Digitaliza��o: Vick e Eve Dallas
Copyright(c) 1995 by Nora Roberts
T�tulo original: Born in Ice
Capa: Leonardo Carvalho
Editora��o: DFL
2008
Impresso no Brasil
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A Todos os meus ancestrais que
viajaram atrav�s da espuma.
Fui um andarilho selvagem por muitos anos.
- THE WILD ROVER
Queridos Leitores:
A Irlanda ocupa um lugar especial no meu cora��o. Os extasiantes campos verdes sob c�us de chumbo, o cinza dos muros de pedras, o majestoso desmoronamento
de um castelo em ru�nas, muitos saqueados pelos malditos cromwellianos. Amo o modo como o sol pode brilhar atrav�s da chuva, fazendo-a parecer gotas de ouro, e as
flores podem florescer selvagemente nos jardins e nos campos. � uma terra de penhascos �ngremes e pubs obscuros e enfuma�ados. De magias, lendas e cora��es partidos.
H� beleza mesmo no ar.
E o Oeste da Irlanda � a paisagem mais deslumbrante de um pa�s deslumbrante.
L� os engarrafamentos s�o freq�entemente vacas sendo conduzidas ao campo pelo fazendeiro. L�, uma estrada ventosa do interior, fechada por cercas vivas de
f�csias selvagens, pode levar a qualquer lugar. L� o rio Shannon brilha como prata e o mar quebra nos penhascos como trov�o.
Mas, al�m do interior, o que h� de mais magn�fico na Irlanda � o irland�s. Verdade. � terra de poetas, guerreiros e sonhadores, mas � ainda uma terra que abre
os bra�os aos estrangeiros. A hospitalidade irlandesa � simples e delicada. �, ou deveria ser, a defini��o da palavra "boas-vindas".
Ao escrever La�os de Gelo, a hist�ria de Brianna Concannon, quis mostrar a incompar�vel generosidade de esp�rito, a simplicidade de uma porta aberta e a for�a
do amor. Ent�o, venha e sente-se um momento em frente ao fogo, coloque um pouco de u�sque no seu ch�. Ponha os p�s para cima e deixe suas preocupa��es para l�. Gostaria
de simplesmente lhes contar uma hist�ria.
Slaint�,
Nora
O
vento selvagem zunia praguejando sobre o Atl�ntico e golpeava, com os punhos, os campos dos condados do Oeste. Pesadas gotas de chuva ferroavam o solo e a�oitavam
a carne de um homem a ponto de lhe moer os ossos. Flores que haviam desabrochado brilhantemente entre a primavera e o outono escureciam sob a geada assassina.
No interior dos chal�s e pubs, as pessoas se reuniam em torno do fogo e falavam sobre suas fazendas e telhados, sobre as pessoas queridas que tinham emigrado
para a Alemanha ou para os Estados Unidos. Quase n�o importava que tivessem ido no dia anterior ou havia uma gera��o. A Irlanda estava perdendo seu povo, assim como
parecia ter perdido sua l�ngua.
Havia algum coment�rio ocasional sobre The Troubles, aquela intermin�vel guerra no Norte. Mas Belfast estava longe da aldeia de Kilmilhil, em quil�metros e
tamb�m em emo��o. As pessoas se preocupavam mais com suas lavouras, seus animais, os casamentos e com as perdas que viriam com o inverno.
A poucos quil�metros da vila, numa cozinha aquecida pelo calor e pelo cheiro bom de um assado, Brianna Concannon olhava pela janela, enquanto a chuva gelada
atacava seu jardim.
- Estou vendo que vou perder minhas columbinas. E tamb�m as dedaleiras.
Partia-lhe o cora��o pensar naquilo, mas ela desenterrara o que conseguira, guardando as plantas na pequena e atulhada cabana atr�s da casa. A tempestade chegara
bem depressa.
- Voc� plantar� mais na primavera. - Maggie observava o perfil da irm�. Brie se preocupava com suas flores como uma m�e com seus beb�s. Com um suspiro, Maggie
massageou sua pr�pria barriga protuberante. Ela ainda ficava at�nita ao pensar que era ela quem estava casada e esperando um beb�, e n�o sua irm�, que amava a vida
dom�stica. - E voc� vai adorar fazer isso.
- Acho que sim. Mas preciso mesmo de uma estufa. Andei olhando algumas em revistas. Acho que d� para fazer uma. - E provavelmente poderia adquiri-la na primavera,
se fosse cuidadosa. Sonhando acordada com as plantas que floresceriam em seu novo cercado de vidro, retirou uma fornada de muffins de amora. Maggie lhe trouxera
as frutas do mercado de Dublin. - Voc� vai levar isto para casa.
- Vou sim. - Maggie riu e tirou um da cesta, jogando-o de uma m�o para outra, a fim de esfri�-lo, antes de morder. - Depois de encher a barriga. Rogan toma
conta de cada gr�o que ponho na boca.
- Ele quer ver voc� e o beb� saud�veis.
- Ah, sim. E acho que ele est� querendo saber quanto de mim � beb� e quanto � gordura.
Brianna olhou a irm�. Maggie tinha ficado redonda e delicada, uma aura de contentamento envolvendo-a, � medida que chegava ao �ltimo trimestre da gravidez,
o que contrastava intensamente com o excesso de energia e petul�ncia a que Brianna estava habituada.
Ela est� feliz, Brianna pensou, apaixonada. E sabe que seu amor � correspondido.
- Voc� n�o engordou quase nada, Margaret Mary. - Brianna falou e observou um humor malicioso, em vez de irrita��o, iluminar os olhos de Maggie.
- Fiz uma aposta com uma das vacas de Murphy, e estou ganhando dela. - Terminou de comer o muffin, procurando, descaradamente, por outro. - Em poucas semanas
n�o vou conseguir ver al�m da minha barriga, para enxergar a ponta da pipeta para soprar vidro. Vou precisar mudar a t�cnica.
- Poderia tirar umas f�rias de seus vidros. - Brianna observou. - Sei que Rogan lhe falou que voc� j� produziu o bastante para todas as galerias dele.
- E o que faria, al�m de morrer de t�dio? Tive uma id�ia para uma pe�a especial para a galeria nova, aqui em Clare.
- Que n�o abrir� antes da primavera.
- At� l� Rogan ter� cumprido sua amea�a de me amarrar na cama, se eu fizer qualquer movimento na dire��o da oficina. - Suspirou, mas Brie suspeitou que ela
n�o estava se incomodando muito com a amea�a. Nem com a domina��o sutil de Rogan. Temeu que ela estivesse abrandando.
- Quero trabalhar enquanto puder. E � bom estar em casa, mesmo neste inverno. Imagino que voc� n�o ter� nenhum h�spede.
- Acontece que terei. Um ianque, na pr�xima semana. - Brianna voltou a completar a x�cara de ch� de Maggie, depois a sua, antes de se sentar. O cachorro, que
esperara pacientemente ao lado da cadeira, deitou a enorme cabe�a no seu colo.
- Um ianque? S� um? Um homem?
- Hummm. - Brianna acariciou a cabe�a de Concobar. - Um escritor. Reservou um quarto. Quer refei��es tamb�m, por um per�odo indefinido. Pagou um m�s adiantado.
- Um m�s! Nesta �poca do ano? - Surpresa, Maggie olhava para fora, enquanto o vento sacudia as janelas da cozinha. Acolhedor � que o tempo n�o estava. - Bem
que dizem que os artistas s�o exc�ntricos. O que ele escreve?
- Livros de mist�rio. J� li alguns e ele � bom. Ganhou pr�mios e existem at� filmes adaptados de suas hist�rias.
- Um escritor de sucesso, americano, passando o pior do inverno numa pousada, no Condado de Clare. Bem, ter�o muito o que comentar no pub.
Maggie lambeu as migalhas dos dedos c estudou a irm� com olhos de artista. Brianna era uma mulher ador�vel, toda r�sea e ouro, pele sedosa e porte elegante.
O cl�ssico rosto oval, a boca delicada, sem pintura e, freq�entemente, s�ria demais. Olhos verde-claros, que tendiam a sonhar, membros longos e esguios, cabelos
que lembravam fogo - uma cabeleira vasta e rebelde que quase sempre escapava dos grampos.
E dona de um bom cora��o, Maggie pensou. Inteiramente ing�nua, apesar de seu contato com estranhos como dona da pousada, sobre o que se passava no mundo al�m
do port�o de seu jardim.
- N�o sei o que pensar disso, Brie, voc� sozinha em casa, com um homem, por muitas semanas.
- Com freq��ncia fico sozinha com os h�spedes, Maggie. � como ganho a vida.
- Voc� raramente tem um �nico h�spede, e em pleno inverno. N�o sei quando devemos voltar a Dublin e...
- N�o vai estar aqui para cuidar de mim? - Brianna sorriu, mais divertida do que ofendida. - Maggie, sou uma mulher adulta. Uma empres�ria adulta, que pode
cuidar de si mesma.
- Voc� est� sempre muito ocupada cuidando dos outros.
- N�o comece a falar da mam�e. - Os l�bios de Brianna se crisparam. - Fa�o muito pouco agora que ela est� na casa dela com Lottie.
- Sei exatamente o que voc� faz - Maggie falou num rompante. - Correndo cada vez que ela estala os dedos, ouvindo suas lam�rias, levando-a ao m�dico toda vez
que ela se imagina com uma doen�a fatal. - Maggie levantou uma das m�os, furiosa consigo mesma por se ver dominada, outra vez, pela raiva e pela culpa. - Isso n�o
� da minha conta, agora. Esse homem...
- Grayson Thane - Brianna completou, mais do que agradecida pelo fato de o assunto ter se desviado da m�e delas. - Um respeit�vel autor americano que deseja
um quarto tranq�ilo, num bem gerenciado estabelecimento no Oeste da Irlanda. Ele n�o tem interesse na propriet�ria. - Pegou o ch� e bebeu. - E o dinheiro que vou
receber vai pagar minha estufa.
N
�o era incomum para Brianna ter um h�spede ou dois em Blackthorn Cottage durante as piores tempestades do inverno. Mas janeiro era um m�s fraco e, freq�entemente,
sua casa ficava vazia. Ela n�o se incomodava com a solid�o, nem com os gemidos assombradores do vento, nem mesmo com o c�u de chumbo que vomitava chuva e gelo dia
ap�s dia. Tudo isso lhe dava tempo para planejar.
Ela apreciava ter viajantes, aguardados ou n�o. Do ponto de vista comercial, libras e centavos sempre contavam. Al�m disso, Brianna gostava de companhia e
da oportunidade de servir e oferecer uma casa tempor�ria para aqueles que passavam pelo seu caminho.
Nos anos que sucederam � morte do pai e � mudan�a da m�e, transformara a casa no lar que desejara quando crian�a, com fogo na lareira, cortinas de renda e
aromas de assados vindos da cozinha. Embora tivesse sido Maggie, a arte de Maggie, que lhe permitira expandir-se, pouco a pouco. Era algo que Brianna nunca esqueceria.
Mas a casa era sua. Seu pai tinha entendido seu amor e sua necessidade daquilo. Ela cuidava de sua heran�a como de uma crian�a.
Talvez fosse o tempo que a fazia pensar no pai. Ele morrera num dia como aquele. De vez em quando, em certos momentos, quando estava sozinha, descobria que
ainda carregava alguns resqu�cios de tristeza, com lembran�as, boas e m�s, enterradas.
Trabalho era do que ela precisava, disse a si mesma, afastando-se da janela, antes que come�asse a pensar muito.
Com a chuva caindo, decidiu adiar uma ida � vila e enfrentar uma tarefa que vinha evitando havia um bom tempo. N�o esperava ningu�m naquele dia e sua �nica
reserva s� viria no fim da semana. Com o cachorro grudado nela, Brianna carregou vassoura, balde, panos e uma caixa vazia para o s�t�o.
Limpava o lugar com certa regularidade. Nenhum p� era permitido na casa de Brianna por muito tempo. Mas havia caixas e caixotes que ignorava, na rotina do
dia-a-dia. N�o mais, disse a si mesma, e abriu a porta do s�t�o. Dessa vez, faria uma faxina completa. E n�o permitiria que sentimentos a impedissem de lidar com
lembran�as remanescentes.
Se o lugar fosse limpo de uma vez por todas, pensou, ela poderia comprar material e pagar a m�o-de-obra necess�ria para reform�-lo. Daria um loft bem aconchegante,
pensou, inclinada sobre a vassoura. Talvez com uma daquelas janelas no telhado. Amarelo-claro nas paredes para trazer o sol para dentro. Polimento com cera e um
de seus tapetes no ch�o. J� podia v�-lo, a linda cama coberta com uma colcha colorida, uma cadeira bonita e uma pequena escrivaninha. E se ela tivesse...
Sacudiu a cabe�a e riu sozinha. Estava indo r�pido demais.
- Sempre sonhando, Con - murmurou, acariciando a cabe�a do c�o. - O que � preciso aqui � suor e nenhuma piedade.
As caixas primeiro, decidiu. Era hora de livrar-se de pap�is velhos, de roupas velhas.
Trinta minutos depois, tinha pilhas organizadas. Uma delas daria para a igreja doar aos pobres, outra transformaria em esfreg�es. Guardaria a �ltima.
- Ah, veja isto, Con. - Com rever�ncia, apanhou uma roupinha de batismo, alisando gentilmente as dobras. Fr�geis ramos de alfazema inundaram o ambiente. Bot�es
min�sculos e barras de renda enfeitavam o linho. Obra de sua av�, Brianna concluiu sorrindo. - Ele a guardou - murmurou. Sua m�e jamais legaria tais pensamentos
sentimentais �s futuras gera��es. - Veja s�, Maggie e eu devemos ter usado isto. E papai a guardou para nossos filhos.
Sentiu uma ang�stia t�o familiar que mal a percebeu. N�o havia beb� dormindo num ber�o para ela, nenhum embrulhinho macio esperando para ser acalentado, mimado,
amado. Mas Maggie, pensou, desejaria isto. Dobrou cuidadosamente a roupinha outra vez.
A caixa seguinte estava cheia de pap�is que a fizeram suspirar. Teria de l�-los, pelo menos passar os olhos. O pai tinha guardado cada pedacinho de correspond�ncia.
Devia haver recortes de jornais tamb�m. Id�ias, ele diria, para novas aventuras.
Sempre uma nova aventura. Separou v�rios artigos que ele recortara sobre inven��es, paisagismo, carpintaria, com�rcio. Nenhum sobre fazendas, observou com
um sorriso. Nunca havia sido um fazendeiro. Encontrou cartas de parentes, de companhias para as quais ele havia escrito na Am�rica, na Austr�lia, no Canad�. E ali
estava o recibo de compra do velho caminh�o que tiveram quando era crian�a. Um documento a fez parar e franzir as sobrancelhas, confusa. Parecia um tipo de certificado
de a��es. Minas Triquarter, em Gales. Pela data, parecia que as comprara apenas poucas semanas antes de morrer.
Minas Triquarter? Outra aventura. Papai gastando um dinheiro que quase n�o t�nhamos. Bem, teria de escrever para esta companhia Triquarter e ver o que seria
feito. Era improv�vel que as a��es valessem mais do que os pap�is onde estavam impressas. Assim sempre fora a sorte de Tom Concannon com neg�cios.
Aquela brilhante alian�a de bronze que ele sempre buscava nunca enfeitara o dedo de sua m�o.
Brianna remexeu mais a caixa, divertindo-se com cartas de primos, tios e tias. Eles o tinham amado. Todos o tinham amado. Quase todos, corrigiu-se, pensando
na m�e.
Afastando aquele pensamento, apanhou tr�s cartas amarradas com uma fita vermelha desbotada. O endere�o do remetente era Nova York, mas isso n�o era surpresa.
Os Concannon tinham muitos conhecidos e parentes nos Estados Unidos. O nome, entretanto, era um mist�rio para ela. Amanda Dougherty.
Desdobrou a carta, observando a letra caprichada e uniforme. Com a respira��o presa na garganta, voltou a ler, palavra por palavra:
Meu querido Tommy,
Falei a voc� que n�o escreveria. Talvez eu n�o devesse enviar esta carta, mas precisava fingir, ao menos, que posso falar com voc�. Voltei a Nova York apenas
por um dia. Voc� parece j� estar t�o longe, e os dias que tivemos juntos, mais preciosos. Estive no confession�rio e recebi minha penit�ncia. Embora, no meu cora��o,
nada do que aconteceu entre n�s seja pecado. Amor n�o pode ser pecado. E eu sempre amarei voc�. Um dia, se Deus for generoso, encontraremos um jeito de ficarmos
juntos. Mas, se isto n�o acontecer, quero que voc� saiba que venerarei cada momento que nos foi dado. Sei que � meu dever dizer-lhe para honrar o sacramento do matrim�nio,
devotar-se aos dois beb�s que ama tanto. E digo isto. Mas, talvez por ego�smo, tamb�m lhe pe�o que alguma vez, quando a primavera chegar a Clare, e o Shannon estiver
iluminado com a luz do sol, pense em mim. E como voc� me amou durante aquelas poucas semanas. Amo voc�.
Sempre, Amanda
Cartas de amor, pensou sombriamente. Para seu pai. Escritas, percebeu olhando a data, quando ela era crian�a.
Suas m�os gelaram. Como deveria uma mulher, uma mulher adulta, de vinte e oito anos, reagir ao descobrir que seu pai amara uma mulher, outra mulher que n�o
sua m�e? Seu pai, com seu riso vivo, seus planos in�teis. Aquelas eram palavras escritas apenas para os seus olhos. No entanto, como poderia n�o l�-las?
Com o cora��o batendo pesadamente no peito, Brianna abriu a seguinte.
Meu querido Tommy,
Li e reli sua carta at� decorar cada palavra. Meu cora��o se parte ao pensar em voc� t�o infeliz. Eu tamb�m, muitas vezes, contemplo o mar e imagino voc� olhando
para mim atrav�s da �gua. Tenho tanto para lhe falar, mas tenho medo de somente aumentar a dor no seu cora��o. Se n�o h� amor em rela��o � sua esposa, deve haver
o dever.
N�o preciso dizer que suas filhas devem ser sua prioridade. Sei, soube todo o tempo, que elas s�o as primeiras em seu cora��o e em seus pensamentos. Deus o
aben�oe, Tommy, por pensar tamb�m em mim. E pelo presente que voc� me deu. Pensei que minha vida seria vazia, agora sei que ser� plena e rica. Amo voc� agora mais
do que quando nos separamos. N�o fique triste quando pensar em mim. Mas pense em mim.
Sempre, Amanda
Amor, Brianna pensou, enquanto os olhos se enchiam de l�grimas. Havia tanto amor ali e t�o pouco fora dito. Quem teria sido esta Amanda? Como teriam se encontrado?
E quantas vezes seu pai havia pensado nessa mulher? Quantas vezes a tinha desejado?
Enxugando uma l�grima, Brianna abriu a �ltima carta.
Meu querido,
Rezei e rezei antes de escrever esta carta. Pedi a Nossa Senhora ajuda para fazer o que � certo. N�o tenho certeza do que seria mais correto em rela��o a voc�.
S� espero que o que vou contar a voc� lhe proporcione alegria, e n�o tristeza.
Lembro-me das horas que passamos juntos no meu quartinho da pousada, admirando o Shannon. Como voc� foi gentil e delicado, como ambos est�vamos cegos pelo
amor que varreu nossas almas. Nunca senti e nunca sentirei novamente um amor assim t�o profundo e inabal�vel. Ent�o, eu me sinto grata, embora nunca possamos ficar
juntos, por ter algo precioso para lembrar que fui amada. Estou gr�vida de um filho seu, Tommy. Por favor, fique feliz por mim. N�o estou s� e n�o tenho medo. Talvez
eu devesse estar envergonhada. Solteira, gr�vida do marido de outra mulher. Talvez a vergonha apare�a, mas agora estou apenas cheia de alegria.
Fiquei sabendo h� algumas semanas, mas n�o tive coragem de contara voc�. Encontrei-a agora, quando senti o primeiro despertar da vida que fizemos dentro de
mim. Preciso dizer o quanto esta crian�a ser� amada? J� me imagino segurando nosso beb� nos bra�os. Por favor, meu querido, pelo amor do nosso filho, n�o deixe nem
tristeza nem culpa entrarem em seu cora��o. E, por amor a nosso filho, estou indo embora. Apesar de pensar em voc� cada dia, cada noite, n�o escreverei novamente.
Amarei voc� por toda a minha vida, e sempre que olhar para a vida que criamos naquelas horas m�gicas, perto do Shannon, eu o amarei ainda mais.
D� a suas filhas tudo aquilo que sente por mim. E seja feliz.
Sempre, Amanda
Um filho. Com olhos marejados, Brianna cobriu a boca com a m�o. Uma irm�. Um irm�o. Santo Deus! Em algum lugar, havia um homem ou uma mulher ligada a ela pelo
sangue. As idades deviam ser pr�ximas. Talvez tivessem a mesma cor, as mesmas fei��es.
O que poderia fazer? O que seu pai poderia ter feito, tantos anos atr�s? Teria procurado pela mulher e pelo filho dele? Teria tentado esquecer?
N�o. Brianna acariciou as cartas delicadamente. N�o tinha tentado esquecer. Havia guardado as cartas para sempre. Fechou os olhos, sentando-se no s�t�o levemente
iluminado. E ele tinha amado sua Amanda. Para sempre.
Precisava pensar antes de contar a Maggie o que havia encontrado. Pensava melhor quando estava ocupada. N�o podia mais olhar o s�t�o, mas havia outras coisas
que poderiam ser feitas. Esfregou, poliu e cozinhou. A singela familiaridade dos afazeres dom�sticos e o prazer dos aromas que desprendiam iluminavam seu esp�rito.
Colocou mais carv�o no fogo, preparou um ch� e come�ou a projetar sua estufa.
A solu��o acabaria vindo, disse para si mesma. Depois de vinte e cinco anos, uns poucos dias pensando n�o prejudicariam ningu�m. Uma parte do adiamento era
covardia, uma necessidade fr�gil de evitar o tormento das emo��es da irm�, ela reconhecia isto.
Nunca dissera ser uma mulher valente.
Com seu esp�rito pr�tico, escreveu uma carta quase comercial para a Minas Triquarter, em Gales, e deixou-a de lado para postar no dia seguinte.
Tinha uma lista de tarefas para a manh�, chovesse ou fizesse sol. Quando acabou de ajeitar o fogo para a noite, estava grata por Maggie ter estado ocupada
demais para aparecer. Mais um dia, talvez dois, e ela mostraria as cartas � irm�.
Mas esta noite poderia relaxar, deixar sua mente vazia. Algum prazer era tudo do que precisava, concluiu. Na verdade, suas costas do�am um pouquinho por ter
exagerado na faxina. Um banho demorado com alguns sais que Maggie lhe trouxera de Paris, uma x�cara de ch�, um livro. Usaria a banheira grande do andar de cima e
trataria a si mesma como um h�spede. Em vez de sua cama estreita no quarto pr�ximo � cozinha, dormiria esplendorosamente no que chamava de su�te nupcial.
- Somos reis esta noite, Con - falava com o cachorro, enquanto derramava uma quantidade generosa dos sais na �gua corrente. - Jantar na bandeja em sua cama,
um livro escrito pelo nosso j� quase h�spede. Um americano muito importante, lembre-se - acrescentou, enquanto Con golpeava o ch�o com a cauda.
Tirou a roupa e deixou-se deslizar na �gua quente e perfumada. Suspirou profundamente. Uma hist�ria de amor seria mais apropriada para o momento do que um
suspense intitulado The Bloodstone Legacy. Mas acomodou-se na banheira e mergulhou na hist�ria de uma mulher assombrada pelo passado e amea�ada pelo presente.
A hist�ria a prendeu tanto que, quando a �gua esfriou, segurou o livro com uma das m�os, continuando a ler, enquanto secava o corpo com a outra. Tremendo,
vestiu uma longa camisola de flanela e soltou os cabelos. S� o h�bito arraigado fez com que deixasse o livro de lado tempo suficiente para arrumar o banheiro. Mas
n�o se preocupou com o jantar na bandeja. Em vez disso, aconchegou-se na cama, puxando a coberta.
Mal podia ouvir o vento bater nas janelas, a chuva golpe�-las. Cortesia do livro de Grayson Thane, Brianna estava no ver�o opressivo do Sul dos Estados Unidos,
ca�ada por um assassino.
Passava da meia-noite quando o cansa�o a venceu. Caiu adormecida com o livro ainda nas m�os, o cachorro ressonando nos p�s da cama e o vento uivando como uma
mulher assustada.
Sonhou, naturalmente, com terror.
* * *
Grayson Thane era um homem de impulsos. Reconhecendo isto, geralmente aceitava os desastres causados por essa sua caracter�stica t�o filosoficamente quanto
os triunfos. No momento, era for�ado a admitir que dirigir de Dublin a Clare, no meio do inverno, enfrentando uma das mais terr�veis tempestades, fora um erro.
Mas, mesmo assim, era uma aventura. E vivia atrav�s delas.
Nos arredores de Limmerick, um pneu furou. Na verdade, o pneu rasgou inteiro, Gray se corrigiu. Aventureiro que se preza tem que passar por isso. Quando acabou
de troc�-lo, estava como um rato afogado, apesar da capa que escolhera em Londres na semana anterior.
Por duas vezes se perdera, indo dar em ruas estreitas e cheias de vento, pouco maiores que um fosso. Suas pesquisas informaram que perder-se na Irlanda era
parte do charme.
Ele se esfor�ava para se lembrar disso.
Estava faminto, encharcado at� a alma e com medo de ficar sem gasolina, antes de encontrar qualquer coisa remotamente parecida com uma pousada ou uma vila.
Em sua mente, ele seguira o mapa. Visualizar era um talento que tinha nascido com ele e podia, com um pequeno esfor�o, reproduzir cada linha do mapa detalhado
que sua anfitri� lhe enviara.
O problema era que estava escuro feito breu, a chuva inundava seu p�ra-brisa como a corrente de um rio, e o vento a�oitava seu carro naquele l�gubre arremedo
de estrada, como se o Mercedes fosse um carrinho de brinquedo.
Desejava ardentemente um caf�.
Quando a estrada bifurcou, Gray optou pela esquerda. Se n�o encontrasse a pousada ou qualquer coisa parecida, dormiria no carro e tentaria novamente na manh�
seguinte.
Era uma pena n�o poder apreciar a zona rural. Tinha a sensa��o, na negra desola��o da tempestade, que era exatamente o que estava procurando. Queria escrever
seu livro aqui, entre os penhascos e os campos do Oeste da Irlanda, com a amea�a feroz do Atl�ntico e as vilas calmas aglomeradas contra ele. Seu her�i, cansado
do mundo, poderia chegar em meio a uma tempestade.
Apertou os olhos em meio � escurid�o. Uma luz? Pediu a Deus que fosse. Percebeu o lampejo de um letreiro balan�ando forte com o vento. Manobrou o carro na
dire��o da luz e sorriu.
O letreiro dizia Blackthorn Cottage. Apesar de tudo, seu senso de dire��o n�o falhara. S� esperava que sua anfitri� comprovasse a fama da hospitalidade irlandesa
- afinal, estava chegando com dois dias de anteced�ncia. E eram duas da madrugada.
Gray procurou uma entrada para carros, n�o vendo nada al�m de sebes encharcadas. Sacudindo os ombros, parou o carro na estrada, enfiando as chaves no bolso.
Tinha tudo do que precisava para passar a noite, numa mochila a seu lado. Pegando a bolsa, deixou o carro onde estava e entrou na tormenta.
Ela o golpeava como uma mulher brava, com dentes e unhas. Cambaleando, abrindo caminho em meio aos canteiros de f�csia. Levado mais pela sorte do que pelo
racioc�nio, correu at� o port�o do jardim. Abriu-o, e ent�o lutou para fech�-lo outra vez. Gostaria de enxergar a casa mais nitidamente. Em meio � escurid�o, s�
tinha uma vaga id�ia de sua forma e tamanho com aquela �nica l�mpada brilhando na janela do andar de cima.
Usou a luz como um farol e come�ou a sonhar com caf�.
Ningu�m respondeu �s suas batidas. Com o vento gemendo, duvidava que algu�m pudesse ouvir qualquer batida. Levou menos de dez segundos para decidir, ele mesmo,
abrir a porta.
Outra vez, apenas uma vaga id�ia. A tempestade �s suas costas, o calor ali dentro. Sentia aromas - lim�o, cera, alfazema e alecrim. Imaginou se a velha senhora
irlandesa que dirigia a pousada fazia seu pr�prio pot-pourri. Imaginou se ela levantaria para lhe preparar uma refei��o.
Ent�o, ouviu um grunhido profundo, feroz - e ficou tenso. A cabe�a tumultuou, os olhos estreitaram. Por um momento atordoante, sua mente esvaziou.
Mais tarde, pensaria que era cena de um livro. Um dos seus, talvez. A linda mulher, o ondular da camisola branca, os cabelos derramando como ouro nos ombros.
Seu rosto p�lido � luz oscilante da vela que segurava na m�o. Sua outra m�o apertava a coleira de um cachorro que rosnava e grunhia como um lobo. Um cachorro cujos
ombros alcan�avam a cintura dela.
Ela o fitava do alto dos degraus como a vis�o que ele havia suplicado. Parecia esculpida em marfim ou gelo. Estava t�o im�vel, t�o absolutamente perfeita.
Ent�o, o c�o avan�ou. Com um movimento que agitou sua roupa, ela o conteve.
- Est� deixando a chuva entrar - falou numa voz que s� veio alimentar sua fantasia. Delicada, musical, no ritmo irland�s que ele come�ava a descobrir.
- Desculpe. - Voltou-se, desajeitadamente, para a porta atr�s dele, fechando-a de modo que a tempestade se tornou apenas uma tela de fundo.
O cora��o dela ainda batia acelerado. O barulho e a rea��o de Con a tinham acordado de um sonho de persegui��o e terror. Agora, olhava para um homem de preto,
deselegante, com exce��o do rosto que estava na sombra. Quando ele se aproximou, ela manteve a m�o tr�mula segurando firme na coleira de Con.
Um rosto comprido e estreito, ela via agora. O rosto de um poeta com seus olhos escuros e curiosos e a boca s�ria. Um rosto de pirata, endurecido pelos ossos
proeminentes e pelos cabelos longos e crestados de sol, com seus cachos �midos.
Tolice ter medo, repreendeu a si mesma. Afinal, era s� um homem.
- Ent�o, est� perdido? - perguntou.
- N�o. - Sorriu de modo lento, agrad�vel. - Me encontrei. Esta � Blackthorn Cottage?
- Sim, �.
- Sou Grayson Thane. Estou alguns dias adiantado, mas a Sra. Concannon est� me esperando.
- Ah! - Brianna murmurou alguma coisa ao cachorro que ele n�o entendeu, mas teve o efeito de relaxar a fera. - Eu o esperava na sexta, Sr. Thane. Mas seja
bem-vindo. - Come�ou a descer os degraus, o c�o a seu lado, o casti�al tremulando. - Sou Brianna Concannon - falou estendendo a m�o.
Arregalou os olhos por um momento. Esperara uma gentil senhora com cabelos grisalhos, presos num coque.
- Acordei voc� - disse ele.
- Normalmente, aqui dormimos cedo. Entre, venha para perto do fogo. - Dirigiu-se para a sala, acendendo as luzes. Apagou o casti�al e voltou para apanhar o
casaco molhado dele. - Noite terr�vel para viajar.
- Foi o que descobri.
Ele n�o era deselegante sob a capa. Embora n�o fosse t�o alto quanto a imagina��o inquieta de Brianna calculara, era esbelto e vigoroso. Como um boxeador,
ela pensou, e ent�o sorriu para si mesma. Poeta, pirata, boxeador. O homem era um escritor e um h�spede.
- Aque�a-se, Sr. Thane. Posso lhe servir um ch�? Ou prefere que eu... -J� ia se oferecer para lhe mostrar o quarto, quando se lembrou de que ela mesma estava
dormindo nele.
- Estive sonhando com um caf� nas �ltimas horas. Se n�o for muito inc�modo.
- N�o � problema. Nenhum problema mesmo. Fique � vontade. Era um cen�rio bonito demais para ficar sozinho.
- Vou at� a cozinha com voc�. J� incomodei bastante tirando-a da cama a esta hora. - Estendeu a m�o para Con cheirar. - � um cachorro. Por um instante achei
que fosse um lobo.
- � um c�o de ca�a. -A mente dela j� estava ocupada pensando nos detalhes. - Esteja � vontade para vir se sentar na cozinha. Est� com fome, n�o est�?
Afagando a cabe�a de Con, sorriu para ela.
- Srta. Concannon, acho que amo voc�. Ela enrubesceu com o cumprimento.
- Bem, voc� entrega seu cora��o f�cil demais s� por um prato de sopa.
- N�o foi o que ouvi a respeito de sua comida.
- � mesmo? - Entrando na cozinha, ela pendurou o casaco encharcado num cabide atr�s da porta.
- Um amigo de um primo do meu editor esteve aqui um ano atr�s. O coment�rio era que a dona de Blackthorn cozinhava como um anjo. - Ele n�o ouvira que ela tamb�m
parecia um.
- � um grande elogio. - Brianna colocou a chaleira no fogo, depois algumas conchas de sopa numa panela para esquentar. - Pena que s� posso lhe oferecer o b�sico
esta noite, Sr. Thane, mas n�o ir� para a cama com fome. - Tirou um p�o de uma cesta e fatiou-o generosamente. - Viajou muito, hoje?
- Sa� tarde de Dublin. Ia ficar mais um dia, mas me deu vontade de vir logo para c�. - Sorriu, pegando o p�o que ela colocara na mesa e mordeu-o antes que
ela pudesse oferecer manteiga. - Era hora de pegar a estrada. Voc� cuida daqui sozinha?
- Cuido sim. Lamento que voc� ter� pouca companhia nesta �poca do ano.
- N�o vim pela companhia - disse, observando-a preparar o caf�. A cozinha come�ava a cheirar como o para�so.
- Para trabalhar, voc� falou. Deve ser maravilhoso ser capaz de escrever hist�rias.
- Tem seus momentos.
- Gosto das suas. - Falou simplesmente, enquanto pegava uma tigela azul-escura no arm�rio.
Grayson levantou a sobrancelha. As pessoas geralmente come�avam a fazer d�zias de perguntas a essa altura. Como voc� escreve, onde encontra suas id�ias - a
pergunta mais detest�vel -, como publica? E perguntas eram seguidas pela terr�vel informa��o de que a pessoa tinha uma hist�ria para contar.
Mas ela s� disse aquilo. Gray pegou-se sorrindo outra vez.
- Obrigado. �s vezes, eu tamb�m. - Inclinou-se, inspirando profundamente, quando ela colocou a tigela de sopa na frente dele. - Isso n�o me cheira ao b�sico.
- S�o legumes com pedacinhos de carne. Se quiser, posso preparar um sandu�che.
- N�o, est� �timo. - Provou e suspirou. - Realmente �timo.
- Observou-a novamente. Sua pele sempre parecia t�o delicada e lisa? Ou era o sono? - Estou tentando lamentar ter acordado voc� - ele disse e continuou a comer.
- Mas com esta sopa fica dif�cil.
- Uma boa pousada est� sempre aberta aos viajantes, Sr. Thane.
- Colocando o caf� ao lado dele, fez sinal para o cachorro, que imediatamente se levantou, deixando seu posto ao lado da mesa da cozinha. - Se quiser, sirva-se
de mais sopa. Vou preparar seu quarto.
Ela saiu, apressando os passos ao subir as escadas. Teria de trocar os len��is da cama, as toalhas no banheiro. N�o lhe ocorreu oferecer a ele um dos outros
quartos. Como �nico h�spede, tinha direito ao melhor.
Trabalhou rapidamente e j� estava colocando as fronhas rendadas nos travesseiros, quando ouviu barulho na porta.
Sua primeira rea��o foi angustiar-se por v�-lo parado na soleira da porta. A seguinte foi de resigna��o. Era a casa dela, afinal. Tinha direito de usar todos
os c�modos.
_Andei me dando umas merecidas feriazinhas - disse ela,
puxando o edredom.
Estranho, ele pensou, que uma mulher apenas arrumando os len��is pudesse parecer t�o afrontosamente sexy. Devia estar mais cansado do que imaginara.
- Parece que tirei voc� da cama, em todos os sentidos. N�o precisava se mudar.
- � por este quarto que est� pagando. � quente. Acendi o fogo, e voc� tem seu pr�prio banheiro. Se voc�...
Ela se interrompeu porque ele avan�ou atr�s dela. O frio na espinha a fez enrijecer, mas ele apenas pegou o livro na mesa ao lado da cama. Brianna pigarreou
e deu um passo atr�s.
- Adormeci enquanto estava lendo - come�ou a dizer. Ent�o arregalou os olhos, aflita. - N�o quero dizer que ele me tenha feito dormir. S� que... - Ele estava
sorrindo, ela observou. N�o, ele estava rindo para ela. Torceu os cantos da boca em resposta. - Tive pesadelos.
- Obrigado.
Ela relaxou novamente, voltando-se para ajeitar a ponta do len�ol e do edredom numa dobra de boas-vindas.
- E voc� aparecendo no meio da tempestade me fez imaginar o pior. Tive certeza de que o assassino havia saltado para fora do livro, com uma faca ensang�entada
na m�o.
- E quem � ele?
Ela ergueu uma sobrancelha.
- N�o sei, mas tenho minhas suspeitas. Tem um modo inteligente de misturar emo��es, Sr. Thane.
- Gray - ele disse, devolvendo-lhe o livro. - Afinal, de um modo meio confuso estamos dividindo uma cama. - Tomou a m�o dela antes que ela pudesse pensar no
que dizer. Ent�o a deixou confusa, levando-a aos l�bios. - Obrigado pela sopa.
- Seja bem-vindo. Durma bem.
N�o tinha d�vida de que dormiria. Brianna mal havia sa�do e fechado a porta quando ele se despiu e desabou nu na cama. Havia um delicado aroma de lil�s no
ar, lil�s e algum perfume dos campos no ver�o, que ele reconheceu ser dos cabelos dela.
Adormeceu com um sorriso no rosto.
C
hovia ainda. A primeira coisa que Gray notou quando abriu os olhos, pela manh�, foi o tempo fechado. Poderia permanecer assim desde a aurora at� o crep�sculo. O
rel�gio antigo sobre a lareira marcava nove e quinze. Estava otimista o suficiente para apostar que eram nove e quinze da manh�.
N�o havia observado o quarto na noite anterior. O cansa�o da viagem e a figura bonita de Brianna Concannon fazendo sua cama haviam embotado seu c�rebro. Fazia
isto agora, aquecido sob as cobertas. As paredes eram forradas de papel, de modo que as diminutas violetas e os bot�es de rosa subiam do piso ao forro. O fogo, apagado
agora, fora montado numa lareira de pedra, e blocos de carv�o estavam arrumados em uma caixa pintada, ao lado.
Havia uma escrivaninha que parecia antiga e forte. Sua superf�cie brilhava de t�o polida. Uma l�mpada de bronze, um velho tinteiro e um pote de vidro com pot-pourri
estavam sobre ela. Sobre a c�moda espelhada, um vaso com flores desidratadas. Duas cadeiras estofadas em cor-de-rosa claro ladeavam uma mesinha. Havia um tapete
debruado sobre o piso, combinando com as cores suaves do quarto e os desenhos das flores silvestres na parede.
Gray recostou-se na cabeceira da cama, bocejou. N�o necessitava de ambientes quando trabalhava, mas gostou. Considerando tudo, tinha escolhido bem.
Pensou em se virar e voltar a dormir. Ainda n�o tinha fechado a porta da jaula atr�s dele - uma analogia que usava freq�entemente para escrever. Manh�s frias
e chuvosas, em qualquer parte do mundo, eram para ser curtidas na cama. Mas lembrou-se de sua anfitri�, a linda Brianna, de faces rosadas. A curiosidade sobre ela
o fez levantar-se cautelosamente, pisando no ch�o gelado.
Ao menos a �gua era quente, pensou, meio zonzo, sob o chuveiro. E o sabonete tinha um aroma suave, praticamente de uma floresta de pinheiros. Viajando como
costumava viajar, j� enfrentara muitos chuveiros gelados. O simples ar caseiro do banheiro, as toalhas brancas com um charmoso toque de renda lhe agradavam perfeitamente.
Mas tamb�m os ambientes geralmente lhe agradavam, desde uma barraca no deserto do Arizona at� hot�is luxuosos na Riviera. Gray gostava de pensar que mudava o cen�rio
para satisfazer suas necessidades - at�, � claro, suas necessidades mudarem.
Nos pr�ximos meses, ele imaginou que o confort�vel chal� na Irlanda estaria bom. Particularmente com o acr�scimo do benef�cio de sua linda anfitri�. Beleza
era sempre algo mais.
N�o viu raz�o para fazer a barba. Enfiou um jeans e uma camisa surrada. Como o vento tinha diminu�do consideravelmente, poderia dar uma caminhada pelos campos,
ap�s o caf�, e at� conhecer os arredores.
Mas foi o caf� que o fez descer.
N�o estava surpreso de v�-la na cozinha. O lugar parecia ter sido projetado para ela - a lareira fumacenta, as paredes brilhantes, as bancadas arrumad�ssimas.
Ela prendera os cabelos nesta manh�, observou. Imaginou que ela achava que era mais pr�tico. E talvez fosse mesmo, pensou, mas o fato de alguns fios escaparem
e flutuarem em torno do pesco�o e do rosto tornava-os pr�ticos, sedutores.
Era provavelmente uma p�ssima id�ia sentir-se atra�do pela anfitri�.
Ela estava assando alguma coisa e o aroma fez sua boca salivar. Certamente era o cheiro da comida e n�o a vis�o dela pr�pria, no avental branco bem passado,
que mexia com seus horm�nios.
Voltou-se para ele, os bra�os ocupados com uma grande tigela, cujo conte�do ela continuava a bater com uma colher de pau. Piscou, surpresa. Ent�o sorriu num
acolhimento prudente.
- Bom-dia. J� quer tomar seu caf�-da-manh�?
- Quero isso que est� cheirando.
- Isso n�o. - Com uma habilidade que ele teve de admirar, colocou o conte�do da tigela numa forma. - N�o est� pronto ainda e � um bolo para o ch�.
- Ma�� - ele disse cheirando o ar. - Canela...
- Seu olfato � bom. Quer um caf�-da-manh� irland�s ou prefere algo mais light?
- Light n�o � o que tenho na cabe�a.
- �timo, ent�o. A sala de jantar fica depois da porta. Levarei caf� e alguns p�es para aliment�-lo.
- Posso comer aqui? - Lan�ou-lhe seu mais charmoso sorriso, apoiando-se na porta. - Ou voc� se incomoda de algu�m ficar olhando enquanto cozinha? - Ou apenas
olhando para ela, pensou, fazendo o que quer que fosse.
- De maneira alguma. -Alguns h�spedes preferiam isto, embora muitos gostassem de ser servidos. Estendeu-lhe o caf� que j� tinha esquentado. - Gosta puro?
- Assim mesmo. - Bebeu em p�, olhando para ela. -Voc� cresceu nesta casa?
- Cresci. - Deixou algumas salsichas gordas escorregarem para a panela.
- Acho que mais parece uma casa do que uma pousada.
- Este era o objetivo. T�nhamos uma fazenda, sabe, mas vendemos a maior parte das terras. Conservamos a casa e o chalezinho no caminho, onde moram minha irm�
e o marido, de tempos em tempos.
- De tempos em tempos?
- Ele tem uma casa em Dublin tamb�m. � dono de galerias de arte. Minha irm� � uma artes�, uma artista.
- Ah, o que ela faz?
Ela sorriu ligeiramente, enquanto continuava cozinhando. Muitas pessoas achavam que artista era sin�nimo de pintor, o que sempre irritou Maggie. - Uma artista
do vidro. Ela sopra vidro. - Brianna apontou para a tigela no centro da mesa da cozinha. Tons past�is se combinavam, a borda fluida, como p�talas lavadas pela chuva.
- � um trabalho dela.
- Impressionante. - Curioso, aproximou-se e passou a ponta do dedo em torno da borda ondulada. - Concannon - murmurou. Ent�o riu para si mesmo. - N�o creio,
M. M. Concannon, a sensa��o irlandesa?
Os olhos de Brianna dan�aram de prazer.
- � assim que a chamam mesmo? Ah, ela vai adorar. - O orgulho flamejava. - E voc� reconheceu o trabalho dela...
- Tinha que reconhecer, acabei de comprar uma... n�o sei exatamente o que �. Uma escultura, eu acho. Galerias Worldwide, Londres, duas semanas atr�s.
- A Galeria de Rogan. Marido dela.
- Bem adequado. - Caminhou at� o fog�o para voltar a encher a x�cara. As salsichas fritas cheiravam quase t�o bem quanto a anfitri�.
- � uma pe�a surpreendente. Gelo branco em vidro, com fogo pulsando no interior. Achei que parecia a Fortaleza da Solid�o. - Diante de seu olhar inexpressivo,
ele riu. - Pelo visto, voc� n�o anda por dentro das hist�rias em quadrinhos. O santu�rio do Super-Homem, no �rtico, eu acho.
- Ela vai gostar disto. Maggie � boa em santu�rios. - Num gesto inconsciente, prendeu os fios de cabelos soltos com os grampos. Os nervos estavam um pouquinho
abalados. Ela sup�s que era pela maneira como ele a olhava, aquela avalia��o franca e indisfar��vel, desconfortavelmente �ntima. Era o lado escritor nele, disse
a si mesma, e deixou as batatas ca�ram na gordura fervente.
- Est�o construindo uma galeria aqui em Clare - ela prosseguiu.
- Estar� aberta na primavera. Aqui est� um mingau de aveia para come�ar, enquanto o resto est� cozinhando.
Mingau de aveia. Era perfeito. Uma manh� chuvosa em uma pousada irlandesa e mingau de aveia numa tigela marrom. Rindo, sentou-se e come�ou a comer.
-Vai escrever um livro que se passe aqui, na Irlanda? - Olhou
por sobre o ombro. - N�o sei se posso lhe perguntar isso.
- Claro. Este � o plano. Lugar retirado, campos chuvosos, penhascos altos. - Sacudiu os ombros. - Pequenas vilas ordeiras. Cart�es-postais. Mas que paix�es
e ambi��es se encontram por baixo delas?
Agora ela riu, virando o bacon.
- N�o sei se voc� acha as paix�es e ambi��es em nossa cidade � altura de suas inten��es, Sr. Thane.
- Gray.
- Sim, Gray. - Apanhou um ovo, quebrando-o com uma das m�os na frigideira fumegante. - Agora mesmo, as minhas andaram bem altas, quando uma vaca de Murphy
derrubou a cerca e pisoteou minhas rosas no �ltimo ver�o. E, pelo que me lembro, Tommy Duggin e Joe Ryan tiveram uma briga sangrenta do lado de fora do pub de O'Malley,
n�o muito tempo atr�s.
- Por causa de uma mulher?
- N�o, por uma partida de futebol na televis�o. Mas estavam um pouco b�bados na ocasi�o, foi o que me contaram, e fizeram as pazes t�o logo as cabe�as pararam
de girar.
- Bem, de qualquer forma, fic��o n�o � mais do que uma mentira.
- N�o � n�o. - Os olhos dela, suavemente verdes e s�rios, encontraram os dele quando colocou o prato na mesa. - � um tipo diferente de verdade. Seria a sua
verdade na �poca em que escreveu, n�o seria?
A percep��o dela surpreendeu-o e quase o embara�ou.
- Sim. Seria mesmo.
Satisfeita, ela voltou ao fog�o para arrumar salsich�es, tiras de bacon, ovos e panquecas de batata numa travessa.
- Voc� ser� a sensa��o na vila. Voc� sabe que n�s, irlandeses, somos loucos por escritores.
- N�o sou Yeats.
Ela sorriu, satisfeita quando ele transferiu saud�veis por��es de comida para o seu prato.
- Mas voc� n�o quer ser, quer?
Ele ergueu os olhos, mastigando a primeira fatia de bacon. Ela o havia apanhado assim, t�o r�pido? Logo a ele, que se orgulhava de sua pr�pria aura de mist�rio
- sem passado, sem futuro.
Antes que pudesse pensar numa resposta, a porta da cozinha escancarou e uma mulher entrou em meio � chuva de vento.
- Algum cabe�a oca largou o carro no meio da rua, ao lado da casa, Brie. - Maggie parou, despindo uma capa encharcada, e olhou para Gray.
- Culpado - ele falou, levantando a m�o. - Esqueci. Vou tir�-lo dali.
- Sem pressa agora. - Acenou para que voltasse a se sentar e tirou o casaco. - Termine seu caf�. Tenho tempo. Voc� deve ser o escritor ianque, n�o �?
- Duplamente culpado. E voc� deve ser M. M. Concannon.
- Isso mesmo.
- Minha irm�, Maggie - disse Brianna, enquanto servia um ch�. - Grayson Thane.
Maggie sentou-se com um leve suspiro de al�vio. Os chutes do beb� faziam uma tempestade por si s�s. - Um pouco cedo, n�o?
- Mudan�a de planos. - Era uma vers�o mais impetuosa de Brianna, Gray pensou. Cabelos mais vermelhos, olhos mais verdes... mais agu�ados. - Sua irm� foi delicada
o bastante para n�o me deixar dormir no jardim.
- Ah, delicada � uma coisa que Brie realmente �. - Maggie serviu-se de um peda�o de bacon no prato. - Bolo de ma��? - perguntou, cheirando o ar.
- Para o ch�. - Brianna tirou uma forma do forno, colocando outra no lugar. - Voc� e Rogan s�o bem-vindos.
- Talvez a gente apare�a. - Pegou um p�ozinho de uma cesta e come�ou a mordisc�-lo. - Planeja ficar por algum tempo, n�o �?
- Maggie, n�o amole meu h�spede. Tenho uns p�ezinhos sobrando, se quiser levar para casa.
- Ainda n�o estou indo embora. Rogan est� ao telefone e ficar� at� o dia do Ju�zo Final. Estava indo � cidade para comprar p�o.
- Tenho sobrando para lhe dar. Maggie sorriu e mordeu o p�o outra vez.
- Achei que voc� teria. - Voltou os agu�ados olhos verdes para Gray. - Ela cozinha o bastante para toda a vila.
- Talento art�stico est� no sangue - Gray disse naturalmente. Depois de espalhar gel�ia de morango numa fatia de p�o, passou o pote amistosamente para Maggie.
- Voc� com o vidro, Brianna com a comida. - Sem constrangimento, olhou para o bolo esfriando sobre o fog�o. - Quanto tempo at� a hora do ch�?
Maggie riu para ele.
- Acho que vou gostar de voc�.
- Tamb�m acho que vou gostar de voc�. - Levantou-se. - Vou tirar o carro.
- Voc� poderia apenas coloc�-lo na rua. Ele lan�ou a Brianna um olhar confuso.
- Como assim na rua?
- Ao lado da casa, a entrada para carro, voc� diria. Precisa de ajuda com a bagagem?
- N�o, d� para trazer sozinho. Prazer em conhec�-la, Maggie.
- O prazer � todo meu. - Lambeu os dedos, esperando at� ouvir a porta fechar. - Ele � melhor do que na foto na capa dos livros.
- �.
- N�o d� para imaginar um escritor com um corpo desse, todo forte e musculoso.
Sabendo que Maggie estava esperando por uma resposta, Brianna se manteve de costas.
- Admito que ele tem um belo f�sico. S� n�o podia esperar que uma mulher casada, no sexto m�s de gravidez, fosse prestar tanta aten��o assim ao corpo dele.
Maggie bufou.
- Aposto que qualquer mulher prestaria aten��o nele. E, se voc� n�o prestou, � melhor ver o que h� de errado com voc�, al�m dos olhos.
- Meus olhos v�o muito bem, obrigada. E n�o era voc� que estava preocupada comigo, por eu ficar sozinha com ele?
- Isto foi antes de eu decidir gostar dele.
Com um suspiro, Brianna olhou de relance para a porta da cozinha. Duvidava que tivesse muito tempo. Umedeceu os l�bios e manteve as m�os ocupadas, arrumando
a lou�a do caf�.
- Maggie, gostaria que arranjasse um tempinho para voltar mais tarde. Preciso falar com voc� sobre um assunto.
- Fale agora.
- N�o, n�o posso. - Olhou para a porta da cozinha. - Precisamos estar sozinhas. � importante.
- Voc� est� chateada.
- N�o sei se estou chateada ou n�o.
- Ele fez alguma coisa? O ianque? - Apesar da barriga, Maggie j� se levantara e estava pronta para brigar.
- N�o, n�o. N�o tem nada a ver com ele. - Irritada, Brianna colocou as m�os na cintura. - Voc� acabou de dizer que gostou dele.
- N�o, se ele estiver chateando voc�.
- Bem, ele n�o est�. N�o me pressione com isso agora. Voc� vem mais tarde, quando eu tiver certeza de que ele est� bem acomodado?
- Claro que venho. - Preocupada, Maggie acariciou o ombro da irm�. - Quer que Rogan venha tamb�m?
- Se ele puder. Sim - decidiu, pensando no estado de Maggie. - Por favor, pe�a a ele para vir com voc�.
- Antes do ch�, ent�o. Duas, tr�s horas?
- Est� bom. Leve os p�ezinhos, Maggie. Vou ajudar o Sr. Thane a se instalar.
Nada desagradava mais a Brianna do que confrontos, palavras r�spidas, emo��es amargas. Crescera numa casa onde o ar estava sempre fervendo com elas. Ressentimentos
cresciam at� estourar. Desapontamentos explodiam em gritos. Para se defender, ela sempre tentara controlar os pr�prios sentimentos, dirigindo-os o quanto podia para
o extremo oposto dos ataques de ira que haviam servido de prote��o � irm�, ante o tormento de seus pais.
Tinha de admitir para si mesma que muitas vezes desejara acordar uma manh� e descobrir que seus pais haviam decidido ignorar a igreja e as tradi��es e buscar
os pr�prios caminhos. Por�m, com mais freq��ncia, com muito mais freq��ncia, tinha rezado por um milagre, milagre de ter os pais descobrindo um ao outro novamente
e reacendendo a chama que os unira tantos anos antes.
Agora entendia, ao menos em parte, por que aquele milagre nunca podia ter acontecido. Amanda. O nome da mulher era Amanda.
Sua m�e teria sabido? Teria sabido que o marido que acabara por detestar amara outra mulher? Sabia que havia uma crian�a, adulta agora, resultado daquele amor
imprudente, proibido?
N�o podia perguntar. Nunca perguntaria, Brianna prometeu a si mesma. A cena terr�vel que causaria seria mais do que poderia suportar.
J� passara a maior parte do dia temendo dividir o que tinha descoberto com a irm�. Como conhecia Maggie muito bem, sabia que haveria sofrimento, raiva e uma
profunda desilus�o.
Tinha adiado isso por horas. Covardia, reconhecia envergonhada. Mas disse a si mesma que precisava de tempo para aquietar o pr�prio cora��o antes de poder
enfrentar a f�ria de Maggie.
Gray chegara na hora certa. Ajud�-lo a instalar-se no quarto, responder �s suas perguntas sobre as vilas da vizinhan�a e do interior. E perguntas ele tinha
�s d�zias. Quando finalmente o viu seguir em dire��o a Ennis, estava exausta. A energia mental dele era surpreendente, lembrando um contorcionista que ela vira uma
vez, numa feira, torcendo-se e transformando-se em formas mirabolantes, recompondo-se outra vez para repetir tudo de novo.
Para relaxar, ajoelhou-se, a fim de esfregar o ch�o da cozinha.
Eram quase duas horas quando ouviu os latidos de boas-vindas de Con. O ch� estava em infus�o, os bolos j� tinham esfriado e os pequenos sandu�ches que preparara
estavam cortados em tri�ngulos caprichados. Torceu as m�os uma vez, ent�o abriu a porta da cozinha para a irm� e o cunhado.
- Vieram caminhando?
- Sweeney reclama que preciso de exerc�cio. - O rosto de Maggie estava rosado, os olhos agitados. Inspirou longamente, cheirando o ar. - E vou precisar mesmo,
depois do ch�.
- Ela anda gulosa estes dias. - Rogan pendurou seu casaco e o de Maggie no cabide na porta. Podia ter vestido cal�as velhas e sapatos refor�ados para caminhar,
mas nada podia ocultar o que sua esposa chamava a marca de Dublin que havia nele. Alto, moreno, elegante, podia estar usando um smoking ou trapos. - Foi sorte voc�
nos ter chamado para o ch�, Brianna. Ela esvaziou nossa despensa.
- Bem, temos bastante aqui. Sentem perto do fogo que j� vou servir.
- N�o somos h�spedes - Maggie protestou. - Podemos ficar muito bem na cozinha.
- Passei o dia todo aqui. - Era uma desculpa tola. Para ela, n�o havia lugar mais convidativo na casa toda. Mas ela desejava, necessitava da formalidade da
sala para o que precisava ser feito. - Acendi a lareira e est� bem quentinho l�.
- Eu levo a bandeja - Rogan se ofereceu.
Mal se acomodaram na sala, Maggie pegou um peda�o de bolo.
- Coma um sandu�che - Rogan disse a ela.
- Ele me trata mais como uma crian�a do que como uma mulher carregando uma crian�a. - Mas pegou um sandu�che primeiro. - Estive contando a Rogan sobre seu
atraente ianque. Longos cabelos dourados, m�sculos bem delineados e grandes olhos castanhos. Ele n�o vai nos acompanhar para o ch�?
- Estamos adiantados para o ch� - Rogan observou. - Li seus livros - disse a Brianna. - Tem uma maneira inteligente de colocar o leitor no redemoinho.
- Eu sei. - Ela sorriu ligeiramente. - Adormeci a noite passada com a luz acesa. Ele foi dar uma volta at� Ennis e arredores. Ele � muito gentil, vai postar
uma carta para mim. - O modo mais f�cil, pensou, era, muitas vezes, pela porta dos fundos. - Achei alguns pap�is quando estava l� em cima, no s�t�o, ontem.
- J� n�o cuidamos dessas coisas antes? - Maggie perguntou.
- Deixamos uma por��o de caixas do papai sem mexer. Quando a mam�e estava aqui, parecia melhor n�o tocar nisso.
- Ela s� ia reclamar e esbravejar. - Maggie fez uma careta diante da x�cara de ch�. - Voc� n�o devia ter ido mexer nos pap�is dele, sozinha, Brie.
- N�o me importo. Estive pensando que poderia transformar o s�t�o em um loft para h�spedes.
- Mais h�spedes. - Maggie revirou os olhos. - Voc� � invadida por eles agora, durante a primavera e o ver�o.
- Gosto de ter pessoas em casa. - Era um velho argumento que ambas nunca veriam com os mesmos olhos. - De qualquer modo, j� era hora de ver essas coisas. Havia
algumas roupas tamb�m, n�o mais do que trapos agora. Mas encontrei isto. - Levantou-se e foi at� uma caixinha. Pegou a roupinha branca rendada. - � um trabalho da
vov�, tenho certeza. Papai deve t�-la guardado para seus netos.
- Ah... - Tudo em Maggie se enterneceu. Seus olhos, sua boca, sua voz. Estendeu as m�os, pegando a roupinha. - T�o pequena - murmurou. Exatamente no momento
em que ela acariciava o linho, o beb� se mexeu.
- Acho que sua fam�lia deve ter separado alguma tamb�m, Rogan, mas...
- Usaremos esta. Obrigado, Brie. - Um olhar para o rosto da esposa, e ele decidira. - Aqui, Margaret Mary.
Maggie pegou o len�o que ele oferecia e secou os olhos.
- Os livros dizem que s�o os horm�nios. Pare�o sempre estar transbordando.
- Deixe-me guardar para voc�. - Depois de recolocar a camisolinha na caixa, Brianna deu o pr�ximo passo e mostrou o certificado das a��es. -Achei isto tamb�m.
Papai deve ter comprado ou investido, qualquer coisa que seja, pouco antes de morrer.
Uma olhada no papel fez Maggie suspirar.
- Outro de seus esquemas para fazer dinheiro. - Estava quase t�o emocionada com as a��es quanto ficara com a camisolinha de beb�. - Bem pr�prio dele. Ent�o
ele pensou que iria �s minas, n�o �?
- Bem, ele tentou mais alguma coisa. Rogan franziu o cenho para o certificado.
- Voc�s querem que eu descubra algo sobre essa companhia?
- Escrevi para eles. O Sr. Thane est� enviando a carta para mim. N�o dar� em nada, imagino. - Nenhum dos esquemas de Tom Concannon surtira algum resultado.
- Mas voc� pode guardar os pap�is para mim, at� que eu tenha uma resposta.
- S�o dez mil a��es - Rogan apontou. Maggie e Brianna sorriram uma para a outra.
- E se valerem mais do que os pap�is onde est�o impressas, ele ter� quebrado seu recorde. - Maggie sacudiu os ombros e serviu-se de bolo. - Ele estava sempre
investindo em alguma coisa ou come�ando um novo neg�cio. Seus sonhos eram grandes, Rogan, e seu cora��o tamb�m.
O sorriso de Brianna se turvou.
- Encontrei mais alguma coisa. Algo que preciso mostrar a voc�. Cartas.
- Ele era famoso por escrev�-las.
- N�o. - Brianna interrompeu, antes que Maggie pudesse iniciar uma de suas hist�rias. Diga logo, ordenou a si mesma, quando o cora��o abrandou. Ande. - Estas
foram escritas para ele. S�o tr�s, e acho que seria melhor que voc� mesma as lesse.
Maggie p�de ver que os olhos de Brianna estavam gelados e distantes. Uma defesa, sabia, contra algo entre um aborrecimento e o desespero.
- Muito bem, Brie.
Sem dizer nada, Brianna apanhou as cartas, colocando-as na m�o da irm�.
Maggie teve apenas de olhar para o endere�o do remetente no primeiro envelope para que seu cora��o ficasse pesado. Abriu a carta.
Brianna ouviu o s�bito soar do sofrimento. Os dedos que estavam fechados se torceram. Viu Maggie levantar-se, apertar a m�o de Rogan. Uma mudan�a, Brianna
pensou com um leve suspiro. Um ano antes, Maggie teria recusado qualquer tipo de ajuda.
- Amanda. - Havia l�grimas na voz de Maggie. - Ele falou Amanda, antes de morrer. Parado l� no penhasco em Loop Head, naquele recanto que ele amava tanto.
�amos l� e ele brincava que atravessar�amos num barco, e nosso pr�ximo porto seria um pub em Nova York. - Agora as l�grimas rolavam. - Em Nova York. Amanda estava
em Nova York.
- Ele disse o nome dela. - Brianna levou os dedos � boca. Conteve-se com dificuldade, antes que voltasse ao seu h�bito de inf�ncia de roer as unhas. - Lembro-me
de voc� ter dito algo sobre isso no vel�rio. Ele disse mais alguma coisa, alguma coisa sobre ela?
- N�o disse nada, apenas o nome dela. - Maggie limpou as l�grimas com um gesto furioso. - N�o disse nada ent�o, nada mais. Ele a amava, mas n�o fez nada.
- O que ele poderia ter feito? - Brianna perguntou. - Maggie...
- Alguma coisa. - Rolaram mais l�grimas e houve mais f�ria quando Maggie levantou a cabe�a. - Qualquer coisa. Meu Deus, ele passou a vida num inferno. Por
qu�? Porque a Igreja diz que � pecado agir de outro modo. Bem, ele j� tinha pecado, n�o tinha? Havia cometido adult�rio. Eu o culpo por isto? Acho que n�o posso,
ao lembrar o que ele enfrentou nesta casa. Mas, por Deus, ele n�o poderia ter ido at� o fim?
- Ele ficou por n�s. - A voz de Brianna soou firme e fria. - Voc� sabe que ele ficou por n�s.
- Devo me sentir agradecida?
- Vai culp�-lo por amar voc�? - Rogan perguntou calmamente. - Ou conden�-lo por amar mais algu�m?
Os olhos dela brilharam. Mas o rancor que lhe veio � garganta se transformou em tristeza.
- N�o, nem uma coisa nem outra. Mas ele devia ter tido mais do que lembran�as.
- Leia as outras, Maggie.
- Vou ler. Voc� tinha acabado de nascer quando estas foram escritas - falou enquanto abria a segunda carta.
- Eu sei - Brianna falou num sussurro.
- Acho que ela o amou muito. D� para sentir o carinho. N�o � pedir muito querer amor, carinho. - Maggie olhou para Brianna, buscando algum sinal. N�o viu nada,
a n�o ser a mesma fria neutralidade. Suspirando, abriu a �ltima carta, enquanto Brianna sentava-se tensa. - S� queria que ele... - As palavras lhe faltaram. - Ah,
meu Deus. Um beb�. - Instintivamente a m�o dela desceu para cobrir o seu. - Ela estava gr�vida.
- Temos um irm�o ou uma irm� em algum lugar. N�o sei o que fazer.
Choque e f�ria fizeram Maggie pular. X�caras chacoalharam quando ela empurrou a cadeira para andar pela sala.
- O que fazer? J� foi feito, n�o foi? Vinte e oito anos atr�s, para ser bem exata.
Aflita, Brianna j� ia se levantar, mas Rogan a deteve.
- Deixe-a - murmurou. - Ela vai melhorar depois.
- Que direito ela tinha de dizer isso a ele e depois ir embora? Que direito ele tinha de deix�-la? - Maggie inquiriu. - E agora, voc�s acham que isto sobra
para n�s? Para n�s irmos atr�s? N�o estamos falando agora de uma crian�a abandonada, Brianna, mas de uma pessoa adulta. O que isso tem a ver conosco?
- Nosso pai, Maggie. Nossa fam�lia.
- Ah, sim, a fam�lia Concannon. Deus nos ajude. - Atordoada, ela se inclinou sobre a lareira, olhando cegamente para o fogo. - Ent�o ele era t�o fraco assim?
- N�o sabemos o que ele fez ou podia ter feito. Talvez a gente nunca saiba. - Brianna inspirou lentamente. - Se a mam�e soubesse...
Maggie interrompeu-a com uma risada curta e amarga.
- Ela n�o sabia. Voc� acha que ela n�o teria usado uma arma dessa para derrub�-lo de vez? Deus sabe que ela usou tudo o mais.
- Ent�o, n�o h� motivo para contar agora, h�? Maggie voltou-se lentamente.
- Voc� n�o quer dizer nada?
- Para ela, n�o. De que adiantaria mago�-la? Maggie apertou os l�bios.
- Voc� acha que isso a magoaria?
- Tem tanta certeza assim de que n�o?
A agita��o abandonou Maggie t�o rapidamente quanto a dominara.
- N�o sei. Como posso saber? Sinto como se eles fossem dois estranhos agora.
- Ele amava voc�, Maggie. - Rogan levantou-se e foi at� ela. - Voc� sabe disso.
- Sei. - Ela deixou-se abra�ar. - Mas n�o sei o que sinto.
- Acho que poder�amos tentar encontrar Amanda Dougherty - Brianna come�ou - e...
- N�o estou conseguindo raciocinar. - Maggie fechou os olhos. Havia emo��es demais duelando dentro dela para deixar que ela visse, como desejava, a dire��o
certa a tomar. - Preciso pensar a respeito, Brie. J� levou tanto tempo assim... Pode esperar mais um pouco.
- Desculpe, Maggie.
- N�o se sinta respons�vel por isso. - Um pouco de vivacidade voltou � voz de Maggie: - Voc� j� tem muito com que se preocupar. Me d� s� uns dias, Brie, e
decidiremos juntas o que fazer.
- Tudo bem.
- Gostaria de ficar com as cartas por enquanto.
- Claro.
Maggie aproximou-se da irm� e acariciou seu rosto p�lido.
- Ele tamb�m amava voc�, Brie.
- Do modo dele.
- De todos os modos. Voc� era seu anjo, seu bot�o de rosa. N�o se preocupe. Vamos encontrar um jeito de fazer o melhor.
Gray n�o se importou quando o c�u de chumbo come�ou a derramar chuva outra vez. Parou junto ao parapeito de um castelo em ru�nas observando um rio indolente.
O vento assobiava e gemia entre as rachaduras da pedra. Ele poderia ficar sozinho n�o somente neste lugar, mas neste pa�s, no mundo.
Era, decidiu, o lugar perfeito para um assassinato.
A v�tima poderia ser atra�da para c�, poderia estar seguindo antigos e sinuosos caminhos de pedra, poderia desaparecer desamparadamente, at� que qualquer migalha
de esperan�a se dissolvesse. N�o haveria escapat�ria.
Aqui, onde sangue antigo fora derramado, onde se infiltrara por entre pedras e terras ainda que n�o t�o profundamente, morte fresca poderia acontecer. N�o
por Deus, n�o pelo pa�s, mas por prazer.
Gray j� sabia quem era seu vil�o, podia imagin�-lo ali golpeando com a faca, cujo fio brilhava, � luz morti�a. Conhecia sua v�tima, o terror e a dor. O her�i
e a mulher que ele amaria eram t�o claros para Gray como o fluxo vagaroso do rio abaixo.
E sabia que teria de come�ar logo para cri�-los com palavras. N�o havia nada de que gostasse mais, quando escrevia, do que fazer seus personagens respirarem,
dando-lhes carne e osso. Descobrindo suas experi�ncias, seus medos secretos, cada desvio e cada �ngulo de seu passado.
Talvez isso fosse por n�o ter seu pr�prio passado. Tinha constru�do a si mesmo, camada por camada, t�o habilidosa e cuidadosamente como criava seus personagens.
Grayson Thane era quem tinha decidido ser, e sua habilidade de contar hist�rias lhe dera condi��es de se tornar quem era e o que desejava ser, com algum estilo.
Nunca se consideraria um homem modesto, mas se considerava n�o mais do que um escritor competente, um fiandeiro de contos.
Escrevia para entreter primeiro a si mesmo e reconhecia sua sorte em atingir a sensibilidade do p�blico.
Brianna estava certa. N�o queria ser um Yeats. Ser um bom escritor significava sustentar-se e fazer o que escolhesse. Ser um grande escritor trazia responsabilidades
e expectativas que ele n�o queria enfrentar. �quilo que Gray escolhia n�o encarar ele simplesmente virava as costas.
Mas havia ocasi�es, como esta, em que ele se perguntava como seria se tivesse ra�zes, antepassados, uma total devo��o � fam�lia ou � p�tria. As pessoas que
haviam constru�do aquele castelo que ainda existia, aqueles que haviam lutado l�, morrido l�. O que tinham sentido? O que tinham desejado? E como podiam batalhas
travadas havia tanto tempo ainda soar no ar, de forma t�o clara como a m�sica fatal de espada contra espada?
Havia escolhido a Irlanda por isso, pela hist�ria, pelas pessoas cujas lembran�as eram remotas e cujas ra�zes eram profundas. Por pessoas, admitiu, como Brianna
Concannon.
Era uma estranha e interessante recompensa que ela fosse t�o parecida com a hero�na que ele procurava.
Fisicamente, era perfeita. Aquela beleza delicada, luminosa, a gra�a simples, os modos calmos. Mas, sob a concha, em contraste com aquela generosa hospitalidade,
havia um certo alheamento, uma certa tristeza.
Complexidades, pensou, deixando a chuva golpear-lhe o rosto. Ele adorava contrastes e complexidades - quebra-cabe�as para resolver. O que havia legado aquele
assombro aos seus olhos, aquela frieza defensiva aos seus modos?
Seria interessante descobrir.
P
ensou que ela estivesse fora, quando voltou. Concentrando-se nos aromas como um c�o de ca�a, Gray foi direto para a cozinha.
Foi a voz dela que o fez parar - suave, calma e gelada. Sem sequer pensar em bisbilhotar, voltou-se e seguiu para a porta da sala.
Ele podia v�-la ao telefone. A m�o em garra no aparelho, um gesto de raiva ou nervosismo. N�o podia lhe ver o rosto, mas a tens�o nas costas e ombros denunciava
bem seu humor.
- Acabei de chegar, mam�e. Tive de buscar algumas coisas na vila. Estou com um h�spede.
Houve uma pausa, Gray observou enquanto Brianna levava a m�o � testa, esfregando-a com for�a.
- Sim, eu sei. Sinto que isso a tenha aborrecido. Vou a� amanh�. Posso...
Deteve-se obviamente interrompida por algum coment�rio �cido do outro lado. Gray afastou a vontade de entrar na sala e acalmar os ombros tensos.
- Levarei voc� aonde quiser amanh�. Nunca disse que estava ocupada demais e sinto que n�o esteja se sentindo bem. Farei as compras, sim, sem problemas. Antes
do almo�o, prometo. Tenho que ir agora. Estou com uns bolos no forno. Levarei um para a senhora, tudo bem? Amanh�, mam�e, prometo. - Murmurou um at� logo e voltou-se.
O abatimento do rosto, pela ang�stia que sentia, se transformou em choque quando viu Gray e enrubesceu. - Voc� caminha em sil�ncio - disse com um leve tom de aborrecimento.
- N�o o ouvi chegar.
- N�o quis interromper. - N�o sentia constrangimento algum por ouvir sua conversa, nem por observar as rea��es perturbadas que se refletiam no rosto dela.
- Sua m�e mora perto?
- N�o, bem longe. - A voz era cortante agora, aguda, com a raiva que se revolvia dentro dela. Ele ouvira seu sofrimento pessoal e nem achara importante o suficiente
para se desculpar. - Vou servir seu ch� agora.
- Sem pressa. H� bolos no forno. Ela o encarou.
- Menti. Devo lhe dizer que abri minha casa para voc�, mas n�o minha vida pessoal.
Ele aceitou com um aceno de cabe�a.
- Devo lhe dizer que sempre me intrometo. Voc� est� chateada, Brianna. Acho que deveria tomar um ch�.
- J� tomei, obrigada. - Seus ombros continuavam tensos quando se moveu passando diante dele. Gray a deteve com o mais leve ro�ar de sua m�o no bra�o dela.
Havia curiosidade nos olhos dele, e ela se ressentiu por isso. Havia pena, e isso ela n�o queria.
- Muitos escritores t�m ouvidos t�o abertos quanto um bom atendente de bar.
Ela se mexeu. Apenas um lev�ssimo movimento, mas colocou dist�ncia entre eles, e atingiu seu prop�sito.
- Sempre cismo com pessoas que julgam necess�rio contar seus problemas pessoais ao homem que lhes serve cerveja. Trarei seu ch� para a sala. Tenho muito que
fazer na cozinha para ter companhia.
Gray passou a l�ngua nos dentes, enquanto ela sa�a. Sabia que tinha sido posto exatamente no seu lugar.
* * *
Brianna n�o podia culpar o americano pela curiosidade. Tamb�m tinha a sua. Gostava de descobrir sobre as pessoas que passavam pela sua casa, ouvi-las falar
sobre sua vida e sua fam�lia. Podia ser injusto, mas preferia n�o falar da sua. Era muito mais confort�vel o papel de espectador. E mais seguro tamb�m.
Mas n�o estava brava com ele. A experi�ncia lhe ensinara que mau humor n�o resolvia nada. Paci�ncia, boas maneiras e um tom calmo eram prote��es mais efetivas
e uma arma contra a maioria dos confrontos. Serviram a ela muito bem durante o jantar, e, ao final, parecia que ela e Gray tinham retomado suas posi��es adequadas
de anfitri� e h�spede. O convite casual para que ela o acompanhasse ao pub da vila tinha sido recusado t�o casualmente quanto fora feito. Brianna tinha passado uma
hora agrad�vel, terminando a leitura de seu livro.
Agora, com o caf�-da-manh� servido e a lou�a lavada, preparava-se para dirigir at� a casa da m�e e dedicar o resto da manh� a Maeve. Maggie ficaria aborrecida
ao saber, Brianna pensou. Mas a irm� n�o entendia que era mais f�cil, certamente menos estressante, simplesmente satisfazer a necessidade que a m�e tinha de tempo
e afei��o. Inconveni�ncias � parte, eram apenas poucas horas de sua vida.
Quase um ano atr�s, antes do sucesso de Maggie tornar poss�vel instalar Maeve com uma acompanhante em sua pr�pria casa, Brianna ficava � disposi��o de seus
chamados e acenos vinte e quatro horas por dia, cuidando de doen�as imagin�rias, ouvindo reclama��es de suas pr�prias neglig�ncias.
E sendo lembrada, a toda hora, que Maeve tinha cumprido seu dever dando-lhe a vida.
O que Maggie n�o entendia, e pelo que Brianna continuava a se sentir culpada, era que estava disposta a pagar qualquer pre�o pela serenidade de ser a �nica
dona de Blackthorn Cottage.
E hoje o sol estava brilhando. Havia vest�gios da long�nqua primavera na brisa leve. N�o duraria, Brianna sabia. Aquilo tornava a luz luminosa e o ar suave
mais preciosos. Para aproveitar mais, abriu as janelas de seu velho Fiat. Teria de fech�-las novamente e ligar o lento aquecedor, quando apanhasse a m�e.
Olhou de relance para o pequeno e lindo Mercedes que Gray alugara - sem inveja. Ou talvez s� com uma pontinha de inveja. Era t�o eficientemente vistoso. E
combinava com o motorista, � perfei��o. Imaginou como seria sentar-se atr�s daquele volante s� por uns minutos.
Quase se desculpando, afagou o volante de seu Fiat, antes de girar a chave. O motor se esfor�ou, grunhiu e tossiu.
- Ah, logo agora! N�o acredito - murmurou, girando a chave novamente. - Vamos, querido, coragem. Ela odeia quando me atraso.
Mas o motor apenas gaguejou, ent�o morreu com um gemido. Resignada, Brianna saiu e levantou o cap�. Sabia que o Fiat, com freq��ncia, mostrava o humor de uma
velha chata. Mas, comumente, ele podia ser persuadido com alguns golpes e pancadas dados com as ferramentas que levava na mala.
Estava pegando uma caixa de ferramentas meio amassada quando Gray apareceu na porta da frente.
- Problemas com o carro? - gritou.
- Ele � temperamental. - Brianna atirou para tr�s os cabelos e levantou as mangas do su�ter. - S� precisa de um pouco de aten��o.
Com os polegares enfiados nos bolsos da frente dos jeans, ele se aproximou e olhou embaixo do cap�. N�o era arrog�ncia, mas quase.
- Quer que eu d� uma olhada?
Ela o encarou. Ainda n�o se barbeara. A barba por fazer deveria faz�-lo parecer desleixado e desarrumado. No entanto, a combina��o disso com os cabelos dourados
presos atr�s num rabo-de-cavalo eri�ado fez Brianna imaginar um astro de rock americano. Ela riu da id�ia.
- Entende mesmo de carros ou est� oferecendo ajuda porque acha que � sua obriga��o por ser homem?
Ele ergueu uma sobrancelha, enquanto pegava a caixa de ferramentas da m�o dela. Teve de admitir que ficara aliviado por ela n�o estar mais brava com ele.
- Chegue para tr�s, senhorita - ele falou num tom de voz arrastado do Sul. - E n�o esquente sua linda cabe�a. Deixe um homem cuidar disso.
Impressionada, ela balan�ou a cabe�a.
- Voc� falou exatamente como imaginei Buck falando em seu livro.
- Tem um bom ouvido. - Lan�ou-lhe um sorriso antes de se enfiar embaixo do cap�. - � um pe�o arrogante, n�o �?
- Hummm. - Embora estivessem falando de um personagem de fic��o, ela n�o tinha certeza se seria delicado concordar com ele. - Geralmente � o carburador. Murphy
prometeu consert�-lo quando tiver tempo.
Ainda com a cabe�a e os ombros embaixo do cap�, Gray simplesmente girou a cabe�a, lan�ando-lhe um olhar seco. - Bem, Murphy n�o est� aqui, est�?
Teve de admitir que n�o. Mordeu o l�bio, enquanto observava Gray trabalhar. Ela apreciara o oferecimento, de verdade. Mas o homem era um escritor, n�o um mec�nico.
N�o poderia arcar com o preju�zo, se ele estragasse alguma coisa.
- Geralmente, mexo aqui - para mostrar, inclinou-se ao lado de Gray e apontou -, depois ligo o carro.
Ele se voltou e ficaram olho no olho, boca com boca. Ela cheirava esplendidamente, como o ar puro e l�mpido da manh�. Enquanto ele a olhava, um rubor tingiu
as faces dela, os olhos se abrindo um pouco mais. Sua rea��o r�pida e obviamente espont�nea poderia t�-lo feito sorrir, se seu sistema operacional n�o estivesse
em pane.
- N�o � o carburador, desta vez - falou, imaginando o que ela faria se ele grudasse os l�bios justamente naquela pulsa��o em sua garganta.
- N�o? - Ela n�o conseguiria se mexer, mesmo que corresse risco de vida. Os olhos dele resplandeciam, pensou bobamente, fa�scas douradas em meio ao castanho,
assim como nos cabelos. Esfor�ou-se para continuar respirando. - Geralmente �.
Ele se moveu, um teste para ambos, at� que os ombros se tocaram. Os ador�veis olhos dela se turvaram de confus�o, como um mar sob c�us inconstantes. - Desta
vez � o cabo da bateria. Est� oxidando.
- Foi um inverno �mido.
Se ele se inclinasse apenas um pouquinho, sua boca encontraria a dela. Ao pensar nisso, ela sentiu um frio no est�mago. Seria rude, ele seria rude, estava
certa. Beijaria como o her�i do livro que tinha acabado de ler na noite anterior? Os dentes a mordiscando, enfiando a l�ngua? Todo ele numa busca ardente e feroz,
enquanto as m�os...
Ah, Deus. Estava enganada, Brianna percebeu, ela conseguiria se mexer, se corresse risco de vida. Sentiu como se tivesse acontecido, embora ele n�o tivesse
se movido, nem mesmo piscado. Atordoada com a pr�pria imagina��o, recuou abruptamente, deixando escapar um gemido angustiado, quando ele tamb�m se mexeu.
Ficaram parados,-quase abra�ados, sob a luz do sol.
O que ele faria?, pensou. O que ela faria?
Ele n�o sabia, ao certo, por que resistira. Talvez por causa das sutis ondas de medo vibrando nela. Talvez pelo choque, ao descobrir que tinha seu pr�prio
medo, comprimindo-lhe a boca do est�mago.
Foi ele quem deu um passo atr�s, um passo essencial.
- Vou limpar o cabo para voc� - ele disse. - E tentaremos outra vez.
As m�os dela procuraram uma pela outra, at� entrela�ar os dedos.
- Obrigada. Preciso ligar para a minha m�e, dizendo que vou me atrasar.
- Brianna. - Esperou que ela parasse de recuar, at� que os olhos dela encontrassem os dele. - Voc� tem um rosto incrivelmente atraente.
Quando ouviu o elogio, n�o sabia ao certo como se portar. Concordou com a cabe�a.
- Obrigada. Gosto do seu tamb�m. Ele levantou a cabe�a.
- Qu�o cautelosa voc� quer ser a respeito disso?
Ela levou um momento para entender, outro para encontrar a voz:
- Muito. Acho que muito.
Gray viu-a desaparecer na casa, antes de voltar ao trabalho.
- Tinha medo disso - murmurou.
Logo que ela se p�s a caminho - o Fiat realmente precisava de uma boa revis�o -, Gray fez uma longa caminhada pelos campos. Disse a si mesmo que estava absorvendo
a atmosfera, pesquisando, preparando-se para trabalhar. Era uma pena que se conhecesse o bastante para entender que estava se acalmando de sua rea��o a Brianna.
Uma rea��o normal, assegurou a si mesmo. Afinal, ela era uma mulher bonita. E j� havia algum tempo que ele n�o sa�a com mulheres. Era de esperar que sua libido
se reanimasse.
Houve uma mulher, uma assistente de sua editora na Inglaterra, por quem ele se apaixonara. Brevemente. Mas suspeitara de que ela estava mais interessada em
como seu relacionamento contribuiria para sua carreira do que em curtir o momento. Fora aflitivamente f�cil para ele evitar que o relacionamento se tornasse �ntimo.
Estava ficando cansado, concluiu. O sucesso podia causar isso. Qualquer prazer e orgulho que trouxesse teria um pre�o. Uma aus�ncia crescente de confian�a,
uma vis�o mais deturpada: isso raramente o incomodava. Como poderia, se confian�a nunca fora mesmo seu ponto forte? Melhor, pensava, ver as coisas como eram do que
como desejaria que fossem. Deixar os eu quero para a fic��o.
Podia considerar sua rea��o a Brianna dessa maneira. Ela seria o prot�tipo para a sua hero�na. Uma mulher ador�vel, serena e sossegada, carregava segredos
nos olhos, gelo e brasa, conflitos se agitando sob a pele.
Que tipo de pessoa ela era? Com o que sonhava, de que tinha medo? Eram perguntas a que ele responderia enquanto constru�a a mulher com palavras e imagina��o.
Tinha inveja do assombroso sucesso da irm�? Ressentia-se das exig�ncias da m�e? Havia algum homem que ela desejava e que a desejava tamb�m?
Aquelas eram perguntas que demandavam respostas enquanto descobria Brianna Concannon.
Gray come�ou a pensar que teria de juntar todas elas, antes de poder contar sua hist�ria.
Sorriu para si mesmo, enquanto caminhava. Diria a si mesmo aquilo, pensou, porque queria saber. E n�o tinha qualquer escr�pulo em bisbilhotar pensamentos e
experi�ncias de algu�m. E nenhuma culpa em juntar aos seus.
Parou, girando lentamente, enquanto olhava em torno de si. Era um lugar onde algu�m podia se perder, pensou. Grandes extens�es de reluzentes campos verdes,
bifurcados com muros de pedra acinzentada, pontilhados com vacas gordas. A manh� estava t�o clara, t�o radiante, que era poss�vel ver o brilho das vidra�as nos chal�s
a dist�ncia, o agitar das roupas penduradas nos varais secando ao vento.
Acima, o c�u era uma ta�a cheia de azul, um perfeito cart�o postal. No entanto, no lado oeste desta ta�a, nuvens se aglutinavam, bordas arroxeadas amea�ando
tempestade.
Ali, que parecia ser o centro de um mundo cristalizado, ele podia sentir o cheiro de grama e gado, vest�gios do mar levados pelo ar, e o t�nue, muito t�nue
cheiro de fuma�a da chamin� de uma casa. Havia o som do vento na grama, o estalar da cauda das vacas e o clarim forte de um p�ssaro que celebrava o dia.
Quase se sentia culpado por trazer assassinatos e dist�rbios, ainda que ficcionais, para tal lugar. Quase.
Tinha seis meses, Gray pensou. Seis meses antes de o pr�ximo livro chegar �s prateleiras e de embarcar, t�o animadamente quanto poss�vel, no trem-fantasma
de turn�s e entrevistas. Seis meses para criar a hist�ria que j� se formava em sua cabe�a. Seis meses para desfrutar este pedacinho do mundo e as pessoas dali.
Ent�o ele os abandonaria, como j� abandonara d�zias de outros lugares, centenas de outras pessoas, e seguiria em frente. Era bom nisto: seguir em frente.
Gray pulou um muro baixo e passou para o pr�ximo campo.
O c�rculo de pedras logo atraiu seus olhos e imagina��o. J� vira monumentos bem maiores, estivera na sombra de Stonehenge e sentira o poder. Este s� tem cerca
de dois metros e meio, a pedra principal n�o � mais alta do que um homem. Mas, ao v�-lo ali, parado, silencioso, entre vacas que pastavam desinteressadas, parecia-lhe
maravilhoso.
Quem teria constru�do aquilo e por qu�? Fascinado, Gray rodeou a circunfer�ncia externa primeiro. Somente uma das vergas permanecia no lugar, as outras haviam
ca�do em alguma noite distante. Ao menos, esperava que tivesse sido � noite, durante uma tempestade, e o som delas tombando na terra teria vibrado como o brado de
um deus.
Passou uma das m�os sobre a pedra maior. Estava quente do sol, mas trazia algo assustadoramente g�lido. Podia usar isso?, imaginou. De alguma maneira combinar
esse lugar e os ecos de uma antiga magia em seu livro?
Teria acontecido algum assassinato ali? Caminhou para dentro do c�rculo, para o centro. Um local para sacrif�cios, meditou. Um ritual em que sangue borrifaria
a grama verde, manchando a base das pedras.
Ou talvez tivessem feito amor ali. Um desesperado e �vido emaranhado de membros, a grama fria e �mida embaixo, a lua cheia e branca flutuando acima. As pedras
protegendo, em guarda, enquanto o homem e a mulher se perdiam no desejo.
Podia imaginar os dois com igual clareza. Mas a segunda o atra�a mais, muito mais. S� conseguia ver Brianna deitada na grama, os cabelos soltos, os bra�os
erguidos. A pele dela seria alva como leite, macia como veludo.
Os quadris delgados se arqueariam. E, quando ele a penetrasse, ela gritaria. Aquelas unhas cuidadas arranhariam as costas dele. O corpo dela se arremessaria
como um cavalo selvagem sob o dele, mais r�pido, mais profundo, mais forte, at�...
- Bom-dia...
- Jesus! - Gray saltou para tr�s. Respira��o ofegante, boca seca. Mais tarde, prometeu a si mesmo, mais tarde seria divertido, mas agora se esfor�ou para arrancar
de sua cabe�a aquela fantasia er�tica e prestar aten��o no homem que se aproximava do c�rculo de pedras.
Era moreno, notavelmente atraente, vestido em roupas de fazendeiro, rudes e grosseiras. Talvez sujas, Gray julgou, um dos estonteantes irlandeses morenos que
ostentavam cabelos negros e olhos de cobalto. Os olhos pareciam bem amistosos, algo divertidos.
O cachorro de Brianna saltitava muito feliz em seus calcanhares. Ao reconhecer Gray, Con pulou no c�rculo para saud�-lo.
- Um lugar interessante - o homem disse no sotaque musical dos condados do Oeste.
- N�o esperava encontrar isto aqui. -Afagando a cabe�a de Con, Gray caminhou at� uma fresta entre as pedras. - N�o est� registrado em nenhum dos mapas tur�sticos
que tenho.
- N�o est� n�o. � o nosso totem, sabe, mas n�o nos importamos em compartilh�-lo ocasionalmente. Voc� deve ser o ianque de Brie. - Estendeu uma m�o grande e
�spera de trabalho. - Sou Murphy Muldoon.
- Das vacas que pisoteiam rosas? Murphy estremeceu.
- Cristo, ela nunca esquecer� isso. E n�o repus at� o �ltimo arbusto? Voc� deve estar achando que as vacas pisotearam seu primog�nito. - Olhou para Con em
busca de apoio. O cachorro sentou-se, inclinou a cabe�a emitindo sua pr�pria opini�o. - Ent�o est� hospedado em Blackthorn?
- Sim. Estou tentando sentir o clima da regi�o. - Olhou em volta, outra vez. - Acho que invadi suas terras.
- N�o atiramos em invasores nos dias de hoje.
- Bom ouvir isso. - Gray examinou seu companheiro novamente. Havia rigidez ali, pensou, por�m muito af�vel. - Eu estava no pub da vila, a noite passada, no
O'Malley, e bebi uma cerveja com um homem chamado Rooney.
- Voc� quer dizer que pagou uma cerveja para ele. - Murphy riu.
- Duas. - Gray riu de volta. - Ele mereceu, pagou com as fofocas da vila.
- Algumas das quais provavelmente s�o verdadeiras. - Murphy pegou um cigarro, ofereceu-lhe outro.
Sacudindo a cabe�a, Gray enfiou as m�os nos bolsos. S� fumava quando estava escrevendo.
- Acho que seu nome foi mencionado.
- N�o duvido nada.
- O que o jovem Murphy est� perdendo - Gray come�ou imitando Rooney, de uma forma que fez Murphy explodir numa risada - � uma boa esposa e filhos fortes para
trabalhar a terra com ele. Ele procura perfei��o, o Murphy, ent�o passa as noites sozinho numa cama fria.
- E quem diz isso � Rooney, que passa a maior parte das noites no pub, reclamando que a esposa o leva a beber.
- Ele falou isso tamb�m. - Gray desviou o assunto para a pergunta que o interessava mais. - E que, desde que o janota roubou Maggie debaixo de seu nariz, voc�
estaria cortejando a irm� mais nova.
- Brie? - Murphy sacudiu a cabe�a enquanto soltava a fuma�a. - Seria como acariciar minha irm� ca�ula. - Ele ainda sorria, mas seus olhos estavam cravados
em Gray. - Isso era o que voc� queria saber, Sr. Thane?
- Gray. Sim, � o que eu queria saber.
- Ent�o, vou deixar uma coisa bem clara. V� com calma. Costumo proteger minhas irm�s. - Satisfeito por definir sua posi��o, Murphy tragou calmamente. - Voc�
� bem-vindo para entrar e tomar um ch�.
_Obrigado pelo convite, mas fica para outro dia. H� coisas que
preciso fazer hoje.
- Bem, ent�o vou deix�-lo ir. Gosto de seus livros - disse isso t�o espontaneamente que Gray se sentiu duplamente cumprimentado. - H� uma livraria em Galway
que voc� vai gostar de visitar se for para aqueles lados.
- Pretendo.
- Vai encontr�-la, ent�o. Recomenda��es a Brianna, sim? E pode dizer que n�o tenho nenhuma broinha em minha despensa. - O sorriso dele iluminou o lugar. -
Ela vai ficar com pena de mim.
Depois de assoviar para o cachorro, que deitara a seu lado, caminhou com a eleg�ncia segura de quem atravessa as pr�prias terras.
J� estava no meio da tarde quando Brianna voltou para casa, extenuada, exaurida, tensa. Ficou agradecida por n�o encontrar nenhum vest�gio de Gray, apenas
um bilhete rabiscado �s pressas, deixado sobre a mesa da cozinha:
Maggie ligou. Murphy est� sem broinhas.
Uma estranha mensagem, pensou. Por que Maggie ligaria para falar que Murphy estava sem broinhas? Com um suspiro, deixou o bilhete de lado. Automaticamente
colocou a chaleira no fogo para o ch�, antes de separar os ingredientes de que precisava para o frango caipira que encontrara, como um pr�mio, no mercado.
Ent�o suspirou, rendendo-se. Sentou-se novamente, dobrou os bra�os sobre a mesa, deitou a cabe�a sobre eles. N�o chorou. L�grimas n�o ajudariam, n�o mudariam
nada. Fora um dos maus dias de Maeve, cheio de artimanhas, queixas e acusa��es. Talvez os dias ruins fossem piores agora, porque, no �ltimo ano, tinha havido mais
dias bons do que ruins.
Quer admitisse ou n�o, Maeve amava sua casinha. Gostava muito de Lottie Sullivan, a enfermeira aposentada que Brianna e Maggie haviam contratado para acompanhante.
Entretanto, nem o dem�nio seria capaz de arrancar esta simples verdade de sua boca. Estava muito mais contente do que Brianna pensara que fosse capaz.
Mas Maeve nunca esquecia, nunca, que Maggie era respons�vel por quase cada peda�o de p�o que sua m�e desfrutava. E parecia nunca parar de se ressentir disso.
Este dia tinha sido um daqueles em que Maeve descontara na filha mais nova, reclamando de tudo. Com o desgaste adicional das cartas que Brianna encontrara,
estava simplesmente exausta.
Fechou os olhos e concedeu-se alguns instantes para seus desejos. Desejava que sua m�e fosse feliz. Que reconquistasse qualquer que fosse o prazer que tivesse
tido na juventude. Desejou, ah, desejou mais do que tudo que pudesse amar a m�e com um cora��o aberto e generoso, e n�o apenas com dever frio e desespero arrasador.
E desejou uma fam�lia, a casa cheia de amor, vozes, risadas. N�o apenas h�spedes transit�rios que chegavam e partiam, mas permanentes.
Se desejos fossem moedas, Brianna pensou, ser�amos ricos como Midas. Levantou-se, sabendo que a fadiga e a depress�o desapareceriam logo que come�asse a trabalhar.
Gray teria um bom frango assado para o jantar, refor�ado por um p�o de ervas e um rico molho.
E Murphy, que Deus o aben�oe, teria suas broas.
E
m poucos dias, Brianna se acostumara � rotina de Gray e ajustara-se a ela. Ele era bom de garfo, raramente perdia uma refei��o, embora logo tenha percebido que n�o
era muito de respeitar hor�rios. Entendia que ele estava com fome quando come�ava a rondar a cozinha. Qualquer que fosse a hora, ela lhe preparava um prato. E tinha
de admitir que apreciava v�-lo gostar de sua comida.
Muitas vezes, ele sa�a para o que ela chamava de "suas excurs�es". Se pedia sugest�es, ela dava algumas indica��es ou sugeria algum lugar que ele poderia gostar
de ver. Mas, geralmente, ele sa�a com um mapa, um caderno e uma c�mera.
Ela ia ao quarto dele, quando ele estava fora. Qualquer um que arruma coisas de outra pessoa come�a a compreend�-la. Brianna percebeu que Grayson Thane era
bem cuidadoso com as coisas que pertenciam a ela. As macias toalhas dos h�spedes nunca estavam jogadas no ch�o ou amontoadas e �midas em algum canto, nunca havia
nenhuma roda molhada, de copo ou x�cara, esquecidos sobre os m�veis. Mas tinha total descuido e descaso com o que era dele. Podia limpar a lama das solas antes de
entrar. Entretanto, nunca limpava o couro caro ou o engraxava.
Ent�o ela o fazia.
As roupas traziam etiquetas de lojas finas do mundo todo. Mas nunca eram passadas e muitas vezes eram jogadas negligentemente sobre uma cadeira ou penduradas,
de qualquer jeito, no guarda-roupa.
Por conta pr�pria, ela come�ou a lavar a roupa dele, e tinha de admitir que era prazeroso pendurar suas camisas na corda quando o dia estava ensolarado.
Ele n�o guardava lembran�as de amigos ou fam�lia, n�o fazia nenhuma tentativa de personalizar o quarto onde morava agora. Havia livros, caixas deles - mist�rios,
novelas de horror, suspenses de espionagem, romances, cl�ssicos, livros de n�o-fic��o sobre procedimentos policiais, armas e assassinato, psicologia, mitologia,
bruxaria, um manual de mec�nica, o que a fez sorrir, e assuntos bem variados, como arquitetura e zoologia.
Parecia n�o existir algo que n�o o interessasse.
Sabia que preferia caf�, mas tomaria um pouco de ch�, se fosse bem forte. Tinha dentes como de um garoto de dez anos, e a energia de um.
Ele era curioso - n�o havia assunto sobre o qual n�o perguntasse. Mas havia uma gentileza natural nele que tornava dif�cil repeli-lo. Nunca deixava de se oferecer
para fazer alguma coisa para ajud�-la ou para levar algum recado, e j� o vira, sorrateiramente, dar peda�os de comida para Con quando pensava que ela n�o estava
olhando.
De modo geral, era um h�spede excelente - ele lhe oferecia companhia, lucro e o trabalho que adorava. Ela lhe proporcionava uma boa estrutura. Embora n�o conseguisse
relaxar totalmente perto dele. Ele nunca se referira �quele momento de s�bita atra��o entre eles. Mas ela estava ali - no modo como sua pulsa��o subia quando entrava
num c�modo e o encontrava inesperadamente. Na maneira como seu corpo se excitava quando ele dirigia aqueles olhos dourados para ela e simplesmente a olhava.
Brianna se culpava por isso. Fazia muito, muito tempo desde que se sentira profundamente atra�da por um homem. Desde que Rory McAvery lhe deixara uma cicatriz
no cora��o, um vazio em sua vida e uma repulsa cruel por qualquer homem.
Como nutria esse tipo de sentimento por um h�spede, Brianna decidira que era sua obriga��o calar.
Mas, enquanto estendia a colcha na cama dele, afofava seus travesseiros, imaginava aonde suas excurs�es o levariam hoje.
Ele n�o havia ido longe. Gray decidira andar naquela manh� e desceu a estrada estreita, vagando sob os c�us sombrios e amea�adores. Passou por algumas constru��es,
viu o abrigo de um trator, fardos de feno empilhados do lado de fora. De Murphy, imaginou, e come�ou a pensar como seria ser um fazendeiro.
Possuir terras, ser respons�vel por elas. Arar, plantar, cuidar, ver as coisas crescerem. Ficar de olho no c�u, cheirando o ar, pressentir uma virada do tempo.
N�o uma vida para Grayson Thane, pensou, mas imaginou que alguns a achariam gratificante. Observara aquele simples orgulho de propriet�rio no andar de Murphy
Muldoon, um homem que sabia que seus p�s pisavam no que era seu.
Mas possuir terra, ou qualquer coisa, significava ficar preso a ela. Teria de perguntar a Murphy como se sentia a respeito disso.
Gray podia ver o vale desse local, e a encosta das montanhas. De longe veio o �gil e feliz latido de um c�o. Con, talvez, procurando aventuras, antes de ir
para casa e deitar a cabe�a no colo de Brianna.
Gray tinha de invejar o privil�gio do cachorro.
Com uma careta, Gray enfiou as m�os nos bolsos. Andava se esfor�ando para manter aquelas m�os longe de sua sutilmente sexy anfitri�.
J� dissera a si mesmo que ela n�o usava aqueles aventais impec�veis ou prendia os cabelos num coque para seduzi-lo. Mas funcionava assim. Era improv�vel que
ela zanzasse pela casa cheirando a flores silvestres e cravo s� para enlouquec�-lo. Mas ele estava padecendo.
Al�m da atra��o f�sica - o que j� era bem dif�cil de controlar -, havia aquele ar de segredos e tristeza. Tinha de transpor aquela parede de reserva e descobrir
o que a estava preocupando. O que estava pondo sombras em seus olhos.
N�o que pretendesse envolver-se com ela, assegurou a si mesmo. Sentia-se apenas curioso. Conquistar amigos era coisa que fazia facilmente, por interesse sincero
e natureza af�vel. Mas amigos �ntimos, do tipo com que um homem mant�m contato ao longo dos anos, com quem se preocupa, de quem sente falta quando est� longe, n�o
estavam em sua programa��o.
Grayson viajava livre e freq�entemente.
O pequeno chal� com a porta da frente extravagantemente pintada o fez parar. Um anexo fora constru�do na parte sul, quase t�o grande como a casa original.
A terra que tinha sido deslocada era agora uma montanha de barro que deliciaria qualquer crian�a de cinco anos.
A pequena casa descendo a rua?, pensou. Onde a irm� de Brianna e o cunhado moravam de tempos em tempos? Ele concluiu que a porta magenta era coisa de Maggie
e entrou para dar uma olhada.
Durante os poucos minutos seguintes, deu-se ao prazer de ficar bisbilhotando a nova constru��o. Algu�m sabia o que estava fazendo ali, pensou. A estrutura
era firme, o material era da melhor qualidade. O anexo foi feito para o beb�, deduziu, avan�ando para a parte de tr�s. Foi ent�o que se deparou com um pr�dio nos
fundos.
A oficina de vidro dela. Contente com a nova descoberta, avan�ou pelo caminho no gramado �mido. Ao chegar l�, colocou as m�os em concha contra o vidro e examinou-a.
Podia ver fornos, bancadas, ferramentas, que despertaram sua curiosidade e imagina��o. Prateleiras repletas de trabalhos em andamento. Sem nenhum escr�pulo, dirigiu-se
� porta.
- Est� querendo ter seus dedos quebrados?
Voltou-se. Maggie estava parada na porta dos fundos do chal�, uma x�cara fumegante numa das m�os. Vestia um su�ter folgado, cal�as de veludo cotel� e uma carranca.
Gray riu para ela.
- N�o exatamente. � aqui que voc� trabalha?
- �. Como voc� trata pessoas que, sem serem convidadas, bisbilhotam seu est�dio?
- N�o tenho um est�dio. Que tal um tour? Ela melhorou o humor.
- Voc� � bem atrevido, n�o �? Mas tudo bem, j� que n�o estou fazendo nada. Sua majestade j� saiu - reclamou, atravessando o gramado. - Nem me acordou. Deixar
um bilhete � tudo o que ele faz, dizendo para tomar um caf� decente e manter os p�s para o alto.
-E voc� fez isso?
-Eu teria feito se n�o tivesse ouvido algu�m andando pela minha
propriedade.
- Desculpe. - Mas ainda ria para ela. - Para quando � o beb�?
- Primavera. - Sem querer, ela se enterneceu. Bastava mencionar o beb�. -Ainda tenho algumas semanas pela frente, e se o pai continuar me paparicando terei
que mat�-lo. Bem, entre ent�o, j� que est� aqui.
- Vejo que esta hospitalidade af�vel vem de fam�lia.
- N�o. -Agora, um sorriso se insinuou nos l�bios dela. - Brianna ficou com toda a amabilidade. Olhe - falou, enquanto abria a porta. - N�o toque em nada ou
quebro seus dedos.
- Sim senhora. � lindo! - Come�ou a explorar no minuto em que entrou, caminhando para as bancadas, inclinando-se para checar o forno. - Voc� estudou em Veneza,
n�o?
- Estudei sim.
- O que a levou a optar por esta profiss�o? Deus, odeio quando me fazem esta pergunta. Esque�a. - Riu para si mesmo e caminhou at� as pipetas. Os dedos comichavam
de vontade de tocar nelas. Cauteloso, olhou de volta para ela, avaliando. - Sou bem maior do que voc�.
Ela concordou com a cabe�a.
- Mas sou malvada. - Brincou e apontou um estilete para ele. Ele avaliou a l�mina. - �tima arma para um assassinato.
- Vou me lembrar disto na pr�xima vez que algu�m interromper meu trabalho.
- Ent�o, como � o processo? - Olhou para os desenhos espalhados sobre o banco. - Rascunha suas id�ias?
- Muitas vezes. - Bebericou o ch�, olhando para o sujeito. Na verdade, havia algo no modo como ele se movia, leve e fluido, sem qualquer alvoro�o, que a fez
ansiar pelo seu bloco de desenhos. - Querendo aprender?
- Sempre. Deve ser bem quente aqui dentro, quando os fornos est�o funcionando. Voc� funde as coisas aqui, e depois?
- Fa�o um esbo�o, uma bola. - Durante os trinta minutos seguintes ela lhe explicou, passo a passo, todo o processo de soprar um vaso de vidro feito � m�o.
O homem era cheio de perguntas, pensou. Perguntas intrigantes, admitiu, do tipo que faz voc� ir adiante do processo t�cnico at� � inten��o da cria��o que existe
por tr�s. Ela poderia ter resistido a elas, mas o entusiasmo dele tornava mais dif�cil. Em vez de apress�-lo, descobriu-se respondendo �s perguntas, demonstrando,
rindo com ele.
- Continue assim e vou encarregar voc� do pontel, cara. - Divertida, deslizou a m�o sobre a barriga. - Bem, entre e tome um ch� quentinho.
- Voc� n�o teria alguns bolinhos, biscoitos, de Brianna? Maggie ergueu a sobrancelha.
- Tenho.
Pouco depois, Gray estava instalado na cozinha de Maggie, com um prato de biscoitos de gengibre.
- Juro que ela devia vender isso - disse, com a boca cheia. - Ficaria rica.
- Ela prefere d�-los �s crian�as da vila.
- Fico surpreso por ela n�o ter filhos. - Esperou um golpe. - N�o observei nenhum homem aparecer para uma visita.
- E voc� � do tipo observador, n�o �, Grayson Thane?
- Seria de esperar. � uma mulher bonita.
- N�o discordo. - Maggie colocou �gua quente num bule de ch�.
- Voc� me faz puxar pelo resto - murmurou. - Ela tem algu�m ou n�o?
- Por que n�o pergunta a ela? - Irritada, Maggie deixou o bule sobre a mesa, fechando o rosto para ele. Ele tinha o talento, pensou, de fazer voc� querer lhe
contar o que ele queria saber. - N�o. - Colocou com um baque uma caneca na mesa, na frente dele. - N�o tem ningu�m. Ela espanta e afasta todos. Prefere passar a
vida cuidando dos h�spedes ou correndo a Ennis toda vez que nossa m�e funga. Autoflagelamento � o que nossa Santa Brianna sabe fazer melhor.
- Est� preocupada com ela - Gray murmurou. - O que a est� aborrecendo, Maggie?
- � assunto de fam�lia. Deixe pra l�. - Muito depois, ela encheu a x�cara dele e a dela. Suspirou, ent�o, e sentou-se. - Como sabe que ela est� aborrecida?
- Transparece. Nos olhos. Assim como nos seus, agora.
- Logo tudo vai se resolver. - Maggie fez um esfor�o determinado para deixar aquilo de lado. - Voc� sempre se intromete na vida das pessoas assim?
- Quase sempre. - Provou o ch�. Estava forte o bastante para levantar um defunto. Perfeito. - Ser escritor � uma �tima desculpa para ser curioso. - Ent�o os
olhos dele mudaram, ficaram s�rios. - Gosto dela. � imposs�vel n�o gostar. Me incomoda v�-la triste.
- Pode ser amigo dela. Voc� tem talento para fazer com que as pessoas falem. Use-o com ela. Mas tenha cuidado - acrescentou antes que Gray pudesse falar. -
Ela � muito sens�vel. Se voc� a ferir, fa�o o mesmo com voc�.
- Combinado. - Hora de mudar de assunto, pensou. Apoiou o p� cal�ado de bota sobre o joelho. - Ent�o, que hist�ria � essa com nosso chapa, o Murphy? O cara
de Dublin realmente roubou voc� debaixo do nariz dele?
Por sorte, ela j� tinha engolido o ch� ou teria engasgado. Come�ou a rir contidamente, at� irromper numa gargalhada que fez seus olhos se encherem d'�gua.
- Perdi alguma piada? - Rogan perguntou da soleira da porta. - Respire fundo, Maggie, est� ficando vermelha.
- Sweeney. - Ela engoliu o ar numa risada e buscou a m�o dele. - Este � Grayson Thane. Estava querendo saber se voc� apertou a goela de Murphy para me cortejar.
- N�o de Murphy - disse divertido -, mas tive que apertar v�rias partes de Maggie, terminando com a cabe�a dela, que precisava de algum ju�zo. � um prazer
conhec�-lo - acrescentou, estendendo a Gray a m�o livre. - Passei muitas horas entretido com suas hist�rias.
- Obrigado.
- Gray ficou me fazendo companhia - Maggie falou. - E, agora, estou num �timo humor para gritar com voc� por n�o me acordar esta manh�.
- Voc� precisava dormir. - Serviu-se de ch�, estremecendo depois do primeiro gole. - Puxa, Maggie, precisa sempre fazer t�o forte assim?
- L�gico. - Inclinou-se para a frente, apoiando o queixo na m�o. - De que parte dos Estados Unidos voc� �, Gray?
- Parte alguma, em particular. Mudo sempre.
- Mas e sua casa?
- N�o tenho casa. - Mordiscou outro biscoito. - Do jeito que viajo, n�o preciso de uma.
A id�ia era fascinante. Maggie inclinou a cabe�a, examinando-o.
- Voc� simplesmente vai de um lugar para outro com o qu�?... carregando as roupas nas costas?
- Basicamente, pouco mais do que isso. �s vezes acabo pegando alguma coisa � qual n�o resisto, como aquela escultura sua em Dublin. Aluguei um espa�o em Nova
York, uma esp�cie de dep�sito para guardar coisas. � onde est�o meu editor e meu agente. Ent�o, volto sempre uma ou duas vezes por ano. Posso escrever em qualquer
lugar - falou com um dar de ombros. - Ent�o, escrevo.
- E sua fam�lia?
- Voc� est� se intrometendo, Margaret Mary.
- Ele que come�ou - disparou para Rogan.
- N�o tenho fam�lia. Voc�s j� escolheram o nome do beb�? - Gray perguntou simplesmente mudando de assunto.
Reconhecendo a t�tica, Maggie franziu a sobrancelha. Rogan lhe deu uma cutucada no joelho por sob a mesa, antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.
- N�o chegamos a um acordo. Mas esperamos decidir antes de ele ir para a universidade.
Delicadamente, Rogan conduziu a conversa para um papo descontra�do e impessoal, at� que Gray levantou-se para sair. Logo que ficou sozinha com o marido, Maggie
tamborilou os dedos sobre a mesa.
- Eu teria descoberto mais sobre ele, se voc� n�o tivesse interferido.
- N�o � da sua conta. - Inclinou-se e beijou-a na boca.
- Talvez seja. Gosto bastante dele. Mas seus olhos brilham quando fala em Brianna. N�o estou certa se gosto disto.
-N�o � da sua conta tamb�m.
-Ela � minha irm�.
-E bem capaz de se cuidar sozinha.
-Voc� entende muito disso - ela grunhiu. - Os homens sempre acham que conhecem as mulheres, quando n�o conhecem absolutamente nada.
- Conhe�o voc�, Margaret Mary. - Num movimento delicado, ergueu-a da cadeira, tomando-a em seus bra�os.
- O que voc� est� querendo?
- Estou querendo levar voc� para a cama, deix�-la nua e fazer amor com todo o cuidado do mundo.
- Ah, � mesmo? - Ela atirou os cabelos para tr�s. - Est� � querendo me distrair do assunto.
- Vamos ver se consigo fazer isso direitinho.
Ela sorriu e jogou os bra�os em volta do pesco�o dele.
- Acho que devo, pelo menos, lhe dar uma chance.
Quando Gray voltou a Blackthorn Cottage, encontrou Brianna passando cera no ch�o da sala, em c�rculos lentos, quase amorosos. A cruzinha de ouro que ela muitas
vezes usava balan�ava na corrente fininha como um p�ndulo e refletia r�pidos lampejos de luz. Ela colocara uma m�sica, uma melodia alegre que acompanhava cantando
em irland�s. Encantado, agachou-se ao lado dela.
- O que essas palavras significam?
Ela estremeceu. Ele tinha um jeito de se mover que apenas agitava o ar. Afastou os cabelos dos olhos e continuou polindo.
- � sobre ir para a guerra.
- Soa t�o alegre para ser sobre guerra.
- Ah, somos felizes o suficiente para lutar. Voc� voltou mais cedo do que de costume. Quer um ch�?
- N�o, obrigado. Acabei de tomar um na casa de Maggie. S� ent�o ela levantou os olhos.
- Esteve visitando Maggie?
- Pensei em dar uma volta e acabei na casa dela. Ela me levou para conhecer sua oficina de vidro.
Brianna riu. Ent�o, vendo que ele estava s�rio, sentou-se nos calcanhares.
- E como, por Deus, voc� conseguiu uma proeza dessas?
- Pedi. - Sorriu. - Ela estava um pouco irritada no in�cio, mas acabou cedendo. - Inclinando-se para Brianna, ele respirou fundo. - Voc� cheira a lim�o e cera
de abelhas.
- N�o � nenhuma surpresa. - Teve de limpar a garganta. - � com o que estou lustrando o ch�o. - Deixou escapar um som sufocado, quando ele lhe pegou a m�o.
- Voc� deveria usar luvas para fazer trabalhos pesados.
- Elas me atrapalham. - Sacudiu a m�o, mas ele a reteve. Embora tentasse olhar firme, s� conseguiu um olhar angustiado. - Voc� est� no meu caminho.
- J� vou embora. - Ela parecia t�o divinamente bela, pensou, ajoelhada no ch�o com o pano de polir e as faces ruborizadas. - Saia comigo esta noite, Brie.
Deixe-me lev�-la para jantar.
- Tenho um... tenho carneiro - gaguejou - para fazer uma torta.
- N�o d� para guardar?
- D�, mas... Se voc� enjoou da minha comida...
- Brianna. - Sua voz era doce, persuasiva. - Quero lev�-la para sair.
- Por qu�?
- Porque tem um rosto lindo. - Ro�ou os l�bios pelos n�s de seus dedos, fazendo o cora��o dela saltar para a garganta. - Porque acho que seria bom para voc�
ter outra pessoa cozinhando, ao menos por uma noite.
- Gosto de cozinhar.
- Eu gosto de escrever, mas � sempre bom ler alguma coisa que algu�m mais tenha suado em cima.
- N�o � a mesma coisa.
- Claro que �. - Com a cabe�a inclinada, lan�ou-lhe um olhar cortante. - Voc� n�o est� com medo de ficar sozinha comigo num restaurante, est�?
- Que coisa boba para se dizer! - Que coisa boba, percebeu, para ela sentir!
-�timo, ent�o est� combinado. �s sete. - Esperto o bastante para saber quando recuar, Gray ergueu-se e saiu.
Ela disse a si mesma para n�o se preocupar com o vestido, mas se atormentou do mesmo modo. Afinal, escolheu o que Maggie havia trazido de Mil�o. Mangas longas
e gola alta, parecia simples, bem b�sico, at� que fosse vestido. Com um corte bem-feito, a l� leve e delicada, tinha um drapeado sobre as curvas revelando tanto
quanto escondia.
Calma, Brianna disse a si mesma, ele fica bem para jantar fora, e era um pecado n�o us�-lo, j� que Maggie gastara tempo e dinheiro com ele. E o contato com
a pele era ador�vel.
Irritada com a cont�nua agita��o dos nervos, pegou o casaco, um preto liso, com forro remendado, e dobrou-o sobre o bra�o. Era s� um convite para uma refei��o,
lembrou a si mesma. O gesto delicado de um homem que ela vinha alimentando por mais de uma semana.
Inspirando fundo pela �ltima vez, saiu do quarto para a cozinha e come�ou a descer para o hall de entrada. Ele acabara de descer as escadas. Envergonhada,
ela hesitou.
Ele parou onde estava, um p� ainda no degrau de baixo, segurando o corrim�o. Por um momento, eles s� fitaram um ao outro, num daqueles estranhos e fugazes
instantes de magia. Ent�o ele se adiantou e a sensa��o se desvaneceu.
- Ora, ora... - Os l�bios dele se curvaram num lento e satisfeito sorriso. - Voc� parece uma pintura, Brianna.
- Voc� est� usando terno. - E est� lindo nele.
- Ag�ento um de vez em quando. - Pegou o casaco dela, colocando-o sobre os ombros.
- Voc� ainda n�o disse aonde vamos.
- Comer. - Colocou um bra�o em torno da cintura dela e levou-a para fora.
O interior do carro a fez suspirar. Cheirava a couro, e o couro era macio como manteiga. Ela deslizou os dedos sobre o assento, enquanto ele dirigia.
- � muita gentileza sua fazer isto, Gray.
- Isso nada tem a ver com gentileza. Estava ansioso para sair e desejava ter voc� comigo. Voc� nunca vai ao pub � noite.
Ela relaxou um pouco. Ent�o era aonde iam.
- N�o tenho ido ultimamente. Gosto de dar uma passada l�, uma vez ou outra, para ver todo mundo. Os O'Malley ganharam outro neto esta semana.
- Eu sei. Eles me ofereceram uma cerveja para comemorar.
- Acabei de fazer um saco para o nen�. Devia ter trazido comigo.
- N�o vamos ao pub. Que saco � esse?
- Uma esp�cie de fronha, voc� coloca o beb� dentro. - Quando passaram pela vila, ela sorriu. - Olhe, l� est�o o Sr. e a Sra. Conroy. Mais de cinq�enta anos
casados e ainda andam de m�os dadas. Devia v�-los dan�ando.
- Foi o que tamb�m me disseram sobre voc�. - Olhou para ela. - Que voc� j� ganhou concursos.
- Quando era crian�a. - Sacudiu os ombros. Arrependimentos eram um prazer idiota. - Nunca levei a s�rio. Era s� um divertimento.
- O que faz por divertimento, agora?
- Ah, uma coisa ou outra. Voc� guia bem para um ianque. - Deixou escapar uma risada diante de sua apar�ncia calma. - Quero dizer que h� muita gente da sua
terra que tem dificuldade para se adaptar �s nossas ruas e dirigir do lado certo.
- N�o vamos discutir qual � o lado certo, mas passei muito tempo na Europa.
- Voc� n�o tem um sotaque que eu possa localizar, isto �, outro al�m do americano. Fa�o um tipo de jogo com isto, sabe, imaginando sobre os meus h�spedes.
- Deve ser porque n�o sou de lugar algum.
- Todo mundo � de algum lugar.
- Nem todo mundo. H� mais n�mades por a� do que voc� imagina.
- Ent�o, voc� est� dizendo que � um cigano. - Ela jogou os cabelos para tr�s e analisou o perfil dele. - Bem, � algo em que n�o tinha pensado.
- O que quer dizer?
- A noite em que voc� chegou. Achei que parecia um pouco com um pirata, ou um poeta, tamb�m um boxeador, mas n�o um cigano. Mas combina tamb�m.
-E voc� parecia uma vis�o, camisola branca balan�ando, cabelos soltos, coragem e medo, em guerra, nos olhos.
-N�o estava com medo. - Ela viu a placa pouco antes de ele sair na estrada. - Aqui? Castelo Drumoland? Mas n�o podemos.
-Por que n�o? Fui informado de que a cozinha � excelente.
-E � mesmo, mas muito caro tamb�m.
Ele riu, diminuindo a marcha para desfrutar a vista do castelo, cinzento e glorioso no alto da montanha, brilhando sob as luzes.
- Brianna, sou um cigano muito bem pago. Assombroso, n�o �?
- Verdade. E os jardins... voc� n�o pode ver bem agora. O inverno tem sido t�o rigoroso, mas eles t�m jardins bel�ssimos. - Ela olhou o gramado, avistando
um canteiro de roseiras ainda em bot�es. - Nos fundos h� um jardim-de-inverno. � t�o lindo que nem parece real. Por que voc� n�o ficou num lugar como este?
Ele estacionou o carro e desligou-o.
- Quase fiquei, ent�o ouvi falar de sua pousada. Pode chamar de impulso. - Lan�ou-lhe um sorriso luminoso. - Gosto de impulsos.
Desceu do carro, tomando a m�o dela para gui�-la pelo caminho de pedras at� o enorme vest�bulo.
Era espa�oso e luxuoso, como castelos deviam ser, com madeira escura e grossos tapetes vermelhos. Havia um aroma de madeira do fogo, o brilho dos cristais,
o som solit�rio de uma harpa.
- Fiquei num castelo na Esc�cia - ele come�ou, andando na dire��o da sala de jantar, com os dedos entrela�ados nos dela. - E outro na Cornualha. Lugares fascinantes,
cheios de espectros e sombras.
- Voc� acredita em fantasmas?
- Claro. - Os olhos dele encontraram os dela, enquanto ele se adiantava para lhe tirar o casaco. - Voc� n�o?
- Acredito sim. Temos alguns l� em casa, sabe?
- O c�rculo de pedras.
Embora tivesse ficado surpresa, percebeu que n�o devia. Ele teria estado l� e teria sentido.
- L� sim, e em outros lugares. Gray voltou-se para o ma�tre.
- Thane - disse simplesmente.
Foram recepcionados e conduzidos at� a mesa deles. Quando Gray recebeu a carta de vinhos, olhou para Brianna.
- Gostaria de tomar um vinho?
- Seria bom.
Depois de uma r�pida olhada, sorriu para o sommelier.
- Chassagne-Montrachet.
- Sim, senhor.
- Com fome? - perguntou a Brianna, que estava quase devorando o card�pio.
- Estou tentando decor�-lo - ela sussurrou. - Jantei uma vez aqui com Maggie e Rogan e quase consegui copiar este frango ao mel e vinho.
- Leia por prazer - sugeriu. - Conseguiremos uma c�pia do menu para voc�.
Olhou-o por sobre o card�pio.
- Eles n�o dar�o uma c�pia para voc�.
- Claro que sim.
Com uma risadinha, ela escolheu seu prato ao acaso. Depois que tinham feito os pedidos e provado o vinho, Gray inclinou-se para a frente.
- Agora me fale. Ela piscou.
- Falar o qu�?
- Sobre os fantasmas.
- Ah. - Sorriu, deixando um dedo deslizar pelo c�lice. - Bem, acontece que, alguns anos atr�s, havia dois amantes. Ela estava noiva de outro, ent�o se encontravam
em segredo. Ele era pobre, um simples fazendeiro, e ela, filha de um lorde ingl�s. Mas eles se amavam e faziam planos desesperados para fugir e ficar juntos. Uma
noite, encontraram-se no c�rculo de pedras. L�, pensaram, naquele lugar sagrado, m�gico, eles pediriam aos deuses para aben�o�-los. Ela estava gr�vida dele, sabe,
e n�o tinham tempo a perder. Ajoelharam-se l�, bem no centro, e ela lhe contou que esperava um filho dele. Dizem que choraram juntos, com alegria e medo, enquanto
o vento a�oitava, frio, e as pedras os protegiam. E l� se amaram pela �ltima vez. Ele disse a ela que iria pegar seu cavalo no campo, juntar tudo o que podia, e
voltaria para busc�-la. Fugiriam naquela noite.
Brianna suspirou, os olhos sonhadores.
- Ent�o, ele a deixou l�. No centro do c�rculo de pedras. Mas, quando chegou � fazenda, estavam esperando por ele. Os homens do lorde ingl�s. Atacaram-no,
de modo que seu sangue manchou a terra, queimaram sua casa e sua colheita. Enquanto morria, ele s� pensava em sua amada.
Interrompeu-se com aquele senso inato de quem sabe contar bem uma hist�ria. O harpista, em outro canto da sala, dedilhava suavemente uma balada de amor malfadado.
- E ela o esperou l�, no centro do c�rculo de pedras. Enquanto esperava, sentiu frio, tanto frio que come�ou a tremer. A voz do amante chegou a ela atrav�s
dos campos, como l�grimas no ar. Ela soube que ele estava morto. Ent�o, deitou-se, cerrou os olhos e levou a si mesma at� ele. Quando a encontraram, na manh� seguinte,
ela estava sorrindo. Mas estava fria, muito fria, e seu cora��o n�o batia mais. H� noites que, se voc� fica no centro do c�rculo de pedras, consegue ouvi-los sussurrando
promessas um ao outro e a grama cresce �mida pelas suas l�grimas.
Deixando escapar um longo suspiro, Gray recostou-se e bebericou o vinho.
- Voc� tem talento, Brianna, para contar hist�rias.
- Conto apenas como me contaram. Voc� v� como o amor sobrevive. Ao medo, ao sofrimento e at� mesmo � morte.
- J� os ouviu sussurrando?
-J�. E chorei por eles. E os invejei. - Recostou-se, espantando a melancolia. - E que fantasmas voc� conhece?
- Bem, vou contar uma hist�ria a voc�. Nas montanhas, n�o muito longe dos campos de Culladon, um �nico montanh�s vagava.
- Isto � verdade, Grayson, ou voc� est� inventando? Tomou a m�o dela e beijou.
- Voc� � quem vai me dizer.
N
unca tivera uma noite como aquela. Cada detalhe colaborava para uma lembran�a maravilhosa - o homem deslumbrante que parecia fascinado por cada uma de suas palavras,
a decora��o rom�ntica do castelo, sem as inconveni�ncias medievais, a gloriosa comida francesa, o vinho fino.
N�o sabia, ao certo, como lhe retribuiria - particularmente o menu que Gray conseguira do ma�tre, com seu poder de sedu��o.
Come�ou da �nica maneira que sabia, planejando um caf�-da-manh� especial.
Quando Maggie chegou, a cozinha estava repleta de aromas de fri-turas e Brianna cantava.
- Bem, vejo que est� tendo uma �tima manh�.
- Estou mesmo. - Atirou pra cima uma grossa fatia de torrada temperada. - Quer tomar caf�, Maggie? H� mais do que o suficiente.
- J� tomei. - Aquilo foi dito com algum arrependimento. - E Gray?
- N�o desceu ainda. Geralmente ele j� est� cheirando as panelas a esta hora do dia.
- Ent�o estamos sozinhas no momento.
- Sim. - Sua apar�ncia tranq�ila se desfez. Colocou o �ltimo peda�o de torrada cuidadosamente no prato e levou-o para o forno para se manter quente. - Voc�
veio para falar sobre as cartas.
- Deixei voc� se preocupando com isto tempo demais, n�o? Sinto muito.
- N�s duas precis�vamos pensar. - Brianna cruzou as m�os sobre o avental e encarou a irm�. - Que quer fazer, Maggie?
- O que quero � n�o fazer nada, fingir que nunca as li, que elas n�o existem.
- Maggie...
- Deixe-me terminar - falou bruscamente e come�ou a andar pela cozinha como um gato mal-humorado. - Quero continuar como sempre, manter minhas pr�prias lembran�as
de papai. N�o quero pensar ou me preocupar com uma mulher que ele conheceu e levou para a cama, muito tempo atr�s. N�o quero pensar num irm�o ou numa irm� adulta
em algum lugar. Voc� � minha irm� - falou veementemente. - Voc� � minha fam�lia. Acredito que essa Amanda refez sua vida em algum lugar, de algum modo, e n�o gostaria
se nos intromet�ssemos nela agora. Quero esquecer, quero que essa hist�ria desapare�a. � esse meu desejo, Brianna.
Parou, apoiando-se na bancada, e suspirou.
- � isso que quero - repetiu -, mas n�o � o que deve ser feito. Ele disse o nome dela. Quase que a �ltima coisa que falou em vida foi o nome dela. Ela tem
o direito de saber. E eu tenho o direito de amaldi�o�-la por isso.
- Sente-se, Maggie. N�o vai fazer bem a voc� ficar t�o transtornada.
- Claro que estou transtornada. N�s duas estamos. Temos modos diferentes de lidar com isto. - Com um aceno de cabe�a, afastou Brianna. - N�o preciso sentar.
Se o beb� ainda n�o est� acostumado com meu humor, ter� que aprender logo. - Calada, fez um esfor�o para se acalmar, inspirando profundamente. - Precisamos contratar
um investigador, um detetive, em Nova York. � o que voc� quer, n�o �?
- Acho que � o que devemos fazer - Brianna falou cautelosamente. - Por n�s mesmas. Por papai. Como faremos?
- Rogan conhece muita gente. Far� algumas liga��es. Ele � maravilhoso ao telefone. - Como viu que Brianna precisava disso, esfor�ou-se por sorrir. - Esta ser�
a parte mais f�cil. N�o sei quanto tempo vamos levar para encontr�-la. E s� Deus sabe o que faremos, se e quando nos defrontarmos com ela. Essa Amanda pode estar
casada, com um monte de filhos e uma vida feliz.
- J� pensei nisso. Mas temos que descobrir, n�o temos?
- Sim. - Avan�ando, Maggie tomou o rosto de Brianna gentilmente entre as m�os. - N�o se preocupe tanto, Brie.
- N�o vou me preocupar, se voc� tamb�m n�o se preocupar.
- � um pacto. - Maggie beijou-a levemente para selar o compromisso. - Agora v� alimentar seu ianque pregui�oso. Acendi meu forno e tenho trabalho para fazer.
- Nada pesado, n�o �?
Maggie devolveu o sorriso, quando se voltou para a porta.
- Reconhe�o meus limites.
- N�o, voc� n�o reconhece, Margaret Mary - Brianna gritou, quando a porta bateu. Parou por um momento, perdida em pensamentos, at� que os movimentos de Con
a despertaram. - Quer sair, n�o �? Tudo bem. V� ver o que Murphy est� fazendo.
Mal abriu a porta, Con disparou. Depois de um latido satisfeito, estava saltitando pelos campos. Ela fechou a porta ao ar �mido e pensou no que fazer. J� passava
das dez e tinha muito trabalho pela frente. Se Gray n�o iria descer para o caf�, ela o levaria para ele.
Uma olhada no menu sobre a mesa a fez sorrir novamente. Cantarolando, arrumou a bandeja de caf�. Ergueu-a e subiu as escadas. A porta dele estava fechada,
o que a fez hesitar. Bateu levemente, mas n�o obteve resposta, e come�ou a morder o l�bio. Talvez estivesse doente. Preocupada, bateu de novo, mais forte, e chamou
o nome dele.
Pensou ter ouvido um grunhido e, equilibrando a bandeja, conseguiu abrir a porta.
A cama parecia ter sido o palco de uma guerra. Len��is e cobertores estavam num emaranhado de n�s, o edredom nos p�s da cama quase caindo todo no ch�o. E o
quarto estava congelando.
Atravessando a soleira da porta, ela o viu e ficou olhando-o fixamente.
Ele estava � escrivaninha, os cabelos desgrenhados, os p�s descal�os. Havia uma pilha de livros ao lado dele, enquanto os dedos corriam sobre as teclas de
um laptop. Pr�ximo ao cotovelo estava um cinzeiro cheio de pontas de cigarro. O ar tinha o cheiro deles.
- Com licen�a. - Nenhuma resposta. Os m�sculos dos seus bra�os come�avam a doer pelo peso da bandeja. - Grayson.
- O qu�? - A pergunta saiu como uma bala, fazendo-a recuar um passo.
Moveu a cabe�a bruscamente.
Era o pirata outra vez, ela pensou. Parecia perigoso e violento. Quando os olhos dele se fixaram nela, sem nenhum sinal de reconhecimento, ela suspeitou que
ele pudesse ter enlouquecido durante a noite.
- Espere - ele ordenou, atacando o teclado outra vez. Brie esperou, confusa, por quase cinco minutos. Ent�o, ele se inclinou para tr�s, esfregou as m�os no
rosto com for�a, como algu�m que acabasse de despertar de um sonho. Ou, ela pensou, de um pesadelo. Ent�o se voltou novamente para ela, com aquele ligeiro sorriso
familiar. - � o caf�?
- Sim, eu... J� passa das dez e meia, e como voc� n�o desceu...
- Desculpe. - Levantou-se, pegou a bandeja das m�os dela e colocou-a sobre a cama. Pescou um peda�o de bacon com os dedos. - Comecei no meio da noite. Acho
que foi a hist�ria do fantasma que deu o clique inicial. Deus, como est� frio aqui!
- Bem, n�o � de admirar. Vai acabar com uma pneumonia, sem nada nos p�s e com o fogo apagado.
Ele apenas riu quando ela se ajoelhou na frente da lareira e come�ou a colocar mais carv�o. Ela falara como uma m�e, repreendendo uma crian�a insensata.
- Eu ia acender.
- Est� tudo muito bem, mas n�o � saud�vel ficar sentado aqui no frio, fumando, em vez de fazer uma refei��o decente.
- Cheira muito melhor do que algo s� decente. - Paciente, agachou-se ao lado dela, passando a m�o negligentemente amig�vel pelas suas costas. - Brie, voc�
me faz um favor?
- Se eu puder...
- V� embora.
At�nita, ela girou a cabe�a. Enquanto ela o olhava boquiaberta, ele segurou suas m�os, sorrindo.
- N�o se ofenda, querida. � que s� sou capaz de morder quando interrompem meu trabalho, e estou bem no meio dele agora.
- Com certeza, n�o pretendo ficar no seu caminho.
Voltou a parecer um pouco aborrecido. Estava tentando ser diplom�tico, n�o estava?
- Preciso mergulhar nisso enquanto est� funcionando, ok? Ent�o, apenas esque�a que estou aqui em cima.
- Mas seu quarto... Voc� precisa de len��is limpos e o banheiro...
- N�o se preocupe com isto. - O fogo estava crepitando agora, tal como a impaci�ncia dentro dele. Ele a fez levantar-se. - Voc� vai poder arrumar tudo quando
eu der uma parada. Agradeceria se voc� deixasse algo pra comer do lado de fora da porta de vez em quando. � tudo que preciso.
- Tudo bem, mas... - Ele estava quase a arrastando para a porta. Ela se irritou: - Voc� n�o precisa me p�r para fora. Estou saindo.
- Obrigado pelo caf�.
- N�o tem... - Ele fechou a porta na sua cara. - De qu� - ela disse entre dentes.
Pelo resto daquele dia e mais outros dois, ela n�o ouviu nenhum ru�do dele. Tentou n�o pensar no estado do quarto, se ele tinha se lembrado de manter o fogo
aceso ou se tinha se preocupado em dormir. Sabia que estava comendo. Cada vez que trazia uma nova bandeja, a anterior estava do lado de fora da porta. Raramente
sobrava mais do que um farelo no prato.
Poderia se sentir sozinha em casa, se n�o estivesse t�o atenta � presen�a dele. Duvidava muito que ele tivesse pensado nela um minuto.
Ela estava certa. Ele realmente dormia de vez em quando, cochilos povoados por sonhos e vis�es. Comia, saciando o corpo, enquanto a hist�ria alimentava o esp�rito.
Estava simplesmente sendo levado.
Em tr�s dias escreveu mais de cem p�ginas. O texto ainda estava meio duro, �s vezes sem ritmo, mas j� tinha a ess�ncia dele.
Tinha assassinato, e era divertido e astuto. Tinha desesperan�a e sofrimento, desespero e mentiras.
Ele estava no c�u.
Quando, afinal, deu uma parada, jogou-se na cama, puxou as cobertas por cima da cabe�a e dormiu como um morto.
Quando acordou, passou os olhos demoradamente pelo quarto e concluiu que uma mulher t�o forte como Brianna n�o desmaiaria diante daquela vis�o. A vis�o dele
pr�prio, entretanto, quando se examinou no espelho do banheiro, era outro assunto. Passou a m�o pela barba do queixo. Concluiu que parecia algo que tivesse sa�do
de um p�ntano.
Arrancou a camisa, fazendo uma careta diante do cheiro dela e de si mesmo, e entrou no chuveiro. Trinta minutos depois, estava vestindo roupas limpas. Estava
um pouco tonto e todo dolorido pela falta de exerc�cios. Mas a excita��o ainda se mantinha. Abriu a janela do quarto e aspirou o cheiro daquela manh� chuvosa.
Um dia perfeito, pensou. No lugar perfeito.
Sua bandeja do desjejum estava do lado de fora da porta, a comida fria. Percebeu que tinha dormido demais e, erguendo a bandeja, desejou que pudesse convencer
Brianna a esquent�-la outra vez.
E quem sabe ela sairia para dar uma volta com ele... Gostaria de companhia. Talvez pudesse convenc�-la a ir a Galway, passar o dia com ele, entre as pessoas.
Tamb�m poderiam...
Parou na porta da cozinha e o sorriso alargou-se de orelha a orelha. L� estava ela, sovando a massa do p�o, os cabelos presos no alto, o nariz sujo de farinha.
Era uma vis�o maravilhosa e ele estava de �timo humor. Baixou a bandeja com um barulho que a fez sobressaltar-se e olhar para ele. Ela mal come�ara a sorrir
quando ele avan�ou, segurou seu rosto entre as m�os e beijou-lhe a boca.
As m�os dela se fecharam na massa. A cabe�a rodopiou. Antes que pudesse reagir, ele recuou.
- Oi, grande dia, n�o �? Sinto-me incr�vel. Voc� n�o pode prever quando a coisa vem, entende? E, quando chega, � como um trem-bala atravessando sua cabe�a.
Voc� n�o pode par�-lo. - Pegou um peda�o de torrada fria de sua bandeja e j� ia mordisc�-lo quando percebeu. Seus olhos fixaram-se nos dela outra vez. Ele deixou
a torrada cair no prato.
O beijo tinha sido apenas um reflexo de seu humor, leve, efusivo. Agora, alguma rea��o retardada o dominava, retesando seus m�sculos, percorrendo sua espinha.
Ela continuou ali, olhando para ele, os l�bios ainda entreabertos de surpresa, os olhos escancarados.
- Espere um minuto - ele murmurou, aproximando-se dela outra vez. - Espere s� um minuto.
Mesmo que o teto desabasse, ela n�o teria conseguido se mover. Mal p�de respirar quando as m�os dele lhe tomaram o rosto, gentilmente desta vez, como um homem
experimentando uma textura. Os olhos permaneceram abertos, a express�o neles n�o inteiramente de prazer, enquanto se inclinava para ela desta vez.
Ela sentiu os l�bios dele ro�arem os seus, suaves, ador�veis. O tipo de toque que n�o deveria fazer o sangue ferver. Contudo, incendiou. Ele a fez se voltar
at� que seus corpos se encontrassem, inclinou a cabe�a dela para tr�s, a fim de que o beijo pudesse ir mais fundo.
Um som - ang�stia ou prazer - arranhou sua garganta, antes que as m�os fechadas relaxassem.
Sua boca era algo para se saborear, ele notou. Bela, generosa, d�cil. Um homem n�o devia ter pressa numa boca como aquela. Ele pressionou levemente os dentes
no l�bio inferior dela e estremeceu ao murm�rio surdo e impotente que ouviu. Lentamente, vendo os olhos dela se embara�arem at� fechar, explorou seus l�bios com
a l�ngua, mergulhando-a fundo em sua boca.
Tantos aromas sutis!
Era maravilhoso como podia sentir a pele dela se aquecer, os m�sculos suavizarem, o cora��o acelerar. Ou talvez fosse o cora��o dele. Algo rugia em sua cabe�a,
pulsava em seu sangue. S� quando o desejo come�ou a crescer, com a viol�ncia maliciosa que o acompanhava, que ele recuou.
Ela estava tremendo. Seu instinto o avisou de que, se continuasse, machucaria a ambos.
- Foi melhor do que imaginei - ele conseguiu dizer. - E olhe
que tenho uma senhora imagina��o.
Cambaleando, ela apoiou uma das m�os na bancada. Os joelhos tremiam. Apenas o medo da humilha��o evitou que a voz tremesse tamb�m.
- � assim que voc� se comporta sempre que sai de sua caverna?
- N�o � sempre que tenho a sorte de ter uma linda mulher por perto. - Balan�ou a cabe�a, estudando-a. O cora��o batia na garganta, a pele ainda estava ruborizada.
Mas, a n�o ser que estivesse enganado, ela j� estava reconstruindo aquele fr�gil muro protetor. - Isso n�o foi normal. N�o h� por que fingir que foi.
- Normalmente n�o sou beijada por um h�spede quando estou fazendo p�o. N�o posso saber o que � normal para voc�, posso? - Os olhos dele se alteraram, escurecendo
com sinais de irrita��o. Quando ele avan�ou, ela recuou. - Por favor, n�o.
Agora os olhos escurecidos se estreitaram.
- Seja mais espec�fica.
- Preciso terminar isto. A massa precisa crescer de novo.
- Est� fugindo, Brianna.
- Muito bem, n�o me beije assim outra vez. - Deixou escapar um suspiro convulsivo e inspirou novamente. - N�o tenho as defesas necess�rias.
- Isto n�o precisa ser uma batalha. Gostaria de levar voc� para a cama, Brianna.
Nervosa, para ocupar as m�os, agarrou uma toalha de prato e come�ou a limpar as m�os sujas de farinha.
- Bem, isto � meio grosseiro.
- � honesto. Se n�o estiver interessada, � s� dizer.
- N�o encaro as coisas t�o casualmente como voc�, com um sim ou um n�o, e est� tudo bem. - Lutando para manter a calma, ela dobrou a toalha com cuidado, deixando-a
de lado. - E n�o tenho nenhuma experi�ncia neste assunto.
Maldita fosse ela por se manter t�o fria, enquanto o sangue dele estava fervendo.
- Quem se importa com isso?
- A pessoa com quem voc� est� falando. Agora, saia daqui, para eu poder voltar ao meu p�o.
Ele simplesmente segurou seu bra�o e a fitou nos olhos. Virgem?, suspeitou, deixando a id�ia circular e fazer sentido. Uma mulher que parecia ser virgem, que
reagia como se fosse.
- Tem alguma coisa errada com os homens por aqui? - falou alegremente, esperando quebrar a tens�o. Mas o resultado foi um brilho de dor nos olhos dela que
o fez se sentir um verme.
- � da minha conta, n�o �, como vivo minha vida? - Sua voz tinha gelado. - Bem, respeitei seus desejos e seu trabalho nestes �ltimos dias. Poderia fazer o
mesmo e me deixar cuidar do meu?
- Tudo bem. - Deixou-a se afastar, chegando para tr�s. - Vou dar uma sa�da. Quer que traga alguma coisa para voc�?
- N�o, obrigada. - Enfiou as m�os na massa novamente e come�ou a sovar. - Est� chovendo um pouco - ela falou calmamente. - Vai precisar de um casaco.
Caminhou at� a porta e se voltou.
- Brianna. - Esperou, at� que ela levantasse a cabe�a. - Voc� n�o chegou a dizer se estava ou n�o interessada. Presumo que esteja pensando no assunto.
Saiu a passos largos. Ela prendeu o ar, at� ouvir a porta bater atr�s dele.
Gray gastou o excesso de energia com um longo passeio e uma visita aos penhascos de Mohr. Para dar aos dois tempo para se recompor, parou para almo�ar num
pub em Ennis. Gastou as calorias de uma por��o grande de peixe e fritas vagando pelas ruas estreitas. Algo numa vitrine fisgou seu olhar e, seguindo o impulso, entrou
e pediu para embrulhar.
Quando voltou a Blackthorn, quase se convencera de que o que havia experimentado na cozinha com Brianna fora mais resultado da alegria pelo trabalho do que
qu�mica.
Contudo, quando entrou em seu quarto e encontrou-a de joelhos no ch�o do banheiro, um balde ao lado e um esfreg�o na m�o, a balan�a pendeu para o outro lado.
Se um homem n�o estava enlouquecido por sexo, por que uma cena daquela fazia seu sangue ferver?
- Voc� tem id�ia de quantas vezes j� encontrei voc� nesta posi��o?
- Ela olhou por sobre o ombro.
- � um modo honesto de ganhar a vida. - Soprou os cabelos para tr�s. - Vou lhe dizer uma coisa, Grayson Thane. Voc� vive como um porco quando est� trabalhando.
Ele levantou a sobrancelha.
- � assim que voc� fala com todos os seus h�spedes?
Ele a pegara. Um pouco afogueada, atirou o pano de volta no ch�o.
- J� vou terminar aqui, se voc� est� querendo voltar pro quarto. Tenho outro h�spede chegando no fim da tarde.
- Hoje? - Fez uma careta nas costas dela. Gostara de ter o lugar s� para si. T�-la s� para si. - Quem �?
- Um cavalheiro ingl�s. Ligou logo depois que voc� saiu, nesta manh�.
- Bem, quem � ele? Quanto tempo vai ficar? - E que diabos ele quer?
- Uma noite ou duas - ela falou calmamente. - N�o questiono meus h�spedes, como voc� deve saber.
- S� acho que voc� devia fazer mais perguntas. N�o pode simplesmente deixar estranhos zanzando por sua casa.
Divertida, ela sentou-se e sacudiu a cabe�a para ele. Uma combina��o de desprez�vel e elegante, ela pensou, com os cabelos dourados presos atr�s, como um pirata,
os ador�veis olhos amuados, botas caras, jeans surrados, camisa amarrotada.
- � exatamente o que eu fa�o. Creio que voc� mesmo andou zanzando por a�, na calada da noite, n�o faz muito tempo.
- � diferente. - Diante de seu olhar inexpressivo, ele deu de ombros. - � mesmo. Escute, voc� n�o vai levantar e parar com isso? Parece que vai devorar o maldito
ch�o.
- Pelo visto, o passeio de hoje n�o animou nem um pouco.
- Estou bem. - Rondou pelo quarto, ent�o rosnou. - Voc� bagun�ou minha escrivaninha.
- Tirei o p� e limpei os cinzeiros, se � isso que quer dizer. Mal toquei nessa sua maquinazinha a�, s� a levantei e pus no lugar outra vez - Embora tivesse
sido penosamente tentada a levantar a tela e dar uma olhada no trabalho.
- Voc� n�o tem que ficar limpando tudo atr�s de mim, o tempo todo. - Bufou enfiando as m�os nos bolsos, enquanto ela simplesmente ficou parada com o balde
na m�o, olhando para ele. - Droga, eu devia ter imaginado. N�o faz nada bem para o meu ego saber que voc� n�o est� nem tentando me conquistar. - Fechou os olhos,
deixou escapar o ar. - Ok, vamos tentar de novo. Trouxe um presente para voc�.
- Trouxe? Por qu�?
- Por que diabos n�o traria? - Pegando a sacola que deixara sobre a cama, entregou a ela. - Vi isso e achei que voc� ia gostar.
- Gentileza sua. - Puxou uma caixa da sacola e come�ou a tirar a fita que a fechava.
Ela cheirava a sabonete, flores e desinfetante. Gray cerrou os dentes.
- Se n�o quiser que eu a jogue nesta cama que acabou de arrumar, � melhor se afastar.
Surpresa, ela levantou os olhos, as m�os paralisadas sobre a caixa.
- Falo s�rio.
Cautelosa, ela umedeceu os l�bios.
- Tudo bem. - Recuou um passo, depois outro. - Assim est� melhor?
O absurdo de tudo aquilo finalmente prevaleceu. Incapaz de fazer outra coisa, ele riu para ela.
- Por que voc� me fascina, Brianna?
- N�o tenho id�ia. Nenhuma mesmo.
- Deve ser por isto - ele murmurou. - Abra seu presente.
- Estou tentando. - Soltou a fita, levantou a tampa e tirou o papel de seda. - Oh, � lindo! - O prazer iluminou seu rosto quando ela pegou um chal� de porcelana.
Era delicado, a porta da frente aberta, acolhedora, um jardim bem cuidado com cada min�scula petalazinha perfeita. - � como se voc� pudesse chegar e entrar.
- Me fez pensar em voc�.
- Obrigada. - O sorriso era mais f�cil agora. - Voc� comprou isto para me amansar?
- Primeiro me diga se funcionou. Agora ela riu.
- N�o, n�o digo. Voc� j� tem vantagem suficiente.
- Tenho mesmo?
Alertada pelo ronronar de sua voz, ela se concentrou na tarefa de aconchegar o chalezinho em meio ao papel de seda.
- Preciso cuidar do jantar. Quer que eu traga na bandeja?
- Esta noite n�o. A primeira onda j� passou.
- O novo h�spede deve chegar l� para as cinco. Ent�o voc� ter� companhia no jantar.
- Formid�vel.
Gray se preparara para n�o gostar do cavalheiro ingl�s logo de cara, como um c�o defendendo seu territ�rio. Mas era dif�cil sentir-se amea�ado por aquele homenzinho
de careca lustrosa e arrogante sotaque de col�gio interno ingl�s.
Seu nome era Herbert Smythe-White, de Londres, um vi�vo aposentado que estava na primeira etapa de uma viagem de seis meses � Irlanda e � Esc�cia.
- Viajo por puro prazer - disse a Gray durante o jantar. - Nancy e eu n�o fomos aben�oados com filhos. Ela se foi h� quase dois anos. Agora, de repente, me
vi enfurnado dentro de casa. T�nhamos planejado fazer uma viagem como esta, mas o trabalho sempre me manteve muito ocupado. - O sorriso era mesclado de arrependimento.
- Decidi ent�o viajar sozinho mesmo, como um tributo a ela. Acho que ela gostaria disso.
- � sua primeira parada?
- Sim. Voei para Shannon e aluguei um carro. - Sorriu, tirando os �culos de aros de metal e polindo as lentes com um len�o. - Estou munido de todas as armas
de um turista, como mapas e guias. Ficarei um ou dois dias aqui, antes de seguir para o Norte. - Colocou os �culos de volta no nariz proeminente. - Mas estou com
medo de ter experimentado a melhor parte antes de tudo. A Srta. Concannon serve uma mesa excelente.
- Isso nem se discute. - Estavam dividindo a sala de jantar e um suculento salm�o. - Com que trabalhava?
- Mercado financeiro. Lamento ter passado muito da minha vida preocupado com n�meros. - Serviu-se de outra colher cheia de batatas em molho de mostarda. -
E o senhor, Sr. Thane? A Srta. Concannon me falou que � escritor. N�s, os tipos mais pr�ticos, sempre invejamos os criativos. Nunca tive tempo de ler por prazer,
mas certamente pegarei um de seus livros agora que nos conhecemos. Est� viajando tamb�m?
- N�o, no momento. Estou instalado aqui por enquanto.
- Aqui na pousada?
- Isso mesmo. - Desviou o olhar para Brianna quando ela entrou.
- Espero que tenha sobrado espa�o para a sobremesa. - Colocou uma grande tigela de pav� sobre a mesa.
- Ah, minha querida. - Atr�s das lentes polidas, os olhos de Smythe-White dan�aram com prazer, e talvez um pouco de gula. - Vou estar com alguns quilos a mais
antes de sair da sala.
- Est� enfeiti�ado para que as calorias n�o contem. - Serviu-lhes por��es generosas. - Espero que ache seu quarto confort�vel, senhor. Se desejar alguma coisa,
� s� pedir.
- Est� tudo exatamente como eu queria - ele garantiu. - Preciso voltar quando seu jardim estiver florescendo.
- Espero que volte. - Deixou-lhes um bule de caf� e uma garrafa de conhaque.
- Mulher ador�vel - Smythe-White comentou.
- Realmente.
- E muito jovem para administrar um estabelecimento sozinha. Pensei que tivesse um marido, uma fam�lia.
- Eficiente � o que ela �. - A primeira colherada de pav� derreteu na boca de Gray. Eficiente n�o era a melhor palavra, concluiu. A mulher era uma bruxa na
culin�ria. - Ela tem uma irm� e um cunhado logo abaixo, nesta rua. E � uma comunidade pequena. Sempre tem algu�m batendo � porta da cozinha.
- � uma sorte. Imagino que seria um lugar bem solit�rio, de outra maneira. Contudo, observei, quando vinha dirigindo para c�, que h� poucos vizinhos. - Sorriu
outra vez. - Acho que estou estragado pela cidade, e de toda maneira n�o me envergonho de gostar de multid�es e movimento. Vou levar algum tempo para me habituar
a uma noite calma.
- Ter� bastante tempo. - Gray serviu conhaque num dos c�lices e, a um aceno do companheiro, serviu tamb�m no outro. - Estive em Londres, n�o muito tempo atr�s.
De que parte voc� �?
- Tenho um pequeno apartamento perto de Green Parle. N�o tive coragem de manter minha casa depois que Nancy se foi. - Suspirou, girando o conhaque. - Deixe-me
dar-lhe um conselho que n�o pediu, Sr. Thane. Desfrute seus dias. N�o invista todos os seus esfor�os no futuro. Perde-se demais.
- � de conselhos assim que sobrevivo.
Horas mais tarde, a lembran�a do pav� que sobrara tirou Gray da cama quente e do bom livro que lia. A casa gemeu um pouco � sua volta enquanto desencavou um
moletom e vestiu-o. Desceu as escadas de p�s descal�os com gulosos sonhos de se empanturrar.
Claro que n�o era sua primeira investida noturna � cozinha desde que se instalara em Blackthorn. Nenhuma sombra ou rangido das bancadas perturbou-o, enquanto
entrava furtivamente na cozinha escura. Acendeu a luz do fog�o, n�o querendo acordar Brianna.
Ent�o desejou n�o ter pensado nela ou no fato de que ela dormia bem do outro lado da parede. Naquela longa camisola de flanela, imaginou, com uns bot�ezinhos
na gola. T�o comportada que a fazia parecer ex�tica - com certeza fazia um homem, um homem lascivo, imaginar o corpo que todo aquele tecido escondia.
E, se continuasse com aqueles pensamentos, nem todo o pav� do mundo satisfaria seu apetite.
Um v�cio de cada vez, cara, disse a si mesmo. E pegou a tigela. Um som vindo de fora o fez se deter para escutar. Justo quando estava a ponto de ignorar aquilo
como gemidos de casa antiga, ouviu o arranhar.
Com a tigela numa das m�os, foi at� a porta da cozinha, olhou em volta e n�o viu nada, a n�o ser a noite. De repente, o vidro se encheu de P�los e dentes caninos.
Gray abafou um grito e se equilibrou para n�o ir ao ch�o. Entre praguejar e dar uma risada, abriu a porta para Con.
- Menos de dez anos de vida, muit�ssimo obrigado. - Co�ou as orelhas do c�o e, como Brianna n�o estava por perto, decidiu dividir o pav� com sua companhia
canina.
- O que pensa que vai fazer?
Gray se endireitou, batendo a cabe�a na porta do arm�rio que n�o tinha fechado. Uma colherada de pav� desabou na tigela do cachorro e foi logo abocanhada.
- Nada. - Gray esfregou a cabe�a dolorida. - Deus do c�u, com voc� e seu cachorro terei sorte se viver at� o meu pr�ximo anivers�rio.
- Ele n�o deve comer isso. - Brianna tirou a tigela das m�os de Gray. - N�o � bom para ele.
- Eu ia comer. Agora preciso de uma aspirina.
- Sente que vou dar uma olhada no galo ou no buraco que fez na cabe�a, n�o importa.
- Muito engra�adinha. Por que apenas n�o volta para a cama e... N�o chegou a concluir a frase. De onde estava, Con subitamente
retesou-se, rosnou e, com um grunhido, saltou em dire��o � porta da entrada. Foi falta de sorte de Gray estar no caminho.
O peso de setenta quilos de m�sculos o fez cambalear, chocando-se contra a bancada. Viu estrelas quando o cotovelo estalou contra a madeira e ouviu ao longe
o comando r�spido de Brianna.
- Voc� se machucou? - O tom agora era de uma reconfortante preocupa��o maternal. - Voc� est� t�o p�lido, Gray. Con, sentado!
Ouvidos zumbindo, estrelas girando diante dos olhos, tudo o que Gray conseguiu fazer foi desabar na cadeira que Brianna puxara para ele.
- Tudo isso por uma maldita tigela de doce.
- Vamos, procure s� respirar agora. Deixe-me dar uma olhada no seu bra�o.
- Merda! - Arregalou os olhos quando ela flexionou seu cotovelo e a se dor irradiou. - Est� tentando me matar s� porque quero voc� nua?
- Pare com isso - repreendeu-o suavemente, enquanto gemia vendo a contus�o. - Vou pegar uma pomada boa para isso.
- Prefiro morfina. - Suspirou encarando o c�o, que permanecia tr�mulo diante da porta. - Que diabos h� com ele?
- N�o sei. Con, pare de agir como um idiota sanguin�rio e sente. - Passou a pomada numa gaze. - Talvez seja por causa do Sr. Smythe-White. Con estava andando
por a�, quando ele chegou. N�o foram apresentados. Pode ser que tenha sentido o cheiro.
- � uma sorte que o velho n�o tenha dado muita bola pro pav�. Ela apenas sorriu, endireitando-se para examinar a cabe�a de Gray.
Seus cabelos eram lindos, pensou, t�o dourados e sedosos.
- Ah, Con n�o o machucaria. S� ficaria cercando-o. �, voc� vai ficar com um baita galo.
- N�o precisa ficar t�o contente com isso.
- Vai ensinar voc� a n�o dar mais doces ao cachorro. Vou preparar uma compressa de gelo e... - Deixou escapar um gritinho, quando Gray a puxou para o seu colo.
As orelhas do cachorro se levantaram, mas ele apenas se aproximou e cheirou as m�os de Gray.
- Ele gosta de mim.
- � f�cil conquist�-lo. Deixe-me levantar ou vou dizer a ele para morder voc�.
- N�o morderia. Acabei de lhe dar pav�. Vamos ficar assim s� um pouco, Brie. Estou fraco demais para incomodar voc�.
- N�o acredito nisso nem um minuto sequer - falou num sussurro, mas cedeu.
Gray embalou a cabe�a dela em seu ombro e sorriu quando Con descansou a dele no colo dela.
- Assim est� bom.
- Est� mesmo.
Ela sentiu um pequeno aperto no cora��o, enquanto ele a abra�ava suavemente sob a luz fraca do fog�o e a casa dormia em volta deles.
B
rianna precisava de um toque de primavera. Mesmo sabendo que n�o se podia ter certeza de que ela come�aria mais cedo, aquela sensa��o n�o mudaria. Pegou as sementes
que andara juntando, um radiozinho port�til e levou-os para o pequeno galp�o que tinha equipado como uma estufa tempor�ria.
N�o era grande coisa e ela era a primeira a admitir isso. N�o mais que um metro quadrado, com um ch�o de cascalho, o galp�o era mais usado para dep�sito do
que para plantar. Mas ela fizera Murphy colocar vidros e um aquecedor. As bancadas ela mesma fizera, com um pouco de habilidade e uma grande dose de orgulho.
N�o havia espa�o nem equipamento para o tipo de experimentos com que sonhava. Entretanto, podia dar �s suas sementes um come�o antecipado nos vasos que encomendara
num cat�logo de jardinagem.
A tarde era sua, de toda maneira. Gray estava mergulhado no trabalho e o Sr. Smythe-White estava fazendo uma excurs�o ao Ring of Kerry. Todos os assados e
consertos do dia estavam feitos. Ent�o, logo era o momento do prazer.
Poucas coisas a deixavam t�o feliz quanto mexer na terra. Com um grunhido, ergueu um saco de mistura para vasos at� a bancada.
No pr�ximo ano, prometeu a si mesma, teria uma estufa profissional. Nada muito grande, mas agrad�vel. Plantaria mudas e cultivaria bulbos, de modo que poderia
ter uma primavera quando quisesse. Talvez at� tentasse algum enxerto. Mas, no momento, estava contente por cuidar das sementes.
Em poucos dias, pensou cantarolando com o r�dio, os primeiros brotos despontariam do solo. Verdade que gastava horrores com o combust�vel para manter a temperatura
ideal. Teria sido mais inteligente usar o dinheiro para fazer uma revis�o no carro. Mas n�o seria t�o prazeroso.
Espalhou as sementes, gentilmente batendo a terra, e deixou a mente divagar.
Como Gray fora gentil na noite anterior, lembrou. Aconchegado com ela na cozinha. N�o tinha sido t�o assustador, nem, admitiu, t�o excitante, como quando ele
a beijara. Havia sido algo agrad�vel e tranq�ilo, t�o natural que por um momento pareceu como se os dois vivessem ali.
Um dia, tempos atr�s, sonhara em dividir pequenos e doces momentos como aquele com algu�m. Com Rory, pensou com uma antiga e est�pida ang�stia. Ent�o tinha
acreditado que se casaria, teria filhos para amar e uma casa para cuidar. Quantos planos fizera, pensou, sonhos cor-de -rosa e apaixonados, em que viviam felizes
para sempre.
Mas, naquela �poca, era apenas uma menina, e apaixonada. Uma menina apaixonada acredita em qualquer coisa. Acredita em tudo. N�o era mais uma menina agora.
Parara de acreditar quando Rory partira seu cora��o, dividindo-o em duas metades doloridas. Sabia que ele agora estava morando perto de Boston com a esposa,
filhos e formando uma fam�lia. E, tinha certeza, sem sequer pensar naquele doce in�cio de primavera em que ele a cortejara e fizera promessas.
Isso j� faz muito tempo, recordou-se. Agora ela sabia que o amor n�o dura para sempre e que promessas nem sempre s�o cumpridas. E se ainda carregava uma semente
de esperan�a que desejava ardentemente florescer, isso s� magoaria a si mesma.
- C� est� voc�! - Olhos agitados, Maggie irrompeu no galp�o. - Ouvi a m�sica. Que diabos est� fazendo aqui?
- Estou plantando flores. - Distra�da, Brianna passou o dorso da m�o no rosto, sujando-o de terra. - Feche a porta, Maggie, est� deixando o calor sair. O que
houve? Parece a ponto de explodir.
- Voc� n�o vai adivinhar nem em um milh�o de anos. - Com uma risada, Maggie rodou pelo pequeno galp�o, pegando o bra�o de Brianna para faz�-la girar. - Vamos!
Tente!
- Voc� vai ter trig�meos.
- N�o! Deus me livre.
O humor de Maggie estava contagiante o bastante para fazer Brianna rir e acompanh�-la naquela dan�a improvisada.
- Voc� vendeu uma de suas pe�as por um milh�o de libras para o presidente dos Estados Unidos.
- Ah, que id�ia! Quem sabe n�o mandamos mesmo um cat�logo para ele? Mas n�o � nada disso, voc� passou longe. Vou lhe dar uma dica, ent�o. A av� de Rogan ligou.
Brianna soprou os cabelos ca�dos nos olhos.
- Isso � uma dica?
- Seria se prestasse aten��o. Brie, ela vai casar! Vai casar com o tio Niall, semana que vem, em Dublin.
- O qu�? - A boca de Brianna se abriu �quelas palavras. - Tio Niall, Sra. Sweeney, casados?
- N�o � legal? N�o � muito legal? Voc� sabe que ela tinha uma quedinha por ele, quando era garota em Galway. Encontraram-se novamente, depois de cinq�enta
anos, por causa da gente, Rogan e eu. Agora, por tudo que � mais sagrado, eles v�o oficializar. - Deu uma risada, jogando a cabe�a para tr�s. - E ent�o, al�m de
sermos marido e mulher, Rogan e eu vamos ser primos.
- Tio Niall. - Era s� o que Brianna conseguira dizer.
- Devia ver a cara de Rogan, quando recebeu a not�cia. Parecia um peixe, a boca fechando e abrindo, sem sair uma palavra. - Bufando de tanto rir, ela inclinou-se
sobre a bancada de Brianna. - Ele nunca se acostumou com a id�ia de que eles estavam namorando. Mais do que namorando, se chegaram a tanto, mas deve ser mesmo dif�cil
para um homem imaginar sua vov� de cabelos brancos se aconchegando no pecado.
- Maggie. - Vencida, Brianna cobriu a boca com a m�o. O riso abafado logo se transformou numa gargalhada.
- Bem, est�o legalizando tudo agora com um arcebispo, n�o fizeram por menos. - Respirou fundo, olhando em volta. - Tem alguma coisa para comer aqui?
- N�o. Quando vai ser? Onde?
- No pr�ximo s�bado, na casa de Dublin. Uma cerim�nia pequena, ela falou, s� para a fam�lia e os amigos chegados. Tio Niall tem oitenta anos, Brie, voc� consegue
imaginar isso?
- Consigo e acho mesmo formid�vel. E vou ligar para eles depois de terminar aqui e limpar tudo.
- Rogan e eu estamos indo para Dublin, hoje. Ele est� ao telefone agora. Meu Deus, tomando provid�ncias. - Deu um sorriso. - Est� tentando agir como um chefe
de fam�lia sobre isso.
- Ele ficar� contente por eles, depois que se acostumar com a id�ia. - A voz de Brianna soou distante quando ela come�ou a pensar no que daria aos noivos.
- A cerim�nia vai ser � tarde, mas talvez voc� prefira chegar na noite anterior. Ent�o teremos algum tempo.
- Chegar? - Brianna encarou a irm� outra vez. - Mas n�o posso ir, Maggie. N�o posso sair daqui. Estou com um h�spede.
- Claro que voc� vai. - Erguendo-se da bancada, segurou o queixo dela. - � tio Niall. Ele a espera l�. � s� um maldito dia, Brianna.
- Maggie, tenho obriga��es aqui e n�o tenho como ir a Dublin e voltar.
- Rogan mandar� o avi�o apanhar voc�.
- Mas...
- Ah, deixe Grayson Thane. Ele pode preparar suas pr�prias refei��es por um dia. Voc� n�o � empregada dele.
Os ombros de Brianna ficaram tensos. Os olhos se tornaram frios.
- N�o, n�o sou. Sou uma mulher de neg�cios que deu sua palavra. N�o posso simplesmente ficar flanando um fim de semana em Dublin e dizer ao homem para se virar.
- Ent�o, leve-o junto. Se est� preocupada que o homem v� morrer sem voc� para cuidar dele, leve-o com voc�.
- Lev�-lo para onde? - Gray abriu a porta e fitou as duas mulheres cautelosamente. Da janela do quarto, vira Maggie correr para o galp�o. A curiosidade finalmente
o fizera parar de trabalhar e os gritos cuidaram do resto.
- Feche a porta - Brianna disse automaticamente. Lutava contra o embara�o de que ele tivesse entrado numa discuss�o de fam�lia. Suspirou uma vez. O pequeno
galp�o estava, agora, cheio de gente. - Est� precisando de alguma coisa, Grayson?
- N�o. - Ergueu a m�o, passando o polegar sobre a sujeira no rosto dela. Um gesto que fez os olhos de Maggie se estreitarem. - Voc� est� com o rosto sujo de
terra, Brie. O que est� fazendo?
- Tentando plantar algumas sementes, mas h� pouco espa�o para elas agora.
- Cuidado com as m�os, rapaz - Maggie murmurou. Ele apenas sorriu e enfiou-as nos bolsos.
- Ouvi falarem meu nome. Algum problema?
- N�o haveria, se ela n�o fosse t�o teimosa. - Maggie empinou o queixo e decidiu jogar a responsabilidade para Gray: - Ela precisa ir a Dublin, no pr�ximo
fim de semana, mas n�o quer deixar voc�.
O sorriso de Gray se transformou numa risada satisfeita enquanto seu olhar ia de Maggie para Brianna.
- Ela n�o quer?
- Voc� pagou por cama e comida - Brianna come�ou a falar.
- Por que precisa ir a Dublin? - ele interrompeu-a.
- Nosso tio vai casar - Maggie contou. - Ele vai querer que ela esteja l�, e est� certo. Eu disse que, se ela n�o quer deixar voc�, deve lev�-lo.
- Maggie, Gray n�o quer ir a um casamento com pessoas que n�o conhece. Ele est� trabalhando e n�o pode simplesmente...
- Claro que posso - Gray cortou-a. - Quando partimos?
- �timo. Voc�s ficar�o na nossa casa l�. Isto j� est� certo. - Maggie esfregou as m�os. - Agora, quem ir� contar para a mam�e?
- Eu...
- N�o, deixe comigo - Maggie decidiu, antes que Brianna pudesse responder. Ela sorriu. - Ela realmente vai odiar. Mandaremos o avi�o para busc�-la s� no s�bado
pela manh�. Ent�o voc�s n�o ser�o atormentados por ela durante toda a viagem. Tem um terno, Gray?
- Um ou dois.
_Ent�o est� pronto, n�o est�? - Inclinou-se para beijar as duas
faces de Brianna. - Organize-se para ir na sexta - ordenou. - Ligarei de Dublin.
Gray passou a l�ngua pelos dentes, quando Maggie bateu a porta.
- Mandona, n�o �?
- Se �. - Brianna piscou, sacudindo a cabe�a. - Mas n�o � de prop�sito. S� que ela pensa que est� sempre certa. E adora o tio Niall e a av� de Rogan.
- Av� de Rogan.
- � com quem ele vai casar. - Voltou para as sementes, esperando clarear a mente com o trabalho.
- Parece at� novela.
- Parece mesmo. Gray, � muita gentileza sua mostrar-se t�o compreensivo, mas n�o � necess�rio. Eles n�o v�o sentir minha falta, realmente, e ser� um aborrecimento
para voc�.
- Um fim de semana em Dublin n�o � um aborrecimento para mim. E voc� quer ir, n�o quer?
- Esta n�o � a quest�o. Maggie deixou voc� numa posi��o dif�cil. Ele colocou a m�o sob o queixo dela, levantando-o.
- Por que tem tanta dificuldade para responder �s perguntas? Voc� quer ir, n�o quer? Sim ou n�o?
- Sim.
- Ok, ent�o vamos.
Os l�bios dela come�aram a se curvar, at� que ele se inclinou para eles.
- N�o me beije - ela falou fracamente.
- Bem, isso sim � um aborrecimento para mim. - Mas ele se conteve inclinando-se para tr�s. - Quem machucou voc�, Brianna? Os c�lios baixaram, toldando seus
olhos.
- Talvez eu n�o responda �s perguntas porque voc� pergunta demais.
- Voc� o amava?
Ela virou a cabe�a, concentrando-se em seus vasos.
- Sim, muito. Era uma resposta, mas ele descobriu que n�o o agradou.
- Ainda est� apaixonada por ele?
- Seria uma idiotice.
- N�o � uma resposta.
- � sim. Fico fungando no seu pesco�o quando est� trabalhando?
- N�o. - Mas ele n�o recuou. - Mas voc� tem um pesco�o t�o atraente. - Provando o que dizia, abaixou-se para ro�ar os l�bios sobre sua nuca. N�o fez mal a
seu ego senti-la estremecer. - Sonhei com voc� a noite passada, Brianna. E escrevi sobre isso hoje.
Muitas das sementes espalharam-se sobre a bancada, em vez de na terra. Ela se ocupou recolhendo-as.
- Escreveu sobre isso?
- Fiz algumas mudan�as. No livro, voc� � uma jovem vi�va que batalha para reconstruir a vida sobre um passado penoso.
Involuntariamente, ela se viu for�ada a voltar-se para olh�-lo.
- Voc� me colocou em seu livro?
- Partes de voc�. Seus olhos, esses maravilhosos olhos tristes. Seus cabelos. - Ele levantou a m�o para toc�-los. - Espessos, lisos, da cor de um frio p�r-do-sol.
Sua voz, esta cad�ncia suave. Seu corpo, esguio, flex�vel, com uma gra�a inconsciente de bailarina. Sua pele, suas m�os. Vejo voc� quando escrevo, ent�o escrevo
sobre voc�. E, al�m do f�sico, h� sua integridade, sua lealdade. - Sorriu. - Seus bolos para o ch�. O her�i est� t�o fascinado por ela quanto eu sou por voc�.
Gray firmou as m�os na bancada, dos dois lados dela, prendendo-a.
- E ele continua esbarrando nesta mesma coura�a que voc�s duas t�m. Fico pensando quanto tempo vai levar para quebr�-la.
Ningu�m nunca falara tais palavras sobre ela antes, tais palavras a ela. Uma parte dela ansiava por rolar nelas, como se fossem seda. Outra parte permanecia
cautelosamente atr�s.
- Voc� est� tentando me seduzir. Ele levantou a sobrancelha.
- Como estou me saindo?
- N�o consigo respirar.
- � um bom come�o. - Chegou mais perto, at� que sua boca estivesse a um sussurro da dela. - Deixe-me beij�-la, Brianna.
Ele j� estava daquele jeito, de vagarosa vertigem, que fazia os m�sculos dela se desfazerem. Boca com boca. Algo t�o simples, mas que fazia tudo oscilar no
mundo dela. Mais e mais at� que ela tivesse medo de nunca mais recuperar o equil�brio.
Ele tinha destreza, e com a destreza tinha paci�ncia. Sob ambas estava o vislumbre da viol�ncia reprimida que ela sentira nele uma vez. A combina��o penetrou
nela como uma droga, enfraquecendo-a, atordoando-a.
Ela desejava como uma mulher desejava. Ela temia como a inoc�ncia temia.
Delicadamente ele soltou os dedos com que ela se agarrava � bancada. Com a boca deslizando sobre a dela, ele ergueu seus bra�os.
- Abrace-me, Brianna. - Deus, ele precisava dela. - Beije-me.
Como o estalo de um a�oite, as palavras calmas dele a incitaram. Subitamente ela estava colada nele, a boca ardente e desejosa. Cambaleante, ele recuou, apertando-a.
Os l�bios dela estavam quentes, famintos, o corpo vibrando como uma corda de harpa puxada. A erup��o da paix�o era como lava escorrendo atrav�s do gelo, fren�tica,
inesperada e perigosa.
Havia o cheiro elemental da terra, o gemido dos foles irlandeses no r�dio, o sabor suculento de mulher na boca dele e a tr�mula excita��o dela em seus bra�os.
Ent�o ele estava cego e surdo a tudo, menos a ela. As m�os dela agarradas em seus cabelos, sua respira��o ofegante enchendo-lhe a boca. Mais, apenas querendo
mais, ele empurrou suas costas contra a parede do galp�o. Ouviu o grito dela - de susto, dor, excita��o -, antes que ele silenciasse o som, devorando-o, devorando-a.
As m�os dele corriam sobre ela, quentes, invasivas, possessivas. E a respira��o dela se tornou um gemido. Por favor... Queria implorar algo a ele. Ah, por
favor. A dor, uma dor... profunda, implac�vel, gloriosa. Mas ela n�o sabia o come�o daquilo ou como iria terminar. E o medo a mordia como um lobo - medo dele, de
si mesma, do que ainda tinha de conhecer.
Ele desejava sua pele - sentir e provar a carne dela. Queria estar dentro dela at� que ambos esvaziassem. O ar cortava seus pulm�es, enquanto ele agarrava
a camisa dela, as m�os prontas para arrancar e rasgar.
E seus olhos encontraram os dela.
Seus l�bios estavam machucados e tr�mulos, o rosto p�lido como gelo. Olhos arregalados, terror e desejo guerreavam neles. Ele baixou os olhos, viu seus dedos
brancos pela for�a. E as marcas que seus dedos �vidos deixaram em sua pele ador�vel.
Recuou como se ela o tivesse agredido. Ent�o levantou as m�os. N�o sabia, ao certo, o que ou quem estava repelindo.
- Desculpe - conseguiu dizer, enquanto ela continuava parada, pressionada contra a parede, engolindo em seco. - Desculpe. Machuquei voc�?
- N�o sei. - Como podia saber, quando n�o havia nada al�m daquela dor terr�vel latejando? Nunca sonhara que podia sentir aquilo. N�o sabia que era poss�vel
sentir tanto. Confusa, esfregou as faces �midas.
- N�o chore. - Enfiou a m�o tr�mula nos cabelos. - J� estou me sentindo s�rdido demais.
- N�o, n�o... - Engoliu as l�grimas. N�o sabia por que derram�-las. - N�o sei o que aconteceu comigo.
Claro que n�o sabia, ele pensou amargamente. N�o lhe falara que era inocente? E tinha agido com ela como um animal. Mais um minuto e a teria jogado no ch�o
e...
- Pressionei voc� e n�o h� perd�o para isso. S� posso lhe dizer que perdi a cabe�a e pe�o desculpas. - Queria achegar-se a ela, afastar-lhe os cabelos emaranhados
do rosto. Mas n�o ousou. - Fui grosseiro e assustei voc�. N�o acontecer� outra vez.
- Sabia que voc� seria. - Estava mais firme agora, talvez porque ele parecesse t�o tr�mulo. - Durante todo o tempo, eu sabia. N�o foi isto, Grayson. N�o sou
t�o fr�gil assim.
Ele percebeu que ainda era capaz de sorrir.
- Ah, voc� � sim, Brianna. E eu nunca fui t�o desajeitado. Pode parecer o momento errado para lhe dizer isso, mas n�o deve ter medo de mim. N�o vou machuc�-la.
- Eu sei. Voc�...
- E vou tentar ao m�ximo n�o apressar voc� - ele interrompeu-a. - Mas eu a quero.
Ela percebeu que precisava se concentrar para respirar normalmente outra vez.
- N�o podemos ter sempre o que queremos.
- Nunca acreditei nisto. N�o sei quem era ele, Brie, mas ele se foi. Eu estou aqui.
Ela concordou.
- Agora.
- H� apenas o agora. - Sacudiu a cabe�a antes que ela pudesse rebater. - Este lugar � t�o estranho para filosofia quanto para sexo. N�s dois estamos bem excitados,
n�o �?
- Acho que se pode dizer isso.
- Vamos entrar. Desta vez eu vou preparar um ch� para voc�. Ela arqueou os l�bios.
- E voc� sabe fazer?
- Estive observando voc�. Venha.
Estendeu a m�o. Ela olhou-o hesitante. Depois de olhar cautelosamente o rosto dele - estava calmo agora, sem aquela estranha luz selvagem, assustadora e excitante
-, deslizou a m�o na dele.
- Talvez fosse bom ter algu�m nos vigiando esta noite.
- Como? - Ela voltou a cabe�a, enquanto sa�am.
- De outro modo, voc� pode se esgueirar at� o meu quarto e se aproveitar de mim.
Ela deixou escapar uma risada.
- Voc� � esperto demais para que algu�m se aproveite de voc�.
- Bem, voc� pode tentar. - Aliviado por nenhum dos dois estar tremendo agora, ele passou o bra�o amigavelmente pelos ombros dela.
- Por que n�o comemos um peda�o de bolo com o ch�? Relanceou os olhos para ele, quando chegaram � porta da cozinha.
- O meu ou o que a mulher faz no seu livro?
- O dela � apenas na minha imagina��o, querida. Agora, o seu...
- Gelou quando abriu a porta. Instintivamente empurrou Brianna para tr�s de si. - Fique aqui. Bem aqui.
- O que foi? Voc� est�... ah, meu Deus! - Sobre o ombro dele, ela p�de ver o caos na sua cozinha. Latas haviam sido emborcadas, arm�rios, esvaziados. Farinha
e a��car, pimenta e ch� despejados no ch�o.
- Eu disse para ficar aqui - ele repetiu, quando ela tentou afast�-lo.
- N�o, n�o fico. Olhe essa bagun�a.
Ele impediu sua passagem com um bra�o na porta.
- Guarda dinheiro nas latas? J�ias?
- N�o seja maluco! Claro que n�o. - Ela pestanejou. - N�o tenho nada para ser roubado e ningu�m faria isso.
- Bem, algu�m fez e pode estar ainda dentro de casa. Onde est� o cachorro? - murmurou.
- Deve estar fora com Murphy - falou friamente. - Sai para fazer muitas visitas � tarde.
- Corra at� a casa de Murphy, ent�o, ou de sua irm�. Darei uma olhada por aqui.
Ela se adiantou.
- Lembro a voc� que esta � minha casa. Eu mesma vou olhar.
- Fique atr�s de mim. - Foi tudo o que ele disse.
Checou primeiro os c�modos dela, ignorando o esperado grito de revolta, quando viu as gavetas reviradas, as roupas jogadas.
- Minhas coisas.
- Veremos depois se falta alguma coisa. Melhor checar o resto.
- Que maldade � essa? - perguntou, exasperada, enquanto seguia atr�s de Gray. - Ah, malditos sejam! - praguejou, quando viu a sala.
Tinha sido uma busca r�pida, corrida, fren�tica, Gray pensou. Algo nada profissional e idiotamente arriscado. Pensava nisto, quando outra id�ia o atravessou.
- Merda! - Subiu as escadas de dois em dois degraus, irrompendo na confus�o de seu quarto, atirando-se direto para o laptop. - Algu�m vai morrer - murmurou,
ligando o computador.
- Seu trabalho. - Brianna deteve-se p�lida e furiosa, na porta. - Estragaram seu trabalho?
- N�o. - Percorreu p�gina por p�gina, at� se dar por satisfeito. - N�o, est� aqui. Tudo bem.
Ela deixou escapar um suspiro, antes de voltar-se para o quarto do Sr. Smythe-White. As roupas tinham sido atiradas para fora das gavetas e do arm�rio, a cama
fora arrastada.
- Deus do c�u, como vou explicar isso a ele?
-Acho que � mais importante saber o que estavam procurando.
Sente-se, Brianna - Gray ordenou. - Vamos pensar a respeito.
-O que h� para pensar? - Mas ela sentou-se na beirada do colch�o revirado. - N�o tenho nada de valor aqui. Umas poucas libras, algumas quinquilharias. - Esfregou
os olhos, impaciente consigo mesma pelas l�grimas que n�o conseguia conter. - N�o pode ter sido algu�m da vila ou das redondezas. Deve ser algum vagabundo, um caroneiro,
talvez, esperando achar um pouco de dinheiro. Bem... - Respirou tr�mula. - Deve ter se desapontado com o que encontrou aqui. - Levantou os olhos, abruptamente, empalidecendo
outra vez. -Voc�? Tinha algum dinheiro?
- A maior parte s�o cheques de viagem. Ainda est�o aqui. - Sacudiu os ombros. - Levou umas poucas centenas de libras, � tudo.
- Umas poucas... centenas? - Ela saltou da cama. - Levou seu dinheiro?
- N�o � importante. Brie...
- N�o � importante? - Ela cortou-o. - Voc� est� morando sob meu teto, um h�spede em minha casa, e teve seu dinheiro roubado. Quanto era? Resolverei isso.
- Claro que n�o. Sente-se e pare com isso.
- J� disse que resolverei.
Paci�ncia esgotada, ele a segurou firmemente pelos ombros e empurrou-a de volta � cama.
- Pagaram-me cinco milh�es pelo meu livro mais recente, al�m dos direitos autorais para o exterior e para filmes. Algumas poucas centenas de libras n�o v�o
me quebrar. - Os olhos dele se estreitaram, quando os l�bios dela se curvaram novamente. - Respire fundo. Agora. Ok, outra vez.
- N�o interessa se voc� tem ouro brotando das m�os. Sua voz falhou, deixando-a humilhada.
- Quer chorar mais? - Ele suspirou fortemente, sentou-se ao lado dela, preparou-se para isso. - Ok, deixe rolar.
- N�o vou chorar. - Fungou, passando as palmas das m�os para secar o rosto. - Tenho coisas demais a fazer. Vou levar horas para colocar tudo em ordem aqui.
- Teremos que chamar a pol�cia?
- Para qu�? - Levantou as m�os e deixou-as cair. - Se algu�m tivesse visto um estranho espreitando, meu telefone j� estaria tocando. Algu�m queria dinheiro
e o levaram. - Examinou o quarto, imaginando quanto seu outro h�spede teria perdido e que enorme rombo isto faria em suas preciosas economias. - N�o quero que voc�
fale a esse respeito com Maggie.
- Droga, Brie...
- Ela est� com seis meses. N�o quero preocup�-la. - Lan�ou-lhe um olhar firme atrav�s de olhos ainda brilhantes pelas l�grimas. - Sua palavra, por favor.
- Est� bem, como quiser. Mas quero a sua de que vai me contar exatamente o que est� faltando.
- Vou. Vou ligar para Murphy e contar a ele. Ele vai se informar. Se houver alguma coisa para saber, saberei at� a noite. - Calma outra vez, ela se levantou.
- Preciso come�ar a colocar as coisas em ordem. Come�arei pelo seu quarto, ent�o poder� voltar ao trabalho.
- Eu darei um jeito no meu quarto.
- Sou eu que...
- Est� me enchendo o saco, Brianna. - Esticou-se lentamente, at� que ficou frente a frente com ela. - Vamos deixar isso bem claro. Voc� n�o � minha empregada,
minha m�e ou minha esposa. Posso guardar minhas pr�prias roupas.
- Como preferir.
Praguejando, pegou seu bra�o, antes que ela pudesse sair de perto dele. Ela n�o resistiu, mas permaneceu im�vel, apenas olhando por cima do ombro dele.
- Ou�a. Voc� est� com um problema e quero ajudar. Pode p�r isto na sua cabe�a?
- Quer ajudar mesmo? - Inclinou a cabe�a e falou com todo o calor de uma geleira: - Podia ir pegar algum ch� com Murphy. Parece que ficamos sem.
- Vou ligar para ele - Gray disse calmamente. - E pedir que traga um pouco. N�o vou deixar voc� aqui sozinha.
- Como queira. O n�mero dele est� na agenda, na cozinha... --A voz dela sumiu, quando a imagem de sua ador�vel cozinha lhe veio � mente. Fechou os olhos. -
Gray, voc� pode me deixar sozinha por um instante? Ficarei melhor.
- Brianna. Tocou o rosto dela.
- Por favor. - Desmoronaria completa e humilhantemente se ele fosse gentil agora. - Ficarei bem, quando estiver ocupada. E gostaria de um ch�. - Abrindo os
olhos, for�ou-se a sorrir. - Verdade.
- Muito bem. Vou descer. Agradecida, atirou-se ao trabalho.
G
ray, muitas vezes, brincara com a id�ia de comprar um avi�o.
Algo como o belo jatinho que Rogan deixara ao dispor dele e de Brianna para a viagem a Dublin seria perfeito. Poderia decor�-lo como lhe agradasse, brincar
com os comandos de vez em quando. Nada o impediria de aprender a pilot�-lo.
Certamente seria um brinquedo interessante, pensava, enquanto estava instalado no confort�vel assento de couro ao lado de Brianna. E ter seu pr�prio meio de
transporte eliminaria a dor de cabe�a de providenciar passagens e ficar � merc� dos imprevistos das companhias a�reas.
Mas possuir alguma coisa - qualquer coisa - equivalia � responsabilidade de mant�-la. Era por isso que, por exemplo, alugava carros, nunca comprava.
E embora houvesse algumas vantagens na privacidade ou conveni�ncia de um lindo jato, ele pensou que perderia contato com as multid�es e com os companheiros
de viagem, al�m dos peculiares percal�os de um v�o comercial.
Mas n�o desta vez. Deslizou a m�o sobre a de Brianna, quando o avi�o come�ou a taxiar.
- Gosta de voar?
- N�o v�o com muita freq��ncia. - A antecipa��o de se lan�ar ao c�u fez seu est�mago se contrair um pouco. - Mas, sim, acho que gosto. Gosto de olhar para
baixo. - Sorriu, quando olhou para o ch�o desaparecendo embaixo. Ficava sempre fascinada ao se ver acima de sua pr�pria casa, das montanhas, correndo atrav�s das
nuvens para algum outro lugar. - Suponho que isso n�o � novidade para voc�.
- � divertido pensar para onde se est� indo.
- E onde se estava.
- N�o penso muito nisso. Apenas estive l�.
Enquanto o avi�o subia, ele p�s a m�o sob o queixo dela, virando seu rosto para examin�-la.
- Voc� ainda est� preocupada.
- N�o � certo sair assim, e com tanto luxo tamb�m.
- A velha culpa cat�lica. -A culpa nos olhos dela se aprofundou quando ele riu. - J� ouvi falar desse fen�meno. Se n�o est� fazendo algo construtivo e realmente
est� curtindo n�o fazer, voc� vai para o inferno. Certo?
- Que bobagem! - Torceu o nariz, irritada porque aquilo em parte era verdade. - Tenho responsabilidades.
- E est� se esquivando delas. - Ele soltou um gemido e segurou a cruz de ouro que ela usava. - � uma tenta��o para o pecado, n�o �? O que � exatamente uma
tenta��o?
- Voc� � - ela disse, afastando a m�o dele.
- Sem brincadeira? - Aquela id�ia o atra�a enormemente. - Gosto disso.
- Voc� gostaria mesmo. - Ela colocou um grampo ca�do no lugar. - Mas n�o tem nada a ver com isto. Estou me sentindo culpada porque n�o estou habituada a simplesmente
fazer as malas e partir de repente. Gosto de planejar as coisas.
- Perde metade da gra�a.
- Aumenta a gra�a na minha maneira de pensar. - Ela mordeu o l�bio. - Sei que � importante ir a Dublin para o casamento, mas sair de casa assim, justamente
agora...
- Murphy est� cuidando do cachorro - Gray lembrou. - E dando uma olhada na casa. - Uma olhada atenta, Gray estava certo, j� que conversara com ele em segredo.
- O velho Smythe-White foi embora dias atr�s. Ent�o n�o tem nenhum h�spede com que se preocupar.
- H�spedes - ela disse automaticamente, sobrancelhas levantadas. - Duvido que ele v� recomendar Blackthorn para algu�m, depois do que aconteceu. Embora ele
tenha sido bastante compreensivo.
- Ele n�o perdeu nada. "Nunca viajo com dinheiro, sabe" - Gray falou imitando a voz afetada de Smythe-White. - "� um convite para problema."
Ela riu um pouco, como ele esperava.
- Ele pode n�o ter sido roubado, mas duvido que tenha tido uma noite em paz sabendo que seu quarto foi invadido e suas coisas, jogadas. - Motivo pelo qual
ela se recusou a cobrar pela hospedagem dele.
- Ah, sei l�. Eu n�o me incomodei. - Soltou o cinto de seguran�a e levantou para andar pelo corredor. - Seu cunhado � um cara de classe.
- � sim. - Suas sobrancelhas se eri�aram, quando Gray voltou com uma garrafa de champanhe e duas ta�as. - Voc� n�o vai abrir isto. � um v�o t�o curto e...
- Claro que vou abrir. N�o gosta de champanhe?
- Adoro, mas... - Seus protestos foram cortados pelo som alegre da rolha pulando. Suspirou como uma m�e quando v� o filho pular numa po�a de lama.
- Ent�o... - Sentou-se outra vez, enchendo as duas ta�as. Depois de lhe estender uma delas, brindou cristal com cristal e riu. - Conte-me sobre a noiva e o
noivo. Voc� falou que eles t�m oitenta anos?
- Tio Niall sim. -J� que n�o era poss�vel colocar a rolha de volta na garrafa, ela bebeu. - A Sra. Sweeney � alguns anos mais jovem.
- Imagine! - Aquilo o divertia. - Entrando na gaiola do casamento nesta idade.
- Gaiola?
- Uma s�rie de proibi��es e nenhuma sa�da f�cil. - Desfrutando o champanhe, degustou-o na l�ngua antes de engolir. - Ent�o ele era uma paix�o de inf�ncia?
- N�o exatamente - murmurou, ainda com a cara fechada por conta da descri��o dele sobre casamento. - Eles cresceram em Galway. A Sra. Sweeney era amiga de
minha av�, que era irm� do tio Niall, entende? E a Sra. Sweeney tinha uma queda pelo tio Niall. Ent�o minha av� casou-se e foi para Clare. A Sra. Sweeney casou-se
e foi para Dublin. Perderam o contato uma com a outra. Ent�o Maggie e Rogan come�aram a trabalhar juntos, e a Sra. Sweeney fez a conex�o entre as fam�lias. Escrevi
sobre isso a tio Niall e ele veio a Dublin. - Sorriu ao pensar naquilo, quase n�o notando, quando Gray tornou a encher o copo dela. - Os dois n�o se largam desde
ent�o.
- As voltas do destino. - Gray ergueu sua ta�a num brinde. - Fascinante, n�o �?
- Eles se amam - ela disse com um suspiro. - S� espero... - interrompeu e olhou pela janela novamente.
- O qu�?
- Espero que tenham um �timo dia, agrad�vel mesmo. S� estou preocupada pensando se mam�e n�o vai estragar tudo. - Virou-se para ele de novo. Embora aquilo
a envergonhasse, era melhor que ele soubesse para n�o ficar muito chocado, se houvesse uma cena. - Ela n�o vem para Dublin hoje. N�o vai dormir na casa de Maggie,
em Dublin. Disse que vir� amanh�, cumprir� seu dever e voltar� imediatamente.
Ele levantou a sobrancelha.
- N�o fica feliz na cidade? - perguntou, mesmo pressentindo que era algo totalmente diferente.
- Mam�e n�o � uma mulher que fique feliz em lugar algum. Devo lhe dizer que ela pode ser dif�cil. Ela n�o aprova, sabe, o casamento.
- O qu�? Acha que estas crian�as loucas s�o muito jovens para casar?
Brianna curvou os l�bios, mas seus olhos n�o refletiam aquilo.
- � dinheiro casando com dinheiro, como ela mesma diz. E ela... bem, tem opini�es fortes sobre o fato de estarem morando juntos, sem a b�n��o de Deus.
- Morando juntos? - N�o conseguia parar de rir. - Sem a b�n��o de Deus?
- Morando juntos - ela falou afetadamente. - E, como mam�e lhe dir� se tiver uma chance, a idade dificilmente os absolveria do pecado da fornica��o.
Ele se engasgou com a bebida. Enquanto ria e tossia tentando respirar, percebeu o brilho no olhar enviesado de Brianna.
- Desculpe, compreendo que n�o � pra ser engra�ado.
- Algumas pessoas acham f�cil rir das cren�as dos outros.
- N�o tive a inten��o. - Mas mal conseguia controlar o riso. - Meu Deus, Brie, voc� acabou de me dizer que o homem � octogen�rio, que sua ruborizada noiva
est� quase l�. Voc� realmente n�o acredita que eles v�o para o fogo do inferno porque... - Decidiu que preferia encontrar um modo mais delicado de colocar aquilo.
- Eles tiveram uma rela��o madura, fisicamente satisfat�ria.
- N�o. - Um pouco do gelo do olhar derreteu. - N�o, eu n�o, claro. Mas mam�e acredita ou diz que acredita, porque � mais f�cil reclamar. Fam�lias s�o complicadas,
n�o s�o?
- Pelo que observo... N�o tenho uma para me preocupar.
- Nenhuma fam�lia? - O resto do gelo derreteu-se em compaix�o. - Perdeu seus pais?
- De certo modo... - Seria mais adequado dizer que eles o tinham perdido.
- Sinto muito. E n�o tem irm�os, irm�s?
- Nada. - Alcan�ou a garrafa, outra vez, para encher sua ta�a.
- Mas voc� tem primos, certamente. - Todo mundo tem algu�m, pensou. - Av�s, tios, tias.
- N�o.
Ela apenas olhou, desolada. N�o ter ningu�m. N�o podia conceber aquilo. N�o podia tolerar aquilo.
- Voc� est� me olhando como se eu fosse uma crian�a enjeitada que largaram na sua porta. - Aquilo o divertia e estranhamente o tocava. -Acredite, querida,
prefiro assim. Nada de la�os, nada de v�nculos, nada de culpas. - Voltou a beber, como que para selar aquelas palavras. - Simplifica minha vida.
Melhor dizer que a torna vazia, ela pensou.
- N�o o incomoda n�o ter ningu�m esperando por voc� em casa?
- Me alivia. Talvez me incomodasse, se eu tivesse uma casa, mas tamb�m n�o tenho nenhuma.
O cigano, ela lembrou, mas n�o o tinha considerado assim literalmente, at� agora.
- Mas, Grayson, n�o ter nenhum lugar seu...
- Nenhuma hipoteca, nenhum gramado para cortar ou vizinho para apaziguar. - Inclinou-se sobre ela para olhar pela janela. - Veja, l� est� Dublin.
Mas ela olhou para ele, sentiu por ele.
- Mas, quando deixar a Irlanda, para onde ir�?
- N�o decidi ainda. Isto � que � bom.
- Voc� tem uma casa linda. - Menos de tr�s horas ap�s ter aterrissado em Dublin, Gray esticava as pernas para o fogo, na sala de Rogan.
- Obrigado por me receber aqui.
- � um prazer. - Rogan lhe ofereceu um c�lice de conhaque, depois do jantar.
Estavam sozinhos no momento, enquanto Maggie e Brianna tinham ido ao apartamento da av� dele para ajudar a noiva com os arranjos de �ltima hora.
Rogan ainda sentia dificuldades em pensar na av� como uma futura noiva nervosa. E mais dificuldades ainda em imaginar o homem, que estava agora mesmo conversando
com o cozinheiro, como seu futuro av�.
- Voc� n�o parece muito satisfeito com isso.
- Com isso o qu�? - Rogan olhou de relance para Gray e acabou sorrindo. - N�o, desculpe, n�o tem nada a ver com voc�. Acho que me sinto um tanto desconfort�vel
sobre amanh�.
- Nervosismo por se despedir da noiva?
O melhor que Rogan conseguiu foi um grunhido. Compreendendo seu anfitri�o, Gray empurrou a bochecha com a l�ngua e tocou no ponto inc�modo.
- Niall � um personagem interessante.
- Uma figura�a - Rogan murmurou. - Realmente.
- Os olhos de sua av� brilhavam durante o jantar. Agora, Rogan suspirou. Ela nunca parecera t�o feliz.
- Eles est�o loucos um pelo outro.
- S�o dois contra um. Podemos domin�-lo, arrast�-lo at� as docas e enfi�-lo num navio para a Austr�lia.
- N�o pense que j� n�o considerei essa possibilidade. - Sorriu, agora mais solto. - Ningu�m foi for�ado a nada, n�o �? E sou for�ado a admitir que o homem
a adora. Maggie e Brie est�o deliciadas. Ent�o eu me vi derrotado.
- Gosto dele - Gray disse com um sorriso de desculpas. - Como n�o gostar de um homem que veste um casaco da cor de uma ab�bora de Halloween com sapatos de
crocodilo enfeitados?
- L� vem voc�. - Rogan acenou a m�o gentilmente. - Em todo caso, estou contente por proporcionar a voc� um casamento durante sua estada na Irlanda. Est� confort�vel
em Blackthorn?
- Brianna tem um grande talento para proporcionar conforto.
- Tem mesmo.
A express�o de Gray tornou-se s�ria, enquanto olhava para seu drinque.
- Aconteceu uma coisa alguns dias atr�s e acho que voc� deve saber. Ela n�o quer que eu fale a respeito, principalmente com Maggie. Mas gostaria que ficasse
a par.
- Tudo bem.
- A pousada foi arrombada.
- Blackthorn? - Surpreso, Rogan colocou o conhaque de lado.
- Est�vamos do lado de fora, no galp�o que ela usa para plantar. Devemos ter ficado l� por uma meia hora, talvez um pouco mais. Quando voltamos, algu�m tinha
revirado a casa.
- O qu�?
- Deixando tudo de cabe�a pra baixo - Gray explicou. - Uma busca r�pida, desorganizada, eu diria.
- Isso n�o faz sentido. - Ele se inclinou para a frente, preocupado. - Levaram alguma coisa?
- Eu tinha algum dinheiro no meu quarto. - Sacudiu os ombros. - Parece ter sido tudo. Brianna garante que ningu�m da vizinhan�a faria isso.
- Ela tem raz�o. - Rogan se recostou outra vez, pegou o conhaque, mas n�o o bebeu. - � uma comunidade pequena e unida, e Brie � muito querida por l�. Chamaram
a pol�cia?
- Ela n�o quis, n�o viu raz�o. Falei com Murphy, em particular.
- Isto foi bom - Rogan concordou. - Eu pensaria que foi algum estranho que passou por ali. Mas at� isto parece fora do comum.
- Sem encontrar qualquer explica��o, tamborilou com os dedos o
c�lice. - Voc� j� est� l� h� algum tempo. Deve ter alguma impress�o das pessoas, do jeito do lugar, da atmosfera.
- Pela l�gica, � uma coisa que n�o vai acontecer de novo. - Gray deu de ombros. - Contudo, acho que n�o faria mal a ningu�m se voc� ficasse de olho, quando
voltasse.
- Farei isto. - Rogan franziu a testa, olhando o conhaque. - Pode ter certeza.
- Tem um �timo cozinheiro, Rogan, meu rapaz. - Niall irrompeu na sala, carregando uma bandeja com lou�a e uma enorme torta de chocolate. Era um homem grande,
desfilando dez quilos de excesso de peso como um distintivo de honra. E, de algum modo, parecia mesmo com uma daquelas ab�boras de Halloween, com seu casaco cor-de-laranja
e a gravata verde-lim�o. - Um pr�ncipe, o que ele �. - Niall apoiou a bandeja, radiante. - Ele me deu esse doce para ajudar a acalmar meus nervos.
- Eu tamb�m estou nervoso. - Rindo, Gray levantou-se para cortar um peda�o da torta.
Niall explodiu numa risada e deu um tapa cordial nas costas de Gray.
- � isso a�. Bom apetite, rapaz! Por que a gente n�o aproveita para jogar uma sinuquinha? - Piscou para Rogan. -Afinal de contas, esta � minha �ltima noite
de homem livre. Nada mais de farra com os rapazes pra mim. Algum u�sque para molhar a garganta?
- U�sque. - Rogan olhou para o rosto largo e sorridente de seu futuro av�. - Tamb�m tomaria uma dose.
Tomaram v�rias. E ent�o, mais algumas. Quando a segunda garrafa foi aberta, Gray tinha de apertar os olhos para ver as bolas na mesa de sinuca, e elas ainda
tendiam a se misturar. Acabou fechando um olho completamente.
Ouvindo o estalo das bolas, recuou.
- Ponto meu, senhores. Ponto meu. - Inclinou-se pesadamente sobre o taco.
- O desgra�ado do ianque n�o quer perder esta noite. - Niall bateu nas costas de Gray e quase o atirou de nariz na mesa. -Arrume de novo, Rogan, meu rapaz.
Vamos jogar outra.
- N�o consigo enxerg�-las - Rogan falou lentamente antes de levantar a m�o na frente do pr�prio rosto e examin�-la. - N�o consigo nem sentir meus dedos.
- Voc� precisa � de outro u�sque. - Como um marujo a bordo de um conv�s inclinado, Niall tomou o rumo da garrafa. - Nem uma gota sequer - falou tristemente
ao levantar o cristal. - Nem uma maldita gotinha sobrou.
- N�o tem mais u�sque em Dublin. - Rogan se afastou da parede que o mantinha em p�, mas voltou a ela, combalido. - Bebemos tudo. Completamente b�bados. Ah,
meu Deus. N�o sinto minha l�ngua tamb�m. Eu a perdi!
- Vamos ver. - Querendo ajudar, Gray largou pesadamente as m�os nos ombros de Rogan. - Ponha pra fora! - Olhos apertados, ele sacudiu a cabe�a. - Tudo bem,
cara. Ela est� a�. S� que voc� est� com duas l�nguas. Esse � o problema.
- Estou casando com minha Chrissy amanh�. - Niall ficou de p�, balan�ando perigosamente para a esquerda, depois para a direita, olhos vidrados, sorriso brilhante.
- Linda Chrissy, la belle de Dublin.
Arremessou-se para a frente, estatelando-se como uma sequ�ia. Com os bra�os apoiando solidariamente um ao outro, Rogan e Gray olharam para ele.
- O que fazemos com ele? - Gray perguntou. Rogan passou uma de suas duas l�nguas nos dentes.
- Acha que ele est� vivo?
- N�o parece.
- N�o comecem o vel�rio ainda. - Niall levantou a cabe�a. - S� me ajudem a levantar, caras. Vou dan�ar at� de madrugada. - A cabe�a bateu no ch�o outra vez,
com um baque surdo.
- N�o est� t�o mal, est�? - Rogan perguntou. - Quando estou b�bado, d� nisso.
- Um pr�ncipe. Vamos levant�-lo. N�o pode dan�ar desse jeito.
- Certo! - Cambalearam at� ele. Quando levantaram Niall sobre os joelhos, estavam sem ar e rindo como idiotas. - Levante, seu moleir�o! � como tentar levantar
uma baleia encalhada.
Niall abriu os olhos turvos, atirou a cabe�a para tr�s e come�ou a cantar com a voz engrolada, mas surpreendentemente emocionado.
- Pra mim isso � tudo, bebida, felicidade, beber feliz. Pra mim, cerveja e cigarro � tudo. - Grunhiu, equilibrando-se sobre um p�, quase atirando Gray ao ch�o.
- Bem, gastei todo o meu dinheiro com mulheres, bebendo gim. Por todo o Oeste por onde andei.
- Voc� ter� sorte se andar at� a cama - Rogan lhe disse. Ele s� mudou de tom:
- Se voc� tem asas, leve-me ao palco onde as abelhas cantam durante todo o dia...
Bem anestesiado pelo u�sque, Rogan se juntou a eles, de modo que os tr�s oscilavam sobre os p�s.
- Se voc� bebeu demais e n�o consegue seguir adiante... Aquilo atingiu Gray como algo t�o maravilhosamente divertido
que ele se juntou ao coro de risos.
Com a harmonia e a afei��o dos b�bados, eles cambalearam agarrados na parede. Quando chegaram � base da escadaria, estavam numa interpreta��o bem encharcada
de u�sque de "Dicey Riley".
- Bem, n�o diria que foi apenas o pobre velho Dicey Riley que os levou a beber, diria, Brie? - Maggie parou a meio caminho da escadaria com a irm�, estudando
o trio.
- N�o diria n�o. - Cruzando as m�os na cintura, elegantemente, Brianna sacudiu a cabe�a. - Pelo jeito deles, tomaram v�rios primeiros goles.
- Cristo! Ela � bonita, n�o �? - Gray resmungou.
- Sim. - Rogan ria intensamente para a esposa. - Me tira o f�lego, Maggie, meu amor, venha me dar um beijo.
- Vou lhe dar � minha m�o. - Mas ela ria, enquanto descia as escadas. - Olhem s� para voc�s, pobres b�bados. Tio Niall, voc� j� tem bastante idade para saber
o que fazer.
- Casar, Maggie Mae. Onde est� minha Chrissy? - Tentou se virar e sentiu seus dois apoios se inclinando como domin�s.
- Dormindo na cama dela, como voc� tamb�m deveria estar. Vamos, Brie, vamos tirar estes guerreiros do campo de batalha.
- Est�vamos jogando sinuca. - Gray riu para Brianna. - Eu ganhei!
- Seu ianque desgra�ado - Niall disse afetuosamente, beijando Gray direto na boca.
- Bem, j� est� legal, n�o est�? - Maggie tratou de passar um bra�o em torno de Rogan. - Vamos agora, por aqui. Um p� na frente do outro. - De alguma maneira,
eles conseguiram acertar os passos. Desovaram Niall primeiro.
- Ponha Rogan na cama, Maggie - Brianna lhe falou. - Vou levar este aqui, ent�o volto para tirar os sapatos do tio Niall.
- Ah, imagina como vai ficar a cabe�a deles amanh�. - A perspectiva fez Maggie sorrir. - Vamos, Sweeney, vamos para a cama. Cuidado com essas m�os. - Mesmo
o considerando inofensivo naquele estado, a ordem veio com uma risada. - Voc� n�o tem id�ia do que fazer com elas no seu estado.
- Aposto que tenho.
- Ah, mas voc� est� cheirando a u�sque e cigarros. - Brianna suspirou e cruzou o bra�o de Gray sobre os ombros, firmando-o. - Voc� sabe que o homem j� tem
oitenta anos, voc� sabia. Devia t�-lo parado.
- Ele � uma p�ssima influ�ncia, aquele Niall Feeney. Tivemos de brindar aos olhos de Chrissy, aos l�bios, aos cabelos e �s orelhas. Acho que brindamos aos
seus dedos dos p�s tamb�m, mas as coisas ficaram turvas na hora deles.
- N�o me admira... Aqui est� sua porta. S� um pouquinho adiante, agora.
- Seu cheiro � t�o bom, Brianna. - Com o que ele pensou ser um movimento suave, farejou, como um cachorro, o pesco�o dela. - Venha para a cama comigo. Posso
lhe mostrar algumas coisas. Todo o tipo de coisas maravilhosas.
- Hum-hum. V� deitando. Assim. - Eficientemente, levantou as pernas dele para cima da cama e come�ou a tirar os sapatos.
- Deite comigo. Posso lev�-la a muitos lugares. Quero ficar dentro de voc�.
As m�os dela tremeram desta vez. Olhou rispidamente para ele, mas seus olhos estavam fechados, seu sorriso, sonhador.
- Fique quieto agora - murmurou. - Durma.
Cobriu-o com um cobertor, afastou-lhe os cabelos da testa e o deixou roncando.
O mal-estar j� era esperado. Deve-se pagar pelos excessos, e Gray estava sempre pronto a pagar pelos seus. Mas parecia um pouquinho exagerado ter de fazer
uma m�rbida viagem ao inferno por causa de uma noite idiota.
Sua cabe�a estava rachada ao meio. Algo que n�o era evidente, o que o aliviara consideravelmente, quando tratou de se arrastar at� o banheiro na manh� seguinte.
Parecia desfigurado, mas inteiro. Obviamente o corte dentado era dentro de seu c�rebro.
Provavelmente estaria morto at� o final da tarde.
Os olhos eram pequenas bolas de fogo. O lado de dentro da boca tinha sido esfregado com alguma coisa abomin�vel demais para imaginar. O est�mago se contra�a
e afrouxava como um punho nervoso.
Come�ou a desejar que estivesse mesmo morto antes do final da
Como n�o havia ningu�m por perto, permitiu-se algumas poucas lam�rias, quando entrou no chuveiro. Teria jurado que o cheiro de u�sque estava exalando de seus
poros.
Movendo-se com a cautela de um velho ou doente, saiu da banheira e enrolou uma toalha na cintura. Fez o que p�de para tirar aquele gosto horr�vel da boca.
Quando voltou ao quarto, gemeu, tapando os olhos com as m�os a tempo, esperava, de evitar que explodissem sua cabe�a. Algum s�dico abrira as cortinas � luz
do sol.
Os olhos de Brianna se arregalaram. A boca ficou aberta. Al�m da toalha pendurada frouxamente na cintura, ele vestia apenas algumas gotas de �gua do chuveiro.
O corpo dele era... a palavra primoroso explodiu na mente dela. Esbelto, musculoso, deslumbrante. Pegou-se cruzando os dedos e engolindo em seco.
- Trouxe o caf� numa bandeja. Achei que voc� podia estar se sentindo indisposto.
Cautelosamente, Gray abriu os dedos apenas o suficiente para enxergar entre eles.
- Ent�o isto n�o � a ira de Deus. - A voz estava rouca, mas ele temia que a tentativa de clare�-la lhe trouxesse danos irrevers�veis. - Por um minuto, achei
que estava sendo surrado pelos meus pecados.
- � s� mingau, torradas e caf�.
- Caf�... - pronunciou a palavra como se fosse uma prece. - Podia me dar um pouco?
- Claro. Trouxe tamb�m aspirinas.
- Aspirinas. - Ele podia ter chorado. - Por favor.
- Tome-as primeiro, ent�o. - Estendeu-lhe as p�lulas com um copo de �gua. - Rogan est� t�o mal quanto voc� - disse, enquanto Gray engolia os comprimidos, esfor�ando-se
para impedir que sua m�o acariciasse os cabelos molhados e encaracolados. - Tio Niall est� inteiro.
- Que figuras! - Gray caminhou cautelosamente at� a cama. Sentou-se, rezando para que a cabe�a n�o rolasse de cima do pesco�o. - Antes de ir adiante, preciso
me desculpar por alguma coisa?
- Desculpar-se comigo?
- Com qualquer um. U�sque n�o � meu veneno usual e estou meio confuso sobre os detalhes, depois que come�amos a segunda garrafa. - Observou-a por entre os
olhos semicerrados e notou que ela estava sorrindo. - Alguma coisa engra�ada?
- N�o... bem, sim, mas n�o � delicado achar engra�ado. - Ela afinal sucumbiu e deslizou a m�o pelos cabelos dele, como faria com uma crian�a que tivesse abusado
dos doces. - Estava s� pensando que � muito gentil da sua parte ir logo pedindo desculpas mesmo estando assim. - Seu sorriso tornou-se afetuoso. - Mas n�o, n�o h�
por que se desculpar. Voc� s� ficou b�bado e bobo. N�o causou nenhum estrago.
- F�cil para voc� falar. - Equilibrou a cabe�a. - N�o tenho o h�bito de beber assim. - Estremecendo, buscou o caf� com a m�o livre. - Na verdade, acho que
nunca tinha bebido tanto assim de uma vez s� e duvido que v� beber de novo.
- Voc� vai se sentir melhor depois que comer alguma coisa. E tem algumas horas antes de ter de ir ao casamento, se sentir que consegue.
- N�o o perderia. - Resignado, Gray pegou o mingau. Cheirava bem. Deu uma provada e esperou para ver como seu organismo o aceitaria. - N�o vou com voc�?
- Estou saindo daqui a alguns minutos. H� coisas para fazer. Voc� ir� depois com Rogan e tio Niall... j� que � imposs�vel que voc�s tr�s se metam em alguma
confus�o numa viagem t�o curta.
Ele rosnou e tomou outra colherada de mingau.
- Precisa de mais alguma coisa, antes que eu v�?
- Voc� j� acertou os pontos principais. - Balan�ando a cabe�a, ele a estudou. - Tentei convencer voc� a vir para a cama comigo a noite passada?
- Tentou.
- Acho que me lembro disso. - Sorriu ligeiramente. - N�o sei como voc� resistiu.
- Pois �, consegui. Vou indo, ent�o.
- Brianna. - Lan�ou-lhe um olhar r�pido e perigoso. - N�o desistirei da pr�xima vez.
Christine Rogan Sweeney podia estar perto de se tornar bisav�, mas ainda era uma noiva. N�o importava quantas vezes se tinha dito que era bobagem ficar nervosa,
sentir-se atordoada, seu est�mago ainda saltava.
Iria casar dali a poucos minutos. Prometer-se a um homem que amava ternamente. E receber a promessa dele. E seria uma esposa novamente, depois de tantos anos
vi�va.
- Est� linda! - Maggie manteve-se atr�s, quando Christine virou-se frente ao espelho. O traje rosa-p�lido brilhava com pequenas p�rolas nas lapelas. Sobre
os brancos cabelos brilhantes, um elegante chap�u com um pequeno v�u.
- Sinto-me bonita. - Riu e virou-se para abra�ar Maggie e depois Brianna. - N�o importa quem saiba. Imagino se Niall est� t�o nervoso como eu.
- Ele est� andando de um lado para outro como um felino africano - Maggie disse. - E perguntando as horas a Rogan cada dez segundos.
- Bom. - Christine respirou longamente. - Isto � bom. Est� quase na hora, n�o est�?
- Quase. - Brianna a beijou em cada face. - Vou descer agora para ver se tudo est� de acordo. Desejo muitas felicidades a voc�... tia Christine.
- Ah, querida. - Os olhos de Christine encheram-se de l�grimas. - Como voc� � delicada!
- N�o fa�a isto - Maggie avisou. - Vai fazer com que todas n�s choremos. Avisarei quando estivermos prontas, Brie.
Com um r�pido aceno, Brianna apressou-se logo em sair. Havia fornecedores, naturalmente, e a casa estava cheia de empregados. Por�m um casamento era coisa
de fam�lia e ela queria tudo o mais perfeito poss�vel.
Os convidados andavam pela sala, redemoinhos de cores, fragmentos de risadas. Um harpista ro�ava as cordas em suaves notas de sonho. Guirlandas de rosas tinham
sido entrela�adas no corrim�o e jarros delas estavam artisticamente distribu�dos pela casa.
Pensou que poderia se esgueirar at� a cozinha, apenas para ter certeza de que tudo estava bem, quando avistou sua m�e e Lottie. Colocando um sorriso brilhante
no rosto, ela avan�ou.
- Mam�e, voc� est� bonita!
- Bobagem. Lottie me importunou para gastar um bom dinheiro num vestido novo. - Mas ro�ou a m�o, espalhafatosamente, sobre a manga de linho leve.
- Est� linda. E voc� tamb�m, Lottie.
A acompanhante de Maeve sorriu afetuosamente.
- Gastamos escandalosamente, sim. Mas n�o � todo dia que voc� vai a um casamento t�o chique. O arcebispo - ela disse com um sussurro e um pestanejar. - Imagine.
Maeve torceu o nariz.
- Um padre � um padre, n�o importa o que esteja vestindo. Acho que ele pensou duas vezes antes de celebrar este casamento. Quando duas pessoas viveram em pecado...
- Mam�e. - Brianna manteve a voz baixa, mas gelidamente firme. - N�o hoje. Por favor, se voc� simplesmente...
- Brianna. - Gray avan�ou, tomou a m�o dela, beijou-a. - Voc� est� fabulosa!
- Obrigada. - Ela tentava n�o enrubescer, enquanto os dedos dele se fechavam possessivamente em torno dos dela. - Mam�e, Lottie, este � Grayson Thane. � um
h�spede de Blackthorn. Gray, Maeve Concannon e Lottie Sullivan.
- Sra. Sullivan. - Tomou a m�o de Lottie, fazendo-a rir quando a beijou. - Sra. Concannon. Meus parab�ns pelas suas lindas e talentosas filhas.
Maeve olhou-o carrancuda. Os cabelos dele eram t�o longos como os de uma garota, observou. E o sorriso tinha mais do que um toque demon�aco.
- Um ianque, �?
- Sim, senhora. Estou gostando muito do seu pa�s. E da hospitalidade de sua filha.
- H�spedes geralmente n�o v�m a casamentos na fam�lia.
- M�e...
- N�o, n�o v�m - Gray falou brandamente. - � outra coisa que achei encantadora em seu pa�s. Estranhos s�o tratados como amigos, e amigos nunca como estranhos.
Posso acompanh�-las aos seus lugares?
Lottie j� estava enfiando seu bra�o no dele.
- Ande, Maeve. Quando vamos voltar a receber o convite de um rapaz bonito como este? Voc� � escritor, n�o �?
- Sou. - Conduziu as duas mulheres, lan�ando sobre os ombros um r�pido sorriso convencido para Brianna.
Ela teria sido capaz de beij�-lo. Justo quando suspirou de al�vio, Maggie fez um sinal do alto da escadaria.
Quando o harpista iniciou a marcha nupcial, Brianna deslizou para o fundo da sala. Sua garganta apertou quando Niall tomou lugar na frente da lareira e olhou
para o alto da escadaria. Talvez seus cabelos estivessem ralos e sua cintura grossa, mas agora ele parecia jovem e ansioso, completamente nervoso.
A sala zumbia em expectativa, enquanto Christine desceu lentamente as escadas, virou-se e, com os olhos brilhando por tr�s do v�u, dirigiu-se a ele. O arcebispo
os aben�oou e a cerim�nia come�ou.
- Tome. - Gray esgueirou-se para o lado de Brianna alguns momentos depois e ofereceu-lhe o len�o. - Estou sentindo que precisa disso.
- � t�o bonito. - Ela passou-o de leve nos olhos. As palavras a atravessaram. Amar. Honrar. Respeitar.
Gray ouviu: At� que a morte os separe. Uma pena de pris�o perp�tua. Ele sempre pensara que havia uma raz�o para as pessoas chorarem nos casamentos. Passou
o bra�o sobre os ombros dela, apertando-a afavelmente.
- Anime-se, est� quase terminando - murmurou.
- Est� apenas come�ando - ela corrigiu-o e se permitiu descansar a cabe�a no ombro dele.
Soaram aplausos quando Niall, direta e entusiasticamente, beijou a noiva.
V
iagens em avi�es particulares, champanhe e casamentos luxuosos era tudo muito bom e bonito, mas Brianna estava contente de estar em casa. Embora soubesse muito bem
que n�o
dava para acreditar no c�u ou no ar agrad�vel, ela preferia pensar que o pior do inverno j� tinha passado. Sonhava com sua linda estufa nova, enquanto cuidava
das sementes no galp�o. E planejava reformar o s�t�o, enquanto pendurava a roupa lavada.
Na semana em que voltou de Dublin, teve a casa s� para si. Gray ficou trancado no quarto, trabalhando. De vez em quando, ele surgia para um passeio ou perambulava
pela cozinha, sentindo o aroma da comida.
N�o tinha certeza se estava aliviada ou amuada porque ele parecia preocupado demais para tentar conseguir mais beijos dela.
Contudo, era for�ada a admitir que sua solid�o era mais agrad�vel ao saber que ele estava no andar de cima. Podia sentar-se diante da lareira � noite, ler,
tricotar ou arquitetar seus planos, sabendo que, a qualquer momento, ele poderia aparecer e juntar-se a ela.
Mas n�o foi Gray quem interrompeu seu tric� numa tarde fria, mas sua m�e e Lottie.
Escutou o carro do lado de fora, sem muita surpresa. Vizinhos e amigos paravam e entravam muitas vezes, quando viam a luz acesa. Deixou o tric� de lado e caminhou
at� a porta, quando ouviu a m�e e Lottie discutindo do lado de fora.
Brianna s� suspirou. Por motivos que lhe escapavam, parecia que as duas mulheres gostavam de se bicar.
- Boa-noite - cumprimentou, beijando as duas. - Que bela surpresa!
- Espero n�o perturbar voc�, Brie. - Lottie revirou os olhos alegres. - Maeve meteu na cabe�a que dev�amos vir e aqui estamos.
- � sempre um prazer receber voc�s.
- N�s sa�mos, n�o sa�mos? - Maeve devolveu. - Ela estava com muita pregui�a para cozinhar. Ent�o tive que me arrastar at� um restaurante, n�o importando como
me sentia.
- At� Brie deve enjoar de sua pr�pria comida, de tempos em tempos - Lottie disse, enquanto pendurava o casaco de Maeve no cabide da entrada. - Mesmo boa como
�. E � bom sair de vez em quando e ver gente.
- N�o preciso ver ningu�m.
- Queria ver Brianna, n�o queria? - Dava prazer a Lottie marcar um pequeno ponto. - � por isso que estamos aqui.
- Quero um ch� decente, e n�o aquela �gua que servem no restaurante.
- Vou fazer. - Lottie afagou o bra�o de Brianna. - Aproveite a visita da mam�e. Sei o lugar das coisas.
- E leve esse cachorro para a cozinha com voc�. - Maeve lan�ou a Con um olhar de impaciente antipatia. - N�o o quero babando perto de mim.
- Voc� vai me fazer companhia, n�o vai, rapaz? - Animada, Lottie acariciou Con entre as orelhas. - Venha com a Lottie, aqui, bom menino.
Obediente, e torcendo por um petisco, Con foi atr�s dela.
- Acendi a lareira, mam�e. Est� bem aconchegante. Vamos sentar l�.
-Desperd�cio de combust�vel - Maeve resmungou. - J� est� bem quente.
Brianna ignorou a dor de cabe�a que surgia atr�s dos olhos.
-Fica mais confort�vel com o fogo. Gostou do jantar?
Maeve soltou um grunhido quando se sentou. Gostava da sensa��o acolhedora e da vis�o do fogo, mas estava decidida a n�o admitir.
- Me carregar para um lugar em Ennis e pedir pizza. Pizza de todos os sabores!
- Ah, sei de que lugar est� falando. Servem uma �tima comida l�. Rogan disse que a pizza parece com a dos Estados Unidos. - Brianna pegou o tric� de novo.
- Sabia que a irm� de Murphy, Kate, est� esperando beb� novamente?
- A garota pare como uma coelha. J� � o que... o quarto?
- O terceiro. Ela tem dois meninos, agora espera que seja uma menina. - Sorrindo, Brianna levantou o delicado fio cor-de-rosa. - Estou fazendo esta manta para
dar sorte.
- Deus dar� a ela o que Ele quiser dar, n�o importa a cor com que voc� tricote.
As agulhas de Brianna ressoavam tranq�ilamente.
- Ent�o Ele dar�. Recebi uma carta de tio Niall e tia Christine. Tem uma foto linda do mar e das montanhas. Est�o se divertindo muito no cruzeiro, visitando
as ilhas gregas.
- Lua-de-mel nesta idade. - Por dentro, Maeve ansiava por ver as montanhas e o mar estrangeiros. - Bem, se voc� tem dinheiro suficiente, pode ir aonde quiser
e fazer o que quiser. Nem todos n�s podemos voar para lugares quentes no inverno. Se eu pudesse, talvez meu peito n�o doesse tanto com o frio.
- Anda se sentindo mal? - A pergunta foi autom�tica, como as respostas para a tabuada de multiplica��o que aprendera na escola. Envergonhada, ergueu os olhos
e esfor�ou-se. - Desculpe, mam�e.
- J� estou acostumada com isto. Dr. Hogan n�o faz mais nada do que estalar a l�ngua e dizer que estou bem. Mas s� eu sei o que sinto, n�o �?
- Voc� sabe sim. - O tric� de Brianna reduziu a velocidade, quando ela sugeriu: -Acho que se sentiria melhor se pudesse sair para tomar sol.
- Ah. E onde vou arranjar sol?
- Maggie e Rogan t�m uma vila no Sul da Fran�a. Dizem que � muito bonito e quente l�. Lembra que ela mandou umas fotos?
- Viajou com ele para pa�ses estrangeiros antes de estarem casados.
- Est�o casados agora - Brianna falou suavemente. - N�o gostaria de ir l�, mam�e, voc� e Lottie, por uma semana ou duas? Teria um agrad�vel descanso ao sol,
e a brisa do mar � sempre muito ben�fica.
- E como eu iria para l�?
- M�e, voc� sabe que Rogan mandaria o avi�o para lev�-la. Maeve podia imaginar. Sol, empregados, a linda e enorme casa
com vista para o mar. Poderia ter tido um lugar assim s� para ela se... Se.
- N�o vou pedir favores �quela menina.
- N�o precisa. Eu pe�o para voc�.
- N�o sei se estou disposta a viajar - Maeve disse, pelo simples prazer de tornar as coisas dif�ceis. - A viagem a Dublin me cansou.
- Mais uma raz�o para voc� tirar umas boas f�rias - Brianna retrucou, conhecendo bem o jogo. - Falarei com Maggie amanh� e acertarei tudo. Ajudarei voc� a
fazer as malas, n�o se preocupe.
- Ansiosa para se livrar de mim, n�o �?
- M�e. - A dor de cabe�a estava aumentando rapidamente.
- Tudo bem, eu vou. - Maeve agitou a m�o. - Pela minha sa�de, embora o bom Deus saiba como afetar� meus nervos ficar entre aqueles estrangeiros. - Os olhos
dela se estreitaram. - E onde est� o ianque?
- Grayson? Est� l� em cima, trabalhando.
- Trabalhando! - bufou irritada. - S� queria saber desde quando contar hist�ria � trabalhar. Qualquer pessoa neste condado conta suas hist�rias.
- Imagino que passar para o papel seria diferente. E h� ocasi�es em que ele desce, depois de ter ficado l� por algum tempo, com a apar�ncia de quem esteve
limpando fossas. Parece mesmo bem cansado.
- Parecia bem animado em Dublin... quando passava a m�o em voc�.
- O qu�? - Brianna perdeu um ponto do tric� e encarou-a.
- Pensa que sou t�o cega quanto doente? - Manchas cor-de-rosa tingiram as faces de Maeve. - Fiquei mortificada ao ver como voc� deixou que ele a tratasse em
p�blico.
- Est�vamos dan�ando - Brianna falou entre dentes, com l�bios que se haviam tornado duros e frios. - Estava ensinando a ele alguns passos.
- Eu sei o que vi. - Maeve cerrou os dentes. - E pergunto a voc� se tamb�m est� dando seu corpo a ele.
- Se estou... -A l� rolou pelo ch�o. - Como pode me perguntar uma coisa dessas?
- Sou sua m�e e pergunto o que bem entender. Com certeza, metade da vila est� comentando de voc�, aqui, sozinha com ele, noite ap�s noite, com um homem.
- Ningu�m est� comentando isso. Dirijo uma pousada e ele � meu h�spede.
- Um caminho conveniente para o pecado. Eu disse isso desde que voc� inventou de come�ar este neg�cio. - Ela balan�ou a cabe�a, como se a presen�a de Grayson
ali apenas confirmasse sua opini�o. - Voc� n�o me respondeu, Brianna.
- Nem deveria, mas vou responder. N�o dei meu corpo a ele, nem a ningu�m mais.
Maeve esperou um momento. Ent�o balan�ou a cabe�a outra vez.
- Bem, voc� nunca foi mentirosa; portanto, vou acreditar.
- N�o me importa o que acredita. - Era raiva, ela sabia, que fazia os joelhos tremerem quando se levantou. - Pensa que tenho orgulho e sou feliz por nunca
ter conhecido um homem, por nunca ter encontrado algum que me amasse? N�o quero viver minha vida sozinha ou ficar para sempre fazendo roupinhas de beb� para os filhos
de outras mulheres.
- N�o levante a voz para mim, menina!
- De que vai adiantar se eu levantar a voz pra senhora? - Brianna aspirou o ar profundamente, esfor�ando-se para se acalmar. - E se eu n�o levantar tamb�m.
Vou ajudar Lottie com o ch�.
- Voc� vai ficar onde est�! - Com express�o severa, Maeve inclinou a cabe�a. - Devia agradecer a Deus pela vida que leva, minha menina. Tem um teto sobre a
cabe�a e dinheiro no bolso. Posso n�o gostar da forma como o ganha, mas voc� teve algum sucesso em sua escolha do que muitos considerariam um modo de vida honesto.
Pensa que um homem e beb�s substituem isso? Bem, est� errada, se pensa assim.
- Maeve, com que est� atormentando a menina agora? - Aborrecida, Lottie entrou com a bandeja de ch�.
- Fique fora disso, Lottie.
- Por favor. - Fria e calmamente, Brianna inclinou a cabe�a. - Deixe-a terminar.
- Vou terminar. Um dia, tive alguma coisa que podia chamar de minha. E perdi. - A boca de Maeve tremeu um pouco, mas ela a firmou, obstinada. - Perdi qualquer
chance que tive de ser o que eu desejava. Desejo e nada mais do que o pecado dele. Com uma crian�a na barriga, o que eu podia ser, exceto a esposa de um homem?
- A esposa de meu pai - Brianna falou vagarosamente.
- � o que eu era. Concebi um filho no pecado e paguei por isso durante toda a minha vida.
- Concebeu dois filhos - Brianna a lembrou.
- Sim, concebi. A primeira, sua irm�, carregou esta marca com ela. Selvagem ela era e sempre ser�. Mas voc� foi uma filha do casamento e do dever.
- Dever?
Com as m�os agarrando os bra�os da cadeira, Maeve inclinou-se para a frente, a voz mais amarga:
- Pensa que eu queria que ele me tocasse outra vez? Pensa que gostei de ser lembrada por que nunca teria o que meu cora��o desejava? Mas a Igreja diz que a
finalidade do casamento � a procria��o. Ent�o cumpri meu dever com a Igreja e o deixei fazer outro filho em mim.
- Dever - Brianna repetiu, e as l�grimas que deveria chorar congelaram em seu cora��o. - Sem amor, sem prazer. � de onde eu vim?
- N�o precisava dividir minha cama com ele, quando soube que carregava voc�. Suportei outra gravidez, outro parto e agradeci a Deus por ser o �ltimo.
- Nunca dividiu uma cama com ele. Todos esses anos.
- N�o haveria mais filhos. Com voc�, eu tinha feito o que podia para me absolver de meu pecado. Voc� n�o tem a agressividade de Maggie. H� uma frieza em voc�,
um controle. Usar� isso para se manter pura... a menos que deixe algum homem tent�-la. Quase foi assim com Rory.
- Eu amava Rory. - Detestava saber que estava t�o pr�xima das l�grimas. Pelo pai, pensou, e pela mulher que ele amara e deixara ir.
- Voc� era uma crian�a. - Maeve desprezou o sofrimento da juventude. - Mas � uma mulher agora, e bonita o bastante para atrair os olhos de um homem. Quero
lembrar a voc� o que pode acontecer se deixar que eles a persuadam a ceder. Este a� em cima vir� e ir� embora quando quiser. Esque�a isto ou pode acabar sozinha
com uma crian�a crescendo sob o seu avental e com vergonha em seu cora��o.
- Tantas vezes eu ficava imaginando por que n�o havia amor nesta casa. - Brianna inspirou tr�mula e se esfor�ou para manter a voz firme. - Sabia que voc� n�o
amava papai, ou n�o podia de algum modo. Do�a saber isso. Mas quando eu descobri por Maggie, sobre seu canto, sua carreira e como a tinha perdido, achei que tinha
entendido e me compadeci pelo sofrimento que deve ter passado.
- Voc� nunca vai poder entender o que � perder tudo o que sempre quis.
- N�o, n�o vou. Mas tamb�m n�o posso entender uma mulher, qualquer mulher, sem amor no cora��o pelos filhos que carregou e deu � luz. - Levantou as m�os para
o rosto. Mas n�o estava molhado. Seco e frio como m�rmore contra os dedos. - Sempre culpou Maggie por simplesmente ter nascido. Agora, vejo que n�o fui nada mais
do que um dever para a senhora, um tipo de penit�ncia por um pecado anterior.
- Criei voc� com cuidado - Maeve come�ou.
- Com cuidado. N�o, � verdade que nunca levantou a m�o para mim como fazia com Maggie. � um milagre que ela n�o tenha crescido me odiando s� por isso. Era
fogo com ela e disciplina fria comigo. E isso funcionou bem e nos fez, suponho, o que somos.
Com todo cuidado, ela voltou a sentar-se e pegou a l�.
- Eu queria amar a senhora. Costumava me perguntar por que nunca pude lhe dar mais do que dever e lealdade. Agora vejo que a falha n�o estava em mim, mas na
senhora.
- Brianna. - Consternada, e profundamente abalada, Maeve levantou-se. - Como pode me dizer estas coisas? Se tentei poupar voc�, proteger voc�.
- N�o preciso de prote��o. Sou sozinha, n�o sou? E virgem, bem como a senhora deseja. Estou tricotando uma manta para o filho de outra mulher, como fiz antes
e farei de novo. Tenho meu neg�cio, como disse. Nada mudou aqui, m�e, mas, para acalmar minha consci�ncia, n�o lhe darei menos do que sempre lhe tenho dado, apenas
posso parar de me repreender por n�o dar mais.
Olhos secos novamente, ela olhou para cima.
- Pode servir o ch�, Lottie? Quero lhe falar sobre as f�rias que voc� e mam�e v�o ter em breve. J� esteve na Fran�a?
- N�o. - Lottie engoliu o n� na garganta. Seu cora��o sangrava pelas duas mulheres. Lan�ou um olhar de tristeza para Maeve, n�o sabendo como confort�-la. Com
um suspiro, serviu o ch�. - N�o - repetiu -, nunca estive l�. Estamos indo, ent�o?
- Isso mesmo. - Brianna recuperou o ritmo do tric�. - Logo, se quiserem. Falarei sobre isso com Maggie amanh�. - Percebeu a compaix�o nos olhos de Lottie e
for�ou um sorriso. - Ter�o que comprar um biqu�ni.
Brianna foi recompensada com uma gargalhada. Depois de colocar a x�cara sobre a mesa, ao lado de Brianna, Lottie tocou-lhe o rosto frio.
- � uma grande garota! - murmurou.
Uma fam�lia de Helsinque passou o fim de semana em Blackthorn. Brianna manteve-se ocupada cozinhando para o casal e as tr�s crian�as. Sem piedade, levou Con
para a casa de Murphy. O lourinho de tr�s anos parecia n�o resistir a lhe puxar as orelhas e o rabo, uma indignidade que Con sofria silenciosamente.
H�spedes inesperados ajudavam a manter a mente dela livre das reviravoltas emocionais que a m�e causava. A fam�lia era barulhenta, tempestuosa e faminta como
ursos logo depois da hiberna��o.
Brianna adorou cada momento com eles.
Na hora da despedida, brindou-os com beijos nas crian�as e d�zias de bolos para a viagem at� o sul. No momento em que o carro deles desapareceu da vista, Gray
surgiu atr�s dela.
- J� foram?
- Ai! - Apertou a m�o no cora��o. - Voc� quase me matou de susto. - Voltando-se, ajeitou os fios delicados de cabelos que escapavam do coque no alto da cabe�a.
- Pensei que fosse descer para se despedir dos Svenson. O pequeno Jon perguntou por voc�.
- Ainda tenho os dedinhos grudentos do Jon por todo o meu corpo e nos meus pap�is. - Com um sorriso meio enviesado, Gray enfiou os polegares nos bolsos da
frente. - Uma gracinha o garoto, mas, santo Deus, ele n�o parava nunca!
- Garotos de tr�s anos geralmente s�o ativos.
- � pra mim que voc� diz isso? Basta dar uma voltinha com um nos ombros e j� est� comprometido para o resto da vida.
Agora ela sorriu, recordando-se.
- Voc� parecia t�o delicado com ele. Aposto que nunca esquecer� o ianque que brincou com ele na pousada irlandesa. - Balan�ou a cabe�a. - Quando foi embora,
estava carregando o carrinho que voc� comprou para ele ontem.
- Carrinho... ah, o caminh�o, certo. - Sacudiu os ombros. - Encontrei-o por acaso, quando estava tomando f�lego na vila.
- Encontrou-o por acaso - ela repetiu balan�ando a cabe�a devagar. - Assim como as bonecas para as duas meninas.
- � isso. De toda maneira, costumo mesmo reclamar dos COPs.
- COPs?
- Crian�as de Outras Pessoas. Mas agora - deslizou as m�os displicentemente pela cintura dela - estamos sozinhos outra vez.
Num gesto r�pido de defesa, ela pressionou a m�o no t�rax dele, antes que pudesse pux�-la para mais perto.
- Tenho que cumprir uma miss�o.
Ele baixou os olhos para a m�o dela, levantou a sobrancelha.
- Uma miss�o?
- Isso mesmo, e uma montanha de roupas para lavar, quando voltar.
- Vai pendurar as roupas que acabou de lavar? Adoro ver voc� pendurando a roupa na corda... especialmente quando h� brisa. � incrivelmente sexy.
- Que coisa mais boba pra se dizer! O sorriso dele se alargou.
- � uma coisa para ser dita para fazer voc� corar tamb�m.
- N�o estou corando. - Podia sentir o calor nas faces. - Estou impaciente. Preciso sair, Grayson.
- Que tal se eu levar voc� aonde precisa ir?
Antes que ela pudesse falar, ele ro�ou ligeiramente sua boca na dela.
- Senti sua falta, Brianna.
- Como pode... Eu estava bem aqui.
- Senti sua falta. - Viu os c�lios dela baixarem. Suas respostas t�midas e inseguras lhe davam uma estranha sensa��o de poder. Puro ego, pensou divertido.
- Onde est� sua lista?
- Minha lista?
- Voc� sempre tem uma.
Ela desviou os olhos outra vez. Aqueles enevoados olhos verdes estavam atentos e apenas um pouco medrosos. Gray sentiu uma onda de calor espalhar-se da ponta
dos p�s at� os quadris. Os dedos se apertaram convulsivamente na cintura dela, antes que ele se obrigasse a recuar, respirando fundo.
- Essa demora est� me matando - ele murmurou.
- O qu�?
- Nada. Pegue sua lista e seja l� o que for. Vou levar voc�.
- N�o tenho uma lista. Apenas vou � casa de minha m�e ajud�-la a fazer as malas para a viagem. N�o precisa me levar.
- Quero dar uma volta. Quanto tempo vai demorar l�?
- Duas horas, talvez tr�s.
- Levo voc� e a apanho depois. De qualquer modo, vou sair - continuou antes que ela discutisse. - Assim, economizo gasolina.
- Est� bem. Se voc� tem certeza. Estarei pronta num minuto. Enquanto esperava, Gray caminhou para a alameda do jardim da
frente. No m�s em que estava l�, j� vira tempestades, chuva e a luz luminosa do sol da Irlanda. Sentara-se nos pubs da vila, ouvindo fofocas, m�sica tradicional.
Vagara pelos caminhos onde os fazendeiros arrebanhavam as vacas de campo em campo e subira as escadas ventosas dos castelos em ru�nas, escutando os ecos da guerra
e da morte. Visitara t�mulos e meditara na beirada de penhascos altaneiros, observando o mar ondulado.
De todos os lugares que visitara, nenhum parecia t�o completamente atraente como a vis�o do jardim da frente de Brianna. Mas n�o estava inteiramente certo
se atraente era o local ou a mulher que estava esperando.
De qualquer modo, sua temporada ali seria um dos mais agrad�veis cap�tulos de sua vida, concluiu.
Depois de deixar Brianna na elegante casa nos arredores de Ennis, ficou vagando. Por mais de uma hora escalou rochas em Burren, batendo fotografias na mem�ria.
A completa vastid�o o deliciava, assim como o Altar dos Druidas, aonde iam tantos turistas com suas c�meras.
Andou sem rumo, parando onde queria - uma praiazinha deserta, exceto por um garotinho e um cachorro enorme, um campo onde as cabras pastavam e o vento assoviava
atrav�s da grama, uma vilazinha onde uma mulher que contava seus trocados, ganhos com barras de chocolate, com dedos reum�ticos e retorcidos, lhe ofereceu um sorriso
doce como a luz do sol.
Uma abadia em ru�nas, com uma torre redonda, atraiu seus olhos, fazendo-o parar na estrada para dar uma olhada mais de perto. As torres redondas da Irlanda
o fascinavam, mas ele as encontrara principalmente na costa leste. Para proteger-se, sup�s, da aflu�ncia de invasores pelo mar irland�s. Aquela estava inteira, inc�lume,
e constru�da sobre um curioso declive. Gray gastou algum tempo circulando, estudando e imaginando como podia us�-la.
Havia t�mulos l� tamb�m, alguns antigos, outros novos. Sempre ficara intrigado pelo modo como gera��es podiam se unir t�o confortavelmente na morte, quando
raramente conseguiam isso em vida. Para si mesmo, escolheria a maneira viking - um navio no mar e uma tocha.
Mas para um homem que lidava com a morte como um grande neg�cio, preferia n�o demorar nos pensamentos sobre a pr�pria mortalidade.
Quase todos os t�mulos por onde passara estavam enfeitados com flores. Muitas delas estavam cobertas com caixas de pl�stico, �midas pela condensa��o do ar,
as flores apresentando n�o mais que uma cor esmaecida. Pensava por que aquilo n�o o divertia. Deveria. Em vez disso, estava tocado, movido pela devo��o � morte.
Tinham pertencido a algu�m, alguma vez, pensou. Talvez fosse esta a defini��o de fam�lia. Pertencer uma vez, pertencer sempre.
Ele nunca tivera aquele problema. Ou aquele privil�gio.
Andou por ali, imaginando quando os maridos, as esposas, os filhos viriam para colocar as coroas e as flores. No dia da morte? No dia do nascimento? No dia
do santo que dava nome ao morto? Na P�scoa, talvez. Era um dia importante para os cat�licos.
Perguntaria a Brianna, decidiu. Era alguma coisa que, indiscutivelmente, poderia trabalhar no livro.
N�o poderia dizer por que tinha parado justo naquele momento, por que olhava para aquela l�pide em especial. Mas foi o que fez e ficou ali sozinho, a brisa
lhe agitando os cabelos, olhando para o t�mulo de Thomas Michael Concannon.
O pai de Brianna?, pensou sentindo um estranho aperto no cora��o. As datas pareciam certas. O'Malley lhe contara hist�rias sobre Tom Concannon, quando Gray
tomara uma Guinness no pub. Hist�rias repletas de afei��o, sentimento e humor.
Gray sabia que ele tinha morrido repentinamente nos penhascos de Loop Head, quando apenas Maggie estava com ele. Mas as flores sobre o t�mulo, Gray tinha certeza,
eram coisa de Brianna.
Tinham sido plantadas sobre ele. Embora o inverno houvesse sido duro com elas, Gray podia ver que foram recentemente cuidadas. Mais do que umas poucas e bravas
folhas verdes estavam brotando, � procura do sol.
Nunca estivera no t�mulo de algu�m que tivesse conhecido. Embora freq�entemente fizesse visitas � morte, n�o tinha havido peregrina��o ao lugar de descanso
de algu�m com quem tivesse se importado. Mas ele sentira um impulso, agora, que o levou a se agachar e passar levemente a m�o sobre o t�mulo bem cuidado.
E desejou ter trazido flores.
- Tom Concannon - murmurou. - Voc� � bem lembrado. Falam de voc� na vila e sorriem quando tocam no seu nome. Acho que esse � o melhor epit�fio que algu�m poderia
desejar.
Estranhamente contente, sentou-se ao lado de Tom um instante e olhou a luz do sol e as sombras sobre as pedras que os vivos tinham colocado em honra dos mortos.
Deu tr�s horas a Brianna. Foi obviamente mais do que o suficiente, pois ela saiu da casa t�o logo ele parou defronte. Seu sorriso de boas-vindas transformou-se
num olhar de especula��o, quando a observou mais de perto.
O rosto dela estava p�lido e ele sabia que isso acontecia quando ela ficava aborrecida ou comovida. Os olhos, embora frios, mostravam tra�os de tens�o. Ele
olhou em dire��o � casa, viu a cortina mexer. De onde estava teve apenas um vislumbre do rosto de Maeve, mas t�o p�lido quanto o da filha, e parecia igualmente infeliz.
- As malas est�o prontas? - ele perguntou suavemente.
- Sim. - Entrou no carro, m�os apertadas em torno da bolsa, como se aquele fosse o �nico modo de evitar que ca�sse. - Obrigada por ter vindo.
- Muitas pessoas consideram fazer as malas um saco. - Gray arrancou com o carro e, por algum tempo, manteve a velocidade moderada.
