terça-feira, 30 de dezembro de 2014

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Nadja do Couto Vale

Reflexões à Luz do Espiritismo
2a Edição, revista
2010
ICEB Edições

Todos os direitos de reprodução, cópia, comunicação ao público e exploração econômica desta obra estão reservados única e exclusivamente para o Instituto de Cultura
Espírita do Brasil - ICEB. Proibida a reprodução parcial ou total da mesma, através de qualquer forma, meio ou processo eletrônico, digital, fotocópia, microfilme,
internet, cd -rom, sem a prévia e expressa autorização da Editora, nos termos da lei 9610/98 que regulamenta os direitos de autor e conexos.

A todos os Amigos que, ao longo dos anos, em ambos os planos da vida, me
ajudaram, me ajudam e ainda me ajudarão a chegar ao Grande Destino de
Luz,

A meu pai, Nildston do Couto Valle, in memoriam,

A minha mãe, Nadir Guimarães Valle,

meus amantíssimos Educadores, pela inestimável bênção de ser filha,

A Fabiola e Isabella do Valle Zonno, modelos de amigas e sobrinhas,

A Fabiola do Valle Zonno, pelo projeto da capa, que inclui pintura de sua autoria,

Ao Instituto de Cultura Espírita do Brasil, Casa de Deolindo Amorim,
pela oportunidade do convívio fecundo nessa Atenas do Conhecimento à Luz
do Espiritismo,

A César Reis, Mana Amélia Serrano e Ronaldo Serrano, que conduzem no
plano material o nosso ICEB,

A Fátima Moura, pelo carinho e companheirismo na digitalização das alterações para esta edição,

Por tudo, e sempre, minha gratidão profunda.

Sumário

Prefácio. .09
Introdução 11
Capítulo 1 - Um Olhar sobre Kardec 13
Capítulo 2 - O Espírito como Realidade: do Mítico ao Científico .21
Capítulo 3 - Entendei-vos quanto às Palavras 59
Capítulo 4 - Liberdade e (In)Tolerância Religiosa 77
Capítulo 5-Perdidos no Tempo e no Espaço? 91
Capítulo 6 - Mediunidade e a Ética do Dar 103
Capítulo 7 - Da Satisfação das Necessidades à Felicidade. .111
Capítulo 8 - Religião, Multiculturalismo e Simbiosofia 123
Capítulo 9-Do Homem Velho ao Homem Novo 151
Capítulo 10 - Sinais dos Tempos e o Novo Religare 167

PREFÁCIO

Nós, espíritas, somos econômicos em elogios. No entanto, é difícil conter o entusiasmo ao ler este livro. Ele é, ao mesmo tempo, preciso e instigante, denso e
leve, claro e sutil, esperançoso e crítico, profundo e simples. É um livro que desconstrói e constrói, acenae orienta, ancora e é leme, com realismo e otimismo.

Que nos perdoe nossa querida amiga e irmã Nadja, em sua modéstia e humildade, mas o ICEB saúda o Reflexões à Luz do Espiritismo como uma fusão de bons momentos dignos
de Herculano Pires, Hermínio Miranda, Jorge Andréa e Carlos Pastorino. Quando terminamos a leitura, fica óbvio que o Espiritismo é uma ciência que é uma filosofia
é uma religião.

A Casa de Deolindo Amorim está feliz com este lançamento de sua expositora que fala como pensa e escreve tão bem quanto fala, e reafirma o encontro de sua mente
poderosa com o seu coração magnânimo. Este livro é uma celebração. Refletir com ele é um privilégio.

Nosso respeito e nossa gratidão a Nadja do Couto Valle.

César Soares dos Reis
Diretor Presidente do ICEB - Instituto de Cultura Espiritado Brasil

INTRODUÇÃO

Esta pequena coletânea de textos espelha alguns recortes da realidade que o mundo atual enfrenta, quando são chegados os tempos, tal como anunciou Jesus.
A perplexidade humana é imensa, perante os cataclismos físicos, sociais e morais com que se defronta a Humanidade e diante das incessantes inovações com que a tecnologia
avança, prenunciando um mundo que se renova praticamente a cada ano.

À luz do Espiritismo, todas as situações e manifestações do homem na Terra encontram a explicação justa e clara no pano de fundo das claridades espirituais da Doutrina
codificada pelo iluminado Allan Kardec Como estudante do Espiritismo, buscamos modestamente trazer essa luz por sobre alguns dos temas da atualidade, e partilhar
essas reflexões singelas com nossos companheiros de ideal espírita, com os simpatizantes da Doutrina Espírita, bem como com todos que se interessam pelo descortino
de explicações para os movimentos da vida em suas várias instâncias.

Três dos artigos que aqui reunimos foram publicados em Reformador', Órgão da Federação Espírita Brasileira, com a
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única alteração de separação por tópicos apenas para manter uma certa uniformização na apresentação formal dos textos. Outros resultam de participação em Congressos
nacionais e internacionais, e outros ainda atendem à solicitação do ICEB de registrarmos algumas idéias que desenvolvemos em palestras na Casa de Deolindo Amorim.

Sobre o conteúdo deste pequeno volume não repousa qualquer mérito senão o de buscar divulgar, ainda que palidamente, a riqueza da contribuição do Espiritismo para
a análise dos quadros da vida e das conquistas do pensamento, gerando esperanças e estímulos para esforços mais avançados.

Reconhecendo que nos faltam os valores espirituais e culturais necessários à tarefa em sua expressão mais alta, rogamos aos companheiros que nos honrarem com a leitura
destas páginas, que as aceitem como preito de fraternidade e de alegria na comunhão em torno dos valores eternos do Espírito, pelo que nosso pequenino coração agradece
e roga a Deus e a Jesus as bênçãos abundantes da Paz, do Amor e da Luz por sobre todos.

Assim seja.

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Capítulo 1

UM OLHAR SOBRE KARDEC

I. Todo mês e todo dia celebramos Kardec quando estudamos a Doutrina Espírita, quando alargamos o descortino das compreensões mais dilatadas sobre os "comos" e os
"porquês", os motivos e consequências da vida e da morte, suas leis e fatos, forças e fenômenos, bem como os da natureza e dos sentimentos humanos; sobre o reconhecimento
da Paternidade Divina e da comunhão universal de todos os seres; sobre a mediunidade. E quando praticamos a mediunidade - celebramos Kardec!

E o fazemos do modo como certamente mais agrada ao mestre de Lyon, sem alardes nem fanfarras, com disciplina e rigor metodológico, sinceridade de propósitos e desejo
de servir e progredir, boa vontade e o cuidado de preservar a impessoalidade e a pureza doutrinária do Espiritismo.

II. A Tarefa

No entanto, devido ao zelo na busca dessa preservação, frequentemente Kardec é referido como sendo "apenas" o Codificador, "só" o Codificador. Mas um breve momento
de reflexão nos informa que codificar é colocar sob um código, dispor, arrumar, grupar ideias afins; formatar, disciplinar ideias e procedimentos visando constituir
um corpus teórico com a necessária garantia de coerência interna e externa. Isto será pouco?
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A extensão e a natureza do material a ser codificado podem apresentar desafios adicionais à tarefa. No caso de Kardec, o material chegou-lhe de várias localidades
do planeta, em muitos cadernos com apontamentos mediúnicos. Diante desse desafio, sua habilidade no trato de seis sistemas linguísticos, e também a sua capacidade
de organização lógica do pensamento e de identificar a essência de cada comunicação e de cada assunto, certamente muito o ajudaram a grupar aqueles apontamentos
em grandes blocos de ideias e princípios.

Valeram-lhe também, por certo, sua formação erudita e vasta cultura geral, seu bem desenvolvido raciocínio filosófico (que é diferente de conhecer informações sobre
história da filosofia) e a capacidade inegável, encontrada em sua mais alta expressão entre os grandes professores como ele: a de perguntar. Mas de perguntar? Sim,
a de perguntar. Muitas vezes, em Ciência e principalmente em Filosofia, isto é particularmente verdadeiro: mais vale uma boa pergunta do que uma boa resposta. Ê
por isto que podemos ter a segurança inabalável de poder dizer que todas as nossas perguntas estão respondidas pelo Espiritismo. Porque Kardec foi capaz de fazer
as perguntas certas, que esgotam todos os assuntos, que antecipam todas as conquistas nos vários campos do conhecimento e atuação do homem, que atendem à saudável
curiosidade daquele que, em qualquer idade cronológica ou espiritual, quer aprender, esgotando os assuntos em suas nuanças e emprestando ao cotidiano humano na Terra
a importância da grandeza das Leis Divinas, alçando-o, portanto, ao nível das importâncias transcendentais.

E, além disso, Kardec aliou a esse tipo superior de pergunta, que necessariamente não tem que vir sob forma
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interrogativa, a precisão da organização lógico-dedutiva, sequência e dosagem no trato do conteúdo que tinha em mãos. Isto tudo sem violentar o próprio universo
de cada área do conhecimento humano e preservando a clareza didática imprescindível a qualquer educador ou obra que pretenda ensinar.

Tudo isto certamente não é pouco e já o torna o grande Codificador.

III. O Método

Mas há ainda uma outra característica extraordinária do grande Mestre de Lyon: o Método. Buscando analisá-lo, precisamos considerar o clima da segunda metade do
século XIX, em que se respiravam grandes inovações nos vários campos do conhecimento humano: Biologia, Física, com destaque para a área da energia, Química, Astronomia,
Matemática, Estatística, etc.

IV. Angulações na Abordagem ao Conhecimento

Por falar em conhecimento, há que se lembrar a discussão, pela Filosofia, sobre a origem, a natureza e a extensão do conhecimento ou das possibilidades de conhecimento.

4.1A origem do conhecimento está nos sentidos, na experiência, segundo o Empirismo, ou na razão, para o Racionalismo, enquanto que o Criticismo de Kant, para o qual
convergem as duas vertentes anteriores, assume uma posição relativista quanto ao conhecimento: aceita o valor e a infalibilidade do conhecimento humano dentro dos
limites da experiência, mas considera-o inadequado para transcender esses limites, que são o domínio da razão prática, com os imperativos categóricos a fundamentar
esse campo que é o da moral.
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4.2 A natureza do conhecimento é definida pelo tipo de relação que se pode estabelecer com o que se quer conhecer, como exemplificam as chamadas ciências humanas
e ciências físicas.

4.3 Aextensão do conhecimento diz respeito à possibilidade de podermos atingir o absoluto e a natureza íntima das coisas, inclusive Deus e a alma, como estatui o
chamado dogmatismo de Platão e Hegel; ou se nosso conhecimento nos limita ao mundo dos fenômenos, como postulam o agnosticismo e o positivismo de Kant e Comte, não
nos autorizando, portanto, a nos pronunciarmos sobre os problemas fundamentais da natureza da matéria, da essência e da imortalidade da alma humana, e da existência
de Deus.

Mas, na esteira do tempo, desgastaram-se a vertente do Empirismo de John Locke, datado do século XVII, que postula que todo conhecimento provém dos sentidos, na
linha aristotélica, e que possibilitou o Positivismo de Comte, e a vertente do Racionalismo, com destaque para Descartes, que postula que todo conhecimento provém
da razão. Esgotadas as possibilidades investigatórias das duas correntes, de uma certa forma estavam paralisadas a Filosofia e a Ciência na Terra, até que o pensamento
de Kant veio resolver a questão, conciliando criativamente esses dois caminhos.

Quanto à natureza do conhecimento, importa considerar uma espécie de "personalidade" de cada área de investigação, mas, no caso do século XIX, as chamadas ciências
humanas foram desenvolvidas, de um modo geral, sob a ótica da psicologia social de Auguste Comte, que propunha o desenvolvimento delas regido pelo vezo ou angulação
das ciências físicas, aplicando as leis destas àquelas, observados os experimentos de laboratório e de mensuração precisa.
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Quanto à extensão do conhecimento, no universo intelectual dominado pelo Empirismo e pelo Positivismo, o limite era o da constatação no laboratório, ficando, portanto,
fora de suas cogitações o que não pudesse ser susceptível de análise pelos equipamentos e procedimentos laboratoriais. Nesse âmbito do incognoscível estariam a existência
e a natureza de Deus, a natureza e a imortalidade da alma e a natureza da matéria. Não é a esfera do ateísmo, que nega Deus, mas a do agnosticismo, que admite sua
impossibilidade de penetrar o conhecimento de tais coisas, cuja natureza é diversa da de seus objetos de conhecimento do mundo físico. Contrapõe-se ao dogmatismo,
com destaque para Platão, que postula que é possível conhecer a essência das coisas, inclusive Deus e a alma.

Todo o ambiente no qual Kardec estava mergulhado era de cunho, influência e domínio positivista, tendo sido ele próprio formado nesse ambiente que lhe forjara o
rigor científico; mas este, na intimidade do Prof. Rivail, foi conciliado com as inspirações humanas do universo educacional de Pestalozzi.

V. O Desafio e a Solução

Kardec está diante de um grande dilema. Os fenômenos de mediunidade ostensiva, como os raps, mesas girantes e cestas falantes, do ponto de vista de sua origem, inscrevemse
no universo de investigação do Empirismo e do Positivismo. Mas sua natureza e extensão inscrevem-nos nas ciências do campo humano, do ponto de vista dos médiuns
e, simultaneamente, na esfera do incognoscível - o campo do Espírito, portanto, transcendental.

O Prof. Rivail resolveu competente e consistentemente a questão, para cuja solução foram indispensáveis a inquestionável
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ousadia intelectual, a coragem da abordagem dialética, o inquebrantável caráter conciliador, a inabalável confiança na proposta de trabalho e no poder da razão -
inaugurando o - apenas aparente - paradoxo da metodologia do que poderíamos chamar de "positivismo transcendental" ou "positivismo metafísico", de que é exemplo
máximo O Livro dos Médiuns.

Com isto, o Prof. Rivail resolveu também as questões historicamente exclusivas da esfera da fé, integrantes de correntes teológicas desgastadas e que não mais se
sustentavam - e assim estatuiu intelectualmente a fé raciocinada. Ou seja, codificou na linguagem intelectual da filosofia e da ciência o recado espiritual de conciliação,
de que tudo está em tudo. Pôs o constructo teórico do Empirismo e do Positivismo a serviço da metafísica, conciliando o que era tido como inconciliável. Uma tarefa
de gigante.

Por isso não é de se estranhar que a formatação, a estrutura e o arcabouço formal da Codificação da Doutrina Espírita sejam positivistas com sua sequência lógico-objetiva,
perguntas encadeadas, esquemas, classificações, hierarquizações, exemplificação e correlação com a chamada realidade objetiva - enquanto que seu conteúdo é predominantemente
de natureza transcendental, metafísica, como a existência de Deus e do Espírito, a imortalidade da alma, e a comunicabilidade entre os planos da vida.

Mas a coragem intelectual do Prof. Rivail/Kardec não para aí. Ele mobilizou os vastos recursos que como Espírito armazenou ao longo de encarnações, que ele certamente
aproveitou como verdadeiras jóias, para ser também uma espécie de profeta, codificando as antecipações veladas ou
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não que os Orientadores Espirituais da Humanidade nos traziam. Em suas Notas preciosas, que ele acrescentou valorosamente às instruções desses Benfeitores Espirituais,
Kardec sustentou, com linhas argumentativas de natureza filosófica e científica, todas as predições que o Espiritismo oferecia aos homens e que a ciência nada mais
tem feito senão corroborar, confirmar.

Deste ponto de vista, o Prof. RivailKardec torna-se o profeta ou co-profeta na antecipação das conquistas que hoje se vão estruturando, corporificando diante de
nós, nos vários campos de atuação da humanidade.

Outros aspectos grandiosos da marca inconfundível do processo de Codificação da Doutrina Espírita podem também, e ainda, ser levantados e alinhados. Mas o que aqui
dissemos não basta para que ele se erga como O Codificador, esteio encarnado para a consubstanciação da promessa de Jesus à Humanidade?
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Capítulo 2

O ESPÍRITO COMO REALIDADE: DO MÍTICO AO CIENTÍFICO

I. Desde tempos recuados, registros indiciam a crença em um retorno, e revelam uma intuição da realidade metafísica como uma espécie de nostalgia do infinito, tornada
manifesta na cosmovisão dos povos primitivos, de índios em toda parte, egípcios, hindus, gregos, essênios, dentre outros.

Tais registros dão conta do Espírito como algo que transcende a chamada realidade objetiva, vale dizer, o corpo físico, a morte. Assim o conceito de imortalidade
faz-se presente na cosmovisão de todos os povos, revelando uma coisa em comum, uma essência, um quid, ou essa realidade suprafísica e independente que transcende
a personalidade no mundo material.

II. A intuição da imortalidade

Os homens da época pré-histórica, chamada megalítica, sepultavam os mortos colocando-lhes nos túmulos armas e adornos, o que induz à conclusão de que tais populações
primitivas tinham a intuição de uma existência segunda, sucessiva à terrena, patenteando, portanto, a intuição da imortalidade, ou da realidade espiritual, ou seja,
a de que o
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homem não morre de todo. Em toda parte, inclusive nas Américas, e particularmente no Brasil, os índios enterram seus mortos observando certas condições que levam
à mesma conclusão.

Ao longo dos tempos, e mesmo nos dias atuais, as tribos mais selvagens crêem em uma certa imortalidade do ser pensante, como é o caso de comunidades mencionadas
no século XIX por Ferdinando Denis, em seu Universo pitoresco, como as tribos da Oceania, da América e da África, e ainda outras tantas citadas por Taplin, em seu
Folklore manners ofAustralian aborígenes. Narrativas de viajantes através dos tempos têm atestado a sobrevivência da alma como crença de tribos primitivas.

III. A consciência mítica

Que faz com que todas as criaturas, em todas as latitudes e em todos os tempos, tenham revelado essa intuição de algo sobrevivente após a morte? Se a consciência
filosófica tiver humildade para reconhecer a possibilidade de se estabelecer uma leitura, em continuidade, do progresso do pensamento humano, reconhecerá a existência
de uma consciência mítica, e mais do que isso, reconhecerá que dela nasceu, e dela se separou lentamente. Tal consciência não é desvalorizada de inteligência, atestando,
antes, uma posição permanente do pensamento humano em geral. Essa consciência arcaica primitiva corresponde, na verdade, a um primeiro estabelecimento do homem na
Terra.

Essa proposta, de Georges Gusdorf, em Mito e metafísica, em nada faz eco à de Auguste Comte sobre a lei dos três estados, segundo a qual a humanidade evoluiria de
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maneira contínua da idade teológica - em que recorreria a seres transcendentes e divinos para explicar os fenômenos da experiência - à idade metafísica, em que recorre
a entidades racionais, abstratas, até alçar-se à idade positiva, caracterizada pela subordinação da imaginação e da argumentação à observação, na qual se pretende
entender os fatos unicamente em sua realidade empírica, e em suas relações científicas.

Na verdade, nem Comte pode negar, e não chegou a negar mesmo, os registros de tribos primitivas, indicativos da intuição da sobrevivência do Espírito ao corpo físico,
que dizem respeito ao tempo dos mitos, pré-história da filosofia, em que reinam absolutos, sem concorrência com o chamado pensamento racional.

O primitivo tem uma leitura única, indissociada, das imagens do mundo: ele lê a imagem "real", "objetiva", junto com a "mítica". Assim, o mito é a estrutura do conhecimento
que o homem adquire de si mesmo e de seu entorno: na verdade o seu primeiro conhecimento. Desse modo, conclui Gusdorf, a consciência humana afirma-se, desde sua
origem, como estrutura do universo.

IV. O mito

De Rousseau e Diderot a D. H. Lawrence e Melville, o "bom selvagem" sonha com uma espécie de retorno ao seio maternal do universo, numa espécie de nostalgia de uma
integridade perdida, guardada pelo mito, e que traz em seu bojo o que Gusdorf chama de "intenção restitutiva". O mito tem então a função de retorno à ordem, de (re)integração,
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Religião, o que está presente no mito pode ser expressão do sentido e vivido em condição pré-natal, como postulam Sócrates e Platão e, portanto, essa inteligibilidade
e formulação podem muito bem emergir na vida material como narrativa pós-natal, para dar roupagem à nostalgia de infinito e à integridade perdida, entrevistas nas
estruturas míticas, que têm validez permanente, não histórica, mas ontológica.

A ontologia primitiva apresenta, pois, uma estrutura platônica, pois o mito é um fato que se deve repetir, segundo a observação de Van der Leeuw, que está em consonância
com o princípio da metafísica primitiva, tal como formulado por Mircea Eliade, no sentido de que um objeto ou um ato tornase real na medida em que ele imita ou repete
um arquétipo. A idéia de repetição, enunciada por Eliade como "eterno retorno", não implica, como a expressão e o conceito gregos evocam, a ideia de tempo, porque
o pensamento primitivo não tem consciência do tempo. O mito não perde sua modalidade existencial justamente porque se passa fora do tempo, ou seja, em um tempo transtemporal,
ou na extensão total do tempo.

Na última fase do pensamento de Schelling, caracterizada pela integração do problema do pensamento religioso em sua filosofia, a mitologia é considerada um sistema
simbólico de ideias, com sua própria estrutura apriorística, que, desvendada, revelaria como os mitos constituem formas de expressão da volta ao absoluto divino.

Para Schelling, a mitologia precede a revelação de um Deus único, o que pode reforçar a ideia de que o homem primitivo efetivamente intuía, ou "conhecia" a realidade
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da instância espiritual que lhe constituía o ser, pois Schelling é crítico decisivo da tese alegorista dos mitos, por esta não levar em conta a anterioridade do
elemento
divino da mitologia, que não é alegórica, mas tautegórica. Para ela, os deuses são seres que existem realmente, que não são nem significam uma outra coisa, mas significam
somente aquilo que eles são. Para o filósofo, o essencial do mito é o seu sentido direto, pois as representações mitológicas não foram nem inventadas, nem livremente
aceitas, e, como produtos de um processo independente do pensamento e da vontade, elas eram, para a consciência que lhes fazia o registro, de uma realidade incontestável
e irrefutável. E no que diz respeito à realidade imortal do Espírito, a ideia encontra-se no seio de todos os povos.

V. Ritos e crença no Espírito imortal

Mesmo em civilizações consideradas adiantadas em tempos mais recuados, como as do Egito, China e índia, ou principalmente nessas, encontram-se registros e ritos
indicativos da crença na realidade do Espírito imortal. Mas a despeito de avançadas, a rigor, tecnicamente, não tinham entrado na história. Como observa Gusdorf,
a história, dimensão antropológica, corresponde a uma nova tomada de consciência da experiência da qual a escrita, assim como a cronologia, não são um sinal suficiente.
Segundo ele, até quase nossos dias, a China e a índia, que há tanto tempo conheciam a escrita, não haviam entrado na história no sentido antropológico do termo.
É necessário mais do que a invenção de uma ou outra técnica particular, a escrita ou a cronologia, para passar de uma consciência ontológica para uma consciência
de estrutura histórica: e esta tem-se revelado, em essência, a
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dificuldade de se afirmar a crença no Espírito imortal.

Talvez em nenhum povo o sentimento da sobrevivência tenha sido tão vivo quanto entre os chineses, em cujo seio pulsa o culto aos Espíritos desde a mais remota antiguidade.
Prestavam honras e cultos aos Espíritos e às almas dos antepassados, crenças respeitadas por Confúcio, que certo dia admirou máximas escritas um e meio milênio antes,
sobre uma estátua de ouro, no Templo da Luz, sendo uma delas a seguinte, citada por Gabriel Delanne: "Falando ou agindo, não penses, embora te aches só, que não
és visto, nem ouvido: os Espíritos são testemunhas de tudo."3 No Celeste Império dos chineses antigos, os céus são povoados, como a Terra, não somente pelos gênios,
mas também pelas almas dos homens que viveram no mundo material.

Na vetusta índia, os textos mais antigos de que se dispõe, os hinos do Rigveda, atestam, três e meio milênios atrás, que os homens que viviam no Sapta Sindhu, ou
país dos sete rios, tinham intuições claras sobre o além da morte. E depois de muitos séculos, os sacerdotes, com base provavelmente em visões em sonho, e em aparições
naturais, codificaram a vida futura, sendo o céu védico a morada definitiva dos deuses imortais, a sede da luz eterna, a mansão de constante alegria, a origem e
base de tudo o que é, morada divina habitável pelo ser humano.

Na antiga Pérsia, atual Irã, a doutrina do grande legislador Zoroastro concebe emanações abaixo do Ser Incriado, gênios celestes, e também uma série de Espíritos,
de "gênios",
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de ferúers, pelos quais o homem pode crer que tem em si algo de divino, cuja função seria insuflar o pensamento do bem no cérebro do homem e vigiar, guardar essa
criatura amada do deus. Assim, a Zoroastro pode ser atribuída a paternidade da concepção do que hoje se chama o "eu" superior, a consciência subliminal, e da teoria
dos anjos guardiães.

Já no Egito, nada conseguiu destruir ou abalar a fé em uma segunda vida do homem, ideia que atravessou, intacta e imutável, os tempos e as civilizações egípcias,
sendo que a mais antiga crença data de cinco milênios a.C, e considera a morte como uma simples suspensão da vida física. Por isso a presença de tantos ritos pela
ocasião da morte.

É sabido de há muito que o mito se distingue do simples relato ou da lenda pelo fato de estar ligado a uma ação religiosa, a um rito, que fundamentalmente é o mito
em curso. Gestos, palavras, comportamentos rituais não são, portanto, meros automatismos da fé, mas enquanto instrumentos do rito visam, em si mesmos, suscitar o
mito.

A própria ação ritual realiza, pois, no imediato, uma transcendência vivida, facultando ao indivíduo, em seu cotidiano dessacralizado, o acesso a uma sobrerrealidade
que transfigura tanto a ele mesmo quanto ao quadro de sua vida. Assim, o rito passa a ter o sentido de uma ação essencial e primordial, pela referência que institui
do profano ao sagrado.

VI. O sentido do sagrado

No entanto, diante desse desmembramento, ou ruptura, a consciência mítica realiza incessantemente a unidade.
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Desse modo, como observa Gusdorf, o sagrado seria uma reserva de significação, em vez de ser um conteúdo puro ou uma forma pura, e desse ponto de vista é a
matriz de possíveis sentidos do universo. Ele assinala ainda que o sentido do sagrado aparece, assim, na origem mesma da metafísica.

Os egípcios, ritualizando a transcendência da morte, ao promoverem, para seus mortos, a travessia do rio com todos os pertences e elementos que lhes atendiam as
necessidades durante a vida material, evidenciam que o sentido do sagrado acaba perpetuando, em sua afirmação religiosa ou parareligiosa, o anseio de satisfação
plena de todos os valores humanos. E revelam ainda o sentido de unidade que a consciência mítica realiza incessantemente, tendo instituído o rio, como linguagem,
na função de hífen entre os dois mundos, material e espiritual, ou entre os dois planos da vida.

As cerimônias fúnebres realçam o fato de que o mundo mítico é imortal, o que justifica os objetos guardados, ou remetidos, junto com os mortos. A arte entra então,
ainda que na condição de elemento de ordem material, como instrumento ilustrativo da imortalidade, atendendo à urgência de formas imperecíveis. Assim, a arte, bem
como certos rituais de enviar tudo com o cadáver, evidenciam enfrentamento da experiência da morte, assegurando o triunfo do princípio ontológico da conservação
ou da imortalidade.
As cerimônias fúnebres informam ainda que, por trás das barreiras do sagrado, abriga-se o mundo dos mitos, dos espíritos, dos poderes e das onipotências metafísicas,
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e objetos de crença. É igualmente no sagrado, para os fins do rito, que se inscrevem o tempo sagrado e o espaço sagrado.

