sábado, 13 de junho de 2015

{clube-do-e-livro} Virando o jogo - Mônica de Castro

Virando o jogo
Monica de Castro

@@@ informa��es sobre a digitaliza��o @@@
Descri��o da capa: Apresenta em destaque a fotografia de um homem de cabelos loiros, mostrando somente o busto, ele usa um terno preto e uma camisa cor de rosa.
Ele est� fazendo um movimento de beijar uma rosa que segura em uma das m�os. Ao fundo destaca-se um por de sol com o c�u alaranjado e uma esp�cie de campo com uma
relva escura. No topo da capa o nome da autora na cor preta e no rodap� o t�tulo do livro na cor bege.
Numera��o das p�ginas:
Detalhes de diagrama��o:
Fonte do arquivo:
Observa��es: A pagina��o do Word corresponde a do original impresso desde que respeitada a fonte estipulada acima.
Vers�o do Office: MS Office 2003
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da referida Lei.
Contato: contato@speedebooks.com.br
@@@@@@


Coordena��o de arte: Mareio Lipari
Capa e Projeto gr�fico: Vitor Bel�cia
Diagrama��o: Priscilla Andrade
Prepara��o: Maria Gl�ria Nolia Pires
Revis�o: Sandra Garcia Cust�dio
1(r) edi��o -- 29 impress�o
10.000 exemplares - outubro 2012
Dados Internacionais de Cataloga��o na Publica��o (CIP)
(C�mara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
(c) 2012 por M�nica de Castro
Leonel (Esp�rito).
Virando o jogo / pelo esp�rito Leonel [psicografado porj
M�nica de Castro. - S�o Paulo :
Centro de Estudos Vida & Consci�ncia Editora, 2012.

Cap�tulo
1
Parecia que muitos anos haviam-se passado desde a primeira
vez em que trafegara por aquelas ruas. Passagens obscuras, vielas
malcheirosas, becos assustadores projetavam sombras indistingu�veis
nas paredes nuas. O lugar era horr�vel. J� nem se lembrava
mais de como fora parar naquele submundo. Ali era seu lar.
Mizael caminhava de cabe�a baixa, pensando na vida que
levara at� ent�o. Tudo o que fizera fora cometer crimes: roubar,
m�tar, estuprar. N�o sabia fazer outra coisa. Por mais que compreendesse
que era errado, todo o seu corpo vibrava quando
sentia escorrer nas m�os o sangue dos inocentes. Era algo que
o enchia de prazer, era o alento que lhe dava �nimo. Pena que,
algumas vezes, reconhecia, na intimidade do ser, uma insinua��o
de cansa�o.
Ouviu um ru�do estrondoso e olhou para o c�u, sem conseguir
v�-lo. Havia tantas nuvens pesadas que s� o que p�de distinguir
foi uma massa disforme de vapor gris. Em algum lugar por
detr�s daquele teto de chumbo, provavelmente, o sol devia brilhar.
Apressou o passo. Queria chegar logo � casa de At�lio. A
reuni�o fora marcada �s pressas, ele n�o sabia do que se tratava.
Intu�a que era algo importante, do contr�rio, At�lio n�o teria mandado
o maltrapilho do Damien � sua casa com tanta pressa.


Quando l� chegou, logo notou uma movimenta��o nervosa.
Todos entravam e sa�am atarantados, vestindo uniformes negros,
carregando armas pesadas. Era comum, em grandes opera��es,
aquele alvoro�o no bando. A quadrilha de At�lio era muito
competente no que fazia. Bandidos e assassinos, todos tinham
uma miss�o a cumprir. Poucos eram os que falhavam, e Mizael nem
gostava de pensar no que acontecia aos que n�o cumpriam
bem suas tarefas.
- At� que enfim! - exclamou Damien, logo que o viu
entrar. - Mais um pouco e At�lio mandaria busc�-lo pelos cabelos.
- N�o enche, feioso - rebateu Mizael, irritado.
Damien apertou os punhos, doido de vontade de acertar um
murro na cara de Mizael. Mas n�o podia. Ele era intoc�vel, o preferido
do chefe. Pessoa da mais alta confian�a, tinha praticamente
todos os poderes que At�lio atribu�ra a si mesmo.
- Voc� pensa que tem o rei na barriga, n�o �? - disse
Damien com raiva. - S� porque � o queridinho do chef�o acha
que � melhor do que todo mundo?
- Por que n�o d� o fora, palha�o? Ou prefere que eu lhe d�
uma li��o?
- Um dia, isso vai mudar. At�lio ainda h� de ver quem voc� �.
- Quem eu sou n�o lhe diz respeito. Voc� tem apenas que
obedecer. A At�lio e a mim.
- Voc� pode enganar At�lio e os outros, mas a mim n�o
engana. Conhe�o tipos como voc�.
- Devo sentir medo de voc�? - desdenhou. - Ponha-se no
seu lugar, verme, ou sou capaz de esmag�-lo com meus punhos.
Saia da minha frente, asqueroso. Ande! Chispe!
Engolindo a raiva, Damien se afastou. At� a chegada de
Mizael, ele e At�lio eram como irm�os. Realizaram muitas a��es
juntos, envolvendo-se em roubos, assassinatos e muito mais. N�o
havia quem n�o os temesse. Foram anos dedicados ao crime,
sempre escapando da pol�cia, ludibriando a justi�a. Mas o cerco
foi apertando, at� o dia em que n�o lhes restou alternativa a n�o


ser fugir e refugiar-se ali. O local n�o era dos mais agrad�veis. Era
sujo, feio, fedorento, mas pelo menos ficava fora do alcance de
vigilantes e soldados.
De repente, Mizael apareceu. Ele n�o fazia parte do bando
original, mas conquistou a confian�a de At�lio t�o logo chegou.
Tinha um jeito arrogante, frio, audacioso. Muito diferente dele, que,
apesar de corajoso, era tamb�m servil. Mizael, n�o. Obedecia sem
se mostrar subserviente.
Mizael n�o se juntou ao bando de imediato. At�lio j� o conhecia,
seus feitos no mundo do crime eram famosos. Mandou cham�-lo �
sua presen�a, ofereceu-lhe um lugar na quadrilha. Mizael n�o s�
recusou, como tamb�m o desafiou. Queria tomar seu posto de poder.
At�lio deu ordens para que ningu�m os interrompesse e trancou-
-se com ele em seu gabinete. Horas depois, quando sa�ram, j� n�o
havia mais animosidade entre eles. Pareciam velhos conhecidos.
Aos poucos, Mizael foi subindo na hierarquia do bando,
impressionando o chefe com suas fa�anhas inteligentes, audazes,
intr�pidas. Mizael n�o tinha medo de nada. Nunca tivera nem
medo de morrer.
� Com a proje��o de Mizael, Damien come�ou a decair. Era
bom para executar planos, contudo, n�o sabia planej�-los. Mizael,
por sua vez, era excelente estrategista. Seus planos sempre surtiam
efeito. Tanto que At�lio passou a confiar mais nele do que em qualquer
outro. Dizia que Mizael o havia conquistado pela intelig�ncia.
Havia algo mais naquela amizade. Damien sabia, sentia
uma energia diferente fluindo entre eles. Uma camaradagem
al�m do normal, uma simpatia t�o forte que levava At�lio a defender
Mizael em qualquer situa��o, justificando cada um dos raros
erros que cometia.
Essas lembran�as s� faziam aumentar o �dio de Damien
por Mizael. Relegado a segundo plano, Damien foi obrigado a
aceitar se transformar no capacho de At�lio e do pr�prio Mizael.
Por tudo isso, tinha motivos mais do que suficientes para odi�-lo
e n�o acreditar nele.
11


De longe, Damien observava cada passo de Mizael, mordendo
os l�bios para conter a f�ria. Mizael entrou calmamente na
sala de At�lio, passando no meio dos comparsas que bajulavam o
chefe. Muitos o olharam com antipatia, outros com medo.
- Mandou me chamar? - indagou ele, aproximando-se
de At�lio.
At�lio estudava um documento e levantou os olhos quando
ouviu sua voz. O sorriso que lhe deu poderia parecer gutural a
quem n�o o conhecesse, mas Mizael sabia que aquele era um
gesto cort�s.
- Sente-se - ordenou At�lio. - Tenho algo muito importante
a lhe dizer.
Sem nem desconfiar do que se tratava, Mizael sentou-se defronte
dele. A um olhar de At�lio, todos foram embora. Quando o �ltimo
comparsa fechou a porta, At�lio encarou Mizael e come�ou a falar:
- Temos estado juntos por muitos anos, n�o � mesmo?
- Sim.
- Durante todo esse tempo, sei o quanto voc� me foi leal.
- � verdade.
- T�o leal que � o �nico em quem confio para executar a
miss�o que tenho em mente.
- Miss�o? - interessou-se. - Do que se trata?
- � uma miss�o especial e muito perigosa. N�o sei se voc�
vai gostar.
- Por que n�o?
- Voc� ter� que nos deixar por uns tempos.
- Deixar voc�s? - surpreendeu-se. - N�o compreendo.
- Voc� j� deve ter notado que o mundo est� mudando. E
creio que, daqui para a frente, as mudan�as ser�o ainda maiores. A
situa��o no Oriente M�dio1 anda complicada. A coisa l� est� preta.
- E da�? O que temos com isso? N�o v� me dizer que quer
se juntar ao Saddam Hussein!
1 Refere-se � guerra Ir�-lraque, entre 1980 e 1988.
12


- Deixe de besteiras, Mizael! N�o � nada disso, por �bvio.
Mas voc� tem que convir que ele � uma inspira��o.
- Inspira��o para qu�? Por acaso vamos virar terroristas?
- � claro que n�o. Quero apenas que voc� perceba que,
em todas as partes do mundo, h� gente interessada na solidifica��o
do poder. Como n�s. Temos que conquistar nosso lugar no
mundo atrav�s da for�a.
- Tudo bem. Mas como?
- A� � que voc� vai entrar. O momento � prop�cio a novas e
ousadas a��es.
- Que tipo de a��es?
- A��es inesperadas, que surpreendam o inimigo em sua
mais pura inoc�ncia.
- Por acaso voc� est� planejando alguma guerra? - espantou-
se. - Ficou maluco? H� muitos soldados por a�, bem armados
e dispostos a tudo para nos deter.
- E da�, Mizael? Desde quando isso foi problema para
n�s? Mas n�o se preocupe. N�o � a uma luta armada que estou
me referindo.
� - Continuo sem entender.
- Voc�, que � t�o inteligente, n�o conseguiu ainda descobrir?
- Sou inteligente, mas n�o sou adivinho. N�o vejo o que
mais podemos fazer al�m do que j� fazemos. Como disse, s� nos
falta uma associa��o com o terrorismo.
- Terrorismo � coisa l� para os Estados Unidos. N�o
funciona no Brasil. E depois, n�o seguimos ideologia alguma.
N�o, Mizael, n�o quero nada com esses fan�ticos. Refiro-me a
uma infiltra��o.
- Mas n�s j� fazemos isso! Quantos de n�s temos influ�ncia
at� sobre pol�ticos e juizes?
- N�o � desse tipo de infiltra��o que estou falando. J�
foi o tempo em que s� uma a��o silenciosa surtia resultados.
Precisamos de uma investida mais efetiva. Uma guerra est� sendo
preparada para o futuro e n�o podemos ficar de fora.


- Essa guerra a que voc� se refere n�o � uma luta armada,
certo? - At�lio assentiu e Mizael continuou: - Se n�o vamos
vencer o inimigo pela for�a, ent�o, s� pode ser pela intelig�ncia.
� isso?
- Mais ou menos. Precisamos nos expandir para al�m
desses horizontes, ter uma atua��o mais efetiva.
- Muito bem. O que quer que eu fa�a?
- Vai me obedecer sem questionar?
Uma impercept�vel hesita��o trespassou o cora��o de Mizael,
mas ele manteve a postura firme e afirmou categoricamente:
- Voc� sabe que sim. Seja qual for a miss�o que eu tenha
que desempenhar, estarei pronto para ela.
- Excelente! N�o esperava outra coisa de voc�.
- E ent�o? Vai ou n�o me dizer do que se trata?
At�lio fixou nele os olhos naturalmente ofuscados pela ira e
disparou sem rodeios:
- Voc� vai reencarnar.
14

Cap�tulo
2
A estrada era de iama, mas perfeitamente vis�vel naquele
mundo de sombras. Por onde passavam, Josu� e Uriel iam
derramando uma luz branca, bastante suave, sobre o caminho,
de forma a ilumin�-lo sem espantar nem intimidar os habitantes
daquela parte do submundo astral.
- Tem certeza de que � por aqui? - indagou Uriel, um
pouco assustado.
- Certeza absoluta - confirmou Josu�. - E voc� n�o precisa
ter medo. Nada vai nos acontecer.
- Dev�amos ter trazido a pol�cia astral, voc� n�o acha?
- Para qu�? Para assust�-los ainda mais? Ningu�m aqui
est� sendo perseguido.
- Esse lugar � horr�vel - lamentou o outro, reparando nos
seres aparentemente dementados que vagavam por ali. - O que
leva esses esp�ritos a viverem assim?
- Culpa, orgulho, medo, �dio, inveja... muitas coisas.
- Pensei que o umbral fosse reservado aos maus, corruptos,
assassinos e coisas do g�nero.
- O umbral n�o � reservado para ningu�m. Cada um desses
esp�ritos escreveu a pr�pria sorte.
- Como?


- Pela semelhan�a de vibra��o mental e emocional, o que
d� forma ao pensamento. O ambiente plasmado � o resultado do
somat�rio dos muitos pensamentos e sentimentos desprendidos
pelos esp�ritos. A mat�ria resultante dos pensamentos de �dio, por
exemplo, pode se agrupar para formar uma ravina �rida, assim
como pensamentos de amor plasmariam um jardim.
- N�o h� puni��o em ser enviado para c�?
- A puni��o, quem imp�e � o pr�prio esp�rito, na medida
em que � ele quem cria os pontos de magnetismo que o atraem
para c�. Isso � s� mais uma ilus�o gerada pela mente doentia,
porque todo mal, seja ele qual for, � uma doen�a instalada na
alma. Criada a ilus�o, o esp�rito se aprisiona a ela, ou porque n�o
acredita merecer coisa diferente, ou porque � t�o empedernido
que ignora a exist�ncia de um mundo melhor.
- At� quando ele permanece nessa ilus�o?
- At� ganhar compreens�o e perceber que n�o precisa
estar aqui. Veja, chegamos.
Do ponto onde estavam, avistaram uma esp�cie de ilha em
meio ao lama�al, onde uma luzinha muito fraca tornava vis�vel o
corpo de um homem todo vestido de negro. Sem passagem para
alcan�ar a ilhota, Josu� n�o viu outro jeito sen�o levitar.
- Vamos bem devagar, quase tocando a �gua - avisou. -
N�o queremos incomodar os outros.
- N�o podemos levar mais alguns? - sugeriu Uriel, penalizado
com um grupo de mulheres maltrapilhas, cheias de feridas,
que os olhavam com olhar de s�plica.
- Elas n�o querem realmente ir- esclareceu ele. - Pensam
em sair, mas a vontade n�o � verdadeira. Tanto que, se voc� lhes
estender a m�o, ao inv�s de virem com voc�, tentar�o pux�-lo para
elas. Sua cren�a interior far� explodir sentimentos como a inveja,
o �dio, a viol�ncia. Mas n�o se preocupe. No momento certo, elas
pedir�o ajuda.
Em sil�ncio, Uriel endere�ou-lhes uma pequena ora��o,
que fez surgir sobre suas cabe�as uma luminosidade calmante.


Elas n�o viram a luz se acender, mas conseguiram se aquietar
e adormeceram.
- Muito bem - elogiou Josu�. - Quando nada podemos
fazer, sempre resta a ora��o, que, ao contr�rio do que muitos
imaginam, � muita coisa.
De m�os dadas com Uriel, Josu� ergueu o corpo sutilmente,
apenas alguns cent�metros acima do lamaceiro. Atravessaram-no
rapidamente, sem chamar a aten��o de ningu�m. Em poucos segundos
alcan�aram a pequena ilha, onde um homem jazia adormecido,
envolto em claridade bruxuleante. Quando os dois pousaram junto
a ele, o esp�rito abriu os olhos, levantando-se de um salto.
- N�o � poss�vel! - exclamou impressionado. - N�o � que
voc�s vieram mesmo?
- Viemos atendendo ao seu chamado - respondeu Josu�,
fixando nele os olhos penetrantes. - Em que podemos ajud�-lo?
O outro desviou o olhar, temendo que os olhos de Josu� lessem
o interior de sua alma. Estava confuso, sem saber como agir. Pela
primeira vez em muitos s�culos, via-se diante de esp�ritos de luz.
- Eu... - balbuciou, tentando encontrar as palavras
certas. - Pensei se n�o poderiam me ajudar a sair daqui.
- � o que voc� quer? - continuou Josu�, perfurando a
mente do esp�rito, que assentiu incomodado. - Tem certeza?
Por pouco ele n�o desistiu, com medo de ser desmascarado.
Mas n�o podia, tinha ordens a cumprir. At�lio ficaria muito decepcionado
se ele desse para tr�s. Haviam ensaiado aquele momento
muitas vezes, treinando a mente para ocultar a verdade. Mas agora,
frente a frente com aquele esp�rito de uma simplicidade tocante,
sentia-se inseguro, impressionado com seu imenso poder.
- Como se chama? - era a voz de Uriel.
- O qu�? - tornou espantado.
- Seu nome.
- � Mizael.
- Muito bem, Mizael - falou Josu�, ainda como se estivesse
lendo em sua mente. - Por que quer sair daqui?


Uriel olhou-o espantado. Parecia-lhe �bvio o motivo pelo qual um
esp�rito gostaria de sair daquela treva assustadora. Contudo, conhecia
Josu� havia bastante tempo para n�o questionar suas atitudes.
- Eu... - gaguejou Mizael. - Estou cansado daqui. S� o
que vejo � mis�ria, sofrimento, maldade. N�o quero mais viver
assim.
- E o que pretende quando sair?
- Gostaria de reencarnar - afirmou ele, agora com uma
seguran�a que julgara perdida. - Quero uma nova chance,
uma oportunidade para me modificar e corrigir os meus erros.
- Pode ser que voc� consiga essa oportunidade, mas os
erros a que voc� se refere somente ser�o reformulados mediante
sua vontade de agir conforme o bem.
- �... � isso que quero.
- Tem certeza?
- Absoluta. O tempo em que vivi aqui me levou ao arrependimento
de meus atos. Se reencarnar, talvez consiga uma melhora.
- Quais foram esses atos, exatamente?
- Eu matei, roubei, estuprei, entre delitos menores. Quando
desencarnei, continuei a servi�o do mal. Ingressei numa horda de
esp�ritos malignos, que atuam na esfera terrena inspirando bandidos,
traficantes, policiais, juizes, agentes do governo, funcion�rios
p�blicos e pol�ticos corruptos. Estamos em toda parte onde o
crime tenha condi��es de se desenvolver.
- Sei. E agora quer mudar?
- Isso mesmo. Cheguei � conclus�o de que isso � errado.
- O que o levou a pensar assim?
- Reflex�o e arrependimento. De que valem anos de poder
nas sombras se n�o posso ser feliz?
- Voc� n�o se julga feliz?
Com aquelas perguntas, Josu� levava Mizael a refletir sobre
suas atitudes, mesmo que ele n�o quisesse. Ao falar sobre seus
crimes, ia deles tomando consci�ncia.


- Estou preso a minha pr�pria imagem - desabafou ele,
com cautela, mas sinceridade. - O que fui em vida determinou
meu destino aqui. Quando morri, apenas troquei de lugar, mas
continuei agindo conforme sempre agia, s� que agora com mais
liberdade, sem medo de ser capturado pela pol�cia da mat�ria. �
claro que os soldados do astral, por vezes, tamb�m me perseguiam.
Mas fui esperto, sempre fugi deles.
- Desculpe-me dizer isso, Mizael, mas voc� n�o me parece
muito arrependido. Sinto at� um certo orgulho nas suas palavras.
- Voc� tem raz�o, em parte. Eu fui orgulhoso, mas n�o quero
mais ser assim. Ser� que n�o tenho direito a uma nova chance?
- Todos t�m direito a uma nova chance, mas voc� deve ficar
sabendo que esta ser� sua �ltima.
- Como assim? Quer dizer que, se eu n�o obtiver sucesso,
estarei condenado para sempre? N�o poderei mais reencarnar?
- N�o neste planeta. H� alguns anos que os seres da Terra
est�o recebendo essa �ltima chance. Todos, sem exce��o, ter�o
direito � derradeira tentativa. O planeta se prepara para uma grande
transforma��o, que ser� sentida com mais intensidade logo nos
primeiros anos do pr�ximo mil�nio. A humanidade est� alcan�ando
um grau de maturidade espiritual que favorece a modifica��o
planet�ria, elevando a Terra a um lugar de renova��o interior e
exterior. Os que n�o acompanharem essas mudan�as, por seu
magnetismo pr�prio, ser�o atra�dos para um mundo primitivo,
onde, atrav�s do trabalho �rduo, ter�o que aprender a construir as
civiliza��es, dando in�cio �s primeiras ra�as de outro planeta.
Mizael assustou-se. At�lio n�o havia lhe falado nada sobre
outros planetas.
- Que mundo � esse? - questionou preocupado.
- Existem mundos distantes, em outras gal�xias, em situa��o
ainda menos avan�ada do que o nosso. Assim como nos
prim�rdios da vida na Terra, necessitam de seres que patrocinem
o seu desenvolvimento, j� que os nativos est�o em est�gio
ainda muito rudimentar de intelig�ncia. Um desses mundos, cuja


atmosfera espessa formar� um campo magn�tico capaz de atrair
esp�ritos em igual densidade flu�dica, foi reservado para receber
os imigrantes da Terra. Esses esp�ritos, ao desencarnar, perder�o
a sintonia com o campo energ�tico do planeta, sentir�o um
rompimento em seus corpos, que n�o mais tolerar�o a proximidade
do envolt�rio atmosf�rico da Terra. De forma natural e
gradativa, permanecer�o adormecidos at� que esse novo mundo
esteja em condi��es de receb�-los, dando-lhes a oportunidade
de desenvolver suas faculdades intelectuais e morais nas primeiras
eras de outro planeta.
- Primeiras eras? Na idade da pedra, voc� quer dizer?
- Isso, eu n�o sei. Cada mundo tem sua pr�pria hist�ria, seu
ritmo pr�prio de crescimento. O progresso vai depender dos que
l� encarnarem, assim como aconteceu com a Terra, que j� reqebeu
os habitantes de outros planetas em condi��es de evoluir2.
- Voc� est� me assustando.
- Por qu�? N�o pense que voc� ter� como fugir desse fato.
Todos os que voc� conhece passar�o por isso, a n�o ser que
prefiram saltar a reencarna��o e seguir diretamente para esse
outro mundo.
- N�o tenho a menor inten��o de virar homem de
Neanderthal3 - afirmou acabrunhado.
- Nem deve. Pelo que pude perceber, voc� � um ser bastante
inteligente. N�o gostaria de contribuir com a sua intelig�ncia
para a melhora deste mundo?
- N�o sei. Acho que voc� est� indo longe demais. N�o
pensei em nada disso. S� o que quero � sair daqui e uma oportunidade
de me modificar. � um assunto meu comigo mesmo.
- Parece que voc� n�o me entendeu. Todos que reencarnarem
estar�o usufruindo essa �ltima chance, quer queiram, quer
n�o. N�o � uma escolha pessoal, � uma necessidade mundial.
2 Para maior compreens�o, ler Os Exilados da Capela, de Edgard Armond.
3 Habitante da Europa e do oeste da �sia, entre 300.000 e 29.000 anos atr�s, aproximadamente.
20


Voc� pode viver a sua vida como bem quiser, mas eu tenho o
dever de alert�-lo sobre isso.
Mizael estava realmente preocupado. Aquela novidade
o deixara com medo. N�o queria virar homem das cavernas.
Contudo, tinha um dever a cumprir. E quem garantia que aquele
esp�rito estava falando a verdade? Ele podia estar tentando engan�-
lo para que fizesse o que ele queria.
- Tudo bem, chefe - falou, com uma certa ironia. - Vou
arriscar.
Sem dizer nada, Josu� estendeu a m�o para ele. Com a
outra, segurou a m�o de Uriel, espantado demais para falar. Em
uma fra��o de segundos, esvaneceram no ar, mas Mizael ainda
teve tempo de registrar o olhar indecifr�vel de Josu�, cujo sorriso
enigm�tico n�o permitia desvendar o futuro.
21

Cap�tulo
3
No caminho de volta do trabalho, Ge�rgia pensava nos
problemas da escola p�blica em que lecionava. Sem verbas para
a reforma, as aulas eram ministradas em salas sem reboco nem
pintura, cheirando a mofo, as carteiras quebradas, os banheiros
danificados. Em meio a tudo isso, as crian�as compareciam �
escola de olho, principalmente, na merenda, muitas vezes a �nica
refei��o que faziam o dia inteiro.
Ge�rgia amava seu trabalho. Desde pequena, indagada
sobre a profiss�o que gostaria de seguir, n�o hesitava em dizer
que queria ser professora. Como gostava de crian�as, escolheu
a classe de alfabetiza��o, na qual poderia ensinar logo as
primeiras letras. Amava o jeito como os pequenos encaravam
as novidades, suas ideias ing�nuas, sua curiosidade natural pela
descoberta da leitura. Ge�rgia procurava incentiv�-los como
podia. Comprava livrinhos baratos, em feiras, para mostrar �s
crian�as, mantinha sempre cheia a caixa de l�pis de cor e n�o
descuidava da arruma��o da sala, tentando mant�-la asseada,
com desenhos pregados em murais espalhados pelas paredes,
para esconder os buracos e descascados.
Aproximava-se da esquina de sua rua quando foi abordada
por J�lio, amigo de inf�ncia e namorado de muitos anos.


- Ol�, minha linda - cumprimentou ele, dando-lhe um leve
beijo nos l�bios. - Como foi o seu dia?
- Mais ou menos. A escola est� ruindo, e fica cada vez mais
dif�cil manter as crian�as em sala. Quando chove, alaga tudo.
- A diretora ainda n�o conseguiu a verba?
- Est� uma dificuldade. Estamos fazendo o poss�vel para
manter a escola funcionando. Tenho medo de que, se n�o conseguirmos
o dinheiro, tenhamos que fechar.
- N�o fique assim, minha linda. Sei que tudo ir� se resolver.
- Voc� � um amor, J�lio. Sempre me apoiando. Tamb�m
acredito que as coisas ir�o melhorar, de uma maneira ou de outra.
Acho que a vida sempre atua para nos favorecer.
- Eu n�o iria t�o longe - gracejou ele. - Voc� e suas filosofias
espirituais. Vai entender...
- Adoro ler sobre as coisas do esp�rito. Voc� devia ler
tamb�m, ia lhe fazer bem e o ajudaria a compreender melhor a vida.
- N�o tenho tempo - ele a estreitou com amorosidade e
concluiu: - Mas ainda tenho um tempo antes de voltar ao trabalho.
Quer almo�ar comigo?
* - Vamos almo�ar l� em casa. Mam�e n�o vai se incomodar.
Abra�adinhos, caminharam juntos at� a casa de Ge�rgia,
onde Cl�ia acabara de colocar a mesa. A m�e de Ge�rgia ficara
vi�va fazia quase dois anos e, desde ent�o, vivia exclusivamente
para a filha. O marido, aposentado da Rede Ferrovi�ria Federal,
deixara-lhe uma pens�o razo�vel, com a qual, somada aos vencimentos
de Ge�rgia, iam vivendo.
J�lio, por sua vez, estudante de economia e caixa num banco
privado, n�o via a hora de ser promovido a tesoureiro. Seu nome
era um dos mais cotados para o cargo, ao qual concorria com
mais outros dois colegas. Tinha certeza, contudo, de que os anos
de esfor�o no banco seriam recompensados, pois o gerente j� lhe
adiantara que suas chances eram grandes.
- Depois que for promovido, podemos nos casar - afirmou
ele, segurando a m�o de Ge�rgia e olhando de soslaio para Cl�ia.


Cl�ia serviu o almo�o e sentou-se com eles. Como de
costume, fizeram uma ora��o de agradecimento, para s� ent�o
come�arem a comer.
- Acho muito justo - disse por fim, ante o olhar ansioso
dos jovens. - Ge�rgia j� vai fazer vinte e um anos. Est� mais do
que na hora.
- Quer dizer ent�o que voc� concorda? - exultou a filha.
- Por que n�o haveria de concordar? Voc� e J�lio est�o
namorando h� bastante tempo. N�o esperaria outra coisa de voc�s.
- Oh! M�e!
- Minha promo��o deve sair at� o final desta semana -
afirmou J�lio. - Seu Anselmo praticamente me garantiu que
ser� minha.
- Muito merecido, meu filho - concordou Cl�ia. - Voc� �
um rapaz trabalhador e honesto. Sempre deu o sangue por aquele
banco. E voc�s pretendem marcar a data para quando?
- Depois da minha formatura. Talvez l� para mar�o. Isso
nos dar� tempo de alugar uma casa e preparar o enxoval.
Cl�ia fitou a filha com uma certa decep��o.
- Pensei que voc�s fossem morar aqui. A casa � grande e
posso ceder o meu quarto para voc�s. Eu me ajeitaria muito bem
no de Ge�rgia.
- Sei que a senhora gostaria que fic�ssemos juntos - disse
J�lio. - Mas queremos ter o nosso cantinho.
- E vamos morar por aqui, m�e - prometeu Ge�rgia. -
Voc� n�o vai ficar sozinha.
- Est� certo, desculpem-me. Que tolice a minha. N�o levem
em conta o que eu disse. Sei que voc�s querem e merecem ter a
casa de voc�s. Podem contar comigo para o que for preciso.
- Eu sabia, dona Cl�ia. A senhora � maravilhosa!
- Sei, sei. Agora comam. Daqui a pouco acaba a hora do seu
almo�o e voc� n�o deve se atrasar, para n�o prejudicar a promo��o.
- Ainda bem que a ag�ncia fica aqui perto-disse Ge�rgia. -
Assim podemos passar mais tempo juntos.


Terminado o almo�o, J�lio voltou ao banco, deixando Ge�rgia
ocupada com suas aulas. L� chegando, foi recebido por Anselmo,
que o chamou � sua mesa.
- Meus parab�ns, rapaz - foi logo dizendo, estendendo-
-lhe a m�o. - Sabia que o cargo seria seu.
- A resposta j� veio? - surpreendeu-se. - Fui promovido?
- A partir de agora, voc� � o mais novo tesoureiro da
ag�ncia.
- T�o r�pido! Pensei que a diretoria ainda fosse estudar um
pouco mais as nossas fichas.
- Sabe o que �, J�lio? Voc� era o mais cotado mesmo. Est�
terminando a faculdade, e um diploma de economia � sempre bem-
-vindo. O Jo�o n�o tem experi�ncia, e o T�cio est� se divorciando.
- E da�? O que isso tem a ver?
- Nada, a princ�pio. S� que a cabe�a dele ficou muito tumultuada,
e n�o queremos pessoas desorientadas nem desatentas no
trabalho, n�o � mesmo?
- Ele foi mandado embora?
- Ainda n�o. Estou tentando lhe dar uma chance. Mas ele
faltou ontem e hoje chegou atrasado. Se continuar assim, n�o terei
sa�da a n�o ser dispens�-lo.
J�lio silenciou. N�o lhe parecia correto dispensar o colega s�
porque estava enfrentando problemas pessoais, contudo, achou
melhor n�o se envolver. Ainda bem que sua vida pessoal melhorava
a cada dia, ainda mais agora, com a perspectiva do casamento.
- Ge�rgia e eu vamos nos casar - afirmou de repente, para
agradar o chefe.
- N�o me diga! Voc� faz muito bem. Ganha a promo��o e
logo ajeita a vida. Muito bem, meu rapaz. O casamento � a melhor
maneira de manter a cabe�a de um homem centrada no trabalho.
Desde que ele n�o se envolva em aventuras, � claro.
Embora J�lio n�o concordasse com aquela posi��o, n�o
disse nada. N�o era boa ideia contrariar Anselmo. Ao contr�rio,
queria estar de bem com ele.


- Tamb�m penso assim - mentiu. - Ge�rgia e eu somos
pessoas conservadoras, muito ligadas � fam�lia. Dificilmente o
senhor ir� me ver de cabe�a virada por causa de problemas pessoais.
E o meu casamento, se Deus quiser, h� de ser para sempre.
- Assim � que se fala, J�lio. Mostra que voc� � digno, tem
car�ter. Depois, com os filhos, sua felicidade estar� completa.
- Realmente. Ge�rgia � louca por crian�as.
- Ainda bem. Evitar� de acontecer com voc� o que aconteceu
com o T�cio.
- Como assim?
- Ele est� se divorciando porque descobriu que a mulher
o traiu - confidenciou. - Um absurdo. Coisa de gente � toa. Por
causa disso, ficou desnorteado. � no que d� deixar a mulher solta,
sem filhos para ocup�-la.
- O senhor acha que a mulher deve cuidar s� da casa e
dos filhos?
- � o desej�vel, por�m, nos dias de hoje, concordo que
nem sempre � poss�vel. Mas acho que as mulheres n�o deviam
escolher profiss�es que as afastem muito tempo do lar. Crian�a
precisa da m�e.
- Ge�rgia � professora.
- Profiss�o ideal para uma mulher, voc� n�o acha?
- Acho - falou sem convic��o.
- Bem, hora de trabalhar. Por enquanto, at� que um novo
caixa seja designado para o seu lugar, voc� exercer� as duas
fun��es. Tudo bem?
- Tudo bem.
- Acha que d� conta?
- � claro. Eu j� vinha, informalmente, fazendo o servi�o de
tesoureiro desde que o Roberto se demitiu.
- Muito bem. Confio em voc� para essa nova tarefa. Quanto
ao casamento, fa�o quest�o de lhe dar um presente � altura.
- N�o precisa, seu Anselmo. A promo��o era tudo o que eu
mais desejava.


- Nada disso. Voc� merece. Ge�rgia � a mo�a ideal para se
casar. Voc� fez boa escolha.
Disso J�lio n�o tinha d�vidas. Ge�rgia era sossegada, prestativa,
amiga, meiga, leal... Podia passar o dia enumerando as
qualidades dela. Teriam uma vida perfeita.
Apesar de tudo, sentiu pena de T�cio. J�lio n�o achava que
ele merecesse ser despedido justo no momento em que talvez
mais precisasse do trabalho. Mas n�o ousou contrariar Anselmo.
Era lament�vel que T�cio perdesse a promo��o e o emprego, no
entanto, mais lament�vel ainda seria se ele se visse na mesma
situa��o. Pelo menos Ge�rgia era uma mo�a direita, recatada,
jamais lhe daria o desgosto de envolver-se com outro homem.
Aquela humilha��o, tinha certeza de que nunca iria passar.
27

Cap�tulo
4
Com a proximidade das festas de fim de ano, um churrasco de
confraterniza��o foi marcado num clube pr�ximo, contando oom
a participa��o de todos da ag�ncia. Na hora do amigo-oculto, a
troca de presentes seguiu tranquila e engra�ada, com as pessoas
fazendo m�mica para adivinhar quem era o sorteado.
Depois das brincadeiras, J�lio foi sentar-se � sombra de uma
mangueira, com seu pratinho de pl�stico recheado de carne e
farofa. Procurou Ge�rgia com os olhos, mas ela conversava com
Bianca sobre as melhores lojas onde comprar seu enxoval. A irm�
de Bianca se casara recentemente, e ela fora uma das respons�veis
pela organiza��o do ch� de panela e da festa.
Distra�a-se admirando a namorada quando T�cio se aproximou
sem fazer barulho, segurando na m�o tr�mula uma latinha de
cerveja. J�lio s� percebeu sua chegada quando ele se sentou a
seu lado � mesa de madeira.
- Tudo bem, J�lio? - indagou, visivelmente embriagado.
-Tudo-foi a resposta lac�nica, carregada de constrangimento.
- N�o tive ainda tempo de parabeniz�-lo pela promo��o.
- H�... obrigado.
- Com certeza, foi merecida-T�cio o encarava, embara�ando-o
cada vez mais. - Acho que voc� a mereceu muito mais do que eu.


- N�o se trata disso, T�cio.
- Voc� mereceu essa promo��o, sim. Ao passo que eu, s�
o que consegui foi um aviso pr�vio.
- O qu�?! - surpreendeu-se.
- Voc� n�o sabia?
- N�o.
- Pois �. Seu Anselmo me botou na rua porque disse que
eu estava sendo relapso. Relapso, eu, imagine... Depois de quase
vinte anos de trabalho, pela primeira vez cheguei atrasado uns
dias e faltei a outros. E isso porque estou atravessando problemas
pessoais.
- Sinto muito, T�cio. Foi uma injusti�a.
- E ele ainda queria me aplicar uma justa causa. Des�dia,
disse ele. Mostrou-me os atrasos e faltas injustificadas, amea�ando-
me. Fiquei nervoso. Imagine um homem como eu, com quase
quarenta anos, ser despedido por justa causa. J� vai ser dif�cil
arranjar outro emprego com a minha idade. Com essa mancha no
meu curr�culo, ent�o, seria imposs�vel.
- Sei que � lament�vel, mas pelo menos ele lhe deu o aviso
pr�vio. N�o o deixou na pior.
- Ele me deu o aviso pr�vio?! N�o, meu caro, creio que
voc� n�o compreendeu. Ele me for�ou a dar o aviso pr�vio para
a empresa.
- Mentira!
- N�o � mentira. Fui for�ado a pedir demiss�o para n�o
levar a justa causa. Ele fez tudo certinho, o desgra�ado. Me deu
um monte de advert�ncias e uma suspens�o, lembra? - J�lio
assentiu. - Depois, afirmou que j� estava bem armado para a
justa causa. Minha �nica sa�da foi pedir demiss�o. E, para me
humilhar ainda mais, est� me fazendo cumprir o aviso pr�vio.
- Sinto muito.
- Sente? Por que sentiria? Voc� ganhou a promo��o, vai
se casar com uma mo�a linda. Eu, por outro lado, estou na pior.
Minha mulher me deixou por um garot�o de vinte e tr�s anos,


surfista, o cabelo dourado de parafina. Sem contar as d�vidas.
Ela quis comprar roupas novas, sapatos, um aparelho de som e
uma televis�o, e o idiota aqui abriu um credi�rio na Mesbla4 para
ela. Em meu nome, apesar de ela trabalhar. E n�o � s�. O maior
sonho dela era ter um anel de diamantes. L� fui eu para o centro
da cidade comprar o tal anel na joalheria que ela escolheu, parcelado
em doze vezes, um caminh�o de juros! E tudo isso para qu�?
Para ela aproveitar com o playboyzinho, que nem ao menos trabalha.
E agora, J�lio, me diga: sem emprego, como vou fazer para
pagar tudo isso?
- Por que n�o conversa com seu Anselmo e pede para ele
voltar atr�s?
- Pensa que j� n�o fiz isso? Por que acha que vim a esse
churrasco idiota? Para me confraternizar com meus futqros
ex-colegas de trabalho? N�o. Vim para ver se conseguia convencer
seu Anselmo a rasgar o tal aviso pr�vio. Sabe o que ele me
disse? - J�lio meneou a cabe�a. - Que j� est� consumado. N�o
depende dele. Foi uma decis�o da diretoria. Sei que � mentira. Se
ele quisesse, poderia voltar atr�s.
T�cio entornou a cerveja de um s� gole e come�ou a chorar,
causando mais constrangimento ainda em J�lio, misturado com
piedade. Imaginava o que faria sem emprego naqueles tempos
dif�ceis, em que arranjar trabalho era quase imposs�vel, principalmente
num mercado fechado para os mais velhos.
- Eu lamento, T�cio. Se tiver alguma coisa que eu possa
fazer para ajudar...
- Tem.
- O qu�?
- Voc� pode falar com seu Anselmo. Sei que ele o admira,
tem voc� na mais alta conta. Talvez, vindo de um empregado
exemplar feito voc�, ele mude de ideia.
- Eu?! Ele n�o vai me ouvir.
4 Loja de departamentos, hoje extinta.
30


- Vai, sim.
- N�o posso fazer isso, T�cio. Seu Anselmo � uma pessoa
de dif�cil trato.
- Est� certo - falou desanimado. - Eu devia saber que
� assim que funciona. Cada um que cuide de si, n�o � mesmo?
Quando estamos bem, os outros que se danem.
- N�o � isso. � que acabei de ser promovido. N�o sei se
cairia bem um pedido desses com t�o pouco tempo de promo��o.
- N�o sabe se cairia bem? Que diabo de covardia � essa?
- Por favor, T�cio, n�o me pe�a isso. Olhe, se est� precisando,
posso lhe emprestar uma quantia...
- N�o quero o seu dinheiro! - bradou, levantando-se, agora
bastante alterado. - Nem sua piedade, nem suas migalhas. Estou
lhe pedindo um favor. Ser� que voc� n�o pode me fazer um favor?
T�cio falava alto, gesticulando freneticamente, logo chamando
a aten��o dos outros. Pensando que eles brigavam, muitos se
aproximaram, tentando contornar a situa��o.
- Vamos l�, gente, parem com isso - pediu um.
- Deixem disso - falou outro.
* - Calem a boca! - esbravejou T�cio, completamente alterado
pela bebida. - Seus hip�critas! Todos voc�s s�o uns falsos,
mentirosos! Est�o com peninha do velho desempregado aqui, �?
- Ningu�m est� com peninha - afirmou um colega.
- N�o est�o? Pensam que n�o sei o que falam pelas minhas
costas? Coitado do corno, chifrado pela mulher e ainda por cima
desempregado!
O sil�ncio foi geral. Muitos nem sabiam que T�cio fora tra�do
pela mulher. Apesar de Anselmo ser partid�rio da fofoca, n�o era
com todos que tinha intimidade para tocar no assunto. At� ent�o,
o gerente permanecera neutro, observando de longe os acontecimentos.
Mas, quando T�cio tentou esmurrar um dos colegas,
achou que j� era hora de intervir:
- Chega, T�cio! Acabou! A partir de hoje, voc� n�o precisa
mais voltar � ag�ncia. Est� dispensado do cumprimento do resto


do aviso pr�vio. Aguarde em casa o telegrama, marcando dia e
hora para homologar sua rescis�o.
Era a humilha��o final. T�cio teve vontade de esganar
Anselmo e os colegas. Ningu�m lhe deu apoio, muito menos J�lio,
que chegou a virar o rosto para o outro lado. T�cio encarou-o com
�dio, direcionando seu olhar febril para Ge�rgia que, assustada,
grudara-se ao bra�o do namorado.
- O que est� acontecendo? - sussurrou ela ao ouvido dele.
J�lio n�o respondeu. Apertou a m�o dela, instintivamente
tentando proteg�-la da chuva de �dio do outro.
- V� embora, T�cio, j� falei! - continuou Anselmo. - Ou
quer que mande coloc�-lo para fora?
Dois homens parrudos, que trabalhavam como seguran�as
no banco, j� se haviam postado ao lado de T�cio, apenas aguardando
um sinal de Anselmo para agir.
- O qu�? - esgani�ou-se ele.- Vai mandar estes brutamontes
me expulsarem? Vai usar de viol�ncia para n�o ouvir a verdade?
Os seguran�as sa�ram arrastando T�cio em dire��o ao
port�o do clube. Foi um horror. Ele gritava, esperneava, chutava a
esmo, tentando se desvencilhar de seus captores. N�o conseguiu.
Enquanto era levado para fora, todos permaneceram est�ticos,
mudos de assombro, assistindo � cena inusitada que jamais imaginariam
presenciar naquele dia de confraterniza��o.
- Voc� vai ver, J�lio! - ainda o ouviram praguejar. - Espere
at� sua linda noivinha come�ar a lhe botar chifres! Corja de bandidos!
Safados! Canalhas...!
A voz de T�cio foi sumindo, � medida que era levado pelos
seguran�as para fora do clube. Atravessado o port�o, os dois
o empurraram com brutalidade, e ele caiu de rosto no ch�o. Ao
come�ar a erguer-se, um filete de sangue escorria de seu nariz
que, com o baque, parecia ter-se quebrado. Ao ver o resultado
inesperado, os homens hesitaram, fazendo men��o de ir em sua
dire��o, mas T�cio n�o lhes deu tempo. Levantou-se, cambaleando
em raz�o da bebida, e disparou, tr�pego, pela cal�ada.

Cap�tulo
5
Fazia um lindo dia de sol na cidade astral, onde as flores,
mais perfumadas e coloridas do que as cultivadas no mundo f�sico,
enchiam o ar de um aroma e uma luminosidade sem igual.
Da janela de sua sala, coberta por uma forra��o branca e suave,
Josu� fitava alguns rec�m-chegados, imaginando o destino que
caberia a cada um. Ao ouvir batidas na porta, disse sem se virar:
- Entre.
" Sem tempo para cumprimentos ou explica��es, Uriel entrou
apressado, falando aos borbot�es:
- Mizael est� dando trabalho de novo. Agora cismou que
quer uma pinga. Como dissemos que aqui n�o temos essas
coisas, ficou incontrol�vel. Empurrou os enfermeiros e saiu batendo
a porta. Est� perambulando por a�, sabe-se l� para onde foi.
- N�o se preocupe - confortou Josu�. - Ele n�o vai longe.
Tem uma miss�o a cumprir.
- Miss�o? Como assim?
Voltando-se para ele, Josu� convidou-o a sentar.
- Mizael pensa que � esperto e que n�o sei o que lhe vai
no cora��o.
- E o que seria?
- O esp�rito a quem ele deve obedi�ncia o incumbiu de
reencarnar para auxiliar na propaga��o das for�as contr�rias �


luz do bem. Pensa que, fazendo retornar � Terra um ser maligno,
conseguir� disseminar ainda mais a viol�ncia e o terror, com os
quais pretende solidificar seu poder.
- Meu Deus, Josu�! - horrorizou-se. - Isso � terr�vel.
Precisamos impedir.
- Impedir? N�o. Se pud�ssemos impedir toda criatura
ignorante e seduzida pela ilus�o do mal de reencarnar, como
permitir�amos que ela crescesse?
- Mas Josu�, o que ele pretende � daninho.
- � claro que �. Quantos seres daninhos voc� conhece que
habitam hoje o orbe? E a nenhum deles foi negada essa chance.
- Mas � diferente. Eles v�o iludidos, pensando que v�o se
modificar. Quando chegam l�, os prazeres os envolvem a tal ponto
que se esquecem do compromisso.
- Alguns, sim. Outros partem daqui certos de que dar�o
continuidade � vida desregrada e sem limites que levavam antes.
Desses, alguns reincidem na ilus�o. Outros s�o surpreendidos por
fatores inimagin�veis e realmente se modificam.
- Que fatores?
- O amor, a bondade, a f�. Sem saber que est�o preparados,
s�o tocados por eles.
- Voc� est� dizendo que h� esp�ritos que reencarnam deliberadamente
pensando em fazer o mal?
- Exatamente. � instintivo, eles n�o aprenderam a revelar
sua verdadeira natureza, que � sempre boa.
- Mas e as pessoas que cruzarem seus caminhos? N�o
ser�o prejudicadas por eles?
- Cada um determina seu destino, que a todo instante pode
ser modificado. Mas, para aqueles que ainda acreditam que sofrer �
a �nica forma de purifica��o, faz-se necess�rio que algo ou algu�m
provoque uma situa��o que leve ao sofrimento. Para cada obra,
uma ferramenta adequada, ou ent�o, nada se realiza. Assim � tanto
para as boas obras como para as desagrad�veis. Quando duas ou
mais pessoas se envolvem em situa��es de adversidade que levam


� viol�ncia ou ao desgaste emocional, nem sempre est�o ligadas
por liames pret�ritos de inimizade. �s vezes, s� o que se quer � dar
vaz�o aos instintos perniciosos, o que leva muitas pessoas a aceitar
infligir o mal a outrem, tornando-se ferramentas na constru��o
da dor. Embora n�o haja la�os anteriores unindo o suposto agressor
� suposta v�tima, corre-se o risco de esses la�os surgirem, caso
falte ao ofendido a compreens�o de suas pr�prias escolhas.
- E voc� acha que Mizael ser� um desses?
- Vejo nele uma grande possibilidade de enveredar pela
senda dolorosa do crime, j� que � esse o seu objetivo. Mas tamb�m
reconhe�o uma chance para o amor.
- Como?
- Se voc� reparou bem, houve momentos, quando o resgatamos
daquele submundo, em que ele se impressionou com a
nossa conversa e titubeou em seus prop�sitos. Isso demonstra
que, l� no fundo, em algum lugar de sua ess�ncia, ele est� pronto
para fazer cintilar a centelha que recebeu de Deus. Ou, em outras
palavras, para fazer brotar em si mesmo a semente da regenera��o.
- �. Ele disse mesmo que queria se modificar.
- Embora o fizesse pensando que nos enganava, na verdade,
estava enganando a si pr�prio, pois foram de sua boca que
sa�ram as palavras de reflex�o.
- Mizael vai reencarnar provavelmente num meio que facilitar�
o ingresso no crime. Quem ter� for�as para dissuadi-lo
desse intento?
- Ningu�m. S� ele mesmo poder� modificar suas tend�ncias.
Todavia, como lhe falei, h� uma chance para o amor.
- N�o estou entendendo muito bem. Quem o amar� tanto a
ponto de lev�-lo a querer mudar de vida?
- Primeiramente, sua m�e. Mais tarde, a mulher por quem
se apaixonar.
Uriel j� ia retrucar com outra pergunta quando a porta se
abriu num rompante. Mizael entrou carrancudo, chutando uma
poltrona � sua passagem.


- Mas que droga! - bufou. - Que lugar � esse que n�o
tem nada de bom para a gente beber?
- Tem �gua fresca e l�mpida - esclareceu Josu�. - � tudo
de que voc� precisa, j� que, de verdade, n�o precisamos de nada.
- N�o fale por meio de charadas, por favor - rebateu mal-
-humorado. - N�o compreendo essa baboseira.
A um olhar de Josu�, Uriel saiu sem ser notado, fechando a
porta em sil�ncio.
- Voc� sabe que � livre para fazer o que quiser - disse
Josu�. - Mas lembre-se de que a sua liberdade est� limitada pelo
direito do pr�ximo. Chutar e xingar lhe � permitido, se � de seu
agrado. Contudo, aqui � minha casa, e � meu direito ser respeitado
em meus limites.
Mizael abaixou os olhos, envergonhado. Havia tanto poder no
olhar e nas palavras daquele homem que era dif�cil confront�-lo.
- Desculpe - falou acabrunhado.
- N�o precisa se desculpar. Basta agir com educa��o e
respeito, ao menos na presen�a daqueles para quem tais formas
de comportamento t�m valor.
- Ou seja, que eu guarde a minha rispidez para os bo�ais
da treva de onde sa�.
- � voc� quem est� dizendo - fez uma pausa e prosseguiu:
- Soube que voc� fugiu. Quer falar sobre isso?
- N�o.
- Tudo bem. Ent�o, o que o traz aqui?
Era quase imposs�vel mentir para Josu�, o que levava Mizael
a um esfor�o supremo para ocultar-lhe suas reais inten��es.
Segundo parecia, Josu� n�o as captara.
- Quando � que vou reencarnar? - perguntou de supet�o,
irritado por depender de Josu� para voltar ao mundo.
Lendo-lhe os pensamentos, Josu� logo esclareceu:
- Voc� deve se perguntar por que os seres das trevas n�o
conseguem fazer reencarnar seus disc�pulos. - Mizael sentiu um
estremecimento, enquanto ouvia, paralisado, as elucida��es do


outro: - Porque esse conhecimento � nosso. A divindade suprema,
que det�m a sabedoria e o poder sobre todas as coisas, n�o
permite que esp�ritos das sombras, por mais inteligentes que
sejam, descubram esse mist�rio.
- Por qu�? - interessou-se Mizael, mesmo sem querer.
- O verdadeiro poder pertence a Deus. O resto � ilus�o.
Esp�ritos menos esclarecidos, encarnados ou n�o, julgam-
-se poderosos porque aprenderam a dar forma �s cria��es do
pr�prio orgulho. Esse poder � ef�mero, uma engana��o dos
sentidos. Todo aquele que se aproveita da for�a e do medo para
alcan�ar objetivos torpes e ego�stas se distancia do verdadeiro
poder. Mas o que age conforme a sabedoria divina, mesmo sem
saber, alimenta dentro de si uma parcela do poder de Deus, com
a qual pode se impor no mundo, porque essa imposi��o ser�
sempre na dire��o do bem.
Mizael estava abismado. Parecia que Josu�, em alguns
momentos, conhecia o mais profundo de seu �ntimo. Como ent�o
n�o descobrira o que ele pretendia? Ou ser� que j� sabia e fingia
n�o saber?
* - Voc� n�o pode negar o poder das trevas - defendeu
inseguro.
- O poder das trevas � t�o grande, que mesmo os mais
empedernidos, com o tempo, fatalmente migrar�o para a luz. O
contr�rio n�o se d�.
Era verdade, ele sabia. Contudo, n�o queria admitir e prosseguiu
com suas indaga��es:
- Voc� ainda n�o me esclareceu por que o conhecimento
da reencarna��o n�o pode ser descoberto pela treva, j� que o
mundo inteiro parece um grande inferno.
- N�o � verdade. O mundo � um lugar bonito, cheio de cor
e luz. O que falta � a humanidade reconhec�-las em si mesma,
mas isso � o que est� prestes a acontecer. Quando o ser humano
realmente descobrir o seu poder, alimentado por ideias e sentimentos
nobres, far� brotar de dentro de si a verdadeira ilumina��o.


- Muito bonito o que voc� diz, mas nada esclarecedor.
- Voc� quer porque quer saber o segredo da vida, n�o �
mesmo? Depois de tudo o que falei, ainda n�o compreendeu?
- O qu�?
- A inabal�vel for�a do mundo � o amor, e este n�o �
facilmente encontrado na treva. Somente seres que vibram essa
energia poderosa � que s�o capazes de elaborar os mecanismos
da vida. Apenas o amor incondicional por todas as criaturas coloca
o esp�rito em posi��o de criar novos corpos para uma nova
exist�ncia. E, como lhe falei, tal sentimento � praticamente desconhecido
no lugar de onde voc� veio.
- Ent�o � isso? - desdenhou. - O segredo � o amor?
- Existe todo um laborat�rio gen�tico voltado para a forma��o
da vida, seja ela mineral, vegetal, animal ou hominal. Esse
laborat�rio � operado por esp�ritos que t�m dom�nio da ci�ncia da
mat�ria, tanto densa quanto sutil.
- Mas ent�o existe um laborat�rio. Foi o que pensei.
- N�o � um laborat�rio comum, e as pr�ticas ali realizadas n�o
podem ser ensinadas. S� os que j� alcan�aram, por m�rito pr�prio, o
amor puro e incondicional � que conseguem manipular m�quinas e
engrenagens. Para todos os outros, ser�o instrumentos inertes.
- Voc� consegue, se quiser?
- N�o. Ainda n�o alcancei a eleva��o moral necess�ria.
Falta-me o amor, indistintamente, por toda a humanidade.
Cada vez mais abismado, Mizael silenciou. Se um esp�rito
da envergadura de Josu� ainda n�o dispunha de poder e conhecimento
suficientes para operar o maquin�rio da reencarna��o,
ent�o, seria mesmo imposs�vel para ele ou At�lio empreender tal
opera��o. Tudo o que ele dissera levara Mizael � mais profunda
reflex�o sobre suas inten��es. At�lio se julgava t�o poderoso,
mas jamais conseguira o dom�nio da vida. Por mais que tentasse,
em seus subterr�neos, reproduzir essa t�tica, faltava-lhe o
elemento principal, que era o amor. Questionava-se onde estaria,
realmente, o poder.


- Voltando � minha pergunta - tornou Mizael, temendo a
rea��o de At�lio caso ele fracassasse. - Quando vou reencarnar?
- Muito bem. Queria mesmo falar sobre isso com voc�.
Infelizmente, n�o consegui ainda encontrar algu�m que se disponha
a receb�-lo como filho.
- Como � que �?
- Voc� sabe que precisa de pais para nascer, um homem e
uma mulher.
- Engra�adinho. � l�gico que sei.
- Pois �. Acontece que ningu�m quer ser seu pai ou sua m�e.
- Como isso � poss�vel?
- Parece que voc� colecionou muitos inimigos.
- E da�? A reencarna��o n�o serve de reajuste? Ent�o n�o seria
uma �tima oportunidade para me reconciliar com meus desafetos?
- Desde que eles queiram. Mas, no momento, todos j�
est�o vivendo as pr�prias vidas, t�m outros planos.
- N�o � poss�vel! Algu�m tem que sobrar.
- N�o sobrou ningu�m. Tamb�m, h� quanto tempo voc�
desencarnou?
- Eu? Sei l�. Acho que h� bastante tempo.
- Voc� n�o sabe, mas eu sei. Faz exatamente cento e vinte
e sete anos que voc� deixou a Terra.
- Tanto assim?
- �. E nesse tempo, como era de se esperar, seus antigos
conhecidos refizeram suas vidas, com novos prop�sitos de exist�ncia.
No momento, n�o sobrou ningu�m para repartir planos
com voc�.
- Ora essa, mas que coisa! Como fa�o ent�o?
- Tem um jeito, mas n�o sei se ser� de seu agrado.
- Que jeito?
- Voc� pode ser gerado num estupro.
- Estupro?! - horrorizou-se. - Eu, hein!
- N�o sei por que o espanto. Quantas mulheres voc� j�
estuprou em vida? Quantas pensa que deixou gr�vidas e quantas


dessas fizeram aborto? E os filhos que, porventura, voc� deixou
�rf�os no mundo?
- Nunca havia pensado nisso.
- Pois pense. Para voc�, seria uma �tima oportunidade,
inclusive, de sentir o que eles sentiram.
- N�o quero sentir nada. N�o me interessa.
- Ser� que n�o? N�o ser� v�lida essa experi�ncia, para que
voc� nunca mais pense em estuprar?
- O que voc� est� me propondo � uma esp�cie de puni��o.
- Se voc� pensa assim, ent�o � melhor n�o ir. Eu apenas
sugeri porque acho que, no seu caso espec�fico, � o jeito mais f�cil
de aprender.
- Por que no meu caso espec�fico?
- N�o me leve a mal, mas voc� � um esp�rito empedernido,
que ainda n�o compreende a liberdade de escolha. E esse p�de
ser um bom momento para come�ar a exercit�-la.
- �timo. Se tenho liberdade de escolha, prefiro outra pessoa.
- N�o tem ningu�m. Mas voc� pode esperar mais alguns
anos, at� que algu�m desencarne e entre em acerto com voc�.
- N�o quero esperar. J� esperei muito.
- Ent�o, Mizael, lamento, mas a �nica op��o � essa.
- Conhe�o a mulher que ser� estuprada?
- N�o.
- E o estuprador?
- Tamb�m n�o.
- Ainda por cima me arruma uma fam�lia de estranhos.
- Do que est� reclamando? Na sua posi��o, devia dar-se
por satisfeito de ainda encontrar algu�m disposto a receb�-lo,
mesmo nessas condi��es.
- O homem, o estuprador, o que acontecer� com ele?
- N�o vai ficar com ela, se � o que quer saber.
- E a mulher concorda com isso?
- Concorda. E voc� tem sorte. Ela � uma mo�a amorosa,
muito digna e carinhosa. Voc� estar� em boas m�os.


- Se � assim, por que ela escolheu essa experi�ncia t�o ruim?
- Por raz�es que, no momento, n�o lhe dizem respeito. Ent�o,
Mizael? Qual a sua resposta? Voc� � livre para aceitar ou n�o, mas
seja breve, porque h� outros na fila. Assim como voc�, muitos esp�ritos
desejam reencarnar e ficariam gratos por essa oportunidade.
- Tem mais gente querendo voltar?- Ele assentiu.-Assim?
- O que voc� acha? Muitos est�o ansiosos para viver a �ltima
chance da qual lhe falei.
A proposta n�o era das melhores. As circunst�ncias, desastrosas.
Contudo, n�o tinha jeito. Ou ele aceitava, ou seria obrigado
a retornar para junto de At�lio, porque ali � que n�o iria ficar. E At�lio
ficaria furioso. Talvez at� o expulsasse do bando.
- Est� bem, ent�o. Se essa � a �nica maneira, concordo.
- �timo. Vou agora mesmo cuidar dos preparativos. Precisaremos
marcar um encontro entre voc� e seus pais, para
acertarmos tudo, inclusive a data do estupro.
- Voc� vai acertar tudo? - indignou-se. - A mulher vai ser
estuprada com hora marcada?
- Exatamente. Do contr�rio, como poder�amos preparar
voc� para se ligar ao �vulo fecundado?
- Estou achando essa hist�ria um absurdo, mas enfim...
- S� uma coisa. Eles podem desistir no �ltimo minuto.
- Desistir? Como assim?
- O ser humano tem liberdade de escolha, e a todo momento
pode optar por melhores caminhos. Se eles desistirem dessa
experi�ncia, a sua tamb�m perecer�.
- Devo ent�o torcer para que eles se ferrem?
- Deve torcer para que o melhor aconte�a. Seja o que for.
41

Cap�tulo
6
Ao contr�rio da cidade em que Mizael se encontrava, o
astral habitado por At�lio quase nunca tinha luz. O clima -era
sempre sombrio, cinzento, f�nebre. Mesmo assim, ele estava
acostumado ao ambiente, que considerava adequado ao seu
temperamento forte.
Logo que Damien entrou, ele soltou os pap�is que segurava
e fitou-o com olhos vermelhos.
- Mandou me chamar, chefe? - indagou Damien.
- Recebi uma mensagem de Mizael - falou ele, um tanto
ou quanto desatinado. - N�o sei como, mas ele conseguiu direcionar
suas ondas mentais para c� e eu as captei.
- E a�?
- Ele vai reencarnar em breve. Pelo que compreendi, ser�
fruto de um estupro. Melhor assim. Vai deix�-lo com mais raiva.
Damien soltou uma gargalhada sem vontade e retrucou:
- O que quer que eu fa�a, chefe?
- Precisamos descobrir quem ser�o os pais dele. Mizael
contou que eles t�m a op��o de desistir, o que n�o posso permitir.
- Quer que eu os influencie?
- Isso mesmo. De agora em diante, esta ser� sua incumb�ncia.
Descobrir quem s�o essas pessoas e garantir que a mulher


seja estuprada. Depois, quando ela engravidar, quero que cuide
para que nada de mau lhe aconte�a. Mizael tem que nascer.
- Por que � t�o importante que ele reencarne? J� tem tanta
gente no mundo fazendo maldade! E n�s estamos infiltrados em
toda parte. Isso n�o basta?
- Dei a Mizael uma miss�o especial. Ele vai chefiar uma
rede de narcotr�fico, para enfraquecer cada vez mais a vontade
humana de resistir ao mal. Com isso, vamos dominando o mundo
aos poucos.
- Ser� que ele vai conseguir? Acho que tem muita gente
brigando pelo poder l� na Terra, principalmente as quadrilhas
de traficantes.
- � por isso que voc� n�o vai sair do lado dele. N�o somos
os �nicos a enviar soldados. Muitos outros chef�es da treva conseguem
mandar subordinados. Mas Mizael � especial. Com a sua
intelig�ncia e aud�cia, poder� conquistar muito poder. Por isso, a
sua fun��o tamb�m � importante, Damien. Temos que garantir que
o nosso bando seja o mais temido no nosso mundo. Do lado de c�,
a luta pelo poder tamb�m � grande. Quem tiver mais comandados,
encarnados ou desencarnados, ser� o grande poderoso, senhor
da treva, rei dos subterr�neos astrais. � esse t�tulo que almejo para
mim, como muitos outros tamb�m o ambicionam. Ser temido e
respeitado por todos os comandantes, das diversas hordas das
sombras. Ser rei. Quem n�o quer?
- � isso mesmo, chefe. O senhor, que � o mais poderoso de
todos, vai conseguir. Tenho certeza.
- Isso vai depender do sucesso do nosso plano. Prepare-se,
pois em breve Mizael se comunicar� comigo novamente, informando-
me dos nomes e do paradeiro dos pais. Agora v�. Deixe-me a
s�s para pensar em meu futuro de gl�rias.
Com um aceno de cabe�a, Damien se despediu. At�lio nem
percebeu o seu gesto, por isso n�o respondeu. Damien se ressentia
de tudo o que acontecia entre Mizael e o chefe. Era para ele que
Mizael mandava as mensagens. Tudo bem que ele n�o dominava


completamente a arte da telepatia, mas isso porque At�lio desistira
de ensinar-lhe, desde que Mizael aparecera. Conseguia ler pensamentos,
mas s�. Se tivesse dom�nio daquela t�cnica, poderia
livrar o chefe da desagrad�vel tarefa de ser surpreendido com as
mensagens de Mizael. Seria ele o mensageiro das boas not�cias,
crescendo em import�ncia e respeito.
Mas aquilo tudo era um sonho. Mizael se gabava de sua intelig�ncia
tanto quanto At�lio a reconhecia. Ningu�m, talvez nem
mesmo o chefe, tinha um intelecto t�o agu�ado. Como detestava
Mizael, por isso e por muitas outras coisas! A ele cabiam todas as
gl�rias. Enquanto Damien tinha de se contentar com as migalhas
que o chefe deixava, Mizael se refestelava com o resultado das
pilhagens astrais e os presentes que recebia de encarnados que o
contratavam para trabalhos de magia.
Mizael era o encarregado da elabora��o dos planos. Damien
os executava. E os executava bem, s� que ningu�m reparava
nem reconhecia. Apenas Mizael aparecia. Como isso o irritava!
Se pudesse, faria algo a fim de que Mizael fracassasse em sua
miss�o, s� para que o chefe reconhecesse seu valor. Quem sabe
assim n�o seria ele o eleito para, numa oportunidade futura, retornar
ao planeta na posi��o de rei do narcotr�fico?
Depois que Damien saiu, At�lio se entregou �s pr�prias reflex�es.
Quando Mizael chegou ao bando, num primeiro momento,
tentou provoc�-lo. Depois, ao se recordar de que haviam sido
irm�os em outra encarna��o, aceitou-o com facilidade. At�lio ainda
se recordava daquela vida... havia quanto tempo?
Pelo que lembrava, sua �ltima encarna��o se encerrara
por volta de 1730, �poca em que vivera com Mizael. At�lio era
um homem arrogante, sempre fora. Irasc�vel, orgulhoso, implac�vel.
Nunca amara ningu�m, a n�o ser um irm�o mais mo�o,
que criara como se fosse seu filho. Por isso, ao descobrir que
Mizael se apaixonara pela mulher que ele desejava, At�lio abriu
m�o dela. Fora o �nico gesto de ren�ncia que tivera em toda
a sua vida.
44


Mizael desencarnou e voltou ao mundo, mas ele permaneceu
na treva, onde aos poucos iniciava seu processo de ascend�ncia
dentro da hierarquia astral. Mais tarde, quando Mizael retornou de
sua �ltima encarna��o, At�lio acolheu-o novamente como o irm�o
que sempre fora. Auxiliara-o a se lembrar dos fatos e tudo ficara
bem. Nunca mais pensaram ou falaram na mulher que fora amada
por ambos e que nenhum deles jamais p�de ter.
Agora, estranhamente, At�lio pegava-se pensando em Nora
H� muito n�o tinha not�cias dela, mas imaginava que ela devia
estar bem longe daquele lugar. Nora sempre fora uma boa mo�a,
t�o boa que n�o conseguira suportar as crueldades de Mizael
Por mais que o amasse, ao descobrir que sua fortuna provinha do
sangue de inocentes, rejeitou sua proposta de casamento e sumiu
no mundo,
Aquelas eram lembran�as estranhas, perdidas na passagem
dos muitos s�culos. Pelos c�lculos de At�lio, deviam estar em
algum momento entre 1983 e 1985. Era tempo demais para permanecer
em um mesmo lugar. Mas o poder das trevas � inebriante
Quem o conquista reluta em larg�-lo.
, Do outro lado do astral, Mizael tamb�m pensava em Nora.
Tal qual At�lio, imaginava que havia muito a esquecera. Na verdade,
n�o a tinha esquecido. Deixara sua lembran�a adormecida
em algum lugar de sua mente. De uma hora para outra, por�m, a
imagem de Nora surgiu em seus pensamentos, causando-lhe uma
inquieta��o desconcertante, uma saudade incontrol�vel. A todo
momento, pegava-se pensando nela, imaginando o que teria sido
feito de sua vida.
Em alguns dias, tudo estava programado. Mizael surpreendeu-
se com a aura de tranquilidade e amor de sua futura m�e,
tentando reconhecer nela poss�veis tra�os de Nora. N�o conseguiu.
Se ela e Nora fossem a mesma pessoa, nada mais havia que


ele pudesse identificar. Quanto ao pai, n�o simpatizou com ele,
embora procurasse n�o dizer nada que lhe desagradasse, com
medo de que ele mudasse de ideia.
Pouco havia se passado desde a reuni�o em que Mizael
conhecera seus futuros pais. Em breve, Josu� o levaria �s portas
do laborat�rio, onde ele seria entregue aos esp�ritos respons�veis
por moldar seus futuros corpos f�sico, astral e mental. Dali, partiria
para uma esp�cie de adormecimento, no qual, aos poucos, os
�tomos de seu atual corpo flu�dico seriam remodelados para se
adaptar ao novo f�sico do beb�. Nesse processo, a mem�ria seria
elevada ao corpo causal, que cont�m o registro de todas as experi�ncias
vividas pelo esp�rito.
Tudo isso fora explicado a Mizael, para que ele n�o se assustasse
no momento da prepara��o nem se deixasse perturbar por
apreens�es ou medo do fracasso. Por mais que soubesse que j�
havia passado por aquele momento outras vezes, parecia a primeira
vez. Pensando nessas coisas, caminhava de um lado para outro
pelos jardins que circundavam o alojamento que lhe fora destinado.
Tudo ali era t�o limpo, claro, refrescante. T�o diferente do
submundo invis�vel em que vivera desde sua �ltima encarna��o.
Mas n�o era para ele. N�o podia se deixar seduzir por aquele bem-
-estar ilus�rio. Seu mundo era outro. Ele n�o fora feito para a paz
Era um homem de a��o e guerra.
- Mesmo um homem de guerra pode lutar pelo bem.
A voz soou atr�s dele. Uma voz feminina, suave, envolvente
Mizael virou-se apressado, embasbacado com a linda jovem vestida
de amarelo parada diante dele.
- Perd�o, mocinha - balbuciou ele, estudando seu rosto
desconhecido, mas, de alguma forma, familiar. - O que foi que disse?
- Disse que mesmo um homem de guerra pode lutar pelo
bem.
- Por que diz isso?
- N�o era em que estava pensando? Que era um homem
de a��o e guerra?


- � feio ler o pensamento dos outros - aborreceu-se. -
N�o lhe ensinaram isso aqui?
- Tem raz�o, perdoe-me. Mas � que voc� pensava t�o alto
que ficou dif�cil n�o ouvir,
Mizael estava encantado. T�o encantado que n�o queria dizer
nada que a afastasse dele. Sentiu uma esp�cie de formigamento,
algo comum em momentos de grande emo��o.
- Conhe�o-a de algum lugar? - perguntou ele, olhando-a
com desconfian�a e ansiedade.
- Quem sabe?
- Acho que a conhe�o - afirmou hesitante. - Mas n�o �
poss�vel que voc� seja quem estou pensando. Est� t�o diferente...
- Quem n�o muda atrav�s dos anos? Voc� tamb�m n�o me
parece o mesmo, embora eu saiba que �.
- Voc� me conhece? Quem � voc�?
Aproximando os l�bios do ouvido dele, num sopro delicado e
morno, ela sussurrou com do�ura:
- Nora.
Virou-lhe as costas lentamente, deixando-o aturdido, sem
a��o, uma infinidade de pensamentos contradit�rios atravessando
seu c�rebro.
47

Cap�tulo
7
Ge�rgia ainda tentava compreender o ocorrido no churrasco
de confraterniza��o do banco. N�o conhecia T�cio nem sabia
de sua hist�ria. Impressionara-a o epis�dio, sentira uma piedade
natural por aquele homem que, aparentemente, sofria.
- Deixe isso para l�, minha linda - pediu J�lio. - T�cio
estava desequilibrado.
- Isso eu percebi. Mas por qu�?
- Ele descobriu que a mulher o tra�a e perdeu o emprego
- Coitado!
- Tamb�m tenho pena, mas n�o posso fazer nada. Quis
emprestar-lhe dinheiro, por�m ele recusou.
- Ser� que n�o podemos convid�-lo para sair? Talvez,
conversando, consigamos levar-lhe um pouco de conforto
- Voc� tem cada ideia, Ge�rgia! Tenho pena do T�cio, mas
n�o sou bab� de marmanjo.
- N�o � uma quest�o de ser bab�. � de ser solid�rio.
- N�o d�. O T�cio � muito orgulhoso, n�o vai aceitar. Nem
eu tenho jeito para isso.
- �s vezes, s� o que as pessoas precisam � de um pouco
de aten��o.

- Que ele j� teve demais com o esc�ndalo que aprontou.
N�o houve quem n�o comentasse. E agora, todo mundo no banco
j� sabe que ele � corno.
- N�o fale assim.
- Mas � verdade - ele aproximou-se e pousou-lhe um beijo
suave nos l�bios, acrescentando com ardor: - N�o vejo a hora de
nos casarmos e termos o nosso cantinho.
- Tamb�m eu. Amo-o demais.
- Voc� n�o faria isso comigo, n�o �?
- Isso o qu�?
- Trair-me.
- � claro que n�o.
- Mesmo se voc� se apaixonasse por outra pessoa?
- Se eu me apaixonasse por outra pessoa, o que n�o
creio ser poss�vel, voc� seria o primeiro a saber. E voc�? Faria o
mesmo por mim?
- Eu nunca vou me apaixonar por outra. Nunca vou deixar
voc�.
- Mesmo que eu fique velha e gorda?
- Mesmo assim. Nada neste mundo me faria deixar voc�.
Nada. Voc� � a mulher que eu amo. Jamais faria como a mulher
do T�cio, que o trocou por um garot�o. Eu nunca a trocaria por
garotinha alguma. N�s vamos envelhecer juntos.
Beijaram-se apaixonadamente, certos de seu amor rec�proco.
- Agora vou voltar para o trabalho - anunciou ele. - Minha
hora de almo�o terminou.
- Est� certo. N�o se esque�a de que hoje come�o aquele
curso de educa��o infantil.
- N�o vou me esquecer. Irei busc�-la � sa�da. N�o quero
voc� andando sozinha � noite, principalmente porque tem que
passar por aquela pra�a de maconheiros.
J�lio deixou-a a contragosto. Amava-a tanto que n�o queria
se separar dela. Pensava em T�cio, em como estaria se virando
para levar avante a vida.
49


Nesse mesmo instante, T�cio experimentava, pela primeira
vez, uma carreirinha de coca�na. Nunca fora ligado em drogas,
contudo, diante das circunst�ncias, talvez o ajudassem. Inalada a
subst�ncia, atirou-se na cama, � espera de que algo acontecesse
Menos de dois minutos depois, foi acometido por uma sensa��o
de euforia que o deixou aceso. Levantou-se rapidamente, sentindo-
se bem-disposto, revigorado em suas energias.
Assim estimulado, saiu para a rua, caminhando de peito
estufado, seguro de si. Ao cruzar com pessoas do sexo oposto,
sentiu o desejo aflorar, chegando mesmo a soltar piadinhas sem
gra�a para as mulheres. A cada resposta indignada, o desejo
aumentava, levando T�cio a ansiar, desesperadamente, por uma
noite de sexo.
O pouco dinheiro que lhe restara gastou quase todo comprando
coca�na. Remexendo nos bolsos, conseguiu juntar alguns trocados.
N�o sabia se seria suficiente para bancar uma garota de
programa, mas precisava desesperadamente de sexo. O jeito era
se virar na Vila Mimosa5.
Tomou um �nibus lotado, enrolando para ficar parado perto
da porta traseira, por onde entravam os passageiros. Ao chegar
� Pra�a da Bandeira, preparou-se para saltar. Quando o motorista
abriu a porta, desceu correndo as escadas, empurrando uma
senhora que vinha subindo, quase derrubando-a ao ch�o.
A carreira foi t�o inopinada que o trocador n�o teve rea��o
Mesmo que desejasse, n�o conseguiria alcan�ar o homem, ainda
mais com o �nibus cheio daquele jeito. Deixou para l�. Aquela
n�o era uma pr�tica incomum, e ele n�o era pago para correr
atr�s de malandro.
T�cio atravessou correndo a avenida de alto movimento, at�
chegar � Vila. L�, escolheu a esmo uma boate, onde logo uma
mulher come�ou a provoc�-lo. Sem maiores rodeios, subiu com
5 Famosa zona de meretr�cio do Rio de Janeiro, iniciou suas atividades na �rea do Mangue, estando agora
situada na Pra�a da Bandeira.
50


ela para o quarto, surpreendendo-se quando ela lhe ofereceu
outra carreirinha de coca.
Pensou em recusar, mas o efeito da dose anterior come�ava
a se dissipar, fazendo retornar a depress�o, ainda mais intensa
do que antes. Com medo de cair novamente naquele estado de
melancolia incontorn�vel, n�o teve d�vidas. Aceitou a oferta da
mo�a e com ela se drogou novamente. Logo a euforia se fez sentir,
o vigor reacendeu com mais intensidade, induzindo-o ao sexo
animal e s�dico. T�cio fez coisas com as quais jamais havia sonhado,
batendo na menina com uma certa viol�ncia, que o deixava
ainda mais excitado.
Ao terminar, sentia-se satisfeito, completo, ainda euf�rico
sob o efeito da droga. A mo�a n�o reclamou, acostumada a clientes
brutos. Ele pagou e foi embora, sem haver trocado uma �nica
palavra com ela durante todo aquele tempo.
A caminho de casa, o efeito da coca�na foi aos poucos desaparecendo,
fazendo ressurgirem os problemas. T�cio n�o tinha
agora nem mais um tost�o. Precisava desesperadamente de
dinheiro para pagar as contas, o credi�rio, o aluguel, o condom�nio.
Pensar em sua mis�ria deixou-o ainda mais nervoso, e
logo veio a ideia. E se experimentasse s� mais um pouquinho da
droga? Melhor n�o. Embora tivesse certeza de que n�o se viciaria,
preferiu n�o arriscar.
Anselmo j� devia ter ligado para marcarem a data da homologa��o
de sua rescis�o contratual. Ser� que ele ia aguardar at� o
t�rmino do prazo do aviso pr�vio para fazer isso? Se fosse assim,
ele ainda teria que aguardar mais umas duas semanas. Como faria
para sobreviver, se nem o sal�rio do m�s Anselmo lhe pagara?
Pensando em Anselmo, a raiva o consumiu. Agora livre do
efeito da droga, viu a irrita��o aumentar, misturando-se a momentos
de depress�o em que s� o que sentia era vontade de morrer.
Sem se dar conta, caminhando a esmo, alcan�ou a ag�ncia
banc�ria onde trabalhara. Como era fim de expediente, logo seus
ex-colegas come�aram a sair.


T�cio nem sabia o que o mantinha ali, mas o fato � que uma
curiosidade m�rbida de ver os inimigos, como agora chamava
J�lio e Anselmo, o fez ficar. Parado na porta do banco, olhava fixamente
para dentro, preocupando, inclusive, os seguran�as que
o haviam posto para fora do clube. Viu Bianca passar, com seu
corpo benfeito e provocativo, arrependendo-se de n�o ter dado
em cima dela, acreditando em fidelidade. Para qu�? Bianca bem
que lhe lan�ava uns olhares significativos, mas o idiota, por causa
da esposa, fingia n�o perceber.
Um pouco mais tarde, J�lio surgiu em companhia de Anselmo,
cochichando e gargalhando alto. Na certa, falavam dele, riam pelas
suas costas, achincalhando seu nome, chamando-o de corno.
J�lio foi o primeiro a v�-lo e hesitou. Anselmo, por sua vez, n�o
estava com disposi��o para aturar fracassados. Deu um tapinha
nas costas de J�lio, entrou em seu carro e foi embora.
A J�lio n�o restou op��o sen�o falar com T�cio. Como o
caminho de sua casa ficava na dire��o em que o outro estava, n�o
teve como evitar passar perto dele. J�lio fez um cumprimento com
a cabe�a, seguindo adiante na esperan�a de n�o ser seguido. Foi
exatamente o que T�cio fez.
- N�o fala mais com os amigos? - indagou.
- Eu falei, T�cio. � que estou com pressa. Ge�rgia est� me
esperando.
- Voc�s v�o se casar? - J�lio assentiu. - Quando?
- Em maio. Mas ficaremos noivos m�s que vem.
- Que bonito - ironizou. - Vou ser convidado?
J� arrependido de ter comentado sobre o casamento e o
noivado, J�lio tentou desconversar:
- Perdoe-me, T�cio, mas estou realmente com pressa.
Outra hora a gente se fala.
T�cio rilhou os dentes de �dio, sentindo uma �nsia quase
incontrol�vel de coca�na. Estranhou aquela necessidade premente
em t�o pouco tempo de uso, mas n�o era poss�vel que estivesse
viciado. N�o t�o depressa. Contudo, a vontade foi aumentando,


levando-o a desejar apenas mais uma carreirinha. S� mais uma.
Podia parar quando quisesse. Sem que percebesse, come�ava a
se encaminhar para o v�cio.
- Voc� pode me emprestar uns trocados? - pegou-se
perguntando a J�lio, que j� se afastava.
O outro estacou e abriu a carteira, dela retirando algumas
notas. Estendeu-as para T�cio, que as pegou sem contar.
- � tudo que tenho - informou J�lio.
- Valeu, cara. Voc� me salvou.
Embora n�o tivesse culpa de nada, J�lio se sentia culpado
por ter conseguido a promo��o, enquanto T�cio fora despedido.
Ele realmente estava numa pior. Tinha d�vidas para saldar e
nenhum sal�rio. Se Anselmo ao menos fizesse aquela homologa��o...
Mas o gerente, com raiva, tornara-se irredut�vel. S� faria a
homologa��o ao final do aviso pr�vio.
De posse do dinheiro, T�cio correu at� a boca de fumo, l�
conseguindo uma dose razo�vel de coca. O entorpecente deixou-
-o aparentemente mais firme em suas convic��es, levando-o a
crer que seus problemas financeiros seriam facilmente resolvidos.
Era cima da mesa, as contas do m�s se amontoavam, o carn� do
credi�rio escondia-se embaixo da papelada. Nada foi pago. Nada
importava. T�cio sentia-se forte e poderoso, como se coisa alguma
no mundo pudesse atingi-lo.
N�o demorou muito para T�cio procurar J�lio novamente.
Esperou-o na hora da sa�da, como j� se tornava seu costume.
Anselmo, para variar, despediu-se com seu usual tapinha nas costas
de J�lio e entrou em seu carro, como se T�cio fosse um desconhecido.
Aos poucos, T�cio foi-se desligando de Anselmo, centrando-
-se mais em J�lio, de quem sempre obtinha alguns trocados para
o consumo da droga. J�lio procurava n�o negar, pensando que o
dinheiro servia para T�cio sobreviver at� que sa�sse a homologa��o.


Finalmente, o dia t�o aguardado chegou. Com o dinheiro
da rescis�o nas m�os, T�cio sentiu-se o todo-poderoso. Era bem
menos do que ele esperava, mas daria para saldar algumas d�vidas.
Em casa, apanhou as contas de luz, g�s e telefone, al�m do
condom�nio. Estavam todas atrasadas, tinha de pag�-las antes
que come�assem os cortes.
Com as contas na m�o, desceu no elevador. Precisava de um
banco para pagar tudo, mas n�o queria utilizar-se daquele em que
trabalhara. Uma raiva surda o atingiu. Tinha �dio de bancos. Se
pudesse, n�o pisaria mais numa ag�ncia banc�ria enquanto vivesse.
Pensando bem, por que tinha de gastar tudo no banco? Quem
o obrigava a pagar as contas? Ningu�m. Aquele dinheiro poderia
ter melhor uso se ele o gastasse em coisas que lhe dessem prazer.
E, naqueles tempos, o �nico prazer que encontrava estava nas
carreiras de coca�na. Sim, era isso. Deixaria as contas para depois
de satisfeita a vontade, que, sem que T�cio reconhecesse, ia se
transformando em v�cio.
O dinheiro que ganhara durou pouco tempo, assim como n�o
demorou muito para T�cio novamente procurar J�lio. Esperou-o
na sa�da do banco, sem ligar para a evas�o de Anselmo.
- Oi, J�lio.
- Oi, T�cio. Como est�o as coisas?
- V�o indo.
- Espero que voc� tenha conseguido se reequilibrar com o
dinheiro da rescis�o.
- Voc� est� brincando, n�o �? Aquele dinheiro n�o deu
para nada.
- Como assim?
- Esqueceu-se de que Anselmo me fez pedir demiss�o?
Isso reduziu o valor da minha indeniza��o e me impossibilitou de
levantar o Fundo6.
6 Fundo de Garantia do Tempo de Servi�o (FGTS). O pedido de demiss�o n�o est� entre as causas autorizadas
pela Lei 8.036/90 para levantamento dos valores depositados.
54


- Ao menos voc� n�o ganhou a justa causa - arriscou
J�lio.
- Eu n�o merecia a justa causa - rebateu com ira. - Mas
deixe isso para l�. N�o foi para discutir quest�es trabalhistas que
vim aqui. O que gostaria � de saber se voc� me pode emprestar
mais algum.
- De novo?
- Estou duro, cara. As contas engoliram aquela mis�ria
que recebi.
- Olhe, T�cio, est� ficando dif�cil. N�o ganho tanto assim
para ficar emprestando. Compreendo a sua situa��o, mas preciso
juntar dinheiro para o casamento.
- Ora, vamos, J�lio, s� dessa vez. Prometo que ser� a �ltima
e que lhe pagarei assim que puder, com juros e corre��o.
Mesmo contrariado, J�lio assentiu. Sacou de novo a carteira
e esvaziou-a nas m�os de T�cio.
- Lembre-se bem, � a �ltima vez - alertou.
- Obrigado.
Dali, T�cio correu novamente � boca de fumo e de l� seguiu
para a Vila Mimosa. Precisava desesperadamente de sexo.
Depois de buscar Ge�rgia no curso, J�lio seguiu para a casa
dela, ainda preocupado com a atitude de T�cio.
- Boa-noite, dona Cl�ia - cumprimentou, sentando-se �
mesa da cozinha.
- Boa-noite, meu filho. Aconteceu alguma coisa?
- � o T�cio. J� lhe falei dele.
- Ele lhe pediu dinheiro de novo?
- Isso mesmo.
- E voc� deu?
- O que poderia fazer? O homem est� na pior.


- Dar dinheiro a ele n�o vai ajudar. O que ele precisa �
procurar outro emprego.
- Tamb�m acho, mas ele j� passou um pouco da idade.
- E da�? Isso n�o � justificativa para ficar pedindo.
- N�o seja t�o intransigente, m�e - censurou Ge�rgia, com
serenidade. - N�o sabemos o que vai no cora��o dos outros.
- Isso �. Mas n�o me parece certo um homem da idade
desse T�cio pedir dinheiro ao J�lio. Se fosse seu pai, estaria engraxando
sapatos na cidade, em vez de ficar reclamando da vida e
explorando os outros.
- Nem todo mundo � como papai. As pessoas t�m suas
fraquezas. N�o devemos julgar ningu�m.
- Est� certo, estou julgando e n�o devia. Mas voc� acha
correto o J�lio ficar sustentando vagabundo?
Ge�rgia suspirou e n�o disse mais nada. N�o adiantava
discutir com a m�e quando ela j� tinha uma ideia formada. No
fundo, ela n�o deixava de ter uma certa raz�o. T�cio devia mesmo
procurar outro emprego, e o papel de J�lio seria o de incentiv�-lo,
n�o de prover seu sustento. Emprestar dinheiro era at� compreens�vel,
mas o que T�cio estava fazendo virara explora��o.
- Eu nem me lembro direito desse T�cio - divagou
Ge�rgia. - Vi-o apenas uma vez no churrasco.
- Ele est� horr�vel, voc� nem queira saber. Emagreceu, vive
com os olhos fundos e vermelhos.
Deve ser o sofrimento,
- Sofrimento, sei - rebateu Cl�ia. - Ele deve andar �
bebendo para afogar as m�goas. E isso n�o resolve
- Sua m�e tem raz�o, Ge�rgia. N�o vou mais emprestar
dinheiro a T�cio. Precisamos juntar tudo o que temos para montar
nossa casa.
- Isso mesmo - elogiou Cl�ia. - Cuidem da vida de voc�s,
que � o mais importante. Vou rezar por T�cio, para que ele consiga
se acertar na vida.


Decidido a n�o mais dar dinheiro a T�cio, J�lio sentiu um certo
al�vio. Nos dias que se seguiram, T�cio n�o o procurou, levando-o
a pensar que cumpriria sua promessa. Todavia, na semana seguinte,
ao sair do trabalho, l� estava ele de novo, ainda mais magro do
que antes, uma hostilidade irreconhec�vel no olhar.
- Voc� est� bem? - preocupou-se J�lio, assim que ele o
abordou.
- Estou - rilhou os dentes.
Na verdade, T�cio n�o estava nada bem. A companhia de luz
cortara sua energia. O g�s havia muito se fora, mas n�o o incomodara
tanto, j� que ele quase n�o comia, satisfazendo-se com
biscoitos e refrigerantes. O propriet�rio do apartamento amea�ava
mover uma a��o de despejo, cobrando os alugu�is e o condom�nio
em atraso. Por isso, nada podia estar bem. Mas ele n�o queria
dividir aqueles problemas com J�lio. Precisava desesperadamente
da coca, e J�lio era o �nico que poderia ajud�-lo.
- Que bom - falou J�lio. - Olhe, estou com um pouco de
pressa e n�o posso conversar agora.
- Preciso de dinheiro - rosnou, apertando o bra�o do
outro.
- N�o posso mais emprestar - afirmou J�lio, evitando
seu olhar.
- Por qu�? Voc� tem.
- N�o tenho, n�o. O que possuo � pouco e estou juntando
para meu casamento.
- N�o seja idiota! Para que quer se casar com uma vagabundinha
que daqui a pouco ir� lhe botar um belo par de chifres
na testa?
- N�o chame Ge�rgia de vagabunda! - irritou-se, puxando
o bra�o com viol�ncia. - E n�o � s� porque a sua mulher o traiu
que todas as outras v�o fazer a mesma coisa.
T�cio soltou uma gargalhada nervosa, acrescentando com
uma ferocidade at� ent�o desconhecida:


- Voc� pensa que sua Ge�rgia lhe � fiel? Pois duvido muito
que seja. Aposto como se deita com outros homens sem voc� saber.
T�cio descontava em J�lio sua frustra��o pelo casamento
brutalmente rompido. Sob o efeito da droga, extravasava a f�ria, o
desespero o consumia. Precisava de mais.
- V� embora, T�cio - disse J�lio, contendo-se para n�o lhe
acertar um soco. - N�o temos mais nada a conversar.
- N�o! Preciso de dinheiro.
- O dinheiro acabou. V� arranjar um emprego, que � a
melhor coisa que voc� pode fazer.
- Voc� me deve isso! - exasperou-se. - Tomou o meu
lugar no emprego.
- N�o lhe devo nada. A promo��o foi minha por merecimento.
Ningu�m mandou voc� fazer besteira.
- Que besteira eu fiz? Minha mulher me traiu. Tive culpa?
- N�o me interessa. E fim de papo. Tenho mais o que fazer.
- Voc� n�o vai me deixar assim. Exijo que me empreste
mais dinheiro.
- Emprestar? Que empr�stimo o qu�, se voc� nunca me
pagou?
- S� dessa vez - suplicou ele, mudando o tom de voz. - �
a �ltima, prometo.
- Voc� j� me prometeu isso antes. E olhe voc� aqui de novo.
Irritado, J�lio virou-lhe as costas. N�o tinha mais por que
continuar com aquela conversa. Afastava-se quando sentiu as
m�os de T�cio sobre seus ombros, puxando-o violentamente
de volta.
- Voc� n�o pode ir embora assim - falou. - Preciso de
dinheiro.
- Solte-me, T�cio. Acabou!
Como T�cio n�o soltava, ao contr�rio, apertava seus ombros
com mais e mais for�a, J�lio n�o viu outra sa�da a n�o ser desferir-
-lhe um murro na face. Nada de muito violento, mas devido ao
estado lastim�vel em que o outro se encontrava, foi o suficiente
para jog�-lo ao ch�o.