- Pode ser. - Normalmente ela gostava. A expectativa de ir a algum lugar e, mais ainda, a expectativa de voltar para casa. - Est� tudo arrumado agora e elas
estar�o prontas para ir pela manh�.
Deus, ela s� queria fechar os olhos e escapar da dor de cabe�a lancinante e da culpa terr�vel mergulhando no sono.
- Quer me contar o que aborreceu voc�?
- N�o estou aborrecida.
- Est� magoada, infeliz e p�lida como gelo.
- � algo particular. Assunto de fam�lia.
Surpreendeu-se ao perceber o quanto seu rep�dio lhe doeu. Mas apenas deu de ombros e mergulhou no sil�ncio.
- Desculpe. - Agora ela realmente fechou os olhos. Queria paz. N�o podiam lhe dar sequer um momento de paz? - Foi indelicadeza minha.
- Esque�a. - De qualquer modo, n�o precisava dos problemas dela, lembrou a si mesmo. Ent�o a olhou de relance e praguejou enquanto suspirava. Ela parecia exausta.
- Quero dar uma parada.
Ela j� ia contestar, mas manteve a boca e os olhos fechados. Ele fora muito gentil em traz�-la, lembrou. Ela certamente podia tolerar uns minutos a mais, antes
de enterrar toda a tens�o no trabalho.
Gray n�o falou outra vez. Estava sendo levado pelo instinto, torcendo para que a escolha que tinha feito trouxesse-lhe de volta a cor �s faces e o calor da
voz.
Ela n�o abriu os olhos, at� que ele freasse e desligasse o carro. Ent�o ela apenas fitou o castelo em ru�nas.
- Voc� precisava parar aqui?
- Eu quis parar aqui - ele corrigiu. - Encontrei isto no meu primeiro dia. Tem um papel importante no meu livro. Gosto da sensa��o daqui.
Saiu do carro e rodeou o cap� para abrir a porta para ela.
- Vamos. - Quando ela n�o se moveu, abaixou-se para soltar seu cinto de seguran�a. - Vamos. � lindo! Espere at� ver a paisagem l� de cima.
- Tenho roupa para lavar - reclamou, percebendo o mau humor na pr�pria voz, enquanto sa�a do carro.
- Isso n�o vai levar a nada. - Tomara a m�o dela e puxava-a pela grama alta.
Ela n�o teve coragem de dizer que as ru�nas tamb�m n�o levariam a nada.
- Est� usando este lugar em seu livro?
- Uma cena de assassinato fabulosa. - Riu � rea��o dela, ao desconforto e ao olhar assustado. - N�o est� com medo, est�? N�o costumo encenar minhas hist�rias.
- N�o seja bobo. - Mas estremeceu uma vez, enquanto caminhavam entre as altas paredes de pedras.
Havia grama crescendo selvagem no ch�o, pontas verdes abrindo caminho por entre as fendas das pedras. Acima dela, podia ver onde existiram pavimentos uma vez,
tantos anos atr�s. Mas agora tempo e guerra deixaram a vista para o c�u totalmente livre.
As nuvens flutuavam silenciosas como fantasmas.
- O que sup�e que fizeram aqui, bem aqui? - Gray refletiu.
- Viveram, trabalharam. Lutaram.
- Tudo muito gen�rico. Use sua imagina��o. N�o pode ver pessoas caminhando aqui? � inverno e est� frio de congelar os ossos. Camadas de gelo sobre barris de
�gua, geada estalando como galhos secos sob os p�s. O ar arde com a fuma�a de fogueiras. Um beb� est� chorando, com fome, ent�o p�ra quando a m�e oferece o seio.
Ele a levou junto com ele, fisicamente, emocionalmente, at� que ela conseguiu ver quase como ele via.
- Soldados est�o se exercitando aqui fora e pode-se ouvir o barulho de espada contra espada. Um homem corre, coxeando por causa de um ferimento antigo, a respira��o
exalando nuvens frias. Venha! Vamos l� em cima!
Puxou-a para uma escada de caracol estreita. Vez ou outra, havia uma fenda na pedra, uma esp�cie de caverna. Ela imaginava se pessoas teriam dormido ali ou
armazenado coisas. Ou talvez tentado se esconder do inimigo que sempre os encontraria.
- Haveria uma velha carregando uma l�mpada a �leo aqui, e ela teria uma cicatriz enrugada sobre a m�o e medo nos olhos. Outra est� trazendo palhas novas para
o ch�o, mas ela � jovem e est� pensando no amante.
Gray mantinha a m�o dela na sua, parando quando chegaram a um desn�vel no meio do caminho.
- N�o acha que devem ter sido os cromwellianos que saquearam isto? Deve ter havido gritos, o mau cheiro de fuma�a e sangue, aquele baque surdo e s�rdido do
metal despeda�ando ossos e o uivo agudo que um homem deixa escapar quando a dor o atravessa. Lan�as indo direto � barriga, prendendo um corpo ao ch�o onde os membros
se retorceriam antes dos nervos morrerem. Corvos circulando acima, esperando pela festa.
Virando-se, viu os olhos dela arregalados e perplexos, e soltou uma risada.
- Desculpe, viajei.
- � uma b�n��o ter uma imagina��o assim. - Tremeu outra vez e esfor�ou-se para engolir. - Acho que n�o quero que me fa�a ver isto t�o claramente.
- A morte � algo fascinante, especialmente a do tipo violento. Homens est�o sempre ca�ando homens. E este lugar � pr�prio para um assassinato... do tipo moderno.
- Do seu tipo - ela murmurou.
- Hum, ele brincar� com a v�tima primeiro. - Gray come�ou quando voltaram a subir. Estava acorrentado em sua pr�pria mente, verdade, mas podia ver que Brianna
n�o estava mais aborrecida com o que quer que tivesse acontecido na casa da m�e. - Far� com que tanto a atmosfera quanto estes fantasmas de fuma�a se agitem no medo
como um veneno de a��o lenta. Ele n�o ter� pressa, gosta da ca�ada, adora. Pode farejar o medo como um lobo, pode farej�-lo. � o cheiro que se instala no sangue,
que o faz bombear, que o excita como sexo.
E a v�tima corre, se precipita, perseguindo aquele fino fio de esperan�a. Mas ela respira r�pido. O som disso ecoa, levado pelo vento. Ela cai... os degraus
s�o trai�oeiros no escuro, na chuva. Molhados e lisos, s�o armadilhas. Mas ela se agarra e sobe. O ar entrando e saindo dos pulm�es, os olhos selvagens.
- Gray...
- Ela � quase um animal como ele agora. O terror elimina as camadas de humanidade, do mesmo modo que o sexo bom ou o desejo verdadeiro. A maioria das pessoas
pensa que j� experimentou todos os tr�s, mas � raro at� mesmo conhecer uma sensa��o inteiramente. Mas ela conhece a primeira agora, conhece o terror, como se fosse
s�lido e vivo, como se pudesse apertar as m�os em volta de sua garganta. Ela quer um buraco, mas n�o existe nenhum para se esconder. E ela pode ouvi-lo subindo,
lento, incans�vel, atr�s dela. Ent�o ela alcan�a o topo.
Ele conduz Brianna para fora das sombras, para a sali�ncia larga da parede onde flui a luz do sol.
- E ela est� encurralada!
Ela reagiu quando Gray a fez girar, quase gritou. Rugindo numa risada, ele a levantou do ch�o.
- Jesus, que plat�ia!
- N�o � nada engra�ado. - Ela tentou se livrar.
- � maravilhoso! Estou planejando v�-lo mutilando-a com um punhal antigo, mas... - Passou o bra�o sob os joelhos de Brianna e carregou-a para a parede. - Talvez
ele simplesmente devesse jog�-la pelo lado.
- Pare! - A autopreserva��o fez com que ela atirasse os bra�os em torno dele e apertasse.
- Por que n�o pensei nisso antes? Seu cora��o est� pulsando, seus bra�os est�o me abra�ando.
- Seu tirano!
- Livrou sua cabe�a dos problemas, n�o?
- Vou guardar meus problemas, obrigada, e bem longe dessa sua imagina��o mirabolante.
- N�o, ningu�m faz isso. -Aconchegou-a um pouco mais perto. - Fic��o � sobre isso, livros, filmes, qualquer coisa. Proporciona uma fuga da realidade e deixa
que voc� se preocupe com os problemas dos outros.
- O que faz com voc�, que conta a novela?
- A mesma coisa. Exatamente a mesma coisa. - Colocou-a no ch�o e virou-a para a vista. - � como uma pintura, n�o �? - Gentilmente, atraiu-a para si, at� que
as costas dela se aninharam contra ele. - Logo que vi este lugar, ele me conquistou. Chovia na primeira vez em que vim aqui e parecia que as cores deviam se derreter.
Ela suspirou. Ali estava a paz que sempre quisera. Neste seu estranho rodopio, ele a tinha trazido para ela.
- � quase primavera...
- Voc� sempre cheira a primavera. - Inclinou a cabe�a, ro�ando os l�bios em sua nuca. - E tem o gosto dela tamb�m.
- Voc� est� deixando minhas pernas bambas, outra vez.
- Ent�o � melhor se firmar em mim. - Virou-a, segurando seu queixo com a m�o. - N�o beijo voc� h� dias.
- Eu sei. - Reunindo toda a coragem, manteve os olhos no n�vel dos dele. - Tenho desejado que voc� fa�a isso.
- Essa era a id�ia. - Tocou os l�bios nos dela, comovendo-se quando ela deslizou as m�os pelo seu t�rax e tomou-lhe o rosto entre elas.
Ela se abrira para ele espontaneamente, um murm�rio de prazer t�o excitante quanto uma car�cia. Com o vento rodopiando em torno deles, ele a puxou, cuidando
para manter as m�os suaves, a boca gentil.
Todo o estresse, a fadiga e a frustra��o desapareceram. Estava em casa, era tudo o que Brianna podia pensar. Em casa era onde sempre desejava estar.
Com um longo suspiro, ela descansou a cabe�a no ombro dele, abra�ando-o.
- Nunca me senti assim.
Nem ele. Mas este era um pensamento perigoso e que teria de considerar.
- � bom para n�s. H� algo bom nisso.
- Eu sei. - Ela levantou o rosto para ele. - Tenha paci�ncia comigo, Gray.
- Terei. Quero voc�, Brianna, e quando estiver pronta... - Recuou, deslizando as m�os pelos bra�os dela, at� seus dedos se entrela�arem. - Quando estiver pronta.
G
ray imaginaria se seu apetite andava maior por conta da outra fome, que estava longe de ser satisfeita. Achou que o melhor era levar a coisa filosoficamente e deliciar-se
com o pudim de p�o de Brianna tarde da noite. Fazer ch� tamb�m estava se tornando um h�bito, e ele j� colocara a chaleira no fog�o para esquentar a �gua antes de
servir o pudim numa tigela.
Desde os seus treze anos, n�o se via t�o obcecado por sexo. Ent�o tinha sido Sally Anne Howe, uma das residentes do Lar para Crian�as Simon Brent Memorial.
A velha e boa Sally Anne, Gray lembrava agora, com corpo bem desabrochado e olhos astutos. Era tr�s anos mais velha do que ele, e mais do que desejosa de dividir
seu charme com algu�m em troca de cigarros e barras de chocolate.
Na �poca achava que ela era uma deusa, a resposta �s preces de um adolescente barulhento. Podia olhar para tr�s agora, com pena e raiva, vendo que o ciclo
de abuso e falhas no sistema tinha levado uma jovem bonita a acreditar que seu �nico valor estava aninhado entre as pernas.
Tivera muitos sonhos doces com Sally Anne depois das luzes apagadas. E tivera tamb�m bastante sorte para roubar um ma�o inteiro de Marlboro de um dos conselheiros.
Vinte cigarros garantiram-lhe vinte transas. E aprendera r�pido.
Ao longo dos anos, tinha aprendido um tanto mais, com garotas de sua idade, e com profissionais que manipulavam seus neg�cios nos becos escuros que cheiravam
a gordura ran�osa e suor azedo.
Tinha apenas dezesseis anos quando se livrou do orfanato e ganhou a estrada com roupas na mochila e vinte e tr�s d�lares, em trocados mi�dos e notas amassadas,
no bolso.
Liberdade era o que queria, liberdade das regras, regulamentos, dos infind�veis ciclos do sistema, onde fora mantido durante a maior parte de sua vida. Achara,
usara e pagara por ela.
Viveu e trabalhou naquelas ruas por um longo tempo, antes de dar a si mesmo um nome e um objetivo. Tivera bastante sorte em ter um talento que o salvou de
ser engolido por outros famintos.
Aos vinte anos, tivera sua primeira majestosa e tristemente autobiogr�fica novela embaixo do bra�o. O mundo editorial n�o ficou impressionado. Aos vinte e
dois, elaborara um caprichado e esperto livrinho policial. Os editores n�o vieram correndo, mas um sopro de interesse de um assistente de editor o manteve fechado
num alojamento barato, trabalhando numa m�quina de datilografia manual, por semanas.
Aquele, ele tinha vendido. Por uma mixaria. Nunca algo significou tanto para ele.
Dez anos mais tarde, quando podia viver como queria, sentiu que escolhera bem.
Colocou a �gua no bule e uma colherada de pudim na boca. Quando olhou para a porta do quarto de Brianna, divisou um fio de luz enviesado sob ela e sorriu.
Ele tamb�m a escolhera.
Seguindo seus planos, colocou o bule e duas x�caras numa bandeja e bateu � porta. - Pode entrar.
Ela estava sentada junto � pequena escrivaninha, empertigada como uma freira, em sua camisola de flanela e chinelos, os cabelos numa tran�a solta sobre um
ombro. Gray engoliu corajosamente a saliva que lhe inundara a boca.
- Vi a luz. Quer ch�?
- Seria bom. Estava acabando de cuidar de alguns pap�is.
O cachorro espregui�ou-se junto dos p�s dela e foi se esfregar em Gray.
- Eu tamb�m. - Apoiou a bandeja para co�ar o p�lo de Con. - Assassinatos me deixam com fome.
- Matou algu�m hoje?
- Brutalmente. - Falou isso com tal prazer que Brianna riu.
- Talvez seja isto o que deixa voc� t�o mal-humorado de vez em quando - ela sugeriu. - Todos aqueles assassinatos emocionantes purgando em seu corpo. Voc�
sempre... - Ela deteve-se, dando de ombros, quando ele lhe estendeu a x�cara.
- Vamos, pergunte. Voc� raramente pergunta alguma coisa sobre o meu trabalho.
- Porque imagino que todos perguntam.
- Perguntam mesmo. - Acomodou-se melhor. - N�o ligo.
- Bem, estava pensando se voc� sempre cria um personagem com base em algu�m que voc� conhece... e ent�o o mata.
- Teve um nojento gar�om franc�s em Dijon. Eu o estrangulei.
- Ah. - Esfregou a m�o na garganta. - Como foi?
- Para ele ou para mim?
- Para voc�.
- Satisfat�rio. - Comeu uma colherada do pudim. - Quer que eu mate algu�m para voc�, Brie? Terei o maior prazer...
- N�o, no momento n�o. - Ela se mexeu e metade dos pap�is foi parar no ch�o.
- Precisa de uma m�quina de escrever - disse, enquanto a ajudava com os pap�is. - Melhor ainda, um computador. Pouparia seu tempo para escrever as cartas comerciais.
- N�o, se eu tiver que procurar cada tecla. - Enquanto ele lia a correspond�ncia dela, Brie levantou a sobrancelha, divertida. - Isto n�o � muito interessante.
- Hummm. Ah, desculpe, for�a do h�bito. O que � Minas Triquarter?
- Ah, s� uma empresa em que parece que papai investiu. Achei os certificados de a��es entre as coisas dele, no s�t�o. J� escrevi a eles uma vez - acrescentou,
um pouco aborrecida. - Mas nada de resposta. Ent�o estou tentando outra vez.
- Dez mil a��es. - Gray apertou os l�bios. N�o � qualquer trocado.
- �, se entendi o que quer dizer. Tinha que conhecer meu pai... estava sempre atr�s de um novo projeto para ganhar dinheiro que custava mais do que ele ganharia.
Mas isto precisa ser feito. - Levantou uma das m�os. - Isto � s� uma c�pia. Rogan ficou com o original para guardar e mandou esta para mim.
- Devia pedir a ele para checar.
- N�o gosto de incomod�-lo com isso. J� tem um prato cheio com a galeria nova e com Maggie.
Ele devolveu-lhe a c�pia.
- Mesmo a um d�lar a a��o, � uma quantia bem substancial.
- Ficaria surpresa se cada a��o valesse mais do que um centavo. Deus sabe que ele n�o teria pago muito mais. O mais prov�vel � que essa companhia tenha fechado.
- Ent�o sua carta teria voltado. Ela apenas sorriu.
- Est� aqui h� bastante tempo para conhecer o correio irland�s. Acho... - Os dois olharam quando o cachorro come�ou a rosnar. - Con?
Em vez de responder, o c�o rosnou de novo e os p�los das costas se eri�aram. Em dois passos, Gray chegou � janela. N�o viu nada, a n�o ser neblina.
- Cerra��o - ele resmungou. - Vou dar uma olhada em volta... N�o - disse, quando ela come�ou a levantar. - Est� escuro, frio e �mido, e voc� vai ficar aqui.
- N�o tem nada l� fora.
- Con e eu vamos descobrir. Vamos. - Estalou os dedos e, para surpresa de Brianna, Con respondeu imediatamente. Trotou nos calcanhares de Gray.
Ela guardava uma lanterna na primeira gaveta da cozinha. Gray Pegou-a antes de abrir a porta. O c�o estremeceu uma vez. Ent�o quando Gray falou "v�", ele saltou
na n�voa. Em segundos, o som de suas patas, correndo, era engolido pelo sil�ncio.
A cerra��o distorcia o facho da lanterna. Gray movia-se com cuidado, olhos e ouvidos filtrando. Ouviu o latido do c�o, mas de que dire��o ou dist�ncia n�o
podia dizer.
Parou sob as janelas do quarto de Brianna, percorrendo o ch�o com a luz. Ali, no lindo canteiro, estava uma �nica marca de p�.
Pequeno, Gray notou, abaixando-se. Quase pequeno o bastante para ser de uma crian�a. Podia ser uma coisa simples assim, crian�as fazendo farra. Mas, quando
continuou a circundar a casa, ouviu o som de um motor se afastando. Praguejando, apressou o passo. Con surgiu na n�voa como um mergulhador emergindo na superf�cie
de um lago.
- Sem sorte? - Como consolo, Gray afagou a cabe�a de Con, enquanto ambos fitavam a cerra��o. - Bem, receio que eu possa saber o que est� acontecendo. Vamos
entrar.
Brianna ro�a as unhas, quando eles voltaram � cozinha.
- Voc�s demoraram.
- Quisemos circular em volta da casa. - Deixou a lanterna sobre a bancada, passando a m�o no cabelo �mido. - Isso pode estar relacionado com o arrombamento.
- N�o sei como. Voc�s n�o encontraram ningu�m.
- Porque n�o fomos r�pidos o bastante. H� outra explica��o poss�vel. - Enfiou as m�os nos bolsos. - Eu.
- Voc�? O que quer dizer?
- J� me aconteceu algumas vezes. Uma f� superentusiasmada descobre onde estou. Muitas vezes me chamam como se f�ssemos velhos camaradas, outras vezes apenas
seguem meu rastro como uma sombra. De vez em quando, arrombam uma porta, atr�s de um suvenir.
- Mas isso � terr�vel.
- � irritante, mas totalmente inofensivo. Uma mulher mais audaciosa pegou a chave do meu quarto no Ritz de Paris, despiu-se e se enfiou na cama comigo. - For�ou
um sorriso. - Foi... desconfort�vel.
- Desconfort�vel - Brianna repetiu, depois de conseguir fechar a boca. - O que... n�o, acho que n�o quero saber o que voc� fez.
- Chamei os seguran�as. - Seus olhos brilhavam, divertidos. - H� limites para o que fa�o pelos meus leitores. De qualquer maneira, desta vez parecem ter sido
crian�as, mas, se fosse uma das minhas f�s extremosas, voc� iria preferir que eu procurasse outras acomoda��es.
- Eu n�o. - O instinto protetor dela voltou a atuar. - Elas n�o t�m o direito de invadir sua privacidade dessa maneira e voc� n�o sairia daqui por causa disso.
- Deixou escapar um suspiro. - Voc� sabe que n�o s�o s� suas hist�rias. Ah, elas s�o mesmo arrebatadoras... tudo parece t�o real e h� sempre alguma coisa her�ica
que supera toda cobi�a, viol�ncia e tristeza. Tem seu visual, tamb�m.
Ele estava encantado com a descri��o dela sobre seu trabalho e respondeu distraidamente:
- Como?
- Seu rosto. - Olhou para ele. - � um rosto ador�vel. Ele n�o sabia se ria ou se se retra�a.
- Verdade?
- � sim. - Ela pigarreou. Havia um brilho nos olhos dele que ela conhecia bem demais para confiar. - E a pequena biografia na capa... mais ainda o que falta
nela. � como se voc� viesse de lugar nenhum. Esse mist�rio � bem atraente.
- Eu realmente n�o vim de lugar algum. Por que n�o volta ao meu rosto?
Ela recuou.
- Acho que tivemos bastante emo��o por uma noite.
Ele se aproximou, at� colocar as m�os sobre os ombros dela e a boca ro�ar suavemente seus l�bios.
- Vai conseguir dormir?
- Sim. - Ela prendeu a respira��o, at� expirar lentamente. - Con ficar� comigo.
- Cachorro sortudo. V� dormir ent�o. - Esperou que ela e o c�o se ajeitassem. Ent�o fez algo que ela nunca fizera em todos os anos em que vivera na casa.
Trancou as portas.
O melhor lugar para espalhar ou colher novidades era, logicamente, o pub da vila. Durante as semanas em que esteve no Condado de Clare, Gray desenvolveu uma
afei��o quase sentimental pelo O'Malley. Naturalmente, durante as suas pesquisas, ele andara por numerosos outros lugares, mas o O'Malley tornara-se para ele a coisa
mais pr�xima de um bar da esquina de casa que j� experimentara.
Ouviu o ritmo da m�sica ao chegar � porta. Murphy, pensou. Estava com sorte. Mal entrou, foi saudado pelo nome ou com um aceno alegre. O'Malley come�ou a servir
uma caneca de Guinness, antes mesmo que ele se plantasse num banco.
- Ent�o, como est� indo a hist�ria? - O'Malley perguntou.
- Bem. Duas mortes, nenhum suspeito.
Com um movimento de cabe�a, O'Malley deslizou a caneca at� debaixo do nariz de Gray.
- N�o sei como um homem pode lidar com a morte o dia todo e ainda ter um sorriso no rosto � noite.
- Anormal, n�o �? - Gray riu para ele.
- Tenho uma hist�ria para voc�. - Isto veio de David Ryan, que estava sentado na ponta do balc�o e acendia um de seus cigarros americanos.
Gray ajeitou-se em meio � m�sica e � fuma�a. Sempre havia uma hist�ria e ele era t�o bom ouvinte quanto narrador.
- Havia uma mo�a que vivia no interior, perto de Tralee. Bonita como o sol nascente, cabelos cor-de-ouro e olhos t�o azuis como Kerry.
A conversa acalmou e Murphy baixou a m�sica, de modo que era agora um pano de fundo para a hist�ria.
- Acontece que dois homens vieram cortej�-la - David continuou. - Um era um sujeito chegado aos livros, o outro, um fazendeiro. A seu modo, a mo�a amava os
dois, pois o cora��o dela era t�o inst�vel quanto era bonito seu rosto. Ent�o, gostando de aten��o como toda mulher gosta, deixou os dois balan�arem o cora��o por
ela, fazendo promessas a cada um. E a� come�ou a crescer um negrume no cora��o do jovem fazendeiro, lado a lado com seu amor pela mo�a.
Ele parou, como os contadores de hist�ria geralmente fazem, e estudou a brasa vermelha na ponta do cigarro. Deu uma tragada profunda, soltou a fuma�a.
Ent�o, uma noite, ele esperou pelo rival na estrada e, quando o sujeito estudioso veio, assoviando, pois a mo�a generosamente lhe dera uns beijos, o fazendeiro
saltou e derrubou o jovem amante no ch�o. Era uma noite de luar e ele arrastou o coitado pelos campos, e, embora o cara ainda respirasse, ele o enterrou bem no fundo.
Quando surgiu a aurora, semeou feno sobre ele e p�s fim � competi��o.
David parou outra vez, tragou profundamente o cigarro, pegou a caneca.
- E a�? - Gray perguntou, interessado. - Ele se casou com a mo�a.
- N�o, na verdade, n�o. Ela fugiu com um funileiro naquele mesmo dia. Mas o fazendeiro teve a melhor e mais sanguin�ria colheita de feno da vida.
Houve um estrondo de risadas e Gray apenas sacudiu a cabe�a. Ele se considerava um mentiroso profissional e dos bons. Mas a competi��o ali era feroz. Em meio
�s risadas, Gray pegou sua caneca e foi juntar-se a Murphy.
- Davey tem uma hist�ria para cada dia da semana. - Murphy falou, delicadamente rolando os dedos sobre as teclas de sua gaita.
- Imagino o que meu editor faria com ele. Soube de alguma coisa, Murphy?
- N�o, nada que preste. A Sra. Leery achou que podia ter visto um carro no dia dos problemas. Acha que era verde, mas n�o prestou muita aten��o.
- Algu�m andou espreitando a pousada na noite passada. Eu o perdi na cerra��o. - Gray lembrou, desgostoso. - Mas andou perto o bastante para deixar uma pegada
num canteiro de flores de Brie. Pode ter sido uma crian�a. - Pensativo, bebericou a cerveja. - Algu�m andou perguntando por mim?
- Voc� � assunto todo dia - Murphy falou secamente.
- � a fama. Mas estava falando de algum estranho.
- N�o que eu saiba. Melhor voc� perguntar nos correios. Por qu�?
- Acho que podia ter sido uma f� superentusiasmada. J� passei por isso antes. Ent�o novamente... - Sacudiu os ombros. - � assim que minha cabe�a funciona,
sempre supondo al�m da realidade.
- Tem uma d�zia de homens a postos, se algu�m causar algum problema a voc� ou Brie. - Murphy desviou os olhos, quando a porta do pub se abriu. Brianna entrou
com Rogan e Maggie. Murphy ergueu a sobrancelha ao voltar-se para Gray. - E uma d�zia de homens para arrastar voc� para o altar, se n�o tomar cuidado com o brilho
em seu olhar.
- Como? - Gray pegou a caneca de cerveja outra vez, e os l�bios se curvaram. - Estava s� olhando.
- Sim. Sou um andarilho - Murphy cantarolou - e muitas vezes s�brio, sou um andarilho de alto grau. Pois, quando estou bebendo, estou sempre pensando como
conseguir a companhia do meu amor.
- A caneca ainda est� pela metade. - Gray resmungou e levantou-se, caminhando na dire��o de Brianna. - Achei que voc� estava costurando.
- Estava.
- N�s a obrigamos a sair - Maggie explicou com um suspiro, enquanto se empoleirava num banco.
- Persuadimos - Rogan corrigiu. - Um copo de Harp, Brie?
- Obrigada, quero sim.
- Ch� para Maggie, Tim - falou e sorriu ante o resmungo da esposa. - Um copo de Harp para Brie, uma caneca de Guinness para mim. Outra, Gray?
- Chega para mim. - Gray encostou-se no bar. - Ainda me lembro da �ltima vez que bebi com voc�.
- Por falar no tio Niall - Maggie emendou -, ele e a noiva est�o passando alguns dias na ilha de Creta. Cante alguma coisa alegre, Murphy!
Obedientemente, ele atacou de "U�sque na Garrafa", marcando o ritmo com o p�.
Prestando aten��o na letra da m�sica, Gray sacudiu a cabe�a.
- Por que voc�s, irlandeses, sempre falam da guerra nas m�sicas?
- Falamos? - Maggie sorriu, bebendo o ch�, enquanto esperava para entrar no coro.
- Algumas vezes trai��o ou morte, mas a maioria � sobre a guerra mesmo.
- Verdade? - Sorriu sobre a borda da x�cara. - N�o saberia dizer. Talvez porque tivemos de lutar por cada cent�metro do nosso pr�prio solo durante s�culos.
Ou...
- N�o a fa�a come�ar - Rogan implorou. - H� um cora��o rebelde a�.
- H� um cora��o rebelde dentro de cada homem e mulher irlandeses. Murphy tem uma voz maravilhosa. Por que n�o canta com ele, Brie?
Desfrutando o momento, ela bebericou sua Harp.
- Prefiro ouvir.
-Gostaria de ouvir voc� - Gray falou, deslizando a m�o pelos
cabelos dela.
Maggie estreitou os olhos ao gesto dele.
- Brie tem uma voz fant�stica. Sempre fic�vamos imaginando de quem herdara isso, at� descobrirmos que nossa m�e tamb�m j� teve uma voz assim.
- Que tal "Danny Boy"? Maggie revirou os olhos.
- Pode contar que um ianque vai pedir isso. Um brit�nico escreveu esta can��o, um forasteiro. Cante "James Connolly", Murphy. Brie vai acompanhar voc�.
Com um aceno de cabe�a resignado, Brianna foi sentar-se junto de Murphy.
- Eles t�m uma harmonia ador�vel - Maggie comentou, olhando para Gray.
- Humm. Ela canta pela casa quando esquece que tem algu�m l�.
- E quanto tempo pretende ficar aqui? - Maggie perguntou, ignorando a cara feia de Rogan.
- At� terminar meu livro - Gray falou com ar ausente.
- E ent�o parte para o pr�ximo?
- Certo. Para o pr�ximo.
Embora agora Rogan tivesse a m�o presa no pesco�o dela, Maggie come�ou a fazer alguns coment�rios perspicazes. Foram os olhos de Gray, mais do que a contrariedade
de Rogan, que a fizeram parar. O desejo neles despertara seus instintos protetores. Mas havia algo mais agora. Ela imaginava se ele tinha no��o disso.
Quando um homem olha uma mulher daquele jeito, algo mais al�m dos horm�nios est� envolvido. Ela teria de pensar naquilo, Maggie concluiu, e ver como isso a
afetava. Nesse meio-tempo, pegou o ch� outra vez, ainda olhando para Gray.
- Vamos observar - murmurou. - Vamos s� observar.
Uma can��o transformou-se em duas, duas em tr�s. Can��es de guerra, can��es de amor, as hip�critas e as tristes. Em sua cabe�a, Gray come�ou a criar uma cena.
O pub enfuma�ado estava cheio de barulho e m�sica, um santu�rio divorciado do horror externo. A voz da mulher levava o homem que n�o queria ser levado. Ali,
ele pensou, justo ali seu her�i perderia a batalha. Ela estaria sentada na frente do fogo, as m�os elegantemente cruzadas no colo, a voz altiva, natural e bonita,
os olhos t�o assombrados quanto a can��o.
E ele a amaria ent�o, a ponto de dar a pr�pria vida, se preciso fosse. Ele poderia esquecer o passado com ela e olhar para o futuro.
- Voc� est� t�o p�lido, Gray. - Maggie puxou-o pelo bra�o, at� que se sentasse num banco. - Quantas cervejas tomou?
- S� essa. - Esfregou a m�o no rosto para se recuperar. - � s�... trabalho - ele concluiu. Era isso, com certeza. Estivera somente pensando nos personagens,
na elabora��o da mentira. Nada pessoal.
- Parecia estar em transe.
- � a mesma coisa. - Deixou escapar um pequeno suspiro, rindo de si mesmo. - Acho que vou tomar outra, afinal de contas.
C
om a cena do pub que tecera na imagina��o se repetindo em sua cabe�a, Gray n�o teve uma noite tranq�ila. Embora n�o pudesse apag�-la, tampouco conseguiu escrev�-la.
Ao menos n�o escreveu bem.
Se havia uma coisa que desdenhava, era a simples id�ia de um bloqueio de escritor. Normalmente dava de ombros e continuava trabalhando, at� que a irritante
amea�a passasse. Tal amea�a, �s vezes pensava, era como uma nuvem escura que iria ent�o pairar sobre outro escritor desafortunado.
Mas, dessa vez, estava travado. N�o conseguia se mover na cena, nem al�m dela, e passou grande parte da noite torcendo o nariz para o que havia escrito.
Ap�tica, pensou. Estava apenas administrando a cena apaticamente. Por isso, estava saindo t�o fria.
Impaciente era o que estava, admitiu amargamente. Sexualmente frustrado pela mulher que podia paralis�-lo apenas com um olhar.
Repreendeu-se por estar obcecado pela anfitri�, quando devia estar obcecado pela cena do assassinato.
Resmungando, levantou-se da escrivaninha e se aproximou da janela. Foi uma sorte que a primeira coisa que viu foi Brianna.
L� estava ela, sob a sua janela, arrumada como uma freira num empertigado vestido cor-de-rosa, os cabelos presos no alto, submissos a alguns grampos. Por que
estava de saltos altos?, perguntou-se, aproximando-se mais da janela. Sup�s que ela chamaria os simples escarpins de sapatos pr�ticos, mas eles acrescentavam coisas
insensatamente deliciosas �s pernas dela.
Enquanto ele olhava, ela entrou no carro, os movimentos ao mesmo tempo pr�ticos e graciosos. Colocara, antes, a bolsa no assento ao lado, pensou. Ent�o afivelou
cuidadosamente o cinto de seguran�a, verificou os espelhos. Nada de se enfeitar no retrovisor, notou. Apenas um r�pido ajuste para checar se estava adequadamente
alinhado. Ent�o, virou a chave.
Mesmo atrav�s do vidro, p�de ouvir a tosse cansada do motor. Ela tentou outra vez, mais uma terceira. A essa altura, Gray j� estava sacudindo a cabe�a e descendo
as escadas.
- Por que diabos voc� n�o manda consertar esta coisa? - gritou para ela, enquanto passava pela porta da frente.
- Ah. - Ela estava fora do carro agora e tentava levantar o cap�. - Estava funcionando bem um ou dois dias atr�s.
- Este traste n�o funciona bem h� uma d�cada. -Afastou-a com o cotovelo, irritado por ela estar t�o cheirosa enquanto ele se sentia como um pilha de roupa
suja. - Olhe, se precisa ir � vila para alguma coisa, pegue meu carro. Vou ver o que posso fazer com isso.
Defendendo-se automaticamente da rapidez das palavras dele, ela ergueu o queixo.
- Obrigada da mesma forma, mas vou a Ennistymon.
- Ennistymon? - Enquanto tentava visualizar o mapa, ele levantou a cabe�a debaixo do cap�, tempo bastante para fit�-la. - Para qu�?
- Ver a galeria nova. V�o abrir daqui a algumas semanas e Maggie perguntou se eu poderia ir dar uma olhada. - Fitava as costas dele, enquanto ele esticava
fios e praguejava. - Deixei um bilhete para voc�, e comida que voc� pode esquentar, j� que ficarei fora quase o dia todo.
- Voc� n�o vai a lugar algum nisto. A correia est� arrebentada, o combust�vel est� vazando e � um bom motivo de aposta se esse motor vai ligar. - Endireitou-se,
notando que hoje ela usava brincos, argolas douradas que apenas ro�avam o l�bulo das orelhas. Eles acrescentavam um ar de celebra��o que o irritou sem qualquer motivo.
- Voc� n�o tem nada que sair dirigindo por a� nessa lata velha.
- Bem, � o que tenho para dirigir, n�o �? Agrade�o seu inc�modo, Grayson. Verei se Murphy pode...
- N�o me venha com esses ares de rainha indiferente. - Bateu a tampa do cap� com tanta for�a que a fez estremecer. Deus, ele pensou. Isto prova que ela tem
sangue nas veias. - E n�o jogue Murphy na minha cara. Ele n�o pode fazer nada al�m do que j� fiz. V� para o meu carro, volto num minuto.
- E por que eu deveria ir para o seu carro?
- Para eu poder lev�-la � maldita Ennistymon. Dentes cerrados, ela colocou as m�os nos quadris.
- � muita gentileza oferecer, mas...
- Entre no carro - vociferou, enquanto se encaminhava para a casa. - Preciso esfriar a cabe�a.
- Eu esfriaria para voc� - ela murmurou. Abrindo a porta do seu carro, apanhou a bolsa. Gostaria de saber quem tinha pedido a ele para lev�-la. Melhor ir a
p� do que sentar no mesmo carro com aquele homem. E se ela quisesse chamar Murphy, bem... ela, inferno!, chamaria.
Mas, antes, precisava se acalmar.
Respirou profundamente uma vez, outra, antes de caminhar bem devagar por entre as flores. Como sempre, elas a acalmaram, o fr�gil verde apenas come�ando a
brotar. Precisavam de algum trabalho e cuidado, pensou, abaixando-se para arrancar uma erva invasora. Se o tempo estivesse bom, no dia seguinte ela come�aria. At�
a P�scoa, o jardim estaria no auge.
Os perfumes, as cores. Sorriu um pouquinho para o bravo e jovem narciso.
Ent�o, a porta abriu-se com um estrondo. O sorriso desapareceu quando ela se levantou e voltou-se.
Ele n�o tinha se preocupado em fazer a barba. Os cabelos estavam molhados e presos atr�s por uma fina tira de couro, roupas limpas, ainda que um pouco desbotadas.
Sabia muito bem que o homem tinha roupas decentes. Por que ela mesma n�o as lavava e passava?
Lan�ando-lhe um r�pido olhar, pegou as chaves do bolso do jeans.
- No carro.
Ah, ele precisava baixar a bola um pouco, precisava mesmo. Ela caminhou at� ele lentamente, gelo nos olhos e fogo na l�ngua.
- E o que aconteceu para estar t�o alegre nesta manh�? Muitas vezes, at� mesmo um escritor entende que a��es podem
falar mais alto do que palavras. Sem dar a nenhum deles tempo para pensar, puxou-a contra ele, olhou satisfeito o susto que tomara conta de seu rosto e grudou
sua boca na dela.
Foi brusco, faminto e cheio de frustra��o. O cora��o dela disparou, parecia a ponto de explodir em sua cabe�a. Ela teve um instante para sentir medo, um momento
para desejar, at� que ele a puxou novamente.
Os olhos, ah, os olhos dele eram ardentes. Olhos de lobo, pensou estupidamente, cheios de viol�ncia e energia assombrosa.
- Entendeu? - rugiu, furioso com ela, consigo mesmo, quando ela apenas olhou. Como uma crian�a, ele pensou, que recentemente apanhou sem motivo.
Era um sentimento de que ele se lembrava muit�ssimo bem.
- Meu Deus, estou ficando louco! - Esfregou as m�os no rosto e espantou a besta de dentro dele. - Desculpe. Entre no carro, Brianna. N�o vou atacar voc�.
Explodiu novamente quando ela n�o se moveu, nem sequer piscou.
- N�o vou tocar em voc�, porra!
Ela recuperou a voz, embora n�o t�o firme como teria gostado:
- Por que est� t�o bravo comigo?
- Eu n�o estou! - Recuou. Controle-se, lembrou a si mesmo. Geralmente era bom nisso. - Desculpe - repetiu. - Pare de olhar para mim como se eu tivesse batido
em voc�.
Mas ele tinha. N�o sabia que raiva, palavras r�spidas, sentimentos duros a magoavam mais do que uma m�o violenta?
- Vou entrar. - Encontrou suas defesas, finas paredes que definiram seu temperamento. - Preciso ligar para Maggie e dizer que n�o posso ir l�.
- Brianna. - Ia alcan��-la, mas ent�o ergueu as duas m�os num gesto que combinava frustra��o e um pedido de paz. - Quer que eu me sinta pior ainda?
- N�o sei, mas acho que ficar� melhor depois de comer alguma coisa.
- Agora ela vai preparar meu caf�. - Fechou os olhos, respirando fundo. - Humor controlado - murmurou e olhou para ela de novo. - N�o foi isto que voc� disse
que eu era, n�o muito tempo atr�s? Estava apenas um pouco abaixo da marca. Escritores s�o bastardos miser�veis. Temperamentais, mal-intencionados, ego�stas, egoc�ntricos.
- Voc� n�o � nada disso. - Ela n�o podia explicar por que se sentia obrigada a defend�-lo. - Temperamental, talvez, mas nenhuma das outras coisas.
- Sou. Dependendo de como vai indo o livro. Agora mesmo, est� indo mal. Dei de cara com um obst�culo, uma parede, um n�. Uma maldita fortaleza, e descontei
tudo em voc�. Quer que eu me desculpe outra vez?
- N�o. - Ela abrandou, estendendo a m�o para o rosto barbado dele. - Parece cansado, Gray.
- N�o dormi nada. - Manteve as m�os nos bolsos, os olhos nos dela. - Cuidado com sua solidariedade, Brianna. O livro � apenas um dos motivos de eu estar t�o
rude nesta manh�. Voc� � o outro.
Ela deixou cair a m�o, como se tivesse tocado uma chama. O r�pido recuo fez os l�bios dele se curvarem.
- Quero voc�. D�i desejar voc� desse jeito.
- D�i?
- Isso n�o � motivo para ficar feliz consigo mesma. Ela corou.
- N�o tive a inten��o...
- Isto � parte do problema. Vamos, entre no carro. Por favor - acrescentou. - Vou enlouquecer tentando escrever hoje, se ficar aqui.
Tocou na tecla certa. Deslizando para dentro do carro, esperou que ele entrasse tamb�m.
- Quem sabe se voc� assassinar mais algu�m.
Ele percebeu que podia rir, afinal de contas. - Ah, estou pensando nisso.
A Galeria Worldwide de Clare era um primor. Recentemente constru�da, fora projetada como um solar elegante, decorado com jardins formais. N�o era a altiva
catedral da galeria de Dublin, nem o opulento pal�cio de Roma, mas um edif�cio digno, especialmente concebido para abrigar e mostrar o trabalho de artistas irlandeses.
Tinha sido o sonho de Rogan e, agora, a realidade dele e de Maggie.
Brianna projetara os jardins. Embora n�o tivesse podido plant�-los ela mesma, os paisagistas usaram seus desenhos. Ent�o caminhos de tijolos eram cercados
de rosas, e canteiros largos e semicirculares foram plantados com lupinos e papoulas, cravos e dedaleiras, colombinas e d�lias, todas suas favoritas.
A galeria era constru�da de tijolos, em cor-de-rosa claro, com janelas altas, graciosas, adornadas em cinza-pastel. Dentro do grande vest�bulo, o piso era
ladrilhado em azul-escuro e branco, com um candelabro Waterford no alto e a amplid�o das escadas de mogno levando ao segundo andar.
- Isto � de Maggie - Brianna murmurou, atra�da pela escultura que dominava a entrada.
Gray viu duas figuras geminadas, o vidro frio apenas tocado pelo calor, a forma notavelmente sexual, estranhamente rom�ntica.
- � a Remiss�o. Rogan a comprou antes de estarem casados. N�o a venderia a ningu�m.
- Posso ver por qu�. - Ele precisou engolir em seco. O vidro sinuoso era um golpe er�tico no seu j� sofrido organismo. - � um come�o estonteante para um tour
pela galeria.
- Ela tem um dom especial, n�o tem? - Gentilmente, apenas com a ponta dos dedos, Brianna tocou o vidro frio que a irm� tinha criado do fogo e dos sonhos. -Acho
que dons especiais tornam as pessoas temperamentais. - Sorrindo, olhou Gray por cima do ombro. Parecia t�o inquieto, pensou. Impaciente com tudo, especialmente consigo
mesmo - E dif�ceis, porque sempre exigir�o muito de si mesmas.
- E tornam um inferno a vida de todos � sua volta quando n�o
conseguem. - Aproximando-se, tocou nela, em vez de tocar o vidro. Voc� n�o guarda rancor, guarda?
-Para qu�? - Dando de ombros, ela girou para admirar as linhas
simples e s�brias do vest�bulo.
- Rogan queria que a galeria fosse como um lar para a arte, entende? Ent�o h� uma sala, uma sala de desenho, at� uma sala de jantar e uma de estar l� em cima.
- Brianna tomou a m�o dele e guiou-o em dire��o �s portas duplas. - Todos os desenhos, esculturas, at� os m�veis s�o de artistas irlandeses e artes�os. E... ah!
Ficou petrificada. Inteligentemente disposto sobre o fundo e ao lado de um diva baixo estava um delicado v�u em audacioso azul que se esva�a num verde frio.
Ela avan�ou e correu a m�o sobre ele.
- Eu fiz isto - murmurou. - Para o anivers�rio de Maggie. Eles o puseram aqui. Eles o puseram aqui, na galeria de arte.
- Por que n�o deveriam? � bonito. - Curioso, ele olhou mais de perto. - Voc� teceu isto?
- Sim. N�o tenho muito tempo para tecer, mas... - Ela engoliu a voz, receando chorar. - Imagine. Numa galeria de arte, com todas estas obras e quadros maravilhosos.
- Brianna.
- Joseph.
Gray olhou o homem atravessar a sala em passos largos e envolver Brianna num grande e caloroso abra�o. Tipo art�stico, Gray pensou com uma careta. Uma turquesa
presa na orelha, rabo-de-cavalo, terno italiano. Lembrava-se de ter visto o homem no casamento em Dublin.
- Cada vez que a vejo, est� mais ador�vel.
- E voc� cada vez mais sem senso. - Ela riu. - N�o sabia que estava aqui.
- S� vim passar o dia, ajudar Rogan com alguns detalhes.
- E Patr�cia?
- Em Dublin. Com o beb� e a escola, n�o consegue sair.
- Ah, o beb�, e como est� ela?
- Linda. Como a m�e. - Joseph olhou para Gray e estendeu a m�o. - Voc� deve ser Grayson Thane. Sou Joseph Donahue.
- Ah, desculpe. Gray, Joseph administra a galeria de Rogan em Dublin. Achei que tinham se conhecido no casamento.
- N�o tecnicamente. - Mas Gray apertou-lhe a m�o amigavelmente. Lembrava que Joseph tinha uma esposa e uma filha.
- Vou direto ao assunto. Sou um grande f� seu. Acontece que trouxe um livro para Brie passar a voc�. Espero que n�o se incomode de autografar para mim.
Gray decidiu que, provavelmente, poderia aprender a gostar de Joseph Donahue.
- Ser� um prazer.
- Muita gentileza sua. Vou avisar Maggie de que voc�s est�o aqui. Ela mesma vai querer lhes mostrar a galeria.
- Que trabalho maravilhoso voc� fez aqui, Joseph! Todos voc�s.
- E valeu a pena cada hora de insanidade. - Deu uma olhada r�pida e satisfeita pelo local. - Vou procurar Maggie. Fiquem � vontade. - Parou na porta, virou-se
e riu. - Ah, lembre-se de perguntar a ela sobre a venda de uma pe�a para o presidente.
- Presidente? - Brianna repetiu.
- Da Irlanda, querida. Ele fez uma oferta pelo Invicto esta manh�.
- Imagine - Brianna suspirou, enquanto Joseph sa�a depressa -, Maggie sendo conhecida pelo presidente da Irlanda.
- Posso dizer a voc� que ela est� ficando conhecida em todo o mundo.
- Eu sei disso, mas parece... - Riu, incapaz de se expressar melhor. - Como isto � maravilhoso. Papai teria ficado t�o orgulhoso. E Maggie, ela deve estar
nas nuvens. Voc� sabe como �, n�o? O que sente quando algu�m l� seus livros.
- Sei sim.
- Deve ser maravilhoso ter talento assim, ter alguma coisa para dar, algo que toque as pessoas.
- Brie - Gray ergueu a ponta do delicado v�u azul-esverdeado. - Como voc� chama isto?
- Ah, qualquer um pode fazer isto, s� que leva algum tempo. Para mim, arte � algo que permanece. - Aproximou-se de um quadro, um �leo audacioso e colorido
de Dublin em pleno movimento. - Sempre quis... n�o que eu tenha inveja de Maggie. Embora tenha sentido um pouquinho de inveja, sim, quando ela foi para Veneza e
eu fiquei em casa. Mas fizemos o que t�nhamos de fazer. E, agora, ela est� aqui, criando algo muito importante.
- Voc� tamb�m. Por que faz isso? - perguntou, irritado. - Por que sempre acha que o que voc� faz ou pensa est� em segundo plano? Voc� pode fazer mais do que
qualquer pessoa que eu tenha conhecido.
Ela riu, voltando-se para ele outra vez.
- S� porque voc� gosta da minha comida.
- Sim, gosto da sua comida. - N�o retribuiu o sorriso. - E de seu trabalho, seu tric�, suas flores. Do jeito que voc� torna o ar perfumado, o jeito como coloca
os len��is, quando arruma a cama. Gosto de como pendura as roupas na corda e passa minhas camisas. Voc� faz todas estas coisas e mais, e faz tudo parecer t�o f�cil.
- Bem, n�o custa muito...
- Custa - cortou a frase dela, o g�nio explodindo outra vez, sem motivo algum. - Voc� n�o sabe que muitas pessoas simplesmente s�o incapazes de cuidar de uma
casa ou n�o t�m o m�nimo interesse, n�o fazem id�ia de como alimentar algu�m? Preferem jogar fora o que t�m a cuidar dos outros. Tempo, coisas, filhos.
Parou, aturdido pelo que tinha sa�do de dentro dele, aturdido por tudo aquilo estar dentro dele para sair. Quanto tempo aquilo ficara escondido? E o que faria
para enterrar tudo outra vez?
- Gray.
Brianna ergueu a m�o para acariciar seu rosto, mas ele recuou. Nunca se considerara vulner�vel, pelo menos durante muitos anos. Mas, naquele momento, se sentia
muito fora de controle para ser tocado.
- O que quero dizer � que o que voc� faz � importante. N�o deve se esquecer disso. Vou dar uma olhada por a�. - Voltou-se abruptamente para a porta da sala
e saiu apressado.
- Puxa... - Maggie entrou vindo do sagu�o. - Foi uma explos�o bem interessante.
- Ele precisa de uma fam�lia - Brianna murmurou.
- Brie, ele � um adulto, n�o um beb�.
- Idade n�o acaba com a necessidade. Ele � t�o sozinho, Maggie, e nem mesmo sabe disso.
- Voc� n�o pode adot�-lo como se fosse um bichinho perdido. - Balan�ando a cabe�a, Maggie aproximou-se. - Ou pode?
- Sinto alguma coisa por ele. Nunca pensei que teria esse sentimento por algu�m outra vez. - Olhou para as m�os, que mantinha bem apertadas, e ent�o soltou-as.
- N�o, n�o � verdade. N�o � a mesma coisa que senti por Rory.
- Maldito seja esse Rory.
- Voc� sempre diz isso. - E, ent�o, Brianna sorriu. - Isto � fam�lia. - Beijou as faces de Maggie. - Agora, me conte, como est� se sentindo com o presidente
comprando seu trabalho?
- J� que � uma boa grana... - Ent�o atirou a cabe�a para tr�s e riu. - � como ir � lua e voltar. N�o posso evitar. N�s, os Concannon, simplesmente n�o somos
sofisticadas o bastante para enfrentar isso com indiferen�a. Ah, queria tanto que papai...
- Eu sei.
- Bem. - Maggie respirou fundo. - Tenho que lhe dizer que o detetive que Rogan contratou n�o encontrou Amanda Dougherty ainda. Est� seguindo pistas, seja l�
o que isso queira dizer.
- Tantas semanas, Maggie, a despesa...
- N�o comece a chatear querendo usar seu dinheiro. Casei com um homem rico.
- E todos sabem que voc� s� queria o dinheiro dele.
- N�o, queria o corpo dele. - Piscou e enla�ou o bra�o no de Brianna. - E j� notei que seu amigo Grayson Thane tem um que faria qualquer mulher balan�ar.
- Eu tamb�m j� notei.
- Que bom, isso mostra que voc� n�o esqueceu como se olha. Recebi um cart�o de Lottie.
- Eu tamb�m. Importa-se se elas ficarem a terceira semana?
- Por mim, mam�e poderia ficar na vila pelo resto de sua vida. - Suspirou diante da express�o de Brianna. - Est� bem, est� bem. � que fico feliz por ela estar
se divertindo, embora ela n�o v� admitir isso nunca.
- Ela � grata a voc�, Maggie. S� n�o sabe como expressar isso.
- N�o preciso mais que ela expresse. - Maggie pousou a m�o em sua barriga. - J� tenho o que � meu e isso faz toda a diferen�a. Nunca pensei que pudesse ter
um sentimento t�o forte em rela��o a algu�m, e a� apareceu Rogan. Ent�o achei que nunca poderia gostar tanto de algu�m ou de qualquer outra coisa. E agora gosto.
Por isso, talvez entenda um pouco como n�o querer e n�o amar a crian�a que se carrega na barriga pode arruinar tanto a vida de uma pessoa, e como querer e amar essa
crian�a pode iluminar a vida de outra.
- Ela n�o me quis tamb�m.
- Por que voc� diz isso?
- Ela me contou. - Brianna percebeu que dizer aquilo foi como se livrar de um peso. - Dever. Foi somente para cumprir um dever. Nem mesmo para papai, mas para
a Igreja. � um jeito frio de ser colocada no mundo.
N�o era de raiva que Brianna precisava agora, Maggie entendeu, e tomou o rosto da irm� nas m�os.
- Pior para ela, Brie. N�o pra voc�. E quanto a mim, se o dever n�o tivesse sido cumprido, eu � que estaria na pior.
- Ele nos amou. Papai nos amou.
- Sim. E � o que importa. Vamos, n�o se aborre�a com isso. Vou levar voc� l� em cima e mostrar o que andamos fazendo.
No sagu�o, Gray deixou escapar um longo suspiro. A ac�stica no pr�dio era boa demais para se guardarem segredos. Agora ele entendia um pouco da tristeza que
assombrava os olhos de Brianna. Estranho que eles tivessem a aus�ncia do carinho da m�e em comum.
N�o que essa aus�ncia o assombrasse tamb�m, assegurou a si mesmo. Libertara-se daquilo havia muito tempo. Deixara a crian�a assustada e solit�ria nos c�modos
sombrios do Lar para Crian�as Simon Brent Memorial.
Mas gostaria de saber quem era Rory. E por que Rogan tinha contratado detetives para procurar uma mulher chamada Amanda Dougherty?
Gray sempre achara que o melhor caminho para se encontrarem respostas era perguntar.
* * *
- Quem � Rory?
A pergunta despertou Brianna de seu calmo devaneio, enquanto Gray dirigia tranq�ilamente, descendo as estreitas e ventosas estradas que levavam para fora de
Ennistymon.
- Como?
- N�o como, e sim quem. -Jogou o carro para mais pr�ximo da beira da estrada, quando um VW carregado fez a curva na m�o dele. Provavelmente um americano inexperiente,
pensou com certa presun��o. - Quem � Rory? - repetiu.
- Anda ouvindo fofocas no pub, n�o �?
Em vez de preveni-lo, o gelo da voz dela s� o provocou mais:
- Claro, mas n�o foi l� que ouvi esse nome. Voc� o mencionou para Maggie, na galeria.
- Ent�o voc� andou bisbilhotando uma conversa particular.
- Isso � uma redund�ncia. N�o seria bisbilhotar, se a conversa n�o fosse particular.
Ela retesou o corpo no banco do carro.
- N�o h� necessidade de corrigir minha gram�tica, obrigada.
- N�o � quest�o de gram�tica, mas... esque�a. - Deixou o assunto cozinhar um pouco. - Ent�o, quem era ele?
- E por que seria da sua conta?
- Voc� s� est� me deixando mais curioso.
- Era um rapaz que conheci. Est� pegando a estrada errada.
- N�o h� estradas erradas na Irlanda. Leia o guia. � aquele que magoou voc�? - Lan�ou um olhar na dire��o dela e sacudiu a cabe�a.
- Bem, isto j� responde. O que aconteceu?
- Est� pensando em colocar isso num de seus livros?
- Pode ser. Mas, antes, � pessoal. Voc� o amou?
- Amei. Ia casar com ele.
Ele se pegou fazendo careta e batendo com um dedo sobre o volante.
- Por que n�o casou?
- Porque ele rompeu comigo quase no altar. Isto satisfaz sua curiosidade?
- N�o. S� me diz que esse Rory obviamente era um idiota. - N�o p�de evitar a segunda pergunta e ficou surpreso por querer saber:
- Voc� ainda o ama?
- Seria extremamente idiota da minha parte, j� que isso aconteceu h� dez anos.
- Mas ainda d�i.
- Ser rejeitada sempre d�i. Ser motivo da piedade de todos d�i. Pobre Brie, coitadinha da Brie, ser abandonada dois dias antes do casamento. Ser largada com
um vestido de noiva e seu triste enxovalzinho enquanto seu noivo foge para a Am�rica, em vez de se casar com ela. Est� satisfeito? - Virou-se para olhar para ele.
- Quer saber se eu chorei? Chorei. Se esperei que ele voltasse? Esperei.
- Pode me bater se isso fizer com que se sinta melhor.
- Duvido que fa�a.
- Por que ele se foi?
Ela soltou um gemido que era tanto de aborrecimento quanto de lembran�a.
- N�o sei. Nunca soube. Isto � o pior de tudo. Ele me procurou e disse que n�o me queria, eu n�o o teria, nunca me perdoaria pelo que eu tinha feito. E, quando
tentei perguntar o que queria dizer, me empurrou, derrubando-me no ch�o.
As m�os de Gray apertaram o volante.
- Ele o qu�?
- Me derrubou - ela disse calmamente. - E o orgulho n�o me deixou ir atr�s dele. Ent�o, depois de algum tempo, dei meu vestido de noiva. Kate, a irm� de Murphy,
usou-o quando casou com Patrick.
- Ele n�o vale a tristeza que voc� traz nos olhos.
- Talvez n�o. Mas o sonho valia. O que voc� est� fazendo?
- Parando o carro. Vamos subir at� os penhascos.
- N�o estou vestida para escalar terrenos �ngremes - ela protestou, mas ele j� estava fora do carro. - Meus sapatos n�o s�o adequados, Gray. Posso esperar
aqui, se voc� quer dar uma olhada.
- Quero olhar com voc�. - Ele a puxou do carro e levantou-a nos bra�os.
- Que est� fazendo? Ficou louco?
- N�o � longe, e imagine que linda foto nossa aqueles ador�veis turistas l� v�o levar para casa. Voc� fala franc�s?
- N�o. - Confusa, virou a cabe�a para olhar no rosto dele. - Por qu�?
- Estava s� pensando que, se fal�ssemos franc�s, eles pensariam que n�s �ramos... franceses, sabe? Ent�o, quando voltassem a Dallas, contariam ao primo Fred
sobre o rom�ntico casal franc�s que tinham visto perto da costa. - Beijou-a com intimidade, antes de coloc�-la no ch�o, perto da beira de uma pedra inclinada.
A �gua estava da cor dos olhos dela hoje, ele notou. Aqueles olhos frios, verdes, enevoados, que falavam de sonhos. Estava claro o suficiente para que ele
pudesse ver os vigorosos morros das ilhas Aran e um pequeno barco que navegava entre Innismore e o continente. O ar estava fresco, o c�u de um azul melanc�lico que
poderia e mudaria a qualquer momento. Os turistas, um pouco al�m, falavam num complicado sotaque que o fez sorrir.
- � bonito aqui. Tudo. Voc� s� precisa virar a cabe�a para ver alguma coisa empolgante. - Intencionalmente, ele voltou-se para Brianna. - Absolutamente empolgante.
- Voc� est� tentando me agradar por ter bisbilhotado minhas coisas.
- N�o, n�o estou. E n�o terminei de bisbilhotar e gosto de bisbilhotar. Ent�o seria hip�crita pedir desculpas. Quem � Amanda Dougherty e por que Rogan est�
procurando por ela?
O choque se estampou no rosto dela, fazendo a boca tremer.
- Voc� � muito rude.
- J� sei disso. Diga alguma coisa que eu n�o sei.
- Vou voltar. - Mas, quando se virou, ele segurou seu bra�o.
- Vou levar voc� num minuto. Vai acabar torcendo o tornozelo com esses sapatos. Especialmente se vai se apressar.
- N�o vou me apressar, como voc� insiste em... E, depois, isso n�o � da sua... - Exaurida, ela deixou escapar um suspiro de raiva. - Por que perderia meu tempo
dizendo a voc� que isso n�o � da sua conta?
- N�o fa�o id�ia.
O olhar se estreitou no rosto dele. Meigo � o que ele era. E teimoso como duas mulas.
- Voc� s� fica insistindo at� eu contar.
- Agora voc� captou. - Mas ele n�o sorriu. Em vez disso, afastou um fio de cabelo que tremulava no rosto dela. Os olhos eram intensos, determinados. - � o
que est� perturbando voc�. Ela � que est� perturbando voc�.
- Nada que voc� possa entender.
- Voc� ficaria surpresa com o que eu entendo. Sente-se aqui. - Levou-a at� a pedra e sentou-se ao lado dela. - Conte-me uma hist�ria. Ser� mais f�cil desta
vez.
Talvez fosse. E talvez contar tudo pudesse aliviar esse peso em seu cora��o.
- Anos atr�s, havia uma mulher que tinha a voz de um anjo, ou assim dizem. E a ambi��o de us�-la para ter sucesso. Estava descontente com a vida de filha de
dona de estalagem e saiu a viajar, vivendo de sua m�sica. Um dia, ela voltou, pois a m�e estava doente, e ela era uma filha conscienciosa, sen�o amorosa. Ela cantava
no pub da vila, por prazer, para o prazer dos clientes e por algumas libras. L� ela conheceu um homem.
Brianna observou o mar como que imaginando o pai conquistando o olhar da m�e, ouvindo a voz dela.
- Algo muito excitante brotou entre eles. Podia ter sido amor, mas n�o do tipo que dura. Ent�o, eles n�o resistiram ou n�o puderam resistir. E assim, pouco
depois, ela se descobriu gr�vida. A Igreja, sua cria��o e as pr�prias cren�as n�o lhe deixaram outra escolha sen�o casar e desistir do sonho que tivera. Ela nunca
foi feliz depois daquilo, e n�o teve compaix�o bastante para fazer o marido feliz. Logo depois de o primeiro filho nascer, ela concebeu outro. N�o daquela maneira
excitante como da outra vez, mas por um frio senso de dever. Dever cumprido, recusou ao marido sua cama e seu corpo.
Foi o suspiro dela que fez Gray estender a m�o, cobrindo a dela com a sua. Mas ele n�o falou. N�o ainda.
- Um dia, em algum lugar perto do rio Shannon, ele conheceu outra mulher. Houve amor profundo, permanente. Qualquer que fosse o pecado deles, o amor era maior.
Mas ele tinha uma esposa, voc� sabe, e duas filhas pequenas. Ele e a mulher que o amou viram que n�o havia futuro para eles. Ela o deixou, voltou para a Am�rica.
Escreveu tr�s cartas a ele, cartas ador�veis, cheias de amor e compreens�o. E na terceira ela disse que estava esperando um filho dele. Ia embora, dizia, e ele n�o
devia ficar preocupado, pois ela estava feliz por ter uma parte dele crescendo dentro dela.
Uma ave marinha gritou, atraindo o olhar dela. Observou a ave voar em dire��o ao horizonte, antes de continuar a hist�ria:
- Ela nunca mais escreveu a ele, e ele nunca a esqueceu. Aquelas lembran�as deviam t�-lo confortado ao longo do desalento de seu casamento respeitoso e por
todos os anos vazios. Acho que foi assim, pois foi o nome dela que ele falou antes de morrer. Ele disse Amanda, enquanto observava o mar. E muito tempo depois que
as cartas foram escritas, uma de suas filhas as encontrou, no s�t�o, onde ele as guardara, amarradas com uma fita vermelha desbotada.
Virou-se para Gray, ent�o.
- N�o h� nada que ela possa fazer, entende, para fazer voltar o tempo, fazer aquelas vidas serem melhores do que foram. Mas uma mulher que foi amada assim
n�o merece saber que nunca foi esquecida? E o filho dessa mulher e desse homem n�o tem o direito de conhecer o pr�prio sangue?
- Encontr�-los pode magoar ainda mais voc�. - Ele olhou para as m�os deles entrela�adas. - O passado tem um monte de armadilhas terr�veis. � uma linha t�nue,
Brianna, que liga voc� e o filho de Amanda. Algumas muito mais fortes s�o rompidas todos os dias.
- Meu pai a amou. O filho que ela teve � da fam�lia. N�o h� mais nada a fazer, exceto encarar esses fatos.
- N�o para voc� - murmurou enquanto os olhos examinavam o rosto dela. Havia for�a misturada com tristeza. - Deixe-me ajud�-la.
- Como?
- Conhe�o muita gente. Encontrar algu�m envolve pesquisa, telefonemas, contatos.
- Rogan contratou um detetive em Nova York.
- � um bom come�o. Se n�o descobrir alguma coisa logo, me deixar� tentar? - Levantou a sobrancelha. - N�o diga que � gentileza minha.
- Tudo bem, n�o direi, embora seja. - Levantou as m�os de ambos at� o rosto. - Fiquei brava com voc� por me for�ar a contar. Mas ajudou. - Encostou a cabe�a
na dele. - Voc� sabia que ajudaria.
- Sou um curioso nato.
- Voc� � sim. Mas sabia que ajudaria.
- Geralmente ajuda. - Levantando, puxou-a da pedra. - � hora de voltarmos. Estou pronto para trabalhar.
A
corrente que a hist�ria apertara em torno de sua garganta prendeu Gray � escrivaninha por v�rios dias. A curiosidade girava a chave na fechadura de vez em quando,
enquanto h�spedes iam e vinham.
Ele tinha tido tudo s� para si, ou quase, por tantas semanas, pensou, que poderia achar o barulho e a algazarra irritantes. Em vez disso, era agrad�vel, como
a pr�pria pousada, colorida como as flores que come�avam a desabrochar no jardim de Brianna, brilhante como aqueles preciosos primeiros dias de primavera.
Quando ele n�o sa�a do quarto, encontrava sempre uma bandeja ao lado da porta. E, quando sa�a, sempre havia comida e alguma nova companhia na sala. Muitos
ficavam s� uma noite, o que lhe agradava. Gray preferia sempre contatos r�pidos, descomplicados.
Mas, uma tarde, ele desceu, est�mago roncando, e encontrou Brianna no jardim da frente.
- Estamos sozinhos?
Ela lan�ou um olhar por baixo da aba do chap�u de jardim. - Sim. Por um dia ou dois. Quer comer alguma coisa?
- Posso esperar voc� terminar. O que est� fazendo?
- Plantando. Quero amores-perfeitos aqui. Eles sempre parecem t�o arrogantes e convencidos. - Sentou-se nos calcanhares. - Ouviu o cuco cantando, Grayson?
- Um rel�gio?
- N�o. - Riu e bateu de leve a terra em volta das ra�zes. - Ouvi o cuco cantar quando caminhei com Con de manh� cedo, o que quer dizer tempo bom. E havia duas
pegas chilreando, o que significa prosperidade. - Curvou-se de volta ao trabalho. - Ent�o, talvez outro h�spede encontre o caminho daqui.
- Supersticiosa, Brianna. Voc� me surpreende.
- N�o vejo por qu�. Ah, o telefone! Uma reserva.
- Eu atendo. - Como j� estava de p�, chegou primeiro ao telefone da sala. - Blackthorn Cottage. Arlene? Sim, sou eu. Como vai, linda?
Franzindo os l�bios, Brianna deteve-se junto da porta, limpando as m�os no pano que enfiara no c�s da cal�a.
- Penduro meu chap�u em qualquer lugar - ele respondeu, quando ela perguntou se estava se sentindo em casa na Irlanda. Quando viu que Brianna j� ia saindo
da sala, levantou a m�o em um convite. - Que tal Nova York? - Viu Brianna hesitar e voltar. Gray entrela�ou os dedos nos dela e come�ou a acarinhar. - N�o, n�o esqueci
que est� chegando. N�o tenho pensado muito. A inspira��o � que me leva, querida. - Enquanto Brianna tentava livrar-se dele com a cara franzida, ele apenas ria e
a mantinha presa.
- Fico contente de ouvir isso. Qual � o neg�cio? - Parou, ouvindo e sorrindo diante dos olhos de Brianna. - � generoso, Arlene, mas voc� sabe como me sinto
sobre comprometimentos por longo tempo. Quero um de cada vez. Como sempre.
Enquanto ouvia, entre grunhidos de concord�ncia e "hummms" de interesse, apertava o pulso de Brianna. N�o fazia mal ao ego dele sentir o pulso dela saltando.
- Parece mais do que bom para mim. Claro, enrole os brit�nicos um pouco mais, se acha que pode. N�o, n�o tenho lido o London Times. Verdade? Isto � bom, n�o
�? N�o, n�o estou sendo esnobe. � �timo! Obrigado. Eu... o qu�? Um fax? Aqui? - Riu abafado, inclinou-se e deu um beijo r�pido e amistoso na boca de Brianna. - Obrigado
por tudo, Arlene. N�o, mande mesmo pelo correio, meu ego pode esperar. Para voc� tamb�m. Manterei contato.
Despediu-se e desligou ainda com a m�o de Brianna presa na dele.
Quando ela falou, o gelo na voz baixou a temperatura da sala em torno de dez graus.
- N�o acha que � uma grosseria ficar namorando uma mulher ao telefone e beijando outra?
A express�o dele, j� divertida, iluminou-se ainda mais.
- Voc� est� com ci�me, querida?
- Claro que n�o.
- S� um pouquinho. - Tomou a outra m�o dela antes que pudesse escapar e levou-a aos l�bios. - Ora, isto � um progresso. S� odeio ter que dizer a voc� que estava
falando com minha agente, que, embora seja importante para o meu cora��o e meu tal�o de cheques, � vinte anos mais velha do que eu e uma orgulhosa vov� de tr�s netos.
- Ah! - Odiava sentir-se idiota quase tanto quanto odiava ter ci�me. - Acho que voc� vai querer comer algo agora.
- Pelo menos dessa vez, comida � a �ltima coisa que passa pela minha cabe�a. - O que havia nela estava muito claro nos olhos dele, quando a puxou para mais
perto. - Voc� est� realmente atraente neste chap�u.
Ela virou a cabe�a justo a tempo de evitar a boca dele. Os l�bios apenas tocaram sua face.
- Eram boas not�cias, ent�o, a liga��o dela?
- Muito boas. Meu editor gostou da mostra dos cap�tulos que mandei duas semanas atr�s e fez uma proposta.
- Que bom! - Ele parecia bastante faminto pelo jeito como mordiscava a orelha dela. - Voc� ent�o vende os livros antes de escrev�-los, como um contrato.
- N�o todos ao mesmo tempo. Faz eu me sentir numa gaiola. - Tanto que acabei de dispensar uma proposta espetacular para um projeto de tr�s novelas. - Negocio
um de cada vez e, com Arlene na retaguarda, negociamos bem.
Um calor se espalhava no est�mago dela, enquanto ele explorava calmamente seu pesco�o.
- Cinco milh�es, voc� me falou. N�o consigo nem imaginar quanto � isso.
- N�o desta vez. - Ele contornou seu queixo. - Arlene subiu para seis ponto cinco.
Aturdida, ela recuou.
- Milh�es? D�lares americanos?
- Soa como monop�lio, n�o �? - Riu. - Ela n�o est� satisfeita com a proposta brit�nica, e como meu livro atual est� firme em primeiro lugar na lista do London
Times, ela est� fazendo uma press�ozinha. - Distraidamente, ele a abra�ou pela cintura, apertou os l�bios na sobrancelha dela, na t�mpora. Sticking Point estr�ia
em Nova York no pr�ximo m�s.
- Estr�ia?
- �... O filme. Arlene acha que eu deveria ir para apremiere.
- Do seu pr�prio filme? Claro que deve.
- N�o existe "deve". Parecem coisas t�o antigas. Agora o que est� valendo � Flashback.
Seus l�bios ro�aram os cantos da boca de Brianna, e sua respira��o come�ou a ofegar.
- Flashback!
- O livro que estou escrevendo agora. � o �nico que importa. - Os olhos dele se estreitaram, perderam o foco. - Ele tem que encontrar o livro. Droga! Como
pude n�o perceber isso? � a coisa toda! - Recuando, enfiou uma m�o nos cabelos. - Depois que encontrar, n�o ter� escolha, ter�? � o que o faz pessoal!
Cada nervo do corpo dela se agitava ao contato dos l�bios dele.
- De que est� falando? Qual livro?
- O di�rio de Deliah. � o que liga o passado ao presente. N�o haver� sa�da depois de l�-lo. Ter�... - Gray sacudiu a cabe�a, como um homem entrando ou saindo
de um transe. - Tenho que voltar ao trabalho.
Ele estava no meio das escadas e o cora��o de Brianna ainda batia estupidamente.
- Grayson?
- O qu�?
J� estava imerso no pr�prio mundo, ela notou, dividido entre pra-zer e irrita��o. A impaci�ncia brilhava em seus olhos, olhos que ela duvidava que a estivessem
vendo.
- Quer comer alguma coisa?
- Deixe uma bandeja quando puder. Obrigado. Foi-se.
Bem... Brianna colocou as m�os nos quadris e tratou de rir para si mesma. O homem quase a seduzira e nem sabia disso. Desligado, foi embora com Deliah e seu
di�rio, assassinato e mutila��es, deixando-a palpitando como um rel�gio descompassado.
Melhor assim, pensou. Todos aqueles beijos e mordiscadas a tinham deixado fraca. Que tolice sentir-se assim por causa de um homem que iria embora de sua casa
e de seu pa�s t�o negligentemente como sa�a de sua sala.
Mas aquilo a fez pensar como seria, enquanto caminhava para a cozinha. Como seria ter toda aquela energia, toda aquela aten��o, toda aquela habilidade focada
somente nela. Mesmo que por pouco tempo. Mesmo que s� por uma noite.
Saberia ent�o, n�o saberia? Como seria dar prazer a um homem? E receb�-lo? A solid�o poderia ser amarga depois, mas o momento poderia ser m�gico.
Poderia... S�o muitos "poderia", resignou-se, e foi preparar um generoso prato de cordeiro frio e croquetes de queijo para Gray. Levou a bandeja at� o quarto
dele sem dizer uma palavra sequer.
Ele n�o tomou conhecimento dela, nem ela esperava isso agora. N�o quando ele estava debru�ado sobre o laptop, olhos fixos, os dedos �geis. Apenas resmungou
quando ela serviu o ch� e deixou uma x�cara ao lado de seu cotovelo.
Quando ela se pegou sorrindo e percebeu um forte desejo de correr a m�o naqueles ador�veis cabelos com pontas de ouro, decidiu que era uma boa hora de ir at�
Murphy e pedir que consertasse seu carro.
O exerc�cio ajudou a aliviar a tens�o nervosa do desejo. Era sua esta��o favorita do ano, a primavera, quando os p�ssaros cantavam, as flores brotavam e as
colinas brilhavam t�o verdes que a garganta se apertava s� de olhar para elas.
A luz era dourada e o ar t�o claro que podia ouvir o put-put do trator de Murphy, dois campos adiante. Encantada pelo dia, levantou a cesta que carregava e
cantou para si mesma. Enquanto pulava um murinho de pedras, sorriu para o potrinho que mamava avidamente, enquanto a m�e comia grama. Parou um momento para admirar,
mais alguns instantes para afagar a mam�e e o beb�, e continuou a caminhar.
Talvez fosse at� a casa de Maggie depois de ver Murphy. Faltavam poucas semanas para o beb� chegar. Algu�m precisava cuidar do jardim de Maggie, aguar um pouco.
Rindo, parou, curvando-se quando Con correu pelo campo em sua dire��o.
- Ajudando na fazenda ou s� ca�ando coelhos? N�o, isto n�o � seu - falou, erguendo a cesta, enquanto o cachorro farejava em volta. - Mas tenho um bom osso
em casa esperando por voc�. - Ouvindo o cumprimento de Murphy, ela levantou-se e acenou para ele.
Ele desligou o trator, saltando dele, enquanto caminhava pela terra rec�m-arada.
- �timo dia para plantar, n�o �?
- Maravilhoso - concordou e olhou para a cesta. - O que tem a�, Brie?
- Um suborno.
- Ah, sou duro na queda.
- Bolo de f�cula.
Ele fechou os olhos e soltou um suspiro exagerado.
- Sou todo seu.
- Assim que se fala. - Mas segurou a cesta torturantemente fora de seu alcance.
- � meu carro outra vez, Murphy. Agora ele parecia aflito.
- Brianna, querida, j� est� na hora de enterr�-lo. O tempo passou.
- N�o pode apenas dar uma olhadinha? Ele olhou para ela, depois para a cesta.
- O bolo � todo pra mim?
- Cada farelo.
- Fechado. - Pegou a cesta, colocando-a no assento do trator. - Mas estou avisando: vai precisar de um novo carro antes do ver�o.
- Ent�o vou ficar precisando mesmo. Meu cora��o est� todo na estufa, ent�o o carro vai ter que ag�entar um tiquinho mais. Teve tempo de ver meus desenhos para
a estufa, Murphy?
- Tive. D� pra fazer sim. - Aproveitando a pausa no trabalho, acendeu um cigarro. - Fiz s� alguns ajustes.
- Voc� � um amor, Murphy. - Rindo, beijou as faces dele.
- � o que todas as garotas me dizem. - Afastou um cacho de cabelo da testa. - O que seu ianque iria pensar se visse voc� me paquerando bem aqui na minha terra,
hein?
- Ele n�o � meu ianque. - Ela se moveu. Mexeu-se enquanto Murphy apenas levantava a sobrancelha. - Voc� gosta dele, n�o gosta?
- Dif�cil n�o gostar. Ele est� perturbando voc�, Brianna?
- Um pouquinho, talvez. - Suspirou, desistindo. N�o havia nada em seu cora��o que n�o pudesse contar a Murphy. - Na verdade, muito. Eu gosto dele. N�o sei
o que fazer com isto, mas gosto muito dele. � diferente do que era com Rory.
� men��o desse nome, Murphy franziu a testa e fitou a ponta do cigarro.
- Rory n�o merece um s� pensamento seu.
- N�o perco tempo pensando nele, mas agora, com Gray, veio tudo de novo, entende? Murphy... voc� sabe que ele ir� embora. Como Rory foi. - Olhou para longe.
Podia falar aquilo, Brianna pensou, mas n�o podia lidar com a compaix�o nos olhos de Murphy, quando falava. - Tento entender, aceitar. Digo a mim mesma que ser�
mais f�cil, que pelo menos saberei por qu�. Sem saber, em toda a minha vida com Rory, o que estava faltando em mim...
- N�o falta nada em voc� - Murphy falou bruscamente. - Tire isso da cabe�a.
- J� tirei... ou quase. Mas eu... - Desarmada, ela voltou-se e fitou as colinas. - Mas o que h� comigo ou falta em mim que faz um homem ir embora? Ser� que
exijo muito dele ou n�o o suficiente? Haver� uma frieza em mim que os congela?
- N�o h� nada de frio em voc�. Pare de se culpar pela crueldade de outro.
- Mas tenho s� a mim mesma para questionar. J� faz dez anos. E esta � a primeira vez que me sinto assim abalada. E � assustador porque n�o sei como enfrentaria
outra decep��o. Ele n�o � Rory, eu sei, e mesmo...
- N�o, ele n�o � Rory. - Furioso por v�-la t�o perdida, t�o infeliz, Murphy jogou fora o cigarro, amassando-o na terra. - Rory era um idiota, incapaz de ver
o que tinha, dando ouvidos a quaisquer mentiras. Devia agradecer a Deus por ele ter ido embora.
- Que mentiras?
Uma chama agitou os olhos de Murphy, que logo se acalmaram.
- Qualquer uma. J� est� no final do dia, Brie. Verei seu carro amanh�.
- Que mentiras? - Segurou o bra�o dele. Havia um zumbido em seus ouvidos, um aperto no est�mago. - O que voc� sabe a esse respeito, Murphy, que nunca me contou?
- O que eu poderia saber? Rory e eu nunca fomos amigos.
- N�o, n�o foram - ela falou lentamente. - Ele nunca gostou de voc�. Tinha ci�me porque �ramos chegados. N�o conseguia entender que voc� era como um irm�o
para mim. - Ela continuou, sem tirar os olhos de Murphy. - Umas duas vezes, chegamos a discutir por causa disso, e ele reclamou que eu era muito pr�diga em beijos,
quando eram para voc�.
Algo perpassou no rosto de Murphy, antes que ele pudesse controlar.
- Bem, n�o disse a voc� que ele era um idiota?
- Falou alguma coisa a ele sobre isso? Ele disse alguma coisa para voc�? - Ela esperou, at� que o desalento que crescia em seu cora��o a dominou por completo.
- Voc� vai me contar, Murphy, por Deus que vai. Tenho o direito de saber. Chorei at� minha �ltima l�grima por causa dele, sofri com os olhares de compaix�o de todos
os que conhecia. Vi sua irm� se casar com o vestido que fiz com minhas pr�prias m�os. H� dez anos sinto um enorme vazio dentro de mim.
- Brianna.
- Voc� vai me dizer. - Decidida, ela o encarou. - Posso ver que voc� tem uma resposta. Se � meu amigo, vai me dizer.
- N�o � justo.
- Duvidar de mim mesma todo esse tempo � mais justo?
- N�o quero magoar voc�, Brianna. - Gentilmente, ele acariciou o rosto dela. - Preferiria cortar um bra�o a ter que magoar voc�.
- Se souber, vou sofrer menos.
- Talvez. Talvez. - Ele n�o podia saber, nunca soubera. - Maggie e eu achamos...
- Maggie? - ela o cortou surpresa. - Maggie tamb�m sabe? Ah, estava perdido agora, percebeu. E n�o tinha outra sa�da, a n�o ser entregar todo mundo.
- O amor dela por voc� � t�o forte, Brianna. Ela faria qualquer coisa para proteger voc�.
- Vou lhe dizer o que digo sempre para ela. N�o preciso de prote��o. Conte-me o que voc� sabe.
Dez anos, ele pensou, era um longo tempo para um homem honesto guardar um segredo. Dez anos eram longos tamb�m para uma mulher inocente suportar a culpa.
- Ele veio me procurar um dia, quando eu estava trabalhando aqui no campo. E me agrediu inesperadamente. Como n�o gostava muito dele, eu parti pra cima tamb�m.
Mas n�o posso dizer que fazia aquilo de cora��o, at� ele dizer o que disse. Afirmou que voc� tinha andado... comigo.
Aquilo ainda o embara�ava e, sob o embara�o, descobriu a mesma raiva aguda que n�o diminu�ra com o tempo.
- Disse que o hav�amos feito de bobo, pelas costas, e que n�o se casaria com uma prostituta. Dei um soco na cara dele por isso. - Murphy falava com raiva,
os punhos bem cerrados ante a lembran�a. - N�o sinto ter feito aquilo. Tamb�m teria quebrado seus ossos, mas ele me disse que tinha ouvido aquilo da boca de sua
pr�pria m�e. Que voc� tinha transado comigo e que provavelmente estaria gr�vida de mim.
Ela estava mortalmente p�lida agora, com o cora��o petrificado.
- Minha m�e disse isso a ele?
- Ela disse... que n�o poderia, em s� consci�ncia, deix�-lo casar na igreja, quando voc� tinha pecado comigo.
- Ela sabia que eu n�o tinha... - sussurrou. - Sabia que n�s n�o t�nhamos...
- S� ela sabe o que a fez dizer isso ou acreditar nisso. Maggie apareceu quando eu estava me lavando e contei a ela, antes que tivesse tempo de pensar melhor.
A princ�pio, achei que ela fosse acertar as contas com Maeve com os pr�prios punhos, e tive que segur�-la at� que se acalmasse um pouco. Conversamos e ela achava
que Maeve tinha feito aquilo para manter voc� em casa.
Ah, sim, Brianna pensou. Uma casa que nunca tinha sido um verdadeiro lar.
- E eu cuidaria dela, da casa e de papai.
- N�s n�o sab�amos o que fazer, Brianna. Juro que eu teria arrastado voc� do altar, se voc� fosse em frente e tentasse se casar com aquele miser�vel, idiota.
Mas ele fugiu no dia seguinte, e voc� estava sofrendo tanto. N�o tive coragem, nem Maggie, de contar a voc� o que ele tinha dito.
- N�o teve coragem. - Ela apertava os l�bios. - O que voc� n�o tinha, Murphy, nem voc� nem Maggie, era o direito de esconder isso de mim. Voc� n�o tinha o
direito, assim como minha m�e n�o tinha o direito de dizer tais coisas.
- Brianna.
Ela afastou-se num rompante antes que ele pudesse toc�-la.
- N�o, n�o! N�o posso falar com voc� agora. N�o posso falar com voc�. - Voltou-se e correu.
N�o chorou. As l�grimas haviam congelado em sua garganta e ela se recusava a deix�-las correr. Atravessou os campos sem nada enxergar, envolta pela n�voa atordoante
de tudo o que acontecera. Ou quase acontecera. Toda a inoc�ncia fora despeda�ada agora. Todas as ilus�es reduzidas a p�. Sua vida era feita de mentiras. Uma vida
concebida na mentira, alimentada de mentiras.
Quando chegou em casa, sufocava os solu�os. Parou, apertando os punhos at� que as unhas se enterrassem na carne.
Os p�ssaros ainda cantavam e as tenras flores jovens, que ela mesma plantara, dan�avam na brisa. Mas ela nem percebeu. S� via a si mesma, chocada e aterrorizada,
quando as m�os de Rory a atiraram ao ch�o. Depois de todos esses anos, ainda podia ver a perplexidade que a dominou ao olhar para ele e perceber raiva e desgosto
em seu rosto, antes que se virasse, deixando-a para sempre.
Fora marcada como uma prostituta, n�o fora? Por sua pr�pria m�e. Pelo homem que amara. Que grande piada, logo ela que nunca sentira o peso do corpo de um homem.
Com toda a calma abriu a porta e fechou-a atr�s de si. Ent�o seu destino fora decidido em nome dela naquela manh�, muito tempo atr�s. Bem, agora, naquele mesmo
dia, ela teria seu destino nas pr�prias m�os.
Deliberadamente subiu as escadas, abriu a porta de Gray e a fechou �s suas costas.
- Grayson?
- H�?
- Voc� me deseja?
- Claro. Mais tarde. - Ele levantou a cabe�a, os olhos emba�ados. - O qu�? O que voc� disse?
- Voc� me deseja? - ela repetiu. O corpo t�o tenso quanto a pergunta. - Voc� disse que me desejava e agiu como se me desejasse.
- Eu... - Fez um esfor�o sobre-humano para arrancar-se do mundo imagin�rio at� a realidade. Ela estava terrivelmente p�lida, percebeu, e seus olhos tinham
um brilho gelado. Ela estava machucada. - Brianna, o que est� acontecendo?
- Uma pergunta simples. Agradeceria por uma resposta.
- Claro que desejo voc�. O que... que diabos est� havendo? - Levantou-se da cadeira num salto, boquiaberto, quando ela come�ou a desabotoar a blusa rapidamente.
- Pare! Pelo amor de Deus, pare com isso agora!
- Voc� disse que me desejava. Estou fazendo o que voc� quer.
- Eu disse pare. - Em tr�s passadas estava arrancando a blusa dela tamb�m. - O que deu em voc�? O que aconteceu?
- Nada demais. - Percebeu que come�ava a tremer e esfor�ou-se para disfar�ar. - Voc� tem tentado me persuadir a ir para a cama, agora estou pronta. Se n�o
pode perder tempo agora, basta dizer. - Seus olhos brilharam. - Estou acostumada a ser rejeitada.
- N�o � uma quest�o de tempo...
- Bem, ent�o... - Afastou-se para arrumar a cama. - Voc� prefere as cortinas abertas ou fechadas? Para mim, tanto faz.
- Deixe essas malditas cortinas! - O modo cuidadoso como ela dobrava as cobertas atingiu-o como sempre. O est�mago contraiu-se sob as garras do desejo. - N�o
vamos fazer nada disso.
- Ent�o, voc� n�o me deseja. - Quando se endireitou, a blusa se abriu, dando a ele uma torturante vis�o da pele p�lida e do impec�vel algod�o branco.
- Voc� est� me matando - ele murmurou.
- �timo. Vou deix�-lo morrer em paz. - Com a cabe�a erguida, marchou at� a porta. Num gesto r�pido com as m�os, ele a manteve fechada.
- Voc� n�o vai a lugar algum antes de me falar o que est� acontecendo.
- Nada, parece, ao menos com voc�. - Encolheu-se contra a porta, esquecendo-se agora de controlar a respira��o para manter a voz livre da dor que a desarticulava.
- Com certeza deve haver um homem em algum lugar que a qualquer momento aparecer� para me proporcionar prazer.
Ele mostrou os dentes.
- Voc� est� me aborrecendo.
- Ah, � mesmo, que pena! Mil desculpas. � uma pena que eu tenha incomodado voc�. Apenas achei que voc� cumpriria o que disse. O problema sou eu, n�o �? - murmurou,
as l�grimas brilhando nos olhos. - Estou sempre acreditando.
Teria de lidar com as l�grimas, Gray pensou, ou com qualquer crise emocional por que ela estivesse passando, sem toc�-la.
- O que aconteceu?
- Descobri. - Os olhos n�o eram frios agora, mas devastados e desesperados. - Descobri que nunca houve um homem que tivesse me amado. Nunca me amou, realmente.
E que minha pr�pria m�e mentiu, mentiu odiosamente, para afastar de mim at� mesmo aquela pequena chance de felicidade. Ela disse a ele que eu havia dormido com Murphy,
contou isso a ele, e que eu podia estar gr�vida dele. Como poderia casar comigo acreditando nisso? Como ele p�de acreditar nisso, se me amava?
- Pare um instante. - Ele esperou que a torrente de palavras dela fizesse sentido em sua cabe�a. - Est� dizendo que sua m�e disse ao cara que ia casar com
voc�, esse Rory, que voc� tinha feito sexo com Murphy e podia estar gr�vida?
- Ela disse isso a ele para eu n�o sair de casa. - Inclinando-se para tr�s, fechou os olhos. - Esta mesma casa, como era ent�o. E ele acreditou. Acreditou
que eu pudesse ter feito aquilo, acreditou, ent�o nem chegou a me perguntar se era verdade. S� disse que n�o me queria e se foi. E todo esse tempo, Maggie e Murphy
sabiam e esconderam isso de mim.
V� com calma, Gray avisou a si mesmo. Areia movedi�a emocional
- Escute, estou fora dessa situa��o, e diria, como um observador profissional, que sua irm� e Murphy ficaram de boca fechada para evitar que voc� sofresse
mais do que j� estava sofrendo.
- Era minha vida, n�o era? Voc� sabe o que � n�o saber por que n�o � desejado, passar a vida apenas sabendo que n�o � desejado, mas sem saber por qu�?
Sim, ele sabia, muito bem. Mas imaginou que esta n�o era a resposta que ela desejava.
- Ele n�o merecia voc�. Isto devia lhe dar alguma satisfa��o.
- N�o d�. N�o agora. Achei que voc� me mostraria.
Recuou cautelosamente, enquanto o ar lhe bloqueava os pulm�es. Uma linda mulher, desde o primeiro instante. Inocente. Oferecendo-se.
- Voc� est� perturbada. - Esfor�ou-se por falar com firmeza. - N�o est� pensando com clareza. E tanto quanto isto me fa�a sofrer, h� regras.
- N�o quero desculpas.
- Voc� quer um substituto. - A viol�ncia abrupta da afirmativa surpreendeu os dois. N�o percebeu que aquele germezinho estava em sua cabe�a. Mas o expulsou,
enquanto crescia. - N�o sou nenhum duble para um desgra�ado que desprezou voc� dez anos atr�s. O passado j� era, entendeu? Ent�o, bem-vinda � realidade. Quando levo
uma mulher para a cama, ela vai pensar em mim, s� em mim.
A pouca cor que tinha voltado ao rosto dela desapareceu.
- Sinto muito. N�o quis dizer isso, n�o pretendia que fosse assim.
- � exatamente o que parece, porque � exatamente o que �. Recomponha-se - ordenou, morrendo de medo que ela come�asse a chorar outra vez. - Quando souber o
que quer, me diga ent�o.
- Eu s�... precisava sentir que, de algum modo, voc� me deseja. Pensei... queria ter alguma coisa para lembrar. Apenas uma vez, saber como � ser tocada por
um homem de quem eu gostasse. - A cor voltou, a humilha��o tingindo-lhe as faces enquanto Gray a fitava. - N�o tem problema. Eu sinto muito por tudo isso.
Abriu a porta num rompante e desapareceu.
Sentia muito, Gray pensou, fitando o espa�o onde ela estivera. Podia at� sentir o ar vibrar no seu lugar.
Muito bom, cara, pensou desgostoso, enquanto come�ava a andar pelo quarto. �timo servi�o. Sempre ajuda bater em algu�m que est� por baixo.
Mas, droga! Ela fizera com que se sentisse como dissera a ela. Um substituto conveniente para um amor perdido. Estava infeliz por ela ter de enfrentar aquele
tipo de trai��o, aquele tipo de rejei��o. N�o havia nada que ele entendesse melhor. Mas ele conseguira se recuperar, n�o � verdade? Ela tamb�m conseguiria. Ela tamb�m.
Ela desejava ser tocada. Precisava apenas ser consolada. Com a cabe�a latejando, andou at� a janela e voltou. Ela o desejava... um pouco de compaix�o, um pouco
de compreens�o. Um pouco de sexo. E ele a tinha mandado embora.
Exatamente como o famoso Rory.
O que esperavam que ele fizesse? Como poderia t�-la levado para a cama, com toda aquela dor, medo e confus�o fervendo em torno dela? Ele n�o precisava das
complica��es de outras pessoas.
Ele n�o queria outras pessoas.
Ele queria ela.
Como se fizesse um juramento, encostou a cabe�a no vidro da janela. Poderia escapar daquilo tudo. Nunca tivera problemas para escapar de algo. Bastava sentar-se,
pegar os fios de sua hist�ria e mergulhar nela.
Ou... ou poderia tentar alguma coisa que talvez afugentasse a frustra��o do ar, para ambos.
O segundo impulso era mais atraente, muito mais atraente, embora bem mais perigoso. Caminhos seguros eram para covardes, disse a si mesmo. Pegando as chaves,
desceu as escadas e saiu da casa.
S
e havia alguma coisa que Gray sabia fazer com estilo, era criar cen�rios. Duas horas depois de ter sa�do de Blackthorn Cottage, estava de volta a seu quarto dando
os toques finais nos detalhes. N�o pensara muito depois do primeiro passo. Algumas vezes era mais s�bio - e certamente mais seguro - n�o demorar, imaginando como
a cena podia transcorrer ou o cap�tulo acabar.
Ap�s uma �ltima olhada no ambiente, balan�ou a cabe�a em tom de aprova��o e desceu as escadas para encontr�-la.
- Brianna.
Ela n�o se voltou da pia, onde meticulosamente cobria um bolo com glac� de chocolate. Estava mais calma agora, mas n�o menos envergonhada de seu comportamento.
Horrorizara-se mais de uma vez nas �ltimas duas horas pelo modo como se atirara para ele. Atirara-se, lembrava outra vez, e n�o fora aceita.
- Sim, o jantar est� pronto - disse calmamente. - Vai querer aqui embaixo?
- Preciso que voc� v� l� em cima.
- Tudo bem. - Era grande o al�vio por ele n�o pedir uma aconchegante refei��o na cozinha. - S� vou preparar uma bandeja para voc�.
- N�o. - Colocou a m�o no ombro dela, sentindo-se constrangido quando sentiu seus m�sculos tensos. - Preciso que voc� suba comigo.
Bem, teria de enfrent�-lo, mais cedo ou mais tarde. Secando cuidadosamente as m�os no avental, ela se virou. N�o percebeu qualquer condena��o no rosto dele
ou a raiva que atirara sobre ela antes. Mas isso n�o ajudava muito. - H� algum problema?
- Venha e voc� me dir�.
- Tudo bem.
Seguiu-o. Deveria desculpar-se outra vez? N�o tinha certeza. Melhor seria fingir que nada fora dito. Deixou escapar um suspiro quando se aproximaram do quarto
dele. Ah, s� esperava que n�o fosse nada, como o encanamento. A despesa, justo agora, iria...
Esqueceu-se do encanamento t�o logo entrou. Esqueceu tudo.
Havia velas colocadas em todos os lugares, a luz suave tremeluzin-do como ouro derretido contra o crep�sculo cinza do quarto. Flores emergiam de meia d�zia
de vasos, tulipas e rosas, fr�sias e lilases. Num balde de prata descansava uma garrafa de champanhe gelada, ainda fechada. M�sica vinha de algum lugar. Harpa. Ela
olhou, confusa, para o micro system sobre a escrivaninha.
- Gosto das cortinas abertas - ele disse.
Brianna cruzou as m�os sob o avental onde s� ela saberia que estavam tremendo.
- Por qu�?
- Porque a gente nunca sabe quando vai ter a luz da lua. Os l�bios dela se curvaram, muito levemente.
- N�o, quis dizer por que voc� fez tudo isto?
- Para fazer voc� sorrir. Dar a voc� tempo para decidir se � o que realmente quer. Para ajudar a persuadir voc� de que �.
- Teve tanto trabalho. - Os olhos deslizaram para a cama. Ent�o se voltaram nervosamente para o vaso de rosas. - N�o devia. Fiz voc� se sentir obrigado a isso.
- Por favor. N�o seja idiota. A escolha � sua. - Mas se aproximou dela, tirou o primeiro grampo de seus cabelos e deixou-o ao lado. - Quer que lhe mostre o
quanto a desejo?
- Eu...
- Achei que deveria mostrar, ao menos um pouquinho. - Tirou outro grampo, um terceiro, depois simplesmente enfiou as m�os entre os cabelos soltos. - Ent�o
voc� decide quanto quer dar.
A boca deslizou sobre a dela, carinhosa como ar, er�tica como pecado. Quando seus l�bios se abriram, ele deslizou a l�ngua entre eles, provocando a dela.
- Isto deve lhe dar uma id�ia. - Moveu os l�bios sobre seu queixo, subiu at� a t�mpora e voltou a mordiscar o canto da boca. - Diga que me quer, Brianna. Quero
ouvir voc� dizer isto.
- Quero. - N�o podia nem ouvir a pr�pria voz, apenas o rumor dela na garganta, onde a boca dele estava aninhada agora. - Desejo voc�. Gray, n�o consigo pensar.
Preciso...
- S� de mim. Voc� s� precisa de mim nesta noite. Eu s� preciso de voc�. - Seduzindo-a, deslizou as m�os suavemente pelas costas dela. - Deite-se comigo, Brianna.
- Ergueu-a no colo, embalando-a. - Quero levar voc� a tantos lugares...
Deitou-a na cama onde os len��is e a colcha tinham sido desdobrados como num convite. Os cabelos dela se espalharam como ouro em fogo sobre o linho claro,
suas ondas delicadas refletindo o brilho da luz dos candelabros. Em seus olhos transtornados a batalha entre d�vida e desejo.
O est�mago dele contra�a-se ao olhar para ela. De desejo, sim, mas tamb�m de medo.
Ele seria o seu primeiro. N�o importava o que acontecesse depois na vida dela, ela se lembraria daquela noite, e dele.
- N�o sei o que fazer. - Fechou os olhos, excitada, embara�ada, encantada.
- Eu sei. - Deitou-se ao lado dela. Mergulhou em sua boca mais uma vez. Ela tremia sob o corpo dele, o que fez com que um grande p�nico lhe desse um n� nas
entranhas. Se ele se movesse muito r�pido... E se se movesse muito lento... Para acalmar a ambos, separou os dedos dela, beijando-os um a um. - N�o tenha medo, Brianna.
N�o tenha medo de mim. N�o vou machucar voc�.
Mas ela estava com medo. E n�o apenas da dor que sabia que viria, junto com a perda da inoc�ncia. Estava com medo de n�o ser capaz de dar prazer e n�o conseguir
sentir a verdadeira realidade daquilo.
- Pense em mim... - murmurou, com um beijo ainda mais profundo, arrebatador. Se n�o fizesse nada mais al�m, jurou que exorcizaria o �ltimo fantasma do sofrimento
dela. - Pense em mim... -Quando repetiu isso, soube, de algum lugar escondido dentro dele, que precisava daquele momento tanto quanto ela.
T�o doce, ela pensou atordoada. Estranho que a boca de um homem pudesse ter um sabor assim t�o doce e ser t�o firme e macia ao mesmo tempo. Fascinada com o
gosto e a textura, percorreu os l�bios dele com a ponta da l�ngua e ouviu um ronronar calmo em resposta.
Um a um, seus m�sculos foram relaxando enquanto o sabor dele a inundava. E como era bom ser beijada assim, como se fosse durar para sempre. Como era bom sentir
o peso de seu corpo, as costas fortes, quando ousou deixar suas m�os correrem por elas.
Ele enrijeceu-se gemendo baixinho, quando as m�os hesitantes dela deslizaram por seus quadris. J� estava rijo e mexeu-se levemente, preocupado com o fato de
que pudesse assust�-la.
Lentamente, ordenou a si mesmo. Delicadamente.
Passou a al�a do avental sobre a cabe�a dela, desamarrou a da cintura e tirou-o. Os olhos dela se agitaram, os l�bios curvaram-se.
- Vai me beijar outra vez? - A voz era de mel, abafada agora, e quente. - Tudo se transforma em ouro, aos meus olhos, quando voc� me beija.
Encostou a cabe�a na dela e esperou um momento at� achar que podia fazer a gentileza que ela pedia. Ent�o tomou sua boca, engolindo o suspiro ador�vel e suave
que ela deixava escapar. Ela parecia dissolver-se embaixo dele, os tremores dando lugar � docilidade.
Nada mais sentia, a n�o ser a boca dele, aquela boca maravilhosa que festejava t�o suntuosamente na dela. Ent�o a m�o dele tocou sua garganta, como se testando
a velocidade do pulso que se agitou antes de ele cair sobre ela.
Ela n�o percebera que ele desabotoara sua blusa. Quando os dedos dele percorreram o suave volume do seio sob o suti�, os olhos dela se abriram. Os dele estavam
presos nos dela, com uma concentra��o t�o intensa que trouxe os tremores de volta. Ela come�ou a protestar, alguns murm�rios de recusa, mas o toque dele era t�o
sedutor, n�o mais que um afago dos dedos em sua carne.
Ela percebeu que n�o era nada assustador. Era delicado e t�o doce como o beijo. Quando ela ia relaxar novamente, os dedos sagazes deslizaram sob o algod�o
e encontraram o ponto sens�vel.
O primeiro suspiro dela rasgou-o por dentro - aquele som, a sensa��o de despertar do corpo dela, arquejando, em surpresa e prazer. Ele apenas a tocara, pensou,
enquanto seu sangue palpitava. Ela n�o tinha id�ia de quanto mais existia.
Deus, ele estava desesperado para lhe mostrar tudo.
- Relaxe. - Ele a beijou uma, duas vezes, enquanto os dedos continuavam a despert�-la, e a m�o livre dele explorando para vencer a barreira. - Apenas sinta.
N�o tinha escolha. As sensa��es a atravessaram, setas fininhas de prazer e de choque. A boca dele engolia os suspiros estrangulados, enquanto ele lhe tirava
as roupas, deixando-a nua at� a cintura.
- Deus, voc� � t�o linda! - Sua primeira vis�o daquela pele branca, os seios pequenos que cabiam t�o perfeitamente nas palmas das m�os dele quase o anularam.
Incapaz de resistir, baixou a cabe�a e os provou.
Ela gemeu, longa, profunda, roucamente. Os movimentos do corpo dela sob o dele eram puro instinto, e n�o projetados para deliberadamente dominar seu controle.
Ent�o ele a satisfez, gentilmente, e encontrou seu pr�prio prazer nascendo do dela.
A boca dele era quente. O ar estava bastante abafado. Cada vez que ele a puxava, empurrava, flu�a, havia uma resposta agitada na boca do est�mago dela. Uma
agita��o que crescia e crescia como alguma coisa perto demais da dor, perto demais do prazer, para separ�-los.
Ele sussurrava palavras docemente ador�veis que coloriam sua imagina��o como um arco-�ris. N�o importava o que dizia, teria dito a ele se pudesse. Nada importava,
desde que ele nunca, nunca parasse de toc�-la.
Tirou a pr�pria camisa pela cabe�a, ansiando por sentir carne contra carne. Quando se abaixou outra vez, ela murmurou algo, lan�ando os bra�os em torno dele.
Apenas suspirou de novo, quando a boca dele deslizou mais para baixo, pelas costas, pelas costelas. Sua pele esquentava, os m�sculos pulsando e tremendo sob
os l�bios e as m�os dele. Ele ent�o percebeu que ela estava perdida no t�nel escuro das sensa��es.
Cuidadosamente afrouxou a cal�a dela, expondo a carne nova, lentamente, explorando-a suavemente. Quando seus quadris se arquearam uma vez em inocente concord�ncia,
ele cerrou os dentes e lutou contra o desejo cortante de possu�-la, apenas possu�-la e saciar o desejo de seu corpo tenso.
As unhas dela se cravaram em suas costas, provocando um gemido de deleite secreto dele, enquanto as m�os desciam nos quadris dela. Percebeu que ela ficou tensa
outra vez e suplicou por for�as, a qualquer deus que o estivesse ouvindo.
- N�o at� que voc� esteja pronta - murmurou e voltou a pressionar pacientemente os l�bios sobre os dela. - Prometo. Mas quero ver voc�. Toda voc�.
Endireitou-se, ajoelhando. Havia medo nos olhos dela outra vez, embora seu corpo estivesse tremendo em desejos sufocados. Ele n�o conseguia firmar as m�os
ou a voz, mas as mantinha suaves.
- Quero tocar voc� toda. - Os olhos dele fitando os dela, enquanto ele tirava o jeans. - Toda.
Quando ele se despiu, o olhar dela foi atra�do inexoravelmente para baixo. E o medo dobrou. Sabia o que iria acontecer. Afinal, era filha de um fazendeiro,
ainda que um fazendeiro pobre. Haveria dor, sangue e...
- Gray...
- Sua pele � t�o suave. - Olhando-a, correu um dedo por sua coxa. - Ficava pensando como voc� seria, mas voc� � muito mais atraente do que imaginei.
Insegura, ela cruzou um bra�o sobre o seio. Ele deixou o bra�o l� e voltou de onde come�ara. Com beijos leves, lentos, embriagantes. E ent�o as m�os cuidadosas,
pacientes, habilidosas, que sabiam onde uma mulher gostaria de ser tocada. Mesmo quando a pr�pria mulher n�o o soubesse. Desamparadamente ela cedeu sob o corpo dele
outra vez, a respira��o se agitando r�pido, em arquejos, quando as m�os dele correram sobre o est�mago em dire��o ao terr�vel, glorioso calor.
Sim, ele pensou, lutando contra a excita��o.
- Abra para mim. Deixe-me. Apenas me deixe...
Ela estava �mida e quente onde ele a apalpava. Um gemido escapou da garganta dele, quando ela se retorceu e tentou resistir.
- Vamos, Brianna. Deixe-me possu�-la. Apenas deixe.
Estava agarrada � beira de um penhasco muito alto somente pelas pontas dos dedos. O terror a dominara. Estava escorregando, sem controle. Havia muitas coisas
acontecendo em seu corpo ao mesmo tempo para a sua carne ardente suportar. As m�os dele eram como tochas contra ela, queimando, desnudando-a impiedosamente, at�
que n�o tivesse outra escolha a n�o ser lan�ar-se no abismo do desconhecido.
- Por favor - solu�ou. - Oh, meu Deus, por favor.
Ent�o o prazer, aquela torrente fluida, inundou-a, roubando-lhe o ar, a mente, a vis�o. Por um momento glorioso, ficou cega e surda a tudo, exceto a si mesma,
aos choques aveludados que a dominavam.
Entregou-se �s m�os dele, fazendo-o gemer como algu�m que est� morrendo. Ele estremeceu como ela. Ent�o, com o rosto enterrado na pele dela, levou-a �s alturas
outra vez.
Vencendo a cadeia do seu pr�prio controle, esperou que ela atingisse o m�ximo prazer.
- Abrace-me. Abrace-me - murmurou, tonto com o pr�prio desejo enquanto lutava para deslizar gentilmente dentro dela.
Ela era t�o pequena, t�o mi�da, t�o deliciosamente quente. Usou cada fragmento de for�a de vontade que lhe sobrara para n�o arremeter gulosamente dentro dela,
quando a sentiu pr�xima.
- S� um segundo - prometeu a ela. - S� um segundo, e ser� bom de novo.
Mas ele se enganara. Nunca deixou de ser bom. Sentiu-o romper a barreira de sua inoc�ncia, preench�-la com ele mesmo, e n�o sentiu nada, a n�o ser felicidade.
- Amo voc�. - Ela arqueou-se para encontr�-lo, para receb�-lo. Ele ouviu as palavras vagamente, sacudiu a cabe�a para neg�-las.
Mas ela estava abra�ada a ele, levando-o a um po�o de bem-querer. E ele, desamparado, p�de apenas se afogar.
Voltar no tempo e no espa�o foi, para Brianna, como deslizar sem peso por uma nuvem fininha. Suspirou, deixando a gravidade branda lev�-la, at� que estava
de novo na cama antiga e grande, a luz dos candelabros flamejando vermelho e ouro em suas p�lpebras fechadas e o verdadeiramente incr�vel prazer do peso de Gray
pressionando-a contra o colch�o.
Pensou vagamente que nenhum livro que lera, nenhuma conversa que ouvira de outras mulheres, nenhum sonho acordado secreto poderia ter lhe ensinado o quanto
era simplesmente bom ter o peso de um homem nu sobre o seu.
O corpo dele era uma cria��o maravilhosa, mais bonita do que ela imaginara. Os longos bra�os musculosos eram fortes o bastante para levantarem-na, gentis o
bastante para ampar�-la, como se fosse um ovo vazio, facilmente quebr�vel.
As m�os, palmas largas, dedos longos, sabiam inteligentemente onde tocar e afagar. E havia ainda os ombros largos, as costas ador�veis, os quadris estreitos
descendo at� as coxas rijas, �s pernas firmes.
Rijo. Sorriu para si mesma. N�o era um milagre que algo t�o rijo, t�o firme e forte pudesse ser coberto com uma pele lisa e suave?
Ah, sem d�vida, pensou, o corpo de um homem era uma coisa gloriosa.
Gray sabia que, se ela continuasse o tocando, ficaria completamente louco. Se parasse, certamente se queixaria.
Aquelas lindas m�os-de-servir-ch� deslizavam sobre ele, sussurrando toques, explorando e desenhando seu corpo, como se ela estivesse memorizando cada m�sculo
e cada curva.
Estava ainda dentro dela, n�o suportaria afastar-se. Sabia que devia, devia acalmar-se e dar a ela tempo para se recompor. Por mais que tivesse se esfor�ado
para n�o machuc�-la, sempre havia algum desconforto.
Al�m disso, ele estava t�o contente - ela parecia t�o contente. Toda a tens�o que vibrava dentro dele ante o pensamento de possu�-la pela primeira vez - a
primeira vez dela - tinha se transformado numa felicidade pregui�osa.
Quando aquelas car�cias excitaram-no outra vez, ele for�ou a mover-se, apoiando-se nos cotovelos para olhar para ela.
Estava sorrindo. Ele n�o podia dizer por que achava aquilo t�o afetuoso, t�o perfeitamente atraente. Os l�bios dela se curvaram, os olhos calorosamente verdes,
a pele suavemente ruborizada. Agora, com aquele primeiro fluxo de desejos e nervos acalmados, ele podia desfrutar o momento, as luzes, as sombras, o prazer ondulante
da estimula��o.
Pressionou os l�bios na testa dela, em suas faces, em sua boca.
- Minha linda Brianna.
- Foi lindo para mim. - A voz era abafada, ainda enrouquecida pela paix�o. - Voc� tornou tudo muito bonito para mim.
- Como est� se sentindo agora?
Ele perguntava, ela pensou, tanto por delicadeza quanto por curiosidade.
- Fraca - respondeu. E com um riso r�pido: - Invenc�vel. Por que ser� que uma coisa t�o natural como esta pode fazer tal diferen�a numa vida?
As sobrancelhas dele se uniram e se abrandaram outra vez. Responsabilidade, pensou, isto era responsabilidade dele. Teve de lembrar-se que ela era uma mulher
adulta, e a escolha tinha sido dela.
- Sente-se confort�vel com esta diferen�a? Ela sorriu lindamente, a m�o tocando seu rosto.
- Esperei tanto por voc�, Gray.
O r�pido sinal de defesa interior acendeu-se. Mesmo impregnado dela, ardente, maldi��o!, ainda meio excitado, ele acendeu. V� com calma, advertiu uma parte
fria e controlada de sua mente. Alerta: Intimidade � Vista.
Ela viu a mudan�a nos olhos dele, um sutil mas perceptivo distanciamento, mesmo quando levou sua m�o ao rosto dele, virou-a para que os l�bios lhe pressionassem
a palma.
- Estou esmagando voc�.
Ela queria dizer "N�o, fique", mas ele j� sa�a dali.
- N�o tomamos o champanhe. - � vontade com a nudez, rolou para fora da cama. - Por que n�o toma um banho enquanto abro a garrafa?
Ela sentiu-se subitamente estranha e desconfort�vel, onde se sentira apenas natural com ele em cima e dentro dela. Agora tateava os len��is desajeitadamente.
- O len�ol - come�ou a falar, mas logo se calou, enrubescida. Sabia que estava manchado com sua inoc�ncia.
- Cuidarei disso. - Vendo-a enrubescer ainda mais, aproximou-se, compreensivo, da cama novamente e tomou o queixo dela entre as m�os. - Posso trocar os len��is,
Brie. E mesmo se n�o soubesse como antes, j� teria aprendido observando voc�. - A boca ro�ou a dela, a voz tornou-se mais rouca: - Sabe quantas vezes fiquei louco
s� de olhar voc� alisar e prender meus len��is?
- N�o. - Havia um lampejo de prazer e desejo. - Verdade? Ele apenas riu e encostou a testa na dela.
- Que boa a��o maravilhosa eu fiz para merecer isto? Conseguir voc�? - Recuou, mas seus olhos brilhavam outra vez, fazendo o cora��o dela bater lenta e pesadamente
contra as costelas. - V� tomar seu banho. Estou querendo fazer amor com voc�, de novo - falou, for�ando um sotaque que fez os l�bios dela se curvarem. - Se voc�
quiser.
- Quero sim. - Inspirou profundamente, preparando-se para levantar nua da cama. - Quero muito. N�o vou demorar.
Quando ela entrou no banheiro, ele suspirou profundamente. Para se equilibrar, disse a si mesmo.
Nunca tivera algu�m como ela. N�o era s� por nunca ter experimentado a inoc�ncia antes, e isso j� era muito. Mas ela era �nica para ele. As rea��es dela, aquela
hesita��o e avidez duelando entre si. Com a absoluta confian�a dela brilhando acima de tudo.
"Eu amo voc�", ela dissera.
N�o valia a pena pensar nisso. Na maioria dos casos, mulheres tendem a romantizar, misturar sexo com emo��es. Certamente uma mulher que experimentava sexo
pela primeira vez estaria inclinada a misturar desejo com amor. Mulheres usavam palavras e as exigiam. Sabia disso. Por isso, era muito cuidadoso quando escolhia
as suas.
Mas alguma coisa tinha jorrado dentro dele quando ela sussurrou aquela frase exagerada e mal empregada. Calor e desejo e, por um breve instante, s� uma batida
do cora��o, um desejo desesperado de acreditar. E de fazer eco �s suas palavras.
Sabia que, por mais que estivesse disposto a fazer tudo o que pudesse para n�o mago�-la, tudo para faz�-la feliz enquanto estivessem juntos, havia limites
para o que poderia dar a ela. Para qualquer um.
Aproveite o momento, lembrou a si mesmo. Aquilo era tudo. Esperava que pudesse ensin�-la a aproveitar os momentos tamb�m.
Sentiu-se estranha enquanto enrolava a toalha em volta do corpo, ap�s o banho. Diferente. Era algo que jamais poderia ser explicado a um homem, sup�s. Eles
n�o perdiam nada quando se entregavam pela primeira vez. N�o havia nada que se dilacerasse dentro deles pr�prios para receber o amor. Mas n�o se lembrava da dor,
nem a ard�ncia entre as coxas a fazia pensar na viol�ncia da invas�o. Era na uni�o que pensava. A doce e c�ndida liga��o do acasalamento.
Olhou-se no espelho emba�ado. Parecia quente, concluiu. Claro que era o mesmo rosto que ela olhara vezes incont�veis, em incont�veis espelhos. Mas n�o havia
ali uma ternura que nunca observara antes? Nos olhos, em torno da boca? O amor fizera isto. O amor que levava no cora��o, o amor que provara pela primeira vez em
seu corpo.
Talvez fosse apenas na primeira vez que uma mulher se sentisse t�o dona de si mesma, t�o despida de tudo, exceto corpo e alma. E talvez, por ela ser mais velha
do que a maioria, o momento fosse assim t�o mais avassalador e precioso.
Ele a desejava. Brianna fechou os olhos para sentir melhor aquelas longas, lentas ondas de prazer. Um homem bonito, com uma mente bonita e um cora��o generoso
a desejava.
Toda a vida sonhara em encontr�-lo. Agora o tinha.
Entrou no quarto e o viu. Colocara len��is limpos e deixara uma de suas camisolas de flanela branca nos p�s da cama. Estava de p� agora, os jeans desabotoados
soltos na cintura, champanhe borbulhando nos copos, candelabros brilhando nos olhos.
- Estou querendo que voc� a vista - falou, quando ela olhou para a camisola limpa e fora de moda. - Desde a primeira noite que fico pensando em tir�-la de
voc�. Vi voc� descendo as escadas, um casti�al numa das m�os, um c�o enorme na outra, e minha cabe�a come�ou a girar.
Ela segurou uma manga. Quanto desejou que fosse seda ou renda, ou alguma coisa que fizesse o sangue de um homem esquentar.
- N�o � nada muito sedutora.
- Est� enganada.
Como n�o tinha outra coisa e aquilo parecia agrad�-lo, deslizou a camisola sobre a cabe�a, deixando a toalha cair enquanto a flanela descia. O gemido abafado
dele a fez sorrir, em meio � incerteza.
- Brianna, que vis�o voc� �! Deixe a toalha - falou, quando ela se abaixava para peg�-la. - Venha c�, por favor.
Caminhou at� ele, o meio-sorriso no rosto e os nervos amea�ando engoli-la, ao pegar o copo que ele lhe estendia. Bebericou-o, descobrindo que o espumante em
nada aliviava sua garganta seca. Ela pensou que ele olhava para ela do jeito que um tigre olharia para um cordeiro, antes de se lan�ar sobre ele.
- Voc� n�o jantou - ela disse.
- N�o. - N�o a assuste, idiota!, avisou a si mesmo e resistiu ao desejo de devor�-la. Sorveu um gole lento de champanhe, olhando-a, querendo-a. - Estava mesmo
pensando que gostaria. Pensando que poder�amos comer aqui em cima, juntos. Mas agora... - Come�ou a enrolar no dedo um fio �mido dos cabelos dela. - Voc� pode esperar?
Ent�o seria simples assim novamente, ela pensou. E novamente escolha dela.
- Posso esperar o jantar. - Mal podia fazer as palavras atravessarem o calor em sua garganta. - Mas n�o posso esperar voc�.
Caminhou, quase naturalmente, para os bra�os dele.
U
m cotovelo nas costelas fez Brianna despertar, ainda meio grogue. A primeira vis�o da manh�, depois de uma noite de amor, foi o ch�o. Se Gray tomasse conta de mais
um cent�metro de cama, ela estaria nele.
Levou apenas alguns segundos, e um arrepio no ar frio da manh�, para perceber que n�o tinha sequer uma pontinha do len�ol ou cobertor sobre ela.
Gray, ao contr�rio, estava confortavelmente coberto ao lado dela, como uma mariposa num casulo.
Esparramado no colch�o, dormia feito morto. Gostaria de poder dizer que a posi��o aconchegada dele e o cotovelo alojado pr�ximo ao seu rim eram de um namorado,
mas estavam mais para a avareza. Suas tentativas de puxar a coberta e empurr�-lo n�o o fizeram mexer-se um mil�metro sequer.
Ent�o � assim que funciona, pensou. O homem, obviamente, n�o tinha o h�bito de dividir.
Poderia ter ficado para lutar por sua parte - apenas por princ�pios -, mas o sol j� brilhava nas janelas. E havia muito a fazer.
Seus esfor�os para escapar da cama em sil�ncio, a fim de n�o perturb�-lo, se mostraram desnecess�rios. No minuto em que seu p� tocou o ch�o, ele grunhiu, mexendo-se
para se apossar de sua pequena parte do colch�o.
Contudo, os res�duos de romance permaneciam no quarto. As velas escavaram a pr�pria cera durante a noite. A garrafa de champanhe estava vazia no balde de prata
e as flores perfumavam o ar. Cortinas abertas deixavam passar os raios de sol, em vez de raios de luar. Ele tornara tudo perfeito para ela, ela lembrou. Soubera
como fazer tudo perfeito.
Os acontecimentos da manh� n�o foram exatamente como imaginara. No sono, ele n�o parecia um menino inocente dormindo, mas um homem bem satisfeito consigo mesmo.
N�o houve car�cias ou murm�rios de "bom-dia" para celebrar o primeiro despertar juntos, como amantes. Apenas um rosnar e um empurr�o para coloc�-la no lugar.
Os muitos humores de Grayson Thane, ela ponderou. Talvez ela mesma pudesse escrever um livro sobre esse assunto.
Divertida, jogou a descartada camisola sobre a cabe�a e desceu as escadas.
Nada como uma doce x�cara de ch� para esquentar o sangue, decidiu. E como o c�u parecia promissor, lavaria algumas roupas e penduraria na corda para pegar
o ar da manh�.
Imaginou que seria bom arejar a casa e foi abrindo as janelas, enquanto caminhava. Pela sala, viu Murphy debru�ado sob o cap� de seu carro.
Observou-o um momento, as emo��es confusas. A raiva que tinha sentido dele duelava com lealdade e afei��o. A raiva j� estava diminuindo quando saiu e caminhou
pelo jardim.
- N�o esperava ver voc� - ela disse.
- Falei que daria uma olhada.
Olhou para tr�s. Ela estava de camisola, os cabelos desgrenhados da noite, p�s descal�os. Ao contr�rio de Gray, o sangue dele n�o inflamou. Para Murphy, ela
era apenas Brianna, e levou alguns instantes tentando identificar algum sinal de mau humor ou perd�o. N�o notou nada. Ent�o voltou a seu trabalho.
- O arranque est� ruim - ele resmungou.
- J� me disseram isso.
-O motor est� doente como um cavalo velho. Posso levar algumas pe�as para consertar. Mas seria colocar dinheiro bom em cima de ruim.
-Se desse para ag�entar durante o ver�o at� o outono... -
Brianna se deteve, enquanto ele praguejava com um suspiro. Ele simplesmente n�o podia ser frio com ela. Tinha sido seu amigo por toda a vida. E sabia que fora
por amizade que agira daquele jeito.
- Murphy, desculpe.
Ele endireitou-se e voltou-se para ela, os olhos revelando tudo o que sentia.
- A mim tamb�m. Nunca quis fazer voc� sofrer, Brie. Deus � testemunha disso.
- Eu sei. - Aproximou-se e passou os bra�os em torno dele. - N�o devia ter sido t�o grosseira, Murphy. N�o com voc�. Nunca com voc�.
- Voc� me assustou, admito. - Passou os bra�os firmes em volta dela. - Passei a noite preocupado... com medo de que voc� n�o me perdoasse, e nunca mais assasse
bolinhos para mim.
Ela riu como ele esperara. Sacudindo a cabe�a, beijou-o sob a orelha.
- Fiquei muito brava, mais com o fato do que com voc�. Sei que fez aquilo por carinho. E Maggie tamb�m. - Segura, com a cabe�a no ombro dele, Brianna fechou
os olhos. - Mas minha m�e, Murphy, por que agiu daquele jeito?
- N�o sei dizer, Brie.
- Voc� n�o diria mesmo. - Ela se afastou para examinar o rosto dele. Um homem t�o bonito, pensou, com toda essa bondade interior. N�o era justo pedir a ele
para condenar ou defender sua m�e. E queria v�-lo sorrir novamente. - Conte-me, Rory o machucou muito?
Murphy fez um ar de esc�rnio, coisa de homem, Brianna pensou.
- M�os fracas � o que ele tem, e nenhum estilo. N�o teria me acertado o primeiro, se eu estivesse esperando.
Brie cutucou a bochecha com a l�ngua.
- N�o, tenho certeza. E voc� sangrou o nariz dele por mim, Murphy querido?
- Muito mais do que isso. Quando acabei com ele, seu nariz estava quebrado e deve ter perdido uns dois dentes.
- Voc� � meu her�i. - Beijou-o nas duas faces, levemente. - Sinto que ele tenha usado voc� assim.
Ele sacudiu os ombros.
- Fiquei contente de ter sido eu a socar aquele rosto, esta � a verdade. Nunca gostei daquele canalha.
- N�o - Brianna disse baixinho. - Nem voc� nem Maggie. Parece que voc�s dois viam alguma coisa que eu n�o via, ou fui eu que vi alguma coisa que n�o estava
l�.
- N�o pense mais nisso, Brie. Aconteceu anos atr�s. -J� ia tocar seu ombro, quando se lembrou da graxa nas m�os. - Volte agora ou vai ficar suja. O que est�
fazendo aqui fora descal�a?
- Fazendo as pazes com voc�. - Riu e olhou para a estrada ao ouvir o ronco de um carro. Quando avistou Maggie, cruzou as m�os, levantando a sobrancelha. -
Avisou a ela, n�o �? - resmungou para Murphy.
- Bem, achei que era melhor. - E ele tamb�m achava melhor, agora, recuar elegantemente, afastando-se da linha de fogo.
- Ent�o. - Maggie caminhou em volta das columbinas, os olhos no rosto de Brianna. - Acho que voc� quer falar comigo.
- Quero sim. Voc� n�o acha que eu tinha o direito de saber, Maggie?
- N�o eram os direitos que me preocupavam. Era voc�.
- Eu o amava. - Inspirou profundamente, em parte com al�vio ao perceber que toda aquela emo��o ficara no passado. - Eu o amei mais tempo do que teria amado,
se soubesse de tudo.
- Talvez seja verdade e sinto muito por isso. N�o pude contar a voc�. - Para desconforto dos tr�s, os olhos de Maggie se encheram de l�grimas. - Simplesmente
n�o pude. Voc� j� estava t�o machucada, t�o triste e perdida. - Apertando os l�bios, lutou contra as l�grimas.
- N�o sabia o que era melhor.
- Foi uma decis�o de n�s dois. - Murphy se juntou a Maggie.
- N�o havia como traz�-lo de volta para voc�, Brie.
- Acham que eu ia quer�-lo de volta? - Um brilho de raiva, mais ainda de orgulho, a percorreu, enquanto jogava os cabelos para tr�s. - Voc�s fazem t�o pouco
assim de mim? Ele acreditou no que ela dizia-N�o, eu n�o ia quer�-lo de volta. - Ela bufou e tentou respirar mais lentamente. - E estou pensando que, se eu estivesse
no seu lugar, Margaret Mary, teria feito o mesmo. Teria amado voc� o bastante para fazer o mesmo.
Esfregou as m�os e ent�o estendeu uma.
- Vamos entrar que vou preparar um ch�. Voc� j� tomou caf�, Murphy?
- Nada digno de ser mencionado.
- Chamo voc� quando estiver pronto, ent�o. - Tomando a m�o de Maggie, virou-se e viu Gray parado na porta. N�o havia como conter o rubor que tomou conta de
seu rosto. Uma combina��o de prazer e embara�o que fez seu cora��o disparar. Mas sua voz estava firme o bastante, e o aceno da cabe�a, natural. - Bom-dia, Grayson.
Ia come�ar a preparar o caf�.
Ent�o ela queria levar a coisa de forma calma e casual, Gray notou, retribuindo o bom-dia.
- Parece que vou ter companhia para comer. Bom-dia, Maggie. Maggie mediu-o de alto a baixo, enquanto caminhava com Brianna para a casa.
- Para voc� tamb�m, Gray. Voc� parece... descansado.
- O ar irland�s me faz bem. - Afastou-se para deix�-las passar.
- Vou ver o que Murphy est� fazendo.
Desceu pelo caminho e parou perto do capo aberto.
- Ent�o, qual o diagn�stico?
Murphy apoiou-se no carro e olhou para ele.
- Voc� poderia dizer que j� era.
Entendendo que ambos n�o falavam de motores, Gray enfiou os polegares nos bolsos da frente e balan�ou sobre os calcanhares.
- Ainda cuidando dela? N�o posso censur�-lo por isso, mas n�o sou Rory.
- Nunca achei que fosse. - Murphy co�ou o queixo, pensativo.
- Ela � corajosa, nossa Brie. Mas mesmo mulheres fortes podem ser machucadas se n�o forem tratadas com cuidado.
- N�o pretendo ser descuidado. - Ele ergueu uma sobrancelha.
- Pensando em me bater, Murphy?
-Ainda n�o. - E sorriu. - Gosto de voc�, Grayson. Espero n�o ser chamado depois para quebrar seus ossos.
- Isso vale para n�s dois. - Satisfeito, Gray olhou para o motor.
- Vai dar a esta coisa um enterro decente?
O suspiro de Murphy foi longo e sentido.
- Se pud�ssemos.
De acordo, inclinaram a cabe�a sob o cap�.
Na cozinha, Maggie esperava que o caf� perfumasse o ar e Con mastigava alegremente seu desjejum. Brianna vestira-se rapidamente e, j� de avental, cortava bacon.
- J� comecei tarde. E ent�o n�o vai dar tempo para preparar uns bolinhos frescos ou broas. Mas tenho bastante p�o.
Maggie sentou-se � mesa, sabendo que a irm� preferia que n�o ficasse no caminho.
- Voc� est� bem, Brianna?
- Por que n�o deveria estar? Vai querer salsichas tamb�m?
- Tanto faz. Brie... - Maggie enfiou a m�o nos cabelos. - Ele foi o seu primeiro, n�o foi? - Quando Brianna largou a faca, sem dizer nada, Maggie levantou-se
da mesa. - Acha que eu n�o saberia, s� de ver voc�s dois juntos? O jeito como ele olha para voc�. - Passava as m�os, distraidamente, sobre a pesada barriga enquanto
caminhava.
- O que voc� est� aparentando.
- Tenho uma faixa na testa dizendo "mulher deflorada"? - Brianna perguntou friamente.
- Droga, sabe que n�o � isso que estou dizendo. - Exasperada, Maggie parou para encarar a irm�. - Qualquer um com alguma perspic�cia pode ver o que h� entre
voc�s. - E a m�e delas tinha perspic�cia, Maggie pensou aborrecida. Maeve estaria de volta em poucos dias.
- N�o estou tentando interferir ou dar conselhos, se conselhos n�o s�o bem-vindos. S� quero saber... preciso saber se voc� est� bem.
Brianna sorriu e deixou os ombros relaxarem.
- Estou bem, Maggie. Ele foi maravilhoso comigo. Muito delicado e gentil. � um homem delicado e gentil.
Maggie tocou o rosto de Brianna, acariciou seus cabelos.
- Voc� est� apaixonada por ele.
- Sim.
- E ele?
-Ele est� acostumado a viver sozinho, indo e vindo quando quer, sem amarras.
Maggie balan�ou a cabe�a.
- E voc� pretende mudar isso?
Com um pequeno "humm" na garganta, Brianna voltou-se para o fog�o.
- N�o acha que posso?
- Acho que ele � um idiota, se n�o ama voc�. Mas mudar um homem � como andar no melado. Muito esfor�o para pequenos progressos.
- Bem, n�o seria tanto mud�-lo, mas deix�-lo escolher entre as op��es que existem. Posso lhe oferecer um lar, Maggie, se ele deixar. - Sacudiu a cabe�a. -
Oh, � muito cedo para pensar t�o longe. Ele me fez feliz. � o bastante por ora.
Maggie esperava que fosse verdade.
- Que vai fazer em rela��o � mam�e?
- No que se refere a Gray, n�o vou deix�-la estragar as coisas. - Os olhos de Brianna gelaram, enquanto se voltava para acrescentar cubos de tomate na panela.
- Quanto ao resto, n�o decidi ainda. Mas eu mesma vou resolver isso, Maggie. Voc� me entende?
- Entendo. - No oitavo m�s de gravidez, ela sentou-se novamente. - Tivemos not�cias do detetive de Nova York, ontem.
- Tiveram? Ele a encontrou?
- O neg�cio � mais complicado do que pensamos. Ele encontrou um irm�o, um policial aposentado, que ainda vive em Nova York.
- Bem, ent�o � um come�o, n�o �? - Ansiosa por mais, Brianna come�ou a bater a massa das panquecas.
- Receio que seja mais uma barreira. A princ�pio, o homem se recusou at� mesmo a admitir que tinha uma irm�. Quando o detetive pressionou... ele tinha c�pias
da certid�o de nascimento de Amanda e tudo... esse Dennis Dougherty disse que n�o tinha visto nem ouvido falar em Amanda por mais de vinte e cinco anos. Que, para
ele, ela n�o era sua irm�, desde que se tinha metido em problemas e fugido. N�o sabia para onde, nem queria saber.
- � triste para ele, n�o �? - Brianna murmurou. - E os pais dela? Os pais de Amanda?
- Os dois j� morreram. A m�e, no ano passado. H� uma irm� casada e morando no Oeste dos Estados Unidos. Ele falou com ela tamb�m, o detetive de Rogan, e, embora
ela parecesse ter um bom cora��o, n�o ajudou muito.
- Mas ela deve saber - Brianna protestou. - � claro que sabe como encontrar a pr�pria irm�.
- N�o � bem assim. Parece que houve uma confus�o na fam�lia quando Amanda anunciou que estava gr�vida e que n�o diria o nome do pai. - Maggie parou e apertou
os l�bios. - N�o sei se ela estava protegendo papai, a si mesma ou a crian�a. Mas, segundo a irm�, houve palavras �cidas de todos os lados. Eles t�m sangue irland�s
e v�em uma filha gr�vida e solteira como uma mancha no nome da fam�lia. Queriam que ela fosse embora, tivesse a crian�a e a abandonasse. Parece que ela se recusou
a fazer isso e simplesmente desapareceu. Se ela voltou a fazer contato com os pais outra vez, o irm�o n�o disse e a irm� n�o sabia de nada.
- Ent�o, n�o temos nada.
- Quase isso. Ele descobriu, o detetive, que ela visitou a Irlanda anos atr�s, com uma amiga. Agora ele est� tentando localiz�-la.
- Ent�o vamos ter paci�ncia. - Trouxe um bule de ch� para a mesa e franziu o rosto ao olhar para a irm�. - Voc� est� t�o p�lida.
- Estou s� cansada. Dormir n�o � t�o f�cil como era antes.
- Quando vai ao m�dico de novo?
- Hoje � tarde. - Maggie for�ou um sorriso, enquanto servia o ch�.
- Ent�o vou levar voc�. N�o pode ir dirigindo. Maggie suspirou.
- Voc� parece Rogan. Ele vai voltar da galeria para me levar.
- �timo. E voc� vai ficar aqui comigo, at� que ele chegue para lev�-la. - Mais preocupada do que contente, quando n�o ouviu nenhuma argumenta��o, Brianna foi
chamar os homens para o caf�.
* * *
Ela passou o dia feliz, paparicando Maggie, recebendo um casal americano que havia estado na pousada dois anos antes. Gray sa�ra com Murphy para ver as pe�as
do carro. O c�u estava claro, o ar quente. Logo que viu Maggie sair, segura com Rogan, Brianna dedicou-se por uma hora a cuidar de seu canteiro de ervas.
Len��is rec�m-lavados balan�avam na corda, m�sica vibrava atrav�s das janelas abertas, seus h�spedes desfrutavam um ch� com bolos na sala e o cachorro cochilava
numa r�stia de sol ao lado dela.
N�o poderia estar mais feliz.
As orelhas do c�o se eri�aram e ela levantou a cabe�a, quando ouviu o barulho de carros.
- � o caminh�o de Murphy - disse a Con, que j� estava de p�, abanando a cauda. - O outro n�o reconhe�o. Voc� acha que vamos ter mais um h�spede?
Satisfeita com tal possibilidade, Brianna levantou-se, limpou a terra do jardim do avental e se encaminhou para a casa. Con corria na frente, latindo alegre
em sauda��o.
Viu Gray e Murphy, os dois ostentando sorrisos bobos, quando o cachorro os recebeu como se fizesse dias, e n�o apenas horas, desde que tinham sa�do. Seus olhos
passaram pelo bonito seda azul, de �ltimo tipo, estacionado na frente do caminh�o de Murphy.
- Achei que tinha ouvido dois carros. - Olhou em volta, ansiosa. - Eles j� entraram?
- Quem? - Gray quis saber.
- As pessoas que estavam dirigindo esse carro. Tem alguma bagagem? Preciso preparar um ch�.
- Eu estava dirigindo - Gray disse. - E n�o me importaria de tomar um ch�.
- Voc� tem sorte, cara. - Murphy falou num suspiro. - N�o tenho tempo para ch� - continuou se preparando para sair. - Minhas vacas devem estar me procurando.
- Piscou os olhos para Gray, abanou a cabe�a e entrou no caminh�o.
- Ent�o, o que est� acontecendo? - Brianna perguntou, quando o caminh�o de Murphy voltava � estrada. - O que voc�s andaram aprontando? Por que voc� veio dirigindo
esse carro se j� tem o seu?
- Algu�m tinha que dirigir e Murphy n�o gosta de ningu�m atr�s do volante de seu caminh�o. O que acha dele? - Num gesto masculino, Gray deixou a m�o deslizar
pelo p�ra-lama do carro, t�o amorosamente como faria se fosse um ombro liso e sedoso.
- � lindo.
- Voa como um foguete. Quer ver o motor?
- Acho que n�o. - Ela franziu as sobrancelhas. - Enjoou do outro?
- Outro o qu�?
- Carro. - Ela riu, jogando os cabelos para tr�s. - O que voc� tem, Grayson?
- Por que n�o senta nele e d� uma experimentada? - Encorajado pelo riso dela, pegou-a pelo bra�o e empurrou-a para o lado do motorista. - Tem s� trinta mil
quil�metros rodados.
Murphy o tinha avisado de que trazer um carro novo seria t�o idiota como cuspir ao vento.
Querendo agrad�-lo, Brianna entrou no carro e colocou as m�os no volante.
- �timo. Parece mesmo com um carro.
- Mas voc� gosta dele? - Encostou os cotovelos na base da janela e sorriu para ela.
- � um �timo carro, Gray, e tenho certeza de que voc� vai adorar dirigi-lo.
- � seu.
- Meu? O que quer dizer com � seu?
- Sua lata-velha vai para o limbo das sucatas. Murphy e eu concordamos que n�o tinha conserto. Ent�o comprei este para voc�.
Ele ganiu quando ela escancarou a porta e o atingiu, proposital-mente, na canela.
- Pode levar de volta para o lugar de onde veio. - Sua voz soou amea�adoramente fria, enquanto ele esfregava a canela. - N�o estou em condi��es de comprar
um carro novo, e, quando estiver, vou escolher sozinha.
- Voc� n�o est� comprando nada. Eu estou comprando. Eu comprei. - Ele se endireitou e enfrentou o gelo com o que, ele tinha certeza, era um bom motivo. - Voc�
estava precisando de um transporte confi�vel e dei um jeito nisso. Deixe de ser cabe�a-dura.
-Cabe�a-dura, �? Voc� � que est� sendo bem arrogante, Grayson Thane. Sair e comprar um carro sem nem um "com sua permiss�o", N�o quero que tomem decis�es por
mim e n�o quero ser tratada como uma crian�a.
Ela queria gritar. Ele podia ver que ela lutava contra o �mpeto, tentando encobrir com uma dignidade g�lida que o fez querer sorrir. Sendo um homem inteligente,
ele manteve a express�o contida.
- � um presente, Brianna.
- Uma caixa de bombons � um presente.
- Caixa de bombons � lugar-comum - corrigiu-a e ent�o recuou. - Vamos apenas dizer que esta � minha vers�o de caixa de bombons. - Moveu-se espertamente, deixando-a
entre seu corpo e a lateral do carro. - Voc� quer me ver preocupado cada vez que vai � cidade?
- N�o h� por que se preocupar.
- Claro que h�. - Antes que ela pudesse escapar, deslizou os bra�os em torno dela. - Vejo voc� cambaleando pela estrada, s� com o volante na m�o.
- A culpa � da sua imagina��o. - Virou a cabe�a, mas os l�bios dele lhe ro�aram o pesco�o. - Pare com isso. Voc� n�o vai me enrolar desse jeito.
Ah, mas ele achava que iria.
- Voc� realmente tem umas cem libras para jogar fora numa causa perdida, minha pr�tica Brianna? E realmente quer pedir ao pobre Murphy para ficar remendando
aquele traste dia sim, dia n�o, s� para manter seu orgulho?
Ela come�ara a rosnar, mas ele cobriu firmemente os l�bios dela com os seus.
- Voc� sabe que n�o - ele murmurou. - � s� um objeto, Brianna. S� uma coisa.
A cabe�a dela come�ou a girar.
- N�o posso aceitar isso de voc�. E pare de me tocar. Estou com h�spedes na sala.
- Passei o dia todo esperando para tocar voc�. Na verdade, passei o dia todo esperando para lev�-la para a cama. Seu perfume � maravilhoso.
- � o alecrim do canteiro de ervas. Pare com isto. N�o consigo raciocinar.
- N�o raciocine, apenas me beije. S� uma vez.
Se sua cabe�a n�o estivesse rodando, poderia pensar melhor. Mas os l�bios dele j� estavam nos seus, e os seus j� cediam se entreabrindo. Receptivos.
Ele avan�ou aos poucos, aprofundando o beijo lentamente, saboreando a gradual excita��o dela, o delicado perfume de ervas que se desprendia das m�os que ela
levou ao rosto dele, a d�cil e quase relutante rendi��o do corpo dela junto ao seu.
Por um momento, ele esqueceu que a mudan�a tinha sido resultado de sua persuas�o e simplesmente desfrutou.
- Voc� tem uma boca maravilhosa, Brianna. - Mordiscou-a, deliciando-se. - Gostaria de saber como consegui viver longe disso por tanto tempo.
- Voc� est� tentando me distrair.
- Distra� voc�. E a mim. - Afastou-a um pouco, maravilhando-se ao ver que o que pretendera ser um beijo de brincadeira tinha deixado seu cora��o descompassado.
- Vamos esquecer todas as quest�es pr�ticas e outros motivos racionais que ia usar para convencer voc� a ficar com o maldito carro. Quero fazer isso por voc�. �
importante para mim. Ficaria feliz se aceitasse.
- N�o � justo apelar para o meu cora��o - ela murmurou.
Ela poderia manter-se firme diante das quest�es pr�ticas, ignorar os motivos racionais. Mas como recusar este calmo pedido ou escapar daquele olhar?
- Sei disso. - Praguejou impaciente. - Eu sei. Deveria sair de perto de voc� agora mesmo, Brianna. Fazer as malas e ir para longe. --Praguejou de novo, enquanto
ela mantinha os olhos parados. - Haver� uma hora em que voc�, provavelmente, vai desejar que eu tivesse feito isso.
- N�o, n�o haver�. - Apertou as m�os, com medo de que, se o tocasse, fosse capaz de agarr�-lo. - Por que comprou um carro para mim, Grayson?
- Porque voc� precisava - falou isso num impulso, e ent�o se reequilibrou. - Porque eu precisava fazer alguma coisa por voc�. N�o � uma despesa grande, Brie.
O dinheiro n�o � nada para mim.
- Ah, eu sei disso. Voc� est� nadando em libras, n�o �? Pensa que eu ligo para o seu maravilhoso dinheiro, Grayson? Pensa que gosto de voc� porque pode comprar
para mim um carro novo?
Ele abriu a boca e fechou-a, estranhamente humilhado.
- N�o, n�o penso nada disso. N�o acho que voc� d� a m�nima para isso.
- Bem, ent�o isto est� entendido. - Ele estava t�o carente, ela pensou, e nem mesmo sabia disso. O presente tinha sido muito mais para ele do que para ela.
E isto ela podia aceitar. Voltou-se para dar outra olhada no carro. - Voc� foi muito gentil e n�o fui nada delicada, nem no pensamento nem nas a��es.
Sentiu-se estranhamente como um menininho perdoado por alguma travessura.
- Ent�o, vai aceitar.
- Vou. - Voltou-se e beijou-o. - E muito obrigada. Ele abriu um sorriso.
- Murphy me deve cinco libras.
- Apostaram em mim, n�o �? - O divertimento soou na voz dela. Aquilo era bem t�pico.
- Id�ia dele.
- Humm. Bem, acho que vou entrar pra ver se meus h�spedes est�o bem. Ent�o podemos sair para dar uma volta.
Ele foi at� ela naquela noite, como esperara que fosse, e novamente na noite seguinte, enquanto os h�spedes dormiam tranq�ilamente no andar de cima. A pousada
estava lotada, como ela gostava. Quando sentou para fazer as contas, estava com a alma leve. Estava quase pronta para comprar o material a fim de fazer a estufa.
Ele a encontrou na pequena escrivaninha, enrolada no roup�o, o l�pis ro�ando os l�bios, olhos sonhadores.
- Pensando em mim? - murmurou, inclinando-se para mordiscar-lhe o pesco�o.
- Realmente estava pensando em exposi��o ao sol e vidro temperado.
- Mais um ponto para a estufa. - Ele conseguira chegar para beijar seu queixo quando seus olhos ca�ram sobre uma carta que ela abrira. - O que � isso? Resposta
daquela companhia de minera��o?
- Sim, finalmente. Eles conseguiram fechar as contas. Teremos mil libras quando entregarmos as a��es.
Ele recuou franzindo a testa.
- Mil? Por dez mil a��es? N�o parece certo.
Ela apenas sorriu e levantou-se para soltar os cabelos. Normalmente era um ritual que ele apreciava, mas, desta vez, apenas continuou a olhar os pap�is sobre
a mesa.
- Voc� n�o conheceu papai - disse a ele. - � muito mais do que eu esperava. Uma fortuna, realmente, j� que seus projetos sempre custavam mais do que rendiam.
- Um d�cimo de libra por a��o. - Pegou a carta. - Quanto disseram que ele pagou por isso?
- Metade disso, como pode ver. N�o me lembro de nada que ele tivesse feito que rendesse t�o bem. S� preciso dizer a Rogan para enviar-lhes os certificados.
- N�o.
- N�o? - Ela deteve-se com uma escova na m�o. - Por que n�o?
- Rogan investigou a companhia?
- N�o, ele j� tem que se preocupar com Maggie e com a galeria que abre na pr�xima semana. S� pedi a ele que guardasse os certificados.
- Deixe-me ligar para o meu corretor. Olhe, n�o faz mal a ningu�m dar uma olhada nos prospectos da companhia, obter alguma informa��o. Alguns dias n�o v�o
atrapalhar em nada, n�o acha?
- N�o, mas acho que � muito inc�modo para voc�.
- Basta dar um telefonema. Meu corretor adora ser incomodado.
- Largando a carta, aproximou-se dela e pegou a escova. - Deixe que eu fa�o isto. - Virou o rosto dela para o espelho e come�ou a passar a escova em seus cabelos.
- Exatamente como um quadro de Ticiano - murmurou. - Todas essas sombras dentro de sombras.
Ela ficou muito quieta, olhando-o no espelho. Surpreendia-se ao perceber o quanto aquilo era �ntimo, como era excitante v�-lo cuidar de seus cabelos. O modo
como os dedos dele passavam por entre os fios depois da escova. Muito mais que seu couro cabeludo come�ou a se arrepiar.
Ent�o os olhos dele se ergueram e encontraram os dela no espelho. A excita��o cresceu dentro dela quando viu a chama do desejo no olhar dele.
- N�o, n�o ainda. - Segurou-a como estava, quando come�ou a virar para ele. Largou a escova e afastou os cabelos de seu rosto.
- Veja - murmurou, e ent�o deslizou os dedos por seu corpo, at� o cinto do roup�o. -J� imaginou como parecemos juntos?
A id�ia era t�o chocante, t�o excitante, que ela n�o p�de falar. Olhou nos olhos dela, enquanto desamarrava o roup�o.
- Posso ver em minha mente. Algumas vezes, surge no meio do meu trabalho, mas � dif�cil de incomodar.
As m�os dele tocaram-lhe levemente os seios, fazendo-a tremer, antes que ele come�asse a desabotoar a camisola de gola alta.
Sem palavras, impotente, ela olhava aquelas m�os se movendo sobre ela, sentia o calor espalhando-se sob a pele, sobre ela. As pernas pareciam derreter. Ent�o
n�o teve escolha sen�o se apoiar contra ele. Como se estivesse num sonho, ela o viu puxar a camisola por seus ombros, apertar os l�bios sobre a pele nua.
Um tremor de prazer, uma chama de calor.
A respira��o se transformou num pequeno ru�do de satisfa��o quando a ponta da l�ngua dele provocou a curva de seu pesco�o.
Era t�o assombroso ver quanto sentir. Embora seus olhos se arregalassem, quando ele deslizou a camisola por sua cabe�a, ela n�o protestou. N�o conseguira.
Fitou com espanto a mulher no espelho. Ela mesma, pensou vagamente. Era ela que via, porque podia sentir aquele toque leve, devastador das m�os dele se curvando
para lhe tomar os seios.
- T�o branca. - A voz dele enrouquecera. - Como marfim, com pontas de p�talas num tom rosado. - Olhos escuros e intensos, ele pressionou os mamilos com os
polegares, fazendo-a tremer, ouvindo-a gemer.
Era magnificamente er�tico ver o corpo dela curvar-se para tr�s, sentir o peso leve se rendendo contra ele, enquanto ela cedia ao prazer.
Quase como que para experimentar, ele passou a m�o pelo tronco dela, sentindo cada m�sculo tremer sob a sua palma. O perfume dos cabelos flu�a pelos seus sentidos,
a seda daqueles longos membros brancos e a vis�o deles estremecendo no espelho.
Ele queria dar a ela como nunca quisera dar a algu�m antes. Acalmar e excitar, proteger e acender. E ela, pensou, pressionando os l�bios contra a sua garganta
novamente, era t�o perfeita, t�o absurdamente generosa.
Apenas um toque, ele pensou, ao seu toque toda aquela dignidade fria e maneiras calmas se derretiam.
- Brianna. - O ar estava voltando aos seus pulm�es, mas ele o prendeu, at� que os olhos dela, nublados, levantaram-se mais uma vez para o reflexo dos dele.
- Veja o que acontece quando a toco.
Ela ia come�ar a falar, mas a m�o dele deslizou suavemente para baixo, excitando-a, encontrando-a j� quente e �mida. Mesmo quando ela gritou o nome dele, em
parte num protesto, em parte por incredulidade, ele a acariciou, suavemente a princ�pio, depois com mais for�a. Mas seus olhos estavam ardentes de concentra��o.
Era assombroso, chocante, ver a pr�pria m�o possuindo-a ali e sentir aqueles lentos e longos golpes que provocavam em resposta uma vertigem. Seus pr�prios
olhos mostravam a ela que se movia contra ele agora, exigente, ansiosa, quase suplicante. Qualquer pensamento de mod�stia fora esquecido, abandonado, quando ela
levantou os bra�os, enla�ando-os no pesco�o dele, os quadris respondendo ao seu ritmo crescente.
E ela era como uma mariposa presa por uma lan�a de prazer, aguda e doce. Seu corpo ainda tremia quando ele a levantou, levando-a para a cama, para lhe mostrar
mais.
-A
inaugura��o � amanh� e ele est� me impedindo de ir � festa. - Com o queixo apoiado no punho fechado, Maggie olhava as costas de Brianna. - E ele ainda me enfiou
na sua cozinha, s� para voc� poder me vigiar.
Pacientemente, Brianna recheava os petit-fours que assara para o ch�. Tinha oito h�spedes, contando Gray, inclusive tr�s crian�as bem agitadas.
- Margareth Mary, o m�dico n�o falou para voc� ficar com os p�s para cima, e que, como o beb� j� encaixou, voc� pode ganh�-lo antes do que pensar
- Ele n�o sabe de nada. - Emburrada como se ela mesma fosse uma crian�a, Maggie fechou a cara. - Vou estar gr�vida pelo resto da vida. E se Sweeney pensa que
vai me deixar fora da inaugura��o, amanh�, est� muito enganado.
- Rogan nunca disse que pretende fazer isso. Ele s� n�o quer que voc� fique... - Ela quase disse "atrapalhando", mas tomou mais cuidado com as palavras. -
Exagerando hoje.
- � minha galeria tamb�m - resmungou. Suas costas a estavam torturando como uma dor de dente e sentira algumas fisgadas. S� umas fisgadas, tranq�ilizou-se.
Apenas dores, assegurou a si mesma. Provavelmente o cordeiro que comera � tarde.
- Claro que � sua tamb�m - Brianna procurou acalm�-la. - E todos n�s estaremos l�, amanh�, para a inaugura��o. Os an�ncios nos jornais estavam �timos. Vai
ser um grande sucesso, n�o vai?
Maggie s� grunhiu.
- Cad� o ianque?
- Trabalhando. Trancou-se no quarto para se defender da menininha alem� que toda hora entrava l�. - Sorriu. - Ele � um amor com crian�as. Ficou jogando com
ela ontem � noite. Ent�o ela se apaixonou por ele e n�o o deixa em paz.
- E voc� est� pensando que pai ador�vel ele ser�. Brianna ficou impass�vel.
- N�o disse isso. Mas seria mesmo. Devia ver como ele... - Parou de repente, quando ouviu abrir a porta da frente. - Se forem mais h�spedes, darei a eles meu
quarto e dormirei na sala.
- Voc� pode muito bem ir dormir na cama de Gray - Maggie comentou, e ent�o estremeceu quando reconheceu as vozes vindas do hall. - Ah, que maravilha! Tive
esperan�as de que ela mudasse de id�ia e decidisse ficar na Fran�a.
- Controle-se! - Brianna pediu, apanhando mais x�caras para o ch�.
- As viajantes do mundo est�o de volta - Lottie saudou alegremente, enquanto arrastava Maeve para a cozinha. - Ah, que lugar lindo voc�s t�m l�, Maggie. Como
um pal�cio. Que dias maravilhosos passamos.
- Fale s� por voc� - Maeve resmungou, deixando a bolsa sobre o balc�o. - Bandos de estrangeiros seminus andando pela praia.
- Alguns homens eram lindos. - Lottie riu. - E teve at� um vi�vo americano que andou flertando com Maeve.
- Tolice. - Maeve sacudiu a m�o, mas as faces se ruborizaram. - N�o dei a m�nima para aquele tipo. - Sentando, Maeve olhou atentamente para Maggie. Franziu
os l�bios, com isso disfar�ando a s�bita preocupa��o. - Voc� est� abatida. Logo ver� o que sofre uma mulher quando entra em trabalho de parto.
- Muit�ssimo obrigada.
- Ah, a menina � forte como um cavalo. - A voz de Lottie era firme, quando bateu levemente nas costas de Maggie. - E jovem o bastante para ter meia d�zia de
crian�as.
Maggie revirou os olhos e for�ou uma risada.
- N�o sei qual de voc�s me deprime mais.
- Foi bom terem voltado a tempo para a inaugura��o da galeria amanh� - Brianna, com muito tato, mudou de assunto, enquanto servia o ch�.
- Ah! Para que vou perder meu tempo num lugar de arte?
- N�o perderemos. - Lottie lan�ou-lhe um olhar carrancudo.
- Maeve, voc� sabe muito bem que falou que ficaria feliz em ver o trabalho de Maggie e todo o resto.
Maeve se mexeu, desconfort�vel.
- Eu disse que estava surpresa de haver tanto barulho por uns peda�os de vidro. - Franzindo as sobrancelhas, voltou-se para Brianna, antes que Lottie pudesse
embara��-la ainda mais. - Seu carro n�o est� a� na frente. Desintegrou, finalmente?
- Disseram-me que n�o tinha mais jeito. Estou com um novo, o azul ali fora.
- Um novo. - Maeve baixou a x�cara ruidosamente. - Desperdi�ando seu dinheiro num carro novo?
- O dinheiro � dela - Maggie come�ou acaloradamente, mas Brianna a calou com um olhar.
- S� � novo para mim. � um carro usado e n�o o comprei. - Ela tomou coragem: - Grayson comprou-o para mim.
Por um momento, houve sil�ncio. Lottie fitava o ch� com os l�bios apertados. Maggie preparou-se para saltar em defesa da irm�, lutando para ignorar a dor.
- Comprou para voc�? - A voz de Maeve era dura como pedra.
- Voc� aceitou isso de um homem? N�o se importa com o que as pessoas v�o pensar ou dizer?
- Imagino que as pessoas pensar�o que � um gesto generoso e dir�o o mesmo. - Parou de rechear os petit-fours e pegou a x�cara de ch�. Suas m�os logo estariam
tremendo. Ela odiava reconhecer isso.
- Elas v�o pensar � que voc� se vendeu para ele. E n�o se vendeu? Foi isso que fez?
- N�o. -A palavra foi frigidamente calma. - O carro � um presente e aceitei como tal. N�o tem nada a ver com o fato de sermos amantes.
Pronto!, pensou. Conseguira dizer. Sentia um aperto no est�mago, as m�os j� iam tremer, mas ela conseguira dizer aquilo.
Com os l�bios brancos, fuzilando-a com os olhos azuis, Maeve levantou-se num rompante.
- Voc� se prostituiu.
- N�o. Entreguei-me a um homem de quem gosto e que admiro. Entreguei-me pela primeira vez - falou, surpresa ao notar que as m�os permaneciam firmes. - Embora
a senhora tenha dito algo diferente.
O olhar de Maeve fixou-se em Maggie, cheio de amargura e raiva.
- N�o, eu n�o contei a ela - Maggie falou suficientemente calma. - Devia ter contado, mas n�o fiz isso.
- Pouco importa como descobri. - Brianna cruzou as m�os. Havia certa frieza dentro dela, um gelo terr�vel, mas iria at� o fim: - A senhora sabe que perdi qualquer
felicidade que poderia ter tido com Rory.
- Ele n�o era nada - Maeve retrucou. - Um filho de fazendeiro que nunca se tornaria um homem de verdade. Com ele, voc� s� teria uma casa cheia de filhos chorando.
- Eu queria filhos. - Uma dor atravessou o gelo. - Queria uma fam�lia e uma casa, mas nunca saberemos se eu teria encontrado isso com ele. A senhora se encarregou
de tudo e ainda envolveu um homem bom e honesto em suas mentiras. Foi para me salvar, m�e? Acho que n�o. Gostaria de poder pensar assim. Foi para me manter presa.
Quem cuidaria da senhora e desta casa se eu tivesse casado com Rory? Nunca saberemos sobre isso tamb�m.
- Fiz o que era melhor para voc�.
- O que era melhor para a senhora.
Como sentiu as pernas bambas, Maeve sentou-se outra vez.
- Ent�o � assim que me retribui. Entregando-se em pecado ao primeiro homem que agrada aos seus caprichos.
- Entregando-me com amor ao primeiro e �nico homem que me tocou.
- E o que far� quando ele fizer uma crian�a em sua barriga e for embora assoviando?
- Isto � assunto meu.
- Agora ela est� falando como voc�. - Enraivecida, Maeve voltou-se para Maggie. - Voc� a jogou contra mim.
- Voc� mesma fez isso.
- N�o meta Maggie nisso. - Num gesto protetor, Brianna colocou a m�o no ombro da irm�. - Isto � entre n�s, m�e.
- Alguma chance de conseguir... - Entusiasmado com a tarde de trabalho bem-sucedido, Gray irrompeu na cozinha, recuando ao se deparar com as visitas. Embora
percebesse a tens�o que dominava o ambiente, for�ou um sorriso amig�vel. - Sra. Concannon, Sra. Sullivan, � bom t�-las de volta.
Maeve cerrou os punhos.
- Seu canalha sem-vergonha, arder� no fogo do inferno ao lado de minha filha.
- Modere a l�ngua na minha casa. -A ordem r�spida de Brianna abalou-os mais do que a maldi��o amarga de Maeve. - Desculpe-me, Gray, pela indelicadeza de minha
m�e.
- N�o se desculpar� com ningu�m por mim.
- N�o - Gray concordou, sacudindo a cabe�a para Maeve. - N�o h� necessidade. Pode me dizer o que quiser, Sra. Concannon.
- Prometeu-lhe amor e casamento, uma vida de devo��o para lev�-la para a cama? Pensa que n�o sei o que os homens dizem para conseguir o que querem?
- Ele n�o me prometeu nada - Brianna come�ou, mas Gray a cortou com um olhar firme.
- N�o, n�o fiz promessas. N�o mentiria para Brianna. E tamb�m n�o a abandonaria, se me falassem algo a respeito dela de que eu n�o gostasse.
- Voc� tamb�m partilhou com ele segredos de fam�lia. - Maeve voltou-se para Brianna. - J� n�o basta condenar sua alma ao inferno?
- Vai ficar eternamente mandando suas filhas para o inferno? - Maggie desferiu, antes que Brianna pudesse falar. - Como n�o foi capaz de encontrar a felicidade,
precisa impedir que a gente encontre? Ela o ama. Se pudesse enxergar atrav�s de sua amargura, saberia disso, e s� isso importaria. Mas ela ficou � sua disposi��o
a vida toda, e a senhora n�o pode suportar a id�ia de que ela tenha encontrado algo, algu�m para ela.
- Maggie, j� chega - Brianna murmurou.
- N�o chega n�o. Voc� n�o vai dizer isso, nunca diria. Mas ela vai ouvir de mim. Ela me odeia desde o momento em que nasci e tem usado voc�. N�o somos filhas
para ela, mas uma esp�cie de penit�ncia e muleta. Alguma vez ela me desejou felicidade com Rogan e com o beb�?
- E por que deveria? - Maeve devolveu, os l�bios tr�mulos. - Para voc� jogar meus votos na minha cara? Voc� nunca me deu o amor a que uma m�e tem direito.
- Eu teria dado. - A respira��o de Maggie come�ou a ficar dif�cil, quando se levantou. - Deus sabe o quanto eu queria isso. E Brianna tentou. Alguma vez a
senhora ficou grata por tudo de que ela desistiu em prol do seu conforto? Em vez disso, arruinou toda a chance que ela teve de ter a casa e a fam�lia que queria.
Bem, n�o far� isso de novo, n�o desta vez. N�o vir� � sua casa falar desse jeito com ela ou com o homem que ela ama.
- Falo como quero para minha pr�pria carne e sangue.
- Parem, voc�s duas! - A voz de Brianna era cortante como um chicote. Estava p�lida, g�lida, e o tremor que conseguira controlar transformara-se em calafrios.
- Precisam estar sempre brigando desse jeito? N�o serei o porrete que usam para se agredir. Tenho h�spedes na sala - disse ofegante. - Prefiro que n�o sejam expostos
� infelicidade da minha fam�lia. Maggie, sente-se e se acalme.
- Brigue sozinha ent�o - Maggie falou furiosamente. - Vou embora. - Mal disse isso, uma fisgada a golpeou, fazendo com que se agarrasse ao encosto da cadeira.
- Maggie!!! - Assustada, Brianna segurou-a. - O que voc� est� sentindo? � o beb�?
- Foi s� uma pontada. - Mas logo se transformou numa dor monstruosa que a apavorou.
- Voc� est� p�lida! Sente-se. Vamos, sente-se e n�o discuta comigo. Lottie, enfermeira aposentada, levantou-se rapidamente.
- Quantas fisgadas voc� j� teve, querida?
- N�o sei. Uma e outra durante toda a tarde. - Deixou escapar um suspiro de al�vio quando a dor passou. - N�o � nada, juro. Ainda faltam duas semanas, ou quase
isso.
- O m�dico disse que poderia ser a qualquer hora, a partir de agora - Brianna lembrou-a.
- O que os m�dicos sabem?
- Verdade, verdade. - Sorrindo brandamente, Lottie rodeou a mesa e come�ou a massagear os ombros de Maggie. - Alguma outra dor, querida?
- As costas, um pouco - admitiu. - Isso me incomodou a tarde toda.
- Hummm. Bem, apenas respire calmamente e relaxe. N�o, nada de ch� para ela agora, Brianna - falou antes que Brianna pudesse servir. - Vamos ver daqui a pouco.
- N�o estou em trabalho de parto. - A cabe�a de Maggie ficou atordoada com a id�ia. - Foi o cordeiro, s� pode ter sido.
- Talvez seja. Brie, voc� n�o serviu ch� para o seu rapaz.
- Estou bem. - Gray olhava de uma mulher para outra, imaginando o que fazer. Recuar, decidiu, seria provavelmente o melhor para todos. -Acho que vou voltar
ao trabalho.
- Ah, eu adoro seus livros - Lottie falou alegremente. - Li dois deles durante as f�rias. Fico imaginando como voc� cria todas aquelas hist�rias e as escreve
com palavras t�o bonitas.
Tagarelou, prendendo sua aten��o e de todos, enquanto Maggie recuperava o ritmo da respira��o.
- Tudo bem, s� de quatro em quatro minutos, eu diria. Respire, querida, muito bem, garota. Brie, acho melhor chamar Rogan agora. Ele vai querer nos encontrar
no hospital.
- Oh... - Por um instante, Brianna n�o conseguiu raciocinar, muito menos se mover. - Vou ligar para o m�dico.
- Tudo vai ficar bem. - Lottie pegou a m�o de Maggie, segurando firme, enquanto Brianna sa�a correndo. - N�o se preocupe. Ajudei a trazer muitos beb�s ao mundo.
J� est� com a mala arrumada em casa, Maggie?
- Sim, est� no quarto. - Ela estremeceu quando uma contra��o passou. Estranho, sentia-se mais calma agora. - No closet.
- O rapaz vai traz�-la para voc�. N�o �, querido?
- Claro. - Adoraria. Isto o levaria para fora da casa, distante da terr�vel perspectiva do parto. - Vou agora mesmo.
- Est� tudo bem, Gray. - Dominada por uma nova calma, Maggie for�ou um sorriso. - N�o vou parir na mesa da cozinha.
- �timo. - Lan�ou-lhe um sorriso inseguro e escapuliu.
- Vou pegar seu casaco agora - Lottie falou para Maggie, lan�ando um olhar significativo para Maeve. - N�o esque�a a respira��o.
- N�o vou esquecer. Obrigada, Lottie. Vou ficar bem.
- Voc� est� apavorada. - Gentilmente, Lottie inclinou-se, segurando o rosto de Maggie com as duas m�os. - � natural. Mas o que vai acontecer tamb�m � natural.
Algo que s� uma mulher pode fazer. S� uma mulher pode entender. O bom Deus sabe que, se um homem tivesse de faz�-lo, haveria muito poucas pessoas no mundo.
Isto fez Maggie rir.
- S� estou um pouquinho apavorada. E n�o s� por causa da dor. Estou pensando no que fazer depois.
- Voc� saber�. Logo ser� m�e, Margaret Mary. Deus a aben�oe. Maggie fechou os olhos quando Lottie saiu. Podia sentir as mudan�as em seu corpo, a magnitude
delas. Imaginava as mudan�as em sua vida, a enormidade delas. Sim, logo seria m�e. O filho que ela e Rogan tinham gerado estaria em seus bra�os e n�o no �tero.
Amo voc�, pensou. Juro que s� lhe mostrarei amor.
A dor voltou trazendo um gemido em sua garganta. Apertou os olhos com mais for�a, concentrada na respira��o. Atrav�s da bruma da dor, sentiu uma m�o cobrir
a sua. Ao abrir os olhos, viu o rosto da m�e, l�grimas e, talvez, pela primeira vez em toda a vida, um verdadeiro entendimento.
- Desejo que seja feliz, Maggie - Maeve disse lentamente. - Com o seu beb�.
Ao menos por um instante, havia uma ponte sobre o precip�cio. Maggie virou a m�o e apertou a da m�e, palma com palma.
* * *
Quando Gray voltou correndo, segurando firmemente a mala, Lottie estava levando Maggie para o carro de Brianna. Todos os h�spedes estavam do lado de fora,
acenando.
- Ah, obrigada por ter sido t�o r�pido. - Brianna pegou a mala, ent�o olhou em volta, confusa. - Rogan est� indo para o hospital. Ele desligou antes que eu
pudesse dizer tchau. O m�dico disse para lev�-la direto para l�. Tenho de ir com ela.
- Claro que sim. Ela vai ficar bem.
- Sim, ela vai ficar bem. - Brianna mordiscou a unha do pole-gar. - Vou ter de deixar... todos os h�spedes.
- N�o se preocupe com as coisas aqui. Cuidarei de tudo.
- Voc� n�o cozinha.
- Levo todos para jantar fora. N�o se preocupe, Brie.
- N�o, � bobagem minha. Estou t�o confusa. Desculpe, Gray.
- N�o. - Mais firme, ele segurou o rosto dela em suas m�os. - N�o pense em nada disso agora. V� ajudar sua irm� a ter o beb�.
- Vou sim. Voc� pode ligar para a Sra. O'Malley, por favor? O n�mero est� na minha agenda. Ela vir� cuidar das coisas, at� que eu volte para casa. E se pudesse
avisar Murphy. Ele gostaria de saber. E...
- Brie, v�. Vou ligar para todo o condado. - Apesar do p�blico, deu-lhe um beijo r�pido e firme. - Pe�a a Rogan para me mandar um charuto.
- Sim, tudo bem, estou indo. - Correu para o carro.
Gray ficou para tr�s e a observou dirigindo com Lottie e Maeve. Fam�lia, pensou, com um sacudir de cabe�a e um tremor. Gra�as a Deus n�o tinha de se preocupar
com uma.
Mas se preocupava com ela. A tarde chegou ao fim e transformou-se em noite. A Sra. O'Malley veio, assumindo as tarefas da cozinha, apenas meia hora ap�s o
seu SOS. Batendo panelas, tagarelava alegremente sobre suas experi�ncias em trabalhos de parto, at� que Gray, nauseado, se recolheu ao quarto.
Melhorou quando Murphy apareceu e tomou um u�sque com ele, num brinde a Maggie e ao beb�.
Mas, quando a pousada foi se aquietando e as horas foram avan�ando, Gray n�o foi capaz de trabalhar ou dormir - duas atividades que sempre usara para escape.
Como ficou acordado, teve muito tempo para pensar. Quanto mais desejava evitar, a cena na cozinha mais e mais voltava � sua cabe�a. Que tipo de problema tinha
causado a Brianna simplesmente por desej�-la! N�o considerara a fam�lia nem a religi�o dela. Pensaria ela como a m�e?
Sentiu-se constrangido ao pensar em almas e eternas maldi��es. Qualquer coisa eterna o deixava desconfort�vel, e maldi��o certamente estava no topo da lista.
Ou teria Maggie exposto o pensamento de Brianna? Seria muito menos perturbador. Todo aquele discurso sobre amor. Do seu ponto de vista, amor podia ser t�o
perigoso quanto maldi��o e ele preferia se afastar de qualquer envolvimento pessoal.
Por que as pessoas n�o podiam manter as coisas simples?, pensava, enquanto andava pelo quarto de Brianna. Complica��es faziam parte da fic��o, mas, na realidade,
a vida era muito mais tranq�ila um dia depois do outro.
Mas era est�pido, admitiu, e incrivelmente ing�nuo acreditar que Brianna Concannon n�o era uma complica��o. N�o admitira que ela fosse �nica? Inquieto, abriu
a tampa de um vidrinho sobre a c�moda. E cheirou.
Somente desejava estar com ela - por ora, disse a si mesmo. Curtiam um ao outro, gostavam um do outro. Exatamente agora e neste exato lugar eles serviam um
ao outro muito bem.
� claro que poderia recuar a qualquer hora. � claro que poderia. Com um grunhido, voltou a tampar o vidrinho.
Mas o perfume dela permaneceu nele.
Ela n�o estava apaixonada por ele. Talvez pensasse que estava, porque era o primeiro. Era natural. E talvez, apenas talvez, estivesse um pouquinho mais envolvido
com ela do que j� estivera com algu�m mais. Porque era diferente de qualquer outra. Por isso era natural.
Ent�o, quando seu livro estivesse terminado, eles teriam terminado tudo tamb�m. Ele se mudaria. Levantando a cabe�a, olhou-se no espelho. Nenhuma surpresa.
Era o mesmo rosto. Se havia um pequeno brilho de p�nico nos olhos, preferiu ignorar.
Grayson Thane olhou para si mesmo. Para o homem que fizera do nada. Um homem com quem se sentia confort�vel. Um homem que se movia pela vida, como escolhera
se mover. Livre, sem bagagem, sem arrependimentos.
Havia lembran�as. Podia bloquear as desagrad�veis. Fazia isso havia anos. Um dia, pensou, olharia para tr�s e se lembraria de Brianna, e seria suficiente.
Por que, diabos, ela n�o ligava?
Olhou-se e se afastou do espelho antes que pudesse ver alguma coisa que preferia evitar. Ela n�o tinha por que telefonar, disse a si mesmo, bisbilhotando os
livros na estante. Era assunto dela. Assunto de fam�lia, e n�o tinha nada a ver com isso. Desejava n�o ter.
S� estava curioso a respeito de Maggie e do beb�. Se estava esperando, era apenas para satisfazer sua curiosidade.
Sentindo-se melhor, escolheu um livro, esticou-se na cama dela e come�ou a ler.
Brianna encontrou-o l�, �s tr�s da manh�. Cambaleou numa onda de alegria e cansa�o ao v�-lo dormindo sobre sua colcha, um livro aberto no peito. Sorriu tolamente
radiante, ela sabia. Mas esta era uma noite para tolices.
Despiu-se silenciosamente, dobrou as roupas sobre uma cadeira, deslizou dentro de uma camisola. No banheiro cont�guo, procurou aliviar o cansa�o do rosto.
Deparou-se com o pr�prio sorriso refletido no espelho e deu uma risada.
Voltando ao quarto, abaixou-se para acariciar Con, que estava enrolado num tapete aos p�s da cama. Com um suspiro, apagou a luz e deitou-se sem se importar
em retirar as cobertas.
Ele se virou instantaneamente, o bra�o passando por cima dela, o rosto se aninhando em seus cabelos.
- Brie. - A voz era pastosa de sono. - Senti falta de voc�.
- Estou de volta. - Ajeitou-se na cama, curvando-se para ele. - Durma.
- � dif�cil dormir sem voc�. Muitos sonhos antigos sem voc�.
- Shhhh. - Acariciou-o, deixando-se levar pelo sono. - Estou aqui.
Ele acordou completamente, num salto, piscando confuso.
- Brie. - Pigarreou e levantou-se. - Voc� voltou.
- Sim. Voc� dormiu lendo.
- Ah... sim. - Depois de esfregar as m�os no rosto, apertou os olhos para enxerg�-la na penumbra. - E Maggie?
- Est� bem, est� maravilhosa. Ah, foi t�o bonito, Gray. - Excitada com o assunto, sentou-se, abra�ou os joelhos. -Amaldi�oou Rogan, jurando vingan�as horrorosas.
Ele continuava beijando as m�os dela, dizendo que respirasse. Ent�o ela ria, dizendo que o amava e o amaldi�oava outra vez. Nunca vi um homem t�o nervoso, apavorado
e amoroso ao mesmo tempo.
Ela suspirou outra vez, sem nem notar que seu rosto estava �mido.
- Como era de esperar, havia muita conversa e confus�o. Toda vez que tentavam nos colocar para fora, Maggie amea�ava levantar-se e sair. "Minha fam�lia fica
ou vou com ela", ela dizia. Ent�o, ficamos. E foi t�o... maravilhoso.
Gray secou as l�grimas dela.
- Vai me contar o que ela teve afinal?
- Um menino. - Brianna fungou. - O menino mais lindo do mundo. Cabelos pretos, como os de Rogan. Uns cachinhos que parecem um halo. E os olhos da Maggie. S�o
azuis agora, � claro, mas o formato deles � de Maggie. E ele choramingava tanto, como se nos amaldi�oasse por t�-lo trazido a esta confus�o. Os punhos fechados.
Vai se chamar Liam. Liam Matthew Sweeney. Deixaram-me segur�-lo. - Descansou a cabe�a no ombro de Gray. - Ele olhou para mim.
- N�o vai me dizer que ele sorriu para voc�.
- N�o. - Mas ela sorriu. - N�o, s� olhou para mim, muito s�rio, como se quisesse descobrir o que devia fazer com toda aquela confus�o. Nunca segurei uma vida
t�o novinha antes. � diferente de tudo, de tudo o mais no mundo. - Aconchegou-se a ele. - Queria que voc� estivesse l�.
Para sua pr�pria surpresa, ele descobriu que desejara o mesmo.
- Bem, algu�m tinha de cuidar do rancho. A Sra. O'Malley veio voando.
- Deus a aben�oe. Vou ligar para ela amanh� para contar as novidades e agradecer.
- Ela n�o cozinha t�o bem quanto voc�.
- Voc� acha? - Riu para si mesma, deliciada. - Espero que voc� n�o tenha dito isso a ela.
- Sou o rei da diplomacia. Ent�o � isso. - Beijou a testa de Brianna. - Ela teve um menino. Qual o peso?
- Tr�s quilos e duzentos.
- E a hora... quer dizer, a que horas ele nasceu?
- Ah, era mais ou menos uma e meia.
- Droga, acho que o alem�o ganhou.
- Como?
- Fizemos um bol�o. Um bol�o do beb�. Sexo, peso, hora do nascimento. Tenho quase certeza de que Krause, o alem�o, foi quem chegou mais perto.
- Uma aposta, �? E de quem foi a id�ia? Gray passou a l�ngua pelos dentes.
- De Murphy. O homem aposta por tudo.
- E qual foi seu palpite?
- Menina, tr�s quilos e quatrocentos, meia-noite em ponto. - Beijou-a outra vez. - Cad� meu charuto?
- Rogan lhe mandou um bem legal, excelente. Est� na minha bolsa.
- Vou lev�-lo ao pub amanh�. Algu�m vai ter de oferecer uma rodada.
- Ah, pode apostar nisso tamb�m. - Ela soltou um pequeno suspiro, juntou os dedos. - Grayson, sobre esta tarde. Minha m�e.
- N�o precisa falar sobre isso. S� cheguei num mau momento.
- N�o foi s� isso, e � tolice fingir.
- Tudo bem. - Sabia que ela insistiria em explicar tudo, mas n�o toleraria ver o humor dela se estragar. - N�o vamos fingir. S� n�o vamos pensar nisso agora.
Falaremos depois, tanto quanto quiser. Esta noite � para celebrar, n�o acha?
O al�vio aqueceu-a. J� tinham sido muitas emo��es para um dia s�.
- Voc� est� certo.
- Aposto que n�o comeu nada.
- N�o.
- Que tal eu trazer um pouco do frango frio que sobrou do jantar? Comeremos na cama.
F
oi bem f�cil evitar assuntos s�rios na semana seguinte. Gray mergulhou no trabalho e Brianna se desdobrava entre os h�spedes e o sobrinho novo. Sempre que tinha
um minuto livre, encontrava uma desculpa para correr at� o chal� de Maggie e envolver-se com as fun��es da nova m�e e seu beb�. Maggie estava t�o encantada com seu
filho que quase n�o reclamou por perder a inaugura��o da galeria nova.
Gray teve de admitir que o garoto era um vencedor. Andara por perto do chal� uma ou duas vezes quando precisava esticar um pouco as pernas e clarear a mente.
Ao entardecer era a melhor hora, quando a luz apresentava aquela intensidade t�o especial da Irlanda, o ar era t�o l�mpido que podiam ser apreciados quil�metros
das colinas cor-de-esmeralda, o sol golpeando uma faixa estreita do rio a dist�ncia, fazendo-o refletir corno uma espada de prata.
Encontrou Rogan, metido num velho jeans e camiseta, agachado no jardim da frente, arrancando diligentemente as ervas daninhas.
Uma vis�o interessante, Gray pensou, de um homem que podia pagar um batalh�o de jardineiros.
-Al�, papai. - Com um largo sorriso, Gray se inclinou sobre o port�o.
Rogan virou-se sobre os saltos velhos das botas.
- Oi, cara, chegue mais. Fui expulso de casa. Mulheres. - Sacudiu a cabe�a em dire��o ao chal�. - Maggie, Brie, a irm� de Murphy, Kate, que veio Para uma visita,
e mais algumas senhoras da vila. Est�o conversando sobre amamenta��o e hist�rias de parto.
- H�-h�. - Gray lan�ou um olhar magoado � cabana enquanto atravessava o port�o. - Est� me parecendo que voc� � que fugiu, e n�o que foi expulso.
- Verdade. Por ser minoria, nem posso chegar perto de Liam. E Brianna insinuou que Maggie ainda n�o devia cuidar do jardim, que estava ficando cheio de mato.
Ent�o levantou a sobrancelha para mim naquele jeito delas. Logo entendi o recado. - Olhou ansiosamente para o chal�. - Que tal tentarmos entrar pela cozinha para
uma cerveja?
- Aqui fora � mais seguro. - Gray sentou-se, dobrando as pernas. Amistosamente, alcan�ou uma erva daninha e a arrancou. Pelo menos parecia mato. - Estava querendo
falar mesmo com voc�. Sobre aquelas a��es.
- Que a��es?
- As tais... das Minas Triquarter.
- Ah, sim. Esqueci-me completamente disso com todas essas coisas acontecendo. Brianna teve not�cias, n�o �?
- Ela recebeu not�cias de algu�m. - Gray co�ou o queixo. - Pedi ao meu corretor para dar uma pesquisada. � interessante.
- Est� pensando em investir?
-N�o, e nem poderia, se quisesse. N�o existe nenhuma Mina Triquarter, nem em Gales nem em qualquer outro lugar que ele localizasse. Rogan franziu o cenho.
- Quebraram?
-Parece que nunca existiu uma Minas Triquarter, o que significa que as a��es n�o t�m valor algum.
- Estranho, ent�o, que algu�m possa estar querendo pagar mil libras por elas. Seu detetive deve ter se enganado em alguma coisa. A companhia pode ser bem pequena,
n�o aparecer em nenhuma lista.
- Pensei nisso. E ele tamb�m. Ali�s, ele ficou t�o curioso resolveu investigar um pouco mais e at� ligou para o n�mero que estava no cabe�alho da carta.
- E ent�o?
- O n�mero est� desativado. Ocorreu-me que qualquer um pode ter uma folha de papel timbrado. Assim como qualquer um pode alugar uma caixa postal, como aquela
em Gales, para onde Brianna escreveu carta.
- � verdade. Mas n�o explica por que algu�m estaria querendo pagar por algo que n�o existe. - Rogan franziu o rosto olhando para longe. - Tenho alguns neg�cios
para ver em Dublin. Mesmo sabendo que Brie n�o me perdoar� por levar Maggie e Liam embora, precisamos partir no fim da semana. Ser�o poucos dias e eu mesmo poderei
dar uma olhada nisso, enquanto estiver l�.
- Acho que vale a pena uma viagem a Gales. - Gray encolheu os ombros quando Rogan olhou para ele. - Voc� est� meio sobrecarregado agora, mas eu n�o.
- Est� pensando em ir a Gales?
- Sempre quis brincar de detetive. E � muita coincid�ncia, n�o acha, que, logo depois de Brie ter encontrado as a��es e enviado a carta, a pousada tenha sido
invadida? - Deu de ombros outra vez. - Ganho a vida juntando coincid�ncias em enredos.
- E vai contar a Brianna o que pretende fazer?
- Em parte. Estou pensando em fazer uma viagem r�pida a Nova York. Brianna vai gostar de um fim de semana em Manhattan.
Agora as sobrancelhas de Rogan subiram.
- Imagino que sim, se conseguir convenc�-la a deixar a pousada durante a alta esta��o.
- Acho que consigo.
- E Nova York fica bem longe de Gales.
- N�o seria complicado desviar o caminho na volta para Clare. Seriam mais uns dias de viagem. Pensei em ir sozinho, mas, se precisar falar oficialmente com
algu�m, precisaria dela, de Maggie ou da m�e delas. - Sorriu de novo. - Acho que Brie � a melhor op��o.
- Quando voc�s iriam?
- Em uns dois dias.
- Voc� � bem apressado - Rogan comentou. - Acha que consegue que Brianna se mexa t�o r�pido assim?
-Vou precisar de muito charme. Estou economizando.
-Bem, se conseguir, mantenha contato comigo. Da minha parte, farei o que puder para investigar o assunto. Ah, e se precisar de muni��o extra, pode mencionar
que temos v�rios trabalhos de Maggie expostos na Galeria Worldwide de Nova York.
O som de risadas de mulher encheu o ar. Sa�ram da casa, todas rodeando Maggie, que tinha Liam na curva do bra�o. Houve despedidas e uma chuva de �ltimas paparica��es
no beb�, antes que as visitas pegassem as bicicletas e sa�ssem pedalando.
- Posso segur�-lo? - Gray estendeu os bra�os e pegou-o de Maggie. Sempre se divertia com o modo como Liam o olhava com seus solenes olhos azuis. - Ei, voc�
ainda n�o est� falando? Rogan, acho que j� � hora de o tirarmos das mulheres para lev�-lo ao pub para uma cerveja.
- Ele j� ganhou a cerveja dele desta noite, obrigada - Maggie informou. - Leite de m�e.
Gray afagou o queixo do beb�.
- O que � isso? Ele est� de vestido? Estas mulheres est�o fazendo de voc� um maricas, garoto!
- N�o � um vestido! - Brianna inclinou-se para beijar a cabe�a de Liam. - � um cueiro. Logo estar� usando cal�as. Rogan, voc� s� precisa esquentar aquele prato
que eu trouxe, quando quiser jantar. - Torceu a cara diante de sua tentativa de jardinagem. - N�o arrancou bem o mato. Precisa tirar as ra�zes.
Ele riu, beijando-a.
- Sim senhora.
Acenando com a m�o, tamb�m riu.
- Estou indo. Gray, devolva o beb�. Os Sweeney j� tiveram companhia demais por hoje. Vai colocar os p�s para cima? - perguntou a Maggie.
Vou. Obrigue-a a fazer o mesmo - disse a Gray. - H� dias que ela est� cuidando de duas casas. Gray pegue a m�o de Brianna. - Eu podia carregar voc� de volta.
- N�o seja bobo. Tenha cuidado. - Deixou a m�o na de Gray, enquanto atravessavam o jardim em dire��o � rua. - Ele j� cresceu tanto - murmurou. - E ele ri,
agora, para a gente. J� pensou o que se passa na cabe�a de um beb� quando est� olhando para voc�?
- Imagino que fica pensando se esta vida ser� muito diferente da anterior.
Surpresa, ela voltou a cabe�a.
- Voc� acredita mesmo nesse tipo de coisa? Jura?
- Claro. S� uma viagem n�o faz sentido para mim. Nunca ter�amos feito tudo s� numa tentativa. E, estando num lugar como este, voc� pode sentir o eco de almas
antigas cada vez que respira.
- Algumas vezes, tenho a impress�o de que j� andei por aqui antes. - Ela estendeu a m�o distraidamente, deixando-a passar sobre as flores vermelhas de f�csia
que ladeavam o caminho. - Bem aqui, mas em tempo diferente e num corpo diferente.
- Conte-me essa hist�ria.
- H� um sil�ncio no ar, uma paz. A estrada � somente um caminho, muito estreito, mas sem buracos. Posso sentir o cheiro de carv�o queimando. Estou cansada,
mas isto � bom, porque estou indo para casa, para algu�m. Algu�m me espera logo adiante. Muitas vezes, quase posso v�-lo, parado l�, acenando para mim.
Brie parou, sacudiu a cabe�a, diante de sua pr�pria tolice.
- � idiotice. S� imagina��o.
- N�o deve ser. - Ele se abaixou, arrancou uma flor silvestre ao lado da estrada e estendeu a ela. - No primeiro dia em que caminhei por aqui, n�o consegui
observar tudo o suficiente, com tempo. N�o era s� por ser algo novo. Era como se estivesse lembrando. - Num impulso, ele se virou, tomou-a nos bra�os e beijou-a.
Ent�o era isso, percebeu. De vez em quando, ao segur�-la, quando sua boca encontrava a dela, havia uma imagem disso em algum lugar de sua mente.
Como uma lembran�a.
Afastou aquela sensa��o. Era hora, decidiu, de come�ar a convenc�-la a fazer o que ele queria.
- Rogan falou que precisa voltar a Dublin por alguns dias.
Maggie e Liam ir�o com ele.
- Ah. - Sentiu o punhal agudo da tristeza, antes de demonstrar resigna��o. - Bem, eles tamb�m t�m uma vida l�. Acabo me esquecendo disso, quando est�o aqui.
- Vai sentir falta deles.
- Vou sim.
- Eu tamb�m preciso fazer uma viagenzinha.
- Uma viagem? - Agora ela tentou conter um estremecimento de p�nico. -Aonde vai?
- Nova York. A estr�ia, lembra?
- Seu filme. - For�ou um sorriso. - Ser� emocionante para voc�.
- Poderia ser, se voc� fosse comigo.
- Ir com voc�? - Ficou im�vel, olhando-o embasbacada. - A Nova York?
- Alguns dias. Tr�s ou quatro. - Tomou-a nos bra�os outra vez, ensaiando uns passos de valsa. - Podemos ficar no Plaza, como Eloise.
- Eloise? Quem...
- N�o importa. Explico depois. Iremos de Concorde. Chegaremos l� sem voc� sentir. Poderemos visitar a Worldwide - acrescentou como um argumento extra. - Vamos
fazer tudo o que um turista faz, comeremos num restaurante ridiculamente caro. Voc� pode conseguir alguns menus novos por l�.
- Mas n�o posso. De verdade. - Sua cabe�a girava e n�o conseguia acompanhar os c�rculos r�pidos da dan�a. -A pousada...
- A Sra. O'Malley disse que ficar� contente em ajudar. Quero voc� comigo, Brianna. O filme � importante, mas n�o vou achar nenhuma gra�a sem voc�. � um grande
momento para mim. N�o quero que seja apenas uma obriga��o.
- Mas Nova York...
E logo ali. Murphy ficar� contente de cuidar de Con, a Sra. O'Malley est� doida para tomar conta da pousada.
- Voc� j� falou com eles. - Tentou interromper a dan�a, mas Gray continuava a rodopi�-la.
- Claro. Sabia que voc� n�o iria se n�o acertasse tudo primeiro.
- N�o iria. E n�o posso...
- Fa�a isso por mim, Brianna. - Cruelmente, sacou sua melhor arma. A verdade: - Preciso de voc� l�.
Soltou um longo e lento suspiro.
- Grayson.
- Isto � um sim?
- Devo estar louca. - E soltou uma risada. - Sim.
Dois dias depois, Brianna estava a bordo do Concorde, atravessando o Atl�ntico. O cora��o estava preso na garganta. Andara assim desde que fechara a mala.
Estava indo para Nova York. Simplesmente isso! Deixara seu neg�cio nas m�os de outra pessoa. M�os capazes, tinha certeza, mas n�o as suas.
Concordara em ir a outro pa�s, atravessar um oceano inteiro com um homem de quem nem era parente, num avi�o bem menor do que imaginara.
Certamente tinha enlouquecido.
- Nervosa? - Tomou a m�o dela, levando-a aos l�bios.
- Gray, eu nunca devia ter feito isso. N�o sei o que deu em mim. - Claro que sabia. Ele estava dentro dela, de todos os modos poss�veis.
- Est� aborrecida com a rea��o de sua m�e?
Fora abomin�vel. Palavras duras, acusa��es, maldi��es. Mas Brianna sacudiu a cabe�a. J� se resignara aos sentimentos de Maeve por Gray e pela rela��o deles.
- S� fiz as malas e sa� - murmurou.
- Dif�cil. - Riu para ela. - Voc� fez, pelo menos, uma d�zia de listas, preparou comida para um m�s e estocou no freezer, deu faxina na pousada toda... - Parou
de repente, porque ela n�o parecia apenas nervosa. Parecia mesmo aterrorizada. - Amor, relaxe, n�o h� por que ter medo. Nova York n�o � t�o ruim como dizem.
N�o era Nova York. Brianna virou a cabe�a, enterrando-a em seu ombro. Era Gray. Mesmo que ele n�o percebesse isso, ela sabia que n�o havia ningu�m mais no
mundo por quem ela teria feito aquilo, exceto fam�lia. Mesmo que ele n�o percebesse, ela sabia que ele se tornara uma parte vital e complicada de sua vida, como
sua pr�pria carne e osso. - Fale-me sobre Eloise outra vez.
Ele manteve a m�o dela nas suas, acariciando-a.
- Ela � uma menininha que vive no Plaza com sua bab�, com Weenie, seu cachorro, e com Skipperdee, sua tartaruga.
Brianna sorriu, fechou os olhos e deixou-o contar a hist�ria.
Havia uma limusine esperando por eles no aeroporto. Gra�as a Rogan e Maggie, Brianna j� experimentara uma limusine antes e n�o se sentiu uma tola completa.
No assento luxuoso, encontrou um lindo buqu� com tr�s d�zias de rosas e uma garrafa de Dom Perignon gelada.
- Grayson. - Embevecida, ela afundou o rosto nos bot�es.
- Tudo o que tem a fazer � se divertir. - Estourou o champanhe, deixando-o borbulhar na borda. - E eu, seu anfitri�o, mostrarei a voc� tudo o que h� para ver
na Big Apple.
- Por que a chamam assim?
- N�o fa�o a menor id�ia. - Estendeu-lhe uma ta�a de champanhe e brindou com ela. - Voc� � a mulher mais bonita que j� conheci.
Ruborizada, enfiou a m�o por entre os cabelos despenteados pela viagem.
- Tenho certeza de que meu visual est� perfeito.
- N�o, voc� fica melhor em seu avental. - Quando ela riu, Grayson aproximou-se e mordiscou-lhe a orelha. - Na realidade, estava imaginando se voc� o vestiria
para mim, alguma vez.
- Eu o uso todos os dias.
- Bem... Falo de usar s� o avental. Ficou ainda mais vermelha e lan�ou um olhar distra�do � cabe�a do motorista atrav�s do vidro de seguran�a.
- Gray...
- Ok, cuidaremos das minhas lascivas fantasias mais tarde. O que quer fazer primeiro?
- Eu...- Ainda gaguejava s� com a id�ia de ficar na cozinha, usando nada al�m do avental.
- Compras - ele decidiu. - Depois de fazermos o check-in vou dar algumas liga��es e partiremos para as ruas.
- Vou ter que comprar alguns suvenires. E tem aquela loja de brinquedos, aquela famosa.
- F.A.O. Schwartz.
- Isto. Eles ter�o alguma coisa maravilhosa para Liam, n�o �?
- Com certeza. Mas estou pensando mais na Quinta e na Quarenta e Sete.
- O que � isto?
- Vou levar voc�.
Ele mal lhe deu tempo de olhar estupidamente a estrutura de pal�cio do hotel, o opulento sagu�o do Plaza com seu tapete vermelho e candelabros cintilantes,
os uniformes elegantes do pessoal, a magn�fica ornamenta��o de arranjos florais e as gloriosas vitrinas com displays expondo j�ias estonteantes.
Subiram no elevador at� o topo e ela entrou numa suntuosa su�te, t�o alta que se podia ver a luxuriante ilha verde do Central Park. Ele a arrastou para dentro
e, enquanto ela se refrescava um pouco da viagem, ele esperou, impaciente, para arrast�-la de novo para fora.
- Vamos caminhar. � a melhor maneira de ver Nova York. - Pegou a bolsa dela, cruzando a al�a do ombro at� a cintura. - Carregue-a assim, com a m�o nela. Seus
sapatos s�o confort�veis?
- Sim.
- Ent�o voc� est� pronta.
Ela ainda tentava recuperar o f�lego quando ele a puxou.
- � uma cidade maravilhosa na primavera - falou, enquanto come�avam a descer a Quinta.
- Tanta gente! - Ela olhou uma mulher passar correndo com seus leggings brilhando sob o short de seda. E outra, com cal�a de couro vermelho e um trio de argolas
balan�ando no l�bulo da orelha esquerda.
- Voc� gosta de gente.
Ela olhava um homem andando na frente, gritando ordens num celular.
- Sim.
Gray afastou-a do caminho de uma bicicleta ziguezagueante.
- Eu tamb�m. De vez em quando.
Ele apontava coisas para ela, prometia todo o tempo que quisesse na loja de brinquedos, divertia-se ao v�-la boquiaberta diante das vitrinas das lojas e da
incr�vel variedade de pessoas que andavam apressadas pela rua.
- Fui a Paris uma vez - disse a ele, sorrindo ao vendedor ambulante que anunciava cachorro-quente. - Para ver a exposi��o de Maggie l�. E achei que nunca na
minha vida veria nada t�o formid�vel. - Rindo, apertou a m�o dele. - Mas isto aqui �.
Estava adorando. O barulho constante e quase violento do tr�fego, as ofertas brilhantes dispostas numa loja ap�s a outra, as pessoas, absortas e correndo para
os seus pr�prios neg�cios, os pr�dios imensos brotando de todos os lugares e transformando as ruas em desfiladeiros.
- Aqui!
Brianna olhou para o pr�dio da esquina, cada vitrina derramando j�ias e pedras preciosas.
- Ah, o que � isso?
- � um bazar, querida. - Excitado s� pela alegria de estar ali, com ela, empurrou aporta. - Uma verdadeira orgia.
O ar de dentro da loja vibrava com as vozes. Compradores se misturavam por toda a loja examinando os mostru�rios. Viu diamantes, an�is e mais an�is brilhando
pelos vidros. Pedras coloridas como arco-�ris, o brilho sedutor do ouro.
- Meu Deus, que lugar! - Estava deliciada andando pelos corredores com ele. Parecia outro mundo, com todos aqueles compradores e vendedores discutindo o pre�o
de colares de rubis e brincos de safiras. Quantas hist�rias teria para contar quando voltasse a Clare!
Parou com Gray diante de uma vitrina e riu baixinho.
- Duvido que v� encontrar meus suvenires aqui!
- Eu vou. Acho que s�o p�rolas. -Acenou com um dedo para que a vendedora se mantivesse longe e estudou as pe�as. - P�rolas cairiam bem.
- Vai comprar um presente?
- Exatamente. Este. - Acenou para a funcion�ria. J� tinha formado uma imagem na cabe�a, e as tr�s voltas de p�rolas leitosas se encaixavam perfeitamente.
Escutou meio desatento, enquanto a funcion�ria apregoava a beleza e o valor do colar. Tradicional, ela dizia, simples e elegante. Um bom investimento. E, naturalmente,
uma pechincha.
Gray tomou o colar, testou o peso, estudou as pe�as resplandecentes.
- O que acha, Brianna?
- � maravilhosa.
- Claro que � - a vendedora disse, percebendo a possibilidade de venda, e n�o mera especula��o. - N�o encontrar� nada igual, n�o com este pre�o. Um visual
cl�ssico como este voc� pode usar com qualquer coisa, vestidos para a noite, roupas di�rias. Um cashmere leve blusa de seda. Um pretinho b�sico.
- Ela n�o fica bem de preto - Gray disse, olhando para Brianna - Azul-noite, tons past�is, verde-musgo, tudo bem.
Brianna sentiu um frio no est�mago enquanto a vendedora concordava com Gray.
- Sabe, voc� est� certo. Para a pele dela, o senhor pode escolher j�ias elegantes ou em tons past�is. N�o s�o todas as mulheres que podem usar os dois. Experimente.
Ver� por si mesma como caem lindamente.
- Gray, n�o. - Brianna recuou, esbarrando em outro comprador. - Voc� n�o pode. Isso � rid�culo.
- Benzinho - a vendedora interrompeu-a -, se um homem quer comprar uma gargantilha dessas para voc�, � rid�culo discutir. Com quarenta por cento de desconto
tamb�m.
- Ah, acho que voc� pode melhorar essa oferta - Gray falou displicentemente. N�o era pelo dinheiro, ele mal olhara a min�scula etiqueta presa discretamente
ao fecho de diamantes. Era por puro esporte. - Vamos ver como fica.
Brianna parou, olhos cheios de ang�stia, enquanto Gray fechava o colar no seu pesco�o. Caiu como uma luva sobre a blusa simples de algod�o.
- Voc� n�o pode comprar uma coisa dessas pra mim. - Recusava, embora os dedos formigassem de vontade de tocar as p�rolas.
- Claro que posso. - Inclinou-se, beijando-a de leve. - Me de esse prazer. - Endireitando-se, estudou-a por entre os olhos apertados. - Acho que � quase t�o
bonita quanto eu procurava. - Encarou a funcion�ria. - Qual � sua oferta?
- Querido, estou praticamente dando a voc�. Voc� j� viu que essas p�rolas combinam perfeitamente.
-
- Hum-hum. - Virou o pequeno espelho sobre a mesa para
Brianna. - D� uma olhada - sugeriu. - Fique com elas por uns minutos. Deixe-me ver aquele broche l�, o cora��o de diamantes.
- Ah, � uma pe�a linda. Tem um bom olho. - �gil, a vendedora alcan�ou-o e colocou sobre o balc�o, em uma almofada de veludo preto. - Vinte e quatro pedras
em corte brilhante. Topo de linha.
- Lindo. Brie, acha que Maggie gostaria disso? Um presente para
a nova mam�e.
- Ah. - Ela estava lutando para n�o deixar o queixo cair. Primeiro a vis�o de si mesma no espelho com as p�rolas em torno do pesco�o e agora a id�ia de que
Gray compraria brilhantes para a sua irm�. -Adoraria. Como poderia n�o adorar? Mas voc� n�o pode...
- O que voc� prop�e para eu levar os dois?
- Bem... - A vendedora tamborilou os dedos no peito. Com uma express�o sofrida, pegou uma calculadora e come�ou a fazer contas. O total que rabiscou num bloco
fez o cora��o de Brianna parar.
- Gray, por favor.
Ele apenas fez um gesto para que se calasse.
- Acho que voc� pode conseguir mais do que isso.
- Assim voc� vai acabar comigo - falou a mulher.
- Veja se voc� n�o consegue um pouquinho mais. Ela grunhiu, resmungando sobre margens de lucro e qualidade da
mercadoria. Mas refez os c�lculos, dividiu um tanto e colocou a m�o no cora��o.
- Estou cortando minha pr�pria garganta. Gray piscou para ela, pegando a carteira.
- Pode embrulh�-los. Mande-os ao Plaza.
- Gray, n�o.
- Desculpe. - Abriu o fecho das p�rolas, passando-as negligentemente � vendedora deliciada. - Voc� as ter� para esta noite. N�o � muito inteligente andar por
a� com elas.
- N�o � isso que quero dizer, e voc� sabe...
- Voc� tem uma voz linda - a vendedora falou para distra�-la. - � irlandesa?
- Sou sim. Voc� v�...
- � a primeira viagem dela aos Estados Unidos. Quero que tenha alguma coisa especial para se lembrar disso. - Tomou a m�o de Brianna e beijou cada um de seus
dedos, de um modo que fez at� cora��o c�nico da vendedora acelerar. - Quero muito isso.
- Voc� n�o tem que comprar coisas para mim.
- Isso � parte da beleza da coisa. Voc� nunca pede nada.
- E de que parte da Irlanda voc� �, benzinho?
- Do Condado de Clare.
- Tenho certeza de que � maravilhoso. E voc� vai... - Ao ler o nome no cart�o de cr�dito que Gray entregara, a mulher soltou um grito: - Grayson Thane! Meu
Deus, li todos os seus livros. Sou sua maior f�. Espere at� meu marido saber. � seu maior f� tamb�m. Vamos assistir ao seu filme, na semana que vem. Mal posso esperar.
Voc� me daria um aut�grafo? Milt n�o vai acreditar.
- Claro. - Apanhou o bloco que ela lhe estendera. - Voc� � Marcia? - perguntou indicando o cart�o sobre a vitrina.
- Sim, sou eu. Voc� mora em Nova York? Nunca informam isso na contracapa dos livros.
- N�o, n�o moro. - Sorriu devolvendo-lhe o bloco, para tentar distra�-la e evitar mais perguntas.
- "Para Marcia" - ela leu -, "uma j�ia entre as j�ias. Afetuosamente, Grayson Thane." - Sorriu-lhe radiante, sem, no entanto, se esquecer de pedir a ele que
assinasse a nota do cart�o de cr�dito. - Volte sempre que procurar algo especial. E n�o se preocupe, Sr. Thane, vou enviar isso ao hotel agora mesmo. E voc�, curta
bem seu colar, benzinho. Curta Nova York.
- Obrigada, Mareia. Recomenda��es a Milt. - Satisfeito consigo, virou-se para Brianna. - Quer olhar mais alguma coisa?
Atordoada, ela apenas sacudiu a cabe�a.
- Por que faz isso? - conseguiu falar, quando estavam outra vez na rua. - Como torna imposs�vel para mim dizer n�o quando quero recusar algo?
- Voc� merece - falou suavemente. - Est� com fome? Eu estou. Vamos comer um cachorro-quente.
- Gray. - Ela o deteve. - � a coisa mais bonita que j� tive disse solenemente. - E voc� tamb�m �.
- �timo. - Pegou a m�o dela e levou-a at� a esquina seguinte, calculando que j� a tinha amaciado o bastante para que ela o deixasse comprar-lhe o vestido perfeito
para a estr�ia.
Ela discutiu. Perdeu. Para equilibrar as coisas, Gray recuou quando ela insistiu em pagar as quinquilharias que queria levar para a Irlanda. Divertiu-se ajudando-a
com o troco na moeda americana, nada familiar. Fascinava-o o fato de ela parecer mais deslumbrada com a loja de brinquedos do que com as joalherias e butiques finas
que visitaram. E, quando a inspira��o surgiu, descobriu-a ainda mais fascinada por uma loja de utilidades para cozinha.
Encantado com ela, carregou suas sacolas e bolsas at� o hotel, seduziu-a na cama, dedicando bastante tempo a uma tarde de longo e luxuriante amor.
Levou-a para tomar vinho e jantar no Le Cirque, e, num rasgo de romantismo nost�lgico, foram dan�ar no Rainbow Room, onde desfrutou tanto quanto ela a decora��o
fora de �poca e o som de uma banda fant�stica.
Amou-a outra vez, at� que ela adormeceu exausta ao seu lado. Ele ficou acordado.
Ficou acordado por um longo tempo, sentindo o perfume das rosas que dera a ela, afagando a seda de seus cabelos, ouvindo a respira��o calma e cadenciada dela.
Em algum momento, durante aquele ressonar na penumbra, ele pensou nos muitos hot�is onde dormira sozinho. Nas muitas manh�s em que acordara sozinho, tendo
como companhia apenas as pessoas que criara em seu c�rebro.
Pensou como ele preferira assim. Sempre preferira. E como, com ela enrodilhada a seu lado, n�o conseguia voltar a ter aquela sensa��o de contentamento solit�rio.
Certamente o faria, quando o tempo deles tivesse acabado. Ainda sonhando, alertou a si mesmo para n�o se fixar no amanh�, muito menos no ontem.
Estava vivendo hoje. E o hoje era quase completamente perfeito.
N
a manh� seguinte, Brianna ainda estava t�o deslumbrada com Nova York que queria ver tudo de uma s� vez. N�o se incomodava de mostrar claramente que era uma turista,
batendo fotos com a c�mera, olhando para cima, o pesco�o dobrado para ver o topo dos pr�dios. Qual era o problema se ficava mesmo embasbacada? Nova York era um espet�culo
barulhento e elaborado, feito para extasiar os sentidos.
Lera atentamente o guia na su�te, listando e assinalando cuidadosamente cada lugar que tinha visto.
Agora teria de enfrentar a perspectiva de um almo�o de neg�cios com a agente de Gray.
- Arlene � formid�vel - Gray assegurara a Brianna, enquanto a arrastava pela rua. - Voc� vai gostar dela.
- Mas este almo�o. - Embora diminu�sse o passo, ele n�o permitiu que ela voltasse, como teria preferido. - � como uma reuni�o de neg�cios. Devia esperar por
voc� em algum lugar ou talvez encontr�-lo quando tivesse terminado. Poderia ir � Saint Patrick agora, e...
- J� disse que levo voc� � Saint Patrick, depois do almo�o.
E levaria mesmo, ela sabia. Estava mais do que disposto a lev�-la a qualquer lugar. Todos os lugares. Ainda naquela manh� l� estava ela no alto do Empire State
Building, absolutamente maravilhada. Andaram de metr�, comeram numa delicat�ssen. Tudo o que fizera e tudo o que vira giravam em sua cabe�a como um caleidosc�pio
de cor e som.
E, mesmo assim, ele prometia mais.
No entanto, a perspectiva de almo�ar com uma agente de Nova York, uma mulher obviamente formid�vel, era amedrontadora. Teria arranjado uma desculpa convincente,
talvez at� mesmo inventado dor de cabe�a ou cansa�o, se Gray n�o parecesse t�o excitado com a id�ia.
Observou-o enfiar displicentemente uma nota na lata junto a um homem que cochilava encostado na parede de um pr�dio. Nunca deixava de fazer isso. Qualquer
aviso dizendo "sem-teto", "desempregado" ou "veterano do Vietn�" chamava sua aten��o. E sua carteira.
Tudo captava sua aten��o. N�o perdia nada e via tudo. E aqueles pequenos gestos de delicadeza com pessoas estranhas, que outros pareciam nem mesmo admitir
que existissem, eram um tra�o de sua personalidade.
- Ei, cara, precisa de um rel�gio? Tenho alguns lindos aqui. S� vinte paus. - Um homem negro e magro abriu uma pasta, mostrando uma exposi��o de Gucci e Cartier
falsificados. - Tenho um rel�gio lind�o para a madame aqui.
Para desalento de Brianna, Gray parou.
- � mesmo? Eles funcionam?
- Ei. - O homem riu. - Tenho cara de qu�? Marca o tempo, cara. Igualzinho �queles que custam mil paus na Quinta.
- Deixe-me dar uma olhada. - Gray escolheu um enquanto Brianna mordia o l�bio. O homem lhe parecia perigoso, olhos correndo de um lado para outro. - Tem muitos
concorrentes nesta esquina?
- N�o, tenho um representante. Rel�gios �timos, fica lindo na madame. Vinte paus.
Gray deu uma sacudida no rel�gio, segurou-o perto do ouvido.
- �timo. - Passou uma nota de vinte para o homem. - V�m vindo dois tiras - disse baixinho e prendeu a m�o de Brianna em seu bra�o.
Quando ela olhou para tr�s, o homem tinha sumido.
- Eram roubados? - ela perguntou, apavorada.
- Provavelmente n�o. � seu. - Ajustou o rel�gio no pulso dela - Pode funcionar por um dia ou um ano. Nunca se sabe.
- Ent�o, por que comprou?
- Ei, o cara tem de sobreviver, n�o tem? O restaurante � logo aqui.
Aquilo a perturbou o bastante para que se sentisse desconfort�vel com suas roupas. Sentia-se sem gra�a e r�stica, al�m de idiota com aquela bolsinha "I Love
New York", guardando os suvenires do Empire State.
Tolice, garantiu a si mesma. Encontrava pessoas novas todo o tempo. Gostava de pessoas novas. O problema, pensava, enquanto Gray a introduzia no Four Seasons,
era que desta vez eram pessoas ligadas a ele.
Tentou n�o olhar, enquanto ele a conduzia.
- Ah, Sr. Thane. - O ma�tre o saudou calorosamente. - Faz tanto tempo. A Sra. Winston j� est� aqui.
Atravessaram a sala com seu longo e brilhante bar, as mesas cobertas de linho j� repletas de pessoas para o almo�o. Uma mulher levantou quando viu Gray.
Brianna viu primeiro o bonito tailleur vermelho, o brilho do ouro na lapela e nas orelhas. E, ent�o, os sedosos cabelos louros e curtos, o lampejo de um sorriso,
antes que a mulher fosse engolida pelo abra�o entusi�stico de Gray.
- Bom ver voc�, minha querida.
- Meu viajante predileto. - A voz era rouca, com uma pitada de rispidez.
Arlene Winston era mi�da, mal chegava a um metro e meio, mas tinha as formas bem definidas de quem malhava tr�s vezes por semana. Gray dissera que era av�,
mas seu rosto quase n�o tinha rugas, os agudos olhos acastanhados contrastando com a complei��o delicada e as fei��es de duende. Com seu bra�o ainda em volta da
cintura de Gray, estendeu a m�o a Brianna.
- E voc� � Brianna. Bem-vinda a Nova York. Nosso garoto tem divertido voc�?
- Tem sim. � uma cidade maravilhosa. Prazer em conhec�-la, Sra. Winston.
- Arlene. - Por um momento, reteve a m�o de Brianna carinhosamente entre as suas. Mesmo com a afabilidade do gesto, Brianna percebeu uma avalia��o r�pida e
cuidadosa. Gray simplesmente ficou parado atr�s, sorrindo.
- N�o � linda?
- Realmente. Vamos sentar. Espero que n�o se importe, pedi champanhe. Uma celebra��ozinha.
- Os brit�nicos? - Gray perguntou, sentando-se.
- Isso mesmo. - Sorriu enquanto as ta�as eram servidas com o l�quido borbulhante que j� estava sobre a mesa. - Quer falar logo de neg�cios ou vamos deixar
para depois do almo�o?
- Vamos nos livrar logo.
Obediente, Arlene dispensou o gar�om, apanhou a pasta e tirou um arquivo com v�rios fax.
- Aqui est� a proposta dos ingleses.
- Que mulher! - Gray falou, piscando para ela.
- As outras ofertas estrangeiras est�o aqui... e o �udio. J� come�amos a levantar o pessoal do filme. E tenho seu contrato. -Acomodou-se, deixando Gray examinar
os pap�is, enquanto ela sorria para Brianna. - Gray contou que voc� � uma cozinheira incr�vel.
- Ele � que gosta de comer.
- E como gosta! Pelo que ouvi dizer, voc� � dona de uma pousada encantadora. Blackthorn, n�o �?
- Blackthorn Cottage. N�o � nada muito grande.
- Imagino que seja bem familiar. - Arlene examinou Brianna sobre o copo de �gua. - E calma.
- Calma, certamente. As pessoas v�o ao Oeste por causa da Paisagem.
- Que, segundo me disseram, � espetacular. Nunca estive na Irlanda, mas Gray, com certeza, agu�ou minha curiosidade. Quantas
pessoas pode acomodar?
- Bem, tenho quatro quartos de h�spedes, ent�o isso varia, dependendo do tamanho das fam�lias. Oito fica confort�vel, mas muitas vezes tenho doze ou mais,
com crian�as.
- E cozinha para todos, cuida do lugar sozinha?
- � algo como cuidar de uma fam�lia - Brianna explicou Muitas pessoas ficam s� por uma noite ou duas e seguem seu caminho
Casualmente, Arlene ia fazendo Brianna falar, pesando cada um de suas palavras, analisando cada inflex�o, julgando. Gray era mais do que um cliente para ela,
muito mais. Uma mulher interessante, concluiu. Reservada, um pouco nervosa. Obviamente capaz, observou tamborilando na mesa com a unha pintada, enquanto interrogava
Brianna sobre detalhes da zona rural.
Elegante, ela percebeu, boas maneiras... ah... viu o olhar de Brianna divagar - apenas por alguns segundos - e deter-se em Gray. E notou o que desejava ver.
Brianna voltou o olhar, viu o cenho de Arlene franzido e lutou para n�o ficar vermelha.
- Grayson falou que voc� j� tem netos.
- Claro, tenho. E depois de uma ta�a de champanhe estou quase mostrando todas as fotos.
- Adoraria v�-las. Verdade. Minha irm� acabou de ter um beb�.
- Tudo nela se aqueceu, os olhos, a voz. - Tamb�m tenho fotos.
- Arlene. - Gray levantou os olhos dos pap�is, olhando-a outra vez. - Voc� � a rainha dos agentes.
- E n�o se esque�a disso. - Estendeu-lhe uma caneta, enquanto acenava pedindo o vinho e os card�pios. - Assine o contrato, Gray, e vamos celebrar.
Brianna calculava que bebera mais champanhe desde que conhecera Gray do que teria bebido em toda a vida antes dele. Enquanto se entretinha com uma ta�a, estudava
o card�pio e tentava n�o fazer careta aos pre�os.
- Vamos encontrar Rosalie mais tarde - Gray disse, referindo se � reuni�o agendada com sua editora -, depois vamos � estr�ia. Voc� vai, n�o vai?
- N�o a perderia por nada - Arlene assegurou. - Quero frango - acrescentou, passando o menu ao gar�om, que esperava. - Agora -continuou depois de terem feito
os pedidos -, conte-me como est� indo o livro.
-Vai bem. Incrivelmente bem. Nunca trabalhei em nada que
flu�sse t�o bem assim. A primeira prova j� est� quase pronta. - T�o r�pido?
- Est� fluindo bem. - O olhar se fixou em Brianna. - Como
uma m�gica. Talvez seja a atmosfera. A Irlanda � um lugar m�gico.
- Ele trabalha bastante - Brianna acrescentou. - Algumas
vezes, n�o sai do quarto por dias. E nem pense em perturb�-lo. � capaz de morder voc� como um pitbull.
- E voc� morde de volta? - Arlene quis saber.
- Geralmente n�o. - Brianna sorriu quando Gray cobriu sua m�o com a dele. - Por causa da minha irm�, j� estou acostumada com esse tipo de comportamento.
- Ah, sim, a artista. Voc� tem experi�ncia com temperamentos art�sticos.
- Tenho mesmo - respondeu com uma risada. - Acho que as pessoas criativas passam por momentos mais dif�ceis do que o resto de n�s... Gray precisa manter a
porta do seu mundo fechada, enquanto est� nele.
- Ela n�o � perfeita?
- Creio que � - Arlene respondeu complacente.
Mulher paciente, ela esperou at� o final da refei��o para dar o pr�ximo passo.
- Gostaria de uma sobremesa, Brianna?
- N�o ag�ento, obrigada.
- Gray vai querer. Nunca aumenta um grama... - falou sacudindo a cabe�a. - Pe�a alguma coisa bem pecaminosa, Gray. Brianna e eu vamos ao toalete para podermos
falar de voc� a s�s.
Quando Arlene levantou, Brianna n�o teve outra op��o sen�o segui-la. Lan�ou um olhar confuso a Gray por sobre o ombro, quando sa�ram.
O banheiro feminino era t�o glamouroso quanto o bar. Sobre a bancada, uma cole��o de vidros de perfume, lo��es, at� cosm�ticos.
Arlene sentou-se de frente para o espelho, cruzou as pernas e fez um gesto para Brianna acompanh�-la.
- Est� excitada com a estr�ia, hoje � noite?
- Sim. � um grande momento para ele, n�o �? Sei que j� fizeram filmes de seus livros antes. Vi um. O livro era melhor.
- Esta � a garota! - Arlene riu, balan�ando a cabe�a. - Sabe
que, antes de voc�, Gray nunca trouxe uma mulher com ele para se encontrar comigo?
- Eu... - Brianna gaguejou, imaginando a melhor resposta.
- Acho isso muito significativo. Nosso relacionamento vai al�m dos neg�cios, Brianna.
- Sei. Ele tem muito carinho por voc�. Fala em voc� como se fosse sua fam�lia.
- Sou sua fam�lia. Ou t�o pr�xima disso quanto ele se permite. Tenho um profundo carinho por ele. Quando me contou que estava trazendo voc� a Nova York, fiquei
mais do que surpresa. - Casualmente, Arlene abriu seu estojo de maquiagem e passou p� sob os olhos. - Fiquei pensando como � que uma piranha irlandesa conseguiu
fisgar meu garoto?
Quando a boca de Brianna se abriu, os olhos gelados, Arlene ergueu a m�o.
- A primeira rea��o de uma m�e superprotetora. E que se modificou logo que pus os olhos em voc�. Perdoe-me.
- Claro. - Sua voz soou dura e formal.
- Agora voc� est� aborrecida comigo, e tinha mesmo de ficar. Adoro Gray h� mais de uma d�cada, me preocupo com ele, brigo com ele, o conforto. Fico torcendo
para que encontre algu�m de quem ele goste, algu�m que o fa�a feliz. Porque ele n�o � feliz.
Fechou o estojo e, por for�a do h�bito, pegou um batom.
- Ah, ele talvez seja a pessoa mais bem-ajustada que conhe�o, mas falta felicidade em algum canto de seu cora��o.
- Eu sei - Brianna murmurou. - Ele � muito sozinho.
- Era. Notou o modo como olha para voc�? Est� quase atordoado. Teria ficado preocupada com isso se n�o tivesse visto o modo como voc� olha para ele.
- Eu o amo - Brianna escutou-se dizer.
- Ah, minha querida, posso ver isso. - Estendeu a m�o para segurar a de Brianna. - Ele lhe contou sobre seu passado?
- Muito pouco. Guarda tudo para si, finge que n�o existe. Arlene apertou os l�bios, concordando com a cabe�a.
-Ele n�o � mesmo de repartir. Estou junto dele como ningu�m piais, h� um longo tempo, e n�o sei quase nada. Uma vez, depois de sua primeira venda de um milh�o
de d�lares, ficou um pouco b�bado e contou mais do que pretendia. - Sacudiu a cabe�a. - N�o acho que deva contar a voc�. Algo como um padre em confiss�o, voc� h�
de entender.
- Sim.
- S� posso dizer uma coisa. Teve uma inf�ncia miser�vel e uma vida dif�cil. Mesmo assim, ou talvez por isso, � um homem generoso e
- Sei que �. �s vezes, generoso at� demais. O que fa�o para ele parar de me comprar coisas?
- N�o fa�a nada. Ele precisa disso. Dinheiro n�o � importante para Gray. Tudo isso simboliza muito para ele, e o dinheiro n�o � mais do que um meio para um
fim. Se me permitir lhe dar um conselho, n�o desista, seja paciente. Ele s� se sente em casa no trabalho. Ele sabe disso. Fico pensando se j� percebeu que voc� est�
fazendo um lar para ele, na Irlanda.
- N�o. - Brianna relaxou o bastante para sorrir. - N�o percebeu. Eu tamb�m n�o at� h� pouco. No entanto, seu livro j� est� quase terminado.
- Mas voc� n�o. E agora tem algu�m a seu lado, se precisar.
Horas mais tarde, enquanto Gray fechava o z�per de seu vestido, Brianna pensava nas palavras de Arlene. Era um gesto de amante, pensou, quando Gray beijou-lhe
o ombro. De marido. Sorriu para ele no espelho.
- Voc� est� lindo, Grayson.
Estava mesmo, com o blazer preto, sem gravata, com aquela sofistica��o casual que ela sempre associara aos astros de cinema e da m�sica.
- Quem vai olhar para mim enquanto voc� estiver por perto?
- Todas as mulheres.
- Quem sabe. - Colocou o colar de p�rolas em torno do pesco�o dela, sorrindo enquanto apertava o fecho. - Quase perfeito. - Avaliou, virando-a para olh�-la.
O tom de azul-noite iluminava a pele clara. O decote deslizava pela curva dos seios, deixando os ombros nus. Prendera os cabelos de modo que ele podia brincar
com os pequenos cachos que escapavam, fazendo c�cegas nas orelhas e na nuca.
Ela riu, quando ele a fez girar lentamente.
- Antes voc� disse que eu estava perfeita.
- Disse. - Tirou uma caixa do bolso e abriu-a. Havia mais p�rolas nela, duas gotas luminosas que se derramavam de solit�rios diamantes flamejantes.
- Gray...
- Shhh. - Prendeu os brincos nas suas orelhas. Um gesto experiente, ela pensou com desagrado, suave e �gil. - Agora est� perfeita.
- Quando comprou isso?
- Escolhi quando compramos o colar. Marcia adorou quando liguei depois e pedi que me mandasse.
- Aposto que adorou mesmo.
Incapaz de fazer outra coisa, ergueu as m�os e alisou um brinco. Sabia que tudo aquilo era verdade, embora n�o conseguisse acreditar - Brianna Concannon num
luxuoso hotel em Nova York, usando p�rolas e diamantes, enquanto o homem a quem amava sorria para ela.
- N�o adianta eu dizer que n�o devia ter feito isso, n�o �?
- N�o mesmo, diga s� obrigada.
- Obrigada. - Concordando, ela apertou o rosto de encontro ao dele. - Esta noite � sua, Grayson, e voc� me faz sentir como uma princesa.
- S� pense em como vamos parecer alinhados se algu�m da imprensa se preocupar em bater uma foto.
- Se preocupar? - Ela apanhou a bolsa, enquanto ele a conduzia para a porta. - � o seu filme. Voc� o escreveu.
- Escrevi o livro.
- Foi o que eu disse.
- N�o. - Deslizou um bra�o pelos ombros dela, enquanto caminhavam para o elevador. Ela podia parecer uma estrangeira glamourosa, notou, mas ainda cheirava
como Brianna. Delicada, doce e sutil. - Voc� falou que era meu filme. N�o �. � o filme do diretor, do produtor, dos atores. E � o filme do roteirista. - Quando a
porta do elevador se abriu, entraram e ele apertou o bot�o para o sagu�o. - O romancista est� no fim da lista, querida.
- Isso � rid�culo. A hist�ria � sua, s�o seus personagens.
- Era. - Sorriu para ela. Estava ficando indignada por ele e
achou aquilo agrad�vel. - Eu o vendi, ent�o qualquer coisa que tenham feito, para melhor ou pior, voc� n�o me ouvir� reclamar. E, nesta noite, as aten��es
certamente n�o estar�o voltadas para o "baseado no romance escrito por..."
- Bem, deveriam estar. N�o teriam nada sem voc�.
- Certo!
Lan�ou-lhe um olhar quando entraram no sagu�o.
- Est� ca�oando de mim.
- N�o, n�o estou. Estou adorando voc�. - Beijou-a para provar que falava a verdade, conduzindo-a para fora, onde a limusine estava esperando. - A dica para
sobreviver a uma venda a Hollywood � n�o levar a coisa para o lado pessoal.
- Voc� mesmo poderia ter escrito o roteiro.
- Pare�o masoquista? - Quase tremeu diante da id�ia. - Obrigado, mas trabalhar com um editor � o mais pr�ximo que quero chegar de escrever para um comit�.
- Recostou-se, enquanto o carro avan�ava em meio ao tr�fego. - Fui bem pago, vou ter meu nome na tela por alguns segundos e se o filme for um sucesso, e os coment�rios
iniciais parecem indicar que ser�, minhas vendas v�o aumentar.
- N�o tem nenhum aborrecimento?
- Muitos. S� que n�o a esse respeito.
A foto deles foi batida no momento em que desceram no cinema. Brianna piscou por causa das luzes, surpresa e mais do que um pouco confusa. Ele comentara que
seria ignorado e j� um microfone foi colocado � frente deles, antes de darem dois passos. Gray respondeu facilmente perguntas, evitou-as tamb�m facilmente, todo
o tempo apertando com firmeza a m�o de Brianna, enquanto abriam caminho at� o cinema.
Surpresa, olhava em volta. Havia pessoas ali que vira somente em revistas famosas, em telas de cinema e na televis�o. Algumas vagavam pelo hall como fariam
pessoas comuns, curtindo uma �ltima tragada, conversando entre drinques, fofocando ou tratando de neg�cios.
De vez em quando, Gray a apresentava a algu�m. Respondia com palavras que julgava certas e guardava nomes e rostos, para sua volta a Clare.
Alguns se vestiam muito bem, outros mal. Viu diamantes e viu jeans. Havia bon�s de beisebol e ternos de milhares de d�lares. Sentiu cheiro de pipoca, como
sentiria em qualquer cinema de qualquer continente, e cheiro de goma de mascar junto com perfumes sutis. E sobre aquilo tudo havia uma t�nue camada de glamour.
Quando ocuparam seus lugares no cinema, Gray passou o bra�o sobre o encosto da cadeira dela, virando-se de modo que sua boca estivesse junto da orelha dela.
- Impressionada?
- Terrivelmente. Sinto como se tivesse entrado num filme, em vez de vir ver um.
- Isto � porque eventos assim n�o t�m nada a ver com a realidade. Espere at� a festa.
Brianna deixou escapar um suspiro. Fora um longo caminho desde Clare. Um caminho muito longo mesmo.
N�o teve muito tempo para avaliar aquilo. As luzes diminu�ram, a tela se iluminou. Por alguns momentos, sentiu uma pontada aguda de emo��o ao ver o nome de
Gray surgir, permanecer, ent�o esvanecer.
- � maravilhoso! - sussurrou. - � mesmo maravilhoso!
- Vamos ver se o resto � t�o bom.
Achou que era. A a��o era arrebatadora, num ritmo de suspense que a envolveu totalmente. Parecia n�o importar que tivesse lido o livro, soubesse das reviravoltas
do enredo, reconhecesse cada trecho das palavras de Gray no di�logo. O est�mago se apertava, os l�bios se curvavam, os olhos se arregalavam. Num certo momento, Gray
passou um len�o �s m�os dela para que pudesse secar as faces.
- Voc� � o p�blico perfeito, Brie. N�o sei como assistia a filmes sem voc�.
- Shhh. - Suspirou, pegou a m�o dele, segurando-a durante o cl�max, at� os cr�ditos finais, enquanto os aplausos ecoaram na sala.
- Diria que foi um sucesso.
* * *
- N�o v�o acreditar - Brianna falou, enquanto sa�am do elevador no Plaza, horas depois. - Eu mesma n�o acreditaria! Dancei com Tom Cruise - Rindo nervosamente,
um pouco alta pelo vinho e pela excita��o, virou-se numa r�pida pirueta. - Voc� acredita?
- Tenho que acreditar. - Gray abriu a porta. - Eu vi. Ele parecia bem interessado em voc�.
- Ah, ele s� queria falar sobre a Irlanda. Tem uma grande admira��o por ela. Ele � t�o charmoso, e loucamente apaixonado pela esposa. E pensar que podem realmente
ir e ficar na minha casa.
- N�o me surpreenderia encontrar o lugar cheio de celebridades depois desta noite. - Bocejando, Gray tirou os sapatos. - Voc� encantou todo mundo com quem
conversou.
- Voc�s, ianques, nunca resistem ao sotaque irland�s. - Abriu o fecho do colar, deixando as p�rolas correrem pelas m�os antes de guard�-las no estojo. - Estou
t�o orgulhosa de voc�, Gray. Todo mundo comentando como o filme � maravilhoso, e toda aquela conversa sobre Oscars. - Sorriu para ele, enquanto tirava os brincos.
- Imagine s� voc� ganhando um Oscar.
- N�o ganharia. - Tirou o blazer, largando-o descuidadamente ao lado. - N�o escrevi o filme.
- Mas... - grunhiu um som de desgosto, enquanto tirava os sapatos e abria o z�per do vestido. - Isso n�o � certo. Devia ganhar um.
Ele riu e, tirando a camisa, olhou para ela sobre o ombro. Mas o gracejo morreu em sua boca.
Ela tirara o vestido e estava ali parada, s� com a lingerie sem al�as que ele comprara. Azul-noite. Seda. Renda.
Desprevenido, ele estava duro como a�o, quando ela se abaixou para desprender a meia fum� das ligas. Lindas m�os com unhas aparadas e sem pintura deslizaram
sobre uma coxa longa e lisa, sobre o joelho, a panturrilha, disciplinadamente enrolando a meia.
Ela dizia alguma coisa, mas ele n�o conseguia ouvir, a cabe�a atordoada. Parte de seu c�rebro o avisava para sufocar o violento arroubo de desejo. Outra parte
dizia que era urgente possuir, como desejava possuir. Violenta, r�pida e descuidadamente.
Meias habilmente dobradas, ela levantou os bra�os para desprender os cabelos. As m�os dele cerradas, enquanto aqueles cachos de ouro e fogo se derramavam sobre
os ombros nus. Podia ouvir a pr�pria respira��o t�o r�pida e rude. E quase podia sentir aquela seda rasgar-se em suas m�os e sentir a carne embaixo ficar quente,
provar daquele calor quando a boca se fechasse avidamente sobre ela.
Obrigou-se a se virar. S� precisava de um momento, garantiu, para recuperar o controle. N�o seria correto assust�-la.
- E ser� divertido contar a todo mundo. - Brianna largou a escova e, rindo outra vez, deu outra pirueta. - N�o posso nem acreditar que j� estamos no meio da
noite e continuo completamente acordada. Feito uma crian�a que tenha ganhado muitos doces. Parece que nunca mais vou precisar dormir. - Girou em torno dele, envolvendo-lhe
a cintura com os bra�os, apertando-se contra suas costas. - Ah, foi tudo t�o maravilhoso, Gray. Nem sei como agradecer a voc�.
- Voc� n�o tem que agradecer. -A voz era rouca, cada c�lula do corpo em alerta total.
- Ah, mas voc� est� acostumado a esse tipo de coisa. - Inocentemente percorreu suas costas, de um ombro a outro, com uma sucess�o de r�pidos beijinhos. Ele
trincou os dentes para conter um gemido. - Acho que voc� n�o � capaz de imaginar como esta noite foi emocionante para mim. Mas voc� est� todo tenso. - Instintivamente
ela come�ou a massagear seus ombros e suas costas. - Voc� deve estar exausto e eu estou aqui tagarelando feito uma matraca. Vamos deitar? Logo, logo dou um jeito
nessa tens�o.
- Pare! - A ordem a cortou. Virando-se bruscamente, apertou-lhe os pulsos, de modo que ela s� conseguiu parar e olhar. Parecia furioso. N�o, ela percebeu.
Parecia perigoso.
- Grayson, o que est� acontecendo?
- N�o v� o que est� fazendo comigo? - Quando ela abanou a cabe�a, puxou-a de encontro a si, os dedos se enterrando na carne. P�de ver a perplexidade nos olhos
dela dando lugar ao come�o da compreens�o, e ent�o ao p�nico. E agarrou-a.
- Maldi��o! - A boca esmagou a dela, faminta, desesperada. Se ela o tivesse empurrado, ele a teria puxado de volta. Em vez disso, ela levantou uma m�o tr�mula
at� seu rosto e ele ficou perdido.
- S� uma vez - murmurou, arrastando-a para a cama. -S� uma.
N�o era o amante paciente e terno que conhecera. Era selvagem, � beira da viol�ncia, com m�os que puxavam, e rasgavam, e possu�am. Tudo nele era agressivo
- sua boca, suas m�os, seu corpo. Por um instante, como ele usasse tudo aquilo para golpear seus sentidos, ela teve medo de simplesmente se partir, como vidro.
Ent�o, o lado negro dos desejos dele a arrastou, chocou, excitou e aterrorizou ao mesmo tempo.
Ela gritou, confusa, enquanto aqueles dedos impacientes a levavam, sem piedade, ao cl�max. A vis�o se turvou, mas podia v�-lo atrav�s dela. Em meio �s luzes,
que tinham deixado acesas, os olhos eram ferozes.
Chamou-o pelo nome outra vez, solu�ando enquanto ele a puxava, deixando-a de joelhos. Estavam colados um ao outro sobre a cama desarrumada, as m�os dele lhe
moldando o corpo, levando-a cruelmente � loucura.
Impotente, ela se curvou, estremecendo quando os dentes dele lhe arranharam a garganta, o seio. Ele ent�o a sugou avidamente, como se faminto pelo gosto dela,
enquanto seus dedos impacientes a levavam impiedosamente para mais al�m.
Ele n�o conseguia pensar. Todas as vezes em que fizera amor com ela, tinha lutado para manter um lado do c�rebro frio o suficiente para manter as m�os gentis,
o ritmo leve. Desta vez, s� havia fogo, uma esp�cie de inferno cheio de contentamento, que brotava tanto da mente quanto do corpo, afastando qualquer civilidade.
Agora, bombardeado pelo seu pr�prio desejo e ansiando pelo dela, o controle estava fora do seu alcance.
Desejava-a padecendo, resistindo, gritando.
E a teve.
Mesmo a seda era um grande obst�culo. Furioso agora, rasgou-a ao meio, empurrando-a sobre as costas, para poder devorar a carne recentemente exposta. Podia
sentir as m�os dela se enfiando em seus cabelos, as unhas dela cravando em suas costas, enquanto se atirava nela, cheio de prazer.
Ent�o seu arquejar, o estremecimento, o grito abafado, quando ele mergulhou a l�ngua dentro dela.
Ela estava "morrendo". Ningu�m poderia sobreviver ao fogo, � press�o que continuava aumentando e explodindo, aumentando e explodindo, at� que seu corpo n�o
fosse mais que uma massa tr�mula de nervos submissos e desejos indescrit�veis.
As sensa��es se atropelavam, sobrepondo-se r�pido demais para que fosse capaz de separ�-las. Apenas sabia que ele estava fazendo coisas nela, coisas incr�veis,
perversas, deliciosas. O novo cl�max atingiu-a como um soco. Erguendo-se, agarrou-se a ele, movendo-se at� estarem rolando na cama. Sua boca corria sobre ele, t�o
�vida agora quanto arrebatada. As m�os conquistadoras o encontraram, o tocaram, fazendo-a estremecer num prazer inexperiente e furioso, quando ele gemeu.
-Agora! Agora! - Tinha de ser agora. Ele n�o podia mais se conter. Suas m�os deslizaram pela pele �mida, agarraram firmemente seus quadris para ergu�-la. Mergulhou
profundamente dentro dela, ofegante, enquanto a posicionava para receber ainda mais dele.
Montou nela firme, penetrando-a mais cada vez que ela se levantava para encontr�-lo. Olhou seu rosto, quando ela afundou na vertigem do derradeiro cl�max.
O modo como seus olhos sombreados escureceram, quando seus m�sculos contra�ram-se em torno dele.
Sentindo algo perigosamente pr�ximo � dor, esvaziou-se dentro dela.
R
olara de cima dela e olhava o teto. Sabia que, por mais que se amaldi�oasse, n�o podia desfazer o que tinha feito. Todo o cuidado, toda a prud�ncia e, num instante,
estragara tudo. Arruinara tudo.
Agora ela estava encolhida a seu lado, tremendo. E tinha medo de toc�-la.
- Desculpe - finalmente falou, percebendo a inutilidade do pedido. - Nunca pensei tratar voc� desse jeito. Perdi o controle.
- Perdeu o controle - ela murmurou, pensando como um corpo podia se sentir fraco e energizado ao mesmo tempo. - Acha que precisa dele?
Sua voz estava fraca, ele notou, e rouca por causa do choque, imaginou.
- Sei que pedir desculpas � o fim da picada. Posso trazer alguma coisa para voc�? Um copo d'�gua. - Apertou os olhos fechados e amaldi�oou-se outra vez. -
Falando em fim da picada... Vou buscar uma camisola. Quer uma camisola.
- N�o, n�o quero. - Conseguiu se mexer o suficiente para examinar o rosto dele. Ele n�o a olhava, observou, s� fitava o teto. - Grayson, voc� n�o me machucou.
- Claro que machuquei. Vai ficar cheia de manchas roxas para provar.
- N�o sou t�o fr�gil assim - disse com uma ponta de exaspera��o
- Tratei voc� como... - N�o podia dizer, n�o para ela. - Devia ter sido gentil.
- E voc� foi gentil. Gosto de saber que custa a voc� algum esfor�o ser gentil. E gosto de saber que fiz alguma coisa que fez voc� se esquecer de ser. - Os
l�bios se curvaram, quando afastou os cabelos na testa dele. - Pensa que me assustou?
- Sei que assustei. - Afastou-se dela, sentando-se. - N�o tive cuidado.
- Realmente me assustou. - Ela fez uma pausa. - E gostei. Amo voc�.
Ele encolheu-se, apertou a m�o que ela colocara na dele.
- Brianna - come�ou sem saber como continuar.
- N�o se preocupe. N�o preciso que repita isso.
- Ou�a, muitas pessoas confundem sexo com amor.
- Imagino que voc� tem raz�o. Grayson, acha que eu estaria aqui com voc�, acha mesmo que eu estaria aqui com voc� assim se n�o o amasse?
Ele era bom com palavras. D�zias de desculpas razo�veis e t�ticas de defesa passavam por sua mente.
- N�o - falou, afinal, encarando a verdade. - N�o acho. O que s� torna tudo pior - murmurou, levantando-se para pegar as cal�as.
- Nunca deveria ter deixado as coisas irem t�o longe. Eu sabia disso. A culpa � minha.
- N�o h� culpa alguma nisso tudo. - Buscou a m�o dele outra vez para que voltasse a se sentar na cama, em vez de ficar caminhando.
- Voc� n�o devia ficar triste por saber que � amado, Grayson. Mas ficava. Triste, em p�nico e, por um breve instante, desejoso.
- Brie, n�o posso retribuir com o que voc� deseja ou deveria desejar. N�o h� futuro comigo, nenhuma casa no campo com crian�as p�tio. N�o h� nenhuma possibilidade.
- � uma pena que pense assim. Mas n�o estou lhe pedindo nada disso.
- � o que voc� deseja.
- � o que desejo, mas n�o o que espero. - Lan�ou-lhe um sorriso surpreendentemente calmo. -J� fui rejeitada antes. Sei muito bem o que � amar e n�o ter o amor
da pessoa de volta, no m�nimo n�o tanto quanto se deseja ou precisa. - Sacudiu a cabe�a antes que ele pudesse falar. Por mais que eu possa querer continuar a seu
lado, Grayson, vou sobreviver sem voc�.
- N�o quero mago�-la, Brianna. Eu me preocupo com voc�. Gosto de voc�.
Ela ergueu a sobrancelha.
- Sei disso. E sei que est� preocupado porque gosta de mim mais do que jamais gostou de algu�m.
Ele abriu a boca, fechou-a e sacudiu a cabe�a.
- Sim, � verdade. � algo novo para mim. Para n�s dois. -Ainda inseguro de seus movimentos, tomou a m�o dela, beijou-a. - Daria mais a voc� se pudesse. E lamento
n�o ter, pelo menos, preparado voc� para uma noite dessas. Voc� � a primeira... mulher inexperiente com quem estive, ent�o tentei ir devagar.
Intrigada, ela levantou a cabe�a.
- Deve ter ficado t�o nervoso quanto eu estava, na primeira vez.
- Mais. - Beijou sua m�o outra vez. - Muito mais, acredite. Estou acostumado com mulheres que conhecem todas as manhas. Experientes ou profissionais, e voc�...
- Profissionais? - Ela arregalou os olhos. -J� pagou para levar mulheres para a cama?
Olhou de volta para ela. Devia ter ficado muito mais confuso do que percebera para vir com uma hist�ria dessas.
- N�o recentemente. De toda maneira...
- Por que teve que fazer isso? Um homem como voc�, que tem sensibilidade?
- Olhe, foi h� muito tempo. Outra vida. N�o me olhe assim - explodiu. - Quando se tem dezesseis anos e se est� sozinho pelas ruas, nada � gr�tis. Nem mesmo
sexo.
- Por que estava sozinho e pelas ruas aos dezesseis anos? Ele recuou. Havia tanto vergonha quanto raiva em seus olhos.
- N�o vou falar disso.
- Por qu�?
- Deus do c�u... -Agitado, enfiou ambas as m�os nos cabelos. - � tarde. Temos que dormir.
- Grayson, � t�o dif�cil contar para mim? N�o h� quase nada n�o saiba a meu respeito, coisas ruins e boas. Acha que vou desprezar voc�, se souber?
Ele n�o tinha certeza e disse a si mesmo que n�o se importava
- N�o � nada importante, Brianna. Nada a ver comigo agora, conosco.
Os olhos dela se esfriaram e levantou-se para pegar a camisola que dissera n�o querer.
- � claro que � problema seu, se prefere me deixar fora disso.
- N�o � o que estou fazendo.
Enfiou a camisola pela cabe�a, ajustando as mangas.
- Como voc� quiser.
- Inferno! Voc� � �tima, n�o �? - Furioso com ela, enfiou as m�os nos bolsos.
- N�o sei o que quer dizer.
- Sabe muito bem - retorquiu. - Joga a culpa, espalha indiferen�a e cai fora.
- Concordamos que n�o � da minha conta. - Aproximando-se da cama, come�ou a esticar os len��is que tinham desarrumado. - Se � culpa que est� sentindo, n�o
� por minha causa.
- Voc� me pegou... - resmungou. - Sabe como me pegar. - Suspirou, vencido. - Voc� quer saber, tudo bem, ent�o. Sente, vou lhe contar uma hist�ria.
Virou as costas para ela, revirando a gaveta atr�s de um ma�o de cigarros que carregava sempre, pois s� fumava quando estava trabalhando.
- A primeira coisa de que me lembro � o cheiro. Lixo come�ando a apodrecer, mofo, cigarros - acrescentou, olhando atravessado para a fuma�a que subia em espirais.
- Erva. N�o do tipo que voc� cultiva, mas do tipo que se traga. Provavelmente nunca sentiu o cheiro dessa erva, n�o �?
- N�o, nunca. - Mantinha as m�os no colo e os olhos nele.
- Bem, � minha primeira lembran�a. O sentido do olfato � o mais forte de todos, permanece em voc�, seja bom ou ruim. Lembro-me dos sons tamb�m. Vozes altas,
m�sica alta, algu�m fazendo sexo no como do lado. Lembro-me de sentir fome e de n�o poder sair do quarto porque ela me prendera outra vez. Estava chapada quase todo
o tempo e nunca lembrava que tinha uma crian�a que precisava comer. Ele procurou em v�o por um cinzeiro, ent�o se inclinou sobre a c�moda. Descobriu que, afinal
de contas, n�o era t�o dif�cil falar. Era quase como criar uma cena na cabe�a. Quase.
- Uma vez ela me disse que sa�ra de casa quando tinha dezesseis anos. Queria fugir dos pais, das regras. Eram quadrados, ela me disse. Ficaram loucos quando
descobriram que ela usava drogas e levava rapazes para o quarto. Estava s� vivendo sua vida, fazendo suas coisas. Ent�o, um dia, saiu, pegou uma carona e foi parar
em S�o Francisco. L� podia ter entrado na onda hippie, mas foi parar nas drogas, experimentando um monte de porcarias, pedindo esmola ou se vendendo para pagar por
elas.
Ele simplesmente lhe contara que a m�e era prostituta e drogada, e ficou esperando algumas exclama��es chocadas. Quando ela s� continuou olhando para ele com
aqueles olhos calmos, circunspectos, sacudiu os ombros e prosseguiu:
- Tinha provavelmente dezoito anos quando ficou gr�vida de mim. De acordo com sua hist�ria, j� tinha feito dois abortos e estava apavorada com outro. Nunca
p�de ter certeza sobre quem era o pai, mas sabia que era um dentre tr�s caras. Juntou-se com um deles e decidiu me manter. Quando eu tinha um ano, encheu-se dele
e foi morar com outro. Ele era seu cafet�o, arranjava-lhe drogas, mas batia nela um pouco demais, e ent�o ela o abandonou.