O mito, em sendo, ou exatamente por ser, objeto de fé, move-se em um tempo original, simultaneamente eterno e atual, ou seja, assume a feição temporal-transtemporal.
O simbolismo do mito faz o homem triunfar da morte.

Já o espaço mítico opõe-se ao espaço vazio e formal dentro do qual se situam nosso pensamento e nossa atividade, no qual colocamos coisas, objetos, pessoas. O espaço
do primitivo não é apenas um continente de coisas, mas um lugar absoluto, não exclusivamente racional, funcional. É também o espaço dos espíritos na vida futura,
de certa forma antecipando, guardadas as proporções, a Platão.

Em sua La mentalité primitive, Lévy-Brühl, citado por Gusdorf4, assinala que "as regiões do espaço não são concebidas, nem propriamente representadas, mas antes
sentidas em conjuntos complexos, onde cada uma delas é inseparável daquilo que ocupa. A participação entre o grupo social e a região, que é a sua, não se estende
somente ao solo e à caça que nele vive: todos os poderes místicos, espíritos, forças mais ou menos claramente imaginadas que nela se situam, têm a mesma relação
íntima com o grupo."

VII. O Espírito como realidade

Os egípcios acreditavam que, depois da imobilidade cadavérica, o corpo retomava o "sopro" e ia habitar muito longe, a oeste deste mundo. Mas antes mesmo das primeiras
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dinastias, passou a vigorar a ideia de que apenas uma parte do homem ia viver uma segunda vida, em um corpo diferente, ainda que proveniente do primeiro, porém mais
leve, menos material, que eles chamavam de ka, o duplo, ao qual se prestava o culto dos mortos entre 5004 e 3064 a.C Ao longo do tempo, a imortalidade do corpo foi
substituída pela imortalidade do Espírito, com a noção de que o corpo e seu duplo permaneciam para sempre no túmulo, enquanto que a almainteligência, servindo de
"corpo" ou invólucro à essência luminosa (ba ou baí) - que compunha a pessoa humana, junto com o corpo físico, com o ka, e com a substância inteligente ou khou -
ia viver com os deuses a segunda vida.

Essa idéia do ka é encontrada também no pensamento hindu, segundo o qual, depois da morte, a alma é revestida de um novo corpo, luminosa névoa resplandecente, de
forma brilhante, que é transportada à morada divina. Delanne lembra a citação que G Pauthier faz de Confúcio, a esse propósito: "Como são vastas e profundas as faculdades
dos KoüciChin (Espíritos diversos)! A gente procura percebê-los e não os vê; procura ouvi-los e não os ouve. Identificados com a substância dos seres, não podem
ser dela separados. Estão por toda parte, acima de nós, à nossa esquerda, à nossa direita; cercam-nos de todos os lados. Entretanto, por mais sutis e imperceptíveis
que sejam, eles se manifestam pelas formas corpóreas dos seres; sendo real, verdadeira, a essência deles não pode deixar de manifestar-se sob uma forma qualquer."5

O corpo fluídico do Princípio pensante, Nephesh para
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os cabalistas, ou intérpretes do esoterismo judeu, só foi incorporado ao pensamento dos hebreus, na Judeia, ao tempo de Moisés, ao contato daquele povo com o cativeiro
de Babilônia, que então assimilou, de seus vencedores, a ideia da imortalidade e a da verdadeira composição do homem.

Não é de se estranhar que em Homero seja frequente os moribundos profetizarem, e a alma de Pátroclo visitar Aquiles em sua tenda, porque também os gregos, desde
a mais alta antiguidade, estiveram de posse da verdade sobre o mundo espiritual. Para eles, a generalidade dos humanos era guiada por Espíritos comuns, e os doutos
por Espíritos superiores. Thales ensinava, seis e meio séculos antes de nossa era, que o Universo era povoado de demônios e de gênios, testemunhas secretas de nossas
ações, mesmo dos nossos pensamentos, sendo também nossos guias espirituais. Ideia circulante também na China. Epimênides, contemporâneo de Sólon, declarava-se guiado
por Espíritos e frequentemente recebia inspirações divinas.

Sócrates, e principalmente Platão, povoaram de Espíritos a distância entre Deus e o homem, considerando-os gênios tutelares dos povos e dos indivíduos, ao mesmo
tempo em que eram também inspiradores dos oráculos. Cada homem tem por guia um demônio particular, ou Espírito familiar, e o próprio Sócrates tinha o seu daimon
- palavra com que os gregos designavam os Espíritos - que constantemente lhe falava e o guiava em todas as circunstâncias.

Para os gregos da época clássica, a alma preexiste ao corpo e chega ao mundo dotada do conhecimento das ideias eternas, mas, quando da união com o corpo, esse conhecimento
33
fica obnubilado e vai-se desvelando com o tempo, o trabalho, o uso da razão e dos sentidos. Assim, aprender é recordar, e morrer é voltar ao ponto de partida e tornar
ao estado primitivo: de felicidade para os bons, e de sofrimento para os maus.

Tal como os egípcios, também os gregos, para explicar a união do Espírito ao corpo físico, conceberam a existência de uma substância mista, que chamaram de ochema,
que lhe servia de envoltório, e que os oráculos, por sua vez, designavam por veículo leve, corpo luminoso, carro sutil, e Hipócrates por enormon, ou corpo fluídico.
Já Allan Kardec, no século XIX, cunhou a palavra perispírito para designá-lo, usada pela primeira vez em O Livro dos Espíritos, em 1857. Quase toda a antiguidade
mais ou menos admitiu essa doutrina, embora fossem vagos e incompletos os conhecimentos de então sobre o corpo etéreo. À medida que a meditação em torno do tema
prosseguiu, aumentando automaticamente a distância conceitual entre a alma e o corpo, foram surgindo várias teorias que explicitavam a diferenciação entre as duas
substâncias.

Assim surgiram as "almas mortais" de Platão, as "almas animais e vegetativas" de Aristóteles, o ochema e o eidolon dos gregos, o nephesh dos hebreus, o baí dos egípcios,
o "corpo espiritual" de São Paulo, os "espíritos animais" de Descartes, o "mediador plástico" de Cudworth, o "organismo sutil" de Leibniz, ou a sua "harmonia pré-estabelecida",
o "arqueu" de Van Helmont, o "corpo aromai" de Fourier, as "ideias-força" de Fouillé, e muitas outras, permanecendo todas como constructos da razão, a que a Doutrina
Espírita veio dar, no século XIX,
34
a demonstração pela via da ciência ou seja, da observação e da experiência.

VIII. Cosmovisão

A consciência mítica trabalha com a unidade e, no sentido da unidade, é essencialmente consciência de unidade e, como tal, pode-se dizer que abrange os dois planos
da vida, ou seja, a Vida é unidade. Tal postura torna-se manifesta inclusive na constatação dos especialistas de que o primitivo não tem nenhuma representação particular
da ideia de alma, enquanto distinta do corpo e da matéria em geral, ou seja, é-lhe completamente estranha a dicotomia encontrada junto aos gregos, egípcios e outros
povos que, ao conceberem essa distinção, revelam-se já em outro estágio.

Na verdade, a estrutura mental do primitivo não lhe permite beneficiar-se dessa "ubiquidade", no sentido de transitar pelo tempo e pelo espaço através da memória,
como meio de se "multiplicar" no mundo: ele não consegue estar presente fisicamente em um lugar e transportar-se como Espírito, mentalmente apenas, para um outro
lugar que requeira sua presença total.

Como bem observa Gusdorf: "O universo do moderno estende-se segundo as indicações mais ou menos contraditórias de uma consciência que sabe pelo menos alguns rudimentos
de história, de geografia, de astronomia, de biologia, de física. Já a consciência mítica, de modo muito mais simples e sem nenhuma segunda intenção, é consciência
do universo, clave humana
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do real em sua integralidade. O mundo no seu conjunto a ela se entrega como o Grande Espaço ontológico no qual confluem todos os lugares particulares, justificação
e autorização de todos os espaços - o Grande Espaço do Mito, princípio de orientação no ser, porque ele se afirma na medida exata da consciência em expansão de sentido
e de valor." E ainda:

"Estar no mundo é estar no tempo. O tempo se nos dá como a procissão dos "agora" entre os horizontes do passado e do futuro. A consciência temporal liga-se, assim,
ao desenvolvimento da aventura humana cujo sentido, progressos ou fracassos, pretende decifrar. (...) A reação bergsoniana contra o tempo espacializado pela contaminação
do espírito científico, fator de homogeneidade e de inteligibilidade discursiva, como também a paciente empresa da fenomenologia, oferecem-se a nós como um retorno
"às próprias coisas", à experiência mais ingênua deformada pela influência de maus hábitos seculares."6

Do tempo mítico, que é por natureza qualitativo, talvez se possa audaciosamente dizer que é uma espécie de "rascunho" da durée de Bergson, afinizando-se com o "sentimento"
de eternidade, o que inclui a imortalidade do Espírito. Para o poeta e filósofo Novalis, a mitologia contém a história do mundo dos arquétipos e encerra o passado,
o presente e o futuro.

Do ponto de vista da fenomenologia da percepção, o indivíduo atravessa basicamente três estágios no mecanismo de captação da chamada realidade objetiva. No primeiro
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deles, há a apreensão gestáltica, ou de conjunto, em que o indivíduo percebe o todo, o conjunto, sem lhe discernir os elementos constitutivos. Isto começa a acontecer
no segundo estágio, em que se percebem grandes blocos desses elementos, sem ainda identificar cada um deles. Este processo só vai completar-se no terceiro estágio,
quando então o indivíduo é capaz de perceber, de per si, os elementos que constituem o todo percebido.

Se tomarmos por base o raciocínio ou princípio de que a ontogênese repete a filogênese, podemos dizer que a consciência mítica representa o primeiro estágio, o que
não significa renúncia à razão, pois ela pode até encerrar um sentido de alargamento e enriquecimento da razão, por poder ser entendida como o locus de todas as
afirmações de transcendência, a expressão do homem integral, em sua constituição físico-mento-espiritual. No fundo, só a permanência da consciência mítica permite
reduzir à unidade as diversas formas de transcendência: teologia, ontologia, doutrinas sociais - outras tantas formulações da exigência mítica.

Em sua condição de homem da plenitude, e da unidade, o homem mítico ou primitivo não se percebe como parte integrante do conjunto, ele se percebe como conjunto.
Essa primeira consciência pessoal está presa na massa comunitária e nela submergida e, embora dependente e relativa, ainda assim não é uma ausência de consciência:
é uma consciência em situação, extrínseca. Como diz Gusdorf7,"pode-se dizer que a personalidade não existe
37
entre os primitivos." No fundo, é como se o primitivo fosse constituído e instituído na Grande Pessoa que seria o seu grupo.

IX. Da consciência mítica à consciência intelectual

Mas no curso incessante do desenvolvimento humano, ele passa então ao segundo estágio, que requer a percepção de sua figura existencial descolada do todo que percebia
assim: gestalticamente. É o momento de disjunção: a revolução socrática traz o advento e a afirmação do "eu" para o pensamento primitivo e, com isso, a legitimação
do espiritual. Ou a consciência intrínseca. A reflexão consagra o fim da inocência mítica e a perda do lugar ontológico, garantido pelo mito.

O homem passa então da consciência mítica para a consciência intelectual, depois de ter expelido os demônios, os espíritos e os deuses que povoaram o universo mítico,
particularmente se for considerada como a idade do mito a da pré-história, que escapa aos historiadores e que é trabalhada pelos métodos de exterioridade, como os
da geologia, antropologia e paleontologia. Há simultaneamente dois acontecimentos: o da universalidade e o da personalidade. Este último aparece no momento decisivo
para a tradição filosófica do ocidente assinalada pela revolução socrática.

Em seus estudos sobre o universo mental primitivo, Lévy-Brühl indica que o progresso deve realizar-se do coletivo para o conceitual. Atesta isso a constatação de
que quanto mais se determinam os conceitos sobre os seres e objetos, e quanto mais eles se fixam e ordenam em classes, tanto mais apresentam-se contraditórias e
até absurdas certas pré-ligações
38
místicas. Por isso o pesquisador demonstra preocupação em opor a mentalidade pré-lógica ao pensamento positivo. Isto equivale também a dizer que essa idade
nova consagra a passagem da comunidade à objetividade.

É sem dúvida com Sócrates que se extingue o reino das representações coletivas, que se dão o encerramento da mentalidade primitiva e a ascensão do homem de retorno
a si mesmo, ou antes, do partir de si mesmo. Mas a posição do filósofo não é diretamente a de ser adversário das representações coletivas, mas acaba sendo-o, por
ser o fundador da razão.

Inaugura-se então uma nova idade mental da humanidade, centrada na Razão soberana, na qual a determinação dos conceitos, mediante a maiêutica, ou a técnica dos diálogos
socráticos, faz o homem mergulhar na profundidade de si mesmo, instância de determinação sobre o verdadeiro ou falso, o que implica em a dialética ser interior ao
pensamento. O "conhece-te a ti mesmo" fundamenta o cogito como origem de uma necessidade humana. Em Fédon, 67a, está dito por Platão que "somente por nós mesmos
é que conheceremos a autenticidade de cada coisa".

Por isso Gusdorf assinala que, a partir de então, o homem torna-se o "artesão da verdade", quando "a reflexão consagra o fim da inocência mítica."8 Daí em diante
a razão vai dar sentido às coisas e acontecimentos, constituindo-se esse olhar racional uma nova chave de transcendência, que vai fazer eco até o século XIX, no
qual podemos dizer que
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conviveram vários espiritualismos, decorrentes de várias tradições, inclusive na linhagem socrática, como Léon Brunschvicg, que citamos, dentre muitos outros, em
nosso "Materialismo e espiritualismo na filosofia: culminâncias e sínteses", segundo o qual "o homem pode chegar à consciência intelectual, negando o egoísmo e o
apego ao "eu" psicológico, para atingir a Deus, que não sendo realidade transcendente, constitui-se realidade interior ao próprio homem."9

O homem primitivo, que era dado a si mesmo pelo lado de fora, pois a consciência mítica vive da percepção socializada e dogmática, tem agora acesso ao sentido de
pessoa, com o advento do eu e, a partir de então, tem acesso à emancipação, mediante a consciência refletida, ou consciência reflexiva, que desponta como uma segunda
ontologia, afirmada como reclamação individual.

Esse eu que se apresenta como cogito socrático, depois como cartesiano, que impõe o primado do eu reflexivo, conhecido antes de Deus e do mundo, passa igualmente
pela crítica kantiana, que põe em destaque a estrutura do eu transcendental que marcará o conjunto do conhecimento humano.

Em sua Philosophie der Symbolischen Formen, Cassirer, citado por Gusdorf10, observa que "o eu, essência própria do homem, não se descobre senão pela via do eu divino".
40
A consciência de si afirma-se como descoberta do corpo, como localização territorial da autonomia pessoal, e o eu psicológico, antes visto como errante ou difuso
por todas as partes longe do corpo, enfim vai fixar-se na percepção da posse do corpo. Mas como o corpo é evidentemente individualizado, há, portanto uma contrapartida
na personalização do pensamento e da vida, como promoção espiritual do eu. A este novo cunho da ontologia corresponde uma noção de alma, como dimensão nova da vida,
elaborada, no pensamento grego, em Platão, Aristóteles e nos estóicos, reconhecendo assim, em cada indivíduo, um destino separado que se realiza isoladamente.

A dualidade da natureza humana explicita-se com toda nitidez em Descartes e em Kant, que têm a preocupação em reduzir as paixões e neutralizar o elemento menos saudável,
instituído no pensamento humano pela existência do corpo. Pode-se dizer que o progresso realiza-se com rigor crescente, como atesta a trajetória do pensamento moderno,
de Descartes a Spinoza, Malebranche e Leibniz, e de Kant a Fichte e Hegel.

A inteligência secularizada suscita, pois, o conhecimento objetivo, abrindo assim caminho para a construção progressiva das ciências, eis que o homem moderno, tendo
perdido seu posto ontológico, e procurando-o sem cessar, vai inventar a religião, a filosofia, a política, visando recuperar a segurança perdida.

Com Descartes, o racionalismo assumiu "seus traços característicos - o valor do conhecimento, a racionalidade, a importância do método, o subjetivismo e a preocupação
central no problema gnosiológico: é o primado da razão,
41
depois do primado da fé, no período medieval, que faz a investigação filosófica voltar-se de Deus para o homem, do céu para a terra."11

Portanto, depois do período em que a consciência mítica cultuava espíritos sem qualquer balizamento lógico - embora hoje se lhe reconheça uma lógica própria; e depois
do advento da razão com a revolução socrática, da qual defluíram tanto sistemas filosóficos e morais, como científicos, com relevo para a especulação de natureza
filosófico-religiosa, com a patrística e o tomismo, em que filosofia e teologia eram um amálgama só - o pensamento moderno, com o primado da razão, inobstante, contempla
a existência do espírito.

N. Malebranche, o mais célebre defensor de Descartes, que aceita as teses cartesianas fundamentais, fala dessa relação, embora só admita o inatismo ontológico: "vemos
as ideias de todas as coisas no próprio intelecto de Deus, isto é, nós temos a intuição da mente divina, o verdadeiro lugar das ideias ou o lugar dos espíritos,
[...] o que o leva a sistematizar o ocasionalismo, segundo o qual devemos entender tudo como "ocasião" ou instrumento da vontade divina, ou seja, toda energia produtora
de ser e de atividade pertence propriamente a Deus."12

X. A realidade do Espírito: a culminância da discussão

A consciência intelectual, já na sua origem socrática, não exclui a realidade do Espírito, antes, afirma-a, desdobrando-se
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a partir de então, uma série de sistemas que a confirmam. Esse estágio do desenvolvimento do homem na Terra voltou-se, no entanto, também para a sua negação,
ensejando o pensamento materialista.

Em verdade, antes do Cristo, Tales, em Mileto, já interrogava sobre o Espírito e a Matéria, preocupado com a constituição da vida, inaugurando-se, nessa época, o
pensamento metafísico que se iria desdobrar, logo depois, nas escolas idealista e atomista, que tentaram assim balizar os planos da Criação.

O materialismo é um fenômeno recorrente na história do pensamento, remontando ao atomismo e epicurismo gregos, ao averroísmo medieval e ao mecanicismo moderno, mas
atinge uma culminância no século XIX como movimento filosófico, e passa, no século XX, a movimento cultural de amplas proporções. A experiência sensitiva e o método
científico, alçados à categoria de critério de verdade, fundamentaram uma interpretação materialista do real.

No século XIX, o positivismo imperou quase que dogmaticamente no panorama do pensamento, mas errou ao restringir ao campo das ciências experimentais toda a possibilidade
de conhecimento, descartando campos de natureza diferente, como a metafísica, a arte, a moral e a religião. Isto acabou por gerar uma crise interior da ciência mecanicista,
idolatrada, idealizada pelo positivismo.

A essa fase seguiu-se uma outra, de reconstrução filosófica, em nome da razão, que admite as exigências metafísicas ou espiritualistas, e que vai estimular correntes
antipositivistas, espiritualistas, ainda no século XIX, e vai constituir a filosofia do século XX.
43
Como assinalamos em nosso "Materialismo e espiritualismo na filosofia: culminâncias e sínteses", "três foram as razões principais que motivaram esse movimento generalizado
de reação ao positivismo: o aprofundamento das pesquisas científicas, que levou a ciência a reconhecer seus próprios limites; o reconhecimento de que persistiam
as questões éticas e metafísicas, a despeito de o positivismo ter tentado abafá-las como estágios pré-científicos, ou manifestações da imaturidade do homem; e a
convicção de que somente uma visão espiritualista pode resolver adequadamente esse espectro de questões. O quadro vincula-se à atitude crítica de Kant, que não só
identificou as pretensões de uma "razão metafísica", como também aplicou-se à "razão científica", cujo método não lhe permite apreender plenamente certas dimensões
não imediatamente redutíveis à matéria, tais como a vida, a ação, o conhecimento, os valores, a vontade, dentre outras. "13

Na verdade, o desenvolvimento da razão não afastou o homem da preocupação com sua instância espiritual, mas veio mesmo contribuir para que ele firmasse essa especulação,
inclusive com os recursos da ciência.

O Espírito, inicialmente considerado como princípio vital, sopro de vida, como lembra a autora espiritual Joanna de Ângelis, foi-se deslocando entre os gregos para
uma diferenciação da alma, que seria a expressão das manifestações inferiores, enquanto ele passava à representação das afeições superiores, princípio mais elevado
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do que o indivíduo. Com a doutrina aristotélica essa conceituação apresenta-se mais ou menos definida, dando origem à formação ideológica entre o caráter metafísico
e o psicológico do Espírito.

A mesma autora espiritual lembra ainda que "com Hegel, o Espírito foi colocado filosoficamente em termos compatíveis, porquanto foram excluídas todas as teorias
que o tornavam "fixo e imutável", apresentando a hipótese da sua evolução, transformações e interrelacionamentos de todos os fatos que o influenciam."14

Maine de Biran, o mais vigoroso pensador francês da primeira metade do século XIX, admite que acima da vida humana há a vida do Espírito, mediante a qual o homem,
no fundo de sua interioridade, entra em contato com Deus, em uma espécie de estado místico no qual encontra a certeza máxima.

Além dele, também na França, a realidade do Espírito é reafirmada por Royer-Collard e Victor Cousin, Sécrétan, Ravaisson e Lachelier, Hamelin e Brunschvicg, Lequier,
Renouvier e Boutroux, Blondel e Bergson, com destaque para o seu intuicionismo. Além da reação católica às filosofias sensistas e materialistas, que tomou o nome
de tradicionalismo, em meados do século XIX surgiu, ainda, uma filosofia espiritualista, autodenominada Espiritismo, original na concepção, porque procede de Espíritos
Orientadores da Humanidade, mediante a via mediúnica; no posicionamento histórico-filosófico, porque faz a síntese, tão inesperada quanto desafiadora, das linhas
45
argumentativas da ciência e da religião, da razão e da fé; na formatação, porque é um homem quem lhe dá a sistematização da forma, o intelectual, cientista, poliglota,
escritor, educador, professor Hippolite-Léon Denizard Rivail, sob o pseudônimo de AUan Kardec Também chamada neoespiritualismo, associa razão e sentimento, ciência
e fé: é doutrina filosófica, com fundamento científico - incorporando ambos os métodos e por isso, também, o que tiver sido por eles avalizado - e que tem consequências
religiosas.15

XI. A realidade do Espírito sob o crivo da ciência

No final do século XIX, a revolução tecnológica reduziu a matéria à condição de "energia condensada" e, portanto, os laboratórios de pesquisa material passaram a
investigar a mente, o Espírito, que, a partir de então, se destacam como objeto de pesquisa. É assim que pouco a pouco o Espírito vem-se apresentando ao investigador
consciente como realidade além da estrutura somática - ou corpo físico, a esta precedente e a ela sobrevivente.

O saber vê-se, pois, na contingência de reavaliar-se cada vez que a visão da ciência se transforma, transformando, por isso mesmo, a imagem do mundo assim como a
do homem. A ciência, como uma das linguagens do pensamento, não poderia indefinidamente prescindir de uma metafísica, ou seja, da intervenção de uma visão prévia
do humano para unificar a imagem plural do mundo científico.
46
Desde o século XIX, particularmente, o homem convive com descobertas do micro e do macrocosmo, com a idéia de espaços infinitos, e tudo isto abre perspectivas para
a meditação e reflexão sobre novos caminhos para o saber na Terra.

A histórica separação entre ciência e religião criou obstáculos ao desenvolvimento dos campos do saber na Terra, cuja marcha pode ser atrasada, mas não impedida.
Foi o que aconteceu, e tem acontecido. Assim, alguns postulados da religião têm caído, superados por conquistas da ciência, perante Galileu e Darwin, por exemplo,
o mesmo tendo sucedido com posicionamentos extremados de Estados, como a excomunhão da relatividade de Einstein pelo Estado nazista. Esse ridículo, no entanto, não
é privativo da instância de Estados, mas ocorre também na do indivíduo e na de sistemas de pensamento, como quando a ciência permanece inadaptada à realidade humana.

A rigor, a ciência permite definir três níveis, ou três ordens de realidade: o mundo apresenta características distintas na escala microscópica da teoria atômica,
na escala molar da física clássica, assim como na escala cósmica da relatividade. Gusdorf exemplifica com a linha, que vemos como reta, mas que é indefinidamente
quebrada na perspectiva atômica e curva no espaço da relatividade. E a ciência não tem como escolher, porque tem que seguir seu curso, não havendo, portanto, nenhuma
razão científica para ela escolher apenas o mundo em que estamos, ou a instância de mundo em que estamos.
47
O mesmo dá-se com o Espírito. Hoje, expõe-se ao ridículo aquele que lhe negar realidade. O Espírito é, hoje, tema científico e também de filmes, de novelas na televisão,
de romances e de conversa entre amigos, em qualquer lugar.

A ciência atual abre novas perspectivas em todos os campos. Particularmente a nova física tem uma visão nova do mundo, do universo, quanto às escalas e aos componentes
minúsculos da matéria, concebendo o universo como um todo, em movimento e transformação. Com isso ela auxilia a compreensão das questões que tradicionalmente se
inscrevem no campo das religiões, posicionando-se como mãe das ciências no plano material e agora também no espiritual, pois investiga o mundo nas instâncias física,
parafísica e espiritual.

O ser humano é hoje visto como um complexo mentofísico-perispirítico. Tomamos este último termo da palavra perispírito, cunhada por Allan Kardec, em O Livro dos
Espíritos (1857), para definir o corpo intermediário, semimaterial e semifluídico, que os orientais e esoteristas desdobram em vários corpos, e que já era conhecido
dos antigos, como já mencionamos anteriormente, sob as designações de ochema, ka e outras.

O corpo humano, constituído de bilhões de células, funciona como uma usina viva, sob o impulso de oscilações eletromagnéticas, de 0.002 mm de comprimento de onda,
da mente espiritual, que comanda a vida fisiopsicossomática16. E quanto
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mais evoluído, sábio, moralizado o Espírito, mais poderosa e complexa a sua estrutura orgânica perispiritual, capaz de viver em domínios cada vez mais amplos de
tempo e espaço.

A mente espiritual alimenta-se de energias cósmicas de natureza eminentemente divina, das quais haure recursos para autossustentação, e transforma esses recursos
em energia dinâmica, eletromagnética. Essa energia espiritual mantém a mente espiritual em contato com o citoplasma, impressionando, pois, a intimidade das células
com os reflexos da mente17. Por isso Jesus, em várias oportunidades, disse aos que O procuraram: "Tua fé te curou", porque quem de fato cresce, definha, adoece e
se cura é o Espírito. As conclusões de várias pesquisas, no recentemente instituído campo da psiconeuroendocrinoimunologia, atestam essa verdade milenar, que só
agora a ciência agenda como objeto de investigação.

O pensamento é uma radiação da mente espiritual, dotada de ponderabilidade e de propriedades quimioeletro-magnéticas, que se difunde por todo o cosmo orgânico, atinge
todas as células do organismo e projeta-se no exterior18. E é pelo fluido mentomagnético que a mente age diretamente sobre o citoplasma e exerce o poder de cura,
ou autocura, como atestam várias pesquisas sobre o poder da oração, do otimismo, do riso, e as demais conquistas na área da psicologia transpessoal.

As células corporais, materiais, respondem automaticamente
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às induções espontâneas, poder-se-ia dizer "hipnóticas", que lhes são enviadas pela mente, revigorando-se com elas ou sofrendo-lhes a agressão. Se é imposta
distonia às células, elas adoecem, pois tal processo provoca a eclosão de males que podem ir desde a toxiquemia até o câncer.