- Isso n�o vai ficar assim - T�cio amea�ou. - Voc� ainda
h� de me pagar por essa humilha��o.
Sem dar resposta, J�lio rodou nos calcanhares, desatando
pela rua quase a correr. Pensou que T�cio o seguiria novamente,
mas ele nada fez. J�lio nem olhou para tr�s, seguindo �s pressas
para casa.
T�cio queria muito ir atr�s dele para dar-lhe uma li��o, mas
todo seu corpo se ressentia com a falta da droga. Uma fissura
cada vez mais premente o afligia, levava-o quase � loucura. Em
desespero, viu afastar-se sua �ltima esperan�a de obter dinheiro
para satisfazer uma necessidade que ele n�o assumia como v�cio.
Cada vez mais aturdido, T�cio voltou para casa, pensando
em como arranjar dinheiro. Entrou �s cegas, tateando em busca do
interruptor. Em v�o, pois estava sem luz. Abriu a persiana, permitindo
que a luminosidade do fim de tarde penetrasse no ambiente.
Olhando ao redor, deu de cara com o antigo aparelho de som, j�
que o novo, a mulher levara. Para que precisava daquilo se j� nem
tinha mais energia para lig�-lo?
Sem nem pensar, passou a m�o nele e saiu, direto para a
boca de fumo. N�o conseguiu muito num aparelho velho, mas o
suficiente para saci�-lo por algumas horas. Ao menos at� decidir
sua pr�xima a��o.
Na sa�da do curso, Ge�rgia aguardava a chegada de J�lio.
Estava adorando as aulas. Era um curso de educa��o infantil � luz
da teoria de Piaget7. Tinha esperan�as de, mais tarde, ingressar na
faculdade de pedagogia e, futuramente, conciliar a escola p�blica
com um emprego no Centro Educacional Jean Piaget8.
7 Jean Piaget (1896/1980) - especialista em psicologia evolutiva e epistemologia gen�tica, fil�sofo e bi�logo,
considerado a maior autoridade no estudo do comportamento cognitivo.
8 http://www.jeanpiaget.com.br.
59


J�lio n�o se demorou. Apanhou-a pela m�o, seguindo com ela
para casa, N�o era longe. O problema � que tinham de passar por
uma pra�a muito perigosa, transformada em boca de fumo e ponto
de encontro de maconheiros. A pra�a era malcuidada, escura, o
mato crescia no lugar do jardim. Para passar por ela, havia duas
possibilidades: um caminho maior, contornando-a, ou o caminho
mais curto, atravessando-a e cruzando com viciados e traficantes.
No momento em que contornavam a pra�a, T�cio ergueu os
olhos para o traficante que acabara de lhe vender a droga, vendo,
por cima de seu ombro, duas figuras passando pela cal�ada do
outro lado. Imediatamente reconheceu J�lio e Ge�rgia.
T�cio apanhou o pacotinho com a coca e esgueirou-se para
o ponto mais escuro da pra�a, onde a l�mpada do poste fora
quebrada para encobrir a��es il�citas. De l�, observou os dois,
*
centrando a aten��o na mo�a. Ela era linda, o corpo esbelto
bem ajustado ao jeans, os seios despontando sob a camiseta de
malha simples.
Na mesma hora, o desejo o consumiu. Precisava urgentemente
acalmar o apelo do sexo. Ainda sob o efeito da carreirinha que
cheirara antes de sair de casa, sentiu a ejacula��o espont�nea.
N�o havia ningu�m por ali para saciar sua f�ria sexual, apenas a
noiva de J�lio, cuja vis�o, por si s�, levava-o ao auge da excita��o.
Na cal�ada, alheios � presen�a de T�cio, o casal de enamorados
seguia seu rumo tranquilamente
- Estou amando o curso, J�lio - ela comentou.
- Que bom, minha linda! Voc� � muito inteligente, vai longe.
- Estou pensando em fazer faculdade de pedagogia depois
de nos casarmos. O que voc� acha?
- Acho �timo - afirmou ele, lembrando-se dos conselhos
de Anselmo, que o valorizaria ainda mais ao saber que sua esposa
pensava em crescer na carreira do magist�rio.
- Podemos ter filhos mais tarde?
- Mais tarde quando?
- Depois que eu terminar a faculdade.


- Ah, Ge�rgia, n�o sei. E se demorar muito?
- N�o vai demorar. Quatro anos, no m�ximo. � o tempo
de nos firmarmos profissionalmente e podermos dar aos nossos
filhos uma condi��o melhor de vida. O que voc� acha?
- Por esse lado, voc� tem raz�o.
- Ent�o, tudo bem?
- Tudo bem.
Ele a abra�ou fortemente, causando inveja em T�cio.
- V� aproveitando - rugiu ele para si mesmo. - Mais dia,
menos dia, essa felicidade vai acabar.
Com o peito transbordando de despeito, inveja e outros tantos
sentimentos daninhos, T�cio saiu de seu esconderijo, ofegante do
prazer que sentira s� de olhar para Ge�rgia. Ainda era tempo de
buscar al�vio na Vila Mimosa. De nada adiantaria voltar para casa
se nem tinha luz e o senhorio vivia batendo � sua porta. At� um
oficial de justi�a o procurara, levando uma cita��o para responder
� a��o de despejo, que ele ignorou.
Que a a��o corresse � revelia, assim como � sua revelia
corriam as desgra�as de sua vida.
61

cap�tulo
8
Damien abriu a porta da sala de At�lio e entrou com cuidado,
para n�o o irritar. Fechou a porta, sentou-se � sua frente e
esperou. At�lio vivia analisando relat�rios que seus sequazes lhe
enviavam regularmente, atento aos movimentos do mundo. N�o
podia descuidar um minuto, ou perderia o poder com que tanto
sonhava. Quando terminou de ler o �ltimo relat�rio, soltou a papelada
e encarou Damien.
- Voc� nem imagina como estamos progredindo. Nossos
companheiros t�m feito um excelente trabalho junto aos encarnados.
- N�o poderia ser diferente, chefe, contando com a sua ast�cia.
At�lio reconhecia os ind�cios da bajula��o, mas n�o rebateu
Tinha em mente outros interesses.
- Muito bem. E o seu relat�rio?
- Estamos avan�ando. J� contatamos o casal, e tudo parece
perfeito. Nenhum dos dois d� mostras de que pretende desistir.
- �timo. Mas nem por isso descuidem deles. Mantenham
guarda dia e noite.
- Bom, isso � um pouco mais complicado do que parece, O
homem � f�cil, mas a mo�a...
O que tem ela?
- Nunca vi uma aura t�o radiante.


- Desde quando voc� v� aura? Sua vis�o estreita s� consegue
enxergar coisas sujas.
- Para o senhor ver - rebateu ele, engolindo a raiva pela
humilha��o. - Se eu, que nunca vejo nada, consegui perceber a
aura da mo�a, imagine o quanto ela � especial.
- Conversa! N�o acredito nisso. Todo mundo pode ser
corrompido. Ela tem milhares de defeitos, s� que ocultos. Trate
logo de descobrir.
- O senhor n�o entendeu. N�o posso. A sua aura nos cega,
nos afasta. Nenhum de n�s conseguiu se aproximar.
- Que coisa! - irritou-se. - Ser� que tem algum esp�rito de
luz colado nela e voc�s n�o veem?
- Pode ser.
- Ou ser� que � incompet�ncia mesmo?
- Se n�o acredita em mim, por que n�o vai pessoalmente
verificar?
- Est� me desafiando? - rugiu At�lio, nesse momento parecendo
mais alto e intimidador do que de costume.
- Em absoluto - Damien se encolheu. - Estou apenas
tentando chamar sua aten��o para o fato de que essa menina est�
fora do nosso alcance.
- Isso n�o � bom - ruminou ele ap�s alguns minutos. -
Uma pessoa assim pode comprometer nossos planos.
- Como?
- Luz � sinal de uma coisa: eleva��o moral e espiritual, o
que dificulta a propaga��o do poder. Tenho medo dessa influ�ncia
sobre Mizael.
- O senhor acha que a luz dela pode comprometer a
miss�o de Mizael? - ele quase exultou, no fundo torcendo pelo
fracasso do rival.
- N�o sei. � poss�vel que ela nos crie algum tipo de embara�o.
Mas Mizael � forte, saber� resistir.
- Ser�, senhor?


- Voc� vai estar l� para garantir isso. N�o permita que ele
fraqueje, que se deixe envolver pela energia que mais tememos,
porque � a que mais atrapalha os nossos planos.
- Que energia � essa?
- O amor, idiota! Podemos n�o gostar, reclamar e at� menosprez�-
lo. Mas eu n�o sou tolo nem ing�nuo. Conhe�o o poder do
amor genu�no. Agora v� Tenho coisas importantes para fazer.
- Sim, senhor.
Quando Damien se preparava para sair, At�lio lan�ou sobre
ele um olhar glacial que o paralisou.
- Tenha cuidado, Damien. Escolha bem de que lado quer
estar. Quem � contra Mizael � tamb�m contra mim,
Um temor fez arrepiar seus pelos astrais. Seria poss�vel que
At�lio houvesse descoberto o que ele sentia?
- Eu... n�o compreendo, senhor... N�o sou contra Mizael.
Muito menos contra o senhor.
- �timo! Que continue assim.
Dessa vez, Damien saiu sem titubear, morrendo de medo
de deixar vis�veis seus pensamentos. � claro que At�lio sabia que
ele detestava Mizael. S� n�o acreditava que ele tivesse coragem
suficiente para tra�-los. E n�o tinha. Se pudesse, Damien destruiria
Mizael, mas jamais At�lio. Ele andava estranho, escabreado.
Damien daria tudo para saber o que passava pela cabe�a dele.
N�o era algo que At�lio quisesse admitir. Nem gostava de
pensar em suas desconfian�as. Mas aiguma coisa naquele plano
parecia fora de lugar. A confian�a que depositava em Mizael era
total, contudo sentia-se inquieto. Era uma esp�cie de medo, uma
sensa��o de perda irrevog�vel, definitiva. Seria poss�vel que Mizael
estivesse se deixando seduzir pelo lado da luz?
Sem contar que agora dera para cismar com Nora. H� tanto
tempo n�o a via que, por vezes, esquecia-se de seu rosto. Ela
agora devia ter outra apar�ncia, pois uma pessoa como Nora n�o
ficaria anos a fio em um lugar s�. Tinha certeza de que ela j� devia
ter reencarnado ao menos umas duas vezes.


At�lio conhecia os mecanismos do destino, que tratava de
aproximar pessoas com antigos elos de afeto. E se algo semelhante
acontecesse com Mizael? Ele j� ia ser filho de uma mulher
iluminada. O que seria dele se, al�m da m�e, tivesse tamb�m
uma mulher com o cora��o repleto de luz? N�o. Aquilo n�o podia
acontecer. Nora desaparecera, n�o se prestaria a sofrer ao lado de
Mizael novamente. Ele possu�a o maior poder. Ele iria vencer.
O pensamento insistente de At�lio alcan�ou a mente confusa
de Mizael, dando-lhe uma vaga impress�o dos acontecimentos.
Se ele pudesse veria, do lado de fora das muralhas da cidade, uma
pequena aglomera��o de formas-pensamento tentando penetrar
a barreira energ�tica que a guarnecia. Como n�o era poss�vel,
permaneciam vagando a esmo, at� se dissolverem.
Nada disso passava despercebido a Josu�, que conhecia
bem o significado daquelas formas. E, se At�lio mandava ondas
mentais para serem captadas por Mizael, era �bvio que Mizael
tamb�m as sentia. Os esp�ritos de luz, contudo, n�o permitiam
que elas chegassem ao seu destino, de modo que apenas eles
tinham acesso aos pensamentos de At�lio. E mesmo as poucas
mensagens que Mizael enviava s� passavam pelo filtro energ�tico
quando assim era permitido. Dali, nenhum pensamento entrava ou
sa�a sem autoriza��o ou controle.
Mesmo assim, a onda emocional que acompanhava os
pensamentos de At�lio alcan�ava, embora com menor intensidade,
o corpo flu�dico de Mizael. Ele andava inquieto, arredio, assustado.
Parecia temer uma amea�a invis�vel que nunca chegava.
Josu� encontrou-o vagando sozinho pelas proximidades
da muralha, atra�do para l� pelas formas-pensamento que se
chocavam contra ela e desapareciam. Embora n�o as visse nem
soubesse de sua exist�ncia, pressentia uma presen�a no ar.
- Tudo bem com voc�? - perguntou Josu�, acercando-se
com cuidado.
- Sinto-me estranho, irrequieto. Ser� que � porque vou
reencarnar?
65


- � poss�vel. Muitos esp�ritos se sentem assim, com medo
do que os aguarda na mat�ria.
- Voc� acha que � isso? Medo do fracasso?
Ele deu de ombros e retrucou:
- Pode ser.
- N�o tenho medo de fracassar. Sei que vou conseguir o
que desejo
- E o que, exatamente, voc� deseja? - questionou Josu�,
encarando-o de forma penetrante.
O olhar de Josu�, como sempre, o incomodou. Sentia-se
desvendado por ele. Mesmo assim, abaixou os olhos e respondeu
com uma naturalidade que n�o sentia:
- Voc� sabe. Quero levar uma vida normal, trabalhar, ser
um bom chefe de fam�lia.
- Voc� ainda n�o me contou que profiss�o escolheu.
- Hum... Deixe ver... Gostaria de ser um bom administrador.
N�o era exatamente mentira, j� que, segundo ele, liderar o tr�fico
de drogas requeria uma boa dose de conhecimentos em administra��o.
Josu� compreendia os seus motivos, apiedando-se da ilus�o
do poder que ele, como muitos outros, alimentava cegamente.
- Voc� tem um intelecto muito agu�ado - afirmou Josu�. -
Vou orar para que saiba utiliz�-lo em benef�cio do seu aprimoramento.
Mizael n�o respondeu. O que poderia dizer �quele esp�rito
que, embora nada falasse, parecia tudo saber?
- Tem algo que gostaria de perguntar - Mizael mudou de
assunto. - Onde est� Nora?
O olhar de compreens�o do outro deu-lhe a certeza de que
Josu� sabia de quem ele estava falando. Com um sorriso enigm�tico,
as m�os juntas sob a manga da t�nica, arrematou:
- No momento oportuno.
N�o ficou para esperar resposta. Simplesmente esvaneceu
no ar, deixando Mizael embasbacado com sua falta de aten��o.
Irritado, deu as costas � muralha e caminhou de volta a seu alojamento,
procurando Nora em todos os jardins por onde passava.


Aquele era o dia que ele h� tanto aguardava. Finalmente, seria
levado ao t�o misterioso laborat�rio para reagrupamento de seus
�tomos astrais e modela��o do novo corpo flu�dico, que acompanharia
a forma f�sica t�o cuidadosamente planejada e selecionada
entre as possibilidades gen�ticas de seus pais.
Estava ansioso, com medo de sofrer ou sentir dor. Josu� lhe
assegurou que n�o sentiria nenhum desconforto, apenas uma leve
perturba��o decorrente da transi��o de planos e dos novos rumos
de vida decididos.
- Posso desistir? - indagou ele, em sua �ltima conversa.
- Pode, e sua m�e ir� abortar.
- E se ela me abortar voluntariamente?
- O aborto, muitas vezes, � um risco que o esp�rito deve
assumir para reencarnar. Mas sua m�e nos garantiu que n�o o far�
e acredito nela.
- Est� certo. Estou um pouco nervoso, mas estou pronto.
* - O nervosismo � natural. A hora do estupro est� pr�xima,
assim como o momento em que se formar� o t�nue liame que o
ligar� � sua m�e.
- Meu corpo vai se colar ao dela?
- N�o. Voc� permanecer� aqui, no leito do laborat�rio, at�
que se complete a gesta��o. Esse liame, que � um cord�o flu�dico,
vai diminuindo � medida que a gravidez avan�a. No momento do
nascimento, ele se romper� parcialmente, dando a voc� uma nova
individualidade, distinta da de sua m�e, mas que s� se completar�
por volta de seus sete anos de vida.
- � como um cord�o umbilical?
- Exatamente. Assim como o cord�o f�sico leva alimento da
m�e para o beb�, o cord�o flu�dico leva o alimento que empreender�
a troca de energias entre voc�s.


- N�o tem uma hist�ria de cord�o prateado? Onde � que
ele entra?
- O cord�o prateado � outro liame, tamb�m fin�ssimo, mas que
serve para ligar seu corpo astral ao f�sico, enquanto perdurar a vida
na mat�ria. Ele surgir� no momento em que seus corpos se unirem.
- Muito bem. Tudo combinado. Estou pronto.
- S� mais uma coisa antes de partirmos. Tenho uma surpresa
para voc�.
- Uma surpresa?
Josu� chegou para o lado, dando passagem � linda jovem
que Mizael encontrara poucos dias antes.
- Nora! - exclamou ele, completamente aturdido. - Por
onde esteve? Procurei voc� feito um louco.
- Em minha pr�pria cidade astral.
- Voc� n�o mora aqui?
- N�o.
- Nora vive em uma esfera um pouco acima da nossa -
esclareceu Josu�.
- N�o me diga! Mas conte-me. Por onde andou, o que tem
feito? Faz muito tempo que desencarnou?
- N�o muito. Tive outras vidas depois daquela em que
quase nos casamos. Mas nunca me esqueci de voc�.
- Nem eu. Eu a amava de verdade. Pena que voc� n�o
conseguiu entender a minha... - ele ia dizer profiss�o, mas calou-
-se envergonhado, fitando Josu� com espanto.
- Isso tudo ficou no passado - cortou ela. - Podemos
planejar outro futuro.
- Como assim?
- Embora eu n�o precise, escolhi reencarnar para vivermos
o que n�o conseguimos viver naquela �poca.
- Jura? Voc� faria isso por mim?
- Faria por n�s, pois tamb�m o amo e quero ter a oportunidade
de desenvolvermos juntos esse amor
- Ma! posso acreditar. Nada me deixaria mais feliz!


- S� tem uma coisa - ela mudou de tom, falando com seriedade
acima do normal. - Como da outra vez, n�o vou tolerar que
voc� enverede pelo caminho do crime. Voc� continua livre para fazer
suas escolhas, mas eu tamb�m tenho liberdade para fazer as minhas.
- Como assim, Nora?
-Sabemos de tudo o que acontece aqui - intercedeu Josu�. -
Voc� � esperto, Mizael, mas ainda est� muito distante da sabedoria
divina. Seus planos de crime na Terra s�o conhecidos por n�s.
Ele abriu a boca, estupefato, e retrucou embara�ado:
- Voc�s sabem? Durante esse tempo todo, sempre souberam?
- Josu� assentiu. - Se � assim, por que permitiram? Por
que est�o me dando essa chance se sabem o que pretendo?
- Como voc� poder� crescer se n�s n�o lhe dermos um cr�dito?
- N�o � poss�vel. Acha mesmo que eu mere�o esse cr�dito?
Que vou me transformar?
- N�o sei. Mas tem uma chance, como todos os que voltam
com ideias iguais ou piores do que a sua.
- N�o posso acreditar que isso esteja acontecendo. Passei
esse tempo todo aqui fazendo papel de idiota.
- Por que diz isso? N�o conseguiu o que queria?
- Mas voc�s sabem! - afirmou ele, incr�dulo. - De tudo?
- Tudo. Seus planos para ingressar no crime e no tr�fico de
drogas, com a coopera��o de At�lio.
- Conhecem At�lio?
- Por certo.
- Fui ludibriado! Deixem-me ir embora. N�o quero mais
participar dessa farsa.
- Farsa? Quem de n�s finge ser algo que n�o �?
- Voc�s est�o me mandando de volta � Terra porque acham
que v�o me manipular para que eu vire bonzinho. Querem que eu
sirva de cobaia para seus estudos de regenera��o?
- Voc� n�o � mais especial do que ningu�m para se tornar
objeto de estudos. � como todos os outros que por aqui passaram
com a mesma ilus�o que voc�. A todos, demos o mesmo tratamento,


a mesma aten��o, as mesmas esperan�as. Muitos retornaram bem-
-sucedidos, modificados em sua ess�ncia. Outros continuaram na
mesma. E voc� n�o pode ser t�o ing�nuo a ponto de imaginar
que ningu�m descobriria seus prop�sitos torpes. Voc� desconfiava
que eu sabia e aceitou minha ajuda mesmo assim, porque, no
fundo, o que realmente quer � uma chance de se modificar.
- Voc� est� errado. S� o que pretendo � viver a minha vida
do jeito que eu quiser.
- Mizael - era a voz doce de Nora. - Ou�a o que Josu�
est� dizendo. Ningu�m vai tentar demov�-lo de seus projetos.
Suas atitudes dependem s� da sua consci�ncia.
- Voc�s n�o v�o tentar me impedir?
- N�o - afirmou Josu� categoricamente. - Voc� tem liberdade
de escolha, mas se aprisionar� �s consequ�ncias das que
forem malfeitas.
- Isso � problema meu!
- Por certo.
- Quero estar com voc� de novo, Mizael - declarou Nora.
- Para vivermos a vida que n�o tivemos oportunidade de viver.
N�o sabe que eu o amo? O destino nos separou porque fizemos
escolhas incompat�veis, mas nada impede que agora fa�amos
coincidir nossos prop�sitos.
Ele olhou para ela, sentindo retornar a for�a do sentimento que
uma vez os unira, esquecendo-se de Josu� por alguns momentos.
- Voc� estaria disposta a me seguir?
- Voc� estaria disposto a mudar em nome do nosso amor?
- Voc� est� jogando com as palavras, Nora. Sempre desejei
estar com voc�.
- Pois essa � a nossa chance. O que lhe pe�o � uma mudan�a
de atitude que s� trar� benef�cios a voc�.
- O que me pede � quase imposs�vel. N�o � da minha natureza
ser bonzinho.
- Voc� fala tanto em ser bonzinho. Mas o que � ser bonzinho
para voc�?


- Sei l�! Ser puxa-saco, amiguinho, sol�cito, subserviente,
fazer tudo o que os outros querem.
- Ser bonzinho � agir com amor. Apenas isso. Ser� que
voc� n�o � capaz de amar?
- Amo voc�. S�.
- J� � um come�o.
- N�o fa�a isso comigo, Nora, pelo amor de Deus. Perd�-la
novamente me traria uma dor insuport�vel.
- N�o tem que ser assim. Podemos ser felizes juntos.
- Est� se esquecendo de At�lio. Tenho um compromisso
com ele.
- At�lio n�o descansar� at� que voc� cumpra o que lhe
prometeu - alertou Josu�. - Mas o poder que ele pensa ter n�o
� nada comparado ao poder do amor.
- Amor, amor - desdenhou. - � s� nisso que sabe falar?
- Isso n�o � o mais importante? - replicou Nora. - N�o �
o que todos querem?
- O que eu quero � poder.
- J� conversamos sobre isso - tornou Josu�. - Mas, pelo
que.percebo, voc� n�o acreditou em mim.
Mizael n�o disse nada, impacientando-se com aquela conversa.
Tinha vontade de desistir e fugir dali, de volta ao seu submundo
de sombras, mas a presen�a de Nora o paralisava, deixando-o
cada vez mais confuso, inseguro.
- Vou reconquist�-la - avisou ele, segurando a m�o
dela. - Volte comigo e tudo farei para ficarmos juntos.
- Voc� sabe o que tem que fazer - disse ela.
- Voc� vai?
- Vou. Daqui a alguns anos, estarei de volta.
- Seremos felizes ent�o. Vai ser f�cil, voc� vai ver.
- N�o t�o f�cil, mas, se assim fosse, n�o valeria a pena.
Mizael n�o entendeu o �ltimo coment�rio dela, mas n�o
teve tempo de perguntar, porque Uriel entrou apressado, dizendo
com euforia:


- Est� na hora!
- Do estupro? - surpreendeu-se Mizael.
- Ainda n�o. Mas j� est� tudo pronto no laborat�rio para
receb�-lo. Se voc� n�o for agora, n�o ter� tempo de se preparar, e
h� outros pretendentes aguardando.
- E ent�o? - perguntou Josu�. - Voc� vai ou n�o?
Ele hesitou pouqu�ssimos minutos antes de responder:
- Eu vou. Mas vai ser do meu jeito. E voc� vai ser minha.
Voc� sabe o que tem que fazer, Mizael - disse Nora. -
Se reincidir no crime, me perder� de novo.
- N�o vou perd�-la.
A �ltima frase dele tinha duplo sentido. Mizael queria que
Nora achasse que ele n�o a perderia porque se esfor�aria para
mudar, quando o que ele pensava era que ela seria dele a qualquer
custo. Os dois, contudo, sabiam a verdade.
Ao lado de Josu� e Uriel, ele seguiu a caminho do laborat�rio.
Parados na porta, Uriel foi o primeiro a dar-lhe um abra�o fraterno.
- Boa sorte! - desejou de cora��o.
- Obrigado.
- Estaremos orando por voc� - falou Josu�. - Sabe que
pode contar conosco sempre que precisar, mesmo quando as
hordas de At�lio o estiverem envolvendo.
- Obrigado - disse ele, mais para ver-se livre de Josu� do
que pensando em procur�-lo. - E adeus.
- At� breve - acrescentou Josu�, abra�ando-o tamb�m.
Ao se virar para a rampa de acesso ao laborat�rio, Mizael sentiu
o que realmente era medo. Havia tantas programa��es para sua
vida que temeu n�o dar conta de tudo. As incumb�ncias de At�lio
eram as que mais o estimulavam, mas as pondera��es de Josu� o
haviam balan�ado. E, para completar, Nora surgira para dividir seu
cora��o entre o amor e o poder. N�o era uma disputa justa.
72

cap�tulo
9
J�lio e Ge�rgia acabavam de sair do cinema, comentando
sobre o filme enquanto caminhavam.
- Achei a hist�ria engra�ada - disse ele. - Uma bobeira,
mas divertida.
- J� pensou se houvesse fantasmas9 assim? - gracejou
ela. - Seria um horror!
Chegaram � porta da casa de Ge�rgia e pararam. J�lio levou
a m�o da namorada aos l�bios e disse com uma certa tristeza:
- Bom, minha linda, tenho que ir. Viajo cedo amanh�.
- A que horas sai o seu voo?
- �s sete e meia. Terei que madrugar no aeroporto.
- � melhor voc� ir dormir.
- Estou preocupado com voc�, Ge�rgia. N�o quero que
volte sozinha � noite por aquela pra�a.
- Deixe de bobagens, J�lio. Sei me cuidar.
- Ali fica cheio de marginais. Acho melhor voc� dar a volta
pelo outro lado da cal�ada.
- Tudo bem, se vai fazer voc� se sentir mais tranquilo.
Apesar de ter que dar uma volta maior, n�o me custa nada.
9 Refer�ncia ao filme Os ca�a-fantasmas, de 1984-


- Obrigado. N�o me perdoaria se algo lhe acontecesse.
- Nada vai me acontecer. V� sossegado para o seu congresso
e volte correndo. Estarei aguardando voc�.
A despedida foi demorada, mas n�o teve jeito. A contragosto,
J�lio separou-se de Ge�rgia. Passaria a semana toda em S�o
Paulo, num congresso de gest�o financeira para o qual Anselmo o
indicara, alertando-o de sua import�ncia se desejasse, no futuro,
concorrer a uma promo��o para a �rea financeira do banco, onde
trabalharia com empr�stimos e financiamentos. Uma oportunidade
que n�o poderia perder, principalmente agora que iria casar-se
e constituir uma fam�lia.
Fazia algumas semanas que T�cio acompanhava a rotina de
Ge�rgia, vendo-a passar pela cal�ada da pra�a sempre acompanhada
de J�lio. Postado debaixo do poste sem luz, punha-se a cobi��-la,
a coca�na lhe subindo � cabe�a, provocando a imediata ere��o. Era
um desejo t�o intenso que n�o podia controlar. Dali, corria � Vila
Mimosa, descarregando nas meninas o ardor de sua f�ria.
A vida de T�cio estava um caos. N�o tinha mais luz nem
g�s no apartamento e havia duas a��es contra ele: da financeira
e do propriet�rio. N�o respondera a nenhuma delas. Com tudo
o que estava acontecendo, onde arranjaria dinheiro para pagar
um advogado? N�o possu�a nada de valor que pudesse penhorar
para saldar suas d�vidas. Os poucos m�veis e utens�lios que tinha
haviam sido quase todos vendidos para comprar coca�na.
Enquanto n�o era condenado, ia vivendo, at� que o pusessem
na rua. A� ent�o pensaria no que fazer. Talvez virasse mendigo,
talvez assaltante. N�o, nem isso poderia ser, j� que n�o tinha
condi��es nem de comprar uma arma. Podia puxar carros. Sim,
era isso. Os toca-fitas estavam em alta, davam sempre um bom
dinheiro. N�o lhe importava onde iria dormir. O que n�o podia era
ficar sem a droga.


Estava pensando assim quando avistou, do outro lado da rua,
Ge�rgia, que caminhava sozinha. No princ�pio, pensou que se tratasse
de uma ilus�o causada pela droga, mas depois se certificou de que
n�o era. Realmente, o que via era a noivinha de J�lio, toda gostosa
em seu jeans apertado. O desejo de sempre retornou com toda f�ria.
Passou a l�ngua nos l�bios, imaginando que era o corpo de Ge�rgia.
Estranhou v�-la passar sozinha, imaginando se n�o teria
brigado com o namorado. Queria desesperadamente toc�-la,
contudo ela estava longe, inacess�vel. Consultou os bolsos, �
procura de alguma migalha, mas eles estavam vazios. Naquele
dia, teria de se virar sozinho, o que fez ali mesmo, j� que n�o tinha
nem dinheiro para correr � Vila Mimosa.
Na outra noite, o mesmo aconteceu, como na seguinte e na
pr�xima. Ela vinha sozinha, do outro lado, fora de seu alcance.
Junto a ele, Damien quase desesperava, vendo perder-se a oportunidade
de induzir o outro ao ato criminoso. At� que, na sexta-feira,
a sorte pareceu obrar a seu favor. Pouco antes da hora de Ge�rgia
passar, um vendaval atingiu a cidade, fazendo escurecer o c�u
com a amea�a de chuva.
A ventania levantava areia, arrastava folhas, sacudia as �rvores
com f�ria. Os olhos de T�cio ardiam com a poeira, quase
levando-o a desistir. Todos os outros haviam ido embora, deixando
a pra�a praticamente deserta. Apenas ele permanecia, como
presa de um desejo insano.
Ge�rgia despontou na rua em frente, paralisando todos os
seus m�sculos. Inesperadamente, em vez de dar a volta na pra�a,
ela atravessou a rua correndo, preparando-se para cruz�-la, provavelmente
para encurtar o caminho e escapar da tempestade que
se aproximava. Olhou de um lado a outro, para ver se havia algum
suspeito por perto. N�o viu ningu�m. Nem T�cio, que se ocultara
nas sombras.
Sentindo-se segura, Ge�rgia avan�ou. Prometera a J�lio que
n�o andaria por ali, mas n�o tinha tempo de dar a volta se quisesse
chegar em casa antes da chuva. Ge�rgia tentou passar o mais


longe poss�vel dos arbustos descuidados, procurando tra�ar uma
linha reta at� o outro lado.
De longe, T�cio a acompanhava, sedento, �vido. Em seus
pensamentos, um torvelinho de ideias infames o assaltava. T�o
infames que ele n�o se reconheceu. Queria muito transar com ela,
contudo nunca usara de for�a para dormir com ningu�m.
A seu lado, impaciente, Damien n�o dava tr�gua. Sabia
que aquela era a oportunidade que esperava. T�cio n�o devia
deixar passar a �nica chance de ter sob seu corpo o corpo jovem
de Ge�rgia.
- Veja como ela � gostosa, apetitosa - estimulava Damien.
- Imagine-se transando com ela, beijando sua boca, tocando
seus seios, seu sexo.
T�cio passava a l�ngua nos l�bios, imaginando as cenas que
Damien descrevia, seguindo-a, impercept�vel. Ele ouvia a voz do
esp�rito, contudo n�o sabia de onde vinha. Chegava a v�-lo em
alguns momentos, mas sua mente confusa n�o o distinguia. Ele
queria e n�o queria colocar as m�os em Ge�rgia. Seria bem feito
para J�lio, um castigo pela humilha��o, uma prova da infidelidade
dela, mas tamb�m uma covardia.
Temendo perder a presa, a um sinal de Damien, o esp�rito
de uma mulher se aproximou. Parecia meio demente, maltrapilha,
drogada feito T�cio, mas executou bem suas ordens. Colado a
T�cio, o esp�rito p�s-se a acarici�-lo, excitando-o ainda mais. A
respira��o ofegante, o corpo ardendo de um desejo descomunal,
doentio, T�cio n�o conseguiu mais se conter. De um salto, cortou
a frente de Ge�rgia, que soltou um grito de pavor.
- Aonde vai, gatinha? - perguntou ele, os olhos ca�dos, a
boca constantemente umedecida pela l�ngua �vida de prazer.
- Com licen�a, mo�o - pediu ela, sentindo o p�nico se
avizinhar, maldizendo-se por ter mudado de caminho.
- Por que a pressa? Algu�m a espera?
Apesar de aquele rosto lhe parecer familiar, Ge�rgia n�o o
reconheceu. Estava escuro, n�o conseguia enxergar direito, mas


teve a sensa��o de que j� o havia visto antes. Devia ser um dos
muitos desocupados que vagabundeavam por ali. Pensando nisso,
sentiu medo. Encolheu-se toda, apertou a bolsa e retrucou, tentando
aparentar naturalidade:
- Eu... sim, meu noivo me espera. Olhe, ele vai vir me procurar
se eu me atrasar.
- Faz uma semana que a vejo passar por aqui sozinha. Tem
certeza de que tem um noivo?
- Por favor, mo�o, deixe-me ir.
- Vou deixar. Depois de conversarmos.
- N�o posso conversar. Logo, logo, vai chover.
Ge�rgia preferiu n�o falar mais nada. Deu um passo � frente
e tentou passar por ele, mas n�o teve tempo. Com extrema for�a,
T�cio agarrou-a pelos punhos, virando-a rapidamente e enla�ando-
a por tr�s.
- Solte-me! - gritou ela. - Socorro! Socorro!
O uivo do vento impedia a propaga��o do som, de forma
que ningu�m a ouviu gritar. A fragilidade dela, a certeza de que
executava um ato de covardia contra uma menina que nada
tinha a ver com seus problemas o fizeram hesitar. Sabia que
n�o era certo o que estava fazendo. Por pouco n�o a soltou.
Mas as investidas de Damien e do esp�rito da mulher, aliadas
aos efeitos da droga, transformavam seu desejo em uma esp�cie
de loucura insaci�vel.
T�cio n�o pensou em nada, n�o viu mais nada. Deitou
Ge�rgia no ch�o com viol�ncia e arrancou-lhe o jeans com uma
habilidade extrema. Ela se debatia, tentando se soltar, gritando
feito louca. Para silenci�-la, T�cio desferiu-lhe v�rios murros
no rosto, sem pensar que a estava machucando. Ge�rgia n�o
desmaiou, mas sentiu o corpo esmorecer, os sentidos afrouxarem,
levando-a a uma semi-inconsci�ncia, forte o bastante para
paralis�-la, mas insuficiente para que ela n�o percebesse o que
estava acontecendo.


Jogada ao ch�o, sem se mover, Ge�rgia deixou-se subjugar
pela criatura que se deitara sobre ela. N�o parecia um homem. Por
vezes, era como se um monstro a possu�sse, com suas garras de
fogo a ferir-lhe a carne. O vaiv�m do corpo dele sobre o dela n�o
lhe causou apenas dor, mas uma humilha��o sem precedentes,
uma esp�cie de mutila��o do ser, cindido pela figura grotesca de
um torturador sem alma.
Por diversas vezes, ele a possuiu, insaci�vel, brutal. Quando
por fim a largou, ela j� n�o distinguia nada ao redor. Dolorida,
machucada, aviltada, cerrou os olhos, sentindo-se desfalecer.
78

cap�tulo
10
T�cio nem se recordava de como chegou em casa. Lembrava-se
de ter violentado a noiva de J�lio, mas o horror que se seguiu apagara
sua mem�ria. Como fora capaz de um ato daqueles? Desesperado,
corro�do pelo remorso, atirou-se no soalho, chorando angustiado.
Jamais poderia perdoar-se pelo que fizera. Como se deixara levar
pelos instintos, a tal ponto que perdera o controle sobre si mesmo?
Aturdido, atirou-se sob o chuveiro, pensando que a �gua
fria pudesse lavar sua consci�ncia. Em vez disso, trouxe-lhe uma
clareza estupenda. A todo instante, T�cio via e revia o corpo ferido
e ultrajado de Ge�rgia, sentia na boca o sal de suas l�grimas,
ouvia seu pranto desesperado. Em outros tempos, T�cio teria criticado,
com horror, um crime como aquele. Agora, via-se autor da
mesma inf�mia que teria condenado.
Quando saiu do chuveiro, a mente estava l�mpida, livre dos
efeitos delet�rios da droga. Desacostumado da liberdade, fruto da
aus�ncia da coca, T�cio buscou-a novamente. Abriu a gaveta, segurou
a trouxinha, preparou a carreira. Com o canudo improvisado,
abaixou-se para cheir�-la, quando uma onda de arrependimento
atingiu-o em cheio.
Atormentado pela culpa, virou a mesinha, espalhando o p� pelo
ch�o. Sentou-se, abra�ando os joelhos, chorando desconsolado.


Por que fizera aquilo, por qu�? E se Ge�rgia o tivesse reconhecido?
Se contasse a J�lio o que ele fizera, o que lhe aconteceria? Seria
preso, viraria mulherzinha dos outros presidi�rios na cadeia. Ou
pior, T�cio poderia mat�-lo,
O medo da puni��o s� fez aumentar seu remorso. De uma
forma ou de outra, acreditava que ela viria, em qualquer caso,
causando-lhe dor. Mas a dor n�o seria t�o intensa quanto a que
ele, momentos antes, infligira naquela mo�a inocente.
A solu��o seria fugir, mas fugir para onde? N�o tinha fam�lia
nem amigos, nem ningu�m. N�o tinha para onde ir. Tinha
de ficar e enfrentar. Mas enfrentar como? T�cio delirava, a
confus�o mental o consumia. O jeito era aliviar a tens�o com a
coca. Engatinhando, foi ao encontro da gaveta virada, � procura
do p�. N�o havia nenhum. Esparramara a �ltima trouxinha que
lhe restava.
Em p�nico, esfregou a palma da m�o pelo ch�o, lambendo-a
na esperan�a de ter arrastado um pouco da coca. Mas o p� que
veio era, em sua maioria, de sujeira, e a pouca droga ali misturada
n�o foi suficiente para transmitir-lhe o efeito desejado. O que
fazer? Precisava, desesperadamente, de uma cheirada.
Nada mais lhe restava para vender. De seu, s� o que tinha
era o corpo. A ideia lhe trouxe desgosto, T�cio n�o gostava de
homens. A fissura, no entanto, era maior. Depois de alguns minutos
de hesita��o, enxugou as l�grimas, vestiu-se e saiu.
N�o conhecia muito os redutos gays, contudo ouvira hist�rias
de lugares onde tudo acontecia. O banheiro da Central10 era um
deles. N�o tinha dinheiro nem para o �nibus, mas acabou conseguindo
uns trocados depois de amedrontar um casal de velhinhos
com a sua figura assustadora.
Foi mais f�cil do que ele imaginara. Logo de cara, um
sujeito fort�o o abordou, confundindo-o com um mich�. Em
troca de uma boa quantia, fez tudo o que o homem lhe pediu.
10 Esta��o de trem Central do Brasil.
80


Estava t�o desesperado pela coca que nem conseguiu esperar
at� chegar em casa. O pr�prio sujeito lhe indicou um traficante
por ali, perto da Central.
A muito custo, T�cio conseguiu se controlar para n�o cheirar
no meio da rua. Com a droga no bolso, partiu desabalado para
casa. Assim que entrou, preparou a carreira avidamente. Como o
dinheiro fora bastante, comprou cerca de meio grama, disposto a
cheirar tudo de uma s� vez.
Ao aspirar a droga pura11, sentiu-a diretamente em seu c�rebro.
Pensou que uma euforia fortificante o retiraria da depress�o,
mas, para sua surpresa, n�o foi o que aconteceu. Primeiro veio
uma agita��o desconhecida, voraz, inquietante.
Um suor frio umedeceu rapidamente toda a sua pele,
enquanto vis�es estranhas desfilavam diante de seus olhos. Um
homem encostado na parede, bra�os cruzados, olhava para ele
sem qualquer express�o. Junto a ele, uma mulher rota, maltrapilha,
presenteou-o com um sorriso desdentado.
T�cio estremeceu. Julgava-se v�tima de um del�rio, sem
saber que entrara em contato direto com o astral a seu redor.
Ali,*deu de cara com Damien e sua criada. N�o o conhecia,
contudo, ele n�o lhe parecia estranho12. Damien o seguira
desde o momento do estupro, curioso para saber o que aconteceria
com ele.
De repente, a respira��o de T�cio pareceu descompassar.
Batidas aceleradas davam a impress�o de que o cora��o estava
prestes a disparar peito afora. Em poucos segundos, T�cio perdeu
o controle e desabou no ch�o, a boca espumando, repetidos
espasmos sacolejando seu corpo. Uma dor aguda, inenarr�vel,
11 Quanto mais pura a coca�na, maior a possibilidade de overdose. Nesse caso, a quantidade necess�ria varia
entre as pessoas, situando a dose fatal entre 0,2 e 1,5 grama.
12 Muitos dos del�rios causados pelo uso da coca�na e outras drogas prov�m do contato com o mundo astral,
j� que a subst�ncia, t�xica para o organismo, rompe as camadas energ�ticas protetoras, agu�ando a sensibilidade
e, consequentemente, propiciando a percep��o do universo sutil. Infelizmente, o uso contumaz das
drogas, associado a processos de desequil�brio do ser humano, magnetiza esp�ritos menos esclarecidos,
com os quais o viciado passa a conviver regularmente.
81


trespassou o seu peito, levando o cora��o a desistir de bater e,
com ele, T�cio a desistir de viver.
Ao contr�rio de T�cio, Ge�rgia n�o desistia da vida. Recobrados
os sentidos, n�o conseguiu se levantar, permanecendo quieta, com
medo de se mover e sentir mais dor. Esperou a chuva, que n�o
veio, at� que o vento se acalmou e, com essa quietude, caiu num
torpor reconfortante.
Enquanto isso, Cl�ia se preocupava. As horas se passavam,
e nada de Ge�rgia aparecer. A todo instante consultando o rel�gio,
p�s-se a rezar, presa de inexplic�vel apreens�o. Em dado
momento, n�o conseguindo mais se conter, foi para o port�o, na
esperan�a de v�-la chegar. Em vez dela, J�lio apareceu de t�xi,
ainda carregando a mala de viagem.
- J�lio, por Deus, Ge�rgia n�o chegou ainda em casa - ela
se apressou em dizer. - Estou morta de preocupa��o.
- O qu�?
- Ajude-me, por favor. Vamos � pol�cia.
- Que pol�cia, que nada - disse ele, largando a mala do
lado de dentro do port�o. - Vou procur�-la eu mesmo.
- Vou com voc�.
Cl�ia fechou a porta e correu com J�lio para a rua. No caminho,
pediu aux�lio a uns rapazes da vizinhan�a, que se dispuseram a ajudar.
- Vamos refazer o caminho daqui at� o curso - orientou ele.
Dadas as instru��es, cada um partiu em uma dire��o. J�lio,
aflito, seguiu com Cl�ia pelo meio da pra�a. Embora fosse sexta-
-feira, a ventania espantara os frequentadores da boca de fumo,
que aos poucos come�ariam a retornar. J�lio tinha de ser r�pido,
se quisesse encontrar Ge�rgia antes que o lugar enxameasse de
marginais e viciados.
Caminhando pela pra�a feito louco, J�lio gritava o nome de
Ge�rgia. A seu lado, Cl�ia n�o fazia nada al�m de rezar. Estava t�o


aflita que a voz embargava toda vez que pensava em pronunciar
o nome da filha. De qualquer forma, suas ora��es iluminaram o
local onde Ge�rgia jazia, semi-inconsciente, e os olhos maternos
de Cl�ia foram instintivamente direcionados para l�.
Foi um choque ver o corpo nu da filha todo machucado.
Ela soltou um grito agudo, atraindo a aten��o dos demais. J�lio,
mais pr�ximo, foi o primeiro a chegar, quase desmaiando ante
a vis�o lastim�vel de sua Ge�rgia. Pensando rapidamente, tirou a
camisa e cobriu o seu corpo da melhor forma poss�vel. Os outros
rapazes vieram correndo, mas se afastaram ao perceber que ela
estava desnuda.
Em meio � choradeira, J�lio ergueu-a delicadamente no colo,
levando-a em dire��o a sua casa.
- Ela tem que ir ao hospital - ouviu algu�m dizer.
J�lio n�o sabia como, mas, de uma hora para outra, estava
dentro de um t�xi, ao lado de Cl�ia, levando Ge�rgia para o
hospital. Ela foi atendida na emerg�ncia, onde Cl�ia e J�lio n�o
puderam acompanh�-la.
- O que foi que houve com a minha filha? - choramingou
Cl�ia.
- Eu bem que avisei para ela n�o passar por aquela pra�a.
Tiveram de aguardar muito tempo at� que uma m�dica
aparecesse para lhes dar not�cias. A revela��o de que Ge�rgia fora
estuprada causou ang�stia em Cl�ia e revolta em J�lio.
- N�o foi s� o estupro. Ela foi brutalmente espancada, teve
duas costelas quebradas e levou quatro pontos no rosto.
- Minha Nossa Senhora! - evocou Cl�ia.
J�lio lutava para manter a calma. Mesmo porque precisava
ser forte para confortar sua futura sogra.
- Ela est� consciente?
- Est�, sim.
- Podemos v�-la?
- Podem. Avisei que voc�s est�o aqui, e ela pede para
primeiro falar com a m�e. Depois, voc� pode entrar.


A contragosto, J�lio foi obrigado a conter a impaci�ncia e
aguardar. Esperava que Ge�rgia n�o pensasse que aquele estupro
mudaria algo entre eles. O amor que sentia por ela estava acima
daquelas coisas.
Mesmo assim, por uma �nfima fra��o de segundos, imaginou
o que diria Anselmo se soubesse do ocorrido. Com seu moralismo
exacerbado, na certa, colocaria em d�vida a isen��o de Ge�rgia.
E para ele seria um desconforto ouvir os coment�rios maldosos
de Anselmo ou de qualquer outro. Pensando nisso, achou melhor
ocultar a verdade. Ningu�m na ag�ncia precisava saber.
Um telefonema foi suficiente para Anselmo permitir que J�lio
faltasse naquele dia. Ele informara o chefe de que Ge�rgia havia
sofrido um acidente e estava no hospital. Anselmo lamentou o
ocorrido, perguntou se estava tudo bem e ofereceu-se para ajudar.
- N�o � preciso - dissera J�lio. - Ela agora est� passando
bem. Precisa de repouso, mas vai se recuperar.
- Em que hospital ela est�? Quero mandar-lhe flores.
J�lio deu o nome do hospital, acreditando que Anselmo l�
n�o compareceria. E n�o compareceu. Em seu lugar, mandou
Bianca, com quem Ge�rgia se dava bem. Bianca chegou abra�ada
a um ramalhete de rosas brancas. Deu o nome de Ge�rgia,
subindo direto a seu quarto. Bateu na porta, e Cl�ia atendeu.
- Pois n�o? - indagou, sol�cita.
- Aqui � o quarto da Ge�rgia?
- �, sim. Voc� � amiga dela?
- Mais ou menos. Sou colega de trabalho do J�lio. Vim
prestar solidariedade em nome de todos da ag�ncia.
- Muita gentileza de voc�s - emocionou-se Cl�ia, dando
passagem a Bianca. - Pode entrar, mas em sil�ncio, porque ela
est� dormindo.
- A senhora � a m�e dela?
84


- Sou.
Ao olhar para Ge�rgia, Bianca levou um tremendo susto com
sua apar�ncia. Ela estava muito machucada, cheia de hematomas,
respirando com dificuldade.
- Jesus! - exclamou. - Que tipo de acidente ela sofreu?
- Voc� n�o sabe? - Bianca meneou a cabe�a. - Ent�o
vou deixar que ela mesma lhe conte. Agora, com licen�a. Vou
pedir � enfermeira um jarro para colocar essas flores.
Logo que Cl�ia saiu, J�lio entrou, levando imenso susto ao
ver Bianca sentada no sofazinho embaixo da janela.
- Bianca... - balbuciou. - O que faz aqui? Disse que n�o
era para ningu�m vir.
- Anselmo me mandou trazer umas flores. A m�e de Ge�rgia
foi buscar um jarro para coloc�-las.
- Olhe, agrade�o muito a preocupa��o de voc�s, mas n�o
precisava - protestou ele, com ar ansioso. - E agora, acho que
voc� j� pode ir.
- Por que a pressa? Gostaria de falar com Ge�rgia.
- N�o se preocupe, direi que voc� esteve aqui.
- O que � que h�, J�lio? Por que n�o quer que ningu�m a veja?
- Quem foi que disse isso?
- N�o precisa dizer. Basta ver como voc� est� agindo.
Ele olhou para ela como quem n�o v� sa�da. Puxando-a pelo
bra�o, levou-a para fora.
- Posso confiar em voc�?
- Pode.
Cl�ia passou de volta com as flores e sorriu para eles,
entrando no quarto rapidamente. Assim que a porta se fechou,
J�lio esclareceu:
- Ge�rgia foi estuprada.
- Meu Deus! - horrorizou-se ela, cobrindo a boca com a
m�o. - Como foi isso?
- Na sexta-feira, quando voltei de viagem, dona Cl�ia me
chamou preocupada.


Em breves palavras, J�lio narrou tudo o que havia acontecido.
- E voc� quer manter isso em segredo?
- � o que eu gostaria, porque pode ser embara�oso para
Ge�rgia-afirmou ele, ocultando que tamb�m se sentia constrangido.
- Tem raz�o.
- Mas o caso � que esteve aqui um detetive. A dire��o do
hospital teve que informar � pol�cia, e fomos avisados de que haver�
um inqu�rito.
- Ent�o, sua ideia de manter o acontecido em segredo n�o
vai adiantar.
- Vai, se voc� n�o disser nada. Quem, l� na ag�ncia,
frequenta a pol�cia?
- Ningu�m. Mas n�o saiu no jornal?
- Sair, saiu. No jornal de ontem, na p�gina policial. S� que n�s
n�o permitimos que divulgassem nem o nome, nem a foto de Ge�rgia.
- Ainda assim, essas coisas acabam sendo descobertas.
- Vou fazer de tudo para que isso n�o aconte�a. Por isso �
que pe�o sua ajuda. N�o conte a ningu�m.
- N�o vou contar. Pode confiar em mim. Se fosse comigo,
tamb�m n�o gostaria que ningu�m soubesse.
- Obrigado, Bianca. Voc� � uma boa amiga. E agora, gostaria
de falar com ela?
- Se poss�vel.
Ge�rgia j� estava acordada, tomando a sopa que a enfermeira
acabara de trazer. Sorriu quando Bianca entrou, agradeceu
as flores.
- Voc� n�o precisava ter-se dado todo esse trabalho -
falou pausadamente, para n�o provocar dor.
-Trabalho nenhum. Ficamos preocupados com o seu acidente.
- J�lio lhe contou o que aconteceu? - Ela assentiu. - Mas
estou bem agora.
- Ainda bem que est� num bom hospital.
- Ge�rgia tem plano de sa�de - comentou Cl�ia. - �
fundamental nos dias de hoje.


- Voc� me parece bem melhor - observou J�lio, alisando-
-lhe os cabelos.
- E estou. Quando ser� que poderei ir embora?
- O m�dico falou hoje � noitinha. Estamos s� esperando
que ele apare�a para lhe dar alta.
- S�rio? At� que enfim! Nada como a minha casa.
� medida que Ge�rgia ia falando, Bianca a observava. Esperava
encontrar uma mo�a deprimida, acabrunhada, sem vontade
de conversar. Em vez disso, Ge�rgia parecia at� bem falante, dado
o estado em que se encontrava.
- Aquele policial esteve aqui de novo - informou ela a
J�lio. - Na hora em que voc� foi telefonar.
- E a�?
- Queria saber se eu me lembrava dafisionomia do agressor.
- O que voc� disse?
- Que n�o. Mas a verdade � que ele n�o me era estranho.
Sei que j� o vi em algum lugar, s� n�o me lembro onde.
- Ser�?
- Estava escuro, posso ter-me confundido. Mas que ele me
pareceu familiar, isso pareceu.
- N�o pense nisso, querida - aconselhou J�lio, que n�o
tinha interesse em que ela identificasse o sujeito, para evitar que o
caso chegasse at� a Justi�a. - O que importa agora � que passou.
N�o vale a pena alimentar desejos de vingan�a.
- N�o acho que seja vingan�a Ge�rgia ajudar a prender
o criminoso - objetou Cl�ia seriamente. - Quem escolhe o
caminho do crime tem que assumir as consequ�ncias. O que
ele fez n�o � certo. E depois, vai evitar que ele fa�a isso com
outras mo�as.
- Embora concorde com a minha m�e, n�o sei se tenho
for�as para lidar com isso. N�o quero ter que ir � delegacia fazer
nenhum reconhecimento. N�o desejo mal a ele. Na verdade, at�
o perdoo, porque acho que ele agiu por instinto e ignor�ncia. Mas
n�o conseguiria ficar diante dele novamente.


- Voc� o perdoa? - indignou-se Bianca. - Ge�rgia, como
pode? O homem violentou voc�, espancou-a, quase a matou, e voc�
diz que o perdoa? Eu jamais perdoaria quem fizesse isso comigo.
Torceria para que o atirassem na cadeia e jogassem a chave no mar.
- Pois somos diferentes, ent�o. N�o acredito que algu�m que
conhece as verdades de Deus aja dessa forma. O homem que me
fez isso � um iludido, um fraco, um ignorante das coisas do esp�rito.
- E da�? Isso n�o justifica.
- N�o, mas atenua. No fundo, � um pobre coitado, uma
alma perdida, atormentada. Mam�e e eu temos rezado por ele.
- Voc�s o qu�? - at� J�lio se espantou.
- Temos rezado por ele, sim - refor�ou Cl�ia. - Veja minha
filha. Est� bem cuidada, junto da fam�lia, cercada de amigos. E aquele
infeliz? Aposto como est� sozinho, carente de pessoas que verdadeiramente
lhe queiram bem. O que ele fez foi um atentado contra as
leis da natureza. Caber� a ele, no futuro, restabelecer a desarmonia
que provocou. Para Ge�rgia, contudo, � diferente. Ela, depois disso,
com certeza ser� uma pessoa melhor do que j� era antes.
- N�o compreendo - indignou-se Bianca. - Eu jamais
seria a mesma depois de uma coisa dessas, de tanto �dio que
ficaria. E, se rezasse por alguma coisa, seria para que um caminh�o
passasse por cima dele quando menos esperasse.
Uma troca de olhares entre Cl�ia e Ge�rgia foi suficiente para
estabelecer o sil�ncio. O rumo da conversa estava lhes fazendo
mal. Bianca percebeu que havia se excedido, mas n�o se desculpou.
Seguindo a trilha do orgulho, manteve-se calada.
- Bom, acho que j� est� na hora de Bianca voltar ao
trabalho - anunciou J�lio. - Diga a Anselmo e a todos que agradecemos
muito a visita e as flores. Amanh� estarei l�.
- �timo. Estimo as melhoras, Ge�rgia. E foi um prazer
conhec�-la, dona Cl�ia.
-- O prazer foi todo meu. Obrigada.
Bianca deu dois beijinhos no rosto de Ge�rgia, sorrindo
sem jeito.


- Cuide-se. E trate logo de sair dessa cama.
- Obrigada.
J�lio acompanhou-a at� a porta, doido para livrar-se dela.
Bianca tamb�m n�o via a hora de ir embora, levando consigo seus
pensamentos cr�ticos. Nada a surpreendera tanto quanto a rea��o
de Ge�rgia. O estupro fora inevit�vel, imprevis�vel, mas justificar o
que o delinquente fizera n�o era nada l�gico.
S� se o estupro n�o fora bem como Ge�rgia contara. J�lio
dissera que a haviam encontrado desfalecida perto de uma boca
de fumo. Ser� que ela era viciada? Ou, quem sabe, n�o gostava de
fumar um baseado de vez em quando?
Na certa, fora isso mesmo. J�lio estava fora, viajando a semana
toda. Sozinha, sentindo falta de sexo, resolveu se consolar na
maconha. Foi � boca de fumo, encontrou o malandro dando sopa,
levou uma cantada. Mas, na hora do vamos ver, deve ter batido um
remorso, e ela desistiu. S� que o sujeito, excitado com a perspectiva
do sexo f�cil, n�o aceitou, for�ou a barra e acabou se excedendo.
Sim, devia ser isso. Ge�rgia, com aquela cara de santinha, devia
ser da p� virada. Ela fazia quest�o de sempre parecer a boazinha,
mas o que Bianca sabia dela afinal? Nada. O conhecimento que tinha
da outra era sup�rfluo, s� se encontravam em festinhas do banco.
Coitado do J�lio. Agora compreendia por que ele se esfor�ava
tanto para manter o estupro em segredo. No fundo, devia ter a
mesma desconfian�a, mas, por amor, preferia acreditar na vers�o de
Ge�rgia. Logo ele, um homem t�o correto, respeitador dos valores
morais, fora se apaixonar justo por uma irrespons�vel feito Ge�rgia.
A hist�ria fora montada na cabe�a de Bianca, dando a
Ge�rgia julgamento e condena��o. No fundo, Bianca criara uma
situa��o fict�cia bem de acordo com sua pr�pria personalidade.
Fizera uso da maconha algumas vezes e se deitara com muitos
homens. Inconscientemente se recriminando pelo que fizera,
apontava o dedo para Ge�rgia e transferia para ela a censura que
gostaria que algu�m lhe endere�asse.
89


Cap�tulo
11
Damien n�o compreendia como algu�m podia ser t�o burro.
Ent�o T�cio n�o via que se tornara escravo do v�cio? S� os esp�ritos
altamente ignorantes se deixavam levar por aquela ilus�o.
Assim como os chef�es do tr�fico n�o costumavam se drogar,
os esp�ritos mais maliciosos tamb�m n�o o faziam. Incentivavam os
ot�rios encarnados a aderir ao uso das v�rias subst�ncias entorpecentes
e facilitavam o acesso de esp�ritos de viciados, para que
extra�ssem a ess�ncia volatizada e, assim, experimentassem a
sensa��o de que se drogavam tamb�m. Com isso, mantinham-
-nos aprisionados, usando-os como joguetes para a realiza��o de
suas tarefas infames.
Quando T�cio abriu os olhos, n�o se encontrava mais em sua
casa. N�o reconheceu o lugar em que estava. Era um catre sujo,
numa esp�cie de enxovia. Sentiu um formigamento pelo corpo,
uma agita��o fremente o assaltou. Era falta da droga, s� podia ser.
Angustiado, p�s-se a caminhar de um lado para outro, buscando
uma sa�da, quando a porta se abriu e Damien apareceu.
- Que idiotice, hein? - zombou ele. - Como � que voc� foi
fazer uma coisa dessas?
- Perd�o, mas eu o conhe�o?
- N�o se lembra de mim?


T�cio puxou pela mem�ria, at� que confirmou:
- Voc� � o cara que me acompanha e �s vezes some, n�o �?
- Engra�ado - riu ele. - Mas � isso mesmo. Me chamo
Damien.
- Por que faz isso? E onde estou?
- Calma, uma coisa de cada vez.
Damien desembrulhou um pacotinho que trazia oculto nas
m�os, dele retirando um punhado de p� branco.
- O que � isso? - indagou T�cio, sentindo a garganta �spera
e passando a l�ngua pelos l�bios.
- O que voc� acha que �?
- Coca?
- Exatamente. Mas venha logo, antes que ela se evapore.
Mesmo sem entender, T�cio obedeceu. Estava �vido para
cheirar. Depois da inala��o, seu corpo relaxou, trazendo a j� t�o
conhecida sensa��o de euforia.
- Sente-se melhor? - perguntou Damien.
- Muito melhor, obrigado. E agora, se n�o se importa, pode
me dizer onde estou?
,- Voc� � mesmo um idiota, n�o �? N�o se lembra do que fez?
A lembran�a ressurgiu com viol�ncia, levando-o a desabar
sobre o catre.
- Ge�rgia... o estupro... Estou preso?
- Mais ou menos.
- Que tipo de cadeia � essa?
- Seguinte: voc� morreu. Tomou uma overdose de coca e
desencarnou.
- Eu o qu�?
- Morreu, e eu o trouxe para c�, para minha cabana. N�o
adianta chorar, porque sabe que � verdade.
- Mas h� pouco voc� me deu uma carreirinha para cheirar.
Como isso � poss�vel?
- A carreirinha, como voc� chama, tive que apanhar de uns
trouxas que se drogavam l� na Terra. N�o � f�sica, � s� a ess�ncia


da droga. Quando percebi que voc� estava acordando, corri l� e
apanhei esse fluido, voltando �s pressas antes que ele se dissipasse.
- Meu Deus!
- Se voc� sentisse essas palavras com a for�a com que as
pronunciou, n�o estaria aqui.
- Minha vida toda se foi - lamentou-se. - E agora? O que
vou fazer?
- Voc� h� de convir que uma vida do jeito daquela que voc�
levava n�o serve para nada. Acho que est� muito melhor agora.
- Eu n�o queria morrer.
- Se n�o quisesse, n�o teria feito o que fez.
- Eu n�o fiz nada. Se tomei uma overdose, foi sem querer.
- Conversa! Ningu�m morre sem querer. A alma escolhe,
meu amigo, mesmo que � nossa revelia. E voc� escolheu ir embora
daquele jeito. Quem mandou se sentir culpado?
- Pobre Ge�rgia - arrependeu-se verdadeiramente. - O
que foi que eu fiz?
- N�o se lamente. Na hora, n�o foi bom?
- Nem consigo me lembrar.
- Foi bom. Eu sei porque tamb�m estava l� e aproveitei.
- Aproveitou como?
- Vou ensinar tudo a voc�. Voc� vai trabalhar comigo. At�lio
me mandou escolher algu�m para me ajudar, e escolhi voc�.
- Ajudar em qu�?
- Voc� n�o estuprou a mo�a? - T�cio assentiu, apalermado.
- Pois agora vai me ajudar a cuidar dela.
- Cuidar dela, como?
- Ela vai ter um filho, imbecil.
- Um filho? Eu vou ser pai?
- D� para parar de repetir tudo o que eu falo? Voc� deu o
s�men, s� isso. Quem vai criar o menino � ela.
- Vou ter um menino?
- N�o, idiota, n�o vai. Ela vai ter. Voc� j� morreu, n�o pode
mais ser o pai da crian�a.


- Voc� disse que quer que eu o ajude a cuidar dela. Como?
- Vou explicar. Isso aqui � como um quartel. Tem general,
capit�o e tudo mais. Voc� � como um soldado raso, e eu sou seu
superior. O general � o At�lio, que voc�, provavelmente, nunca vai
ver, porque ele n�o lida com a ral�. At�lio � quem dita as ordens
por aqui. Ele as transmite a mim e a outros na minha posi��o, e
n�s tratamos de executar o que ele manda. No momento, o que
ele quer � que eu tome conta para que nada de mau aconte�a a
Ge�rgia e ao beb�. Para isso, deu-me liberdade de escolher uns
criados. E eu escolhi voc�.
- Se ele quer que cuidemos de Ge�rgia e da crian�a, ent�o,
ele deve ser uma boa pessoa.
- Boa pessoa? - ironizou, �s gargalhadas. - Deixe s�
At�lio saber disso. Escute bem, ot�rio, e aprenda. Ele n�o � boa
pessoa. Ningu�m aqui �. Nem voc�.
- N�o sou mesmo...
- � claro que n�o - reafirmou Damien, cujo interesse era
manter o sentimento de culpa de T�cio, para que ele n�o pensasse
em sair dali.
- Foi isso que mereci por ter estuprado Ge�rgia?
- E por ter se viciado e tomado uma overdose. Agora chega
de conversa! Precisamos trabalhar. Se voc� me servir direitinho,
vou proteg�-lo e ensin�-lo a sugar, pessoalmente, a coca dos
encarnados. Sen�o, vou entreg�-lo para servir de escravo.
- Como isso � poss�vel?
- Sabe os trabalhos de magia?
- Magia? Tipo macumba?
- �. Tem uns que s�o barra pesada, e quem os executa,
realmente, � a esc�ria feito voc�. O chef�o, que � quem faz o trato,
fica com o pagamento. A gente, a quem s�o passadas as ordens,
recebe uma parte, e voc�, que faz todo o trabalho sujo, fica com
os restos. Entendeu?
- Mais ou menos.


- Tudo bem, com o tempo voc� aprende. Agora venha, vou
tir�-lo daqui. At�lio me deu permiss�o para lev�-lo comigo.
- Esse At�lio... Ele sabe quem sou eu?
- � imposs�vel esconder alguma coisa de At�lio. Ele sabe
quem voc� �, o que fez e tudo o mais. Por isso me deixou ficar com
voc�, confiando em que eu o transformarei em um bom soldado.
N�o v� me decepcionar, ou vai virar sugador de bosta.
- O que � isso?
- � como chamamos a esc�ria que suga os restos dos
restos dos restos dos trabalhos de que lhe falei. � quem fica com a
parte podre do lixo. Mas n�o se preocupe. Se fizer direitinho o que
eu mandar, voc� ter� at� chances de crescer aqui. E o pagamento
� bom: coca fresquinha todo dia.
Depois de acomodar T�cio em sua cabana, Damien foi prestar
contas a At�lio. Era fundamental que, todos os dias, ele fizesse
um relat�rio. At�lio ficou satisfeito em saber que ele conseguira
capturar o estuprador. A liga��o energ�tica do pai da crian�a
ajudaria a romper a aura brilhante que circundava a m�e, j� que
Mizael encontraria mais afinidade com as vibra��es de T�cio.
- S� n�o quero que o deixem se viciar - alertou. - N�o
quero a mente de Mizael comprometida com os efeitos delet�rios
da coca�na ou de qualquer outra droga.
- N�o se preocupe, At�lio, isso n�o vai acontecer.
- Cuidado! O pai dele � viciado e continua sendo aqui. N�o o
deixe extrair ess�ncia do p� perto de Mizael nem permita que ele lhe
transmita nem sequer um m�nimo desejo de experimentar qualquer
droga. Queremos que muitos se viciem, mas n�o Mizael.
- J� entendi, chefe.
- S� mais uma coisa. A garota est� noiva, n�o est�?
- Sim. De um mo�o chamado J�lio.
- E vai se casar?
- � o que parece.
- Que tal o rapaz?


- N�o � uma pessoa ruim, mas � bajulador, ambicioso e
preocupado com as apar�ncias.
- Quero que voc� trabalhe junto a ele. Fa�a o que for poss�vel
para que ele n�o impregne Mizael de li��es de moral.
- Acho que isso n�o ser� dif�cil. O cara � moralista, mas s�
da boca para fora. Por dentro, o que quer � subir na vida.
- �timo! J� chega a m�e que arranjaram. Quanto mais
conseguirmos aproximar o pai do nosso lado, mais pr�ximos estaremos
do sucesso.
- Entendi, chefe. Deixe tudo comigo. Garanto que ficar�
satisfeito com o meu trabalho.
At�lio n�o deu resposta. N�o tinha muita paci�ncia para
Damien, que era t�o bajulador quanto o tal de J�lio. Mas ele o
servia bem. Morria de medo de ser reduzido a nada, da t�o temida
segunda morte13. Era com essa amea�a que o mantinha preso e
fiel a ele.
13 A segunda morte ocorre pela desintegra��o do corpo astral ou perisp�rito, quando o ser se eleva a dimens�es
t�o sutis que dele j� n�o mais necessita, ou quando o perde nas esferas inferiores, transformando-se
numa massa condensada de energia na qual permanecem, em estado latente e de semi-inconsci�ncia,
todos os atributos do ser que antes foi.

Cap�tulo
12
Depois de acomodar Ge�rgia em casa e se certificar de que
ela ficaria bem, J�lio partiu para o trabalho, temendo o que poderia
encontrar. Pedira a Bianca que n�o dissesse nada, mas reconhecia
que aquilo tudo era uma fofoca e tanto.
Chegou acabrunhado, sem muito alvoro�o, indo direto ocupar
seu lugar na tesouraria. Alguns colegas sorriram para ele, outros
perguntaram se estava tudo bem.
- E a�, J�lio? - indagou algu�m. - Como vai a Ge�rgia?
- Est� melhor agora, obrigado. Teve alta do hospital e est�
em casa, com a m�e.
- Que coisa isso, n�o? Mas o que foi que houve, realmente?
- Foi... um assalto.
- Assalto? - J�lio assentiu. - Que coisa horr�vel! E prenderam
o bandido?
- � claro que n�o. Ele fugiu.
- Que pena...
Depois disso, n�o se tocou mais no assunto. Havia muito
trabalho a fazer. Anselmo esperava que ele encerrasse aquela
hist�ria e se concentrasse em seus afazeres. J�lio trabalhava com
afinco, tentando n�o pensar no que faria se a pol�cia descobrisse
o estuprador. O normal seria que ele desejasse que prendessem o


homem que estuprara sua noiva, mas havia muitas coisas em jogo,
e prender o sujeito n�o restabeleceria a dignidade de Ge�rgia.
Nos dias subsequentes, o assunto j� havia morrido, ningu�m
mais se interessava pelo incidente. Ele chegou cedo, como sempre,
logo se envolvendo nos problemas que tinha a resolver. No dia
anterior, um cliente o informara de que, ao conferir o dinheiro do
saque, recebera uma nota a menos. O saque havia sido efetuado
no caixa de Bianca, deixando-o transtornado.
N�o havia ainda levado o caso a Anselmo. Queria primeiro
se certificar da veracidade da informa��o. Podia ser que o cliente
houvesse se confundido ou, ent�o, que tivesse contado errado.
Era um senhor de uma idade j� avan�ada, muito pass�vel de cometer
erros daquela esp�cie. Pensava nisso quando a pr�pria Bianca
se aproximou.
- Voc� viu isso? - perguntou ela, atirando um jornal em
cima da mesa.
Na mesma hora, J�lio reconheceu a foto de T�cio, deitado
no ch�o, de costas, olhos vidrados, sem express�o. Ergueu as
sobrancelhas, fitou Bianca sem entender e leu a not�cia:
, - Encontrado ontem o corpo de um homem em seu apartamento,
j� em avan�ado estado de putrefa��o. O mau cheiro atraiu
a aten��o dos vizinhos, que chamaram a pol�cia e os bombeiros. O
homem foi identificado como T�cio Batista Ramos, 42 anos, desempregado.
A pol�cia suspeita de overdose de coca�na...
- Meu Deus! - exclamou J�lio. - Coitado do T�cio!
- � realmente uma pena- concordou Bianca. - Mas, enfim,
foi ele quem buscou isso.
- O que foi que houve? - era Anselmo que chegava, notando
o jornal nas m�os de J�lio.
- Foi o T�cio - esclareceu ele. - Encontraram-no morto.
Parece que tomou uma overdose de coca�na.
- Bem feito! - disse Anselmo, com desprezo. - - � no
que d� se meter com o que n�o deve. Ainda bem que o mandei
embora a tempo.


- Voc� n�o tem pena? contrap�s J�lio.
- Nenhuma. Ele teve o que mereceu. Onde j� se viu, um
drogado? E eu nunca desconfiei.
- Acho que ele n�o se drogava quando trabalhava aqui.
Deve ter come�ado depois. Eu bem que notei algo estranho nele,
mas n�o sabia o que era. Provavelmente, o efeito da droga.
- Deixe para l�. Um viciado a menos no mundo. E agora,
voltem ao trabalho
Apesar de n�o concordar com o coment�rio de Anselmo, J�lio
n�o o contradisse. N�o queria que ele soubesse o quanto lamentava
o ocorrido com T�cio. Por mais que ele pr�prio houvesse buscado
seu fim, ningu�m merecia passar por aquilo. Sentiu uma pontada de
remorso, achando que poderia t�-lo ajudado, mas a �nica ajuda que
T�cio queria era dinheiro, na certa, para se drogar.
- Quer ir almo�ar? - indagou Bianca, mais tarde,
At� que seria uma boa ideia almo�ar com ela, para averiguar
a hist�ria do sumi�o do dinheiro. J�lio ligou para Ge�rgia, avisando
que n�o almo�aria em sua casa naquele dia. Foi com Bianca a um
restaurante de comida caseira, onde seus colegas costumavam
comer. N�o queria que ningu�m imaginasse o que n�o deveria.
- Como est� a Ge�rgia? - interessou-se ela,
- Melhorando - ele fitou Bianca, em d�vida sobre o que
deveria falar. - Gostaria de lhe agradecer por n�o ter contado
nada a ningu�m. Seria muito embara�oso para mim.
- Ora, n�o foi nada. � para isso que servem os amigos.
Prometi guardar segredo e n�o sou de quebrar promessas.
Ele agradeceu com um sorriso, sentindo a encruzilhada em
que se metera. Em d�vida com Bianca, como poderia formalizar
uma acusa��o de furto contra ela? Talvez o homem estivesse enganado,
s� podia ser isso. Na certa, n�o sumira dinheiro nenhum.
Ele esperaria mais alguns dias para ver o que ia acontecer. Se
ningu�m falasse mais nada, daria o epis�dio por encerrado.
- Vamos torcer para que ela n�o esteja gr�vida - prosseguiu
Bianca.

- Como � que �? - indignou-se ele. - Gr�vida?
- � poss�vel, n�o acha? Ou o cara usou camisinha?
- Bianca! - horrorizou-se. - Como pode dizer essas coisas?
- N�o quero choc�-lo, mas � uma possibilidade que voc�
deve admitir e para a qual deve estar preparado.
- Isso n�o pode acontecer. N�o vai acontecer.
- Como � que voc� sabe? Por acaso Ge�rgia tem algum
problema que a impe�a de engravidar?
- N�o... que eu saiba, n�o.
- Ent�o, meu amigo, sinto lhe dizer, mas voc�s correm esse
risco.
- N�o! Jamais! Isso � imposs�vel!
-- N�o � imposs�vel. Acho que voc�s j� deviam come�ar a
pensar no que fazer, caso isso aconte�a.
J�lio n�o respondeu. N�o podia sequer conceber aquela
ideia. Tornar-se pai do filho de um estuprador era inimagin�vel.
Nessa hora, Damien entrou com T�cio. Foi f�cil encontrar J�lio
no restaurante, bastando seguir suas ondas mentais, algo que ele
aprendera a fazer. S� o que n�o conseguia era a telepatia � dist�ncia.
como a que At�lio mantinha com Mizael.
- L� est� ele - apontou Damien, puxando T�cio para l�.
- E quem � a gostosa que o est� acompanhando?
- � a Bianca. Trabalha na ag�ncia.
- Vamos ver que tipo de pessoa ela �.
N�o foi dif�cil para Damien perscrutar a mente de Bianca, mesmo
porquesuaauracordechumbo indicava, possivelmente, mentira
e ego�smo. Logo descobriu o uso espor�dico da maconha, os muitos
homens com quem se deitara, os pequenos e impercept�veis furtos
que cometia quando ningu�m estava olhando.
- Essa � das nossas - felicitou-se Damien. - Pode ser
que nos seja �til.
- Como voc� sabe disso?
- Venha c�, que lhe mostro. - T�cio aproximou-se.
- Agora olhe bem entre os olhos dela. Concentre-se. Feche seus
99


olhos por uns instantes. Agora abra-os. Qual a cor que voc� v�
ao redor dela?
T�cio esfor�ou-se, mas n�o viu nada. Por insist�ncia de
Damien, continuou o exerc�cio, at� que, da terceira vez, conseguiu
- Vejo um cinza escuro! - animou-se. - Consegui?
- Viu s�? � apenas uma quest�o de treino. Agora venha,
n�o podemos perder a conversa deles.
- N�o posso permitir que Ge�rgia d� � luz uma crian�a
nessas circunst�ncias - J�lio ia dizendo. - E acho que nem ela
vai querer.
T�cio lan�ou a Damien um olhar de interroga��o. O que ser�
que ele queria dizer com aquilo?
- Vamos ouvir - ordenou Damien, lendo a pergunta em
seu pensamento.
- Como voc� pensa em impedir? - prosseguiu Bianca. -
Vai obrig�-la a tirar? Isso � crime.
- Ouvi dizer que, em casos de estupro, o aborto � autorizado
por lei.
Ao lado deles, Damien quase deu um soco em J�lio. Aborto,
nem pensar! At�lio ficaria furioso se algo assim acontecesse. Mizael
garantira que a determina��o da mulher era forte, que ela aceitaria
o filho, sem pensar em abort�-lo. Era s� o que faltava, agora, aquele
paspalho do noivo atrapalhar tudo.
Embora fosse esse o desejo secreto de Damien, ele n�o
ousava sequer pensar, temendo que At�lio descobrisse. Tinha de
fazer o que o chefe lhe pedira, a qualquer custo.
- Ser� que ela vai abortar o meu filho? - imaginou T�cio,
penalizado.
- Ou�a bem, idiota - irritou-se Damien. - Ele n�o � seu
filho. No momento, tem que ser filho daquele palha�o ali. E se
isso n�o acontecer, n�o apenas eu, como voc� tamb�m ir� pagar
muito caro.
- Eu?! N�o tenho nada com isso!
100


- Voc� estuprou a menina sob o meu comando e agora
depende de mim. Lembre-se de que fui eu que o salvei. Voc� me
deve isso. Se eu falhar, voc� ir� comigo.
T�cio chorou de mansinho. Arrependia-se de tudo o que
fizera em vida. Da fraqueza na separa��o, do v�cio, do estupro.
Arrependia-se at� de ter se deixado envolver por aquele esp�rito
odiento que se julgava seu dono. Queria impedi-lo, mas faltavam-
-lhe for�as para resistir.
- N�o quero que ela aborte - murmurou. - Bem ou mal,
� o meu filho que ela carrega. Por mais que voc� diga que n�o,
eu sou o pai dele. Posso n�o estar mais vivo para acompanhar o seu
crescimento, mas quero o melhor para ele.
- O melhor para ele? - desdenhou Damien. - E o que
seria isso?
- Quero que ele estude, trabalhe, se case com uma mo�a
decente. E, principalmente, que nunca se envolva com drogas.
A gargalhada que Damien soltou foi t�o grande que o assustou.
T�cio se encolheu, enquanto o outro revidava com azedume:
- Voc� � mesmo muito est�pido. J� reparou no lugar em
que vivemos? Por acaso � algum para�so, n�s parecemos defensores
da moral e dos bons costumes? Por que pensa que At�lio
quer tanto proteger o menino?
- N�o sei. N�o havia pensado nisso.
- � claro que n�o. Se tivesse colocado a cabe�a para funcionar,
veria que os planos de At�lio para ele n�o podem ser nobres
como voc� pensa. Estudo? Trabalho? Casamento? Drogas? Voc�
acertou numa coisa: nas drogas, mas n�o como est� pensando.
At�lio n�o quer que Mizael se transforme num viciado. Ele vai
chefiar o tr�fico. � esse o plano grandioso de At�lio.
- Mizael?
- Seu filho. Voc� deve ter conversado com ele l� em cima.
Damien se referia ao astral onde fora marcado o encontro entre
ele, Ge�rgia, J�lio e Mizael. Havia se esquecido completamente.


- � mesmo - lembrou-se, por fim. - Conheci o rapaz, mas
n�o lhe prestei muita aten��o. Disseram-me que eu n�o precisaria
cuidar dele, por isso, concordei.
- Viu no que deu? - ironizou. - Vai ter que cuidar dele,
mesmo assim.
J�lio e Bianca se levantaram para voltar ao trabalho, fazendo
cessar a conversa entre os esp�ritos. Sa�ram, mas n�o foram seguidos.
Satisfeito com o que descobrira, Damien retornou com T�cio.
102


Capitulo
13
Logo ap�s o trabalho, J�lio correu � casa de Ge�rgia, louco
para estreit�-la em seus bra�os. A conversa com Bianca o deixara
perturbado, temeroso do futuro. Achou melhor n�o pensar mais no
assunto. Ge�rgia n�o estava gr�vida. N�o podia estar.
- Boa-noite, dona Cl�ia - cumprimentou ele, sentando-se
na cozinha para um caf�. - Onde est� Ge�rgia?
- No banho. Ela j� vem.
- J�lio colocou o jornal que Bianca lhe dera sobre a mesa, apanhando
uma das deliciosas rosquinhas que Cl�ia acabara de assar.
- Dona Cl�ia, ningu�m faz rosquinhas como a senhora -
elogiou, saboreando-a.
- Deixe disso, meu filho. Voc� � suspeito para falar.
Ge�rgia entrou na cozinha, de camisola e penhoar, caminhando
vagarosamente por causa da dor nas costelas. Ele se levantou,
sol�cito, beijou-a nos l�bios e ajudou-a a sentar-se.
- Como est�, minha linda?
- Estou bem. Um pouco cansada, mas melhorando. Acho
que, na pr�xima semana, poderei voltar ao trabalho e ao curso.
- N�o acredito que voc� vai continuar com o curso.
- � claro que vou. O curso n�o tem nada a ver com o que houve.
- Mas, Ge�rgia, � perigoso!


- Vai deixar de me acompanhar?
- � claro que n�o!
- Ent�o, n�o tem perigo algum. N�o vou prejudicar o futuro
de minha carreira por causa desse incidente.
- N�o foi um incidente. Foi um ato criminoso.
- Por falar nisso, aquele detetive esteve aqui outra vez -
comentou Cl�ia. - Queria saber se Ge�rgia se lembrava de mais
alguma coisa.
- Disse a ele que n�o... - informou ela, parando de falar
subitamente, ao dar de cara com a foto de T�cio estampada no
jornal. - Espere um pouco. Quem � esse?
Com o peri�dico nas m�os, ela lia avidamente a not�cia.
- � o T�cio - declarou ele. - N�o se lembra dele? Foi
quem fez aquele esc�ndalo no churrasco. Morreu de overdose,
coitado.
Ge�rgia estava l�vida. Deixou cair o jornal sobre a mesa, olhou
de J�lio para a m�e, com um assombro mudo. Seus olhos marejaram,
ela pensou que fosse desmaiar, agora se dando conta da
sensa��o de familiaridade que sentira ao v�-lo.
- O que foi, minha filha? - estranhou Cl�ia. - Est� sentindo
alguma coisa?
J�lio! - exclamou ela. - Foi esse o homem que me estuprou!
- O qu�? Tem certeza?
- Estava escuro, mas lembro que achei o seu rosto familiar,
embora n�o conseguisse me lembrar de onde o conhecia. Pensei
que talvez j� o tivesse visto por ali. Mas agora, vendo sua foto no
jornal, n�o tenho d�vidas. Foi ele mesmo
- E agora? - indagou Cl�ia, apanhando o jornal de cima
da mesa para olhar a foto de T�cio. - O que faremos?
- Vamos � pol�cia - decidiu J�lio, rapidamente. - Ge�rgia
precisa contar isso ao delegado.
Toda a compaix�o que J�lio sentira ao ver a foto de T�cio
no jornal transformara-se em �dio e depois em euforia. Em
outras circunst�ncias, poderia apenas odi�-lo. Se vivo estivesse,
104


o pr�prio J�lio se encarregaria de uma vingan�a. Morto, por�m,
T�cio lhe facilitaria as coisas. J�lio estava certo de que a morte
dele poria um fim �s investiga��es da pol�cia. Sem contar que
tivera o merecido fim.
Fora um ato de vingan�a, s� podia ser. A inten��o de T�cio
era atingi-lo por interm�dio de Ge�rgia. E conseguira. O �dio que
J�lio sentiu do ex-colega naquele momento foi imenso. Depois
de pensar rapidamente na solu��o para aquele problema, veio a
revolta. Ele fora amigo de T�cio, chegara a se arrepender de n�o
t�-lo ajudado mais. E era essa a paga que recebia.
- Maldito! - rosnou, ainda experimentando v�rios tipos de
sentimento ao mesmo tempo. - Ainda bem que est� morto, pois
do contr�rio, eu mesmo o mataria.
- N�o diga isso - objetou Ge�rgia. - Acha que eu ia
querer que meu noivo se transformasse em assassino? T�cio � um
pobre coitado, perdeu a vida por causa da droga. O que precisamos
� rezar por ele.
- Nunca mais repita uma barbaridade dessas! - vociferou.
- Pro�bo-a at� de pensar nele. Aquele canalha merece o
inferno, n�o suas ora��es.
- Voc� n�o sabe o que est� falando - ponderou Cl�ia.
- Est� com raiva, o que � compreens�vel, porque Ge�rgia � sua
noiva e voc� conhecia o sujeito. Mas n�o faz bem alimentar o �dio
no cora��o. Envenena a alma, ao passo que o perd�o purifica e
liberta.
- Perd�o? - protestou J�lio. - Isso � alguma piada?
Perdoar o cafajeste que fez isso a Ge�rgia? Nunca!
- J�lio est� nervoso, m�e. Quando a raiva passar, ver� que
temos raz�o.
- N�o vai passar - corrigiu ele. - E muito me admira voc�,
Ge�rgia, n�o estar com �dio dele. Fico at� feliz que ele tenha
morrido, e voc� devia sentir o mesmo.
- N�o � da minha natureza odiar - contestou ela.
105


- Nem da minha! Mas o que ele fez n�o tem perd�o. Foi
abomin�vel, uma covardia! Ele mereceu aquela overdose, e espero
que o diabo o tenha carregado para o inferno!
- Cruz-credo! - benzeu-se Cl�ia. - Pare com essas heresias.
- Tudo bem, dona Cl�ia, perdoe-me. Acho que me excedi.
Mas � que n�o compreendo como voc�s podem perdoar e rezar
por esse monstro.
- O perd�o faz bem � alma, como disse minha m�e - esclareceu
Ge�rgia. - E a compaix�o que sentimos pela ignor�ncia
dele � algo natural, est� em nossa forma de pensar e sentir. N�o
podemos evitar.
- Voc�s s�o muito boas - reconheceu ele, abra�ando
Ge�rgia com cuidado, para n�o a machucar. - Tanta bondade
n�o tem lugar nesse mundo.
- A bondade tem lugar em qualquer mundo - corrigiu
Cl�ia. - Se todos se esfor�assem para disseminar o bem, n�o
haveria tanta gente desequilibrada por a�.
Acho que a senhora tem raz�o, mas a realidade que vivemos
n�o � essa. O mundo � um lugar de gente m�, interesseira,
ego�sta. Temos que aprender a nos defender.
- Temos que aprender a compreender e modificar isso.
Todo mundo tem uma centelha boa dentro de si. S� precisa de um
incentivo para deix�-la brilhar.
- Suas palavras me emocionam, e Deus sabe o quanto eu
gostaria de acreditar nelas, mas n�o � assim que sinto. O que vejo
s�o pessoas querendo comer umas �s outras, num mundo onde
o que importa � o poder.
Veio a palavra m�gica, com a qual J�lio magnetizava as
for�as das sombras. Assim como At�lio e muitos outros, o que ele
almejava era o poder. Em escalas diferentes, mas, ainda assim, o
poder. J�lio queria subir na vida, tinha ambi��o, o que era saud�vel
dentro dos limites competitivos da vida. Todavia, suas aspira��es
iam al�m do desejo da conquista pessoal. Ele queria impor-se, ser
respeitado, temido.
106


- N�o � assim que eu penso - discordou Ge�rgia. - O
que importa � o amor, e o poder sem ele exercido nada mais � que
ilus�o dos vaidosos e ignorantes.
J�lio sentiu um choque percorrer o seu corpo. O pensamento
de Ge�rgia contradizia seus ideais, ia de encontro a todos os seus
planos para o futuro. Mas ele a amava tanto!
- N�o vamos brigar, minha linda - pediu emocionado. -
Estamos todos abalados com os acontecimentos.
- Tem raz�o - concordou ela. - Tudo isso ir� passar com
o tempo.
- Sente-se bem para ir � delegacia?
- Acho que sim, se voc� me acompanhar.
- � claro. Vou ligar para o delegado e informar que iremos
l�. Tenho certeza de que voc� ser� logo atendida.
Como era de se esperar, o inqu�rito foi arquivado ap�s os
esclarecimentos de Ge�rgia. Algumas investiga��es ainda se
seguiram, apurando que T�cio era frequentador ass�duo da pra�a
onde tudo acontecera. Inclusive, naquele dia, fora visto por algumas
pessoas circulando pelo local, l� permanecendo mesmo ap�s
o in�cio da ventania. O inqu�rito estava encerrado, T�cio, sepultado
e, com ele, a verdade sobre o que havia acontecido a Ge�rgia.
Depois de tudo resolvido, J�lio sentiu um al�vio sem igual.
Parecia que v�rias toneladas de chumbo haviam sido retiradas
de seus ombros. Estranhamente, pegou-se ansioso para contar a
novidade a Bianca. Foi com esfor�o que, no dia seguinte, teve de
aguardar a hora do almo�o para conversar com ela.
- Voc� parece muito animadinho hoje - observou ela. -
Aconteceu alguma coisa?
- N�o sei se animadinho � a palavra certa. Mas aconteceu
algo muito importante.
- Quer me contar?
- N�o via a hora.
Entre o al�vio e a revolta, J�lio contou a Bianca o que acontecera.
Foi uma surpresa.


- O T�cio, hein! - espantou-se. - Quem diria?
- Sei que � errado, mas fiquei aliviado em ver essa hist�ria
acabar.
- N�o ficou com raiva dele?
- Muita. Mas ele est� morto, tudo se acabou.
- E como Ge�rgia reagiu?
- Com aquelas besteiras de sempre. Que ele era um coitado
e tinha que rezar por ele. Falou que o perdoava e coisa e tal.
- N�o compreendo a Ge�rgia. Francamente, J�lio, essa rea��o
dela foi inesperada. Que mulher perdoa o homem que a estuprou?
- Provavelmente, nenhuma. Mas Ge�rgia n�o � uma mulher
qualquer.
- Mesmo assim, � muito esquisito. E ela nem quis acus�-lo.
Ser� mesmo que n�o o reconheceu?
- Foi o que ela disse.
- E voc� n�o acha estranho ela ter sido estuprada logo
pelo T�cio?
- Como assim?
- Quero dizer, o cara solta uma piadinha para ela no dia do
churrasco. E depois a ataca. N�o � estranho?
- Que piadinha? N�o me lembro.
- Ah! Ele falou alguma coisa sobre ela lhe colocar chifres.
- Ele estava com raiva.
- � claro. Mas talvez a piada n�o tenha sido � toa.
- O que a faz pensar assim?
- Bem... - hesitou, de forma estudada. - T�cio at� que era
um cara bem-apessoado, pintoso, cheio de charme. De repente
ele pensou que poderia conquistar Ge�rgia, entende? Cham�-la
para sair, essas coisas.
- N�o acredito! Ge�rgia jamais aceitaria.
- � claro que n�o. Mas ele era muito insistente. Voc� sabia
que ele me cantou diversas vezes?
- S�rio?
108


- N�o transei com ele porque n�o quis - mentiu, j� que o
oposto � que havia sucedido. Fora T�cio quem nunca se deixara
seduzir pelas insinua��es de Bianca. - N�o achei certo, pois
ele era casado.
- N�o sabia que T�cio tinha dado em cima de voc�.
- Pois �. Quem garante que ele n�o deu em cima de Ge�rgia
tamb�m?
- N�o. Ela me teria falado.
- Pode ser que ela n�o quisesse preocup�-lo. Ou indisp�-lo
com T�cio. Ou ent�o... - calou-se propositalmente.
- O qu�?
- Nada.
- Nada, n�o. Voc� ia dizer alguma coisa.
- N�o era nada.
- Pode falar, Bianca, o que foi?
- N�o quero envenenar o relacionamento de ningu�m.
- Como assim?
- Ge�rgia � sua noiva e ama voc�. Logo, n�o tem sentido o
que pensei.
- O que voc� pensou? Que Ge�rgia gostou das cantadas
de T�cio?
- Percebi uma troca de olhares estranha no churrasco. Na
hora, n�o fiz mau ju�zo, achei que era bobagem. Mas agora...
- O qu�?
Ela deu de ombros e insinuou, maldosa:
- Voc� mesmo disse a Ge�rgia que n�o passasse pelo
meio da pra�a. Por que ser� que ela resolveu tomar aquele caminho
justo no dia em que voc� n�o estava com ela, e logo pelo
lugar em que T�cio a esperava?
- Voc� acha que eles marcaram um encontro l�? - Bianca
deu de ombros e J�lio continuou: - Isso � imposs�vel! Ela foi
estuprada!
Durante alguns segundos, ela o encarou com ar de d�vida,
at� que retrucou falsamente:
109


- Tem raz�o, J�lio. E quer saber? Ge�rgia jamais faria isso
com voc�. N�o marcaria nenhum encontro com aquele marginal.
- Por certo que n�o. E ela s� o reconheceu ao ver a foto
dele no jornal.
- � isso mesmo. Que besteira a minha. N�o ligue, J�lio, por
favor. Foi s� uma desconfian�a idiota. Ge�rgia o ama, n�o o trairia
com o T�cio nem com ningu�m.
Bianca mudou de assunto, levando J�lio a uma desconfian�a
atroz. N�o era poss�vel que Ge�rgia tivesse marcado um encontro
com T�cio enquanto ele estava fora. Realmente, pensando bem,
tudo era muito esquisito. Ge�rgia afirmara que estava muito escuro
para reconhecer o homem. Mesmo assim, ao ver a foto no jornal,
tinha certeza de que era T�cio. Como ter essa certeza se estava
t�o escuro? Pior. Por que n�o queria colaborar com a pol�cia na
identifica��o do agressor?
A partir daquele dia, J�lio ficou inquieto, desconfiado. Era
muita coincid�ncia ela ser estuprada justo pelo T�cio. N�o, devia
ser um ato de vingan�a dele. Provavelmente, fora isso. Mas Ge�rgia
o conhecia, n�o teria se esquecido de sua fisionomia t�o facilmente
depois do esc�ndalo que ele aprontara. E por que ela resolvera
passar pelo meio da pra�a, mesmo sabendo que era perigoso,
justo nos dias em quem ele n�o a acompanhara?
N�o era poss�vel. Ge�rgia jamais o trairia. Bianca estava
enganada, n�o a conhecia. Mesmo assim, deixou-o suficientemente
preocupado a ponto de esquecer que, na v�spera, outro
cliente o havia procurado para dizer que havia recebido dinheiro a
menos no caixa de Bianca.
110


Cap�tulo
14
Sentada na sala de espera do consult�rio da ginecologista,
em companhia da m�e, Ge�rgia aguardava a vez de ser atendida.
Tinha ainda muitas dores nas costelas, embora o rosto n�o
apresentasse marcas dos pontos. Fora isso, sintomas bastante
reveladores lhe trouxeram uma preocupa��o extra, amea�ando-a
com o fantasma de uma gravidez indesej�vel e dolorosa.
A m�dica entregou-lhe a requisi��o do exame, que ela fez
logo na manh� seguinte. � tarde, j� tinha o resultado nas m�os.
Sua rea��o imediata foi o pranto. N�o podia acreditar que aquilo
era verdade.
- E agora, m�e? - desesperou-se. - O que vou fazer?
- N�o sei, minha filha - Cl�ia abra�ou-se a ela, em l�grimas.
- Vamos orar e pedir a Deus que nos oriente.
- J�lio jamais ir� aceitar uma coisa dessas.
- Voc� n�o teve culpa. Ele vai entender.
- Ah! m�e...
- Deus h� de nos dar for�as. Voc�s v�o criar essa crian�a
com amor. Ela n�o vai nem saber que foi fruto de um ato de viol�ncia.
Ap�s o trabalho, J�lio foi � casa de Ge�rgia, como sempre
fazia. Ao chegar, encontrou-a na sala com a m�e, chorando, segurando
nas m�os uma folha dobrada.


