéia do Ronnie: fabricar
terremotos. Não é genial? Ele fica lá filosofando, explicando os
motivos em suas reuniões e comícios, conquistando adeptos com
seus discursos, gente que acredita em qualquer bobagem exótica,
que adora ser convencida por teorias diferentes, que precisa entrar
numa moda nova. Eu não. Entrei nessa porque adoro movimento,
perigo, destruição.
Diogo não agüentou e fez a pergunta que lhe interessava:
— Qua-qual é-é a-a ci-cidade que vão de-destruir a-a-go-gora?
Kino o olhou sério. Custou, mas falou:
— Eu não lhe disse que tenho um trunfo? É este o trunfo. Sei para
onde estão levando agora a maior plataforma. Ela se chama
Tirano. Foi onde guardaram essa garota aí quando a seqüestraram.
Estava ancorada nas costas do Japão. Mas resolveram deixar
Tóquio para depois. Estão indo agora para outro lugar.
— Qual?
— Isso eu só conto quando achar necessário. Vai depender de uma
negociação. É o meu trunfo, eu não disse? E a minha vingança
contra Ronnie.
Encerrou então a conversa, fechou os olhos e voltou a dormir.
Mitsuko já estava fazendo o mesmo. Em dois minutos, Diogo
também mergulhou nas doces trevas do sono.
Foram acordados pelo barulho de uma forte explosão. Abriram os
olhos, os três ao mesmo tempo, esperando encontrar o inferno a
seus pés. À sua frente, porém, lá em baixo, a Vila Mística parecia
adormecida, coberta pela neblina da madrugada. O sol apenas
começava a aparecer no horizonte.
Seria natural ouvirem o canto dos pássaros, mas a natureza parecia
amedrontada. À primeira explosão seguiram-se outras, distantes.
Kino, Diogo e Mitsuko ficaram de pé, tentando devorar os
quilômetros com os olhos, enquanto a Vila parecia também
despertar e agitar-se. Vozes chegavam de lá, aflitas. Ouviu-se um
tiro, perdido. De puro medo? Um aviso? Kino traduziu tudo aquilo
numa frase:
— Parece que a confusão começou! — e acrescentou: — É hora de
a gente sair daqui.
Já começava a descer, quando ouviu uma voz, poucos metros abai-
xo dele:
— Pare aí, Kino!
A voz com sotaque era inconfundível: Pepe Garcia! Tinha saído
com uma patrulha, durante a noite, para apanhá-lo lá em cima,
logo que amanhecesse. Talvez nem tivesse nada a ver com as
misteriosas explosões.
Kino não levou dois segundos para tomar uma decisão e resolveu
voltar pelo mesmo caminho, tentar fugir lá por cima. Diogo ainda
não se movera, e era inteligente o bastante para saber o que iria
acontecer. Ao primeiro movimento de Kino, Pepe atirou. E errou,
talvez de propósito.
— Mandei parar! — gritou.
Kino não reagira ainda porque, pendurado na rocha, tinha a
metralhadora às suas costas, a tiracolo. Logo, porém, agarrou-se
melhor, prendeu os pés com firmeza e pegou a arma. Mesmo sem
ver Pepe, arriscou- se a mandar uma rajada na direção da voz.
Perdeu! Pepe o via, e nem precisou fazer pontaria. Um tiro só, e
Kino caiu.
Não foi um vôo longo até a base do despenhadeiro. Logo se ouviu o
baque do corpo, uma dezena de metros abaixo, sobre uma pedra
coberta de musgo.
Imobilizados pelo terror, Diogo e Mitsuko escutaram outra vez a
voz de Pepe:
— Fiquem aí, vocês dois! Não se mexam!
Não tiveram outro jeito, senão obedecer. Emudecidos, sentiam os
minutos correrem, ouvindo os ruídos no mato. os comentários do
pessoal da patrulha, a voz de Pepe dando instruções. Kino teria
morrido?
Ao longe, as explosões continuavam. Agora, podiam ouvir também
o motor de aviões. Ou seriam helicópteros?
21. O ENCONTRO COM OS JAPONESES DA VILA
Mandei apressar o Tirano! Onde ele está? — gritava Ronnie
Eternidade, agitado, andando de monitor a monitor.
— Ainda longe do ponto, senhor! — respondeu um operador.
— Doutor Fim! O que podemos fazer?
— Por enquanto, nada. Deve tentar controlar-se.
— Com o exército e a força aérea em cima de mim?
— Eles ainda não têm certeza da nossa posição exata — disse o
Doutor Fim. — Estão só jogando bombas de efeito moral.
— Mas, e quando nos descobrirem?! Não estou aqui para me
suicidar, como fez Adolf Hitler.
— Talvez não seja preciso. Ainda temos os reféns!
— Os reféns, seu idiota?!! Pois eles não foram à Vila Mística? Quem
teve esta idéia imbecil?!
— Calma, senhor. As crianças já voltaram. Estão presas na creche
— alguém informou.
— Só falta o brasileirinho. Ah, e a japonesinha — disse outro. —
Kino os levou com ele, mas Garcia foi pegá-los com uma patrulha.
— Então traga os outros pestinhas para cá! Alguém me ponha em
contato com aqueles helicópteros. E o senhor, Doutor Fim, tem
uma hora para detonar aquele Pino!
— E-ele morreu? — foi a primeira pergunta de Diogo, quando Pepe
Garcia chegou ao platô, junto a ele.
— Não, mas está muito ferido. É um sujeito forte, mas não sou
médico, e não sei quanto tempo pode agüentar.
— E-então le-leva e-le pra-pra Ca-catedral! Va-vai de-depressa, va-
vai! — disse Diogo, na maior aflição.
— Ele não quer ir! — respondeu Pepe. — Primeiro quer falar com
você!
— Comigo?!
O que poderia Kino querer falar com ele em vez de tentar salvar-
se? O sueco insistia para vê-lo a sós, e Diogo seria o último a negar-
se a isso. Ajudado por Pepe, que ficou um pouco distante, ele
chegou bem perto de Kino, que tinham encostado em uma pedra.
Estava muito pálido, e sua fisionomia se modificara totalmente.
Estava calma como a de um anjo.
— Alô, garoto! — disse ele, acenando para que Diogo chegasse bem
perto. — Temos nos divertido muito, não é? Não há excursão à
Flórida que ofereça isso. Bem, mas parece que aqui termina a
viagem.