Gray bateu as cinzas do cigarro e fez uma pausa para Brianna comentar. Mas ela n�o disse nada, continuou sentada na cama, com as m�os cruzadas.
- De qualquer maneira, passaram-se mais dois anos. At� onde posso lembrar, as coisas ficaram como antes. Ela passava de um homem para outro, presa naquelas
porcarias. Em termos eruditos, acho que pode se dizer que ela tinha uma personalidade aditiva. De vez em quando me batia, mas nunca me surrava de verdade... isso
exigiria um pouco mais de esfor�o e interesse. Prendia-me para evitar que eu ficasse vagando quando ela estava na rua ou encontrando seu traficante. Viv�amos na
sujeira e me lembro do frio. Fazia um frio do diabo em S�o Francisco. Foi assim que o fogo come�ou. Algu�m no pr�dio trouxe um aquecedor port�til. Eu tinha cinco
anos, estava sozinho e trancado em casa.
-Ah, meu Deus, Grayson... -Apertou as m�os na boca. -Oh, Deus...
- Acordei sufocado - disse na mesma voz distante. - O quarto estava cheio de fuma�a e eu podia ouvir as sirenes e os gritos. Eu gritava e batia na porta. N�o
podia respirar e estava assustado. Lembro-me apenas de deitar no ch�o e chorar. Ent�o um bombeiro arrombou a porta e me pegou. N�o me lembro de ele ter me carregado.
N�o me lembro do fogo, s� da fuma�a no quarto. Acordei no hospital, e uma assistente social estava l�. Uma coisinha linda com grandes olhos azuis e m�os macias.
E havia um tira. Ele me deixou nervoso, porque eu aprendera a n�o confiar em nenhuma autoridade. Perguntaram se eu sabia onde minha m�e estava. Eu n�o sabia. Mas,
quando j� estava bem para deixar a cust�dia do hospital, fui despejado no sistema. Eles me puseram numa institui��o para crian�as �rf�s, enquanto procuravam por
ela. Nunca a encontraram. Nunca mais a vi.
- Ela nunca procurou por voc�.
- N�o, nunca. N�o foi um mau neg�cio. A casa era limpa, eles me alimentavam regularmente. O grande problema para mim era a disciplina rigida, e eu n�o estava
acostumado com disciplinas. Houve algumas possibilidades de ado��o, mas eu deixava claro que n�o dariam certo. N�o queria ser uma imita��o de filho, n�o importava
o quanto as pessoas fossem boas ou m�s. Algumas eram realmente boas pessoas. Eu era o que chamavam de intrat�vel. Preferia assim. Ser um causador de problemas me
conferiu uma identidade. Ent�o causei muitos problemas. Era um garoto brig�o, com a l�ngua ferina e uma conduta m�. Gostava de arranjar brigas, porque eu era forte,
r�pido e geralmente podia vencer.
"Eu era previs�vel", continuou com um meio sorriso. "Isso era o pior. Eu era produto do meio onde crescera e abominavelmente orgulhoso disso. Nenhum maldito
conselheiro, psiquiatra ou assistente social iria fazer minha cabe�a. Me ensinaram a odiar as autoridades, e isso foi uma coisa que ela me ensinou muito bem."
- Mas a escola, a casa... foram boas para voc�? Um brilho de esc�rnio acendeu em seus olhos.
- Ah, sim, formid�vel. Tr�s metros quadrados e uma cama. Exalou um suspiro impaciente diante da express�o consternada dela.
Voc� � s� uma estat�stica, Brianna, um n�mero. Um problema. E h� mil outras estat�sticas, e n�meros, e problemas por a�. Claro, numa percep��o tardia, posso
dizer que alguns deles realmente se importavam, realmente tentaram fazer diferen�a. Mas eram o inimigo, com suas perguntas e testes, suas regras e disciplina. Ent�o,
seguindo o exemplo de minha m�e, fugi aos dezesseis anos. Vivi nas ruas, entregue � minha pr�pria sorte. Nunca me envolvi com drogas, nunca me vendi, mas n�o h�
muitas outras coisas que n�o tenha feito.
Afastou-se para longe da c�moda e come�ou a andar pelo quarto.
- Roubei, enganei, apliquei golpes. E um dia tive uma revela��o, quando um cara que eu estava sacaneando percebeu a coisa e me encheu de porrada. Quando voltei
a mim, num beco, com a boca cheia de sangue e v�rias costelas quebradas, pensei que podia provavelmente arranjar um jeito melhor de ganhar a vida. Parti para Nova
York. Vendi montes de rel�gios na Quinta Avenida - disse com uma ponta de sorriso. - Joguei cartas e comecei a escrever. Tive uma educa��o razo�vel na casa. E gostava
de escrever. N�o podia admitir isso aos dezesseis anos, sendo um tremendo filho-da-puta. Mas aos dezoito, em Nova York, n�o parecia t�o ruim. O que parecia ruim,
o que de repente come�ou a parecer realmente ruim, era eu ser o mesmo que ela era. Decidi ser algu�m diferente.
"Mudei meu nome. Mudei a mim mesmo. Consegui um emprego de verdade, servindo mesas numa espelunca no Village. Fui me livrando daquele pequeno cafajeste, at�
me tornar Grayson Thane. E n�o olhei para tr�s, porque era in�til."
- Porque machucava voc� - Brianna falou tranq�ilamente. - E o deixava bravo.
- Talvez. Mas principalmente porque n�o tem nada a ver com o que sou agora.
Queria lhe dizer que tinha tudo a ver com quem ele era, o que tinha feito de si mesmo. Em vez disso, levantou-se para encar�-lo.
- Amo quem voc� � agora. - Sentiu uma ang�stia, por ele estar se afastando do que ela queria realmente lhe oferecer. - � t�o penoso para voc� saber disso,
e saber que posso sentir pena da crian�a, do rapaz e admirar o que surgiu?
- Brianna, o passado n�o importa. N�o para mim - insistiu.-
� diferente para voc�. Seu passado reporta a s�culos. Est� mergulhada nele, a hist�ria, a tradi��o. Formou voc� e, por causa disso, o futuro � t�o importante.
Voc� planeja a longo prazo. Eu n�o. N�o posso. Danem-se, n�o quero isso. S� existe o agora. As coisas como s�o agora mesmo.
Ele pensava que ela n�o podia entender aquilo depois do que lhe contara? Podia compreend�-lo t�o bem, o garotinho sofrido, aterrorizado pelo passado, aterrorizado
porque n�o havia futuro. Segurando-se desesperadamente a qualquer coisa que pudesse agarrar no presente.
- Bem, estamos juntos agora, n�o estamos? - Carinhosamente envolveu o rosto dele com as duas m�os. - Grayson, n�o posso deixar de amar voc� para deix�-lo mais
confort�vel. N�o posso fazer isso para me deixar mais confort�vel. Simplesmente � assim. Perdi meu cora��o para voc� e n�o posso voltar atr�s. Duvido que o fizesse,
se fosse poss�vel. N�o significa que voc� tenha que aceit�-lo, mas seria bobo se n�o fizesse isso. N�o custa nada para voc�.
- N�o quero machucar voc�, Brianna. - Segurou-a pelos pulsos. - N�o quero machucar voc�.
- Sei disso. - Ele machucaria, claro. Admirava-se que ele n�o pudesse ver que magoaria a si mesmo tamb�m. - Aproveitaremos o agora e agradeceremos por isso.
Mas me diga uma coisa. - Beijou-o levemente. - Qual � seu nome?
- Deus do c�u! Voc� n�o desiste mesmo.
- N�o. - Seu sorriso era calmo agora, surpreendentemente confiante. - N�o � algo que eu considere um defeito.
- Logan - murmurou. - Michael Logan. Ela riu, fazendo-o sentir-se um idiota.
- Irland�s. Eu devia ter percebido. O dom de falar que voc� tem e todo esse poder de sedu��o.
- Michael Logan - ele disparou - era um pobre de esp�rito, algu�m do mal, um ladr�ozinho de moedas que n�o valia um cuspe.
Ela suspirou.
- Michael Logan era uma crian�a abandonada, problem�tica, que precisava de amor e carinho. E voc� est� errado em odi�-lo tanto. Mas vamos deix�-lo em paz.
Ent�o ela o desarmou apertando-se contra ele, repousando a cabe�a em seu ombro. As m�os deslizavam em suas costas, acalmando-o. Ela devia estar aborrecida
com o que ele contara. Devia estar atemorizada com o modo como ele a tratara na cama. Mas estava ali, abra�ando-o, oferecendo a ele um amor incrivelmente profundo.
- N�o sei o que fazer em rela��o a voc�.
- Voc� n�o tem que fazer nada. - Ro�ou os l�bios no ombro dele. - Voc� me deu os melhores meses da minha vida. E vai se lembrar de mim, Grayson, enquanto viver.
Ele suspirou profundamente. N�o podia negar isso. Pela primeira vez na vida, estaria deixando uma parte de si mesmo para tr�s, quando fosse embora.
Foi ele que se sentiu desconfort�vel na manh� seguinte. Tomaram caf� na sala da su�te, junto � janela de onde se via o parque. E esperou que ela lhe atirasse
no rosto alguma coisa que ele falara. Infringira a lei, dormira com prostitutas, chafurdara nos esgotos das ruas.
Entretanto, ela sentou-se na frente dele, parecendo t�o fresca como uma manh� em Clare, falando alegremente sobre a visita que fariam � Worldwide antes de
irem para o aeroporto.
- N�o est� comendo nada, Grayson. Sente-se bem?
- Estou �timo. - Cortou a panqueca que pensou que queria. - Acho que sinto falta de sua comida.
Era exatamente a coisa certa a dizer. O olhar preocupado dela se transformou num sorriso de deleite.
- Voc� a ter� amanh� outra vez. Vou fazer algo especial para voc�. Soltou um grunhido em resposta. Tinha desistido de falar a ela sobre a viagem a Gales. N�o
queria estragar a alegria de Nova York.
Agora se perguntava por que pensara que poderia. Nada do que havia despejado sobre ela na noite anterior abalara sua tranq�ilidade.
- Ah, Brie, n�s teremos que fazer um pequeno desvio na volta � Irlanda.
- � mesmo? - Franzindo o rosto, baixou a x�cara. - Tem neg�cios em algum lugar?
- N�o exatamente. Vamos at� Gales.
- Gales?
- � sobre as suas a��es. Lembra que falei a voc� que pediria a meu corretor para checar algumas coisas?
- Sim. Ele encontrou algo estranho?
- Brie, a Minas Triquarter n�o existe.
- Mas claro que existe. Tenho as a��es. Recebi a carta.
- N�o h� Minas Triquarter em nenhum mercado de a��es. Nenhuma companhia com este nome listada em lugar algum. O n�mero de telefone no cabe�alho � falso.
- Como pode ser? Ofereceram mil libras.
- � por isso que iremos a Gales. Acho que vale a pena a viagem para fazer uma pequena checagem pessoal.
Brianna sacudiu a cabe�a.
- Tenho certeza de que seu corretor � competente, Gray, mas ele deve ter deixado passar alguma coisa. Se a companhia n�o existisse, n�o emitiriam a��es nem
ofereceriam dinheiro para compr�-las de volta.
- Emitiriam a��es, se isso fosse uma fachada - respondeu, remexendo a comida, enquanto ela o olhava. - Um engodo, Brie. Tenho uma pequena experi�ncia com trapa�as
em a��es. Voc� tem uma caixa postal, um n�mero de telefone e voc� p�e � venda. Para pessoas que investir�o. Pessoas querendo fazer dinheiro r�pido. Voc� tem um terno
e um papo, coloca alguns pap�is juntos, imprime um prospecto e certificados falsos. Pega o dinheiro e desaparece.
Ela ficou quieta por um momento, digerindo tudo aquilo. Realmente podia ver justo seu pai caindo em tal golpe. Sempre se lan�ara imprudentemente nos neg�cios.
Na verdade, n�o esperara nada quando come�ara a investigar o assunto.
- Creio que posso entender isso. E tem a ver com a sorte de meu pai nos neg�cios. Mas como explica que tenham respondido e oferecido dinheiro?
- N�o posso explicar. - Embora tivesse algumas id�ias a respeito. - � por isso que vamos a Gales. Rogan vai mandar seu avi�o nos apanhar em Londres e nos levar.
Depois nos deixar� no aeroporto de Shannon, quando estivermos prontos.
Entendo. - Cuidadosamente deixou o garfo e a faca ao lado.
Discutiu isso com Rogan, por ser homem, e os dois planejaram tudo.
Gray limpou a garganta, passou a l�ngua nos dentes.
- Queria que voc� desfrutasse a viagem at� aqui sem aborrecimentos. - Quando ela apenas fixou nele seus calmos olhos verdes, ele encolheu os ombros. - Voc�
est� esperando um pedido de desculpas, e n�o ter� um. - Cruzou as m�os, descansando-as na beirada da mesa, e n�o disse nada. - Voc� � boa em dar gelo, mas n�o vai
funcionar. Fraude est� fora de sua al�ada. Eu faria essa viagem sozinho, mas certamente precisaria de voc�, j� que as a��es est�o em nome de seu pai.
- E estando no nome de meu pai � assunto meu. � gentil de sua parte querer ajudar.
- Foda-se.
Ela estremeceu, sentiu o est�mago embrulhar-se ante a inevitabilidade da discuss�o.
- N�o fale assim comigo, Grayson.
- Ent�o n�o use esse irritante tom de professora prim�ria comigo. - Quando ela levantou, os olhos dele flamejaram, apertados. - N�o saia, maldi��o!
- N�o serei amaldi�oada ou tratada aos gritos, nem ficarei me sentindo inadequada, porque sou apenas uma filha de fazendeiro de um condado do Oeste.
- Que diabos isso tem a ver com o assunto? - Quando ela continuou andando para o quarto, ele levantou-se bruscamente da mesa. Agarrou seu bra�o, fazendo-a
voltar-se. Um lampejo de p�nico atravessou o rosto dela, antes que ela o contivesse. - Eu disse para n�o sair!
- Vou pra onde quero, assim como voc�. Vou me vestir agora e me aprontar para a viagem que voc� t�o cuidadosamente planejou.
- Se voc� quer me agredir, tudo bem. Mas vamos acertar tudo isso.
-Tenho a impress�o de que voc� j� acertou tudo. Est� machucando meu bra�o, Grayson.
- Desculpe. - Largou-a, enterrando as m�os nos bolsos. - Olhe, achei que voc� ficaria um pouco chateada, mas n�o esperava que algu�m t�o razo�vel como voc�
fizesse tempestade em copo d'�gua.
- Voc� combinou coisas pelas minhas costas, tomou decis�es por mim, decidiu que eu n�o seria capaz de enfrentar por mim mesma estou fazendo tempestade em copo
d'�gua? Tudo bem, ent�o. Tenho certeza de que devia estar envergonhada de mim mesma, n�o �?
- Estou tentando ajudar voc�. - Sua voz elevou-se outra vez, e ele esfor�ou-se para control�-la, assim como seu g�nio. - Isso n�o tem nada a ver com ser inadequada,
tem a ver com o fato de voc� n�o ter experi�ncia. Algu�m invadiu sua casa. N�o consegue juntar as coisas?
Ela o fitou, p�lida.
- N�o. Por que n�o junta as coisas para mim?
- Voc� escreveu sobre as a��es, ent�o algu�m faz buscas em sua casa. R�pida e desordenadamente. Talvez algu�m desesperado. N�o muito tempo depois, h� algu�m
do lado de fora de sua janela. H� quanto tempo vive naquela casa, Brianna?
- Toda a minha vida.
- Alguma coisa parecida aconteceu antes?
- N�o, mas... N�o.
- Ent�o, faz sentido conectar os pontos. Quero ver at� onde vai toda essa hist�ria.
- Devia ter me dito tudo isso antes. - Tr�mula, abaixou-se at� o bra�o da cadeira. - N�o devia ter escondido isso de mim.
- � apenas uma teoria. Por Deus, Brie, voc� j� tem tanta coisa na sua cabe�a! Sua m�e, Maggie e o beb�, eu. Toda essa hist�ria para encontrar a mulher que
esteve envolvida com seu pai. N�o queria aumentar suas preocupa��es.
- Estava tentando me proteger. Estou tentando entender isso.
- Claro que estava tentando proteger voc�. N�o gosto de ver voc� preocupada. Eu... - Deteve-se, aturdido. O que quase tinha dito? Deu um longo passo atr�s,
mentalmente, daquelas tr�s dif�ceis palavras e, fisicamente, dela. - Voc� � importante para mim - disse cuidadosamente.
- Tudo bem. - Subitamente cansada, afastou os cabelos da testa.
- Sinto ter feito uma cena por causa disso. Mas n�o esconda coisas de mim, Gray.
- N�o esconderei. - Tocou o rosto dela, e seu est�mago se contraiu. - Brianna.
- O que foi?
- Nada. - Deixou cair a m�o. - Nada mesmo. Melhor nos aprontarmos, se vamos visitar a Worldwide.
Chovia em Gales e era muito tarde para fazer algo al�m do check-in no cinzento hotelzinho onde Gray reservara um quarto. Brianna teve apenas uma fugaz impress�o
da cidade de Rhondda, da desolada fileira de casas em apertados conjuntos, do c�u triste que golpeava a estrada com a chuva. Partilharam uma refei��o que Brianna
n�o provou, e ent�o desabaram, exaustos, na cama.
Esperara que ela reclamasse. As acomoda��es n�o eram as melhores e a viagem tinha sido brutal, at� para ele. Mas ela n�o disse nada na manh� seguinte, apenas
se vestiu e perguntou o que fariam em seguida.
- Imaginei que poder�amos dar uma checada nos correios, ver se nos leva a algum lugar. - Ele a observou prender os cabelos no alto, gestos precisos, embora
tivesse sombras sob os olhos. - Voc� est� cansada.
- Um pouco. Toda essa mudan�a de fuso hor�rio, imagino. - Espiou pela janela onde p�lidos raios de sol lutavam contra o vidro. - Sempre pensei em Gales como
um lugar selvagem e bonito.
- Grande parte � assim. As montanhas s�o espetaculares e a costa tamb�m. A pen�nsula Lleyn � um pouco tur�stica demais, cheia de ingleses de f�rias, mas realmente
maravilhosa. H� ainda os planaltos muito pastorais e tradicionalmente gauleses. Se voc� visse as charnecas ao sol da tarde, veria como o pa�s � selvagem e bonito.
- Voc� j� esteve em tantos lugares. � surpreendente que possa se lembrar assim de todos.
- Sempre h� alguma coisa que fica gravada na sua mente. - Olhou ao redor do melanc�lico quarto do hotel. - Sinto por isso aqui, Brie. Era o mais conveniente.
Se quiser ficar mais um ou dois dias, posso lhe mostrar as paisagens.
Ela sorriu � id�ia de jogar para o alto todas as suas responsabilidades e sair viajando com Gray por colinas e praias estrangeiras.
- Preciso voltar para casa logo que terminarmos o que viemos fazer N�o posso abusar da boa vontade da Sra. O'Malley por muito mais tempo. - Virou-se do espelho.
- E voc� est� querendo voltar ao trabalho. D� para perceber.
- Me pegou. - Tomou as m�os dela. - Quando eu terminar o livro, terei algum tempo antes de viajar para pensar no pr�ximo. Poderemos ir a algum lugar. Qualquer
lugar que goste. Gr�cia ou o Sul do Pac�fico. Oeste da �ndia. Gostaria? Algum lugar com palmeiras e praia, �gua azul, areia branca.
- Parece ador�vel. - Ele, Brianna pensou, que nunca fazia planos, estava fazendo agora. Achou mais sensato n�o chamar a aten��o para isso. - Talvez seja complicado
me afastar novamente em t�o pouco tempo. - Apertou a m�o dele, antes de solt�-la para pegar a bolsa. - Estou pronta, se voc� tamb�m est�.
Encontraram os correios facilmente, mas a mulher encarregada do balc�o parecia imune ao charme de Gray. N�o era sua fun��o dar nomes de pessoas que alugavam
caixas postais, disse a eles energicamente. Poderiam ter uma se quisessem, e ela tamb�m n�o ficaria falando com estranhos.
Quando Gray perguntou a respeito da Minas Triquarter, recebeu em resposta um sacudir de ombros e uma careta. O nome n�o significava nada para ela.
Gray considerou uma propina, mas outra olhada no jeito empertigado da mulher o fez desistir da id�ia.
- Queimamos um cartucho - disse, quando deixaram o pr�dio dos correios.
- N�o acredito que voc� pensasse que seria t�o f�cil.
- N�o, mas �s vezes voc� acerta quando menos espera. Vamos tentar algumas companhias de minera��o.
- N�o dev�amos relatar tudo o que sabemos �s autoridades locais?
- Faremos isso.
Checou, incans�vel, escrit�rio ap�s escrit�rio, fazendo as mesmas perguntas, recebendo as mesmas respostas. Ningu�m em Rhondda ouvira falar da Triquarter.
Brianna deixou-o assumir o controle, pelo simples prazer de observ�-lo trabalhar. Parecia que ele podia se ajustar, como um camale�o, a qualquer personalidade que
escolhesse.
Podia ser charmoso, bruto, met�dico, astuto. Era, sup�s, como ele pesquisava um assunto sobre o qual deveria escrever. Fez perguntas intermin�veis, por vezes
bajulando ou tiranizando pessoas pela resposta.
Depois de quatro horas, ela j� sabia mais sobre minas de carv�o e acerca da economia de Gales do que tinha vontade. E nada sobre a Triquarter.
- Voc� precisa de um sandu�che - Gray decidiu.
- N�o recusaria um.
- �timo, vamos nos reabastecer e reavaliar a quest�o.
- N�o quero que voc� fique desapontado porque n�o conseguimos nada.
- Mas conseguimos. Sabemos, sem sombra de d�vida, que n�o existe a Minas Triquarter, nunca existiu. A caixa postal dos correios � um embuste e tem todas as
probabilidades de ter sido alugada por quem est� � frente do neg�cio.
- Por que pensa assim?
- Eles precisam dela at� que acertem com voc�, e algum outro investidor pendente. Imagino que devem ter limpado tudo. Vamos tentar aqui. - Conduziu-a a um
pequeno pub.
Os aromas eram familiares o bastante para deix�-la com saudades de casa, as vozes apenas estranhas o bastante para serem ex�ticas. Escolheram uma mesa onde
Gray imediatamente examinou o fino card�pio de pl�stico. - Hummm... batata recheada... N�o deve ser t�o gostosa quanto a sua, mas j� resolve. Quer experimentar?
- Para mim est� �timo. E ch�.
Gray fez o pedido e inclinou-se para a frente.
- Estou pensando, Brie, se a morte de seu pai logo depois de ter comprado as a��es tem algo a ver com isso. Voc� disse que encontrou os certificados das a��es
no s�t�o.
- Sim. N�o mexemos em todas as caixas depois que ele morreu. Minha m�e, bem, Maggie n�o teve coragem, e deixei como estava porque...
- Porque Maggie estava sofrendo, e sua m�e n�o deixava voc� em paz.
- N�o gosto de cenas. - Apertou os l�bios e fitou o tampo da mesa. - Era mais f�cil recuar, afastar-me. - Seus olhos ficaram distantes. - Maggie era a luz
da vida de meu pai. Ele me amava, sei que sim, mas o que havia entre eles era algo especial. Apenas entre eles. Ela estava sofrendo tanto, e houve uma briga sobre
a casa, por ter ficado para mim e n�o para minha m�e. Mam�e estava azeda, brava, e deixei as coisas rolarem. Queria come�ar meu neg�cio, voc� sabe. Ent�o era mais
f�cil evitar as caixas, limp�-las de vez em quando, e dizer a mim mesma que mexeria nelas aos poucos.
- E, afinal, voc� mexeu.
- N�o sei por que escolhi aquele dia. Talvez pelo fato de as coisas estarem mais ou menos acomodadas. Mam�e em sua pr�pria casa, Maggie com Rogan. E eu...
- N�o estava sofrendo tanto por causa dele. J� havia passado tempo suficiente para que voc� fizesse coisas pr�ticas.
- � verdade. Achei que poderia cuidar das coisas que ele guardara, sem sofrer muito, sem ficar pensando que tudo poderia ter sido diferente. E tamb�m por um
pouco de ambi��o. - Suspirou. - Estava pensando em reformar o s�t�o para h�spedes.
- Esta � minha Brie. - Tomou-lhe a m�o. - Ent�o ele guardara os certificados l�, e anos se passaram sem que ningu�m os encontrasse. Ou mexesse com eles. Imagino
que eles os tenham cancelado. Por que se arriscariam a fazer contato? Se fizessem qualquer investiga��o, saberiam que Tom Concannon morrera e seus herdeiros n�o
tinham negociado as a��es. Deviam ter se perdido, ter sido destru�dos ou jogados fora por engano. Ent�o voc� escreveu a carta.
- E aqui estamos. Ainda n�o explica por que me ofereceram dinheiro.
- Ok, vamos continuar com as suposi��es. � uma de minhas grandes habilidades. Suponha que, quando o neg�cio foi feito, fosse
um embuste completo, como expliquei em Nova York. Ent�o imagine que algu�m se torne ambicioso ou tenha sorte. Expanda o neg�cio. Triquarter estava fora do
esquema, mas as fontes, o lucro, a organiza��o ainda estavam l�. Talvez preparasse outro golpe, talvez se metesse em algo legal. Talvez estivesse mexendo com coisas
no lado direito da lei, usando-as como cobertura. N�o seria uma surpresa se o neg�cio legal come�asse a funcionar? Talvez tenham tido mais lucro do que com a trapa�a.
Ent�o � preciso livrar-se daquela parte obscura, ou, pelo menos, encobri-la.
Brianna esfregou a testa enquanto sua refei��o era servida. - Est� tudo t�o confuso para mim.
- Alguma coisa sobre aqueles certificados de a��es perdidos. Dif�cil dizer o qu�. - Deu uma boa garfada. - Hum, n�o chega nem aos p�s da sua. - E engoliu.
- Mas h� alguma coisa, e eles a querem de volta, at� mesmo pagam para t�-la de volta. Ah, n�o muito, n�o o bastante para deixar voc� suspeitando ou interessado em
investimentos futuros. S� o suficiente para fazer valer a pena vender.
- Voc� sabe mesmo como todos esses neg�cios funcionam, n�o �?
- Demais. Se n�o fosse para escrever... - Deteve-se sacudindo os ombros. N�o era algo para se estender. - Bem, podemos considerar uma sorte que eu tenha tido
algumas experi�ncias nessa linha. Vamos fazer umas paradas depois de comer e ent�o procuraremos os tiras.
Ela concordou, aliviada por transferir toda aquela confus�o para as autoridades. O lanche ajudou a levantar-lhes o �nimo. Pela manh�, estariam em casa. Sobre
o ch�, come�ou a sonhar com seu jardim, a acolhida de Con, o trabalho em sua pr�pria cozinha.
- Terminou?
- Hummm? Gray sorriu para ela.
- Viajando?
- Estava pensando na casa. Minhas rosas devem estar florescendo.
- Amanh�, a esta hora, estar� em seu jardim. - Prometeu e,
depois de pagar a conta, levantou.
Na rua, passou o bra�o pelos ombros dela.
- Quer experimentar o transporte local? Se pegarmos um �nibus, atravessar� a cidade mais rapidamente. Posso alugar um carro se voc� quiser.
- N�o seja bobo. Um �nibus est� bom.
- Ent�o vamos... espere. - Empurrou-a para a porta do pub. - N�o � interessante? - murmurou, fitando o outro lado da rua. - N�o � simplesmente fascinante?
- O que foi? Voc� est� me esmagando.
- Desculpe. Esconda-se o mais que puder e d� uma olhada para o outro lado da rua. - Os olhos dele come�aram a cintilar. - Na dire��o dos correios. O homem
carregando o guarda-chuva preto.
Ela espiou.
- Sim - disse, depois de um momento. - H� um homem com um guarda-chuva preto.
- N�o lhe parece familiar? Pense em alguns meses atr�s. Se bem me lembro, voc� nos serviu salm�o e pav�.
- N�o sei como voc� pode se lembrar tanto da comida. Esticou-se mais, apertando os olhos. - Parece algu�m bem comum para mim. Como um advogado ou um banqueiro.
- Bingo! Ou isso foi o que ele nos disse. Nosso banqueiro aposentado de Londres.
- O Sr. Smythe-White. - A s�bita lembran�a a fez rir. - Bem, � estranho, n�o �? Por que estamos nos escondendo dele?
- Porque � estranho, Brie. Porque � muito, muito estranho que seu h�spede de uma noite, aquele que dizia estar fazendo turismo quando sua casa foi invadida,
esteja passeando por uma rua em Gales, indo justamente para os correios. Quer apostar que ele aluga uma caixa postal l�?
- Oh! - Ela deixou-se cair contra a porta. -Jesus Cristo! O que vamos fazer?
- Esperar. E depois segui-lo.
-
N
�o tiveram de esperar muito. Apenas cinco minutos depois que Smythe-White entrou nos correios, saiu novamente. Deu uma r�pida olhada para a direita, para a esquerda,
e ent�o correu pela rua, o guarda-chuva dan�ando a seu lado como um p�ndulo.
- Droga, ela contou a ele.
- O que �?
- Venha, r�pido! - Gray pegou a m�o de Brianna e correu atr�s de Smythe-White. -A funcion�ria dos correios ou qualquer coisa que seja. Contou a ele que estivemos
fazendo perguntas.
- Como sabe?
- De repente, ele sai em disparada. - Gray examinou o tr�fego, praguejou e puxou Brianna em ziguezague entre um caminh�o e um sed�. O cora��o dela foi parar
na garganta quando os dois motoristas reagiram com buzinadas ensurdecedoras. J� de sobreaviso, Smythe-White olhou para tr�s, avistou-os e come�ou a correr.
- Fique aqui - Gray ordenou.
- N�o fico n�o. - Correu atr�s dele, as longas pernas a mantendo n�o mais do que tr�s passos atr�s. Sua ca�a pode ter se esquivado mudado de dire��o, empurrando
pedestres, mas era uma dura disputa com aqueles dois jovens e saud�veis perseguidores nos seus calcanhares.
Como se tivesse chegado � mesma conclus�o, deteve-se diante de uma farm�cia, ofegante. Tirou um len�o impecavelmente branco do bolso para secar a testa, e
ent�o virou-se, arregalando os olhos por tr�s das lentes brilhantes.
- Ora, Srta. Concannon, Sr. Thane, que surpresa! - Ele teve bom senso e condi��es de sorrir agradavelmente, mesmo com a m�o sobre o cora��o em disparada. -
O mundo �, realmente, um lugar pequeno. Est�o passando f�rias em Gales?
- N�o mais do que o senhor - Gray respondeu. - Temos neg�cios para discutir, cara. Vai falar aqui ou devemos procurar a pol�cia local?
Smythe-White piscou inocentemente. Num gesto habitual, tirou os �culos, poliu as lentes.
- Neg�cios? Receio estar completamente perdido. � sobre aquele infeliz incidente em sua pousada, Srta. Concannon? Como lhe disse, n�o perdi nada e n�o tenho
nenhuma reclama��o.
- N�o surpreende que o senhor n�o tenha perdido nada, j� que foi quem fez o estrago. Tinha que atirar todas as minhas coisas no ch�o?
- Como?
- Parece melhor a pol�cia, ent�o - Gray falou segurando Smythe-White pelo bra�o.
- Receio n�o ter tempo para passear agora, embora fosse �timo estar com voc�s. - Tentou, e fracassou, soltar-se do aperto de Gray. - Como pode provavelmente
ver, estou com pressa. Um compromisso que esqueci completamente. Estou bastante atrasado.
- Quer os certificados das a��es de volta ou n�o? - Gray teve prazer de ver o homem hesitar, reconsiderar. Atr�s das lentes dos �culos que ele cuidadosamente
recolocava, de repente os olhos dele se tornaram dissimulados.
- Acho que n�o entendi.
- Entendeu muito bem, assim como n�s. Uma trapa�a � uma trapa�a, em qualquer pa�s, em qualquer l�ngua. S� n�o tenho certeza sobre a pena por fraude, jogos
de confiss�o, falsifica��o de a��es no Reino Unido, mas eles podem ser bem rudes com profissionais no lugar de onde venho. E voc� usou os correios, Smythe-White.
O que foi provavelmente um erro. Desde que ponha um selo e entregue ao setor de correios local, a fraude se torna fraude postal. Um neg�cio muito mais s�rdido.
Deixou Smythe-White absorver aquilo, antes de continuar:
- E ent�o existe a id�ia de que sua base � Gales e aplicou seu golpe atravessando o mar da Irlanda. Caracteriza um crime internacional. Voc� devia estar olhando
longe.
- Ora, ora, n�o vejo raz�o para amea�as. - Smythe-White sorriu novamente, mas o suor come�ara a escorrer em sua testa. - Somos pessoas razo�veis. E � um problema
pequeno, um problema muito pequeno que podemos resolver com facilidade, e para a satisfa��o de todos.
- Por que n�o falamos a esse respeito?
- Sim, sim, por que n�o? - Animou-se instantaneamente. - Com um drinque. Adoraria oferecer um drinque aos dois. H� um pub logo depois de dobrar a esquina.
Calmo. Por que n�o tomamos uma cerveja amigavelmente, ou duas, enquanto esmiu�amos todo esse neg�cio?
- Por que n�o? Brie?
- Mas acho que dev�amos...
- Conversar - Gray disse brandamente e, mantendo uma das m�os firme no bra�o de Smythe-White, segurou o dela. - H� quanto tempo est� no jogo? - Gray perguntou
com alguma intimidade.
- Ah, meu caro, desde antes de voc�s dois terem nascido, imagino. Estou fora agora, de verdade, completamente fora. Dois anos atr�s,
minha esposa e eu compramos uma pequena loja de antiguidades em Surrey.
Pensei que sua esposa tinha morrido - Brianna falou, enquanto Smythe-White caminhava para o pub.
- Ah, n�o. Iris est� em �tima forma. Cuidando das coisas para mim, enquanto dou um fim neste pequeno neg�cio. Vamos muito bem - acrescentou, quando entraram
no pub. - Muito bem mesmo.
Al�m da loja de antiguidades, temos participa��o em v�rios outros empreendimentos. Todos perfeitamente legais, asseguro a voc�. - Cavalheiro ao extremo, puxou
a cadeira para Brianna. - Uma companhia de viagens, a First Flight, j� deve ter ouvido falar. Impressionado, Gray levantou uma sobrancelha.
- Tornou-se uma das maiores empresas na Europa. Smythe-White empertigou-se.
- Gosto de pensar que minhas habilidades empresariais t�m algo a ver com isso. Come�amos, mais exatamente, fazendo contrabandos clandestinos. - Riu, desculpando-se,
para Brianna. - Minha querida, espero que n�o esteja muito chocada.
Ela simplesmente sacudiu a cabe�a.
- Nada mais pode me chocar, neste ponto.
- Podemos pedir uma Harp? - perguntou, fazendo o papel de anfitri�o af�vel. - Parece apropriado. - Depois de acomodados, Smythe-White fez o pedido. - Bem,
como disse, n�s realmente fizemos um pouco de contrabando. Fumo e bebidas principalmente. Mas n�o t�nhamos muito gosto por isso, e o turismo acabou realmente trazendo
mais lucro, sem riscos, por assim dizer. E como Iris e eu j� temos certa idade, decidimos nos aposentar. Num modo de dizer. Sabe que o neg�cio das a��es foi um dos
nossos �ltimos? A minha Iris sempre gostou de antig�idades. Ent�o usamos os lucros daquilo para comprar pe�as e suprir nossa lojinha. - Encolheu-se sorrindo timidamente.
- Suponho que seja de mau gosto falar a esse respeito.
- N�o deixe que isso o interrompa. - Gray reclinou-se na cadeira quando as cervejas foram servidas.
- Bem, imagine nossa surpresa, nossa consterna��o, quando recebemos sua carta. Mantive aquela caixa postal aberta porque temos interesses em Gales, mas o neg�cio
da Triquarter era coisa do passado. Completamente esquecido. Fico constrangido de dizer que seu pai, descanse em paz, se encaixou em nossos esfor�os de reorganiza��o.
Espero que acreditem quando digo que o achei um homem muito agrad�vel.
Brianna apenas suspirou.
- Obrigada.
- Devo dizer que Iris e eu quase nos apavoramos quando soubemos de voc�. Se f�ssemos relacionados com aquela antiga vida, nossa reputa��o, o pequeno neg�cio
que constru�mos com amor nos �ltimos anos poderia estar arruinado. Para n�o falar, ent�o, ah... - Tocou de leve os l�bios com o guardanapo. - Ramifica��es legais.
- Voc� podia ter ignorado a carta - Gray disse.
- E consideramos isso. Ignoramos a princ�pio. Mas, quando Brianna escreveu novamente, sentimos que alguma coisa tinha de ser feita. Os certificados. - Ele
teve o m�rito de ruborizar. - � meio amea�ador admitir isso, mas atualmente assino meu nome real. Arrog�ncia, suponho, e n�o estava usando naquela �poca. Trazer
aquilo � tona agora, chamar a aten��o das autoridades, podia ser realmente inoportuno.
- � como voc� disse - Brianna murmurou, olhando para Gray. - � quase exatamente como voc� disse.
- Sou bom nisso - murmurou, acariciando a m�o dela. - Ent�o voc� foi a Blackthorn para conferir a situa��o, por si mesmo.
- Sim. Iris n�o p�de me acompanhar, pois est�vamos esperando uma remessa importante de pe�as Chippendale. Confesso que estava bem entusiasmado por ter de agir
na surdina outra vez. Um pouco de nostalgia, uma pequena aventura. Fiquei absolutamente encantado com sua casa, e mais do que apenas um pouco preocupado quando descobri
que voc� tinha rela��es de parentesco com Rogan Sweeney. Afinal, ele � um homem importante, inteligente. Preocupou-me que ele tivesse se envolvido. Ent�o... quando
a oportunidade se apresentou, dei uma r�pida busca, eu mesmo, atr�s dos certificados.
Colocou a m�o sobre a de Brianna, apertando-a paternalmente.
- Pe�o desculpas, realmente, pela desordem e inconveni�ncia. N�o sabia quanto tempo teria sozinho, entende? Esperava que, se pudesse botar as m�os neles, colocar�amos
um ponto final em todo esse neg�cio infeliz. Mas...
- Dei os certificados para Rogan guardar - Brianna falou.
- Ah, estava com medo de algo assim. Achei estranho ele n�o ter ido adiante.
- A esposa dele estava perto de ter o beb�, e ele ainda estava abrindo uma galeria nova. - Brianna parou de repente, percebendo que estava quase se desculpando
pelo cunhado. - Eu mesma podia resolver o assunto.
- Comecei a suspeitar disso depois de poucas horas na sua casa. Um esp�rito organizado � um perigo para algu�m no meu neg�cio anterior. Voltei mais uma vez,
achando que podia dar outra busca mas com seu c�o e seu her�i em casa tive que fugir. Brianna encarou-o.
- Voc� estava espiando na minha janela.
- Sem qualquer inten��o desrespeitosa, juro. Minha querida, sou velho o bastante para ser seu pai e completamente feliz no casamento. - Resmungou um pouco,
como se insultado. - Bem, propus comprar as a��es de volta e a oferta est� de p�.
- Por meia libra cada - Gray lembrou-o secamente.
- O dobro do que Tom Concannon pagou. Tenho os pap�is, se voc� quiser ter provas.
- Ah, tenho certeza de que algu�m com seu talento pode aparecer com qualquer documento de transa��o que queira.
Smythe-White deixou escapar um longo e sofrido suspiro.
- Sei que acha que tem o direito de me acusar desse tipo de comportamento.
- Acho que a pol�cia ficar� fascinada com seu comportamento. Olhos fixos em Gray, Smythe-White tomou um gole r�pido de cerveja.
- De que isso serviria agora? Duas pessoas na flor da idade, com os impostos em dia, esposos devotados... arruinados e mandados para a pris�o por imprud�ncias
passadas.
- Voc� enganou pessoas - Brianna retorquiu. - Enganou meu pai.
- Dei a seu pai exatamente aquilo por que ele pagou, Brianna. Um sonho. Ele saiu feliz do nosso neg�cio, esperando, como muitos esperavam, ganhar alguma coisa
de quase nada. - Sorriu-lhe gentilmente. - Ele s� queria mesmo ter essa esperan�a.
Como aquilo era verdade, ela n�o achou nada para dizer.
- Isso n�o torna a coisa certa - respondeu afinal.
- Mas j� reparamos nossos atos. Mudar de vida � algo que exige muito esfor�o, querida. Exige trabalho, paci�ncia e determina��o.
Ela encarou-o outra vez, porque suas palavras atingiram o alvo. Se o que ele dizia era verdade, havia duas pessoas naquela mesa que tinham feito aquele esfor�o.
Condenaria Gray pelo que fizera no passado? Desejaria ver alguma falha antiga vindo � tona e o arrastando?
- N�o quero que o senhor e sua esposa sejam presos, Sr. Smythe-White.
- Ele conhece as regras - Gray interrompeu, apertando forte a m�o de Brianna. -Aqui se faz, aqui se paga. Talvez possamos evitar as autoridades, mas a cortesia
vale mais do que mil libras.
- Como expliquei... - Smythe-White come�ou.
- As a��es n�o valem nada - Gray completou. - Mas os certificados. Eu diria que chegariam a dez mil.
- Dez mil libras? - Smythe-White gritou, enquanto Brianna simplesmente se deixou ficar sentada, com a boca aberta. - � chantagem. � roubo. �...
- Uma libra por unidade - Gray concluiu. - Mais do que razo�vel com o que ganhou com elas. E com o apreci�vel lucro que recebeu dos investidores. Acho que
o sonho de Tom Concannon pode se tornar realidade. N�o acho que seja chantagem. Penso que � justi�a. E justi�a n�o � algo negoci�vel.
P�lido, Smythe-White recostou-se na cadeira, pegou novamente o len�o e secou o rosto.
- Meu jovem, est� esmagando meu cora��o.
- Que isso, s� seu tal�o de cheques! Que � gordo o suficiente para bancar isso. Voc� causou uma s�rie de problemas a Brie, uma s�rie de preocupa��es. Vasculhou
a casa dela. Agora, enquanto posso compreender sua situa��o, n�o imagino que perceba o que exatamente aquela casa significa para ela. Voc� a fez chorar.
- Ah, sim, � verdade. - Smythe-White sacudiu o len�o, tocando o rosto de leve. - Pe�o desculpas, sinceramente. Aquilo foi terr�vel, realmente terr�vel. N�o
fa�o id�ia do que Iris diria.
- Se ela � inteligente - Gray falou pausadamente -, acho que diria "pague logo e d� gra�as a Deus".
Ele suspirou, enfiando o len�o no bolso.
- Dez mil libras. � um homem duro, Sr. Thane.
- Herb, acho que posso cham�-lo de Herb, porque, neste momento, ambos sabemos que sou seu melhor amigo.
Ele concordou com tristeza.
- Infelizmente � verdade. - Mudando de t�tica, olhou esperan�oso para Brianna. - Com certeza eu a fiz sofrer e sinto terrivelmente por isso. Vamos resolver
logo isso. Pensei que talvez pud�ssemos cancelar o d�bito com uma troca. Uma linda viagem para voc�. Ou m�veis novos para sua pousada. Temos algumas pe�as ador�veis
na loja.
- Dinheiro resolve - Gray falou, antes que Brianna pudesse pensar numa resposta.
- � um homem duro - Smythe-White repetiu e deixou cair os ombros. - Creio que n�o tenho escolha. Preencherei um cheque.
- Ter� que ser em dinheiro. Outro suspiro.
- Sim, claro. Tudo bem. Ent�o, n�s vamos fazer um acordo. Naturalmente n�o carrego comigo uma quantia dessas numa viagem de neg�cios.
- Claro que n�o - Gray concordou. - Mas pode consegui-la. Para amanh�.
- Realmente, um ou dois dias seriam mais razo�veis - Smythe-White come�ou, mas, ao ver o brilho nos olhos de Gray, rendeu-se:
- Mas posso ligar para Iris. N�o ser� dif�cil ter o dinheiro aqui, amanh�.
- Aposto que n�o. Smythe-White sorriu desanimado.
- Se me der licen�a, preciso ir ao toalete. - Sacudindo a cabe�a, levantou-se e andou at� o fundo do pub.
- N�o entendo - Brianna sussurrou quando Smythe-White j� n�o podia ouvir. - Fiquei quieta porque voc� estava me chutando por baixo da mesa, mas...
- Cutucando voc� - Gray corrigiu. - Estava s� cutucando voc� e...
- Sim, e vou ficar mancando por uma semana. Mas a quest�o � que voc� o est� deixando escapar e fazendo com que pague uma quantia enorme. N�o parece certo.
- � absolutamente certo. Seu pai queria seu sonho e ele esta conseguindo seu sonho. O velho Herb sabe que muitas vezes os neg�cios d�o errado e voc� vai ter
que arcar com o preju�zo. N�o quer que ele v� preso, nem eu.
- N�o, mas pegar o dinheiro dele...
- Ele pegou o de seu pai, e aquelas quinhentas libras n�o devem ter sido f�ceis para sua fam�lia dispensar.
- N�o, mas...
- Brianna. O que seu pai diria?
Abatida, apoiou o queixo sobre o punho.
- Pensaria que era uma grande piada.
- Exatamente. - Gray dirigiu os olhos ao toalete masculino, apertando-os. - Ele est� demorando muito. Espere um pouco aqui.
Brianna fez uma careta para o copo. Ent�o os l�bios come�aram a se curvar. Era realmente uma grande piada. Seu pai teria gostado muito daquilo.
N�o esperava ver o dinheiro, n�o aquela quantia enorme. N�o mesmo. Bastava saber que eles tinham acertado tudo, sem nenhum preju�zo.
Olhando de soslaio, viu Gray, olhos agitados, irromper do banheiro masculino e correr ao bar. Teve uma r�pida conversa com os gar�ons antes de voltar � mesa.
Seu rosto clareou outra vez, quando se deixou cair na cadeira e pegou a cerveja.
- Bem - Brianna falou depois de esperar um momento.
- Ah, ele fugiu. Pela janela. Velho cafajeste esperto.
- Fugiu? - Confusa pela reviravolta nos acontecimentos, fechou os olhos. - Fugiu - repetiu. - E pensar que me fez gostar dele, acreditar nele.
- � exatamente o que se pode esperar de um trapaceiro. Mas, nesse caso, conseguimos descobrir muita coisa.
- O que vamos fazer agora? S� n�o quero ir � pol�cia, Gray. N�o vou ficar bem comigo mesma imaginando aquele homenzinho e a esposa na cadeia. - Um pensamento
repentino atravessou-lhe o c�rebro, fazendo com que arregalasse os olhos. - Ah, que inferno! Ser� que ele realmente tem uma esposa?
- Provavelmente. - Gray tomou um gole de cerveja, pensativo. - Com o que temos agora, vamos voltar a Clare, deix�-lo cozinhando. Esper�-lo. Ser� bem f�cil
encontr�-lo novamente, se e quando quisermos.
- Como?
- Por meio da First Flight Tours. E tamb�m tem isso. -Ante os olhos at�nitos de Brianna, Gray puxou uma carteira do bolso. -Peguei a carteira dele quando est�vamos
na rua. Por medida de seguran�a - explicou quando ela continuava boquiaberta. - Depois de todos estes anos, at� que n�o estou t�o enferrujado assim. - Sacudiu a
cabe�a para si mesmo. - Devia estar envergonhado. - Ent�o riu e bateu com a carteira na palma da m�o. - N�o fique t�o chocada, s� tem uns trocados e a carteira de
identidade.
Calmamente, Gray contou as notas da carteira e enfiou no pr�prio bolso.
- Ele ainda me deve cem libras, mais ou menos. Diria que carrega o dinheiro de verdade num clipe. Tem um endere�o em Londres - Gray continuou, atirando fora
a carteira roubada. - Dei uma olhada nela no banheiro. H� tamb�m a foto de uma mulher bastante atraente, muito conservada. Diria que � Iris. Oh, e o nome dele �
Carstairs. John B., n�o Smythe-White.
Brianna passou os dedos pelos olhos.
- Minha cabe�a est� girando.
- N�o se preocupe, Brie, garanto que vamos ouvir falar dele outra vez. Pronta pra ir?
- Acho que sim. - Ainda zonza com os acontecimentos do dia, ela levantou-se. - Muito atrevimento mesmo. Ele nos enganou at� nisso... n�o pagou nossa cerveja.
- Ah, pagou sim. - Gray enfiou um bra�o no dela, saudando o barman na sa�da. - Ele � o dono deste maldito pub.
- Ele... - Ela deteve-se, olhou para ele e come�ou a rir.
-
E
ra bom voltar para casa. As aventuras e o glamour de uma viagem eram �timos, Brianna pensava, assim como o simples prazer de sua pr�pria cama, seu pr�prio teto e
a vista familiar de sua pr�pria janela.
N�o se importaria de voar para outro lugar de novo, desde que houvesse uma casa para onde voltar.
Contente por estar de volta � sua rotina, Brianna trabalhava no jardim, escorando os brotos de suas delf�nias e chap�us-de-padre, enquanto o perfume das lavandas
rec�m-florescidas inundava o ar. Abelhas zumbiam por perto, flertando com suas lupinas.
Do fundo da casa vinham os sons de risadas de crian�as e os excitados latidos de Con, enquanto corria atr�s da bola que os visitantes americanos atiravam para
ele.
Nova York parecia t�o longe, t�o ex�tica, como as p�rolas que guardara no fundo da gaveta da c�moda. E o dia que passara em Gales era como um jogo estranho
e pitoresco.
Ergueu os olhos, ajustando a aba do chap�u, para ver a janela de Gray. Ele estava trabalhando, quase que sem parar desde que haviam desfeito as malas. Imaginava
onde andaria agora, em que lugar, em que �poca, que pessoas estariam ao redor dele. E como estaria seu humor quando voltasse para ela.
Irritado, se a coisa andasse mal, pensou. Sens�vel como um c�o perdido. Se andasse bem, estaria faminto - por comida e por ela. Sorriu consigo mesma e delicadamente
amarrou os talos fr�geis �s estacas.
Como era surpreendente ser desejada como ele a desejava. Surpreendente para ambos, concluiu. Ele n�o estava mais habituado �quilo do que ela. E isso o preocupava
um pouco. Distraidamente, deixou os dedos deslizarem por uma moita de sininhos.
Sabia que lhe contara coisas sobre ele que nunca contara a ningu�m mais. E isso o preocupava tamb�m. Que tolice pensar que ela o desprezaria pelo que havia
passado, pelo que fizera para sobreviver!
Podia apenas imaginar o medo e o orgulho de um rapaz que nunca conhecera o amor e as exig�ncias, as tristezas e o consolo de uma fam�lia. Como fora sozinho
e como se fizera sozinho entre o orgulho e o medo. E de algum modo moldara-se num homem zeloso e admir�vel.
N�o, ela n�o o desprezaria. Apenas o amava mais, por saber de tudo isso.
A hist�ria dele a fizera pensar na sua pr�pria, a examinar sua vida. Os pais n�o tinham amado um ao outro e isso fora desastroso. Mas Brianna sabia que tivera
o amor do pai. Sempre soubera e se confortara com isso. Tivera um lar e ra�zes que mantinham corpo e alma ancorados.
E, a seu modo, Maeve a tinha amado. Ao menos, a m�e sentira sua responsabilidade para com os filhos que conhecera, a ponto de ficar com eles. Poderia ter virado
as costas a qualquer hora, Brianna pensava. Isso nunca lhe ocorrera antes e meditava agora a respeito, enquanto se deliciava com as lidas do jardim.
A m�e poderia ter deixado a fam�lia que tinha criado - e se ressentido por isso. Poderia ter voltado � carreira que significava tanto para ela. Mesmo que apenas
o dever a tivesse mantido, era mais do que Gray tivera.
Maeve era dura, amargurada e muitas vezes distorcia as escrituras que lia t�o religiosamente para adapt�-las a seus objetivos. Podia usar os c�nones da Igreja
como um martelo. Mas havia ficado.
Com um pequeno suspiro, ajeitou-se para cuidar da planta seguinte. Chegaria a hora para o perd�o. S� esperava que houvesse perd�o nela.
- Deveria estar contente quando cuida do jardim, e n�o aborrecida. Com a m�o no chap�u, Brianna levantou a cabe�a para olhar Gray.
Um dia bom, percebeu. Quando ele tinha um dia bom, podia-se sentir o prazer vibrando nele.
- Estava divagando um pouco.
- Eu tamb�m. Levantei, olhei pela janela e vi voc�. Por Deus, n�o consegui pensar em mais nada.
- Est� um �timo dia para ficar ao ar livre. E voc� come�ou a trabalhar na madrugada. - Com movimentos r�pidos e estranhamente leves, prendeu uma estaca em
outra planta. - Est� indo bem, ent�o?
- Incrivelmente bem. - Sentou-se ao lado dela, sentindo prazer em aspirar o ar perfumado. - Mal consigo me suportar. Assassinei uma linda jovem hoje.
Soltou uma risada.
- E parece muito satisfeito.
- Gostava muito dela, mas ela tinha de ir. E o assassinato dela vai detonar o esc�ndalo que levar� � desgra�a do assassino.
- Foi nas ru�nas onde estivemos que ela morreu?
- N�o, aquela era outra. Esta encontrou seu destino em Burren, perto do Altar dos Druidas.
- Ah. - Involuntariamente, Brianna tremeu. - Sempre gostei daquele lugar.
- Eu tamb�m. Ele a deixou esticada sobre a cruz de pedra, como uma oferenda a um deus sanguin�rio. Nua, � claro.
- Claro. E suponho que algum turista desafortunado ir� encontr�-la.
- J� encontrou. Um estudante americano num passeio pela Europa. - Gray estalou a l�ngua. - Acredito que nunca mais ser� o mesmo. - Inclinando-se, beijou o
ombro dela. - Ent�o, como foi seu dia?
- N�o t�o cheio de acontecimentos. Despedi-me daqueles ador�veis rec�m-casados de Limerick, esta manh�, e cuidei das crian�as americanas, enquanto os pais
descansavam. - Com seus olhos de �guia, avistou uma min�scula erva daninha e impiedosamente arrancou-a do canteiro. - Eles me ajudaram a assar uns p�ezinhos. Depois,
a fam�lia passou o dia em Bunratty, aquele parque folcl�rico. Voltaram h� pouco. Estou esperando outra fam�lia esta noite, de Edimburgo, que esteve aqui dois anos
atr�s. Eles t�m dois adolescentes, dois meninos que ficaram meio apaixonados por mim, na �ltima vez.
- Verdade? - Distraidamente, deixou um dedo correr pelo ombro dela. - Vou ter que intimid�-los.
- Ah, imagino que j� superaram isso. - Olhando de soslaio, sorriu curiosa, diante do suspiro dele, - O que foi?
- Estava s� pensando que voc� provavelmente arruinou a vida daqueles garotos. Nunca encontrar�o ningu�m que se compare a voc�.
- Que absurdo! - Pegou outra estaca. - Falei com Maggie hoje � tarde. Ficar�o em Dublin por mais uma ou duas semanas. E teremos o batizado quando voltarem.
Murphy e eu seremos os padrinhos.
Trocando de posi��o, ele sentou-se com as pernas cruzadas.
- O que isso significa, exatamente, na religi�o cat�lica?
- Ah, nada muito diferente, imagino, do que significa em qualquer outra religi�o. Falaremos pelo beb� durante o servi�o, como seus padrinhos. E prometeremos
cuidar da educa��o religiosa dele, se algo acontecer a Maggie e Rogan.
- Uma grande responsabilidade.
- � uma honra - respondeu com um sorriso. - Nunca foi batizado, Grayson?
- N�o tenho a m�nima id�ia. Provavelmente n�o. - Deu de ombros e levantou a sobrancelha diante da fisionomia melanc�lica dela. - O que foi agora? Preocupada
porque vou arder no inferno por ningu�m ter respingado �gua sobre a minha cabe�a?
- N�o. - Pouco � vontade, olhou para longe outra vez. E a �gua � apenas um s�mbolo de limpeza do Pecado Original.
- Como assim original?
Ela olhou de volta para ele e sacudiu a cabe�a.
- N�o vai querer que eu lhe ensine catecismo agora, e n�o estou tentando converter voc�. Por falar nisso, Maggie e Rogan v�o convid�-lo para a cerim�nia.
- Tudo bem, eu vou. Ser� interessante. E como est� o beb�?
- Ela disse que Liam est� crescendo a olhos vistos. - Brianna se concentrou no que as m�os estavam fazendo e tentou n�o deixar seu cora��o se confranger muito.
- Contei a ela sobre o Sr. Smythe-White, quero dizer, Sr. Carstairs.
- E ent�o?
- Quase morreu de rir. Acha que Rogan n�o vai achar nenhuma
gra�a, mas n�s duas concordamos que � t�pico de papai se meter numa confus�o dessas. � como se o tiv�ssemos de volta por alguns instantes. "Brie", ele diria,
"se voc� n�o arrisca alguma coisa, nunca ganha alguma coisa." E tenho de lhe dizer que ela ficou impressionada com sua esperteza para localizar o Sr. Carstairs,
e achou que voc� gostaria do trabalho para o qual contratamos o detetive.
- Sem sorte naquilo?
- Na verdade, h� alguma coisa. - Sentou-se outra vez, descansando as m�os sobre as coxas. -Algu�m, creio que um dos primos de Amanda Dougherty, acha que ela
pode ter ido embora para o norte de Nova York, para as montanhas. Parece que j� esteve l� e gostava muito da regi�o. O detetive est� indo para l�, para, ah, qual
� mesmo aquele lugar onde Rip van Winkle adormeceu?
- Catskills?
- Isso mesmo. Ent�o, com sorte, ele vai encontrar alguma coisa l�. Gray pegou uma estaca do jardim e examinou-a com um olhar
ausente, pensando que daria uma �tima arma.
- O que vai fazer se descobrir que tem uma meia-irm� ou irm�o?
- Bem, acho que escreveria � Srta. Dougherty primeiro. - J� pensara sobre isso, cuidadosamente. - N�o quero magoar ningu�m. Mas, pelo tom das cartas dela para
papai, acho que seria o tipo de mulher que gostaria de saber que ela e seu filho s�o bem-vindos.
- E eles seriam... - Ele meditou, deixando a estaca de lado. - Este estranho, de... vinte e seis... vinte e sete anos, seria bem-vindo.
- Claro. - Balan�ou a cabe�a, surpresa com o fato de que ele duvidasse daquilo. - Ele ou ela teria o sangue de papai, n�o teria? Como Maggie e eu temos. Ele
n�o gostaria que vir�ssemos as costas para a fam�lia.
- Mas ele... - Gray parou, sacudindo os ombros.
- Est� pensando que ele pr�prio virou - Brianna disse suavemente. - N�o sei se foi exatamente assim. Acho que nunca saberemos o que ele fez, quando soube.
Mas virar as costas, n�o, n�o seria pr�prio dele fazer isso. Ele guardou as cartas dela, e, conhecendo-o, acho que deve ter sofrido pelo filho que nunca poderia
ver.
O olhar dela acompanhou o esvoa�ar de uma borboleta colorida
- Era um sonhador, Grayson, mas, acima de tudo, era um homem de fam�lia. Desistiu de algo importante para manter a fam�lia unida. Nunca poderia imaginar que
chegasse a tanto, at� ler aquelas cartas.
- N�o o estou criticando. - Pensou no t�mulo e nas flores que Brianna plantara sobre ele. - Apenas odeio ver voc� preocupada.
- Ficarei menos preocupada quando descobrirmos o que for poss�vel.
- E sua m�e, Brianna? Como acha que vai reagir se tudo isso vier � tona?
Os olhos dela esfriaram, virou o queixo numa express�o decidida.
- Cuidarei disso quando chegar a hora. Ela ter� de aceitar a realidade. Por uma vez na vida, ter� de aceitar.
- Ainda est� zangada com ela - ele notou. - Por causa de Rory.
- Rory � passado, n�o existe mais.
Ele tomou as m�os dela antes que pudesse apanhar as estacas. E esperou pacientemente.
- Tudo bem, estou zangada sim. Pelo que fez ent�o, pelo modo como falou com voc�, e talvez, mais do que tudo, pelo modo como fez o que eu sinto por voc� parecer
errado. N�o estou acostumada a ficar zangada assim. Me d� dor de est�mago.
- Ent�o espero que n�o v� ficar zangada comigo - disse enquanto ouvia o barulho de um carro se aproximando.
- Por que ficaria?
Sem dizer nada, ele levantou-se e a puxou. Juntos, viram o carro chegar e parar. Lottie se inclinou com um aceno af�vel, antes que ela e Maeve descessem.
- Liguei para Lottie - Gray murmurou, apertando a m�o de Brianna quando a sentiu tensa entre as suas. - Tipo um convite para uma visitinha.
- N�o quero outra discuss�o com h�spedes em casa. - A voz de Brianna estava gelada. - N�o devia ter feito isso, Grayson. Teria ido v�-la amanh� e discutido
na casa dela, e n�o na minha.
- Brie, seu jardim � uma pintura - Lottie gritou, quando se aproximaram. - E que dia maravilhoso para cuidar dele. - Com seu jeito maternal, abra�ou Brianna
e beijou-lhe o rosto. - Divertiu-se em Nova York?
- Sim, me diverti.
- Vivendo na alta sociedade - Maeve rosnou. - E deixando a
dec�ncia para tr�s.
- Ah, Maeve, pare com isso. - Lottie fez um gesto impaciente. - Quero ouvir tudo sobre Nova York.
- Entrem para um ch� ent�o - Brianna convidou. - Trouxe algumas lembrancinhas.
- Ah, voc� � um amor. Lembrancinhas da Am�rica, Maeve. - Sorriu para Gray enquanto caminhavam para a casa. - E seu filme, Grayson? Foi legal?
- Foi. - Colocou a m�o dela em seu bra�o e o afagou com uma batidinha. - Depois, tive de competir com Tom Cruise pela aten��o de Brianna.
- N�o me diga! - Lottie quase gritou, os olhos arregalados de surpresa. - Ouviu isso, Maeve? Brianna conheceu Tom Cruise!
- N�o dou a m�nima bola para atores - Maeve grunhiu, deses-peradamente impressionada. - Aquela vida desregrada, todos se divorciando.
- Que nada! N�o perde nunca um filme de Errol Flynn quando passa na telinha. - Ponto ganho, Lottie valsou pela cozinha e foi direto ao forno. - Agora, vou
preparar o ch�, Brianna. Assim voc� pode buscar nossos presentes.
- Tenho algumas tortas de cereja para o ch�. - Brianna lan�ou um olhar a Gray quando rumou para o quarto. - Fresquinhas, assadas nessa manh�.
- Ah, que del�cia! Sabe, Grayson, Peter, meu filho mais velho, foi para a Am�rica. Para Boston, visitar primos que temos l�. Conheceu o porto onde voc�s, ianques,
tiravam o ch� ingl�s do barco. Voltou duas vezes e levou os filhos. O filho dele, Shawn, vai mudar para l� e arrumar um emprego.
Enquanto falava sobre Boston e a fam�lia, Maeve mantinha um sil�ncio emburrado. Logo, Brianna voltou, trazendo duas caixinhas.
- H� tantas lojas l� - comentou, determinada a se mostrar alegre. - Para onde quer que se olhe tem algo � venda. Foi dif�cil decidir o que trazer para voc�s.
- O que quer que seja ser� ador�vel. - Curiosa, Lottie largou o prato de tortas e foi pegar sua caixa. - Ah, olhem s� para isto! - Levantou uma pequena garrafa
decorada em dire��o � luz, onde ela refletiu um azul forte.
- Se voc� quiser, pode p�r perfume nela ou ent�o usar como enfeite.
- � linda como n�o podia deixar de ser - declarou. - Olhe s� como tem flores esculpidas dentro dela. L�rios. Que gentileza, Brianna. Ah, Maeve, a sua � vermelha
como rubi. Com papoulas. N�o vai ficar linda sobre a c�moda?
- S�o muito bonitas. - Maeve quase n�o podia resistir a passar o dedo sobre o desenho. Se tinha alguma fraqueza, era por coisas bonitas. Sentia que nunca tivera
sua parte justa delas. - Foi bondade sua lembrar-se de mim enquanto estava hospedada num grande hotel, convivendo com estrelas de cinema.
- Tom Cruise - Lottie falou, ignorando displicentemente o sarcasmo dela. - Ele � t�o lindo como parece nos filmes?
-At� mais, e charmoso tamb�m. Talvez ele e a esposa venham aqui.
- Aqui? - Extasiada com a id�ia, Lottie levou a m�o ao cora��o.
- Bem aqui, em Blackthorn Cottage? Brianna sorriu.
- Foi o que ele disse.
- Que dia ser� esse? - Maeve resmungou. - O que um homem rico e t�o viajado vai querer num lugar assim?
- Paz - Brianna disse friamente. - E boas comidas. O que todos querem quando ficam aqui.
- E voc� tem bastante disso em Blackthorn - Gray acrescentou.
- Viajo muito, Sra. Concannon, e nunca estive num lugar t�o ador�vel e t�o confort�vel como este. Devia ter orgulho de Brianna pelo seu sucesso.
- Hum. Sei muito bem como voc� deve estar confort�vel aqui, na cama de minha filha.
- S� um idiota n�o estaria - respondeu afavelmente, antes que Brianna pudesse retrucar. - A senhora merece elogios por ter criado uma mulher t�o bondosa e
af�vel, e ao mesmo tempo com c�rebro e dedica��o para dirigir um neg�cio de sucesso. Ela me surpreende.
Aturdida, Maeve n�o disse nada. O cumprimento era uma rea��o que ela n�o esperara. Estava ainda procurando o insulto, quando Gray se dirigiu � bancada.
- Tamb�m trouxe uma coisinha para voc�s duas. - Deixara a sacola na cozinha, antes de sair para falar com Brianna. Preparando o cen�rio, pensou, para que tudo
fosse como queria.
- Ora essa, n�o � gentil? - Surpresa e prazer transpareciam na voz de Lottie enquanto aceitava a caixa que Gray lhe oferecia.
- � s� uma lembrancinha - Gray disse, sorrindo, enquanto Brianna simplesmente olhava para ele, confusa. O suspiro de prazer de Lottie o deliciou.
- � um passarinho. Olhe s�, Maeve, um p�ssaro de cristal. Veja como capta a luz do sol.
- Voc� pode pendur�-lo num fio na janela - Gray explicou. - Vai fazer um arco-�ris para voc�. Voc� me faz lembrar um arco-�ris, Lottie.
- Ah, deixa disso. Arco-�ris. - Piscou com olhos �midos e levantou-se para dar um abra�o apertado em Gray. - Vou pendurar bem na janela da frente. Obrigada,
Gray, voc� � um homem ador�vel. Ele n�o � ador�vel, Maeve?
Maeve grunhiu, hesitando diante de sua caixa de presente. Por direito, sabia que devia lhe atirar a coisa na cara, em vez de aceitar o presente de um homem
daquele tipo. Mas o p�ssaro de cristal de Lottie era t�o lindo. E a combina��o de cobi�a e curiosidade fez com que abrisse a caixa.
Sem fala, levantou o vidro em forma de cora��o. Tamb�m tinha uma tampa e, quando a abriu, a m�sica fez-se ouvir.
- Ah, � uma caixinha de m�sica. - Lottie bateu palmas. - T�o linda e engenhosa. Que m�sica est� tocando?
- Stardust - Maeve murmurou e conteve-se antes que come�asse a cantarolar. - Uma m�sica bem antiga.
- Um cl�ssico - Gray acrescentou. - Eles n�o tinham nada irland�s, mas esta parecia combinar com a senhora.
Os cantos da boca de Maeve se levantaram, enquanto a m�sica a encantava. Ela pigarreou, encarando Gray. Um olhar direto.
- Obrigada, Sr. Thane.
- Gray - corrigiu com carinho.
Trinta minutos depois, Brianna colocava as m�os nos quadris. Estavam s� ela e Gray na cozinha agora, e o prato de tortas estava vazio.
- Foi como um suborno.
- N�o, isso n�o foi como um suborno - disse, imitando-a. - Foi um suborno. Danado de bom tamb�m. Ela sorriu para mim antes de sair.
Brianna bufou.
- N�o sei de quem ficar mais envergonhada, se de voc� ou dela.
- Ent�o pense nisso como um pacto de paz. N�o quero sua m�e deixando voc� triste por minha causa, Brianna.
- Esperto voc� foi. Uma caixa de m�sica.
- Tamb�m acho. Cada vez que ela ouvi-la, vai pensar em mim. N�o vai levar muito tempo para se convencer de que n�o sou um tipo t�o ruim, afinal.
Ela n�o queria rir. Era uma situa��o ultrajante.
- J� a tinha analisado, n�o �?
- Um bom escritor � um bom observador. Ela est� habituada a reclamar. - Abriu a geladeira e pegou uma cerveja. - O problema � que ela n�o anda tendo nada para
reclamar ultimamente. Deve ser frustrante. - Abriu a garrafa e tomou um gole. - E est� com medo de que voc� se afaste dela. E n�o sabe como se aproximar.
- E espera que eu o fa�a.
- Voc� o far�. Voc� � assim. Ela sabe disso, mas est� preocupada que desta vez seja uma exce��o. - Levantou o queixo de Brianna com a ponta do dedo. - N�o
ser�. Fam�lia � algo muito importante para voc�, e voc� j� come�ou a perdo�-la.
Brianna virou-se para arrumar a cozinha.
- N�o � sempre confort�vel ter algu�m olhando dentro de voc� como se fosse de vidro. - Mas ela suspirou, ouvindo o pr�prio cora��o. - Talvez eu tenha come�ado
a perdo�-la. N�o sei quanto tempo o processo vai durar. - Lavou as x�caras, meticulosamente. - Seu plano, hoje, com certeza, o acelerou.
- Essa era a id�ia. - Por tr�s dela, deslizou os bra�os pela sua cintura. - Ent�o, n�o est� brava.
Virando-se, descansou a cabe�a em seu ombro, onde mais gostava de ficar.
- Amo voc�, Grayson.
Ele afagou-lhe os cabelos, olhando pela janela, sem dizer nada.
Os dias que se seguiram tiveram uma temperatura agrad�vel, do tipo que fazia trabalhar no quarto, como viver um eterno crep�sculo. Era f�cil perder a no��o
do tempo, mergulhar no livro com apenas uma vaga percep��o do mundo em torno dele.
Estava se aproximando do assassino, do violento encontro final. Desenvolvera um respeito pela mente do vil�o, espelhando perfeitamente as mesmas emo��es de
seu her�i. O homem era t�o inteligente quanto corrupto. N�o louco, Gray meditava, enquanto outra parte de seu c�rebro visualizava a cena que estava criando.
Alguns chamariam o vil�o de louco, incapazes de conceber que a crueldade e a desumanidade dos assassinatos pudessem brotar de uma
mente n�o distorcida pela insanidade.
Gray sabia bem disso, tanto quanto seu her�i. O assassino n�o era louco, mas fria e sanguinariamente s�o. Era simplesmente, muito simplesmente, mau.
J� sabia exatamente como a ca�ada final se desenvolveria, quase
todos os passos e palavras estavam claros em sua mente. Na chuva, no escuro, entre as ru�nas varridas pelo vento onde sangue j� fora derramado. Sabia que o
her�i veria apenas por um instante o pior de si mesmo refletido no homem que ele perseguia.
E aquela batalha final seria mais do que certo contra errado, bem contra mal. Naquele precip�cio de ventos uivantes, encharcado pela chuva, seria uma luta
desesperada pela reden��o.
Mas aquilo n�o seria o fim. E era em busca daquela desconhecida cena final que Gray corria. Imaginara, desde o come�o, o her�i deixando a vila, deixando a
mulher. Ambos tinham sido irrevogavelmente transformados pela viol�ncia que arruinara aquele calmo lugar. E pelo que acontecera entre eles.
Ent�o, cada um seguiria com o que lhes restava da vida, ou tentaria. Separados, porque os criara como duas for�as dinamicamente opostas, que certamente se
atra�am, mas nunca por muito tempo.
Agora n�o estava t�o claro assim. Imaginava aonde o her�i estava indo e por qu�. Por que a mulher se voltava lentamente, como havia planejado, movendo-se em
dire��o � porta da pousada, sem olhar para tr�s.
Deveria ter sido simples, verdadeiro para os personagens, satisfat�rio. Quanto mais pr�ximo de alcan�ar aquele momento, mais apreensivo ficava.
Chutando a cadeira, olhou inexpressivamente para o quarto. N�o tinha id�ia de que horas do dia seriam ou por quanto tempo ficara acorrentado ao trabalho. Mas
uma coisa era certa: estava exausto.
Precisava caminhar, decidiu, com chuva ou sem chuva. E precisava parar de criticar a si mesmo e deixar aquela cena final se desdobrar do seu pr�prio jeito,
e no seu tempo.
Come�ou a descer as escadas, maravilhado com o sil�ncio, antes de lembrar que a fam�lia da Esc�cia tinha ido embora. Quando rastejara para fora de sua caverna
tempo suficiente para notar, divertira-se vendo os dois rapazes andarem atr�s de Brianna, competindo pela aten��o dela.
Era dif�cil culp�-los por isso.
O som da voz de Brianna fez com que se voltasse para a cozinha:
- Bom-dia, Kenny Feeney. Visitando sua av�?
- Sim, Srta. Concannon. Ficaremos aqui por duas semanas.
- Fico contente de ver voc�. Cresceu bastante. Quer entrar e tomar uma x�cara de ch� com bolo?
- Adoraria.
Gray viu um garoto em torno de doze anos dar um sorriso de dentes tortos quando entrou, saindo da chuva. Ele carregava alguma coisa grande e aparentemente
pesada, enrolada em jornais.
- Vov� lhe mandou uma perna de cordeiro, Srta. Concannon. N�s o abatemos esta manh�.
- Ah, que gentileza dela! - Com vis�vel prazer, Brianna pegou o medonho pacote, enquanto Gray, escritor de romances policiais sedentos de sangue, sentia o
est�mago embrulhar.
- Preparei um bolo de groselha. Que tal uma fatia e depois levar o resto para ela?
- Tudo bem. - Educadamente, descal�ando as botas de cano alto, o garoto despiu a capa de chuva e o bon�. Ent�o viu Gray. - Bom-dia - disse polidamente.
- Ah, Gray, n�o ouvi voc� descer. Este � o jovem Kenny Feeney, neto de Alice e Peter Feeney, da fazenda no fim da rua. Kenny, este � Grayson Thane, um h�spede.
- O ianque - Kenny disse enquanto sacudia solenemente a m�o de Gray. - Voc� escreve livros com assassinatos, minha av� diz.
- Verdade. Voc� gosta de ler?
- Gosto de livros sobre carros e esportes. Talvez voc� possa escrever um livro sobre futebol.
- Vou pensar nisso.
- Quer um peda�o de bolo, Gray? - Brianna perguntou, enquanto cortava. - Ou prefere um sandu�che agora?
Ele lan�ou um olhar cauteloso para o monte embaixo do jornal. Imaginou-o balindo.
- N�o, nada. Agora n�o.
- Voc� mora em Kansas City? - Kenny quis saber. - Meu irm�o mora. Foi para os Estados Unidos tr�s anos atr�s. Ele toca numa banda.
- N�o, n�o moro, mas j� estive l�. � uma cidade bonita.
- Pat diz que � o melhor lugar do mundo. Estou guardando dinheiro, a� vou poder ir pra l� quando tiver idade suficiente.
- Vai nos deixar ent�o, Kenny? - Brianna passou a m�o pelos cabelos vermelhos desgrenhados.
- Quando tiver dezoito anos. - Deu outra mordida feliz no bolo, engolindo-o com ch�. - Voc� pode conseguir um bom trabalho l� e pagam bem. De repente eu jogo
num time americano de futebol. Eles t�m um, l� mesmo em Kansas City, sabe?
- Ouvi falar. - Gray sorriu.
- O bolo est� legal, Srta. Concannon. - Kenny raspou at� o �ltimo farelo.
Ao sair pouco depois, Brianna observou-o correr em disparada pelos campos, o bolo empacotado embaixo do bra�o, como uma de suas preciosas bolas de futebol.
- Tantos deles v�o embora. Dia ap�s dia, ano ap�s ano, n�s os perdemos. - Sacudindo a cabe�a, fechou a porta da cozinha outra vez. - Vou dar um jeito em seu
quarto, agora que voc� saiu.
- Estava indo dar uma caminhada. Por que n�o vem comigo? - S� se for bem r�pido. Deixe-me... - Sorriu desculpando-se, quando o telefone tocou. - Boa-tarde,
Blackthorn Cottage. Oh, Arlene, como vai? - Estendeu a m�o para falar com Gray. - � bom ouvir voc�. Sim, estou bem. Gray est� bem aqui, eu vou... oh? -A sobrancelha
subiu, e ent�o sorriu outra vez. - Seria �timo! Naturalmente voc� e seu marido s�o mais do que bem-vindos. Setembro � uma �tima �poca do ano. Estou t�o contente
que estejam vindo. Sim, tenho Quinze de setembro, por cinco dias. Claro que sim, d� para fazer muitos passeios partindo daqui. Devo enviar alguma informa��o? N�o,
ser� um prazer. Estou ansiosa tamb�m. Sim, Gray est� aqui, como eu disse. S� um momento.
Ele pegou o telefone, mas olhou para Brianna.
- Ela vem � Irlanda em setembro?
- De f�rias, ela e o marido. Parece que despertei sua curiosidade. Ela tem novidades para voc�.
- Hum-hum. E a�, linda! Dando uma de turista pelos condados do Oeste? - Riu, balan�ando a cabe�a quando Brianna lhe ofereceu ch�. - N�o, acho que vai adorar.
O tempo? - Olhou pela janela a chuva que ca�a forte. - Magn�fico! - Piscou para Brianna enquanto bebericava o ch�. - N�o, n�o recebi seu pacote ainda. O que h� nele?
Sacudindo a cabe�a, murmurou para Brianna:
- Cr�ticas do filme. - Parou ouvindo. - Quais s�o os elogios? Humm. Brilhante, gosto de brilhante. Espere, repita isso. "Da mente f�rtil de Grayson Thane"
- repetiu para Brianna. - Digno do Oscar. Dois polegares para cima. - Ele riu. - O filme mais poderoso do ano. Nada mau, mesmo que ainda seja maio. N�o. N�o estou
debochando. � �timo! Melhor ainda! Refer�ncias ao novo livro - disse a Brianna.
- Mas voc� ainda n�o terminou o livro novo.
- N�o esse livro novo. O que vai sair em julho. Esse � o livro novo, o que estou trabalhando � o manuscrito novo. N�o, estava s� explicando coisas b�sicas
sobre publica��o para a anfitri�.
Com os l�bios apertados, ele continuou ouvindo.
- Mesmo? Gosto disso.
Sem tirar os olhos dele, Brianna foi dar uma olhada no forno. Gray fazia coment�rios, murmurava algo. De vez em quando, ria ou sacudia a cabe�a.
- Ainda bem que n�o estou de chap�u. Minha cabe�a est� crescendo. Sim, a ag�ncia de publicidade me mandou uma carta enorme sobre os planos para a turn� de
divulga��o. Concordei em ficar � disposi��o deles por tr�s semanas. N�o, voc� decide sobre esse tipo de coisa. Demora muito para enviarem pelo correio. Sim, voc�
tamb�m. Direi a ela. Falo com voc� depois.
- O filme est� indo bem - Brianna disse, tentando resistir � vontade de crav�-lo de perguntas.
- Doze milh�es na primeira semana, o que n�o � de jogar fora. E os cr�ticos est�o gostando. Aparentemente gostaram tamb�m do pr�ximo livro - falou, pegando
um biscoito de uma lata. - Criei uma hist�ria densa numa atmosfera com di�logos t�o r�spidos como uma adaga afiada. Com, ah, estripamentos e humor negro e c�ustico.
N�o t�o banal assim.
- Devia estar muito orgulhoso.
- Escrevi isso h� quase um ano. - Sacudiu os ombros, mastigando. - �, � legal. Tenho um certo carinho por ele que diminuir� consideravelmente depois de trinta
e uma cidades em tr�s semanas.
- A turn� de que voc� falou.
- Certo. Programas de entrevistas, livrarias, aeroportos e quartos de hotel. - Com uma risada, atirou o resto do biscoito na boca. - Que vida!
- Acho que combina com voc�.
- Exatamente.
Ela concordou, n�o querendo ficar triste, e colocou a grelha sobre a bancada.
- Em julho, voc� disse.
- �. J� est� perto. Perdi a no��o do tempo. Estou aqui h� quatro meses.
- �s vezes parece que voc� sempre esteve aqui.
- Est� se acostumando comigo. - Passou distraidamente a m�o pelo queixo e ela p�de ver que sua mente estava em outro lugar. - Que tal uma caminhada?
- Tenho de aprontar o jantar.
- Vou esperar. - Inclinou o corpo amigavelmente sobre o balc�o. - Ent�o, qual � o jantar?
- Perna de cordeiro. Gray suspirou.
- � o que imaginava.
N
um dia claro, no meio do m�s de maio, Brianna olhava os homens cavando a funda��o para a sua estufa. Um pequeno sonho se torna realidade, pensou, atirando a tran�a
que usava para as costas.
Ela sorriu ao beb� que gorgolejava no balan�o port�til ao lado. Aprendera a ficar contente com pequenos sonhos, pensou, abaixando-se para beijar os cabelos
crespos e pretos do sobrinho.
- Ele cresceu tanto, Maggie, em t�o poucas semanas.
- Sei. E eu n�o. - Bateu a m�o na barriga, fazendo uma careta. - A cada dia n�o me sinto mais do que vaca, e s� queria saber se um dia perderei isso tudo novamente.
- Voc� est� maravilhosa.
- � o que digo a ela - Rogan acrescentou, passando um bra�o pelos ombros de Maggie.
- Voc� n�o sabe de nada. Est� enfeiti�ado por mim.
- � a pura verdade.
Brianna olhou para longe, enquanto eles sorriam um para o outro. Como era f�cil para eles agora. T�o aconchegados em seu amor, com um beb� lindo murmurando
ao lado. N�o se importou com a pontada de inveja ou com a fisgada de desejo.
- Ent�o, onde anda seu ianque, esta manh�?
Brianna olhou-a, querendo descobrir, constrangida, se Maggie estava lendo seu pensamento.
Levantou-se e saiu de madrugada, sem nem tomar caf�.
- Para onde?
- N�o sei. Rosnou para mim. Pelo menos, acho que foi para mim. O humor dele anda imprevis�vel por estes dias. O livro o est� preocupando, embora ele diga agora
que est� s� limpando. O que significa, pelo que me falou, que est� polindo.
- Estar� pronto em breve, n�o? - Rogan perguntou.
- Em breve. - E ent�o... Brianna estava abrindo uma p�gina do livro de Gray e n�o pensando em ent�os. - Seu editor telefona toda hora e manda pacotes o tempo
todo sobre o livro que est� saindo neste ver�o. Parece irrit�-lo ter de pensar em um, quando ainda est� trabalhando em outro. - Voltou a olhar para os oper�rios.
- � uma boa localiza��o para a estufa, n�o acha? Vou ficar contente de poder v�-la da janela.
- Voc� j� falou demais sobre essa localiza��o nos �ltimos meses - Maggie observou, recusando-se a mudar de assunto. - As coisas est�o bem entre voc� e Gray?
- Sim, muito bem. Ele anda um pouco aborrecido agora, como eu disse, mas seu mau humor nunca dura muito. Contei a voc�s como ele planejou uma tr�gua com mam�e?
- Esperteza dele. Uma quinquilharia de Nova York. Ela foi am�vel com ele no batizado de Liam. E eu precisei dar � luz para chegar perto disso.
- Ela � louca por Liam - Brianna disse.
- Ele � um p�ra-choque entre n�s. Ah, o que foi, querido - murmurou quando Liam come�ou a se agitar. - Sua fralda est� molhada, � isto. - Levantando-o, Maggie
o acariciou at� acalm�-lo.
- Vou troc�-lo.
- Voc� se oferece mais r�pido do que o pai dele. - Balan�ando a cabe�a, Maggie deu uma risada. - N�o, deixe que eu fa�o isto. Fique aqui cuidando de sua estufa.
Levar� s� um minuto.
- Ela sabe que quero conversar com voc�. - Rogan levou Brian na para os bancos de madeira, pr�ximos das ameixeiras-selvagens1 que inspiraram o nome da pousada.
- Alguma coisa errada?
- N�o. - Sob uma calma for�ada, percebia um certo nervosismo que n�o era comum nela. Isto, Rogan concluiu com uma leve careta tinha mais a ver com Maggie.
- Queria falar com voc� sobre o neg�cio da Minas Triquarter. Ou a inexist�ncia dela. - Ele sentou, deixando as m�os nos joelhos. - Na verdade, ainda n�o tivemos
oportunidade de falar sobre isso desde que eu estive em Dublin, e depois veio o batizado do beb�. Maggie est� satisfeita com o modo como as coisas est�o andando.
Est� mais interessada em curtir Liam e voltar aos seus vidros do que em cuidar desse assunto.
- � assim que deve ser mesmo.
- Para ela, talvez. - N�o disse o que era �bvio para eles. Nem ele nem Maggie exigiam qualquer compensa��o monet�ria que podia resultar de um acerto. - Tenho
de admitir, Brianna, n�o me parece bem. O princ�pio da coisa...
- Posso entender isso, voc� � um empres�rio. - Ela sorriu. - Voc� nunca viu o Sr. Carstairs. � dif�cil ficar com raiva dele, depois de conhec�-lo.
- Vamos separar emo��o de aspectos legais, por um momento. O sorriso dela se alargou. Imaginou que ele usasse aquele tom vivo com qualquer subalterno ineficiente.
- Tudo bem, Rogan.
- Carstairs cometeu um crime. E, embora voc� possa estar relutante em v�-lo preso, � apenas l�gico esperar alguma penalidade. Agora, sei que ele se tornou
bem-sucedido nos �ltimos anos. Cuidei eu mesmo de fazer algumas pequenas investiga��es e est� claro que seus neg�cios atuais s�o legais e bem lucrativos. Ele tem
condi��es de compensar voc� pela desonestidade na transa��o com seu pai. Seria f�cil para mim ir a Londres pessoalmente e acertar isso.
- � muita delicadeza sua. - Brianna cruzou as m�os, suspirando profundamente. - Mas lamento, Rogan, por desapont�-lo. Entendo que sua �tica foi insultada e
que s� deseja que a justi�a seja feita.
- � isso. - Contrariado, ele sacudiu a cabe�a. - Brie, posso entender a atitude de Maggie. Est� focada no beb� e no trabalho, e sempre tem algu�m para afastar
qualquer coisa que atrapalhe sua concentra��o. Mas voc� � uma mulher pr�tica.
- Sou - concordou. - Sou sim. Mas receio ter em mim alguma coisa de meu pai tamb�m. - Esticando o bra�o, colocou a m�o sobre a de Rogan. - Sabe, algumas pessoas,
por uma ou outra raz�o, come�am em bases n�o muito firmes. As escolhas que fazem n�o s�o elogi�-veis. Uma parte delas permanece l� porque � mais f�cil, ou porque
est�o acostumadas, ou at� porque preferem. Outra parte desliza de l� para situa��es mais consolidadas, sem muito esfor�o. Um pouco de sorte, de oportunidade. E outras,
uma pequena parte - disse, lembrando-se de Gray -, batalham por seu caminho para um neg�cio s�lido. E fazem coisas admir�veis de si mesmas.
Mergulhou num sil�ncio profundo, fitando as colinas. Desejando.
- Perdi voc�, Brie.
- Ah. -Abanando a m�o, ela voltou a lhe prestar aten��o. - O que quero dizer � que n�o sei quais as circunst�ncias que levaram o Sr. Carstairs de um tipo de
vida a outra. Mas ele n�o est� prejudicando ningu�m agora. Maggie tem o que quer, e eu, o que me agrada. Ent�o, por que nos preocuparmos?
- Foi o que ela me disse que voc� diria. - Levantou as m�os, vencido. - Eu tinha de tentar.
- Rogan - Maggie chamou da porta da cozinha, embalando o beb�. - Telefone. � de Dublin, para voc�.
- Ela n�o atende essa porcaria na nossa pr�pria casa, mas aqui atende.
- Ameacei n�o cozinhar para ela, se n�o atendesse.
- Nenhuma das minhas amea�as funcionou. - Ele levantou-se. - Estava esperando uma liga��o, ent�o dei seu n�mero, para o caso de n�o atendermos em casa.
- Sem problemas. Fale o tempo que precisar. - Sorriu, enquanto Maggie se aproximava com o beb�. - Bem, Margaret Mary vai dividi-lo agora ou ficar com ele s�
para voc�?
- Ele estava justamente perguntando por voc�, tia Brie. - Com uma risada, Maggie passou Liam para a irm� e instalou-se na cadeira que Rogan deixara. - Ah,
como � bom sentar. Liam estava agitado a noite passada. Juro, eu e Rogan, juntos, devemos ter ido at� Galway e voltado.
- Ser� que j� � o primeiro dentinho? - Murmurando carinhosamente, Brianna esfregou o dedo na gengiva de Liam, procurando algo inchado.
- Pode ser. Anda babando como um cachorrinho. - Fechou os olhos, deixando o corpo relaxar. - Ah, Brie, quem imaginaria que se pode amar tanto? Passei a maior
parte da vida sem saber que Rogan Sweeney existia, e agora n�o poderia viver sem ele.
Abriu um olho para ter certeza de que Rogan estava ainda na casa e n�o teria ouvido seu acesso t�o sentimental.
- E o beb�, � t�o grande esse aperto no cora��o. Quando estava gr�vida, achava que j� sabia o que era am�-lo. Mas, desde que o segurei pela primeira vez, descobri
que era muito mais do que imaginava.
Estremeceu, com um sorriso vacilante.
- Ah, s�o os horm�nios outra vez. Est�o me deixando uma manteiga derretida.
- N�o s�o os horm�nios, Maggie. - Brianna esfregou o rosto na cabe�a de Liam, sentindo o cheiro maravilhoso dele. - � ser feliz.
- Quero que voc� tamb�m seja feliz, Brie. Posso ver que voc� n�o �.
- N�o � verdade. Claro que sou feliz.
- Voc� est� sempre o vendo ir embora. E est� se for�ando a aceitar isso, antes que realmente aconte�a.
- Se ele optar por ir embora, n�o posso impedi-lo. Sempre soube disso.
- Por que n�o pode? - Maggie retrucou. - Por qu�? N�o o ama o suficiente para lutar por ele?
- Eu o amo demais para lutar por ele. E talvez eu n�o tenha a coragem. N�o sou valente como voc�, Maggie.
- � s� uma desculpa. Valente demais � o que voc� sempre tem sido, Santa Brianna.
- E, se � uma desculpa, � minha. - Ela falou brandamente. N�o entraria, prometera a si mesma, numa discuss�o. - Ele tem motivos
para partir. Posso n�o concordar com eles, mas os entendo. N�o brigue
comigo, Maggie - disse calmamente e evitou a pr�xima explos�o. - Porque isso magoa. E pude ver nesta manh�, quando saiu de casa, que ele j� estava indo embora.
- Ent�o, detenha-o. Ele ama voc�, Brie. � poss�vel ver isso cada vez que ele olha para voc�.
- Acho que sim. - E aquilo apenas aumentava a dor. - � por isso que est� apressado para ir. E est� com medo tamb�m. Medo de voltar.
- � com isto que est� contando?
- N�o. - Mas queria contar com isso. Queria muito. - Amor nem sempre � o bastante, Maggie. Podemos ver isso pelo que aconteceu com papai.
- Foi diferente.
- Foi tudo diferente. Mas ele viveu sem Amanda e fez da vida dele o melhor que p�de. Sou sua filha o bastante para fazer o mesmo. N�o se preocupe comigo -
murmurou, acariciando o beb�. - Sei o que Amanda estava sentindo, quando escreveu que era grata pelo tempo que tinham ficado juntos. N�o trocaria esses meses passados
por nada neste mundo.
Ficou em sil�ncio, observando o rosto s�rio de Rogan enquanto ele atravessava o gramado.
- Podemos ter encontrado alguma coisa a respeito de Amanda Dougherty - ele disse.
Gray n�o veio para casa para o ch� e Brianna estranhou, mas n�o se preocupou, enquanto os h�spedes se regalavam com os sandu�ches e bolos. O relat�rio de Rogan
sobre Amanda Dougherty estava sempre em sua mente, enquanto tocava o resto do dia.
O detetive n�o encontrara nada em suas buscas iniciais pelas cidades e vilas em Catskills. Para Brianna, n�o era nenhuma surpresa que ningu�m se lembrasse
de uma mulher irlandesa, gr�vida, depois de quase um quarto de s�culo. Mas Rogan, homem meticuloso, contratava pessoas meticulosas. Rotineiramente, o detetive fez
buscas em estat�sticas demogr�ficas, lendo certid�es de nascimento, morte e casamento, pelos cinco anos que se seguiram � data da �ltima carta de Amanda para Tom
Concannon.
E foi numa pequena aldeia, ao p� da montanha, que ele a encontrou.
Amanda Dougherty, trinta e dois anos, tinha sido casada, por um juiz de paz com um homem de trinta e oito anos, chamado Colin Bodine.
O endere�o dizia simplesmente Rochester, Nova York. O detetive estava ainda l� para prosseguir na busca por Amanda Dougherty Bodine.
A data do casamento era de cinco meses depois da �ltima carta enviada a seu pai, Brianna meditou. Amanda devia estar perto do final da gravidez. Ent�o era
mais prov�vel que o homem com quem casara soubesse que ela estava gr�vida de outro.
Ele a teria amado? Esperava que sim. Parecia-lhe que se tratava de um homem forte e de cora��o bondoso para dar seu nome ao filho de outro.
Apanhou-se olhando outra vez para o rel�gio, imaginando aonde Gray teria ido. Aborrecida consigo mesma, pedalou at� a casa de Murphy para inform�-lo sobre
os progressos da constru��o da estufa.
Quando voltou, j� era hora de cuidar do jantar. Murphy prometera aparecer no dia seguinte para dar uma olhada na obra. Mas a inten��o oculta de Brianna, a
esperan�a de que Gray estivesse visitando seu vizinho como fazia muitas vezes, desabara.
E agora, passadas mais de doze horas desde que ele sa�ra pela manh�, a estranheza dava lugar � preocupa��o.
Atormentou-se, n�o comendo nada enquanto os h�spedes festejavam com o peixe ao molho de groselha. Desempenhou seu papel de anfitri�, cuidando para que o conhaque
estivesse onde seria desejado, uma rodada extra de pudim de lim�o para as crian�as, que o olhavam esperan�osamente.
Cuidou para que a garrafa de u�sque no quarto de cada h�spede estivesse cheia, toalhas limpas para os banhos da noite. Fez sala, conversando com eles; ofereceu
jogos �s crian�as.
Por volta das dez da noite, quando a luz estava apagada e a casa quieta, mudara da preocupa��o para a resigna��o. Ele viria quando viesse, pensou, e se acomodou
no quarto, tric� no colo e Con a seus p�s.
Um dia inteiro dirigindo, caminhando e estudando a zona rural n�o tinha sido um grande neg�cio para melhorar o humor de Gray. Estava irritado consigo mesmo,
irritado ao ver na janela que uma luz fora deixada acesa para ele.
Apagou-a assim que entrou, como para provar a si mesmo que n�o precisava de sinais familiares. Come�ou a subir, um movimento deliberado, para provar que era
dono de si mesmo.
O rosnado leve de Con o deteve. Voltando na escadaria, Gray fez uma carranca para o cachorro.
- O que voc� quer?
Con apenas sentou, abanando o rabo.
- N�o tenho um toque de recolher e n�o preciso de um c�o est�pido esperando por mim.
Con apenas olhou para ele. Ent�o levantou a pata como se antecipando a sauda��o usual de Gray.
- Merda! - Gray voltou a descer as escadas, segurou a pata do c�o e co�ou-lhe a cabe�a. - Pronto, melhor agora?
Con levantou-se e caminhou para a cozinha. Parou, olhou para tr�s, sentou-se outra vez, obviamente esperando.
- Vou deitar - Gray disse a ele.
Parecendo concordar, Con levantou-se outra vez como se estivesse esperando para lev�-lo at� sua dona.
- Tudo bem. Como voc� quiser. - Gray enfiou as m�os nos bolsos e seguiu o cachorro at� o hall, passou pela cozinha at� chegar ao quarto de Brianna.
Sabia que seu humor estava abomin�vel e parecia que n�o conseguiria alter�-lo. Era o livro, claro, mas havia mais. Podia admitir, ao menos para si, que andava
inquieto desde o batizado de Liam.
Havia algo em tudo aquilo, o pr�prio ritual, aquela antiga, pomposa e estranhamente calma cerim�nia, cheia de palavras, cor e movimento. As roupas, a m�sica,
a luz, tudo se fundira, ou assim lhe parecera, para lutar contra o tempo.
Mas fora a demonstra��o de comunidade, a sensa��o de pertencimento que percebera em cada vizinho e amigo que tinha vindo testemunhar o batismo da crian�a,
que tinha mexido com ele mais profundamente.
Aquilo o tocara, para al�m da curiosidade, do interesse do escritor pela cena e pelo evento. Aquilo mexera com ele, a torrente de palavras, a f� inabal�vel
e o rio de continuidade que passava de gera��o a gera��o na pequena igreja da vila, acentuado pelo choro indignado de um beb�, a luz rompida atrav�s do vidro, a
madeira antiga alisada por gera��es de joelhos dobrados.
Ali estava a fam�lia tanto quanto a partilha da f�, e comunidade tanto quanto o dogma.
E o desejo s�bito e desconcertante de pertencer o deixou inquieto
e bravo.
Irritado consigo e com ela, parou na soleira da porta da salinha de Brianna, olhando-a no ritmado bater das agulhas. A l� verde se derramava sobre o colo,
na camisola branca. A luz ao lado dela focava para baixo, de modo que ela podia ver seu trabalho, sem nunca olhar para as pr�prias m�os.
A televis�o murmurava um antigo filme em preto-e-branco. Cary Grant e Ingrid Bergman, elegantemente vestidos, abra�avam-se numa adega de vinho. Not�rio, Gray
pensou. Uma hist�ria de amor, desconfian�a e reden��o.
Por algum motivo que preferiu n�o entender, o entretenimento dela irritou-o profundamente.
- N�o devia me esperar acordada. Lan�ou-lhe um olhar, sem parar as agulhas.
- N�o esperei. - Parecia cansado, ela pensou, e mal-humorado. O que quer que tivesse procurado em seu longo dia sozinho parecia n�o ter encontrado. - Comeu
alguma coisa?
- Umas besteiras hoje � tarde.
- Deve estar com fome, ent�o. -Ajeitou o tric� na cesta ao lado. - Vou preparar alguma coisa para voc�.
- Eu mesmo posso fazer, se quiser - retrucou. - N�o preciso que me trate como se fosse minha m�e.
Seu corpo se enrijeceu, mas ela apenas sentou outra vez e pegou a l�.
- Como quiser.
Ele entrou na sala, provocador.
- Ent�o?
- Ent�o o qu�?
- Cad� o interrogat�rio? N�o vai perguntar onde estive, o que andei fazendo? Por que n�o liguei?
- Como voc� mesmo observou, n�o sou sua m�e. Seus neg�cios s�o apenas da sua conta.
Por um momento, ouviram-se apenas o som das agulhas e a angustiada voz da mulher numa propaganda da televis�o, ao descobrir gordura de batata frita em sua
blusa nova.
- Ah, voc� faz o tipo indiferente - Gray resmungou e foi at� o aparelho, desligando-o abruptamente.
- Est� querendo ser grosseiro mesmo? - Brianna perguntou. -
Ou n�o consegue se controlar?
- Estou tentando chamar sua aten��o.
- Tudo bem, j� conseguiu.
- Precisa continuar fazendo isso, enquanto falo com voc�?
Como parecia n�o ter como evitar um confronto que ele t�o obviamente queria, Brianna deixou o tric� no colo.
- Assim est� melhor?
- Precisava ficar sozinho. N�o gosto de ser pressionado.
- N�o pedi nenhuma explica��o, Grayson.
- Sim, pediu. S� que n�o em voz alta. A impaci�ncia come�ou a ferver:
- Ent�o, agora, voc� est� lendo meus pensamentos.
- N�o � t�o dif�cil assim. Estamos dormindo juntos, praticamente vivendo juntos e voc� sente que sou obrigado a lhe dizer o que estou fazendo.
- � isso o que sinto?
Ele come�ou a caminhar pela sala. N�o, ela pensou, era mais como a ronda de um le�o por tr�s das grades.
- Vai ficar sentada a� e tentar me dizer que n�o est� brava?
- Pouco importa o que digo, quando voc� l� meus pensamentos. - Cruzou as m�os, descansando-as na l�. N�o brigaria com ele, disse a si mesma. Se o tempo deles
juntos estava perto do fim, n�o deixaria que as �ltimas lembran�as fossem de discuss�o e sentimentos ruins. - Grayson, posso assegurar a voc� que tenho minha pr�pria
vida. Um neg�cio para tocar, prazeres pessoais. Preencho bem meus dias.
- Ent�o n�o d� a m�nima se estou aqui ou n�o? - Ele � que sa�ra. Por que a id�ia o enfurecia?
Ela apenas suspirou. - Voc� sabe que gosto que esteja aqui. O que quer que eu diga? Que fiquei preocupada? Talvez sim, por algum tempo, mas voc� � adulto,
capaz de cuidar de si mesmo. Se achei indelicado voc� n�o me avisar que ficaria fora tanto tempo, quando � seu h�bito estar aqui todas as noites? Voc� sabe que sim,
ent�o n�o h� necessidade de lhe dizer isso. Agora, se isto o agrada, vou me deitar. Se quiser me acompanhar, ser� bem-vindo, ou ent�o suba e v� curtir seu mau humor
sozinho.
Antes que pudesse levantar-se, ele atirou as duas m�os nos bra�os da cadeira dela, enjaulando-a. Seus olhos se arregalaram, mas ela manteve fixos nele.
- Por que n�o grita comigo? Me atira alguma coisa? Me d� um chute na bunda?
- Essas coisas podiam fazer voc� se sentir melhor - ela disse calmamente. - Mas n�o � minha fun��o faz�-lo sentir-se melhor.
- Ent�o � assim? Simplesmente d� de ombros e vai para a cama? Voc� sabe muito bem que eu podia estar com outra mulher.
Por um momento, o fogo chamejou nos olhos dela, enfrentando a f�ria nos dele. Ent�o se recomp�s, pegou o tric� do colo e colocou-o na cesta.
- Est� tentando me fazer ficar zangada?
- Sim, inferno! Estou! - Afastou-se dela bruscamente. - Pelo menos, seria uma briga justa. N�o h� como atingir essa sua serenidade de gelo.
- Ent�o eu seria idiota deixando de lado esta arma formid�vel, n�o seria? - Levantou-se. - Grayson, amo voc� e, quando pensa que eu usaria esse amor para prend�-lo,
para mud�-lo, a� voc� me insulta. � por isso que devia se desculpar.
Menosprezando a arrepiante sensa��o de culpa, olhou de volta para ela. Nunca, em toda a sua vida, uma mulher o fizera sentir culpa. Imaginava se haveria outra
pessoa no mundo que pudesse, com tanta tranq�ilidade, faz�-lo sentir-se t�o idiota.
- Calculei que voc� acharia um jeito de arrancar um "sinto muito" de mim, antes disso tudo acabar.
Olhou-o fixamente por alguns instantes e depois, sem uma palavra sequer, virou-se e caminhou para o quarto.
- Cristo. - Gray esfregou as m�os no rosto, apertando os dedos
sobre os olhos fechados. Ent�o deixou as m�os ca�rem. Voc� s� pode chafurdar na pr�pria estupidez, decidiu. - Estou maluco - disse, entrando no quarto.
Ela n�o disse nada, apenas ajustou uma das janelas para que entrasse mais do ar da noite perfumada e fresca.
- Desculpe, Brie, por tudo. Estava num p�ssimo humor manh� e s� queria ficar sozinho.
N�o respondeu nem o encorajou, apenas afastou a colcha.
- N�o me ignore assim. Isto � pior que tudo. - Aproximou-se dela, colocando uma m�o hesitante em seus cabelos. - Estou tendo problemas com o livro. � pura
cretinice minha atirar tudo em cima de voc�.
- N�o espero que mude seu humor para me satisfazer.
- Voc� simplesmente n�o espera - murmurou. - Isso n�o � bom para voc�.
- Sei o que � bom para mim. - Ela come�ou a se afastar, mas ele a virou. Ignorando sua rigidez, passou os bra�os em torno dela.
- Voc� devia me botar para fora.
- Voc� j� pagou at� o fim do m�s. Pressionando o rosto nos cabelos dela, ele riu.
- Agora voc� est� sendo cruel.
Como esperar que uma mulher acompanhasse seu humor? Quando ela tentou se afastar, ele apenas a abra�ou mais.
- Tinha que sair de perto de voc� - murmurou, a m�o deslizando pelas costas dela, obrigando a coluna a relaxar. - Precisava provar que podia sair de perto
de voc�.
- Acha que n�o sei disso? - Recuando tanto quanto ele permitia, tomou o rosto dele entre as m�os. - Grayson, sei que vai embora logo e n�o vou fingir que isso
n�o v� partir meu cora��o. Mas ser� muito mais sofrido para n�s dois se gastarmos esses �ltimos dias brigando por isso. Ou em torno disso.
- Achei que seria mais f�cil se voc� estivesse furiosa. Se voc� me tirasse de sua vida.
- Mais f�cil para quem?
- Para mim. - Encostou a testa na dela e disse o que estivera evitando dizer nos �ltimos dias: - Vou embora no fim do m�s.
Ela n�o falou nada, vendo que n�o podia falar nada com a s�bita dor invadindo-lhe o peito.
- Quero ter algum tempo antes de come�ar a turn� de divulga��o.
Ela esperou, mas ele n�o a convidou, como fizera antes, para que fosse com ele para alguma praia tropical. Sacudiu a cabe�a.
- Ent�o vamos aproveitar o tempo que temos antes de voc� partir. Virou o rosto de modo que os l�bios dela encontraram os dele.
Gray a deitou lentamente na cama. E, quando a amou, foi suavemente.
P
ela primeira vez desde que abrira sua casa aos h�spedes, Brianna desejou que todos fossem para o diabo. Ressentia-se da intrus�o em sua privacidade com Gray. Embora
isso a envergonhasse, ressentia-se do tempo que ele passava fechado no quarto, terminando o livro que o tinha trazido para ela.
Lutou contra as emo��es, fez mesmo todo o poss�vel para evitar que aparecessem. � medida que passavam os dias, assegurara a si mesma de que a sensa��o de p�nico
e infelicidade desvaneceria. Sua vida era quase o que desejava que fosse. Quase.
Podia n�o ter o marido e filhos que sempre desejara, mas havia muitas outras coisas para preench�-la. Ajudava, ao menos um pouco, contar aquelas b�n��os, enquanto
ia cuidando da rotina di�ria.
Carregava as roupas de cama, rec�m-retiradas da corda, escadas acima. Como a porta de Gray estava aberta, ela entrou. Ali, deixou os len��is de lado. Quase
era desnecess�rio trocar seus len��is, desde que ele n�o dormira em nenhuma outra cama, s� na sua, por dias. Mas o quarto precisava de uma boa limpeza, decidiu,
j� que ele estava fora. A escrivaninha era uma bagun�a espantosa, para falar a verdade.
Come�ou por ali, esvaziando o cinzeiro transbordante, arrumando livros e pap�is. Torcendo, ela sabia, para encontrar alguma coisa sobre a hist�ria que ele
estava escrevendo. O que encontrou foram envelopes amassados, correspond�ncia n�o respondida e algumas notas rabiscadas com supersti��es irlandesas. Divertida, leu:
Evite falar mal das fadas na sexta-feira, porque elas est�o presentes e mandar�o algum mal se ofendidas.
Se um p�ssaro preto chegar � sua porta e olhar para voc�, � um sinal certo de morte e nada poder� evitar isso.
Uma pessoa que passe sob um galho de c�nhamo ter� uma morte violenta.
- Ora, voc� me surpreende, Brianna. Est� bisbilhotando. Completamente vermelha, ela deixou cair o bloco, escondendo as
m�os atr�s das costas. Ah, n�o era mesmo pr�prio de Grayson Thane, pensou, assustar algu�m assim?
- N�o estava bisbilhotando. Estava tirando o p�.
Ele bebericou o caf� que tinha acabado de coar na cozinha. Nunca a tinha visto t�o confusa assim.
- Cad� o pano de p�? - ele insistiu. Sentindo-se nua, Brianna cobriu-se com a dignidade.
- Ia pegar um. Sua escrivaninha est� terrivelmente bagun�ada e eu estava apenas arrumando.
- Estava lendo minhas notas.
- Estava afastando o bloco para o lado. Talvez tenha batido os olhos no que estava escrito. S�o s� supersti��es, � o que s�o, sobre o mal e a morte.
- Mal e morte s�o meu sustento. - Rindo, aproximou-se dela e pegou o bloco. - Gosto desta. Sobre Todos os Santos, � 1� de novembro.
- Sei quando � o Dia de Todos os Santos.
- Claro que sabe. De todo modo, no Dia de Todos os Santos, o ar fica cheio da presen�a dos mortos, tudo � s�mbolo de destino. Se nesta data voc� chama o nome
de uma pessoa do outro lado, e repete o nome tr�s vezes, o resultado � fatal. - Riu para si mesmo. - Imagine o que pode acontecer a voc�.
- Tolice. - E sentiu arrepios.
- � uma grande tolice. - Baixou o bloco, observando-a. Seu rubor j� havia quase desaparecido. - Sabe o problema da tecnologia? - Pegou um dos disquetes, batendo-o
na palma da m�o, enquanto a estudava com olhos risonhos. - Nenhum papel amassado, descartado pelo escritor frustrado, que os curiosos possam pegar e ler.
- Como se eu fosse fazer uma coisa dessas. -Afastou-se irritada, pegando os len��is. - Tenho que arrumar umas camas.
- Quer ler uma parte?
Ela hesitou a meio caminho da porta, olhando por sobre o ombro, desconfiada.
- Do seu livro?
- N�o, das previs�es do tempo. Claro que � do meu livro. Na verdade, h� uma parte sobre a qual seria bom ter a opini�o de algu�m daqui. Para ver se consegui
pegar o ritmo do di�logo, a atmosfera, as intera��es.
- Bem, ficarei feliz se puder ajudar.
- Brie, voc� est� morrendo de vontade de ver o manuscrito. Podia ter pedido.
- Sei muito bem como � isso, vivendo com Maggie. - Baixou os len��is de novo. - Pode lhe custar sua vida entrar no est�dio para ver uma pe�a em que ela est�
trabalhando.
- Minha natureza � mais equilibrada. - Com gestos r�pidos, iniciou o computador, inserindo o disquete apropriado. - � uma cena num pub. Cor local e a apresenta��o
de alguns personagens. � a primeira vez que McGee encontra Tullia.
- Tullia. � ga�lico.
- Certo. Significa de boa paz. Deixe-me ver se acho. - Come�ou a buscar os arquivos. - Voc� fala ga�lico?
- Falo sim. Eu e Maggie aprendemos com nosso av�.
Olhou-a fixamente. - Puta que pariu...! Nunca me aconteceu isso antes. Sabe quanto tempo gastei procurando palavras? Eu s� queria salpicar alguma aqui e ali.
- Bastava ter perguntado. Ele grunhiu.
- Tarde demais agora. Ah, est� aqui. McGee � um tira com ra�zes irlandesas. Foi � Irlanda investigar o passado de sua fam�lia, quem sabe encontrar seu equil�brio
e algumas respostas sobre si mesmo. Queria, principalmente, ficar sozinho para se reorganizar. Estava envolvido numa opera��o que acabou mal e o deixou respons�vel
pela morte de uma crian�a de seis anos que passava pelo local.
- Que coisa triste!
- Sim, ele tem seus problemas. Tullia tamb�m tem muitos problemas. � vi�va, perdeu o marido e o filho num acidente. Est� se recuperando, mas carrega consigo
um peso enorme. O marido n�o era flor que se cheirasse e muitas vezes o desejou morto.
- Ent�o se sente culpada por ele estar morto e traumatizada porque o filho lhe foi tirado, como uma puni��o por seus pensamentos.
- Mais ou menos... De toda forma, essa cena ocorre no pub da regi�o. S�o s� algumas p�ginas. Sente-se. Agora preste aten��o. - Inclinou-se sobre o ombro dela
e segurou sua m�o. - V� essas teclas?
- Sim.
- Esta vai para o in�cio da p�gina, esta para o fim. Quando terminar o que est� na tela e quiser avan�ar, pressione esta. Se quiser voltar e olhar alguma coisa
outra vez, pressione aquela. E olhe, Brianna...
- Sim?
- Se tocar qualquer uma das outras teclas, terei de cortar todos os seus dedos fora.
- Isso porque sua natureza � mais equilibrada.
- Certo. Tenho c�pia dos arquivos, mas n�o devemos desenvolver maus h�bitos. - Beijou o topo da cabe�a dela. - Vou descer, dar uma olhada nas obras de sua
estufa. Se achar qualquer coisa estranha ou simplesmente que n�o pare�a real, anote no bloco.
- Muito bem. -J� come�ando a ler, acenou para ele. - V� ent�o. Gray desceu e saiu. As seis s�ries de pedras locais, que seriam a base da estufa, estavam quase
prontas. N�o o surpreendeu ver o pr�prio Murphy colocando as pedras no lugar.
- N�o sabia que voc� era pedreiro, al�m de fazendeiro - Gray gritou.
- Ah, fa�o um pouco de tudo. Cuidado para n�o fazer a massa t�o mole dessa vez - ordenou ao adolescente magro que estava perto. - Este � meu sobrinho, Tim
MacBride, de Cork. Est� me visitando. Tim nunca se enche da m�sica country dos Estados Unidos.
- Randy Travis, Wynonna, Garth Brooks?
- Todos eles. - Um sorriso, parecido com o do tio, iluminou o rosto de Tim.
Gray se abaixou, levantou outra pedra para Murphy, enquanto discutia os m�ritos da m�sica country com o garoto. Logo estava ajudando a misturar a massa, num
papo animado com os companheiros de trabalho.
-At� que para um escritor voc� tem boa m�o - Murphy observou.
- Trabalhei numa equipe de constru��o, num ver�o. Misturando massa e levando carrinhos de m�o, enquanto o sol fritava meus miolos.
- O tempo est� agrad�vel hoje. - Satisfeito com o progresso, Murphy fez uma pausa para um cigarro. - Se continuar assim, podemos aprontar isso para Brie em
mais uma semana.
Uma semana, Gray pensou, era quase o que tinha.
- � legal de sua parte tomar tempo do pr�prio trabalho para ajud�-la nisso.
- � comhair - Murphy falou calmamente. - Comunidade. � como vivemos aqui. Ningu�m tem que ficar sozinho se pode contar com fam�lia e amigos. Haver� tr�s homens
aqui ou mais quando chegar a hora de colocar as esquadrias e os vidros E outros vir�o, se for necess�rio, fazer as bancadas e coisas assim. No final, todos sentir�o
que t�m um peda�o deste lugar. E Brianna dar� mudas e plantas para os jardins de todos. - Exalou a fuma�a. - � assim que a coisa funciona, entende? Isso � comhair.
Gray entendia o sentido. Era exatamente o que sentira e, por um momento, invejara, na igreja da vila, durante o batizado de Liam.
- Isto... n�o acaba interferindo em sua liberdade? Ao aceitar um favor, voc� n�o fica obrigado a retribuir?
- Voc�s, ianques. - Com uma risada, Murphy deu uma �ltima tragada e apertou o cigarro contra as pedras. Conhecendo Brianna, enfiou a bagana no bolso, em vez
de atir�-la para o lado. - Voc�s s� pensam em pagamento. Obrigado n�o � a palavra. � seguran�a, se voc� quer um termo mais preciso. A certeza de que basta levantar
a m�o e algu�m o ajudar� no que for necess�rio. A certeza de que voc� far� o mesmo. Voltou-se para o sobrinho.
- Bem, Tim, vamos limpar as ferramentas. Precisamos voltar.
Diga a Brie para n�o tentar mexer nessas pedras, sim, Grayson? Elas precisam assentar.
- Tudo bem, eu digo... Puxa, eu me esqueci dela. Vejo voc� depois. - Correu para casa. Uma olhada para o rel�gio da cozinha o fez estremecer. Deixara-a ali
por mais de uma hora.
E ela estava, descobriu, exatamente onde a tinha deixado.
- Levou todo esse tempo para ler meio cap�tulo.
Embora a entrada dele a surpreendesse, n�o estremeceu desta vez. Quando desviou os olhos da tela e fixou-os nele, estavam molhados.
- T�o ruim assim? - Ele sorriu surpreso ao se perceber nervoso.
- � maravilhoso. -Procurou um len�o de papel no bolso do avental. - De verdade. Essa parte em que Tullia est� sentada sozinha no jardim, pensando no filho.
Faz voc� sentir toda a sua tristeza. N�o parece uma personagem inventada.
A segunda surpresa dele foi quando experimentou algum embara�o. Em se tratando de elogio, o dela fora perfeito.
- Bem, essa � a id�ia.
- Voc� tem um dom maravilhoso, Gray, de transformar as palavras em emo��es. Fui um pouco adiante da parte que voc� queria que eu lesse. Desculpe. Eu me senti
envolvida.
- Estou lisonjeado. - Notou pela tela que ela lera mais de cem p�ginas. - Voc� est� gostando.
- Ah, muito. Tem uma coisa... diferente - disse, incapaz de definir - dos seus outros livros. Ah, � emocionante como os outros, rico em detalhes. E assustador.
O primeiro assassinato, aquele nas ru�nas. Pensei que meu cora��o ia parar quando estava lendo. Sangrando ele estava. E alegre tamb�m.
- N�o pare agora. - Acariciou os cabelos dela, atirando-se na cama.
- Bem. -Juntou as m�os, pousando-as na beira da escrivaninha, enquanto pensava nas palavras dele. - Seu humor est� ali tamb�m. E seu olho n�o perde nada. A
cena no pub. Entrei l� vezes sem conta minha vida. Pude ver Tim O'Malley atr�s do bar e Murphy tocando uma can��o. Ele vai gostar que voc� o tenha feito t�o bonito.
- Acha que ele se reconheceria?
- Ah, acho que sim. N�o sei como se sentiria sendo um dos suspeitos ou o assassino, se � isso que voc� fez no fim. - Ela aguardou esperan�osa, mas ele apenas
sacudiu a cabe�a.
- N�o acha que vou lhe contar quem � o assassino, acha?
- Ora, n�o. - Suspirou, apoiando o queixo no punho. - Quanto a Murphy, ele provavelmente vai adorar. E seu afeto pela vila, pela regi�o e pelas pessoas � vis�vel.
Nos pequenos detalhes... a fam�lia pedindo carona na volta da igreja para casa, em suas roupas de domingo, o velho caminhando com o cachorro ao longo da estrada
na chuva, a menininha dan�ando com o av� no pub.
- � f�cil escrever coisas quando h� tanto para ver.
- � mais do que voc� v� com os seus olhos, quero dizer. - Ela levantou a m�o, deixando-a cair novamente. N�o tinha palavras, como ele, para expressar o significado
exato. - � a ess�ncia disso. H� uma profundidade que � diferente do que li em seus outros livros. O modo como McGee enfrenta aquele impulso belicoso dentro dele.
O modo como ele deseja simplesmente n�o fazer nada e sabe que n�o conseguir�. E Tullia, a maneira como suporta a dor quando est� dilacerada por dentro, e a batalha
para fazer de sua vida o que precisa ser outra vez. N�o consigo explicar.
- Est� fazendo um �timo trabalho - Gray murmurou.
- Me toca. N�o posso acreditar que foi escrito bem aqui, na minha casa.
- N�o creio que pudesse ser escrito em qualquer outro lugar. Levantou-se ent�o, desapontando-a, quando pressionou as teclas. Esperava que ele a deixasse ler
mais.
-Ah, voc� trocou o nome dele - disse, quando a p�gina do t�tulo apareceu. - Reden��o Final. Gosto disso. � o tema dele, n�o �? Os assassinatos, o que acontece
com McGee e Tullia antes, e o que muda depois que se encontram?
- � assim que funciona. - Teclou, fazendo aparecer a p�gina da
dedicat�ria. De todos os livros que escrevera era a segunda vez que dedicava um. O primeiro, e �nico, tinha sido a Arlene.
Para Brianna, pelos presentes sem pre�o.
- Ah, Grayson. -A voz surgiu em meio �s l�grimas do fundo da garganta. - Sinto-me t�o honrada. Vou come�ar a chorar de novo - murmurou enterrando o rosto no
bra�o dele. - Muito obrigada.
- H� muito de mim nesse livro, Brie. - Levantou o rosto dela, esperando que ela tivesse entendido. - � alguma coisa que posso lhe dar.
- Eu sei. Vou guard�-lo como um tesouro. - Receando estragar o momento com as l�grimas, passou rapidamente a m�o pelos cabelos. - Aposto que j� quer voltar
ao trabalho. E l� se foi o dia. - Pegou as roupas de cama, sabendo que choraria no momento em que estivesse atr�s da primeira porta fechada. - Quer que traga o ch�
aqui, quando for a hora?
Balan�ou a cabe�a e apertou os olhos enquanto a observava. Imaginava se ela teria se reconhecido em Tullia. A compostura, a calma, a gra�a inabal�vel.
- Vou descer. J� fiz quase tudo o que tinha de fazer por hoje.
- Em uma hora, ent�o.
Ela saiu, fechando a porta. Sozinho, Gray sentou-se e olhou, por um longo tempo, a curta dedicat�ria.
Foram a risada e as vozes que atra�ram Gray quando desceu uma hora depois na dire��o da sala e n�o da cozinha. Os h�spedes estavam reunidos em torno da mesa
de ch�, provando os quitutes ou servindo-se. Brianna estava parada embalando gentilmente o beb� que dormia em seu colo.
- Meu sobrinho - estava explicando. - Liam. Estou cuidando dele por algumas horas. Ah, Gray. - Sorriu quando o viu. - Veja quem est� aqui.
- Estou vendo. - Atravessando a sala, Gray espiou o rosto do beb�. Os olhos abertos e sonhadores tornaram-se s�rios ao se fixarem em Gray. - Ele sempre me
olha como se soubesse de algum pecado que cometi. � intimidador.
Gray aproximou-se da mesa de ch� e j� quase decidira o que comer quando percebeu Brianna se esgueirando da sala. Alcan�ou-a perto da porta da cozinha.
- Aonde voc� vai?
- P�r o beb� para dormir.
- Por qu�?
- Maggie disse que ele devia estar com sono.
- Maggie n�o est� aqui. - Ele segurou Liam. - E nunca podemos brincar com ele. - Divertindo-se, fez caretas para o beb�. -
Onde est� Maggie?
- Ela ligou os fornos. Rogan teve de ir at� a galeria para resolver algum problema. Ent�o ela passou aqui faz uns minutos. - Com um sorriso, aproximou a cabe�a
da de Gray. - Pensei que isso nunca aconteceria. Agora tenho voc� s� para mim - murmurou. Endireitou-se quando bateram � porta. - Segure bem a cabecinha dele, com
cuidado - disse, enquanto foi atender a porta.
- Sei como segurar um beb�. Mulheres - disse para Liam. - Acham que n�o podemos fazer coisa alguma. Todas acham voc� uma gracinha agora, � cara, mas espere
s�. Em poucos anos, elas v�o achar que sua fun��o na vida � consertar eletrodom�sticos e matar insetos.
Como n�o havia ningu�m olhando, inclinou-se, beijando levemente a boca de Liam. E viu sua boquinha se curvar.
- Isso mesmo... Por que n�o vamos para a cozinha e... Deteve-se ao ouvir a exclama��o de surpresa de Brianna. Ajeitando Liam no colo, ele correu para o hall.
Carstairs estava parado na porta, um chap�u-coco acastanhado na m�o, um sorriso amig�vel no rosto.
- Grayson, que prazer v�-lo outra vez. N�o tinha certeza se voc� ainda estaria aqui. E o que � isso?
- Um beb� - Gray disse laconicamente.
- Claro que �. - Carstairs acariciou o queixo de Liam, mexe com ele. - Bonito rapaz. Devo dizer que parece um pouquinho com voc�, Brianna. A boca.
- � filho de minha irm�. O que o senhor est� fazendo aqui em Blackthorn, Sr. Carstairs?
- S� dando uma passadinha. Falei tanto com a Iris sobre a pousada e o lugar que ela quis ver pessoalmente. Ela est� no carro. - Apontou para o Bentley estacionado
no port�o da garagem. - Na verdade, esperamos que tenha um quarto para n�s esta noite.
Ela arregalou os olhos.
- O senhor quer ficar aqui?
- Imprudentemente, eu me vangloriei demais sobre sua comida.
- Inclinou-se confidencialmente. - Receio que Iris tenha ficado um pouco irritada no in�cio. Ela � realmente uma �tima cozinheira, sabe? Ela quer ver se exagerei.
- Sr. Carstairs, o senhor � um homem desavergonhado.
- Pode ser, minha querida - ele respondeu, piscando. - Pode ser. Ela suspirou.
- Bem, n�o deixe a pobre mulher sentada no carro. Traga-a para um ch�.
- Mal posso esperar para conhec�-la - Gray disse, embalando o beb�.
- Ela diz o mesmo de voc�. Est� muito impressionada por voc� ter roubado minha carteira sem que eu percebesse. Costumava ser muito atento. - Sacudiu a cabe�a,
desapontado. - Mas, ent�o, era mais jovem. Posso trazer nossa bagagem, Brianna?
- Tenho um quarto sim. Mas � menor do que aquele em que ficou na �ltima vez.
- Tenho certeza de que � encantador. Absolutamente encantador.
- Saiu para buscar a esposa.
- Voc� acredita nisso? - Brianna suspirou. - N�o sei se rio ou se escondo a prataria. Se tivesse alguma prataria.
- Ele gosta demais de voc� para roub�-la. Ent�o - Gray murmurou -, a� est� a famosa Iris.
A fotografia da carteira afanada era bem fiel � realidade, Brianna descobriu. Iris usava um vestido florido que a brisa sacudia em torno de pernas bem torneadas.
Para Brianna, Iris tinha usado o tempo no carro para ajeitar os cabelos e a maquiagem, e ent�o parecia descansada e extraordinariamente bonita quando entrou pelo
jardim ao lado do sorridente marido.
- Ah, Srta. Concannon. Brianna, espero mesmo poder cham�-la de Brianna. Penso em voc� como Brianna, claro, depois de ouvir tanto sobre voc� e sua encantadora
pousada.
A voz era suave, educada, a fala num s� f�lego. Antes que Brianna pudesse responder, Iris tomou suas m�os entre as dela.
- Voc� � mais bonita do que Johnny me falou. Que gentileza a sua, que delicadeza, conseguir um quarto para n�s, quando aparecemos assim t�o inesperadamente
� sua porta. E seu jardim, minha querida, preciso dizer que estou tonta de admira��o. Suas d�lias! Nunca tive um pingo de sorte com elas. E suas rosas s�o magn�ficas.
Voc�, realmente, precisa me contar seu segredo. Conversa com elas? Tagarelo com as minhas dia e noite, mas nunca tenho flores assim.
- Bem, eu...
- E voc� � Grayson. - Iris simplesmente ignorou a resposta de Brianna e virou-se para ele. Soltou uma das m�os de Brianna para segurar a de Gray. - Que jovem
inteligente voc� �! E t�o bonito tamb�m. Olha, voc� parece um artista de cinema. Li todos os seus livros, cada um deles. Morro de medo sim, mas n�o consigo larg�-los.
De onde tira essas id�ias emocionantes? Estava t�o ansiosa para conhecer voc�s dois - continuou, prendendo a ambos. - Atormentei o pobre Johnny at� a morte, voc�s
sabem? E agora, aqui estamos n�s.
Houve uma pausa, enquanto Iris sorria para ambos.
- Sim - Brianna descobriu que n�o tinha muito mais a dizer. Aqui estamos n�s. Ah, por favor, entrem. Espero que tenham tido uma viagem agrad�vel.
- Ah, adoro viajar, voc� n�o? E pensar que, com toda essa confus�o em torno de mim e de Johnny em nossa desperdi�ada juventude, n�s nunca viemos a esta parte
do mundo. � lindo como um cart�o-postal, n�o �, Johnny?
- �, meu amor. Certamente �.
- Ah, que casa ador�vel! T�o encantadora. - Iris retinha firmemente a m�o de Brianna, enquanto olhava em volta. - Tenho certeza de que qualquer um s� pode
se sentir confort�vel aqui.
Brianna lan�ou um olhar desamparado a Gray, mas ele apenas sacudiu os ombros.
- Espero que se sintam assim. Deixei um ch� na sala, se quiserem, ou posso lhes mostrar o quarto antes.
- Faria isso? Vamos colocar as malas l�, Johnny? Ent�o talvez possamos todos bater um bom papo.
Iris continuou a falar pelas escadas, pelo corredor do andar de cima, at� o quarto aonde Brianna os conduziu. A colcha n�o era linda? A cortina de renda, ador�vel?
A vista da janela, soberba?
Pouco depois, Brianna se encontrava na cozinha, preparando outro bule de ch�, enquanto os novos h�spedes sentavam-se � mesa, j� se sentindo em casa. Iris alegremente
embalava Liam no colo.
- Que dupla, hein? - Gray murmurou, ajudando-a a pegar as x�caras e os pratos.
- Ela me deixou tonta - Brianna cochichou. - Mas � imposs�vel n�o gostar dela.
- Exatamente. N�o d� pra acreditar que existia um pensamento inescrupuloso naquela cabe�a. Parece uma tia predileta ou a vizinha divertida. Talvez seja mesmo
melhor esconder aquela prataria.
- Shhhh. - Brianna virou-se para levar os pratos para a mesa. Carstairs imediatamente se serviu de p�o e gel�ia.
- Espero, mesmo, que voc�s se juntem a n�s - Iris come�ou, escolhendo uma rosquinha, mergulhando-a num creme consistente. - Johnny, querido, queremos resolver
logo os neg�cios, n�o �? � muito estressante ter neg�cios atrapalhando.
- Neg�cios? - Brianna pegou Liam outra vez, aconchegando-o no colo.
- Neg�cios pendentes. - Carstairs tocou a boca com o guardanapo. - Brianna, este p�o � simplesmente delicioso. Pegue um peda�o, Iris.
-Johnny falou com tanto entusiasmo sobre a sua comida. Receio ter ficado um bocadinho enciumada. Sou mais ou menos na cozinha, sabe?
- Uma cozinheira brilhante - Carstairs, leal, corrigiu, segurando a m�o da esposa e beijando-a profusamente. - Uma cozinheira magn�fica.
- Ah, Johnny, voc� exagera. - Riu como uma menina antes de empurr�-lo para o lado. Depois arqueou os l�bios e soprou-lhe diversos beijinhos. Na cena paralela,
Gray meneava as sobrancelhas para Brianna. - Mas posso entender por que ele ficou t�o encantado com a mesa que voc� p�e, Brianna. - Mordiscou delicadamente sua rosquinha.
- Temos que encontrar um tempinho para trocarmos receitas enquanto estivermos aqui. Minha especialidade � um prato de frango e ostras. E eu mesma posso dizer que
� bem gostoso. O segredo � usar um vinho realmente bom, um branco seco, sabe? E uma pitada de estrag�o. Mas j� estou atropelando tudo outra vez e n�o resolvemos
nossos neg�cios.
Alcan�ou outra rosquinha, apontando para as cadeiras vazias.
- Voc�s n�o v�o se sentar? � t�o mais aconchegante tratar de neg�cios tomando um ch�.
Para n�o contrari�-la, Gray sentou-se e come�ou a preparar seu prato.
- Quer que eu pegue o menino? - ele perguntou a Brianna.
- N�o, fico com ele. - Ela sentou-se com Liam aconchegado em seus bra�os.
- Um anjinho... - Iris falou suavemente. - E voc� tem tanto jeito com beb�s. Johnny e eu sempre lamentamos n�o ter os nossos. Mas estamos sempre metidos em
alguma aventura. Ent�o nossa vida � cheia.
- Aventuras - Brianna repetiu. Um termo interessante, pensou, para fraudes.
- Somos uma dupla do barulho. - Iris riu e o brilho em seus olhos dizia que entendia exatamente os sentimentos de Brianna. - Mas como nos divertimos! N�o seria
correto dizer que sentimos por isso, quando nos divertimos tanto. Mas, por outro lado, a gente envelhece.
- Envelhece mesmo - Carstairs concordou. - E �s vezes perde o faro. - Lan�ou a Gray um olhar suave. - Dez anos atr�s, meu rapaz, voc� nunca teria afanado minha
carteira.
- N�o aposte nisso. - Gray bebericou seu ch�. - Eu era ate melhor dez anos atr�s.
Carstairs jogou a cabe�a para tr�s e riu.
- N�o lhe disse que ele era terr�vel, Iris? Ah, devia t�-lo visto me pressionando em Gales, querida. Como o admirei. Espero que considere me devolver a carteira,
Grayson. Ao menos as fotos. A identidade pode ser facilmente substitu�da, mas sou um tanto sentimental em rela��o a fotos. E, claro, o dinheiro. O sorriso de Gray
foi ligeiro e feroz.
- Voc� ainda me deve cem libras, Johnny. Carstairs limpou a garganta.
- Naturalmente. Inquestionavelmente. S� peguei o seu, voc� entende, para parecer um roubo.
- Naturalmente - Gray concordou. - Inquestionavelmente. Acredito que discutimos recompensas em Gales, antes que voc� tivesse de sair t�o de repente.
- Realmente pe�o desculpas. Voc� me pressionou e n�o me senti � vontade para fechar um acordo sem consultar Iris primeiro.
- Somos grandes defensores de uma parceria total - Iris falou.
- Verdade. - Deu um tapinha carinhoso na m�o da esposa. - Posso dizer honestamente que todas as nossas decis�es s�o fruto de trabalho em equipe. Pensamos que,
combinado com profunda afei��o, � por isso que conseguimos quarenta e tr�s anos de sucesso juntos.
- E, claro, uma boa vida sexual - Iris falou espontaneamente, sorrindo quando Brianna engasgou com o ch�. - De outro jeito o casamento seria de fato aborrecido,
n�o acha?
- Sim, tenho certeza de que tem raz�o. - Dessa vez Brianna pigarreou. -Acho que entendo por que vieram, e aprecio isso. � bom esclarecer as coisas.
- Quer�amos mesmo nos desculpar pessoalmente por qualquer aborrecimento que tenhamos causado. E quero acrescentar minhas desculpas pela busca desajeitada e
mal planejada do meu Johnny em sua ador�vel casa. - Lan�ou um olhar duro ao marido. - Total falta de sensibilidade, Johnny.
- Foi, de fato foi. - Baixou a cabe�a. - Estou completamente envergonhado.
Brianna n�o estava bem convencida daquilo, mas sacudiu a cabe�a.
- Bem, creio que n�o houve preju�zos reais, suponho.
- N�o houve preju�zos! - Iris contestou. - Brianna, minha querida menina, tenho certeza de que ficou furiosa, e com raz�o, muito mais aflita do que sup�e.
- Ela chorou.
- Grayson. - Embara�ada agora, Brianna fixou o olhar na x�cara. - J� passou.
- S� fico imaginando o que deve ter sentido. - A voz de Iris abrandou. -Johnny sabe como me sinto em rela��o �s minhas coisas. Imagine se chego em casa e encontro
tudo revirado. Ficaria arrasada. Simplesmente arrasada. S� espero que possa perdo�-lo pelo impulso lament�vel e por pensar como um homem.
- Sim, j� perdoei. Entendo que estava sob uma forte press�o, e...
- Brianna deteve-se, levantando a cabe�a quando percebeu que estava defendendo o homem que enganara seu pai e invadira sua casa.
- Que cora��o bondoso voc� tem - Iris emendou. - Agora, se pud�ssemos tratar do inc�modo assunto do certificado das a��es pela �ltima vez. Primeiro, deixe-me
dizer que foi muita benevol�ncia, muita paci�ncia sua n�o ter procurado as autoridades em Gales.
- Gray disse que o senhor voltaria.
- Rapaz inteligente - Iris murmurou.
- E n�o via nenhuma raz�o nisso. - Com um suspiro, Brianna pegou uma torradinha e mordiscou-a. - J� faz muito tempo e o dinheiro que meu pai perdeu era dele.
Conhecer as circunst�ncias j� me satisfez.
- Voc� v�, Iris, � bem como eu lhe disse.
- Johnny. - A voz tornou-se repentinamente dominadora. A troca de olhares entre eles se manteve, at� que Carstairs exalou um longo suspiro e baixou os olhos.
- Sim, Iris, claro. Voc� est� completamente certa. Completamente certa. - Refazendo-se, revirou o bolso de dentro da jaqueta e pegou um envelope. - Iris e
eu discutimos e gostar�amos de acertar tudo para a satisfa��o de todos. Com nossas desculpas, querida - disse, entregando o envelope a Brianna. - E com nossos cumprimentos.
Constrangida, ela abriu o envelope. O cora��o despencou at� o est�mago e voltou � garganta.
- � dinheiro. Dinheiro vivo.
- Um cheque dificultaria a contabilidade - Carstairs explicou.
- E ainda ter�amos as taxas. Uma transa��o em dinheiro nos livra desses inconvenientes. S�o dez mil libras. Libras irlandesas.
- Ah, mas n�o posso...
- Voc� pode sim - Gray interrompeu.
- N�o � certo.
Come�ou a devolver o envelope a Carstairs. Os olhos dele iluminaram-se brevemente, ele estendeu os dedos. E a esposa deu-lhe um safan�o.
- Seu rapaz est� com a raz�o no neg�cio, Brianna. Est� tudo bem certo, para todos os envolvidos. N�o precisa ficar preocupada de que este dinheiro v� fazer
uma diferen�a apreci�vel em nossa vida. N�s vamos indo muito bem. Vai aliviar minha mente e meu cora��o se voc� o aceitar. E - acrescentou - nos devolver os certificados.
- Est�o com Rogan.
- N�o, eu os peguei de volta. - Gray levantou-se, dirigindo-se ao quarto de Brianna.
- Pegue o dinheiro, Brianna - Iris falou gentilmente. - Guarde-o agora, no bolso do avental. Ser� um grande favor.
- N�o consigo entend�-la.
- Suponho que n�o. Johnny e eu n�o lamentamos a vida que levamos antes. Desfrutamos cada minuto dela. Mas um pequeno seguro para resgate do t�tulo n�o far�
mal algum. - Sorriu, alcan�ou a m�o de Brianna, apertando-a. - Eu consideraria isso uma generosidade. N�s dois. N�o �, Johnny?
Ele lan�ou um �ltimo e desejoso olhar ao envelope.
- Sim, querida.
Gray voltou, trazendo os certificados.
- Creio que � de voc�s.
- Sim, sim, de fato. - Ansioso, Carstairs pegou os pap�is. Ajustando os �culos, examinou-os. - Iris - disse, com orgulho, enquanto passava os certificados
a ela para que os examinasse tamb�m. -Fizemos um trabalho de alto n�vel, n�o fizemos? Absolutamente sem falhas.
- Fizemos, Johnny querido. Com toda certeza.
N
unca em toda a minha vida tive um momento de tanta satisfa��o. - Quase ronronando, Maggie se esticou no banco do carona do carro de Brianna. Lan�ou um �ltimo olhar
para tr�s, para a casa da m�e, enquanto a irm� arrancava com o carro.
- N�o comece a tripudiar, Margaret Mary.
- Come�ando ou n�o, estou adorando. - Virou-se para colocar um chocalho na m�o agitada de Liam, acomodado na cadeirinha de seguran�a, atr�s. - Viu o rosto
dela, Brie? Ah, voc� viu?
- Vi. - Sua nobreza cedeu por instantes e um sorriso insinuou-se. - Pelo menos, voc� teve o bom senso de esfregar no nariz dela.
- Esse era o acordo. S� dir�amos a ela que o dinheiro veio
de um
investimento que papai tinha feito antes de morrer. Algo que s� agora foi pago. E eu resistiria, n�o importa quanto me custasse, de dizer que ela n�o merecia
sua ter�a parte, j� que nunca acreditara nele.
- Um ter�o do dinheiro era legalmente dela e ponto final.
- N�o vou discutir isso com voc�, ainda estou curtindo muito tudo isso. - Saboreando os �ltimos acontecimentos, Maggie cantarolou um pouquinho. - E ent�o,
quais s�o seus planos para a sua parte?
-
- Tenho algumas id�ias para incrementar a pousada. O quarto do s�t�o para um h�spede, que foi o que come�ou essa hist�ria.
Enquanto Liam animadamente arremessava o primeiro chocalho para o lado, Maggie pegou outro.
- Pensei que ir�amos a Galway fazer compras.
- Vamos. - Gray a tinha atormentado com a id�ia e quase a pusera para fora de sua pr�pria casa. Sorria agora, pensando naquilo. - Estou pensando em comprar
um daqueles processadores de alimentos profissionais. Do tipo que usam em restaurantes e em feiras de arte culin�ria.
- Isso agradaria muito a papai. - O riso de Maggie se suavizou. - � como um presente dele, n�o acha?
- Tamb�m penso assim. Parece certo. E quanto a voc�?
- Vou gastar um pouco no ateli�. O resto fica para Liam. Acho que papai gostaria. - Com o olhar distante, correu os dedos pelo painel. - Seu carro � lindo,
Brie.
- �. - Riu e disse a si mesma que teria de agradecer a Gray por tir�-la de casa por aquele dia. - Pode me imaginar dirigindo para Galway sem me preocupar que
algo vai escangalhar pelo caminho? � t�pico de Gray dar presentes maravilhosos como se fosse a coisa mais natural do mundo.
- � verdade. O cara me traz um broche de diamantes como se fosse um buqu� de flores. Ele tem um cora��o ador�vel, generoso.
- Tem mesmo.
- Falando nele, o que ele ficou fazendo?
- Ora... trabalhando ou se distraindo com os Carstairs.
- Que figuras! Sabe que Rogan me disse que quando foram � galeria tentaram convenc�-lo a vender para eles a mesa antiga da sala do andar de cima?
- N�o me surpreende nem um pouco. Ela quase me convenceu a comprar, sem ver, uma lumin�ria que disse ser perfeita para a minha sala. Daria um bom desconto
tamb�m. - Brianna riu. - Vou sentir falta quando forem embora amanh�.
- Aposto que voltar�o. - Ela hesitou. - Quando Gray vai embora?
-
- Provavelmente na semana que vem. - Manteve o olhar na estrada e a voz serena: - Pelo que sei, est� s� fazendo os ajustes finais no livro.
- E acha que voltar�?
- Espero. Mas n�o vou contar com isso. N�o posso.
- Pediu a ele para ficar?
- N�o posso.
- N�o - Maggie murmurou. - N�o pode. Nem eu poderia nas mesmas circunst�ncias. - Ainda assim, pensou, ele � um terr�vel idiota, se for. - Voc� gostaria de
fechar a pousada por alguns dias ou pedir � Sra. O'Malley para tomar conta para voc�? Poderia ir para Dublin ou ficar na vila.
- N�o, mas obrigada por isso. Acho que fico mais feliz em casa. Provavelmente era verdade, Maggie pensou, e n�o discutiu.
- Bem, se mudar de id�ia, � s� dizer. - Fazendo um esfor�o determinado para levantar o astral, voltou-se para a irm�. - O que acha, Brie? Vamos comprar uma
besteira quando chegarmos ao centro? A primeira coisa que der vontade. Algo bem in�til e caro, uma daquelas quinquilharias que costum�vamos ficar namorando, com
o nariz grudado na vitrina da loja, quando papai nos levava l�.
- Como uma bonequinha com roupas lindas ou porta-j�ias com bailarinas dan�ando na tampa.
- Ah, acho que podemos encontrar alguma coisa mais de acordo com nossa idade, mas a id�ia � essa.
- Tudo bem, ent�o. Faremos isso.
Como falaram no pai, as lembran�as tomaram conta de Brianna quando chegaram a Galway. Depois de estacionar o carro, juntaram-se ao fluxo de pedestres, consumidores,
turistas e crian�as.
Ela viu uma garotinha rindo enquanto seguia sobre os ombros do
pai.
Ele costumava fazer aquilo, lembrou. E dava voltas t�o r�pidas com ela e com Maggie que, muitas vezes, elas saltavam, gritando de alegria.
Ou ent�o segurava firmemente a m�o delas, enquanto caminhavam, contando hist�rias, � medida que eram levadas pelas ruas cheias.
Quando o navio chegar, Brianna, meu amor, eu lhe comprarei lindos vestidos como aqueles daquela vitrina.
Um dia, viremos a Galway com o bolso cheio de moedas. Espere s�, querida.
E embora, mesmo naquela �poca, soubesse que eram apenas hist�rias, sonhos, isso n�o diminu�a o prazer de ver, cheirar, ouvir.
Nem as lembran�as estragavam isso agora. A cor e o movimento da rua das lojas fizeram com que sorrisse como sempre. Gostava das vozes que se cruzavam num irland�s
cadenciado, os sons agudos e pronunciados dos americanos, o gutural dos alem�es, o impaciente dos franceses. Podia sentir o odor da ba�a de Galway carregado pela
brisa e a gordura de um pub pr�ximo.
- A� est�! - Maggie apressou o passo na dire��o de uma vitrina.
- � perfeito.
Brianna caminhou por entre a multid�o at� conseguir ver por sobre o ombro de Maggie.
- O que �?
- Aquela vaca grande e gorda. � exatamente o que eu queria.
- Quer uma vaca?
- Parece porcelana - Maggie avaliou, vendo o corpo preto-e-branco lustroso e a cara bovina sorridente. - Aposto que custa uma fortuna. Melhor. Vou comprar.
Vamos entrar.
- Mas o que vai fazer com ela?
- Dar a Rogan, claro, e fazer com que a coloque naquele escrit�rio atulhado dele, em Dublin. Espero que pese uma tonelada.
Pesava mesmo. Ent�o combinaram deix�-la com o funcion�rio da loja, enquanto terminavam de fazer as compras. Foi s� depois de terem almo�ado e Brianna ter estudado
os pr�s e contras de meia d�zia de processadores de alimentos que ela encontrou sua pr�pria loucura.
As fadas eram feitas de bronze pintado e dan�avam em fios pendurados numa roldana de metal. A um toque dos dedos de Brianna, elas giraram, as asas batendo
juntas, musicalmente.
-Vou pendurar do lado de fora da janela do meu quarto. V�o me fazer lembrar dos contos de fadas que papai costumava nos contar.
- � perfeito. - Maggie passou um bra�o em torno da cintura de Brianna. - N�o, n�o olhe o pre�o - disse, quando Brianna come�ou a procurar pela pequena etiqueta.
- Faz parte disso tudo. Qualquer que seja o pre�o, � a escolha certa. V� comprar o que voc� quer, e ent�o veremos como levar minhas coisas at� o carro.
No fim, decidiram que Maggie esperaria na loja com a vaca, Liam e o resto das sacolas, enquanto Brianna pegava o carro.
Animada, ela andou at� o estacionamento. Logo que chegassem em casa, penduraria suas fadas dan�antes, pensou. Depois se divertiria com seu novo brinquedo de
cozinha. Estava pensando como seria delicioso criar uma musse de salm�o ou triturar delicadamente cogumelos com um instrumento de precis�o.
Cantarolando, deslizou atr�s do volante, girando a igni��o. Talvez pudesse experimentar um prato para servir junto com o peixe grelhado que pretendia preparar
para o jantar. De que Gray gostaria especialmente?, pensava enquanto se dirigia para a sa�da, a fim de pagar o estacionamento. Pur� de batatas, talvez, e alguma
coisa com groselhas, se encontrasse frutos bastante maduros para a sobremesa.
Pensou na �poca das groselhas, naqueles primeiros dias de junho. Mas Gray j� teria ido ent�o. Sentiu um aperto no cora��o. Bem, de qualquer forma j� era quase
junho, pensou ao sair do estacionamento. E queria que Gray tivesse uma sobremesa especial antes de ir embora.
Brianna ouviu um grito, enquanto fazia a curva. Surpresa, jogou a cabe�a para tr�s. Apenas teve tempo de inspirar o ar para gritar quando um carro, fazendo
a volta muito fechada na contram�o, colidiu contra o dela.
Ouviu o guincho do metal rasgando, de vidro estilha�ando. Ent�o... N�o ouviu mais nada.
- Ent�o Brianna foi �s compras - Iris comentou, quando encontrou Gray na cozinha. - � �timo para ela. Nada deixa uma mulher mais bem-humorada do que se esbaldar
nas compras.
Ele n�o conseguia imaginar a pr�tica Brianna se esbaldar em nada.
- Ela foi a Galway com a irm�. Falei que nos arranjar�amos, se resolvesse n�o voltar para o ch�. - Sentindo-se um tanto dono da cozinha, Gray amontoava nos
pratos a comida que Brianna havia preparado mais cedo para eles. - De qualquer modo, somos s� n�s tr�s nesta noite.
- Ficaremos confort�veis bem aqui. - Iris colocou o bule de ch� na mesa. - Voc� fez bem em convenc�-la a passar o dia com a irm�.
- Quase tive de arrast�-la at� o carro, ela � ligada demais a este lugar.
- Ra�zes profundas e f�rteis. � por isso que ela floresce. Como as flores dela l� fora. Nunca, em toda a minha vida, vi jardins como os dela. Sabe, justo esta
manh� estava... Ah, a� est� voc�, Johnny. Bem na hora.
- Fiz uma caminhada revigorante... - Carstairs pendurou o chap�u num cabide, esfregando as m�os. - Sabe, querida, que eles ainda cuidam da pr�pria turfa?
- N�o diga.
- Verdade. Encontrei a turfeira. E havia estacas, secando ao vento e ao sol. � como voltar um s�culo atr�s. - Beijou o rosto da esposa, antes de dirigir a
aten��o para a mesa. - Ah, o que temos aqui?
- Lave as m�os, Johnny, e vamos tomar um delicioso ch�. Eu sirvo, Gray, sente-se.
Divertindo-se com eles, com o modo como se tratavam, Gray obedeceu.
- Iris, espero que n�o se ofenda se eu lhe perguntar uma coisa.
- Querido menino, pode perguntar o que quiser.
- Sente falta?
Ela n�o fingiu n�o entender enquanto passava o a��car para ele.
- Sinto sim. De vez em quando. Aquele tipo de vida no limite da emo��o. T�o revigorante. - Serviu a x�cara do marido e a sua. - E voc�? - Quando Gray apenas
levantou a sobrancelha, ela riu. - Um sempre reconhece o outro.
- N�o - disse ap�s uma pausa. - N�o sinto falta.
- Bem, voc� se afastou bem cedo. Ent�o n�o deve ter sentido o mesmo tipo de v�nculo emocional. Ou talvez sinta, e por isso nunca use nenhuma das experi�ncias
anteriores, por assim dizer, em seus livros.
Sacudindo os ombros, ele levantou a x�cara.
- Talvez eu n�o tenha motivo para olhar para tr�s.
- Sempre achei que nunca se tem uma vis�o realmente clara do vem pela frente, se n�o se olhar por cima do ombro de vez em quando.
- Gosto de surpresas. Se o amanh� j� est� decidido por que se
preocupar com isso?
- A surpresa vem do fato de que o amanh� nunca � exatamente que voc� pensa que seria. Mas voc� ainda � jovem - disse sorrindo maternalmente. - Aprender� isso
por si mesmo. Costuma consultar um mapa quando viaja?
- Naturalmente.
- Bem, � isso, entende? Passado, presente, futuro. Tudo tra�ado. - Com o l�bio inferior preso entre os dentes, mediu meticulosamente um quarto de colher de
a��car para o ch�. - Pode tra�ar uma rota. Algumas pessoas se agarram a ela, n�o importa o que aconte�a. Nenhum desvio para explorar algumas estradinhas, nenhuma
parada n�o planejada para desfrutar um p�r-do-sol particularmente maravilhoso. Uma pena. E, ah, como reclamam quando s�o for�ados a se desviar. Mas muitos de n�s
gostamos de uma pequena aventura ao longo do caminho, aquele caminho ao lado. Ter uma vis�o do destino final n�o deve impedi-los de desfrutar a viagem. Aqui est�,
Johnny querido, seu ch�.
- Deus a aben�oe, Iris.
- E s� com uma gota de creme, bem como gosta.
- Estaria perdido sem ela - Carstairs disse a Gray. - Ah, parece que temos companhia.
Gray olhou na dire��o da porta da cozinha, enquanto Murphy a abria. Con entrou na frente, sentou-se aos p�s de Gray, colocando a cabe�a em seu colo. Ao erguer
a m�o para co�ar as orelhas de Con, o sorriso desapareceu de seu rosto.
- O que foi? - Levantou-se de um salto, sacudindo as x�caras sobre a mesa. O rosto de Murphy estava muito s�rio, os olhos sombrios. - O que aconteceu?
- Houve um acidente. Brianna est� ferida.
- O que quer dizer com est� ferida? - interpelou em meio aos lamentos de Iris.
- Maggie me ligou. Aconteceu um acidente quando Brie dirigia
do estacionamento para a loja onde ela e o beb� estavam esperando.- Murphy tirou o bon�, por for�a do h�bito, e torceu a aba. - Vou levar voc� a Galway. Ela est�
no hospital de l�.
- Hospital. - Ali de p�, Gray sentiu, sentiu fisicamente, o sangue drenar para fora dele. - � grave? � muito grave?
- Maggie n�o tinha certeza. Ela acha que n�o � t�o grave, mas est� esperando para saber. Levo voc� a Galway, Grayson. Acho que podemos usar seu carro. Seria
mais r�pido.
- Preciso das chaves. - Seu c�rebro estava entorpecido, in�til. -Tenho que pegar as chaves.
- N�o o deixe dirigir - Iris disse, quando Gray saiu como um raio.
- N�o, senhora. N�o vou deixar.
Murphy n�o precisou discutir. Simplesmente tirou as chaves da m�o de Gray e foi para o volante. Como Grayson n�o dizia nada, Murphy concentrou-se em usar toda
a velocidade que o Mercedes podia oferecer. Em outra ocasi�o, talvez, apreciasse a resposta que o elegante carro oferecia. Por ora, simplesmente o usava.
Para Gray, a viagem foi intermin�vel. A paisagem exuberante do Oeste ia se sucedendo, mas eles pareciam n�o avan�ar. Era como num filme de anima��o, pensou
sombriamente, os cen�rios passando, enquanto n�o podia fazer nada, a n�o ser ficar sentado.
E esperar.
Ela n�o teria ido se ele n�o tivesse insistido tanto. Mas ele a pressionara a sair, passar o dia fora. Ent�o tinha ido a Galway, e agora estava... Cristo,
n�o sabia o que ela fazia, como estava e n�o suportava sequer imaginar.
- Devia ter ido com ela.
Com o carro passando dos cem quil�metros por hora, Murphy n�o se preocupou de olhar.
- Vai ficar doente pensando assim. Estamos quase l�, ent�o saberemos de tudo.
- Comprei o maldito carro para ela.
- Verdade. - O homem n�o precisava de compaix�o, Murphy sabia, mas de um pensamento objetivo. - E voc� n�o estava dirigindo o que bateu nele. No meu modo de
pensar, se ela estivesse naquela banheira velha que tinha antes, a situa��o seria bem pior.
- N�o sabemos como est� a situa��o.
- Logo saberemos. Ent�o, controle-se. - Pegou uma sa�da da estrada principal e avan�ou em meio ao tr�nsito intenso. - � poss�vel que ela esteja bem e nos deixe
com remorsos por estar dirigindo assim
Entrou no estacionamento do hospital. Mal tinham desembarcado, viram Rogan caminhando com o beb�.
- Brianna. - Foi tudo o que Gray p�de dizer.
- Ela est� bem. Querem que ela fique durante a noite, pelo menos, mas est� bem.
A firmeza abandonara as pernas de Gray. Ent�o segurou o bra�o de Rogan mais para se equilibrar.
- Onde? Onde � que ela est�?
- Acabaram de transferi-la para um quarto no sexto andar. Maggie ainda est� com ela. Trouxe a m�e dela e Lottie comigo. Est�o l� em cima tamb�m. Ela est� -
interrompeu-se, movendo-se para impedir que Gray corresse para a entrada. - Ela est� ferida e acho que est� sofrendo mais do que deixa transparecer. Mas o m�dico
nos disse que teve muita sorte. Alguns hematomas do cinto de seguran�a, que a prendeu, impedindo de ser pior. O ombro est� machucado, e � o que est� causando mais
dor. Tem um ferimento na cabe�a e alguns cortes. Querem que ela fique de repouso por vinte e quatro horas.
- Preciso v�-la.
- Eu sei. - Rogan permaneceu no mesmo lugar. - Mas ela n�o precisa saber o quanto voc� est� nervoso. Ela vai perceber e ficar preocupada.
- Ok. - Tentando acalmar-se, Gray pressionou os dedos sobre os olhos. - Muito bem. Vou ficar calmo, mas preciso v�-la.
- Vou subir com voc� - Murphy disse, seguindo para a entrada. Mantendo-se discreto, ele n�o disse nada enquanto esperavam o elevador.
- Por que est�o todos aqui? - Gray questionava, quando o elevador abriu. - Por que est�o aqui, Maggie, a m�e dela, Rogan e Lottie, se ela est� bem?
- S�o da fam�lia. - Murphy apertou o bot�o para o sexto andar.
- Onde mais estariam? Sabe, uns tr�s anos atr�s quebrei o bra�o e bati a cabe�a jogando futebol. N�o consegui me livrar de uma irm�, e a outra ficava na porta.
Minha m�e ficou por duas semanas, por mais que eu a mandasse para casa. E, para falar a verdade, bem que estava gostando de toda aquela paparica��o. N�o saia correndo
feito louco - Murphy avisou, quando o elevador parou. - As enfermeiras irlandesas s�o bem duronas. Olhe, aqui est� Lottie.
- Lindos, devem ter vindo voando. - Adiantou-se, um sorriso confiante. - Ela est� reagindo bem, est�o cuidando dela. Rogan conseguiu um quarto particular para
ela. Ent�o ter� privacidade e sossego. Ela j� est� se queixando de que quer ir para casa, mas, por causa da concuss�o, querem ficar de olho nela.
- Concuss�o?
- Leve, realmente muito leve - ela os sossegou, levando-os pelo corredor. - Parece que ela s� ficou inconsciente por alguns momentos. E estava l�cida o bastante
para dizer ao homem do estacionamento onde Maggie a estava esperando. Olhe aqui, Brianna, voc� j� tem mais visitas.
Tudo o que Gray p�de ver foi Brianna, branca contra os len��is brancos.
- Ah, Gray, Murphy, n�o deviam ter feito essa viagem. J� estou indo para casa.
- N�o vai n�o. - A voz de Maggie era firme. - Vai ficar aqui esta noite.
Brianna come�ou a mexer a cabe�a, mas a dor fez com que pensasse melhor.
- N�o quero ficar aqui durante a noite. Foram s� umas pancadas e hematomas. Ah, Gray, o carro. Sinto tanto pelo carro. A lateral est� toda amassada, o farol
da frente est� quebrado e...
- Fique quieta agora e me deixe olhar para voc�. - Segurou sua m�o.
Estava p�lida e havia um hematoma em seu rosto. Sobre a sobrancelha, um curativo branco. Por baixo da camisola branca e sem forma do hospital ele podia ver
mais bandagens sobre o ombro.
Como sua m�o come�ou a tremer, ele a retirou, enfiando-a no bolso.
- Voc� est� sentindo dor. Posso ver em seus olhos.
- Minha cabe�a d�i. - Sorriu fracamente, levando um dedo � bandagem. Sinto como se tivesse sido pisoteada por um time de r�gbi inteiro.
- Deviam lhe dar alguma coisa.
- Eles me dar�o se eu precisar.
- Ela tem medo de agulhas - Murphy disse, inclinando-se para beij�-la levemente. Seu pr�prio al�vio em v�-la inteira se manifestou num largo e atrevido sorriso.
- Lembro-me de voc� gemendo, Brianna Concannon, quando eu estava na sala de espera do Dr. Hogan e voc� tomava inje��o.
- E n�o tenho vergonha disso. Aquelas agulhas s�o terr�veis. N�o quero que me espetem mais do que j� espetaram. Quero ir para casa.
- Vai ficar onde est�. - Maeve falou de uma cadeira junto da janela. - Levar uma agulhada ou duas n�o � nada, depois do susto que nos deu.
- M�e, n�o � culpa de Brianna se uns americanos idiotas n�o foram capazes de saber qual lado da rua deviam usar. - Maggie trincou os dentes ao pensar nisso.
- E eles s� tiveram um arranh�ozinho.
- N�o devia ser t�o dura com eles. Foi um acidente, e quase morreram de susto. - O latejar na cabe�a de Brianna aumentou � id�ia de uma discuss�o. - Vou ficar
se for preciso, mas s� quero perguntar ao m�dico outra vez.
- Vai obedecer o doutor e descansar como ele lhe disse. - Maeve levantou-se. - E n�o h� descanso algum com todo esse pessoal fazendo barulho � sua volta. Margaret
Mary, � hora de levar o beb� para casa.
- N�o quero que Brie fique sozinha - Maggie falou.
- Vou ficar. - Gray virou-se enfrentando o olhar de Maeve firmemente. - Vou ficar com ela.
Ela sacudiu o ombro.
- Claro que n�o � da minha conta o que voc� faz. Perdemos nosso ch� - disse. - Lottie e eu tomaremos alguma coisa l� embaixo, enquanto Rogan providencia algu�m
para nos levar em casa. Fa�a o que lhe disseram, Brianna, e n�o se agite.
Ela se abaixou, um tanto dura, e beijou a bochecha n�o machucada de Brianna.
- Voc� nunca se recuperou muito rapidamente, ent�o n�o espero que desta vez seja diferente. - Os dedos tocaram por um instante onde os l�bios tinham passado.
Ent�o, virou-se e saiu, chamando Lottie.
- Ela rezou dois ter�os at� chegar aqui - Lottie murmurou. - Descanse. - Depois de um beijo de despedida, foi atr�s de Maeve.
- Bem. - Maggie deixou escapar um profundo suspiro. -Acho que posso confiar em Grayson para cuidar que voc� se comporte. Vou procurar Rogan e ver como faremos
para mand�-las para casa. Voltarei antes de ir para ver se Grayson precisa de alguma ajuda.
- Vou com voc�, Maggie. - Murphy acariciou o joelho de Brianna, coberto pelo len�ol. - Se vierem espetar alguma agulha em voc�, basta virar a cabe�a e fechar
os olhos. � o que eu fa�o.
Ela riu e, quando o quarto ficou vazio, olhou para Gray.
- Quero que voc� sente agora. Sei que est� nervoso.
- Estou bem. - Tinha medo de sentar-se e simplesmente escorregar sem for�as para o ch�o - Gostaria de saber o que aconteceu, se voc� puder me contar.
- Foi tudo muito r�pido. - Cedendo ao desconforto e ao cansa�o, cerrou os olhos por um momento. - Compramos coisas demais para carregar. Ent�o fui pegar o
carro, enquanto Maggie esperava na loja. Logo que sa� do estacionamento, ouvi algu�m gritar. Era o funcion�rio. Ele tinha visto o outro carro vindo na minha dire��o.
N�o havia mais nada a fazer. N�o dava tempo. Bateu de lado.
Come�ou a se mexer e o ombro reagiu em protesto.
- Eles iam rebocar o carro. N�o consigo lembrar para onde.
- N�o tem import�ncia. Cuidaremos disso depois. Voc� bateu a cabe�a. - Delicadamente ele estendeu a m�o, mas manteve os dedos um mil�metro distante do curativo.
- Devo ter batido. S� me lembro de que depois havia uma multid�o em volta e uma americana chorava me perguntando se eu estava bem. O marido dela j� tinha ido
chamar a ambul�ncia. Eu estava aturdida. Acho que pedi a algu�m para chamar minha irm�, e ent�o, n�s tr�s... Maggie, o beb� e eu... est�vamos saindo numa ambul�ncia.
Ela n�o acrescentou que havia muito sangue. O bastante para aterroriz�-la, at� que o atendente m�dico estancasse o fluxo.
- Sinto que Maggie n�o pudesse ter contado mais a voc�, quando telefonou. Se ela tivesse esperado at� o m�dico acabar de me atender, teria poupado voc� de
um tanto de preocupa��o.
- Eu teria me preocupado do mesmo jeito. Eu n�o... Eu n�o pude... - Fechou os olhos e fez um esfor�o para encontrar as palavras. - � dif�cil para mim encarar
a id�ia de voc� estar ferida. E a realidade � mais dura ainda.
- S�o s� umas pancadas e hematomas.
- E uma concuss�o, um ombro deslocado. - Para o pr�prio bem dos dois, ele recuou. - Me diga, � verdade ou mito que n�o se deve dormir depois de uma concuss�o,
porque podemos n�o acordar mais?
- � supersti��o. - Ela sorriu novamente. - Mas estou pensando seriamente em ficar acordada um ou dois dias, por via das d�vidas.
- Ent�o vai querer companhia.
- Vou adorar ter companhia. Acho que ficaria louca nesta cama, sozinha, sem nada para fazer nem ningu�m para ver.
- Como � isto aqui? - Com cuidado para n�o balan�ar a cama, sentou-se na beirada. - Com certeza, a comida aqui � intrag�vel. Isso � a norma nos hospitais em
qualquer pa�s desenvolvido. Vou sair, trazer alguns hamb�rgueres e fritas. Vamos jantar juntos.
- Vou adorar.
- E se vierem e tentarem dar uma inje��o em voc�, bato neles.
- N�o vou me importar se fizer isso. Faria mais uma coisa por mim?
- Basta dizer.
- Ligue para a Sra. O'Malley. Tenho hadoque pronto, � s� grelhar para o jantar. Sei que Murphy cuidar� de Con, mas os Carstairs precisam ser servidos, e mais
h�spedes v�o chegar amanh�.
Gray levou os dedos dela at� seus l�bios, depois descansou a testa neles.
- N�o se preocupe com isso. Deixe-me cuidar de voc�. Era a primeira vez em sua vida que ele fazia este pedido.
Q
uando Gray voltou com o jantar, o quarto de hospital de Brianna lembrava seu jardim. Ramos de rosas e fr�sias, buqu�s de lupinas e l�rios, alegres margaridas e cravos
se amontoavam na janela, enchiam a mesa ao lado da cama.
Gray moveu o enorme buqu� que trazia para poder enxergar por cima dele e sacudiu a cabe�a.
- Parece que estes s�o sup�rfluos.
- Ah, n�o, n�o s�o. S�o lindos! Tanta agita��o por uma simples batida na cabe�a. - Segurou o buqu� com o bra�o n�o machucado, como se fosse uma crian�a, e
afundou o rosto nele. - Estou adorando. Maggie e Rogan trouxeram estes, Murphy aqueles. E o �ltimo foi mandado pelos Carstairs. N�o foi delicadeza deles?
- Estavam realmente preocupados. - Apoiou a grande bolsa de papel que trazia. - Preciso lhe dizer que ficar�o mais uma noite ou duas, dependendo de quando
voc� sair daqui. - Isso � �timo, claro. E vou sair amanh�, mesmo que eu tenha
que fugir pela janela. - Lan�ou um olhar ansioso para a bolsa. - Trouxe mesmo o jantar?
- Trouxe. Dei um jeito de esconder para passar pela enorme enfermeira com olhos de �guia ali fora.
- Ah, a Sra. Mannion. Assustadora, n�o �?
- Me apavora. - Puxou a cadeira para perto da cama, sentou-se e come�ou a tirar coisas da bolsa. - Bon-app�tit- disse, passando a ela um hamb�rguer. - Ah,
aqui, me deixe pegar isso. - Levantou-se outra vez para tirar o buqu� do bra�o dela. - Acho que precisam de �gua, n�o �? Agora, coma. - Puxou um pacote de fritas
para ela. - Vou procurar um vaso.
Quando saiu novamente, ela tentou se mover para ver o que mais havia na bolsa que ele deixara no ch�o. Mas o ombro fez o movimento desajeitado. Recostando-se
outra vez, mordiscou o hamb�rguer e tentou n�o ficar amuada. O som de passos voltando levou-a a estampar um sorriso no rosto.
- Onde quer que eu coloque? - Gray perguntou.
- Ah, naquela mesinha l�. Sim, est� �timo. Seu jantar vai ficar frio, Gray.
Ele apenas grunhiu e, sentando-se de novo, pegou sua parte da refei��o na bolsa.
- Est� melhor?
- N�o me sinto t�o mal para ser paparicada assim, mas fico contente que tenha ficado para jantar comigo.
- Isso � s� o come�o, querida. - Ele piscou e com o hamb�rguer meio comido numa m�o revirou a bolsa.
- Ah, Gray, uma camisola. Uma camisola de verdade. - Era comprida, branca e de algod�o, e l�grimas de gratid�o lhe vieram aos olhos. - N�o sou capaz de dizer
o quanto gostei. Essa coisa horr�vel que eles p�em na gente.
- Ajudarei voc� a trocar depois do jantar. Tem mais.
- Chinelos tamb�m. Ah, uma escova de cabelo! Gra�as a Deus.
- Na verdade, n�o posso receber cr�ditos por tudo isso. Foi id�ia de Maggie.
- Deus a aben�oe. E a voc�.
- Disse que sua blusa ficou arruinada. - Ensang�entada, lembrava que ela tinha contado, e levou um momento para se firmar. - Cuidaremos disso amanh�, se lhe
derem alta. Agora, o que mais temos aqui? Escova de dentes, um vidrinho daquele creme que voc� usa todo tempo. Quase esqueci os drinques. - Estendeu um copo de papel
a ela, com tampa pl�stica e com um orif�cio para o canudo. - Uma excelente safra, disseram.
- Voc� pensou em tudo.
- Perfeitamente. At� no lazer.
- Ah, um livro!
- Uma novela bem rom�ntica. Voc� tem v�rias em sua estante na pousada.
- Gosto delas. - N�o teve coragem de dizer que a dor de cabe�a tornaria imposs�vel ler. - Voc� teve tanto trabalho.
- S� umas comprinhas r�pidas. Tente comer um pouco mais. Obedientemente ela beliscou uma batata frita. - Quando voltar
para casa, poderia agradecer � Sra. O'Malley por mim e dizer a ela que n�o se preocupe com a limpeza da cozinha?
- N�o vou voltar sem voc�.
- Mas n�o pode ficar a noite toda aqui.
- Claro que posso. - Gray deu fim ao hamb�rguer, amassou o papel e atirou-o na lata de lixo. - Tenho um plano.
- Grayson, voc� precisa voltar para casa. Descansar um pouco.
- Eis o plano - disse, ignorando-a. - Depois do hor�rio de visitas, vou me esconder no banheiro at� que as coisas se acomodem. Talvez fa�am uma vistoria. Ent�o
esperarei at� que venham e olhem voc�.
- Isso � absurdo!
- N�o, vai funcionar. Ent�o as luzes se apagam e voc� se cobre. � quando eu apare�o.
- E fica sentado no escuro pelo resto da noite? Grayson, n�o estou no meu leito de morte. Quero que voc� v� para casa.
- N�o posso fazer isso. E n�o vamos ficar no escuro. - Com um sorriso arteiro, puxou sua �ltima compra da bolsa. - V� isto? � uma luz para livros, do tipo
que voc� prende, para n�o perturbar seu parceiro de cama, se quiser ler at� tarde.
Divertida, ela sacudiu a cabe�a.
- Voc� perdeu o ju�zo.
- Ao contr�rio, estou extremamente esperto. Assim, n�o ficarei na pousada, preocupado, e voc� n�o ficar� aqui sozinha e triste. Leio para voc� at� ficar cansada.
- L� para mim? - repetiu num murm�rio. - Voc� vai ler para mim?
- Claro. N�o posso querer que voc� tente focar estas letrinhas com uma concuss�o, posso?
- N�o. - N�o se lembrava de nada, absolutamente nada na sua vida que a tivesse tocado mais. - Eu devia fazer voc� ir, mas quero muito que fique.
- Ent�o somos dois. Olha s�, parece muito bom o que diz na contracapa. "Uma alian�a mortal" - ele leu. - "Katrina nunca seria domada. A bela de cabelos ruivos
com rosto de deusa e alma de guerreira arriscaria tudo para vingar o assassinato do pai. At� mesmo casar e ir para a cama com o mais feroz dos inimigos." - Levantou
a sobrancelha. - Garota danada de garota, essa Katrina. E o her�i tamb�m n�o � nenhum incompetente. "Ian nunca se renderia. O corajoso e experiente combatente das
regi�es montanhosas, conhecido como Dark Lord, lutaria com amigos e advers�rios para proteger suas terras e sua mulher. Inimigos jurados de morte, amantes jurados
de amor formam uma alian�a que os arrasta para o destino e para a paix�o."
Folheou o livro at� a folha de rosto, pegando distraidamente uma batata frita.
- Muito bom, hein? E olha s� que casal bonito eles formam. Veja, a hist�ria se passa na Esc�cia, s�culo XII. Katrina era a filha �nica desse propriet�rio vivo.
Ele a deixou crescer livremente. Ent�o ela faz um monte de coisas de menino. Sabe lutar com espada, usar arco-e-flecha, ca�ar. Ent�o h� uma conspira��o calamitosa
e ele � assassinado, o que a torna propriet�ria das terras e v�tima daquele vil�o corrupto e um tanto insano. Mas Katrina n�o � nenhum capacho.
Brianna sorriu procurando pela m�o de Gray.
- J� tinha lido esse livro?
- Dei uma folheada enquanto esperava para pagar. Tem uma cena er�tica incr�vel, na p�gina 251. Bem, vamos ver como � que a gente se arranja com isso. Eles
provavelmente vir�o e checar�o sua press�o sang��nea, e n�o queremos que ela se eleve. Melhor se livrar das evid�ncias aqui tamb�m. -Juntou as embalagens do jantar
contrabandeado.
Mal tinha escondido tudo na bolsa e a porta se abriu. A enfermeira Mannion, grande como um jogador de r�gbi, irrompeu no quarto.
- A hora de visitas terminou, Sr. Thane.
- Sim, senhora.
- Ent�o, Srta. Concannon, como est�? Alguma tontura, n�usea, vis�o borrada?
- N�o, nada. Estou bem mesmo. Na verdade, estava querendo perguntar se...
- Bom, muito bom. - A enfermeira Mannion facilmente se esquivou do j� imaginado pedido para sair, enquanto fazia anota��es na ficha ao p� da cama. - Devia
tentar dormir. Vamos observ�-la durante a noite, a cada tr�s horas. - Ainda se movendo rapidamente, colocou uma bandeja na mesa ao lado da cama.
Brianna s� teve de dar uma olhada para empalidecer.
- O que � isso? Disse-lhe que estou bem. N�o preciso de inje��o. N�o quero. Grayson...
- Eu, ah... - Um olhar de a�o da enfermeira Mannion o fez vacilar em seu papel de her�i.
- N�o � inje��o. S� precisamos tirar um pouco de sangue.
- Para qu�? - Abandonando qualquer fingida dignidade, Brianna se encolheu. - J� perdi bastante. Pegue um pouco daquele.
- Nada de bobagens agora. D�-me seu bra�o.
- Brie. Olhe aqui. - Gray entrela�ou os dedos nos dela. - Olhe para mim. J� contei a voc� sobre a primeira vez que fui ao M�xico? Eu me juntei com algumas
pessoas e fomos no barco delas. Era no golfo. Foi verdadeiramente lindo. Ar perfumado, um mar de cristal azul. Vimos uma barracuda pequenininha nadando ao longo
do porto.
Pelo canto dos olhos, ele viu a enfermeira deslizar a agulha sob a pele de Brianna. E o est�mago dele revirou.
- Mesmo assim, mesmo assim - ele disse, falando ligeiro. - Um dos rapazes foi pegar a c�mera. Voltou, inclinou-se sobre a amurada, e a mam�e barracuda saltou
para fora da �gua. Foi como congelar a imagem. Ela olhou direto na lente da c�mera e sorriu com todos os dentes. Como se fizesse pose. Ent�o mergulhou na �gua, pegou
o beb� e nadaram para ir embora.
- Voc� est� inventando isso.
- Deus � testemunha - disse, mentindo desesperadamente. - Ele tirou a foto, mesmo. Acho que vendeu para a National Geographic ou talvez para a Enquirer. A
�ltima coisa que soube � que ele estava ainda no Golfo do M�xico tentando repetir a experi�ncia.
- Pronto. - A enfermeira colocou uma bandagem na dobra do cotovelo de Brianna. - Seu jantar est� a caminho, senhorita, se tiver lugar para ele depois de comer
um hamb�rguer.
-Ah, n�o, obrigada mesmo assim. Acho que vou descansar agora.
- Cinco minutos, Sr. Thane.
Grayson co�ou o queixo quando a porta bateu atr�s dela.
-Acho que n�o conseguimos. - Ent�o Brianna fez biquinho -
Voc� disse que bateria neles se viessem com agulhas.
- Ela � muito maior do que eu. - Inclinou-se, beijando-a levemente. - Pobre Brie.
Ela bateu com o dedo no livro que estava na cama, ao lado dela.
- Ian nunca desistiria.
- Ora, inferno! Olhe s� para o f�sico dele. Pode lutar com um cavalo... Nunca vou ter condi��es de ser Dark Lord.
-Aceito voc� mesmo assim. Barracudas sorridentes - disse e riu. - Como imagina tais coisas?
- Talento, puro talento. - Ele foi at� a porta e espiou. - N�o a estou vendo. Vou apagar a luz e me esconder no banheiro. Vamos esperar dez minutos.
Leu para ela durante duas horas, levando-a atrav�s das aventuras perigosas e rom�nticas de Katrina e Ian, sob a luz m�nima da l�mpada para livros. De vez em
quando, a m�o dele ro�ava a dela, prolongando um pouquinho o momento do contato.
Ela sabia que sempre lembraria o som da voz dele, o modo como for�ava um sotaque escoc�s, no di�logo, para diverti-la. E sua apar�ncia, pensou, o modo como
o rosto dele ficava iluminado pela pequena l�mpada, como seus olhos estavam escuros, e as ma��s do rosto, som-breadas.
Seu her�i, pensou. Agora e sempre. Fechando os olhos, Brianna deixou as palavras que ele lia penetrarem nela:
- Voc� � minha. - Ian pegou-a nos bra�os, bra�os fortes que tremiam pelo desejo que o dominava. - Por lei e por direito voc� � minha. Estou prometido a voc�,
Katrina, a partir deste dia, desta hora.
- E voc� � meu, Ian?- Corajosamente, ela enfiou os dedos nos cabelos dele, puxando-o para perto. - Voc� � meu, Dark Lord?
- Ningu�m jamais amou voc� mais do que eu - ele jurou. - Nem amar�.
Brianna adormeceu desejando que as palavras que Gray lia pudessem ser dele.
Gray olhou-a, sabendo, pelo lento e firme som da respira��o, que ela dormira. Entregou-se ent�o, enterrando o rosto nas m�os. Ficar l�cido. Prometera a si
mesmo manter-se l�cido. E a tens�o estava acabando com ele.
Ela n�o estava seriamente ferida. Mas n�o importava quantas vezes se lembrasse disso, n�o podia afastar o terror que lhe congelara os ossos a partir do momento
em que Murphy entrara na cozinha.
N�o a queria num hospital, machucada e cheia de curativos. E, de qualquer maneira, nunca quisera pensar nela ferida. E agora se lembraria sempre disso, saberia
que alguma coisa poderia acontecer com ela. Que ela poderia n�o estar, como queria que sempre estivesse, cantarolando em sua cozinha ou cuidando de suas flores.
Ele se enfurecia por ter esta imagem dela para carregar junto com as outras. E o enfurecia ainda mais o fato de que ficaria t�o preocupado que sabia que aquelas
imagens n�o sumiriam, como centenas de outras.
Lembraria Brianna, e aquele la�o tornaria dif�cil ele ir embora. E era necess�rio fazer isso rapidamente.
Meditou sobre aquilo, enquanto esperava a noite passar. Cada vez que uma enfermeira vinha ver Brianna, ele ouvia as perguntas murmuradas, as respostas sonolentas.
Uma vez, quando voltou, ela o chamou suavemente.
- Volte a dormir. - Afastou os cabelos dela da testa. - N�o amanheceu ainda.
- Grayson. - Mexendo-se, procurou a m�o dele. - Ainda est� aqui.
- Sim. - Olhou para ela, franzindo as sobrancelhas. - Ainda estou aqui.
Quando ela acordou novamente, estava claro. Distra�da, come�ou a sentar, mas a dor persistente no ombro fez com que ela se lembrasse do acidente. Mais aborrecida
agora do que angustiada, tocou os dedos na bandagem da cabe�a e procurou por Gray.
Esperava que ele tivesse encontrado uma cama vazia ou um sof� numa sala de espera para dormir. Sorriu � imagem das flores dele e desejou que lhe tivesse pedido
para deix�-las mais perto, de modo que pudesse toc�-las tamb�m.
Cautelosamente puxou um pouco a camisola e mordeu o l�bio. Havia um arco-�ris de hematomas pelo peito e tronco, onde o cinto de seguran�a a prendera. Vendo-os,
agradeceu que Gray a tivesse ajudado a vestir a camisola no escuro.
N�o era justo, pensou. N�o era certo que tivesse de estar t�o machucada nos �ltimos dias que tinham juntos. Queria estar bonita para ele.
- Bom-dia, Srta. Concannon, ent�o est� acordada. - Uma enfermeira entrou, esbanjando sorrisos, juventude e sa�de. Brianna queria odi�-la.
- Estou sim. Quando o m�dico vai me liberar?
- Ah, logo ele estar� fazendo a ronda, n�o se preocupe. A enfermeira Mannion disse que voc� teve uma noite calma. - Enquanto falava, fixou um aparelho de press�o
ao bra�o de Brianna e colocou um term�metro em sua boca. - Nada de tonturas, ent�o? Bom, bom - disse, quando ela sacudiu a cabe�a. Checou a press�o sang��nea, sacudiu
a cabe�a, tirou o term�metro, sacudindo a cabe�a novamente aos resultados. - Ent�o est� se sentindo bem, n�o est�?
- Estou pronta para ir para casa.
- Tenho certeza de que est� ansiosa. - A enfermeira tomava notas na ficha. - Sua irm� j� ligou esta manh�, e um tal de Sr. Biggs. Um americano. Falou que foi
quem bateu em seu carro.
- Sim.
- Garantimos aos dois que voc� estava descansando confortavelmente. O ombro est� doendo?
- Um pouco.
- Pode tomar alguma coisa para isso agora - disse lendo a ficha.
- N�o quero inje��o.
- Oral. - Ela sorriu. - E seu desjejum j� est� a caminho. Ah, a enfermeira Mannion disse que voc� precisaria de duas bandejas. Uma para o Sr. Thane? - Obviamente
se divertindo com a piada, olhou na dire��o do banheiro. - Sairei num momento, Sr. Thane, e poder� aparecer. Ela disse que ele � um homem muito bonito - a enfermeira
murmurou para Brianna. - Com um sorriso dos diabos.
- Ele �.
- Sorte sua. Vou lhe trazer alguma coisa para a dor.
Quando a porta fechou novamente, Gray saiu do banheiro com uma careta.
- Como � poss�vel? Aquela mulher tem um radar?
- Voc� ainda estava mesmo a�? Oh, Gray, pensei que tinha encontrado um lugar para dormir. Ficou acordado a noite toda?
- Estou acostumado a virar a noite. Ei, voc� parece melhor. - Ele se aproximou, desfranzindo a testa de puro al�vio. - Parece mesmo bem melhor.
- N�o quero pensar em como estou parecendo. Voc� parece cansado.
- N�o me sinto cansado, agora. Faminto - disse, apertando a m�o no est�mago. - Mas n�o cansado. O que acha que v�o servir para n�s?
- Voc� n�o vai me carregar para dentro de casa.
- Sim, vou. - Gray contornou o carro e abriu a porta do carona.
- O m�dico disse que voc� podia vir para casa, se ficasse calma, descansasse todas as tardes e evitasse carregar peso.
- Bem, n�o estou carregando nada, estou?
- N�o, eu � que estou. - Tomando cuidado com o ombro dela, passou um bra�o pelas costas, outro sob os joelhos. - Dizem que as mulheres acham isso rom�ntico.
- Em outras circunst�ncias. Posso caminhar, Grayson. N�o h� nada de errado com minhas pernas.
- Nada. Elas s�o perfeitas. - Beijou o nariz dela. - J� lhe disse isso antes?
- Acho que n�o. - Sorriu, embora ele tivesse batido em seu ombro e os hematomas no peito doessem. Era o que ele pensava, acima de tudo, que contava. - Bem,
j� que est� brincando de ser Dark Lord, me leve para dentro ent�o. E espero ser beijada. Bem beijada.
- Tornou-se terrivelmente exigente desde que bateu a cabe�a - Carregou-a pelo caminho. - Mas acho que tenho de ser compreensivo com voc�.
Antes que pudesse chegar � porta, ela se abriu e Maggie apareceu. -Aqui est� voc�. Pensei que f�ssemos esperar para sempre. Como est� se sentindo?
- Estou sendo paparicada. E, se voc�s n�o tomarem cuidado, vou ficar mal acostumada.
- Leve-a para dentro, Gray. Ficou alguma coisa no carro de que ela precise?
- S� algumas centenas de flores.
- Vou busc�-las. - Correu para fora, enquanto os Carstairs se apressavam da sala para o hall.
- Oh, pobre Brianna, minha querida. Est�vamos t�o preocupados. Johnny e eu quase n�o dormimos, pensando em voc� no hospital, daquele jeito. Os hospitais s�o
lugares t�o deprimentes. N�o posso entender como algu�m escolhe trabalhar em um, voc� pode? Quer ch�, alguma roupa fresca? Alguma coisa?
- N�o, obrigada, Iris - Brianna conseguiu dizer, quando teve espa�o. - Sinto ter preocupado voc�s. Foi uma coisinha � toa, realmente.
- Absurdo. Um acidente de carro, uma noite no hospital. Uma concuss�o. Ah, sua cabecinha d�i?
Estava come�ando a doer.
- Estamos contentes porque est� em casa de novo - Carstairs acrescentou e deu palmadinhas na m�o da esposa para acalm�-la.
- Espero que a Sra. O'Malley tenha deixado voc�s confort�veis.
- Garanto a voc� que ela � um tesouro.
- Onde quer que ponha estas flores, Brie? - Maggie perguntou atr�s de uma floresta de ramalhetes.
- Ah, ora...
- Vou coloc�-las no seu quarto - decidiu por si mesma. - Rogan vai subir para ver voc�, logo que Liam acorde do cochilo. Ah, e voc� recebeu liga��es de toda
a vila e comida suficiente para alimentar um ex�rcito por uma semana.
- Aqui est� nossa garota! - Secando as m�os numa toalha, Lottie apareceu, vindo da cozinha.
- Lottie. N�o sabia que voc� estava aqui.
- Claro que vim. Quero ver voc� bem acomodada e cuidada. Grayson, leve-a direto para o quarto. Precisa descansar.
- Ah, mas n�o. Gray, me ponha no ch�o. Gray apenas apertou o bra�o.
- Voc� est� se excedendo. E, se n�o se comportar, n�o leio o resto do livro para voc�.
- Isto � um absurdo. - Apesar de seus protestos, Brianna se viu no quarto, sendo deitada em sua cama. - Eu podia, ent�o, ter ficado no hospital.
- Agora, n�o se agite. Vou preparar um ch� bem gostoso para voc�. - Lottie come�ou a ajeitar os travesseiros, alisar os len��is. - Depois, vai tirar um cochilo.
Receber� muitas visitas e precisa descansar.
- Ao menos, deixe-me pegar meu tric�.
- Veremos isso mais tarde. Gray, voc� pode lhe fazer companhia. Cuide para que fique quieta.
Com um muxoxo, Brianna cruzou os bra�os.
- V� embora - disse a ele. - N�o preciso de voc�, se n�o vai me defender.
- Ora, ora, a verdade sempre aparece. - Olhando-a, reclinou-se confortavelmente no batente da porta. - Voc� est� bem ranzinza, n�o �?
- Ranzinza, eu? S� estou reclamando de estarem mandando em mim e por isso sou ranzinza.
- Est� reclamando e se aborrecendo por ser cuidada e paparicada. Isto a torna ranzinza.
Ela abriu a boca e fechou-a novamente.
- Bem, ent�o sou mesmo.
- Voc� precisa tomar seus comprimidos. - Tirou o vidro do bolso, depois foi ao banheiro encher um copo com �gua.
- Eles me deixam grogue - murmurou quando ele voltou com o rem�dio.
- Quer que eu aperte seu nariz at� que abra a boca para engolir? A simples id�ia daquela humilha��o a fez agarrar o comprimido e o copo.
- Pronto. Feliz?
- Ficarei feliz quando voc� parar de sentir dor. Ela desistiu de brigar.
- Desculpe, Gray. Estou me comportando t�o mal.
- Est� sentindo dor. - Sentou-se ao lado da cama, tomou-lhe a m�o. - J� me machuquei algumas vezes. O primeiro dia � terr�vel. O segundo, infernal.
Ela suspirou.
- Pensei que seria melhor e estou brava por n�o ser. N�o queria brigar com voc�.
- Aqui est� o ch�, docinho. - Lottie entrou e equilibrou a x�cara no pires na m�o de Brianna. - E me deixe tirar estes sapatos, vai ficar mais confort�vel.
- Lottie. Obrigada por estar aqui.
- Ah, n�o precisa me agradecer por isso. A Sra. O'Malley e eu vamos manter as coisas andando por aqui, at� que se sinta bem novamente. - Estendeu uma manta
leve sobre as pernas de Brianna. - Grayson, cuide para que ela descanse agora, sim?
- Deixe comigo. - Num impulso, ele se levantou para beijar o rosto de Lottie. - Voc� � uma do�ura, Lottie Sullivan.
-Ah, ande logo. - Ruborizada de prazer, ela retornou � cozinha.
- E voc� tamb�m, Grayson Thane - Brianna falou. - Uma do�ura.
- Ah, ande logo. - Inclinou a cabe�a. - Ela sabe cozinhar? Ela riu como ele tinha imaginado que riria.
- Nossa, Lottie � uma �tima cozinheira e n�o precisaria muito para fazer aparecer uma torta, se voc� ficar com vontade.
- Vou me lembrar disso. Maggie trouxe o livro. - Ele o apanhou de onde Maggie o tinha posto, sobre a mesa-de-cabeceira de Brianna. - Est� a fim de outro cap�tulo
do romance medieval?
- Estou.
- Voc� adormeceu enquanto eu estava lendo a noite passada - disse enquanto folheava o livro. - Qual a �ltima coisa que lembra?
- Quando ele disse a ela que a amava.
- Bem, isso certamente resume bem a coisa.
- A primeira vez. - Bateu na cama, querendo que ele se sentasse a seu lado novamente. - Ningu�m esquece a primeira vez que ouve.
- Os dedos dele deslizaram pelas p�ginas, e ele n�o disse nada. Entendendo, Brianna tocou-lhe o bra�o. - N�o deve deixar que isso o preocupe, Grayson. O que
sinto por voc� n�o deve preocup�-lo.
Preocupava. Claro que preocupava. Mas havia algo mais, e pensou que poderia lhe dar isso, ao menos.
- Me humilha, Brianna. - Levantou os olhos, aqueles inseguros olhos castanho-dourados. - E me atordoa.
- Um dia, quando voc� lembrar a primeira vez que ouviu, espero que lhe d� prazer. - Satisfeita por enquanto, ela tomou o ch� e sorriu.
- Me conte uma hist�ria, Grayson.
N
�o foi embora no primeiro dia de junho, como planejara. Poderia ter ido. Sabia que deveria ter ido. Mas parecia errado, certamente covarde, sair antes de ter certeza
de que Brianna se recuperara.
As bandagens foram removidas. Cuidara pessoalmente dos hematomas e colocara gelo para desinchar o ombro dela. Sofrera cada vez que ela se virava dormindo e
sentia desconforto. Ralhara quando ela se excedia. N�o fizera amor com ela.
Ele a desejava, todas as horas. No in�cio, receara que at� mesmo os toques mais gentis pudessem machuc�-la. Ent�o concluiu que era melhor como estava. Uma
esp�cie de transi��o, pensou, de amante para amigo, como lembran�a. Certamente seria melhor para ambos se os dias finais com ela fossem passados na amizade, e n�o
na paix�o.
O livro estava terminado, mas n�o o enviara. Gray convencera-se de que deveria passar por Nova York antes da turn� para entreg�-lo pessoalmente a Arlene. Se
�s vezes se lembrava de que convidara Brianna para viajar um pouco com ele antes da turn�, dizia a si mesmo que era melhor esquecer.
Para o bem dela. Pensava apenas nela.
Pela janela, viu que ela recolhia a roupa lavada. Os cabelos estavam soltos, batendo no rosto com a brisa forte do Oeste. Atr�s dela, a estufa brilhava � luz
do sol. A seu lado, as flores que plantara dan�avam. Apenas olhava, enquanto ela abria um prendedor, colocava-o de volta na corda, andava para o pr�ximo, juntando
len��is esvoa�antes � medida que caminhava.
Ela era, pensou, como um cart�o-postal. Algo que personificava um lugar, uma �poca, um modo de vida. Dia ap�s dia, pensou, ano ap�s ano, ela penduraria suas
roupas e len��is para secar ao vento e ao sol. E os recolheria novamente. E com ela, e aqueles como ela, a repeti��o n�o seria mon�tona. Seria tradi��o - algo que
a tornava forte e confiante.
Estranhamente perturbado, caminhou para fora de casa.
- Voc� est� for�ando demais esse bra�o.
- O m�dico disse que exerc�cio � bom. - Olhou sobre o ombro. O sorriso que curvava seus l�bios n�o chegou aos olhos, havia dias que n�o chegava. Ele estava
se afastando dela t�o rapidamente, n�o conseguia suportar isso. - S� senti uma pontada agora. Est� um dia maravilhoso, n�o est�? A fam�lia que est� conosco foi �
praia em Ballybunion. Papai costumava levar Maggie e a mim l�, �s vezes, para nadar e tomar sorvete.
- Se voc� queria ir � praia, era s� dizer. Teria levado voc�.
O tom de sua voz fez sua coluna se enrijecer. Os movimentos se tornaram mais vagarosos, enquanto soltava uma fronha do varal.
- Gentileza sua, tenho certeza, Grayson. Mas n�o tenho tempo para um passeio at� a praia. Tenho trabalho para fazer.
- Voc� s� pensa em trabalhar - explodiu. - Voc� se acaba por causa deste lugar. Se n�o est� cozinhando, est� esfregando algo; se n�o est� esfregando, est�
lavando. Pelo amor de Deus, Brianna, isto � s� uma casa.
- N�o. - Dobrou a fronha ao meio, depois ao meio outra vez, antes de colocar na cesta de vime. - � a minha casa e me agrada cozinhar nela, esfreg�-la, lav�-la.
- E nunca olha para al�m disso.
- E para onde est� olhando, Grayson Thane, que seja t�o terrivelmente importante? - Espantou-se ao ver sua anima��o transformar-se em gelo. - E quem � voc�
para me criticar por fazer um lar para mim?
- � um lar... ou uma armadilha?
Ela se voltou, e em seus olhos n�o havia nem calor nem frieza, mas uma tristeza profunda.
- � isso o que voc� realmente pensa, do fundo do cora��o? Que s�o a mesma coisa e assim deve ser? Se � isso, de verdade, sinto por voc�.
- N�o quero compaix�o - ele reagiu. - S� estou dizendo que voc� trabalha demais para muito pouco.
- N�o concordo e n�o foi isso o que voc� disse. Talvez seja o que voc� queria dizer. - Abaixou-se e pegou a cesta. - E � mais do que me disse nos �ltimos cinco
dias.
- N�o seja rid�cula! - Ele a alcan�ou para pegar a cesta, mas ela o empurrou. - Falei com voc� todo o tempo. Deixe-me levar isso.
- Eu mesma levo. N�o sou uma maldita inv�lida. - Irritada, apoiou a cesta no quadril. - Falou de mim e em torno de mim, Grayson, esses �ltimos dias. Mas para
mim, e de alguma coisa que estivesse realmente pensando ou sentindo, n�o. Voc� n�o tem falado comigo e n�o tem me tocado. N�o seria mais honesto apenas me dizer
que n�o me quer mais?
- N�o... -J� estava passando por ele a caminho da casa. Ele quase a agarrou antes de se conter. - De onde tirou essa id�ia?
- De cada noite. - Deixou a porta fechar, quase o atingindo no rosto. - Dorme comigo, mas n�o me toca. E, se viro para voc�, voc� vira para o outro lado.
- Voc� acabou de sair da porra daquele hospital.
- Sa� do hospital h� quase duas semanas. E n�o fale assim comigo. Ou, se tem mesmo que praguejar, pelo menos n�o minta. - Atirou a cesta sobre a mesa da cozinha.
- Voc� est� doido para ir embora e n�o sabe como fazer isso de um modo gentil. Est� cheio de mim. - Tirou um len�ol da cesta e dobrou-o metodicamente, dobra com
dobra. - E n�o sabe como dizer isso.
- Que estupidez! Pura estupidez.
- � engra�ado como seu jeito com as palavras sofre quando est� bravo. - Virou o len�ol sobre o bra�o, num movimento h�bil, juntando as pontas. - E est� pensando
"pobre Brie, vai ficar com o cora��o partido por minha causa". Bem, n�o vou! - Outra dobra, e o len�ol estava um quadrado perfeito para ser colocado sobre a brilhante
mesa da cozinha. - Me virei muito bem antes de voc� chegar e vou continuar me virando.
- Palavras muito frias para algu�m que vive dizendo que est� apaixonada.
- Estou apaixonada por voc�. - Pegou outro len�ol e calmamente come�ou o mesmo processo. - E me sinto uma idiota por amar um homem que t�o covardemente tem
medo dos pr�prios sentimentos. Medo do amor, porque n�o o teve quando era menino. Medo de construir um lar, porque nunca conheceu um.
- N�o estamos falando do que eu fui - Gray disse calmamente.
- N�o, voc� pensa que pode fugir disso, e foge cada vez que faz as malas e pega o pr�ximo avi�o ou trem. Ora, n�o pode n�o. N�o mais do que eu posso ficar
num lugar e fingir que cresci feliz nele. Perdi a minha parte de amor tamb�m, mas n�o tenho medo dele.
Mais calma agora, acabou de dobrar o segundo len�ol.
- N�o tenho medo de amar voc�, Grayson. N�o tenho medo de deixar voc� ir. Mas tenho medo de nos arrependermos, se n�o nos separarmos honestamente.
Ele n�o podia fugir daquele olhar que tudo compreende.
- N�o sei o que voc� quer, Brianna. - E teve medo, pela primeira vez em sua vida adulta, de ele mesmo n�o saber o que queria. Para si mesmo.
Fora dif�cil para ela dizer aquilo, mas pensara que seria mais dif�cil n�o dizer.
- Quero que voc� me toque, que se deite comigo. E, se n�o sentir mais desejo por mim, doeria muito menos se me dissesse.
Fixou os olhos nela. N�o podia ver o quanto aquilo estava custando a ela. N�o deixaria que ele visse, continuou parada, as costas retas, os olhos presos nos
dele, esperando.
- Brianna, n�o posso respirar sem desejar voc�.
- Ent�o, possua-me agora, � luz do dia.
Derrotado, aproximou-se, segurando seu rosto entre as m�os.
- Quis tornar as coisas mais f�ceis para voc�.
- N�o fa�a isso. S� fique comigo agora. Por enquanto.
Ele a pegou no colo e ela sorriu ao pressionar os l�bios na garganta dele.
- Como no livro.
- Melhor - ele prometeu, enquanto a carregava para o quarto. - Ser� melhor do que em qualquer livro. - Colocou-a no ch�o, acariciando os cabelos desalinhados
pelo vento, antes de procurar pelos bot�es da blusa. - Sofri deitado a seu lado � noite, sem tocar em voc�.
- N�o havia necessidade.
- Achei que havia. - Muito delicadamente, ro�ou as pontas dos dedos sobre as marcas amareladas na pele dela. - Voc� ainda est� machucada.
- Est�o desaparecendo.
- Vou sempre me lembrar de como estavam. E como meu est�mago apertou quando eu as vi. Como me dilacerava por dentro quando voc� gemia durante o sono. - Um
tanto desesperado, levantou os olhos para ela. - N�o gosto de me importar tanto com algu�m, Brianna.
- Eu sei. - Inclinando-se para a frente, ela pressionou o rosto no dele. - N�o se preocupe com isso agora. Somos s� n�s dois e tenho sentido tanto sua falta.
- Com os olhos semicerrados, beijou repetidas vezes seu queixo enquanto os dedos cuidavam dos bot�es da camisa. - Vamos para a cama, Grayson - sussurrou, deslizando
a camisa pelos ombros dele. - Venha comigo.
Um suspiro do colch�o, um farfalhar dos len��is, e estavam nos bra�os um do outro. Ela levantou o rosto, e sua boca buscou a dele. Ela estremeceu ao primeiro
frenesi de prazer, e ent�o um outro quando o beijo tornou-se mais profundo.
As pontas dos dedos dele estavam frias na pele dela, leves toques enquanto a despia. E os l�bios eram leves nas manchas descoloridas, como se s� por desejar
fosse capaz de faz�-las desaparecer.
Um p�ssaro cantou na pequena pereira do lado de fora e a brisa fez soar a dan�a de fadas que ela pendurara, balan�ando a delicada renda das cortinas. Agitaram-se
sobre as costas nuas dele, quando ficou sobre ela, o rosto colado em seu cora��o. O gesto a fez sorrir e envolver-lhe a cabe�a com as m�os.
Era t�o simples. Um momento m�gico que guardaria como um tesouro. E quando ele levantou a cabe�a e os l�bios buscaram os dela outra vez, ele sorriu nos olhos
dela.
Havia necessidade, mas n�o pressa, e desejo sem desespero. Se os dois pensavam que aquela seria a �ltima vez em que estariam juntos, queriam sabore�-la sem
urg�ncia.
Ela sussurrou o nome dele, a respira��o ofegante. Ele estremeceu.
Ent�o estava dentro dela, no lento ritmo do desejo. Seus olhos estavam abertos. E suas m�os, palmas contra palmas, completavam a cadeia com os dedos entrela�ados.
Um raio de luz atravessava a janela, gr�os de poeira dan�ando no ar. O grito de um p�ssaro, o latido distante de um c�o. O perfume das rosas, de lim�o, madressilvas.
E a sensa��o de ela estar ali, morna, �mida, cedendo embaixo dele, levantando-se para encontr�-lo. Os sentidos dele se agu�aram, como um microsc�pio bem focado.
Ent�o, havia somente prazer, o deleite puro e simples de perder nela tudo o que era.
Na hora do jantar, ela soube que ele estava partindo. Seu cora��o sabia, quando ficaram deitados em sil�ncio, depois de se amarem, olhando a luz do sol mover-se
atrav�s da janela.
Ela serviu os h�spedes, ouviu a tagarelice animada sobre o passeio at� a praia. Como sempre, arrumou a cozinha, lavando os pratos, guardando-os outra vez no
arm�rio. Limpou o fog�o, pensando novamente que teria de troc�-lo em breve. Talvez durante o inverno. Teria de come�ar a pesquisar pre�os.
Con farejava em volta da porta, e ent�o o deixou sair para o passeio da noite. Por um momento, deixou-se ficar ali, olhando-o correr pelas colinas � luz brilhante
do sol das longas tardes de ver�o.
Imaginou o que seria correr com ele. Apenas correr como ele estava correndo, esquecendo todos os pequenos detalhes com que preparava a casa para a noite. Esquecendo,
acima de tudo, o que teria de enfrentar.
Mas, certamente, ela voltaria. Seria para c� que ela sempre voltaria. Virou-se, fechando a porta atr�s de si. Entrou rapidamente em seu quarto, antes de subir
para Gray.
Ele estava na janela, olhando para o jardim da frente. A luz que ainda iluminava o c�u do Oeste dava-lhe um toque dourado e a fez pensar, como acontecera muitos
meses atr�s, em piratas e poetas.
- Estava com medo de que j� tivesse terminado de arrumar suas coisas. - Viu a mala aberta sobre a cama, quase cheia, e os dedos crisparam-se no su�ter que
segurava.
- Ia descer para falar com voc�. - Controlando-se, ele se virou, desejando que pudesse ler o rosto dela. Mas ela encontrara um meio de fech�-lo para ele. -
Achei que podia ir at� Dublin esta noite.
- � uma viagem longa, mas voc� ainda tem luz por um tempo.
- Brianna...
- Quero lhe dar isto - falou rapidamente. Por favor, ela queria suplicar, sem desculpas, sem justificativas. - Fiz para voc�.
Olhou para as m�os dela. Lembrou-se da l� verde-escura que ela estava tricotando na noite em que irrompera no quarto dela e come�ara uma briga. O modo como
ela se derramava sobre o branco da camisola.
- Fez para mim?
- Sim. Um su�ter. Pode us�-lo no outono ou no inverno. -Aproximou-se dele, segurando-o para medir. - Aumentei o comprimento das mangas. Voc� tem bra�os longos.
O cora��o j� vacilante dele apertou-se quando o tocou. Em toda a sua vida, ningu�m nunca fizera nada para ele.
- N�o sei o que dizer.
- Sempre que me deu um presente, dizia que eu falasse "obrigada".
- Sim. - Segurou-o, sentindo a maciez e o calor nas palmas das m�os. - Obrigado.
- Voc� merece. Quer alguma ajuda com as malas? - Sem esperar pela resposta, pegou o su�ter de volta e arrumou-o cuidadosamente dobrado na mala. - Sei que tem
mais experi�ncia nisso, mas deve achar tedioso.
- Por favor, n�o. - Tocou seu ombro com uma das m�os, mas, quando ela n�o olhou, deixou-a cair. - Tem todo o direito de estar chateada.
- N�o, n�o tenho. E n�o estou. Voc� n�o fez promessas, Grayson, ent�o n�o quebrou nenhuma. � importante para voc�, eu sei. J� olhou as gavetas? Ficaria espantado
com o que as pessoas costumam esquecer.
- Tenho que ir, Brianna.
- Eu sei. - Para manter as m�os ocupadas, ela mesma abriu as gavetas da c�moda, dolorosamente angustiada ao encontr�-las totalmente vazias.
- N�o posso ficar aqui. Quanto mais demoro agora, mais dif�cil se torna. E n�o posso dar a voc� o que precisa. Ou acha que precisa.
- Logo vai estar me dizendo que tem alma de cigano, e n�o h� necessidade disso. Eu sei. - Fechou a �ltima gaveta e voltou-se outra vez. - Desculpe por dizer
o que disse antes. N�o quero que v� embora lembrando-se de palavras r�spidas, quando existiu muito mais.
As m�os estavam cruzadas outra vez, seu s�mbolo de controle.
- Quer que eu prepare um lanche para a viagem, talvez uma garrafa t�rmica com ch�?
- Pare de bancar a anfitri� perfeita. Pelo amor de Deus, estou deixando voc�. Estou indo embora.
- Voc� est� indo - ela retrucou com voz firme e fria -, como sempre disse que iria. Talvez para voc� fosse mais f�cil se eu chorasse, me lamentasse, fizesse
uma cena, mas isso n�o combina comigo.
- Ent�o � assim. - Ele atirou algumas meias na mala.
- Voc� fez sua escolha e s� lhe desejo felicidade. � claro que ser� bem-vindo, se vier para esses lados outra vez.
Os olhos dele cruzaram com os dela enquanto fechava a mala.
- Avisarei voc�.
- Vou ajud�-lo a descer com a bagagem.
Ela estendeu o bra�o para pegar a mochila, mas ele a agarrou antes.
- Eu trouxe tudo para c�. Eu vou levar tudo daqui.
- Como quiser. - Ela cortou seu cora��o ao aproximar-se e beij�-lo levemente no rosto. - Fique bem, Grayson.
- Adeus, Brie. - Desceram os degraus juntos. Ele n�o falou nada mais at� que alcan�aram a porta da frente. - N�o esquecerei voc�.
- Espero que n�o.
Ela caminhou ao lado dele at� o carro, ent�o parou no jardim, esperando, enquanto ele guardava a mala e sentava-se ao volante.
Sorriu, levantou a m�o num aceno, ent�o voltou para a pousada sem olhar para tr�s.
Uma hora mais tarde estava sozinha na sala, com sua cesta de costura. Ouviu risadas pela janela e fechou os olhos brevemente. Quando Maggie entrou com Rogan
e o beb�, estava dando um n� num fio e sorrindo.
- Ora, chegaram tarde esta noite.
- Liam est� inquieto. - Maggie sentou-se e estendeu os bra�os para que Rogan lhe passasse o beb�. - Pensamos que talvez ele gostasse de alguma companhia. E
aqui est� um quadro, "a dona da casa na sala, costurando".
- Estou atrasada com isso. Quer beber alguma coisa, Rogan?
- N�o vou recusar. - Foi at� o bar. - Maggie?
- Sim, um uisquezinho cairia bem.
- Brie?
- Obrigada, acho que vou querer tamb�m. - Enfiou a linha na agulha, fazendo um n� na ponta. - O trabalho est� indo bem, Maggie?
- � maravilhoso estar de volta a ele. Est� indo muito bem. - Deu um sonoro beijo na boca de Liam. - Terminei uma pe�a hoje. Foram os coment�rios de Gray sobre
aquelas ru�nas de que ele gosta tanto que me deram id�ia para ela. Acho que isso funcionou.
Pegou o copo que Rogan passara a ela e ergueu-o.
- Bem, este � por uma noite repousante.
- N�o vou discutir - o marido disse com fervor e bebeu.
- Liam acha que entre duas e cinco da manh� n�o � hora de dormir. - Com uma risada, Maggie ajeitou o beb� no ombro. - Temos que lhe contar uma coisa, Brie.
O detetive que est� procurando Amanda Dougherty em... onde � mesmo, Rogan?
- Michigan. Ele encontrou uma pista dela e do homem com quem casou. - Olhou para a esposa. - E da crian�a.
- Ela teve uma menina, Brie - Maggie murmurou, embalando o pr�prio beb�. - Ele localizou a certid�o de nascimento. Amanda chamou-a Shannon.
- Como o rio. - Brianna suspirou e sentiu um aperto na garganta. - Temos uma irm�, Maggie.
- Temos. Podemos encontr�-la logo, de um jeito ou de outro.
- Espero que sim. Ah, estou feliz por terem vindo me contar. - Ajudava um pouquinho, aliviava um tanto aquele aperto no cora��o. - Vai ser bom pensar nisso.
- Por enquanto, s� d� mesmo pra pensar - Rogan avisou. - A pista que ele est� seguindo tem vinte e cinco anos.
- Ent�o seremos pacientes - Brianna disse simplesmente. Longe de estar certa sobre seus pr�prios sentimentos, Maggie trocou a posi��o do beb� e mudou de assunto:
- Queria mostrar a pe�a que acabei de fazer a Gray, para ver se ele reconhece a fonte de inspira��o. Onde ele est�? Trabalhando?
- J� foi. - Brianna enfiou a agulha direto numa casa.
- Foi aonde? Ao pub?
- N�o, acho que a Dublin ou a qualquer lugar aonde a estrada o leve.
- Quer dizer que ele foi embora? Partiu? - Levantou-se, fazendo o beb� rir de prazer com o movimento s�bito.
- Sim, faz uma hora.
- E voc� est� sentada, costurando?
- O que deveria estar fazendo?... me flagelando?
- Devia estar flagelando aquele ianque desgra�ado. E pensar que fiquei f� dele.
- Maggie. - Rogan tocou seu bra�o chamando-lhe a aten��o. - Voc� est� bem, Brianna?
- Estou bem, obrigada, Rogan. N�o seja t�o dura, Maggie. Ele est� fazendo o que � certo para ele.
-Ao inferno com o que � certo para ele! E quanto a voc�? D� para voc� segurar o beb�? - disse impacientemente a Rogan, e ent�o, com os bra�os livres, ajoelhou-se
na frente da irm�. - Sei o que sente por ele, Brie, e n�o consigo entender como ele p�de ir embora assim. O que disse quando voc� lhe pediu que ficasse?
- N�o pedi.
- N�o... Por que diabos n�o?
- Porque nos tornaria infelizes. - Ela espetou a agulha no dedo e praguejou levemente. - E tenho meu orgulho.
- Que n�o serve de nada. Voc� provavelmente se ofereceu para preparar sandu�ches para a viagem dele.
- Sim.
- Ah! - Angustiada, Maggie levantou-se e caminhou pela sala. - Voc� n�o raciocina. Nunca foi capaz de raciocinar.
- Tenho certeza de que voc� est� fazendo Brianna se sentir muito melhor com esse ataque de raiva - Rogan falou secamente.
- Estava s�... - Mas captando o olhar dele, Maggie mordeu a l�ngua. - Est� certo, claro. Desculpe, Brie. Se quiser, posso ficar um pouco lhe fazendo companhia.
Ou ent�o pego algumas coisas do beb� e passaremos a noite aqui.
- Voc�s t�m sua casa. Ficarei bem, Maggie, comigo mesma. Sempre fico.
Gray estava quase em Dublin e a cena continuava martelando na sua cabe�a. O final do livro, o maldito final n�o estava acertado. Era por isso que estava t�o
irritado.
Deveria ter enviado o manuscrito para Arlene e ter se esquecido dele. A cena final n�o o estaria alfinetando agora, se tivesse enviado. Podia estar j� se divertindo
com a pr�xima hist�ria.
Mas n�o conseguia pensar em outra, quando n�o era capaz de se livrar da anterior.
McGee tinha ido embora porque terminara o que viera fazer na Irlanda. Retomaria sua vida outra vez, seu trabalho. Tinha de ir adiante porque... porque tinha,
Gray pensou irritado.
E Tullia ficara porque a vida dela era no chal�, naquela terra, com aquelas pessoas. Estava feliz l� como nunca ficaria em qualquer outro lugar. Brianna...
Tullia, corrigiu, murcharia sem suas ra�zes.
O final fazia sentido. Era perfeitamente plaus�vel, estava de acordo tanto com o personagem quanto com o temperamento.
Ent�o por que estava atormentado por aquilo como se fosse uma dor de dente?
Ela n�o pedira a ele que ficasse, pensou. N�o derramara uma l�grima sequer. Quando percebeu que seu c�rebro tinha mudado outra vez de Tullia para Brianna,
praguejou e pisou fundo no acelerador.
Era como se esperava que fosse, lembrou-se. Brianna era sensata, uma mulher razo�vel. Era uma das coisas que admirava nela.
Se ela o amava tanto, ao menos poderia ter lhe dito que sentiria falta dele.
N�o queria que ela sentisse falta dele. N�o queria uma luz acesa na janela, n�o a queria cerzindo suas meias ou passando suas camisas. E, acima de tudo, n�o
a queria atormentando sua cabe�a.
Era independente e livre, como sempre fora. Como precisava ser. Tinha lugares para ir, um alfinete para espetar no mapa. Umas pequenas f�rias em algum lugar,
antes de iniciar a turn�, e, ent�o, novos horizontes para explorar.
Essa era sua vida. Tamborilou os dedos, impaciente, no volante. Gostava de sua vida. E estava retornando a ela novamente, justo como McGee.
Justo como McGee, pensou com uma careta.
As luzes de Dublin brilharam em boas-vindas. Relaxou ao v�-las ao saber que chegara aonde planejara. N�o se incomodava com o tr�nsito. Claro que n�o. Ou com
o barulho. J� ficara muito tempo longe de cidades.
Precisava era encontrar um hotel, fazer o check-in. Tudo que queria era poder esticar as pernas depois da longa viagem e tomar uns drinques.
Gray parou junto ao meio-fio e deixou a cabe�a cair contra o assento. Tudo o que queria era uma cama, um drinque e um quarto calmo. Inferno! Claro que era!
Brianna passou a madrugada acordada. Era bobagem deitar na cama e fingir que poderia dormir, quando n�o poderia. Come�ou a preparar o p�o, deixando a massa
crescer, antes de fazer o primeiro bule de ch�.
Serviu-se de uma x�cara no jardim dos fundos, mas n�o conseguiu se acomodar. Mesmo uma ida at� a estufa n�o a agradou. Ent�o voltou para dentro e p�s a mesa
para o caf�.
Ainda bem que os h�spedes sairiam de manh� cedo. Por volta das oito, tinha preparado um lanche quente para eles e os levado at� a porta.
Mas agora estava sozinha. Certa de que se distrairia com a rotina, arrumou muito bem a cozinha. Em cima, tirou os len��is das camas desfeitas e colocou os
que recolhera da corda no dia anterior. Juntou as toalhas �midas, substituindo-as.
Bem, n�o podia mais adiar aquilo, disse a si mesma. N�o devia. Moveu-se rapidamente para o quarto onde Gray trabalhara. Precisava de uma boa limpeza, pensou,
correndo um dedo delicadamente sobre a beirada da mesa.
Pressionando os l�bios, endireitou a cadeira.
Como poderia saber que ficaria assim t�o vazio?
Sacudiu a cabe�a. Era apenas um quarto, afinal de contas. Esperando, agora, pelo pr�ximo h�spede que viesse. E ela colocaria ali o primeiro que chegasse, prometeu.
Seria inteligente fazer isso. Ajudaria.
Foi at� o banheiro, pegando as toalhas que ele usara da barra onde tinham secado.
E p�de sentir o cheiro dele.
A dor veio t�o r�pido, t�o forte, que ela quase cambaleou. Cegamente, correu de volta ao quarto, sentou-se na cama e, enterrando o rosto nas toalhas, chorou.
Gray p�de ouvi-la chorando quando chegou �s escadas. Era um som selvagem de tristeza que o aturdiu e fez com que diminu�sse o passo antes de enfrent�-lo.
Da porta, ele a viu, embalando a si mesma para se confortar, com o rosto apertado nas toalhas.
Nem calma, pensou, nem controlada. Nem razo�vel.
Esfregou as m�os no pr�prio rosto, afastando um pouco do cansa�o da viagem e da culpa.
- Bem - disse numa voz tranq�ila -, voc�, com certeza, me enganou.
Ela levantou a cabe�a, e ele p�de ver a dor em seus olhos, sombras sob eles. Ela come�ou a levantar-se, mas ele acenou com a m�o.
- N�o, n�o pare de chorar, continue. Me faz bem saber que voc� � uma farsa. "Deixe-me ajud�-lo a fazer as malas, Gray. Quer que eu prepare um lanche para a
viagem? Ficarei muito bem sem voc�."
Ela lutou contra as l�grimas, mas n�o p�de vencer. Como elas se derramavam, enterrou o rosto outra vez nas toalhas.
- Voc� me fez ir, realmente me fez. Nem ao menos olhou para tr�s. Aquilo era o que estava errado na cena. N�o funcionou. Nunca funcionou. - Aproximou-se dela
e puxou as toalhas. - Est� se sentindo desamparada, apaixonada por mim, n�o est�, Brianna? Inteiramente apaixonada, sem truques, sem armadilhas, sem frases banais.
- Ah, v� embora! Por que voltou?
- Esqueci algumas coisas.
- N�o h� nada seu aqui.
- Voc� est� aqui. -Ajoelhou-se, tomando-lhe as m�os para impedir que cobrisse as l�grimas. - Deixe-me contar-lhe uma hist�ria. N�o, continue chorando se quiser
- disse, quando ela tentou se conter. - Mas ou�a. Eu achei que ele tinha de ir embora. McGee.
- Voc� voltou para me falar de seu livro?
- Deixe-me contar-lhe uma hist�ria. Calculei que ele tinha de ir. E da� se nunca tinha se envolvido com ningu�m do jeito que acontecera com Tullia? E da� se
ela o amava, se o havia transformado, transformado a vida dele? Completado a vida dele? Estavam a quil�metros de dist�ncia em qualquer outro aspecto, n�o estavam?
Pacientemente, olhou outra l�grima rolar pelo rosto dela. Ela estava lutando contra elas, sabia. E estava perdendo.
- Ele era um solit�rio - Gray continuou. - Sempre foi. Que diabos poderia fazer em uma vila pequena, no Oeste da Irlanda? E ela o deixou ir porque era teimosa
demais, orgulhosa demais e muito apaixonada para pedir a ele que ficasse.
"Eu me angustiei com isso", prosseguiu. "Por semanas. Estava me deixando louco. E durante todo o caminho at� Dublin fiquei remoendo isso, achando que eu n�o
pensaria em voc�, se estivesse pensando naquilo. E, de repente, percebi que ele n�o iria embora, e ela n�o o deixaria. Ah, eles sobreviveriam um sem o outro porque
desde que nasceram eram sobreviventes. Mas nunca seriam inteiros. N�o do jeito que eram juntos. Ent�o reescrevi tudo l� mesmo, no lobby do hotel em Dublin."
Ela engoliu as l�grimas e a humilha��o.
- Ent�o voc� resolveu seu problema. Bom para voc�.
- Um deles. Voc� n�o vai a lugar algum, Brianna. - Ele a segurou mais forte at� ela parar de tentar soltar as m�os.
- Quando acabei de reescrever, pensei: vou tomar um drinque em algum lugar e vou para a cama. Em vez disso, peguei o carro e vim para c�. Porque esqueci que
passei aqui os melhores seis meses da minha vida. Esqueci que queria ouvir voc� cantando na cozinha de manh� ou v�-la pela janela do quarto. Esqueci que sobreviver
n�o � sempre o bastante. Olhe para mim. Por favor.
Quando ela olhou, ele limpou uma das l�grimas com o polegar. Ent�o entrela�ou os dedos nos dela, novamente.
- E, acima de tudo, Brianna, esqueci de dizer a voc� que a amo. Ela n�o falou nada, n�o p�de, porque sua respira��o continuava
ofegante. Mas seus olhos se arregalaram e mais duas l�grimas ca�ram sobre as m�os entrela�adas.
- � novidade para mim tamb�m - murmurou. - Mais do que um choque. Ainda n�o estou certo de como lidar com isso. Nunca quis sentir isso por ningu�m, e foi f�cil
evitar, at� voc�. Isso significa la�os e responsabilidades, e significa que talvez eu pudesse viver sem voc�, mas nunca estaria inteiro.
Gentilmente levou as m�os dela aos l�bios e sentiu o sabor das l�grimas.
- Achei que voc� se livrou de mim f�cil demais na despedida de ontem � noite. Aquilo me deixou em p�nico. Estava decidido a implorar, quando entrei e ouvi
voc� chorando. Tenho de confessar que foi como m�sica para os meus ouvidos.
- Voc� queria que eu chorasse.
- Talvez. Sim. - Ele se levantou, soltando as m�os dela. - Acho que, se voc� tivesse solu�ado no meu ombro na �ltima noite, se tivesse pedido para ficar, eu
teria ficado. Ent�o eu poderia culpar voc�, se eu estragasse as coisas.
Ela sorriu e secou o rosto.
- Eu atendi voc�, n�o �?
- N�o exatamente. - Virou-se e olhou para ela. Estava t�o perfeita, notou, com o avental impec�vel, fios de cabelos escapando dos grampos, l�grimas secando
no rosto. - Eu mesmo tive de voltar atr�s. Assim n�o poderei culpar ningu�m se eu falhar. Quero que saiba que vou me esfor�ar muito para n�o falhar.
- Voc� quis voltar. - Apertou as m�os. Era t�o dif�cil esperar isso.
- Mais ou menos. Mais, realmente. - O p�nico ainda estava ali, fermentando dentro dele. S� esperava que n�o transparecesse. - Disse que amo voc�, Brianna.
- Eu sei, eu lembro. - For�ou um sorriso enquanto se levantava. - Voc� nunca se esquece da primeira vez em que ouve isso.
- A primeira vez que ouvi foi quando fiz amor com voc�. Estava contando que ouviria outra vez.
- Amo voc�, Grayson. Sei que amo.
- Vamos ver. - Remexeu o bolso at� encontrar uma caixinha.
- Voc� n�o tinha que me comprar um presente. Bastava vir para casa.
- Pensei muito nisso, voltando de Dublin. Vir para casa. � a primeira vez que venho. - Entregou-lhe a caixa. - Gostaria de fazer disso um h�bito.
Ela abriu a caixinha e, apoiando-se na cama, sentou-se outra vez.
- Perturbei o gerente do hotel em Dublin at� que ele abriu a loja. Voc�s, irlandeses, s�o muito sentimentais, nem precisei suborn�-lo. - Ele engoliu em seco.
-Achei que eu teria mais sorte com um anel tradicional. Quero que case comigo, Brianna. Quero construir um lar junto com voc�.
- Grayson...
- Sei que sou uma aposta p�ssima - apressou-se em dizer. - N�o mere�o voc�. Mas voc� me ama mesmo assim. Posso trabalhar em qualquer lugar e posso ajud�-la
aqui com a pousada.
Quando olhou para ele, o cora��o simplesmente transbordou. Ele a amava, ele a queria e ficaria ali.
- Grayson...
- Ainda terei que viajar algumas vezes. - Lentamente se aproximou dela, temendo muito que ela o rejeitasse. - Mas n�o seria como antes. E algumas vezes voc�
poderia ir comigo. Sempre voltaremos para c�, Brie. Sempre este lugar vai significar para mim quase tanto quanto para voc�.
- Eu sei. Eu...
- N�o pode saber - interrompeu-a. - Eu mesmo n�o sabia at� ir embora. � um lar. Voc� � meu lar. N�o uma armadilha - murmurou. - Um santu�rio. Uma chance. Quero
construir uma fam�lia aqui. - Enfiou a m�o pelos cabelos enquanto ela o olhava. - Deus, como quero isso. Filhos, planos a longo prazo. Um futuro. E saber que voc�
est� bem aqui, cada manh�, cada noite. Ningu�m nunca amar� voc� como eu a amo, Brianna. Quero um compromisso com voc�. - Inspirou, tr�mulo. - A partir de hoje, desta
hora.
- Ah, Grayson - murmurou, com a voz embargada. Parecia que os sonhos podiam se tornar realidade. - Eu queria...
- Nunca amei ningu�m antes, Brianna. Em toda a minha vida, n�o houve ningu�m, a n�o ser voc�. � o meu tesouro. Juro. E se voc� s�...
- Ah, fique quieto - falou entre risos e l�grimas. - Para eu poder dizer sim.
- Sim? - Levantou-a da cama outra vez, fixando os olhos nos dela. - N�o vai me fazer sofrer primeiro?
- A resposta � sim. Apenas sim. - Colocou os bra�os em volta dele, apoiando a cabe�a em seu ombro. E sorriu. - Bem-vindo ao lar, Grayson.
Fim
1 No original, blackthorns. Abrunheiro, ameixeira-brava, pruneiro. A pousada c Blackthorn Cottage. (N.T.)
??
??
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??
2
67
Titulo original: Gabriel's Angel
Luz Na Tormenta
Para o Toni e KY e Larry, por ter o bom sentido de casar-se com as pessoas adequadas.
Argumento: Gr�vida, s� e em plena fuga para proteger ao filho que levava no ventre, Laura Malone ficou apanhada em uma estrada nevada de Avermelhado,
e a merc�
de um desconhecido. Felizmente, o �nico prop�sito do Gabriel Bradley era lhe dar cubro. Ela era um anjo loiro de olhos azul meia-noite, e Gabe teria pensado
que tinha surto da noite nevada para salv�-lo... se acreditasse nesse tipo de coisas; entretanto, tinha perdido toda esperan�a da morte de seu irm�o,
e j� s� achava consolo em sua solid�o. Enquanto esperavam a que amainasse a tormenta, confessaram-se seus segredos mais �ntimos e surgiu entre eles uma capitalista
paix�o. Quando as estradas se limparam, ficaram unidos por uma promessa, j� que Gabe sabia que Laura necessitava amparo para conservar a cust�dia de seu
filho na batalha que se morava. Estava disposto a lhe oferecer matrim�nio para ajud�-la, embora seus motivos n�o eram realmente t�o puros. O certo era que aquela
formosa e vulner�vel desconhecida lhe tinha devotado um presente de incalcul�vel valor... tinha-lhe dado uma raz�o para viver, a valentia de recuperar a esperan�a
e de soar tendo o futuro e a fam�lia que ele sempre tinha desejado.
Cap�tulo 1
Maldita neve. Gabe reduziu a segunda, diminuiu a velocidade do todoterreno a vinte e quatro quil�metros por hora, soltou um juramento e for�ou a vista ao m�ximo;
entretanto, qu�o �nico podia ver-se mais � frente do fren�tico vaiv�m dos limpador de p�ra-brisas era uma parede branca. Aquela n�o era uma tempestade de neve invernal de conto
de fadas, e os flocos de neve que ca�am pareciam t�o grandes e amea�adores como um punho.
Seria in�til parar-se a esperar a que a tormenta descampasse, disse-se enquanto tomava a seguinte curva lentamente. depois de seis meses conhecia a perfei��o
aquela estreita e lhe serpenteiem estrada e podia conduzir por ela quase com os olhos fechados, assim podia considerar-se afortunado, mas um rec�m-chegado se haveria
encontrado indefeso. Inclusive com aquela vantagem, tinha os ombros e a parte posterior do pesco�o completamente tensos. Nevada-las em Avermelhado podiam ser t�o
perigosas na primavera como em pleno inverno, e durar uma hora ou um dia; al�m disso, aquela tinha tomado por surpresa a todo mundo... tanto aos residentes como
aos turistas e ao Servi�o Nacional de Meteorologia.
S� oito quil�metros mais e poderia descarregar as provis�es, acender o fogo e desfrutar da tempestade de neve de abril no acolhedor interior de sua cabana, com
uma ta�a de caf� quente ou uma cerveja fria.
O todoterreno foi subindo pela costa como um tanque, e Gabriel se sentiu agradecido por sua resist�ncia e sua solidez. Embora demorasse tr�s vezes mais em
percorrer os trinta e dois quil�metros at� sua casa, pelo menos conseguiria chegar.
Os limpador de p�ra-brisas trabalhavam incans�veis, mas o �nico que se apreciava entre os segundos de falta de visibilidade total era uma cortina branca. Se n�o amainava,
ao anoitecer a neve teria mais do meio metro de altura. Gabe tentou animar-se dizendo-se que para ent�o j� teria chegado a casa, mas suas impreca��es ressonaram
no interior do ve�culo. Se n�o tivesse perdido a no��o do tempo no dia anterior, teria podido comprar antes as provis�es e o mau tempo n�o lhe haveria
afetado o mais m�nimo.
A estrada serpenteou em uma curva pregui�osa, e Gabe tomou com supremo cuidado. Resultava-lhe muito dif�cil conduzir lentamente, mas com o passar do inverno havia
adquirido um s�o respeito pelas montanhas e pelas estradas que as atravessavam. A cerca de seguran�a era muito s�lida, mas ao outro lado esperavam uns ravinas
escarpados que n�o perdoavam um engano. Embora tinha confian�a em si mesmo e na fiabilidad do todoterreno, tinha que ter em conta a possibilidade de que houvesse
algum carro a um lado ou em meio da estrada.
Precisava fumar. Apertou as m�os no volante, desejando acender um charuto, mas sabia que teria que esperar para poder permitir-se esse luxo. S� quatro
quil�metros e m�dio mais.
Sentiu que a tens�o de seus ombros come�ava a relaxar-se. N�o tinha visto um s� carro em mais de vinte minutos, e era duvidoso que se encontrasse com algum
a aquelas alturas, j� que qualquer com a mais m�nima sensatez teria procurado ref�gio. A seu lado, a r�dio n�o deixava de falar de estradas cortadas e eventos
cancelados.
Sempre o tinha surpreso que a gente planejasse tantas festas, jantares, recitais e representa��es para um mesmo dia, embora supunha que essa era a natureza
humana. Sempre planejando reuni�es para juntar uns com outros, embora s� fora para vender um punhado de bolos e bolachas. Ele preferia estar sozinho, ao menos
de momento; de n�o ser assim, n�o teria comprado a cabana nem teria permanecido enclausurado nela durante os �ltimos seis meses.
A solid�o lhe proporcionava liberdade para pensar, para trabalhar, para curar-se, e tinha obtido as tr�s coisas em certa medida.
Esteve a ponto de suspirar aliviado ao ver... bom, ao notar... que o carro voltava a tomar um pendente, j� que sabia que aquela era a �ltima costa antes
de sua separa��o. J� s� ficava um quil�metro e m�dio. Sua cara, que tinha estado tensa de concentra��o, come�ou a relaxar-se. Era um rosto muito magro e angular
para resultar meramente atrativo; al�m disso, tinha o nariz ligeiramente desviado por causa de um acalorado desacordo que tinha tido com seu irm�o menor na adolesc�ncia,
mas Gabe n�o lhe tinha guardado rancor por isso.
Lhe tinha esquecido ficar um chap�u, e seu comprido cabelo loiro escuro lhe emoldurava a cara e lhe chegava at� o pesco�o do agasalho imperme�vel com aspecto desgrenhado,
j� que o tinha penteado com dedos apressados horas antes. Seus olhos, de um cristalino tom verde escuro, come�avam a lhe arder depois de estar tanto tempo fixos
na neve.
Enquanto os pneum�ticos se deslizavam pelo asfalto acolchoado, jogou uma olhada ao veloc�metro, e levantou a vista de novo detr�s comprovar que s� faltava
meio quil�metro. Ent�o foi quando viu o carro que se aproximava para ele fora de controle.
Sem tempo nem para soltar um palavr�o, virou bruscamente para a direita justo quando o outro carro pareceu derrapar. O todoterreno patinou na neve, e
balan�ou-se perigosamente antes de que as rodas conseguissem aferrar-se � estrada para obter um pouco de tra��o. Por um instante Gabe acreditou que ia dar
uma volta de sino, mas quando seu ve�culo se estabilizou n�o p�de fazer outra coisa que permanecer ali sentado, olhando com a esperan�a de que o outro condutor
tivesse tanta sorte como ele.
O carro descendia inclinado a toda velocidade, e embora tudo estava ocorrendo em quest�o de segundos, Gabe teve tempo de pensar em qu�o forte seria o impacto
quando desse totalmente contra o todoterreno; entretanto, no �ltimo momento o condutor conseguiu endireitar o ve�culo, virou bruscamente para evitar a colis�o,
e come�ou a deslizar-se sem rem�dio para a cerca de seguran�a. Gabe p�s o freio de m�o, e saiu do todoterreno justo quando o outro carro me chocava contra o metal.
Esteve a ponto de cair de cabe�a, mas gra�as a suas botas de montanha conseguiu manter o equil�brio enquanto corria pela neve para o ve�culo acidentado.
Era um carro pequeno e compacto... ainda mais depois do impacto, j� que a parte direita tinha ficado colocada para dentro e o cap� parecia um acorde�o pelo lado
do passageiro. Em um instante de lucidez, horrorizou-se ao pensar no que poderia ter acontecido se o carro tivesse golpeado pelo lado do condutor.
Quando conseguiu chegar ao carro atrav�s da neve, viu uma figura desabada sobre o volante e tentou abrir a porta, mas estava fechada. Com o cora��o
na garganta, come�ou a esmurrar o guich�.
A figura se moveu, e ao ver a espessa cabeleira loira que ca�a sobre os ombros de um casaco escuro se deu conta de que era uma mulher. Nesse momento, ela
tirou-se o gorro de esqui que levava, voltou-se para o guich� e fixou a vista nele.
Estava muito p�lida, branca como o m�rmore, e inclusive seus l�bios pareciam gastos. Tinha uns olhos enormes e escuros, com as �ris quase negros devido �
como��o... e era formosa, t�o incrivelmente formosa que tirava o f�lego. Como artista viu as possibilidades naquele rosto com forma de diamante, nos ma��s do rosto
proeminentes e no carnudo l�bio inferior, mas como homem se separou de sua mente aqueles pensamentos e voltou a golpear no guich�.
Ela piscou e sacudiu a cabe�a, como se estivesse tentando limpar-lhe e Gabe viu que seus olhos eram de um tom azul meia-noite quando a como��o em
eles come�ou a desvanecer-se e deixou passo a uma express�o preocupada.
A mulher se apressou a baixar o guich�, e lhe perguntou antes de que ele pudesse articular palavra:
-Est� ferido?, dei-lhe?
-N�o, deu contra a cerca de seguran�a.
-Gra�as a Deus -disse ela, antes de apoiar a cabe�a no respaldo de seu assento por uns segundos. Tinha a boca seca, e embora lutava por control�-lo,
o cora��o parecia martillearle na garganta-. O carro come�ou a escorregar ao come�ar a descer pela costa, e acreditei que talvez poderia recuperar o controle,
mas ent�o vi seu todoterreno e pensei que ia lhe dar de cheio.
-O teria feito, se n�o tivesse girado para a cerca.
Gabe olhou de novo o cap� do carro, consciente de que o dano poderia ter sido muito major. Se ela tivesse ido a mais velocidade... mas n�o tinha sentido
perder-se em especula��es in�teis, assim que se voltou para ela de novo e tentou ver algum signo de trauma em seu rosto.
-encontra-se bem?
-Sim, acredito que sim -ela voltou a abrir os olhos, enquanto tentava esbo�ar um sorriso-. Sinto muito, devo lhe haver dado um bom susto.
-E que o diga -mas o sobressalto j� tinha passado, e estava a menos do meio quil�metro de sua casa, estado %parado na neve com uma desconhecida que n�o ia poder
tirar seu carro dali em v�rios dias-. Que dem�nios est� fazendo aqui?
Ela ignorou a brutalidade de suas palavras enquanto se desabotoava o cinto de seguran�a; tinha estado respirando fundo para tentar serenar-se, e j� se
encontrava muito melhor.
-Devo me haver equivocado de dire��o pela tormenta, porque estava tentando chegar ao Lonesome Ridge para esperar a que amainasse. Segundo o mapa, � a
popula��o mais pr�xima, e tinha medo de me parar no borda... bom, na pequena margem que h� -olhou para a cerca de seguran�a, e se estremeceu-. Suponho que
n�o vou poder tirar meu carro daqui.
-N�o, esta noite n�o.
Com express�o carrancuda, Gabe se meteu as m�os nos bolsos. A neve seguia caindo e a estrada estava deserta, assim se a deixava sozinha era poss�vel
que morrera congelada antes de que aparecesse por ali um ve�culo de emerg�ncia ou uma m�quina m�quina de limpar neve. Por muito que queria desentender-se daquela responsabilidade,
n�o podia deixar a uma mulher turma de trabalhadores em meio daquela tormenta.
-Qu�o �nico posso fazer por voc� � lev�-la a minha casa.
Sua voz era seca, carente de amabilidade, mas ela n�o se surpreendeu por isso. Era normal que estivesse zangado e impaciente, j� que quase tinha se chocado com ele
e al�m disso ia ter que seguir ajudando-a.
-Sinto muito.
Ele moveu ligeiramente os ombros, consciente de que tinha sido muito grosseiro.
-O desvio que leva a minha casa est� no topo da colina, ter� que deixar aqui seu carro e vir comigo no todoterreno.
-Muito obrigado -disse ela. Com o motor apagado e o guich� aberto, o frio estava come�ando a impregnar em sua roupa-. Perdoe as mol�stias, senhor...
-Bradley, Gabe Bradley.
-Eu me chamo Laura -acabou de tirar o cinto de seguran�a que tinha evitado que sofresse alguma ferida grave, e acrescentou-: levo uma mala na parte de
atr�s, importaria-lhe me dar uma m�o com ela?
Gabe agarrou as chaves e foi a contra gosto a procur�-la, pensando que se se tivesse posto em marcha uma hora antes j� estaria em casa, e sozinho.
A mala n�o era muito grande, e distava muito de estar nova; ao parecer, a mulher sem sobrenome viajava ligeira de bagagem. Enquanto a tirava do carro, se
disse que n�o era justo zangar-se nem mostrar-se t�o descort�s; ao fim e ao cabo, se ela n�o tivesse conseguido virar e o tivesse esquivado, a essas alturas necessitariam
um m�dico em vez de uma ta�a de caf� e de algo para esquent�-los p�s.
Gabe decidiu mostrar-se um pouco mais civilizado, e se voltou para ela para lhe dizer que fora ao todoterreno. A mulher tinha sa�do de seu carro e estava de p�
olhando-o, com a neve caindo sobre o cabelo solto, e foi ent�o quando se deu conta de que n�o s� era muito formosa, mas tamb�m al�m disso estava muito gr�vida.
-M�e de Deus-conseguiu dizer.
-De verdade que sinto lhe causar tantos problemas, e lhe agrade�o muit�ssimo que queira me ajudar -come�ou a dizer Laura-. Se posso chamar desde sua casa e conseguir
que venha algu�m a rebocar meu carro, talvez arrumaremos isto rapidamente.
Gabe n�o ouviu nenhuma palavra do que lhe estava dizendo, incapaz de apartar a vista do vulto coberto por seu casaco escuro.
-Est� segura de que est� bem?, n�o sabia que estava... necessita um m�dico?
-N�o, n�o h� problema -seu rosto, que tinha recuperado a cor gra�as ao frio, iluminou-se com um amplo sorriso-. O menino est� perfeitamente, embora pelas
patadas que me est� dando, eu diria que se incomodou um pouco com tudo este rev�o. N�o chocamos com a cerca, mas bem nos deslizamos contra ela, assim
que logo que notamos o impacto.
-Pode que haja... -sem saber muito bem como seguir, Gabe optou por dizer-: que a sacudida lhe haja... prejudicado algo.
-Estou bem -repetiu ela-. Tinha o cintur�o posto de seguran�a, e a neve amorteceu o golpe -ao dar-se conta de que ele n�o parecia muito convencido,
tornou-se atr�s o cabelo com um pouco de impaci�ncia. Embora levava umas luvas de couro debruados em seda, os dedos estavam come�ando a intumescer-se o Prometo-lhe
que n�o vou p�r me de parto aqui no meio... a menos que fiquemos aqui plantados durante nas pr�ximas semanas.
A mulher tinha raz�o... ou ao menos, isso esperava Gabe; al�m disso, come�ava a sentir-se como um idiota sob o peso do sorriso com que o olhava. Depois de uns segundos
deu-se por vencido, e alargou uma m�o para ela.
-Deixe que a ajude.
Laura sentiu que aquelas palavras t�o singelas lhe davam totalmente no cora��o, j� que podia contar com os dedos de uma m�o as vezes em que algu�m o
havia dito algo assim.
Gabe n�o sabia como terei que comportar-se com as mulheres gr�vidas, e se perguntou se seriam muito fr�geis. Sempre tinha pensado que devia ser justamente o contr�rio,
tendo em conta pelo que tinham que acontecer, mas nesse momento em que se encontrava frente a frente com uma, tinha medo de que se rompesse em mil peda�os ao
toc�-la.
Temerosa de escorregar-se na neve, Laura se aferrou com for�a a seu bra�o enquanto foram para o todo terreno.
-Este s�tio � precioso, mas a verdade � que vou desfrutar mais da neve quando estiver a coberto -comentou quando chegaram ao ve�culo. Ao ver o degrau
bastante alto que havia sob a porta, acrescentou-: parece-me que vai ter que me ajudar a entrar, n�o estou t�o �gil como antes.
Gabe colocou a primeira mala, enquanto se expor por onde podia agarr�-la. Resmungando entre dentes, p�-lhe uma m�o sob o cotovelo e outra no quadril,
e Laura conseguiu entrar no todoterreno com uma facilidade que o surpreendeu.
-Obrigado.
O grunhiu sua resposta enquanto fechava a porta de repente. Depois de rodear o ve�culo, ficou ao volante e conseguiu reincorporar-se � estrada sem muito
esfor�o.
Enquanto o s�lido ve�culo subia lentamente a costa, Laura estirou as m�os e viu que por fim tinham deixado de tremer.
-Se tivesse sabido que havia casas pela zona, teria pedida prote��o faz momento. N�o me esperava que houvesse uma nevada em abril.
-por aqui pode nevar em qualquer data -disse ele, e ficou calado por um comprido momento. Respeitava a privacidade alheia tanto como a sua pr�pria, mas as
circunst�ncias em que se encontravam se sa�am do comum-. Viaja sozinha?
-Sim.
-N�o � um pouco perigoso em sua condi��o?
-Tinha planejado estar em Denver em um par de dias -posou uma m�o sobre seu ventre, e afirmou-: n�o saio de contas at� dentro de seis semanas -respirou fundo,
consciente de que n�o tinha outra op��o que confiar nele, embora fora arriscado-. Vive sozinho, senhor Bradley?
-Sim...
voltou-se um pouco para poder v�-lo com claridade enquanto ele enfiava por um caminho lateral bastante estreito... ou o que ela sup�s que seria um caminho, j�
que estava totalmente enterrado sob a neve. Seu rosto tinha uma certa dureza, embora era muito fino para resultar tosco. Era um rosto esculpido com frieza,
como o de algum m�tico chefe guerreiro de antigamente.
Laura recordou sua express�o de assombrada impot�ncia ao dar-se conta de que estava gr�vida, e soube instintivamente que estava segura com ele. E de todos os modos
tinha que acreditar que era assim, j� que n�o ficava outra op��o.
Ele notou seu olhar e pareceu lhe ler o pensamento, porque disse com voz acalmada:
-N�o sou um man�aco perigoso.
-Me alegro -Laura esbo�ou um sorriso, e se voltou de novo para diante.
A cabana era apenas vis�vel atrav�s da neve, inclusive quando se detiveram justo diante dela; entretanto, a Laura adorou o pouco que conseguiu
vislumbrar. Era um ret�ngulo achaparrado de madeira com um alpendre coberto, janelas de pain�is quadrados e fuma�a saindo pela chamin�.
Embora estava quase totalmente enterrado sob a neve, havia um caminho de pedras plainas que levava at� os degraus de entrada, e os lados da casa
estavam flanqueados por �rvores de folha perene. Nada lhe tinha dado em sua vida a sensa��o de calidez e seguran�a que lhe transmitiu aquela pequena cabana no meio
das montanhas.
-� preciosa, deve ser muito feliz vivendo aqui.
-� pr�tico.