- O que foi que houve? - quis saber ele.
- Voc�s precisam conversar - anunciou Cl�ia, deixando-
-os a s�s.
Ele se aproximou de Ge�rgia, que enxugava os olhos em um
lencinho de papel. Tomou-lhe a m�o �mida, levou-a aos l�bios.
- O que est� acontecendo, minha linda? - perguntou ele,
estranhando o abatimento em seu rosto.
- Aconteceu uma coisa...
- O que �?
- Tome - ela estendeu-lhe o papel. - Leia.
Mesmo antes de ler, J�lio j� sabia do que se tratava. Temendo
o conte�do do papel, desdobrou-o com lentid�o, como se desejasse
retardar ao m�ximo aquele momento de ang�stia. Enchendo-se
de coragem, leu em sil�ncio. As l�grimas aflu�ram em abund�ntia,
provocando uma dor t�o pungente que ele pensou que n�o fosse
resistir.
- Voc� est� gr�vida - constatou com pesar. - � meu?
Ela meneou a cabe�a e contestou com ang�stia:
- N�o.
- Tem certeza? - Ela assentiu. - Como pode ter certeza?
- Pelo tempo de gesta��o. Coincide com a data do estupro.
Voc� estava viajando, e fazia uns dias que n�o trans�vamos.
J�lio jogou a cabe�a para tr�s, suspirando dolorosamente.
- Tudo bem - disse. - Ouvi dizer que, nos casos de estupro,
o aborto � permitido.
- Aborto? - repetiu at�nita.
- N�o se preocupe, vai dar tudo certo. Soube que nem
precisa de autoriza��o do juiz. A gente pega o inqu�rito, leva ao
m�dico e informa que foi estupro. Ele n�o vai questionar, e em
pouco tempo voc� estar� livre desse feto indesej�vel.
- Voc� n�o est� entendendo - falou ela, andando nervosamente
pela sala. - N�o quero fazer um aborto.
- N�o quer? - surpreendeu-se ele. - Como assim?


- N�o quero. � uma crian�a que tenho aqui. Um ser vivo
inocente que precisa nascer.
- Ficou louca? - berrou ele, reparando que ela repousava a
m�o na barriga como se quisesse proteg�-la. - Pelo amor de Deus,
Ge�rgia, perdeu o ju�zo? Isso n�o � uma crian�a. � uma aberra��o!
- N�o fale assim - choramingou ela, sentindo o desespero
se aproximar. - A crian�a n�o tem culpa.
- E eu tenho? Por acaso fui eu que estuprei voc�?
- Podia ser seu filho.
- Mas n�o �! Voc� mesma disse, com todas as letras, que
n�o � meu.
- Mas pode ser. Podemos cri�-lo com amor.
- Eu jamais criaria o filho de outro homem com amor.
Ainda mais do jeito que foi. Filho de T�cio, drogado e estuprador.
De jeito nenhum!
- J�lio, por favor, pense bem. N�s nos amamos, e a crian�a
n�o tem culpa do que me aconteceu. Ela nem precisa saber que
nasceu de um estupro.
- Mas acontece que eu sei. E por mais que quisesse, jamais
poderia am�-la.
- N�o seja intransigente.
- Intransigente? Pode ser que para voc� seja natural criar
o filho de outro, como muitas coisas absurdas parecem naturais
para voc�. Mas para mim n�o �.
- N�o quero fazer o aborto, n�o quero.
- Voc� tem que escolher. Ou tira esse feto, ou me perde
para sempre.
- Voc� n�o pode estar falando s�rio.
- Estou. Esse filho n�o � meu, n�o tenho nada com isso.
N�o o quero em nossas vidas.
- Isso � imposs�vel, pois ele j� � parte da minha. Est� dentro
de mim, � parte do que sou...
- Cale essa boca! - esbravejou ele, assustando-a pela
primeira vez na vida. - N�o repita uma indignidade dessas!


- Mas � verdade. N�o posso negar o que a pr�pria ci�ncia
afirma.
- N�o me venha com essa de ci�ncia. Assuma, pelo menos,
que voc� quer ficar com essa crian�a.
- Eu quero. Estou lhe dizendo isso desde o in�cio.
- Por qu�? Porque � filho de T�cio?
- Como assim?
- � isso, Ge�rgia? Voc� e T�cio se envolveram?
- O que est� dizendo, J�lio? N�o acredito. Voc� pensa que
T�cio e eu...
- N�o sei o que pensar.
- Se essa inf�mia passou pela sua cabe�a, ent�o acho
melhor voc� ir embora. N�o temos mais o que conversar.
Na mesma hora, ele se arrependeu do que dissera. Correndo
para ela, abra�ou-a, enchendo seus cabelos de l�grimas.
- Perdoe-me, Ge�rgia, por Deus. N�o sei o que me deu
para falar isso. � que � t�o dif�cil... E eu a amo tanto!
- Tamb�m o amo e, acredite-me, n�o era isso o que eu
queria. Se � dif�cil para voc� aceitar o filho de outro homem, imagine
para mim, que fui vilipendiada e ultrajada. Mas n�o posso fazer
o aborto. Acredito que, por um motivo que desconhecemos, esse
ser escolheu nascer assim. E n�s, de alguma forma, aceitamos
receb�-lo. Temos que lhe dar essa chance.
- Voc� e suas fantasias. Ningu�m, em s� consci�ncia,
escolheria um destino desses. N�o acredito nessas bobagens de
esp�ritos e reencarna��o. Para mim, tudo n�o passa de um acaso
do destino, como um atirar de dados cujo resultado � imprevis�vel.
- Est� enganado, J�lio. Mesmo nos dados, o resultado � o
previsto pelo universo. N�o h� coincid�ncias nem acasos. Tudo �
obra do Criador.
- O Criador n�o nos pediria uma coisa dessas. Compreenderia
nossos motivos e nos perdoaria pelo aborto.
- Nisso eu acredito, pois Deus � amor em ess�ncia, e o
amor tudo entende e perdoa. Mas tamb�m acredito em escolhas.
114


E, se Ele nos deu essa oportunidade, por que n�o podemos escolher
o caminho do amor?
- Esse n�o � o caminho do amor. � o do sofrimento. Amor
seria se esse filho fosse meu.
- Ele pode ser seu. Basta voc� querer.
- N�o posso.
- Se n�s adot�ssemos uma crian�a, voc� n�o a amaria?
- � diferente. A ado��o � volunt�ria. Essa crian�a, n�o. Foi
imposta a voc�, est� sendo imposta a mim.
- Por favor, J�lio, pense bem. N�s nos amamos.
- Ponha-se no meu lugar, Ge�rgia. O que est� me pedindo
vai al�m das minhas for�as. Voc� me pede que eu aceite e compreenda.
No entanto, n�o quer compreender nem aceitar meus
motivos. Por que a sua vontade h� de prevalecer sobre a minha?
- � do meu corpo que estamos falando.
- E do nosso futuro. N�o posso mandar em voc� ou no seu
corpo, mas posso decidir o que � melhor para mim.
- � sua �ltima palavra?
- Sim, �.
, - N�o acredito.
- Pois pode acreditar.
- Por favor, J�lio, amo voc�. N�o quero perd�-lo.
- Se n�o quer, j� sabe o que fazer.
Ele fez men��o de sair, mas Ge�rgia tentou impedi-lo:
- N�o se v� ainda. N�o saia daqui assim.
- Lamento, Ge�rgia, mas n�o temos mais o que conversar.
Voc� j� conhece a minha opini�o. Nosso futuro agora est� em
suas m�os.
Ele nem se despediu adequadamente. Sem beijos nem abra�os,
nem car�cias. Simplesmente abriu a porta e saiu. Estava confuso,
transtornado, sem saber em que pensar ou acreditar, ao contr�rio
de Ge�rgia, firme em sua cren�a no valor da vida. Ela sabia que, por
mais que o amasse, n�o conseguiria fazer o aborto. Podia n�o ser o
seu sonho, mas era seu filho que crescia dentro dela.


Assim que J�lio saiu da casa de Ge�rgia, Damien e T�cio se
juntaram a ele, lendo em seus pensamentos o desejo de interromper
a gravidez. O aborto n�o fazia parte dos planos. Ao contr�rio, os
esp�ritos desejavam incentivar J�lio a permanecer junto a Ge�rgia
para dar apoio ao menino, sem estrag�-lo com baboseiras de
moral nem doutrinas espiritualistas que s� pregam o bem.
- Ele quer que ela tire o meu filho! - indignou-se T�cio,
- Isso n�o vai dar certo - divagou Damien. - At�lio vai ficar
uma fera se isso acontecer.
- Voc� disse que ela estava disposta a n�o abortar!
- �, mas ele a est� pressionando. N�o cont�vamos com isso.
- E agora? E se ele a convencer?
- N�o sei. N�o quero nem pensar na rea��o de At�lio.
- Por que n�o vamos l� tentar impedi-la?
- Ser� que voc� � t�o est�pido que ainda n�o percebeu?
- T�cio fez cara de bobo. - Olhe para l�, idiota! Olhe para
a casa dela. V� aquela luminosidade toda? Pois �. Aquela � uma
casa protegida da luz, logo n�s n�o podemos entrar.
- N�o podemos nem tentar?
- Quer tentar? Muito bem, v� em frente.
Ap�s uma r�pida olhada no ambiente ao redor, T�cio experimentou
avan�ar. Deu alguns passos em dire��o � casa at� alcan�ar
a barreira energ�tica que a circundava, erguida ali pelas ora��es
e as boas vibra��es derramadas por Ge�rgia e Cl�ia. T�cio tentou
ultrapassar a barreira, contudo n�o conseguiu. Parecia mesmo se
tratar de um muro de tijolos.
- O que est� tentando fazer? - T�cio ouviu uma voz suave,
vinda do lado de dentro.
- Quem est� a�? - retrucou assustado. - Apare�a!
- Est� falando com quem? - indagou Damien, que n�o
ouvira nada.
116


- N�o sei. Parece que tem um cara l� dentro.
- Fuja! - gritou Damien instantaneamente, certo de que s�
podia ser um esp�rito de luz. - � uma armadilha! Corra! Desapare�a?
T�cio, contudo, permaneceu im�vel, vendo surgir da luminosidade
um ser radiante, vestido em uma t�nica t�o alva e esvoa�ante
que lhe pareceu um peda�o de nuvem.
- Quem... quem � voc�? - perguntou at�nito, paralisado
de admira��o.
- Eu me chamo Josu�.
Antes mesmo que Josu� pudesse terminar, T�cio foi puxado
para tr�s. Enchendo-se de coragem, Damien correra em dire��o a
ele e o arrastara dali.
- Ficou louco? - perguntou, assim que alcan�aram os limites
de sua cidade.
- Por qu�?
- Nunca mais fale com aquela gente, se quiser sobreviver.
- Como assim? N�o estou entendendo. Que gente, e sobreviver
como, se j� estou morto?
- Voc� � muito burro, mas vou lhe explicar mesmo assim.
Aquele pessoal de branco n�o est� com nada. Leva a gente daqui,
com promessas de sossego, paz e amor. Depois, sabe o que fazem
conosco? - T�cio meneou a cabe�a. - Levam-nos de volta �
Terra em encarna��es de dor e mis�ria. � por isso que nasce tanta
gente aleijada, cega e miser�vel. Porque fizeram muitas coisas
erradas e est�o sendo punidas. Agora imagine voc�, um estuprador,
viciado, suicida. J� pensou no tamanho do seu castigo?
- Eu... n�o sabia disso.
- Pois agora j� sabe. Os antigos viciados s�o levados a
encarna��es de loucura, retardo mental, esquizofrenia e coisas do
g�nero. � horr�vel. Voc� quer isso? Quer?
- N�o.
- Ent�o, tome cuidado. Esses esp�ritos t�m uma l�bia fenomenal.
Prometem mil coisas. L� em cima, at� somos bem tratados.
Mas na volta... � como lhe falei.


Damien deliberadamente o apavorava, para que ele n�o pensasse
em ir embora. Ele mesmo tinha medo de sair dali e ser obrigado
a enfrentar suas atitudes. Achava realmente que seria compelido a
uma reencarna��o dolorosa por conta de seus crimes passados.
N�o sabia que as encarna��es atendem �s necessidades de evolu��o,
sim, mas que podem ser programadas sem dor, bastando, para
tanto, o despertar da consci�ncia e o perd�o verdadeiro.
- Se � assim, por que Mizael aceitou ir para l�?
- Mizael � diferente. Tem um plano a seguir.
- Mas, pelo visto, ningu�m o obrigou a ser aleijado nem
nada. Por qu�?
Damien n�o sabia o que dizer. Realmente, n�o havia pensado
nisso. Repetia para T�cio o que At�lio e o pr�prio Mizael sempre
diziam. Pensando bem, n�o via sentido no que acontecera a
Mizael, que enganara todo mundo e ia reencarnar cheio de projetos
criminosos. Como ele conseguira, n�o sabia, mas ent�o, nem
sempre os esp�ritos das trevas eram punidos com o sofrimento.
N�o compreendia e, por n�o compreender, resolveu deixar para l�.
Se perguntasse a At�lio, ele se enfureceria, acusando-o de trai��o.
- Acho melhor voc� n�o tocar mais nesse assunto - aconselhou
a T�cio. - Se n�o quiser que o pr�prio At�lio mande puni-lo.
T�cio estranhou. O que Damien dizia n�o fazia sentido. Ele
falava em puni��es e castigos, no entanto n�o era o que percebera
at� ent�o. Ao contr�rio, o astral l� de cima parecia compreensivo e
amoroso, ao contr�rio do tal At�lio, que mantinha a obedi�ncia de
todos atrav�s do medo.
- Quero voltar - afirmou T�cio. - Quero ver o que J�lio
est� fazendo.
- Tudo bem - concordou Damien. - Desde que n�o seja
para a casa de Ge�rgia, podemos ir. Nunca mais quero chegar
perto daquele lugar.
Encontraram J�lio em companhia de Bianca, a quem ele
havia telefonado ap�s deixar Ge�rgia. Os dois estavam num barzinho,
bebendo chope e comendo batatas fritas.


- Parece at� que voc� adivinhou - comentou ele. -
Ge�rgia est� mesmo gr�vida.
- Eu n�o adivinhei. Sou mulher, j� passei por isso.
- Voc� j� engravidou? - Bianca assentiu. - E tirou?
- Tirei. Sou muito jovem para estragar a vida.
- Eu nunca fui a favor do aborto, mas no caso de Ge�rgia �
diferente. O filho � daquele cr�pula do T�cio.
T�cio olhou para Damien com raiva e tristeza ao mesmo
tempo. N�o gostava de ser xingado, mas reconhecia que fora ele
o respons�vel pela revolta de J�lio.
- Qual a justificativa que ela deu para n�o abortar? - prosseguiu
Bianca.
- Sei l�. Ela quer ficar com o beb�, que � um ser inocente.
Eu at� concordo que ele n�o tem culpa de nada, mas n�o consigo
aceit�-lo.
- N�o se culpe, J�lio. Voc� est� coberto de raz�o. Eu, no
lugar de Ge�rgia, n�o pensaria duas vezes. J� teria tirado aquilo
logo nos primeiros sintomas da gravidez.
- Ainda tem isso. Daqui a pouco, vai ser tarde para o aborto.
� - E a�? Voc� vai criar a crian�a?
- De jeito nenhum!
- Ent�o, o que vai fazer, j� que vai se casar com Ge�rgia?
- N�o sei - respondeu com voz rouca.
Saindo dali, J�lio foi caminhando a esmo pelas ruas, imaginando
o que faria para convencer Ge�rgia a abortar. Sentiu-se
encurralado, sem apoio de ningu�m. N�o podia contar nem com
Cl�ia, que tamb�m era contra o aborto.
- V� l� e fa�a as pazes com ela - sugeriu Damien, o mais
insistentemente que conseguia. - Voc� n�o gosta dela? Olhe que
aborto � crime, hein? E se n�o acreditarem no estupro?
J�lio n�o recebia as palavras de Damien. Estava t�o convencido
de que a �nica sa�da era o aborto que n�o escutava sugest�es
diferentes. Preocupava-se agora com o tempo. Temia que, ao finalmente
conseguir convencer Ge�rgia, fosse tarde demais.


- Deixe de ser besta, homem! Voc� a ama. O que � que tem
de mais criar o filho de outro? A crian�a n�o tem culpa
Parcialmente, J�lio captou o que ele dizia, mas apenas a
parte de que a crian�a n�o tinha culpa. N�o tinha, mas ele tamb�m
n�o. J�lio estava irredut�vel, e Damien n�o sabia mais o que fazer
para tentar convenc�-lo. Era ir�nico. Muitas vezes intu�ra mulheres
e homens a interromper a gesta��o de inimigos que eles n�o
desejavam que nascessem. Via-se agora na posi��o oposta, falando
coisas que talvez um ser de luz dissesse.
Foi quando T�cio resolveu intervir. Passou � frente de Damien
e soprou ao ouvido de J�lio:
- Esque�a Ge�rgia. Voc� n�o precisa se casar com ela. Se
ela quer tanto o beb�, que fique com ele. Voc� � livre e pode partir
para outra.
A sugest�o foi mais bem-aceita, ganhando for�a na mente de
J�lio. Notando que a ideia de T�cio fora mais eficaz do que a sua,
Damien tornou a investir:
- � isso mesmo. Onde j� se viu criar o filho de outro homem?
Deixe-a. Ela e a m�e podem cuidar sozinhas da crian�a. Ou ent�o,
ela pode encontrar um outro ot�rio que o fa�a. N�o precisa ser
voc�, que n�o tem nada com isso.
Na cabe�a de J�lio, aquela era a solu��o. Ele iria sofrer, �
claro, mas sofrimento maior seria conviver diariamente com aquele
ser infame.
- Muito bem - elogiou Damien, depois que J�lio foi se
deitar. - Voc� foi esperto. Continue assim.
- Obrigado - respondeu T�cio, timidamente.
Daii, Damien foi prestar contas a At�lio. Sem revelar a ideia de
T�cio, inflamou o peito e informou:
- N�o precisamos mais nos preocupar com J�lio. Consegui
impedir que ele pressionasse Ge�rgia para o aborto, levei-o...
- �timo - interrompeu At�lio, desinteressado dos m�todos
de Damien. - Ele n�o vai mais dar trabalho?
120


- N�o - balbuciou o outro, decepcionado por n�o poder contar
a estrat�gia que ele atribu�a a si mesmo. - Consegui afast�-lo...
- Volte para o lado deles - cortou de novo, rispidamente.
- N�o descuide de Mizael um minuto sequer.
Naquele momento, Damien pensou que odiava At�lio quase
tanto quanto detestava Mizael. Fora procurar o chefe com a certeza
de que ele aprovaria seu plano, elogiando sua ast�cia. Mas
At�lio nem sequer o deixara falar.
Damien saiu da sala de At�lio com a mente mais pesada do
que de costume. Precisou de muito esfor�o para engolir a desonra.
Pena que deixara T�cio na Terra, ou poderia descontar nele
sua revolta.
121


Cap�tulo
15
Para Ge�rgia, a decep��o maior foi a rea��o de J�lio.
Imaginava que ele n�o receberia bem a not�cia da gravidez, contudo
n�o pensou que amea�asse deix�-la. Ap�s uns instantes de
discuss�o, de revolta, de recusa, achava que ele acabaria aceitando.
N�o era assim que as pessoas agiam quando se amavam?
- J�lio n�o me ama - disse ela � m�e. - Se me amasse,
teria aceitado. A gravidez n�o foi culpa minha.
- Procure compreend�-lo, minha filha. Ele est� confuso. De
uma hora para outra, tem que ser pai de uma crian�a que n�o �
sua, fruto de um estupro. N�o deve ser f�cil.
- Pensei que o amor superasse essas coisas.
- Supera. Voc� vai ver. Daqui a pouco ele vai mudar de ideia
e procur�-la.
- Tenho minhas d�vidas. Ele parecia irredut�vel.
- Ele vai mudar de opini�o. Sei que J�lio � contra o aborto
e vai acabar sendo razo�vel. Estou orando por voc�s.
- Voc� entende por que n�o posso interromper a gravidez,
n�o entende?
- Entendo-a melhor do que ningu�m.
- Engra�ado, m�e, sei que essa crian�a foi gerada num ato
de viol�ncia. A not�cia da gravidez deixou-me revoltada, a princ�pio


cheguei a odi�-la. Mas a mudan�a foi muito r�pida. Agora, come�o
mesmo a am�-la. Acha isso poss�vel?
- S� quem divide a vida com uma crian�a � que sabe o que
� isso.-
N�o poderia tir�-la. Mesmo que perca J�lio para sempre,
n�o farei o aborto.
- Assim � que se fala, minha filha. J�lio n�o vai deixar voc�,
mas, ainda que isso aconte�a, estarei sempre ao seu lado. E essa
crian�a s� lhe trar� alegrias, voc� vai ver.
Apesar de todo apoio da m�e, Ge�rgia chorou abra�ada a
ela. Temia pelo futuro, seu e de seu filho. Ao mesmo tempo em
que j� o amava, sentia um certo perigo rondando-o, uma amea�a
invis�vel, intoc�vel. O que seria?
- Ge�rgia pressente o car�ter de Mizael e o plano maquiav�lico
de propaga��o do mal para conquista do poder - esclareceu
Josu�, que a visitava constantemente, acompanhando a gesta��o.
- Coitada! - apiedou-se Uriel. - Pensa que o filho ser� do
bem, mas tem uma grande chance de n�o ser.
- Como tem de ser. Tudo vai depender dos exemplos que
ele,escolher seguir.
- Ainda bem que ela se manteve firme no prop�sito de n�o
abortar - comentou ele. - Tudo teria sido em v�o.
- Realmente.
- Josu�, me responda uma coisa.
- O que �?
- Por que as consequ�ncias do aborto s�o t�o terr�veis?
Ser� ele um crime t�o hediondo que provoca anos de sofrimento
at� que chegue o perd�o?
- Essa � uma ideia equivocada do ser humano. � claro que
o aborto n�o � um ato de amor. Ao contr�rio, � ego�sta. Mesmo em
casos de estupro, como os de Ge�rgia, ou para livrar a crian�a de
uma vida de mis�rias, ou quando se sabe que ter� uma m�-forma��o
qualquer. Tudo isso s�o desculpas para justificar a fraqueza e
o ego�smo dos pais.
123


- Mas ent�o, se � assim, a ideia n�o � t�o equivocada.
- Quando um ser decide reencarnar, ele conta com a autoriza��o
dos pais. Quando h� o risco de aborto, ele sabe disso, mas
aceita mesmo assim, com a esperan�a de que o instinto materno
mude a ideia da m�e, principalmente, ou do pai.
- E se n�o mudar?
- Por qualquer motivo, h� um rompimento do compromisso.
Mas compromisso n�o � sin�nimo de amor. Quando existe amor,
todas as dificuldades s�o enfrentadas, assim como faz Ge�rgia.
Se n�o h� amor, o aborto acontece por v�rias raz�es, como aquelas
de que lhe falei antes. Mas aprenda uma coisa, Uriel: ningu�m
� culpado por n�o ter ainda aprendido a amar.
- Ent�o, ningu�m � culpado por abortar?
- Culpado, culpado, n�o. A falta de amor leva a esse gesto.
Isso traz culpa, que atrai a dor, provocando a falta de perd�o rec�proco.
Nem o filho perdoa a m�e, nem a m�e perdoa a si mesma.
Se o perd�o n�o come�a pela pr�pria pessoa, ent�o nenhum
desafeto ir� perdo�-la.
- Voc� quer dizer que ningu�m � punido por abortar? N�o
estar�o essas mulheres no umbral?
- Algumas, mas n�o por puni��o, e sim por falta de perd�o.
Atormentadas pelo desequil�brio, muitas mulheres entregam-se �
culpa, gerando forte sintonia com o astral inferior, para onde s�o
atra�das, l� permanecendo por acharem que � o que merecem. A
qualquer momento, contudo, podem sair.
- O que fazer ent�o, Josu�? Como essas mulheres podem
evitar esse magnetismo?
- Exercitando o autoperd�o, acima de tudo. Reconhecendo
que s�o fal�veis, que n�o s�o perfeitas e, por isso mesmo, alvos f�ceis
para a ilus�o. E redefinindo suas atitudes, ou seja, n�o praticando
mais o aborto ou, para aquelas que n�o est�o mais em condi��es de
engravidar, reconhecendo, verdadeiramente, que n�o mais o fariam.
- Voc� fala em autoperd�o. Mas e se o esp�rito abortado
n�o perdoar a m�e?


- Ele s� n�o perdoar� a m�e se ela n�o perdoar a si
mesma. Culpa atrai culpa, como viol�ncia atrai viol�ncia e perd�o
atrai perd�o. A partir do momento em que a m�e compreender e
aceitar os motivos de seu gesto, seu campo energ�tico se transformar�,
sem abrir espa�o para cobran�as. A primeira cobran�a que
o ser humano faz � dele mesmo. Quando isso deixa de acontecer,
ningu�m mais tem motivos para cobrar. Do que adianta cobrar
um n�quel do homem se ele sabe que nada deve? Agora, se ele se
sentir devedor, ou vai pagar, ou fugir, ou permitir que o acusem.
- Por que ser� que as pessoas agem assim?
- Por obscuridade espiritual. Muitos anos de reafirma��o
de certas cren�as que acabaram impregnadas na mente humana,
inclusive como coletividade. E orgulho, principalmente. O ser
humano acha que sabe tudo, n�o aceita que � fal�vel. Isso � o mais
dif�cil: reconhecer que errou.
- Voc� mencionou o erro. Pensei que estiv�ssemos trabalhando
para abolir essa ideia.
- N�o se pode abolir o que existe. O que pretendemos �
mudar a concep��o que se faz do erro. O erro serve para nos
mostrar onde est� a nossa imaturidade. Ele n�o � fatal, n�o traz
puni��es nem deve ser entendido como justificativa para a dor.
� apenas uma caracter�stica simples do homem. Um sinalizador,
que se revela atrav�s da culpa. Depois que a culpa nos mostra
onde est� o erro, ela n�o tem mais valia. Devemos ent�o trabalhar
pela nossa transforma��o, para fazer da amorosidade o leme de
nossas vidas. S� assim o ser humano ser� feliz.
O di�logo no invis�vel foi interrompido pelo soar da campainha,
atraindo a aten��o dos esp�ritos. J� sabendo de quem se
tratava, Josu� silenciou. A chegada dele era esperada, de forma
que os esp�ritos permaneceram na casa de Ge�rgia para transmitir-
lhe vibra��es de coragem.
- Como vai, J�lio? - indagou Cl�ia, dando-lhe passagem.
- Vou bem, dona Cl�ia.


Ele entrou e sentou-se no sof� ao lado de Ge�rgia, que abriu
largo sorriso quando o viu.
- Que bom que voc� veio - disse ela, beijando-o nos
l�bios. - Tive medo de que n�o me procurasse mais.
Cl�ia j� havia sumido pelo corredor, deixando os dois sozinhos.
- Refleti muito sobre nossa conversa do outro dia - come�ou
ele. - E vim aqui lhe dizer que minha decis�o quanto ao
aborto permanece a mesma. No entanto, penso que encontrei
uma outra solu��o. N�o � a que mais me agrada, mas pode ser
uma sa�da.
- Como assim? - interessou-se ela, curiosa.-Que solu��o?
- Estou disposto a cuidar de voc� durante toda sua gravidez
- ela se animou, mas ele a conteve com um gesto. - Desde
que, ao final, voc� d� a crian�a para ado��o.
- O qu�?! - indignou-se ela, presa de inenarr�vel decep��o.
- Perdeu o ju�zo, J�lio? Acha mesmo que eu enfrentaria nove
meses de gravidez para depois entregar a crian�a a estranhos?
- Pense bem, Ge�rgia. Sei que voc� n�o quer tirar o beb�
porque � contra o aborto. Eu tamb�m sou. Mas a ado��o me parece
adequada. Daremos � crian�a a chance de nascer e ser criada
por uma fam�lia que realmente a ame.
- N�o acredito no que estou ouvindo - contestou ela,
vertendo l�grimas de frustra��o e revolta. - N�o pode ser, J�lio,
voc� n�o entende. Eu amo essa crian�a. N�o posso me livrar dela,
seja de que jeito for.
- Ge�rgia, por favor, seja razo�vel.
- Voc� me pede para abrir m�o do meu filho e quer que
eu seja razo�vel? Pelo amor de Deus, J�lio! N�o fa�a isso comigo!
N�o v� que n�o posso me livrar dele? Que j� o amo mesmo
antes de nascer? E amo voc� tamb�m. Quero que voc� seja o
pai dele ou dela. Sei que voc� pode. Por favor, compreenda.
Voc� n�o me ama?
- Voc� sabe que a amo, mas � assim que tem de ser.
- E se eu n�o concordar?
126


J�lio titubeou, em d�vida sobre o que dizer. A presen�a de
Josu�, de certa forma, tolhia sua determina��o. Mesmo assim,
prosseguiu, hesitante:
- Voc� sabe.
- Vai me deixar?
- N�o tem outro jeito. Voc� fez a sua escolha, eu fiz a minha.
Enquanto voc� estiver com a ideia fixa de ficar com essa aberra��o
a� - apontou para a barriga dela -, n�o me considere mais seu
noivo. Mas, se me ama de verdade, livre-se dela, antes ou depois
do parto, e poderemos nos casar como hav�amos planejado.
- N�o posso - desabafou ela, inaud�vel.
- N�o se precipite, Ge�rgia. Pense com cuidado.
- N�o posso. Estou dizendo que n�o posso. N�o me pe�a mais
isso, por favor. Est� me fazendo sofrer muito mais do que o estupro.
Ele engoliu em seco, angustiado, louco para estreit�-la e, ao
mesmo tempo, fugir correndo dali. Se pudesse, arrancaria a crian�a
de seu ventre ou de seus bra�os, mas sabia o quanto Ge�rgia
era determinada.
- � sua �ltima palavra? - ele quase suplicou.
,- Sim.
- Ent�o, n�o temos mais nada a conversar. Voc� tomou a
decis�o por n�s dois.
- J�lio, n�o... - implorou ela, a voz engolida pelos solu�os.
- Eu o amo.
- Sinto muito - afirmou ele, lutando para sustentar a decis�o.
- N�o temos mais nada para conversar.
Saiu, deixando-a onde estava no sof�, bra�os estendidos,
o pranto a consumir suas for�as. Aquele era o adeus que ela
tanto temia. Sabia que J�lio n�o voltaria atr�s, ela tamb�m n�o.
Assim que a m�e chegou, atra�da pelos solu�os altos de Ge�rgia,
teve certeza de que se enganara a respeito de J�lio. Cl�ia estreitou-
a com amor, amparando seu corpo para transmitir-lhe for�as,
juntamente com Josu� e Uriel, encarregados de espalhar energias
fortificantes.


- Ele quer que eu d� o meu filho, m�e - desabafou ela. -
Que o entregue para ado��o.
- N�o chore, minha filha. Tudo vai acabar bem. Deus n�o h�
de nos desamparar.
Disso, ela n�o duvidava. Junto com o amor da m�e, era o que
a fortalecia. A dor da separa��o era imensa. J�lio fora seu primeiro
e �nico namorado. Desde crian�as, falavam em se casar. Era uma
decep��o que ela teria de enfrentar e superar. Confiava tamb�m
no amor da crian�a que estava gerando. Ela seria seu b�lsamo,
uma luz em sua vida sombria. Por ela, sentia que tudo valia a pena.
128


Cap�tulo
16
Logo que chegou � ag�ncia na manh� seguinte, J�lio procurou
Bianca com os olhos. J� ia se encaminhando em sua dire��o
quando Anselmo o deteve.
- Preciso falar com voc� - disse aborrecido.
J�lio seguiu-o at� sua mesa, louco para encerrar o assunto
e contar a Bianca que rompera o noivado com Ge�rgia. Anselmo
mandou-o sentar-se, encarando-o com olhar de zanga.
- Alguma coisa errada? - estranhou J�lio.
- N�o sei. Voc� � quem ir� me dizer.
- Dizer o qu�?
- Posso saber por que voc� n�o me contou que est� sumindo
dinheiro do caixa de Bianca?
- Gomo � que �?
- � isso mesmo. Ontem, depois que voc� saiu, fui procurado
por um cliente que me trouxe uma reclama��o bastante
desagrad�vel.
- Que reclama��o? - ele gelou.
- O cliente disse que recebeu o dinheiro de Bianca, mas
que s� percebeu que estava errado quando foi fazer o pagamento
a uma pessoa, que o contou e deu pela falta de uma nota. - J�lio
permaneceu em sil�ncio, o corpo todo tr�mulo, vendo seu futuro


no banco ruir, enquanto Anselmo prosseguia irritado: - Mas essa
n�o foi a primeira vez. Houve outras, em que ele pensou ter se
enganado. Colocou o dinheiro na gaveta, foi tirando as notas,
anotando as retiradas mentalmente, at� que ficou faltando uma.
Ele pensou que se havia enganado, mas agora teve certeza de que
n�o, j� que a pessoa a quem ele pagou ficou furiosa. E tem mais.
Ele disse que contou a voc�. Por que n�o tomou provid�ncias? Por
que n�o me disse nada? Sou o gerente desta ag�ncia, voc� � meu
subordinado, � seu dever me colocar a par de tudo o que acontece
aqui dentro. Ainda mais de um fato s�rio como esse. Ou ser� que
pretende destruir a reputa��o do banco?
- Posso falar um instante? - pediu J�lio, pensando r�pido.
- Tem algo a dizer? - duvidou Anselmo.
- � claro que eu sabia o que estava acontecendo. Fui procurado
n�o apenas por um, mas por v�rios clientes.
- E n�o fez nada?
- Calma, Anselmo, por favor. O que voc� queria que eu
fizesse? Que acusasse Bianca sem provas? E se ela fosse � pol�cia
dar queixa de mim? L� ia eu preso por cal�nia. Isso � muito s�rio.
- Hum... sei. E o que foi que voc� fez?
- N�o sei se tem notado que tenho sa�do com ela para almo�ar.
- Todo mundo tem notado.
- Fa�o isso para ver se descubro alguma coisa.
- E descobriu?
- Ainda n�o. Ela � esperta, evasiva. N�o deixa escapar
nada.
- Voc� devia ter me contado.
- Tive medo de que voc� a despedisse e depois descobr�ssemos
que est�vamos errados. N�o � interesse nosso que ela v�
� Justi�a, �?
- Pouco me importa. Todo mundo vai mesmo.
- Mas eu achei que era importante evitar isso. Da� porque
tive uma ideia que pensei em colocar em pr�tica antes.
- Que ideia?
130


- Ia falar com voc�, pois preciso do seu consentimento, s�
que voc� foi mais r�pido e me chamou.
- Que ideia? - repetiu zangado.
- � a seguinte.
J�lio contou o plano improvisado na hora para surpreender
Bianca. N�o lhe agradava fazer aquilo com ela, contudo seu
emprego estava em jogo. E depois, ela devia ter pensado primeiro
antes de desviar o dinheiro.
- Gostei - disse Anselmo, para al�vio de J�lio. - V� fazer
isso agora mesmo.
Esquecendo-se momentaneamente de Ge�rgia, J�lio
entrou na tesouraria, apanhando um ma�o de dinheiro que
acabara de receber da central, ainda envolto na cinta de papel.
Cuidadosamente, soltou a cinta, apanhou uma nota de outro ma�o
e colocou-a ali, tornando a colar a cinta. Na hora da distribui��o do
dinheiro pelos caixas, entregou aquele ma�o a Bianca.
Todos os caixas eram obrigados a contar o dinheiro assim
que o recebiam. Foi o que Bianca fez. Rompeu a faixa e p�s-
-se a cont�-lo com dedos �geis, acostumados ao manuseio das
c�dulas. Sua surpresa ao constatar que havia uma nota a mais foi
imensa. Era muita sorte. Um erro da ag�ncia centralizadora que
ningu�m nunca iria perceber.
Bianca olhou para os lados, certificando-se de que ningu�m
a observava. Sentindo-se segura, rapidamente amassou a nota
extra e atirou-a na lata do lixo, sem que seus colegas vissem.
Guardou o dinheiro na gaveta, abriu o caixa e come�ou a atender
os clientes.
J�lio viu quando ela deixou escapulir a nota para dentro da
lixeira. Sem que ela notasse, estava parado atr�s dela, fora de
suas vistas. Esperou at� que ela terminasse de atender o primeiro
cliente e deu ordens para que fechasse o caixa e o seguisse.
- Aconteceu alguma coisa? - ela perguntou.


J�lio fitou-a penalizado. Queria dizer-lhe que estava sendo
obrigado a tomar aquela atitude, contudo n�o era poss�vel. Anselmo
j� os aguardava na tesouraria, para uma reuni�o a portas fechadas.
- Muito bem, Bianca, onde est� o dinheiro? - Anselmo foi
logo interrogando.
- Que dinheiro? - ela se fez de desentendida.
- O que voc� tirou do ma�o de c�dulas que acabou de
receber para abrir o caixa.
- N�o tirei dinheiro algum.
- Tirou, sim,
- N�o tirei. Pode verificar o caixa, que n�o vai dar diferen�a
nenhuma.
- N�o vai porque J�lio colocou uma nota a mais no seu lote.
Nota essa que voc�, deliberadamente, ocultou, em vez de entreg�-
-la ao tesoureiro.
- Eu n�o fiz isso! - esbravejou ela.
- Fez, sim.
- Podem me revistar. N�o tem nada comigo.
- Voc� atirou a nota no lixo - informou J�lio, a contragosto.
- Eu vi.
- Voc� o qu�?
- Vi tudo, Bianca, n�o adianta tentar nos enganar. Vi voc�
contar o dinheiro e deixar cair uma nota amassada na lixeira. A
nota que eu pus l�.
Bianca abaixou os olhos para que ningu�m visse a carga
de �dio que os turvava. Empalideceu, fez que ia desmaiar.
Depois, vendo que n�o tinha jeito, escondeu o rosto nas m�os
e desabafou:
- Eu sinto muito. Estava desesperada, n�o sabia o que
fazer. Minha m�e tem c�ncer, precisa de tratamento urgente. Foi o
desespero que me levou a agir assim.
- Sei que � mentira - falou Anselmo. - Sua m�e vai muito
bem. Voc� roubou dinheiro do banco de prop�sito, e n�o foi a
primeira vez. Sei que tem desviado dinheiro dos clientes.


- Foram muitas reclama��es contra voc� - confirmou
J�lio. - Isso nos levou a investig�-la
- Voc� me armou uma armadilha! - Bianca rosnou entre
os dentes. - Mesmo depois de eu haver prometido guardar o
seu segredo.
- Isso n�o tem nada a ver - J�lio cortou rapidamente.
- Minha vida pessoal n�o est� em jogo aqui.
- N�o me interessa o segredo de J�lio - mentiu Anselmo,
para n�o fortalecer a chantagem de Bianca. - O que importa �
o seu furto. Posso dar-lhe uma justa causa, sabia? E � o que vou
fazer se voc� n�o pedir demiss�o.
- Est� me amea�ando como fez com o T�cio, n�o �? Foi
desse jeito que o mandou embora.
- Isso n�o vem ao caso. T�cio pisou na bola, assim como
voc�. N�o sei o que acontece com esta ag�ncia, onde todo mundo
me d� problemas.
- Todo mundo, n�o - objetou J�lio. - N�o � por causa de
dois maus funcion�rios que voc� vai generalizar.
- � isso mesmo. Tenho que valorizar os bons, que n�o � o seu
caso, Bianca. Ent�o, vai pedir demiss�o ou encarar a justa causa?
- Eu tenho escolha?
- Voc� pode recorrer � Justi�a, se quiser. Mas tenho testemunhas,
inclusive os clientes lesados.
- Aceite a oferta - aconselhou J�lio. - Vai ser melhor para
voc� sair com o nome limpo.
- Quanta bondade! - ironizou.
- N�o sei por que essa ironia - contrap�s Anselmo. - Foi
voc� quem furtou. Assuma o seu ato.
- Est� certo - concordou com raiva. - N�o tenho op��o.
Mas fique sabendo, J�lio, que isso n�o vai ficar assim. O que sei
de sua noivinha...
- N�o me ameace, Bianca - objetou ele. - Voc� n�o tem
nada contra mim. E, infelizmente, Ge�rgia nem � mais minha noiva.


Os olhares de surpresa dela e de Anselmo foram genu�nos.
Rompido o noivado, o segredo j� n�o tinha mais import�ncia. Seria
verdade? Bianca n�o teve como ficar para descobrir. Anselmo j� lhe
empurrava um pedido de demiss�o para ela assinar, tal como fizera
com T�cio. Mesmo contrariada, Bianca engoliu o orgulho e assinou.
- Pode ir para casa. N�o precisa cumprir o aviso pr�vio.
Amanh� voc� ser� informada da data da homologa��o. Passar bem!
Ela saiu furiosa. Anselmo n�o permitiu nem que fosse apanhar
sua bolsa, mandando J�lio busc�-la. De posse da bolsa, acompanhou-
a at� a sa�da.
- Voc� me paga, J�lio! Ainda vai se ver comigo.
- Psiu! Fique quieta! - ordenou ele. - N�o v� que fui obrigado?
V� para casa e aguarde, que irei procur�-la. Vamos resolver
isso juntos.
- Como?
- Espere por mim.
Ele a empurrou para fora, voltando para a ag�ncia com
rapidez. Anselmo agora vistoriava a lata de lixo, de l� retirando
a c�dula amassada. Levantou-a para que todo mundo visse,
sumindo depois com J�lio atr�s. O rapaz oscilava entre o al�vio, o
remorso e o medo. N�o estava ainda seguro. Rompera o noivado
com Ge�rgia ainda confiante de que ela acabaria fazendo o aborto
e o procuraria. N�o podia permitir que Bianca estragasse tudo,
contando a verdade a Anselmo. A qualquer custo, iria impedir.
J�lio n�o podia esperar muito para procurar Bianca e tentar
silenci�-la. Por isso, assim que saiu da ag�ncia, passou em sua casa.
Interfonou-lhe, pedindo que fosse encontr�-lo embaixo do pr�dio.
- Vamos sair daqui - pediu ele. - Precisamos de um lugar
mais calmo para conversar.
Tomaram um �nibus para o Leblon, onde se sentaram � mesa
de um barzinho defronte ao mar.
134


- Muito bem - falou Bianca, mal contendo a ansiedade e a
raiva. - Aqui estou. Qual vai ser a desculpa esfarrapada que voc�
vai me dar?
- N�o quero que pense que fiz aquilo por vontade pr�pria.
Anselmo me obrigou.
- Como?
- Ele descobriu sobre voc� e sobre o meu sil�ncio.
- Como assim, o seu sil�ncio? Voc� j� sabia?
- Desconfiava. E se n�o disse nada antes, foi porque me
importo com voc�.
Ele afagou a m�o dela por cima da mesa, deixando-a mais
� vontade.
- Como foi que Anselmo descobriu?
- Da mesma forma que eu. Um cliente o procurou e fez
queixa de voc�.
- Que droga! A culpa � sua, J�lio. Voc� devia ter me avisado
que j� sabia. Eu teria tomado mais cuidado.
- Eu sei, desculpe-me.
- E acho que voc� podia ter desanuviado as desconfian�as,
de Anselmo. Sem provas, ele n�o poderia me despedir por
justa causa.
- Ele n�o me deixou op��o. Meu emprego estava amea�ado.
- Ah, �? Voc� n�o pode ser mandado embora, mas
eu posso?
- N�o � bem assim. Eu apenas queria assegurar-me de que
teria como cuidar de voc�.
- Cuidar de mim como?
- Voc� n�o percebe? - tornou com voz mel�flua, os olhos
l�bricos vidrados nela. - Como dois desempregados poderiam
ficar juntos? Iam sobreviver de qu�?
- Isso � uma cantada?
- Garota esperta - finalizou ele, puxando-a pelo queixo
para um beijo, que ela correspondeu sem titubear. - Vamos sair
daqui. H� tempos estou louco por voc�.


J�lio pagou a conta e chamou um t�xi, que os levou ao
motel mais pr�ximo. Amaram-se feito loucos, alheios � presen�a
de Damien e T�cio, que n�o perdiam nada daquele encontro,
inebriados com a energia do sexo, alternando-se para sentir o
que J�lio sentia.
Quando terminaram, Bianca estava satisfeita, mas J�lio experimentava
a dor do remorso. Tentou afastar o sentimento ruim com
a justificativa de que fazia aquilo por Ge�rgia, para preservar seu
emprego, esperando que ela realizasse o aborto.
- H� quanto tempo voc� sente isso por mim? - perguntou
Bianca, a cabe�a pousada no peito dele.
- H� algum tempo. Tanto que terminei tudo com Ge�rgia.
- Voc� terminou com ela por mim? - espantou-se.
- De uma certa forma, sim. Pressionei-a para que ela abortasse
aquele filho indesej�vel que n�o � meu, mas ela se recusou.
Insisti, fiz de tudo, e nada. Ge�rgia est� irredut�vel, acho mesmo
que se pegou de amores pela crian�a. Ent�o pensei: por que ficar
aqui perdendo meu tempo com uma mulher que n�o me ama se
posso come�ar de novo com outra pessoa?
- Mentira!
- N�o � mentira, � s�rio. Quando cheguei ao trabalho hoje,
fui procur�-la para contar tudo. Mas Anselmo foi mais r�pido e me
for�ou �quele teatro. Foi s� por isso que concordei. J� que escolhi
romper com Ge�rgia e arriscar com voc�, n�o podia ficar desempregado.
Tive que fazer uma escolha. N�o me agradaria perder o
emprego e depender de voc� para pagar a conta do motel. Prefiro
ser eu a fazer isso.
Ele mentiu de forma t�o convincente que Bianca n�o hesitou
em acreditar, mesmo porque fazia algum tempo que andava interessada
nele.
Se � assim, perdoo voc� pela armadilha que me aprontou.
- N�o foi porque quis, eu juro.
Agora entendo. S� tem uma coisa.
- O qu�?
136


- E se Ge�rgia fizer o aborto e pedir para voltar? O que
voc� vai fazer?
- Nada - mentiu ele novamente. - Ge�rgia me decepcionou
muito. Hoje penso se ela realmente n�o gostou do que lhe aconteceu.
- Eu bem que tentei alert�-lo, mas voc� n�o quis me ouvir.
- Deixe isso para l�. O que importa agora somos n�s dois.
E n�o se lamente pela perda do emprego. Enquanto estivermos
juntos, voc� n�o precisar� se preocupar com nada.
-At� parece que o que voc� ganha vai dar para me sustentar.
- N�o digo sustentar, mas podemos sair tranquilamente,
sem voc� ter que se preocupar em pagar a conta.
Bianca beijou-o com ardor, convidando-o novamente para o
sexo. Em seu �ntimo, J�lio recriminava-se a si mesmo pela mentira,
mas era por uma boa causa. E depois, surpreendera-se com
Bianca. Ela era ousada, divertida, inteligente. Tinha senso de
humor, era extrovertida. Bem diferente de Ge�rgia. Se n�o amasse
tanto Ge�rgia, bem que podia apaixonar-se por Bianca.
A pergunta de Bianca lhe voltou � mente. Se Ge�rgia fizesse
o aborto, talvez desse um jeito de ficar com as duas. Ao menos at�
que encontrasse um meio de terminar com Bianca sem que ela
levasse a p�blico seu segredo.
O que ele mais desejava era receber um telefonema de
Ge�rgia, convidando-o para ir a sua casa. Saberia assim que ela
escolhera o aborto. O telefonema, contudo, n�o vinha, deixando-o
cada vez mais desanimado e mais pr�ximo de Bianca.
Tudo no trabalho retomara a normalidade. Um novo caixa fora
contratado para o lugar de Bianca, que deixara de ser assunto entre
os colegas. Alguns dias depois, Anselmo chamou J�lio � sua mesa.
- O que foi, Anselmo?
- Nada de mais. Queria apenas lhe fazer uma pergunta.
- Diga l�.
- Que segredo � esse que Bianca amea�ou revelar naquele dia?


Ele gelou. Pensava que Anselmo houvesse esquecido o
coment�rio, contudo devia saber que aquilo jamais aconteceria.
Anselmo adorava uma fofoca.
- N�o foi nada - disfar�ou.
- N�o quero me meter na sua vida particular, mas olhe o que
aconteceu com o T�cio. Por causa da mulher, perdeu o emprego,
a dignidade e a vida.
- Isso n�o tem nada a ver comigo e Ge�rgia
- Tem certeza?
- Tenho.
- Fico mais aliviado assim.
Anselmo foi obrigado a conter a curiosidade, j� que n�o
podia obrigar J�lio a falar nem tinha o direito de se intrometer em
sua vida. J�lio sabia disso, mas sentiu a press�o sobre si. Quanto
mais mantivesse Bianca perto dele, mais longe Anselmo estaria de
descobrir seu segredo.
Companheiros invis�veis eram agora presen�a constante
ao lado de J�lio. Aonde ele ia, l� iam juntos Damien e T�cio.
Principalmente quando se encontrava com Bianca, os dois n�o
desgrudavam dele, saciando o desejo de sexo atrav�s das sensa��es
de J�lio.
- Voc� tem me servido bem, T�cio - elogiou Damien. -
Por isso, vou deix�-lo mais livre. A partir de hoje, voc� poder�
sozinho se virar junto aos viciados. N�o precisa mais de mim para
acompanh�-lo nem para apanhar a droga para voc�.
- S�rio?
- S�rio. As coisas est�o correndo bem agora. Parece que
Ge�rgia n�o vai mais voltar com J�lio, que, por sua vez, n�o ter�
acesso nenhum � crian�a. S� uma coisa, nem pense em fugir. Se
voc� n�o voltar, virei atr�s de voc�, e nem queira imaginar o que
vou fazer. E n�o fale com ningu�m.


- N�o sou crian�a, Damien. N�o preciso de conselhos para
n�o falar com estranhos.
- Voc� � feito uma crian�a, sim. N�o fosse por mim, estaria
agora l� em cima, penando nas m�os dos bonzinhos. Lembre-se:
n�o fale com eles. Se vir algum ser iluminado, fuja.
- Pode deixar.
Para T�cio, foi uma alegria ver-se livre de Damien, ao menos
nos momentos em que buscava a ess�ncia da coca�na. Damien
o deixou na pra�a onde costumava obter a droga, partindo em
seguida para seu reduto astral.
Na hora do usual relat�rio, Damien deixou At�lio a par dos
acontecimentos:
- Nossa empreitada foi um sucesso. Tiramos J�lio do caminho
de Ge�rgia de uma vez por todas.
- O que quer dizer com isso?
- Que J�lio rompeu o noivado. Chegamos at� a aproxim�-
-lo de outra garota, muito mais afinada com a gente.
- Idiota! - rosnou At�lio. - N�o percebe o que fez?
*- N�o... - balbuciou ele. - Pensei que, com J�lio fora do
caminho, Mizael n�o teria problemas para nascer.
- Para nascer, talvez. Mas agora me diga: quem � que vai
segurar aquelas duas na hora das rezas e das li��es de moral?
J�lio n�o gosta de rezar nem tem a moral elevada para afastar
nossas investidas. Agora, Ge�rgia e Cl�ia, sozinhas, sem freio,
far�o do menino um po�o de virtudes, mantendo aquela aura clarinha
ao redor da casa. E n�s, sem uma quebra na vibra��o do
astral superior, teremos dificuldade de nos aproximar, deixando
Mizael muito mais vulner�vel �s influ�ncias moralistas das duas
Como pensa que iremos penetrar na casa dela sem um rombo na
prote��o energ�tica, rombo esse que J�lio ajudaria a criar?
- At�lio, perdoe-me... - gaguejou, aturdido. - N�o pensei
nisso. A ideia foi de T�cio, e eu pensei que fosse boa


- N�o pense. Voc� n�o serve para pensar. Mandei voc�
impedir o aborto. S� isso. Ser� que � t�o dif�cil para voc� cumprir
uma ordem?
- Fui atr�s da cabe�a de T�cio e...
- E deu tudo errado. Quero que voc� encontre T�cio e que
tratem de reaproximar aqueles dois.
- Temo que isso seja imposs�vel.,
- Saia daqui! - rosnou At�lio, apertando o cabo do chicote
com f�ria.
Damien saiu arrasado, contendo a f�ria com dificuldade. Da
outra vez, tentara contar a At�lio que haviam estimulado J�lio a
romper o noivado, mas ele n�o lhe dera oportunidade de falar.
Agora sentia-se no direito de ficar irritado, e ele � que tinha de
consertar as coisas. Pensando que fizera um grande neg�cio,
Damien quase estragara o plano todo. Tudo porque se deixara
levar pelas ideias idiotas de T�cio.
140


Cap�tulo
17
A decep��o de Ge�rgia s� n�o foi maior do que o amor
que sentia pela crian�a. Era estranho afei�oar-se assim a um ser
com que jamais sonhara, fruto da viol�ncia. No entanto, era o que
sentia, n�o podia negar.
� medida que os dias iam se passando, o avan�o da gravidez
tornava imposs�vel o aborto. Ge�rgia esperava, com isso, fazer
J�lio mudar de ideia. Vendo que n�o tinha jeito, que tirar a crian�a
coiocaria sua vida em risco, ele se conformaria, aceitando-a e ao
beb�. Precisava apenas ter paci�ncia e aguardar.
- Est� sendo t�o dif�cil, m�e! - confessou ela a Cl�ia.
- Mas o pior n�o � a gravidez, � a incompreens�o de J�lio. Pensei
que ele me amasse mais.
- Tenha calma, minha filha - Cl�ia procurava confortar.
- Estou calma, porque sei que ele vai voltar. Quando se
convencer de que n�o tem jeito, vai nos aceitar, a mim e ao beb�.
- Acho que voc� n�o devia ficar se iludindo. Se J�lio fosse
voltar, j� o teria feito.
- E se eu telefonar para ele? N�o gosto de ficar insistindo
nem sou mulher de correr atr�s de ningu�m, mas talvez ele esteja
esperando que eu o procure.
- Se isso vai faz�-la sentir-se melhor, ent�o telefone. Mas
cuidado. N�o v� se decepcionar ainda mais.


Ge�rgia apanhou o telefone e discou o n�mero da casa de
J�lio, mas a m�e dele a informou que ele ainda n�o havia retornado
do trabalho.
- Pode avisar que eu liguei? - pediu ela.
Desligou. Eram quase dez e meia da noite, hora em que J�lio
costumava estar em casa. Talvez estivesse em alguma reuni�o
at� mais tarde no banco. Sim, devia ser isso. Nos outros dias, ela
aguardou um retorno dele, que n�o veio.
Quando sa�a para a escola, ficava � espera de v�-lo passar,
como �s vezes ele fazia de manh� cedo, antes de ir para o trabalho.
Nunca o via, por�m. Ou ele mudara de hor�rio, ou a estava
evitando de prop�sito. Mesmo na sa�da do curso, que, com esfor�o,
conseguira recuperar, ela n�o o via. Era a m�e que sempre
estava l�, com a desculpa de que sa�ra para comprar p�o, h�bito
pouco comum �s dez da noite.
J�lio recebeu o recado, contudo n�o telefonou. A m�e dele
morria de pena de Ge�rgia. Gostava da mo�a, n�o compreendia o
que dera no filho para repudi�-la t�o drasticamente, de uma hora
para outra. Ele estava louco para ligar, mas o fato � que passara a
noite com Bianca, s� retornando no dia seguinte. Depois, perdeu
a vontade. Queria e n�o queria falar com ela. Aos poucos, Bianca
ia tomando o lugar de Ge�rgia em sua vida. N�o que a amasse,
mas Bianca era como ele, ao contr�rio de Ge�rgia, cheia de escr�pulos
e ideias estranhas. Mesmo assim, se Ge�rgia tirasse aquela
crian�a, voltaria correndo para ela.
Na segunda vez que Ge�rgia ligou, conseguiu encontr�-lo
em casa. Foi ele mesmo quem atendeu, sentindo o cora��o disparar
quando ouviu a voz dela:
- Al�, J�lio, tudo bem?
No come�o ficou mudo, mas logo recuperou o controle:
- Tudo bem, Ge�rgia, e voc�?
Seguiu-se um sil�ncio breve, at� que ela respondeu:
- Sinto sua falta - ele n�o disse nada, e ela repetiu: - Sinto
sua falta, J�lio. Preciso de voc�.
142


- Fez o que lhe pedi? - rebateu ele, com uma frieza controlada.
- J�lio, por favor, pare com isso. Voc� sabe que eu n�o posso.
- Ent�o, n�o temos mais nada a conversar.
- N�o seja t�o intransigente. Voc� me ama, sei que me ama,
assim como eu tamb�m amo voc�.
- Amor n�o tem nada a ver com isso. � uma quest�o de
dignidade.
- � orgulho, J�lio. Voc� pensa que estar� violentando seu
amor-pr�prio se aceitar o filho de outro homem. Mas n�o � nada disso.
O coment�rio dela irritou-o sobremaneira. Se era orgulho, era
porque ele era um homem de princ�pios.
- N�o quero mais falar sobre isso, Ge�rgia. E por favor, s�
me procure depois que fizer o aborto.
- Isso n�o � mais poss�vel. A gesta��o j� ultrapassou o
sexto m�s.
J�lio ficou mudo, imaginando-a com uma barriga imensa, recheada
com o fruto de outro homem. O pensamento lhe causou
repulsa, tanta que n�o conseguiu mais continuar a conversa.
- Lamento, Ge�rgia, tenho que desligar - desculpou-se.
- Tjchau.
Ge�rgia ouviu o clique do telefone, sentindo os olhos arderem
com as l�grimas. Colocou o fone no gancho e chorou
- Ele n�o quis vir, n�o foi? - constatou Cl�ia.
- Ele nem falou comigo direito. Como pode, m�e? Uma
pessoa que eu amei toda a minha vida. Pensei que o conhecesse,
mas agora vejo que me enganei com ele. J�lio n�o me ama de
verdade. Podia gostar de mim ou estar acostumado com nossa
rela��o de inf�ncia, mas isso n�o � amor
- Se � assim, minha filha, n�o � melhor que ele se afaste
de vez? J� pensou que ele pode se ver compelido a aceitar essa
crian�a e depois rejeit�-la? Deus sempre faz acontecer o melhor.
Acredite nisso.
Ela acreditava. Contudo, n�o tinha como frear o impulso do
cora��o, que sempre acelerava na dire��o de J�lio. Mas a m�e


tinha raz�o. Se J�lio rejeitasse a crian�a depois do casamento,
seria muito pior.
J�lio enxugou as l�grimas, oscilando entre a compaix�o e
a repugn�ncia. Uma curiosidade m�rbida o assaltou, levando-o a
desejar ver a barriga estufada de Ge�rgia. Mal conseguiu trabalhar
no dia seguinte, preso � ideia fixa de v�-la, nem que fosse de
longe. Em casa, chegou a levantar o fone do gancho, mas desistiu
de telefonar. Tinha de v�-la pessoalmente.
- Isso mesmo - incentivou T�cio a seu lado, sob a vigil�ncia
furiosa de Damien, - V� l� e veja com seus pr�prios olhos
como ela est� bonita.
- E d� um jeito de voltar para ela - gritou Damien, irritado.
- Vai ser melhor para voc� e para todo mundo.
Quando J�lio ia saindo, o interfone tocou. Era Bianca, com
quem havia marcado de ir ao cinema. Tinha at� se esquecido.
- J� estou descendo - avisou.
Ao sair do elevador, ela o esperava de bra�os cruzados,
batendo o p� no piso de m�rmore.
- Isso n�o se faz, J�lio? - queixou-se, aborrecida. - Estou
esperando voc� h� mais de uma hora. Perdemos o filme.
- N�o deu para sair - desculpou-se, tentando evit�-la. -
Minha m�e n�o est� se sentindo muito bem.
- Conversa fiada. Conhe�o muito bem essa hist�ria de m�e.
Eu mesma j� matei a minha uma por��o de vezes.
J�lio estava impaciente, seguindo o desejo s�bito, quase
incontrol�vel, de dar uma espiada em Ge�rgia.
- Agora n�o posso conversar - cortou rispidamente. - V�
para casa. Depois eu ligo para voc�.
Deu-lhe um beijo frio nos l�bios, empurrou-a para o lado e
saiu. A casa de Ge�rgia n�o ficava longe, de forma que ele foi a
p�. Mas n�o foi sozinho. Desconfiada, Bianca saiu atr�s dele. Ele
dobrou a esquina, parando em frente � casa da ex-noiva. Ali, T�cio
e Damien se juntaram a ele. J�lio tentou ver atrav�s das cortinas,
mas n�o conseguiu. N�o havia movimento algum na sala. Talvez


ela estivesse no quarto, cuja janela dava para a lateral. Mas nada.
� exce��o do quarto de Cl�ia, todas as luzes estavam apagadas.
Estimulado pelos esp�ritos, J�lio atravessou a rua, andando
de um lado para outro, tentando imaginar onde ela estaria. Na
esquina, oculta atr�s de um carro estacionado, Bianca n�o tirava
os olhos dele, morta de ci�me. Nunca estivera na casa de Ge�rgia,
mas n�o precisava ser nenhum adivinho para saber que era ela
quem morava ali.
J�lio olhou o rel�gio, constatando que faltavam quinze minutos
para as dez. De repente, a porta da frente se abriu, e Cl�ia
apareceu. Trancou a porta, ganhando a rua em dire��o � maldita
pra�a. J�lio n�o a seguiu. N�o precisava. Pelo hor�rio e o trajeto,
Cl�ia s� podia estar indo ao curso buscar Ge�rgia. Cerca de meia
hora depois, as duas apareceram.
Foi um choque para ele. Ge�rgia carregava uma barriga
imensa e parecia feliz. Vinha conversando com a m�e, sorrindo
e alisando o ventre a todo instante. A vis�o encheu-o de �dio. Ela
estava muito bem, alegre, bonita. Nem parecia ter sido v�tima de
um estupro. Muito menos dava a impress�o de sofrer por carregar
na barriga o fruto de seu algoz.
Por mais que quisesse, J�lio n�o conseguiu se conter. Assim
que elas chegaram ao port�o, ele se aproximou.
- Boa-noite, dona Cl�ia - cumprimentou, esfor�ando-se
ao m�ximo para manter a calma. - Ser� que posso conversar
com Ge�rgia?
- Boa-noite, meu filho. Fiquem � vontade. Vou me preparar
para dormir.
- N�o quer entrar? - indagou Ge�rgia, ansiosa, logo que
a m�e fechou a porta.
- N�o. Prefiro ficar aqui fora.
Era a primeira vez em anos que J�lio se recusava a entrar
na casa dela, o que lhe pareceu um mau sinal. Ge�rgia permaneceu
onde estava, sem dizer nada, sentindo explodir o peito que a
presen�a dele enchia de esperan�as.
145


- Parece que voc� est� mesmo decidida a n�o abortar -
disse ele friamente.
- Voc� n�o acha que agora � tarde demais?
- Mesmo que n�o fosse, voc� n�o o faria. Nunca pensou
em faz�-lo.
- Foi o que lhe disse desde o come�o.
- Pensei que voc� mudaria de ideia.
- Voc� devia me conhecer melhor para saber que isso n�o
aconteceria. Devia saber que o meu respeito pela vida me impede
de matar.
- N�o me parece que voc� sinta apenas respeito pelo que
est� a�.
- O que est� aqui � o meu filho. Quer voc� goste ou n�o,
sou a m�e dele. Ele carrega os meus genes...
- E os de T�cio! - berrou ele, assustando-a e fazendo-a
proteger o ventre. - N�o precisa segurar a barriga. N�o vou fazer
nada contra voc� ou o seu precioso filhinho.
- Por favor, n�o grite. Estamos na rua.
- Por que voc� foi fazer isso comigo, Ge�rgia, por qu�? Eu
a amava tanto!
- Amava? Quer dizer que n�o me ama mais?
- N�o � isso. Mas � que essa... coisa que voc� carrega a�
colocou uma barreira entre n�s dois.
- Quer saber, J�lio? Acho que voc� nunca me amou. E a
barreira quem colocou foi voc�, com o seu orgulho, o seu preconceito,
a sua intoler�ncia.
- N�o � verdade. Dei-lhe todo o meu apoio depois do estupro.
Mas isso - apontou para a barriga dela - � demais para
qualquer homem.
- Se pensa assim, o que veio fazer aqui?
- N�o sei. Queria v�-la. Mas a mulher que tenho diante de
mim � uma estranha. N�o � minha Ge�rgia.
- N�o sou sua, e � voc� o estranho. O homem que conheci
a vida toda conseguiu me surpreender com tanta intransig�ncia.


- N�o se trata disso. Tudo bem, voc� n�o pode mais abortar,
mas ainda temos uma chance. Voc� pensou a respeito da
ado��o? Voc� pode at� ganhar uma grana, se quiser...
J�lio nem percebeu quando ela lhe voltou as costas. S� notou
que ela o havia deixado falando sozinho quando ouviu o estrondo
da porta batendo.
- E agora? - questionou T�cio, que n�o perdia nada da
conversa. - O que vamos fazer?
- N�o sei, imbecil, n�o me pergunte - rebateu Damien,
aborrecido. - Se voc� n�o tivesse tido aquela ideia brilhante de
afast�-los, n�o estar�amos passando por isso.
- Voc� est� tentando colocar a culpa em mim, mas tinha
gostado da ideia.
- Acontece que At�lio n�o gostou. E a culpa � toda sua.
Quem manda ser t�o est�pido?
T�cio e Damien seguiam atr�s de J�lio, que j� se aproximava
do local onde Bianca se escondera, irritados com o fracasso do
encontro entre ele e Ge�rgia.
- O que voc�s est�o fazendo � in�til - soou uma voz
conhecida atr�s deles.
Junto com a voz, um clar�o os inundou, alcan�ando at� J�lio
e Bianca, ainda atr�s do carro.
- Voc� de novo? - espantou-se Damien.
- N�o precisam ter medo de mim - esclareceu Josu�. -
N�o vim lhes fazer mal.
- O que voc� quer? - sondou Damien, estranhamente
sentindo as pernas paralisadas.
- Primeiramente, oferecer-lhes ajuda.
- Que tipo de ajuda? - arriscou T�cio, fitando Damien
de soslaio.


- N�o fale com ele! - berrou Damien, irado. - Voc� �
fraco, n�o sabe resistir!
- E voc� � t�o forte que n�o consegue nem se mover, muito
embora n�o esteja preso em coisa alguma - falou Josu�.
- Eu... � diferente... N�o sei que tipo de m�gica � essa que
voc�s usam e que n�s n�o conhecemos.
- N�o � m�gica. Esse � o verdadeiro poder. Voc� est� preso
pela minha vontade e pela sua fraqueza.
- Eu n�o disse? - desdenhou ele. - N�o disse a voc�,
T�cio, que eles n�o s�o nada do que dizem ser? Que tipo de esp�rito
prende os outros com cordas invis�veis?
- N�o h� cordas invis�veis. Assim como a minha vontade o
prendeu, a sua pode solt�-lo.
Com os olhos chispando, Damien fez for�a para soltar-se,
mas n�o tinha fibra moral suficiente para se sobrepujar ao poder
de Josu�.
- Solte-me - rugiu. - Eu exijo.
- S� depois de ouvir o que vou lhe dizer.
Ao lado deles, T�cio estava louco para perguntar da ajuda,
mas n�o tinha coragem de enfrentar Damien, muito embora achasse
que aquele esp�rito era muito mais poderoso do que ele. T�o
poderoso que lhe deu medo. Ele bem seria capaz de for��-lo �s
terr�veis puni��es de que Damien tanto falava.
- O que voc� quer? - rilhou Damien, entre os dentes. -
Diga logo e v� embora.
- Primeiramente, como eu ia dizendo, venho oferecer-lhes ajuda.
A transposi��o de n�veis energ�ticos � simples e depende exclusivamente
da vontade. Aquele que quiser me seguir ser� bem-vindo.
- N�o estamos interessados - adiantou-se Damien, fuzilando
T�cio com os olhos.
- Muito bem. A outra coisa � que voc�s n�o est�o em condi��es
de intervir no futuro de Mizael e Ge�rgia. Ela e J�lio n�o v�o
se casar.
- Quem decidiu isso? Voc�?
148


- N�o. Eles mesmos. � o melhor para todos � que isso n�o
aconte�a. Por isso, n�o adianta voc�s insistirem. Seus esfor�os
cair�o no vazio. Contra o poder de Deus, tudo n�o passa de ilus�o.
Diga isso a seu chefe.
Na mesma hora em que ele esvaneceu, as pernas de Damien
se soltaram. Estranho que apenas ele fora preso. T�cio permanecera
solto, embora sem se mover.
- Estou de saco cheio desse cara! - desabafou Damien,
com raiva. - J� � a segunda vez que ele aparece para nos atrapalhar.
Vamos embora.
Sumiram tamb�m. S� ent�o Josu� se foi, j� que n�o havia
partido de verdade. Apenas tornara-se invis�vel para observar o
que eles iriam fazer. De volta � sua cidade astral, foi ao encontro
de Nora. Ela j� o aguardava, junto a Uriel.
- E ent�o, Josu�, como foi l� na Terra? - indagou ele.
Muito bom. Nosso Mizael est� pr�ximo de nascer.
- O corpo flu�dico dele j� est� praticamente colado ao da
m�e - informou Nora. - Em breve, estar� definitivamente ligado
ao seu pr�prio f�sico.
- Isso mesmo. E voc�, Nora? Como est� se sentindo?
- Um pouco ansiosa. Aguardar dois anos me parece um
pouco demorado, mas o que fazer? N�o tem jeito.
- A paci�ncia � uma virtude. Cultive-a.
- Sim, Josu�, constantemente.
- Voc� n�o ter� problemas em voltar ao mundo. Est� preparada,
� segura de si, muito determinada e boa. Ser� outra luz na
vida de Mizael.
- O que ele fez para merecer essas b�n��os? A m�e � uma
criatura muito iluminada. A av�, tamb�m. E eu o amo imensamente
- Ele mereceu porque existe, l� no mais fundo de sua alma,
a vontade de fazer brotar o amor que existe dentro dele. Voc�s o
estimular�o a extravasar o amor em vez da rebeldia que ele pensa
que deve ter.
- N�o ser� uma tarefa das mais f�ceis - observou Uriel.
149


- Mas perfeitamente poss�vel e vi�vel. A divindade n�o
conhece o imposs�vel. Para Deus, todas as coisas s�o realiz�veis.
- Mesmo que o indiv�duo n�o esteja pronto?
- Quando ele n�o est� pronto, n�o recebe a incumb�ncia.
De uma maneira ou de outra, em mais ou menos tempo, ele estar�
preparado. Mas n�o � apenas ele que me preocupa.
- Quem mais?
- At�lio. Ele, mais do que todos, vive cercado de ilus�es.
Sua fome de poder � t�o grande que ele n�o consegue enxergar
mais nada no mundo. Far� de tudo para conseguir o que quer.
- Por que ser� que ele � assim? - quis saber Uriel.
- Acho que a culpa � minha - informou Nora.
- N�o � verdade - contestou Josu�. - At�lio � desse jeito
porque pensa que � da natureza dele. Mas ningu�m � naturalmente
mau. Os desvios de conduta s�o adquiridos pela ilus�o do poder,
do dinheiro, do orgulho, do prazer. Deus, contudo, n�o criou seres
imperfeitos, porque a natureza divina � a perfei��o. E n�s, feitos
da mesma centelha, n�o podemos ser imperfeitos. A imperfei��o
humana � somente um est�gio, uma forma de conquistar excel�ncia
por m�ritos pr�prios. Ningu�m chega ao plano divino sem luta,
sem esfor�o, sem trabalho, sem a transforma��o que decorre da
conjuga��o de todos esses fatores.
- At�lio, contudo, n�o pensa assim.
- Ele ainda acredita no poder para a conquista de valor. �
uma ilus�o, uma das muitas que destroem o ser humano.
- E o que voc� pensa em fazer para mudar isso?
- Mostrar a ele que as for�as do bem est�o acima de todo
e qualquer ex�rcito de trevas.
- Tudo bem - falou Nora. - Mas onde � que eu entro nisso?
- Embora ele pressinta sua proximidade, pensando em
voc� constantemente, ainda n�o sabe que voc� est� aqui e que
pretende reencarnar junto de Mizael. Voc� � nosso trunfo. Contra
voc�, ele n�o ter� coragem de agir,
- Ser�?
150


- Conhe�o o amor. At�lio a ama tanto quanto ama Mizael. N�o
foi por outro motivo que renunciou a voc�. Esse talvez tenha sido seu
�nico gesto de amor. E � a esse gesto que temos que nos apegar.
- Uma pergunta - pediu Uriel. - Voc� disse que o gesto
de At�lio mostra que h� uma chance para o amor.
- Exatamente.
- Isso acontece com todo mundo? Quero dizer, todo ser
humano possui um germezinho, por menor que seja, capaz de
fazer brotar o amor?
- Todos, sem exce��o, possuem em si essa semente, j� que
fomos feitos � imagem e semelhan�a de Deus, e Ele � amor em
ess�ncia. Qualquer pessoa, por mais cruel, violenta ou empedernida
que possa parecer, carrega consigo o germe do amor. Fazer
brot�-lo � uma tarefa que pode levar tempo, mas sempre acontece.
Todos n�s j� passamos por est�gios de maior ignor�ncia,
em que nossas atitudes beiravam ou se afundavam na selvageria
Hoje, mediante m�ritos pessoais, conseguimos sair do universo
das sombras e passar para o lado onde a vida � feita de luz
- Mas nem todos ter�o essa chance neste planeta, n�o �?
, - Infelizmente, n�o. Caber� aos mais embrutecidos a
constru��o de um novo mundo, a partir de est�gios primitivos
semelhantes aos dos prim�rdios da Terra, para desenvolvimento
das primeiras ra�as que l� habitar�o. Por isso � que repito: essa �
a �ltima chance da humanidade. De uns anos para c�, todos t�m
recebido esse alerta ao reencarnar.
- E quem est� h� muito tempo sem reencarnar?
- Para os que, como At�lio, persistem na treva e ainda n�o
se dispuseram a voltar, a quest�o � mais delicada, j� que podem
decidir quando o planeta n�o estiver mais em condi��es de os
receber. Ter�o ent�o que partir diretamente para outro mundo.
Fora uma conversa elucidativa, apesar da preocupa��o de
Nora com os seres que amava. Faria de tudo para ajudar Mizael,
mas, quanto a At�lio, tinha suas d�vidas. Achava mesmo que ele
jamais se modificaria.


Capitulo
18
Ao passar pelo local onde Bianca se escondera, J�lio viu-a
em p�, bra�os cruzados, olhando-o de cara feia. Ele deu uma
parada breve, fitou-a com desd�m e indagou irritado:
- Est� me seguindo?
- Eu... n�o pude resistir. Quis saber aonde voc� ia.
- Agora que j� descobriu, est� satisfeita?
- Por que veio aqui, J�lio? Pensei que voc� tivesse dito que
haviam terminado.
- E terminamos.
- Ent�o, por que veio?
Ele n�o respondeu. Subitamente, a irrita��o transformou-se
em desejo. Ainda amava Ge�rgia, mas aquele ventre avolumado
n�o lhe despertava atra��o. Bianca, contudo, vestia uma saia m�nima
e uma blusa decotada. Sem dizer nada, ele a puxou para si,
beijando-a avidamente, explorando seu corpo com m�os ligeiras.
- Vamos l� para casa. Estou sozinho.
Bianca tinha o poder de faz�-lo esquecer-se de Ge�rgia
quando estavam se amando. A partir daquele dia, J�lio resolveu
n�o mais pensar na ex-namorada. Estava consumado, n�o tinha
mais jeito. Seria imposs�vel que ela abortasse a crian�a, assim
como n�o lhe parecia prov�vel que ela o desse para ado��o


O melhor que tinha a fazer agora era esquecer. Ge�rgia que fosse
feliz com seu filho bastardo.
Ao mesmo tempo em que J�lio se deliciava na cama com
Bianca, Ge�rgia chorava no ombro da m�e. Tinha imaginado que,
vendo o est�gio avan�ado da gravidez, ele mudaria de ideia e ficaria
com ela. Mas J�lio ainda insistia na ado��o.
- Ele n�o disse nenhum absurdo - contestou Cl�ia. -
Muitas m�es fazem isso. Ainda � melhor do que abortar ou jogar
o beb� no lixo.
- M�e! - horrorizou-se.
- � verdade. Muitas m�es ainda n�o sabem que podem
dar seus filhos para ado��o sem serem punidas por isso. N�o � o
ideal, mas � prefer�vel ao aborto e ao abandono.
- Voc� tem raz�o, mas eu j� havia dito a J�lio que n�o
faria isso.
- N�o pense mais nisso, minha querida. J�lio preferiu seguir
o caminho dele. Voc� n�o est� s�. Estou ao seu lado e irei ajud�-la
sempre.
- Ah! M�e, n�o sei o que seria de mim sem voc�.
, Abra�aram-se, transmitindo a Mizael, dentro da barriga da
m�e, aquelas ondas energ�ticas de amor. O in�cio da gesta��o
fora confuso, levando ao feto vibra��es de medo e inseguran�a.
Apesar de toda a programa��o, Mizael n�o sabia bem o que o
aguardava, j� que n�o possu�a nenhuma rela��o pret�rita com sua
futura m�e. Aos poucos, por�m, sentindo intensificar-se a transfus�o
de energia de amor, ele foi-se aquietando, at� que seu esp�rito
alcan�ou serenidade suficiente para um nascimento tranquilo.
Mizael veio ao mundo tr�s meses depois, cercado de carinhos
e aten��o. Josu�, Uriel e Nora estavam presentes, mas
Damien e T�cio, por mais que quisessem, n�o conseguiram penetrar
no quarto da maternidade nem espiar o ber��rio, guarnecido


por esp�ritos encarregados de proteger os rec�m-nascidos. At�
At�lio quis ver o menino, por�m n�o se atreveu a sair do astral inferior,
com medo de perder a moral, caso sua entrada fosse barrada
e ele n�o conseguisse vencer os guardi�es.
Assim que a enfermeira trouxe o beb�, Ge�rgia ajeitou-o no
colo, os olhos abarrotados de l�grimas de emo��o. A seu lado,
junto aos esp�ritos amigos, Cl�ia admirava o netinho.
- Como ele � lindo! - emocionou-se Ge�rgia, alisando-lhe
a cabe�a e os dedinhos. - Olhe s�, m�e, que gracinha o meu filho.
- Lindo mesmo. Parece-se com voc�.
- Ah, m�e, n�o invente. Ele ainda n�o se parece com ningu�m.
- Voc� j� pensou no nome que vai lhe dar? - indagou a
enfermeira, encantada com o bebezinho.
- R�gis. Meu rei.
- Ele parece mesmo um pr�ncipe. Parab�ns!
- Obrigada.
Naquela noite, Josu� aguardava Ge�rgia e Cl�ia para uma
conversa. Quando elas adormeceram, retirou-as do f�sico e
levou-as at� a praia, onde poderiam conversar e aproveitar para
reabastecer-se de energia.
- Lembra-se de mim? - indagou ele.
- � claro - afirmou Ge�rgia. - Esse � o Josu�, mam�e.
Foi ele quem nos apresentou ao R�gis.
- Isso mesmo - concordou Josu�. - At� aqui, tudo correu
bem, gra�as, principalmente, ao esfor�o de voc�s duas.
- Como assim? - perguntou Cl�ia.
- Voc�s s�o pessoas boas, cultivam bons pensamentos e
n�o fortalecem os sentimentos daninhos.
- N�o sei bem se isso � verdade - contrap�s Ge�rgia. -
Passei por coisas que me trouxeram revolta, tristeza, raiva,
indigna��o e sei l� mais o qu�.
- Voc� seria uma santa se n�o sentisse nada disso, o que
n�o � o caso. Mas o importante n�o � n�o sentir, pois isso � imposs�vel.
Todo mundo possui um corpo emocional, logo as emo��es


s�o parte insepar�vel do ser humano. E ter apenas sentimentos
nobres, que � o objetivo final das reencarna��es, n�o � coisa que
se alcance t�o rapidamente. � preciso aperfei�oamento constante.
Os sentimentos perniciosos est�o a� para serem sentidos e
vivenciados. Sem eles, n�o se aprende, n�o se cresce. Mas tais
sentimentos n�o devem ser fortalecidos. Devemos reconhec�-
-los, aceit�-los e transform�-los. Quando n�o os alimentamos,
eles se enfraquecem e se modificam. Se, ao contr�rio, os ficarmos
remoendo, falando sobre eles, insistindo em relembr�-los,
revivendo cenas e situa��es ruins, vamos lhes dando for�as, at�
que eles nos dominem, transformando-nos em pessoas amargas,
ranzinzas, irasc�veis, desanimadas, depressivas.
- N�s n�o somos assim - afirmou Cl�ia. - N�o somos
mesmo. Sempre ensinei Ge�rgia a cultivar bons sentimentos e orar
quando coisas ruins acontecem. � assim que vamos nos fortalecendo.
- E � assim que pretendo criar o meu filho - acrescentou
Ge�rgia. - Com amor.
- � s� do que ele precisa - concordou Josu�. - Voc�s
sabem que os ataques do invis�vel ser�o muitos. Estejam preparadas.
, - N�o se preocupe, Josu�. Vamos nos manter sempre em
ora��o.
- Enquanto R�gis for pequeno, estaremos junto a voc�s.
Mas, depois dos sete anos, isso ser� mais dif�cil, pois ele estar�
pronto para assumir sozinho sua pr�pria identidade. Dessa idade
em diante � que sua aten��o ser� mais necess�ria. Ele ter� uma
tend�ncia natural para tudo que for inadequado.
- Estaremos atentas - falou Cl�ia.
- Sei que estar�o, mas n�o poder�o viver a vida dele. Repress�o
tamb�m n�o adianta. O que funciona � compreens�o e amor.
- N�o nos esqueceremos.
- E mais uma coisa. N�o permitam que a prote��o energ�tica
ao redor de sua casa seja abalada. O comportamento rebelde
de R�gis poder� abrir uma brecha para os esp�ritos das sombras,
que tentar�o, a todo custo, manter a influ�ncia sobre ele.