Diogo ia protestar, mas Kino pôs um dedo nos lábios.
— Não diga nada. Só ouça o que vou lhe dizer. É aquele trunfo,
lembra-se? Não vamos deixar o patife do Ronnie sair-se bem desta.
Você precisa agir rápido, pois temos pouquíssimo tempo. Você
pode salvar milhões de pessoas, mas tem de levar correndo — e
sem gaguejar! — esta informação. Deixe eu falar baixinho, no seu
ouvido.
Afastados dali alguns metros, Pepe e Mitsuko não podiam ouvir a
conversa. Apenas viram quando Diogo encostou o ouvido junto à
boca de Kino, que durante quase dois minutos ficou falando.
Quando terminou, fez um gesto mandando o garoto afastar-se.
Diogo veio caminhando devagar, ainda olhando para trás, mas
Kino disse:
— Não se preocupe comigo! Vá logo! Só conte isso à pessoa certa! E
não gagueje, ouviu?
Ao chegar junto a Pepe e a Mitsuko, trazia a certeza de que nunca
mais veria o sueco. Pepe pediu que esperassem um pouco, e foi
reunir novamente seus homens, para dizer-lhes o que fazer.
Diogo, então, com os olhos molhados de lágrimas, disse a Mitsuko:
— Ele mandou eu não gaguejar!
Pensou um pouco e continuou:
— Acho que foi sua última vontade!
Neste momento, sentiram que algo mudara. Era isso: não ouviam
mais as bombas, nem os helicópteros e os aviões. Diogo, então,
lembrou-se dos outros pedidos de Kino, e que era muito
importante cumpri-los.
A operação fora temporariamente suspensa. Depois das primeiras
bombas, apenas de efeito moral, porém muito barulhentas, os jatos
da FAB tinham recebido ordens de retornar à base mais próxima.
Mas o alerta continuava, e os altos escalões das Forças Armadas
brasileiras, em ação conjunta com a Polícia Federal,
providenciavam o cerco.
Oficiais superiores e agentes especiais do governo estavam na
região para decidir qual seria o melhor passo a dar agora, já que
estavam num impasse: — o misterioso terrorista, conhecido por
Senhor Caos, tinha divulgado um ultimato dizendo que, se não
parassem com as buscas, as crianças em seu poder estariam
correndo risco de vida. Todos aqueles meninos e meninas eram
filhos de importantes empresários e personalidades de diversos
países.
Embora poucos ali soubessem o motivo, por determinação do
Ministério do Exterior participavam da operação, ao lado dos
oficiais e dos agentes, dois civis: um padre e um norte-americano
de origem mexicana.
Logo correu, entre as autoridades, que só aqueles estranhos perso-
nagens conheciam, em todos os seus pormenores, os detalhes
mirabolantes de um plano incrível, uma ameaça de risco imediato
à segurança mundial. E que esses dois homens tinham sido os que
apontaram, como quartel-general dos líderes do plano, o lugar
onde estavam.
Isto os tornou mais respeitados, e o padre Carlito e o sargento
Garcia tinham conseguido, afinal, chegar ao chapadão da
Eternidade, junto às instalações secretas do Senhor Caos. Para
provar que não eram malucos, traziam com eles cópias de todos os
documentos encontrados na pasta.
Apesar disto, na reunião convocada antes da partida pelo comando
da operação, nenhum daqueles militares e policiais brasileiros
tinha confiado muito na sanidade mental do padre, quando ele
informou, apontando as torres marítimas:
— O mais grave de tudo, senhores, são essas torres. Parecem pla-
taformas de petróleo, mas temos sérias razões para suspeitar de que
se trata de Pinos marítimos. Um modelo mais aperfeiçoado dos
Pinos terrestres e, segundo creio, podem ser detonados a qualquer
momento.
— Provocando um terremoto? — perguntou um deles.
— Não há terremotos no Brasil! — disse outro.
Foi aí que o sargento ofendeu-se, e se meteu na conversa:
— Não há?! E daí? Mas há países que podem ser arrasados, se um
desses Pinos chegar perto de suas costas. Vão ficar parados,
deixando que isto aconteça? Se não sabem o que é um terremoto,
eu sei! Já passei por vários! É a pior calamidade que pode
acontecer! Nós temos que parar aquele cara agora! Agora, que o
temos nas mãos!
— Com um pequeno detalhe: ele tem umas dez crianças como
reféns! Alguma idéia do que fazer?
— Não, não vou levar você de volta à Catedral! Já sofreu muito e
não deve sofrer mais nada. Fique aqui com a japonesinha, e trate
de dar o fora.
- Mas... e as outras crianças, os meus amigos, que estão lá? — disse
Diogo.
— Vou ver o que posso fazer por eles. Se um dia encontrar Juan,
diga que eu tentei. E peça perdão por mim. Não... não diga nada!
Pelo menos enquanto isto não acabar!
Estavam de volta à Vila Mística, onde Pepe resolvera deixá-los. Ele
se preparava para embarcar na picape, com seus comandados, que
tinham por ele bastante respeito e não discutiam suas decisões.
— E você? — perguntou Diogo.
— Eu? — e Pepe olhou para o céu, como se quisesse encontrar, lá
no alto, alguma resposta. — Eu estava mesmo querendo acertar
minha vida. Eu e mais estes companheiros aqui. Como vai ser,
ainda não sei direito. Mas Juan me dizia que toda hora é hora de
mudar de caminho.
— Você não gosta mais do seu?
Pepe sorriu amargo.
— Olha, garoto — falou, segurando a mão de Diogo. — Só lhe digo
isto: use bem sua juventude. Não deixe entrar bobagem na sua
cabeça. Cabeça de jovem vive aberta e, se ele se distrai, entram
idéias malucas. Entra até maldade. Depois que entra, fica difícil
esvaziar. Eu venho tentando faz tempo, sem conseguir. Mas essa
confusão me mostrou que é agora ou nunca. Obrigado, viu? Você
também me deu uma força!
E completou com um abraço. Depois, ligou o veículo e se foi.
Apanhado de surpresa por este gesto. Diogo gostaria de estar feliz
com a liberdade. Mas, e a missão que recebera de Kino? Como
fazer para cumpri-la?