Gabe rodeou o todoterreno para ajud�-la a baixar, e ao inalar seu aroma pensou que cheirava a neve... ou a �gua, aquela �gua pura e virginal que descendia pelas
montanhas na primavera. Consciente de que tanto sua rea��o como suas compara��es eram absurdas, disse-lhe com voz algo brusca:
-Eu a entrarei, dentro de nada poder� esquentar-se frente � chamin� -levou-a at� a casa, e ao chegar � porta a deixou com cuidado de p� e abriu para
que entrasse-. Passe, eu trarei suas coisas.
E sem mais retornou ao todoterreno e a deixou ali sozinha, com a neve derretida de seu casaco molhando o tapete do sagu�o.
Laura levantou o olhar, e ficou boquiaberta ao ver os quadros. Cobriam as paredes, estavam amontoados em cada rinc�o e sobre as mesas, e embora s�
uns quantos estavam emoldurados, o certo era que n�o necessitavam nenhum tipo de adorno. Alguns estavam ao meio acabar, como se o artista tivesse perdido o interesse
ou a motiva��o. Havia �leos de cores vividas e chamativos, e aquarelas em tons suaves e et�reos que pareciam tirados de um sonho. Laura se tirou o casaco e
aproximou-se para v�-los mais de perto.
A gente mostrava uma cena de Paris, o Bois do Boulogne, um parque que reconheceu porque o tinha visitado em sua lua de mel. Ao contempl�-lolhe alagaram
os olhos de l�grimas e todo seu corpo se esticou, mas respirou fundo e se obrigou a olh�-lo at� que suas emo��es se estabilizaram.
Havia um cavalete debaixo de uma janela, onde a luz podia dar totalmente sobre o tecido, e embora teve a tenta��o de ir jogar uma olhada, conteve-se porque
j� tinha a sensa��o de estar invadindo a intimidade daquele homem.
Sentindo-se perdida, enla�ou as m�os com for�a enquanto a invadia um profundo desespero. colocou-se em um atoleiro, tinha o carro destro�ado, apenas
ficava dinheiro, e o beb�... o beb� n�o ia esperar at� que as coisas se solucionassem.
Se a encontravam nesse momento...
N�o, n�o foram encontrar a, disse-se enquanto separava as m�os com um gesto decidido. Tinha chegado at� ali e ningu�m ia tirar lhe a seu filho, nem nesse momento
nem nunca.
voltou-se quando sentiu que a porta da cabana se abria, e viu que Gabe deixava um mont�o de bolsas empilhadas no ch�o antes de tirar o casaco e pendur�-lo
em um cabide que havia junto � entrada.
Estava t�o magro como tinha suposto por sua cara, e embora devia medir pouco menos de um metro oitenta, gra�as a sua complei��o forte e poderosa parecia
muito mais alto. Enquanto via como se sacudia a neve das botas, pensou que tinha mais pinta de boxeador que de artista, que aquele homem parecia encaixar melhor
ao ar livre que em suntuosas mans�es.
Apesar da ascend�ncia aristocr�tica que sabia que ele tinha, a roupa de flanela e veludo cotel� que levava conjuntaba � perfei��o com aquela r�stica cabana.
Ela provinha de um ambiente muito mais modesto, e entretanto se sentia desconjurado em seu volumoso pul�ver de ponto irland�s e sua saia de l� feita a medida.
-Gabriel Bradley -disse, enquanto assinalava com um gesto as paredes-. O golpe deve me haver deixado confundida antes, porque n�o tenho feito a conex�o at�
agora. eu adoro seu trabalho.
-Obrigado -disse ele, antes de levantar duas das bolsas que tinha entrado na casa.
-Deixe que o ayu...
-N�o.
Gabe foi � cozinha sem acrescentar nada mais, e ela ficou mordendo o l�bio. Sabia que ele n�o estava precisamente encantado de ter companhia, mas n�o havia
nada que ela pudesse fazer a respeito, e se iria assim que fora razoavelmente seguro faz�-lo. At� ent�o... bom, at� ent�o Gabriel Bradley, o artista
mais importante da d�cada, teria que ag�entar-se.
Esteve tentada de sentar-se e se manter-se separada de seu caminho passivamente, e nisso passado era o que teria feito, mas as circunst�ncias a tinham trocado.
Seguiu-o at� a cozinha, que era t�o diminuta que pareceu ficar abarrotada.
-Ao menos deixe que lhe prepare algo para beber -a velha cozinha com dois fog�es n�o parecia muito confi�vel, mas Laura estava decidida a ser �til.
Gabe se voltou, e quando o movimento fez que ro�asse o volumoso ventre da mulher, surpreendeu-se pela quebra de onda de desconforto que o percorreu... e por
a pontada de fascina��o que sentiu.
-Aqui tem o caf� -resmungou, enquanto lhe dava um pacote ainda sem come�ar.
-Tem uma cafeteira?
A intriga estava na pia, que estava cheio de uma �gua que em seu momento tinha sido espumosa. Tinha-o deixado em encharcamento, para tentar tirar as manchas
que tinham ficado a �ltima vez que o tinha usado. foi tirar o, mas ao voltar a topar-se com a Laura retrocedeu um passo.
-por que n�o deixa que me eu ocupe? -sugeriu ela-. Colocarei a compra e porei a cafeteira, e enquanto voc� pode chamar para que venha algu�m a rebocar
meu carro.
-Vale. Tamb�m h� leite fresca.
-Suponho que n�o tem ch�, n�o? -sorriu ela.
-N�o.
-Ent�o tomarei um pouco de leite, obrigado.
Quando ele saiu da habita��o, Laura come�ou a colocar a comida. O espa�o era muito reduzido, assim n�o teve problemas para decidir onde ia cada coisa;
de fato, p�de utilizar seu pr�prio sistema de organiza��o, j� que ao parecer Gabe n�o tinha nenhum.
O apareceu na porta quando s� tinha esvaziado uma das bolsas, e comentou:
-N�o h� telefone.
-O que?
-N�o h� linha, est� acostumado a passar quando h� tormenta.
-V�. Est� acostumado a demorar muito em arrumar-se? -disse ela, que se tinha ficado im�vel com uma lata de sopa na m�o.
-Depende. �s vezes demora horas, e �s vezes uma semana.
Laura arqueou uma sobrancelha, mas ent�o se deu conta de que ele estava falando a s�rio.
-Suponho que isso me deixa em suas m�os, senhor Bradley.
O colocou os polegares nos bolsos dianteiros de suas cal�as, e disse com calma:
-Ent�o, ser� melhor que me chame Gabe.
Laura franziu o cenho e baixou o olhar para a lata que seguia sustentando; quando as coisas se torciam, a gente tinha que tentar olhar o lado positivo.
-Quer um pouco de sopa?
-Sim. Irei A... deixar suas coisas no dormit�rio.
Aquela mulher era de armas tomar, decidiu Gabe enquanto levava a mala dela a sua habita��o. Embora ele n�o era nenhum perito no sexo feminino, tampouco
podia considerar um completo novato, e tinha notado que ela nem sequer tinha piscado ao saber que n�o havia telefone e que se ficou incomunicada do
resto do mundo junto a ele.
Gabe se olhou no espelho que havia sobre seu velho penteadeira. Que ele soubesse, ningu�m o tinha considerado inofensivo at� esse momento. Esbo�ou um sorriso travesso;
de fato, n�o sempre tinha sido exatamente inofensivo.
Mas aquela situa��o era por completo diferente, claro.
Sob outras circunst�ncias, certamente teria desfrutado de algumas saud�veis fantasias sobre sua inesperada convidada. Aquela cara... havia algo especial e
indefin�vel em sua incr�vel beleza, e quando um homem a olhava, automaticamente come�ava a imaginar-se coisas; entretanto, embora n�o tivesse estado gr�vida,
as fantasias n�o teriam ido mais � frente. Nunca tinha sido homem de aventuras nem de confus�es de uma noite, e nesse momento n�o estava preparado para ter uma rela��o.
manteve-se celibat�rio durante os �ltimos meses, j� que o desejo de pintar havia o tornado a seduzir por fim e n�o necessitava nada mais.
Mas de um ponto de vista pr�tico, o certo era que tinha uma convidada, uma mulher s� e gr�vida, al�m de muito enigm�tica. N�o lhe tinha escapado
o fato de que n�o tinha mencionado seu sobrenome, nem lhe tinha dado informa��o alguma sobre sua identidade ou as raz�es pelas que viajava. Como duvidava que houvesse
atracado um banco ou que fora uma espi� internacional, decidiu n�o pression�-la muito de momento para conseguir informa��o.
Mas tendo em conta a virul�ncia da tormenta e qu�o isolada estava a cabana, o mais prov�vel era que tivessem que passar v�rios dias juntos, assim
prometeu-se descobrir mais costure sobre a serena e misteriosa Laura.
Enquanto contemplava seu pr�prio reflexo difuso no prato que sustentava na m�o, Laura se perguntou de novo o que ia fazer naquelas circunst�ncias. Estava
apanhada sem poder chegar a Denver, Os Anjos ou a alguma enorme cidade o suficientemente longe de Boston onde poder desaparecer. Se n�o houvesse sentido a necessidade
imperiosa de ficar em marcha essa manh�, se se tivesse ficado na habita��o daquele pequeno motel outro dia mais, possivelmente a essas horas seguiria tendo algo
de controle sobre a situa��o.
Mas n�o tinha sido assim, e nesse momento se encontrava naquela cabana, com um perfeito desconhecido. E al�m n�o era um homem qualquer, a n�o ser Gabriel Bradley,
um artista endinheirado e respeitado que provinha de uma fam�lia igualmente enriquecida e respeitada. Estava segura de que n�o a tinha reconhecido, ao menos de momento,
e se perguntou o que passaria quando ele se desse conta de quem era ela, e de quem estava fugindo. Era poss�vel que os Eagleton fossem amigos dos Bradley, e
a s� id�ia fez que sua m�o se posasse sobre seu ventre em um gesto instintivo e protetor.
N�o tirariam a seu filho. Sem importar o dinheiro que tivessem nem qu�o poderosos fossem, n�o foram poder arrebatar-lhe e se estava em suas m�os, jamais obteriam
encontr�-los, nem a ela nem a seu beb�.
Laura deixou o prato e se voltou para a janela. Era estranho olhar para fora e n�o ver nada, e a reconfortava a id�ia de que ningu�m pudesse v�-la do
exterior. Estava escondida depois de uma cortina de neve do mundo inteiro... ou quase, corrigiu-se ao pensar de novo no Gabe.
Sempre preferia procurar o lado bom das coisas quando n�o ficava outro rem�dio, assim que lhe deu voltas � id�ia de que ao melhor a tormenta tinha sido
uma b�n��o. Ningu�m poderia lhe seguir a pista com aquele tempo, e duvidava que a algu�m lhe passasse pela cabe�a procur�-la em uma pequena cabana perdida no meio
das montanhas. Ali podia sentir-se mais ou menos segura, e decidiu aferrar-se a isso.
Ouviu o Gabe mover-se na habita��o do lado, o ru�do de seus passos no ch�o de madeira, e o som de um tronco na chamin�. depois de tantos meses
de solid�o, inclusive o mero som de outro ser humano a reconfortava.
-Senhor Bradley... Gabe? -apareceu pela porta, e o viu colocando bem a tela protetora que havia diante do fogo-. Poderia limpar uma mesa?
-Para que?
-Para que possamos comer... sentados.
-Ah, sim.
Ela voltou a meter-se na cozinha, enquanto ele tentava pensar no que ia fazer com as pinturas, os pinc�is e demais artefatos que cobriam em total
desordem a mesa que em seu dia se utilizou para comer. Irritado por ter que renunciar a seu espa�o, foi deixando as coisas pela habita��o.
-Tamb�m preparei uns sandu�ches -disse Laura, ao voltar da cozinha com pratos, copos e talheres sobre uma bandeja met�lica de forno um pouco torcida.
Envergonhado e algo nervoso, Gabe foi para ela e a tirou das m�os.
-N�o deveria carregar tanto peso -disse com tom brusco.
Ela arqueou as sobrancelhas. Primeiro sentiu surpresa, j� que ningu�m a tinha mimada nunca, e embora sua vida nunca tinha sido f�cil, nos �ltimos sete meses se havia
voltado bastante dura. Depois sentiu gratid�o, e o olhou com um sorriso.
-Obrigado, mas sou muito cuidadosa.
-Se isso fosse verdade, estaria em sua cama com as pernas em alto, e n�o apanhada na neve comigo.
-� importante fazer exerc�cio -disse, embora se sentou e deixou que ele pusesse a mesa-.E tamb�m o � comer -fechou os olhos, e desfrutou de do aroma simples e revigorante
da comida-. Espero n�o ter gasto muitas coisas, mas uma vez que comecei, n�o pude parar.
-N�o passa nada -disse ele, ao agarrar meio sandu�che de queijo, beicon e rodelas de tomate. A verdade era que se acostumou a comer de p� na cozinha,
e aquela comida quente preparada sem pressas; sei saboreava mais sentado e com um prato.
-Quero te pagar pela comida e o alojamento.
-N�o faz falta -Gabe tomou uma colherada de sopa de pescado enquanto a observava. A forma em que ela levantava o queixo revelava seu orgulho e sua for�a
de vontade, e criava um interessante contraste com sua pele cremosa e seu pesco�o esbelto.
-Agrade�o-lhe isso, mas prefiro pagar pelo que recibo.
-Isto n�o � o Hilton -Gabe se deu conta de que ela n�o levava nenhuma j�ia, nem sequer um anel-.Voc� cozinhaste, assim estamos em paz.
Laura quis protestar, seu orgulho o exigia, mas o certo era que tinha pouco dinheiro, al�m das economias para o cuidado do beb� que tinha guardado
no forro da mala.
-Muito obrigado -tomou um sorvo de leite, embora n�o gostava de nada, enquanto inalava o delicioso e proibido aroma do caf�-. Leva muito tempo aqui, em
Avermelhado?
-Uns seis meses... n�o, sete.
Aquilo lhe deu um pouco de esperan�a. Pelo aspecto da cabana, n�o acreditava que ele passasse muito tempo lendo o peri�dico, e n�o tinha visto nenhuma televis�o.
-Deve ser um s�tio fant�stico para pintar.
-De momento sim.
-Quando entrei n�o podia acredit�-lo, reconheci seu trabalho em seguida. Sempre o admirei, de fato mi... um conhecido meu comprou v�rias obras tuas. Uma
delas era uma enorme selva, parecia como se a gente pudesse perder-se nela e estar completamente sozinho.
Gabe recordava o quadro, e por estranho que parecesse, tinha-lhe irradiado a mesma sensa��o. N�o estava seguro, mas acreditava que o tinha comprado algu�m do
este... de Nova Iorque ou Boston, possivelmente de Washington. Se a curiosidade que sentia por aquela mulher n�o se desvanecia, uma simples chamada a seu agente bastaria para
lhe refrescar a mem�ria.
-N�o mencionaste de onde vem.
-N�o -limitou-se a responder ela.
Embora seu apetite tinha desaparecido, seguiu comendo. Como tinha podido ser t�o parva para lhe descrever o quadro? O comprador tinha sido Tony, que
simplesmente tinha estalado os dedos e tinha feito que seus advogados o comprassem em seu nome, porque lhe tinha gostado.
-Levo um tempo em Dallas -admitiu ao fim.
Tinha vivido ali dois meses, at� que se tinha informado de que os detetives contratados pelos Eagleton estavam investigando discretamente sobre seu paradeiro.
-N�o tem acento texano -comentou ele.
-N�o, suponho que n�o. Deve ser porque vivi por todo o pa�s -aquilo era certo, e Laura conseguiu sorrir de novo-.Voc� n�o � de Avermelhado.
-S�o Francisco.
-Sim, lembran�a hav�-lo lido em um artigo sobre seu trabalho e sua vida -decidiu falar sobre ele. Por experi�ncia, sabia que os homens se distra�am facilmente
se eram o centro da conversa��o-. Sempre quis visitar S�o Francisco, parece um s�tio precioso com a ba�a, as casas antigas... -soltou um grito sufocado,
e se tocou o ventre.
-O que acontece?.
-Nada, o menino est� um pouco inquieto.
Embora ela voltou a sorrir, Gabe notou que seus olhos tinham sombras de cansa�o e que tinha empalidecido outra vez.
-Olhe, n�o tenho nem id�ia de embara�os, mas o sentido comum me diz que deveria estar tombada.
-A verdade � que estou cansada. Se n�o te importar, eu gostaria de me estirar um momento.
-A cama est� ali -ele se levantou, e como n�o sabia se ela poderia faz�-lo por si s�, ofereceu-lhe uma m�o.
-Lavarei os pratos depois, se... -sua voz se apagou quando lhe fraquejaram as pernas.
-Espera -Gabe a rodeou com os bra�os, e experimentou a estranha e lhe esmaguem sensa��o de notar como o beb� se movia contra ele.
-Sinto muito. foi um dia muito comprido, e suponho que me excedi um pouco -Laura sabia que deveria apartar-se dele, mas havia algo delicioso em poder apoiar-se
no duro e s�lido corpo de um homem-. Estarei bem depois de uma sesta.
N�o se rompeu em mil peda�os, como ele tinha acreditado no princ�pio, mas parecia t�o suave e delicada que Gabe imaginou dissolvendo-se em suas m�os. Haveria
querido reconfort�-la, seguir abra�ando-a e senti-la apoiada contra ele, confiando nele, necessitando-o. disse-se que era um parvo por pensar assim, e a elevou em bra�os.
Laura come�ou a protestar, mas se sentiu aliviada ao poder descansar os p�s.
-Devo pesar uma tonelada.
-Isso esperava, mas a verdade � que n�o.
Ela se p�s-se a rir, apesar do exausta que estava.
-� todo um gal�, Gabe.
Ele sentiu que seu desconforto se ia desvanecendo enquanto a levava a dormit�rio.
-N�o estou acostumado a flertar com mulheres gr�vidas.
-N�o se preocupe, redimiste-te ao salvar a esta de uma tormenta de neve -com os olhos fechados, Laura sentiu que a deixava sobre uma cama. Possivelmente n�o fora
mais que um colch�o e um len�ol enrugado, mas se sentiu no para�so-. Gabe, muito obrigado.
-Est� dizendo isso cada cinco minutos -cobriu-a com um edredom que tinha visto tempos melhores, e acrescentou-: se de verdade quer me dar as obrigado, durma
e n�o ponha de parto.
-Vale. Gabe...?
-O que?
-Seguir� comprovando se tiver tornado a linha do telefone?
-Sim -ela estava quase dormida, e Gabe sentiu uma pontada de culpabilidade por pression�-la estando t�o vulner�vel, j� que nesse momento n�o parecia capaz nem de
espantar a uma mosca, mas mesmo assim n�o p�de evitar lhe perguntar-: quer que chame a algu�m por ti?, a seu marido?
Laura abriu os olhos. Embora estavam nublados de cansa�o, olhou-o com express�o s�ria e ele se deu conta de que ainda seguia mais que alerta.
-N�o estou casada -disse ela com claridade di�fana-. N�o h� ningu�m a quem chamar.
Cap�tulo 2
No sonho estava sozinha, mas n�o tinha medo, j� que se tinha passado grande parte de sua vida em solid�o e se sentia mais c�moda assim rodeada de gente. Estava
imersa em uma atmosfera et�rea, aveludada... como a paisagem mar�tima que tinha visto pendurado em uma das paredes da cabana do Gabe.
Curiosamente, podia ouvir o murm�rio do oceano na dist�ncia, embora em algum rinc�o de sua mente sabia que estava na montanha. Ia caminhando por uma n�voa
perlada, com a c�lida areia sob os p�s. sentia-se a salvo, forte e extra�amente despreocupada; fazia muito que n�o se sentia t�o livre, t�o tranq�ila.
Sabia que estava sonhando; de fato, isso era o melhor de tudo, e de ter podido se teria ficado para sempre naquela doce fantasia. Seria incrivelmente
f�cil manter os olhos fechados, e aferrar-se � paz do sonho.
Ent�o o menino come�ou a chorar, a gritar, e as t�mporas come�aram a lhe palpitar para ouvir seu pranto desesperado. Come�ou a suar, e a pura cor branca da
n�voa come�ou a obscurecer-se at� converter-se em um cinza escuro e amea�ador. O ar perdeu toda calidez, e o frio a golpeou e a gelou at� os ossos.
O pranto parecia vir de todas partes e de nenhuma, o eco reverberava a seu redor enquanto procurava fren�tica ao menino. Ofegante, tentando respirar, lutou
por avan�ar entre aquela n�voa que ia envolvendo-a e espessando-se. O pranto se foi fazendo mais forte, mais desesperado, e Laura sentiu que o cora��o o martilleaba
na garganta, que sua respira��o se voltava entrecortada e que suas m�os tremiam.
Ent�o viu o formoso ber�o branco, com encaixes rosados e volantes cor azul, e sentiu um al�vio t�o grande que lhe fraquejaram os joelhos.
-N�o passa nada -murmurou ao levantar o beb� em seus bra�os-. N�o passa nada, estou aqui.
Laura sentiu o quente f�lego do pequeno em sua bochecha, o peso em seus bra�os enquanto o embalava e o arrulhava. Rodeou-a o doce aroma dos p�s de
talco enquanto o balan�ava, murmurando e acalmando-o, e come�ou a apartar a mantita que ocultava o pequeno rosto.
E de repente, descobriu que qu�o �nico sustentava em seus bra�os era uma manta vazia.
Gabe estava sentado na mesa onde tinham comido, esbo�ando a cara da Laura e pensando nela, quando a ouviu gritar. O som foi t�o esmigalhado, t�o carregado
de desespero, que rompeu o l�pis em dois antes de levantar-se de um salto e sair correndo para o dormit�rio.
-Ou�a, j� est� -tomou pelos ombros sem saber o que fazer, mas quando ela come�ou a sacudir-se com for�a, Gabe teve que lutar por controlar seu pr�prio p�nico-.Tranq�ila,
Laura, d�i-te algo?, � o menino?, Laura, me diga o que acontece.
-Tiraram a meu filho! -sua voz transbordava histeria, mas entrela�ada com f�ria-. Me ajude!, tiraram a meu filho!
-Ningu�m tirou a seu filho -ela seguia lutando contra ele com uma for�a surpreendente, e de forma instintiva a rodeou com os bra�os-. foi um sonho,
seu filho est� bem, olhe -agarrou-a pela boneca, onde o pulso pulsava desbocado, e a obrigou a p�r a m�o sobre seu ventre-. Os dois est�o a salvo, te relaxe
antes de que te fa�a mal.
Quando sentiu a vida que pulsava sob sua m�o, Laura se derrubou contra Gabe. Seu beb� estava seguro em seu interior, onde ningu�m podia toc�-lo.
-Sinto muito, tive um pesadelo.
-N�o passa nada -sem ser consciente disso, Gabe come�ou a lhe acariciar o cabelo, a embal�-la como ela tinha feito com o menino de seus sonhos, a balan��-la com ternura
em um movimento ancestral de consolo-. nos fa�a um favor aos dois, e te relaxe.
Laura assentiu, sentindo-se protegida e abrigada, algo que tinha experiente em escassas ocasi�es ao longo de seus vinte e cinco anos de vida.
-Estou bem, de verdade. Suponho que � o trauma do acidente.
O se separou dela, zangado consigo mesmo ao dar-se conta de que queria seguir abra�ando-a, amparando-a. Quando lhe tinha pedido ajuda, tinha sabido
que faria o que fora por proteg�-la, embora n�o tinha entendido por que. Era como se tivesse estado imerso em seu pr�prio sonho, ou como se de alguma forma houvesse
entrado em formar parte do dela.
No exterior seguia caindo uma cortina de neve, e a �nica luz no dormit�rio era a que entrava da sala de estar. Era t�nue e ligeiramente amarelada,
mas mesmo assim podia ver a Laura com claridade, e sabia que ela tamb�m podia v�-lo. Queria respostas, e as queria nesse mesmo momento.
-N�o me minta. Em circunst�ncias normais n�o me meteria em seus assuntos pessoais, mas s� Deus sabe por quanto tempo vais ter que estar sob meu teto.
-N�o te estou mentindo -disse ela, com voz t�o acalmada e firme, que teria sido muito f�cil acredit�-la-. Perdoa se te alarmei.
-De quem est� fugindo, Laura?
Ela ficou olhando-o com aqueles enormes olhos azuis sem dizer uma palavra. Gabe se levantou de repente e come�ou a passear-se de um lado a outro da habita��o,
mas ela permaneceu inalter�vel; entretanto, quando ele voltou a sentar-se na cama com um gesto brusco e tomou o queixo, ela ficou t�o im�vel que ele
teria jurado que por uns segundos tinha deixado de respirar. Embora a id�ia era rid�cula, teve a sensa��o de que estava preparando-se para receber um golpe.
-Sei que tem algum problema, e quero saber qu�o grave �. Quem te persegue, e por que?
Ela permaneceu muda, mas moveu uma m�o instintivamente para proteger ao filho que levava em seu seio. Como era �bvio que o beb� era a chave do assunto,
Gabe decidiu come�ar por ali.
-Seu filho tem um pai -disse com lentid�o-. Est� escapando dele?
Ela negou com a cabe�a.
-Ent�o, de quem?
-� um pouco complicado.
O arqueou uma sobrancelha, e assinalou com a cabe�a para a janela.
-Temos um mont�o de tempo. Se o tempo seguir assim, pode que passe uma semana at� que voltem a abri-las estradas.
-Irei assim que esteja espa�oso. Quanto menos saiba, melhor ser� para os dois.
-N�o me venha com essas -Gabe permaneceu uns segundos em sil�ncio, enquanto tentava esclarec�-las id�ias-. Acredito que o beb� � muito importante para ti.
-N�o h� nada que seja ou possa s�-lo mais.
-Crie que a ansiedade que leva em cima � boa para ele?
Ele viu o instant�neo brilho de dor em seus olhos, a preocupa��o, e a forma quase impercept�vel em que pareceu fechar-se em si mesmo.
-Algumas costure n�o podem trocar-se -Laura respirou fundo, e acrescentou-: a verdade � que tem direito a me perguntar.
-Mas voc� n�o pensa me responder, verdade?
-N�o te conhe�o de nada, mas n�o tenho mais remedeio que confiar em ti at� certo ponto, e s� posso te pedir que voc� fa�a o mesmo comigo.
Ele apartou a m�o de seu queixo e disse:
-Como sei que posso faz�-lo?
Laura apertou os l�bios, consciente de que ele tinha raz�o; entretanto, estar no certo �s vezes n�o bastava.
-N�o cometi nenhum crime, e n�o me persegue a pol�cia. N�o tenho fam�lia nem marido que me busque. Parece-te suficiente?
-N�o. Aceitarei-o por esta noite porque tem que dormir, mas falaremos pela manh�.
Era uma pausa... um curto, mas Laura tinha aprendido a agradecer os pequenos presentes da vida. Assentiu e esperou a que ele sa�sse da habita��o, e quando
a porta se fechou atr�s dele e a envolveu a escurid�o, voltou a tombar-se na cama. Entretanto, demorou muito, muito tempo em poder conciliar o sonho.
Laura despertou em meio de um sil�ncio absoluto, abriu os olhos e esperou a recordar onde estava. Tinha dormido em tantas habita��es distintas, em tantos
s�tios, que estava acostumada a sentir-se desorientada ao despertar.
Ent�o o recordou tudo... Gabriel Bradley, a tormenta, a cabana, o pesadelo, e a experi�ncia de despertar assustada e encontrar o amparo de seu
abra�o; mas sabia que aquela seguran�a era tempor�ria, e que seus abra�os n�o eram para ela. voltou-se para a janela com um suspiro e viu que, por dif�cil que
fora de acreditar, a neve seguia caindo, embora n�o com tanta for�a. Era �bvio que ainda n�o poderia partir.
Colocou uma m�o sob a bochecha, e seguiu contemplando a cortina branca que ca�a brandamente. Era f�cil desejar que a neve n�o parasse nunca e que o tempo
detivera-se para poder ficar ali coberta, isolada de tudo e a salvo. Mas o filho que levava dentro era prova inequ�voca de que o tempo nunca se detinha,
assim que se levantou e abriu sua mala para estar apresent�vel antes de voltar a enfrentar-se ao Gabe.
Ao sair da habita��o se deu conta de que ele n�o estava na cabana, e embora deveria haver-se sentido aliviada, o ambiente acolhedor fez que se sentisse
sozinha. Queria sentir sua presen�a, embora s� fora ouvindo-o mover-se em outra habita��o. disse-se que n�o importava onde estivesse, j� que n�o teria mais rem�dio
que voltar, assim decidiu ir � cozinha para preparar o caf� da manh�.
Entretanto, nesse momento viu a meia d�zia de bosquejos que havia sobre a mesa onde tinham comido. Seu talento como pintor era ineg�vel, e se refletia
inclusive em uns simples esbo�os a l�pis ou a l�pis-carv�o, e Laura sentiu nervos e curiosidade por saber como a via outra pessoa... n�o, n�o qualquer, a n�o ser Gabriel
Bradley em concreto.
Seus olhos pareciam muito grandes, muito misteriosos, e sua boca excessivamente suave e vulner�vel. Laura se passou um dedo por ela, e franziu o cenho. Havia
visto sua pr�pria cara infinidade de vezes em fotografias tomadas do melhor �ngulo poss�vel, imagens nas que aparecia coberta de sedas, peles e j�ias. Seu
rosto e seu corpo tinham vendido litros e litros de perfume, e aut�nticas fortunas em roupa e joalheria.
Laura Malone. Tinha esquecido quase por completo a aquela mulher, de quem se havia dito que seria o rosto dos noventa, e que tinha tido brevemente o
controle de seu pr�prio destino nas m�os. Mas aquela pessoa tinha desaparecido, tinha sido aniquilada.
A mulher dos esbo�os era mais suave, arredondada e fr�gil, mas por outro lado parecia mais forte. Laura levantou um dos desenhos e o contemplou com aten��o,
enquanto se perguntava se s� se estava imaginando que via aquela for�a porque a necessitava.
Para ouvir que a porta se abria se voltou para ela, com o esbo�o ainda na m�o, e viu entrar no Gabe, talher de neve e carregado com um mont�o de lenha.
-bom dia. Parece que estiveste ocupado, n�o?
Ele soltou um grunhido enquanto se sacudia a neve das botas, e ao ir colocar a lenha junto � chamin�, foi deixando um reguero �mido a seu passo.
-Acreditava que dormiria at� mais tarde.
-O teria feito, mas ele n�o quis -disse, dando um suave tapinha no ventre-. Preparo-te algo para tomar o caf� da manh�?
Gabe se tirou as luvas, e os deixou sobre o suporte da chamin�.
-J� comi, te fa�a algo para ti.
Laura esperou a que se tirasse o casaco. Ao parecer, as �guas tinham voltado para um leito mais ou menos amig�vel.
-Parece que j� n�o neva tanto -comentou ao fim.
O se sentou frente ao fogo para tir�-las botas. Os cord�es estavam virtualmente sorvetes.
-H� mais de um metro de espessura, e n�o acredito que pare em toda a tarde -comentou enquanto tirava um charuto-. Ser� melhor que ponha c�moda.
-Parece que j� o estou -Laura levantou o desenho, e admitiu-: sinto-me adulada.
-� muito bonita -disse ele com naturalidade, enquanto colocava as botas diante do fogo para que se secassem-. N�o posso resistir a pintar coisas formosas.
-Tem sorte -Laura deixou o desenho sobre a mesa-. � muito mais te gratifiquem ser capaz de reproduzir algo belo, que ser formoso sem mais.
Gabe arqueou uma sobrancelha ao notar a nota quase impercept�vel de amargura em sua voz.
-� estranho, mas quando a gente acredita que algu�m � formoso, quase sempre come�a a consider�-lo um objeto -explicou-lhe ela.
meteu-se na cozinha sem acrescentar nada mais, e Gabe ficou sem saber o que dizer, com o cenho franzido.
Laura preparou caf� para ele e se passou a manh� arrumando a cozinha, e Gabe lhe deixou espa�o para n�o curv�-la. antes de que anoitecesse conseguiria as respostas
que procurava, mas de momento se contentou deixando-a entreter-se enquanto ele trabalhava.
Tinha a impress�o de que precisava manter-se ocupada, embora pensava que o l�gico para uma mulher em seu estado teria sido passar o dia dormindo, ou descansando
fazendo ponto. Sup�s que devia ser energia nervosa, ou uma estrat�gia para tentar evitar a confronta��o que lhe tinha prometido a noite anterior.
Ela n�o o bombardeou a perguntas nem ficou a olhar incesantemente sobre seu ombro, assim que a manh� passou sem pena nem gl�ria. Em uma ocasi�o, levantou o olhar
e a viu sentada em um extremo do sof�, lendo um livro sobre partos, e mais tarde ela ficou a cozinhar e preparou um guisado que lhe fez a boca �gua.
Laura n�o disse grande coisa em toda a manh�, embora ele sabia que estava esperando inquieta a que voltasse a tirar o tema que tinha ficado pendente a noite
anterior. No meio da tarde, decidiu que parecia bastante descansada, assim tomou seu caderno de esbo�os e uma parte de l�pis-carv�o e come�ou a trabalhar enquanto ela
cortava ma��s sentada frente a ele.
-por que escolheu Denver?
Qu�o �nico revelou sua surpresa foi um movimento brusco e quase impercept�vel da faca, mas Laura n�o levantou o olhar nem deixou de cortar ma��s.
-Porque nunca tinha estado ali.
-Dadas as circunst�ncias, n�o teria estado melhor em um s�tio que te resultasse familiar?
-N�o.
-por que foi de Dallas?
Ela deixou a ma�� que tinha na m�o e agarrou outra.
-Porque tinha chegado o momento.
-Onde est� o pai do beb�, Laura?
-Morto -disse, sem o mais m�nimo rastro de emo��o na voz.
-me olhe.
Suas m�os se detiveram quando levantou o olhar para ele, e Gabe se deu conta de que estava sendo sincera, ao menos no que acabava de lhe dizer.
-N�o tem nenhum familiar que possa te ajudar?
-N�o.
-E a fam�lia do pai de seu filho?
Ela se sobressaltou, e se fez um corte no dedo com a faca. Gabe deixou imediatamente seu desenho e tomou a m�o, e ela p�de ver de novo seu pr�prio rosto
plasmado no papel.
-Vou a por umas ataduras.
-� s� um arranh�o -come�ou a dizer ela, mas Gabe partiu sem lhe dar tempo a seguir.
Quando retornou come�ou a lhe limpar a ferida com anti-s�ptico, e Laura voltou a sentir-se desconcertada ante a preocupa��o que mostrava por ela. Sentiu a ard�ncia
no dedo, mas Gabe a tratou em todo momento com grande cuidado e delicadeza.
-Se seguir assim, vou acabar pensando que n�o p�ra de ter acidentes -comentou ele. Estava ajoelhado ante ela, contemplando com o cenho franzido a ferida.
-E eu acabarei pensando que � um bom samaritano -Laura sorriu quando ele levantou o olhar, e acrescentou-: mas suponho que os dois estar�amos equivocados.
Gabe lhe enfaixou o dedo, e voltou a sentar-se.
-Volta a cabe�a um pouco para a esquerda -quando ela obedeceu, ele tomou seu caderno e passou a uma folha em branco-. por que querem te tirar a seu filho?
Ela se voltou bruscamente para ele, mas Gabe seguiu desenhando.
-Eu gostaria que pusesse de perfil, Laura -disse com voz tranq�ila, embora claramente exigente-. Volta a cabe�a outra vez, e levanta um pouco o queixo.
Sim, perfeito -permaneceu em sil�ncio enquanto riscava sua boca sobre o papel, e finalmente disse-: a fam�lia do pai quer te tirar a seu filho, e eu gostaria de saber
por que.
-Eu nunca hei dito isso.
-claro que sim -disse, apressando-se para captar o brilho de aborrecimento que ardia em seus olhos-. Deixa de rodeios, Laura, e me diga o que acontece.
Ela apertou as m�os com for�a, mas quando falou sua voz continha tanto medo como f�ria.
-N�o tenho por que te contar nada.
-Tem raz�o.
Gabe seguiu desenhando, mas sentiu um estremecimento de agita��o e desejo que o surpreendeu e sobre tudo lhe preocupou. Decidido a se separar de sua mente a estranha
rea��o, e a concentrar-se em lhe tirar aquela mulher as respostas que queria, acrescentou:
-Mas como n�o vou deixar o tema, ser� melhor que desembuche de uma vez.
Gabe era um perito em observar e ler as express�es de outros, assim conseguiu captar o sutil jogo de emo��es que se aconteceram no rosto de
ela. Aborrecimento, frustra��o, e aquele estranho medo que seguia tirando o de gonzo.
-Crie que te levarei a rastros at� eles? Pensa um pouco, n�o tenho nenhuma raz�o para faz�-lo.
Gabe tinha acreditado que n�o poderia conter-se e que come�aria a gritar, porque o estava tirando de gonzo, mas se surpreendeu tanto como ela quando a tirou de
a m�o, e seu assombro aumentou ainda mais quando sentiu que os dedos dela se fechavam instintivamente sobre os seus. Quando Laura levantou os olhos e o olhou, um
sem-fim de estranhas emo��es que tinha acreditado inalcan��veis para ele alagaram seu peito.
-Ontem � noite me pediu que te ajudasse.
Os olhos dela se suavizaram com gratid�o, mas disse com voz firme:
-N�o pode me ajudar.
-Pode que n�o, e pode que n�o o fa�a -mas Gabe queria ajud�-la, embora n�o entendia o porqu�-. N�o sou nenhum samaritano, Laura, nem bom nem de nenhuma outra
classe, e n�o me entusiasma a id�ia de acrescentar os problemas de outra pessoa a meus. Mas est� aqui, e eu n�o gosto de estar �s escuras.
Laura estava cansada. Cansada de fugir, de esconder-se, de tentar arrumar-lhe completamente sozinha.
Precisava ter a algu�m a seu lado, e quando Gabe a tirou da m�o e a olhou com olhos serenos e decididos, quase p�de acreditar que esse algu�m era ele.
-O pai de meu filho est� morto -come�ou a dizer, medindo suas palavras com supremo cuidado. Diria-lhe o suficiente para satisfaz�-lo, mas n�o tudo-. Seus pais,
os av�s do menino, me querem tirar isso suponho que para... n�o sei, para substituir ou recuperar algo que perderam, para assegur�-la continua��o de sua linhagem.
Eu o sinto por eles, mas este beb� n�o lhes pertence -seus olhos se acenderam com um brilho feroz e protetor, como o de uma tigresa protegendo a seus cachorrinhos-.
� meu.
-N�o acredito que ningu�m possa questionar seus direitos como m�e, por que tiveste que fugir?
-T�m muito poder e dinheiro.
-E o que?
-� que te parece pouco? -furiosa, Laura se separou dele, e se rompeu o contato que lhes tinha dado tanta calma a ambos-. Para ti � muito f�cil lhe tirar import�ncia
ao tema, porque vem de um ambiente parecido ao deles e pertence a seu mundo. Nunca aconteceste necessidades nem pen�rias e ningu�m se atreve a lhe arrebatar algo
�s pessoas como voc�, assim n�o entende o que � saber que sua vida est� em m�os de outras pessoas.
Foi dolorosamente evidente que estava falando por experi�ncia pr�pria.
-Ter dinheiro n�o significa obter sempre o que algu�m quer.
-De verdade? -voltou-se para ele, e o olhou com express�o r�gida e g�lida-. Voc� desejava ter um s�tio para pintar, onde estar sozinho e que ningu�m te incomodasse.
Teve muitos problemas para poder consegui-lo?, teve que fazer planos, que economizar ou renunciar a algo?, ou simplesmente assinou um cheque e te deveste viveu
aqui?
Gabe se levantou e a olhou com indigna��o.
-Comprar uma cabana n�o tem nada que ver lhe tirando um menino a sua m�e.
-Pode que para alguns n�o, mas ao fim e ao cabo os objetos n�o s�o mais que posses.
-Est� sendo rid�cula.
-E voc� ing�nuo.
Aquilo lhe pareceu divertido, e o aborrecimento do Gabe se esfriou um pouco.
-Isso se que � uma novidade. Anda, sente-se, p�e-me nervoso quando te move t�o bruscamente.
-N�o vou romper me -resmungou ela, embora lhe fez caso e se sentou em uma cadeira-. Sou forte e posso cuidar de mim mesma; de fato, antes de ir de Dallas me
fiz uma revis�o, e tanto o menino como eu estamos melhor que bem. Em um par de semanas ingressarei em um hospital de Denver e darei a luz a meu filho, e depois desaparecerei
do mapa.
Gabe pensou que aquela mulher era muito capaz de fazer o que estava dizendo, mas ent�o recordou o perdida e assustada que se mostrou a noite anterior.
Era in�til assinalar o estresse ao que estava submetida e suas poss�veis conseq��ncias, mas j� tinha descoberto que bot�es eram os que tinha que pulsar.
-Crie que � justo para o beb� seguir fugindo?
-Claro que n�o. � terrivelmente injusto, mas seria pior me deter e deixar que me tirassem isso.
-por que est� t�o segura de que quereriam ou poderiam faz�-lo?
-Porque eles mesmos me disseram isso. Explicaram-me o que acreditavam que seria melhor para o menino e para mim, e me ofereceram dinheiro -sua voz se encheu de veneno, c�ustico
e amargo-. Ofereceram-me dinheiro por meu filho, e quando o rechacei-me me amea�aram tirando isso sem mais -Laura n�o queria reviver aquela cena aterradora, e com esfor�o
conseguiu apagar a de sua mente.
Gabe sentiu uma tremenda repugn�ncia por aquelas pessoas �s que nem sequer conhecia, mas sacudiu a cabe�a para tentar esclarecer-lhe e poder raciocinar com
Laura.
-Seja o que seja o que queiram ou o que tentem, n�o podem apoderar-se pelas boas de algo que n�o lhes pertence. Nenhum tribunal tiraria a uma m�e
a cust�dia de seu filho sem uma boa causa.
-N�o posso ganhar esta guerra eu sozinha -fechou os olhos por um momento, lutando contra a necessidade se desesperada para tornar-se a chorar e de expulsar todo o medo
e a ang�stia que sentia-. N�o posso me enfrentar a eles em seu pr�prio terreno, e n�o penso expor a meu filho a um inferno de pleitos e lutas legais, � publicidade,
aos falat�rios e �s especula��es. Um menino necessita um lar, amor e seguran�a, e vou fazer o que fizer falta, irei aonde seja, para me assegurar de que meu
filho tem todas essas coisas.
-N�o vou discutir sobre o que � melhor para ti ou para o beb�, mas cedo ou tarde vais ter que te enfrentar a tudo isto.
-Farei-o quando chegar o momento.
Gabe se levantou, e foi � chamin� a acender outro charuto. Deveria esquecer do tema, deix�-la tranq�ila para que seguisse seu pr�prio caminho, j� que tudo
aquilo n�o era de sua incumb�ncia. N�o era seu problema. Soltou um juramento, porque sabia que de algum modo, quando ela se obstinado a seu bra�o para poder cruzar
a estrada, tinha passado a ser assunto dele.
-Tem dinheiro?
-um pouco. Bastante para pagar a fatura do m�dico, e para comprar algumas costure ao menino.
Gabe sabia que se estava procurando problemas, mas pela primeira vez em quase um ano sentia que algo era realmente importante. sentou-se no bordo da chamin�,
e a contemplou enquanto soltava uma baforada de fuma�a.
-Quero te pintar -disse com tom brusco-. Pagarei-te o sal�rio de uma modelo, al�m de te dar cama e comida.
-N�o posso aceitar seu dinheiro.
-por que n�o? depois de tudo, parece que crie que tenho muito.
-N�o quis dizer isso -disse ela, ruborizada de vergonha.
O fez um gesto displicente, como se aquilo carecesse de import�ncia.
-N�o importa o que tenha querido dizer, isso n�o tira que queira te pintar. Trabalho a meu pr�prio ritmo, assim ter� que ser paciente; n�o me d� bem transigir,
mas tendo em conta sua condi��o, estou disposto a fazer algumas concess�es e a parar quando estiver cansada ou inc�moda.
Era muito tentador, e Laura tentou esquecer-se de que j� antes tinha vivido de sua apar�ncia f�sica, e concentrar-se no que aquele dinheiro extra significaria para
o beb�.
-Eu gostaria de acessar, mas � um artista muito famoso e me reconheceriam se o retrato sa�sse � luz.
-Isso � verdade, mas eu n�o estaria obrigado a lhe dizer a ningu�m onde te conheci ou quando. Tem minha palavra de que ningu�m te encontrar� por minha culpa.
Laura permaneceu em sil�ncio uns segundos, enquanto lutava consigo mesma.
-Pode te aproximar um pouco? -perguntou-lhe ao fim.
Gabe jogou o charuto ao fogo, foi para ela e ficou em cuclillas diante da cadeira.
-D�-me sua palavra? -perguntou-lhe, enquanto o observava com aten��o. Ela tamb�m tinha aprendido a ler as express�es da gente.
-Sim.
Havia riscos que merecia a pena correr. Laura estendeu as duas m�os para ele, em sinal de confian�a.
devido � cont�nua nevada, o dia passou sem amanhecer, entardecer nem p�r-do-sol. A luz permaneceu t�nue durante toda a jornada, e a noite chegou sem maior
cerim�nia. E ent�o deixou de nevar.
Laura n�o se teria dado conta se n�o tivesse estado olhando pela janela. N�o foi descampando gradualmente, mas sim pareceu que o fluxo de flocos de neve
detinha-se em seco, como se algu�m tivesse fechado um grifo. Sentiu uma ligeira decep��o, qu�o mesma recordava haver sentido de menina quando terminava uma tormenta,
e de forma impulsiva ficou as botas e o casaco e saiu ao alpendre.
A neve chegava aos joelhos apesar de que Gabe tinha estado limpando a entrada com uma p�, e quando suas botas se afundaram e desapareceram Laura
teve a sensa��o de que a tragava uma suave e esponjosa nuvem. rodeou-se com os bra�os, e inalou o frio ar da montanha.
N�o havia nem lua nem estrelas, a luz do alpendre alcan�ava apenas a um metro de onde estava, e o �nico que se ouvia era o sil�ncio. Para alguns a enorme
len�ol de neve teria sido como um c�rcere, um obst�culo, mas para ela era uma fortaleza protetora.
Tinha decidido voltar a confiar em algu�m de novo, e ali de p�, rodeada daquela escurid�o e daquela quietude, soube que tinha feito o correto.
Gabe n�o era um homem amig�vel nem af�vel, mas era uma boa pessoa e al�m disso estava segura de que podia confiar em sua palavra. foram utilizar se mutuamente,
j� que ele a queria para sua arte e ela para ter um s�tio onde cobrir-se, mas era um interc�mbio justo. Precisava descansar, aproveitar qualquer tempo que
pudesse conseguir para recuperar-se Y. recuperar as for�as.
N�o lhe tinha confessado o cansada que se sentia, nem o esfor�o que lhe tinha suposto manter-se de p� com o passar do dia. O embara�o tinha sido f�cil desde
o ponto de vista f�sico, j� que era uma mulher forte e s�; de n�o ser assim, teria se derrubado fazia tempo, porque os �ltimos meses tinham consumido at� a
�ltima gota de suas reservas emocionais e mentais. A cabana, as montanhas e aquele homem foram lhe dar tempo para poder encher suas reservas de novo. ia necessitar as.
Gabe n�o entendia o que os Eagleton podiam chegar a conseguir com seu dinheiro e seu poder, mas ela tinha visto do que eram capazes. Tinham pago e manobrado
para ocultar os enganos de seu filho, e com umas poucas chamadas as pessoas adequadas tinham conseguido que sua morte e a da mulher que o acompanhava passasse
de ser um incidente acidentado a um acidente tr�gico.
A imprensa n�o tinha mencionado nenhuma s� vez o �lcool nem o adult�rio, e a vers�o p�blica era que Anthony Eagleton, o herdeiro da fortuna de sua fam�lia,
tinha morrido por causa de uma estrada escorregadia e de uma falha no carro, n�o por sua condu��o criminal e temer�ria estando bebido. E a mulher que o acompanhava
tinha passado a ser sua secret�ria, em vez de seu amante.
O processo de div�rcio que Laura tinha iniciado tinha ficado apagado, completamente erradicado, j� que nenhuma sombra de esc�ndalo podia recair sobre a mem�ria
do Anthony Eagleton ou sobre seu ilustre sobrenome, e Laura tinha sido pressionada para que interpretasse o papel de vi�va conmocionada e desconsolada.
E era certo que se sentou conmocionada e desconsolada, mas n�o pelo que se perdeu em uma solit�ria estrada aos sub�rbios de Boston, a n�o ser
por isso tinha desaparecido t�o logo depois de sua noite de bodas.
recordou-se que n�o servia de nada olhar atr�s, sobre tudo nesse momento, no que tinha que olhar para diante. Sem importar o que tinha passado entre o Tony
e ela, tinham criado uma vida juntos, uma vida que estava a seu cargo, a que devia amar e proteger.
Ao contemplar a neve primaveril, que chegava at� onde lhe alcan�ava a vista resplandecente e imaculada, foi capaz de acreditar que tudo sairia bem,
-No que est� pensando?
Sobressaltada, voltou-se para o Gabe com uma suave risita.
-N�o te ouvi chegar.
-N�o estava escutando -disse ele, enquanto fechava a porta detr�s de si-.Aqui fora faz bastante frio.
-est�-se de maravilha. Que espessura crie que tem a neve?
-Eu diria que um metro mais ou menos.
-Nunca tinha visto algo assim, � dif�cil imaginar que possa chegar a derreter-se e que v� crescer a erva.
Gabe n�o se p�s as luvas, assim optou por met�-las m�os nos bolsos da jaqueta.
-Cheguei aqui em novembro, e para ent�o j� estava nevado. N�o vi a paisagem de outra maneira.
Laura tentou imaginar-se como seria viver em um s�tio onde a neve n�o se derretia nunca, mas decidiu que ela necessitava a primavera, o florescer das
novelo, a cor verde, a promessa no ar.
-Quanto tempo pensa ficar ?
-N�o sei, n�o me expus isso -disse ele.
Laura lhe sorriu, embora sentiu algo de inveja ante sua atitude t�o despreocupada.
-Ter� que montar uma exposi��o com todas essas pinturas.
-Sim, suponho que terei que faz�-lo cedo ou tarde, mas n�o h� pressa -Gabe moveu os ombros, inquieto de repente. S�o Francisco, sua fam�lia e suas lembran�as
pareciam muito long�nquos.
-A arte tem que ser contemplado e admirado -murmurou ela, pensando em voz alta-. N�o deveria estar aqui escondido.
-Mas as pessoas sim?
-Refere-te para mim, ou � que voc� tamb�m est� te escondendo de algo?
-Estou trabalhando -respondeu ele com calma.
-Um homem como voc� pode trabalhar em qualquer parte, suponho que n�o tem mais que apartar a outros com um par de cotoveladas e te p�r m�os � obra.
Gabe n�o p�de evitar sorrir.
-Ao melhor, mas de vez em quando eu gosto de ter um pouco de espa�o. Quando a gente consegue fazer um nome, a gente tende a olhar por cima de seu ombro.
-Bom, eu me alegro de que devesses vivesse aqui, fora qual fosse a raz�o -Laura se apartou o cabelo da cara, apoiou-se contra um poste e admitiu sorridente-:
deveria entrar, mas n�o gosta.
Gabe entreabriu os olhos, e lhe emoldurou a cara com m�os frite e firmes.
-Seus olhos t�m algo... -murmurou, enquanto a fazia voltar-se para a luz-, dizem tudo o que um homem deseja escutar de uma mulher, mas tamb�m muitas coisas
que n�o quer ouvir. Tem uns olhos s�bios, Laura. Uns olhos s�bios e tristes.
Ela n�o respondeu, mas n�o foi porque sua mente se ficou em branco, mas sim porque se encheu de repente de tantas coisas, de tantos pensamentos
e desejos... tinha acreditado que n�o poderia voltar a sentir algo assim de novo, e jamais se teria imaginado capaz daquele desejo por um homem. Sua pele se acalorou, a pesar
de que ele a tocava com m�os frite e quase com desinteresse.
A atra��o sexual que sentia a surpreendeu, e inclusive a envergonhou um pouco; entretanto, foi a atra��o emocional, sua for�a intensa e persistente, a que
silenciou-a.
-Pergunto-me o que viu ao longo de sua vida -acrescentou ele.
Os dedos do Gabe lhe acariciaram a bochecha como por vontade pr�pria. Eram largos e magros, ideais para um artista, mas tamb�m duros e poderosos. Laura
disse-se que, como ia pintar a, era poss�vel que ele s� estivesse familiarizando-se com suas fac��es, com a textura de sua pele.
Sentiu um intenso desejo em seu interior, o desejo absurdo e inalcan��vel de ser amada, abra�ada e desejada pela mulher que era em seu interior, e n�o por sua cara
nem a imagem que podia ver-se do exterior.
-Estou um pouco cansada -disse, enquanto tentava manter a voz firme-. Acredito que me irei dormir.
Gabe n�o se separou dela imediatamente, e sua m�o permaneceu em seu rosto uns segundos mais. N�o teria sabido dizer o que foi o que o manteve ali, contemplando-a,
tentando afundar naqueles olhos que tanto o fascinavam, mas finalmente retrocedeu um passo e lhe abriu a porta.
-boa noite, Gabe.
-boa noite.
O ficou ali, � intemp�rie, perguntando-se que dem�nios lhe estava passando. Por um momento... n�o, tinha durado muito mais que um momento... tinha-a desejado.
Tirou um charuto, furioso consigo mesmo. Terei que estar caindo muito baixo, para pensar em fazer o amor com uma mulher que estava gr�vida de mais de sete meses
com o filho de outro homem.
Entretanto, demorou muito em conseguir convencer-se de que s� tinham sido imagina��es delas.
Cap�tulo 3
Gabe se perguntou no que estaria pensando. Parecia t�o serena, t�o acalmada... levava um pul�ver rosa, e o cabelo lhe ca�a em uma cascata reluzente sobre os ombros.
Esse dia tampouco se p�s nenhuma j�ia, nada que pudesse apartar a aten��o dela, nem que pudesse captar aten��o para ela.
Quase nunca usava modelos, porque inclusive os que conseguiam manter-se na pose todo o tempo que ele lhes exigia, acabavam mostrando signos de aborrecimento
e de desconforto; entretanto, Laura parecia capaz de ficar ali sentada indefinidamente, com o mesmo sorriso doce na cara.
Aquilo era parte do que queria captar no retrato, aquela paci�ncia interior, aquela... bom, Gabe sup�s que poderia considerar uma serena aceita��o
do tempo, tanto do passado como de que ficava por chegar. Ele nunca tinha sido muito paciente, nem com outros, nem com seu trabalho, nem consigo mesmo, e embora
era um rasgo que admirava nela, n�o tinha nenhuma inten��o de tentar adot�-lo.
Mas havia algo mais, algo que ia al�m daquela incr�vel beleza feminina e daquela calma da Madonna. de vez em quando vislumbrava uma certa ferocidade
nela, uma determina��o digna de um guerreiro que revelava que era uma mulher capaz de fazer o que fora necess�rio para proteger o que era dele. E a julgar por
sua hist�ria, o �nico que lhe pertencia era o menino que levava em seu ventre.
Enquanto deslizava o l�pis pelo papel, Gabe refletiu sobre o fato de que ela n�o o tinha contado tudo; de fato, s� lhe tinha contado pequenos retalhos
incompletos para evitar que ele seguisse lhe fazendo perguntas, e ele n�o tinha insistido. Normalmente n�o se conformava com uma resposta parcial se queria uma explica��o
completa de algo, mas tinha sido incapaz de pression�-la ao ver que o pouco que lhe tinha contado lhe resultava t�o doloroso.
Al�m disso, ainda ficava tempo. A r�dio seguia anunciando que as estradas permaneciam fechadas e que ainda ficava neve por chegar, e tendo em conta o imprevis�veis
que podiam resultar as Rochosas na primavera, certamente passariam duas semanas, possivelmente inclusive tr�s, at� que se pudesse viajar com total seguran�a. Era estranho,
mas embora o mais normal teria sido que se sentisse molesto por aquela companhia obrigada, o certo era que gostava daquela ruptura na solid�o que ele mesmo
imp�s-se. Fazia muito tempo que n�o fazia um retrato, possivelmente muito, mas tinha sido incapaz de enfrentar-se a um sujeito de carne e osso depois do
do Michael.
Na cabana, longe de tudas as lembran�as, tinha come�ado o processo de cura. Em S�o Francisco tinha sido incapaz de levantar um pincel, j� que a dor
fazia algo mais que debilit�-lo, tinha-o deixado vazio.
Mas ali, isolado e completamente sozinho, tinha pintada paisagens e botecos, sonhos logo que recordados, e marinhas a partir de antigos bosquejos. Tinha sido
suficiente, mas s� com a chegada da Laura havia sentido a necessidade de voltar a pintar o rosto humano.
No passado tinha acreditado no destino, em uma pauta vital que estava predestinada desde antes do nascimento, mas a morte do Michael o tinha trocado
tudo. A partir daquele momento tinha tido que lhe jogar a culpa a algu�m, a algo, e o mais f�cil de uma vez que doloroso tinha sido culpar-se a si mesmo.
Mas enquanto esbo�ava o rosto da Laura e pensava na estranha seq��ncia de circunst�ncias que a tinham levado a sua vida, come�ou a questionar-se de novo
suas cren�as... e n�o p�de evitar voltar a pergunt�-lo que estaria pensando ela.
-Est� cansada?
-N�o -respondeu Laura, sem mover-se.
Gabe a tinha colocado em uma cadeira junto � janela, em um �ngulo no que estava de cara a ele, mas que lhe permitia olhar para fora. A luz a iluminava
de cheio, sem criar a mais m�nima sombra.
-Eu gosto de contemplar a neve -seguiu dizendo ela-; agora h� algumas pisa, e eu gosto de pensar em qu�o animais podem ter acontecido sem que os hajamos
visto. Tamb�m posso ver as montanhas, e a verdade � que parecem muito velhas e amea�adoras. Para o este s�o mais acess�veis, mais amig�veis.
Gabe murmurou distra�damente sua conformidade enquanto contemplava o esbo�o que estava fazendo. Era bom, mas n�o acabava de refletir o que procurava, e queria
come�ar a trabalhar logo em um tecido. Deixou o caderno a um lado, e a observou com o cenho franzido enquanto lhe devolvia o olhar com express�o paciente
e um pouco divertida.
-Tem outra coisa que te p�r?, algo que te deixe os ombros ao descoberto?
-Sinto muito, mas meu roupeiro � um pouco limitado neste momento.
Gabe se levantou e come�ou a passear-se da chamin� � janela, e de volta � mesa. Quando se aproximou dela e lhe agarrou a cara para fazer que a voltasse
de um lado a outro, ela obedeceu sem pigarrear. depois de tr�s dias posando para ele, acostumou-se a sua atitude; �s vezes, sentia que a tratava como se
fora um acerto floral ou um fruteiro, como se aquele momento t�o especial no alpendre n�o tivesse existido. convenceu-se de que se imaginou tanto a
olhar nos olhos dele como sua pr�pria rea��o.
Ele era o artista, e ela a argila que terei que modelar. J� tinha passado por aquilo.
-Tem uma cara completamente feminina -disse ele, mais para si que para ela-. Atraente de uma vez que serena, e suave apesar da forma pronunciada dos
ma��s do rosto. Seus rasgos n�o s�o amea�adores, mas resultam incrivelmente impactantes. Isto fala de sexo -disse, enquanto seu dedo percorria com naturalidade seu l�bio inferior-,
mas seus olhos prometem amor e devo��o. E o fato de que esteja amadurecida...
-Amadurecida? -disse Laura, rendo. Suas m�os, que tinha apertado com for�a em seu rega�o quando ele tinha come�ado a falar, relaxaram-se um pouco.
-Refiro a seu embara�o, que aumenta ainda mais a fascina��o que acordadas. Uma mulher em estado reflete uma promessa, uma plenitude, e apesar da educa��o
e do progresso de hoje em dia, um mist�rio irresist�vel. Igual a um anjo.
-O que quer dizer?
Gabe come�ou a fazer provas com seu cabelo, o jogou para tr�s, empilhou-o sobre sua cabe�a e finalmente o deixou cair de novo.
-Vemos os anjos como seres et�reos e m�sticos, por cima dos desejos e as falhas das pessoas, mas a verdade � que foram humano em seu dia.
Suas palavras fizeram que Laura sonriera, e lhe perguntou:
-Crie nos anjos?
A m�o dele permanecia enredada em seu cabelo, embora se tinha esquecido por completo de que a tinha posto ali por uma raz�o pr�tica.
-Se n�o acreditasse neles, a vida n�o valeria grande costure-dijo, enquanto pensava que o cabelo dela, loiro e suave como uma nuvem, parecia o de um anjo- De repente,
sentiu-se muito inc�modo, e se apressou a apartar a m�o e a coloc�-la no bolso das cal�as.
-Quer descansar um momento? -perguntou-lhe Laura, com as m�os de novo fortemente apertadas em seu rega�o.
-Sim, deixaremo-lo por uma hora, tenho que pensar nisto.
Gabe retrocedeu automaticamente assim que ela se levantou. Quando n�o estava trabalhando, esfor�ava-se ao m�ximo por n�o ter nenhum contato f�sico com ela,
j� que lhe preocupava o muito que desejava toc�-la.
-Ponha os p�s em alto -disse-lhe. Ao v�-la arquear uma sobrancelha, acrescentou nervoso-: � o que se recomenda no livro que est� lendo. Pensei que, dadas as circunst�ncias,
n�o estaria de mais lhe jogar uma olhada.
-� muito am�vel.
-Suponho que � o instinto de sobreviv�ncia -quando lhe sorria daquela forma, sentia umas sensa��es do mais estranhas, cuja exist�ncia se negava
a reconhecer-. Se me assegurar de que te cuide como deve, h� menos possibilidades de que ponha de parto antes de que se abram as estradas.
-Ainda fica mais de um m�s -recordou-lhe ela-, mas te agrade�o que se preocupe por mim... por n�s.
-Ponha os p�s em alto -repetiu ele-; irei te buscar um pouco de leite.
-Mas...
-Hoje s� te bebeste um copo -com um gesto impaciente, indicou-lhe que se sentasse no sof� antes de ir � cozinha.
Laura se reclinou contra as almofadas com um pequeno suspiro de al�vio. Levantar os p�s n�o era tarefa f�cil, mas conseguiu apoi�-los no bordo da mesita
de caf�. Ao sentir o calor do fogo desejou poder tombar-se diante da chamin�, mas pensou com ironia que se o fazia faria falta uma grua para levant�-la.
Gabe era um homem incrivelmente am�vel, embora n�o gostava que o recordasse, disse-se enquanto o ouvia trastear na cozinha. Ningu�m a tinha tratado
assim... como a um igual, mas ao mesmo tempo necessitado de amparo; como a uma amiga, mas sem uma lista de obriga��es ou de d�vidas que pagar. Quisesse-o ele
ou n�o, algum dia encontraria a maneira de lhe pagar tudo o que estava fazendo por ela. Sim, faria-o assim que pudesse.
Se fechava os olhos e apartava seus medos, Laura podia visualizar seu futuro. Teria um pisito em alguma cidade, com uma habita��o para o menino decorado em
amarelos luminosos, brancos lustrosos e com desenhos de contos de fadas nas paredes. sentaria-se em uma cadeira de balan�o com o beb�, e o arrulharia nas largas e
silenciosas noites, enquanto o resto do mundo dormia.
E j� n�o voltaria a estar sozinha.
Ao abrir os olhos, viu o Gabe de p� junto a ela, e desejou com todas suas for�as aferrar-se a suas m�os para absorver parte da for�a e a confian�a que irradiavam
dele; entretanto, desejou ainda mais que ele voltasse a percorrer seu l�bio inferior com o dedo, lentamente, com ternura, que a tratasse como a uma mulher e n�o como a
um objeto que queria pintar.
Mas se limitou a tomar o copo de leite que lhe entregou.
-Quando o beb� nas�a e deixe de lhe dar o peito, n�o vou voltar a beber leite em toda minha vida.
-Esta � a �ltima fresca que ficava, a partir de manh� ter� que tomar em p�.
-Genial -com uma careta, Laura se bebeu meio copo de repente-. Imagino que � caf�, forte e delicioso -tomou outro gole, e acrescentou-: e se me sinto algo temer�ria,
finjo que � champanha franc�s em uma ta�a.
-L�stima que n�o tenha nenhum copo de vinho � m�o, talvez daria o pego. Tem fome?
-o de comer por dois � s� um mito, e como engorda mais, vou come�ar a mugir como uma vaca -satisfeita, voltou a reclinar-se sobre as almofadas-. O quadro
que tem de Paris... pintaste-o aqui?
Gabe lan�ou um olhar � obra em quest�o. Era um estudo caprichoso e quase surrealista do Bois do Boulogne, assim deduziu que ela conhecia o lugar.
-Sim, a partir de velhos esbo�os e de minha mem�ria. Quando esteve ali?
-Eu n�o hei dito que tenha estado em Paris.
-N�o o teria reconhecido de n�o ser assim -tirou-lhe o copo vazio da m�o, e o deixou a um lado-. Laura, quanto mais reservada-te amostras, mais ganha tenho de
descobrir seus segredos.
-Estive ali faz um ano, passei duas semanas -disse ela com rigidez.
-Voc� gostou?
-Que se eu gostei de Paris? -Laura se obrigou a relaxar-se. Tinha passado uma eternidade ap�s, quase o suficiente para poder imaginar que lhe tinha ocorrido
a outra pessoa-. � uma cidade preciosa. As flores estavam em seu apogeu, e os aromas eram algo incr�vel. Choveu sem parar durante tr�s dias, mas a gente podia sentar-se
e ver acontecer os guarda-chuva, ou contemplar como se foram abrindo os casulos das flores.
De forma instintiva, Gabe lhe cobriu as m�os com uma das suas para tentar acalmar o agitado movimento de seus dedos.
-N�o foi feliz ali.
-Estamos falando de Paris na primavera, s� uma parva n�o se sentiria feliz de estar em um s�tio assim -respondeu ela, enquanto se concentrava em relaxar as
m�os.
-O pai do menino... estava contigo?
-Que import�ncia tem isso?
N�o deveria ter nenhuma, mas Gabe sabia que a partir desse momento pensaria nela cada vez que olhasse o quadro, e tinha que sab�-lo.
-Queria-lhe?
Laura fixou a vista no fogo da chamin�, mas as respostas estavam dentro de si mesmo. Tinha querido ao Tony? Seus l�bios se curvaram ligeiramente ao
dar-se conta de que sim, tinha querido ao homem que tinha pensado que era.
-Muito. Queria-lhe muito.
-Quanto tempo leva sozinha?
-N�o estou sozinha -posou uma m�o sobre seu ventre, e seu sorriso se alargou ao sentir um movimento. Tomou uma m�o ao Gabe, e a apertou contra seu corpo-. Sente
isso? � incr�vel, verdade? Aqui dentro h� algu�m.
Gabe sentiu o suave movimento sob sua m�o, e se surpreendeu ao notar um forte golpe. Sem dar-se conta, aproximou-se ainda mais.
-Isso pareceu um gancho de direita, � como se estivesse lutando por sair -conhecia perfeitamente bem aquela sensa��o de impaci�ncia, a frustra��o
ao sentir-se apanhado em um mundo enquanto se desejava estar em outro-. O que sente voc�?
-Sinto-me viva -rendo, Laura colocou as m�os sobre as suas-. Em Dallas me puseram um monitor, e pude ouvir o batimento do cora��o de seu cora��o. Soava r�pido, impaciente,
e foi o melhor do mundo. Acredito...
Nesse momento, deu-se conta de que Gabe tinha a vista fixa nela. Suas m�os seguiam unidas e seus corpos se ro�avam, e enquanto a vida que levava em
seu interior lhe dava outra patada, Laura sentiu que seu pulso se acelerava. ficou sem f�lego ante a calidez e a intimidade daquele momento.
Gabe desejava desesperadamente tom�-la em seus bra�os. A necessidade de apert�-la contra si e abra��-la era t�o intensa, t�o aguda, que era uma dor f�sica. Sonhava
com ela cada noite, enquanto tentava dormir no ch�o da habita��o livre. Em seus sonhos, estavam acurrucados juntos em uma cama, com o quente f�lego de
ela lhe acariciando as bochechas e seu cabelo sedoso enredando-se em suas m�os; entretanto, ao despertar dizia que estava louco, e isso foi o que pensou nesse momento
antes de apartar-se dela.
Embora j� n�o se tocavam, seu corpo inteiro notou o comprido e fico suspiro que escapou dos l�bios femininos.
-Eu gostaria de trabalhar um pouco mais, se crie que pode ag�entar.
-Claro -Laura teve vontades de tornar-se a chorar. disse-se que era normal, j� que as mulheres gr�vidas tinham as emo��es a flor de pele e podiam sentir-se feridas
sem causa alguma.
-Me ocorreu algo, agora volto.
Gabe foi � habita��o onde dormia, e segundos depois voltou com uma camisa azul marinho.
-Ponha a acredito que o contraste entre a camisa de homem e sua cara pode ser a resposta.
-Vale.
Laura entrou em seu dormit�rio e se tirou o enorme pul�ver rosa, e ao come�ar a colocar um bra�o na manga da camisa notou o aroma do Gabe na grosa gosta muito
de algod�o. Era um aroma penetrante e descaradamente sexual, muito masculino. Incapaz de resistir, esfregou a bochecha contra o suave tecido. O aroma n�o era nada
delicado, mas fazia que se sentisse segura, e embora fora uma loucura, provocou nela um profundo calafrio de desejo.
N�o sabia se estava bem ter desejos de mulher, desejar ao Gabe como homem, quando estava conduzindo com uma responsabilidade t�o enorme, mas se sentia t�o perto
dele que n�o parecia nada mau. Intu�a que ele tamb�m tinha sofrido muito, e possivelmente essa similitude e seu isolamento na cabana explicavam por que sentia como se
conhecesse-o sempre.
Acabou de fic�-la camisa com um suspiro. O que sabia ela de seus pr�prios sentimentos?, a primeira e �nica vez que tinha cr�dulo neles por completo, s�
tinha conseguido sofrer. N�o sabia como definir as emo��es que Gabe despertava nela, mas o melhor seria centrar-se s� em sua gratid�o para ele.
Quando Laura voltou para a sala de estar, Gabe estava repassando os esbo�os, desprezando uns e lhe dando o visto bom a outros. Ao levantar a cabe�a e v�-la ali
de p�, deu-se conta de que sua percep��o dela estava muito, mas que muito equivocada.
Seguia parecendo um anjo dourado e de sonho, mas nesse momento parecia muito mais carnal, e ele preferia pensar nela como uma ilus�o, e n�o como uma mulher
de carne e osso que o atra�a.
-Sim, isso se aproxima mais � imagem que procuro -disse, lutando por manter a voz firme-. A cor te sinta bem, e o estilo masculino de linhas s�brias cria
um bom contraste.
-Pode que demore para recuperar sua camisa, � muito c�moda.
-Considera-a um empr�stimo.
Gabe se aproximou da cadeira, e ao v�-la assumir a pose exata de antes do descanso, voltou a perguntar-se se ela j� teria feito de modelo com anteced�ncia.
Essa era outra pergunta mais que teria que lhe expor no momento oportuno.
-vamos tentar algo diferente.
Fez-a mover-se ligeiramente enquanto murmurava para si, e Laura esteve a ponto de sorrir ao ver-se relegada de novo ao papel de vaso.
-Maldi��o, oxal� tiv�ssemos flores... rosas, uma s� rosa.
-Poderia imaginar a -Puede que lo haga -Gabe lade� la cabeza hacia la izquierda, y retrocedi� un poco-. Esto es lo que buscaba, as� que voy a pintarte directamente sobre un lienzo.
-Pode que o fa�a -Gabe inclinou a cabe�a para a esquerda, e retrocedeu um pouco-. Isto � o que procurava, assim vou pintar te diretamente sobre um tecido.
J� perdi bastante tempo em esbo�os.
-Tr�s dias.
-acabei quadros na metade de tempo quando as coisas encaixavam.
Laura podia imaginar-lhe perfeitamente sentado em um tamborete alto com seu cavalete, trabalhando febrilmente com os olhos entreabridos e com aquelas m�os largas
e poderosas em plena cria��o.
-Vi que deixaste algumas pinturas sem terminar-comentou.
-Perdi o interesse -disse ele, enquanto come�ava a desenhar largos tra�os no tecido com um pincel-. Voc� acaba tudo o que come�a?
Ela refletiu brevemente, e respondeu:
-Suponho que n�o, mas sempre se h� dito que deveria fazer-se.
-por que arrastar com algo at� o amargo final, se n�o funcionar?
-�s vezes ter� que cumprir com o prometido -murmurou ela, pensando em seus votos matrimoniais.
Gabe a estava observando com aten��o, e p�de vislumbrar o brilho de dor que relampejou em seus olhos. como sempre, apesar de que tentava evit�-lo, as
emo��es de lhe chegaram muito fundo.
-�s vezes � imposs�vel manter uma promessa.
-N�o, mas isso n�o quer dizer que esteja bem -limitou-se a dizer ela com voz suave.
Gabe trabalhou durante quase uma hora, definindo, refinando e aperfei�oando cada risco. Ela tinha a express�o exata que ele queria, pensativa, paciente e sensual,
e inclusive antes de riscar a primeira linha tinha sabido que aquela seria uma de seus melhores obra, possivelmente inclusive a melhor de todas. E tamb�m sabia que necessitaria
pint�-la de novo, em outros estados de �nimo e em outras detr�s.
Mas isso era para mais adiante; nesse momento, precisava captar a ess�ncia, a simplicidade daquela mulher. Isso podia faz�-lo riscando linhas e curvas, com
branco e negro e umas quantas sombras de cinza, mas ao dia seguinte come�aria a preencher o conjunto, a acrescentar cor e todas as complexidades. Ao acabar, teria-a
por completo no tecido e a conheceria perfeitamente, como ningu�m o tinha feito ou o faria jamais.
-Deixar�-me v�-lo antes de que esteja acabado?
-O que?
-Que se me deixar� ver o quadro -Laura n�o se moveu, mas voltou os olhos da janela para ele-. Sup�e-se que os artistas s�o temperamentais, e que n�o
voc�s gostam de ensinar seu trabalho antes de que esteja preparado.
-N�o sou temperamental -Gabe a olhou aos olhos, como desafiando-a a que lhe levasse a contr�ria.
-Sim, isso � �bvio -embora a express�o dela se manteve impass�vel, n�o conseguiu ocultar o tom de divers�o em sua voz-. Ent�o, deixar�-me v�-lo?
-N�o me importa, enquanto tenha claro que n�o penso trocar nada, embora voc� n�o goste.
Essa vez, Laura n�o p�de conter-se e p�s-se a rir, e o som livre e profundo fez que os dedos do Gabe se esticassem.
-Refere a se vir algo que fira minha vaidade? N�o se preocupe por isso, n�o sou presumida.
-Todas as mulheres formosas s�o presumidas, � normal.
-Uma pessoa s� � presumida se lhe importa sua apar�ncia.
Ent�o foi Gabe quem p�s-se a rir, embora com cinismo. Deixou o l�pis, e disse com incredulidade:
-Est�-me dizendo que te traz sem cuidado seu aspecto f�sico?
-N�o tenho feito nada para ganhar o n�o? Foi um acidente do destino, ou um golpe de sorte. Se fosse incrivelmente inteligente ou tivesse talento para algo,
suponho que me incomodaria minha apar�ncia, porque a gente n�o est� acostumada ver nada mais l� -encolheu-se de ombros, e voltou a colocar-se na pose perfeita-, mas como
n�o tenho nada mais, aprendi a aceitar que minha imagem �... n�o sei, uma esp�cie de presente que supre outras car�ncias.
-Trocaria sua beleza por algo?
-Por um mont�o de coisas, mas se trocasse uma coisa por outra tampouco me teria ganho isso, assim seguiria sem ter import�ncia. Posso te perguntar algo?
-Suponho -Gabe tirou um trapo do bolso traseiro da cal�a, e se limpou as m�os.
-Do que se sente mais orgulhoso, de sua apar�ncia f�sica ou de seu trabalho?
Ele jogou a um lado o trapo. Era estranho que ela parecesse t�o triste e s�ria, e que mesmo assim fora capaz de lhe fazer rir.
-Ningu�m me considerou nunca muito bonito, assim n�o h� d�vida poss�vel -come�ou a girar o cavalete, mas quando ela fez gesto de levantar-se, fez-lhe um gesto
para que n�o se movesse-. N�o, te relaxe. lhe jogue uma olhada da�, e me d� sua opini�o.
Laura contemplou o desenho. Era s� um esbo�o, e menos detalhado que muitos dos que ele tinha feito at� o momento; apareciam sua cara e seu torso, e sua m�o
direita estalagem justo debaixo de seu ombro esquerdo. Por alguma raz�o, parecia uma pose protetora... cautelosa, sem chegar a ser defensiva.
Pensou que Gabe tinha acertado totalmente com a camisa, j� que acentuava sua feminilidade mais que um mont�o de encaixe ou de seda. Tinha o cabelo solto, e lhe ca�a sobre
os ombros em ondas desordenadas e atrevidas que contrastavam com aquela pose serena. N�o tinha esperado encontrar nenhuma surpresa em seu pr�prio rosto, mas ao
contemplar a imagem que Gabe tinha dela, removeu-se inc�moda na cadeira.
-N�o estou t�o triste como faz que pare�a.
-J� te avisei que n�o penso trocar nada.
-Pode pintar o que te d� a vontade, s� te estou dizendo que est� equivocado comigo.
Divertido pela nota de altivez em sua voz, Gabe voltou a girar o cavalete, mas n�o se incomodou em olhar seu trabalho.
-N�o acredito.
-Eu n�o sou pat�tica.
-Pat�tica? A mulher do desenho n�o tem nada de pat�tica, eu diria que a palavra que a descreve � "valente".
Laura sorriu, e se levantou da cadeira.
-Tampouco sou valente, mas � seu quadro, assim pode fazer o que te d� a vontade.
-Nisso estamos de acordo.
-Gabe!
Laura fez um gesto brusco, e seu tom premente fez que se apressasse a ir at� ela e a tirasse da m�o.
-O que acontece? Olhe!, olhe o que h� a� fora! -disse, assinalando com a m�o que tinha livre.
Gabe sentiu a tenta��o de estrangul�-la ao dar-se conta de que o que ressonava em sua voz n�o era obriga��o, a n�o ser entusiasmo ao ver um cervo a menos de dois metros
da janela. O animal tinha a cabe�a elevada enquanto olisqueaba o ar, e arrogantemente, sem rastro de medo algum, observou-os atrav�s do cristal.
-� precioso! Nunca tinha visto um t�o grande, nem t�o de perto.
Gabe compartilhou seu entusiasmo. Um cervo, uma raposa, um falc�o voando em c�rculos... ver aqueles animais tinha sido uma das coisas que lhe tinham ajudado
a superar sua dor.
-Faz um par de semanas fui andando at� um riacho que h� a um quil�metro e meio daqui, e me encontrei � fam�lia inteira. Estava na dire��o do
vento, assim consegui fazer tr�s esbo�os antes de que me vissem.
-Este s�tio lhe pertence, lhe imagina? Acres e acres de terreno. Ele deve sab�-lo, e por isso parece t�o seguro de si mesmo -Laura se p�s-se a rir, e apoiou
a m�o livre no vidro gelado-. � como se estiv�ssemos expostos, e ele tivesse vindo a jogar uma olhada ao zool�gico.
O cervo baixou o focinho at� a neve, procurando a erva que havia debaixo ou possivelmente cheirando o rastro de outro animal. movia-se sem pressa, seguro em sua solid�o
enquanto a seu redor as �rvores gotejavam gelo e neve.
De repente, o animal levantou a cabe�a e se foi a toda pressa at� desaparecer no bosque.
Laura se p�s-se a rir e se voltou para o Gabe, mas ent�o se esqueceu de tudo.
Nenhum dos dois se deu conta de que se aproximaram tanto o um ao outro. Seguiam com as m�os entrela�adas, e o sol que entrava pela janela
ia perdendo for�a conforme a tarde dava passo de noite. A cabana, igual ao bosque que a rodeava, estava imersa em um sil�ncio absoluto.
Gabe elevou uma m�o, e acariciou seu rosto. Nem sequer se tinha dado conta de que essa tinha sido sua inten��o, mas quando seus dedos ro�aram aquela tersa bochecha,
soube que tinha necessitado faz�-lo.
Laura n�o se afastou dele. Gabe queria acreditar que teria acatado sua decis�o se ela tivesse decidido apartar-se, mas Laura n�o se moveu.
Notou que a m�o dela tremia, e se deu conta de que ele tamb�m estava nervoso. Outra nova experi�ncia. Sabia que n�o devia aproximar-se dela, o dizia
o sentido comum, mas n�o sabia se poderia resistir a tenta��o.
Sua pele era c�lida ao tato, real. N�o era um retrato, a n�o ser uma mulher de carne e osso. Fora o que fosse o que tinha passado em sua vida, o que a tinha convertido
na mulher que tinha chegado a ser, pertencia ao passado. Esse momento era o presente.
Ela seguiu olhando-o com olhos enormes e um tanto assustados, esperando sem mover-se, e Gabe soltou um juramento para seus adentros enquanto baixava os l�bios at�
os seus.
Permitir aquilo era uma loucura, e desej�-lo ainda pior, mas inclusive antes de que a boca do Gabe se posasse sobre a sua, Laura sentiu que se rendia ante ele.
Fez provis�o de valor, perguntando-se aonde ia conduzir lhes todo aquilo.
Seu primeiro e �nico pensamento quando a boca dele se posou sobre a sua foi que parecia o primeiro beijo de toda sua vida. Ningu�m a tinha beijado assim. Tinha experiente
paix�o, o r�pido e quase doloroso desejo derivado do frenesi ardente; tinha experiente exig�ncias que tinha podido satisfazer, e outras que n�o; tinha experiente
o desejo faminto e a f�ria que um homem podia sentir por uma mulher, mas jamais tinha experiente, nem sequer tinha podido imaginar, aquele tipo de devo��o.
E entretanto, apesar de tudo, intu�a nele necessidades mais desenfreadas firmemente reprimidas, que faziam que aquele abra�o fora mais excitante, mais avassalador
que nenhum outro. As m�os do Gabe estavam enterradas em seu cabelo, explorando, acariciando, enquanto seus l�bios se moviam insaci�veis sobre os seus. Laura sentiu
que o mundo se movia sob seus p�s, e soube instintivamente que ele estaria ali para afian��-la.
Gabe sabia que devia deter-se, mas era incapaz de faz�-lo. Provar o sabor de seus l�bios tinha feito que precisasse sabore�-la mais e mais, era como se houvesse
estado vazio sem sab�-lo, e nesse momento, de forma incr�vel, fulminante e aterradora, estivesse cheio e completo.
Vacilantes, inclusive inocentes, as m�os da Laura percorreram seus bra�os at� posar-se em seus ombros, e quando abriu os l�bios, Gabe notou aquela mesma curiosa
acanhamento em seu convite. Apesar de que no exterior ainda estava enterrado sob a neve, podia cheirar o aroma da primavera em seu cabelo e em sua pele, por cima
inclusive do aroma da lenha ardendo. Os troncos se moveram na chamin�, o vento do anoitecer come�ou a ulular contra a janela, e Laura suspirou.
Gabe queria seguir com a fantasia, levantar a em seus bra�os e lev�-la � cama. Precisava tombar-se junto a ela, lhe tirar a camisa e sentir sua pele contra
a sua, que ela o acariciasse e o abra�asse, que confiasse nele.
Entretanto, em seu interior se estava liberando uma aut�ntica batalha, j� que ela n�o era uma mulher sem mais. Estava gr�vida e dentro dela crescia o filho
de outro homem, um ao que ela tinha amado.
N�o tinha direito a quer�-la, e ela n�o podia confiar nele; mesmo assim, sentia-se irresistivelmente atra�do por ela, por seus segredos, por aqueles olhos que diziam
muito mais que suas palavras... e por sua beleza, que ia muito al�m da forma e a textura de sua cara, embora ela n�o parecesse sab�-lo.
Tinha que parar at� que soubesse exatamente o que queria, e at� que ela confiasse o suficiente nele para lhe contar a verdade.
Fez gesto de apartar-se dela, mas Laura enterrou o rosto em seu ombro.
-Por favor, n�o diga nada, me d� um minuto.
As l�grimas que ouviu em sua voz o sacudiram ainda mais que o beijo. O tira e afrouxa em seu interior se intensificou, e finalmente levantou uma m�o e lhe acariciou
o cabelo. Ao sentir o movimento do menino, Gabe se perguntou o que era o que ia fazer.
-Sinto muito, n�o quero ser pesada -disse ela.
Sua voz soou controlada de novo, mas mesmo assim n�o o soltou. Ao longo de sua vida, tinham sido muito poucas as vezes que algu�m se incomodou em abra��-la,
e at� esse momento n�o se deu conta do muito que o necessitava.
-N�o � pesada.
-Obrigado -Laura retrocedeu um pouco, com os olhos brilhantes de l�grimas contidas-. Suponho que foste dizer que o que aconteceu n�o foi um pouco premeditado,
mas n�o faz falta.
-N�o, n�o foi um pouco premeditado, mas n�o penso me desculpar por isso -disse ele com calma.
-J� vejo -Laura apoiou uma m�o no respaldo da cadeira, um pouco desconcertada-. Suponho que o que quis dizer � que... n�o quero que cria que eu...
maldi��o -deu-se por vencida, e voltou a sentar-se-. quis dizer que n�o estou zangada pelo beijo, e que o entendo.
-Bem -Gabe se sentia muito melhor do que esperava, e com tranq�ilidade agarrou outra cadeira e se sentou escarranchado-. O que � o que entende?
Ela tinha acreditado que deixaria o tema, que optaria pelo caminho mais f�cil, e se esfor�ou por lhe explicar como se sentia sem revelar muito.
-Que te dou um pouco de pena, e se sente um pouco respons�vel pela situa��o e pelo quadro -perguntou-se por que n�o podia relaxar-se, e por que ele a estava
olhando com uma express�o t�o estranha-. N�o quero que cria que te interpretei mal, n�o espero que...
A explica��o se estava embrulhando cada vez mais, e quando estava a ponto de abandonar o intento e calar-se, Gabe arqueou uma sobrancelha e lhe fez um gesto quase
desafiante para que acabasse de falar.
-Sei que nunca poderia te sentir atra�do por mim fisicamente... nestas circunst�ncias, e n�o quero que cria que interpretei o que aconteceu como algo mais
que... que uma esp�cie de tua amabilidade.
-Isso sim que tem gra�a -Gabe se arranhou o queixo, como se estivesse pensando no que lhe acabava de dizer-. Laura, n�o tem pinta de ser tola. Me
sinto atra�do por ti, e parte dessa atra��o � muito f�sica. Pode que fazer o amor contigo n�o seja poss�vel neste momento, mas isso n�o significa que o desejo
n�o exista.
Ela abriu a boca para dizer algo, mas acabou levantando as m�os e as deixando cair de novo.
-Seu embara�o n�o � o �nico que me impede de fazer o amor contigo, h� uma raz�o n�o t�o �bvia, mas igual de importante. Preciso saber toda sua hist�ria, Laura.
-N�o lhe posso contar isso Ella sacudi� la cabeza. Ten�a los ojos brillantes de l�grimas, pero levant� la barbilla en un gesto decidido.
-Tem medo?
Ela sacudiu a cabe�a. Tinha os olhos brilhantes de l�grimas, mas levantou o queixo em um gesto decidido.
-Tenho vergonha.
Aquela resposta tomou totalmente por surpresa.
-por que?, porque n�o estava casada com o pai do menino?
-N�o, n�o � isso. Por favor, n�o insista.
Gabe quis protestar, mas se mordeu a l�ngua porque ela estava muito p�lida, e parecia cansada e muito fr�gil.
-De acordo, deixarei-o por agora, mas quero que saiba uma coisa: sinto algo por ti, e vai ganhando for�a cada vez mais rapidamente, n�s gostemos ou n�o. Neste
momento, n�o tenho nem id�ia do que vou fazer com minhas emo��es.
Quando ele se levantou da cadeira, Laura alargou uma m�o e a posou em seu bra�o.
-Gabe, n�o h� nada que possa fazer, e n�o sabe o muito que eu gostaria que as coisas fossem diferentes.
-A vida � algo que algu�m vai construindo-se, anjo -Gabe lhe acariciou o cabelo, e depois se apartou-. Necessitamos mais lenha.
Laura permaneceu sentada na cabana vazia, e desejou com todas suas for�as haver-se constru�do uma vida melhor.
Cap�tulo 4
Durante a noite nevou um pouco mais, mas com muita menos intensidade que nos dias precedentes. Os novos cent�metros que tinham cansado descansavam em pequenos
montoncitos sobre a neve que j� se consolidou, e havia zonas onde a grossura total alcan�ava a altura de uma pessoa. Os batentes das janelas estavam
talheres de monta�itas em miniatura, que se moviam constantemente sob a a��o do vento.
O sol j� tinha come�ado a derreter a neve mais recente, e ao escutar com aten��o, Laura podia ouvir a �gua descendendo pelo canelone do telhado,
era um som reconfortante, e a fez pensar em uma la�a de ch� quente junto � chamin�, em um bom livro durante uma tarde tranq�ila, ou em uma sesta no
sof� ao entardecer.
Mas fazia s� um par de horas que tinha amanhecido, e como sempre, tinha a cabana para ela sozinha.
Gabe estava cortando lenha, podia ouvir o ru�do da tocha da cozinha, onde estava esquentando esperan�ada um copo de leite com um tablete de chocolate.
Sabia que a lenheira estava enche, e que o mont�o de troncos que havia detr�s da porta traseira era enorme, assim teriam muitos reservas embora a nevada
durasse at� junho. Gabe era um homem muito en�rgico e f�sico apesar de ser um artista, e ela entendia sua necessidade de fazer algo manual e cansado.
Pensou que aquela cena parecia algo muito... caseiro. Ela na cozinha, e Gabe cortando lenha enquanto uns largos peda�os de gelo penduravam do telhado. Seu pequeno
mundo estava em perfeita harmonia, e n�o lhe faltava de nada.
Cada manh� seguiam a mesma rotina: quando ela se levantava, ele j� estava fora apartando neve com a p�, ou cortando e carregando lenha. Lhe preparava
caf� ou esquentava o que ele tinha deixado feito, enquanto a r�dio informava do que acontecia no mundo exterior, que nunca parecia muito importante. Gabe entrava
ao cabo de um momento, sacudia-se a neve de cima e se bebia a ta�a de caf� que lhe dava, e depois ele ocupava seu s�tio depois do cavalete e ela junto �
janela.
�s vezes falavam, e �s vezes ambos permaneciam em sil�ncio.
Sob toda aquela rotina, Laura notava uma esp�cie de pressa nele que n�o acabava de entender. Embora podia pintar durante horas com movimentos controlados
e medidos, Gabe parecia impaciente por terminar. O quadro avan�ava mais r�pido do que ela tinha antecipado, e estava tomando forma no tecido... ou ao menos,
a mulher que ele via quando a olhava. Laura n�o entendia por que tinha decidido faz�-la parecer t�o et�rea, como um ser de sonho, j� que ela era uma pessoa completamente
terrestre. O menino que levava em seu ventre fazia que tivesse os p�s completamente plantados na terra.
Entretanto, tinha aprendido a n�o queixar-se, porque n�o o fazia o mais m�nimo caso.
Gabe tinha desenhado outros esbo�os, alguns de corpo inteiro e outros s� de sua cara, mas n�o lhe tinha incomodado, j� que considerava que tinha direito;
ao fim e ao cabo, era a forma em que ela podia lhe pagar por seu alojamento. Alguns dos esbo�os tinham feito que se sentisse um pouco inc�moda, como um que Gabe
tinha desenhado dela dormindo no sof� uma tarde. Nele parecia... indefesa, e de fato, havia-se sentido assim ao dar-se conta de que a tinha estado observando
e desenhando sem que ela se desse conta.
Mesmo assim, n�o lhe tinha nenhum medo, pensou enquanto removia sem muito entusiasmo a mescla de leite em p�, �gua e chocolate. Gabe tinha sido mais am�vel
pelo que ela tinha direito a esperar tendo em conta as circunst�ncias, e embora podia ser brusco e parco em palavras, era o homem mais doce e bom que
jamais tinha conhecido.
Os homens estavam acostumados a admirar seu f�sico, assim era poss�vel que Gabe tamb�m se sentisse atra�do por ela, mas em todo caso a tratava com respeito e cuidado.
Laura tinha aprendido a n�o esperar esse tipo de trato se existia uma atra��o.
encolheu-se de ombros, e se jogou a bebida em um copo. Esse n�o era o momento de pensar nos poss�veis sentimentos do Gabe, j� tinha muitos problemas e
s� se tinha a si mesmo para tentar solucion�-los. Imaginando-se que era uma ta�a de cremoso chocolate, Laura se bebeu a metade do copo de repente. Fez uma careta,
soltou um suspiro e voltou a levant�-lo, dizendo-se que em quest�o de dias poderia voltar para Denver.
Ao sentir uma pontada repentina de dor, agarrou-se a encimera e ag�entou como p�de, enquanto lutava com a necessidade instintiva de chamar o Gabe. Quando
a dor come�ou a remeter, disse-se que n�o era nada e foi lentamente � sala de estar. Naquele momento, Gabe deixou de cortar madeira, e no s�bito sil�ncio Laura
ouviu outro som; ao dar-se conta de que era um motor, alagou-a uma quebra de onda de p�nico, mas se apressou a sufoc�-la. N�o a tinham encontrado, era rid�culo pensar
que tinha sido assim; entretanto, apressou-se a ir � janela para jogar uma olhada.
Era um ve�culo de neve, e sua apar�ncia quase de brinquedo lhe teria parecido divertida, de n�o ser porque o conduzia um agente uniformizado. Laura foi at� a
porta e a entreabriu um pouco, preparada a manter-se firme se era necess�rio.
Gabe estava suando. Gostava de estar ao ar livre, j� que desfrutava de do ar fresco e do ritmo de seu trabalho, e embora o exerc�cio n�o podia lhe tirar a
Laura da cabe�a, ao menos lhe ajudava a p�r a situa��o em perspectiva.
Ela necessitava ajuda, e ele ia dar se a Michael hab�a sido el generoso.
Sabia que sua decis�o teria surpreso a algumas das pessoas que o conheciam, j� que embora ningu�m o teria acusado de ser insens�vel... ao fim e ao cabo,
seus quadros eram prova evidente de sua capacidade para a emo��o, a paix�o e a compaix�o... poucos lhe acreditavam capaz de uma generosidade incondicional.
Michael tinha sido o generoso.
Gabe sempre tinha estado mais encerrado em si mesmo, absorto em sua arte. O tinha estado mais interessado em plasmar a vida, com suas alegrias e suas penas, enquanto
que Michael a tinha abra�ado ao m�ximo.
Mas Michael j� n�o estava. Gabe baixou a tocha, e seu f�lego saiu entre os dentes para converter-se em uma nuvem branca sob o frio. A perda do Michael
tinha-lhe deixado um vazio t�o enorme, que n�o sabia se algum dia conseguiria ench�-lo.
Ouviu o ru�do do motor ao meio golpe, e deixou a folha enterrada na madeira antes de jogar uma r�pida olhada para a janela da cozinha e rodear a cabana
para ir ver quem era o visitante.
N�o tomou a decis�o consciente de proteger � mulher que havia dentro da casa; n�o foi necess�rio, j� que lhe pareceu o mais natural do mundo.
-Ol�, tudo bem? -o policial, que tinha as bochechas avermelhadas pelo vento e o frio, apagou o motor e lhe fez um gesto de sauda��o.
-Bem, obrigado -Gabe pensou que o agente, que parecia sorvete de frio, devia ter uns vinte e cinco anos-. Como est� a estrada?
Com uma breve gargalhada, o homem se desceu do ve�culo de neve.
-Digamos que espero que n�o tenha nenhum compromisso que cumprir.
-N�o, nada urgente.
-Ent�o, n�o h� problema. Sou Scott Beecham -disse, enquanto lhe oferecia a m�o.
-Gabe Bradley.
-Tinha ouvido que algu�m tinha comprado a velha casa dos McCampbell -com as m�os nos quadris, Beecham contemplou a cabana-. N�o escolheu precisamente
o melhor inverno para vir-se a viver aqui. Estamos visitando todos os residentes da zona, para ver se algu�m est� doente ou necessita provis�es.
-Comprei de todo o dia da tormenta.
-Bem. Tem sorte de ter o quatro por quatro, poderia encher uma garagem com todos os carros que se ficaram bloqueados. Estamos comprovando um compacto,
um Chevy do oitenta e quatro que se deu contra a cerca de seguran�a perto daqui. Est� abandonado, e o condutor pode haver-se perdido em meio da tormenta.
-� o carro de minha mulher.
Para ouvir aquelas palavras da porta, Laura abriu os olhos como pratos.
-Tinha medo de que me tivesse passado algo, e lhe ocorreu sair para me buscar em meio da tormenta -Gabe sorriu, e tirou um charuto-. Estivemos a ponto de
chocar, e tal e como estavam as coisas, decidi que era melhor deixar ali o carro e voltar para a cabana. Ainda n�o pude voltar para valorar os danos.
-N�o est� t�o mal como outros que vi nestes �ltimos dias. Est� bem sua mulher?
-Sim, embora os dois nos demos um bom susto.
-Imagino. vamos ter que nos levar o ve�culo, senhor Bradley -o agente olhou para a casa, e embora falou com naturalidade, era �bvio que estava alerta-.
Assim est�o casados, n�o?
-Sim.
-O nome no registro � Malone, Laura Malone.
-� seu nome de solteira -disse Gabe com calma.
Impulsivamente, Laura abriu a porta.
-Gabe?
Os dois homens se voltaram a olh�-la. O agente se tirou o chap�u, e Gabe se limitou a franzir o cenho.
-Perd�o por interromper -Laura sorriu, e comentou-: pensei que ao melhor ao agente gosta de uma ta�a de caf� quente.
O homem ficou o chap�u e respondeu:
-� muito tentador, senhora, e o agrade�o, mas tenho que ir j�. Sinto o de seu carro.
-Foi minha culpa. Sabe quando voltar� a abri-la estrada?
-Certamente, seu marido poder� baixar ao povo em um ou dois dias, mas lhe aconselho que voc� espere um pouco mais para viajar.
-Sim, acredito que n�o irei a nenhuma parte de momento -disse-lhe com um sorriso.
-Bom, ser� melhor que v� -disse Beecham, enquanto se voltava a subir ao ve�culo de neve-. Tem uma r�dio de onda curta?
-N�o.
-N�o estaria mal que comprasse uma quando for ao povo, s�o mais confi�veis que os telefones. Quando est� previsto que nas�a seu filho?
Gabe ficou sem palavras por um segundo para ouvir aquelas palavras.
-daqui a quatro ou cinco semanas.
-Ent�o t�m bastante tempo -sorridente, Beecham acendeu o motor de seu ve�culo-. S�o primerizos?
-Sim -murmurou Gabe.
-N�o h� nada igual. Eu tenho duas filhas, e a segunda decidiu nascer em A��o de Obrigado; logo que tinha dado dois bocados de bolo de caba�a, quando tive que
sair correndo ao hospital. Minha mulher segue insistindo em que foi o cheio de salsicha de minha m�e o que provocou o parto -levantou uma m�o e a voz, e se despediu
dizendo-: cuide-se, senhora Bradley.
Seguiram o ve�culo com o olhar, e quando se perdeu de vista Gabe se esclareceu garganta e entrou na casa. Laura n�o fez nenhum coment�rio, limitou-se a
apartar-se para deix�-lo passar e a fechar a porta atr�s dele.
Esperou at� que come�ou a desat�-los cord�es das botas sentado no bordo da chamin� de pedra, e ent�o lhe disse:
-Obrigado.
-por que?
-Por lhe dizer que sou sua mulher.
-Parecia a solu��o mais f�cil -comentou, ainda carrancudo, enquanto se tirava uma bota.
-Mais f�cil para mim, n�o para ti -disse ela.
Gabe se encolheu de ombros, e se levantou para ir � cozinha.
-H� caf� feito?
-Sim.
Laura o ouviu servir uma ta�a, e se deu conta de que ele tinha mentido para proteg�-la, enquanto que ela n�o tinha feito mais que receber.
-Gabe... -rogando que seus instintos e sua consci�ncia n�o se estivessem equivocando, entrou na cozinha.
-Que dem�nios � isto? -disse ele, assinalando a chaleira onde ela se preparou o leite.
A tens�o se dissipou momentaneamente.
-� chocolate desfeito... se a gente estiver o suficientemente desesperado.
-Parece... bom, prefiro n�o diz�-lo. O leite em p� est� asquerosa, n�o?
-Mais ou menos.
-Tentarei ir ao povo amanh�.
-Se puder, importaria-te... -envergonhada, Laura se deteve meia frase.
-O que quer?
-Nada, � uma tolice. Pode vir a te sentar um minuto?
Lhe agarrou uma m�o antes de que pudesse d�-la volta.
-O que � o que quer que te traga?
-Pipocas. J� te hei dito que era uma tolice -murmurou, enquanto tentava liberar sua m�o.
Gabe sentiu uma necessidade quase se desesperada para abra��-la com for�a.
-� um desejo, ou simplesmente gostam?
-N�o sei, mas cada vez que vejo a chamin�, penso em um bom prato de pipocas -Laura sorriu ao ver que Gabe n�o se burlava dela-. �s vezes posso at� as cheirar.
-Pipocas. Quer algo para as acompanhar?, pepinos japoneses em vinagre ou algo assim?
-Isso � um mito, n�o todas as mulheres gr�vidas comem essas coisas -disse ela, com uma careta.
-Est� jogando por terra todas minhas convic��es -Gabe n�o soube em que momento tinha elevado a m�o dela at� seus l�bios, mas depois do primeiro roce com seu
pele a soltou imediatamente-. N�o te puseste a camisa.
Embora j� n�o a estava tocando, parecia-lhe que ainda podia sentir a calidez e a suavidade de sua m�o.
-V� -Laura respirou fundo, ao dar-se conta de que ele n�o estava pensando nela, a n�o ser no quadro. De novo era o artista com seu modelo-. irei trocar me.
-Vale -completamente desconcertado pelo muito que a desejava, Gabe se voltou para a encimera e centrou sua aten��o na ta�a de caf�.
Entretanto, Laura tinha tomado uma decis�o para ouvir que mentia por ela, para proteg�-la, e decidiu n�o postergar mais as coisas.
-Gabe, sei que quer te p�r a trabalhar, mas eu gostaria... acredito que deveria... lhe quero contar isso tudo, se ainda quer sab�-lo.
Ele se girou para ela, e a olhou com uma express�o clara e muito intensa.
-por que?
-Porque n�o est� bem que n�o confie em ti, e porque necessito a algu�m... os dois necessitamos a algu�m.
-Ser� melhor que se sente -limitou-se a dizer ele, antes de lev�-la ao sof�.
-N�o sei por onde come�ar.
Enquanto punha outro tronco na chamin�, Gabe pensou que provavelmente seria melhor se se remontavam at� sua inf�ncia.
-De onde �? -perguntou-lhe ao sentar-se junto a ela.
-vivi em muitos s�tios... em Nova Iorque, na Pensilvania, em Maryland... minha tia tinha uma pequena granja neste Costa, ali foi onde passei mais tempo.
-E seus pais?
-Minha m�e era muito jovem quando nasci, e estava solteira. foi se viver com minha tia, at� que... at� que come�ou a ter problemas de dinheiro. Ent�o tive que
ir a casas de acolhida, mas isso n�o tem import�ncia agora.
-S�rio?
Ela respirou fundo para tentar tranq�ilizar-se.
-N�o quero que sinta pena por mim, n�o te estou contando isto para te dar l�stima.
O orgulho sereno que Gabe estava tentando captar sobre um tecido era evidente na inclina��o de sua cabe�a e no tom de sua voz, e desejou ir a por seu
caderno de esbo�os. Mas desejou ainda mais acariciar sua cara.
-Vale, n�o sentirei pena.
Laura assentiu, e continuou com sua hist�ria.
-Acredito que as coisas ficaram muito dif�ceis para minha m�e; embora ningu�m chegou a me explicar do todo a situa��o, � f�cil imaginar-lhe Era filha �nica, e
� poss�vel que queria ficar comigo, mas n�o p�de. Minha tia era maior que ela, mas tinha seus pr�prios filhos, assim que eu era s� outra boca que alimentar, e quando
faz�-lo-se voltou muito dif�cil, fui parar aos servi�os de acolhida.
-Quantos anos tinha?
-A primeira vez seis, mas por alguma raz�o as coisas nunca funcionaram. Fiquei um ano em um lugar, dois em outro... odiava n�o pertencer a nenhum s�tio, n�o
chegar a ser nunca uma parte real do que tinham outros. Aos doze anos voltei uma temporada com minha tia, mas seu marido tinha problemas e me tive que partir
ao pouco tempo.
Gabe notou um matiz estranho em sua voz, algo que fez que se esticasse.
-Que classe de problemas?
-Isso n�o importa.
Ela sacudiu a cabe�a e come�ou a levantar-se, mas Gabe a agarrou pela m�o com firmeza.
-Laura, voc� come�aste com isto, assim acaba-o.
-Bebia, e ent�o se voltava bastante desagrad�vel -admitiu ela.
-Est� dizendo que ficava violento?
-Sim. Quando estava s�brio era mal-humorado e cr�tico, mas b�bado podia chegar a ser... cruel -esfregou-se o ombro, como se estivesse acalmando uma velha ferida-.
Normalmente a empreendia contra minha tia, mas freq�entemente tamb�m ia a pelos meninos.
-Pegou-te?
-Sim, quando n�o era o bastante r�pida para me tirar a tempo de no meio -conseguiu esbo�ar um sorriso sem humor, e acrescentou-: e te asseguro que aprendi a ser
muito r�pida. Mas sonha pior do que realmente foi.
Gabe o duvidava, mas se limitou a dizer:
-Segue.
-Os servi�os sociais transladaram a outra casa, mas era como ficar guardada, � espera. Lembran�a que aos dezesseis estava contando os dias que
ficavam para me poder arrumar isso por mim mesma, para... n�o sei, poder tomar minhas pr�prias decis�es. Quando por fim alcancei a maioria de idade, mudei a Pensilvania
e consegui um trabalho de dependienta em uma loja da Filadelfia. Fiz amizade com uma clienta habitual, e um dia se apresentou com um homem baixinho e m�dio calvo,
que parecia um bulldog. Lhe disse � mulher que tinha raz�o, deu-me um cart�o profissional e me disse que fora a seu estudo ao dia seguinte. Eu n�o pensava ir,
claro, pensei que queria... tinha-me acostumado a que os homens...
-Isso n�o o duvido-dijo Gabe com secura.
Era algo que ainda a fazia sentir-se inc�moda, mas como ele n�o pareceu surpreso, decidiu deixar o tema.
-Enfim, deixei a um lado o cart�o e certamente n�o teria tornado a me lembrar dela, mas uma de minhas companheiras a viu e ficou como louca. Disse-me que era
Geoffrey Wright, ao melhor soa.
Gabe arqueou uma sobrancelha, porque Wright era um dos fot�grafos de moda mais respeitados no neg�cio... n�o, o mais respeitado; embora n�o sabia muito do neg�cio
da moda, um nome como o do Geoffrey cruzava fronteiras.
-Sim, ouvi falar dele.
-Quando me inteirei de que era um fot�grafo profissional de prest�gio, decidi ir ver o, e tudo pareceu acontecer de repente. Encontrei-me maquiada e sob os
focos antes de poder me dar conta, e embora estava passando uma vergonha incr�vel, ele pareceu n�o dar-se conta e come�ou a soltar ordens a destro e sinistro...
que se tinha que me sentar, que se queria que me levantasse, que me voltasse, que me inclinasse... colocou-me um casaco da Marta sobre os ombros, e eu acreditei que estava
sonhando. Suponho que fiz o coment�rio em voz alta, porque enquanto seguia tomando fotos p�s-se a rir e me disse que em um ano poderia vestir peles at� no
caf� da manh�.
Gabe se reclinou no respaldo do sof� sem dizer nada, enquanto imaginava envolta em peles. Lhe retorceram as v�sceras ao imaginar a convertendo-se
em uma das jovens e tempor�rios amantes do Wright.
-Em um m�s, j� tinha feito uma sess�o de fotos para a revista Mode; depois fiz outra para o Her, e outra para o Charm. Foi algo incr�vel, um dia estava vendendo
roupa, e ao seguinte jantava com desenhistas.
-E o que passou com o Wright?
-Ningu�m me tinha tratado em toda minha vida t�o bem como Geoffrey. Sabia que ele me considerava quase sempre um simples produto, mas se converteu em uma esp�cie
de c�o guardi�o. Disse-me que tinha planos para mim, que queria que come�asse pouco a pouco, e que em um par de anos n�o haveria uma s� pessoa no mundo ocidental
que n�o reconhecesse minha cara. me parecia incrivelmente emocionante, porque durante toda minha vida tinha sido completamente an�nima. lhe gostava que eu houvesse
sa�do de um nada, e embora algumas de seus outras modelos o consideravam uma pessoa fria, foi o mais parecido a um pai para mim.
-Via-o como uma figura paterna?
-Sim, suponho que sim. Mas depois de tudo o que fez por mim, de todo o tempo que investiu em mim, eu o decepcionei.
Come�ou a levantar-se de novo, mas Gabe voltou a det�-la.
-Aonde vai?
-A por um pouco de �gua.
-Fique aqui, vou procurar a.
Laura aproveitou para tranq�ilizar-se. S� lhe tinha contado a metade da hist�ria, e o pior e mais doloroso ainda estava por chegar. Quando Gabe voltou com um
copo de �gua com gelo, tomou um par de goles e retomou seu relato.
-Fomos a Paris, e me sentia como se fora Cinzenta, mas sem o medo a que chegasse a meia noite, �amos ficar nos um m�s, e como Geoffrey queria lhes dar
um ar muito franc�s �s fotos, trabalhamos por toda a cidade. Um dia assistimos a uma festa, era uma dessas incr�veis noites da primavera em que todas as mulheres
parecem formosas e os homens muito bonitos. Ali conheci o Tony.
Gabe notou que sua voz se quebrava ligeiramente e que seus olhos se escureciam de dor, e soube imediatamente que estava falando do pai de seu filho.
-mostrou-se galante e encantador, como o perfeito pr�ncipe azul, e nas duas semanas seguintes foi ver-me trabalhar cada dia. Sa�mos a dan�ar, comemos em
pequenas cafeterias e demos passeios pelos parques, e pensei que ele era tudo o que sempre tinha sonhado mas que nunca acreditei que poderia ter. Tratava-me como se
fora algo �nico e valioso, como um colar de diamantes, e houve um tempo no que acreditei que isso era amor.
Laura permaneceu em silencio durante uns segundos, pensando que aquele tinha sido seu engano, seu pecado, sua vaidade. Inclusive um ano depois, ainda lhe do�a.
-Geoffrey resmungava e dizia que era s� um menino rico tentando ligar com uma modelo, mas eu n�o quis escut�-lo. Queria me sentir amada, necessitava desesperadamente
lhe importar a algu�m, que me quisessem, assim quando Tony me pediu que me casasse com ele, n�o me pensei isso duas vezes.
-Casou-te com ele?
-Sim -Laura o olhou, e admitiu-: sei que te fiz acreditar que n�o estava casada com o pai de meu filho, pareceu-me o mais f�cil.
-N�o leva anel.
Laura se ruborizou, envergonhada.
-Vendi-o.
-J� vejo.
O tom do Gabe n�o continha condena��o nenhuma, mas mesmo assim Laura se sentiu mortificada.
-Ficamos em Paris a passar a lua de mel. Eu queria voltar para os Estados Unidos para conhecer sua fam�lia, mas Tony disse que preferia que fic�ssemos
onde est�vamos sendo t�o felizes, e me pareceu bem. Geoffrey ficou furioso comigo, exortou-me e me gritou me dizendo que me estava estragando, mas
naquele momento acreditei que se referia a minha carreira profissional e o ignorei. Muito depois, dava-me conta de que estava falando de minha vida.
Laura se sobressaltou quando um tronco se moveu na chamin�, e descobriu que lhe resultava mais f�cil continuar se olhava para o fogo.
-Acreditava que tinha encontrado tudo o que sempre tinha desejado, e ao olhar atr�s me dou conta de que aquelas semanas em Paris foram como algo m�gico, algo
que n�o � completamente real, mas que o parece porque a gente n�o alcan�a a dar-se conta de que tudo � uma miragem. Ent�o chegou o momento de voltar para casa.
Laura entrela�ou as m�os e come�ou �s mover nervosamente, um signo seguro da ansiedade que sentia. Gabe quis agarrar-lhe para tranq�iliz�-la, mas se
conteve.
-A noite antes de partir, Tony me disse que tinha que solucionar um assunto de neg�cios, e saiu. Eu fiquei esperando-o, um pouco decepcionada porque meu
marido me tinha deixado sozinha em nossa �ltima noite em Paris, mas conforme se foi fazendo tarde comecei a me assustar, e quando ele chegou �s tr�s da madrugada
estava zangada e molesta.
Voltou a ficar calada, e Gabe tomou uma colcha que havia no respaldo do sof� e o colocou sobre o rega�o.
-Tiveram uma briga, n�o?
-Sim. Ele estava muito b�bado e violento, e embora aquela foi a primeira vez que o vi assim, n�o seria a �ltima. Perguntei-lhe onde tinha estado, e ele me respondeu...
bom, basicamente me disse que n�o era meu assunto. Come�amos a nos gritar, e me confessou que tinha estado com outra mulher. Ao princ�pio acreditei que o dizia s� para me ferir,
mas ent�o me dava conta de que era verdade e comecei a chorar.
Aquilo era o pior de tudo, olhar atr�s e recordar como se derrubou.
-Isso fez que se zangasse ainda mais, e come�ou a lan�ar objetos pela su�te, como um menino com uma chilique. Gritou muitas coisas, mas em resumo me disse que teria
que me acostumar a seu modo de vida, e que n�o tinha direito a me ofender, porque eu tinha sido a zorra do Geoffrey.
Sua voz se quebrou com aquelas �ltimas palavras, e bebeu um gole de �gua para acalmar sua garganta.
-Isso foi o que mais me doeu -conseguiu dizer ao fim-. Geoffrey tinha sido quase como um pai para mim, mas nunca, jamais foi nenhuma outra coisa. E Tony sabia,
porque eu era virgem em nossa noite de bodas. Zanguei-me tanto que me levantei e comecei a lhe gritar, nem sequer sei o que lhe disse, mas ele ficou feito uma f�ria,
Y...
Gabe viu que seus dedos se esticavam no suave tecido da colcha, e que depois os relaxava de novo com delibera��o. Com um esfor�o sobre-humano, conseguiu
manter a calma ao lhe perguntar:
-Pegou-te?
N�o lhe respondeu, incapaz de pronunciar palavra, e quando Gabe posou uma m�o em sua bochecha e voltou brandamente sua cara para que o olhasse, viu que tinha
os olhos cheios de l�grimas.
-Foi muito pior que com meu tio, porque n�o consegui escapar. Tony era muito mais forte e r�pido. Meu tio simplesmente pegava a qualquer que n�o se separasse de
seu caminho a tempo, mas no caso do Tony havia algo cruel e deliberado, queria me fazer danifico. E ent�o, ele me... -Laura n�o p�de lhe contar o que tinha ocorrido
depois.
Demorou uns segundos em conseguir continuar, e Gabe permaneceu em sil�ncio, enquanto em seu interior a f�ria crescia e crescia at� que pensou que ia explorar.
Entendia que uma pessoa podia ter seu g�nio, ele mesmo era bastante temperamental, mas nunca, jamais poderia entender ou perdoar a uma pessoa que maltratasse a algu�m
mais d�bil e indefeso.
-Quando terminou, ele ficou dormido e eu fiquei ali tombada, sem saber o que fazer -continuou dizendo ela, um pouco mais acalmada-. � gracioso, mas tempo
depois, quando falei com outras mulheres que tinham sofrido experi�ncias parecidas, soube que � normal sentir que a culpa foi tua. � manh� seguinte, me
pediu perd�o chorando, e me prometeu que nunca voltaria a passar. Essa foi a pauta durante o tempo que estivemos juntos.
-Ficou com ele?
Envergonhada, Laura se ruborizou e depois empalideceu de repente.
-Est�vamos casados, e pensei que podia fazer que funcionasse. Quando chegamos � casa de seus pais, odiaram-me nada mais lombriga. Seu filho, o grande herdeiro ao
trono, casou-se a suas costas com uma mulher insignificante. Viv�amos com eles, e embora falemos v�rias vezes de nos mudar, nunca o fizemos. Eram incr�veis,
podia estar sentada � mesa com eles falando de nader�as e sentir que lhe estavam ignorando por completo. Tony foi a pior, come�ou a ver-se com outras mulheres e
quase alardeava disso diante de mim. Seus pais sabiam o que fazia e o que me estava passando, mas o ciclo n�o fez mais que ir piorando cada vez mais, at�
que soube que tinha que sair dali. Disse-lhe que queria o div�rcio.
Laura se deteve e respirou fundo antes de continuar.
-Isso pareceu fazer que reagisse por um tempo. Fez-me todo tipo de promessas, jurou-me que iria a terapia, que iria a um conselheiro matrimonial, que faria
tudo o que eu lhe pedisse, e at� come�ou a procurar uma casa para n�s dois. A aquelas alturas eu j� tinha deixado de quer�-lo, e sei que me equivoquei totalmente
ao acessar a ficar com ele, ao me enganar a mim mesma. N�o me dava conta de que seus pais estavam pressionando-o, dificultando que pudesse mudar-se, porque eles tinham
o controle financeiro. Ent�o descobri que estava gr�vida.
Laura apoiou uma m�o sobre seu ventre, com os dedos estendidos.
-Tony se mostrou um pouco... ambivalente ante a id�ia de ter um filho, mas seus pais se entusiasmaram. Sua m�e come�ou a redecorar um quarto para o menino,
comprou ber�os de �poca, colheres de prata, linho irland�s. Embora n�o acabava de me gostar da forma em que se estava fazendo cargo de tudo, pensei que possivelmente o menino
poderia nos ajudar a melhorar nossa rela��o, mas a verdade � que n�o me viam como a m�e do menino, igual a n�o me consideravam a esposa do Tony. Era seu neto,
seu legado, sua imortalidade. Tony e eu deixamos de procurar casa, e ele come�ou a beber outra vez. Parti-me a noite que chegou b�bado e me pegou.
Inalou profundamente, tentando acalmar-se, enquanto continuava com o olhar fixo no fogo.
-J� n�o me estava pegando s� , tamb�m lhe estava fazendo mal ao menino, e isso o trocava tudo; de fato, fez que me resultasse incrivelmente f�cil partir.
Enterrei meu orgulho e chamei o Geoffrey para lhe pedir um empr�stimo. Deixou-me dois mil d�lares, e com eles consegui um piso, encontrei trabalho e comecei os tr�mites do
div�rcio. Dez dias depois, Tony morreu.
Ao sentir a inevit�vel quebra de onda de dor, Laura fechou os olhos.
-Sua m�e veio para ver-me, suplicou-me que ocultasse o do processo de div�rcio e que assistisse ao funeral como a vi�va do Tony. Sua reputa��o e sua lembran�a eram
qu�o �nico importava, e acessei porque... porque ainda recordava aqueles primeiros dias em Paris. Depois do funeral, pediram-me que fora a sua casa porque t�nhamos
que falar de um par de coisas, e foi ent�o quando me disseram o que queriam, o que pensavam conseguir. Disseram que me pagariam todos os gastos m�dicos, que
teria os melhores cuidados, e que quando o menino nascesse me dariam cem mil d�lares para que fizesse a um lado. Quando me neguei, quando me zanguei pelo que
estavam sugiriendo, explicaram-me que se limitariam a me tirar a meu beb� se n�o cooperava. Era o filho do Tony, e me deixaram claro que tinham bastante dinheiro para
poder conseguir sua cust�dia. Amea�aram-me tirando a luz o "fato" de que tinha sido a amante do Geoffrey e que tinha aceito seu dinheiro, e me disseram que
tinham investigado meu passado e que demonstrariam que n�o era uma pessoa est�vel para criar a um menino. Disseram que deixariam claro que, corno av�s do beb�, podiam
lhe dar uma educa��o melhor. Deram-me vinte e quatro horas para que me pensasse isso, e o que fiz foi fugir.
Gabe permaneceu em sil�ncio, j� que se tinha ficado com um amargo sabor de boca. Tinha-lhe pedido que o contasse tudo, quase o tinha exigido, mas ao
conhecer por fim sua hist�ria n�o sabia se seria capaz de suport�-lo.
-Laura, apesar do que lhe disseram e de suas amea�as, n�o acredito que pudessem te tirar ao menino.
-Isso n�o me basta, � que n�o o v�?, n�o posso me arriscar enquanto haja a mais m�nima possibilidade. Nunca poderia me enfrentar a eles de igual a igual, n�o tenho
nem o dinheiro nem os contatos.
-Quais s�o? -ao v�-la duvidar, Gabe voltou a tomar a m�o-. confiaste em mim at� agora.
-Seu sobrenome � Eagleton. S�o Thomas e Lorraine Eagleton, de Boston.
Para ouvir aquilo, Gabe franziu o cenho. Todo mundo sabia quem eram, mas por causa da posi��o social de sua pr�pria fam�lia, aquele sobrenome representava
mais que um simples nome, que uma imagem.
-Estava casada com o Anthony Eagleton?
-Sim -Laura se voltou para ele antes de dizer com voz acalmada-: conhecia-lhe, verdade?
-A verdade � que muito pouco, era mais... -deteve-se o dar-se conta de que tinha estado a ponto de dizer que era mais da idade do Michael, e optou por dizer-:
mais jovem. Encontrei-me com ele uma ou duas vezes quando foi � costa -e o que tinha visto n�o lhe tinha gostado do mais m�nimo, assim nem sequer se incomodou
em formar uma opini�o sobre ele-. Li que tinha morrido em um acidente de tr�fico, e suponho que se mencionou que estava casado, mas este ano foi bastante dif�cil
e n�o lhe emprestei muita aten��o ao assunto. Minha fam�lia e os Eagleton coincidiram em algumas ocasione, mas n�o h� muita rela��o.
-Ent�o, sabe que � uma fam�lia com muito dinheiro. Consideram o menino uma mais de seus... propriedades, e me estiveram seguindo a pista por todo o pa�s.
Cada vez que me assento em um s�tio e come�o a me relaxar, inteiro-me de que h� detetives farejando. N�o posso... n�o vou deixar que me encontrem.
Gabe se levantou para passear-se pela habita��o, para acender um charuto, para tentar organizar suas id�ias e, sobre tudo, seus sentimentos.
-Quero te perguntar algo.
-me diga -disse ela, com um suspiro cansado.
-Quando te perguntei se tinha medo, respondeu-me que n�o, que tinha vergonha. Quero saber por que.
-Porque n�o lutei nem tentei arrumar as coisas com a for�a necess�ria, e simplesmente deixei que acontecesse. N�o tem nem id�ia de qu�o dif�cil � para mim estar
aqui sentada e admitir que permiti que me utilizassem, que me pegassem, que cheguei t�o baixo para aceit�-lo sem mais.
-Ainda se sente assim?
-N�o -disse ela, enquanto levantava o queixo-. Ningu�m vai voltar a controlar minha vida.
-Bem -Gabe se sentou no bordo da chamin�-. Anjo, acredito que passaste por um inferno, por algo pior do que ningu�m se merece. N�o importa que voc� tivesse
parte de culpa, como parece acreditar, ou que fora s� quest�o de circunst�ncias. Todo isso pertence ao passado.
-Gabe, n�o � t�o f�cil. Agora tamb�m tenho que ter em conta a meu filho.
-At� onde est� disposta a chegar para te enfrentar a eles?
-J� te hei dito que n�o posso...
Ele a interrompeu com um gesto da m�o.
-Se tivesse os meios, at� onde?
-At� o final, at� onde fizesse falta. Mas isso n�o importa, porque n�o tenho os meios.
Gabe tomou uma imers�o do charuto, contemplou-o com aparente interesse e o jogou ao fogo.
-Teria-os, se estivesse casada comigo.
Cap�tulo 5
Laura n�o respondeu, incapaz de articular palavra, e Gabe permaneceu sentado na chamin� com o olhar fixo em seu rosto. Seu enorme talento se devia em parte
a sua capacidade de centrar-se em uma express�o e captar as emo��es que se ocultavam sob a superf�cie, e possivelmente por isso era capaz de ocultar seus pr�prios sentimentos
� perfei��o.
Os troncos chispavam atr�s dele, e o sol de meia amanh� entrava pelas janelas at� ir parar a seus p�s. Parecia muito tranq�ilo, como se acabasse de
sugerir que podiam comer um prato de sopa ao meio dia, e ela n�o teria sabido dizer se o que lhe tinha proposto realmente lhe resultava t�o indiferente.
Laura se apoiou na mesa, e se levantou com cuidado antes de dizer:
-Estou cansada, vou tombar me um momento.
-Vale, depois falaremos disto.
Ela se girou de repente para ele, e Gabe n�o viu nem rastro de ang�stia nem de medo em sua cara, a n�o ser uma f�ria l�vida e fulminante.
-Como pode me dizer algo assim depois de tudo o que te contei?
-Pode que o haja dito precisamente por isso.
-V�, aqui est� outra vez o bom samaritano -Laura notou a amargura em sua pr�pria voz, mas n�o p�de fazer nada por escond�-la-. O cavalheiro em seu cavalo branco,
que acode galante e carregado de boas inten��es para salvar � inepta mujercita. Crie que deveria me ajoelhar e me sentir agradecida?, que vou voltar para
me p�r cegamente em m�os de algu�m, a entrar na mesma pauta lament�vel e destrutiva, porque um homem me oferece uma via de escapamento?
Gabe tentou controlar seu g�nio, mas decidiu deixar que ela o visse e se levantou de repente.
-N�o quero te controlar, e n�o penso deixar que me compare com um maldito maltratador alco�lico.
-Ent�o o que quer, salvar a raparigas em perigo como um caridoso cavalheiro andante?
Gabe soltou uma gargalhada, mas ainda seguia muito zangado.
-Ningu�m me acusou nunca de um pouco parecido. Uma das raz�es de minha proposta � que sou um ego�sta. Conhece-me o bastante bem para saber que sou um resmung�o,
que tenho meu g�nio e que posso me zangar, mas eu n�o pego nem utilizo �s mulheres.
Laura se esfor�ou por controlar suas emo��es, e conseguiu acalmar-se um pouco.
-Eu n�o insinuei isso, nem te comparei com ningu�m. O �nico parecido � a situa��o.
-A situa��o n�o se parece em nada, o fato de que eu tenha dinheiro � uma vantagem para ti.
-N�o me casei com o Tony por seu dinheiro.
-J� sei, disso n�o tenho nenhuma d�vida -disse ele, com voz mais suave-. Mas neste caso, estou disposto a aceitar que te case comigo pelo meu.
-por que?
Nos olhos do Gabe relampejou uma estranha express�o, mas desapareceu antes de que ela pudesse interpret�-la.
-Talvez deveria ter perguntado isso antes de nada.
-Pode, mas lhe estou perguntando isso agora -disse ela, arrependendo-se como sempre de seu arranque de f�ria e de suas duras palavras.
-Sinto algo por ti. N�o sei o que �, mas � muito forte, muito mais que qualquer outra coisa que tenha experiente em toda minha vida -Gabe levantou um dedo para
o rosto do tecido e desejou poder explicar-se melhor, mas sempre se expressou melhor atrav�s da pintura-. Sinto-me atra�do por ti, e recentemente me dei
conta de que j� levo suficiente tempo sozinho.
-Isso pode que seja suficiente, ou quase, para alguns matrim�nios, mas n�o o � para mim... sobre tudo tendo em conta a carga que teria que suportar.
-Tenho que saldar algumas conta pendentes -murmurou Gabe, antes de voltar-se para ela de novo-. Talvez lhes ajudar ao menino e me serve para fazer borr�o
e conta nova.
Ao ver a ternura e a dor em seus olhos, Laura sentiu que seu aborrecimento se evaporava por completo.
-J� nos ajudaste, e nunca poderei chegar a lhe pagar isso de que la deseara la entusiasmaba y la aterrorizaba a la vez.
-N�o quero que me pague nada -disse ele com voz cortante, impaciente-. O que quero � a ti, como quer que lhe diga isso?
-Acredito que de nenhuma.
Os nervos come�aram a corro�-la de novo, e se retorceu as m�os em um gesto de ansiedade. Estava claro que ele estava falando muito a s�rio, e a possibilidade
de que a desejasse a entusiasmava e a aterrorizava de uma vez.
-J� me equivoquei uma vez e foi terr�vel, � que n�o o v�?
Gabe se aproximou ela, separou-lhe as m�os com ternura e as manteve nas suas.
-N�o te sou indiferente?
-N�o, mas...
-N�o me tem medo?
-N�o -respondeu ela, enquanto sentia que parte da tens�o se dissipava.
-Ent�o, deixa que te ajude.
-vou ter um filho de outro homem.
-N�o -Gabe tomou seu rosto entre as m�os porque queria que ela o olhasse aos olhos-. Se te casar comigo, o menino � dos dois, tanto em privado como de
cara ao p�blico. Totalmente.
-Vir�o a por ele -disse ela, com l�grimas nos olhos.
-Deixa que venham. N�o voltar�o a te tocar, e n�o v�o levar se a menino.
Gabe lhe estava oferecendo seguran�a, e Laura se perguntou se realmente aquilo que sempre a tinha evitado podia estar s� a uma promessa de dist�ncia. Abriu
a boca, a ponto de aceitar seu oferecimento, mas ent�o sentiu um n� no est�mago e posou uma m�o na bochecha dele.
-Como vou fazer te algo assim?
A resposta do Gabe foi cobrir seus l�bios com os seus. Laura foi incapaz de negar o desejo e o desejo que os unia, j� que o saboreou quando sua boca a
devorou, e o sentiu quando a m�o dele se deslizou por seu cabelo para deter-se posesivamente em sua nuca. De forma instintiva, desejosa de dar al�m de receber, Laura
levou a outra emano a seu rosto em um tenro gesto de consolo.
Era �bvio que ela n�o era qu�o �nica tinha que lutar contra seus pr�prios dem�nios, nem a �nica que necessitava amor e compreens�o. Gabe era uma pessoa forte,
e resultava f�cil esquecer-se de que ele tamb�m podia estar acontecendo-o mau. Laura o atraiu com mais for�a para si, tentando lhe oferecer seu calor.
Gabe desejou poder afundar-se nela, em sua do�ura, em sua generosidade. Isso era o que queria captar sobre o tecido, seu calidez e seu esp�rito, embora sabia queixa-m�s
seria capaz de plasm�-lo. Aquela parte fundamental de sua beleza n�o podia pintar-se, mas podia ser protegida e adorada.
-Necessita-me -murmurou ao apartar-se ligeiramente-. E eu necessito a ti.
Laura assentiu e apoiou a cabe�a em seu ombro, por que aquelas palavras o haviam dito tudo.
Come�ou a nevar de novo, e passaram tr�s dias at� que Gabe p�de arriscar-se a ir ao povo. Laura o observou enquanto apurava sua ta�a de caf� e ficava o
casaco.
-Voltarei o mais r�pido poss�vel.
-Prefiro que tome seu tempo e v� com cuidado.
-O todoterreno � como um tanque -Gabe aceitou as luvas que lhe deu, mas n�o os p�s-. Eu n�o gosto de te deixar sozinha.
-Gabe, levo muito tempo cuidando de mim mesma.
-As coisas trocaram. Certamente, meus advogados j� me enviaram a licen�a de matrim�nio.
Ela come�ou a trastear imediatamente com os pratos do caf� da manh�, e comentou:
-Isso sim que seria rapidez.
-Pago-lhes para que sejam eficientes, e j� aconteceram tr�s dias desde que me pus em contato com eles. Se posso arrum�-lo, eu gostaria de trazer para um juiz de paz.
A Laura lhe caiu um copo da m�o, e foi parar � �gua sapon�cea.
-Hoje?
-N�o trocaste que id�ia, verdade?
-N�o, mas...
-Quero que meu nome esteja na partida de nascimento -ao v�-la duvidar, Gabe sentiu uma pontada de p�nico-. Seria menos complicado se nos cas�ssemos antes de
que nas�a o menino.
-Sim, suponho que tem raz�o.
Entretanto, tudo parecia muito precipitado... como seu primeiro matrim�nio, que tinha sido um torvelinho de flores, champanha e seda branca.
-Entendo que prefira algo mais festivo, mas nestas circunst�ncias...
-N�o, n�o me importa -voltou-se para ele, e conseguiu esbo�ar um sorriso-. Se pode arrum�-lo para celebrar as bodas hoje, n�o h� problema.
-De acordo. Laura, eu gostaria que descansasse um pouco at� que volte, n�o dormiste bem.
Ela voltou a girar-se para a pia. Havia tornado a ter o pesadelo, e n�o tinha conseguido pegar olho at� que Gabe se colocou na cama com ela.
-N�o se preocupe, procurarei n�o me cansar.
-N�o acredito que um beijo te tire muitas for�as, verdade?
Laura sorriu, voltou-se com as m�os ainda jorrando e levantou os l�bios para os seus.
-Ainda n�o estamos casados, e j� me beija como se lev�ssemos vinte anos de matrim�nio.
Gabe trocou o ambiente distendido com apenas lhe mordiscar juguetonamente o l�bio inferior. Em quest�o de segundos, Laura estava aferrando-se a ele, em um abra�o
que n�o tinha nada de despreocupado.
-Isso est� melhor -murmurou ele-.v� tombar te, estarei de volta em menos de duas horas.
-Tome cuidado.
Gabe fechou a porta, e ao pouco tempo Laura ouviu o motor do todoterreno. Foi � sala de estar, e viu como partia.
Por estranho que parecesse, n�o se sentiu sozinha apesar de que na cabana se feito um sil�ncio absoluto. Soltou uma suave gargalhada ao admitir para si que
estava um pouco nervosa, embora se disse que era o normal para uma futura noiva. Se Gabe se sa�a com a sua... e come�ava a suspeitar que quase sempre era assim...
casariam-se essa mesma tarde.
Laura se deu conta de que sua vida ia voltar a trocar por completo, mas essa vez seria melhor, porque ela se asseguraria de que fora assim.
Levava toda a manh� sentindo uma ligeira dor na parte baixa das costas, e se levou uma m�o � zona para tentar acalm�-lo. Pensando que certamente
devia-se ao colch�o e de noite inquieta que tinha passado, foi jogar lhe uma olhada ao retrato.
Gabe o tinha terminado no dia anterior, sabia porque lhe tinha advertido que n�o o tocasse, porque a pintura demoraria um par de dias em secar de tudo.
sentou-se no tamborete que ele estava acostumado a utilizar, e contemplou seu pr�prio rosto.
De modo que assim era como a via, pensou. Tinha a pele p�lida, com apenas uma ligeira sombra de cor nos ma��s do rosto, e aquela brancura, aquela qualidade transl�cida,
era em parte o que fazia que parecesse o anjo que ele a chamava �s vezes. Parecia como se estivesse apanhada em uma enso�aci�n, uma das muitas nas que se
tinha submerso durante as horas em que Gabe a pintava. Como j� lhe havia dito, a vulnerabilidade que se refletia em seus olhos e ao redor de sua boca era excessiva,
e embora a pose e a inclina��o de sua cabe�a revelavam for�a e independ�ncia, o olhar triste de seus olhos negava aquela firmeza.
Laura decidiu que estava lendo muito em um simples quadro, e ao sentir de novo a dor, levantou-se e come�ou a passear-se pela cabana enquanto se esfregava
a base das costas.
Em um par de horas, ia casar se ali mesmo. N�o haveria uma multid�o de conhecidos, nem um pianista tocando can��es rom�nticas, nem um reguero de p�talas de
rosa, mas ia ser uma noiva apesar de n�o ter toda aquela parafern�lia. Possivelmente n�o podia fazer que fora uma cerim�nia festiva, mas decidiu que ao menos se
celebraria em um s�tio ordenado e come�ou a arrumar um pouco a cabana.
Finalmente, a dor em suas costas fez que se deitasse um momento, e duas horas mais tarde ouviu que o todoterreno se aproximava. ficou ali tombada um pouco mais,
tentando aliviar o desconforto que sentia, e se disse que mais tarde se daria um comprido banho para ver se lhe passava. Saiu � sala de estar justo quando Gabe
entrava com um casal bastante maior.
-Laura, apresento-te ao senhor e � senhora Witherby. O � um juiz de paz.
-Ol�, muito obrigado por vir at� aqui.
-N�o se preocupe, forma parte de meu trabalho -disse o senhor Witherby, ajustando-as �culos empanados-. Al�m disso, seu futuro marido n�o estava disposto a aceitar
um n�o por resposta.
-N�o lhe fa�a caso a este velho cascarrabias, adora queixar-se -comentou a senhora Witherby, enquanto lhe dava uns tapinhas a seu marido no bra�o e olhava
a Laura com aten��o.
-Querem algo?, um caf�?
-N�o se preocupe, o senhor Bradley trouxe um mont�o de provis�es. Voc� sinta-se e deixe que ele se encarregue de tudo -a mulher tirou do bra�o a Laura com
uma de suas fr�geis m�os, e a levou at� o sof�-. O homem est� t�o nervoso como um pato em Natal, deixe que se mantenha ocupado um momento.
Laura n�o p�de imaginar-se ao Gabe nervoso por nada, mas sup�s que os Witherby esperavam aquela rea��o de um homem a ponto de casar-se. Para ouvi-lo trastear
com bolsas e cacharros na cozinha, sugeriu:
-Talvez teria que ir jogar lhe uma m�o.
-N�o, � melhor que fique aqui sentada -a senhora Witherby lhe indicou com um gesto a seu marido que se sentasse tamb�m, e acrescentou-: uma mulher tem direito a
que a mimem quando est� gr�vida, Deus sabe que n�o ter� muito tempo para sentar-se quando nascer o menino.
Agradecida, Laura se moveu ligeiramente para tentar aliviar a dor de suas costas.
-T�m filhos?
-Seis, al�m de vinte e dois netos e cinco bisnetos.
-E outro de caminho -anunciou o senhor Witherby, enquanto tirava uma pipa.
-Guarda agora mesmo essa coisa pestilenta -ordenou-lhe sua mulher-. N�o quero que fume em uma habita��o onde h� uma mulher gr�vida.
-N�o ia acender a -respondeu-lhe o homem, antes de come�ar a mordiscar a boquilha.
Satisfeita ao ver que seu marido se comportava, a senhora Witherby se voltou para a Laura.
-Que quadro t�o bonito, � que seu futuro algemo � um artista? -comentou, assinalando uma paisagem que poderia vender-se por uma quantidade de seis cifras.
Seu futuro algemo. Laura sentiu uma pontada mescla de p�nico e prazer para ouvir aquelas palavras.
-Sim, Gabe � um artista.
-Eu gosto dos quadros, tenho um de uma praia em cima de meu sof� -disse a mulher.
Gabe entrou na habita��o com um mont�o de flores nos bra�os, e se esclareceu garganta ao sentir-se um pouco inc�modo.
-Vendiam-nas no mercado -disse.
-E ele as comprou todas -disse a senhora Witherby, divertida, enquanto se levantava do sof�-. Tem um vaso?, sua prometida n�o pode as conduzir todas.
-N�o, acredito que... n�o sei.
-Homens -a mulher suspirou, e piscou os olhos o olho a Laura-. d�-me isso eu me ocupo delas. Voc� v� fazer algo �til, como p�r algo mais de lenha no fogo.
N�o quero que sua futura algema se resfrie.
-Agora mesmo, senhora.
Gabe n�o recordava haver-se sentido t�o in�til em toda sua vida. Foi � chamin�, desejando ocupar-se com algo.
-N�o deixe que lhe intimide, mo�o. aconteceu-se cinq�enta e dois anos me dando a tabarra -disse-lhe o senhor Witherby, que seguia comodamente sentado em uma cadeira.
-Algu�m tinha que faz�-lo -exclamou a senhora Witherby da cozinha.
O homem soltou uma gargalhada, e comentou:
-Est� seguro de que sabe onde se est� colocando?
Gabe se limpou as m�os nas cal�as e sorriu.
-N�o.
-Muito bem, disso se trata -Witherby se p�s-se a rir, e apoiou a cabe�a no respaldo da cadeira-. Essie, quer acabar de uma vez? A estes senhores gostaria
casar um dia destes.
-Mantenha a l�ngua na boca, j� perdeste os dentes que ficavam -disse a mulher, ao entrar na sala de estar com um regador cheia de flores. A
colocou no centro da mesita de caf�, assentiu com aprova��o, e deu a Laura um �nico cravo.
-Obrigado, s�o preciosas -come�ou a levantar-se, e esteve a ponto de soltar um gemido ao sentir outra pontada de dor nas costas.
Gabe se aproximou dela e se colocaram juntos frente ao fogo, enquanto a lenha crepitava e o aroma das flores se mesclava com o da fuma�a. As palavras que
pronunciaram foram simples e ancestrais, e apesar da quantidade de bodas �s que tinha assistido, a senhora Witherby se secou as l�grimas dos olhos.
"Para te amar, te honrar e te respeitar".
- "Na riqueza e na pobreza".
"E prometo te ser fiel" Gabe lhe colocou um anel muito singelo, uma simples banda de ouro que ficava muito grande, e ao olh�-lo Laura sentiu que algo crescia
em seu interior, algo quente, doce e tr�mulo. Entrela�ou os dedos com os seus, e repetiu as mesmas palavras com uma sinceridade que provinha direta do cora��o.
-Pode beijar � noiva -disse Witherby.
Gabe nem sequer o ouviu. J� estava, era irrevog�vel, e at� esse momento n�o se deu conta de quanto significava para ele.
Com a m�o da Laura ainda na sua, beijou-a e selou a promessa.
-Felicidades -a senhora Witherby posou seus l�bios ressecados na bochecha do Gabe, e depois na da Laura-. Senhora Bradley, agora sinta-se enquanto eu lhe preparo
uma ta�a de ch�, antes de que seu marido nos leve de volta a casa.
-Obrigado, mas n�o temos ch�.
-comprei um pacote -disse Gabe.
-Sim, e tudo o que lhe punha por diante. Venha, Ethan, v�em me dar uma m�o.
-� que n�o pode preparar uma ta�a de ch� voc� sozinha?
A senhora Witherby p�s os olhos em branco.
-casou a mais de quinhentas casais, e n�o entende nada de romantismo. Ethan, v�em a cozinha e deixa cinco minutos de intimidade a estes jovens.
O homem resmungou que queria ir-se jantar, mas obedeceu a sua mulher.
-S�o muito am�veis -murmurou Laura.
-N�o acredito que tivesse conseguido apartar o da televis�o, se ela n�o o tivesse tirado da casa.
Permaneceram em silencio durante uns segundos, sem saber o que fazer.
-Obrigado por pensar nas flores... e no anel -disse ela ao fim.
Gabe lhe levantou a m�o, e contemplou a j�ia.
-No Lonesome Ridge n�o h� nenhuma joalheria, mas na loja de ferragens vendem estes em uma caixa junto a um mont�o de pregos. Pode que o dedo fique verde.
Ela se p�s-se a rir, consciente de que ia entesourar o ainda mais.
-Embora n�o lhe cria isso, pode que me tenha salvado a vida ao comprar o ch�.
-Tamb�m te trouxe pipocas.
Laura se zangou consigo mesma por n�o poder controlar-se, mas se p�s-se a chorar.
-Sinto muito, n�o posso evit�-lo.
Gabe n�o soube como reagir. Estava um pouco nervoso, e as l�grimas dela n�o ajudaram a que se tranq�ilizasse.
-Olhe, j� sei que n�o foi as bodas do s�culo exatamente, poder�amos organizar uma festa ou um banquete quando voltarmos a S�o Francisco.
-N�o, n�o � isso -Laura se passou as m�os pela cara, mas as l�grimas seguiram caindo-. foi preciosa, maravilhosa... n�o sei como te dar as obrigado.
-Para come�ar, poderia deixar de chorar -Gabe se tirou um len�o enorme do bolso, que a maioria das vezes estava acostumadas usar como trapo quando pintava, e se
ofereceu-o-. Laura, estamos legalmente casados, assim n�o tem que me agradecer cada punhado de flores que te d�.
Ela se sorveu as l�grimas, e tentou sorrir.
-Acredito que foram as pipocas.
-Se seguir assim, n�o vou comprar te mais.
-Quero que saiba... -Laura se secou a cara, enquanto tentava recompor-se-. Quero que saiba que vou fazer tudo o que possa por te fazer feliz, para que
nunca te arrependa disto.
-vou arrepender me se segue fazendo que pare�a que dei a algu�m meu salva-vidas quando o navio se afunda -disse Gabe, s�bitamente impaciente-. Hei-me
casado contigo porque quis, n�o por nobreza.
-Sim, mas...
-Laura, te cale.
Para assegurar-se de que o fazia caso, Gabe fechou a boca sobre a sua, e pela primeira vez Laura se deu conta da verdadeira for�a do desejo e a paix�o
daquele homem. Com um murm�rio de surpresa, apertou-o com mais for�a contra seu corpo.
Aquilo era qu�o �nico Gabe necessitava para tranq�ilizar-se, mas quando a tens�o come�ou a desvanecer-se, come�ou a surgir nele um desejo irrefre�vel.
-Logo vamos chegar at� o final -sussurrou ele contra sua boca-. Quero fazer o amor contigo, e te asseguro que depois n�o ficar�o for�as para me dar
as obrigado.
antes de que ela pudesse pensar em uma resposta adequada, a senhora Witherby apareceu com o ch�.
-Agora, deixe que a pobrecilla descanse um pouco e que tome antes de que se esfrie -a mulher deixou a ta�a sobre a mesa que havia frente a Laura-. Sinto
fazer que tenha que sair no dia de suas bodas, senhor Bradley, mas quanto antes nos leve de volta, antes poder� voltar e lhe preparar a sua mulher esse suculento filete
que comprou para o jantar.
A senhora Witherby foi recolher seu casaco, e seguindo um impulso, Laura tirou uma das flores do regador e a deu.
-Nunca a esquecerei, senhora Witherby.
-Obrigado -emocionada, a mulher cheirou a flor-. Cuide-se, espero que tudo v� bem com o menino. Ethan, vamos.
-Voltarei em uma hora mais ou menos, as estradas n�o est�o muito mal -disse-lhe Gabe-. Laura, acredito que deveria descansar, parece exausta.
-sup�e-se que deveria estar resplandecente, mas te prometo que n�o levantarei nada mais pesado que minha ta�a de ch� at� que volte.
Contemplou como se afastava o todo terreno, passando o dedo uma e outra vez por seu anel de casada. Era incr�vel o pouco que fazia falta para trocar tanto,
disse-se enquanto se esfregava as costas dolorida.
Cruzou a habita��o para acabar o ch�, e se deu conta de que nunca lhe tinha do�do tanto, nem sequer depois de um dia inteiro de trabalho na granja de
sua tia. A dor era constante e profunda, e come�ou a se estirar e a encolher uma e outra vez. impacientou-se e tentou ignor�-lo, pensar em pipocas e em ch� quente,
mas tudo foi em v�o.
Levava sozinha menos de dez minutos, quando teve a primeira contra��o.
N�o foi a ligeira advert�ncia que mencionavam os livros, a n�o ser uma dor aguda e prolongada. Como tomou despreparada, n�o teve tempo de empregar a t�cnica de
respira��o para suport�-la, assim que se esticou e lutou contra a dor, e se desabou contra as almofadas quando remeteu.
Sua frente se cobriu de suor enquanto tentava convencer-se de que era imposs�vel que estivesse de parto. Era muito logo, um m�s antes do previsto.
Certamente era um falso alarme, causada pelos nervos e pela emo��o daquele dia.
Mas a dor de costas... lutando por manter a calma, conseguiu sentar-se. Era poss�vel que levasse toda a manh� com dores de parto?
N�o, tinha que ser um falso alarme. Tinha que s�-lo.
Mas quando teve a segunda contra��o, come�ou a cronometrar.
Quando Gabe voltou estava na cama, mas n�o p�de cham�-lo porque estava em meio de uma dolorosa contra��o; entretanto, o medo da �ltima hora se desvaneceu
um pouco. Ele estava ali, e de alguma isso forma significava que tudo iria bem. Ouviu que punha um tronco no fogo, respirou fundo quando passou a dor, e ent�o
chamou-o.
Gabe cruzou a sala de estar em tr�s pernadas para ouvir o apresso em sua voz, mas ao chegar � porta do dormit�rio se parou em seco e sentiu que o cora��o
lhe subia � garganta.
Laura estava apoiada contra os travesseiros, m�dio tombada e meio sentada, com o rosto suado e os olhos �midos e quase negros.
-Parece-me que n�o vou poder cumprir com o que acordamos -conseguiu dizer. Ao ver o mesmo terror que ela sentia refletido no rosto do Gabe, tentou
esbo�ar um sorriso tranq�ilizador-. O menino decidiu adiantar-se um pouco.
N�o lhe perguntou se estava segura, nem come�ou a protestar enlouquecido que aquilo n�o era uma boa id�ia. Quis faz�-lo, mas rapidamente esteve junto a
ela, lhe aferrando a m�o.
-Tranq�ila. Ag�enta um pouco, vou chamar para que venha um m�dico.
-Gabe, n�o h� linha -disse ela, com voz nervosa-. Tentei chamar quando me dava conta de que isto ia muito depressa.
-Vale -lutando por conservar a calma, Gabe lhe apartou o cabelo �mido da frente-. houve um acidente, a linha deve haver-se talhado. Irei a por umas
quantas mantas mais, e te levarei no todo terreno.
Laura apertou os l�bios com for�a.
-� muito tarde, n�o ag�entaria a viagem -tentou tragar, mas o medo lhe tinha secado a boca e a garganta-. Levo horas de parto, toda a manh�, mas
n�o me dei conta. Do�a-me as costas, mas n�o lhe dava import�ncia porque pensei que era culpa dos nervos e de qu�o mau tinha dormido.
-Faz horas -murmurou ele, ao sentar-se no bordo da cama. Por um momento ficou a mente em branco, mas ent�o sentiu que os dedos dela se esticavam
sobre os seus-. Quanto tempo h� entre contra��es?
-Uns cinco minutos, estive... -jogou a cabe�a para tr�s e come�ou a respirar com ofegos curtos e profundos.
Gabe lhe aconteceu a m�o sobre o abd�men, e notou que se esticava. Tinha estado lendo os livros sobre parto e cuidado de beb�s que ela tinha levado, e embora
em seu momento se havia dito que s� era para passar o momento, algo muito dentro lhe tinha levado a tentar entender pelo que estava passando. Talvez tinha sido
o instinto o que tinha feito que assimilasse os conselhos, os detalhes e as instru��es, mas ao v�-la sofrendo se esqueceu de tudo.
Quando passou a contra��o, Laura tinha a cara ainda mais suarenta.
-Cada vez s�o mais freq�entes, n�o fica muito tempo -sussurrou. Embora se mordeu os l�bios, n�o p�de evitar que lhe escapasse um solu�o-. N�o posso perder a
meu beb�.
-Ao beb� n�o lhe vai passar nada, e a ti tampouco -disse ele, enquanto lhe apertava a m�o tranquilizadoramente.
foram necessitar mont�es de toalhas, terei que esterilizar umas tesouras e tamb�m algo de linho. Se um o pensava com calma, a verdade era que resultava o bastante
simples... Gabe esperava que fora t�o f�cil na pr�tica.
-Ag�enta, vou a por um par de coisas -viu o brilho de d�vida em seus olhos, e se inclinou sobre ela-. Laura, n�o vou deixar te sozinha. vou cuidar te, confia em mim.
Ela assentiu, deixou cair a cabe�a sobre o travesseiro e fechou os olhos.
Quando Gabe voltou, tinha os olhos fixos no teto e estava ofegando. O deixou umas toalhas podas no p� da cama, e a cobriu com outra manta.
-Tem frio?
Ela negou com a cabe�a.
-Ter� que manter quente ao menino, � um pouco prematuro.
-pus mais lenha no fogo, e temos um mont�o de mantas -limpou-lhe a cara meigamente com um trapo �mido, e acrescentou-: falaste com m�dicos e h�
lido um mont�o de livros, assim sabe o que vai passar.
Laura o olhou, enquanto tentava tragar com dificuldade. Sim, sabia o que ia passar, mas ler sobre isso, imaginar-lhe era muito diferente � experi�ncia
real.
-Todos mintam -esbo�ou um d�bil sorriso ao v�-lo franzir o cenho-. Dizem-lhe que n�o d�i tanto se tenta acompanhar � dor.
Gabe se levou a m�o dela a seus l�bios, e a manteve ali.
-Grita tudo o que queira, faz que o teto se venha abaixo com seus alaridos. Ningu�m vai te ouvir.
-N�o vou trazer este menino ao mundo em meio de gritos -Laura soltou um ofego, e apertou com for�a sua m�o-. N�o posso...
-Sim, claro que pode. Ofega, me aperte a m�o. Com mais for�a. Vamos, te concentre nisso -manteve seus olhos fixos nos dela, enquanto Laura expulsava
o ar-. Est�-o fazendo bem, melhor que bem -quando o corpo dela se relaxou, Gabe foi at� os p�s da cama-. Cada vez h� menos tempo entre contra��es,
verdade? -enquanto falava, ajoelhou-se no colch�o e levantou a manta.
-J� quase se v�o acontecendo sem logo que descanso.
-Isso significa que j� se est� acabando, te aferre a isso.
Laura tentou umedecer-se seus l�bios ressecados, mas sentia a l�ngua torcida.
-me prometa que, se me passar algo...
-N�o te vai passar nada -disse ele com brutalidade.
Seus olhares voltaram a encontrar-se, a dela carregada de dor, a dele de decis�o.
-Maldita seja, n�o vou perder lhes a nenhum dos dois, est� claro? Os tr�s vamos tirar isto adiante. Agora tem trabalho que fazer, anjo.
Gabe se estremeceu com cada contra��o que sacudiu seu corpo. O tempo parecia ralentizarse enquanto ela sofria, e acelerar-se quando descansava. O ia de
um lado para outro, lhe colocando bem os travesseiros, lhe secando a cara e ajoelhando-se a seus p�s para comprovar o progresso do parto.
Embora Gabe ouvia o fogo crepitando com for�a na sala de estar, preocupava-lhe que a cabana estivesse muito fria. Depois come�ou a preocupar-se com o
calor, j� que o corpo da Laura parecia uma estufa.
Jamais se teria imaginado que o parto podia ser t�o duro para uma mulher. Sabia que ela estava exausta, mas mesmo assim conseguia superar a dor uma e outra
vez, e parecia recarregar as for�as de alguma forma nos breves momentos de pausa entre contra��es. A dor parecia sacudir a de forma implac�vel com uma
dureza terror�fica, e com sua pr�pria camisa empapada de suor, ele soltou um juramento em sil�ncio enquanto a animava a que respirasse, a que ofegasse, a que se concentrasse.
Todas suas ambi��es, suas alegrias e suas penas se desvaneceram, e s� existia aquela habita��o, aquele momento e aquela mulher.
Gabe acreditou que ela se iria debilitando com o corpo t�o castigado pela nova vida que lutava por nascer, mas conforme foram passando os minutos, Laura
pareceu encher-se de energia renovada. Com express�o fera e valorosa, tornou-se para diante e se preparou para o que estava por chegar.
-pensaste no nome? -perguntou-lhe, para tentar distrai-la.
-Fiz umas listas. Algumas noites, tentava imaginar sua apar�ncia, Y... OH, Deus.
-Ag�enta. Respira, anjo, respira.
-N�o posso, tenho que empurrar.
-Ainda n�o, ainda n�o. dentro de pouco -desde sua posi��o aos p�s da cama, Gabe a acariciou-. Laura, ofega.
Ela tentou manter a concentra��o, consciente de que se o olhava aos olhos e tirava for�a deles, conseguiria sair adiante.
-N�o posso ag�entar muito mais.
-N�o faz falta, j� vejo a cabe�a -disse ele com voz maravilhada, ao voltar a olh�-la-. Posso v�-la. Empurra na pr�xima.
Enjoada, Laura empurrou com todas suas for�as, e para ouvir um comprido e profundo gemido gutural, n�o se deu conta de que tinha sa�do de sua pr�pria boca. Gabe lhe lan�ou
gritos de �nimo, e ela come�ou a ofegar de novo.
-Bem, muito bem -ele logo que reconheceu sua pr�pria voz, nem suas pr�prias m�os. Ambas as coisas lhe tremiam-. J� tenho a cabe�a, tem um filho precioso. Agora os
ombros.
Ela se preparou, desesperada-se por ver algo.
-OH, Deus -as l�grimas se mesclaram com o suor, e Laura se cobriu a boca com as m�os-. � t�o pequeno...
-E forte como um touro. Tem que empurrar para que saiam os ombros -com a frente coberta de suor, Gabe colocou a m�o sob a cabe�a do menino e se inclinou
para diante-.Venha, Laura, vamos ver o de p�s a cabe�a.
Ela enterrou os dedos nos len��is, jogou a cabe�a para tr�s e deu a luz. por cima de sua pr�pria respira��o ofegante, ouviu o primeiro pranto do beb�.
-� um menino -com olhos �midos, Gabe sustentou � nova vida que se retorcia em suas m�os-. Tem um filho.
Enquanto as l�grimas lhe ca�am pelas bochechas, Laura se p�s-se a rir. O terror e a dor ficaram esquecidos imediatamente.
-Um menino, um menino pequeno.
-Com uns bons pulm�es, cinco dedos em cada m�o e cinco em cada p� -agarrou-a pela m�o, e a apertou com for�a-. � perfeito, anjo.
Com os dedos entrela�ados, sorriram enquanto a cabana se enchia com o ensurdecedor e indignado pranto do rec�m-nascido.
N�o podia descansar. Apesar de que Gabe queria que dormisse um pouco, Laura era incapaz de fechar os olhos. O menino, que j� quase tinha completo uma hora de vida,
estava envolto em len��is e acurrucado na curva de seu bra�o, e embora estava dormindo, ela n�o p�de conter-se e riscou seu carita com a gema de um dedo.
Era t�o pequeno... pesava dois quilogramas e m�dio segundo a balan�a de cozinha que Gabe tinha tirado e limpo a consci�ncia, media quarenta e cinco cent�metros, e
tinha um pouco de pelusilla loira na cabe�a. Laura n�o podia apartar os olhos dele.
-Suponho que sabe que n�o vai desaparecer de repente, n�o?
Ela levantou o olhar para a porta e sorriu. Tinha a pele quase transl�cida por causa da fadiga, e seus olhos resplandeciam com um brilho triunfal.
-J� sei -estendeu a m�o para o Gabe para que se aproximasse, e quando ele se sentou no bordo da cama, disse-lhe-: sei que deve estar muito cansado, mas
eu gostaria que ficasse um momento.
-Voc� tem feito todo o trabalho -murmurou ele, enquanto acariciava com um dedo a bochecha do menino.
-Isso n�o � verdade, e � o primeiro que queria te dizer. N�o o ter�amos conseguido sem ti.
-claro que sim, eu s� te dei �nimos.
-N�o -Laura lhe deu um ligeiro apert�o na m�o, para fazer que a olhasse � cara-. � t�o respons�vel por esta nova vida como eu. Sei o que disse sobre
o de p�r seu nome na partida de nascimento e sobre o de nos ajudar, mas quero que saiba que � muito mais que isso. Voc� o trouxeste para o mundo, e jamais poderei
dizer ou fazer o bastante. E n�o me olhe assim -Laura soltou uma suave gargalhada, e se acomodou entre os travesseiros-. J� sei que voc� n�o gosta de nada que te d� as obrigado,
e n�o � o que estou fazendo.
-De verdade?
-Claro que n�o -Laura lhe p�s ao menino nos bra�os, em um gesto mais eloq�ente que as palavras-. Estou-te dizendo que hoje n�o s� conseguiste uma mulher.
O beb� seguiu dormindo tranq�ilamente, acurrucado entre eles.
Sem saber o que dizer, Gabe acariciou uma pequena manita e a viu fechar-se. Como artista, tinha acreditado que entendia o que era a beleza... at� esse momento.
-estive lendo sobre os beb�s prematuros -comentou-. Tem um peso correto, e segundo o livro, um menino que nasce depois de trinta e quatro semanas de gesta��o
n�o tem por que ter nenhum problema. Mesmo assim, quero lhes levar a hospital. Crie que estar� o bastante forte para Ir avermelhado Springs amanh�?
-Sim, os dois o estaremos.
-Ent�o, iremos pela manh�. Quer comer algo?
-Comeria- um cavalo.
Gabe sorriu, mas foi incapaz de lhe devolver o menino.
-Ter� que te conformar com um filete de ternera.Y ele, n�o tem fome?
-Suponho que quando a tiver nos far� saber isso.
Igual a Laura antes que ele, Gabe sentiu a necessidade de riscar a forma de seu carita.
-O que me diz do nome?, n�o podemos seguir chamando-o "ele".
-N�o, n�o podemos -Laura acariciou a suave pelusilla que lhe cobria a cabe�a, e comentou-: pensei que ao melhor gostaria de escolh�-lo voc�.
-Eu?
-Sim. Suponho que tem algum nome preferido, ou de algu�m importante para ti, e eu gostaria que o escolhesse voc�.
-Michael -murmurou Gabe, ao contemplar ao pequeno dormido.
Cap�tulo 6
S�o Francisco. Embora Laura sempre tinha querido visitar aquela cidade, jamais tinha esperado chegar ali com um filho de duas semanas e um marido, nem ir viver
a uma elegante casa perto da ba�a.
A casa do Gabe... e tamb�m a sua, pensou enquanto esfregava sua alian�a com o polegar em um gesto nervoso. Sabia que era absurdo sentir-se inc�moda porque a
casa fora grande e preciosa, e que resultava rid�culo sentir-se pequena e insegura ao notar a opul�ncia e o poder que se respiravam no ar, mas n�o podia evit�-lo.
Ao entrar no vest�bulo, desejou com desespero voltar para a calidez reconfortante da pequena cabana. O dia que se foram de Avermelhado tinha come�ado
a nevar outra vez, e embora adorava a suave brisa primaveril e os pequenos brotos das novelo em Calif�rnia, descobriu que sentia falta do frio e a
ferocidade das montanhas.
-� preciosa -conseguiu dizer, enquanto seguia com o olhar a suave curva ascendente das escadas.
-Era de minha av�, conservou-a depois de casar-se -Gabe deixou a bagagem no ch�o, e contemplou aquele lugar t�o familiar para ele. Era uma casa que sempre
tinha-lhe gostado de muito, por sua beleza e seu equil�brio-. Quer que lhe ensine isso, ou prefere descansar um pouco?
Laura esteve a ponto de fazer uma careta, porque dava a impress�o de que ele estava falando com uma simples convidada.
-Se descansasse tanto como voc� quer, passaria-me o que fica do ano dormindo.
-Vale, ent�o te ensinarei o piso de acima.
Gabe era consciente de que soava am�vel, inclusive muito, mas tinha come�ado a ficar nervoso desde que tinham descido do avi�o, porque Laura parecia
haver-se ido refugiando mais em si mesmo conforme se foram afastando de Avermelhado. N�o teria sabido explic�-lo exatamente, mas sabia que n�o eram imagina��es delas.
Agarrou duas malas, e come�ou a subir as escadas. Estava levando a casa a sua mulher e a seu filho, e n�o estava seguro do que lhes dizer a nenhum dos dois.
-Eu utilizo este dormit�rio -entrou na habita��o, e deixou as malas aos p�s da enorme cama de carvalho-. Se voc� gostar de outra, pode arrumar-se.
Laura assentiu. Embora tinham compartilhado a habita��o do hotel enquanto o menino permanecia no hospital, s� tinham dormido juntos na cabana, a noite
antes de que Michael nascesse. Mas ali as coisas seriam diferentes... tudo seria diferente.
-� uma habita��o muito bonita.
Notou que sua voz parecia um pouco tensa, mas sorriu para tentar suavizar a situa��o. O dormit�rio, que tinha um teto elevado e estava decorado com elegantes
antiguidades, era precioso. Havia uma terra�o, e atrav�s das portas acristaladas se via o jardim que havia debaixo, onde as folhas das �rvores j� come�avam
a brotar. Os ch�os resplandecentes estavam obscurecidos pelo passo dos anos, e as cores ligeiramente descoloridas do tapete falavam de uma heran�a
transmitida atrav�s de gera��es.
-O quarto de banho est� a� -disse-lhe Gabe, enquanto ela percorria com um dedo as formas esculpidas em uma antiga c�moda-. Meu estudo est� ao final do corredor,
porque ali h� melhor luz. Acredito que poder�amos p�r ao menino na habita��o que h� ao lado desta.
Qualquer tens�o que pudesse haver entre eles sempre se relaxava ao falar do beb�.
-Eu gostaria de ir ver a. depois de estar no hospital, Michael se merece ter seu pr�prio quarto.
Foram ao dormit�rio do lado, que estava decorado em tons azuis e cinzas, e que tinha uma majestosa cama de matrim�nio e um assento acolchoado debaixo de
a janela. Como no resto de habita��es que tinham visto at� o momento, as paredes estavam decoradas com quadros; alguns deles eram do Gabe, e outros
de artistas aos que ele respeitava.
-� preciosa, mas o que vais fazer com o mobili�rio?
-Podemos armazen�-lo em algum s�tio -disse ele, sem lhe dar a mais m�nima import�ncia a todas aquelas antiguidades-. Michael pode ficar em nossa habita��o
at� que a sua esteja terminada.
-N�o te importa? Certamente vai seguir despertando de noite durante algumas semanas mais.
-Poderia lhes deixar aos dois em um hotel at� que v� bem.
Laura abriu a boca para protestar, mas ent�o viu um olhar em seus olhos que conhecia a perfei��o.
-Sinto muito, n�o consigo me acostumar.
-Pois tenta faz�-lo -disse ele, antes de ir para ela e posar uma m�o em sua bochecha.
Cada vez que fazia aquele tenro gesto, Laura estava quase disposta a acreditar que os sonhos podiam fazer-se realidade.
-Pode que n�o tenha o equipamento necess�rio para lhe dar de comer, mas posso aprender a trocar um fralda -Gabe riscou sua mand�bula com o polegar, e acrescentou-:
me d�o bem os trabalhos manuais.
Laura sentiu que lhe acendiam as bochechas, e n�o soube se apertar-se contra ele ou apartar-se. Naquele momento o menino despertou, e tomou a decis�o por ela.
-Falando de lhe dar de comer...
-por que n�o vai ao dormit�rio?, ali estar� mais c�moda. Eu tenho que fazer um par de chamadas.
Laura sabia o que se morava.
-vais chamar a sua fam�lia?
-v�o querer te conhecer. Crie que est� o bastante forte para que devam jantar?
Ela esteve a ponto de lhe dizer com brutalidade que n�o era uma inv�lida, mas sabia que ele n�o estava falando de sua for�a f�sica.
-Sim, claro que sim.
-Vale. Tamb�m o organizarei tudo para come�ar com o da habita��o do menino. pensaste em alguma cor em concreto?
-Bom, a verdade � que... -Laura tinha pensado que teria que pintar a habita��o ela mesma, e de fato queria faz�-lo, mas se recordou que as coisas haviam
trocado. A cabana se converteu facilmente em algo que pertencia a ambos, mas a casa era s� do Gabe-. Eu gostaria de uma cor amarela, com adornos
em branco -disse finalmente.
sentou-se em uma cadeira junto � janela enquanto amamentava ao Michael, que parecia estar faminto. Era maravilhoso poder estar com ele constantemente, em
vez de ter que ir ao hospital para lhe dar de comer, para toc�-lo e contempl�-lo. Tinha sido incrivelmente duro ter que deix�-lo ali, voltar para hotel onde se
hospedavam e esperar a que chegasse a hora de poder ir v�-lo de novo.
Sorridente, contemplou-o enquanto comia. O menino tinha os olhos fechados, e uma m�o apertada contra o peito dela.
J� tinha come�ado a ganhar peso, e o doutor que o tinha atendido em Avermelhado Springs lhes tinha assegurado que estava completamente s�o, enquanto a enfermeira
colocava-lhe na boneca um bracelete identificativa com seu nome: Michael Monroe Bradley.
Laura se perguntou quem seria o Michael do Gabe. N�o o tinha perguntado, mas sabia que aquele nome, aquela pessoa, era algu�m importante para ele.
-Agora, voc� � Michael -murmurou-lhe ao menino, que come�ou a ficar dormitado contra seu peito.
Mais tarde, Laura o deitou na cama, e o rodeou de travesseiros embora sabia que ainda era muito pequeno para d�-la volta. Embora sabia que era uma tolice
querer deixar alguma marca de si mesmo na habita��o, foi tirar um pente de sua mala e o deixou sobre o penteadeira antes de sair.
Encontrou ao Gabe na planta baixa, em uma biblioteca de madeira escura com uma suave atapeta cor cinza. Ao ver que estava falando por telefone fez gesto
de partir, mas lhe assinalou que entrasse sem interromper sua conversa��o.
-Os quadros deveriam chegar no fim de semana. Sim, volto a estar em circula��o. Ainda n�o o decidi, ser� melhor que voc� jogue uma primeira olhada. N�o,
vou estar muito ocupado aqui durante uns dias, mas obrigado de todas formas. J� te direi algo, adeus -Gabe pendurou o telefone, e se voltou para ela-. Onde est�
Michael?
-Dormindo. J� sei que n�o houve tempo para arrum�-lo, mas necessita um s�tio para dormir. pensei que poderia ir comprar lhe um ber�o, se pode vigi�-lo
um momento.
-N�o se preocupe, meus pais v�o chegar de um momento a outro.
-Ah.
Gabe se sentou no bordo de seu escrit�rio, e a olhou com o cenho franzido.
-Laura, n�o s�o uns monstros.
-Claro que n�o, o que passa � que... d�-me a impress�o de que estamos completamente ao descoberto. Quanta mais gente saiba da exist�ncia do Michael, mais
risco estaremos correndo.
-N�o pode mant�-lo em uma borbulha de cristal; al�m disso, pensava que confiava em mim.
-Claro que confiava... que confio em ti -embora se apressou a corrigir-se, n�o foi o suficientemente r�pida.
-Assim "confiava", em passado -comentou Gabe, mais ferido que zangado-. Laura, tomou uma decis�o. O dia que Michael nasceu, disse que era meu. Vai a
tirar-me isso perdiendo peso con rapidez, su est�mago estaba casi plano, ten�a los senos firmes y plenos, y unas caderas incre�blemente estrechas. Gabe se pregunt� c�mo ser�a
-N�o, mas aqui as coisas s�o muito diferentes. A cabana era...
-Um s�tio fant�stico para que os dois pud�ssemos nos esconder do mundo, mas chegou a hora de nos enfrentar a seguinte etapa do caminho.
-E como vai ser essa etapa?
Gabe agarrou um pisapapeles, uma esfera cor �mbar com reflexos dourados mais escuros no centro. Voltou a deix�-lo sobre a mesa, e se aproximou dela. Estava
perdendo peso com rapidez, seu est�mago estava quase plano, tinha os seios firmes e plenos, e uns quadris incrivelmente estreitos. Gabe se perguntou como seria
tom�-la em seus bra�os.
-N�o sei, mas poder�amos come��-la com isto -disse, enquanto se inclinava para ela.
Ao princ�pio a beijou com ternura, at� que notou que os nervos dela se dissolviam em seu calidez. Aquilo era o que ele tinha desejado com todas suas for�as,
aquela promessa, aquela do�ura reconfortante. Quando a apertou contra si, seus corpos encaixaram � perfei��o, como tantas vezes tinha imaginado. Ela levava
o cabelo recolhido, mas ele o soltou com um simples movimento da m�o.
Laura soltou um pequeno som, como um murm�rio que podia ser de surpresa ou de aceita��o, e lhe rodeou o pesco�o com os bra�os.
E ent�o, o beijo deixou de ser meramente tenro.
Entre eles pareceu estalar uma paix�o quase imposs�vel de conter, um desejo voraz que n�o conseguiam saciar. Laura sentiu que um desejo longamente enterrado
em seu interior come�ava a crescer e a alag�-la, e se apertou com for�a contra Gabe, sussurrando seu nome.
Os l�bios dele come�aram a lhe percorrer a cara e o pesco�o, lhe marcando a fogo a pele enquanto suas m�os a acariciavam e a exploravam com uma nova liberdade.
Era muito logo. Em algum rinc�o de sua mente que ainda conservava a prud�ncia, Gabe sabia que era muito logo para algo mais que uma car�cia ou um beijo,
mas quanto mais a saboreava, mais se acrescentava sua impaci�ncia. Finalmente, tirou-a dos ombros e a apartou ligeiramente enquanto lutava por recuperar o f�lego.
-Anjo, pode que n�o confie em mim como antes, mas quero que n�o duvide nem por um segundo que te desejo.
Cedendo � tenta��o, Laura se aferrou a ele e apertou a cara contra seu ombro.
-Gabe, est� mal desejar que pud�ssemos estar os tr�s sozinhos?
-Claro que n�o est� mau -disse ele, com a vista fixa por cima de sua cabe�a enquanto lhe acariciava o cabelo-. Mas n�o � poss�vel, e tampouco seria justo para o Michael.
-Tem raz�o -Laura respirou fundo, e retrocedeu um passo-. vou ver como est�.
Come�ou a subir as escadas, sacudida pelas emo��es que ele despertava nela, mas a meio caminho se deteve em seco, at�nita.
Estava apaixonada por ele. N�o era a classe de amor que tinha chegado a aceitar, que procedia da gratid�o e da depend�ncia, e nem sequer era o v�nculo
forte e formoso que tinham forjado na chegada ao mundo do Michael. Era algo muito mais b�sico, o amor mais elementar de uma mulher por um homem, e era aterrador.
J� tinha estado apaixonada uma vez, e tinha sido algo breve e muito doloroso, um amor que a tinha encadeado. Tinha sido uma v�tima durante toda sua vida, e embora
seu matrim�nio tinha acentuado isso ao princ�pio, ao final tinha acabado por liber�-la. N�o tinha tido mais remedeio que aprender a ser forte, a dar os passos adequados.
N�o podia voltar a ser aquela mulher, pensou enquanto seus dedos se aferravam ao corrim�o. negava-se a voltar a passar por aquilo. Isso era o que mais a havia
inquietado ao ver a casa, ao ver as coisas que continha, porque n�o era a primeira vez que entrava em um s�tio assim, e no passado se havia sentido desconjurado
e completamente indefesa.
Outra vez n�o, disse-se ao fechar os olhos. Nunca mais.
Quaisquer que fossem seus sentimentos pelo Gabe, n�o permitiria que a convertessem de novo na classe de mulher que tinha sido no passado. Tinha um filho
ao que devia proteger.
Naquele momento soou o timbre da porta, e detr�s jogar um r�pido olhar por cima do ombro, Laura acabou de subir correndo as escadas.
Quando Gabe abriu a porta, uma quebra de onda de intenso perfume e um casaco de pele lhe golpearam totalmente. Era sua m�e, uma mulher de uma beleza inalter�vel e com
umas convic��es inquebr�veis, que considerava que um mero roce das bochechas n�o era uma sauda��o adequada, e preferia apertar com for�a e durante o m�ximo
tempo poss�vel.
-Joguei-te muito de menos. N�o sabia o que faria falta para te trazer de volta, mas nunca pensei que seriam uma mulher e um filho.
-Ol�, m�e -disse Gabe, com um sorriso.
Olhou-a dos p�s � cabe�a, e decidiu que estava t�o bonita como sempre. Sua m�e tinha o cabelo loiro, as bochechas tersas e os olhos do Michael. Eram
de uma cor verde mais escura que os seus, com toques de cinza, e ao v�-los Gabe sentiu uma estranha mescla de dor e de felicidade.
-Tem muito bom aspecto.
-E voc� tamb�m, embora haja perdido mais de quatro quilogramas. vais ter que recuper�-los. Onde est�o? -Sem mais cerim�nia, Amanda Bradley entrou na casa.
-Mandy, deixa respirar ao menino -disse seu marido, um homem alto e muito inteligente, com express�o s�ria. voltou-se para seu filho, e se deram um enorme abra�o-.
Me alegro de que haja tornado, agora poder� te dar a lata a ti e me deixar� em paz.
-Posso com os dois -disse Amanda, que j� estava tirando-os luvas com movimentos r�pidos e decididos-. trouxemos uma garrafa de champanha, pensei que embora
t�nhamo-nos perdido as bodas, o parto e todo o resto, ao menos pod�amos brindar para celebrar sua chegada. Gabe, pelo amor de Deus, n�o fique a� plantado...
estou desejando conhec�-los!
-Laura subiu a ver como est� o menino, por que n�o vamos sentar nos ao sal�o?
-Vamos, Mandy -disse Clif Bradley, tomando a sua mulher do bra�o quando ela come�ou a protestar.
-Muito bem, vou te dar cinco minutos para que me explique como vai o trabalho.
-Vai muito bem -disse Gabe.
Quando chegaram ao sal�o, seus pais se sentaram, mas ele estava muito tenso para fazer o pr�prio.
-J� chamei ao Mari�n -seguiu dizendo-. Os quadros que pintei em Avermelhado deveriam chegar a sua galeria de arte no fim de semana.
-Me alegro, estou desejando v�-los.
Gabe se passeou pela habita��o com as m�os nos bolsos, presa de uma agita��o que seus pais reconheceram imediatamente.
-H� uma obra em particular com a que estou especialmente afei�oado, e penso pendur�-la aqui mesmo, em cima da chamin�.
Amanda arqueou uma sobrancelha, e lan�ou um olhar ao espa�o vazio por cima do suporte. Gabe nunca aborrecimenta encontrado nada que lhe parecesse adequado para aquele
s�tio.
-Ter�o que julgar por v�s mesmos -acrescentou ele. Tirou um charuto, mas o deixou quando Laura apareceu na porta.
Ela n�o disse nada por uns segundos, e se limitou a observar ao casal que estava sentada no sof�. Aqueles eram os pais do Gabe. Sua m�e era muito bonito;
sua pele tersa logo que estava maquiada, e seu penteado acentuava suas fac��es aristocr�ticas e sua fina estrutura �ssea. Luzia uns pendentes e um colar de esmeraldas,
e levava um vestido rosa de seda e uma estola de pele de raposa.
O pai do Gabe era alto e magro, igual a ele, e Laura viu o brilho de um diamante em seu dedo mindinho. Parecia triste e calado, mas seus olhos a observavam
com uma express�o aguda e alerta.
-Apresento-lhes a Laura, minha mulher, e a nosso filho.
Laura fez provis�o de valor, apertou ao menino contra seu peito em um gesto protetor, e entrou no sal�o. Amanda se levantou a primeira, mas s� porque sempre
parecia mover-se mais rapidamente que ningu�m.
-Me alegro de te conhecer por fim -apesar de que tinha suas reservas, a m�e do Gabe sorriu com amabilidade-. Gabe n�o mencionou qu�o bonita �.
-Obrigado -Laura sentiu que lhe formava um n� na garganta, j� que era �bvio que estava ante uma mulher formid�vel. Levantou o queixo de forma instintiva,
e comentou-: me alegro de que tenham podido vir.
Amanda notou com aprova��o o pequeno gesto de orgulho e desafio.
-Quer�amos ir receber lhes ao aeroporto, mas Gabe nos disse que n�o o fiz�ssemos.
-E com raz�o -apostilou Cliff, com sua voz tranq�ila e pausada-. Se tivesse conseguido conter a minha mulher, ter�amos esperado um dia mais.
-Tolices, quero ver meu neto. Posso?
Os bra�os da Laura se esticaram de forma autom�tica, mas ao olhar ao Gabe se relaxou um pouco.
-Claro -com grande cuidado, colocou ao pequeno nos bra�os da Amanda.
-� precioso! -disse a mulher, com um ligeiro tremor em sua sofisticada voz-. Que formoso �... -o aroma do beb�, a mescla de talco, sab�o e pele delicada,
fez-a suspirar-. Gabe me disse que foi prematuro, teve algum problema?
-N�o, est� perfeitamente bem.
Como se queria provar a verdade daquelas palavras, Michael abriu os olhos e contemplou o que lhe rodeava com express�o dormitada.
-Olhou-me! -com as esmeraldas brilhando sobre sua pele, Amanda contemplou embevecida ao menino e come�ou a lhe fazer carinhos-. olhaste a seu abuelita, a que
sim?
-Ou�a, olhou-me -Cliff se aproximou e lhe acariciou o queixo.
-N�o diga tolices, para que ia querer te olhar a ti? Anda, faz algo �til e desarrolha o champanha -Amanda seguiu arrulhando ao menino, enquanto a seu lado Laura
retorcia-se as m�os com nervosismo-. Laura, vais poder beber?, n�o me lembrei de lhe perguntar ao Gabe se lhe der o peito ao menino.
-Sim que lhe dou, mas n�o acredito que haja nenhum problema por um gole.
Amanda voltou a aprovar sua atitude, e foi sentar se ao sof�.
Laura deu um passo instintivo para diante, mas se obrigou a deter-se. Aquela mulher n�o era Lorraine Eagleton, e ela tampouco era a mesma pessoa que se havia
deixado avassalar no passado; entretanto, apesar de que tentou apartar aquela imagem da mente, viu-se de novo na parte exterior do c�rculo familiar.
-iria procurar umas ta�as, mas n�o sei onde est�o -disse com voz insegura.
Sem dizer uma palavra, Gabe se aproximou de uma vitrine e tirou quatro ta�as altas de champanha.
Cliff tomou a Laura do bra�o, e sugeriu:
-por que n�o se sinta?, suponho que estar� cansada depois da viagem.
-J� vejo que se parece com seu filho -Laura sorriu, e se sentou em uma cadeira.
Quando todo mundo teve uma ta�a, Amanda levantou a sua.
-Brindaremos por... v�, ainda n�o me h�o dito como se chama o menino.
-Michael -disse Laura.
Nos olhos da Amanda apareceu um brilho de dor, e os fechou por uns segundos. Quando voltou a abri-los, estavam �midos e brilhantes.
-Pelo Michael -murmurou, e depois de tomar um gole, baixou a cabe�a e beijou ao pequeno na bochecha. Ent�o olhou ao Gabe com um sorriso, e lhe disse-: seu pai
e eu temos uma coisa para o menino no carro, quer ir busc�-lo?
Embora n�o se tocaram e o olhar durou s� um instante, Laura viu que m�e e filho compartilhavam algum tipo de comunica��o silenciosa.
-Agora mesmo volto.
-Pelo amor de Deus, n�o nos vamos comer isso -resmungou Amanda quando Gabe saiu da habita��o.
Cliff soltou uma gargalhada, e lhe acariciou o ombro em um gesto que a Laura resultou extra�amente familiar. Ent�o se deu conta de que era algo que Gabe
estava acostumado a lhe fazer a ela, e que transbordava de uma intimidade carregada de naturalidade.
Naquele momento, o homem a tirou de seu enso�aci�n ao lhe perguntar:
-Tinha estado antes em S�o Francisco?
-N�o, havia... n�o. Eu gostaria de lhes oferecer algo, mas n�o sei o que temos -de fato, nem sequer sabia onde estava a cozinha.
-N�o se preocupe, n�o nos merecemos nada depois de irromper em sua casa quando acaba de chegar -disse Cliff, enquanto colocava o bra�o tranq�ilamente no
respaldo da cadeira.
-As fam�lias n�o irrompem -protestou Amanda.
-A nossa sim -com um enorme sorriso, Cliff se inclinou e voltou a lhe acariciar o queixo ao menino-. Sorriu-me.
-Eu diria que tem feito uma careta... av� -Amanda soltou uma gargalhada, e beijou a bochecha de seu marido.
-Suponho que o ber�o � para o Michael e as rosas para mim -disse Gabe, ao entrar no sal�o com um ber�o de madeira de pinheiro carregada de len��is com encaixe, sobre
as que descansava um ramo de rosas.
-Ah, sim, as flores, me tinham esquecido. E n�o, claro que n�o s�o para ti, s�o para a Laura -Amanda lhe entregou o beb� a seu marido e se levantou.
Laura fez gesto de levantar-se, mas viu que Cliff colocava ao menino na curva de seu bra�o sem nenhum problema.
-Necessitaremos �gua para as p�r -seguiu dizendo Amanda-. Esperem, j� vou eu a procur�-la.
Ningu�m se atreveu a lhe levar a contr�ria, e a mulher saiu da habita��o com as flores.
-� preciosa -disse Laura. Acariciou com um dedo a suave madeira do ber�o, e comentou-: pouco antes de que voc�s chegassem, est�vamos comentando que Michael
necessitava uma.
-� o ber�o dos Bradley -disse Cliff-. Gabe, acerta os len��is e vamos ver se ao menino gosta.
-Este ber�o � uma tradi��o familiar -explicou-lhe Gabe, enquanto tirava obedientemente as mantas restantes e alisava o suave tecido branco-. Construiu-a meu
bisav�, e todos os meninos da fam�lia Bradley puderam balan�ar-se nela -quando tudo esteve preparado, tomou ao pequeno de bra�os de seu pai-.vamos ver se lhe
gosta, muchachote.
Ao ver que Gabe deitava ao menino e lhe dava um pequeno empurr�ozinho ao ber�o para que se balan�asse, Laura sentiu que algo se rompia em seu interior.
-Gabe, n�o posso.
Ele estava de cuclillas junto ao ber�o, e quando levantou o olhar para ela Laura viu em seus olhos um desafio, uma provoca��o, e uma f�ria velada.
-O que � o que n�o pode?
-N�o est� bem, n�o � justo -Laura tirou o menino do ber�o-.T�m que sab�-lo.
Esteve a ponto de sair correndo, mas naquele momento Amanda apareceu com as rosas em um vaso de cristal.
A mulher notou a tens�o que vibrava no ambiente, e entrou na habita��o perguntando-se a que se devia.
-Onde quer que as ponha, Laura?
-N�o sei, n�o posso... por favor, Gabe...
-Acredito que ficar�o bem ao lado da janela -comentou a mulher com voz acalmada. Quando as teve colocado, acrescentou sem alterar-se-: bom, cavalheiros, acredito que
v�s tr�s deveriam ir entreter lhes com algo enquanto Laura e eu temos um pequeno bate-papo.
Laura sentiu uma pontada de p�nico, e se voltou para seu marido.
-Gabe, tem que dizer-lhe -Querida, no me hagas caso -se�al� con un gesto una de las sillas, y le pregunt�-: �no preferir�as sentarte? -cuando Laura lo hizo sin protestar, la mujer enarc�
Ele tomou ao menino em seus bra�os e o apoiou em seu ombro antes de olh�-la. Sua express�o era serena, mas seus olhos seguiam refletindo seu aborrecimento.
-J� o tenho feito -disse, e sem mais a deixou a s�s com sua m�e.
Amanda voltou a sentar-se no sof�, cruzou as pernas e se alisou a saia do vestido.
-Que l�stima que a chamin� n�o esteja acesa, verdade? Ainda faz bastante afresco para esta �poca do ano.
-Ainda n�o tivemos tempo de...
-Querida, n�o me fa�a conta -assinalou com um gesto uma das cadeiras, e lhe perguntou-: n�o preferiria te sentar? -quando Laura o fez sem protestar, a mulher arqueou
uma sobrancelha-. Sempre � t�o obediente?, espero que n�o, eu gostava mais quando me olhava com o queixo e a frente em alto.
Laura entrela�ou as m�os em seu rega�o.
-N�o sei o que dizer, n�o sabia que Gabe o tinha explicado tudo. Ao ver como se comportavam... -deixou a frase pela metade, mas ao ver que Amanda permanecia em
sil�ncio, esperando pacientemente a que continuasse, voltou a tent�-lo-. Pensei que acreditavam que Michael era o... o filho biol�gico do Gabe.
-Deveria supor uma diferen�a t�o grande para n�s?
Laura conseguiu recuperar a calma, ao menos na apar�ncia, e conseguiu lhe devolver o olhar sem pestanejar.
-Suponho que isso seria o que cabe esperar, sobre tudo em uma fam�lia como a sua.
Amanda franziu o cenho, enquanto refletia sobre aquelas palavras.
-Quero que saiba que conhe�o o Lorraine Eagleton -ao ver o instant�neo e lhe esmaguem medo nos olhos da Laura, a mulher se tornou atr�s. N�o estava acostumado a ter muito
tato, mas n�o era uma pessoa cruel-.J� falaremos dela em outra ocasi�o, neste momento acredito que o melhor ser� que me explique. Sou uma mulher direta e firme,
mas n�o me importa que me plantem cara.
-Isso n�o me d� muito bem.
-Ent�o ter� que aprender, n�o crie? Pode que cheguemos a ser amigas e pode que n�o, � muito logo para que possa diz�-lo, mas adoro a meu filho.
Quando se foi faz meses, n�o sabia se algum dia voltaria a recuper�-lo, mas por alguma raz�o voc� tem feito que retorne, e te estou agradecida.
-Teria voltado para casa de todas maneiras, quando se houvesse sentido preparado.
-Mas ao melhor n�o teria retornado como uma pessoa completa. Bom, deixemos o tema e vamos ao fundo da quest�o: seu filho. Gabe considera o menino como
seu pr�prio, e voc�?
-Sim.
-J� vejo que n�o duvidaste nem um momento -disse Amanda, com um sorriso id�ntico a do Gabe-, Se Gabe considerar o Michael como filho dele e voc� tamb�m, por
o que vamos sentir outra coisa Cliff e eu?
-Porque n�o tem seu sangue, sua ascend�ncia.
-Ser� melhor que deixemos aos Eagleton � margem, de momento.
Laura ficou olhando, surpreendida de que a mulher tivesse dado totalmente no branco.
-Se Gabe tivesse sido incapaz de ter filhos e tivesse adotado a um menino, eu o quereria e o consideraria meu neto, assim j� � hora de que supere todas
estas tolices e aceite a situa��o, n�o crie?
-Faz que pare�a muito f�cil.
-Parece-me que sua vida j� � bastante complicada -Amanda tomou a ta�a que tinha deixado antes sobre uma mesa-. Parece-te bem que sejamos os av�s do Michael?
-N�o sei.
-J� vejo que � sincera -comentou Amanda, antes de tomar um sorvo de champanha.
-Parece-lhe bem que seja a mulher do Gabe?
Com um ligeiro sorriso, Amanda levantou sua ta�a.
-N�o sei. Bom, suponho que teremos que esperar e ver o que acontece, n�o? Enquanto isso, n�o quereria que me pusesse impedimentos para que veja o Gabe ou a
Michael.
-N�o, claro que n�o, jamais faria algo assim. Senhora Bradley, ningu�m foi t�o bom e generoso comigo como Gabe, prometo-lhe que nunca farei nada que possa lhe fazer
dano.
-Quer-lhe?
Inc�moda, Laura lan�ou um r�pido olhar para a porta.
-N�o havemos... Gabe e eu n�o falamos que isso. Eu necessitava ajuda, e acredito que ele me precisava dar isso parte de la familia -se reclin� en el sof� y enarc� las cejas, pero sinti� una peque�a punzada de simpat�a-. Por la expresi�n de tu cara, deduzco que eso no te entusiasma.
Amanda franziu os l�bios e contemplou sua ta�a.
-Acredito que n�o foi isso o que te perguntei.
Laura voltou a levantar o queixo.
-Isso � algo que tenho que discutir com o Gabe antes de coment�-lo com ningu�m mais.
-� mais dura do que parece, gra�as a Deus -Amanda apurou sua ta�a, e a deixou de novo sobre a mesa-. Acredito que vais acabar me gostando de... embora possa que
acabemos nos odiando, claro. Mas, sem importar o que acontecer n�s dois, n�o trocar� o fato de que Gabe se comprometeu contigo e com o menino. Formam
parte da fam�lia -reclinou-se no sof� e arqueou as sobrancelhas, mas sentiu uma pequena pontada de simpatia-. Pela express�o de sua cara, deduzo que isso n�o te entusiasma.
-Sinto muito, n�o estou acostumada a pertencer a uma fam�lia.
-N�o tiveste uma vida muito f�cil, verdade?-a voz da Amanda continha um certo matiz de compaix�o, mas n�o em excesso, j� que n�o queria que Laura se sentisse
inc�moda. Naquele momento, tomou nota mental de indagar um pouco sobre os Eagleton.
-Estou tentando deixar atr�s todo isso.
-Espero que o consiga. H� coisas do passado que devem recordar-se, e outras que � melhor esquecer.
-Senhora Bradley... posso lhe fazer uma pergunta?
-Sim, mas com a condi��o de que comece a tutearme. Pode me chamar Amanda, Mandy ou qualquer outra coisa... bom, menos "mam�e Bradley", por favor.
-Trato feito. Por quem lhe p�s Michael ao menino?
Amanda voltou o olhar para o ber�o vazio, e ficou contemplando-a com uma express�o de tristeza que fez que Laura lhe cobrisse a m�o com a sua.
-Por meu filho, o irm�o pequeno do Gabe. Morreu faz aproximadamente um ano -levantou-se com um comprido suspiro, e anunciou-: � hora de que vamos, para que
possa te instalar.
-Obrigado por vir.
Laura duvidou um segundo, porque nunca estava completamente segura do que se esperava dela naqueles casos. Finalmente, obedeceu ao que lhe dizia o cora��o,
e deu um beijo a Amanda na bochecha.
-E obrigado pelo ber�o, significa muito para mim -acrescentou.
-Para mim tamb�m -a mulher passou a m�o pela madeira, antes de sair do sal�o-. Clifton, n�o foi voc� o que me disse que n�o dev�amos ficar mais de
meia hora?
Quando lhes chegou o som de sua voz do piso de acima, Amanda estalou a l�ngua e come�ou a fic�-los luvas.
-Sempre est� bisbilhotando no estudo do Gabe. N�o sabe distinguir um Monet de um Picasso, mas adora admirar o trabalho de seu filho.
-pintou uns quadros preciosos em Avermelhado, devem estar muito orgulhosos dele.
-Cada dia mais -Amanda ouviu seu marido, e elevou o olhar para o piso superior-. Se necessitar ajuda para decorar a habita��o do menino ou para procurar um bom
pediatra, n�o duvide em me dizer isso Suponho que entender� que esvazie todas as lojas de meninos que encontre a meu passo.
-Eu n�o...
-Bom, ao melhor n�o o entender�, mas ter� que toler�-lo. Cliff, lhe d� um beijo de despedida a sua nora.
-N�o fazia falta que me dissesse isso.
Em vez do beijo formal e vazio de sentimento que Laura esperava, o pai do Gabe lhe deu um enorme abra�o que a deixou aturdida e sorridente.
-Bem-vinda � fam�lia, Laura.
Ela sentiu o desejo de lhe devolver o gesto, de lhe rodear o pesco�o com os bra�os e voltar a inalar o aroma especiado da lo��o p�s-barba
que tinha notado em seu pesco�o, mas se disse que aquela rea��o era absurda e se limitou a entrela�ar as m�os.
-Obrigado, espero que voltem logo. Talvez poderiam dever jantar a semana que vem, quando tiver tido tempo de descobrir onde est� cada coisa.
-Tamb�m cozinha? -o homem lhe beliscou juguetonamente a bochecha, e disse a seu filho-: bem feito, Gabe.
Quando partiram, Laura ficou no sagu�o, esfregando-a bochecha com um dedo.
-S�o muito agrad�veis.
-Sim, sempre o pensei.
Para ouvir o tom cortante na voz do Gabe, Laura sei voltou a olh�-lo.
-Devo-te uma desculpa.
-Esquece-o -Gabe foi para a biblioteca, mas se parou em seco e se girou para ela. Que dem�nios, claro que n�o estava disposto a esquec�-lo-. Pensou que
mentiria-lhes sobre o Michael?, que haveria necessidade de faz�-lo?
Laura aceitou seu aborrecimento sem alterar-se, e admitiu:
-Sim.
Ele tinha aberto a boca para soltar algum coment�rio furioso, mas sua resposta fez que a fechasse de repente.
-V�, n�o te anda pelos ramos.
-Pensei que n�o aceitariam ao Michael como seu neto se sabiam a verdade, e me alegro de me haver equivocado. Sua m�e foi muito am�vel comigo, e seu pai...
-O que acontece ele?
Laura tinha estado a ponto de sublinhar o fato de que seu pai a tinha abra�ado, mas acreditou que ele n�o poderia entender o muito que aquilo a tinha afetado.
-parece-se muito a ti. Tentarei n�o lhes decepcionar a nenhum dos tr�s.
Gabe se passou uma m�o pelo cabelo, que lhe ca�a sobre os ombros em uma massa loira desgrenhada, como lhe gostava mais.
-Seria melhor que n�o decepcionasse a ti mesma. Maldita seja, Laura, n�o est� aqui a prova. � minha mulher, esta � sua casa, e para bem ou para mau, os Bradley
s�o sua fam�lia.
Ela apertou os dentes com for�a.
-Ter� que me dar tempo para que me acostume -disse com voz tranq�ila-. As �nicas fam�lias que conheci em minha vida apenas me toleravam, e n�o penso voltar
a passar pelo mesmo -voltou-se e come�ou a subir as escadas, mas lhe disse por cima do ombro-: por certo, vou pintar o quarto do Michael eu mesma.
Sem saber se tornar-se a rir ou soltar um palavr�o, Gabe ficou olhando-a do p� da escada.
Cap�tulo 7
Laura passou a broxa com a lustrosa pintura branca esmaltada pelo rodap�, enquanto sujeitava uma parte de cart�o na outra emano para n�o manchar o amarelo
das paredes que j� tinha terminado.
A r�dio que Gabe tinha tido na cozinha da cabana estava no ch�o, em uma das esquinas, sintonizando uma emissora que punha animadas can��es de
rock. Tinha deixado o volume bastante baixo, para poder ouvir o Michael se despertava.
N�o sabia o que a entusiasmava mais, o muito que estava avan�ando a habita��o do menino, ou o fato de poder dobrar-se e agachar-se. Inclusive tinha podido gastar
parte de suas economias em comprar duas cal�as com a talha de antes de seu embara�o; estavam-lhe um pouco ajustados na cintura, mas era otimista.
De repente, desejou que todos os aspectos de sua vida recuperassem a normalidade com tanta facilidade. Gabe ainda estava zangado com ela.
encolheu-se de ombros enquanto voltava a colocar a broxa no cubo de pintura. Ele era um homem com g�nio e bastante temperamental, nunca tinha tentado ocultar-lhe Pero la diferencia no estaba en las paredes, en las ventanas y en los suelos, sino en ellos mismos. Ella segu�a siendo Laura Malone, una chica de clase baja,
ou neg�-lo, e o certo era que ela se equivocou ao n�o confiar em que ele faria o correto. Mas j� lhe tinha pedido perd�o, e embora sabia que n�o deveria
permitir que a afetasse sua cont�nua frieza, n�o podia evit�-lo.
De alguma forma, eram dois desconhecidos como nunca o tinham sido na pequena cabana de Avermelhado. N�o era pela casa, embora ela seguia culpando em parte
a seu tamanho e sua eleg�ncia; anteriormente, a falta de espa�o lhes tinha obrigado a compartilhar, a aproximar-se, a depender o um no outro. Sentir que algu�m dependia
dela, embora s� fora para dar uma ta�a de caf� no momento justo, converteu-se em algo importante para a Laura.
Entretanto, naquela casa enorme n�o tinha que fazer quase nada, al�m de ocupar-se do Michael. Gabe e ela podiam acontecer horas sob o mesmo teto, sem saber
apenas da exist�ncia do outro.
Mas a diferen�a n�o estava nas paredes, nas janelas e nos ch�os, a n�o ser neles mesmos. Ela seguia sendo Laura Malone, uma garota de classe baixa,
qu�o mesma tinha ido casa em casa sem ter a possibilidade de viver realmente em nenhum s�tio. Qu�o mesma tinha ido de fam�lia em fam�lia, sem ter a possibilidade
de pertencer a algum lugar.
E ele era... Laura soltou uma gargalhada com certa amargura. Ele era Gabriel Bradley, um homem que tinha sabido qual era seu lugar do mesmo momento de seu
nascimento, que nunca teria que perguntar-se se seguiria no mesmo s�tio ao dia seguinte.
Isso era o que Laura queria para o Michael, o �nico que lhe importava. Traziam-lhe sem cuidado o dinheiro, o sobrenome e a enorme casa com as cristaleiras e as
elegantes terra�os, o importante era pertencer, sentir-se parte de algo, encontrar o s�tio de um na vida. Era algo que ela sempre tinha desejado, de modo
que estava decidida a que seu filho o tivesse, e por sua parte estava disposta a esperar... a lhe pertencer ao Gabe.
Ao parecer, Gabe e ela s� eram capazes de unir esfor�os nas quest�es relacionadas com o Michael.
Laura esbo�ou um sorriso, j� que n�o havia nenhuma d�vida de que ele adorava ao menino. N�o se agachava junto ao ber�o nem se passeava pela habita��o �s tr�s
da madrugada por pena ou por obriga��o, mas sim porque era um homem com uma grande capacidade para amar, e lhe tinha entregue todo seu amor ao Michael, sem nenhum tipo
de reserva. Gabe era uma pessoa atenta, carinhosa e participativa... quando se tratava do Michael.
Mas quando estavam juntos sem o menino, o ambiente sempre se carregava de tens�o.
Nem sequer se tocavam. Embora viviam na mesma casa e dormiam juntos, n�o se tocavam quase nunca, e quando o faziam era de forma totalmente fortuita e impessoal.
Como uma fam�lia, tinham ido comprar todas as coisas que Michael podia necessitar... os m�veis para seu quarto, len��is, um brinquedo que tocava uma can��o
de ber�o ao lhe dar corda, e um mont�o de peluches aos que certamente o menino demoraria meses em emprestar aten��o.
Tinha sido muito f�cil, inclusive divertido, discutir sobre cadeiras e parquecitos, e escolher juntos os artigos que foram comprando ao menino. Laura nunca havia
esperado poder lhe dar tantas coisas a seu filho, ou poder compartilhar a experi�ncia.
Entretanto, ao voltar para casa havia tornado a aparecer a tens�o entre eles.
disse-se que era uma parva; ao fim e ao cabo, tinha recebido um lar, amparo e cuidados, e sobre tudo um pai tenro e carinhoso para seu filho. Desejar mais
pelo que tinha era o que sempre a tinha levado a sofrer decep��es no passado.
Mas n�o podia evitar desejar que Gabe voltasse a lhe sorrir de novo... a ela, n�o � m�e do Michael nem a modelo de um de seus quadros.
Possivelmente era melhor seguir assim, como um par de amigos que compartilhavam um interesse comum, embora n�o sabia como ia reagir quando ele a buscasse como mulher. Sabia
que o momento chegaria cedo ou tarde, porque o desejo dele era �bvio, e era um homem muito viril para seguir compartilhando a cama com ela sem toc�-la.
Sua experi�ncia com o ato sexual lhe tinha ensinado que o homem exigia e a mulher se submetia. Gabe podia desej�-la sem am�-la, sem sentir sequer algo de
afeto por ela, e Laura sabia perfeitamente bem a falta de amor e de carinho que podia haver na cama de um matrim�nio. Um homem como Gabe teria muitas exig�ncias,
e ela cederia, porque o amava muito para lhe negar algo. E desse modo, o ciclo que tinha conseguido romper voltaria a come�ar de novo.
Gabe a contemplou da porta, consciente de que algo ia muito, mas que muito mal. Pela express�o de seu rosto e a postura de seus ombros, era �bvio que
Laura estava muito inquieta. Seu nervosismo parecia ir aumento conforme foram acontecendo os dias, e embora ela fingia que n�o passava nada, a ele n�o podia engan�-lo.
Era algo que o enfurecia, e quanto mais controlava seu g�nio, mais se incrementava seu aborrecimento. N�o lhe tinha levantado a voz nenhuma s� vez desde dia que haviam
chegado � casa, mas ela parecia estar esperando um arrebatamento de g�nio por sua parte.
Tinha-lhe dado todo o espa�o que lhe tinha sido humanamente poss�vel, e isso lhe estava matando. Dormir com ela, sentir que se voltava para ele em meio da
noite e que s� os separava o fino algod�o de sua camisola, tinha dado um novo significado � ins�nia.
Tinha come�ado a trabalhar em meio da noite, e a passar o tempo livre em seu estudo ou na galeria de arte, com tal de resistir a tenta��o de reclamar
o que j� lhe pertencia legalmente.
Laura ainda seguia muito delicada, tanto f�sica como emocionalmente, e por isso n�o se atrevia a lhe pedir nada. Sem importar qu�o ego�sta pudesse ter sido no
passado, n�o podia justificar de maneira nenhuma satisfazer-se a gastos dela... ou assust�-la deixando que visse com quanta desespero, com quanta viol�ncia a
desejava.
Mesmo assim, sabia que dentro dela havia uma paix�o explosiva, tinha-a visto refletida em seus olhos. Laura o necessitava tanto como ele a ela, e n�o estava seguro
de se algum dos dois alcan�ava a entender realmente aonde podia lhes levar aquele desejo.
Podia ser paciente. Sabia que o corpo dela necessitava tempo para recuperar do parto, e seria capaz de dar-lhe entretanto, n�o sabia se poderia esperar
a que se curassem as feridas de sua mente.
Desejava com todas suas for�as ir para ela, sentar-se a seu lado e lhe acariciar o cabelo, queria reconfort�-la, mas n�o tinha nem id�ia de como expressar o que sentia
em palavras. De modo que se meteu as m�os nos
bolsos, e lhe disse:
-Ainda n�o acabaste por hoje?
Sobressaltada, Laura se salpicou uma m�o com pintura e se apoiou nos tal�es.
-N�o te ouvi chegar.
-N�o te levante. V�, parece um quadro.
Gabe entrou na habita��o, e contemplou as luminosas paredes antes de voltar-se de novo para ela. Levava um par de velhos jeans deles, e os havia
assegurado na cintura com um pouco de corda de tender a roupa. Tamb�m se tinha posto uma de suas camisas, que ficava enorme, e a prega estava rasgada
� altura de seu quadril.
-Essa roupa �: minha?
-Pensei que n�o haveria problema -Laura agarrou um trapo, e come�ou a limp�-la pintura da m�o-.J� estava manchada de pintura, assim era �bvio que havia
trabalhado com ela.
-Ao melhor n�o conhece a diferen�a entre pintar Y... -assinalou a parede com um gesto, e acrescentou-: pintar.
Ela esteve a ponto de desculpar-se, mas ent�o se deu conta de que Gabe estava brincando. Ao ver que ele j� n�o parecia estar de mau humor, pensou que ao
melhor isso significava que voltavam a ser amigos de novo.
-N�o, n�o tenho nem id�ia. Pensei que a melhor suas cal�as dariam um pouco de inspira��o art�stica.
-Poderia ter ido � fonte.
Laura deixou a broxa em cima do bote aberto de pintura, e sentiu um grande al�vio. Embora ele n�o sabia, Gabe tinha encontrado as palavras perfeitas para tranq�iliz�-la.
-Nunca poderia lhe haver sugerido ao famoso Gabriel Bradley que esbanjasse sua genialidade em um simples z�calo.
Gabe pensou que tudo parecia muito f�cil quando ela estava assim, t�o relaxada, e com um brilho travesso nos olhos.
-Est� claro que tinha medo de que pusesse em evid�ncia.
Laura esbo�ou um sorriso um pouco vacilante, j� que fazia dias que Gabe n�o a olhava daquela forma, ent�o ele se agachou a seu lado, e ela se apressou a
ficar de joelhos.
-Gabe, n�o! Te vais manchar de pintura, e est� muito bonito.
-S�rio? -disse ele, com a broxa na m�o.
-Sim -Laura tentou tirar-lhe mas ele n�o a deixou-. Sempre fica muito elegante para ir � galeria de arte.
-V� -disse ele, com express�o de desgosto.
Laura se p�s-se a rir.
-Bom, � verdade -disse, enquanto continha o impulso de lhe passar a m�o pela franja-. � um aspecto muito diferente ao de fornido homem de campo que tinha
em Avermelhado, embora aquele tamb�m eu gostava de muito.
Gabe n�o soube se sorrir ou soltar um coment�rio zombador.
-Fornido homem de campo?
-Sim, com suas cal�as de veludo cotel�, sua camisa de flanela, o cabelo alvoro�ado e a cara mau barbeada. Acredito que ao Geoffrey teria encantado te fotografar com
uma tocha...
Laura o contemplou, comparando sua apar�ncia na cabana com a que tinha nesse momento. de repente, deu-se conta de que ainda estava cobrindo com a m�o
a sua na manga da broxa, e se apressou a apart�-la enquanto lutava por lembrar-se do que tinha estado dizendo.
-Agora n�o est� vestido para trabalhar em meio das montanhas, e estive metida no neg�cio da moda o tempo suficiente para reconhecer a roupa de boa
qualidade. As cal�as que leva s�o de linho, e lhe vais manchar isso.
Embora Gabe era plenamente consciente da s�bita tens�o nos dedos dela, e tinha visto o olhar que tinha aparecido em seus olhos, limitou-se a arquear
uma sobrancelha.
-Est� dizendo que sou descuidado?
-S� quando pinta.
-Disse a chaleira � frigideira -resmungou ele. Fazendo caso omisso do coice que deu quando lhe acariciou a bochecha com um dedo, levantou-o frente a ela para
demonstrar que tinha raz�o.
Laura franziu o nariz ao ver a pintura branca em seu dedo... e tentou ignorar o reguero de calor que lhe tinha deixado sua car�cia na pele.
-Eu n�o sou uma artista -com o trapo em uma m�o, agarrou-o pela boneca com a outra para lhe limpar a mancha.
Gabe tinha umas m�os preciosas, e se imaginou como seria as sentir percorrendo seu corpo lentamente, acariciando-a como se lhe importasse de verdade a mulher que
havia debaixo da pele. umedeceu-se os l�bios, e levantou os olhos para olh�-lo.
Estavam sentados o um junto ao outro em cima de um trapo, e ela tinha uma obstinada de suas m�os. Assombrada, notou que o pulso do Gabe se acelerava, e viu em
seus olhos o que lhe tinha oculto durante dias: desejo, puro e simples. A intensidade que percebeu nele a p�s um pouco nervosa, mas incapaz de resistir, se
inclinou para ele.
O trapo lhe caiu da m�o.
Michael come�ou a chorar.
Gabe e Laura se apartaram bruscamente, como meninos pilhados in fraganti com a m�o na caixa de bolachas.
-Deve ter fome, e certamente ter� que lhe trocar o fralda -disse ela, ao levantar-se.
Gabe a deteve agarrando a da m�o.
-Eu gostaria que voltasse aqui quando acabar.
Laura sentiu uma mescla de desejo e nervosismo que a confundiu.
-Vale. N�o se preocupe pelo z�calo, acabarei-o depois.
Laura esteve mais de uma hora com o Michael, e se sentiu decepcionada ao ver que Gabe n�o ia, como estava acostumado a fazer, a tomar em bra�os ao menino e a jogar com ele antes
de que voltasse a dormir. Esses eram os melhores momentos, os que compartilhavam com simplicidade em fam�lia; entretanto, ao tampar ao menino com as mantas se recordou
que Gabe n�o podia lhes dedicar cada minuto que tivesse livre ao menino e a ela.
Deixando ao menino s�quito e tranq�ilo, foi ao quarto de banho contig�o para refrescar-se um pouco. depois de se lavar e tir�-la pintura que lhe manchava a cara,
olhou-se no espelho de corpo inteiro que havia em frente da enorme banheira.
Vestida com roupa masculina que ficava enorme e com o cabelo recolhido em um acr�scimo, n�o tinha um aspecto nada sexy, e entretanto, por um instante Gabe havia
parecido completamente seduzido na habita��o do Michael.
Era isso o que ela queria?
Perguntando-se como podia saber o que realmente queria, Laura pressionou os dedos contra seus olhos enquanto tentava desembara�ar seus sentimentos, mas estava
completamente confundida. �s vezes tentava imaginar-se como seria estar com o Gabe, fazer o amor com ele, mas ent�o se lembrava de como tinha sido no passado,
quando o ato n�o tinha tido nada que ver com o amor.
Sabia que n�o devia deixar que as lembran�as seguissem misturando-se em sua vida, disse-se que era uma pessoa muito sensata para cair nesse engano... ou ao
menos, queria s�-lo. Tinha assistido a terapia, e tinha falado com assessoras e com outras mulheres que tinham padecido situa��es muito similares � sua. Como havia
tido que mudar-se constantemente, n�o tinha podido permanecer em nenhum grupo em concreto durante muito tempo, mas a tinham ajudado imensamente.
Saber que n�o era a �nica pessoa no mundo que tinha passado por algo assim, ver e falar com outras mulheres que tinham conseguido trocar suas vidas, havia-lhe
dado as for�as necess�rias para seguir adiante.
Ela sabia, ao menos de um ponto de vista intelectual, que o que lhe tinha passado tinha sido o resultado da enfermidade de um homem somada a sua pr�pria
inseguran�a, mas era muito diferente sab�-lo que aceit�-lo e super�-lo, que arriscar-se a ter outra rela��o.
Queria ser uma pessoa normal, e estava decidida a consegui-lo. Esse tinha sido o lema comum de todas as sess�es �s que tinha assistido em diferentes cidades.
junto com o medo, a raiva e o aborrecimento consigo mesma, tinha havido uma necessidade se desesperada para voltar a ser uma mulher normal.
Mas era muito dif�cil dar esse passo enorme e aterrador para o futuro. Com os olhos fixos no reflexo de seus pr�prios olhos no espelho, Laura se recordou que
era algo que tinha que fazer por si s�, que ningu�m podia faz�-lo por ela. Mas com o Gabe e seus sentimentos por ele, sabia que tinha uma oportunidade de consegui-lo...
se estava disposta a correr o risco.
Sabia que n�o saberia qu�o Unidos podiam chegar a estar, o muito que podiam significar o um para o outro, se n�o se permitia desejar compartilhar sua intimidade
com ele.
Laura se mordeu o l�bio inferior, e se voltou para contemplar o luxuoso quarto de banho, que era quase t�o grande como algumas das habita��es nas que
tinha vivido ao longo dos anos. Estava decorado completamente em branco, e era um espa�o reluzente que convidava ao relax e � complac�ncia.
Podia afundar-se na �gua quente e profunda da banheira, e permanecer ali at� que sua pele estivesse rosada. Ainda tinha um bote quase inteiro de um sedutor
perfume franc�s que Geoffrey lhe tinha comprado em Paris, podia ficar um pouco, e ent�o... ent�o, o que?
N�o tinha nada formoso ou feminino que ficar, a �nica roupa que n�o tinha levado a casas de empenho ou a lojas de segunda m�o durante sua fuga atrav�s do
pa�s era de premam�. Os dois pares de cal�as e as blusas de algod�o n�o contavam.
Em todo caso, o que importava se tinha ou n�o um arm�rio cheio de picardias de encaixe? Seguiria sem saber o que dizer ou fazer, j� que fazia muito tempo que n�o pensava
em si mesmo s� como mulher, ao melhor nunca o tinha feito; al�m disso, possivelmente seria melhor restabelecer a antiga camaradagem com o Gabe, antes de que tentassem ter
rela��es sexuais.
Se isso era o que ele queria... e o que ela queria, claro.
Laura saiu do quarto de banho e foi busc�-lo.
Ao chegar � habita��o do Michael, ficou com a boca aberta ao ver que o z�calo j� estava terminado, as latas de pinturas fechadas e os pinc�is e
as broxas limpos. voltou-se para o Gabe, e o viu dobrando tranq�ilamente um trapo.
-acabaste que pintar -conseguiu dizer ao fim.
-Sim, parece que o consegui sem nenhum incidente.
-ficou precioso, como sempre me tinha imaginado -Laura entrou na habita��o, e come�ou a colocar mentalmente os m�veis-. Acredito que deveria uns p�r
umas cortinas brancas, embora suponha que p�r gazes e encaixes ficaria muito feminino para um menino, n�o crie?
-Sim, acredito que sim. N�o faz frio, assim tenho aberto as janelas. N�o quero p�r ao Michael na habita��o at� que se v� do todo o aroma de pintura
-Claro -disse ela distra�damente, enquanto pensava em se seria boa id�ia p�r o ber�o entre as duas janelas.
-Agora que acabamos com a pintura, quero te dar uma coisa... considera-o um presente atrasado do dia da m�e.
-Mas se j� me deu um ramo de rosas...
O se tirou uma cajita do bolso, e respondeu:
-Nesse momento n�o tive o tempo nem a oportunidade de comprar nada mais, est�vamos vivendo do que tinha guardado em uma mala e nos pass�vamos o dia em
o hospital; al�m disso, as flores foram de parte do Michael, e isto � de minha parte.
Isso fazia que o presente fora mais especial, mais �ntimo. Laura se sentiu de novo atra�da para ele como um �m�, mas outra vez resistiu a ceder � tenta��o.
-N�o tem por que comprar nada, Gabe.
Ele n�o ocultou o familiar brilho de impaci�ncia em seus olhos.
-vais ter que aprender a aceitar presentes.
Laura sabia que ele tinha raz�o, e que n�o estava bem continuar com as compara��es, mas Tony tinha sido muito pr�digo em lhe fazer presentes carentes de significado.
-Obrigado - tomou a cajita, abriu-a e ficou de pedra.
O anel de diamantes engastados em ouro parecia um c�rculo de fogo sobre veludo. Laura o percorreu com um dedo em um gesto instintivo, e se surpreendeu
ao comprovar que n�o se queimava ao toc�-lo.
-� precioso, uma maravilha, mas.
-Claro, tinha que haver um "mas".
-� que � uma alian�a de matrim�nio, e eu j� tenho uma.
Gabe tomou a m�o esquerda, e comentou:
-Surpreende-me que n�o te tenha cansado o dedo com este anel.
-Ao anel n�o lhe acontece nada -protestou ela, a ponto de apartar a m�o.
-� que tem tanto valor sentimental para ti, anjo? -embora seu tom de voz se suavizou, seguia lhe agarrando a m�o com firmeza. Possivelmente esse fora o
momento de tentar averiguar o que ela sentia por ele-. Tanta import�ncia d� a esta parte de metal?
-Em seu momento nos serve, n�o necessito nada mais.
-Foi algo s� tempor�rio. N�o te estou pedindo que o atire pela janela, mas vais ter que ser um pouco pr�tica. Se n�o estivesse sempre encolhendo o
dedo, te cairia constantemente.
-Poderia lev�-lo a que me ponham isso a medida.
-Faz-o se quiser -Gabe o tirou do dedo, e o substituiu com o anel de brilhantes-. A partir de agora, ter� duas alian�as de casamento -quando lhe devolveu
que lhe tinha dado em Avermelhado, Laura o agarrou e o encerrou em seu punho-. O novo cont�m as mesmas inten��es e promessas.
-� precioso -Laura ficou o primeiro anel no �ndice da m�o direita, onde ficava mais ajustado-. Obrigado, Gabe.
-A outra vez o celebramos melhor.
Laura n�o necessitava que o recordasse, mas mesmo assim, quando ele a rodeou com os bra�os, sua mente se alagou com imagens do acontecido na cabana. Quando
sua boca cobriu seus l�bios, percorreram-na um sem-fim de emo��es.
Os l�bios do Gabe eram firmes e quentes, e logo que insinuavam a impaci�ncia que ele sentia. Embora seus bra�os a apertavam com cuidado e ternura, Laura intu�a
que no interior de seu marido havia um vulc�o ardente a ponto de estalar.
apoiou-se mais contra ele, e posou uma m�o em sua bochecha em um gesto tranq�ilizador cheio de compreens�o e aceita��o.
Aquela car�cia fez que estalasse o desejo que o atormentava noite e dia, e incapaz de conter-se, Gabe esticou os bra�os a seu redor e come�ou a lhe devorar
a boca. Laura respondeu com um gemido que ele logo que conseguiu ouvir, com um tremor que quase nem notou. Tenso, faminto, caiu v�tima dela e de seus pr�prios desejos.
A paix�o n�o era algo novo para ele, tinha sentido desejo de forma passageira, desejo apaixonado e com mais ou menos intensidade; ent�o, por que aquilo parecia
uma experi�ncia completamente nova? Tinha tido a outras mulheres em seus bra�os no passado, havia sentido sua suavidade e tinha saboreado sua do�ura, mas jamais
tinha conhecido uma suavidade nem tinha experiente uma do�ura como as da Laura.
A boca do Gabe iniciou um lento percurso por sua cara, pelo contorno de sua mand�bula, por seu pesco�o, saboreando-a e devorando-a. Suas largas m�os se deslizaram
sob a camisa que ela levava, e come�aram a explor�-la em dire��o ascendente. Ao princ�pio, a delicada linha de suas costas foi suficiente para ele, e n�o desejou
outra coisa que sentir a suavidade de sua pele e os doces tremores que a percorriam. Mas de repente, a necessidade de tocar, de possuir, intensificou-se e se fez
incontenible, e enquanto sua boca retornava de novo aos l�bios dela, sua m�o se deslizou at� lhe cobrir um peito.
Laura ficou sem f�lego ao sentir o primeiro roce, mas detr�s inalar com rapidez, soltou o ar lentamente. Nem sequer cegada pelo amor e o desejo que
sentia por ele, tinha podido chegar a imagin�-la desespero com a que precisaria sentir suas m�os acariciando-a. Aquilo era o que necessitava, pertencer
a aquele homem de todas as maneiras poss�veis.
A confus�o, as d�vidas e os medos se desvaneceram. Nenhuma lembran�a podia irromper em sua mente quando ele a abra�ava daquela maneira, nenhum sussurro do
passado podia burlar-se dela. Qu�o �nico existia para ela era Gabe, e a promessa de uma nova vida e de um amor eterno.
Tremiam-lhe os joelhos, assim que se apoiou contra ele, e se arqueou em um convite t�o instintivo que s� ele a reconheceu pelo que era.
A habita��o cheirava a pintura, e transbordava luz gra�as ao sol que entrava pelas janelas nuas de cortinas. Estavam completamente sozinhos, envoltos em silenciou,
e Gabe se imaginou recostando-a no ch�o, arrancando sua roupa at� que estivessem nus, pele contra pele, no ch�o de parqu�. imaginou possuindo-a em
aquela habita��o banhada de luz, at� que ambos estivessem exaustos e repletos.
Possivelmente com outra mulher o teria feito sem emprestar aten��o a quando nem aonde, e muito menos a como, mas n�o com essa.
Com um esfor�o sobre-humano, obrigou-se a apartar-se dela. Laura tinha os olhos nublados, e a boca suave e plena. Com uma conten��o que n�o sabia que possu�a,
Gabe soltou um juramento s� para si.
-Tenho que ir trabalhar.
Laura estava flutuando, fluindo em uma neblina t�o fina que era invis�vel, mas para ouvir suas palavras empreendeu o r�pido caminho de volta a terra firme, completamente
confundida.
-O que?
-Que tenho que ir trabalhar-repetiu ele.
Lentamente, afastou-se uns passos dela. Estava furioso consigo mesmo por permitir que as coisas chegassem t�o longe, j� que sabia que Laura ainda n�o era fisicamente
capaz de lhe dar o que necessitava dela.
-Se me necessitar, estarei em meu estudo -acrescentou.
Se lhe necessitava?, pensou Laura enquanto ouvia como seus passos se afastavam pelo corredor. Acaso n�o acabava de lhe demonstrar o muito que o necessitava? Era imposs�vel
que ele n�o se deu conta, que n�o o tivesse entendido. Soltou um juramento, voltou-se e foi at� a janela, se acurruc� no pequeno e duro assento e baixou
a vista para o jardim, que estava come�ando a florescer.
de repente, perguntou-se por que os homens a consideravam um mero objeto que podiam tomar ou recha�ar conforme lhes conviesse. Acaso parecia t�o d�bil, t�o male�vel?
Sentiu uma quebra de onda de frustra��o, e apertou os punhos com for�a. Ela n�o era uma pessoa d�bil, j� n�o, e tinha passado muito tempo, em certa forma toda uma vida,
desde que tinha sido male�vel. Tinha deixado de ser uma garotinha apanhada em uma rede de mentiras de conto de fadas, era uma mulher, uma m�e, com responsabilidades
e ambi��es.
Embora estava apaixonada, e era poss�vel que seu amor resultasse ser t�o insensato como a vez anterior, n�o permitiria que a utilizassem, que a ignorassem nem que
tentassem mold�-la a vontade.
Ao apoiar o queixo sobre os joelhos, pensou que falar era muito f�cil, mas que ficar em marcha, passar da palavra � a��o, era muito mais dif�cil.
disse-se que deveria ir ver o Gabe para lhe deixar as coisas claras, mas detr�s lan�ar um breve olhar para a porta, voltou-se de novo para a janela. N�o tinha
o valor suficiente para faz�-lo.
Esse tinha sido sempre seu problema. Podia dizer o que ia fazer ou a deixar de fazer, mas quando chegava a hora de atuar, resultava-lhe mais f�cil permanecer
passiva. Em uma �poca de sua vida, tinha acreditado que a passividade era o melhor para ela, mas se tinha dado conta de que n�o era assim quando seu matrim�nio com o Tony
desmoronou-se. recordou-se que ent�o sim que tinha tomado uma decis�o firme e tinha feito algo evidente... ou ao menos tinha come�ado a faz�-lo, at� que
tinha permitido que a pressionassem e a convencessem para que fingisse que seu intento de conseguir o div�rcio nunca tinha existido.
Tinha sido assim durante toda sua vida. De menina n�o tinha tido elei��o poss�vel, haviam-lhe dito que vivesse em um s�tio ou em outro, e ela n�o tinha tido mais
rem�dio que obedecer. Cada casa tinha sua pr�pria s�rie de regras e seus valores estabelecidos, e ela tinha tido: que acat�-los, como uma dessas bonecas de pl�stico
que um podia dobrar e girar at� p�-la na posi��o que lhe desse a vontade.
Aquela menina tinha permanecido na mulher, at� que a mulher tinha descoberto que levava um menino em seu ventre.
Laura acreditava que a �nica a��o positiva que tinha realizado em sua vida tinha sido proteger a seu filho. E o tinha feito, recordou-se com ferocidade. Tinha sido
algo aterrador e muito duro, mas n�o se acovardou, e se perguntou se isso significava que a for�a que sempre tinha desejado ter estava em seu interior, enterrada
debaixo de anos de resigna��o silenciosa. Tinha que acreditar que era assim, e atuar em conseq��ncia.
Amar ao Gabe n�o significava, n�o podia significar que fora a permanecer apartada a um lado sem pigarrear, enquanto ele tomava todas as decis�es por ela. Era
hora de plantar os p�s no ch�o e deixar-se ouvir.
Laura se levantou, saiu da habita��o do Michael e avan�ou pelo corredor. Com cada passo sentia que sua resolu��o se cambaleava, e tinha que escorar a de
novo. Quando chegou � porta do estudo, voltou a duvidar por uns segundos enquanto se esfregava o peito com o dorso da m�o, onde residia a dor surda
da incerteza.
Finalmente, respirou fundo, abriu a porta e entrou.
Gabe estava junto � larga fileira de janelas, com um pincel na m�o, trabalhando em um dos quadros que tinha estado empilhado ao meio terminar na
cabana. Laura se lembrava dele, era uma cena na neve, uma paisagem solit�ria e nua que conseguia atrair a aten��o. A combina��o de tons brancos, frios
azuis e chapeados refletia um certo ar de desafio.
Laura pensou que o quadro se adequava perfeitamente � situa��o, j� que um impulso desafiante era precisamente o que ela necessitava nesse momento.
Ele estava t�o concentrado em seu trabalho, que nem sequer a tinha ouvido entrar. N�o estava dando largas pinceladas, a n�o ser acrescentando com delicadeza detalhe t�o
diminutos, t�o exatos, que Laura quase podia ouvir o som do vento.
-Gabe? -disse, assombrada de que fizesse falta fazer tanto provis�o de valor para pronunciar um simples nome.
O se deteve imediatamente, e se voltou para ela com �bvia irrita��o. Nunca tinha permitido interrup��es em seu estudo... como tinha vivido sozinho at� ent�o,
jamais tinha tido que as suportar.
-O que acontece? -disse com voz cortante, sem deixar a um lado o pincel nem apartar do quadro.
Era �bvio que pensava continuar exatamente de onde o tinha deixado, assim que conseguisse que se fora da habita��o e o deixasse em paz.
-Tenho que falar contigo.
-N�o pode esperar?
Laura esteve a ponto de responder que sim, mas se deteve a tempo.
-N�o -disse. Deixou a porta aberta para poder ouvir o menino se despertava, e foi at� o centro da habita��o. Sentiu que lhe formava um n� de tens�o
no est�mago, mas levantou o queixo e acrescentou-: e embora pudesse esperar, n�o quero faz�-lo.
Gabe arqueou uma sobrancelha, j� que s� a tinha ouvido utilizar aquele tom um par de vezes nas semanas que levavam juntos.
-Vale, mas date pressa, quero terminar isto.
A quebra de onda de indigna��o a alagou de forma t�o s�bita, que Laura n�o teve tempo de surpreender-se ante seu pr�prio arranque de g�nio.
-Muito bem, ent�o lhe vou resumir isso em poucas palavras: se for ser sua mulher, quero que me trate como tal.
-Perdoa?
Ela estava muito zangada para dar-se conta de que o tinha deixado at�nito, muito furiosa para reconhecer sua pr�pria surpresa ante o que tinha sido
capaz de dizer.
-Assim "perdoa", n�? N�o me venha com essas, voc� n�o pediste perd�o em sua vida. Nunca tiveste que faz�-lo, porque sempre faz o que te d� a vontade.
� capaz de ser o homem mais am�vel e carinhoso do planeta, mas se gosta de ser arrogante, tamb�m o leva a limite.
Gabe deixou o pincel com movimentos deliberadamente controlados.
-Laura, se quer me dizer algo com tudo isto, n�o acabo de entend�-lo.
-Deseja-me ou n�o?
O ficou olhando sem dizer uma palavra, pensando que acabaria lhe suplicando que lhe deixasse toc�-la se seguia ali de p�, banhada pela luz do sol com os
olhos escuros e desafiantes e as bochechas rosadas.
-A que vem isso agora? -conseguiu dizer ao fim, com voz aparentemente tranq�ila.
-Diz-me que me deseja e depois me ignora, beija-me e vai sem mais -Laura se passou uma m�o pelo cabelo. Quando seus dedos encontraram a cinta que o sujeitava
a tirou com impaci�ncia, e sua p�lida juba loira lhe caiu sobre os ombros-. Sei que nos casamos pelo Michael, mas quero que me diga qual � minha situa��o,
que me diga se for ser s� uma convidada que vais entreter ou a ignorar conforme te convenha, ou se for ser sua mulher.
-� minha mulher, e n�o te estou ignorando -respondeu Gabe, indignado, ao levantar do tamborete no que estava sentado-. O que passa � que tenho muito trabalho
pendente, e me tenho que p�r ao dia.
-N�o trabalha vinte e quatro horas ao dia, e de noite... -Laura sentiu que seu valor come�ava a lhe fraquejar, e soltou apressadamente a pergunta que necessitava
lhe fazer-. por que n�o me faz o amor?
Gabe pensou que era uma sorte que tivesse deixado o pincel sobre uma mesa, porque se n�o, o teria partido pela metade.
-Esperas que renda segundo suas exig�ncias?
As bochechas dela se ruborizaram de vergonha. No passado, isso era algo que se esperou dela, e se sentia mortificada ao pensar que acabava de
exigir o mesmo ao Gabe.
-N�o, n�o quis dizer isso, s� queria que soubesse como me sinto -retrocedeu um passo, e se girou para a porta para sair dali-. Vou para que possa
seguir trabalhando.
-Laura, espera -apressou-se a dizer Gabe. Preferia mil vezes seu aborrecimento � humilha��o que tinha visto em seus olhos.
Ela se voltou como um torvelinho para ele, e lhe pediu com ferocidade:
-N�o te desculpe.
-Vale -ao comprovar que o fogo nela n�o se apagou de tudo, Gabe n�o soube se sentir-se aliviado ou n�o-. Quero te dar uma explica��o.
-N�o faz falta.
Quando ela foi para a porta de novo, Gabe a agarrou por bra�o e a obrigou a que se voltasse para ele bruscamente; entretanto, ao ver o medo imediato
que apareceu em seus olhos, soltou uma maldi��o.
-Maldita seja, n�o me olhe assim. Nunca em sua vida me olhe assim -apertou-lhe o bra�o com mais for�a sem dar-se conta, e ao v�-la fazer uma careta de dor, soltou-a
e deixou cair os bra�os aos lados-, Laura, n�o posso trocar da noite para o dia minha forma de ser por ti, assim gritarei quando precisar faz�-lo e brigarei
contigo quando fizer falta, mas j� lhe disse isso uma vez e lhe vou repetir isso eu n�o pego �s mulheres.
O medo tinha surto sem que ela pudesse evit�-lo, sentia seu amargo e repugnante sabor na garganta, e teve que esperar a acalmar-se um pouco antes de poder
falar.
-N�o espero que troque, mas eu tampouco posso trocar de repente por ti; al�m disso, embora pudesse faz�-lo, nem sequer estou segura do que quer de mim. Sei
que deveria me sentir agradecida...
-N�o quero seu agradecimento! -interrompeu-a ele.
-Sei que deveria me sentir agradecida -continuou ela com calma-, e o estou, mas neste �ltimo ano tenho descoberto algo sobre mim mesma. N�o vou voltar a ser
nunca mais o felpudo de ningu�m, nem sequer o teu.
-De verdade crie que isso � o que quero?
-Gabe, n�o posso saber o que quer se voc� n�o me diz isso -tinha conseguido chegar at� ali, e se obrigou a continuar-. Quis que confiasse em ti do
princ�pio, mas depois de tudo o que passamos juntos, voc� ainda segue sem confiar em mim. Se quiser que este matrim�nio funcione, vais ter que deixar de me considerar
uma obra de caridade, e come�ar a ver-me como uma pessoa.
-N�o tem nem id�ia de como te vejo.
-Talvez tem raz�o, pode que as coisas se voltem um pouco mais f�ceis quando conseguir entender a imagem que tem de mim -disse ela com um sorriso.
Nesse momento ouviu o pranto do beb�, e olhou para o corredor-. Parece que hoje est� um pouco nervoso.
-Espera, irei ver o que lhe passa em um minuto, n�o pode ter fome outra vez -Gabe decidiu que, se ela podia ser completamente sincera, ele n�o ia ser menos.
Tirou-a do bra�o para que n�o se fora, e lhe disse-: acredito que temos que esclarecer um mal-entendido. N�o temos feito o amor porque � muito logo, n�o porque n�o
deseje-te.
-Muito logo para que?
-Para ti.
Ela come�ou a sacudir a cabe�a com confus�o, mas ent�o entendeu o que queria dizer.
-Gabe, Michael j� tem mais de quatro semanas.
-Sei perfeitamente bem a idade que tem, eu estava ali quando nasceu -levantou uma m�o antes de que ela pudesse protestar, e acrescentou-: maldita seja, Laura,
vi o muito que sofreu, qu�o duro foi para ti. N�o importa o que eu sinta, n�o posso fazer nada at� que esteja seguro de que est� completamente recuperada.
-tive um beb�, n�o uma enfermidade terminal -Laura soltou um bufido, mas se deu conta de que suas palavras n�o lhe tinham causado irrita��o, nem sequer divers�o.
N�o, o que sentia era um tremendo prazer, o �nico e maravilhoso prazer de sentir-se cuidada-. Sinto-me bem, estou perfeitamente. De fato, provavelmente n�o me
haja sentido melhor em toda minha vida.
-Isso n�o importa. Acaba de ter um filho, e pelo que tenho lido...
-Tamb�m tem lido sobre este tema?
Gabe se indignou ao ver sua express�o surpreendida, e o brilho de humor em seus olhos.
-N�o penso te tocar at� que esteja seguro de que te recuperaste de tudo -disse com voz firme.
-O que quer, um certificado m�dico?
-Mais ou menos -Gabe levantou a m�o para lhe tocar a bochecha, mas o pensou melhor e voltou a baix�-la-. vou ver o Michael.
foi sem mais, e Laura n�o soube se sentir-se zangada, divertida ou encantada. Qu�o �nico sabia era que seu interior transbordava de emo��es, e que todas se centravam
no Gabe.
Cap�tulo 8
-� incr�vel qu�o r�pido est� crescendo -com orgulho de av� e luzindo um novo e elegante penteado, Amanda se sentou na cadeira de balan�o da habita��o do
pequeno, com o beb� em seus bra�os.
-Sim, ningu�m diria que nasceu prematuramente -disse Laura, sem saber ainda como comportar-se com sua sogra. Com movimentos tranq�ilos, seguiu dobrando a ropita recentemente
tirada da secadora-. Levamo-lo hoje a lhe fazer uma revis�o, e o m�dico diz que est� s�o como um carvalho -levou-se um pequeno pijama � bochecha, e desfrutou
da suavidade aveludada do objeto, que entretanto n�o podia comparar-se a da pele de seu filho-. Queria te dar as obrigado por me recomendar ao doutor Sloane,
� fant�stico.
-Me alegro de que voc� goste, mas n�o faz falta a palavra de um pediatra para saber que o menino est� completamente s�o, olhe a for�a que tem -Amanda riu
com suavidade enquanto Michael se aferrava a sua m�o, mas o deteve quando o menino quis chupar seu anel de safiras-.Tem seus olhos.
-De verdade? -entusiasmada, Laura foi at� eles. O menino cheirava a talco... e Amanda a Paris-.J� sei que ainda � muito logo para sab�-lo, mas
tinha a esperan�a de que fora assim.
-N�o h� d�vida -Amanda continuou balan�ando ao menino, enquanto observava com aten��o a sua nora-. E o que me diz de sua revis�o?, como est�?
-Estou bem -disse Laura, pensando na folha de papel que tinha guardado na gaveta superiora de seu penteadeira.
-Parece um pouco cansada -comentou Amanda. Sua voz, carente de inflex�o alguma, soou brusca e pr�tica-. Moveste-te j� para tentar procurar ajuda?
Laura ergueu as costas de forma autom�tica.
-N�o necessito nenhuma ajuda.
-Sabe t�o bem como eu que isso � uma tolice. Com uma casa t�o grande como esta, um marido exigente e um menino pequeno, est� claro que iria bem que algu�m
te desse uma m�o, mas faz o que queira -Michael come�ou a gorjear, e Amanda o contemplou encantada-. Fala com a abuelita, carinho. lhe diga a abuelita o que
passa.
O menino respondeu com mais sons inintelig�veis, e Amanda p�s-se a rir.
-Isso, dentro de nada come�ar� a falar sem parar. te lembre de que uma das primeiras coisas que tem que dizer � "meu abuelita � preciosa". � um
c�u -deu-lhe um beijo na frente, e disse a Laura-: ter� que lhe trocar os fraldas a este muchachote, e estarei mais que encantada de te deixar a tarefa a ti.
Com o que ela considerava um dos privil�gios de ser a av�, Amanda lhe entregou o beb� molhado a sua m�e, e continuou sentada enquanto Laura levava
ao menino ao cambiador.
Havia um mont�o de coisas que teria querido dizer. Estava acostumada a expressar suas opini�es alto e claro... e se era necess�rio, a lhe dar na cabe�a com
elas a qualquer que pusesse a tiro. N�o gostava de nada ter que mord�-la l�ngua, mas tinha averiguado o suficiente sobre os Eagleton e sobre a vida
que Laura tinha tido com eles para saber que era o melhor. Com muito cuidado, tentou outra t�tica.
-Gabe est� acontecendo muito tempo na galeria de arte ultimamente, verdade?
-Sim, acredito que est� quase decidido a organizar outra exposi��o -com um amor transbordante, Laura se inclinou para acariciar o pesco�o do Michael com o nariz.
-estiveste ali?
-Na galeria? N�o, ainda n�o.
Amanda tamborilou no bra�o da cadeira de balan�o com uma de suas unhas perfeitamente arredondadas.
-Acreditava que te interessaria o trabalho do Gabe.
-E assim � -elevou ao Michael por cima de sua cabe�a, e o menino come�ou a fazer pompitas e a sorrir-. Mas n�o quis interromper com o menino nas costas.
Amanda esteve a ponto de lhe recordar que Michael tinha uns av�s que estariam encantados de ficar umas horas com ele, mas voltou a mord�-la l�ngua.
-Estou segura de que ao Gabe n�o incomodaria, adora ao menino.
-J� sei -disse Laura, enquanto desatava o la�o dos patucos azuis do beb�-, mas tamb�m sei que necessita tempo para p�r em ordem seu trabalho, sua carreira
-deu a seu filho um pequeno coelhinho de trapo, e ele o colocou feliz na boca-. Tem id�ia de por que n�o tem claro o de montar a exposi��o?
-O perguntaste?
-N�o, n�o queria que se sentisse pressionado.
-Pode que um pouco de press�o seja exatamente o que necessita.
Desconcertada por aquelas palavras, Laura se voltou para sua sogra.
-por que?
-Tem que ver com o Michael, com meu filho pequeno, mas preferiria que o perguntasse ao Gabe.
-Estavam unidos?
-Sim, muito, embora eram muito diferentes -disse Amanda, com um sorriso. Tinha aprendido que era menos doloroso recordar que tentar esquecer-. ficou destro�ado
quando Michael morreu. Acredito que o tempo que passou na montanha lhe ajudou a recuperar sua arte, e tamb�m acredito que o beb� e voc� lhe ajudastes a recuperar
seu cora��o.
-Se isso for verdade, me alegro, porque nunca poderei chegar a lhe pagar o muito que ele me ajudou .
Amanda a olhou com express�o indecifr�vel.
-Entre marido e mulher n�o h� nada que pagar.
-Pode que n�o.
-� feliz?
Laura colocou ao menino em seu ber�o e lhe deu corda ao m�vel musical para que pudesse jogar com ele; quando j� n�o p�de postergar mais sua resposta, disse:
-Claro que sou feliz, por que n�o ia ser o?
-Essa era meu seguinte pergunta.
-Sou muito feliz -disse, enquanto ficava outra vez a pregar e a guardar a roupa do menino-. Agrade�o-te muito sua visita, mas sei qu�o ocupada est� e n�o quero
te entreter.
-N�o cria que vais poder me jogar amavelmente, ao menos at� que eu dita ir.
Ao voltar-se, Laura viu o sorriso divertido nos l�bios de sua sogra. N�o era pr�prio dela ser t�o grosseira, e n�o p�de evitar ruborizar-se.
-Perdoa.
-N�o se preocupe, sei que � muito logo para que se sinta c�moda comigo. A verdade � que eu tamb�m me sinto um pouco insegura ao tratar contigo.
Laura lhe devolveu o sorriso, bastante mais relaxada.
-Duvido muito que alguma vez se sinta insegura, � algo que invejo de ti. E de verdade que sinto ter sido t�o mal educada.
-N�o passa nada.
Amanda se levantou da cadeira de balan�o, e come�ou a passear-se pelo dormit�rio do menino. Sua nora tinha feito um trabalho fant�stico, e tinha criado uma habita��o
alegre e cheia de luz; n�o estava muito recarregada, e a decora��o era o bastante tradicional para lhe recordar � habita��o infantil que ela mesma tinha preparado
tantos anos atr�s. O aroma de talco e a roupa limpa flutuava no ambiente.
Era um quarto carregado de amor, e aquilo era tudo que podia desejar para o Gabe. Estava claro que Laura era uma mulher com uma ilimitada capacidade para amar.
-� uma habita��o preciosa -comentou, enquanto acariciava a cabe�a de um urso de peluche cor lavanda de mais de um metro-. Mas n�o pode te esconder aqui para
sempre.
-N�o sei a que te refere -respondeu-lhe Laura, embora sabia perfeitamente bem.
-Disse que nunca tinha estado em S�o Francisco, e agora vive aqui. foste a algum museu, ou ao teatro?, passeaste pelo mole dos pescadores?,
montaste-te em um bonde?, foste ao Chinatown? me diga, fez alguma das coisas que faria qualquer rec�m-chegado?
Laura ficou � defensiva, e respondeu com voz fria:
-N�o, mas s� levo aqui umas semanas.
Amanda decidiu que era hora de deixar de andar-se com rodeios.
-Laura, vamos falar de mulher a mulher, te esque�a de que sou a m�e do Gabe. Estamos sozinhas, e o que se diga nesta habita��o ficar� estritamente entre
n�s.
Laura notou que as Palmas das m�os tinham come�ado a lhe suar, e as limpou nas cal�as.
-N�o sei o que � o que quer que te diga.
-O que fa�a falta -finalmente, ao ver que Laura permanecia em sil�ncio, Amanda assentiu e disse-: muito bem, ent�o come�arei eu. sofreste alguns momentos
terr�veis ao longo de sua vida, alguns deles inclusive tr�gicos. Gabe nos contou apenas o imprescind�vel, mas me inteirei que muitas coisas fazendo as perguntas
adequadas �s pessoas apropriadas -Amanda voltou a sentar-se, e ao ver a express�o que relampejou nos olhos da Laura, disse-lhe-: espera a que acabe, ent�o
poder� te ofender tudo o que queira.
-N�o estou ofendida -respondeu ela com voz tensa-, mas n�o sei do que serve falar de coisas que pertencem ao passado.
-N�o poder� reemprender sua vida at� que seja capaz de te enfrentar ao passado -Amanda tentou falar com voz firme, mas sua s�lida compostura se cambaleou um
pouco-. Sei que Tony Eagleton te maltratava, e que seus pais fizeram a vista gorda ante esse comportamento monstruoso e criminal. Rompe-me o cora��o que tivesse
que acontecer algo assim.
-Por favor, n�o -conseguiu dizer Laura, com voz estrangulada.
-N�o pode aceitar um pouco de compreens�o, nem sequer de mulher a mulher?
Laura negou com a cabe�a. Dava-lhe medo aceit�-la, mas ainda mais necessit�-la.
-N�o posso suportar que me compade�am.
-Compreender a uma pessoa � muito diferente a compadecer-se dela.
-Todo isso ficou atr�s, j� n�o sou a pessoa que era ent�o.