- N�o se preocupe conosco - disse Ge�rgia. - H� muito
estamos preparadas.
- Voc� foi muito corajosa em aceitar um filho que n�o faz
parte da sua hist�ria.
- N�o fazia. Ele agora iniciou uma hist�ria nova para mim.
Sei que seremos felizes e que ele aprender� a nos amar.
- Tenho certeza. Bem, est� na hora de ir. Cuidem-se bem e,
sempre que precisarem, n�o hesitem em chamar por mim.
- N�o hesitaremos. Adeus.
No dia seguinte, apenas Ge�rgia guardava uma leve impress�o
do sonho. Lembrava-se de que estivera numa praia em
companhia da m�e e de um desconhecido. N�o se recordava do
que haviam conversado, mas teve uma sensa��o de confian�a no
futuro. Cl�ia, por sua vez, nada retivera daquele encontro. Nem
sequer se lembrava de que havia sonhado.
Somente quando Ge�rgia teve alta do hospital foi que
Damien viu o menino. T�cio, principalmente, morria de curiosidade
de conhecer seu filho, o que foi poss�vel gra�as � moment�nea
e impercept�vel abertura no v�u energ�tico que os circundava,
empreendida por Josu�. Queria, com isso, provocar uma rea��o
positiva em T�cio.
Os dois se aproximaram com desconfian�a. Enquanto T�cio
corria para espiar a crian�a, Damien olhava de um lado para outro,
temendo dar de cara com Josu� a qualquer momento. Dada a
enorme diferen�a vibracional entre os dois esp�ritos, Josu� n�o era
vis�vel, ao passo que tudo podia ver de Damien e T�cio. Somente
quando ele retra�a um pouco o seu padr�o energ�tico � que os
esp�ritos mais ignorantes conseguiam v�-lo.
- O que ser� que aquele velhaco est� aprontando? -
perguntou-se Damien, sem perceber Josu� junto a ele.
156


T�cio, contudo, n�o lhe deu aten��o, embevecido com o
bebezinho adormecido no colo de Ge�rgia. Ela e Cl�ia entraram
no t�xi, mas os dois n�o as seguiram.
- Ele n�o � uma gracinha? - gabou-se T�cio. - Parece
comigo.
- Deixe de ser besta! Venha, vamos embora. J� vimos o
suficiente.
Como sempre fazia, Damien correu a dar as not�cias a At�lio,
ansioso pelas novidades.
- E ent�o? - questionou, assim que o outro entrou.
- Como est� indo Mizael?
- Soube que ele agora se chama R�gis.
- R�gis? - repetiu com ironia. - Nada mais apropriado14.
Mas o rei aqui sou eu. Ele apenas me serve.
- Devemos cham�-lo de R�gis a partir de hoje?
- N�o. R�gis foi o nome que a m�e escolheu e ir� aproxim�-
-lo dela, afastando-o de n�s. Quero que o chamem sempre de
Mizael, para que ele n�o se esque�a de quem realmente �.
- Como o senhor quiser.
�- E como anda a quest�o com J�lio?
Damien tremeu.
- N�s fizemos o poss�vel, chefe... - balbuciou, aterrado.
- Mas os esp�ritos l� de cima est�o interferindo. Fui informado de
que J�lio n�o vai se casar com Ge�rgia.
O olhar de �dio que At�lio lan�ou a Damien foi como uma
pedrada. O esp�rito sentiu-se tonto, desnorteado. Subitamente,
uma dor lancinante trespassou seu corpo, como se chibatas invis�veis
o a�oitassem com brutalidade. Cambaleou para um lado,
entortando at� o ch�o, e ouviu um grito agonizante, assustando-se
ao perceber que fora ele mesmo quem gritara. Deitado de bru�os,
sentia as vergastadas sobre suas costas, levando-o a encolher-se
14 R�gis (latim): real, do rei, conforme Dicion�rio de nomes de beb�s, Edi��es PBQ. Em outra vertente, tem
origem germ�nica, significando "que aconselha o rei".
157


e a gemer, sem coragem de reagir. Percebeu, ent�o, a ponta tr�plice
do chicote de At�lio caindo sobre ele.
- N�o aguento mais a sua incompet�ncia! - rugiu At�lio,
desferindo um golpe atr�s do outro. - Devia acabar com voc�!
- Por favor, chefe, perdoe-me - choramingou Damien,
cada vez mais aterrorizado. - N�o foi culpa minha. A ideia foi do
T�cio, e daquele Josu�...
- Cale essa boca! - vociferou, levando Damien ao auge do
terror. - Ser in�til, imbecil!
As vergastadas continuaram por muito tempo, at� que, exausto,
At�lio deixou cair a chibata. A seus p�s, o corpo flu�dico de Damien
transformara-se em uma massa irreconhec�vel, quase disforme.
- Levante-se! - ordenou ele, voz tonitruante. - N�o � hora
de ser aniquilado ainda.
A um toque de At�lio, um vigor bruxuleante percorreu as c�lulas
imateriais de Damien, que conseguiu reunir for�as suficientes
para manter unidos os �tomos astrais de seu corpo.
- Saia daqui! - At�lio tornou a rugir. - J� falhou em uma
miss�o. Se acontecer novamente, n�o terei tanta piedade de voc�.
- N�o irei falhar - afirmou Damien, tr�mulo de pavor.
- Saia, j� disse. N�o aguento mais olhar para a sua cara
nojenta.
Engolindo a raiva e o medo, Damien saiu todo tr�pego. O
corpo n�o do�a tanto, j� que a dor nem era f�sica. A humilha��o,
contudo, jamais seria esquecida.
158

Capitulo
19
Desde a �ltima noite na porta de casa, Ge�rgia n�o tivera
mais not�cias de J�lio. Conclu�ra o curso, estava agora de licen�a,
quase n�o sa�a. Queria muito falar com ele, informar que o beb�
havia nascido.
- Para qu�, minha filha? - objetou Cl�ia. - Se ele n�o aceitava
antes, n�o vai ter mudado agora, que � irrevers�vel. Melhor
deixar J�lio para l�.
- Ser� que eu j� n�o tenho nenhuma chance? - insistia
ela. - Pode ser que, vendo essa coisinha linda, ele mude de ideia.
- Duvido muito. J�lio n�o � bem aquilo que pens�vamos
que fosse. Criamos uma imagem que n�o lhe pertencia realmente.
A voc�, resta agora aceitar e respeitar a escolha dele. Ningu�m
pode obrig�-lo a ser pai, se ele n�o quiser. E ele n�o quer.
- Tem raz�o - concordou ela, em l�grimas. - Preciso
esquec�-lo.
O problema era exatamente esse. Esquecer J�lio n�o seria
t�o f�cil.
A not�cia do nascimento do menino deixou J�lio abalado.
Tinha ainda esperan�as de que ela o desse para ado��o. Com
o passar dos dias, por�m, come�ou a desanimar. Como Ge�rgia
n�o o procurava, era �bvio que n�o considerava a hip�tese. Aos


poucos, J�lio foi deixando de pensar nela. Lamentava o destino
que tiveram, desejava que ela fosse feliz com o filho, mas longe
dele. Tinha Bianca para consol�-lo.
Poucos meses ap�s o nascimento de R�gis, J�lio surpreendeu-
se ao ver Bianca na porta do banco. Ele a olhou contrariado,
com medo de que Anselmo o repreendesse. Apressou o passo,
puxou-a pelo bra�o e dobrou a esquina rapidamente.
J� disse para n�o aparecer mais aqui. Anselmo pode ficar
aborrecido.
- Anselmo n�o manda em mim, e a rua � p�blica. E voc�
devia assumir que estamos juntos. Ainda mais agora que teremos
que nos casar.
Casar?! Que hist�ria � essa? Ficou louca?
- Louca, n�o. Gr�vida.
- O qu�?
- Isso mesmo. Estou gr�vida de quatro semanas. Anime-
-se, J�lio, n�s vamos ter um filho! E esse ser� todinho seu.
- N�o � poss�vel. Como isso foi acontecer?
- Voc� n�o sabe?
- Voc� disse que estava tomando p�lulas.
- As p�lulas tamb�m falham - mentiu ela, que h� tempos
deixara de tomar anticoncepcional, na esperan�a de engravidar e
for��-lo ao casamento.
- N�o posso me casar agora - tornou desnorteado. -
Muito menos ter um filho.
Foi um banho gelado. Uma decep��o indescrit�vel. Depois
do incidente com Ge�rgia, Bianca tinha certeza de que J�lio ficaria
feliz em saber que seria pai de verdade.
- O que est� dizendo, J�lio? - indignou-se, - Que vai
fazer comigo o que fez com Ge�rgia? - Abandonar-me e ao meu
filho? S� que esse � seu, n�o de um estuprador, � seu. Seu filho!
Ele a olhou com desgosto. N�o sabia o que soaria pior: assumir
que estava namorando uma ladra ou abandonar a namorada
gr�vida. As duas hip�teses lhe pareciam absurdas.
160


- Pensei que voc� me amasse - continuou Bianca, toda
chorosa. - Que fosse ficar feliz com nosso filho.
- N�o se trata disso - ele tentou contornar. - � que a not�cia
me pegou desprevenido. N�o sei o que fazer.
- Temos que nos casar. Meus pais n�o v�o aceitar a filha
gr�vida e sem marido.
- Tem raz�o - concordou ele, temendo um esc�ndalo da
parte dela.
- Voc� tem que ir l� em casa falar com eles, explicar a situa��o.
- Eles j� sabem?
- Ainda n�o. Queria que voc� estivesse junto.
- Est� certo, mas d�-me um tempo. N�o fa�a nada ainda.
Espere at� o fim da semana, quando ent�o lhes contaremos.
- Quer dizer ent�o que voc� aceita? - exultou. - Vai
mesmo se casar comigo?
- � uma solu��o. Agora, v� para casa. Voc� n�o deve ficar
andando por a� nesse estado.
- Que estado? N�o estou doente, estou gr�vida. E no comecinho
ainda. Veja, nem d� para notar a barriga.
- Certo, n�o d�. Vamos, vou lev�-la.
Ele a acompanhou at� em casa, despedindo-se na portaria.
Por essa ele n�o esperava. Nunca lhe passou pela cabe�a que
Bianca pudesse engravidar, mesmo porque confiava que ela estivesse
tomando os cuidados necess�rios. Ela dissera que a p�lula
falhara. Seria verdade?
Verdade ou n�o, era um fato, estava acontecendo. Sua maior
preocupa��o era Anselmo. Com aquela mania de falso moralista,
iria recrimin�-lo, chamando-o de irrespons�vel. Poderia at� coloc�-
lo de lado, ignorando seu nome para futuras promo��es. E se
Bianca fizesse algum esc�ndalo na porta do banco, a� sim, poderia
dizer adeus � sua carreira. Pior: ao seu emprego.
De repente, Ge�rgia j� n�o parecia mais um segredo que
devesse ocultar. Bianca � que o preocupava agora. Ele precisava
cuidar de Anselmo antes de tomar uma decis�o a respeito. No dia


seguinte, chegou acabrunhado � ag�ncia e foi procur�-lo. Como ele
ainda n�o havia chegado, sentou-se para esperar. Anselmo chegou
pouco depois, espantando-se com a presen�a de J�lio.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou preocupado.
- Aconteceu. Na verdade, preciso de um conselho.
- Do que se trata? � algo relacionado ao trabalho?
- N�o. Diz respeito � minha vida pessoal.
Era do que Anselmo mais gostava. Conhecer a intimidade
de cada um. Dava-lhe um prazer m�rbido estar por dentro dos
problemas pessoais dos empregados, principalmente das quest�es
conjugais e amorosas.
- Muito bem. Se eu puder ajudar... O que foi que houve?
- � o seguinte. Sabe a Bianca?
- O que tem ela?
- Bem, voc� sabe como ela � gostosa, n�o sabe?
- E da�?
- Diria mesmo que � irresist�vel. E tem um charme...
- Est� querendo me dizer que transou com ela? - ele
gargalhou. - Se � isso, fez muito bem. Bianca � o tipo de mulher
que s� serve para a cama. Desde que voc� n�o pense em se casar
com ela, est� tudo bem.
J�lio empalideceu. N�o contava que Anselmo se adiantaria e
emitiria um julgamento t�o r�pido.
- A� � que est� - prosseguiu ele, sentindo uma vergonha
fenomenal. - Bianca engravidou.
- Engravidou? - espantou-se, chegando a cadeira para a
frente. - E � seu?
- Ela diz que �.
- Meu amigo, isso � um golpe. Bianca sai com todo mundo.
O filho pode ser de qualquer um.
- Duvido muito. Faz tempo que ela s� transa comigo.
- Como � que voc� sabe? Ela pode estar enganando voc�
e agora quer faz�-lo de trouxa, para assumir o filho de outro. N�o
caia nessa.
162


- N�o acredito que Bianca esteja saindo com outro. Sou homem,
conhe�o essas coisas. Ela est� caidinha por mim, fica em casa
me esperando. Sempre que a procuro, ela est� � minha disposi��o.
- Essa n�o, J�lio. N�o acredito! Como � que voc�, um rapaz
inteligente, foi cair nessa?
- Ela dizia que tomava p�lulas.
- E voc� acreditou. Ora, ora, quanta ingenuidade! Foi terminar
com Ge�rgia para cair na l�bia de Bianca. Onde j� se viu?
- Na verdade, Anselmo, acabei me envolvendo com Bianca
justamente porque estava passando por um momento dif�cil com
Ge�rgia. Bianca me deu apoio, aproveitou-se de minha fragilidade
para me seduzir.
- O que houve entre voc� e Ge�rgia realmente? Voc� nunca
chegou a me contar.
N�o era hora de mentir, mas de buscar apoio. Confessar a
Anselmo seus problemas devia conferir-lhe algum cr�dito, pois
o gerente se sentia importante e valorizado quando algu�m lhe
fazia confid�ncias.
- O que vou lhe contar agora � muito pessoal - disse ele
� meia voz, levando Anselmo a aproximar ainda mais a cadeira.
- Gostaria de poder contar com a sua discri��o e, mais ainda,
com a sua compreens�o.
- Mas � claro, meu amigo! O que foi que houve?
- Lembra-se de quando Ge�rgia foi assaltada?
- Lembro.
- Bem, a verdade � que n�o foi um assalto. Foi um estupro.
- Ele ergueu as sobrancelhas, impressionado, enquanto
J�lio prosseguia: - E quem a estuprou foi o T�cio.
- O qu�?! O T�cio, que trabalhou aqui?
- Esse mesmo. Mas isso n�o � o pior. Desse estupro resultou
uma gravidez.
- N�o me diga!
- Espero que voc� n�o me julgue um fraco, Anselmo, mas,
por amor a Ge�rgia, acobertei o estupro.
163


- Fez bem. Eu teria feito o mesmo. Sem contar a vergonha.
Estimulado pela surpreendente atitude compreensiva de
Anselmo, J�lio continuou:
- S� n�o pude aceitar a gravidez. Descobri que o estupro
d� direito ao aborto e insisti para que Ge�rgia o fizesse. Diante de
sua recusa, sugeri a ado��o, que ela tamb�m rejeitou. Em vista
disso, n�o tive escolha sen�o romper o noivado. Pode parecer
cruel, mas n�o dava para criar o filho de outro homem, ainda
mais nessas circunst�ncias.
- Por que n�o me contou isso antes, meu rapaz? - retrucou
Anselmo, aparentemente penalizado. - Eu teria lhe dado apoio e
voc� n�o precisaria buscar consolo na cama de uma rameira.
- Tive medo da sua rea��o, de que voc� n�o me considerasse
digno do cargo que me confiou.
- Uma coisa n�o tem nada a ver com a outra. Sua vida pessoal
n�o interessa ao banco, desde que n�o interfira no trabalho.
- Voc� n�o teria me colocado na geladeira?
- Por causa disso, n�o. N�o � problema meu.
Anselmo n�o dizia a verdade. S� por causa do estupro, nada
faria. Mas, se J�lio aceitasse aquela gravidez esp�ria, teria uma
decep��o t�o grande que jamais tornaria a indic�-lo para qualquer
outra promo��o.
- N�o pensei que voc� fosse compreender - prosseguiu
J�lio.
- Pois me julgou muito mal. Sou seu amigo, acima de tudo.
Se voc� tivesse aceitado a gravidez de Ge�rgia, eu me teria decepcionado
- deixou escapar. - Mas voc� agiu como um verdadeiro
homem de moral.
- Puxa vida, Anselmo, como estou aliviado!
- S� que agora se meteu em outra encrenca com Bianca,
n�o foi?
Ele assentiu.
- E n�o me atrevo a sugerir o aborto.
164


- Aborto � crime. Tamb�m sou contra. O jeito � assumir o
que voc� fez.
- Como?
- Casando-se com ela, � claro.
- Mas voc� disse h� pouco que Bianca n�o era mulher para
se casar.
- Isso foi antes de saber que ela est� gr�vida. Sua reputa��o
est� em jogo. Se voc� n�o se casar e a hist�ria da gravidez
de Ge�rgia vier � tona, como vai vir, j� que a crian�a tem que
nascer um dia...
- J� nasceu.
- Pois �. Imagine s� o que v�o dizer de voc�. Que � um
covarde, um cafajeste que se aproveita das mulheres e as abandona
quando ficam gr�vidas.
- N�o quero que pensem isso de mim.
- � claro que n�o. Por isso, tome a decis�o mais acertada.
Case-se com Bianca, tenha o filho e sossegue. Vai manter sua
reputa��o em alta.
- Voc� acha?
*
- Tenho certeza. Assim, os falsos moralistas n�o ter�o o
que falar de voc�.
- Mas e o fato de Bianca n�o ser l� muito certinha? Todo
mundo sabe que ela � da p� virada.
- Controle sua mulher. Ponha-lhe r�deas curtas. Se os
outros virem que � voc� quem manda, ir�o respeit�-lo e a ela.
- Obrigado, Anselmo - disse J�lio com sinceridade. - Sabia
que n�o estava enganado ao pensar que podia contar com voc�.
- � claro que pode. Sempre que precisar. Tome cuidado
apenas para ela n�o roubar de seus vizinhos.
Anselmo riu de si mesmo, e J�lio o acompanhou. Anselmo
gostava de aconselhar os outros, principalmente em enrascadas
como aquela em que J�lio se metera. Fazia-o sentir-se importante,
dava-lhe a impress�o de que podia mandar na vida das pessoas.
165


Sobretudo quando a moral estava em jogo, apreciava as solu��es
criativas que arranjava para manter as apar�ncias.
Era isso o que importava. N�o tanto agir dentro da moralidade,
mas jamais ser descoberto.
Alheia a esses fatos, Ge�rgia continuava pensando em J�lio,
desejando que ele a procurasse. Mas, com o passar do tempo,
vendo que ele n�o aparecia, n�o aguentou mais. Tinha de procur�-
lo. Ligou para a casa dele, sendo informada de que ele havia
se mudado. A m�e dele, com pena de dar a not�cia a Ge�rgia,
mandou a empregada omitir o casamento.
- Mudou-se? - surpreendeu-se. - A senhora n�o pode
me dar o novo endere�o?
- Sinto muito, minha filha. Sou apenas a empregada. N�o
tenho autoriza��o para isso.
Desligou, deixando Ge�rgia ainda mais aflita, pensando
que J�lio havia se mudado para n�o ser obrigado a encontr�-la
novamente. Alimentando ainda uma �ltima esperan�a, resolveu
encontr�-lo na sa�da do banco. Chegou cedo e aguardou.
- J�lio - chamou, assim que ele passou.
Ouvindo aquela voz, h� anos sua conhecida, J�lio estacou.
Virou-se para ela, encarando-a com um misto de surpresa e euforia.
Ela estava um pouco diferente, o rosto mais amadurecido, o
corpo mais voluptuoso do que o normal.
- Ge�rgia! O que faz aqui?
- Queria falar-lhe, mas me disseram que voc� se mudou.
- � verdade.
- Foi para n�o me ver mais?
- N�o - contestou ele, escondendo o dedo da alian�a.
- Ent�o, por que foi? Est� morando sozinho?
Ele n�o respondeu. N�o queria contar a ela que se havia
casado com Bianca e que, em breve, teriam uma menina.
166


- Olhe, Ge�rgia, gostaria de conversar, mas estou com
pressa, Tenho um compromisso daqui a pouco.
- Quando poderemos nos encontrar de novo?
- N�o podemos. N�o temos mais nada a dizer um ao outro.
Ela engoliu o choro, lutando para n�o implorar a ele que voltasse
- Ainda est� com raiva de mim? - tornou ela, quase sem
poder articular as palavras.
- N�o. N�o sinto mais nada por voc�.
- Voc� n�o me ama mais?
- N�o - falou hesitante, embora em tom g�lido.
- N�o pode ser. Diga que n�o � verdade.
- Por favor, Ge�rgia, n�o torne as coisas mais dif�ceis do que
j� s�o. Foi complicado para n�s dois, ambos dissemos coisas que
n�o gostar�amos de ter dito. Temos muito de que nos arrepender.
- Voc� se arrepende de ter terminado comigo?
- N�o.
- De que se arrepende, ent�o?
- Isso n�o importa. Gostaria que voc� n�o me procurasse
mais-.
Nesse momento, Anselmo saiu da ag�ncia. Logo que viu
J�lio conversando com uma muiher, todos os seu sentidos se
agu�aram. Sem ser percebido, fingindo que abria a porta do carro,
olhou-os de soslaio, custando a reconhecer Ge�rgia. Quando viu
que era ela, se surpreendeu. Uma ideia maldosa surgiu em seu
pensamento. Gostava de provocar as pessoas, faz�-las sentirem-
-se humilhadas, constrangidas. Tomando cuidado para que ela
n�o o visse, aproximou-se.
- Bianca! N�o podia deixar de cumpriment�-la... - calou-
-se, fazendo cara de espanto, como quem acaba de cometer
uma gafe. - Ge�rgia! Sinto muito. Confundi-a com outra pessoa.
Pensei que fosse a esposa de J�lio. Como est� passando? Bem?
E o beb�? Bem, prazer em rev�-la. At� logo.
167


Anselmo nem lhe deu tempo de responder a nenhuma de
suas perguntas. Ge�rgia estava at�nita, tentando entender as
palavras dele.
- Bianca? - sondou ela, depois que ele ligou o carro e
partiu. - Sua esposa? O que isso quer dizer? Voc� se casou?
- Lamento que voc� tenha que saber assim - falou ele,
nada satisfeito com a atitude de Anselmo. - Mas sim, casei-me
com Bianca. Acho que voc� se lembra dela.
N�o era poss�vel. Ge�rgia recusava-se a acreditar. J�lio n�o
perdera tempo. Casara-se com outra t�o logo rompera com ela.
- Jamais poderia imaginar uma coisa dessas - retrucou
ela, magoada. - N�o conhe�o voc�, J�lio. N�o � o homem que
namorei por sete anos. Agora vejo que voc� nunca me amou.
- N�o � bem assim, Ge�rgia. N�s j� hav�amos terminado.
- E voc� correu para outra, n�o foi? Eu j� n�o interessava
mais, usada por um drogado, gr�vida de um estuprador. Era
demais para voc�, n�o era? Mas Bianca, n�o. Linda, maravilhosa,
perfeita. E a burra aqui acreditando que voc� podia mudar de
ideia. Como fui est�pida! Alimentei a ilus�o de que voc� voltaria
quando voc� h� muito j� estava na cama de outra!
- Eu n�o lhe prometi nada. Lamento que voc� tenha alimentado
essa ilus�o, mas n�o foi culpa minha. Fui sincero no que disse.
- E se eu tivesse tirado meu filho? Voc� voltaria para mim,
mesmo j� estando com ela?
- Voltaria. Mas voc� deixou passar muito tempo. Perdi as
esperan�as. E depois, fui for�ado a casar-me com Bianca.
- For�ado?
- Ela engravidou... n�o podia abandon�-la.
- N�o podia abandon�-la como me abandonou?
- � diferente. Bianca espera um filho meu.
- E o meu filho n�o � seu, n�o �, J�lio? J� entendi. N�o
precisa dizer mais nada. N�o quero que diga mais nada. De hoje
em diante, n�o precisa mais ter medo de cruzar comigo na rua.
Nunca mais pretendo falar com voc�. Vou criar o meu filho sozinha,
168


ele nem vai saber que voc� existiu. Quanto a voc� e Bianca, espero,
sinceramente, que sejam felizes e que o filho de voc�s seja t�o
amado quanto o meu � por mim. Adeus!
Ela passou por ele feito uma bala, antes que os solu�os delatassem
seu desespero. Correu para casa o mais r�pido que p�de,
para atirar-se nos bra�os da m�e. Daquele dia em diante, procurou
n�o mais pensar em J�lio, concentrando-se na cria��o do filho.
O crescimento de R�gis era acompanhado de perto por
Josu�. Mais distantes, Damien e T�cio tamb�m observavam o
menino. Sempre que algu�m o levava para tomar sol ou brincar na
pracinha, vendo que nem Josu� nem Uriel estavam por perto, l�
iam os dois dar uma espiada nele.
- Ele � muito lindo - dizia T�cio, embevecido.
- N�o sei se ser� t�o lindo por dentro - rebatia Damien,
com inveja. - Espere s� at� ele crescer.
- Ser� que devemos mesmo estimul�-lo ao mal? Talvez seja
melhor deixarmos que ele viva por conta pr�pria.
- Nem pense em dizer uma coisa dessas perto de At�lio. Ele
vai mandar esquartejar voc�.
Damien tremia s� de pensar no que faria At�lio se eles
falhassem. Ainda tinha v�vida na mem�ria a sensa��o da ponta
de seu chicote.
Entocado em seu covil nas trevas, At�lio estava preocupado.
Damien se mostrava um incompetente, mas n�o era essa sua
maior preocupa��o. Nos �ltimos tempos, andava inquieto, com
vontade de sair. Pensava em Nora com insist�ncia, n�o sabia o
que fora feito dela. Mandou chamar Damien.
- Quero que voc� fa�a outra coisa para mim.
- O que �, chefe?
- Quero que descubra o paradeiro de Nora.
- Nora? N�o sei quem �.
169


- Vou lhe mostrar um retrato dela. Aqui, veja15.
Damien olhou bem a fotografia. Uma mo�a bonita, rosto
regular, olhos expressivos, sorria com delicadeza.
- Muito bonita - elogiou ele. - Mas onde encontr�-la? Ela
est� desencarnada?
- Isso � o que voc� vai descobrir.
- Mas chefe, como? N�o a conhe�o, nem sei por onde
come�ar.
- Vou lhe passar algumas informa��es sobre sua �ltima
vida, ao menos aquela em que estive com ela. Tente se conectar
com a energia dela.
Damien achou aquilo praticamente imposs�vel, mas n�o o
contradisse. Nunca nem ouvira falar de Nora, como agora poderia
se conectar com uma energia desconhecida? At�lio n�o pensava
nisso. Sentia sua presen�a em algum lugar, sabia que ela estava
por perto. S� n�o a imaginava novamente ao lado de Mizael, filha
de Bianca e J�lio.
15 O retrato nada mais � do que uma figura plasmada pelo pensamento do esp�rito.
170

Cap�tulo
20
Nat�lia era um l�rio em meio ao loda�al da desordem. Ap�s
seu nascimento, um abismo de gelo se abriu no relacionamento
entre J�lio e Bianca. Nas poucas vezes em que se falavam, desgastavam-
se com cobran�as e reclama��es. Nunca uma palavra de
carinho nem um gesto de amor. S� brigas constantes. Depois veio
a indiferen�a, a perda rec�proca de interesse.
Promovido a gerente geral, J�lio foi transferido para uma
nov� ag�ncia. Com a fam�lia, mudou-se para outro bairro, distante
dos problemas e dos pais, que n�o aceitaram muito bem o seu
casamento. Queriam que ele se casasse com Ge�rgia, a despeito
da gravidez derivada do estupro. A mudan�a n�o deixou de ser
um al�vio, principalmente porque J�lio n�o corria mais o risco de
encontrar-se com a ex-noiva.
Reunida na sala de jantar, a fam�lia aguardava a sobremesa.
Mal se falavam. Nat�lia n�o via a hora de ser dispensada para
poder assistir um pouco de televis�o antes de dormir. J�lio, por sua
vez, pensava em Anselmo, � beira da aposentadoria, ainda dotado
de uma l�ngua ferina, impiedosa. J�lio soubera, por amigos, que
a mulher de Anselmo o deixara, n�o se sabia se por outro homem
ou se cansada de suas maledic�ncias.
Bianca parecia impaciente, al�m do normal. Agitava as
pernas, num nervosismo fren�tico, sem motivo. Olhava para J�lio


e Nat�lia, como se esperasse alguma coisa. Depois de servida a
sobremesa, Bianca sentou a filha no sof�, ligando a televis�o, e
voltou para conversar com J�lio.
- O que foi? - indagou ele, rispidamente.
- Tenho algo a lhe dizer- sussurrou ela, evitando encar�-lo.
- Pois fale logo. Estou cansado, quero dormir.
- Estou gr�vida, J�lio. Vamos ter outro filho.
- Como � que �? - revidou indignado, elevando a voz.
- Gr�vida?
- Isso mesmo. Qual o problema? N�o sabe o que � isso?
- De quanto tempo?
- Seis semanas.
Ele fez as contas mentalmente. Quando tornou a falar, havia
raiva em sua voz.
- Voc� n�o pode estar gr�vida! N�s quase n�o temos transado...
Esse filho n�o � meu!
- � claro que � seu - objetou ela com veem�ncia. - E
voc� me ofende falando desse jeito. Est� insinuando que eu dormi
com outro homem?
- N�o precisa fingir um pudor que voc� n�o tem - falou
ele, cada vez mais irado. - Diga-me a verdade, Bianca. De quem
� esse filho?
- � seu, j� disse.
- Voc� pensa que eu sou trouxa? Que n�o sei contar?
- Voc� contou errado. O filho � seu, com certeza.
- Quero um exame de DNA! Esse filho n�o pode ser meu.
- Pense bem, J�lio. Para que um esc�ndalo desses sem
necessidade? Voc�, que sempre se preocupou com as apar�ncias,
vai correr o risco de virar alvo de fofocas por causa de uma
desconfian�a infundada. Asseguro-lhe de que esse filho � seu. E
depois, n�o tenho nem nunca tive outro homem. Voc� devia se
envergonhar de acusar assim a sua mulher. Jamais lhe dei motivos
para desconfian�a.


Ele ficou em duvida. Realmente, at� ent�o, jamais havia
desconfiado dela. Bianca era desligada, f�til, contudo nunca agira
como se tivesse um amante. Nesse momento, Nat�lia aproximou-
-se, os l�bios comprimidos, amea�ando chorar.
- � briga? - indagou ela, com seu linguajar incompleto de
crian�a pequena.
- N�o, meu bem - disse Bianca, apanhando-a no colo.
- Eu s� estava contando ao papai a novidade.
- O qu�?
- Voc� vai ganhar um irm�ozinho ou irm�zinha.
Ela pensou por uns minutos e retrucou em d�vida:
- Mam�e vai ter beb�?
- Vou. E a nossa fam�lia agora vai ter quatro pessoas. Eu,
voc�, o papai e o irm�ozinho.
- Oba! - exclamou ela, enla�ando o pesco�o da m�e.
Bianca olhou para J�lio com ar de vit�ria.
- O papai s� ficou um pouquinho preocupado - continuou
ela, maliciosamente. - Ele acha que n�o poderia ser pai
desse beb�.
- N�o � nada disso - cortou J�lio rapidamente, sem dar
tempo a Nat�lia de responder com outro por qu�. - Para a mam�e
ter um beb�, o papai tem que querer tamb�m.
Ela os olhou em d�vida, sem entender muito bem o que estava
se passando.
- O beb� j� est� na barriga da mam�e - contou Bianca.
- N�o � legal?
- �...
- Pena que seu pai n�o pensa assim. Ele n�o quer esse
beb�.
- N�o diga besteiras! - objetou J�lio ferozmente. - Isso
n�o � coisa que se fale para uma crian�a.
- Papai tem raz�o, querida - concordou Bianca, em tom
mordaz. - Estou apenas brincando.
- Por qu�? - tornou Nat�lia, ainda sem entender muito bem.


- Sua m�e � uma boba - disse J�lio, olhando com �dio
para a mulher.
- Papai � que � o bobo, meu bem. Mas agora � hora de
dormir. D� um beijo de boa-noite no papai e vamos para a cama.
Depois de faz�-la dormir, Bianca voltou para junto de J�lio,
um sorriso de triunfo envenenando seus l�bios.
- Ficou louca? - censurou J�lio, logo que ela entrou. -
Como � que voc� diz uma coisa dessas para a menina?
- Temos que lhe dizer a verdade: voc� n�o quer esse filho.
Ou prefere criar sua filha na mentira?
- N�o seja c�nica! A �nica mentirosa aqui � voc�. Eu n�o
quero esse filho porque ele n�o � meu!
- O filho � seu. Se n�o quer acreditar em mim, problema
seu. Mas pense bem. Um esc�ndalo n�o seria aconselh�vel. Ainda
mais com a influ�ncia de Anselmo. Sabe como ele � todo cheio
de moralismos. Imagine se essa hist�ria chegar aos ouvidos dele.
Adeus promo��o!
J�lio silenciou. N�o sabia mais o que dizer. Tinha certeza
de que ele n�o podia ser o pai da crian�a. Fazia tempo que ele
e Bianca n�o mantinham rela��es sexuais. Ela estava mentindo,
usando a filha para faz�-lo aceitar a gravidez.
Igualzinho ao que acontecera com Ge�rgia. N�o, n�o era
igual. Ge�rgia n�o tivera escolha. Fora for�ada por um bruto.
Bianca, por outro lado, deliberadamente se atirara na cama de
outro homem. E agora, ele se via passando pela mesma situa��o
outra vez. A hist�ria se repetia, for�ando-o, novamente, a
aceitar um filho que n�o era seu.
Embora n�o lhe agradasse, J�lio resolveu esperar. Gravidez e
div�rcio n�o pareciam uma boa combina��o. Despertariam a desconfian�a
de Anselmo, que acabaria pressionando-o at� descobrir a
verdade. Justo agora que ele estava para se aposentar, J�lio esperava
uma nomea��o importante. Tinha de ser paciente e aguardar.
Quando o beb� nasceu, J�lio pensou que fosse matar
Bianca. Ele n�o precisava de nenhum especialista para ver que


aquela crian�a n�o era sua filha. Se ele e Bianca possu�am a pele
alva, como explicar a tez excessivamente morena da menina?
- Voc� s� pode estar brincando! - revoltou-se. - Ainda
quer me fazer acreditar que essa menina � minha filha?
- O que � que tem? Ela � t�o bonitinha!
- Ela � mulata, pelo amor de Deus!
- Ela � moreninha. E da� se fosse mulata? Isso � preconceito,
por acaso?
- Preconceito, n�o. Talvez uma impossibilidade das leis da
gen�tica.
- Voc� n�o entende nada de gen�tica. Ela puxou � minha
bisav�, que tinha sangue de escravos.
- N�o brinque comigo, Bianca - amea�ou. - J� aguentei
demais suas humilha��es. Qualquer juiz no mundo me daria o
div�rcio s� olhando para ela.
- Vai descontar suas frustra��es na crian�a agora, vai? Ela
� sua filha e ponto final.
J�lio pensava em se divorciar, mas Nat�lia chorou tanto que
ele desistiu. O jeito era fingir que a menina era sua. Com o passar
do tempo, as coisas foram se acomodando e, para sua surpresa,
J�lio percebeu que se afei�oava mais e mais a Patr�cia. Ela o cativou
aos poucos, logo tornando-se sua preferida. Sem coragem de
separar-se dela, desistiu do div�rcio.
175


Cap�tulo
21
Ap�s a conclus�o da faculdade, Ge�rgia conseguiu o t�o
sonhado emprego no Centro Educacional Jean Piaget, onde adquiriu
experi�ncia suficiente para dividi-la com as crian�as da escola
p�blica. Posteriormente, recebeu um cargo de chefia na Secretaria
de Educa��o, ficando encarregada do acompanhamento do ensino
em v�rias escolas. Utilizando t�cnicas de vanguarda, quando
n�o era tolhida por superiores de mente ainda conservadora,
conseguia resultados excelentes com crian�as e adolescentes.
Tinha agora condi��es de pagar uma boa escola para R�gis.
N�o ganhava nenhuma fortuna, mas o suficiente para viver com
uma certa tranquilidade. A m�e tamb�m tinha a pens�o do pai
e juntas iam levando a vida. Continuavam a morar na mesma
casa, pois Cl�ia insistira em n�o a vender, um pouco apegada �s
lembran�as ali deixadas pelo marido.
R�gis crescia saud�vel e inteligente, lindo como um pr�ncipe.
Era bom aluno, tirava boas notas na escola sem nenhum esfor�o.
Mas fazia coisas que iam al�m do padr�o normal de travessuras
infantis. Era estouvado, agressivo, brig�o. Tinha uma tend�ncia �
dissimula��o e � ironia, que Ge�rgia e Cl�ia, aos poucos, conseguiam
contornar.


A luta das duas contra suas m�s inclina��es surtia bons resultados.
Preservado no ambiente familiar, as investidas dos seres
das trevas ali n�o o alcan�avam, de forma que os bons conselhos
acabavam sendo uma influ�ncia de peso. Mas o que mais o
conduzia pelo caminho da modifica��o interior era o amor, sobretudo
da m�e. R�gis e Ge�rgia estavam t�o intimamente ligados
por la�os afetivos que era praticamente imposs�vel destru�-los. Ao
perceber que suas m�s atitudes a faziam triste, R�gis procurava
evit�-las. Pela m�e, era capaz dos maiores sacrif�cios, s� para n�o
a ver chorar.
At� os sete anos, como � comum acontecer, R�gis permaneceu
livre das investidas de Damien e T�cio, que secretamente
via crescer o amor pelo menino. Reconhecia nele muitos tra�os
de sua fisionomia, imaginando que ele teria a chance de possuir
tudo o que ele pr�prio n�o havia podido ter. A come�ar pela m�e,
muito diferente da sua, sempre fria e distante. Seria uma pena
v�-lo perdido, desorientado, seduzido pelas facilidades do crime
para depois acabar morto, atirado numa vala qualquer.
- Voc� e eu sabemos que bandido n�o dura muito - dizia
ele a Damien. - N�o vai ser um desperd�cio ele acabar assassinado
t�o jovem?
- N�s n�o sabemos qual foi a programa��o dele l� em cima
e n�o tem import�ncia. Quanto mais cedo ele retornar, melhor.
Abrir� vaga para outro que quiser reencarnar e talvez desempenhe
essa tarefa melhor do que ele.
T�cio reconheceu, pela primeira vez, os tra�os da inveja e
do ci�me. Seria poss�vel que Damien n�o gostasse de seu filho?
Resolveu comentar:
- Parece-me que voc� n�o simpatiza muito com R�gis.
- O nome dele � Mizael. At�lio j� nos proibiu de cham�-lo
por outro nome.
- Que seja. Mas n�o � verdade?


- Eu n�o tenho que simpatizar com ele. Tenho apenas que
obedecer �s ordens de At�lio e mant�-lo na linha. � voc� que, pelo
visto, est� se apegando muito a ele.
- Ele � meu filho.
Damien estava cansado. N�o aguentava mais o sentimentalismo
de T�cio. Irritado, deu de ombros e esvaneceu, espantando-se
ao perceber que T�cio o havia seguido at� sua cidade astral.
- Resolveu vir embora? - perguntou Damien, desconfiado.
- N�o tenho mais o que fazer por l�. A av� o levou para
casa, onde n�o posso acompanh�-los.
- U�! E voc� n�o foi se drogar?
Ele sacudiu a cabe�a vigorosamente e respondeu:
- Estou tentando largar. Cheguei � conclus�o de que n�o
preciso mais disso.
- Como assim?
- Bom, se eu n�o tenho mais um corpo f�sico, ent�o n�o
posso estar viciado.
- O v�cio n�o se instaura s� no f�sico, mas no corpo flu�dico
tamb�m. E o seu est� impregnado de droga.
- Acho que isso � s� uma coisa da minha mente, como tudo
por aqui. Pelo menos, foi assim que voc� me ensinou. Talvez, se
eu conseguir resistir, meu corpo flu�dico v� se limpando.
- Por que est� preocupado com isso? Sem a mat�ria densa,
voc� n�o pode morrer de overdose. Pode se drogar � vontade.
- N�o quero mais. E voc� mesmo disse que At�lio proibiu de
transmitir a R�gis...
- Mizael! - cortou, aborrecido.
-... a Mizael os efeitos da coca. Como � que voc� acha que
eu posso impedir o menino de sentir essa vibra��o se chego perto
dele carregado dela? Ent�o, achei melhor me livrar da coca�na.
N�o � de verdade mesmo.
- � de verdade, sim. S� n�o � f�sica.
- Pois �. � mais uma ilus�o, uma mat�ria volatizada que
logo se dissipa. N�o tem a mesma densidade do p� f�sico.
178


- O que voc� faz para conseguir isso?
- Uso a for�a de vontade. Penso que o prazer que sinto
com a droga n�o � real, j� que meus �rg�os internos n�o s�o de
carne. Assim, a qu�mica n�o os contamina. Na verdade, n�o h�
mais qu�mica. O que h� � a sensa��o, � qual j� me acostumei, de
que estou realmente me drogando. Minha mente criou essa ilus�o,
logo, pode destru�-la.
- Voc� aprendeu tudo isso sozinho? - surpreendeu-se.
- Pela experi�ncia. Anos de observa��o e experimenta��o.
E depois, R�... Mizael tem sido um incentivo.
- Por qu�?
- Porque � meu filho, ora! Quero o melhor para ele.
Aquilo n�o ia dar certo. Damien notou uma colora��o r�sea
na altura do cora��o de T�cio quando ele disse a �ltima frase.
Foi muito r�pida, logo se dissipou. Contudo, era claro que T�cio
come�ava a alimentar um sentimento perigoso e quase impronunci�vel
por ali: amor.
Ele devia ter imaginado que usar T�cio como seu ajudante
seria um desastre. Querendo ou n�o, ele era pai de Mizael. Podia
estar desencarnado, ter gerado aquele filho num momento de del�rio
provocado pela droga, mas, ainda assim, Mizael carregava o
DNA dele. E agora, o que faria se T�cio os tra�sse e mudasse de
lado? Ele sabia muitas coisas para ser capturado pelos seres
de luz. Se acontecesse aquela trag�dia, quem iria pagar caro seria
ele. Dessa vez, At�lio n�o o perdoaria. Depois de pensar por alguns
instantes, Damien concluiu que o melhor seria prend�-lo.
- Venha comigo - ordenou.
Sem de nada desconfiar, T�cio o seguiu por um caminho que
ele nunca antes percorrera. Era uma estradinha sinuosa, ladeando
uma ravina f�tida, escura. Desceram por uma escada talhada no
barro at� uma constru��o sombria, erguida, aparentemente, com
lama e pedras. Sem dizer nada, Damien cumprimentou o porteiro,
que lhes franqueou a passagem.
- Que lugar � esse? - indagou T�cio, assustado.


Dentro havia v�rias celas, onde esp�ritos atormentados encontravam-
se enclausurados, alguns com argolas que os prendiam �
parede. O guardi�o soltou uma gargalhada sinistra por debaixo do
capuz de carrasco e abriu a porta de uma das enxovias.
- Entre - foi a ordem incisiva.
T�cio titubeou. N�o entendia o que estava acontecendo.
- Voc� vai me prender aqui?-tornou horrorizado. - Por qu�?
- Seguinte: voc� est� se tornando perigoso. Quem foi que
o mandou se encantar pelo menino?
- Vai me prender s� porque gosto de Mizael? Mas ele �
meu filho!
- Ele n�o � seu filho - rugiu, aproximando a boca espumada
do rosto assustado de T�cio. - � protegido de At�lio, pertepce
a At�lio. At�lio � quem decide o que fazer com ele. E voc� caiu na
besteira de se permitir sentir amor pelo menino. Agora j� era. Voc�
se tornou um perigo. At�lio n�o gosta de gente que ama. Muito
menos eu. Agora entre.
A um sinal de Damien, o guarda empurrou T�cio para dentro
com brutalidade, revelando o prazer que sentia ao executar ordens
daquela esp�cie.
- N�o! - objetou T�cio, fazendo for�a para n�o entrar.
- N�o vou permitir que voc� me aprisione. N�o fiz nada de errado.
O carrasco empurrava, mas, estranhamente, T�cio n�o sa�a
do lugar. Nem ele se deu conta de que n�o se movia. O esp�rito
o espetou com a ponta espinhenta de sua clava, contudo T�cio
nada sentiu.
- O que est� acontecendo? - esbravejou Damien, mais
surpreso do que o carrasco. - Empurre-o l� para dentro, ande!
- Senhor, n�o consigo - informou, surpreso, o outro.
- Ele est� resistindo.
- Como isso � poss�vel?
180


Vendo que o guardi�o n�o conseguia empurrar T�cio para
dentro da masmorra, Damien arrancou a clava da m�o dele.
Ergueu-a acima da cabe�a, pronto para golpear T�cio com for�a,
doido para rachar-lhe o cr�nio et�reo em dois. Com um pouco de
sorte, veriam sangue flu�dico se esparramando no ch�o16.
Quando ele desferiu o golpe, veio a surpresa. Inesperadamente,
T�cio desapareceu diante de seus olhos. A clava desceu
com viol�ncia, puxando o corpo de Damien para a frente, e tocou
as pedras do ch�o.
- O que foi que houve? - espantou-se o carrasco, correndo
para todos os lados em busca de T�cio. - Nunca vi uma
coisa dessas.
Damien tamb�m n�o. Contudo, sabia o que se passara.
Devia imaginar que aquele pontinho luminoso no cora��o de T�cio
era ind�cio de que uma for�a poderosa nascia ali. A surpresa foi
tremenda. Assustou-o o fato de que um pouquinho s� de amor
fosse capaz de romper a barreira de treva que guarnecia a pris�o.
O mais espantoso, por�m, � que T�cio o vencera. Superara-o em
for�a, passara por ele com a rapidez de um raio, sem que ele tivesse
a chance de pensar em impedir.
- Nem uma palavra sobre isso, ou vai se ver comigo
- amea�ou.
A clava ficou no ch�o, pois o carrasco sentiu medo de toc�-la,
imaginando se n�o estaria enfeiti�ada ou coisa parecida. Damien
fez o caminho de volta acabrunhado, temendo a rea��o de At�lio
quando soubesse. Por sorte, At�lio andava ocupado demais com
seus planos de conquista para prestar aten��o a T�cio.
Enquanto subia as escadas sombrias, imaginava onde
T�cio fora parar. Era bem poss�vel que tivesse ido pedir abrigo ao
pessoal da luz. Esse pensamento o fez estremecer, j� que todo
o plano de At�lio corria o risco de ruir. Sua arrog�ncia era tanta,
que Damien nem desconfiava de que os projetos de At�lio e de
16 A exist�ncia ou n�o de sangue flu�dico depende do grau de desapego do esp�rito � mat�ria densa.
181


outros l�deres das sombras eram conhecidos pelos esp�ritos de
luz. Julgava que At�lio era esperto, e era, mas seu intelecto n�o
se igualava ao dos seres superiores, que, tendo acesso a planos
mais sutis da humanidade, tudo sabiam do que se passava na
Terra, em todas as suas vibra��es.
Desconhecendo essas verdades, Damien julgava que o
poder de At�lio era �nico e agora estava amea�ado. Precisava
reunir coragem para contar-lhe que T�cio fugira, provavelmente
em busca de Josu�, que vivia tentando seduzi-lo. E quem seria o
culpado? Ele, que escolhera mal seu subordinado. Para salvar-se,
precisava realizar algum feito muito importante, algo que deixasse
At�lio t�o satisfeito, que a recompensa superaria a puni��o.
O �dio consumiu suas entranhas vazias. Depois de tudo o
que fizera por T�cio, como tivera coragem de o deixar? Foi uma
perf�dia, verdadeira deslealdade. Fugir, deixando para tr�s o amigo
que lhe estendera a m�o, para ser atirado aos lobos, era uma trai��o.
Se pudesse, ainda o faria pagar. Mas como, se nem sabia
onde ele estava?
182

cap�tulo
22
Fazia dois dias que T�cio andava sumido, e Damien ainda
n�o havia reunido coragem para contar a At�lio. Estranhava o fato
de que ele n�o soubesse ainda, mas At�lio agora s� se preocupava
com Mizael, para sorte de Damien, que fazia seu usual relat�rio,
evitando tocar no nome de T�cio.
- Soube que Mizael tem resistido bem � influ�ncia da m�e
e da av� - comentou At�lio. - N�o � verdade?
* - Mais ou menos. Quero dizer, resistido, ele tem, mas at�
agora n�o fez nada de extraordin�rio.
- Como o que, por exemplo? - retrucou At�lio com sarcasmo.
- Assaltar um banco? Sequestrar o filho de algum rica�o ou
estuprar uma colega de escola? Mizael ainda � crian�a, seu idiota.
O que voc� esperava que ele fizesse al�m de travessuras incorrig�veis
e agressivas? E isso, ele faz, n�o faz?
- Realmente. Ele � arteiro al�m do normal, amea�a e bate
nos colegas. Quer�amos que ele fosse um marginalzinho, mas n�o
deu. A m�e sempre atrapalha, com aquela mania de ora��es. Al�m
disso, ela e Cl�ia n�o d�o folga ao menino. N�o s�o repressoras,
mas n�o deixam passar nada.
- E isso n�o o deixa com raiva nem revoltado?
- Deixa, mas a raiva passa logo. Infelizmente, ele � muito
apegado � m�e e faz tudo para agrad�-la.


- Que droga! - esbravejou ele. - Com tanta mulher no
mundo, Mizael tinha que ser filho justo da Virgem Maria?
- Ele escolheu mal - envenenou Damien, aproveitando-se
do momento prop�cio. - Ent�o n�o imaginou que ia acabar nisso?
- Ele n�o teve escolha - rebateu At�lio, em d�vida. - Era
ela ou ningu�m.
- Foi a pressa. Acho que ele poderia ter esperado mais um
pouco. Mas estava doido para voltar. Tanto que aceitou qualquer
m�e, sem nem se dar o trabalho de investig�-la. Se tivesse sido
mais atento, veria que ela se banha no caldeir�o da virtude.
- Nada disso � culpa de Mizael. Do lado de l�, fica dif�cil
agir sem ser notado. Vigiado dia e noite, o que voc� pensa que ele
poderia fazer para investigar a vida de Ge�rgia?
Damien deu de ombros e respondeu com mal disfar�ado
desd�m:
- N�o sei.
- � claro que n�o sabe - concordou At�lio, fixando nele
seus olhos avermelhados. - Voc� e T�cio s�o dois incompetentes.
- Lamento, chefe, mas estamos fazendo o poss�vel...
- O poss�vel? Como promover o casamento de Ge�rgia e
J�lio?
Damien hesitou, balbuciando assustado, com medo de
nova surra:
- Eu tentei, mas n�o deu. Fui seguir a ideia de T�cio e...
- Isso agora n�o importa mais - cortou, com frieza. -
Quero falar com T�cio.
- Falar com T�cio? - repetiu, sentindo um gelo se irradiando
em suas entranhas invis�veis. - Por qu�?
- Ele a estuprou, n�o foi? Ent�o, deve conhec�-la de algum
lugar. Essas coisas n�o s�o aleat�rias, ningu�m sai estuprando
por a� se n�o tem um motivo que todo mundo desconhece. Essa
Ge�rgia deve ter aprontado alguma coisa com ele no passado.
Preciso descobrir.
- Para qu�?


- Voc� � mesmo muito est�pido. Para usar essa fraqueza
em nosso favor. Se explorarmos alguma culpa de Ge�rgia, talvez
possamos abrir um furo na barreira ao redor da casa dela.
- E como, exatamente, far�amos isso, se nem podemos
chegar perto dela?
- Mesmo � dist�ncia, ela pode receber os pensamentos
de T�cio. Se ele pensar no motivo da culpa, ela vai cedendo aos
pouquinhos, enfraquecendo seu campo energ�tico. Mas eu preciso
de T�cio agora.
- Sim, senhor.
- O que est� esperando? V� busc�-lo!
- � pra j�, chefe.
- S� mais uma coisa. Teve not�cias de Nora?
- Ainda n�o. Estou trabalhando nisso. Contudo, como lhe
falei, fica dif�cil sem t�-la conhecido.
- Incompetente! - rosnou. - Agora v�. Tenho pressa em
resolver esse assunto.
Damien saiu arrasado. Por mais que se esfor�asse para executar
bem as ordens de At�lio, ele nunca ficava satisfeito. S� sabia
recrimin�-lo e humilh�-lo, tratando-o como um servi�al comum. Um
medo atroz trespassou todo o corpo flu�dico de Damien, apavorado
com a perspectiva da segunda morte. Acreditava que At�lio tinha
aquele poder, sem saber que era sua fraqueza que facilitava a capacidade
de indu��o � perda moment�nea de sua forma astral.
Pensando insistentemente em T�cio, Damien percorreu os
lugares que ele costumava frequentar. Na boca de fumo, perguntou
por ele aos esp�ritos de viciados que perambulavam por ali.
- Faz tempo que n�o o vemos - informou um esp�rito.
- Achamos at� que ele havia ido embora para a luz -
comentou outro.
- Ele foi? - quis saber um terceiro.
- � o que quero descobrir - avisou Damien.
T�cio parecia ter evaporado. N�o estava na pra�a nem junto a
Mizael. Era hora da escola, mas o menino estava sozinho, fazendo
185


besteiras, como sempre. N�o se via nenhum desencarnado junto
a ele. E agora?
Desanimado, Damien voltou a sua cidade, procurando ocultar-
se em seu esconderijo de treva antes que o vissem. Era uma
cabana escura, protegida por �rvores gigantes, numa floresta
sombria. Damien abriu a porta, alquebrado, pensando em arranjar
uma maneira de fugir.
Assim que entrou, seus olhos foram atra�dos para um ponto
mais obscuro da cabana. Das sombras, um vulto se adiantou.
Damien quase n�o conseguiu engolir o grito de surpresa e alegria:
- T�cio! Onde voc� esteve? Procurei-o por toda parte.
- Estive por a�, em lugares onde voc� n�o poderia me
encontrar.
- Por que fez isso comigo? Por que desapareceu assim?
- Voc� n�o sabe? Depois de mandar me prender, n�o sabe
por que sumi?
- Aquilo n�o foi nada - tentou convenc�-lo. - Era para
sua prote��o.
- Minha prote��o? Voc� queria me prender numa masmorra!
Para me proteger de qu�? De voc�?
- De voc� mesmo - ele se aproximou, puxando o outro
pelo bra�o. - Olhe, T�cio, eu me assustei. Voc� nem percebeu,
mas uma luzinha rosada cintilou no seu cora��o.
O qu�? - surpreendeu-se, silenciando por instantes.
- Uma luzinha? Ent�o � isso. Agora compreendo.
- Compreende?
- Sim, � claro. Antes de voc� me levar para aquele lugar de
torturas, senti uma coisa diferente, um bem-estar esquisito que, na
hora, n�o soube definir.
- E como foi que isso o ajudou a fugir?
- N�o sei. Diga-me voc�. Voc� n�o sabe tudo?
- Se eu soubesse tudo, n�o teria ficado feito doido atr�s
de voc�.
186


- Seja como for, deve ter sido gra�as a essa luzinha que eu
consegui fugir. Na hora que aquele carrasco tentou me prender,
surpreendi-me ao ver que conseguia resistir. E quando voc� tentou
me acertar com aquela clava, desejei n�o estar ali. Puf! Na mesma
hora, fui parar em outro lugar.
- Que lugar?
- Na praia. Um ponto que eu costumava frequentar quando
encarnado.
- E depois?
Depois, fiquei por a�. Fui ver minha ex-mulher.
- N�o me diga!
- Ela estava l�, com outro garot�o. E sabe o que � engra�ado?
- Damien meneou a cabe�a. - N�o senti nada por ela.
Nadinha. S� um vazio muito grande, uma certa indiferen�a. Foi
estranho. N�o tive vontade de continuar ali e fui embora.
Damien se mostrava extremamente interessado na experi�ncia
de T�cio. Devia estar com raiva porque ele fugira, mas o fato �
que sentia uma certa admira��o por ele.
- Por que voc� voltou? - ele continuou a questionar. - J�
estava livre, podia ter ido embora.
- Para onde eu iria? Para o lado da luz? - ele deu de
ombros. - N�o posso. N�o sou digno de passar para o lado de l�.
Tive medo.
- Medo?
- Sim, medo de todas aquelas coisas que voc� me contou
sobre puni��es, renascer esquizofr�nico e coisas do g�nero.
- Sabe de uma coisa, T�cio? - confessou ele. - Acho
que as coisas n�o s�o bem assim. N�s temos liberdade de escolha.
Talvez n�o precisemos sofrer nem tenhamos que pagar pelos
nossos pecados.
- N�o? Mas voc� disse...
- Sei o que disse. Foi uma forma de mant�-lo aqui.
- Por qu�?


- Acho que senti inveja de voc�. No fundo, sabia que voc�
seria capaz de sair deste lugar.
- Est� enganado. Damien. N�o posso sair daqui.
- Voc� n�o ouviu o que eu disse? � mentira essa hist�ria de
castigo. Voc� n�o precisa passar por coisas ruins, se n�o quiser
Talvez consiga reequilibrar a vida com o trabalho no bem.
A �ltima frase foi dita por Damien com um receio acima do
normal, como se falar no bem lhe causasse dor ou flagelo.
- Se At�lio o ouvisse falando desse jeito... - gracejou
T�cio. - Logo voc�, um ser das sombras, convicto morador do
submundo astral. Como pode acreditar no bem?
- Saiu sem querer. Talvez porque, no fundo, eu j� esteja
cansado de tudo por aqui. E voc� me fez refletir. Como conseguiu
escapar de mim e do carcereiro, um esp�rito adestrado para
n�o deixar ningu�m fugir? Que estranho poder foi esse que voc�
adquiriu e n�o me contou?
- Eu n�o contei? Meu caro, nem sei do que voc� est�
falando.
- Sabe, sim.
- N�o sei. Mas voc� sabe, n�o �?
- E voc� tamb�m. N�s est�vamos falando de Mizael. O que
voc� sente por ele?
Ele pensou por uns momentos, com medo de admitir.
Contudo, era vis�vel que Damien j� sabia do que se tratava.
Encarando-o, olhos �midos, T�cio confessou:
- Amor. Sinto amor pelo meu filho.
- Mais essa agora - lamentou Damien, vendo confirmadas
suas suspeitas. - Eu sabia. At�lio vai ficar furioso.
- Ser� que At�lio tem tanto poder assim? Ou ser� que o
poder que ele tem � apenas aquele que voc�s lhe d�o?
- N�o diga asneiras, T�cio. At�lio � muito poderoso. E quer
falar com voc�.
- Comigo? - estremeceu. - Por qu�? Ser� que ele sabe
o que eu fiz?
188


- Est� com medo? Mas n�o foi voc� quem disse que At�lio
n�o tem poder algum?
- Eu n�o disse isso. Apenas acho que o poder dele �
alimentado por todos aqui.
- Inclusive por voc�.
- Inclusive por mim, que n�o me perdoo pelo que fiz a Ge�rgia
- Pois � justamente para falar de Ge�rgia que ele mandou
cham�-lo. Quer saber qual a rela��o de voc�s no passado.
- Engra�ado. Eu nunca havia pensado nisso.
- Voc� n�o se lembra?
- N�o
- At�lio quer for��-lo a recordar. Pretende, com isso, descobrir
a fraqueza de Ge�rgia para tentar furar o bloqueio energ�tico
ao redor da casa dela.
Ele n�o pode fazer isso! - objetou com veem�ncia.
- Ele pode e vai fazer. E, se voc� n�o quiser, aconselho-o a
se mandar daqui de vez. V� para o lado da luz. Em qualquer outro
lugar, ele ir� encontr�-lo.
- N�o posso.
- Voc� n�o entendeu nada, n�o? O lado de l� deve ser bom.
Ningu�m que vai volta.
- Isso, eu entendi. Mas existe um outro fator que me impede
de ir.
- Que fator? Que papo � esse?
- Voc� ainda n�o sabe por que voltei.
- � - divagou ele. - Voc� enrolou, enrolou e n�o me disse.
- Voltei por sua causa, porque ouvi voc� me chamar.
- Como � que �?
- � isso mesmo. Voltei porque ouvi o seu chamado aflito.
Pensei que voc� devia estar metido em alguma encrenca com
At�lio por causa da minha fuga.
- N�o acredito! Voc� voltou por mim? Mesmo depois do
que lhe fiz, de ter tentado prender voc�?
189


- Voc� me ajudou quando eu mais precisei. Acolheu-me
em sua casa, apresentou-me a meu filho, cuidou para que eu n�o
fosse levado como escravo. Devo-lhe isso.
- Voc� n�o me deve nada - exasperou-se. - Pensa que
fiz o que fiz por amizade? Eu precisava de um servi�al. Voc� me
serviu, s� isso.
- Mesmo assim, aprendi a gostar de voc�.
- Gostar de mim? - repetiu at�nito.
- �, gostar. N�o v� me dizer que n�o sabe o que � isso.
Damien estava confuso. Nunca imaginara aquela situa��o
inusitada. Gostar n�o era algo comum por ali. At�lio gostava de
Mizael, e s�. Ningu�m mais gostava de ningu�m. O que havia eram
interesses, alian�as, nada de amor.
- Acho melhor voc� ir embora - pediu Damien, com
desgosto. - Voc� n�o pertence mais a este lugar.
- Nem voc�.
- Est� enganado. N�o tenho como sair daqui. At�lio n�o
permitiria.
- Juntos, podemos resistir a At�lio.
- Como? Ficou maluco?
Batidas na porta deixaram-nos em sobressalto. Olhando para
T�cio com temor, Damien foi abrir. Era um dos muitos mensageiros
de At�lio.
- At�lio quer falar com voc�s - anunciou ele, sem delongas.
- Agora.
- N�s j� vamos - avisou Damien, fechando a porta na cara
dele. E, virando-se para T�cio, perguntou: - Ser� que ele j� sabe?
- Vamos descobrir.
Poucos segundos depois, estavam sentados diante de At�lio,
a quem T�cio via pela primeira vez.
- Ent�o, � voc� que � o T�cio? - indagou ele, perscrutando
o outro com o olhar.
- Sou - respondeu ele, tentando n�o demonstrar o temor
na voz.
190


- Voc� e Damien est�o atrasados na deseduca��o de
Mizael - ironizou ele, fulminando T�cio com o olhar. - Mas
n�o foi para isso que mandei cham�-lo. O assunto agora �
outro, mais urgente. Preciso que voc� me diga qual a sua rela��o
com Ge�rgia.
- N�o me lembro - respondeu T�cio, o menos tremulamente
que conseguiu.
- Tem certeza?
O olhar de At�lio era penetrante, intimidador. Por sorte, T�cio
n�o se lembrava mesmo.
- Tenho, sim, senhor - afirmou ele. - Na verdade, foi s�
quando Damien me contou o que pretendia que pensei nisso.
Nunca antes me havia ocorrido que Ge�rgia e eu pud�ssemos ter
tido uma rela��o pret�rita.
- Muito provavelmente, tiveram. E � o que quero descobrir.
- Como?
- Vou passar voc� na m�quina - alertou, referindo-se ao
equipamento coadjuvante na recupera��o da mem�ria.
- O que ela faz?
- Libera as ondas de pensamento represadas no corpo
causal17, trazendo-as � tona de forma organizada e coerente.
Era mentira. O tal equipamento n�o passava de um engodo,
uma forma de fazer com que esp�ritos cr�dulos, em estado de transe
induzido, revivessem passagens de vidas anteriores. Esp�ritos
das trevas n�o possuem a eleva��o moral necess�ria para ter
acesso aos registros do corpo causal.
At�lio praticamente fez com que T�cio adormecesse.
Ent�o, ligando eletrodos em sua mente, tentou hipnotiz�-lo. N�o
surtiu efeito. T�cio n�o queria recordar, logo n�o foi poss�vel
para At�lio for�ar sua mem�ria. Os registros permaneceram
onde estavam, intoc�veis.
17 O corpo causal, ou mental superior, atua como ve�culo do pensamento abstrato e recept�culo das mem�rias
de vidas passadas. � assim chamado porque nele residem as causas das experi�ncias vividas no presente.
191


- Diabos! - praguejou ele, chutando a m�quina. - Esse
cara � um banana, um frouxo! N�o serve para nada. Leve-o daqui!
Damien saiu apressado, levando T�cio com ele. N�o era
sempre que At�lio conseguia sucesso naquelas sess�es, portanto,
o fracasso com T�cio n�o era nenhuma surpresa. Mas ele sabia
por que n�o conseguira. Sentira a resist�ncia de T�cio. E, se T�cio
conseguira resistir, era sinal de que ele, At�lio, estava enfraquecendo.
192

cap�tulo
23
Aos treze anos de idade, R�gis era terrivelmente arteiro, cruel,
dissimulado. Ningu�m conseguia control�-lo, � exce��o da m�e e,
�s vezes, da av�. Seu temperamento ficava mais dif�cil a cada dia,
deixando Ge�rgia angustiada, temendo falhar em sua educa��o.
Do lado invis�vel, Josu� fazia o que podia. Transmitia vibra��es
de serenidade e amor, que ele ora assimilava, ora n�o
percebia. No ambiente dom�stico, era mais f�cil atingi-lo, mas,
quando sa�a porta afora, parecia que se transformava. Era incorrig�vel.
Assustava senhoras idosas, chutava cachorros, atirava
pedras em gatos. Por mais que Ge�rgia se esfor�asse, havia vezes
em que sentia estar perdendo o controle.
- Voc� n�o est� - disse-lhe Josu� certa vez, em sonho.
- Aceitou uma tarefa deveras dif�cil.
- Sinto que n�o consigo control�-lo. Parece que ele agora
simplesmente n�o me ouve mais.
- Ele est� entrando na adolesc�ncia, �poca em que as vidas
passadas e a presente se fundem para forma��o do novo car�ter.
- Ent�o, essa � a �poca em que eu deveria obter sucesso.
Daqui em diante, nada mais surtir� efeito.
- N�o � bem assim. R�gis � um menino rebelde, contudo
possui algo de bom dentro dele.


- O qu�? Sinceramente, por mais que o ame, tenho que
admitir que ele s� pensa em si e n�o se incomoda com ningu�m.
- O seu exemplo e o de Cl�ia t�m sido fundamentais para
lev�-lo a reflex�o de suas atitudes. Por enquanto, ele n�o precisou
ainda enfrentar, conscientemente, o resultado de suas a��es. Mas
quando isso acontecer, a culpa o levar� a se transformar.
- Como assim?
- Por mais que a culpa tenha a capacidade de obstruir o
crescimento espont�neo, serve como sinalizador da consci�ncia.
� atrav�s da culpa que percebemos que fizemos o que n�o dever�amos
ter feito. Depois dela, vem a transforma��o.
As palavras de Josu� deixaram Ge�rgia mais esperan�osa.
N�o sabia que evento seria capaz de despertar tal sentimento em
R�gis, mas confiava em Josu�. No dia seguinte, acordou "mais
animada. � hora do caf�, beijou o rosto do filho, acariciou seus
cabelos. R�gis n�o recusava aquelas car�cias. Ao contr�rio, gostava
delas, sentindo-se verdadeiramente amado.
- N�o se atrase para a escola - pediu ela. - E venha para
casa depois da aula. Hoje � dia do curso de ingl�s.
- Est� bem, m�e.
Ge�rgia saiu primeiro, R�gis, logo em seguida. Despediu-se
da av� com um beijo e ganhou a rua. Aquelas eram as �nicas
pessoas que realmente importavam na vida dele. A nenhuma outra
dedicava seu amor.
Na esquina, Alex o esperava. Caminharam juntos, indo pela
pra�a onde ainda funcionava a boca de fumo. Mesmo sabendo
que a m�e n�o gostava que ele passasse por ali, R�gis cruzou
a pra�a.
- Quero que voc� conhe�a um amigo meu - avisou Alex.
Logo chegaram ao grupo de maconheiros, no qual o amigo
de Alex se encontrava.
- E a�, gente boa? - cumprimentou o sujeito. - Vai um
baseado?
194


Alex apanhou o cigarro que o outro lhe estendeu e deu uma
tragada longa, retendo a fuma�a nos pulm�es por alguns instantes,
para depois solt�-la lentamente. R�gis ficou fascinado. Os
olhos do amigo se tornaram vermelhos, ele jogou a cabe�a para
tr�s, rindo sem motivo aparente. Quando voltou a cabe�a para a
frente, parecia sereno, mais lento do que o usual.
- Quer provar? - ofereceu ele.
R�gis estava em d�vida. Sabia dos efeitos daninhos da droga,
contudo estava curioso, doido de vontade de experimentar. A seu
lado, T�cio e Damien faziam de tudo para que ele n�o aceitasse.
- At�lio vai nos mandar para o inferno de vez - falou Damien,
apavorado. - Ele foi bem claro quando afirmou que n�o queria
que Mizael usasse drogas.
- Deixe disso, menino - T�cio soprou ao ouvido dele. - �
uma porcaria. Vai lhe fazer mal.
A curiosidade, contudo, foi mais forte. R�gis tomou o baseado
da m�o de Alex, sem perceber o tapa invis�vel que T�cio desferiu
sobre ela e que a atravessou. Desajeitadamente, deu uma tragada.
No come�o, nada aconteceu, mas, em poucos minutos, sentiu a
boca seca e uma vontade louca de rir.
Desesperado, sem saber o que fazer, T�cio colou-se a ele,
quase incorporando. Na mesma hora, os sintomas que sentira
quando tomara a overdose se transferiram para o menino.
R�gis ficou inquieto, o cora��o acelerou, a testa logo se umedeceu
com o suor frio. Por momentos, a vis�o medi�nica foi liberada,
permitindo que R�gis entrevisse o mundo astral a seu redor, com
seus esp�ritos maltrapilhos, alucinados, sugadores da droga volatizada.
Seu c�rebro se embaralhou, tudo parecia rodar, inclusive
os esp�ritos, que apontavam para ele seus dedos esquel�ticos,
gargalhando diabolicamente.
R�gis saiu cambaleando, com os esp�ritos atr�s, rindo sem
parar, alguns revoltados porque Damien n�o permitia que se
aproximassem. Para R�gis, os esp�ritos o perseguiam, pois, para
onde quer que se virasse, l� estavam eles a encar�-lo com olhar
195


demon�aco. A passos tr�pegos, procurou um banco para se sentar.
Atr�s dele, Alex ria tamb�m, debochando de sua fraqueza.
- Deixe de besteiras, R�gis - desdenhou ele. - Parece at�
uma mulherzinha.
R�gis mal o escutava. Com T�cio grudado nele, alcan�ou o
banco, tentando conter a respira��o descompassada, o cora��o
turbulento que parecia esmurrar-lhe o peito.
- O que � isso? - murmurou. - O que est� acontecendo?
Isso � o que vai acontecer todas as vezes em que voc�
pensar em experimentar qualquer droga - avisou Damien, parado
diante dele em atitude amea�adora.
A uma press�o de T�cio, R�gis vomitou. N�o era um sintoma
comum, contudo a invas�o causada pelo esp�rito fez com que
ele colocasse para fora um pouco dos resqu�cios energ�ticos da
maconha.
- Nunca mais quero experimentar isso - anunciou ele,
tentando umedecer os l�bios secos. - Nunca mais.
- Deixe de ser trouxa - continuou Alex. - Voc� � um
homem ou um rato?
Voc� � o rato - falou Damien, tornando-se vis�vel aos
olhos desfocados de Alex. - Buuuu��
Com o susto, Alex caiu para tr�s, errando o banco e desabando
no ch�o de terra.
- O que foi isso? - apavorou-se. - Quem � esse cara?
Damien ria sem parar. Aos poucos, R�gis conseguiu dominar-
se. Ainda sob o efeito da droga, levantou-se tonto, sonolento.
- Que horas s�o? - indagou, sentindo as pernas bambas. -
Tenho que ir embora. A escola...
- A escola j� era, cara - disse Alex, mal se recuperando
do susto.
- V� para casa - aconselhou T�cio. - Diga que n�o est�
se sentindo bem e durma at� o efeito passar por completo.
- Acho que vou para casa - repetiu ele, at�nito. - N�o me
sinto muito bem.
196


R�gis deixou Alex debochando dele, seguindo o exemplo
de outros rapazes que se drogavam por ali. Pela primeira vez em
todos aqueles anos, Damien agradeceu por ele ir para casa, onde
estaria protegido da influ�ncia maligna dos esp�ritos que sugavam
as drogas.
- Viu como os viciados desencarnados ficaram de olho
nele? - questionou T�cio, t�o logo R�gis entrou.
- � assim que eles fazem - esclareceu Damien. - Ficam
� espreita, aguardando um novo ot�rio. Quando a pessoa vai e
experimenta a droga pela primeira vez, eles tentam influenci�-la
para que ela volte a us�-la. Com a vontade enfraquecida, o discernimento
embotado e o est�mulo do invis�vel, muitos acreditam que
a solu��o para os seus problemas est� ali. Quando se d�o conta,
j� est�o viciados.
- Como eu fiz.
- Como voc� fez. Por sorte est�vamos por perto para evitar
que Mizael se perdesse. At�lio ficaria furioso.
- Estou pouco me importando com At�lio - objetou T�cio,
mal escondendo a irrita��o. - Preocupo-me � com o meu filho.
N�o quero que ele tenha o mesmo destino do pai. Droga � uma
droga, n�o faz bem a ningu�m. Seus males, al�m de f�sicos, s�o
tamb�m espirituais, e esses s�o ainda mais dif�ceis de se controlar.
Livres da mat�ria densa, podemos nos locomover � vontade,
sugando a ess�ncia do que os viciados usam. Tornamo-nos escravos
dos nossos desejos muito mais do que eles, que podem buscar
ajuda e conten��o. N�s, n�o. Vamos aonde queremos, sugamos �
vontade, e, como voc� me disse uma vez, sem risco de uma overdose.
N�o quero esse destino para ele nem na vida encarnada,
nem na espiritual. Quero que ele seja livre.
Damien n�o disse nada. N�o adiantava mais recrimin�-lo por
querer ajudar Mizael. E lembrar que ele n�o era seu filho tamb�m
era in�til. Era assim que T�cio sentia, algo em seu cora��o se sensibilizara
ao descobrir-se fornecedor de vida. Pegara-se de amores
pelo menino, tinha interesse em lev�-lo por caminhos de retid�o.


N�o compreendia por que At�lio n�o o havia dispensado. Era
estranha a atitude de seu chefe. At�lio n�o era de sentir piedade,
n�o costumava dar mais uma chance a ningu�m. E n�o era poss�vel
que n�o tivesse ainda conhecimento do real sentimento de
T�cio por Mizael. Por que ent�o n�o se livrava dele?
Porque At�lio tinha medo de T�cio, do que ele era capaz de
fazer. Enquanto T�cio n�o conhecesse seu poder, tudo estaria sob
controle. Mas a partir do momento em que ele percebesse que
o amor era capaz de superar qualquer obst�culo emocional ou
mental, At�lio n�o poderia mais fingir que o dominava. T�cio se
libertaria, arriscando levar Mizael com ele. S� por isso At�lio permitia
que ele continuasse. Era melhor manter o inimigo pr�ximo,
onde podia control�-lo, do que libert�-lo para a trai��o.
Damien olhou para T�cio e deu de ombros. Mesmo conhecendo
os temores de At�lio, n�o tinha do que se queixar. Se Mizael
falhasse em seus prop�sitos por culpa de T�cio, at� que n�o seria
nada mau. Embora ele mesmo n�o tivesse coragem de levar Mizael
por outros caminhos, satisfazia-o a insist�ncia de T�cio. Atrav�s
dele, Mizael poderia fracassar e ele, vencer.
R�gis entrou em casa feito uma bala, correndo para o quarto
e trancando a porta, antes que a av� conseguisse impedi-lo.
R�gis! - gritava ela do lado de fora. - O que foi que
houve, meu filho? Est� sentindo alguma coisa?
- N�o foi nada, v�. S� uma dor de est�mago.
- Abra a porta, deixe-me preparar-lhe um ch�.
Ele abriu. N�o tinha coragem de desobedecer � av�, ao
menos na frente dela. Ao v�-lo, Cl�ia levou um susto. Ele estava
excessivamente p�lido, os olhos vermelhos, exalando um forte
odor de erva.
- O que voc� fez? - indignou-se ela, recuando dois passos.
Nada - foi a resposta insegura.
198


Voc� est� mentindo. Est� drogado, posso ver
- Que drogado o qu�? - rebateu ele, tentando desvencilhar-
se dela, j� arrependido de ter aberto a porta. - Deixe de
besteira, v�. S� estou com dor de est�mago.
Voc� fumou maconha, R�gis?
- N�o.
Fumou, sim. Sinto o cheiro. Est� impregnado em voc�, no
seu cabelo, em suas roupas.
- Eu n�o fumei nada.
- N�o tente me enganar. Conhe�o esse cheiro.
- Conhece como? Por acaso j� fumou tamb�m?
Por pouco ela n�o lhe deu um bofet�o. Em vez disso, centrou
a mente em Deus, fez uma ora��o pedindo discernimento e rebateu
com pesar:
- Eu nunca fumei isso em toda a minha vida. Conhe�o o
cheiro de tanto senti-lo naquela pra�a maldita. Posso ser velha,
mas n�o sou tola. J� vi na televis�o pessoas com sintomas dessa
droga. E voc�, decididamente, est� com cara de quem fumou.
Reconhecendo-se descoberto, a primeira rea��o de R�gis foi
pensar em fugir. Depois, quis gritar com a av�, mand�-la n�o se
intrometer em sua vida. Mas a superioridade moral dela o tolheu,
obrigando-o a silenciar
- Vou me deitar - balbuciou ele. - N�o estou me sentindo
bem.
Entrou de volta no quarto, atirando-se na cama pesadamente.
Em instantes, adormeceu. Cl�ia o observava com olhos �midos,
sentindo uma vontade louca de chorar. Pensou em telefonar para
Ge�rgia, mas n�o valia a pena preocup�-la no trabalho. Esperaria
que ela chegasse.
Quando R�gis acordou horas mais tarde, a casa estava
em completo sil�ncio. Devia ser perto da hora do jantar, porque
as luzes da cozinha estavam acesas e um cheirinho gostoso de
comida se espalhava no ar. Agora, realmente, o est�mago doeu,
revelando uma fome acima do normal.
199


A passos cuidadosos, R�gis entrou na cozinha, Cl�ia mexia
uma panela no fog�o, enquanto Ge�rgia, sentada � mesa, tinha os
olhos e o nariz vermelhos. Ela andara chorando,
- M�e - chamou ele. - Est� tudo bem?
Assim que ela o fitou, R�gis sentiu o cora��o se contrair. V�-la
triste por sua causa trouxe-lhe uma dor quase insuport�vel. Ela n�o
disse nada. Estendeu os bra�os para ele, que se ajoelhou diante
dela, e apertou-o o mais que p�de, umedecendo-lhe os cabelos
com suas l�grimas, permitindo que ele ouvisse as batidas de seu
amor. Ele sabia por que ela estava chorando. Uma vergonha sem
precedentes o assaltou, levando-o a maldizer a hora em que resolvera
seguir Alex naquela pra�a maldita, como bem definira a av�,
R�gis permaneceu aninhado nos bra�os da m�e, envolvido
pela onda de amor que partia dela, � espera de que ela dissesse
alguma coisa. Ge�rgia, por�m, n�o dizia nada. N�o sentia
vontade de fazer-lhe acusa��es nem cobran�as, nem recrimina��es,
apenas uma dor latejante, persistente, cruel, Era seu
filho que ela tinha nos bra�os, o menino por quem ela trocara a
felicidade ao lado do homem que amara para que ele nascesse
N�o podia perd�-lo.
Como Ge�rgia n�o dizia nada, apenas chorava agarrada a
ele, R�gis decidiu falar. O sil�ncio dela era uma agonia. Ela n�o lhe
cobrava nada. R�gis sentia partir dela tristeza e amor, misturados
no mesmo abra�o.
- N�o chore, m�e, por favor - pediu ele, a voz embargada
de vergonha, quase inaud�vel.
- N�o quero perder voc� - ela revelou, ap�s alguns segundos.
- Posso suportar qualquer coisa na vida, menos perder voc�.
- Voc� n�o vai me perder,
- Tenho medo.
- N�o precisa ter medo. Olhe, m�e, n�o vou mais fazer isso.
Prometo.
Ele olhou para a av�, temendo haver se precipitado na revela��o,
mas o olhar de assentimento dela o fez ver que n�o.
200

- Como posso impedi-lo de seguir o seu destino? - Ge�rgia
desabafou. - O que fazer para evitar o seu sofrimento? Se voc�
n�o fizer o melhor pela sua vida, ningu�m vai conseguir fazer. N�o
adianta eu pedir, implorar. A escolha � sua, sempre ser� sua.
- N�o foi nada de mais. Foi s� curiosidade, uma aventura.
- R�gis, R�gis... A quem quer enganar? A curiosidade � a
redescoberta de algo que a alma j� conhece, seja de bom ou ruim.
Mesmo sem entender, R�gis n�o lhe deu raz�o. Desconhecia
as experi�ncias de outras vidas, mas sabia que nunca mais usaria
qualquer tipo de droga outra vez. O resultado fora terr�vel, angustiante,
levara-o a ter ilus�es ou ver fantasmas, n�o sabia bem.
- Sei que n�o adianta eu prometer que nunca mais vou
fumar um cigarro de maconha. Voc�s n�o v�o acreditar, mas
vou lhes provar isso.
- Eu acredito - afirmou Ge�rgia. - Se voc� diz, eu acredito.
R�gis abra�ou-a com amor, sentindo o amor que flu�a dela
tamb�m. Em seguida, deu um abra�o na av� e pediu-lhe desculpas
pelo que fizera.
- Voc� n�o precisa se desculpar comigo - disse Cl�ia.
- N�o precisa se desculpar com ningu�m, a n�o ser com voc�
mesmo. � uma sabotagem ao seu bem-estar.
Era estranha a rea��o de R�gis. Em casa, era uma pessoa
totalmente diferente do que era l� fora. Muitas das coisas que
prometia � m�e eram esquecidas t�o logo ele cruzava a porta da
rua. Dessa vez, contudo, era diferente. N�o tinha mais vontade de
fumar maconha nem nada do g�nero, n�o apenas porque lhe fizera
mal, mas porque faria a m�e sofrer.
No dia seguinte, ao encontrar Alex na esquina, R�gis pensou
em n�o falar com ele. O outro postou-se a seu lado, caminhando
com ele em dire��o � escola.
- Puxa, R�gis, o que deu em voc�? - falou. - Voc�
desapareceu.
- Eu passei mal, est� bem? Nunca mais quero fumar maconha
enquanto viver.


- D� um tempo, R�gis! Sem exageros.
- Estou falando s�rio. Passei muito mal, pensei at� que
fosse morrer.
Ele n�o queria dizer que sua decis�o tinha a ver com a
m�e, temendo que Alex debochasse dele, chamando-o de filhinho
da mam�e.
- Voc� � quem sabe - Alex deu de ombros. - Mas n�o vai
me caguetar, vai?
Est� pensando que eu sou igual a voc�? N�o sou delator.
Durante o resto da semana, impressionado com a atitude da
m�e, R�gis n�o se meteu em nenhuma encrenca. Continuava a
amizade com Alex, no entanto nunca mais o seguira para cruzar
a pra�a. Como a m�e lhe orientara, passava pela cal�ada, do outro
lado, se poss�vel.
- Sua m�e � um p� no saco - comentou Alex, irritado
porque R�gis n�o o acompanhava mais.
N�o fale assim da minha m�e! - rosnou R�gis, agarrando
o outro pela gola da camisa.
- Tudo bem, n�o fique bravo. Desculpe-me, pode me soltar.
Mas � que voc� deixa de se divertir por causa dela.
- N�o se trata disso. Eu � que n�o quero ir.
- Ainda se fosse seu pai - continuou ele, ignorando a
desculpa de R�gis. - A palavra do pai � mais forte, imp�e respeito.
Mas da m�e... Sinceramente, R�gis, n�o d� para ter medo de m�e.
- N�o tenho medo da minha m�e.
- Nem do seu pai?
- Meu pai morreu.
- Morreu? Quando?
- Antes de eu nascer. N�o o conheci.
- Voc� acreditou nisso? Essa � boa. � a desculpa de toda
mulher quando n�o quer assumir que se deitou com o marido
de algu�m.
- Minha m�e n�o fez isso! - irritou-se, fechando os punhos
em sinal de amea�a. - Retire o que disse!
202


- Solte-me, R�gis! - enfureceu-se, empurrando-o para tr�s.
- Quer saber? J� estou cheio de voc�.
Alex entrou na pra�a, enquanto R�gis seguiu pelo outro lado,
a caminho de casa. Alex o deixara furioso, dizendo coisas das
quais nada sabia. A m�e nunca mentira para ele. Se dissera que o
pai havia morrido, ent�o era verdade.
Curiosamente, por�m, ele n�o tinha o nome do pai em sua
certid�o de nascimento. A m�e lhe dissera que era porque ele morrera
antes de ele nascer, o que impedira o registro. At� ent�o, ele havia
aceitado aquela justificativa sem maiores questionamentos. Mas,
agora que Alex levantara a quest�o, as d�vidas o assaltaram.
- Isso mesmo - incentivou Damien, ao lado dele. -
Interrogue sua m�e, coloque-a contra a parede. Vai ver a boa bisca
que foi o seu pai.
- Por que est� fazendo isso? - indagou T�cio, em tom de
censura. - Ele n�o precisa saber nada de mim.
- N�o seja besta. Saber que � filho de um estupro vai lhe trazer
revolta. Quem sabe assim ele n�o desgruda um pouco de Ge�rgia?
- Ah! �! E quem sabe tamb�m ele n�o vai se consolar nas
drogas? Perdeu o ju�zo, Damien? N�o sabe que R�gis tem tudo
para se viciar?
- O nome dele � Mizael. Quanto �s drogas, n�o creio que
ele v� busc�-las novamente. Agora, Ge�rgia � um empecilho, voc�
tem que reconhecer. Se enfraquecermos a imagem de deusa que
ele criou da m�e, talvez ele nos d� mais ouvidos.
- Ele j� nos ouve bastante. N�o precisamos coloc�-lo
contra Ge�rgia.
Cansado dos embates com T�cio, Damien n�o respondeu.
N�o aguentava mais aquela miss�o. Fizera o que achara melhor,
intuindo o menino para perguntar de seu passado. Se ele faria isso
ou n�o, se T�cio tentaria impedi-lo, n�o era problema dele.
T�cio n�o conseguiu mais alcan��-lo. Depois de deixar Alex
na pra�a, R�gis seguiu para casa, pensando no pai, no tipo de
homem que fora em vida. E por que ele n�o o registrara? Mesmo
203


que tivesse morrido, a m�e poderia t�-lo feito. Afinal, n�o era
casada com ele?
Pensando bem, a m�e jamais dissera que fora casada. E n�o
havia sequer uma foto deles dois em casa. Ele nunca nem vira
um retrato do pai. Mentalmente foi desdobrando os acontecimentos
relacionados a seu nascimento. Ele pouco perguntara do pai,
naturalmente aceitando a palavra da m�e de que ele havia morrido.
Pequeno, n�o tinha por que question�-la. Agora, por�m, aos
treze anos, n�o era mais t�o ing�nuo. Havia alguma coisa errada,
ele intu�a. Precisava descobrir, e ningu�m melhor do que a m�e
para lhe contar.
Esperou at� que ela chegasse do trabalho para interrog�-la.
Logo nas primeiras perguntas, os olhos de Ge�rgia encheram-se
de l�grimas. Vendo que o assunto lhe fazia mal, R�gis retrocedeu,
devolvendo aos pensamentos as desconfian�as que o assaltavam.
Sua curiosidade n�o era maior do que o medo de machucar
a m�e, por isso, durante um tempo, ocultou a frustra��o e n�o
tocou mais no assunto.
204

capitulo
24
Com uma diferen�a de quatro anos, Nat�lia e Patr�cia tinham
interesses distintos em �pocas iguais. Enquanto Nat�lia ganhava
corpo e formas de mulher, perdendo a inoc�ncia que J�lio tanto
admirava, Patr�cia mantinha a apar�ncia pueril da inf�ncia, coisa
que mais o atra�a nas filhas. Tinha medo de que, crescendo, as
meninas se tornassem mulheres iguais � m�e.
Ele gostava das duas, contudo n�o podia negar que Patr�cia
era sua preferida. O temperamento de ambas era muito diferente.
Nat�lia, apesar de mais doce, era muito sincera, demonstrando
claramente o que sentia. J� Patr�cia era dissimulada, fingindo
gostar das mesmas coisas que J�lio s� para agrad�-lo e, com
isso, permanecer na lideran�a do afeto.
Apesar de amar as filhas, Bianca n�o fazia o estilo maternal.
Desde o nascimento de Patr�cia, com a rejei��o de J�lio, levava
uma vida f�til, gastando tudo que podia, dormindo com todo tipo
de homens. Como J�lio tamb�m tinha seus casos, o casamento
era apenas de apar�ncias, uma esp�cie de satisfa��o � sociedade
e uma forma de se manterem perto das meninas.
J�lio jamais abriria m�o de ficar com elas e sabia que Bianca
insistiria na guarda para n�o perder a pens�o. E ainda havia a
divis�o de bens, um patrim�nio que ele conseguira reunir durante


aqueles anos todos de casamento: um apartamento na zona sul da
cidade, um carro do ano e alguns poucos milhares na poupan�a.
Quando Nat�lia completou quinze anos, J�lio e Bianca fizeram
quest�o de presente�-la com uma bonita festa de debutante,
embora ela preferisse uma viagem ao Nordeste. Tratava-se de
manter a imagem de fam�lia bem estruturada, conservadora, abastada.
Coisas para as quais Nat�lia, efetivamente, n�o ligava, mas
que enchiam os olhos de Patr�cia.
Logo que viu a irm� vestida em seu lindo vestido branco de
festa, Patr�cia experimentou um sentimento que a acompanharia
por toda a vida e com o qual n�o sabia lidar. A inveja deu uma
espetada em seu cora��o, levando-a, instantaneamente, a desejar
o que Nat�lia possu�a.
- Quando voc� fizer quinze anos, vai ganhar uma festa
ainda mais bonita - prometeu J�lio.
- Vai demorar muito - queixou-se ela. - Quero uma festa
agora
- Agora n�o vai dar, meu bem. Mas vou lhe comprar um
vestido lindo. O que voc� acha?
- Mais bonito do que o de Nat�lia?
- Nat�lia j� � uma mo�a e usa coisas diferentes. Vou lhe
comprar o mais bonito para a sua idade.
- Quero ficar mais bonita do que ela.
- Voc� n�o precisa - confidenciou ele, apertando seu
queixinho. - Voc� j� � naturalmente a mais bonita.
Patr�cia sentiu o peito inflar. Tudo o que mais queria era ser
melhor do que Nat�lia. As duas meninas eram lindas, alegres,
extrovertidas. S� que Nat�lia possu�a o cora��o puro, ao passo
que Patr�cia nascera com tend�ncias daninhas que era preciso
controlar.
No dia da festa, ambas pareciam duas princesas. Nat�lia,
com seu vestido branco cintilante, os cabelos soltos sobre os
ombros, maquiagem leve, por�m iluminadora. Tudo para real�ar
ainda mais seu brilho natural.
206


Patr�cia, por sua vez, brigava com a m�e para deix�-la parecida
com a irm�. Seus longos e belos cabelos encaracolados foram
cuidadosamente ajeitados para esparramar-se sobre as esp�duas,
qual fin�ssima cascata ondulante. O vestido era verde-�gua, fazendo
um contraste impressionante com sua pele morena e sedosa.
Ela queria usar uma maquiagem extravagante, chamativa, mas a
m�e n�o deixou.
- Voc� n�o quer parecer uma boneca de pano, quer?
Patr�cia meneou a cabe�a, com raiva. Tinha certeza de que
Nat�lia estava mais bonita do que ela. Ao entrarem no sal�o de
festas, todos os olhos se voltaram para Nat�lia. Patr�cia vinha logo
atr�s, recebeu muitos elogios, mas n�o se contentou. Queria ser o
centro das aten��es.
- Ningu�m me d� bola - reclamou com o pai. - N�o �
justo. Estou mais bonita do que ela.
- � claro que est� - confortou J�lio. - S� que hoje � o
anivers�rio da sua irm�. Por isso, todo mundo est� olhando para
ela, e n�o para voc�. Quando for a sua vez, vai ser o contr�rio.
Mesmo emburrada, Patr�cia teve de se conformar. Acabou
distraindo-se com os primos e os amigos, correndo pelo sal�o,
dan�ando, esbarrando nas mesas. Esqueceu-se um pouco de
Nat�lia, at� que a Valsa do Imperador18 come�ou a tocar. Patr�cia
procurou o pai com o olhar. L� estava ele, no centro do sal�o,
pronto para dan�ar a valsa com Nat�lia.
Imediatamente, seu cora��o transbordou de inveja. Queria
ela estar nos bra�os dele. A irm�, naquele momento, era a usurpadora
da sua felicidade. Rapidamente, o despeito a dominou.
Patr�cia largou as brincadeiras, circulando o sal�o, olhos fixos no
pai e na irm�. Aos poucos, outros casais se juntaram a eles, acompanhando-
os na valsa. Patr�cia n�o tinha par. S� os mais velhos
podiam dan�ar. N�o era justo.
18 Valsa de Johann Strauss.
207


Parada em uma das extremidades do sal�o, viu o rapaz que
Nat�lia estava namorando, � espera de que J�lio a passasse para
os bra�os dele. Como quem n�o quer nada, aproximou-se, a ideia
montada na mente.
- Oi, Bruno - cumprimentou, parando ao lado dele.
- Oi - respondeu ele, sem muito interesse.
- Nat�lia est� linda, n�o est�?
- Ela � maravilhosa - embeveceu-se, sem desviar os
olhos dela.
- Pena que s� goste de meninas.
- Como assim?
- Ela n�o lhe contou? - ele meneou a cabe�a. - Nat�lia
� l�sbica.
- O qu�?!
- N�o � assim que se chamam meninas que gostam de
meninas?
- O que est� dizendo, Patr�cia? Ficou maluca?
- Voc� n�o sabia? - ela fingiu surpresa. - Ai, meu Deus,
por que fui contar? Jurava que voc� era amigo dela e estava s� prestando
um favor, para que nossos pais n�o desconfiassem de nada.
- N�o � poss�vel. Como voc� sabe disso?
- Eu descobri. Peguei-a aos beijos e abra�os com uma
amiga da escola. E nem sabia que meninas podiam beijar meninas.
- N�o � verdade - balbuciou ele, at�nito. - Ela me beijou
e tudo, disse que gosta de mim.
- Eu e minha l�ngua comprida - choramingou Patr�cia,
fingindo arrependimento e p�nico. - Ela me fez jurar segredo e
agora vai querer me matar. Como pude ser t�o boba? Jurava que
voc� sabia de tudo. E, se meus pais descobrirem, vai ser pior. Ela
nunca mais vai falar comigo. E eu adoro a Nat�lia. Vai ser horr�vel
ficar sem falar com ela.
- N�o se preocupe, n�o direi nada.
O jovem estava no auge da confus�o. Podia jurar que Nat�lia
gostava dele. Ser� que ela fingia t�o bem assim? Talvez fosse
208


melhor esclarecer as coisas, mas prometera a Patr�cia que n�o a
colocaria em uma situa��o dif�cil.
Nesse momento, J�lio entregou-lhe a filha, para que ele
dan�asse com ela. Bruno tomou-a nos bra�os, observando-lhe a
fisionomia doce, sentindo sua feminilidade contagiante. Em meio
� valsa, ele tentou beij�-la, mas ela se esquivou, olhando para ele
com ar de recrimina��o. N�o ficava bem beijarem-se no meio do
sal�o, diante dos olhares atentos dos pais. Na cabe�a dele, ela o
rejeitava simplesmente porque ele n�o lhe agradava.
Durante o resto da noite, Bruno permaneceu arredio, vendo
segundas inten��es em todos os gestos de Nat�lia com as meninas.
Ela nem desconfiou. Continuava rindo e conversando com
as colegas, animada demais com a festa para perceber a perturba��o
do garoto.
S� no dia seguinte, quando ela ligou para ele, foi que notou
que havia algo errado. Encontrou-o na escola, tentou falar com
ele, mas Bruno sempre se esquivava. Por fim, no final da semana,
conseguiu abord�-lo:
- O que foi que houve, Bruno? Fiz alguma coisa de que
voc� n�o gostou?
Ele a olhou com uma certa impaci�ncia. N�o gostava de ser
enganado.
- Deixe para l�, Nat�lia - desconversou ele. - N�o estou
com raiva nem nada. S� n�o quero mais sair com voc�.
- Por qu�? O que foi que eu fiz?
- Voc� sabe.
Sem esperar resposta, Bruno rodou nos calcanhares e foi
embora, deixando-a abismada, sem entender. Ela ainda tentou
telefonar algumas vezes, mas ele mandava dizer que n�o estava.
Na escola, continuava evitando-a, at� que ela desistiu. Tamb�m
tinha o seu orgulho.
Em casa, ela andava acabrunhada, triste, sem muito �nimo
para conversar. Tanto Bianca quanto J�lio perceberam e foi este o
primeiro a se interessar:
209


- O que foi que houve, minha filha? Por que anda t�o triste?
- Nada.
- Nada, n�o. Alguma coisa aconteceu.
- Brigou com o namorado? - disse Bianca.
- N�o � bem isso - disse ela, as l�grimas j� se insinuando.
- Foi o Bruno. Est� estranho, me evitando. N�o sei o que fiz.
- Voc� n�o fez nada - rebateu Bianca. - Os homens s�o
todos iguais. N�o prestam desde meninos.
J�lio olhou-a com irrita��o, tentando ignorar suas provoca��es.
- Deixe Bruno para l�. Voc� � uma menina linda; aposto como
h� muitos rapazes atr�s de voc�. Bruno � um bob�o, n�o a merece.
- � isso mesmo - incentivou Bianca. - N�o ligue para ele.
Se arranjar outro, logo voc� o esquece.
Nat�lia n�o estava bem certa. Podia esquec�-lo, mas do�a-
-lhe n�o saber o motivo de sua indiferen�a. Considerava injustas
as evasivas dele. Se ela fizera algo que o desgostara, ele devia lhe
falar, dar-lhe uma chance de se explicar.
Era com uma satisfa��o m�rbida que Patr�cia acompanhava
esses fatos. Ver a irm� triste dava-lhe indescrit�vel prazer.
- Por que Bruno brigou com voc�? - perguntou ela, com
aparente inoc�ncia.
- Ele n�o brigou.
- Mas ent�o, por que ele n�o vem mais aqui?
- N�o sei. Deixe isso para l�. Voc� ainda � muito pequena
para entender.
N�o era. Patr�cia n�o s� compreendia tudo, como era capaz
de arquitetar planos eficientes para atrapalhar a felicidade de
Nat�lia e, com isso, promover a sua. Ao menos era essa a ilus�o
que ela alimentava. Achava que, roubando a alegria da irm�, ela
seria mais feliz. N�o sabia que, quando algu�m perde a alegria,
ela n�o se transfere para mais ningu�m.
210


Os namorados seguintes de Nat�lia tiveram fim parecido. A
mo�a n�o compreendia por que seus relacionamentos n�o davam
certo. Sempre que se interessava muito por algu�m, ele desaparecia.
S� ficavam aqueles por quem n�o tinha muito interesse.
Julgava n�o ter sorte com os homens, sem saber que Patr�cia
cuidava de envenenar todas as suas rela��es. Na maioria das
vezes, deixava escapar, sem querer, que a irm� estava interessada
em alguma menina ou que havia sa�do com um amigo mais �ntimo.
Instaurados o ci�me e a d�vida, eles terminavam o namoro.
Como Nat�lia era ainda muito jovem, n�o tivera tempo de ter muitos
namorados, de forma que n�o deu para desconfiar das fofocas de
Patr�cia. Ing�nua, tamb�m n�o percebia as artimanhas da irm�,
que sempre arranjava um jeito de deix�-la mal ou afast�-la do pai.
No domingo, dia de sol, J�lio acordou mais tarde do que de
costume. As filhas haviam ido � praia com Bianca, mas ele preferiu
n�o ir. Gostava de ficar em casa e aproveitar a manh� para dormir,
luxo que n�o podia se dar nos dias de semana. Sentou-se � mesa
da cozinha para tomar caf� e ler o jornal.
N�o conseguiu. A cabe�a cheia de novidades n�o se centrava
nas not�cias. Bianca ainda n�o sabia, mas ele recebera uma
proposta irresist�vel. Uma promo��o para a diretoria executiva do
banco, s� que em S�o Paulo, onde ficava a sede. Sabia que seria
dif�cil convencer a mulher a se mudar do Rio de Janeiro, mas ele
n�o podia recusar aquela oferta. Era a realiza��o de toda uma
vida, tudo por que sempre trabalhara.
O cargo deveria ter sido oferecido a Anselmo, um homem
mais velho, mais experiente. Mas Anselmo metera os p�s pelas
m�os. Defensor da moral e dos bons costumes, acabou se envolvendo
com uma estagi�ria do banco, flagrado no almoxarifado em
pleno ato sexual. Foi uma vergonha. S� n�o ganhou ajusta causa,
com que ele antes amea�ara tantos empregados, porque a diretoria
do banco quis evitar o esc�ndalo.
O fato, contudo, chegou aos ouvidos da mulher, que acabou se
divorciando. Anselmo ficou arrasado, sofrendo as consequ�ncias


de tudo aquilo que recriminara a vida inteira. Agora, perto da
aposentadoria, com dificuldades para encontrar novo emprego,
vendia sandu�che natural na praia para conseguir pagar as cotas
faltantes da previd�ncia, at� se aposentar.
Apesar da pena que sentia de Anselmo, J�lio n�o deixava
de agradecer-lhe a oportunidade que lhe dera. N�o fosse a sua
imprud�ncia, ele teria de esperar ainda alguns anos para galgar
�quela posi��o ou, quem sabe, nunca chegaria at� ela. Por isso
� que sabia que n�o poderia recusar a promo��o. Mesmo que
Bianca n�o o acompanhasse, teria de aceitar.
A mulher j� n�o lhe fazia mesmo falta. Viviam um casamento
de apar�ncias. Sentiria saudade apenas das filhas. Nat�lia e Patr�cia
eram seu maior tesouro, principalmente a ca�ula. At� j� se esquecera
de que ela n�o era sua filha de verdade. Por mais estranho que
pudesse parecer, a afinidade que tinha com a menina tornava sem
import�ncia o fato de ela n�o ser sangue do seu sangue.
A partir do momento em que aceitou Patr�cia em seu cora��o,
J�lio se desligou definitivamente de Bianca. Ela que tivesse
os homens que quisesse, desde que n�o arranjasse outros filhos.
Por sorte, Bianca fizera a ligadura de trompas logo ap�s o nascimento
de Patr�cia, evitando, assim, surpresas desagrad�veis. E ele
n�o aceitaria criar outra crian�a que n�o fosse sua. Com Patr�cia
fora diferente. Ele se afei�oara � menina, que nada tinha a ver com
as sandices da m�e.
Assim como o filho de Ge�rgia nada tinha a ver com a viol�ncia
do pai. Patr�cia lhe mostrara que era poss�vel aceitar o filho de outro
homem, gostar dele como se fosse seu pr�prio. O que dizer do filho
de Ge�rgia? Ele n�o sabia, talvez nunca descobrisse. Com Bianca,
n�o fizera a mesma press�o para que abortasse. Pensou que fosse
detestar a crian�a, contudo amava-a muito mais do que qualquer outra
pessoa. Teria ele sido capaz de amar tamb�m o filho de Ge�rgia?
Quando elas chegaram da praia, J�lio j� havia preparado o
almo�o. N�o era de seu feitio cozinhar, mas se sa�a bem com a macarronada.
Famintas, sentaram-se � mesa para comer, ainda de biqu�ni.