Logo que a picape de Pepe se afastou, retornando à Catedral, ele
examinou a Vila ao seu redor. Agora estava vazia. Todas as portas e
janelãs, fechadas. Onde teria se metido toda aquela gente? Caso
estivessem escondidos, os peregrinos voltariam?
Queria um telefone. Mas que faria ele com um telefone? Foi aí que
ouviu um ronco: o ronco do seu próprio estômago. Olhou para
Mitsuko e lembrou-se de que ela também devia estar com fome.
— Desde ontem a gente não come, não é, Mitsuko? — disse,
passando uma das mãos na barriga e franzindo a testa.
Mitsuko respondeu abrindo a boca, fingindo que colocava algo
dentro dela, com a mão. Era assim que se entendiam.
Diogo, então, resolveu bater de casa em casa, em busca de comida.
Tentou a primeira, a segunda e, na terceira, uma voz perguntou:
— O que você quer?
— Comer! Tem comida aí?
Ouviu cochichos, e novamente a mesma voz:
— Quem é você? Está sozinho?
— Só tem eu e a Mitsuko!
O nome de Mitsuko funcionou como uma palavra mágica. A porta
imediatamente se abriu, e lá de dentro surgiram um homem e uma
mulher. A primeira coisa que fizeram foi falar com a garotinha. E
ela logo lhes respondeu. Claro: eles também eram japoneses.
Agradecendo a Deus e ao destino pela milagrosa coincidência,
Diogo teve de esperar pacientemente que os três trocassem todas
as informações necessárias. Percebeu que, depois de alguns
minutos, o casal passou a demonstrar enorme reverência por
Mitsuko. Haviam descoberto que ela pertencia a uma família
importante e tradicional, como explicaram a Diogo. Enquanto a
mulher preparava e servia aos dois famintos um almoço ligeiro, o
homem contou a Diogo a sua parte naquela história.
Somos lavradores nisseis — filhos de imigrantes — e viemos para
esta região porque havia terras boas para a agricultura. Não tinha
ainda a Vila. Compramos este sitiozinho, e íamos começar a
trabalhar, quando espalharam a fama do lugar, dizendo que tinha
propriedades místicas, que emanava energia, e que não era bom
fazer nada aqui, só meditação. O jeito de sobreviver foi esperar
quietinhos, até a onda passar. Mas aí apareceu pessoal do Senhor
Caos, mandando em tudo. E, como não adiantava resistir,
obedecemos regulamentos deles, não? Mas nunca soube que havia
lá na pedreira onde eles ficam. Só agora a senhorita Mitsuko
contou pra gente. Horrível, não?
— E o que foi aquilo que aconteceu, hoje de manhã, que todo
mundo fugiu? — perguntou Diogo.
— Não viram os aviões? Os helicópteros? Passaram por aqui,
baixinho, e foram atacar lá no lugar do Senhor Caos, onde é
proibido a gente ir. Povo fugiu correndo, quando ouviu bombas. Só
nós ficamos. Japonês fica, não? Escondeu aqui, olhe!
Dizendo isso, arredou a mesa, e abriu um alçapão, debaixo do
assoalho da pequena sala, mostrando uma escada de madeira.
— A gente desce escada, tem um túnel, túnel leva até lá no poço.
Quer ver?
— Depois! — disse Diogo. — Estou preocupado com uma outra
coisa. O que está acontecendo lá adiante, na pedreira?
— A gente não sabe. Polícia chegou, exército chegou, tudo armado,
quem pode saber? Mas vem ver poço, vem — insistiu o homem.
Senhor vai achar muito interessante.
Diogo estava impaciente. A informação e o pedido de Kino ainda
estavam bem frescos em sua cabeça. Precisava cumprir a missão. O
japonês, porém, puxava-o insistentemente para ver o tal poço
junto à cerca do seu terreno.
— Senhor fica aqui, do lado do poço, que eu vou descer nele pelos
ganchos dentro. Vê ganchos daqui? Olhe só. Não sai daí.
E, dizendo isso, o japonês começou a descer por uns ganchos de
ferro presos à parede do poço, e desapareceu. O que estava
fazendo? Diogo ouviu a risadinha dele, ecoando bem lá no fundo,
na escuridão. De repente, ouviu um chamado:
— Ei!
Diogo olhou e viu o japonês, lá adiante, com a cara para fora da
janela da casa, acenando. E, de onde estava, dizia:
- Espera mais um pouco — e novamente desapareceu. Estaria
querendo brincar?
— Olha eu aqui!
Diogo virou a cabeça para outro lado e lá estava outra vez o japo-
nês, surgindo agora de dentro de um galpão, atrás da casa. Que
mágica era aquela? Só entendeu um minuto depois, quando o
japonês, após desaparecer outra vez, tornou a reaparecer saindo
pela boca do poço. Ria com todos os dentes:
— Interessante, não? — e, enxugando o rosto suado, explicou: —
Tudo túnel, mas túnel muito estreito mesmo. Tudo cruzando,
daqui para a casa, da casa para o galpão, e depois de volta. Eu que
cavei por baixo da terra, junto com minha mulher. Talvez a gente
precisasse se esconder, não? Mas é coisa fraca, com madeira
segurando. Estaca, só pouca estaca. Pode cair, se não tem cuidado.
Só passa um cada vez, mas resolve, o que pode fazer? Senhor quer
descer para ver?
— Não, obrigado!
Diogo bem que estava curioso. Maior, no entanto, que a
curiosidade, era a pressa de levar avante seu compromisso. Como
fazer para agir rapidamente e levar o recado à pessoa certa? E
onde estaria essa pessoa ou, talvez, pessoas certas? Diogo só
conhecia uma saída. Sem deixar que percebessem, concentrou-se e
pediu: Senhor, me ajude!! E, como sempre, a inspiração lhe veio
instantaneamente.
Levou Mitsuko a um canto e, com a sua linguagem de gestos, pediu
que ela perguntasse se o casal tinha um automóvel ou caminhão
para levá-los à Catedral.
Assustado, o homem balançou a cabeça, muito sério, dizendo que
não, que não, olhando também para Diogo, usando sempre a
palavra proibido, até que a garotinha começou a lhe dar ordens
com a firmeza e a autoridade de sua classe. Imediatamente, o
homem se curvou várias vezes, e obedientemente foi ao galpão nos
fundos da casa, e tirou lá de dentro um cavalo magro.