-N�o posso te dar minha opini�o, porque n�o te conhecia nessa �poca, mas est� claro que uma mulher que conseguiu sair adiante completamente s� tem grandes
reservas de for�a e determina��o. N�o crie que � hora de que as utilize, e plante cara a seus inimigos?
-J� o tenho feito.
-Cobriste-te em seu pr�prio o�sis. Sei que precisava faz�-lo por um tempo, e que ao fugir demonstrou ter tanto uma enorme valentia como uma grande resist�ncia,
mas chega um momento na vida em que ter� que plantar os p�s no ch�o e fazer que se escute sua voz.
Laura era consciente de que se havia dito mil vezes coisas parecidas, e que se odiou por n�o ser capaz de levar as palavras � pr�tica. Olhou para
o ber�o e contemplou a seu filho, que gorjeava alegremente enquanto tentava apanhar os passarinhos de cores que giravam por cima de sua cabe�a.
-E o que quer que fa�a?, que v� a julgamento, que o conte � imprensa, que tire a luz o que aconteceu todo mundo se inteire?
-Sim, se for necess�rio -a voz da Amanda adquiriu um matiz orgulhoso, que chegou at� o �ltimo rinc�o da habita��o-. Os Bradley n�o lhe t�m medo ao esc�ndalo.
-N�o sou...
-Claro que o � -interrompeu-a sua sogra-.� uma Bradley, igual a esse menino. Estou pensando no bem-estar do Michael � larga, mas tamb�m no
teu. O que importa o que a gente pense ou saiba?, voc� n�o tem nada do que te envergonhar.
-Deixei que acontecesse -disse Laura, com uma f�ria extra�amente surda, amortecida-. Sempre me envergonharei disso.
-Minha querida menina...
Incapaz de conter-se, Amanda se levantou e a rodeou com os bra�os. depois da surpresa inicial, Laura se deixou levar; n�o sabia se o gesto a afetou tanto
porque provinha de uma mulher, mas rompeu todas suas defesas como nada tinha conseguido faz�-lo at� ent�o.
Amanda a deixou chorar, inclusive se p�s-se a chorar ela tamb�m, e o fato de que o fizesse, de que pudesse faz�-lo, reconfortou mais a Laura que qualquer palavra
de consolo. Bochecha contra bochecha, de mulher a mulher, abra�aram-se com for�a enquanto a tormenta passava, e o la�o que Laura nunca tinha esperado chegar a experimentar
forjou-se em l�grimas. Finalmente, rodeando-a ainda com um bra�o, Amanda a conduziu para o sof� cama.
-Suponho que era algo que precisava sair � superf�cie -murmurou a mulher. tirou-se um len�o com borde de encaixe de um bolso, e se secou os olhos sem
reserva nenhuma.
-N�o sei, suponho que sim -disse Laura, enquanto acabava de sec�-las l�grimas com a boneca-. Em teoria, j� n�o deveria sentir a necessidade de me jogar a chorar,
s� me passa quando jogo a vista atr�s e recordo o que aconteceu.
-me escute bem -disse Amanda, sem rastro algum de suavidade na voz-. Foi jovem e estava sozinha, e n�o tem nada, ouve-me?, nada do que te envergonhar. Algum
dia voc� mesma te dar� conta de que � assim, mas de momento possivelmente seja suficiente que saiba que j� n�o est� sozinha.
-�s vezes me sinto t�o furiosa ao pensar que me utilizaram como se fora um objeto conveniente, um saco de boxe ou um s�mbolo de status... -Laura pensou que
era assombroso que a f�ria pudesse conduzir uma calma absoluta, e apagar a dor que sentia-.E quando sinto essa f�ria t�o enorme, sei que n�o importa o que me custe,
nunca voltarei a cair naquilo.
-Ent�o, segue furiosa.
-Mas... a f�ria a sinto por mim, � algo pessoal -voltou o olhar para o ber�o, que estava ao outro lado da habita��o, e admitiu-: quando penso em
Michael, e sei que me v�o tentar tirar isso ent�o sinto medo.
-Mas agora j� n�o v�o ter que enfrentar-se s� a ti, verdade?
Laura a olhou, e ao ver sua express�o decidida e o brilho de seus olhos, soube de onde tinha tirado Gabe sua atitude jaqueta. Sentiu crescer dentro dela um
novo tipo de amor, e lhe resultou o mais normal do mundo tomar a m�o a sua sogra.
-N�o, j� n�o.
Nesse momento, ouviram que a porta principal se abria no piso de abaixo, e Laura se passou as m�os pela cara para assegurar-se de que n�o ficava nem rastro
de l�grimas.
-Esse deve ser Gabe. N�o quero que me veja assim.
-Baixarei e lhe manterei ocupado -seguindo um impulso, Amanda lhe jogou uma olhada a seu rel�gio e lhe perguntou-: tem planos para esta tarde?
-N�o, s�...
-Perfeito. Baixa assim que esteja preparada.
Dez minutos depois, Laura se encontrou ao Gabe apanhado no sal�o, com o olhar fixo em um copo de �gua com g�s e cara de poucos amigos.
-Ent�o, est� decidido -Amanda se arrumou o cabelo com uma m�o, satisfeita de si mesmo-. Laura, est� preparada?
-Para que?
-J� expliquei ao Gabe que vamos �s compras, est� entusiasmado com a festa que planejei para a semana que vem em sua honra -a festa que
lhe tinha ocorrido ao baixar as escadas.
-Estou resignado -corrigiu-a Gabe, embora a olhou um sorriso; entretanto, sua express�o se voltou s�ria quando viu o rosto da Laura-. O que acontece?
-Nada -respondeu ela, consciente de que tinha sido absurdo acreditar que um pouco de �gua e maquiagem poderiam lhe esconder algo a aquele homem-. Sua m�e e eu nos
pusemos um pouco muito sens�veis com o Michael.
-O que necessita sua mulher � passar uma tarde fora -Amanda se levantou, e lhe deu um beijo a seu filho-.Teria que te arreganhar por mant�-la encerrada aqui, mas
quero-te muito.
-Eu n�o...
-N�o a animaste nenhuma s� vez a que saia da casa -acabou sua m�e por ele-. Assim que eu vou encarregar me de faz�-lo. V� a por sua bolsa, querida, temos
que te encontrar algo espantoso para a festa. Gabe, suponho que Laura necessita seus cart�es de cr�dito.
-Meus... ah, claro -sentindo-se como uma �rvore sacudida por um vendaval, Gabe tirou sua carteira.
-Estas nos bastar�o -Amanda tomou duas delas, e as deu a Laura-. Est� preparada?
-Bom, n�... sim -disse impulsivamente-. Michael acaba de comer, e lhe troquei o fralda. N�o deveria ter nenhum problema.
-N�o se preocupe, arrumarei-me isso -disse-lhe ele.
Entretanto, o certo era que se sentia bastante ofendido. Em primeiro lugar, teria tirado �s compras a Laura ele mesmo se o tivesse pedido, e em segundo
lugar, embora n�o queria admiti-lo, n�o estava completamente seguro de poder arrumar-lhe solo com o menino.
Amanda adivinhou imediatamente o que estava pensando seu filho, e lhe deu outro beijo.
-Se te levar bem, traremo-lhe um presente.
Gabe n�o p�de conter um sorriso.
-Venha, parte -disse-lhes.
Entretanto, antes de que pudessem obedecer agarrou a Laura e a beijou com naturalidade, e se surpreendeu quando lhe devolveu o abra�o ardentemente.
-Que n�o te conven�a de que te compre algo com la�os, n�o ficariam bem -murmurou-. Deveria comprar algo que v� jogo com seus olhos.
-Se n�o deixar que se v�, n�o vamos poder comprar nada -disse-lhe sua m�e com secura, embora estava encantada e emocionada ao ver que seu filho estava completamente
apaixonado por sua mulher.
Ningu�m teve a culpa de que Michael escolhesse precisamente aquela tarde para exigir todo o tempo e a aten��o que lhe podiam dar a um menino. Gabe o passeou,
balan�ou-o, trocou-lhe os fraldas, jogou com ele, arrulhou-o... s� lhe faltou fazer o pinheiro. Por sua parte, Michael gorjeou, olhou-o com seus olhos enormes... e se desga�it�
chorando cada vez que se via de novo no ber�o. Fez de tudo, menos dormir.
Ao final, Gabe abandonou a id�ia de trabalhar e se levou a menino de um lado a outro. comeu-se uma coxa de frango e come�ou a ler o peri�dico com ele acurrucado
no bra�o, e como n�o havia ningu�m que pudesse rir dele �s escondidas, discutiu com ele sobre assuntos de pol�tica internacional e sobre os resultados da liga
de futebol enquanto o menino se dedicava a sacudir um chocalho e a fazer pompitas com a boca.
Quando Gabe conseguiu encontrar um dos sombreritos de ponto que Laura tinha comprado para proteger ao menino da brisa primaveril, sa�ram a dar um passeio
pelo jardim, e se sentiu entusiasmado ao ver que as bochechas do menino se sonrosaban e que observava tudo o que havia a seu redor, alerta e muito interessado.
Michael tinha os olhos da Laura... a mesma forma, a mesma cor, mas careciam das sombras que faziam que os dela fossem tristes e de uma vez fascinantes.
Os olhos do menino eram claros, e n�o continham nenhum tipo de pena.
Quando Gabe o colocou em um pequeno balan�o para beb�s, Michael protestou um pouco mas ao final decidiu aceitar seu destino. depois de tamp�-lo bem, Gabe se
sentou de pernas cruzadas frente a ele e come�ou a estirar-se.
Os narcisistas estavam em pleno apogeu, e entretanto de suas flores amarelas e brancas apareciam os l�rios, morados e ex�ticos. As lil�s, embora ainda n�o haviam
acabado de florescer, contribu�am seu aroma.
Pela primeira vez da trag�dia que tinha sofrido, Gabe se sentiu em paz. Nas montanhas, ao longo de inverno, tinha come�ado a recuperar-se, mas ali
em sua casa, rodeado da primavera, podia ver e aceitar finalmente que a vida seguia seu curso.
O menino seguia balan�ando-se, com as bochechas rosadas e os olhos luminosos, levantando e baixando as m�os ao ritmo do balan�o. Seu carita j� tinha come�ado
a engordar, a definir-se com sua pr�pria forma e com seus rasgos pessoais, e a aterradora fragilidade que tinha tido ao nascer se desvaneceu. Gabe sup�s que
isso era sinal de que o pequeno j� tinha come�ado a crescer.
-Quero-te, Michael.
Aquelas palavras as disse tanto ao que se foi, como ao que se balan�ava felizmente diante dele.
Laura n�o tinha esperado estar tanto tempo fora, mas as horas ca�ticas que tinha passado de loja em loja tinham feito que recordasse aquele breve per�odo
em que tinha estado sozinha e ansiosa por saborear a vida.
Havia sentido certo remorso ao utilizar os cart�es de cr�dito do Gabe com tanta liberdade, mas depois tinha sido quase muito f�cil justificar as
compra com o apoio da Amanda. Ao fim e ao cabo, tinha passado a ser Laura Bradley.
Sempre tinha tido bom olho para as cores e as linhas, e esse rasgo se havia agudizado em sua �poca como modelo, assim que o vestido que tinha eleito para
a festa n�o era muito extravagante nem ostentoso. Al�m disso, havia sentido uma grande satisfa��o ao ver que Amanda ia assentindo com aprova��o com cada uma de
os objetos que selecionava.
Ao entrar na casa carregada de bolsas e de caixas, disse-se que era um passo na dire��o adequada, um que certamente s� poderia entender outra mulher. Estava
voltando a tomar as r�deas de sua vida, embora s� fora admitindo que necessitava roupa que se ajustasse a seu gosto e a seu estilo. Cantarolando uma can��o, come�ou
a subir as escadas.
Os encontrou juntos no piso de acima. Gabe estava convexo na cama, e Michael descansava acurrucado na curva de seu bra�o. Seu marido estava dormido,
mas seu filho se desembara�ou de seu len�ol e estava de costas, agitando um chocalho.
Deixou as bolsas no ch�o com cuidado, e se aproximou deles. Era uma cena puramente masculina... o homem convexo na cama, com os sapatos postos e
uma novela de espionagem de barriga para baixo sobre a colcha, e com um copo de algo que em seu momento devia ter estado frio, e que estava deixando uma marca circular em
a mesita de noite.
Como se entendesse que pertencia a aquele mundo de homens, o menino permanecia em sil�ncio, absorto em seus pr�prios pensamentos.
Laura desejou ter t�o somente um pingo do talento do Gabe, para poder pint�-los juntos tal e como estavam e que a do�ura da cena n�o se perdesse nunca.
sentou-se no bordo da cama, e permaneceu olhando-os durante um momento.
Pareceu-lhe incrivelmente �ntimo observar a um homem enquanto dormia. Sentiu o impulso de acariciar o cabelo loiro que lhe ca�a sobre a frente, percorrer as
linhas de seu rosto, mas tinha medo de despert�-lo. Ent�o aquela vulnerabilidade desapareceria, e aquela oportunidade de ver seu lado mais privado e �ntimo se
esfumaria.
Era um homem muito bonito, embora n�o gostava que o dissessem, e era capaz de mostrar uma grande compaix�o, embora freq�entemente a ocultava depois de uma barreira
de g�nio e de sarcasmo. Quando o olhava como nesse momento, livremente, sem que ele se desse conta, podia ver todas as raz�es que tinham feito que se apaixonasse
dele.
Quando Michael come�ou a ficar nervoso, inclinou-se para tentar levant�-lo sem despertar ao Gabe, mas assim que ele sentiu o primeiro movimento abriu os
olhos, que estavam dormitados e muito perto dos dela.
-Sinto muito, n�o queria despertar.
Ele n�o respondeu, e continuando com um sonho que Laura n�o podia ver mas de que era parte fundamental, p�-lhe uma m�o na nunca e a aproximou at� que seus
l�bios se encontraram. Beijou-a com uma ternura que ela n�o tinha sentido em muito tempo, e que parecia conter um oferecimento, uma promessa.
Laura desejava aquele compromisso, e se Gabe o oferecia, estava decidida a confiar nele.
Michael se deu conta da presen�a de sua m�e, e decidiu que era hora de comer.
um pouco desconcertada, e desejando que a car�cia se p�de prolongar um pouco mais, Laura se separou do Gabe. Michael come�ou a procurar seu peito, assim
desabotoou-se um par de bot�es da camisa e come�ou a amament�-lo.
-Cansou-te muito?
-Est�vamo-nos tomando um pequeno descanso -disse Gabe. Sempre o fascinava v�-la amamentando ao menino, e j� a tinha plasmado assim em um esbo�o, embora era algo
que n�o pensava compartilhar com ningu�m-. N�o me tinha dado conta da energia que se necessita para dirigir a algu�m t�o pequeno.
-Pois piora com os anos. Em uma das lojas, vi uma mulher com um menino pequeno que j� andava, e a pobre n�o parava de correr de um s�tio a outro. Sua m�e
contou-me que se desabava cada tarde, quando por fim ficava rendido e dormia a sesta.
-Isso n�o � verdade, eu era um menino muito bom -protestou ele, enquanto colocava um par de travesseiros a suas costas e ficava c�modo.
-Ent�o, deveu ser outro menino o que pintou com um l�pis de cores nas paredes forradas de seda.
-Isso foi um caso de express�o art�stica, fui um menino prod�gio.
-N�o o duvido.
Gabe se limitou a arquear uma sobrancelha, mas ent�o viu as bolsas que havia no ch�o da habita��o.
-ia perguntar te se lhe tinha acontecido isso bem com minha m�e, mas acredito que n�o faz falta.
Laura esteve a ponto de desculpar-se, mas se deteve a tempo e se recordou que tinha que deixar de pedir perd�o por tudo.
-foi fant�stico comprar sapatos e poder v�-los estando de p�, e um vestido com cintura.
-Suponho que perder a figura durante o embara�o deve ser dif�cil para uma mulher.
-A verdade � que eu desfrutei de cada minuto do embara�o, a primeira vez que n�o consegui me grampear umas cal�as me pus euf�rica -Laura se deteve em seco,
ao dar-se conta de que isso era algo que Gabe n�o tinha podido viver. As primeiras alegrias e os medos iniciais, os primeiros movimentos do beb�... baixou o olhar
para o Michael, e desejou com todas suas for�as que fora o filho do Gabe em todos os sentidos-. De todas formas, me alegro de ter deixado de me parecer com um porta-avi�es.
-Eu diria que te parecia mais a um dirig�vel.
-Diz uns galanteios encantadores.
Gabe esperou at� que ela se trocou de assumo ao Michael, e sentiu o s�bito desejo de percorrer com um dedo a zona onde o menino tinha estado mamando. N�o era
um impulso sexual, nem sequer rom�ntico, a n�o ser uma esp�cie de assombro maravilhado; entretanto, colocou as m�os detr�s da cabe�a e comentou:
-esquentei algumas sobra que havia na geladeira, mas n�o sei se o resultado ser� comest�vel.
Laura voltou a estar a ponto de desculpar-se, mas cheia de determina��o, obrigou-se a sorrir sem mais.
-Estou t�o faminta, que comerei o que seja.
-Bem -Gabe se inclinou para diante, embora s� percorreu com um dedo a cabecita do Michael-. Baixa quando dormir; depois da tarde que me deu, suspeito
que ficar� rendido assim que acabe de comer.
-N�o demorarei -Laura esperou a que ele sa�sse da habita��o, e ent�o fechou os olhos, esperando ter o valor de levar a cabo o que tinha planejado para
o resto da velada.
Fazia muito tempo que n�o tinha sido s� uma mulher. De p� frente ao espelho do quarto de banho, que estava embaciado com o bafo da ducha, Laura pensou que
nesse momento parecia muito feminina. A camisola que levava era de um tom azul muito claro, quase branco, e o tinha eleito porque lhe tinha recordado � neve de
as montanhas em Avermelhado. Tinha uns pequenos suspens�rios e um suti� de encaixe, e ao passar a m�o por cima experimentalmente, comprovou de novo a suavidade e a
finura da malha.
Deveria recolher o cabelo, ou deix�-lo solto?, acaso importava realmente?
Como seria converter-se na mulher do Gabe... totalmente? levou-se uma m�o ao est�mago e esperou a que se dissipasse um pouco seu nervosismo, e quando as lembran�as
amea�aram saindo � superf�cie, lutou por fazer que retrocedessem. Essa noite ia seguir o conselho da Amanda, e n�o ia pensar no passado, a n�o ser no
futuro.
Amava ao Gabe com todo seu cora��o, mas n�o sabia como dizer-lhe Expressar-se com palavras resultava dif�cil e irrevog�vel, mas seu maior medo era que ele aceitasse
sua declara��o de amor com o mesmo desconforto e indiferen�a que sua gratid�o; entretanto, essa noite esperava poder come�ar a lhe demonstrar o que sentia por ele.
Gabe se estava tirando a camisa quando ela apareceu na porta do quarto de banho. Por uns segundos, a luz que a iluminava de detr�s caiu totalmente
em seu cabelo e no fino tecido de sua camisola, e ele ficou im�vel enquanto seu est�mago se esticava e um desejo ardente o percorria.
Ent�o ela apagou a luz do quarto de banho, e ele acabou de tir�-la camisa.
-fui a ver o Michael -disse, surpreso ao comprovar que era capaz de falar com normalidade-. Est� dormindo, assim pensei que poderia ir trabalhar
uma ou duas horas.
-N�... claro -Laura se deu conta de que ia come�ar a esprem�-las m�os, e se deteve a tempo. Era uma mulher adulta, e deveria saber como seduzir a seu
marido-.J� sei que n�o pudeste trabalhar em toda a tarde ao ter que cuid�-lo.
-Eu gosto de me ocupar dele - Gabe pensou que ela parecia incrivelmente magra e fr�gil; com sua pele branca como o leite e a camisola azul clara voltava a ser
um anjo, com uma juba de cachos loiros em vez de halo.
-� um pai fant�stico, Gabe -Laura avan�ou um passo para ele, enquanto come�ava a tremer.
-Michael faz que seja f�cil.
Ela se perguntou se era normal que lhe resultasse t�o dif�cil o simples ato de cruzar uma habita��o.
-E o que me diz de mim?, � que fa�o que te resulte dif�cil ser um marido?
-N�o -Gabe levantou o dorso da m�o para lhe acariciar a bochecha enquanto contemplava seus olhos, que eram capas e mais capas de um tom mais escuro que a camisola
que levava. Apartou a m�o de repente, surpreso por seu pr�prio nervosismo-. Deve estar muito cansada.
Laura conteve um suspiro ao voltar-se, e disse:
-Est� claro que isto n�o me d� nada bem. Como tentar te seduzir n�o funciona, vamos tentar uma t�cnica mais pr�tica e direta.
-De verdade estava tentando me seduzir? -Gabe queria sentir divers�o, mas tinha os m�sculos completamente tensos.
-Pois sim -Laura abriu uma gaveta, e tirou uma folha de papel-. Este � o relat�rio de meu m�dico, no que p�e que sou uma mulher normal e s�. Quer l�-lo?
Gabe n�o p�de evitar sorrir.
-pensaste em tudo, verdade?.
-Disse que me desejava -disse, enrugando sem dar-se conta o papel-. Acreditava que tinha sido sincero.
Ele a agarrou pelos bra�os antes de que ela tivesse tempo de retroceder. Tinha os olhos secos, mas Gabe viu imediatamente seu orgulho ferido, e a carga que
suportava se voltou ainda mais pesada. Sabia que o que tinham era ainda muito fr�gil, e tinha medo de cometer um engano e perd�-la para sempre.
-Laura, claro que fui sincero, desejei-te do primeiro dia. N�o foi nada f�cil estar a seu lado e n�o poder te tocar.
Ela posou uma m�o sobre seu torso, e sentiu que seus m�sculos se esticavam.
-Agora n�o h� nada que te impe�a de poder faz�-lo.
Gabe deslizou as m�os at� seus ombros, e seus dedos ro�aram os suspens�rios da camisola. Se aquilo era um engano, n�o tinha mais op��o que comet�-lo.
-N�o h� nenhum impedimento do ponto de vista f�sico, mas quando te levar � cama, s� haver� sitio para n�s dois. N�o haver� lugar para fantasmas,
nem lembran�as -quando ela baixou o queixo, apertou-a mais contra si, desafiando-a a que voltasse a elev�-la-. N�o pensar� em ningu�m mais que em mim.
Nenhum dos dois soube se aquilo era uma amea�a ou uma promessa, e quando Gabe baixou a cabe�a e a beijou, as m�os da Laura ficaram apanhadas entre seus corpos.
Era s� a car�cia de uns l�bios sobre os seus, mas mesmo assim o sangue dela pareceu correr como uma corrente por suas veias. A excita��o que Gabe podia
despertar t�o facilmente nela a percorreu muito antes de que as m�os dele come�assem a acarici�-la, antes de que seus pr�prios l�bios se abrissem.
Embora suas m�os estavam aprisionadas, Laura n�o se sentia vulner�vel, e embora a boca do Gabe se movia exigente sobre a sua, n�o tinha medo. O beijo se foi
aprofundando, e quando o grau de intimidade foi crescendo, Laura n�o recordou a nenhuma outra pessoa.
Ela sabia como a primeira vez, suculenta e fresca. Gabe devorou sua boca com a l�ngua, ansioso por sabore�-la. Com ela apertada contra seu corpo e as luzes
t�nues iluminando-os, Gabe soube que j� n�o havia marcha atr�s poss�vel. Podia ouvir a respira��o tremente dela, e o r�tmico tictac do rel�gio de p�ndulo que havia
no corredor. Estavam sozinhos, em meio da quietude e a escurid�o... e essa noite foram selar seu matrim�nio.
A excita��o do Gabe se incrementou ainda mais ao notar o batimento do cora��o acelerado do cora��o da Laura contra seu pr�prio peito. Ao deslizar as m�os por seu corpo sentiu
a suavidade de sua pele, o tato escorregadio da camisola, cada tremor que a percorria e cada suspiro que ela deixava escapar por causa de suas car�cias.
Mordiscou-lhe o l�bio enquanto suas m�os se deslizavam para baixo com avidez, e a paix�o estalou entre eles de forma s�bita e fulminante. Quando Gabe sentiu
que o corpo dela se arqueava para ele em uma oferenda do presente mais valioso que podia existir, sua confian�a, as emo��es que o alagaram temperaram seu desejo
e uma ternura dolorosamente doce, mais valiosa que os diamantes, ocupou seu lugar.
Ao sentir que suas m�os ficavam livres, Laura rodeou ao Gabe com os bra�os, e o papel enrugado que ainda sujeitava em sua m�o caiu ao ch�o. Seus movimentos seguiam
sendo um pouco tentativos, e sentiu que seus ossos se foram liquidificando pouco a pouco, at� que se perguntou como era poss�vel que ainda seguisse de p�. Sua mente, que at�
esse momento tinha sido um torvelinho de desejo desatado, nublou-se com um prazer doce e verdadeiro que nunca tinha podido chegar a imaginar.
Sentiu o poder de seus m�sculos ao lhe acariciar as costas, e se assombrou de que algu�m com tanta for�a pudesse ser t�o tenro. A boca do Gabe ro�ou seus l�bios
ligeiramente, de forma provocadora, como convidando-a a que ela estabelecesse o ritmo... ou possivelmente estivesse desafiando-a.
Laura se apertou contra ele e o beijou avidamente, com impaci�ncia. Gabe a levantou em seus bra�os, e sob a luz t�nue ela s� p�de ver seus olhos verdes obscurecidos
de desejo. Nenhum dos dois apartou o olhar enquanto ele a depositava sobre a cama.
Laura esperava que tudo fora r�pido, um frenesi de avidez para a gratifica��o pessoal, e soube que ao terminar sua opini�o dele n�o teria trocado, que
seu amor seguiria igual de forte. Sentiu seu corpo tenso contra o seu, e o rodeou com os bra�os, preparada para lhe dar o que lhe pedisse.
Mas Gabe n�o queria rapidez, e n�o estava �vido s� de receber, mas tamb�m de dar.
Quando come�ou a lhe cobrir o pesco�o de beijos pausados e de mordisquitos, Laura tamb�m se esticou, e s� p�de sussurrar seu nome quando ele continuou seu lento percurso
por seus ombros e a curva de seus seios, e quando depois voltou a subir em c�rculos provocadores. Ela se voltou instintivamente em busca de sua boca, sua mand�bula,
sua t�mpora, enquanto seu corpo parecia esquentar-se e esfriar-se de prazer.
Gabe sabia que tinha que ser cuidadoso por ela. havia-se sentido aterrorizado com o primeiro contato de sua pele, porque apesar de que Laura tinha estado com
outro homem e tinha dado a luz a um beb�, tinha uma inoc�ncia que ele tinha visto hora detr�s hora ao pint�-la. E se ia arrebatar lhe essa inoc�ncia, estava decidido
a lhe dar agradar em troca.
Ela era incrivelmente receptiva e sens�vel, e seu corpo parecia fluir sob suas m�os. Sua pele se voltava ainda mais c�lida em cada ponto que ele cobria com seus
l�bios, mas embora lhe entregava tudo o que lhe pedia, ainda conservava certo ar de acanhamento, de d�vida, e ele queria lev�-la al�m desse limite.
Lentamente, com movimentos que eram apenas um sussurro contra sua pele, Gabe foi tirando a camisola enquanto seguia o passado do encaixe com seus l�bios. Quando
ouviu-a gemer, sentiu que estalava em chamas. Jamais tinha imaginado que um s�, som podia chegar a ser t�o incitante e sedutor.
Com a boca aberta, cobriu-lhe de beijos a pele at� que ela come�ou a tremer. � luz do abajur, p�de ver que era absolutamente deliciosa, com pele
marm�rea e cabelo como a prata, e que seus olhos estavam cheios de desejos e de inseguran�as.
Em seu dia tinha utilizado sua habilidade e sua intui��o para plasmar as emo��es dela no tecido, e nesse momento as utilizou para liber�-la.
Laura n�o sabia que podia existir tal grau de sensibilidade entre um homem e uma mulher. Inclusive atrav�s das nuvens de prazer e da crescente quebra de onda de
desejo, podia intuir a paci�ncia do Gabe. Nunca tinha experiente aquele desejo de tocar a um homem, e foi descobrindo seu poderoso corpo masculino com os dedos
e as Palmas da m�o, com os l�bios e a l�ngua. Sentiu um desejo avassalador de aferrar-se a ele, de envolv�-lo com bra�os e pernas e n�o solt�-lo jamais.
De repente, sem aviso algum, Laura se arqueou e ofegou com assombro ao sentir um prazer indescrit�vel. Seu corpo e sua mente se esvaziaram de todo aquilo que n�o
fossem as sensa��es que a percorriam, e por um instante se sentiu aterrorizada de perder totalmente o controle. Gritou seu nome ao estalar em um cl�max t�o forte,
t�o intenso, que quando se foi desvanecendo ficou sem for�as e aturdida.
-Por favor, n�o posso... nunca hei...
-J� sei -Gabe sentiu um assombro reverente, e cobriu seus l�bios com os seus. Tinha querido lhe entregar tudo que o fora humanamente poss�vel, tinha necessitado
faz�-lo, mas n�o tinha sabido que ao dar receberia tanto-. Te relaxe, n�o temos nenhuma pressa.
-Mas voc� n�o h�...
Gabe soltou uma gargalhada rouca contra seu pesco�o.
-Penso faz�-lo, mas h� tempo de sobra. Quero te tocar -murmurou, antes de come�ar de novo o lento e sedutor percurso.
Era imposs�vel. Laura n�o acreditava poss�vel que seu corpo reagisse com tanta paix�o ante umas car�cias t�o tenras e delicadas, mas em quest�o de segundos estava
tremendo de novo, desejando-o e ardendo por ele. A l�ngua do Gabe percorreu seu est�mago e riscou a curva de sua coxa, at� que ela come�ou a retorcer-se, v�tima
de seu pr�prio desejo e do anseia de retornar ao para�so que lhe tinha mostrado.
De repente, antes de que se desse conta voltou a estalar em chamas, mas essa vez, quando ofegou e se estremeceu, Gabe se deslizou em seu interior.
O gemido dele se entrela�ou com o seu, e seus corpos �midos come�aram a mover-se ao un�ssono, pele contra pele.
Laura nunca se havia sentido t�o forte, t�o completamente livre, como nesse momento de uni�o total com o Gabe.
Ela era tudo o que Gabe tinha desejado em sua vida, tudo o que tinha sonhado, e ao estremecer-se e sacudir-se com um prazer indescrit�vel, perguntou-se se aquilo
era real ou se estava sonhando. Tinha a cara apertada contra seu pesco�o e podia cheirar sua provocadora fragr�ncia, mesclada com o especiado e terrestre aroma da paix�o
que compartilhavam, e soube que se iria � tumba recordando aquela mescla que lhe embargou os sentidos.
A respira��o dela era r�pida e fren�tica contra seu ouvido, seu corpo se movia com igual desespero sob o seu, e suas unhas lhe afundavam nas costas
com abandono.
Gabe sabia que nunca esqueceria nada daquele momento m�gico.
Ent�o se esqueceu de tudo, e se deixou arrastar at� um para�so que nunca antes tinha conhecido.
Cap�tulo 9
Tinha havido uma �poca de sua vida, embora muito breve, em que Laura se vestiu com roupa elegante e tinha assistido a festas exclusivas. Tinha conhecido
a gente cujos nomes apareciam nos titulares de todo tipo de publica��es, tinha dan�ado com personagens famosos e jantado com os pr�ncipes da moda. Depois
de tanto tempo, quase parecia um sonho, mas tinha sido algo muito real.
O certo era que tinha desfrutado de sua �poca de modelo; embora era um trabalho duro, tinha sido o suficientemente jovem e ing�nua para deixar-se deslumbrar
por aquele mundo glamuroso, inclusive depois de passar-se dez horas seguidas de p�.
Geoffrey lhe tinha ensinado a andar, a permanecer erguida e inclusive a aparentar interesse at� estando exausta. Com ele tinha aprendido a maquiar-se para real�ar
seus rasgos sutilmente ou de forma chamativa, e a escolher um determinado penteado para refletir um estado de �nimo em concreto.
Seus ensinos a tinham ajudado a manter uma imagem de cara ao exterior nos atos p�blicos aos que tinha tido que assistir com os Eagleton. Havia
sido capaz de parecer sofisticada e tranq�ila, e tinha aprendido que, �s vezes, as apar�ncias podiam ser um grande consolo.
N�o tinha medo de ficar em evid�ncia ou de cometer algum engano que envergonhasse ao Gabe na festa que seus pais foram celebrar em sua mans�o do Nob Hill,
mas tampouco estava segura de querer voltar de novo para esse tipo de vida.
perguntou-se como teriam sido as coisas se Gabe fora um homem normal, pertencente a uma fam�lia como qualquer outra. Ao melhor se teriam comprado uma
casita com um modesto jardim e os teria tragado o anonimato, e Laura n�o podia evitar desejar em parte que tivesse sido assim. Em certo modo, desejava aquela
simplicidade.
Entretanto, enquanto se grampeava os pendentes de desenho radial com gemas azuis que tinha comprado na semana anterior, deu-se conta de que se Gabe procedesse
de outra fam�lia e tivesse uma vida diferente, n�o seria o homem ao que ela amava.... o homem que ela come�ava a acreditar que talvez poderia chegar a quer�-la
tamb�m.
Laura n�o trocaria nada nele, nem de sua apar�ncia nem de sua forma de ser. �s vezes desejava que ele se abrisse um pouco mais, que compartilhasse com ela seus sentimentos
e suas id�ias, mas n�o tinha perdido a esperan�a, e acreditava que algum dia chegaria a faz�-lo.
Queria formar parte de sua vida completamente, como amante, esposa e companheira, mas de momento s� tinha chegado a ser as primeiras duas coisas.
Nesse momento se abriu a porta, e Laura se voltou para ela.
-Se estiver preparada, podemos...
Gabe se parou em seco e ficou olhando com a boca aberta. Aquela era a mulher da que Laura lhe tinha falado, a que aparecia nas capas das
revistas e ficava diante de uma c�mara luzindo sedas e casacos de pele. Estava frente ao espelho, e seu corpo esbelto e perfeito estava talher por um vestido
cor azul meia-noite de corte singelo, que lhe deixava os ombros e o pesco�o ao descoberto e emoldurava seus seios de forma cativante, antes de cair em linhas
totalmente retas at� os p�s.
recolheu-se o cabelo para tr�s, e s� um par de mechas da cor do trigo lhe ro�avam as t�mporas.
Era formosa, gloriosamente formosa, mas apesar da fascina��o que experimentou, Gabe se sentiu como se estivesse frente a uma desconhecida.
-Est� preciosa -comentou, embora manteve a m�o no pomo da porta, e o largo da habita��o entre eles-. Terei que te pintar assim -disse-se que teria
que titular o quadro A beleza de gelo... porque parecia fria, distante e inacess�vel.
-Decidi seguir seu conselho no da cor e os la�os -disse ela. Agarrou sua bolsa, e o abriu e o fechou nervosamente enquanto se perguntava por que a estava
olhando como se fora a primeira vez que a via.
-Sim, j� o vejo -Gabe pensou que um colar de safiras teria sido um complemento perfeito para o vestido-. Ainda faz um pouco de frio, tem um xale ou algo para
te tampar?
-Sim -molesta por seu tom de voz, Laura foi at� a cama e agarrou bruscamente um largo cachecol de seda estampada em um arco �ris de cores.
Gabe se deu conta de que a parte traseira do vestido tinha uma fatia at� a coxa, e disse com secura:
-Suponho que vais causar sensa��o com esse modelito.
Laura se sentiu mortificada, mas se esfor�ou por manter uma apar�ncia acalmada.
-Se voc� n�o gostar do vestido, por que n�o o diz claramente? -ficou o cachecol ao redor dos ombros em um movimento r�pido, e acrescentou-: � muito tarde para
me trocar, mas tranq�ilo, n�o voltarei a me p�r isso -M�rame. No, maldita sea, a �l no, sino a m� -cuando ella levant� la mirada hacia �l, Gabe le dijo-: recuerda qui�n soy, y que no voy a tolerar que compares
-Laura, espera -apressou-se a dizer ele.
Agarrou-a pela m�o direita antes de que pudesse sair da habita��o, e nesse momento seus dedos tocaram a simples alian�a que ela levava no �ndice.
Gabe entrela�ou os dedos com os seus ao dar-se conta de que seguia sendo sua Laura; s� tinha que olh�-la aos olhos para v�-lo com claridade.
-Tenho que ir preparar ao Michael -murmurou ela, enquanto tentava apartar-se dele.
-Esperas que me desculpe por ser humano e sentir ci�mes?
O rosto da Laura pareceu ficar gelado, e seus olhos se esvaziaram de toda emo��o.
-N�o me pus este vestido para atrair a outros homens, mas sim porque eu gostei e pensei que ficava bem.
Gabe lhe acariciou a bochecha, e soltou um juramento quando ela deu um coice.
-me olhe. N�o, maldita seja, a ele n�o, a n�o ser a mim -quando ela levantou o olhar para ele, Gabe lhe disse-: recorda quem sou, e que n�o vou tolerar que compare
cada uma de minhas palavras, cada um de meus gestos e meus estados de �nimo com os de outro homem.
-N�o o estou fazendo.
-Pode que n�o seja a prop�sito, mas sim que o faz.
-Esperas que lhe d� um giro a minha vida da noite para o dia, e n�o posso faz�-lo.
-Suponho que tem raz�o -disse ele, enquanto voltava a percorrer com o dedo a alian�a-. Mas pode recordar que formo parte de sua nova vida, n�o da velha.
-Voc� n�o te parece com ele em nada -admitiu ela. Sua m�o come�ou a relaxar-se sob os dedos do Gabe-. Disso n�o tenho nenhuma d�vida, mas suponho que �s vezes �
mais f�cil esperar o pior que desejar conseguir o melhor.
-N�o posso te prometer o melhor.
Laura sabia que nunca lhe faria promessas que n�o pudesse cumprir, e era um rasgo que adorava.
-Mas pode me abra�ar, isso � o mais parecido.
Quando a rodeou com os bra�os, seu rosto ficou apertado contra o ombro de sua jaqueta negra de etiqueta, e ao inalar seu aroma Laura sentiu que os �ltimos
retalhos de tens�o se desvaneciam.
-Suponho que eu tamb�m me hei posto ciumenta.
-O que?
Laura sorriu, e se tornou atr�s o justo para poder olh�-lo � cara.
-Esta noite est� muito bonito.
-De verdade? -disse ele, de uma vez inc�modo e divertido.
-Nunca te tinha visto em traje de etiqueta -percorreu com um dedo a lapela escura, que descansava sobre uma camisa branca-. � como ver o Heathcliff em smoking.
Ele se p�s-se a rir, e tomou o rosto dela entre suas m�os.
-Que imagina��o tem, anjo. N�o sou nenhum her�i.
-Est� muito equivocado -disse ela, com olhos solenes e muito s�rios-. � meu her�i -quando viu que ele come�ava a encolher-se de ombros, seguiu abra�ando-o com
for�a e acrescentou-: por favor, me deixe diz�-lo sem lhe subtrair import�ncia a minhas palavras, embora s� seja esta vez.
Lhe deu um toquecito no nariz com um dedo, e respondeu:
-N�o espere que v� por muito tempo com armadura. Vamos a pelo menino, minha m�e nos castigar� se chegarmos tarde.
Ele n�o era nenhum her�i, e lhe incomodava que lhe considerassem como tal. sentia-se muito mais c�modo conversando sobre seu trabalho, ou falando de como ia a
ir aos Giants na liga de basquete. Preferia as discuss�es �s boas obras.
Quando algu�m pensava que algu�m era her�ico, era imposs�vel estar � altura de suas expectativas, j� que se esperava que tivesse a resposta para tudo, a chave
da fechadura, a luz em meio da escurid�o.
Michael o tinha considerado um her�i, e naturalmente, ele tinha acabado lhe falhando.
Enquanto bebia um sorvo do champanha que parecia fluir incesantemente entre os convidados, Gabe recordou que a seu irm�o pequeno adorava as festas como
aquela, a risada, a gente e os rumores. Michael tinha sido um fofoqueiro impenitente.
Todo mundo adorava aos poucos minutos de conhec�-lo, e era uma pessoa extrovertida, divertida e carinhosa tanto com os desconhecidos como com seus amigos.
Michael tinha sido o verdadeiro her�i, j� que sempre estava fazendo favores sem pedir nada em troca, e sempre estava disposto a ajudar ou a mostrar seu entusiasmo
por um projeto.
Entretanto, tinha uma veia de g�nio e firmeza que lhe tinha proporcionado um certo equil�brio, e que tinha impedido que fora muito... muito bom,
por diz�-lo de algum jeito.
Deus, ainda jogava muito de menos, �s vezes com uma intensidade insuport�vel.
Naquela festa havia pessoas que tinham conhecido a seu irm�o, que tinham conversado e brindado com ele. Ao melhor isso era o que tinha feito que sua dor
intensificasse-se essa noite... estar na casa de seus pais, onde Michael e ele tinham crescido e tinham compartilhado tantas coisas, e saber que nunca mais ia ver
entrar em seu irm�o pela porta daquele sal�o.
Gabe sabia que, de alguma forma, terei que seguir adiante, que umas etapas da vida se fechavam para sempre e outras se abriam. De forma instintiva, voltou
o olhar para o outro extremo do sal�o, onde Laura estava falando com seu pai.
Ela tinha baixado o guich� de seu carro amolgado e tinha acabado pondo em seus bra�os a um beb� rec�m-nascido, e em algum momento entre esses dois instantes,
apaixonou-se por ela. N�o tinha sido uma revela��o acompanhada de fanfarras e foguetes, a n�o ser um sussurro fico e doce.
Se de verdade existiam os anjos, um deles lhe tinha enviado a Laura quando mais a necessitava.
Gabe sabia que lhe estava agradecida, e que era t�o generosa que lhe oferecia amor e afeto para corresponder o que lhe tinha dado. Havia dias em que pensava
que aquilo seria suficiente, que lhe bastaria nesse momento e em todos os dias que compartilhariam no futuro... mas outras vezes, sabia que n�o era assim.
Ent�o queria agarr�-la com for�a, lhe exigir uma e outra vez que o olhasse, que se desse conta de quem era ele e do que sentia por ela. Queria que Laura
esquecesse-se do que tinha acontecido no passado, e que confiasse no que existia entre eles. Desejava poder apagar tudo o que lhe tinha passado anteriormente como
faria com um tecido, eliminar todas as coisas que tinham causado as sombras que lhe obscureciam os olhos, tudo o que fazia que ela duvidasse por um instante
antes de sorrir.
Entretanto, Gabe sabia melhor que ningu�m que, quando a gente tentava repintar uma vida, sempre se perdia algo. As boas e as m�s experi�ncias pelas que
Laura tinha passado a tinham convertido na mulher que era, na mulher a que amava.
Ego�stamente, queria que Laura lhe amasse tanto como ele a amava a ela, sem nenhuma gratid�o nem sombras de vulnerabilidade. Sabia que simplesmente desejando-o
n�o ia conseguir que fora assim, mas tinha a esperan�a de que o tempo lhe desse uma m�o, e estava disposto a lhe dar o que ela necessitasse.
Algu�m se p�s-se a rir ao outro lado do sal�o, e um par de ta�as tilintaram em um brinde. No ar se misturavam os aromas do vinho, das flores
e dos perfumes femininos, a lua enche brilhava al�m das portas abertas da terra�o, e a sala parecia reluzir sob o resplendor dos abajures.
de repente, Gabe sentiu a necessidade de afastar um momento da multid�o e do ru�do, e se escabull� ao piso de acima para comprovar como estava Michael.
-O menino cada vez se parece mais a ti -comentou Cliff.
-S�rio? -perguntou Laura, radiante, e pensou que possivelmente ia resultar ser um pouco vaidosa depois de tudo.
-Sim, embora impressionante que est� esta noite, ningu�m diria que acaba de dar a luz.
Deu-lhe um daqueles afetuosos tapinhas na bochecha que sempre faziam que Laura sentisse uma mescla de acanhamento e felicidade, e acrescentou:
-Meu Gabe tem muito bom gosto.
-Cliff, deveria te envergonhar de flertar com uma mulher bonita a costas de sua mulher.
-Ol�, Marion -Cliff se inclinou e lhe deu um beijo na bochecha a rec�m chegada-.J� vejo que chega tarde, como sempre.
-Amanda j� me arreganhou -a mulher se voltou para a Laura, e a olhou da cabe�a aos p�s enquanto tomava um sorvo de champanha-. Assim que voc� � a misteriosa
Laura.
-Minha nova filha -disse Cliff, antes de rodear os ombros de sua nora com um bra�o e lhes dar um r�pido apert�o-. Laura, apresento ao Marion Trussalt, sua galeria
de arte exp�e os quadros do Gabe.
-Sim, j� sei. Me alegro de te conhecer.
Marion n�o era uma mulher formosa, mas seu cabelo negro e seus olhos escuros lhe davam uma apar�ncia exageradamente lhe impactem. Levava um vestido vaporoso e ajustado
muito colorido, que conseguia um efeito t�o extravagante como sofisticado.
-Eu tamb�m, tendo em conta que temos ao Gabe em comum -Marion sorriu, mas seus olhos n�o mostraram nenhuma calidez.
Laura reconheceu imediatamente o desd�m cuidadosamente refinado em sua express�o.
-poderia-se dizer que voc� tem seu cora��o, e eu sua alma -acrescentou a mulher.
-Ent�o, suponho que as duas desejamos o melhor para ele.
-OH, claro -Marion levantou sua ta�a em um breve brinde-. Cliff, Amanda me pediu que te recorde que os anfitri�es t�m que atender a seus convidados.
-� uma tirana -comentou ele, com uma careta-. Laura, v� comer algo ao bufei, est�-te ficando muito magra -sem mais demora, foi se cumprir com seus
obriga��es.
-Sim, a verdade � que � incr�vel qu�o magra est�, tendo em conta que deste a luz... quanto faz?, um m�s?
-Quase dois meses -Laura se trocou seu copo de �gua � outra m�o, um pouco nervosa. Nunca lhe tinha dado bem reagir ante ataques velados.
-O tempo voa -Marion se umedeceu o l�bio superior com a l�ngua-. � um pouco estranho que em todo este tempo n�o tenha vindo � galeria nenhuma s� vez,
n�o?
-Sim, tem raz�o. Terei que ir um dia destes -Laura tentou acalmar-se. N�o estava disposta a permitir que a intimidassem, nem a cair no engano de ler entre
linhas. Se Gabe tinha tido algum tipo de rela��o sentimental com o Marion, pertencia ao passado-. Sei que Gabe tem em conta sua opini�o, assim espero que possa
convencer o de que organize uma exposi��o.
-Ainda n�o decidi se isso � uma boa id�ia no momento -disse Marion, antes de voltar-se para sorrir a algu�m que a saudava do outro lado do sal�o.
-por que n�o?, os quadros s�o fant�sticos.
-Esse n�o � o �nico fator que ter� que ter em conta -disse a mulher.
voltou-se para a Laura, e lhe lan�ou um breve olhar cintilante. Jamais tinha sido a amante do Gabe, e nenhum dos dois tinha tido nunca a mais m�nima inclina��o
nesse sentido. Seus sentimentos pelo Gabriel Bradley foram muito al�m do f�sico. Gabe era um grande artista, e ela tinha sido... e pensava seguir sendo...
a catalizadora de seu �xito.
Se ele se casou com algu�m que pertencesse a seu c�rculo, ou tivesse eleito a uma mulher que empurrasse ou promovesse sua carreira art�stica, ela se haveria
sentido satisfeita; entretanto, n�o podia suportar que tivesse jogado por terra suas ambi��es, que se tivesse desperdi�ado com uma cara bonita cuja reputa��o
estava em interdi��o.
-mencionei j� que conhecia seu primeiro marido?
Laura n�o se haveria sentido mais conmocionada se a mulher lhe tivesse atirado sua bebida � cara, e o impacto direto fez que surgisse a primeira greta na
borbulha protetora que tinha conseguido construir ao redor dele e de seu filho.
-N�o. Se me desculpar...
-Sempre pensei que era um homem fascinante. Jovem e um pouco amalucado, mas fascinante. Foi uma trag�dia que morrera t�o logo, antes de que pudesse ver seu
filho -Marion apurou sua ta�a de um gole.
-Michael � filho do Gabe -disse Laura com firmeza.
-Isso ouvi -voltou a sorrir, e acrescentou-: houve alguns rumores justo antes e depois da morte do Tony. Houve quem disse que estava a ponto de divorciar-se
de ti, que j� te tinha jogado da casa de sua fam�lia porque foi... algo indiscreta -encolheu-se de ombros, e deixou sua ta�a em uma mesa-. Mas todo isso pertence
ao passado. me diga, como est�o os Eagleton?, faz muito tempo que n�o falo com o Lorraine.
Laura soube que, se n�o conseguia controlar o s�bito ataque de n�usea que lhe revolveu o est�mago, humilharia-se vomitando ali mesmo.
-por que est� fazendo isto? -sussurrou-. Que import�ncia pode ter para ti?
-Querida, tudo o que tem que ver com o Gabe tem import�ncia para mim. vou fazer que chegue ao topo, e n�o penso deixar que nada l�mpida sua ascens�o ao
mais alto. Por certo, eu gosto de muito seu vestido -acrescentou. Nesse momento viu que Amanda se aproximava delas, e se escabull� sem acrescentar nada mais.
-Est� bem, Laura? Parece branca como a neve. V�em, sente-se em uma cadeira.
-N�o, necessito um pouco de ar -conseguiu dizer, antes de ir a toda pressa para as portas acristaladas que davam a terra�o de pedra.
Amanda a seguiu, e uma vez fora, tirou-a do bra�o e a conduziu a uma cadeira.
-Vamos, sente-se um momento, antes de que Gabe nos encontre. Se te vir assim, jogar�-me a culpa por fazer que saia e o que comece a fazer vida social muito
logo.
-N�o tem nada que ver com isso.
-E muito que ver com o Marion -Amanda tomou o copo de �gua que Laura estava apertando com for�a, e lhe disse com voz acalmada-: se te insinuou que houve algo...
pessoal entre o Gabe e ela, asseguro-te que n�o � certo.
-Isso n�o me importaria.
Amanda soltou uma breve gargalhada, e lan�ou um olhar para o interior do sal�o.
-Se o disser a s�rio, � mais pormenorizada que eu. Conhe�o h� trinta e cinco anos a um dos antigos... interesses de meu marido, e ainda eu gostaria
lhe cuspir no olho.
Laura se p�s-se a rir, desfrutando da suave e perfumada brisa noturna.
-Sei que Gabe me � fiel.
-� obvio que sim, mas tamb�m deveria saber que Gabe e Marion nunca foram amantes. N�o posso dizer que saiba tudo sobre as rela��es de meu filho,
mas tenho muito claro que Marion e ele s� t�m em comum a arte. O que � o que te h� dito para te afetar tanto?
-N�o foi nada -Laura se levou os dedos �s t�mporas, como tentando acalmar uma s�bita dor-. De verdade, foi minha culpa, tive uma rea��o exagerada.
S� comentou que conhecia meu primeiro marido.
-J� vejo -indignada, Amanda olhou com um brilho perigoso nos olhos para o interior do sal�o-. A verdade � que foi muito insens�vel ao tirar o tema em
a festa para celebrar suas bodas. Uma mulher como Marion deveria ter um pouco mais de educa��o.
-O tema est� resolvido e esquecido -Laura ergueu os ombros, enquanto fazia provis�o de valor para voltar a entrar no sal�o-. Agradeceria-te que n�o lhe mencionasse
nada de tudo isto ao Gabe, n�o h� raz�o para lhe incomodar.
-Muito bem, eu mesma falarei com o Marion.
-N�o -Laura voltou a tomar seu copo, e bebeu um gole de �gua-. Se ter� que dizer algo, farei-o eu mesma.
Amanda sorriu de brinca a orelha, e disse encantada:
-De acordo, se isso for o que quer...
-Sim. Amanda, poderia ficar com o Michael um dia da semana que vem?, eu gostaria de ir � galeria a ver os quadros do Gabe -disse-lhe com determina��o.
�s vezes, as decis�es apressadas eram as melhores.
Laura despertou sem f�lego e tremendo. Lutou por sair do pesadelo, e se encontrou nos bra�os do Gabe.
-te relaxe, n�o passa nada -disse-lhe ele.
Ela tomou uma baforada de ar, e a soltou lentamente.
-Sinto muito -sussurrou, enquanto se passava uma m�o pelo cabelo.
-Quer algo?, um copo de �gua?
-N�o.
Conforme o medo se foi desvanecendo, a irrita��o foi ocupando seu lugar. O despertador indicava que eram as quatro e quinze da madrugada; haviam-se
deitado fazia tr�s horas, mas estava completamente acordada e inquieta.
Sem deixar de rode�-la com um bra�o, Gabe se recostou no travesseiro.
-N�o tinha tido um pesadelo desde que nasceu Michael, � que aconteceu algo esta noite na festa?
Laura pensou no Marion, e apertou os dentes.
-por que o pergunta?
-Dava-me conta de que parecia alterada, e minha m�e zangada.
-Crie que me briguei com sua m�e? -Laura sorriu, e se colocou mais comodamente contra ele-. N�o, a verdade � que nos levamos muito bem.
-Parece surpreendida.
-Tomou-me por surpresa que nos tenhamos feito amigas, ainda sigo esperando a que saque a vassoura e o chap�u de ponta.
Gabe se p�s-se a rir, e lhe beijou o ombro.
-Tenta criticar meu trabalho diante dela, e j� ver�.
-N�o me atreveria -de forma inconsciente, Laura come�ou a lhe acariciar o cabelo. Quando estava ali, com ele, estava convencida de que poderia com algo
que amea�asse a sua nova fam�lia-. Ensinou-me o mural que pintou em uma das paredes, o das criaturas m�ticas.
-Tinha vinte anos, e era um rom�ntico -e lhe tinha pedido uma d�zia de vezes a sua m�e que o cobrisse com uma capa de pintura.
-eu gosto.
-N�o sente saudades que te leve t�o bem com ela.
Laura se moveu at� apoiar os bra�os no peito dele; apesar de que a luz da lua era muito t�nue, podia v�-lo com claridade. N�o se deu conta de que
aquele era o primeiro movimento completamente inconsciente e natural que fazia para aproximar-se dele, mas Gabe sim.
-Falo a s�rio, eu gosto. O que t�m de mau os unic�rnios, os centauros e as fadas?
-Suponho que nada -admitiu ele, embora o �nico que lhe interessava nesse momento era fazer o amor com ela.
-Perfeito. O que te parece a id�ia de pintar um mural em uma das paredes da habita��o do Michael?
Gabe estirou de um cacho que lhe ca�a sobre a bochecha.
-Est�-me oferecendo um encargo?
-Bom, vi algumas mostra de seu trabalho, e n�o est�o mau.
Ele estirou do cacho com um pouco mais de for�a.
-Que n�o est�o mau?
-Parecem prometedoras -Laura soltou uma gargalhada, e apartou a cara antes de que ele pudesse voltar a agarrar o cacho-. Me mande uns quantos esbo�os de amostra,
para que dita se for te contratar.
-E o que me diz de meus honor�rios? -perguntou-lhe ele, com um sorriso.
Quando a calidez em seu interior foi em aumento, Laura come�ou a pensar que o pesadelo que a tinha despertado podia ter um aspecto positivo depois de tudo.
-S�o negoci�veis.
-Muito bem, farei o mural com uma condi��o.
-Qual?
-Que deixe que volte a te pintar, mas nua.
Os olhos dela se aumentaram, mas se p�s-se a rir, convencida de que estava brincando.
-Ao menos, poderia deixar que me ponha uma boina.
-Viu muitas filmes antigos, mas pode te p�r uma boina se quiser... e nada mais.
-N�o posso faz�-lo.
-Vale, ent�o sem boina.
-Gabe, n�o pode estar falando a s�rio.
-claro que sim -para prov�-lo, e porque levava um momento desejando faz�-lo, percorreu-a com a m�o-. Tem um corpo incrivelmente formoso... umas extremidades
largas como de bailarina, uma pele suave e cremosa, e uma cintura estreita.
-Gabe... -disse, n�o para tentar deter sua m�o, a n�o ser a conversa��o. Entretanto, n�o conseguiu nenhuma das duas coisas.
-quis te pintar nua desde a primeira vez que fizemos o amor. Ainda posso verte tal e como estava quando te tirei a camisola, e captar essa feminilidade,
essa sexualidade sutil, seria todo um triunfo para mim.
Ela posou a bochecha sobre seu peito, e admitiu:
-Daria-me vergonha.
-por que?, vi-te nua dos p�s � cabe�a, conhe�o cada cent�metro de seu corpo -Gabe tomou seus seios nas m�os, e ro�ou seus mamilos com os
polegares. Ao ver a resposta imediata dela, estremeceu-se de prazer.
-Mas � o �nico -disse ela, com voz rouca. Sem logo que dar-se conta, come�ou a percorr�-lo com as m�os lentamente.
Aquele fato era incrivelmente excitante para o Gabe. Ningu�m mais conhecia os segredos do corpo da Laura, suas curvas e seus vales, ele era o �nico que sabia onde
toc�-la e acarici�-la para conseguir que seu acanhamento se dissolvesse em uma corrente de paix�o. Queria plasmar sobre o tecido a beleza de sua pessoa, a do�ura
de suas inibi��es, o fogo apaixonado rec�m descoberto, mas podia esperar.
-Suponho que poderia contratar a uma modelo.
Ela levantou a cabe�a de repente.
-O que...? -a quebra de onda de ci�mes foi t�o s�bita e poderosa, que Laura ficou sem palavras.
-� arte, anjo, n�o um p�ster de uma revista picante -disse ele divertido e encantado com sua rea��o.
-Est� tentando me chantagear.
-E voc� � muito lista.
Laura entreabriu os olhos, e em um intento de sedu��o que os surpreendeu a ambos, moveu-se de modo que seu corpo se ro�asse tentadoramente sobre o do Gabe.
-Acessaria s� se eu pudesse escolher a modelo.
Gabe sentiu que o cora��o o martilleaba, e quando ela baixou a cabe�a para lhe cobrir o peito de beijos, fechou os olhos.
-Laura...
-N�o, a senhora Drumberry. Conheci-a esta noite.
O abriu os olhos, mas quando ela atirou de um de seus mamilos com os dentes, seu corpo se arqueou de repente.
-Mabel Drumberry tem cento e cinco anos -conseguiu dizer.
-Exato -ela soltou uma risita, mas seguiu explorando e descobrindo, com uma crescente sensa��o de poder-. N�o quero que esteja metido em seu estudo com uma
sexy e curvil�nea ruiva.
Gabe come�ou a rir, mas o som se converteu em um gemido quando a m�o dela se deslizou para baixo.
-N�o crie que possa resistir a uma sexy e curvil�nea ruiva?
-claro que sim, mas ela n�o poderia resistir a ti-esfregou a bochecha ao longo de sua mand�bula, que j� estava um pouco �spera com a barba incipiente da manh�-.
� t�o formoso, Gabe... se soubesse pintar, lhe poderia mostrar isso del d�a se invert�an los papeles. Gabe era un hombre que necesitaba actuar con rapidez, con decisi�n, y que parec�a considerar que, si se comet�an errores por culpa
-Est�-me enlouquecendo.
-Isso espero -murmurou, antes de baixar a cabe�a e beij�-lo na boca.
Laura nunca tinha tido a confian�a suficiente para levar a iniciativa, nunca se havia sentido o bastante segura de sua habilidade ou de seu atrativo, mas
com o Gabe parecia natural e incrivelmente satisfat�rio provocar e excitar a seu homem em um jogo apaixonado.
O permaneceu com as m�os enredadas em seu cabelo, e seus dedos se esticaram ainda mais quando a l�ngua dela entrou em sua boca e come�ou a explorar. Seus dedos eram
mais instintivos que experimentados, e isso os fazia muito mais sedutores.
Lentamente, Laura se foi convencendo do poder que tinha como mulher, e soube que podia ser sua companheira plenamente, de igual a igual. Era f�cil mostrar seu amor,
quase tanto como senti-lo.
Conforme foi descobrindo-o a ele, foi tirando o chap�u a si mesmo. Ela n�o tinha tanta paci�ncia como Gabe, ao menos naquele aspecto; curiosamente, � luz
do dia se investiam os pap�is. Gabe era um homem que precisava atuar com rapidez, com decis�o, e que parecia considerar que, se se cometiam enganos por culpa
das pressas, podiam corrigir-se ou ignorar-se sem mais. Ela era mais precavida, mais dada a pensar nas diferentes alternativas e em suas poss�veis conseq��ncias antes
de atuar.
Entretanto, Laura se deu conta de que na cama, no papel de sedutora, tinha muito pouca paci�ncia.
Gabe tentou tom�-la em seus bra�os, mas ela se converteu em uma feiticeira selvagem e atrevida, e as sensa��es que estava despertando nele o arrastaram
sem que pudesse evit�-lo. Era como ter a uma mulher completamente diferente na cama, uma que cheirava como Laura, que tinha uma pele t�o tersa como a sua e �
que desejava com tanto desespero como a ela.
Quando a boca dela cobriu a sua, o sabor era o da Laura, mas em certo modo mais amadurecido, mais intenso. E o corpo dela parecia abrasar sua pele enquanto
movia-se sobre ele.
Gabe tentou recordar que aquela era sua t�mida e ainda inocente mulher, a que tinha que tratar com infinita ternura e com extremo cuidado. Ainda n�o tinha desatado
toda a for�a de sua paix�o com ela. Com a Laura se tomou seu tempo, e tinha utilizado at� a �ltima gota de sensibilidade que tinha.
Mas nesse momento, ela o estava despojando de todo seu controle.
Laura desfrutou da gloriosa sensa��o de poder. Apesar do excitada que estava, sua mente estava completamente limpa. Podia debilitar ao Gabe, fazer
que enlouquecesse de desejo, que se estremecesse. Sem f�lego, encontrou com os l�bios de forma instintiva os pontos onde pulsava seu pulso, e comprovou que seu cora��o
pulsava a um ritmo fren�tico... por ela. Sentiu como seu corpo tremia e se estremecia sob suas car�cias, e ouviu como gemia enfebrecido seu nome.
Laura ouviu o som de sua pr�pria risada, carregado de sensualidade e de triunfo feminino. O rel�gio do corredor tocou as cinco, e o eco ressonou uma e outra vez em
sua cabe�a.
De repente, com um comprido som gutural e primitivo, Gabe a rodeou com os bra�os. Seu controle se rompeu como uma borracha ao estirar-se muito, e os desejos a
m�dio satisfazer que tinha contido durante tanto tempo se transbordaram.
Quando ele se apoderou de sua boca com uma paix�o desatada, Laura n�o se sentiu aterrada, a n�o ser vitoriosa.
Apanhados naquela esp�cie de loucura, rodaram pela cama procurando, tomando, exigindo, com um frenesi que secava a boca e sacudia a alma. Gabe rasgou as
costuras e o encaixe da recatado camisola que ela levava at� conseguir arrancar-lhe e suas m�os percorreram seu corpo com ardentes car�cias.
Laura n�o sentiu vergonha nem acanhamento, a n�o ser uma liberdade completa, e em certo modo diferente a que Gabe j� lhe tinha ensinado. T�o desesperada como ele, se
abriu para receb�-lo, e quando a penetrou, ambos pareceram sacudir-se em vibrantes quebras de onda de prazer.
inundaram-se em seu pr�prio ritmo, r�pido e furioso, um impulsionando ao outro a ir mais � frente. O prazer parecia n�o ter limites, e o desejo insaci�vel se estendeu
como um fogo arrasador.
Enquanto se entregava a ele, enquanto pedia e recebia mais, Laura se deu conta de que o tempo podia chegar a deter-se para os que eram o suficientemente
afortunados.
Cap�tulo 10
Laura estava no jardim quando come�ou a nublar-se. acostumou-se a passar ali as manh�s, enquanto o menino dormia ou se balan�ava em seu balan�o. A casa
sujava-se pouco, e Gabe s� era descuidado quando estava pintando, assim normalmente tinha poucas tarefas nas que ocupar-se.
O certo era que havia tantas habita��es, tanto espa�o, que ainda n�o se integrou naquele s�tio. sentia-se como em sua casa na habita��o do menino,
vai que a tinha decorado ela mesma e se passava muitas horas ali, t�o de dia como de noite, mas o resto da casa, repleto de antiguidades, atapeta caras
e madeira polida, resultava-lhe completamente indiferente e distante.
Necessitava ar e espa�o, e gra�as ao benigno tempo primaveril tinha descoberto que gostava da jardinagem; desfrutava de do tempo ensolarado, dos aromas
e da sensa��o da terra sob suas m�os, e lia todos os livros sobre novelo que podia encontrar para familiarizar-se com as flores e os arbustos, e com
qu�o cuidados requeriam.
Os tulipas tinham come�ado a florescer, e as azaleas estavam em pleno apogeu. Embora ela n�o tinha plantado nenhuma daquelas novelo, cuidava-as e se
orgulhava delas como se o tivesse feito, j� que ao fim e ao cabo, cada ano floresciam desde zero. E tampouco se sentia inc�moda acrescentando seus pr�prios toques
pessoais �s roseiras, e �s bocas de drag�o.
J� estava planejando plantar l�rios de montanha, an�monas e papoulas em outono, e no inverno pensava fazer arraigar ela mesma planta que floresceriam na primavera;
ia plantar as primeiro em uns pequenos botes, que colocaria em uma habita��o ensolarada da asa leste da casa.
-O ano que vem te ensinarei �s plantar -disse ao Michael. Podia imaginar o correndo pelo jardim com seus piernecitas rechonchas, jogando com a terra,
tentando apanhar �s mariposas.
Ele se poria-se a rir, e ela o levantaria em seus bra�os e lhe faria dar voltas jogando avioncito. Os olhos do menino, que eram t�o azuis como os seus,
resplandeceriam de alegria, e sua risada ressonaria no ar.
Ent�o Gabe apareceria pela janela de seu estudo e lhes perguntaria por que faziam tanto ru�do, embora n�o estaria realmente zangado. Ele baixaria at�
o jardim, alegando que de todas formas n�o poderia trabalhar em toda a manh� por culpa da anima��o, e ent�o se sentaria com o Michael no rega�o, e ririam juntos
por algo que ningu�m mais seria capaz de entender.
Laura se sentou sobre seus tal�es, e se secou a frente com o dorso de uma m�o enluvada. Sonhar sempre tinha sido sua via de escapamento, sua defesa, sua sobreviv�ncia,
mas as coisas tinham trocado, e estava come�ando a acreditar que os sonhos realmente podiam fazer-se realidade.
-Quero muit�ssimo a seu papai -disse ao Michael, como sempre estava acostumado a fazer ao menos uma vez ao dia-. Quero-lhe tanto, que me faz acreditar nos finais felizes.
Quando uma sombra caiu sobre ela, Laura levantou a vista ao c�u e viu que as nuvens tinham come�ado a cobrir o sol. Esteve a ponto das ignorar e seguir
trabalhando com as novelo, mas sabia que demoraria um pouco em poder recolher todas suas ferramentas de jardinagem e as coisas do Michael.
-Bom, a �gua � boa para as flores, verdade, c�u?
Guardou as ferramentas e as bolsas de fertilizante no pequeno abrigo que havia junto � porta traseira, e ent�o tirou o menino do balan�o. Com
a coordena��o imprescind�vel que proporcionava a maternidade, carregou com o menino, com seus brinquedos e com o balan�o dobrado, e entrou na casa.
Logo que tinha come�ado a subir as escadas quando estalou o primeiro trov�o, e tanto Michael como ela se sobressaltaram. O pequeno come�ou a chorar, e ela
tentou tranq�iliz�-lo embalando-o e arrulhando-o, enquanto lutava por controlar seu pr�prio medo �s tormentas.
Michael se acalmou muito mais rapidamente que ela. Embora ainda n�o tinha come�ado a chover, Laura observou das janelas da habita��o do menino a f�ria
desatada no c�u. Os rel�mpagos rasgavam o ar, e a luz passava de cinza a malva, e outra vez de volta a cinza, em um abrir e fechar de olhos.
Michael come�ou a ficar dormitado ao cabo de um momento, mas ela continuou sujeitando-o em seus bra�os, tanto para reconfortar ao menino como a si mesmo.
-� absurdo, verdade? -murmurou-. Uma mulher adulta lhes tem mais medo aos trov�es que um beb�.
Quando a chuva come�ou a a�oitar as paredes da casa, obrigou-se a deixar ao menino dormido em seu ber�o para poder ir fechar todas as janelas.
Enquanto ia de habita��o em habita��o, disse-se que ao menos tinha encontrado algo que a mantivera ocupada, mas cada vez que retumbava um trov�o, n�o podia
evitar dar um coice. Quando por fim terminou, foi para a habita��o do Michael para acurrucarse no sof� cama e ler um livro at� que a tormenta passasse,
mas ent�o se lembrou do estudo do Gabe e se apressou a ir para ali, temerosa deque se danificasse algum de seus trabalhos.
Felizmente, a casa n�o se ficou sem luz por causa da tormenta, e ao lhe dar ao interruptor viu que tinha havido sorte. O ch�o sob as janelas
estava molhado, mas n�o havia nenhuma pintura perto. apressou-se a ir fechando uma janela atr�s de outra, at� que o som da chuva ficou completamente amortecido
pelos cristais.
Laura estava a ponto de fazer o mais pr�tico, ir procurar uma faxineira, quando se deu conta de que era a primeira vez que via o estudo do Gabe a s�s.
O nunca lhe havia dito que n�o podia entrar, mas ela tinha vivido grande parte de sua vida sem poder desfrutar de sua privacidade, assim sempre procurava respeitar
a de outros. Entretanto, descobriu que se sentia muito c�moda naquela habita��o, igual a na do Michael... e que na cabana em meio das montanhas.
De repente, deu-se conta de que o aroma do estudo recordava ao Gabe. O ambiente continha aquela mescla de pintura, aguarr�s e giz que freq�entemente se pegava
� roupa de seu marido, e era um aroma que sempre a tranq�ilizava, embora ao mesmo tempo a excitava. Ao igual ao homem, o aroma despertava suas emo��es.
Podia am�-lo e sentir-se reconfortada por ele de uma vez, da mesma maneira que podia excit�-la e confundi-la.
Laura se perguntou o que era o que Gabe queria dela, e por que. Acreditava entend�-lo em parte: ele desejava ter a solidez de uma fam�lia, acabar com sua solid�o
e ter paix�o em sua cama, e a tinha eleito a ela porque estava t�o ansiosa de lhe dar todas aquelas coisas como ele das receber.
Isso podia ser suficiente... ou quase, mas seu problema era que ela desejava em sil�ncio ter muito mais.
Decidida, jogou a um lado aqueles pensamentos deprimentes e tentou imaginar-lhe ali, trabalhando e planejando suas obras.
Pensou maravilhada em tudo o que se feito naquela habita��o, em todas as horas que ele se passou criando, aperfei�oando e experimentando. Se
perguntou o que era o que fazia que um homem pudesse ser capaz de interpretar o que lhe rodeava e de expressar o de forma t�o diferente ao resto, e se aproximou do cavalete
para contemplar o trabalho que ele tinha em curso nesse momento.
Era um retrato do Michael, e aquele gesto t�o simples e profundo fez que Laura se rodeasse com os bra�os. Havia um esbo�o fixado ao cavalete, e o retrato em
o tecido estava come�ando a tomar forma. deu-se conta de que o menino j� estava um pouco trocado, mais crescido, que no esbo�o, e calculou que Gabe devia haver
feito o desenho aproximadamente uma semana antes; entretanto, gra�as a seu marido, sempre poderia olhar atr�s e ver seu filho tal e como tinha sido naquele momento
�nico que j� pertencia ao passado.
Com os bra�os ainda cruzados sobre seus peitos, Laura se voltou a observar o resto do estudo. Era diferente sem o Gabe, mais... dram�tico. Ent�o se tornou a
rir, consciente de que n�o lhe teria gostado de nada a descri��o.
Sem ele, o estudo era uma habita��o ampla e limpa, com muito espa�o vazio. Havia gotas e manchas de pintura seca pelo ch�o, que podiam levar ali
uma semana ou um ano, e uma pequena pia em uma das esquinas, com uma toalha deixada de forma descuidada no bordo.
Tamb�m havia umas estanter�as e uma mesa de trabalho, sobre as que tinha esparso todo tipo de material de pintura: jarros cheios de pinc�is, esp�tulas,
l�pis-carv�es, trapos... igual a em Avermelhado, Gabe tinha amontoado um mont�o de tecidos contra as paredes, mas n�o tinha pendurado nenhum.
De repente, deu-se conta de que n�o lhe tinha ocorrido lhe perguntar se tinha algo que pudessem pendurar no quarto do Michael. Os p�steres que ela havia
eleito eram muito alegres e coloridos, mas um dos quadros do Gabe teria muito mais significado. Sem pensar-lhe duas vezes, ajoelhou-se e come�ou a olhar os
tecidos.
Era incr�vel a forma em que Gabe podia despertar as emo��es de outros atrav�s de seus quadros. Encontrou uma paisagem de cores bolo que fazia sonhar,
e uma imagem descarnada de um sub�rbio cheia de mis�ria que provocava calafrios.
Tamb�m havia retratos, como o de um anci�o apoiado em sua fortifica��o na parada do �nibus, o de tr�s meninas rendo diante de uma loja, ou o espetacular
nu de uma mor�ia tombada sobre um fundo de cetim branco. Laura n�o sentiu ci�mes ao v�-lo, a n�o ser uma admira��o maravilhada.
Havia mais de uma d�zia de quadros, e foi voltando-os e contemplando-os um ap�s o outro, perguntando-se por que Gabe os teria empilhado de forma t�o descuidada.
Muitos deles n�o estavam emoldurados, lodos estavam de cara � parede, e conforme ia vendo, sentia-se cada vez mais assombrada de estar casada com um homem
que podia conseguir tanto com umas cores e um pincel.
Podia sentir o estado de �nimo e as emo��es que ele tinha experiente ao trabalhar em cada obra... raiva, humor, tristeza, impaci�ncia, desejo, entusiasmo...
se Gabe podia senti-lo, podia pint�-lo.
de repente, sentiu-se frustrada pelo fato de que ele tivesse decidido manter aqueles quadros encerrados em uma habita��o, onde ningu�m podia contempl�-los,
apreci�-los ou toc�-los. Aquele n�o era seu s�tio. A assinatura do Gabe aparecia na esquina de cada um de seus trabalhos, com o ano justo debaixo, e Laura comprovou que
nada do que tinha encontrado at� o momento tinha mais de dois anos, nem menos de um.
Ao girar o �ltimo tecido, voltou a ficar sem fala. Era outro retrato, mas aquele tinha sido pintado com amor.
O sujeito do quadro era um homem jovem que n�o devia chegar ainda � trintena, e seu sorriso parecia um pouco despreocupada, como se tivesse todo o tempo
do mundo para conseguir o que queria fazer. Seu cabelo loiro era v�rios tons mais claro que o do Gabe e estava penteado para tr�s, afastado de seu rosto magro
e atrativo.
Era um estudo informal, de corpo inteiro, e o modelo estava comodamente sentado em uma cadeira, com as pernas estiradas e cruzadas � altura dos tornozelos;
entretanto, apesar da pose relaxada, o retrato transmitia uma sensa��o de movimento e de energia.
Laura recordou ter visto aquela cadeira no sal�o da mans�o l os Bradley no Nob Hill, e reconheceu ao sujeito do quadro pela forma de sua cara, que
era muito parecida com a de seu marido. Aquele era o irm�o do Gabe... Michael.
Permaneceu ali comprido momento, com o retrato sobre seu rega�o. Deixou de ouvir o som da tormenta, e embora as luzes piscaram uma vez, nem sequer se deu
conta.
Acabava de descobrir que era poss�vel chorar a perda de um perfeito desconhecido, sentir a pena e a dor. O profundo amor e o respeito que Gabe sentia
por seu irm�o eram �bvios em cada pincelada, e desejou mais que nunca que confiasse nela o suficiente para falar daquele Michael, de sua vida e de sua morte.
Ao contemplar o quadro, Laura se deu conta de que tinha visto aquele mesmo amor incondicional no esbo�o do beb� que havia no cavalete.
Por um segundo, perguntou-se se deveria sentir-se molesta pela possibilidade de que ele estivesse utilizando a seu filho para superar a morte de seu irm�o. Sabia
que isso n�o significaria que Gabe n�o quisesse ao menino, mas mesmo assim, a causar pena pens�-lo. Se ele n�o falava com ela, se n�o lhe abria suas emo��es como fazia em seu
trabalho, nunca chegaria a ser realmente sua mulher, nem Michael seu filho.
Voltou a p�r cuidadosamente o quadro contra a parede, e depois colocou todos outros.
Quando deixou de chover, Laura decidiu chamar a Amanda e levar a pr�tica sua decis�o de visitar a galeria de arte, j� que sabia que tinha que pregar com
o exemplo se queria que Gabe desse outro passo mais para ela.
Apesar de todas as desculpas que lhe tinha dado, a verdadeira raz�o pela que n�o tinha ido ainda � galeria era que n�o se sentou c�moda em seu papel de
esposa da figura p�blica, do pintor famoso. Era consciente de que a inseguran�a s� podia superar-se enfrentando-se a ela e avan�ando com firmeza, embora para
isso terei que fazer provis�o de todo o valor dispon�vel.
disse-se a si mesmo que tinha crescido e maturado. No ano anterior, n�o s� tinha aprendido a ser forte, mas tamb�m a ter toda a for�a que fora necess�ria.
Ainda n�o tinha alcan�ado o topo, mas ao menos j� n�o estava lutando por tentar afian�ar-se na base da montanha.
Amanda acessou imediatamente a ficar com o Michael, e n�o quis nem ouvir suas palavras de agradecimento. depois de pendurar, Laura lhe jogou uma olhada a seu rel�gio
de bracelete; se o menino se atia a sua rotina habitual, despertaria faminto em menos de uma hora. depois de lhe amamentar, daria seu primeiro grande passo e o levaria
a Amanda, e depois iria � galeria. Baixou o olhar para os jeans que levava, e ao ver que tinha os joelhos manchados de terra, decidiu que antes de nada
ia ter que trocar-se de roupa.
Come�ou a subir as escadas, mas o timbre da porta soou quando estava j� a meio caminho. foi abrir, muito otimista para sentir-se molesta pela
interrup��o.
E o mundo se derrubou silenciosamente a seus p�s.
-Ol�, Laura -Lorraine Eagleton fez um seco gesto de sauda��o com a cabe�a, e entrou no vest�bulo sem pedir permiss�o. Olhou a seu redor enquanto se tirava
as luvas, e comentou-: v�, v�... n�o te foi nada mal, verdade? -colocou pulcramente as luvas em uma bolsa bege de pele de jacar�, e lhe perguntou sem pre�mbulos-:
onde est� o menino?
Laura era incapaz de falar. Tanto as palavras corno o ar lhe tinham ficado apanhados nos pulm�es, e a acumula��o fazia que o peito parecesse
a ponto de lhe estalar. Sua m�o, que ainda permanecia no pomo da porta, estava paralisada, embora o ritmo aterrorizado de seu cora��o ressonava at� nas pontas
de seus dedos.
de repente, apareceu em sua mente a terr�vel lembran�a da �ltima vez que tinha visto aquela mulher cara a cara, e recordou as amea�as, as exig�ncias e
a humilha��o como se acabassem de acontecer. Conseguiu encontrar a voz, e disse:
-Michael est� dormindo.
-Melhor. Temos que falar de um par de coisas.
A chuva tinha refrescado o ambiente, e tinha deixado seu sabor no ar. A luz entrava pela porta, que seguia aberta, e os p�ssaros tinham come�ado
a gorjear com otimismo de novo. Ao ver todas aquelas amostras de normalidade, Laura se recordou que a vida n�o se incomodava em deter-se por meras crises pessoais.
Embora n�o p�de relaxar os dedos no pomo da porta, conseguiu manter o olhar sereno e a voz firme ao dizer:
-Recorde que est� em minha casa, senhora Eagleton.
-As mulheres corno voc� sempre as engenham para conseguir maridos ricos e cr�dulos -a mulher arqueou uma sobrancelha, satisfeita ao ver que Laura seguia junto a
a porta, tensa e p�lida-. Mas isso n�o troca quem �, nem o que �. E quero que saiba que, embora tenha sido o suficientemente lista para conseguir que
Gabriel Bradley se case contigo, n�o vais poder evitar que consiga obter o que me pertence.
-N�o tenho nada dele. E agora, eu gostaria que se fora daqui.
-Sim, isso n�o o duvido -disse Lorraine, com um sorriso. Era uma mulher alta, mor�ia e muito bonita-.Asseguro-te que n�o tenho nem o desejo nem a inten��o de prolongar
esta visita. vou conseguir ao menino.
Laura se viu de repente em meio da n�voa, com uma manta vazia nas m�os.
-N�o.
Lorraine apartou a um lado sua negativa, igual a teria feito com um penugem em sua lapela.
-S� tenho que conseguir uma ordem judicial.
Uma quebra de onda de f�ria ardente substituiu ao medo g�lido que Laura tinha sentido at� esse momento, e conseguiu recuperar a mobilidade, embora s� fora para
esticar-se.
-Adiante, fa�a-o. At� ent�o, nos deixe em paz.
Lorraine contemplou seu rosto, pensando que Laura seguia sendo a mesma. Tinha passado por um segundo ao ataque ao sentir-se encurralada, mas ainda a podia
manipular facilmente. Sempre a tinha enfurecido que seu filho se rebaixou tanto, que se tivesse conformado com t�o pouca coisa quando poderia ter conseguido
algo muito melhor, mas nunca levantava a voz, nem sequer quando estava t�o zangada. Ao fim e ao cabo, o desd�m era uma arma muito mais poderosa.
-Teria que ter aceito a oferta que lhe fizemos meu marido e eu. Era muito generosa, e n�o vais voltar a t�-la.
-N�o podem comprar a meu filho, igual a n�o podem fazer que Tony volte.
A ver a express�o de dor que apareceu no rosto do Lorraine, uma dor real e enorme, Laura sentiu uma pontada de compaix�o por ela.
-Senhora Eagleton...
-N�o penso falar contigo de meu filho -disse Lorraine, enquanto a dor se transformava em amargura-. Se tivesse sido o que ele necessitava, ainda estaria vivo,
e isso � algo que nunca te perdoarei.
Em outra �poca Laura se teria derrubado ante aquelas palavras e teria aceito a culpa de tudo, mas Lorraine estava equivocada e ela j� n�o era a mesma
mulher necessitada de ent�o.
-Quer me tirar a meu filho para me castigar, ou para tentar curaras feridas? Sabe que nenhuma dessas raz�es est� bem.
-O que sei, o que penso provar, � que n�o est� capacitada para criar ao menino. vou contribuir com documentos que demonstrar�o que esteve com outros homens, antes
e depois de te casar com meu filho.
-Sabe perfeitamente bem que isso n�o � verdade.
Lorraine seguiu falando como se Laura n�o tivesse falado.
-Al�m disso, acrescentarei um relat�rio sobre qu�o inst�veis s�o seus antecedentes familiares. Se se comprovar que o menino � do Tony, iniciarei um pleito pela cust�dia,
e n�o h� d�vida de qual ser� o resultado.
-N�o vai tirar me ao Michael, seu dinheiro e suas mentiras n�o v�o servir lhe de nada.
O volume de sua voz foi crescendo, e Laura lutou por acalmar-se, consciente de que perder os estribos n�o ia servir lhe de nada. Sabia muito bem a facilidade
com a que Lorraine podia se separar de um colch�o qualquer emo��o com um simples olhar g�lido e fulminante, assim tinha que acreditar que ainda existia alguma possibilidade
de poder raciocinar com ela.
-Se voc� quis alguma vez ao Tony, ent�o deve saber o longe que estou disposta a chegar para conservar a meu filho.
-E voc� deveria saber o longe que estou disposta a chegar eu para me assegurar de que n�o crie a um Eagleton.
-Isso � tudo o que Michael � para voc�, um sobrenome, um s�mbolo de imortalidade, mas em realidade � s� um menino pelo que n�o sente nada -apesar de seus
esfor�os, a voz da Laura come�ou a adquirir um matiz desesperado, e come�aram a lhe tremer os joelhos.
-Os sentimentos n�o t�m nada que ver nisto. Estou alojada no Fairmont, tem dois dias para decidir se quiser um esc�ndalo p�blico ou n�o -Lorraine
tirou suas luvas da bolsa, completamente tranq�ila, porque o terror na cara da Laura revelava que n�o havia risco nesse aspecto-. Estou segura de que os Bradley
sentiriam-se... molestos ao inteirar-se de suas passadas indiscri��es, assim n�o tenho nenhuma d�vida de que atuar� com sensatez e n�o por� em perigo o que h�
conseguido t�o convenientemente -sem mais, a mulher saiu � rua e baixou os degraus para a limusine que a esperava.
Sem esperar a que o ve�culo partisse, Laura fechou a porta de uma portada e p�s o ferrolho. Estava ofegando, como se tivesse estado correndo, e isso foi
o primeiro que lhe passou pela mente: sair correndo, fugir. Subiu as escadas � carreira, entrou na habita��o do Michael e come�ou a colocar as coisas do
menino em uma bolsa.
Teriam que viajar sem muita bagagem, assim decidiu escolher s� o que fora absolutamente imprescind�vel. antes de que anoitecesse podiam estar a quil�metros
dali... iria para o norte, ao melhor ao Canad�. Ainda ficava suficiente dinheiro para escapar, para poder conseguir o tempo necess�rio e desaparecer. Se o
caiu um chocalho das m�os, e o som do golpe no estou acostumado a pareceu retumbar na habita��o. Cedendo ante o desespero que sentia, Laura se afundou em
o sof� cama e enterrou a cara nas m�os.
N�o podiam fugir. Embora tivessem economias suficientes para que lhes durassem uma vida inteira, n�o podiam faz�-lo. N�o era justo, nem para o Michael, nem para o Gabe nem
para ela mesma. Tinham constru�do uma vida ali, o tipo de vida com o que sempre tinha sonhado e que precisava lhe dar a seu filho.
Mas, o que podia fazer para proteg�-la?
Manter-se firme, enfrentar-se ao ataque, n�o deixar que a avassalassem... mas ao longo de sua vida sempre tinha acabado cedendo, era o que lhe dava melhor.
Levantou a cabe�a, e esperou a que se acalmasse sua respira��o. Esse �ltimo pensamento era t�pico da antiga Laura, e algo com o que Lorraine contava. Os
Eagleton sabiam perfeitamente bem o facilmente manipulable que tinha sido; esperavam que pusesse-se a correr, e pensavam utilizar isso como prova de seu comportamento
err�tico e impulsivo, para poder lhe tirar ao menino. Al�m disso, certamente acreditavam que, em caso de que estivesse muito cansada para fugir, estaria disposta a renunciar
ao beb� para proteger sua posi��o com os Bradley.
Mas n�o a conheciam, nunca se tinham tomado o tempo ou a mol�stia de chegar a conhec�-la de verdade. N�o ia ceder nem a deixar-se avassalar. N�o ia fugir com
seu filho, a n�o ser a lutar por ele.
De repente, sentiu-se furiosa, e se alegrou enormemente disso. A f�ria era uma emo��o ardente e cheia de energia, completamente diferente � insensibilidade
geada do medo. Seguiria o conselho da Amanda e permaneceria furiosa, porque assim n�o s� lutaria, mas tamb�m o faria de forma desumana e suja. Os Eagleton
foram levar se uma grande surpresa.
Quando chegou � galeria de arte, j� tinha recuperado completamente o controle de suas emo��es. Michael estava a salvo com a Amanda, e j� tinha dado o primeiro
passado do plano que tinha esbo�ado para assegurar-se de que n�o lhe acontecesse nada.
A Galeria Trussalt estava em um elegante edif�cio remodelado. Perto da entrada principal havia uns bancos de flores, perfeitamente cuidados e ainda �midos
pela recente chuva, e ao abrir a porta Laura cheirou o aroma das rosas e das folhas.
No interior, as clarab�ias do teto permitiam ver o c�u, que seguia encapotado, mas a galeria em si estava brilhantemente iluminada com focos e plafones.
O sil�ncio era t�o absoluto que Laura teve a impress�o de estar em uma igreja, mas ao olhar a seu redor se deu conta de que aquele s�tio estava dedicado ao
culto da arte.
Havia esculturas em m�rmore, madeira, ferro e bronze, e todas elas estavam colocadas com um cuidado delicioso. Em vez de competir entre elas, pareciam estar
em perfeita harmonia, igual aos quadros que se exibiam ao longo das paredes.
Reconheceu um trabalho do Gabe, uma vista particularmente solene de um jardim que come�ava a amadurecer. N�o era bonito nem alegre, e enquanto o contemplava, lembrou-se
do mural que tinha pintado para sua m�e. O mesmo homem que acreditava o suficiente nas fantasias para as plasmar e lhes dar vida, tamb�m era capaz de ver a realidade,
possivelmente inclusive com uma claridade excessiva. Aquilo era algo mais que tinham em comum.
S� um par de clientes se animaram a visitar a galeria na tarde chuvosa, e Laura teve que recordar-se que, a diferen�a daquelas pessoas, ela
n�o tinha tempo para entreter-se admirando as obras de arte. Olhou a seu redor, e ao ver um guarda, apressou-se a aproximar-se dele.
-Perdoe, estou procurando o Gabriel Bradley.
-Sinto-o senhorita, mas n�o est� dispon�vel. Se tiver alguma pergunta sobre um de seus quadros, pode falar com a senhorita Trussalt.
-N�o, ver�, sou...
-Laura -disse Marion, ao aparecer por uma porta lateral. Levava uma saia cor azul c�u que lhe chegava � altura dos tornozelos, e um pul�ver em um suave
tom rosado. As suaves cores bolo acentuavam seu aspecto ex�tico-. Assim decidiste vir a nos visitar, depois de tudo.
-vim a ver o Gabe.
-V�, que l�stima, n�o est� aqui neste momento -com apenas um olhar, indicou-lhe ao guarda que se afastasse.
Laura apertou com for�a sua bolsa. Nesse momento, os intentos de intimida��o daquela mulher n�o tinham nenhuma import�ncia.
-vai voltar?
-De fato, deveria chegar em qualquer momento. Temos uma entrevista em... -jogou uma olhada a seu rel�gio, e disse-: meia hora.
Tanto o olhar ao rel�gio como o tom de sua voz continham uma despedida impl�cita, mas Laura n�o tinha tempo para jueguecitos.
-Ent�o, esperarei-lhe.
-Pode fazer o que quiser, claro, mas me temo que Gabe e eu temos que falar de neg�cios. Estou segura de que te aborreceria.
Laura sentia uma dor surda na base da cabe�a a causa do cansa�o. N�o tinha vontades de encetar-se em uma discuss�o com aquela mulher, e sabia que devia
enfocar toda sua energia em uma batalha muito mais importante.
-Agrade�o-te que se preocupe tanto por mim, mas nada relacionado com o trabalho do Gabe pode me aborrecer.
-V�, parece uma verdadeira troyana -Marion inclinou a cabe�a, e a olhou com um sorriso que n�o tinha nada de amig�vel-. Est� um pouco p�lida, � que h� problemas
no para�so?
Laura soube nesse momento. Com tanta claridade como se Marion o tivesse admitido em voz alta, soube como a tinha encontrado Lorraine.
-Nada que n�o possa solucionar-se. por que a chamaste?
O sorriso tranq�ilo e segura da mulher n�o fraquejou nem um instante.
-Desculpa?
-estava-se gastando uma fortuna em detetives privados, assim de todas formas s� ficava uma semana, dois como muito.
Marion permaneceu em sil�ncio um momento, e ent�o se voltou para um quadro e se entreteve endireitando-o innecesariamente.
-Sempre pensei que � melhor ganhar tempo que perd�-lo. quanto antes se ocupe Lorraine de ti, antes poderei fazer que Gabe recupere a sensatez. V�em, vou
a te ensinar algo.
Marion a conduziu atrav�s da galeria at� uma habita��o separada, com as paredes e o ch�o de cor branca. Em uma esquina havia uma escada de caracol,
tamb�m branca, que levava a galeria circular que havia no piso superior. debaixo da escada havia tr�s �rvores ornamentais, e justo em frente descansava
uma enorme escultura de �bano, que representava at� homem e a uma mulher fundidos em um abra�o apaixonado... mas de alguma forma, tamb�m desesperado.
Entretanto, o que captou a aten��o da Laura foi o quadro. Sua pr�pria cara a observava com express�o serena, do retrato que Gabe lhe tinha feito durante
aqueles compridos e tranq�ilos dias em Avermelhado.
-Sim, � impressionante -Marion se esfregou o l�bio com um dedo, com o olhar fixo no quadro.
Tinha estado a ponto de ir a por uma faca para rasgar aquele tecido quando Gabe o tinha desembalado, mas a tenta��o se desvaneceu rapidamente,
j� que estava muito dedicada � arte para deixar que interferissem seus sentimentos pessoais.
-� um de seus melhores trabalhos, e o mais rom�ntico. Tem exposto s� tr�s semanas, e j� recebi seis ofertas s�rias por ele.
-J� tinha visto antes o quadro, Marion.
-Sim, mas duvido que entenda o que significa. Gabe o chama O anjo do Gabriel, acredito que isso o diz tudo.
-O anjo do Gabriel -repetiu Laura, em um murm�rio; Sentiu uma corrente quente em seu interior, e se aproximou mais ao retrato-. O que � o que significa, depende
voc�?
-Que ele, como Pigmali�n, apaixonou-se um pouco do sujeito de sua obra. Isso � algo que se espera que passe de vez em quando, e que inclusive pode chegar a ser positivo,
j� que freq�entemente inspira grandes trabalhos, como este -deu um golpecito com o dedo no marco, e continuou dizendo-: mas Gabe � um homem muito pr�tico para
alargar muito a fantasia. O quadro est� acabado, assim j� n�o te necessita.
Laura voltou a cabe�a para olh�-la frente a frente. O que aquela mulher estava lhe dizendo lhe tinha passado pela cabe�a a ela mesma inumer�veis vezes.
-Ent�o, ter� que me dizer isso ele mesmo.
-� um homem com um sentido da honra muito forte, isso � algo que forma parte de seu atrativo. Mas quando as coisas cheguem a um limite, quando se der conta
de seu engano, ver� que n�o lhe compensa estar contigo -assinalou o retrato com um gesto, e acrescentou-: um homem s� acredita em uma imagem enquanto esta permanece impec�vel,
e pelo que me h� dito Lorraine, n�o fica muito tempo.
Laura lutou contra o impulso de sair fugindo dali, e se deu conta de que essa vez lhe resultou muito f�cil manter-se firme.
-Se de verdade crie isso, por que te est� tomando a mol�stia de tentar te desfazer de mim?
-Para mim n�o � nenhuma mol�stia -Marion voltou a sorrir, e apartou a m�o do quadro-. Considero que forma parte de meu trabalho animar ao Gabe a que se concentre
em sua carreira, e ajud�-lo a evitar os obst�culos que possam lhe impedir de avan�ar. Como j� te hei dito, sua rela��o contigo � inaceit�vel, e estou segura de que ele
mesmo se dar� conta muito em breve.
Laura pensou que n�o sentia saudades que tivesse chamado ao Lorraine, porque as duas mulheres eram iguais.
-Marion, acredito que te est� esquecendo de algo: sem importar o que Gabe sinta ou deixe de sentir por mim, quer ao Michael.
-Ter� que ser muito pat�tica para utilizar a um menino.
-Isso � verdade -Laura a olhou aos olhos com express�o firme-. De fato, nisso tem toda a raz�o -quando viu que a resposta dava no alvo, acrescentou com
calma-: quando Gabe chegue, agradeceria-te que lhe dissesse que lhe estou esperando aqui.
-Para que possa correr a te esconder detr�s dele?
-N�o acredito que as raz�es da Laura para vir para ver-me sejam de sua incumb�ncia -disse Gabe, da porta.
Quando as duas mulheres se voltaram para ele, Gabe viu a f�ria no rosto do Marion e a agita��o no da Laura, mas ambas as mulheres se apressaram a recompor-se,
cada uma a sua pr�pria maneira. Marion arqueou uma sobrancelha e sorriu, e Laura entrela�ou as m�os e levantou o queixo.
-Querido, sabe que � meu dever proteger a meus artistas de algemas e amantes hist�ricas -Marion foi para ele, e lhe p�s uma m�o no bra�o-. Temos uma entrevista
com os Bridgeton em uns minutos para falar de tr�s quadros, e n�o te quero distra�do nem nervoso.
Gabe s� se incomodou em lhe lan�ar a mais breve dos olhares, mas bastou para que Marion se desse conta de que ele tinha ouvido muito.
-Deixa que eu me preocupe de meus pr�prios estados de �nimo. E agora, nos desculpas?
-Os Bridgeton...
-Podem comprar os quadros, ou ir-se ao diabo. nos deixe sozinhos, Marion.
Depois de lan�ar um olhar furioso a Laura, a mulher saiu da habita��o.
-Sinto muito -disse Laura, depois de respirar fundo-. N�o vim para causar problemas.
-Pois me diga para que, porque por seu aspecto est� claro que n�o vieste a passar a tarde contemplando obras de arte -antes de que pudesse responder, aproximou-se
a ela e acrescentou-: maldita seja, Laura, n�o me faz nenhuma gra�a que discutam sobre mim como se fora uma esp�cie de pr�mio que possa levar o melhor postor. Marion
� uma colega de neg�cios e voc� minha mulher, assim ides ter que resolver isto, est� claro?
-Perfeitamente claro -sua voz tinha trocado, endureceu-se corno a do Gabe-.E quero que voc� tamb�m tenha muito claro que, se pensasse que sua rela��o
com ela vai al�m dos neg�cios, j� te teria deixado.
Gabe esqueceu por completo o que tinha estado a ponto de dizer, e ficou olhando estupefato ao perceber a decis�o inquebr�vel em sua voz.
-Assim, sem mais?
-Sim, assim sem mais .J� tive um matrim�nio onde a fidelidade n�o existia, e n�o penso voltar a passar pelo mesmo.
-J� vejo -ao ver que voltavam para as compara��es, Gabe teve vontades de come�ar a lhe gritar a pleno pulm�o, mas se conteve e falou com muita calma- Ent�o, me
considero avisado.
Laura lhe deu as costas, para poder fechar os olhos por um momento. Cada vez lhe do�a mais a cabe�a, e se n�o se tomava uns segundos para recuperar a compostura,
acabaria lan�ando-se a seus bra�os e lhe suplicando que a ajudasse.
-N�o vim a discutir sobre os t�rminos de nosso matrim�nio.
-Ao melhor isso seria uma boa id�ia, possivelmente seja hora de que voltemos para ponto de partida e deixemos claras as coisas.
Laura sacudiu a cabe�a, e se obrigou a voltar-se para ele de novo.
-vim a te dizer que manh� pela manh� irei ver um advogado.
Gabe sentiu que a vida lhe esvaziava das veias de repente ao pensar que ela queria o div�rcio, mas a f�ria apareceu com igual rapidez. Ao contr�rio que
Laura, ele n�o o pensava duas vezes antes de plantar batalha.
-De que dem�nios est� falando?
-� algo que n�o pode postergar-se mais, n�o posso seguir fingindo que n�o � necess�rio -Laura desejou de novo abra��-lo, que ele a apertasse protetor contra seu corpo
e a fizesse sentir-se segura, mas se obrigou a permanecer onde estava e a apoiar-se em si mesmo-. N�o queria come�ar um per�odo t�o dif�cil e desagrad�vel sem lhe dizer isso Gabe no sinti� ning�n alivio al saber que no estaban hablando de divorcio, no tuvo tiempo. Sinti� p�nico por un momento, pero la furia lo sofoc� con rapidez.
antes.
-V�, que generosa -Gabe se passou uma m�o pelo cabelo. por cima de sua cabe�a, o retrato da Laura lhe sorria com do�ura, e ali de p� entre o tecido e
a mulher de carne e osso, sentiu-se como se estivesse apanhado entre duas mulheres, entre dois desejos-. A que vem tudo isto?, crie que pode me dar um beijo de
despedida na porta de casa, e come�ar a falar de advogados �s poucas horas? Se n�o ser feliz, por que n�o me h� isso dito?
-Gabe, n�o sei do que est� falando. Os dois sab�amos que era prov�vel que isto chegasse cedo ou tarde, e voc� foi o que me disse que ao final teria que
me enfrentar � situa��o. Estou lista para faz�-lo, mas quero te dar a possibilidade de que fa�a a um lado se quiser, antes de que seja muito tarde para
tornar-se atr�s.
Gabe esteve a ponto de responder com brutalidade, mas ent�o se deu conta de que tinha interpretado mal completamente o tema da conversa��o.
-por que quer ir ver um advogado amanh�?
-Lorraine Eagleton veio a casa esta tarde, e quer nos tirar ao Michael.
Gabe n�o sentiu nenhum al�vio ao saber que n�o estavam falando de div�rcio, n�o teve tempo. Sentiu p�nico por um momento, mas a f�ria o sufocou com rapidez.
-Como se quer a lua. N�o vai sair se com a sua -p�-lhe uma m�o na bochecha, e lhe perguntou com suavidade-: est� bem?
Laura assentiu.
-Sim, agora sim. Amea�ou-me iniciando um pleito pela cust�dia.
-E no que pensa apoiar-se?
Laura apertou os l�bios, mas seu olhar se manteve firme.
-Em que segundo ela, n�o estou capacitada para criar ao menino. H�-me dito que vai provar que... que estive com outros homens, antes e depois de me casar com
Tony.
-Como pode provar algo que n�o � verdade?
Ao ver que ele acreditava nela sem reserva alguma, Laura o tirou da m�o.
-H� pessoas dispostas a dizer ou a fazer muitas coisas se lhes paga o suficiente, e n�o seria a primeira vez que os Eagleton utilizam seu dinheiro e seu poder
para sair-se com a sua.
-H�-te dito onde se aloja?
-Sim.
-Ent�o, � hora de que v� fazer lhe uma visita.
-N�o -Laura se negou a lhe soltar a m�o quando ele fez gesto de ir para a porta-. Por favor, n�o quero que v�s ver a ainda, prefiro que falemos antes
com o advogado para saber as op��es que temos, o que podemos fazer e o que n�o. N�o podemos nos permitir o luxo de perder os estribos e cometer um engano.
-N�o necessito a um advogado para saber que n�o pode apresentar-se em nossa casa e nos amea�ar nos tirando ao Michael.
Ele se voltou para a porta de novo, mas Laura o aferrou pelos bra�os para det�-lo e notou a f�ria que parecia vibrar sob sua pele.
-Gabe, me escute, por favor. Sei que est� zangado, eu tamb�m o estava, al�m de assustada. Meu primeiro impulso foi voltar a fugir, inclusive comecei a recolher
as coisas do Michael.
Gabe pensou no que teria suposto para ele chegar a casa e encontr�-la vazia. A conta que tinha que saldar com os Eagleton se ia fazendo cada vez mais
grande.
-por que n�o o fez?
-Porque n�o teria sido justo, nem para o Michael, nem para ti, nem para mim. Porque lhes quero aos dois muito para faz�-lo.
Ele ficou im�vel por um segundo, e ent�o emoldurou sua cara entre as m�os enquanto tentava ler o que se ocultava em seus olhos.
-N�o teria chegado muito longe.
Laura sorriu e lhe rodeou as bonecas com os dedos.
-Isso espero. Gabe, sei o que quero fazer, e que posso consegui-lo.
Gabe demorou um momento em digerir aquilo. Ela acabava de dizer que o queria, e ao minuto seguinte falava como se estivesse excluindo-o.
-Sozinha?
-Se for necess�rio, sim. J� sei que considera o Michael como seu pr�prio filho, mas quero que entenda que se Lorraine cumprir com suas amea�as, as coisas se v�o
a p�r feias, e que o que se diga de mim lhes afetar� tanto a sua fam�lia como a ti -Laura duvidou um momento, tentando reunir o valor necess�rio para lhe dar uma elei��o-.
Se preferir n�o te envolver no que vai passar, entenderei-o.
Gabe sabia que suas poss�veis elei��es se reduziram do primeiro momento em que a tinha visto, e que tinham desaparecido por completo quando ela
tinha-lhe posto ao Michael nos bra�os. Incapaz de encontrar as palavras adequadas para poder explicar-se, optou por centrar-se no mais urgente.
-Onde est� Michael?
Laura se enjoou um pouco ante o imenso al�vio que sentiu.
-Com sua m�e.
-Ent�o, vamos busc�-lo e a lev�-lo a casa.
Cap�tulo 11
Laura n�o podia dormir. Sua mem�ria e sua imagina��o pareciam haver-se aliado contra ela, e n�o podia deixar de pensar no que tinha passado e no que podia
acontecer ao dia seguinte. Fazia quase um ano que se foi de Boston e tinha decidido enfrentar-se a seus medos, mas j� n�o estava sozinha.
Gabe n�o tinha esperado a consertar uma entrevista com seu advogado em horas de escrit�rio, mas sim lhe tinha chamado e lhe tinha pedido, ou mas bem exigido, que fora a
v�-los.
Tinham discutido sobre sua vida, seu filho, seu matrim�nio e seu futuro enquanto tomavam caf� e massas no sal�o e uma ligeira neblina cobria a ba�a. Ao princ�pio,
tinha sentido vergonha ao lhe contar a um desconhecido os detalhes de sua vida e de seu primeiro matrim�nio, e ao admitir os enganos que tinha cometido, mas a sensa��o
foi-se desvanecendo.
Em certo modo, havia sentido como se estivesse contando as experi�ncias de outra pessoa, e quanto mais abertamente falavam disso, enquanto o advogado ia
anotando os detalhes em sua caderneta, menos envergonhada se havia sentido.
Matthew Quartermain tinha sido o advogado dos Bradley durante quarenta anos; era um homem ardiloso e direto, e apesar de sua apar�ncia r�gida e um tanto
estirada, n�o se impressionava com facilidade. limitou-se a assentir, a tomar notas e a lhe fazer perguntas at� que a ela lhe tinha secado a boca de tanto
falar.
Tinha-lhe resultado relativamente f�cil lhe contar as coisas abertamente, porque n�o lhe tinha devotado nem sua compaix�o nem sua condena��o. Tinha sido mais f�cil enfrentar-se
� verdade em t�rminos simples e carentes de emo��o, que mant�-la escondida; ao final, n�o tinha tentado ocultar nem os enganos do Tony nem os seus pr�prios,
e se havia sentido maravilhosamente desencardida e liberada.
Por fim o tinha contado tudo, tinha expresso em palavras toda a dor e a ang�stia que tinha sofrido. Por causa da vergonha que tinha sentido no passado,
nunca tinha conseguido purgar seu cora��o e sua mente, e ao conseguir faz�-lo por fim, entendeu o que significava deixar o passado atr�s e come�ar de novo.
Ao Quartermain n�o tinha gostado de nada sua decis�o final, mas Laura se manteve firme. antes de que se preenchesse nenhum documento, queria voltar a ver
ao Lorraine cara a cara.
Gabe permanecia convexo junto � Laura, incapaz de dormir. Ele tamb�m estava pensando na reuni�o com o advogado, e sua f�ria aumentava mais e mais com cada palavra
que recordava. Ela tinha contado coisas no sal�o que ele n�o sabia, tinha entrado em detalhe sobre quest�es que antes s� tinha comentado muito por cima. Ele
tinha acreditado anteriormente que entendia tudo pelo que ela tinha tido que acontecer, e tinha pensado que seus pr�prios sentimentos ao respeito tinham alcan�ado seu
ponto m�ximo. equivocou-se.
Laura n�o lhe tinha contado o do olho arroxeado que tinha feito que n�o pudesse sair da casa durante uma semana, nem que Lorraine tinha explicado que sua nora
tinha o l�bio quebrado porque era muito torpe. N�o lhe tinha falado dos ataques �brios em meio da noite, nem dos arranques furiosos de ci�mes se falava com outro
homem em uma festa, nem das amea�as de vingan�a e viol�ncia quando finalmente tinha tido o valor de ir-se.
Mas essa noite o tinha contado tudo, e de forma t�o detalhada que tinha sido quase insuport�vel.
N�o se tinha atrevido a toc�-la quando se deitaram; de fato, perguntava-se como era poss�vel que ela pudesse suportar que algu�m a tocasse.
Tinha ficado dolorosamente claro tudo o que ela tinha tido que suportar. Como podia lhe pedir que o esquecesse, se j� n�o estava seguro de poder faz�-lo ele
mesmo? Sem importar qu�o tenro fora com ela, ou com quanto cuidado a tratasse, a sombra de outro homem e de outra �poca se interpunha entre eles.
Laura lhe havia dito que o queria, mas por muito que ele desejasse acredit�-lo, n�o podia entender como era poss�vel que algu�m que tivesse sofrido aquele inferno
pudesse voltar a confiar em um homem, e muito menos am�-lo.
Gratid�o, devo��o, e Michael como ponto em comum. Isso sim que podia entend�-lo, e era mais do que chegavam a ter algumas pessoas.
Gabe tinha estado a ponto de acreditar que podiam chegar a ter mais, tinha querido que fora assim, mas isso tinha sido antes de que ela contasse todas aquelas
coisas enquanto uma suave brisa primaveril fazia ondear as cortinas do sal�o.
Laura se voltou para ele, e quando seu corpo lhe ro�ou, Gabe ficou tenso.
-Despertei-te?
-N�o.
Ele come�ou a mover-se para evitar todo contato, mas ela se aproximou mais e posou a cabe�a sobre seu ombro, e aquele gesto t�o natural e singelo o partiu em dois.
O Gabe que necessitava, e o que tinha medo de pedir.
-Eu tampouco posso dormir. Sinto-me fisicamente esgotada, como se acabasse de correr uma carreira de obst�culos, mas minha mente n�o deixa de dar voltas.
-Deveria deixar de pensar no de manh�.
-J� sei -Laura se apartou o cabelo a um lado, e se colocou mais c�moda contra Gabe. Ao notar que ele tentava apartar-se ligeiramente, fechou os olhos e se perguntou
se ele tinha trocado de opini�o sobre ela ao inteirar-se de tudo.
-N�o se preocupe, j� ver� como tudo sai bem.
Laura n�o soube se lhe acreditar. Decidiu arriscar-se, e tomou a m�o na escurid�o.
-O problema � que n�o deixo de pensar no que vou dizer lhe, no que ela vai responder me, e se n�o... -Laura se deteve quando Michael come�ou a chorar,
e comentou-: parece que h� algu�m mais que n�o pode dormir.
-J� vou eu.
Laura assentiu, embora j� tinha afastado as mantas.
-Vale. traga-me isso se tiver fome.
Enquanto Gabe ficava uma bata e sa�a da habita��o, Laura se sentou na cama e se abra�ou os joelhos contra o peito. Um momento depois o pranto do
menino se deteve, mas voltou a come�ar quase imediatamente, e ent�o ouviu os murm�rios tranq�ilizadores do Gabe.
Era algo t�o f�cil para ele, t�o natural... apesar de seu g�nio e de sua arrog�ncia, era um homem sens�vel e cheio de ternura, e isso era o que tinha feito poss�vel
que ela admitisse finalmente que o amava. Com o Gabe n�o haveria nenhum ciclo de desespero, submiss�o e terror, podia quer�-lo sem renunciar �s partes de si
mesma que tinha descoberto t�o recentemente.
Nesse momento, soube que ele n�o tinha trocado de opini�o respeito a ela; certamente, qu�o �nico passava era que estava muito preocupado, mas que se sentia
obrigado a fingir que n�o era assim.
A luz da habita��o do Michael sa�a ao corredor, e dentro se via a sombra do Gabe. O pranto do menino se apagou um pouco, mas quando voltou a aumentar,
Laura reconheceu o tom e se recostou no respaldo da cama com os olhos fechados. ia ser uma noite muito larga.
-Est�o-lhe saindo os dentes -murmurou quando Gabe entrou com o menino na habita��o. Acendeu a luz da mesita de noite e lhe sorriu, consciente de que
todos foram necessitar o m�ximo apoio poss�vel nas pr�ximas horas-. Darei-lhe de comer, pode que isso ajude em algo.
-Venha, hombrecito, vamos com mam�e -Gabe o colocou nos bra�os da Laura, e o pranto se foi apagando at� que desapareceu de tudo quando o menino come�ou
a mamar-.Vou a por uma ta�a de conhaque, quer algo?
-N�o. Espera, sim, um suco do que seja.
Uma vez sozinha, Laura ag�entou ao menino com um bra�o enquanto com o outro se colocava bem os travesseiros a suas costas. A cena parecia completamente normal, como
a de qualquer outra noite. �s vezes, Michael estava nervoso e ela t�o cansada que s� queria dormir, mas outras vezes desfrutava e entesourava em sua aquelas mem�ria
horas em meio da noite.
Momentos assim eram os que Gabe e ela recordariam no futuro, momentos como os primeiros passados do menino, o primeiro dia de escola ou a primeira vez que fora
em uma bicicleta de duas rodas. No futuro olhariam atr�s, e recordariam como se passearam de um lado a outro da habita��o, dormitados. Nada poderia trocar
isso.
Nesse momento, ambos necessitavam a normalidade que desprendia aquela cena, e a teriam embora s� fora por umas quantas horas.
Quando Gabe voltou para a habita��o, p�s o copo de suco na mesita que havia junto a ela, mas Laura sorriu e lhe agarrou o bra�o.
-Posso cheirar seu conhaque?
Divertido, lhe aproximou a ta�a e deixou que inalasse o aroma do licor.
-Tem o bastante?
-Obrigado, sempre pensei que n�o h� nada como o sabor de um conhaque de noite -Laura levantou seu copo de suco, e brindou com sua ta�a-. Brinde -esperava
que ele se metesse na cama, mas ao ver que ia para a janela, n�o soube o que pensar-. Gabe...
-O que?
-Eu gostaria de fazer um trato contigo. Voc� me conta o que est� pensando e me pergunta o que queira, e eu te respondo com sinceridade. Depois eu terei meu
turno, e tamb�m te perguntarei algo.
-N�o respondeste a muitos perguntas por uma noite?
Assim era isso. Laura deixou seu copo a um lado antes de trocar-se de assumo ao Michael, e disse:
-Afetaram-lhe as coisas que contei ao Quartermain, verdade?
-Acreditava que ia ficar me t�o tranq�ilo?
Gabe se voltou de repente, e o conhaque esteve a ponto de derramar-se. Laura permaneceu em sil�ncio enquanto ele se bebia a metade da ta�a e come�ava a passear-se
de um lado a outro da habita��o.
-Sinto que tivesse que sair � luz assim, eu tamb�m teria preferido outra forma.
-N�o � quest�o de que sa�sse ou n�o � luz -espetou ele com brutalidade. bebeu-se outro gole de conhaque, mas a bebida n�o conseguiu acalm�-lo-. Deus, est�-me matando
pensar nisso, imaginar o Tenho medo de te tocar, de que o recorde por minha culpa.
-Gabe, h�-me dito desde o come�o que isso est� no passado, que agora as coisas s�o diferentes, e � verdade. Tinha raz�o ao dizer que te comparava com
Tony, mas ao melhor n�o entende que isso me ajudou a me dar conta de que as coisas podiam trocar.
Gabe a olhou por um segundo, mas foi suficiente para que ela se desse conta de que aquelas palavras n�o tinham bastado.
-Sim, as coisas s�o distintas, mas n�o posso entender por que n�o odeia a qualquer homem que te toque sequer -disse ele, de p� na sombra. Tinha as m�os
metidas nos bolsos de sua bata, fortemente apertadas em punhos.
-Houve uma �poca em que n�o teria permitido que nenhum homem me aproximasse, mas pude come�ar a p�r as coisas em perspectiva mediante terapia, escutando
a outras mulheres que tinham superado situa��es parecidas. Quando voc� me toca, quando me abra�a, n�o recordo nada de todo aquilo, mas sim sinto o que sempre
quis sentir pelo homem que fora meu marido.
-Se estivesse vivo, quereria mat�-lo -disse ele sem nenhuma inflex�o na voz-. D�-me raiva que j� esteja morto.
-N�o te atormente assim -Laura alargou uma m�o para ele, mas Gabe sacudiu a cabe�a e voltou junto � janela-. Estava doente, mas eu n�o sabia naquele
ent�o, e ao ficar qu�o �nico consegui foi prolong�-lo tudo.
-Tinha medo, n�o tinha aonde ir.
-Isso n�o basta. Poderia ter recorrido ao Geoffrey, sabia que ele me ajudaria, mas n�o o fiz porque estava sujeita ali por minha pr�pria vergonha e por minhas inseguran�as.
O menino foi o que me empurrou a tomar a decis�o de ir, e ent�o comecei a me recuperar, mas encontrar foi a melhor medicina de todas, porque conseguiu que
voltasse a me sentir como uma mulher.
Gabe permaneceu em sil�ncio enquanto ela procurava as palavras com as que poder explicar-se.
-Gabe, nenhum dos dois podemos trocar o que aconteceu... n�o deixe que o passado afete ao que temos agora.
Mais acalmado, ele agitou o conhaque na ta�a enquanto olhava pela janela.
-Quando esta tarde na galeria disse que foi ver um advogado, pensei que queria o div�rcio e senti que meu mundo se derrubava.
-Mas eu alguma vez... de verdade sentiu isso?
-Ali estava voc�, de p� debaixo de seu retrato, e n�o pude imaginar o que faria se me deixava. Pode que eu tenha trocado sua vida, anjo, mas n�o mais do
que voc� trocaste a minha.
Aquilo fez que Laura pensasse no Pigmali�n. Entretanto, se Gabe estava apaixonado pela imagem, era poss�vel que ao final acabasse amando � mulher.
-Gabe, n�o vou deixar te. Quero-te, Michael e voc� s�o toda minha vida.
O se aproximou dela, sentou-se no bordo da cama e a tirou da m�o.
-Nunca deixarei que ningu�m lhes fa�a mal a nenhum dos dois.
Laura lhe deu um ligeiro apert�o, e disse:
-Preciso saber que vamos fazer isto juntos.
-estivemos juntos nisto do primeiro dia -Gabe se inclinou para diante, e a beijou enquanto o menino dormitava entre eles-. Laura, necessito-te muito.
-Isso � imposs�vel.
-Deixa que o leve ao ber�o -murmurou.
Gabe tomou em bra�os ao menino, mas no momento em que se levantou da cama, Michael come�ou a chorar.
foram-se alternando para passe�-lo, embal�-lo e lhe massagear as gengivas. Cada vez que tentavam deit�-lo, o menino despertava e come�ava a mugir. Exausta,
Laura se apoiou no corrim�o do ber�o enquanto lhe acariciava as costas. Cada vez que apartava a m�o, o menino choramingava.
-Acredito que o estamos malcriando -murmurou.
Gabe estava sentado na cadeira de balan�o, olhando-a com olhos dormitados.
-Temos direito a faz�-lo. Al�m disso, normalmente dorme como um tronco.
-Sim, mas o est� acontecendo mal com os dentes. por que n�o te deita?, n�o tem sentido que os dois fiquemos sem dormir.
-Toca-me -Gabe se levantou, e ao olhar o rel�gio se deu conta de que j� eram as cinco da madrugada. sentia-se d�cadas mais velho do que ra-vete voc�
� cama.
-N�o... -come�ou a protestar ela, mas sua voz se cortou com um bocejo-. Recorda que estamos juntos nisto.
-Sim, embora possa que algum dos dois caia redondo.
Laura se teria rido de ter tido a energia necess�ria.
-Acredito que ser� melhor que me sente.
-Sabe, �s vezes me passei a noite bebendo, jogando �s cartas O... ocupado em outras formas de entretenimento -come�ou a lhe dar tapinhas nas costas
ao menino enquanto Laura se desabava na cadeira de balan�o, e acrescentou-: mas n�o posso recordar me haver sentido nunca como se me acabasse de passar um caminh�o por cima.
-Esta � uma das alegrias de ser pais -disse-lhe ela, antes de fechar os olhos-. Em realidade nos estamos passando isso em grande.
-Obrigado por me dizer isso Acredito que se est� ficando dormido de verdade.
-Isso � porque tem umas m�os prodigiosas-murmur� ela enquanto se ia ficando dormida-, realmente prodigiosas.
Mil�metro a mil�metro, Gabe foi apartando a m�o das costas do menino, com mais cuidado que um homem apartando-se de um tigre. Quando esteve ao meio metro
do ber�o esteve a ponto de soltar um suspiro de al�vio, mas temeroso de tentar � sorte, conteve-o e voltou a vista para a Laura.
Estava profundamente dormida, e em uma posi��o que devia ser incrivelmente inc�moda. Confiando em que suas reservas de energia durariam cinco minutos mais,
foi para ela e a levantou em bra�os. Laura se acurruc� contra ele instintivamente, e enquanto a levava a sua habita��o, despertou o suficiente para perguntar:
-Michael?
-Dormido em seu ber�o -Gabe entrou no dormit�rio, mas em vez de levar a � cama, foi para a janela-. Olhe, est� saindo o sol.
Laura se moveu ligeiramente e abriu os olhos. Pela janela se via o c�u neste dire��o, e se se fixava com aten��o, podia chegar a distinguir a �gua
da ba�a, como uma n�voa na dist�ncia. O sol pareceu vibrar ao ascender, e os ecos tingiram o c�u de rosa, de malva e de ouro. Brandamente ao princ�pio,
com a escurid�o da noite ainda dominando por cima, as cores se foram estendendo e fazendo-se mais intensos. O rosa se converteu em vermelho, vibrante e resplandecente.
-�s vezes, suas pinturas s�o assim -disse ela, pensando em voz alta-. �ngulos que trocam e parecem mover-se, com as cores intensificando do centro para os
extremos -apoiou a cabe�a contra seu ombro enquanto contemplavam o novo amanhecer, e comentou-: acredito que � o amanhecer mais bonito que vi em minha vida.
A pele do Gabe era c�lida sob sua bochecha, seus bra�os fortes e s�lidos a apertavam contra seu corpo, e podia sentir o firme batimento do cora��o de seu cora��o. Os primeiros
p�ssaros despertaram e come�aram a cantar, e Laura voltou a cabe�a para a dele. Quando o amor chegava com tanta naturalidade, era uma tolice questionar-lhe en sus brazos. Ella solt� un suave suspiro adormecido, y �l lo recogi� en su boca mientras las caricias de sus manos la hac�an arquearse con movimientos ondulantes
-Gabe, desejo-te -posou uma m�o em sua bochecha, e lhe cobriu a boca com seus l�bios-. Nunca desejei a ningu�m tanto como a ti.
Ao notar que ele vacilava, entendeu suas raz�es mas ficou m�os � obra para fazer que superasse qualquer retic�ncia. Aquele n�o era o momento de pensar
no passado ou no futuro. Deixou que seus l�bios se suavizassem e se abrissem contra os dele, e deslizou uma m�o para seu cabelo.
-Tinha raz�o -murmurou.
-Sobre o que? -perguntou-lhe ele.
-N�o penso em ningu�m mais quando fazemos o amor.
Gabe n�o tinha querido lhe pedir nada, mas ent�o se deu conta de que n�o havia nada que n�o pudesse lhe pedir.
Laura era incrivelmente aberta e generosa, e isso fez que lhe resultasse poss�vel, inclusive f�cil, deixar atr�s aquela parte de sua vida que o enfurecia
e lhe do�a, que n�o tinha nada que ver com o para�so ao que podiam chegar juntos. Levou-a a cama sem apartar a boca da sua, e quando se deitou a seu lado,
ela o rodeou com os bra�os. Por uns segundos, isso foi suficiente.
Com a Laura podia compartilhar abra�os matinais, e beijos ao amanhecer depois de uma larga noite sem dormir. Seu rosto estava p�lido de fadiga, e mesmo assim se estremecia
em seus bra�os. Ela soltou um suave suspiro adormecido, e ele o recolheu em sua boca enquanto as car�cias de suas m�os a faziam arquear-se com movimentos ondulantes
e pregui�osos.
A brisa matinal entrava pela janela e refrescava seus corpos, e Laura abriu a bata dele e a empurrou para tr�s por seus ombros para poder lhe esquentar
a pele. Com igual lentid�o, Gabe lhe tirou a camisola. Nus, jazeram sobre os len��is enrugados e fizeram o amor com voluptuosa sensualidade.
Nenhum dos dois levou a voz cantante, n�o fazia falta. Na cama sua sintonia era total, sem necessidade de palavras nem de peti��es. As exig�ncias eram
para outros momentos, para as noites em que a paix�o era ardente e fren�tica. A luz ia adquirindo o cinza da manh�, enquanto saboreavam um desejo exquisitamente
cometido.
Laura pensou que possivelmente o amor que sentia por ele se expressava melhor assim, com uma naturalidade e uma ternura que podiam prolongar-se muito mais que o fulgor de
uma labareda.
moveram-se juntos, e o prazer que se deram o um ao outro brotou em suspiros e murm�rios, em vez de em ofegos e em sacudidas estremecidas.
Acariciou-lhe a bochecha, e desfrutou da aspereza de sua pele sem barbear. Aquilo era real. O matrim�nio era mais que a alian�a que levava no dedo, mais
que fazer o amor cheios de desejo e de excita��o em meio da noite. O matrim�nio era manter-se abra�ados ao amanhecer.
Gabe teria estado disposto a fazer o que fora por ela. Por alguma raz�o, at� esse momento n�o se deu conta do verdadeiro alcance do que sentia
por aquela mulher. Tinha reconhecido primeiro o desejo e depois o amor, mas nesse momento descobriu e entendeu a devo��o. Laura era dela como nenhuma outra mulher
poderia chegar a s�-lo nunca, e pela primeira vez em sua vida, quis ser um her�i.
Quando seus corpos se uniram, a cama estava banhada pela luz do sol que entrava pela janela, e mais tarde, ainda entrela�ados, ficaram dormidos.
-Sei que estou fazendo o correto -disse Laura. Mesmo assim, duvidou por um segundo quando sa�ram do elevador no hotel onde se hospedava Lorraine-. N�o importa
o que passe, n�o penso me jogar atr�s -agarrou a m�o do Gabe, e se aferrou a ela com for�a. A falta de sonho fazia que tivesse a cabe�a extra�amente limpa,
e que se sentisse lista para passar � a��o-. Me alegro muit�ssimo de que esteja aqui comigo.
-J� te disse que eu n�o gosto que volte a v�-la, nem que tenha que tratar com ela para nada. Eu posso me ocupar disto.
-J� sei que pode, mas sabe que � algo que preciso fazer por mim mesma. Gabe...
-O que?
-Por favor, tenta controlar seu g�nio -ao ver como arqueava as sobrancelhas, soltou uma suave gargalhada e sentiu que a tens�o que sentia se aliviava-. N�o faz
falta que me olhe assim, s� queria dizer que lhe gritar ao Lorraine n�o servir� de nada.
-Nunca grito, embora de vez em quando levanto a voz para que me entenda bem.
-Como j� esclarecemos isso, suponho que s� fica bater na porta -Laura sentiu a familiar sensa��o de p�nico, e lutou por sufoc�-la enquanto dava
uns golpecitos na porta.
Lorraine abriu ao cabo de uns segundos, vestida com um traje jaqueta azul marinho que lhe dava um aspecto imponente e cheio de aprumo.
-Laura -a mulher inclinou a cabe�a de forma quase impercept�vel a modo de sauda��o, e depois se voltou para o Gabe-. Senhor Bradley, encantada de conhec�-lo. Laura
n�o mencionou que fora a acompanh�-la esta tarde.
-Tudo o relacionado com a Laura e com o Michael me concerne, senhora Eagleton -disse Gabe, antes de entrar sem esperar a que a mulher lhes convidasse a faz�-lo.
Consciente de que ela nunca teria sido capaz de ser t�o en�rgica estando sozinha, Laura lhe seguiu.
-J� vejo que � muito consciencioso ao ocupar-se de seus assuntos -comentou Lorraine, enquanto fechava a porta atr�s deles-. Mas Laura e eu temos que falar sobre
algumas questione de fam�lia privadas. Estou seguro de que o entende.
-Sim, entendo-o perfeitamente -Gabe lhe devolveu o olhar � mulher sem pestanejar-. Minha mulher e meu filho s�o minha fam�lia.
A inc�moda guerra de vontades se alargou por uns segundos, mas Lorraine a resolveu ao fim com uma inclina��o de cabe�a.
-Muito bem, se insistir... por favor, sentem-se. Pedirei caf�, o servi�o neste s�tio � bastante pass�vel.
-N�o se incomode por n�s -Laura conseguiu controlar seus nervos, e se sentou-. N�o acredito que isto dure muito.
-Como quer -Lorraine se sentou frente a eles-. Meu marido tivesse querido estar aqui, mas n�o p�de por quest�es de neg�cios. Eu falo em nome de
os dois -depois de deixar aquilo claro, p�s as m�os nos bra�os de sua cadeira-. Limitarei-me a repetir o que j� hei dito antes. vou levar me a filho do Tony a Boston,
para cri�-lo como deve ser.
-E eu vou repetir lhe que n�o vou deixar que o fa�a -em um �ltimo intento de raciocinar com ela, Laura se inclinou para diante e disse-: � um menino, n�o um objeto.
Tem um bom lar, uns pais que o querem, e est� s�o e forte. Deveria alegrar-se de que seja assim. Se quiser, podemos falar de um regime de visitas razo�vel...
-� obvio que sim, do teu -interrompeu-a Lorraine-.E se puder, assegurarei-me de que possa ver o menino em contadas ocasi�es -apartou a vista da Laura
sem mais, e olhou ao Gabe-. Senhor Bradley estou segura de que n�o querer� criar ao filho de outro homem. N�o � de seu sangue, e s� tem seu nome porque, por alguma
raz�o, casou-se com sua m�e.
Gabe tirou um charuto, e o acendeu lentamente. Laura lhe tinha pedido que tentasse controlar seu g�nio, e embora sabia que n�o poderia faz�-lo, n�o queria perder
os estribos t�o logo. limitou-se a dizer:
-Est� muito equivocada.
A mulher soltou um suspiro de forma quase indulgente.
-Suponho que est� apaixonado pela Laura, meu filho tamb�m o estava.
O primeiro elo da cadeia que sujeitava o g�nio do Gabe se partiu em dois, e a f�ria que o alagou se refletiu claramente em seus olhos e no tom preciso
e g�lido de suas palavras.
-N�o se atreva a comparar nunca meus sentimentos pela Laura com os de seu filho.
Lorraine empalideceu um pouco, mas conseguiu falar com voz acalmada.
-N�o tenho nem id�ia do que lhe ter� contado...
-Toda a verdade -antes de que Gabe pudesse falar ou mover-se, Laura lhe p�s uma m�o no bra�o e continuou dizendo-: contei-lhe o que voc� soube desde
sempre, que Tony estava doente, que era emocionalmente inst�vel.
Lorraine se levantou com movimentos deliberados da cadeira. Sua cara estava ruborizada e tensa, mas falou com o mesmo tom tranq�ilo de antes.
-N�o penso escutar nenhuma cal�nia sobre meu filho.
-Pois vai ter que me escutar, embora n�o o fez quando eu necessitava ajuda desesperadamente, quando Tony pedia aux�lio da �nica forma que sabia -Laura
apertou os dedos no bra�o do Gabe, mas n�o se tornou atr�s-. Era um alco�lico, estava desfeito emocionalmente, e decidiu abusar de algu�m mais fraco que ele. Voc�
sabia que me maltratava, viu os machucados e os moratones, mas decidiu ignor�-los ou p�r desculpas; sabia que havia outras mulheres, mas com seu sil�ncio, deu-lhe
sua aprova��o.
-O que passasse entre o Tony e voc� n�o era de minha incumb�ncia.
-Essa � uma postura que fica para sua consci�ncia, mas te advirto que se abrir a caixa dos trov�es, n�o poder� conter o que sair, Lorraine.
A mulher voltou a sentar-se para ouvir o tom de voz da Laura, e pelo fato de que se atreveu a tutearla. Era perfeitamente consciente de que esse pequeno
mudan�a as convertia em iguais, e foi ent�o quando se deu conta de que n�o estava ante a mulher atemorizada e facilmente manipulable a que tinha conhecido
um ano atr�s.
-As amea�as de algu�m como voc� n�o me preocupam. Decidir�-se em um tribunal se uma descarada sem moral pode ter a cust�dia de um Eagleton, ou se for criar-se
em um ambiente onde pode receber uma boa educa��o.
-Se voltar a falar assim de minha mulher, vai ter que enfrentar-se a algo mais que umas simples amea�a... -Gabe soltou uma larga baforada de fuma�a, e acrescentou-: senhora
Eagleton.
-N�o importa -disse Laura. Deu-lhe um ligeiro apert�o na m�o, consciente de que ele estava a ponto de perder o controle-.J� n�o pode me intimidar, Lorraine,
e n�o vais fazer que te suplique. Sabe perfeitamente bem que sempre fui fiel ao Tony.
-O que sei � que Tony n�o acreditava que fora assim.
-Ent�o, como sabe quem � o pai do menino?
As palavras do Gabe foram seguidas por um sil�ncio absoluto. Laura come�ou a dizer algo, mas se deteve o ver a advert�ncia nos olhos dele. O rosto
do Lorraine voltou a ruborizar-se, e finalmente p�de dizer:
-Ela n�o se teria atrevido A...
-N�o? V�, que estranho. Voc� pensa provar que Laura foi infiel a seu filho, mas agora est� dizendo que n�o p�de s�-lo. Em qualquer dos dois casos, o
vai ter complicado. Se ela tivesse tido uma aventura com algu�m... comigo, por exemplo... -Gabe sorriu, e apagou o charuto-. N�o se perguntou por que
casamo-nos t�o r�pido?, por que aceito ao filho de outro homem, tal e como voc� comentou? -deteve-se uns segundos para que a id�ia arraigasse, e finalmente
acrescentou-: se Laura foi infiel a seu filho, o menino poderia ser de qualquer, mas se n�o foi, voc� fica sem ap�ie para tentar lhe tirar a cust�dia.
Os dedos do Lorraine se esticaram sobre o bra�o de sua cadeira, e teve que obrigar-se a relax�-los.
-Meu marido e eu vamos exigir que se fa�am provas para determinar a paternidade do menino, n�o estou disposta a admitir a um bastardo em minha casa.
-Tome cuidado -disse Laura, t�o brandamente que as palavras pareceram vibrar no ar-. Tenha muito cuidado, Lorraine. Sei que Michael n�o te importa o mais m�nimo
como pessoa.
Lorraine teve que lutar por manter a calma.
-O filho do Tony � muito importante para mim.
-N�o me perguntaste nenhuma s� vez por ele, n�o pediste uma foto ou um relat�rio m�dico. Nem sequer o chamaste por seu nome. Se tivesse visto em ti a
mais m�nima amostra de afeto pelo menino, n�o estaria t�o segura do que vou dizer te -Laura n�o teve que esfor�ar-se por mostrar-se forte, j� que o valor e a
decis�o chegaram com total naturalidade-. Pode iniciar os tr�mites do pleito pela cust�dia quando te vier em vontade, Gabe e eu j� o notificamos a nosso
advogado. vamos enfrentar nos a ti, e vamos ganhar. E enquanto isso, contarei-lhe � imprensa como foi minha vida com os Eagleton de Boston.
As unhas do Lorraine se cravaram no bra�o do sof�.
-N�o seria capaz de faz�-lo, n�o tem o valor suficiente.
-Tenho mais que de sobra quando se trata de proteger a meu filho.
Lorraine viu a determina��o serena e inquebr�vel em seus olhos, e conseguiu dizer:
-Embora o fizesse, ningu�m te acreditaria.
-Eu acredito que sim, a gente sabe distinguir a verdade.
Com o rosto tenso, Lorraine se voltou para o Gabe.
-Tem id�ia do muito que esse tipo de falat�rios pode prejudicar a sua fam�lia?, quer arriscar a reputa��o de seus pais e a sua pr�pria por uma
mulher e um menino que nem sequer � de seu sangue?
-Minha reputa��o pode suportar isso e mais, e a verdade � que meus pais est�o desejando enfrentar-se a voc� -disse Gabe, com um claro desafio em sua voz-. Pode
que Michael n�o tenha meu sangue, mas � meu.
-Lorraine -Laura esperou a que a mulher se voltasse para ela, e quando estiveram de novo cara a cara, disse-lhe-: sinto que perdesse a seu filho, mas n�o vou
a deixar que o substitua com o meu. Nota promiss�ria o pre�o que fa�a falta para proteger ao Michael, e tamb�m te vai sair muito caro.
Gabe a tirou do bra�o, e ambos se levantaram.
-Seu advogado pode ficar em contato conosco quando dita o que vai fazer. N�o se esque�a de que j� n�o est� tratando com uma mulher s� e gr�vida,
senhora Eagleton. Agora est� enfrentando-se � fam�lia Bradley.
Assim que sa�ram ao corredor e a porta se fechou atr�s deles, Gabe a apertou contra seu peito. Ao notar que tremia, abra�ou-a com mais for�a e lhe disse:
-estiveste fant�stica -depositou um beijo em seu cabelo, antes de apartar-se ligeiramente para olh�-la-. Anjo, estiveste realmente incr�vel, deixaste-a com
a boca aberta.
Laura se ruborizou, orgulhosa e satisfeita.
-N�o foi t�o terr�vel como esperava -disse com um suspiro, enquanto foram para o elevador com as m�os entrela�adas-. No passado lhe tinha um medo enorme
e n�o me atrevia nem a dizer duas palavras diante dela, mas agora posso v�-la como o que �, uma mulher s� apanhada pelo que acredita que representa a honra de
sua fam�lia.
Gabe soltou uma breve gargalhada sem humor justo quando as portas do elevador come�aram a abrir-se.
-A honra n�o tem nada que ver com tudo isto.
-N�o, mas assim � como o v� ela.
-O que te parece se nos esquecemos do Lorraine Eagleton pelo resto do dia? -sugeriu ele, ao apertar o bot�o da planta baixa-. Bom, muito em breve nos esqueceremos
dela completamente, mas h� um pequeno restaurante a v�rias ma��s daqui bastante animado, e muito caro.
-� muito logo para jantar.
-Quem falou que jantar? -rodeou-a pela cintura com um bra�o enquanto sa�am ao vest�bulo, e acrescentou-: vamos sentar nos em uma mesa com vistas � ba�a,
e eu vou ver como todo mundo fica olhando a meu espantoso algema enquanto nos bebemos uma garrafa de champanha.
Para ouvir aquelas palavras, Laura sentiu uma tremenda quebra de onda de amor por aquele homem, e ficou sem f�lego quando lhe beijou a m�o.
-N�o crie que dever�amos esperar a que Lorraine nos comunique sua decis�o antes de celebr�-lo?
-Tamb�m o celebraremos quando o fizer, mas agora quero brindar por um anjo que tirou as unhas.
Ela se p�s-se a rir, e juntos sa�ram � rua.
-Bom, a verdade � que...
-O que?
Ela levantou os olhos para ele, e admitiu:
-Que eu adoraria voltar a faz�-lo.
-Parece que vou ter que me andar com cuidado a partir de agora.
-Provavelmente -embora estava euf�rica por sua vit�ria, Laura seguia sendo pr�tica, assim comentou-: n�o deveria beber champanha, Michael...
Gabe a beijou, e lhe fez um gesto ao porteiro para que lhe levassem seu carro.
Cap�tulo 12
-Parece esgotada -comentou Amanda ao entrar na casa.
-Ao Michael est�o saindo os dentes -a desculpa era o suficientemente v�lida, embora o nervosismo do menino n�o era qu�o �nico mantinha a Laura acordada-.Leva
dormindo dez minutos, com um pouco de sorte n�o despertar� pelo menos em uma hora.
-Ent�o, por que n�o est� tombada?
Amanda entrou no sal�o, e Laura a seguiu.
-Porque me chamaste para me dizer que vinha.
-V�, � verdade -Amanda esbo�ou um sorriso, sentou-se e deixou sua bolsa em cima da mesa-. N�o te entreterei muito. Gabe n�o est�?
-N�o, h�-me dito que tinha que sair a fazer algo -Laura se sentou em uma poltrona frente a sua sogra, e apoiou a cabe�a no respaldo. �s vezes, os pequenos
prazeres pareciam um presente divino-. Quer algo para beber?, um caf�?
-Por seu aspecto, surpreenderia-me que pudesse te levantar dessa poltrona. N�o, n�o quero nada. Como est� Gabe?
-T�o cansado como eu, nenhum dos dois pudemos descansar muito.
-N�o sente saudades. Ainda n�o se sabe nada do Lorraine Eagleton nem de seu advogado?
-N�o.
-Crie que isso � bom, ou mau?
-N�o sei, mas quanto mais se alarga a espera, mais f�cil � imagin�-lo pior.
-E o que passa se decide levar o caso aos tribunais?
-Que enfrentaremos a ela -apesar do cansada que estava, sentiu a for�a do valor que tinha encontrado recentemente dentro de si mesmo-. Falei muito
a s�rio com ela, e vou cumprir com tudo o que lhe disse.
-Isso � exatamente o que queria ouvir.
Amanda se reclinou no sof� e se colocou bem o broche que levava na lapela. Ao observar a sua nora com aten��o, pensou que estava bastante p�lida e magra,
mas que parecia estar suportando bem a press�o.
-Quando isto termine, Gabe e voc� poder�o resolver alguns assuntos pendentes.
Laura deu um coice, j� que tinha estado a ponto de ficar dormitada.
-A que te refere?
-A pequenos detalhes, como decidir o que querem fazer com o resto de suas vidas.
-N�o te entendo.
-Gabe tem sua arte, e os dois t�m ao Michael... e a todos os meninos que decidam ter em um futuro.
Aquelas palavras fizeram que Laura se erguesse em sua poltrona. Gabe e ela nunca tinham falado de ter mais filhos, mas nesse momento se perguntou qual seria
a opini�o dele a respeito... e a sua pr�pria. levou-se a m�o a seu ventre plano, e se imaginou a outro beb� crescendo ali, um menino que seria o filho do Gabe
do primeiro momento. Sim, n�o tinha nenhuma d�vida de que queria ter mais filhos com ele. Ao levantar a vista, deu-se conta de que Amanda a estava olhando com
uma express�o pormenorizada.
-� dif�cil tomar decis�es com tantas coisas pendentes.
-Claro, mas tudo acabar� cedo ou tarde, e ent�o o que ides querer fazer? vivi sob o mesmo teto que Gabe durante mais de duas d�cadas, e sei que
se est� inspirado, pode passar-se horas e dias metido em seu estudo.
-Isso n�o me importa. Como vai importar me, ao ver os quadros t�o fant�sticos que faz?
-Mas uma mulher tamb�m precisa sentir-se realizada. Os filhos podem ajud�-la a consegui-lo, mas... -Amanda agarrou sua bolsa, abriu-o e tirou um cart�o-.
H� uma cl�nica para v�timas de maus tratos no centro da cidade. � bastante pequena, e por desgra�a n�o tem muitos recursos... ainda -ela pensava solucionar
isso-. Necessitam volunt�rias, mulheres que entendem o que � passar por algo assim, e que sabem que pode existir uma vida normal depois desse inferno.
-Eu n�o sou terapeuta.
-N�o se precisa ter um t�tulo para dar apoio.
-N�o -Laura olhou o cart�o que Amanda tinha deixado sobre a mesa, enquanto a id�ia come�ava a enraizar-. N�o sei. �...
-pense-lhe isso Cuando apoy� contra una pared el voluminoso paquete que llevaba, ella no se despert� con el ruido del papel, as� que fue al sof�. Ni siquiera tuvo la energ�a
-Amanda, foste a ver a cl�nica?
-Sim, Cliff e eu estivemos ali ontem, e nos sentimos muito impressionados.
-por que foram?
Amanda arqueou uma sobrancelha, em um gesto que Gabe tinha herdado.
-Porque quer�amos entender melhor a algu�m que � muito importante para n�s. Bom, ser� melhor que te deixe descansar -disse, enquanto come�ava a levantar-se-.
N�o faz falta que me acompanhe � porta. lhe d� ao Gabe um beijo de minha parte, e lhe diga que seu pai quer saber se for voltar a jogar p�quer com ele algum dia de
estes. A esse homem parece que goste de perder dinheiro.
-Amanda -Laura se tirou os sapatos, e encolheu as pernas sobre a poltrona-. Nunca tive uma m�e, e a que sempre imaginei n�o te parecia em nada -sorriu
enquanto lhe come�avam a fechar os olhos, e acrescentou dormitada-: mas n�o estou decepcionada.
-Est� progredindo -disse Amanda, e a deixou dormindo na poltrona.
Laura ainda seguia ali quando Gabe chegou a casa.
Quando apoiou contra uma parede o volumoso pacote que levava, ela n�o despertou com o ru�do do papel, assim foi ao sof�. Nem sequer teve a energia
de desejar ter seu caderno de esbo�os enquanto estirava as pernas, e ficou dormido imediatamente.
O menino despertou. Gabe se limitou a soltar um gemido e a tamp�-la cara com uma almofada, mas Laura se incorporou desorientada, piscou confundida, e depois
obrigou-se a dar um passo atr�s de outro para subir as escadas.
Pouco tempo depois, Gabe subiu tamb�m.
-Vejo que chego bem a tempo -comentou, ao ver que ela estava acabando de p�r um fralda limpo ao Michael.
-Estou come�ando a suspeitar que esperaste a prop�sito -disse ela. Sonriendo, levantou o menino sobre sua cabe�a para faz�-lo rir-. Quanto tempo leva em
casa?
-O tempo suficiente para ver que minha mulher n�o tem nada melhor que fazer que passar o dia dormindo -tomou ao menino em seus bra�os, e o olhou com fingido aborrecimento-.
Crie que dormiria esta noite se o mantivermos acordado e jogamos com ele at� que se esgote?
-Estou disposta a provar o que for.
Gabe se sentou no ch�o, e come�ou a jogar com o menino a jogos absurdos como "o menino saltitante", "o menino avioncito", ou "o menino com c�cegas".
-Te d� muito bem cuid�-lo, parece mentira que seja novo nisto -comentou ela, enquanto se sentava no ch�o com eles.
-Nunca me tinha exposto ser pai, e a verdade � que tem suas compensa��es -ficou ao Michael no joelho, e lhe deu um suave meneio.
-Sim, como passear-se de um lado a outro da habita��o �s duas da madrugada.
-Exato.
-Gabe, sua m�e se passou por casa.
-Deveria me surpreender?
Laura sorriu ao inclinar-se um pouco para deixar que Michael lhe estirasse do cabelo.
-Deixou-me um cart�o... de uma cl�nica para v�timas de maus tratos.
-J� vejo -disse ele, enquanto tentava fazer que Michael soltasse o cabelo de sua m�e-. Quer voltar para terapia?
-N�o... ao menos, n�o acredito -Laura os olhou, divertida. Enquanto contemplava ao Michael lhe mordiscando o queixo a seu pai, soube que toda a terapia que
precisava estava sentada diante dele-.Sua m�e comentou que ao melhor gostaria de trabalhar ali como volunt�ria.
Gabe franziu o cenho, enquanto deixava que Michael lhe mordiscasse um n�dulo.
-Mas ent�o recordar� o que passou dia detr�s dia, n�o?
-Sim, recordarei o que pude trocar.
-Pensava que algum dia quereria voltar a trabalhar de modelo.
-Nem pensar. Acredito que o trabalho de volunt�ria � algo que me pode dar bem, e eu gostaria de tent�-lo.
-Sabe que n�o necessita minha aprova��o.
-Mesmo assim, eu gostaria de t�-la.
-Ent�o a tem, a menos que veja que te come�a a afetar ou que te cansa muito.
Laura sorriu. Gabe ainda a considerava mais fr�gil do que era.
-Sabe, estive pensando... com tudo o que passou, e com todas as preocupa��es e os assuntos que foram surgindo, a verdade � que n�o tivemos
muito tempo para chegar a nos conhecer de verdade.
-Sei que te passa um s�culo na banheira, e que voc� gosta de dormir com a janela aberta.
Laura agarrou o coelhinho de trapo do Michael, e come�ou a passar-se o de uma m�o � outra.
-Mas h� outras coisas importantes.
-Como quais?
-A outra noite, disse-te que podia me perguntar algo, e que depois eu faria o mesmo. Lembra-te?
-Sim.
-Eu n�o tive meu turno.
Gabe apoiou as costas no sof� cama, enquanto Michael seguia lhe mordiscando os n�dulos. Era �bvio que ambos estavam evitando deliberadamente falar de
a chamada de telefone que esperavam, e possivelmente fora o melhor.
- Quer que lhe conte isso tudo sobre minha juventude dissipada?
Embora Laura estava atirando nervosamente das orelhas do coelho, esbo�ou um sorriso.
-Temos suficiente tempo?
-Aduladora.
-A verdade � que eu gostaria de falar de outra coisa. Faz um par de dias, quando choveu, fui a seu estudo para fechar as janelas, e lhes joguei uma olhada aos
quadros que tem ali. Ao melhor n�o teria devido faz�-lo.
-N�o passa nada.
-Houve um que me impactou em particular, o de seu irm�o Michael. Eu gostaria que me falasse dele.
Gabe permaneceu calado durante tanto tempo, que Laura esteve a ponto de lhe dizer que se esquecesse do assunto, que n�o tinha import�ncia; entretanto, tinha muita.
Estava segura de que a morte de seu irm�o tinha sido o que lhe tinha impulsionado a ir-se avermelhado, e o que lhe impedia, inclusive nesse momento, organizar uma exposi��o
com suas obras.
-Gabe -disse, ao posar uma m�o sobre seu bra�o-: Pediu-me que me casasse contigo para poder te fazer carrego de meus problemas. Queria que confiasse em ti e o
fiz, mas at� que voc� fa�a o mesmo, seguiremos sendo como desconhecidos.
-Voc� e eu deixamos de ser desconhecidos do primeiro momento em que nos vimos, Laura. Te teria pedido que te casasse comigo embora n�o tivesse tido nenhum
problema.
Laura ficou muda de surpresa, e sentiu uma pontada de esperan�a.
-Diz-o a s�rio?
Gabe ficou ao beb� contra o ombro.
-N�o sempre digo tudo o que quero, mas sempre falo a s�rio -quando Michael come�ou a choramingar, Gabe se levantou para passe�-lo-. Voc� necessitava a algu�m,
e quis ser essa pessoa. E eu tamb�m precisava ter a algu�m, embora n�o me dava conta at� que entrou em formar parte de minha vida.
Laura quis lhe perguntar como a necessitava, por que, e se a classe de amor com o que ela sempre tinha sonhado formava parte dessa necessidade. Mas sabia que
tinham que remontar-se mais atr�s para poder avan�ar.
-Por favor, me fale dele.
Gabe n�o sabia se era capaz, se poderia falar sem trope�ar-se com a dor e as palavras. Fazia muito que n�o falava de seu irm�o.
-Tinha tr�s anos menos que eu -come�ou a dizer-. Lev�vamo-nos bastante bem de pequenos, porque Michael n�o estava acostumado a tirar o g�nio a menos que se visse encurralado.
O �nico interesse compartilhado que t�nhamos era o beisebol, e me zangava muito porque ele sempre ganhava. Quando fomos crescendo, eu me decantei para a arte, e
Michael para o Direito. Esse era um �mbito que o fascinava.
-Agora me lembro -murmurou Laura-. Mencionavam-no em um artigo que li sobre ti... trabalhava em Washington, verdade?
-Sim, como advogado de of�cio. Muitos desaprovaram sua decis�o, mas ao Michael n�o interessavam nem o Direito de sociedades nem os sal�rios astron�micos. Muitos
disseram que isso era porque pertencia a uma fam�lia milion�ria, mas o que n�o entendiam era que ele teria feito o mesmo, com ou sem sua fortuna. N�o era um santo,
mas era o melhor de todos n�s -Gabe colocou ao menino no ber�o, e lhe deu corda ao m�vel-. Meu pai estava acostumado a dizer que era o melhor e o mais brilhante.
Laura se tinha levantado, mas n�o sabia se ele quereria que lhe aproximasse.
-Isso se refletia no retrato. Devia quer�-lo muit�ssimo.
-Um n�o se exp�e se quiser ou n�o a seu irm�o, � algo que simplesmente est� ou n�o est�. E tampouco � algo que algu�m pense em lhe dizer, porque acredita que n�o faz
falta. E ent�o, tudo o que fica � tempo para arrepender-se.
-Michael tinha que saber que o queria, s� tinha que olhar o retrato para dar-se conta.
Gabe foi para a janela com as m�os nos bolsos. Falar com a Laura daquilo era muito mais f�cil do que tinha imaginado.
-Fiz apostas com ele durante anos para conseguir que posasse para mim, toda a fam�lia brincava sobre o tema. Em uma partida de p�quer, ganhei cinco sess�es
posando. Eu tinha escada de cor, e ele um trio -Gabe sentiu de novo aquela intensa dor que lhe resultava t�o familiar-. Essa foi a �ltima vez que jogamos juntos.
-O que lhe passou?
-Teve um acidente. Nunca acreditei nos acidentes, a n�o ser na sorte, no destino. O estava solicitando informa��o na Virginia para um de seus casos,
e tomou um pequeno avi�o regional que se estrelou minutos depois do decole. Ia a Nova Iorque, porque eu ia inaugurar uma exposi��o ali.
Laura sentiu que o cora��o lhe rompia por ele. Sem duvid�-lo nem um segundo mais, foi abra�ar o.
-Culpaste a ti mesmo do que aconteceu, mas isso n�o � justo.
-Ia a Nova Iorque por mim, para me apoiar. Vi minha m�e derrubar-se pela primeira vez em sua vida, a meu pai andando por sua casa como se fora a primeira vez que
via-a, e eu n�o sabia o que dizer nem fazer.
Lhe acariciou as costas, consciente de que era in�til lhe dizer que, �s vezes, a �nica coisa que se podia fazer pelos seres queridos em momentos assim era
estar junto a eles.
-Nunca perdi a nenhum ser querido, mas agora que lhes tenho ao Michael e a ti, imagino qu�o terr�vel seria. �s vezes as coisas passam sem que ningu�m tenha
a culpa, mas n�o sei se pode considerar um acidente ou o destino.
Gabe apoiou a bochecha em seu cabelo, e contemplou pela janela as flores que ela tinha plantado.
-Me fui avermelhado para me isolar durante algum tempo, para estar sozinho e ver se podia voltar a pintar. Aqui era incapaz de faz�-lo. Quando te encontrei havia
come�ado a me recuperar, podia trabalhar outra vez e me estava expondo voltar para casa e reatar minha vida, mas me faltava algo -tornou-se ligeiramente para tr�s, e
emoldurou-lhe a cara entre suas m�os-. Voc� encheu o vazio que havia dentro de mim.
Lhe agarrou as bonecas, e disse:
-Me alegro.
Quando ele a abra�ou com for�a, Laura fechou os olhos e se disse que foram sair adiante, passasse o que acontecesse. �s vezes, a necessidade se desesperada para conseguir
algo era suficiente impulso.
-Gabe, em rela��o aos quadros que h� em seu estudo... seu s�tio n�o � esse -aferrou-lhe os bra�os antes de que ele pudesse falar ou afastar-se, e acrescentou-: n�o est�
bem os ter a�, de cara � parede, e fingir que n�o existem. Se seu irm�o se sentia t�o orgulhoso de ti para querer estar na inaugura��o de sua exposi��o,
� hora de que organize uma e a dedique. Embora n�o dissesse as palavras, n�o h� melhor maneira de mostrar o muito que o queria.
Gabe tinha come�ado a apartar-se dela, a inventar-se desculpas, mas suas �ltimas palavras deram totalmente no alvo.
-Teria-lhe cansado bem.
Laura sorriu.
-vais fazer o?
-Sim -Gabe beijou seus l�bios sorridentes-. Sabia que tinha chegado a hora de faz�-lo, mas n�o podia dar o passo. Direi ao Marion que o prepare tudo -ao notar
que Laura se esticava ligeiramente, observou-a com aten��o e lhe perguntou-: h� algum problema?
-N�o, claro que n�o.
-Anjo, lhe d�o bem um mont�o de coisas, mas mentir n�o � uma delas.
-Gabe, estou muito contente de que tenha decidido organizar a exposi��o, de verdade.
-Mas...?
-Mas nada. V�, feito-se muito tarde e tenho que banhar ao Michael.
-Isso pode esperar um minuto -Gabe a convenceu de que n�o se movesse de onde estava com apenas deslizar as m�os por seus bra�os-. Sei que entre o Marion e voc� as
coisas est�o um pouco tensas, mas j� te disse que minha rela��o com ela � estritamente profissional.
-Entendo-o, e eu j� te disse o que faria se pensasse que n�o � assim.
-Sim, � verdade -disse ele, divertido. Embora ela tivesse feito as malas, n�o teria chegado nem ao sagu�o-. Ent�o, que problema h�?
-N�o h� nenhum problema.
-Preferiria n�o ter que perguntar-lhe ao Marion.
-O mesmo digo -Laura levantou o queixo, e lhe disse com voz firme-: Gabe, n�o insista. E n�o me pressione.
-V�, v� -p�-lhe as m�os nos ombros, e a seguir fez um gesto afirmativo com a cabe�a-. Vi muito poucas vezes essa express�o em sua cara,
e sempre desperta um desejo incontenible de te tombar no ch�o e fazer o amor contigo apaixonadamente -ao ver que ela se ruborizava, p�s-se a rir e a
abra�ou com for�a.
-N�o te ria de mim -Laura quis te apartar dele, mas Gabe n�o o permitiu.
-Sinto muito. N�o me estava rendo de ti, mas sim da situa��o -pensou que talvez deveria mostrar algo mais de delicadeza, mas recha�ou a id�ia-. � que tem
vontades de briga?
-Agora n�o.
-Se n�o poder mentir melhor, vais ter que te manter afastada das partidas de p�quer -murmurou. Ao ver que ela se relaxava um pouco, acrescentou-: ouvi sua conversa��o
com o Marion na galeria.
-Ent�o, n�o tenho que te soletrar as coisas. Ela acredita que vou ser uma carga para ti, que vou impedir te que alcance todo seu potencial, assim decidiu
intervir. Sei que provavelmente os Eagleton nos teriam encontrado em quest�o de dias, mas n�o lhe perdoarei nunca que os chamasse para lhes dizer onde estamos.
Como voc� tem uma rela��o de neg�cios com sua galeria, tratarei-a com educa��o em p�blico, mas nada mais.
As m�os do Gabe se esticaram sobre seus ombros conforme ia falando, e em seu rosto n�o ficava nem rastro de divers�o.
-Est�-me dizendo que Marion chamou os Eagleton?
-Acaba de dizer que nos ouviu, assim...
-N�o cheguei para ouvir tanto -Gabe relaxou as m�os com um esfor�o consciente, e retrocedeu um passo-. por que n�o me explicou isto antes, para poder mand�-la ao
inferno?
-N�o acreditei que... -Laura se deteve em seco, e ficou olhando com express�o de surpresa-. Teria-o feito?
-Maldita seja, Laura, que mais tenho que fazer para te convencer de que Michael e voc� s�o o mais importante para mim?
-Mas ela disse que...
-O que importa o que ela dissesse?, o que conta � o que eu diga, n�o?
-Sim -Laura entrela�ou as m�os, mas n�o baixou o olhar. O que contava era o que ele dissesse, mas Gabe n�o lhe havia dito nunca que a amava-. N�o queria interferir
em seu trabalho.
-E eu n�o vou permitir que Marion interfira em minha vida. Eu me ocuparei disto.
-O que vais fazer?
Exasperado, Gabe se passou a m�o pelo cabelo.
-Faz um minuto estava falando de meu trabalho como se tivesse a obriga��o de compartilh�-lo com o mundo pelo bem da humanidade, e agora te comporta como
se fosse ter problemas para encontrar outra galeria.
-N�o quis dizer que... vais tirar seus quadros da galeria do Marion?
-M�e de Deus -murmurou ele. Foi de um lado a outro da habita��o para tentar acalmar-se, e finalmente disse-: est� claro que temos que falar... ou possivelmente
o que precisamos � outra coisa -deu um passo para ela, mas soltou um juramento quando come�ou a soar o telefone-. N�o te mova daqui -sem mais, saiu da habita��o.
Laura soltou um comprido suspiro, e foi ao ber�o para lhe dar ao Michael seu coelhinho de trapo. Gabe tinha falado de tomb�-la no ch�o e lhe fazer o amor, e por
o brilho de seus olhos justo antes de ir-se, estava claro o que era o que tinha em mente, mas isso s� teria provado algo que ela j� sabia: que ele a desejava e a
necessitava.
disse-se que era normal que a surpreendesse saber que estava disposto a cortar sua rela��o profissional com o Marion; entretanto, enquanto se inclinava para lhe dar
um beijo ao menino, pensou que em realidade ele n�o ia fazer o por ela, mas sim por si mesmo. Marion tinha cometido o engano de interferir.
Mas o importante n�o eram as raz�es, a n�o ser os resultados, e essa tarde tinham avan�ado muito. Ele tinha cr�dulo nela o suficiente para falar de seus sentimentos
para seu irm�o, lhe tinha convencido de que mostrasse seu trabalho ao p�blico, e Marion estava fora de suas vidas.
-Isso deveria ser suficiente por hoje -disse ao Michael em um murm�rio, embora seguia sentindo uma profunda dor.
negou-se a pensar nos Eagleton.
-Michael, seu papai nos necessita -aquilo tamb�m deveria ser suficiente.
Possivelmente eram s� uns substitutos de um ser querido ao que ele tinha perdido, mas Gabe lhe tinha dado ao menino seu amor incondicional, e lhe tinha prometido
fidelidade. Isso era mais do que tinha tido nunca, mais do que tinha pensado que chegaria a ter. E entretanto, n�o era suficiente.
-Laura.
Ela se voltou para a porta, zangada consigo mesma porque tinha vontades de tornar-se a chorar e se sentia recha�ada.
-O que acontece?
-Era Quartermain -Gabe viu o medo em seus olhos,: mas a emo��o foi rapidamente substitu�da por uma determina��o f�rrea. antes de que ela pudesse lhe perguntar
nada, disse-lhe-: acabou-se. O advogado dos Eagleton se p�s em contato com ele faz uns minutos.
-O que quer dizer que se acabou?
-Que se jogaram atr�s. N�o vai haver nenhum pleito pela cust�dia, nem agora nem nunca. N�o querem ter nada que ver com o menino.
-meu deus... -Laura se cobriu a cara com as m�os. p�s-se a chorar, mas n�o se sentiu envergonhada por isso, nem sequer quando Gabe a abra�ou com for�a-.
Est� Quartermain seguro de que � algo definitivo?, se trocarem de id�ia...
-Est� completamente seguro. me escute -apartou-a ligeiramente para poder olh�-la, sem saber como ia reagir ante o que lhe ia contar-. v�o come�ar
as gest�es para alegar que Michael n�o era o filho biol�gico do Tony. Querem cortar legalmente todo la�o com o menino, para que no futuro n�o possa reclamar
sua parte da heran�a dos Eagleton.
-Mas Lorraine sabe que isso n�o � verdade.
-Quer acreditar que � verdade.
Laura fechou os olhos, sentindo uma mescla de al�vio, e de pena.
-Faria um esfor�o por ser justa com eles, por deixar que vissem o Michael. Ao menos, quero acreditar que o teria tentado.
-Perder� sua parte da heran�a.
-Refere-te ao dinheiro? -Laura abriu os olhos. obscureceram-se, e estavam �midos de l�grimas-: N�o acredito que isso, importe a ele no futuro, e a mim
traz-me sem cuidado. E quanto � fam�lia, j� tem uma. Gabe, n�o sei como lhe agradecer isso -Tu padre quiere jugar contigo, Michael podr�a mirar.
-Ent�o, n�o o fa�a. Voc� foi a que enfrentou a ela.
-Sim, � verdade -secou-se as l�grimas, e se p�s-se a rir enquanto lhe rodeava o pesco�o com os bra�os-. Fiz-o, enfrentei a ela. Ningu�m nos vai tirar isso Quero
celebr�-lo... ir dan�ar, organizar uma festa -voltou a rir, e o apertou com for�a-. depois de dormir uma semana seguida.
-Trato feito -Gabe encontrou seus l�bios com os seus, e os manteve cativos enquanto ela parecia derreter-se contra seu corpo. Aquele era um novo come�o,
e essa vez foram dar o primeiro passo de forma adequada-. Tenho que chamar a meus pais para dizer-lhe Con Laura, hab�a descubierto que el olor del jab�n y los polvos de talco pod�a ser excitante-. Cuando hayas descansado, podremos tener nuestra propia celebraci�n
-Sim, v� fazer o -abra�ou-o durante uns segundos mais, e finalmente lhe disse-: baixarei com o Michael despues de banh�-lo.
Uma hora depois, Laura baixou as escadas com o menino, que estava completamente acordado e com vontades de jogar. Tinha tido que trocar-se de roupa depois
de banh�-lo, j� que lhe tinham molhado os jeans, e se tinha posto uma camisa de um suave tom lavanda e umas cal�as. deixou-se o cabelo solto, e tanto
Michael como ela cheiravam a sab�o e a talco.
Gabe foi at� o p� das escadas, e imediatamente tomou em bra�os ao menino.
-Traz, j� o levo eu -disse, enquanto o fazia c�cegas na barriguita a seu filho-. Parece que ainda fica muita energia.
-O mesmo digo -Laura afogou um bocejo-. dormiste t�o pouco como eu nestes �ltimos dias, como � poss�vel que esteja t�o bem?
-Eu diria que o devo a tr�s d�cadas de vida s�... e a que meu corpo est� acostumado a partidas de p�quer que duram toda a noite.
-Seu pai quer jogar contigo, Michael poderia olhar.
-J� veremos -Gabe lhe elevou o queixo com um dedo, e comentou-: a verdade � que est� a ponto de cair de esgotamento, n�o?
-O que vai, nunca me havia sentido melhor em toda minha vida.
-E logo que pode manter os olhos abertos.
-N�o � nada que n�o possa arrumar-se com cinco horas seguidas de sonho.
-Quero te ensinar algo, e depois poderia dormir uma sesta enquanto Michael e eu jogamos -disse, enquanto lhe acariciava a mand�bula com o polegar.
Com a Laura, tinha descoberto que o aroma do sab�o e os talco podia ser excitante-. Quando tiver descansado, poderemos ter nossa pr�pria celebra��o
privada.
-Agora mesmo me vou dormir.
Gabe se p�s-se a rir, e a agarrou por bra�o antes de que pudesse come�ar a subir as escadas.
-Antes, quero que veja uma coisa.
-Vale, estou muito fraco para me p�r a discutir.
-Terei-o em conta para depois -com um bra�o ao redor da Laura e o menino no outro, Gabe foi para o sal�o.
N�o era a primeira vez que Laura via aquele quadro; de fato, tinha presenciado desde a primeira pincelada at� a �ltima de sua cria��o. Entretanto, parecia
diferente ali, pendurado em cima da chamin�. Na galeria, tinha-o visto como uma formosa obra de arte, como algo que poderiam contemplar os estudantes de arte
e os colecionadores, como um pouco destinado a ser objeto de coment�rios, discuss�es, disecciones e cr�ticas.
Mas ali no sal�o, ao entardecer, era uma declara��o pessoal, uma parte deles tr�s.
At� esse momento, n�o se tinha dado conta do muito que a tinha incomodado v�-lo exposto na galeria do Marion. E tampouco tinha sabido que v�-lo ali
nesse momento faria que sentisse que por fim tinha chegado a casa.
-� precioso -murmurou.
Gabe entendeu o que queria dizer, sem vaidade nem ares de grandeza.
-N�o tenho feito nada em minha vida que possa comparar-se a isto, e duvido que volte a fazer algo que lhe aproxime sequer. Por favor, sente-se.
Algo no tom de sua voz fez que Laura se voltasse a olh�-lo antes de sentar-se no sof�.
-N�o sabia que pensava traz�-lo para casa, sei que lhe tinham feito ofertas por ele.
-Nunca tive nenhuma inten��o de vend�-lo, soube onde ia p�r o desde o come�o -Gabe apoiou ao menino em seu quadril, e se aproximou do retrato-. Em todo o
tempo que levo vivendo nesta casa, n�o encontrei nada nem pintei nada que queria pendurar nesse lugar em concreto. Suponho que � algo que tem que
ver tamb�m com o destino. Se eu n�o tivesse estado em Avermelhado, se n�o tivesse nevado, se voc� n�o tivesse fugido... o que nos tinha acontecido no passado foi o que
fez que nos encontr�ssemos, e o que possibilitou que cri�ssemos isto.
-Quando o estava pintando, perguntava-me por que parecia ter tanta pressa em acab�-lo, e agora o entendo.
-De verdade? -Gabe esbo�ou um sorriso, e se voltou para ela-. Pergunto-me o que � o que entende, anjo. Recentemente me dava conta de que n�o tem nem id�ia
pelo que sinto por ti.
-Sei que necessita ao Michael e a mim. Os dois sofremos muito, e nos ajudamos mutuamente.
-E isso � tudo? -Gabe se perguntou se a estava pressionando muito, mas sabia que, se n�o o fazia nesse momento, possivelmente depois seria muito tarde-.
Disse-me que me queria. Sei que grande parte do que sente � gratid�o, mas quero saber se houver algo mais.
-N�o sei o que quer que te diga.
-O que quero � que o olhe -Gabe alargou uma m�o para ela, mas ao ver que ficava onde estava, foi at� a poltrona e a fez levantar-se-. Olhe o
retrato, e me diga o que v�.
-A mim mesma.
Ao parecer, aquele era o dia dos enfrentamentos. Como Michael se ficou dormido, Gabe o levou a piso de acima e o meteu em seu ber�o. apressou-se
a voltar junto � Laura, tirou-a dos ombros e, mantendo-a diante de si, fez que se voltasse para o retrato.
-me diga o que v�.
-Vejo-me mesma, desde seu ponto de vista naquele momento -disse ela, com o cora��o martille�ndole no peito-. Pare�o muito vulner�vel e triste.
Impaciente, Gabe lhe deu uma suave sacudida.
-N�o v� o suficiente.
-Quero ver for�a... e acredito que realmente est� a� -admitiu ela ao fim-E vejo uma mulher sozinha, disposta a proteger o que � dele.
-Quando a miras aos olhos. Laura, olha-os e me diga o que v�.
-Uma mulher que se est� apaixonando -Laura fechou os olhos-. Ent�o, j� sabia.
-N�o -Gabe n�o fez que se voltasse a olh�-lo, mas sim a rodeou com os bra�os enquanto os dois continuavam de cara ao retrato-. N�o sabia, porque me disse
uma e outra vez que estava pintando o que queria ver. E o que eu mesmo sentia.
O cora��o da Laura se acelerou ainda mais, j� que ela sabia que Gabe podia expressar sobre um tecido qualquer emo��o que tivesse experiente.
-O que � o que sente?
-� que n�o o v�?
-N�o quero v�-lo -ela se voltou para ele, e lhe agarrou a camisa-. Quero ouvi-lo.
Gabe n�o sabia se podia diz�-lo, j� que expressar as coisas em palavras era muito mais dif�cil que sentir as emo��es. Podia pintar seus estados de �nimo e podia
deix�-los claros a gritos, mas lhe custava muito expressar algo t�o importante com palavras.
Acariciou-lhe a cara e o cabelo, e finalmente tomou sua m�o antes de dizer:
-Atraiu-me quase do primeiro momento como ningu�m mais poderia chegar a faz�-lo jamais, nem no passado nem no futuro, e pensei que estava louco. Estava gr�vida,
dependia de mim, e se sentia agradecida por minha ajuda.
-claro que sim, sempre te estarei agradecida.
-Maldi��o -Gabe n�o p�de dizer outra coisa, e apartou o olhar.
-Sinto que voc� n�o goste -disse Laura, desfrutando do tranq�ila que se sentia apesar de qu�o zangado parecia ele. Jamais esqueceria a imagem do Gabe nesse
momento; tinha o cabelo despenteado de tanto pass�-las m�os por ele, levava uma camisa cinza com as mangas enroladas at� os cotovelos, e sua express�o refletia
uma grande impaci�ncia.
-Gabe, fui completamente sincera contigo, e agora quero que voc� fa�a o mesmo. O que sente por mim est� ligado a esse retrato, a essa imagem?, seus sentimentos
s�o o resultado de seu amor pelo Michael, ou s�o por mim?
-Sim a tudo -disse ele, enquanto tomava uma m�o-. Estou apaixonado pela mulher que pintei, da m�e de meu filho, e de ti. De forma separada e conjunta. Me
teria apaixonado por ti sem importar onde nos tiv�ssemos conhecido, nem baixo que circunst�ncias. Ao melhor n�o teria passado tudo t�o r�pido nem teria sido t�o complicado,
mas teria passado igualmente -quando Laura tentou apertar-se contra ele, Gabe a deteve-. As raz�es que tive para me casar contigo foram totalmente ego�stas, n�o
foi te fazer nenhum favor.
-Ent�o, n�o te estarei agradecida -disse ela, com um sorriso.
-Obrigado -Gabe levantou suas m�os at� seus l�bios; primeiro a que tinha o alian�a de casamento singelo, e depois a que tinha o novo-. Quero voltar a te pintar.
Laura se p�s-se a rir, e ele cobriu seus l�bios sorridentes com sua boca.
-Agora? -conseguiu dizer ela.
-Logo.
As m�os dele se deslizaram at� seu cabelo, e o beijo se voltou apaixonado e profundo enquanto ela o rodeava com os bra�os. O amor que ambos sentiam, e
que por fim se confessaram abertamente, acrescentou uma intensidade assustadora ao abra�o.
Laura soltou um murm�rio de prazer, e outro de protesto quando ele a tombou no ch�o. Sua risada se converteu em um gemido quando Gabe come�ou a lhe desabotoar a
camisa.
-Michael...
-Est� dormindo -Gabe lhe jogou o cabelo para tr�s para deixar seu rosto completamente espa�oso, e contemplou em seus olhos tudo o que tinha ansiado ver-. �
minha at� que desperte. Quero-te, Laura. Poder� v�-lo cada vez que olhe o retrato. Foi minha desde a primeira vez que te toquei.
"Sou tua", pensou ela enquanto ele a apertava contra seu corpo. O anjo do Gabriel era mais que um retrato, e por fim tinha encontrado o lugar ao que pertencia.
RESENHA BIBLIOGR�FICA
Nora Roberts
Pseud�nimo da Eleanor Wilder. Tamb�m escreve com o pseud�nimo do J.D. Robb.
Eleanor Mari Robertson Smith Wilder nasceu em 10 de Outubro de 1950 no Silver-Spring, condado do Montgomery, estado de Maryland. Em sua fam�lia, o amor pela literatura
sempre esteve presente. Em 1979, durante um temporal de neve que a deixou isolada uma semana junto a seus filhos, decidiu agarrar uma das muitas hist�rias que buliam
em sua cabe�a e come�ou a escrev�-la... Assim nasceu seu primeiro livro: Fogo irland�s.
Est� classificada como uma das melhores escritoras de novela rom�ntica do mundo. recebeu v�rios pr�mios Rita e � membro do Mistery Writers of America e do
Creme League of America. Todas as novelas que publica encabe�am sistematicamente as listas dos livros mais vendidos nos Estados Unidos, Gr�-Bretanha e Alemanha.
Como assinalou a revista Kirkus Reviews, "a novela rom�ntica com intriga n�o morrer� enquanto Nora Roberts, sua autora megaventas, siga escrevendo". Duzentos e oitenta
milh�es de exemplares impressos de toda sua obra no mundo avalizam sua mestria.
Nora � a �nica garota de uma fam�lia com 4 filhos var�es, e em casa Nora s� teve meninos, por descreve habilmente o car�ter dos protagonistas masculinos
de suas novelas. Atualmente, Nora Roberts reside em Maryland em companhia de seu segundo marido.
Luz na tormenta
"N�o h� nenhum mist�rio em por que Nora Roberts � uma das escritoras mais vendidas... oferece em seus livros grandes dose de gra�a e engenho"
Publishers weekly
* * *
(c) 1989 Nora Roberts
Editorial: Top Novel (Harlequin), 2007
Coberta: Getty Images
ISBN: 978-84-671-5096-4
T�tulo: Luzes Do Norte.
Autor: Nora Roberts.
T�tulo original: Northen Lights.
G�nero: romance.
Editora: Ch� das Cinco.
Digitaliza��o: F�tima Tom�s.
Revis�o: Jo�o Nobre.
Estado da obra: Corrigida.
Numera��o de p�gina: Rodap�.
Um romance colorido sobre duas almas solit�rias que encontram amor e reden��o numa remota vila do Alasca.
A vila de Lunacy � a �ltima chance para Nate Burke. Como pol�cia em Baltimore, assistiu � morte do colega na rua, e a culpa ainda o persegue. Sem mais nenhum lugar
para onde ir, aceita a fun��o de Chefe da Pol�cia nessa pequena e remota vila do Alasca. Para al�m de intervir no atropelamento de um veado, a primeira semana de
trabalho parece-lhe relativamente calma. E quando come�a a perguntar-se se a mudan�a n�o ter� sido um grande erro, um beijo t�o imprevisto quanto arrebatador na
passagem do ano, sob as brilhantes luzes do norte do c�u do Alasca, levanta o seu esp�rito e convence-o a ficar mais algum tempo.
Meg Galloway, nascida e criada em Lunacy, est� habituada � solid�o. Era apenas uma jovem quando o seu pai desapareceu, e teve de aprender a ser independente, pilotando
a sua pequena avioneta e vivendo nos arredores da vila na companhia dos seus huskies. Depois do beijo ao novo Chefe da Pol�cia, permite-se ceder � paix�o, mas sempre
determinada a manter as coisas o mais simples poss�veis. Mas h� algo nos olhos tristes de Nate que se enfia debaixo da sua pele e lhe aquece o cora��o gelado.
E, agora, as coisas em Lunacy come�am a aquecer. H� alguns anos, numa das majestosas montanhas que sombreiam a vila, ocorreu um crime que nunca foi resolvido e Nate
suspeita que o assassino continua em Lunacy. A sua investiga��o vai desenterrar segredos e suspeitas que se escondem sob a superf�cie pl�cida do lugar, bem como
trazer ao de cima o instinto de sobreviv�ncia que fez dele um dos melhores pol�cias em Baltimore. O que ele n�o podia saber � que a sua descoberta vai amea�ar a
nova vida e o novo amor que pensava ter finalmente conseguido.
J� faz parte do Clube Nora Roberts?
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e junte-se �s f�s da melhor escritora rom�ntica da actualidade.
"Nora Roberts escreveu mais do que um romance sobre amor. Escreveu um romance afectuoso sobre as liga��es das pequenas comunidades, as feridas geracionais e as paisagens
solit�rias que p�em � prova a nossa alma."
- PUBLISHERS WEEKLY
"Luzes do Norte � um romance cheio de texturas que nos fala do paradoxo de mudar para um lugar simultaneamente �ntimo e expansivo, acolhedor e hostil, inegavelmente
americano, mas tamb�m profundamente ex�tico."
- BOOKLIST
Com mais de 160 milh�es de c�pias vendidas em todo o mundo, e mais de 60 best-sellers
na lista do New York Times, NORA ROBERTS � uma das autoras mais lidas, acarinhadas e respeitadas do mundo. Foi a primeira autora a ser convidada para o Romance Writers
of America Hall of Fame. Nascida em Silver Spring, Maryland, Nora Roberts � a mais nova de cinco filhos. Vive em Keedysville onde continua a escrever.
Mais informa��es sobre a autora em WWW.CHADASCINCO.COM
Edi��es CH�DASCINCO
Livros com sexto sentido
- Porqu� uma editora pensada por mulheres e para mulheres?
- Porque as mulheres s�o especiais e merecem uma editora especial.
- Porqu� publicar fundamentalmente livros escritos por autoras?
- Porque ningu�m entende as mulheres t�o bem como elas pr�prias.
- Porqu� personagens femininas fortes?
- Porque somos um tributo �s qualidades femininas e ao eterno feminino.
- se um homem ler um livro vosso, isso significa que � efeminado?
- N�o, significa que quer saber mais sobre as mulheres, e apenas teve o bom gosto de escolher o livro certo.
Edi��es CH�DASCINCO
chancela da Sa�da de Emerg�ncia
T�tulo: Luzes do Norte
Autoria: Nora Roberts
Editora: Maria Jo�o Costa
Esta edi��o (c) 2008 Edi��es Ch� das Cinco Lda.
T�tulo original Northen Lights (c) 2004 by Nora Roberts. Publicado originalmente
em Nova Iorque, U.S.A. por The Berkley Publishing Group, 2005
Tradu��o: Carla Ferraz
Revis�o: Idalina Morgado
Composi��o: Ch� das Cinco, em caracteres Minion, corpo 12
Design da capa e interiores: Ch� das Cinco
Impress�o e acabamento: Rolo & Filhos II S.A.
edi��o: Novembro, 2008
ISBN: 978-989-8032-40-9
Dep�sito Legal: 282150/08
Ch� das Cinco � uma marca registada das Edi��es Sa�da de Emerg�ncia, Av. da Rep�blica, 861, Bloco D, 1. Dt�, 2775-274 Parede, Portugal Tel e Fax: 214 583 770
www. chadascinco.com
Luzes do Norte
Tradu��o de Carla Ferraz
CHADASCINCO
Livros com sexto sentido
Ao meu precioso Logan, filho do meu filho.
A vida ser� a tua caixinha de j�ias, repleta de risos cintilantes, do brilho da aventura, do resplendor da descoberta, da vis�o da magia. E que por todos estes tesouros
jorre a centelha eterna do amor.
ESCURID�O
Terminai, bela senhora; a luz do dia chegou, E n�s somos da escurid�o.
William Shakespeare
Oh, escurid�o, escurid�o, escurid�o, pela chama do meio-dia Escurid�o ineg�vel, eclipse total Na esperan�a perdida do dia! John Milton
Pr�logo
Entrada de Di�rio - 12 de Fevereiro de 1988
Aterrei no Glaciar do Sol por volta do meio-dia. O voo despertou-me completamente da ressaca, e cortou bem rente as ra�zes da realidade do mundo que ficou l� em
baixo. O c�u est� limpo, como cristal azul. Uma esp�cie de c�u retratado em postais para atrair turistas, adornado com um halo colorido e brilhante em redor do sol
frio e esbranqui�ado. Vejo-o como um sinal de que era imperativo fazer esta escalada. O vento sopra a cerca de dez n�s. A temperatura ronda os dez abaixo de zero.
O Glaciar � enorme como o rabo de Madame Kate, e t�o gelado como o seu cora��o.
Apesar disso, Kate deu-nos uma bela despedida na noite passada. At� nos arranjou uma tarifa de grupo.
N�o fa�o ideia o que raio � que estamos aqui a fazer, excepto que temos de ir a algum lado, fazer qualquer coisa. Uma escalada de Inverno em Nenhures � t�o boa como
qualquer outra, e melhor do que a maioria das que j� fiz.
De vez em quando, um homem precisa de uma semana de aventura, aventura essa que exclua bebida rasca e mulheres f�ceis. Como podemos apreciar a bebida e as mulheres
se n�o nos afastarmos delas de vez em quando?
E dar de caras com alguns amigos Lun�ticos n�o s� virou a minha sorte ao jogo, como mudou completamente a minha disposi��o. N�o me estimula muito, trabalhar todos
os dias pelo sustento, como todos os ratos da engrenagem, mas estar com uma mulher toca todos os pontos certos.
O meu golpe de sorte pode satisfazer as meninas, mas agora vou tirar uns dias s� para mim e o pessoal.
Subir contra os elementos, arriscar a vida e a pele na companhia de outros homens com o mesmo grau de loucura � algo que tenho de fazer, s� para me lembrar que estou
vivo. Faz�-lo n�o por dinheiro, por obriga��o, ou porque uma mulher insiste comigo at� ficar roxo, mas s� pela idiotice pura, � o que mant�m os esp�ritos elevados.
L� em baixo come�a a faltar espa�o. As estradas v�o onde dantes n�o chegavam, as pessoas vivem onde nunca ousaram viver. Quando cheguei aqui, n�o havia tanta gente,
e as bestas dos federais n�o controlavam tudo.
Permiss�o para escalar? Para passear numa montanha? Que se lixem,
11
e que se lixem os cabr�es dos federais, mais as suas regras e papeladas. As montanhas j� ali estavam muito antes de algum burocrata do governo pensar numa forma
de ganhar uns trocos com elas. E v�o ficar ali muito depois de ele andar a passar fita vermelha no Inferno.
E aqui estou eu agora, nesta terra que n�o pertence a ningu�m. � assim com o solo sagrado.
Se houvesse uma forma de viver na montanha, plantava l� a minha tenda, e nunca sairia de l�. Mas sagrada ou n�o, a montanha mata-nos, mais depressa do que um corte
profundo, e sem qualquer piedade.
Portanto, eu aproveito a minha semana, na companhia de homens com os mesmos ideais, escalo o pico que n�o tem nome e que se eleva sobre a cidade, o rio e os lagos,
transpondo as barreiras que os federais impuseram na terra, contrariando as suas tentativas rid�culas de a domar e conservar.
O Alasca s� pertence a si pr�prio, por mais sinais de tr�nsito ou regras que sejam erigidos sobre ele. � como a �ltima das mulheres selvagens, e Deus ama-a por isso.
Eu amo.
Mont�mos o nosso acampamento base, e o Sol j� caiu atr�s dos grandes picos, mergulhando-nos a todos na escurid�o do Inverno. Encolhidos na tenda, comemos bem, passamos
um charro e falamos sobre amanh�.
Amanh� escalamos.
1.
A caminho de Lunacy - 28 de Dezembro de 2004
Apertado numa lata de sardinhas, a que irrisoriamente deram o nome de avi�o, que subia aos solavancos pelo ar turbulento, penetrando na min�scula janela de luz que
era o Inverno, atravessando picos e brechas de montanhas cobertas de neve, na direc��o de uma vila chamada Lunacy, Ignatious Burke teve uma epifania.
N�o estava assim t�o preparado para morrer quanto pensara.
Era algo extraordin�rio, perceber que o seu destino se encontrava preso, de forma prec�ria, nas m�os de um estranho que se encontrava soterrado debaixo de uma parca
amarelo-can�rio, com o rosto quase todo tapado por um chap�u de couro gasto, empoleirado em cima de um bon� de vigia roxo.
O estranho parecera suficientemente competente em Anchorage, e dera um aperto de m�o sincero a Nate antes de aprovar a descolagem daquela lata de sardinhas com h�lices.
Depois, dissera a Nate para lhe "chamar Bruto". Foi a� que o desconforto inicial se instalou. -.
12
Que esp�cie de idiota entrava numa lata voadora pilotada por um tipo chamado Bruto?
Mas voar era o �nico meio seguro de chegar a Lunacy naquela altura do ano. Pelo menos, fora o que a Presidente da C�mara Hopp lhe dissera, quando tratou dos pormenores
da viagem.
O avi�o mergulhava com for�a para a direita, e � medida que o est�mago de Nate o acompanhava, perguntava-se qual seria a defini��o de seguro para a Presidente da
C�mara Hopp.
Pensara que n�o queria saber, de uma forma ou de outra. Viver ou morrer, o que � que isso importava no grande plano? Ao entrar no grande avi�o comercial em Baltimore,
Washington, j� se havia resignado de que ia a caminho do fim da sua vida.
O psiquiatra do departamento avisara-o de que n�o devia tomar decis�es importantes num estado de depress�o, mas ele candidatara-se ao lugar de Comandante da pol�cia
em Lunacy apenas porque o nome lhe parecia adequado.
E aceitara o cargo com um encolher de ombros que transparecia "estou-me nas tintas".
At� agora, mo�do de n�useas, a tremer da epifania que tivera, Nate percebia que n�o era tanto a morte que o preocupava, mas a forma de morrer. N�o queria acabar
de vez esmagado contra uma montanha naquela escurid�o de merda.
Se pelo menos tivesse ficado em Baltimore, a cultivar uma rela��o mais af�vel com o psiquiatra e o chefe, teria continuado no activo. N�o seria assim t�o mau.
Mas n�o, atirara com o distintivo e n�o se limitara a queimar a patente, mas a inciner�-la. Agora ia acabar uma n�doa algures no Territ�rio do Alasca.
- Vai custar um bocadinho a passar por ali, - disse Bruto, com um sotaque arrastado do Texas.
Nate engoliu em seco. - Quer dizer que at� agora tem sido f�cil. Bruto sorriu, piscando o olho. - Isto n�o � nada. Devia tentar voar com vento de proa.
- N�o, obrigado. Ainda falta muito?
- Nem por isso.
O avi�o inclinou-se e estremeceu. Nate cedeu e fechou os olhos. Rezou para n�o sofrer a humilha��o de vomitar para cima das botas, antes de morrer.
Nunca mais haveria de entrar num avi�o. Se sobrevivesse, sairia do Alasca de carro. Ou a p�. A rastejar. Mas nunca mais ia voar na vida.
O avi�o sacudiu-se num salto, que obrigou Nate a arregalar os olhos.
13
E viu pela janela a vit�ria triunfante do Sol, um t�nue assombro cintilante que dava ao c�u uma tonalidade p�rola, de modo a que o mundo, l� em baixo, se encontrava
definido em longas pregas brancas e azuis, eleva��es abruptas, enxames brilhantes de lagos gelados e o que seriam quil�metros de �rvores salpicadas de neve.
A leste, o c�u era ofuscado pela grande massa a que os locais chamavam Denali, ou s� A Montanha. At� a sua pesquisa amadora lhe revelara que apenas os Forasteiros
se referiam a ela como McKinley.
O seu �nico pensamento coerente, no meio daqueles solavancos, era de que nada t�o real podia ser t�o imenso. Ao ver o Sol espraiar os dedos divinos pelo c�u pesado
� volta da montanha, as sombras come�avam a escorrer e aumentar, azul sobre branco, e a sua face gelada reluzia.
Algo dentro dele se alterara, de tal forma que, por momentos, se esqueceu do est�mago �s voltas, do constante rugido do motor, at� do ar gelado que pairava sobre
o avi�o como uma n�voa.
- Grande como cara�as, n�o �?
- �. - Nate soltou um suspiro. - Grande como cara�as. - Dirigiram-se a oeste, mas ele nunca perdeu de vista a montanha.
Conseguia ver agora que o que pensara ser uma estrada gelada era um rio sinuoso e congelado. E pr�ximo da sua margem, a marca do homem com as suas casas e edif�cios,
carros e cami�es.
Era como se estivesse dentro de um globo de neve que ainda n�o havia sido sacudido, tudo t�o calmo e branco, a aguardar.
Algo rangera debaixo do ch�o. - O que foi isto?
- O trem de aterragem. Ali � Lunacy.
Num rugido, o avi�o iniciou a descida, que obrigou Nate a agarrar-se ao assento, fincando os p�s no ch�o. - Que raio? Vamos aterrar? Onde? Onde?
- No rio. Nesta altura do ano, est� totalmente congelado. N�o se preocupe.
- Mas...
- Aterramos nos skis.
- Skis? - Nate lembrou-se bruscamente que odiava desportos de Inverno. - Um skate n�o seria mais apropriado?
Bruto soltou uma gargalhada louca, � medida que o avi�o descia para a camada de gelo. - Era giro � brava, n�o? Um avi�o com skate. Cum cara�as.
O avi�o estremeceu, vacilou e deslizou juntamente com o est�mago de Nate. E, graciosamente, imobilizou-se. Bruto desligou os motores, e no s�bito sil�ncio, Nate
conseguia ouvir o seu cora��o a martelar nos ouvidos.
14
- N�o lhe pagam para isto, - balbuciou Nate. - N�o � poss�vel que lhe paguem para isto.
- Raios. - Bruto deu uma palmada no bra�o de Nate. - N�o o fa�o por dinheiro. Bem-vindo a Lunacy, Comandante.
- Bem o pode dizer.
Decidiu que n�o ia beijar o ch�o. Al�m de parecer rid�culo, tamb�m era capaz de congelar ao concretiz�-lo. Em vez disso, girou as pernas para um frio indescrit�vel
e rezou para que o mantivessem de p� at� conseguir chegar a um lugar quente, calmo e l�cido.
O problema que se punha era atravessar o gelo sem partir a perna, ou o pesco�o.
- N�o se preocupe com as suas coisas, Comandante, - gritou Bruto. - Eu levo-lhas.
- Obrigado.
Equilibrando-se, Nate viu uma figura de p� na neve. Estava enrolada numa parca castanha, com capuz, forrada de p�lo escuro. Fumava com baforadas curtas e impacientes.
Usando-a como guia, Nate come�ou a percorrer o gelo quebradi�o com o m�ximo de dignidade poss�vel.
- Ignatious Burke.
A voz era �spera e feminina, chegando a ele numa nuvem de vapor. Escorregou, mas conseguiu equilibrar-se a tempo, e com o cora��o a fustigar as costelas, alcan�ou
a margem coberta de neve.
- Anastasia Hopp. - Esticou uma m�o enluvada e, sem ele perceber, agarrou a sua com uma assertividade a toda a prova. - � volta das colinas ainda est� verde. Bruto,
andaste a brincar com o novo Comandante a caminho da vila?
- N�o, senhora. Mas apanh�mos mau tempo.
- � sempre assim. Tem muito bom aspecto, voc�, n�o? At� mesmo maldisposto. Tome.
Tirou uma garrafinha prateada do bolso e obrigou-o a pegar nela.
- Ah...
- For�a. Ainda n�o est� de servi�o. Um bocadinho de brandy vai acalm�-lo.
Decidindo que n�o podia piorar nada, abriu a garrafa e bebeu um gole t�mido, sentindo que lhe ca�a directamente no est�mago tr�mulo. - Obrigado.
- Vamos instal�-lo n'A Estalagem, para que possa recuperar o f�lego. - Guiou-o por um caminho calcorreado. - Mais tarde, damos uma volta pela vila, quando tiver
a cabe�a mais leve. A viagem � longa, desde Baltimore.
- Pois �.
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Parecia-lhe que estava no cen�rio de um filme. As �rvores verdes e brancas, o rio, os edif�cios feitos de troncos cortados � medida, o fumo que sa�a das chamin�s
e dos tubos de exaust�o. Tudo transparecia numa penumbra sonhadora que o lembravam que estava exausto, tanto quanto agoniado. N�o conseguira dormir em nenhum dos
voos e calculava que h� quase vinte e quatro horas que n�o se encontrava na horizontal.
- �ptimo, o dia est� limpo, - disse ela. - As montanhas ficam um espect�culo. Este tipo de paisagem atrai os turistas.
Era um postal perfeito, e com algo de esmagador. Ele achava que havia entrado naquele filme - ou no sonho de algu�m.
- � bom ver que se equipou a rigor. - Enquanto falava, olhava-o de cima a baixo. - A maioria dos sulistas aparece aqui de sobretudos chiques e botas de cidade, e
acaba por gelar o rabo.
Encomendara tudo o que trazia vestido, at� a camisola interior t�rmica, bem como a maior parte do conte�do da mala, na Eddie Bauer online - depois de receber uma
lista de sugest�es por correio electr�nico, da Presidente Hopp. - Foi muito espec�fica, quanto ao que eu ia precisar.
Ela acenou. - E tamb�m fui espec�fica quanto ao que precis�vamos. N�o me desiluda, Ignatious.
- Nate. Fa�o quest�o disso, Presidente Hopp.
- S� Hopp. � assim que me chamam.
Ela subiu para um alpendre de madeira. - Esta � A Estalagem. Hotel, bar, restaurante, clube de conv�vio. Tem um quarto aqui reservado, a descontar no sal�rio. Se
decidir que quer viver noutro lado, � voc� que sabe. A propriet�ria � Charlene Hidel. Cozinha muito bem, e a casa est� sempre limpa. Vai tomar conta de si. E tamb�m
lhe vai querer saltar para as cal�as.
- Perd�o?
- Voc� � um homem bonito, e a Charlene tem um fraco por isso. � demasiado velha para si, mas a opini�o dela n�o vai ser essa. Se tamb�m decidir que n�o, o problema
� seu.
Depois, sorriu, e ele viu que por baixo do capuz tinha um rosto corado como uma ma��, respeitando as suas formas. Os seus olhos eram castanhos cor de avel� e vivos,
a boca comprida e fina, curvando nas extremidades.
- Temos excesso de homens, como quase em todo o Alasca. Mas isso n�o significa que a popula��o feminina local n�o comece a rondar. � carne fresca e muitas delas
v�o querer provar. Fa�a o que quiser nos tempos livres, Ignatious. S� n�o ande a comer as mi�das durante o expediente.
- Vou apontar isso.
A gargalhada dela foi como a sirene de um farol - dois urros s�bitos. Para a pontuar, deu-lhe uma palmada no bra�o. - � bem capaz disso. Escancarou a porta e levou-o
para o bendito calor.
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Cheirava a fumo e caf�, algo a fritar com cebola, e o perfume oferecido de uma mulher.
Era uma sala ampla, dividida informalmente num restaurante com conjuntos de duas e quatro mesas, cinco com bancos corridos, e um bar com bancos altos, alinhados
com os assentos vermelhos gastos ao centro, de tantos traseiros que haviam acomodado.
Havia uma grande �rea aberta � direita, e, atrav�s dela, conseguia ver uma mesa de bilhar e o que pareciam ser matraquilhos, e as luzes cintilantes de uma jukebox.
� direita, outra entrada revelava o que parecia ser uma recep��o. Viu uma parte do balc�o e cub�culos cheios de chaves, alguns envelopes ou folhas com mensagens.
Uma lareira ardia com vivacidade, e as janelas da frente captavam um �ngulo que revelava uma vista da montanha espectacular.
Havia uma empregada de mesa enorme e gr�vida com o cabelo apanhado numa tran�a comprida e brilhante. O seu rosto era t�o cativante, t�o lindo e sereno, que ele pestanejou.
Ela olhou para ele como uma vers�o nativa do Alasca da Nossa Senhora de olhos meigos e negros e pele dourada.
Estava a refor�ar o caf� de dois homens numa mesa de bancos corridos. Um rapazinho com cerca de quatro anos estava sentado numa mesa com um livro de colorir. Um
homem de casaco de tweed estava sentado no bar, a fumar, e a ler um exemplar maltratado de Ulisses.
Numa mesa afastada, um homem de barba castanha que lhe chegava ao peito da camisa de flanela axadrezada e gasta parecia encetar uma conversa dura consigo mesmo.
As cabe�as voltaram-se na direc��o deles, e ouviram-se cumprimentos para Hopp, assim que ela atirou o capuz para tr�s, revelando uma massa primaveril de cabelo prateado.
Os olhares prenderam-se em Nate, num misto de curiosidade e especula��o, tocando a hostilidade directa devido � barba.
- Este � Ignatious Burke, o nosso novo Comandante da pol�cia. - Anunciou Hopp, ao abrir o fecho da parca. - Ali na mesa corrida temos Dex Trilby e Hans Finkle, aquele
de olhar franzido no que � poss�vel distinguir do seu rosto � Bing Karlovski. A empregada � Rose Itu. Como est� o pequenito hoje, Rose?
- Inquieto. Bem-vindo, Comandante Burke.
- Obrigado.
- Este � O Professor. - Hopp bateu no ombro do Casaco de Tweed, ao aproximar-se do bar. - Notaste alguma coisa diferente nesse livro, desde a �ltima vez que o leste?
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- H� sempre alguma coisa. - Tirou um par de �culos de arma��o de metal para melhor ver Nate. - Grande viagem.
- Pois foi, - concordou Nate.
- Ainda n�o acabou. - Voltando a p�r os �culos, O Professor regressou ao livro.
- E este diabinho lindo � o Jesse, o filho de Rose.
O rapazinho mantinha a cabe�a sobre o livro de colorir, mas ergueu o olhar, permitindo que os enormes olhos negros espreitassem por baixo da franja espessa de madeixas
pretas. Estendeu o bra�o, puxou a parca de Hopp para ela se debru�ar e ouvir o seu sussurro.
- N�o te preocupes. Arranjamos-lhe um.
A porta atr�s do bar abriu-se e revelou uma locomotiva negra enorme, de avental branco. - Mike Grande, - anunciou Hopp. - � o cozinheiro. Era da Marinha, at� que
se embei�ou por uma das mi�das locais em Kodiak.
- Deitou-me c� um olhar de truta, - disse Mike Grande com um sorriso. - Bem-vindo a Lunacy.
- Obrigado.
- Queremos qualquer coisa boa e quente para o nosso novo Comandante da pol�cia.
- Hoje aconselho a sopa de peixe, - disse-lhe Mike Grande. - Acho que vai bem servido. A n�o ser que prefira antes morder um naco de carne, Comandante.
Nate demorou alguns momentos a identificar-se como Comandante. Momentos em que sentiu todos os olhares da sala dirigirem-se para si. - Pode ser a sopa. Parece-me
bem.
- Trazemos-lha num instante. - Voltou para a cozinha, e Nate conseguiu ouvir a sua voz de bar�tono a entoar "Baby, Its Cold Outside". Cen�rio de um filme, postal,
pensava ele. Ou uma pe�a de teatro. Para onde quer que se virasse, sentia-se como um adere�o poeirento.
Hopp esticou o dedo para que Nate n�o sa�sse de onde estava, antes de marchar a caminho da recep��o. Ele ficou a v�-la dar a volta ao balc�o e tirar uma chave de
um dos cub�culos.
Ao faz�-lo, a porta por tr�s do balc�o abriu-se. E a bomba saiu.
Era loura - como Nate achava que deveriam ser as bombas - com uma massa de cabelo ondulado, cor do Sol, aberto em leque at� ro�ar uns seios impressionantes, ostentados
pelo decote baixo da camisola azul e justa. Levou um minuto at� olhar para o rosto, uma vez que a camisola estava presa nos jeans t�o apertados que com certeza haviam
magoado v�rios �rg�os internos.
N�o que se estivesse a queixar.
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O rosto presenteava uns olhos azuis brilhantes com uma inoc�ncia em contraste directo com os l�bios carnudos e vermelhos. Havia sido generosa na maquilhagem, o que
o lembrou de uma boneca Barbie.
Uma Barbie de cair para o lado.
Apesar da indument�ria reduzida, havia um movimento ritmado de tudo o que podia oscilar, � medida que ela dava a volta ao balc�o nuns saltos altos finos e abertos
atr�s, deslizando at� ao restaurante. Encostando-se ao bar, fez uma pose l�nguida.
- Bom, ol�, bonit�o.
A voz dela emitia um ronronar gutural - que devia ter treinado bastante - concebido para deixar a cabe�a de um homem sem pinga de sangue, equiparando o seu QI ao
de um nabo bem verde.
- Charlene, comporta-te. - Hopp bateu com a chave. - O rapaz est� cansado e meio agoniado. N�o tem estofo para lidar contigo agora. Comandante Burke, Charlene Hidel.
A estalagem � dela. � o or�amento municipal que paga a sua estadia como parte do seu sal�rio, por isso n�o se sinta obrigado a dar seja o que for em troca.
- Hopp, �s t�o m�. - Mas ao falar, Charlene sorria como uma gatinha acariciada - Que tal se eu o levar l� para cima, Comandante Burke, para que se possa instalar?
Depois levamos-lhe qualquer coisa quente para comer.
- Eu acompanho-o l� acima. - Deliberadamente, Hopp cerrou o punho � volta da chave, deixando pendurado o grande rect�ngulo preto com o n�mero do quarto. - O Bruto
vai trazer as coisas dele. Era capaz de ser boa ideia pedir a Rose que lhe levasse a sopa de peixe que Mike est� a preparar. Vamos, Ignatious. Pode socializar quando
n�o estiver prestes a cair de exaust�o.
Podia ter falado por si pr�prio, mas n�o via o interesse. Seguiu Hopp pela entrada e subiu alguns lan�os de escadas, t�o obediente quanto um cachorrinho que segue
o dono.
Ouviu algu�m murmurar, "Cheechako(1)", num tom que algu�m usaria para cuspir um naco de carne duro. Presumiu que se tratava de um insulto, mas ignorou.
- Charlene n�o faz por mal, - declarou Hopp. - Mas ela gosta bastante de provocar um homem ao m�ximo, se lhe derem hip�tese.
- N�o se preocupe comigo, Mam�.
Ela voltou a soltar aquela gargalhada intensa, e enfiou a chave na fechadura para destrancar o quarto 203.
- O marido foi-se embora h� quinze anos, e deixou-a com a filha
(1) Palavra de origem ind�gena, utilizada no Alasca, que designa forasteiro, rec�m-chegado. (N. da T.)
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para criar sozinha. Fez um belo trabalho com Meg, apesar de serem como c�o e gato o tempo todo. Desde ent�o j� teve muitos homens, e todos os anos s�o sempre mais
novos. J� lhe tinha dito que ela era muito velha para si. - Hopp olhava por cima do ombro. - Na verdade, ao ritmo que vai, acho que voc� � que � velho de mais para
ela. Tem trinta e dois, n�o �?
- Tinha, quando sa� de Baltimore. H� quantos anos foi isso? Hopp abanava a cabe�a, empurrando a porta. - Charlene leva-lhe mais de uma d�zia de anos de avan�o. Tem
uma filha crescida mais ou menos da sua idade. Talvez seja bom lembrar-se disso.
- Pensava que as mulheres gostavam, quando uma da vossa esp�cie fisga um homem mais novo.
- S� revela o quanto sabe de mulheres. Ficamos � danadas, por n�o o termos fisgado primeiro. Bom, aqui estamos.
Ele entrou no quarto de paredes de madeira, com uma cama de ferro, uma c�moda e um espelho de um lado e uma mesa pequena, duas cadeiras e uma pequena secret�ria
do outro.
Era limpo, despojado, e quase t�o interessante quanto um saco de arroz branco.
- Por aqui, encontra uma cozinha pequena. - Hopp aproximou-se, erguendo uma cortina azul para revelar um frigor�fico diminuto, um fog�o com dois bicos e um lava-lou�a
do tamanho da palma da m�o de Nate, fechada em concha. - Se n�o tiver na culin�ria uma paix�o ou um hobby, aconselho-o a tomar as refei��es l� em baixo. A comida
aqui � boa.
- N�o � o Ritz, e ela tem quartos melhores, mas o nosso or�amento � apertado. - Passou para o outro lado do quarto, abrindo a porta. - Casa de banho. Esta tem canaliza��o
interior.
- Uau. - Espreitou ele, esticando a cabe�a.
O lavat�rio era maior do que o da cozinha, mas n�o muito. N�o havia banheira, mas tamb�m um polib� chegava bem.
- Trouxe as suas coisas, Comandante. - Bruto segurava duas malas e um saco de viagem, como se estivessem vazios. Largou-os em cima da cama, e o seu peso abanou o
colch�o. - Se precisar de mim seja para o que for, estou l� em baixo a comer. Esta noite durmo c�, e de manh� voo para Talkeetna.
Bateu com o dedo na testa, em jeito de contin�ncia, e saiu batendo com os p�s.
- Merda. Espere. - Nate come�ou a procurar nos bolsos.
- Eu trato de lhe dar gorjeta, - disse Hopp. - At� entrar ao servi�o, � convidado da C�mara Municipal de Lunacy.
- Fico agradecido.
- Quero que trabalhe por isso, portanto veremos como corre.
20
- Servi�o de quartos! - Cantarolou Charlene, ao entrar no quarto, com um tabuleiro na m�o. Balou�ando as ancas como um metr�nomo, dirigiu-se para a mesa, onde o
pousou. - Trouxe-lhe uma bela sopa de peixe, Comandante, e uma sandu�che digna de um homem. O caf� est� quente.
- Cheira muito bem. Obrigado, Menina Hidel.
- Oh, ent�o, para si � Charlene. - Ela era uma provocadora nata e, sim, pensava Nate, costumava treinar. - Aqui somos todos uma grande fam�lia feliz.
- Se fosse esse o caso, n�o �amos precisar de um Comandante da pol�cia.
- Oh, n�o o assustes, Hopp. Gosta do quarto, Ignatious?
- Nate. Sim, obrigado. Est� �ptimo.
- Agora, vamos a comer qualquer coisa e a descansar, - aconselhou Hopp. - Quando tiver recuperado o f�lego, telefone-me. Mostro-lhe a cidade. O seu primeiro acto
oficial vai ser assistir � reuni�o de amanh� � tarde na C�mara Municipal, onde o vamos apresentar a todos que comparecerem. Deve querer passar antes pela esquadra,
e conhecer os dois adjuntos e Peach. E temos de lhe dar a estrela.
- Estrela?
- O Jesse certificou-se de que lhe davam uma estrela. Vamos, Charlene. Deixemos o homem em paz.
- Ligue l� para baixo, se precisar de alguma coisa. - Charlene lan�ou-lhe um sorriso convidativo. - Seja o que for.
Nas costas de Charlene, Hopp revirava os olhos para o c�u. Resolvendo a quest�o, com a m�o agarrou o bra�o de Charlene e puxou-a na direc��o da porta. Ouviu-se os
sapatos de salto alto raspar no soalho de madeira, um guincho feminino e a porta bater atr�s delas.
Atrav�s dela, Nate conseguia ouvir o sussurro de Charlene, insultada: - Que raio � que se passa contigo, Hopp? S� estava a ser simp�tica.
- Existe a simpatia de estalajadeira, e a simpatia de bordel. Um dia destes, ainda vais descobrir a diferen�a.
Ele esperou at� ter a certeza que elas se tinham ido embora, antes de ir trancar a porta. Depois, despiu a parca, deixando-a cair no ch�o, agarrou o gorro e puxou-o.
Desenrolou o cachecol, e puxou-o tamb�m. Abriu o fecho do colete de penas e juntou-o � pilha de roupa.
Reduzido � camisa, cal�as, camisola interior t�rmica e botas, foi at� � mesa, pegou na sopa, numa colher e levou ambas para junto das janelas escuras.
Eram tr�s e meia da tarde, de acordo com o rel�gio da mesa-de-cabeceira - e era escuro como se fosse meia-noite. A ilumina��o das ruas estava acesa, reparou ele
ao provar a sopa, e conseguia distinguir os contornos
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dos edif�cios. Decora��es de Natal em luzes coloridas, em pais-natal e renas de cart�o em cima dos telhados.
Mas n�o havia gente, nem vida, nem movimento.
Comia de forma mec�nica, demasiado cansado, demasiado esfomeado para reparar no gosto.
N�o havia nada para al�m daquela janela a n�o ser o cen�rio de um filme, pensava ele. Os edif�cios podiam ter fachadas falsas, uma m�o-cheia de pessoas que conhecera
l� em baixo apenas personagens da ilus�o.
Talvez tudo n�o passasse de uma alucina��o elaborada, nascida da depress�o, do sofrimento, da raiva - de um qualquer misto de sentimentos vil que o projectara numa
espiral de vazio.
Acordaria na sua casa de Baltimore, e tentaria reunir energias para os gestos de mais um dia.
Pegou na sandu�che, comendo-a tamb�m de p� junto � janela, a olhar para o mundo vazio a preto e branco, com as suas estranhas luzes festivas.
Talvez fosse at� l� fora, para o mundo vazio. Tornara-se personagem da invulgar ilus�o. Depois, esfumar-se-ia na penumbra, como a �ltima bobina de um filme antigo.
E tudo acabaria.
Enquanto ali estava, meio a pensar que tudo acabaria, a desejar que sim, uma figura surgiu na imagem. Vestida de vermelho - vivo e arrojado - que parecia saltar
daquela cena incolor, trazendo-lhe movimento.
Esses movimentos eram definidos e c�leres. Vida com uma miss�o, movimento com um prop�sito.
Passadas r�pidas, competentes sobre o branco, que deixava a sombra das pegadas na neve.
Estive aqui. Estou vivo e estive aqui.
N�o conseguia perceber se era um homem, uma mulher ou uma crian�a, mas havia algo na vis�o das cores, na confian�a do passo, que lhe prendeu a aten��o e o interesse.
Como se sentisse que estava a ser observada, a silhueta parou e olhou para cima.
Nate voltou a ter a sensa��o de branco e preto. Rosto branco, cabelo preto. Mas at� isso estava desfocado pela escurid�o e a dist�ncia.
Houve um longo momento de imobilidade, de sil�ncio. At� que a silhueta come�ou a caminhar novamente, avan�ando na direc��o d'A Estalagem, e desapareceu de vista.
Nate tapou a janela com as cortinas e recuou.
Depois de ponderar por instantes, tirou as malas de cima da cama, despejando-as no ch�o, por desfazer. Despiu-se, ignorando o frio do quarto que lhe gelava a pele
nua, e rastejou para baixo da montanha de cobertores, como um urso que rasteja na caverna para hibernar.
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Ali ficou, um homem de trinta e dois anos com uma despenteada massa de cabelo cor de avel�, que emoldurava um rosto comprido e magro que se rendera � exaust�o e
ao desespero, que enevoavam os seus olhos de um cinzento-fumado. Nos despojos do dia, a sua pele estava p�lida da fadiga acumulada. Apesar de a comida ter serenado
o turbilh�o do seu est�mago, o organismo ainda estava adormecido, como o de quem n�o consegue curar uma gripe persistente.
Desejava que a Barbie - Charlene - lhe tivesse levado uma garrafa, em vez de caf�. N�o costumava beber muito, e talvez fosse por isso que se havia salvado de uma
espiral de alcoolismo, juntamente com tudo o resto. Ainda assim, uns quantos copos inconsequentes haveriam de lhe desligar o c�rebro e o p�r a dormir.
Agora podia ouvir o vento. Antes n�o o percebera, mas gemia de encontro � janela. Com ele, ouvia o edif�cio ranger e o som da pr�pria respira��o.
Tr�s sons solit�rios, ainda mais solit�rios em un�ssono.
N�o os ou�as, dizia ele. N�o ou�as nada.
Ia dormir umas horas, pensou. Depois, tomava um duche para limpar os resqu�cios da viagem, enchendo-se de caf�.
Em seguida, ia decidir que raio ainda ia fazer.
Apagou a luz, at� o quarto mergulhar na escurid�o. Em segundos, tamb�m ele se embrenhou nela.
2.
A escurid�o envolvia-o, engolindo-o como lama quando o sonho o arrancou do sono. A sua respira��o palpitava � medida que rasgava a superf�cie, abrindo caminho para
sorver o ar. A sua pele estava pegajosa de suor, e ele lutava por se livrar dos cobertores.
O cheiro no ar n�o lhe era familiar - cedro, caf� de v�spera, um aroma t�nue a lim�o. Depois lembrou-se que n�o estava no seu apartamento de Baltimore.
Enlouquecera, e estava no Alasca.
Os n�meros luminosos do rel�gio da mesa-de-cabeceira diziam que eram cinco e quarenta e oito.
Logo, havia dormido um pouco antes de o sonho o perseguir de regresso � realidade.
No sonho tamb�m estava sempre escuro. Uma noite negra, a chuva p�lida e suja. O cheiro a p�lvora e sangue.
Bolas, Nate. Fui atingido.
23
A chuva fria a escorrer-lhe pela cara, o sangue quente a deslizar-lhe pelos dedos. O seu sangue, e sangue de Jack.
N�o fora capaz de impedir o sangue de correr, assim como n�o fora capaz de impedir a chuva de cair. Estavam para al�m das suas capacidades e, naquele beco de Baltimore,
haviam varrido o que restara dele.
Devia ter sido eu, pensava. N�o Jack. Ele devia estar em casa com a mulher, com os filhos, e devia ter sido eu a morrer no beco nojento, debaixo daquela chuva nojenta.
Mas safara-se com uma bala na perna, e um segundo tiro, que entrara e sa�ra, mesmo acima da cintura, o suficiente para o deitar abaixo, atrasando-o, levando Jack
a entrar primeiro.
Segundos, erros irris�rios, e um homem bom morria.
Tinha de viver com isso. Pensara em p�r termo � vida, mas tratava-se de uma solu��o ego�sta e n�o fazia justi�a ao amigo, o seu parceiro. Viver com isso era bem
pior do que morrer.
Viver era um castigo maior.
Levantou-se e caminhou at� � casa de banho. Deu por si pateticamente grato pelo jacto fino de �gua quente que brotava do chuveiro. Ia demorar um pouco, at� o jacto
de �gua arrastar o que pareciam camadas de fuligem e suor, mas n�o havia problema. Tinha muito tempo.
Ia vestir-se, descer as escadas e tomar um caf�. Talvez ligasse � Presidente Hopp, para ir dar uma olhadela � esquadra de pol�cia. Queria tentar ser um pouco mais
coerente e limpar aquela primeira impress�o de idiota de olhos morti�os.
Sentia-se mais ele, depois do duche tomado e da barba feita. Desenterrando roupa lavada, cobriu-se com v�rias camadas.
Pegou nas protec��es contra o frio e viu-se ao espelho. - Comandante da Pol�cia Ignatious Burke, Lunacy, Alasca. - Abanou a cabe�a, e quase sorriu. - Bom, Comandante,
vamos l� arranjar-lhe uma estrela.
Desceu as escadas, surpreendido pelo sossego aparente. Pelo que lera, lugares como A Estalagem eram o ponto de encontro dos locais. As noites de Inverno eram longas,
escuras e solit�rias, por isso esperava ouvir algum barulho no bar, talvez as bolas de bilhar a abrir o jogo, uma velha melodia country do Oeste, da jukebox.
Mal entrou, viu que a bela Rosa do Alasca estava a servir caf�, tal como fizera na v�spera. Podiam at� ser os mesmos clientes, Nate n�o tinha a certeza. O filho
dela estava sentado numa mesa, a colorir de forma laboriosa.
Nate olhou para o rel�gio que acertara para a hora local. Sete e dez.
Rose virou-se da mesa e sorriu para ele. - Comandante.
- Que noite tranquila.
Todo o seu rosto se iluminou com um sorriso. - � de manh�.
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- Perd�o?
- S�o sete horas, da manh�. Aposto que lhe est� a apetecer o pequeno-almo�o.
- Eu...
- � natural demorar um bocado a habituar-se. - Acenou na direc��o das janelas escuras. - N�o tarda come�a a clarear, daqui a algumas horas. Sente-se um pouco. J�
lhe trago um caf� para acordar.
Dormira sem interrup��es, e nem sequer sabia se havia de estar envergonhado ou maravilhado. N�o se lembrava da �ltima vez que dormira mais do que quatro ou cinco
horas seguidas.
Colocou os agasalhos num dos bancos corridos e depois decidiu que faria um esfor�o por cultivar rela��es comunit�rias. Dirigindo-se � mesa de Jesse, bateu com a
m�o nas costas de uma cadeira - Este lugar est� ocupado?
O rapaz espreitou devagar, por baixo da franja e abanou a cabe�a. A morder a l�ngua, continuou a colorir enquanto Nate se sentava.
- Mas que vaca roxa mais gira, - comentou Nate, estudando a obra em curso.
- As vacas n�o s�o roxas, a n�o ser que as pintes dessa cor.
- Ouvi dizer. Tens aulas de arte no liceu?
Jesse revirou os olhos. - Ainda n�o ando na escola porque s� tenho quatro anos.
- Est�s a gozar? Quatro? Pensava que tinhas pelo menos dezasseis. - Nate recostou-se, piscou o olho a Rose, ao que ela lhe trouxe uma caneca grossa e branca e lhe
serviu o caf�.
- Fiz anos e tivemos bolo, e milh�es de bal�es. N�o foi, m�e?
- � verdade, Jesse. - Pousou a ementa ao lado do cotovelo de Nate.
- E vamos ter um beb� n�o tarda nada. E tenho dois c�es e...
- Jesse, deixa o Comandante Burke ver a ementa.
- Na verdade, queria pedir ao Jesse que me recomendasse alguma coisa. O que � bom para o pequeno-almo�o, Jesse?
- Panquecas!
- Panquecas ser�. - Devolveu a ementa a Rose. - Estamos bem.
- Se mudar de ideias, avise-me. - Mas tinha as faces rosadas de regozijo.
- Que tipo de c�es? - Perguntou Nate, e passou o pequeno-almo�o a ouvir as descri��es dos animais de estima��o de Jesse.
Um prato de panquecas e um rapazinho encantador era uma forma bem melhor de come�ar o dia do que com um pesadelo recorrente. Mais bem-disposto, Nate estava prestes
a telefonar a Hopp quando ela apareceu � porta.
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- Ouvi dizer que j� tinha acordado, - disse ela, e atirou o capuz para tr�s. Da parca ca�am alguns flocos de neve. - Parece mais em forma do que ontem.
- Desculpe ter fraquejado.
- N�o h� problema. Teve uma bela noite de sono, saboreou um pequeno-almo�o decente, em boa companhia, - acrescentou, com um sorriso para Jesse. - Apetece-lhe uma
visita guiada?
- Claro. - Levantou-se para vestir a colec��o de agasalhos.
- � mais magro do que pensava.
Ele ergueu o olhar para Hopp. Sabia que parecia doente. Um homem que perdeu mais de quatro quilos e meio numa curva de cento e oitenta graus, dentro de uma lata
com um metro e meio por tr�s, normalmente ficava doente. - Isso vai acabar, se continuar a comer panquecas.
- E muito cabelo.
Puxou o gorro. - N�o p�ra de crescer.
- Gosto de um homem cabeludo. - Abriu a porta. - Especialmente ruivos.
- Mas o meu cabelo � castanho, - corrigiu ele automaticamente, e enterrou o gorro ainda mais.
- Est� bem. Senta-te um bocado, Rose, - gritou para dentro, para depois enfrentar o vento e a neve.
O frio atingiu-o como um comboio em andamento. - Chi�a. At� me saltam os olhos das �rbitas.
Saltou para o Ford Explorer que ela estacionara junto ao passeio. - O seu sangue ainda n�o engrossou.
- At� podia estar espesso como pasta, que n�o ia deixar de estar um frio de merda. Desculpe.
- N�o costumo corar com palavr�es. Claro que est� um frio de merda; estamos em Dezembro. - Ao ritmo da sua sonora gargalhada, ligou o motor. - Vamos come�ar a visita
de carro. N�o adianta andarmos aos trambolh�es no escuro.
- Quantos � que costumam sucumbir � exposi��o aos elementos e � hipotermia num ano?
- J� perdi alguns nas montanhas, mas a maioria deles s�o turistas ou loucos. Um homem chamado Teek, uma noite apanhou uma bebedeira de caix�o � cova, faz Janeiro
pr�ximo tr�s anos, e morreu congelado na sua casa de banho exterior, a ler a revista Playboy. Mas ele era um idiota. As pessoas que vivem aqui sabem tomar conta
de si, e os cheechakos que sobrevivem ao Inverno, aprendem - ou v�o embora.
- Cheechakos?
- Forasteiros. N�o devemos menosprezar a natureza, mas aprendemos
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a viver com ela, e se formos espertos, usamo-la a nosso favor. Aproveitamos o ar livre - ski, caminhar na neve, andar de skate no rio, pescar no gelo. - Encolheu
os ombros. - Temos cuidado e tiramos partido do frio, uma vez que veio para ficar.
Conduzia com uma compet�ncia impec�vel na estrada coberta de neve. - Ali � a nossa cl�nica. Temos um m�dico e uma enfermeira especializada.
Nate estudava o edif�cio pequeno e atarracado. - E se n�o derem conta do recado?
- Voam para Anchorage. Temos um piloto do mato que vive nos arredores da cidade. Meg Galloway.
- Uma mulher?
- � machista, Ignatious?
- N�o. - Talvez. - Era s� para saber.
- Meg � filha de Charlene. Uma piloto fant�stica. Um pouco doida, mas um bom piloto do mato tem de o ser, na minha opini�o. Ela podia t�-lo trazido de Anchorage,
mas chegou um dia mais tarde do que o previsto, e ela tinha outra marca��o, por isso lig�mos ao Bruto de Talkeetna. � capaz de ver Meg mais tarde, na reuni�o municipal.
E vai ser mesmo divertido, pensava Nate.
- A Loja da Esquina - tem tudo o que precisa, sen�o arranjam uma forma de o encontrar. � o edif�cio mais antigo de Lunacy. Os ca�adores constru�ram-no no in�cio
de 1800, e Harry e Deb fizeram obras de expans�o, quando o compraram em 83.
Era do dobro do tamanho da cl�nica, e tinha dois andares. As luzes j� reluziam nas janelas.
- Temporariamente, os correios funcionam no banco, mas este Ver�o vamos conseguir abrir uma esta��o. E aquele s�tio min�sculo ao lado � a Casa Italiana. Tem uma
boa pizza. N�o entregam para fora da cidade.
- Uma pizaria.
- Italiano de Nova Iorque, chegou aqui h� tr�s anos, numa expedi��o de ca�a. Apaixonou-se. Nunca mais de c� saiu. Johnny Trivani. No in�cio chamou-lhe Trivani's,
mas toda a gente lhe chamava a Casa Italiana, e assim ficou. Fala-se em acrescentar uma padaria. Diz que vai arranjar uma daquelas noivas russas por correspond�ncia,
que se v� na internet Talvez o fa�a.
- Vai fazer blinis caseiros?
- Esperemos que sim. O jornal da cidade fica naquela loja, - disse ela, apontando. - O casal que o dirige est� fora. Levaram os mi�dos a San Diego, aproveitando
as f�rias da escola, logo a seguir ao Natal. KLUN - r�dio local - emite dali. Mitch Dauber d� conta dela quase sempre sozinho. � um sacana que sabe ser muito divertido...
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- Vou sintonizar.
Deu a volta, voltando ao caminho que tinham acabado de percorrer. - Cerca de oitocentos metros a oeste da cidade fica a escola - desde o jardim-de-inf�ncia at� ao
liceu. De momento, tem setenta e oito alunos. Tamb�m l� temos aulas para adultos. Aulas de gin�stica, arte, esse tipo de coisa. Desde a quebra at� ao gelo, costumam
ser � noite. Mas depois passam para de dia.
- Quebra? Gelo?
- Quando o gelo quebra no rio, � porque vem a� a Primavera. Quando o rio congela, � altura de vestir ceroulas.
- Entendi.
- Temos quinhentas e seis almas no que chamamos o centro da vila, e mais cento e dez - aproximadamente - a viver fora, mas ainda no nosso distrito. Agora o seu distrito.
Ainda parecia a Nate que se encontrava no est�dio de cinema, longe do mundo real. Mais ainda do seu mundo.
- Os bombeiros - todos volunt�rios - s�o ali. E aqui � a C�mara Municipal. - Abrandou o carro e parou diante de um grande edif�cio de madeira. - O meu marido ajudou
a constru�-lo h� treze anos. Foi o primeiro Presidente da C�mara de Lunacy, e manteve o cargo at� morrer, faz em Fevereiro quatro anos.
- Morreu de qu�?
- Ataque card�aco. Tinha ido jogar h�quei no lago. Fez um golo, caiu para o lado e morreu. T�pico dele.
Nate aguardou um instante. - Quem � que ganhou?
Hopp desatou a rir. - O golo que ele marcou empatou o jogo. Nunca chegaram a acabar a partida. - Acelerou o carro. - Cheg�mos.
Nate espreitou para a escurid�o e para a neve que ca�a. Viu um edif�cio cuidado, de estrutura de madeira, e era �bvio que era mais recente do que os restantes. Apresentava
um estilo bungalow, com um alpendre pequeno e coberto e duas janelas, uma de cada lado da porta, ambas emolduradas com portadas verdes-escuras.
Havia sido aberto um caminho � pazada ou sulcado da rua at� � porta, e uma pequena entrada para carros, que parecia ter sido escavada h� pouco tempo, j� come�ava
a ficar coberta de alguns cent�metros de neve fresca. Uma carrinha pickup azul estava estacionada, e outro caminho pedestre estreito serpenteava na direc��o da porta.
Em ambas as janelas havia luzes acesas e, no telhado, sa�a fumo de um tubo de chamin� preto, numa nuvem cinzenta.
- Estamos abertos?
- Claro que sim. Sabem que est� para chegar hoje. - Passou por tr�s da carrinha. - Est� pronto para conhecer a equipa?
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- Mais do que nunca.
Saiu do carro, para descobrir que estava t�o chocado com o frio como da primeira vez. Respirando entre dentes, caminhava atr�s de Hopp pelo carreiro estreito at�
� porta da rua.
- C� em cima � a isto que chamamos uma entrada do �rctico. - Passou na entrada coberta, abrigada do vento e do mau tempo. - Ajuda a minimizar as perdas de calor
do edif�cio principal. � um belo s�tio para despir a parca.
Livrou-se da dela, pendurando-a num gancho ao lado de outra. Nate imitou-a e tirou tamb�m as luvas, enfiando-as num dos bolsos da parca. Em seguida, tirou o gorro
e o cachecol. Perguntava-se se algum dia se ia habituar a equipar-se como um explorador do P�lo Norte sempre que tinha de sair porta fora.
Hopp empurrou a segunda porta, e entrou para o aroma a madeira queimada e caf�.
As paredes estavam pintadas de bege industrial, o pavimento revestido de lin�leo �s manchas. Ao fundo � direita havia um pequeno fog�o a lenha. Em cima dele, uma
grande chaleira de ferro fundido projectava vapor do bico.
Havia duas secret�rias de metal, tocando-se � direita na sala, e � esquerda uma fila de cadeiras de pl�stico e uma mesa de apoio com revistas espalhadas em cima.
Ao longo da parede do fundo, antevia-se um balc�o com uma portinhola basculante, um computador e um centro de mesa de uma �rvore de Natal de cer�mica de um verde
jamais recriado pela natureza.
Reparou nas portas de cada lado, o quadro informativo onde eram afixados avisos e notas.
E nas tr�s pessoas que fingiam n�o o fixar com o olhar.
Presumia que os dois homens eram os seus adjuntos. Um parecia mal ter idade para votar e o outro velho o suficiente para ter votado em Kennedy. Ambos envergavam
pesadas cal�as de l�, botas robustas e camisas de flanela com os distintivos presos a elas.
O mais novo era nativo do Alasca, de cabelo negro e liso a cair quase at� aos ombros, olhos amendoados, negros como a meia-noite, e uma sofrida express�o jovem e
inocente no rosto de linhas robustas.
O mais velho estava curtido pelo vento, de cabelo curto e ma��s do rosto fl�cidas, olhos azuis um pouco vesgos que terminavam em grandes sulcos. A sua constitui��o
forte contrastava com a delicadeza do companheiro. Nate achava que devia ser ex-militar.
A mulher era redonda como uma baga, de faces rosadas e rechonchudas e um peito generoso por baixo de uma camisola cor-de-rosa, bordada
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com flocos de neve brancos. O cabelo grisalho tomava a forma de um carrapito no alto da cabe�a. Nele espetara um l�pis e nas m�os trazia um prato de bolos com cobertura
de a��car.
- Bom, o pessoal est� c� todo. Comandante Ignatious Burke, esta � a sua equipa. Adjunto Otto Gruber.
A equipa deu um passo em frente, estendendo a m�o. - Comandante.
- Adjunto Gruber.
- Adjunto Peter Notti.
- Comandante Burke.
Algo no sorriso hesitante chamou-lhe a aten��o. - Adjunto, tem algum la�o familiar com Rose?
- Sim, senhor. � minha irm�.
- E por �ltimo, a sua despachante, secret�ria e portadora de bolinhos de canela, Marietta Peach.
- Fico contente com a sua vinda, Comandante Burke. - Tinha uma voz t�o sulista quanto um julep de menta sorvido numa varanda. - Espero que se esteja a sentir melhor.
- Sim. Obrigado, Sra. Peach.
- Vou mostrar o resto da esquadra ao Comandante, e depois deixo-vos para que se apresentem. Ignatious, que tal irmos ver as instala��es dos... h�spedes?
Indicou o caminho passando a porta � direita. Havia duas celas, ambas com beliches. As paredes pareciam pintadas de fresco, o ch�o polido h� pouco tempo. Cheirava
a Sonasol.
N�o havia inquilinos.
- Costumam ter muito uso? - Perguntou Nate.
- B�bedos e desordeiros, principalmente. Em Lunacy, � preciso estar muito b�bedo e causar muita desordem para passar a noite na cadeia. � capaz de ter algumas agress�es,
vandalismo ocasional, mas isso costuma ser obra de mi�dos aborrecidos. Deixo que a sua equipa o ponha a par do crime em Lunacy. N�o temos nenhum advogado, por isso
se algu�m fizer quest�o de ter um, tem de vir de Anchorage ou de Fairbanks, a n�o ser que conhe�am outro noutro s�tio qualquer. Temos um juiz aposentado, mas � mais
prov�vel que esteja a pescar no gelo do que a tratar de quest�es legais.
- Ok.
- Bolas, j� me d�i a cabe�a de o ouvir falar.
- Nunca consigo ficar calado.
Soltando um riso breve, ela abanou a cabe�a. - Vamos ver o seu gabinete.
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Voltaram a atravessar o espa�o comum, onde todos fingiam estar a trabalhar. Do outro lado do balc�o da Sra. Peach, logo a seguir � entrada, ficava o arm�rio das
armas. Ele contou seis ca�adeiras, cinco espingardas, oito rev�lveres e quatro facas de aspecto ardiloso.
Enfiou as m�os nos bolsos, mordendo os l�bios. - O qu�? N�o h� nenhuma espada a s�rio?
- Mais vale prevenir do que remediar.
- Pois. N�o v� haver alguma invas�o.
Ela apenas sorriu e atravessou a porta junto ao arm�rio. - Aqui fica o seu gabinete.
Tinha cerca de um metro quadrado, com uma janela por tr�s de uma secret�ria de metal cinzenta. Em cima dela, um computador, um telefone e um candeeiro preto extens�vel.
Haviam sido empurrados contra a parede dois arm�rios de arquivo, com uma esp�cie de balc�o que servia ambos. Em cima, uma m�quina de caf� - j� cheia - e duas canecas
de faian�a castanhas, um cesto com pacotes de natas e a��car. Viu um placard de corti�a - vazio - duas cadeiras desmont�veis para visitas e cabides para pendurar
os casacos.
As luzes reflectidas no vidro escuro da janela davam um ar impessoal e estranho.
- Peach deixou tudo o que precisa na sua secret�ria, mas se precisar de mais alguma coisa, o arm�rio do economato fica ao fundo do corredor. A casa de banho � em
frente.
- Ok.
- Alguma d�vida?
- Tenho montes de d�vidas.
- Porque � que n�o as coloca?
- Est� bem. Vou perguntar uma coisa, uma vez que o resto depende disso. Porque � que me contratou?
- � justo. Importa-se? - Indagou ela, ao gesticular para a cafeteira.
- Sirva-se.
Ela deitou caf� em duas canecas para ambos, entregou-lhe uma e depois sentou-se numa das cadeiras desmont�veis. - Precis�vamos de um Comandante da pol�cia.
- Talvez.
- Somos pequenos, remotos e costumamos resolver os nossos problemas, mas isso n�o quer dizer que dispensemos uma estrutura, Ignatious. Que n�o tenhamos de demarcar
uma linha entre o certo e o errado, e de algu�m que represente essa linha. O meu marido trabalhou por isso muitos anos, at� dar o �ltimo f�lego.
- E agora � a sua vez.
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- � verdade. Agora sou eu. Al�m disso, termos uma for�a policial nossa significa que podemos continuar a tomar conta de n�s pr�prios. N�o envolvemos os federais
nem o governo. Uma cidade como esta pode ser ignorada pelo que � e por onde se encontra. Mas agora temos uma for�a policial, bombeiros. Temos uma boa escola, uma
boa estalagem, um jornal seman�rio, uma esta��o de r�dio. As condi��es atmosf�ricas costumam isolar-nos do mundo, por isso aprendemos a ser auto-suficientes. Mas
precisamos de ordem, e esta casa e as pessoas que aqui trabalham s�o o s�mbolo dessa ordem.
- Contratou um s�mbolo.
- Por um lado, foi isso mesmo que fiz. - Os seus olhos castanhos-avel� fixaram os dele. - As pessoas sentem-se mais seguras com s�mbolos. Por outro lado, espero
que fa�a o seu trabalho, e grande parte desse trabalho, para al�m de manter a ordem, � de rela��es comunit�rias - e foi por isso que aproveitei para lhe mostrar
as actividades da cidade, e lhe dei os nomes de quem � dono do qu�. Mas h� mais. Bing tem uma oficina, conserta qualquer motor que lhe leve, e tamb�m trabalha com
maquinaria pesada. Limpa-neves, retroescavadoras. A Lunatic Air transporta carga e passageiros, e traz mantimentos para a cidade, at� os faz chegar ao mato.
- Lunatic Air.
- No fundo, � a Meg, - disse Hopp, meio a sorrir. - Aqui estamos na orla do Interior, e fomos crescendo, de uma col�nia de gente aventureira, hippies, e agitadores,
e agora somos uma vila estruturada. Vai acabar por conhecer a popula��o desta vila, os relacionamentos, os ressentimentos e as liga��es. S� ent�o vai perceber como
lidar com tudo isso.
- O que me leva � quest�o inicial. Porque � que me contratou? Porque n�o trazer algu�m que j� saiba tudo isso?
- Parece-me que algu�m que j� saiba tudo isso pode assumir este trabalho como uma agenda pessoal. Ressentimentos, liga��es pessoais. Se trouxermos algu�m do Exterior,
vai come�ar de novo. Voc� � jovem; isso pesou a seu favor. N�o era casado nem tinha filhos, que podiam n�o assimilar esta vida e pression�-lo a descer aos Lower
48(2). Tem mais de dez anos de experi�ncia na pol�cia. Tinha as habilita��es que eu procurava - e n�o regateou o sal�rio.
- Estou a ver, mas tamb�m existe o outro lado. N�o sei que raio � que ando a fazer.
- Mmm. - Ela acabou de beber o caf�. - Voc� parece-me um jovem inteligente. N�o tarda a descobrir. Entretanto... - Levantou-se. - Vou
(2) Conjunto de Estados norte-americanos continentais, que exclui o Havai e o Alasca. (N. da T.)
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deix�-lo ambientar-se. A reuni�o � �s duas, na C�mara Municipal. Prepare-se para dizer algumas palavras.
- Oh, bolas.
- Mais uma coisa. - Enfiou a m�o no bolso e tirou uma caixa. - Isto vai dar jeito. - Abrindo-a, tirou a estrela de prata e fixou-a na camisa dele. - Vemo-nos �s
duas, Comandante.
Ele ali ficou, no meio da sala, a contemplar o caf� enquanto ouvia as vozes sussurradas l� fora. N�o sabia o que estava a fazer - era a mais pura verdade - por isso,
achou melhor delinear um local por onde come�ar, e pronto.
Hopp tinha raz�o. N�o tinha mulher, nem filhos. N�o tinha nada nem ningu�m que o puxasse para os Lower 48. Para o mundo. Ia ficar ali, e tinha de se sair bem. Se
desperdi�asse tudo, aquela estranha oportunidade no extremo do universo, n�o tinha mais para onde ir. Ficava sem mais nada para fazer.
O seu est�mago estremeceu com o mesmo desconforto nervoso que sentira no avi�o, ao sair com o caf� para a �rea comum.
- Ah, se me pudessem dar alguns minutos.
N�o estava certo de onde devia ficar, e depois percebeu que n�o devia ficar de p�. Pousou o caf� e avan�ou, para pegar em duas cadeiras de pl�stico. Depois de as
levar para as secret�rias, voltou a agarrar no caf� e desencantou um sorriso para Peach.
- Sra. Peach? Importa-se de se sentar aqui um pouco? - E apesar de a imagem de bolos empilhados lhe cair em fraqueza no est�mago, conseguiu ostentar um sorriso.
- Talvez pudesse trazer alguns desses bolinhos de canela. Cheiram mesmo muito bem.
Bastante satisfeita, levou o prato com ela e um molho de guardanapos. - Rapazes, sirvam-se.
- Imagino que a situa��o seja t�o constrangedora para voc�s como � para mim, - come�ou Nate, ao pegar num bolo com um guardanapo. - N�o me conhecem. N�o sabem que
esp�cie de pol�cia sou. N�o sou destas bandas, e n�o sei patavina desta parte do mundo. E voc�s devem acatar ordens minhas. V�o acatar ordens minhas, - corrigiu,
e deu uma dentada no bolo.
- Isto � pecado puro.
- O segredo est� na banha.
- Aposto que sim. - Visualizou cada uma das suas art�rias a comprimir-se. - � dif�cil acatar ordens de algu�m que n�o conhecemos, em quem n�o confiamos. N�o t�m
raz�es nenhumas para confiar em mim. Ainda. Vou errar. N�o me importo que me digam isso mesmo, desde que mo digam em privado. Tamb�m vou confiar que voc�s, todos,
me mantenham
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actualizado. Em rela��o ao que devo saber, �s pessoas que tenho de conhecer. Mas por agora, quero saber se algum de voc�s tem algum problema comigo. Vamos abrir
o jogo agora, e resolver o assunto.
Otto beberricou o caf�. - S� saberei se tenho algum problema quando perceber do que � feito.
- � justo. Se sentirem que h� algum problema, digam-me. Talvez veja as coisas pelo vosso prisma, ou talvez vos mande dar uma curva. Mas saberemos com que contar.
- Comandante Burke?
Nate olhou para Peter. - � Nate. Espero sinceramente que as pessoas n�o imitem a Presidente Hopp e desatem todas a chamar-me Ignatious.
- Bom, estava a pensar que talvez no in�cio eu ou o Otto o dev�ssemos acompanhar nas sa�das, e na patrulha tamb�m. S� at� conhecer a zona.
- Acho boa ideia. A Sra. Peach e eu vamos come�ar a elaborar um calend�rio de turno, semanal.
- Pode come�ar a chamar-me Peach. S� gostava de dizer que espero que este local se mantenha limpo e que as tarefas - que incluem lavar a casa de banho, Otto - sejam
inclu�das no calend�rio como tudo o resto. As esfregonas, os baldes e as vassouras n�o s�o s� ferramentas de mulheres.
- Assinei contrato de adjunto, n�o de criada.
Ela tinha um rosto suave e maternal. E, como qualquer m�e dedicada, conseguia trespassar ferro com um olhar firme. - E a mim pagam-me para trabalhar como despachante
e secret�ria, n�o para esfregar sanitas. Mas o que tem que ser, tem muita for�a.
- Porque � que n�o estabelecemos uma rotatividade nas tarefas, por enquanto? - Interrompeu Nate, ao ver ambos os rostos iluminarem-se com o fogo do confronto. -
E eu falo com a Presidente Hopp para dar um jeito no or�amento. Talvez seja poss�vel arranjar algu�m que trate das limpezas uma vez por semana. Quem � que tem as
chaves do arm�rio das armas?
- Est�o trancadas na minha gaveta, - disse Peach.
- Gostava de ficar com elas. E tamb�m de saber que armas � que os adjuntos est�o mais habilitados a usar.
- Se for uma arma, sei us�-la, - ripostou Otto.
- N�o duvido nada, mas vamos usar distintivos. - Inclinou a cadeira para tr�s, para conseguir ver a arma que Otto trazia no coldre. - Quer manter a .38 como arma
de servi�o?
- � a minha, e gosto dela.
- �ptimo. Eu fico com a SIG 9mm que est� no arm�rio. Peter, sente-se bem com a 9 que traz?
- Sim, senhor.
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- Peach, sabe usar uma arma de fogo?
- Tamb�m tenho um rev�lver Colt 45 que era do meu pai trancado na secret�ria. Ele ensinou-me a disparar quando tinha cinco anos. E sei usar qualquer uma das que
est�o no arm�rio, tal como aqui o GIJoe.
- Servi no Corpo, - ripostou Otto, com alguma indigna��o. - Sou Fuzileiro.
- Est� bem. - Nate pigarreou. - Quantos residentes � que acham que t�m porte de arma?
Os tr�s fixaram o olhar nele, at� que, por fim, Otto esbo�ou um sorriso. - Praticamente todos.
- �ptimo. Temos uma lista dos residentes que t�m licen�a de porte oculto?
- Posso tratar disso, - voluntariou-se Peach.
- Agradecia. E h� alguma c�pia do regulamento camar�rio?
- Vou buscar.
- S� mais uma coisa, - disse Nate ao ver Peach levantar-se. - Se tivermos de prender algu�m, quem � que estabelece a fian�a, decide a dura��o, o pagamento da multa,
e essas coisas?
Houve um longo sil�ncio antes de Peter falar. - Acho que � voc�, Comandante.
Nate soltou um suspiro. - N�o vai ser divertido?
Voltou para o seu gabinete, levando a papelada que Peach lhe entregara. N�o demorou muito a ler tudo, mas ficou com algo para afixar no placard de corti�a.
Estava a arrumar as folhas, a bater com elas na secret�ria, quando Peach entrou. - Tenho estas chaves para si, Nate. S�o do arm�rio das armas. Estas s�o das portas
da esquadra, a da frente e a das traseiras, das celas e do seu carro. Todas t�m etiquetas.
- O meu carro? Qual �?
- Um Grand Cherokee. Est� estacionado ali fora, na rua. - Largou as chaves na m�o dele. - Hopp disse que um de n�s devia saber mostrar-lhe como funciona o aquecimento
do motor.
Tamb�m havia lido sobre aquilo: os aquecedores concebidos para manter o motor quente, quando tudo o resto est� a temperaturas abaixo de zero, - J� l� vamos.
- O Sol est� a nascer.
- O qu�? - Virou-se e olhou pela janela.
Ent�o, estacou, os bra�os ca�dos ao longo do corpo, as chaves a pesarem-lhe na m�o, enquanto o Sol irradiava uma cor de laranja e se elevava no c�u. As montanhas
ganhavam vida, enormes e brancas com os fios dourados a deslizar na sua superf�cie.
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Enchiam-lhe a janela. Deixavam-no sem fala.
- N�o h� nada como o primeiro nascer do Sol de Inverno no Alasca.
- Parece que sim. - Abismado, aproximou-se da janela. Conseguia ver o rio onde aterrara - uma doca comprida e sinuosa, em que n�o havia reparado, e o brilho do gelo
sob o c�u resplandecente. Via as colinas de neve, um aglomerado de casas, grupos de �rvores - e reparava, pessoas. Havia pessoas, de tal forma agasalhadas que mais
pareciam bolas de cor a deslizar sobre o branco.
O fumo elevava-se, e seria poss�vel, uma �guia a sobrevoar l� em cima? Ao observ�-la, um grupo de crian�as apareceu a correr na direc��o do bra�o gelado de rio,
de sticks de h�quei na m�o e skates sobre os ombros.
E as montanhas presidindo a tudo, como deusas.
Ao observ�-las, esqueceu-se do frio, do vento, do isolamento e da sua pr�pria infelicidade silenciosa.