- Est� uma del�cia, pai - elogiou Nat�lia.
- Voc� � muito boazinha - gracejou ele. - Est� mais ou
menos.
- Voc� n�o faz nada mais ou menos - objetou Patr�cia. -
Tudo que faz � maravilhoso.
Aquele era o momento. Ele soltou o garfo no prato, olhou de
uma para outra e come�ou a falar:
- Muito bem, se tudo o que fa�o � maravilhoso, ent�o tenho
uma not�cia maravilhosa para dar.
As tr�s o encararam ao mesmo tempo, � espera da not�cia.
Vendo seus olhares ansiosos, sentiu a coragem se esvair, at� que
Bianca o cutucou e falou com irrita��o:
- N�o vai contar o que �, n�o? Para que o suspense?
- Fui promovido - falou de chofre.
- Que maravilha! - exclamou Bianca, j� pensando nas
joias que poderia comprar. - A qu�?
- Diretor executivo.
- E paga bem?
- Muito bem.
*- Legal, pai - disse Nat�lia. - Parab�ns!
- �, pai, parab�ns! - repetiu Patr�cia.
- S� tem um probleminha - comentou ele.
- Que probleminha? - perguntou Bianca.
- Vamos ter que nos mudar para S�o Paulo.
Foi um sil�ncio geral. Todas pararam de mastigar ao mesmo
tempo, encarando-o com espanto.
- Eu n�o vou - afirmou Bianca. - N�o vou mesmo.
- Ora, vamos, Bianca, n�o � t�o ruim assim. Vou ganhar
mais do que o dobro do que estou ganhando hoje.
- Eu vou, papai - disse Patr�cia. - Vou para qualquer lugar
com voc�.
- Gostaria que f�ssemos todos juntos - retrucou, esperan�oso.
213


- Nada disso - insistiu Bianca. - N�o saio daqui de jeito
nenhum.
- Quer que eu recuse a promo��o?
- N�o. S� acho que n�o precisamos nos mudar. Voc� pode
pegar a ponte a�rea.
- Todo dia?
- Voc� vai na segunda de manh� e volta sexta � noite. Muita
gente faz isso.
- � muito cansativo e dispendioso.
- Ent�o, pode vir de quinze em quinze dias. Ou uma vez
por m�s. N�o me mudo do Rio por nada. N�o vou trocar a praia por
um monte de fuma�a.
- N�o � bem assim, m�e - contrap�s Nat�lia, - Existem
coisas boas em S�o Paulo, assim como o Rio tamb�m tem polui��o.
- Pois, quando aparecerem as coisas boas, pode me chamar.
De resto, fico por aqui.
- Lamento que voc� pense assim, Bianca - ponderou
J�lio. - H� anos sonho com essa promo��o. N�o posso simplesmente
recus�-la s� porque minha mulher n�o quer se mudar.
- Eu n�o disse para voc� recusar. Acho apenas que tenho
o direito de n�o querer sair da minha casa.
- Voc� � quem sabe. A escolha � sua, mas eu vou.
- E n�s? - tornou Patr�cia, agarrada ao pai. - Quero ir
aonde voc� for.
- Se sua m�e deixar... - divagou ele, fitando Bianca
discretamente.
- Tem gra�a voc� querer tirar minhas filhas de mim - retrucou
Bianca, com medo de perder a boa vida caso as meninas se
mudassem dali.
- Ah, pai - choramingou ela, encarando Bianca com raiva.
- Voc� vai vir nos fins de semana? - quis saber Nat�lia.
- Vai ficar muito puxado. Talvez venha de quinze em quinze
dias ou uma vez por m�s, como sugeriu sua m�e.
- Por mim, tudo bem - concordou Bianca.


- E voc�s, meninas? - ele dirigiu-se �s filhas. - O que
dizem?
Nat�lia concordou, mas Patr�cia n�o queria se separar do pai.
- N�o quero - disse ela, aos prantos. - Vou morrer de
saudades.
- Tamb�m vou ficar com saudades de voc�s. Mas olhe, papai
vai lhe trazer um presente toda vez que voltar.
- Que tipo de presente?
- O que voc� quiser.
- Quero um v�deo game.
- Muito bem. Que seja. Um v�deo game.
- E um notebook.
- V� devagar, querida. Uma coisa de cada vez.
Ela se agarrou a ele, realmente triste com a sua partida.
- Vai me ligar todo dia? - pediu ela, queixosa.
- Com certeza.
- Pode me comprar um celular? Para poder falar com voc�
quando eu quiser?
- Est� bem.
- N�o tem gra�a gastar dinheiro com celular para uma
crian�a - op�s-se Bianca.
- Deixe, m�e - intercedeu Nat�lia. - Vai fazer bem a Patr�cia.
- S� posso comprar um - anunciou J�lio, olhando para a
outra filha.
- N�o faz mal, pai, o meu ainda est� bom - falou Nat�lia.
- D� um para ela.
J�lio sentiu um certo remorso. Um celular n�o custava t�o
caro assim. Podia comprar dois, se quisesse, mas a� teria de dar a
Patr�cia um aparelho mais barato.
Finalmente, J�lio conseguiu ajeitar as coisas. Como o div�rcio
estava em seus planos, trataria de n�o aumentar o patrim�nio
enquanto estivesse casado. Bianca podia ficar com o apartamento
do Rio, que agora lhe parecia pequeno, simples demais para suas
ambi��es. Separar-se das filhas � que seria o mais doloroso, mas
215


era por uma boa causa. Com o tempo, esperava que elas fossem
morar com ele, diminuindo o custo de uma poss�vel pens�o.
Da� a dois meses, J�lio embarcou para S�o Paulo. L�, abriu
uma caderneta de poupan�a em nome de Patr�cia, com o seu CPF,
sem o conhecimento de Bianca, s� por precau��o, para que ela
n�o ficasse de olho grande no seu dinheiro. Nela efetuava dep�sitos
vultosos, para sacar antes de a filha completar dezoito anos,
mas depois do div�rcio.
Vinha ao Rio de quinze em quinze dias, como programado,
trazendo presentes cada vez mais caros para Patr�cia e Nat�lia.
Para Bianca, uma coisinha ou outra, nada de especial, j� amadurecendo
a ideia do div�rcio.
216

capitulo
25
O maior desejo de R�gis passou a ser descobrir tudo sobre
sua origem. Durante a inf�ncia, pouco se incomodara com aquilo,
mas depois que Alex o alertara, vivia pensando em como seria
seu pai. As tentativas de descobrir tudo com a m�e nunca surtiam
efeito. Seus olhos marejados faziam-no sentir-se culpado pela
curiosidade, e ele sempre retrocedia. Agora, por�m, estava decidido.
J� n�o era mais crian�a, tinha o direito de saber.
Passava das dez horas quando ele saiu do quarto. A m�e e a
av� estavam na sala, assistindo a um DVD. Ele se sentou ao lado
delas, fingindo prestar aten��o ao filme. Agora seria mais direto,
sem lhe dar tempo de se desmanchar em l�grimas.
- M�e - chamou. - Posso lhe fazer uma pergunta?
- � claro, meu filho. O que �?
- O que foi que houve com o meu pai?
A pergunta deixou-a desconcertada. Era a primeira vez que
ele a abordava daquela maneira. Ge�rgia olhou para Cl�ia, que evitou
encar�-la.
- Seu pai morreu, j� disse.
- Morreu de qu�? Quando? Ele era jovem? E por que voc�s
n�o se casaram?
Ge�rgia deu pausa no DVD e olhou para ele.


- Por que quer saber isso agora? - indagou, preocupada.
- Por que n�o? Estou crescido, acho que � meu direito.
Fitando Cl�ia de soslaio, Ge�rgia disse com cautela, esfor�ando-
se para conter as l�grimas:
- Seu pai era um homem muito doente.
- Que doen�a ele tinha? Era algo contagioso?
- N�o.
- Era o qu�? Algum tipo de c�ncer?
Ge�rgia olhou novamente para a m�e, em busca de ajuda.
Um olhar impercept�vel de Cl�ia a estimulava a falar sobre o passado.
Ela nunca pensara em mentir para R�gis, mas era-lhe dif�cil
falar sobre coisas que haviam lhe causado tanta dor.
- Talvez voc� n�o goste de saber.
- Por qu�? � algo t�o terr�vel assim?
- Mais ou menos - disse ela, escolhendo as palavras com
cautela. - Na verdade, seu pai... seu pai era viciado em drogas.
Morreu de overdose.
A revela��o escapou subitamente, um desabafo que havia
muito oprimia o peito de Ge�rgia.
O qu�?! - indignou-se R�gis, - Como � que voc� foi se
meter com algu�m assim?
- Eu n�o sabia - foi a desculpa que ela logo arranjou.
- Como voc�s se conheceram?
- Num churrasco.
- Ele era casado?
- N�o. Estava se divorciando. A mulher dele o largou por outro.
Nesse ponto, ela estava chorando, mas R�gis fingiu n�o notar.
N�o daquela vez.
- N�o entendo voc�, m�e - tornou com uma certa revolta
- Vive se fazendo de certinha e foi se envolver justo com um viciado.
Ela n�o disse nada, as l�grimas n�o permitiam. Cl�ia, contudo,
se adiantou:
- N�o se apresse em julgar sua m�e, R�gis. Voc� n�o faz
ideia do que ela passou para ter voc�.
218


- Pois ent�o me contem. O que foi que houve?
Ge�rgia n�o conseguia falar. Um medo atroz de que ele a
acusasse quase paralisou seu cora��o. Cl�ia queria contar-lhe sobre
o estupro, mas Ge�rgia a fizera prometer que n�o diria nada. N�o
queria que R�gis se tornasse ainda mais revoltado do que j� era.
- R�gis, por favor - suplicou ela. - Deixe o passado onde
est�.
- O passado � meu tamb�m. Voc� n�o tem o direito de
me esconder nada. E n�o � voc� que vive se gabando de nunca
mentir para mim?
- N�o estou mentindo.
- Est� me ocultando algo. As duas est�o. O que �? Tenho
o direito de saber.
- N�o h� mais nada para saber, R�gis - esclareceu
Cl�ia. - Essa � a vida da sua m�e, n�o sua. H� coisas no passado
que somente a ela dizem respeito.
- Voc� n�o entende, m�e - ele ajoelhou-se ao lado dela,
segurando-lhe as m�os. - � horr�vel n�o conhecer sua pr�pria
hist�ria. As pessoas fazem coment�rios maldosos, Alex at� insinuou
que meu pai era casado e que n�o me registrou por causa disso.
- N�o foi por isso
- Eu sei, acredito em voc�. Mas existe algo que voc� n�o
quer me contar, e � isso que me deixa louco. S� posso pensar que
tem a ver com o meu nascimento.
- Deixe sua m�e em paz, R�gis - disse Cl�ia. - Ela j�
sofreu demais.
- Por qu�? O que houve que a fez sofrer tanto? Fui eu?
- � claro que n�o - contestou Ge�rgia. - Voc� � meu
maior tesouro.
- Ent�o, o que foi? Do que teve que abrir m�o para ficar
comigo?
Com um suspiro doloroso, Ge�rgia fitou Cl�ia por uns momentos.
- Pare com isso, R�gis - censurou Cl�ia. - Est� fazendo
sua m�e sofrer.
219


- N�o tem import�ncia - falou Ge�rgia, visivelmente
abalada. - Ele tem raz�o, m�e. Se quer saber a verdade, � o
que lhe direi.
Ge�rgia estreitou-o com amor, deixando que ele se envolvesse
mais uma vez naquela onda energ�tica e poderosa. Ante o
olhar ansioso de Cl�ia, Ge�rgia revelou:
- Eu era noiva quando conheci seu pai. Envolvi-me com ele,
engravidei. Depois que ele morreu, meu ex-noivo quis aceitar-me
de volta, mas com a condi��o de que eu abortasse voc�.
R�gis n�o sabia o que realmente sentia: se revolta porque ela
tra�ra o noivo ou se alegria porque ela abrira m�o do casamento
para que ele pudesse nascer. Descobriu que o fato de estar vivo
era muito mais importante. Al�m do mais, ainda que quisesse, n�o
poderia revoltar-se contra a m�e.
- O cara foi um ot�rio - desdenhou ele. - Perdeu uma
mulher maravilhosa feito voc�.
- Ele teve seus motivos.
- Imagino. N�o queria ser chamado de chifrudo.
- Isso agora n�o importa mais - afirmou Cl�ia. - Sua m�e
n�o aceitou e voc� nasceu.
- E n�o me arrependo, nunca me arrependi, nem por uma
fra��o de segundos, por ter escolhido voc�. N�o h� homem no
mundo que pague a felicidade de ter um filho. Voc� � o que existe
de mais importante na minha vida.
Essas palavras o emocionaram. R�gis abra�ou-a com ternura,
beijou-a nas faces.
- Eu a amo, m�e-disse com sinceridade. - E voc� tamb�m,
vov�. S�o as �nicas pessoas no mundo que merecem o meu amor.
- N�o diga isso - objetou Ge�rgia. - H� muitas pessoas
no mundo que merecem ser amadas
- N�o conheci nenhuma
- Isso � porque voc� � ainda muito jovem. Espere s� at�
conhecer uma garota.
220


Desde esse dia, R�gis deixou a m�e em paz. Com o tempo,
vendo que ele n�o reagia, Alex tamb�m deixou de provoc�-lo,
voltando seus interesses para outras coisas. Sem que Ge�rgia ou
Cl�ia soubessem, R�gis prosseguia envolvendo-se em tudo que
n�o devia. Estimulado por Damien, matava aulas e gostava de se
dar bem. Sa�a de lanchonetes sem pagar, pulava o muro de est�dios
para assistir a shows, passava a m�o nas garotas.
Contudo, por mais que Alex insistisse, n�o se interessava
por drogas. O efeito da maconha que fumara fora suficiente para
que ele nunca mais experimentasse nada. Acompanhava o amigo
� boca de fumo, tinha contato com viciados, mas n�o se envolvia
com eles. E, depois de saber que o pai morrera de overdose,
tomou horror �s drogas.
T�o logo concluiu o ensino m�dio, R�gis deixou a escola.
Por mais que a m�e insistisse, n�o conseguiu convenc�-lo a
prestar vestibular. Seu objetivo era ganhar dinheiro. Gostava de
frequentar a boca de fumo, atra�do que era pela malandragem.
Costumava acompanhar Alex s� pelo fato de que se sentia bem
entre malandros e bandidos.
Voc� n�o devia cheirar isso - disse ele a Alex, vendo-o
preparar uma carreira de coca�na. - Depois, quando quiser largar,
n�o vai conseguir.
Virou meu pai agora, �? Deixe de ser trouxa. Voc� � que �
um frouxo, com medo de se viciar.
- Tenho medo mesmo, e da�? N�o quer dizer que seja frouxo,
S� n�o quero ficar dependente de um p�.
- Tudo bem, ent�o n�o se meta. V� cheirar uma florzinha.
Dando de ombros, R�gis se afastou. No momento em que ia
iniciar o primeiro passo, uma figura imponente chamou sua aten��o.
Caminhando pelo meio da pra�a, vinha uma figura singular.
Um homenzarr�o com cara de mau, porte atl�tico, no pesco�o
um cord�o grosso, de ouro maci�o, em que se destacava pesado
medalh�o. An�is extravagantes, igualmente de ouro, guarneciam
dois de seus dedos da m�o direita, na qual tamb�m havia uma
221


pulseira de ouro ilustrando-lhe o pulso. Do outro lado, um rel�gio
car�ssimo, tudo de ouro.
Era a primeira vez que o chef�o do tr�fico da regi�o passava
por ali. Sua apar�ncia majestosa impressionou R�gis, que, de algum
lugar de sua mente, extraiu a lembran�a de At�lio. Foram apresentados.
Bira, o traficante, n�o lhe prestou muita aten��o. Estava mais
interessado na mulher que conhecera e que morava por ali. Por isso
fora at� l�, para impression�-la com seu galanteio de mach�o.
Tudo isso era acompanhado de perto por Damien e T�cio.
Durante anos a fio, os dois esp�ritos n�o desgrudaram de R�gis,
mas, enquanto Damien o incentivava ao crime, T�cio o fazia lembrar-
-se da m�e, desestimulando-o na surdina, sem saber que seus
conselhos eram ouvidos por Damien. N�o podendo desobedecer
�s ordens de At�lio, Damien permitia que T�cio levasse R�gis pelo
caminho do fracasso nos seus planos anteriores.
Quando notou a proximidade de Bira, Damien exultou. Cutucou
T�cio a seu lado e apontou para ele com o queixo, olhando rapidamente
para o outro lado, como se aguardasse a chegada de algu�m.
A mulher, de nome Gislene, apareceu pouco depois, rebolando as
ancas para atrair a aten��o dos homens. Bira se desfez num sorriso
malicioso. Saiu de perto dos garotos e foi ao encontro dela. De onde
estava, R�gis o observava, fascinado com seu porte altivo.
- Vai ser mais f�cil do que imaginei - comentou Damien.
- Como assim?
- Voc� n�o reparou? - T�cio meneou a cabe�a. - O traficante
� a cara do At�lio.
- � ?
- A cara � exagero. Mas lembra muito. E Mizael, � claro,
inconscientemente percebeu isso tamb�m. N�o vai ser dif�cil aproxim�-
lo de Bira.
- O que voc� pensa em fazer?
- Sei dessa mutreteira - ele apontou para a mo�a. - E
n�o vai ser nada mau se Mizael descobrir.
- N�o estou entendendo nada.
222


- N�o precisa. Basta me acompanhar.
Damien fazia o poss�vel e o imposs�vel para bem cumprir as
ordens de At�lio. Nem por um momento sequer pensou em desobedecer-
lhe ou sabot�-lo. Esmerava-se para fazer o melhor, preocupado
com o sucesso de sua miss�o. O fracasso, deixava a cargo de T�cio.
Depois que Bira saiu com ela, Damien sumiu, levando T�cio
com ele. Por ora, nada podia fazer. Mais tarde, seria hora de agir.
Ele tudo faria para que seu plano sa�sse certinho. Teve o cuidado de
sincronizar os acontecimentos, tomando conta de Bira e de R�gis.
Em sua �nsia de come�ar a ganhar dinheiro, R�gis escolheu
a carreira de modelo. Aproveitaria o que possu�a de melhor: a fisionomia
e o corpo. Para iniciar-se na profiss�o, tinha de divulgar sua
apar�ncia e seu potencial. Precisava, com urg�ncia, de um book
de estilo, mas conseguir isso n�o era nada f�cil. Confeccionar algo
que valesse a pena custava caro, e ele n�o tinha um tost�o sequer.
O jeito era apelar para a m�e.
- Isso n�o vai dar certo, meu filho - objetou ela. - Voc�
escolheu uma profiss�o ingrata. Sabe como � esse meio.
- Deixe de preconceito, m�e. O cara l� da ag�ncia de modelos
disse que eu tenho tudo para me dar bem. S� preciso de um
book legal.
- Mas � muito caro.
- Por favor, m�e, � para o meu futuro. E eles aceitam pagamento
parcelado. Voc� pode dar dez cheques pr�-datados.
- Est� bem, R�gis. Vou ver o que posso fazer.
Pagar por aquele book seria um desequil�brio no or�amento
dom�stico. Sem contar que aquela n�o era uma profiss�o do agrado
de Ge�rgia, que pensava em ver o filho formado. R�gis, por�m,
estava decidido. Acreditava em seu futuro como modelo. Faltava-
-lhe apenas arranjar dinheiro para o book.
223


- � a nossa chance - comentou Damien, assim que R�gis
deixou a m�e e ganhou a rua.
- Como assim? - questionou T�cio.
- Voc� vai ver.
Damien se colou a R�gis, que ia ao encontro de Alex. Quando
os dois se encontraram, veio a sugest�o imediata:
- Alex pode lhe arranjar um financiamento. Ele conhece
gente importante.
A princ�pio, R�gis rejeitou a ideia, ainda focado em Ge�rgia.
Acompanhou o amigo at� a boca de fumo, onde ele foi comprar
coca�na. L� estava Bira novamente, gargalhando com os garotos,
exibindo seu jeito de malandro. N�o era comum que Bira parasse
por ali. S� quando Gislene demorava � que ele saltava para
cumprimentar a rapaziada.
Quando Gislene apareceu, Bira foi-se com ela, deixando R�gis
cada vez mais fascinado. Nada sabia do traficante, mas o admirava
em sil�ncio. Tinha at� medo de pensar naquela admira��o, tentava
resistir-lhe, voltando os pensamentos para outras coisas. Mas a
interfer�ncia de Damien mantinha em alta aquela simpatia.
Certa noite, R�gis havia acabado de sair de um baile funk
em companhia de Alex e duas garotas, para onde haviam ido por
sugest�o de Damien. Pensavam em ir a um motel, mas ele estava
desanimado, um pouco alto da bebida.
- Vamos pegar um t�xi - sugeriu Alex, completamente
chapado.
As duas garotas tamb�m estavam drogadas, para desagrado
de R�gis. N�o gostava de dormir com viciadas, n�o tinha paci�ncia
para suas crises nem seus acessos de riso.
- A essa hora vai ser dif�cil achar um t�xi - comentou R�gis.
- Vamos pegar um �nibus - sugeriu a acompanhante de
Alex.
- � isso a� - concordou Alex. - Estamos longe � be�a de
casa. N�o d� para ir a p�.
224


- N�o vamos para o motel? - queixou-se a outra, fazendo
beicinho.
- N�o vai dar. Mas podemos ir � pra�a l� perto de casa.
Tem uns cantinhos maneiros para namorar.
- Na pra�a? - decepcionou-se a menina.
- Por mim, est� tudo bem - falou a outra, tentando abra�ar
R�gis, que a repeliu com irrita��o. - O que h�? N�o gosta
de mim?
- D� o fora - falou ele, cada vez mais irritado. - N�o gosto
de mulher chapada.
- Qual �, cara? - revidou ela, mal se sustendo em p�. -
Voc� � careta, �?
R�gis n�o respondeu. Empurrou-a para o lado, atravessando
a rua em dire��o ao bar da esquina, para onde Damien desviara
sua aten��o.
- Aonde voc� vai, R�gis? - perguntou Alex, puxando-o
pelo bra�o.
- Vou embora.
- E a menina?
- Fique com ela.
Sem paci�ncia, R�gis entrou no bar e puxou uma cadeira.
Estalou os dedos, chamando o gar�om. Pediu uma cerveja e relaxou.
O dinheiro que tinha era pouco, ainda proveniente da mesada
que a m�e lhe dava. Era um absurdo um homem feito ele depender
da m�e para tudo. Tinha de arranjar dinheiro. Precisava de um
emprego, mas n�o gostava de nada. Detestava a pris�o dos escrit�rios,
a arrog�ncia dos chefes. Devia haver um jeito mais f�cil de
conseguir dinheiro sem correr o risco de se envolver com a pol�cia.
N�o podia dar esse desgosto � m�e.
O book seria a solu��o. R�gis estava certo de que teria futuro
na carreira de modelo. O problema era que a m�e n�o s� n�o tinha
dinheiro, como n�o concordava com a sua escolha. Queria que ele
se formasse, que trabalhasse engravatado como os idiotas sem
personalidade que circulavam pelo centro da cidade.
225


Eram esses seus pensamentos quando uma voz de mulher os
interrompeu. Vinha de uma mesa mais atr�s, onde um casal conversava
� meia-voz. R�gis n�o queria se voltar para encar�-los, mas o nome
que a ouviu pronunciar fez arrepiar sua pele, agu�ando seus sentidos.
- Estou com medo - dizia ela. - E se o Bira descobrir que
fui eu?
- Ele n�o vai - contrap�s o homem, visivelmente irritado.
- N�o v� dar para tr�s agora.
- N�o se esque�a do que me prometeu, Joel. Quero a
minha liberdade.
- N�o � bem assim, Gislene. Liberdade � com o juiz. Mas o
promotor concordou em aliviar a sua barra e process�-la apenas
por furto simples, para dar uma satisfa��o aos donos da loja que
voc� roubou, entende?

- Vou ser presa?
- Provavelmente, n�o. Uma restri��o de direitos, talvez, mas
vai ficar na rua, para continuar vadiando, como sempre. Agora,
para isso, voc� tem que nos ajudar a prender o cara. E a�? Como
vai ser? Descobriu ou n�o?
Seguiu-se um minuto de sil�ncio, no qual R�gis mal respirava.
N�o acreditava que estivesse ouvindo a confiss�o daquela traidora.
Ela e o homem, provavelmente um policial, estavam planejando
dar um flagrante em Bira, e ele era o �nico que podia impedir.
Fingindo desinteresse, tomou um gole da cerveja, ouvidos colados
na outra mesa.
- Descobri - revelou ela, de forma quase inaud�vel.
- E quando vai ser?-questionou Joel, quase euf�rico.-Onde?
- Num armaz�m abandonado l� em Vila Kennedy, no s�bado,
� meia-noite.
- S�bado para domingo? - Ela assentiu. - Tem certeza?
- Absoluta. Ouvi quando Bira combinou tudo ao celular.
- �timo! E onde, exatamente, fica esse armaz�m?
- Sabe a quadra da escola de samba? - Ele assentiu.
Ent�o, � esquerda, tr�s ruas abaixo...
226


Ela deu a informa��o d�reitinho. S� n�o deu o endere�o por
escrito porque n�o sabia, mas o que dissera era suficiente para
levar a pol�cia at� l� e dar o flagrante em Bira. Assim como o policial,
R�gis sentia a excita��o da descoberta.
Pouco depois, levantaram-se para ir embora. Joel se despediu
do gar�om com um aceno de cabe�a, demonstrando que
ambos j� eram conhecidos ali. R�gis pensou em perguntar algo
ao gar�om, mas teve medo de que ele alertasse o policial.
Alguns minutos ap�s a sa�da deles, R�gis pagou a conta
e se foi, levando na mente a preciosa informa��o. N�o sabia se
contava ou n�o ao Bira, mas achava que devia. N�o podia assistir
passivamente a uma emboscada como aquela. Por outro lado, se
contasse o que sabia, corria o risco de envolver-se com a quadrilha
de Bira e matar a m�e de desgosto.
Precisava tomar uma decis�o rapidamente. N�o havia ningu�m
em quem pudesse confiar. Alex ainda era capaz de correr
na sua frente e revelar tudo, s� para cair nas boas gra�as de Bira.
R�gis n�o podia contar com ele.
- Isso n�o vai dar certo - arriscou T�cio, andando ao lado
*
de R�gis junto com Damien. - Ele pode at� ser morto.
- N�o seja tonto! - bradou Damien. - Acha que eu colocaria
Mizael em risco? O tal do Bira � que est� com os dias contados,
e Mizael vai ser o seu sucessor.
- Como foi que voc� armou tudo isso? Voc� sabia?
- Mais ou menos. At�lio me deu a dica de Bira. T�o logo
ele soube onde Mizael iria reencarnar, come�ou a procurar
algu�m que pudesse introduzi-lo no tr�fico. Bira era crian�a
na �poca, mas At�lio vislumbrou seu futuro. Inteligente como �,
programou o encontro, deixando o resto por minha conta. Mas
fui eu que descobri Gislene e fui eu que levei Mizael at� aquele
baile rid�culo, porque sabia que era ali que o policial iria se
encontrar com ela.
- Voc�s s�o diab�licos - comentou T�cio, assustado.
227


- No sentido exato da palavra - Damien gargalhou, -
At�lio vai ficar muito satisfeito comigo. Vou agora mesmo contar-lhe
o que consegui.
Esquecendo-se do outro, Damien desapareceu. T�cio ficou
silencioso, pensativo, seguindo R�gis pelas ruas escuras. Era uma
longa caminhada at� sua casa, tempo suficiente para que T�cio,
�s escondidas de Damien, tentasse alguma interven��o.
- N�o fa�a isso, meu filho - aconselhou timidamente, -
Voc� vai se encrencar. Quer ser preso? Pior, quer ser morto?
Bandido tem vida curta. Mais dia, menos dia, acorda com a boca
cheia de formiga.
A advert�ncia de T�cio foi parcialmente percebida por R�gis,
vindo na forma de um temor indiz�vel. O medo passou a acompanh�-
lo, entornando em sua mente as cenas de horror que T�cio
ia lhe transmitindo, desde Ge�rgia visitando-o na pris�o at� seu
corpo perfurado de balas, jogado na sarjeta.
- Se voc� n�o disser nada, vai fazer a coisa certa - prosseguiu
T�cio. - Sua m�e vai ficar satisfeita.
As imagens foram fortes, apavorantes. Ser� que o que sabia
compensava todos os riscos? Ou seria melhor contar tudo � m�e e
impression�-la para que ela, julgando-o muito correto, finalmente
se decidisse a pagar o seu book? Enfim, com um sorriso enigm�tico,
entrou em casa, j� sabendo o que deveria fazer.
228

capitulo
26
A vida de J�lio em S�o Paulo corria melhor do que no Rio.
Tinha liberdade, n�o precisava fingir um casamento perfeito. Com
o �timo sal�rio que passou a ganhar, alugou um apartamento na
Vila Nova Concei��o, de onde tinha uma vista parcial e deslumbrante
do Parque do Ibirapuera. Sua inten��o era comprar um
im�vel de luxo ali mesmo, com o dinheiro que vinha juntando em
nome de Patr�cia, mas ainda n�o podia. N�o antes do div�rcio.
* O s�bado amanheceu cinzento e frio, mas J�lio n�o se incomodou,
feliz por n�o ter de sair da cama logo cedo. A seu lado,
a bela morena que conhecera num bar na noite anterior dormia
pregui�osamente, completamente nua. De leve, tocou sua pele
lisa, pronto para despert�-la com beijos e car�cias. N�o teve tempo.
No mesmo instante, a campainha estridente do interfone fez esvanecerem
suas inten��es.
Pensou em atender rapidamente e voltar para a cama antes
que a mulher abrisse os olhos, para ele mesmo ter o prazer de
acord�-la. De um salto, vestiu o roup�o e correu � cozinha, segurando
o interfone com irrita��o:
- O que �?
- Doutor J�lio - era a voz do porteiro -, desculpe incomodar,
mas achei que o senhor gostaria de saber que suas filhas
acabaram de subir...


Mal ele terminou de falar, foi a vez de a campainha da frente
se esgani�ar. J�lio quase fez o aparelho se soltar da parede,
tamanha a viol�ncia com que desligou. E agora? N�o dava tempo
de acordar a mulher, de cujo nome nem se lembrava, e mand�-la
embora. N�o podia deixar as filhas esperando. Talvez conseguisse
se arrumar e sair com elas para um caf� da manh� caprichado,
antes que a mo�a despertasse. Pensando nisso, bateu a porta do
quarto e correu para a da frente. Olhou pelo olho m�gico e, fingindo
surpresa, abriu esbaforido.
- Minhas filhas! - exclamou de forma artificial. - Que
surpresa! Por que n�o me disseram que vinham?
- A ideia era essa - anunciou Patr�cia. - Por que est�
ofegante?
- Eu estava no banheiro. Vim correndo.
- Est� sozinho? - tornou ela, reparando nas duas ta�as e
na garrafa de vinho sobre a mesinha.
- Ah! Estou, claro. Foi um amigo que veio me visitar ontem.
- Espero que n�o estejamos incomodando - observou
Nat�lia.
- Desde quando meus dois tesouros me incomodam?
Sabem do que mais? Vamos sair e tomar caf� da manh�. Tem uma
confeitaria nova aqui perto que dizem que � maravilhosa. Por que
voc�s n�o largam as malas no quarto e damos um pulo l�?
- Boa ideia - concordou Nat�lia. - Estou mesmo faminta.
- Eu tamb�m - acrescentou Patr�cia.
- �timo! - exclamou, entrando no corredor com as duas
atr�s. - Vou mudar de roupa e j� volto.
Como os dois quartos ficavam frente a frente, J�lio parou na
porta do seu, esperando que as meninas entrassem no que ele
montara especialmente para elas. In�til. Na mesma hora, a bela
morena apareceu sonolenta, atra�da pelo barulho no corredor.
Praticamente despida, envolta em uma toalha de banho que mal
lhe encobria as pernas, fixou em J�lio um olhar interrogador.
230


- O que significa isso? - exaltou-se Patr�cia, encarando a
outra com f�ria, - Quem � essa vagabunda? O que ela est� fazendo
nua no seu quarto, pai?
Desconhecendo os detalhes da vida de J�lio, a mulher
tamb�m se assustou.
- Eu... - embara�ou-se. - J� estava de sa�da. Com licen�a
Voltou rapidamente para o quarto, enquanto Patr�cia continuava
a extravasar sua indigna��o:
- Era s� o que me faltava, papai! Francamente! Ent�o vem
para S�o Paulo sozinho para ficar livre e dormir com outras mulheres?
- N�o se trata disso, minha filha.
- Ah! N�o? Trata-se de que, ent�o? N�o vai querer nos
convencer de que ela � sua empregada, vai?
- Calma, Patr�cia - intercedeu Nat�lia. - Papai tem a vida
dele e n�o temos o direito de interferir.
- Interferir? Como pensa que mam�e se sentiria se descobrisse
uma coisa dessas?
- Sua m�e n�o liga a m�nima para mim - defendeu-se
ele. - Voc�s sabem disso t�o bem quanto eu.
, A porta do quarto tornou a se abrir, e a mulher passou por eles
sem dizer nada. Saiu sem nem se despedir, para al�vio de J�lio.
- Dormindo com vagabundas - censurou Patr�cia. - Isso
n�o se faz.
- Deixe papai em paz, Patr�cia - ponderou Nat�lia. - Ele e
mam�e s�o adultos, podem cuidar da vida deles.
- Sua irm� tem raz�o - concordou J�lio. - Sua m�e e eu
n�o devemos satisfa��o de nossos atos. Importante � o que sentimos
por voc�s.
- Voc� quer se divorciar dela?
- Tenho pensado nisso, na verdade.
- Mam�e tamb�m - esclareceu Nat�lia. - Na verdade, foi
por isso que viemos. Ela quer o div�rcio.
Foi uma agrad�vel surpresa para J�lio. Nunca imaginou que
Bianca quisesse, um dia, se divorciar.
231


- Voc� acha que ela arranjou algu�m? - questionou
Patr�cia, interrompendo seu espanto.
- N�o sei. � poss�vel. Mas fico aliviado que ela tenha decidido
assim. Podemos fazer as coisas amigavelmente. Sua m�e e
eu, h� muito, nos distanciamos.
- Voc� vai ter que pagar pens�o a ela?
- Provavelmente - respondeu contrariado. - Sua m�e n�o
trabalha, muito embora eu pense que n�o h� nada que a impe�a
de faz�-lo.
- Posso vir morar com voc�? - pediu Patr�cia.
- Sua m�e n�o vai permitir.
- Vai, sim - contestou Nat�lia. - Ela nos disse que �ramos
livres para escolher.
- S�rio? O que a fez mudar de ideia?
O sil�ncio de Nat�lia deu a entender que ela sabia que a m�e
tinha outro homem. J�lio sentiu uma certa raiva pela trai��o, mas foi
muito r�pida. No fundo, era melhor assim, pois de que outra maneira
ele conseguiria que ela abrisse m�o da pens�o de Patr�cia?
- Quero vir morar com voc�, papai - reafirmou Patr�cia. -
Por mim, j� est� decidido.
- Tem certeza? - indagou ele.
- Absoluta.
- E voc�, Nat�lia?
- N�o sei. Tenho a faculdade...
- Aqui tem �timas universidades.
- Eu sei. Mas � que gosto de morar no Rio.
- Muito bem. Vou come�ar a procurar um bom col�gio para
Patr�cia. Se tudo correr bem, no in�cio do ano voc� j� pode se mudar.
- Isso!
Patr�cia atirou-se ao pesco�o do pai, beijando seu rosto v�rias
vezes. Ele a afagou com carinho, feliz por poder, finalmente, t�-la a
seu lado. Agora, sim, compraria o t�o sonhado apartamento, sem
ter de dividi-lo com Bianca. Teria a filha, o div�rcio e o dinheiro.
232


Terminado o fim de semana, as meninas retornaram ao Rio.
Nat�lia conversava com a m�e na sala, pondo-a a par das decis�es e
propostas de J�lio para o div�rcio, quando o telefone tocou. Depois
que Nat�lia desligou, Bianca notou a palidez em sua fisionomia.
- O que foi? Que cara de espanto � essa?
- Ligaram do hospital. Vov� teve um AVC19.
- Mais essa agora. Ligue para seu pai. Ele vai ter que vir
para cuidar da m�e dele.
- Papai vai demorar a chegar. Vamos l�, m�e, ela est� sozinha.
Voc� sabe que papai n�o tem irm�os e vov� j� faleceu.
- Ah, n�o, Nat�lia! Odeio hospitais. E depois, sua av� me
detesta.
- Isso n�o importa. Ela est� internada, precisa de n�s.
- Eu n�o vou. V� voc�, que � neta.
- Ser� que Patr�cia gostaria de me acompanhar?
- Patr�cia n�o est�. Saiu com as amigas. E duvido muito
que ela queira perder o fim de semana no hospital.

- Est� bem, ent�o. Eu vou. N�o posso deixar minha av�
sozinha.
Infelizmente, quando Nat�lia chegou ao hospital, a av� havia
acabado de desencarnar. Segundo informaram, morreu tranquila,
sem dor nem agonia. Foi um certo al�vio para ela, que agora tinha
de providenciar o funeral. Ligou para o pai, que j� estava a caminho
do aeroporto.
No hospital, Nat�lia cuidava de tudo, j� que Patr�cia, com
a desculpa de que precisava confortar a m�e, n�o apareceu.
Ela escolheu a urna, coroa de flores, tudo o que foi necess�rio.
Faltava o pagamento, �nica coisa que J�lio realmente precisou
fazer quando chegou.
19 Acidente vascular cerebral.
233


- Vejo que a minha menina cuidou de tudo - elogiou,
embora com pesar.
- Fiz o que pude.
- Pobre mam�e. Devia ter-lhe dado mais aten��o quando
era viva.
- Agora n�o adianta lamentar, pai. Ela se foi, mas voc� pode
rezar por ela.
- Sim. N�o vou esquecer a missa de s�timo dia nem a de
m�s, nem a de ano.
- Voc� n�o est� triste?
- Um pouco. Meu relacionamento com seus av�s esfriou
muito quando conheci sua m�e. Eles n�o se davam l� muito bem.
Ap�s o funeral, J�lio precisou ficar um tempo no Rio para
cuidar do invent�rio. N�o havia muito que fazer. Ela possu�a apenas
o apartamento de tr�s quartos em que morava, do qual ele herdara
metade ap�s a morte do pai. Agora, ficara com tudo.
- O que vai fazer com aquele apartamento? - indagou Bianca.
- Vender, � claro. Mas nem adianta ficar de olho grande.
Bens de heran�a n�o entram na partilha do div�rcio.
- Como voc� � mesquinho! - fingiu-se ofendida.
- E as coisas dela? - indagou Nat�lia, para romper o clima
de animosidade. - Quando vai come�ar a mexer?
- Ainda n�o pensei nisso - declarou J�lio. - Preciso voltar
a S�o Paulo com urg�ncia. J� me demorei demais por aqui.
- Se voc� quiser, posso fazer isso para voc� - ofereceu-se
Nat�lia.
- S�rio? - Ela assentiu. - Olhe que n�o � um trabalho dos
mais agrad�veis. Sabe como � mania de velho, vai juntando tudo.
- Deixe comigo. Diga-me apenas o que fazer com cada coisa.
- Se tiver alguma joia, � minha - adiantou-se Patr�cia.
- � para dividir - contrap�s Bianca. - Por que voc� tem
que ficar com tudo? Nat�lia e eu tamb�m queremos.
- N�o quero nada - contestou Nat�lia, aborrecida.
- N�o quer mesmo? - surpreendeu-se Patr�cia. - Melhor!
234


- Voc�s parecem urubus em cima da carni�a - observou
Nat�lia, com uma certa irrita��o. - Vov� ainda nem esfriou no
caix�o e j� est�o discutindo sobre a heran�a dela.
- Onde ela est�, n�o vai precisar de nada - comentou
Bianca.
- Nat�lia tem raz�o - concordou J�lio. - N�o acho adequado
minha mulher e minha filha ficarem brigando pelas joias de
mam�e. � falta de respeito.
As duas se calaram, envergonhadas. Ficou acertado que
Nat�lia daria in�cio � limpeza na casa da av� na semana seguinte.
- Olhe l�, hein, Nat�lia! - alertou Patr�cia. - N�o v� nos
enganar e esconder as joias para voc�.
- N�o me julgue por voc� - aborreceu-se Nat�lia. - N�o
tenho olho grande em nada que � dos outros. E se est� desconfiada,
v� voc� desfazer os arm�rios.
- Eu, n�o! Detesto cheiro de velho e de defunto.
- Deixe disso, Patr�cia - falou J�lio, escondendo a vontade
de rir. - Aqui est�, minha filha, o endere�o do antiqu�rio que
consegui. Dizem que � muito bom, pega as coisas em consigna��o.
� s� voc� ligar para ele, que ele ir� fazer uma avalia��o das
coisas. O que for vend�vel e ningu�m quiser ele manda apanhar.
- Voc� vai vender tudo que era da vov�? - surpreendeu-se
Patr�cia, e ele assentiu. - E quem vai ficar com o dinheiro?
- N�o havia pensado nisso - respondeu J�lio. - Mas j�
que � Nat�lia quem vai ter todo o trabalho, nada mais justo que
fique com ela.
- Ah! N�o, pai, isso � que n�o! Nat�lia est� de olho grande,
quer tudo para ela.
- Eu?! - defendeu-se a outra. - Pois at� agora fui a �nica
que n�o pediu nada.
- Chega, meninas! - intercedeu J�lio, sem saber como
fazer para ser justo e, ao mesmo tempo, n�o desagradar Patr�cia. -
Vamos primeiro vender as coisas. Depois, pensaremos a respeito
do destino do dinheiro.
235


Depois da aula, Nat�lia partiu para a casa da av�. Tinha poucas
lembran�as dali, j� que n�o costumavam muito visit�-la. O apartamento
lhe agradou imensamente. Era amplo, arejado, tinha um
astral excelente. Ao contr�rio do que o pai pensava, a av� n�o colecionava
bugigangas. Suas coisas, muito bem arrumadinhas, eram,
na maioria, �teis. � claro que havia lembran�as: fotos antigas, suvenires
de viagens, cartas de amor trocadas entre ela e o av�, uma
cristaleira repleta de coisas bonitas, m�veis aparentemente novos.
Al�m dos cristais e da lou�a, Nat�lia n�o encontrou antiguidades.
As joias nem eram tantas assim, de forma que colocou
tudo numa caixa e levou para casa. A m�e e a irm� ficaram fascinadas,
dividindo entre elas as pe�as de ouro.
- J� terminou tudo? - questionou Bianca.
- Ainda n�o. Comecei pelo quarto. Juntei algumas sacolas
de roupa e sapatos.
- Isso tudo � lixo. Pensei que ela tivesse mais joias.
- O que tem est� a�.
- Voc� n�o pegou nada escondido, pegou?-sondou Patr�cia.
- Eu, hein! Desde quando voc� passou a desconfiar de
mim? J� disse que n�o quero nada.
A ideia j� se havia formado na cabe�a de Nat�lia. Ela n�o
queria nada daquilo, a m�e e a irm� podiam se matar para ficar
com tudo. Mas havia uma coisa que a interessara: o pr�prio apartamento.
As duas teriam um ataque quando soubessem o que ela
estava planejando.
No dia seguinte, telefonou para o pai da casa da av�. N�o
queria que Bianca e Patr�cia ouvissem a conversa.
- Oi, pai, sou eu.
- Tudo bem, minha filha? Algum problema com as coisas
da sua av�?
- N�o, est� tudo �timo. Mas, pai, gostaria de lhe pedir uma
coisa.
- O que �?
- Ser� que voc� podia n�o vender o apartamento?
236


- Por qu�? Quer morar nele?
- Voc� acertou, � isso mesmo.
- N�o acredito! � um apartamento grande e velho, nem
su�te tem. E fica no sub�rbio.
- N�o me importo com isso. Gostei daqui, a rua � calma e o
apartamento est� todo reformado. Pelo visto, vov� havia comprado
m�veis novos.
- Pense bem, Nat�lia. Voc� n�o est� acostumada. E depois,
como ir� se sustentar?
- Pensei se voc� n�o poderia me ajudar no come�o. O
condom�nio � barato e posso trabalhar.
- Mas, filha, voc� nunca morou sozinha.
- Sou maior de idade, muito respons�vel. Ah, vamos, papai,
deixe! Ele � perfeito para mim.
N�o agradava muito a J�lio permitir que a filha morasse perto
de Ge�rgia. Fazia anos que n�o a via nem sabia se ela ainda morava
por l�. No entanto, n�o tinha motivos para n�o permitir. E talvez
fosse at� bom manter o apartamento, que ficava em uma �rea
bastante valorizada.
, - Est� bem - concordou por fim. - Se � o que voc� quer,
podemos ficar com ele.
- Oh! Papai, obrigada! Vai dar tudo certo, voc� vai ver.
Era grande a euforia de Nat�lia. Adorara o apartamento e a
rua arborizada. A vizinhan�a era tranquila, tinha um com�rcio local
sortido, condu��o para todos os lados. Perfeito para uma universit�ria
sozinha. E permitiria que ela sa�sse de casa. Patr�cia estava
praticamente de malas prontas para se mudar para S�o Paulo no
fim do ano, e a m�e n�o se incomodava com nada que n�o fossem
seus pr�prios prazeres. Seria o melhor para todos.
237

capitulo
27
O armaz�m abandonado em Vila Kennedy estava �s escuras.
Desde cedo, a pol�cia montou guarda nas cercanias, vigiando
a movimenta��o no local. Algumas pessoas entraram, outras
sa�ram, mas Bira ainda n�o havia sido identificado.
- Ele s� vai chegar na hora - advertiu Joel. - Temos que
esperar.
- Voc� tem certeza de que ela deu a dica certa? - questionou
o capit�o.
- Absoluta. Gislene tem medo de mim, n�o ia arriscar a vida
por uma mentira.
De bin�culos, alguns homens tomavam conta do armaz�m,
que tinha todas as entradas vigiadas. Alguns minutos antes
da meia-noite, um carro preto parou em frente ao port�o e tr�s
homens saltaram. Carregavam uma mochila, aparentemente pesada.
Abriram o port�o, em seguida, a porta do armaz�m. Algumas
luzes se acenderam l� dentro, colocando os policiais em alerta.
- � ele - afirmou Joel. - Veja s�.
Pelo porte, s� podia ser o Bira. Pouco depois, outro carro
parou. Mais tr�s homens saltaram, levando o que parecia ser uma
bolsa de viagem.
- Acha que a droga est� ali? - sondou um soldado.


- S� pode.
A porta do armaz�m foi fechada, iniciando-se uma movimenta��o
suspeita no interior. Os homens da pol�cia se colocaram a
postos, fazendo sil�ncio geral. A um sinal do capit�o, avan�aram.
Em poucos segundos, estouraram o armaz�m. A porta foi ao ch�o
com estrondo, soldados entraram por todos os lados, correndo
entre corredores formados por velhas estantes de ferro.
Em pouco tempo, alcan�aram uma sala central. Com um
pontap�, escancararam a porta, surpreendendo-se com o que
viram. Bem no meio da sala, uma mesa fora montada. Sobre ela,
v�rias velas acesas circundavam um bolo de padaria. Ao redor,
alguns homens corriam atarantados, soltando gritinhos de pavor.
Vassouras voaram, velas se esparramaram pelo ch�o. Um dos
sujeitos, rendido pela pol�cia, dava chiliques de p�nico:
- Ai, meu Deus, o que � isso? Por favor, seu guarda, n�o
nos mate! N�o fizemos nada.
- O que significa isso? balbuciou o capit�o, irado.
- N�o sei de nada - choramingou outro rapaz. - S� nos
deram uma grana para fazer a limpeza e acender as velas para
uma festa.
- Quem pagou? - rugiu Joel, agarrando um mo�o pela
gola da camisa.
- N�o sabemos - respondeu um outro. - Um cara, n�o o
conhecemos. Ele simplesmente chegou, nos deu o dinheiro e nos
mandou para c�.
- Quem trouxe voc�s?
- Um sujeito, sei l�. N�o o conhe�o, j� disse.
- Vimos dois carros pretos parando aqui na frente. Quem
estava dirigindo?
- N�o sei, n�o sei! - desesperou-se o primeiro garoto. -
Eles s� nos deram dinheiro, nos apanharam de tr�s em tr�s.
Fizemos o que mandaram.
- E os traficantes? - rugiu o capit�o. - Onde est�o o Bira
e o outro malandro?
239


- N�o sei nada de traficantes. Pelo amor de Deus, seu
guarda, n�o somos bandidos. Os caras chegaram at� a gente,
pensamos que queriam uma transa. Um deles pegou o dinheiro,
esfregou na nossa cara. Perguntou se est�vamos interessados
num servi�o f�cil. "� claro que estamos", dissemos. A� ele falou
que era para limpar esse armaz�m, colocar as velas ao redor
do bolo e aguardar, que uns caras viriam para uma festa com
a gente.
- E voc�? - Joel indagou ao de porte atl�tico, que ele havia
confundido com Bira.
- Foi a mesma coisa. N�o sei de nada. Estava curtindo a
noite e uns caras apareceram. Fizeram a mesma coisa comigo. Me
ofereceram dinheiro, e eu topei. Disseram que era para primeiro
fazer a limpeza em um lugar onde haveria uma festa. Achei estranho,
mas concordei. A gente n�o discute quando o dinheiro � muito.
Pensei que fosse algum tipo de festa surpresa, sabe? Marcaram de
me buscar onde eu fazia ponto. Fui l� e esperei. Quando entrei no
carro, havia mais dois caras l� dentro - ele apontou para outros
dois do grupo. - � s� o que sei.
- Quantos caras eram?
- Dois.
- Como eles eram?
- Sei l�. Eram uns tipos comuns.
- Como estavam vestidos?
- De cal�a jeans e camisa preta.
- Os dois?
- Sim.
- Usavam alguma coisa especial? - Ele meneou a cabe�a.
- Um cord�o, rel�gio?
- Nada.
Joel e outros policiais se afastaram do bando tr�mulo.
- Acha que eles est�o dizendo a verdade? - indagou.
- Acho que sim - respondeu o capit�o. - Eles est�o se
borrando de medo.
240


- Se a gente apertar, talvez eles nos deem uma boa descri��o
dos sujeitos.
- De que isso iria adiantar? Pelo visto, os caras fizeram
tudo direitinho. S�o tipos comuns, sem nada especial que os
pudesse identificar. E depois, n�o � crime pregar uma pe�a em
seis bichas afetadas.
- Maldi��o! - esbravejou Joel. - Gislene estava certa de
que a transa��o iria ocorrer hoje.
- E ia. Isso me parece coisa de delator. Algu�m descobriu o
plano e deu com a l�ngua nos dentes.
- Mas quem? Gislene? Ser� que ela deu para tr�s?
- N�o sei. Tudo � poss�vel.
- E agora, capit�o? O que faremos?
- Nada. Voltamos � estaca zero. Vamos liberar os caras e
come�ar tudo de novo. Ligue para Gislene e marque um encontro
para o mais breve poss�vel.
- Se ela ainda estiver por a�, capit�o. Temo pelo que possa
acontecer a ela. Se Gislene nos traiu, o Bira vai dar um jeito de
sumir com ela. Se n�o, algu�m contou ao Bira, e ela vai sumir
de*qualquer maneira.
Os seis rapazes foram liberados, deixando enorme sensa��o
de frustra��o em Joel e nos outros policiais. Realmente,
eles n�o sabiam de nada. Tudo se passara exatamente como eles
narraram.
Na v�spera, Bira mandara dois comparsas escolher seis
homossexuais para o servi�o, tomando o cuidado de apanhar
algu�m que fosse fisicamente parecido com ele, ao menos no
porte. Assim fizeram. Em diferentes partes da cidade, elegeram as
v�timas. Por cem reais, tinham de fazer um servi�o simples: limpar
um armaz�m, colocar o bolo, as velas ao redor e esperar a chegada
de v�rios homens para uma festa.
No dia marcado, cada um recebeu um casaco preto com
capuz, com a orienta��o de pux�-lo sobre o rosto o m�ximo que
pudesse. Dois carros participaram da opera��o, cada qual levando
241


tr�s pessoas, como se fossem tr�s do bando de Bira e tr�s do
vendedor da droga.
Deixados no armaz�m, os rapazes n�o desconfiavam de
nada. Foram ao local designado, encontraram a mesa. Enquanto
uns varriam o ch�o e tiravam p�, outros ajeitavam as velas e o
bolo. Estavam assim entretidos quando ouviram um barulh�o se
aproximando pelo corredor. Pensaram que fossem as pessoas
chegando adiantadas para a festa, espantando-se terrivelmente
quando os policiais surgiram, derrubando tudo.
Da laje de uma casa vizinha, um dos comparsas de Bira assistia
� cena. Reconheceu os carros, viu quando a pol�cia chegou.
Ouviu a barulheira da falsa pris�o, rindo da esperteza do chefe.
Na verdade, a ideia partira do sujeito que ningu�m conhecia e que
levara a not�cia a Bira.
Assim como acontecera com At�lio, Bira se impressionara
sobremaneira com a intelig�ncia de R�gis. Todo aquele plano fora
ideia dele.
Na v�spera, quando Bira estacionou o autom�vel para esperar
Gislene, foi R�gis que encontrou. Antes que a mo�a aparecesse,
ele entrou no carro do traficante, implorando para que ele ouvisse
o que tinha a dizer.
- Voc� � muito atrevido, rapaz - protestara ele, visivelmente
aborrecido. - Saia, vamos! Tenho mais o que fazer.
- Por favor, Bira, � importante. Mande o motorista dar a
volta no quarteir�o. � tempo mais do que suficiente para lhe contar
tudo. Ou�a-me e n�o vai se arrepender.
Curioso, Bira fez como R�gis pediu. Ao final da primeira volta,
Bira mandou o motorista dar outra, at� ouvir toda a hist�ria.
- Isso � imposs�vel - divagou ele. - Gislene n�o seria
louca de me trair.
- Louca ou n�o, o fato � que traiu. Segundo entendi, o
promotor prometeu aliviar a barra dela na Justi�a, de acus�-la de
um crime mais leve em troca dessa informa��o.
- Se isso for verdade...
242


- � verdade, pode crer.
- Desgra�ada! Vou cuidar dela depois. Agora, preciso avisar
o Tutu para sumir do peda�o.
Tutu era o fornecedor da droga, a quem Bira mandou uma
mensagem para que n�o aparecesse. Verdade ou n�o, iria tirar a
limpo aquela hist�ria. E, fosse quem fosse que o estivesse enganando,
iria pagar muito caro.
- Por que voc� n�o aproveita e manda um recado para a
pol�cia? - sugeriu R�gis.
- Um recado? - interessou-se Bira.
- Sim, um recado. Para que eles vejam como voc� � esperto
e n�o se deixa intimidar.
- Como assim?
- Tenho uma ideia que talvez lhe interesse.
Em pouco tempo, R�gis narrou a Bira sua ideia. O traficante
achou-a genial. Curtir com a cara da pol�cia at� que n�o era nada
mau. Rapidamente, o plano foi posto em execu��o, com o sucesso
esperado.
A presen�a da pol�cia no armaz�m deixou Bira dividido.
Sentia �dio de Gislene e admira��o por R�gis. Um homem feito
ele em seu bando seria um excelente neg�cio, um lucro que n�o
poderia perder. Mas R�gis n�o estava interessado. Tinha medo de
desgostar a m�e.
- N�o tem nada que voc� queira em troca? - perquiriu
Bira, querendo dar-lhe uma bonifica��o. - N�o � poss�vel. Todo
mundo quer alguma coisa.
- N�o fiz nada por dinheiro. S� n�o achei justa a trai��o.
- Fico-lhe muito grato, mas, ainda assim, gostaria de presente�-
lo com alguma coisa. O que voc� quer? Um rel�gio? Um cord�o
de ouro?
Aqueles eram presentes que Bira tinha em estoque, fruto
dos roubos e furtos que encomendava. R�gis, contudo, hesitava
em aceitar. Temia comprometer-se com uma pessoa feito Bira. Ao
243


mesmo tempo, n�o queria perder a oportunidade de receber uma
gratifica��o. Foi pensando nisso que confessou:
- Bom, na verdade, tem s� uma coisa que eu quero.
- Muito bem, diga l�. O que �?
- Estou tentando fazer um book para apresentar nas ag�ncias
de modelo.
- Um book? O que � isso?
- Um �lbum de fotografias especialmente preparado para
fazer a minha apresenta��o como modelo.
- Voc� quer ser modelo?
- Quero, sim. Acho que levo jeito.
- �. At� que voc� � um cara pintoso. Muito bem, � justo.
Diga quanto � que lhe darei o dinheiro para o tal book.
- Vou ver o pre�o direitinho e depois lhe falo.
- �timo. Seja quanto for, pode contar comigo.
- Obrigado, Bira. Voc� � muito generoso.
- Sou generoso com aqueles que me servem bem e implac�vel
com os que me traem.
No dia seguinte, R�gis compreendeu bem o significado
daquelas palavras. O corpo de uma mulher fora encontrado crivado
de balas, a l�ngua cortada, atirado dentro de uma vala f�tida
algumas ruas abaixo. Mesmo sem v�-la, R�gis sabia que se tratava
de Gislene.
A morte de Gislene permaneceu insol�vel. Embora a pol�cia
estivesse certa de que fora obra de Bira, n�o tinha como
provar. Nenhuma testemunha, ningu�m que se atrevesse a falar.
Perdida a informante, diminu�am as chances de colocar o traficante
na cadeia.
A rea��o de Bira foi inesperada para R�gis, ainda ing�nuo no
que se referia ao mundo do crime. N�o passou pela sua cabe�a
que Bira mandasse matar Gislene. Nem mesmo pensou no que
244


poderia lhe acontecer. Tentava eximir-se, dizendo a si mesmo que
n�o tinha nada a ver com aquilo. N�o desejava sua morte, e n�o
fora ele quem dera os tiros. Tamb�m, ningu�m mandou que ela
assumisse o papel de dedo-duro.
� claro que R�gis n�o era respons�vel pela morte de Gislene.
O que lhe aconteceu foi obra de sua pr�pria imprevid�ncia, fruto
de desequil�brios pessoais. Todavia, nenhuma engrenagem se
opera sozinha. Para que o destino se movimente, � necess�ria a
uni�o de for�as. Cada um � respons�vel pela sua por��o individual
de a��es que, somadas, alimentam as rela��es humanas. As
situa��es assim geradas v�o sucessivamente atraindo outras, de
acordo com seu ponto de magnetismo, modificando-se quando
esse ponto � alterado ou suprimido. Onde est� esse ponto � tarefa
que cabe a cada um, individualmente, descobrir.
Para encontrar o elemento magnetizador, basta olhar para
dentro de si mesmo. Ningu�m atrai nada que n�o esteja em conformidade
com os meandros de sua alma. Magnetizar experi�ncias
favor�veis ao bem traz a recompensa da paz e da ilumina��o.
No entanto, a magnetiza��o de acontecimentos daninhos causa
perturba��o, gerando ressentimento, culpa e �dio. Tudo porque o
ser humano n�o aprendeu ainda a ser livre, j� que a liberdade �
o estado da alma isenta dos grilh�es mentais e emocionais que
aprisionam o indiv�duo nesse mundo de mat�ria.
Alheio �s verdades da vida, R�gis tentava n�o pensar na
morte de Gislene. J� aprendera que aquele era o fim destinado
aos traidores, delatores e inimigos de Bira. Viver no crime n�o �
f�cil. � preciso ser corajoso e n�o temer a morte. R�gis n�o temia
a morte, n�o temia nada. Tinha medo apenas de se tornar escravo
do traficante. Isso, ele n�o queria. N�o desejava obedecer a
ningu�m al�m de si mesmo.
Talvez o melhor fosse afastar-se de Bira. Aliando-se a ele,
comprometeria sua liberdade. Prestara-lhe um favor, salvara-lhe a
vida. Nesse ponto, Bira � quem lhe devia. Em gratid�o, o pagamento
seria o t�o sonhado book. R�gis estava indeciso, confuso.
245


Se, por um lado, queria desvencilhar-se de qualquer compromisso
com o traficante, por outro, sonhava com a carreira de modelo. E
Bira era sua chance mais pr�xima de realizar esse sonho.
- Se ele aceitar o dinheiro de Bira, podemos nos considerar
vitoriosos - comentou Damien, que caminhava ao lado dele,
lendo todos os seus pensamentos.
T�cio n�o respondeu. Por mais que tivesse de fazer o que
Damien pedia, n�o era aquilo que desejava. Queria que R�gis se
afastasse de Bira o m�ximo poss�vel. Tamb�m ele lia os pensamentos
do filho, conhecia suas d�vidas. Ele n�o estava decidido
a aceitar. Hesitava. Se havia hesita��o, havia uma chance de fazer
com que ele mudasse de ideia.
Embora T�cio n�o revelasse o que pensava, Damien n�o era
tolo. Mais experiente, conhecia os pensamentos do outro. S� n�o
interferia porque T�cio fazia exatamente o que ele queria. Enquanto
Damien se esfor�ava para levar Mizael pelo caminho do mal, T�cio,
silenciosamente, tentava impedi-lo. Atrav�s dele, conseguiria seu
objetivo sem precisar se revelar.
Sem saber que era usado, T�cio pensava no que fazer para
evitar que o filho ca�sse nas m�os de Bira, temendo, mais do que
tudo, ser descoberto por Damien.
- Bem, acho que por hoje j� chega - anunciou Damien.
- Tenho um relat�rio a apresentar. Voc� vem?
- N�o - respondeu T�cio, sem pensar. - Vou ficar mais
um pouco.
- Est� bem. Mas cuidado, hein? N�o v� fazer besteiras.
- Pode deixar.
A sa�da de Damien era proposital, uma oportunidade de deixar
T�cio influenciar R�gis sem o seu conhecimento. Depois que ele se
foi, T�cio continuou ao lado do rapaz, que j� se aproximava de casa,
onde ele n�o conseguiria entrar. Tinha de ser r�pido.
- N�o fa�a essa besteira de cair nas m�os de Bira - aconselhou.
- Se voc� aceitar o dinheiro dele, vai ficar comprometido
246


para sempre. E, depois que entrar, n�o vai mais conseguir sair. Ele
vai usar a sua intelig�ncia para a��es criminosas.
R�gis recebeu o pensamento como se fosse seu. N�o queria
se comprometer com o traficante, mas a promessa do book era
por demais poderosa.
- Esse book n�o vale a sua vida. Pense em sua m�e.
A m�e ficaria decepcionada, arrasada, na verdade. R�gis
sabia o quanto Ge�rgia o amava, logo sabia o quanto ela sofreria
se ele fosse preso ou morto. Com essa d�vida, entrou em casa,
aonde T�cio n�o p�de acompanh�-lo.
Do lado de fora, pensava numa maneira de intervir. Tentou
atravessar a barreira, contudo uma for�a invis�vel o impelia para
tr�s. E se pedisse a ajuda de algu�m? Muitos anos atr�s, parado
diante daquela mesma muralha, vira um esp�rito sair e falar com
ele. Como era mesmo o nome dele? T�cio puxou pela mem�ria,
at� que, subitamente, se lembrou.
- Josu�? - invocou baixinho.
Na mesma hora, o esp�rito apareceu ao lado dele. T�cio levou
um susto. N�o imaginava que a resposta fosse instant�nea.
* - Voc� me chamou? - perguntou Josu�, sorrindo bondosamente.
- Eu? N�o, n�o... Quero dizer, s� pensei no seu nome. A�,
voc� apareceu.
- Voc� me chamou - afirmou Josu�, encarando-o serenamente.
- Sabe o que �? - tornou desconcertado. - � que voc�
me parece um cara legal. E acho que gosta de R�gis. Pensei se
n�o poderia me ajudar.
- O que voc� deseja?
Embora Josu� soubesse do que se tratava, queria ouvir de
T�cio. Pedir ajuda era um �timo in�cio de transforma��o.
- Estava pensando. Ser� que n�o d� para voc� dar uma
ajudinha ao R�gis?
- Que tipo de ajudinha?


- � que tem um traficante oferecendo dinheiro a ele para
fazer o tal book que ele tanto deseja, para ser modelo fotogr�fico.
Agora, imagine se ele aceita. Vai se encrencar para o resto da vida.
Voc� n�o acha que o traficante vai deixar barato, acha?
- N�o. No entanto, a escolha � de R�gis.
- Eu sei. Mas isso n�o vai dar certo. Tentei impedir, mas R�gis
n�o me ouve. Ou melhor, acho at� que ouve, mas est� em d�vida.
Ser� que voc�, que sabe das coisas muito mais do que eu, n�o
conhece um meio de desviar a aten��o dele para outros assuntos?
- N�o posso interferir com R�gis, porque ele � muito mais
propenso a ouvir as suas sugest�es do que as minhas. Mas posso
tentar com a m�e dele.
- Como?
- Deixe comigo.
Em instantes, Josu� desapareceu dentro da barreira energ�tica,
deixando T�cio nervoso do lado de fora. Como demorava
a voltar, T�cio teve de ir embora. Se ficasse mais tempo, Damien
poderia desconfiar e aparecer para tentar puni-lo.
R�gis estava sozinho com a av�. Josu� deu um passe em
Cl�ia e no rapaz, transmitindo-lhe uma sensa��o de sono. Queria
que ele adormecesse para n�o se precipitar antes da chegada de
Ge�rgia. Depois que ele dormiu, Josu� energizou tamb�m o seu
corpo flu�dico, para que ele n�o sa�sse de perto do f�sico. Depois,
partiu em busca de Ge�rgia.
Encontrou-a no trabalho, cercada por uma aura brilhante que
o emocionou. Ge�rgia era uma criatura fant�stica, muito sens�vel
e acess�vel �s sugest�es do invis�vel. Aproximou-se. Na mesma
hora, ela levantou as m�os do computador, deixando os pensamentos
vagarem at� o filho.
"N�o sei o que fazer com R�gis", pensou subitamente. "Ele
quer o tal do book, mas � caro, e eu n�o sei se esse seria um bom
caminho para ele."
- N�o � t�o caro assim - falou Josu�, mentalmente. -
Voc� tem condi��es de pagar. E depois, � melhor ser modelo
248


fotogr�fico, que � uma profiss�o honesta, do que se envolver
com bandidos.
"Ser� que R�gis se envolveria com bandidos?", repetiu para
si. "N�o, acho que n�o. Ele pode ser meio sem ju�zo, mas � uma
pessoa direita."
- Mais ou menos. Ele � muito melhor do que foi em outras
vidas, mas a tend�ncia para o crime ainda est� l�. Voc� n�o pode
ser responsabilizada pelo caminho que ele escolher, mas n�o
seria bom mostrar a ele uma possibilidade diferente? Que tal o
book com que ele tanto sonha? Pode ser que isso o estimule a
resistir ao crime.
"Pensando bem, vou pagar pelo book", admitiu ela, temendo
v�-lo perdido na marginalidade. "O anivers�rio dele est� se aproximando
e posso pagar parcelado."
- Excelente ideia! - exclamou Josu�. - Voc� n�o vai se
arrepender.
No momento em que Ge�rgia sa�a do trabalho, R�gis acordava
em casa, surpreso com a sonol�ncia repentina. Foi para a sala,
onde a revista do jornal de domingo ainda jazia sobre a mesinha
de centro. Apanhou-a displicentemente, folheando-a ao acaso.
Numa das p�ginas, a foto de um rapaz vistoso exibia a marca de
um desodorante masculino.
A decis�o foi imediata. R�gis atirou a revista para o lado e
saiu, decidido a procurar Bira. No port�o, quase esbarrou com a
m�e, que entrava apressada.
- Aonde voc� vai, meu filho? - indagou ela, notando sua
ansiedade.
- Dar uma volta - disfar�ou.
- Agora, n�o. Venha comigo, tenho algo importante a lhe
falar.
Um pouco contrariado, R�gis acedeu, entrando em casa
atr�s dela.
- O que foi? - indagou ele, contendo a impaci�ncia.
249


Ge�rgia abriu a bolsa e tirou o tal�o de cheques, destacando
os que estavam preenchidos. Estendeu-os a R�gis, que os pegou,
avaliando um a um com assombro.
- M�e! - espantou-se. - O que � isso?
- � o pagamento do seu book. Dez cheques. Seu presente
de anivers�rio adiantado.
- N�o acredito! Puxa, m�e, obrigado! Obrigado mesmo!
Ele a ergueu no colo, beijando suas faces. Mal acreditava
no que via. N�o sabia o que levara a m�e a mudar de ideia nem
lhe interessava. Estava feliz por conseguir o book sem precisar se
envolver com Bira.
- S� uma coisa - alertou ela. - Procure uma ag�ncia de
renome. N�o v� confiando em qualquer uma.
- N�o precisa se preocupar. A ag�ncia que tenho em vista
� de confian�a. J� me informei.
- N�o quero lhe cobrar nada, mas � com muito sacrif�cio
que vou pagar esse book. N�o trate isso como uma aventura sem
consequ�ncias. Pense que � um investimento para o seu futuro.
- Garanto que voc� n�o vai se arrepender. Assim que
conseguir o meu primeiro trabalho, vou lhe pagar tudo e ainda vou
ajudar nas despesas de casa.
- N�o precisa me pagar. � um presente. Se quiser me dar
um presente em troca, seja feliz, exer�a a profiss�o que escolheu
honestamente. N�o se envolva com drogas nem mentiras. Essa �
a maior recompensa que um filho pode dar a sua m�e.
- Eu sei. Confie em mim, m�e. Vai dar tudo certo.
Ge�rgia abra�ou-o com carinho, ainda insegura sobre o que
estava fazendo. Em seu �ntimo, as palavras de Josu� ecoavam,
indistingu�veis, enchendo-a de esperan�a.
250

capitulo
28
Fazia algum tempo que R�gis n�o se encontrava com Bira.
Sabia que a pol�cia estava de olho nele e n�o pretendia ser confundido
com algu�m do bando. Para seu desagrado, avistou na
esquina a figura esqu�lida de Alex, de quem tamb�m procurava
se afastar.
- E a�, cara? - cumprimentou Alex. - Est� sumido.
- Tenho andado ocupado.
- Ocupado com o qu�, se voc� nem trabalha?
- Estou trabalhando no meu book.
- S�rio? Conseguiu o dinheiro? - R�gis assentiu. - Quem
foi que deu? O Bira?
- N�o, minha m�e.
- Sua m�e? - espantou-se. - Mas voc� n�o disse que ela
era contra?
- Ela mudou de ideia. Ainda bem, porque n�o queria dever
favores ao Bira.
- N�o entendo voc�, R�gis. O Bira � um cara legal, d� a
maior for�a para a rapaziada. Queria recompens�-lo por t�-lo livrado
da pol�cia. Por que est� fugindo dele?
- N�o estou fugindo. S� que fiquei chateado com a morte
da Gislene. Ele n�o precisava ter apagado a mulher.


- A Gislene era uma traidora. O que voc� queria que ele
fizesse? Que lhe desse uma gratifica��o e a mandasse embora?
R�gis n�o respondeu. A morte de Gislene ainda era um
problema para ele.
- Olhe, Alex, n�o me leve a mal, mas estou com pressa.
Depois a gente se fala.
R�gis virou-lhe as costas, caminhando pela rua. Estava t�o
aborrecido que desistiu at� de tomar o �nibus ali. A ag�ncia era
longe, mas seguiria a p� at� um ponto mais abaixo. Precisava
arejar a cabe�a.
la cabisbaixo, as m�os no bolso, chutando pedras e latinhas.
Estava quase chegando ao ponto quando o �nibus que
passava pela ag�ncia surgiu. R�gis fez sinal, correndo para n�o o
perder. J� ia subindo as escadas quando uma mo�a veio correndo
pelo outro lado. Com a m�o na al�a da porta, ele aguardou
at� que ela chegasse.
- Obrigada - disse ela ofegante, subindo apressada.
R�gis subiu atr�s dela. Pagou a passagem, acompanhando-
-a com o olhar. Ela sentou-se em um lugar perto da janela, e ele
ficou de p�, um pouco mais atr�s, esperando para poder sentar-se
ao lado dela.
Estava fascinado pela sua beleza, seus gestos delicados, sua
voz suave. A todo instante, fitava-a de soslaio, mas ela nem parecia
se dar conta de sua presen�a. Queria puxar assunto, contudo n�o
sabia o que dizer. Ela olhava pela janela, os cabelos esvoa�ando
ao vento. Ele prestava aten��o a todos os detalhes, logo percebendo
o rel�gio de pedrinhas que ela usava. Olhando para seu
pr�prio rel�gio, teve uma ideia.
- Por favor, mo�a, pode me dizer as horas? - indagou. -
Meu rel�gio parou.
- S�o dez para as duas - anunciou ela.
- Tudo isso? Meu Deus, estou atrasado!
- A que horas era o seu compromisso? - tornou ela, por
educa��o, reparando no quanto ele era bonito.
252


- �s duas. Estou perdido. � nisso que d� confiar em rel�gio
digital. A bateria acaba, e a gente nem percebe que a hora passou.
Ela sorriu graciosamente, deixando-o ainda mais encantado.
- N�o se desespere - retrucou ela. - A vida sempre d� um
jeito de nos favorecer, quando a gente realmente quer uma coisa.
- � verdade? - tornou embevecido. - Sim, acho que tem
raz�o, porque eu queria muito conhecer voc�.
Ela corou violentamente, abaixando os olhos, envergonhada.
Um sorriso t�mido emoldurou o seu rosto.
- Por que voc� queria me conhecer? - perguntou ela, j�
cativada pela aura dele.
- Porque voc� � linda.
- Acha mesmo?
- A mo�a mais linda que j� vi.
- Que exagero.
- N�o � exagero. � a mais pura verdade.
- Sei...
- Como voc� se chama?
- Nat�lia. E voc�?
�- R�gis.
- Muito prazer, R�gis.
- Se eu disser que o prazer � todo meu, vai parecer clich�?
Ela riu gostosamente e respondeu:
- N�o sei. Talvez.
- Pois � verdade, acredite.
- Se voc� diz...
- Sem querer ser indiscreto, para onde est� indo?
- Tenho uma entrevista de emprego na cidade �s tr�s horas.
- Emprego de qu�?
- Para a �rea de inform�tica de um banco.
- Inform�tica, �? Interessante.
- Fa�o faculdade de inform�tica tamb�m. Vai ser uma boa
experi�ncia. E voc�, o que faz?
- Sou modelo.
253


- � mesmo? - impressionou-se ela.
- Quero dizer, vou ser modelo. Na verdade, estou fazendo
um book, mas j� tenho algumas propostas.
- Legal. Bom, R�gis, espero que tenha sucesso na carreira
- finalizou ela, fazendo men��o de se levantar.
- Voc� j� vai saltar?
- � o meu ponto.
- Espere. Ser� que n�o podemos nos encontrar novamente?
Queria muito conhec�-la melhor.
R�gis estava t�o encantado com Nat�lia quanto ela por ele.
Por isso, foi sem hesita��o que ela lhe deu o n�mero do seu celular,
esperando, sinceramente, que ele telefonasse.
- Quando posso ligar?
- Estarei em casa � noite.
- Aguarde meu telefonema, Nat�lia.
Ela sorriu, deu o sinal e desceu. R�gis seguiu para a ag�ncia,
tendo Nat�lia em seus pensamentos. Fez as fotos, louco de vontade
de conseguir logo um trabalho. Queria estar � altura dela, para
impression�-la, caso conseguisse lev�-la para sair.
Quando Nat�lia saltou, T�cio seguiu com ela, deixando R�gis
aos cuidados de Damien. Havia alguma coisa naquela mo�a que
o confundiu. Damien nem de longe percebeu que se tratava de
Nora, a mesma Nora que At�lio o mandara procurar. Notou a luminosidade
de sua aura, mas n�o lhe deu maior import�ncia. N�o
imaginava que ela fosse envolver-se com R�gis, acreditando que
ela n�o passava de um flerte sem import�ncia.
Apenas T�cio viu al�m das apar�ncias. Havia nela uma
familiaridade que ele n�o sabia explicar. Era como se identificasse
parte daquela energia. Acompanhou-a por todo o percurso,
at� a sala onde se desenrolaria a entrevista. Havia uma esp�cie
de bloqueio natural em sua mente, impedindo que ele a lesse
com facilidade.
Chamada para a entrevista, Nat�lia entrou. Logo no in�cio,
T�cio identificou a raz�o de sua familiaridade.
254

- Voc� � filha do doutor J�lio Macedo, n�o �? - foi a primeira
pergunta.
- Sim, senhor - respondeu ela, com naturalidade.
T�cio n�o precisava ouvir mais nada. Um leve torpor o abalou,
levando-o a pensar que desmaiaria, se vivo estivesse. Angustiado,
saiu do edif�cio, reaparecendo no est�dio fotogr�fico, onde Damien
se divertia com as poses de R�gis.
- Isso n�o � coisa de homem - gracejou, t�o logo T�cio surgiu.
- Temos um problema - T�cio anunciou, ignorando os
coment�rios ir�nicos dele.
- Que problema?
- Sabe a mo�a que eu segui? - Damien assentiu. - Eu
sabia que havia alguma coisa errada. Ela � filha de J�lio.
- De J�lio? - surpreendeu-se Damien. - O mesmo J�lio
que n�o quis se casar com Ge�rgia?
- Esse mesmo.
Damien ainda n�o sabia se a not�cia era boa ou ruim.
- E da�? Em que voc� acha que isso pode atrapalhar nossos
planos?
*- Voc� n�o percebe? - Ele balan�ou a cabe�a. - Se J�lio
n�o aceitou R�gis...
- Mizael.
- Se J�lio n�o aceitou Mizael quando ele ainda estava na
barriga da m�e, como acha que vai reagir ao saber que ele est�
namorando a filha dele?
- Vamos com calma, T�cio. Ningu�m est� namorando
ningu�m.
- Voc� sabe que os encontros n�o s�o casuais. Deve haver
algum motivo para esses dois se encontrarem.
- Tudo bem. Mas em que isso pode nos atrapalhar? Acho
at� que vai ser bom. Um homem infernizando a vida de Mizael s�
pode contribuir para despertar ainda mais a agressividade dele.
T�cio fazia o racioc�nio inverso. Achava que J�lio podia,
sim, infernizar a vida de R�gis, mas causando-lhe algum tipo de
255


preju�zo. E ele n�o queria ver seu filho prejudicado pelo homem
que o odiava desde antes de ele nascer.
Quanto a Damien, nem de longe imaginava estar diante de
Nora. Por vezes at� se esquecia de que At�lio o mandara encontr�-
-la. N�o a conhecia, nunca tivera contato com ela. Se contasse
a At�lio sobre Nat�lia, o chefe imediatamente identificaria sua
energia. Contudo, Nat�lia n�o lhe parecia um problema, e Nora,
segundo ele, jamais seria encontrada.
256

capitulo
29
Assim que Damien entrou no gabinete de At�lio, percebeu
alguma coisa errada. O ar hostil do chefe n�o deixava d�vidas de
que ele n�o estava satisfeito. Os outros esp�ritos que estavam ali
n�o ousavam levantar os olhos para ele.
- Mandou me chamar, chefe? - indagou Damien, aproximando-
se vagarosamente.
At�lio fuzilou-o com o olhar. A um gesto seu, os demais esp�ritos
se retiraram, deixando-os a s�s. Damien sentiu-se desconcertado
com aqueles olhos intimidadores, temendo novo castigo. N�o
sabia o que acontecera, mas s� podia ser grave.
- Por que acha que mandei cham�-lo? - retrucou At�lio, em
tom amea�ador.
- Sinceramente, n�o sei. Ontem mesmo lhe fiz um relat�rio e...
- E voc� est� mentindo sobre Mizael! - esbravejou ele,
dando um soco na mesa.
- Mentindo? Como assim? N�o estou mentindo
- N�o est�? Desde quando Mizael � trabalhador? Quer me
explicar?
- Que eu saiba, ele n�o tem trabalho algum.
- Ele n�o est� tirando fotos para revistas?
- E isso l� � trabalho?


- Idiota! - vociferou, - Se n�o � trabalho, � o qu�?
- Uma brincadeira de adolescente.
- Essa brincadeira est� lhe rendendo dinheiro. E, se ele
ganha dinheiro honestamente, o que ele faz? - Damien n�o
respondeu. - Eu lhe fiz uma pergunta, Damien!
Ele se afasta do crime.
- Exatamente. E � isso que n�s queremos?
- N�o.
- Pelo menos voc� n�o � burro. � s� incompetente.
Damien engoliu a ofensa, sentindo uma raiva que At�lio percebeu,
mas para a qual n�o deu import�ncia. N�o tinha medo dele
nem o julgava uma amea�a.
- Sinto muito, At�lio - falou Damien com voz sumida. -
N�o pensei por esse lado.
- � �bvio que n�o pensou.
- Vou dar um jeito de acabar com essas fotos.
- �timo,
- � s� isso?
- N�o, tem mais uma coisa. E T�cio?
- Est� me ajudando
- N�o o quero mais a meus servi�os. Ele � uma amea�a.
Livre-se dele.
- Mas estamos juntos h� muitos anos!
- N�o me interessa. Sinto um perigo no ar, vindo da dire��o
dele.
- Com todo respeito, At�lio, T�cio n�o � um problema. Ele �
meu amigo.
- Amigo? - desdenhou. - Ningu�m � amigo de ningu�m,
muito menos de voc�. T�cio s� n�o vai embora porque se sente
culpado pelo que fez a Ge�rgia e por se julgar um suicida. Mas
ele n�o est� exatamente na mesma vibra��o que n�s, est�? Do
contr�rio, n�o teria fugido das masmorras.
- Voc� sabe disso?
258

- Sei disso e de muitas coisas - afirmou, fixando nele os
olhos penetrantes, dos quais Damien desviou temeroso. - N�o
confio nele. Tem vezes em que n�o consigo sond�-lo. Ele �
estranho, diferente. Poucos aqui conseguem bloquear a mente
para impedir que eu leia seus pensamentos. T�cio consegue.
Isso me preocupa.
Ao ouvir isso, Damien gelou. Se At�lio sondasse seus pensamentos,
leria neles trai��o. At�lio, contudo, parecia n�o perceber
o que lhe passava pela cabe�a. Talvez o julgasse t�o submisso,
t�o incompetente, que nem se preocupava com o que ele pensava
ou sentia. Ou ent�o, havia uma possibilidade remota de Damien
tamb�m estar lhe ocultando seus pensamentos.
- O mal foi eu confiar em voc� - prosseguiu At�lio. - Deixei
Mizael aos seus cuidados quando devia ter me encarregado dele
pessoalmente. Agora as coisas parecem estar saindo do controle.
- N�o tem nada saindo do controle, chefe. Essa quest�o
das fotos, eu posso resolver. Quanto a T�cio, tamb�m percebi que
uma luzinha se acendeu dentro dele... bem fraquinha. Por isso o
mantenho junto a mim. Para vigi�-lo e impedir que ele atravesse
para o lado da luz, a� sim, comprometendo o sucesso da nossa
obra de tantos anos.
At�lio pensou por uns minutos, surpreso que Damien houvesse
tido uma ideia daquelas.
- �, faz sentido - concordou ele. - Manter a amea�a nas
proximidades a coloca sob controle, impedindo-a de se concretizar.
Mas tome cuidado. Ele � mais esperto do que voc�.
- Deixe comigo. Pode confiar em mim. N�o vou decepcionar
voc�.
- Se voc� fosse Mizael, eu confiaria plenamente. Mas acontece
que voc� n�o �. � s� mais um idiota que me serve.
- Com todo respeito, chefe - rebateu Damien, um tanto ou
quanto irritado. - Se pensa mesmo isso de mim, por que n�o p�e
outro no meu lugar?
259


Foi uma ousadia, mas agora estava feito. Damien assustou-
-se com sua coragem, coisa que, at� ent�o, n�o pensou que
tivesse. Ficou � espera da rea��o violenta de At�lio, que n�o veio.
De onde estava, At�lio apenas olhava-o, tentando esconder uma
pontada de medo.
- Saia daqui! - rosnou ele.-Antes que eu o a�oite novamente.
Damien n�o esperou uma segunda ordem. Rodou nos
calcanhares e saiu quase correndo. Pensou que At�lio fosse usar
aquele chicote de pontas triplas para despeda�ar seu corpo flu�dico,
espantando-se porque n�o o fizera.
At�lio estava confuso. Durante todos aqueles anos, Damien
nunca esbo�ara qualquer rea��o. Obedecia-lhe em sil�ncio,
embora ele percebesse seus momentos de revolta, principalmente
depois que Mizael apareceu. Sabia de sua inveja, contudo n�o
a julgava uma amea�a. At� agora.
N�o que tivesse observado algum sinal de luz em Damien.
Seu corpo continuava t�o denso como antes, mas havia algo
diferente. Uma sombra p�lida, um esbo�o malfeito, um ensaio
desencontrado de algo que podia ser bem maior. Alguma coisa
que n�o se havia ainda instalado, mas que estava ali, com todas as
suas possibilidades. At�lio era bem experiente para saber do que
se tratava. Era um cansa�o, um des�nimo, uma incerteza sobre a
inevitabilidade de estar preso �s sombras.
Aquele era o primeiro passo para a fuga. Em breve, Damien
ganharia for�as para pensar em sair. Mais um pouco, algo brilharia
dentro dele, como come�ava a brilhar em T�cio. A tend�ncia dessa
luzinha era ir se acendendo cada vez mais, at� se tornar uma aura de
prote��o para mant�-los intactos, aguardando a chegada dos enviados
da luz. Ali, naquele momento, At�lio soube que iria perd�-los.
Precisava fazer alguma coisa. Ficar sentado, � espera de ser
tra�do, n�o era de seu feitio. Podia mandar algu�m vigi�-los, mas
n�o conhecia ningu�m que pudesse enfrent�-los. O �nico, al�m
dele, capaz de conter Damien ou qualquer outro, estava encarnado,
pelo visto, correndo o risco de perder-se tamb�m.
260


At�lio devia ter previsto aquilo. Em sua ilus�o de poder, n�o
imaginou que as influ�ncias materiais seriam muitas. Se, por um
lado, h� a tenta��o dos prazeres, que pode levar ao crime se
mal controlada, por outro, existe a interfer�ncia palp�vel do amor.
S� agora percebia que a m�e que arranjaram para Mizael fora
uma armadilha. Ele deixava de fazer muitas coisas s� para n�o
desgost�-la. Era tudo o que ele n�o esperava: um filho preocupado
com a m�e.
Fazia anos que At�lio n�o se lembrava de sua pr�pria m�e.
Das muitas que tivera, em sucessivas encarna��es, n�o se afei�oara
particularmente a nenhuma. Mal se recordava de suas
fei��es. A �nica mulher que marcara sua vida fora Nora, e ele se
vira obrigado a abrir m�o dela por causa de Mizael. Este, sim, era
o �nico a quem podia, verdadeiramente, dizer que amava.
N�o sabia por onde ela andava. Damien se demonstrara in�til
para localiz�-la. Nunca a vira, n�o a conhecia, nada sentia da energia
dela. Ela n�o estava entre seus antigos conhecidos, conforme
Damien lhe informara. Mas ent�o, por onde andaria?
Nora n�o era seu maior problema. No momento certo, a
encontraria. Precisava agora concentrar-se em Mizael. N�o podia
perd�-lo, n�o daquela forma. Logo Mizael, que sempre lhe fora
fiel, um esp�rito empedernido, como ele, seduzido pelo poder.
Recebera um posto importante na hierarquia do crime, que ele
conquistaria atrav�s de Bira. Agora, Mizael parecia dar para tr�s.
Tudo porque resolvera virar boneco de revistas. Se ele tivesse ao
menos aceitado a oferta de Bira, teria se colocado nas m�os dele.
Era meio caminho andado. Mas n�o. Tinha que receber o dinheiro
honesto da m�e. E agora, o que iria fazer?
Longe dali, Damien preocupava-se com seu futuro. Embora
percebesse a hesita��o de At�lio em puni-lo por sua impertin�ncia,
ainda assim tinha medo dele. At�lio podia ter sido apenas indulgente,
coisa que n�o era comum, mas ele n�o queria abusar.
Entrou em sua cabana, onde T�cio o aguardava, e foi logo
falando:
261


- Temos que nos movimentar. At�lio n�o est� nada satisfeito
com a gente.
- Porqu�?
- Ele descobriu tudo sobre n�s. Sabe at� que voc� fugiu da
masmorra.
- E da�?
- E da� que � perigoso. Se ele quiser, pode acabar com a gente
- Se ele quisesse, j� o teria feito.
- Como assim? Voc� acha que At�lio est� nos dando mais
uma chance?
- N�o. Acho que At�lio n�o tem tanto poder como voc� pensa,
- Voc� � doido mesmo, n�o �? Ainda n�o aprendeu? Quer
morrer novamente?
- Francamente, Damien, esse poder que voc� tanto teme,
na minha opini�o, n�o vem de At�lio. Vem do que voc�s d�o a ele.
- D� no mesmo, T�cio. O que importa � o que ele pode
fazer conosco.
- Nada. Ele n�o pode fazer nada.
- Est� enganado. Ainda me lembro da �ltima surra que
levei. At�lio me a�oitou pessoalmente. Foi uma humilha��o terr�vel.
- Isso foi antes, porque voc� acreditava que ele podia. Se
voc� resistir, aposto que ele n�o conseguir�. Damien deu de
ombros, em d�vida, pensando no epis�dio de momentos atr�s. -
Pense bem, Damien. H� anos estamos cuidando de Mizael
praticamente sozinhos. At�lio nem chega perto dele. Por que ser�?
- Porque confia em n�s.
- Porque tem medo. Ele morre de medo de sair daqui, do
seu ref�gio. L� fora, os perigos s�o muitos. Nada nos impede de
topar com um esp�rito de luz, como j� aconteceu.
- At�lio n�o tem medo de esp�ritos de luz. S� n�o gosta da
companhia deles.
- N�o gosta porque sabe que eles podem venc�-lo.
- Isso que voc� est� dizendo � uma tremenda besteira.
Esp�ritos de luz n�o fazem guerra, portanto n�o vencem ningu�m.
262


- Engano seu. Eles n�o fazem o tipo de guerra a que estamos
acostumados. Suas armas s�o outras. Eles lutam com o
amor, a compreens�o, a serenidade. Quem � que pode resistir a
essas coisas?
- Eu, no seu lugar, pararia de falar essas barbaridades. Se
At�lio ouvir...
- N�o tenho medo de At�lio. Se ele quiser, que venha me
enfrentar.
- Cale a boca! - censurou baixinho. - Quer que ele o escute?
- Ele n�o me escuta. Se escutasse, j� teria vindo pessoalmente
dar cabo de mim.
- Por qu�? Em que voc� pensa?
- Quando ele o chamou, pus-me aqui a refletir. Pensei muitas
coisas que n�o s�o do agrado dele, que ele consideraria verdadeira
trai��o. Duvido que, se me ouvisse, deixaria passar. Mas ele n�o
apareceu por aqui nem mandou nenhum de seus algozes. E, se
n�o fez isso, � porque n�o pode. Ele desconhece o que eu penso.
- Voc� n�o sabe o que est� dizendo. At�lio n�o � de brincadeiras.
- Estou de saco cheio desse cara. Ele fica l�, no seu gabinete
particular, mandando e desmandando em todo mundo. Quem
� ele para fazer isso?
- Pare com isso, j� falei! - apavorou-se Damien, tentando
colocar uma das m�os sobre a boca de T�cio. - Voc� n�o faz ideia
do que � virar uma massa disforme de energia, sem consci�ncia.
- Que se dane! Ningu�m vai fazer isso comigo. At�lio n�o
tem esse poder.
- Est� enganado. J� vi muitos deca�rem da forma astral por
causa de At�lio.
- Por causa das sugest�es que ele lhes d� e que eles acatam
por puro medo. S� por isso. Mas At�lio mesmo nunca arrancou o
corpo astral de ningu�m, arrancou?
- N�o.
- Porque n�o pode. S� a pr�pria pessoa tem essa faculdade,
consciente ou n�o. Por medo, culpa, sei l�, mas esse n�o � o
263


meu caso. N�o vou mais aceitar ser prisioneiro de At�lio. Aguardava
voc� para dizer isso.
- Ficou louco, T�cio? Para onde voc� vai?
- Qualquer lugar. Estou desencarnado, posso atravessar
paredes, me locomovo com a velocidade do pensamento. N�o
preciso de um lugar para morar. Posso montar guarda na casa de
Mizael, morar no quintal, em qualquer lugar. N�o me importo.
- Aposto como voc� vai parar l� naquela boca de fumo,
drogando-se com os viciados.
- N�o vou. Estou resistindo a isso. Eu mesmo transmito a mim
a sugest�o mental de que o v�cio � s� uma impress�o. N�o tenho
mais corpo f�sico para intoxicar nem para me deixar dependente.
- N�o v�, T�cio, por favor. N�o me deixe aqui sozinho.
Aquele era o dia de falar coisas sem pensar. Primeiro ele
enfrentara At�lio. Agora suplicava a T�cio. Em ambos os momentos,
estava sendo sincero.
- Voc� n�o precisa de mim - observou T�cio. - Eu nem o
estava ajudando mesmo...
- Eu sei.
- Sabe? Como?
- Li em seus pensamentos, muitas vezes. Sei que voc� tem
procurado desfazer tudo o que fa�o pelas minhas costas.
- Damien, eu... sinto muito. N�o queria tra�-lo. Queria apenas
proteger o meu filho.
- Sei disso. N�o precisa se desculpar. Tenho vergonha de
dizer, mas eu tamb�m n�o tenho sido muito honesto com voc�.
Mesmo sabendo o que voc� estava fazendo, n�o o impedi. E sabe
por qu�? - Ele meneou a cabe�a. - Porque quero que Mizael
falhe. Se voc� o levar � derrota, eu poderei acus�-lo depois, livrando-
me da ira de At�lio.
N�o era comum Damien fazer confiss�es, mas aquela serviu
de al�vio a sua alma.
264


- Olhe, Damien, n�s dois somos esp�ritos das sombras.
Somos iguais. N�o precisamos nos acusar de nada. Em vez disso,
por que n�o nos aliamos?
- Como?
- Juntos, podemos afastar Mizael do crime.
- N�o! Isso � loucura. At�lio n�o vai me perdoar.
- At�lio n�o pode fazer nada contra voc�. Ser� que n�o
entende? At�lio n�o tem o poder que voc�s pensam que ele tem. �
voc� quem o est� fortalecendo. Fortale�a-se, em vez disso.
- N�o posso. Tenho medo.
- Se tem medo, ent�o, fique aqui com ele. Estou indo embora.
- Voc� n�o pode fazer isso. E Mizael?
- Estaremos em lados opostos.
- N�o. Por favor, T�cio, n�o fa�a isso. A verdade � que...
acostumei-me com voc�. Gosto da sua companhia.
- Tamb�m gosto da sua. Somos amigos, coisa rara por aqui.
- Foi mais ou menos o que At�lio disse.
- Est� vendo s�? No fundo, ele sabe o poder que tem a
amizade verdadeira. � muito maior do que o poder dele.
- Ser�?
* - N�o sei como voc� pode duvidar.
- E se a gente se esconder em outro lugar? - aventou
Damien, agora vendo uma perspectiva de sair dali.
- Como?
- Aprendi a manipular mat�ria astral para construir coisas.
Fui eu quem plasmou essa cabana aqui, s� com o poder da
minha mente.
- Por isso est� horr�vel - T�cio gracejou, para aliviar a
tens�o. - Mas se voc� pode construir outra, em outro lugar, ent�o,
vamos para l�.
- Ainda n�o estou certo. Foi s� uma sugest�o.
- Vamos, Damien. Isso aqui n�o tem mais nada a ver com
voc�.
- O que faremos l� fora sozinhos?
- N�o sei. Pensaremos nisso depois.
265


- Voc� sabe que, se sairmos, n�o poderemos voltar.
Nunca mais.
- Quem foi que disse que pretendo voltar? Quero me livrar
desse buraco.
- Voc� n�o est� pensando em atravessar para a luz, est�?
- N�o sei. Quem sabe?
- Ficou doido de vez.
- Ou, ent�o, podemos nos aliar a outro bando. H� muitos por a�.
- Em outro bando nos far�o de escravos.
- Se � assim, seremos aut�nomos. N�o precisamos de
ningu�m.
- At�lio vai ficar furioso.
- Desvincule-se de At�lio. Voc� n�o lhe deve nada. S� o que
ele faz � humilh�-lo.
- � verdade. At�lio nunca deu valor ao meu trabalho. S� se
importa com Mizael.
- Vamos, homem, decida-se. Voc� vem ou n�o vem?
Damien deu uma olhada breve ao redor da cabana que ele
mesmo constru�ra. N�o era nada bonita nem luxuosa. Era tosca,
pequena, l�gubre, uma esp�cie de pris�o domiciliar vigiada por At�lio.
Embora temeroso, chegou � conclus�o de que n�o precisava
mais de At�lio. Durante todos aqueles anos, fora humilhado e diminu�do
por ele. T�cio tinha raz�o. Era ele quem conferia a At�lio todo
o seu poder. Por isso os seres da luz eram livres, porque n�o eram
submissos a ningu�m. Deviam ter l� as suas ordens, mas n�o havia
repress�o nem medo, nem opress�o, coisas com as quais At�lio
dominava a todos. Cansara-se disso. Se T�cio tinha for�as para
sair dali, ele, que j� estava desencarnado havia muito mais tempo,
tamb�m haveria de ter.
Damien desviou os olhos dos objetos que guarneciam a
cabana. Encarou T�cio com uma firmeza que nem ele sabia que
possu�a. Empertigou o corpo e, com a voz convicta, afirmou:
- Eu vou.
Na mesma hora, os dois desapareceram no ar.
266

capitulo
30
Desde cedo pronto para o encontro com Nat�lia, R�gis dava
voltas na sala, olhando o rel�gio de pulso a cada cinco minutos.
Sentadas � mesa, Cl�ia e Ge�rgia jogavam uma partida de buraco,
para passar as horas do s�bado � noite.
- Est� tudo bem, meu filho? - indagou Ge�rgia, notando o
nervosismo dele.
- Est�.
- Arranjou uma namorada? - perguntou Cl�ia. - Est� t�o
elegante!
- Na verdade, conheci uma garota, sim.
- S�rio? - animou-se Ge�rgia. - Ela mora por aqui?
- Dois quarteir�es abaixo.
- E o que ela faz? - tornou Cl�ia, tentando n�o demonstrar
preocupa��o.
- Trabalha no departamento de inform�tica de um banco e
est� na faculdade de inform�tica tamb�m.
- Que maravilha! - Ge�rgia estava realmente feliz e impressionada.
- Quando poderemos conhec�-la?
- Calma, m�e. Nada de precipita��o. Nem sei se vai dar
certo.
- Tomara que d�. Vai lhe fazer bem.