Em cinco minutos, o animal já estava atrelado a uma charrete, que
também estivera escondida, e lá se foram os três: Diogo, Mitsuko
e... a mulher. O homem ficou cuidando da casa.
22. SABOTAGEM
— Inacreditável!
Nem mesmo o comandante das operações, como qualquer dos
militares e policiais envolvidos, deixou de se admirar ao
contemplar as cavidades no paredão rochoso. Nunca poderiam
imaginar que alguém pudesse ter instalado algo assim, sem o
conhecimento do resto do país.
— De longe, não se vê nada. De perto, são apenas grutas. Quem se
interessa por grutas? — disse um oficial.
— Excursionistas, turistas, peregrinos, eremitas... — respondeu o
comandante.
— Ele também se interessa! — disse uma voz, perto deles.
O comandante se voltou para ver quem falava, e viu o padre
Carlito.
— Ele quem?!
— O Senhor Caos, o criador de tudo isso. O homem que quer
eliminar dois terços da humanidade provocando terremotos —
disse o padre. — E agora, que o cercamos, acredito que vá
desencadear o pior deles.
— Acredita mesmo nisso, padre? Quem pode garantir que, ali
dentro, haja tudo isso que o senhor imagina?
— Então pague para ver — disse alguém, falando mauportunhol,
em tom agressivo. — Ou vão ficar aí brincando, sentados nos seus
jipes, nos seus carros de assalto, atrás dos canhões e metralhadoras,
enquanto lá dentro aquele maluco prepara o Juízo Final? O que
vieram fazer aqui: uma manobra militar ou uma parada?
Era o sargento Garcia, cujo atrevimento fazia pensar que ele era
algum agente da CIA ou do FBI, e não um simples policial de Los
Angeles. O comandante simpatizava com americanos, e por isso
continuou a falar com calma, como numa conferência:
— Quem disse que estamos brincando? Tenho ordens para cumprir
e vou cumpri-las, mas obedecendo a estratégia e o bom senso. O
que quer que haja ali dentro, já está sob o nosso controle.
Provavelmente somos superiores em armamento, pois não
responderam ao nosso ataque e a este cerco. Só não entramos à
força, devido à mensagem que eles nos mandaram pelo rádio. Eles
têm crianças como reféns. O que sugere que eu faça?
O sargento parou para pensar e finalmente disse:
— Tem algum jeito de me colocar em contato com ele?
Rapidamente, Garcia teve à sua disposição um moderno
equipamento de rádio, e tentava comunicar-se com o Senhor Caos.
Oficiais, delegados e o padre Carlito se concentraram junto a ele,
para ouvir. Os soldados permaneciam alertas, em suas posições, de
frente para o despenhadeiro. Por isso, ninguém percebeu uma
picape que chegou, por trás das linhas, e parou. Antes de entrar na
Catedral, pelo caminho secreto que lhe dava acesso. Pepe Garcia
pegou o binóculo para observar as forças atacantes.
Percebeu que as coisas estavam mesmo complicadas para o Senhor
Caos. E para ele também. Mas teve a certeza de que esta seria a sua
última chance de ir avante com a decisão que tomara, mesmo
pagando pelos seus erros.
Foi aí que notou, em meio aos uniformes, o homem de terno cinza
com o microfone na mão. A emoção embaçou as lentes. Pepe
conhecia aquele homem tão bem quanto se conhece um irmão.
No interior da Catedral, o ambiente era tenso. A refrigeração
tinha sido danificada por uma bomba perdida que atingira os tubos
exaustores, e ninguém parecia se incomodar com o calor. Um dos
técnicos afastara o Senhor Caos de perto dos monitores, trazendo-
o para junto do rádio.
— Eles querem falar com o senhor!
— O que podem querer? Quem dita as regras do jogo sou eu! É só o
Tirano chegar à localização certa, e vão ver quem manda.
Mas aceitou o microfone, e esperou. A voz do sargento saiu do
alto-falante:
— Alô, Ronnie! Está me ouvindo?
— Aqui não há nenhum Ronnie! Sou o Senhor Caos! Quem está
falando?
— Sou eu, Ronnie. Juan Garcia, lembra-se? De Los Angeles! Da
equipe do capitão O'Hara!
O Senhor Caos ficou em silêncio, e Garcia continuou:
— Pensei que estivesse morto, Ronnie. Estive atrás de você no
Peru, lembra-se? Procurando um jovem chamado Pepe Garcia.
Queria meu irmão de volta, mas você o levou para o inferno.
— Não conheço nenhum Pepe Garcia!! — berrou o Senhor Caos.
— Também não conheço você! Só conheço o futuro do mundo e é
disso que estou tratando neste preciso momento. Ninguém vai
interromper, até que a Grande Catástrofe aconteça. E essa hora
está chegando! É a Purificação dos Dois Terços em marcha!
Nenhum de vocês vai poder impedir!
Interrompeu seu discurso para respirar, e ouviu aquilo. Estranho!
Seriam palmas?
Entre as forças atacantes, ninguém se atrevia a dar uma
palavra. Tinham acabado de ouvir um louco pelo alto-
falante, e aqui fora outro louco o aplaudia. Puro cinismo
de Garcia, que sabia que a única coisa que perturbava
Ronnie Eternidade era levá-lo ao ridículo.
— Gostei, Ronnie. Lindo discurso! Agora, que tal negociar uma
solução?
Pelo alto-falante, veio a resposta arrogante:
— Solução? Que solução? Eu já encontrei a minha solução! Vou
eliminar dois terços da humanidade, a começar por uma grande
cidade. Quando estiver pronto, é só apertar um botão, e milhões
morrerão.
— Tudo bem, Ronnie, mas pelo menos poupe essas crianças que
estão aí com você. Que tal soltá-las?
— Soltá-las? E perder essa vantagem que tenho sobre vocês?
— Você ainda tem outra vantagem, Ronnie. Esqueceu-se? Não
sabemos que cidade você vai destruir. Ninguém sabe onde está o
Pino marítimo!
Novo silêncio do Senhor Caos. Ouviu-se apenas o sopro do vento,
até que ele perguntou, com a voz rouca de surpresa e indignação:
— Como sabe do Pino marítimo?!