Como se vê, desde a ciência materialista positivista do século XIX, que via as coisas como "independentes e separadas", a noção do que seja a complexidade da estrutura
do homem foi sendo modificada em virtude das descobertas dos próprios cientistas em direção à totalidade, ao místico e ao cósmico.

O conceito moderno que invadiu o pensamento da física atual é o da unidade de todas as manifestações da nossa realidade cósmica. A física moderna e o Espiritismo
encaram o universo como um todo único, praticamente um produto do Pensamento do Criador, e os físicos de hoje fazem alusão a um oceano de pura consciência, de que
também falou, décadas antes, o autor espiritual André Luiz, em sua obra Mecanismos da medhmidade, psicografada pelos médiuns Francisco Cândido Xavier e Waldo Vieira.

Em verdade, "nos fundamentos da Criação vibra o pensamento imensurável do Criador, e sobre esse plasma divino vibra o pensamento mensurável da criatura, a constituirse
no vasto oceano de forças mentais em que os poderes do Espírito se manifestam."19

O pesquisador em física teórica das altas energias, Fritjof
50
Capra, assinalou que além das mudanças dessa nova física, começa a emergir uma visão estreitamente relacionada às concepções sustentadas pelo misticismo
oriental, porque, segundo ele, há impressionantes paralelos entre os conceitos da física moderna e as ideias expressas nas filosofias religiosas do hinduísmo, budismo
e
taoísmo.

Modernamente denomina-se geometrodinâmica do espaço ao conjunto de conhecimentos acerca da gravitação, desenvolvida nos moldes da teoria de Einstein. E partindo
das avançadas concepções da geometrodinâmica quântica, os físicos estão procurando introduzir a consciência na visão cósmica proporcionada pelo modelo que criaram,
e há uma tendência de cotejarem os ensinamentos do pensamento antigo com as conclusões finais às quais chegaram pelas mais arrojadas teorias de sua área.

A nova física está delineando uma espantosa conclusão: a de que há evidências de que nossa mente, em certas circunstâncias, consegue desprender-se das amarras do
corpo físico e sair por aí em um corpo não físico, mas tão real quanto ele. E nesse novo estado, a consciência individual poderia fundir-se com a consciência cósmica
e apreender diretamente certas verdades, certos conhecimentos que podem também ser adquiridos normalmente, mas apenas depois daqueles laboriosos processos experimentais
e racionais usados pela ciência. Enfim, a ciência está começando a provar a intuição e a mediunidade, desenvolvendo premissas já constantes do corpus teórico da
Doutrina Espírita, lançada em 1857, com Allan Kardec, e do pensamento grego clássico bem como das filosofias orientais.
51
Assim, a religião vê-se trazida do céu para a terra, uma vez que, como afirma Léon Brunschvicg, em sua La raison et la religion "À razão verdadeira, tal como se
revela pelo progresso do conhecimento científico, compete chegar até a religião verdadeira, tal como esta se apresenta à reflexão do filósofo, isto é, como uma função
do espírito que se desenvolve segundo as normas capazes de garantir a unidade e a integridade da consciência."20

Esta é a postura do Espiritismo, contemporâneo de Brunschvicg, com o postulado da fé raciocinada, defluente do tríplice aspecto dessa doutrina: filosofia, ciência
e religião. Entre seus maiores propagadores estão o filósofo Léon Denis e os cientistas Camille Flammarion, Gabriel Delanne, Ernesto Bozzano, Gustave Geley, A. Aksakof,
dentre outros. Brilhantes inteligências deram testemunhos insuspeitos e respeitáveis sobre a realidade do Espírito imortal, tais como: o juiz Edmonds, Presidente
do Senado e da Suprema Corte dos Estados Unidos; A. de Morgan, presidente da Sociedade Matemática de Londres; o sábio William Crookes; o astrônomo alemão Zollner;
os professores Ulrici, Weber e Seckner, da Universidade de Leipzig; o filósofo Cari du Prel; o criminalista italiano Lombroso; o astrônomo Schiaparelli, diretor
do Observatório de Milão; o físico Gerosa; o fisiologista deAmicis os professores Boutlerow e Ostrogradsky, da Universidade de São Petersburgo, Sir Arthur Conan
Doyle, Victor Hugo e muitos outros, de todos os campos do saber.
52
Com sua estrutura, o Espiritismo esclareceu sobre a origem e a natureza, a forma e ubiquidade dos Espíritos; sobre os diferentes graus ou a taxionomia dos Espíritos,
segundo seu nível de adiantamento em moralidade; sobre o processo da encarnação e da desencarnação; sobre a pluralidade das existências; sobre aspectos da vida espírita
e as percepções, sensações, alegrias e sofrimentos dos Espíritos; sobre os vários níveis de emancipação da alma, desde o sono até o êxtase; sobre a intervenção dos
Espíritos no mundo corporal, comprovando a comunicabilidade entre os dois planos de existência; sobre o conceito de espaço vibratório e o de duração, na acepção
de Bergson, como a sucessão de mudanças qualitativas dos estados de consciência, reformando assim os conceitos teológicos de felicidade e graça, e de sofrimento
e inferno, ampliando o escopo dessas vivências de estados de consciência para ambos os planos de existência.21

Com isto a Doutrina Espírita antecipou muitas das descobertas da ciência atual, no que diz respeito à realidade do Espírito, como a chamada EQM, ou experiência de
quase morte; as conclusões do pesquisador Ian Stevenson sobre casos sugestivos de reencarnação, os trabalhos da Dra. Elizabeth Kübler-Ross, a recente pesquisa sobre
a vida após a morte, desenvolvida, em Tucson, Arizona, com o médium Lorry Campbell, pelo Prof. Gary Schwartz, que concluiu que os dados atualmente disponíveis sugerem
fortemente que há vida depois da morte. E antecipou também, como já foi dito, as descobertas da nova física, algumas delas já citadas, dentre muitos outros estudos
e pesquisas.
53
Uma outra antecipação, dentre muitíssimas, que está em vias de ser corroborada pela ciência, diz respeito à individualidade consciente - o espírito propriamente
dito, cuja natureza desconhecemos - que se acha revestida de um envoltório semimaterial, o perispírito, que lhe permite atuar sobre o próprio corpo, enquanto encarnado,
e depois da morte - quando normalmente guarda a aparência de sua última encarnação e pode também atuar sobre um médium que lhe transmite as ideias.

Respondendo à pergunta 135a, de Kardec, em O Livro dos Espíritos, os Espíritos Orientadores da Humanidade responderam que "o laço que liga a alma ao corpo" é "semimaterial,
isto é, de natureza intermédia entre o Espírito e o corpo. É preciso que seja assim para que os dois se possam comunicar um com o outro. Por meio desse laço é que
o Espírito atua sobre a matéria e reciprocamente." Interessante observar que o conceito expresso pela palavra "semimaterial" foi antecipado quando ainda não se conheciam
a estrutura corpuscular da matéria e sua constituição à base de energia. O próprio Kardec usou a palavra, ao formular a pergunta n° 94, em O Livro dos Espíritos.
Os Espíritos Superiores atestam, assim, que já conheciam perfeitamente a existência de diferentes graus de condensação da matéria, cujos níveis mais sutis escapam
à nossa percepção, mesmo com os recursos da sensível e sofisticada aparelhagem de que dispomos hoje.

Embora a ciência oficial ainda não tenha avançado o suficiente nessa direção, os Espíritos Superiores também anteciparam, nessa resposta, e em vários outros momentos
das obras da Codificação de Allan Kardec, que o pensamento atua sobre as instâncias energéticas do ser, infundindo-lhes movimento e certas
54
propriedades. Apesar desse descompasso ainda existente, há relatos de experiências sobre telepatia e telecinesia, dentre as quais citam-se as realizadas pelo Dr.
Joseph Banks Rhine e sua equipe na Universidade de Duke (EUA), nas décadas de
1930 e 1940. Como já mencionado anteriormente, o Espírito Áureo ensina ue o pensamento é uma radiação mental da mente espiritual, que atinge todas as células do
organismo e projeta-se no exterior graças a suas propriedades quimioeletromagnéticas, dentre outras.

Com o passar do tempo, cada vez mais facilmente constata-se hoje, pela via da ciência, o que o homem deixou, desde os mais recuados tempos, nos papiros, livros,
pedras è paredes das cavernas, nos ritos e cerimônias de cunho religioso, revelando uma intuição do ser espiritual imortal que é.

Sem desdizer, em essência, o produto da consciência mítica a esse respeito, ao longo do tempo, a ratio formulou a imortalidade do Espírito, através de filósofos,
teólogos e, hoje, de cientistas, que cada vez mais fazem cair por terra a disjunção e as barreiras que tradicionalmente ergueram-se entre Espírito e matéria, entre
Razão e Fé, posto que a religião foi considerada campo exclusivo da especulação sobre o Espírito até cerca de um século e meio atrás, quando, em
1857, a Doutrina Espírita veio estabelecer a aliança entre a ciência e a religião, a razão e a fé.

A realidade do Espírito deixou de ser uma questão para os míticos e para os místicos, inscrevendo-se atualmente como um dos mais fascinantes campos de pesquisa para
a ciência, que já tangencia essa realidade, estando fadada a afirmá-la, em seus próprios limites. Tal
55
desmitização e desmisticização pela ciência não impli cam em um rebaixamento da espiritualidade, mas antes reforçam a grandeza de Deus, que infundiu a consciência23
e razão ao homem, permitindo-lhe desvendar, pelo esforço nobre de suas faculdades, a Sua presença em Suas leis, objeto primário da ciência que antes desenhava seus
limites no alcance da matéria, mas que hoje expande-os para alcançar o homem, em sua instância como Espírito imortal, que passou a inscrever-se agora como campo
de investigação, privilegiado e inescapável, no espectro da Criação.
56
BIBLIOGRAFIA

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57
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REVISTA ESPIRITA: jornal de estudos psicológicos. Publicada sob a direção de Allan Kardec, em Paris, 1858- 1869. Rio de Janeiro: FEB, 2005. 12v.

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Mecanismos da mediunidade. Pelo Espírito André Luiz.9.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1986.

Capítulo 3

ENTENDEI-VOS QUANTO ÀS PALAVRAS

I. "Deveis entendervos quanto às palavras", dizemnos os Espíritos Orientadores da Humanidade, em vários momentos através da Codificação de Kardec, pois o fundamental
é a ideia, ou seja, a essência, que se contrapõe à aparência. No caso, a aparência pode variar segundo a língua usada, o falante, a cultura que a língua expressa,
o ambiente particular do usuário, tanto cultural, quanto mental e emocional.

II. A codificação da mensagem

Cada sistema linguístico espelha e traduz a visão de mundo de um povo e a percepção que tem da realidade. As estruturas frasais de uma língua revelam esses mecanismos
perceptuais e filosófico-antropológicos, como acontece, por exemplo, com as formas verbais das línguas portuguesa e inglesa, no que diz respeito a uma ação realizada
no passado: a inglesa tem mais tempos verbais para designá-la, porque para os povos que a falam é importante a categoria aspectual da ação, ou seja, se a ação já
terminou no passado ou se ainda está em curso no momento presente, se o falante sabe disso ou não, ou mesmo
59
se deseja que o interlocutor disponha dessa informação, e assim por diante.

Um ato comunicativo em linguagem verbal implica em raciocínio, ideia e palavra. Nos atos de comunicação do Evangelho, o raciocínio é impecável da parte de Jesus,
e o que se encontra nos demais elementos que integram o Novo Testamento foi supervisionado por Espíritos Superiores, como, aliás, ocorreu também com a Codificação
da Doutrina Espírita.

2.1 O raciocínio lógico e a lógica do Evangelho

Desde Aristóteles, principalmente, passando pela especulação lógica de Descartes e de alguns outros, que se fala em raciocínio lógico, pois há necessidade de se
observarem certas regras estabelecidas nesse campo da Filosofia, e que são ainda hoje a base da ciência e de correntes filosóficas para construir seu posicionamento.
Nossa civilização ergueu-se com essa lógica, mas o raciocínio do Evangelho, que desvela uma lógica diferente da lógica humana, cartesiana, permanece ainda hoje como
um grande desafio para a compreensão das verdades eternas de que Jesus se fez emissário e portador. Afinal, como entenderse a orientação de dar a outra face ao ofensor,
dar a túnica a quem roubou o manto, andar mais uma légua com quem pediu que se caminhe uma? Eis a lógica desconcertante, instigante e desafiadora do Evangelho.

2.2 A ideia

Pois é dos raciocínios lógicos que surgem as ideias, novas ou não. Em Linguística, elas se chamam significado, instância mental que não se traduz por palavras, letras,
60
fonemas, mas por conceitos, imagens. Isso fica particularmente claro no aprendizado de línguas estrangeiras, pois a tradução para a língua materna é interferência
grave no processo mental do aprendiz e compromete a qualidade e o próprio uso corrente daquela língua. Ideia é a noção que o espírito forma de alguma coisa, tem
caráter intelectual, que a distingue do sentimento, e tem que ser "clara e distinta": segundo Descartes, ela pode provar-se, explicar-se.

2.3 A palavra

A palavra é o significante, o que "veste" a ideia com os elementos linguísticos. Cada falante faz um uso do sistema linguístico e em função do conjunto de experiências
que tenha tido em todos os níveis da existência, constitui um repertório maior ou menor de significantes, de palavras, para expressar-se e compreender o que outros
expressam. Se estas questões, que são as básicas, já apresentam sutilezas e dificuldades para a análise de um ato de comunicação entre homens, é inimaginável o tamanho
do desafio, quando se trata de "vestir", expressar linguisticamente as ideias do Cristo, ou seja, de codificá-las, na linguagem dos homens. Deve haver certamente
uma série de outras razões pelas quais Jesus e Sócrates não escreveram nada, mas esta, sem dúvida, deve estar entre elas, além de algumas outras, que passamos a
comentar em seguida.

Um sistema linguístico, ou de representação linguística, é um organismo vivo, não existe parado no tempo - a não ser que seja uma língua não mais falada, como o
latim - e suas características e possibilidades estão a serviço da comunicação e do entendimento entre os homens na Terra. Um desses mecanismos é o cunhar palavras.
Mas só se criam palavras
61
para representar o que já está na faixa de experiência da comunidade linguística, ou seja, a palavra vem depois da ideia: não se cria nenhuma palavra sem que ela
tenha a função de designar alguma coisaideia. Portanto, para a Linguística, o sistema só cunha uma palavra a posteriori, vale dizer, depois que o objeto ou coisa,
situação, ideia, teoria já existe como realidade mental, ou ideia, dos homens.

Isto fica bastante claro quando nos deparamos frequentemente, nos livros da Codificação e nas obras espíritas de um modo geral, com expressões que nos aconselham
e até advertem para nos entendermos quanto às palavras, ou seja, que devemos decidir que significantes - ou palavras - vamos usar para designar algumas ideias que
os Espíritos Superiores nos oferecem.

A importância da questão é evidente. Com ela Kardec abre a Codificação na parte I da Introdução a O Livro dos Espíritos: "Para se designarem coisas novas são precisos
termos novos. Assim o exige a clareza da linguagem, para evitar a confusão inerente à variedade de sentidos das mesmas palavras." Logo em seguida, iniciando a parte
II, da mesma Introdução: "Há outra palavra [alma] acerca da qual importa igualmente que todos se entendam, por (...) ser objeto de muitas controvérsias, à míngua
de uma acepção bem determinada... A divergência de opiniões... provém da aplicação particular que cada um dá a esse termo. Uma língua perfeita, em que cada ideia
fosse expressa por um termo próprio, evitaria muitas discussões." E mais à frente, ainda discutindo o uso da palavra alma, que carreia três ideias distintas: "...
considerando apenas o lado linguístico da questão... O mal está em a língua dispor somente de uma palavra para exprimir três ideias... o que se faz mister é o entendimento
entre todos,...".
62
E um pouco mais à frente ainda: "Assim, aquela palavra não representa uma opinião: é um Proteu, que cada um ajeita a seu bel-prazer."

2.4 O depoimento dos Espíritos sobre a dificuldade

À parte de outros exemplos em O Livro dos Espíritos, lembramos a passagem de Paulo e Estêvão, em que Paulo, ao transpor os umbrais da eternidade, é surpreendido
por cariciosa melodia cuja beleza é, segundo o autor espiritual Emmanuel, pela psicografia de Francisco Cândido Xavier, "intraduzível na linguagem humana."1

Em O céu e o inferno, Kardec transcreve a resposta que deu o Espírito Sr. Cardon à solicitação de descrever minuciosamente o que vira no intervalo entre suas duas
mortes, ou seja entre uma EQM, ou experiência de quase morte, e a desencarnação: "O que vi... E poderíeis compreendê-lo? Não sei, visto como não encontraria expressões
apropriadas à compreensão do que pude ver durante os instantes em que me foi possível deixar o envoltório mortal." Em seguida, o Espírito Eric Stanislas pergunta:
"De que expressões nos servirmos, que traduzam a felicidade dos irmãos, desencarnados, ao perscrutarem o amor que une a todos?"2

Em Devassando o invisível, Yvonne A. Pereira informanos que "desde o aparecimento da Codificação, queixam-se
63
as entidades espirituais elevadas da deficiência do vocabulário humano para expressar a vertiginosidade da palavra dos Espíritos, das dificuldades, das barreiras
contra que lutam nossos Guias para escreverem as grandezas do mundo invisível." E mais à frente, relatando a própria experiência como médium: "Não encontramos vocábulos
apropriados para poder bem descrever o que então [pela visão mediúnica] se passa."3

E já que o sistema de representação linguística só cunha um significante para designar uma realidade obviamente já existente, conclui-se que não há, a rigor, linguisticamente
falando, sinonímia, eis que cada palavra carreia um sentido específico, e eventualmente também uma carga emocional ou sutileza própria, o que fica claro quando se
estuda qualquer texto, e principalmente o Evangelho. Assim, o sistema linguístico é um sistema de equilíbrios: não há duas palavras para ocupar um só espaço de significado(s).

2.5 O desafio da tradução

Sobressai então a questão da tradução, que implica em conhecer excelentemente os dois sistemas linguísticos, o que inclui conhecer as nuanças da visão de mundo da
comunidade falante daquele sistema, bem como a carga emocional e as sutilezas carreadas por cada significante ou palavra.

Nesse campo cumpre ainda considerar a realização do sistema: a) no momento em que é usado - ou sincronia, sem a preocupação de como o sistema ou estrutura linguística
evoluiu no tempo; e b) em sua evolução ao
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longo do tempo - ou diacronia. A verdade sincrônica e a verdade diacrônica confluem na síntese ampla da linguística pancrônica: "Todo fato linguístico deve ser considerado
no sistema de que é parte, e na sua história, que é a história do próprio sistema."4

No caso do Evangelho, cumpre-nos considerar o uso da língua à época do Cristo e sua realização ao longo do tempo, incluindo-se aí os textos produzidos pouco depois
d'Ele. Sem se apreciar o quadro sincrônico e o diacrónico, apresentamse dificuldades. Um exemplo está no fato de algumas palavras caírem em desuso, em função de
a língua ser um organismo vivo, portanto, mutável.

Assim, quando uma ideia não mais vigora no universo de um grupo ou povo, aquela comunidade linguística "esquece" o significante, ou palavra, correspondente: ela
pode continuar nos arquivos, livros, bibliotecas, na memória de alguns, mas cai em desuso. Pode também acontecer que a palavra assuma uma conotação rejeitada pela
cultura, ou a coisa que ela designa tenha-se alterado cultural ou sociologicamente falando: assim, algumas palavras "envelhecem", como, por exemplo, no caso da língua
portuguesa hoje no Brasil, o uso quase exclusivo das palavras "alpargata", "alparcata", com variação "alpercata", e "merenda" por pessoas idosas, ou ainda, o caso
da palavra "corpinho", anterior ao sutiã.

3. A codificação da mensagem de Jesus e Sócrates

Essas brevíssimas anotações começam a delinear algu-
65
mas possíveis razões pelas quais Jesus e Sócrates não escreveram nada de próprio punho, deixando a tarefa do registro linguístico, importantíssimo, aliás, para Platão
e para os evangelistas, que "vestiram" as ideias com as possibilidades da língua de que se serviam. É que cada falante ou usuário faz seu uso, pessoal, do sistema
linguístico.

Portanto, para as grandes mensagens foram escolhidos usuários dotados de capacidade linguística e/ou de sensibilidade para a captação de nuanças das ideias que lhes
eram apresentadas. Na verdade, sistema linguístico algum teria instrumental para expressar as Ideias que Jesus trouxe à Sua época, e mesmo em nossos dias. Portanto,
era necessário que homens escrevessem segundo sua própria percepção, ainda que com assessoramento especial de Espíritos Superiores.

Jesus e Sócrates traziam verdades, ou expressões da Verdade, que não poderiam ser traduzidas por qualquer sistema linguístico, ou porque a ideia era inteiramente
nova, ou porque as nuanças novas que traziam não encontravam possibilidades nas estruturas frasais da língua que usavam. No caso do Evangelho, foram necessários
quatro evangelistas, cada um para dar conta de uma angulação das questões e lições que o Cristo trazia, eis que um homem apenas não daria conta de todas as angulações,
sutilezas, nuanças e conotações necessárias à percepção dos homens ao longo dos tempos, como por exemplo, Mateus, cujo Evangelho fala predominantemente à individualidade
enquanto que o de Lucas fala especialmente à personalidade.
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Os Espíritos Superiores afirmam, através do trabalho de Roustaing, que a narrativa de qualquer dos Evangelhos não deve ser separada da dos demais evangelistas, porque
"elas se explicam e completam mutuamente, quanto às particularidades. O fundo, com relação aos fatos é, em todas, o mesmo. Cada narrador, como sabeis, escreveu dentro
do quadro que lhe fora traçado pela inspiração mediúnica, mas conservando a independência própria da natureza que lhe era peculiar."5

Para enunciarem as verdades que traziam, Jesus e Sócrates valeram-se muito de recursos que hoje se inscrevem no campo que conhecemos como inteligência emocional,
em parte porque o estágio intelecto-moral de seus interlocutores não lhes permitiria alcançar a profundidade das Ideias de que eram portadores. Por isso recorreram
ao caminho, ou porta, da emoção, ainda que por intermédio da razão, como no caso da maiêutica socrática, que mobiliza o íntimo do interlocutor em seus valores e
percepções, auto- e heteropercepções. Jesus valeu-se de metáforas, como nos ensinos parabólicos, a exemplo do que acontece também com todas as simbologias das cenas
do Apocalipse de João.

Mas como, então, foi possível a eles transmitir as ideias que traziam? Ideia, relembramos aqui, é noção que o espírito forma, e que é distinta, por seu caráter intelectual,
do simples sentir. A natureza da ideia tem povoado as discussões filosóficas ao longo dos tempos. Descartes considerou-a como simples representação, à maneira de
um "quadro", mas na
67
verdade uma ideia não se representa, é compreendida; e isso ocorre mediante uma "relação intelectual", ou seja, a ideia coincide com um movimento do espírito, definindo-se
assim, com Leibniz, como "tendência".

Já quanto à origem, as ideias podem resultar da experiência, chamadas por Descartes de "adventícias", e são "gerais", no sentido em que resultam da repetição de
um certo número de fatos em uma ordem imutável. Classifica-se como idéia geral, por exemplo, o frio vir com o inverno e o calor com o verão. Ao longo das encarnações,
o Espírito, ainda que refratário às considerações de ordem ético-moral, acabará compreendendo, pelas experiências reencarnatórias, a relação entre escolha-ação,
e consequência-reação.

Há também as ideias que têm origem no espírito humano: são as ideias inatas, ou conceitos a priori, como a ideia do dever moral, de justiça e tantas outras, inscritas
no espírito antes de qualquer experiência, como formulou Kant. Essas ideias não são gerais, são universais. Temos exemplos disso em Diálogos de Platão, que reproduz
as conversas de Sócrates sobre o que são a justiça, a coragem e assim por diante.

O fundamento doutrinário está em O Livro dos Espíritos, questão 621: "Onde está escrita a lei de Deus?" "Na consciência." E por que Jesus, Sócrates e outros missionários
precisaram comparecer ao cenário terrestre para revelá-la ao homem? Respondem os Espíritos Superiores a Kardec na questão 621a: "Ele a esquecera e desprezara. Quis
então Deus lhe fosse lembrada." Para tal fez-se necessário codificá-la, até onde isso é possível, na língua dos
68
homens. Porque para cada tipo de pensamento há um tipo de linguagem adequado. Para o pensamento abstrato e conceituai, que se afasta do sensível (relativo aos sentidos),
do individual, a língua se apresenta como condição necessária, por ser um sistema de signos simbólicos que nos permite transcender o dado vivido e construir um mundo
de ideias.

4. Alguns recursos didático-pedagógico-linguísticos de Jesus

Para trazer à luz do entendimento racional a Lei que está inscrita na consciência, Jesus usou figuras ligadas è experiência direta, sensível, da vida cotidiana como
o campo, colheita, moedas, redes, animais e assim subsequentemente. Incluem-se nessa esfera imagética, dentre muitos outros elementos, espada, inimigos, divisão,
cujos significados, no que diz respeito ao entendimento e à codificação linguística próprios dos homens, estão em contradição com o conjunto filosófico, ético-moral
da Mensagem do Cristo. E que o universo linguístico humano não tem possibilidades para expressar, nem mesmo hoje, as Ideias de Jesus, porque a visão de mundo dos
homens não abrange a grandeza da Vida e da beleza espiritual.

Em que se baseia então essa estratégia didático-pedagógica de Jesus? Estamos diante de basicamente duas questões: uma de natureza filosófica e outra de natureza
linguística.

Do ponto de vista filosófico, e também didático, podemos dizer que essa estratégia consiste em recorrer à imagem para chegar ao conceito. Em Lógica, nos casos citados,
a imagem é uma representação mental - porque, se fecharmos os olhos, temos a imagem da moeda, da rede e assim por diante - mas é, ao
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mesmo tempo, de natureza sensível, ou seja, que vem dos sentidos, e, por isso, de certa forma, concreta e particular. Já o conceito ou ideia é a representação intelectual
de um objeto, e, portanto, imaterial, abstrata e geral, caso em que não interessa se a rede é grande ou pequena, clara ou escura: importa que tenha as características
essenciais que tornem o objeto uma rede.

No âmbito da Linguística, a questão pode ser ilustrada se lembrarmos as línguas dos povos para expressar, por exemplo, a ideia "neve". Como cada sistema linguístico
revela a percepção ou visão de mundo de um povo, realça então o fato de que a linguagem elege determinadas partes da realidade para nomear, e nesse sentido ela "recorta"
a realidade. Exemplo clássico é o da língua esquimó, que tem seis significantes, ou palavras, para designar os estados da neve, enquanto que em português temos apenas
uma palavra, não havendo, no repertório de nossa língua, outras opções previstas. Nesse quadro, o essencial é identificar, no número maior de palavras, a percepção
da realidade desse povo, porque para ele, até pelo seu habitat e forma de vida, é importante descrever os vários estados da neve, enquanto que, para nós, basta perceber
se há neve ou não.