Ao observ�-las, sentiu-se vivo.
3.
Talvez estivesse demasiado frio, talvez as pessoas se estivessem a comportar bem de mais, ou talvez o esp�rito natal�cio estivesse enraizado naquela semana entre
o Natal e o Ano Novo, mas era quase meio-dia quando receberam o primeiro telefonema.
- Nate? - Peach apareceu � porta dele com as agulhas de tricotar e um peda�o de l� roxa pendurado. - A Charlene ligou d'A Estalagem. Parece que uns rapazes andaram
� zaragata por causa de um jogo de bilhar. Andam para l� aos empurr�es.
- Est� bem. - Levantou-se, procurando uma moeda no bolso ao sair. - Escolham, - disse a Otto e a Peter.
- Cara. - Otto pousou a revista Field & Stream enquanto Nate atirava a moeda ao ar.
Bateu com ela nas costas da m�o. - Coroa. Ok. Peter, venha comigo. � uma pequena alterca��o n'A Estalagem. - Agarrou no coldre e prendeu-o ao cinto.
Dirigiu-se para a entrada e come�ou a agasalhar-se. - Se a coisa ainda n�o se tiver descontrolado at� l� chegarmos, - disse ele a Peter, - quero que me diga logo
quem s�o os envolvidos, para ficar com uma ideia. Se acha que alguma coisa pode correr mal ou se conseguimos resolver a quest�o com uns quantos gritos. I
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Empurrou a porta, deixando entrar o ar frio e cortante. - Aquele � o meu? - Perguntou, acenando para o Jeep preto estacionado junto ao passeio.
- Sim, senhor.
- E aquele cabo ligado ao poste deve ir dar ao aquecedor do motor.
- � necess�rio sempre que ficar parado algum tempo. Na mala est� um cobertor Mylar, que d� para tapar o motor e mant�-lo quente durante cerca de vinte e quatro horas.
Mas por vezes as pessoas esquecem-se de o tirar, o que leva a sobreaquecimento. Tamb�m l� est�o cabos de bateria, - continuou ele, ao puxar a ficha. - Foguetes de
sinaliza��o, estojo de primeiros socorros e...
- J� vemos isso tudo, - interrompeu Nate, perguntando-se se conduzir por uma rua chamada Lunatic Street precipitaria a necessidade dos foguetes de sinaliza��o e
do estojo de primeiros socorros. - Veremos se consigo levar-nos inteiros at� � A Estalagem.
Saltou para tr�s do volante e enfiou a chave na igni��o. - Bancos aquecidos, - reparou ele. - Deus existe.
A cidade parecia diferente � luz do dia, n�o havia d�vida. Bastante mais pequena, pensava Nate ao manobrar pela estrada coberta de neve. Os tubos de escape enegreciam
as bermas brancas e as montras das lojas n�o primavam pelo asseio, sendo a maioria das decora��es de Natal mais usadas iluminadas pelo Sol.
N�o era um postal, excepto se o olhar se soltasse para as montanhas, mas estava longe de ser l�gubre.
Rude era um termo melhor, decidiu. Era uma comunidade esculpida no gelo, na neve e na pedra, acompanhando de perto um rio sinuoso, rodeada de florestas onde conseguia
imaginar com facilidade lobos a vaguear.
N�o sabia se as florestas tamb�m tinham ursos, mas decidiu que n�o valia a pena preocupar-se com isso at� � Primavera. A n�o ser que o que se dizia sobre hiberna��o
fossem tretas.
Demorou menos de dois minutos a conduzir da esquadra at� � estalagem. Viu um total de dez pessoas na rua e passou por uma pickup bojuda, um SUV desajeitado e contou
tr�s limpa-neves estacionados e uma quantidade de skis encostados � Casa Italiana.
Parecia que as pessoas n�o costumavam hibernar em Lunacy, independentemente dos ursos.
Foi at� � porta principal d'A Estalagem e entrou, com Peter logo atr�s.
Ainda n�o havia acabado. Conseguia perceber isso com clareza, atrav�s dos gritos de incentivo - d�-lhe um chuto no cu gordo, Mackie! - e o som abafado de empurr�es
e grunhidos. O que Nate avaliara era um
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ajuntamento t�pico de Lunacy, que consistia em cinco homens em camisas de flanela, um dos quais, ap�s um olhar mais atento, se veio a verificar tratar-se de uma
mulher.
Rodeados por eles, dois homens de cabelo castanho e despenteado rolavam no ch�o, tentando acertar murros certeiros um no outro. A �nica arma que viu foi um taco
de bilhar partido.
- Os irm�os Mackie, - informou Peter.
- Irm�os?
- Sim. G�meos. Desde o ventre que andam � pancada um com o outro. Quase nunca se metem com mais ningu�m.
- Ok.
Nate abriu caminho entre a am�lgama de corpos unidos. Os gritos diminu�ram para murm�rios, ao verem-no aproximar-se e agarrar no Mackie de cima para que largasse
o Mackie que estava em baixo.
- Pronto, vamos a separar. Fica a�, - ordenou ele, mas o Mackie n�mero dois j� se levantava, puxando a m�o a tr�s. Acertou um murro s�lido no maxilar no irm�o.
- Rio vermelho, j� comeste! - Gritou, e depois iniciou a dan�a da vit�ria, de punhos erguidos, enquanto o irm�o esperneava nos bra�os de Nate.
- Peter, por amor de Deus, - exclamou Nate ao ver o adjunto im�vel.
- Oh, desculpe, Comandante. Jim, v� se te acalmas.
Em vez disso, Jim Mackie continuava a mostrar as garras, para g�udio da multid�o.
Nate viu dinheiro a passar de m�os, mas decidiu ignorar.
- Agarre neste. - Nate empurrou o homem inconsciente para Peter e avan�ou para o autoproclamado campe�o. - O adjunto deu-te uma ordem.
- Foi? - De sorriso ir�nico, revelava sangue nos dentes e um brilho mal�volo nos olhos castanhos. - E depois? Aquele anormal n�o me d� ordens.
- Isso � que d�. E j� te mostro porqu�. - Nate fez o homem girar, encostou-o contra a parede, p�s-lhe as m�os atr�s das costas e algemou-o em dez segundos.
- Hei! - Foi a �nica coisa que o campe�o em t�tulo conseguiu dizer.
- Chateia-me, e vais apodrecer na cela por resist�ncia a deten��o, entre outras coisas. Peter, traga esse para a esquadra quando acordar.
Sem lealdade aparente, a multid�o mudou o apoio para Nate, gritando e assobiando, enquanto ele carregava Jim Mackie na direc��o da porta.
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Nate fez uma pausa ao ver Charlene sair da cozinha. - Quer apresentar queixa? - Perguntou-lhe.
Ela fitava-o, acabando por pestanejar. - Eu... bom, raios, n�o sei! Nunca ningu�m me perguntou isso. Que tipo de queixa?
- Partiram algumas coisas l� atr�s.
- Oh. Bom, eles acabam sempre por pagar tudo. Mas afugentaram uns turistas que iam pedir almo�o.
- Foi o Bill que come�ou.
- Oh, ent�o, Jim, come�am sempre os dois. Sempre. J� vos disse que n�o quero que andem aqui � luta, a causar desacatos e a afugentar as pessoas. N�o quero apresentar
queixa. S� quero que esta parvo�ce acabe. E que me paguem os estragos.
- Entendido. Vamos resolver isto, Jim.
- N�o percebo porque tenho de...
Nate resolveu a quest�o empurrando-o para o frio.
- Hei, por amor de Deus, preciso dos meus agasalhos.
- O Adjunto Notti j� trata disso. Entra no carro, ou ficas aqui a congelar. Tu � que sabes. - Abriu a porta e empurrou Jim l� para dentro.
Assim que Nate se sentou ao volante, Jim recuperou alguma dignidade, apesar de ter a boca a sangrar e o olho inchado. - N�o me parece que se devam tratar assim as
pessoas. N�o est� certo.
- Eu acho que n�o est� certo bateres no teu irm�o enquanto algu�m lhe agarra os bra�os.
Jim teve a gra�a de parecer humilhado, e mergulhou o queixo no peito. - Entusiasmei-me. Com o calor do momento. E o filho da puta irritou-me. Voc� � o Forasteiro
que foi nomeado Comandante da pol�cia, n�o �?
- �s perspicaz, Jim.
Jim amuou durante a curta viagem at� � esquadra. Em seguida, arrastou os p�s, enquanto Nate o levava l� para dentro.
- Este � dos Lower 48, - disse ele assim que viu Otto e Peach, - n�o percebe como as coisas se fazem em Lunacy.
- Porque � que n�o lhe explicas isso tudo? - Havia um brilho nos olhos de Otto. Era poss�vel que fosse de satisfa��o.
- Preciso do estojo de primeiros socorros. Vai para o meu gabinete, Jim.
Nate deixou-o entrar, sentou-o numa cadeira e, depois de abrir uma das algemas, prendeu-a ao bra�o da cadeira.
- Ah, ent�o. Se quisesse fugir, podia arrastar esta cadeira da treta comigo.
- Claro que sim. E depois juntava roubo de propriedade da pol�cia �s acusa��es.
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Jim amuou outra vez. Era um homem ossudo, com cerca de trinta anos, e uma cabeleira castanha e farta, rosto estreito afundado nas faces. Os olhos eram castanhos,
o esquerdo bastante inchado por causa dos murros certeiros. Tinha o l�bio aberto, que continuava a sangrar.
- N�o gosto de si, - concluiu.
- Isso n�o � crime. Dist�rbios, destrui��o de propriedades, agress�o. Isso j� �.
- Por estes lados, se um homem quiser desancar o irm�o, o problema � dele.
- Isso acabou. Por estes lados, um homem vai ter de respeitar a propriedade privada e a propriedade p�blica. Vai ter de respeitar os agentes da lei nomeados para
os cargos.
- Peter? Aquele anormal?
- Agora, � o Adjunto Anormal.
Jim soltou um suspiro sonoro que disparou got�culas de sangue pelo ar. - Por amor de Deus, conhe�o-o desde que nasceu.
- Quando usar um distintivo, e te disser para te acalmares, acalmas-te, e n�o interessa se o conheceste in vitro.
Jim lan�ou um olhar interessado e confuso. - N�o sei de que raio � que est� a falar.
- J� percebi. - Olhou para Peach de relance, quando ela entrou.
- Trouxe o estojo de primeiros socorros e o saco de gelo. - Passou o saco a Jim, e pousou o estojo na secret�ria, diante de Nate. Depois, enrolou as m�os em punho
sobre as ancas. - Jim Mackie, nunca mais deixas de ser burro, pois n�o?
- Foi o Bill que come�ou. - Corado, pressionou o saco de gelo no l�bio a sangrar.
- � a tua vers�o. Onde est� o Bill?
- O Peter ficou de traz�-lo, - disse Nate. - Quando acordar.
Peach fungou. - A tua m�e � bem capaz de te p�r o outro olho negro, quando vier pagar a fian�a. - Com aquela previs�o, saiu, batendo com a porta.
- Chi�a! N�o me vai p�r na cadeia por esmurrar o meu pr�prio irm�o.
- � poss�vel. Talvez te d� uma folga, sendo hoje o meu primeiro dia de servi�o. - Nate recostou-se. - Qual era o motivo da briga?
- Ok, ou�a s� isto. - Assumindo uma postura de defesa, Jim bateu com as m�os nos joelhos. - Aquela besta desmiolada disse que Cavalgada Her�ica era o melhor western
de sempre, quando toda a gente sabe que � O Rio Vermelho.
Nate n�o disse nada por momentos. - S� isso?
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- Quer dizer, por amor de Deus.
- S� quero esclarecer. Tu e o teu irm�o andaram � pancada porque discordavam quanto ao m�rito relativo de Cavalgada Her�ica contra O Rio Vermelho, no curr�culo de
John Wayne?
- No qu� dele?
- Andaram � pancada por causa dos filmes de John Wayne.
Jim mudou de posi��o na cadeira. - Pois. Resolvemos tudo com Charlene. J� posso ir?
- V�o resolver tudo com a Charlene e v�o pagar a multa de cem d�lares cada um, por dist�rbios em local p�blico.
- Olha, agora. N�o pode...
- Posso. - Nate debru�ou-se e Jim viu bem os seus olhos cinzentos, frios e calmos que o levaram a estremecer na cadeira. - Jim, ouve o que te digo. N�o quero que
tu ou o Bill andem � zaragata n'A Estalagem. Nem em mais lado nenhum, mas por enquanto, vamos centrar as aten��es n'A Estalagem. H� um rapazinho que passa a maior
parte do dia l�.
- Raios partam, a Rose leva sempre o Jesse para a cozinha quando h� confus�o. Eu e o Bill, nunca far�amos nada que magoasse o puto. S� somos, sabe, uns espalha-brasas.
- V�o ter de arrefecer essas brasas quando vierem � vila.
- Cem d�lares?
- Podem pagar � Peach nas pr�ximas vinte e quatro horas. Se n�o o fizerem, dobro a quantia por cada dia que se atrasarem no pagamento. Se n�o quiserem pagar a multa,
podem passar os tr�s pr�ximos dias aqui nestas belas instala��es.
- N�s pagamos. - Resmungou ele, mudando de posi��o, a suspirar. - Mas, por amor de Deus. A Cavalgada Her�ica.
- Pessoalmente, gosto mais de Rio Bravo.
Jim abriu a boca e voltou a fech�-la. Era �bvio que ponderava as consequ�ncias. - � um filme bom � brava, - disse passados instantes, - mas n�o � nenhum Rio Vermelho.
Se as sa�das motivadas por dist�rbios fossem a norma, Nate achava que era bem capaz de ter tomado a decis�o certa ao ir para Lunacy. As lutas de irm�os eram talvez
o que mais o ocupava por esses dias.
N�o fora � procura de desafios.
Os irm�os Mackie n�o representaram nenhum. A sua conversa com Bill correra mais ou menos como a conversa com Jim, apesar de Bill ter discutido de forma mais exacerbada,
e com um engenho especial, defendendo a Cavalgada Her�ica. N�o parecera t�o perturbado por ter sido esmurrado na face como ao ouvir denegrirem o seu filme favorito.
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Peter espreitou � porta. - Comandante? Charlene quer que v� at� l�, almo�ar por conta da casa.
- Agrade�o, mas tenho de me preparar para a reuni�o. - E n�o havia ignorado o brilho no olhar de Charlene, ao v�-lo carregar Jim Mackie. - Gostava que desse seguimento
ao ocorrido, Peter. V� at� l�, elabore uma lista dos estragos e um or�amento do arranjo para Charlene. Certifique-se de que os Mackie v�m pagar a multa dentro de
quarenta e oito horas.
- Fique descansado. Tratou de tudo � maneira, Comandante.
- N�o havia muito a tratar. Vou escrever um relat�rio. Quero que o reveja, que acrescente alguma coisa que ache necess�rio.
Olhou em redor ao ouvir o ru�do de uma janela a estremecer. - Terramoto? Vulc�o? Guerra nuclear?
- Castor, - informou Peter.
- Mesmo estando no Alasca, n�o podem existir castores com tamanho suficiente para fazerem um barulho destes.
Com uma gargalhada de satisfa��o, Peter gesticulou para a janela. - O avi�o de Meg Galloway. � um Castor. Traz mantimentos.
Girando sobre si mesmo, Nate conseguiu ver o avi�o vermelho, que mais parecia do tamanho de um brinquedo. Lembrando-se de que voara num com mais ou menos as mesmas
dimens�es, sentiu aquela subtil contrac��o no est�mago e voltou-se para a frente.
Grato pela distrac��o, premiu o bot�o do intercomunicador assim que o ouviu tocar. - Sim, Peach.
- Uns mi�dos a atirar bolas de gelo �s janelas da escola. Partiram uma antes de fugirem.
- Temos identifica��o?
- Temos, pois. Dos tr�s.
Pensou por momentos, analisando as prioridades. - Veja se o Otto pode l� ir.
Voltou o olhar para Peter. - Alguma pergunta?
- N�o. N�o, senhor. - Depois sorriu. - � bom trabalhar, s� isso.
- Sim. Trabalhar � bom.
Manteve-se ocupado a trabalhar, at� ser altura de sair para a reuni�o. Essencialmente, eram tarefas administrativas e organizacionais, mas ajudaram Nate a sentir
que criava o seu lugar.
Pelo tempo que durasse, o espa�o era seu.
Assinara contrato por um ano, mas tanto ele quanto a assembleia municipal tinham um per�odo de adapta��o de sessenta dias, podendo qualquer um dos lados rescindir.
Dava-lhe seguran�a saber que podia ir embora no dia seguinte, se
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assim quisesse. Ou na semana seguinte. Se estivesse ali ao fim de dois meses, saberia se ia ficar at� ao fim do contrato.
Optou por ir a p� at� � C�mara Municipal. Dava um ar pregui�oso, conduzir uma dist�ncia t�o curta.
O c�u estava limpo, de um azul profundo em contraste com a massa branca de montanhas, como se tivesse sido recortado com uma faca fina e afiada. As temperaturas
atingiam valores inumanos, mas viu algumas crian�as sa�rem a correr da Loja da Esquina, com tabletes de chocolate nas m�os, como fazem todas as crian�as, a correr
porta fora com doces na m�o. Plenas de gula e antecipa��o.
Assim que correram pelo passeio abaixo, um par de m�os surgiu a mudar o letreiro de Aberto para Fechado.
Agora viam-se mais carros e carrinhas estacionados na rua, e outros que chegavam pela estrada coberta de neve.
Tudo levava a crer que ia haver casa cheia na reuni�o municipal.
Sentiu um ligeiro aperto no est�mago, que reconhecia daquela disciplina sobre orat�ria em p�blico na faculdade. Um erro hediondo como opcional. Vivendo e aprendendo.
Gostava bastante de conversar. Se lhe dessem um suspeito para interrogar, uma testemunha para entrevistar, n�o havia problema - ou assim era, em tempos idos. Mas,
e se lhe pedissem que chegasse diante de uma audi�ncia qualquer, para debitar um discurso com frases coerentes? Pelas suas costas abaixo j� escorria uma gota de
suor do fracasso.
S� tens de o fazer, ordenava-se. Passa a pr�xima hora e nunca mais ter�s de o fazer. Provavelmente.
Entrou, para o calor e o rumor das vozes. Uma quantidade de gente estava no hall de entrada, dominado pelo maior peixe que Nate alguma vez vira. Ficou t�o abismado
que fixou nele a sua aten��o, perguntando-se se n�o seria, talvez, uma esp�cie de baleia pequena e mutante - e como � que algu�m tinha conseguido apanh�-lo e, mais
ainda, o havia colocado na parede.
A distrac��o permitiu-lhe n�o se preocupar demasiado com a quantidade de pessoas a olhar na sua direc��o, e nas que j� se encontravam dentro da sala de reuni�es,
sentadas em cadeiras desdobr�veis, de frente para um palco e um p�lpito.
- Salm�o-rei, - disse Hopp atr�s dele.
Ele continuava a olhar para o enorme peixe prateado que ostentava as guelras pretas numa esp�cie de esgar. - isto � um salm�o? Eu j� comi salm�o. J� experimentei
nos restaurantes. S�o deste tamanho. - Estendeu os bra�os para medir.
- N�o comeu salm�o-rei do Alasca, de certeza. Mas verdade seja
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dita, este aqui � um grandess�ssimo filho da m�e. Chegou aqui com quarenta e dois quilos e cinquenta e sete gramas. N�o bateu o recorde do Estado, mas � um trof�u
e tanto.
- O que � que ele usou? Um empilhador?
Ela soltou a gargalhada que imitava a sirene de um farol, dando-lhe uma palmada alegre no ombro. - Voc� pesca?
- N�o.
- Nada?
- N�o tenho nada contra, mas nunca pesquei. - Nessa altura virou-se, erguendo as sobrancelhas num �pice. Ela aprumara-se num fato executivo de aspecto fant�stico,
aos quadradinhos pretos e brancos. Trazia p�rolas nas orelhas e uma camada lustrosa de batom vermelho nos l�bios.
- Voc� est�... impressionante, Presidente.
- Impressionante � um pau-brasil com duzentos anos.
- Bom, ia dizer que est� atraente, mas achei que n�o era apropriado.
Ela abriu o sorriso. - Voc� � um rapaz inteligente, Ignatious.
- Nem por isso. Nada de especial.
- Se eu posso ser atraente, voc� pode ser esperto. Est� tudo na apresenta��o. Agora, porque � que n�o damos in�cio ao espect�culo, eu posso apresent�-lo aos membros
da assembleia-geral. Depois, fazemos os nossos pequenos discursos. - Ela pegou-lhe no bra�o da forma que uma mulher faria ao conduzir um homem pela multid�o, numa
festa de cocktail. - Ouvi dizer que tratou bem dos irm�os Mackie.
- Tiveram um pequeno desentendimento por causa dos westerns.
- Eu tamb�m gosto muito dos filmes do Clint Eastwood. Os mais antigos. Ed Woolcott, vem c� conhecer o novo Comandante da pol�cia.
Foi apresentado a Woolcott, um homem de aspecto rude na casa dos cinquenta, que apertou de forma cordial a m�o de Nate. O seu cabelo era cinzento e farto, penteado
para tr�s, revelando o rosto enrugado. Uma pequena cicatriz branca atravessava a sua sobrancelha esquerda.
- Sou o gerente do banco, - disse a Nate, o que explicava o fato azul-marinho e a gravata presa com um alfinete. - Espero que abra uma conta connosco muito em breve.
- Tenho de tratar disso.
- N�o estamos aqui para fazer neg�cio, Ed. Deixa-me acabar de apresentar Ignatious.
Conheceu Deb e Harry Miner, que geriam a Loja da Esquina, Alan B. Royce, o juiz reformado, Walter Notti, pai de Peter, corredor e criador de c�es de tren� - todos
estavam na assembleia-geral da cidade.
? Ken Darby, o nosso m�dico, vai conhec�-lo assim que puder.
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- N�o faz mal. Vai levar um tempo, se continuarmos a fazer tudo de seguida.
Depois apareceu Bess Madde - uma estaca de cabelo cor de hena forte, que se plantou diante dele, de bra�os cruzados sobre o peito magro, a fungar.
- Prendeu hoje os meus rapazes?
- Sim, senhora, pode-se dizer que sim.
Ela fungou novamente com for�a pelas narinas magras, e acenou por duas vezes. - �ptimo. Da pr�xima vez, bata-lhes com a cabe�a uma na outra, para me poupar a mais
trabalhos.
Tendo em conta as circunst�ncias, tratava-se de umas boas-vindas calorosas, concluiu Nate ao v�-la procurar uma cadeira.
Hopp guiou-o para o palco, onde haviam sido dispostas cadeiras para ela e Nate, e para Woolcott, que era o adjunto da Presidente.
- Deb vai dar in�cio aos trabalhos com assuntos, avisos e outras quest�es relacionadas com a cidade, - explicou Hopp. - Depois Ed fala e apresenta-me. Eu falo e
apresento-o. Depois, fala voc�, e damos por encerrada a reuni�o. � capaz de haver algumas perguntas, aqui ou ali.
Nate sentiu o est�mago �s voltas. - Ok.
Ela indicou-lhe uma cadeira, sentou-se noutra e acenou para Deb Miner.
Deb, uma mulher robusta de rosto bonito e emoldurado pelo cabelo louro crispado, subiu para o palco e tomou o lugar no p�lpito.
O microfone apitava, rouco, enquanto ela o ajustava, e o seu pigarrear foi aud�vel por toda a sala. - Boa-tarde, amigos. Antes de irmos directos ao principal motivo
da nossa reuni�o, tenho alguns avisos a fazer. A festa de passagem de ano n'A Estalagem vai ter in�cio cerca das nove horas. A m�sica ao vivo vai ser providenciada
pelos The Caribous. Vamos passar o chap�u para contribui��es, por isso, n�o se acanhem. A escola vai organizar uma noite de esparguete de sexta a oito, em que os
lucros revertem para a compra de um equipamento para a equipa de h�quei. Temos boas hip�teses de chegar a campe�es regionais, por isso temos de lhes dar um equipamento
de que nos possamos orgulhar. Come�am a servir �s cinco. O jantar inclui o prato, salada, um p�o e refrigerante. Os adultos pagam seis d�lares, as crian�as dos seis
aos doze, quatro d�lares. Com menos de seis anos � gr�tis.
Dali, come�ou a explicar os pormenores de uma futura noite de cinema que se ia realizar na C�mara Municipal. Nate ouvia, algo desatento, tentando n�o ficar obcecado
com o momento em que agarraria ele no microfone. - Foi nessa altura que a viu entrar.
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A parca vermelha, e algo na forma como se movia dizia-lhe que olhava para a mesma mulher que vira da janela, na noite anterior. Trazia o capuz para tr�s e um gorro
preto que lhe cobria o cabelo.
Um cabelo negro, liso e farto.
O seu rosto parecia bastante p�lido no meio de tantas cores fortes, as ma��s do rosto muito altas na moldura negra. Mesmo na outra ponta da sala, conseguia ver que
os seus olhos eram azuis. Um azul brilhante e glacial.
Ao ombro, transportava uma mochila de lona e envergava umas cal�as largas e masculinas, que acabavam numas botas pretas bem vincadas.
Aqueles olhos azuis gelados apontaram de imediato para ele, fixos, enquanto caminhava pela coxia central formada pelas cadeiras desmont�veis, dirigindo-se a uma
delas, ao lado de um homem de constitui��o forte, que parecia ser nativo.
N�o falaram, mas algo dizia a Nate que havia - se n�o intimidade f�sica - pelo menos um entendimento. Ela despiu a parca, enquanto Deb passava da noite de cinema
para os avisos sobre o pr�ximo jogo de h�quei.
Por baixo da parca, trazia uma camisola verde-azeitona. Por baixo da camisola, se a perspic�cia era um dos fortes de Nate, um corpo pequenino, resistente e atl�tico.
Ele procurava decidir se a achava bonita. N�o devia ser - tinha as sobrancelhas demasiado rectas, o nariz algo curvo, a boca grande.
Mas enquanto elaborava uma lista mental dos defeitos, algo se agitava no seu est�mago. Interessante, foi a �nica coisa que lhe aflorou � mente. Estivera longe de
mulheres nos �ltimos meses, o que, dado o seu estado de esp�rito, n�o fora uma prova��o por a� al�m. Mas aquela mulher de aspecto frio voltara a agu�ar-lhe os sentidos.
Ela abriu a mochila e tirou um saco castanho. E para divertimento de Nate, mergulhou a m�o l� dentro, que emergiu com um molho de pipocas. Come�ou a mastig�-las,
oferecendo algumas ao companheiro do lado, enquanto Deb terminava os avisos.
Ed subiu ao p�lpito, tecendo os seus coment�rios sobre a assembleia municipal e os progressos que haviam alcan�ado, ao mesmo tempo que a rec�m-chegada tirava um
termo da mochila e servia o que parecia caf� puro para uma caneca.
Quem raio seria ela? Filha de um nativo? As idades sugeriam isso mesmo, mas n�o conseguia vislumbrar qualquer semelhan�a de parentesco.
Ela n�o corou nem pestanejou, ao ver que ele a fitava, mas continuou a mordiscar o petisco, a beber o caf� e a devolver o olhar.
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Ao apresentarem Hopp, ouviram-se aplausos. Com esfor�o, Nate obrigou-se a centrar as aten��es de novo no que estava a acontecer.
- N�o vou perder tempo com politiquices. Decidimos pela integra��o da nossa vila, porque queremos cuidar dos nossos na tradi��o deste grandioso Estado. Vot�mos a
favor da constru��o de uma esquadra de pol�cia, da cria��o de uma for�a policial. Fizemos debates intensos, muitas palavras acaloradas foram trocadas de ambos os
lados e tamb�m houve muito bom senso de todas as partes envolvidas. No essencial, vot�mos para trazer um homem do Exterior, um homem com experi�ncia e sem liga��es
a Lunacy. Para que fosse justo, inteligente, para que aplicasse a lei sem preconceitos e com igualdade. Provou isso mesmo, ao algemar Jim Mackie por causar tumultos
com o irm�o n'A Estalagem.
Ouviram-se alguns risos como reac��o ao coment�rio, e os irm�os Mackie, de rostos maltratados, sorriram dos seus lugares.
- Tamb�m nos multou, - gritou Jim.
- O que perfaz duzentos d�lares para os cofres do Estado. Se continuarem assim, v�o pagar sozinhos o novo carro de bombeiros de que precisamos. Ignatious Burke veio
de Baltimore, Maryland, onde serviu onze anos na Divis�o de Pol�cia de Baltimore, oito dos quais como detective. Temos a sorte de ter algu�m com as habilita��es
do Comandante Burke a cuidar de todos n�s, Lun�ticos. Por isso, pe�o uma salva de palmas e d�em as boas-vindas ao nosso novo Comandante da pol�cia.
Ao mesmo tempo, Nate pensava: Oh, merda, levantando-se. Avan�ou para o p�lpito, a mente em branco como um quadro por escrever. E da multid�o, algu�m gritou - Cheechako.
Ouviram-se murm�rios, sussurros e um tumulto de vozes acesas pela discuss�o. A irrita��o que o trespassava colocou os nervos em segundo plano.
- � isso mesmo. Sou Cheechako. Um Forasteiro. Acabadinho de chegar dos Lower 48.
Os murm�rios silenciaram-se e ele perscrutou a multid�o.
- Quase tudo o que sei sobre o Alasca li num guia ou tirei da internet ou dos filmes. N�o sei muito mais sobre esta vila, excepto que est� um frio danado, que os
irm�os Mackie gostam de andar � pancada e que t�m uma paisagem capaz de parar o cora��o de um homem no peito. Mas sei ser bom pol�cia, e � por isso que aqui estou.
Dantes sabia, pensava ele. Dantes sabia como. E as palmas das m�os come�aram a humedecer.
Ia atrapalhar-se - tomava agora consci�ncia - e depois o seu olhar encontrou aqueles olhos azuis glaciares da mulher de vermelho. Os l�bios
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dela curvaram-se, s� um pouco, e os seus olhos fixaram os dele enquanto levava a caneca prateada aos l�bios.
Ele ouvia-se falar. Talvez o fizesse apenas para ela. - O meu trabalho � proteger e servir esta vila, e � isso que vou fazer. Talvez se ressintam comigo, que venho
do Exterior e vos digo o que n�o podem fazer, mas todos temos de nos habituar � situa��o. Vou dar o meu melhor. S�o voc�s que v�o decidir se isso � suficiente. S�
isso.
Houve uma amea�a de aplauso que depois cresceu. Nate tomou consci�ncia do olhar cativo novamente na mulher de olhos azuis. Sentiu um n� no est�mago, que abrandava
e apertava novamente ao ver aquela boca de l�bio superior grosso curvar num dos lados, num sorriso breve e estranho.
Ouviu Hopp encerrar a sess�o. V�rias pessoas avan�aram para falar com ele, e acabou por a perder na multid�o. Quando a voltou a ver, s� conseguiu vislumbrar a parca
vermelha a dirigir-se para a porta das traseiras.
- Quem era aquela? - Inclinou-se para tr�s at� conseguir tocar o bra�o de Hopp. - A mulher que chegou atrasada - parca vermelha, cabelo preto, olhos azuis.
- Deve ser Meg. Meg Galloway. Filha de Charlene.
Ela quisera olhar bem para ele, mais ao pormenor do que vira na v�spera, quando ele ficara a contemplar pela janela, um her�i pensativo e amargo de um qualquer romance
g�tico.
Possu�a os dotes f�sicos necess�rios para o papel, concluiu, mas de perto parecia mais triste do que amargo.
Era uma pena. Amargo fazia mais o seu estilo.
Ela reconhecia que ele se havia safado bem. Engolira o insulto - do idiota do Bing - dissera ao que vinha e depois de um certo embara�o, seguira em frente.
Uma vez que tinham de ter uma for�a policial a meter o nariz em Lunacy, podia ser bem pior. Para ela n�o importava, desde que n�o se metessem na sua vida.
Desde que chegara � cidade, decidira ir tratar de alguns assuntos e encher a despensa.
Na Loja da Esquina, viu o letreiro Fechado, e soltou um enorme suspiro. Pegou no molho de chaves que trazia na mala. Encontrou uma chave que dizia CS e entrou �
vontade.
Agarrando em duas caixas, avan�ou pelo corredor. Cereais em gr�o, massa, ovos, enlatados, papel higi�nico, farinha, a��car. Largou uma caixa em cima do balc�o e
encheu a segunda.
Estava a bra�os com uma saca de vinte quilos de Dog Chow quando a porta se abriu, e Nate entrou.
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- Est� fechado, - gritou Meg para a rua, enquanto pousava a saca no ch�o, encostada ao balc�o.
- Estou a ver.
- Se j� viu que est� fechado, o que � que est� aqui a fazer?
- Tem gra�a. Era isso que lhe ia perguntar.
- Preciso de umas coisas. - Deu a volta por tr�s do balc�o, pegou nalgumas caixas de muni��es e juntou ao lote.
- Foi o que imaginei, mas normalmente quando as pessoas tiram alguma coisa de uma loja fechada, chama-se a isso roubar.
- J� ouvi dizer. - Debaixo do balc�o, agarrou num grande livro de registo, e come�ou a folhe�-lo. - Aposto que nos Lower 48, prendem as pessoas por causa disso.
- Pois prendem. A toda a hora.
- Pretende implementar essa norma aqui em Lunacy?
- Sim. A toda a hora.
Ela soltou uma gargalhada breve - como nevoeiro para o farol de Hopp -, procurou uma caneta e come�ou a escrevinhar no livro. - Bom, deixe-me despachar o que vim
fazer, e depois j� me pode prender. Hoje j� s�o tr�s deten��es para si. S� pode ser um recorde.
Ele debru�ou-se no balc�o, reparando que ela anotava uma lista detalhada de todos os artigos das duas caixas. - Seria uma perda de tempo.
- Sim, mas isso � o que n�o nos falta por aqui. Bolas, esqueci-me do Murphys. Importa-se? Abrilhantador de madeiras Murphys, est� logo ali.
- Claro. - Avan�ou, analisando o conte�do das prateleiras e escolhendo um frasco. - Vi-a ontem � noite, pela janela.
Ela anotou o Murphys. - Eu tamb�m o vi!
- � piloto do mato.
- Sou muitas coisas. - Ergueu o olhar para ele. - Essa � s� uma delas.
- O que mais faz?
- Um verdadeiro pol�cia da cidade como voc� devia conseguir descobrir bem depressa.
- J� sei algumas coisas. Costuma cozinhar. Tem um c�o. Talvez at� dois de ra�a grande. Preza o seu espa�o. � honesta, pelo menos quando isso lhe d� jeito. Gosta
do caf� puro e de muita manteiga nas pipocas.
- Nem uma beliscadela. - Bateu com a caneta no livro. - Quer beliscar um pouco mais, Comandante Burke?
Era directa, pensava ele. N�o mencionara isso. Logo, seria directo tamb�m. - Estou a pensar.
Ela sorriu da mesma forma que sorrira no sal�o, com o canto direito da boca a curvar antes do esquerdo. - Charlene j� o acolheu?
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- Perd�o?
- Gostava de saber se a Charlene j� lhe deu a provar o prato especial de boas-vindas a Lunacy, a noite passada.
Ele n�o tinha a certeza o que o irritava mais, se a pergunta ou a postura serena com que ela o observava ao faz�-la. - N�o.
- N�o faz o seu g�nero?
- Nem por isso, n�o. E n�o me sinto muito � vontade a falar dessa forma da sua m�e.
- � um homem sens�vel? N�o se preocupe. Toda a gente sabe que a Charlene gosta de dar umas cambalhotas com todos os homens jeitosos que aqui aparecem. Na verdade,
costumo n�o me aproximar dos restos dela. Mas analisando melhor a situa��o, por agora, talvez lhe d� alguma hip�tese.
Fechou o livro e voltou a guard�-lo no s�tio. - N�o me quer ajudar a levar isto para a carrinha?
- Claro. Mas pensava que tinha trazido o avi�o.
- E trouxe. Eu e um amigo troc�mos de meio de transporte.
- Ok. - Colocou a saca de comida para c�o em cima do ombro. Ela tinha l� fora uma carrinha pickup vermelha robusta, com material de campismo camuflado, botas de
neve e algumas latas de gasolina j� colocadas na parte de tr�s. Na cabine, viu um suporte para uma arma, ocupado por uma ca�adeira e uma espingarda.
- Costuma ca�ar? - Perguntou ele.
- Depende da ca�a. - Fechou a caixa da carrinha com um estrondo e sorriu para ele. - Que raio � que est� aqui a fazer, Comandante Burke?
- Nate. E quando descobrir, digo-lhe.
- � justo. Talvez nos encontremos na Passagem de Ano. Veremos se socializamos.
Ela subiu para a carrinha e deu � chave. Os Aerosmith gritavam acerca da can��o e dan�a de sempre, enquanto ela avan�ava pela rua. Dirigia-se para oeste, onde o
Sol j� ca�a atr�s dos picos, dando-lhes uma tonalidade dourada flamejante, ao passo que a luz se tornava mais suave com o crep�sculo.
Eram tr�s e quinze da tarde.
4.
Entrada de di�rio - 14 de Fevereiro de 1988
Est� um frio do cara�as. N�o falamos sobre isso, sen�o damos em doidos, mas posso escrever sobre isso aqui. Um dia, poderei olhar para tr�s - talvez
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em Julho, quando estiver sentado l� fora com uma cerveja na m�o, coberto de repelente, a esbofetear os mosquitos do tamanho de pardais - a perder o olhar nesta grande
besta branca.
Saberei que estive aqui, que consegui. E a cerveja vai saber ainda melhor.
Mas agora � Fevereiro, e Julho ainda est� a s�culos de dist�ncia. A besta � que manda.
O vento obriga-nos a suportar trinta ou quarenta graus abaixo de zero. Quando se chega a este ponto, um grau ou outro a mais ou a menos deixa de ter import�ncia.
O frio rachou uma das lamparinas e partiu o fecho da minha parca.
Com noites de dezasseis horas, montamos e levantamos acampamento sempre �s escuras. Ir urinar tornou-se um exerc�cio de exaust�o e sofrimento. Ainda assim, os �nimos
mant�m-se quase sempre elevados.
Este tipo de experi�ncia n�o se compra em lado nenhum. Quando o frio toma a forma de vidro partido que nos dilacera a garganta, sabemos que estamos vivos de uma
forma que s� podemos saber numa montanha. Quando arriscamos um momento fora do abrigo e vemos as luzes do norte, t�o brilhantes, t�o el�ctricas que pensamos conseguir
chegar e agarrar algum daquele verde cintilante e coloc�-lo dentro de n�s para recarregar baterias, sabemos que n�o queremos estar vivos em mais lugar nenhum.
O nosso progresso � lento, mas n�o vamos desistir do objectivo de atingir o cume. A derrocada de uma avalanche atrasou-nos. Pergunto-me quantos mais ter�o acampado
aqui, por baixo do que agora est� enterrado e oculto, e com que rapidez a montanha ir� mudar, agitar-se e soterrar a caverna de neve que tanto lut�mos por arrancar
das suas entranhas.
Tivemos uma breve, mas acesa discuss�o, sobre como rodear a derrocada. Eu assumi a dianteira. Pass�mos o que pareceu uma vida inteira a atravessar e a contorn�-la,
mas n�o havia como facilitar ou acelerar o percurso, por mais que algu�m pensasse o contr�rio. � uma zona perigosa, conhecida como Passagem das Areias Movedi�as,
porque o glaciar se move debaixo de n�s. N�o o conseguimos ver, mas ele desliza e abre caminho por baixo de n�s. E � bem capaz de nos sugar, uma vez que por baixo
daquele mundo branco est�o in�meras fendas s� � espera de serem o nosso caix�o.
Seguimos caminho pelo Cume Solit�rio, armados de picaretas de gelo, as pestanas congeladas e, depois de a custo abrirmos caminho contornando a Chamin� de Satan�s,
almo��mos numa manta de piquenique de neve virgem.
O Sol era uma bola de gelo dourado.
Arrisquei tirar umas fotografias, mas com receio de que o frio partisse a m�quina fotogr�fica.
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Com pouca graciosidade mas muita dedica��o, inici�mos a subida depois do almo�o. Talvez fosse a velocidade com que salt�ramos para a sobremesa, mas golpe�mos e amaldi�o�mos
a montanha e uns aos outros. Crav�mos os passos na neve durante o que pareciam horas, enquanto a bola dourada come�ava a descer e a assumir um laranja vil e violento,
que pegava fogo � neve. Em seguida deixou-nos na escurid�o mortal.
Us�mos as lanternas dos capacetes para termos luz suficiente e enterrarmos a estaca da tenda no gelo. Estamos aqui acampados, a ouvir o vento soprar como uma tempestade
que trespassa a noite, amenizando a nossa exaust�o com erva de primeira e o sucesso do dia decorrido.
Come��mos a chamar-nos atrav�s de nomes de c�digo da Guerra das Estrelas. Agora somos Han, Luke e Darth. Divertimo-nos a fingir que estamos no planeta gelado Hoth,
numa miss�o para destruir um reduto do Imp�rio. Claro que isso significa que Darth est� contra n�s, o que torna tudo ainda mais divertido.
Hei, tudo para nos manter animados.
Hoje fizemos bons progressos, mas estamos a ficar impacientes. Soube bem, enterrar a minha picareta de gelo nas entranhas da Sem Nome, abrindo caminho por ela acima.
Desat�mos aos gritos e aos insultos - a princ�pio para dar motiva��o, mas depois devido aos nervos, ao ver peda�os de gelo soltarem-se por ali abaixo. Darth apanhou
com alguns na cara e insultou-me durante a hora que se seguiu.
Hoje, por um minuto que fosse, achei que ele ia perder as estribeiras e p�r-me a sangrar, tal como eu lhe fizera. Mesmo agora ainda sinto que ele est� a remoer nisso,
lan�ando um olhar agastado ocasional para a minha nuca, enquanto o ressonar de Han come�a a competir com o vento.
Vai passar-lhe. Somos uma equipa, e cada um de n�s tem a vida do outro nas m�os. Por isso, vai passar-lhe assim que come�armos a subir outra vez.
Talvez fosse boa ideia irmos um pouco mais devagar, mas umas passas d�o-nos uma sensa��o fant�stica, que ajuda a esquecer o frio e a fadiga.
N�o h� nada no mundo que se assemelhe a isto. O brilho da neve que nos cega, o som das picaretas a penetrar o gelo, ou a chiar pela neve, o arrastar dos grampos
na rocha, a queda livre da corda e observar o fogo gelado ao p�r-do-sol.
Mesmo agora, encolhido na tenda enquanto escrevo isto, com o est�mago a processar o jantar de guisado seco pelo gelo, o corpo dorido da estafa, e o medo de que o
gelo e a morte corroa como uma ratazana na parte mais rec�ndita do meu c�rebro, n�o queria estar em mais lugar nenhum.
�s sete, Nate decidiu que o dia fora bem preenchido. Levou com ele o
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r�dio-telefone. Se algu�m ligasse para a esquadra fora de horas, a chamada seria transferida para o seu telefone.
Preferia comer no quarto, sozinho, sossegado, para que o seu c�rebro pudesse desligar-se de todos os pormenores que havia assimilado ao longo do dia. E porque preferia
estar sozinho.
Mas n�o adiantava nada isolar-se naquela cidade, por isso deslizou para um banco corrido d'A Estalagem.
Conseguia ouvir o bater das bolas de bilhar e o lamento country na jukebox da sala ao lado. V�rios homens acomodados em bancos no bar, a engolir cervejas enquanto
assistiam a um jogo de h�quei na televis�o. A �rea do restaurante estava mais de metade cheia, onde uma empregada que ainda n�o conhecia servia e limpava.
O homem que Hopp apresentara como O Professor avan�ava na direc��o do banco de Nate, contornando as mesas.
Vestia um casaco de tweed com o Ulisses enfiado no bolso, e uma caneca de cerveja na m�o. - Importa-se que lhe fa�a companhia?
- Fa�a favor.
- John Malmont. Se quer beber alguma coisa, � atendido mais depressa se for ao bar. Se quiser comer, a Cissy n�o tarda vem c� ter consigo.
- Quero comer, sim, mas n�o tenho pressa. Hoje a casa est� animada. � habitual?
- S� h� dois s�tios onde se pode comer um prato quente sem ter de o cozinhar. E s� h� um onde se bebe a s�rio.
- Bom, ficou esclarecido.
- Os lun�ticos s�o uma gente bastante social - pelo menos, uns com os outros. E no per�odo de festas, as mesas ficam cheias. Hoje o robalo est� bom.
- Verdade? - Nate pegou na ementa. - Vive aqui h� muito tempo?
- Faz agora dezasseis anos. Sou natural de Pittsburgh, - disse ele, antecipando a pergunta. - Dei aulas em Carnegie Mellon.
- Era professor de qu�?
- Literatura inglesa, a mentes brilhantes jovens. Muitas delas apreciavam a postura snobe de dissecar e criticar os homens brancos h� muito falecidos que decidiram
estudar.
- E agora?
- Agora ensino literatura e composi��o a adolescentes aborrecidos, em que a maioria preferia andar aos apalp�es, em vez de explorar as maravilhas da palavra escrita.
- Hei, Professor.
- Cissy. Comandante Burke, apresento-lhe Cec�lia Fisher.
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- Prazer em conhec�-la, Cissy. - Era magra como um pau de vassoura, tinha cabelo curto e espetado em v�rios tons de vermelho, e uma argola de prata a perfurar a
sobrancelha esquerda.
Ela ofereceu-lhe um sorriso solarengo. - Igualmente. O que � que vai ser?
- Vou experimentar o robalo. Ouvi dizer que � bom.
- Pode crer que �. - Come�ou a escrevinhar no bloco. - Como quer que o prepare?
- Grelhado?
- �ptimo. Acompanha com uma salada da casa, molho � escolha. O molho da casa � muito especial. � o pr�prio Mike Grande que o faz.
- Pode ser, obrigado.
- J� escolheu entre as batatas cozidas, o pur�, batatas fritas, arroz selvagem?
- Quero o arroz.
- E para beber?
- Pode ser caf�, obrigado.
- Volto j�.
- Que rapariga simp�tica, - comentou John, dando uma limpeza r�pida nos �culos, com um len�o branco como a neve. - Chegou � cidade h� uns anos atr�s, veio passar
uns tempos com um grupo de amigos para fazer montanhismo. O rapaz com quem ela estava costumava bater-lhe, e p�-la na rua s� com uma mochila �s costas. N�o tinha
dinheiro para voltar para casa - disse que, de qualquer forma, tamb�m n�o ia voltar. Charlene deu-lhe um quarto e trabalho.
Provou a cerveja. - Passada uma semana, o rapaz veio c� busc�-la. Charlene p�-lo na rua.
- Charlene?
- Tem sempre uma ca�adeira l� dentro na cozinha. O rapaz decidiu deixar a vila sem Cissy, depois de ver bem o fundo dos canos daquela arma.
- John virou a cabe�a e a divers�o no seu olhar transformou-se em anseio
- apenas por um instante.
Nate viu a causa desse anseio deslizar pela sala com uma cafeteira na m�o.
- Vejam s�. Os dois homens mais lindos de Lunacy � mesma mesa. - Charlene serviu o caf� de Nate, e depois sentou-se de forma graciosa no banco corrido a seu lado.
- E voc�s dois est�o a conversar sobre o qu�?
- Sobre uma linda mulher, naturalmente. - John pegou na cerveja.
- Desejo-lhe um bom jantar, Comandante.
- Ent�o... - Charlene inclinou o corpo e o seu seio tocou o bra�o de Nate. - E posso saber que mulher � essa?
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- John estava a contar-me as circunst�ncias em que Cissy veio trabalhar consigo.
- Oh? - Deslizou a l�ngua pelo l�bio superior acabado de pintar. - Tem a minha empregada debaixo de olho, Nate?
- S� na esperan�a de que ela n�o demore a trazer o jantar. - N�o conseguia desviar o olhar sem parecer, e sentir-se, um idiota. N�o se conseguia mexer sem tocar
nalguma parte do corpo dela. - Os irm�os Mackie j� pagaram os estragos?
- Estiveram c� h� cerca de uma hora, a resolver o assunto. Queria agradecer-lhe por ter tomado conta de mim, Nate. Sinto-me mais segura, saber que est� apenas a
um telefonema de dist�ncia.
- A ca�adeira que tem guardada na cozinha tamb�m lhe deve dar alguma sensa��o de seguran�a.
- Bom. - Desceu o queixo, sorrindo. - � s� para ingl�s ver. - Chegou-se mais, at� o perfume estou-�-tua-espera emanar intenso do seu decote. - � dif�cil ser uma
mulher sozinha num lugar destes. As noites de Inverno s�o longas. Muito frias. E solit�rias. Gosto de saber que um homem como voc� dorme debaixo do mesmo tecto que
eu. Talvez mais tarde possamos fazer companhia um ao outro.
- Charlene. Isso... Mas que proposta. - A m�o dela deslizou pela coxa dele. Ele agarrou-lhe na m�o, colocando-a � for�a sobre a mesa, apesar de estar excitado e
quente. - Espere a� um minuto.
- Gostava que durasse mais de um minuto.
- Ha, ha. - Se ela continuasse a esfregar o corpo no dele, lembrando-o de h� quanto tempo era celibat�rio, era bem capaz de n�o precisar de sessenta segundos. -
Charlene, gosto de si, e � uma bela mulher, mas n�o acho que seja boa ideia n�s dois... fazermos companhia um ao outro. Ainda agora me estou a ambientar.
- Eu tamb�m. - Enrolou uma madeixa do cabelo dele � volta do dedo. - Se hoje � noite se sentir inquieto, basta ligar. Posso mostrar-lhe a raz�o de este estabelecimento
ter servi�o completo.
Manteve os olhos fixos nele ao deslizar para fora do banco corrido - e conseguiu deslizar novamente a m�o pela sua coxa, de forma sugestiva. Nate esperou at� ela
atravessar a sala naquele rebolar de cintura, antes de soltar um assobio de al�vio.
N�o dormiu bem. A dupla m�e e filha haviam-no atacado de frente. E a escurid�o era intermin�vel e total. Uma escurid�o primitiva que urgia um homem a refugiar-se
numa caverna quente - com uma mulher quente.
Manteve a luz acesa at� tarde - leu os regulamentos camar�rios, pensou um pouco, e acabou por adormecer at� o despertador tocar.
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Come�ou o dia tal como o anterior, a tomar o pequeno-almo�o com o pequeno Jesse.
Era a rotina que queria. Mais do que uma rotina, ansiava por uma actividade em que n�o tivesse de pensar, que se entranhasse de tal forma at� que deixasse de ver
o que estava por tr�s dela. Ali podia analisar cada movimento, resolver pequenas disputas, passar o dia com os mesmos rostos, as mesmas vozes, as mesmas tarefas
repetidas como num ciclo.
Podia ser o rato a correr na roda. E talvez o frio absurdo n�o o deixasse decompor-se. Assim, ningu�m saberia que j� estava morto.
Gostava de ficar sentado no seu gabinete, horas a fio, a distribuir entre Otto, Peter e ele pr�prio as v�rias chamadas que chegavam � esquadra. Quando sa�a para
atender alguma, levava um dos adjuntos, para come�ar a ser visto e a definir um novo ritmo.
Estava a come�ar a conhecer a sua equipa. Peter tinha vinte e tr�s anos, vivera a vida toda na zona, e parecia conhecer toda a gente. Tamb�m parecia que toda a gente
que o conhecia gostava dele.
Otto - sargento de patrulha, USMC(3), reformado - viera para o Alasca ca�ar e pescar. Dezoito anos antes, depois do primeiro div�rcio, decidiu que seria a sua casa
permanente. Tinha tr�s filhos crescidos nos Lower
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Casara de novo - com uma loura que ostentava um busto maior do que o seu QI, segundo Peach - e divorciara-se outra vez passados dois anos.
Tanto ele quanto Bing se consideravam qualificados para o posto que Nate ocupava agora. Mas enquanto Bing se melindrara com a decis�o de a assembleia municipal mandar
vir um forasteiro, Otto - talvez mais acostumado a acatar ordens - aceitara o cargo de adjunto.
Quanto a Peach, a fonte de quase todas as suas informa��es, vivia h� mais de trinta anos no Alasca, desde que fugira com um rapaz de Macon, e foi com ele que trocou
a localidade por Sitka. Ele morrera, pobre coitado, perdera-se no mar numa traineira de pesca menos de seis meses depois da fuga.
Ela voltara a casar e vivera com o segundo marido - um homem lindo e bem constitu�do como um urso grizzly, que a levara para o mato, onde viviam da terra, com visitas
ocasionais � vila lim�trofe de Lunacy.
Quando ele tamb�m morreu - tentou passar a cheia do lago e morreu congelado, antes de conseguir voltar para a cabana -, ela fez as malas e mudou-se para Lunacy.
Casara novamente, o que se veio a revelar um erro, e ela acabou por
(3) United States Marine Corps, Corpo de Fuzileiros dos Estados Unidos. (N. da T.) ty.
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dar um pontap� naquele rabo traidor de volta para Dacota do Norte, de onde viera.
Ainda pensou em arranjar o quarto marido, caso aparecesse o candidato certo.
Peach dava-lhe os pormenores sobre toda a gente. Ed Woolcott n�o desdenhava o cargo de Presidente da C�mara, mas tinha de manter a cabe�a fria at� Hopp decidir que
se fartara. A sua esposa, Arlene, era pretenciosa, mas como tinha origens endinheiradas, n�o era de admirar.
Como Peter, Bing vivera ali a vida toda, filho de pai russo e m�e norueguesa. A sua m�e havia fugido com um pianista em 74, quando ele tinha � volta de treze anos.
O pai - homem que deitava abaixo de uma assentada uma caneca de vodka - voltara para a R�ssia cerca de doze anos depois e levara com ele a irm� mais nova de Bing,
Nadia.
Dizem os rumores que estava gr�vida, e boatos que o pai seria casado.
O marido de Rose, David, trabalhava como guia, e dos bons, al�m de fazer biscates quando tinha tempo.
Harry e Deb tinham dois filhos - o rapaz estava a dar-lhes algum trabalho - e Deb controlava a capoeira.
Havia mais. Peach sabia sempre mais. Nate pensava que numa semana, talvez duas, soubesse tudo o que tinha a saber sobre Lunacy e os seus habitantes. S� assim o trabalho
seria outra rotina que se entranhava num h�bito confort�vel.
Mas sempre que ficava junto � janela, a observar o Sol a elevar-se sobre as montanhas, banhando-as de dourado, sentia aquela centelha vibrar dentro de si. Um pequeno
laivo de calor que lhe dizia que ainda existia vida dentro de si.
Com receio de que se espalhasse, virava-se para a parede branca.
No terceiro dia, Nate teve de acorrer a um acidente de via��o que envolveu uma pickup, um SUV e um alce. O alce foi o que se saiu melhor, tendo ficado a meio metro
do separador de metal, como se estivesse a apreciar o espect�culo.
Sendo a primeira vez que Nate via um alce verdadeiro - maior e mais feio do que imaginara -, revelou-se mais interessado nele do que nos dois homens que discutiam
um com o outro, na tentativa de atribuir as culpas.
Eram oito e vinte da manh� e estava escuro como breu na estrada a que os locais chamavam Estrada do Lago.
Tinha o vice-presidente da C�mara e um guia de montanha chamado Hawley de narizes encostados, um Ford Explorer ca�do numa vala e as quatro rodas enterradas na neve,
a capota encolhida como um acorde�o e uma Chevy pickup deitada de lado, como se tivesse decidido dormir uma soneca.
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Os dois homens tinham a cara ensanguentada e os olhos feridos.
- Acalmem-se. - Deliberadamente, Nate apontou a lanterna para os olhos deles, � vez. Reparou que ambos iam precisar de pontos. - J� disse para se acalmarem! Vamos
resolver isto num minuto. Otto? Algu�m tem um reboque?
- O Bing tem. � ele que costuma resolver este tipo de situa��o.
- Bom, telefone-lhe ent�o. Pe�a para vir at� c� e rebocar estes ve�culos para a cidade. Quero-os fora da estrada o mais r�pido poss�vel. Est�o a constituir perigo.
Agora...
Voltou-se para os homens. - Qual de voc�s me vai contar o que aconteceu de forma calma e coerente?
Desataram ambos a gritar ao mesmo tempo, mas como ele conseguia cheirar o h�lito a �lcool de Hawley, estendeu a m�o � frente e apontou para Ed Woolcott. - Comece
voc�.
- Ia de carro para o trabalho, com uma condu��o razo�vel e segura...
- Monte de tretas, - comentou Hawley.
- Espere pela sua vez. Sr. Woolcott?
- Vi os far�is virem na minha direc��o, t�o r�pidos que punham em causa a seguran�a.
Assim que viu Hawley abrir a boca, Nate esticou o indicador na direc��o dele.
- E depois o alce apareceu sem mais nem menos. Abrandei e virei o volante para evitar a colis�o, e de repente, isto, este monte de sucata est� a avan�ar na minha
direc��o. Tentei desviar-me para o outro lado da estrada, mas ele, ele veio direito a mim. E depois, projectou-me para fora da estrada e bateu no meu carro. O carro
s� tem seis meses! Ele vinha a conduzir de forma irrespons�vel e esteve a beber.
Com um aceno assertivo, Ed cruzou os bra�os e fechou a express�o num olhar carrancudo.
- Ok.
- Bing est� a caminho, - anunciou Otto.
- �ptimo. Sr. Woolcott, porque � que n�o vai ali dar o seu depoimento ao Otto? Hawley? - Nate sacudiu a cabe�a, caminhando para a pickup. E por momentos ali ficou
a trocar olhares morti�os com o alce. - Andou a beber?
Hawley ficou a um metro de dist�ncia dele, a afagar a barba castanha-dourada. O sangue que lhe escorrera pelo canto do maxilar havia secado.
- Pois, claro, bebi uns copos.
- Ainda s�o agora nove da manh�.
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- Merda. Andei a pescar no gelo. Nunca presto aten��o � porcaria das horas. Sa�-me bem na pescaria e tenho a geleira na parte de tr�s da carrinha. Ia para casa guard�-la,
comer alguma coisa e dormir. Mas aqui o colarinhos v� um alce na estrada e desata aos pe�es. Fica todo atravessado na estrada, �s voltas, e o alce fica ali - s�o
animais idiotas, se quer saber - e eu sou obrigado a travar a fundo. Derrapei um bocado e o Woolcott veio aos pe�es bater-me em cheio. Batemos e � este o resultado.
H� muito tempo que estivera na divis�o de Tr�nsito, e nunca fizera a reconstitui��o de nenhum acidente na escurid�o, na neve e com temperaturas negativas. Mas ao
apontar a lanterna sobre a estrada, estudando as marcas dos pneus, a vers�o de Hawley parecia a mais correcta.
- Na verdade, esteve a beber. Vamos ter de fazer um teste de alcoolemia. Tem seguro?
- Sim, mas...
- Vamos resolver tudo, - repetia Nate. - Temos de sair do frio. Nate levou o carro de regresso � cidade com Hawley e Ed, sentados num sil�ncio at�nito no banco de
tr�s. Estacionou � frente da cl�nica, deixou Otto com eles enquanto recebiam tratamento e voltou � esquadra, para ir buscar o teste do bal�o.
Aproveitou para fazer um telefonema e verificar os registos de condu��o dos dois automobilistas. Ao mesmo tempo que dava voltas � cabe�a a pensar numa solu��o, levou
o teste de alcoolemia para a cl�nica.
Havia algumas pessoas na sala de espera. Uma jovem com um beb� a dormitar, um velho que vestia ceroulas castanhas cor de terra e que mordiscava um cachimbo.
Viu uma mulher sentada numa cadeira atr�s de um balc�o baixo. Estava a ler um romance de bolso com um casal praticamente nu, num beijo apaixonado na capa. Mas ergueu
o olhar assim que ele entrou.
- Comandante Burke?
- Sim.
- Sou a Joanna. O doutor disse que podia entrar se quisesse, quando voltasse. Ele est� na sala de observa��o um, a tratar Hawley. A Nita est� na sala dois, a coser
Ed.
- E Otto?
- Est� no escrit�rio. Foi saber de Bing e do reboque.
- Eu trato do Hawley. Onde �?
- Venha comigo. - Marcou o livro com um separador brilhante e depois guiou-o pela porta logo � sua direita. - � logo ali. - Gesticulou e depois bateu ao de leve.
- Doutor? Est� aqui o Comandante Burke.
- Entre.
Era uma sala de observa��es normal - mesa, pequeno lavat�rio,
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cadeira de consult�rio. O m�dico vestia uma camisa de flanela aberta por cima de uma camisa t�rmica, e subiu o olhar do que estava a fazer, o corte por cima do olho
de Hawley.
Era jovem, com trinta e poucos anos, magro e em forma, com uma barba ruiva que combinava com aquele tufo de cabelo encaracolado. Usava �culos redondos de aros de
metal que cobriam os olhos verdes.
- Ken Darby, - disse ele. - Cumprimentava-o, mas tenho as m�os ocupadas.
- Muito prazer. Como est� o paciente?
- Alguns cortes e ferimentos. � um tipo cheio de sorte, Hawley.
- � melhor dizer isso quando vir a minha carrinha, raios partam. O parvalh�o do Ed parece uma velha de oitenta anos a conduzir, mais pitosga que um morcego.
- Vai ter de soprar para aqui.
Hawley olhou com suspei��o para o teste de alcoolemia. - N�o estou b�bedo.
- Ent�o n�o h� problema nenhum, certo?
Hawley resmungou, mas acedeu ao mesmo tempo que Ken lhe aplicava um penso no corte.
- Bom, Hawley, est� mesmo no limite. Fica a decis�o dependente da minha consci�ncia, se vou ou n�o acus�-lo de conduzir sob o efeito de �lcool.
- Ah, um monte de tretas.
- A realidade � que, como est� mesmo no limite, e n�o mostra sinais de estar alcoolizado, vou apenas emitir uma recomenda��o. Da pr�xima vez que for pescar no gelo
e beber umas minis, n�o pode pegar no carro.
- J� n�o tenho carro nenhum para pegar.
- Uma vez que n�o posso passar uma multa ao alce, a sua companhia de seguros vai ter de resolver a quest�o com a de Ed. Tem algumas multas de excesso de velocidade
por pagar, Hawley.
- Armadilhas com radares. As bestas de Anchorage.
- Talvez. Assim que recuperar o carro, trate de n�o ultrapassar o limite da lei e quando beber, pe�a a algu�m que conduza por si. Vamo-nos dar lindamente. Precisa
de boleia para casa?
Hawley co�ava o pesco�o enquanto Ken tratava de um arranh�o que tinha na testa. - � melhor. Tenho de dar uma olhadela � carrinha, falar com Bing.
- Passe pela esquadra assim que se despachar. Levamo-lo a casa.
- Mais justo n�o podia ser.
Ed n�o estava muito satisfeito com a decis�o. Sentou-se na maca de observa��o,
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as queimaduras do air bag vis�veis nas faces e o l�bio inchado de o morder com o impacto.
- Ele tinha bebido.
- Estava dentro do limite legal. Na verdade, o culpado nesta hist�ria � o alce, e n�o posso passar uma multa � fauna local. Tudo n�o passou de um azar. Dois ve�culos
encontram um alce numa estirada da estrada. Os dois t�m seguro, o que me parece que � uma vantagem sobre o alce, penso eu. Nenhum dos dois sofreu ferimentos com
gravidade. Afinal de contas, ambos tiveram muita sorte.
- N�o considero sorte, acabar com um carro novinho numa vala e a cara esmagada por um air bag, Comandante Burke.
- Talvez seja s� uma quest�o de perspectiva.
Ed deslizou da marquesa e esticou o queixo para cima. - � assim que devemos contar que leve a cabo a aplica��o da lei em Lunacy?
- Pode-se dizer que sim.
- Parece-me que lhe estamos a pagar para fazer mais do que aquecer o lugar na cadeira do escrit�rio.
- Tive de aquecer o lugar no carro, para vir resolver o acidente.
- N�o gosto da sua atitude. Pode ter a certeza que vou falar sobre este incidente e o seu comportamento com a Presidente.
- Ok. Precisa de boleia para casa ou para o banco?
- Posso muito bem ir sozinho.
- Pode ir, ent�o.
Foi ter com Otto � porta da sala de observa��es. O �nico sinal que Otto deu de ter ouvido a conversa foi um erguer de sobrancelhas. Mas assim que sa�ram juntos,
pigarreou.
- N�o fez amigos l� dentro.
- E eu que achava que estava a ser simp�tico. - Nate encolheu os ombros. - N�o pode esperar que um homem fique bem-disposto, quando lhe partem o carro todo e tem
a cara feita num oito.
- Acho que n�o. Ed � um pouco temperamental, e gosta de fazer valer a sua influ�ncia. � a pessoa da cidade que tem mais dinheiro, e n�o gosta que se esque�am disso.
- � bom saber.
- Hawley � boa pessoa. � um bom homem do mato, e sabe escalar. Tem energia suficiente para agradar aos turistas que querem conquistar uma montanha e a maior parte
das vezes � reservado. Bebe, mas n�o bebe at� � inconsci�ncia. A minha opini�o? Foi justa, a forma como lidou com a situa��o.
- Isso � importante. Agrade�o. � capaz de fazer o relat�rio, Otto? Acho que vou andando, para saber do reboque.
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Usou aquilo como desculpa, mas ele era a �nica pessoa que devia saber disso.
Encontrou Bing com um homem enrugado e bojudo, a tentar tirar o SUV da vala. O dever incitou-o a parar, sair e perguntar-lhes se precisavam de mais ajuda.
- Sabemos o que estamos a fazer. - Bing lan�ou uma pazada de neve para as botas de Nate.
- Ent�o, vou deixar-vos a tratar disso.
- Parvalh�o, - murmurou Bing entre dentes, enquanto Nate regressava para o carro.
Nate virou-se, pensando por instantes. - Parvalh�o � melhor ou pior que cheechako?
O pequeno homem rosnou numa gargalhada, mas limitou-se a enterrar a l�mina da p� na neve, inclinando-se sobre ela enquanto Bing media Nate. - � a mesma coisa.
- S� para saber.
Nate entrou no carro e deixou Bing de sobrolho carregado.
Deixou-se ir a conduzir, para fora da cidade, contornando a curva acentuada do lago.
Havia-se informado que Meg vivia para aqueles lados, e como conseguia ver o avi�o pousado na superf�cie congelada, era sinal de que estava no lugar certo.
Virou numa estrada que parecia ser recortada das �rvores e foi aos solavancos que descobriu uma casa.
N�o sabia o que haveria de esperar, mas n�o era aquilo. O isolamento n�o o surpreendia, assim como as vistas de tirar o f�lego em todas as direc��es. Faziam parte
do pacote.
Mas a casa era bonita, uma esp�cie de cabana sofisticada, pensava ele. Madeira e vidro, alpendres cobertos, persianas de um tom vermelho-vivo que emolduravam as
janelas.
Havia sido aberto um carreiro atrav�s da neve desde a entrada dos carros at� ao alpendre da porta principal. Conseguia ver onde outrora haviam existido outros caminhos
que ligaram a casa principal a complexos exteriores. Um desses complexos, a meio caminho da casa at� � orla da floresta, elevava-se sobre estacas.
No alpendre repousava uma pilha bem arrumada de lenha cortada.
O Sol come�ava a nascer, glorioso, banhando a cena com aquela aurora misteriosa. Fumo sa�a de tr�s chamin�s de pedra para o c�u luminoso.
Fascinado, desligou o motor.
E ouviu a m�sica.
Preenchia o seu mundo. Uma voz feminina, forte e doce, envolvida
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por cordas e flautas erguia-se com a aurora sobre aquele branco intermin�vel.
Ressoava dentro de si quando saiu da carrinha e parecia pertencer ao ar, � terra ou ao c�u.
Foi a� que ele a viu - o vermelho-vivo da parca, a caminhar sobre o branco, afastando-se do lago gelado com dois c�es que a acompanhavam.
Ele n�o a chamou, nem tinha a certeza se o conseguiria fazer. Ali estava um retrato e a sua mente accionou a objectiva. A mulher de vermelho e cabelo preto, a flutuar
sobre o branco imaculado guardada por dois lindos c�es e a gl�ria matinal das montanhas que lhe faziam de cen�rio.
Os c�es viram, ou cheiraram-no primeiro. O ladrar a cortar o sil�ncio, quebrando a melodia da m�sica. Dispararam na direc��o dele como duas balas cinzentas tremidas.
Ainda pensou em saltar para dentro da carrinha e perguntou-se se isso confirmaria ainda mais o seu estatuto de cheechako idiota.
Havia sempre a possibilidade de que o seu equipamento exterior tivesse grossura suficiente para lhe proteger a pele dos dentes caninos, caso isso viesse a ser um
problema.
Ficou onde estava a ecoar lindos c�ezinhos, bons c�ezinhos na cabe�a, como um mantra.
Preparou-se para o salto, na esperan�a de que n�o fosse para a sua garganta. Ambos os c�es espalharam neve pelo ar, at� que pararam a meio metro de dist�ncia, os
corpos a tremer e os dentes � mostra. Em alerta total.
Os dois pares de olhos eram azuis, de um azul cristalino, como os da dona.
A respira��o de Nate era bem vis�vel, numa nuvem de ar. - Bem, c�us, - murmurou ele. - Mas que par de beldades.
- Rock! Buli! - Gritou Meg. - Amigo.
Os c�es descontra�ram de imediato e avan�aram para o cheirar.
- Arrancam-me a m�o, se lhes tocar? - Gritou ele.
- Agora j� n�o.
Confiando, com a m�o na luva afagou uma cabe�a e depois a outra. Como era evidente que estavam a gostar, agachou-se e fez-lhes uma festa vigorosa enquanto eles se
encostavam a ele.
- Tem tomates, Burke.
- N�o queria muito que eles provassem essa parte da minha anatomia. S�o c�es de tren�?
- N�o. - Viu as faces dela rosadas do frio, assim que ela se aproximou. - N�o sou corredora de tren�s, mas eles s�o de uma bela ninhada deles. Partilham comigo o
gosto pela vida ao ar livre.
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- Tem os seus olhos.
- Talvez noutra vida eu fosse um husky. O que � que est� aqui a fazer?
- Vim s�... que m�sica � esta?
- Loreena McKennit. Gosta?
- � fant�stica. Parece... Deus.
Ela riu-se. - � o primeiro homem que conhe�o a admitir que Ela � uma mulher. Aproveitou o feriado para dar um passeio? Endireitou-se. - Feriado?
- Passagem de Ano.
- Oh. N�o. Houve um pequeno acidente na Estrada do Lago. Ando � procura da testemunha principal. Talvez a tenha visto por aqui. � um tipo encorpado, com quatro patas,
chap�u esquisito. - Com os dedos imitou as hastes.
Que fofo, pensava ela, porque seria que os olhos dele pareciam t�o tristes, mesmo quando sorria? - Para dizer a verdade, tenho visto alguns tipos como esse nas redondezas.
- Nesse caso, talvez fosse melhor entrarmos, para recolher o seu depoimento.
- Sou capaz de gostar que o fa�a, mas vai ter de ficar para outra altura. Tenho de voar. Ia agora mesmo levar os c�es para casa, e desligar a m�sica.
- Onde � que vai?
- Vou levar mantimentos a uma cidade no mato. Tenho de me despachar, se quero ir e voltar antes da hora da festa. - Inclinou a cabe�a. - Quer vir comigo?
Nate olhou na direc��o do avi�o e pensou: Naquilo? Nem aqui nem na China. - Estou de servi�o. Talvez noutra altura
- Com certeza. Rock, Buli, casa! Volto j�, - disse a Nate.
Os c�es desataram a correr, e Nate percebeu que um dos complexos exteriores era um canil elaborado, decorado com figuras de totens pintadas num estilo de arte primitiva.
Bela vida, sem d�vida.
Meg desapareceu dentro da cabana. Momentos depois, a m�sica acabou.
Voltou a sair com uma mochila ao ombro.
- At� logo, Comandante. Depois tratamos de recolher o meu depoimento.
- Fico � espera. Bom voo.
Ela atirou o cabelo para tr�s, descendo o carreiro at� ao avi�o. Ficou a observ�-la.
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Ela atirou a mochila para dentro do avi�o e subiu. Ele ouviu o motor a arrancar, o ru�do sonante a invadir o sossego. A h�lice girava enquanto o avi�o deslizava
pelo gelo, num c�rculo, depois outro, apoiando-se num ski noutro c�rculo at� descolar, elevando o nariz, a subir.
Conseguia ver o vermelho da parca dela, o preto do seu cabelo pela janela do cockpit, e depois n�o mais era do que uma imagem desfocada.
Ele inclinou a cabe�a ao v�-la dar a volta, agora pelo ar, mergulhando a asa no que ele interpretou como uma sauda��o.
Em seguida, ganhou velocidade, sobrevoando o branco, em direc��o ao imenso azul.
5.
Nate conseguia ouvir as festividades j� bem encaminhadas. M�sica - uma esp�cie de jivey honky-tonk - subia pelas escadas, at� pela ventila��o que vinha do ch�o do
quarto. Vozes murmuravam, parecendo impregnar-se nas paredes e no soalho. Os risos transbordavam, tal como um tamborilar ocasional que presumia ser de p�s que dan�avam.
Sentou-se sozinho, no escuro.
A depress�o abatera-se sobre ele, sem apelo nem agravo. Num minuto estava sentado � secret�ria a ler alguns ficheiros e no outro o imenso peso negro ca�ra sobre
ele com toda a for�a.
J� lhe havia acontecido antes, sem nenhum sentido vago de desconforto, nem tristeza avassaladora. Apenas aquela onda imensa de negrume que o enrolava na sua espuma.
Apenas aquela mudan�a abrupta da luz para a escurid�o.
N�o se tratava de desespero. O conceito de esperan�a tinha de ser um factor a ter em conta antes de abra�armos a sua aus�ncia. N�o se tratava de desgosto, afli��o
ou raiva. Ele podia muito bem ter lidado ou contrariado qualquer uma dessas emo��es.
Era um vazio. Incomensur�vel, negro, irrespir�vel e arrastava-o com ele.
Conseguia funcionar apesar dele; aprendera a faz�-lo. Se n�o funcionasse, as pessoas n�o o deixariam em paz e os seus cuidados e preocupa��es apenas iriam afund�-lo
mais no fosso em que se encontrava.
Podia andar, falar, existir. Mas n�o conseguia viver. Era assim que se sentia, quando se deixava puxar por aquelas amarras. Era como se fosse um morto-vivo. A sensa��o
era a mesma de quando estivera no hospital depois do
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que acontecera a Jack, a dor latejante sob o efeito de analg�sicos, e a certeza de que o que acontecera abria caminho para o esquecimento.
Mas conseguia funcionar.
Terminara o trabalho do dia, trancara a porta. Conduzira de regresso � A Estalagem, subira at� ao quarto. Falara com algumas pessoas. N�o se conseguia lembrar de
qu� nem com quem, mas sabia que a boca se movera, que as palavras sa�ram.
Subira at� ao quarto e trancara a porta. Sentara-se na escurid�o invernal.
Que raio � que estava a fazer ali, naquele lugar? Naquele lugar frio, escuro e vazio? Seria t�o �bvio, t�o pat�tico, que escolhera aquela vila de Inverno perp�tuo
por ser um espelho t�o perfeito do que se passava no seu �ntimo?
O que � que queria provar ao mudar-se para ali, envergando um distintivo e a fingir que se importava o suficiente para cumprir a sua obriga��o? Ocultar, era o que
passava a vida a fazer. A ocultar o que era, o que fora, o que perdera. Mas n�o podia ocultar de si o que o acompanhava todos os dias, a cada minuto, apenas � espera
de saltar c� para fora, a rir na cara dele.
Claro que tinha a medica��o. N�o partira sem ela. Medica��o para a depress�o, medica��o para a ansiedade. Medica��o para o ajudar a dormir, profundamente, para que
os pesadelos n�o ganhassem terreno.
Medica��o que parara de tomar porque anulava ainda mais o seu ser do que a depress�o, a ansiedade ou a ins�nia.
N�o podia voltar atr�s, n�o podia seguir em frente, ent�o porque n�o afundar-se ali mesmo? Cada vez mais fundo, at� acabar por n�o conseguir, n�o poder mais rastejar
para fora de todo aquele vazio? Sabia, uma parte dele sabia, que se sentia confort�vel ali, instalado na escurid�o e no vazio, imerso na sua pr�pria desgra�a.
Raios, podia instalar-se de vez por ali, como um daqueles maluquinhos que viviam numa arca frigor�fica vazia debaixo de uma ponte. A vida era bastante simples numa
caixa de cart�o, e ningu�m esperava que fiz�ssemos algo dela.
Pensou na velha imagem da serra prestes a derrubar uma �rvore na floresta e deu-lhe a volta para que se adequasse ao seu caso. Se ia perder o ju�zo em Lunacy, tinha
de estar na posse dele primeiro, ou n�o?
Odiava aquela metade dele que pensava assim, a metade que queria viver ali.
Se n�o descesse, algu�m haveria de subir. Ia ser muito pior. Amaldi�oou o esfor�o necess�rio s� para se p�r de p�. Ser� que aqueles pequenos tremores, breves centelhas
de vida haviam sido uma esp�cie de brincadeira?
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A forma de o destino lhe mostrar como era estar vivo, antes de o sugar novamente para dentro do fosso?
Bom, ele ainda sentia raiva bastante que o levasse a rastejar de l� para fora, s� mais uma vez. Haveria de sobreviver �quela noite, � �ltima noite do ano. E se na
seguinte n�o houvesse nada, tamb�m n�o haveria de ficar pior do que estava.
Mas naquela noite estava de servi�o. Fechou a m�o sobre o distintivo que haveria de tirar, sabendo que era rid�culo sentir-se apaziguado por um objecto de metal
barato. Mas at� isso tirara, repetindo o gesto de forma mec�nica.
A luz feriu-lhe os olhos assim que a acendeu, e teve de recuar deliberadamente antes que cedesse � tenta��o de a desligar outra vez. De ficar no escuro outra vez.
Foi at� � banheira e deixou a �gua correr fria. De seguida, espalhou-a pelo rosto para se enganar, acreditando que lavava a fadiga que se enroscava � volta da depress�o.
Estudou-se ao espelho por largos momentos, � procura de algo que o denunciasse. Mas viu um tipo normal, sem preocupa��es. Talvez um pouco de cansa�o � volta dos
olhos, covas profundas nas faces, mas nada de grave.
Desde que todos vissem o mesmo, seria suficiente.
O barulho assolava-o ao abrir a porta. Tal como com a luz, teve de se obrigar a avan�ar, em vez de se refugiar na sua caverna.
Dera a noite de folga a Otto e Peter. Para comer, beber e se divertirem. Ambos tinham amigos e fam�lia com quem se despedir do ano velho. Uma vez que h� meses que
Nate tamb�m lutava por se despir de velhos h�bitos, n�o percebia a influ�ncia que aquela noite poderia ter.
Carregou o peso de chumbo nas entranhas ao descer as escadas.
A m�sica era alegre e melhor do que esperara. E a casa estava cheia. As mesas estavam dispostas de forma a haver uma pista de dan�a, e os mais velhos j� tiravam
partido dela. Fitas e bal�es adornavam o tecto, e a indument�ria das pessoas era t�o festiva quanto eles.
Viu alguns mais idosos, a envergar aquilo que Peach descreveria como um smoking do Alasca. Fatos de trabalho robustos, que trataram de limpar para a ocasi�o. Alguns
eram complementados por gravatas borboleta e, por estranho que pare�a, chap�us de festa.
Muitas das mulheres trataram de se produzir com vestidos ou saias brilhantes, cabelo apanhado, saltos altos. Avistou Hopp, cintilante num vestido de cocktail roxo
- a dan�ar foxtrot, two-step? Nate n�o fazia ideia - com um Harry Miner todo aprumado. Rose estava sentada num banco alto atr�s do bar, com o homem que ele concluiu
ser o marido dela, David, sentado a seu lado, a afagar-lhe suavemente a curva das costas.
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Ele viu-a rir de algo que a recepcionista da cl�nica lhe dissera. E reparou na forma como ergueu o olhar, encontrando o do marido. Viu a fa�sca do amor emanar de
ambos, e sentiu-se frio, sozinho.
Nunca nenhuma mulher olhara para ele daquela forma. Nem mesmo quando era casado, a mulher que pensava ser dele nunca olhara para ele com aquele amor incondicional
e sem limites.
Desviou o olhar.
Os seus olhos perscrutavam a multid�o com vis�o de pol�cia - a tirar as medidas, os pormenores, a registar. Era o tipo de atitude que o mantinha � parte, e ele sabia
disso. Era o tipo de atitude que era imposs�vel relegar.
Viu Ed, e a alegadamente arrogante Arlene. Mitch de KLUN, com o cabelo louro liso preso num rabo-de-cavalo, e o bra�o � volta de uma rapariga que n�o era t�o bonita
quanto ele. Ken vestia uma camisa havaiana e mantinha uma discuss�o animada com O Professor, que envergava o habitual casaco de tweed.
Fraternidade, pensava Nate. De certa forma, algo embriagada com o avan�ar da noite, mas fraternidade, ainda assim. E ele era do Exterior.
Apanhou um rasto do perfume de Charlene, mas ela ultrapassou-o t�o depressa que ele nem teve tempo para a evitar ou fugir. A f�mea curvil�nea j� estava enrolada
a ele, os l�bios quentes e lustrosos a deslizar sobre ele, com a ponta da l�ngua ao de leve. Apalpou e beliscou-lhe o rabo, mordendo-lhe subtilmente o l�bio inferior.
Ent�o, Charlene deslizou, sorrindo l�nguida para ele. - Feliz Ano Novo, Nate. � s� para o caso de n�o lhe conseguir p�r as m�os em cima, esta noite.
Ele nem conseguiu articular uma palavra e quase receava a evid�ncia de um certo rubor. Ele perguntava-se se o convite �bvio e inapropriado havia estimulado o seu
corpo de forma embara�osa atrav�s da roupa.
- Onde � que tem andado escondido? - Passou os bra�os � volta do pesco�o dele. - A festa est� a todo o g�s h� pelo menos uma hora, e ainda n�o dan�ou comigo.
- Tive... coisas para fazer.
- Trabalho, trabalho, trabalho. Porque � que n�o vem brincar comigo?
- Tenho de falar com a Presidente. - Por favor, meu Deus, ajuda-me.
- Oh, n�o � altura para tratar da pol�tica da vila. Estamos numa festa. Vamos, venha dan�ar comigo. Depois podemos provar o champanhe.
- Tenho mesmo de resolver isto. - Colocou-lhe as m�os sobre as ancas, na esperan�a de a empurrar ligeiramente para fora do alcance daquele
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gesto �ntimo, e perscrutou a multid�o � procura de Hopp - a sua salva��o. O seu olhar ficou cativo, preso no de Meg.
Ela esbo�ou aquele sorriso lento, a dois tempos, e ergueu o copo que tinha na m�o num brinde trocista.
Num �pice, casais que dan�avam rodopiaram para a frente dela, e deixou de a ver.
- Fica para outra vez. Eu... - Viu um rosto familiar, e agarrou-se a ele como um n�ufrago. - Otto. Charlene quer dan�ar.
Antes que qualquer deles se pudesse manifestar, Nate j� corria em retirada. Conseguiu chegar ao outro lado da sala antes de arriscar respirar fundo.
- Tem gra�a, n�o parece ser cobarde.
Meg chegou-se para perto dele. Agora trazia dois copos.
- As apar�ncias iludem. Ela assusta-me � brava.
- N�o diria que Charlene � inofensiva, porque est� longe disso. Ainda assim, se n�o quer que ela lhe enfie a l�ngua pela garganta abaixo, tem de lho dizer. Alto
e em bom som, com monoss�labos. Tome. Fui-lhe buscar uma bebida.
- Estou de servi�o.
Ela roncou. - N�o me parece que uma ta�a de champanhe barato v� alterar isso. Bolas, Burke. Quase todas as almas de Lunacy est�o aqui dentro.
- Tem raz�o. - Pegou na ta�a, mas n�o bebeu. Contudo, manteve sempre a aten��o nela. Trazia um vestido. Imaginava que o termo t�cnico fosse vestido, para a camada
de tecido vermelho-vivo que trazia colado ao corpo. Revelava a figura esguia e atl�tica que ele havia imaginado em contornos que poderiam ser tidos como ilegais
em v�rias jurisdi��es. Soltara o cabelo. Uma chuva negra nos ombros l�cteos. Saltos altos da mesma cor que o vestido enalteciam as pernas magras e musculadas.
Cheirava a sombras frescas e secretas.
- Est�s linda.
- Quando a ocasi�o pede, gosto de me aprumar. Tu, pelo contr�rio, pareces cansado. - E magoado, pensou ela. Foi essa a impress�o imediata assim que o viu descer
as escadas. Como um homem que sabia da exist�ncia, algures no seu corpo, de uma imensa chaga aberta, sem energia para a encontrar.
- Ainda n�o consegui regular o sono. - Provou o champanhe. Sabia a gasosa doce.
- Vieste at� aqui abaixo para descontrair e celebrar, ou para assumires uma postura r�gida e oficial?
- Tenho de escolher a segunda hip�tese.
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Meg abanou a cabe�a. - Tens de experimentar a primeira por um bocado. V� o que acontece. - Estendeu a m�o, tirando-lhe o distintivo.
- Hei.
- Se precisares de um escudo, podes sempre mostr�-lo depois, - disse ela, ao guard�-lo no bolso da frente da camisa dele. - Agora, vamos dan�ar.
- N�o sei como fazer aquilo que eles est�o a fazer.
- N�o faz mal. Eu guio.
Foi o que fez, e arrancou-lhe uma gargalhada. Sentiu uma picada na garganta, mas aliviou algum do peso que carregava. - A banda � daqui?
- Toda a gente � daqui. Aquela � a Mindy ao piano. D� aulas na escola prim�ria. Pargo na guitarra. Trabalha no banco. O Chuck est� na rabeca. � ranger em Denali.
� federal, mas Chuck � t�o simp�tico que fingimos que tem um trabalho a s�rio. E o Mike Grande na bateria. � o cozinheiro da casa. J� conseguiste decorar tudo?
- Desculpa?
- Parece que te estou a ver a compartimentar os nomes e as caras numa pasta dentro da cabe�a.
- Lembrar compensa.
- Por vezes compensa � esquecer. - Desviou o olhar para a direita. - Est�o a fazer-me sinal. Max e Carrie Hawbaker. Dirigem O Lun�tico, o nosso seman�rio. Estiveram
a semana quase toda fora da vila. Querem uma entrevista com o novo Comandante da pol�cia.
- Pensava que est�vamos numa festa.
- Pois, mas assim que a m�sica acabar, eles v�o perseguir-te para onde fores.
- N�o se fugires daqui comigo, e fizermos a festa noutro s�tio qualquer.
Ela mudou de posi��o e olhou bem nos olhos dele. - Posso estar interessada, se � que est�s a falar a s�rio.
- Porque n�o haveria de estar?
- � essa a quest�o. Um dia destes pergunto-te.
N�o lhe deu outra op��o ao dar meia-volta e acenar. Puxava-o junto com ela, para o meio do buli�o da pista de dan�a. Apresenta��es feitas, ela desapareceu, deixando-o
encurralado.
- Muito prazer em conhec�-lo. - Max apertou a m�o de Nate num gesto entusiasta. - Eu e Carrie acab�mos de voltar � cidade, por isso ainda n�o tivemos a oportunidade
de lhe dar as boas-vindas. Queria que me dispensasse um pouco do seu tempo para dar uma entrevista a O Lun�tico.
- Temos de tratar disso.
- Pod�amos sentar-nos na recep��o agora, s� um instante, e...
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- Agora n�o, Max. - Carrie lan�ou um sorriso cintilante. - Esta noite n�o se trabalha. Mas antes de voltarmos � festa, queria perguntar-lhe. Comandante Burke, se
tem algum problema por irmos fazer um artigo sobre a pol�cia no jornal. Acho que seria bom mostrar � comunidade o que faz, como � que resolve as coisas por aqui.
Agora que temos um departamento de pol�cia oficial, queremos que O Lun�tico o documente.
- Pode obter essas informa��es atrav�s da Peach.
Meg deu a volta ao bar e pegou noutra ta�a de champanhe, antes de deslizar para cima de um banco alto, de onde conseguia ver a multid�o dan�ar enquanto bebia.
Charlene sentou-se no banco que se encontrava a seu lado. - Eu vi-o primeiro.
Meg continuava a observar os dan�arinos. - Quem ser� que ele viu?
- S� reparaste nele porque eu estou interessada.
- Charlene, se tiver uma pila, est�s sempre interessada. - Meg engoliu o champanhe. - E n�o tenho nenhum interesse nele em especial. - Sorriu para a ta�a. - For�a,
joga a tua cartada. N�o me faz mossa nenhuma.
- � o primeiro homem interessante que aqui chega em meses. - Sentindo-se conversadora agora, Charlene aproximou-se. - Sabes que ele costuma tomar o pequeno-almo�o
todos os dias com o pequeno Jesse? N�o � a coisa mais linda? E devias ter visto a forma como lidou com os Mackies. Al�m disso, tem uma aura de mist�rio. - Suspirou.
- Adoro um homem misterioso.
- Adoras qualquer homem, desde que o consiga levantar. Charlene torceu os l�bios em desaprova��o. - Porque tens de ser sempre t�o directa?
- Sentaste-te aqui para me contares os teus planos de comer o novo Comandante da pol�cia. Podes arranjar uns floreados, Charlene, mas n�o deixa de ser directo. Eu
apenas dispenso os floreados.
- �s tal e qual o teu pai.
- � o que dizes sempre, - murmurou Meg, ao ver Charlene afastar-se a dar �s ancas.
Hopp sentou-se no banco de Charlene. - Voc�s duas s�o capazes de discutir sobre a chuva que caiu no �ltimo aguaceiro.
- Isso j� � um desafio filos�fico para n�s. O que � que est�s a beber?
- Ia buscar outra ta�a daquele champanhe horroroso.
- Eu vou l�. - Meg contornou o bar, encheu uma ta�a e a sua tamb�m. - Ela quer dar uma trinca valente ao Burke.
Hopp desviou o olhar para Nate e reparou que ele se havia livrado dos Hawbaker, sendo contudo interceptado por Joe e Lara Wise.
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- O problema � deles.
- � mesmo, - concordou Meg, e bateu com a ta�a na de Hopp.
- O facto de ele me parecer bem mais interessado em dar-te uma a ti n�o vai melhorar em nada o relacionamento que tens com a tua m�e.
- N�o. - Meg provou, pensativa. - Mas � capaz de tornar a situa��o emocionante por algum tempo. - Viu Hopp revirar os olhos e rir. - � mais forte do que eu. Gosto
de sarilhos.
- � o que ele �. - Hopp virou-se no banco, ao ver Charlene puxar Nate de novo para a pista de dan�a. - Toda aquela conversa sobre �guas paradas, bla, bla. Aqueles
tipos pensativos s�o dif�ceis de perceber.
- Ele � capaz de ser o homem mais triste que j� vi. Mais ainda do que o viajante que passou por aqui h� uns anos atr�s. Como � que ele se chamava? McKinnon. Estoirou
os miolos no esconderijo de Hawley.
- E n�o foi uma desgra�a? Ignatious deve andar triste o suficiente para enfiar o cano de uma 45 na boca, mas tem um car�cter demasiado forte para disparar o gatilho.
Tamb�m acho que � demasiado cordial para isso.
- � com isso que est�s a contar?
- Sim. � com isso que estou a contar. Bom, que se lixe. Vou fazer a minha �ltima boa ac��o do ano e vou salv�-lo de Charlene.
Homens tristes e cordiais n�o faziam nada o seu g�nero, convencia-se Meg. Gostava de homens incautos, destemidos. Homens que n�o pensavam em ficar na noite seguinte.
Podia-se beber uns copos com um homem assim, dar uma cambalhota nos len��is se estivesse para a� virada e seguir em frente.
Sem m�goas nem confus�es.
Um homem como Ignatious Burke? Envolver-se com ele ia dar confus�o na certa, e era �bvio que algu�m sairia magoado. Ainda assim, podia valer a pena.
Em qualquer dos casos, ela gostava de conversar com ele, e isso na sua opini�o, nunca era de mais valorizar. Podia muito bem passar dias, semanas sem falar com outro
ser humano. Por isso apreciava uma boa conversa. E gostava de observar a tristeza que assombrava o olhar dele aflorar e desaparecer. J� a vira desvanecer-se algumas
vezes. Quando ele apareceu � frente da casa dela, naquela manh�, a ouvir Loreena McKennit, e tamb�m por alguns momentos quando dan�aram.
Ali sentada, com a m�sica e o calor humano � volta dela, percebeu que queria v�-la desvanecer-se novamente. E que fazia bem ideia como � que faria isso acontecer.
Foi por tr�s do bar, agarrou numa garrafa aberta e dois copos. Segurando-os ao lado do corpo, esgueirou-se para fora da sala.
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Hopp bateu com for�a no ombro de Charlene. - Desculpa, Charlene, preciso de ter uma pequena conversa oficial com o Comandante Burke.
Charlene apenas puxou Nate para mais perto. Ele perguntava-se se ela n�o ia atravess�-lo e aparecer nas suas costas. - A C�mara est� fechada, Hopp.
- A C�mara nunca est� fechada. V� l�, solta o rapaz dessa camisa-de-for�as.
- Oh, est� bem. Espero que acabes esta dan�a mais tarde, gira�o.
- Vamos procurar um canto sossegado, Ignatious. - Hopp afastava as pessoas, abrindo caminho em linha recta. Sentou-se numa mesa que algu�m puxara para a zona de
snooker. - Bebe alguma coisa?
- N�o, acho que prefiro a porta das traseiras.
- Pode fugir mas n�o se pode esconder numa vila deste tamanho. Mais cedo ou mais tarde vai ter de a encarar.
- Prefiro que seja mais tarde. - Ele queria subir, de volta para a escurid�o. Tinha a cabe�a a latejar, o est�mago �s voltas do stress e do esfor�o de ali estar.
- N�o o fui buscar s� para o livrar das garras de Charlene. P�s o meu vice-presidente de muito mau humor.
- Eu sei. Resolvi a situa��o da forma que achei mais prudente e dentro do que dita a lei.
- N�o estou a p�r em causa as suas decis�es no trabalho, Ignatious. - Acenou para ignorar o coment�rio como se acenasse a algu�m conhecido. - S� lhe estou a apresentar
os factos. Ed � uma pessoa pomposa, com a mania das grandezas e quase sempre um chato de primeira. Ainda assim, � um bom homem e dedica muito trabalho � vila.
- Isso n�o significa que saiba conduzir.
Ela riu-se do coment�rio. - Ele sempre foi um p�ssimo condutor. Tamb�m � poderoso, rico e rancoroso. N�o se vai esquecer de que o contrariou neste assunto. Pode
parecer uma ninharia para o tipo de coisa que est� habituado a resolver, mas em Lunacy, isto � importante.
- De certeza que n�o sou o primeiro a contrari�-lo.
- Pois n�o. Eu e Ed passamos a vida � cabe�ada. Mas segundo ele, n�s estamos em p� de igualdade. Voc� � do Exterior, e ele espera que puxe a carro�a, como � costume.
Por outro lado, se tivesse puxado, ia ficar muito desiludida. Fica sempre entre a espada e a parede.
- Sei bem como �. Puxar a carro�a tem alguma coisa a ver com vacas?
Ela fitou-o por instantes e depois soltou uma gargalhada. - � uma forma educada e matreira de me pedir que me meta na minha vida. Antes disso, deixe-me acrescentar
uma coisa. Ficar preso entre Charlene e Meg
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significa que essa espada e a parede v�o ficar quentes � brava, pegajosas e lixadas como um dem�nio do Inferno.
- Ent�o, talvez seja melhor n�o me deixar prender.
- Bem pensado. - Ela ergueu as sobrancelhas ao mesmo tempo que o telem�vel dele tocou.
- As chamadas para a esquadra s�o transferidas para o meu telefone pessoal, - disse ele, ao tir�-lo do bolso. - Burke.
- Pega no casaco, - disse Meg. - Encontramo-nos � porta daqui a cinco minutos. Tenho uma coisa para te mostrar.
- Est� bem. - Voltou a guardar o telem�vel no bolso sob o olhar atento de Hopp. - N�o � nada. Acho que vou bater em retirada.
- Mmm-hmm. V� por aquela porta, passa pela cozinha.
- Obrigado. E feliz Ano Novo.
- Igualmente. - Hopp abanou a cabe�a ao v�-lo afastar-se. - Vai meter-se em trabalhos.
Levou mais de cinco minutos a chegar ao quarto, pegar nos agasalhos, sair e dar a volta pela frente d'A Estalagem. Estava a meio caminho quando percebeu que n�o
se sentira tentado a trancar-se l� dentro e barricar-se no escuro.
Talvez fosse algum progresso. Ou talvez a lux�ria fosse mais forte do que uma ocasional depress�o.
Ela estava � espera, sentada numa de duas cadeiras desdobr�veis que colocara no meio da rua.
A garrafa de champanhe estava enfiada num monte de neve. Ela bebia da sua ta�a e um cobertor grosso tapava-lhe o colo.
- N�o devias estar aqui fora, com esse vestido, mesmo com o casaco e o cobertor...
- Mudei de roupa. Trago sempre roupa na mochila.
- Que pena. Tinha esperan�as de te ver outra vez com aquele vestido.
- Fica para outra altura, noutro lugar. Senta-te.
- Ok. Porque � que estamos sentados na rua quando... faltam dez minutos para a meia-noite?
- N�o gostas muito de multid�es, n�o �?
- Nem por isso.
- No in�cio at� � divertido, numa ocasi�o especial. Mas passadas algumas horas, fico farta. Al�m do mais, - deu-lhe uma ta�a para a m�o, - aqui est�-se melhor.
Ele ficou espantado por o champanhe n�o estar congelado, em pedra.
- Acho que est�vamos melhor l� dentro, onde o perigo de congelarmos n�o � t�o acentuado.
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- N�o est� assim tanto frio. N�o h� vento. A suspens�o do ar � zero.
Al�m disso, n�o podes ver isto l� dentro.
- Ver o qu�?
- Olha para cima, Homem dos 48.
Ele olhou para onde ela apontava e ficou sem f�lego. - Deus do C�u.
- Pois, sempre achei que era celestial. Um fen�meno natural causado pela latitude, raios de luz e assim. As explica��es t�cnicas n�o o tornam menos belo, ou m�gico.
As luzes no c�u eram verdes com laivos dourados, salpicos vermelhos. Os rastos compridos e espectrais pareciam pulsar, num sopro, banhando a escurid�o de vida.
- As luzes do norte v�m-se melhor no Inverno, mas costuma estar tanto frio que n�o d� para as apreciar. Imaginei que esta noite seria uma bela excep��o.
- J� tinha ouvido falar delas. Vi fotografias. N�o tem nada a ver.
- As melhores coisas s�o sempre assim. Fora da vila v�-se muito melhor. E acampado no cimo de um daqueles glaciares, nem se fala. Uma noite, tinha eu mais ou menos
sete anos, eu e o meu pai escal�mos aquelas montanhas e acamp�mos s� para podermos estar l� em cima a ver o espect�culo. Fic�mos horas deitados, quase a morrer de
frio, a olhar para o c�u.
O verde de outro mundo continuava a transformar-se, a brilhar, expandir e cintilar. Choviam j�ias l�quidas de cor. - O que � que lhe aconteceu?
- Pode-se dizer que um dia decidiu fazer outra escalada e nunca mais parou. Tens fam�lia?
- Mais ou menos.
- Bom, vamos estragar isto se contarmos as nossas hist�rias tristes. Vamos apenas apreciar o espect�culo.
Ficaram sentados em sil�ncio no meio da rua, as cadeiras mal apoiadas nos montes de neve enquanto os c�us pegavam fogo.
As chamas ati�aram algo dentro dele, amansando a tens�o da dor de cabe�a e permitindo-se respirar de �xtase.
Ela olhou de relance na direc��o d'A Estalagem, ao ouvir o n�vel de ru�do subir. Os gritos da contagem decrescente para a meia-noite come�aram. - Parece que somos
s� n�s dois, Burke.
- Uma maneira melhor de acabar o ano do que estava � espera. Queres que finja que te vou beijar por ser tradi��o?
- Que se lixe a tradi��o. - Ela agarrou-lhe no cabelo com as duas m�os enluvadas e puxou-o para si.
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Tinha os l�bios frios, e sentiu um arrepio estranho e poderoso ao sentir que aqueciam encostados aos dele. Nele, a for�a imensa do beijo veio agitar o organismo
indolente, queimando-lhe o est�mago, atravessando-lhe a corrente sangu�nea.
Ouvia o clamor - mas abafado, t�nue e distante - com as doze badaladas. Atrav�s delas ouvia, com toda a nitidez, o bater do pr�prio cora��o.
Largou a ta�a que tinha na m�o e afastou o cobertor, para conseguir toc�-la. O gemido de frustra��o na sua garganta provinha da barreira de espessas camadas de roupa.
Queria sentir aquele corpo forte, curvil�neo, as suas formas, o gosto e o perfume.
Depois, o som de tiros f�-lo retrair-se, de um salto.
- Tiros de festejo, s� isso. - A respira��o dela sa�a em pequenas nuvens, enquanto tentava agarr�-lo novamente. Aquele homem sabia beijar, e ela n�o queria perder
aquela sensa��o inebriante de ter os seus l�bios, a l�ngua, os dentes a invadi-la.
Quem � que precisava de champanhe barato?
- Talvez, mas... tenho de ir ver.
Ela deu uma gargalhada entrecortada e agachou-se para apanhar as ta�as. - Sim, � melhor.
- Meg...
- Vai l�, Comandante. - Deu-lhe uma palmadinha carinhosa no joelho, e sorriu para aqueles olhos cinzentos fascinantes e perturbados. - Trabalho � trabalho.
- N�o devo demorar.
Ela tinha a certeza disso. Alguns tiros para o ar eram habituais nas festividades, nos casamentos, nascimentos - at� nos funerais, dependendo dos sentimentos relativamente
ao falecido.
Mas n�o lhe parecia sensato esperar. Em vez disso, ela deixou as cadeiras, a garrafa e as ta�as no alpendre principal. Levou o cobertor de novo para a carrinha e
atirou-o para dentro da cabine.
De seguida, conduziu para casa, enquanto as luzes verdes brincavam no c�u. E sabia que Hopp tinha raz�o. Nate Burke s� lhe ia trazer problemas.
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O Lun�tico
Registo Policial
Segunda-feira, 3 de Janeiro
8:03 Ocorr�ncia de desaparecimento de sapatos de neve do alpendre, resid�ncia de Hans Finkle. Respondeu Adjunto Peter Notti. N�o foi poss�vel confirmar a alega��o
de Finkle "Que (in�meras descri��es criativas eliminadas) Trilby anda a deitar o olho �s minhas botas velhas. Sapatos de neve afinal estavam na carrinha de Finkle.
9:22 Aviso de acidente rodovi�rio em Rancor Road. Responderam Comandante da Pol�cia Burke e Adjunto Otto Gruber. Brett Trooper e Virginia Mann envolvidos. Sem feridos,
apenas o dedo do p� de Trooper dorido como resultado de pontapear repetidamente o seu pr�prio p�ra-choques amolgado. N�o foi apresentada qualquer queixa.
11:56 Participa��o de confrontos entre Dexter Trilby e Hans Finkle, n'A Estalagem. A discuss�o, que incluiu mais descri��es criativas e variadas, aparentemente teve
origem no anterior incidente dos sapatos de neve. Respondeu Comandante Burke, e ap�s algum debate, foi sugerido que a alterca��o se resolvesse num torneio de damas.
� hora de fecho, estava doze a dez, a favor de Trilby. N�o foi apresentada qualquer queixa.
13:45 Den�ncia de m�sica alta e ve�culos em alta velocidade em Caribou. Responderam Comandante Burke e Adjunto Notti. James e William Mackie encontrados a fazer
corridas de carros de neve e a tocar uma grava��o de "Born to Be Wild" com o volume muito elevado. Ap�s uma breve persegui��o, e segundo algumas testemunhas, bastante
recreativa, seguiu-se um confronto empolgado com os agentes, durante o qual foi confiscado o CD que continha a faixa que causara os dist�rbios, que incluiu a alega��o
de James Mackie de que "Lunacy deixou de ser divertida". Os dois Mackies foram multados por excesso de velocidade.
15:12 Den�ncia de gritos nas redondezas de Rancor Wood, a tr�s quil�metros dos correios da vila. Responderam Comandante Burke e Adjunto Gruber. Verificou tratar-se
de um grupo de rapazes a brincar �s
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guerras, armados de bombinhas de Carnaval e uma embalagem doseadora de ketchup. Comandante Burke declarou tr�guas imediatas e escoltou os soldados - vivos, mortos
e feridos - a casa.
16:58 Den�ncia de dist�rbios em Moose. Responderam Comandante Burke e Adjunto Notti. Foi resolvida uma discuss�o entre uma rapariga e um rapaz de dezasseis anos,
que envolvia alegado romance com outro rapaz de dezasseis anos. N�o foi apresentada queixa.
17:18 Rapaz de dezasseis anos multado por condu��o perigosa e buzinar excessivo, enquanto percorria as ruas de Moose para tr�s e para a frente.
19:12 Respondendo a v�rias chamadas, Comandante Burke removeu Michael Sullivan do passeio no cruzamento de Lunacy com Moose, onde cantava a plenos pulm�es e, alegadamente,
desafinado uma vers�o de "Whiskey in a Jar". Sullivan passou a noite na cadeia para sua pr�pria seguran�a. N�o foi apresentada queixa.
Nate passou revista ao dia que acabava, e depois sobre o resto da sua segunda semana n'O Lun�tico. Esperara pelas queixas, assim que foi publicada a primeira edi��o
com os registos policiais. Mas n�o houvera nenhuma. Aparentemente, as pessoas n�o se importavam de ver os seus nomes impressos, at� quando eram ligados a v�rias
indiscri��es da sua vida pessoal.
Guardou o jornal numa gaveta da secret�ria, juntamente com o primeiro n�mero. Haviam passado duas semanas, pensou.
Ainda ali estava.
Sarrie Parker debru�ou-se no balc�o da Loja da Esquina. Deixara as botas de p�lo e a parca � porta, e pegara num pacote de pastilhas el�sticas Black Jack do expositor.
Estava ali para coscuvilhar, n�o para fazer compras, e as pastilhas el�sticas eram a desculpa mais barata e acess�vel. Fez a Cecil, o spaniel Dom Carlos de Deb,
uma festinha na cabe�a. Como sempre, estava deitado no seu cestinho almofadado junto ao balc�o. - N�o costumo encontrar o Comandante Burke n'A Estalagem.
Deb continuava a colocar ma�os de cigarros e tabaco de mascar nas prateleiras. A loja dela era local de divulga��o das not�cias da cidade. Se ela n�o sabia, era
porque ainda n�o tinha acontecido.
- Tamb�m n�o costuma aparecer por aqui. � reservado.
- Toma l� o pequeno-almo�o todos os dias com o menino da Rose,
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e quase todas as noites janta l� tamb�m. Se queres saber, n�o tem l� muito apetite.
J� que tinha o pacote de pastilhas el�sticas na m�o, Sarrie decidiu abri-lo. - Todas as manh�s lhe arrumo o quarto, mas n�o � que haja muito para arrumar. A �nica
coisa que o homem tem � a roupa e os apetrechos para fazer a barba. Nem uma fotografia, ou um livro.
Uma vez que tratava de quase todas as limpezas d'A Estalagem, Sarrie considerava-se uma perita em comportamento humano.
- Talvez ainda esteja para receber as suas coisas.
- N�o penses que j� n�o perguntei. - Sarrie acenava com um pauzinho de pastilha antes de o dobrar na boca. - Fiz quest�o disso. Disse-lhe, "Ent�o, Comandante Burke,
o resto das suas coisas v�m dos Lower 48?" E ele responde, "Trouxe tudo comigo". E tamb�m n�o faz telefonemas, pelo menos n�o do quarto. Nem recebe. Pelo que vejo,
a �nica coisa que ele faz ali � dormir.
Apesar de naquele momento n�o estar mais ningu�m na loja, Sarrie baixou a voz e debru�ou-se. - E apesar de a Charlene se atirar a ele, ele anda a dormir sozinho.
- Esbo�ou um aceno brusco. - Quando se muda os len��is de um homem, sabe-se o que se passa durante a noite.
- Talvez o fa�am no chuveiro ou no ch�o. - Deb teve o g�udio de ver o rosto rosado de Sarrie espelhar uma express�o de choque. - N�o h� nenhuma lei que diga que
temos de dar quecas na cama.
Sendo uma profissional do c�rculo dos mexericos, Sarrie recuperou rapidamente. - Se Charlene j� tivesse provado, achas que ainda ia andar atr�s dele como um c�o
atr�s de um coelho?
Fazendo uma pausa para co�ar Cecil atr�s das orelhas sedosas, Deb teve de lhe dar raz�o. - Talvez n�o.
- O homem vem para c�, quase s� com a roupa que traz no corpo, passa horas fechado no quarto, ignora as investidas de uma mulher e s� fala depois de muita insist�ncia,
bom, h� alguma coisa estranha com ele. Se queres que te diga.
- At� parece que � o primeiro desse tipo a aparecer por c�.
- Talvez. Mas ele � o primeiro a ser Comandante da pol�cia. - Ainda estava algo aborrecida por ele ter multado o filho, na semana anterior. Como se vinte e cinco
d�lares crescessem nas �rvores. - O homem est� a esconder alguma coisa.
- Por amor de Deus, Sarrie. Conheces algu�m por aqui que n�o esteja?
- N�o me interessa quem est� a esconder o qu�, a n�o ser que tenha autoridade para me p�r e aos meus na cadeia.
Impaciente agora, Deb martelava nas teclas da caixa registadora. - A
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n�o ser que estejas a pensar sair daqui sem pagar as pastilhas, n�o est�s a violar lei nenhuma. Por isso, n�o te preocupes.
O homem em discuss�o ainda estava sentado � secret�ria. Mas agora sentia-se encurralado. Durante duas semanas, conseguira escapar, ludibriar e driblar Max Hawbaker.
N�o queria ser entrevistado. Aos olhos de Nate, a imprensa era sempre a imprensa, quer fosse um seman�rio de vilarejo ou o Baltimore Sun.
Talvez os cidad�os de Lunacy n�o se importassem de ver os nomes no jornal, qualquer que fosse o motivo, mas ele ainda tinha de se livrar do sabor amargo que o minara
aquando da experi�ncia que tivera com os jornalistas, ap�s os tiroteios.
E sabia que tinha de engolir mais, quando Hopp marchou pelo seu gabinete adentro com Max a seu lado.
- Max precisa de uma entrevista. A vila tem de conhecer melhor o homem que tomou nas m�os a lei e a ordem. Da pr�xima vez que O Lun�tico for impresso, quero que
este artigo seja publicado. Por isso... m�os � obra.
Ela voltou a sair em passo de marcha e fechou a porta num �pice atr�s de si.
Max sorriu ir�nico. - Encontrei a Presidente quando vinha para c�, para ver se tinha uns minutos para falar comigo.
- Uh-huh. - Como estava a pensar jogar solitaire no computador para matar o tempo, ou convencer Peter a cumprir a promessa de lhe dar outra li��o de snowshoeing,
Nate n�o podia alegar que n�o tinha tempo.
Rotulara Max como um parvalh�o impaciente, do tipo que passara quase todos os dias do liceu a levar belinhas. Tinha um rosto redondo e af�vel, com cabelo castanho
liso que se esbatia sobre ele. Transportava mais quatro quilos e meio numa estatura de metro e meio, a maior parte alojados na barriga.
- Caf�?
- Se n�o der muito trabalho.
Nate levantou-se e serviu duas ch�venas. - Toma com qu�?
- Dois pinguinhos de leite, duas colheres de a��car. Hum, o que acha do nosso novo artigo, o registo policial?
- Para mim � tudo novidade. J� est� na posse dos factos. Parece-me exaustivo.
- Carrie queria mesmo inclu�-lo. Vou gravar isto, se n�o se importa. Vou tirar notas, mas gosto de ficar com um registo.
- Tudo bem. - Preparou o caf� de Max e levou-lho. - O que � que quer saber?
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Acomodando-se, Max tirou um pequeno gravador da mala de lona. Pousou-o na secret�ria, olhou para as horas e ligou-o. Depois tirou do bolso um bloco e um l�pis. -
Acho que os nossos leitores gostariam de saber algo mais sobre o homem por tr�s do distintivo.
- Parece o t�tulo de um filme. Desculpe, - disse ele ao ver o sobrolho de Max arquear. - N�o h� muito para saber.
- Vamos come�ar pelo b�sico. Importa-se de me dizer a sua idade?
- Trinta e dois.
- E era detective no DP de Baltimore?
- � verdade.
- Casado?
- Divorciado.
- Acontece aos melhores. Filhos?
- N�o.
- Baltimore � a sua cidade natal?
- Passei l� a vida toda, excepto as �ltimas duas semanas.
- Ent�o, como � que um detective de Baltimore acaba Comandante da pol�cia de Lunacy, Alasca?
- Fui contratado.
O rosto de Max permanecia af�vel, o tom de voz em jeito de conversa. - Teve de atirar a toalha para o ringue, para o contratarem.
- Queria mudar. - Come�ar de novo. Uma �ltima oportunidade.
- Algumas pessoas podem achar que se trata de uma mudan�a bastante radical.
- J� que vai fazer algo fora do habitual, porque n�o em grande? Gostei do que ouvi sobre o cargo, o lugar. Agora tenho a oportunidade de fazer aquilo que sei, mas
num cen�rio diferente, com um ritmo diferente.
- Estivemos a falar sobre o registo policial. N�o � poss�vel que seja algo a que j� estivesse habituado. N�o acha que se vai aborrecer? Chegado do ritmo e da ac��o
de uma cidade grande, para uma comunidade com menos de setecentos habitantes?
Cauteloso, Nate ponderou. N�o era �bvio que passava os dias sentado, aborrecido? Ou deprimido? Era dif�cil descobrir a diferen�a. Havia alturas em que n�o tinha
a certeza se havia uma diferen�a, uma vez que ambas lhe impregnavam uma sensa��o pesada e in�til.
- Baltimore v�-se como uma pequena grande cidade. Mas na realidade, a maior parte das vezes cumprimos o nosso trabalho com uma grande dose de anonimato. Um pol�cia
� igual a qualquer outro, um caso � empilhado em cima de outro.
E nunca encerramos todos, pensava Nate. Por mais horas extra que
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dedicasse, n�o os podia resolver a todos e acabava assombrado pelos Abertos e Activos.
- Se algu�m ligar para c�, - prosseguiu ele, - sabe que sou eu ou um dos adjuntos que vamos acorrer e falar com eles, para ajudar a resolver a situa��o. E eu tenho
de saber, passado mais algum tempo no cargo, quem � que precisa de ajuda assim que atendo a chamada. N�o se trata apenas de um nome no processo, mas sim de uma pessoa
que conhe�o. Acho que isto traz outro n�vel de satisfa��o ao meu trabalho.
Ficou surpreendido ao perceber que dissera a mais pura verdade, sem perceber realmente que ela sempre estivera latente.
- Costuma ca�ar?
- N�o.
- Pescar?
- Ainda n�o.
Max torceu os l�bios. - H�quei? Esquiar? Escalada?
- N�o. O Peter est� a ensinar-me snowshoe. Diz que vai fazer falta.
- E tem muita raz�o. Ent�o e passatempos, actividades de lazer, interesses?
O trabalho n�o lhe deixava muito tempo. Ou, corrigiu ele, permitira que o trabalho lhe consumisse o pouco que restava. N�o fora por esse motivo que Rachel come�ara
a olhar para o lado? - Mantenho as minhas op��es em aberto. Come�amos com o snowshoeing, e vamos ver o que vem a seguir. Como � que veio aqui parar?
- Eu?
- Gostava de saber alguma coisa acerca do tipo que me est� a fazer estas perguntas todas.
- � justo, - disse Max, passados instantes. - Andei em Berkeley nos anos sessenta. Sexo, drogas e rock and roll. Havia uma mulher - como � de prever - e migr�mos
para norte. Pass�mos algum tempo em Seattle. Comecei a dar-me com um tipo de l� que gostava de escalada. Fiquei com o bichinho. Continu�mos a migrar para norte,
eu e a mulher. Anti-sistema, vegetarianos, intelectuais.
Ele sorria, um homem com excesso de peso, a ficar careca e de meia-idade, que parecia divertido com quem fora, e com quem era agora. - Ela ia pintar; eu ia escrever
romances que expunham a gan�ncia do homem, enquanto viv�amos da terra. Cas�mos, o que acabou por estragar tudo. Ela acabou em Seattle. Eu acabei aqui.
- A publicar um jornal, em vez de escrever romances.
- Oh, ainda estou a trabalhar nesses romances. - Agora, ele n�o sorria, mas parecia distante e algo perturbado. - De vez em quando, pego neles. Est�o uma porcaria,
mas continuo a trabalhar neles. Continuo a n�o
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comer carne e ainda sou verdinho - do tipo ambientalista - o que irrita muita gente. H� coisa de quinze anos conheci Carrie. Cas�mo-nos. - O sorriso voltou. - Desta
parece que est� a resultar.
- Tem filhos?
- Um casal. A menina doze e o rapaz dez. Agora, vamos voltar a si. Esteve onze anos no DP de Baltimore. Quando falei com o Tenente Foster...
- Falou com o meu tenente?
- O seu antigo tenente. Para ter algumas informa��es. Ele descreveu-o como dedicado e disciplinado, o tipo de pol�cia que deslindava casos e trabalhava bem sob press�o.
N�o que algu�m se deva preocupar por o nosso Comandante da pol�cia possuir essas qualidades, mas parece demasiado qualificado para este cargo.
- Esse � um problema meu, - disse Nate, com simplicidade. - Por agora, n�o lhe posso dar muito mais tempo.
- S� mais um pouco. Esteve dois meses de baixa m�dica na sequ�ncia do incidente de Abril �ltimo, em que o seu parceiro, Jack Behan, e um suspeito morreram e voc�
ficou ferido. Esteve mais quatro meses ao servi�o, depois dos quais se demitiu. Leva-me a presumir que o incidente pesou bastante na sua decis�o de aceitar este
cargo. � correcto?
- J� lhe dei os meus motivos para aceitar este cargo. A morte do meu parceiro n�o tem rela��o nenhuma seja com quem for de Lunacy.
O rosto de Max apresentava-se fechado, e Nate viu que subestimara o homem. Um jornalista era um jornalista, lembrava-se, fosse onde fosse. E aquele cheirara uma
hist�ria.
- Tem a ver consigo, Comandante. As suas experi�ncias e motiva��es, o seu historial profissional.
- Historial � a palavra, por assim dizer.
- O Lun�tico pode ser amador, mas como editor, tenho de fazer o meu trabalho, apresentar uma hist�ria fiel e completa. Sei que o tiroteio foi investigado e que descobriram
que o disparo da sua arma foi justificado. Ainda assim, matou um homem naquela noite, e esse acto deve pesar bastante.
- Acha que se pega num distintivo e numa arma por desporto, Hawbaker? Acha que apenas servem para fazer n�mero? Um pol�cia sabe, todos os dias, quando pega na arma,
que pode ser nesse dia que vai ter de a usar. Sim, pesa bastante.
Sentia-se agitado, deixando uma frieza na voz t�o g�lida como o vento de Janeiro que batia com for�a nas vidra�as. - � suposto serem bastante pesados, a arma e o
fim a que se destina. Se me arrependo de a ter usado? N�o. Arrependo-me de n�o ter sido mais r�pido. Se tivesse sido mais r�pido,
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um bom homem ainda estaria vivo. Uma mulher n�o seria vi�va e duas crian�as ainda teriam o pai.
Max recostara-se na cadeira, molhando os l�bios repetidamente. Mas disparou. - Sente-se culpado?
- Fui o �nico a sair daquele beco com vida. - A irrita��o dissipou-se e deixou-lhe os olhos morti�os e cansados. - H� mais algu�m para culpar? Desligue o gravador.
Ficamos por aqui.
Max inclinou-se para a frente e desligou o aparelho. - Desculpe, se toquei nalgum ponto sens�vel. Por aqui n�o temos muito p�blico, mas o que existe tem o direito
a saber.
- � o que voc�s dizem sempre. Tenho de voltar ao trabalho.
Max pegou no gravador, guardou-o e levantou-se. - Eu, ah, preciso de uma fotografia para acompanhar o artigo. - O olhar silencioso de Nate obrigou Max a pigarrear.
- A Carrie pode vir ter consigo depois. A fot�grafa � ela. Obrigado pelo seu tempo. E... boa sorte para o snowshoeing.
Quando se viu sozinho, Nate sentou-se muito quieto. Esperou pela raiva, mas n�o havia meio de regressar. T�-la-ia acolhido, o calor indomado e a cegueira da f�ria.
Mas manteve a calma.
Sabia o que ia acontecer se mantivesse a frieza. Levantou-se, os movimentos lentos e controlados. Saiu e pegou no r�dio.
- Tenho de sair, - avisou Peach. - Surgiu uma coisa, pode contactar-me pelo r�dio ou pelo telem�vel.
- Vem a� tempestade, - preveniu ela. - E parece ser das m�s. � melhor n�o se afastar muito, para estar de regresso � hora do jantar.
- Volto j�. - Saiu para a entrada, pegando nos agasalhos. Manteve a mente vazia ao entrar no carro e come�ar a conduzir. Estacionou novamente defronte da casa de
Hopp, caminhou at� � sua porta e bateu.
Foi ela quem atendeu, usando um par de �culos de leitura presos por uma corrente sobre a camisa de bombazina grossa. - Ignatious. Entre.
- N�o, obrigado. Nunca mais me arme uma emboscada daquelas. Ela passava os dedos para cima e para baixo na corrente dos �culos, ao estudar o seu rosto. - Entre l�,
vamos conversar.
- � s� isto que tenho para lhe dizer. E mais nada. Ele virou-se, deixando-a de p� � porta.
Ele dirigiu-se para fora da cidade, para estacionar assim que a paisagem se despiu de casas. Avistou algumas pessoas a patinar no gelo. Imaginou que haveriam de
se recolher em breve, uma vez que a luz come�ava a rarear. Mais longe na placa de gelo ficava a cabana que algu�m usava como apoio � pesca no gelo.
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N�o viu o avi�o de Meg. N�o a via desde que haviam ficado a observar as luzes do norte.
Devia regressar, fazer aquilo que lhe pagavam para fazer. Apesar de aquilo que lhe pagavam para fazer n�o ser quase nada. Pelo contr�rio, deu por si � deriva.
Quando chegou a casa de Meg, os c�es dela estavam em alerta, de guarda. Ele saiu e esperou para ver qual seria a sua pol�tica de recep��o a visitas inesperadas.
Inclinaram as cabe�as, quase em un�ssono, e depois saltaram para a frente com um ladrar amistoso. Depois de uma exibi��o de saltos e corrida em c�rculos, um deles
correu na direc��o do canil, subiu os degraus e atravessou a entrada. Voltou com um osso enorme preso na mand�bula.
- De onde tiraste isso? De um mastodonte?
Estava ro�do, trincado e babado, mas Nate pegou nele, deduzindo a brincadeira, e atirou-o como um dardo.
Eles desataram a correr, aos encontr�es e atrapalhando-se mutuamente como dois jogadores de futebol a correr para o passe. Mergulharam na neve e emergiram totalmente
cobertos dela. O osso estava agora encaixado nos maxilares de ambos os c�es. Ap�s uma breve disputa aguerrida, deram um salto para tr�s como se estivessem a ser
puxados ao mesmo tempo.
- Trabalho de equipa, hein? - Ele pegou outra vez no osso e atirou-o para ficar a ver a cena repetir-se.
Estava no quarto passe quando os c�es se afastaram dele a correr, deixando rasto na superf�cie da neve. Segundos depois, ouviu o mesmo que eles. � medida que o zumbido
do motor crescia, Nate seguia o caminho dos c�es at� ao lago.
Viu o clar�o vermelho e o brilho subtil do Sol poente reflectido no vidro. Aos olhos de Nate, ela parecia levar demasiada velocidade e ir baixo de mais. Ele previa
que, na melhor das hip�teses, os skis batessem na copa das �rvores, e na pior das hip�teses, que o nariz se enterrasse no gelo.
O barulho suplantava tudo. Com os nervos � flor da pele, ficou a v�-la dar a volta, inclinar-se e a deslizar sobre o gelo. Seguiu-se um sil�ncio t�o profundo que
lhe pareceu ouvir o ar que ela deslocara a aterrar.
A seu lado, os c�es estremeciam, aos encontr�es, e saltaram da neve para o gelo. Correram e escorregaram, a ladrar de j�bilo e alegria evidentes, assim que a porta
se abriu e Meg saltou com um ru�do das botas. Agachou-se, deixando que eles a lambessem enquanto lhes fazia festas en�rgicas no p�lo. Assim que se ergueu, agarrou
num pacote que trazia dentro do avi�o. E s� depois � que olhou para Nate.
- Mais algu�m bateu com o carro? - Gritou ela.
- Que eu saiba, n�o.
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Com os c�es a dan�ar � volta dela, atravessou o pequeno caminho de gelo e transp�s o pequeno monte de neve. - Est�s aqui h� muito tempo?
- Cinco minutos.
- Ainda tens o sangue demasiado fino para enfrentares este frio. Vamos entrar.
- Onde � que foste?
- Oh, andei por a�. Fui buscar um grupo h� uns dias. Andam � ca�a de caribu - para fotografar. Levei-os hoje de regresso a Anchorage. Mesmo a tempo, - acrescentou
ela, olhando de relance para o c�u. - Vem a� uma tempestade. O ar estava a ficar muito interessante.
- N�o te assustas l� em cima?
- N�o. Mas de tempos a tempos lembro-me dos perigos. - J� na entrada da casa, despiu a parca.
- J� tiveste algum acidente?
- Uma vez tive de, digamos, fazer uma aterragem for�ada. - Descal�ou as botas com for�a, tirou uma toalha da caixa e agachou-se novamente para limpar as patas dos
c�es. - Vai entrando. N�o demoro nada, e aqui ficamos os quatro muito apertados.
Ele entrou, fechando a porta de dentro tal como lhe haviam ensinado, para n�o dissipar o calor.
As janelas deixavam entrar o �ltimo raio de Sol do dia curto, e na sala havia um misto de luz e sombras. Sentia o perfume das flores - n�o eram rosas, mas algo mais
primitivo e terreno. Uma mistura de cheiro a c�o com o fumo da lareira numa combina��o estranha e apelativa.
Ele esperara algo r�stico e constatou, mesmo � meia-luz, que errara redondamente.
Na zona da sala de estar espa�osa, as paredes exibiam um tom amarelo-p�lido. Para imitar o Sol, imaginava ele, e n�o dar hip�tese � escurid�o. A lareira era constitu�da
de pedra polida com tons dourados, reflectindo as labaredas dos troncos na pr�pria estrutura. Sobre a lareira ela havia disposto velas pequenas em tons de amarelos
fortes e azuis-escuros. O sof� comprido combinava com os azuis e estava apinhado de almofadas fofas que as mulheres insistiam em ter por todo o lado. Uma manta grossa,
com as cores principais fundidas umas nas outras, tapava as costas do sof�.
Havia candeeiros com sombras pintadas, mesas reluzentes, um tapete com padr�es e duas poltronas grandes.
Aguarelas, quadros a �leo, past�is, todas as cenas do Alasca decoravam as paredes.
� esquerda, as escadas levavam ao primeiro andar, e ele deu por si a sorrir para o corrim�o da escada esculpido em forma de totem.
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A porta abriu-se. Os c�es entraram � frente, ambos aos saltos por cima das cadeiras e acabando por se sentarem numa.
- N�o � o que estava � espera, - comentou ele.
- Tenho de tentar contrariar a monotonia. - Atravessou a sala, abriu a enorme caixa de cart�o e come�ou a tirar lenha cortada.
- Deixa-me ajudar.
- J� est�. - Ela debru�ou-se, pousou a lenha e virou-se para ele, ficando de costas para a lareira. - Queres comer?
- N�o. N�o, obrigado.
- Beber?
- Nem por isso, n�o.
Ela foi at� ao outro lado da sala, acendendo um dos candeeiros. - Sexo, ent�o.
- Eu...
- Porque � que n�o vais andando para cima? Segunda porta � esquerda. Deixa-me s� p�r �gua e comida aos c�es.
Saiu da sala, deixando-o plantado ali com os c�es a olhar para ele, com aqueles olhos cristalinos. Teria jurado que estavam a tro�ar dele.
Quando ela regressou, ele estava de p� no mesmo s�tio onde ela o deixara.
- N�o sabes onde fica a escada? Que raio de detective me sa�ste.
- Ouve, Meg... s� vim aqui para... - Passou a m�o pelo cabelo, percebendo que n�o fazia a m�nima ideia. Sa�ra da cidade com a sensa��o de ir mergulhar num buraco
negro, e a certa altura enquanto brincava com os c�es, fechara-se novamente.
- N�o queres sexo?
- Sei reconhecer uma pergunta falaciosa.
- Bom, enquanto pensas numa resposta, eu vou at� l� acima despir-me. - Sacudiu o cabelo pelos ombros e pelas costas abaixo. - Fico mesmo muito bem nua, se � que
est�s a pensar nisso.
- Imagino que sim.
- �s um bocado magricela, mas at� nem me importo. - Avan�ou para as escadas, inclinando a cabe�a. Sorriu e gesticulou com o dedo. - Anda l�, jeitoso.
- Sem mais nem menos?
- Porque n�o? N�o h� nenhuma lei contra. Sexo � simples. Tudo o resto � que � complicado. Por isso, vamos manter as coisas simples, por agora.
Ela come�ou a subir os degraus. Nate olhou para os c�es, atr�s dele, e soltou um suspiro. - Vamos ver se me lembro de ser simples. Subiu as escadas, parando no primeiro
andar. As paredes eram
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de um vermelho vibrante, excepto a que ostentava o espelho. Na parede oposta ao espelho havia uma estante com um televisor, leitor de DVD, e aparelhagem. No meio
estava o que lhe parecia ser o �ltimo grito em aparelhos de gin�stica. Virado para o televisor um tapete de corrida el�ptico, o fortalecedor de abdominais e um suporte
com pesos alinhados com o espelho.
Ele imaginava que o mini-frigor�fico guardasse garrafas de �gua, talvez at� algumas bebidas energ�ticas.
O quarto revelava que o corpo que estava prestes a ver nu estava habituado a exerc�cios rigorosos.
Ela deixara a porta do quarto aberta e estava acocorada diante de outra lareira, a ati�ar o lume. Viu uma cama colossal em forma de tren�, cheia de curvas e de madeira
escura. Mais arte e candeeiros acentuavam as formas verdes e cor de marfim.
- Vi o teu equipamento.
Ela enviou um sorriso lento por cima do ombro. - Ainda n�o.
- Ah. Estava a referir-me ao teu centro hefitness privado, na porta ao lado.
- Costuma fazer exerc�cio, Comandante?
- Dantes fazia. - Antes do Jack. - Ultimamente, n�o.
- Gosto do suor, e da descarga de adrenalina.
- Eu tamb�m gostava.
- Bom, tens de voltar a essa rotina.
- Pois. Tens aqui uma bela casa.
- Levei quatro anos a p�r tudo como queria. Preciso de espa�o, sen�o fico irritadi�a. Luzes acesas ou apagadas? - Ao ver que ele n�o respondia, ela endireitou-se
e espreitou por cima do ombro outra vez. - Descontraia, Comandante. N�o te vou fazer mal, a n�o ser que queiras.
Avan�ou at� � mesa-de-cabeceira e abriu uma gaveta. - Seguran�a em primeiro lugar, - anunciou ela e atirou-lhe um preservativo numa embalagem prateada.
- Est�s a racionalizar de mais, - decidiu ela ao ver que ele a fitava, com uma express�o algo confusa. E, pensava ela, ador�vel ao ver aquele cabelo despenteado
em tons avel�-torrada, aqueles olhos de her�i ferido. - Aposto que podemos resolver isso. Talvez precises de um certo ambiente. Tamb�m me agrada a ideia.
Acendeu uma vela e, caminhando pelo quarto, foi acendendo outras mais. - Um pouco de m�sica. - Abriu um arm�rio e ligou o leitor de CDs que estava l� dentro, ajustando
o volume bem baixo. Desta vez era Alanis Morissette, com a sua voz estranhamente apelativa a cantar acerca do medo da felicidade.
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- Se calhar, devia ter-te embebedado um bocadinho primeiro, mas agora j� � tarde para isso.
- N�o se pode dizer que n�o sejas original, - murmurou Nate.
- Podes apostar esse belo traseiro que sim. - Ela puxou a camisola por cima da cabe�a e atirou-a para cima de uma cadeira. - A roupa interior t�rmica torna o striptease
tudo menos er�tico, mas a recompensa deve ser suficiente.
Ele j� estava duro como pedra.
- Tencionas despir essa roupa toda, ou queres que trate disso por ti?
- Estou nervoso. Ao dizeres isso, fazes-me parecer um idiota.
Oh, pois, pensou ela outra vez. Bastante ador�vel. A honestidade num homem era sempre.
- S� est�s nervoso porque est�s a pensar. - Ela deixou cair as cal�as, saindo de dentro delas. Sentando-se na cama, descal�ou as meias. - Se n�o tivesses sido chamado
pelo dever na noite de Passagem de Ano, ter�amos acabado na cama.
- Quando voltei, tinhas desaparecido.
- � que comecei a pensar. Como podes ver, � fatal quando isso acontece. - Puxou para tr�s o edred�o e os len��is.
Ele pousou a camisa sobre a camisola dela. Ao tirar o telem�vel do bolso, pousando-o, encolheu os ombros. - Estou de servi�o.
- Bom, ent�o esperemos que todos se comportem. - Despiu o top t�rmico. Todos os m�sculos do corpo dele se contra�ram.
Ela era de porcelana - a pele branca delicada em curvas esculpidas. Mas n�o tinha nada de fr�gil. Em vez disso, emanava drama e confian�a, uma fotografia a preto
e branco que a luz banhava de dourado.
E ele viu, com um surpreendente impulso de lux�ria, quando ela se voltou para apagar a luz, deixando apenas as velas e a lareira acesa, a pequena tatuagem de asas
vermelhas abertas nas suas costas.
- Metade dos meus pensamentos acabaram de se evaporar.
Ela riu-se. - Vamos tratar da outra metade. Despe as cal�as, Burke.
- Sim, senhora.
Ele desapertou o cinto mas depois os seus dedos ficaram dormentes ao v�-la despir o resto da roupa t�rmica. Ficou com a boca seca como terra. - Tinhas raz�o. Ficas
muito bem nua.
- Gostava de retribuir o elogio, se despachares o raio da roupa. - Deslizou para dentro da cama, esticando-se. - Anda l�, lindo. Vem buscar-me.
Ela passou a ponta do dedo pelo seio enquanto ele se despia. - Mmm, nada mal, no que diz respeito ao tronco. Belo t�nus muscular para algu�m
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que n�o faz exerc�cio regular. E... - Sorriu, apoiando-se nos cotovelos ao v�-lo despir as cal�as. - Bom, bom, paraste mesmo de pensar. Veste esse soldado e vamos
para a guerra.
Ele acedeu, mas ao sentar-se na cama, limitou-se a passar o dedo pelo ombro dela. - D�-me um minuto para esquematizar primeiro o meu plano de batalha. Nunca vi uma
pele como a tua. � t�o pura.
- N�o julgues um livro pela capa.
Equilibrando-se, ela estendeu o bra�o e agarrou-lhe numa madeixa de cabelo, puxando-o para junto de si. - D�-me essa boca. O que provei n�o chegou para lhe tomar
o gosto.
Trespassaram-no, num fluxo imenso, todas as ansiedades, o desespero, os desejos fren�ticos que se aglomeravam numa lux�ria cega. O sabor dela explodia dentro de
si, o seu calor maduro e �vido queimava-lhe o sangue. A boca dele encontrava a dela, alimentava-se dela at� a fome que havia esquecido explodir de novo em vida.
N�o lhe era poss�vel saciar-se, a boca, o pesco�o, os seios. Os suspiros e gemidos dela eram como chicotes no seu desejo a descoberto, levando-o a querer ainda mais.
Pressionou a m�o no meio das coxas dela, enlouquecido ao sentir a humidade, o calor, e puxou-a t�o depressa, de forma t�o violenta para o pico que ambos estremeceram.
Foi como escalar uma colina silenciosa e verde, e v�-la transformar-se num vulc�o. Tudo aquilo se encontrava dentro dele, percebia ela. A surpresa perigosa por baixo
da calma ferida. Ela queria-o, aqueles olhos tristes, aquela postura calada. Mas ela n�o saberia o que ele lhe podia dar, assim que a m�scara lhe fosse arrancada.
Ela arqueou o corpo, abismada, enquanto ele lhe espalhava o calor por todo o corpo. Quando ela gritou, foi com um prazer irracional. Rolou com ele, cravando as unhas,
os dentes a mordiscar, as m�os �vidas e possessivas ao percorrerem a sua pele macia.
Os pulm�es dela queimavam a cada golfada de ar.
Ele queria devorar, invadir e dominar. Mergulhou dentro dela, e teria enterrado o rosto no seu cabelo, mas ela levou-lhe as m�os � face. E observou-o, num olhar
selvagem e azul, ao mesmo tempo que ele a penetrava, ao sentir que se perdia dentro dela. Observou-o at� ele se diluir dentro dela.
Havia sido sorvido, at� a sua pele n�o ser mais do que um recept�culo repleto de ar. N�o se lembrava como era sentir aquele peso imenso e indolente, que se fechava
sobre a sua mente, inflamando de tal forma o seu corpo que tornava o simples facto de se levantar da cama de manh� um exerc�cio de vontade e controlo.
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Estava cego, surdo e repleto. E se tivesse conseguido flutuar o resto do caminho at� ao esquecimento, tal como se encontrava, n�o teria emitido um murm�rio de queixume.
- N�o vale adormecer enroscado.
- Huh? O qu�?
- Aguenta os cavalos, gira�o.
Afinal de contas n�o estava nada cego. Conseguia ver a luz, sombras, formas. Nada daquilo fazia sentido, mas conseguia ver. Era �bvio que tamb�m conseguia ouvir,
porque a voz - a voz dela - pairava por ali, atravessando o zumbido subtil que vibrava na sua cabe�a.
E conseguia senti-la, submissa debaixo dele - aquele corpo macio, firme, curvil�neo e h�mido do suor que aflorara, a cheirar a sabonete, sexo e f�mea.
- � melhor dares-me um encontr�o, - disse ele, passados instantes. - Sou capaz de ficar paralisado.
- Pelo que vejo e sinto, n�o. - Mas plantou a m�o no ombro dele, e dedicou um certo esfor�o ao empurr�-lo de cima dela. Depois, inspirou e expirou de forma profunda
e sonora, e disse: - Meu Deus
- Acho que o vi a Ele, apenas um contorno subtil, por segundos. Estava a sorrir.
- Era eu. - Oh.
Ela n�o conseguia encontrar energia para se espregui�ar, preferindo um bocejo. - Algu�m andava muito reprimido. Mmmm. Sorte a minha.
Os circuitos no c�rebro dele come�avam a ligar-se novamente. Conseguia ouvi-los a faiscarem do contacto restabelecido. - J� passou algum tempo.
Curiosa, ela virou-se de lado. Viu as cicatrizes que os seus dedos haviam tocado. Feridas marcadas, cicatrizes de balas, percebeu-as, de lado, na coxa dele.
- Define "algum tempo". Um m�s? - Os olhos dele permaneciam fechados, mas a boca delineou uma curva. - Dois meses? Jesus, mais? Tr�s?
- Podemos concordar em cerca de um ano.
- Raios partam! N�o admira que tenha visto estrelas.
- Magoei-te?
- N�o sejas parvo.
- Talvez n�o o tenha feito, mas de certeza que te usei.
Deliberadamente, ela deslizou o dedo por uma cicatriz que serpenteava pela lateral do tronco dele. Ele nem vacilou, mas ela sentiu que ele se retra�a e decidiu n�o
insistir, por agora.
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- Diria que nos us�mos mutuamente, e t�o bem e de forma t�o intensa que toda a gente num raio de quil�metros desta cama est� neste momento deitada a apreciar um
belo cigarro.
- N�o te importas com isso?
- Sofres da s�ndrome de mem�ria curta, Burke? - Agora, ela espregui�ava-se e dava-lhe um encontr�o r�pido com o cotovelo no derradeiro gesto. - Quem � que teve a
ideia?
Por momentos ele ficou em sil�ncio. - Fui casado durante cinco anos. Fui infiel. Os �ltimos dois anos de casamento foram tempestuosos. Na verdade, o �ltimo ano foi
uma desgra�a completa. O sexo tornou-se um problema. Um campo de batalha. Uma arma. Tudo menos um prazer natural. Por isso estou enferrujado, e n�o tenho a certeza
do que as mulheres procuram neste dom�nio.
Ent�o, n�o havia problema se insistisse, pensou ela. - Eu n�o sou as outras mulheres. Sou eu. Lamento que a tua ex gostasse de gozar com a tua pila, mas eu posso
assegurar que esse ap�ndice ainda funciona muito bem, por isso talvez esteja na altura de ultrapassares isso.
- Faz parte do passado. - Mudou de posi��o, passando o bra�o por baixo dela. Sentiu que ela se retra�a um pouco, e a hesita��o do seu corpo antes de voltar a descontrair,
deixando que a sua cabe�a se apoiasse no ombro dele. - N�o quero que isto fique por aqui. N�s dois.
- Depois vemos o que achamos disso.
- Gostava de ficar, mas tenho de voltar. Desculpa.
- N�o te pedi que ficasses.
Ele virou a cabe�a para conseguir ver o rosto dela. Ainda tinha as faces rosadas, os olhos ensonados. Mas ele era um pol�cia perspicaz, e por isso captou a inquieta��o
por baixo do �-vontade. - Gostava que me pedisses para ficar, mas como teria de recusar, � uma perda de energia. Mas gostava de voltar.
- Hoje � noite n�o podes voltar. Esta tempestade vai cair e se te apanha aqui - o que n�o me parece -, vais ficar encurralado. Podem passar-se dias. Isso n�o vai
ser bom para mim.
- Se achas que � assim t�o mau, volta para a cidade comigo.
- N�o. Isso � que n�o me agrada mesmo nada. - Descontra�da agora, passava os dedos pelo peito dele, pela linha do maxilar e pelo cabelo. - Estou bem aqui. Muitos
mantimentos, muita lenha, os meus c�es. Gosto de uma boa tempestade, da solid�o que ela proporciona.
- E quando levantar?
Ela mexeu o ombro e, rolando, afastou-se. Levantando-se, foi nua at� ao arm�rio, a luz da lareira a dan�ar na sua pele branca e nas cintilantes asas vermelhas abertas,
antes de tirar um grosso roup�o de
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flanela. - Talvez me telefones, e se estiver por aqui, podes trazer-me uma pizza.
Vestiu o roup�o e sorriu, ao apert�-lo. - Dou-te uma gorjeta das boas.
7.
Os primeiros flocos come�aram a cair quando ele guiava de regresso � cidade. Gordos e macios, n�o pareciam particularmente amea�adores. Na verdade, achou-os pitorescos.
Lembravam-no da neve da sua inf�ncia, da que ca�a durante a noite e continuava pela manh� fora, por isso quando olhava pela janela do quarto, o entusiasmo ati�ava-lhe
o sangue.
N�o h� escola!
S� de pensar come�ou a sorrir, ao recordar os dias em que a neve era uma excita��o, e n�o um fardo ou um inconveniente. Talvez fosse recompensador, trazer toda aquela
alegria da inf�ncia de volta para dentro de si.
Olhar � volta, ver aqueles oceanos e rios brancos e considerar as possibilidades. Estava a aprender a fazer snowshoe, por isso talvez tentasse tamb�m o ski. Fazer
ski em estilo livre podia ser interessante. Al�m disso, perdera muito peso nos �ltimos meses. Aquele tipo de exerc�cio, aliado �s refei��es regulares que lhe serviam
a toda a hora, iam ajud�-lo a recuperar a forma muito em breve.
Talvez comprasse uma daquelas coisas para fazer ski e fosse correr para a neve, s� pelo gozo. Divertir-se um pouco, por amor de Deus. E podia apreciar a paisagem
campestre sem ser filtrada pela janela do carro.
Fez uma pausa para observar uma pequena manada de veados a abrir caminho pelas �rvores, � sua esquerda. Tinham os lombos rechonchudos e escuros, em contraste com
a neve que lhes chegava aos joelhos. Se � que os veados tinham joelhos.
Era um mundo totalmente novo para o rapaz da cidade, concluiu, cujas aventuras rurais at� ent�o se haviam resumido a algumas excurs�es campistas a oeste de Maryland.
Estacionou em frente � esquadra, lembrando-se de ligar � electricidade o aquecedor do motor, e depois ficou a ver Otto e Pete a puxar uma corda com n�s ao longo
do passeio, ao n�vel da cintura. Voltando a cal�ar as luvas, foi para junto deles.
- O que � que se passa aqui?
- Guia de corda, - disse Otto, e prendeu-a a um poste el�ctrico.
- Para?
- � normal afundar-se um metro assim que sai da porta, com um nev�o destes.
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- N�o parece assim t�o mau. - Nate deu uma olhadela para a rua e perdeu o olhar que Otto e Pete trocaram. - Quanto � que est�o a prever?
- Pode chegar ao metro e vinte.
Nate virou-se para tr�s, bruscamente. - Est�o a gozar.
- O vento est� a levantar, por isso as rajadas podem ser o dobro ou o triplo. - Havia um prazer evidente no tom de voz de Otto, enquanto ajeitava a corda. - Esta
neve n�o � a dos Lower 48.
Lembrou-se de Baltimore, e de como quinze cent�metros daquela coisa branca tinham a capacidade de parar a cidade. - Quero estes ve�culos estacionados fora daqui
e que verifiquem o equipamento de limpeza de neve.
- As pessoas costumam deixar os carros onde param, - disse Pete.
- Desimpedimo-los depois.
Nate pensou em seguir a m�xima de quando em Roma, mas depois abanou a cabe�a. Estava a ser pago para estabelecer a ordem, e por Deus, era o que ia fazer.
- Tirem-nos da estrada. Tudo o que estiver estacionado nesta rua daqui a uma hora ser� rebocado. No Alasca ou nos Lower 48, continua a ser um metro e vinte de neve
na rua. At� a tempestade passar, vamos estar alerta vinte e quatro horas. Ningu�m sai da esquadra sem um r�dio. Qual � a pol�tica para quem mora fora da cidade?
Otto co�ava o queixo. - N�o h� nenhuma.
- Vou pedir a Peach que arranje uma lista e contacte toda a gente. Vamos p�r em marcha a cria��o de abrigos para quem quiser.
Desta vez, ele apanhou o olhar c�mplice. Peter sorriu gentilmente.
- Ningu�m h�-de ir.
- Talvez n�o, mas pelo menos t�m escolha. - Pensava em Meg, a dez quil�metros e praticamente isolada. N�o ia ceder. Era uma certeza que tinha, em rela��o a ela.
- Ainda temos muita corda desta?
- Bastante. Normalmente, as pessoas tratam das suas guias.
- Vamos certificar-nos disso. - Entrou para dizer a Peach que pusesse m�os � obra.
Levou uma hora a organizar o procedimento, e mais dez minutos a tratar de Carrie Hawbaker, quando ela entrou disparada com a m�quina fotogr�fica digital. Ao contr�rio
do marido, ela parecia directa e r�spida, limitando-se a acenar para que ele voltasse ao que estava a fazer, e assim conseguir captar momentos espont�neos.
Ele deixou-a fotografar � vontade e falou com Peach sobre os planos de emerg�ncia para a neve em curso. N�o teve tempo para se preocupar com isso nem de pensar como
teria corrido a sua entrevista com Max.
- Contactou toda a gente fora da cidade? - Indagou a Peach.
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- Ainda faltam doze.
- Est� para chegar algu�m?
- At� agora, n�o. - Ia assinalando os nomes na lista. - As pessoas vivem l� fora porque gostam, Nate.
Ele acenou. - Contacte-as mesmo assim. Depois quero que v� para casa e que me ligue assim que chegar.
As suas faces papudas encheram-se num sorriso. - � mesmo m�e galinha.
- A seguran�a p�blica � a minha vida.
- E cantoria n�o lhe falta. - Tirou o l�pis do carrapito e acenou na direc��o dele. - � bom ver isso.
- Parece que uma tempestade traz ao de cimo a minha faceta de ave canora.
Espreitou na direc��o da porta, espantado ao ver que se abria novamente. Ser� que os habitantes de Lunacy n�o ficavam em casa durante uma tempestade?
Hopp lutava com o cabelo. - Est� a nevar � brava, - anunciou. - Ouvi dizer que est� a mandar tirar os carros todos da rua, Comandante.
- O limpa-neves n�o tarda a passar nas ruas principais.
- Vai ser preciso insistir muito.
- Parece que sim.
Ela acenou. - Tem um minuto?
- E pouco mais. - Gesticulou na direc��o do gabinete. - Devia ir para casa, Presidente. Se chegar ao metro e vinte, vai nadar em neve at� �s axilas.
- Sou baixinha, mas rija, e se n�o andar de um lado para o outro durante uma tempestade, fico com febre de cabana. Estamos em Janeiro, Ignatious. J� sabemos que
vamos ficar soterrados.
- Ainda assim, est�o cinco graus, escuro como as entranhas de um c�o morto e j� vamos a caminho do meio metro, com ventos de trinta e cinco n�s.
- Isso � o que se chama estar em cima do acontecimento.
- R�dio Lunacy. - Gesticulou na direc��o do r�dio port�til em cima do balc�o. - Prometeram emitir vinte e quatro horas por dia at� a tempestade passar.
- Fazem sempre isso. Por falar em m�dia...
- J� dei a entrevista. A Carrie tirou fotografias.
- E ainda est� chateado. - Inclinou a cabe�a para ele. - A cidade vai ter o primeiro departamento de pol�cia oficial e consegue um Comandante do Exterior. Isso �
not�cia, Ignatious.
- N�o h� como discutir quanto a isso.
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- Andou a fazer sapateado � volta de Max.
- Foi mais passo-doble. Aprendi agora mesmo.
- Qualquer que seja a coreografia, j� me deixei de dan�as. E o m�todo que escolhi ultrapassou alguns limites. Pe�o desculpas por isso.
- Aceites.
Quando ela estendeu a m�o para o cumprimentar, ele surpreendeu-a dando-lhe um apert�o amig�vel. - V� para casa, Hopp.
- Devia dizer o mesmo.
- N�o posso. Primeiro tenho de realizar um sonho de inf�ncia. Vou andar num limpa-neves.
Cada f�lego era como se inalasse farpas de gelo. Algumas dessas farpas conseguiam contornar os seus �culos e entravam-lhe nos olhos. Cada cent�metro do seu corpo
estava embrulhado com o dobro ou o triplo dos agasalhos, e ainda assim sentia um frio de cortar a respira��o.
Nada daquilo parecia real. O vento insano, o motor ensurdecedor do limpa-neves, a parede branca que os far�is mal conseguiam penetrar. De vez em quando, era poss�vel
vislumbrar o brilho de um candeeiro numa janela, mas a maior parte do mundo havia-se finado a cerca de meio metro de luz tr�mula diante da l�mina amarelo-can�rio.
N�o tentou fazer conversa. Achava que Bing tamb�m n�o queria falar com ele, mas o barulho tornava o assunto discut�vel.
Tinha de admitir que Bing manobrava a m�quina com a precis�o e a delicadeza de um cirurgi�o. N�o se tratava de varrer e empurrar apenas, como Nate esperara. Seguia
direc��es e locais de deposi��o, escava��es junto ao passeio, desvios na estrada, tudo executado em condi��es quase �s cegas, a uma velocidade que levava Nate continuamente
a engolir um grito de protesto.
N�o tinha d�vidas de que Bing ia adorar ouvi-lo guinchar como uma rapariga, por isso cerrou os dentes para se impedir de emitir qualquer som que pudesse ser confundido
com algo parecido.
Depois de despejar mais um carregamento, Bing pegou na garrafa castanha que enfiara debaixo do banco, abriu a tampa e deu um trago valente. O cheiro que chegou �
cara de Nate era t�o potente que lhe chegaram as l�grimas aos olhos.
Como estavam sentados, a contemplar a montanha de neve crescente, Nate decidiu arriscar um coment�rio. - Ouvi dizer que o �lcool diminui a temperatura do corpo,
- gritou ele.
- Propaganda de merda. - Para o provar, bebeu mais um trago da garrafa.
Tendo em conta que estavam sozinhos na escurid�o, numa tempestade,
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e que Bing contava com mais trinta quilos do que ele, e ia adorar, achava Nate, enterr�-lo na montanha de neve removida at� encontrarem o seu corpo frio e morto
no degelo primaveril, decidiu n�o argumentar. Nem sequer mencionar a lei contra a posse de recipientes abertos com �lcool num ve�culo ou os perigos de beber enquanto
se manobra maquinaria pesada.
Bing girou os ombros possantes. Nate apenas conseguia ver os olhos dele, semicerrados entre o bon� e o cachecol. - Veja por si. - Enfiou a garrafa na m�o de Nate.
N�o lhe parecia o momento para mencionar que n�o era l� grande bebedor. Seria mais diplomata, concluiu, e compincha se bebesse um trago. Ao faz�-lo, a sua cabe�a
explodiu e a garganta e as paredes do est�mago ficaram reduzidas a cinzas.
- Sant�ssima M�e de Deus.
Engasgou-se e, ao inspirar, engoliu farpas de fogo, em vez de gelo. Abafando o zumbido nos seus ouvidos, conseguia ouvir as gargalhadas. A n�o ser que aquele som
fosse o uivar de algum lobo gigante e man�aco.
- Mas que merda � esta? - Continuava a respirar com dificuldade, enquanto as l�grimas lhe saltavam dos olhos, congelando na face. - �cido de bateria? Plut�nio? Fogo
l�quido do Inferno?
Bing pegou na garrafa, deu um gole e fechou-a. - U�sque de merda de cavalo.
- Oh, perfeito.
- Um homem que n�o aguenta u�sque, n�o � homem.
- Se o crit�rio � esse, ent�o prefiro ser mulher.
- Vou lev�-la de volta, Mary. J� fiz o que podia por agora.
- Gra�as ao menino Jesus.
Ao redor dos olhos de Bing algo se moveu, dando a impress�o de um sorriso. Fez marcha-atr�s e deu meia-volta. - Apostei vinte notas no snooker, em como vai fazer
a mala at� ao fim do m�s.
Nate permanecia sentado e quieto, a garganta em fogo, os olhos a picar, os p�s como icebergues, apesar dos dois pares de meias e botas t�rmicas. - Quem trata do
snooker?
- Jim Trinca-Espinhas, trabalha no bar d'A Estalagem. Nate limitou-se a acenar.
N�o sabia onde Bing ia buscar o sentido de orienta��o, mas concluiu que o homem podia ter orientado Magalh�es. Conduzia a m�quina pela neve que n�o deixava ver nada,
levando-a directamente at� junto do passeio d'A Estalagem.
Os joelhos e os tornozelos de Nate gritaram de dor quando ele saltou. A neve no passeio chegava-lhe a esses mesmos joelhos enregelados, e o vento
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soprava abrupto no seu rosto, ao mesmo tempo que se tentava agarrar � corda guia e se empurrava na direc��o da porta.
O calor l� dentro era quase doloroso. Clint Black emanava da juke e substitu�a o zumbido dos seus ouvidos. Cerca de uma d�zia de pessoas estava sentada ao bar ou
nas mesas, a beber, comer, a conversar como se a ira de Deus n�o soprasse do outro lado da porta.
Lun�ticos, pensava. Todos eles.
Queria caf� - a escaldar - e carne vermelha. De bom grado a comeria crua.
Acenava respondendo �s pessoas que o cumprimentavam e lutava com fechos e colchetes quando Charlene correu para ele.
- Coitadinho! Deve estar um bloco de gelo. Deixe-me ajud�-lo com esse casaco.
- N�o � preciso. Eu...
- Os seus dedos devem estar todos duros.
Era demasiado estranho, surreal, ter a m�e da mulher com quem estivera na cama naquela tarde a desabotoar-lhe a parca coberta de neve.
- N�o � preciso, Charlene. Mas at� me sabia bem um caf�. Obrigado.
- Eu mesma lho trago, num instante. - Deu-lhe uma palmadinha na face gelada. - Deixe-se ficar a� sentadinho.
Mas assim que ele se viu livre de toda a roupa, � excep��o da camisa e das cal�as, dirigiu-se ao bar. Tirou a carteira e fez sinal ao homem a quem chamavam Jim Trinca-Espinhas.
- Aqui tem cem, - disse ele em voz alta o suficiente para ser aud�vel. - � para a aposta. Em como vou ficar.
Voltou a enfiar a carteira no bolso e sentou-se ao lado de John. - Professor.
- Comandante.
Nate inclinou a cabe�a para ler o nome do livro que o outro lia agora. - Bairro da Lata. Muito bom. Obrigado, Charlene.
- N�o tem de qu�. - Pousou o caf�. - Esta noite temos um belo guisado. Aquece-o num instante. A n�o ser que prefira que eu trate disso pessoalmente.
- O guisado � uma bela ideia. Tem quartos suficientes, para o caso de algumas destas pessoas terem de passar aqui a noite?
- H� sempre um quarto n'A Estalagem. Vou servir-lhe o guisado. Nate remexeu-se no banco, bebendo o caf� enquanto observava a sala. Algu�m havia escolhido um cl�ssico
de Springsteen na jukebox, e o Boss cantava os seus dias de gl�ria enquanto as bolas de snooker entravam nos buracos com estrondo. Reconhecia cada rosto - os habituais,
pessoas
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que via quase todas as noites. N�o conseguia ver os jogadores de snooker de onde estava, mas distinguia as vozes. Os irm�os Mackie.
- Algu�m daqui se vai embebedar e depois tentar ir para casa? - Indagou a John.
- Talvez os Mackie, mas Charlene vai tentar convenc�-los a n�o ir. A maioria daqui a uma hora ou duas come�a a recolher-se, mas os mais resistentes ainda v�o c�
estar de manh�.
- Em que acampamento vai montar a tenda?
- Depende de si. - John ergueu a cerveja.
- Ou seja?
- Se aceitar a proposta de Charlene, vou para o meu quarto sozinho; Se n�o, vou para o quarto dela.
- Eu s� estou aqui pelo guisado...
- Ent�o, passo esta noite no quarto dela.
- John. Isto n�o o incomoda?
John acabou de beber a cerveja. - O facto de me incomodar n�o vai mudar nada. A maneira de ser dela. Os rom�nticos gostam de dizer que n�o se escolhe quem se ama.
Discordo. As pessoas identificam e escolhem. Esta � a minha escolha.
Charlene trouxe o guisado, um cesto com peda�os de p�o fresco e uma fatia grossa de tarte de ma��.
- Um homem, a trabalhar com este tempo, tem de comer. Tem de fazer justi�a a este pit�u, Nate.
- Com certeza. Teve not�cias de Meg?
Charlene pestanejava como se estivesse a traduzir o nome de uma l�ngua estrangeira. - N�o. Porqu�?
- S� pensei que talvez tivessem entrado em contacto uma com a outra. - Para deixar o guisado arrefecer um pouco, come�ou pelo p�o. - Porque ela est� l� fora com
um tempo destes.
- Ningu�m cuida melhor de si mesmo do que Meg. Ela n�o precisa de ningu�m. Nem de homem nem de m�e.
Afastou-se, deixando a porta da cozinha bater atr�s dela.
- Ponto fraco, - comentou Nate.
- Vai-se logo abaixo. E ainda fica mais magoada, se achar que est� mais interessado na filha do que nela.
- Lamento ser motivo disso, mas estou. - Provou o guisado. Transbordava de batatas, cenouras, feij�o e cebola, al�m de uma carne possante, selvagem, que decerto
n�o provinha de nenhuma vaca.
Deslizou com suavidade at� ao seu est�mago e levou-o a esquecer-se do frio.
- Que carne � esta?
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- Deve ser alce.
Nate remexeu com a colher, analisando. - Ok, - retorquiu, e comeu.
Nevou a noite toda, e ele passou-a a dormir como uma pedra. A vista da janela ao acordar era como a est�tica num ecr� de televis�o. Conseguia ouvir o vento a soprar,
sentia a sua for�a de encontro � janela.
A electricidade estava cortada, por isso acendeu velas, que o fizeram pensar em Meg.
Vestiu-se, estudando o telefone. Tamb�m devia estar cortado. Al�m disso, n�o se telefona a uma mulher �s seis e meia da manh� s� porque se teve sexo com ela. N�o
tinha que se preocupar com ela. Passara a vida toda ali. Estava abrigada dentro de casa com os dois c�es e muita lenha.
Mas preocupava-se mesmo assim, enquanto pegava na lanterna para o guiar ao descer as escadas.
Era a primeira vez que via a estalagem vazia. As mesas estavam limpas, o bar despido. Faltava o cheiro a caf�, do bacon a fritar. Os ru�dos e as conversas matinais.
N�o havia nenhum rapazinho sentado � mesa a olhar para ele com um sorriso f�cil.
A �nica coisa presente era a escurid�o, o vento a uivar e... o ressonar. Seguiu o ru�do e apontou a luz sobre os irm�os Mackie. Estavam deitados, com os p�s voltados
para a cara um do outro, em cima da mesa de snooker, a ressonar debaixo de camadas de cobertores.
Depois, dirigiu-se � cozinha e, ap�s alguma demanda, descobriu um queque. Levando-o com ele, agarrou no equipamento de neve. Com o queque enfiado no bolso, abriu
a porta.
O vento quase o derrubou. A sua for�a, o choque, a neve amarga que lhe voava para os olhos, a boca, o nariz na batalha que travava apenas para sair da porta da rua.
A lanterna era quase in�til, mas continuava a empunh�-la, seguindo a linha da corda com a luz que emitia. Depois guardou a lanterna no bolso, agarrou na corda com
as duas m�os e come�ou a puxar-se.
No passeio, a neve chegava-lhe �s coxas. Era bem poss�vel que um homem se afogasse nela, em sil�ncio, at� mesmo antes de morrer devido � exposi��o ao frio.
Conseguiu lutar para subir pela estrada onde, gra�as ao limpa-neves de Bing, e ao u�sque de merda de cavalo, a neve lhe dava s� pela altura do tornozelo, excepto
se encontrasse algum buraco.
Tinha de atravessar a estrada quase �s cegas, e sem a guia, para chegar � esquadra. Fechou os olhos, visualizou a imagem da estrada, a localiza��o
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dos edif�cios na mem�ria. Depois, baixou os ombros para o vento, soltou a corda e agarrou a lanterna para come�ar a atravessar.
N�o fazia diferen�a nenhuma se estivesse no bosque em vez de numa cidade com ruas pavimentadas e passeios, com pessoas a dormir dentro de contraplacado e tijolo.
O vento era como uma onda tempestiva nos seus ouvidos, que o tentava puxar para tr�s sem que ele deixasse de tentar abrir caminho.
Estava sempre gente a morrer a atravessar a estrada, lembrava-se ele. A vida estava repleta de grandes riscos, e de surpresas ainda maiores. Dois tipos podiam sair
de uma churrascaria, e um deles acabar morto num beco.
Um idiota podia furar uma tempestade, tentar atravessar a estrada e acabar a vaguear sem rumo durante horas, at� cair morto de exposi��o aos elementos a tr�s passos
do abrigo.
Come�ara a praguejar quando as suas botas bateram nalguma coisa s�lida. Imaginando a berma do passeio, Nate agitava os bra�os como um cego, acabando por encontrar
a guia.
- Para a nossa pr�xima grande conquista, - murmurou, i�ando-se at� ao passeio coberto de neve. Arrastou-se at� encontrar o cruzamento da corda, e depois mudou de
direc��o e abriu caminho at� � porta exterior da esquadra.
Tentando perceber porque se dera ao trabalho de trancar a porta, agarrou nas chaves e usou a lanterna para ajudar a encontrar as fechaduras. Na entrada sacudiu-se,
mas manteve o equipamento vestido. Tal como suspeitara, a esquadra estava gelada. E o bastante, reparava, para que o gelo tivesse invadido as janelas no interior.
Algu�m mais atencioso do que ele havia empilhado lenha junto ao fog�o. Acendeu-o, e ficou com as m�os entrela�adas, luvas cal�adas, junto � chama. Assim que recuperou
o f�lego, fechou a porta do fog�o.
Tinha velas, um candeeiro a pilhas e j� achava que era mais do que suficiente para p�r m�os � obra.
Encontrou o r�dio a pilhas e ligou na frequ�ncia da esta��o local. Tal como prometido, estavam no ar, e algu�m com um sentido de humor muito perverso tocava Beach
Boys.
Sentado � secret�ria, manteve um ouvido na KLUN, e outro no r�dio de chamada de Peach e, lamentando-se pela falta de caf�, comeu o queque.
Por volta das oito e meia, ainda estava sozinho. Era uma hora razo�vel, concluiu, e sentou-se junto ao posto de r�dio. Peach havia-lhe ensinado as bases muito ao
de leve sobre o seu funcionamento, por isso decidiu fazer o primeiro voo.
- Daqui KLPD chama KUNA. Responda, KUNA. Meg, est�s a�?
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Atende ou comunica, ou l� como lhe chamam. - S� ouvia est�tica, ru�do, alguns apitos. - Daqui KLPD chama KUNA. V� l�, Galloway.
- Daqui KUNA � escuta. Tens licen�a para mexer nesse r�dio, Burke? Escuto.
Ele sabia que era rid�culo, mas sentiu-se invadir por uma sensa��o de al�vio s� de ouvir a voz dela. O prazer veio logo a seguir. - Sou Comandante de Opera��es.
Faz parte do distintivo.
- Diz escuto.
- Certo, escuto. N�o, est� tudo bem por a�? Escuto.
- Afirmativo. Estamos bem e quentinhos. Aninhados a ouvir taku. E tu? Escuto.
- Atravessei a estrada a p� e sobrevivi. O que � taku? Um grupo de rock? Escuto.
- � um vento bravo como o cara�as, Burke. Do tipo do que est� a abanar as tuas janelas neste momento. Que raio � que est�s a fazer na esquadra? Escuto.
- Estou de servi�o. - Deu uma olhadela pela sala, reparando que conseguia ver o pr�prio h�lito. - Est�s sem electricidade?
Ela aguardou um instante. - Eu digo escuto por ti. Com este tempo, claro que sim. Mas tenho o gerador ligado. Estamos bem, Comandante. N�o tem de se preocupar. Escuto.
- Se ligares de vez em quando, n�o me preocupo. Hei, sabes o que comi ontem? Escuto.
- Al�m de mim? Escuto.
- Ah. - C�us, como sabia bem, pensava ele. N�o queria saber se estava um frio de rachar ou n�o. - Pois, para al�m disso. Bebi u�sque de merda de cavalo e guisado
de alce. Escuto.
Ela riu-se, alto e com vontade. - Vamos fazer de ti um Dur�o, Burke. Tenho de ir dar comida aos c�es e ati�ar a lareira. At� logo. Desligo.
- Desligo, - murmurou ele.
J� estava suficientemente quente para despir a parca, apesar de n�o tirar o chap�u e o colete t�rmico. Pegara nos arquivos e come�ara � procura de algo que o ocupasse,
quando Peach abriu a porta de par em par.
- Perguntava-me se havia algum louco que tivesse vindo trabalhar hoje, - disse ela.
- S� eu. Como raio � que conseguiu chegar aqui?
- Oh, o Bing trouxe-me no limpa-neves. - Com a m�o sacudiu a neve da manga azul-beb� da camisola.
- Limpa-neves armado em t�xi. Deixe-me ajudar. - Apressou-se para pegar no saco grande que ela trazia. - N�o era preciso vir hoje.
- Trabalho � trabalho.
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- Sim, mas... caf�? Isto � caf�? - Tirou o termo de dentro do saco.
- N�o tinha a certeza se o gerador j� estaria a funcionar.
- N�o s� ainda n�o est� a funcionar, como tamb�m n�o sei se o consigo encontrar. E como mec�nica n�o � o meu forte, tamb�m n�o sabia o que fazer se o encontrasse.
Isto � caf�. Case comigo, e vamos ter muitos, muitos filhos.
Ela desatou �s risadinhas como uma colegial, dando-lhe uma palmada amig�vel. - Tenha cuidado, quando se p�e a fazer propostas dessas. L� porque j� me casei tr�s
vezes n�o quer dizer que n�o tente a quarta. Beba mas � um caf� e prove um bolinho de canela.
- Talvez pud�ssemos s� viver juntos, em pecado. - Pousou o saco em cima do balc�o e imediatamente come�ou a servir o caf� para uma caneca. O aroma atingiu-o como
um soco bem dado. - Para sempre.
- Se mostrar mais vezes esse sorriso, sou capaz de acreditar. Bom, vejam s� o que o taku trouxe, - acrescentou ela, ao ver Pete entrar.
- Raios partam. Mas que temporal. Falei com Otto. Vem a caminho.
- Tamb�m foi Bing que o trouxe?
- N�o, eu e o meu pai viemos de tren�.
- Tren�. - Era outro mundo, pensava Nate. Mas Peach tinha raz�o, trabalho era trabalho. - Ent�o, est� bem. Peter, vamos p�r o gerador a funcionar. Peach, entre em
contacto com os bombeiros. Vamos reunir uma equipa e limpar os passeios assim que clareie o bastante, para que as pessoas possam circular, em caso de necessidade.
As prioridades s�o em redor da cl�nica e da esquadra. Assim que Otto chegar, diga-lhe que os Mackie est�o apagados na mesa de snooker d'A Estalagem. Temos de garantir
que chegam a casa inteiros.
Vestiu a parca e passou revista � sua lista de tarefas mental. - Vamos ver se conseguimos falar com algu�m da companhia da electricidade, para sabermos quando regressa.
As pessoas v�o querer ser informadas. Dos telefones tamb�m. Quando voltar, elaboramos um comunicado, passamos para transmiss�o na r�dio, sobre o que sabemos, assim
que soubermos. Quero que as pessoas saibam que estamos aqui, se precisarem de ajuda.
E isso, descobriu Nate, tamb�m era uma boa sensa��o.
- Peter?
- Estou mesmo atr�s de si, Comandante.
Entrada de Di�rio - 18 de Fevereiro de 1988
Hoje quase perdi Han numa fenda. Foi tudo t�o r�pido. Estamos a escalar, cheios de motiva��o, a algumas horas do cume. Sentimos frio, fome, e uma
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imensa irrita��o, mas estamos motivados. S� um montanhista compreende a ess�ncia dessa combina��o. Darth est� na dianteira, sendo a �nica forma de ele n�o ter outro
ataque de f�ria, depois Han, e eu subo pelo flanco.
Mas esqueci-me do que aconteceu ontem. Os dias est�o a come�ar a ficar confusos, uma porta fria e branca que vai dar a outra porta fria e branca.
Perdi-me no ritmo do latejar da minha pr�pria cabe�a, no feiti�o da escalada, na subida pelo branco. Rastej�mos e gememos pelo fosso de uma rocha, avan�ando a bom
ritmo, tendo o c�u como destino.
Ouvi Darth gritar, Pedra! E a bala de canh�o do seixo que ele havia deslocado precipitou-se daquela imensa chamin�, rasando a cabe�a de Han. Tive um instante para
pensar, n�o, n�o quero ir por ali, esmagado por um punho de Deus, empurrado � for�a para fora da montanha. N�o me acertou, nem a Han, por mil�metros, passando por
n�s em mil�simos de segundos, e no embate espalhando fragmentos de outras pedras em todas as direc��es.
Amaldi�o�mos Darth, mas quase sempre nos amaldi�o�vamos uns aos outros, por tudo e por nada. Quase sempre mantendo um bom humor compincha. Ajuda a canalizar a adrenalina
� medida que subimos, e o ar est� t�o rarefeito que respirar � um exerc�cio doloroso e frustrante.
Sabia que Han estava com dificuldades, mas continu�mos. Continu�mos, levados pela obsess�o e pelos insultos implac�veis de Darth.
Os seus olhos pareciam loucos por tr�s dos �culos. Loucos e possu�dos. Enquanto penso na montanha como uma puta, ao mesmo tempo que penetro no seu ventre com a picareta
e dedos gelados, � uma puta que amo. Acho que para Darth ela � um dem�nio, e daqueles que se sente muito impelido em conquistar.
Nessa noite, deit�mo-nos enrolados como pit�es, com o mundo negro por baixo de n�s e o c�u negro por cima.
Fiquei a observar as luzes, um tremeluzir de jade l�quida que atravessava o espelho de escurid�o.
Hoje Darth tomou a dianteira de novo. Ser o primeiro parece ser outra obsess�o, e discuss�es s�o uma perda de tempo. Em qualquer dos casos, estava bastante preocupado
com Han para perceber o valor de subir pelo flanco, mantendo o mais fraco de n�s no meio.
Por isso, foi a ansiedade de Darth em ser o primeiro e a minha posi��o mais atr�s que salvou a vida de um de n�s os tr�s.
J� t�nhamos arrumado a corda. Eu j� havia dito que estava demasiado frio para usarmos a corda, ou n�o? Mais uma vez, est�vamos a avan�ar bem, subindo na centelha
do dia curto, em que at� os nossos praguejos eram arremessados pela f�ria do vento.
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Depois vi Han trope�ar e come�ar a escorregar. Foi como se o ch�o desaparecesse debaixo dele.
Um instante de descuido, um peda�o de neve varrida pelo vento, e ele ca�a na minha direc��o. Juro que n�o sei se o apanhei ou se ele ganhou asas e voou. Mas as nossas
m�os encaixaram, e embati com a picareta no gelo, rezando para que aguentasse, rezando para que a puta n�o nos lan�asse a ambos no vazio. Para a eternidade, estava
deitado de barriga para baixo, a segurar as m�os dele que, dependurado, pendia sobre o nada.
Depois a picareta de gelo de Darth cravou-se no ch�o a meu lado
- a um mil�metro do meu ombro, e o disparar do meu cora��o sincopava como um martelo pneum�tico. Ele usou-a como apoio e esticou-se para agarrar o bra�o de Han.
Aliviou um certo peso dos meus m�sculos em agonia e consegui enterrar-me mais, de costas. Os dois inclinados para tr�s, puxando Han com o sangue a ferver nos ouvidos
e os cora��es a palpitar no peito.
Rolando, afast�mo-nos do precip�cio e ali fic�mos deitados sobre a neve, a tremer debaixo daquele Sol frio e amarelo. A tremer pelo que pareciam horas, apenas a
metros da morte e do desastre.
N�o nos podemos rir. Nem mais tarde nenhum de n�s tem energia para tornar este pesadelo numa brincadeira. Estamos demasiado abalados para escalar, e o tornozelo
de Han est� feito num oito. Nunca chegaremos ao cume, e todos sabemos isso.
A �nica escolha que temos � escavar uma plataforma e acampar, preparar comida com os escassos mantimentos enquanto Han se entope de analg�sicos. Est� fraco, mas
n�o tanto que n�o deixe de revirar os olhos de medo, ao sentir o vento bater com os punhos fatais nas finas paredes das nossas tendas.
Dev�amos regressar.
Dev�amos regressar. Mas assim que verbalizei essa hip�tese, Darth perdeu as estribeiras, come�ou a refilar com Han, guinchando na personifica��o de uma mulher hist�rica.
Parece algo louco - talvez mais do que isso
- a olhar a escurid�o, o gelo pendurado na barba e nas sobrancelhas, luzes amargas nos olhos. O acidente de Han custou-nos um dia, e raios partissem se nos ia custar
o cume.
Ele tem raz�o, n�o o posso negar. Temos a meta quase � vista. Han � capaz de conseguir depois de uma boa noite de sono.
Amanh� escalamos, e se Han n�o conseguir, deixamo-lo, vamos fazer o que nos propusemos e no regresso trazemo-lo connosco.
Claro que � uma loucura, e at� medicado, Han parecia um caco e assustado. Mas deixo-me levar pelo entusiasmo. Passo daquele ponto sem retorno.
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O vento uiva como centenas de c�es furiosos. � o bastante para levar um homem � loucura.
8.
Durante trinta horas, a neve caiu e o vento soprou. O mundo era uma besta fria e branca que fustigava dia e noite, de presas � mostra, garras em riste para morder
e dilacerar quem fosse corajoso ou louco bastante para sair e a enfrentar.
Os geradores zumbiam e rumorejavam, as comunica��es estavam reduzidas a r�dios. As desloca��es eram miss�o imposs�vel, � medida que a besta rompia caminho, atravessando
o Interior sobre o sudeste do Alasca. Os carros e as carrinhas estavam soterrados, os avi�es nas pistas. At� os c�es de tren� aguardavam que passasse.
A pequena vila de Lunacy estava desligada do mundo, uma ilha gelada no meio de um mar cego e branco.
Demasiado ocupado a pensar, demasiado abismado para praguejar, Nate tratava das emerg�ncias - uma crian�a que ca�ra de uma mesa e tinha de ser levada para a cl�nica,
para ser cozida, um homem que tivera um ataque card�aco ao tentar desenterrar a carrinha, um inc�ndio numa chamin�, um desentendimento familiar.
Tinha Mike B�bedo - por oposi��o a Mike Grande, o cozinheiro - numa cela destrancada a dormir num beliche e Manny Ozenburger trancado noutra, a reavaliar a sua ideia
de passar a pickup Tundra por cima do Ski-doo do vizinho.
Mantinha as patrulhas a limpar a neve nas ruas principais e abriu caminho entre os montes brancos at� � Loja da Esquina.
Encontrou Harry e Deb sentados numa mesa de cartas desmont�vel diante dos enlatados, numa partida de gin, enquanto Cecil estava aninhado no cesto.
- Que tempestade dos Infernos, - gritou Harry.
- N�o, o Inferno � que trouxe a tempestade.
Nate empurrou para tr�s o capuz da parca, e parou para fazer uma pequena festa a Cecil. Estava sem f�lego e vagamente surpreendido por ainda estar vivo. - Preciso
de mantimentos. Vou ficar na esquadra at� isto passar.
Os olhos de Deb brilhavam. - Oh? Aconteceu alguma coisa n'A Estalagem?
- N�o. - Tirando as luvas, Nate come�ou a agarrar em bens essenciais para manter corpo e alma satisfeitos. - Algu�m tem de trabalhar com o r�dio - e temos alguns
convidados.
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- Ouvi dizer que o Mike B�bedo apanhou uma das grandes. Gin.
- Gin? Raios te partam, Harry.
- Apanhou uma bem grande, - concordou Nate, largando em cima do balc�o p�o, carne e batatas fritas. - E ficou por l� a cantar m�sicas do Bob Seger. A equipa de limpeza
da neve viu-o e apanhou-o, quando ele caiu de cara no ch�o no meio da rua. - Nate pegou numa embalagem de seis Coca-Colas. - Se n�o o tivessem visto e o tivessem
trazido, talvez o encontr�ssemos em Abril, a fazer companhia ao Elvis.
- Vou fazer-lhe a conta, Comandante. - Harry pegou no livro das contas e anotou a despesa. - E n�o estou convencido de que Elvis tenha morrido. � tudo?
- Vai ter de chegar. Se tiver de devolver alguma coisa, vai ser uma aventura.
- Porque � que n�o se senta um pouco, e bebe um cafezinho destes? - Deb j� se levantava. - Deixe-me fazer-lhe uma sandu�che.
Nate fitava-a. Normalmente ningu�m tratava assim um pol�cia. - Obrigado, mas tenho de voltar. Se precisarem de alguma coisa, disparem um foguete.
Voltou a cal�ar as luvas, prendeu o capuz e pegou no saco das compras.
L� fora, n�o parecia mais acolhedor do que h� cinco minutos atr�s. Sentiu os dentes e as garras avan�ar na sua direc��o, enquanto usava a corda e o instinto para
abrir caminho at� � esquadra.
Deixara todas as luzes acesas, para se conseguir orientar.
Conseguia ouvir o rumor abafado do limpa-neves de Bing, e esperava com toda a convic��o que Bing n�o estivesse a ir na sua direc��o, atropelando-o por acidente -
ou de prop�sito. A besta, era assim que imaginava a tempestade, fazia os poss�veis por ludibriar os esfor�os das equipas, mas o seu trabalho fazia a diferen�a.
Em vez de nadar num mar de neve, j� a conseguia contornar.
Ouviu tiros. Tr�s tiros r�pidos. Parou, colocando-se em alerta para tentar perceber a direc��o, e depois abanou a cabe�a e continuou. Esperava sinceramente que n�o
houvesse ningu�m deitado na neve com uma ferida de bala, porque n�o ia poder fazer absolutamente nada para ajudar.
Estava a cerca de tr�s metros da esquadra, concentrado no brilho da luz, animando-se s� de pensar no calor l� dentro, quando o limpa-neves de Bing apareceu da alvura.
O seu cora��o parou. Conseguiu ouvi-lo a desligar-se, a sensa��o l�quida do seu sangue a secar. O limpa-neves parecia enorme, uma montanha de m�quina em avalanche
na sua direc��o.
Parou, talvez a um metro sofr�vel da ponta das suas botas.
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Bing estava pendurado, a sua barba salpicada de neve dava-lhe um ar de Pai Natal tresloucado. - Veio dar um passeio?
- Pois. N�o me farto disto. Ouviu os tiros?
- Ouvi. E depois?
- Nada. Tem de descansar. O aquecedor est� aceso. Temos ingredientes para sandu�ches.
- Porque � que prendeu Manny? O Tim Bower conduz a porcaria do snowmobile como se fosse um adolescente maluco a toda a hora. Merda para a desordem p�blica.
Como estava congelado, Nate decidiu ignorar a parte da destrui��o de propriedade privada e condu��o perigosa. - Tim Bower estava sentado na porcaria do snowmobile
quando Manny o passou a ferro.
- Saiu mesmo a tempo, n�o foi?
Apesar de tudo, Nate deu por si a sorrir. - Aterrou de cabe�a num monte de neve. Foi o Jim Trinca-Espinhas que viu. Disse que parecia um salto mortal.
Bing limitou-se a grunhir, voltando a recolher a cabe�a e a fazer marcha-atr�s com o limpa-neves.
L� dentro, Nate tratou das sandu�ches, levou uma ao mal-humorado Manny e verificou como estava o Mike B�bedo.
Decidiu que ia comer junto ao r�dio. Gostava de ouvir a voz de Meg, de sentir aquela liga��o estranha e sensual. H� muito tempo que n�o tinha ningu�m com quem falar
sobre o seu dia de trabalho, que n�o tinha ningu�m com quem o quisesse fazer. A conversa de certa forma temperava a sua refei��o simples e trazia algum conforto
� solid�o.
- J� perdi a conta �s vezes que Tim bateu com o snowmobile, - disse ela, depois de ele lhe contar sobre a destrui��o final. - Manny fez um favor a todos. Escuto.
- Talvez. Acho que vou tentar convencer Tim a n�o apresentar queixa, se Manny pagar os estragos. Est�s a pensar vir � cidade, assim que o tempo permitir? Escuto.
- N�o sou boa a fazer planos. Escuto.
- � quase noite de cinema. Queria provar as tuas pipocas. Escuto.
- � uma possibilidade. Tenho uns trabalhos agendados para quando tiver autoriza��o para voltar a voar. Mas gosto de cinema. Escuto.
Ele bebeu Coca-Cola e imaginou-a sentada ao p� do r�dio, com os c�es aos p�s e o brilho da lareira por tr�s. - Porque � que n�o combinamos? Escuto.
- N�o gosto de combina��es. Escuto.
- Nunca? Escuto.
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- O que tiver de acontecer, acontece. Como ambos gostamos de sexo, � bem prov�vel que as coisas aconte�am.
Como ela n�o disse "escuto", ele presumiu que estava a pensar no assunto. N�o havia d�vidas que ele estava.
- Vamos fazer o seguinte, Burke, da pr�xima vez que as coisas acontecerem, contas-me a tua hist�ria comprida e triste. Escuto.
Ele imaginava a tatuagem vermelha no fundo das suas costas. - Porque � que achas que tenho uma para contar? Escuto.
- Lindinho, �s o homem mais triste que j� vi na vida. Contas-me a hist�ria e depois vemos o que acontece a seguir. Escuto.
- Se n�s... raios partam.
- Que barulho foi esse? Escuto.
- Parece que o Mike B�bedo acordou e desatou a vomitar na cela. O Manny n�o est� a achar gra�a nenhuma, - acrescentou, ao som de v�mitos e berros de ofensa que inundava
as celas. - Tenho de ir. Escuto.
- Bolas, um pol�cia vive no fio da navalha. Escuto e termino.
Tendo em conta as circunst�ncias, Nate optou por deixar os dois prisioneiros apanhar boleia com o limpa-neves. Enfrentando os elementos, saiu para deitar mais gas�leo
no gerador.
Depois de um aceso debate, pegou numa das camas militares e levou-a para junto do r�dio. Lembrou-se depois e remexendo na gaveta de Peach, encontrou um dos seus
romances em edi��o de bolso.
Instalou-se com o livro - deixando um alerta mental para o guardar, com a sua capa sensual, no s�tio onde o encontrara -, uma Cola e os sons da tempestade.
O livro era melhor do que imaginara e levava-o para os campos verdes, luxuriantes da Irlanda na �poca dos castelos e das fortalezas. Sentiu uma imensa dose de magia
e fantasia, por isso viu-se impelido a seguir as aventuras da feiticeira Moira e do Pr�ncipe Liam com consider�vel interesse.
A primeira cena de amor obrigou-o a parar, s� de imaginar a maternal Peach a ler sobre sexo - entre atendimentos telef�nicos e bolinhos doces. Mas deixou-se levar
novamente.
Adormeceu com o livro aberto sobre o peito e as luzes ainda acesas.
A feiticeira tinha o rosto de Meg. O cabelo preto, como tinta-da-china, espraiava-se ao vento como asas. Encontrava-se numa colina branca com a luz brilhante do
Sol, que atravessava a t�nica vermelha fina que ela trazia vestida. Ela ergueu os bra�os, deixando a t�nica deslizar dos ombros,
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acariciando-lhe o corpo ao descer. Nua, avan�ou para ele. Os seus olhos eram azuis gelados ao abrir os bra�os para o receber.
Sentiu os l�bios nos dele, quentes. Esfomeados. Estava debaixo dela, rodeado por ela. Quando ela se ergueu, o vento selvagem fustigou-lhe o cabelo. Ao baixar-se,
sentiu-se queimar pelo calor que a rodeava.
- O que � que te deixa t�o triste?
Subitamente, depois do prazer, veio a dor - abrupta, lancinante. Tentou afast�-la, e encolheu o corpo. O impacto ardente de balas a penetrar a carne.
Mas ela sorria, apenas sorria. - Est�s vivo, n�o est�s? - Ergueu a m�o, coberta de sangue dele. - Se est�s a sangrar, � porque est�s vivo.
- Fui alvejado. Bolas, levei um tiro.
- E est�s vivo, - disse ela, ao ver o sangue dele a pingar da m�o para a cara dele.
Estava no beco, rodeado do odor a sangue e p�lvora. A lixo e morte. O ar h�mido da chuva. Frio, muito frio para Abril. Frio, h�mido e escuro. Tudo envolto numa n�voa,
os gritos, os tiros, a dor quando a bala se enterrou na perna.
Ficara para tr�s, e Jack entrou primeiro.
N�o devia estar ali. Que raio � que estavam ali a fazer?
Mais tiros, flashes de luz na escurid�o. Ru�dos surdos. Seria ferro a bater na carne? Aquela dor colossal e obscena de lado que o deitou abaixo outra vez. Tinha
de rastejar, rastejar pelo cimento molhado at� onde o parceiro, o amigo, se encontrava ca�do.
Mas desta vez, Jack virou a cabe�a, e os olhos estavam vermelhos como o sangue que jorrava do seu peito. - Mataste-me. Seu filho da m�e, est�pido. Quem devia estar
morto eras tu. Agora v� l� se consegues viver com isso.
Acordou com suores frios, a voz do parceiro no sonho ainda a ecoar na sua cabe�a. Com esfor�o, Nate sentou-se na berma da cama militar. Deixou cair a cabe�a sobre
as m�os.
At� ao momento, pensava ele, estava a fazer um p�ssimo trabalho a viver com isso.
Obrigou-se a levantar e colocou novamente a cama na cela. Pensou nos comprimidos que guardara na gaveta da secret�ria, mas passou pelo gabinete para ir l� fora,
deitar o �ltimo combust�vel no gerador.
S� quando voltou para dentro � que percebeu que j� n�o estava a nevar.
O ar estava perfeitamente parado, perfeitamente calmo. Ainda resistia um rasto de luar que brilhava nos mont�culos e mares de neve, numa
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tonalidade azul-p�lido. E a sua respira��o era vis�vel em nuvens enquanto ele permanecia im�vel, como um insecto, pensava, preso em cristal, e n�o em �mbar.
A tempestade passara, e ele ainda estava vivo.
V� l� se consegues viver com isso. Bom, pensava ele. Ia continuar a tentar viver com isso.
L� dentro, fez um caf� e ligou o r�dio. Uma voz sonolenta - que identificou como Mitch Dauber, a voz de Lunacy - empenhava-se nas not�cias locais, avisos e na previs�o
meteorol�gica.
As pessoas come�avam a aparecer, como ursos a sair das grutas. Traziam p�s e ancinhos nas m�os. Reuniam-se para conversar, comiam, passeavam e dormiam.
Viviam.
O Lun�tico
"O Relat�rio Policial"
Quarta-feira, 12 de Janeiro
9:12 Foi comunicado um inc�ndio na chamin� da resid�ncia de Bert Myers. Responderam o bombeiro volunt�rio Manny Ozenburger e o Comandante Ignatious Burke. O fogo
teve origem numa acumula��o de creosoto. Myers sofreu uma ligeira queimadura na m�o quando tentava tirar a lenha que ardia na lareira. Ozenburger classificou a sua
ac��o de "idiota".
12:15 Jay Finkle, de cinco anos, feriu-se ao cair do triciclo no quarto da sua resid�ncia. O Comandante Burke assistiu Peter Finkle, pai de Jay, a transportar o
menino ferido para a cl�nica de Lunacy. Jay levou quatro pontos e um chupa-chupa de uva. O Rodinhas n�o sofreu danos e Jay afirma que de futuro vai conduzir com
mais precau��o.
14:00 Registada queixa de Timothy Bower contra Manny Ozenburger. Testemunhas confirmam que Ozenburger bateu com a carrinha no Ski-doo de Bower, enquanto este o manobrava.
Apesar de um inqu�rito informal indicar que apenas 52 por cento acredita que Bower estava a pedi-las, Ozenburger foi detido. Foi feita queixa. Os membros dos Bombeiros
Volunt�rios de Lunacy est�o a organizar um buffet Liberdade para Manny, coma-at�-cair-para-o-lado.
14:55 Kate D. Igleberry foi alegadamente agredida pelo parceiro, David Bunch, na sua resid�ncia em Rancor Road. Por seu lado, Bunch alega ter sido agredido por Igleberry.
Responderam o Comandante Burke e o Adjunto Otto Gruber. Ambos os queixosos apresentavam provas de ferimentos na cara e no corpo e, no caso de Bunch, uma marca de
dentes no gl�teo esquerdo. N�o foi apresentada queixa.
15:40 James e William Mackie foram acusados de condu��o perigosa e excesso de velocidade em Ski-doos. William Mackie afirma que "Ski-doos n�o s�o como a porcaria
dos carros". Como ve�culos recreativos, ele acredita que devem ser uma excep��o aos limites impostos e vai levar o assunto � pr�xima assembleia municipal.
17:25 As equipas de remo��o de neve encontraram um homem a caminhar algo desorientado � beira da estrada, perto do sul de Rancor Woods. Ouviram-no a cantar "A Nation
Once Again". Mais tarde identificado como sendo Michael Sullivan, o homem foi transportado para o DP de Lunacy e encontra-se sob cust�dia do Comandante da Pol�cia,
Ignatious Burke.
Sozinho na esquadra, Nate passava os olhos pelo resto do registo. Continuava, com relat�rios de bebedeiras e desacatos, desaparecimento e reencontro de um c�o desaparecido,
a chamada de um dos moradores fora da cidade com um caso s�rio de febre de cabine, alegando que viu lobos a jogar p�quer no alpendre.
Colocaram os nomes em todos os artigos, por mais embara�osos que fossem para os implicados. Perguntou-se como seria se o The Baltimore Sun, por exemplo, tivesse
sido t�o pormenorizado e implac�vel ao listar as chamadas, os nomes e as ac��es levadas a cabo pela for�a policial de Baltimore.
Tinha de admitir que achava tudo aquilo deveras divertido.
Max e Carrie provavelmente haviam recolhido todos os artigos para o jornal e acorrido � impress�o assim que acabou a tempestade, pensou. As fotografias da tempestade
e do rescaldo tamb�m haviam ficado muito boas. E o artigo sobre ela, com texto de Max, era quase po�tico.
N�o se importou com o artigo sobre si tanto quanto pensara de in�cio. Na verdade, ia guardar um exemplar, juntamente com dois primeiros n�meros que comprara de O
Lun�tico.
Quando tivesse oportunidade de voltar a casa de Meg, haveria de lhe levar um.
Uma semana depois de a tempestade atacar, as estradas estavam j� bastante limpas. Passar por casa dela para lhe levar o jornal n�o podia ser visto como um encontro.
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Se lhe telefonasse, s� para confirmar se ela estava l�, e n�o a voar algures, n�o podia ser visto como planos concretos.
S� estava a ser pr�tico.
Como esperava que o pessoal chegasse a qualquer momento, Nate guardou o jornal numa gaveta da secret�ria e levantou-se para ati�ar o lume no fog�o a lenha.
Hopp empurrou a porta exterior.
- Temos problemas, - declarou ela.
- Maiores do que um metro e meio de neve?
Ela puxou o capuz para tr�s. Por baixo, o seu rosto estava branco como cal. - Tr�s rapazes desaparecidos.
- D�-me os pormenores. - Recuou. - Quem, quando e onde foram vistos pela �ltima vez.
- Steven Wise, filho de Joe e Lara, o primo Scott de Talkeetna, e um dos amigos de faculdade. O Joe e a Lara pensavam que Steven e Scott estavam em Prince William
nas f�rias de Inverno. Os pais de Scott pensavam o mesmo. Lara e a m�e de Scott falaram pelo r�dio ontem � noite para passar o tempo e saberem as novidades e acabaram
por descobrir que algumas das coisas que os rapazes lhes haviam contado n�o batiam certo. Ficaram desconfiadas, tanto que Lara tentou ligar para Steve, na faculdade.
Ainda n�o voltou... nem Scott.
- Onde � a faculdade, Hopp?
- Anchorage. - Passou a m�o pelo rosto.
- Ent�o t�m de informar o Departamento de Pol�cia de Anchorage.
- N�o. N�o. Lara conseguiu falar com a namorada de Steven. Aqueles idiotas est�o a tentar uma escalada de Inverno � encosta sul da Sem Nome.
- O que � a Sem Nome?
- � a maldita montanha, Ignatious. - O medo saltava-lhe dos olhos. - Uma maldita montanha, grande como o raio. Est�o desaparecidos h� seis dias. A Lara perdeu o
tino.
Nate foi direito ao gabinete e agarrou no mapa. - Mostre-me a montanha. - Aqui. - Espetou o dedo. - � a favorita dos locais, e muitos montanhistas do Exterior costumam
us�-la para divers�o, numa esp�cie de treino para tentarem escalar Denali. Mas tentar a escalada em Janeiro � uma estupidez pegada, especialmente para tr�s mi�dos
inexperientes. Temos de telefonar para a equipa de Busca e Salvamento. P�r avi�es no ar � primeira luz do dia.
- Ent�o temos tr�s horas. Vou contactar a B e S. Pegue num daqueles r�dios e chame o Otto, Peter e Peach. Depois, queria saber quem s�o todos os pilotos, � excep��o
de Meg, que cobrem a �rea.
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Perscrutou os n�meros de telefone que Peach lhe entregara numa lista ordenada. - Quais s�o as hip�teses de ainda estarem vivos?
Com o r�dio na m�o, Hopp sentou-se pesadamente. - Precisam de um milagre.
Cinco minutos depois de receber a chamada, Meg estava vestida e a colocar o equipamento. Sentiu-se tentada a ignorar a chamada via r�dio do Departamento de Pol�cia
de Lunacy, mas decidiu que podia ser uma actualiza��o sobre os montanhistas perdidos.
- Daqui KUNA responde. Escuto.
- Vou contigo. Vai buscar-me ao rio de caminho. Escuto. Sentiu-se vibrar pela irrita��o que a assolava, ao mesmo tempo que enfiava medicamentos extra na mala. -
N�o preciso de co-piloto, Burke. E n�o tenho tempo a perder s� para te mostrar a vista. Assim que os encontrar, entro em contacto contigo. Escuto.
- Vou contigo. Aqueles rapazes merecem mais um par de olhos, e os meus s�o bons. Estarei pronto assim que chegares. Escuto e desligo.
- Raios partam. Detesto her�is. - Pegou na mochila e, escoltada pelos c�es, saiu. Pegou no resto do equipamento e, com a lanterna, desceu at� ao lago com as raquetes
para a neve.
J� voara duas vezes, desde que haviam dado permiss�o, com o fim da tempestade, e dava gra�as a Deus de j� n�o precisar de uma hora para p�r o avi�o operacional.
Nem sequer pensou nos rapazes, mortos ou vivos, na montanha. Limitou-se a executar um gesto atr�s do outro.
Puxou as capas das asas e guardou-as. Dava trabalho, mas muito menos do que se tivesse de raspar o gelo das asas desprotegidas. Depois de drenar os dep�sitos de
�gua por baixo dos tanques de cada asa, subiu para verificar o n�vel de gas�leo a olho. Encheu o dep�sito.
Descrevendo um c�rculo, verificou os flaps, o leme traseiro, cada parte do avi�o que se movia para ter a certeza de que tudo se encontrava em seguran�a.
J� se haviam perdido vidas, lembrava-se, devido a um parafuso solto.
Concentrada apenas na vistoria de seguran�a, girou a h�lice v�rias vezes para remover vest�gios de �leo derramado.
Deslizando para dentro do avi�o, despiu o equipamento da neve e colocou o cinto.
Ligou a igni��o, colocando o motor a funcionar. A h�lice girou, primeiro devagar, e depois o motor disparou um ronco envolto em fumo. Enquanto o motor aquecia, verificou
o painel de instrumentos.
Ali estava em pleno controlo, o mais segura que podia, tal como se fosse outra pessoa qualquer na mesma posi��o.
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O dia ainda mal raiara quando soltou os trav�es.
Colocou os flaps em posi��o, ajustou o profundor para a descolagem, e deu um ligeiro aban�o aos instrumentos, ao mesmo tempo que olhava l� para fora para ter a certeza
que os ailerons se moviam, se os elevadores respondiam. Satisfeita, endireitou-se no assento.
Beijou os dedos, levando-os a tocar a fotografia de Buddy Holly presa com um �man ao painel de instrumentos. E empurrou a alavanca para a frente.
Ainda n�o havia decidido se iria a Lunacy ou n�o. Ao dar a volta ao lago, ganhando velocidade para a descolagem, n�o se conseguia decidir.
Talvez fosse, talvez n�o.
Levantou o nariz, erguendo-se nos ares assim que a aurora come�ou a romper a leste. Com um encolher de ombros, apontou o nariz na direc��o de Lunacy.
Ele estava onde disse que estaria. De p� na orla do gelo com uma montanha de neve nas costas. Trazia uma mochila ao ombro. S� lhe restava esperar que algu�m tivesse
dito ao cheechako o que levar como equipamento de emerg�ncia. Viu que Hopp estava com ele, e o seu est�mago contraiu-se ao reconhecer as outras silhuetas como sendo
Joe e Lara.
Obrigava-a a pensar nas probabilidades. Nos corpos que transportara antes. Nos que podia vir a transportar hoje.
Aterrou na capa de gelo, � espera com os motores a trabalhar, que Nate fosse ter com ela.
A for�a da h�lice insuflava o casaco dele, o cabelo. At� que subiu os degraus, arrumou a mochila e apertou o cinto.
- Espero que saibas no que te est�s a meter, - disse ela.
- N�o fa�o a menor ideia.
- Talvez seja melhor assim. - Beijou os dedos e levou-os � foto de Buddy. Sem olhar para os rostos aterrorizados � sua direita, empurrou a alavanca para levantar
voo.
Com o microfone manual, contactou a torre de controlo em Talkeetna e deu-lhes os dados de voo. Depois descolaram, acima das �rvores rumando a este, nordeste sob
a palidez do Sol.
- �s s� olhos e lastro, Burke. Se Jacob n�o estivesse em Nome, de visita ao filho, n�o teria concordado que viesses comigo.
- Entendido. Quem � o Jacob?
- Jacob Itu. O melhor piloto de mato que conheci. Foi ele quem me ensinou. - O homem com quem partilhaste pipocas na assembleia municipal?
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- Exacto. - Entraram numa bolsa de ar e ela viu a m�o dele em punho, num reflexo aos solavancos. - Se enjoares, vou ficar muito chateada.
- N�o. S� detesto voar.
- Porqu�?
- Gravidade.
Ela sorriu ao ritmo dos solavancos. - Se a turbul�ncia te incomoda, vais ter uns dias bem tramados. Ainda est�s a tempo de voltar para tr�s.
- Diz isso aos tr�s mi�dos que vamos procurar.
O sorriso desvaneceu-se. Observava as montanhas, a sua feroz eleva��o, percebendo o ch�o l� em baixo pouco n�tido devido � velocidade e �s nuvens baixas. - � por
isso que �s pol�cia? Salvar pessoas � a tua miss�o?
- N�o. - N�o disse mais nada, sentindo que estremeciam noutra agitada bolsa de ar. - Porque � que um piloto de mato tem uma fotografia de Buddy Holly no cockpit?
- Para lhe lembrar que as merdas acontecem. - Assim que o Sol espreitou, ela tirou os �culos de sol do bolso e colocou-os. L� em baixo, viu o serpentear dos rastos
deixados pelos tren�s puxados por c�es, espirais de fumo das chamin�s, um aglomerado de �rvores, uma eleva��o de terra. Usava essas refer�ncias da mesma forma que
o painel de instrumentos.
- Tens bin�culos nesse compartimento, - informou ela. E fez um pequeno ajuste no �ngulo da h�lice, abrandando a velocidade.
- Trouxe os meus. - Desapertou a parca e pegou-lhes, pendurados ao pesco�o. - Diz-me onde procurar.
- Se tentaram escalar pela encosta sul, devem ter sido largados no Glaciar do Sol.
- Largados? Por quem?
- Isso � um mist�rio, n�o achas? - Cerrou o maxilar. - Algum doidinho muito interessado em dinheiro para os largar naquelas condi��es. Muita gente tem avi�es e muita
gente acaba por os pilotar. Quem quer que tenha sido n�o comunicou que eles estavam l� quando a tempestade come�ou e tamb�m n�o os foi buscar.
- Loucos de merda.
- N�o faz mal ser louco, o que faz mal � ser est�pido. � nessa categoria que isto se inscreve. O ar vai ficar mais pesado quando atingirmos as montanhas.
- N�o digas atingir e montanhas na mesma frase.
Olhou para baixo - uma fileira de �rvores, um oceano de neve, um lago transformado em bandeja de gelo, um aglomerado de talvez seis cabanas que, juntas, apareciam
e desapareciam atr�s das nuvens. Antecipara uma paisagem est�ril, agreste, mas, em vez disso, era maravilhosa. O c�u j�
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apresentava um azul profundo e forte, com o contraste da eleg�ncia cruel das montanhas.
Pensou nos tr�s rapazes encurralados seis dias naquela agrura.
Ela virou subitamente � direita e ele teve de fazer um esfor�o herc�leo para manter os olhos abertos. As montanhas, azuis, brancas e monstruosas, engoliam a vista.
Ela mergulhou por uma fenda, onde ele apenas conseguia ver, de ambos os lados, rocha, gelo e morte.
Por cima do gemido dos motores, ouviu uma esp�cie de trov�o. Avistou uma esp�cie de tsunami de neve a cair da montanha.
- Que raio...
- Avalanche. - A voz dela sustentava uma imensa calma, ao mesmo tempo que o avi�o come�ava a abanar. - � melhor agarrares-te bem.
Jorrava, branco sobre branco sobre branco, uma erup��o vulc�nica gelada, carregando o ar de um rugido semelhante a mil comboios descendentes, enquanto o avi�o era
sacudido para a direita, para a esquerda, para cima e para baixo.
Pareceu-lhe ter ouvido Meg a praguejar, e o que soava a fogo antia�reo a atingir a aeronave. A tempestade que a montanha regurgitava largava uma s�rie de destro�os
no p�ra-brisas. Mas n�o era o medo que o dominava. Era espanto.
O metal estalava e ressoava reagindo � chuva de balas de gelo e rocha que atingiam o avi�o. O vento arrastava-o, fustigava-o em golpes at� parecer inevit�vel a queda
na encosta do penhasco, ou simplesmente esmagamento por uma granada de estilha�os.
Em seguida, rasavam no interior de paredes de gelo, sobre um vale estreito e gelado, para as profundezas do azul.
- Cum cara�as! - Ela soltou um urro, atirando a cabe�a para tr�s, a rir. - Que corrida.
- Fant�stico, - concordou Nate, e rodou no assento, tentando virar-se o bastante para ver o resto do espect�culo. - Nunca vi nada assim.
- As montanhas s�o manhosas. Nunca se sabe quando v�o fazer das suas. - Desviou o olhar na direc��o dele. - Consegues manter a calma, perante tamanha press�o, Comandante.
- Tu tamb�m. - Recostou-se no banco. E perguntou-se se o bater do seu cora��o lhe havia partido alguma costela. - Ent�o... costumas vir aqui muitas vezes?
- Sempre que posso. Podes come�ar a dar uso a esses bin�culos. Temos uma �rea muito vasta a cobrir, e n�o vamos ser os �nicos a faz�-lo. Mant�m os olhos bem abertos.
- Colocou os auscultadores. - Vou comunicar com a torre de controlo.
- Para onde � que devo olhar?
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- Para ali. - Ela ergueu o queixo. - � uma hora.
Comparada com Denali, at� parecia mansa, e a sua beleza era algo vulgar ao lado da magnific�ncia d'A Montanha. Possu�a picos mais pequenos que iam desde a que chamavam
Sem Nome a Denali, e depois maiores, inclinados para tr�s, rasgando os c�us, numa parede irregular e descompassada.
- Quanto mede?
- Mil e duzentos, com varia��es. Uma boa escalada, desafiante em Abril ou Maio, � mais perigosa, mas n�o � imposs�vel no Inverno. A n�o ser que seja um grupo de
mi�dos da faculdade na brincadeira, e ent�o � quase suic�dio. Quando descobrirmos quem � que transportou tr�s mi�dos menores e os largou ali fora em Janeiro, bem
podem fugir.
Ele conhecia aquele tom de voz - neutro, sem emo��o. - Achas que est�o mortos.
- Pois acho.
- Mas est�s aqui, mesmo assim.
- N�o seria a primeira vez que vinha resgatar corpos... e que os levava de volta. - Pensou nos mantimentos e no equipamento no avi�o. Ra��es de emerg�ncia, medicamentos,
cobertores t�rmicos. E rezava para que viessem a ser necess�rios.
- Procura vest�gios. Tendas, equipamentos - corpos. H� muitas fendas. Vou aproximar-me o mais que puder.
Ele queria que estivessem vivos. J� tivera a sua dose de morte, vidas desperdi�adas que chegassem. N�o fora � procura de corpos, mas sim de rapazes. Assustados,
perdidos, talvez feridos, mas rapazes que podia entregar aos pais amedrontados.
Analisou o terreno atrav�s dos seus bin�culos. Conseguia ver o deslizamento de neve que sa�a das entranhas da montanha, as escarpas pontiagudas de gelo. N�o adiantava
imaginar porque � que algu�m haveria de querer arriscar um membro ou a vida, enfrentar condi��es horrendas, passar fome e sofrer s� para conseguir chegar ao topo.
As pessoas faziam as coisas mais loucas por desporto.
Registava os ventos agrestes, a proximidade desconfort�vel do pequeno avi�o das encostas implac�veis e escusou-se ao medo.
Procurou at� os olhos arderem e, depois, baixou os �culos para pestanejar com for�a. - Nada ainda.
- A montanha � grande.
Ela circundava, ele procurava, enquanto ela continuava a dar as coordenadas � torre de controlo. Ele avistou outro avi�o, um pequeno p�ssaro amarelo aos c�rculos
para oeste, e o ru�do seco de um helic�ptero. A montanha tudo diminu�a. J� n�o lhe parecia assim t�o pequena, n�o com tanta coisa a que tinha de prestar aten��o.
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Havia formas que desenhavam outras formas - placas de gelo cortante, campos de neve, punhos de rocha negra que rasgavam encostas escarpadas e por onde deslizavam
delicados rios de mais gelo, como uma cobertura esplendorosa.
Via sombras que nunca imaginara o Sol produzir e fendas abruptas no vazio. De uma delas, um raio de luz tocou-lhe na face, como Sol reflectido num cristal.
- H� alguma coisa l� em baixo, - gritou ele. - Metal ou vidro. Fez reflexo. Naquela fenda.
- Vou dar a volta.
Ele baixou os bin�culos para esfregar os olhos, desejando ter levado os seus �culos de sol. O brilho era terr�vel.
Ela subiu, de lado e, ao dar a volta, Nate avistou um vislumbre de cor no meio da neve.
- Espera. Ali. O que � aquilo? �s quatro horas? Jesus, Meg, quatro horas.
- Filho da puta. Um deles est� vivo.
Agora ele via-o bem, o azul-claro, o movimento, a forma vagamente humana, freneticamente a agitar os bra�os para fazer sinal. Mergulhou com as asas, primeiro para
a direita e depois para a esquerda, invertendo o movimento, para dar meia-volta.
- Daqui Brisa-Nove-Zulu-Nove-Alfa-Tango. Avistei um, - disse ela para o intercomunicador. - Vivo, logo acima do Glaciar do Sol. Vou ter com ele.
- Vais aterrar? - Perguntou Burke, ao v�-la repetir a chamada e a confirmar as coordenadas. - Onde?
- � melhor ires tu, - disse ela. - Vais tu l� fora. Eu n�o posso sair do avi�o, os ventos cruzados s�o muito arriscados, e n�o tenho onde aterrar, nem tempo a perder.
Ele olhava para baixo, vendo a silhueta trope�ar, cair e rolar, aos trambolh�es, deslizando, at� ficar im�vel, quase invis�vel agora, na camada branca.
- � melhor explicares-me o que fazer, e depressa.
- Eu des�o, tu saltas, sobes, agarras nele e tr�-lo at� aqui. Depois vamos todos para casa beber uma valente cerveja.
- Belo resumo.
- N�o tenho tempo para muito mais. Obriga-o a andar. Se n�o conseguir, arrasta-o. Leva uns �culos. Vais precisar deles. N�o � nada de mais. � como atravessar um
lago a saltar sobre pedras.
- S� que a alguns milhares de metros acima do n�vel do mar. Nada de mais.
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Ela voltou a mostrar os dentes num sorriso ir�nico ao mesmo tempo que lutava para manter o avi�o est�vel. - � esse o esp�rito.
O vento sacudia o avi�o, e ela ripostava, voltando a elevar o nariz, nivelando as asas. Inclinou para fazer a bordagem, largou o trem e abrandou o motor.
Nate decidiu n�o conter a respira��o, uma vez que inspirar e expirar podia deixar de ser uma op��o dentro em breve. Mas ela deslizava o avi�o para junto do glaciar,
entre o vazio e a encosta. - Vai! - Ordenou ela, mas ele j� estava a desapertar o cinto de seguran�a.
- Devem estar vinte abaixo de zero l� fora, por isso v� se te despachas. A n�o ser que tenha de descolar novamente, fazes os primeiros socorros quando ele estiver
no avi�o. Apenas pega nele, arrasta-o, e atira-o c� para dentro.
- J� percebi.
- S� mais uma coisa, - gritou ela ao abrir a porta, deixando o vento frio entrar. - Se eu tiver mesmo de descolar, n�o entres em p�nico. Volto para te vir buscar.
Ele saltou para a montanha. N�o era altura para d�vidas, para pensar de mais. O frio atravessava-o como punhais, e o ar era t�o cortante que lhe dilacerava a garganta.
Viu colinas que se erguiam sobre mais colinas, mares ondulantes, hectares de sombra, oceanos alvos.
Come�ou a subir pelo glaciar, optando por um passo de corrida desajeitado, em vez do sprint que esperara.
Assim que chegou � rocha, avan�ou por instinto, abrindo caminho, esgaravatando como uma cabra, para depois se afundar quase at� aos joelhos ao escalar a pequena
parede.
Ouvia os motores, o vento e a sua pr�pria respira��o pesada.
Deixou-se cair ao lado do rapaz e, apesar das instru��es de Meg, procurou sentir-lhe o pulso. O rosto do mi�do estava cinzento, com manchas duras e o que parecia
pele seca na face e no queixo.
Mas abriu os olhos devagar. - Consegui. - Balbuciava as s�labas. - Consegui.
- Sim. Agora vamos sair daqui para fora.
- Eles est�o na gruta. N�o conseguiram, n�o conseguiram descer. O Scott est� doente, o Brad... acho que deve ter a perna partida. Vim pedir ajuda. Vim...
- J� percebi. Consegues mostrar-nos onde � que eles est�o, quando chegarmos ao avi�o? Consegues andar?
- N�o sei. Vou tentar.
Nate ajudou o rapaz a levantar-se e susteve o seu peso. - Vamos, Steven. Um p� � frente do outro. J� chegaste at� aqui.
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- N�o sinto os p�s.
- Estica as pernas, uma de cada vez. Elas v�o responder. Temos de descer. - J� conseguia sentir o frio a comer-lhe as luvas e desejava ter-se lembrado de cal�ar
dois pares. - N�o sou muito bom nisto, para te levar ao colo. Agarra-te a mim, e ajuda-me a descer. Temos de descer para ajudar os teus amigos.
- Tive de os deixar, para vir pedir ajuda. Tive de os deixar com o morto.
- N�o faz mal. Vamos voltar para os buscar. Agora vamos come�ar a descer. Pronto?
- Acho que sim.
Nate foi � frente. Se o mi�do ca�sse, desmaiasse, escorregasse, podia amparar-lhe a queda. Enquanto desciam, n�o parava de gritar com ele. Os gritos iam manter o
rapaz firme e consciente, al�m de exigir respostas que o mantinham alerta.
- H� quanto tempo � que sa�ste de perto dos teus amigos?
- N�o sei. Dois dias. Tr�s? Hartborne n�o voltou. Ou... Acho que o vi, mas se calhar n�o.
- Ok. Estamos quase. Vais-nos mostrar onde � que os teus amigos est�o, daqui a nada.
- Na gruta de gelo, com o morto.
- Quem � o morto? - Nate descia pelo glaciar. - Quem � o morto?
- N�o sei. - Agora, a voz soava sonhadora, enquanto Steven deslizava e trope�ava agarrado por Nate. - Encontrei-o na gruta. Um homem do gelo, a olhar para mim. S�
a olhar. Tem uma picareta cravada no peito! � assustador.
- Aposto que sim. - Quase o arrastava, levando Steven na direc��o do avi�o que pairava.
- Ele sabe onde est�o os outros. - Num gesto de esfor�o, subiu para puxar Steven para o avi�o. - Vai mostrar-nos.
- Leva-o l� para tr�s, para debaixo dos cobertores. O estojo de primeiros socorros est� na mala. Caf� quente no termo. N�o o deixes beber demasiado.
- Ainda estou vivo? - O rapaz tremia, o corpo sacudido pelo frio.
- Est�s sim.
Nate deitou-o no ch�o entre os bancos e tapou-o com cobertores, enquanto Meg levantava voo.
Ouvia o clamor do vento e dos motores, perguntando-se se afinal de contas n�o acabariam desfeitos em peda�os.
- Tens de nos dizer onde est�o os teus amigos.
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- Posso mostrar-vos. - A bater os dentes, tentou pegar na ch�vena de caf� que Nate lhe serviu.
- D� c�, eu seguro. Bebe s�.
Enquanto bebia, l�grimas come�aram a saltar-lhe dos olhos. - Achava que n�o ia conseguir. Que eles iam morrer ali por eu n�o ter conseguido chegar ao avi�o.
- Conseguiste.
- O avi�o n�o estava l�. Ele n�o estava l�.
- Est�vamos n�s. N�s est�vamos l�. - Fazendo os poss�veis por atenuar os balan�os do avi�o, Nate voltou a levar-lhe o caf� aos l�bios.
- Quase cheg�mos ao cume, mas o Scott ficou doente e o Brad caiu. Magoou a perna. Cheg�mos � gruta e entr�mos, antes que a tempestade ca�sse. Ali fic�mos. H� l�
um homem morto.
- Foi o que disseste.
- N�o estou a inventar. Nate acenou. - J� nos mostras.- Nate odiava hospitais. Eram um dos motivos para voltar � escurid�o. Quando fora baleado, passara tempo de
mais num. Tempo suficiente para que a dor, o sofrimento e a culpa se transformassem num imenso vazio depressivo.
N�o lhe havia conseguido escapar. Ansiara pelo sossego do sono, mas o sono trazia sonhos, e os sonhos eram piores do que a escurid�o.
Acalentara a esperan�a passiva de que ia morrer. Deixava-se ir silenciosamente. N�o pensara em suicidar-se. Para tal teria de fazer um esfor�o imenso, demasiada
actividade.
Ningu�m o culpara pela morte de Jack. Ele quisera que o fizessem, mas em vez disso, foram visit�-lo com flores e compaix�o, at� mesmo com admira��o. E isso pesara
na sua consci�ncia como chumbo.
N�o lhe podiam falar em sess�es de terapia, aconselhamento e antidepressivos. S� ele sabia o que passara, s� para que os m�dicos e os amigos preocupados o deixassem
em paz.
Foram meses a fio nesta situa��o.
Agora estava de regresso a um hospital e conseguia sentir os dedos macios e pegajosos da inevitabilidade a agarr�-lo. Era mais f�cil, t�o mais f�cil ceder, apenas
deixar-se ir e afundar-se na escurid�o.
- Comandante Burke?
Nate fitava o caf� na sua m�o. Caf� puro. N�o queria. Nem se lembrava
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como � que ali fora parar. Estava demasiado cansado para caf�. Cansado de mais para se levantar e ir deit�-lo fora.
- Comandante Burke?
Ele ergueu o olhar e focou um rosto. Mulher, na casa dos cinquenta, olhos castanhos por tr�s de �culos pequenos de arma��o preta. Ele n�o se lembrava bem quem era
ela.
- Sim, desculpe.
- O Steven quer falar consigo. Acordou e est� l�cido.
Devagar, come�ou a recordar-se, como pensamentos que eclodem sobre a lama. Os tr�s rapazes, a montanha. - Como � que ele est�?
- � jovem e saud�vel. Estava desidratado e corre o risco de perder alguns dedos dos p�s, mas isso tamb�m pode n�o acontecer. Por isso, teve sorte. Os outros dois
v�m a caminho. Espero que a situa��o seja a mesma.
- Resgataram-nos. Da montanha.
- Foi o que me disseram. Pode falar uns minutos com Steven.
- Obrigado.
Enquanto a seguia, os sons e os cheiros do SU infiltravam-se. As vozes, os ru�dos, o choro aflito de uma crian�a.
Entrou para uma sala de observa��o e viu o rapaz numa cama. Ostentava alguma cor por baixo das ligaduras na face. Tinha o cabelo louro emaranhado, os olhos enevoados
de preocupa��o.
- Voc� salvou-me.
- Nate Burke. Novo Comandante da pol�cia de Lunacy. - Ao ver Steven estender a m�o, Nate pegou nela, com cuidado para n�o pressionar a agulha intravenosa. - Os teus
amigos v�m a caminho.
- Foi o que me disseram. Mas ningu�m me disse como � que eles est�o.
- S� saberemos quando eles chegarem. Se n�o nos tivesses dito a sua localiza��o, eles n�o estariam a caminho, Steven. Quase compensa a estupidez de terem tido a
ideia de ir l� acima.
- No in�cio pareceu uma boa ideia. - Tentou um sorriso vago. - Correu tudo mal. E acho que aconteceu alguma coisa a Hartborne. S� lhe demos metade do dinheiro, para
nos certificarmos de que voltava.
- Estamos a averiguar. Podias dar-me o nome completo dele, ou mais algumas informa��es que possas ter.
- Bom, na verdade, era o Brad que o conhecia. Ou melhor, o Brad conhecia um tipo que o conhecia.
- Ok. Depois falamos com Brad.
- Os meus pais v�o matar-me. - Oh, ter vinte anos, pensava Nate, e equiparar a ira paterna com uma
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experi�ncia de quase morte. - Podes contar com isso. Fala-me do homem morto na gruta, Steven.
- N�o percebi quem era.
- N�o estou a dizer que sim.
- Todos o vimos. N�o pod�amos sair da gruta, por causa da perna de Brad. Decidimos que eu ia tentar descer, para encontrar Hartborne e pedir ajuda. Eles tiveram
de ficar l� dentro com ele. Com o Homem de Gelo. Estava para ali sentado, a olhar. A picareta cravada no peito. Tirei fotografias.
Arregalou os olhos ao esfor�ar-se por se sentar mais direito. - Tirei fotografias, - repetiu. - A m�quina. Pois... acho que deve estar no bolso do meu colete t�rmico.
Ainda deve l� estar. Pode ir l� ver.
- Espera um segundo. - Nate avan�ou para a pilha de roupa, remexendo at� encontrar o colete. E dentro do bolso de fecho corrido estava uma m�quina digital pequena,
pouco maior do que um cart�o de cr�dito.
- N�o sei como trabalhar com isto.
- Eu mostro-lhe. Tem de a ligar e depois... v� aqui este ecr�? Pode ir buscar as fotografias � mem�ria. As �ltimas que tirei foram do morto. Acho que tirei umas
tr�s, porque queria... c� est�o!
Nate estudava o rosto ampliado no pequeno ecr�. O cabelo podia ser preto ou castanho, mas estava coberto de gelo que lhe dava um tom prateado. Cabelo comprido, quase
at� aos ombros, com um gorro escuro puxado sobre ele. O rosto apresentava-se estreito, branco, cortado pelas feridas do gelo. J� vira a morte muitas vezes e reconhecia-a
naqueles olhos. Abertos e azuis.
Viu novamente a fotografia anterior.
Era o corpo de um homem, adivinhava que na faixa dos vinte aos quarenta anos. Estava sentado de costas para a parede de gelo, as pernas esticadas. Vestia uma parca
preta e amarela e cal�as de neve, botas de escalada e luvas grossas.
No seu peito parecia estar enterrada uma pequena picareta.
- Tocaram no corpo?
- N�o. Bom, eu tentei espetar-lhe um dedo. Est� congelado em pedra.
- Ok, Steven. Vou ter de levar a tua m�quina. Depois devolvo-ta.
- Claro. N�o h� problema. � bem prov�vel que ele esteja ali h� mais de cinco anos, sabe? At� h� d�cadas. Bolas, apanh�mos um susto daqueles, deixe que lhe diga,
mas at� acabou por nos distrair da merda de situa��o em que est�vamos metidos. Acha que j� t�m not�cias de Brad e Scott?
- Vou tentar saber. Vou chamar o m�dico. Depois voltamos a falar.
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- Quando quiser, amigo. A s�rio, obrigado por me ter salvado a vida.
- Toma bem conta dela.
Dirigiu-se para a porta, guardando a m�quina no bolso. Teria de contactar a Pol�cia Estadual, pensou. Um homic�dio nas montanhas encontrava-se fora da sua jurisdi��o.
Mas isso n�o significava que n�o pudesse copiar as fotografias para os seus arquivos.
Quem era ele? Como � que fora ali parar? H� quanto tempo ali estava? Porque � que havia morrido? As perguntas assolavam-no ao percorrer o SU para o gabinete da enfermeira,
no preciso instante em que a equipa de resgate entrava com os outros dois rapazes.
Decidiu que o melhor a fazer era sair do caminho, e quando viu Meg entrar atr�s da equipa, foi ter com ela.
- � o teu dia de sorte, - declarou ela.
Nate viu de relance o rosto de um dos rapazes e abanou a cabe�a.
- Isso � discut�vel.
- Sobreviver a um dia na montanha � sorte. - E traz�-los vivos, quando ela esperara encontrar corpos, dera-lhe �nimo. - Provavelmente v�o perder alguns dedos, e
o puto da perna partida vai passar por imensas dores e fisioterapia, mas n�o morreram. J� n�o h� luz, e n�o vejo nenhuma raz�o para voltarmos t�o tarde. Esta noite
n�o regressamos. Vou arranjar um quarto para n�s no The Wayfarer. Os pre�os s�o simp�ticos e a comida � boa. Est�s pronto?
- Tenho umas coisas a tratar. J� vou ter contigo.
- Se demorares mais de vinte minutos, estou no bar. Quero bebida, comida e sexo. - Lan�ou-lhe um sorriso sugestivo. - Mais ou menos por esta ordem.
- Parece-me razo�vel. Estarei l�.
Ela fechou o casaco. - Oh, aquele reflexo que viste? Destro�os de um avi�o. Talvez seja o tipo que levou os mi�dos para cima. Afinal de contas, a montanha apanhou
um.
Ele aproximou-se mais dos noventa minutos, do que dos vinte, e encontrou Meg, como prometera, junto ao bar.
Era revestido a madeira, fumarento e decorado com cabe�as de animais. Ela matava o tempo � mesa com uma cerveja e um shut, na companhia de um prato de algo parecido
com nachos. Apoiara os p�s noutra cadeira, mas tirou-os assim que Nate apareceu diante da mesa.
- S� bem aparecido. Hei, Stu? O mesmo para o meu amigo.
- S� a cerveja, - corrigiu Nate. - Isto presta para alguma coisa?
- Indagou ele, ao pegar num nacho.
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- Matam o bicho. Quando estivermos devidamente encharcados, podemos ir comer um bife. Ficaste por l� para veres como � que os mi�dos estavam?
- Isso e mais algumas coisas. - Tirou o gorro e passou a m�o pelo cabelo. - A equipa de resgate n�o foi � gruta?
- Os rapazes rastejaram de l� para fora, assim que ouviram o salvamento a�reo. - Ela mergulhava uma batata em queijo, carne e salsa. - A prioridade era faz�-los
descer para receberem cuidados m�dicos. Algu�m h�-de voltar a subir, para trazer o equipamento que l� deixaram.
- E o morto.
Ela ergueu as sobrancelhas. - Acreditaste nessa hist�ria?
- Sim, acreditei. Al�m disso, o puto tirou fotografias.
Ela mordeu os l�bios e comeu mais uma batata com acompanhamento. - T�s a gozar?
- A cerveja, - ouviu-se do bar.
- Espera, - disse ela a Nate. - Eu vou buscar.
- Queres outra rodada, Meg? - Perguntou Stu.
- Primeiro vamos deix�-lo apanhar-me. - Agarrou a garrafa castanha e levou-a para a mesa.
- Ele tirou fotografias?
Nate acenou e deu um gole de cerveja. - M�quina fotogr�fica digital, que tinha no bolso. Pedi a um tipo no hospital que as imprimisse. - Batia com o dedo no envelope
pardo que atirara para cima da mesa. - Tive de entregar a m�quina aos estaduais. Talvez me mantenham na investiga��o, nunca se sabe. - Encolheu os ombros.
- Queres ficar na investiga��o?
- N�o sei. - Voltou a encolher os ombros e a bater com os dedos. - N�o sei.
Oh, ele queria ficar na investiga��o, pensava ela. J� estava a imagin�-lo a elaborar uma esp�cie de listagem mental. Uma esp�cie de lista policial. Se era assim
que aqueles olhos tristes e cinzentos ganhavam vida, esperava que os homens do Estado o deixassem alinhar.
- N�o me parece que ele esteja l� em cima h� muito tempo. Ela ergueu o copo. - Porque � que dizes isso?
- J� teria sido encontrado.
Ela abanou a cabe�a e bebeu o u�sque. - N�o necessariamente. Uma gruta daquelas pode ficar soterrada numa tempestade, debaixo de uma avalanche ou passar despercebida
aos montanhistas. Outra avalanche, oh, vejam s�, uma gruta. E tamb�m depende de onde ele estava na gruta. Da profundidade. Pode estar l� h� uma esta��o ou h� cinquenta
anos.
126
- De qualquer forma, h� a Medicina Legal. Eles v�o conseguir uma data e, esperemos, identific�-lo.
- J� est�s a tentar resolver o caso. - Divertida, gesticulou na direc��o do envelope. - Deixa-me ver. Quem sabe se n�o somos como Nick e Nora Charles.
- N�o estamos no cinema, e n�o � bonito, Meg.
- Esventrar um alce tamb�m n�o. - Mordeu outro nacho e virou o envelope para o abrir. - Se ele for local, talvez o reconhe�a. Apesar de todos os anos termos sempre
muitos Exteriores na Sem Nome. O tipo de equipamento dele parece...
Ele viu a cor nas suas faces desaparecer, os olhos reluzindo, e amaldi�oou-se. Mas quando tentou tirar-lhe a fotografia da m�o, ela puxou-a para tr�s e empurrou-lhe
o bra�o com a m�o livre.
- � melhor n�o veres isso. Deixa-me guardar.
Ela precisava de ver. Talvez o ar se encontrasse cativo nos seus pulm�es, ou talvez o seu est�mago lhe tivesse ca�do aos p�s. Mas tinha de ver. Deliberadamente,
pegou no resto das fotografias e alinhou-as em cima da mesa. Depois, agarrou no copo de u�sque e bebeu de um s� trago.
- Eu sei quem �.
- Reconhece-lo? - Sem pensar, Nate puxou a cadeira para mais perto dela onde ambos ficaram a olhar para as fotografias, juntos. - Tens a certeza?
- Oh, sim. Tenho a certeza. � o meu pai.
Afastou-se da mesa. Tinha o rosto muito p�lido, mas n�o vacilou. - Paga as bebidas, sim, Comandante? Acho que o bife vai ficar para outra altura.
Ele movia-se com rapidez, a enfiar as fotografias de novo dentro do envelope, tirando notas que deixou em cima da mesa, mas ela j� passava a recep��o e subia as
escadas quando ele a apanhou.
- Meg.
- N�o me chateies agora.
- Tens de falar comigo.
- Daqui a uma hora, sobe. Quarto 232. Vai-te embora, Ignatious. Continuou a subir, n�o dando azo a pensamentos, fechando-se a qualquer sentimento. Ainda n�o era
altura, s� quando se fechasse atr�s de alguma porta. Certas coisas preferia n�o partilhar.
Ele n�o foi atr�s. Parte do c�rebro dela registou a atitude e concedeu-lhe pontos por a respeitar e pela sensibilidade. Foi para o quarto onde num �pice se livrou
do equipamento e trancou a porta � chave e com a corrente.
Depois foi directamente para a casa de banho, onde vomitou as entranhas.
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Quando terminou, sentou-se no ch�o gelado, a testa apoiada nos joelhos. N�o chorou. Esperava conseguir, esperava a dada altura que as l�grimas surgissem. Mas n�o
agora. Nesse momento, sentia-se injusti�ada e abalada e, gra�as a Deus, zangada.
Algu�m matara o seu pai e o abandonara. Todos aqueles anos em que vivera sem ele. Em que sempre acreditara que ele se havia afastado dela sem olhar para tr�s. Que
n�o era boa o suficiente nem importante. Que n�o era inteligente nem bonita. Sempre que essa necessidade num determinado momento a atingia, quando as saudades que
sentia dele abriam um fosso no seu est�mago.
Mas ele n�o se afastara. Fora para a montanha, algo t�o natural para ele como respirar. E morrera l�. A montanha n�o o havia matado. Podia ter aceitado esse facto
como um fado, o destino. Mas um homem havia-o assassinado, e isso era imposs�vel de aceitar. Ou perdoar. Ou deixar passar impune.
Levantou-se, despiu-se e, abrindo a �gua fria, entrou no chuveiro. Deixou a �gua correr pelo corpo at� aclarar as ideias. De seguida, vestiu-se de novo para se deitar
sobre a cama, �s escuras, a pensar na �ltima vez que vira o pai.
Ele entrara no seu quarto, onde ela fingia estar a estudar para o teste de Hist�ria. Desde que fingisse que estudava, n�o tinha de fazer as tarefas de casa. Estava
farta delas.
Mesmo agora lembrava-se da ligeira palpita��o no cora��o ao ver que era o pai, e n�o a m�e, a verificar o que estava a fazer. Ele nunca a chateava por causa das
tarefas ou dos estudos.
Ela via-o como o homem mais bonito do mundo, de cabelo preto comprido e sorriso f�cil. Ensinara-a tudo o que achava ser mesmo importante. Sobre as estrelas e o montanhismo,
a sobreviv�ncia na natureza. A construir um acampamento, a pescar, e a amanhar e cozinhar a pescaria.
Levara-a a voar com Jacob, e guardaram ambos segredo de que Jacob a andava a ensinar a voar.
Ele olhara para o livro aberto em cima da cama, onde ela se encontrava deitada de barriga para baixo. E revirara os olhos. - Que chatice.
- Detesto Hist�ria. Tenho teste amanh�.
- Uma seca. Vai correr bem. Corre sempre. - Sentara-se na cama, enchendo-lhe as costelas de c�cegas. - Hei, mi�da, tenho de passar uns tempos fora.
- Porqu�? Ele erguera a m�o e esfregara o polegar e o indicador.
- Porque � que precisamos de dinheiro agora?
- A tua m�e diz que sim. Ela � que sabe.
- Ouvi-vos a discutir hoje de manh�.
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- N�o foi nada de mais. Gostamos de discutir. Arranjo uns biscates, fa�o umas massas. Fica toda a gente feliz. S�o s� duas semanas, Meg. Talvez tr�s.
- Quando n�o est�s c�, fico sem nada para fazer.
- H�-de aparecer alguma coisa.
De imediato ela percebera, apesar de ser apenas uma mi�da de treze anos, percebera que, na cabe�a dele, h� muito que havia partido. A festa que lhe fizera na cabe�a
fora ausente, como a de um tio. - Quando voltar, vamos pescar no gelo.
- Est� bem. - Era altura de amuo, prontificando-se a enxot�-lo com um gesto antes que ele o fizesse.
- At� breve, fofinha.
Fora com esfor�o que n�o se levantara, para correr atr�s dele e o abra�ar antes que se fosse embora.
Centenas de vezes desde aquela tarde desejara ter cedido �quele impulso, permitindo a ambos aquele �ltimo contacto.
Desejava-o agora, ao repassar essa derradeira mem�ria na escurid�o.
Deixou-se ficar im�vel at� ouvir bater � porta. Resignada levantou-se. Acendeu as luzes e passou a m�o pelo cabelo, que ainda estava um pouco molhado do duche.
Ao abrir a porta a Nate, viu que ele levava um tabuleiro nos bra�os, e que outro repousava no ch�o � sua porta.
- Temos de comer. - Ele sabia como odiava quando as pessoas tentavam obrig�-lo a comer, ou a tomar um qualquer rem�dio ou cuidado sempre que se sentia mais em baixo.
Mas funcionava, e isso era o mais importante.
- Est� bem. - Ela gesticulou na direc��o da cama, a �nica superf�cie com tamanho suficiente para servir de mesa de jantar. Depois agachou-se e pegou no outro tabuleiro.
- Se quiseres ficar sozinha depois de comer, posso ficar noutro quarto.
- N�o � preciso. - Sentou-se de pernas cruzadas na cama e, ignorando a salada no seu tabuleiro, cortou o bife.
- Esse � o meu. - Trocou os tabuleiros. - Disseram-me que gostavas dele mal passado. Eu n�o.
- N�o perdes pitada, pois n�o? Pena que trouxeste caf� em vez de u�sque.
- Se quiseres uma garrafa, posso pedir.
Ela suspirou e cortou a carne. - Aposto que sim. Como � que acabei a partilhar um bife ao jantar em Anchorage com um tipo porreiro?
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- N�o sou assim tanto. Dei-te uma hora para que te recompusesses. Trouxe comida para te consolares, enquanto me contas sobre o teu pai. Lamento, Meg, � um golpe
tremendo. Depois de falares comigo, vamos levar o assunto ao detective encarregue do caso.
Cortou mais um peda�o e juntou ao garfo uma das batatas fritas cheias de molho. - Diz-me uma coisa. L� de onde vieste, eras um bom pol�cia?
- Era a �nica coisa em que era bom.
- Tratavas dos homic�dios?
- Sim.
- Vou falar com quem for o respons�vel, mas quero que investigues pessoalmente.
- N�o h� muito que possa fazer.
- H� sempre alguma coisa. Eu pago-te.
Ele comia de forma contemplativa. - Um golpe tremendo, - repetiu ele. - � por isso que n�o te vou bater por essa ofensa.
- N�o sei se muita gente acha o dinheiro ofensivo. Mas tudo bem. Quero que algu�m meu conhecido descubra o filho da puta que matou o meu pai.
- Mal me conheces.
- Sei que �s bom na cama. - Sorriu um pouco. - Ok, um tipo pode ser um idiota e mesmo assim ser um garanh�o. Mas tamb�m sei que mant�ns a calma sob press�o, e �s
dedicado e est�pido o bastante para deixares que te larguem num glaciar para salvares um mi�do que nunca viste. E para te lembrares de perguntar num restaurante
como � que a Meg gosta dos bifes. Os meus c�es gostam de ti. D�-me uma ajuda, Comandante.
Ele estendeu o bra�o e tocou-lhe no cabelo, afagando-a ao de leve por cima do negro h�mido. - Quando foi a �ltima vez que o viste?
- Fevereiro de 1988. Seis de Fevereiro.
- Sabes para onde se dirigia?
- Disse que ia arranjar trabalho. Imaginei que fosse aqui em Anchorage, ou em Fairbanks. Ele e a minha m�e tinham discutido por causa de dinheiro e uma s�rie de
coisas. Era h�bito. Ele disse que ia umas semanas para fora. Nunca mais voltou.
- A tua m�e deu-o como desaparecido na pol�cia?
- N�o. - Depois, arqueou a sobrancelha. - Pelo menos acho que n�o. Presumimos, tal como toda a gente, que ele se tinha ido embora. Tinham estado a discutir, - continuou
ela, - talvez mais do que era habitual. Ele estava nervoso. At� eu consegui perceber isso. N�o era nada ponderado, Nate. N�o era do tipo respons�vel, apesar de ser
sempre bom para mim
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e contar sempre com ele nos momentos importantes. N�o era o suficiente para Charlene e estavam sempre a discutir.
Ajeitou-se e continuou a comer, apenas por ter o prato � sua frente. - Bebia, fumava erva, jogava sempre que lhe apetecia, trabalhava quando lhe apetecia e lixava
tudo quando lhe apetecia. Eu adorava-o, talvez por isso tudo. Tinha trinta e tr�s anos quando saiu naquela tarde, e agora que penso com clareza e maturidade, percebo
que talvez tivesse entrado em p�nico por ter trinta e tr�s. Ser pai de uma mi�da quase criada e preso � mesma mulher, ano ap�s ano. Talvez se sentisse � beira de
uma encruzilhada, sabes? Talvez tenha decidido fazer aquela escalada no Inverno como ultimo acto idiota da juventude, ou quem sabe se n�o queria voltar mesmo. Mas
algu�m tomou essa decis�o por ele.
- Tinha inimigos?
- Provavelmente, mas ningu�m que pudesse afirmar que lhe queria fazer mal. Costumava chatear as pessoas, mas nada de especial.
- E o teu padrasto?
Espetou a salada algumas vezes com o garfo. - O que tem?
- Quanto tempo depois de o teu pai desaparecer � que Charlene casou? Como � que conseguiu o div�rcio?
- Em primeiro lugar, ela n�o precisava do div�rcio. Ela e o meu pai n�o eram casados. Ele n�o acreditava nos la�os legais do casamento e bl�, bl�. Casou com o velhote
Hidel um ano depois... talvez menos. Se est�s a pensar que Karl Hidel escalou a Sem Nome e espetou uma picareta no peito do meu pai, podes esquecer. Ele tinha sessenta
e oito anos e vinte quilos a mais, quando Charlene o fisgou.
Por instinto, pegou na tigela da salada e comeu. - Fumava como uma chamin�. Mal podia subir as escadas, quanto mais uma montanha.
- Quem � que podia ter subido com o teu pai?
- Bolas, Nate, qualquer pessoa. Quem gostasse de uma boa aventura. Est�s a ver os mi�dos de hoje? D�-lhes tempo, e vais ver se n�o falam sobre o que aconteceu l�
em cima, como se fosse uma das coisas mais excitantes que lhes aconteceu na vida. Os montanhistas s�o mais loucos do que os pilotos de mato.
Ao ver que ele n�o comentava, ela soltou um pequeno suspiro e comeu mais salada. - Ele era um bom montanhista, com muita prepara��o. Talvez tenha aceitado o trabalho
como guia de um grupo, na escalada de Inverno. Ou encontrou alguns amigos e parvalh�es como ele, e decidiu marimbar-se para o resto do mundo.
- Ele costumava experimentar coisas mais fortes do que erva?
- Talvez. � poss�vel. Charlene deve saber. - Esfregou os olhos. - Merda. Tenho de lhe contar.
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- Meg, sabes se algum deles se envolveu com mais algu�m quando estavam juntos?
- Se essa � uma forma delicada de perguntares se andavam a dar umas por fora, n�o sei. Pergunta-lhe.
Ele estava a perd�-la. A sua raiva e impaci�ncia dali a um ou dois minutos iam impossibilitar qualquer pergunta. - Disseste que ele jogava. A s�rio?
- N�o. N�o sei. Que eu saiba, n�o. Estoirava o ordenado na hora, se o tivesse. Ou acumulava d�vidas, por n�o ganhar muitas vezes. Mas nada de grave. Pelo menos n�o,
localmente. Nunca ouvi dizer que andasse em esquemas ilegais, tirando o consumo de drogas leves. E h� muita gente que ia ficar contente em dizer-me o contr�rio.
N�o por n�o gostarem dele. At� gostavam. S� que toda a gente gosta de falar sobre essas coisas.
- Ok. - Esfregou a m�o na coxa dela. - Vou fazer umas perguntas e tentar aproximar-me de quem estiver respons�vel pela investiga��o, para que me mantenha actualizado.
- Bom. Vamos embora daqui. - Rolou para fora da cama, deixando o jantar quase todo por comer. Bateu o compasso com as m�os nas pernas. - Conhe�o um s�tio. A m�sica
� boa. Bebemos uns copos e depois voltamos para uma sess�o de sexo de fazer estremecer os candeeiros.
Em vez de comentar a sua mudan�a de humor, limitou-se a deitar uma olhadela ao velho candelabro pendurado no tecto. - N�o me parece muito firme.
Ela riu-se. - Vivemos no limite.
10.
Ao acordar, o sonho j� se desvanecia, deixando apenas um sabor salgado e amargo na garganta. Como se tivesse engolido as l�grimas. Conseguia ouvir a respira��o de
Meg a seu lado, suave e firme. Uma parte dele, lutando soterrado pelo desespero, queria virar-se para ela. Pelo conforto e o esquecimento do sexo.
Ela aqueceria e ganharia vida em seu redor.
Mas em vez disso, ele virou-se para o lado. Sabia bem de mais que era indulgente; era derrotista optar por acolher a infelicidade. Mas levantou-se da cama sozinho
�s escuras e procurou a roupa. Vestiu-se e deixou-a a dormir.
No sonho, estivera a escalar a montanha. Com dificuldade chegara ao topo gelado e rochoso, milhares de metros acima do mundo. No c�u de ar rarefeito, onde cada sopro
era uma agonia. Tinha de subir, compelido que
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estava a arrastar-se mais um cent�metro, mais um passo, enquanto abaixo s� via o mar branco ondulante. Se ca�sse, ia afogar-se, em sil�ncio.
Por isso escalava, at� os dedos sangrarem e deixarem um rasto vermelho na rocha coberta de gelo.
Exausto e ansioso, arrastou-se para uma sali�ncia. E viu a boca da gruta. L� de dentro pulsava uma luz, que lhe avivava a esperan�a ao rastejar para o seu interior.
Abriu-se, imponente, como um pal�cio de gelo mitol�gico. Enormes forma��es projectadas do tecto formavam pilares e arcadas brancas e de um azul fantasmag�rico, em
que o gelo reluzia como espelhos, projectando o reflexo dele centenas de vezes.
Conseguiu p�r-se de p�, contornando aquele esplendor, abismado pelo brilho, o espa�o e a luz.
Podia viver ali, sozinho. Na sua pr�pria fortaleza de solid�o. Ali podia encontrar a paz, no sossego, na beleza e na solid�o.
O corpo esmagado contra a parede reluzente, fundido nela por anos de gelo. O cabo da picareta projectado do seu peito e o sangue congelado num brilho vermelho, vermelho,
vermelho sobre a parca preta.
E o seu cora��o palpitou ao perceber que afinal de contas n�o fora em paz, mas em servi�o.
Como � que podia levar o corpo para baixo? Como podia suportar aquele peso, numa descida t�o perigosa, de regresso ao mundo real? N�o sabia o caminho. N�o dominava
a per�cia, as ferramentas nem sequer a for�a necess�rias.
Avan�ou na direc��o do corpo, as paredes e colunas da gruta espelhando o seu pr�prio reflexo. Centenas dele, centenas do morto. Para todo o lado que olhasse, a morte
ia ao seu encontro.
O gelo come�ara a rachar. As paredes come�aram a tremer. Um som avassalador ecoava, enquanto ele se tentava colocar de joelhos aos p�s do cad�ver. O rosto morto
de Galloway virou-se para o dele, os dentes � mostra num riso sinistro.
E era o rosto de Jack - e a voz de Jack que falava ao mesmo tempo que ca�am as colunas de gelo, e o ch�o da gruta estremecia. - N�o h� sa�da, para nenhum dos dois.
Aqui estamos todos mortos.
Acordou assim que a gruta o engoliu.