Garcia queria maltratá-lo bastante, matá-lo de curiosidade, usando
o máximo de deboche. Mas temia perder a medida da coisa, e expor
Diogo e as outras crianças à vingança daquele monstro. Mesmo
assim, disse:
— É uma longa história, Ronnie. Mas ela começa assim: Era uma
vez uma enfermeira que você matou, chamada Charo, e...
E aí ouviu aquele chamado. Quem gritava o seu nome?
Os soldados foram os primeiros a avistar a charrete que trazia uma
mulher e duas crianças. Uma delas era um menino que gritava e
acenava. Depois, pulou da charrete e veio correndo. Quando
estava bem perto e ia ser barrado pelos soldados, sua voz soou mais
claramente:
— Sargento Garcia! Padre Carlito!
Aí, eles o viram.
Nunca se sabe por que as crianças, às vezes, reagem assim. Mas o
modo que Diogo encontrou para liberar toda a mistura de emoções
— incluindo surpresa, alegria, insegurança, orgulho, alívio,
constrangimento e saudade — foi deitar-se de frente no chão de
terra, cobrindo o rosto com os braços, chorando e dando pernadas.
Chorou convulsivamente, por muito tempo, até que os abraços de
dois velhos amigos o vieram confortar. Eles também choravam.
Diogo salvo! Diogo livre! Diogo ali, novamente, ao lado deles! Era
um milagre, mesmo!
Devia ter sido assim com os nazistas, em Berlim, quando souberam
que os russos haviam entrado na cidade. Sentindo o inimigo nos
calcanhares, o Senhor Caos apelou para as pedras mais preciosas
do seu tabuleiro.
— Tragam as crianças da creche! — ordenou. — Quero-as aqui a
meu lado. Agora!
Enquanto iam fazer o que ele mandou, Ronnie afastou o Doutor
Fim do seu posto no painel central e pessoalmente assumiu o
controle da operação. No monitor apareceram os contornos
coloridos que assinalavam a posição atual do Tirano.
— Lá está ele! Bem perto do litoral! Se conseguirmos...
Neste momento entraram as crianças seqüestradas, e quando ele as
viu transformou-se:
— Claro que vamos conseguir! Nada irá nos deter! Está bem claro
que eles não sabem onde está o Tirano!
— Eu sei onde o Pino está! — gritava Diogo lá fora ao padre e a
Garcia, mas todos o ouviam. — Está indo para a Califórnia!
— Califórnia?!! — disseram todos ao mesmo tempo.
— O Kino mandou dizer: o Pino está no mar, navegando para lá. E
quando chegar bem em frente, vai destruir aquela cidade... como é
que é mesmo... São Francisco!
Garcia já estava com a mão no rádio e, sem perder tempo,
perguntou ao comandante:
— Isto liga com Los Angeles? Preciso falar com meu chefe!
O'Hara sentiu-se o dono do mundo. Podia até entrar para a
História. Mal recebeu a informação de Garcia, avisou o irmão, que
tratou de informar o governo americano sobre a gravidade do que
estava acontecendo. Todos que tinham acesso às autoridades
federais — inclusive o cônsul brasileiro na cidade — colaboraram
de alguma forma. A Marinha, a Força Aérea e o Exército norte-
americanos não demoraram a entrar em ação.
Tudo isso foi feito em absoluto sigilo. Nem a imprensa foi
informada. O mundo não precisava saber.
Num prazo incrivelmente curto, o Tirano foi localizado em pleno
oceano, e intimado a parar, sob pena de ser destruído. Antes de
obedecer, a tripulação entrou em contato com o chapadão da
Eternidade para pedir instruções ao chefe supremo.
— O quê?!! Foi localizado?! Como eles descobriram?!! Como sabem
que não é apenas uma plataforma de petróleo?! — bradava o
Senhor Caos, dando socos no painel de instrumentos,
completamente descontrolado.
— Alguém deve tê-los informado! — disse o Doutor Fim.
— Eu sei! A pasta! Eles encontraram os planos e decifraram! Não
tem importância! Vamos detonar o Tirano! — e, dizendo isso,
Ronnie levou a mão a um dos botões no painel.
— Não podemos! Isto é, não vai adiantar! Estamos ainda muito
longe do ponto exato! — lembrou o Doutor Fim.
Completamente transtornado, o Senhor Caos parou para pensar
um segundo, e falou:
— Então vamos acionar os outros Pinos! Todos!
— Mas haverá terremotos em todo o mundo!
Ronnie sorriu, com o olhar febril dos malditos.
— E daí? Não foi o que planejamos?
E, dizendo isso, apertou um botão. Nada aconteceu. Tentou
novamente. Nada.
O equipamento não funcionava. Os monitores permaneciam em
branco, sem nada acusar.
Sem entender o que acontecia, o Senhor Caos continuou
apertando inutilmente todos os botões do painel. Os muitos Pinos,
espalhados em várias partes da Terra, mantinham-se inertes e
impassíveis. O Senhor Caos estava à beira da loucura completa. Ou
já tinha entrado nela.
— Sabotagem! Alguém destruiu os circuitos! Eu vou descobrir
quem foi!
— Fui eu! — ouviu alguém dizer, atrás dele.
Voltou-se, e viu Pepe Garcia e os homens de sua patrulha, com
armas apontadas para ele, protegendo às suas costas as crianças da
creche.
23. UM NOVO PAI PARA DIOGO
— Juan! Juan Garcia!
A voz que chamava, pelo alto-falante dos militares, não era a do
Senhor Caos. O sargento voltou ao microfone e falou:
— Aqui é Garcia! Você quem é?
A resposta não veio logo. O que veio foi outra pergunta:
— Juan?
— Sim! Sou Juan! Por que você não se identifica?
— Bem, Juan. Nem sei como começar. Mas não tenho muito
tempo, agora. Como vai o Diogo?
O sargento teve um súbito pressentimento. Impossível! Olhou para
o lado e viu Diogo com Mitsuko. Pelo olhar do garoto, entendeu
tudo. E Diogo confirmou:
— É seu irmão, sargento! O Pepe! Foi ele quem me salvou! Pediu
para só lhe contar quando tudo acabasse!
Muito sério e comovido, com um ligeiro tremor nas mãos que
seguravam o microfone, o sargento voltou a falar, quase
sussurrando:
— Diogo está ótimo! E você?
— Por enquanto, tudo sob controle! Estou com eles na minha
mira. Eu e meu grupo vamos tentar sair com as crianças. Vocês nos
dão cobertura?