- Tomara mesmo. Bom, est� na hora. Fiquei de encontr�-la
�s oito na portaria do pr�dio dela. Tor�am por mim.
- Torceremos.
Assim que ele saiu, Alex foi ao seu encontro. Parecia mesmo
que o estava esperando.
- E a�, cara, tudo bem? - indagou, com seu jeito malandro
de sempre.
- Tudo.
- Est� sumido.
- Nem tanto. Tenho andado ocupado com as fotos. Sabia
que consegui um trabalho?
- Eu vi na revista. Foi r�pido, n�o?
- A revista estava precisando, e a ag�ncia logo me encaminhou.
O book ficou uma beleza, eles aprovaram, e l� fui eu para a
sess�o de fotos.
- Maravilha. Bira tamb�m viu. Gostaria de falar com voc�
sobre isso.
- Falar comigo? O qu�?
- N�o sei. Pediu-me apenas para dar o recado. Ele ainda
n�o esqueceu o que voc� fez por ele.
- Aquilo n�o foi nada, j� disse. Ele pode esquecer.
- Bira jamais esquece os que lhe s�o leais.
- Olhe, Alex, a verdade � que fiquei meio chateado. Ele n�o
precisava ter matado a garota. Fez-me sentir culpado.
- De novo com essa besteira? Voc� n�o foi culpado, foi um
her�i.
- N�o sei. N�o gostei do que ele fez.
- Se voc� for falar com ele, aposto que ele vai lhe explicar tudo.
- Outra hora eu vou.
- Bira n�o gosta de ficar esperando.
- Lamento, mas agora tenho um encontro.
- Uma garota?
- Sim.
- Eu a conhe�o?
268


- N�o.
- Bom, se � esse o motivo, ent�o � justo. Bira respeita um
homem que � gentil com as mulheres.
- Isso � alguma piada?
- N�o, � s�rio.
- Est� bem, Alex, seu recado est� dado. V� tomando seu
rumo, que vou seguir o meu.
Agora sozinho, sem a presen�a constante de Damien e T�cio,
R�gis n�o sentia mais tanto pendor para o crime. O desejo de
ganhar dinheiro f�cil fora substitu�do pelo entusiasmo com a nova
profiss�o. R�gis ia muito bem. Lindo de morrer, elegante, vistoso,
esbanjando charme e simpatia, n�o havia quem n�o o disputasse.
Para completar, conhecera uma garota maravilhosa e conseguira
marcar um encontro com ela. R�gis tocou o interfone de
seu apartamento. Nat�lia atendeu, informando que j� ia descer.
Quando ela chegou, ele quase engasgou, tamanha a emo��o. Ela
lhe pareceu muito mais bonita do que da primeira vez que a vira.
- Oi, R�gis - cumprimentou ela, dando-lhe dois beijinhos
no rosto. - Tudo bem?
* - Melhor agora, que a vi. Voc� est� linda!
- Obrigada - respondeu, corando.
- E a�? Vamos pegar um t�xi?
- Voc� � quem sabe.
R�gis dava gra�as a Deus por ter conseguido o trabalho.
Recebera um bom dinheiro. Nada que desse para extravag�ncias,
mas pelo menos podia pagar um t�xi e a conta do barzinho. Queria
impression�-la.
No barzinho � meia-luz, escolheram uma mesa mais afastada,
em um cantinho bem aconchegante. Do outro lado, uma
banda tocava m�sicas rom�nticas, deixando o ambiente calmo e
prop�cio ao namoro.
- N�o via a hora de encontrar voc� - confessou ele, completamente
embevecido.
269


- S�rio?
- N�o sei explicar, mas desde que a vi naquele �nibus, n�o
consigo parar de pensar em voc�.
- Exagerado.
- N�o � exagero, � s�rio.
Sem gra�a, ela mudou de assunto:
- Vi voc� na revista. Voc� fotografa muito bem.
- Voc� achou?
- Achei. Voc� vai longe na carreira. E, quando ficar famoso,
nem vai mais se lembrar de mim.
- Que bobagem, Nat�lia. Primeiro, nem sei se vou ficar
famoso. E, depois, estou completamente apaixonado por voc�.
- Ah! R�gis, n�o invente. Apaixonado?
- �, apaixonado.
- Mas � a primeira vez que sa�mos, e voc� mal me conhece!
- E da�? Parece que voc� saiu dos meus sonhos.
- Al�m de modelo, voc� � poeta?
- Para voc� ver o que faz comigo.
- Deixe de brincadeiras, R�gis.
- N�o estou brincando. Por que voc� n�o acredita?
Ela acreditava. No fundo, sentia o mesmo. S� tinha medo de
expressar ou de estar se iludindo.
- Conte-me um pouco de voc� - desconversou. - Mora
com seus pais?
- Com minha m�e e minha av�. Meu pai j� morreu. E voc�?
- Na verdade, moro sozinha.
- O qu�? Uma menina t�o nova, sozinha num apartamento?
O que houve?
- � complicado. Minha fam�lia � complicada. Meu pai mora
em S�o Paulo com a minha irm�, e minha m�e anda ocupada com
seu novo caso. Quando minha av� morreu, pedi a papai para me
deixar morar no apartamento dela. E c� estou eu.
Ele estava fascinado. Ela era linda, inteligente e independente.
Trabalhava, fazia faculdade, morava sozinha. Uma mulher,
270


dona de seu nariz, enquanto ele era ainda um menino ensaiando
os primeiros passos.
- Estou impressionado - confessou.
- Pare com isso. Voc� est� me deixando sem gra�a.
- Perdoe-me. Mas � que me apaixono mais por voc� a
cada minuto.
- Sei.
- Gostaria que acreditasse em mim.
Ele apanhou a m�o dela, levando-a aos l�bios. Em seguida,
puxou-a para a frente, dando-lhe um beijo repleto de paix�o. Ela
correspondeu mansamente, sentindo-se cada vez mais atra�da
por ele.
Por que n�o sa�mos daqui? sugeriu ele, completamente
envolvido por ela,
- V� com calma - pediu ela. - Acabamos de nos conhecer.
- Eu sei. Mas estou louco de desejo por voc�. Podemos ir
para o seu apartamento - arrematou ele, acariciando seu corpo.
- Por favor, n�o - ela o afastou, aborrecida. - N�o �
porque moro sozinha que deixo qualquer um subir.
* - � claro - tornou ele aturdido. - Eu entendo. Por favor,
Nat�lia, desculpe-me. N�o quero que pense que estou tentando
abusar de voc�.
- Voc� foi r�pido demais. Foi s� eu falar que morava sozinha,
que voc� logo se animou.
- N�o � nada disso. Por favor, n�o me interprete mal. Eu
s� queria ficar a s�s com voc� porque estou apaixonado. H� dias
n�o penso em outra coisa que n�o seja voc�, mas n�o quero me
aproveitar. Tanto faz o que fa�amos, desde que estejamos juntos.
Se voc� quiser ficar aqui e s� conversar, tudo bem. Para mim est�
perfeito. Fico aqui s� olhando para voc�, nem lhe encosto a m�o.
Eu juro. N�o foi para isso que a chamei para sair. Por favor, Nat�lia,
acredite. S� quero estar perto de voc�.
Apesar do medo de acreditar, suas palavras pareciam sinceras.
Mais do que isso, seu olhar transmitia exatamente o que ele dizia.
271


- Est� bem, R�gis, acredito em voc�. Mas por favor, n�o
insista mais. Deixe as coisas acontecerem normalmente.
- Farei tudo como voc� quiser. S� n�o me mande embora.
- Se voc� se comportar, eu n�o mandarei.
- Posso beij�-la? Se n�o puder, n�o faz mal. Como disse,
contento-me em ficar ao seu lado.
Ela sorriu, entreabrindo os l�bios, convidando-o para o beijo.
R�gis tomou-a nos bra�os, controlando-se para n�o avan�ar al�m
do que ela permitia. Era �bvio que Nat�lia n�o era igual �s outras
mo�as, o que lhe agradou ainda mais. Passaram a noite juntos.
Dan�aram, beijaram-se, conversaram. R�gis contou a ela muito de
sua vida. Evitou, contudo, falar do pai e omitiu que conhecia um
traficante.
Assim como R�gis, Nat�lia tamb�m se sentia atra�da por ele.
Cada vez mais, o amor que experienciaram no passado retornava
a seus cora��es.
Um ano ap�s a morte da av�, Nat�lia j� estava bem instalada
no apartamento. Tinha um emprego, tirava boas notas na faculdade.
Para completar, conhecera um rapaz incr�vel. O que mais
poderia desejar?
Apesar de pouco ver a m�e, Nat�lia estava em contato permanente
com o pai e a irm�. Ao telefone, contara a Patr�cia que
conhecera um homem maravilhoso chamado R�gis.
- � mesmo? - enciumou-se ela. - O que ele faz?
- � modelo fotogr�fico, imagine!
- Modelo? Deve ser muito bonito, ent�o.
- Se �. Um gato, cheio de pose, lindo de morrer. E carinhoso
toda vida.
- Tem certeza de que ele existe? N�o � virtual?
- Bobinha. Ele � real at� demais. Saiu numa revista de modas.
- Voc� j� dormiu com ele?
272


- Patr�cia! Isso � pergunta que se fa�a? Voc� ainda � uma
crian�a, n�o devia falar essas coisas.
- Tenho quinze anos, n�o sou mais crian�a. Sei de muito
mais coisas do que voc� imagina.
- O que quer dizer com isso? - Ela n�o respondeu. -
Patr�cia, n�o v� me dizer que voc� j�...
- N�o estamos falando de mim, Nat�lia. O assunto � voc�.
Ent�o? Quando vamos conhecer esse fen�meno?
- N�o sei. Quando est�o pretendendo vir ao Rio?
- No carnaval. Papai prometeu que me deixaria sair na
Portela este ano.
- N�o acredito! Papai ficou doido. Ele sempre morreu de
ci�me da princesinha dele.
- Mam�e o convenceu. Ela vai sair, e vou com ela. Tenho
fantasia e tudo.
- Mas voc� nem me disse nada!
- Queria fazer surpresa. Mam�e e eu vamos sair na
mesma ala, com fantasias iguais - ela abaixou a voz e revelou:
- Quase peladas.
- Voc�s duas s�o terr�veis.
- Papai ainda n�o viu a fantasia. Est� com ela, a� no Rio.
- Imagino s� o ataque que ele vai ter quando a vir praticamente
nua.
- A� j� vai ser tarde demais. Mas me fale, Nat�lia, quando
poderei ver o seu namorado?
- Vou mandar uma foto por e-mail. Voc� vai se apaixonar
por ele.
Nat�lia nem sabia o quanto tinha raz�o. Ao abrir a foto de
R�gis em seu e-mail, o cora��o de Patr�cia disparou. Nunca vira
homem mais lindo. Correu � banca mais pr�xima e comprou a
revista, procurando-o avidamente. Ele aparecia em v�rias fotos de
jeans, camiseta e bermuda. Ao v�-lo, Patr�cia tinha certeza de que
aquele homem tinha que ser dela.
273


Quando o pai chegou do trabalho, veio a novidade. Ela estava
com saudades da irm� e queria passar o resto das f�rias no Rio.
Voltaria com ele ap�s o carnaval.
- N�o sei se � boa ideia, Patr�cia - contrap�s ele. - Sua
irm� trabalha de dia e estuda � noite. Quem vai cuidar de voc�?
- As aulas de Nat�lia ainda n�o come�aram. E, depois, n�o
preciso de ningu�m que cuide de mim. N�o fico aqui sozinha?
- � diferente. Temos empregada.
- Deixe de bobagens, papai. J� est� resolvido.
- Por que n�o fica na casa de sua m�e?
- Com a mam�e n�o d�. Ela n�o para em casa. E, depois,
Nat�lia � mais da minha idade.
- Est� bem. Mas acho melhor avisar sua irm�.
- N�o precisa. Vou lhe fazer uma surpresa. J� comprei a
passagem pela internet, com o seu cart�o de cr�dito.
- O qu�? Quem lhe deu ordens para isso?
- Ora, papai, n�o v� criar caso agora. Foi s� dessa vez,
quero muito ir.
Embora aborrecido, J�lio n�o conseguia contrariar Patr�cia.
Cedo ou tarde, acabava fazendo tudo o que ela queria.
- Est� bem, minha filha, pode ir. Mas vou ligar para sua irm�.
- E a surpresa?
- Sem surpresas. Acho bom Nat�lia estar preparada para
quando voc� chegar.
Na mesma hora, J�lio ligou para a filha, avisando-a de que
Patr�cia estaria a caminho do Rio no dia seguinte. Nat�lia ficou surpresa.
Acabara de falar com a irm� ao telefone, e ela n�o dissera nada.
- Voc� sabe como � sua irm� - falou ele. - Tem algum
problema ela ficar com voc�?
- Problema nenhum. S� n�o vou poder lhe dar muita aten��o.
- Ela sabe. Aproveite e coloque-a para fazer alguma coisa,
como varrer a casa, por exemplo.
- Est� certo, pai. Deixe comigo.
Desligaram.


- Varrer a casa, pois sim - ironizou Patr�cia. - At� parece
que vou gastar minhas f�rias com uma vassoura na m�o.
Quero ir � praia.
J�lio riu e a abra�ou.
- Voc� � terr�vel. Mas tudo bem. N�o v� dar trabalho � sua
irm�, viu?
- Pode deixar. Vou cuidar dela direitinho.
No dia seguinte, bem cedo, J�lio colocou-a no avi�o. Patr�cia
n�o conseguia esconder a ansiedade. Mesmo antes de conhecer
R�gis, julgava-se apaixonada por ele. Do aeroporto, seguiu de t�xi
at� a casa de Nat�lia, que a recebeu com alegria. Ajudou-a com a
mala, levou-a ao quarto.
- Estou feliz de voc� estar aqui - falou apressada. - J�
arrumei o seu quarto. Tem comida na geladeira e TV a cabo na sala.
N�o posso ficar aqui com voc� ou vou me atrasar para o trabalho.
Qualquer coisa, ligue para o meu celular. L� pelas sete, estarei de
volta, e ent�o poderemos conversar melhor. Agora, tenho que correr.
Com um beijo, despediu-se da irm�. Patr�cia arrumou suas
roupas no arm�rio, foi para a cozinha e preparou um sandu�che.
N�o tinha interesse algum em conversar com Nat�lia. O que queria
era conhecer R�gis.
Nat�lia chegou pouco depois das sete horas. Encontrou
Patr�cia confortavelmente instalada no sof� da sala, comendo
pipoca e vendo televis�o.
- E a�? - perguntou ela, largando a bolsa em cima do
aparador da entrada. - Como foi o seu dia?
- Chato, sem voc�.
- Voc� saiu?
- Para onde eu iria? N�o conhe�o ningu�m por aqui.
- Lamento estar trabalhando, mas no fim de semana, podemos
ir � praia.
- De �nibus?
- Tem outro jeito? N�o tenho carro.
- Papai quis dar-lhe um. Por que n�o aceitou?
275


- Porque n�o tenho como mant�-lo com o meu sal�rio. E
n�o � justo depender da mesada do papai para sempre. Espero
poder abrir m�o desse dinheiro em breve.
- S� voc� mesmo, Nat�lia. Vir se enfiar nesse fim de mundo
s� para morar sozinha. Por que n�o pediu a papai para lhe comprar
um apartamento mais perto da praia?
- Gosto daqui. E depois, se eu morasse em outro lugar, n�o
teria conhecido R�gis.
- � mesmo. Quando poderei conhec�-lo?
- Em breve. Vamos matar as saudades primeiro, depois o
chamo aqui.
- Deve ser muito bom ter um apartamento s� para voc�. Imagino
como voc�s devem ficar � vontade, sem ningu�m para perturbar.
- R�gis nunca veio aqui.
- N�o? N�o acredito, Nat�lia. Voc�s ainda n�o transaram?
- Isso n�o � da sua conta, mas n�o. N�o gosto de apressar
as coisas.
- Como voc� � boba! Fique se fazendo de dif�cil, que ele
logo arranja outra.
- Se arranjar, ent�o � porque n�o gosta de mim. Se gosta
realmente, como ele mesmo diz, vai esperar.
- Esperar o qu�? O casamento?
- N�o seja tola. Quem falou em casamento? S� acho que
devemos nos conhecer melhor.
- Ah! se fosse comigo...
- Se fosse com voc�, deveria fazer a mesma coisa. E n�o
achei nada bom saber que voc� j� tem experi�ncia sexual. Voc�
ainda � uma menina.
- E da�? Todas as minhas amigas j� transaram. Por que
acha que eu seria diferente?
- Tudo bem, Patr�cia. S� tenha cuidado, est� bem? N�o
esque�a o preservativo.
- N�o esque�o. Sou doida, mas n�o sou burra. N�o quero
pegar doen�a nem gravidez. Papai iria me matar.
276


- E como ele est�?
- Bem. Trabalhando feito um condenado, cheio de mulheres.
- Como voc� sabe disso?
- N�o sou trouxa. Ou�o os telefonemas, ele sai e volta tarde.
S� pode ser mulher.
- Voc� n�o fica com ci�me?
- No princ�pio, sim, mas agora me acostumei. Desde que
ele n�o as leve para casa, por mim, est� tudo bem.
Continuaram conversando at� altas horas da noite. Nat�lia
preparou o jantar, depois assistiram a um filme. Estava feliz com a
presen�a da irm�. Sentia-se segura, inclusive, para convidar R�gis
para ir � sua casa.
Ele adorou a ideia. N�o estava muito interessado em conhecer
Patr�cia nem pretendia abusar da confian�a de Nat�lia para
dormir com ela. O que queria era se aproximar, participar de sua
intimidade, de sua vida. Queria um compromisso, namor�-la de
verdade. E ir � sua casa era essencial para estabelecer uma rela��o
de seriedade.
277

Cap�tulo
31

Mais uma sess�o de fotografias, para outra revista de moda. A
carreira de R�gis parecia decolar. Com isso, ele ia afastando, cada
vez mais, a possibilidade de se envolver com o crime. Para Ge�rgia,
foi um al�vio. Temia que suas tend�ncias o levassem por caminhos
tortuosos. Vendo agora o resultado de seu trabalho, sentia-se gratificada
por haver cedido � intui��o e pago pelo t�o sonhado book.
As perspectivas para R�gis eram muito boas. Al�m da revista,
recebera proposta para fazer um cat�logo de roupas de inverno e
tinha em vista at� um comercial de televis�o, sem contar o outdoor
para uma campanha de praia limpa. Se ele emplacasse esses
trabalhos, estaria feito na carreira.
R�gis despediu-se da m�e e da av�, seguindo para o local
onde seriam realizadas as fotos. Assim que pisou na rua, Alex se
aproximou.
- E a�, meu camarada? - cumprimentou. - Cada vez mais
famoso, hein?
- �. Estou com sorte.
- Bira quer falar com voc�. Insiste em lhe dar os parab�ns
pessoalmente.
- O que o Bira quer tanto comigo? J� n�o lhe fiz um favor?
Agora, n�o tenho mais o que conversar com ele.


- N�o fale assim, cara. O Bira � gente boa e s� quer ajud�-lo.
- Ajudar-me em qu�? N�o preciso de nada. Minha carreira
est� decolando.
- Voc� sabe que tem muita gente nesse neg�cio que adora
uma carreirinha20, n�o sabe?
- E da�? Nem todo mundo gosta. Eu n�o gosto.
- Mas voc� podia fazer um outro favor a ele. Que tal apresentar
aos seus colegas o produto do Bira?
- Ficou louco? Agora que estou me acertando, voc� quer
me ferrar?
- Os neg�cios n�o est�o indo l� muito bem. A pol�cia est�
apertando o cerco, e a concorr�ncia � grande. Bira precisa de
mais campo. N�o seria nada mau para ele infiltrar-se no meio da
moda. Em troca, ele promete muito dinheiro.
- N�o preciso de dinheiro. Estou ganhando bem agora.
- N�o t�o bem quanto gostaria. Sua namoradinha n�o
merece o melhor?
- Escute aqui, Alex, n�o se meta com ela, est� bem? Deixe-a
fora disso. Ela nada sabe sobre a boca de fumo, Bira ou voc�.
- Imagine s� se soubesse. Coitada, ia ficar decepcionada.
- Est� me chantageando, Alex? � isso?
- N�o. S� estou tentando fazer voc� perceber o que � melhor.
- Isso quem decide sou eu.
- Pense bem, R�gis. O Bira n�o est� pedindo nada de mais.
- N�o sei de onde ele tirou essa ideia. N�o tenho tantos
conhecimentos assim e n�o acredito que meia d�zia de modelos
v�o fazer diferen�a nos neg�cios dele.
- N�o � meia d�zia de modelos. � a influ�ncia que esses
caras t�m.
- Ent�o, Bira est� atr�s de poder. Quer a prote��o dos
poderosos. � isso?
20 Refer�ncia � carreirinha de coca�na.
279


- Mais ou menos. Com meia d�zia de pessoas importantes
nas m�os, quem se atrever� a combat�-lo?
- Sinto muito, Alex, mas n�o posso ajudar. Como disse, n�o
conhe�o quase ningu�m. Estou nesse neg�cio h� pouco tempo,
ainda n�o fiz contatos importantes.
- Mas vai fazer. E, quando fizer, Bira quer se assegurar de
que estar� por perto. Sem contar a grana, R�gis. Ele est� lhe oferecendo
uma nota por esse trabalho.
- Quanto?
- V� conversar com ele.
- N�o, sinto muito. N�o vai dar.
R�gis apressou o passo, deixando Alex para tr�s. A proposta
at� que era tentadora, mas ele n�o queria se envolver com Bira.
Sabia de gente viciada em seu meio de trabalho, podia aproxim�-
los, se quisesse. Contudo, n�o pretendia ficar nas m�os de
nenhum bandido. E estava apaixonado por Nat�lia. Al�m da m�e
e da av�, era outra pessoa que ele n�o gostaria de decepcionar.
As fotos ficaram perfeitas, deixando muito satisfeitos os
donos da revista. R�gis aparecia trajando roupas de inverno distintas,
al�m de ternos e casacos de grife. Tudo muito cl�ssico, muito
elegante, j� para a pr�xima esta��o. Ele era vers�til, ficava bem em
qualquer modelo, desde sungas at� smokings.
No final, alguns colegas o convidaram para uma festa, onde
rolaria de tudo. Haveria muitas mulheres bonitas, bebida � vontade.
Mesmo louco de vontade de ir, R�gis recusou. Estava mais
interessado no encontro que teria com Nat�lia mais tarde. Mal
conseguia conter a ansiedade. Conhecer o apartamento dela era
seu sonho no momento.
Comprou um vinho e flores para Nat�lia e a irm� dela. Chegou
na hora marcada, estendeu-lhe o buqu� de rosas vermelhas, que
Nat�lia apanhou e cheirou. Deu-lhe um beijo leve nos l�bios, convidando-
o a entrar. Atr�s dela, veio Patr�cia.
- R�gis, esta � Patr�cia, minha irm�.
280


- Muito prazer - cumprimentou ele, dando-lhe dois beijinhos
nas faces e oferecendo-lhe rosas amarelas. - Para voc�.
- Obrigada.
Ela apanhou as rosas, lutando para n�o deixar transparecer
a euforia. Aquele era o homem mais lindo que ela j� vira em toda
a sua vida. Com certeza, merecia uma mulher menos insossa do
que Nat�lia.
- Trouxe um vinho para o jantar - anunciou ele. - Mas �
claro que Patr�cia n�o poder� beber.
- Por que n�o? - questionou ela.
- Porque voc� � menor de idade - informou Nat�lia. - E
menores n�o podem beber.
- Papai deixa.
- Ele deixa? - surpreendeu-se a irm�.
- Deixa. Em casa, � claro.
- Pois n�o devia. � perigoso.
- Que nada, Nat�lia. Deixe de ser careta. Uma cervejinha,
de vez em quando, n�o mata ningu�m.
Nat�lia olhou para R�gis em busca de apoio, mas ele deu de
ombros. Aquele era um assunto em que n�o deveria se meter.
- O jantar est� quase pronto- disse ela, para mudar de assunto.
- Fa�a companhia a R�gis, Patr�cia. Vou tirar o assado do forno.
Era o que Patr�cia queria. Esperou at� Nat�lia sumir na cozinha
para sentar-se junto a R�gis no sof�.
- Minha irm� disse que voc� � modelo - come�ou ela,
fazendo-se de inocente. - Deve ser emocionante.
- � legal.
- E d� um bom dinheiro?
- N�o muito, no come�o. Mas espero progredir.
- N�o duvido. Com a sua apar�ncia, qualquer revista vai
querer contrat�-lo.
- N�o � bem assim. H� outras coisas envolvidas, como
postura, disciplina, boas maneiras. N�o � s� chegar l� e fotografar.
- Voc� tamb�m vai para as passarelas?
281


- Por enquanto ainda n�o fui, mas estou aberto a isso tamb�m.
- E eu? Voc� acha que eu tenho chance de ser modelo?
Meio constrangido, R�gis avaliou-a. Ela era uma menina
muito bonita, esguia, extrovertida. Com um pouco de treino e
sorte, poderia chegar l�.
- Chance, voc� tem.
- Voc� me acha bonita?
- Acho.
- Eu nunca havia pensado nessa possibilidade, mas agora
estou come�ando a consider�-la. Ser� que voc� poderia me ajudar?
- Posso falar de voc� l� na minha ag�ncia. Se houver interesse,
eu a aviso.
- Posso ir com voc� para ver as fotos, posso? Nat�lia sai
para trabalhar e eu fico aqui sozinha.
- Pare de aborrecer o R�gis - censurou Nat�lia, que vinha
chegando com a travessa do assado nas m�os. - Ele anda muito
ocupado para cuidar de crian�as.
- N�o sou crian�a - irritou-se Patr�cia. - E ele n�o precisa
cuidar de mim. S� queria ver como � uma ag�ncia de modelos.
- N�o tem problema, Nat�lia - falou R�gis, para n�o desagradar
Patr�cia. - Se ela quiser, posso lev�-la comigo um dia.
- Quando podemos ir? Amanh�?
- Por que a pressa? - objetou Nat�lia. - O mundo n�o vai
acabar amanh�.
- Ah! Nat�lia, eu s� quero me divertir. Por favor, R�gis, me
leve amanh�.
- Amanh� n�o tem fotos, mas prometo lev�-la comigo na
pr�xima oportunidade.
Patr�cia n�o estava nem um pouco interessada em seguir
a carreira de modelo ou qualquer outra. Buscava apenas uma
desculpa para aproximar-se de R�gis. Estava encantada com ele.
Durante o resto da noite, permaneceu observando-o. Cada detalhe
dele, de sua roupa, seus gestos, sua voz, tudo lhe agradou.
282


Seu sorriso era inebriante, os olhos expressivos quase a hipnotizavam.
N�o conseguia desviar-se deles.
Quando o jantar terminou, Patr�cia n�o queria acreditar que
seria obrigada a despedir-se dele. Sua vontade era pux�-lo para
o quarto e fazer o que Nat�lia n�o fazia. Ardia de desejo por ele.
Tinha medo at� de se aproximar, tamanho o fogo que a consumia.
- At� logo, Patr�cia - despediu-se ele, beijando-a levemente
nas faces. - Foi um prazer conhec�-la.
- O prazer foi todo meu - respondeu ela. - E n�o se
esque�a da promessa que me fez. Vou com voc� em sua pr�xima
sess�o de fotos.
- N�o vou esquecer. Pode deixar.
Embora R�gis houvesse notado a quentura no rosto de
Patr�cia, n�o a associou � febre de desejo que a consumia por
dentro. Mais preocupado com Nat�lia, s� para ela tinha olhos.
- Vou lev�-lo l� embaixo - anunciou ela. - A essa hora, a
portaria deve estar trancada.
Desceram de m�os dadas, R�gis sentindo uma felicidade
que n�o pensava existir. Na portaria, relutava em despedir-se.
* - Adorei a noite - comentou ele. - Estar com voc� � o que
mais me deixa feliz.
- Gostou de Patr�cia?
- Ela � muito bonita e simp�tica, mas � pela irm� dela que
estou apaixonado.
O cora��o de Nat�lia estava descompassado. A cada dia,
gostava mais e mais de R�gis.
- Acho que tamb�m estou apaixonada por voc� - confessou
ela, olhando fundo em seus olhos.
- Est�? - ele mal acreditava. - Meu Deus, isso � um
sonho? Ser� que eu ouvi mesmo o que penso ter ouvido?
Em vez de responder, ela o beijou, permitindo que ele avan�asse
nas car�cias.
- Vamos subir - disse ela. - Quero que fique comigo
esta noite.
283


N�o foi preciso repetir o convite. R�gis estreitou-a com amor,
puxando-a de volta para dentro do edif�cio. No apartamento,
Patr�cia ainda estava acordada, sentada no sof� diante da televis�o.
N�o via nem ouvia nada. Apenas pensava no prazer que
gostaria de dar a R�gis.
Quando a porta se abriu, ela levou um susto. A �ltima coisa
que esperava era ver R�gis de volta com Nat�lia. Eles entraram de
m�os dadas, agindo feito dois idiotas. R�gis nem olhou para ela.
Nat�lia apenas piscou o olho e sorriu, indo com ele para o quarto.
Patr�cia permaneceu muda em seu assombro. N�o acreditava
que Nat�lia fosse dormir com ele justo naquela noite. Pensou em
algo para impedir, mas nada lhe veio � cabe�a. Tudo que dissesse
soaria infantil, e ela n�o pretendia parecer uma crian�a aos olhos
de R�gis. Queria que ele a visse como mulher.
Ao ouvir o barulho da chave rodando na fechadura, Patr�cia
n�o aguentou. P� ante p�, seguiu em sil�ncio at� a porta do quarto
de Nat�lia. Pelo buraco da fechadura, tinha uma vis�o parcial
de um lado da cama. A posi��o da chave impedia que ela visse
melhor. N�o conseguia divisar-lhes os rostos, mas acompanhava
o movimento das pernas e do corpo.
A vis�o encheu-a de desejo e raiva. Devia ser ela deitada
ali, n�o Nat�lia. N�o era justo que a irm�, que sempre fora sem
gra�a, conquistasse o cora��o de um homem feito R�gis. Furiosa,
Patr�cia voltou as costas � porta, mas os sussurros e gemidos a
paralisaram. De onde estava, sentia o prazer deles, um prazer que
deveria ser seu.
Sem conseguir mais se conter, disparou pelo corredor, de
volta � sala. Na passagem, derrubou o jarro no qual a irm� havia
colocado as rosas vermelhas que R�gis lhe dera. Como era de se
esperar, o barulho atraiu a aten��o de Nat�lia.
- O que foi isso? - espantou-se ela.
- Nada - falou R�gis, pondo um dedo sobre seus l�bios. -
Nada que Patr�cia n�o possa resolver.
284


Alheios ao que estava acontecendo, continuaram se amando,
para desespero de Patr�cia, que n�o conseguiu separ�-los.
Vendo que a irm� n�o aparecia, engoliu a f�ria e foi para o quarto.
Trancou a porta e atirou-se na cama, molhando o travesseiro com
l�grimas de �dio.
Era tarde da noite quando R�gis saiu do est�dio fotogr�fico,
cansado ap�s uma longa sess�o de fotos para a campanha de uma
marca de perfumes. Al�m disso, fora convidado para participar de
um comercial de televis�o. Estava euf�rico, vendo deslanchar a
carreira com que tanto sonhara. E com que facilidade!
Ao pisar na rua, notou que um carro preto o seguia. Pelo canto
do olho, observou o ve�culo, rodando praticamente ao seu lado.
Atrav�s dos vidros negros, n�o viu ningu�m, embora desconfiasse
de quem se tratava. O carro podia ser novo, mas seu ocupante era
seu velho conhecido.
Acostumado a n�o sentir medo, R�gis parou, voltando-se na
dire��o do autom�vel. Na mesma hora, uma janela se abriu no
banco de tr�s. Bira botou a cara para fora e, com um sorriso debochado,
cumprimentou:
- Ol�, garoto. Como est� passando?
- Bem - foi a resposta seca.
- Ser� que n�s poder�amos conversar?
- Agora n�o d�, Bira. Estou cansado.
- � s� um minuto.
- Outra hora.
- Que outra hora? Voc� n�o atende o meu chamado. Est�
me ignorando.
R�gis achou melhor entrar no carro, para evitar a pol�cia. Bira
abriu a porta, permitindo que ele se sentasse ao seu lado.
- Olhe, Bira, n�o estou ignorando voc�. � que agora arranjei
um emprego.
285


- Depois de tudo, vai me abandonar?
- Que tudo? N�o temos nenhum compromisso.
- Voc� me prestou um grande favor. Eu podia estar preso a
essa hora. Quero retribuir.
- N�o precisa.
- Fa�o quest�o. Ningu�m nunca me serviu t�o bem quanto
voc�. - R�gis o encarou, sem dizer nada, e Bira continuou:
- Soube que voc� ficou chateado por eu ter mandado apagar
a Gislene.
- Voc� n�o precisava ter feito isso.
- N�o � assim que as coisas funcionam, R�gis. Meu neg�cio
n�o � brincadeira e n�o lido bem com traidores. Gislene teve
o que mereceu. Mas voc� � diferente. � meu parceiro, meu irm�o.
- N�o sou seu parceiro. Muito menos seu irm�o.
Com uma gargalhada estrondosa, Bira retrucou:
- Voc� � corajoso, cara. Admiro isso em voc�. Sabe quantos
falariam comigo assim? - R�gis deu de ombros. - S� voc�.
E isso porque lhe devo a vida. N�o � pouca coisa, n�o.
- Se voc� pensa mesmo assim, se quer realmente me
devolver o favor, ent�o deixe-me em paz.
- Vou deixar. Mas, antes, gostaria que voc� fizesse uma
coisa por mim.
- Assim voc� n�o vai me retribuir o favor. Vai ficar me devendo
mais um.
- Que seja. Mas eu preciso de voc�. Tem gente gra�da no
seu meio. Quero estar em contato com eles.
- N�o vai dar. N�o conhe�o bem essa gente. Vou l�, fa�o
as fotos e volto para casa. N�o saio com ningu�m nem do est�dio,
nem da ag�ncia.
Bira voltou o rosto para a frente, para que R�gis n�o visse a
raiva infiltrada em seus olhos.
- E a sua namorada? - indagou ele. - Como � mesmo o
nome dela?
286


- Ou�a aqui, Bira, j� tive essa conversa com Alex. Minha
namorada n�o tem nada a ver com isso. E, se quiser contar a
ela, v� em frente, conte. N�o trabalho para voc�, n�o tenho nada
a esconder.
- Nem a morte de Gislene?
- N�o fui eu que a matei.
- N�o. Foi a sua l�ngua. E n�o se trata apenas da morte de
Gislene. Trata-se de ajudar um traficante a se livrar da pol�cia.
- Voc� est� me amea�ando - retrucou com raiva. - N�o
acredito! Onde est� o seu senso de gratid�o?
- N�o estou amea�ando voc�. Quero apenas abrir-lhe os
olhos. Nat�lia � uma boa menina, voc� n�o ia querer v�-la envolvida
nisso, ia?
Ao ouvir o nome dela, R�gis sentiu o perigo que a envolvia. �
claro que Bira mandara investig�-la e, a essa altura, j� sabia tudo
sobre ela. N�o podia, contudo, demonstrar o seu receio ou Bira o
teria nas m�os.
- J� disse que voc� pode contar-lhe o que quiser - repetiu
com irrita��o. - N�o sou homem de ceder a chantagens.
"- Pensando bem, � isso mesmo que vou fazer. Vou convid�-
la para dar uma voltinha comigo, conhecer a minha casa, levar
um papo com a rapaziada. Acha que ela gosta de churrasco?
R�gis n�o aguentou. Agarrou Bira pela gola da camisa, encarou-
o com f�ria e disparou, amea�ador:
- N�o se atreva a tocar nela. Se eu souber que voc� encostou
um dedo nela...
- O que vai fazer? - interrompeu ele, afastando os dedos
de R�gis de sua camisa. - Vai me matar? N�o seja rid�culo, R�gis.
Voc� � s� um garoto, um menino metido a homem, mas, ainda
assim, um garoto.
- Garoto ou n�o, n�o tenho medo de voc�. Estou falando
s�rio. Atreva-se a mexer com ela, e n�o responderei por mim.
- Nat�lia � uma garota de sorte - ironizou ele, regozijando-
-se com o ar de dissimulado pavor de R�gis. - Como j� deu para
287


perceber, sei o nome dela, como sei onde mora, onde trabalha e
tamb�m sei da irm�zinha que est� passando f�rias em sua casa.
Foi preciso muito esfor�o para R�gis se controlar. Por pouco
n�o esmurrou Bira at� tirar-lhe sangue, mas o capanga no banco
da frente n�o desgrudava os olhos deles. Furioso, R�gis abriu a
porta e saltou apressado, mal acreditando no que estava acontecendo.
Como fora se envolver com um tipo daqueles?
Bira n�o o chamou de volta. Deu ordens ao motorista para
seguir em frente.
- Quer que d� um jeito nele? - indagou o capanga, alisando
a arma.
- Ainda n�o. Vamos esperar um pouco mais. Ele vai acabar
cedendo. Sei como s�o essas paixonites de garoto.
R�gis chegou em casa transtornado. Agora, sim, tinha motivos
para temer Bira. N�o podia proteger Nat�lia nem Patr�cia, ainda
mais sem lhe contar do traficante. Duvidava muito que Nat�lia
mantivesse o namoro se soubesse de seu envolvimento com ele.
Maldizia agora o dia em que conhecera Bira e, mais ainda, sua
estupidez em contar-lhe sobre as investiga��es da pol�cia. Se n�o
tivesse interferido, Bira agora estaria preso ou morto, de qualquer
forma, fora de sua vida.
Sozinho em seu quarto, andava de um lado para outro no
escuro, pensando no que fazer. Se cedesse � chantagem, ficaria
nas m�os de Bira para sempre, tornando-se um joguete, manipulado
para atender seus desejos. Sem contar que estaria se arriscando
a ser preso tamb�m. O que Bira queria era que ele fosse intermedi�rio
na distribui��o da droga entre seus colegas de trabalho.
Em outros tempos, poderia at� considerar a oferta. Agora,
por�m, tinha Nat�lia. Al�m do mais, n�o precisava de dinheiro. E
havia ainda a m�e. Sempre houve a m�e. De t�o agoniado, n�o
percebeu algu�m � porta, at� que ela se abriu.
- R�gis? - chamou Ge�rgia.
- Oi, m�e.
- Posso acender a luz?
288


- Pode.
A luz inundou o ambiente, revelando a figura preocupada de
Ge�rgia. Ela entrou em sil�ncio, aproximando-se dele. Sem dizer
nada, abra�ou-o com ternura.
- N�o sei o que est� havendo com voc� - disse ela. -
Mas, seja o que for, pode me contar. E, mesmo que n�o queira me
dizer, n�o faz mal. Estou aqui para acolher voc�.
- Ah, m�e...
Ele chorou. Agarrado a ela, deixou o pranto desafogar.
Ge�rgia permaneceu com ele nos bra�os, embalando-o como se
fosse um beb�. R�gis n�o dizia nada. Nem precisava. O sentimento
dela era suficientemente grande para lhe dar for�as.
- Tudo na vida s�o escolhas - disse ela. - At� morrermos,
e mesmo depois da morte, estaremos diante de v�rias encruzilhadas.
Seguir pela direita ou pela esquerda � op��o da alma.
- Mas e quando a alma n�o sabe que caminho tomar?
- A alma sabe e sempre acerta. Quem envereda por
caminhos dif�ceis � o corpo dos desejos. Se voc� n�o se deixar
escravizar pelos seus desejos, vai sempre encontrar as respostas
certas no seu cora��o.
- N�o � desejo, m�e. � mais um medo, uma amea�a.
- Garanto que esse medo e essa amea�a tiveram origem
quando voc� desejou alguma coisa. N�o foi?
Pensando que tudo acontecera porque ele queria cair nas
boas gra�as de Bira, por quem chegou a nutrir forte admira��o,
ele assentiu:
- Tem raz�o. E agora, m�e, o que fa�o?
- N�o quer me contar o que est� acontecendo?
Ele queria, contudo, n�o tinha coragem, ia mat�-la de desgosto.
- Deixe isso para l�. N�o quero preocup�-la. Entrei nisso
sozinho, posso sair sozinho tamb�m.
- Sozinho ou n�o, eu nunca vou deixar de me preocupar com
voc�. Sou sua m�e, quero o seu bem, amo voc� acima de qualquer
289


coisa. E dizer para uma m�e que ela n�o deve se preocupar com
seu filho � o mesmo que dizer a uma nuvem para n�o chover.
Ele riu da compara��o, sentindo o quanto a amava. Ela era a
pessoa mais importante da sua vida, algu�m que, um dia, talvez s�
fosse igualada por Nat�lia.
- Voc� n�o entenderia - objetou ele.
- Por que n�o experimenta me contar? Se eu entender, vou
procurar lhe dar um bom conselho. Se n�o, vou orar para que voc�
ache o melhor caminho.
N�o foi mais poss�vel resistir. R�gis tornou a chorar, abra�ado
a ela. Contou tudo. Desde o dia em que conhecera Bira at� as
amea�as a Nat�lia, passando pelo favor que lhe fizera e que culminara
com a morte de Gislene.
Voc� n�o sabe como me sinto culpado pela morte dela
- confessou.
- Imagino. Mas a culpa n�o foi sua. Voc� n�o � respons�vel
pela rea��o do Bira, mas pela sua pr�pria atitude. Ainda que ele
n�o a tivesse matado, o que voc� fez n�o foi correto.
- Mas foi a minha atitude que levou � morte dela. Como n�o
sou culpado?
- Ningu�m atrai o que n�o precisa. Isso � uma coisa. Agora,
voc� foi a ferramenta que facilitou a obra. � bom quando somos
instrumentos de causas nobres, quando nos predispomos a salvar
vidas, a ajudar. Mas, quando nos colocamos dispon�veis para as
for�as do mal, temos que refletir e nos modificar.
- Como?
- Refazendo as atitudes. Desmanchando padr�es de
comportamento para dar in�cio a outros. Em vez de se tornar delator
e traficante, esforce-se para ser um homem �ntegro. Voc� agora tem
um emprego, conheceu uma boa mo�a. Falta amadurecer o car�ter.
- Ah! M�e, como fui ingrato com voc� - choramingou ele.
- Voc�, sempre t�o boa, t�o compreensiva, n�o merecia um filho
como eu.
290


- Ningu�m tem o que n�o merece. E eu n�o ia querer outro
filho al�m de voc�. N�s nos escolhemos por algum motivo, e o
principal � sempre o amor. Se precis�vamos aprender a nos amar,
creio que conseguimos.
- Ao menos isso � verdade. Voc� sabe que eu a amo,
n�o sabe?
- Sei.
- Foi por causa do seu amor que n�o me envolvi em coisas
piores. Porque n�o queria desgost�-la.
- N�o. Foi por causa do seu amadurecimento. Eu fui apenas
o est�mulo, a mola, o mecanismo. Mas a for�a que acionou tudo
isso foi a sua.
- E agora, m�e? O que � que eu fa�o com o Bira? E se ele
fizer algum mal � Nat�lia?
- A situa��o � mesmo complicada - concordou ela. -
Mas sempre h� uma sa�da.
Depois de conversar com Ge�rgia, R�gis se sentiu renovado.
Tinha de haver uma solu��o. Ele precisava pensar muito bem no
que deveria fazer, principalmente para n�o colocar Nat�lia em perigo.
Se fizesse o que Bira queria, estaria para sempre em suas m�os.
Se n�o fizesse, correria o risco de ser morto junto com Nat�lia.
Sem falar na m�e e na av�. Bira n�o as havia ainda amea�ado,
mas quanto tempo levaria at� met�-las no meio daquele rolo?
Eram pessoas importantes para ele, cujas vidas ele n�o queria
arriscar. Pensando na seguran�a delas, comprometer-se com Bira
n�o parecia assim t�o terr�vel. Afinal, n�o era tanta coisa que ele
tinha de fazer. Apenas levar umas trouxinhas de maconha e coca
para vender entre os colegas. S� isso. Nada de mais.
Depois de toda a conversa que tivera com a m�e, n�o era
poss�vel pensar naquilo, mas fora justamente a conversa com a
m�e que o fizera resolver-se. Ela era boa demais, pura, inocente.
E o amava tanto! N�o podia permitir que nada lhe acontecesse.
Preferia antes sacrificar-se, arriscando-se a ser preso. Pelo amor
que tinha a elas, sabia o que devia fazer.
291

capitulo
32
A poucos dias do desfile das escolas de samba, Patr�cia
vibrava de excita��o. Pela primeira vez iria desfilar, trajando uma
fantasia min�scula, cheia de brilhos. Era um sonho. Pensava nisso
quando o interfone tocou. Ela deu um salto da cama e correu para
a cozinha, mas a irm� j� havia atendido.
- Quem �?
- O R�gis. Quem mais poderia ser?
Os olhos de Patr�cia cintilaram. Assim que ele surgiu na
porta, sua vontade foi de abra��-lo. Ela se esfor�ou para chamar-
-lhe a aten��o, mas a �nica pessoa que ele conseguia enxergar
era Nat�lia. Por enquanto.
R�gis beijou Nat�lia longamente, causando um ci�me desmesurado
em Patr�cia. Propositalmente, ela empurrou um copo de
cima de mesa, fingindo espanto quando ele se espatifou no ch�o.
- Meu Deus! - exclamou. - Desde que cheguei, n�o paro
de quebrar coisas.
- N�o faz mal - falou Nat�lia. - Isso acontece. Mas limpe,
Patr�cia, por favor. Eu j� ia entrar no banho.
- Pode deixar que eu ajudo voc�, Patr�cia - falou R�gis.
Parecia mentira que Nat�lia os deixaria a s�s por uns minutos.
Ela apanhou uma p� de lixo e um jornal para colocar os cacos.


Abaixou-se para catar os maiores, tocando os dedos de R�gis a
todo instante, fazendo parecer casual, t�o casual que ele nem
percebeu, deixando-a deveras irritada.
- Voc� e Nat�lia est�o se dando bem, n�o est�o? - perguntou,
displicente.
- Muito bem. Adoro sua irm�.
- Que bom. E ela parece gostar de voc� tamb�m.
- Quero crer que sim.
- Pelo visto, ela agora se acertou.
- Como assim? Ela sofreu alguma decep��o amorosa?
- Ela n�o lhe contou? - Patr�cia fingiu surpresa.
- N�o.
- Ai, meu Deus, falei demais. Deixe para l�, R�gis. Se ela
n�o lhe contou, n�o vou ser eu a contar.
- N�o, pode falar. Ficar� aqui entre n�s.
- Jura?
- Juro.
Ela terminou de embrulhar os cacos no jornal e olhou na dire��o
da porta da cozinha, para ver se Nat�lia n�o vinha.
* - Lembre-se de que me prometeu n�o contar.
- Tudo bem.
- Na verdade, R�gis, Nat�lia n�o gosta muito de homens.
- O qu�?!
- Ela � sapat�o.
R�gis olhou para ela e desatou a rir.
- D� um tempo, Patr�cia. Invente outra.
- � verdade. Por que acha que ela demorou tanto a dormir
com voc�?
- Ela me pareceu bem feminina quando transamos.
- Acho que ela gosta de voc� - disse, tentando ocultar a
raiva. - Ou ent�o n�o quer que nossos pais descubram, o que �
mais prov�vel. N�o � nada de mais. Ela j� fez isso antes, v�rias vezes.
- N�o acredito.


- Pois pode acreditar. Caso ela n�o tenha lhe contado,
papai est� para chegar de S�o Paulo essa semana, e aposto como
ela vai planejar um encontro entre voc�s, para deix�-lo satisfeito.
Uma raiva surda alcan�ou o cora��o de R�gis. Ele n�o era
nenhum idiota. Era vis�vel o que Patr�cia pretendia fazer. Uma menina
invejosa, tentando destruir a felicidade da irm�.
- Sabe de uma coisa, Patr�cia?- tornou ele. - N�o acredito
em voc�. E depois, isso n�o me interessa. N�o sou preconceituoso.
O que importa � o que n�s sentimos um pelo outro no momento.
- Acho que voc� n�o entendeu. Nat�lia gosta de transar
com mulheres. Ela est� usando voc�.
- Quem n�o entendeu foi voc�. Falei que n�o acredito em
uma s� palavra do que disse. E, se Nat�lia dormiu ou n�o com
mulheres no passado, � problema dela. Eu n�o me importo. Repito:
n�o sou preconceituoso. O que me interessa � o que ela sente por
mim agora. E isso nem voc� nem ningu�m vai poder destruir. Sei
que Nat�lia me ama, assim como eu a amo.
- Tudo bem - revidou ela entre os dentes. - Se quiser se
enganar, � problema seu. Mas depois n�o diga que eu n�o avisei.
Quando ela largar voc� por causa de uma garota qualquer, n�o
venha chorar no meu ombro.
- Invejosa - rosnou baixinho. - Voc� n�o passa de uma
garota f�til e invejosa. Devia ter vergonha de tentar envenenar a
vida da sua irm�, que � t�o boa com voc�.
A vontade de Patr�cia foi de agredi-lo, arranhar o seu rosto
para ench�-lo de cicatrizes e acabar com sua carreira de modelo.
Era a primeira vez que suas intrigas n�o surtiam resultado. R�gis
n�o era tolo como os demais. Pensava com a pr�pria cabe�a,
tinha intui��o agu�ada, logo percebendo que ela morria de inveja
da irm�. Ia externar seu �dio quando Nat�lia entrou na cozinha.
- Voc�s ainda n�o tiraram esses cacos? - surpreendeu-se.
- Estamos acabando - concluiu Patr�cia, atirando o jornal
com os cacos no lixo.
294


R�gis deu as costas a ela, aproximando-se de Nat�lia. Estreitou-
a junto ao peito, como se quisesse proteg�-la da influ�ncia
perniciosa da irm�.
- Est� tudo bem? - estranhou ela.
- Eu a amo, sabia? - murmurou ele. - N�o se esque�a.
Por voc�, sou capaz de tudo.
Um tuf�o parecia ter passado por eles, tamanha a f�ria com
que Patr�cia saiu da cozinha.
- Acho que ela est� com ci�me - observou Nat�lia. -
Todo meu tempo livre, passo com voc�. Talvez seja melhor dar um
pouco de aten��o a ela.
- Patr�cia n�o precisa da sua aten��o. Precisa de um namorado.
- Voc� acha?
- Algu�m que a deixe ocupada.
- Mas ela � t�o novinha.
- N�o se iluda, Nat�lia. Ela pode ser novinha, mas � bem
esperta.
- Por que diz isso? Voc� notou alguma coisa?
- Nada. S� que ela est� na idade disso mesmo.
, - N�s tamb�m - gracejou ela, apertando-se a ele. - N�o
sou assim t�o mais velha do que Patr�cia.
- Voc� � mais madura, mais consciente, mais mulher.
Beijaram-se longamente, acompanhados do olhar perscrutador
de Patr�cia, que fingia ver televis�o. Em seguida, Nat�lia
se afastou, a fim de preparar sandu�ches para o lanche. R�gis a
ajudou, contrariado por ter de aceitar a presen�a de Patr�cia. Agora
que a conhecia, gostaria que ela fosse embora.
- Venha comer, Patr�cia! - chamou Nat�lia, assim que
aprontou tudo.
O tempo em que passou sozinha em frente � TV foi suficiente
para Patr�cia se recompor. Em vez da atra��o que sentira por R�gis
quando o vira pela primeira vez, o que experimentava agora era
raiva. Ele descobrira quem ela era, desvendara seu segredo, e
ela precisava impedir que ele contasse � Nat�lia.
295


- Quando � que voc� vai cumprir sua promessa? - sondou
ela, dirigindo-se a R�gis.
- Que promessa? - tornou ele.
- J� se esqueceu? Voc� prometeu me levar para conhecer
o est�dio e a ag�ncia onde voc� trabalha.
- Ah! Isso... Qualquer dia desses.
- N�o pode ser amanh�?
- Acho que n�o vai dar.
- Est� vendo s�, Nat�lia? R�gis est� querendo me enrolar.
Prometeu e n�o quer cumprir.
Ele a fuzilou com o olhar. J� ia revidar quando Nat�lia interveio:
- Ser� que n�o d� mesmo, R�gis? Ia ser bom para ela sair
um pouco.
- �, R�gis, ia ser bom para mim. E que companhia �eria
melhor do que o namorado da minha irm�?
Se pudesse esgan�-la, R�gis o faria. Patr�cia estava manipulando
os sentimentos da irm� para alcan�ar seu objetivo.
- Por favor, querido, fa�a isso por mim - pediu Nat�lia,
com voz doce. - Eu ia ficar mais feliz sabendo que Patr�cia est�
se divertindo, em seguran�a, ao seu lado.
- E ent�o, R�gis? - insistiu Patr�cia. - Qual a sua resposta?
- Est� bem. Mas a sess�o de fotos come�a cedo. Tenho
que estar no est�dio �s oito horas.
- Tudo bem. �s seis, estarei de p�.
Ficou acertado daquela forma. �s sete da manh�, R�gis passaria
por l� para apanhar Patr�cia. Depois do lanche, assistiram um
pouco de televis�o, at� que R�gis foi para casa. Nat�lia acompanhou-
-o da janela, esperando v�-lo sumir no fim da rua. Atr�s dela, Patr�cia
tamb�m seguia os passos dele, remoendo a raiva por ter sido descoberta,
sentindo uma inveja t�o grande que se afastou, com medo de
que Nat�lia percebesse o que passava em seu cora��o.
296


Eram sete da manh� quando R�gis tocou o interfone na casa
de Nat�lia. Falou com a namorada, mas n�o subiu. N�o podia se
atrasar. Patr�cia desceu as escadas correndo, t�o euf�rica que
nem quis esperar o elevador.
- Bom-dia, cunhado - cumprimentou, em tom de deboche.
- Bom-dia. Vamos logo.
Saiu andando sem esperar por ela, que precisou apertar
o passo para acompanh�-lo. Tomaram o �nibus, R�gis pagou a
passagem dos dois, sentando-se com ela num banco � frente.
- Por que o mau humor? - provocou ela.
- Escute aqui, Patr�cia, s� estou fazendo isso pela sua irm�.
Ent�o, por favor, fique em sil�ncio e aproveite o passeio.
- N�o acredito. Acho que voc� me trouxe porque gosta de
mim. Do contr�rio, teria contado tudo a Nat�lia.
- N�o contei porque ela n�o acreditaria e porque n�o quero
lhe dar esse desgosto. Mas n�o se iluda. Farei de tudo para que
ela perceba quem voc� �.
- � mesmo? Cuidado para que eu n�o fa�a isso primeiro.
Parecia uma amea�a velada. R�gis encarou-a com desprezo.
Ela n�o sabia nada da vida dele, n�o podia prejudic�-lo. Patr�cia
o encarava de volta, com olhar divertido, os l�bios entreabertos,
tentando ser sedutora. De forma ousada, ela colocou a m�o no
joelho dele, subindo-a lentamente pela sua coxa.
- Ponha-se no seu lugar, menina - irritou-se, apertando-
-lhe os dedos. - N�o gosto de crian�as, muito menos de vadias.
A rea��o dele encheu-a de �dio. Patr�cia recolheu a m�o,
fitando-o com uma f�ria quase palp�vel. Estava com tanta raiva
que seu rosto chegou a se avermelhar.
- N�o pense que isso vai ficar assim - revidou col�rica. -
Ainda vou fazer voc� vir correndo para mim feito um cachorrinho.
- V� sonhando.
- Quando Nat�lia o deixar, � de mim que voc� vai se lembrar.
- Nem que voc� fosse a �ltima mulher no mundo.
297


Chegaram ao ponto, onde R�gis deu o sinal, cutucando-a
para se levantar. Patr�cia saltou na frente, seguida por ele, que
vinha de cara emburrada. No est�dio, foi dif�cil se concentrar nas
fotos. A presen�a de Patr�cia o incomodava e amea�ava. Ele a
apresentou a todo mundo, sentindo que iria se arrepender. Patr�cia
conversou com todos, tentou demonstrar uma simpatia for�ada,
interesseira. Ningu�m simpatizou muito com ela. Trataram-na bem
por educa��o, mas n�o lhe deram muita import�ncia.
R�gis deu gra�as a Deus quando terminou a sess�o de fotos,
Estava irritado, louco para se livrar de Patr�cia. Ap�s mudar de
roupa, chamou-a para irem embora.
- Adorei conhecer seu local de trabalho - comentou ela,
como se inexistisse hostilidade entre eles.
R�gis n�o respondeu. Estava assustado, at�nito. Ao alcan�ar a
rua, viu um carro seu conhecido encostado ao meio-fio. Estremeceu.
N�o podia ser Bira. N�o com Patr�cia ali. Como da outra vez, o vidro
traseiro se abriu e o rosto endurecido do traficante surgiu na janela
- E a�, garoto? - cumprimentou ele. - Como vai?
- N�o posso falar agora revidou entre os dentes.
Por mais que ele quisesse, n�o conseguiu ocultar Patr�cia de
Bira, porque ela estava parada bem atr�s dele.
- Quem � a gatinha? - tornou Bira, encantando Patr�cia.
- Uma amiga. Agora, com licen�a. Estamos com pressa.
- Sou Patr�cia - adiantou-se ela, ignorando a clara preocupa��o
dele. - E voc�, quem �?
- Bira. Muito prazer.
A m�tua simpatia quase fez R�gis desmaiar. Queria arrancar
Patr�cia dali �s pressas, nem que fosse aos tapas. Ela podia ser
uma sem-vergonha atrevida, mas era uma menina, irm� de sua
namorada. A �ltima coisa que ele queria era que ela se envolvesse
com um tipo feito Bira.
- Vamos embora - ordenou, puxando-a pelo bra�o.
- Calma a�! - objetou Bira. - Por que a pressa? Deixe a
menina conversar.
298


Para aumentar ainda mais o desespero de R�gis, Bira saltou
do carro. Assim como acontecera com ele, Patr�cia se deixou
empolgar pela impon�ncia de seu porte.
- Olhe, Bira, outra hora conversaremos. Agora tenho que
levar a menina para casa.
- N�o tem, n�o - objetou ela, passando na frente dele. -
Na verdade, estou de f�rias, sem compromisso.
- S�rio? Que tal ent�o se n�s tr�s d�ssemos uma volta?
- N�o vai dar...
R�gis n�o conseguiu concluir a obje��o, porque Patr�cia j�
havia se antecipado e entrado no carro. Bira sorriu maliciosamente,
entrando atr�s dela.
- Voc� n�o vem? - perguntou a R�gis.
N�o lhe restou escolha. R�gis n�o deixaria Patr�cia sozinha
com ele por nada. Encurralado, sentou-se ao lado de Bira, tentando
olhar para Patr�cia do outro lado. Ela, por�m, parecia ter perdido
completamente o interesse por ele, embevecida com as aten��es
do traficante.
- Aonde vamos? - perguntou ela, usando de uma inoc�ncia
for�ada.
- Aonde quer ir?
- Hum... Pod�amos ir almo�ar. Estou morrendo de fome.
- Ainda n�o almo�aram, at� essa hora?- Bira fingiu indigna��o.
- R�gis n�o quis me levar - queixou-se ela, fazendo beicinho.
- Ent�o, vou lev�-laaum lugar especial. A comida � maravilhosa.
R�gis estava enojado. Patr�cia fingia uma infantilidade que
n�o era dela, s� porque percebera que era o que agradava Bira.
Este, por sua vez, for�ava uma gentileza que n�o fazia parte de seu
temperamento, obviamente, para conquistar a menina.
Foram a um restaurante de frutos do mar, mas R�gis quase
n�o conseguiu comer. Patr�cia, por outro lado, comia com vontade,
divertindo-se com os galanteios de Bira.
- De onde voc�s se conhecem? - ela quis saber.
- Da rua - esclareceu Bira. - Somos praticamente vizinhos.
299


- � mesmo? E o que voc� faz?
- Sou um homem de neg�cios. Mercadoria importada, da
mais alta qualidade.
- Que tipo de mercadoria?
- Produtos qu�micos, em geral.
- Tipo produtos de laborat�rio?
Ele riu gostosamente, causando calafrios em R�gis.
- Pode-se dizer que sim - afirmou ele, fixando um olhar frio
em R�gis.
Patr�cia podia ser tudo, menos tola. Fingia inoc�ncia para agradar
Bira, mas imaginava o que ele fazia. N�o tinha certeza se ele
era traficante. Podia ser, como podia traficar armas, ser bicheiro ou
coisa parecida. A �nica coisa que ela sabia era que o neg�cio dele
era il�cito e devia dar muito dinheiro, a supor pelo seu carr�o e as
roupas de grife que usava. Sem contar o monte de ouro pendurado
em seu pesco�o.
- Est� na hora de irmos embora - anunciou R�gis, doido
para sair dali.
- R�gis tem raz�o - concordou Bira, consultando o rel�gio.
- Est� ficando tarde.
- Podemos nos encontrar de novo?
- Acho que n�o - objetou R�gis. - Bira � um homem
ocupado, n�o tem tempo para perder com crian�as.
- Na verdade, Patr�cia, eu adoraria - contrap�s Bira, divertindo-
se imensamente com a contrariedade de R�gis.
- S�rio? Quando pode ser isso?
- Por que n�o me d� seu telefone? Podemos nos falar.
- Est� certo. Quer anotar meu celular?
Aumentando a contrariedade de R�gis, Bira e Patr�cia trocaram
telefones. Ele n�o podia acreditar que aquilo estivesse acontecendo.
Nat�lia jamais o perdoaria por envolver a irm� com um traficante,
mas ele nada podia fazer. Bira era perigoso, e Patr�cia, inconsequente.
Na porta da casa de Nat�lia, os dois saltaram. Bira abra�ou
Patr�cia, beijou-a nas faces. R�gis assistia a tudo sem dizer nada,
paralisado pela sua impot�ncia.
300


- Mande um abra�o a sua m�e e sua av� por mim - finalizou
Bira, piscando um olho para ele. - Outra hora, voltaremos a
nos falar.
Ele se foi, deixando R�gis apavorado, tr�mulo, temendo,
mais do que nunca pela vida das pessoas de quem mais gostava.
N�o sabia mais o que fazer. Era uma press�o quase irresist�vel, um
medo atroz de perder quem amava.
- Voc� ficou louca? - ele quase gritou, apertando o bra�o
de Patr�cia.
- Solte-me. Est� me machucando.
- Tem ideia do que voc� fez? Sabe quem � esse cara?
- N�o � amigo seu?
- N�o se fa�a de c�nica, idiota! Ele � um traficante de drogas.
� com esse tipo de gente que quer se envolver?
- E da�? N�o tenho nada a ver com o que ele faz.
- N�o seja est�pida, Patr�cia. Quando algu�m se envolve
com um traficante, tem tudo a ver com o que ele faz.
- � assim com voc�, R�gis? Est� envolvido com ele?
- De uma certa forma, sim, mas estou lutando para que ele
me deixe em paz.
- O que ele quer de voc�?
- Nada que lhe interesse.
- Voc� usa drogas? � viciado?
- N�o uso drogas. Detesto qualquer tipo de droga. E aconselho
voc� a ficar longe disso tamb�m.
- J� experimentei maconha na escola. At� que foi legal.
- Voc� n�o sabe o que est� dizendo. Quer estragar sua vida?
- N�o exagere, R�gis. Achei Bira muito simp�tico. N�o creio
que me fizesse algum mal.
- Idiota. Bira a usar� at� n�o precisar mais. Depois, vai
mandar algu�m dar sumi�o em voc�.
- N�o acredito. Bira � simp�tico, gentil, um verdadeiro cavalheiro.
- Pelo amor de Deus, menina, escute o que estou dizendo.
Afaste-se de Bira. Ele � perigoso, do tipo que manda matar.
301


- S� tem um jeito de voc� fazer eu me afastar dele.
- Qual?
- Transando comigo.
- O qu�?!
- � isso mesmo que voc� ouviu. Transe comigo, e ficarei
longe dele. Se recusar, n�o apenas dormirei com ele, como contarei
tudo a Nat�lia. E n�o estou falando de mim. Estou falando de
voc�. N�o sei se ela gostaria de saber que o namoradinho perfeito
dela est� comprometido com um traficante.
- Voc� n�o seria capaz.
- Acha mesmo que n�o? Experimente n�o fazer o que eu
quero.-
Cachorra! - rugiu ele, empregando consider�vel esfor�o
para n�o a esbofetear.
Ela sorriu de um jeito diab�lico. Deu as costas a ele e entrou
no pr�dio. Faltava pouco para Nat�lia chegar, o suficiente para
uma transa r�pida.
- Voc� vem ou n�o vem? - indagou ela, parada na portaria.
- Nosso tempo est� acabando.
Por um momento, R�gis quase cedeu. Encurralado, achava
que n�o tinha outro jeito. Deu dois passos em dire��o a ela, resignado
ante a inevitabilidade do destino. Ao se aproximar, mudou de
ideia. O sorriso de vit�ria dela o encheu de raiva.
- Fa�a o que quiser - sussurrou com revolta. - N�o vou
me vender a voc�.
Nem teve tempo de assistir � mudan�a na fisionomia dela,
que passou do triunfo ao �dio em quest�o de segundos. R�gis
rodou nos calcanhares e quase correu pela rua. Queria afastar-
-se dela o mais r�pido poss�vel. Sabia que estava colocando sua
felicidade em jogo, mas ao menos naquele momento n�o podia
ceder. N�o queria. Em nome do amor que sentia por Nat�lia, n�o
se deixaria chantagear por ningu�m.
302

capitulo
33
At�lio parecia desesperado. Mandara v�rios soldados atr�s
de Damien e T�cio, mas ningu�m conseguira encontr�-los. N�o
fazia a menor ideia de onde eles estavam, o que o deixava at�nito,
preocupado. Como fora imprudente! T�o logo percebera uma
certa dificuldade em ler alguns dos pensamentos de Damien, devia
ter detectado seus planos de trai��o.
- N�o � poss�vel - disse ele a um de seus comandados.
- Damien tem que estar em algum lugar.
- J� procuramos em tudo. A cabana dele est� abandonada.
Parece que ele e T�cio fugiram.
- E largaram Mizael � pr�pria sorte. � por isso que meu
plano est� ruindo. Sem a influ�ncia deles, Mizael est� se deixando
tomar pela influ�ncia da m�e. Isso n�o pode acontecer. Foram
anos de um projeto muito bem calculado. Mas agora tudo parece
perdido.
- Quer que mande algu�m ocupar o lugar de Damien?
Temos bons soldados aqui que ficariam honrados em assumir
essa tarefa.
- N�o. N�o confio em mais ningu�m. Eu mesmo vou cuidar
desse assunto.
- O senhor?


- N�o me agrada muito me afastar daqui, mas � preciso.
N�o posso abandonar Mizael depois de haver-lhe prometido apoio.
Sem mim, ele vai se perder. E depois, vai me acusar.
At�lio falava como se sua prote��o fosse a �nica coisa que
manteria Mizael longe do caminho da luz. N�o compreendia
que essa escolha pertence ao pr�prio esp�rito, n�o � um fracasso
provocado por ningu�m. �, sim, uma vit�ria sobre as tend�ncias
malignas, uma conquista da alma, incapaz, portanto, de gerar
arrependimentos ou cobran�as. Uma vez superada a �ndole daninha,
o esp�rito n�o retorna mais ao mal.
Preparou-se para partir. Fazia tempos que n�o ia � superf�cie,
de modo que estava inseguro. Habituado a transitar no submundo
das sombras, tinha medo de se deparar com coisas com as quais
n�o soubesse mais lidar. Ainda assim, foi-se. Mizael merecia aquele
sacrif�cio. Depois de colocar Mizael de volta no eixo, cuidaria de
Damien e T�cio.
Chegou � porta da casa de R�gis, o m�ximo aonde poderia
ir. Logo na entrada, percebeu o cintur�o energ�tico que havia anos
protegia a resid�ncia. Olhou para os lados, mas nem sinal de seus
dois comandados. R�gis tamb�m n�o estava por ali. Andando de
um lado para outro, aguardou.
Quando, finalmente, R�gis apareceu, At�lio partiu atr�s dele,
impressionado com a sua apar�ncia f�sica. Ele se tornara um
homem realmente atraente.
"Como sempre" pensou. "Mizael nunca aceitaria um corpo
feio."
Caminhando a seu lado, auscultou-lhe os pensamentos,
surpreendendo-se com o avan�o da situa��o. As coisas estavam
muito piores do que ele imaginava. Al�m de ter dispensado
a amizade do traficante, trabalhava honestamente e tinha at� uma
namorada. N�o era poss�vel.
- Mizael - chamou. - Pode me ouvir?
R�gis n�o lhe registrava a presen�a. Fazia muitos anos que At�lio
n�o assediava ningu�m. N�o estava mais acostumado ao contato
304


com os vivos, sentia-se incomodado com a energia vital que circulava
ao redor do mundo. O que subtra�a dessa energia era proveniente de
feiti�os e sacrif�cios, nunca do contato direto com a vida f�sica.
Ele parou na portaria de um pr�dio, At�lio parou com ele.
R�gis tocou o interfone, receoso, � espera de uma rea��o adversa
de Nat�lia. Podia ter telefonado, mas sabia que tinha de enfrentar
pessoalmente a situa��o.
Assim que a porta do apartamento se abriu, At�lio sentiu um
torpor indefin�vel, uma ang�stia inenarr�vel. Ficou parado na entrada,
sem conseguir se mover. R�gis passou para o lado de dentro,
mas ele recebeu na cara a porta que se fechou. Estava paralisado,
at�nito, incr�dulo. Seria aquilo mais uma ironia do destino, que
tentava desmanchar seus planos usurpando seus entes queridos?
Recuperado do susto, At�lio atravessou a porta para uma sala
de visitas lindamente decorada. O ambiente suave o perturbou,
quase causando sua expuls�o. N�o percebia a presen�a de dois
esp�ritos de luz, que, advertidos do encontro, tinham partido para
a casa de Nat�lia. Josu� e Uriel assistiam ao desenrolar dos acontecimentos
com serenidade e confian�a.
- N�o � poss�vel - comoveu-se ele, perscrutando a mente
de Nat�lia. - Procurei-a por todo lugar. Como n�o imaginei que
voc� estaria aqui? Nora...
Ao pronunciar o nome dela, desabou em prantos. Sentia-se
mais perdido do que nunca. N�o conhecia direito Ge�rgia, embora
tivesse ouvido falar de sua grandeza espiritual. Nora, contudo,
ele conhecia bem. Reconhecia a nobreza de sua alma s� de olhar
para ela.
E agora, o que iria fazer? Se o apelo de Ge�rgia j� era dif�cil
para Mizael resistir, que diria de Nora? Que armadilha era aquela que
o mundo lhe armava, colocando em lados opostos as pessoas
que mais amava? Pretendia afastar qualquer obst�culo do caminho
de Mizael, mas n�o podia lutar contra Nora. Tudo estava perdido.
- Por que n�o desiste de vez desse projeto insano? - ouviu
algu�m dizer.
305


Aterrorizado, At�lio pensou em fugir, mas suas pernas grudaram
ao ch�o, tal qual acontecera com Damien alguns anos antes.
Na mesma hora, a figura di�fana de Josu� se fez vis�vel diante dele.
- Quem � voc�? - esbravejou. - O que faz aqui?
- Sou amigo de Ge�rgia. Por meu interm�dio, ela conheceu
R�gis, ou Mizael, como preferir cham�-lo.
- � voc� o respons�vel por tudo isso?
- O respons�vel pela vida � Deus. E cada um, pela parcela
que recebeu.
- N�o me venha com joguinhos de palavras. N�o estou
interessado na sua filosofia barata. Solte-me agora, eu exijo!
- N�o posso solt�-lo, porque n�o o estou prendendo. Na
verdade, foi o seu medo que o paralisou.
- Mentira! N�o tenho medo de nada. Muito menos de um
fantasminha feito voc�.
- Fantasminha? - Josu� sorriu. - J� me chamaram de
muitas coisas, mas essa foi boa.
D� o fora, velhote. Esses dois n�o s�o problema seu.
E s�o problema de quem? Seu?
- Voc�s s�o todos uns covardes! Fingem-se de bonzinhos
para nos fazer cair em suas esparrelas. Quem lhe deu autoriza��o
para interferir nos meus planos?
- Voc� n�o acha que essa sua arrog�ncia n�o combina
com o seu estado? Para algu�m se impor com tanta veem�ncia,
deveria ao menos ser senhor da sua vontade.
- O que est� dizendo? Que besteira � essa?
- Voc� n�o consegue nem se mover. Como pensa que
pode me dar ordens?
- Canalha! - vociferou. - Est� se aproveitando de mim
porque me prendeu com cordas invis�veis. Solte-me e lhe mostrarei
com quem est� lidando!
Josu� fez como ele pediu. Com a for�a do pensamento,
desfez o elo mental que o prendia ao ch�o. Sentindo-se
livre, At�lio avan�ou para ele. Ao tentar acert�-lo, por�m, uma
306


surpresa. Seus bra�os formigaram intensamente, caindo inertes
ao longo do corpo.
- O que � isso? - esbravejou. - Mais uma de suas m�gicas
covardes?
- N�o fiz nada - esclareceu Josu� bondosamente. - Isso �
s� o resultado do contato da sua energia densa com nosso campo
de luz, que a faz desmanchar devido ao desfazimento da crosta de
sujeira astral grudada em seu corpo flu�dico.
- Bruxo! - gritou. - Deixe-me em paz! Liberte-me, vamos!
- N�o o estou prendendo, j� disse. E n�o se desespere. O
que voc� sentiu foi o resultado �nfimo de uma limpeza energ�tica.
Imagine essa sensa��o em seu corpo inteiro.
At�lio estava mais aturdido do que nunca. Julgava-se t�o poderoso,
mas perdia para um velho fraco e aparentemente inofensivo.
Subitamente, Nat�lia o atravessou, carregando uma bandeja de
suco e biscoitos. � passagem dela, ele sentiu um arrepio fren�tico,
quase uma dor.
- O que est� acontecendo?- gritou ele. - N�o compreendo.
- Tenha calma. Voc� apenas experimentou um pouco da
energia dela. N�o se sente bem?
- Quero ir embora daqui. N�o devia ter vindo. Sabia que
isso n�o ia acabar bem.
- Pense na oportunidade que est� recebendo. Voc� pode
partir comigo daqui, ir para um lugar melhor, mais tranquilo, onde
ter� a oportunidade de refazer sua vida.
- Foi isso que fez a Damien e T�cio?
- Damien e T�cio n�o est�o comigo, mas espero v�-los
em breve.
- Mentiroso! Voc� s� quer nos enganar. � uma cilada para
nos escravizar, fazer-nos retornar ao mundo como aleijados ou
dementes, tudo para satisfazer seus prazeres m�rbidos.
- Voc� n�o acredita, realmente, nisso. Est� se comportando
como crian�a porque sabe que, daqui para a frente, n�o poder�
mais se iludir com o poder. Voc� n�o tem poder algum.
307


- Tenho muito mais do que voc� imagina. Pode ser que
voc� saiba de truques que eu desconhe�o, mas sou o rei na minha
cidade.
- Ser�? O que dir�o seus s�ditos quando souberem que
voc� est� preso aqui pela fraqueza da sua vontade?
- N�o tenho medo das suas amea�as.
- Sei que n�o. E, se n�o quer mesmo ir embora comigo,
ent�o sugiro que volte para o seu reino. Aqui n�o � mais o seu lugar.
Josu� se tornou invis�vel, dando a At�lio a oportunidade de
fugir. N�o adiantava insistir para salv�-lo, se ele n�o queria ser salvo.
- E agora? - indagou Uriel.
- Penso que At�lio j� percebeu que est� perdendo.
- Voc� acha que R�gis vai finalmente se acertar?
- Vamos orar para isso. Mesmo livre da influ�ncia dos esp�ritos
das sombras, existe a tend�ncia que ele tem que vencer. *
- Nat�lia � uma boa influ�ncia. Mas Patr�cia...
- Patr�cia � mais uma iludida. Oremos por ela tamb�m.
De m�os dadas, os dois esp�ritos rezaram pelo sucesso
daquelas almas. Renovaram a energia do ambiente, um pouco
perturbada pela presen�a de At�lio, e partiram.
308

capitulo
34
Nat�lia desligou o telefone e voltou para junto de R�gis,
apanhando um biscoito da bandeja em cima da mesinha.
- Era o meu pai - anunciou ela. - Vai chegar de S�o Paulo
amanh�.
- Ele vai ficar aqui, na sua casa?
- Vai. Os hot�is est�o todos lotados, e a casa da minha m�e
n�o � l� uma op��o muito boa. Eles est�o se divorciando.
- Entendo.
- Voc� vai gostar de conhec�-lo.
Ele fez cara de d�vida e mudou de assunto:
- E Patr�cia, onde est�?
- Foi � praia com mam�e.
- Voc� n�o quis ir?
- S� se voc� fosse comigo.
- N�o gosto de praia. Detesto ficar torrado e todo ardido.
Nat�lia riu, acariciando seu rosto.
- Para isso � que inventaram o protetor solar.
Ele riu tamb�m, beijando-a com amor.
- Tive uma ideia - falou ele. - J� que vou conhecer o seu
pai amanh�, vou lev�-la hoje para conhecer minha m�e e minha
av�. O que acha?


S�rio, R�gis? Eu adoraria!
- Ent�o vamos.
- Agora? Voc� n�o vai nem avis�-las?
- N�o precisa. Elas v�o adorar a surpresa.
Sa�ram �s pressas. Fora uma ideia repentina, uma vontade
louca de inserir Nat�lia em sua fam�lia. Tinha certeza de que a m�e
e a av� gostariam muito dela. Como sua casa n�o era longe, logo
a alcan�aram.
- Oi, v� - cumprimentou ele. - Trouxe algu�m para conhecer
voc�,
Cl�ia levantou os olhos da t�bua de passar roupas para encarar
Nat�lia, parada atr�s de R�gis.
- Quem � essa mocinha linda? - perguntou ela, estudando
bem as faces de Nat�lia.
- Minha namorada - respondeu R�gis, satisfeito. - O nome
dela � Nat�lia.
- Finalmente! Ouvimos muito falar de voc�,
- R�gis tamb�m fala muito bem da senhora - disse Nat�lia.
- E de dona Ge�rgia.
- Minha m�e n�o est�? - quis saber R�gis.
- Foi ao mercado, mas n�o se demora.
Efetivamente, dez minutos depois, Ge�rgia entrou. Achou
Nat�lia muito bonita e simp�tica. Deram-se muito bem, conversaram,
contaram hist�rias e conheceram-se. Nat�lia passou a tarde
com eles. R�gis mostrou a Nat�lia seu book e v�rias fotos, Alugou
um DVD, ouviram m�sica, passearam de m�os dadas.
- Vou fazer um jantar para apresent�-lo ao meu pai - anunciou
Nat�lia. - Quero que voc� sinta pela minha fam�lia o que
estou sentindo pela sua.
- Tomara que ele goste do futuro genro dele,
Nat�lia abra�ou-o emocionada. Era a primeira vez que ele
falava em casamento, e ela sentia que era sincero. Quando R�gis a
deixou em casa, passava da meia-noite. O dia fora perfeito, maravilhoso.
Ele achava que nada podia estragar sua felicidade, a n�o

ser o Bira. Logo que Nat�lia subiu, percebeu que o carro dele os
seguia. Estacou, olhando para os lados, com medo de que Nat�lia
os visse. Como n�o havia ningu�m por perto, ele mesmo abriu a
porta do carro e entrou.
- Ser� que d� para parar de me seguir? - irritou-se.
- Voc� ainda n�o me deu a resposta.
- J�, sim. S� que n�o foi a resposta que voc� queria.
- Ent�o, por que n�o me diz o que eu quero ouvir?
- N�o entendo, Bira. Voc� diz que � grato por eu ter lhe
salvado a vida, no entanto n�o para de me pressionar. Que gratid�o
� essa?
- Se eu n�o fosse grato, voc� j� estaria morto. Ningu�m
fala comigo do jeito que voc� fala. E s� permito isso porque voc�
salvou a minha vida.
- Quer dizer ent�o que agora sou eu que devo ser grato a
voc� por me permitir viver?
- N�o entendo voc�, R�gis. Poucos dias atr�s, voc� daria
tudo para ingressar no meu bando. Sei disso porque Alex me
contou. Mas agora voc� mudou, me evita, finge que n�o me v�.
Por qu�? - Ele n�o respondeu. - � por causa da Gislene?
- Voc� est� se tornando repetitivo. J� disse que n�o gostei
de voc� ter matado Gislene.
- Faz parte do neg�cio. E, se voc� quiser me substituir um
dia, vai ter que se acostumar com isso.
- Como � que �? - indignou-se. - Substituir voc�?
- Ningu�m vive para sempre. Quero algu�m ao meu lado
para me representar quando for preciso e para me ajudar com
os neg�cios. Algu�m de confian�a. E ningu�m pode ser de mais
confian�a do que o cara que salvou a minha vida.
- Voc� est� me oferecendo um emprego?
- Exatamente.
- Agrade�o muito, mas, caso n�o tenha percebido, eu j�
tenho um emprego. E n�o estou me saindo assim t�o mal.
311


- Voc� n�o est� entendendo. O emprego que estou lhe
oferecendo � uma continua��o do que voc� hoje exerce.
R�gis balan�ou a cabe�a, indignado. O que Bira lhe propunha
era um disparate.
- Voc� quer que eu use dos meus conhecimentos como
modelo para infiltrar voc� no meio. J� disse que n�o d�. N�o
conhe�o tanta gente assim.
- Conhece, sim - afirmou ele, dando um tapinha no
joelho de R�gis. - E eu j� estou ficando impaciente. Lembre-se
de que voc� tem muito a perder, a come�ar pela futura cunhadinha.
Que garota gostosa!
- Voc� n�o se atreveria. Patr�cia � s� uma crian�a!
- Posso lhe assegurar que ela � tudo, menos crian�a.
- Est� me dizendo que j� transou com ela? Como? Quando?
- Isso n�o vem ao caso nem eu estou falando que sim. Meu
neg�cio com voc� � outro. Como ia dizendo, al�m da sua futura
cunhadinha, tem a namorada, a mam�e, a vov�... Olhe s� quanta
gente fr�gil dispon�vel para uma bala perdida.
- Voc� n�o pode estar falando s�rio. Depois do que fiz por
voc�, ainda se atreve a me amea�ar?
- Voc� continua n�o entendendo. O que voc� fez por mim
est� mantendo sua gente viva. Quando quero uma coisa, costumo
ir l� e pegar. N�o sou de ficar esperando nem de dar chances.
S� fa�o isso porque � voc�. E a quem quer enganar, R�gis? Voc�
n�o � o cara bonzinho que quer parecer. Sei muito bem que
voc� andou metido em besteiras, junto com aquele viciado do Alex.
- Isso foi no passado. Agora tomei jeito. Estou apaixonado...
Ele deixou escapar sem querer, mas Bira n�o perdeu a
oportunidade:
- Apaixonado, n�o �? Por que as mulheres sempre estragam
tudo? Voc� devia ser como eu. Devia us�-las e depois descart�-las
quando n�o interessassem mais.
- N�o sou assassino! - rugiu com raiva.


- Nem eu. Nunca matei ningu�m. Tenho pessoas que fazem
isso por mim. E depois, n�o s�o todas que mando matar. Ao
contr�rio, sou at� generoso. Costumo dar um carro a cada uma das
minhas ex-namoradas, desde que n�o saibam muito da minha vida
nem me traiam, como fez a Gislene.
- Chega, Bira, n�o quero mais saber da sua vida. S� o que
quero � que voc� me esque�a.
- Ent�o, o que est� esperando? Fa�a o que estou pedindo
e n�o o aborrecerei mais.
- Voc� n�o quer s� uma vez. Quer que eu trabalhe para
voc�. Nunca vai me deixar em paz.
- No come�o, pode ser que voc� estranhe, mas depois vai
gostar, eu prometo. Quando vir a grana entrar, vai mudar de ideia.
Olhe s� para mim. Pendurado de ouro at� o pesco�o, carr�o do
ano, uma mans�o l� na comunidade, com seguran�a particular e
tudo. Mulheres � vontade, roupas de grife, festas de arromba, com
u�sque importado. D� para recusar um vid�o desses?
Realmente, a proposta n�o deixava de ser tentadora. Uma
vida como aquela era tudo com que R�gis sempre sonhara, contudo
n�o estava mais interessado. Nat�lia jamais aceitaria casar-se
com um bandido. Sem contar o desgosto que causaria � m�e e �
av�. Tudo isso pesava na hora de fazer uma escolha, mas o principal
mesmo era que ele j� n�o sentia mais afinidade com o crime.
N�o pretendia passar o resto da vida fugindo nem se escondendo.
Queria gozar sua liberdade com a tranquilidade dos que nada
deviam, mas Bira parecia disposto a n�o permitir.
- Muito bem, Bira - falou por fim. - Farei como me pede.
D�-me apenas um tempo para escolher as pessoas certas. N�o
quero correr o risco de oferecer a droga a algu�m careta.
- Tenho uma lista de nomes para voc� - ele afirmou,
apanhando uma folha de papel da pasta que o capanga do banco
da frente lhe estendeu. - Tenho o maior interesse nessas pessoas,
gente cheia da grana e influente. S�o elas que garantir�o o
meu pr�ximo passo.
313


- Que pr�ximo passo?
- Eu n�o lhe contei? - Ele meneou a cabe�a. - Quero me
eleger vereador.
Se n�o estivesse sentado, R�gis teria ca�do para tr�s. Podia
esperar qualquer coisa, menos aquilo. Agora compreendia tudo.
Bira n�o estava propriamente interessado em mais uma �rea de
expans�o da droga. Queria ter nas m�os pessoas influentes para
apoi�-lo em sua futura campanha pol�tica, e ele se tornara marionete
naquele jogo de poder.
- Tudo bem, Bira, d�-me a lista. A ag�ncia fecha na sexta e
s� reabre na segunda-feira depois do carnaval. D�-me o n�mero
do seu celular. Ligarei para voc� assim que tiver uma posi��o.
- S�bia decis�o, R�gis. E parab�ns. Voc� acabou de salvar
a vida da sua av�.
R�gis saltou do carro arrasado. Ent�o a av� seria a primeira
v�tima de Bira. Depois, se n�o conseguisse o que queria, talvez
escolhesse a m�e e, por �ltimo, Nat�lia. Ele n�o podia permitir.
Vendo-se sem sa�da, R�gis apertou a lista na m�o e chorou,
temendo pelo seu destino.
314

capitulo
35
Desde que se casara, poucas foram as vezes em que J�lio
visitara a m�e. Falava com ela ao telefone, ia busc�-la para o
anivers�rio das netas, para passar o Natal com eles, e s�. Ela e
Bianca nunca se deram bem, desculpa que ele usava para n�o ter
de retornar aos lugares de sua juventude.
Seu antigo bairro estava cheio de lembran�as dolorosas. A
ag�ncia banc�ria em que iniciara sua carreira ainda funcionava
no mesmo lugar, com pessoas agora estranhas. Ningu�m mais
dos velhos tempos continuava ali. Soubera por conhecidos que
Anselmo conseguira pagar o tempo que faltava para a aposentadoria
vendendo sandu�ches na praia e agora morava de favor na
casa de um parente. Ele tivera melhor sorte.
Mais forte que tudo era a lembran�a de Ge�rgia. N�o sabia
o que fora feito dela. Perdera contato com a vizinhan�a, e, sempre
que a m�e falava nela, ele desviava o assunto ou sa�a de perto.
N�o sabia nem se ela ainda morava por ali ou se havia se casado.
Sentiu um �mpeto irresist�vel de passar diante da casa dela
e deu ordens ao motorista do t�xi para parar do outro lado da
rua. A casa parecia a mesma, pintadinha de branco com as janelas
azuis, como sempre fora. O jardim continuava bem cuidado,
bem t�pico de Cl�ia. Mas n�o havia ningu�m � vista. Antes que


algu�m aparecesse, J�lio mandou o taxista seguir adiante, virando
a esquina para a casa da filha.
- Papai! - exclamou Nat�lia, abra�ando-o efusivamente.
- Que saudade!
- Tamb�m senti muita saudade sua - respondeu ele,
beijando-a no rosto. - Como est�o as coisas?
- �timas! Estou cuidando direitinho da casa da vov�.
- Pelo visto, voc� � muito caprichosa, como sua av� era.
- Adoro morar aqui. E ainda bem que o apartamento � grande.
Tem um quarto para voc� e outro para Patr�cia.
- Onde est� sua irm�, por falar nisso?
- Saiu. Vai � praia todos os dias com mam�e.
- Sua m�e n�o muda, n�o � mesmo?
- Deixe-a, pai. Ela � feliz assim.
- Ela est� me enrolando com o div�rcio. N�o entendo por
que n�o resolvemos logo isso.
- Acho que ela est� com medo.
- O �nico medo que ela tem � de ficar sem nada.
- Voc� n�o vai deixar o apartamento para ela?
- Vou. Mas n�o quero lhe pagar pens�o. Estou lutando por
isso. Sua m�e � jovem, pode trabalhar.
- Acho que voc� deveria pensar bem a respeito. Mam�e j�
passou dos quarenta anos. N�o � f�cil arranjar emprego nessa idade.
- Por que ela n�o vai viver com um de seus casinhos? Para
que um homem, se ele n�o pode nem sustent�-la?
- Voc� est� ganhando bem, pai. N�o acha que valeria mais
a pena pagar a pens�o e ficarem amigos?
Ele n�o respondeu. Por ele, Bianca n�o veria um tost�o do
seu dinheiro e ele n�o fazia quest�o de ser amigo dela.
- Sua irm� me disse que voc� est� namorando-desconversou.
- � verdade.
- Disse-me que o rapaz � modelo.
- Pelo visto, Patr�cia lhe deu o servi�o completo.
- Mais ou menos. Ela est� preocupada com voc�.