Meg n�o ficou surpreendida ao ver que Nate se tinha ido embora. Quando acordou, j� passava das oito, por isso imaginou que ele se havia aborrecido ou ficara faminto,
� espera que ela acordasse.
Ela sentiu-se grata, pelo companheirismo e pela postura directa que rodeavam a compaix�o. Ele deixara-a � vontade para processar o choque e
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o desgosto, e o que mais pudesse sentir. Considerava que se tratava de uma grande qualidade num amigo ou num amante.
Tinha toda a certeza de que eram ambas as coisas.
Teria de continuar a lidar consigo mesma, com a m�e, com toda a gente da vila. Com a pol�cia.
Mas por agora n�o via qualquer vantagem em remoer no assunto. Quando voltasse a Lunacy, teria tempo para isso.
Imaginava que fosse encontrar Nate ou que ele a encontrasse antes de ser altura de regressar. Entretanto, queria um caf�.
A sala de jantar estava posta para o pequeno-almo�o, com muitos lugares ocupados. Alojamento barato e boa comida eram um chamariz para muitos pilotos e guias que
usavam Anchorage como rampa de lan�amento. Viu algumas caras conhecidas.
E depois viu Nate.
Estava sentado sozinho num banco corrido a um canto. Como aquele era um lugar cobi�ado, ela depreendeu que j� estaria ali h� algum tempo. Tinha uma caneca de caf�
e um jornal. Mas n�o bebia, nem sequer lia. Estava perdido algures, nos pr�prios pensamentos. Pensamentos est�reis e melanc�licos.
Olhando para ele da outra ponta da sala movimentada, ela percebeu que nunca vira ningu�m t�o sozinho.
Qualquer que fosse a sua hist�ria triste e longa, pensava ela, devia ser de arrasar.
Assim que come�ou a avan�ar na direc��o dele, algu�m chamou por si. Enquanto respondia com um aceno, viu Nate mover-se. Ficou a v�-lo recostar-se, pegar no caf�
e acomodar-se antes de olhar para o lado. Sorriu para ela.
Um sorriso f�cil, de olhos secretos.
- Dormiste bem?
- Bastante. - Deslizou no banco � frente dele. - J� comeste?
- Ainda n�o. Sabias que as pessoas costumavam vir de Montana em grupos para trabalharem aqui nas f�bricas de conserva?
Ela olhou de relance para o jornal e para o artigo. - Na verdade, sabia. Pagam bem.
- Pois, mas n�o t�m de enfrentar todos os dias a hora de ponta. Pensava que se vivia em Montana para se fazer cria��o de cavalos ou gado. Ou talvez para fundar um
campo paramilitar. Ok, muitas generaliza��es, mas pensava mesmo.
- �s um verdadeiro rapaz da Costa Leste. Hei, Wanda.
- Meg. - A empregada, que parecia andar na casa dos vinte e era despachada, pousou outra caneca de caf� e pegou no bloco de notas. - O que vai ser?
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- Ovos, mal passados, bacon canadiano, hash browns, torrada integral. Jocko?
- Despachei-o.
- Eu disse-te que era um parvalh�o. O que vais comer, Burke?
- Ah... - Tentou reavivar o apetite e decidiu que a vis�o e o aroma da comida podiam dar uma ajuda. - Omeleta de queijo e fiambre e torrada integral.
- Certo. Ando com um tipo chamado Byron, - contou a Meg. - Escreve poesia.
- S� pode ser uma melhoria. - Meg voltou-se para Nate assim que Wanda se afastou. - Os pais de Wanda costumavam vir c� passar f�rias quando ela era pequena. Vinha
para c� no Ver�o, quando eles iam trabalhar nas f�bricas de conservas. Ela gostava tanto que acabou por se mudar para c� no ano passado. Costuma sair com idiotas,
mas � parte isso, � porreira. Em que � que estavas a pensar, antes de eu aparecer?
- Nada, a s�rio. Dava uma olhadela ao jornal para passar o tempo.
- Nada disso. Mas como me fizeste um favor ontem � noite, n�o vou abusar.
Ele n�o negou; ela n�o insistiu. E tamb�m n�o estendeu a m�o para lhe tocar na face, apesar da �nsia imensa que a inundava. Quando matutava nalguma coisa complicada,
n�o gostava que a reconfortassem. Por isso, deu-lhe o mesmo tratamento que esperava para si.
- Temos de fazer mais alguma coisa antes de regressarmos? Se ainda vamos ficar por aqui mais tempo, preciso de pedir a algu�m que v� tratar dos meus c�es.
- Liguei para a Pol�cia Estadual. O respons�vel pelo caso � o sargento Coben, pelo menos por agora. Ele deve querer falar contigo... e com a tua m�e, a qualquer
altura. N�o � muito prov�vel que haja algum desenvolvimento at� conseguirem levar uma equipa l� acima para o trazer para baixo. Liguei para o hospital. Os tr�s mi�dos
est�o razoavelmente bem.
- Tens andado atarefado. Diga-me, Comandante, costuma tomar conta de toda a gente?
- N�o. S� dos pormenores.
J� ouvira conversa fiada bem pior, mas a verdade era que vivia em Lunacy. - Ela fez-te alguma? A ex-mulher? Ele mudou de posi��o. - Provavelmente.
- Queres desabafar? Devass�-la ao pequeno-almo�o?
- Nem por isso.
Esperou que Wanda servisse a comida e refor�asse o caf�. Meg deu um golpe no ovo, deixando a gema escorrer livremente. - Dormi com um
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gajo na faculdade, - come�ou ela. - Giro � brava. Um bocado est�pido, mas tinha um grande potencial para uma rela��o duradoura. Come�ou a fazer jogos psicol�gicos
comigo. Que devia pensar em usar mais maquilhagem, em me vestir melhor, que talvez n�o devesse discutir tanto com as pessoas. Bl�, bl�. N�o, - disse ela agitando
o garfo, - que eu n�o fosse linda, sensual e inteligente, oh, n�o, mas se me arranjasse um bocadinho mais, a coisa teria mais futuro.
- N�o �s linda.
Ela riu-se, os olhos a dan�ar, e trincou a torrada. - Cala-te. A hist�ria � minha.
- �s muito mais do que linda. Linda � uma quest�o de sorte no ADN. �s v�vida, - concluiu ele. - Envolvente. Esse � o tipo de atributo que vem de espa�os interiores,
por isso � melhor do que linda. Se queres saber a minha opini�o.
- Uau. - Recostou-se, surpreendida ao ponto de se esquecer do pequeno-almo�o. - Se fosse outra pessoa qualquer, era capaz de ficar sem palavras perante um coment�rio
desses. Neste caso, perdi o norte. De que raio � que eu estava a falar?
Desta vez, os olhos dele fizeram parte do sorriso, aquecendo a sua complei��o cinzenta. - Do parvalh�o da faculdade com quem dormiste.
- Isso. Isso. - Mergulhou nos hash browns. - Houve mais do que um, mas dizia eu, tinha vinte anos e os insultos passivo-agressivos deste tipo come�avam a irritar-me,
em especial quando descobri que ele andava a comer uma boazona burra, com montes de dinheiro e implantes mam�rios.
Rendeu-se ao sil�ncio, concentrada no pequeno-almo�o.
- Ent�o, o que � que fizeste?
- O que � que fiz? - Bebeu um pouco de caf�. - Quando volt�mos a ir para a cama, dei-lhe uma queca de morte e enchi-o de comprimidos para dormir.
- Drogaste-o?
- Sim, e depois?
- Nada. Nada.
- Paguei a uns tipos que o levassem para uma das salas de aula. Vesti aquele rabo desgra�ado com roupa interior sensual feminina - soutien, cinto de ligas, meias
pretas. Foi um desafio. Maquilhei-o, encaracolei-lhe o cabelo. Tirei fotografias para p�r na internet. Ele ainda estava a dormir quando a primeira turma come�ou
a entrar �s oito. - Ia comendo os ovos. - Foi um espect�culo daqueles, especialmente quando ele acordou, percebeu o que se passava e come�ou a gritar como uma mi�da.
Divertido com ela, apreciando a determina��o tanto quanto a
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criatividade da sua vingan�a, Nate esbo�ou um brinde com o caf�. - Podes apostar que n�o vou comentar a tua escolha de guarda-roupa.
- Moral da hist�ria. Acredito numa bela paga. Para as coisas pequenas, para as coisas grandes. Para tudo pelo meio. Deixar que algu�m nos lixe � pura pregui�a e
falta de criatividade.
- N�o o amavas.
- Claro que n�o. Se amasse, n�o o teria s� envergonhado. Fazia-o, passar, al�m disso, por uma dor f�sica intensa.
Ele brincava com o resto da omeleta. - Deixa-me perguntar-te uma coisa. Somos exclusivos?
- Em todos os aspectos, considero-me bastante exclusiva.
- O que se passa entre n�s, - disse ele, paciente. - � um acordo exclusivo?
- � disso que andas � procura?
- Eu n�o andava � procura de nada. Mas tu apareceste.
- Uh-oh. - Ela soltou um longo suspiro. - Essa � boa. Parece que te saiu a sorte grande. N�o tenho problemas em me restringir � dan�a do candelabro s� contigo, enquanto
for agrad�vel para ambos.
- � justo.
- Ela enganou-te, Burke?
- Pois. � verdade.
Meg acenou e continuou a comer. - Eu n�o engano ningu�m. Ok, �s vezes fa�o batota a jogar �s cartas, mas s� por gozo. E �s vezes minto, quando � inevit�vel. Ou quando
a mentira � muito mais divertida do que a verdade. Quando quero, sei ser m�, o que acontece muitas vezes.
Fez uma pausa, esticando o bra�o para lhe tocar na m�o por instantes e estabelecer uma liga��o entre ambos. - Mas n�o escorra�o um homem quando ele est� em baixo,
a n�o ser que seja eu a culpada de ele se sentir em baixo. S� o ponho para baixo se ele merecer. E quando dou a minha palavra, n�o falto a ela. Por isso dou-te a
minha palavra. N�o te vou enganar.
- Excepto �s cartas.
- Pois, sim. Daqui a nada j� temos luz. � melhor irmos andando.
Ela n�o sabia como � que daria a not�cia a Charlene. Qualquer abordagem que escolhesse, o resultado ia ser o mesmo. Histeria, acusa��es, raiva, l�grimas. Era sempre
uma confus�o, com Charlene.
Talvez Nate lhe conseguisse ler os pensamentos, uma vez que parou Meg � porta d'A Estalagem. - Talvez devesse ser eu a dar-lhe a not�cia. J� tive de o fazer a algumas
fam�lias.
- J� disseste a algu�m que o namorado dela est� morto numa gruta gelada h� quinze anos?
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- O meio n�o influencia muito o impacto.
Tinha a voz meiga, em contraste directo com a irrita��o latente na dela. Acalmou-a. Mais do que isso, percebeu. Sentia vontade de contar com ele.
- Por muito que te quisesse passar esta batata quente, � melhor ser eu a faz�-lo. Mas podes apanhar os cacos depois de eu terminar.
Entraram. Algumas pessoas bebiam caf� ou comiam um almo�o antecipado. Meg desapertou o casaco enquanto fazia sinal a Rose.
- Charlene?
- Escrit�rio. Soubemos que Steven e os amigos v�o ficar bem. As estradas ainda est�o muito m�s, mas Jerk apareceu para trazer o Joe e a Lara de avi�o hoje de manh�.
Querem caf�?
Nate observava Meg avan�ar por uma porta adentro. - Pode ser.
Ela passou a zona da recep��o, contornou o balc�o e entrou no escrit�rio sem bater � porta.
Charlene estava � secret�ria, ao telefone. Lan�ou a Meg um aceno impaciente e de recusa.
- Ent�o, Billy, uma vez que vou ser comida dessa maneira, ao menos que me levem a jantar fora primeiro.
Meg fez men��o de sair. J� que a m�e estava a regatear o pre�o da mercadoria, talvez fosse melhor n�o assistir. O escrit�rio n�o tinha um ar muito eficiente. Como
Charlene, feminino, �bvio e tolo. Muito cor-de-rosa algod�o-doce nos tecidos, ex�rcitos de espanadores absurdos. Quadros com flores em molduras douradas nas paredes,
almofadas de seda amontoadas no canap�.
Cheirava a rosas, do ambientador que Charlene vaporizava sempre que entrava na sala. A pr�pria secret�ria era uma reprodu��o ornamentada de uma pe�a antiga que comprara
por cat�logo e pela qual pagara de mais. Pernas curvas e cheia de entalhes.
O conjunto de secret�ria era cor-de-rosa, bem como todos os artigos pessoais de escrit�rio e os post-its. Todos ostentavam no topo Charlene em letras rebuscadas,
quase ileg�veis.
Ao lado do canap� havia um candeeiro de p� alto, banhado a dourado com um abat-jour cor-de-rosa debruado que, na opini�o de Meg, ficava melhor num bordel do que
num escrit�rio.
Ela perguntava-se, como era seu h�bito, como � que podia ter vindo de algu�m cujos gostos, cujas ideias, cuja forma de estar eram t�o diferentes das suas. Mas tamb�m,
a sua pr�pria vida n�o era mais do que uma rebeli�o intermin�vel contra esse ventre que a gerara.
Meg virou-se para tr�s ao ouvir Charlene despedir-se num tom de voz arrastado.
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- A tentar subir os pre�os. - Com uma gargalhada curta, Charlene serviu-se de mais um copo de �gua do jarro que tinha na secret�ria.
N�o parecia eficiente, mas as apar�ncias iludem. No que tocava a neg�cios, Charlene era capaz de calcular os lucros e as despesas ao c�ntimo, fosse a que hora fosse
do dia ou da noite.
- Ouvi dizer que s�o uns her�is. - Charlene observava a filha enquanto bebia. - Tu e o Comandante sensual. Ficaram em Anchorage a comemorar?
- Ficou escuro.
- Pois. Deixa-me dar-te um conselho. Um homem como Nate vem cheio de bagagem. Est�s acostumada a viajar depressa e leve. Ele n�o faz o teu tipo.
- Vou ver se n�o me esque�o. Tenho de falar contigo.
- Tenho telefonemas para fazer e papelada para despachar. Sabes que esta � a altura do dia em que estou mais ocupada.
- � sobre o meu pai.
Charlene baixou o copo de �gua. O seu rosto ficou inerte, muito p�lido e depois as cores ruborizaram-lhe as faces. Cor-de-rosa algod�o-doce a condizer com a sala.
- Tiveste not�cias dele? Viste-o em Anchorage? Aquele filho da m�e. Espero que n�o esteja com ideias de voltar e que tudo fique como dantes. De mim n�o leva nada,
e se tiveres um pingo de ju�zo, fazes o mesmo.
Ela empurrou a mesa e p�s-se de p�, as faces passando de rosa a ruborizadas e vermelhas. - Ningu�m, ningu�m me abandona e depois volta. Nunca. Pat Galloway pode
ir dar uma curva.
- Est� morto.
- � capaz de vir com alguma hist�ria de puxar � l�grima. Sempre foi bom nisso... como assim, est� morto? - Parecendo mais irritada do que chocada, atirou para tr�s
o cabelo encaracolado. - Isso � rid�culo. Quem � que te contou uma mentira t�o idiota?
- J� tinha morrido. Parece que j� estava morto h� muito tempo. Talvez mesmo alguns dias depois de sair de casa.
- Porque � que me est�s a dizer uma coisa dessas? Por que motivo me dirias algo desse g�nero? - O vermelho de raiva desvanecera-se, o seu rosto adquirindo um tom
branco, branco e l�vido, subitamente envelhecido. - N�o me podes odiar assim tanto.
- N�o te odeio. Sempre estiveste enganada em rela��o a isso. Talvez muitas vezes seja ambivalente em rela��o a ti, mas n�o te odeio. Aqueles rapazes encontraram
uma gruta de gelo. Foi onde se abrigaram metade do tempo em que estiveram na montanha. Ele estava l�. Esteve l� este tempo todo.
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- Que conversa de doidos. Quero que saias. - Levantava a voz num guincho agudo. - Sai daqui imediatamente.
- Eles tiraram fotografias. - Prosseguiu Meg, apesar de Charlene agarrar num pisa-pap�is e o atirar contra a parede. - Eu vi-as. Reconheci-o.
- N�o � verdade! - Vociferou, agarrando numa bugiganga da prateleira e lan�ando-a pelo ar. - Est�s a inventar coisas s� para te vingares de mim.
- Por que raz�o? - Meg ignorou as porcelanas e os vidros esmagados nas paredes, no ch�o, at� quando uma lasca lhe rasou a face. Era o m�todo que Charlene costumava
usar para exteriorizar a raiva.
Partir, destruir. E depois mandar algu�m limpar. E comprar novo.
- Por seres m� m�e? Por seres uma grande cabra? Por dormires com o mesmo tipo que eu para provares que a idade n�o te impede de mo roubares? Talvez por me dizeres,
a vida toda, que sou uma desilus�o como filha. Qual destas acusa��es consideras uma ofensa?
- Criei-te sozinha. Sacrifiquei-me por ti para que pudesses ter tudo o que querias.
- Que pena nunca me teres posto nas aulas de violino. Um agora dava-me jeito. E sabes que mais, Charlene? Isto n�o � sobre n�s duas. � sobre ele. Est� morto.
- N�o acredito em ti.
- Algu�m o matou. Foi assassinado. Algu�m lhe enterrou uma picareta no peito e o deixou na montanha.
- N�o. N�o, n�o, n�o, n�o. - Agora o seu rosto congelara, t�o inerte e frio como o c�u atr�s de si. Depois este desmoronou-se, e ela deslizou para o ch�o sentando-se
em cima da porcelana e dos vidros partidos. - Oh, meu Deus, n�o. Pat. Pat.
- Levanta-te, por amor de Deus. Est�s a cortar-te toda. - Ainda furiosa, Meg deu a volta � secret�ria e agarrou nos bra�os de Charlene para a i�ar.
- Meg. Megan. - A respira��o de Charlene, entrecortada, n�o cessava de acelerar. Os seus enormes olhos azuis estavam lavados em l�grimas. - Morreu?
- Sim.
Derramou as l�grimas, que lhe inundaram as faces. Num gesto de entrega, deixou cair a cabe�a sobre o ombro de Meg e agarrou-a com for�a.
Meg combateu o instinto inicial de a afastar. Deixou a m�e chorar, abra�ada a chorar. E percebeu que era o primeiro abra�o sincero que partilhavam em tantos anos
que perdera j� a conta.
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Quando a tempestade passou, levou Charlene para o quarto. Era como despir uma boneca, pensava, ao tirar a roupa � m�e. Tratou dos cortes mais pequenos e fez deslizar
uma camisa de noite pela cabe�a de Charlene.
- Ele n�o me deixou.
- N�o. - Meg entrou na casa de banho e estudou a farm�cia da m�e. Tinha sempre uma grande quantidade de comprimidos. Encontrou Xanax e encheu um copo de �gua.
- Odiei-o por me ter deixado.
- Eu sei.
- Tu odiaste-me por isso.
- Talvez. Toma isto.
- Assassinado?
- Sim.
- Porqu�?
- N�o sei. - Pousou o copo ao lado depois de Charlene ter tomado o comprimido. - Deita-te.
- Eu amava-o.
- Talvez sim.
- Eu amava-o, - repetiu Charlene, enquanto Meg lhe puxava os cobertores sobre o corpo. - Odiei-o por me deixar sozinha. N�o suporto estar sozinha.
- V� se dormes um pouco.
- Ficas aqui?
- N�o. - Meg fechou as cortinas e falou para as sombras. - N�o odeio estar sozinha. E preciso de estar. Quando acordares, tamb�m n�o me vais querer ver.
Mas ficou at� Charlene adormecer.
Ao descer, passou por Sarrie Parker nas escadas. - Deixa-a dormir. O escrit�rio dela est� um caos.
- Eu ouvi. - Sarrie ergueu as sobrancelhas. - Deves ter-lhe dito alguma coisa para a tirares do s�rio.
- V� se consegues limp�-lo antes de ela l� voltar.
Continuou a andar e agarrou no casaco ao entrar no restaurante. - Tenho de ir, - disse a Nate.
Ele levantou-se do bar e apanhou-a junto � porta. - Onde?
- Para casa. Tenho de ir para casa. - Acolheu a rajada fria e regeneradora do vento.
- Como � que ela est�?
- Dei-lhe um calmante. Quando acordar, vai sobrar para ti. Lamento. - Cal�ou as luvas e levou as m�os aos olhos. - C�us. C�us.
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Foi como eu esperava. Histeria, raiva, porque � que me odeias. O costume.
- Tens um corte na cara.
- � s� um arranh�o. Um cortezinho de nada. Ela gosta de atirar coisas. - Respirava com pondera��o ao caminharem na direc��o do rio. Ela observava a sua pr�pria respira��o
dan�ar e desvanecer-se. - Mas quando assimilou, percebeu que eu n�o estava a brincar e foi-se abaixo. N�o esperava ver aquela express�o na cara dela. Ela amava-o.
Nunca pensei nisso. Nunca pensei que fosse verdade.
- N�o me parece que seja a melhor altura para qualquer uma de voc�s ficar sozinha.
- Ela n�o vai ficar. Mas eu preciso. D�-me alguns dias, Burke. De qualquer forma, vais ter muito que fazer por aqui. S� uns dias at� isto assentar. Depois aparece
l� em casa. Cozinho para ti, levo-te para a cama.
- Os telefones j� est�o a funcionar. Podes ligar-me se precisares de alguma coisa.
- Pois posso. Mas n�o o vou fazer. N�o me tentes salvar, Comandante. - Puxou os �culos de sol para a cara. - Trata s� dos pormenores.
Virou-se, puxou a cabe�a dele at� � dela e envolveu-os a ambos num beijo quente e �vido. Depois recuou e raspou a m�o enluvada pelo rosto dele.
- S� uns dias, - repetiu e avan�ou na direc��o do avi�o.
N�o olhou para tr�s, mas sabia que ele ficara junto ao rio, sabia que estava a v�-la descolar. Obrigou-se a esquecer tudo aquilo, sem excep��o, e deixar-se pairar
sobre as copas das �rvores, na orla dos c�us.
S� quando viu o rasto de fumo da sua chamin� e as balas prateadas que eram os seus c�es a correr pela neve, na direc��o do lago, � que sentiu um n� na garganta.
S� quando viu a figura que sa�a de sua casa, a seguir devagar o trilho dos c�es, � que sentiu que as l�grimas lhe haviam emergido dos olhos.
As m�os come�aram a tremer, por isso foi com esfor�o que as conseguiu controlar e aterrar. Ele estava � sua espera, o homem que fizera papel de pai, quando o verdadeiro
saiu de cena.
Ela saiu, obrigando-se a manter e dominar a voz. - S� estava � tua espera daqui a uns dias.
- Alguma coisa me disse que era altura de voltar. - Ele estudava o rosto dela. - Aconteceu alguma coisa.
- Sim. - Ela acenava, debru�ando-se para cumprimentar os c�es radiantes. - Aconteceu uma coisa.
- Vamos entrar e contas-me.
S� quando entrou, abra�ando o calor, depois de ele lhe preparar um
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ch� e de ter dado �gua aos c�es, de ouvir sem fazer qualquer coment�rio, � que ela se desfez em l�grimas.
11.
Entrada de di�rio - 18 de Fevereiro de 1988
Alcancei o topo das nuvens. Para mim, essa � a defini��o do momento �ureo de qualquer escalada. Toda a exaust�o, a dor, a ang�stia do frio desvanecem-se, quando
atingimos o cume. Renascemos. Naquela inoc�ncia, n�o existe medo de morrer nem de viver. N�o existe raiva, sofrimento, passado nem futuro. Existe apenas o momento.
Conseguimos. Sobrevivemos.
Dan��mos na neve virgem, quase a quatro mil metros de altura, com o Sol a brilhar nos olhos e o vento a tocar a sua melodia tresloucada. Os nossos gritos embatiam
e ecoavam pelos c�us, a vertigem numa espiral com o oceano avassalador de nuvens.
Quando Darth disse que dev�amos saltar, quase avancei. N�o queria saber. Ali �ramos deuses.
Estava a falar a s�rio. Senti-me estremecer, n�o s� de medo, ao perceber que ele n�o estava a brincar. Vamos saltar. Vamos voar! Acho que o meu amigo inalou demasiado
Dex. E eu, demasiado acelerado para lhe fazer frente at� ao fim.
Chegou mesmo a agarrar-me no bra�o, a desafiar-me. Tive de me inclinar para tr�s, e de o puxar tamb�m, para longe do precip�cio. Ficou danado comigo, mas depois
riu-se. E desat�mos os dois �s gargalhadas. Como loucos.
Ele disse algo um pouco estranho, mas eu achava que o lugar at� era prop�cio. A praguejar aos berros, no meio de gargalhadas tresloucadas, sobre a sorte que eu tinha.
Como havia ficado com a mulher mais sensual de Lunacy, e que me podia dar ao luxo de gozar a vida enquanto ela ficava a trabalhar. Que podia desaparecer, livre e
desimpedido, e n�o s� dar umas valentes quecas, acertar no jackpot no quarto das traseiras, como ainda por cima estava no topo do mundo s� porque me dava na real
gana.
Agora � que n�o salto mesmo.
As coisas iam mudar, foi o que ele me disse. Tudo ia dar uma volta radical. Ia arranjar uma mulher desejada pelos outros homens, ia ser grande. Ia viver como um
rei.
Deixei-o pensar nas palavras por instantes. O momento era bom de mais para implicar.
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Passei da pura alegria para a paz - profunda e completa. Aqui n�o somos deuses, mas apenas homens que, a custo, alcan�aram mais um pico. Sei que centenas de coisas
que j� fiz s�o insignificantes. Mas isto n�o �. Isto marcou-me.
N�o conquist�mos a montanha, unimo-nos a ela.
Acho que, por esse motivo, sou capaz de ser um homem melhor. Um parceiro melhor, um pai melhor. Sei que algumas das alarvidades de Darth s�o verdadeiras. N�o fiz
por merecer tudo o que tinha, n�o da forma que merecia naquele momento. Sou atingido pelo desejo de ser algo mais, ali ao ser fustigado pelo vento, acima de um mundo
cheio de sofrimento e beleza, agora envolto pelas nuvens que me tentavam a mergulhar sobre elas, a apressar-me a regressar para todo o sofrimento e beleza.
Era estranho que ali estivesse, onde mais queria, a sofrer pelo que deixara para tr�s.
Nate estudava as fotografias da gruta gelada. N�o havia nada de novo para ver, e depois de aproveitar cada momento livre nos �ltimos tr�s dias para as analisar,
trazia gravado no c�rebro cada detalhe impresso.
Recebera informa��es escassas da Pol�cia Estadual. Se o tempo permitisse, iam enviar uma equipa forense e outra de resgate nas pr�ximas quarenta e oito horas. Sabia
que tinham entrevistado exaustivamente os tr�s rapazes, mas quase tudo o que fora falado soubera por portas travessas, em vez de pelos tr�mites oficiais.
Queria montar um caso, mas este n�o era dele.
N�o lhe iam dar permiss�o para examinar a gruta, para assistir � aut�psia assim que trouxessem o corpo. As informa��es que lhe dariam seriam filtradas pela discri��o
da equipa de investiga��o.
Talvez, assim que o corpo fosse identificado como sendo o de Patrick Galloway, se movesse em terreno mais firme. Mas n�o ia estar no centro da ac��o.
Ficou surpreendido pelo muito que queria estar. H� anos que as suas emo��es n�o se avivavam devido a um caso. Queria trabalhar nele. Talvez em parte isso se devesse
ao facto de haver uma liga��o a Meg mas, no essencial, a raz�o eram as fotografias. Era o homem que viu nelas.
Congelado no tempo, h� dezassete anos. Conservado, todos os detalhes da sua morte preservados. Os mortos det�m sempre as respostas, se soubermos onde procurar.
Teria lutado? Ou teria sido tomado de surpresa? Conhecia o assassino? Ou assassinos?
Porque � que tinha morrido?
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Guardou o ficheiro que havia aberto numa gaveta, ao ouvir bater � porta do seu gabinete.
Peach espreitou. - Deb apanhou um grupo de mi�dos a roubar na loja. O Peter est� livre. Quer que ele os v� p�r na linha?
- Pode ser. Avise os pais, mande-os c� vir. O que � que levaram?
- Tentaram roubar livros de banda desenhada, doces e um ma�o de Miller. J� deviam saber. A Deb tem olhos de �guia. O Jacob Itu acabou de entrar. Quer falar consigo,
se tiver dois minutos.
- Claro, diga-lhe que entre.
Nate levantou-se e foi at� � m�quina do caf�. Mais uma hora de sol, calculava ele, apesar de a luz que restava ser sombria e perene. Olhou pela janela, identificou
a Sem Nome e fitou-a enquanto bebia o caf�.
Virou-se ao ouvir Jacob aproximar-se. O homem era o s�mbolo do cl�ssico Nativo do Alasca, com o rosto ossudo e olhos escuros e intensos. O cabelo prateado, penteado
numa s� tran�a. Botas robustas, a roupa gasta do trabalho, um colete castanho comprido por cima da flanela e da l�.
Nate achava que devia andar na casa dos cinquenta e muitos, mas tinha um ar fresco e em forma, aparentando for�a an�mica.
- Sr. Itu. - Nate gesticulou para uma cadeira. - Em que lhe posso ser �til?
- Patrick Galloway era meu amigo. Nate assentiu. - Quer um caf�?
- N�o. Obrigado.
- O corpo ainda n�o foi resgatado, examinado nem identificado.
- Nate sentou-se atr�s da secret�ria. Era o mesmo discurso que proferira a quem quer que entrasse ou o visse na rua, n'A Estalagem, nos �ltimos dias.
- A Pol�cia Estadual est� encarregue da investiga��o. Assim que se confirmar a identifica��o, h�o-de notificar a fam�lia mais pr�xima oficialmente.
- Meg n�o se ia enganar em rela��o ao pai.
- Pois n�o. Concordo.
- N�o posso deixar que outros fa�am justi�a.
Um dia, tamb�m pensara assim. Fora essa convic��o que o enviara com o seu parceiro para um beco em Baltimore.
- O caso n�o � meu. Nem � a minha jurisdi��o nem a minha prov�ncia.
- Ele era um de n�s, tal como a filha �. Voc� deu a cara perante toda a gente nesta cidade e prometeu cumprir o seu dever.
- Foi o que fiz. Vou fazer. N�o vou esquecer mas, neste caso, estou bem abaixo na hierarquia.
Jacob aproximou-se, o seu �nico movimento desde que entrara na sala. - Quando estava no Exterior, os assassinatos eram a sua vida.
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- Pois eram. J� n�o estou no Exterior. Viu Meg?
- Vi. Ela � forte. A dor h�-de passar. E n�o vai deixar-se abater por ela.
Como eu deixei?, pensava Nate. Mas aquele homem de olhar intenso e uma raiva controlada implac�vel n�o conseguia ver o que trazia dentro de si.
- Fale-me de Galloway. Quem � que pode ter escalado com ele?
- Ele j� os conhecia.
- Quem?
- Uma subida � Sem Nome no Inverno exige pelo menos tr�s pessoas. Ele era imponderado, impulsivo, mas n�o ia tentar com menos de tr�s pessoas. Tamb�m n�o faria a
escalada com estranhos. Ou n�o s� com estranhos. - Jacob esbo�ava um sorriso leve. - Mas fazia amigos com facilidade.
- E inimigos?
- Um homem que tem o que os outros cobi�am costuma fazer inimigos.
- O que � que ele tinha?
- Uma mulher linda. Uma filha inteligente. Um trato f�cil e falta de ambi��o que lhe permitia fazer o que quisesse quase sempre.
Cobi�ar a mulher de outro homem era muitas vezes um motivo para assassinato entre amigos. - Charlene estava envolvida com algu�m?
- N�o me parece.
- E ele?
- Ele at� pode ter andado com uma ou outra mulher, de tempos a tempos, quando se ausentava de casa, como alguns homens fariam. Se gostava de alguma da vila, n�o
me disse nada.
- N�o era preciso dizer-lhe, - respondeu Nate. - Voc� saberia.
- Sim.
- E os outros tamb�m. Num lugar destes at� podem existir segredos, mas n�o do tipo que fica enterrado por muito tempo. - Pensou por mais um instante. - Droga?
- Ele cultivava um pouco de marijuana. N�o vendia.
Nate ergueu as sobrancelhas. - S� erva? - Ao ver que Jacob hesitava, Nate recostou-se. - Agora ningu�m o leva preso.
- Essencialmente erva, mas n�o recusava o que lhe viesse parar � m�o.
- Tinha um dealer? Digamos, em Anchorage?
- N�o me parece. Raramente tinha dinheiro para gastar nesse tipo de luxo. Charlene � que orientava os gastos, e n�o era m�os largas. Ele gostava de escalar, pescar
e caminhar. Gostava de voar, mas n�o mostrava
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qualquer interesse em ser piloto. Trabalhava quando precisava de dinheiro. N�o gostava de restri��es, leis e regras. Muitos que aqui chegam pensam assim. Ele n�o
o teria compreendido a si.
Segundo o ponto de vista de Nate, o mais importante era que ele compreendesse Patrick Galloway.
Fez mais algumas perguntas e depois registou os apontamentos que tirara, assim que Jacob saiu.
Agora era altura de tratar de quest�es mais mundanas, que implicavam alguns adolescentes que roubavam em lojas.
Com isso, um par de skis desaparecidos e uma batida de carro, ficou ocupado at� acabar o turno.
Ia tirar a noite de folga, deixando Otto e Pete de servi�o. A n�o ser que houvesse algum assass�nio em massa, estava livre at� de manh�.
Ia dar a Meg o tempo que precisava. Tinha esperan�a que ela ficasse pronta para o receber.
Concluiu que a culpa era dele, por se ter decidido a ir � A Estalagem buscar uma muda de roupa, s� para o caso de passar a noite em casa de Meg.
Charlene apanhou-o quando ainda estava no quarto.
- Tenho de falar consigo. - Contornou-o diante da porta e entrou, para se sentar na cama. Estava toda vestida de preto: uma camisola e cal�as justas, e saltos altos
com que ela adorava pavonear-se.
- Claro. Podemos descer e beber um caf�.
- � um assunto particular. Importa-se de fechar a porta?
- Ok. - Mas jogou pelo seguro e ficou junto a ela.
- Preciso que fa�a uma coisa. Queria que fosse a Anchorage e dissesse �quelas pessoas que t�m de me entregar o corpo do Pat.
- Charlene, ainda nem sequer o resgataram.
- Eu sei. N�o estive ao telefone o dia todo, com esses burocratas e patifes insens�veis? V�o deix�-lo l� em cima.
Ao ver os seus olhos rasos de l�grimas, o est�mago de Nate contorceu-se.
- Charlene. - Olhou em redor, numa busca desesperada por um len�o de papel, uma toalha, uma T-shirt velha, e acabou por ir � casa de banho. Apareceu com um rolo
de papel higi�nico, que lhe enfiou na m�o. - Levar pessoas l� para cima e realizar o resgate � uma opera��o complicada.
N�o quis acrescentar que mais alguns dias, de qualquer forma, tamb�m n�o iam fazer diferen�a nenhuma. - Tem havido tempestades e ventos fortes. Mas hoje falei pessoalmente
com o Sargento Coben. Se estiver bom tempo, esperam enviar uma equipa logo de manh�.
- Disseram que n�o sou a parente mais pr�xima, porque n�o �ramos
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casados legalmente. - Arrancou v�rias folhas de papel e enterrou a cara naquela am�lgama.
- Oh. - Ele contraiu as faces para soltar um suspiro. - Meg...
- Ela n�o � leg�tima. - Com um tremor na voz, Charlene acenou com o papel ensopado. - Porque � que o v�o entregar a ela? Eles v�o mand�-lo para casa dos pais dele,
a leste. E isso n�o � justo! N�o est� certo! Ele deixou-os, n�o foi? N�o foi a mim que abandonou. N�o de prop�sito. Mas eles odeiam-me e nunca me v�o deixar ficar
com ele.
J� presenciara familiares pesarosos com os seus falecidos, e nunca fora agrad�vel. - J� falou com eles?
- N�o, n�o falei com eles, - irritou-se e os seus olhos tornaram-se frios. - Eles nem sequer me reconhecem. Oh, falaram algumas vezes com Meg e deram-lhe dinheiro
quando fez vinte e um anos. Uma mis�ria, quando sabemos que andam a nadar nele. N�o quiseram saber de Pat quando ele estava vivo, mas pode apostar que v�o querer,
agora que est� morto. Quero-o de volta. Quero-o de volta.
- Ok, talvez seja melhor darmos um passo de cada vez. - N�o via outra op��o, por isso sentou-se a seu lado e passou-lhe o bra�o por cima do ombro para que pudesse
chorar no dele. - Vou manter contacto com Coben. Mas deixe-me dizer-lhe que ainda vai demorar at� o corpo ser resgatado. � bem poss�vel. E parece-me que Meg, a filha
dele, tem tanto direito quanto os pais dele.
- Ela n�o vai lutar por ele. N�o quer saber desse tipo de coisa.
- Eu falo com Meg.
- Porque � que algu�m haveria de querer matar Pat? Nunca fez mal a ningu�m. S� a mim. - Deu uma gargalhada chorosa, do tipo que aliava tristeza e melancolia. - E
n�o foi de prop�sito. Nunca tinha a inten��o de chatear ou entristecer algu�m.
- Chateava muita gente?
- Quase sempre a mim. Dava comigo em doida. - Suspirou. - Amava-o como uma louca.
- Se lhe pedir que se recorde, que olhe bem para tr�s, para as semanas por volta da altura em que ele partiu, acha que era capaz? Pense nos pormenores, at� nos insignificantes.
- Posso tentar. Foi h� tanto tempo que quase j� nem parece real.
- Gostava que tentasse, que durante uns dias recordasse com muito afinco. Anote tudo o que lhe vier � cabe�a. O que ele disse, as pessoas com quem esteve, tudo o
que lhe pare�a diferente. Depois falamos sobre isso.
- Tem estado este tempo todo l� em cima, - murmurou. - Sozinho ao frio. Quantas vezes � que olhei para aquela montanha, todos estes anos? Agora, sempre que o fa�o,
vejo Pat. Era mais f�cil quando o odiava, sabe?
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- Sim, imagino que fosse.
Fungou, endireitando-se. - Quero que tragam o corpo dele para aqui. Quero enterr�-lo aqui. Era isso que ele queria.
- Vamos fazer os poss�veis para que isso aconte�a. - Como as l�grimas a haviam amolecido e deixara de lado os seus golpes de sedu��o, talvez fosse altura de conseguir
mais algumas informa��es. - Charlene, fale-me sobre Jacob Itu.
Ela limpou as pestanas. - O que quer saber?
- Qual � a hist�ria dele? Como � que ele se dava com Pat? Ajuda-me a montar um cen�rio.
- Para conseguir descobrir o que aconteceu a Pat?
- Exactamente. Ele e Jacob eram amigos?
- Eram. - Voltou a fungar, agora mais delicadamente. - O Jacob � um bocadinho... misterioso. Pelo menos eu nunca o compreendi.
A julgar pelo olhar amuado, queria dizer que nunca o conseguira levar para a cama. Interessante, concluiu Nate. - Parece-me ser um solit�rio.
- Imagino que sim. - Ela agora encolhia os ombros. - Ele e Pat deram-se logo bem. Acho que ele, sei l�, era como se Pat o divertisse. Mas gostavam muito daquelas
tretas de ca�ar, pescar e caminhar. Pat era muito bom em actividades ao ar livre. Ele e Jacob costumavam ir durante dias para o mato, enquanto eu ficava a tratar
da beb�, a trabalhar e...
- Ent�o era essa a liga��o, a identifica��o, - interrompeu Nate.
- Bom, ambos odiavam o governo, mas tamb�m quase toda a gente por aqui. Ele e Pat gostavam de fazer tudo o que fosse � margem, mas bem l� no fundo, era a Meg.
- O que tinha a Meg?
- Bom...
Ela virou-se na direc��o dele, no que Nate reconhecia como um gesto de mexerico. Deixou-se ficar como estava, sentado numa pose de intimidade na cama com ela, disposto
a n�o alterar essa din�mica at� conseguir aquilo que pretendia.
- Jacob j� foi casado.
- A s�rio?
- H� muito tempo. S�culos. Quando tinha dezoito ou dezanove anos, e vivia numa aldeia no mato, perto de Nome. - O rosto dela come�ava a animar, ao atirar o cabelo
para tr�s e acomodando-se, para lhe contar o resto. - Foi o Pat que me contou tudo isto, e uns rumores daqui e dali. Jacob nunca falou muito comigo.
Come�ou a amuar de novo, a erguer a armadura. - Ent�o, ele foi casado, - indagou Nate.
- Foi coisa de mi�dos, na mesma tribo. Cresceram juntos e tudo,
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foi um daqueles acordos entre almas g�meas. Ela morreu de parto. Ela e o beb�... uma menina. Ela entrou em trabalho de parto prematuro, uns meses antes, e teve complica��es.
N�o me lembro bem do que correu mal, mas n�o a conseguiram levar para o hospital, pelo menos n�o chegaram a tempo. � triste, - disse passado um instante, e os seus
olhos, o seu rosto, a sua face suavizaram numa express�o de compaix�o genu�na. - � muito triste.
- Pois �.
- Pat disse que foi por isso que Jacob se tornou piloto do mato. Se tivesse um avi�o, ou se tivesse conseguido arranjar um a tempo, talvez... Por isso mudou-se para
aqui, disse que n�o podia ficar l� porque a sua vida ali tinha acabado. Ou qualquer coisa do g�nero. De qualquer forma, quando apareceu, assim que viu Meg, Jacob
disse que o esp�rito dela falava com o dele. E nem sequer estava pedrado. Costuma dizer este tipo de coisa. Disse ao Pat que Meg era sua filha espiritual, e Pat
achou muito engra�ado. Eu achei um bocadinho estranho, mas Pat n�o se importava. Concluiu que isso fazia dele e Jacob irm�os.
- Ele e Pat alguma vez discutiram sobre alguma coisa? Por exemplo, sobre Meg?
- Que eu saiba, n�o. Claro que Jacob n�o discute. Limita-se a gelar-nos com aqueles olhares... como � que lhes chamam? Impenetr�veis, - concluiu. - Aqueles olhares
impenetr�veis. Acho que se aproximou de Meg quando Pat partiu. Mas ele afinal n�o partiu. - As l�grimas vacilavam de novo nos seus olhos. - Morreu.
- Lamento. Obrigado pelas informa��es. Ajuda sempre, saber o contexto.
- Fale com a Meg. - Charlene levantou-se. - Fale com ela, para ver se ela convence aquela gente de Boston a perceber que o Pat pertence aqui. Fa�a-a entender. A
mim ela n�o ouve. Nunca ouviu, nem vai ouvir. Conto consigo, Nate.
- Vou fazer o que puder.
Ela parecia satisfeita com a afirma��o, e deixou Nate sentado na borda da cama, a imaginar-se a ser esmagado por duas mulheres dif�ceis.
Ele n�o lhe telefonou. Era poss�vel que ela o despachasse ou se limitasse a n�o atender o telefone. O pior que ela podia fazer se ele aparecesse � sua porta era
mand�-lo embora outra vez, mas pelo menos poderia ver se ela estava bem.
Conduzia pela estrada do t�nel com paredes de neve amontoadas de cada um dos lados. O c�u clareara um pouco, como previsto, e um vislumbre luzidio de luar e estrelas
pairava no ar. Cintilava nas montanhas que lhe
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preenchiam o olhar, reluzindo na imagem fugaz que lhe era oferecida pelo rio.
Ouviu a m�sica antes de dar a curva para casa dela. Preenchia a escurid�o, penetrando-a e sorvendo-a. Tal como as luzes se reflectiam na noite. Tinha-as acesas,
todas, e a casa, o terreno, as �rvores circundantes encontravam-se iluminadas como fogo. Atrav�s dele, a m�sica escorria e flu�a.
Parecia-lhe uma esp�cie de �pera, apesar de aquele tipo de m�sica n�o ser o seu forte. Era desolador, do tipo que desfazia cora��es ao mesmo tempo que, de certa
forma, elevava o esp�rito.
Ela limpara a entrada, quase um bom metro. Conseguia imaginar o tempo e o esfor�o que dedicara. Limpara a neve do alpendre e uma caixa junto � porta estava cheia.
Come�ou a bater � porta, mas depois decidiu que ningu�m ia ouvir com toda aquela m�sica. Tentou abri-la e constatou que estava destrancada, por isso empurrou-a.
Os c�es, que dormiam apesar da m�sica, saltaram do tapete. Ap�s alguns latidos breves e de aviso, come�aram a abanar as caudas. Para al�vio de Nate, pareciam lembrar-se
dele e saltavam para o cumprimentar.
- Bom, �ptimo. Onde est� a tua m�e?
Tentou gritar algumas vezes, e depois abriu caminho at� ao primeiro andar. As chamas viva�as das lareiras alumiavam a sala e a cozinha, e algo no fog�o crepitava
e antecipava o jantar.
Come�ou a espreitar, talvez s� para ter um vislumbre, quando percebeu um movimento pela janela.
Aproximou-se. Agora conseguia v�-la, claramente, na torrente de luzes. Estava toda agasalhada da cabe�a aos p�s, a rebocar-se pela neve nas enormes e redondas botas
de neve que chamavam garras de urso. Enquanto a observava, ela parou, e ergueu o olhar para o c�u. Ali ficou, a olhar para cima, a m�sica a jorrar sobre si. Depois
abriu os bra�os para os lados e deixou-se cair para tr�s.
Num salto acrob�tico, ele j� se encontrava na porta de entrada. Abriu-a com toda a for�a e saiu disparado, saltou os degraus e deslizou pelo caminho gelado que ela
limpara.
Ela endireitou o tronco assim que o ouviu gritar o seu nome.
- O que foi? Ol�, de onde � que apareceste?
- O que aconteceu? Magoaste-te?
- N�o. S� me queria deitar um minuto na neve. O c�u est� a abrir. Bom, d�-me a tua m�o, j� que est�s a�.
Assim que ele lhe estendeu a m�o, os c�es correram e saltaram para cima de ambos.
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- Deixaste a porta aberta, - constatou Meg a custo, enquanto um dos huskies rolava com ela na neve.
- Desculpa. Esqueci-me de a fechar, mas achei que te tinha dado uma coisa. - Ajudou-a a levantar-se. - O que � que est�s a fazer aqui fora?
- Estava no barrac�o, a trabalhar numa velha mota de neve que arranjei h� uns meses. De vez em quando dou-lhe uns acertos.
- E sabes arranjar uma mota de neve?
- Os meus talentos s�o intermin�veis e variados.
- Aposto que sim. - A olhar para ela, esqueceu-se de todas as irrita��es do dia. - Estava a pensar em comprar uma mota de neve.
- S�rio? Bom, assim que consiga p�r esta a funcionar em pleno, fazemos neg�cio. Vamos entrar. Estou a precisar de uma bebida. - Lan�ou-lhe um olhar fugidio enquanto
caminhavam na direc��o de casa. - Ent�o, ias a passar pela vizinhan�a?
- N�o.
- Vieste saber de mim?
- Sim, e contava com uma refei��o gr�tis.
- S� vieste a contar com isso?
- N�o.
- �ptimo. Porque estou pronta para isso tamb�m. - Pegou numa vassoura encostada ao lado da porta. - D�s-me aqui uma varridela?
Depois de o ver dar o seu melhor, ela descal�ou as botas garra de urso. - Despe o casaco. Fica um bocado, - convidou ela e come�ou a despir o seu.
- Hei. O teu cabelo.
Ela passou a m�o por ele ao mesmo tempo que pendurava a parca e o chap�u. - O que � que tem?
- Tens muito menos.
Agora chegava-lhe logo abaixo da linha do maxilar, direito, farto e espesso, e um pouco despenteado pelas suas m�os.
- Queria mudar. Foi o que fiz. - Foi buscar uma garrafa � despensa. Ao tirar os copos, olhou para tr�s e viu que ele sorria para ela. - O que foi?
- Gosto. Ficas com um ar, n�o sei, jovem e gira.
Ela inclinou a cabe�a. - Jovem e gira, como se me quisesses vestir de saia rodada ou jardineiras e te chamasse Pap�?
- N�o sei o que s�o jardineiras, mas se quiseres podes vesti-las. Tenho a certeza que depressa me ia esquecer da parte do pap�.
- Fica ao teu crit�rio. - Encolheu os ombros e serviu vinho tinto em dois copos. - � bom ver-te, Burke.
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Ele aproximou-se, tirou-lhe os copos das m�os e pousou-os em cima do balc�o. E usando as m�os para afagar aquele cabelo farto, inclinou-se, devagar, os olhos abertos,
e beijou-a. Num sil�ncio apaziguador, at� o calor faiscar com laivos de �xtase. E viu-a a olhar para ele naquele beijo, viu aqueles olhos azuis perfeitos pestanejar
uma �nica vez.
Quando se afastou, pegou nos copos de vinho e deu-lhe um.
- Tamb�m � muito bom beijar-te.
Ela esfregou os l�bios um no outro, e foi com surpresa que a excita��o que neles pulsava n�o fez lume com a fric��o. - Um argumento dif�cil de contrariar.
- Estava preocupado contigo. N�o queres ouvir-me dizer isto, ficas retra�da. Mas � a verdade. Se n�o estiveres preparada, n�o temos de conversar sobre isso.
Ela bebeu um pouco, depois outra vez. Concluiu que era um homem de imensa paci�ncia. E o primo directo da paci�ncia era a tenacidade.
- O melhor � enfrentar o assunto. Sabes fazer uma salada?
- Ah... abre-se um daqueles pacotes de coisas para salada que se compra na loja e deita-se numa ta�a?
- N�o �s homem da cozinha, hein?
- N�o.
- Ainda assim, nesta altura do nosso relacionamento, sempre que me quiseres, vais ter de aprender a cortar vegetais sem te queixares. Alguma vez descascaste uma
cenoura? - Perguntou ela, enquanto se dirigia para o frigor�fico.
- Sim, j� descasquei.
- Pronto, j� � qualquer coisa. - Espalhou os ingredientes em cima do balc�o e passou-lhe uma cenoura e um descascador. - Faz isso.
Entretanto, ela come�ou a lavar alface. - Nalgumas culturas, as mulheres cortam o cabelo como sinal de luto. Mas n�o foi por isso que o fiz. Ele j� morreu h� muito
tempo, e eu habituei-me a isso, � minha maneira. S� que agora � diferente.
- Um assass�nio muda tudo.
- Mais ainda do que a morte, - concordou ela. - A morte � natural. � uma complica��o, porque, hei, ningu�m quer morrer, mas existe um ciclo e ningu�m pode fugir
dele.
Escorreu a alface, os dedos compridos de unhas curtas e embotadas a trabalhar com agilidade. - Podia ter aceitado a morte dele. Mas n�o vou aceitar o seu assass�nio.
Por isso vou insistir com os federais, e contigo, at� ficar satisfeita. Esta conversa pode at� esfriar o clima que sentias, mas � s� um trav�o.
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- N�o me parece que isso v� acontecer. H� muito tempo que n�o me interessava por uma mulher, por isso, est� na altura.
- Porque n�o?
Ele entregou-lhe a cenoura para que a inspeccionasse. - Porque n�o o qu�?
- Porque � que n�o te interessaste por nenhuma mulher?
- Eu... hmm.
- Problemas de performance?
Ele pestanejou, mas conseguiu soltar uma gargalhada estrangulada.
- Bom, Jesus. Mas que pergunta. Sabes que esta conversa � muito estranha para se ter com uma folha de alface na m�o.
- Voltemos ao assass�nio, ent�o, - retorquiu ela.
- Quem � que os levou para cima? - Perguntou ele.
- O qu�?
- Devem ter precisado de um piloto, certo? Quem � que os levou at� ao acampamento base, ou l� como lhe chamam.
- Oh. - Fez uma pausa e bateu com a faca na t�bua de cozinha.
- Tu � que �s o pol�cia, n�o �s? N�o sei e � bem capaz de ser complicado descobrir passado tanto tempo. Mas entre mim e Jacob, somos capazes de descobrir.
- Seja quem for, quando desceu levava um homem a menos do que quando subiu. Mas n�o comunicou isso. Porqu�?
- S�o essas coisas que temos de descobrir. �ptimo. J� temos uma direc��o.
- Os investigadores respons�veis v�o fazer essas perguntas, avan�ar nessa direc��o. Se quiseres, podes tirar um tempo para tratares dos assuntos mais pessoais.
- Est�s a falar da batalha pela cust�dia e os planos para o funeral de Charlene. - Come�ara a cortar tiras interessantes de uma fatia de couve roxa. - J� tenho a
cabe�a cheia desse assunto, e foi por isso que ontem deixei de atender o telefone. Lutar por causa de um cad�ver � demasiado est�pido para mim. Especialmente quando
ela n�o faz ideia se a fam�lia dele se vai opor � ideia de o enterrar aqui.
- Conhece-los?
Agarrou numa panela e come�ou a ench�-la com �gua para a massa.
- Sim. A m�e dele contactou-me algumas vezes e quando se ofereceu para me pagar a viagem at� l�, para conhecer a fam�lia, eu estava t�o curiosa que fui. Tinha dezoito
anos. Charlene ficou pior do que estragada, o que me fez querer ainda mais.
Depois de colocar a panela ao lume, mexeu ao de leve o molho e voltou para terminar a salada. - S�o porreiros. Emproados, altivos, n�o s�o
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do tipo de pessoa com quem queira conviver, nem que me queiram por perto durante muito tempo. Mas foram simp�ticos para mim. Deram-me dinheiro, o que lhes d� alguns
pontos de avan�o.
Agarrando na garrafa, encheu o copo, as sobrancelhas arqueadas para Nate.
- N�o, estou bem assim.
- Foi dinheiro suficiente para eu entrar com o pagamento do meu avi�o e desta casa, por isso, s�o meus.
Fez uma pausa para beber um pouco de vinho, contemplativa. - Acho que n�o v�o contrariar Charlene e insistir em arrast�-lo para leste. Ela quer pensar que sim, porque
adora odi�-los. Tal como eles gostam de a ignorar. Assim, podem todos dar mais valor ao meu pai do que alguma vez deram.
Tirou os pratos e passou-os para que Nate os colocasse na mesa. - Ficar calado � uma t�cnica de interroga��o?
- Pode ser. Tamb�m h� quem lhe chame ouvir.
- S� conhe�o uma pessoa, bom, das que gosto de passar um bom bocado, que me ouve como tu. � o Jacob. � uma qualidade imensa e poderosa. O meu pai ouvia-me, �s vezes.
Mas tamb�m percebia que se perdia na conversa, caso se prolongasse demasiado. Ficava ali sentado, mas j� n�o estava a ouvir. Jacob sempre me ouviu.
- De qualquer forma, - disse ela, ap�s um longo e profundo suspiro. - Patrick Galloway era um patife insens�vel. Eu amava-o, e comigo nunca foi insens�vel. Mas era
para a fam�lia que, apesar de todos os defeitos, n�o merecia que o filho desaparecesse sem dizer uma palavra antes de fazer dezoito anos. E foi para Charlene, deixando-a
a ganhar o pr�prio sustento e a tratar de todas as responsabilidades e obriga��es. Ela devia mesmo am�-lo, o que j� era, ou talvez seja, a sua cruz. N�o sei se ele
a amava.
Pegou num frasco transparente cheio de rotini do arm�rio e deitou para dentro da panela, mas continuou a falar ao mesmo tempo que ajustava o lume e mexia.
- Acho que ele n�o tinha ficado connosco, se n�o o tivessem matado, antes de ter oportunidade de desaparecer. Mas agora nunca hei-de saber, e ele nunca teve hip�tese
de escolha. Isso � que � importante. O que importa � que algu�m acabou com ele. Da� o meu interesse nisto tudo. E n�o pela disputa de onde o v�o enterrar.
- Sensata.
- N�o sou uma mulher sensata, Burke. Sou ego�sta. N�o tarda muito que venhas a descobrir. - Pegou num recipiente de pl�stico do frigor�fico, abanou-o e deitou o
conte�do por cima da salada. - Dentro daquela gaveta est� uma baguete. Fresquinha, desta manh�.
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Ele abriu a gaveta e viu o p�o. - N�o sabia que tinhas ido � vila.
- N�o fui. Tirei uns dias de reclus�o. - Depois de desembrulhar o p�o, cortou algumas fatias grossas. - Fazer p�o � uma das coisas que mais gosto quando estou em
reclus�o, o que me afasta do �cio.
- Fazes p�o. - Come�ou a cheir�-lo. - Nunca conheci ningu�m que fizesse p�o. Nem que pilotasse um avi�o. Ou que arranjasse o motor de uma mota de neve.
- Como j� disse, sou uma mulher de talentos estranhos e variados. Depois do jantar, mostro-te mais alguns. Na cama. Enche o copo, sim? J� estamos despachados daqui.
Talvez fosse o ambiente, talvez fosse a mulher, mas ele n�o se conseguia lembrar de ter tido uma refei��o mais descontra�da.
Ela dissera que n�o era sensata, mas ele via uma boa orienta��o na forma como vivia, de como cuidava da casa. Na forma como lidava com o choque e a dor, at� mesmo
a raiva.
Jacob dissera que ela era forte. Nate come�ava a acreditar que ela era a pessoa mais forte que conhecera.
E a mais confort�vel na pr�pria pele.
Perguntou-lhe como lhe tinha corrido o dia. Ele demorou algum tempo a concentrar-se nisso. Estava t�o habituado no seu casamento a deixar o trabalho na rua.
Mas ela queria saber, comentar, fazer mexericos, rir.
Ainda assim, sob todo o �-vontade que sentia perto dela estava latente a excita��o, a antecipa��o, o fervor sexual que lhe aquecia o sangue sempre que ela se aproximava.
Queria passar-lhe as m�os pelo cabelo, cerrar os dentes no vislumbre exposto do seu pesco�o. Conseguia pensar nisso, imaginar, sentir um aperto no est�mago ao perceber
o peso do dia deslizar-lhe pelos ombros.
A dado momento, ela espregui�ou-se e pousou os p�s no seu colo enquanto se recostava para beber mais vinho. E ele ficou com a boca seca, a mente tr�pega.
- Costumava roubar nas lojas. - Atirou um peda�o de p�o a cada um dos c�es e ele pensou imediatamente em como um gesto daqueles haveria de tirar a sua m�e do s�rio.
E o quanto apreciava ficar a ver os c�es lutarem pelo p�o, como um grupo de defesas a ver passar popflies.
- Tu... assaltavas.
- Roubar numa loja n�o � bem um assalto.
- Levar coisas, sem as pagar.
- Ok, ok. - Revirou os olhos. - Mas era mais um ritual de passagem,
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pelo menos para mim. E era muito astuta para ser apanhada, como aqueles mi�dos que arrecadaste hoje. Nunca levei nada que me pudesse ser �til. Era mais do tipo:
hmm, ser� que me consigo safar com isto? Depois, escondia o produto no quarto e � noite ia busc�-lo e olhava-o com uma satisfa��o mal�fica. Passados uns dias devolvia
tudo, o que era quase t�o perigoso e excitante. Acho que teria dado uma boa criminosa, se tivesse vivido noutro s�tio, porque sempre achei que n�o era importante
o que se levava, mas sim a sensa��o de me safar sempre.
- J� n�o costumas...
- N�o, mas agora que falas nisso, era capaz de ser divertido ver se n�o perdi o jeito. E se for apanhada, tenho a b�n��o do Comandante da pol�cia. - Deixou cair
os p�s e inclinou-se para lhe dar uma palmada na coxa enquanto ele a estudava com aqueles olhos cinzentos e s�rios. - N�o fiques t�o preocupado. Toda a gente na
cidade sabe que sou doida e ningu�m me levava a mal.
Levantou-se. - Deixa-me levantar estes pratos. Porque � que n�o levas os c�es l� fora? Eles gostam de correr a esta hora do dia.
Assim que a cozinha ficou arrumada segundo as suas coordenadas e os c�es se deitaram no ch�o com um par de ossos do tamanho de t�bias, ela passou para a sala com
o intuito de dar uma vista de olhos pela sua selec��o de CDs.
- N�o me parece que Puccini v� dar o tom certo ao que resta da nossa noite.
- Era isso que estava a tocar? Cenas de �pera?
- Bom, acho que isso responde � minha pergunta sobre a tua opini�o no que diz respeito a esta m�sica.
- N�o percebo nada disso. Quando vinha a chegar, a melodia l� fora agradou-me. Dava uma sensa��o de plenitude, mas estranha e de partir o cora��o.
- Talvez haja esperan�a para ti. Hmm, at� podia p�r Barry White, mas � demasiado �bvio. O que achas de Billie Holiday?
- Ah, a cantora de blues que j� morreu?
Ela virou-se para ele. - Ok, o que � que sabes de m�sica?
- Sei algumas coisas. O que passa na r�dio ou, est�s a ver, na VH1. - O olhar divertido dela levou-o a enfiar as m�os nos bolsos. - Gosto de Norah Jones.
- Ent�o Norah Jones ser�. - Procurou um n�mero e programou a aparelhagem para o seleccionar.
- E dos Black Crowes, - continuou ele, em jeito de defesa. - E, na verdade, o novo �lbum da Jewel � bastante bom. E o Springsteen ainda � o Boss. E tamb�m...
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- Deixa l�. - Ela riu-se e agarrou-lhe na m�o. - A Jones serve muito bem. - Come�ou a lev�-lo na direc��o das escadas. - Se me deres a volta, at� sou capaz de ouvir
a minha pr�pria m�sica.
- Sem pressas.
- Aposto que d�s conta do recado. - No cimo das escadas, virou-se para ele, levando-o a entrar no quarto de costas. - D� conta de mim, Comandante. H� muito que quero
que o fa�as.
- Penso em ti o tempo todo. Em momentos inoportunos.
Ela enla�ou os bra�os � volta da cintura dele. Sentia-se �vida dele, num desejo intenso. Era t�o estranho, t�o novo para ela precisar e querer algo t�o espec�fico.
- Por exemplo?
- Como imaginar-te nua quando estou a rever os turnos semanais com Peach. Chega a ser desconcertante.
- Gosto da ideia de me imaginares nua, especialmente em momentos inoportunos. - Passou os dentes pelo maxilar dele. - Porque � que n�o me deixas assim agora?
- Tamb�m gosto de ti vestida. S� para tua informa��o, - declarou ao puxar-lhe a camisola pelos bra�os.
Gostava de sentir o corpo dela nas suas m�os, e de como tinha de a descobrir camada a camada, at� chegar � pele. E do calor da sua pele, da suavidade. Apesar do
velo, da l� e do algod�o, apesar de todo o sentido pr�tico, havia o seu aroma secreto, sensual bem l� no fundo.
Ela tocava-o, lenta mas ansiosa, despindo-lhe todas as camadas tal como ele lhe fazia. E acendeu algo dentro dele, algo mais do que o mero desejo. Algo que hibernava
h� demasiado tempo.
Podia perder-se nela sem se sentir perdido. Deixar-se ir sem pensar no caminho de regresso. Quando fechou a boca sobre a dela, provando a entrega e a avidez, alcan�ou
tudo por que ansiara.
Giraram na direc��o da cama e deitaram-se nela. Ele ouviu o seu suspiro e perguntou-se se seria de al�vio ou de desejo. Ela deitou-o, arqueando e oferecendo, assim
que a boca dele deslizou pelo seu pesco�o, os dentes mordiscando o caminho at� � nuca. Ele sentia o cora��o dela bater junto ao dele e o afago firme e acolhedor
das m�os nas suas costas.
Ela queria dar-lhe o que ele precisava. Era algo raro para ela, uma mulher que preferia cuidar primeiro das pr�prias necessidades - e por �ltimo tamb�m. Mas queria
dar-lhe, afastar aquela bruma de tristeza que lhe assombrava o olhar. E sabia que, de alguma forma, podia dar, e que ele nunca a deixaria insatisfeita.
Havia algo mais no calor dos l�bios dele, nas suas m�os ansiosas, do que apenas a busca da satisfa��o. Se algo dentro dela pensara nisso, logo o
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conceito se desvanecera. Ela sabia que mais tarde teria tempo de sobra para preocupa��es e arrependimentos.
Ele levantou-se sobre ela, ati�ando pequenos arrepios, acendendo pequenos fogos e, por fim, prendendo as m�os nas dela como que a pedir-lhe que n�o o excitasse de
mais, t�o cedo.
Queria prov�-la. Aqueles ombros, seios, aquela sua maravilhosa curva esguia. Deixou os l�bios trilh�-la, fazendo-a estremecer, a respira��o entrecortada num gemido
ao sentir que os dedos dela se cravavam nos seus.
Deslizou a l�ngua pelo seu corpo, dentro dela, levando-a � loucura.
Ela veio-se num golpe, em que o seu corpo quente e h�mido se deixou inundar de prazer. Todo o seu ser gritava livre, amolecendo numa demanda desesperada por mais.
Num choque, deu-lhe mais, at� perceber que ela o puxava e mordia para o sentir, at� o seu corpo relaxar atordoado pela droga que lhe lan�ara no sangue.
- Meg. - Pressionava a boca no seu abd�men, logo abaixo do cora��o, sobre ele.
Assim que as m�os libertas dela lhe agarraram as ancas, ele ergueu as dela.
Por fim, encontrava-se dentro dela. Ligados. Acasalados. Apoiando a testa na dela, lutava por respirar na esperan�a de que a sua mente aclarasse, para viver cada
segundo, cada momento, cada emo��o.
Ela segurava-o, unindo-o nos corpos fundidos e nas mentes perdidas. Ele voltou a dizer o nome dela, um instante s� antes de se libertar.
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SOMBRA
Segue uma sombra, ela ainda te assombra; Se a procurares, ela persegue-te.
Ben Jonson
Os acontecimentos futuros
Lan�am sombras pr�vias.
Thomas Campbell
12.
Ela n�o se importava de estar deitada, em sil�ncio, �s escuras. Na verdade, at� gostava, em especial com o corpo t�o mole do sexo.
Ouviu os c�es a entrar e a deitarem-se com o alarido costumeiro no ch�o, aos p�s da cama.
O velho rel�gio do escrit�rio ao fundo do corredor batia as nove horas.
Era demasiado cedo para dormir, pensou ela. E estava demasiado relaxada para se mexer.
Pelos vistos, era a altura perfeita para satisfazer a sua curiosidade acerca do homem que estava ao seu lado.
- Porque � que ela te traiu?
Ela sentiu-o mover-se, deslocando o corpo para se separar dela. Pensou que um psiquiatra haveria de ter umas teorias acerca disso.
- Talvez eu n�o lhe desse o que ela procurava.
- �s bom na cama. Mais do que bom. Espera um segundo.
Ela rolou para fora da cama e, como estava determinada a sacar-lhe algumas informa��es, foi buscar um roup�o. - Volto j�, - disse ela, e come�ou a descer para ir
buscar o vinho e copos limpos.
Quando regressou, ele estava a p�, vestira as cal�as e lan�ava mais um tronco na lareira do quarto. - Talvez seja melhor...
- Se a pr�xima coisa que vais dizer � ir embora, esquece. Ainda n�o acabei contigo. - Recostou-se na cama e encheu os copos. - Est� na hora daquela hist�ria comprida
e triste, Burke. Bem podes come�ar por ela, j� que � bem capaz de ser a raz�o de tudo o resto.
- N�o sei se �.
- Foram casados, - incitou Meg. - Ela foi infiel.
- Isso resume quase tudo.
Mas ela limitou-se a esticar o pesco�o, a erguer o copo. Ele hesitou, mas voltou atr�s. Aceitando o vinho, sentou-se com ela na cama. - N�o a fazia feliz, s� isso.
N�o � f�cil estar casada com um pol�cia.
- Porqu�?
- Porque... - Deixa-me contar os motivos, pensava ele. - A fun��o exige de n�s o tempo todo. As horas passam a correr. Fazes planos por um segundo, mas no seguinte
tens de cancelar. Chegas tarde a casa e a tua cabe�a ficou no trabalho. Quando se lida com homic�dios, � prov�vel que arrastes a morte contigo, apesar de n�o ser
intencional.
- � bem poss�vel. - Provou o vinho. - Diz-me uma coisa. J� eras pol�cia quando se casaram?
- Sim, mas...
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- N�o, n�o, sou eu quem faz as perguntas. H� quanto tempo se conheciam, quando decidiram dar o n�?
- N�o sei. H� um ano. - Bebeu vinho bem devagar e ficou a olhar para o lume. - Talvez quase dois.
- Ela era lenta? Est�pida?
- N�o. Bolas, Meg.
- S� quero dizer que s� podia ser uma coisa ou outra, para estar envolvida com um pol�cia h� um ano ou mais e n�o perceber as regras do jogo.
- Pois, talvez. Mas isso n�o significa que tenha de gostar das regras ou que queira viver de acordo com elas.
- Pois, as pessoas t�m direito a mudar de ideias, sempre que quiserem. N�o h� nenhuma lei contra isso. S� digo que, quando casou contigo, conhecia a bagagem. E usar
a bagagem como desculpa para te trair ou deitar as culpas para cima de ti quando as coisas deixaram de funcionar, n�o � correcto.
- Casou com o filho da m�e com quem me traiu, e isso deve ter algum peso na hist�ria.
- Ok, apaixonou-se por outra pessoa. Merdas acontecem. Mas isso � problema dela. Deitar-te as culpas de algo que ela fez � um esquema vulgar.
Agora ele olhava para ela. - Como � que sabes que ela fez isso?
- Porque estou a olhar para ti, lindinho. Estou errada? Ele bebeu um trago de vinho. - N�o.
- E permitiste.
- Amava-a.
Aqueles olhos fant�sticos enevoaram-se de compaix�o, ao mesmo tempo que ela lhe pousava a m�o sobre a face, subindo pela am�lgama despenteada de cabelo dele. - Pobre
Nate. Partiu-te o cora��o e deu-te um pontap� nos tomates. O que aconteceu?
- Eu sabia que as coisas n�o estavam bem. Mas ignorei, por isso a culpa � minha. Pensava que ia passar. Devia ter-me dedicado mais.
- Podia, devia, pensava.
Ele soltou meia gargalhada. - �s m�zinha.
Descontraindo, ela beijou-lhe a face. - Est� melhor assim? Na tua opini�o, n�o prestaste a devida aten��o �s brechas que se foram abrindo no gelo. E que mais?
- Abriram-se brechas maiores. Achava que podia dar um tempo, que pod�amos passar uns dias fora da cidade, na redescoberta. Enfim. Ela n�o estava interessada. Eu
queria filhos. Fal�mos sobre isso antes de casar, mas ela deixou a ideia arrefecer. Discut�amos sobre um monte de coisas. A culpa n�o foi s� dela, Meg.
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- Nunca �.
- Um dia cheguei a casa. Fora um dia mau. Fui destacado num caso, tiroteio em andamento. Uma mulher e os dois filhos. Ela est� � minha espera. Diz-me que quer o
div�rcio, que est� farta de esperar at� que eu me decida a ir para casa. Farta de adiar as suas necessidades e os seus planos por minha causa, e coisas que tais.
Eu explodi, ela tamb�m, e afinal de contas ela est� apaixonada por outra pessoa, que por acaso � o prest�vel do nosso advogado, e que anda com ele h� meses. Despeja
tudo em cima de mim. Que a abandonei emocionalmente, nunca liguei aos seus desejos e necessidades, que esperava que ela mudasse de planos sem mais nem menos. Que
de qualquer forma tamb�m nunca a apoiei, e que por isso quer que eu saia de casa. Por acaso at� teve a aten��o de embalar quase todas as minhas coisas.
- O que � que fizeste?
- Fui-me embora. Tinha acabado de presenciar a chacina in�til de uma mulher de vinte e seis anos, e dos filhos de dez e oito anos. Depois de eu e Rachel gritarmos
durante uma hora, j� n�o me restava mais nada. Pus as malas no carro, andei algum tempo �s voltas e acabei em casa do meu parceiro. Dormi algumas noites no sof�
dele.
Na cabe�a de Meg, devia ter sido a mulher, Rachel, a dormir no sof� de uma amiga, depois de Nate lhe ter dado um valente chuto no rabo, ajudando-a a sair mais depressa
de casa. Mas deixou passar.
- E depois?
- Ela deu-me os pap�is; fui falar com ela. Mas ela estava decidida e deixou tudo em pratos limpos. N�o queria continuar casada comigo. �amos dividir os bens e cada
um ia para seu lado. De qualquer forma, eu estava casado com o trabalho, por isso ela era sup�rflua. Foi isso que ela afirmou. Fim da hist�ria.
- N�o me parece. Um tipo como tu pode ficar com o cora��o estra�alhado, e at� pode andar algum tempo a remoer nisso. Mas depois vai aos arames. Porque � que tu n�o
foste?
- Quem te disse que n�o fui? - Levantou-se, pousou o vinho e foi para junto da lareira. At� � janela. - Olha, foi um ano mau. Ou dois. A minha m�e soube que est�vamos
a tratar do div�rcio e foi giro de se ver. Caiu-me em cima como tijolos.
- Porqu�?
- Ela gostava da Rachel. Nunca quis que eu fosse pol�cia. O meu pai morreu no cumprimento do dever, tinha eu dezassete anos; ela nunca superou isso. At� conseguiu
lidar bem com o facto de ser mulher de um pol�cia. Mas n�o conseguia ser vi�va de um pol�cia. E nunca me perdoou por querer ser o que ele era. Algures na cabe�a
dela achava que Rachel, aquele casamento, me ia transformar noutra coisa qualquer. N�o foi o caso e, na sua
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opini�o, fui eu que dei cabo dele. Durante um tempo aquilo chateou-me, por isso dediquei-me ao trabalho e sobrevivi.
- E depois?
Virou-se de costas para a janela e voltou, para se sentar. - Rachel casou-se. N�o sei porque � que foi um golpe t�o forte, mas fiquei muito em baixo, e acho que
era evidente. Jack, o meu parceiro, disse que �amos sair, para beber um copo. Jack era um homem de fam�lia. Ia sempre para casa, ter com a mulher e os filhos, mas
eu estava em baixo, ele era meu colega, por isso fez-me companhia numas cervejas e deixou-me desabafar. Devia estar em casa, em vez de num bar qualquer comigo no
meio da noite. Devia estar em casa na cama com a mulher. Mas n�o estava. Sa�mos e demos com aquilo, meio quarteir�o acima. Tr�fico de droga que corre mal. O gajo
desata a disparar, e n�s vamos em persegui��o. Pelo beco abaixo, e eu sou atingido.
Com um tiro, pensou ela. - As cicatrizes na tua perna, e do lado direito.
- Com o tiro na perna vou-me abaixo, mas digo ao Jack que estou bem. Ligo do telem�vel a pedir refor�os. Quando me estou a levantar, ele d� um tiro em Jack. No peito,
no abd�men. Jesus. N�o consigo chegar ao p� dele. N�o consigo, e o atirador voltou. Tresloucado, passado mesmo. � uma merda de uma idiotice voltar atr�s, em vez
de fugir. Acerta-me outra vez, mas n�o me parece mais do que uma dorm�ncia. Como uma flecha quente por baixo das costelas. E descarreguei a arma em cima dele. N�o
me lembro, mas foi o que me contaram. Lembro-me de rastejar at� Jack, de o ver morrer. Lembro-me da forma como olhou para mim, da for�a com que me agarrou na m�o
e disse o meu nome... raios partam. E de dizer o nome da mulher, quando percebeu. Lembro-me disso, todas as noites.
- E culpas-te.
- Ele n�o devia estar ali.
- N�o vejo as coisas dessa forma. - Ela queria pegar-lhe ao colo, embal�-lo como uma crian�a. Um erro para ele, sabia ela, era para si uma indulg�ncia. Sentou-se
a seu lado, pousando-lhe apenas a m�o na perna. - Cada escolha que algu�m faz aponta numa determinada direc��o. Tamb�m n�o estarias l� se a tua mulher estivesse
em casa � tua espera. Por isso, tamb�m a podes culpar a ela e ao tipo com quem ela andava. Ou podes apenas culpar o tipo que o alvejou, porque sabes, bem l� no fundo
sabes, que o culpado � ele.
- Sei isso tudo. J� ouvi essa hist�ria vezes sem conta. Mas n�o muda a forma como me sinto �s tr�s da manh� ou �s tr�s da tarde. Ou sempre que me tenta deitar abaixo.
Mais valia dizer tudo, contar-lhe tudo, qualquer que fosse o pre�o.
- Ca� num buraco sem fundo, Meg, um enorme buraco escuro e
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terr�vel. Tenho tentado sair dele e �s vezes estou quase a conseguir, mesmo na berma. Mas depois algo l� em cima come�a a empurrar-me para baixo outra vez.
- Fazes terapia?
- O departamento tratou disso.
- Medica��o?
Mudou outra vez de posi��o. - N�o gosto nada.
- Os qu�micos d�o bom viver, - disse ela, mas ele n�o sorriu.
- Fico irritado ou nervoso, fora de mim. N�o posso trabalhar sob o efeito da medica��o, e se conseguisse, n�o haveria de valer de nada. Mas tamb�m n�o podia ficar
em Baltimore. N�o me sentia capaz de enfrentar aquilo todos os dias. Mais um cad�ver, mais um caso... tentar deslindar os que eu e Jack inici�mos. Ver outra pessoa
na secret�ria dele. Saber que ele deixara mulher e filhos que o amavam, e que se tivesse sido eu, ningu�m teria ficado a sofrer.
- Por isso vieste para c�.
- Para me enterrar. Mas as coisas aconteceram. Vi as montanhas. Vi as luzes. As luzes do norte.
Olhava para ela e percebeu pelo sorriso subtil estampado no seu rosto que compreendia. N�o foi preciso dizer mais nada. Para que pudesse dizer mais.
- E vi-te. A mesma reac��o do costume. Algo dentro de mim quis voltar a viver. N�o sei como � que vai ser, nem se presto para ti. N�o sou uma aposta segura.
- Gosto de desafios. Veremos como tudo se desenrola.
- � melhor ir andando.
- N�o te disse que ainda n�o t�nhamos terminado? Deixa-me dizer-te o que dev�amos fazer. Pod�amos sair e saltar para dentro da �gua quente, depois volt�vamos para
aqui e rebol�vamos nus outra vez.
- Sair? L� para fora? Entrar numa banheira cheia de �gua l� fora, onde est�o doze graus negativos?
- N�o na banheira. V� l�, Burke, n�o sejas cortes. Anima-te. - E afoga alguma dessa tristeza tamb�m, pensou ela.
- Pod�amos ficar aqui mesmo na cama, em busca de anima��o. Mas ela rolou, afastando-se. - Vais gostar, - prometeu, e empurrou-o para fora da cama.
Tinha raz�o: ele gostou mesmo. A insanidade de se precipitar naquele mergulho frio e cortante em �gua quente, a sensa��o t�o absurda como sensual de estar nu com
ela sob um c�u, agora cheio de estrelas, daquelas luzes m�gicas e cintilantes.
O vapor emanava e ondulava acima da superf�cie, os c�es voltaram a
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correr como doidos. O �nico sen�o que antevia era ter de sair novamente, atravessar o ar gelado a correr at� casa, e a possibilidade de um ataque card�aco.
- Costumas fazer muito isto?
- Algumas vezes por semana. Ajuda o sangue a circular.
- Ningu�m diria.
Mergulhando mais fundo, inclinou a cabe�a para tr�s. E as luzes do norte inundaram-lhe o campo de vis�o. - Bolas. Chegas a fartar-te disto? Alguma vez te habituaste?
Ela imitou a posi��o dele, apreciando a forma como o frio deslizava pelo seu rosto, enquanto o calor lhe saturava o corpo. - Habituada de forma a me sentir sua propriet�ria.
Como se elas me pertencessem, e eu apenas as partilhasse com alguns sortudos.
- Quase todas as noites saio, s� para as ver. N�o h� ningu�m na rua e o sil�ncio � total. E sim, nessa altura pertencem-me.
Naquela noite abundavam os vislumbres de alfazema, espirais de azul-escuro, rastos de vermelho. A m�sica que ela escolhera desta vez era Michelle Brandi, que cantava
apaixonada sobre a luz que brilhava no escuro.
Agitado, ele encontrou a m�o dela no calor da �gua, enla�ando os dedos. - Parece que isto � perfeito, - murmurou ele.
- Parece que sim.
Deixou-se embrenhar nas luzes e na m�sica, no calor e na m�sica. - Vais-te passar, se eu me apaixonar por ti?
Por momentos, ela n�o falou. - N�o sei. Talvez.
- Eu tamb�m. Para mim, � uma revela��o. Que ainda tenha algo aqui dentro que me leve nessa direc��o.
- Eu diria que ainda tens muito dentro de ti. Por outro lado, tamb�m n�o sei se terei o suficiente para come�ar a caminhar nessa direc��o.
Ele olhou para ela e sorriu. - Sinto que vamos descobrir.
- Talvez fosse melhor concentrares-te apenas no momento, apreci�-lo pelo que �. Viv�-lo.
- � isso que fazes? Vives para o momento?
O vermelho come�ava a sobressair, sobrepondo-se ao alfazema mais suave e doce. - Claro.
- N�o acredito. N�o � poss�vel teres o teu pr�prio neg�cio sem planos a longo prazo, sem constru��o de futuro.
O movimento dos ombros dela elevou-se na �gua. - Neg�cios s�o neg�cios. A vida � a vida.
- Uh-uh. N�o para pessoas como tu e eu. A nossa vida � o trabalho. Isso � parte do nosso problema ou uma das nossas virtudes. Depende de como o encaramos. "
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Agora ela estudava o seu rosto, franzindo o sobrolho. - Bom, aqui temos alguma filosofia de banheira.
Ele olhou, ao mesmo tempo que ela, na direc��o do som dos c�es que ladravam ferozmente no bosque. - Eles s�o sempre assim?
- N�o. � poss�vel que tenham visto uma raposa ou um alce. - Mas o sobrolho dela permaneceu contra�do at� os c�es se calarem. - Ainda � muito cedo para os ursos.
E o Rock e o Buli podem com quase tudo. Daqui a nada j� os chamo.
Ele trouxera alguns nacos de carne crua. Os c�es conheciam-no, por isso nem se preocupou. Mas era melhor estar preparado. Ali estava ele, a analisar a casa abrigado
pelas �rvores, por acreditar que devia estar preparado.
N�o tinha a certeza se percebia o que um pol�cia e a filha do seu melhor amigo faziam a chapinhar numa po�a de �gua quente. Talvez fosse bom. Um romance ia mant�-los
ocupados a ambos.
De qualquer forma, n�o se importava por a� al�m com o pol�cia. Era uma figura de autoridade que prendia b�bedos ou resolvia zaragatas. N�o tinha muito com que se
preocupar.
Mas tamb�m j� deixara de pensar que o corpo fosse encontrado. Deixara de pensar nisso e h� anos que colocara aquele assunto inc�modo para tr�s das costas. Acontecera
a outra pessoa. Nunca acontecera.
Nunca seria um problema.
Mas agora era.
Tinha de o resolver.
Agora estava mais velho, mais calmo. Era mais cuidadoso.
Havia pontas soltas para atar. Se uma delas acabasse por ser Megan Galloway, tinha muita pena. Mas tinha de se proteger.
Talvez fosse melhor come�ar a faz�-lo desde j�.
Colocou a espingarda ao ombro e deixou os c�es a disputar o �ltimo peda�o de carne.
Preparara tudo. De p� no gabinete �s escuras, n�o via nada, n�o via nada de que pudesse sentir falta. Precisavam de conversar, claro. Era o mais correcto, e justo.
Ele era um homem justo.
Ainda assim, era perigoso para ele estar ali �quela hora da noite. Se o vissem, seria preciso inventar motivos, desculpas. Uma refuta��o plaus�vel, pensou, meio
a sorrir.
H� muito tempo que n�o fazia nada perigoso. Desde que deixara de ser um homem que escalava montanhas e vivia em pleno. Esse sabor acordou o velho entusiasmo.
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Era por isso que outrora lhe chamaram Darth. Por ser implac�vel e por gostar de conquistas sombrias. Fora o que o levara a atitudes imprudentes e sublimes. Fora
o que o levara a matar um amigo.
Mas naquela altura era um homem diferente, lembrava-se. Agora reinventara-se. O que fazia agora n�o era por prazer ou curiosidade. Era para proteger o homem inocente
em que se tornara.
Tinha o direito de o fazer.
Por isso, quando o velho amigo entrou pela porta das traseiras, ele esperava calmamente. Calmo como gelo.
Max Hawbaker deu um salto, ao ver o homem sentado � secret�ria. - Como � que entraste?
- Sabes que deixas quase sempre a porta das traseiras aberta. - Levantou-se, os movimentos descontra�dos e f�ceis. - N�o podia ficar l� fora � tua espera. Algu�m
podia ver-me.
- Est� bem, est� bem. - Max despiu o casaco num gesto brusco e atirou-o para o lado. - � uma loucura encontrarmo-nos aqui no jornal, a meio da noite. Podias ter
ido l� a casa.
- A Carrie podia ouvir. Nunca lhe contaste nada. Juraste.
- N�o, nunca lhe contei. - Max passava a m�o pelo rosto. - M�e de Deus, disseste que ele tinha ca�do. Disseste que ele se passou e cortou a corda. Que tinha ca�do
numa fenda.
- Sei o que disse. N�o podia contar a verdade. Era muito horr�vel, n�o achas? Tu estavas a dizer coisas, a delirar quando cheguei ao p� de ti. Salvei-te a vida.
Max. Trouxe-te para baixo.
- Mas...
- Salvei-te a vida.
- Sim. Pois, est� bem.
- Deixa-me explicar tudo. Tira l� a garrafa que guardas na gaveta. Precisamos de uma bebida.
- Todos estes anos. Todos estes anos, ele estava l� em cima. Daquela maneira. - Precisava mesmo de uma bebida e pegou em duas canecas de caf�, para de seguida tirar
a garrafa de Paddy que estava na gaveta. - O que � que achas que devo pensar? O que � que devo fazer?
- Ele tentou matar-me. Ainda mal posso acreditar. - Refuta��o plaus�vel, pensou de novo.
- Pat? O Pat tentou...
- O Luke... lembras-te? Skywalker, o cavaleiro Jedi. Quanto mais droga tomava, mais doido ficava. Deixou de ser um jogo. Quando chegou ao cume, queria saltar e quase
nos arrastou aos dois com ele.
- Meu Deus. Meu Deus.
- Depois disse que estava no gozo, mas eu sabia que n�o. T�nhamos
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come�ado a descer, derrapei pela encosta, e ele pegou na faca. Cristo sant�ssimo, come�ou a cortar a minha corda e a rir. Mal me consegui agarrar na escarpa quando
ele a cortou. Sa� disparado.
- N�o posso acreditar. - Max engolia o u�sque e servia mais. - N�o posso acreditar em nada disso.
- Quando aconteceu, eu tamb�m n�o queria acreditar. Perdeu o ju�zo. A droga, a altitude, bolas, sei l�. Cheguei � gruta gelada. Entrei em p�nico. Estava furioso.
Ele foi atr�s de mim.
- Porque � que n�o me contaste nada disso antes?
- Achava que n�o ias acreditar. Fui pelo caminho mais f�cil. Tu farias o mesmo.
- N�o sei. - Max arrastou a m�o pelo cabelo fino.
- Mas tu seguiste mesmo o caminho mais f�cil. Quando pensaste que ele tinha ca�do, concordaste em ficar de boca calada. Concordaste em n�o dizer nada, a ningu�m.
Patrick Galloway tinha desaparecido, para parte incerta. Fim da hist�ria.
- N�o sei porque o fiz.
- Tr�s mil deram um jeita�o para o jornal, n�o foi?
Max corou, fitando o copo. - Talvez n�o fosse correcto aceit�-lo. Talvez fosse. S� queria p�r tudo para tr�s das costas. Estava a tentar come�ar de novo. N�o o conhecia
assim t�o bem na verdade, e tinha morrido. N�o pod�amos mudar isso, logo, n�o me pareceu importante. E tu disseste, afirmaste que iam fazer uma investiga��o se cont�ssemos
a algu�m o que and�mos a fazer, que ele tinha morrido l� em cima.
- E era verdade. Ia saber-se da droga, Max, sabes que sim. N�o te podes dar ao luxo de mais problemas com droga. Ou querias que a pol�cia pensasse que tu, que um
de n�s, fora respons�vel pela morte dele? N�o interessa como ele morreu, mas sim que � um facto, n�o � assim?
- Pois. Mas agora...
- Tinha de me defender. Ele atirou-se a mim com a faca. Atacou-me. Disse que a montanha precisava de um sacrif�cio. Ainda tentei fugir; mas n�o consegui. Agarrei
na picareta e... - Envolveu a caneca com as m�os e fingiu beber. - Oh, c�us.
- Foi leg�tima defesa. Eu corroboro.
- Como? N�o estavas l�.
Max engoliu o u�sque ao mesmo tempo que uma gota de suor lhe escorria pela t�mpora. - N�o tarda descobrem que estivemos l� em cima. Andam a investigar. A pol�cia
j� est� envolvida, e n�o h� como evit�-lo. V�o no nosso rasto. Talvez at� encontrem o piloto que nos levou at� l�.
- N�o me parece.
- Tudo aponta para homic�dio, e v�o descobrir. De tal forma que
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nos v�o identificar. As pessoas viram-nos com ele em Anchorage. S�o capazes de se lembrar. � melhor confessar agora, contar a hist�ria toda, explicar o que aconteceu.
Antes que acusem um, ou ambos, de homic�dio. Temos reputa��es, cargos, profiss�es. Bolas, tenho de pensar na Carrie e nos mi�dos. Tenho de lhe contar, para explicar
isto tudo antes que falemos com a pol�cia.
- O que � que achas que vai acontecer �s nossas reputa��es, aos nossos cargos, se isto vier a lume?
- Ainda vamos a tempo de resolver, se formos � pol�cia e contarmos tudo.
- � essa a tua jogada?
- � a �nica jogada poss�vel. Desde que o encontraram que ando a pensar nisto. Dei imensas voltas � cabe�a. Temos de ir � pol�cia antes que sejam eles a vir ter connosco.
- Talvez tenhas raz�o. Talvez sim. - Pousou a caneca e levantou-se, como se fosse caminhar para tr�s e para a frente, por tr�s da cadeira de Max. Tirou uma luva
do bolso e enfiou-a na m�o direita. - Preciso de mais algum tempo. Para pensar. Para p�r tudo em ordem, s� para o caso de...
- Vamos esperar mais um dia. - Max pegou mais uma vez na garrafa. - Ambos precisamos de tempo. Primeiro falamos com o Comandante Burke, para que nos apoie.
- Achas que vai resultar? - A voz dele estava mais calma, adivinhando um certo divertimento.
- Acho. A s�rio.
- Para mim, isto resulta melhor. - Por tr�s, agarrou a m�o direita de Max, presa na sua e colocou ambas sobre a coronha da arma. Enrolando a esquerda � volta do
pesco�o de Max, espetou o cano na t�mpora dele. O seu velho amigo estremeceu do choque, lutando por respirar. E ele premiu o gatilho.
A explos�o foi imensa, na sala t�o reduzida, e deixou-lhe a m�o tr�mula. Mas certificou-se de que deixara o dedo inerte de Max no gatilho. Impress�es digitais, pensou
ele, aclarando as ideias enquanto estremecia. Res�duos de p�lvora. Soltou a m�o, deixando a cabe�a de Max cair em cima da secret�ria e a arma bater no ch�o, ao lado
da cadeira.
Com cuidado, e a m�o enluvada, ligou o computador e abriu o documento que escrevera enquanto esperava que o amigo fosse ao seu encontro.
J� n�o posso mais viver assim. O fantasma dele voltou para me assombrar. Lamento pelo que fiz, por todas as pessoas que magoei.
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Perdoem-me.
Matei Patrick Galloway. E agora vou fazer-lhe companhia no Inferno.
Maxwell Hawbaker
Simples, directo. Assentiu e deixou o computador ligado. A luz do ecr� e o clar�o do candeeiro de secret�ria alumiavam o sangue e a mat�ria cinzenta.
Enfiou a luva manchada num saco de pl�stico e enfiou-a no bolso do casaco antes de o vestir. Colocou outro par de luvas, o chap�u, o cachecol e pegou na caneca de
caf� - a �nica coisa da sala em que tocara sem luvas.
Avan�ando at� � casa de banho, despejou o u�sque no lavat�rio e limpou-o com �gua. Esfregou a caneca com um pano e voltou a lev�-la para o escrit�rio, onde a pousou
onde estava.
Os olhos de Max fitavam-no, e algo neles lhe fez subir a b�lis � boca. Mas conseguiu engoli-la, obrigando-se a aguentar e a estudar os pormenores. Satisfeito por
n�o ter descurado nada, saiu da mesma forma como entrara.
Foi pelas ruas laterais, certificando-se de que levava o cachecol a cobrir o rosto, o chap�u bem enfiado na cabe�a, para o caso de algu�m com ins�nias espreitar
pela janela.
L� em cima, o c�u soltava as luzes do norte.
Fizera o que era preciso, convencia-se. Agora estava resolvido.
Assim que chegou a casa, lavou o cheiro a p�lvora e sangue entranhado na pele, bebeu um u�sque curto e ficou a ver a velha luva arder na lareira.
Agora j� n�o restava mais nada, por isso limpou a mente de todos aqueles pensamentos.
E dormiu o sono dos justos.
13.
Carrie parou junto � A Estalagem a caminho do jornal, para ir buscar algumas sandu�ches de bacon e ovo. Ficou surpreendida e algo irritada, ao ver que Max n�o estava
quando acordou. N�o que fosse a primeira vez que ele passava a noite no jornal, acabando por dormir l�. Nem que sa�a de madrugada antes sequer de ela e os mi�dos
terem acordado.
Mas quando o fazia, deixava-lhe sempre um bilhete carinhoso e lamechas na almofada.
173
Aquela manh� n�o deixara bilhete nenhum, e quando ligou para o jornal, ningu�m atendeu.
Ele n�o costumava fazer isso. Mas tamb�m, h� j� alguns dias que ele n�o estava em si. Era algo que j� a come�ava a aborrecer.
Tinham uma hist�ria fant�stica em m�os, agora que haviam descoberto o corpo de Patrick Galloway. Alegadamente, era o corpo de Pat Galloway, lembrava-se. Era essencial
decidirem agora o rumo que iam dar � hist�ria, o espa�o que lhe iriam reservar, e se seria necess�rio ir de armas e bagagens para Anchorage, quando por fim descessem
o corpo da montanha.
J� andara a remexer nas fotografias antigas e escolhera algumas de Pat. Iam colocar uma fotografia para ilustrar a reportagem.
E tamb�m as fotografias dos tr�s rapazes que o haviam encontrado. Queria entrevist�-los, sem d�vida Steven Wise, que era um rapaz da terra. Mas queria que fosse
Max a faz�-lo, uma vez que era muito melhor entrevistador do que ela.
Max nem queria falar do assunto. Uma vez perdeu as estribeiras quando tentou abord�-lo.
Estava na altura de ele marcar consulta na cl�nica. Costumava ficar com o est�mago sens�vel, quando n�o comia nem dormia em condi��es. O que vinha a acontecer h�
algum tempo, desde que soubera da descoberta de Galloway.
Talvez fosse por serem da mesma �poca, pensava ela, ao estacionar junto � berma diante d'O Lun�tico. E por ter conhecido o homem. Fizeram amizade, nos escassos meses
que Max passara em Lunacy antes de Pat... partir. Era melhor dizer partir, at� apurarem todos os factos.
Mas ela n�o percebia porque � que Max ia descarregar as suas frustra��es de meia-idade, ou coisa parecida, em cima dela.
Na verdade, conhecia Pat h� muito mais tempo do que Max, e n�o desatara aos prantos. Lamentava, claro, por Charlene e Meg - tamb�m tinha de as entrevistar - e fazia
quest�o de lhes apresentar pessoalmente os sentimentos assim que pudesse.
Mas era not�cia. Do tipo que ela e Max deviam investigar e escrever uma hist�ria no jornal. Por amor de Deus, naquele caso era uma vantagem serem da terra. Era bem
poss�vel que os seus artigos fossem escolhidos pelas ag�ncias noticiosas.
Bom, ia tratar pessoalmente da consulta dele, para depois o obrigar a ir. Tinham um monte de coisas para fazer, com a hist�ria de Galloway e os planos de cobertura
da Iditarod(4). C�us, j� era quase Fevereiro e o primeiro de Mar�o j� quase a cair-lhes em cima. Tinham de p�r m�os � obra, se queriam adiantar a reportagem da corrida
antes do prazo final.
(4) Afamada corrida anual de tren�s no Alasca. (N. da T.)
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Precisava que o seu homem estivesse em grande forma, e ia lembr�-lo disso, mesmo no caso de se ver obrigada a fazer alarido.
Desceu do carro com o saco da comida na m�o, apetitoso e j� com manchas de gordura no fundo. Abanou a cabe�a ao ver o brilho t�nue da luz que se antevia das traseiras
da loja que os acolhia. Estava capaz de apostar que Max adormecera outra vez � secret�ria.
- Carrie.
- Ol�, Jim. - Parou no passeio para cumprimentar o empregado do bar. - � cedo para ti.
- Vou fazer umas compras. - Acenou na direc��o da Loja da Esquina. - Parece que o tempo vai manter-se limpo, por isso pensei em ir pescar. - Olhou para a luz na
montra do jornal. - Mais algu�m come�ou cedo.
- J� sabes como � o Max.
- Com faro para as not�cias, - disse ele, batendo no seu nariz. - Hei, Professor. Est� na hora das aulas?
John parou para compor o trio. - Quase. Achei melhor ir a p�, enquanto posso. No r�dio disseram que hoje deve chegar a um negativo.
- Est� a� a Primavera, - anunciou Carrie. - E este pequeno-almo�o est� a arrefecer. � melhor entrar e empurrar Max da secret�ria abaixo.
- J� sabem alguma coisa para a hist�ria do Galloway? - Perguntou John.
Ela puxou as chaves. - Se houver mais alguma coisa, de certeza que sai na pr�xima edi��o. Tenham um bom dia.
Assim que entrou, acendeu as luzes. - Max! Toca a acordar! - Levava o saco castanho preso nos dentes para ter as m�os livres. Despiu o casaco e pendurou-o no cabide.
Enfiou as luvas num bolso e o chap�u no outro.
Por h�bito, ajeitou o cabelo com os dedos.
- Max! - Voltou a gritar, parando junto � secret�ria para acender o computador. - Trouxe o pequeno-almo�o, apesar de n�o perceber porque sou t�o boazinha para ti,
quando tens sido um urso resmung�o e imposs�vel de aturar ultimamente.
Pousando o saco, foi at� � m�quina de caf� e levou a cafeteira para encher na casa de banho. - Sandu�ches de bacon e ovo. Acabei de falar com o Jim Trinca-Espinhas
e O Professor ali fora. Bom, primeiro vi O Professor n'A Estalagem, a acabar as papas de aveia antes de ir para as aulas. Pareceu-me bem animado, para variar. Ser�
que pensa, agora que Charlene sabe que o seu velho mais-que-tudo morreu, que vai assentar com ele? Pobre desgra�ado.
P�s o caf� a fazer e tirou pratos de papel e guardanapos para as sandu�ches. Entre dentes, trauteava "Tiny Dancer", a melodia que Elton John cantara na sua esta��o
de r�dio de rock cl�ssico preferida, a caminho do trabalho.
175
- Maxwell Hawbaker, n�o sei como � que ainda te aturo. Se n�o deixas de ser trombudo e amuado, vais ver se n�o vou ca�ar um homem mais alegre e novo. Prepara-te.
Com uma sandu�che no prato em cada m�o, dirigiu-se para o pequeno gabinete de Max. - Mas antes de te deixar pela minha louca aventura sexual com um garanh�o de vinte
e cinco anos, vou levar esse teu rabo mole para a cl�nica...
Estacou na entrada, dobrando as m�os inertes pelos pulsos. As sandu�ches tombaram, uma, depois a outra, pelo ch�o. Trespassando o zumbido nos seus ouvidos, ouviu
o grito.
Nate bebia a segunda ch�vena de caf� enquanto lutava com o castelo de LEGO que constru�ra com Jesse, como projecto matinal. Bebera a primeira em casa de Meg, e os
seus pensamentos mais profundos ainda se encontravam com ela.
Hoje ela ia voar para norte, entregar mercadoria, e faria uma paragem em Fairbanks para tratar de encomendas dos habitantes da terra. Mediante uma taxa de cinco
por cento sobre o pre�o de compra, eles podiam poupar-se a uma viagem extenuante a uma das cidades, uma op��o que nem sempre era poss�vel no Inverno, e contar que
ela fizesse as compras, o transporte e a entrega.
Ela contara-lhe que, embora pequena, era uma faceta est�vel do seu neg�cio.
Nessa manh�, ele tamb�m deitara o olho ao escrit�rio dela. Era t�o arrojado e cheio de estilo quanto o resto da casa, passando uma imagem de conforto e efic�cia.
Uma secret�ria de estrutura semelhante a uma caixa de madeira, um computador preto de ar inflex�vel com um ecr� plano preto. Uma cadeira de executivo de pele, lembrava-se
ele, um rel�gio de p� antigo e imensos esbo�os a carv�o em molduras pretas pendurados na parede.
Uma planta enorme, cujas folhas mais pareciam l�nguas compridas e verdes, num vaso vermelho brilhante, arm�rios de arquivo brancos como a neve e um espanta-esp�ritos
de cristal, em forma de estrela, pendurado numa corrente diante da janela.
Achara-o tanto pr�tico quanto feminino.
N�o haviam feito planos para mais tarde. Ela afastava a ideia de planos e ele achava que era melhor assim. Precisava de tempo para pensar. Sobre a direc��o que iam
ou podiam tomar.
A sua tabela de resultados no que tocava a mulheres era muito pobre. Talvez fosse agora a altura de mudar isso com ela. Ou talvez fosse o momento certo, uma esp�cie
de interregno. Dentro dele sentia que muita coisa
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podia despertar, ap�s um sono longo e sombrio. Como � que distinguia o que era real? Ou, se fosse real, se conseguiria mant�-lo assim.
Se quisesse.
O melhor, por agora, era beber o caf�, tomar o pequeno-almo�o e erigir um castelo de pl�stico com um mi�do que se sentia feliz por ter companhia.
- Devia ter uma ponte, - disse Jesse. - A ponte que sobe e desce.
- Uma ponte levadi�a? - A aten��o de Nate voltou para a mesa. - Somos capazes de conseguir. Se tiv�ssemos fio de pesca.
O rapaz olhou-o de cima a baixo e cintilou. - Ok!
- Aqui tem, Comandante.
Ele percebeu o estremecimento de Rose ao pousar o prato. - Tudo bem?
- Doem-me um pouco as costas. Com este menino, foi a mesma coisa. - Com a m�o, agitou o cabelo do filho.
- Talvez devesse ir ao m�dico.
- Hoje vou fazer um checkup. Jesse, deixa o Comandante Burke tomar o pequeno-almo�o enquanto est� quente.
- Precisamos de fio de pesca para a ponte.
Deixou a m�o sobre a cabe�a dele por instantes. - J� tratamos disso.
Desviou o olhar para Jim Trinca-Espinhas, que assomara � porta, im�vel. - Jim?
- Comandante. Comandante. Tem de vir. Depressa. No jornal. � o Max. Oh, meu Deus.
- O que aconteceu? - Mas assim que o proferiu, esticou a m�o � frente. Conseguia ver pelo tom p�lido do rosto de Jim, os olhos arregalados e vidrados, que era grave.
A seu lado, o rapazinho observava com a boca cor-de-rosa aberta num O abismado. - Espere.
Levantou-se num �pice e agarrou no casaco. - L� fora. - Agarrou no bra�o tr�mulo do homem e levou-o porta fora. - O que foi?
- Morreu. Deus do C�u. O Max morreu, levou um tiro. Metade da cabe�a dele... metade da cabe�a dele desapareceu.
Nate apoiou Jim quando as suas pernas fraquejaram. - Max Hawbaker? Encontrou-o?
- Sim. N�o. Quero dizer, sim, � o Max. Carrie. Foi a Carrie que o encontrou. Ouvimo-la a gritar. Ela entrou e eu e O Professor est�vamos ali na conversa h� um tempo,
mas depois ela desatou aos gritos como se algu�m a estivesse a matar. Entr�mos a correr e... e...
Nate continuava a arrast�-lo pela rua - Tocaram nalguma coisa? - O qu�? N�o me parece. N�o. O Professor disse logo para o vir
177
chamar, para vir � A Estalagem cham�-lo. Foi o que eu fiz. - Engolia o ar a toda a velocidade. - Acho que vou vomitar.
- N�o vai nada. Corra � esquadra e chame o Otto. Conte-lhe o que acabou de me dizer e que eu preciso de uma m�quina fotogr�fica, sacos de provas, luvas de pl�stico
e a fita para o local do crime. Diga-lhe s� que preciso de equipamento para o local do crime. Consegue lembrar-se disso?
- Eu... sim. Eu vou l�. Trato j� disso.
- Depois fique l�. Fique na esquadra at� que eu volte para conversar consigo. N�o fale com mais ningu�m. V�.
Nate virou na direc��o do jornal e acelerou o passo. O seu c�rebro entrara em piloto autom�tico, e sabia que conservar a cena era fundamental. De momento, tanto
quanto sabia, estavam l� dois civis, o que significava que j� estava comprometida.
Abriu a porta de par em par e viu John ajoelhado no ch�o diante de Carrie, que solu�ava. John ainda tinha vestido o equipamento da neve, menos as luvas, e tentava
obrigar Carrie a beber um copo de �gua. Subiu o olhar para Nate e uma sombra de al�vio apoderou-se do seu rosto chocado.
- Gra�as a Deus. Max. Ali atr�s.
- Fique a�. N�o a deixe passar.
Avan�ou para o gabinete nas traseiras. Conseguia sentir o cheiro. Era sempre assim. N�o, corrigia, n�o era verdade. Na gruta gelada n�o havia cheiro a morte, onde
Galloway aguardava. A natureza t�-lo-ia encoberto.
Mas conseguia cheirar a morte de Max Hawbaker antes mesmo de a ver. Tal como sentia o cheiro, debaixo dela, de ovos mexidos e bacon, das duas sandu�ches ca�das no
ch�o, logo depois da entrada da porta.
O seu olhar perscrutou a sala desde a entrada, a posi��o do corpo, a arma, a natureza do ferimento. Parecia suic�dio. Mas ele sabia que a primeira impress�o de um
local do crime muitas vezes era falsa.
Entrou, mantendo-se aos cantos da sala, reparando nos padr�es das manchas de sangue na cadeira, no ecr� do computador, no teclado. E a po�a que provinha do ferimento
na cabe�a que ensopara a secret�ria e pingara para o ch�o, antes que a morte fechasse a torneira.
Queimaduras de p�lvora, reparou. Era prov�vel que o cano de um .22 tivesse sido apontado directamente � sua t�mpora. N�o havia ferimentos de sa�da. E ao contr�rio
da declara��o confusa de Jim, o impacto no rosto era menor. A bala deixara um orif�cio relativamente limpo antes de penetrar no c�rebro, batendo aos trope��es na
massa, como uma bola de flippers a atingir a pontua��o m�xima.
Morto, quase de certeza, antes de a cabe�a bater na secret�ria.
Olhando para o padr�o em espiral das cores da protec��o de ecr�,
178
Nate tirou uma caneta do bolso e aproximou-se o bastante para tocar no rato.
O documento surgiu no ecr�.
Enquanto lia, os olhos estreitaram-se, e assim se mantiveram ao olhar para o corpo do homem que alegava ter matado Patrick Galloway.
Voltou para junto da entrada e fez sinal a Otto que aguardasse, ao ver o adjunto entrar a correr pela porta da rua. Nate foi ter com Carrie e, como John, ajoelhou-se.
- Carrie.
- Max. Max. - Ela levou os olhos vermelhos, horrorizados at� ele. - Max est� morto. Algu�m...
- Eu sei. Lamento muito. - Fechou as m�os sobre as dela. - Agora vou ajud�-lo. Preciso que v� para a esquadra e que espere l� por mim.
- Mas o Max. N�o posso deixar o Max.
- Pode deix�-lo comigo. Vou tomar bem conta dele. John vai ajud�-la a vestir o casaco. Daqui a nada ele e Otto acompanham-na. Eu vou l� ter assim que possa. Por
isso fique l� e espere por mim.
Ela fitava-o inerte, o brilho do choque ainda a reluzir no olhar. - Espero por si.
- Isso mesmo. - Ela faria o que lhe pedira. O choque e o horror iam torn�-la obediente. Por momentos. - Otto?
Ele levantou-se e foi de novo at� �s traseiras.
- Deus sant�ssimo, - exclamou Otto entre dentes.
- Preciso que os leve daqui. O Jim ainda l� est�?
- Sim. - Engolia de forma aud�vel. - Jesus, Comandante.
- N�o permita que se v�o embora, e mantenha-os separados. Pe�a a Peach que tome conta da Carrie por agora. Preciso que ligue ao Peter, pe�a-lhe que venha imediatamente.
- Eu estou aqui. O Peter pode aguentar as pontas na esquadra enquanto...
- Quero que comece a recolher depoimentos. Faz isso melhor do que o Peter. Comece por Jim. Tamb�m quero que o m�dico c� venha. Entre em contacto com Ken e diga-lhe
que venha j� para c�. Preciso dele de plant�o. N�o podemos cometer nenhum erro, e n�o quero que se saiba at� termos o local protegido e os depoimentos recolhidos.
Use um gravador. Registe a data e a hora e tome notas como seguran�a. Fa�a com que ningu�m saia de l�, todos separados at� eu regressar. Percebido?
- Percebido. - Passou a m�o pela boca. - Por que raio � que Max haveria de se suicidar? Foi isso que aconteceu, n�o foi? Suic�dio?
- Vamos trabalhar no local e com as testemunhas, Otto. Uma etapa de cada vez.
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Quando ficou sozinho, pegou na m�quina fotogr�fica que Otto levara para registar a cena. Gastou um rolo de pel�cula, recarregou e tirou um segundo.
Em seguida, pegando no bloco de notas, assentou os pormenores. O facto de a porta das traseiras estar destrancada, o fabricante e o calibre do rev�lver, as palavras
exactas do bilhete no ecr�. Fez um esbo�o rude da sala, acrescentando a posi��o do corpo, o rev�lver, o candeeiro, a garrafa de u�sque e a caneca solit�ria.
Tinha as luvas postas e estava a cheirar a garrafa e a caneca quando Peter entrou.
- Pegue na fita do local do crime, Peter. Preciso que a coloque nas portas da frente e das traseiras.
- Vim o mais r�pido que pude... - Peter interrompeu-se ao chegar � ombreira da porta.
Ao ver que a pele de Peter adquiria uma tonalidade verde, Nate deu-lhe um safan�o. - N�o se atreva a vomitar aqui. Se for inevit�vel, v� l� para fora e leve a fita
consigo.
Peter inclinou o corpo para tr�s e fitou arduamente a parede, respirando pela boca. - O Otto disse que o Max se matou, mas n�o me parece...
- Ainda n�o determin�mos isso. A �nica certeza � que Max est� morto. Agora, isto � um local do crime, e quero proteg�-lo. A �nica pessoa a entrar aqui � o m�dico.
Percebido?
- Sim, senhor. - Peter tirava a fita amarela da caixa que Otto levara e voltou a sair aos trope��es.
- Os estaduais v�o reclamar-te, Max, - murmurou. - Parece que lhes vais dar a solu��o de presente, com uma merda de um la�arote a enfeitar. Talvez tenha sido assim
mesmo. Mas n�o acredito muito em la�arotes.
Foi at� � rua e, com as m�os ainda enluvadas, ligou para o Sargento Coben em Anchorage.
- N�o deixo o cad�ver aqui plantado at� que apanhe um avi�o de Anchorage, - disse ele depois de dar os pormenores a Coben. - Tenho tudo assegurado. Voc� sabe que
sou qualificado. Protegi e registei o local, e contactei um m�dico que est� a caminho. Vou recolher as provas e levar o corpo para a cl�nica. Tudo o que tenho est�
� sua disposi��o assim que chegar.
Acenou a Ken l� dentro, ao ver o m�dico assomar � porta. - E espero alguma colabora��o relativamente � investiga��o Galloway. � a minha cidade, Sargento. Ambos queremos
pregar este prego, mas temos de partilhar o martelo. Fico � sua espera.
Desligou. - Queria que visse o corpo. Consegue dar-me uma hora aproximada da morte?
180
- Ent�o, � verdade. O Max morreu. - Ken deslizou os dedos por baixo dos �culos e pressionou-os nos olhos. - Nunca tive de fazer este tipo de coisa, mas sou capaz
de lhe dar uma achega.
- J� � bom. Calce isto. - Nate entregou-lhe um par de luvas. - N�o � bonito de se ver, - acrescentou.
Ken entrou, demorando alguns instantes para se recompor. - J� tratei de ferimentos de bala. Mas nada que se compare a isto, ainda para mais quando conhecia a v�tima.
Por que raio � que ele haveria de fazer isto? Os Invernos d�o cabo das pessoas, mas n�o era a primeira vez que passava por isso. E bem pior. N�o sofria de depress�o.
A Carrie ter-me-ia contado, ou ent�o eu pr�prio j� teria reparado. - Lan�ou um olhar breve a Nate.
- Nunca pensei em matar-me. Acarreta demasiado esfor�o. Se mudar de ideias, vou tentar avis�-lo primeiro.
- Tem-se sentido melhor?
- Depende dos dias. Est� pronto?
Ken encolheu os ombros. - Sim, obrigado. - Avan�ou. - Posso tocar-lhe? Mexer-lhe, de alguma forma?
Tinha as fotografias e demarcara o corpo com fita do local do crime, � falta de algo melhor. Por isso, acenou.
Baixando-se, Ken levantou uma das m�os de Max. Beliscou-lhe a pele. - Trabalhava melhor se o pudesse levar para a cl�nica, para o despir e fazer um exame mais minucioso.
- Vai ter a sua oportunidade. Mas d�-me s� uma ideia.
- Bom, regressando aos meus tempos de estudante, e calculando a temperatura da sala, o estado de rigidez, diria que de oito a doze horas. Mas � muito por alto, Nate.
- Ent�o, isso indica algures entre as nove da noite e a uma da manh�. � suficiente. Tamb�m podemos confirmar isso com o depoimento de Carrie. Vou pedir a Peter que
traga um saco para cad�veres. Queria que pusesse o corpo num lugar seguro... e frio.
- Temos o espa�o que uso como morgue improvisada, quando algu�m morre.
- Serve bem. N�o quero que fale sobre isto com ningu�m. Mantenha-o tapado at� eu chegar.
Supervisionou a transfer�ncia do corpo e imprimiu a nota que estava no computador, antes de o desligar. Assim que trancasse as portas, ia de imediato para a esquadra.
Hopp esbarrou com ele. - Quero saber que raio � que se est� a passar.
- Ainda estou a tentar descobrir. O que lhe posso dizer � que Max
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Hawbaker foi encontrado morto sentado na secret�ria do jornal, aparentemente de um disparo de rev�lver na cabe�a. Talvez auto-infligido.
- Oh, c�us. Oh, raios partam. Talvez? - Caminhava a passo de corrida para o tentar acompanhar, puxando-lhe a manga ao ver que ele levava a melhor. - O que quer dizer
com isso? Acha que foi assassinado?
- N�o disse isso. Estou a investigar, Hopp. A Pol�cia Estadual foi notificada e daqui a umas horas estar� aqui. Quando tiver respostas, informo-a. Deixe-me fazer
o meu trabalho. - Abriu com for�a a porta da esquadra. E fechou-a na cara dela.
Na entrada do �rctico, teve tempo para despir o equipamento e tentar aclarar as ideias. O Sol j� havia nascido e o dia estava limpo, tal como as previs�es apontavam.
Deviam ir nesse dia buscar Galloway l� a cima, pensou ele. E talvez apanhassem o avi�o para recolher o corpo do seu assassino. Dois em um.
Depois pensava nisso.
Abriu a porta interior e viu John sentado numa das cadeiras de espera, a ler um exemplar de bolso de Watership Down. John levantou-se e enfiou o livro no bolso de
tr�s sem marcar onde ia. - Peach est� com Carrie no seu gabinete. Otto est� com Jim numa cela. N�o est� trancada, - acrescentou rapidamente. Depois, suspirou. -
Nem consigo pensar.
- Otto j� registou o seu depoimento?
- J�. N�o havia assim muito para contar. Sa� d'A Estalagem, a p�, a caminho da escola. Encontrei Jim e Carrie e parei um bocadinho para falar com eles. Carrie levava
o pequeno-almo�o num saco, e a luz estava acesa no escrit�rio de Max. Dava para ver o reflexo atrav�s da janela. Ela entrou, e eu e Jim fic�mos ali mais alguns minutos
a conversar. Ele ia buscar isco. Ia pescar. Gosta de se meter comigo, porque sabe que n�o gosto de pesca nem de ca�a.
Come�ou a esfregar o lado esquerdo do maxilar, como se lhe doesse. - De repente, Carrie desata aos gritos. Entr�mos a correr e vimo-lo. Vimos Max.
Fechou os olhos e respirou fundo algumas vezes. - Desculpe. Nunca tinha visto ningu�m morto... pelo menos at� estarem prontos para serem... vistos.
- Leve o tempo que for preciso.
- Eu, ah, puxei Carrie para tr�s. N�o sabia o que fazer. Agarrei-a e disse, "Jim, o Comandante est� n'A Estalagem. Vai l� cham�-lo". Carrie estava hist�rica. Sentei-a
mas a princ�pio tive de a segurar, porque ela queria ir ter com Max. Depois fui-lhe buscar um copo de �gua e fiquei ali, at� voc� entrar. Foi isso.
- Algum de voc�s entrou na sala?
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- N�o. Bom, a Carrie tinha acabado de entrar. Chegou a entrar, sei l�, um ou dois passos. Levava em cada m�o um prato de papel. Deixou cair as sandu�ches e ficou
ali a gritar, com um prato em cada m�o.
- Quanto tempo � que passou entre a altura em que a ouviu gritar e que chegou ao p� dela?
- Talvez trinta segundos. Parecia que algu�m a estava a estripar com uma faca. Ambos reagimos. Atravess�mos a porta a correr. Talvez menos de trinta.
- Ok. Talvez tenha de voltar a falar consigo, e a Pol�cia Estadual, que est� a chegar, tamb�m. Mantenha-se contact�vel. E gostava que n�o falasse sobre este assunto.
N�o vai ser f�cil, mas a discri��o � bem-vinda.
- Tenho de ir para a escola. - Olhou para o rel�gio num gesto ausente. - J� estou atrasado, mas talvez assim me abstraia disto tudo. Estarei l� quase o dia todo.
- Agrade�o a ajuda.
- Ele sempre me pareceu t�o inofensivo, - comentou John, enquanto ia buscar o casaco. - Positivo, se � que me entende. Sempre � procura de uma hist�ria num lugar
como este. Mexericos da cidade, o desporto local, os nascimentos. As mortes. Diria at� que era um homem satisfeito, que dirigia o seu pequeno jornal, educava os
filhos.
- Por vezes � dif�cil ver o que est� por baixo da superf�cie.
- Sem d�vida. De seguida entrou e falou com Jim, que corroborou a hist�ria de
John. Depois de o deixar ir � sua vida, Nate sentou-se no beliche ao lado de Otto.
- Mandei Peter para a cl�nica. Por agora, vou deix�-lo por l�. Est� um pouco abalado e fui um bocado duro com ele. Preciso que v� porta a porta. Veja o que pode
fazer l� no jornal, fale com as pessoas que vivem ali perto. Pergunte se algu�m ouviu um tiro ontem � noite. Estamos a procurar informa��es entre as nove da noite
e a uma da manh�. Quero saber se algu�m viu Max ou mais algu�m nas imedia��es do edif�cio. Quando, onde, quem. Se ouviram algum carro, se ouviram vozes, se ouviram
ou viram alguma coisa que seja. Quero tomar conhecimento.
- Os estaduais est�o a caminho?
- Sim. O rosto de Otto acentuou uma express�o de bulldog. - N�o me parece certo.
- Certo ou n�o, tem de ser assim. D� uma hora a Peter e depois chame-o para trabalhar consigo nos inqu�ritos. Podem confiar em Ken, para manter o corpo em seguran�a.
Falou com Carrie?
- Tentei. N�o consegui muito.
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- N�o faz mal. Vou agora falar com ela. - Levantou-se. - Otto, Max conhecia Patrick Galloway?
- N�o sei. - Franziu a testa. - Sim, claro que conhecia. N�o � f�cil lembrar-me de uma coisa t�o antiga. Mas acho que Max chegou no Ver�o antes de Pat desaparecer.
Ter sido assassinado, - corrigiu. - Max trabalhava num jornal em Anchorage e decidiu que queria um neg�cio seu, para desenrascar. Pelo menos, � o que se diz.
- Ok. Comece os inqu�ritos.
� medida que Nate se aproximava da porta do seu gabinete, pensou ouvir algu�m cantar. Embalar, corrigiu, como quando se embala um beb�. Abriu a porta e viu Carrie
deitada no ch�o, em cima de um cobertor, a cabe�a deitada no colo amplo de Peach. Ela afagava-lhe o cabelo e embalava-a.
Ergueu o olhar quando Nate entrou. - � a �nica coisa que posso fazer, - murmurou. - A coitadinha est� feita num caco. Agora adormeceu. Eu, ah, encontrei Xanax na
gaveta da sua secret�ria. Cortei um ao meio e dei-lhe.
Foi obrigado a ignorar a sensa��o de embara�o. - Preciso de falar com ela.
- N�o queria acord�-la. Mas � capaz de estar bem mais calma do que h� pouco, quando Otto tentou. Quer que fique?
- N�o, mas n�o se afaste muito.
Assim que ele se sentou no ch�o, Peach fechou a m�o sobre o pulso dele. - Sei que n�o preciso de lhe pedir para ir com calma. Voc� deve saber, e tem isso dentro
de si. Mas mesmo assim... - Interrompeu-se, afagando a face de Carrie. - Carrie? Querida, agora tens de acordar.
Carrie abriu os olhos, desfocados e inertes. - O que foi?
- Nate quer falar contigo, querida. Consegues sentar-te?
- N�o percebo. - Esfregava os olhos como uma crian�a. - Estava a sonhar. - Agora os seus olhos fitavam Nate, e enchiam-se de �gua. - N�o foi um sonho. Max. O meu
Max. - Quando lhe faltou a voz, Nate pegou-lhe na m�o.
- Lamento, Carrie. Sei que � dif�cil, e lamento muito. Quer um pouco de �gua? Qualquer coisa?
- N�o. N�o. N�o quero nada. - Levantou-se com dificuldade, enterrando o rosto nas m�os. - N�o quero nada.
Nate levantou-se, ajudando Peach a erguer-se tamb�m. - Estou l� fora, se precisarem de mim, - disse ela e saiu, fechando a porta devagar atr�s de si.
- Quer uma cadeira, ou prefere ficar a�?
- Sinto-me como se ainda estivesse num sonho. Anda tudo a flutuar na minha cabe�a.
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Ele concluiu que era melhor ficarem no ch�o, e voltou a sentar-se. - Carrie, tenho de lhe fazer algumas perguntas. Olhe para mim. A que horas � que Max saiu de casa
a noite passada?
- N�o sei. S� percebi que ele n�o estava quando acordei esta manh�. Fiquei irritada. Deixa-me sempre um bilhete na almofada quando vai de noite trabalhar, ou de
manh� bem cedo.
- Quando foi a �ltima vez que o viu?
- Vi-o... hoje de manh�... vi-o...
- N�o. - Voltou a pegar-lhe na m�o e tentou afast�-la daquela imagem. - Antes. Ele foi jantar a casa?
- Foi. Comemos chili. Foi o Max que fez. Gosta de se gabar do chili. Jant�mos todos juntos.
- O que fizeram a seguir?
- Vimos televis�o. Ali�s, eu vi. Os mi�dos viram um bocado e depois a Stella esteve ao telefone com uma das amigas, e o Alex foi para o computador. Max estava inquieto.
Disse que ia ler um livro, mas desistiu. Perguntei-lhe o que se passava, mas ele deu-me uma resposta torta.
Uma l�grima derramara, escorrendo numa linha solit�ria pela sua face abaixo. - Ele disse que precisava de pensar num assunto, e perguntou se eu n�o o deixava cinco
minutos em paz. Fic�mos irritados um com o outro. Depois, quando os mi�dos foram para a cama, pediu-me desculpa. Estava preocupado com alguma coisa. Mas fiquei zangada
na mesma e enxotei-o. Mal nos fal�mos quando fomos para a cama.
- Que horas eram?
- Deviam ser umas dez e meia. Mas n�o, n�o pode ser. Fui-me logo deitar, mas ele murmurou qualquer coisa sobre ficar acordado a ver a CNN, ou coisa assim. N�o prestei
aten��o porque estava chateada. Fui-me deitar cedo porque estava danada e n�o queria estar com ele. E agora nunca mais o vou ver.
- Ele ainda estava em casa �s dez e meia. N�o o ouviu sair?
- Fui logo para a cama. Adormeci. Quando me levantei hoje de manh�, percebi que nem se tinha deitado. Ele desentala sempre os len��is do colch�o. Dou em doida. Imaginei
que tivesse amuado e dormido no sof�, mas n�o. Levei os mi�dos para casa da Ginny. Era a vez dela de os levar. Oh, meu Deus. Meu Deus, os mi�dos.
- N�o se preocupe. Est�o a tomar conta deles. Assim que acabarmos, vou levar todos para casa. Voc� veio para a cidade.
- Decidi perdo�-lo. � imposs�vel ficar chateada com Max. E ia marcar-lhe uma consulta para um checkup. Nos �ltimos dias ele andava um pouco esgotado. Parei para
comprar o pequeno-almo�o e depois fui
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para o jornal. Encontrei Jim e John, e depois entrei e vi-o. Vi-o. Como � que algu�m podia fazer aquilo a Max?
- Carrie, ele costumava deixar a porta das traseiras do jornal destrancada?
- A toda a hora. Nunca se lembrava de a trancar. Dizia que n�o valia a pena incomodar-se. Se algu�m quisesse realmente entrar, bastava dar um pontap� na porta.
- Tinha algum rev�lver?
- Claro. Alguns. Toda a gente tem.
- Um .22? Um rev�lver Browning .22.
- Sim. Sim. Tenho de ir buscar os meus filhos.
- Daqui a nada. Onde � que ele guardava o rev�lver?
- Esse? No porta-luvas da carrinha. Gostava de o usar normalmente para tiro ao alvo. �s vezes parava quando ia para casa do trabalho e disparava numas latas. Costumava
dizer que era para organizar ideias para uma hist�ria.
- Alguma vez comentou alguma coisa sobre Patrick Galloway?
- Claro. Por estes dias toda a gente fala em Patrick Galloway.
- Quero dizer, especificamente. Sobre ele e Galloway.
- Porque o faria? S� se conheceram um pouco antes de Pat desaparecer.
Nate media as suas op��es. Ela era a fam�lia mais pr�xima e tinha de saber. Mais valia que fosse j�. - Encontr�mos uma mensagem escrita no computador.
Ela limpou as l�grimas com os n�s dos dedos. - Que tipo de mensagem?
Nate levantou-se outra vez, e abriu a pasta que colocara em cima da secret�ria. - Vou deix�-la ler uma c�pia. N�o vai ser f�cil, Carrie.
- Quero v�-la agora.
Nate entregou-lha e esperou. Constatou que a cor desmaiada que lhe havia assomado �s faces se desvanecia mais uma vez. Mas os seus olhos, em vez de ficarem morti�os
do choque, ganharam um tom vermelho.
- Isto n�o est� bem. � de loucos. � uma mentira! - Como se o quisesse provar, de um salto p�s-se de p� e desfez a folha em peda�os. - � uma terr�vel mentira, e voc�
devia ter vergonha. O meu Max nunca faria mal a uma mosca. Como se atreve? Como se atreve a tentar afirmar que ele matou algu�m e depois se matou?
- S� lhe estou a mostrar o que estava no computador.
- E eu estou a dizer-lhe que � mentira. Algu�m matou o meu marido, e � bom que voc� fa�a o seu trabalho e descubra quem foi. Quem fez
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mal ao meu Max tratou de arranjar esta mentira, e se acredita nisso nem que seja um segundo, pode ir para o Inferno.
Correu para fora da sala e segundos depois, ele ouviu o seu choro sofrido.
Espreitou e viu-a envolta pelos bra�os de Peach. - Trate que ela e os filhos v�o para casa, - disse ele baixinho, e depois voltou devagar para o gabinete.
Por momentos deixou-se estar apenas, a estudar os peda�os rasgados de papel no ch�o.
14.
Hopp tinha um gabinete na C�mara Municipal. N�o era maior do que uma despensa, e a decora��o lembrava o mesmo estilo grotesco, mas como Nate queria que a reuni�o
fosse formal, quis encontrar-se com ela l�.
Como ela se maquilhara e envergava um fato escuro, ele imaginou que estavam em sintonia.
- Comandante Burke. - As palavras mais pareciam duas dentadas r�pidas, o gesto com a m�o na direc��o da cadeira um breve estic�o.
Conseguia sentir o aroma do caf� que provinha da caneca na secret�ria dela, e a cafeteira atr�s, sobre o pequeno balc�o, estava quase cheia. Ela n�o lhe disse que
se servisse.
- Tenho de lhe pedir desculpa por ter sido t�o brusco consigo esta manh�, - come�ou ele, - mas p�s-se � minha frente na altura errada.
- Deixe-me lembr�-lo que trabalha para mim.
- Trabalho para as pessoas desta vila. E uma delas est� estendida numa mesa da sua morgue improvisada. Isso quer dizer que ele � a minha prioridade, Presidente.
N�o voc�.
A boca que pintara de um carmesim arrojado estreitara-se. Ele ouviu a sua inspira��o longa e sibilante, bem como a lenta expuls�o de ar. - Seja como for, eu sou
a presidente desta vila, o que faz dos seus cidad�os tamb�m a minha maior preocupa��o. N�o andava � procura de mexericos, e ofende-me ser tratada como se andasse.
- Seja de que forma for, eu tinha uma miss�o a cumprir. Parte dela era a plena inten��o de lhe entregar um relat�rio completo, assim que terminasse o preliminar.
Agora estou pronto para o fazer.
- N�o gosto da sua atitude arrogante.
- Igualmente.
Desta vez a boca dela abriu-se, os olhos flamejantes. - � �bvio que a sua m�e n�o lhe ensinou a respeitar os mais velhos.
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- N�o prestei aten��o. Mas tamb�m, ela nem sequer gosta de mim. Ela tamborilava com os dedos na secret�ria - unhas curtas, pr�ticas e sem verniz que n�o combinavam
com a boca vermelha ou o fato de executiva. - Sabe o que mais me irrita neste momento?
- Tenho a certeza de que me vai dizer.
- Saber que j� n�o estou zangada consigo. Gosto de me agarrar a um belo ressentimento. Mas h� pouco tinha raz�o, quando disse que as pessoas desta vila eram a sua
prioridade. Respeito isso, porque sei que � sincero. Max era meu amigo, Ignatious. Dos bons. Estou perturbada com tudo isto.
- Eu sei. Lamento imenso, e volto a pedir desculpa por n�o ter sido mais...
- Sens�vel, cordato, atencioso?
- Escolha voc�.
- Est� bem, avancemos. - Puxou um len�o e assoou-se com energia. - V� l� buscar um caf� e diga-me o que se passa.
- Obrigado, mas j� bebi quase um litro. Pelo que consegui perceber, Max saiu de casa por volta das dez e meia da noite passada. Tinha discutido com a mulher, nada
de grave, mas ela alega que nos �ltimos dias andava preocupado. Diz que come�ou mais ou menos quando descobriram o corpo de Patrick Galloway.
Hopp franziu a testa; as rugas � volta da boca aprofundaram-se. - Pergunto-me porque seria. N�o me lembro de eles se conhecerem assim t�o bem. Parece-me que se entenderam,
mas Max tinha acabado de chegar quando Patrick desapareceu.
- Ainda n�o tenho quaisquer provas que revelem que Max parou nalgum s�tio antes de ir para o escrit�rio, no jornal. Algures, se a estimativa do m�dico estiver correcta,
antes da uma da manh�, uma pessoa, ou pessoas desconhecidas, enfiou-lhe uma bala no c�rebro pela t�mpora direita.
- Porque � que algu�m... - Interrompeu-se, acenando para ele. - Desculpe. Termine l�.
- Segundo as provas recolhidas no local, o falecido estava sentado � secret�ria quando tudo aconteceu. A porta das traseiras n�o estava trancada, e ao que parece
j� era h�bito. Tinha o computador ligado e o candeeiro de mesa aceso. Havia meia garrafa de u�sque Paddy na secret�ria e uma caneca de caf� rasa de u�sque. Vai ser
analisada, mas n�o detectei mais nenhuma subst�ncia na caneca.
- C�us. Ainda ontem de manh� o vi.
- Pareceu-lhe alterado?
- N�o sei. N�o lhe posso dizer que prestei aten��o. - Pressionou as m�os na cana do nariz, deixando-as l� por instantes, para depois as
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deixar cair. - Agora que fala nisso, talvez ele estivesse distra�do. Mas n�o me lembro de nenhum motivo para fazer isto. Ele e Carrie tinham um bom casamento. Os
filhos deles n�o se metem em mais confus�es do que os outros mi�dos da idade deles. Ele adorava dirigir o jornal. Estaria doente? Talvez tivesse descoberto que tinha
cancro, ou coisa assim, e foi incapaz de o enfrentar.
- No �ltimo checkup na cl�nica, tudo estava bem. H� seis meses. A arma encontrada no local era dele, e estava registada. Segundo a esposa, era a que ele guardava
sempre no porta-luvas da carrinha. Para tiro ao alvo. N�o havia sinais de luta.
- Pobre Max. - Ela agarrou noutro len�o, mas em vez de lhe dar uso, amachucou-o numa bola no seu punho fechado. - O que � que o podia ter levado a p�r termo � vida,
a fazer isto n�o s� a si mas tamb�m � fam�lia?
- Havia uma mensagem no computador dele. Alegava que foi ele que matou Patrick Galloway.
- O qu�? - O caf� que ela acabara de segurar quase se derramou da caneca, quando ela a pousou com for�a outra vez. - Ignatious, isso � de doidos. O Max? � mesmo
de doidos.
- Ele costumava fazer alpinismo, n�o era? Mais h� quinze ou dezasseis anos do que agora?
- Bom, pois. Sim. Mas metade das pessoas da vila o faz, ou fazia. - Pousou as palmas das m�os na secret�ria. - N�o posso acreditar que Max tenha matado algu�m.
- Estava preparada para acreditar que ele se matou.
- Porque ele est� morto. Porque tudo o que ouvi aponta nesse sentido. Mas assass�nio? � um disparate.
- V�o realizar-se testes para verificar se o.22 recolhido foi usado. Impress�es digitais, res�duos de p�lvora. Deixe-me dizer-lhe que acredito que os testes v�o
substanciar o que parece ser um suic�dio, e que � bem prov�vel que a morte dele seja vista oficialmente como tal, assim como ser� encerrado o caso do homic�dio de
Galloway.
- N�o acredito nisso.
- Tamb�m lhe vou dizer que n�o estou convencido.
- Ignatious. - Levou a palma da m�o � t�mpora. - Est� a confundir-me.
- Tudo t�o arrumadinho, n�o acha? Uma mensagem no computador? Algu�m pode ter batido umas teclas. Morto pela culpa depois de tantos anos? Bom, at� agora soube viver
muito bem com ela. Carrie disse que ele lhe deixava um bilhete na almofada sempre que decidia ir trabalhar mais cedo ou ficar at� mais tarde. Um homem faz isso,
mas n�o lhe deixa um bilhete pessoal quando decide suicidar-se?
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- Est� a dizer...
- � f�cil tirar uma arma do porta-luvas, se soubermos que ela est� l�. N�o � muito dif�cil encenar um suic�dio, se o planearmos e mantivermos o sangue-frio.
- Acha... c�us, acha que Max foi assassinado?
- Tamb�m n�o afirmei isso. S� disse que n�o estou convencido que isto seja o que parece � superf�cie. Logo, se o caso for tratado como um suic�dio e o de Galloway
for encerrado antes de eu me convencer, vou continuar a investigar. � voc� que me paga, por isso devia saber que vou passar tempo de servi�o numa ca�a �s bruxas.
Ela fitou-o, e depois ele ouviu-a soltar outro dos seus longos e profundos suspiros. - O que � que posso fazer para ajudar?
O Sargento Roland Coben revelou-se a Nate como um pol�cia s�lido, um homem novo com muitos casos no coldre. Tinha cerca de um metro e oitenta, com a cintura algo
larga, um cansa�o presente � volta dos olhos.
Apresentava o cabelo louro curto, as botas polidas e um aroma a pastilha el�stica de sabor a cereja na boca.
Com ele trouxera uma unidade de peritos em recolha de provas, e ambos os agentes se ocupavam a passar o gabinete e Max a pente fino, enquanto Coben estudava as fotografias
que Nate tirara.
- Quem esteve neste local desde que descobriram o corpo?
- Eu, o m�dico da vila e dois adjuntos meus. Antes de os deixar entrar, tirei fotografias, corri a fita e guardei as provas nos sacos. Todos usaram luvas. O local
foi preservado, Sargento.
Coben olhou para as manchas de gordura no tapete, logo depois da entrada da porta. Nate tamb�m recolhera de forma diligente as sandu�ches.
- A mulher s� chegou at� ali?
- Segundo o que ela e duas testemunhas disseram, sim. E ningu�m tocou em nada, s� eu � que toquei no corpo.
Coben emitiu um som de assentimento e estudou a mensagem no ecr� do computador. - Vamos levar o computador connosco, juntamente com as provas que recolheu. Quero
dar uma olhadela ao corpo.
Nate levou-o at� l� fora, pelas traseiras.
e - Trabalhou nos homic�dios no Exterior, n�o foi?
- Foi
Coben subiu com facilidade para o todo-o-terreno de Nate. - Vem a calhar. Ouvi dizer que perdeu o parceiro.
- � verdade.
- E que tamb�m foi alvejado.
- Ainda estou inteiro.
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Diligente, Coben apertou o cinto de seguran�a. - No seu �ltimo ano, teve imensas baixas m�dicas.
Nate ponderou um olhar calmo. - Agora j� n�o estou de baixa m�dica.
- O seu tenente disse que � um bom pol�cia e que talvez tenha perdido aquela ast�cia, uma certa confian�a, depois da morte do seu colega. Entregou o distintivo no
Outono passado e deixou de ir ao psiquiatra do departamento.
Nate parou diante da cl�nica. - Alguma vez perdeu um parceiro?
- N�o. - Coben fez uma pausa. - Mas j� perdi alguns amigos, no cumprimento do dever. S� estava a tentar compreend�-lo. Pol�cia de cidade vindo do Exterior, com a
sua experi�ncia, � bem capaz de passar a perna �s autoridades estaduais quando for altura de entregar o caso.
- Talvez. E um Pol�cia Estadual pode n�o ter o mesmo envolvimento com a vila, com o que se passa aqui, como um Comandante da pol�cia.
- N�o � Comandante h� muito tempo. - Saiu do carro. - � poss�vel que ambos tenhamos raz�o. O departamento tem sido capaz de lidar com a imprensa sobre o Homem de
Gelo; eles adoram dar nomes a estas v�timas de crimes violentos.
- � sempre assim.
- Bom, por enquanto n�s tratamos dos media, mas isso vai mudar assim que a equipa o trouxer para baixo. Vai ser uma not�cia das grandes e gordas, Comandante Burke.
Do tipo que a imprensa nacional gosta de cobrir. Agora tem o corpo do homem que alega ser o seu assassino, e h� mais novidades. Quanto mais depressa deslindarmos
isto, melhor ser� para todos. Quanto mais limpo, melhor.
Nate deixou-se ficar do outro lado do carro. - Est� preocupado que eu v� ter com a imprensa, trazendo as aten��es sobre mim, sobre a vila?
- Foi s� um coment�rio. Correu muita tinta sobre aquele tiroteio em Baltimore. Grande parte das aten��es reca�ram sobre si.
Nate sentia um calor revolver dentro de si, o imenso e lento movimento da raiva que lhe borbulhava das entranhas at� � garganta. - Por isso imaginou que gosto de
ver o meu nome impresso, de ver a minha cara na TV, e que alguns cad�veres me d�o a oportunidade de conseguir tudo isso.
- � bem capaz de ganhar uns pontos a seu favor, � o que lhe digo, se est� a pensar voltar para Baltimore.
- Ent�o tenho uma sorte dos diabos, visto que cheguei aqui mesmo a tempo de isto se desenrolar.
- N�o tem mal nenhum, estar no s�tio certo � hora certa.
- Est� a tentar provocar-me, ou n�o passa de um idiota chapado?
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Os l�bios de Coben enrugaram. - Talvez ambos. O que mais me interessa � tentar perceber o que se passa.
- Ent�o vamos j� esclarecer. A investiga��o � sua. O procedimento � este. Mas a vila n�o deixa de ser minha; a popula��o continua a ser minha. Isso � um facto. E
n�o importa se confia em mim, se gosta de mim ou se me quer levar a jantar e a ver um filme, vou cumprir o meu dever.
- Ent�o talvez seja melhor irmos ver o corpo.
Coben foi � frente e entrou e, lutando contra o mau g�nio, Nate seguiu-o.
Havia apenas uma pessoa na sala de espera. Bing parecia envergonhado, mas depois irritado por o terem visto sentado numa das cadeiras de pl�stico.
- Bing, - disse Nate com um aceno, ao que o homem grunhiu antes de lan�ar um n�mero antigo da Alaska para diante da sua cara.
- O doutor est� com um paciente, - disse Joanna, medindo Coben de cima a baixo. - Sal Cushaw cortou a m�o numa serra de metais e ele est� a cos�-la. Tamb�m vai precisar
de uma injec��o contra o t�tano.
- Precisamos da chave da morgue, - informou Nate, e os olhos dela dardejavam dele para Coben.
- � o doutor que as tem, ele disse que s� o senhor � que podia entrar.
- Este � o sargento Coben, da Pol�cia Estadual. Importa-se de ir buscar as chaves?
- Claro. Ok.
Desapareceu, ao mesmo tempo que Bing come�ou a resmungar. - N�o � preciso trazer o ex�rcito para Lunacy. Trate dos seus.
Nate limitou-se a abanar a cabe�a, ao verificar que Coben olhava por cima do ombro. - N�o se incomode, - murmurou.
- Est� doente, Bing? - Nate recostou-se no balc�o. - Ou est� s� a fazer tempo?
- � c� comigo. Se um homem quiser estoirar os miolos, tamb�m � problema dele. A pol�cia nunca deixa ningu�m em paz.
- Tem raz�o acerca disso. Somos uns idiotas com distintivos. Quando foi a �ltima vez que falou com Max?
- Nunca tive muito para lhe dizer. Era sempre de fugida.
- Ouvi dizer que ele o descomp�s por ter andado a sujar a entrada dele com neve, e que voc� deu meia-volta e a despejou toda em cima do carro dele.
O sorriso ir�nico de Bing espalhou-se at� ao volume da sua barba. - Talvez. Mas n�o me parece que tenha ido aos arames por causa disso.
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- Voc� � um patife maquiav�lico, Bing.
- Pode crer.
- Comandante? - Joanna regressara ao balc�o segurando as chaves. - � a que tem o pl�stico amarelo. O doutor disse que vinha assim que acabasse de tratar Sal.
- Hei! Eu estou a seguir. - Bing bateu com a revista. - O Hawbaker n�o pode ficar mais morto.
Joanna mordia os l�bios. - Devia ter mais respeito, Bing.
- Eu tenho � hemorr�idas.
- Diga ao doutor para ver primeiro os pacientes todos, - disse Nate. - Para onde �?
- Oh, desculpe. Sempre em frente, depois � na primeira porta � esquerda.
Avan�aram ambos em sil�ncio e, com a chave, Nate destrancou a porta. Entraram numa sala com uma parede de prateleiras de metal e duas mesas de metal. Nate acendeu
a luz de cima e reparou que ambas as mesas eram do estilo usado nas aut�psias ou nas salas de prepara��o dos corpos nas funer�rias.
- Disseram-me que usam esta sala como morgue improvisada. Na vila n�o h� nenhuma funer�ria, nem sequer cangalheiro. Quando � preciso manda-se buscar um, e ele prepara
aqui o corpo para ser enterrado.
Avan�ou at� � mesa onde Max estava estendido, descoberto para preservar quaisquer vest�gios de provas, respeitando a recomenda��o de Nate. As m�os do cad�ver estavam
dentro de sacos de pl�stico.
- As unhas est�o ro�das at� ao sabugo na m�o direita, - afirmou Nate. - Tem um corte no l�bio inferior. Parece que o mordeu.
- N�o h� marcas de defesa vis�veis. � volta do ferimento h� queimaduras de p�lvora. Podemos confirmar se ele era destro?
- Vou tentar saber. � poss�vel.
Selar as m�os permitia a sua conserva��o para testes de res�duos. Havia fotografias do corpo, do local, at� da porta exterior de todos os �ngulos poss�veis. Os depoimentos
das testemunhas foram registados e passados a computador enquanto as testemunhas ainda tinham a mem�ria fresca, e o pr�dio trancado e selado com fita da pol�cia.
Burke deixara o local limpo, pensava Coben, e poupara-lhe uma carga de trabalhos.
- Vamos analisar o corpo para ver se encontramos mais vest�gios de provas. Revistou-lhe os bolsos?
- Carteira, pacote aberto de Tums, trocos, caixa de f�sforos, bloco de notas, l�pis. Na carteira tinha a carta de condu��o, cart�es de cr�dito, trinta
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d�lares em notas, fotos de fam�lia. Nos bolsos do casaco no escrit�rio estava um telem�vel, outra caixa de f�sforos e um par de luvas de l�.
Nate enfiou as m�os nos pr�prios bolsos e continuou a estudar o corpo. - Revistei a carrinha estacionada � porta do local. A matr�cula est� em nome da v�tima e da
esposa. No porta-luvas, mapas, manual de instru��es da carrinha, um pacote aberto de muni��es para o.22, um pacote de pastilhas para o h�lito, v�rias canetas e l�pis
e outro bloco de notas. Muitos bilhetes escritos � m�o nos livros - lembretes, ideias para artigos do jornal, observa��es, n�meros de telefone. Na parte de tr�s
da cabine, um estojo de primeiros socorros e de emerg�ncia. A carrinha estava destrancada, as chaves na igni��o.
- As chaves na igni��o?
- Pois. Declara��es de conhecidos indicam que ele tinha o h�bito de deixar as chaves l� dentro e raramente se lembrava ou pensava em tranc�-la. Todos os artigos
removidos est�o nos sacos, com etiquetas e listados. Est�o trancados � chave na esquadra.
- Temos de levar tudo, e a ele tamb�m. Deixe que o m�dico-legista tire as suas conclus�es. Mas parece suic�dio. Depois quero falar com a mulher dele, as duas testemunhas
e algu�m que possa saber do seu relacionamento com Patrick Galloway.
- N�o deixou nenhuma mensagem � esposa.
- Perd�o?
- Nada pessoal, nada que viesse na mensagem do computador. Nos olhos de Coben vislumbrou-se uma ponta de irrita��o. - Ou�a, Burke, voc� e eu sabemos que as cartas
de suic�dio n�o s�o nada ao jeito de Hollywood. O m�dico-legista � que vai tirar conclus�es, mas pelo que percebi trata-se de suic�dio. A mensagem faz uma liga��o
a Galloway. Vamos investigar isso, para vermos se conseguimos encontrar um rasto e confirmar. N�o vou andar com rodeios nesta quest�o, nem na de Galloway, mas tamb�m
n�o vou deitar tudo a perder, se por acaso ambos os casos me ca�rem encerrados no colo.
- Isso n�o me afecta muito.
- Fa�a as contas.
- Tem algum problema se eu investigar isto, discretamente, - acrescentou, com �nfase, - de um �ngulo diferente?
- Perca o seu tempo com o que quiser. Mas n�o me pise os calos.
- Ainda me lembro como se dan�a, Coben.
Foi dif�cil bater � porta de Carrie. A intromiss�o no seu luto parecia uma insensibilidade tremenda. Ele recordava-se muito bem de como Beth sucumbira, quando a
viu pela primeira vez, depois da morte de Jack.
194
E ele sentira-se impotente, preso a uma cama de hospital, anestesiado da cirurgia, afogado em desgosto, culpa e raiva.
Agora n�o sentia desgosto, lembrava-se. Uma certa culpa pela forma como a havia tratado. Mas n�o raiva. Agora era s� um pol�cia.
- Ela deve estar ressentida comigo, - disse Nate a Coben. - Se jogar com isso, vai conseguir sacar-lhe mais informa��es.
Bateu � porta da frente da cabana de dois andares. Quando a ruiva abriu a porta, ele teve de procurar nos seus arquivos mentais.
- Ginny Mann, - disse ela, c�lere. - Sou amiga da fam�lia. Vizinha. Carrie est� l� em cima, a descansar.
- O Sargento Coben, minha senhora. - Coben tirou a identifica��o. - Gostava muito de falar com a Sra. Hawbaker.
- Vamos tentar n�o nos demorar. - Artista, lembrava-se Nate agora. Pintava paisagens e estudos da vida selvagem que eram vendidos �s galerias locais, mas tamb�m
nos Lower 48. Dava aulas de Arte na escola, tr�s vezes por semana.
- Eu e a Arlene Woolcott estamos com as crian�as na cozinha. A ver se as entretemos. Talvez seja melhor ir l� acima e ver se a Carrie est� capaz de os receber.
- Agradecemos. - Coben entrou. - Esperamos aqui mesmo.
- Bela casa, - comentou Coben, assim que Ginny subiu as escadas. - Acolhedora.
O sof� era confort�vel, reparou Nate, e havia algumas cadeiras espa�osas, almofadas coloridas. Um quadro que ilustrava um prado primaveril com montanhas brancas
e c�u azul como cen�rio, que imaginava ser obra da ruiva. Fotografias emolduradas dos filhos, bem como mais algumas de fam�lia, em cima das mesas, na companhia da
tralha costumeira de uma casa normal.
- Estiveram casados durante quinze anos, acho eu. Dantes ele trabalhava num jornal em Anchorage mas mudou-se e come�ou um seman�rio aqui. Ela trabalhava com ele.
Era quase uma opera��o a quatro bra�os, com alguns, como � que lhes chamam, cordelinhos? Publicavam artigos sobre os locais, algumas fotografias e recolhiam hist�rias
das ag�ncias noticiosas. A filha mais velha tem � volta de doze anos. Toca flautim. O mais novo tem dez, e � fan�tico por h�quei.
- Nas poucas semanas que aqui est� ficou a par de tudo.
- Fiquei a par de muito mais, desde esta manh�. Primeiro casamento dela, segundo dele. Ela est� c� h� mais tempo do que ele. Mudou-se num daqueles programas para
professores. Abdicou para trabalhar com ele, quando abriu o jornal, mas ainda faz substitui��es quando � preciso.
- Porque � que ele se mudou para c�?
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- Estou a trabalhar nisso. - Calou-se ao ver Ginny come�ar a descer, o bra�o � volta do ombro de Carrie.
- Sra. Hawbaker. - Coben avan�ou, a voz s�bria. - Sou o Sargento Coben, da Pol�cia Estadual. Lamento imenso a sua perda.
- O que � que desejam? - O olhar dela fazia ricochete, duro e brilhante, no rosto de Nate. - Estamos de luto.
- Sei que � uma altura dif�cil, mas tenho de lhe fazer algumas perguntas. - Coben olhou de soslaio para Ginny. - Prefere que a sua amiga esteja presente?
Carrie abanou a cabe�a. - Ginny, podes ficar com os mi�dos? V� se eles n�o saem de l�, para n�o assistirem a isto.
- Claro. Se precisares de mim, � s� chamar.
Carrie foi para a sala de estar e deixou-se afundar numa das poltronas. - Perguntem o que for preciso, e depois v�o-se embora. N�o vos quero aqui.
- Primeiro deixe-me inform�-la que vamos levar o corpo do seu marido para Anchorage, para ser realizada a aut�psia. Logo que seja poss�vel, ele voltar� para casa
de imediato.
- �ptimo. S� assim v�o descobrir que ele n�o se matou. N�o importa o que ele diz, - acrescentou com um olhar fugidio para Nate. - Conhe�o o meu marido. Ele nunca
me faria isso, nem aos filhos.
- Posso sentar-me? Ela encolheu os ombros.
Coben sentou-se no sof� de frente para ela, o corpo inclinado ligeiramente na sua direc��o. Era bom, pensava Nate. Ele colocara-se no meio dos dois, mantendo uma
postura compassiva. Come�ou pelas perguntas b�sicas. Passadas algumas, ela retraiu-se.
- Eu j� lhe respondi a isso. Porque � que me faz essas perguntas outra vez? As respostas n�o v�o ser diferentes. Porque � que n�o vai l� para fora e descobre quem
fez isto ao meu Max?
- Conhece algu�m que desejasse mal ao seu marido?
- Conhe�o. - O seu rosto iluminou-se com uma esp�cie de prazer hediondo. - Quem matou Patrick Galloway. Vou contar-lhe exactamente o que se passou. Max descobriu
qualquer coisa. S� porque dirigia um seman�rio de vilarejo n�o quer dizer que n�o fosse bom rep�rter. Deslindou alguma coisa e algu�m o matou antes que tomasse uma
decis�o sobre isso.
- Ele abordou a quest�o consigo?
- N�o, mas andava perturbado. Preocupado. Parecia fora de si. Mas isso n�o quer dizer que se tenha suicidado, e n�o quer dizer que tenha assassinado outra pessoa.
Era um bom homem. - As l�grimas come�aram a escorrer-lhe pelas faces. - Dormi ao lado dele quase dezasseis anos.
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Trabalhei ao lado dele quase todos os dias. Tive dois filhos dele. N�o acha que eu saberia se ele fosse capaz de uma coisa dessas?
Coben mudou de t�ctica. - Tem a certeza acerca da hora em que ele saiu de casa, ontem � noite?
Ela suspirou, limpando as l�grimas. - Sei que ele estava aqui �s dez e meia. Sei que de manh� n�o estava. O que � que quer mais?
- Afirmou que ele guardava uma arma no porta-luvas da carrinha. Quem mais � que teria conhecimento disso?
- Toda a gente.
- Ele costumava fechar o porta-luvas � chave? A carrinha trancada?
- Max quase nem se lembrava de fechar a porta da casa de banho, quanto mais trancar seja o que for. Eu guardo as armas que temos em casa trancadas, e fico com a
chave porque ele � muito distra�do com essas coisas. Qualquer pessoa podia ter pegado na arma. Algu�m o fez.
- Sabe quando foi a �ltima vez que ele a usou?
- N�o. N�o tenho a certeza.
- Sra. Hawbaker, o seu marido tinha um di�rio, ou um registo do g�nero?
- N�o. Apenas escrevia coisas quando lhe vinham � cabe�a no que tivesse mais � m�o. Agora preciso que se v�o embora. Estou cansada e quero estar com os meus filhos.
L� fora, Coben parou junto ao carro. - Ainda vejo algumas pontas soltas ali que gostava de atar. Era boa ideia dar uma boa vista de olhos nas coisas dele, nos pap�is,
para ver se h� alguma coisa que o ligue a Galloway.
- Como um motivo?
- Por exemplo, - concordou Coben. - Alguma raz�o para que n�o trabalhe nas pontas soltas?
- N�o.
- Quero levar o corpo para Anchorage, e come�ar os testes. E quero estar l� quando resgatarem o corpo de Galloway.
- Gostava que me ligasse, assim que esteja na sua posse. A filha dele deve querer v�-lo. E a m�e dela vai insistir muito sobre a cust�dia do corpo.
- Pois, j� tive not�cias dela. Assim que ele estiver c� em baixo e devidamente identificado, temos de deixar a fam�lia resolver essa querela. A filha dele pode vir
fazer a identifica��o, mas ele tem cadastro. Nada de especial, posse de droga. Saberemos se � Galloway assim que tivermos o corpo.
- Eu trato de a levar, de atar as pontas soltas, e farei os poss�veis para mediar com a fam�lia do falecido. Em troca, quero c�pias de cada documento de ambos os
casos. Notas de investiga��o inclu�das.
197
Coben olhou para tr�s, para a casa altiva no seu tapete de neve. - Acha realmente que algu�m encenou este suic�dio para encobrir um crime com dezasseis anos?
- Quero as c�pias.
- Est� bem. - Coben abriu a porta do passageiro. - O seu tenente disse que voc� tinha um bom instinto.
Nate sentou-se ao volante. - E?
- Bom nem sempre significa certo.
15.
Tinha de trabalhar com o que tinha, e isso inclu�a os dois adjuntos e a secret�ria. Chamou todos ao seu gabinete, juntamente com as cadeiras extra necess�rias.
Em cima da secret�ria, havia um prato com bolachas de manteiga de amendoim e um jarro de caf� acabado de fazer, cortesia de Peach. Ao que ele pensou: por que raio
� que n�o?
Pegou numa bolacha, gesticulando com ela na direc��o dos adjuntos antes de lhe dar uma dentada. - Primeiro, os resultados dos inqu�ritos.
- Pierre Letreck acha que � capaz de ter ouvido algo que parecia um tiro. - Otto tirou o bloco de notas e empenhou-se em folhear todas as p�ginas. - Diz que viu
um filme na TV cabo. Alegou primeiro que era O Paciente Ingl�s, e eu disse, "Pierre, n�o me venhas com merdas, nunca na vida viste um filme desses". E ele respondeu,
"Como raio � que sabes o que eu vejo na privacidade do meu lar, Otto?". Ao que eu respondi...
- D�-me s� o essencial, Otto.
Otto franziu o sobrolho, olhou para o bloco e leu com aten��o. - S� estou a ser minucioso. O que ele viu, e que me disse depois de um exaustivo interrogat�rio, foi
uma treta er�tica qualquer chamada Alien Blondes. Acha que acabou por volta da meia-noite, e depois foi � casa de banho dar... aliviar a bexiga, - corrigiu, ao ouvir
Peach pigarrear. - Ouviu o que lhe pareceu um tiro e, como tem uma natureza curiosa, olhou pela janela da casa de banho. Na altura n�o viu ningu�m, mas reparou que
a carrinha de Max, o falecido, estava estacionada nas traseiras do jornal. Acabou o que tinha a fazer e recolheu-se.
- Acha que por volta da meia-noite?
- Comandante? - Peter levantara a m�o. - Verifiquei as listas e o filme acabou � meia-noite e um quarto. Segundo o depoimento do Sr. Letreck, foi directo da sala
de estar para a casa de banho e ouviu o tiro quase de imediato.
198
- Reparou em mais alguma coisa? Noutro carro qualquer?
- N�o, senhor. Otto f�-lo pensar no assunto algumas vezes, mas ele manteve a afirma��o.
- Mais algu�m ouviu ou viu alguma coisa?
- Jennifer Welsh acha que � capaz. - Otto folheava as p�ginas. - Ela e Larry, o marido, estavam a dormir, e ela disse que acha que acordou por causa de um barulho
qualquer. T�m um beb� de oito meses, por isso ela diz que tem o sono muito leve. Assim que acordou, o beb� come�ou a chorar, por isso ela n�o sabe, n�o tem a certeza,
se foi o beb� ou um ru�do que a acordou. Mas a altura foi mais ou menos a mesma que a de Pierre. Alega que olhou para o rel�gio quando se levantou para ir pegar
no beb�, e que era mais ou menos meia-noite e vinte.
- Onde � que ficam essas duas casas, relativamente ao escrit�rio nas traseiras d'O Lun�tico? - Nate gesticulou para o quadro negro que comprara na Loja da Esquina
e pendurara na parede. - Fa�a o desenho, Otto.
- Eu fa�o. - Peach p�s-se de p�. - Nenhum destes dois desenha nada de jeito.
- Obrigado, Peach. - Nate devolvia o olhar aos adjuntos. - Estes dois foram os �nicos com quem falaram que ouviram alguma coisa?
- Por agora, sim, - confirmou Otto. - Temos o Hans Finkle, que diz que o c�o come�ou a ladrar a meio da noite, mas que se limitou a virar-se para o outro lado e
n�o reparou nas horas. Na verdade, a maior parte das pessoas n�o presta aten��o nenhuma a um tiro.
- Algum de voc�s sabe se Max se desentendeu com algu�m, ultimamente?
Perante as respostas negativas, Nate desviou o olhar para o quadro negro. Peach levara-o � letra, reparou. Em vez de apenas desenhar um diagrama, ocupara-se a esbo�ar
edif�cios, acrescentando �rvores. At� colocara a silhueta das montanhas em segundo plano.
- Nate? - Otto acomodava-se na cadeira. - N�o quero criticar, nem nada, mas est�o-me a parecer muitos procedimentos oficiais s� por causa de um suic�dio, em especial
sabendo que a Estadual tem o corpo e est� encarregue de deslindar o caso.
- Talvez. - Abriu uma pasta de arquivo. - O que se diz nesta sala, fica nesta sala, at� que eu vos diga o contr�rio. Percebido? Isto foi escrito no computador de
Max. - Leu a mensagem, que foi recebida com um sil�ncio chocado. - Coment�rios?
- Algo n�o bate certo. - Peach falava devagar, com o giz ainda na m�o. - Sei que sou s� uma mera secret�ria aqui dentro, mas n�o me parece certo.
- Porqu�?
199
- N�o consigo acreditar que Max fizesse mal a algu�m, nem com muita imagina��o. Se bem me lembro, ele admirava Pat, e havia entre eles uma esp�cie de adora��o de
pequeno her�i.
- N�o me diga? As pessoas com quem tenho falado dizem que eles mal se conheciam.
- � verdade, e n�o digo que eram os melhores amigos, mas Pat tinha um feitio muito pr�prio. Era bem-parecido, e encantador quando queria, o que era quase sempre.
Tocava guitarra e conduzia uma moto, fazia alpinismo e desaparecia durante dias no mato, quando lhe dava na telha. Tinha a mulher mais sensual da vila a aquecer-lhe
a cama. Tinha uma filhinha linda que o adorava.
Pousou o giz e esfregou o p� que lhe deixara nas m�os. - E n�o se importava com quase nada. E ainda sabia escrever. Sei que Max queria que ele escrevesse para o
jornal, sobre aventura. Sei porque Carrie me contou. Ela e Max estavam a come�ar um relacionamento s�rio, e ela estava um pouco preocupada porque Pat era imprudente.
Quando Nate gesticulou para que ela continuasse, ela deu a volta e serviu-se de uma caneca de caf�. - Eu estava a passar por um mau bocado com o meu terceiro marido.
Para mim ela sempre teve um ombro carinhoso e deu-me apoio. Convers�vamos muito naquele tempo. Ela estava preocupada que Pat convencesse Max a ir fazer alguma loucura.
Segundo ela, Max disse que Pat era a pura ess�ncia do Alasca. Viver intensamente, viver � sua maneira, contornar todos e qualquer sistema que o tentasse enjaular.
- Por vezes a admira��o transforma-se em inveja.
- Talvez. - Distra�da, Peach pegou numa bolacha e mordiscou-a.
- Mas para mim � dif�cil aceitar isso. Eu sei que disse que a conversa n�o sai desta sala, mas agora Carrie vai precisar dos amigos. Queria ir v�-la.
- N�o h� problema, desde que seja discreta e n�o fale desta conversa. - Ele levantou-se e avan�ou at� ao quadro.
Ela desenhara a estrada que passava atr�s do jornal, at� tinha colocado o sinal de tr�nsito e identificara-o como Moose Lane. A garagem ocupava quase toda a casa
dos Letreck, lembrava-se ele agora. Pierre ganhava a vida com um pequeno neg�cio de arranjo de pequenos electrodom�sticos, e a sua casa era um anexo ligado � oficina.
Ficava mesmo atr�s do jornal, duas casas para leste.
A casa Welch, ao estilo bungalow, ficava logo em frente da porta das traseiras do jornal. O apartamento de dois andares de Hans Finkle ficava por cima da garagem
de Letreck.
Ela desenhara outras casas, outras lojas e escrevera os devidos nomes nos edif�cios com a sua letra cuidadosa.
- Bom trabalho, Peach. Agora vamos montar um esquema para o
200
caso. - Pegou na pasta e foi at� ao quadro de corti�a no trip� que trouxera da C�mara Municipal. - Copiamos tudo o que achemos que se relaciona com Galloway ou Hawbaker.
Afixam essa c�pia neste placard. A Estadual j� passou pelo jornal mas, Otto, n�s dois vamos at� l� repassar tudo novamente, s� para o caso de n�o terem reparado
nalguma coisa. Peach, queria que fosse a casa dos Hawbaker, que d� uma olhadela aos pertences de Max. A Carrie n�o vai gostar nada da ideia, mas vai acabar por ceder.
Talvez com o seu jeito a leve com mais calma do que eu.
- Est� bem. Parece que n�o acredita no que est� escrito naquela mensagem. E se n�o acredita nisso...
- Prefiro s� acreditar nalguma coisa quando todos os ind�cios estiverem em cima da mesa, - interrompeu ele. - Peter, queria que contactasse o jornal em Anchorage,
onde Max trabalhou. Tenho de descobrir o que � que ele fazia l�, para quem e com quem, e porque se veio embora. Duas c�pias. Quero uma na minha secret�ria hoje,
antes de ir para casa.
- Sim, senhor.
- E voc�s os tr�s t�m todos trabalho de casa. Estavam c� quando Pat Galloway desapareceu; eu n�o. Por isso, tirem algum tempo para pensar nas semanas antes e depois
do acontecido. Escrevam tudo o que se lembrarem, por mais irrelevante que possa parecer. O que ouviram, o que viram, o que pensaram. Peter, sei que era pequeno,
mas as pessoas nem sempre v�em os mi�dos, e dizem coisas, fazem coisas ao p� deles sem pensar.
Acabou de afixar as fotografias: Galloway de um lado do quadro, Hawbaker do outro. - H� uma informa��o essencial que pretendo. Onde � que estava Max Hawbaker quando
Galloway saiu da cidade?
- N�o vai ser f�cil descobrir isso, passado tanto tempo, - disse Otto. - E o facto � que Galloway pode ter sido assassinado uma semana depois de partir. Ou um m�s.
Ou at� seis meses.
- Uma coisa de cada vez.
- Por mais dif�cil que seja, mesmo depois de ter bebido cerveja e pescado do mesmo buraco com algu�m, se Max confessou o crime e se matou a seguir, o que � que estamos
a tentar provar? - Enfatizou Otto.
- � uma suposi��o, Otto. N�o � um facto. Os factos s�o dois mortos, com dezasseis anos de diferen�a. Vamos trabalhar a partir daqui.
Nate nem sequer passou pelo quarto ao sair da cidade. N'A Estalagem iria deparar-se com demasiadas perguntas a que n�o queria nem podia responder. Era melhor evit�-las
at� descobrir uma linha de investiga��o oficial.
De qualquer forma, ansiava por um espa�o aberto, pela escurid�o
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gelada e o brilho glaciar das estrelas. A escurid�o come�ava a moldar-se a ele, pensava. N�o se conseguia lembrar como era come�ar ou acabar a jornada de trabalho
sem um vislumbre de Sol.
N�o queria o Sol. Queria Meg.
Tinha de ser ele a contar-lhe, a virar o seu mundo �s avessas mais uma vez. Se, quando o fizesse, ela tentasse isolar-se, teria de ser resistente para o impedir.
Com pouco esfor�o, ele conseguira isolar-se do mundo meses a fio. N�o tinha a certeza se a facilidade da sua solid�o se devera � sua incapacidade de ouvir as pessoas
tentarem quebrar a barreira que erguera, ou se n�o houvera ningu�m que se importasse o suficiente para tentar sequer.
De qualquer forma, sabia como era doloroso regressar. Era familiar a dor provocada pelas emo��es reprimidas e as sensa��es que queimavam e retorciam, esfor�ando-se
por renascer. E ele sabia que se preocupava o bastante para fazer o que fosse preciso para a poupar a isso.
Mas n�o era s�. Podia admitir enquanto conduzia, solit�rio, apenas com o zumbido do aquecimento a quebrar o sil�ncio. Precisava do conhecimento dela, que as recorda��es
que tinha do pai preenchessem as lacunas da imagem que estava a criar.
Assim como precisava daquele trabalho, amigo de enxaquecas, extenuante e frustrante trabalho de pol�cia. Aqueles m�sculos contra�am-se de novo, doridos. Ansiava
por aquela dor. Precisava dela. Sem ela, tinha medo, muito medo, acabaria por se deixar cair novamente na in�rcia.
Na casa dela as luzes estavam acesas, mas o avi�o n�o estava l�. Reconheceu a carrinha � porta como a de Jacob. Ao sair do carro, uma pontada de preocupa��o percorreu-lhe
a espinha.
A porta de casa abriu-se. Viu Jacob no feixe de luz um instante, antes de os c�es sa�rem a correr. Sobre o latido de boas-vindas deles, conseguiu gritar: - Meg?
- Arranjou mais um trabalho. Esta noite vai acampar no mato com um grupo de ca�adores que foi com ela.
- � habitual? - Perguntou Nate ao chegar ao alpendre.
- Sim. Vim ver como est�o os c�es e verificar o aquecedor do carro dela. Isso tamb�m � habitual.
- Ela ligou-lhe, ent�o?
- Ligou, via r�dio. Se tiver fome, h� guisado.
- Vinha a calhar.
Jacob voltou para a cozinha, deixando a porta aberta para Nate. O r�dio estava ligado, sintonizado na KLUN. O DJ anunciava uma can��o de Buffy Sainte-Marie, enquanto
Nate atirava o casaco para cima do bra�o de uma cadeira.
202
- Teve um dia dif�cil, - comentou Jacob, � medida que mexia o guisado com uma colher.
- J� ouviu, ent�o.
- Nada viaja mais depressa do que as m�s not�cias. Um derradeiro acto de ego�smo, acabar com a pr�pria vida de forma t�o brutal, deixando a mulher para apanhar os
cacos. O guisado est� quente, o p�o delicioso.
- Obrigado. - Nate sentou-se. - Max era um homem ego�sta?
- Somos todos, e mais ainda quando desesperamos.
- O desespero � pessoal, mas n�o � necessariamente o mesmo que ego�smo. Assim sendo, lembra-se da altura em que Max chegou � vila para abrir o jornal?
- Era jovem e ambicioso. Persistente, - acrescentou Jacob, servindo caf� a ambos.
- Eu cheguei aqui sozinho.
- Muitos o fazem.
- Mas ele fez amigos.
- Alguns tamb�m, - disse Jacob, com um sorriso. - Eu n�o fui um deles, apesar de n�o sermos inimigos. Carrie come�ou a namor�-lo. Deitou-lhe os olhos e foi atr�s.
Ele n�o era bonito nem rico, e t�o-pouco tinha uma mente brilhante, mas ela viu alguma coisa e n�o o largou. Muitas vezes as mulheres v�em al�m do �bvio.
- Tinha amigos homens?
Jacob arqueou as sobrancelhas enquanto provava o caf�. - Parecia confort�vel com muitos.
- Ouvi dizer que ele costumava fazer alpinismo. Alguma vez o levou l� a cima?
- Sim. Sub�amos no Ver�o a Denali e Deborah, se bem me lembro, quando ele apareceu. Era um alpinista bastante bom. Uma ou duas vezes voei com ele e mais algumas
pessoas para o mato, em grupos de ca�a, apesar de ele n�o ca�ar. Escrevia no livro ou tirava fotografias. Fiz mais voos para outros artigos e fotografias. Levei-o
com Carrie a Anchorage das duas vezes que ela entrou em trabalho de parto. Porqu�?
- Curiosidade. Ele nunca subiu com Galloway?
- Nunca os levei juntos. - Os olhos de Jacob adquiriam agora outra intensidade. - Porque � que acha que teria import�ncia?
- Era s� curiosidade. E uma vez que sou curioso, diria que Patrick Galloway era um homem ego�sta?
- Sim.
- S� isso? - Indagou Nate, passados instantes. - Sem pormenores?
Jacob continuava a beber o caf�. - N�o pediu pormenores.
203
- Como � que o descreveria como marido, como pai?
- Na melhor das hip�teses, era um marido med�ocre. - Jacob acabou o caf� e virou-se para lavar a caneca. - Mas h� quem ache que tinha uma mulher dif�cil.
- E voc�?
- Eu diria que eram duas pessoas com uma liga��o muito forte, que puxavam e torciam essa liga��o nas suas demandas individuais por desejos opostos.
- A Meg seria essa liga��o?
Minucioso, Jacob pousou um pano em cima do balc�o e a caneca por cima, a secar. - A Meg s� pertence a ela mesma. Agora vou deix�-lo.
- Meg j� sabe o que aconteceu a Max?
- N�o falou no assunto. E eu tamb�m n�o.
- Ela disse quando achava que ia voltar?
- Depois de amanh� vai regressar com o grupo, assim o tempo o permita.
- Importa-se se eu ficar aqui esta noite?
- Acha que Meg se importava?
- N�o me parece.
- Ent�o, porque me importaria eu?
Fez companhia aos c�es dela e deu uso aos seus instrumentos de gin�stica. Sentia-se bem, melhor do que havia imaginado, por voltar a puxar ferro.
N�o tinha a inten��o de bisbilhotar as coisas dela, mas ao ver-se sozinho, Nate deu por si a vaguear pela casa, a espreitar nos arm�rios, a abrir as gavetas.
Sabia bem do que andava � procura: fotografias, cartas, recorda��es que a ligassem ao pai. Convencia-se que se Meg ali estivesse, seria ela mesma a facultar-lhas.
Encontrou �lbuns de fotografias na primeira prateleira do arm�rio do quarto dela. Por cima de um guarda-fatos que o fascinou, devido � combina��o de flanela e sedas.
Ao lado do �lbum, uma caixa de sapatos cheia de fotografias soltas que ainda lhe faltava organizar.
Sentou-se com elas na cama das visitas e abriu primeiro a capa vermelha de um �lbum.
Reconheceu Patrick Galloway de imediato nas fotos atr�s de um pl�stico n�tido e colante. Um Galloway mais jovem do que o que vira nas fotos digitais. De cabelo comprido,
barba, envergando uma indument�ria de cal�as de ganga boca-de-sino, T-shirt e uma fita no cabelo ao estilo de finais dos anos sessenta, princ�pios de setenta.
204
Nate estudou outra em que Galloway se debru�ava numa motorizada potente, um oceano como pano de fundo, uma palmeira � direita, e a m�o erguida, os dedos esbo�ando
o sinal da paz.
Pr�-Alasca, pensava Nate. Talvez na Calif�rnia.
Havia outras dele sozinho, uma com ar sonhador, de rosto iluminado por uma lareira de acampamento em que tocava guitarra ac�stica. Outras mais, em que estava com
Charlene muito nova. O cabelo comprido e louro, com carac�is indom�veis, os olhos sorridentes por tr�s dos �culos escuros de lentes azuis.
Ela era linda, constatou. Muit�ssimo bonita, com um corpo delineado, faces suaves e aveludadas, uma boca cheia e sensual. Pela apar�ncia, n�o devia ter ainda dezoito
anos � data em que a foto fora tirada.
Havia muitas outras: fotografias de viagem, de campismo. Algumas eram apenas de um ou ambos com outros jovens. Poucas fotografias urbanas onde lhe pareceu reconhecer
Seattle. Outras, em que Galloway voltava a estar sem barba, haviam sido tiradas num apartamento ou casa pequena.
Depois, encontrou uma com Galloway. A barba havia regressado e ele encontrava-se encostado a um sinal rodovi�rio.
BEM-VINDO AO ALASCA
Podia seguir o seu rasto pelas fotografias. O tempo que passaram no sudeste do Estado, a trabalhar nas f�bricas de conservas, imaginava.
E teve o seu primeiro vislumbre de Meg, por assim dizer, com uma foto de uma Charlene imensamente gr�vida.
Vestia um top curto e justo e cal�as de ganga com cintura abaixo da imensa barriga nua. As m�os em concha envolviam a protuber�ncia, num gesto protector. Ostentava
a express�o mais doce no rosto, um rosto dolorosamente jovem, pensava Nate, que irradiava esperan�a e felicidade.
Viu fotografias de Patrick a pintar um quarto, o da beb�, outras em que ele montava o que parecia ser um ber�o.
Depois, para choque de Nate, havia tr�s p�ginas de fotografias que mostravam ao pormenor o parto e o nascimento.
Trabalhara nos Homic�dios e achara j� ter visto de quase tudo o que havia para ver. Mas a vis�o daqueles grandes planos puseram-lhe o guisado perigosamente �s voltas
no est�mago.
Passou-as com rapidez.
A imagem de Meg beb� aconchegou-lhe o est�mago e f�-lo sorrir. Perdeu tempo a contempl�-las, ou talvez n�o, pensava ele, porque assim podia analisar o carinho ou
a alegria com que cada um dos novos pais tratava a crian�a. A forma como se amparavam.
205
Tinha a possibilidade de ver as esta��es mudar, os anos passar, ao pegar noutro �lbum. E viu o rosto jovem e bonito de Charlene endurecer, mais austero, os olhos
a perder o brilho.
A cada ano, as fotografias come�avam a reduzir para as que eram tiradas apenas nas f�rias, nos anivers�rios, em ocasi�es especiais. Uma Meg muito pequena, sorrindo
deleitada, enquanto abra�ava um cachorrinho com um la�o vermelho atado ao pesco�o. Ela e o pai sentados debaixo de uma �rvore de Natal disforme, ou Meg junto a um
rio, com os bra�os que mal seguravam um peixe quase do tamanho dela.
Encontrou uma de Patrick e Jacob, com os bra�os � volta dos ombros um do outro. A imagem estava tremida e a revela��o muito m�, ao ponto de Nate se perguntar se
teria sido Meg a disparar a m�quina fotogr�fica.
Agarrou na caixa de sapatos e come�ou a remexer nas fotografias soltas. Deparou-se com uma quantidade de fotografias de grupo, sendo que todas haviam sido tiradas
claramente no mesmo dia.
Era Ver�o, pensava, uma vez que o verde sobressa�a, em vez da neve. Ficava assim t�o verde, por estas paragens? perguntava-se. T�o quente e luminoso? As montanhas
ao longe, os picos de um branco brilhante sob o Sol, na base tons de prata, azuis e salpicadas de verde.
Devia ser um churrasco no quintal de algu�m, pensou. Ou um piquenique da vila. Identificava as mesas de piquenique, bancos, cadeiras desdobr�veis, alguns grelhadores.
Travessas com comida, grades de cerveja.
Distinguiu Galloway. J� sem barba outra vez, tinha tamb�m o cabelo mais curto, apesar de quase lhe tocar os ombros. Tinha um ar duro, em forma e bem-parecido. Meg
tinha os olhos dele, pensava Nate, as ma��s do rosto, a boca.
Reparou em Charlene, envergando uma camisa justa que revelava os seios, cal��es curtos que lhe mostravam as pernas. Mesmo na foto conseguia perceber que o seu rosto
havia sido cuidadosamente maquilhado. Desvanecera-se a rapariga fresca, amorosa e risonha de �culos azuis. Aquela era uma mulher, linda, astuta e atenta.
Mas feliz? Ria ou sorria em todas as fotografias, e tamb�m fazia pose. Numa sentara-se numa atitude provocadora no colo de um homem mais velho, que parecia surpreendido
e abismado pela sorte grande.
Viu Hopp sentada ao lado de um homem com ar de membro de gang e de cabelo prateado. Ambos bebiam cerveja e estavam de m�os dadas.
Identificou Ed Woolcott, banqueiro e vice-presidente da C�mara, mais elegante, ostentando um bigode e barba curta, a brindar para a fotografia com o homem de cabelo
prateado, que Nate pensava ser o falecido marido de Hopp.
Um por um, ia identificando as pessoas que conhecia. Bing, com um
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aspecto t�o corpulento e amargo como hoje, mas cerca de sete quilos mais magro. Rose, aquela s� podia ser a bela Rose, fresca e jovem como a flor que lhe dera o
nome, segurando a m�o de um bonito, pequeno Peter.
Max, com mais cabelo e menos barriga, sentado ao lado de Galloway, em que ambos estavam prestes a morder duas enormes fatias de melancia.
Deb, Harry e, ena, Peach com menos vinte quilos, de bra�o dado, as ancas unidas, sorrisos ofuscantes para a fotografia.
Voltou a v�-las mais uma vez, concentrando-se em Galloway. Estava em quase todas elas. Comia, bebia, conversava, ria, tocava guitarra, deitado na relva com as crian�as.
Escolheu fotos de homens. Alguns eram estranhos para ele, outros pareciam velhos de mais, at� para aquela altura, para terem realizado aquela �rdua subida de Inverno.
E outros demasiado jovens.
Mas perguntava-se, ao passar de um rosto para outro, se seria um daqueles. Ser� que um dos homens que comemorara aquele dia luminoso e radiante, que comera e bebera
com Patrick Galloway e Max Hawbaker, os matara a ambos?
Encontrou mais fotografias soltas de indiv�duos, grupos, f�rias. Deparou-se com mais um Natal, e mais uma ou duas de Max com Galloway. Jacob estava com eles, ou
Ed, Bing, ou Harry ou o Sr. Hopp.
Ed Woolcott, ainda de barba e bigode, uma garrafa de champanhe a transbordar, Harry de camisa havaiana, Max envolto em colares de Carnaval. Passou mais uma hora
� volta das fotografias antes de as guardar no s�tio, exactamente onde as encontrara.
Teria de arranjar uma forma de confessar a Meg que invadira a sua privacidade. Ou de certa forma, lev�-la a mostrar-lhe as fotos sem lhe contar que j� as havia visto.
Decidiu-se pela �ltima op��o.
Agora era altura de deixar os c�es inquietos dar mais uma corrida. E como tamb�m sentia a mesma inquieta��o, parecia ser uma boa altura de praticar snowshoeing.
Saiu com os c�es. Em vez de correr, caminhavam a seu lado enquanto ele sa�a para ir buscar as botas de neve ao carro.
Peter ensinara-lhe o b�sico e revelara-se um instrutor paciente. Nate continuava a cair de cara, ou de rabo, na neve, de vez em quando, e por vezes deixava enterrar
as botas, mas estava a progredir.
Atou as redes aos p�s e deu algumas voltas experimentais. - Ainda me sinto como um idiota, - confidenciou aos c�es. - Por isso, vamos manter a sess�o de treino desta
noite entre n�s.
Como que a desafi�-lo, os c�es dispararam na direc��o do bosque. Ia ser uma caminhada e p�ras, concluiu Nate ao enfiar uma lanterna no bolso,
207
mas o exerc�cio ajudava a combater a depress�o. E, se a sorte o bafejasse, ia cans�-lo o bastante para que o sono combatesse quaisquer sonhos com a pretens�o de
o assombrar.
Usou as luzes da casa e as estrelas para chegar � orla do bosque. Progredia devagar e sem qualquer graciosidade. Mas conseguia e vivenciava a satisfa��o de apenas
sentir uma ligeira falta de ar.
- Estou a recuperar a forma. Aos poucos. Mas ainda falo sozinho. N�o que isso signifique alguma coisa.
Olhou para cima para conseguir ver as luzes do norte.
Apenas apreciando aquele vislumbre.
Conseguia ouvir os c�es na zaragata, soltando um latido ocasional.
- Estou mesmo atr�s de voc�s, meninos.
Pegou na lanterna. - Ainda � cedo para haver ursos, - lembrava-se.
- A n�o ser, claro, que encontremos um caso de ins�nia na zona.
Para se certificar, bateu no lado do corpo e sentiu o contorno da arma de servi�o por baixo da parca.
Acelerou o passo, tentando entrar num ritmo f�cil, em vez do passo incerto e tr�mulo que marcava, se deixasse de prestar aten��o. Os c�es correram para tr�s, dan�ando
� volta dele, dando-lhe a n�tida sensa��o de que sorriam.
- Continuem assim e acabaram-se os biscoitos. V�o l� fazer o que quer que os c�es fazem. Esta � a minha pausa para pensar.
Mantendo as luzes de casa vis�veis atrav�s das �rvores � sua esquerda, seguiu o trilho dos c�es. Sentia o aroma das �rvores, dos abetos que aprendera a identificar,
e da neve.
Haviam-lhe dito que, a apenas alguns quil�metros para oeste, ou norte, as �rvores acabavam. Apenas mares de gelo e neve, espraiando-se na eternidade. Lugares onde
as estradas cortavam esse mar.
Mas ali, com o cheiro da floresta, era incapaz de o imaginar. Mal concebia que Meg, que tinha um vestido vermelho sensual no arm�rio e cozia p�o quando precisava
de pensar, estivesse l� fora, algures nesse mar naquele instante.
Perguntava-se se tamb�m ela contemplara as luzes do norte, tal como ele. E se pensara nele.
Com a cabe�a baixa, a luz da lanterna iluminando o caminho, empurrava o corpo para a frente num passo regular e deixava a mente divagar para as fotos daquele dia
de sol.
Quanto tempo depois daquele piquenique de Ver�o � que Patrick Galloway havia morrido no gelo? Seis meses? Sete?
Aquelas fotografias das luzes de Natal seriam o seu �ltimo?
Algum daqueles homens que sorria ou brindava para a fotografia usaria uma m�scara, naquele momento?
208
Ou teria sido apenas um impulso, insanidade, um acesso tempor�rio de loucura que empurrara a picareta para baixo?
Mas n�o fora nada parecido que deixara um homem numa gruta todos aqueles anos, conservado em gelo, para sempre.
Era preciso calculismo. Era preciso tomates.
Tal como era preciso calculismo e tomates para encenar com min�cia um suic�dio.
Ou ent�o tudo n�o passava de uma treta, admitia, e a mensagem deixada bem podia ser a mais pura das verdades.
Um homem podia esconder coisas da mulher, dos amigos. Um homem podia esconder coisas de si mesmo. Pelo menos at� sentir o desespero, a culpa, o medo que o estrangulava
e lhe sufocava a garganta.
N�o andaria atr�s deste caso pelo mesmo motivo que caminhava ali sozinho, no escuro, ao frio, aos trope��es em cima de gigantescas raquetes de t�nis? Precisava de
voltar a sentir-se normal. Precisava de descobrir quem fora antes de o mundo se desmoronar na sua cabe�a. Precisava de se soltar daquela armadura de gelo e viver
de novo.
Tudo apontava para suic�dio. A �nica coisa que contrariava essa teoria era o seu pr�prio instinto. E como podia confiar nele depois de o deixar inerte por tanto
tempo?
H� quase um ano que n�o trabalhava num caso de homic�dio, sendo que a �nica coisa que fizera fora trabalho de secret�ria nos �ltimos meses no DPB. E agora queria
transformar um suic�dio num homic�dio porque, afinal, isso o fazia sentir �til?
Conseguia sentir o peso assentar-lhe nas costas, s� de pensar numa forma de apresentar as suas opini�es a Coben, no modo como dera ordens apesar da d�vida no olhar
dos seus adjuntos. Invadira a privacidade de Meg, por nenhum motivo especial.
Mal conseguia dirigir uma esquadra que lidava principalmente com infrac��es de tr�nsito e querelas de vizinhos, e de repente j� era o enorme, reles pol�cia, que
ia deslindar um caso de um assass�nio que acontecera h� dezasseis anos, contestando um suic�dio t�o claro, que mais parecia dos que vinha nos manuais?
Pois, claro, decerto iria perseguir esse assassino sem nome nem rosto, for��-lo a confessar e entreg�-lo a Coben, todo embrulhado e envolto num enorme la�arote cor-de-rosa.
- Que grande treta. Agora mal passas por pol�cia, o que � que te faz pensar...
N�o terminou a ideia, fitando, algo perdido, a neve que brilhava sob o feixe da luz da lanterna. E os trilhos que cortavam a sua superf�cie. - Engra�ado. Devo ter
dado a volta algures...
209
N�o que se importasse realmente. Podia andar em c�rculos a vaguear sem destino toda a noite, tal como fazia quase todos os dias.
- N�o. - Fechou os olhos, desatando numa torrente de suor devido ao esfor�o f�sico que despendia, ao emergir daquele vazio. - N�o vou voltar para l�. A treta � essa.
N�o vou voltar para aquele buraco.
Tomaria os antidepressivos, se fosse preciso. Faria ioga. Levantaria pesos. O que fosse preciso, mas n�o podia voltar para o po�o sem fundo. Desta vez, nunca mais
ia conseguir voltar � superf�cie, se se deixasse cair.
Por isso, limitou-se a respirar, abrindo os olhos, para ver o vapor da respira��o deslizar numa nuvem branca e desaparecer. - Ainda estou de p�, - murmurou, e depois
voltou a descer o olhar para a neve.
- Rasto de botas de neve. - Curioso, e usando essa curiosidade para afastar a escurid�o, deu um passo atr�s, comparando as marcas com as que tinha diante de si.
Pareciam iguais, mas era um pouco dif�cil encontrar alguma diferen�a � luz da lanterna, tendo em conta o facto de n�o ser um batedor de mato experiente.
Mas tinha quase a certeza de que n�o andara �s voltas no bosque, em c�rculos, nem que acabara por trilhar o pr�prio caminho, avan�ando na direc��o oposta.
- Podem ser de Meg, - murmurou. - � capaz de ter passado aqui, noutra altura, tal como eu agora.
Os c�es corriam para tr�s, passando pelo rasto e na direc��o das luzes de casa. Para ficar satisfeito, Nate mudou de direc��o, o que quase o levou de traseiro ao
ch�o, seguindo o trilho.
Mas n�o percorreram todo o caminho no meio do bosque. Um aperto intenso alojou-se no seu est�mago, ao seguir o trilho onde haviam parado, onde claramente algu�m
ficara, a olhar atrav�s das �rvores na direc��o das traseiras da casa, para o local com �gua quente onde ele e Meg haviam relaxado na noite anterior.
E os c�es haviam desatado numa algazarra no bosque, lembrava-se agora.
Seguiu o trilho deles, voltando para tr�s. Viu outros rastos. Talvez de alces, ou veados? Como podia saber? Mas decidiu, ali mesmo, que tinha mais era que aprender.
Viu as depress�es na neve e imaginou que os c�es se haviam deitado ali, rebolado, e de novo o rasto que seguia indicava que algu�m ali estivera, com os p�s ligeiramente
afastados, como se observasse os c�es.
Contornando o rasto, viu para onde o guiava agora. Na direc��o da estrada, a v�rios metros da casa de Meg.
J� quase estava sem f�lego, quando chegou ao que parecia ser o seu fim. Mas sabia o que estava a ver. Algu�m caminhara, ou conduzira,
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naquela estrada. Entrara no bosque, bem longe do alcance da casa, e depois seguira por esse bosque, propositadamente, na direc��o da casa de Meg.
N�o devia ser um vizinho que a ia visitar, nem algu�m � procura de ajuda por causa de uma avaria ou acidente. Parecia vigil�ncia.
A que horas � que tinham entrado na �gua quente na noite anterior? �s dez, talvez. Mais tarde do que isso, n�o.
Deixou-se ficar junto � estrada, com os c�es a cheirar ao longo do ch�o coberto de neve atr�s de si.
Quanto tempo demoraria, pensava, a voltar para a estrada? Ele demorara mais de vinte minutos, mas imaginava que era poss�vel reduzir para metade, se soubesse o que
se estava a fazer. Mais dez, no m�ximo, para chegar a casa de Max, ir buscar a arma ao porta-luvas. Mais cinco para chegar � cidade.
Tempo de sobra, pensava, suficiente para abrir a porta destrancada e escrever uma mensagem no computador.
Tempo de sobra para o crime.
16.
Nate ficou surpreendido ao descobrir que Bing Karlovski tinha cadastro. N�o foi um grande abalo para o seu sistema encontrar acusa��es de agress�o e inj�rias, agress�o
simples, agress�o agravada, resist�ncia a pris�o, embriaguez e desacatos nesse cadastro.
Verificar alguns nomes, quer houvesse ou n�o um caso oficialmente, era procedimento b�sico. Patrick Galloway podia ter morrido enquanto Nate ainda dava as primeiras
voltas com um carro em segunda m�o, mas Max Hawbaker morrera sob a sua al�ada.
Por isso, decidiu investigar Bing. Investigou Patrick Galloway e imprimiu o seu cadastro que inclu�a pequenos delitos, como posse de droga, indig�ncia e invas�o
de propriedade.
Passou a lista com min�cia, descobrindo que Harry Miner tivera uma conduta desordeira e danos em propriedade. Ed Woolcott passara por uma casa de correc��o. Max
ficava-se pela invas�o de propriedade, conduta desordeira e duas condena��es por posse.
John Malmont, duas condena��es por embriaguez e desacatos. Jacob Itu estava limpo e Mackie Pai fora condenado v�rias vezes por embriaguez e desacatos, agress�o simples
e agravada, al�m de danos em propriedade.
N�o poupou os adjuntos e viu que Otto tamb�m n�o se fizera rogado nos tempos de juventude, com conduta desordeira, agress�o e indig�ncia,
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esta n�o chegando ao tribunal. Peter, tal como suspeitava, estava t�o limpo como a neve acabada de cair.
Elaborou listas, anota��es e acrescentou-as ao ficheiro.
Tanto quanto poss�vel, seguia os manuais � risca. O problema era que, segundo a sua opini�o, n�o lera o manual protagonizado pelo Comandante da pol�cia de uma pequena
vila, que escalava na cadeia alimentar da investiga��o, atr�s de um Pol�cia Estadual.
Achava sensato, ou pelo menos diplomata, filtrar todas as suas d�vidas atrav�s de Coben. N�o que importasse, concluiu Nate, ao desligar o telefone, uma vez que n�o
havia resposta para aquelas d�vidas. Ainda.
Anchorage era urbana, o que indicava que tinha todo o loda�al burocr�tico e os apoios de uma zona urbana. Resultados da aut�psia, ainda n�o divulgados. Resultados
do laborat�rio, ainda n�o divulgados.
O facto de o Comandante da pol�cia de Lunacy saber dentro de si que Maxwell Hawbaker fora assassinado n�o tinha grande peso.
Podia enveredar pelo caminho mais f�cil e deixar que essa certeza o levasse para baixo. Nate imaginava que enveredara por esse caminho h� demasiado tempo. Ou podia
tirar partido do seu estatuto de v�tima para aproveitar o momento.
Sentado � secret�ria, com a neve que ca�a suave e firme l� fora, Nate n�o conseguia vislumbrar uma forma de o fazer.
Tinha poucos ou nenhuns recursos, pouca ou nenhuma autonomia, uma for�a policial inexperiente como um recruta e um caminho evidente que apontava o dedo ossudo para
suic�dio.
N�o que estivesse desamparado, lembrava-se, ao mesmo tempo que se levantava para caminhar. Para ir at� ao quadro estudar o caso. Para fitar com concentra��o os olhos
de cristal de Patrick Galloway.
- Sabes quem te matou, - murmurou. - Vamos l� descobrir o que me podes contar.
Investiga��es paralelas, decidiu. Era assim que ia proceder. Como se ele e Coben conduzissem duas investiga��es distintas que percorriam as mesmas linhas.
Em vez de espreitar pela porta entreaberta, voltou para tr�s e ligou o intercomunicador. - Peach, ligue para A Estalagem e diga a Charlene que quero falar com ela.
- Quer que ela venha at� c�?
- Isso mesmo, quero que ela venha c�.
- Bom, ainda s�o horas do pequeno-almo�o, e Charlene mandou Rose para casa. Ken acha que o beb� pode nascer mais cedo do que o esperado.
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- Diga-lhe que quero que ela venha assim que puder, e que eu n�o a devo demorar muito.
- Claro, Nate, mas era capaz de ser mais f�cil se fosse l�...
- Peach. Quero-a aqui, antes da hora de almo�o. Entendido?
- Est� bem, est� bem. N�o � preciso irritar-se.
- E avise-me quando Peter voltar da patrulha. Tamb�m preciso de falar com ele.
- Estamos muito conversadores hoje.
Ela desligou antes que ele pudesse comentar.
Ele gostava de ter fotografias melhores das pegadas das botas de neve. Quando chegara de carro � vila, pegara na m�quina e voltara a casa de Meg, constatara que
recome�ara a nevar. N�o fazia ideia que raio � que um par de pegadas de botas de neve lhe ia dizer, e hesitou em afix�-las.
Mas o quadro do caso era seu, para o bem e para o mal.
Andava em c�rculos �s escuras, tal como andara em c�rculos no bosque na noite anterior. Mas se continuasse, acabaria por chegar a algum lado. Pegou nalguns pins
e afixou as fotografias.
- Comandante Burke. - Ao que parecia, Peach ficara melindrada, uma vez que o seu tom de voz formal ecoou pelo intercomunicador. - Est� aqui o Juiz Royce, e ele gostava
de falar consigo, se n�o estiver muito ocupado.
- Claro. - Agarrou no cobertor de l� de b�falo que trouxera como cortina improvisada para o quadro. - Mande-o entrar, - disse ele, atirando a manta aos quadrados
vermelhos e pretos sobre o quadro.
O Juiz Royce era quase careca, mas ostentava a franja fina que lhe rodeava a corola comprida e branca. Tinha os �culos de fundo de garrafa pendurados num nariz proeminente
e curvo, como se fosse um gancho de pendurar carne. Tinha o que os cordiais apelidavam de uma constitui��o avantajada, de peito grande e barriga farta. A sua voz,
aos setenta e nove anos, ressoava com a mesma pot�ncia e impacto que nos tempos de advocacia.
As cal�as de bombazina grossas cor de bosta silvavam ao entrar no gabinete de Nate. A combinar, vestia um colete de bombazina sobre uma camisa curtida. E o adorno
a destoar de uma argola de ouro na orelha direita.
- Juiz. Caf�.
- Nunca digo que n�o. - Instalou-se numa cadeira com um suspiro sonoro. - Que trapalhada tem entre m�os.
- Parece que est� nas m�os das autoridades estaduais.
- A merda � a mesma. Dois cubos de a��car nesse caf�. Sem natas. Carrie Hawbaker foi falar comigo ontem � noite.
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- Est� a passar um mau bocado.
- O marido acaba com uma bala nos miolos, pois, � um mau bocado. Est� danada consigo.
Nate deu-lhe o caf�. - N�o fui eu que lhe enfiei a bala nos miolos.
- Pois, tamb�m imaginei que n�o. Mas uma mulher no estado de Carrie n�o tem escr�pulos em alvejar o mensageiro. Quer que use a minha influ�ncia para que o retirem
do cargo e, de prefer�ncia, que o expulsem da cidade num par de patins.
Nate sentou-se, contemplando o seu caf�. - Tem assim tanta influ�ncia?
- Sou capaz. Com alguma press�o. Estou c� h� vinte e seis anos. Posso afirmar que me encontro entre os primeiros Lun�ticos. - Soprou uma vez sobre a superf�cie fumegante
do caf�, e bebeu. - Nunca na vida bebi uma ch�vena decente de caf�.
- Eu tamb�m n�o. Veio aqui para me ouvir pedir a demiss�o?
- Sou conflituoso. � o que acontece quando chegamos aos oitenta anos, por isso ainda exer�o. Mas n�o sou est�pido. A culpa de Max estar morto n�o � sua, pobre desgra�ado.
Nem � sua de haver uma mensagem no computador dele a dizer que matou Pat Galloway.
Os seus olhos estavam muito alerta por tr�s das lentes grossas, enquanto acenava para Nate. - Pois, foi o que ela me disse, e que est� a tentar convencer-se de que
voc� inventou tudo para arrumar o caso depressa e bem. J� lhe passa. � uma mulher sensata.
- E porque est� a contar-me isso?
- Ela � capaz de levar algum tempo a lembrar-se como voltar a ser sensata. No entretanto, � capaz de querer causar-lhe problemas. Vai ajud�-la a ultrapassar o luto.
Vou fumar este charuto. - Tirou um bem gordo do bolso da camisa. - Se estiver com ideias, pode multar-me quando acabar.
Nate abriu uma gaveta da secret�ria e despejou o conte�do de uma lata de pioneses. Levantando-se, avan�ou na direc��o do juiz e entregou-lha para que a usasse como
cinzeiro.
- Conhecia Galloway?
- Claro. - O juiz dava baforadas no charuto para o acender, enchendo o ar daquele cheiro subtil. - Simpatizava com ele. As pessoas simpatizavam. Mas nem todas, como
se verificou. - Olhou de relance para o cobertor pendurado. - Aquilo ali � o seu quadro dos mortos?
Ao ver que Nate n�o respondia, fumava e beberricava, fumava e beberricava. - Julguei casos de pena capital, na idade das trevas. Presidi a eles quando ainda usava
toga. Agora, a n�o ser que ache que escalei a Sem Nome quando
j� passava dos sessenta e que acabei com a vida de um homem com metade da minha idade, acho que n�o ser� dif�cil riscar-me da lista de suspeitos.
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Nate reclinou-se para tr�s. - Voc� teve umas acusa��es de agress�o simples.
Royce mordeu os l�bios. - Andou a fazer os trabalhos de casa. Um homem que j� viveu tanto como eu e que nunca se meteu em nenhuma zaragata, n�o pode ser um homem
interessante.
- Talvez. Um homem que vive aqui h� tanto tempo quanto o senhor � bem capaz de fazer a subida, se meter isso na cabe�a. E uma picareta perante um homem desarmado
compensa qualquer diferen�a de idades. Teoricamente.
Royce sorriu em redor do charuto. - Tem raz�o. Gosto de ca�ar e passei bons momentos com Pat no mato, uma ou duas vezes, mas n�o fa�o alpinismo. Nunca fiz. Se fizer
umas perguntas, pode confirmar.
Bastava uma vez, pensava Nate, mas afastou a ideia. - Quem fazia? Quem � que costumava ir com ele?
- O Max, se bem me lembro, na primeira temporada que passou c�. � prov�vel que Ed tamb�m, e Hopp... ambos devem ter ido uma ou duas vezes, nas subidas f�ceis, no
Ver�o. Harry e Deb. Ambos gostavam de alpinismo. Bing esteve l� algumas vezes. Jacob e Pat subiam bastante, faziam caminhadas e acampavam juntos, ou juntavam-se
em equipa para guiar clientes que pagavam. Bom, mais de metade das pessoas de Lunacy gosta de percorrer as montanhas. Mais ainda j� c� estiveram e foram-se embora.
Pelo que me contavam, ele era bom alpinista. Ganhava parte do sustento, mal ou bem, a levar as pessoas l� a cima.
- Uma subida no Inverno. Quem por aqui estaria capaz de uma subida no Inverno, naquela montanha?
- N�o tem tanto a ver com a capacidade, mas mais com querer desafiar os elementos. - Deu mais uma baforada e bebeu outro gole. - Vai mostrar-me o quadro?
Uma vez que n�o havia motivo para n�o o fazer, Nate levantou-se e tirou o cobertor. O juiz deixou-se ficar sentado por instantes, contraindo os l�bios. Depois, i�ou
a sua massa corpulenta da cadeira e aproximou-se.
- Na maior parte das vezes, a morte rouba a juventude. N�o � de esperar que a preserve. Ele tinha potencial para ser algu�m na vida. Tinha aquela mulher bonita e
ambiciosa, uma filha inteligente e encantadora. Era esperto, tinha talento. O problema era que gostava de brincar aos rebeldes, por isso deitou tudo pela janela
fora. Um homem teria de se aproximar muito, para enterrar uma picareta no peito de outro desta forma, n�o acha?
- � o que parece.
- Pat n�o era muito brig�o. Paz, amor e rock and roll. Voc� � muito novo para perceber aquela �poca, mas Pat era do tipo que abra�ara essa treta toda. Fazer amor,
n�o a guerra, flores no cabelo e cachimbos no bolso.
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- O juiz fungou. - Ainda assim, n�o o estou a ver a citar Dylan, ou coisa parecida, quando algu�m se virasse a ele com uma picareta de gelo.
- Se ele conhecesse a pessoa, se confiasse nela, n�o ia levar aquilo a s�rio. Existem muitas possibilidades.
- Sendo Max uma delas. - O juiz abanou a cabe�a ao desviar a aten��o para as fotografias de Max Hawbaker. - N�o seria de crer logo nisso. Quando se chega � minha
idade, j� quase nada nos surpreende, mas nunca ia pensar uma coisa dessas de Max. Fisicamente, Pat era capaz de o esborrachar como uma mosca. E j� pensou nisso,
- disse o juiz passados instantes.
- � mais dif�cil esborrachar moscas com armas mort�feras.
- Certo. Max era um alpinista relativamente bom, mas pergunto-me se era o suficiente para ir �quela montanha, em Fevereiro, sem a ajuda de algu�m com a per�cia de
Pat. N�o sei como teria conseguido faz�-lo, e tamb�m instalar-se aqui, casar com Carrie, criar os filhos sabendo que Pat estava l� em cima... que era respons�vel
pela morte dele.
- O argumento ser� que n�o conseguiu viver com isso.
- Mesmo a calhar, n�o acha? O corpo de Pat foi descoberto mais por sorte do que por bom senso, e alguns dias depois, Max confessa e mata-se. N�o explica, n�o p�e
tudo preto no branco. S� diz, fui eu, lamento. Bang.
- Mesmo a calhar, - concordou Nate.
- Mas voc� n�o acredita.
- Por enquanto, n�o vou fazer apostas.
Assim que o juiz saiu, Nate tomou mais algumas anota��es. Ia precisar de falar com mais pessoas, incluindo a Presidente, o vice-presidente e alguns dos cidad�os
mais proeminentes da vila.
No bloco de notas escreveu PILOTO. Desenhou um c�rculo � volta.
Galloway partira, alegadamente, para Anchorage � procura de trabalho de Inverno. Ser� que tinha encontrado?
Se Galloway andasse a fazer jogo limpo com Charlene, se acalentasse a firme inten��o de regressar ap�s breves semanas, a altura da morte ficaria reduzida para Fevereiro.
Uma grande suposi��o, mas aliada a essa teoria, seria poss�vel - com tempo e esfor�o, verificar se Max se ausentara de Lunacy nesse per�odo.
Se fosse o caso, com que objectivo?
Assim sendo, teria ido sozinho? Por quanto tempo se ausentara? Teria regressado sozinho, ou com companhia?
Teria de procurar respostas nas mem�rias de Carrie. Ainda n�o devia estar muito af�vel. Talvez falasse com Coben, mas e se a Medicina Legal
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declarasse o suic�dio, ser� que Coben se ia dar ao trabalho de prosseguir com a investiga��o?
Ouviu bater, e enquanto Nate se levantava para voltar a tapar o quadro, Peter entrou. - Queria falar comigo?
- Sim. Feche a porta. Perguntas.
- Sim, senhor, Comandante.
- Conhece algum motivo para algu�m ir fazer snowshoeing no bosque junto � casa de Meg, na escurid�o?
- Perd�o?
- S� me estou a deitar a adivinhar, mas parece-me que quase ningu�m ia praticar snowshoeing no bosque, �s escuras, por desporto.
- Pois, acho que sim, se fosse visitar algu�m ou tratar de alguma coisa, ou se n�o conseguisse dormir. N�o percebi.
Gesticulou para o quadro. - Encontrei um rasto ontem � noite, quando andava a treinar, e aproveitei para p�r os c�es a correr. Segui-o desde a estrada, a cerca de
quarenta e cinco metros da casa de Meg, at� � orla do bosque pelas traseiras da casa.
- Tem a certeza que n�o era o seu?
- Absoluta.
- Como � que sabe que foi feito de noite? Algu�m, qualquer pessoa podia ter ido dar uma caminhada para aqueles lados, a qualquer altura. Talvez quisesse ca�ar ou
passear pelo lago.
Boa observa��o, acedia Nate. - Eu e Meg estivemos l� fora na noite em que Max morreu. Tom�mos banho na �gua quente.
Peter olhou, cordial, para a parede e pigarreou. - Bom.
- Quando est�vamos l� fora, os c�es ficaram inquietos. Desataram a correr para o bosque. A ladrar como se tivessem sentido o cheiro de alguma coisa, e continuaram
at� Meg estar quase a cham�-los, mas foi nessa altura que se acalmaram. Agora, antes que diga que podiam andar atr�s de um esquilo ou de um alce, encontrei o local
onde parecia que tinham andado a rebolar na neve, e as pegadas, as marcas das botas de neve, indicavam que algu�m parara e ficara ali. N�o sou o raio do Inspector
Varatojo, mas sei somar dois mais dois.
Bateu com o dedo nas fotografias. - Algu�m entrou no bosque, a dist�ncia suficiente da casa de Meg para n�o ser visto. Depois avan�ou em linha mais ou menos recta,
como algu�m que conhecia o terreno e tinha um objectivo, na direc��o das traseiras da casa. O comportamento dos c�es revela que reconheciam este indiv�duo e o consideravam
amigo. Este indiv�duo depois parou no limite das copas das �rvores.
- Se, hum, eu andasse a caminhar e por acaso o visse com Meg... a tomar banho na �gua quente, provavelmente, pode-se dizer, que hesitava
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em me mostrar. Era capaz de me afastar e ir embora, com a esperan�a sincera de que n�o me tivessem visto. Caso contr�rio, seria embara�oso.
- Parece-me que seria menos embara�oso n�o ir �s escondidas contornar a casa �s escuras.
- Seria. - Analisando as fotografias, Peter mordia o l�bio inferior. - Talvez fosse algu�m a montar ou a verificar armadilhas. Quer dizer, � volta da casa de Meg
a propriedade � dela, mas podiam ser ca�adores furtivos. Ela n�o ia gostar de saber, por causa dos c�es. Aposto que tinha a m�sica a tocar.
- Sim.
- Pois, algu�m se deve ter dirigido para l�, s� para ver o que era, especialmente se andava a ver as armadilhas.
- Ok. - Era razo�vel. - Ent�o e que tal se fosse com o Otto at� l�, ver se encontram armadilhas? Se encontrarem, gostava de saber quem as montou. N�o quero que os
c�es se magoem.
- Vamos j� tratar disso. - Olhou para tr�s na direc��o do quadro. Podia ser inexperiente, mas n�o era parvo. - Acha que algu�m a andava a espiar? Algu�m envolvido
nisto tudo?
- Acho que vale a pena descobrir.
- Rock e Buli n�o deixavam que lhe fizessem mal. Mesmo considerando a... amizade individual, qualquer pessoa que fizesse um movimento amea�ador sobre ela, eles atacavam.
- � bom saber. Avisem-me quando souberem alguma coisa das armadilhas, de uma forma ou de outra, logo que poss�vel.
- Ah, Comandante? Acho que devia saber que Carrie Hawbaker tem andado a fazer muitos telefonemas, a falar com muita gente. Diz que voc� est� a tentar denegrir o
car�cter de Max para se promover. Quase toda a gente sabe que ela est� perturbada e um pouco fora de si, mas, bom, outras pessoas, talvez aquelas a quem nunca agradou
a ideia de trazer algu�m do Exterior, est�o a matutar no assunto.
- Eu trato disso, mas agrade�o o aviso.
Nos seus olhos negros era percept�vel a preocupa��o e uma sombra de ira no rosto. - Se as pessoas soubessem que estava a trabalhar tanto para descobrir a verdade,
eram capazes de sossegar.
- Por agora, vamos concentrar-nos em fazer o nosso trabalho, Peter. A pol�cia nunca ganhou concursos de popularidade.
Tamb�m n�o ia ganhar nenhum com Charlene, concluiu Nate, quando ela entrou de rompante pelo seu gabinete uma hora depois.
- Estou cheia de trabalho n'A Estalagem, - come�ou. - Rose n�o est� em condi��es de servir � mesa, nem de coisa nenhuma. E n�o gosto
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nada que me chame aqui como se fosse alguma criminosa. Estou de luto, raios partam, e devia ter mais respeito.
- N�o � minha inten��o faltar-lhe ao respeito, Charlene. Se ajudar, pode excluir o meu quarto fora da rotina de limpezas, at� que as coisas regressem ao normal.
Sou bem capaz de tratar disso.
- N�o vai fazer diferen�a nenhuma, j� que toda a gente da vila vai at� l� bisbilhotar e meter o nariz no assunto do meu Pat e sobre a pobre da Carrie. Acha que l�
porque Max se matou, ela sofre mais do que eu?
- N�o acho que seja nenhuma competi��o.
Ela atirou a cabe�a para tr�s, empinando o queixo. Nate previa que a seguir batesse com os p�s, mas em vez disso cruzou os bra�os.
- Se vai falar comigo dessa forma, n�o tenho mais nada para lhe dizer. Nem pense que vou tolerar essa atitude comigo, s� porque anda a comer a Meg.
- Talvez seja melhor sentar-se e calar-se.
Ela abriu a boca, as faces em brasa. - Afinal, quem � que pensa que �?
- Acho que sou o Comandante da pol�cia, e se n�o deixa de ser chata e come�a a colaborar, vou ter de a p�r numa cela at� que isso aconte�a.
A boca, pintada de um coral caribenho, abriu-se e fechou-se como a de um peixe. - N�o pode fazer isso.
Provavelmente n�o, pensava Nate, mas tentava que a jogada funcionasse. - Quer ficar amuada a fazer-se de v�tima? J� conhe�o essa hist�ria e acaba por ser uma seca
intermin�vel para quem for obrigado a ouvi-la. Ou prefere fazer alguma coisa acerca disso? Quer ajudar-me a encontrar quem matou o homem que afirma que amava?
- Amava-o mesmo! Aquele patife est�pido e ego�sta. - Deixou-se cair numa cadeira e desatou num pranto.
Por segundos, ele debateu-se com uma solu��o para aquele cen�rio. Saiu, pegou numa caixa de len�os que Peach tinha na secret�ria e ignorou os olhos arregalados da
administrativa. De volta ao gabinete, largou a caixa no colo de Charlene.
- V� l�, chore tudo o que for preciso. Depois limpe as l�grimas, recomponha-se e responda a algumas perguntas.
- N�o sei porque tem de ser t�o mau para mim. Se tratou Carrie da mesma maneira, n�o admira que diga aquelas coisas terr�veis sobre si. Quem me dera que n�o tivesse
vindo para Lunacy.
- N�o vai ser a �nica com esse desejo, assim que descobrir quem matou Patrick Galloway.
Ela ergueu os olhos marejados para ele. - Nem sequer est� respons�vel pelo caso.
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- Mas sou respons�vel por este gabinete. Sou respons�vel por esta vila. - A raiva que o ati�ava sabia-lhe bem; era justa. Adrenalina de pol�cia, percebeu. Sentira
a sua falta.
- E neste momento, sou respons�vel por si. Pat Galloway saiu da vila sozinho?
- Voc� n�o passa de um estupor. Um...
- Responda ao raio da pergunta.
- Sim! Pegou numa mala, atirou-a para a carrinha e partiu. E eu nunca mais o voltei a ver. Criei a nossa filha sozinha, e ela nunca me agradeceu por...
- Ele tinha planos de se encontrar com algu�m?
- N�o sei. N�o disse. Ia � procura de trabalho. Est�vamos com dificuldades. Eu estava farta de viver com uma m�o � frente e outra atr�s. A fam�lia dele tinha dinheiro,
mas ele nem sequer pensava...
- Charlene. Por quanto tempo tencionava ele ausentar-se?
Ela suspirou e come�ou a rasgar o len�o molhado. Est� a acalmar, pensou Nate.
- Umas semanas, talvez um m�s.
- Nunca telefonou, n�o entrou em contacto.
- N�o, e eu tamb�m fiquei furiosa. Devia ter telefonado passada uma ou duas semanas, para me dar not�cias.
- Tentou contact�-lo?
- Como? - Indagou ela, mas as l�grimas j� haviam secado. - Eu bem que insisti com Jacob. Pat conversava sempre com ele mais do que comigo, mas ele disse que n�o
sabia onde ele estava. Tanto quanto sei, bem podia estar a encobri-lo.
- Jacob ainda voava com regularidade nessa altura?
- E ent�o?
- Fazia fretes regulares, tal como Meg faz agora. - A resposta dela foi um encolher de ombros, por isso Nate continuou a sondar. - Ele ou algu�m de que se lembre,
ausentou-se da cidade por, digamos, uma semana ou dez dias em Fevereiro desse ano?
- Como raio � que quer que eu saiba isso? N�o costumo controlar as pessoas, e foi h� dezasseis anos. Faz este m�s, - acrescentou, percebendo que tomara consci�ncia
da data como uma esp�cie de anivers�rio.
- Faz dezasseis anos que Pat Galloway desapareceu. Aposto que se pensar com todo o empenho, se deve lembrar de muitos pormenores dessas semanas.
- Andava com dificuldades para pagar a renda, o que acontecia quase sempre. Tive de pedir a Karl que me desse mais horas por semana n'A
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Estalagem. Estava muito mais preocupada com a minha situa��o do que com o que os outros andavam a tramar.
Mas recostou-se e fechou os olhos. - N�o sei. Jacob foi-se embora por volta da mesma altura. Lembro-me porque foi visitar Pat, no dia em que ele partiu, e disse
que o podia ter levado a Anchorage, se soubesse que ia tamb�m. Ia transportar Max e acho que mais uns quantos. Harry. Harry queria boleia para Anchorage porque ia
� procura de um novo fornecedor, ou coisa assim. Ou talvez fosse no ano seguinte, ou anterior. N�o tenho a certeza, mas acho que foi nessa altura.
- �ptimo. - Tomou notas no bloco amarelo de servi�o. - Mais algu�m?
- O Inverno foi muito parado. Duro e parado. Foi por isso que quis que Pat fosse � procura de trabalho. A vila estava morti�a; n�o consegu�amos atrair os turistas.
A Estalagem estava quase vazia e Karl deu-me imenso trabalho s� para me manter ocupada, para me ajudar. Ele era um querido; tomava conta de mim. Algumas pessoas
iam ca�ar, outras ficavam � espera da Primavera. Max tentava levar o jornal a bom porto e andava � procura de patrocinadores, � ca�a de gente para tema de artigos.
Ningu�m o levava a s�rio naquela altura.
- Ele esteve na vila o m�s todo?
- N�o sei. Pergunte a Carrie. Ela andava atr�s dele como um c�o a perseguir um coelho. O que � que isso lhe interessa?
- Sou respons�vel por este gabinete, por esta vila, por si.
- Mas nem sequer conhecia Pat. Talvez seja o que muita gente anda a dizer. S� quer causar alarido, chamar a aten��o da imprensa antes de voltar para a sua terra.
- Agora sou daqui.
Ele atendeu algumas chamadas, incluindo outro inc�ndio na chamin� de uma resid�ncia e uma queixa sobre os irm�os Mackie, a bloquearem a estrada com um Jeep Cherokee
transformado.
- At� parece que fizemos de prop�sito, - afirmou Jim Mackie, debaixo da neve que ca�a forte, a co�ar o queixo e de testa franzida para o Jeep, que a seu lado, mais
parecia um velho cansado a dormir a sesta. - Compr�mo-lo barato, e �amos lev�-lo para casa. Queremos reconstruir o motor, pintar e vend�-lo outra vez.
- A n�o ser que decid�ssemos ficar com ele, - interrompeu o irm�o, - at� pod�amos p�r-lhe um atrelado e fazer concorr�ncia a Bing.
A neve ca�a sobre Nate, naquele frio miser�vel, enquanto analisava aquela confus�o. - N�o t�m nenhum encaixe de atrelado, guincho de reboque nem nenhum equipamento
de remo��o habitual do ve�culo.
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Limitaram-se a pensar que iam rebocar este monstro vinte quil�metros com um par de correntes enferrujadas presas � carrinha com, o qu�, linha de pesca?
- Estava a funcionar. - Bill franziu o sobrolho. - At� batermos naquele sulco e ele se virar como um c�o a fingir de morto, estava a funcionar lindamente.
- Est�vamos agora mesmo a pensar numa forma de o virar. N�o era preciso ficarem todos eri�ados.
Ouviu um uivar na certeza de que era um lobo, arrepiante e prim�rio na penumbra espectral. Serviu para o lembrar que se encontrava numa estrada rural, coberta de
neve, em pleno interior do Alasca com uma dupla de parvalh�es.
- Est�o a bloquear o tr�nsito e a impedir que o limpa-neves da vila abra a estrada para as pessoas que t�m o bom senso de conduzir de forma respons�vel. Se isto
tivesse acontecido cinco quil�metros no outro sentido, aposto que iam ligar para os bombeiros. O Bing vai tratar do assunto e reboc�-lo para vossa casa. V�o pagar-lhe
pelo servi�o...
- Filho da puta!
- � a coima por reboque sem equipamento apropriado ou sinaliza��o.
Bill parecia t�o incomodado que Nate n�o se teria surpreendido se visse l�grimas escorrer-lhe dos olhos. - Como raio � que vamos lucrar com isto, se nos come�a a
multar e nos obriga a pagar ao fuinha do Bing a coima do reboque?
- Sem d�vida que � uma inc�gnita.
- Bolas. - Jim pontapeou o pneu traseiro careca do Jeep. - Na altura pareceu uma boa ideia. - Depois riu-se. - Vamos arranj�-lo. Talvez o queira comprar para o departamento
da pol�cia. Com uma pechincha transformava-o em limpa-neves. Era �til.
- Leve a proposta � Presidente. Vamos l� tirar isto da estrada.
Foi preciso Bing, o ajudante Pargo, os dois Mackie e Nate para fazer o servi�o. Quando acabaram, e Bing j� rebocava o Jeep, Nate tentava tirar as cordas das costas.
- Quanto � que pagaram por ele?
- Dois mil. - Bill ficou com um brilho nos olhos. - Em dinheiro.
Ele calculava, por alto, quanto � que lhes ia custar p�-lo a andar, quanto � que Bing lhes ia sacar com o reboque. - Vou deixar-vos ir desta com um aviso. Da pr�xima
vez que decidirem ser empreendedores, arranjem um gancho de reboque.
- Voc� � porreiro, Comandante. - Os dois Mackie deram-lhe uma palmada nas costas e quase o lan�aram de cara na neve. - � uma chatice ter a pol�cia � perna, mas voc�
� porreiro.
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- Obrigado.
Percorreu de carro a curta dist�ncia at� � vila e estacionava junto ao passeio, quando viu David a ajudar Rose a sair da carrinha, � porta da cl�nica.
- Est� tudo bem? - Gritou ele.
- O beb� vai nascer, - gritou David de volta.
Nate deu um salto e pegou no outro bra�o de Rose. Ela avan�ava com respira��es lentas e profundas, mas sorria para ele com aqueles olhos de chocolate derretido.
- N�o se incomode. Est� tudo bem. - Apoiou-se no marido quando Nate lhe abriu a porta. - N�o quis ir para o hospital, em Anchorage. Quero que seja o doutor Ken a
fazer o parto. Est� tudo bem.
- A minha m�e ficou com o Jesse, - disse-lhe David. Estava um bocadinho p�lido, pensou Nate. E tamb�m ele se sentia algo p�lido.
- Querem que fique, que ajude nalguma coisa? - Por favor, digam que n�o. - Que chame algu�m?
- A minha m�e j� vem. - Rose deixou que David a ajudasse a despir o casaco. - O doutor disse que podia ser a qualquer altura, quando vim fazer os �ltimos exames.
Parece que tinha raz�o. Intervalos de quatro minutos, - disse ela a Joanna, que logo acorreu. - Agora, ritmadas e fortes. Rebentaram as �guas h� vinte minutos.
Aquilo, decidiu Nate, era tudo o que um homem, at� mesmo com distintivo, precisava de ouvir.
- Vou deixar-vos � vontade. - Tirou o casaco de Rose da m�o de David e pendurou-o. - Telefonem se... qualquer coisa. Peter foi fazer-me um recado, mas se quiserem,
posso cham�-lo.
- Obrigado.
Desapareceram nas traseiras, para fazer coisas que nem queria saber. Mas pegou no telem�vel. Tocava-lhe na m�o.
- Burke.
- Comandante? � Peter. N�o descobrimos armadilhas, nem sequer sinais delas. Se quiser, podemos alargar a busca, hum, alargar o per�metro.
- N�o, n�o � preciso. Venham para c�. A sua irm� est� prestes a torn�-lo tio outra vez.
- Rose? Agora? Ela est� bem? Ela...
- Pareceu-me bastante bem. Est� agora aqui na cl�nica. David est� com ela. Jesse est� com a m�e dele e a vossa vem a caminho.
- Eu tamb�m.
Nate voltou a enfiar o telefone no bolso. Devia ficar por ali, pelo menos at� chegar mais algu�m da fam�lia. A sala de espera da cl�nica era um bom s�tio para ficar
sentado a pensar nas marcas na neve.
E no que diria a Meg quando ela regressasse a Lunacy.
223
17.
Era uma menina, tr�s valentes quilos e seiscentos gramas, equipada com o n�mero condizente de dedos e um tufo de cabelo preto. Ia chamar-se Willow Louise, e era
linda. A informa��o foi Peter quem lha deu, que acorrera � esquadra quatro horas depois de aparecer na cl�nica.
Sabendo o que tinha de fazer, Nate passou pela Loja da Esquina e comprou charutos. E uma vez l�, viu um dossier de cinco furos, bem grosso. Era verde-tropa, em vez
do preto que queria, mas preferiu compr�-lo, e p�s na conta do DP de Lunacy.
Ia arquivar os apontamentos, c�pias de todos os relat�rios e fotografias. Seria o seu livro do crime.
Com alguma cerim�nia, passou os charutos a Peter, Otto e a uma divertida Peach. O gesto esbateu a frieza com que o tratara naquela manh�.
Depois de mais algumas palmadinhas nas costas e de empestarem o ambiente de fumo, deu a Peter o resto do dia de folga.
Nate voltou para o gabinete e passou mais algum tempo com o furador e a fotocopiadora. P�s o seu livro do crime em ordem. T�-lo e ao quadro davam-lhe as bases tang�veis.
Era trabalho de pol�cia.
Era o seu trabalho.
Acalentava a inten��o de passar o resto do turno a inundar Anchorage de mais chamadas, mas Peach entrou. Fechou a porta, sentou-se e enla�ou as m�os sobre o colo.
- Algum problema?
- Acha que o rasto em casa de Meg � motivo de preocupa��o?
- Bom...
- Otto contou-me, uma vez que voc� n�o o fez.
- Eu, ah...
- Se me contasse o que se passa, eu j� n�o ficava irritadi�a.
- Sim, senhora.
Perante o coment�rio, torceu os l�bios. - E n�o pense que me leva, Ignatious. Tem a mania de usar esse tom simp�tico quando quer mudar de assunto ou levar algu�m
apensar que concorda, quando n�o � verdade.
- Apanhado. Achei que bem podia experimentar, s� isso.
- E n�o fala disso � sua administrativa por saber que ela � esperta o suficiente para perceber que anda a passar o m�ximo de tempo livre poss�vel enroscado com Megan
Galloway?
- N�o. - Observando-a, bateu com a lombada do livro do crime � direita, depois � esquerda. - Mas talvez n�o quisesse abordar esse alegado enroscan�o com a mulher
que me traz bolinhos doces. N�o fosse ela ficar com a ideia errada.
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- E Peter e Otto n�o?
- S�o homens. A maioria s� tem uma ideia acerca do... enroscan�o, por isso n�o conta. Lamento ter sido bruto consigo esta manh�, e lamento n�o ter posto ao corrente
a minha valiosa e respeitada administrativa.
- Voc� tem c� uma l�bia, - disse ela, passados instantes. - Est� preocupado com Meg?
- S� estou intrigado com o motivo que levaria algu�m a rondar a casa.
- Ela seria a primeira a dizer-lhe que sabe cuidar de si, e que sempre soube. Mas sou da opini�o que n�o faz mal nenhum a uma mulher ter um bom homem que cuide dela.
Por aqui, as pessoas n�o se costumam magoar. Oh, algumas zaragatas de vez em quando, e uns mexericos, mas nada de mais. � um lugar onde nos sentimos seguros, onde
sabemos que se tivermos problemas, algu�m nos estende a m�o.
Tirou um l�pis do carrapito e passou-o pelos dedos. - Agora, acontece isto e perguntamo-nos se esta seguran�a n�o passava de ilus�o. As pessoas retraem-se. Ficam
com medo e assustadas.
- E muitas dessas pessoas est�o armadas e s�o territoriais.
- E um pouco loucas, - acrescentou ela com um aceno. - Talvez fosse melhor ser cauteloso.
- Em quem � que Max confiava o suficiente para deixar que se aproximasse tanto, Peach? Ao ponto de lhe enfiar uma bala na cabe�a?
Por mais alguns momentos ela brincou com o l�pis, mas depois voltou a enfi�-lo com firmeza no carrapito. - N�o vai decidir-se pelo suic�dio.
- N�o me vou decidir por algo errado.
Ela suspirou, duas vezes. - N�o me lembro de ningu�m em quem n�o confiasse. Tal como eu, e quase toda a gente de Lunacy. Somos uma comunidade. Podemos insurgir-nos
e discutir, e de vez em quando armar uma confus�o, mas continuamos a ser uma comunidade. � o que de mais pr�ximo existe de uma fam�lia.
- Vejamos a coisa da seguinte forma: com quem � que Max teria subido, quando Galloway desapareceu, em que confiasse ainda hoje em dia?
- Deus do C�u. - Fitando-o, levou o punho fechado sobre o cora��o. - Est� a assustar-me. Se colocar as coisas assim, vou come�ar a pensar que um dos meus vizinhos,
dos meus amigos, pode ser um assassino a sangue-frio.
- N�o sei se � frio.
Mas voc� �, percebeu ela, subitamente. No que toca a este assunto, voc� �. - Bing, Jacob, Harry ou Deb. Sant�ssimo. Ah, Hopp ou Ed, apesar de Hopp nunca ter sido
muito amiga de alpinismo. Mackie Pai, o Mike B�bedo,
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se estivesse s�brio para isso. At� O Professor foi algumas vezes. Tanto quanto sei, subidas curtas no Ver�o.
- John sempre teve um fraco por Charlene.
- Raios partam, Nate.
- S� estou a criar um cen�rio, Peach.
- Acho que sim. Desde que me lembro. N�o que ela olhasse duas vezes sequer para ele, bom, mais do que olhava duas ou tr�s vezes para qualquer homem quando estava
com Pat. Depois, casou-se com Karl Hidel, cerca de seis meses depois de Pat partir. Toda a gente sabia, incluindo o Velho Hidel, que ela casou por dinheiro, pela
A Estalagem, mas ela tratava-o bem.
- Ok.
O olhar dela passou para o quadro, desviando-se de novo. - Como � que vou continuar a olhar estas pessoas nos olhos, a partir de agora?
- � a parte chata de ser pol�cia.
Ela parecia algo abismada, e um pouco contrariada, ao ver-se classificada como pol�cia. - Deve ser. - Levantou-se e ali ficou, com a camisola vermelha cheia de cora��es
cor-de-rosa � volta da costura. - Antes de dizer mais alguma coisa, queria que soubesse que gosto de Meg. Sinto por ela um imenso afecto e respeito. Mas tamb�m tenho
imenso afecto e respeito por si, e espero que ela n�o lhe parta o cora��o.
- Registado.
Esperou at� ela sair para dar uma volta na cadeira e fitar a neve l� fora. Algumas semanas antes, ele achava que j� n�o restava mais nada do seu cora��o para partir.
Agora n�o sabia se era melhor sentir-se bem ou irritado por ainda o ter.
Recupera��o?, pensava. Ou estupidez? Talvez fossem a mesma coisa.
Deu outra volta e agarrou no telefone.
Ela n�o regressou naquela noite. Nate passou-a em casa dela, com os c�es. Ele esmagou a frustra��o e uma raiva latente, na sala de gin�stica dela. De manh�, quando
a neve abrandara para flocos dispersos, regressou a Lunacy e ao trabalho.
N�o o contactara, o que fora deliberado. Indelicado, admitia Meg ao recostar-se no t�xi do Aeroporto de Anchorage. Era prov�vel que estivesse preocupado. Tinha genes
de quem se preocupava com as mulheres, se � que o seu instinto n�o a enganava. Estaria magoado e sentido, o que tamb�m fora deliberado da sua parte.
O homem tinha-a assustado.
Vislumbrara uma express�o no seu olhar, quando a vira entrar para o
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avi�o. Mais do que isso, pairara a sensa��o de que aquele olhar causara uma revolu��o dentro de si.
Ela n�o ansiava por esse tipo de profundidade, emo��o e contacto. Por que raio � que as pessoas n�o podiam apreciar uns belos e simples encontros sexuais sem complicarem
tudo com... sabia l�. Uma coisa era a lealdade, e era o que dava e recebia, desde que o sangue lhe fervesse. N�o era como a m�e, pronta a enrolar-se com quem aparecesse.
Mas n�o era uma mulher � procura de partilha de casa e cama a longo prazo.
Era o que ele queria, e ela sabia disso. Percebeu o que estava por tr�s daqueles olhos tristes e magoados na primeira vez que os fitara. N�o devia ter dormido com
um homem que queria e esperava mais do que sexo.
A sua vida n�o era j� demasiado complicada, sem se sentir na obriga��o de fazer ajustes por causa de outra pessoa? Por um homem, credo.
Tivera o bom senso de assumir v�rios trabalhos, e adorava a sensa��o de estar assoberbada. Tamb�m fora com pondera��o que se afastara dele e de Lunacy por mais uns
dias. Para p�r as ideias no lugar.
Sabia Deus como precisava de as arrumar, para o que estava prestes a fazer.
N�o contactara Nate, mas contactara Coben.
Haviam resgatado o corpo e levaram-no para local pr�prio em Anchorage.
Agora, ela ia a caminho da morgue para identificar o pai.
Sozinha. Outra decis�o deliberada. Andava a viver a sua vida, a tratar dos seus assuntos, a resolver os seus pormenores sozinha quase desde que se lembrava.
N�o tinha inten��o de mudar agora.
Se fosse o seu pai naquela morgue, e no fundo sabia bem que era, ent�o ele era sua responsabilidade, o seu sofrimento e, de certa forma, a sua liberta��o.
N�o ia partilhar estes pensamentos, nem mesmo com Jacob. A �nica pessoa que amava incondicionalmente.
O que fazia n�o era mais do que uma formalidade, uma cortesia. Coben assegurara, na sua forma simples e cordial, que ela soubesse disso. Patrick Galloway tinha cadastro,
e as suas impress�es digitais constavam nos registos. Oficialmente, j� havia sido identificado.
Mas ela era a fam�lia mais pr�xima com permiss�o para ver, para confirmar a sua identidade, para assinar os pap�is, dar o seu depoimento. Resolver o assunto.
Ao chegar, pagou o t�xi. Colocou a armadura.
Coben estava � sua espera.
- Menina Galloway.
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- Sargento. - Estendeu-lhe a m�o, e encontrou a dele fria e seca.
- Sei que � dif�cil e quero agradecer-lhe por ter vindo.
- O que � que preciso de fazer?
- Tem de tratar de uma papelada. Vamos resolver j� isso, para que seja o mais r�pido poss�vel.
Ele guiou-a. Ela assinou onde era preciso, aceitou o crach� de visitante e prendeu-o na blusa.
Manteve a mente vazia enquanto ele a guiava por um corredor largo e branco, fazendo os poss�veis por ignorar os odores vagos mas persistentes que impregnavam o ar.
Ele levou-a para uma sala pequena com algumas cadeiras e um televisor montado na parede. Havia uma janela, tapada de um dos lados por persianas finas e brancas.
Reunindo for�as, entrou.
- Menina Galloway. - Ele tocou-lhe no ombro, ao de leve. - Se n�o se importa, olhe para o ecr�.
- Ecr�? - Confusa, virou-se e fitou o ecr� est�tico e cinzento. - A televis�o? Vai-mo mostrar numa televis�o. C�us, n�o acha que � mais macabro, do que se me deixasse...
- � o procedimento. � melhor assim. Quando estiver pronta.
A boca secara-se-lhe, numa camada arenosa de sabor amargo. Ela tinha medo de engolir, com receio de que se limitasse a subir de novo, emergindo dela num v�mito consumado
antes sequer de come�ar.
- Estou pronta.
Ele pegou num telefone fixo � parede e murmurou algo. Depois, pegou no controlo remoto e apontou para o ecr�, pressionando o bot�o.
S� o via dos ombros para cima. N�o lhe haviam fechado os olhos, foi o primeiro pensamento amedrontado que lhe ocorreu. N�o lhe deviam ter fechado os olhos? Em vez
disso, estavam abertos, no azul gelado da sua mem�ria. O cabelo, o bigode, a barba farta ostentavam o negro puro e escuro de que se recordava.
Agora n�o havia gelo para os espelhar, a reluzir como vidro sobre o seu rosto. Ainda estaria congelado?, pensou, a prop�sito. Internamente? Quanto tempo demorava
a descongelar um cora��o, um f�gado e os rins, quando um homem de setenta e sete quilos havia ficado todo congelado?
Seria importante?
O seu est�mago estremeceu e ela sentiu um formigueiro na ponta dos dedos das m�os, dos p�s.
- Consegue identificar o falecido, Menina Galloway?
- Sim. - Havia um eco na sala, ou na cabe�a dela. A sua voz parecia intermin�vel, reverberando, min�scula e suave. - � Patrick Galloway. � o meu pai.
228
Coben desligou o ecr�. - Lamento muito.
- Ainda n�o acabei. Ligue-o de novo.
Ap�s uma breve hesita��o, Coben acedeu. - � melhor avis�-la, Menina Galloway, que os media...
- N�o estou preocupada com os media. V�o escarrapachar o nome dele, quer eu me preocupe quer n�o. Al�m do mais, acho que ele ia gostar.
Queria tocar-lhe, havia-se preparado para isso. N�o podia explicar porque ansiara por aquele contacto, a sua pele na pele dele. Mas podia esperar, esperar at� que
fizessem o que tinham de fazer ao seu corpo. Quando acabassem, ela ia deixar-lhe um �ltimo toque, o toque que se negara na sua mente infantil h� tantos anos atr�s.
- Pronto. J� pode desligar.
- Quer um minuto? Quer que lhe traga um copo de �gua?
- N�o. Gostava de umas informa��es, quero informa��es. - Mas as pernas tra�am-na, amolecendo os joelhos de tal forma que teve de se deixar cair numa cadeira. - Quero
saber o que acontece agora, como tencionam encontrar a pessoa que o matou.
- Talvez fosse melhor discutirmos isto noutro local. Se quiser voltar comigo para...
Ele interrompeu-se quando Nate entrou na sala. - Comandante Burke.
- Sargento. Meg, � melhor vires comigo. Jacob est� � espera l� em cima.
- Jacob?
- Sim, foi ele que me trouxe. - Sem esperar consentimento, Nate pegou-lhe no bra�o. Levantou-a e levou-a para fora da sala. - Eu acompanho a Menina Galloway at�
� esquadra, Sargento.
Ela tinha a vis�o toldada. N�o era das l�grimas, mas sim do choque, percebeu. Era de ver o pai morto naquele ecr�, morto na TV, como se a sua vida, o fim dela, fosse
uma esp�cie de epis�dio.
Um final apote�tico, pensou estouvadamente. Uma apoteose dos diabos.
Por isso, ela deixou que ele a levasse sem dizer nada, nem a Jacob, nada at� chegarem � rua.
- Preciso de ar. Preciso de um minuto. - Soltando o bra�o, caminhou meio quarteir�o. Conseguia ouvir o tr�nsito, sem parar, o tr�nsito da cidade, e fora do seu per�metro
de vis�o, os pontos de luz e cor das pessoas que passavam por ela no passeio.
Conseguia sentir o frio nas faces e a t�nue luz do Sol de Inverno filtrada pelos c�us carregados na sua pele exposta.
Pegou nas luvas, colocou os �culos de sol e voltou.
229
- Coben contactou-te? - Perguntou a Nate.
- � verdade. Como estavas incontact�vel, h� algumas coisas que tens de saber antes de voltarmos a falar com ele.
- Que coisas?
- Coisas que n�o quero discutir no raio do passeio. Vou buscar o carro.
- Carro? - Indagou ela a Jacob quando Nate se afastou.
- Alugou-o no aeroporto. N�o te queria num t�xi. Queria que tivesses privacidade.
- Atencioso. O que eu n�o sou. N�o � preciso dizeres, - ela continuou, apesar de Jacob se manter em sil�ncio. - D� para ver nos teus olhos.
- Tratou dos c�es na tua aus�ncia.
- Pedi-lhe que o fizesse? - Ouviu a insensibilidade na sua voz e praguejou. - Raios partam, raios partam, Jacob, n�o me vou sentir na fossa por levar a vida como
sempre levei.
- Pedi-te que o fizesses? - Esbo�ou um ligeiro sorriso e a sua palma da m�o no bra�o dela quase derrubou o muro que ela constru�ra avidamente para combater as l�grimas.
- Puseram-no num ecr� de televis�o. Nem consegui olhar para ele, n�o a s�rio.
Caminhou at� � berma do passeio, assim que Nate estacionou num Chevy Blazer. Entrando, endireitou os ombros. - O que � que preciso de saber?
Contou-lhe o que acontecera a Max no seu estilo desapegado e directo, que teria usado para informar um qualquer cidad�o a quem fosse necess�rio dar uma not�cia acerca
de um caso. Continuou a falar, continuou a conduzir com os olhos postos na estrada, at� mesmo quando ela virou a cabe�a para olhar para ele.
- Max morreu? Max matou o meu pai?
- Max morreu. � um facto. O m�dico-legista decidiu-se pelo suic�dio. A mensagem deixada no computador reclama responsabilidade pelo assass�nio de Patrick Galloway.
- N�o acredito. - Dentro dela come�ava uma revolu��o, a insurrei��o contra o muro defensivo. - Est�s a dizer que Max Hawbaker de repente se tornou num homicida,
espetou uma picareta de gelo no peito do meu pai, e depois desceu a montanha e voltou calmamente para Lunacy? Que treta do cara�as. � uma estupidez da pol�cia, daquelas
tretas s� para despachar o caso e irem para casa.
- Estou a dizer que Max Hawbaker est� morto, que a Medicina Legal declarou o suic�dio, depois de recolher as provas f�sicas, e que havia uma
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mensagem escrita no computador, que estava enfeitada com o sangue e os miolos de Max, a reclamar essa responsabilidade. Se te tivesses dado ao trabalho de contactar
algu�m nos �ltimos dias, estarias a par e actualizada.
Ele tinha a voz neutra, e ela tamb�m reparou o mesmo no olhar. Nada, n�o havia nada ali a revelar. Ela n�o era a �nica a erguer muros. - Est�s a ser muito cauteloso,
em n�o exprimires a tua opini�o, Comandante Burke.
- O caso � de Coben.
Deixou o assunto por ali e estacionou num parque de visitantes da Pol�cia Estadual.
- A morte de Hawbaker foi considerada suic�dio, - declarou Coben. Estavam reunidos numa pequena sala de reuni�es. Coben tinha as m�os enla�adas sobre uma pasta em
cima da mesa. - A arma era dele, as impress�es digitais que encontr�mos na arma tamb�m s� eram dele. Encontraram res�duos de p�lvora na m�o direita. N�o havia sinais
de arrombamento ou luta. Em cima da sua secret�ria havia uma garrafa de u�sque e uma caneca. Os resultados da aut�psia provam que ele tinha consumido mais de cento
e quarenta gramas de u�sque antes de morrer. As suas impress�es, e s� dele, estavam no teclado do computador. O ferimento, a posi��o do corpo, a posi��o da arma,
tudo indica auto-indu��o.
Coben fez uma pausa. - Hawbaker conhecia o seu pai, Menina Galloway?
- Sim.
- E tem conhecimento que ele de vez em quando subia com o seu pai?
- Sim.
- Sabe de algum desentendimento entre ambos?
- N�o.
- Talvez n�o seja do seu conhecimento que Hawbaker foi despedido do jornal em Anchorage por consumo de drogas. A minha investiga��o revela que se sabia que Patrick
Galloway consumia drogas recreativas. At� � data, n�o encontrei provas de que o seu pai tivesse procurado trabalho v�lido em Anchorage, ou noutro s�tio qualquer,
depois de partir de Lunacy, alegadamente para o procurar.
Ela lan�ou-lhe um breve olhar. - Nem toda a gente trabalha legalmente.
- Verdade. Parece que Hawbaker, cujo paradeiro durante a primeira e segunda semanas de Fevereiro desse ano ainda n�o foi poss�vel determinar, conheceu Patrick Galloway
e, juntos, decidiram escalar a face sul da Sem Nome. Sup�e-se que durante a subida, talvez sob a influ�ncia de drogas e cansa�o f�sico, Hawbaker assassinou o companheiro
e deixou o corpo na gruta gelada.
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- Tamb�m podemos supor que os porcos cor-de-rosa voam, - retorquiu Meg. - O meu pai podia partir Max em dois sem qualquer esfor�o.
- A superioridade f�sica n�o faria nada contra uma picareta, em especial se fosse um ataque surpresa. Nada na gruta indicou ind�cios de luta. Claro que vamos continuar
a estudar e a avaliar todas as provas, mas por vezes, Menina Galloway, o �bvio �-o por ser verdade.
- E por vezes a merda flutua. - Levantou-se. - As pessoas costumam dizer que o suic�dio � a sa�da dos cobardes. Talvez seja v�lido. Mas parece-me que � preciso muita
coragem e determina��o para apontar o cano de uma arma � cabe�a e premir o gatilho. De qualquer forma, n�o estou a ver Max a fazer isso. Qualquer que fosse a op��o,
seria extremista, e ele n�o era nada assim. O que ele era, sargento Coben, era normal.
- As pessoas normais fazem coisas impens�veis todos os dias. Lamento pelo seu pai, Menina Galloway, e dou-lhe a minha palavra que vamos continuar a trabalhar no
caso at� ficar conclu�do. Mas nesta altura, n�o tenho mais nada para lhe adiantar.
- Tem um minuto, Sargento? - Nate virou-se para Jacob e Meg. - Vemo-nos l� fora. - Fechou a porta atr�s deles. - Que mais � que tem? O que � que n�o lhe est� a contar?
- Tem alguma liga��o pessoal com Megan Galloway?
- Nesta altura, isso � imposs�vel de determinar e irrelevante. Toma l�, d� c�, Coben. Posso dizer-lhe que uma boa meia d�zia de pessoas que ainda vivem em Lunacy
podiam ter subido com Galloway naquele Inverno, pessoas que Max conhecia como amigos e vizinhos, e que podiam estar com ele no gabinete na noite em que morreu. A
conclus�o do m�dico-legista baseou-se em factos, mas ele n�o conhece a vila, as pessoas. N�o conhecia Max Hawbaker.