O sargento não esperava por mais esta! Olhou para o comandante
que, também surpreendido, balançou a cabeça, dando apoio.
— Tudo bem! Mas quero ver esta porta aberta agora! Se é que essa
pedra aí tem uma porta! — disse o sargento.
— Pode deixar! Agora, mais uma coisa: não vai ser possível tirar o
homem daqui, A condição de deixarem eu sair, com as crianças e
três do meu grupo, é ele ficar aqui com a gente dele! O resto é
entre vocês.
Houve uma ligeira troca de idéias, entre os militares, e o sargento
autorizado a dizer:
— Combinado! Eles concordaram. Vocês têm quinze minutos.
Chega?
— É o bastante.
— Então venham — disse o sargento, fazendo uma pausa e acres-
centando: — Ei, Pepe... se cuide, tá?
Os quinze minutos seguintes foram de grande tensão. Soldados e
policiais se puseram atentos, com seus armamentos, de frente para
o penedo, à espera de algo que não sabiam bem como seria. Até
que, de repente, tudo aconteceu como num filme de Ali Babá: a
montanha se abriu como uma grande garagem, e dela saiu um
pequeno ônibus preto.
Vinha devagar, com os faróis acesos apesar de ser dia claro, e trazia
uma bandeira branca presa ao pára-lama. Diogo e Mitsuko ficaram
felizes ao ver amiguinhos da creche ocupando as janelas,
acenando para eles.
— Acenem! Vão acenando! Não parem de acenar!
Quem dava essas ordens era o Senhor Caos, que vinha no fundo do
ônibus, deitado no chão, segurando uma pistola pronta para atirar.
Atrás dele, três tonéis de explosivos.
Juan Garcia deu alguns passos adiante, postando-se à frente das
armas dos soldados, temendo que um deles ficasse nervoso e
disparasse. Se isso acontecesse, ele seria a primeira vítima. Queria
também proteger seu irmão, que vinha ao volante, e abraçá-lo
assim que saltasse.
Sentiu que alguém se juntava a ele. Era Diogo. Logo em seguida,
veio também Mitsuko. E o padre Carlito também. Garcia sorriu:
— O que é isto? Uma festa?
Diogo achou graça e repetiu aquilo para Mitsuko, em sua lingua-
gem de surdos-mudos. Ela riu. Todos riam. O ônibus com as
crianças estava cada vez mais perto. Até que chegou. O padre
Carlito evitou que os soldados cercassem o veículo:
— Por favor, afastem-se! Deixem as crianças saltar! Com cuidado!
Um a um, meninos e meninas começaram a descer.
Estranhamente,
pareciam tristes e amedrontados, sem vontade de sorrir. Padre
Carlito falou com eles.
— Sejam bem-vindos! Estão entre amigos! Venham!
À medida que desciam, agrupavam-se junto à porta do ônibus, mas
não saíam do lugar. No começo, o sargento não desconfiou de
nada. Em sua enorme felicidade só tinha olhos para Pepe, que
também o olhava pela vidraça. Mas Pepe estava muito sério, firme
no banco do motorista, sem desligar o motor. Seus três
companheiros continuavam sentados nos primeiros assentos,
também não se mexiam. O que estava acontecendo?
Foi aí que o instinto policial de Juan Garcia entrou em ação.
— Saiam da frente, todos! Tirem as crianças! — gritou, enquanto
sacava a pistola do bolso e corria em direção ao ônibus.
Afastando as crianças que já haviam descido, conseguiu evitar que
alguém fosse atropelado. O ônibus deu um pulo para a frente e
arrancou velozmente. Tentando agarrar-se à porta, Garcia ficou
pendurado, mas acabou caindo, e rolou no pó. Uma ordem do
comando veio imediatamente, do meio dos militares:
— Atirem!
Alguns tiros ainda choveram sobre a traseira do ônibus.
— Não!!! — era Diogo gritando.
Lá dentro, o Senhor Caos ordenava, apertando o cano da arma
contra o corpo de Pepe:
— Trate de correr! Não pare!
E, aqui fora, Garcia berrava à tropa, tentando interromper o
tiroteio:
— Não atirem! Ainda há crianças no ônibus!
— Explosivos! Está cheio de explosivos! — ouviu-se Rossana, uma
das meninas que tinham saído, gritar.
Pararam de atirar. Viaturas militares partiram, seguindo o ônibus,
com ordens de não agir precipitadamente. Muitos pensaram que
ele iria voltar à abertura do penedo. Enganaram-se. Embora a
grande porta permanecesse aberta, o veículo seguiu em direção à
Vila Mística.
— Eu quero ir lá, padre! Eu conheço a Vila! — insistia Diogo.
— Não! Chega! Você fica aqui! Já teve sua quota de perigo! — dizia
o padre Carlito.
— Mas o Javier está lá! Ele e o Rubito! Eu quero ajudar!
— Quem é Javier? Quem é Rubito?
Diogo explicou, resumindo um pouco de sua história, quem era
quem em tudo aquilo. E voltou a pedir:
— Me deixe ir, padre. São meus amigos! O Pepe também!
Tinha sido um verdadeiro inferno: a fuga do ônibus, a perseguição,
a notícia de que lá dentro ia o Senhor Caos em pessoa,
desesperado, disposto a deixar que aquilo explodisse, Juan Garcia
em uma das viaturas do exército — tentando impedir que algum
louco atirasse —, o terror dos que ficaram, o espanto de Diogo e do
padre Carlito, o atordoamento de Mitsuko, o pânico das crianças
que conseguiram se salvar, explicando o que acontecera dentro do
ônibus, e o ardil que pegara Pepe Garcia de surpresa.
— Canalha! Nós vamos pegá-lo! — dissera o comandante da tropa,
antes de partir em seu jipe para se juntar aos soldados que tinham
ido para a Vila.
— Mas, por favor, não desmonte o cerco do penhasco — pedira o
padre. — Ainda há muitos criminosos lá dentro! Por que não
manda invadir essa ratoeira?
Padre Carlito sabia que a história ainda não terminara. Mesmo
com a notícia de que o Tirano fora capturado e que a Califórnia
podia respirar em paz, ainda havia muitos adeptos e alguns Pinos
do Senhor Caos no resto do mundo. Poderiam ainda dar trabalho.