- Comigo? Por qu�?
- C� entre n�s, minha filha, esse neg�cio de modelo n�o �
trabalho para ningu�m,
- Que preconceito bobo, pai. � uma profiss�o como outra
qualquer.
- Essa gente vive metida com drogas, farras e bebidas. N�o
quero a minha filhinha envolvida nesse meio.
- Isso � uma injusti�a. H� pessoas desequilibradas em qualquer
meio social ou profiss�o. E R�gis n�o � assim. Ele n�o se
droga e s� bebe socialmente. Tamb�m n�o � de farras. Passamos
os fins de semana juntos, vamos ao cinema, ao barzinho, � boate,
ao teatro. Coisas altamente inofensivas e normais.
- Tem certeza?
- Absoluta. Voc� poder� constatar pessoalmente. Marquei
um jantar aqui em casa hoje, para voc� conhec�-lo. Depois, reuniremos
as fam�lias.
- Nossa! J� est� assim? Como estou atrasado!
- A m�e e a av� dele s�o pessoas maravilhosas. Voc� vai
gostar delas, tenho certeza. Dona Ge�rgia ainda � jovem e est�
solteira - finalizou ela, piscando o olho maliciosamente.
- Dona Ge�rgia? - surpreendeu-se.
- � o nome da m�e dele. Tem que ver, pai, que mulher bonita!
Nem parece m�e de um rapaz de vinte e um anos. Criou R�gis
s� com a ajuda da m�e, sabia? Dona Cl�ia tamb�m � fant�stica.
Voc� e dona Ge�rgia podiam se conhecer melhor. O que voc�
acha? N�o, estou brincando. Dona Ge�rgia � muito s�ria, n�o ia
gostar de um mulherengo feito voc�.
J�lio n�o ouvia mais nada. Era como se um zunido agudo
bloqueasse sua audi��o, torturando sua mente. Como podia
ser? Que brincadeira era aquela? Uma pe�a de mau gosto do
destino? A �ltima pessoa que J�lio pensaria encontrar namorando
sua filha era o filho de Ge�rgia. Era muita coincid�ncia. Um
acaso macabro, p�rfido, daninho. Horr�vel demais para ser verdade.
Sim, talvez fosse isso. Talvez aqueles nomes fossem apenas
317


coincid�ncias. Devia haver muitas Ge�rgias no mundo, filhas de
pessoas chamadas Cl�ia...
A emo��o foi demais para J�lio. N�o era um sonho nem brincadeira.
Era real. Naquele lugar, um rapaz de vinte e um anos, filho
de Ge�rgia e neto de Cl�ia s� podia ser quem ele pensava que era.
S� n�o entendia como aquilo fora acontecer justo com a sua filha.
- Pai! Pai! - ele ouviu, ao longe, uma voz o chamar. - O
que foi que houve? Voc� est� chorando?
As l�grimas desciam e ele nem percebeu. N�o ouvia, n�o
via, n�o sentia nada. De repente, era como se as emo��es fossem
roubadas de seu cora��o. S� um vazio muito grande contaminando
seu peito.
- Vou me deitar - anunciou ele. - N�o estou me sentindo
muito bem.
- Quer ir ao m�dico? - tornou ela, preocupada. - Tem
uma emerg�ncia pertinho daqui.
- N�o, minha filha, estou bem. Deve ser o calor. Voc� mandou
instalar o ar-condicionado?
- Nos tr�s quartos - confirmou ela. - Como voc� pediu.
- �timo. Ent�o, vou descansar um pouco. Mais tarde,
conversaremos.
Nat�lia ajudou-o a se acomodar. Ele estava p�lido, tr�mulo,
suando frio. Devia ser o calor, realmente. Ela ajeitou a cama para
ele e ligou o ar refrigerado.
- Est� bom? - perguntou ela, testando a temperatura.
- Perfeito. N�o se preocupe comigo, Nat�lia. Mais tarde estarei
melhor.
- Est� bem. Descanse. Desfarei sua mala depois.
- N�o se preocupe com isso, Fa�a o que tiver que fazer,
n�o se prenda por minha causa.
- Certo. Se eu precisar sair, deixarei alguma coisa pronta
para voc� comer. � s� esquentar no micro-ondas.
Ela o beijou na testa e saiu, fechando a porta com cuidado.
N�o compreendia aquela rea��o do pai, que nunca fora dado a
318


mal-estares. Enfim, podia ser que a vida em S�o Paulo o estivesse
deixando desacostumado com o calor.
J�lio n�o conseguiu dormir. Queria afastar-se de Nat�lia para
poder pensar melhor. Alguma coisa tinha de ser feita para impedir
aquele namoro. N�o queria que sua filha se casasse com o fruto de
um estupro. Perguntava-se se R�gis sabia. Talvez Ge�rgia houvesse
lhe contado, talvez n�o. De qualquer forma, ele n�o servia para
Nat�lia.
Por meio de R�gis, feridas n�o cicatrizadas seriam remexidas,
trazendo de volta toda a dor do passado. O destino lhe pregava
uma pe�a de muito mau gosto e algo precisava ser feito. Falar com
Nat�lia n�o surtiria efeito. A experi�ncia lhe dizia que, quanto mais
se tentava afastar duas pessoas, mais elas se tornavam pr�ximas.
O jeito era apelar para o bom senso de Ge�rgia.
Ge�rgia n�o devia saber que Nat�lia era filha dele. Imaginava
qual seria sua rea��o ao descobrir. Assim como ele, ela teria mil
motivos para desejar impedir aquele namoro. Sim, a solu��o
seria procur�-la.
Em sua ilus�o de menina f�til, Patr�cia sentia-se uma princesa,
a quem nenhum desejo podia ser negado. E R�gis era o que
ela mais desejava naquele momento. Depois do desprezo com
que a tratara, Patr�cia precisava conquist�-lo para depois rejeit�-lo.
S� assim se sentiria satisfeita e vingada. N�o tinha a menor ideia
de como faria para conseguir seu intento, mas precisava de uma
solu��o r�pida. Foi quando Bira apareceu.
O traficante era atraente, m�sculo, respeitado por todos na
regi�o. Um homem de verdade. Patr�cia n�o precisava de dinheiro,
mas adorava a vida de emo��o que ele levava. Queria participar
daquela vida, ter um lugar em seu cora��o. Por isso, mentira �
irm� na v�spera, dizendo que ia � praia com a m�e, quando, na
verdade, fora ao encontro de Bira.
319


Patr�cia n�o pensou duas vezes quando ele a seduziu, Achava
que o tinha nas m�os s� pelo tom de sua voz ao telefone. Bira estava
louco por ela, esmerou-se para agrad�-la. Isso deixaria R�gis
louco. Vira como ele ficara no outro dia, quando Bira a cobrira de
aten��o. Agora, sabendo que ela praticamente se tornara amante
dele, R�gis n�o mais a ignoraria.
Naquele domingo, mesmo sabendo que o pai viria de S�o Paulo,
Patr�cia saiu cedo para a casa da m�e. Iriam � praia e, na volta, Bianca
a levaria para casa, junto com sua fantasia de carnaval. Faltavam dez
minutos para as sete da noite quando ela abriu a porta da cozinha.
- Voc� demorou - observou Nat�lia, contrariada.
- A praia estava uma del�cia. Voc� devia ter ido.
- Domingo tem muito tr�nsito. E R�gis detesta praia.
- N�o sabe o que perderam.
- Mam�e trouxe voc�?
- Trouxe.
- Por que ela n�o subiu?
- Estava com pressa, sei l�. E cad� o papai?
- Est� se arrumando - informou Nat�lia, cuidando do
jantar, - V� tomar o seu banho e venha me ajudar.
- Ah! Nat�lia, detesto cozinhar. N�o sei fazer nada,
- N�o precisa cozinhar. Basta me ajudar a arrumar a mesa.
R�gis vem jantar aqui em casa para conhecer o pai.
- �? - ela mal conseguiu conter a euforia. - Est� certo.
- O que � isso nessa bolsa?
- Minha fantasia. Ficou linda!
- Posso ver?
- Vou experimentar depois do banho.
- Ent�o, v� logo.
- Vou falar com papai primeiro.
Ela bateu � porta do quarto, atirando-se no pesco�o dele
quando ela se abriu.
- Que saudade, pai! Pensei que voc� n�o viria.
- Imagine se eu perderia o desfile da minha filhinha.
320


- Voc� vai ao desfile?
- Vou. Consegui um lugar no camarote da diretoria do banco
Vou v�-la pessoalmente.
- Vai levar Nat�lia e R�gis com voc�?
- N�o, vou sozinho. Infelizmente, o convite que arrumei foi
s� para um.
- Que pena. Mas pelo menos, voc� vai.
- Depois do carnaval, acho bom voc� voltar para casa
comigo. J� perdeu uma semana de aula.
- Ah, pai, a vida s� come�a depois do carnaval. E estou
pensando em me mudar para c�.
- O qu�?
- � isso mesmo que voc� ouviu. Acho que vou voltar para o
Rio. Quero morar com a Nat�lia.
- Voc� est� falando besteira. Sua irm� trabalha e estuda.
- E da�? Sei me virar sozinha,
- Mas s� tem um ano que voc� se mudou para S�o Paulo! E
o col�gio? Como pensa que vou arranjar uma transfer�ncia assim,
de uma hora para outra?
- Se n�o arranjar, n�o faz mal. Volto a estudar ano que vem.
- E se atrasar um ano? Nem pensar!
Tudo bem, pai, sei que voc� vai dar um jeito. � isso que eu
quero. J� est� decidido.
J�lio suspirou profundamente. N�o conseguia negar nada a
Patr�cia. Depois de todo o trabalho que tivera para lev�-la para S�o
Paulo, n�o compreendia por que ela queria voltar �s pressas para
o Rio.
Mal sabia ele que seus interesses eram outros. Patr�cia s�
queria ficar por causa de R�gis e Bira. N�o era poss�vel ir para S�o
Paulo, onde n�o tinha nada, e deixar a irm� com aquele namorado
divino. R�gis tinha de ser dela, e Bira a ajudaria a conquist�-lo.
- J� falou com Nat�lia? - tornou J�lio.
- Ainda n�o. Mas tenho certeza de que ela vai concordar. E
depois, algu�m precisa ficar por aqui para p�r um freio nela. Voc�
acha certo ela ficar trazendo o namorado para dormir aqui?
321


- Sua irm� faz isso?
- Faz.
Por mais que J�lio soubesse que Nat�lia se transformara em
mulher, era-lhe dif�cil aceitar que sua filha j� dormia com homens.
Ainda mais se o homem era o filho de Ge�rgia.
- Pensando bem, talvez seja uma boa ideia. Mas precisamos
falar com ela antes.
- Deixo isso com voc�, est� bem? Afinal, esse apartamento
� seu. Tenho tanto direito a ele quanto Nat�lia.
Com um beijo, saiu. Deixou a sacola com a fantasia no quarto
e foi para o banho. Demorou-se o mais que p�de, para n�o ter de
ajudar Nat�lia com a mesa. Detestava qualquer servi�o dom�stico.
Para isso, o pai tinha empregada.
Do banheiro, ouviu o interfone tocar, sinal de que R�gis havia
chegado. Fechou a torneira, antegozando o momento em que
faria sua entrada triunfal.
Nat�lia recebeu R�gis na porta da sala. Ele a beijou suavemente
nos l�bios, com medo de desgostar seu futuro sogro.
Quando Nat�lia o apresentou a ele, R�gis estendeu-lhe a m�o com
cortesia, recebendo dele um cumprimento frio.
Sentaram-se no sof�, onde Nat�lia havia servido uns canap�s
que ela mesma preparara. R�gis elogiou seu dom para a culin�ria,
esperando que o pai dela fizesse o mesmo. J�lio, por�m, n�o se
mostrava nada simp�tico.
- Ent�o, voc� � modelo - disse em tom glacial,
- Sou, sim, senhor.
- E isso � uma profiss�o?
- �.
Quantos anos voc� precisou estudar para ser modelo?
- Pai! - censurou Nat�lia, espantada com a atitude dele.
- Na verdade, n�o � preciso muito estudo para ser modelo
- esclareceu R�gis. - Mas quanto mais inteligentes formos,
mais respeito obteremos na carreira e mais chance de sucesso
teremos.
322


"Boa resposta", pensou Nat�lia, olhando para ele com orgulho.
R�gis podia n�o fazer faculdade, mas era muito inteligente.
- Para que, exatamente, serve a intelig�ncia nessa profiss�o?
- insistiu J�lio, para desespero de Nat�lia, que o fuzilava
com os olhos.
- Temos que ter carisma, ser simp�ticos, bem falantes. N�o
adianta nada ser bonito e falar errado com os publicit�rios, por
exemplo. Nosso dom para o di�logo deve ser natural, precisamos
nos relacionar bem com todo mundo, e, se voc� n�o � uma pessoa
inteligente, pode ter problemas nessa hora. Clareza de racioc�nio e
facilidade de comunica��o s�o fundamentais. Sem contar a disciplina.
N�o somos vagabundos fazendo figura bonita. Temos que
respeitar os hor�rios, as regras, os contratos. � uma disciplina
meio r�gida, por�m, compensadora.
J�lio n�o sabia como rebater. Limitou-se a balan�ar a cabe�a,
pensando em algo para dizer. Como n�o encontrou, resolveu
mudar de assunto:
- E seus pais? O que acham disso?
- Meu pai morreu. Moro com minha m�e e minha av�, e
elas s�o totalmente a favor.
- Seu pai morreu? De qu�?
- Ele era doente - respondeu acabrunhado.
- Que tipo de doen�a ele tinha?
Sentindo-se encurralado, R�gis evitou encar�-lo. Mordeu o
canap�, para pensar no que fazer. Por fim, resolveu ser sincero:
- Desculpe-me, senhor, mas n�o gosto de falar sobre isso.
- �, pai, deixe de ser indiscreto - censurou Nat�lia. - Voc�
nunca foi assim.
- Desde que n�o esteja em jogo a vida da minha filha. Mas,
se voc� traz um sujeito para dormir em minha casa com voc�,
tenho todo o direito de interrog�-lo.
R�gis quase engasgou com o canap�, ia responder alguma
coisa, mas Nat�lia interveio:
323


- Isso n�o se faz, pai. Est� deixando R�gis sem gra�a. Sou
maior de idade e voc� me deu o apartamento para morar. Posso
fazer o que quiser da minha vida.
- Por certo - concordou J�lio, meio aborrecido. - Mas
isso n�o me impede de querer o melhor para minha filha. Ou ser�
que n�o devo me preocupar com voc�?
- Deixe, Nat�lia, eu compreendo - intercedeu R�gis. - Seu
pai est� preocupado, o que � plenamente compreens�vel. Mas posso
assegurar-lhe, seu J�lio, que tenho pela sua filha o maior respeito.
- Estou vendo.
- Amo-a de verdade. Futuramente, pretendo casar-me
com ela.
"Mas nem que os oceanos sequem!", ele pensou, por�m disse
outra coisa: - Casamento � coisa s�ria. Voc�s s�o duas crian�as.
- Por isso falei: futuramente. Estou no in�cio da carreira, e
Nat�lia ainda est� na faculdade. Contudo, nada nos impede de
fazermos planos para o futuro.
- Sei. E sua m�e concorda com isso?
- Ela pensa mais ou menos como o senhor. Acha que
somos muito jovens e podemos esperar.
- Pelo menos ela tem ju�zo. Falando em m�e, o que a sua faz?
- Ela � pedagoga. Trabalha na Secretaria de Educa��o.
- Ela fez faculdade? - admirou-se.
- Fez - respondeu R�gis, estranhando a pergunta.
- Sua m�e fez faculdade. Quem diria?
- O que tem de mais, pai? - replicou Nat�lia. - Voc� fala
como se fosse algo do outro mundo uma mulher fazer faculdade.
Mesmo naquela �poca, j� era uma coisa normal.
- � claro, minha filha. Que bobagem a minha. Mas conte-
-me mais sobre sua m�e, rapaz. Ela � feliz?
- Feliz? - espantou-se. - Acho que sim.
- N�o se casou? Quero dizer, depois que seu pai morreu?
- N�o.
- Voc�s ainda moram na mesma casa?
324


- Como assim? O senhor conhece a nossa casa?
Por muito pouco, J�lio n�o se delatou. A conversa levava
sua mente ao passado, fazendo-a divagar nas reminisc�ncias
da juventude.
- Conhecer a sua casa? - repetiu ele, at�nito. - � claro
que n�o. De onde tirou essa ideia? S� perguntei isso porque
minha m�e morou anos nesse apartamento. Queria saber se voc�s
tamb�m moram aqui h� muito tempo.
- Desde sempre. Nasci neste bairro.
- Compreendo...
A palavra morreu nos l�bios de J�lio, tornada muda pelo
espanto do que ele agora via. Seguindo seu olhar, Nat�lia e R�gis
tiveram a mesma vis�o surpreendente. Patr�cia havia acabado de
entrar na sala, vestindo a fantasia com que desfilaria na escola
de samba, de salto alto, toda maquiada. Era uma roupa sum�ria,
transparente, cheia de paet�s. Uma pequena tanga e um busti�,
encimados por um manto di�fano.
Ela entrou na sala como se pisasse na passarela. Estendeu
os bra�os, mostrando a transpar�ncia cintilante da capa, e deu
v�rias voltas pela sala, exibindo as formas perfeitas, o corpo quase
despido por debaixo do traje min�sculo.
Mesmo sem querer, R�gis sentiu o efeito daquela vis�o.
Patr�cia estava deslumbrante, sensual, revelando a mulher sedutora
por cima da imagem de menina. Ele prendeu o f�lego, temendo
desviar os olhos da estonteante figura. Todos estavam at�nitos,
embasbacados, paralisados de espanto. At� que, de repente, o
grito en�rgico de J�lio quebrou o feiti�o do momento:
- Patr�cia! O que significa isso?
- Minha fantasia - anunciou ela, de forma displicente e
atrevida. - � assim que vou desfilar na Portela.
- Isso l� s�o trajes de menina? Pensei que voc� fosse desfilar
com uma fantasia decente.
- N�o sou menina - queixou-se. - E minha m�e deixou.
325


- Isso s� podia ser coisa de Bianca. V� j� trocar essa roupa!
N�o v� que nem fica bem voc� aparecer assim na frente do namorado
da sua irm�?
- O que � que tem? R�gis s� tem olhos para Nat�lia. N�o
�, R�gis?
R�gis n�o respondeu. Estava com Patr�cia em seu limite.
Simplesmente apertou a m�o de Nat�lia, olhando-a com ar de
paix�o, como a dizer-lhe que nada daquilo o impressionava. O
impacto que Patr�cia lhe causara fora s� f�sico, moment�neo. Cada
vez mais a desprezava pela sua falta de senso e de respeito.
Nem viu quando Patr�cia se foi. Altamente aborrecido, J�lio
levantou-se do sof� e arrastou-a de volta ao quarto pelo bra�o.
R�gis e Nat�lia ficaram a s�s, tentando entender por que a noite
dera errado.
- Acho melhor eu ir embora - comentou R�gis. - Seu pai
n�o gostou de mim e sua irm� quer chamar a aten��o.
- Por favor, R�gis, n�o v�. Fiz tudo com o maior carinho,
para voc� e meu pai se conhecerem.
- Eu sei, querida, mas est� na cara que seu pai n�o simpatizou
comigo. Acho que � preconceito, por eu ser modelo.
- Ele vai se acostumar. E Patr�cia � s� uma crian�a. Voc�
mesmo disse que ela quer chamar a aten��o.
J�lio reapareceu em seguida, envergonhado. Deixou Patr�cia
no quarto, proibindo-a de voltar � sala, com medo de despertar a
cobi�a de R�gis. Ele j� dormia com Nat�lia. J�lio n�o suportaria se
seduzisse tamb�m Patr�cia.
- Perdoe-me pela minha filha - balbuciou ele. - N�o sei
o que deu nela.
- Patr�cia � muito mimada, isso sim - disse Nat�lia, com
uma certa irrita��o. - Voc� a deixa fazer tudo o que quer.
- Eu n�o sabia que ela ia vestir essa fantasia.
- N�o estou falando disso. Voc� � permissivo demais, n�o lhe
d� nenhum corretivo. Sempre foi assim, desde que �ramos pequenas.
326


- Acho melhor eu ir andando - anunciou R�gis, sentindo-
-se mal em presenciar aquela discuss�o em fam�lia.
- Tamb�m acho - concordou J�lio. - N�o foi uma boa ideia
esse jantar, minha filha. Bem se v� que vivemos em mundos totalmente
diferentes. Voc� n�o devia ter vindo se enfiar aqui, nesse sub�rbio.
- Essa foi a casa da sua m�e! O lugar onde voc� foi criado.
- Nossa realidade agora � outra. R�gis pertence a este
lugar. Voc�, n�o.
- N�o acredito! - esbravejou ela. - N�o � meu pai que
est� falando.
- Por favor, Nat�lia, n�o briguem por minha causa - pediu
R�gis, cada vez mais constrangido.
- N�o tenha essa pretens�o, rapaz - rebateu J�lio, com
desd�m. - Voc� n�o tem essa import�ncia toda. N�o passa de
um namorico de esta��o.
- Pai! - objetou Nat�lia, com veem�ncia.
- Estou de sa�da - anunciou R�gis, cerrando os punhos
para n�o acertar um murro na face de J�lio.
- R�gis, espere! - chamou Nat�lia, seguindo atr�s dele.
- N�o se incomode, minha querida. Ligue-me quando seu
pai voltar para S�o Paulo. N�o quero ser motivo de desaven�as
em fam�lia.
Saiu, deixando Nat�lia aos prantos no corredor. Sua vontade
era voltar e estreit�-la nos bra�os, mas n�o queria ficar perto de J�lio.
Por pouco n�o o esmurrara. E Patr�cia tamb�m merecia uma li��o.
- Estou mudado mesmo - disse para si. - Em outros
tempos, teria partido a cara daquele ot�rio.
Alcan�ou a rua, dando gra�as a Deus por ter sa�do dali.
Amava Nat�lia, n�o permitiria que o pai ou a irm� dela os separasse.
Contudo, dividir com eles o mesmo ambiente era demais. N�o
entendia bem por que J�lio n�o simpatizara com ele. A �nica explica��o
que encontrou foi sua carreira de modelo. Mas ele estava
errado em seu julgamento. R�gis agora era uma pessoa decente,
n�o tinha nada de que se envergonhar.
327

capitulo
36
Finalmente, T�cio e Damien reuniram coragem para aparecer.
Desde que haviam fugido do covil de At�lio, haviam permanecido
escondidos em uma ravina �rida no submundo astral. Por ali havia
poucos esp�ritos, fugitivos como eles, seres atormentados que
oscilavam entre a culpa e o desejo de se modificar. Todos tinham
algo em comum: o medo.
- Quero ver o meu filho - anunciou T�cio, cansado de ficar
sentado sem fazer nada.
- Voc� acha que � prudente? - contrap�s Damien.
- N�s j� fugimos. O que pode nos acontecer?
- At�lio deve estar louco � nossa procura.
- Ser� que voc� ainda n�o se convenceu de que At�lio
se imp�e pelo medo? O poder dele � s� uma ilus�o criada para
atemorizar os trouxas.
- Pode ser. Mas ele tem um ex�rcito. E se mandar nos prender
novamente?
- N�o entendo voc�. Est� aqui h� bem mais tempo do que
eu e parece que n�o aprendeu nada.
- E desde quando voc� � o sabich�o?
- Desde que fugi daquela masmorra e percebi que somos
n�s que criamos a nossa pris�o. Ningu�m pode contra n�s, a n�o


ser que permitamos. E n�o estou mais disposto a permitir que
me escravizem. Sozinho, estou me libertando dos meus grilh�es.
Aconselho voc� a fazer o mesmo.
- Muito esperto. Mas ainda estamos aqui, escondendo-nos
de At�lio. Cad� a sua coragem?
O olhar de T�cio para Damien foi de vit�ria. Vencera o medo
acreditando em seu poder. Sabia que, se n�o permitisse, At�lio n�o
poderia mais amea��-lo.
- Voc� tem raz�o, sabia? - retrucou confiante. - N�o sou
um covarde. Quero ver o meu filho e � o que vou fazer.
- Deixe isso para l�. At�lio deve ter mandado algu�m nos
espionar. Assim que dermos as caras, vai mandar nos prender.
- Ser� poss�vel? - irritou-se. - N�o adianta eu falar, que
voc� n�o se convence. Pois fique a� voc�, atolado no medo. Eu vou
ver o meu filho. E quero ver se At�lio ou algu�m vai me impedir.
Ante o olhar at�nito e apavorado de Damien, T�cio esvaneceu
no ar. N�o aguentava mais se esconder. Tinha l� os seus
arrependimentos, mas n�o podia permitir que a culpa o paralisasse
a ponto de n�o fazer nada para impedir a queda de R�gis. Ele
era,seu filho, sentia que lhe devia isso como forma de compensar
a viol�ncia que lhe impusera antes mesmo de nascer.
Chegou � Terra pouco depois do anoitecer. A rua em que
R�gis morava fervilhava com pessoas voltando do trabalho e de
seus afazeres di�rios. Parado em frente � casa do filho, esperou.
Logo Ge�rgia surgiu, causando-lhe uma como��o diferente. Havia
muito n�o se detinha em Ge�rgia, sentindo-se t�o culpado pelo
que lhe fizera que nem se atrevia a aproximar-se.
Ela passou por ele sem notar sua presen�a. Entrou em casa
como se ningu�m estivesse ali. Al�m de T�cio, um outro esp�rito
espreitava. A mando de At�lio, n�o desgrudava os olhos da casa de
R�gis. Assim que T�cio apareceu, ele logo partiu rumo ao seu covil.
- T�cio voltou - anunciou, satisfeito por ter sido ele a levar
a not�cia. - Est� parado � porta da casa de Mizael.
- Sozinho? - indagou At�lio.
329


- Sim, senhor.
- E Damien?
- Nem sinal dele.
- Covarde. Est� se escondendo. T�cio, pelo visto, tem mais
coragem.
- Quer que junte um pessoal para prend�-lo?
- N�o. Farei isso pessoalmente.
At�lio precisava vencer o medo. Afinal, era poderoso, n�o
podia deixar-se dominar por um esp�rito inferior. Se n�o enfrentasse
T�cio, perderia o respeito de seus comandados, que logo
tratariam de enfrent�-lo. Se percebessem que ele estava fraquejando,
algu�m se atreveria a tentar derrub�-lo e assumir a posi��o
de l�der. Trazer T�cio e Damien de volta funcionaria como a reafirma��o
de seu poder.
At�lio apareceu bem ao lado de T�cio, que levou um sust� ao
v�-lo. A impon�ncia de At�lio provocou um certo temor em T�cio,
que quase correu. Mas ele sabia que, se n�o o enfrentasse, ficaria
para sempre em suas m�os. Tinha de dar um basta naquela situa��o.
Mesmo assim, n�o disse nada, permanecendo na defensiva.
- Onde est� Damien? - indagou At�lio, com voz assustadora,
� qual T�cio n�o respondeu. - Voc� ouviu o que eu disse?
- Ouvi - tornou ele, ap�s alguns segundos. - Mas n�o sei
onde ele est�.
- � mentira. Os dois fugiram juntos. Covardes! - T�cio
permaneceu em sil�ncio. - N�o diz nada, covarde?
- N�o tenho o que lhe dizer.
- Volte comigo agora mesmo e seu castigo ser� leve. Se
resistir, acabarei com sua forma astral, devolvendo-o a um limbo
de tormentos.
- Sabe de uma coisa, At�lio? - revidou T�cio, encarando-o
firmemente agora. - N�o creio que voc� tenha esse poder.
- Atreve-se a me desafiar? - retorquiu irado.
- N�o o estou desafiando. Apenas n�o acredito mais no poder
que voc� se atribui. Voc� n�o � nenhum mago das trevas para
330


operar magias mirabolantes. N�o passa de um esp�rito f�til, enganado
pela ilus�o do poder.
- Voc� tem coragem ou � muito burro. Ainda n�o decidi
qual dos dois.
- E voc� fala demais e pouco age. At� agora, n�o o vi
cumprir nenhuma de suas amea�as.
At�lio fervia de �dio. N�o imaginava que um viciado insignificante
feito T�cio fosse capaz de desafi�-lo. Precisava fazer alguma
coisa. Seus soldados o observavam, � espera de uma rea��o eficaz.
Pensando nisso, avan�ou para ele, bra�os estendidos para esgan�-
-lo. Tentou passar as m�os ao redor de seu pesco�o, mas T�cio
segurou-as com for�a, impedindo-as de toc�-lo. At�lio ficou apavorado.
Nunca ningu�m o superara em for�a f�sica. O medo paralisa
os tolos, e era isso que permitia que T�cio fizesse o que queria.
Percebendo que n�o conseguiria sozinho domin�-lo, At�lio
lan�ou m�o de seu poder de mando. A um olhar seu, os esp�ritos
que o acompanhavam avan�aram na dire��o de T�cio. Cegos
ainda pelo dever de obedi�ncia que o medo lhes impunha, nem
sequer questionaram o porqu� do fracasso da investida do chefe.
Para eles, T�cio era uma amea�a que devia ser contida, e eles
estavam ali para proteger At�lio.
Muitos avan�aram sobre ele. Eram em maior n�mero, causando
espanto em T�cio. Ainda segurando os punhos de At�lio,
encarou-o. O outro o olhava com chispas de fogo no olhar, um
sorriso mordaz desenhando a amea�a em seus l�bios. O medo
derivou da prud�ncia. Reconhecendo estar em desvantagem,
T�cio empurrou At�lio para tr�s e correu na dire��o da casa, com
os soldados em seu encal�o.
Foi uma cena inusitada. Sem perceber, T�cio atravessou o
cintur�o energ�tico ao redor da casa de Ge�rgia, saltando para a
varanda. Nem se deu conta de que estava l� dentro, surpreendendo-
se ao ver os soldados recuarem. Alguns tentaram atravessar a
muralha, sendo arremessados para tr�s com a mesma for�a com
que investiam contra ela.


- N�o � poss�vel! - esbravejou At�lio. - N�o pode ser!
Como ele conseguiu isso?
Os soldados estacaram at�nitos, olhando para At�lio em busca
de orienta��o. O l�der n�o sabia o que fazer. Sentia-se impotente,
vencido, humilhado. Jamais poderia imaginar que T�cio passaria
para o outro lado, atravessando um caminho por onde n�o poderiam
segui-lo.
- Saia da�, covarde! - At�lio gritou. - Enfrente-me como
homem!
T�cio n�o respondeu. Vendo que os soldados haviam sido
detidos pela barreira energ�tica, percebeu que a havia atravessado.
Olhando ao redor, viu que estava praticamente dentro da casa
de seu filho. Bastava atravessar uma parede. Foi o que fez. Deu
uma �ltima olhada para At�lio, n�o de provoca��o, mas de vit�ria,
e passou para o outro lado.
Dentro de casa, surpreendeu-se ainda mais. Ap�s tantos
anos, jamais imaginou penetrar naquele ambiente. Pensou que
se sentiria mal ali, mas n�o. A atmosfera l�mpida revigorou suas
for�as, causando-lhe um bem-estar que nunca julgou existir,
- Seja bem-vindo - falou algu�m mais adiante.
T�cio olhou na dire��o da voz. Quem ali estava era Josu�,
em companhia de Uriel. Sem medo, aproximou-se, embora meio
acanhado.
- O que foi que houve? - sondou timidamente.
- Voc� n�o sabe? - Ele deu de ombros. - N�o percebeu que
atravessou a prote��o energ�tica que, por anos, o manteve afastado?
- Isso eu percebi. O que n�o compreendo � como consegui
faz�-lo.
- S� voc� n�o v� o quanto se modificou.
- Sou um condenado - falou ele, ajoelhando-se diante de
Josu�. Tudo isso � culpa minha. Ge�rgia perdeu o noivo, nunca
foi feliz. E meu filho � quase um marginal.
- Ge�rgia n�o perdeu o noivo, porque ele nunca lhe pertenceu.
Ningu�m pertence a ningu�m, essa � mais uma ilus�o do ser
332


humano, ainda preso aos desejos do mundo. E quem foi que disse
que ela nunca foi feliz? � sua maneira, � feliz, sim. Seu filho, por
outro lado, n�o � quase um marginal. Quase foi, � verdade. Agora,
por�m, est� se endireitando.
- Do jeito que voc� fala, parece que eu n�o tive nada a ver
com isso.
- Voc� foi a ferramenta. Colocou-se � disposi��o da vida
para realizar a obra divina, manifestada nos projetos de cada um.
- Por que eu?
- Porque era o que voc� queria. Em sua ignor�ncia, julgando
satisfazer os desejos, aceitou participar desses eventos.
- Por qu�?
- Digamos que foi uma forma de vingan�a pela rejei��o.
- Vingan�a? Rejei��o? N�o compreendo.
- Mais uma ilus�o, meu amigo. Rejeitado por Ge�rgia em
outra vida, voc� acreditou que merecia t�-la, ainda que � for�a.
- Eu fiz isso? - Josu� assentiu. - Mas por que Ge�rgia foi
aceitar uma coisa dessas?
- Porque ela, por sua vez, sentia-se culpada por t�-lo acusado
de um crime que voc� n�o cometeu. Achou que lhe devia isso.
Naquele momento, a lembran�a desabou sobre a mente de
T�cio. Viu-se um rapaz pobre em outra vida, em meados do s�culo
XIX, cortejando Ge�rgia, que o desprezava. Secretamente, Ge�rgia
amava outro rapaz e dormiu com ele, numa �poca em que virgindade
era sin�nimo de virtude. Depois de conseguir o que desejava,
o rapaz sumiu de sua vida, casando-se com outra. Desesperada,
com medo de ser mal vista pela sociedade, Ge�rgia resolveu usar
T�cio para limpar seu nome.
Fingindo-se apaixonada, Ge�rgia convidou-o para um passeio
nos jardins de sua casa. Parados sob uma amoreira, beijavam-
-se sofregamente. Estimulado pela atitude dela, T�cio come�ou
a despi-la, surpreso com o fato de que ela rasgava as pr�prias
roupas. Deitado sobre ela, n�o pensava em nada. Desejava apenas
poder extravasar a paix�o e o desejo.
333


Subitamente, ela o empurrou para o lado. T�cio caiu, at�nito,
enquanto Ge�rgia se cobria com os trapos de roupa. Aos gritos,
desatou a correr feito louca, toda desgrenhada, a pele avermelhada
do contato com ele.
Logo atraiu a aten��o de seus pais. Vendo-a naquele estado,
os pais chamaram a criadagem, que n�o custou a encontrar T�cio,
tentando vestir-se �s pressas para fugir. Indagada sobre o ocorrido,
Ge�rgia inventou que estava passeando pelo jardim quando foi
assaltada por aquele homem, que rasgou suas roupas e a violentou.
Por mais que T�cio negasse o ocorrido, as evid�ncias eram
por demais comprometedoras. At� sangue havia, j� que Ge�rgia
se encontrava nos �ltimos dias de seu per�odo menstrual. T�cio
foi preso e condenado a doze anos de pris�o. Ao sair, levava no
cora��o imenso rancor contra Ge�rgia. Durante anos, esteve �
sua procura, sem encontr�-la. Os pais haviam conseguido cas�-la
com um vi�vo de posses, penalizado com seu infort�nio. Desde
ent�o, nunca mais se viram.
- Agora me lembro - anunciou T�cio, ap�s a rememora��o
espont�nea. - Guardei tanto �dio por tanto tempo! E para
qu�? De que adiantou?
- Voc� guardou rancor, e Ge�rgia, culpa. Nenhum dos dois
precisava passar por isso, mas enfim... A alma escolhe caminhos
tortuosos na ignor�ncia do amor.
- � verdade. Mas e R�gis? Onde entra nessa hist�ria?
- N�o entra. Ge�rgia aceitou receb�-lo porque queria ajud�-
-lo. E voc� n�o se importou em ser o pai, j� que n�o pretendia cri�-lo.
- Veja s�. E agora me preocupo tanto com ele.
- Ainda bem. Ele o ajudou a despertar o amor que voc�
escondia a� dentro. Viu como a vida � perfeita? Ao ajudar algu�m,
todos acabam se ajudando.
T�cio olhou ao redor, procurando por Ge�rgia e R�gis. Tinha
l�grimas nos olhos e o cora��o cheio de amor.
N�o quero mais continuar nas sombras - confessou ele.
- Estou cansado. Sei que n�o devia ter me drogado, mas acho
334


que consegui me livrar do v�cio. Desejo uma nova chance para
corrigir os meus erros.
- N�o fale assim. Voc� ter� uma nova chance para reequilibrar
sua vida.
- N�o terei que vir aleijado ou demente?
- N�o. Que ideia! De onde tirou isso?
- Foi o que me disseram l� naquele submundo onde eu estava.
- N�o � bem assim que as coisas funcionam. Se o seu grau
de culpa e falta de perd�o for grande a ponto de voc� desejar se
punir, ningu�m poder� impedi-lo. Basta voc� saber que n�o precisa.
Existem outras formas de harmoniza��o com a vida.
- Quero encontrar essa outra forma. Voc� me ajuda?
- � claro.
- E o meu filho?
- Ele est� indo muito bem. Ainda n�o est� totalmente livre
das tenta��es daninhas, mas o sucesso s� depende dele.
- N�o posso fazer nada?
- Pode acompanhar e aconselhar sem interferir.
- J� tenho feito isso.
, - Muito bem. Quer vir conosco, ent�o?
De m�os dadas com Josu� e Uriel, T�cio preparou-se para
partir. Em seu cora��o, o amor pelo filho reluzia, inating�vel. Mas
seus pensamentos permaneciam ligados a Damien. O que seria
do amigo depois que ele se fosse?
335

capitulo
37
J�lio n�o estava nem um pouco em clima de carnaval. Irritado
com afantasia indecente de Patr�cia e aborrecido com o namoro indesej�vel
de Nat�lia, achava que sua fam�lia havia se desestruturado.
- Mam�e chegou! - exclamou Patr�cia, ansiosa pela chegada
da m�e, que a levaria ao desfile.
J�lio olhou para ela com impaci�ncia. N�o queria que ela
fosse, contudo n�o tinha como evitar. Antes que ele repetisse os
protestos que vinha fazendo havia dias, Patr�cia correu a abrir a
porta para Bianca. A mulher estava mais vulgar do que nunca,
causando um certo desconforto em J�lio.
- Como vai, queridinha? - indagou ela, beijando as faces
da filha.
- Posso ir pronta, mam�e, posso? - retrucou ela, ansiosa.
- Como assim?
Papai n�o deixa eu sair de casa com a fantasia. Quer que
eu me vista l�.
- Voc� vai sair vestida l� de casa. Na concentra��o, n�o d�.
Tem gente que se troca na frente de todo mundo.
- Voc�s v�o para l� de �nibus? - intercedeu J�lio, que
remo�a a raiva.
- Vamos pegar um t�xi.


- Viu, papai? N�o tem problema nenhum.
- V� logo apanhar suas coisas - pediu Bianca.
Depois que Patr�cia saiu, J�lio censurou-a com irrita��o:
- Onde voc� est� com a cabe�a para permitir que Patr�cia
desfile daquele jeito? Ela vai ficar quase nua!
- Deixe de besteiras, J�lio. A menina � linda.
- Por isso mesmo. Todo mundo vai querer passar a m�o nela.
- Bobagem. Eu estarei por perto. Vou vigi�-la.
- Isso � o que mais me preocupa. Ainda acho mais f�cil ela
vigiar voc�.
- Engra�adinho. Mudando de assunto, a audi�ncia do div�rcio
foi marcada. Voc� vai?
- O que voc� acha?
- Est� doido para se livrar de mim, n�o � mesmo?
- Tanto quanto voc� para se livrar de mim.
- O apartamento vai ficar comigo, voc� sabe.
- Foi o combinado.
- E a pens�o?
- N�o creio que voc� precise.
- Eu preciso e voc� vai continuar a me dar. N�o tem jeito.
J�lio suspirou profundamente, tentando n�o se aborrecer. Por
sorte, Nat�lia voltou do mercado, desviando a aten��o de Bianca.
- Filhinha! - falou ela, abra�ando a mo�a.
- Oi, m�e. Chegou h� muito tempo?
- N�o. Estava aqui conversando com seu pai enquanto sua
irm� se veste. E o namorado? Quando � que vamos conhec�-lo?
Nat�lia olhou para J�lio discretamente. Desde o fracasso do
jantar da outra noite, n�o conseguira ainda conversar com o pai,
que mudava de assunto sempre que ela tocava no nome de R�gis.
- Outro dia - respondeu ela, vagamente.
Enquanto Bianca tagarelava sem parar, J�lio desligou-se da
conversa. Seus pensamentos se voltaram para R�gis e, por extens�o,
para Ge�rgia. Sentiu uma vontade louca de v�-la, de falar com
337


ela. Ge�rgia era t�o diferente de Bianca! Uma mo�a t�o bonita e
correta. Meiga, honesta, digna. Por que n�o se casara com ela?
Porque ela estava gr�vida daquela aberra��o. N�o fosse o
filho bastardo, estariam hoje casados, Nat�lia seria filha deles, e
Patr�cia... n�o existiria. N�o, de Patr�cia n�o poderia abrir m�o. Ela
era seu maior consolo naquele mar de insatisfa��o.
Novamente, a ideia de falar com Ge�rgia sobre o namoro
dos filhos assomou em seus pensamentos. Era a melhor sa�da,
sen�o a �nica, para evitar que uma desgra�a acontecesse. Sim,
faria isso. Conversar com Ge�rgia era uma excelente op��o. Ela
sempre fora ponderada. Com certeza, teria pronta a solu��o para
aquele problema.
Agora certo de que deveria procur�-la, J�lio n�o quis mais
adiar o encontro. Naquela noite, quando Nat�lia sa�sse com R�gis,
ele iria � sua casa para uma conversa definitiva.
- Vamos? - ele ouviu a voz mimada de Patr�cia, que vinha
com a fantasia pendurada num cabide.
- Isso � um absurdo! - disparou J�lio, completamente transtornado.
- Uma menina de quinze anos vestida como uma vadia!
- N�o amole a garota, J�lio - objetou Bianca. - Ela vai
ficar linda. Ser� um sucesso na avenida.
- Ela n�o vai. N�o vou permitir que minha filha seja confundida
com uma piranha qualquer. Patr�cia n�o passa de uma crian�a.
- N�o sou crian�a! - protestou ela, veemente. - E voc�
n�o pode me impedir.
- Pare com isso, J�lio - falou Bianca, secamente. - Est�
parecendo um velho bobo. � carnaval, todo mundo se veste desse
jeito. E depois, voc� j� tinha concordado. Mandei at� fazer fantasia
para a menina. N�o v� agora estragar tudo. Vamos embora, Patr�cia.
Patr�cia deu um passo, aproximando-se de J�lio.
- N�o se preocupe, papai - disse, beijando-o no rosto. -
Vai dar tudo certo. Sei me cuidar.
- Tenho medo de que algo lhe aconte�a.
338


- N�o vai acontecer nada. � s� um desfile. Depois, volto
para casa.
- Voc� n�o falou que ia? - lembrou Bianca. - Patr�cia
disse que tinha at� comprado o ingresso.
- Desisti - confessou ele, que n�o queria deixar o apartamento
livre para Nat�lia e R�gis.
- Por qu�?
- Como voc� disse, sou um velho bobo. Prefiro ficar em
casa e assistir pela televis�o.
- Vai perder o dinheiro do ingresso?
- N�o me importo. Pode levar e dar para algu�m, se quiser.
- Ent�o me d� - pediu Bianca. - Tenho uma amiga l� do
sal�o que est� doida para ir. Vou ligar para ela agora mesmo.
- Vamos, m�e - impacientou-se Patr�cia. - Est� quase
na hora.
- Calma, meu bem. Ainda � cedo. Temos muito tempo.
Bianca falou com a tal amiga pelo telefone, desligando em
seguida. J�lio apanhou o convite e entregou-o a ela, louco para
ficar sozinho. N�o suportava nem olhar para a fantasia de Patr�cia.
- At� logo, papai - J�lio n�o respondeu. - Tchau, Nat�lia.
- Tchau.
Elas sa�ram. Nat�lia foi para a janela observ�-las, Patr�cia
rebolando em cima do salto alto como se j� estivesse desfilando.
Ainda n�o havia esquecido seu exibicionismo. Patr�cia achava que
n�o havia feito nada de mais, embora Nat�lia n�o concordasse
com isso. Sabia que fora proposital, s� para chamar a aten��o de
R�gis. Por sorte, ele n�o lhe dera a menor aten��o.
- Sua m�e n�o devia ter permitido essa indec�ncia -
comentou J�lio, ainda irritado. - Mas sua m�e � outra indecente.
- Deixe, pai. � carnaval, muita gente vai estar igual a ela.
- E voc�? Vai sair com o R�gis hoje de novo?
- Vamos jantar e depois ao cinema. N�o gostaria de vir
conosco?
- N�o, obrigado. Prefiro ficar por aqui e assistir um filme na TV.
339


- Por que est� evitando o R�gis, pai? O que foi que ele lhe fez?
- Nada. Acho que vou descansar um pouco.
Era assim que J�lio vinha procedendo desde a noite do jantar.
Nat�lia n�o sabia mais o que fazer. R�gis, por sua vez, n�o insistia,
aumentando, cada vez mais, a dist�ncia entre eles.
� noite, Nat�lia se aprontou para esperar R�gis. Ele gostava
de carnaval, mas decidiu n�o pular para ficar com ela. Nat�lia,
por sua vez, nunca fora muito de folia, preferindo viajar. Naquele
ano, por�m, como o pai e a irm� estavam com ela, n�o tinha
podido se ausentar.
Quando o interfone tocou, J�lio sabia que era ele. Depois
que Nat�lia desceu, acompanhou-os da janela. Assim que se afastaram
o suficiente, saiu tamb�m. Caminhou lentamente em dire��o
� casa de Ge�rgia, atrasando o passo, com medo do encontro.
Parado em frente ao port�o, hesitou em tocar a campair�ha.
Tinha vergonha de encar�-la, mais ainda, de enfrentar Cl�ia, que
sempre o tratara como um filho. Achou melhor atravessar a rua
para vigiar a casa do outro lado. Permaneceu im�vel, olhos grudados
na janela, � espera de um movimento. Ap�s muitos minutos,
Ge�rgia apareceu para fechar as cortinas.
De longe, encoberto pela escurid�o, J�lio n�o conseguiu
distinguir o seu rosto. Sabia, por�m, que era ela. A janela gradeada
n�o lhe permitia uma vis�o mais n�tida, mas ele n�o tinha d�vidas.
Ge�rgia continuava a mulher linda que sempre fora. No peito,
o cora��o deu mostras de uma excita��o acima do normal. Um
palpitar descompassado tornava irregular sua respira��o, enquanto
um suor frio escorria pelo seu rosto. Estava com medo, mas
tinha de falar com ela.
Demorou um pouco a decidir-se. Por fim, saiu do esconderijo
na penumbra e atravessou a rua. A passos vacilantes, abriu
o port�ozinho que levava � varanda. Subiu os degraus que havia
mais de vinte anos n�o pisava. Tocou a campainha e aguardou.
Ouviu passos do lado de dentro. Por instantes, eles se detiveram
� porta, provavelmente porque algu�m olhava pelo olho
340


m�gico. Segundos depois, a porta se abriu, revelando a presen�a
de Ge�rgia, l�vida, assustada, incr�dula.
- J�lio! - espantou-se. - O que est� fazendo aqui?
Num primeiro momento, ele n�o conseguiu falar. Entre a
vergonha e a ansiedade, permaneceu encarando-a, sentindo
que as palavras se atropelavam, na tentativa de sa�rem todas ao
mesmo tempo. Em vez de falar, foram seus olhos que se manifestaram.
Brilhantes de l�grimas, em seu sil�ncio, exprimiram toda
sua ang�stia
341

capitulo
38
Durante o jantar, R�gis mal conversava com Nat�lia. Pensava
em seu �ltimo encontro com Bira. O traficante se mostrava irredut�-
vel, pressionando-o cada vez mais. Seu prazo at� o fim do carnaval
estava se esgotando, de forma que ele n�o tinha sa�da. Quanto mais
pensava, mais se angustiava. Agora n�o tinha como voltar atr�s.
- O que voc� tem? - questionou Nat�lia, notando seu
distanciamento.
- O qu�? Nada. Estava apenas pensando no meu trabalho.
- Por qu�? Alguma coisa errada?
- Pelo contr�rio. Al�m do comercial, recebi uma proposta
de desfile.
- Que maravilha!
- S� que � fora do Brasil.
- Onde?
- Na Espanha.
- Voc� vai aceitar?
- N�o sei. N�o gostaria de ficar longe de voc�.
- Voc� pode ir e voltar. Vou continuar aqui, esperando voc�.
- N�o gostaria de ir comigo?
- N�o posso. Tenho faculdade e trabalho. Mas n�o me
importo que voc� v�.


- Se eu for, e n�o estou dizendo que vou, vai ser pelo tempo
suficiente para cumprir o contrato e voltar.
- N�o se apresse, querido. Se eu escolhi namorar um modelo,
tenho que ir me acostumando a essas coisas.
Ele a beijou com carinho. Amava-a cada vez mais, sentia-se
grato a ela por ajud�-lo a reavaliar suas atitudes, acreditando que
podia ser um homem �ntegro. Um pensamento odioso para At�lio,
que agora resolvera, ele mesmo, tomar a dianteira na condu��o
de Mizael.
- Demorei tempo demais - disse para si mesmo. - Mizael
foi contaminado por essas bobagens de integridade. Isso n�o existe!
- gritou ele, tentando fazer com que o pensamento do rapaz
captasse suas sugest�es. - Voc� n�o nasceu para ser �ntegro.
Nasceu para conquistar poder! Onde est� seu pendor para o tr�fico?
At�lio presenciou novo beijo do casal, sentindo-se incomodado
pela onda de amor que emanava deles.
- Perdi-a outra vez - ele prosseguiu em seu mon�logo,
referindo-se a Nat�lia. De novo, tenho que abrir m�o para que
voc� seja dele. Isso n�o seria dif�cil, se voc�s n�o resolvessem me
trair. Voc� est� me traindo, Mizael, ouviu bem? Isso � trai��o!
� medida que At�lio se enfurecia, R�gis parcialmente captava
suas vibra��es. Uma curiosidade s�bita e violenta de saber o que
aconteceria caso ele fizesse a vontade de Bira despontou em seu
cora��o. N�o seria divertido ter nas m�os aquelas pessoas que se
julgavam t�o importantes?
- Olhe s�! - continuou At�lio. - Agora sim, estamos falando
a mesma l�ngua. O que est� esperando para fazer a vontade de
Bira? Voc� vai ser o maioral, n�o ele.
Como a influ�ncia n�o era suficientemente forte para deixar
R�gis confuso, a ideia de aliar-se a Bira desanuviou-se de sua
mente, agora centrada em Nat�lia. N�o. Decididamente, n�o queria
ter nada a ver com o traficante. Queria ser um homem decente.
Uma luz r�sea envolvia o casal, empurrando At�lio para longe,
bloqueando seu acesso aos pensamentos de R�gis. A luz foi se
343


intensificando a tal ponto que ele n�o aguentou mais. Incomodado,
deu as costas aos dois e sumiu praguejando.
Sem de nada saber, Nat�lia continuava a conversa:
- Por que n�o vamos l� para casa depois do cinema?
Podemos assistir o resto do desfile na televis�o. Talvez consigamos
ver Patr�cia.
- Tem certeza de que voc� faz mesmo quest�o de ver sua
irm� na televis�o?
- N�o. Mas ela faz.
- N�o tenho nada com a vida de voc�s, mas voc� n�o acha
que Patr�cia exagera? Ela ainda � uma crian�a.
- Tamb�m penso assim, mas papai � um frouxo. Ele a deixa
fazer o que quer. Agora est� l�, aborrecido porque ela vai sair
quase pelada na escola de samba.
R�gis n�o queria contar-lhe sobre as coisas que Patr�cia fazia,
para n�o preocup�-la. Todavia, precisava fazer alguma coisa para
que ela n�o se perdesse nas m�os de Bira.
- Voc� n�o acha que seria melhor ela voltar para S�o Paulo?
- Pois �. S� que agora ela n�o quer mais. Inventou que quer
morar comigo.
- O qu�? Essa n�o!
- Papai n�o quer deixar. Ela est� matriculada num col�gio
em S�o Paulo e est� perdendo aula. Mas papai n�o tem for�a com
ela. Aposto como Patr�cia vai conseguir o que quer.
- N�o tenho nada contra sua irm�, mas ela morar com voc�
n�o � uma boa ideia. Vai lhe dar muito trabalho. Ela � menor de
idade e voc� n�o � a m�e dela.
- Eu sei. N�o quero isso, mas papai � que tem que impedir.
- E sua m�e?
- Ela mesma � que n�o far� nada. Mam�e acha gra�a em
tudo que Patr�cia faz. Na verdade, n�o quer esquentar a cabe�a.
Sei que gosta de n�s, mas quer viver a vida dela. Deu gra�as a
Deus quando sa�mos de casa.
344


- Voc� pode vir morar comigo - sugeriu ele, de forma
apaixonada
- � claro que n�o posso. Voc� mora com sua m�e e sua av�.
Imagine se eu teria o desplante de aparecer de mudan�a na sua casa.
Podemos nos casar.
- Ainda � muito cedo.
- Somos maiores, trabalhamos, somos independentes.
- Mais ou menos. O que eu ganho n�o d� para me sustentar.
Papai me manda dinheiro todo m�s para complementar as despesas.
- Posso fazer isso no lugar dele. Estou ganhando bem agora.
Tenho at� pensado em me mudar para a Barra. Voc� poderia ir comigo.
- Vai deixar sua m�e e sua av�?
- O problema � esse. N�o quero deix�-las e elas n�o querem
ir. Mas s�o a favor de que eu viva a minha vida.
- Pense um pouco mais, R�gis. Quando me casar, quero
que seja para sempre.
- Ser� para sempre comigo. Eu a amo. S� se voc� n�o
me amar.
- Voc� sabe que o amo. Contudo, h� outras coisas envolvidas.
Maturidade � uma delas.
- Tudo bem, Nat�lia, n�o quero pression�-la. Basta voc�
saber que eu quero me casar com voc�. Hoje, ano que vem, n�o
importa. S� o que quero � que estejamos juntos.
- Ficaremos juntos, eu prometo. Mas, por enquanto, n�o
Quero que tenhamos certeza do que estamos fazendo.
- Voc� � quem manda.
R�gis n�o podia deixar de dar-lhe raz�o. N�o tinha d�vidas
de que a amava, contudo precisava antes resolver aquela pend�ncia
com Bira. A �ltima coisa que queria era Nat�lia envolvida com
o traficante. E ainda havia Patr�cia. Temia pela vida dela, mas
tamb�m tinha medo do que ela poderia fazer contra ele.
345


No momento, Patr�cia n�o estava nem um pouco preocupada
com R�gis. O que agora sentia por ele estava mais pr�ximo do orgulho
ferido do que da paix�o. Bira, sim, era um homem de verdade,
n�o um garotinho. Tudo bem que R�gis era lindo de morrer, mas
Bira tinha presen�a.
- Aonde voc� vai? - indagou Bianca, vendo que Patr�cia se
preparava para sair.
- Falar com um amigo.
- Agora? Est� quase na hora de sairmos.
- � s� um minuto.
Vestida em sua fantasia azul e branca, Patr�cia foi ao encontro
de Bira. Entrou no carro dele, satisfeita com o efeito que provocou
no traficante. Ele a alisou, excitado, beijou-a com ardor, soltando-a
a contragosto.
- Voc� est� muito gostosa - elogiou. - A mina mais linda
da avenida
Ela riu gostosamente, perguntando com euforia:
- Voc� vai estar l�, n�o vai?
- N�o perderia isso por nada.
- E a�? Trouxe o que me prometeu?
- � claro. N�o achou que eu ia deixar voc� de fora desse
barato, achou?
Olhando para os lados com cuidado, por detr�s do vidro
fum�, Bira sacou uma trouxinha do bolso. O comparsa do banco
da frente entregou-lhe um espelho, um cart�o de cr�dito e um
canudinho de papel. Rapidamente, preparou uma carreirinha de
coca�na, entregando a Patr�cia o canudo,
- Experimente - incentivou. - N�o tenha medo.
- Vou ficar doidona?
- � para isso que serve, n�o �?
Um pouco insegura, Patr�cia experimentou. A sensa��o de
euforia foi imediata. Sob o efeito da droga, julgou-se capaz de qualquer
coisa. Nos bra�os de Bira, sentia-se poderosa, uma rainha.
346


Amaram-se rapidamente, no banco do carro, sem se importar com
a presen�a dos capangas,
- Chefe, acho melhor acabar com isso - disse um deles,
vendo pelo retrovisor uma patrulha se aproximar.
- V� - ordenou ele, abrindo a porta para ela. - Mais tarde
nos encontraremos.
Patr�cia saiu meio zonza, desacostumada com os efeitos da
coca. At� ent�o, a �nica droga de que fizera uso fora a maconha,
e, assim mesmo, esporadicamente. Pisou no ch�o, hesitante, ajeitando
a fantasia meio amassada. O carro da pol�cia passou ao
lado, mas nenhum dos policiais prestou aten��o ao autom�vel de
Bira. S� tinham olhos para o corpo exuberante de Patr�cia.
Foi uma bela jogada mand�-la sair quando a pol�cia se aproximou.
O resultado foi o esperado. Diante de um muihera�o feito
Patr�cia, quem � que ia prestar aten��o a tr�s barbados?
Ela agora estava em suas m�os. Inici�-la no v�cio era um
truque que ele utilizava para manter as garotas presas a ele.
Fissuradas pela droga, faziam tudo o que ele queria. E Patr�cia,
ainda por cima, serviria de escudo contra a resist�ncia de R�gis.
S� esperava que ela n�o seguisse os passos de Gislene. Sentiria
muito se tivesse de mandar mat�-la.
347

capitulo
39
Parado na porta da casa de Ge�rgia, J�lio n�o sabia o que
dizer. Ensaiara as palavras, contudo elas se atropelavam. V�-la
deixou-o desconcertado. Ela estava ainda mais bonita do que ele
se lembrava ou imaginara. Vendo que ele n�o se decidia, ela repetiu
a pergunta:
- O que faz aqui, J�lio?
Antes de responder, ele ouviu a voz de Cl�ia:
- Quem �, minha filha?
- Um amigo - respondeu ela, passando para o lado de
fora e fechando a porta atr�s de si. - Muito bem, J�lio, vai me
dizer ou n�o por que veio aqui?
- Eu... - balbuciou ele. - Precisava lhe falar.
- Depois de tantos anos, n�o imaginava que voc� ainda
tivesse algo a me dizer.
Ele n�o respondeu. Seus pensamentos rodavam em torvelinho.
Queria falar de R�gis, no entanto sentia aflorar a velha paix�o
- E ent�o? - prosseguiu ela. - Estou esperando. A que
devo sua visita?
- Ge�rgia, por favor, n�o me leve a mal. Eu tinha que v�-la.
- Por qu�? N�o v� me dizer que est� arrependido, depois
de tantos anos.


- N�o se trata disso. Quero dizer, n�o sei se estou arrependido.
Antes de ver voc�, pensava uma coisa. Agora, estou confuso.
- N�o estou entendendo, J�lio. Voc� est� casado, tem uma
fam�lia. Por que veio me procurar?
- E voc�? Tamb�m se casou?
- N�o interessa.
- Sei que voc� n�o se casou. Por qu�?
- O que voc� est� pretendendo, afinal? Aparece aqui,
depois de vinte anos, com perguntas infantis. O que deu em voc�?
- Precisava v�-la, j� disse.
- Por qu�? Vai me dizer que se divorciou e quer me compensar
por tudo o que fez?
- N�o foi isso que vim lhe dizer, mas essa � uma verdade.
- Era s� o que me faltava, J�lio.
- Voc� est� linda - comentou ele embevecido, alheio ao
espanto dela. - Mais do que nunca.
- Pare com isso. N�o quero mais ouvir essa baboseira. E
n�o me leve a mal, mas � muito atrevimento seu aparecer aqui
assim, de repente, falando coisas sem sentido.
- Voc� me odeia, n�o?
- N�o. Mas tamb�m n�o quero me aproximar de voc�. Seja
o que for que veio me dizer, n�o me interessa.
- Eu a fiz sofrer tanto assim?
Ge�rgia olhou-o abismada. N�o compreendia o que ele estava
fazendo. S� podia pensar que Bianca houvesse lhe dado o fora
e ele agora corria para ela, na tentativa de reaproximar-se para n�o
ficar sozinho.
- Olhe, J�lio, n�o sinto raiva de voc�. Na verdade, n�o sinto
nada. O que se passou entre n�s est� acabado. Ficou enterrado
no passado. Quer saber se custei a me refazer? Custei. Mas o meu
filho me deu for�as. E, agora que estou refeita, n�o preciso de
voc� para bagun�ar a minha vida.
- Voc� ainda se importa comigo. Se n�o se importasse, n�o
teria medo de que eu bagun�asse a sua vida.
349


- Voc� est� confundindo as coisas. Disse que voc� poderia
bagun�ar a minha vida, n�o os meus sentimentos. Tenho um
filho que nada sabe sobre o passado. Por enquanto, gostaria de
deixar que as coisas permanecessem assim.
Ela lhe deu as costas, colocando a m�o na ma�aneta para
abri-la. J�lio, por�m, percebendo que ia perd�-la, segurou-a pela
outra m�o e falou emocionado:
- Conheci o seu filho. Na verdade, foi para falar dele que
vim at� aqui.
Ela estacou assustada. Voltou-se para ele lentamente, tentando
imaginar o que ele queria dizer.
- O que isso significa?
- Conheci R�gis. � um bonito rapaz.
- Como ousa se aproximar do meu filho? Depois de tudo o
que fez, que direito tem de tocar no nome dele?
- O direito de pai.
- Pai? - indignou-se. - Que absurdo � esse agora? R�gis
nunca foi seu filho.
- Talvez voc� n�o saiba, mas R�gis est� namorando a
minha filha.
Foi como se uma montanha inteira desabasse sobre ela.
Ge�rgia sentiu uma tonteira absurda, que a obrigou a sentar-se no
degrau para n�o cair.
- Sua filha? - repetiu at�nita. - Nat�lia � sua filha?
- Vejo que a conhece.
- N�o � poss�vel. Isso � alguma brincadeira?
- N�o � brincadeira. � fato. Assim como voc�, fiquei surpreso
e contrariado.
- Contrariado?
- Acho que esse namoro n�o � do interesse de nenhum de
n�s dois. Por isso, vim procur�-la. Talvez voc� me ajude a separ�-
-los sem que precisemos lhes contar sobre nossa rela��o.
- N�o acredito! Pensa mesmo que eu faria isso? Caso voc�
n�o saiba, R�gis e Nat�lia est�o apaixonados. Eles se amam!
350


- Eles n�o podem ficar juntos.
- Por que n�o?
- Voc� ainda pergunta? Depois de tudo, seria um desastre.
- Por qu�? Porque o pai dele era um estuprador que morreu
de overdose? Porque voc� foi preconceituoso o bastante para n�o
aceitar criar o filho desse homem? Porque n�o me amou o suficiente
para respeitar minha decis�o? Ou porque n�o quer admitir
que � fraco, covarde e f�til?
- Ge�rgia, por favor, precisamos ser racionais.
- Quem n�o est� sendo racional � voc�. Quer interferir no
destino de dois jovens para acobertar sua covardia.
- N�o posso acreditar que voc� concorda com esse namoro.
- N�o tenho que concordar nem discordar. Eles se escolheram.
N�o � problema meu.
- Seja razo�vel, Ge�rgia. Esse namoro n�o pode dar certo.
- Voc� ainda n�o me apresentou um bom motivo para que
n�o d� certo, al�m do seu preconceito, da vergonha, do medo.
Voc� me abandonou, J�lio. Foi a sua escolha, e eu aceitei. Agora
assuma o que fez. N�o me pe�a para interferir na rela��o deles s�
para proteger a sua imagem. N�o farei isso.
- S� voc� n�o v� que eles v�o ser infelizes.
- Voc� est� sendo ego�sta. Est� pensando em si mesmo,
nos seus valores distorcidos. O que aconteceu entre n�s n�o tem
nada a ver com eles.
- Minha filha n�o vai se casar com um rapaz de origem
obscura - falou entre os dentes, tentando conter a raiva. - Ela
merece algu�m � altura, um homem formado, de boa fam�lia.
- Voc� est� querendo dizer que minha m�e e eu n�o somos
uma boa fam�lia?
- N�o � isso. Voc� entendeu errado. O que quis dizer foi
uma fam�lia completa, bem constitu�da.
- Como a sua? Voc� e Bianca s�o felizes? Vivem bem? D�o
bons exemplos a suas filhas?
- Isso n�o vem ao caso.
351


- Por qu�? Porque se trata de voc�? Voc� � diferente de
mim, das outras pessoas? Pois fique sabendo que a minha fam�lia
� completa e bem constitu�da sobre valores morais s�lidos. E a
sua? Se sua moral continua como antes, ent�o sou eu quem deve
temer que meu filho entre para a sua fam�lia.
- Calma, Ge�rgia. N�o vim aqui para brigar.
- N�o estou brigando. Estou sendo sincera. Considero-o
um homem f�til, sem valor moral algum, preocupado com as
apar�ncias, cheio de preconceitos e ilus�es.
- Voc� est� me julgando.
- Pode ser. Mas tenho motivos para isso. E, mesmo assim,
n�o me oponho a que meu filho namore a sua filha.
- Pois eu me oponho. N�o o quero perto de Nat�lia nem na
minha casa. Diga isso a ele, ou eu mesmo o porei para fora.
Ge�rgia nunca sentira tanta raiva em sua vida, sentimento
com o qual nem estava acostumada. Ouvir J�lio falar de R�gis
como se ele fosse um marginal era um absurdo t�o grande que ela
n�o conseguiu se conter. Mas n�o era de seu feitio irritar-se. No
momento em que percebeu que corria o risco de desequilibrar-se,
retrocedeu, fazendo breve ora��o.
- N�o temos o poder de decidir a vida deles - ponderou,
um pouco mais calma. - Eles s�o adultos, t�m o direito de escolher
o rumo de suas vidas. E colocar R�gis para fora de sua casa
n�o me parece coisa de um homem civilizado como voc�.
Tocado pela vibra��o energ�tica da ora��o, J�lio tamb�m
se recomp�s. Respirou fundo, sentindo-se presa de sentimentos
contradit�rios. Ao mesmo tempo em que gostaria de aproximar-se
de Ge�rgia, sentia imensa repulsa pelo filho dela.
- Desculpe-me, Ge�rgia, eu me excedi. N�o devia ter dito
o que disse, muito menos para voc�, que sempre foi boa e n�o
merece ser desrespeitada.
- J�lio, pense bem. R�gis pode n�o ser o rapaz que voc�
sonhou para sua filha, mas � honesto e trabalhador. E nunca lhe
fez nada. Ele n�o tem culpa do que me aconteceu.
352


- Voc� n�o entende - choramingou ele. - Ele representa
tudo o que eu n�o pude ser.
- N�o. N�o compreendo o que diz.
- Olhando para ele, tenho que aceitar minha covardia,
meu medo, minha vergonha. Todas as coisas de que voc� falou e
est�o certas. Se Nat�lia descobrir o que houve entre n�s, nunca
ir� me perdoar.
- Voc� pretende esconder o seu passado fazendo-a sofrer?
- N�o quero faz�-la sofrer. Quero poup�-la.
- Voc� quer poupar a si mesmo, segundo suas pr�prias
palavras. N�o fa�a isso, J�lio. Voc� n�o pode desfazer o que fez,
mas ainda � tempo de assumir suas atitudes. Foi a sua escolha,
aprenda a conviver com ela. Eu mesma nunca lhe cobrei nada. A
cobran�a que voc� faz est� a�, dentro de voc�.
- Voc� ainda est� magoada comigo. E com raz�o.
- Pe�o que me perdoe se pareci assim. Por momentos,
pode ser que eu tenha fraquejado. Mas reconhe�o que voc� n�o
teve culpa de nada. Cada um de n�s agiu conforme seu amadurecimento.
N�o tenho o direito de lhe cobrar uma atitude que voc�
n�o podia ter, assim como sei que, de alguma forma, atra� o que
me aconteceu. O magnetismo que exerci sobre os acontecimentos
tem uma raz�o de ser, embora n�o a compreenda nesse momento.
- Ah! Ge�rgia, por que as coisas n�o puderam ser diferentes?
Por que tivemos que passar por tudo isso?
- Nossas op��es diante da vida nem sempre est�o muito
claras. Acredito que, um dia, todas as verdades se revelar�o. Por
isso, precisamos confiar na sabedoria e no amor de Deus.
- N�o sei se conseguiria conviver com isso - confessou
ele, com desgosto. - Toda vez que olhar para R�gis, me lembrarei
de n�s dois.
Calou-se, engolindo um solu�o. Ge�rgia sentiu uma certa
piedade por aquele homem transtornado pela culpa e pelo remorso,
certa de que, no final das contas, fora ela quem menos sofrera.
353


Ao menos, tinha o cora��o limpo, acreditava na vida, tinha f� em
Deus. E J�lio, o que possu�a al�m de um punhado de ilus�o?
- Deixe de lado o orgulho - aconselhou ela. - � por causa
dele que voc� n�o consegue aceitar. E a culpa n�o vai fazer diminuir
a dor. Arrepender-se sempre � bom, mas deixar-se paralisar
pelo remorso n�o � produtivo.
- Voc� fala com sabedoria, mas eu n�o estou � sua altura.
Por isso, recolho-me � minha condi��o de homem mundano e
aceito minha imperfei��o. Eu ainda dou valor �s apar�ncias, sim,
porque considero importante ter uma posi��o de respeito dentro
da sociedade.
- O respeito se conquista pelas boas atitudes, pela dignidade,
n�o pelas apar�ncias, que s�o ilus�rias, falsas. E quando
reveladas, produzem resultados avassaladores.
- Gostaria de pensar como voc�, mas n�o consigo. Kl�o
quero perder o respeito da minha filha, por isso R�gis deve se
manter longe dela.
- Sinto muito. Se voc� insiste nisso, n�o posso ajud�-lo. Adeus
Dessa vez, J�lio n�o a impediu. N�o tinha mais o que dizer
Sofria imensamente. V�-la causou-lhe uma como��o inesperada
N�o fosse aquele filho, arriscaria reconquist�-la. Por um momento,
perguntou-se o porqu� de tudo aquilo. R�gis nunca lhe fizera
nada, por que tanta repulsa? N�o sabia. Simplesmente, se acostumara
a odi�-lo.
354

capitulo
40
Logo ap�s o carnaval, o clima na casa de Nat�lia era dos
mais tensos.
- Voc� vai voltar comigo para S�o Paulo! - esbravejava
J�lio. - As aulas j� come�aram, voc� n�o tem mais o que
fazer aqui.
Voc� n�o pode me obrigar a ir - rebateu Patr�cia. - Meu
lugar � aqui.
- N�o era o que voc� pensava at� h� bem pouco tempo.
Por que mudou de ideia?
- Gosto de morar com Nat�lia. E ela n�o se importa, n�o �,
Nat�lia?
Nat�lia ergueu as sobrancelhas, contrariada por ter sido
envolvida na conversa.
- Acho que papai tem raz�o - ponderou. - Voc� est�
perdendo aula. E, a essa altura, � tarde para encontrar um novo
col�gio.
- Que nada! - objetou, irritada. - Pagando, papai arranja
vaga em qualquer escola. E vou escolher uma aqui perto.
O que n�o entendo � esse seu s�bito interesse. Logo
voc�, que sempre gostou de coisas finas. N�o seria mais l�gico ir
morar com mam�e na zona sul?


- N�o tem nada de bom l�. Aqui � muito mais divertido.
- N�o importa onde � mais divertido - contrap�s J�lio,
com veem�ncia. - Voc� vai embora comigo e pronto. E se Nat�lia
n�o estivesse com emprego e faculdade, iria tamb�m.
- Eu? - espantou-se. - Que novidade � essa agora?
- Em S�o Paulo voc� poderia arranjar coisa melhor.
- Est� se referindo ao R�gis? O que foi que ele lhe fez para
voc� n�o gostar dele?
- Nada. S� que voc� merecia um rapaz � sua altura.
- Tamb�m acho - concordou Patr�cia, ir�nica. - R�gis �
bonito demais para voc�.
O olhar de reprova��o de Nat�lia a fez calar-se. J�lio, por�m,
continuou a falar:
- N�o sei onde errei com voc�s duas. Minha filha mais
velha se apaixonou por um jo�o-ningu�m, e a mais nova est�
querendo se perder. O que est� acontecendo?
- Deixe de dramas, papai - protestou Patr�cia. - Nat�lia e
eu estamos apenas querendo viver as nossas vidas. Voc� � muito
careta, acha que tudo est� errado.
- Chega dessa discuss�o! Em Nat�lia, n�o posso mandar,
mas em voc�, Patr�cia, mando, sim. Voc� vai voltar comigo para
S�o Paulo e pronto!
Encerrada a discuss�o, Patr�cia foi para o quarto, batendo a
porta. Na mesma hora, veio a vontade da droga. Ser� que estava
se viciando? Tinha medo de se viciar, contudo Bira lhe garantira
que aquilo n�o aconteceria. Dera-lhe a coca para cheirar algumas
vezes, mas ele mesmo n�o a usava.
"Acho melhor resistir", pensou. "Se usar toda hora, vou acabar
me viciando".
Pelas paredes, ainda ouvia partes da discuss�o entre Nat�lia
e o pai. Aproveitando que eles n�o prestavam mais aten��o a
ela, saiu de mansinho. Ningu�m a viu passar pelo corredor em
dire��o � cozinha. Abriu e fechou a porta com cuidado, para n�o
atrair a aten��o dos dois. Assim que saiu do elevador, viu R�gis
356


pela vidra�a da portaria. Antes que ele apertasse o bot�o do interfone,
ela abriu a porta para ele,
- Ol�, R�gis - cumprimentou com um sorriso sedutor. -
Veio ver a Nat�lia?
- O que voc� acha?
- Ela est� discutindo com papai por sua causa.
- Por minha causa?
- N�o sabe que papai n�o gosta de voc�?
- E voc� conhece o motivo?
- Nem desconfio. Mas, se voc� quiser, posso descobrir.
Ela disse isso com um olhar malicioso, aproximando dele os
l�bios em chamas. R�gis a repeliu com impaci�ncia, por�m sem
agressividade.
- Aonde voc� vai? - questionou s�rio.
- Dar uma volta,
- Sozinha?
- Eu nunca ando sozinha. Mas, se voc� quiser vir comigo,
posso trocar a companhia.
- Vou lhe dar um conselho, Patr�cia. Afaste-se de Bira. Ele
� perigoso.
- Bira � um amor. Me trata feito uma rainha.
- J� vi rainhas mais bonitas do que voc� acabarem mortas,
largadas na sarjeta. � o que quer?
- Quanto drama! Bira jamais faria isso comigo. Ele gosta
de mim.
- Bira n�o gosta de ningu�m a n�o ser de si mesmo. Ele
usa as pessoas, est� usando voc�. Quando enjoar, vai descart�-
-la. E, se ele achar que voc� sabe muito dos neg�cios dele, vai
mandar apagar voc�. Quer correr esse risco?
- N�o acredito. Est� falando isso porque est� com ci�me.
- De voc�? N�o seja rid�cula.
- Posso ser rid�cula, mas � de mim que Bira gosta. E voc�?
O que tem a ver com ele?
- Nada que lhe interesse.
357


- Imagino que sejam neg�cios bem mais escusos do que o
meu. Bira me disse que voc� trabalha para ele,
- Ele est� mentindo.
- Ser�? Minha irm� sabe de sua amizade com ele?
- N�o tenho amizade com Bira, portanto n�o h� nada que
Nat�lia deva saber.
- Nossas vidas s�o cheias de mist�rio - ironizou. - Vamos
fazer o seguinte: voc� n�o conta o meu segredo, e eu n�o conto o
seu. Ficamos quites
- N�o me importo com segredos, mas me importo com
voc�. N�o quero que nada de mau lhe aconte�a.
- Por qu�? Gosta de mim?
- Voc� � irm� da mulher que eu amo. Nat�lia gosta de voc�,
e isso � suficiente para eu me preocupar.
- Quanta gentileza. Mas n�o precisa. Dispenso a sua preocupa��o.
E agora, se me der licen�a, preciso ir. Bira est� me
esperando.
Com seu jeito provocativo, Patr�cia passou, ro�ando de leve
o corpo no dele. R�gis queria impedi-la, contudo n�o tinha mais o
que fazer. De onde estava, ficou olhando-a se afastar. Em seguida,
entrou no elevador para subir. Tocou a campainha e esperou at�
que a pr�pria Nat�lia veio abrir.
- R�gis! - surpreendeu-se. - O que faz aqui?
- N�o posso mais visitar minha namorada?
- � claro que pode - tornou ela, confusa.
- N�o vai me deixar entrar?
Nat�lia chegou para o lado, dando-lhe passagem. J�lio ainda
permanecia na sala, agora em conversa mais amena com a filha.
Ao ver R�gis, seus �nimos se ati�aram. Tentou n�o deixar transparecer
a raiva e falou com o m�ximo de educa��o que conseguiu:
- O que faz aqui?
- Bom-dia para o senhor tamb�m, seu J�lio - disse R�gis,
com uma pontada de arrog�ncia. - Vim ver Nat�lia.
358


- A portaria estava aberta? - indagou ela, para esfriar um
pouco os �nimos, - Essa gente n�o tem cuidado. Na hora em que
entrar um ladr�o...
- Patr�cia abriu para mim - interrompeu ele.
- Patr�cia? - espantou-se J�lio. - Ela saiu?
- � o que parece.
- Onde ser� que essa menina foi? Ela estava aqui agorinha
mesmo!
- Deixe-a, pai - aconselhou Nat�lia. - Ela est� aborrecida.
Daqui a pouco passa, e ela volta.
- Vou atr�s dela.
O que J�lio queria era evitar um confronto com R�gis, temendo
que ele estivesse ali por causa de seu encontro com Ge�rgia.
- Seu pai n�o gosta mesmo de mim - comentou R�gis,
que nada sabia da conversa dele com sua m�e.
- Ele est� com ci�me. Sabe como os pais s�o ciumentos
com as filhas.
- N�o sei, n�o, Acho esse ci�me um pouco exagerado.
- Voc� ainda n�o me respondeu por que veio aqui.
- Estava morrendo de saudade de voc�. N�o a vi o dia inteiro
e queria ver se conseguia me entender com seu pai, mas j�
percebi que n�o d�.
- Papai est� preocupado com Patr�cia. Ela agora cismou
que n�o vai voltar para S�o Paulo. Essa menina � um problema.
- Voc� sabe quem s�o as amizades dela?
O tom de voz dele lhe causou estranheza. R�gis falava como
se conhecesse fatos que ela desconhecia.
- N�o - respondeu ela, desconfiada. - Por qu�? Voc�
sabe de alguma coisa?
- N�o. Perguntei por perguntar.
- Pelo amor de Deus, R�gis, se voc� sabe de alguma coisa
errada que Patr�cia esteja fazendo, por favor, me conte! Papai
precisa saber.
359


Contar sobre a amizade dela com Bira era muito perigoso.
Provocaria s�rios questionamentos para os quais ele n�o teria
respostas satisfat�rias. E colocaria tudo a perder.
- N�o sei de nada - respondeu, tentando parecerfirme. - Eu
s� falei porque Patr�cia me parece uma menina ing�nua e deslumbrada,
que poderia facilmente ser enganada por qualquer malandro.
- Voc� est� me enganando - afirmou ela, categoricamente.
- Sabe de alguma coisa e n�o quer me contar.
- N�o � nada disso. E seu pai n�o foi atr�s dela? - Nat�lia
assentiu. - Ent�o, voc� n�o tem com o que se preocupar.
- Acho que tem raz�o. Estou me preocupando � toa. Patr�cia
� desmiolada, mas � boa menina. N�o se meteria em encrencas.
R�gis n�o disse nada. Abra�ou-a com for�a, temendo que
ela sofresse ao descobrir a verdade.
- Minha querida, voc� nada conhece de mim - afirmou
ele, alisando seus cabelos. - Tenho medo de lhe causar alguma
decep��o.
Por que est� me dizendo isso? - estranhou ela, fitando-o
com ar de assombro. - O que est� acontecendo?
- Nada. Mas a vida � cheia de surpresas, algumas ruins. Se
algo me acontecer, quero que saiba que a amo muito.
- O que poderia lhe acontecer? - Ele n�o respondeu.
- Por Deus, R�gis, est� me assustando!
- N�o quero assust�-la. Quero apenas que voc� esteja
preparada para o futuro
Que futuro? N�o entendo o que voc� est� falando.
- Deixe para l�.
- N�o. Quero saber. Que conversa � essa?
- Nada... � que eu n�o sou t�o bonzinho como voc� pensa.
- Como assim? Voc� � algum marginal, por acaso? � bandido
e est� me enganando?
- N�o. S� que fiz algumas coisas no passado das quais
hoje me arrependo.
360


- Seu passado n�o pode estar t�o longe assim. Voc� �
muito jovem, portanto, seja l� o que for que tenha feito, foi praticamente
no presente. O que foi? O que voc� fez?
- Nada. Esque�a.
- N�o d� para esquecer. Voc� come�ou a falar, agora termine.
Ele a olhava com desespero, arrependido por ter tocado
naquele assunto. Mas andava agoniado com a press�o de Bira,
vendo aproximar-se o momento em que teria de fazer o que ele
queria. Temia que algo sa�sse errado, que Nat�lia descobrisse seu
envolvimento com o traficante, que ele levasse um tiro da pol�cia.
Era uma atividade arriscada, contudo Bira n�o lhe deixava escolha.
- N�o pense mais nisso - pediu ele, beijando-a levemente
nos l�bios. - Eu a amo. Haja o que houver, sempre irei am�-la.
- Agora estou realmente assustada. Se voc� me ama de
verdade, vai confiar em mim e me contar tudo.
Ele hesitou. Por mais que a amasse, tinha medo da rea��o dela.
- N�o posso lhe contar - gaguejou ele. - Pe�o apenas
que confie em mim. Eu jamais faria qualquer coisa que pudesse
magoar voc�.
, - N�o estou gostando nada disso, R�gis...
- Tenho que ir. Perdoe-me, Nat�lia, mas preciso ir embora.
Eu a amo. Sempre a amarei.
Com um abra�o apertado, despediu-se, deixando-a parada no
meio da sala, totalmente at�nita. Saindo do apartamento dela, voou
para casa com os olhos rasos d'�gua. Bira o procurara de novo
na v�spera, insistindo na intermedia��o da venda da droga ainda
naquela semana. Ele estava desesperado, sem sa�da. Pressionado,
temia por sua vida e pela vida das pessoas que ele amava.
R�gis entrou em casa como se estivesse retornando de um
enterro. Logo que o viu, Cl�ia se assustou:
- O que foi que houve, R�gis? Por que essa cara?
361


- Nada, n�o, v�. Est� tudo bem. E mam�e, onde est�?
- Foi farm�cia e ao mercado. N�o quer me contar o que
aconteceu?
- N�o foi nada, j� disse. Est� tudo bem - ele a beijou na
testa. - N�o se preocupe.
Sem saber o que fazer, tornou a sair. Ainda era s�bado, mas
Bira o pressionava desde a quarta-feira de cinzas. Precisava dar
uma volta para esfriar a cabe�a. Enquanto caminhava, viu Alex no
centro da pra�a, gargalhando com sua turminha de viciados. Para
seu desagrado, Alex o avistou, vindo em sua dire��o.
- E a�, sumido? - cumprimentou. - Tudo bem?
- Tudo.
- Bira est� meio chateado com voc�.
- Problema dele.
- Eu n�o falaria assim, se fosse voc�. Bira � um cara legal,
est� lhe dando um monte de chances. No seu lugar, eu n�o as
desperdi�aria.
- �timo. Pe�a a ele para tomar o meu lugar.
- O que deu em voc�, R�gis? Ficou mal-humorado de repente.
� aquela garota? - Ele n�o respondeu. - Mulher � um problema.
� por isso que n�o me amarro em nenhuma. Elas s� servem
para transar. Voc� devia fazer a mesma coisa. Livre-se dela. Bira
agora est� com uma guria gostosinha. Aposto como arranjaria
uma igual para voc�.
- Escute aqui, ot�rio - revidou com f�ria, agarrando-o
pela gola da camisa. - Nunca mais pense em falar da minha
garota outra vez. E a menina de Bira � s� uma crian�a. N�o quero
nada com crian�as.
- Tudo bem - tornou Alex, tentando soltar os dedos dele
de sua camisa. - N�o precisa ficar irritado. Eu s� n�o compreendo
o que deu em voc� para mudar tanto.
- Mudei, sim, e da�? Sou outro homem agora. N�o quero
mais saber de traficantes.
362


- Est� perdendo uma grande oportunidade. N�o sei por
que, mas Bira se amarra em voc�.
- Ele n�o se amarra em ningu�m. Ele usa todo mundo,
assim como est� me usando, como usa voc�. J� estou farto disso.
- Devia ter mais cuidado com o que diz. Bira pode ficar
sabendo e n�o gostar.
- S� se voc� for correndo contar para ele. Vamos, pode ir.
N�o � isso que quer? Cair nas boas gra�as do chef�o?
- Voc� pensa que � melhor do que n�s, n�o � mesmo? -
retrucou com raiva. - S� porque � modelo, se julga importante.
Pois fique sabendo que voc� n�o tem nada de especial. � s� um
garotinho arrogante e cheio de pretens�es. Pensa que � muito
bom, mas � um marginalzinho disfar�ado. E, no dia em que sua
namorada descobrir, adeus paix�o.
Por pouco, R�gis n�o acertou um murro na cara de Alex. Teria
mesmo feito isso se n�o avistasse a m�e passando pelo outro lado
da rua, carregando duas sacolas de compras. N�o queria que ela
percebesse o que estava acontecendo.
- Suma da minha vista! - disse irritado. - Voc� n�o �
ningu�m para falar assim comigo.
R�gis afastou-se de Alex, atravessando a rua em dire��o �
m�e. Do outro lado, Alex o fitava com um sorriso ir�nico nos l�bios.
Se continuasse daquele jeito, R�gis poderia dar adeus � fam�lia.
Depois que perdesse tudo, se despediria tamb�m da vida. Era
assim que Bira trabalhava, e era bem feito.
R�gis alcan�ou a m�e em instantes, tomando as sacolas de
suas m�os.
- Com quem estava falando, meu filho? - indagou ela.
- Com Alex.
- Sei que voc� conhece Alex a vida inteira, mas ele n�o �
companhia para voc�. Acho lament�vel que ele tenha se entregado
ao v�cio.
- N�o se preocupe com isso, m�e. Alex e eu n�o somos
mais amigos.
363


- Sinto pena dele, mas n�o acho que voc� deva se envolver.
Tenho orado bastante para que ele encontre o caminho certo.
A bondade da m�e encheu R�gis de vergonha. O que ela diria
se soubesse? Mas R�gis n�o era o �nico que tinha coisas a esconder.
Ge�rgia tamb�m amargava a d�vida se devia ou n�o contar
a ele a verdade sobre seu passado. Desde que J�lio a procurara,
alguns dias antes, vivia imenso conflito. Cl�ia a aconselhara a se
abrir, contudo n�o tinha coragem.
- Como est� indo seu namoro com Nat�lia? - perguntou.
- Bem - respondeu ele, inseguro.
- N�o senti firmeza na sua voz. Aconteceu alguma coisa?
- N�o. � s� que o pai dela n�o gosta de mim.
- Por qu�?
- N�o sei ao certo. Parece que tem preconceito contra modelos.
Queria que ela namorasse um doutor.
- Voc� gosta mesmo dessa mo�a, n�o �?
- Eu a amo.
- Voc� ainda � muito jovem para saber o que � o amor.
- Est� enganada. Meu amor por Nat�lia � verdadeiro.
Parece que a amo h� muito tempo.
- Pode ser. Mas, se o pai dela n�o gosta de voc�, ser� que
� boa ideia voc�s continuarem namorando?
- N�o acredito que voc� vai dar raz�o a ele!
- N�o vou. S� n�o quero que voc� sofra.
- Vou sofrer muito mais se me afastar de Nat�lia.
- Est� bem, meu filho. N�o precisa se aborrecer.
- Eu nunca me aborre�o com voc�, m�e. Amo-a demais.
- Sei disso. Tamb�m o amo muito. � por isso que fico
preocupada.
- Se voc� arranjasse algu�m, talvez n�o se preocupasse
tanto.
- Que hist�ria � essa agora?
- S�rio, m�e! Voc� � uma mulher bonita. E jovem ainda.
Nem parece que tem quarenta e cinco anos.
364

- N�o precisa espalhar - gracejou ela.
- Voc� passou a vida inteira cuidando de mim. Est� na hora
de pensar um pouco em si mesma.
- N�o posso, R�gis. Desiludi-me com a vida, ao menos no
que diz respeito � paix�o.
- Voc� amava meu pai?
- N�o - disse ela, ap�s alguns minutos.
- Ent�o, por que se envolveu com ele?
Ela n�o respondeu. N�o conseguiu. Falar de T�cio ainda do�a
muito. Queria dizer alguma coisa para satisfazer a curiosidade
dele, mas s� o que conseguiu extravasar foram l�grimas.
- N�o chore, m�e - arrependeu-se ele. - N�o queria
trazer-lhe lembran�as dolorosas.
- Ah! R�gis! Se voc� soubesse o que eu passei...
- Eu sei, compreendo. Olhe, m�e, desculpe-me. Que droga,
n�o queria faz�-la chorar!
- Deixe para l�.
- Esque�a o que eu disse, est� bem? N�o tem import�ncia.
- Eu o amo, meu filho. A gente se arrepende de muitas
coisas na vida, menos do amor que d� e recebe. E n�o me arrependo,
nem por um minuto, de ter tido voc�.
- Eu sei. Voc� foi muito corajosa. Criou-me sozinha, s� com
a ajuda da vov�. Admiro-a e respeito-a por isso.
Silenciaram, cada qual imerso em seus pr�prios segredos.
365


Cap�tulo
41
Logo na segunda-feira seguinte, J�lio voltou sozinho para
S�o Paulo. Seus esfor�os para levar Patr�cia foram todos em v�o.
A menina se mostrava irredut�vel, ele n�o tinha for�a com ela. Por
mais que esbravejasse, Patr�cia sempre conseguia o que queria. E
ainda contava com o apoio da m�e, que n�o via nada de mais no
fato de a filha estar perdendo dias preciosos de aula.
- Deixe de frescuras, J�lio - dissera Bianca. - Patr�cia �
inteligente, logo recupera o tempo perdido.
- �, pai, quero ficar no Rio. Mam�e est� vendo escola para
mim aqui perto.
Quem n�o ficou nada satisfeita foi Nat�lia. A �ltima coisa que
desejava era a irm� em sua casa. N�o tinha, contudo, motivos para
expuls�-la. O apartamento era do pai, que acabou cedendo, como
sempre fazia.
- Est� bem - resignou-se ele. - J� que n�o tem jeito,
pode ficar. Mas quero-a de volta � escola o mais r�pido poss�vel.
- Pode deixar - afirmou Bianca. - Ainda essa semana ela
j� estar� matriculada.
- Acho uma loucura o que voc�s dois est�o fazendo -
protestou Nat�lia. - Trabalho o dia todo, tenho faculdade � noite.
Quem vai ficar de olho em Patr�cia?