5. A dificuldade de decodificar passagens do Evangelho

Aí residem muitas das dificuldades que temos para interpretar várias passagens do Evangelho, como por exemplo, o uso da palavra "irmãos", quando Mateus (XII, vv.
46 a
50) e Marcos (III, vv. 20,21 e 31 a 35) relatam que Sua mãe e Seus irmãos mandaram chamá-Lo, e reproduzem, com as mesmas palavras, o que o povo diz a Jesus, provando
que as palavras eram do uso comum daquela comunidade linguística. Os evangelistas registram também a resposta de Jesus,
indagando quem eram Sua mãe e Seus irmãos, e definindo que esses são aqueles que fazem a vontade de Deus. Aí está explicitado o diferente "recorte" da realidade,
espelhando
a percepção e visão de mundo dos homens da época de Jesus, considerando a consanguinidade abrangendo primos e co-irmãos como irmãos, e as dos homens de hoje, que
as consideram de modo mais restrito, reservando, portanto, a palavra "irmãos" apenas para designar filhos do mesmo pai e da mesma mãe. A essa percepção contrapõe-se
a de Jesus, Cujo descortino abrange não a família consanguínea unicamente, mas a família universal. Apesar de ser mecanismo próprio dos sistemas linguísticos, o
uso da mesma palavra para designar percepções diferentes da realidade tem-nos trazido dificuldade para a compreensão dos textos evangélicos.

Situação análoga é a de outras passagens, nas quais encontram-se, por exemplo, as palavras "inimigos" e "divisão", que, no entendimento que nos fica da mensagem
do Cristo, são-lhe contrárias, na verdade, contraditórias. No contexto do Evangelho, isto mais ainda assim se configura, se a elas associar-se a palavra amar, como
no "Amai os vossos inimigos".

Mas que língua humana poderá, mesmo hoje, designar a visão que nos trouxe o Cristo? É certo que as línguas, sendo organismos vivos, podem alterar-se, e já poderiam
até ler-se alterado em seu repertório, ter feito cair em desuso a palavra inimigo, e ter criado outra(s) palavra(s) para designar adversários temporários, considerado
o continuum do tempo de várias encarnações. Mas, para isso, seria necessário
71
que o homem já tivesse avançado moralmente a ponto de perceber a realidade da condição de efemeridade das aversões, entendendo-as como passageiras, ainda que
essa condição se consubstancie ao longo de várias experiências encarnatórias. O mesmo se aplica à passagem de Lucas (XIV, vv. 25 a 27 e 33) na qual Jesus dirige-se
à massa do povo: "Se alguém vem a mim e não odeia a seu pai e a sua mãe, a sua mulher e a seus filhos, a seus irmãos e irmãs, mesmo a sua própria vida, não pode
ser meu discípulo."

E ainda, também por Lucas (XII, vv. 49 a 53), quando Ele diz que veio trazer a divisão entre as pessoas em uma casa, pois "estarão elas divididas umas contra as
outras", reciprocamente pai e filho, mãe e filha, sogra e nora.s

A tendência humana à belicosidade, no presente estágio evolutivo, imediatamente traz à mente a ideia de inimigo, guerra, animosidade. Tanto isso é possível acontecer,
que tem acontecido, quando indivíduos, grupos e mesmo Estados discordam entre si no plano das ideias, o que logo se projeta para o plano da ação guerreira, em sentido
explícito, ou metafórico, material, psicológico, social, moral, espiritual. Esse é o recorte da percepção dos homens, mas certamente nunca foi o de Jesus, como consta
das anotações de Mateus (XII, 25): "Jesus, conhecendo-lhes os pensamentos, disse: Todo reino que se dividir contra si mesmo será destruído e toda cidade ou casa
que se dividir contra si mesma não subsistirá."
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Do ponto de vista da separação a que se refere Jesus, ocorre que, ao acatar-lhe a palavra, o Espírito muda a sua percepção do mundo e da vida; há, portanto, um alteamento
do padrão vibratório. Foi o que aconteceu com Lívia e Publius Lentulus, na obra Há dois mil anos, pelo Espírito Emmanuel, pela psicografia de Francisco Cândido Xavier:
continuaram a amar-se, embora vibratoriamente tenha acontecido essa separação, ou, nos termos que encontramos no Evangelho, essa divisão.

6. Essência e aparência na decodificação da moral do Evangelho

Kardec discute a Estranha Moral do Evangelho abordando a contradição, que sabemos aparente apenas, dos ensinos sobre a paz e a espada, a separação da família, o
fogo lançado à Terra para que ela logo se acenda, concluindo que não há contradição nem blasfêmia, e que apenas a forma, "um pouco equívoca", "não lhe exprime com
exatidão o pensamento, o que deu lugar a que se enganassem relativamente ao verdadeiro sentido delas."

Kardec observa que "Jesus não podia desmentir-se" e ao usar a palavra "equívoca", o Codificador optou por esclarecer o significado que correntemente a palavra carreia,
por isso conclui que "a forma não lhe exprime com exatidão o pensamento". Tal explicação, na verdade, aplica-se a toda e qualquer palavra escolhida e usada pelos
evangelistas quando Lhe codificaram os ensinos, pelos motivos que já expusemos.
73
A palavra, em sentido corrente, significa "engano", e mesmo "erro", e também "ambíguo". Mas, se tomarmos o texto do próprio Kardec sob a ótica da Filosofia, mais
especificamente no campo da lógica, verificamos que o termo "equívoco" significa "o que tem vários sentidos ou interpretações", mas não na acepção de ambiguidade.
Esta, no campo da Filosofia, implica em astúcia, em função de ser ato voluntário, enquanto que o equívoco frequentemente implica em uma ideia de inadequação, o que
pode ser inevitável como ato involuntário. Assim, uma ambiguidade "denuncia-se", enquanto que um equívoco dissipa-se. Como o quadro inscreve-se na esfera do humano,
ou seja, dos evangelistas, mesmo com a supervisão dos Espíritos Superiores, é o que nos cumpre fazer: dissipar o sentido "equívoco" nos ensinos evangélicos.

Ao texto do Evangelho, tanto mais se aplica tal distinção conceitual, quanto mais se realça a situação de que Jesus, de Si mesmo, nada escreveu, ou seja, não usou
a linguagem verbal escrita por Si mesmo, pois, por mais que recorresse aos mecanismos das línguas na Terra, ainda assim não conseguiria expressar convenientemente
as ideias de que era portador, à míngua de recursos linguísticos nos sistemas no planeta.

Por isso, ainda hoje os Espíritos Superiores nos aconselham e advertem: "Deveis entender-vos quanto às palavras" , respondendo a pergunta n2 28 em O Livro dos Espíritos:

As palavras pouco nos importam. Compete-vos a vós formular a vossa linguagem de maneira a vos entenderdes. As vossas controvérsias provêm, quase sempre, de não vos
entenderdes acerca dos termos que empregais, por ser incompleta a vossa linguagem para exprimir o que não vos fere os sentidos.
74
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Há dois mil anos. Pelo Espírito Emmanuel. 20.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1984.
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Capítulo 4

LIBERDADE E (IN)TOLERÂNCIA RELIGIOSA

I. A mitologia grega espelha, na figura de ícaro, o sonho humano de liberdade, anseio realizado antecipadamente por Deus, que o homem geralmente desconsidera, por
despreparo espiritual.

Enquanto ícaro permanece na instância do sonho, Sócrates encarna a vivência da liberdade real. "Não estou preso", disse ele aos discípulos que lhe prepararam a fuga.

A cena é emblemática. Uma das maiores vítimas da intolerância nos registros da História, Sócrates, fisicamente enclausurado, declara-se livre, consubstanciando nesse
gesto a essência da liberdade - a de pensar, que nos remete à liberdade de consciência. No pensamento, o homem tem liberdade ilimitada, e é capaz de escapar a todo
constrangimento.

II. A questão da consciência

É que atingidos certos níveis de consciência, não é mais possível ao homem agir diferentemente, ainda que com o preço da própria vida física. Acaso ocorre a alguém
imaginar Jesus, Sócrates, Gandhi - para citarmos apenas alguns reconsiderando, desdizendo a mensagem de que são portadores, a verdade na qual crêem e que encarnam?
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Tais atos capitulariam como profanação no templo da consciência.

III. A questão da liberdade

Os filósofos já aprofundaram a discussão a respeito do escopo da liberdade, e a conclusão lógico-filosófica é a de que ninguém goza de liberdade absoluta: na inevitável
interdependência dos seres, um constitui-se limite para o outro, mas não necessariamente cerceamento. Mesmo o eremita no deserto tem, na Natureza, essa presença
do outro a convidá-lo a conhecer limites.

No pensamento, o homem tem liberdade, mas tem igualmente responsabilidade, em sua própria e humana esfera tanto quanto perante Deus, pois a ninguém mais é possível
conhecer a criatura.

IV. A relação do homem com a liberdade

A História e o cotidiano mostram que o homem, no entanto, frequentemente não vive sua liberdade, porque, usando-a, pode tornar-se escravo de si mesmo ou do outro.

Exerce o autocerceamento em decorrência das monoideias, ideias fixas em coisas materiais ou ao mundo material relacionadas, vive os mitos do poder, do prazer e da
permanência, todos sabidamente efêmeros no plano filosófico, racional, mas não necessariamente no plano psicológico, emocional.

Torna-se escravo de postulados que lhe proíbem a expansão da alma, do psiquismo, pela ideia, pela razão: no sectarismo, o homem encarcera a liberdade de consciência,
revela e até aumenta seu grau de clausura, fechando-se à realidade de si mesmo, do outro, do mundo e de Deus.
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Não deixa de ser curioso constatar-se que o homem usa sua liberdade, ou livre-arbítrio, para cercear a vivência da própria liberdade.

Evidenciando mais uma das contradições da própria condição humana, não é raro encontrarem-se homens que proclamam ideias liberais e comportam-se como verdadeiros
déspotas no lar, ou no trabalho, como forma de exteriorização do orgulho e do egoísmo, condições espirituais que serão superadas em reencarnações sucessivas, como
postulam várias vertentes religiosas, como o Espiritismo e o Budismo, para citarmos apenas algumas.

A outra situação em que o homem não vive a sua liberdade dá-se quando é cerceado pelo outro, evidenciando o que Michel Foucault formulou sobre o desejo de domínio
sobre o outro, que se realiza quando um domina o corpo, o tempo e o espaço do outro, e que o próprio filósofo exemplificou com estruturas sociais e religiosas.

Há casos em que tal desejo assume a configuração de verdadeira volúpia de domínio sobre o outro, que redunda em capítulos lamentáveis na história da humanidade,
como escravidão física e também ideológica, não faltando casos em que a primeira é consequência da segunda.

V. A intolerância e seus desdobramentos

De uma ou de outra forma o homem engendra intolerância, vício espiritual que visa à anulação da identidade do outro. No plano psicológico, torna-se manifesta como
preconceito e como hostilidade, que medram na intimidade da criatura, forjando a atitude, conceitualmente também interior.
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Mas o homem é expressão, comunica-se, como tudo o mais no universo, e essas características íntimas operacionalizam-se, materializam-se na discriminação e na agressão,
que não são atitudes, mas comportamentos, cuja função é exteriorizar as atitudes, que são internas.

Pode-se dizer que nenhuma das formas de ser e estar no mundo até hoje escapou ao grilhão da intolerância, que já se voltou contra ideias e sentimentos, crenças,
etnias, gênero, culturas, civilizações, Estados e nações.

VI. Instâncias da intolerância religiosa

Na esfera da religião, todas as vertentes celebram a liberdade de pensamento e de consciência do ser humano e advogam que a ninguém assiste o direito de criar obstáculos
ao livre-arbítrio do outro. Liberdade de religião é valor coerente com todas as outras instâncias de liberdade e pode até contribuir para sustentá-las.

Projeta-se no âmbito da intolerância religiosa o mesmo mecanismo pelo qual o homem cerceia tanto a própria liberdade quanto a alheia.

Assim, verifica-se intolerância religiosa interreligiões, tanto por questões de essência no campo da teologia quanto por questiúnculas de natureza adjetiva. Podem
ser lembrados exemplos como as Cruzadas, os "bruxos" da Idade Média, os permanentes conflitos entre judeus, muçulmanos, palestinos, católicos e de um modo geral
a história das conquistas das Américas pelos europeus perante os nativos, e assim por diante. Há também disputa pela territorialidade do exercício da religião, como
fica patente na questão de Jerusalém.
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Já a intolerância intrarreligião dá-se quando se interpretam as regras vigentes contra seus próprios membros, como é o caso, para citarmos apenas alguns, da Inquisição,
de Soror Juana Inês de la Cruz, no México seiscentista, e da Teologia da Libertação.

Tais práticas acabam sedimentando-se como paradigmas mentais, que se inscrevem no inconsciente coletivo de certos grupos, e como matrizes psíquicas que atravessam
várias encarnações no espírito, até que ele reencontre o equilíbrio.

VII. Matrizes psíquicas

Afinal, uma religião constrói-se com a crença coletiva em certos valores, que podem assumir feição de dogmatismo, ortodoxia e fundamentalismo.

O dogmatismo, que pela raiz "dogma", está etimologicamente ligado ao conceito "verdade", define-se filosoficamente como doutrina que parte de uma certeza prévia,
que se assenta sobre um ponto fundamental e indiscutível, ou como doutrina que alcança uma certeza. A rigor, em essência, não leva necessariamente aos caminhos da
intolerância, mas, se levado a extremos, torna-se facilmente instrumento hábil para rigidez e clausura mental, para sectarismo e intolerância.

Já a ortodoxia designa o exato cumprimento de uma doutrina religiosa, defende a preservação de uma doutrina, o que não implica necessariamente em estar fechado ao
diálogo.

Por outro lado, o fundamentalismo, de que tanto se fala atualmente, faz uma interpretação rígida de alguma doutrina,
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mas de maneira excludente, de forma que, ao considerar que está com a verdade, conclui automaticamente que o outro está com a mentira. Caracteriza-se pela simplificação
extrema da doutrina para a solução de problemas materiais mais imediatos, faz uso de técnicas agressivas de propaganda para massificar a religião, e adota posições
políticas conservadoras, visando desencorajar posições críticas aos problemas sociais, principalmente como reação ao processo de modernização e rejeição a conquistas
da cultura liberal, ao mesmo tempo em que intenta incorporar o sagrado à política e à causa nacional.

Não se limita, no entanto, aos grandes monoteísmos, é passível de ser encontrado em várias outras doutrinas como, por exemplo, budismo, hinduísmo, confucionismo,
dentre outros.

A face do fundamentalismo que é capaz de matar em nome da religião assume a feição de fanatismo, que representa fidelidade cega e intolerante a uma interpretação
inflexível de mandamentos religiosos. O terrorista, o homem-bomba de nossos dias, têm certeza de serem portadores de uma verdade inquestionável que eles tentam impor
tiranicamente a outros.

Esse é um modo de o homem viver a crença sem limites, ou um modo que ultrapassa a própria fé, tornando-se uma espécie de volúpia, de fúria cega, dirigida ao próximo,
e a ele mesmo.

Seguir ao pé da letra os fundamentos e princípios de uma religião, descontextualizados de processos históricos, é mantê-los engessados, sem capilaridade com o mundo,
para atender as necessidades da criatura humana. Vem a propósito a advertência do apóstolo Paulo, alertando para o fato de que a letra mata e o espírito vivifica.
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E quando a letra prevalece, a fé torna-se cega e alimenta uma fúria igualmente cega, em que o ódio gera o ódio, através do qual a religião transita, da condição
de esclarecimento e conforto espiritual para a de algoz, que tem patrocinado ciclos de violência desde as Cruzadas.

Essa face do fundamentalismo, de tão amplas proporções na atualidade, chega a obscurecer a feição positiva que ele pode ter, porque nem todo comportamento fundamentalista
tem base na intolerância, na intransigência, e na fúria cega.

Na verdade, manter a essência de doutrinas e normas, guardando fidelidade aos valores eternos - ou seja, seguir os fundamentos de uma religião, visando ao atendimento
a necessidades espirituais, morais, e até mesmo materiais do homem - caracteriza a feição positiva que o fundamentalismo pode ter, e que pode ser ilustrada na Doutrina
Espírita codificada por Allan Kardec, que formula a fé raciocinada, e na Teologia da Libertação.

VIII. A ética da compreensão

Na esfera da religião, e no exercício da fé, ergue-se a tarefa da Educação como caminho para ensinar o indivíduo a estar com o outro, que é seu igual, preparando-o
para estar diante daquele que é diferente, até estar em condições de estar com o discrepante. Porque é árduo o exercício do respeito às diferenças.

O conceito de outro abrange desde o indivíduo até um grupo, ideias, culturas, etnias, gênero, Estados, nações, e assim por diante, inclusive a Natureza. Isso implica
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naturalmente em uma ética voltada para o respeito e para a liberdade, na direção de uma cultura pluralista.

É fundamental educar para a compreensão, trabalhando sistematicamente as posturas que se lhe constituem obstáculos, algumas delas já referidas anteriormente: o egocentrismo,
o egoísmo, o etnocentrismo, o culturocentrismo, o reducionismo e outros.

Nesse caso é preciso compreender a incompreensão. Esta é a postura fundante da Ética da compreensão, que se assenta sobre o pensar reto e justo, sobre a abertura
subjetiva do sin-pathós para com o outro, ou seja, de sentir ao mesmo tempo que o outro, sentir com ele, vale dizer, uma ética fundada na interiorização da tolerância.

IX. A filosofia da tolerância

A ética da compreensão inscreve-se em uma filosofia da tolerância, de que aliás já falou Descartes, que postula o princípio de igualdade entre todos os homens, sem
qualquer distinção, e objetiva substituir a força pelo diálogo, na perspectiva que o homem deve desenvolver de sempre compreender o ponto de vista do outro.

A filosofia da tolerância abrange não só a instância da religião, mas também a da política, sendo portanto lícito hoje falar-se da tolerância política como uma questão
fundamental, até porque, como já assinalado anteriormente, há vertentes ou subvertentes religiosas que buscam inserir o sagrado ou a dimensão religiosa no campo
da política e da causa nacional, fato para o qual apontam muitos teólogos.
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É preciso educar para a tolerância, fortalecendo cada vez mais essa tendência a admitir modos diferentes de pensar, sentir e agir, na esfera pessoal, política ou
religiosa, de indivíduos, grupos, classes, organizações e quaisquer outras estruturas.

A tolerância religiosa, particularmente, deixa a cada um a liberdade de praticar a sua religião, no âmbito das relações entre indivíduos, e do Estado com o indivíduo,
configurando, neste caso, o tolerantismo.

Já a intolerância religiosa gera a inquisição, a prisão e até a supressão de minorias religiosas, como o caso dos judeus na Espanha ao tempo de Isabel, a Católica,
no século XV; o dos protestantes na Europa sob Charles IX; no século XVI, a Noite de São Bartolomeu, a 24 de agosto de 1572, em França. E gera também outras consequências
como o aviltamento de símbolos, ou de bens simbólicos de uma religião, como a queima de livros espíritas pelo bispo de Barcelona, conhecida como o Auto de fé de
Barcelona, a 9 de outubro de 1861, a depredação de imagens e outros bens do universo material e/ou simbólico de vertentes religiosas. Tudo com base em uma "lógica"
de defesa dos fundamentos da fé, que vê outras doutrinas como "ameaças", como aconteceu também na América Latina, inclusive no Brasil, com relação, por exemplo,
à Umbanda e ao Candomblé.

A tolerância é um princípio de moral ligado ao respeito elementar das pessoas morais, e como tal mereceu a reflexão de Bayle e de Voltaire, que expressou a conhecida
posição de que é obrigação moral de cada indivíduo defender
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sempre o direito de se proferir uma opinião, por ignóbil que seja, o que não implica em defesa do que seja ignóbil, mas em garantia do direito de expressão.

Mesmo que antagônica à sua ideia ou crença, o indivíduo educado na tolerância, ou para a tolerância, sabe que a posição diferente pode trazer-lhe enriquecimento
pessoal, intelectual e/ou moral. Niels Bohr postula a possível existência de alguma verdade na ideia antagônica à nossa, e é esta verdade que é preciso respeitar.
Sempre bom lembrar que a democracia nutre-se também de ideias diferentes ou antagônicas.

Cumpre ressaltar que a verdadeira tolerância não é indiferente às ideias, ao desrespeito e ceticismo encontrados no mundo. Ela supõe convicção e opção ética associadas
à aceitação da expressão das ideias, opções, convicções opostas. Isto quer dizer que a tolerância vale, com certeza, para as ideias, mas não para as perseguições
de qualquer natureza, agressões, insultos, carnificinas, atos homicidas.

X. A medida da tolerância

A tolerância é compreensiva, o que não significa indiferença, mas disposição para com todos, implica em esquecimento das diferenças, e certamente envolve perdão,
sendo, portanto, fruto da caridade. Tolerância é indulgência, condescendência para com o outro, e revela ascendência espiritual. Não tem ideias preconcebidas, nem
censura, nem causa prejuízos para alguma raça, crença, sistema de ideias, e assim por diante. Enfim, tolerância é uma atitude da consciência humana, sem restrições,
ironias e insensibilidade.
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Mas a tolerância requer também certos cuidados: ela precisa de disciplina e justiça, porque há o perigo da dosagem que, em dose excessiva, pode transformar-se em
veneno, enquanto que o veneno disciplinado pode ser fonte de vida. Nessa linha de raciocínio, tolerar um desequilíbrio alimenta a força contrária à sua própria natureza.

A tolerância é marca e base das religiões, em sua essência. O guru Granth Sahib, nas Escrituras Siques, enfatiza a igualdade entre os seres, pois na moradia do ventre
não existe genealogia nem status social, uma vez que todos viemos da semente de Deus. Já o Dalai Lama, respondendo a um jornalista, declarou que a melhor religião
é a que faz o homem melhor, e Allan Kardec proclamou que é boa toda religião que conduz o homem para Deus. E o apóstolo Paulo alerta na epístola aos Gálatas 5,13-15:
"Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor./ Porque toda
a lei se cumpre em um só preceito, a saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. / Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede que não sejais mutuamente
destruídos."

XI. Evangelho e ciência

Nas últimas décadas, inúmeras pesquisas mapearam o cérebro humano, conceituaram um cérebro emocional, a tal ponto que a década de noventa é chamada a "década do
cérebro". Com a recente instituição da psiconeuroendocrinoimunologia, e com o intenso progresso das neurociências, cada vez mais se comprovam os postulados que antes
eram frequentados apenas na esfera da religião.
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A ciência hoje já comprova a relação estreita entre pensamentos bons, de paz e harmonia, emoções positivas, e o estado de saúde mental e física, bem como os nexos
de causalidade entre pensamentos de desequilíbrio e maldade, emoções negativas, e o estado de doença.

A chamada biologia das emoções enuncia essa interrelação como uma equação, em que o amor dá a saúde e o mal dá a doença, com base em dados de laboratório que estão
comprovando que a mente transforma ideias, emoções e expectativas em realidades bioquímicas.

Assim, o Evangelho de Jesus e os fundamentos de amor de todas as religiões não são mais, como até algum tempo atrás, uma questão de mística, ou para místicos; são
hoje uma questão de ciência.

Assim, o amor, o perdão, a fé, o bom ânimo, a oração, a alegria, a fraternidade, a tolerância e seus análogos são hoje tidos pela ciência como elementos deflagradores
de saúde mental e física e, inversamente, a intolerância, o ódio, o ressentimento e seus análogos engendram a doença mental e física.

Portanto, é no mínimo um exercício de inteligência a prática dos preceitos fundados no amor, porque trarão esses benefícios tanto ao indivíduo quanto para as coletividades.

Não foi por acaso que Jesus disse várias vezes "Tua fé te curou", "Perdoai setenta vezes sete vezes", "Amai os vossos inimigos" e assim por diante. E elevou a mansuetude,
a tolerância à categoria de bem-aventurança (Mateus.V, v.5): "Bem aventurados os mansos, porque possuirão a terra."
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XII. O locus do amor e da tolerância

A questão da liberdade e da tolerância religiosa abrange, portanto, as várias instâncias do ser: o pensar, o sentir, o agir.

Do ponto de vista mais evidente, as práticas religiosas, em sua dimensão de exterioridade, através das ações ditas concretas, exigem territorialidades, importantes
para a manutenção da religião e de seus ritos, inclusive com a conquista de novos espaços para o exercício do poder da religião. Em alguns casos, podem servir a
projetos políticos de poder, a partir da religião.

Tais territórios religiosos, individualizados por imagens e símbolos de natureza diversa, evidentemente, têm limites físicos, porque inscrevem-se conceitualmente
no espaço cartesiano. Há que se ter cuidado no sentido de não se criar dependência do espaço físico, que pode ser um elemento favorecedor do sectarismo e do fanatismo,
embora, no atual estágio evolutivo do homem na Terra, ele ainda precise de referenciais de concretude para sua prática religiosa, como, de resto, para todas as demais.

Mas o progresso tem trazido contribuições importantes no que se pode chamar de sutilização do espaço, com o advento do espaço virtual, através das conquistas no
campo da informática, pela prática na internet. Tal espaço desprovido de dimensão física, antes privativo de filósofos, matemáticos e poetas, é hoje vivência de
todos, inclusive para práticas religiosas, como se pode facilmente constatar em sites através dos quais fiéis postam-se diante do Muro das Lamentações e dirigem-se
a Deus.
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Mas onde se dá o exercício da religião, bem como de todas as demais práticas humanas? A rigor, nada disso se dá no espaço físico cartesiano, mas na intimidade profunda
do homem, na condição de locus, que é o ser, o homem, configurando-se como espaço espiritual-psicofenomenológico.

Tudo está e se passa no ser, nesse locus imponderável e impalpável, território virtual do amor e da ética, da compreensão e da tolerância em todas as suas esferas
de manifestação.

Por isso Jesus instruiu a samaritana, no diálogo famoso, anotado por João (IV, vv. 21,23): "... virá tempo em que não será nem neste monte nem em Jerusalém que adorareis
o Pai... Mas, virá o tempo, e já veio, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade; esses, os adoradores que o Pai quer."

Hoje é o tempo em que os homens dão-se as mãos e discutem a (in)tolerância e a liberdade, que é marca do Criador por sobre a criatura, e continuam a construir a
Terra dos mansos, até que, atingidos os mais altos níveis de consciência, possam abrir os olhos e ver o Sol do Amor e da Tolerância, a refulgir por sobre todos os
seres na Terra.
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Capítulo 5

PERDIDOS NO TEMPO E NO ESPAÇO?

I. Por várias vezes, desapontaram-se aqueles que acreditaram que o mundo ia acabar. Muitos deles, apesar da crença em Deus e de seguirem uma religião, chegaram a
mudar para outra cidade, a vender patrimônio - como se essas providências realmente fossem ter qualquer conseqüência, caso o mundo fosse de fato acabar.

II. Chegados os Tempos

Anunciados por Jesus, eis que os tempos são chegados: e a par das catástrofes físicas no planeta, e certos acidentes envolvendo, em dramas contundentes, um número
imenso de criaturas - há também as catástrofes morais decorrentes da inversão de valores, exemplificada pela sexolatria, pelo consumismo, e pelo fenômeno chamado
de naturalização, que nos "acostumou" a ver como "normais" guerras, assassinatos, descaso, indiferença e desvalorização da vida, exploração econômica, a infância
desprotegida, o pauperismo das massas, a velhice desamparada, o desemprego, o flagelo de enfermidades endêmicas e epidêmicas, as drogas, leis ineptas, para citarmos
apenas algumas facetas mais trágicas do mundo moral em nosso século.
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Nada que seja estranho ao quadro apresentado à magnífica clarividência mediúnica de João Evangelista, quando exilado em Patmos; por isso mesmo descreveu sua visão
profética intitulando-a com o termo grego apokalypsis, que significa revelação.

Tudo isso aliás já fora antecipado por Jesus, anotado por Mateus (XXIV: vv 1-14), Marcos (XIII: vv 1-13) e Lucas (XXI: vv 5-19) quando o Cristo - respondendo as
perguntas que lhe fizeram os discípulos acerca do seu advento, do fim do mundo e dos respectivos sinais anunciadores - falou de guerras e agitações, terremotos e
dores, pestes e fome, lassidão moral, perseguições e falsos profetas, ódios e falta de caridade, mas também de assistência espiritual, da sustentação de Deus, de
paciência, amor, confiança e perseverança...