Foi Diogo que o tranqüilizou:
— Tomando a Catedral, não tem mais perigo. Os Pinos são contro-
lados de lá!
O padre ficou olhando seu antigo aluno. Não era mais tímido. Não
era mais gago. Sem qualquer sombra de dúvida, aquela aventura
tornara Diogo um homem. Pequeno ainda, mas seu progresso tinha
sido enorme. Por isso, acabou concordando:
— Está certo, Diogo. Não vou deixar você perder esta! Vamos à
Vila, com o comandante, ajudar a pegar o Ronnie — e
acrescentou: — Mas não saia de junto de mim, ouviu bem?
A Vila Mística, que normalmente já era pequena, ficou menor
ainda, rodeada pelos enormes caminhões verdes do Exército, e as
dezenas de jipes e automóveis que a cercavam por todos os lados.
Parecia um presépio, pronto a ser esmagado pelo poder das armas.
No começo, ninguém estava disposto a usar a força. Mesmo
sabendo que o fabricante de terremotos se abrigara numa
daquelas casas, com ele estavam alguns reféns e alguns tonéis de
alto teor explosivo.
Segundo as contas, eram apenas três: Javier Benavente, Rubito
Zamora e Pepe Garcia. Os únicos que o Senhor Caos resolveu
manter vivos e usar como escudo. Os outros homens do grupo de
Pepe não tiveram essa sorte, e Ronnie os largou na estrada.
Tinham visto quando o Senhor Caos fez parar o ônibus,
estacionando-o junto à parede dos fundos da casa escolhida.
Também o viram desembarcar os reféns, e fazê-los entrar lá. O
curioso foi que, depois de tê-los deixado dentro da casa, ele próprio
voltou para o interior do ônibus.
— O que esse miserável pretende fazer ali, sozinho? — disse um
oficial. — Daqui podemos acertá-lo com a maior facilidade.
— Só que iria tudo pelos ares: Ronnie, o ônibus, a casa, os meninos
e Pepe — disse Garcia.
— E o japonês também!
— Japonês?! — só então Juan Garcia percebeu que Diogo estava ali
à seu lado.
— E! Aquela é a casa do japonês, onde eu estive com a Mitsuko. Se
você quiser, eu...
Diogo não conseguiu terminar, pois o Senhor Caos começava a
falar pelo alto-falante o que havia no ônibus, impondo condições.
Estava disposto a explodir tudo ali à sua volta se não lhe
trouxessem imediatamente um helicóptero, e o deixassem fugir.
— Com certeza levando alguém com ele! — comentou Garcia.
— E se não concordarmos? — perguntou o comandante.
— Bem, ele é louco, não é? Aposto que se mata e mata os outros
junto com ele.
— Posso dar um palpite?
Todos os homens, em volta, olharam Diogo. Atiradores de elite
tinham tomado posições em volta do ônibus e da casa, aguardando
ordens, e vinha aquele garoto dar sugestões. Antes que alguém
encontrasse o que lhe dizer, ele mesmo falou:
— Eu sei como tirar eles de lá! É só eu chegar junto daquele poço!
— Poço?!
— Só eu posso ir, senão tudo desaba. E não deixem o Senhor Caos
sair de dentro do ônibus.
— Ei, mas...
Ninguém conseguiu dizer mais nada, pois Diogo já corria por trás
das tropas, rodeando as casas, até chegar ao cercado do japonês, e
desaparecer no interior do poço.
A partir daquele momento, todos ficaram em silêncio.
Estarrecidos, só conseguiam ouvir, sem saber o que responder, a
lengalenga do Senhor Caos pelo alto-falante, repetindo várias
vezes, que nem papagaio, o seu ultimato.
Depois, viram aparecer outra vez, no buraco do poço, a cabeça de
Diogo. Depois, outra cabeça. E mais outra. Em seguida, a de um
japonês. A última foi a de Pepe Garcia.
O padre Carlito benzeu-se. Nem ele entendia aquele milagre. Só
Mitsuko e a mulher do japonês sabiam perfeitamente o que
acontecera. O japonês, ao chegar, ria de se dobrar: afinal o seu
túnel maluco tinha servido para alguma coisa.
Servira também para derrotar o Senhor Caos, que de repente
parou de falar, desconfiando de alguma coisa.
Começou a contar. Chegou a sessenta. Deu um tiro para o ar, mas
ninguém respondeu. Aí percebeu que era hora de se safar. Ligou o
motor do ônibus, engrenou marcha à ré... e desapareceu debaixo
da terra!
— O túnel! Meu túnel! — gritava o japonês. — Não falei que
desabava? Muito peso, não? Ônibus passou por cima, cai tudo.
O solo realmente se abrira, engolindo o ônibus e soterrando o
fabricante de terremotos, no meio de um tremendo barulho e
muita poeira. E, para arrematar a tragicomédia, os explosivos não
suportaram o impacto do desabamento.
Uma forte detonação, seguida de fogo e fumaça escura, foi o sinal
de que tudo, dentro do túnel, tinha ido pelos ares.
Um mês depois, em Los Angeles, o cônsul Gilberto reuniu amigos
em sua casa, para uma festinha íntima, em homenagem ao sargento
Garcia, ao padre Carlito e ao delegado O'Hara. Comemorava
assim, sem muito alarde, a derrota do lunático que pretendera
exterminar dois terços da humanidade, começando pela
Califórnia.
O'Hara então delirava. Tinha sido o primeiro a suspeitar da trama.
O irmão se orgulhava dele, e até lhe dera um relógio de presente.
Isso lhe valia como uma condecoração.
Esta, porém, não seria a única festa em que aquele grupo se reuni-
ria pelo mesmo motivo. Já tinham também passado por Lima, onde
Don Raul Benavente lhes agradecera comovido a salvação de seu
neto Javier. Outra comemoração estava prevista para Tóquio, nos
próximos meses, oferecida pelo pai de Mitsuko.
Em todos esses acontecimentos, naturalmente, o grande
homenageado foi Diogo. Tinha sido ele o verdadeiro herói de toda
a aventura. Mas, apesar de todos os abraços e presentes que
recebeu, duas coisas o emocionaram mais do que todas as outras.
Uma, a alegria de ter recebido o convite para passar férias, no
próximo ano, na casa de Mitsuko. A outra — realmente um passo
decisivo —, o de ter finalmente ganho um lar e uma família. Com a
aprovação e a bênção do padre Carlito, ele ia ser adotado pelo
sargento Garcia.