- Ningu�m - ela apressou-se em responder, levemente
irritada, - Sei cuidar de mim mesma.
- Sua irm� j� n�o � mais crian�a - ponderou Bianca, - E
depois, eu moro aqui. Qualquer problema, � s� me ligar.
- Por que n�o vai morar com mam�e, ent�o? - insistiu
Nat�lia. - Ela n�o trabalha, pode cuidar de voc�.
- Porque n�o quero - objetou Patr�cia, com veem�ncia. -
Quero ser independente como voc�. E depois, pensei que voc�
gostasse de mim.
- Eu gosto. Mas � que voc� ainda � menor de idade. � muita
responsabilidade.
- Vai dar tudo certo, querida - intercedeu Bianca. - E voc�
pode me telefonar a qualquer hora. Ainda sou m�e de voc�s duas.
Ficou acertado. J�lio retornou a S�o Paulo, e na segunda-
-feira, embora houvesse perdido v�rios dias de aula, Patr�cia j�
frequentava uma nova escola. Finalmente, estava livre para fazer o
que quisesse.
R�gis tamb�m n�o recebeu bem a not�cia. Vivia um momento
de angustiante press�o e a �ltima coisa que desejava era ver
Patr�cia nas m�os de Bira, manipulada para convenc�-lo a agir.
Sentia-se, cada vez mais, premido pelas circunst�ncias. Assim
que saiu do est�dio, viu o carro de Bira estacionado no meio-fio.
A contragosto, encamirihou-se para l�. Para seu al�vio, o traficante
estava sozinho.
- Cad� a Patr�cia? - questionou R�gis.
- N�o se preocupe com ela - foi a resposta fria. - Ali�s,
quero que voc� pare de importun�-la. N�o gosto que interfiram
nas minhas rela��es amorosas.
- Por favor, Bira, ela � s� uma crian�a. J� n�o vou fazer
o que voc� quer? Por que n�o a deixa de lado e arranja outra?
Qualquer mulher ficaria louca por voc�.
- Acontece que eu gosto da menina. Agora pare com isso.
Patr�cia n�o precisa de bab�, nem eu, de conselheiro amoroso.
Meu neg�cio com voc� � outro. E ent�o? Tudo pronto?
367


- Acho que sim.
- Quantos voc� conseguiu?
- Quase todo mundo. Fiquei de olho, joguei umas indiretas
e conquistei muita gente. O pessoal ficou doido para receber a
droga sem sair de casa.
- Voc� falou que � coisa boa?
- Falei.
- �timo. Voc� foi muito eficiente. Quando poderemos fazer
a primeira entrega?
- Isso depende de voc�.
- Quero que seja para logo. Acho que amanh� est� bom.
- Voc� vai trazer a coca para mim, aqui?
- N�o seja idiota. N�o vou dar bandeira desse jeito. Se aparecer
a pol�cia, estamos fritos. Vamos marcar em um lugar seguro.
- Na sua casa?
- Est� ficando bobo, R�gis? Na minha casa � que n�o. Ou
voc� acha que eu vou arriscar expor meu esconderijo?
- Onde, ent�o?
Bira olhou para o capanga da frente, que assentiu. Apanhou um
papel no porta-luvas, escreveu um endere�o e estendeu-o a R�gis.
- A que horas?
- Hum... Deixe ver - Bira consultou o rel�gio. - S�o dez
para as seis. Acho que � meia-noite est� bom.
- Combinado. Meia-noite, em ponto, estarei l�.
- At� l� ent�o. E, R�gis, n�o tente me enganar. Tenho sua
avozinha na mira.
R�gis desceu do carro, tr�mulo de medo. N�o temia por si,
mas pela vida de seus familiares.
- E ent�o, chefe? - questionou o capanga. - Acha que
ele fez o tro�o direito?
- N�o confio nele, mas vai fazer, com certeza. Ainda tenho
um trunfo nas m�os.
Os capangas riram debochadamente. Bira podia n�o confiar
em R�gis, mas estava certo de que o prendia pelo medo. Em pouco
368


tempo, todos os idiotas com quem ele trabalhava estariam em suas
m�os tamb�m. Poderia, ent�o, come�ar seus planos de campanha.
Esperava lan�ar sua candidatura j� nas pr�ximas elei��es.
A caminho do ponto de encontro, R�gis refazia toda a sua
vida, maldizendo o dia em que conhecera Bira. Mais ainda, a hora
em que resolvera ajud�-lo a se livrar da pol�cia. Agora, estava preso
a ele pelo resto da vida. Imaginava como faria para que sua fam�lia
e Nat�lia jamais descobrissem em que ele andava metido.
Chegou ao local cinco minutos antes da hora aprazada.
Mal se percebia movimento na casa abandonada que serviria de
encontro. Era um casar�o antigo, numa rua praticamente deserta.
No andar de cima, luzes de vela eram o �nico sinal de vida.
R�gis sentiu um arrepio. Em uma situa��o como aquela,
alguns meses antes, Bira podia ter sido preso. N�o fosse sua
interven��o, a pol�cia teria conclu�do seu trabalho, prendendo o
traficante e evitando que ele agora tivesse de passar pelo que
estava passando.
A passos hesitantes, R�gis bateu na porta. Um dos capangas
abriu-a parcialmente, mandando-o entrar.
- Onde est� o Bira? - questionou, desconfiado.
- L� em cima. Est�vamos esperando voc�.
Iluminando o ch�o com uma lanterna, o capanga conduziu-o
por um corredor comprido. R�gis n�o estava gostando nada daquilo.
O lugar era ermo, sem vizinhan�a por perto. A casa imensa, cheia
de salas escuras. R�gis seguiu o outro por uma escadaria sinistra,
chegando at� o segundo andar, onde novo corredor se estendia.
O capanga conduziu R�gis at� um quarto amplo, cheirando
a mofo e poeira. Havia muitos anos que ningu�m morava ali. O
c�modo estava praticamente desguarnecido de m�veis, fazendo
ecoar suas vozes no vazio. Uma mesa de madeira fora colocada
bem no centro. Ao redor, cadeiras de praia haviam sido armadas
para dar lugar aos homens do traficante.
- E o Bira? - insistiu R�gis, constatando que ele n�o estava
ali.
369


- Ele j� vem. Est� resolvendo um probleminha.
Os homens riram ao mesmo tempo, deixando R�gis ainda
mais desconfiado. Temia uma armadilha. Mas por que Bira se
daria o trabalho de armar uma arapuca para ele se podia mat�-lo
em qualquer lugar e a qualquer momento?
Na ang�stia da espera, mil situa��es passaram pela sua
cabe�a. Os capangas o olhavam com ar enigm�tico, sem deixar
transparecer nenhuma emo��o. R�gis come�ou a impacientar-se.
Um nervoso atroz fez sua testa suar frio. As m�os tamb�m transpiravam,
revelando o temor que a situa��o lhe infligia. N�o sabia o
porqu� da demora nem o que estava acontecendo.
De repente, uma porta lateral se abriu. Era um quarto com
liga��o, de onde surgiu Bira, apertando o cinto das cal�as. Atr�s
dele, veio Patr�cia, rindo maliciosamente, a blusa torta deixando �
mostra parte de seus seios r�gidos.
- O que significa isso? - indagou R�gis, at�nito. - O que
ela est� fazendo aqui?
- Calma - pediu Bira. - Ela est� me fazendo companhia.
- Voc� devia estar em casa - censurou, dirigindo-se � menina.
- Como veio parar aqui?
- Bira me trouxe, ora - esclareceu ela, divertindo-se com o
desespero dele. - Nat�lia estava dormindo, nem me viu sair.
- V� embora - rosnou ele, segurando-a firmemente pelo
bra�o. - Saia daqui imediatamente.
- Me solta! - gritou ela. - Est� me machucando.
- O que deu em voc�, R�gis? - enfureceu-se Bira. - Solte
a menina.
Um dos capangas se aproximou, for�ando R�gis a largar o
bra�o de Patr�cia. O homem puxou-a gentilmente, conduzindo-a
para fora.
- Aonde a est� levando? - questionou R�gis, apavorado.
- Preciso falar-lhe em particular - avisou Bira. - Daqui a
pouco, ela volta.
370


- O que est� pretendendo? N�o fiz o que voc� queria? Por
que a trouxe aqui?
- Voc� � um idiota, sabia? Acha mesmo que eu precisava
disso tudo s� para lhe passar umas trouxinhas de coca? Marquei
esse encontro aqui s� para lhe mostrar que eu estou no comando.
A menina est� nas minhas m�os. Tenho todas as mulheres da sua
vida sob o meu dom�nio. M�e, av�, namorada... e amante.
- Patr�cia n�o � minha amante.
- N�o � o que ela diz.
- Ela est� mentindo.
- Pode ser. Patr�cia � uma menina tola, mas muito experiente
quando se trata de dar prazer a um homem. Acho que voc�
sabe disso, n�o?
- N�o sei de nada. J� disse que ela n�o � minha amante.
- Deixe de bobagens. Pensa que n�o sei que voc� j� dormiu
com ela?
- Voc� est� sendo irracional. Se eu houvesse dormido com
ela, n�o precisaria de Nat�lia.
- Nat�lia � boazinha, mulher para se casar. Mas Patr�cia,
n�o. � mulher s� de cama, n�o de mesa.
Ele riu de si mesmo, saboreando o p�nico que nublava os
olhos de R�gis. Bira fez um sinal para outro de seus capangas, que
se levantou e voltou momentos depois, com Patr�cia e o outro sujeito.
- Muito bem. Agora vamos aos neg�cios. J� que est� aqui,
n�o precisamos perder a oportunidade de voc� levar a encomenda,
n�o �? - ele estalou os dedos, e a droga logo apareceu em
suas m�os. - Coisa boa. Seus amigos n�o v�o se arrepender.
No momento em que Bira entregava o pacote a R�gis, ele
lan�ou um olhar de desespero a Patr�cia, ia gritar para que ela
fugisse, mas n�o teve tempo. A porta do quarto se escancarou
com o pontap� da pol�cia, parecendo que um batalh�o inteiro
entrava de armas em punho.
- Pol�cia! Todo mundo no ch�o!
M�os na cabe�a! M�os na cabe�a!
371


A rea��o da quadrilha foi inesperada. Sentindo que nada mais
tinham a perder, os homens de Bira responderam com fogo. Balas
espocaram, ricocheteando por todos os lados. Vidros estilha�ados,
cheiro de p�lvora queimada, gritos de morte se misturando
no caos da guerrilha. No c�modo, apertado demais para servir de
campo de batalha, corpos come�aram a tombar, ora da pol�cia,
ora dos traficantes.
R�gis s� teve tempo de se atirar no ch�o, protegendo a cabe�a
com as m�os. Sentiu que um policial o segurava pelas pernas,
tentando pux�-lo para longe do fogo cruzado.
- N�o! - esperneava. - N�o! Patr�cia! Onde est� ela? Patr�cia!
N�o ouviu mais nada. S� o que sentiu foi uma ard�ncia nas
costas, bem no momento em que erguia o corpo para escapar
das m�os do homem que o segurava. A vista nublou de repente,
a respira��o tornou-se dif�cil. Em poucos segundos, tudo pareceu
parte de um sonho.
372

capitulo
42
Era um longo percurso at� a ravina seca em que Damien se
escondera. Se quisesse, T�cio poderia ultrapass�-la com facilidade,
s� usando a for�a do pensamento. Uriel havia passado horas ensinando-
lhe afazer isso. N�o queria, por�m, intimidar o companheiro.
O lugar estava praticamente deserto. Os esp�ritos que ali
se refugiavam eram arredios, assustados. Sempre que algu�m
aparecia, eles fugiam apavorados. Demorou um pouco at� T�cio
aldan�ar o esconderijo de Damien: uma caverna pequena, quase
impercept�vel, perfurada na rocha �mida. T�o logo entrou, percebeu
que Damien n�o estava por ali.
Resolveu esperar. Algum tempo depois, Damien apareceu,
carregando nas m�os um punhado de coisas sujas e aparentemente
apodrecidas. Reparando melhor, T�cio descobriu que se
tratava de restos de trabalhos de magia que ele, provavelmente,
recolhera pelas esquinas.
Assim que entrou, Damien deu de cara com ele. Estacou rapidamente,
mas n�o se deteve no olhar. Passou por ele, depositou as
coisas em cima de uma mesa tosca e sentou-se de costas para ele.
- Por que voltou? - indagou, organizando suas novas posses.
- Vim ver como voc� est�.
- Como achou que eu estaria?


- Na mesma. Por isso estou aqui. Quero lev�-lo comigo.
- S� porque voc� se bandeou para o lado de l� n�o quer
dizer que tenho que fazer o mesmo - revidou com raiva, agora
encarando-o com uma certa f�ria.
- N�o, claro que n�o. Mas eu n�o me bandeei para o lado
de l�. Fui atacado por At�lio e seu bando. Tive que fugir.
- Viu s�? N�o lhe falei que era perigoso sair por a� sozinho?
- Aconteceu algo inusitado, Damien. Voc� nem imagina.
- O qu�?
- Entrei na casa de Ge�rgia.
- Como � que �?
- Entrei na casa dela. Para fugir de At�lio, conseguiu atravessar
aquela barreira energ�tica.
- N�o me diga! - tornou, agora interessado. - Como isso
foi poss�vel?
- At� agora n�o compreendi muito bem, mas acho que
minha energia se modificou, entrando em sintonia com a da casa.
- Eu devia imaginar uma coisa dessas. Sabia que voc� era
diferente.
- Somos todos diferentes. E podemos mudar. Por que voc�
n�o muda?
- Eu?! Era s� o que me faltava. H� muitos s�culos estou
condenado. Voc� sabe disso.
- Ningu�m est� condenado. Tenho aprendido tantas coisas
com Josu�. Ele � um esp�rito de muita bondade e sabedoria. E sabe
aquela coisa de ter que reencarnar aleijado ou louco? - Ele assentiu.
- � tudo mentira. A gente � que escolhe como quer renascer.
- Se fosse assim, ningu�m escolheria ser deficiente nem
pobre.
- N�o � bem assim. Existe todo um aparato espiritual para
nos ajudar a escolher a melhor forma de aprender a lidar com as nossas
dificuldades. Op��es nos s�o apresentadas, e n�s escolhemos
a que mais conv�m a nossa consci�ncia. Aprendi que os que vivem
situa��es dif�ceis na Terra ainda n�o conseguiram se perdoar.


- E voc� acha que eu vou conseguir me perdoar? Depois
de tudo o que fiz em vida e mesmo depois de morto?
- N�s podemos tentar alguma coisa juntos. Podemos
ser irm�os. N�o precisamos reencarnar com nenhuma doen�a
Podemos escolher um caminho de mais esfor�o, com mais luta
pela sobreviv�ncia, mas n�o de sofrimentos f�sicos ou mentais.
- Voc� seria meu irm�o? - Damien surpreendeu-se.
- Seria, sem problemas.
A descoberta emocionou Damien, que olhou para ele com
olhos �midos. T�cio sempre o surpreendia.
- At� que n�o seria m� ideia - devaneou. - Voltar � Terra
como seu irm�o pode ser bom.
- Mas eu quero ser o mais velho. Sen�o, voc� vai querer me
dar ordens.
Damien jogou a cabe�a para tr�s e soltou uma gargalhada.
Era a primeira vez em muito tempo que ria com vontade.
- Imagine se algu�m ia querer ter n�s dois como filhos
- duvidou.
- Isso a gente arranja. Podemos voltar junto de R�gis. O
que voc� acha?
- Eu, hein! At�lio vai perturbar todo mundo, inclusive n�s dois.
- Acho que n�o. At�lio est� perdendo poder. E, se voc� se
aliar a n�s, acho que conseguiremos venc�-lo.
- A n�s? repetiu surpreso
- A Josu� e a mim.
- Voc� agora virou amigo de Josu�?
- Virei. Ele � muito legal, como j� lhe falei.
- Legal, sei.
Por que n�o acredita? Acha que eu mentiria para voc�?
Depois de todos esses anos juntos, ainda n�o confia em mim?
- Confio - respondeu sem titubear. - Se h� algu�m nessa
vida em quem confio � em voc�.
- Ent�o? Vamos tentar. Tenho certeza de que nossos projetos
para uma nova vida ser�o aprovados.
375


- Voc� ainda n�o me respondeu quem ser�o nossos pais.
Mizael e Nat�lia � que n�o.
- Voc� sabia que Nat�lia � a mesma Nora que At�lio o
mandou procurar?
- O qu�? Ela estava ali o tempo todo, perto de n�s? - T�cio
assentiu. - E eu nem desconfiei.
- Pois �. Nora e Mizael se amam h� muitas vidas. Mas �
cedo para retornarmos junto a eles. Podemos marcar para a gera��o
seguinte. Que tal sermos seus netos?
- Estranho, T�cio. Qual � a sua rela��o com Mizael?
- Sou o pai dele.
- N�o. Quero dizer, de outra vida. Que liga��o tem com ele?
- Nenhuma. Conheci-o quando ele nasceu. Por qu�? Isso
� importante?
- Acho que n�o. Tamb�m n�o conhecia voc� antes e nos
demos muito bem.
- Podemos construir uma vida para o futuro. O que voc� acha?
- Pode ser uma boa ideia. S� n�o sei o que At�lio pensa disso.
- Deixe At�lio para l�. Ele j� era.
- Como assim, j� era? Quando ele souber que vamos ser
irm�os, vai fazer de tudo para nos prejudicar.
- S� se permitirmos. Mas, se nos ligarmos �s for�as do
bem, ele nada poder� contra n�s.
- Parece que voc� j� est� convencido disso. A mim, ainda
me falta coragem.
- Seu problema � que voc� se acostumou a temer At�lio. Se
ele fosse t�o poderoso assim como voc� pensa, teria me prendido
l� na Terra e j� teria mandado buscar voc�. No entanto, nada tem
feito contra n�s.
- E se ele estiver planejando alguma coisa? Voc� n�o acha
que ele vai aceitar passivamente a derrota, acha? Pensa mesmo
que ele vai entregar o queridinho dele de m�o beijada para o
pessoal da luz?
376


- Ele n�o tem que entregar ningu�m. Caso ele ainda n�o
tenha percebido, R�gis n�o lhe pertence mais. Na verdade, nunca
pertenceu.
- Por que ser� que ele mudou tanto? At�lio o preparou t�o bem!
- At�lio n�o contava com uma coisa fundamental. Mandou-o
para a luz, onde ele teve contato com a sabedoria que vem de
Deus. J� meio balan�ado pelas culpas, intimamente desejando
se modificar, Mizael retornou � Terra com a semente dos novos
valores prestes a brotar em seu cora��o. Envolvido, primeiramente,
pelo amor da m�e e da av� e, agora, pelo de Nat�lia, foi aos
poucos se distanciando de At�lio e de seus planos malignos. R�gis
n�o se harmoniza mais com ele.
Damien estava chorando, surpreso n�o apenas com a transforma��o
de Mizael, mas com sua pr�pria mudan�a. Se antes desejava
levar o outro ao fracasso, agora s� pensava em ajudar a si mesmo.
- Quero ir com voc� - afirmou, ainda meio indeciso. - A
seu lado, sinto-me fortalecido para enfrentar At�lio e sua horda de
assassinos.
- N�o se esque�a de que j� pertenceu a essa horda. E
lembre-se: n�o subestime o inimigo. Respeite-o, mas n�o o tema.
- Voc� est� ficando s�bio, T�cio. � Josu� quem anda lhe
ensinando essas coisas?
- Pode-se dizer que sim. De resto, a vida aos poucos se
encarrega de clarear as verdades.
- E est� ficando engra�ado tamb�m. S�o as drogas?
- N�o tenho mais sentido necessidade de me drogar. Faz
algum tempo que deixei de lado esse v�cio. Voc� sabe.
- Isso � muito bom. Voc� tem for�a de vontade.
- Temos que ter. Do contr�rio, o des�nimo nos domina. E
voc� n�o quer ser dominado por ele, quer?
- N�o.
- Ent�o vamos. J� perdemos muito tempo aqui.
T�cio puxou-o pela m�o, mas Damien n�o se levantou, olhando
discretamente para os elementos que havia recolhido.
377


- O que fa�o com tudo isso? - indagou.
- Sinceramente, Damien, para que voc� quer isso? N�o
passa de lixo astral, nada que lhe fa�a bem.
- Tem energia a�. Pouca, mas tem.
- Voc� quer continuar mendigando? Isso s�o migalhas.
Podemos conseguir energia pura, limpa, reparadora, sem termos
que nos humilhar. L� onde estou, todo o ar rescende � pureza.
Naturalmente, vamos alimentando nosso corpo de energia l�mpida.
Vamos, deixe isso a�. Logo tudo vai se desmanchar mesmo. - Ele
hesitou, e T�cio prosseguiu: - Voc� fala do meu v�cio, mas est�
agindo igualzinho a um viciado.
- N�o sou viciado - protestou irritado.
- Ent�o vamos embora. Largue essa porcaria a�. � s� energia,
vai se dissipar.
- Tem raz�o. N�o serve para nada.
Damien deu um esbarr�o na mesa, que virou, derramando
as coisas no ch�o. Aos poucos, a energia condensada dos
elementos foi se desprendendo, retornando ao cosmo em forma
de �tomos astrais.
- Venha - chamou T�cio. - Chegou a minha vez de acolher
voc�.
Com a m�o sobre o ombro dele, T�cio conduziu Damien
para fora. Depois de alguns passos, seu pensamento os levou para
junto de Josu�, que os aguardava num posto de aux�lio pr�ximo,
certo do sucesso da miss�o de T�cio. Antes de esvanecerem no
ar, Damien ainda conseguiu ouvir as �ltimas palavras de T�cio
naquele submundo de sombras:
- Vamos embora, irm�o.
Foi a �ltima e melhor lembran�a que Damien guardou daquela
vida.
378


Seria preciso passar por um processo de recupera��o para
reequilibrar o corpo flu�dico de Damien, cuja vibra��o de sutileza
permanecia no campo mais denso da mat�ria astral. Mas T�cio
tinha raz�o. O ar ali em cima era mais ben�fico, l�mpido. Quase um
banho de energia pura. E Josu� se mostrava disposto a ajud�-lo a
restabelecer a autoestima e a compreender suas ilus�es.
Mais do que tudo, o que estimulava Damien era a esperan�a
de reencarnar como irm�o de T�cio. S� agora se dava conta do
quanto aprendera a am�-lo. Ser irm�o dele seria uma experi�ncia
gratificante, muito al�m do que julgava merecer.
No momento, ele e T�cio dividiam o mesmo quarto numa
esp�cie de alojamento. Tudo era muito claro, limpo, fresco.
Damien estava gostando imensamente daquela nova vida, evitando
pensar em At�lio para n�o cair em depress�o,
Ele abriu os olhos em seu leito macio, de len��is alvos e
perfumados. A cama ao lado estava vazia, sinal de que T�cio havia
sa�do. Damien espregui�ou-se e olhou pela janela, surpreso com o
sol brilhante e morno que se derramava sobre as flores do jardim.
Tudo ali era t�o bonito, t�o claro, t�o diferente do submundo
governado por At�lio. N�o se arrependia de ter partido. Um lugar
aben�oado como aquele n�o se comparava �s trevas amaldi�oadas
em que se permitira aprisionar.
Em poucos instantes, T�cio apareceu. Sorriu para ele, afagou
seus cabelos.
- Como se sente hoje? - indagou.
- Otimamente. Nunca vou deixar de lhe agradecer pelo
bem que est� me fazendo.
- N�o pense nisso. Voc� tamb�m me ajudou quando
desencarnei.
- N�o fiz nada - tornou de olhos baixos, ruborizado. -
Acolhi-o por interesse.
- Ainda assim, me acolheu. Pode n�o parecer, mas foi a melhor
coisa que voc� podia ter feito por mim. Voc� n�o faz ideia do quanto
me ajudou. Isso nos tornou amigos. Somos amigos, n�o somos?
379


- Por toda vida.
- Viu s�? Conquistei o seu amor. N�o � melhor se aliar a
pessoas pelo amor do que pelo medo?
- Sem d�vida.
- Muito bem. Mas agora preciso sair. Vim lhe avisar que
tenho que retornar � Terra.
- Porqu�?
- R�gis foi baleado.
- O qu�? Como?
- Num confronto entre a pol�cia e os traficantes.
- Ele vai sobreviver?
- � o que veremos agora. Estou indo com Josu� e Uriel ao
hospital onde ele est� internado.
- Quer que eu v� junto?
- N�o precisa. Fique e descanse. At�lio deve estar por perto
tamb�m, e n�o queremos provocar uma guerra.
- Est� bem. Mas tome cuidado.
A primeira coisa que T�cio viu quando chegou ao hospital foi
At�lio parado ao lado de R�gis. O esp�rito n�o se deu conta da sua
presen�a. Agora vibrando numa frequ�ncia superior � do ser das
sombras, n�o era por ele percebido.
Do outro lado do leito, Ge�rgia e Cl�ia oravam em sil�ncio.
Estranhamente, a ora��o n�o incomodou At�lio, parecendo mesmo
que o confortava.
- O que est� acontecendo? - Uriel indagou a Josu�. -
At�lio parece estar gostando da prece.
- E est� - esclareceu Josu�. - Mesmo que disso n�o se
d� conta, a sensa��o de paz que est� sentindo vai penetrando
todas as suas c�lulas astrais, injetando-lhe novas energias.
- Mas ele sempre detestou qualquer coisa que venha do
lado divino.
- At�lio pode se julgar perverso e dur�o, mas � uma
entidade humana, tem sentimentos e desejos. Seu amor por
R�gis � verdadeiro. Nesse momento, n�o est� interessado em
380


conduzi-lo pela estrada do crime. Est� mais preocupado em
salvar-lhe a vida.
- N�o seria melhor para ele que R�gis desencarnasse? -
questionou T�cio. - A miss�o que lhe confiou est� fracassada
T�-lo de volta talvez seja de seu interesse.
- � e n�o �. Primeiro, porque At�lio n�o acredita no fracasso.
Segundo, e mais importante, � que o sofrimento de R�gis o faz sofrer.
E tem a Nat�lia. Ele a viu ainda h� pouco, t�o abalada que tocou seu
cora��o. Agora venha, Uriel, vamos ajudar como pudermos.
Enquanto T�cio se acomodava a um canto, Josu� e Uriel
passaram a energizar o ambiente, espargindo no ar fol�culos de um
tom suave de verde, quase transl�cido. Imediatamente, os presentes
foram atingidos por uma chuva de esmeralda, que fez dissipar
parte do esgotamento nervoso a que vinham sendo submetidos
nas �ltimas horas.
Tocado pelo efeito calmante da luz verde, At�lio come�ou a
chorar. Um pouco de longe, Josu� fez chegar at� ele formas energ�ticas
de revitaliza��o. Percebendo a mudan�a no astral do
ambiente, At�lio levantou a cabe�a, certo da presen�a invis�vel de
esp�ritos iluminados. A inquieta��o o fez recuar em dire��o � parede,
numa atitude claramente defensiva. No entanto, n�o se sentia
com �nimo para enfrentar nenhum esp�rito de luz. Por isso, de forma
inesperada, pousou um beijo delicado na testa de R�gis e saiu.
Do lado de fora, os policiais se revezavam na vig�lia de R�gis.
Embora n�o acreditassem em repres�lias, o m�nimo que podiam
fazer era dar �quela m�e a certeza de que o filho n�o seria atacado
por nenhum marginal remanescente da quadrilha de Bira.
Joel entreabriu a porta lentamente, fazendo sinal para que
Ge�rgia sa�sse. Ela deixou R�gis em companhia da m�e para
atend�-lo.
- Como ele est�? - indagou, realmente preocupado
381


- Ele foi operado, mas os m�dicos ainda n�o sabem se vai
se recuperar. Se ele conseguir passar dessa noite, tem boas chances
de sobreviver.
- Dona Ge�rgia, estou aqui em nome da corpora��o para
lhe prestar nossa solidariedade. Todos reclamam da pol�cia, mas
h� no nosso meio bons policiais que d�o a vida no cumprimento do
dever. � em nome destes �ltimos que venho lhe falar e demonstrar
nossa eterna gratid�o. Seu filho foi um verdadeiro her�i. Arriscou
a vida para colocar na pris�o um perigoso traficante, atr�s do qual
estamos h� muito tempo.
Enxugando as l�grimas em um lencinho de papel, Ge�rgia
encarou-o com a dor estampada no olhar. Quase sem voz, conseguiu
retrucar:
- Ser� que eu devia mesmo me sentir orgulhosa por isso?
N�o quero um filho her�i. Quero um filho vivo.
Compreendo a sua dor. Mas ele nos ajudou a desbaratar
uma quadrilha perigos�ssima de traficantes de drogas.
- Se isso servir para que outras m�es n�o passem pelo
que estou passando, ent�o talvez eu sinta algum conforto. Do
contr�rio, n�o.
- Seu filho � um rapaz muito corajoso. E n�o digo isso
apenas pelo risco que correu ao delatar o traficante, mas pela
coragem que teve de assumir que foi o respons�vel pelo fracasso
de outra a��o da pol�cia, que levou � morte, inclusive, uma mulher
inocente, nossa informante.
Foi por isso que R�gis fez o que fez? Porque se sentia
culpado pela morte da mo�a?
- Exatamente. A senhora devia considerar isso como um
ato duplo de bravura.
Ela balan�ou a cabe�a. Conhecia toda a hist�ria.
- Ele vai ser preso por isso?
- N�o. Apenas eu ouvi essa parte da hist�ria e n�o vou contar a
ningu�m. O que R�gis fez compensou a inconsequ�ncia do passado.
382


Ge�rgia silenciou. N�o sabia ao certo o que pensar. Por mais
que a quadrilha de Bira houvesse sido desfeita, havia consequ�ncias
que n�o poderiam ser apagadas. Nada jamais seria como antes.
- Obrigada pelo seu apoio - finalizou Ge�rgia. - Mas
agora preciso voltar para junto do meu filho.
- Est� certo. Estarei por perto, se precisar. Aqui tem o
meu telefone.
Ge�rgia apanhou o cart�o que ele lhe ofereceu. Com um
aceno de cabe�a, rodou nos calcanhares e voltou para o quarto.
- V� para casa, m�e - disse ela a Cl�ia. - Deixe que eu
ficarei aqui com ele.
- N�o vou deix�-la sozinha.
- Nosso plano de sa�de s� d� direito a um acompanhante.
- Bom, se � assim, eu vou, mas s� quando terminar o hor�rio
de visitas.
- Isso vai ser daqui a menos de cinco minutos. N�o se preocupe
comigo, vou ficar bem. Mas vou me preocupar com voc� se
n�o souber que est� no conforto da sua cama. Voc� n�o tem mais
idade para esses sacrif�cios.
- N�o � sacrif�cio nenhum. E n�o sou t�o velha assim.
Uma enfermeira apareceu na porta, anunciando o fim do
hor�rio de visitas.
- Viu? - prosseguiu Ge�rgia. - Eu n�o falei?
Embora contrariada, Cl�ia foi para casa, n�o sem antes fazer
milhares de recomenda��es para que Ge�rgia lhe telefonasse em
caso de qualquer altera��o. Acomodada num pequeno sof� embaixo
da janela, Ge�rgia custou a adormecer. N�o parava de pensar
na trag�dia que havia acontecido. Pensou em Nat�lia, em J�lio, em
Bianca. N�o gostava de Bianca, mas, como m�e, podia imaginar o
seu sofrimento.
Varou a noite pensando essas coisas, atormentada pelo
medo de que o filho morresse. Depois de tudo o que ela sofrera
para que ele nascesse, n�o poderia perd�-lo. A toda hora, rezava
para que Deus se apiedasse dela e de R�gis, permitindo que ele
383


continuasse na vida. O dia j� estava quase amanhecendo quando
ela, finalmente, pegou no sono. Mal havia cerrado os olhos quando
uma voz fraca e quase inaud�vel ecoou ao longe. Praticamente
impercept�vel, teria passado despercebida, n�o fossem os ouvidos
treinados de toda m�e para reconhecer a voz de seus filhos:
- M�e...
Ge�rgia abriu os olhos, logo se dando conta de que R�gis a
chamava baixinho. Ela deu um salto do sof� e aproximou-se dele,
segurando-lhe a m�o estendida para fora da cama.
- Gra�as a Deus, R�gis! Voc� voltou.
- Que lugar � esse, m�e? - prosseguiu ele. - � um
hospital?
- Sim.
- Fui ferido? - Ge�rgia assentiu - E Bira? Foi preso?
- Ele foi morto. Junto com todos do seu bando.
- Morto... Como aconteceu?
- Foi uma troca de tiros. N�o se lembra?
- Lembro... mais ou menos...
- N�o importa, querido. Procure descansar. Acho que n�o
� bom voc� falar muito. Melhor chamar o m�dico.
- Espere um instante. Cad� a Nat�lia?
- Esteve aqui mais cedo, mas precisou ir para casa. Disse
que vai voltar amanh�.
- E Patr�cia? Ela tamb�m estava l�.
Ge�rgia n�o respondeu.
- Vou chamar o m�dico - falou laconicamente e saiu.
384

capitulo
43
Dentro do avi�o, J�lio n�o parava de chorar. Devia imaginar
que algo assim acabaria acontecendo. N�o devia ter deixado
Patr�cia sozinha no Rio de Janeiro. E logo com quem! Embora n�o
soubesse o que havia acontecido, tinha certeza de que a culpa era
toda de R�gis. Corria sangue de viciado em suas veias. Duvidava
muito que ele n�o fosse viciado tamb�m.
, Quando finalmente conseguiu chegar � casa de Nat�lia, ela e
Bianca choravam abra�adas na sala. Em sua profunda dor, juntou-
-se a elas.
- Onde est� minha menina? - indagou com voz pungente.
- Quero v�-la.
- Ela est� no IML21, pai - esclareceu Nat�lia. - O corpo
ainda n�o foi liberado.
Ouvir Nat�lia falar de sua filha como um simples corpo morto
lhe causou um desespero insuport�vel.
- Isso n�o pode ser verdade. � um pesadelo. Como uma
coisa dessas foi acontecer justo com a minha filha? Minha pequena
Patr�cia, t�o jovem, t�o pura!
21 Instituto M�dico Legal.


- Por favor, pai, procure se acalmar. Por enquanto, ainda
n�o sabemos de nada. Um policial ficou de vir aqui conversar
conosco. Estamos aguardando-o.
- Que policial, que nada! Quero ver a minha filha!
- N�o adianta se desesperar - intercedeu Bianca. - Pensa
que j� n�o fiz isso? Pedi, implorei, ameacei. Ainda devem estar
fazendo a aut�psia.
- Como � que voc� consegue falar uma coisa dessas assim,
t�o friamente? Ser� poss�vel que nem a morte da sua filha faz voc�
se emocionar?
- Eu me emociono � minha maneira. Por que pensa que voc�
� o �nico que est� sofrendo? Ela era mais minha filha do que sua.
- Isso � que n�o! - rugiu ele. - Voc� nunca a amou como
eu. A nenhuma das duas. Nem a Nat�lia, que � nossa.
Na mesma hora em que falou, J�lio se arrependeu. Olhou de
Bianca para Nat�lia, torcendo, desesperadamente, para que ela
n�o o tivesse ouvido. Tarde demais.
- O que isso quer dizer? - sondou ela, desconfiada. - Por
acaso Patr�cia n�o era filha de voc�s?
- Que bobagem, filhinha - intercedeu Bianca, chorosa. -
� claro que Patr�cia era nossa.
- Por que ent�o papai falou que eu sou de voc�s. D� a
entender que Patr�cia, n�o. Por acaso ela era adotada?
- N�o.
- Voc�s est�o me escondendo alguma coisa. Patr�cia n�o
era sua filha, pai? � isso? Ela era filha de outro homem?
Com o desespero descendo em forma de l�grimas, J�lio
encarou a filha e rebateu amargurado:
- N�o quero falar sobre isso agora. Eu n�o suportaria... -
calou-se, engolindo o pranto.
- Deixe estar, Nat�lia. Estamos todos abalados, sofrendo.
Nat�lia n�o disse mais nada. Em respeito aos pais, achou
melhor se calar. Permaneceu com eles num sil�ncio torturante,
interrompido, de vez em quando, por solu�os dolorosos.
388


- Vou tomar um comprimido e me deitar - informou J�lio,
pesaroso. - N�o suporto mais essa agonia.
Bianca aguardou at� que J�lio se retirasse para conversar a
s�s com Nat�lia. Esperou at� que o pranto silenciasse, apanhou
a m�o dela e come�ou a dizer com tristeza:
- Quero que voc� saiba, Nat�lia, que sempre amei voc� e
Patr�cia.
- Por que est� dizendo isso?
- Posso ter sido uma m�e negligente, mas n�o foi falta de
amor. Depois que Patr�cia nasceu, eu simplesmente n�o consegui
mais conviver bem com seu pai e fui me afastando.
- Por qu�? O que provocou isso?
- Acho que voc� j� sabe - ela encarou Nat�lia com tristeza
e confessou; - Patr�cia n�o era filha de seu pai.
- Voc� dormiu com outro homem? - Bianca assentiu, em
l�grimas. - Quem � ele?
- Voc� n�o o conhece. Nunca mais nos vimos depois que
eu engravidei.
- Papai sempre soube?
- Desde que Patr�cia nasceu.
- E ainda assim, ele a amou. Talvez at� mais do que a mim.
- Por favor, filhinha, n�o fique triste. Seu pai amava voc�s
duas.
- N�o estou triste, n�o por isso. Minha tristeza � pela morte
da minha irm�. Sinceramente, m�e, eu at� j� desconfiava, dadas
as diferen�as f�sicas entre n�s duas. Cheguei a considerar a hip�tese
de ado��o, mas, como voc�s nunca falaram nada, fiquei na
minha. N�o era meu direito question�-los,
- E agora? Como se sente? Vai me condenar?
- Quem sou eu para condenar algu�m? A vida � de voc�s,
n�o tenho nada com isso. Se algu�m tinha do que reclamar era
papai. Mas, se ele nunca disse nada, n�o sou eu que vou dizer.
Sempre amei Patr�cia como minha irm�. Isso n�o vai mudar agora.
387


Emocionada com a rea��o de Nat�lia, Bianca abra�ou-se a
ela e disse comovida:
- Ah! minha filha, voc� � uma alma t�o nobre! Por que Patr�cia
n�o era como voc�? Por que teve que ser sempre t�o desajuizada?
- Ela n�o merecia isso, m�e. Ningu�m merece.
- O que ser� que aconteceu? Por que Patr�cia estava no
meio de traficantes com o seu namorado?
- R�gis tentou me alertar sobre as companhias dela, mas o
que eu poderia fazer?
Nat�lia atirou-se nos bra�os da m�e, chorando junto com ela
Acabaram adormecendo ali mesmo, no sof�.
O policial chegou bem cedo na manh� seguinte. Despertos,
todos o aguardavam ansiosos. Joel sentou-se defronte a eles,
constrangido por ter de tocar em assunto t�o delicado como drogas,
o envolvimento dos filhos com o mundo do crime. Ele pigarreou,
ajeitou-se entre as almofadas e come�ou:
- Primeiramente, quero que saibam o quanto lamento tudo
isso.
- N�s sabemos - cortou J�lio. - Mas queremos que nos
diga o que aconteceu e por que minha filha estava no meio daquela
gente. Foi o R�gis, n�o foi?
Antes que Nat�lia pudesse contestar, Joel pigarreou novamente
e esclareceu:
- Na verdade, n�o era para a menina estar l�. Era uma
opera��o da pol�cia para prender um traficante perigoso. O �nico
civil que pens�vamos estar envolvido era R�gis.
- Por que R�gis? - questionou Nat�lia. - Por acaso ele �
algum agente disfar�ado?
- Na verdade, R�gis era nosso informante.
- O qu�?! - surpreendeu-se J�lio.
Foi gra�as a ele que chegamos at� Bira e seu bando.
Infelizmente, as coisas n�o sa�ram como gostar�amos. Houve troca
de tiros e muitas baixas de ambos os lados. Sua filha foi uma delas.
388


- � isso que minha filha representa para voc�s? - esbravejou
J�lio. - Uma baixa? Uma estat�stica nos seus arquivos corrompidos?
- Por favor, senhor, procure se acalmar. N�o era para sua
filha estar l�.
- E por que ela estava? - perguntou Bianca, quase sem
conseguir falar. - O que Patr�cia fazia com esse traficante?
- Sei que � dif�cil aceitar certas coisas - disse ele, com
cuidado. - Mas sua filha se encontrava com Bira regularmente.
- Mentira! - rugiu J�lio, quase agarrando o outro pelo colarinho.
- Patr�cia n�o passava de uma crian�a. N�o ia se envolver
com gente daquela esp�cie.
- Infelizmente, foi isso que aconteceu. Nossos agentes a
viram v�rias vezes em companhia dele.
- Se isso aconteceu, ela n�o chegou at� ele sozinha.
Algu�m a apresentou a ele. Quem? - Joel deu de ombros. -
Foi o R�gis, n�o foi?
- N�o temos essa informa��o. Pode ser que sim, pode ser
que n�o. O fato � que Patr�cia se envolveu com Bira, contrariando
o pr�prio R�gis. Ele fez quest�o de frisar que ela n�o tinha
nada com as atividades do traficante e nos fez jurar que nada far�amos
contra ela.
- Quanta nobreza! - desdenhou J�lio. - Um viciado, caguete
da pol�cia. E, ainda por cima, corruptor de menores.
- R�gis n�o � nada disso! - defendeu Nat�lia, exaltada. -
Correu grande perigo ao trabalhar para a pol�cia. N�o � todo
mundo que se arriscaria assim.
- Por que ele fez isso? - tornou J�lio. - Que interesse ele
tinha em desmantelar aquela quadrilha? Por acaso esse tal de Bira era
inimigo dele? Os dois estavam disputando algum ponto de drogas?
- O senhor n�o sabe o que diz - irritou-se Joel. - N�o
posso contar detalhes sigilosos de nossas opera��es. Basta saber
que R�gis foi muito corajoso, procurou-nos oferecendo ajuda,
sem que tiv�ssemos nada contra ele.
- Ningu�m faz uma coisa dessas de gra�a.
389


J� lhe passou pela cabe�a que ele talvez quisesse proteger
sua filha? Prender Bira seria uma boa maneira de afast�-la dele.
- O senhor ainda n�o respondeu a minha pergunta - insistiu
J�lio. - Como Patr�cia chegou at� Bira?
- J� disse que n�o sabemos. Mas, se eu fosse o senhor,
experimentaria conversar com R�gis. Talvez se surpreenda com a
sua filha e perceba que realmente n�o a conhecia.
- Nossa filha era s� uma menina - choramingou Bianca. -
N�o estaria l� se algu�m n�o a tivesse levado.
- Bom, senhora, essa e outras perguntas devem ser feitas
ao R�gis. Talvez ele seja o �nico que conhe�a as respostas. Eu, de
minha parte, cumpri minha miss�o. Aguardem agora novo telefonema,
informando da libera��o do corpo.
J�lio mal conseguiu se despedir do policial, tamanha sua
revolta. Quanto mais o ouvia falar, mais se convencia de que fora
R�gis o respons�vel por tudo aquilo.
- Aonde voc� vai? - perguntou Bianca, vendo que ele se
preparava para sair.
- Tenho uns assuntos para resolver.
De cara fechada, J�lio bateu a porta e saiu. Ningu�m iria impedi-
lo de descobrir o respons�vel pela morte de sua filha. Ningu�m.
390

capitulo
44
A recupera��o de R�gis era excelente. A cirurgia fora um
sucesso, ele reagia muito bem aos medicamentos e os passes
de Josu� contribu�am para que se sentisse cada vez mais fortalecido.
Acordou bem-disposto, embora dolorido e cansado. A m�e
n�o sa�a do lado dele. Precisava ir a casa tomar um banho, mas
s� sairia quando Cl�ia chegasse.
- E Nat�lia? - indagou ele. - Ela n�o veio me ver?
- Ela ainda n�o sabe que voc� acordou. Vou telefonar para
ela daqui a pouco.
- Voc� n�o me respondeu sobre Patr�cia. Ela est� bem?
O m�dico havia lhe dito que ela poderia dar-lhe a not�cia, pois
ele era jovem e forte o bastante para aceit�-la.
- Meu filho, as not�cias n�o s�o muito boas. Patr�cia n�o
sobreviveu.
- N�o sobreviveu? Como assim? Ela foi atingida no tiroteio?
- Infelizmente.
Ele cerrou os olhos por uns segundos, remoendo a dor da
trag�dia.
- � por isso que Nat�lia n�o veio me ver? Ela pensa que o
culpado sou eu?
- N�o. Mas o pai dela estava para chegar de S�o Paulo, e
parece que o policial ia � sua casa hoje de manh�. Vamos aguardar.


- Nat�lia n�o vai me perdoar.
- Ela n�o sabe de nada, n�o �? - R�gis assentiu. - Pois
acho que o melhor que voc� tem a fazer � contar-lhe a verdade.
Desde o princ�pio, desde antes de Gislene. A sinceridade � o
melhor caminho para a aceita��o. Se voc� mentir, ela vai se sentir
tra�da e nunca vai confiar em voc�. Seja franco, conte-lhe tudo.
- Farei isso, m�e. N�o poderia mesmo viver carregando
esse peso. Nat�lia merece saber a verdade. Sei que n�o agi
corretamente no caso de Gislene, mas tentei me redimir fazendo
exatamente o que ela ia fazer. S� que deu tudo errado.
- N�o pense assim. Todo mundo faz escolhas na vida. Voc�
escolheu se acertar com a pol�cia, Patr�cia escolheu se envolver
com o traficante. Os riscos para cada um s�o previs�veis.
Ele n�o disse nada. No fundo, ela tinha raz�o, mas ele tamb�m
n�o era nenhum santo. Tudo come�ara no dia em que acompanhara
Alex �quela boca de fumo. Mas, se n�o tivesse passado por
aquilo, como teria amadurecido e se modificado? Agora, o que
mais lamentava era a morte de Patr�cia.
Batidas na porta atra�ram a aten��o de ambos. Ge�rgia se
levantou para abri-la, assustando-se imensamente ao ver que
era J�lio.
- O que faz aqui? - balbuciou ela, aturdida.
- Quero falar com R�gis. Preciso saber o que aconteceu.
- Esse n�o � o melhor momento. Lamentamos o que houve
com sua filha, mas R�gis n�o teve nada a ver com isso.
- Quero que ele me diga, olhando nos meus olhos, que n�o
foi ele quem a levou para a droga.
- N�o posso permitir. R�gis est� convalescendo.
- Por favor, Ge�rgia, deixe-me passar.
- N�o, J�lio. Em nome de tudo o que vivemos, se voc�
ainda tem um m�nimo de respeito por mim, v� embora.
- M�e? - R�gis chamou. - O que est� acontecendo? Voc�
e seu J�lio se conhecem?
392


Ge�rgia virou-se para ele com os olhos �midos, os l�bios
tremendo ante a imin�ncia da revela��o.
- J�lio era o meu noivo na �poca em que engravidei de
voc�.
Um pedregulho na cabe�a teria causado menos estrago. A
surpresa foi t�o grande que R�gis quase caiu da cama, literalmente,
ao tentar se levantar. A tonteira causada pela forte medica��o o fez
tombar de volta sobre o leito. Agora compreendia tudo. Sabia por
que J�lio n�o gostava dele, por que n�o o queria perto de Nat�lia.
- Pelo amor de Deus! - suplicou J�lio, aproveitando-se da
distra��o de Ge�rgia para passar. - Eu preciso saber. O que foi
que voc� fez com a minha filha?
R�gis n�o sabia se o odiava ou sentia pena dele. Por que
precisava ter considera��o pelo homem que abandonara sua m�e
no momento mais dif�cil de sua vida?
- Saia, J�lio! - exigiu Ge�rgia, retornando de seu torpor. -
Voc� n�o tem o direito de vir aqui perturbar o meu filho.
- N�o fiz nada com a sua filha, seu J�lio - falou R�gis,
fazendo sinal para que a m�e se acalmasse. - Ao contr�rio, tentei,
de,todas as formas, afast�-la de Bira. Mas ela n�o quis me ouvir.
J�lio estacou abismado, enquanto Ge�rgia corria para o lado
de R�gis, como se quisesse proteg�-lo.
- Ela n�o conheceu o traficante sozinha. Algu�m teve que
apresent�-los. Foi voc�, n�o foi?
- Tem certeza de que quer descobrir a verdade? Existem
coisas que � melhor n�o saber.
- O que est� insinuando? Que minha filha era c�mplice de
um traficante?
- C�mplice, n�o diria. Mas ela e Bira estavam... namorando.
- Mentira! Minha Patr�cia era inocente. Jamais namoraria
um criminoso.
- O senhor n�o conhecia sua filha. Patr�cia podia ser tudo,
menos inocente. E, se quer mesmo saber a verdade, posso lhe contar.
- Conte-me o que sabe. Vamos, eu exijo!
393


- O senhor n�o est� em condi��es de exigir nada. Sua filha
n�o era quem o senhor pensa. Ela se envolveu com Bira porque
quis. Atirou-se para cima dele, assim como havia se atirado para
cima de mim. No come�o, foi para me fazer ci�me. Mas, depois,
ela se interessou por ele. Viviam juntos, para l� e para c�.
- Voc� ainda n�o me disse como ela o conheceu. Foi voc�,
n�o foi?
- Bira andava atr�s de mim. Queria que eu fizesse um servi�o
para ele. Um dia, quando ele parou para falar comigo, sem que
eu percebesse, Patr�cia entrou no carro dele. Dali em diante, n�o se
largaram mais. Ele a iniciou no uso da coca�na...
- Minha filha n�o era viciada! - esbravejou. - Isso � uma
inf�mia! Voc� est� querendo denegrir a imagem dela.
- Estou lhe contando a verdade porque o senhor pediu.
Patr�cia estava iludida. No dia em que fui pegar a droga, a pol�cia
pronta para dar o flagrante, qual n�o foi a minha surpresa ao
encontrar Patr�cia com Bira. Quis dizer-lhe para fugir, mas n�o tive
tempo. Os policiais entraram gritando, os traficantes responderam
com fogo. Foi uma gritaria, tiros para todo lado. Lutei desesperadamente
para encontr�-la e afast�-la dali, mas, de repente, fui
atingido por uma bala e n�o vi mais nada.
- Minha filha morreu, desgra�ado! - rugiu, tentando puxar
R�gis pela gola da camisola do hospital. - Por sua causa, ela morreu.
- Sua filha era uma perdida, para n�o dizer coisa pior.
- Desgra�ado!
Subitamente, J�lio sentiu que m�os o agarravam por tr�s.
Assustada com o rumo da discuss�o, Ge�rgia saiu do quarto sem
ser percebida, correndo a pedir ajuda ao policial de plant�o. O
guarda puxou J�lio, for�ando-o a soltar a roupa de R�gis. Saiu
arrastando-o do quarto, enquanto J�lio esbravejava, fora de si:
- Voc� a matou, canalha! Por sua culpa, ela morreu! Isso
n�o vai ficar assim. Voc� me paga!
As enfermeiras entraram correndo, preocupadas com o estado
de exalta��o de R�gis. Por pouco o policial n�o prendeu J�lio.
394


S� n�o o fez em respeito a sua dor de pai. Levou-o para fora do
hospital, dando-lhe ordens para n�o retornar.
J�lio voltou para casa arrasado. Ouvir aquelas mentiras sobre
sua filha querida era quase t�o terr�vel quanto o fato de ela estar
morta. Abriu a porta do apartamento e entrou alquebrado.
- Pai! - exclamou Nat�lia, preocupad�ssima com ele. -
Onde esteve? Tentei ligar para o seu celular, mas voc� n�o atendeu.
- Fui ver o seu namoradinho - comentou com raiva. - O
homem que foi o respons�vel pela morte da sua irm�.
- Voc� foi ao hospital? R�gis acordou da cirurgia?
- Est� vivo. Que direito ele tem de viver enquanto minha filha
est� morta? E foram tantas mentiras... Quantas inf�mias ele inventou
de Patr�cia! Por isso, voc� n�o deve mais v�-lo. Aquele sujeito
� um canalha, aproveitador de criancinhas. Sabia que ele tentou
seduzir a sua irm�?
- Quem lhe disse isso?
- Ningu�m precisou me dizer. Ele acusou o traficante para
tentar se safar. Mas eu sei que era ele quem estava se aproveitando
dela.
- Isso � um absurdo! - protestou Nat�lia. - R�gis n�o
faria uma coisa dessas.
- O que voc� sabe sobre R�gis? Nada. Pois eu sei muito a
seu respeito. Conheci a m�e dele, fui noivo dela antes de me casar
com sua m�e.
- O qu�?! - disseram Nat�lia e Bianca ao mesmo tempo.
- Que hist�ria � essa agora, J�lio?
- � isso mesmo, Bianca. Ge�rgia � a m�e de R�gis.
- Pai! N�o v� me dizer que R�gis e eu somos irm�os!
- N�o - disse Bianca. - Na verdade, seu pai deixou Ge�rgia
porque ela estava gr�vida de R�gis, que � filho de outro homem.
395


Nat�lia olhou-o, surpresa. Aquela hist�ria parecia repeti��o
de uma outra, bem pr�xima.
- Ge�rgia foi estuprada - contou J�lio, rememorando
momentos dif�ceis. - Por um antigo colega de trabalho.
Falar do passado aliviou um pouco sua dor. Quando terminou
a narrativa, Nat�lia chorava de mansinho. Era uma hist�ria
muito triste, comovente.
- Por que n�o se casou com ela? - questionou, quase
acusando-o. - Se a amava tanto, por que a abandonou?
- Como eu poderia criar o filho de outro homem?
- Voc� n�o fez isso? - rebateu, fazendo J�lio ver que ela
j� conhecia a hist�ria. - N�o criou Patr�cia, que era filha de outro
homem? E dona Ge�rgia nem teve culpa do que lhe aconteceu.
Calou-se, olhando a m�e de soslaio. N�o queria fazer-lhe
acusa��es. Pretendia apenas compreender onde estava a diferen�a.
- Nada disso importa agora - tornou J�lio. - Mas voc�
est� proibida de tornar a ver R�gis. Ele � um marginal, n�o serve
para voc�.
- Sinto muito, pai, mas voc� n�o tem autoridade para me
proibir de ver R�gis. Sou adulta, tomo minhas pr�prias decis�es.
- N�o acredito que voc� ainda pretende se encontrar com
ele. N�o depois de tudo o que ele fez � nossa fam�lia.
- Seu pai tem raz�o, filhinha - concordou Bianca. -
N�o conhe�o R�gis, mas n�o acho direito ele ter envolvido sua
irm� com traficantes.
- Voc�s � que est�o dizendo isso - objetou ela. - A pol�cia
diz o contr�rio.
- Ele � informante da pol�cia - considerou J�lio. - � claro
que v�o fazer de tudo para preserv�-lo.
- Mesmo assim. N�o vou condenar R�gis sem antes ouvi-
-lo. N�o acredito que ele seja o que voc�s est�o falando. Ele � um
bom rapaz.
Para Nat�lia, estava encerrada a discuss�o. Ela n�o queria
mais ouvir o pai dizer que R�gis n�o prestava, at� porque, n�o
396


era aquilo em que acreditava. Mesmo que n�o o conhecesse
havia muito tempo, sentia em seu cora��o que ele era sincero. Foi
para o quarto, contrariada. De l�, ligou para o celular de Ge�rgia.
Ela mesma atendeu, sem saber ao certo o que dizer. Depois da
visita de J�lio, n�o sabia o que esperar de Nat�lia.
- Estou indo para a� - informou Nat�lia, saindo em seguida.
Nat�lia chegou ao hospital envolta em uma aura de tristeza,
embora se esfor�asse para n�o deixar transparecer nada a
Ge�rgia. Aproveitando a presen�a da mo�a, Ge�rgia resolveu dar
um pulo at� sua casa, prometendo retornar em breve.
- Seu pai esteve aqui - comentou R�gis.
- Eu sei.
- Fez-me acusa��es infundadas sobre a morte de Patr�cia.
- R�gis, por favor, tenha um pouco de paci�ncia. Meu pai
est� confuso, sofrendo. Ele n�o sabe o que diz.
- Ele sabe, sim. Seu pai me odeia, e agora descobri por qu�.
- Por qu�?
- Voc� sabia que ele e mam�e foram noivos? E que ele a
deixou quando ela engravidou de mim?
Todas as verdades se desvendavam ao mesmo tempo. Era
como a linha de um bordado desfiando-se rapidamente, sem
poder ser contida. Nat�lia percebia, contudo, que R�gis n�o sabia
sobre o estupro e n�o disse nada. N�o lhe cabia fazer revela��es
a respeito do passado de Ge�rgia.
- Todas essas coisas pertencem ao passado - ponderou
ela. - Nada disso tem import�ncia agora.
- Seu pai me acusa de ser o respons�vel pela morte de
Patr�cia. Acredite-me, Nat�lia, fiz de tudo para afast�-la de Bira.
Mas Patr�cia era teimosa.
- N�o precisa se justificar. Acredito em voc�. Papai est�
sofrendo e quer encontrar algu�m para culpar.
397


- N�o me importo com seu pai. Voc� acredita em mim?
- Acredito.
- Para mim, � o que basta. S� n�o quero que seu pai a fa�a
mudar de ideia.
- Isso n�o vai acontecer. Amo voc�, sabia?
- Tamb�m a amo. E gostava de Patr�cia. Queria salv�-la,
mas n�o pude... - ele enxugou as l�grimas, reunindo coragem
para prosseguir: - E isso n�o � tudo.
- Como assim?
- N�o quer saber como me tornei informante da pol�cia?
- Confesso que tive essa curiosidade.
- Vou lhe contar, mas, por favor, n�o se apresse em me
julgar. As pessoas mudam. Eu mudei.
Calma e pausadamente, R�gis contou tudo a Nat�lia, sem
omitir nenhuma passagem ou detalhe, desde o dia em que experimentara
um cigarro de maconha at� o derradeiro momento em
que Patr�cia perdera a vida. Nat�lia ouviu tudo em sil�ncio, chorando
em alguns momentos, surpreendendo-se em outros. Era uma
hist�ria terr�vel.
- Por que n�o me disse isso antes? - indagou ela, sem
conseguir ocultar uma pontada de m�goa.
- Voc� teria me aceitado se eu lhe contasse? - Ela n�o
respondeu. - N�o teria.
- � complicado, R�gis. Voc� se envolveu com gente da
pesada.
- Foi imaturidade. Mas a morte de Gislene me fez refletir.
E, quando conheci voc�, vi que n�o era essa a vida que eu queria
para mim.
- N�o sei o que pensar. N�o imaginava que houvesse uma
outra hist�ria por detr�s dessa. Estou confusa, surpresa.
- N�o quero pression�-la, mas pense bem. O que eu
poderia fazer?
- Para come�ar, nunca deveria ter se envolvido com Bira.
398


- Nunca mesmo. Mas me envolvi. Foi uma estupidez que
quis remediar. Uma pessoa n�o tem o direito de errar e tentar corrigir
o seu erro?
- Tem. S� que o seu erro levou � morte de uma garota. E
agora Patr�cia...
- Voc� est� me acusando pela morte de duas mulheres. �
isso, Nat�lia? J� n�o pensa mais que n�o sou respons�vel pela
morte da sua irm�?
- N�o � isso. � complicado.
Voc� j� disse isso. Perdoar � complicado?
- N�o tenho que perdoar voc�.
- Se voc� me acusa, ent�o acredita que eu errei. Se errei,
tenho que lhe pedir perd�o.
Por uns momentos, Nat�lia chegou a acus�-lo mentalmente.
No entanto, refletindo melhor, chegou � conclus�o de que ele n�o
tinha sa�da. Tomara a decis�o certa.
- Tem raz�o, meu amor - disse ela, para al�vio de R�gis.
- Voc� n�o teve outra alternativa. Estou orgulhosa por voc� ter
feito a coisa certa.
- Fui um tolo, iludi-me com coisas f�teis. Gra�as a Deus e a
minha m�e, consegui retornar ao caminho do bem.
Sua m�e sabe de toda essa hist�ria?
- N�o h� nada sobre mim que minha m�e n�o saiba. Foi
ela quem primeiro me incentivou a mudar. Depois, veio voc�.
Quero ser um homem de bem, Nat�lia. Quero viver ao seu lado
para sempre.
- Voc� � um homem de bem, R�gis. E muito corajoso.
Admiro-o pelo que fez. Muitos, no seu lugar, teriam cedido �s facilidades
e ao v�cio, mergulhando de cabe�a no crime,
S� h� duas coisas que lamento: as mortes de Patr�cia e
de Gislene. N�o queria que terminasse assim.
- Voc� n�o foi respons�vel por nenhuma das duas. N�o
sabia que Bira ia matar Gislene nem que Patr�cia estaria l� na hora
399


em que a pol�cia chegou. Foram fatalidades cujo motivo � apenas
do conhecimento de Deus.
- Minha querida! - emocionou-se ele, estendendo os
bra�os para ela. - Amo voc� cada vez mais.
- Tamb�m o amo. Agora descanse. Sen�o, quando sua
m�e chegar, vai brigar comigo.
- N�o vai, n�o. Minha m�e gosta de voc�.
- Mesmo sabendo de quem sou filha?
- Minha m�e n�o liga para essas coisas. Avalia as pessoas
pelo que elas t�m no cora��o, n�o pela sua proced�ncia, muito
menos pelas apar�ncias.
- Sua m�e � especial. E voc�, t�o especial quanto ela.
Agora vamos, chega de falar. Daqui a pouco o m�dico vai entrar
aqui e me colocar para fora.
R�gis estava realmente cansado. Sentia o peito dolorido,
cansava-o falar em demasia. E ele falara demais. N�o custou
muito a pegar no sono. Olhos fixos em Nat�lia, deixou as p�lpebras
ca�rem e adormeceu agarrado � m�o dela.
400

capitulo
45
Auxiliada por Cl�ia, Ge�rgia terminava os �ltimos retoques na
faxina do quarto de R�gis. No dia seguinte ele teria alta, e era importante
que voltasse para um ambiente limpo e arrumado. Nat�lia estava
com ele no hospital, dando-lhes tempo de aprontar tudo. Na v�spera,
Ge�rgia comprara uma televis�o para colocar no quarto dele e aguardava
a entrega para qualquer momento. Fora um sacrif�cio, teria de
pagar doze parcelas no cart�o de cr�dito, mas ele merecia.
Quando a campainha da frente tocou, Ge�rgia anunciou:
- Deve ser a TV chegando. Vou atender.
Cl�ia assentiu e continuou a arruma��o, enquanto Ge�rgia se
dirigia para a porta. Ao olhar pela janelinha, uma surpresa a abalou.
N�o era o entregador, mas J�lio, que a encarou com ar de desespero.
- O que faz aqui? - indagou ela, mal contendo a irrita��o.
- Quero falar com voc�.
- N�o tenho mais nada a lhe dizer.
- Por favor, Ge�rgia, � s� um minuto.
- Muito bem. O que voc� quer?
Demorou alguns instantes at� que ele tivesse coragem de
falar. Quando conseguiu, sua voz saiu estrangulada, s�plice, quase
um sussurro:
- Vim aqui lhe pedir perd�o. E a sua ajuda...


- Voc� n�o precisa me pedir perd�o por nada. Quanto a
minha ajuda, nada tenho a lhe oferecer al�m de piedade.
- Voc� me odeia.
- N�o. Tenho pena de voc�, do que se transformou, das
ilus�es que alimentou por toda a vida e que n�o o levaram a nada.
- � compreens�vel que voc� pense assim. Fui ego�sta, insens�vel,
s� pensei em mim. Mas isso passou. Voc� teve seu filho, sei
bem o que voc� teve que enfrentar para ficar com ele. Mas n�o �
poss�vel que voc� concorde com o que est� acontecendo.
- O que est� acontecendo n�o � culpa de R�gis. O que ele
fez foi tentar ajudar a pol�cia.
- Minha filha morreu. Isso n�o conta nada?
- Conta. � lament�vel, uma trag�dia. Imagino o que voc�
est� sentindo, mas nada posso fazer. Tenho rezado por todos
voc�s, para que encontrem paz e for�a para superar este momento.
Mais do que isso, n�o posso lhe dar.
- Patr�cia n�o era minha filha - confessou subitamente.
- Era filha de Bianca, mas n�o minha. Ser� que Deus est�
me punindo por t�-la amado tanto e n�o ter conseguido sentir
o mesmo por R�gis?
Foi uma surpresa e tanto ouvir aquela revela��o. Em outros
tempos, Ge�rgia podia at� se sentir tra�da, mas agora nada disso
tinha import�ncia.
- Deus n�o pune ningu�m. Muito menos sacrificaria uma
menina inocente s� para castigar voc�. A raz�o do que aconteceu
a Patr�cia est� no dom�nio da consci�ncia dela. N�s n�o temos
como avaliar isso.
- � f�cil para voc� falar, pois seu filho continua vivo, ao
passo que minha filha morreu - revidou com raiva. - E agora,
todo mundo quer transform�-lo em her�i.
- Por que n�o esquece isso, J�lio? Voc� ainda tem uma
filha, concentre-se nela.
- Foi justamente pensando nela que resolvi procur�-la.
Voc� tem que afastar R�gis de Nat�lia.
402


- N�o vou ficar aqui ouvindo isso. Voc� sabe que n�o vou
interferir, e aconselho-o a fazer a mesma coisa. Deixe-os em paz.
- N�o posso! Quero R�gis longe de nossas vidas. Voc�
precisa convenc�-lo a deix�-la.
Notando que ele come�ava a se exaltar, Ge�rgia recuou.
- N�o temos mais o que conversar, J�lio. Sinto muito.
Ela rodou nos calcanhares e j� ia bater a porta quando ouviu
novamente a voz dele:
- R�gis sabe do estupro? Sabe que foi gerado num ato de
viol�ncia?
Na mesma hora, Ge�rgia estacou. Ao se virar para ele, tinha
nos olhos l�grimas de revolta e medo.
- Voc� n�o desceria t�o baixo. N�o se atreva a lhe falar
nada. Voc� n�o tem o direito!
- Manterei seu segredo se voc� me ajudar. R�gis n�o precisa
saber quem foi o pai dele. Basta voc� convenc�-lo a terminar
com Nat�lia. No come�o, ela vai sofrer, mas depois me dar� raz�o.
- Voc� � desprez�vel, J�lio! Fa�a como bem entender, da
forma como mandar a sua consci�ncia. Se quiser contar a R�gis,
v� correndo. Conte!
Ge�rgia n�o ficou para ouvir a resposta. Estava t�o indignada
que mal podia suportar a presen�a de J�lio. Entrou correndo
em casa, indo direto ao encontro da m�e. Cl�ia j� havia terminado
a arruma��o quando Ge�rgia a encontrou na cozinha. Ela arriou
numa cadeira, apoiou a cabe�a nos bra�os cruzados sobre a mesa
e chorou.
- O que foi que houve, minha filha? - indagou Cl�ia, aproximando-
se. - Quem tocou a campainha? Foi o J�lio, n�o foi?
- Ah, m�e... Foi horr�vel!
Ela contou tudo o que se passara. Ao final, Cl�ia foi categ�rica:
- Voc� tem que contar tudo ao R�gis. N�o permita que J�lio
fa�a isso na sua frente. R�gis vai se sentir tra�do se souber do estupro
por interm�dio do homem que o odeia.
403


- Tem raz�o. N�o d� mais para adiar essa conversa. Vou
agora mesmo ao hospital.
- Quer que eu v� com voc�?
- N�o precisa. Fique aqui e termine tudo.
Rapidamente, Ge�rgia se arrumou e saiu. No hospital, qual
n�o foi a sua surpresa ao se deparar com J�lio no corredor, contido
pela atitude decidida de Nat�lia.
- O que est� acontecendo aqui? - exigiu saber.
Os dois se assustaram, mas foi Nat�lia quem falou:
- Nada, n�o. Meu pai j� estava de sa�da. N�o �, pai?
J�lio n�o ouvia. Tinha os olhos presos em Ge�rgia
- Ge�rgia, por favor - choramingou ele. - Estou implorando.
Ela n�o respondeu. Passou por ele a passos firmes, entrando
no quarto do filho.
- O que voc� fez? - questionou Nat�lia.
- Nada - foi a resposta seca.
J�lio deu-lhe as costas, sumindo no fim do corredor. Ela esperou
alguns minutos antes de entrar no quarto. Queria falar com
Ge�rgia, mas tinha medo de se intrometer onde n�o era chamada.
Depois de refletir, foi ao encontro dela.
- Tudo bem? - perguntou Nat�lia baixinho.
- Tudo - ela se afastou um pouco e indagou ressentida: -
Seu pai lhe contou?
- Contou.
- Foi o que imaginei. O que voc� acha?
- Acho que a senhora foi muito corajosa.
- Obrigada, mas n�o � a isso que me refiro. Voc� acha que
devo contar ao R�gis?
- Sinceramente, dona Ge�rgia, acho que sim. Essas coisas
nunca ficam ocultas a vida inteira, e, se R�gis souber por outra
pessoa, vai ficar profundamente decepcionado.
- Acha que ele vai entender?
404


- R�gis � inteligente e a ama muito. E depois, que culpa a
senhora teve?
- Passei a vida toda omitindo-lhe isso.
- O que � justific�vel, mas agora � o momento de falar a
verdade. Acho que a senhora ir� se surpreender.
Ge�rgia abra�ou Nat�lia emocionada. Ela tinha raz�o. A
verdade permanecera oculta por tempo demais. Era chegada
a hora da temida revela��o. Estranhamente, Ge�rgia se sentiu
confiante. Em seu �ntimo, n�o duvidava do amor de R�gis.
O enterro de Patr�cia foi doloroso para todos. Parentes e
amigos choravam e lamentavam o destino de uma menina linda,
jovem e mal orientada. Muitos se recusavam a acreditar que ela se
envolvera com um traficante, outros a julgavam uma perdida. Os
olhares se revezavam entre a cr�tica e a compaix�o, levando J�lio
e Bianca a se aproximar para enfrentar aquele momento t�o dif�cil.
Ap�s o funeral, J�lio seguiu para a casa de Bianca com
Nat�lia. As l�grimas da mulher eram t�o pungentes que ele sentiu
que devia se fazer forte para confort�-la. Se para ele n�o era f�cil,
para a m�e, ent�o, parecia quase insuport�vel. Ao ver o corpo baixar
� sepultura, Bianca refez todos os passos de sua vida, acusando-
-se por n�o ter tido uma atitude mais severa com Patr�cia. Sabia
o quanto ela era vol�vel e f�til, mas, em vez de impor-lhe limites,
achava gra�a em seus modos precoces de mulher.
J�lio tamb�m se sentia culpado. Fora permissivo demais.
Amava-a tanto que n�o sabia dizer-lhe n�o. Para n�o a contrariar,
deixava que ela fizesse o que bem entendesse, preferindo acreditar
na inoc�ncia dela a admitir o quanto era dissimulada.
J� era fim de tarde quando chegaram. No trajeto entre o
cemit�rio e a casa de Bianca, ningu�m disse nada. Sentaram-
-se na sala, ligaram a televis�o, fingindo assistir ao programa que
ningu�m via.
405


- Vou preparar algo para a gente comer - anunciou Nat�lia,
agoniada com a tristeza que reinava no ambiente.
Como nenhum dos dois respondeu, ela partiu para a cozinha.
Ap�s alguns minutos, sem tirar os olhos da TV, Bianca desabafou:
- N�o sei se vou suportar viver aqui. Todos os cantos me
lembram Patr�cia. A fantasia dela ainda est� pendurada na porta
do arm�rio...
Calou-se, sufocada pelo pranto que a consumiu vorazmente.
Aturdido, J�lio aproximou-se, enla�ando-a com um abra�o em que
procurava transmitir-lhe apoio e seguran�a.
- N�s vamos passar por isso. Sei que � dif�cil, mas ainda
temos uma filha.
- Que est� apaixonada pelo homem que desgra�ou a vida
da nossa Patr�cia. Como poderei suportar isso tamb�m?
- Temos que esquecer. Pelo bem de n�s dois, deixemos
Nat�lia resolver a vida dela. J� me desgastei demais com esse
assunto, n�o tenho mais for�as.
- Ah! J�lio! O que farei da vida sozinha?
- Voc� � uma mulher jovem e bonita. Em pouco tempo ter�
refeito sua vida.
- N�o quero mais homem nenhum, se � a isso que est� se
referindo. Talvez, se eu tivesse me dedicado mais a minhas filhas,
isso n�o tivesse acontecido.
Embora J�lio concordasse, n�o queria lhe dizer. Ao menos, n�o
naquele instante. O momento era de apoio m�tuo, n�o de acusa��es.
- Voc� diz isso agora. Mais tarde, voc� esquece e vai ver
como tudo volta ao normal.
- Voc� conseguir� esquecer? - Ele n�o respondeu. - Pois
eu, n�o. E sei que voc� tamb�m n�o. Ningu�m esquece uma coisa
dessas. Por toda minha vida, essa lembran�a vai doer.
- Eu sei... - concordou ele, a voz embargada, extravasando
as l�grimas que tentava, a todo custo, conter.
Do abra�o que se seguiu, surgiu o beijo. N�o um beijo apaixonado,
mas amigo, acolhedor, sincero.
406


- N�o me deixe, J�lio - suplicou ela. - Voc� � meu marido,
� o �nico com quem posso contar.
- V� para S�o Paulo comigo - prop�s ele. - Podemos
recome�ar.
- E Nat�lia?
- Ela j� � adulta, n�o depende mais de n�s. Estaremos
juntos e n�o precisaremos nos envolver no relacionamento dela
com R�gis.
- Tem raz�o. Jamais poderei aceitar que ela se case com
aquele homem.
- E ent�o? O que voc� decide? Sim ou n�o?
- Sim - falou sem titubear. - Vou com voc� para S�o
Paulo. N�o h� mais nada para mim aqui.
Quando Nat�lia reapareceu na sala, informando que o jantar
estava pronto, todas as decis�es haviam sido tomadas.
- Voc� pode se mudar para c�, se quiser - sugeriu Bianca.
- Agrade�o, mas n�o quero - protestou Nat�lia. - Gosto
do lugar onde moro.
- Voc� � quem sabe - disse J�lio, aliviado. - Vamos
alugar a casa, ent�o.
- Por mim, tudo bem. Fa�am como acharem melhor.
- N�o vai ficar chateada, filhinha? - indagou Bianca.
- N�o. Somos todos adultos e acho importante cada um
seguir a sua vida do jeito que achar melhor.
- N�o vai se amigar com aquele sujeito, vai?
- No momento, n�o. Mais tarde, tudo � poss�vel.
- Pense bem no que vai fazer - alertou J�lio, com raiva. -
Voc� vai se juntar ao homem que desgra�ou a vida da sua irm�.
- Por favor, n�o vamos recome�ar com isso. Patr�cia mal foi
enterrada, ser� que d� para n�o discutirmos?
- Acho que n�o tem mais sentido eu continuar mandando-
-lhe mesada - anunciou ele.
- Tudo bem. N�o pago aluguel, e o condom�nio � barato.
Posso economizar.
407


- Tem certeza? Olhe que seu padr�o de vida vai cair.
- Tenho certeza. N�o preciso de luxo para viver. O apartamento
de vov� � confort�vel, tem tudo. Vou ficar bem.
- Est� certo. Voc� � quem sabe.
Jantaram em sil�ncio, evitando tocar no nome de Patr�cia ou
de R�gis. Nos dias que se seguiram, Bianca preparou tudo para a
viagem. Chamaram uma imobili�ria, colocaram a casa para alugar.
Quando partiram de volta para S�o Paulo, Nat�lia sentiu imenso
al�vio. Amava os pais, mas a persegui��o deles a R�gis a estava
deixando cansada.
Torcia e rezava para que eles se acertassem dessa vez, muito
embora n�o acreditasse no futuro dos dois. Ela n�o sabia, mas dali
a alguns meses, superado o trauma da morte de Patr�cia, ambos
retornariam aos velhos costumes, passando, cada qual, a seguir
sua vida como se o outro n�o existisse, limitando-se a dividir o
mesmo teto, manter as apar�ncias e n�o repartir os bens.
408

capitulo
46
Assim que seus olhos se abriram, Patr�cia estranhou imensamente
o lugar em que se encontrava. Era uma esp�cie de
enfermaria de guerra, suja e desagrad�vel. Nos leitos a seu redor,
reconheceu a figura adormecida de Bira e de seus capangas.
- O que aconteceu? - indagou ela, tentando levantar-se.
Uma mulher se aproximou. Tinha o rosto sujo, as roupas
esfarrapadas. Sem dizer nada, empurrou-a de volta ao leito e saiu,
trancando a grade que servia de porta.
- O que � isso? - gritou Patr�cia. - Que lugar � esse?
Estamos presos?
Ouvindo seus gritos, Bira e seus comparsas tamb�m despertaram.
Estavam todos assustados, sem nada entender. Neles, as
marcas dos tiros ainda se faziam vis�veis, sanguinolentas. Logo a
porta se abriu, dando passagem � criatura mais assustadora que
j� haviam visto.
At�lio caprichara na indument�ria. Vestia uma roupa toda
negra, que � a cor eleita pelos encarnados para representar o mal,
sem que, necessariamente, tenha esse significado. Mas como
todo mundo teme as criaturas de preto, l� se foi At�lio trajado de
luto. Um capuz encobria parcialmente seu rosto, propositalmente
moldado com fei��es cadav�ricas, olhos vermelhos, dentes e


unhas plasmados como se fossem presas e garras. Bem horripilante,
para impor medo e respeito.
Entrou fazendo ressoar as botas no ch�o, produzindo som
de cascos. Puxou uma cadeira com os dedos esquel�ticos, exibindo
as unhas longas e sujas. Sentou-se defronte a eles, fixando
em Patr�cia um olhar l�brico, aterrador. Todos se encolheram, t�o
aterrorizados que nada conseguiam falar.
- Prestem bem aten��o no que vou lhes dizer, porque vou
dizer uma vez s� - ele come�ou a falar, com voz cavernosa, meticulosamente
ensaiada para sair naquele tom. - Voc�s morreram
num tiroteio com a pol�cia. S�o bandidos, traficantes, prostitutas -
e encarou Patr�cia. - Por isso, senti-me no direito de reclam�-los.
De agora em diante, trabalhar�o para mim.
A not�cia de que haviam morrido causou um certo mal-estar
no grupo. Como se sentiam vivos, os esp�ritos n�o compreendiam
a morte.
O senhor �... o diabo? - Patr�cia ousou perguntar, tremendo
de medo.
A gargalhada de At�lio foi estrondosa, fazendo arrepiar os
cabelos dos presentes.
- Pode me chamar assim, se quiser. A ignor�ncia do homem
p�e r�tulos naquilo que n�o compreende - disse, mais para si
mesmo. - O que chamam de diabo, na Terra, nada mais s�o do
que esp�ritos feito eu, que se aproveitam do medo para infligir mais
medo. Por isso, nos chamam de legi�o. Somos muitos. Mas nada
disso importa. Voc�s morreram, ponto final. Agora me pertencem.
Preciso de homens sob o meu comando.
- Para fazer o qu�? - arriscou Bira.
- O mesmo que vinham fazendo quando encarnados. Voc�s
s� mudaram de lado, agora est�o mais livres para agir. � claro que
n�o podem mais segurar armas f�sicas, mas podem intuir os fracos
e lev�-los a agir conforme a nossa vontade, matando, roubando,
estuprando, se drogando e coisas do g�nero.
- Como faremos isso? - perguntou Bira, interessado.
410


- Vou ensin�-los. E voc�, particularmente, pelo seu hist�rico,
se me servir bem, poder� ser promovido. Perdi, recentemente,
dois importantes colaboradores, e a vaga de segundo em comando
est� em aberto.
- E quanto a mim? - interrompeu Patr�cia. - N�o entendo
nada disso.
- Voc� me servir� de outras maneiras, por um tempo.
Depois, veremos.
Ela sentiu que l�grimas lhe subiam aos olhos. Abaixou a cabe�a,
tentando fugir do olhar invasivo de At�iio, mas n�o conseguiu.
- Oh! A menininha mimada vai chorar? - debochou ele. -
Quer correr para os bra�os do papai, quer?
- Estou com medo - balbuciou ela. - Quero ver o meu pai.
- � bom mesmo que esteja. Esque�a a fam�lia, voc� n�o
vai mais tornar a v�-la. Voc� agora me pertence. Vai fazer o que
eu mandar.
- O qu�?
- O que sabe fazer melhor. Ser prostituta.
Embora assustada com a perspectiva de servir �quele dem�nio
horrendo, Patr�cia n�o ousou contestar. N�o sabia que, por
detr�s daquela fantasia energ�tica, havia um homem atraente,
embora nada gentil. Os bandidos, por�m, pareciam n�o apenas
satisfeitos, mas muito � vontade naquele submundo de sombras.
Tal qual agiam em vida, continuariam a agir depois da morte, s�
que sem a pol�cia em seu encal�o. Receberiam orienta��o para
fugir dos seres de luz, mas isso n�o seria problema para eles, j�
que esp�ritos iluminados n�o costumam perseguir ningu�m.
N�o seja tola, Patr�cia - censurou Bira, cada vez mais
entusiasmado. - Vamos nos dar muito bem aqui. Se fizermos
tudo direitinho, aposto como seremos bem recompensados.
- Gosto de gente que aprende r�pido-tornou At�lio, satisfeito.
- N�o quer saber os nossos nomes? - indagou, timidamente,
um dos homens de At�lio.


- N�o precisa. Sei o nome de todos. Voc�s � que n�o
sabem o meu. Sou At�lio, dono e senhor de todo este lugar e dos
esp�ritos que aqui vivem.
- Que lugar � esse, exatamente? - quis saber Patr�cia,
cada vez mais assustada. - E como foi que viemos parar aqui?
Foi porque fomos maus em vida?
- O que voc� acha? Voc�s foram t�o maus que ningu�m quis
salvar a alma de voc�s. S� eu me interessei. Voc�s foram punidos,
e, por causa da sua maldade, n�o t�m mais como sair daqui.
At�lio mentia deliberadamente, para infligir-lhes terror. N�o
queria dizer que todos haviam sido atra�dos para aquele submundo
por afinidade de pensamentos e sentimentos. Seu baixo padr�o
energ�tico bloqueou o acesso dos seres de luz, que os teriam
convidado a partir com eles, se conseguissem alcan��-los.
Quando o tiroteio se armou, alguns chef�es das sombras se
candidataram a assistir o desenrolar dos acontecimentos, � espera
do desencarne de seres comprometidos que pudessem recrutar.
Como, por�m, At�lio vinha acompanhando Bira e seu bando havia
algum tempo, conseguiu intimidar os invasores e reclamou para si
a posse daqueles esp�ritos. Sem saber que At�lio perdia o poder,
os esp�ritos desistiram.
Foi uma grande sorte para ele. O fracasso de Mizael, o
reencarne de Nora e a trai��o de Damien foram golpes dolorosos,
duros de superar. Podia consider�-los perdidos, sabia que
nunca mais os teria de volta. Sem contar a interfer�ncia de Josu�,
que quase o derrubara. Mas n�o podia se permitir enfraquecer. O
recrutamento de Bira representava uma importante aquisi��o para
o seu bando. E talvez conseguisse usar Patr�cia para manipular
algu�m. Ainda n�o sabia como, mas ela podia ser-lhe �til. Tinha
medo, achava que fora m� e merecia o castigo. Nada melhor do
que esses elementos para manter seu esp�rito preso ali.
Depois de se apresentar aos rec�m-chegados, At�lio foi
indagado por seus subordinados sobre como proceder com rela��o
a Mizael.


- N�o fa�am nada - respondeu simplesmente. - Esque�am-
se dele. Vamos achar outra pessoa que nos sirva.
- N�o vamos revidar? Vamos permitir que ele nos traia e
saia impune?
- Ningu�m toca nele! � uma ordem. Ou algu�m aqui vai
querer me enfrentar?
Ningu�m se atreveu, como sempre. Sinal de que At�lio ainda
guardava resqu�cios de seu antigo poder, que ele pretendia, em
curto tempo, recuperar.
- E os novatos? O que faremos com eles?
- Quero que os treinem bem. Foram homens perigosos em
vida, continuar�o sendo aqui.
- Trein�-los para qu�? Nossa miss�o era Mizael. Agora que
ele se foi, a quem iremos influenciar?
- Aos pol�ticos, idiota! Temos que revelar nosso poder atrav�s
da pol�tica. Pol�ticos corruptos s�o excelentes instrumentos de
dissemina��o das for�as da treva. Acho que fracassamos porque
escolhi mal nossa frente de atua��o. Se tivesse mandado Mizael
para a pol�tica, talvez ele n�o tivesse mudado de lado.
� - Vamos nos concentrar s� nos pol�ticos?
- N�o necessariamente. J� temos influenciado muitos
agentes, inclusive juizes e policiais, em todas as esferas do Poder
P�blico, mas a corrup��o na pol�tica est� em alta, o que nos favorece.
Muitos esp�ritos partiram daqui com a falsa ilus�o da tal
�ltima chance, mas prontos para reincidir nos v�cios t�o logo estimulados.
Creio que voc�s n�o encontrar�o dificuldades, porque
eles est�o em sintonia direta conosco. Voc�s n�o precisar�o
gastar muita energia para convenc�-los a se corromper. Basta um
empurr�ozinho.
- Parece f�cil.
- Cuidado apenas para n�o esbarrarem nos pol�ticos
honestos. Podem n�o ser muitos, mas ainda existem. Evitem-nos
a qualquer pre�o, pois eles poder�o lhes trazer embara�os.
- Tudo bem, chefe, pode deixar.


- Levem Bira com voc�s, j� que ele queria ser vereador.
Pode ser que ele seja �til.
- Sim, chefe.
- E tragam Patr�cia aqui. Quero me divertir com ela.
Assim ficou decidido o destino dos desencarnados. At� que
conseguissem despertar para as verdades do esp�rito, muito tempo
iria se passar. Patr�cia foi levada � presen�a de At�lio morrendo de
medo de seu ar feroz. Contudo, ao descobrir que sua apar�ncia
n�o era exatamente aquela com que se apresentara, o medo cedeu
lugar � admira��o. Em pouco tempo, estava t�o acostumada a At�lio
que quase n�o sa�a mais do seu lado, sentindo at� mesmo prazer
em sua companhia. N�o tinha mais saudade de casa.
414


ep�logo
Totalmente recuperado, R�gis caminhava de m�os dadas
com a m�e, sem saber exatamente aonde ela o levava. Ge�rgia
seguiu com ele pela rua, at� a pra�a que fora palco de toda a
sua desgra�a. Ela estava diferente agora. Ap�s a morte de Bira,
a pol�cia montara uma guarita em uma das pontas, e a prefeitura
investira na revitaliza��o da �rea. Havia homens plantando flores,
fazendo canteiros, aparando arbustos e podando �rvores. Um
parquinho seria montado a um lado, o cal�amento, refeito, com
novos bancos e mesinhas de concreto. Ainda n�o estava pronta,
mas dava para perceber que ficaria muito bonita.
Segurando-o pela m�o, Ge�rgia sentou-se em um banco
pr�ximo ao local em que T�cio a atacara. Sentiu um n� na garganta,
uma vontade louca de fugir, mas resistiu. Estava na hora de
superar o passado.
- O que foi que houve, m�e? - indagou R�gis, olhando
ao redor, como se esperasse ver os costumeiros viciados e
traficantes.
- Preciso lhe contar uma hist�ria. Foi ali que tudo aconteceu...
Ela apontou para um local entre os arbustos, mas R�gis n�o
compreendeu.
- Aconteceu o qu�? - espantou-se ele.


- Quero que me ou�a com aten��o. O que vou lhe contar �
profundamente doloroso, mas voc� tem que saber. Por favor, n�o
me julgue, procure compreender. Voc� n�o faz ideia do quanto
sofri todos esses anos. Jamais se esque�a de que sempre amei
voc�, desde quando ainda era uma sementinha no meu ventre.
- Por favor, m�e, o que voc� quer dizer? Est� me deixando
preocupado. Diga logo: o que foi que aconteceu aqui?
Ela respirou profundamente, fechou os olhos e disparou:
- Foi aqui que voc� foi concebido, pois este foi o lugar onde
seu pai me estuprou.
R�gis olhou para ela sem saber se compreendia ou n�o.
- Meu pai a for�ou a transar com ele?
- Sim.
- Mas por qu�? Voc�s n�o estavam namorando?
- N�o, R�gis, n�o est�vamos. Eu mal conhecia seu pai.
Vira-o apenas uma vez no churrasco do banco em que J�lio
trabalhava. Eles eram colegas de trabalho. Soube que perdeu o
emprego, viciou-se em coca�na. N�o sei se foi por isso ou n�o,
mas ele... ele... - engoliu o choro, at� terminar de dizer o que
queria: - ele me surpreendeu uma noite, me atacou... me bateu
muito, me machucou de verdade, at� que me estuprou. Foi assim
que engravidei.
R�gis estava assombrado. Jamais poderia esperar por uma
coisa daquelas.
- Um estupro? - espantou-se ele. - Foi assim que eu fui
concebido? Numa onda de �dio e viol�ncia?
- N�o posso dizer que foi �dio. Foi medo. Quando soube
que estava gr�vida, meu mundo desabou. J�lio queria que eu abortasse,
mas essa foi uma ideia que eu jamais tive. Para mim, a �nica
solu��o seria ter o filho e cri�-lo com amor. Mas J�lio n�o aceitou.
Sugeriu ado��o, que eu recusei. Queria ficar com voc�. Amava-o,
voc� n�o tinha nada a ver com o homem que me estuprou.
- O que voc� estava fazendo sozinha num lugar como
esse? - tornou ele, com uma certa raiva.


- Eu voltava de um curso que fazia � noite. Uma tempestade
se aproximava, por isso cortei caminho pelo meio da pra�a. Foi
quando seu pai me atacou.
-- N�o o chame de meu pai! - revoltou-se ele. - O monstro
que lhe fez isso n�o � meu pai!
- Ele � seu pai, R�gis. Poucos dias depois, foi encontrado
morto em casa, v�tima de overdose. Seu nome era T�cio. Estava
desesperado, havia perdido tudo.
- Voc� ainda o defende? - retorquiu com f�ria, dando um
salto do banco. - Por qu�? Gostou do que ele lhe fez?
A agress�o gratuita a fez chorar de forma sentida. Na mesma
hora em que falou, R�gis se arrependeu. N�o sabia que, a seu lado,
o esp�rito de T�cio acompanhava o desenrolar dos acontecimentos.
- Voc� n�o tem o direito de julg�-la - afirmou ele, a m�o
pousada sobre a testa de R�gis. - Ningu�m nunca o amou tanto
quanto ela. Por voc�, ela enfrentou todas as adversidades, renunciou
ao homem que amava. E foi voc� quem escolheu nascer assim.
Embora R�gis n�o o ouvisse, conseguiu captar a inten��o
das suas palavras. Arrependido, voltou para onde ela estava, ajoelhando-
se ao seu lado:
- Perdoe-me, m�e, pelo amor de Deus! Eu n�o queria dizer
isso. Sei que deve ter sido horr�vel. Quem sou eu para julg�-la,
justo voc�, que enfrentou o mundo para que eu nascesse?
- � isso mesmo - incentivou T�cio, a seu lado. - Se fosse
outra, teria tomado o caminho mais f�cil e abortado. E com permiss�o
legal!
- Voc� podia ter me abortado, me dado para ado��o. Mas
n�o, ficou comigo. Como posso recrimin�-la? Perdoe-me, m�e,
perdoe-me!
Ele se agarrou a ela, chorando copiosamente. Os dois choravam
muito. Ge�rgia alisou os cabelos dele, fez com que tornasse
a se sentar ao lado dela. Em seguida, contou toda a hist�ria, em
seus m�nimos detalhes. R�gis n�o conseguia parar de chorar.
T�cio tamb�m n�o. Foi preciso que Josu� interviesse para lev�-lo
417


dali. A emo��o foi demais, principalmente porque, havia anos, n�o
revivia a cena do estupro.
- Vamos embora - chamou Josu�. - Voc� j� fez o que
devia fazer. Aconselhou seu filho a compreender a m�e. Eles v�o
ficar bem agora.
- Pensei que tivesse superado - afirmou T�cio. - Mas
ainda d�i em mim, talvez mais do que doa nela.
- A dor da culpa � pior do que a dor da agress�o. Mas voc�
est� se recuperando bem. Aceite sua ignor�ncia e esforce-se
para melhorar.
- Estou fazendo isso.
- Ent�o, n�o exija muito de si mesmo. Aguarde, que o tempo
ir� ajud�-lo. O tempo � nosso maior aliado na luta contra a culpa.
Ele nos traz oportunidades que, se formos s�bios, n�o deixaremos
passar. Agora venha. Eles ficar�o bem.
Realmente, R�gis e Ge�rgia se abra�avam com tanto amor,
que uma luminosidade r�sea os envolvia suavemente, intensificando-
se na altura do card�aco. Guiado por Josu�, T�cio se foi.
- M�e - chamou R�gis. - Quero que voc� saiba que eu
s� n�o me perdi no crime por sua causa.
- Como assim?
- Por amar muito voc� e vov� foi que resisti a fazer muitas
coisas erradas, embora tenha feito tantas outras.
- Voc� resistiu porque seu car�ter � �ntegro, embora voc�
pensasse que n�o. Sua av� e eu podemos ter servido de est�mulo,
mas o esfor�o foi seu. Acredito que voc� queria mudar e se
apegou ao que h� de bom dentro de voc� para lhe dar for�as. E
n�o existe nada melhor do que o amor.
- Tem raz�o. Como amo voc�, m�e! Como pude me deixar
levar pela revolta e acus�-la, ainda que por um �nfimo momento?
- N�o se culpe. Ningu�m deixa de reagir ante uma not�cia
dessas.


- Mas j� passou. Quero que saiba que a admiro muito. Voc�
� uma mulher corajosa e determinada. E �ntegra. Muito mais do
que eu serei um dia.
- N�o diga isso. Voc� agora tem um emprego, com chances
de fazer sucesso. Se tiver ju�zo, vai longe.
- Eu tenho ju�zo. Aprendi com voc�.
Ela riu, tornando a abra��-lo.
- Nunca me arrependi, nem por um minuto sequer, de n�o
ter abortado nem dado voc� para ado��o.
- Nem quando eu fazia besteiras?
- N�o. Voc� � e sempre ser� o amor da minha vida. Quero
que seja feliz.
- Eu vou ser. Recebi um convite para desfilar na Espanha.
Estou pensando em aceitar. Vou e volto em seguida.
- Nat�lia j� sabe? - Ele assentiu. - E n�o se importou?
- N�o. Ela sabe que a amo. Minha carreira vai deslanchar,
vou me casar com ela e encher voc� de netinhos.
Ela sorriu, ao mesmo tempo em que o celular de R�gis tocou.
Vendo que era Nat�lia, ele atendeu.
, - Oi, meu amor. Estou na pra�a, com minha m�e - pausou,
olhando para Ge�rgia. - Est� na minha casa? �timo, estamos
indo para a�. Beijo.
Desligou, encarando a m�e com admira��o. Estava ali uma
mulher �nica, singular, inigual�vel. Ele se levantou e estendeu a
m�o para ela, passando o bra�o por seus ombros. Ge�rgia deu um
passo na dire��o dos arbustos em que fora estuprada, passando
por eles de cabe�a erguida, sem medo das lembran�as dif�ceis.
O que conquistara na vida fora muito mais importante do que o
sofrimento que vivera ali.
Por onde passavam, um rastro de luz os seguia, consolidando
a vit�ria do bem sobre as for�as das sombras. R�gis, ou
Mizael, jamais retornaria �s hordas de At�lio, que os observava
a dist�ncia, incapaz de se aproximar. Perdera-se para sempre
do esp�rito que um dia fora seu irm�o. Nos anos que viriam


� frente, R�gis continuaria �ntegro, embora de temperamento
estouvado, pouco dado � caridade, mas honesto, sincero,
digno. Percebendo isso, At�lio rilhou os dentes, com raiva de si
mesmo, de sua estupidez, imaginando quantos s�culos levaria
at� que encontrasse o irm�o novamente.
Os dois agora se aproximavam da beira da pra�a, onde, do
outro lado, Nat�lia os aguardava. At�lio viu quando eles atravessaram
a rua e R�gis beijou Nat�lia, colocando-se entre as duas
mulheres, que o abra�avam felizes. Ali havia amor. Reconheceu
isso. Remoeu a revolta, repensando sua vida. Revolta? Talvez n�o.
Inveja? Era poss�vel. Mas n�o. O que sentia mesmo era cansa�o,
d�vida, frustra��o.
N�o os seguiu. Permaneceu onde estava, vendo-os sumir
no fim da rua, um turbilh�o de questionamentos atravessando
seu c�rebro astral. Olhando para eles e para si mesmo, imaginou
com quem estaria o poder. Lutando ainda para alimentar essa
ilus�o, que agora sentia esvanecer-se ante a inevit�vel descoberta,
abaixou os olhos e, com um gesto de des�nimo, fez o corpo
dissipar-se.
fim
420






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Muita paz !

 Bezerra

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