É sabido que as palavras de Jesus visavam manter a humanidade alerta diante dos acontecimentos inelutáveis que viriam a desdobrar-se no curso ordinário dos séculos.
O texto denota ocorrências que sugerem, pela letra, o fim do planeta, mas o subtexto remete-nos à dimensão transcendente do discurso do Cristo, que segundo o espírito,
em verdade, refere-se a fases de progresso, depuração e transformação da Terra e da Humanidade. Até porque, se assim fosse, que sentido teria o iluminado Sermão
da Montanha, no qual Jesus prometeu a Terra como herança aos mansos e pacíficos?

III. Mundo Moral e Mundo Físico

Vê-se aí nitidamente a confusão entre os conceitos de "mundo moral" e "mundo físico", que responde, aliás, pela dificuldade de compreensão da natureza do mal e suas
manifestações na chamada realidade objetiva.
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A presente discussão sobre esse entendimento distorcido não deixa de contemplar, naturalmente, o postulado da Astrofísica, antecipado em 1857 em O Livro dos Espíritos,
de que os mundos são formados, nascem, envelhecem, contraem-se, "morrem", explodem e renascem, numa incessante recriação. Kardec assevera, em A Gênese, que é imperativo
afastar qualquer ideia de capricho, por inconciliável com a sabedoria divina, e considerar que a realização de certas coisas tem uma razão de ser na marcha do conjunto.

IV. O Tempo

Ao pedirem a Jesus que lhes indicasse os sinais de quando aquelas coisas iam cumprir-se, os discípulos evidenciaram a dificuldade humana de lidar com o tempo, inassimilável
pelo homem se não estiver referenciado ao espaço, eis que seres, em nosso nível evolutivo, estamos circunscritos espaço-temporalmente, numa "prisão tempo-espaço".
O homem só entende o tempo se puder balizálo com referência a eventos ocorridos no espaço. Por isso os discípulos pediram ao Cristo que indicasse os sinais - no
espaço, de quando - no tempo, aquelas coisas iam cumprir-se.

A questão evidentemente não é nova. Um rápido olhar da Antropologia informa que os conceitos de tempo e espaço, como os concebemos hoje, não existiram nos estágios
iniciais do conhecimento humano. Para o homem primitivo havia tão somente o espaço concreto, estruturado; seu intelecto ainda não trabalhava os conceitos abstratos
e a sua noção de tempo, mesmo se pensada na divisão passado-presente-futuro, tinha contornos difusos.
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Mesmo hoje, ainda há uma relutância do homem em reconhecer o tempo como uma percepção; essa circunstância responde pela dificuldade de entender, com Kant, o tempo
como um modo de percepção e com Einstein, a "Teoria Geral da Relatividade". Isto porque nossos conceitos de tempo e espaço estruturam-se respectivamente sobre uma
ordem possível de eventos ou de coisas, dependendo portanto de um observador para captá-los de um certo ângulo ou perspectiva, e subordinam-se, assim, à posição
desse observador em relação a tudo o mais que o cerca. Exemplo disso são o tempo dos astrônomos e o tempo histórico; este padece do equívoco - registrado pelo Espírito
Humberto de Campos em Crônicas de além-túmulo - de Frei Dionísio, que no século VI anotou, com diferença de cinco anos, o nascimento do Cristo no ano de 754, em
vez do ano 759, como atestam também historiadores e astrônomos.

A contagem do tempo na civilização da Terra, independentemente do erro humano de Frei Dionísio e dos critérios científicos dos astrônomos, está submetida ao movimento
do planeta, inferindo-se daí, então, que não pode haver um tempo igual, uniforme, para todos os sistemas. Ele está, portanto, em sistemas isolados e tem a natureza
de cada um deles; e, como em todos os universos, tanto macro quanto micro, tudo é sistema, a intemporalidade absoluta, a eternidade como conceito extremado e perfeito
é imaginável apenas em Deus. Deus está - ou é - além, ou acima, do tempo e do espaço, conhece e sabe tudo, como se comprova em O Livro dos Espíritos. Mesmo o homem,
aprisionado na "gaiola" espaço-temporal, eventualmente transpõe essas
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dimensões-limitações e viaja até o futuro nas premonições e pressentimentos, e até o passado, em regressões induzidas ou não.

No livro IV de sua Física, Aristóteles concebe o tempo como uma quantidade contínua formada de passado-presente-futuro, como um todo; embora não se saiba se são
apenas
rótulos, a formulação é coerente com a lógica aristotélica, segundo a qual ser divisível é próprio da essência de uma quantidade. O tempo é o número, a medida
do movimento segundo a razão, o aspecto, do "antes" e do "depois", enquanto o espaço é definido como sendo o limite do corpo. Admitidas essas concepções como relações
de substâncias, fenômenos, fica evidente que fora do mundo não há espaço nem tempo, e os vazios são impensáveis.

Em A gênese e em O Livro dos Espíritos, Kardec didaticamente recorre à imagem de um homem colocado no cume de uma alta montanha, observando o viajor que percorre
uma estrada pela primeira vez e ignora que perigos terá que enfrentar e que tipo de terreno acidentado terá de vencer. "Quanto à duração, mede-a pelo tempo que gasta
em perlustrar o caminho. Tirai-lhe os pontos de referência e a duração desaparecerá", como desaparece para o homem que está em cima da montanha.

A afirmação definitiva em relação ao assunto encontra-se no frontispício que Kardec apôs ao livro A gênese: "Para Deus, o passado e o futuro são o presente."
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V. O Espaço

Para Descartes a extensão é a propriedade essencial, atributo da substância material, a determinar-se na figura, no movimento etc. (seriam os modos da matéria),
enquanto o pensamento é a propriedade essencial do espírito, a determinarse no conhecimento, na vontade (seriam os modos do espírito).

Diversamente de Aristóteles, Kant afirma que tempo e espaço não são determinações objetivas, relativas a coisas reais e sim relações, modos subjetivos - ainda que
universais - de perceber e ordenar o sensível multíplice: não derivam de sensações nem de coisas, são formas constitutivas a priori do espírito.

Mas o estágio de compreensão da Humanidade, hoje, espelha a formulação da metafísica clássica, helénica, de que o universo está cheio de coisas, extensas e mutáveis:
cada coisa extensa tem o seu espaço, cada coisa móvel tem o seu tempo.

No campo da Ciência, no entanto - apesar de usar método diferente do da Filosofia - engendra-se a preparação do movimento de compreensão das potencialidades humanas
que deverão desenvolver-se neste novo milênio representado superlativamente pelo relativismo espaço-temporal de Einstein.

Um outro aspecto dessa cogitação é a confusão entre o espaço cartesiano e o espaço psicológico ou, como desdobramento, o espaço moral-psicológico, em ambos os planos
da vida. Lembramos, a favor do assunto, o acontecido com um desencarnado e com um encarnado.
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Kardec relata o que foi perguntado ao Espírito Lemaire, catalogado em O céu e o inferno: "Onde vos achais agora?", e Lemaire respondeu: "Estou no meu sofrimento".
Fica evidente que o Espírito não decodificou a palavra "onde" como espaço cartesiano; como seu estado vibratório era o do sofrimento, Lemaire estruturou a resposta
a partir de seu espaço moral-psicológico, que é lugar virtual, não-cartesiano.

Por sua vez, em Eu sou Camille Desmoulins, o jornalista Luciano dos Anjos, em uma das dez sessões de pesquisa de regressão de memória, realizadas de 19 de maio
a 08 de setembro de 1967, sob controle científico de Hermínio C. Miranda, regredido à personalidade do jornalista da Revolução Francesa, Camille Desmoulins, é solicitado
pelo opeuidor a fornecer informações acerca de um jantar que tivera com a família e amigos, em plena época do Terror em França. Tratava-se principalmente de uma
frase que Camille teria dito àquela oportunidade, situada, naturalmente, no tempo cronológico, convencional. Após perguntar ao magnetizador se a resposta era importante,
o sensitivo, em transe, diz: "Então espera um pouco que eu vou lá... Já estou aqui." O que aconteceu na elaboração conceitual do tempo e
do espaço por parte desse jornalista encarnado regredido?

Fica evidente que caíram as barreiras-limitações de tempo e espaço convencionais: Luciano dos Anjos transporta-se, viaja no seu tempo psicológico, que se confunde
com o espaço, e na época já passada da Revolução Francesa, declara
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"Já estou aqui.", valendo-se de estruturas frasais verbal e no minai que designam tempo presente, segundo a concepção clássica, e espaço de extensão, segundo a concepção
cartesiana.

VI. O Espírito em Evolução

O processo evolutivo educa o homem a ir-se libertando da matéria, e, portanto, do espaço; concomitantemente vai-se libertando também do tempo, porque o homem espacializa
o tempo. Por isso é-nos um tanto difícil entender como os Espíritos Orientadores da Humanidade não se dividem - no espaço, mas irradiam-se! Kardec anotou que o
Espírito percorre o espaço com a rapidez do pensamento e ao transportar-se de um a outro lugar pode ter consciência da distância que percorre e dos espaços que atravessa,
e pode também ser subitamente transportado ao lugar aonde deseja ir; a distância pode desaparecer completamente, dependendo isso da vontade do Espírito, já que ele
não pode dividir-se, porque é um centro que irradia para diversos lados: isso faz com que um Espírito pareça estar em muitos lugares ao mesmo tempo. Um Mentor Espiritual
pode estar em uma cidade ou país e simultaneamente em outra cidade ou país pela projeção de sua força mentomagnética, que prescinde do espaço e transcende o tempo
convencional.

Até algumas décadas atrás, tentava-se entender isso como exercício de abstração, porque a uma criatura em nosso nível evolutivo é praticamente impossível abstrair-se
do espaço e consequentemente do tempo. Numa perspectiva histórica, aplicando-se o raciocínio à situação do telefone, foi-se tornando possível o entendimento de "encurtar-se"
a distância, o espaço,
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ligando-se, por exemplo, do Rio de Janeiro para Salvador ou Londres, encurtando-se também o tempo. Até alguns anos atrás, para nos comunicarmos precisávamos escrever
uma carta e ir ao Correio (espaço) e aguardar (tempo) a entrega da correspondência (vencendo o espaço). Hoje, na era da informática, com o advento da internet,
enviamos e-mail, escaneamos imagens, ou seja, transportamos imagens de um para outro lipo de "espaço" - e literalmente, em uma fração de segundo, i mensagem ou informação
chega ao destino, encurtando-se o tempo e o espaço de uma forma antes inimaginável, como acontece também quando vivemos uma surpreendente simultaneidade (até onde
se pode viver isto em nossa atual condição evolutiva): de repente, "estamos lá", virtualmente, na guerra ou no concerto, no museu ou na biblioteca. "Encontrei Fulano
em um outro dia", disse-nos uma jovem.

Estes são indícios de que atualmente vivemos a pleno vapor o processo educativo que está promovendo o homem regenerado, mais moralizado e portanto menos materializado
- certamente já mais familiarizado com uma espécie de "encolhimento" do tempo e do espaço, e talvez já menos circunstanciado na dimensão espaço-temporal.

É o descortino do nosso entendimento no que diz respeito à condição de nossos Mentores que não se circunscrevem, como nós, à dimensão espaço-temporal. Nós estamos
a caminho. Após a compreensão virtual, seguimos para a vivência do espaço, virtual.

VII. Nenhuma Ovelha ficará Tresmalhada

Ora, como todos sabemos, o mundo moral é virtual, e é principalmente esse mundo que se vai transformando.
99
No campo das relações matéria-Espírito - algumas delas para nós ainda desconhecidas - o mundo físico em que estamos encarnados apresenta-se como contraponto ao mundo
moral: expele, com vulcões e terremotos, furacões e maremotos, a violência de sua intimidade geológica, ao tempo em que também o homem, no fluxo incessante e inelutável
do progresso, é convidado a fazer o mesmo, expelindo sua violência, sediada no mundo moral.

O chamado fim dos tempos abrange, assim, o ritmo da evolução que cosmicamente se distende na Terra, num horizonte de tempo cronológico, convencional, que compreende
décadas e séculos, e também no horizonte moral, na instância do humano, sendo, portanto "duração" no sentido bergsoniano, por revestir-se de fluxo, ritmo psicológico.

Do ponto de vista físico, a nossa Terra, com essa configuração de violentos espasmos geológicos, é que se está despedindo do cenário de nosso sistema como palco
de expiações e provas; essa configuração sim, descrita e anunciada por Jesus, é que deixará de existir - não em um dramático e único momento, mas gradativamente,
como já estamos percebendo, porque a natureza não dá saltos, como ensinaram Aristóteles e Leibniz: Natura nonfacit saltus - para dar lugar à Terra regenerada, em
100
novo patamar vibratório, mais branda e pacífica, compatível com as exteriorizações do homem regenerado.

' As novas dimensões do conhecimento, que se oferecem a partir de agora no mundo, são as dimensões do Espírito imortal. Se o tempo cronológico é sempre o mesmo,
o psicológico varia, segundo nossas aquisições espirituais nos vários planos conscienciais: esses são conceitos-chave para entendermos nossa estada na matéria e
nosso grande vôo rumo à Consciência, que depois de absorver e dominar o tempo, e conseqüentemente o espaço, alcançará o patamar da Superconsciência.

Cumpre-nos não esquecer: Jesus está cuidando do patrimônio cósmico que prometeu aos brandos e pacíficos.
101
BIBLIOGRAFIA

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos.Tradução Guillon Ribeiro. 71.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1991

A gênese: Os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução Guillon Ribeiro.25.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1982.

O céu e o inferno ou a justiça divina segundo o Espiritismo. Tradução Guillon Ribeiro. 34.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1987.

MIRANDA, Hermínio; ANJOS, Luciano dos. Eu sou Camille Desmoulins. 3. ed. Niterói, RJ: Lachâtre, 2003.

XAVIER, Francisco Cândido. Crônicas de além-túmulo. Pelo Espírito Humberto de Campos. 12.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1991.
102
Capítulo 6

MEDIUNIDADE E A ÉTICA DO DAR

I. Jesus reuniu os doze apóstolos Mateus (X, vv 1, 5-8) e conferiu-lhes dois tipos de poder: sobre os Espíritos impuros, a Um de os expulsarem, e o de curar todas
as doenças e enfermidades. E tendo-os enviado, instruiu-os a não procurar os gentios, não entrar nas cidades dos samaritanos, orientando-os a ir antes em busca das
ovelhas perdidas da casa de Israel, a ir e pregar dizendo que está próximo o reino dos céus. E ainda: "Curai os doentes, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos,
expulsai os demônios; dai de graça o que de graça recebestes. Não tenhais ouro, nem prata, nem qualquer moeda nos vossos cintos..."

Tal a missão, o poder, a pregação, a prática, e a pobreza dos apóstolos. E o que tinham aqueles homens materialmente miseráveis? A consciência da missão, o dom divino
que receberam e a instrução de distributividade desse dom.

Em outra oportunidade, Jesus, sem se colocar como juiz, intermediou o pedido de perdão de uma dívida que um homem contraíra, e eis que esse mesmo homem, que acabara
de ser beneficiado, não perdoou uma dívida bem menor a um seu devedor. Dentre outras coisas, fica evidenciada a dificuldade da criatura humana de entender o sentido
profundo do que lhe é dado sem qualquer condição ou cobrança, postura que a exime de qualquer movimento íntimo de gratidão, de generosidade.
103
II. A ética da distributividade

Das instruções de Jesus ressaltam alguns pontos, ou princípios:

A datividade. "Dar" tem sentido de ceder, presentear, doar, oferecer, obsequiar, produzir, praticar, dedicar; implica disponibilidade íntima, inclinação para o outro,
e pela sua própria natureza requer, na forma, uma correspondência de igual natureza desinteressada, ou seja, gratuita, sem pagamento de qualquer espécie. É a ética
do dar.

A gratuidade. Revela-se quase irresistível no sentido humano, que seduz a criatura com apelo de comprar dois e levar três unidades de qualquer mercadoria, porque
é sempre e imediatamente associada a dinheiro; a criatura é de modo geral atraída por ofertas e liquidações nas quais, não raro, a gratuidade oculta o pagamento,
ainda que parcial, "mediante uma pequena taxa", ou mediante algum tipo de favorecimento, presentes, benefícios, e assim por diante. No sentido cósmico, divino, no
entanto, permanece ainda como desafio a criaturas na Terra, ínsita na instrução de Jesus aos discípulos.

A reciprocidade. Guarda categoria de lei no universo, e está presente no Pai Nosso, na oração de Francisco de Assis, no Sermão da Montanha, no "dai de graça o que
de graça recebestes".

III. A essência do exercício da mediunidade

O exercício da mediunidade deve revestir-se desses três princípios, seguindo a orientação de Jesus, e em sua feição
104
de missão ou de prova, é mesmo "luz na carne", como a definiu Emmanuel, e permite à criatura trocar a dor pelo trabalho, como conseqüência de ser compromisso pré-natal.

Por ser faculdade orgânica de que são dotadas todas as criaturas, em maior ou menor grau de desenvolvimento, é necessária uma preparação da encarnação com o corpo
físico adequado. A faculdade então passa a ser inerente ao Espírito que dela se utiliza, e constituindo-se, portanto, em faculdade natural, é elemento renovador
da posição moral da criatura terrena, sempre que ligada aos princípios evangélicos, porque a energia elétrica, em si mesma, não guarda relação direta com os princípios
morais que regem a vida dos seres.

IV. O perfil do médium

Há portanto, basicamente, dois tipos de perfil de médium: um, de acordo com os moldes estabelecidos por Jesus, e outro, segundo as tendências humanas, que está ilustrado
nas obras espíritas, como por exemplo em Trilhas da libertação, pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda, pela psicografia de Divaldo Franco, obra que trata da
trajetória de um médium que faliu no exercício da faculdade, malbaratando oportunidade que lhe fora granjeada pela interferência de abnegados Mentores Espirituais
para a retificação de graves insucessos em encarnações anteriores.

O médium Davi entregou-se à mediunidade, mergulhando, no entanto, no personalismo doentio e na presunção exacerbada, na soberba, ingratidão, vaidade. Logo vendiam-se
fichas de atendimento e até os "amigos do médium eram saudados com sorrisos e gentilezas, mimoseados com presentes pela
105
clientela habitual,... em uma excêntrica mistura de ação social, caridade e comercialismo vil". E deixando-se subornar pelo dinheiro e presentes valiosos, acabou
experimentando grave processo de obsessão, com ênfase na área do comportamento sexual.

O autor espiritual adverte: "Mediunidade sem Doutrina pode ser comparada a veículo sem freio avançando na direção do abismo", eis que "a conduta é muito importante,
mental e física, seja de quem for, porquanto é através dela que se mantém a sintonia com os Espíritos, conforme também ocorre entre os homens na esfera social. Quem
conhece a verdade assina compromisso com ela, e todo aquele que se identifica com os postulados da imortalidade deve viver de forma consentânea com essa crença,
ou, do contrário, a sua é uma aceitação falsa, destituida de fundamento e legitimidade

E ainda: "O melhor amigo de todo médium, no seu processo de evolução, é sempre a dificuldade, que o impele ao bem, à oração, à meditação, conduzindo-o à humildade..."
V. O "vendilhão do templo"

Esse quadro da vida insensata de médium sem Doutrina pode ser associado, de forma metafórica, à passagem do Evangelho de Mateus (XXI, 12-13) em que Jesus entrou
no templo de Jerusalém e começou a expulsar dali os que
106
vendiam e compravam ... e "ao mesmo tempo os instruía, dizendo: Não está escrito: Minha casa será chamada casa de oração por todas as nações? Entretanto, fizestes
dela um covil de ladrões!"

A casa pode ser o psiquismo, o locus da mediunidade, a casa mental do médium - e também o corpo físico, ocupada por comerciantes e ladrões, a um tempo os próprios
vícios do espírito encarnado como médium e aqueles que o obsidiam, afastando-o do objetivo de ser a casa de oração e trabalho no bem, gratuito, em vez de prestar-se
ao trabalho subsidiado por compra e venda, de fichas de atendimento, por exemplo, de consolo, e assim por diante.

A natureza da mediunidade é diferente da do dinheiro, e portanto não devem associar-se uma e outro. Além do mais, Deus não quer, como lembrado em O Evangelho segundo
o Espiritismo, que os materialmente pobres fiquem privados de instruções e orientação para o caminho do bem e para a
fé.

Os Espíritos Superiores repelem qualquer interesse egoístico e afastam-se, depois de instarem paciente e persistentemente com o médium. Então, companheiros desencarnados
ociosos e vulgares, levianos, mentirosos, brincalhões, inescrupulosos, assumem o lugar, porque os espaços de qualquer natureza nunca permanecem vazios por muito
tempo.

Para que se obtenham comunicações sérias, é indispensável granjear a simpatia dos Espíritos Superiores pela
107
humildade, devotamento, abnegação, retidão no proceder, e absoluto desinteresse moral e material.

A natureza da mediunidade difere da natureza do talento e da aptidão, porque estes últimos resultam de esforço próprio de cada criatura, enquanto que a mediunidade,
faculdade essencialmente móvel, fugidia e mutável, torna impossível a qualquer médium garantir a obtenção de qualquer fenômeno espírita em um dado momento.

Foi exatamente por essa razão que Moisés proibiu a prática mediúnica, à vista de tanto abuso, charlatanismo, ignorância, credulidade, superstição, como se encontra
em O Evangelho segundo o Espiritismo .

VI. Mediunidade e amor

O Espiritismo elevou a mediunidade à categoria de missão, como claramente indica O Livro dos Médiuns, e particularmente a chamada mediunidade curadora, em que o
médium participa da transmissão do fluido salutar dos bons Espíritos, sendo portanto inadmissível, sob qualquer pretexto, vender-se aquilo que ao médium não pertence.

Jesus e os apóstolos eram pobres, mas jamais cobraram, sob qualquer forma, as curas que operavam. Porque amavam. É a lição de Jesus que todo médium deve aplicar
e sobretudo viver, qualquer que seja o tipo de mediunidade que estiver exercendo, em sua relação com irmãos encarnados e desencarnados.
108
A essência dessa missão está muito bem ilustrada na passagem em que Jesus, vindo do Tiberíades com João e Mateus, encontra Pedro e é abordado por uma mãe aflita
que trazia o filho paralítico em busca de alívio e cura. O ensinamento que Jesus dá a Pedro aplica-se a todos nós. "Cefas, põe o enfermo no teu colo e ama-o como
se fosse teu próprio filho!, porque o teu amor pode curá-lo. Ajuda-o, Pedro, e anda com ele!"
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BIBLIOGRAFIA

FRANCO, Divaldo. Trilhas da libertação. Pelo Espírito Manoel Philomeno de Miranda. 2.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1996.

KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução Guillon Ribeiro. 102.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1990.

O Livro dos Médiuns. Tradução Guillon Ribeiro.45.ed.Rio de Janeiro: FEB, 1982.
110
Capítulo 7

DA SATISFAÇÃO DAS NECESSIDADES À FELICIDADE

I. Um dos grandes desafios do Evangelho e do Espiritismo convida-nos a estar no mundo sem ser do mundo, com base na verdade evangélica de que onde está o nosso coração,
aí está o nosso tesouro, vale dizer, a nossa felicidade.

E como a felicidade é o desiderato de todos nós, se perguntarmos a uma criatura o que lhe falta para atingir a felicidade, ela responderá de acordo, diríamos, com
seus gostos, necessidades, preferências: um operário dirá que é uma casa, um político que é o poder, um comerciante ou empresário que é o dinheiro etc. O Homem Sublime
de Nazaré disse-nos que Sua alegria, Sua felicidade é fazer a vontade do Pai...

O Espírito Emmanuel nos ensina que nós nos revelamos em tudo que pensamos, dizemos ou fazemos. Já a Psicologia nos informa que todo comportamento é motivado, é provocado
por disposição íntima, por uma espécie de energia interior que nos orienta para tal ou qual direção na vida e revela os valores de cada um.
111
II. A questão dos valores

Segundo a Filosofia dos Valores, o homem reconhece-se como um ser em carência, e preenche suas carências ou seus valores escolhendo seres, ou elementos, que ele
julga possam atender suas lacunas, materiais, físicas, morais, afetivo- emocionais, espirituais. Nem sempre acerta na escolha, como nos é fácil constatar ao nosso
redor, ou em nossa própria experiência pessoal. Para satisfazer a fome, por exemplo, valemo-nos do alimento, que se concretiza no pão, na fruta etc; no entanto uma
criança muitas vezes come terra quando sente fome, escolhendo, portanto, o ser ou elemento errado, como faz um adolescente, ou mesmo um adulto quando atravessa,
por exemplo, uma fase de insegurança emocional, dificuldades financeiras ou desemprego, e volta-se para o uso dos tóxicos, do fumo, do álcool, como "compensação",
ainda que não consciente, para o preenchimento de suas lacunas existenciais.

A pergunta fundamental é então a de como ser feliz, ou, em outros termos, que valores preencher, e como fazê-lo. Ressalta a óbvia constatação de que são profundamente
diferentes as escalas de valores dos Espíritos inferiores e as dos Espíritos Superiores - porque todos temos, em ambos os planos da vida, nossa própria escala de
valores, inerente à condição de criatura humana. A Mentora Espiritual Joanna de Ângelis classifica esses dois patamares evolutivos como subpersonalidade e superpersonalidade,
respectivamente.

III. O homem velho

Assoma-nos à mente, de imediato, o perfil da subpersonalidade, que Paulo chamou de "homem velho", e é de se indagar de que se alimenta esse "homem velho",
112
senão de propriedades e bens materiais, de roupas caras assinadas por griffes famosas, de alimentos em quantidade excessiva ou de natureza danosa ao equilíbrio
físico, do frenesi sexual, de projeção na comunidade etc. Tudo isso - e muito mais - esse homem considera como fundamental para alcançar o bem-estar e a felicidade.

IV. A hierarquia das necessidades humanas básicas

Abraham Maslow, um dos mais destacados representantes da psicologia humanista, e junto com Stanislav Grof, lambem da psicologia transpessoal, estudando as necessidades
humanas, apresentou suas conclusões sob a forma de pirâmide, hierarquizando-as em patamares. O primeiro deles é o das necessidades fisiológicas, aquelas indispensáveis
como combustível da vida, e nelas inscrevem-se beber, comer e procriar. Uma vez satisfeitas, a criatura passa então automaticamente ao patamar seguinte, o da manutenção
da vida, na esfera da proteção da integridade física, contra intempéries e outros perigos, buscando então o abrigo de uma habitação - que pode ser até mesmo uma
caverna, de roupas e agasalhos, ou de reservas de alimento - tudo isso para manter vivo, e em segurança, o corpo físico. Dizem respeito também a esse nível de necessidades,
o trabalho, os benefícios sociais e financeiros, no caso dos adultos; ocasionalmente também a adesão a certas regras religiosas, para evitar imprevistos, pode constituir-se
em sensação de segurança.

Só depois de atendidas essas necessidades básicas, fisiológicas e de segurança, passa o homem a buscar a sociabilidade
113
e o afeto - que caracterizam a sua natureza gregária, já detectada e enunciada por Aristóteles, procurando a aceitação social, do grupo - o que se torna manifesto
quando o indiví duo afilia-se a grupos, gangs, ou até mesmo quando pratica algum ato de generosidade visando apenas ser aceito socialmente. Quando esse anseio de
camaradagem é satisfeito, a saúde mental do organismo volta a condições mais satisfatórias, enquanto que a não-satisfação de tais necessidades gera a probabilidade
de eclosão de desajustamentos graves.