Tudo isto foi muito comentado na festa do cônsul Gilberto, onde se
falava também da demolição da Catedral do Chapadão, depois de
invadida pelo exército brasileiro, sendo presos todos os seguidores
de Ronnie Eternidade. Juan Garcia agradeceu ao cônsul sua
interferência no caso de Pepe, cujo envolvimento com a gangue foi
encarado com benevolência pela Justiça brasileira, devido à sua
regeneração.
A reunião foi curta, pois o cônsul teria que assistir à entrega do
Oscar. Todos já estavam se retirando, muito felizes, quando veio o
tremor.
Outro terremoto?!
Todos, imediatamente, lembraram-se do Senhor Caos e dos seus
Pinos ameaçadores. Eles, porém, não existiam mais. Todos tinham
sido destruídos, onde quer que fossem encontrados. A começar
pelo Tirano, em pleno Oceano Pacífico.
Aquele tinha sido um tremor de baixa intensidade e de curta
duração. Pouca coisa se quebrou. Mesmo assim, o padre Carlito
benzeu-se, e Juan Garcia apertou mais forte a mão de Diogo.
AGORA SIM-VOCÊ SABE O QUE É TERREMOTO?
UM RECADO DO AUTOR
Também chamados de abalos sísmicos, ou tremores de terra, os
terremotos são deslocamentos bruscos da crosta terrestre, quando
as partes mais sólidas de um terreno se movimentam umas em
direção às outras. Uma das causas desse fenômeno é o que se chama
movimentação tectônica, que ocorre nas profundezas da terra, ao
longo de falhas nas rochas do subsolo. Isso acontece porque as
placas lá existentes se expandem e mudam de lugar, procurando
acomodar-se, com isso havendo choques terríveis, o que faz com
que os blocos mais finos afundem sob os mais espessos. Se toda esta
movimentação é rápida demais, ela gera uma grande quantidade
de energia capaz de se transmitir a longas distâncias, através de
vibrações internas da crosta, o que pode modificar repentina-
mente o terreno da superfície. Este tipo de terremoto é o mais
freqüente e de maior intensidade. Caso ocorra em regiões cobertas
por oceanos, chama-se maremoto, e provoca ondas de vários
metros de altura.
Nas regiões onde há vulcões em atividade, os terremotos podem
ser causados também pelo deslocamento de magma, o material
fluido incandescente expelido das profundezas. Estes terremotos,
no entanto, se alastram apenas por alguns quilômetros.
Há, também, tremores causados por desabamentos de grutas, mas
são de pequena importância.
Os terremotos se propagam na crosta terrestre através de dois
tipos de ondas: as longitudinais, cuja velocidade é de 13 km por
segundo (780 km por minuto, ou 46.800 km por hora), ou as
transversais, de 7 km por segundo (420 km por minuto ou 25.200
km por hora). Quando as vibrações são fracas (microssismos), o ser
humano não nota coisa alguma, mas os sismógrafos sim. Dois ou
mais sismógrafos, em pontos diferentes, podem determinar, até
com dias de antecedência, o epicentro do tremor (local de onde as
ondas se alastram, e onde as vibrações são mais intensas) e a
velocidade e intensidade das ondas.
Há duas grandes faixas de ocorrência de terremotos circundando o
globo terrestre. A primeira, vertical, é chamada de cinturão do
fogo. Dirige-se do norte para o sul, abarcando a costa oeste da
América (o Chile, o Peru, a Califórnia, o Alasca, e depois o Japão, a
ilha Formosa e a Austrália). A segunda faixa, horizontal, vai na
direção contrária à anterior, indo do Mediterrâneo até a Ásia
meridional, no sentido da linha do equador (por baixo de Portugal,
Espanha, sul da Itália, Bálcãs, Armênia, norte da índia, Birmânia e
arquipélago malaio).
Mesmo os terremotos de curta duração fazem estragos — quando
não provocam catástrofes —, principalmente nas áreas habitadas,
abrindo fendas no solo, como ocorre em especial nos terrenos
ainda não consolidados. Nas regiões expostas a terremotos, as
construções costumam prever uma margem de deslocamento
(segundo o movimento do solo) para evitar desabamentos.
Incluem-se entre os terremotos mais violentos da História os de
Lisboa (1755), de São Francisco, na Califórnia (1906), o de
Messina, na Itália (1908), que foi um dos mais terríveis e matou
mais de 100 mil pessoas, e o do Japão (1933). Podemos citar
também os abalos no solo da Venezuela, em 1812, que arrasaram a
capital Caracas, vitimando 10 mil habitantes. Ou os de Alepo, na
Turquia, em 1822, onde morreram 20 mil pessoas. Ou os de
Granada e Almeria, na Espanha, em 1829, ou os do Haiti, em 1829,
roubando milhares de vidas. Também a capital do México foi
terrivelmente atingida em 1985.
Ao nos lembrarmos que o interior da terra é matéria em fusão que,
ao resfriar, provoca o encolhimento e enrugamento da crosta, nos
conscientizamos de que o subsolo terrestre não é estável, e que os
enrugamentos fazem as rochas se fenderem e os edifícios
desabarem. No interior dos vulcões, atuam forças gigantescas que
determinam catástrofes. A água do mar se infiltra constantemente
na crosta terrestre, transformando o calor interno em vapor, cuja
pressão pode ser tão grande a ponto de produzir uma explosão,
abrindo-se as rochas e expelindo lava derretida, além de provocar
um terremoto.
Agora você sabe tanto quanto Diogo, não?
Wilson Rocha
O Fabricante de Terremotos - Wilson Rocha links ao final da mensagem digitalização - Vitório formatação e revisão - Lucia Garcia Sinopse: O mundo está abalado: terremotos violentos tem atingido várias partes do planeta epara complicar ainda mais a situação, crianças tem sido sequestradas nessas regiões. Mera coincidência? E o que você vai descobrir acompanhando as aventuras de Diogo, um garoto brasileiro que desembarca na destruída Los Angeles e se vê envolvido com uma organização internacional cujos planos diabólicos podem colocar a segurança da Terra em perigo. | |||
Abraços fraternos!
Bezerra
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PENSE NISSO! ASSIM CONSTRUIREMOS UM MUNDO MELHOR."
JOSÉ IDEAL
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