O nível seguinte é o da estima e reconhecimento, que orienta o indivíduo para o esforço no campo do exercício profissional ou do convívio social de forma a sentir-se
respeitado, estimado. Esse nível representa a conscientização da própria importância para os outros, e o reconhecimento desse fato pelos outros. Eliminam-se assim
o sentimento de inferioridade, ou fraqueza do ego, elementos de síndrome de muitas neuroses, porque em seu lugar instalaram-se a autoconfiança sadia, o prestígio,
o merecido respeito. Madre Teresa de Calcutá recolhia os doentes terminais das ruas e levava-os para a Casa dos Moribundos, sob sua administração. Certa vez um jornalista
perguntou-lhe por que motivo fazia aquilo, já que aquelas pessoas iam morrer mesmo, às vezes em poucas horas, e ela respondeu: "Para que se sintam amados!", ou seja,
estimados e reconhecidos em sua condição de humanidade, ainda que apenas nos momentos derradeiros da vida na carne.

No ponto mais alto da pirâmide, Maslow situou a autorrealização, que depende do que a psicologia chama de nível de realidade, o que requer boa dose de análise da
vida e de seus momentos e quadros instalados, de autoavaliação e,
114
Hierarquia das Necessidades Humanas segundo A. Maslow

acima de tudo, de autoconhecimento. Trata-se do desejo de se tornar cada vez mais o que se é, de tornar-se tudo o que se é capaz de ser, que nos leva a tentar a
aplicação máxima de nossos talentos e potencialidades para servir à sociedade, qualquer que seja a posição em que nela estejamos inseridos.

V. A não-satisfação das necessidades

É por todos sabido que quando as necessidades não são satisfeitas, constatam-se variações de comportamento que podem ser infinitas, principalmente se considerado
o conjunto de experiências de encarnações anteriores - embora seja possível traçar padrões gerais, partindo do ponto essencial da questão que é a frustração. A partir
dela, o indivíduo elabora o retraimento interno - ou apatia, ou o retraimento externo - ou fuga.
115
A frustração pode também ensejar a agressão, que por sua vez pode ser internalizada, quando o indivíduo constrói úlceras, depressões e vários outros desequilíbrios
ou enfermidades; ou é possível ainda que se externalize, dirigindo-se à fonte causadora da frustração, ou que se desloque na direção do outro - que pode ser tanto
uma pessoa quanto um objeto inanimado; é quando o indivíduo bate portas, chuta coisas, come ou bebe em demasia, reprova-se na escola, namora a pessoa errada, descarrega
essa energia batendo em algum boneco parecido com o chefe, por exemplo.

Há ainda as reações psicossomáticas como angina do peito, colite, asma, enxaqueca, alergias e neurites, dermatites e ciática, resfriado comum e também a aceleração
de pulsações cardíacas, respiração irregular, digestão comprometida, tensão muscular, febres ou fadiga. O mais significativo produto da frustração, no entanto, segundo
alguns, é a ansiedade, um estado desagradável, sensação de mal-estar, vaga e difusa.

Mas o indivíduo dispõe de mecanismos de defesa, como os de substituição (de um objetivo original por outro, como a troca de parceiros afetivos, por exemplo); de
compensação (como esforçar-se ao máximo em uma atividade para atenuar a deficiência em outro setor); de sublimação (como substituir uma atividade socialmente indesejável
ou irrealizável em determinada época por outra que não tenha essas características: é o caso de mulheres que substituem a maternidade pelas atividades de serviço
social etc); de repressão de uma situação ou problema (quando o indivíduo "desconhece", "esquece" a morte de alguém e age como se o fato não tivesse ocorrido). Acrescentam-se
ainda, naturalmente, as neuroses e psicoses.
116
Além das necessidades básicas, Maslow postula necessidades cognitivas e estéticas, complementares àquelas, ainda que menos frequentemente descritas; correspondem,
respectivamente, à necessidade de conhecer ou compreender, de manipular o ambiente em função da curiosidade, e de afastar-se do que é desagradável e desprovido de
beleza.

VI. As metanecessidades

Na trilha da evolução, a criatura, dando curso ao instinto gregário, realiza-se no grupo social, que ajuda a construir, mas deixa-se asfixiar em conflitos e tormentos,
em razão dos atavismos e atitudes agressivas, hábitos seculares profundamente arraigados no inconsciente, a repetirem-se como automatismos, que no entanto estão
fadados à superação, pelos convites ao crescimento que trazem o selo da eternidade, e impelem o ser à ascensão - que demanda sacrifício disciplina, vontade fortalecida,
renúncia e dedicação. Em função disso, impõem-se ao indivíduo necessidades de nível mais avançado - chamadas pelo Espírito Joanna de Ângelis de ético-moral-estéticas,
que por sua vez constituem-se, no espaço psíquico individual, no vestíbulo para as necessidades de natureza metafísica, fulcro da realização do Espírito imortal,
criado para a Felicidade e o Amor: as metanecessidades.

Nessa direção caminham todas as criaturas, por uma espécie de deotropismo, ou, na terminologia da Mentora Joanna de Ângelis, psicotropismo superior, inerência ao
ser que o impele natural e inapelavelmente para Deus, assim como o heliotropismo mobiliza automaticamente o reino vegetal para a luz.
117
Encarnada, a criatura transita sempre entre o desejado e o possível, no atual estágio evolutivo, e conflita-se, em especial quando vive sob a ótica do indivíduo
que descortina apenas o presente, na carne. Mas o ser desperto, e particularmente o ser banhado pelas dilatadas compreensões da Doutrina Espírita, não mais se contenta
nos limites acanhados da satisfação das necessidades de sobrevivência, de segurança ou afetivo-sociais. Ele deseja lutar o bom combate na intimidade profunda de
si mesmo, para superar os conflitos entre o possível, que tem, e aquilo a que aspira e pode conseguir, nesta ou em outra(s) encarnação (ões).

São já os apelos das metanecessidades, de que nos fala o Espírito Joanna de Ângelis, fortes apelos para o autodescobrimento, pela interiorização, para atingir a
autorrealização como Espírito, como ser real, integral e imortal.

As metanecessidades, tornando-se então imperiosas, mobilizam o ser para longe dos condicionamentos inferiores ancestrais e ele, desperto, arregimenta todos os recursos
de que dispõe, para a mudança de comportamento. Decidese então a substituir o perfil do "homem velho" - evidenciado na amargura e revolta, mágoa e desencanto, orgulho
e vaidade, impaciência, inveja e ciúme, ambição e maledicência, rigidez mental etc. - pelo perfil do homem regenerado em construção, que se desenha com sorriso e
abnegação, boa vontade e fé, paciência e perdão, esperança e equilíbrio, e outras tantas qualidades e virtudes delineadas por Allan Kardec em O Evangelho segundo
o Espiritismo. Este novo homem, ainda que não tenha atingido essas características
118
morais-espirituais, já é novo na proposição íntima de redirecionamento existencial, concentra-se nas metanecessidades, ampara-se na oração, na meditação, na interiorização,
no trabalho do bem e no estudo, como estratégias que libertam de ansiedades e conflitos, que fomentam sua ação edificante tanto em sua existência como para o bem
da sociedade e do mundo: sua conversação é sadia, a consciência reta, guarda harmonia mental em clima de amor profundo, e empreende a conquista do Si.

VIL Hierarquia e natureza das necessidades do ser em evolução

Com licença de Maslow, que chegou a falar em metarrealizações, porque desejava talvez ir além de sua própria formulação, e lembrando a Mentora Espiritual Joanna
de Ângelis, estamos propondo, sob a ótica da realidade transpessoal:

O processo não é imediato e, naturalmente, depende da força da vontade empenhada na tarefa de autoconstrução do ser que, desperto, transita dos diferentes estágios
das necessidades básicas ou primárias aos níveis das necessidades ético-estéticas, para subsequentemente alçar-se às metanecessidades, que ele satisfaz com o concurso
do sentimento e da razão, habituando-se às vibrações sutis de climas espirituais superiores, que já repercutem em seu psiquismo.

VIII. Hierarquia das Necessidades Humanas e Espirituais do Ser.

Nossa proposta, que apresentamos no quadro a seguir, é que o ser integral espiritual, na perspectiva da transpessoalidade, pode ser visto assim, do ponto de vista
da satisfação de suas necessidades rumo à felicidade:

necessidades

ser regenerado

homem velho

Necessidades Humanas e Espirituais do Ser
120
Quanto mais primitiva e materializada a criatura, maior a faixa de necessidades primárias e menor a das metanecessidades ou mesmo a das afetivo-sociais, na condição
de encarnado ou desencarnado, quando experimenta ainda a pressão daquelas necessidades, as primárias, como atestam as obras da Codificação Espírita, por Allan Kardec,
e outras que lhe são subsidiárias. E, inversamente, quanto mais evoluído o ser, maior a faixa de metanecessidades e menor a de necessidades de faixas inferiores,
quando encarnado; na condição de desencarnado, esse ser experimentará as metanecessidades e, se tanto, as necessidades de autorrealização. E assim subsequentemente.

IX. Recentemente cientistas concluíram que a felicidade depende de quatro fatores que se apresentam como necessidades: otimismo, alegria, coragem e sabedoria. A
Doutrina Espírita reafirma esses fatores, que são recomendações do Cristo para a humanidade, destinada à felicidade pela Paternidade Divina.
121
BIBLIOGRAFIA

FRANCO, Divaldo.Vida: desafios e soluções. 3.ed. Salvador: Liv. Espírita Alvorada, 1997. Cap.10.

MASLOW, Abraham. Motivation and personality. New York: Harper and Row 1954.

KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. 102.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1990.
122
Capítulo 8

RELIGIÃO, MULTICULTURALISMO E SIMBIOSOFIA

I. É boa toda religião que conduz o homem a Deus." A afirmativa é de Allan Kardec, o Codificador da Doutrina Espírita, no século XIX, e nos concita a uma postura
de união entre os homens e entre as religiões, sendo portanto uma inspiração para que estejamos voltados para aquilo que nos une a todos, a existência de Deus, o
Criador de todas as coisas, e a imortalidade da alma, além do conceito de fraternidade.

O ecumenismo é sem dúvida uma expressão do multiculturalismo, caracterizado pelo manejo das diferenças em nossas sociedades e por um discurso em defesa da diversidade
de formas de vida nas sociedades contemporâneas. Mas diferencia-se de outras expressões pelo fato de não se caracterizar por demanda de inclusão nem por reparação
de exclusões históricas: dentro da própria religião, como é o caso de excomunhões e de processos de Inquisição; e também entre religiões, como é o caso da relação
dos europeus para com os índios, tanto brasileiros quanto de outras posições geográficas em nosso continente. No entanto, essa truculência de alguns atores sociais-religiosos
não se esgotou nesses tempos mais recuados, e ainda hoje marca o cenário das lutas humanas em todos os campos, até pelas reivindicações de poder envolvidas no quadro.
123
II. O multiculturalismo

Na verdade, o multiculturalismo é tema complexo, algo controverso e até certo ponto indefinido, tal a sutileza das relações e suas implicações, que acabam por abranger
todas as facetas da vida em nossas sociedades. Estão aí envolvidos os valores gerais ou eternos, como liberdade, identidade e verdade, dentre outros, bem como a
percepção da diversidade humana, integração e interação de saberes, desierarquização de visões de mundo e, sobretudo, um grande e profundo amor e respeito pela Vida.

É sem dúvida o espaço do Múltiplo, da Diferença e da Diversidade do Outro. O convívio em condição de igualdade é, em princípio, desiderato de todos em todas as sociedades,
e constitui-se objeto da Filosofia e de outras áreas, e objetivo da área da Educação no sentido de trabalhar os valores diretamente vinculados ao "viver com" o outro,
de forma a que ambos possam expressar-se de forma consentânea à sua natureza humana.

III. A contribuição da Educação

Cabe à Educação propiciar condições, experiências e atividades de aprendizagem no desenvolvimento da inteligência emocional - embora sem excluir, evidentemente,
a razão e o intelecto - para que o indivíduo aprenda a viver e a estar com o igual, o que é certamente mais fácil; com o diferente, o que já é sem dúvida mais difícil;
e principalmente com o discrepante, este sim, o grande desafio para se atingir o chamado bom convívio. A percepção do que seja discrepante responde talvez pelo grau
de clausura
124
extrema que tem norteado os processos de intransigência nas várias áreas do viver e do expressar-se na vida dos homens.

Desse ponto de vista, a ação educativa garante um solo preparado para não recepcionar animosidades, tornando assim possível o diálogo interpessoal e intercultural
em todas as suas mais variadas nuanças. Tal ação requer, obviamente, alto grau de abertura para o processo de identidade tanto individual quanto coletiva, a construir-se
tanto no plano do autoconhecimento e da autoconsciência quanto no plano histórico e social.

A Educação tem consciência de que uma de suas tarefas é a de educar para estar com a Diferença e com a Diversidade do outro, através de uma abordagem pluriétnica,
@multicultural e multidisciplinar, contemplando o particularismo dos mores e dos traços - sexuais, de idade, de peso corporal, de deficiências como cegueira e paraplegia,
e todos os outros.

Mas uma das maiores contribuições da ação educativa está no âmbito da tomada de consciência de que cada pessoa, cada indivíduo, pode ser, a um só tempo, tanto discriminado
quanto discriminador. Assim, um profissional no escritório ou um operário pode ser discriminado no universo laboral, mas ser um discriminador na esfera doméstica,
e assim subsequentemente. Isto reforça a necessidade do processo de autoconhecimento, baseado no processo de autocrítica, o que implica no princípio de reflexibilidade,
que se fundamenta na consciência da própria identidade e do trabalho sobre si mesmo, tanto na instância do indivíduo quanto na do grupo.
125
IV. Os desafios do multiculturalismo

Com o advento do mundo globalizado, mais ainda se acentuam os desafios próprios do multiculturalismo que sr refletem no ecumenismo, como seu desdobramento.

O espaço religioso, como territorialidade tanto física, quanto metafísica e psicológica, é marcado pela presença de pessoas em suas singularidades, tornadas manifestas
em seus diferentes tamanhos, etnias, visões de mundo, modos de ser, sentir e agir. É portanto o espaço do múltiplo, através da presença da Diferença e da Diversidade
do Outro.

Os movimentos incontroláveis do processo de globalização vêm tornando mais sutilizados alguns conceitos e até vivências, como por exemplo, o do espaço religioso,
que, com a internet, vai-se tornando, digamos, parafísico - como preparação para a vivência do que é metafísico em sua instância própria, ou seja, o espaço fenômenológico
do Espírito que se dirige a seu Criador e O recebe em seu íntimo. A reflexão remete-nos à palavra do Cristo, anotada por João (IV: 1-21,23):"... crê-me, virá tempo
em que não será nem neste monte [em Sicar, cidade da Samaria] nem em Jerusalém, que adorareis o Pai.... Mas virá o tempo, e já veio, em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e verdade;..."

E o que se constata a partir do que se encontra na rede, que agora propicia a experiência, por exemplo, do Muro das Lamentações pela internet, e de correntes de
orações on-line. A questão abre perspectivas de novas formas de identificação pessoal e coletiva, que não mais se definem, pelo menos não mais necessariamente, em
função de pertencimento territorial.
126
Em sua instrumentalidade, a internet presta-se a pro cessos próprios da visão multiculturalista, tais como articular tanto as diferenças quanto as equivalências
entre culturas e experiências, entre formas de expressão e de opressão C resistência, com a possibilidade de criar formas de entendimento e inteligibilidade recíprocas.

É o ethos da democracia, absolutamente necessário para lidar com a tensão entre igualdade e diferença, direito e reconhecimento. Esse pluralismo, que acaba constituindo-se
em um dos maiores dilemas do processo de globalização, visto à luz desse ethos, engendra a produção de uma tolerância consciente, ativa, e criativa.

Isto, no entanto, não deve criar a expectativa de uma incondicional fraternização ou de uma tolerância incondicional, porque há diferenças que agridem a própria
natureza dos valores gerais ou eternos e, desse ponto de vista, nunca será possível tolerar todas as diferenças, como por exemplo sacrifícios humanos, se tomarmos
como referência agora apenas uma prática religiosa.

V. A ética do cuidado

Um dos desdobramentos desse ethos configura a chamada Ética do Cuidado, que se espraia por sobre todas as relações, desde a figura do homem como cuidador, até a
relação dos indivíduos com a Mãe Terra, abrangendo também as doutrinas, ideias, sistemas que passam a ser objeto de cuidado por parte daqueles que os seguem e, portanto,
zelam pela sua coerência interna e externa. O reconhecimento da não-homogeneidade do
127
conjunto das manifestações da vida estende essa ética do cuidado também aos diferentes, e até aos discrepantes.

Interessante observar que as sociedades estão chegando a esse desiderato, que sempre foi mais próprio do universo das religiões, através da razão, e esse movimento
acabará por minar, no sentido positivo, as ideologias discricionárias, que têm servido de base ao fundamentalismo religioso, na feição que se tem feito responsável
por martírios ao longo da história da humanidade.

É também nesse quadro que se inscreve a postura que tem levado várias vertentes religiosas a buscar impor o seu Deus aos outros, transformando-O assim em uma das
principais fontes da intolerância.

VI. Espiritismo e multiculturalismo

Por isso, atento a esse perigo, e a tantos outros, no campo da prática religiosa, Allan Kardec, o Codificador da Doutrina Espírita, cuidou de afirmar: "É boa toda
religião que conduz o homem a Deus", postura recentemente assumida também pelo Dalai Lama. Mais do que uma assertiva, tal tomada de posição encerra a firme postura
doutrinária de um ecumenismo corajoso.

Mas a Doutrina Espírita encerra também a visão do multiculturalismo, como é, aliás, próprio da natureza essencial da Religião. O tema tem aspectos interessantes,
dos quais destacam-se alguns como objeto de reflexão, por semelhança e afinidade ou por diversidade de natureza.
128
6.10 multiculturalismo reivindica a unidade e a igualdade pelas vias do reconhecimento da não-homogeneidade étnica e cultural das sociedades e grupos dentro de uma
sociedade, a partir da assunção de que grupos que carregam ou defendem as diferenças étnicas e culturais não encontram espaço para sua integração. Daí a demanda
por inclusão, em nome do direito de ser como se é, em linha de igualdade, ou seja: a demanda por inclusão no espectro da pluralidade de esferas de valor e de práticas
institucionais, para reparar exclusões históricas.

Ora, o pressuposto da Religião é o de que todas as criaturas já estão incluídas pela condição da Paternidade Divina, comum a todos, indistintamente. Desse ponto
de vista são injustificáveis quaisquer tipos de exclusão, ou ex-comunhão - no sentido etimológico do termo, por incompatíveis com essa premissa cósmica, qual seja
a da inclusão de todos, por Direito Natural.

Por via de consequência, as diferenças que se encontram no mundo dos homens são uma linguagem de Deus, e tem, como tudo no universo, a sua razão de ser, pois Deus
nada de inútil fez ou criou.

O Espiritismo explica essa diversidade como uma estratégia da lei divina para se chegar à unidade de essência, verdadeira, espiritual. Ou seja, filosoficamente,
a diversidade é meio para se chegar à unidade, vistas cada qual em um plano de existência: a diversidade, no plano material, como recurso pedagógico divino para
que o indivíduo, o ser que é, em essência espiritual, possa integrar-se à unidade divina. E como lhe faltam ainda expressões de aquisições espirituais de largo curso
e alcance, tanto moral quanto
129
intelectual, as diferentes posições propiciadas pela vida no mundo são, na verdade, oportunidades de aprendizagem, de aperfeiçoamento.

Muitas religiões espiritualistas vêem cada indivíduo como um Espírito reencarnado, que pode ter estado, ou vir a estar, nas mais diferentes posições encontradiças
na sociedade dos homens. Esse quadro é que vai propiciar ao Espírito a oportunidade de aprendizagens como homem e mulher, rico e pobre, feio e bonito, branco, índio,
negro, ou, enfim, como representante de qualquer etnia. Esta é a visão reencarnacionista, que atende, na transcendência dos desdobramentos das existências sucessivas,
ao discurso multiculturalista.

Desse ponto de vista, portanto, não há por que reivindicar inclusão por motivos de exclusão histórica, até porque pode muito bem acontecer de serem os excluídos
de hoje aqueles que excluíram outros em vidas anteriores.

6.2 A luz desse mesmo raciocínio, não há necessidade de demanda por singularidade, que, do ponto de vista da Religião, é condição inerente ao Espírito; nem por espaço
para a diferença; tampouco por localismo. Tudo isto são contingências que se inscrevem como potencialidades na trajetória do Espírito imortal que cada indivíduo,
em essência, é.

6.3 A associação entre identidade e localismo, patrocinada por traços da cultura, tradição, etnicidade, nacionalismo e até religião, assume caráter secundário, à
luz da visão do Espírito que, na fieira dos tempos, atravessa tais condições. Desloca-se, portanto, o eixo tempo-espaço do
130
indivíduo no mundo material, para a dimensão metafísica do Tempo - ou não-tempo cronológico, e do Espaço fenomenológico do Espírito.

6.4 Por outro lado, à luz da Religião, a afirmação da identidade, própria do discurso multiculturalista, desloca seu eixo para a consciência tanto da realidade da
essência da criatura humana como Espírito imortal quanto da assunção de que o espaço-tempo da identidade - que requer que os referenciais locais sejam reinseri tos
- reveste-se de transitoriedade.

Tal perspectiva vai sendo assimilada pelas criaturas no decurso das encarnações e é a base para a construção da paz no mundo, que virá quando todos entenderem que
a gangorra das experiências no fluxo das encarnações garante a todos a vivência das várias angulações experienciais disponibilizadas pelas estruturas sociais, institucionais
ou não, construídas por todos no passado comum da humanidade.

6.5 O conceito de identidade como enraizamento em uma realidade sociocultural particular é processo histórico que se forja em função de percepções que engendram
ações estratégicas reveladoras do nível moral-espiritual das criaturas, ou Espíritos, em suas encarnações. Muitas dessas ações, em determinadas épocas, refletem
decisões deslegitimizadoras tanto da diferença cultural ou étnica viabilizadas pela exclusão social, quanto da inserção propiciada por tal ou qual ordem econômica,
política, intelectual, e assim subsequentemente.
131
Desse ponto de vista, somos todos, como indivíduos e como coletividades, herdeiros de nós mesmos, do que escolhemos e realizamos, no continuum do tempo. A aprendizagem
mais cabal dessa circunstância é o favorecimento do processo de autoconhecimento, autoconceito e autoimagem, no plano individual e coletivo.

6.6 Ainda sobre a associação entre identidade e localismo sob a égide da cultura, tradição, etnicidade, nacionalismo e religião, observa-se uma certa contradição
entre a afirmação da identidade e o avanço da globalização, que indubitavelmente promoveu uma desterritorialização, decorrente dos fluxos globais.

Mas a Religião trata fundamentalmente da religiosidade, essa sim, globalizada de forma absoluta por tratar-se de inerência à criatura humana. A Religião, em essência,
é diferente, em sua própria natureza, das práticas religiosas, algumas das quais já revelam a assimilação de mecanismos e instrumentos do fenômeno da globalização,
tais como, por exemplo, a internet.

No que se refere ao quadro de religiões praticadas no mundo, deve-se lembrar que há algumas religiões, fruto de determinadas culturas, que continuam sendo praticadas
por seus representantes, embora não exclusivamente, como a japonesa e a muçulmana, para citarem-se apenas duas.

E há outras, como o Espiritismo, por exemplo, que se desvinculam de quaisquer traços manifestos de tal ou qual cultura, ou de práticas religiosas mais difundidas.
132
O Espiritismo, doutrina filosófica, com fundamento científico, de conseqüências religiosas, não tem dogmas, nem liturgias ou sacerdócio organizado; em suas reuniões
e em suas práticas, não adota rituais, paramentos ou vestes especiais, não tem altares, imagens, velas nem ídolos, não utiliza palavras exóticas para designar seres
e coisas, nem bebidas alcoólicas, incenso ou fumo, tampouco fórmulas, invocações, promessas ou despachos, não administra sacramentos nem indulgências, não usa talismãs,
amuletos, nem orações miraculosas, e não permite pagamento pela prestação de serviços de natureza espiritual. Tal doutrina serve, pois, como exemplo de vertente
religiosa que se abstrai de localismos e referenciais culturais ou étnicos particulares, afinizando-se com os padrões conceituais do movimento de globalização.

6.7 Um dos desafios que a globalização coloca à experiência da identidade pessoal e coletiva é o da abertura, porque a identidade tende a fechar-se como estratégia
de proteção contra outros, ou seja, como uma espécie de uniformidade interna.

Por outro lado, o fenômeno da globalização tem provocado a necessidade de autopercepção das identidades localistas, o que implica tanto no processo de autoconhecimento,
com implícita autocrítica, quanto no de suas relações com outras identidades. Sob a ótica da Religião, os traços comuns, por filiação divina, inscrevem-se na instância
do Espírito imortal, em sua essência, e assim a identidade inscreve-se na dimensão do ser espiritual, e não na instância da personalidade, própria do ser encarnado,
esfera na qual cada um situa-se em atendimento a seu plano ou projeto existencial, ou encarnação, delineada de acordo com suas necessidades particulares de aprendizagens
específicas.
133
6.8 Outro desafio que a globalização coloca à identidade é o do pluralismo, que na verdade constitui um dilema desafio, num momento em que se constata um movimento
na direção da unidade.

São exemplo desse movimento, dentre outros, no campo econômico, as megafusões, o Mercado Comum Europeu, a instituição do euro, a aspiração ao Mercosul e mais recentemente
a Unasul; a difusão do Esperanto, no campo das línguas; o movimento da Ecologia, que percebe a Terra como um organismo; o interesse cada vez maior em torno da religiosidade,
muito mais do que em religiões propriamente ditas, havendo registro de pesquisas que identificam um número crescente de indivíduos que fazem o que alguns pesquisadores
chamam de "sínteses pessoais" para atender a esse anseio, comum a todas as criaturas, de dar vazão à religiosidade.

É preciso conceber a unidade no múltiplo, e a multiplicidade no uno. Essa união é o equivalente filosófico da complexidade, significando os elementos constitutivos
do todo como diferentes, mas inseparáveis. Nessa esfera inscreve-se o multidimensional das unidades complexas como o ser humano ou a sociedade: o ser humano, que
é ao mesmo tempo biológico, psíquico e social, afetivo e racional, e a sociedade, que comporta as dimensões histórica, econômica, sociológica e religiosa.

É que o todo não é a mera soma das partes que o compõem. Ele tem qualidades e propriedades que não são encontradas nas partes se estas estão isoladas umas das outras,
ao mesmo tempo em que certas qualidades ou propriedades
134
das partes podem ser inibidas pelas restrições oriundas do todo. Isto explica por que razão um dos desafios da I lobalização é o da abertura, ou seja: por que
os segmentos sociais querem ser aceitos e sentir-se incorporados ao todo, como consequência da globalização, e ao mesmo tempo querem fechar-se sobre si mesmos,
com vistas à proteção de sua identidade. O duplo fenômeno da unidade e da diversidade, tão próprio da investigação filosófica, torna-se patentemente manifesto no
campo das culturas,
que viabilizam a existência da cultura. Enquanto esta mantém a identidade humana naquilo que tem de específico, as culturas mantêm as identidades sociais naquilo
que têm de específico.

O homem, por sua vez, é, ao mesmo tempo, singular e múltiplo, e caberá ao século XXI superar a visão unilateral que tem definido o ser humano como sapiens, faber,
economicus e prosaicus. Esse quadro realça a tarefa da Educação no sentido de facilitar o desenvolvimento da consciência de pertencer à humanidade planetária e não
apenas mas também - a uma cultura. E contribui para a construção da paz e da fraternidade.

Para isto muito pode contribuir a Religião, que visa formar o cidadão do Universo, em sua instância metafísica, como desdobramento ou extensão do cidadão do mundo,
como resultado do trabalho da Educação, que deve comportar a perspectiva da Educação do Espírito. Nesse escopo está o entendimento de que os valores eternos são
para todos, e de que a ausência de nossos traços no outro não nos transforma em antagônicos. Torna-se
135
assim necessário socializar essas ausências de traços. Tais procedimentos são importantes no sentido de articular as diferenças e equivalências entre expressões
e culturas. Isto nos remete a conceber a Diferença como instrumento para chegar à Unidade, fundamento afinizado com a visão e o discurso multiculturalista, e presente
no corpus teórico da Doutrina Espírita, explicitado, por exemplo, em O Livro dos Espíritos, ao tratar das leis morais de Igualdade, de Sociedade, e de Justiça, Amor
e Caridade.

6.9 Essa visão da Diferença inspira a constituição de um Ethos da Tolerância, tanto no plano psicossocial quanto no religioso. Neste último, esse Ethos assenta-se
sobre o princípio da Diferença como Direito Natural, por desígnios divinos, que revelam a diferença de condições sociais, culturais, raciais e outras, como recurso
cósmico-didático-pedagógico.

Já no plano individual, esse ethos contempla a Diferença também como possibilidade de opção humana, que pode direcionar-se, pelo livre-arbítrio, positivamente na
Ética do Bem, ou negativamente, no caminho do desequilíbrio, do divisionismo, do preconceito, enfim, do que se convenciona chamar de caminho do mal, eticamente inaceitável,
mas humanamente a demandar atenção. Esse caminho, apesar de inaceitável, é compreendido como desvio, ainda que momentâneo, se tomado na perspectiva da eternidade,
e deve ser tratado segundo os princípios que norteiam a área da Educação, sob a ética da tolerância ativa, como preceito moral.
136
6.10 As reflexões sobre o tema do multiculturalismo trazem à luz uma chamada Teoria da Inteligibilidade, indispensável para que haja aceitação, pois é difícil aceitar
aquilo que não se conhece, que não se entende. Assim, tal conceito remete para a reciprocidade, o que implica em inteligibilidades mútuas, cada um - grupo ou indivíduo,
"traduzindo-se" para o outro - visando ao processo do que Edgar Morin chama de simbiosofia, ou a sabedoria de viver junto.

Com isso, a sociedade planetária chegará a compreender o que, na esfera das religiões, e particularmente na das reencarnacionistas, configura-se como Lei de Causa
e Efeito: o homem assume, como indivíduo e como integrante de um grupo ou ser coletivo, as consequências de suas escolhas, sendo, pois, seus próprios atos que forjam
seu caminho, ou o que comumente se chama destino.

Pela responsabilidade, inerente à liberdade de que está o homem investido e revestido, cada qual deverá, no curso do tempo, e através das várias reencarnações, responder
pelo uso que faça da liberdade de que é portador. É o livre-arbítrio, que faz indivíduos e grupos serem herdeiros de si mesmos, na fieira do tempo. Expressão e mecanismo
da Justiça Divina.

Desse ponto de vista, os que são oprimidos hoje podem ter sido os opressores do ontem, os racistas do passado os discriminados de hoje e assim por diante.

A inteligibilidade de que, na gangorra da Vida, cada qual poderá, e mesmo deverá, experimentar todas as posições disponibilizadas pelas estruturas das organizações
da vida na Terra, como oportunidades de aprendizagem, trará a
137
vivência da compreensão para com o outro, suas qualidades e lacunas morais, idiossincrasias e circunstâncias, e então poderão os homens, enfim, viver em paz.

6.11 No discurso multiculturalista a inclusão assume a condição de categoria, em função das demandas que se tornam necessárias como respostas às estruturas, na maioria
ainda egoístas, que norteiam as relações no mundo.

O egoísmo, que é o oposto do amor, da fraternidade e da solidariedade, configurando-se como o amor enlouquecido, centrado sobre si mesmo, tem orientado as situações
de exclusão do outro, seja indivíduo, nação, Estado, grupo, instituição, ou mesmo religião. Neste campo, delineia-se o paradoxo, próprio apenas do humano, de o discurso
religioso basear-se no amor enquanto em algumas vertentes religiosas a prática engendra a exclusão interreligiões e intrarreligião.

Este é mais um exemplo da proverbial dicotomia teoria-prática, neste caso revelando como repercute, nas variadas faixas evolutivas do psiquismo humano, a percepção
que cada religião tem da Divindade. A título de exemplificação, considere-se apenas um caso.

Como profeta, Moisés revelou aos homens a existência de um Deus único, soberano Senhor e Orientador de todas as coisas, promulgou a lei do Sinai e lançou as bases
da verdadeira fé; e como homem foi o legislador do povo pelo qual essa fé, aperfeiçoando-se no tempo, haveria de espalhar-se sobre a Terra.
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Já o Cristo houve por bem escoimar da antiga lei o que era transitório, puramente disciplinar e de concepção humana: tomou da antiga lei o que é eterno e divino;
acrescentou a revelação da vida futura, de que Moisés não falara, e também a das penas e recompensas que aguardam o homem depois da morte.

No psiquismo humano, através de mecanismo que a psicologia chama de projeção, tais orientações ganharam contornos, obedecendo a percepções dos homens, de um Deus
ciumento e vingativo, de um único povo privilegiado, de um Deus dos exércitos e até mesmo injusto, capaz de punir um povo inteiro pela falta de seu chefe, que exclui
cruelmente alguns de seus filhos, como não fazem os homens que são pais no mundo. Mesmo muitos dos que, ao longo da História, declararam-se seguidores do Cristo,
pautaram suas ações pelo exclusivismo e até pela perseguição, dentro e fora do âmbito de sua crença. Neste caso, a prática de alguns seguidores, e eventualmente
das instituições representativas de certas vertentes religiosas, funciona como um espelho, não da essência dos ensinamentos, mas da percepção que têm os homens de
tais ensinos, fundamentalmente da Divindade.

O raciocínio remete, ainda uma vez, à questão da unidade e da multiplicidade. Com efeito, todas as religiões têm uma razão providencial de ser, apropriadas que são
e têm sido ao tempo e ao meio em que foram trazidas por seus reveladores, constituindo-se em instrumentos para trabalhar os espíritos e assim semear os germens do
progresso. Ortodoxias à parte, dia virá em que todas essas crenças, tão diversas em forma, mas consoantes no princípio fundamental - Deus e a imortalidade da alma,
fundir-se-ão em
139
uma grande e vasta unidade, pelo despertamento que a razão e a experiência trarão inevitavelmente ao homem, como indivíduo e como ser coletivo.

A inclusão do ser no universo e no mundo, que é inerente ao ser, será percebida, enfim, não mais através de um constructo da razão, por mecanismos de ilação, mas
sentida como a dinâmica que rege, quer queiram ou não os homens, as relações da vida com a Vida.

6.12 Não há como negar que o discurso multiculturalista encerra reivindicações de poder, o que não significa seja isto necessariamente um mal, em se tratando de
partilhar a prática do poder com todos os atores na sociedade. Algumas religiões, no entanto, lamentavelmente têm sido instrumentos de dominação, explorando a credulidade
dos indivíduos e das massas em proveito de seu orgulho e ganância, envolvendo-se mesmo com as instâncias do poder temporal, muitas vezes imiscuindo-se em questões
de Estado. Ainda hoje, há vertentes religiosas que cada vez mais se politizam, rebaixando-se à categoria de instrumentos em ações que contrariam frontalmente até
mesmo os princípios das próprias religiões que representam.

E certamente contrariam a essência do que é Religião, que se funda em Deus, que é Amor, na natureza imortal do Espírito, e na filiação divina de todas as criaturas,
que devem nortear seu viver sem perder de vista tais princípios de transcendência do ser espiritual que somos todos nós, que na condição de criaturas devemos curvar-nos
ao Poder Superior de Deus.
140
VII. O aspecto transversal do novo ecumenismo

7.1 Essa origem essencial comum, por si só, já deveria bastar, à luz da razão, e portanto da lógica, para a vivência de um ecumenismo verdadeiro na Terra - com o
outro, praticante de religião diferente, mas também com outras áreas, inclusive de conhecimento.

É que ocorreu, e ainda ocorre, com as religiões, o já aludido fenômeno da clausura, que designa o movimento de grupos que se fecham sobre si mesmos, visando preservar
a sua diversidade, e por via de consequência a sua própria identidade, a despeito de reivindicarem abertura e espaço para a sua inserção.

Na esfera das religiões, a História atesta a ocorrência desse fenômeno em algumas delas, escoradas em dogmas e proibições, muitas vezes desdenhantes da lógica e
da razão, incluída aí a ciência, como produto destas. Razão e fé, por séculos, têm sido tratadas como excludentes nos domínios da religião, como se a ratio implicasse
necessariamente frieza e ausência de sensibilidade e sentimento, e não pudesse ser inspirada pelo Espírito e suas transcendentalidades, enfim, como se não fosse
também outorga de Deus à criatura.

O curso inevitável do progresso, cada vez mais acelerado, desvela fronteiras nas várias áreas da Ciência e da tecnologia que revolucionam a compreensão do micro
e do macrocosmo, dos universos de que fala a física, particularmente a moderna ou quântica bem como do universo psíquico e emocional do homem. De tal maneira que
passou a ser "politicamente incorreto" negar tais verdades científicas, além de ser passível de considerar-se, no mínimo, louco aquele que se colocar contra elas.
141
E este é o atual dilema das religiões. Permanecer em posições antagônicas às conquistas da ciência no mundo globalizado, que solicita, convida e até impõe posicionamentos
incorporativos ou inclusivos, em várias ordens, extensões e naturezas, passa a ser uma espécie de suicídio institucional. No entanto, isso não é fácil para tais
estruturas religiosas, particularmente porque em muitos casos baseiam-se também, e muito, em questões que não são de essência.

Ao que parece, o Espiritismo é o único exemplo de doutrina religiosa que se declara com grau de abertura de forma a interagir com os demais campos do conhecimento.

Sendo filosofia espiritualista, com fundamento científico, de consequências religiosas, mantém diálogo com todas as áreas. Como assevera seu Codificador, Allan Kardec,
o Espiritismo, "caminhando de par com o progresso, jamais será ultrapassado", e incorporará sempre as conquistas científicas "desde que hajam assumido o estado de
verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria". E diz, ainda, que a revelação espírita, "pela sua substância, alia-se à Ciência
que, sendo a exposição das leis da Natureza, com relação a certa ordem de fatos, não pode ser contrária às leis de Deus, autor daquelas leis. As descobertas que
a Ciência realiza, longe de o rebaixarem, glorificam a Deus; unicamente destroem o que os homens edificaram sobre as falsas idéias que formaram de Deus."
142
Com efeito, tal posicionamento previne as inevitáveis tensões e choques que os praticantes de algumas vertentes religiosas experimentam em sua vida pessoal, social
e profissional, impregnada de conquistas da ciência, sem as quais é inconcebível e mesmo irracional viver atualmente, e que em nada ferem quaisquer princípios da
Ética e da Moral, fundantes, em essência, da Religião.

O Espiritismo leva a efeito tal posicionamento porque, como Filosofia, cogita, induz, deduz ideias e fatos lógicos sobre as causas primeiras e sobre os efeitos naturais,
generaliza, sintetiza, aprofunda e explica, estuda, discerne e define motivos e consequências, os comos e porquês de fenômenos relativos à vida e à morte; porque,
como Ciência, investiga, experimenta, comprova, sistematiza e conceitua leis, fatos, forças, fenômenos da vida, da natureza, dos pensamentos e sentimentos humanos;
e também porque, das conclusões filosóficas e constatações científicas derivam-se as aplicações religiosas, como a Paternidade Divina, a irmandade universal e portanto
o culto natural ao amor de Deus.

Por esse motivo, ao conciliar, na transversalidade, a razão e a fé, o Espiritismo tem a fé raciocinada, inabalável, porque só o é a que pode encarar a razão, em
todas as épocas da humanidade, como acentuou o Codificador Allan Kardec

7.2 Esse amálgama de razão e fé carreia desafios e, ao acatar a Ciência, pelas vias da razão, a religião requer fundamentos que não sejam susceptíveis de questionamentos
à luz das conquistas novas, particularmente no campo científico. É bem oportuno lembrar a frase célebre de Einstein: "A ciência sem religião é aleijada; a religião
sem ciência é cega."
143
No caso do Espiritismo, a doutrina tem chegado a antecipar conquistas da ciência, através da psicografia de Chico Xavier, como, por exemplo, o "oceano de pura consciência",
admitido pela nova física, que é designado em duas das obras recebidas pelo médium mineiro: em Evolução em dois mundos (1958), de autoria do Espírito André Luiz,
como "a essência da matéria primária" ou "Hausto Corpuscular de Deus", uma metáfora audaciosa considerando-se as modernas teorias cosmogônicas baseadas nas descobertas
sobre os "buracos negros"; e em Mecanismos da mediunidade (1959), como "oceano de forças mentais em que os poderes do Espírito se manifestam." Nesta mesma obra,
encontra-se também a concepção do universo como um todo de forças dinâmicas e, igualmente, à semelhança da física moderna, "identificando o Fluido Elementar ou Hálito
Divino por base mantenedora de todas as associações da forma nos domínios inumeráveis do Cosmo, do qual conhecemos o eletrão [elétron] como sendo um dos corpúsculos-base,
nas organizações e oscilações da matéria, expressando o Pensamento do Criador"; o autor espiritual André Luiz revela ainda que "na Esfera Espiritual o eletrão é
também partícula atômica dissociável."
144
Em outras obras do mesmo autor, como as demais acima citadas, todas pela psicografia de Chico Xavier, está revelado que chegaremos a saber que a matéria é "luz coagulada",
expressão aproximativa do que a nova física iria formular teoricamente cerca de dez anos mais tarde. O mesmo autor espiritual, e também pela psicografia de Chico
Xavier, dedica o capítulo segundo de Missionários da Luz (1945), à epífise, ou pineal, como glândula da vida mental, caracterizada como laboratório de elementos
psíquicos, e órgão vivo, mesmo quando calcificada no adulto, antecipando o que iriam confirmar as pesquisas de Aaron Berner e sua equipe, na Universidade de Yale,
nos Estados Unidos da América, com a descoberta, em 1958, do hormônio da pineal, e os trabalhos de Axelrod, Wurtmann e equipe, que detectaram a enzima HIOMT, encontrada
somente nessa glândula.

Ainda André Luiz, Espírito, pela psicografia de Chico Xavier, em No mundo maior (1947), fala da intervenção do homem nos cromossomos, impondo o sexo ao embrião,
e o Espírito Emmanuel, também através de Francisco Cândido Xavier, em O Consolador (1940), esclarece, dentre outros temas ligados a todas as áreas do conhecimento,
sobre os chamados "sinais de nascença", como fenômenos sutilíssimos decorrentes da interpenetração de fluidos entre a gestante e o Espírito já ligado ao feto.

7.3 A relação da fé com a ciência pressupõe ainda, do corpus teórico da vertente religiosa, a abertura inerente à própria condição do que seja fazer ciência: isto
é, a abertura
145
para a desconstrução de verdades, porque próprias do humano, na linha de raciocínio de Popper, e de Kuhn.

Kuhn pensa que se produzem transformações revolucionárias na evolução científica, em que um paradigma, princípio maior que controla as visões do mundo, desaba para
dar lugar a um novo paradigma. E Popper considera a ciência como um campo aberto onde se combatem as teorias e também os princípios de explicação, isto é, as visões
de mundo e os postulados metafísicos; assim, a ciência não é somente a acumulação de verdades verdadeiras. Desse modo, seu funcionamento não é só o da posse e do
alargamento da verdade, uma vez que aí está implícita a luta contra o erro.

Este posicionamento é importante porque são os homens que interpretam os princípios de sua religião, e devem, em última análise, vivê-los em seu cotidiano, evitando-se
assim a separação indesejável entre a teoria e a prática, porque, afinal, a religião visa ao aperfeiçoamento do homem, onde quer que ele esteja.

A rigor, as religiões não precisam, nem devem, recear a aproximação da fé e da ciência. Enquanto esta tem por objeto o estudo das leis do princípio material, as
religiões devem ter por objeto - como o faz a Doutrina Espírita, para usar-se de apenas um exemplo - o conhecimento das leis do princípio espiritual, que é, em si,
uma das forças da Natureza. Assim, Ciência e Religião completam-se reciprocamente.

Em verdade, essa conciliação da fé com a razão é bem própria da índole do multiculturalismo, com a abertura de
146
ambos os campos às características e possibilidades do outro, em mútuo enriquecimento.

7.4 Essa é uma das manifestações da solidariedade, que assume feições em várias instâncias: interpessoal, intergrupal, transcultural, translocal, transnacional.
Filosoficamente, pode-se dizer que a solidariedade guarda categoria de lei no universo, e a visão holística atesta isso, uma vez que todas as coisas estão ligadas
entre si, como se constata à luz da Teoria de Sistemas.

Sob a ótica da Religião, a solidariedade é manifestação ou refração do Amor: ela é um de Seus raios, é potencialidade do ser e, como tal, é objeto do trabalho próprio
do âmbito da Religião, que trabalha a essência do ser e suas potencialidades.

A solidariedade inspira a atenção, o cuidado para com o outro, requer empatia, inscrevendo-se no âmbito de uma Ética do Cuidado, de que já se fala bastante hoje,
embora ainda não o suficiente, e que tem desdobramentos em várias instâncias: para com o Outro, seja indivíduo, ou coletividade; para com Ideias; para com a Diferença,
inclusive no campo das religiões, das políticas e de todas as manifestações; para com a Terra e a Natureza, que estão a requerer cuidado, principalmente porque são,
também, obra e expressão de Deus.

VIII. Simbiosofia como objetivo cósmico

Enfim, o multiculturalismo reforça a interação e a integração de saberes, subjacentes às preocupações da Filosofia e da Educação, bem como a comunhão de culturas,
etnias, religiões.
147
Cada vez mais fica realçada a importância da percepção tanto da diversidade humana e consequentemente de seus saberes, quanto da efemeridade do que é humano, o que
inclui as manifestações culturais, que, mesmo sendo mutáveis, apresentam diferentes graus de mutabilidade.

Esse quadro, próprio do homem em seu atual estágio evolutivo, contrapõe-se à Verdade, objeto da Filosofia e da Religião, e sob este ponto de vista, traz o selo da
permanência. Ela contempla o ser imortal que é o Espírito, dimensão de permanência que se contrapõe às instâncias das encarnações, que explicitam a presença do Espírito
em sua condição de individualidade essencial, assumindo o que, no mundo material, social, chamamos de personalidade, e que varia em suas diferentes experiências
encarnatórias.

Essas variadas roupagens personalógicas têm função específica como processo de aprendizagem para o Espírito, que, no curso das encarnações, transita do igual - por
força de sua origem divina, ao igual - seio de Deus ao qual retorna, pela via da desigualdade ou diferença, no curso das encarnações, através de diversas personalidades.
Ou seja, do Igual ao Igual, pelo Múltiplo, transitando por ambos os planos de vida.

Todo esse fluxo interexistencial como estratégia cósmica, divina, para que todos os seres, afinal, realizem a simbiosofia, ou a sabedoria de viver junto.
148
BIBLIOGRAFIA

KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução Guillon Ribeiro. 102. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1990.

A gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução Guillon Ribeiro. 25. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1982.

O Livro dos Espíritos. Tradução Guillon Ribeiro. 71. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1991.

MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. Ed. revista e modificada
pelo autor.

Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya; revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho. 2. ed. São
Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000.

SANTANNA, Hernâni T. Universo e vida. Pelo Espírito Áureo. 2.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1987.

XAVIER, Francisco Cândido. No mundo maior. Pelo Espírito André Luiz. 13. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1986.

Missionários da luz. Pelo Espírito André Luiz. 19.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1986.
149
_. Mecanismos da mediunidade. Pelo Espírito André Luiz. 9.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1986.

O Consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 9.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1982.

XAVIER, Francisco Cândido; VIEIRA, Waldo. Evolução em dois mundos. Pelo Espírito André Luiz. 7. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1983.
150
Capítulo 9

DO HOMEM VELHO AO HOMEM NOVO

I. A renovação é linguagem de Deus no universo, desde o verme singelo e silencioso que transforma a qualidade do solo, passando pelas plantas que morrem mas continuam
em bulbos enterrados aguardando o desvelamento de sua intimidade vital profunda, até os corpos celestes que nascem e vão-se transformando no Tempo.

Essa verdade metafísica encontrou formulação no campo da Ciência - com Lavoisier e com a Física, assegurando que nenhuma energia se perde no universo, e no da Filosofia,
desde os tempos recuados de Anaxágoras, professor de Sócrates, que antecipou o conceito-lei de que tudo está em tudo.

II. A Transformação como princípio e mecanismo

Assim, o homem novo está no velho, aguardando seu desvelamento, quando então cumprir-se-á o que Jesus sentenciou: "Brilhe a vossa luz!". As paixões, por igual, seguindo
esse determinismo cósmico, por sua vez também não desaparecem nem se destroem, mas transformam-se em virtudes - pelo mecanismo de canalização da mesma energia, em
outra direção, a do bem, ou, em outros termos:
151
é a mudança de sinal negativo para positivo, ou do bem. A favor dessa concepção de natureza filosófica, lembremos que André Luiz e outros Mentores Espirituais definem
o ódio como amor enlouquecido. Em outros termos, pode-se dizer que esse é o cerne do processo evolutivo, ou processo de transformação do homem velho para o homem
novo.

Assim, a Transformação, além de guardar categoria de lei no universo, é mecanismo de evolução, que atende todas as criaturas, mesmo a despeito delas mesmas. Mas
onde e em que estrutura do ser ocorre a transformação?

III. Transformação e valores

A escala de valores é uma espécie de painel de avisos/ informação sobre a(s) mudança(s) ocorrida(s) em função das experiências em cada encarnação.

A despeito de ainda se encontrar quem julgue a escala de valores como uma estrutura estática, na verdade ela é flexível pela sua própria natureza, em função das
estratégias didático-pedagógicas divinas ao longo das várias encarnações do ser. Desse modo, a criatura vai reescalonando seus valores, que mudam de posição: passam
de valores negativos a positivos, e vice-versa, e de negativos e positivos a neutros. E por que a criatura pode escolher tanto valores positivos quanto negativos,
do ponto de vista do Evangelho, uma vez que a lei de Deus está escrita na consciência? Os Espíritos Orientadores da Humanidade responderam a Kardec em O
152
Livro dos Espíritos, esclarecendo que Deus criou os Espíritos simples e ignorantes, "tendo tanta aptidão para o bem quanto para o mal"

Os valores negativos e positivos não guardam, necessária e imperativamente, na escala de valores dos indivíduos, qualquer relação direta com os fundamentos ético-morais
que regem o Universo e se encontram no Evangelho de Jesus.

Vejamos um exemplo. Para o homem ainda extremamente materializado, os valores maiores, que regem suas escolhas, e portanto a sua vida, são os ligados à matéria,
que são positivos para ele, mas negativos se cotejados com os do Evangelho. Para esse homem, os ensinos de Jesus representam os valores negativos. Mas como a Lei
é de evolução, mais cedo ou mais tarde esses valores da moral evangélica vão transitar do pólo de negatividade para o da positividade na escala de valores dos seres,
e uma vez lá instalados, se definitivamente enraizados, de lá jamais se movimentarão, passando a ocupar permanentemente um lugar na estrutura de valores positivos
desse homem. É que esses são os valores permanentes, positivos, eternos. Obviamente, os valores anteriormente situados na esfera dos valores positivos - no caso
do nosso exemplo, os valores relacionados à matéria - passaram para a esfera dos valores neutros ou negativos. Neste último caso inscreve-se o egoísmo, contrapondo-se
ao valor amor, caridade, altruísmo.

Os valores, portanto, forjam as atitudes, que são sabidamente internas ao indivíduo, e tornam-se manifestos
153
nos comportamentos, que são, esses sim, observáveis, ou captáveis, pelos demais que interagem com esse indivíduo. Essa mobilidade na escala de valores, como mecanismo,
aplica-se tanto aos positivos quanto aos negativos.

IV. O locus da transformação

Retomando agora a outra questão: qual o locus da transformação? A consciência, ou seja, o sentimento que cada um tem de sua existência, de seus atos e do mundo exterior.
Em seu sentido psicológico, a noção de consciência desenvolve-se com a memória e o retorno sobre si mesmo, o que corresponde ao processo de autoconhecimento, que
atravessa as experiências em ambos os planos da vida. Já no sentido moral, a consciência identifica-se com o sentimento do dever, que Rousseau, em seu Emílio, IV,
chamou de "instinto divino", conceito que se aproxima do enunciado pelos Espíritos Orientadores da Humanidade, respondendo a pergunta 621 de Kardec em O Livro dos
Espíritos: a lei de Deus está escrita na consciência.

V. Consciência e dever

A consciência vai desvelando o que nela está escrito à medida que o ser evolui, e, em grande parte, mediante o dever, que é obrigação moral e está ligado à razão.

O dever apresenta caráter absoluto, formulado por Kant como "imperativo categórico", exemplificado no "Não matarás", e tem também caráter relativo e transitório,
ou "imperativo hipotético", que se pode identificar, por exemplo, em "Se queres ser sábio, instrui-te". Imperativo, como se pode depreender, pela própria palavra,
é princípio que tem o caráter de obrigação imperiosa.
154
Imperativo categórico designa, em Kant, o comando obrigatório da moral: manifesta-se em nós pelo sentimento de uma impossibilidade de agir de outro modo, seria o
"deves porque deves" fazer ou agir desta maneira. Já o imperativo hipotético não é absolutamente obrigatório, deixando margem à escolha e decisão da criatura: "deves
fazer isso se queres ser feliz/ ser hábil/ vencer na vida". O dever pode advir da consciência individual, que é a obrigação moral propriamente dita, ou da presença
em nós de uma consciência social ou coletiva, descrita por Durkheim e William James.

No sentido multiplicado, os deveres podem ser "estritos", relacionados a questões de simples justiça, ou "amplos, largos", caso em que dependem da caridade. Na trajetória
do homem velho para o homem novo, o ser desperto ao nível da consciência pode começar com ações na instância do imperativo hipotético, que pode estar ligado a propósitos
de autorreferência do indivíduo, bem como na instanciados deveres "estritos", instrumentalizando-se assim para a instância seguinte.

Em muitos desses casos, frequentemente o indivíduo precisa de agentes externos para dar conta de seus projetos. É que sua força de vontade pode ainda estar débil
e por consequência seu grau de disciplina pode ainda não ter atingido um nível satisfatório de forma a isentá-lo de agentes externos para auxiliá-lo ou para impor-lhe
limites.

Configura-se então o caso do indivíduo heterônomo, ou seja, o indivíduo que precisa desses limites, que o psicólogo social norte-americano Allport chama de "sanções
externas", que podem estar exemplificadas, por exemplo,
no código nacional de trânsito, na Constituição, nas várias leis, dispositivos legais, e regulamentos. Nesse particular, a indisciplina, própria do homem velho,
está começando a ser transmutada em disciplina, característica do homem novo, que é o ser autônomo, que prescinde das sanções externas, porque estruturou, ele próprio,
as sanções internas, ou seus próprios limites, ou seja, autodisciplina. A propósito, muitas vezes confunde-se a disciplina, virtude, com o excesso de disciplina,
que leva ao autoritarismo, a um alto grau de clausura do indivíduo, e a rigidez mental. Mais um exemplo de que tudo em excesso é prejudicial é o que está configurado
no axioma da antiguidade "in médio virtus", observância própria do homem novo, caracterizado também pela temperança, já apontada como virtude por Platão.

Entre o dever de consciência e o dever social frequentemente o indivíduo enfrenta desafios, configurando-se verdadeiros conflitos de deveres. É o caso, por exemplo,
de um militar que se recusa a cumprir suas obrigações profissionais por motivos religiosos ou políticos, dentre outros. Na tragédia do poeta grego Sófocles, do século
V a.C, a heroína Antígona, que dá nome à obra, exemplifica esse tipo de conflito: como dever de consciência, ela quer enterrar o irmão segundo a religião, defendendo
as leis "não escritas" do dever, mas tem que enfrentar o tirano Creonte, impulsionado pelo dever social a recusar o enterro ritual.

V. Polaridade na unidade

Na verdade, o homem é basicamente um feixe de conflitos, em seu atual estágio evolutivo. E a despeito dessa constatação, nele está também, e principalmente,
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o ser de angelitude que será no futuro. Voltamos à questão da polaridade na unidade: o homem velho que se manifesta hoje traz em sua intimidade profunda o homem
novo que aguarda desvelamento no curso de seu processo de autoaperfeiçoamento. Pelo uso do livre-arbítrio, a polaridade do homem velho acaba por multifacetar-se
na diversidade, que se foi tornando manifesta em função das várias fases da vida civilizatória no planeta. Em muitas épocas, vigorou a visão unilateral do ser humano.
O homo sapiens emblematiza a racionalidade, o homofaber a técnica, enquanto que o homo prosaicus foi definido como o das necessidades obrigatórias, e o homo economicus,
que é também homo consumans, responde pelas atividades utilitárias ou pragmáticas.

Por ser um poço de contradições, o homem da razão é também o do delírio, ou homo demens, e o tecnológico é também o da festa e do jogo, ou homo ludens. O filósofo
Edgar Morin conceitua o homo complexus para designar esse ser que é um feixe de contradições, e que a Doutrina Espírita vê como o homem que se aprimora, a despeito
de si mesmo, porque submetido à inexorável lei do progresso. Pela incorporação das aprendizagens inerentes a cada encarnação, e decorrentes da vivência, no curso
dos tempos, de cada uma de suas facetas, o homo complexus alcançará o ponto de equilíbrio com o amálgama das lições edificantes, internalizadas no psiquismo do Ser.
Desse modo, esse homem será, enfim, complexo, no sentido não
157
de feixe de contradições, mas no de deter a diversidade de suas potencialidades, já atualizadas, tornadas manifestas, pelas encarnações, desenhando-se assim o homem
novo.

A questão está em que cada uma das facetas do homem tem seu espectro específico de necessidades, clamando por satisfação, tema que desenvolvemos no capítulo "Da
satisfação das necessidades à felicidade", tomando o conceito de metanecessidades, do Espírito Joanna de Ângelis, e a "Pirâmide das Necessidades Humanas Básicas",
de Abraham Maslow, que contém, em nossa análise, a trajetória do homem velho ao homem novo, tal como diagramado nesse capítulo.

VI. O homem velho

O homem velho satisfaz-se com pouco ou nada de espiritualidade, é esse homem aligeirado, superficial, que faz uma leitura epidérmica do mundo, de Deus - quando o
faz, e de si mesmo. Há quem diga que ele carece de senso moral, mas aprendemos, com a resposta à pergunta 754, em O Livro dos Espíritos que lhe falta o desenvolvimento
do senso moral, "porquanto o senso moral existe, como princípio, em todos os homens", o que nos remete à conclusão de que, a rigor, o homem novo já está formado
na intimidade do psiquismo, na consciência, como aliás nos asseguram os Espíritos Orientadores da Humanidade, em resposta à pergunta 621, já referida, também em
O Livro dos Espíritos: A lei de Deus está escrita na consciência."
158
O homem velho, em termos de níveis de consciência, está ainda adormecido, na abordagem de Gurdieff, distraído, e diríamos, com o Espírito André Luiz, em Missionários
da luz, que ele "caminha, distraído das bênçãos". É o homem que valoriza apenas o gozo, o imediatismo, a ilusão, que é dado ao repouso demorado, a prolongadas conversas
sobre temas fúteis, a intermináveis horas de caminhadas e ginástica, que não tem consciência de fazer cada ato, nem mesmo o de coçar-se, para citarmos apenas alguns
exemplos. Suas distrações acabam por conduzi-lo a mecanismos vários de fuga à realidade e, portanto, de desconsideração ou ignorância do essencial, como se depreende
do conjunto da obra de Joanna de Ângelis, Espírito. Suas necessidades ainda circunscrevem-se aos níveis de satisfação fisiológica, de estimulação à projeção social
e econômica, e de fixação doentia na vaidade, no que diz respeito ao seu corpo e a situações de sua condição e relações pessoais.

VII. O homem novo

Mas o ritmo incessante do progresso fará com que ele atinja os níveis que estão no topo da Pirâmide de Maslow, e além deles os das necessidades ético-moral-estéticas,
que, como assinalamos no capítulo já mencionado, "se constituem, no espaço psíquico individual, no vestíbulo para as necessidades de natureza metafísica, fulcro
da realização do Espírito imortal, criado para a Felicidade e o Amor: as metanecessidades... [que são] fortes apelos para o autodescobrimento, pela interiorização,
para atingir a autorrealização como Espírito, como ser real, integral, imortal... [e que], tornando-se imperiosas, mobilizam o ser para
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longe dos condicionamentos inferiores ancestrais e, desperto,... decide-se então a substituir o perfil do homem velho evidenciado na amargura e revolta, mágoa e
desencanto, orgulho e vaidade, impaciência, inveja e ciúme, ambição e maledicência, rigidez mental etc. - pelo perfil do homem regenerado em construção, que se desenha
com sorriso e abnegação, boa vontade e fé, paciência e perdão, esperança e equilíbrio, e outras tantas qualidades e virtudes delineadas por Allan Kardec em O Evangelho
segundo o Espiritismo."

O paradigma do homem velho é o "salve-se quem puder" e o do homem novo é ser universalista.

Abaixo de Jesus, muitos Espíritos vieram demonstrar esse homem novo no plano dos homens, para patentear a realidade do homem novo, que é potência, no sentido aristotélico
do termo, em cada criatura. Assim é que o planeta viu brilhar a luz de Sócrates, Confúcio, Francisco de Assis, Kardec, Gandhi, Krishnamurti, Zamenhof, M. Teresa
de Calcutá, Irmã Dulce, Chico Xavier, Dalai Lama, dentre tantos outros.

O conceito de homem novo resplandece da pena de Paulo, quando escreveu aos Efésios 4,24: "... despojai-vos do homem velho, que se corrompe segundo as concupiscências
do engano, renovai-vos no espírito do vosso entendimento, e revesti-vos do homem novo, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade."

Meio milênio antes dele, já ecoava no Planeta o ideal de Confúcio, o homem superior ou kiun-tseu, e desabrochava a metodologia de Sócrates para se alcançar a realização
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mediante a autognose, que faculta à criatura aprender o que se é, o ser que se é, ou seja, a autoconsciência. E dezenove séculos mais tarde a pena de Kardec formularia
o conceito de homem de bem, em O Livro dos Espíritos, questão 918 e em O Evangelho segundo o Espiritismo, XVII, item 3.

Esse homem desloca o eixo de seu ego para o outro - o semelhante, a Natureza, Deus. Assimila, introjecta o ritmo do universo, pelo qual passa a reger a sua vida,
desacelera o ritmo de suas atividades e portanto faz tudo com mais calma e consequentemente com mais consciência. Sua presença na economia do mundo passa a representar
um valor diferente do ponto de vista material e energético, dada a qualidade de seus pensamentos e sentimentos.

Atingindo patamares superiores de percepção, desenvolve uma Ética da Compreensão, que se torna manifesta, dentre outras evidências, pois não mais se entrega a distrações
que funcionam como ópio para o psiquismo, dedicando-se inteiramente ao exercício do diálogo e do amor, a algum trabalho voluntário, à prática do perdão e do desapego.

Age sempre lúcido, o que lhe permite a postura de autovalorização como movimento despretensioso e não egoísta da alma, e que faculta o encontro do Self como culminância
da fervorosa busca da harmonia e como instrumento da interação inteligência-sentimento de forma equilibrada, atualizando, no sentido filosófico, a religiosidade,
faculdade de que todas as criaturas dispõem, e que aguarda até que o próprio Espírito incorpore essa visão e essa postura, e sinta-se, então e finalmente, integrado
ao grande concerto da Criação, ciente de sua cidadania terrestre e cósmica.
161
Esse novo estar-no-mundo evidencia seus níveis superiores de consciência, que se refrata no que chamamos consciência antropológica, que reconhece que a unidade humana
traz em si os princípios da diversidade; consciência ecológica, que desvela o homo ecologicus, consciência cívica terrena, e consciência espiritual.

Há cerca de três décadas, o Stanford Research Institute, Califórnia, concluiu uma pesquisa com a formulação da Simplicidade Voluntária, que não é a reedição do pensamento
do escritor e filósofo norte-americano H. David Thoreau sobre a volta à natureza, constituindo-se em um dos precursores do movimento ecológico que hoje se espraia
por toda parte.

A Simplicidade Voluntária não é viver na pobreza, nem um retorno à natureza no sentido estrito. Muitos princípios dessa postura sinalizam, na sociedade ampla, para
algumas instâncias do processo que metafisicamente desenvolvemos como o desvelamento ou a passagem do homem velho para o homem novo. Um desses valores é a simplicidade
material, que implica a redução do consumo do supérfluo, a ênfase na beleza e na alegria de viver, o não-apego excessivo a coisas materiais, e o equilíbrio entre
os aspectos materiais e não-materiais da vida.

Já segundo um outro desses princípios, o indivíduo aceita, como um dado da realidade, a escala humana, que envolve anonimato, incomunicabilidade e artificialidade,
particularmente nas grandes cidades, mas ao mesmo tempo transcende essa escala humana.

Uma outra faceta dessa postura é a autodeterminação, no sentido de diminuir a dependência de instituições grandes
162
e complexas e de grandes burocracias na própria vida, e ao mesmo tempo buscar a autossuficiência material, mediante a autodisciplina e o "faça você mesmo", e também
reduzir o grau de dependência física ou emocional.

Ainda um outro aspecto dessa postura é a consciência ecológica, que considera a interdependência de recursos pessoais e naturais: não é preciso voltar à Natureza,
no sentido literal do termo, pois isso não é incompatível com a vida urbana.

Enfim, esse desenvolvimento da personalidade ou expansão da consciência, segundo o movimento da Simplicidade Voluntária, estrutura um viver de maneira externamente
simples e internamente rica.

VIII. Homem novo-mundo novo

Hoje, no mundo, as tomadas de consciência tornaramse urgentes.

O mundo novo é reflexo do homem novo, ou que se está renovando. Facilmente constata-se a transição do mundo velho para o novo, ou a transformação do mal no bem.

Contracorrentes regeneradoras, legado do século XX, estão mudando o curso dos acontecimentos na Terra. No campo da ecologia, em decorrência da degradação crescente
e da ocorrência de grandes catástrofes técnicas e industriais. Já o processo de uniformização generalizada vem provocando a firme busca pela qualidade de vida em
todos os campos, com interfaces na busca da frugalidade e da temperança. Em resposta aos modelos tirânicos do endeusamento do dinheiro,
163
surge o esforço por relações mais humanas e solidárias na vida pessoal e no trabalho, o que está em consonância com a busca de elementos mais poéticos para a vida
cotidiana, com a marca do amor e da alegria a alimentar éticas de pacificação das mentes e dos corações. Enfim, nota-se nitidamente a intenção generalizada de realizar
o maior potencial humano, psicológico, espiritual do ser, no processo de educação cósmica de aprender a ser, na construção da simbiosofia, ou a sabedoria de viver
junto.

Allan Kardec aborda a questão, realçando que "a reunião dessas duas faculdades, inteligência e moralidade, é, pois, necessária a criar uma preponderância legítima,...
[que só o princípio moral] pode constituir uma supremacia durável, porque terá a animá-la sentimentos de justiça e caridade... [e que] será essa a última aristocracia,
a que se apresentará como consequência, ou, antes, como sinal do advento do reinado do bem na Terra... A essa aristocracia chamaremos: aristocracia intelecto-moral...
Com bom direito, pois, podemos considerar o Espiritismo como um dos mais fortes precursores da aristocracia do futuro, isto é, da aristocracia intelecto-moral."

Afinal, o homem novo já está aí. Para quem tiver olhos de ver.
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BIBLIOGRAFIA

COUTO VALLE, Nadja do. Da satisfação das necessidades à felicidade. Reformador.Ano 119, n.2066, p.18-21, mai. 2001. Constitui o capítulo 7.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução Guillon Ribeiro. 71. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1991.

Obras póstumas. Tradução Guillon Ribeiro. 22. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1987.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tradução Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya; revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho.
2. ed. São Paulo: Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2000.

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Capítulo 10

SINAIS DOS TEMPOS E O NOVO RELIGARE

I. Afirma Allan Kardec, em A gênese1, que "o Universo nasceu criança", explicitando com essa imagem que na vida tudo é movimento, é processo, e reafirmando assim
que não há grandes saltos, grandes modificações da noite para o dia. Assim como o homem se surpreende com o desabrochar de uma flor cujo processo seus olhos foram
incapazes de captar, embora a isso estivessem atentos, o homem se surpreende também com certos fenômenos naturais ou morais, e para eles busca estabelecer marcas,
delimitações, pontos que lhe dêem a sensação de controle sobre eles.

II. O Tempo, o tempo e o ritmo

O Universo não tem tempo, como o entendemos na Terra, mas tem ritmo, que, à percepção humana, parece lento, porque ela tende a acelerar o próprio ritmo, acomodando-o,
de forma a fazê-lo "caber" no horizonte de tempo de uma encarnação, estimada estatisticamente, dependendo da parte do globo em que esteja o indivíduo, em cerca de
oitenta anos.

Como o Universo também não tem pressa, seus movimentos e mudanças escapam à percepção do homem, que,
167
não obstante, busca estabelecer pontos-limite para essas alterações tanto no mundo físico quanto no mundo moral.

III. Os sinais dos tempos

1. O terceiro milênio é um bom exemplo disso: embora marcado, ou passível de ser marcado pela convenção do tempo na Terra, no entanto, como conceito, à luz da conotação
de que se reveste, como mudança principalmente moral, no planeta, não se iniciou com a badalada de um relógio ou uma festa na praia no dia 31 de dezembro, ou mesmo
um lauto banquete na companhia de amigos. Nessa acepção, o terceiro milênio é um processo que já adentramos há algumas décadas, é mudança de padrão vibratório já
em curso.

Caracteriza-se pelas catástrofes naturais, como maremotos, terremotos, furacões, vulcões etc. e também pelas catástrofes morais da exploração do homem pelo homem,
do desrespeito à vida em todas as suas manifestações, como está aliás anunciado por Jesus e também na visão apocalíptica de João. Explicita-se então um paralelismo
entre o mundo físico e o mundo moral: a Terra expele a violência de suas entranhas, e o homem exterioriza a sua, sediada em seu psiquismo.

Essas catástrofes, pela sabedoria divina, oferecemse como instrumentos de resgates individuais e coletivos, tais como acidentes aéreos e marítimos de grandes proporções
que causam dezenas de desencarnações simultaneamente, casas e cidades inteiramente arrasadas, a "casa física" arrasada por doenças terríveis, a "casa mental" devastada
pela obsessão etc.
168
2. Diante desse quadro, o homem deixa-se impressionar e equivocadamente conclui que não há como se ter esperança, que "o mundo está mesmo perdido". Esquece-se, no
entanto, da lição de Jesus, de Seu ânimo, Sua fé e Sua coragem.

Passando pelas estradas poeirentas do mundo, o Cristo, em várias oportunidades, alertou-nos para a necessidade de aprendermos a grande - e difícil - lição de educar
o olhar.

Se o homem já ti vesse aprendido essa lição, poderia ele mesmo acalmar o próprio coração, tantas vezes sobressaltado com o estado de coisas em que se encontra o
mundo, porque então veria, como nos é a todos possível ver com clareza, outros movimentos renovadores para o bem, a desdobrarem-se diante de nosso olhar.

3. Em A gênese, Kardec comentou essa fase que "já se revela por sinais inequívocos, por tentativas de reformas úteis e que começam a encontrar eco".

Estruturas sociais, políticas, jurídicas e econômicas, aos poucos, vão-se alterando para melhor, expelindo de si as manifestações e constrangimentos da corrupção,
do indiferentismo pela criatura humana que é, aliás, a própria razão de ser de tais estruturas; a solidariedade entre os povos diante das catástrofes, promovendo
a remessa de alimentos, remédios, roupas, agasalhos, e enviando equipes especializadas para as tarefas de reconstrução de edifícios ou de tratamento de doenças;
comunidades carentes, esquecidas da atenção dos que têm a responsabilidade de administrar as soluções para a
169
problemática social, recebem a colaboração de pessoas simples de seu próprio seio, que trabalham gratuitamente em modestas e incipientes bibliotecas e escolas para
o benefício daqueles grupos; o horror cada vez mais crescente à guerra; os ingentes esforços de mais de vinte mil cientistas no mundo inteiro na busca de soluções
para a Aids, para citar-se apenas um exemplo; o advento do Mercado Comum Europeu, do Mercosul e mais recentemente da Unasul, a forçarem, ainda que por motivações
de natureza econômica, o entendimento e a união entre dirigentes e povos, com desdobramentos em todas as áreas de atuação do homem, dentro e fora dos limites dessas
nações.

Nesse mesmo quadro inscrevem-se as megafusões de companhias em vários setores da economia mundial; a significativa queda do Muro de Berlim; a Física e os territórios
intelectuais que lhe são afins, penetrando cada vez mais o mundo da energia e, portanto, da realidade do Espírito; a Psicologia, na recente formulação da transpessoalidade,
contemplando a realidade espiritual anterior ao berço e posterior ao túmulo, com todos os desdobramentos decorrentes; a divulgação do Esperanto como língua planetária;
as conquistas da informática; os progressos com a internet; a conscientização no campo da Ecologia e da Terra, como casa de toda a humanidade, suscitando a participação
de todos em sua preservação; e tantos, tantos outros movimentos no mundo a nos lembrar que a marcha do progresso continua presente a conduzir os destinos deste orbe.

II
170
IV. A gênese e a intimidade do processo de transformação

O olhar educado e o coração leve e confiante patrocinam a percepção de mecanismos que patenteiam a transformação do que se convenciona chamar de mal - que na verdade
não tem realidade ontológica - em bem: é mais um exemplo do que Santo Agostinho chamou deprivatio boni, privação do bem ou o mal.

Assim, da chamada sociedade da quantidade e da uniformização já nasceu uma nova e generalizada disposição pautada pela qualidade de vida, em todos os campos. À vida
pasteurizada e automatizada, puramente utilitária, já se contrapõe a busca de um viver mais humano e marcado pela beleza e simplicidade, pelo amor e pela alegria.
Quase como um desdobramento dessa corrente, surge uma vertente de frugalidade e mais equilíbrio, em oposição ao consumismo e ao endeusamento do dinheiro.

Por sua vez, as ondas crescentes de degradação do meio ambiente e de catástrofes técnicas e industriais deram origem a uma cada vez mais forte corrente ecológica.
E o desencadeamento da violência generalizada causa tamanho horror que todos buscam hoje várias correntes direcionadas para a pacificação de mentes e corações.

De sua intimidade psíquica, espiritual, o homem exterioriza a busca pelo transcendente, pelo metafísico, pelo imponderável em todos os pontos do mundo, com isso
abrindo espaço para que a religiosidade - sentimento, energia inerente à criatura como hífen que a liga à Paternidade Divina venha revestir-se de importância, muitas
vezes substituindo a religião como estrutura organizacional e de poder, ficando descartado, portanto, esse religare institucionalizado, superficial, que distancia
a criatura, como essência, de seu Criador.
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Essa ânsia de espiritualidade em toda parte tem produzido pesquisas, livros e filmes sobre EQM - a chamada experiência de quase-morte, a imortalidade da alma, o
mundo espiritual-emocional após a morte, a fenomenologia mediúnica, em especial a de efeitos físicos etc. - tópicos tão familiares aos espíritas, porque tão cabalmente
explicados pelos Espíritos ao Codificador Allan Kardec Interessante registrar que a maior parte dessa produção vem dos Estados Unidos da América, de Hollywood e
de grandes editoras; e através de sua poderosa estrutura de disseminação, propaganda e marketing, esse sistema distribui por todo o mundo, ainda que provavelmente
por motivações econômicas, a mensagem da realidade do Espírito, da imortalidade da alma, da comunicabilidade entre os dois planos da vida, da mediunidade. É curioso
que justamente no seio dessa sociedade, berço do pragmatismo, brotem esses movimentos, provavelmente para fechar o ciclo iniciado no século passado, quando justamente
lá tiveram início os fenômenos de efeitos físicos que iriam atrair a atenção de toda a humanidade, preparando-a para o advento do Espiritismo.

Tudo faz parte do processo de transição vibratória que se convencionou chamar de Terceiro Milênio. No campo da religiosidade, o mundo agora busca a ligação com a
@Realidade Suprema, intuída, como assinala Kardec, mesmo pelos povos primitivos sem que tivessem recebido qualquer Revelação; busca-a com o Noüs
172
de Anaxágoras, a Razão Perfeita de Sócrates, a "Ideia do Bem" de Platão, o Uno Supremo de Plotino, a Inteligência Suprema, causa primária de todas as coisas, na
definição do Espiritismo, recebida por Kardec dos Espíritos Superiores, como resposta à primeira pergunta de O Livro dos Espíritos*: "Que é Deus?", proposta em época
em que já se iniciava a pesquisa no campo da energia e que preparava o campo para as formulações de Einstein no século seguinte.

V. O Religare

"Religião" costuma ter duas interpretações etimológicas. Uma procede de religio vocábulo relacionado com religatio, que é a substantivação de religare, como "religar",
"vincular", "atar". Assim, o próprio da religião é a subordinação e vinculação à Divindade sendo, portanto, acentuada a dependência do homem para com a Divindade.

Para a outra, baseada em uma passagem de Cícero, De officiis, 11,3, o termo decisivo é religiosus o mesmo que religens e que significa o oposto de negligens. Neste
sentido ser religioso significa - porque significava à época de Cícero
- ser escrupuloso no cumprimento dos deveres que se impõem ao cidadão no culto aos deuses da Cidade-Estado, sendo acentuado o motivo ético-jurídico.

A rigor, o primeiro sentido refere-se mais propriamente ao campo da religião, e o segundo ao da justiça, tomada no sentido amplo que tinha o vocábulo iustitia entre
os romanos.
173
A religião interpretada exclusivamente como "justiça" engendra o perigo de abandonar o que é especificamente religioso para concentrar-se somente na moral, de que
é exemplo o pelagianismo - doutrina do inglês Pelágio, século V, que nega o pecado original e a corrupção da natureza humana. E quando a moral se sacrifica inteiramente
à fé, o perigo é o de destruir-se a universalidade da ordem moral e de separar por completo a moral da fé, de que é exemplo o luteranismo - doutrina do monge Martim
Lutero (1483-1546), que lutou inicialmente no seio da Igreja contra erros e abusos, sobretudo contra a venda das indulgências, o que foi o início da Reforma.

VI. O Novo Religare

O Espiritismo é precioso instrumento doado à humanidade para o delineamento de um Novo Religare, que facultará ao homem atingir essa Realidade Suprema pelo caminho
da Razão, da Ciência, do Sentimento e da Arte: diante de um novo milênio, um Novo Religare, no templo íntimo de cada criatura, como predisse Jesus, falando à mulher
samaritana, que lhe dissera: "Nossos pais adoraram neste monte e vós outros dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar." E Jesus retrucou: "Mulher, crê-me,
virá tempo em que não será nem neste monte nem em Jerusalém, que adorareis o Pai. (...) Mas virá o tempo, e já veio, em que os verdadeiros adoradores adorarão o
Pai em espírito e verdade; esses os adoradores que o Pai quer." E finalizou a lição: "Deus é Espírito e os que o adoram em espírito e verdade é que o devem adorar."
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Assim, a fé cega do homem escravizado pelo temor e condenado à aceitação de dogmas que sua razão não tem autorização para apreciar, é substituída pela fé raciocinada
do homem liberto pela própria inteligência e sentimento, na vibração do Bem. Com isso, a ideia do futuro com ócio ou castigo cede lugar à concepção do futuro de
trabalho, construção e luz, e o conceito de progresso, restrito a uma vida apenas, torna-se acanhado e desloca-se para o descortino do progresso infinito.

O Espiritismo como Filosofia, Ciência e Religião prepara o homem para a percepção da humanidade como ser coletivo, Família Universal de que nos falou Jesus e Cujo
comportamento exemplificou esse conceito-luz, que permanece como orientação para a criatura na Terra e como expectativa divina para o ser em nosso planeta no plano
regenerado.

O Espírito Joanna de Ângelis concebe esse novo religare do homem do Terceiro Milênio como "interrelacionamento com a Divindade de Quem se aproxima e a Quem se revincula",
facilitado pelo Espiritismo, como "Religião com que se afervora, acima das exterioridades" fruindo assim "o benefício da perfeita comunhão, com que se refaz e capacita
para a felicidade real, indestrutível e plena."

No momento em que o nosso planeta caminha para um estágio superior na escala dos mundos, como Kardec codificou em O Evangelho segundo o Espiritismo, deixando a
condição de cenário de expiação e provas - a Terra Regenerada
175
está nascendo criança. Esse processo, já em curso, alerta-nos para o fato de que já estamos no Terceiro Milênio, faz algumas décadas. O Espírito Vianna de Carvalho
assinala que esse processo dar-se-á "no indivíduo, de dentro para fora, espontaneamente ou através de ocorrências afugentes, que o convidem a reflexões e mudanças
de comportamento" e que será efetivado lentamente, "dentro de uma programática dignificante como tudo que é realizado pela Divindade".

Segundo os astrônomos e o Espírito Humberto de Campos, em Crônicas de além-túmulo, em 2000 o calendário já deveria assinalar o ano 2004 e, portanto, do ponto de
vista do tempo cronológico, já estaríamos no terceiro milênio naquela ocasião. E do ponto de vista do processo evolutivo do Espírito na Terra, também já estaríamos
adentrados no Terceiro Milênio. Como nos diz o Espírito Vianna de Carvalho

"A Nova Era já começou nas mentes e nos corações que se vêm devotando ao Bem e à Verdade."

Já alvoreceu o Novo Religare.
176
BIBLIOGRAFIA

FRANCO, Divaldo. Estudos espíritas. Pelo Espírito Joanna de Ângelis. 3.ed. Rio de Janeiro: FEB, 1982.

Atualidade do pensamento espírita. Pelo Espírito Vianna de Carvalho. Salvador, BA: Liv. Espírita Alvorada Editora, 1999.

KARDEC, Allan. A gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução Guillon Ribeiro. 25. ed. Rio de Janeiro: FEB. 1982.

O Livro dos Espíritos. Tradução Guillon Ribeiro 71. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1991.

O Evangelho segundo o Espiritismo. Tradução Guillon Ribeiro. 102. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1990.

ROUSTAING, J.-B. Os quatro Evangelhos: A revelação da revelação. Tradução Guillon Ribeiro. 6.ed.Rio de Janeiro:FEB, 1985. v. 4. O Evangelho segundo João.

XAVIER, Francisco Cândido. Crônicas de além- túmulo. Pelo Espírito Humberto de Campos. 12. ed. Rio de Janeiro: FEB, 1990.
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