- E voc�, mal. - Coben estendeu a m�o. - Mas eu tenho provas que havia tr�s pessoas naquela montanha, na hora prov�vel da morte de Galloway. Provas que apenas dois
desses homens estiveram na gruta, provas que acredito terem sido escritas pela pr�pria m�o de Galloway.
Empurrou a pasta para Nate. - Ele mantinha um di�rio da subida. L� em cima estavam tr�s homens, Burke, e tenho a certeza absoluta que Hawbaker era um deles. A� est�
uma c�pia do di�rio que consta do processo. Vou pedir a um perito que verifique se � a letra de Galloway, comparada com uma amostra, mas assim � primeira vista,
diria que sim. Se quiser partilhar isto com a filha dele, fica ao seu crit�rio.
- Voc� n�o o faria.
- Muita gente tamb�m n�o o partilharia consigo. Tal como � dif�cil admitir que tem mais experi�ncia em homic�dios do que eu e muito
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mais jeito para lidar com as pessoas daquela vila. Lunacy � um bom nome, Burke, uma vez que temos pelo menos um lun�tico garantido debaixo do seu nariz.
Voou de regresso com Meg, a pasta guardada debaixo da parca. Depois de a ler, ia decidir se lhe contava. Decidir se contava a algu�m.
Uma vez que n�o podia negar a evid�ncia de se encontrar no ar, fez os poss�veis por apreciar a vista.
Neve. Mais neve. �gua congelada. Uma beleza de gelo com bolsas perigosas. Bastante parecido com a sua piloto.
- Coben � um idiota? - Perguntou ela, abruptamente.
- N�o diria tanto.
- Isso � porque os pol�cias se apoiam, ou � s� a tua opini�o objectiva?
- Um pouco de ambos, talvez. Seguir as provas n�o faz dele um idiota.
- Faz sim, se algum de voc�s acredita mesmo que Max atacou o meu pai com uma picareta. Esperava melhor de ti.
- Est�s a ver onde te levam as expectativas?
Ela levou o avi�o num mergulho profundo, � esquerda, que lhe p�s o est�mago a saltar pela boca. Antes que conseguisse protestar, ela guinou � direita.
- Se queres que vomite no cockpit, continua.
- Um pol�cia devia ter um est�mago mais forte. - Levou o nariz para baixo com tal velocidade que a �nica coisa que ele via era um mundo branco a girar na direc��o
deles, e o seu pr�prio corpo dilacerado nos destro�os retorcidos.
Os seus praguejos vis e violentos fizeram-na rir, ao voltar a subir rapidamente o avi�o.
- Andas com vontade de morrer? - Disparou ele.
- N�o. E tu?
- J� tive, mas passou-me. Faz esse truque outra vez, Galloway, e quando tivermos aterrado, dou-te uma tareia nesse traseiro tresloucado.
- N�o eras capaz. Tipos como tu n�o batem em mulheres.
- Oh, p�e-me � prova.
Ela sentiu-se tentada, louca o bastante para se sentir tentada. - Nunca deste uns tabefes na traidora da Rachel?
Ele olhou de relance. Havia nela uma impetuosidade, nos seus olhos, transl�cida no seu rosto. - Nunca sequer me passou pela cabe�a, mas todos os dias forjo territ�rio
novo.
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- Est�s danado comigo. Todo melindrado e magoado porque n�o te chamei pelo r�dio a toda a hora a mandar beijinhos.
- Limita-te a conduzir o avi�o. A minha boleia est� em tua casa. � l� que Jacob ficou de me ir buscar.
- N�o era preciso que l� fosses. N�o era preciso que viesses c� segurar-me na m�o.
- N�o me lembro de me ter oferecido para te segurar na m�o. - Aguardou um instante. - Rose e David tiveram uma menina. Tr�s quilos e seiscentos gramas. Chamaram-lhe
Willow.
- Oh? - Um pouco daquele temperamento selvagem esfumou-se do seu rosto. - Uma menina? Elas est�o bem?
- Fant�sticas. Peach disse que ela era linda, mas quando l� fui v�-la, parecia mais um peixinho irritado com cabelo preto.
- Porque � que est�s a fazer conversa comigo, quando est�s t�o irritado ao ponto de me arrancares os olhos?
- Prefiro manter as coisas neutras como a Su��a at� aterrares a porcaria do avi�o.
- � justo.
Assim que aterraram, ela pegou no equipamento e saiu. Colocando o que podia ao ombro, debru�ou-se para cumprimentar os c�es entusiasmados. - Pronto, os meus meninos.
Tiveram saudades? - Disparou um olhar breve a Nate. - � agora que me vais atacar?
- Se o fizesse, os c�es abriam-me a garganta.
- Sensato. �s mesmo um homem sensato.
- Nem sempre, - retorquiu ele entre dentes, enquanto a seguia at� casa.
L� dentro, ela atirou o equipamento de neve para o lado e foi logo para a lareira, empilhar troncos para acender. Tinha de tratar da manuten��o do avi�o. Mudar o
�leo e lev�-lo para o hangar, para que se mantivesse quente. Tapar as asas.
Mas n�o estava a sentir-se pr�tica e eficiente. N�o se sentia nada s�.
- Obrigada por teres tratado de Rock e Buli na minha aus�ncia.
- N�o custou nada. - Virou-se de costas, pousando a pasta com cuidado por baixo da parca. - Andaste atarefada?
- Sem parar. - Acendeu a lareira. - Os trabalhos caem-me no colo, e eu aceito-os. Agora tenho uma quantidade de notas gordas para depositar no banco.
- Ainda bem.
Ela deixou-se cair numa poltrona, encaixando uma perna sobre o seu bra�o. A personifica��o da insol�ncia. - Agora estou de volta, e � bom ver-te, amor. Se tiveres
tempo, podemos subir para uma sess�o de sexo de
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boas-vindas. - Ela sorriu ao come�ar a desabotoar a camisa. - Aposto que consigo p�r-te na disposi��o certa.
- Que imita��o de Charlene mais pobre, Meg.
Arrancou-lhe o sorriso da face. - Tudo bem, se n�o queres foder. Mas n�o precisas de me insultar.
- Parece que tens uma necessidade de me magoar, de me irritar. O que � que se passa?
- O problema � teu. - Levantou-se e come�ou a tentar passar por ele, mas ele agarrou-lhe no bra�o e puxou-a para tr�s.
- N�o, - disse ele e ignorou o rugido de aviso dos c�es. - Parece que � teu. Quero saber o que se passa.
- N�o sei! - A ansiedade no tom de voz transformou o rugido em rosnar. - Rock, Buli, calma. Calma, - disse ela mais meiga. - Amigo.
Ajoelhou-se e enganchou um bra�o � volta de cada um deles, afagando. - Bolas. Porque � que n�o desatas aos berros, ou te passas e me dizes que sou uma cabra fria
e sem cora��o? Porque � que n�o me deixas em paz?
- Porque � que nem te deste ao trabalho de me contactar? Porque � que andas � procura de discuss�o desde que me viste?
- Espera um minuto. - Levantou-se e estalou os dedos para que os c�es a seguissem at� � cozinha. Depois de agarrar nos Milk Bones, atirou um a cada can�deo. Depois,
recostou-se outra vez no balc�o e olhou para Nate.
Est� com muito melhor aspecto, pensava ela. Aumentara um pouco de peso no �ltimo m�s. Daquele que fica bem num homem, daquele que significava m�sculos e tonifica��o.
O seu cabelo tinha um ar selvagem e sensual, ostentando um certo comprimento. E aqueles olhos, calmos e terrivelmente tristes e irresist�veis, mantinham-se fixos
e pacientes nos seus.
- N�o gosto que ningu�m me pe�a satisfa��es. N�o estou habituada. Ergui esta casa, ergui o meu neg�cio, ergui a minha vida de uma certa forma que me apraz.
- Est�s preocupada que eu v� come�ar a pedir-te satisfa��es? Que eu ache que vais mudar os teus h�bitos por mim?
- N�o vais fazer isso?
- N�o sei. Talvez perceba uma diferen�a entre satisfa��es e carinho. Estava preocupado contigo. Por ti. E os teus c�es n�o foram os �nicos que sentiram a tua falta.
Quanto aos teus h�bitos, ainda tenho trabalho meu a fazer. Um dia de cada vez.
- Diz-me uma coisa. Sem tretas. Est�s a apaixonar-te por mim?
- Sinto que sim.
- Sentes o qu�?
- Como se algo viesse de dentro de mim. Que me aquece e tenta
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encontrar o seu ritmo. � uma sensa��o assustadora, - disse ele, indo ter com ela. - E boa. Boa e assustadora.
- N�o sei se quero. N�o sei do que preciso.
- Eu tamb�m n�o. Mas sei que estou cansado de me sentir cansado, e vazio, e de passar pela mudan�a s� para virar a p�gina. Sinto quando estou contigo, Meg. Sinto
e �s vezes isso d�i. Mas aceito.
Colocou as m�os em concha sobre o rosto dela. - Talvez devas tentar tamb�m, por agora. Aceita.
Ela fechou as m�os sobre os pulsos dele. - Talvez.
18.
Entrada de Di�rio - 19 de Fevereiro de 1988
Ele enlouqueceu. Passou-se dos carretos. Demasiado Dex, e sabe Deus mais o qu�. Demasiada altitude. N�o sei. Acho que o consegui acalmar. A tempestade instalou-se,
por isso abrig�mo-nos na gruta gelada. Que raio de s�tio. Parece uma esp�cie de castelo m�gico em miniatura com colunas de gelo, arcos e curvas abruptas. Quem me
dera que todos tiv�ssemos conseguido chegar at� aqui. Bem precisava de uma ajuda a trazer o velho Darth de regresso � terra.
Est� com uma fixa��o maluca de que o tentei matar. Tivemos problemas no rappel, e ele desatou a gritar comigo, a plenos pulm�es, que eu o queria matar. Atirou-se
a mim como um louco, e tive de o derrubar com toda a for�a. Mas consegui acalm�-lo. Est� mais calmo. Pediu desculpa e riu-se da hist�ria.
Vamos aproveitar para descansar, para reunirmos for�as. Estivemos a jogar a qual � a primeira coisa que vamos fazer quando voltarmos ao mundo real. Ele quer um bife;
eu quero uma mulher. Depois, ambos concord�mos que quer�amos as duas coisas.
Ele ainda est� ansioso, d� para perceber. Mas bolas, a montanha tem esse efeito. Temos de voltar para junto de Han, para come�armos a descer. Voltar para Lunacy.
O tempo est� a abrir, mas h� um ambiente no ar. Alguma coisa est� para acontecer. Est� na hora de sair desta montanha para fora.
No seu gabinete, com a porta fechada, Nate lia a �ltima entrada do di�rio de escalada de Patrick Galloway.
Demoraste mais dezasseis anos a sair da montanha, Pat, pensava ele. N�o h� d�vida que aconteceu alguma coisa.
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Tr�s subiram, matutava, e dois desceram. E dois mantiveram o sil�ncio durante dezasseis anos.
Mas naquela gruta s� estavam dois, Galloway e o seu assassino. Nate tinha mais certeza do que nunca de que o assassino n�o fora Max.
Porque teria o assassino deixado Max viver tanto tempo?
Se Han era Max, Max estava ferido, n�o com gravidade, mas o suficiente para dificultar a descida. Era o menos experiente e arrojado dos tr�s, se � que estava a ler
correctamente as entrelinhas do di�rio de Galloway.
Mas o assassino levara-o para baixo, deixara-o viver mais dezasseis anos.
E Max guardara o segredo.
Porqu�?
Ambi��o, chantagem, lealdade? Medo?
O piloto, concluiu Nate. Encontra o piloto e a hist�ria que ele tem para contar.
Fechou � chave na gaveta da secret�ria a c�pia do di�rio, juntamente com o livro do crime, e guardou a chave no bolso.
Quando saiu, encontrou Otto que acabava a patrulha do dia. - Ed Woolcott disse que algu�m arrombou o cadeado do armaz�m de pesca no gelo e fugiu com duas canas,
a sonda el�ctrica, uma garrafa de u�sque escoc�s de malte e andou a sujar o barrac�o com pinceladas de tinta.
Com o rosto cor-de-rosa do frio, Otto acorreu na direc��o do caf�. - Foram mi�dos, quase de certeza. J� lhe disse que ele � o �nico nas redondezas que fecha o barrac�o,
o que leva os mi�dos a quererem arromb�-lo.
- H� uma estimativa dos valores, tudo junto?
- Ele diz que � volta de oitocentos. S� a sonda StrikeMaster vale quatrocentos. - Descontentamento e irris�o cobriam-lhe o rosto. - O Ed � assim. Pode encontrar-se
uma boa sonda manual por quarenta, mas ele prefere tudo de primeira classe.
- Tem uma descri��o dos artigos?
- Tenho, tenho. Qualquer puto suficientemente est�pido para aparecer com uma cana de Ed com o nome dele gravado merece ser apanhado. U�sque escoc�s? J� devem t�-lo
emborcado at� cair para o lado. Talvez tenham feito um buraco no gelo algures com a sonda, foram pescar e beber. Espero que larguem o material por a� ou que tentem
voltar a lev�-lo para o barrac�o.
- Continua a ser arrombamento e roubo, por isso vamos seguir o procedimento.
- Pode crer que est� tudo no seguro, e por muito mais do que ele pagou pelo material. Sabe que ele falou com um advogado para processar
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Hawley por o ter obrigado a sair da estrada por volta do ano novo? Um advogado, por amor de Deus.
- Eu falo com ele.
- Boa sorte. - Otto sentou-se � secret�ria com o caf�, franzindo a testa para o computador. - Tenho de escrever o relat�rio.
- Vou sair, tenho de fazer o acompanhamento de uns assuntos. - Fez uma pausa. - Costuma fazer alpinismo?
- Para que � que haveria de querer subir ao raio de uma montanha? Consigo v�-las muito bem daqui.
- Mas dantes fazia.
- Tamb�m costumava dan�ar tango com mulheres f�ceis.
- A s�rio? - Divertido, Nate sentou-se no canto da secret�ria de Otto. - � um prato, Otto. Essas mulheres andavam de vestidos justos e saltos altos agulha?
O humor derrotou a rabugice. - Andavam.
- Com aquelas rachas sensuais na saia, de lado para que a perna deslizasse para fora como uma fatia de c�u, ao moverem-se?
O ar carrancudo de Otto perdeu a batalha com um sorriso. - Naquele tempo � que era.
- Aposto que sim. Nunca aprendi a dan�ar o tango, nem alpinismo. Talvez devesse.
- Fique-se pelo tango, Comandante. Tem mais probabilidades de sobreviver.
- Da forma como algumas pessoas falam do alpinismo, mais parece uma religi�o. Porque � que deixou de o fazer?
- Cansei-me do namoro entre os membros gelados e os ossos partidos. - Os seus olhos escureceram, ao descer o olhar para o caf�. - A �ltima vez que subi foi num resgate.
Um grupo de seis, uma avalanche caiu sobre eles. Encontr�mos dois. Os corpos. Nunca viu um homem apanhado por uma avalanche.
- N�o, nunca vi.
- � uma b�n��o. Faz no m�s que vem nove anos. Nunca mais voltei l� a cima. Nem voltarei.
- Chegou a subir com Galloway?
- Algumas vezes. Ele era um bom alpinista. Demasiado bom, para o parvalh�o que era.
- N�o gostava dele?
Otto come�ou a deslizar os dedos pelo teclado. - Se n�o gostasse de todos os parvalh�es que conhe�o, n�o restariam assim muitas pessoas. O tipo ficou parado nos
anos sessenta. Paz, amor e drogas. Era uma forma f�cil de se isolar, se quer saber.
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Nos anos sessenta, pensava Nate, Otto andara a suar numa selva em Nam. Aquela esp�cie de fric��o - soldado e hippy - podia explodir em menos de nada, quanto mais
numa escalada de Inverno.
- Eles falam de viver a vida na natureza e salvar as baleias, - prosseguiu Otto, enquanto martelava nas teclas, - mas passam a vida com o cu sentado a viver de subs�dios
do governo, de que est�o sempre a dizer mal. N�o tenho respeito nenhum por isso.
- Acho que n�o deviam ter muito em comum, ainda por cima com o seu passado militar.
- N�o �ramos amigos de copos. - Parou de escrever e ergueu o olhar para Nate. - Para qu� tantas perguntas?
- S� estou a tentar montar uma imagem completa do homem. - Ao levantar-se, perguntou, casualmente: - Quando ia l� a cima, quem � que era o piloto?
- Quase sempre Jacob. Ele estava sempre aqui.
- Achava que Jacob tamb�m costumava fazer alpinismo. Alguma vez subiu com ele?
- Claro. Ped�amos a Hank Fielding, talvez, de Talkeetna que nos levasse, ou o Dois Dedos, de Anchorage, o Stokey Loukes, se estivesse s�brio. - Encolheu os ombros.
- Havia muitos pilotos que levavam um grupo, desde que houvesse dinheiro para pagar. Se estiver mesmo decidido a subir, pe�a a Meg que o leve e arranje um guia profissional,
n�o um idiota qualquer.
- Farei isso, mas acho que me vou ficar pela vista do escrit�rio.
- � mais inteligente.
N�o gostava muito de interrogar o pr�prio adjunto, mas tomara notas da conversa que tiveram. N�o conseguia imaginar Otto a engolir speeds e a atacar um homem com
uma picareta. Mas tamb�m n�o o conseguia imaginar a dan�ar tango com uma mulher de vestido justo.
Em dezasseis anos, as pessoas mudavam muito.
Foi para A Estalagem e encontrou Charlene e Cissy a servirem o jantar antecipado � clientela. Jim Trinca-Espinhas atendia ao bar. E O Professor ocupava o seu banco,
a embalar um u�sque e a ler Trollope.
- Estou a recolher apostas para a Iditarod, - disse-lhe Jim. - Quer entrar?
Nate sentou-se no bar. - Qual � a sua prefer�ncia?
- Estou inclinado para um tipo novo, Triplehorn. � ale�te.
- � lindo, - comentou Cissy, ao passar com a lou�a recolhida.
- N�o importa se � ou n�o, Cissy.
- Para mim, sim. Sai um Moosehead e um vodka duplo com gelo.
- Aposta com valor sentimental neste canadiano, Tony Keeton.
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- Agora somos sentimentais com canadianos? - Perguntou Nate, enquanto Jim servia o vodka.
- Nah. Os c�es. Walt Notti � o criador dos c�es dele.
- Ent�o vinte, no canadiano.
- Cerveja?
- Caf�, obrigado, Jim. - Enquanto Jim e Cissy tratavam das bebidas e continuavam a discutir os corredores preferidos, Nate virou-se para o homem a seu lado. - Como
� que vai isso, John?
- N�o ando a dormir muito bem. Ainda. - John marcou a p�gina e pousou o livro. - N�o consigo tirar aquela imagem da cabe�a.
- � dif�cil. Conhecia Max muito bem. Escreveu alguns artigos para o jornal dele.
- Cr�ticas de livros mensais, os artigos soltos do costume. N�o recebia muito, mas gostava de o fazer. N�o sei se Carrie vai manter o jornal a funcionar. Espero
que sim.
- Algu�m me contou que Galloway escreveu alguns artigos para O Lun�tico. Nos velhos tempos.
- Ele escrevia bem. Se se tivesse dedicado, teria sido ainda muito melhor.
- Acho que isso � v�lido para tudo.
- Tinha muito talento em bruto, em v�rias �reas. - John olhou de relance por cima do ombro, na direc��o de Charlene. - Mas nunca se dedicou. Desperdi�ou tudo o que
tinha.
- Incluindo a mulher?
- Eu sou suspeito nesse assunto. Na minha opini�o, ele n�o se empenhou muito na rela��o, tal como fazia com tudo o resto. Tinha alguns cap�tulos de v�rios romances,
dezenas de can��es a meio, uma quantidade de projectos de trabalho em madeira abandonados. O homem era bom com as m�os, tinha uma mente criativa, mas nenhuma disciplina
ou ambi��o.
Nate ponderava as possibilidades. Tr�s homens, unidos pelo local, pela ocupa��o - a escrita - e o alpinismo. E dois deles apaixonados pela mesma mulher.
- Talvez com a oportunidade certa ele tivesse dado a volta �s coisas. John fez sinal para que Jim lhe voltasse a encher o copo. - Talvez.
- Leu alguma coisa dele?
- Li. Costum�vamos sentar-nos � roda de uma ou duas cervejas, ou uma outra droga leve qualquer, - acrescentou John meio a sorrir. - Discut�amos filosofias e pol�tica,
escrita e a condi��o humana. Jovens intelectuais. - John ergueu o copo num brinde. - Que n�o iam a lado absolutamente nenhum.
- Fez alpinismo com ele?
240
- Ah, aventuras. Jovens intelectuais n�o v�m para o Alasca se n�o for � procura delas. Adorei esses tempos e n�o os trocava por um Pulitzer. - Sorrindo como um homem
que pensa em gl�rias passadas, bebeu o u�sque acabado de servir.
- Voc�s eram amigos?
- Sim. �ramos amigos, se pensarmos bem, a um n�vel intelectual. Eu cobi�ava-lhe a mulher; isso n�o era segredo. Acho que o divertia e o fazia sentir um pouco superior
a mim. Eu era o instru�do. Ele deitara fora a hip�tese de ter estudos superiores, mas vejam s� o que ele tinha.
John matutava a olhar para a bebida. - Imagino que ainda se esteja a rir, por eu continuar a cobi�ar a mulher dele.
Nate deixou a ideia assentar alguns instantes, bebendo caf�. - Voc�s dois subiam com algum grupo, ou sozinhos?
- Hmm. - John pestanejava, como um homem que acordava de um sonho. Recorda��es, pensava Nate, era apenas mais uma esp�cie de sonho. Ou pesadelo. - Grupos. Existe
camaradagem na insanidade. Do que me lembro melhor � de uma subida de Ver�o a Denali. Grupos e solit�rios a abrir caminho pelo monstro acima como formigas num bolo
gigante. O acampamento base era como uma pequena cidade independente, e uma pequena festa bem louca.
- Voc� e Pat?
- Mmm, juntamente com Jacob, Otto, Deb e Harry, Ed, Bing, Max, os Hopp, Sam Beaver, que morreu h� dois anos com uma embolia pulmonar. Ah, vejamos, Mackie Pai tamb�m
l� estava, se bem me lembro. Ele e Bing desataram � pancada por um motivo qualquer, e Hopp - o falecido - � que os separou. Hawley estava l�, mas caiu de b�bedo
e partiu a cabe�a. N�o o deix�mos subir. E tamb�m a Menina Jacobson, fot�grafa freelancer com quem tive um romance curto mas t�rrido, antes de ela voltar para Portland
e casar com um canalizador.
Ele sorriu com a hist�ria. - Oh sim, Missy, dos enormes olhos castanhos e m�os �geis. A malta de Lunacy reuniu um grupo como se fossem umas f�rias. At� lev�mos uma
bandeira pequenina para colocarmos no cume, para a reportagem fotogr�fica do jornal. Mas nenhum de n�s conseguiu chegar ao topo.
- Ningu�m?
- N�o, dessa vez n�o. Pat conseguiu mais tarde, se bem me lembro, mas naquela subida tivemos uma imensa mar� de azar. Ainda assim, naquela noite no acampamento base,
est�vamos cheios de expectativas e boa vontade. Cant�mos, curtimos, dan��mos debaixo daqueles raios de Sol maravilhosos e infinitos. Sentimo-nos mais vivos do que
nunca.
- O que aconteceu?
241
- Harry ficou doente. Na altura n�o sabia, mas de manh� come�ou a ficar com febre. Gripe. Ele disse que estava bem, e ningu�m quis discutir. N�o aguentou cinco horas.
Deb e Hopp levaram-no para baixo. Sam caiu, partiu um bra�o. Missy estava a ficar doente. Outro grupo que ia a descer levou-a de regresso � base. O tempo mudou e
os que restavam armaram as tendas e abrigaram-se, a rezar para que passasse. N�o passou; piorou ainda mais. Ed adoeceu e depois eu tamb�m. Foi uma coisa depois da
outra, at� que tivemos de cancelar e voltar. Que final miser�vel para as nossas feriazinhas de vilarejo.
- Quem � que vos trouxe de volta?
- Perd�o?
- Tinham um piloto?
- Oh. Lembro-me de me enfiarem dentro de um avi�o, e toda a gente estava doente, danada ou mal-humorada. N�o me lembro do piloto. Devia ser um amigo de Jacob. Eu
estava doente como um c�o, disso � que me lembro bem. A dada altura at� escrevi sobre isso. Tentei dar uma pitada de humor num artigo para O Lun�tico.
Bebeu o resto do u�sque. - Ainda tenho pena de n�o termos hasteado a bandeira.
Nate deixou cair o assunto e foi ter com Charlene. - Pode fazer uma pausa?
- Claro. Assim que Rose se conseguir p�r de p�.
- Cinco minutos. Ainda n�o est� assim tanta gente.
Ela guardou o bloco dos pedidos dentro do bolso. - Cinco. Se n�o dermos conta do movimento, as pessoas v�o come�ar a ir � Casa Italiana. N�o posso perder os meus
clientes habituais.
Cortou caminho pelo restaurante at� � recep��o vazia. O som dos saltos altos p�s Nate a pensar no tango, imaginando que esp�cie de vaidade se elevaria � necessidade
que uma mulher tinha de conforto, quando se empoleirava na ponta dos p�s durante horas.
- Segundo sabe, Patrick Galloway ia para Anchorage � procura de trabalho.
- J� fal�mos sobre isso.
- Fa�a-me a vontade. Se ele foi para l�, e sentiu uma vontade irresist�vel de subir a montanha, quem seria a pessoa mais prov�vel de contratar para o levar de avi�o
ao Glaciar do Sol?
- Como raio � que eu hei-de saber? Ele n�o devia ir fazer alpinismo, devia ir � procura de trabalho.
- Viveu com ele quase catorze anos, Charlene. Conhecia-o.
- Se n�o foi Jacob, e ele at� podia estar em Anchorage, pode muito bem ter sido o Dois Dedos ou Stokey. A n�o ser que essa vontade tivesse
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surgido sem nenhum deles por perto, ent�o � prov�vel que tenha contratado quem estivesse mais � m�o. Ou mais ainda ter trocado alguma coisa pelo voo. N�o tinha muito
dinheiro para gastar. S� lhe dei cem do que tinha para as despesas da casa. Al�m disso, sabia que o ia gastar mal.
- Sabe onde posso encontrar algum desses pilotos?
- Pergunte a Jacob ou Meg. Eles movem-se nesse mundo; eu n�o. Devia ter-me contado que j� o tinham trazido para baixo, Nate. Devia ter-me contado e devia ter-me
levado a v�-lo.
- N�o adiantava nada faz�-la passar por aquilo. N�o, - disse ele, antes que ela o contrariasse. - N�o adiantava.
Acomodou-a numa cadeira e sentou-se a seu lado. - Agora, ou�a-me. N�o a vai ajudar em nada v�-lo daquela maneira. N�o o ajuda a ele tamb�m.
- A Meg viu-o.
- E ficou destro�ada. Eu estava l�; sei o que digo. Quer fazer alguma coisa por ele, por si? Quer fechar este cap�tulo? Arranje tempo para ir visitar a sua filha.
Seja m�e dela, Charlene. D�-lhe algum consolo.
- Ela n�o quer que a console. N�o quer nada de mim.
- Talvez n�o. Mas se lho oferecer, pode ajudar. - Levantou-se. - Vou sair agora para a ir ver. Quer que lhe diga alguma coisa?
- Diga-lhe que preciso aqui de uma ajuda nos pr�ximos dias, a n�o ser que ela tenha algo mais importante para fazer.
- Ok.
Estava escuro como breu quando ele voltou para casa de Meg. Podia ver que ela estava mais calma, est�vel e descansada. A posi��o das almofadas e da manta no sof�
revelavam que ela dormitara diante da lareira, num dado momento.
Ele encontrara a melhor forma de resolver as coisas e dera-lhe um ramo de margaridas e cris�ntemos que comprara na Loja da Esquina. N�o estavam muito frescas, mas
eram flores.
- Para que � isto?
- Sabes, percebi que and�vamos a caminhar no sentido inverso, pelo prisma tradicional da coisa. Levei-te para a cama, ou tu � que me levaste, por isso n�o temos
mais nenhuma tens�o. Agora est� na hora do romance.
- N�o me digas? - Cheirou-as. Talvez fosse um clich�, mas tinha um fraco por flores, e por homens que se lembravam de lhas oferecer. - Ent�o o passo seguinte ser�
um engate no bar?
- Estava mais a pensar em sairmos, para jantar, ou assim. Mas podes engatar-me num bar. Tamb�m resulta para mim. Entretanto, gostava
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que colocasses umas roupas na mala e viesses passar a noite comigo n'A Estalagem.
- Oh, para continuarmos a fazer sexo durante este per�odo de romance?
- Podes arranjar um quarto s� para ti, mas eu prefiro o sexo. Tamb�m podes trazer as flores. E os c�es.
- E porque deixaria o conforto da minha casa para fazer sexo contigo num quarto de hotel? - Rodava as flores, olhando para ele atrav�s delas. - Oh, pelo factor emo��o
na nossa rela��o invertida. � bastante est�pido para me agradar, Burke, mas mais valia ficarmos aqui a fingir que estamos num quarto de motel barato. At� podemos
ver se est� a dar algum filme porno na TV cabo.
- Parece-me fant�stico, mas quero que venhas comigo. Algu�m andou a rodear o bosque ali ao lado, na outra noite.
- Do que � que est�s a falar? Ele contou-lhe do rasto.
- Porque � que n�o me contaste logo, quando ainda havia luz, para ir l� dar uma vista de olhos? - Lan�ou as flores sobre a mesa e esbo�ou um movimento para ir buscar
a parca.
- Espera a�. Nevou uns bons quinze cent�metros. N�o vais conseguir ver nada. De qualquer forma, Otto e Peter j� espezinharam tudo. N�o te contei antes porque j�
tinhas muito em que pensar. Assim dormiste e sossegaste um pouco. P�e na mala o que precisares, Meg.
- N�o vou permitir que me arrastes de casa s� porque algu�m andou a passear no bosque. Mesmo se quiser ler uma p�gina do teu livro de paran�ias e concluir que ele,
ou ela, me andava a espiar ou a preparar algum plano sombrio, n�o admito que me arrastes. Posso...
- Tratar de ti sozinha. Sim, eu sei.
- Achas que n�o? - Girou nos calcanhares e marchou para a cozinha.
Quando ele apareceu atr�s dela, viu que se preparava para tirar uma espingarda da despensa.
- Meg.
- Cala-te. - Verificou a c�mara. Para seu espanto, reparou que estava totalmente carregada.
- Sabes quantos acidentes acontecem, s� porque as pessoas t�m armas carregadas dentro de casa?
- N�o disparo sobre nada por acidente. Vem c� fora. Com um empurr�o, abriu a porta.
Estava escuro e frio, e ele tinha � sua frente uma mulher irritada de espingarda carregada nas m�os. - Porque � que n�o voltamos para dentro e...
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- Aquele ramo, �s doze horas, a dois metros de altura, doze de dist�ncia.
- Meg.
Encaixou a espingarda no ombro, apontou e disparou. O estoiro ressoou na cabe�a dele. O ramo explodiu, doze cent�metros pelo ar.
- Ok, sabes disparar uma espingarda. Leva l� a medalha de ouro.
Entra.
Disparou outra vez, e os doze cent�metros do ramo saltaram na neve como um coelho.
A respira��o dela sa�a em vapor, ao disparar novamente, obliterando o que restava.
Depois, pegou nos cartuchos gastos e voltou para dentro, para guardar a espingarda no seu lugar.
- Ganhaste pontos pela pontaria, - comentou Nate. - E apesar de n�o ter inten��es de chegar a esse ponto, deixa-me frisar que rebentar com o ramo de uma �rvore n�o
est� nem pr�ximo de enfiar uma bala numa coisa de carne e osso.
- N�o sou nenhuma das tuas mulheres delicadas dos Lower 48. J� abati alces, b�falos, caribus, ursos...
- Alguma vez mataste um ser humano? N�o � a mesma coisa, Meg. Acredita, n�o �. N�o estou a dizer que n�o �s inteligente, ou capaz ou forte. Mas estou a pedir-te
para vires comigo esta noite. Se n�o vieres, fico eu aqui. Mas a tua m�e precisa de ajuda n'A Estalagem, agora que Rose n�o est�. Anda cheia de trabalho e est� em
baixo por causa do teu pai.
- Eu e Charlene...
- Eu tamb�m n�o consigo relacionar-me com a minha. A minha m�e. Ela mal fala comigo, e a minha irm� fica longe de n�s, porque s� quer ter uma vida normal e sossegada.
N�o a posso culpar.
- N�o sabia que tinhas uma irm�.
- � dois anos mais velha. Agora vive em Kentucky. N�o a vejo h�... acho que h� cinco anos. Os Burke n�o s�o muito bons em reuni�es de fam�lia.
- Ela n�o te foi ver quando foste baleado?
- Telefonou. N�o t�nhamos muito para dizer um ao outro. Quando mataram Jack e eu fui alvejado, a minha m�e foi ver-me ao hospital. Pensei, tanto quanto me era poss�vel
faz�-lo, que talvez, talvez, algo adviesse de todo aquele horror. Pensei que �amos encontrar um caminho de volta. Mas ela perguntou-me se eu ia parar. Se me ia demitir
da pol�cia antes que me fosse visitar � campa, em vez de � cama do hospital. Eu disse-lhe que n�o, que aquilo era tudo o que me restava. Foi-se embora sem dizer
uma palavra. Desde ent�o, acho que n�o trocamos mais do que meia d�zia de palavras. "
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A profiss�o custou-me o meu melhor amigo, a mulher e a minha fam�lia.
- N�o custou nada. - Ela n�o podia deixar de lhe pegar na m�o, levando-a � face. Acariciando-a. - Sabes que n�o.
- Depende de como vejas a situa��o. Mas n�o abdiquei. Estou aqui porque, mesmo no fundo, era a �nica coisa que ainda tinha. Talvez tenha sido o que me impediu de
ir at� ao fundo do po�o, n�o sei. Mas sei que tens uma hip�tese de fazeres as pazes com a tua m�e. Devias aproveit�-la.
- Ela podia ter pedido que a fosse l� ajudar.
- E pediu. Eu sou s� o mensageiro.
Com um suspiro, ela deu meia-volta e pontapeou ao de leve o arm�rio por baixo do lava-lou�a. - Vou tentar arranjar tempo, mas n�o aches que ficamos felizes para
sempre por causa disto, Nate.
- De qualquer forma, para sempre � tempo de mais para eu me preocupar.
Ele deixou-a n'A Estalagem, e depois voltou para a esquadra.
Passou algum tempo a tomar notas das conversas com Otto e John, e depois come�ou a elaborar uma pesquisa dos nomes dos pilotos que Otto lhe facultara.
N�o encontrou nada no cadastro de Stokey Loukes, apenas umas m�seras infrac��es de tr�nsito. Agora vivia em Fairbanks e trabalhava como piloto para uma empresa de
turismo chamada Alaska Wild. A sua p�gina na Web prometia mostrar aos clientes o verdadeiro Alasca, bem como ajud�-los a encontrar ca�a, a fisgar peixes enormes
e a capturar imagens da Great Alone, tudo a v�rios pre�os de pacotes. Disponibilizavam pre�os especiais para grupos.
Fielding mudara-se para a Austr�lia em 93 e morrera de causas naturais quatro anos depois.
Thomas Kijinski, tamb�m conhecido como Dois Dedos, j� era um caso diferente. Nate encontrou v�rias acusa��es de posse de subst�ncias ilegais, inten��o de comercializa��o,
desacatos e embriaguez, pequenos furtos. Fora expulso do Canad� e a sua licen�a de piloto havia sido suspensa por duas vezes.
A 8 de Mar�o de 1988 o corpo dele foi encontrado dentro de um caixote do lixo nas docas de Anchorage, apunhalado v�rias vezes. A carteira e o rel�gio haviam sido
roubados. Conclus�o: assalto. O perpetrador, ou perpetradores, nunca foram identificados.
Se quis�ssemos ver a situa��o por outro prisma, pensava Nate ao imprimir as informa��es, perceb�amos uma limpeza clara em vez de um
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assalto. O piloto leva tr�s, regressa com dois. Algumas semanas depois, o piloto � apunhalado e largado no lixo.
Obriga um homem a parar para pensar.
Com o sossego que se abatera na esquadra, Nate destapou o quadro do caso. Fez mais caf� e abriu uma lata de pasta de presunto que estava na despensa para fazer uma
esp�cie de sandu�che.
Depois, sentou-se � secret�ria a estudar o quadro, a ler as notas, a ler a �ltima entrada do di�rio de Patrick Galloway.
E passou as altas horas da noite a pensar.
19.
N�o lhe contou do di�rio. Quando uma mulher terminava o dia cansada e irritadi�a, n�o parecia muito sensato dar-lhe mais um motivo de preocupa��es.
Tinha de dar pontos a Meg por arrega�ar as mangas e aparecer n'A Estalagem, e pontos extra por rolar da cama na manh� seguinte e servir o pequeno-almo�o � clientela.
Especialmente sabendo que a tens�o entre ela e Charlene era t�o espessa que se podia cortar � faca e fritar juntamente com o bacon.
Ainda assim, ao escolher uma mesa, ela aproximou-se, de cafeteira na m�o. - Ol�, eu sou a Meg, e vou servi-lo esta manh�. Como gostava de receber uma gorjeta bem
boa, vou esperar at� voc� acabar de comer para enfiar esta cafeteira na cabe�a de Charlene.
- Agrade�o. Quanto tempo � que falta para Rose regressar?
- Mais uma ou duas semanas, e depois Charlene vai pedir-lhe que organize o seu pr�prio hor�rio at� se sentir bem para trabalhar a tempo inteiro.
- Tens de reconhecer que � um gesto simp�tico.
- Oh, ela � sempre simp�tica com Rose. - Disparou um olhar breve e amargo por cima do ombro at� Charlene. - Ela adora-a. � a mim que ela n�o suporta. O que � que
vai ser, bonit�o?
- Se eu disser que voc�s duas devem andar � procura da mesma coisa, de formas diferentes, tamb�m me desfazes a cafeteira na cabe�a?
- Talvez.
- Ent�o, quero as papas de aveia.
- Comes papas de aveia? - Enrugou o nariz curvo sensual. - Sem que ningu�m te encoste uma faca ao pesco�o?
- Enche que se farta.
- Sim, durante semanas.
247
Encolhendo os ombros, ela afastou-se para aceitar mais pedidos, e encher as canecas de caf�.
Ele gostava de a ver andar. R�pida, mas n�o apressada, sensual, mas n�o �bvia. Vestia uma camisa de flanela ub�qua, aberta sobre uma blusa t�rmica branca. Um pendente
de prata balou�ava ligeiramente de um fio entre os seios.
Deitara maquilhagem no rosto - ele sabia porque a havia observado, e deitara era o termo mais correcto. Toques de cor r�pidos, eficazes, distra�dos e breves nas
faces, sombras nos olhos, e uma passagem ausente de r�mel naquelas pestanas longas e negras.
E quando um homem reparava na forma como uma mulher aplicava o r�mel, pensava Nate, era porque estava caidinho.
Charlene apareceu com um pedido; Meg regressou com o bloco de notas. N�o deram uma pela outra, excepto pelo aumento s�bito da temperatura.
Ele pegou no caf� e tirou o bloco de notas para usar como escudo, ao ver que Charlene caminhava na sua direc��o. At� um homem caidinho tinha discernimento para se
poupar, mantendo-se longe de duas mulheres em rota de colis�o.
- Quer que lhe encha a caneca? Ela recebeu o seu pedido? N�o sei porque � que n�o consegue ser mais agrad�vel com os clientes.
- N�o, obrigado. Sim, recebeu. E ela foi agrad�vel.
- Consigo, talvez, porque a anda a comer.
- Charlene. - Apanhou os relinchos abafados da mesa onde Hans e Dexter se sentavam habitualmente. - C�us.
- Bom, n�o � nenhum segredo, pois n�o?
- Agora j� n�o, - murmurou ele.
- Ela passou a noite no seu quarto, n�o foi?
Ele pousou o caf�. - Se vir algum inconveniente, posso levar as minhas coisas para casa dela.
- Porque � que haveria algum inconveniente? - Apesar de ele lhe ter dito que n�o, ela encheu a caneca de caf� num gesto autom�tico. - Porque � que alguma coisa seria
inconveniente para mim?
Para seu absoluto terror, os olhos dela encheram-se de l�grimas. Antes que ele pudesse pensar numa forma de lidar com aquilo, ela saiu da sala apressada, com o caf�
a balou�ar na cafeteira.
- Mulheres, - comentou Bing na mesa ao lado da dele. - S� d�o trabalho.
Nate virou-se. Bing remexia num prato de ovos, salsicha e batatas fritas. Tinha estampado no rosto um sorriso matreiro, e se Nate n�o se enganava, uma centelha de
solidariedade no olhar.
248
- Alguma vez se casou, Bing?
- Uma. N�o durou.
- N�o imagino porqu�.
- Ainda pensei voltar a faz�-lo. Talvez arranje uma daquelas mulheres russas por encomenda, como o Johnny Trivani.
- Ele vai avante com essa hist�ria?
- Vai, pois. As �ltimas not�cias que tenho dizem que j� reduziu para duas. Pensei em ver como � que corre com ele, e depois trato do assunto.
- Uh-huh. - Uma vez que estavam envolvidos numa esp�cie de conversa, Nate decidiu sondar. - Costuma fazer alpinismo, Bing?
- Dantes fazia. N�o gosto muito. Quando tenho tempo livre, prefiro ir ca�ar. Anda � procura de um passatempo?
- Talvez. Os dias est�o a ficar mais compridos.
- Voc� tem a cidade estampada por todo o lado, e uma constitui��o magra. O meu conselho, Comandante, � que se fique pela vila. Aprenda a tricotar, ou coisa do g�nero.
- Sempre quis aprender macram�. - Perante o olhar vazio de Bing, Nate apenas sorriu. - Porque � que n�o tem um avi�o, Bing? Um tipo como voc�, que gosta de independ�ncia,
percebe de m�quinas. Parecia-me natural.
- D� muito trabalho. Se tenho de trabalhar, que seja em terra firme. Al�m disso, � preciso ser meio doido para se ser piloto.
- Foi o que ouvi dizer. Algu�m me falou de um piloto, tem um nome engra�ado. Seis Dedos qualquer coisa.
- Deve ser o Dois Dedos. Perdeu tr�s num p� por causa do frio, ou uma merda assim. Esse era mesmo maluco. J� morreu.
- A s�rio? Despenhou-se?
- Nah. Apanhou de mais numa zaragata. Ou n�o... - Bing franzia o sobrolho. - Foi apunhalado. Foi um crime na cidade. S� assim se aprende a sobreviver no meio de
tanta gente.
- Verdade. Alguma vez subiu com ele?
- S� uma. Grande maluco. Levou-nos em grupo ao mato para ca�ar caribu. S� percebi que estava mais aluado que a pr�pria Lua quando quase nos matou. Deixei-lhe um
olho negro, por causa disso, - comentou Bing com regozijo. - O grande maluco.
Nate ia retorquir, mas Meg apareceu vinda da cozinha - e a porta da rua abriu-se.
- Comandante Nate! - Jesse entrou a correr, os passos � frente de David. - Est� aqui.
- Tu tamb�m. - Nate passou o dedo pelo nariz do rapazinho. - David. Como est� a Rose, e a beb�?
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- Bem. Mesmo bem. Demos-lhe algum sossego, viemos tomar um pequeno-almo�o de homens.
- Podemos sentar-nos ao p� de si? - Perguntou Jesse. - � que somos todos homens.
- Claro que sim.
- E os mais lindos de Lunacy. - Meg pousou as papas, um prato com uma torrada de aveia e uma tigela com fruta variada diante de Nate. - J� come�aste a conduzir,
Jesse?
Ele riu-se e saltou para o banco corrido ao lado de Nate. - N�o. - Balou�ava-se. - Posso guiar o teu avi�o?
- Quando os teus p�s chegarem aos pedais. Caf�, David?
- Obrigado. Tem a certeza que n�o se importa? - Perguntou a Nate.
- Claro que n�o. J� sentia falta do meu companheiro habitual de pequeno-almo�o. Que tal a sensa��o de ser o irm�o mais velho?
- N�o sei. Ela chora. Muito alto. E depois dorme. Muito. Mas segurou-me no dedo. E chupa na maminha da mam� para beber leite.
- A s�rio, - foi a �nica coisa que Nate conseguiu dizer.
- Queres que te v� buscar um copo de leite? - Meg servia caf� a David.
- Rose ouviu dizer que estavas a substitu�-la. - David adicionou a��car ao caf�. - Queria que soubesses que te agradece imenso. Todos n�s.
- N�o custa nada. - Meg ergueu o olhar quando Charlene voltou para a sala. - Vou buscar o leite, enquanto decides o que queres comer.
Nate deixou a carrinha para Meg e foi a p� para a esquadra. A luz do Sol estava fraca, mas era luz. As montanhas na bruma, envoltas em nuvens que ele j� sabia serem
portadoras de neve. Mas o vento agreste e o frio cortante haviam abrandado. A caminhada aquecera-lhe os m�sculos, aclarando-lhe as ideias.
Passou por rostos familiares, trocou cumprimentos da forma ausente comum de quem se v� quase todos os dias.
E pensou com alguma surpresa que estava a construir um lugar para si. N�o s� uma escapat�ria, um ref�gio ou um porto de abrigo, mas um lugar.
N�o se conseguia lembrar da �ltima vez que pensara em partir ou apenas vaguear at� outra cidade, outro trabalho. H� dias que n�o precisava de muito esfor�o para
se levantar da cama de manh�, ou que se sentara no quarto �s escuras durante horas, com medo de encarar o sono e dos pesadelos que o assombravam.
O peso poderia ainda voltar, � sua cabe�a, aos ombros, �s entranhas, mas n�o era t�o brutal, nem t�o frequente.
250
Voltou a contemplar as montanhas e soube que tinha uma d�vida para com Patrick Galloway. Devia-lhe o suficiente por ter quebrado a escurid�o, portanto, n�o podia
nem ia desistir de tentar fazer-lhe justi�a.
Estacou ao ver Hopp parar no todo-o-terreno. Ela desceu a janela do carro. - Vou agora ver Rose e a beb�.
- D�-lhe cumprimentos meus.
- Tamb�m devia ir visit�-la. Entretanto, s� duas coisas. Os federais v�o provocar uma avalanche controlada depois de amanh�, por isso a estrada de liga��o a Anchorage
vai estar fechada.
- Como disse?
- Os federais provocam avalanches de tempos a tempos, para limpar a montanha. T�m uma agendada para depois de amanh� �s dez da manh�. Peach acabou de receber a notifica��o
e disse-me quando passei por l�. Vai ter de emitir um comunicado.
- Eu trato disso.
- E anda um raio de um alce enorme a vaguear pelo p�tio da escola, e quando os mi�dos decidiram desatar a correr atr�s dele, ele esbarrou nalguns carros estacionados,
e depois correu atr�s deles. Agora os mi�dos j� est�o em seguran�a, mas aquele alce est� furioso. Est�-se a rir de qu�? - Indagou ela. - Alguma vez viu um alce furioso?
- N�o, senhora, mas imagino que vou ver.
- Se n�o conseguir tir�-lo da cidade, ter� de o abater. - Ela acenou ao ver que ele deixara de sorrir. - Algu�m ainda se vai magoar.
- Eu trato disso.
Acelerou o passo. Raios o partissem se ia matar algum alce idiota, ainda por cima no terreno da escola. Talvez isso o rotulasse de Forasteiro, mas era assim mesmo.
Entrou na esquadra e viu a sua equipa, na companhia de Ed Woolcott. A cara de Otto de um vermelho raivoso, e o seu nariz ainda quase tocava o de Ed.
Avalanches, um alce furioso, um adjunto furioso, um banqueiro furioso. Que manh� bem passada.
- J� n�o era sem tempo, - come�ou Ed. - Preciso de falar consigo, Comandante. No seu gabinete.
- Vai ter de esperar. Peach, envie as informa��es sobre a avalanche programada para a KLUN. Quero que a anunciem a cada meia hora ao longo do dia. E arranje uns
folhetos, arranje forma de os distribuir pela vila.
Peter, preciso que v� para a rua, a informar pessoalmente todos os residentes a sul de Wolverine Cut do que vai acontecer e que ficar�o isolados at� a estrada ser
desobstru�da.
- Sim, senhor.
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- Comandante Burke.
- S� um minuto, - respondeu a Ed. - Otto, temos um alce furioso ao p� da escola. J� causou danos em ve�culos. - Enquanto falava, dirigiu-se ao arm�rio do armamento.
- Quero que venha comigo, para vermos se o conseguimos tirar de l�.
Abriu o arm�rio, escolheu uma ca�adeira com a esperan�a sincera de n�o ser preciso us�-la.
- Estou h� dez minutos � espera, - queixou-se Ed. - Os seus adjuntos s�o capazes de resolver uma simples ocorr�ncia com animais selvagens.
- Pode esperar aqui, sen�o posso passar pelo banco assim que a situa��o fique controlada.
- Como vice-presidente...
- Est� a ser um chato do cara�as, - concluiu Nate. - Otto, precisamos do seu carro. O meu est� n'A Estalagem. Vamos.
- Parecia uma truta fora de �gua, com falta de ar, - disse Otto, assim que sa�ram. - Ele vai querer o seu escalpe por isto, Nate, � t�o certo quanto Deus ter feito
ma��zinhas verdes. Ed n�o gosta que o passem para tr�s.
- � arrogante. A Presidente disse-me para tratar do problema do alce; vou tratar do problema do alce. - Entrou no carro de Otto. - N�o o vamos matar.
- Para que � a ca�adeira?
- Tenciono intimid�-lo.
As escolas da vila constitu�am um trio de pequenos edif�cios baixos com um belo aglomerado de �rvores de um lado e um recreio rectangular do outro. Sabia que os
mi�dos mais novos podiam ir brincar para o recreio duas vezes por dia nos intervalos, se o tempo permitisse.
Como a maior parte das crian�as nascera ali, era preciso um tempo muito agreste para cancelar o recreio.
Os do liceu gostavam de ficar pelo arvoredo, talvez para fumar um cigarro ou fazer disparates, antes e depois das aulas.
Havia o mastro da bandeira, e nesta altura do dia deveriam estar hasteadas a dos EUA e a do Alasca. Em vez disso, estavam a pouco mais de meia haste e a esvoa�ar
morti�as ao vento desinteressado.
- Os mi�dos deviam estar a hastear as bandeiras quando o viram, - murmurou Nate. - Decidiram correr atr�s dele.
- Assim s� o irritaram ainda mais.
Nate olhou de relance para os dois carros amolgados no pequeno parque de estacionamento. - Parece que sim.
Agora conseguia ver o alce, na orla do arvoredo, a esfregar as hastes
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num tronco. Tamb�m avistou um pequeno rasto de sangue. Como n�o havia relato de feridos, presumiu que seria sangue do alce.
- N�o parece que esteja a causar problemas agora.
- Talvez se tenha cortado quando foi contra os carros, por isso n�o deve estar de bom humor. Se decidir ficar por aqui, vai causar problemas, especialmente se algum
puto idiota fugir a um professor e decidir voltar a persegui-lo, ou correr para ir buscar uma arma a casa e disparar contra ele.
- Bela merda. Aproxime-se o mais que puder, e talvez se ponha em movimento.
- O mais prov�vel � atacar.
- N�o vou matar um alce que s� se est� a esfregar numa �rvore, Otto.
- Ent�o ser� outra pessoa a faz�-lo, se acabar por se aproximar da vila. Carne de alce d� uma bela refei��o.
- N�o serei eu, e n�o ser� dentro dos limites da vila, raios me partam.
Viu o alce virar-se enquanto se abeiravam e, para sua consterna��o, constatou um olhar mais feroz do que tolo naqueles olhos escuros. - Bolas. Merda, chi�a, porra.
Toque a buzina.
Os alces n�o eram lentos. Onde � que tinha ido buscar essa ideia? Galopava na direc��o deles, aparentemente mais desafiado pelo som do motor e da buzina do que intimidado.
Ainda a praguejar, Nate pendurou-se fora da janela, apontou a arma para o c�u e disparou. O alce prosseguiu, aliando os seus pr�prios urros � confus�o; Otto guinou
para evitar a colis�o.
Carregado de adrenalina, Nate disparou outra vez para o ar.
- Mate o cabr�o, - exigiu Otto, ao girar o volante e quase projectando Nate pela janela fora.
- N�o o vou matar. - Recarregando a arma, Nate disparou para o ch�o coberto de neve, um metro � frente do alce.
Desta vez foi o alce que deu um pulo atr�s e, num trote desconjuntado, avan�ou na direc��o das �rvores.
Nate disparou, mais duas vezes, para que n�o parasse.
Em seguida, deixou-se cair no banco e soltou dois imensos suspiros. Atr�s deles ouviam-se os clamores, os gritos e risos dos mi�dos que sa�am a correr pelas portas
da escola.
- Voc� � doido. - Otto tirou o bon� para esfregar com a m�o o cabelo rente. - S� pode ser doido. Sei que alvejou um homem em Baltimore e que o mandou desta para
melhor. E n�o consegue enfiar um bal�zio num alce?
Nate respirou fundo outra vez e tirou da sua mente a imagem daquele
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beco. - O alce n�o estava armado. Vamos, Otto. Tenho de ir tratar do vice-presidente. Depois pode voltar e fazer o relat�rio.
O vice-presidente nem se dignara a esperar. Na verdade, contou Peach a Nate, sa�ra disparado ap�s uma breve diatribe, em que discursou sobre o erro de contratar
um forasteiro pregui�oso e arrogante.
Sem dar grande import�ncia, Nate entregou a ca�adeira a Otto, pegou num walkie-talkie e dirigiu-se para o banco.
Algures naquele mundo imenso, Nate imaginava haver um lugar mais frio do que Lunacy, Alasca, em Fevereiro. E pedia a Deus nunca ter de l� ir.
O c�u ficara limpo, o que significava que qualquer calorzinho miser�vel se erguera e desaparecera. Mas o Sol brilhava, por isso, com sorte, talvez chegasse a uns
calorosos seis graus negativos a meio da tarde. E o Sol, via Nate, estava envolto num c�rculo com tonalidade arco-�ris, uma aur�ola colorida de vermelhos, azuis
e dourados. O que Peter lhe dissera chamar-se um sun dog.
As pessoas andavam nos seus afazeres, tirando partido da manh� clara para resolver os seus assuntos. Algumas gritavam-lhe cumprimentos ou acenos elaborados.
Viu Johnny Trivani, o noivo esperan�oso, � conversa com Bess Mackie, e Deb � porta da loja a lavar as montras, como se fosse um belo dia de Primavera.
Ergueu a m�o para Mitch Dauber, que estava sentado na montra da KLUN a passar discos e a observar a vida de Lunacy. Esperava que Mitch tivesse algo filos�fico a
dizer sobre o alce antes que o dia acabasse.
Fevereiro. Atingiu-o, na esquina da Lunatic com a Denali. De alguma forma, o tempo correra at� Fevereiro, quase princ�pio de Mar�o. Estava a aproximar-se da meta
dos sessenta dias, o seu ponto de retorno. E ainda l� estava.
Mais ainda, pensava. Come�ava a instalar-se.
Pensativo, atravessou a rua at� ao banco.
Estavam dois clientes ao balc�o do banco, e outro a recolher as cartas do correio. Pela forma como eles e os funcion�rios olharam para ele, Nate imaginava que Ed
ainda estava de mau humor quando entrou.
No sil�ncio que se seguiu, acabou por acenar, e depois passou a pequena porta girat�ria que separava a entrada do banco dos escrit�rios.
N�o ostentava um parque para carros, nem havia ATMs � porta, mas o banco tinha uma bela passadeira, alguns quadros locais na parede e um clima geral de efic�cia.
Avan�ou at� � porta com o nome de Ed Woolcott numa placa de bronze brilhante, e bateu.
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Ed abriu e fungou. - Vai ter de esperar. Estou ao telefone.
- Tudo bem. - Quando a porta se fechou na cara dele, Nate simplesmente enfiou as m�os nos bolsos e estudou os quadros.
Reparou num com um totem, num bosque cheio de neve, assinado por Ernest Notti. Seria familiar de Peter?, perguntava-se. Ainda tinha muito a aprender sobre os Lun�ticos.
Olhou em redor. N�o havia qualquer vidro separador entre funcion�rios e clientes, mas viu as c�maras de vigil�ncia. J� havia analisado as instala��es, antes de abrir
as suas contas.
Agora que a conversa recome�ara, escutou para apanhar peda�os. Noite de cinema, em breve uma venda de bolos em benef�cio da banda da escola, o tempo, a Iditarod.
Conversa de pequena vila, e bem diferente do que teria ouvido se entrasse numa sucursal do seu banco em Baltimore.
Ed deixou-o � espera cerca de dez minutos, num pequeno jogo de for�a, e tinha uma express�o mal-encarada e um ligeiro rubor nas faces, ao abrir a porta.
- Quero que saiba que fiz uma queixa formal � Presidente.
- Ok.
- N�o gosto da sua atitude, Comandante Burke.
- Registado, Sr, Woolcott. Se era s� isso que tinha para me dizer, tenho de voltar para a esquadra.
- Quero saber � o que anda a fazer acerca do assalto na propriedade.
- Otto est� a tratar do assunto.
- A minha propriedade foi vandalizada e danificada. Roubaram material de pesca dispendioso. Acho que tenho o direito a um pouco de aten��o do Comandante da pol�cia.
- E j� a tem. Foi elaborado um relat�rio completo, e o agente respons�vel est� a tratar do assunto. O roubo n�o foi menosprezado por mim nem pelo meu pessoal. Temos
uma descri��o detalhada dos bens roubados, e se o ladr�o for est�pido ao ponto de lhes dar uso, falar sobre eles ou tentar vend�-los na minha jurisdi��o, avan�amos
com a deten��o e recuperamos os bens.
Os olhos de Ed eram duas fendas no seu rosto carrancudo. - Talvez se eu fosse mulher o seu interesse fosse outro.
- Na verdade, talvez n�o fizesse o meu g�nero, Sr. Woolcott, - prosseguiu, - est� perturbado, e zangado. Tem todo o direito. Foi violentado. E o facto de, na maior
das probabilidades, terem sido mi�dos armados em parvos n�o atenua essa viol�ncia. Faremos tudo o que pudermos para recuperar os seus bens. Se acha que ajuda, at�
lhe pe�o desculpa por ter sido abrupto h� pouco. Estava preocupado com as crian�as na escola. Parti do
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princ�pio que a seguran�a delas era mais importante do que a actualiza��o sobre os seus bens furtados.
O rubor desmaiara, e um longo suspiro disse a Nate que a crise passara. - Mesmo assim, foi muito rude.
- Pois fui. E distra�do. Para ser franco, tenho tido muito em que pensar. O assass�nio de Patrick Galloway, o aparente suic�dio de Max. - Abanou a cabe�a, como se
assoberbado. - Quando me candidatei para este trabalho, esperava vir a lidar, na pior das hip�teses, com o tipo de furto de que foi v�tima.
- Tr�gico. - Agora Ed sentava-se e foi cort�s ao ponto de gesticular para Nate se sentar numa cadeira. - � uma trag�dia e um choque tremendos. Max era meu amigo,
e dos bons.
Esfregou a parte de tr�s do pesco�o com a m�o. - Achava que o conhecia e n�o fazia ideia, nenhuma mesmo, que andava a pensar em suic�dio. Deixar a mulher, os filhos
daquela forma. - Elevou as m�os, numa esp�cie de lamento silencioso. - Talvez me sinta mais triste com tudo isto do que queria admitir, e tem andado a corroer-me.
Tamb�m lhe devo um pedido de desculpas.
- N�o � necess�rio.
- Deixei que este roubo tomasse propor��es imensas. � um mecanismo de defesa. � mais f�cil preocupar-me com ele do que com Max. Tenho tentado ajudar Carrie com os
pormenores do funeral e acertos com as finan�as. Com a morte vem um monte de papelada. � dif�cil. � dif�cil lidar com isto.
- N�o h� nada pior do que enterrar um amigo. J� o conhecia h� muito tempo?
- Muito tempo. Bons tempos. Os nossos filhos cresceram juntos. E isto juntamente com a descoberta de Pat...
- Tamb�m o conhecia.
Ed esbo�ou um pequeno sorriso. - Antes de casar com Arlene. Ou como ela diria, antes de ela me domar. N�o fui sempre um cidad�o exemplar, o homem de fam�lia que
sou agora. Pat era... um aventureiro. Foram bons tempos, sem d�vida. � sua maneira.
Olhou em redor do escrit�rio como se pertencesse a outra pessoa, e n�o se conseguisse lembrar como teria ido parar ali. - N�o parece poss�vel. Nada disto.
- Foi um choque para todos descobrir o que aconteceu a Galloway.
- Pensei que se tivesse ido embora, como toda a gente, o que n�o me surpreendeu. Nada mesmo. Era irrequieto, e temer�rio. Era isso que o tornava t�o apelativo.
- Fazia alpinismo com ele.
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- C�us. - Agora, Ed recostava-se. - Dantes adorava escalar. A emo��o e as priva��es. Ainda adoro, mas quase nunca tenho tempo. Ando a ensinar o meu filho.
- Ouvi dizer que Galloway era bom.
- Muito bom. Apesar de estar sempre latente essa temeridade. Para mim, era demasiado para me sentir confort�vel, mesmo quando tinha trinta anos.
- Faz alguma ideia de quem possa ter escalado com ele naquele Fevereiro?
- Nenhuma, e acredite em mim, desde que ouvi a not�cia que ando a pensar nisso. Suspeito que talvez tenha ido buscar algu�m, ou um grupo, para os levar numa escalada
de Inverno. Era o tipo de coisa que faria por impulso, para ganhar algum dinheiro, e pela emo��o. E um deles matou-o, sabe Deus porqu�. - Agitou a cabe�a. - Mas
a Pol�cia Estadual n�o est� a dar andamento � investiga��o?
- Est�. S� estou curioso, fora de servi�o.
- Duvido que cheguem a descobrir quem foi, ou o motivo. Dezasseis anos. Bolas, como as coisas mudam, - murmurou ele. - Mal reparamos quando est� a acontecer. Sabe,
houve uma altura em que geri o banco sozinho, at� vivia c�. Guardava o dinheiro naquele cofre ali.
Gesticulou para um cofre negro.
- N�o fazia ideia.
- Tinha vinte e sete anos quando aterrei aqui. Ia gravar o meu lugar na natureza, dar-lhe um cunho civilizacional � minha maneira. - Agora sorria. - Parece que foi
mesmo isso que fiz. Sabe, os Hopp e o Juiz Royce foram os meus primeiros clientes. Foi preciso muita f� para confiarem o seu dinheiro nas minhas m�os. Nunca me esqueci.
Mas t�nhamos uma vis�o e constru�mos esta vila a partir dela.
- � uma bela vila.
- Pois �, e tenho orgulho do meu papel na sua edifica��o. O velho Hidel tamb�m viveu aqui, n'A Estalagem original. Tamb�m foi meu cliente, por uns tempos. Outras
pessoas vieram. Peach com o terceiro, n�o, com o segundo marido. Viveram no mato por uns tempos, vinham aqui buscar mantimentos e companhia de tempos a tempos. Quando
ele morreu � que ela se mudou para c� de vez. Otto, Bing, Deb e Harry. � preciso for�a de car�cter e vis�o para viver aqui.
- � mesmo.
- Bom... - Inspirou ar com for�a pelo nariz. - Pat tinha vis�o, � sua maneira, e era uma figura. N�o sei quanto � for�a. Mas era um patife muito engra�ado. Espero
que todo este assunto seja resolvido pelo melhor. Acha que alguma vez saberemos, com toda a certeza, o que aconteceu l� em cima?
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- N�o � prov�vel. Mas penso que Coben vai empenhar o seu tempo e esfor�o. Vai procurar o piloto e algu�m que possa ter visto Galloway nos dias anteriores � subida.
Talvez queiram falar consigo, sobre quem � que ele contratava como piloto para as subidas.
- Devia ser Jacob, quase sempre. Mas certamente que se Jacob o levasse, teria comunicado que Pat n�o regressara. - Encolheu os ombros.
- Segundo essa l�gica, s� podia ser outra pessoa. Deixe-me pensar...
Pegou numa caneta de prata e bateu com ela, distra�do, no tampo da secret�ria. - Quando sub�amos com Jacob, se bem me lembro, ele por vezes chamava... como era o
nome dele... veterano do Vietname, Lakes... Loukes. � isso. E depois havia aquele doido. Dois Dedos, era como lhe chamavam. Acha que devia ligar a esse Coben a contar?
- Mal n�o faz. � melhor voltar. - Levantou-se e estendeu-lhe a m�o.
- Espero que esteja tudo resolvido, Sr. Woolcott.
- Ed. Est� sim. Raio da sonda. Paguei um dinheir�o por ela, por isso � chatice a dobrar. Est� no seguro, tal como as canas, mas � a atitude.
- Percebi. Ou�a, vou dar uma volta pelo seu barrac�o no gelo, s� para ver como est�.
A satisfa��o tomou as r�deas do rosto de Ed. - Agrade�o-lhe imenso. Pus um novo cadeado. Vou buscar as chaves.
Tendo resolvido as quest�es do alce e do vice-presidente apopl�ctico, Nate passou por casa de Rose para a cumprimentar. Emitiu aquilo que se chamaria arrulhos apropriados
com a beb�, que mais parecia uma tartaruga de cabe�a preta enrolada num cobertor cor-de-rosa.
Ligou para a esquadra, a avisar Peach que ia fazer mais uma ronda na zona do lago, para dar uma olhadela ao barrac�o de Ed. Por impulso, passou a correr pelo canil
d'A Estalagem, pegou em Rock e Buli e levou-os com ele, para correrem livres durante uma hora.
Foi um passeio agrad�vel, com o r�dio ligado na m�sica country escolhida por Otto, rapidamente trocada pela m�o de Nate, que preferia rock alternativo. Conduziu
at� ao lago ao ritmo marcado dos Blink-182.
O barrac�o de Ed estava isolado numa placa de gelo encrespada. Era, calculava Nate, mais ou menos da dimens�o de duas casas de ca�a juntas e fora feito do que ele
pensava serem troncos de cedros. Um pouco maior do que esperava, com as laterais acinzentadas pela ac��o do tempo e coberto com um telhado pontiagudo.
Um cen�rio bem d�spar e afastado da confus�o dos outros barrac�es.
Divertido, decidiu que parecia uma casa senhorial ao lado da aldeia dos camponeses.
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Os c�es correram por cima do gelo como dois mi�dos em f�rias da escola, enquanto Nate escorregava na tentativa de atravessar.
O sossego era fant�stico, como numa igreja, com uma esp�cie de sussurro musical daquele vento suave que atravessava as �rvores carregadas de neve. O sun dog brilhava
no c�u azul gelado, reflectindo-se no espelho de gelo do lago como uma imensa centelha.
O sil�ncio e a solid�o eram t�o fortes que ele saltou e pegou na arma, ao ouvir o grito prolongado e ressonante acima da cabe�a.
A �guia voava em c�rculos, de um castanho-dourado magn�fico, em contraste com o c�u celestial. Os c�es brincavam aos encontr�es, para depois mergulharem nos montes
de neve na margem do lago.
Percebeu que dali conseguia ver o avi�o de Meg. O clar�o vermelho e a longa curva da �gua congelada. E outros pequenos vislumbres de civiliza��o, se os quisesse
apreciar. Ali, um rasto de fumo de uma chamin�, a presen�a de uma casa atrav�s da espessura das �rvores, o vapor da sua pr�pria respira��o.
Deixou fugir uma pequena gargalhada. Talvez devesse experimentar aquela hist�ria de pescar no gelo. Devia haver algo de especial no apelo primitivo de deitar uma
linha num buraco no gelo, e ficar sentado no sossego de uma placa de �gua congelada.
Foi at� ao barrac�o e viu a tinta de spray escorrida que dizia BARDAMERDA! na porta, de um amarelo c�ustico.
Outro vest�gio de civiliza��o, pensava Nate ao procurar as chaves.
Ed colocara dois novos cadeados, cada um com uma corrente enorme e brilhante.
Abriu-os e entrou.
L� dentro, os artistas do graffiti haviam trabalhado bem. Obscenidades decoravam as paredes. Equiparou a sua indigna��o � de Ed. Tamb�m se sentiria seriamente irritado
se encontrasse aquele tipo de coisa num dos seus abrigos.
Conseguia ver o suporte onde Ed guardava as canas, bem como o extremo aprumo por baixo da desordem que os v�ndalos haviam causado.
O cordoame, o fog�o Coleman, as cadeiras em que ningu�m tocara, mas um arm�rio, que suspeitava acondicionara o u�sque escoc�s - Glenfiddich, segundo o relat�rio
de Otto - e alguma comida, estava vazio e aberto.
Encontrou ganchos que se prendiam �s botas e fez uma nota mental de comprar uns para ele tamb�m. Viu um estojo de primeiros socorros, luvas extra, um chap�u e uma
parca velha e usada, sapatos de neve e um par de cobertores t�rmicos.
Os sapatos de neve estavam pendurados na parede, mesmo por cima
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de um gritante PARVALH�O a amarelo. Nate n�o percebia se tinham sido usados h� pouco tempo.
Havia combust�vel para o fog�o, uma balan�a para o peixe e algumas facas com um aspecto amea�ador. Uma s�rie de revistas, um r�dio port�til. Pilhas extra.
Imaginava que era tudo o que se esperava encontrar num barrac�o de pesca no gelo no Alasca.
Quando saiu para a rua, deu uma volta ao local. Desceu o olhar na direc��o do avi�o de Meg e para onde os seus bosques come�avam.
Tentou imaginar Ed Woolcott, pomposo, mas duro, a percorrer o bosque com os sapatos de neve.
20.
O alce foi o t�pico mais quente durante quase toda a semana. Nate era gozado ou felicitado pela t�cnica de afastamento de alces, consoante a fonte.
Nate considerava o alce uma esp�cie de b�n��o. Afastava os pensamentos das pessoas de assass�nio e morte, pelo menos por enquanto.
Pensara em voltar a falar com Carrie, e nalgumas estrat�gias para contornar a probabilidade de ela lhe fechar a porta na cara e se recusar a falar com ele. A informa��o
de que o corpo havia sido libertado e cremado, e de que Meg levava Carrie de avi�o para Anchorage para recolher as cinzas, levou-o a decidir-se.
- Quero ir com voc�s, - disse a Meg.
- Olha, Comandante, j� vai ser dif�cil realizar esta viagem, sem que venhas esfregar-lhe as circunst�ncias na cara.
- N�o tenho qualquer inten��o de o fazer. Vou agora falar com ela. Encontramo-nos junto ao rio.
- Nate. - Ela parou de arrastar as botas. - Talvez aches que o DP de Lunacy tem de levar um representante, por qualquer motivo que s� os pol�cias sabem, mas devia
ir Otto ou Peter. Justo ou n�o, �s a �ltima pessoa que Carrie quer ver hoje.
- Encontramo-nos junto ao rio. - Estava a meio caminho da porta do quarto que partilhavam temporariamente, quando se lembrou. Virou-se, a sorrir. - Rock e Buli.
Sou lento, mas acabei de perceber. Talvez seja de toda aquela conversa sobre alces. Rocky e Bullwinlde.
- �s lento. Ou tiveste uma inf�ncia miser�vel.
- N�o. Lembrei-me que eram nomes de macho, como, sei l�, os dos pugilistas. The Rock, Raging Bull, ou coisa parecida.
Os cantos dos l�bios dela curvaram. Porque seria que ele a conseguia
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encantar, mesmo quando sentia que a irritava? - The Rock � da luta livre.
- Andei perto. At� daqui a uma hora.
Ele j� informara a equipa, que havia demonstrado a mesma atitude pessimista de Meg, que naquela manh� faria a viagem para Anchorage. Por isso foi directo para casa
de Carrie.
A porta abriu-se antes que chegasse a meio do carreiro da entrada. Ela envergava uma camisola e cal�as pretas, a bloquear a porta. - Pode dar meia-volta e voltar
para o carro. N�o sou obrigada a falar consigo e n�o sou obrigada a receb�-lo em minha casa.
- Gostava que me desse cinco minutos, Carrie. N�o queria nada ficar aqui a gritar o que tenho para lhe dizer atrav�s de uma porta fechada. N�o me parece que v� gostar
muito. � mais f�cil para ambos se me der cinco minutos a� dentro, especialmente porque vou estar consigo dentro do avi�o, daqui a uma hora.
- N�o o quero ao p� de mim.
- Eu sei. Se ainda pensar assim depois de ouvir o que tenho a dizer, mando o Peter no meu lugar.
Conseguia ver a d�vida no olhar dela. Depois ela virou-se para se afastar, deixando a porta aberta numa atitude fria.
Ele entrou e fechou a porta. Ela estava na sala de estar, de costas para ele, bra�os cruzados sobre o peito, t�o apertados que lhe via os n�s dos dedos a esbranqui�ar
de encontro aos pr�prios b�ceps.
- Os seus filhos est�o c�?
- N�o, mandei-os para a escola. Est�o melhor na sua rotina normal, com os amigos. Precisam de normalidade. Como � que consegue vir aqui desta forma? - Deu meia-volta.
- Como � que consegue vir incomodar-me no dia em que vou trazer as cinzas do meu marido para casa? N�o tem cora��o, nem compaix�o?
- Estou aqui a t�tulo oficial, e o que lhe vou contar � confidencial.
- Oficial. - Quase cuspiu a palavra. - O que � que quer? O meu marido morreu. Est� morto e n�o se pode defender das coisas terr�veis que andam a dizer dele. Pois
n�o as vai dizer nesta casa. Esta � a casa do Max, e n�o vai proferir essas mentiras horr�veis sobre ele.
- A senhora amava-o. Amava-o o suficiente para me dar a sua palavra que n�o vai repetir o que eu disser aqui e agora? A ningu�m. Ningu�m, Carrie.
- Atreveu-se a perguntar se amava...
- S� sim ou n�o. Preciso da sua palavra.
- N�o tenho qualquer interesse em repetir as suas mentiras. Diga o que tem a dizer e v�-se embora. Prometo que me esque�o que esteve aqui sequer.
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Teria de chegar. - Acredito que Max estava na montanha com Patrick Galloway no momento da morte de Galloway.
- V� para o Inferno.
- Tamb�m acredito que havia com eles uma terceira pessoa.
A sua boca tr�mula abriu-se. - Como assim, uma terceira pessoa?
- Subiram tr�s, mas apenas dois desceram. Acho que a terceira pessoa � respons�vel pelo assass�nio de Galloway. E acho que matou Max, ou levou-o ao suic�dio.
Enquanto o fitava, ela estendeu a m�o, agarrando-se �s costas de uma cadeira. O seu corpo parecia afundar-se nela. - N�o estou a compreender.
- N�o lhe posso dar os pormenores todos, mas preciso da sua coopera��o... preciso da sua ajuda, - corrigiu, - para provar a minha teoria. Havia um terceiro homem,
Carrie. Quem era?
- N�o sei. C�us, n�o sei. Eu... j� lhe disse que algu�m matou Max. J� lhe disse que ele n�o se matou. Disse ao Sargento Coben. Estou sempre a dizer-lhe.
- Eu sei. Acredito em si.
- Acredita em mim? - As l�grimas saltaram-lhe aos olhos, correndo pelas faces abaixo. - Acredita em mim?
- Acredito. Mas a verdade � que a Medicina Legal se decidiu pelo suic�dio. Coben pode ter as suas d�vidas, e pode ter o seu instinto, at� provas circunstanciais
at� certo ponto, mas n�o tem o envolvimento que n�s temos. N�o tem espa�o nem tempo para levar o caso da forma que n�s levamos. Tem de se lembrar dos pormenores,
das sensa��es, das conversas. N�o vai ser f�cil. E vai ter de guardar isto para si. Estou a pedir-lhe que corra esse risco.
Limpou as l�grimas. - N�o compreendo.
- Se estivermos certos, e se algu�m matou Max por causa do que aconteceu naquela montanha, essa pessoa pode estar de olho em si. Pode perguntar-se o que voc� sabe,
o que se lembra, o que � que Max lhe poder� ter dito.
- Acha que posso correr perigo?
- Acho que prefiro que tome cuidado. N�o quero que fale neste assunto com ningu�m, nem com os mi�dos. Nem com a melhor amiga, ou com o padre. Ningu�m. Quero que
me deixe ver as coisas de Max, os seus pap�is pessoais. Tudo, aqui e no jornal. E n�o quero que ningu�m saiba. Quero que pense e se lembre daquele Fevereiro. No
que fez, no que Max fez, com quem passou o seu tempo, no comportamento dele. Aponte tudo.
Ela fitava-o com um brilho que podia ser de luta contra o desgosto. - Vai descobrir quem � que lhe fez isto a ele? A n�s?
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- Vou fazer os poss�veis.
Secou as l�grimas com um len�o. - Disse coisas terr�veis sobre si, a quem quisesse ouvir.
- Algumas at� eram capazes de ser verdade.
- N�o eram, n�o. - Agora, pressionava os dedos nos olhos. - Estou t�o confusa. Estou doente, doente no cora��o, na cabe�a. Teimei em contratar Meg para me levar,
para nos trazer de volta, porque precisava de provar que n�o acredito... que n�o tenho vergonha. Mas parte de mim tem.
- Deixou cair as m�os e os olhos estavam desfeitos. - Se ele esteve l� em cima, devia saber.
- Vamos descobrir tudo isso. Algumas das respostas podem ser duras, Carrie, mas � melhor do que termos s� perguntas.
- Espero que tenha raz�o. - Levantou-se. - Tenho de me arranjar minimamente. - Ia sair, mas depois parou e deu meia-volta. - Aquela quest�o do alce, na escola? O
Max ia adorar. Ia adorar escrever sobre isso. "Alce Arruaceiro Expulso do Liceu de Lunacy", ou coisa do g�nero. Esse tipo de hist�ria apelava-lhe muito. Um homem
assim, um homem que encontrava prazer numa coisa t�o tola, n�o pode ter feito aquilo a Pat Galloway.
- Quis casar com ele assim que o conheci. Gostava da forma como falava sem parar, sobre abrir um jornal na vila, e de como era importante registar as pequenas coisas,
tal como as grandes.
Carrie olhava pela janela do seu lugar ao lado de Meg, e Nate podia ver o seu olhar perdido nas montanhas. - Cheguei aqui para dar aulas, e fiquei porque tudo isto
se me entranhou. N�o era l� muito boa professora, na verdade, mas quis ficar. E gostava das possibilidades, muito mais homens do que mulheres. Andava � procura de
um homem. - Lan�ou um olhar fugidio a Meg.
- Quem n�o anda?
Carrie sorriu um pouco, mas soou um ru�do rouco. - Queria casar e ter filhos. Olhei para Max e decidi que era o certo. Era inteligente, mas n�o demasiado, giro,
mas n�o lindo, ao ponto de ficar preocupada que as outras mulheres andassem atr�s dele. Um pouco doido, mais do que isso, queria ser louco, mas do tipo que sabia
ter rem�dio com algum tempo e dedica��o.
Interrompeu-se, e a sua respira��o entrecortada revelava uma �bvia luta contra as l�grimas.
- As mulheres costumam fazer listas destas? Sabem, como fazem sobre uma casa que est�o a pensar comprar? Uma lista de melhorias. Funda��es s�lidas, mas precisa de
algumas obras. Esse g�nero de coisa? - Perguntou Nate.
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Carrie soltou um risinho molhado, e levou a m�o aos l�bios.
- Fazemos. Eu bem que fiz, assim que me comecei a aproximar dos trinta. N�o o amei de imediato, n�o foi uma explos�o enorme e imediata. Mas levei-o para a cama,
e essa parte foi boa. Outro visto a apontar na lista.
Contemplaram mais um momento de sil�ncio, e depois Nate pigarreou. - Ah, e esses vistos t�m um tamanho espec�fico ou algum c�digo de cores?
- N�o te preocupes, Burke, nessa coluna tamb�m vais ter um visto bem gordo, - exclamou Meg. Lan�ou-lhe um olhar pleno de aprecia��o e entendimento. Ele mantinha
a conversa leve e f�cil pela vi�va. Tanto quanto podia. Olhou para Carrie. - Voc�s ficavam sempre bem juntos. Como uma equipa.
- �ramos uma boa equipa. Talvez nunca tenha sentido aquela explos�o de calor imensa, mas digo-vos quando me apaixonei por ele, a s�rio, totalmente, sem haver volta
a dar-lhe. Foi quando ele pegou na filha ao colo pela primeira vez. A express�o no rosto dele quando lhe pegou a primeira vez, a forma como olhou para mim. O choque
e a alegria, a emo��o e o terror, tudo estampado na cara. Por isso, n�o foi uma explos�o, mas o que senti foi quente, est�vel e real.
- Ele n�o matou o teu pai, Meg. - Voltou a olhar pela janela. - O homem que pegava na beb� daquela forma, n�o podia ter matado ningu�m. Sei que tens motivos para
pensar o contr�rio, e quero que saibas que dou muito valor... � tua gentileza em me levares hoje.
- Ambas perdemos algu�m que am�vamos. N�o �amos provar nada, se brig�ssemos por causa disso.
As mulheres, pensava Nate, eram mais fortes e resistentes do que qualquer homem que conhecera. Incluindo ele mesmo.
Procurou Coben, assim que aterraram, e apesar de parecer insens�vel, deixou Meg a acompanhar Carrie nos procedimentos da entrega das cinzas de Max.
- Thomas Kijinski, tamb�m conhecido como Dois Dedos. Parece ser a melhor aposta. H� um piloto, Loukes, que agora trabalha em Fairbanks, e mais alguns que Galloway
usava de vez em quando. - Pousou a lista que elaborara na secret�ria de Coben. - Mas estou mais inclinado para Kijinski. Acabou por morrer, algumas semanas depois
de Galloway.
- Atacado com arma branca, foi investigado e declarado assalto. - Coben suspirou. - Kijinski andava com uns tipos duros. Jogava � grande e h� suspeitas de que vendia
droga. Quando morreu, tinha um encontro
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algures no bairro. O agente respons�vel pela investiga��o acha que uma das encomendas foi recolhida em pessoa, mas n�o conseguiu provar.
- E acredita numa coincid�ncia dessas.
- Eu n�o acredito em nada. Na verdade, Kijinski levou uma vida complicada e teve um fim complicado. Se por acaso ele foi o piloto que levou Galloway na sua �ltima
subida, j� n�o nos vai contar nada.
- Ent�o, n�o deve ser um problema para si arranjar-me uma c�pia do ficheiro dele.
Coben voltou a inspirar com for�a pelo nariz. - Tenho a imprensa � perna por causa disto, Burke.
- Pois, j� vi alguns relat�rios. J� dei a alguns jornalistas uma declara��o oficial.
- J� viu uma merda assim? - Tirou o exemplar de um tabl�ide da gaveta e atirou-o. A manchete exclamava:
HOMEM DE GELO RESGATADO DE GRUTA CONGELADA
Havia uma fotografia de Galloway, tal como estava na gruta, a cores berrantes por baixo das letras garrafais.
- Era de esperar uma merda destas, - come�ou Nate.
- Uma das equipas de resgate deve ter tirado a foto. Um deles arrecadou � grande, fez umas massas ao vend�-la aos tabl�ides. O meu tenente anda em cima de mim. N�o
preciso que fa�a o mesmo.
- Havia um terceiro homem na montanha.
- Pois havia, segundo o di�rio de Galloway. Claro que n�o podemos provar que ele morreu depois daquela �ltima entrada no di�rio. Com dezasseis anos pelo meio, temos
muita incerteza quanto � altura da morte. Pode ter sido logo, ou um m�s depois. Seis meses at�.
- � mais inteligente do que isso.
- O que sei. - Coben levantou uma m�o. - O que posso provar. - Depois a outra. A Medicina Legal declarou suic�dio, e o meu tenente gosta. � uma pena Hawbaker n�o
falar em nomes na mensagem.
- D�-me o ficheiro que eu arranjo-lhe os nomes. Tenho a certeza que est� a cheirar o mesmo que eu, Coben. Se quiser fechar a tampa ao fedor, � consigo. Mas tenho
de ir a um funeral e uma mulher e dois filhos que merecem saber a verdade, para que ela aprenda a viver com isso. Posso tirar uns dias e ir � ca�a de informa��es
aqui em Anchorage, ou pode dar-me o ficheiro e deixar-me regressar a Lunacy.
- Se eu quisesse fechar a tampa, n�o lhe teria dado o di�rio de Galloway. - A frustra��o inundava-o em ondas quase vis�veis. - Tenho de
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responder � hierarquia e eles querem a tampa fechada. A teoria que vai prevalecer � a de que Hawbaker matou Galloway, e o terceiro homem, o que estava ferido, de
acordo com o di�rio. E se olhar para a quest�o de frente, � o mais �bvio. Porque � que o assassino de Galloway haveria de poupar um homem ferido, uma potencial testemunha?
Hawbaker trata dos dois. Depois tem medo que descubram, remorsos e mata-se.
- � limpinho.
Coben mordia os l�bios. - Alguns gostam de tudo limpinho. Vou buscar o ficheiro, Burke, mas mantenha a sua investiga��o pessoal bem discreta. O m�ximo poss�vel.
Se a imprensa, o meu tenente, ou algu�m descobre que anda a meter o nariz, ou que eu o estou a ajudar, cai-me tudo em cima.
- Combinado.
Meg estava t�o saturada do desgosto de Carrie que n�o se importava nada de passar mais uma noite a servir �s mesas. Se pudesse escolher, teria preferido pegar nos
c�es e correr para o mato. Para longe. Onde pudesse passar uns dias totalmente sozinha, afastada de todas as exig�ncias e apert�es das pessoas, bem como das suas
necessidades.
Aquela inquieta��o, pensava ao passar para a cozinha escaldante d'A Estalagem, era o gene de Galloway. Desaparecer, isolar e ignorar. A vida � demasiado curta para
chatices.
Mas dentro dela havia algo mais, c�us, esperava que n�o fosse de Charlene, que a fazia ficar e aguentar-se por ali.
Pendurou os pedidos na mesa girat�ria para Mike Grande. Dois rolos de carne, um especial vegetariano e o salm�o surpresa.
Pegou nos pedidos prontos e preparou-se para a �ltima viagem, equilibrando-os com tal facilidade que a fez franzir o sobrolho. N�o tinha nada contra quem servia
�s mesas pelo mundo fora, mas desejava n�o ser t�o boa naquilo. N�o estava nos seus planos, mesmo como segunda escolha de carreira.
C�us, precisava de apanhar ar, de sil�ncio. Dos c�es. Da m�sica. De sexo.
Estava prestes a explodir.
Trabalhou mais duas horas, no meio do barulho da lou�a, das queixas, dos mexericos, das piadas m�s. Percebia a press�o crescer dentro de si, a imensa ansiedade de
sair, de fugir. Quando a clientela diminuiu, apanhou Charlene na porta da cozinha.
- Esta noite n�o te posso dar mais. Vou-me embora.
- Precisava que...
- Vais ter de arranjar outra pessoa. N�o deve ser dif�cil para ti. - Dirigiu-se para as escadas. Queria tomar um duche e, por Deus, num �pice ia fazer as malas e
voltar para casa.
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Desta vez foi Charlene que a apanhou.
- Daqui a uma hora vamos estar outra vez cheios de gente. As pessoas v�m beber, v�m...
- Por estranho que pare�a, n�o quero saber. - Teria fechado a porta na cara de Charlene, mas a m�e passou a porta e fechou-a atr�s de si.
- Nunca quiseste. N�o me interessa se n�o queres saber, mas est�s em d�vida para comigo.
Esquece o duche, faz s� a mala. - Manda-me a conta.
- Preciso de ajuda, Megan. Porque � que n�o te podes limitar a ajudar-me sem seres t�o implicante?
- Herdei isso de ti. A culpa n�o � minha. - Abriu uma gaveta e tirou o que estava l� dentro para fora, lan�ando para cima da cama.
- Constru� algo aqui. Tu beneficiaste disso.
- Estou-me a marimbar para o teu dinheiro.
- N�o estou a falar de dinheiro. - Charlene agarrou na roupa que estava em cima da cama e lan�ou-a ao ar. - Estou a falar deste s�tio. Tem algum valor. Nunca quiseste
saber. Mal podias esperar para fugir daqui e de mim, mas isto tem o seu valor. J� escreveram artigos sobre n�s no jornal, nas revistas, nos guias tur�sticos. Tenho
aqui pessoas a trabalhar que dependem do ordenado para levarem comida para casa e vestirem os filhos. Tenho clientes que v�m aqui todas as noites porque tem algum
valor para eles.
- Mas isto � teu, - concordou Megan. - Eu n�o tenho nada a ver com isso.
- Era o que ele estava sempre a dizer. - Enraivecida, deu um pontap� num par de cal�as que estava ca�do no ch�o. - �s parecida com ele, at� no discurso.
- A culpa tamb�m n�o � minha.
- Ele nunca tinha culpa de nada. Tinha azar ao p�quer, bolas, parece que esta semana n�o vai haver dinheiro. Preciso de espa�o, Charley, j� sabes como �. Volto daqui
a uns dias. Apareceu uma coisa; p�ra de me chatear. Algu�m tinha de pagar as contas, ou n�o? - Indagou Charlene. - Algu�m tinha de pagar os medicamentos quando adoecias
ou desencantar dinheiro, para te comprar um par de sapatos. Ele podia trazer todas as flores silvestres que conseguisse apanhar no Ver�o, ou escrever-me can��es
e poemas lindos, mas isso n�o punha comida na mesa.
- Eu ponho comida na minha mesa. Compro os meus sapatos. - Mas acalmara-se um pouco. - N�o estou a afirmar que n�o trabalhavas. Ainda por cima tinhas de fazer os
teus biscates, mas era a tua vida. Tiveste o que querias.
- Queria-o a ele. Raios partam. Queria-o a ele
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- Eu tamb�m, por isso sa�mos ambas a perder. N�o podemos fazer nada. - Fora buscar as suas coisas, pensava Meg. Agora, s� tinha de sair. Avan�ou at� � porta, hesitando.
- Liguei para Boston, falei com a m�e dele. Ela... ela n�o te vai impedir de reclamar o corpo, para que seja enterrado aqui.
- Telefonaste-lhe?
- Sim, j� est�. - Abriu a porta.
- Meg. Megan. Espera um minuto. - Charlene sentou-se na borda da cama, as roupas espalhadas pelo ch�o � volta dela. - Obrigada.
Raios. Oh, chi�a. - Foi s� um telefonema.
- Mas � importante. - Charlene enla�ou as m�os no colo e fitou-as. - � muito importante para mim. Estava furiosa por teres ido a Anchorage... v�-lo. Por me deixares
de fora.
Meg fechou a porta, encostando-se a ela. - N�o foi isso que fui fazer.
- N�o fui uma boa m�e. No in�cio, tinha essa inten��o. Tentei ser. Mas havia sempre tanta coisa a fazer. N�o sabia que haveria tanto a fazer.
- Eras muito nova.
- Demasiado, acho eu. Ele queria mais. - Olhou para cima e encolheu os ombros. - Ele adorava-te, e queria mais filhos. Mas eu n�o deixei. N�o queria passar por tudo
aquilo outra vez, ficar gorda e cansada, passar por aquela dor. E depois ter de tratar de tudo. E o dinheiro que nunca havia quando era preciso ou apenas se queria
� m�o. Ele insistia, e eu dava-lhe para tr�s com outros argumentos, at� parecer que pass�vamos metade do tempo a dar para tr�s um ao outro. Eu tinha ci�mes porque
ele alinhava contigo, e eu era sempre a intrusa, sempre a que dizia que n�o.
- Algu�m tinha de o fazer.
- N�o sei se ter�amos conseguido. Se ele tivesse voltado, n�o sei se ia dar certo. Come��mos por querer coisas t�o diferentes. Mas sei que se nos separ�ssemos, sei
que ele te levava.
Como que para manter as m�os ocupadas, alisou a colcha da cama de cada um dos lados em que se sentara. - Ele levava-te, - repetiu. - E eu deixava. Tens de saber
isso. Ele amava-te mais do que eu algum dia seria capaz.
Era dif�cil, mais dif�cil do que qualquer coisa de que se pudesse lembrar, caminhar at� � cama e sentar-se. - O suficiente para juntar os trocos e comprar-me sapatos?
- Talvez n�o, mas o suficiente para te levar a acampar, para veres as estrelas. O suficiente para se sentar � lareira a contar-te hist�rias.
- Gosto de pensar que teria resultado se ele tivesse voltado. - Charlene olhou para ela, pestanejando. - A s�rio?
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- Sim. Gosto de pensar que haveriam de descobrir uma forma que resultasse. J� estavam juntos h� tanto tempo. H� mais do que a maioria das pessoas. Quero perguntar-te
uma coisa.
- Parece a altura ideal.
- Sentiste uma explos�o enorme e quente da primeira vez que o viste? Quando te apaixonaste por ele?
- Oh, c�us, sim. Quase me queimei. E nunca mais parava. Pensava que j� estaria morta, fria e morta, quando enlouquecesse ou me fartasse daquilo. Nunca me aconteceu
com mais ningu�m. Continuo � espera, mas nunca mais aconteceu.
- Talvez desta vez tenhas de procurar outra coisa. Recentemente, algu�m me falou dos benef�cios de um calor bom e est�vel.
Meg levantou-se e apanhou a roupa espalhada. - N�o posso voltar l� para baixo e trabalhar mais esta noite.
- Ok.
- Ajudo-te ao pequeno-almo�o, mas � preciso mais algu�m para substituir Rose. Tenho de voltar para minha casa, para a minha vida.
Charlene acenou, erguendo-se. - Levas o pol�cia sensual contigo?
- Ele � que sabe.
Fez a mala e arrumou o quarto. Meg pensou em deixar um bilhete a Nate, mas decidiu que n�o era muito simp�tico, pouco correcto, at� mesmo para ela.
Nem sequer tinha o carro, lembrou-se, mas at� podia pedir o dele "emprestado". Ou o de outra pessoa. Contava-lhes mais tarde.
Por fim, passou a mochila pelo ombro e zarpou at� � esquadra, ap�s uma passagem pela Casa Italiana.
Ele dissera que ia ficar a trabalhar at� tarde, a tratar da papelada. N�o importava. Como ele tinha o carro trancado, ainda pensou duas vezes. Podia pegar no molho
de chaves, onde provavelmente ia encontrar uma que servisse. Mas se ele tivesse ligado o alarme do carro, era capaz de n�o gostar muito da brincadeira.
Decerto que, sendo nascido e criado na cidade, era o que havia feito.
Ela levou a mochila e a pizza enorme para a esquadra.
Estava um sil�ncio de cortar � faca, foi a primeira ideia em que pensou. Como � que o homem conseguia trabalhar sem m�sica? Pousou a mochila no ch�o e come�ou a
chamar, mas ele apareceu na entrada.
Se n�o estivesse atenta, n�o teria visto a m�o dele pousada no coldre da arma � cintura, nem na forma como a afastou ao sorrir para ela.
- Cheira-me a comida... e a mulher. O meu instinto de caverna est� a mil.
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- Pizza, pepperoni. Imaginei que devias querer algo quente, o que me inclui, por volta desta hora.
- Afirmativo para ambos. Para que � a mochila?
Ela n�o reparara que ele a vira. - Vou fugir. Queres vir comigo?
- Discutiste com Charlene?
- Sim, mas n�o � por isso. Na verdade, pode-se dizer que fizemos as pazes. S� tenho de me pirar j� daqui, Burke. Demasiada gente h� demasiado tempo. Fico nervosa.
Pensei que a pizza, e depois uma sess�o de sexo em minha casa, eram capazes de me p�r na linha, antes que magoe algu�m e tenhas de me prender.
- � esse o plano.
- Eu ia-me s� embora, mas pensei melhor. Quero ganhar pontos por ter resolvido agir assim.
- O quadro de classifica��o j� est� actualizado. Porque � que n�o trazes isso para o gabinete? Vou arranjar alguma coisa para bebermos.
- Tudo tratado. - Enfiou a m�o no casaco de l� e tirou uma garrafa de tinto. - Aliviei-a do bar d'A Estalagem. Vamos ter de a beber toda, para eliminarmos as provas.
Entregou-lhe a garrafa ao passar por ele, e depois entrou no gabinete e pousou a pizza em cima da mesa.
Ele fechara as pastas, tanto as impressas quanto as do computador, e cobrira o quadro com o cobertor, ao ouvir a porta da rua bater.
- Guardanapos? - Perguntou ela.
N�o era cavalheiresco, mas n�o a podia deixar sozinha no gabinete. - Debaixo da bancada de Peach. - Tirou o canivete su��o para usar o saca-rolhas. - Nunca usei
isto. D� imenso trabalho, mas v� s�. - Puxou a rolha com toda a for�a, ao v�-la entrar. - Vit�ria.
Ela atirou com os guardanapos e foi buscar duas canecas que estavam ao lado da m�quina do caf�. - O que � isto? - Puxou a ponta do cobertor com um dedo.
- N�o. - Perante o seu olhar de surpresa, ele abanou a cabe�a. - Deixa isso. Vamos comer.
Sentaram-se a saborear o vinho e a pizza. - Porque � que ficaste a trabalhar at� t�o tarde, sozinho? Est�s a matar o tempo para eu acabar o meu turno?
- Em parte, sim. Mas diz-me, porque � que discutiste com Charlene?
- Est�s a mudar de assunto.
- Pois estou.
- Por ela ser exigente, eu ser ingrata, e assim por diante. Depois, acab�mos a falar do meu pai e... outras coisas, e algumas at� fizeram sentido.
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O suficiente para eu conseguir admitir que ele n�o era o tipo mais f�cil para ter como companheiro, e que ela, na sua forma estranha e perturbadora, provavelmente
fez o melhor que podia. Que ambas o am�vamos, mais do que nos podemos amar uma � outra.
Ela serviu mais vinho, pegando deliberadamente noutra fatia de pizza, apesar de sentir o est�mago embrulhado. - Debaixo daquele cobertor est�o coisas sobre o meu
pai, n�o �? J� vi muitos filmes policiais, muitas s�rie na TV, Burke, para saber que voc�s p�em ali fotografias e relat�rios, e o que mais houver do que estiverem
a investigar.
- N�o estou a investigar nada, oficialmente. Sim, est� relacionado com o teu pai, e quero que deixes o cobertor onde est�.
- J� te disse antes, que n�o sou delicada.
- E eu estou a dizer-te agora, h� certas coisas que n�o partilho. Nunca.
Ela ficou calada, a estudar a pizza. - Foi esse tipo de afirma��o que levou a tua mulher para a cama de outro?
- N�o, - disse ele, calmo. - Ela estava-se nas tintas para o meu trabalho.
Ela fechou os olhos por instantes, mas depois obrigou-se a abri-los e a encontrar os dele. - Foi um golpe baixo. Sou capaz de golpes baixos. - Atirou com a pizza.
- Esta noite n�o estou a gostar muito de mim. � por isso que tenho de sair, fugir, voltar para quem sou quando gosto de mim.
- Mas vieste aqui primeiro, trouxeste-me pizza e vinho.
- Algures tens uma corda que me prende. N�o sei se vai aguentar, mas por enquanto sinto-a.
- Amo-te, Megan.
- Oh, bolas, n�o digas isso agora! - Levantou-se com brusquid�o, puxando o cabelo enquanto caminhava. - Estou com esta disposi��o de merda. Gostas que as mulheres
te d�em com os p�s, Ignatious? Andas � procura de algu�m que te espezinhe o cora��o mais uma vez?
- Para mim foi uma explos�o enorme, - prosseguiu ele com calma. - Foi preciso uma explos�o enorme para abrir caminho, ao que parece, uma vez que no �ltimo ano tenho
andado muito ocupado a chafurdar na lama. A maior parte das vezes, ultimamente, tudo se resume a um belo lume brando. � mais f�cil viver com o lume brando do que
com a explos�o. Mas de vez em quando sinto um coice. Vai por mim acima como uma bola de fogo.
Ela parou, sentou-se outra vez porque o est�mago cheio de n�s se entretinha a dar mortais. - Deus te ajude.
- Pois, tamb�m pensei o mesmo. Mas amo-te mesmo, e � diferente do que tinha com a Rachel. Naquela altura tinha uma quantidade de coisas
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planeadas, uma esp�cie de passo ou fase simp�tica, est�vel, sensata e normal.
- E comigo n�o est�s � procura de sensatez e de normalidade.
- Seria uma perda de tempo.
- N�o me venhas com isso. Tens casa e terra tatuadas no traseiro.
- N�o tenho nada. Tu � que tens a tatuagem, que acho superer�tica, a prop�sito. Talvez quando decidires que est�s apaixonada por mim, possamos pensar no que vai
acontecer a seguir, mas por agora...
- Quando eu decidir.
- Sim, quando. Sou paciente, Meg, e implac�vel na minha vontade. Estou a come�ar a recuperar a genica. H� muito tempo que anda apagada, mas est� a voltar. S� tens
de saber lidar com isso.
- Interessante. � um pouco mais assustador do que esperava, mas interessante.
- E � porque te amo e por confiar em ti, que te vou mostrar isto. Abriu a pasta que estava em cima da secret�ria. Pegando nas p�ginas copiadas do di�rio de Patrick
Galloway, entregou-lhas.
Ele viu de imediato que ela reconhecera a letra, a forma como o seu corpo endurecera, im�vel, a inspira��o r�pida e quase inaud�vel. O seu olhar fugiu para o dele,
por instantes, e depois percorreu as p�ginas que tinha na m�o.
Enquanto as lia n�o disse nada. N�o chorou nem teve nenhum ataque de raiva, nem tremeu, como outra mulher poderia ter feito. Em vez disso, voltou a pegar no vinho,
que bebeu devagar, e leu as p�ginas de uma vez.
- De onde � que isto surgiu?
- S�o c�pias das p�ginas de um caderno que ele trazia dentro da parca. Foi Coben que mas deu.
- H� quanto tempo?
- H� uns dias.
No centro do seu abd�men sentia um calor que fervia. - E n�o me contaste. N�o me mostraste.
- N�o.
- Porqu�?
- Precisava de avaliar, e tu tinhas de assentar as ideias.
- Isso faz parte da sua genica, Comandante? Tomar decis�es unilaterais?
- Faz parte das minhas responsabilidades profissionais, e dos meus sentimentos pessoais. N�o podes falar disto com ningu�m, at� que eu decida o contr�rio.
- Mostraste-me agora porque na tua opini�o profissional j� avaliaste que assentei as ideias.
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- Qualquer coisa do g�nero.
Ela fechou os olhos. - �s cauteloso, n�o �s? Profissionalmente, pessoalmente. Para ti � quase a mesma coisa, o envolvimento.
Ele n�o respondeu e ela abriu os olhos. - N�o adianta atirar-te com uma cambada de tretas, se achas que fizeste o mais correcto. Provavelmente at� foi.
Sabendo que n�o ia aceitar a situa��o com facilidade, colocou o vinho de lado. - O que � que Coben acha?
- Nesta altura, � mais o que � que os superiores dele acham. A teoria � que Max matou Galloway, e depois matou o terceiro homem. Quando descobriram o corpo do teu
pai, o medo da exposi��o e o remorso levaram-no ao suic�dio.
- � isso que vai ficar registado, encerrado, qualquer que seja o jarg�o de pol�cia para isso.
- Acho que sim.
- Pobre Carrie. - Inclinou-se para a frente e pousou as p�ginas na secret�ria dele. - Pobre Max. Ele n�o matou Patrick Galloway.
- N�o, - disse Nate e voltou a fechar a pasta. - N�o matou.
21.
Encheram a C�mara Municipal para o funeral de Max Hawbaker. Era o �nico s�tio com dimens�es suficientes para tanta gente. Era interessante para Nate ver quantas
pessoas haviam aparecido, com a roupa de trabalho ou de domingo, fatos do Alasca ou botas de p�lo. Compareceram porque se tratava de um deles, e a mulher e os filhos
ainda eram. Compareceram, pensava Nate, quer achassem que ele era um her�i de pequena vila ou um assassino.
E muitos acreditavam na �ltima possibilidade. Nate percebia nos seus olhos, ou ouvia em peda�os de conversas. Acabava por ignorar.
Max foi homenageado com carinho e humor, e o nome de Patrick Galloway foi atenciosamente omisso de qualquer declara��o p�blica.
E chegou ao fim. Alguns voltaram ao trabalho, outros foram at� casa de Carrie para aquilo que ele sempre viu como a repeti��o p�s-funeral.
Nate voltou ao trabalho.
Charlene armou uma emboscada a Meg, assim que ela come�ou a descarregar as encomendas do avi�o. Pegou-lhe no bra�o, afastando-a para longe de Jacob. - Tenho de o
ver.
- Quem?
273
- Sabes quem. Quero que me leves a Anchorage, � casa funer�ria onde o corpo dele vai ficar at� � Primavera. Tenho esse direito.
Meg analisava o rosto de Charlene. - Pois, mas n�o posso. J� � muito tarde para voar hoje para Anchorage e tenho mais trabalhos agendados. A Iditarod est� a� � porta.
As pessoas querem acompanhar o percurso a voar, tirar fotografias.
- Tenho o direito...
- Porque � que te lembraste agora?
- L� porque n�o cas�mos n�o quer dizer que eu n�o era a mulher dele. A sua mulher a s�rio, tal como Carrie era de Max.
- Oh, merda. - Meg caminhou em dois c�rculos apertados. - Sabes, achei que mostraste muita classe em ires ao funeral, olhares Carrie nos olhos e dares-lhe os teus
sentimentos. E aqui est�s agora, com uma birra danada, porque ela foi o centro das aten��es.
- N�o � nada disso. - Ou seria apenas uma parte, admitia Charlene. - Quero e vou v�-lo. Se n�o me levares, chamo o Jerk de Talkeetna, e pago-lhe para me levar.
- Desde o funeral de Max que est�s a pensar nisto, n�o �? A pensar e a matutar desde essa altura. Para qu�, Charlene?
- Tu j� o viste.
- Um ponto a meu favor.
- Como � que vou saber que ele partiu? Como vou saber se n�o vir com os meus pr�prios olhos? Tal como Carrie viu Max.
- N�o te posso levar.
- Obrigas-me a ir com um estranho?
Meg olhou para tr�s, para o rio. Come�ara a encher. Rachas e falhas no gelo em movimento que fizeram subir o n�vel da �gua por baixo do gelo, numa camada mais fina.
Era perigoso, uma vez que o gelo novo parecia igual ao restante e facilmente se partia, levando atr�s quem estivesse em cima dele.
O que pensamos ser seguro pode matar.
Havia avisos escritos � m�o. Sabia ser obra de Nate. Era um homem que sabia tudo sobre gelo fino e dos perigos do que parecia seguro e normal.
- Ficas satisfeita com uma imagem? Uma fotografia?
- O que queres dizer?
Virou-se para ela de novo. - Se te trouxesse uma fotografia dele, era suficiente?
- Se podes ir l� tirar uma fotografia, porque � que...
- N�o � preciso l� ir. Nate tem fotografias. Posso arranjar uma e trazer.
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- Agora?
- N�o, agora n�o. - Tirou o bon� e passou os dedos pelo cabelo. - Ele era capaz de n�o gostar. S�o provas, ou coisa assim. Mas arranjo-a hoje � noite. Podes v�-la,
ficas satisfeita e depois devolvo-a.
� porta da esquadra, Meg procurava as chaves e encontrou a que tinha a etiqueta DP. Deixara Nate a dormir, na esperan�a de que se mantivesse assim, at� ela voltar.
N�o queria explicar-lhe aquele �nfimo peda�o de insanidade.
Entrou e tirou a luz de bolso. Parte de si queria bisbilhotar e apreciar a sensa��o de estar onde n�o devia. Mais ainda, ela queria despachar o que fora fazer e
voltar para a cama.
Foi directo para o gabinete de Nate. Ali arriscou acender as luzes do candeeiro, carregando no interruptor antes de se dirigir ao quadro de corti�a tapado.
Tirou o cobertor com cuidado. Deixou-o cair ao ch�o, ao sentir as m�os amolecer, dando um passo atr�s, em jeito de retirada.
J� vira a morte antes e sabia de antem�o que n�o era uma coisa bonita. Mas aquelas fotos chocantes e expl�citas de Max Hawbaker cortaram-lhe a respira��o.
Era melhor n�o pensar nisso, pelo menos por enquanto. Era melhor tirar a fotografia do pai, cuja morte parecia agora t�o mais limpa, e lev�-la a Charlene.
Guardou a fotografia no bolso do casaco, apagou as luzes e voltou pelo mesmo caminho.
Charlene estava no quarto dela, e foi abrir a porta num roup�o floral. Sentia o cheiro a u�sque, fumo e perfume.
- � melhor estares sozinha, - disse Meg.
- E estou. Mandei-o dar uma volta. Onde � que est�? Conseguiste?
- Podes v�-la, mas depois tenho de a levar e n�o quero mais ouvir falar deste assunto.
- Deixa-me ver. Deixa-me v�-lo.
Meg tirou a fotografia. - N�o, n�o lhe podes tocar. Ainda a amassas, ou coisa assim. Nate ia perceber. - Virou a foto para ela.
- Oh. Oh. - Charlene recuou, tal como Meg diante do quadro de corti�a. - C�us. N�o! - Esticou a m�o para impedir que Meg a guardasse.
- Tenho de...
Avan�ou mais um pouco e, perante o olhar de aviso de Meg, enla�ou as m�os atr�s das costas. - Ele... parece que est� na mesma. Como � poss�vel? Parece na mesma.
Todos estes anos, e est� na mesma.
- N�o teve a oportunidade de mudar.
275
- Deve ter sido r�pido, n�o achas? S� pode ter sido r�pido, n�o?
- Sim.
- Ele levava essa parca vestida, quando partiu. Era o que tinha vestido da �ltima vez que o vi. - Virou-se e apoiou os cotovelos nas m�os. - Agora vai-te embora.
- Estremeceu e levou as duas m�os � boca. - Meg, - come�ou e virou-se.
Mas Meg j� se tinha ido embora.
Sozinha, Charlene entrou na casa de banho, acendeu a luz e estudou-se alumiada por aquele clar�o.
Ele estava na mesma, voltou a pensar. T�o jovem.
Ela n�o. Nunca mais.
Era Mar�o no Alasca, mas os dias mais compridos n�o o faziam pensar na Primavera que se avizinhava, por mais que o calend�rio se aproximasse do dia oficial.
Nate acordava agora em plena luz do dia, e muitas vezes do lado esquerdo da cama de Meg. Quando caminhava pela vila, via melhor os rostos das pessoas e menos capuzes
protectores.
Contudo, os ovos de pl�stico pendurados nos ramos das �rvores salpicadas de neve, os coelhinhos de pl�stico aninhados em tapetes de relva branca n�o o faziam pensar
na Primavera.
Mas o seu primeiro degelo, sim.
Observava, com uma esp�cie de maravilha estonteada, as pequenas rachas crescerem na serpente gelada do rio, como fechos sem norte. Ao contr�rio da subida das �guas,
agora n�o enchia nem congelava. Ficou t�o espantado que ficou vinte minutos parado a olhar, at� regressar para o escrit�rio.
- O rio est� cheio de rachas, - disse a Otto.
- S�rio? Ainda � cedo para o degelo, mas tivemos um Inverno ameno.
Talvez, pensava Nate, se vivesse em Lunacy, oh, cem anos, pensasse que alguns dias a quatro graus com humidade, ou uns fresquinhos abaixo de dez eram um clima ameno.
- Quero que afixem avisos. N�o quero ver uma data de mi�dos a jogar h�quei e a cair no lago gelado.
- Os mi�dos t�m mais ju�zo do que...
- Quero que afixem avisos, como fizemos para a subida das �guas, mas mais refor�ado. D� uma olhadela na Loja da Esquina, para ver se t�m mais cart�o para os letreiros.
A Peach ou o Peter depois escrevem. Ah, "Proibido patinar, gelo fino".
- N�o � assim t�o fino que...
- Otto, arranje-me s� meia d�zia de letreiros.
276
Resmungou, mas l� foi. E Nate reparou que os l�bios de Peach estavam apertados num sorriso que tentava oprimir.
- O que foi?
- Nada. Absolutamente nada. Acho uma �ptima ideia. Revela que nos preocupamos com os nossos cidad�os, e a ordem. Mas acho que pod�amos s� escrever "Degelo, n�o pise".
Escreva o que achar melhor. Mas escreva. - Avan�ou pela esquadra para sair pelas traseiras e ver o que podia usar como patins. - E n�o deixe que seja Otto a escrever.
Depois da satisfa��o de saber que estavam a tratar dos avisos, escreveu e imprimiu folhetos no computador e foi distribu�-los.
Afixou-os nos correios, no banco, na escola, at� decidiu dar um salto � A Estalagem.
L� dentro, Bing apareceu, leu por tr�s do ombro dele, e roncou.
Sem dizer nada, Nate leu as pr�prias palavras.
DEGELO EM CURSO. PROIBIDO PATINAR, CAMINHAR OU QUALQUER ACTIVIDADE NO RIO, POR ORDEM DO DEPARTAMENTO DE POL�CIA DE LUNACY.
- Nota algum erro ortogr�fico, Bing?
- N�o. S� estava a imaginar quem � que pensa ser est�pido ao ponto de ir patinar no rio durante o degelo.
- O mesmo g�nero de pessoa que salta de um telhado para ver se consegue voar, depois de ler a banda desenhada do Super-homem. Quanto tempo � que demora o degelo?
- Depende, n�o �? O Inverno come�ou cedo, agora acontece o mesmo com a Primavera. Por isso, vamos ver. O rio degela todos os santos anos, assim como o lago. N�o
� novidade nenhuma.
- Se um puto andar por l� na brincadeira e cair no gelo, somos bem capazes de ir a outro funeral.
Bing apertava os l�bios, pensativo, enquanto Nate sa�a para a rua de novo.
Ainda tinha folhetos nas m�os quando viu o movimento na montra d'O Lun�tico.
Atravessou a rua e constatou que a porta estava trancada. Bateu.
Carrie analisou-o pelo vidro por instantes, mas depois abriu.
- Carrie. Gostava que afixasse este aviso numa das suas montras. Ela pegou no papel, leu e voou at� � secret�ria para buscar fita-cola.
- Vou j� afix�-lo.
277
- Agrade�o. - Olhou em redor. - Est� sozinha?
- Estou.
Entrevistara-a duas vezes depois do funeral e sempre os seus pensamentos e respostas haviam sido vagos e pouco firmes. Tentara dar-lhe tempo, mas o tempo passava.
- J� se conseguiu lembrar de mais pormenores daquele Fevereiro?
- Tentei pensar nisso, anotar alguma coisa, como me disse, em casa. - Afixou o folheto, virado para fora, na montra. - N�o o consegui fazer aqui. N�o consegui em
casa dos meus pais, para onde levei os mi�dos para passar umas semanas. N�o sei porqu�. N�o consegui recolher as ideias ou anotar as palavras. Por isso vim para
aqui. Achei que talvez...
- N�o tem import�ncia.
- N�o tinha a certeza de conseguir vir c�. Sei que Hopp e mais algumas mulheres vieram... limpar depois de... quando tiveram permiss�o, mas n�o tinha a certeza de
conseguir entrar aqui.
- � duro. - Ele voltara para o beco, for�ando-se a recuar. E tudo o que sentia era um desespero inerte.
- Tinha de voltar. J� n�o sai um jornal desde... h� muito tempo. Max trabalhava muito, e isto significava tanto para ele.
Virou-se, respirando fundo v�rias vezes ao olhar em redor da sala.
- Na verdade, n�o se parece com nada. Nem sequer parece um jornal a s�rio. Eu e Max fomos para Anchorage, Fairbanks, at� Juneau, para visitar um jornal de verdade,
salas de imprensa a s�rio. Os olhos dele iluminaram-se. Aqui n�o temos muitas condi��es, mas ele orgulhava-se.
- N�o concordo consigo. Na minha opini�o � bastante bom.
Ela esfor�ou-se por sorrir, acenando com brusquid�o. - Vou mant�-lo a funcionar. Foi algo que decidi hoje. Hoje mesmo, antes de voc� chegar. A princ�pio pensei em
desistir, que sem ele n�o era capaz. Mas quando hoje cheguei aqui, percebi que tinha de continuar. Vou montar uma edi��o, quero ver se O Professor tem tempo para
me ajudar. Talvez conhe�a alguns mi�dos que queiram trabalhar, ganhar experi�ncia como jornalistas.
- Isso � bom, Carrie. Folgo muito em saber.
- Vou anotar algo para si, Nate, prometo. Vou recordar e tentar lembrar-me. Sei que queria dar uma vista de olhos nos pap�is dele, e assim. Ainda n�o consegui entrar
no gabinete.
Ela n�o precisava de ir ao escrit�rio das traseiras para Nate saber que ela se estava a referir � sala onde havia encontrado Max.
- Mas pode, se quiser.
A Pol�cia Estadual estivera na sala, pensava Nate. Ainda queria dar uma vista de olhos, mas n�o agora. N�o quando algu�m que passasse por ali podia ver que ele estava
l� dentro, e come�asse com perguntas.
278
- Depois volto para vermos isso. Ele tinha um escrit�rio em casa?
- Um pequenino. Ainda n�o mexi nas coisas dele. Estou sempre a adiar.
- Est� algu�m em sua casa agora?
- N�o. Os mi�dos est�o na escola.
- Importa-se se eu for l� agora, dar uma vista de olhos? Se precisar de levar alguma coisa, deixo-lhe um bilhete.
- Fique � vontade. - Ela foi buscar a mala e tirou as chaves de uma argola. - Esta � da porta das traseiras. Fique com ela o tempo que precisar.
Ele n�o queria estacionar � porta da casa de Hawbaker. Muita gente gostava de comentar algo t�o insignificante.
Em vez disso, estacionou junto � margem do rio. N�o viu quaisquer fendas no gelo e perguntou-se se n�o se teria precipitado com os avisos na vila. Fez o resto do
caminho a p�, ao longo de um carreiro no bosque. Ali estava mais frio, pensou, muito mais debaixo das �rvores onde o Sol n�o chegava. Havia rastos, de snowmobiles,
de skis. Uma equipa de corta-mato, concluiu, do liceu. Reparou noutros rastos que n�o eram humanos, na esperan�a de que n�o fosse dar de caras com o alce que afugentara.
N�o sabia o suficiente sobre eles para ter a certeza que n�o guardavam ressentimentos.
A neve estava mais profunda do que antecipara, o que o levou a arrepender-se por n�o ter levado os sapatos de neve. Por isso, fez os poss�veis por usar os trilhos.
Viu uma sombra que pensou ser de uma raposa e, ao parar para recuperar o f�lego, avistou uma manada de renas de p�lo comprido. Avan�avam, a n�o mais de quatro metros
a norte. S� podia presumir que estava contra o vento, uma vez que nem sequer sentiram a sua presen�a. Ficou a observ�-las at� seguirem caminho, perdendo-as de vista.
Continuou at� � porta das traseiras de Carrie, passando pelo que parecia um jardim ou uma casa de ferramentas, em redor do edif�cio, que seria o seu dep�sito. Algu�m
arrumara o quintal das traseiras e havia uma pilha de lenha, tapada com um pl�stico, junto � porta.
Usou a chave e entrou para um misto de sala de cal�ado e �rea de roupas. Como tinha as botas molhadas e cheias de neve, livrou-se delas e do casaco.
A cozinha estava limpa, quase a brilhar. Talvez fosse isso que as mulheres faziam, ou algumas mulheres, quando tentavam ultrapassar o luto. Agarravam no balde e
na esfregona. No pano de polir, pensava, enquanto avan�ava pela casa, no aspirador. N�o havia uma centelha de p� a apontar. Nem sequer a desarruma��o normal da vida
di�ria.
279
Talvez fosse essa a ideia. Ainda n�o estava pronta para viver.
Subiu as escadas, identificou o quarto das crian�as pelos posters na parede, a desordem pelo ch�o. Pelo menos por agora, ignorou o quarto de casal, onde a cama havia
sido feita com todo o cuidado e uma manta bordada � m�o pousada sobre as costas de uma poltrona.
Ser� que ela dormia ali, sem vontade, incapaz de se deitar na cama que partilhara com o marido?
Ao lado do quarto ficava o escrit�rio de Max. Era ali que reinava a desarruma��o, o p� e a confus�o da vida di�ria. A cadeira da secret�ria ostentava uma risca de
fita-cola ao longo de uma costura, numa repara��o t�pica de homem. A secret�ria estava riscada e velha, obviamente uma aquisi��o em segunda ou terceira m�o. Mas
o computador parecia novo ou muito bem cuidado.
Havia um calend�rio de secret�ria, num desses cubos, que seguia um tema e apresentava uma fotografia e uma frase todos os dias. O de Max era sobre a pesca, e mostrava
um cartoon de um homem a segurar uma cana de pesca min�scula, a afirmar que parecia maior quando o peixe fisgava.
A data dizia dezanove de Janeiro. Max n�o chegou a fazer a viagem de regresso a casa, para a rasgar e mostrar a piada do dia seguinte.
N�o tinha qualquer mensagem escrita, nenhuma pista oportuna, como: Encontro [inserir nome do assassino] � meia-noite.
Nate baixou-se para vasculhar no balde do lixo por baixo da secret�ria. Encontrou v�rias folhas do calend�rio, algumas com anota��es.
ARTE IDITAROD - C�O POV?
TORNEIRA WC PINGAR. CARRIE LIXADA. ARRANJAR!
E a folha da v�spera da sua morte, a que estava cheia de rabiscos e uma palavra: PAT.
Nate pegou nela e pousou-a sobre a mesa. Encontrou v�rios envelopes que indicavam que Max estivera ali sentado, a pagar as contas num dia pouco antes de morrer.
Vasculhou as gavetas da secret�ria, encontrou um livro de cheques - $250,06 no balancete depois do acerto de contas - dois dias antes de morrer. Tr�s cadernetas
banc�rias de contas de poupan�a. Uma para cada um dos filhos, uma conjunta dele e da esposa. Tinha com Carrie um p�-de-meia com $6010.
Havia envelopes, etiquetas com endere�os de remetente. El�sticos, clipes, uma caixa de agrafos. Nada de extraordin�rio.
Na �ltima gaveta encontrou quatro cap�tulos de um manuscrito. A primeira p�gina identificada como:
280
VAGA DE FRIO
romance
De Maxwell T. Hawbaker
Nate pousou-o sobre a mesa e levantou-se para pesquisar na prateleira ao longo da parede. � pilha que j� acumulara, Nate acrescentou uma caixa de disquetes e um
livro de recortes com artigos de jornais.
De seguida sentou-se para testar as suas capacidades inform�ticas.
N�o estava protegido com palavra-passe, o que lhe dizia que Max pensava n�o ter nada a esconder. Uma olhadela aos documentos levou-o a uma folha de c�lculo em que
Max listara com min�cia a hipoteca e as datas dos pagamentos. Era um homem de fam�lia, pensava Nate, respons�vel com o dinheiro.
Nada que encontrasse nas finan�as mostrava somas avultadas, nem nada fora do normal. Se Max andava a chantagear o seu assassino, n�o registara a quantia nas contas
do m�s.
Encontrou mais partes do romance e o in�cio de mais dois. Uma breve passagem de olhos pelas disquetes revelou que Max fizera intencionalmente uma c�pia deles. Havia
poucos s�tios nos favoritos - quase sempre tinha de digitar os endere�os.
Encontrou algumas mensagens de correio electr�nico: amigos da pesca, respostas de algumas pessoas por causa dos c�es de tren�. Follow-ups, presumia Nate, sobre o
planeado artigo sobre a Iditarod.
Passou uma hora a repass�-los, mas sem sobressair nada que gritasse pista!
Recolhendo o que conseguira, levou-o at� � sala da entrada onde confiscou uma caixa vazia e guardou tudo.
Vagueou pela cozinha. O calend�rio da cozinha tinha um tema relacionado com p�ssaros. Ningu�m pensara ou se incomodara a vir�-lo para Fevereiro, quanto mais para
Mar�o.
Mais de metade dos quadradinhos tinha anota��es. Reuni�o de pais, treino de h�quei, entrega do relat�rio do livro, consulta no dentista. Rotina familiar normal.
A consulta no dentista fora de Max, reparou Nate, e estava marcada para dois dias ap�s a data de falecimento.
Dobrou-o e perscrutou Fevereiro e Mar�o. Reparou que tamb�m tinha muitas anota��es, com VOU PESCAR em letras mai�sculas por cima da segunda semana de Mar�o.
Nate deixou a p�gina cair de novo. Rotina, normal, comum.
Mas havia aquela p�gina do calend�rio que recolhera do lixo no primeiro andar, com PAT escrito.
281
Quatro pares de sapatos de neve estavam pendurados na sala da entrada.
Analisando-os, cal�ou as botas, vestiu o casaco, agarrou na caixa e saiu.
Estava de regresso ao bosque, enterrado em neve at� aos tornozelos, quando o tiro ecoou no sil�ncio. Instintivamente, largou a caixa para o ch�o e procurou a arma
debaixo do casaco. Ao agarr�-la, viu um clar�o no bosque. Um veado sozinho, de grande porte, chifres enormes, saltou para o seu campo de vis�o e continuou num salto
galopante.
Com o cora��o aos pulos, Nate come�ou a mover-se na direc��o de onde o veado viera. Chegara aos dez metros quando a silhueta tomou forma por entre as �rvores, bem
como a arma enorme que carregava.
Ficaram por instantes numa imobilidade espelhada, cada qual com a sua arma em punho. Depois, a silhueta ergueu a m�o esquerda, puxando o capuz para tr�s.
- Sentiu o seu cheiro, - disse Jacob. - Assustou-se e fugiu assim que disparei. Claro que falhei.
- Falhou, - repetiu Nate.
- Queria levar carne a Rose. O David n�o tem conseguido ca�ar ultimamente. - Baixou o olhar, devagar e de forma deliberada, para o bra�o de Nate. - Costuma ca�ar,
Comandante Burke?
- N�o. Mas quando ou�o um tiro, n�o vou ver quem � que disparou desarmado.
Num gesto �bvio, Jacob carregou na patilha de seguran�a. - J� encontrou, e eu vou para casa sem carne.
- Desculpe.
- � o dia do veado, n�o o meu. Sabe o caminho de volta?
- Sou capaz de o encontrar.
- Ent�o, est� bem. - Jacob acenou, virando-se e movimentando com graciosidade e facilidade nos sapatos de neve, fundindo-se novamente por entre as �rvores.
Nate manteve a arma � vista ao regressar, ao recolher a caixa que largara. S� quando voltou para o carro � que voltou a guardar a arma no coldre.
Foi at� casa de Meg para guardar a caixa no fundo de um arm�rio. Era algo que tinha de conseguir deslindar a seu pr�prio tempo. Uma vez que tinha as cal�as molhadas
nos joelhos, mudou de roupa e depois foi at� ao lago com os c�es, para ver se havia sinais de arrombamento, antes de regressar � vila.
- Os avisos j� est�o afixados, - informou Otto.
- Estou a ver que sim.
282
- j� tivemos duas queixas hoje, a dizer que n�o nos dev�amos meter onde n�o somos chamados.
- � preciso ir falar com algu�m?
- N�o.
- Tem duas chamadas, Comandante, de jornalistas. - Peach bateu com o bloco cor-de-rosa dos recados no balc�o. - Acerca de Pat Galloway e Max. Dizem que querem uma
actualiza��o.
- Primeiro t�m de me apanhar. Peter ainda est� na patrulha?
- Deix�mo-lo ir almo�ar. Estava na hora dele. - Otto co�ava o queixo. - Pedi para si uma sandu�che italiana.
- Que bom, obrigado. Acha que um homem ia ca�ar a tr�s, cinco quil�metros da sua casa, quando tem hectares de terreno de ca�a onde vive?
- Depende, n�o acha?
- De qu�?
- Para come�ar, do que � que andava � ca�a.
- Pois, se calhar depende mesmo disso.
As rachas no rio aumentaram e alongaram � medida que as temperaturas subiam acima do ponto de congela��o. Nas margens, Nate teve o primeiro vislumbre do brilho frio
e azul profundo por entre a centelha branca. Fascinado, observava-o a aumentar e ouvia o que mais parecia fogo de artilharia. Ou o punho esmagador de Deus.
Placas de gelo destacavam-se, alagadas e rodeadas pelo azul, flutuando placidamente, como uma ilha rec�m-nascida.
- H� no primeiro degelo algo de quase religioso, - comentou Hopp, ao juntar-se a ele.
- O meu primeiro degelo foi com Pixie Newburry, e foi mais traum�tico do que religioso.
Hopp ficou em sil�ncio, enquanto o gelo estalava e ressoava. - Pixie?
- Sim. Tinha uns olhos enormes amendoados, por isso toda a gente lhe chamava Pixie. Largou-me por um puto cujo pai tinha um barco. Foi a minha primeira onda num
mar de cora��es partidos.
- Parece-me muito f�til. Ficou melhor sem ela.
- Aos doze anos n�o pensava assim. Nunca pensei que isto acontecesse t�o depressa.
- Assim que a natureza decide agir, n�o h� como a parar. Pode apostar que ela ainda vai ripostar com algumas chapadas de Inverno antes de se retirar. Mas o degelo
� uma �poca de celebra��o por aqui. Vamos organizar uma festa informal para o degelo hoje � noite n'A Estalagem. Era bom que aparecesse tamb�m.
283
- Ok.
- Tem passado mais tempo em casa de Meg do que n'A Estalagem, no que diz respeito a dormidas. - Sorriu, ao ver que ele se limitava a fit�-la. - Fala-se no assunto,
aqui e ali.
- As minhas dormidas s�o um problema, em termos oficiais?
- Na verdade, n�o. - Colocou a m�o em concha sobre um cigarro, usando um grande isqueiro Zippo para o acender. - A um n�vel pessoal, diria que Meg Galloway n�o �
nenhuma Pixie Newburry. Tamb�m se tem comentado, por aqui e por ali, que as luzes est�o acesas at� muito tarde na casa de Meg.
- Talvez tenhamos ins�nias. - Tal como a Presidente, lembrava-se Nate. E o di�rio de Galloway n�o se referia a nenhuma mulher na montanha. - Estou a investir algum
tempo no caso Galloway.
- Estou a ver. - Fitava o azul do rio e a batalha do branco. - A maior parte das pessoas vai pescar, ler um livro interessante ou ver TV nos tempos livres.
- Os pol�cias n�o s�o a maior parte das pessoas.
- Voc� faz o que lhe apetece, Ignatious. Conhe�o os planos de Charlene trazer Pat para o enterrar aqui, assim que puder. Quer fazer um funeral de pompa e circunst�ncia.
Em breve a terra ter� amaciado o bastante para que aconte�a l� para Junho, a n�o ser que o gelo ainda dure mais tempo.
Inalou o fumo e expeliu-o pela boca. - Parte de mim deseja que assim aconte�a. Enterram-se os mortos e os vivos t�m de viver. � dif�cil para Carrie, eu sei, mas
se continuar com esta situa��o, n�o vai trazer o marido dela de volta.
- N�o acredito que ele tenha matado Galloway. E n�o acredito que se tenha suicidado.
O rosto dela permaneceu totalmente im�vel, os olhos fixos no rio agitado. - N�o � isso que quero ouvir. Que Deus tenha piedade de Carrie, mas n�o � isso que quero
ouvir.
- Ningu�m quer ouvir que talvez seja vizinho de algu�m que j� matou por duas vezes.
Nessa altura ela estremeceu, numa agita��o violenta, dando baforadas no cigarro. Inalava o fumo com empenho, expelindo-o em nuvens s�bitas. - Conhe�o as pessoas
que moram na porta ao lado da minha e a dois ou tr�s quil�metros de dist�ncia. Conhe�o-lhes a cara, o nome e os h�bitos. N�o conhe�o nenhum assassino, Ignatious.
- Conhecia Max.
- Oh, c�us.
- Subiu a montanha com Galloway.
284
Os olhos dela agu�avam-se agora e concentravam-se no rosto dele.
- Isso � uma pergunta?
- N�o, apenas um coment�rio.
Respirou fundo enquanto o gelo rachava. - Subimos, eu e o meu homem. Gostei muito, do desafio, da emo��o, nos meus tempos de juventude. Eu e Bo �ramos mais adeptos
de caminhada, de uma bela noite a acampar com bom tempo nos �ltimos anos que ele teve de vida. Em que Bo estava vivo, - disse ela.
- Em quem confiava mais, quando estava na montanha? Em quem � que Galloway confiava?
- Em si pr�prio. Essa � a primeira regra do alpinismo. � melhor confiar em si mesmo em primeiro e �ltimo lugar.
- Nessa altura o seu marido era presidente.
- Naquele tempo era mais um representante oficial.
- Mesmo assim, conhecia as pessoas por aqui. Prestava aten��o. Aposto que voc� tamb�m.
- E?
- Se tentar lembrar-se, pense bem naquele Fevereiro de 1988, talvez se lembre quem, al�m de Galloway, n�o estava em Lunacy. Quem se ausentou por uma semana ou mais.
Atirou o cigarro para o ch�o, onde se apagou com o contacto com a neve. Em seguida, com o p�, tapou-o com neve para o enterrar. - D� demasiado cr�dito � minha mem�ria,
Ignatious. Vou pensar nisso.
- �ptimo. Caso se lembre de alguma coisa, venha ter comigo. S� comigo, Hopp.
- A Primavera est� a�, - disse Hopp. - E a Primavera pode ser uma treta.
Afastou-se, deixando-o junto ao rio. Ele ali ficou, com o vento gelado, a observar aquele rio regressar � vida.
22.
N�o era apenas o gelo do rio que estalava e flutuava durante o degelo. As ruas, geladas durante o longo Inverno, rebentavam com fissuras do tamanho de desfiladeiros
e covas largas o bastante para engolir um cami�o.
N�o surpreendia Nate que Bing fosse detentor do contrato de repara��o e manuten��o das estradas. O que o surpreendia era que ningu�m parecia importar-se mesmo nada
que a repara��o e manuten��o avan�asse ao ritmo de um caracol ocioso.
Tinha mais com que se preocupar.
285
Descobriu que as pessoas tamb�m quebravam. Algumas que haviam mantido a sua sanidade nas trevas, no Inverno implac�vel, pareciam achar que a descontrac��o da Primavera
era uma boa altura para a deixar para tr�s.
As suas celas eram portas girat�rias de b�bedos, desordeiros, conflitos dom�sticos e os meros drogados.
O som de trombetas a ecoar e assobios levou-o � janela do quarto logo ap�s a aurora. Ca�ra uma fina camada de neve durante a noite, pouco mais do que uma centelha
que repousava transparente e brilhante nas ruas e nos passeios sob o Sol nascente.
As luzes nas barricadas em redor do buraco de sessenta cent�metros, que apelidara de Cratera Lun�tica, piscavam em vermelho e amarelo. � volta dessas luzes que piscavam
viu um homem a dan�ar o que lhe parecia ser uma giga. J� era surpreendente para entretenimento ao nascer do Sol, mas o facto de o homem estar nu em p�lo s� ajudava
a um certo carnaval.
J� se havia juntado uma multid�o. Alguns batiam palmas, talvez para marcar o ritmo, especulava Nate. Outros gritavam, incitamento ou irris�o em igual medida.
Suspirando, Nate limpou o rosto meio barbeado com a toalha, pegou numa camisa e nos sapatos e desceu as escadas.
A sala de jantar estava deserta, com alguns pratos de pequenos-almo�os meio comidos, como testemunho do poder de atrac��o de um tipo nu a dan�ar na Lunatic Street.
Nate tirou um casaco do cabide e saiu em mangas de camisa.
Assobiavam e batiam com os p�s, na temperatura da aurora que Nate julgava ainda n�o ter passado o ponto de congela��o. Abriu caminho pela multid�o aglomerada. Reconhecia
agora o dan�arino. Tobias Simpsky, funcion�rio empart-time da Loja da Esquina, lavador de pratos empart-time d'A Estalagem, disk-jockey em part-time da Lunacy Radio.
Transformara a giga numa esp�cie de dan�a de guerra indiana ao estilo dos westerns.
- Comandante. - Rose, com Jesse pela m�o e a beb� aninhada junto ao seu peito, sorria com serenidade. - Que bela manh�.
- Sem d�vida. Hoje celebra-se alguma festividade? Algum ritual pag�o que me tenha escapado?
- N�o. S� na quarta-feira.
- Ok. - Passou pelos curiosos. - Hei, Toby? Esqueceste-te do chap�u esta manh�?
Ainda a dan�ar, Toby atirou para tr�s o cabelo castanho comprido e lan�ou os bra�os � frente. - A roupa n�o passa de um s�mbolo da nega��o do homem perante a sua
natureza, da sua aceita��o de restri��es e perda da
286
inoc�ncia. Hoje, entro em comunh�o com a natureza! Hoje abra�o a minha inoc�ncia. Sou um homem!
- Mal se nota, - gritou algu�m, dando uma boa gargalhada � multid�o.
- Porque � que n�o vamos conversar sobre isso? - Nate pegou-lhe no bra�o e conseguiu passar-lhe o casaco � frente das ancas.
- O homem � uma crian�a, e uma crian�a vem nua ao mundo.
- J� ouvi dizer. Acabou o espect�culo, - gritou Nate. Tentou prender o casaco enquanto conduzia Toby pela rua. O homem ostentava pele de galinha cor de uva em cada
mil�metro da sua pele exposta. - Tamb�m n�o h� assim muito para ver, - murmurou entre dentes.
- S� bebo �gua, - informou Toby. - S� como o que recolho com as minhas pr�prias m�os.
- J� percebi. Ficas sem caf� e donuts.
- Se n�o dan�armos, a escurid�o regressa, assim como o frio do Inverno. A neve. - Olhou em redor, com uma express�o tresloucada. - Est� em todo o lado. Est� em todo
o lado.
- Eu sei. - Levou-o para dentro, para uma cela. Imaginando que Ken era o mais parecido que conhecia com um psiquiatra, contactou-o para solicitar uma consulta ao
domic�lio.
Na cela ao lado, Mike B�bedo ressonava, dormindo para curar a bebedeira que o levara a vaguear pela casa de um vizinho, em vez de pela sua, na noite anterior.
Incluindo o Mike B�bedo, tivera seis chamadas entre as onze e as duas horas. Pneus cortados na carrinha de Hawley, um r�dio port�til aos altos berros deixado � porta
de Sarrie Parker, janelas partidas na escola, mais graffiti amarelo no novo Ski-doo de Tim Bower e no Ford Bronco de Charlene.
Aparentemente, s� a ideia da Primavera deixava os nativos de nervos em franja.
Pensava em tomar um caf�, no pequeno-almo�o que n�o degustara, no que levava um homem a dan�ar nu numa rua coberta de neve, quando Bing entrou a bater com a porta.
Era enorme como um tanque e parecia empenhado em cometer um homic�dio.
- Encontrei isto no meu equipamento. - Bateu com duas canas de pesca em cima do balc�o e agarrou na sonda, que mais parecia uma espada retorcida, antes de bater
com ela tamb�m. - N�o sou nenhum ladr�o, por isso acho bem que descubra quem as enfiou l� dentro, para me deitar com as culpas em cima.
- � o material de Ed Woolcott?
- O nome dele est� gravado na porcaria das canas, n�o est�? � mesmo daquela besta, mandar gravar o nome a prata numas canas de pesca
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caras como o raio. Estou a dizer-lhe j� que n�o vou admitir que ele diga que fui eu que as roubei. Se o fizer, dou-lhe cabo do canastro.
- Onde � que estavam?
Fechou as m�os em punhos. - Nem tente dizer que fui eu que as roubei, sen�o tamb�m dou cabo do seu.
- N�o disse que as roubou, s� perguntei onde as encontrou.
- No meu barrac�o. Sa� ontem � noite. Ia arrumar o barrac�o por causa da mudan�a de esta��o. Foi l� que as encontrei. Matutei sobre o que havia de fazer, e tomei
esta decis�o. - Espetou um dedo a Nate. - Agora, fa�a o que tem a fazer.
- Quando foi a �ltima vez que esteve no seu barrac�o, antes da noite passada?
- Andei muito ocupado, sabe? Talvez h� umas semanas. Se estivessem l�, de certeza que n�o me tinham escapado, como aconteceu agora. N�o uso esse equipamento amaricado.
- Que tal vir at� ao meu gabinete, Bing, para se sentar um bocado? Voltou a cerrar as m�os em punhos, cerrando os dentes. - Para qu�?
- Vai prestar um depoimento oficial. Acerca dos pormenores, para saber se reparou se mexeram em mais alguma coisa, se deixaram ou tiraram mais alguma coisa, se o
barrac�o estava trancado, quem poderia querer tram�-lo � grande.
Bing franziu o sobrolho. - Vai ter de se ficar pela minha palavra?
- � verdade.
Bing co�ou o queixo coberto de barba. - Ent�o, est� bem. Mas vai ter de ser r�pido. Tenho que ir trabalhar, n�o �?
- � r�pido. E veja l� se arranja aquela cratera na Lunatic, antes que engula uma fam�lia inteira.
Uma vez que Bing era homem de poucas palavras, o depoimento demorou menos de dez minutos.
- Voc� e Ed t�m alguns assuntos em comum, que eu deva saber?
- Guardo dinheiro no banco dele, e vou levantando conforme preciso.
- Costumam socializar?
A resposta de Bing foi um ronco. - N�o me convida para jantar na casa dele, e se convidasse, eu n�o ia.
- Porqu�? A mulher dele cozinha assim t�o mal?
- Gostam de se dar ares, os dois, como se fossem melhores do que os outros. Ele � um idiota, mas metade da popula��o do mundo tamb�m o �. - Encolheu os ombros massivos.
Era como observar uma montanha a espregui�ar-se. - N�o tenho nada contra ele em especial.
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- Lembra-se de algu�m que possa ter alguma coisa contra si? O suficiente para lhe trazer problemas?
- N�o me meto com ningu�m, e espero que os outros fa�am o mesmo. Se algu�m tiver algum problema com isso, eu...
- D�-lhe cabo do canastro, - concluiu Nate. - Vou tratar de devolver os pertences de Ed. Obrigado por os ter trazido.
Bing deixou-se ficar sentado mais alguns instantes, a tamborilar os dedos grossos nas coxas enormes. - N�o suporto ladr�es.
- Eu tamb�m n�o.
- N�o percebo porque � que faz tanta quest�o de prender um homem que bebeu uns copos, ou que esmurrou algu�m que o irritou, mas com um ladr�o j� � diferente.
Nate acreditava que ele estava a ser sincero. No seu cadastro havia registo de algum comportamento violento, mas nada de roubos. - E?
- Algu�m me levou a faca de mato e as luvas sobressalentes da roupa de trabalho.
Nate pegou noutro impresso. - D�-me uma descri��o.
- � uma porra de uma faca de mato. - Assobiou entre dentes ao ver que Nate se limitava a aguardar. - Tem uma l�mina de doze cent�metros, patilha de seguran�a atr�s
e cabo de madeira. Serve para ca�ar.
- E as luvas? - Indagou Nate, ao teclar a descri��o.
- Luvas de trabalho, por amor de Deus. Curtume, forradas a velo. Pretas.
- Quando � que deu pela falta delas?
- Na semana passada.
- E est� a agora a apresentar queixa?
Por instantes, Bing ficou em sil�ncio, mas depois voltou a movimentar aqueles ombros montanhosos. - Talvez n�o seja um idiota chapado.
- Estou emocionado. Deixe-me limpar estas l�grimas sentimentais dos olhos. Costuma deixar o equipamento trancado?
- N�o. Ningu�m � est�pido o suficiente para mexer nas minhas coisas.
- H� sempre uma primeira vez, - disse Nate.
Quando se encontrou sozinho, � espera do m�dico da vila, para elaborar um relat�rio psiqui�trico de Toby, Nate estudou os relat�rios em cima da secret�ria. Uma bela
pilha de relat�rios, pensava. Talvez n�o fosse o tipo de tarefa a que estava acostumado em Baltimore, mas era uma pilha diferente. Com roubo e vandalismo a encim�-la.
Ainda bem, pensava, que se mantivera ocupado nas �ltimas semanas. T�o ocupado que pouco tempo lhe havia restado para a sua investiga��o n�o oficial.
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Talvez n�o fosse coincid�ncia. Talvez n�o fosse um lembrete c�smico o facto de j� n�o se encontrar nos homic�dios. Talvez algu�m andasse nervoso.
Chamou Ed � esquadra, e observou o rosto do homem iluminar-se, ao ver as canas e a sonda.
- Imagino que isto seja seu.
- Pode crer que �. J� as tinha dado como perdidas, e quase que apostava que j� tinham seguido caminho para uma loja de penhores em Anchorage. Bom trabalho, Comandante
Burke! Prendeu algu�m?
- N�o houve deten��es. Bing encontrou-as misturadas com o material dele no seu barrac�o no gelo, ontem � noite. Trouxe-as c� logo de manh�.
- Mas...
- H� algum motivo que se lembre para Bing lhe assaltar o barrac�o, vir�-lo do avesso e levar as canas, para depois mas vir trazer hoje?
- N�o. - Ed passava a m�o por cada uma das canas, � vez. - N�o, acho que n�o, mas o facto � que ele as tinha.
- Os �nicos factos s�o que ele as encontrou e as devolveu. Quer prosseguir com a investiga��o?
Ed soltou um suspiro, e ficou por instantes com o rosto a reflectir um homem a travar uma batalha interna. - Bom... honestamente, n�o percebo porque � que Bing as
queria roubar, e muito menos vir entreg�-las se o tivesse feito. J� as tenho comigo, e isso � o mais importante. Mas n�o elimina o vandalismo, o roubo ou uma garrafa
de u�sque escoc�s quase cheia.
- Vou manter o caso em aberto.
- �ptimo. Ainda bem. - Acenou na direc��o da janela, para onde os flocos de gelo flutuavam no azul profundo e escuro. - Sobreviveu ao primeiro Inverno.
- Parece que sim.
- Algumas pessoas n�o esperam que passe pela experi�ncia uma segunda vez. J� me perguntei se tenciona voltar para os Lower 48 depois do fim do contrato.
- Talvez dependa da renova��o ou n�o desse contrato por parte da C�mara Municipal.
- N�o ouvi nada em contr�rio. Bom, nada de muito importante. - Pegou nas canas e na sonda. - � melhor ir guardar isto.
- Tem de assinar aqui no registo. - Nate passou-lhe um impresso por cima da mesa. - Vamos manter tudo oficial.
- Oh, absolutamente. - Rabiscou a assinatura na linha para o efeito.
- Obrigado, Comandante. Fico contente por ter os meus pertences de volta.
290
Nate reparou que ele lan�ou um olhar para o cobertor exposto, como fizera duas vezes. Mas n�o teceu qualquer pergunta ou coment�rios. Nate levantou-se para fechar
a porta, e depois foi at� ao quadro, destapando-o. Numa lista de nomes, desenhou uma linha a l�pis, ligando Bing a Ed. E acrescentou um ponto de interroga��o.
As nuvens regressaram pela tarde e, atrav�s delas, Nate vislumbrou o risco vermelho do avi�o de Meg. Ele regressava da investiga��o a uma chamada que afirmava ter
sido descoberto um corpo no rio, em Rancor Woods. Afinal n�o passava de um par de botas velhas presas na neve, que os observadores de p�ssaros nas f�rias, que alugam
cabanas, avistaram pelos bin�culos de campo.
Turistas, pensava Nate, ao atirar com as botas, provavelmente tamb�m abandonadas por turistas, para a mala do carro.
Depois ouviu o ru�do imenso e familiar do avi�o do mato, e viu Meg deslizar das nuvens.
Quando chegou � doca min�scula junto ao rio, ela j� tinha aterrado. As b�ias no avi�o eram mais um sinal da Primavera, pensava. Foi ter com ela, sentindo a doca
balou�ar sob os seus p�s, enquanto ela e Jacob descarregavam os mantimentos.
- Hei, gira�o. - Largou uma caixa na doca e f�-la estremecer. - Vi-te junto a Rancor Woods. O meu cora��o disparou, n�o foi, Jacob?
Riu-se entre dentes, e pegou numa caixa grande que levou da doca at� � carrinha.
- Comprei-te um presente.
- Foi? Vamos l� ver.
Procurou noutra caixa remexendo no conte�do, para tirar uma caixa de preservativos. - Pensei que tivesses vergonha de ir comprar � Loja da Esquina.
- Claro que j� n�o tenho vergonha que os mostres ao mundo numa doca p�blica. - Tirou-lhos da m�o e enfiou-os no bolso do casaco.
- Comprei tr�s caixas, mas vou guardar as outras duas num lugar seguro. - Piscou o olho e debru�ou-se para pegar numa caixa de cart�o. Ele levantou-a primeiro. -
Eu levo.
- Cuidado com essa. � um servi�o de ch� antigo. A av� da Joanna quer oferecer-lho quando ela fizer trinta anos. - Levantou outra caixa, caminhando ao lado dele.
- O que � que anda a fazer aqui pelas docas, Comandante? � procura de mulheres f�ceis?
- Encontrei uma, n�o achas?
Ela riu-se e deu-lhe uma leve cotovelada. - Depois vemos se me achas assim t�o f�cil.
291
- � noite de cinema.
- Isso � no s�bado.
- N�o, mudaram, n�o te lembras? Coincidia com a Feira de Primavera do liceu.
- Pois �, tens raz�o. Tenho aqui uns vestidos nesta caixa para isso. Qual � o filme?
- Sess�o dupla. A Mulher que Viveu Duas Vezes e Janela Indiscreta.
- Eu levo as pipocas.
Carregou a caixa na carrinha e estudou-o, enquanto carregava a dele. - Pareces cansado, Comandante.
- Muita gente anda com a febre da Primavera. Tenho andado ocupado. Tanto que tenho descurado algumas �reas, n�o lhes tenho dado o devido tempo ou a aten��o que gostaria.
- N�o est�s s� a falar do meu corpo nu. - Olhou para tr�s para o avi�o, onde Jacob descarregava o resto da mercadoria. - O meu pai est� morto h� dezasseis anos.
O tempo � relativo.
- Quero encerrar este caso por ti. Por ele. Por mim tamb�m.
Ela enrolou uma madeixa de cabelo dele � volta do dedo. Ele tinha-a deixado cortar-lho. Um sinal, pensava, de homem corajoso. Ou perdido de amores.
- Fazemos assim. Podemos tirar a noite para espairecer. Vamos ao cinema, comemos pipocas e passamos um bom bocado.
- Tenho mais perguntas do que respostas. Vou ter de te fazer algumas. �s capaz de n�o gostar.
- Ent�o vamos mesmo espairecer. Temos de entregar isto tudo. Falamos mais tarde.
Entrou na cabine da carrinha e lan�ou a Nate um aceno breve, ao mesmo tempo que Jacob arrancava. Mas ela ficou a observ�-lo pelo espelho lateral at� mudarem de direc��o.
- Ele parece preocupado, - comentou Jacob.
- Os do tipo dele ficam sempre. Porque � que acho isso t�o atraente?
- Ele quer colocar-te numa redoma. Nunca ningu�m fez isso. - Sorriu um pouco quando ela se virou para o fitar. - Ensinei-te, ouvi-te, cuidei de ti. Mas nunca te
coloquei numa redoma.
- N�o preciso que o fa�am. Nem quero.
- Pois, mas saberes que ele o faria atrai-te muito.
- Talvez. Talvez. - Tinha de pensar naquela afirma��o. - Mas a vontade dele e a minha est�o destinadas a bater de frente em pouco tempo. E depois?
- Isso depende de qual dos dois ainda se mantiver de p� ap�s a colis�o.
292
Com uma gargalhada entrecortada, ela esticou as pernas. - Ele n�o tem hip�tese nenhuma.
Ela esperava ter tempo para chegar a casa, tomar um banho, passar um creme e montar o cen�rio para uma noite de maratona sexual. Era uma forma de manter as coisas
interessantes e b�sicas e, admitia, irreflectidas. Mas acreditava que n�o lhe fazia mal ser irreflectida por instantes.
Ele pensava demasiado, e isso era contagioso.
Mas ela n�o tinha tempo, n�o depois de entregar toda a mercadoria, de recolher os pagamentos. Teve de se contentar com as pipocas da cozinha d'A Estalagem, enquanto
Mike Grande lhe fazia uma serenata com melodias ao vivo.
N�o era dif�cil ouvir Mike Grande a cantar enquanto trabalhava. P�s-se a par das novidades, ao ritmo das entradas e sa�das de Rose da cozinha, deleitando-se com
as fotografias de Willow e as mais recentes do beb� de Mike Grande.
Ela sentia-se como se estivesse em casa, no calor da cozinha em funcionamento, a ouvir a lou�a a bater e a m�sica. E ainda tinha o benef�cio acrescido de se deleitar
com uma deliciosa fatia do bolo de ma�� de Mike Grande.
- Arranjaste companhia para o cinema, - disse Mike Grande entre melodias. -.Rom�ntico.
Meg comia o bolo com as m�os, ao lado do fog�o. - � poss�vel, a n�o ser que ele se agarre �s pipocas.
- Tens estrelinhas nos olhos, estrelas e cora��ezinhos.
- Uh-uh, - conseguiu murmurar com a boca cheia.
- Pois tens. E ele tamb�m. - Emitiu ru�do de beijos, um som estranho, pensava Meg com uma gargalhada, para sair de um homem negro e careca. - Os meus olhos tamb�m
ficaram assim da primeira vez que vi a minha Julia. Ainda ficam.
- E aqui est�s tu, a fazer um maravilhoso bolo de ma�� para uma cambada de azedos.
- Gosto de fazer bolos. - Colocou o peixe frito numa travessa, as batatas vermelhas e o feij�o-verde cortado aos cubos. - Mas por Julia e pela minha princesinha
Annie, era capaz de fazer qualquer coisa. � um bom s�tio para se viver, um bom s�tio para trabalhar, mas quando se tem amor, qualquer s�tio o �.
Mudou das melodias de variedades para "All You Need Is Love" dos Beatles, enquanto Meg limpava o bolo e Rose aparecia para receber os pedidos. Era um bom s�tio para
se viver, pensava Meg ao encher o saco de papel com pipocas, abanando-o para distribuir a manteiga e o sal. S� precisava de descobrir o que fazer do amor.
293
Foi at� � C�mara Municipal na humidade gelada que amea�ava chuva.
Nate estava atrasado, o que a surpreendeu. Apareceu assim que as luzes diminu�ram.
- Desculpa. Tive uma chamada. Porco-espinho. Depois conto. Tentou concentrar-se no filme, no ambiente, no momento. Mas os seus pensamentos giravam inquietos. Ligara
Ed e Bing no quadro naquela manh�. Unidos pelo material de pesca roubado. Algo que tinha evid�ncias de uma brincadeira ou de uma aventura de crian�as. Havia dezenas
de outras liga��es, que uniam uma pessoa a outra.
Rodeavam-no por todo o lado, sentados �s escuras, a observar Jimmy Stewart a brincar aos pol�cias no rescaldo de um acidente.
J� l� estivera, j� o fizera, pensava Nate. Stewart tamb�m ia cair. Sofrera e suara ao perseguir uma obsess�o.
E ia ficar com a mi�da, perder a mi�da, ficar com a mi�da, perder a mi�da. Um carrossel de dor e prazer.
A mi�da era a chave.
Seria Meg? Como filha �nica de Patrick Galloway, n�o seria o s�mbolo vivo dele? Se n�o fosse a chave, haveria outra liga��o?
- Quanto tempo � que vais andar aos c�rculos antes de aterrar?
- O qu�?
- Parece-me um padr�o constante. - Meg inclinou a cabe�a e percebeu que as luzes se acendiam de novo, para o intervalo entre os filmes.
- Desculpa. Estava distra�do.
- N�o me digas. Nem sequer provaste a tua parte das pipocas. - Enrolou o saco e deixou-o sobre o assento. - Vamos apanhar ar antes que comece o outro filme.
Tiveram de se ficar pela porta principal, como a maioria dos espectadores. As nuvens que se haviam aglomerado descarregaram algures durante a transforma��o de Kim
Novak. A chuva que Meg pressentira ca�a a potes do c�u, molhando o ch�o por toda a parte.
- Vamos ter inunda��es, - disse Meg, franzindo a testa atrav�s das nuvens de fumo das almas corajosas e ensopadas que ficaram na rua com os cigarros protegidos com
as m�os em concha. - E gelo negro na rua, assim que a temperatura cair mais um pouco.
- Se quiseres ir j� para casa, eu levo-te. Tenho de voltar, para vigiar a situa��o.
- N�o, fico para ver o segundo filme, quero ver como �. N�o tarda muito est� a nevar outra vez.
- Deixa-me s� verificar umas coisas que vou j� ter contigo l� dentro.
294
- �s mesmo pol�cia, sempre vigilante. - Ela viu que o seu rosto se
alterava, e revirou os olhos. - N�o � uma queixa, Burke. Jesus. N�o vou muar ou resmungar se acabar por ver o filme sozinha. E se for preciso, tamb�m sei ir sozinha
para casa. Posso tratar do entretenimento planeado para esta noite sozinha, se n�o estiveres por perto para me servires. Tenho pilhas novas. Se olhares para mim
e a vires a ela, vou ficar danad�ssima.
Ele ia dizer que n�o, mas ela j� se havia afastado. E de qualquer forma, tamb�m n�o seria mentira nenhuma. Resposta condicionada, pensava ele, tentando abanar e
sacudir o peso dos seus ombros.
Ainda sobrecarregado, chamou Peter, Hopp, Bing e O Professor na multid�o.
Passou o intervalo, e um pouco depois dele, a coordenar e a confirmar o procedimento para as cheias.
Quando se reuniu a Meg, Grace Kelly tentava convencer Jimmy Stewart a prestar-lhe mais aten��o a ela do que �s pessoas do apartamento que conseguia ver da janela
das traseiras.
Pegou na m�o de Meg e entrela�ou os dedos nela. - � um h�bito idiota, - murmurou-lhe ao ouvido. - Desculpa.
- Deixa o h�bito de fora e acertaste em cheio. - Mas ela virou a cabe�a, ro�ando os l�bios pelos dele. - Desta vez, v� o filme.
Foi o que ele fez, ou pelo menos tentou. Mas assim que Raymond Burr apanhou Grace Kelly a bisbilhotar no apartamento dele, a porta escancarou-se atr�s deles.
A luz penetrou seguindo Otto, originando apupos na audi�ncia, no meio de gritos para fechar o raio da porta. Entrou com rapidez e todo molhado, ignorando os praguejos
ao tentar encontrar Nate.
Nate j� se levantara e avan�ava na direc��o dele.
- Tem de vir l� fora, Comandante.
Pela segunda vez naquele dia, Nate sa�a em mangas de camisa, desta vez para a chuva que ca�a na rua e os seus golpes gelados na pele.
Viu o corpo de imediato e, tirando o cabelo do rosto, aproximou-se do passeio pela rua molhada.
No in�cio pensou tratar-se de Rock e Buli, e o seu cora��o saltou-lhe na garganta. Mas o c�o que jazia ensanguentado na chuva gelada era mais velho do que os de
Meg, com o p�lo mais branco.
A faca usada para lhe cortar a garganta estava enterrada no peito.
Ouviu algu�m gritar atr�s dele. - Leve-os l� para dentro, - ordenou a Otto. - Controle a situa��o.
- Eu conhe�o este c�o, Nate. � o velhote de Joe e Lara, Yukon. Inofensivo. J� quase n�o tem dentes.
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- Leve essa gente l� para dentro. Voc� ou o Peter arranjem qualquer coisa para o tapar.
Peter apareceu como refor�o momentos depois de Otto chegar. - Jacob deu-me o imperme�vel dele. C�us, Comandante, � Yukon. � o c�o de Steven, Yukon. Isto n�o est�
certo. N�o est� nada certo.
- Reconhece a faca? Veja o cabo, Peter.
- N�o sei. Tem muito sangue, e... n�o sei.
Mas Nate sabia. O seu instinto dizia-lhe que era uma faca de mato. Devia ser a faca de mato desaparecida de Bing. - Vamos levar o c�o para a cl�nica. Ajudem-me a
lev�-lo para a caixa da carrinha. Mas primeiro v�o buscar a m�quina fotogr�fica, para registarmos o cen�rio.
- Est� morto.
- � verdade, est� morto. Vamos examin�-lo na cl�nica, depois de registarmos o cen�rio. Assim que o carregarmos, preciso que voltem l� para dentro e digam ao Joe
e � Lara que o c�o deles est� comigo, e onde. V�o agora buscar a m�quina.
Olhou para cima, apanhando o movimento pelo canto do olho. Ao erguer o tronco, viu Meg no passeio, a segurar o casaco dele.
- Esqueceste-te disto.
- N�o te quero aqui fora.
- J� vi o que fizeram ao pobre c�o. Coitadinho do velho Yukon. Lara vai ficar de cora��o desfeito.
- Volta l� para dentro.
- Vou para casa. Vou para casa para junto dos meus c�es.
Ele agarrou-lhe no bra�o. - Vais voltar l� para dentro e quando eu disser que j� podes, vais para A Estalagem.
- N�o estamos em estado de s�tio, Burke. Posso ir para onde quiser.
- Vais fazer o que eu te digo. Tenho de saber exactamente onde est�s, e n�o vais ficar sozinha, a oito quil�metros da vila. H� gelo na estrada, as condi��es s�o
adversas, h� risco de inunda��es s�bitas, e anda a� algu�m com frieza suficiente para cortar o pesco�o a este c�o de orelha a orelha. Por isso, v� se d�s meia-volta
a esse rabo l� para dentro, at� eu te dizer o contr�rio.
- N�o vou deixar os meus c�es l� fora...
- Eu vou busc�-los. Vai para dentro, Meg. Vai para dentro, sen�o pego em ti e tranco-te numa cela.
Esperou cinco segundos de suspense com apenas a saraivada a cair com viol�ncia no ch�o. Ela deu meia-volta e entrou com brusquid�o.
Ele deixou-se ficar � espera, na rua � chuva, ao lado de um c�o morto at� Peter regressar.
Pegou na m�quina fotogr�fica, tirou v�rias polar�ides, enfiando-as no bolso do casaco.
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- Ajude-me a levar o c�o, Peter. Depois v� l� dentro e siga as minhas instru��es. Quero que diga a Otto que acompanhe Meg � A Estalagem e se certifique que ela fica
l� at� eu dizer. Percebido?
Peter acenou. A sua ma��-de-ad�o saltou, mas assentiu. - Ah, Ken est� l� dentro, Comandante. Eu estava sentado mesmo atr�s dele no filme. Quer que o v� chamar agora?
- Sim. Sim, diga-lhe que venha. Posso lev�-lo no meu carro. - Tirou o cabelo a pingar dos olhos, ao mesmo tempo que um nevoeiro fino lhe rodeava os tornozelos. -
Vou contar consigo para manter a ordem, Peter. Quero que disperse a multid�o l� dentro e que mande toda a gente embora. Aconselhe-os a ir para casa, diga-lhes que
estamos a tratar do assunto.
- Devem querer saber o que... o que aconteceu.
- Ainda n�o sabemos o que aconteceu, pois n�o? - Voltou o olhar para o c�o. - Mantenha toda a gente calma. � bom a falar com as pessoas. V� l� falar com eles. E,
Peter, preste aten��o a quem l� est�. Quero que voc� e Otto fa�am uma lista de todos os que l� est�o.
E, pensava Nate, saberei quem n�o estava.
Levaram o c�o para dentro da carrinha. Enquanto Peter corria de regresso � C�mara Municipal, Nate acocorou-se ao lado do pneu traseiro do lado direito. Ali mesmo,
por baixo do eixo da roda, estava um par de luvas ensanguentadas.
Abriu a porta e tirou um saco de provas. Pegando nas luvas pelo punho, selou-as.
Deviam ser as de Bing, pensava. E a faca tamb�m.
Uma faca e as luvas que Bing dera como roubadas apenas horas antes.
23.
- Deve ter sido r�pido. - Ken estava junto ao c�o. Passava as m�os pelo focinho dele.
- Foi o ferimento no pesco�o, - comentou Nate.
- Sim, sim. Jesus, que esp�cie de cabr�o tresloucado � que faz isto a um c�o? Disse, ah, voc� disse que o ferimento no peito n�o tinha muito sangue. J� tinha morrido
quando o doido que lhe fez isto lhe enterrou a faca no peito. Quando se abre a garganta desta forma, rasgando a jugular, � tiro e queda.
- Sangrento. O sangue deve ter jorrado.
- Pois. C�us.
- A chuva lavou quase tudo, a maior parte, mas n�o tudo. E ainda
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estava um pouco quente quando o encontr�mos. Talvez estivesse morto h� qu�, uma hora, se tanto?
- Nate. - Abanando a cabe�a, Ken tirou os �culos e limpou-os � ponta da camisa. - Isso j� � algo que n�o tenho a certeza. A vossa suposi��o deve ser t�o boa, sen�o
melhor, do que a minha. Mas sim, uma hora deve estar correcto.
- O intervalo j� tinha terminado h� coisa de uma hora. Ele n�o estava l� quando sa�mos entre os dois filmes. E havia demasiado sangue para que tivesse sido morto
noutro lado e largado aqui. Conhecia este c�o?
- Claro. O velho Yukon. - Os seus olhos brilhavam, mas logo os esfregou para secar. - Claro.
- Alguma vez deu chatices a algu�m? Atacou algu�m, que se lembre? Mordeu algu�m?
- Yukon? J� mal tem dentes nas gengivas para mastigar a comida. Era um c�o simp�tico. Inofensivo. Talvez seja por isso que tenho tanta dificuldade em aceitar. -
Virou costas por instantes, lutando por manter o controlo. - Max... bom, Max foi horr�vel. Um ser humano, por amor de Deus. Mas este c�o... este c�o era velho e
doce. E indefeso.
- Sente-se um pouco, se quiser. - Mas Nate ficou onde estava, o olhar baixo para o c�o. O p�lo ensopado de sangue e ainda a pingar da chuva.
- Lamento, Nate. Dir-se-ia que um m�dico era mais forte do que isto. - Inspirou fundo para depois soltar o ar com for�a dos pulm�es. - O que � que quer que eu fa�a?
- Joe e Lara est�o a� daqui a nada. Preciso que os mantenha l� fora at� terminar.
- O que � que vai fazer?
- O meu trabalho. Mantenha-os l� fora at� eu terminar.
Pegou na m�quina fotogr�fica e tirou mais fotografias. N�o era m�dico-legista, mas j� estivera com muitos cad�veres, testemunhara bastantes aut�psias para perceber
que o ferimento da faca fora executado de cima da cabe�a do c�o, um pouco atr�s. Um golpe da esquerda para a direita! Agarrara-o, levantara-lhe a cabe�a e cortara.
O sangue � projectado, ensopa as luvas, talvez as mangas, talvez at� espirre um pouco para tr�s. O c�o cai, ele enterra-lhe a faca. Deita fora as luvas, afasta-se.
Alguns minutos apenas, com chuva a encobrir, e algumas centenas de pessoas, talvez mais, dentro do edif�cio, com as aten��es postas em Jimmy Stewart.
Arriscado, pensava ele ao passar p� no cabo da faca para tirar as impress�es digitais, mas premeditado. Frio.
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Na faca s� havia sangue. Colocou-a no saco e depois foi buscar uma embalagem de pl�stico. Guardou l� dentro a faca e as fotografias. E foi falar com os Wise.
A chuva transformara-se em neve fina e h�mida, quando Nate encontrou Bing. Estava na enorme garagem ao lado da casa de madeira. Tinha o r�dio ligado e trabalhava
com afinco debaixo do capo da carrinha.
Viu mais alguns ve�culos l� dentro e o que parecia um pequeno propulsor ou motor em cima de estacas. Uma das gavetas da caixa de ferramentas vermelha, enorme e enferrujada,
estava aberta. Acima, numa bancada comprida, havia um quadro com todas as ferramentas e um calend�rio mesmo ao lado, cuja protagonista era uma loura quase nua de
peitos enormes.
Uma m�quina de costura de ar musculoso (uma m�quina de costura?) estava prostrada numa mesa de madeira a um canto da divis�o. Por cima viu uma cabe�a de alce.
O lugar cheirava a cerveja entornada, misturada com fumo e gordura.
Bing aproximou-se de Nate, um olho fechado a bloquear o fumo que emanava do cigarro preso nos seus l�bios. - Se chover mais amanh�, o rio vai subir e beijar Lunatic
Street. Vou precisar das sacas de areia que tenho na carrinha.
Sacas de areia, matutava Nate, com um olhar fugidio para a m�quina de costura. N�o conseguia imaginar Bing a coser sacas de areia, mas talvez houvessem coisas mais
estranhas no mundo.
- Saiu cedo do cinema.
- J� tinha visto o suficiente. Tinha muito que fazer hoje de manh�. Qual � o problema?
Nate deu um passo em frente e estendeu-lhe a faca dentro do saco. - � a sua?
Bing tirou o cigarro da boca ao virar-se. Apenas um pouco de fumo lhe dificultara a vis�o, mas conseguia ver o sangue no cabo e na l�mina.
- Parece. - Deitou o cigarro ao ch�o e pisou-o, no cimento manchado de �leo. - Sim, � a minha faca. E tamb�m diria que andaram a dar-lhe uso. Onde � que a encontrou?
- No c�o de Joe e Lara, Yukon.
Bing deu um passo atr�s. Nate observou, o recuo r�pido e sobressaltado de um homem apanhado de surpresa. - De que raio � que est� a falar?
- Algu�m a usou para cortar o pesco�o ao c�o e depois espetou-a no peito dele, para que eu n�o tivesse trabalho nenhum a procur�-la. A que horas � que saiu do cinema,
Bing?
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- Mataram aquele c�o? Mataram aquele c�o? - A percep��o inundava os seus olhos de um choque profundo. - Est� a dizer que matei o c�o? - O seu punho cerrou-se por
cima da chave-inglesa ainda na sua m�o.
- � isso que est� a dizer?
- Se tentar sequer acertar-me, vai dentro. Quer poupar-se a essa humilha��o, porque, acredite em mim, vou faz�-lo. Largue isso. Agora.
A raiva estremecia pelo seu rosto, vagueando visivelmente pelo seu corpo. - Tem um feitio danado, n�o tem, Bing? - Comentou Nate baixinho. - Do g�nero que lhe valeu
acusa��es de agress�o no cadastro, que o levou a passar umas noites aqui e ali atr�s das grades. Do g�nero que o incita agora a rachar-me o cr�nio como um ovo com
essa chave-inglesa. Vamos, experimente.
Bing levou a chave-inglesa para o outro lado da sala, onde esmagou um painel da parede cinzenta. Respirava como um motor a vapor, e tinha a face vermelha como um
tijolo.
- V�-se foder. Claro que j� esmurrei uns quantos, parti algumas cabe�as, mas n�o sou nenhum assassino de c�es. E se disser que sou, n�o preciso da chave para lhe
abrir a cabe�a ao meio.
- Perguntei-lhe a que horas saiu do cinema.
- Sa� para fumar um cigarro no intervalo. Voc� viu-me. Come�ou a falar sobre os preparativos para prevenir as inunda��es. Vim logo para c�. Carreguei estas sacas
de areia. - Espetou o polegar na direc��o da traseira da carrinha, onde empilhara pelo menos cem sacas de areia. - Pensei que j� que estava aqui, bem podia dar uma
afinada no motor. Tenho estado aqui desde essa altura. Algu�m foi a casa de Joe e matou o c�o, mas n�o fui eu. Gostava do c�o.
Nate pegou nas luvas que estavam dentro do saco. - S�o suas?
Embasbacado, Bing esfregou as costas da m�o na boca. O tom rosado abandonara-lhe as faces, o branco gelado a ganhar terreno. - Que raio � que se est� a passar?
- Isso � sim?
- Sim, s�o minhas, n�o vou negar. J� lhe disse que algu�m as roubou, levou as minhas luvas sobressalentes e a minha faca de mato. Apresentei queixa.
- Esta manh� mesmo. Um c�nico poderia perguntar-se se n�o estaria a proteger-se.
- Por que raio haveria de matar um c�o? Um c�o velho e idiota? - Bing co�ava a cara, para tirar outro cigarro do ma�o que tinha no bolso do peito. As suas m�os tremiam
visivelmente.
- N�o tem nenhum c�o, pois n�o?
- E isso faz de mim um inimigo dos c�es? Cristo. J� tive um c�o.
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Faz em Junho dois anos que ele morreu. Tinha cancro. - Bing pigarreou, chupando com for�a no cigarro. - Foi o cancro que o levou.
- Algu�m mata um c�o, por isso � de questionar se tinha problemas com o c�o ou com os seus donos.
- N�o tinha problema nenhum com esse c�o. N�o tenho problema nenhum com Joe ou Lara, nem com o estudante filho deles. Pode perguntar-lhes. Pergunte-lhes se j� tivemos
algum problema. Mas est� visto que algu�m deve ter algum problema comigo.
- Faz ideia de quem possa ser?
Encolheu os ombros, num safan�o. - A �nica coisa que sei � que n�o matei aquele c�o.
- Mantenha-se em contacto, Bing. Se tencionar sair da vila por qualquer motivo, quero que me avise.
- N�o vou andar a passear enquanto as pessoas me apontam o dedo.
- Mantenha-se contact�vel, - repetiu Nate, e saiu tal como entrara.
Meg deu conta de uma cerveja e do seu temperamento enquanto esperava. N�o gostava de esperar, e Nate ia ouvi-las quando voltasse. Despejara-lhe ordens para cima
como se fosse alguma recruta tolinha e ele o general.
N�o gostava de ordens, e tamb�m lhe ia deixar isso bem claro.
Onde raio � que andava?
Estava preocupad�ssima com os c�es, por mais que a sua faceta sensata lhe dissesse que estavam bem, que Nate ia manter a palavra e ia l� busc�-los. Devia t�-la deixado
ir busc�-los, em vez de estar sob uma esp�cie de pris�o domicili�ria idiota.
N�o queria estar ali, preocupada, in�til, a beber cerveja e a jogar p�quer com Otto, Jim Trinca-Espinhas e O Professor para passar tempo.
Subiu para vinte e dois d�lares e uns trocos, mas n�o queria saber.
Onde raio � que ele andava?
E quem � que pensava que era, para lhe dizer o que fazer, amea�ando prend�-la numa cela? E ela tinha a certeza que o faria, ao puxar do oito de paus para mostrar
um lindo full house.
N�o fora nada o Nate doce, de olhos tristes, que ficara � chuva ao lado daquele c�o. Ao lado do pobre e velho Yukon. Fora outra coisa, outra pessoa. Algu�m que ela
imaginava que ele fora em Baltimore, antes de as circunst�ncias lhe cortarem as pernas. E tamb�m o cora��o.
Tamb�m n�o queria saber disso para nada. N�o se importava.
- Assisto dois d�lares, - disse a Jim. - Subo mais dois. - E lan�ou o dinheiro para o pote.
A sua m�e dera a Jim uma hora de intervalo e estava a trabalhar no
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bar. N�o que houvesse muito movimento, pensava Meg ao ver O Professor cruzar os bra�os e Otto cobrir a aposta dela por mais dois. Para al�m da mesa deles, havia
um banco corrido de quatro Forasteiros. Alpinistas que esperavam pelo bom tempo. Os dois velhos acabados, Hans e Dex, estavam noutro banco, afastando a noite chuvosa
com cerveja e um jogo de damas.
� espera, sabia bem, dos mexericos que entrassem por aquela porta.
Sabia que as entradas e as sa�das iam aumentar, se a �gua do rio subisse. As pessoas ficavam alguns minutos para se secarem e aquecerem, pediam caf� antes de sa�rem
outra vez para os sacos de areia. Quando terminassem, voltavam. Empilhavam-nos, molhados, cansados e com fome, mas n�o prontos para irem sozinhos para casa, n�o
prontos para quebrar a camaradagem do desafio da natureza.
Eles queriam caf� e bebida, ou qualquer refei��o quente que lhes pusessem � frente. Charlene ia tratar disso; trabalhava at� ao �ltimo fregu�s sair. Meg j� vira
como era.
Atirou com dois d�lares para assistir, quando Jim cruzou os bra�os.
- Dois pares, - anunciou Otto. - Reis sobre quinas.
- Os teus reis v�o ter de fazer uma v�nia �s minhas senhoras. - Pousou duas damas. - V�s como est�o aninhadas com tr�s oitos?
- Filhas da m�e! - Otto observava a bela pilha de notas e moedas que Meg limpava. Depois, ergueu o queixo e empurrou a cadeira para tr�s, assim que Nate apareceu
na recep��o. - Comandante?
Meg virou-se para tr�s. Sentara-se de frente para a porta principal, � espera de lhe saltar em cima assim que ele a abrisse. Em vez disso, pensou contrariada, ele
aparecera por tr�s dela.
- Sabia-me bem um caf�, Charlene.
- Est� bom e quentinho. - Encheu uma caneca grande. - Posso trazer-lhe comida. Tamb�m est� boa e quentinha.
- N�o, obrigado.
- Onde est�o os meus c�es? - Indagou Meg.
- Na recep��o. Otto, encontrei Hopp e mais gente l� fora. � consensual que o rio parece que se vai aguentar, mas temos de ficar vigilantes. Agora s� est� a cair
uma neve fininha. As previs�es dizem que o sistema se est� a dirigir para oeste, por isso vai abrir n�o tarda.
Bebeu metade do caf� e estendeu a caneca a Charlene para que a voltasse a encher. - J� h� inunda��o na Lake Shore. Eu e Peter coloc�mos sinaliza��o de perigo desde
o limite a leste de Rancor Woods.
- Esses dois locais s�o um problema, se toda a gente se lembrar de parar para mijar na berma, - comentou Otto. - Se o sistema se dirigir para oeste, na vila n�o
vai haver problema.
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- Mas ficamos atentos, - repetiu Nate e virou-se na direc��o das escadas.
- Espera a� um minuto, Comandante. - Meg esperava na entrada, com um c�o de cada lado. - Tenho algumas coisas para te dizer.
- Preciso de um duche. Podes diz�-las enquanto me lavo, ou podes esperar.
Os l�bios dela enrugaram-se num trejeito, enquanto ele levava o caf� para o primeiro andar. - Esperar, uma merda.
Seguiu-o aos trope��es, vigiada pelos c�es.
- Quem � que pensas que �s?
- Penso que sou o Comandante da pol�cia.
- Nem que fosses Comandante do universo mais pr�ximo, nem penses que te passas comigo, que me d�s ordens ou me amea�as.
- Confesso que passei dos limites. Mas n�o seria necess�rio se tivesses feito aquilo que te disse.
- O que me disseste? - Entrou de rompante no quarto atr�s dele. - N�o me dizes nada. N�o �s meu patr�o nem meu pai. L� porque fui para a cama contigo n�o te d� o
direito de me dizer o que fazer.
Ele despiu o casaco ensopado e bateu no distintivo preso � camisa.
- N�o, mas isto d�. - Despiu a camisa a caminho da casa de banho.
Ainda era outra pessoa, pensava ela. A pessoa que vivera por tr�s daqueles olhos tristes, � espera de uma oportunidade para se mostrar com pujan�a. Essa pessoa era
dura e fria. Perigosa.
Ouviu o chuveiro come�ar a correr. Ambos os c�es ali ficaram de p�, as cabe�as espetadas a olhar para ela.
- Deita, - murmurou.
Marchou at� � casa de banho. Nate estava sentado na tampa da sanita, a tentar descal�ar as botas molhadas.
- Impinges-me o Otto, como se fosse uma esp�cie de c�o de guarda, e deixas-me quase tr�s horas � espera. Tr�s horas em que n�o sei o que se est� a passar.
Ele olhou para ela, de express�o l�vida, os olhos semicerrados. - Tinha trabalho e coisas mais importantes a fazer do que manter-te actualizada. Queres saber novidades?
- P�s as botas de lado e levantou-se, para despir as cal�as. - Liga o r�dio.
- N�o fales comigo como se fosse uma mulherzinha parva e irritante.
Ele entrou no chuveiro e fechou a cortina com for�a. - Ent�o, p�ra de agir como tal.
C�us, como precisava de calor. Nate pressionava as m�os no azulejo, colocando a cabe�a debaixo de �gua para deixar que a �gua quente o
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inundasse. Uma hora ou duas depois, calculava, e talvez chegasse aos seus ossos cansados e gelados. Um frasco ou dois de aspirinas e certas zonas do seu corpo talvez
deixassem de doer. Tr�s ou quatro dias de sono eram capazes de contrabalan�ar a fadiga que acumulara da energia despendida a esbracejar na �gua gelada das inunda��es,
a montar as barricadas, a ver um homem e uma mulher chorar por causa do c�o assassinado, e que tanto o desgastara.
Parte dele queria sossego, a calma escurid�o em que podia mergulhar onde nada mais importava. E outra parte receava encontrar o caminho para l�, de forma demasiado
f�cil.
Ao ouvir a cortina ser puxada para tr�s outra vez, ficou im�vel, abra�ado, cabe�a para baixo, olhos fechados. - N�o queres discutir comigo agora, Meg. Vais perder.
- Deixa-me dizer-te uma coisa, Burke. N�o gosto que me enxotem como se fosse uma irrita��ozinha qualquer. N�o gosto que me ignorem. Que me d�em ordens. N�o tenho
a certeza se gosto do teu comportamento de hoje � porta da C�mara. N�o consegui reconhecer-te na express�o, nos olhos. Fico danada. E...
Deslizou os bra�os � volta dele, encostando o corpo nu ao dele, obrigando-o a erguer-se. - Fico agitada.
- N�o. - Ele agarrou-lhe as m�os, afastando-as antes de se virar para a agarrar com o bra�o esticado. - N�o fa�as isso.
Deliberadamente, ela desceu o olhar. Deliberadamente, sorriu ao olhar para cima novamente. - Parece haver aqui uma contradi��o.
- N�o te quero magoar, mas como me sinto agora, � o que vai acontecer.
- N�o me metes medo. D�s-me cabo da paci�ncia, a querer discuss�o. Mas de repente, eu quero outra coisa. D�-me outra coisa. - Esticou o bra�o e passou-lhe a m�o
pelo peito. - Depois acabamos a discuss�o.
- N�o me sinto nada simp�tico.
- Eu tamb�m n�o. Nate, por vezes precisamos de outra coisa. S� precisamos de ir para outro lugar e esquecer um pouco. Queimar a loucura, a m�goa ou o medo. Queimar-me
por dentro, - murmurou ela. Agora agarrava-lhe as ancas, apertando.
Teria sido melhor para ela se a tivesse repelido. Ele estava certo disso. Mas puxou-a de encontro a si, para que aquele corpo quente e molhado colidisse com o seu,
para encontrar a sua boca, invadindo-a.
Ela agarrou-se a ele, encaixando os bra�os nas suas costas para lhe enterrar os dedos nos ombros. As unhas cortavam a carne. O calor explodia do seu corpo, alcan�ando
os ossos dele, penetrando-os, eliminando o cansa�o e a marca fria da raiva.
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As m�os dela deslizavam de novo pela pele dele, molhado com molhado, a cabe�a dela deitada para tr�s num convite ao festim do seu pesco�o, os ombros, onde encontrasse
aquela carne suave e quente.
O som que ela emitia, o som que ecoava dos seus l�bios era de um triunfo er�tico.
- Vem c�. - Agarrou no sabonete pousado na saboneteira. - Vou lavar-te. Gosto de sentir as costas de um homem nas minhas m�os. Especialmente quando est�o molhadas
e escorregadias.
A sua voz era a de uma sereia. Ele deixou-se encantar por ela, entregou-se �s suas m�os, permitiu que pensasse que o conduzia. Assim que a empurrou para a parede
do chuveiro, o olhar l�nguido dela agu�ou-se de surpresa.
Ao ver que ela sorria, esmagou a sua boca na dela.
Tinha raz�o, pensava ela, sombriamente. Ele era outra pessoa, algu�m que assumia o controlo, implac�vel. Que eliminava a escolha, que levava � rendi��o.
Enquanto a boca dele possu�a a dela, tirou-lhe o sabonete das m�os. Passou-o pelos seus seios, numa massagem demorada e excitante que lhe endureceu os mamilos. A
respira��o dela estremecia num suspiro.
O leve tremor no est�mago dela dizia-lhe que estava pronta. Que queria. Ansiava. Ro�ando os l�bios pelo lado do pesco�o dele, ela murmurou: - Contigo � bom. � bom.
Vem agora para dentro de mim. Fica dentro de mim.
- Primeiro vais gritar.
Ela riu-se beliscando, com pouca meiguice. - N�o vou, n�o.
- Vais. - Levantou-lhe os bra�os acima da cabe�a e fechou os punhos sobre os pulsos dela. Prendeu-os. - Vais.
Deslizou o sabonete por entre as pernas dela, esfregando, deslizando, observando o seu corpo estremecer no orgasmo.
- Nate.
- Eu avisei-te.
Dentro dela, um certo p�nico avivou-se, p�nico depressa envolto num prazer cortante, ao sentir os dedos dele mergulhar dentro dela. Contorceu-se, � procura de liberdade,
de mais. Dele. Mas ele guiava-a, passando do ponto da percep��o, passando do ponto que ela achava poder suportar. A respira��o quebrada, quase rogando enquanto a
�gua ca�a quente sobre o seu corpo tr�mulo, o vapor toldando-lhe a vis�o.
Ao sentir a explos�o, abrindo um fosso entre a sanidade e a loucura, abafou-lhe o grito com a pr�pria boca.
- Diz o meu nome. - Ele tinha de ouvir, tinha de saber que ela sabia quem a possu�ra. - Diz o meu nome, - ordenou, ao pegar-lhe nas ancas, enterrando-se dentro dela.
305
- Nate.
- Outra vez. Diz outra vez. - O alento �spero na garganta. - Olha para mim e diz o meu nome.
- Nate. - Ela fechou o punho sobre o cabelo dele, enterrando os dedos nos seus ombros. Olhou para o seu rosto, penetrando nos seus olhos. E viu-o, viu-se tamb�m.
- Nate.
Possuiu-a, possuiu-a, possuiu-a at� ficar exangue, at� ela ficar mole como �gua, a cabe�a ca�da no ombro dele.
Nate teve de apoiar a m�o na parede molhada para recuperar o f�lego, para voltar a si. Procurou a torneira para desligar o chuveiro.
- Tenho de me sentar, - articulou ela. - Tenho mesmo de me sentar.
- Espera um pouco. - Como n�o tinha a certeza que ela o fizesse, puxou-a para cima, quase elevando-a sobre o ombro ao levar ambos para fora do chuveiro.
Pegou nalgumas toalhas, apesar de imaginar que com o calor que haviam gerado, a �gua evaporasse numa quest�o de minutos.
Os c�es levantaram-se assim que ele entrou com ela no quarto. - � melhor dizeres aos teus amigos que est�s bem.
- O qu�?
- Os c�es, Meg. Sossega-os, antes que decidam que te deixei inconsciente.
- Rock, Buli, calma. - Ela deslizou pelos bra�os dele, assim que a pousou na cama. - Tenho um zumbido na cabe�a.
- � melhor secarmo-nos. - Deitou uma toalha na barriga dela. - Vou buscar-te uma camisa, ou coisa assim.
Ela nem se incomodou em secar, ficando apenas deleitada na cama a apreciar a sensa��o agastada e lasciva que lhe pesava no corpo. - Parecias cansado quando chegaste,
cansado e com mau feitio, com uma camada de gelo por cima de tudo. Com a mesma express�o que tinhas na C�mara Municipal. J� a vi mais algumas vezes, uma pequena
amostra. Cara de pol�cia.
Ele n�o disse nada, apenas vestiu um velho par de sweats e atirou-lhe uma camisa de flanela.
- Foi uma das coisas que me excitou. Estranho.
- A estrada est� fechada para tua casa. Tens de ficar aqui.
Ela aguardou um instante, deixando que os seus pensamentos se reunissem novamente. - Despachaste-me. H� pouco. Quando est�vamos na rua. - Ainda conseguia ver Yukon,
o corte no pesco�o, a faca enterrada na caixa tor�cica. - Despachaste-me e deste-me ordens, uma esp�cie de fogo cerrado verbal. N�o gostei.
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De novo, ele ficou em sil�ncio, mas pegou na toalha para secar o cabelo.
- N�o vais pedir desculpa.
- N�o.
Ela sentou-se para vestir a camisa emprestada. - Conhecia o c�o desde pequenino. - Como sentia a voz a esmorecer, mordeu os l�bios. Controlou-se. - Tinha direito
a estar perturbada.
- N�o digo que n�o. - Foi at� � janela. A neve j� mal ca�a agora. Talvez as previs�es estivessem certas.
- E tinha direito a estar preocupada com os meus c�es, Nate. Direito a ir eu pr�pria v�-los.
- A� discordamos. - Afastou-se da janela mas deixou as cortinas abertas. - � natural preocupares-te, mas n�o havia motivos para tal.
- N�o aconteceu nada, mas podiam ter-se magoado.
- N�o. Quem fez isto atacou um c�o sozinho, um c�o velho. Os teus s�o jovens e fortes, e fazem um belo par de dentes saud�veis. S�o quase siameses.
- N�o percebo...
- Pensa dois segundos, em vez de s� reagires. - A impaci�ncia saltou-lhe na voz, ao atirar a toalha para o lado. - Imaginemos que algu�m lhes queria fazer mal. Digamos
que algu�m... algu�m sabia e se aproximava... tentava fazer mal a um deles. E at� conseguia. O outro ca�a-lhe em cima com toda a f�ria divina e despeda�ava-o. E
quem os conhece bem a ponto de se aproximar, sabe disso.
Ela levou os joelhos ao peito, pressionando o rosto neles e come�ou a chorar. Sem olhar para cima, acenou para o afastar, ao sentir que se aproximava.
- N�o. N�o. D�-me um minuto. N�o consigo tirar a imagem da minha cabe�a. Era mais f�cil quando estava zangada contigo, ou quando canalizava isso para o sexo. Odiei
ficar ali sentada � espera, sem saber. E ainda por cima tive medo, por ti. Tive medo que te tivesse acontecido alguma coisa. E isso deixou-me danada.
Levantou a cabe�a. Apesar dos olhos marejados de l�grimas, conseguia ver o rosto dele, e que se havia fechado de novo. - Tenho mais uma coisa a dizer.
- For�a.
- Eu... tenho de arranjar uma forma de dizer isto sem parecer lamechas. - Levou as costas das m�os �s faces para as secar. - Mesmo estando irritada, assustada e
querer enfiar-te uma bota pelo rabo acima por me deixares assim, eu... admiro o que fazes. Como o fazes. Quem �s quando o fazes. Admiro a for�a que colocas em tudo.
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Ele sentou-se. N�o ao lado dela, nem na cama, mas na cadeira para que houvesse uma dist�ncia entre ambos. - Ningu�m de quem gostava, ningu�m fora do meu trabalho,
alguma vez me disse algo parecido.
- Ent�o devo dizer que gostavas das pessoas erradas. - Levantou-se e foi at� � casa de banho para se assoar. Ao sair, ficou encostada na ombreira a v�-lo ao fundo
do quarto.
- Sa�ste e foste buscar os meus c�es. Com tudo o que estava a acontecer, sa�ste e trouxeste-os para perto de mim. Podias ter mandado outra pessoa ou ignorar o que
te pedi. A estrada est� inundada, eles podiam ficar para segundo plano. Mas n�o. Tenho amigos que teriam feito o mesmo por mim, e eu por eles. Mas n�o consigo imaginar
outro homem com quem estive, com quem fui para a cama, que tivesse feito isso.
Um sorriso espectral tocou a boca dele. - Ent�o diria que foste para a cama com os homens errados.
- Parece que sim. - Caminhou e apanhou a camisa que ele despira ao entrar. Com um certo carinho, tirou o distintivo e levou-lho. - A prop�sito, isto fica-te bem.
Sensual.
Ele agarrou-lhe na m�o antes que ela conseguisse recuar. Mantendo-a firme, levantou-se. - Sinto uma necessidade imensa de ti. � mais forte do que j� tive por algu�m,
e pode ser mais do que querias.
- Temos de descobrir.
- H� um ano atr�s, n�o me terias admirado. H� seis meses. E tens de saber que ainda h� dias em que sinto uma dificuldade enorme s� em levantar-me da cama.
- Por que raz�o?
Ele abriu a outra m�o e desceu o olhar, para o distintivo. - Talvez tamb�m tenha uma terr�vel necessidade de tudo isto. N�o � nada her�ico.
- Oh, est�s t�o enganado. - O cora��o dela estava perdido. Naquele momento, limitou-se a saltar e a cair aos p�s dele. - Hero�smo � fazer mais do que se quer ou
se pensa que se pode. Por vezes, basta fazer as coisas chatas, as coisas miser�veis que os outros n�o querem.
Ela aproximou-se, cobrindo o rosto dele com as m�os em concha. - N�o � saltar de um avi�o para um glaciar a tr�s mil metros de altura s� porque n�o h� mais ningu�m
que o fa�a. � levantar da cama de manh� quando a vontade n�o � muita.
A emo��o revolvia nos olhos dele, e desceu a face at� tocar o alto da cabe�a dela. - Estou t�o apaixonado por ti, Meg.
Depois, beijou-lhe o cabelo, alisando-o. - Tenho de sair. Quero ver como est� o rio, fazer patrulha antes de me deitar.
- Uma civil e os c�es dela podem acompanhar-te?
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- Sim. - Passou a m�o pelo seu cabelo molhado. - Primeiro seca o cabelo.
- Contas-me o que sabes, de Yukon?
- Conto-te o que puder.
24.
Voltou ao local do crime na geada fria da manh�. A dez passos da porta, pensou Nate. Foi-se embora � vista de quem entrasse ou sa�sse da C�mara Municipal. � vista
de quem passasse de carro, ou a p�.
E n�o se foi s� embora. Executou o crime �s claras.
Entrou, passando a sala de reuni�es. Dera ordens para n�o mexerem em nada. As cadeiras desdobr�veis, o grande ecr� de projec��o, tudo estava no mesmo s�tio. Recriou
na sua cabe�a o que acontecera na noite anterior.
Chegara um pouco atrasado, um pouco antes de as luzes se apagarem. Perscrutara a multid�o tanto por h�bito, quanto por estar � procura de Meg.
Rose e David estavam na �ltima fila. Era a primeira noite que ela sa�a desde que tivera a beb�. Estavam de m�os dadas. Lembrava-se de os ver no intervalo, Rose ao
telefone, talvez a falar com a m�e, que ficara a tomar conta das crian�as.
Bing estava ao fundo da sala. Nate ignorara o frasco que segurava entre os joelhos. Deb e Harry, O Professor. Um pequeno grupo de estudantes do liceu, toda a fam�lia
Riggs, que vivia numa cabana de madeira depois de Rancor Woods.
Estimava que metade da popula��o estivesse l�, o que queria dizer que a outra metade n�o estava. Alguns foram-se embora no intervalo. Dos que ficaram, algum pode
ter-se escapulido e entrado outra vez.
�s escuras, com as aten��es presas no ecr�.
Voltou para o corredor quando ouviu a porta da rua abrir, e viu Hopp puxar o capuz para tr�s.
- Vi o seu carro estacionado ali fora. N�o sei o que pensar disto, Ignatious. N�o consigo articular nenhuma ideia concreta.
Levantou as m�os e deixou-as cair novamente. - Vou ver como est� Lara. N�o sei o que lhe dizer. � tudo t�o louco. Cruel e louco.
- Fico-me pelo cruel.
- Mas n�o louco? Algu�m abre ao meio um animal inocente � porta da C�mara, e isso n�o � louco?
- Depende do motivo.
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A boca dela alisou-se. - N�o consigo ver qual seja o motivo. Algumas pessoas disseram que era uma esp�cie de culto, que os mi�dos do liceu andavam a praticar, ou
coisa assim. N�o acredito mesmo nada nisso.
- N�o foi nada ritualista.
- Outros acham que foi algum maluquinho que acampou junto � cidade. Talvez seja um conforto acreditar que nenhum de n�s podia fazer algo t�o horr�vel, mas n�o sei
se me faz sentir melhor pensar que temos um doido a rondar, que matou um c�o daquela maneira.
Estudou o rosto dele. - N�o pensa assim.
- N�o, n�o penso assim.
- Vai dizer-me o que pensa?
- Penso que quando algu�m mata um c�o local, no meio da vila, diante de um edif�cio onde est� sentada metade da popula��o, � porque tem os seus motivos.
- Que s�o?
- Estou a trabalhar nisso.
Conduziu ao longo do rio antes de se dirigir para a esquadra. Nesse dia a tonalidade era de um cinzento enfadonho, com as placas de gelo flutuante inertes na sua
superf�cie.
O avi�o de Meg j� n�o estava l�, um sinal evidente de que n�o a podia fechar num lugar seguro e limitado. Bing e uma equipa de dois homens limpavam uma parte da
estrada. O �nico cumprimento de Bing ao ver Nate abrandar foi um olhar fixo e demorado.
Chegou � esquadra para encontrar Peach a servir caf� a Joe e Lara. Peter olhava-os como um adulto que lutava para n�o chorar.
Lara, de olhos inchados e vermelhos, levantou-se no instante em que Nate entrou na sala.
- Quero saber o que est�o a fazer no que diz respeito a Yukon. O que � que est�o a fazer para encontrar o desgra�ado que matou o meu c�o?
- Ent�o, Lara.
- N�o me venhas com o "Ent�o, Lara", - disse ela, girando na direc��o do marido. - Quero saber.
- Porque � que n�o vamos at� ao meu gabinete? Peach, nos pr�ximos minutos n�o passe nenhuma chamada, a n�o ser que seja uma emerg�ncia.
- Est� bem, Comandante. Lara. - Pegou na m�o de Lara. - Tenho muita pena.
Lara conseguiu esbo�ar um aceno com a cabe�a antes de espetar o queixo para o ar e entrar no gabinete de Nate. - Quero respostas.
310
- Lara, gostava que se sentasse.
- N�o quero...
- Gostava que se sentasse. - Revelava um tom de voz baixo, mas denotando a autoridade que a levou a cair numa cadeira.
- A cidade votou a cria��o deste departamento de pol�cia. Votou que voc� viesse e que os nossos impostos pagassem o seu ordenado. Quero que me diga o que � que est�
a fazer. Porque � que n�o anda l� fora � procura daquele filho da m�e.
- Estou a fazer todos os poss�veis. Lara, - disse ele, no mesmo tom
calmo antes que ela falasse de novo. - Nem pense sequer que n�o estou a dar aten��o ao caso. Ou algum de n�s. Estou empenhado, e vou continuar at� conseguir dar-lhe
as respostas de que precisa.
- Tem a faca. A faca que... - A voz quebrou, o queixo tremeu, mas respirou fundo, puxando os ombros para tr�s. - Devia conseguir descobrir a quem pertence a faca.
- Posso dizer-lhe que a faca foi dada como roubada ontem de manh�, juntamente com outros objectos. J� falei com o propriet�rio e vou obter depoimentos das pessoas
que estiveram ontem � noite na C�mara. Posso come�ar por si.
- Acha que um de n�s matou Yukon?
- N�o acho nada disso. Sente-se, Lara, - disse ele ao ver que ela se punha de p�. - Ambos estiveram na noite de cinema. Por isso vamos recordar o que viu e ouviu.
Ela baixou-se, desta vez bem devagar. - Deix�mo-lo na rua. - As l�grimas inundaram-lhe o olhar. - Estava velhinho e n�o continha a bexiga, por isso deix�mo-lo na
rua. Era s� por algumas horas, e tamb�m tinha a casota. Se o tiv�ssemos deixado em casa...
- N�o sabe se teria feito alguma diferen�a. Quem fez isto podia ter entrado em casa e t�-lo levado. Pelo que ouvi, deu �quele c�o uns belos catorze anos. N�o tem
nada de que se culpar. A que horas � que saiu de casa?
Lara baixou a cabe�a, fitando as m�os enquanto as l�grimas saltavam sobre elas.
- Logo depois das seis, - disse Joe, e come�ou a massajar o ombro da esposa.
- Foram logo para a C�mara?
- Sim. Acho que cheg�mos l� por volta das seis e meia. Cedo, mas gostamos de ficar mais para a frente. Deix�mos os casacos nas cadeiras. Terceira ou quarta fila,
do lado esquerdo. E socializ�mos um pouco.
Nate f�-los recordar. Com quem haviam conversado, quem se sentara a seu lado.
- Alguma vez tiveram alguma queixa do c�o?
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- N�o. - Joe suspirava. - Bom, talvez algumas vezes quando era pequenino. Ladrava por tudo e por nada. Uma vez fugiu e roeu as botas de Tim Tripp, que ele tinha
deixado no terra�o das traseiras. Mas foi h� anos, e Tim ainda se fartou de rir porque o raio das botas eram quase maiores do que Yukon. Acalmou, quando passou a
fase de cachorrinho, acalmou.
- E voc�s dois? Tiveram problemas com algu�m ultimamente? Alguma discuss�o?
- Eu envolvi-me numa com Jim Trinca-Espinhas por causa da Iditarod. As coisas aqueceram bastante. Mas esse tipo de coisa acontece. As pessoas ficam alteradas com
a Iditarod, e t�m os seus favoritos.
- Tive de chamar Ginny Mann � escola porque o mi�do dela se baldou duas vezes. - Lara tirou um len�o de papel. - N�o ficou nada contente, e comigo tamb�m n�o.
- Que idade tem o filho dela?
- Oito. - Pestanejou com rapidez. - Oh, c�us, o Joshua nunca teria feito aquilo a Yukon, Nate. � um bom mi�do, s� n�o gosta muito da escola, mas n�o ia matar o meu
c�o por estar zangado comigo. E Ginny e Don, s�o boas pessoas. N�o iam...
- Ok. Se por acaso se lembrar de mais alguma coisa, avise-me.
- Quero... quero pedir desculpa pela forma como o ataquei.
- N�o se preocupe com isso, Lara.
- N�o, n�o fui correcta. N�o fui correcta e n�o... voc� salvou a vida do meu filho.
- N�o diria tanto.
- Ajudou a salv�-lo, e para mim isso � a mesma coisa. N�o devia ter aparecido aqui da forma como o fiz. O Joe tentou acalmar-me, mas eu n�o quis saber. Adorava o
maldito c�o.
Quando se foram embora, Nate destapou o quadro do caso. Ao afixar as fotografias que tirara na noite passada, Peter entrou. - Tudo bem, Comandante?
- Sim.
- Sinto que devia ter lidado melhor com a Sra. Wise. Fiquei atrapalhado. Bom, eu e o Steven somos muito amigos e... cresci com aquele c�o. O meu pai era criador
de c�es de tren�, e eles s�o lindos. Mas n�o s�o um animal de estima��o. Quando Steven foi para a faculdade, eu ia l� �s vezes visitar Yukon. Acho que foi por isso
que ontem � noite tamb�m passei um mau bocado.
- Podia ter-me dito.
- S� que... fiquei um bocado atarantado. Hum, Comandante? Isso vai ser mais um caso em aberto no quadro? Quero dizer, ser� que dev�amos
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fixar c�pias das anota��es e outros artigos relacionados com o caso no quadro?
- N�o.
- Mas... j� colocou l� o Yukon.
- � verdade.
- Acha que o que aconteceu a Yukon est� relacionado com os outros? Sinto-me est�pido, mas n�o entendo.
- Pensar que est�o relacionados pode ser est�pido.
Peter aproximou-se. - Porque acha?
- Nesta altura, n�o tenho qualquer motivo evidente para matarem aquele c�o. - Nate foi at� � secret�ria, destrancou uma gaveta e pegou na faca e nas luvas seladas.
- Pertencem a Bing. Ele deu-as como roubadas ontem de manh�.
- Bing? - Peter arregalou os olhos. - Bing?
- Tem um feitio tramado. Tem cadastro e a maior parte dele tem a ver com agress�es. Comportamento violento.
- Sim, mas... c�us.
- Temos v�rias formas de encarar isto. A determinada altura, Bing entra numa discuss�o com Joe. Ou Joe e Lara fazem algo que desagrada a Bing. Come�a a remoer nisso
e decide dar-lhes uma li��o. Por isso decide matar o c�o, diz que lhe roubaram a faca e as luvas e desaparece depois do intervalo, ontem � noite, sabendo que os
Wise est�o l� dentro. Vai buscar o c�o e tr�-lo. Mata-o, deixando a faca e as luvas por achar que n�o havia problema, por as ter dado como roubadas. Depois, volta
para casa e vai trabalhar na garagem.
- Se estava chateado com o Sr. ou a Sra. Wise, porque � que n�o deu um murro na cara ao Sr. Wise?
- Boa pergunta. Outra forma de encararmos isto � que algu�m pode ter querido causar problemas a Bing. Ele chateia muita gente, por isso n�o � dif�cil.
Apoiou a anca na secret�ria, os olhos fixos no quadro. - Roubam a faca e as luvas. Usam-nas para matar o c�o, largam-nas onde as encontrei. Ou...
Foi at� ao balc�o para p�r uma cafeteira de caf� a fazer. - Perguntamo-nos como � que o assass�nio de Galloway e a morte do c�o podem estar relacionados.
- � isso mesmo. N�o estou a ver.
- O assassino deixou-nos uma pista enorme. Cr�ptica ou �bvia, dependendo do �ngulo em que a encararmos. Cortaram o pesco�o ao c�o. Foi isso que o matou. Mas o assassino
n�o atira a faca para outro lado. Demora-se mais um pouco. Teve de virar o c�o para o fazer. Para lhe cravar a faca no peito. Porqu�?
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- Porque � tarado, cruel e...
- Deixe isso agora e olhe para o quadro, Peter. Olhe para Galloway. Olhe para o c�o.
Estava dif�cil de perceber, constatava Nate. Tinha de olhar bem para as fotografias desagrad�veis. Depois, soltou um pequeno suspiro, como se o tivesse reprimido.
- Ferimento no peito. Ambos t�m uma l�mina cravada no peito.
- Pode ser coincid�ncia, ou talvez algu�m est� a tentar dizer-nos alguma coisa. Agora, aproxime-se mais. Onde est� a liga��o entre Galloway, Max e os Wise?
- Pois, n�o sei. Steven e os pais mudaram-se para c� quando eu tinha uns doze anos. Foi depois de Galloway desaparecer. Mas conheciam o Sr. Hawbaker. O Sr. Wise
punha um an�ncio quase todas as semanas n'O Lun�tico para os servi�os inform�ticos. E as Sras. Wise e Hawbaker tinham algumas aulas juntas. A aula de gin�stica na
escola e a aula de croch� que Peach organizou.
- Mais alguma coisa os est� a ligar. Que n�s saibamos, eles n�o conheciam Patrick Galloway, mas durante dezasseis anos todos acreditaram que ele tinha desaparecido.
Agora, j� n�o. Porqu�?
- Bom, porque o encontraram quando... Steven. Foi Steven que o encontrou.
- Durante dezasseis anos safamo-nos com um homic�dio, mas depois um puto de faculdade espertalh�o e os amigos idiotas lixam tudo. - Nate ouvia o caf� cair na cafeteira
de vidro. - Uma chatice, sem d�vida. Se eles n�o tivessem ido l� a cima, naquela altura, naquele lugar, tudo estaria a correr bem. Mais uma avalanche, natural ou
provocada pelo Estado para limpar a montanha, e a gruta ficava soterrada novamente. Durante anos. Talvez para sempre, se a sorte estivesse de fei��o.
Pousou a anca na secret�ria enquanto o caf� fazia. - Agora � preciso matar outra vez. Matar Max, ou lev�-lo ao suic�dio. Safa-se disso tamb�m. Acredita nisso. Tem
de acreditar, mas agora h� pol�cia em Lunacy. N�o s� estadual, mas na vila, na porta ao lado. O que � que faz em rela��o a isso?
- N�o estou a acompanhar.
- Distrai-os. Vandalismo, pequenos furtos. Coisas insignificantes que os mant�m ocupados, s� para o caso de estarem a pensar em coisas mais importantes. Vinga-se
do parvalh�o do puto universit�rio e d� aos pol�cias algo mais em que pensar, ao mesmo tempo. Dois coelhos de uma cajadada. Mas n�o consegue resistir a ser um pouco
emproado, dando-lhe uma cotovelada nas costelas. Vai da�, encena o primeiro homic�dio ao enfiar a faca no peito do c�o.
Levantou-se e serviu caf� a ambos. - Mas tamb�m se pode dar o
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de ser um arrogante de merda e usar a pr�pria faca, as pr�prias luvas.
H� uma grande possibilidade, depois de analisarmos o perfil de Bing Karlovski. Ou ent�o � t�o esperto, t�o convencido, que planta l� as provas para que as evid�ncias
apontem para outro lado. Se for esse o caso, porqu� Bing?
Onde est� a liga��o?
- Juro que n�o sei. Estou a tentar processar tudo isto na minha cabe�a. Talvez n�o tenha liga��o. O Bing � assim. Ele irrita as pessoas. Ou teve a sorte de poder
roubar a faca.
- Nada � por sorte. N�o desta vez. Temos de descobrir onde estava Bing, exactamente onde estava em Fevereiro de 1988.
- Como?
Nate provou o caf�. - Para come�ar, vou perguntar-lhe. Entretanto, quero depoimentos de todos os que estavam na noite de cinema, e de quem n�o estava tamb�m. Isso
vai levar algum tempo. Pe�a a Peach que fa�a uma lista que divida a vila em tr�s sec��es. Cada um de n�s fica com uma.
- � para j�.
- Peter? - Nate chamou-o junto � porta. - N�o estava de servi�o ontem � noite? Trabalho administrativo?
- Sim, mas Otto disse que n�o lhe apetecia ir ao cinema, por isso troc�mos. N�o faz mal, pois n�o?
- Claro que n�o. - Nate bebeu mais caf�. - Sem problemas. V� l� pedir a Peach que fa�a a lista.
Nate foi at� ao quadro e desenhou linhas que unissem Joe e Lara Wise a Max e Bing.
- Nate? - Peach espreitava. - Ainda quer que retenha as chamadas?
- N�o, o que foi?
- Recebi informa��es de disparos e avistamento de um urso. As mesmas pessoas que avistaram o corpo, que afinal era um par de botas. Entreguei ambos a Otto, uma vez
que j� estava de patrulha. Os tiros afinal eram o tubo de escape da carrinha de Dex Trilby, que � mais velha do que eu.
- E o que era o urso, um esquilo em cima de um tronco?
- N�o, o urso era mesmo um urso. Os Forasteiros idiotas espalharam comida para p�ssaro � volta da cabana, para atrair os p�ssaros. Bom, o urso n�o resiste a comida
de p�ssaro fresca. O Otto foi resolver o assunto, e f�-los apanhar a comida de p�ssaro. Depois de ter l� ido hoje duas vezes, est� um bocadinho irritadi�o. Por isso,
se aparecer mais alguma coisa, achei melhor dar-lhe a si e ao Peter.
- Fa�a isso.
- Pronto, ent�o, Carrie Hawbaker acabou de entrar e quer falar consigo. Quer que lhe passe as informa��es para o relat�rio policial.
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- �ptimo, trate disso. Parece que vamos ter O Lun�tico a funcionar em for�a outra vez.
- Parece que sim. Ela diz que quer uma declara��o oficial do que se passou a noite passada, para o jornal. Quer que trate disso?
- N�o. - Deitou o cobertor sobre o quadro. - Pe�a-lhe que venha aqui.
Tinha melhor aspecto do que da �ltima vez que a vira. Mais calma e com olheiras menos profundas. - Obrigada por me receber.
- Como tem passado? - Perguntou ele e fechou a porta.
- Vou andando, devagarinho. Ajuda ter os mi�dos, eles precisam de mim, e o jornal. - Sentou-se na cadeira que ele oferecera e pousou a pasta de cart�o que levava
no colo. - N�o vim c� s� para falar do artigo do relat�rio policial. C�us, � horr�vel o que aconteceu a Yukon.
- Pois �.
- Bom. Sei que pretende que me lembre da altura em que Pat desapareceu. Que aponte os pormenores. Tirei algumas notas. - Abriu a mala para tirar folhas de papel.
- Pensava que me ia lembrar de tudo com a maior das facilidades. Mas n�o.
Nate viu que os pap�is estavam dactilografados com aprumo, escritos num estilo bastante formal. - Parece que se lembrou de bastante.
- Anotei tudo. Muitas coisas at� que nem devem interessar. Foi h� muito tempo, e agora tenho de admitir que n�o prestei muita aten��o � partida de Pat. Estava a
dar aulas e andava preocupada em passar aqui mais um Inverno, o meu segundo. Tinha trinta e um anos, e falhara os planos de me casar antes dos trinta.
Esbo�ou um sorriso. - Essa foi uma das raz�es que me trouxe ao Alasca. A propor��o jogava a meu favor. Lembro-me de me sentir um pouco desesperada, com pena de mim
mesma. E irritada por Max n�o se ter declarado. � por isso que me lembro, vai ver isso a� escrito, que ele desapareceu por umas semanas nesse Inverno. Acho que foi
nesse Fevereiro. N�o tenho a certeza absoluta. Os dias tendem a congelar-se num s� no Inverno, especialmente quando se est� sozinho.
- Para onde � que ele disse que ia?
- Disso lembro-me bem, porque fiquei chateada. Ele disse que ia para Anchorage, at� Homer, passar umas semanas a sudeste, a entrevistar os pilotos do mato e a dar
umas voltas com eles. Para o jornal, e uma pesquisa do romance que estava a escrever.
- Nessa altura ele costumava viajar muito?
- Costumava. Tamb�m anotei isso. Disse que ia estar fora quatro ou cinco semanas, mas isso n�o me caiu muito bem, ainda por cima porque ainda estava tudo muito no
ar entre n�s dois. Lembro-me porque voltou
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mais cedo do que previra, mas nem sequer me foi ver. Algu�m me contou que ele tinha aparecido no jornal. Praticamente vivia l�. Fiquei t�o chateada que nem sequer
fui ter com ele.
- Quanto tempo passou at� se encontrarem?
- Algum. Fiquei realmente muito chateada. Mas acabei por ficar suficientemente chateada ao ponto de o ir ver. Sei que foi para fins de Mar�o, ou no in�cio de Abril.
A sala de aula estava decorada para a P�scoa. A P�scoa calhou no primeiro domingo de Abril, nesse ano. Fui verificar. Lembro-me de estar l� sentada com todos aqueles
ovos coloridos e os desenhos dos coelhinhos, a pensar no Max.
Passou a m�o pela pilha de pap�is. - Desta parte lembro-me perfeitamente. Ele estava trancado no jornal. Tive de bater � porta. Ele estava com um aspecto horr�vel.
Magro e com a barba por fazer, o cabelo todo despenteado. Cheirava mal. Um monte de pap�is espalhados na secret�ria.
Suspirou ao de leve. - N�o me lembro de como estava o tempo, Nate. Do aspecto da vila, mas lembro-me do aspecto dele. Lembro-me bem de como estava o gabinete dele.
Ch�venas de caf�, latas de lixo a transbordar, lixo pelo ch�o. Cinzeiros cheios de beatas. Dantes ele fumava.
- Anotei isso, - disse ela, voltando a alisar os pap�is. - Estava a trabalhar no romance, pelo menos foi o que presumi, e parecia um louco. Raios me partam se sei
porque � que achei isso t�o atraente. Mas disse-lhe das boas. Disse que estava farta. Se achava que me podia tratar daquela forma, tinha de pensar melhor. Desatei
a barafustar, mas ele n�o disse uma palavra. Quando me passou a f�ria, ele p�s um joelho no ch�o.
Parou por instantes, apertando os l�bios um no outro. - Ali mesmo, naquela confus�o. Disse que queria uma segunda oportunidade. Que precisava de uma. E pediu-me
em casamento. Cas�mos em Junho desse ano. Quis ser noiva de Junho e como j� n�o ia cumprir a minha meta dos trinta anos, mais alguns meses tamb�m n�o iam fazer diferen�a.
- Alguma vez falou do tempo que passou fora?
- N�o. E eu n�o perguntei. N�o me pareceu importante. A �nica coisa que disse foi que percebera como era estar sozinho, mesmo sozinho, e que n�o queria passar pelo
mesmo de novo.
Nate pensava nas linhas que uniam os nomes na sua lista. - Ele tinha alguma identifica��o, ou uma amizade especial com Bing?
- Bing? N�o, n�o eram grandes amigos. Max tentava ser simp�tico com ele, principalmente desde que descobrira que Bing me tinha convidado para sair.
- Bing?
- "Convidou-me para sair" � mais um eufemismo. N�o estava interessado em jantar e dan�ar, se � que me entende.
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- E alguma vez...
- N�o. - Ela riu-se, interrompendo-se a meio ao sentir-se chocada consigo mesma. - N�o me ria, com vontade, desde que... � terr�vel rir de uma coisa destas.
- A ideia de voc� com Bing parece-me engra�ada. Como � que ele encarou a rejei��o?
- Oh, acho que sem grandes problemas. - Com as costas da m�o, esbo�ou um gesto demisso. - Eu estava � m�o, s� isso. Era uma nova f�mea na pequena manada. Homens
como Bing tentavam arrancar a nova � manada, para ver se conseguiam sexo e talvez umas refei��es caseiras. N�o tenho nada contra ele, tudo isso � natural num lugar
como este. Ele n�o foi o �nico a fazer avan�os. Sa� com alguns no primeiro Inverno. At� jantei com O Professor algumas vezes, apesar de ter a certeza absoluta que
ele tinha uma paix�o enorme por Charlene.
- Isso foi antes de Galloway se ir embora?
- Antes, durante e depois. Ele sempre teve um fraco por ela. Mas jant�mos algumas vezes e ele foi um perfeito cavalheiro. Talvez at� de mais do que eu andava � procura,
para dizer a verdade. Mas n�o procurava uma pessoa como Bing.
- Porqu�?
- Ele � enorme, rude e bruto. Sa� com John porque gostava do aspecto dele e das suas ideias. E uma vez com Ed porque, bom, porque n�o? At� Otto, depois de se divorciar.
Uma mulher, at� uma que n�o seja muito bonita e que tenha passado dos trinta, tem muitas op��es num lugar como este, se n�o for muito esquisita. Eu escolhi Max.
Perdeu-se no sorriso. - Ainda faria o mesmo. - Depois regressou. - Gostava de lhe dizer mais. Olhando para tr�s, acho que consigo ver que Max estava com problemas.
Mas ele ficava sempre assim quando trabalhava num dos seus livros. Punha-os de lado durante meses e meses a fio, e era tudo normal. Mas assim que tinha ideias e
come�ava, fechava-se a sete chaves. Eu era mais feliz quando ele esquecia os livros.
- Algu�m tomou alguma liberdade consigo enquanto eram casados?
- N�o. Lembro-me de Bing me dizer, mesmo � frente de Max, que me vendia f�cil e barato, ou coisa assim.
- E?
- Nada. Max brincou com o assunto, pagou uma bebida a Bing. N�o era de confrontos, Nate. Desviava-se quil�metros para os evitar, o que era um dos motivos, parece-me,
por n�o ter vingado num jornal da cidade grande. Viu o que ele fez quando voc� o despachou, assim que chegou c�. Foi ter com Hopp. Era assim que agia. N�o teria
vindo aqui armar zaragata
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consigo sozinho, porque simplesmente n�o tinha ferramentas para uma batalha desse g�nero. Nunca teve. - Max era f� de cinema?
- Quase toda a gente de Lunacy �. � uma forma de entretenimento fi�vel para a comunidade. Ele adorava elaborar as cr�ticas das projec��es
Por falar na noite de cinema, gostava muito de uma declara��o acerca do que aconteceu a noite passada.
- A Peach pode entregar-lhe o relat�rio para o artigo.
- Depois falo com ela sobre isso, mas parece-me que num assunto desta natureza, talvez seja melhor publicarmos mais do que um artigo. Otto encontrou-o, - come�ou
ela enquanto pegava no bloco de notas.
- Pois. D�-nos mais alguns dias, Carrie. Nessa altura j� devo ter algo mais concreto para lhe dar.
- Quer dizer que espera fazer uma deten��o em breve?
Nate sorria. - J� voltou a colocar o chap�u de jornalista. Quero dizer que vou coordenar as minhas notas, depoimentos e o relat�rio do incidente.
Ela levantou-se. - Ainda bem que os meus filhos n�o estavam l� ontem � noite. Quase insisti para que fossem, s� para sa�rem um bocado e fazerem alguma coisa normal.
Mas em vez disso convidaram uns amigos para comer pizza l� em casa. Amanh� volto c� para o relat�rio.
- Estava aqui a pensar, - disse ele ao acompanh�-la � porta, - Max era f� da Guerra das Estrelas?
Ela fitava-o. - Porque � que se lembrou disso agora?
- � s� um ponto que precisa de liga��o.
- N�o era. N�o se podia apelidar de verdadeiro f�, o que para mim at� era estranho, porque adorava esse tipo de coisa. Grandes hist�rias �picas com montes de efeitos
especiais. Mas esses n�o via. Uma vez houve uma maratona Guerra das Estrelas na noite do cinema, h� seis ou sete anos. Bom, quando o filme original fez vinte anos.
Ele n�o queria ir, mas os mi�dos estavam doidos por ver. Tive eu de os levar. E escrever as cr�ticas para o jornal, agora que penso nisso. Assim que se soube da
estreia, acabei por levar os mi�dos a Anchorage para os ver pela primeira vez. Ele ficou em casa.
De que chap�u � que desencantou essa pergunta?
- Do chap�u de pol�cia. - Encostou-se a ela com subtileza para a encaminhar para a rua. - N�o � importante. Fale com Peach por causa do artigo.
Nate organizou-se de forma a ir � A Estalagem quando Bing e a equipa estavam na pausa para almo�o. Entrou ao mesmo tempo que Rose servia uma
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cerveja a Bing. Os olhos dele encontraram os de Bing. Avan�ou, acenando casualmente para os dois homens em frente ao banco corrido.
- Voc�s importam-se de procurar outra mesa para que eu e Bing possamos ter uma conversa particular?
Importavam-se, mas pegaram nas canecas de caf� e mudaram-se para a mesa vazia ao lado.
- J� pedi o almo�o, - come�ou Bing. - E tenho direito a comer sem voc� aqui sentado, a estragar-me o apetite.
- J� vi que tapou o buraco na estrada. Obrigado, Rose, - disse ele, quando ela lhe trouxe o caf� habitual.
- Est� pronto para almo�ar, Comandante?
- N�o. Agora n�o quero nada. O rio est�-se a aguentar, - continuou para Bing. - Talvez n�o sejam precisas as sacas de areia...
- Talvez sejam, talvez n�o.
- Fevereiro de 1988. Onde � que estava?
- Merda para isto, como quer que saiba?
- Em 1988 os Los Angeles Dodgers ganharam o campeonato, os Redskins ganharam a Super Bowl. A Cher ganhou um Oscar.
- Tretas de Lower 48.
- E em Fevereiro, Susan Butcher ganhou a terceira Iditarod. Uma proeza danada para uma mi�da de Boston. Terminou em onze dias e n�o chegou a doze horas. Talvez isso
lhe refresque a mem�ria.
- Refresca, que perdi duzentos d�lares nessa corrida. Raio da mulher.
- Ent�o, o que � que andava a fazer algumas semanas antes de perder duas notas?
- Um homem lembra-se de perder duzentos d�lares por causa de uma mulher. N�o tem de se lembrar sempre que co�a o rabo ou d� uma mija.
- Viajou para algum lado?
- Ia e vinha como bem me apetecia, tal como agora.
- Talvez tenha ido a Anchorage, e viu Galloway por l�.
- J� fui a Anchorage mais vezes do que voc� muda de cuecas. Umas centenas de quil�metros aqui s�o p�ra doce. Sou capaz de o ter visto uma ou duas vezes. Vejo muita
gente conhecida por l�. Trato da minha vida e eles da deles.
- Se gostar de se fazer dif�cil, vai acabar por arcar com as culpas. Um calor imenso ardia-lhe nos olhos. - � melhor nem tentar amea�ar-me.
- E voc� � melhor n�o me enfrentar. - Nate recostou-se com o caf�. - Deve pensar que o distintivo lhe fica melhor a si.
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- Bem melhor do que a um cheechako qualquer, que fez com que matassem o parceiro. Que teria desaparecido, se a fitinha azul n�o o puxasse para cima.
Acertara-lhe em cheio nas entranhas, mas bebeu o caf�, fitando os olhos de Bing. - Andou a fazer os trabalhos de casa. Mas na verdade, sou eu que uso o distintivo.
J� tenho o suficiente para o meter dentro, acus�-lo e prend�-lo pelo que fez ao c�o.
- N�o toquei no c�o.
- Se fosse a si, tentava esfor�ar-me mais para me lembrar de onde estava quando Patrick Galloway deixou a cidade.
- Porque � que quer bater mais no ceguinho, Burke? Sente-se mais importante? Max matou Galloway e toda a gente sabe disso.
- Ent�o n�o o deve incomodar verificar o seu paradeiro.
Rose entrou com uma travessa de rolo de carne, uma montanha de pur� de batata e um pequeno oceano de molho. - Precisa de mais alguma coisa Bing? - Pousou uma tigela
de ervilhas e cebolinhas ao lado do prato.
Nate viu que ele lutava, observando-o recostar-se no banco. Tinha a voz neutra, um pouco gentil quando respondeu. - N�o, obrigado, Rose.
- Bom proveito. Comandante, se quiser alguma coisa, � s� dizer.
- J� lhe disse tudo o que tinha a dizer, - afirmou Bing, e espetou um enorme naco de carne no garfo.
- E que tal conversa de chacha de hora de almo�o? O que � que acha da Guerra das Estrelas?
- Huh?
- Est� a ver, os filmes. Luke Skywalker, Darth Vader.
- Idiota de merda, - resmungou Bing entre dentes e mergulhou as batatas no molho de carne. - Guerra das Estrelas, por amor de Deus. Deixe-me comer em paz.
- Tem uma grande hist�ria, personagens memor�veis. Debaixo de todos aqueles efeitos, � sobre o destino... e trai��o.
- � sobre grandes receitas de bilheteira e venda de produtos. - Bing acenou com o garfo antes de o mergulhar novamente. - Um monte de gajos a voar em naves espaciais,
a desancarem-se com espadas de luz.
- Sabres. Sabres de luz. A quest�o � que levou algum tempo, algum sacrif�cio e perdas, mas... - Deslizou do banco. - Os bons ganharam. At� logo.
25.
Estavam onze seniores na aula de Literatura Inglesa do �ltimo per�odo. Nove estavam acordados. John deixou os dois dorminhocos apreciarem a
321
sesta de fim de tarde, enquanto uma das mais alertas articulava as palavras do Bardo, ao ler a cena de Lady Macbeth "Sai, mancha maldita".
Ele tinha muito em que pensar, e supervisionar a discuss�o de Macbeth era apenas uma pequena parte.
J� mediava grupos de leitura como este h� vinte e cinco anos, desde que passara nervoso para a frente de uma turma de alunos.
Era apenas alguns anos mais velho do que os que ensinava naquele tempo. E talvez mais inocente e �vido do que a maioria dos estudantes.
Quisera escrever romances grandiosos e maravilhosos, cheios de alegorias sobre a condi��o humana.
Mas n�o quisera morrer de fome num beco, por isso come�ara a dar aulas.
Escrevera, e apesar de os romances nunca terem sido grandiosos ou maravilhosos como esperara, publicara alguns. Sem o ensino, talvez at� nem tivesse morrido de fome
na profiss�o, mas n�o teria comido l� muito bem.
Sentira o desafio e, que Deus o ajudasse, as alegrias avassaladoras, de ensinar o jovem intelectual que queria escrever grandes romances. Por isso dera o salto,
o salto destemido e irreflectido, e teve de fugir para o Alasca. L� ia experimentar, viver com simplicidade, estudar a condi��o humana naquele lugar primitivo, no
isolamento a c�u aberto que para si representava. Ia escrever romances sobre a coragem e a tenacidade do homem, as suas loucuras e os seus triunfos.
Depois chegara a Lunacy.
Como � que podia saber, um jovem que ainda n�o chegara aos trinta anos, o verdadeiro significado da obsess�o? Como podia compreender, aquele jovem inteligente, idealista
e pat�tico, que um lugar, uma mulher, o podiam acorrentar? O podiam manter acorrentado, por mais que desafiassem e negassem as suas necessidades?
Apaixonara-se, ficara obcecado, e j� n�o tinha a certeza se havia alguma diferen�a, assim que vira Charlene. A sua beleza era como um salgueiro dourado, a sua voz
a can��o de uma sereia. E a sua sexualidade indom�vel e prazenteira. Tudo nela o encantava e deleitava.
Era a mulher de outro homem, m�e da filha de outro homem. Mas n�o fazia qualquer diferen�a. O seu amor, se era disso que se tratava, n�o fora o mais puro e rom�ntico
amor de um cavaleiro valente por uma dama, mas o desejo ardente e suado de um homem por uma mulher.
N�o se tinha convencido que ela ia deixar Galloway? Fora imprudente com ela. Ego�sta. Mesmo se n�o estivesse cego de amor, John teria visto isso. Ter-se-ia ressentido.
Por isso ficou e esperou. Mudou o curso da sua vida e esperou.
322
I Depois de tudo o que fizera, de todos os planos, esperan�as, ainda esperava.
Os seus alunos estavam cada vez mais novos, e os anos morriam atr�s de si. N�o podia voltar atr�s, at� ao que desperdi�ara, ao que perdera. Mas mesmo assim, a �nica
coisa que queria n�o seria dele. Olhou para o rel�gio e viu que outro dia se reduzira a p�. Depois, ao perceber um movimento pelo canto do olho, viu Nate encostado
� ombreira da porta aberta da sala de aula.
- T�m de entregar os vossos trabalhos sobre Macbeth na sexta-feira, - anunciou a um coro de protestos. - Kevin, vou descobrir se Marianne fizer o teu. Os que est�o
na comiss�o do anu�rio, lembrem-se que h� reuni�o amanh� �s tr�s e meia. Se necess�rio, pe�am transporte para casa. Est�o dispensados.
Houve o ru�do habitual, o arrastar das cadeiras, a conversa a que estava habituado e a que deixara de prestar aten��o.
- O que ser� que t�m os liceus, - come�ou Nate, - que fazem suar as m�os de um homem adulto?
- L� porque sobrevivemos ao seu Inferno, n�o quer dizer que n�o possamos ser lan�ados para o fosso outra vez.
- Deve ser isso.
- Voc� deve ter-se safado bem, imagino, - comentou John, ao arrumar os pap�is na pasta gasta. - Tem bom aspecto, atitude. Diria que era um estudante decente, tinha
sorte com as mi�das. Atl�tico. O que � que praticava?
- Pista. - Os l�bios dele curvaram. - Sempre tive jeito para correr. E voc�?
- O marr�o cl�ssico. O que estragava sempre a curva ao resto da turma.
- Era voc�? Odiava-o. - Com os polegares enfiados nos bolsos, Nate passeava, observando as anota��es no quadro negro. - Macbeth, huh? Eu safava-me bem com Shakespeare,
se algu�m mo lesse. Em voz alta, quero dizer, para conseguir ouvir as palavras. O tipo matou por causa de uma mulher, n�o foi?
- N�o, por ambi��o e incita��o de uma mulher. Colheu em triplo as sementes que plantou.
- N�o se safou.
- Acabou por pagar, com a honra, com a perda da mulher que amava para a loucura, com a vida.
- A vingan�a tarda.
John acenou, erguendo o sobrolho. - Passou por c� para discutir Shakespeare, Nate?
323
- N�o. Estamos a investigar o incidente da noite passada. Preciso de lhe fazer algumas perguntas.
- Sobre Yukon? Estava na C�mara quando aconteceu.
- A que horas chegou l�?
- Faltavam alguns minutos para as sete. - Olhou em redor distra�do, ao ver alguns estudantes desatarem a correr �s gargalhadas pelo corredor. - Na verdade, vou agora
para um grupo extracurricular de debate hitchcockiano, do d�cimo ao d�cimo segundo. Alguns dos mi�dos sentem-se envolvidos, e ganham um cr�dito extra. Cerca de uma
d�zia de alunos meus inscreveu-se.
- Saiu entre as sete e as dez?
- Sa� no intervalo, fumei um cigarro, bebi um pouco de ponche que a comiss�o da escola prim�ria estava a vender. Era bem mais saboroso quando era eu que tratava
dele.
- Onde � que se sentou?
- Mais para tr�s, do lado oposto aos meus alunos. N�o os queria inibir ou ser bombardeado com perguntas. Tirei apontamentos dos filmes.
- �s escuras?
- Sim, � verdade. S� queria ter a certeza de alguns pontos-chave antes de os levar a debate. Gostava de o ajudar, mas n�o vejo como.
Caminhou at� � �nica janela da sala para baixar as persianas. - Depois de Otto entrar e sabermos o que tinha acontecido, voltei para A Estalagem. Fiquei perturbado.
Fic�mos todos. Charlene, Jim Trinca-Espinhas e Mike Grande estavam a tomar conta da casa.
- Quem � que l� estava?
- Ah, Mitch Dauber e Cliff Treat, o Mike B�bedo. Alguns alpinistas. - Ao falar, perscrutava a sala, recolhendo l�pis perdidos, bolas de papel amachucadas, um gancho
de cabelo.
- Bebi um copo. Meg e Otto entraram pouco depois e quando tudo acalmou, jog�mos p�quer. Ainda est�vamos a jogar quando voc� chegou.
Nate acenou e pousou o bloco de notas em que pegara instantes antes.
John atirou o papel para o lixo e guardou os outros objectos numa caixa de sapatos em cima da secret�ria. - N�o conhe�o ningu�m capaz de fazer aquilo a um c�o. Principalmente
a Yukon.
- Nem voc� nem mais ningu�m, ao que parece. - Nate olhou em redor da sala de aula. Cheirava a giz, pensava. E ao aroma adolescente de pastilha el�stica, lipgloss
e gel. - Costuma tirar umas f�rias durante o ano lectivo? Fazer uma pausa e mudar de ares?
- Dantes tirava. Pausas para manter a sanidade mental, como lhes chamo. Porqu�?
324
- Gostava de saber se fez uma pausa de sanidade mental em Fevereiro de 1988.
Por tr�s dos �culos, os olhos de John gelaram. - � dif�cil dizer.
- Tente.
- Devo chamar um advogado, Comandante Burke?
- Isso cabe a si decidir. S� estou a tentar perceber onde estava toda a gente, o que estavam a fazer quando Patrick Galloway foi assassinado.
- N�o devia ser a Pol�cia Estadual a tentar perceber isso? E se n�o me engano, n�o chegaram j� a uma conclus�o?
- Gosto das minhas pr�prias ila��es. N�o diria que � segredo, o facto de ser, digamos, parcial com Charlene h� tanto tempo.
- N�o. - Depois de tirar os �culos, John come�ou a limp�-los, devagar, com empenho, usando o len�o que tirara do bolso do casaco. - N�o diria que � segredo.
- E que era parcial com ela, quando ela estava com Galloway.
- Sim, sentia algo por ela, muito forte. Mas n�o me serviu de muito, uma vez que ela casou com outra pessoa menos de um ano depois de Galloway ter partido.
- Ter sido assassinado, - corrigiu Nate.
- Sim. - Voltou a p�r os �culos. - Ter sido assassinado.
- Perguntou-lhe?
- Ela disse que n�o. Sempre que lhe perguntava, ela dizia sempre que n�o.
- Mas dormiu consigo.
- Agora est� a abordar um lado muito pessoal.
- Dormiu consigo, - prosseguiu Nate, - mas casou com outro. Dormiu consigo enquanto estava casada com outro. E n�o s� consigo.
- Isso � privado. Tanto quanto algo pode ser, num lugar destes. N�o vou discutir esse assunto consigo.
- O amor � uma esp�cie de ambi��o, n�o acha? - Nate batia com o dedo no exemplar de Macbeth ainda sobre a secret�ria de John. - Os homens matam por ele.
- Os homens matam. Quase nunca precisam de uma desculpa.
- N�o posso argumentar. Umas vezes safam-se. Mais ainda, s�o apanhados. Agradecia que pensasse bem, e quando se lembrar de onde estava nesse Fevereiro, avise-me.
Avan�ando para a porta, virou-se. - Oh, gostava de saber, alguma vez leu algum dos livros que Max Hawbaker come�ou a escrever?
- N�o. - Apesar de manter a calma na voz, uma raiva contida ainda lhe vibrava no olhar. - Ele mantinha-os em segredo. � o que fazem muitos
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aspirantes a escritores. Tenho a impress�o de que ele falava mais de escrever um livro do que escrevia na realidade.
- Afinal, parece que come�ou alguns. Tenho c�pias. Quase todos andam � volta da mesma coisa. Um tema, pode chamar-se assim.
- Tamb�m n�o � at�pico, para um escritor camuflado. At� um experiente explora um tema de v�rios �ngulos.
- Costuma ser sobre homens que sobrevivem na natureza, e entre si. Ou que n�o sobrevivem. Acabam sempre por ser tr�s homens, por muitos que sejam no in�cio, ficam
sempre s� tr�s. O que mais explorou foi sobre tr�s homens a escalar uma montanha, no Inverno.
Nate agitou as moedas que tinha no bolso, ao ver que John permanecia calado.
- S� conseguiu acabar alguns cap�tulos, mas enquanto isso, ia tirando notas, como um resumo ou cenas soltas que ia incluir. Tr�s homens subiram a montanha. Apenas
dois regressaram. - Nate fez uma pausa. - Muitos romances s�o autobiogr�ficos, n�o s�o?
- Alguns, - disse John com neutralidade. - Muitas vezes � um dispositivo usado no primeiro romance.
- Interessante, n�o acha? Seria mais interessante descobrir quem era esse terceiro homem. Bom, estarei por aqui. Avise-me se se lembrar onde estava nesse Fevereiro.
John ficou im�vel at� os passos de Nate deixarem de ressoar pelo corredor. Depois sentou-se, devagar, � secret�ria. E viu que as m�os lhe tremiam.
Nate apareceu numa reuni�o informal da C�mara Municipal. F�-lo deliberadamente, e n�o ficou surpreendido quando a conversa cessou, assim que passou a porta.
- Desculpem interromper. - Perscrutou os rostos da assembleia municipal, rostos que come�ara a conhecer. Mais de um deles revelou um certo embara�o. - Posso esperar
que acabem, se preferirem.
- Acho que estamos mesmo a terminar, - disse Hopp.
- N�o concordo. - Ed plantou as suas botas Vasque Sundowners no ch�o e cruzou os bra�os sobre o peito. - Acho que n�o resolvemos nada, e acho que esta reuni�o deve
continuar, e, lamento, Comandante, permanecer � porta fechada at� que tudo se resolva.
- Ed. - Deb debru�ara-se. - J� demos a volta a isto dezenas de vezes. J� chega por agora.
- Voto para que continuemos.
- Oh, continuamos pelo rabo acima, Ed. - Joe Wise levantou-se.
- Joe. - Hopp apontou-lhe o dedo. - � um encontro informal,
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e isso n�o significa que podemos come�ar uma zaragata. J� que Ignatious est� aqui, e que o nome dele foi mencionado nesta reuni�o, podemos ouvir o que ele tem a
dizer.
- Concordo. - Ken levantou-se, arrastando outra cadeira para o c�rculo que haviam formado. - Sente-se, Nate. Ou�am, - disse ele, antes que algu�m se opusesse, -
este � o nosso Comandante da pol�cia. Deve participar nisto.
O facto, Ignatious, � que estamos a discutir acontecimentos recentes. E a forma como os est� a resolver.
- Bom, o facto �... - Harry co�ava a cabe�a. - H� rumores na vila de que temos mais problemas por aqui desde que o contrat�mos do que antes. Parece que sim, n�o
que perceba como � que isso pode ser culpa sua, mas a verdade � essa.
- Pode ter sido um erro. - Ed cerrou o maxilar. - Digo-lhe isso na cara. � capaz de ter sido um erro contrat�-lo, ou quem quer que fosse, do Exterior.
- Os motivos para procurarmos no Exterior eram v�lidos, - lembrou Walter Notti. - O Comandante Burke fez, e est� a fazer, o trabalho para o qual foi contratado.
- Pode ser que sim, Walter, pode ser que sim. Mas, - Ed erguia as m�os. - � prov�vel que os elementos menos escrupulosos da vila vejam isso como uma esp�cie de afronta.
Por isso est�o mais activos, digamos assim. Por aqui, as pessoas n�o gostam que lhes digam o que fazer.
- Vot�mos a cria��o de uma for�a policial, - lembrou Hopp.
- Eu sei disso, Hopp, e eu fui dos que votou a favor, aqui mesmo nesta sala. N�o estou a dizer que devemos culpar Nate pelo desenrolar dos acontecimentos. S� digo
que foi um erro. Um erro nosso.
- Ando a suturar os Mackies muito menos, desde que Nate chegou, - comentou Ken. - Tenho recebido muito menos pacientes a precisar de tratamento devido a rixas, muito
menos viol�ncia dom�stica. No ano passado, o Mike B�bedo apareceu duas vezes com queimaduras de gelo, depois de algu�m o ter encontrado inconsciente na berma da
estrada. Este ano ainda anda aos ca�dos, mas acaba por as curar na seguran�a de uma cela.
- N�o me parece que possamos responsabilizar a for�a policial por lhe terem roubado o equipamento, Ed, ou encherem o barrac�o de graffiti. - Deb abria as palmas
das m�os. - N�o podemos atribuir a culpa de cortarem os pneus de Hawley ao facto de termos lei, nem de partirem as janelas da escola, ou coisa parecida. Talvez dev�ssemos
culpar os pais, por n�o terem pulso firme com os filhos.
- N�o foi um mi�do que matou o meu c�o. - Joe parecia pedir desculpa
327
a Nate. - Concordo com o que Deb disse, e com o que Walter e Ken disseram antes dela, mas n�o foi um mi�do que fez aquilo a Yukon.
- N�o, - disse Nate. - N�o foi um mi�do.
- N�o acredito que tenha sido um erro contrat�-lo, Nate, - prosseguiu Deb, - mas acho que todos temos responsabilidade perante esta vila, e temos de saber como pretende
resolver o assunto. O que � que est� a fazer para descobrir quem est� a fazer isto e quem deixou Yukon naquele estado.
- � justo. Alguns dos incidentes mencionados podem muito bem ter sido levados a cabo por mi�dos. As janelas partidas na escola de certeza que foram, e visto que
um deles foi descuidado ao ponto de deixar cair o canivete, j� foram identificados. Ontem falei com eles e com os pais. V�o pagar os estragos e ambos v�o ter tr�s
dias de suspens�o, durante os quais duvido que se v�o divertir muito.
- N�o os castigou? - Indagou Ed.
- Tinham nove e dez anos, Ed. N�o me parece que tranc�-los numa cela seja solu��o. Muitos de n�s, - disse, lembrando-se que no cadastro de Ed constava pena num reformat�rio,
- fizemos parvo�ces, metemo-nos em trabalhos com a lei quando �ramos mi�dos.
- Se fizeram isso, talvez tenham feito o resto, - sugeriu Deb.
- N�o fizeram nada. Apanharam uma descompostura do professor, e partiram umas janelas. De certeza que n�o foram at� ao barrac�o de Ed, nem andaram � socapa na casa
dele de noite, para depois caminharem tr�s quil�metros at� � casa de Hawley para lhe cortarem os pneus e pintarem a carrinha com spray. Querem saber o que acho?
Os vossos problemas n�o come�aram desde que me contrataram. Os vossos problemas come�aram h� dezasseis anos, quando algu�m matou Patrick Galloway.
- Isso foi algo que deixou toda a gente abalada, - comentou Harry, acenando para os restantes presentes na sala. - At� os que n�o o conheciam. Mas n�o vejo o que
� que isso tem a ver com o que estamos aqui a discutir.
- Eu acho que tem. � assim que estamos a resolver o assunto.
- N�o estou a perceber, - disse Deb.
- Quem matou Galloway ainda anda por a�. Quem matou Galloway, - prosseguiu Nate ao ver que toda a gente come�ava a falar ao mesmo tempo, - matou Max Hawbaker.
- Max suicidou-se, - interrompeu Ed. - Suicidou-se porque foi ele que matou Pat.
- Algu�m quer que acreditem nisso. Eu n�o.
- � s� conversa de loucos, Nate. - Harry empurrou a cadeira para tr�s com ambas as m�os. - S� conversa de loucos.
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Mais louco do que Max matar Pat? - Deb esfregava os dedos no
pesco�o. - Mais louco do que Max suicidar-se? N�o sei. Sil�ncio! - Hopp estendeu ambas as m�os e gritou sobre o burburinho. - Vamos mas � a acalmar. Ignatious. -
Respirou fundo. - Est� a dizer que algu�m que conhecemos matou duas vezes.
- Tr�s vezes. - O seu olhar era impiedoso ao perscrutar a sala. - Dois homens e um c�o velho. O meu departamento est� a investigar, e vai continuar a faz�-lo, at�
que este indiv�duo seja identificado e detido.
- A Pol�cia Estadual... - come�ou Joe.
- Seja o que for que descubram e a opini�o das autoridades do Estado, o meu departamento vai investigar. Jurei proteger e servir esta vila, e � o que vou fazer.
Parte dessa investiga��o vai exigir que cada um de voc�s saiba do vosso paradeiro e do que fizeram na noite passada, entre as nove e as dez da noite.
- N�s? - Ed mostrava-se indignado. - Vai interrogar-nos?
- � verdade. Al�m disso, vou tentar saber do paradeiro e do que toda a gente andou a fazer durante o m�s de Fevereiro de 1988.
- Voc�... voc�... - Ed explodiu num urro, e depois, agarrando-se � borda da cadeira, empurrou-se para a frente. - Tenciona interrogar-nos, como suspeitos? J� � de
mais. N�o posso acreditar. N�o vou sujeitar-me a isto, nem permito que a minha fam�lia ou os meus vizinhos se sujeitem. Est� a ultrapassar a sua autoridade.
- N�o me parece. Mas voc�s podem votar o cancelamento do meu contrato, pagam-me e vou-me embora. Ainda assim, vou investigar. Vou encontrar o respons�vel. Por isso,
podem fazer as vossas reuni�es, as vota��es e discuss�es. Podem ficar com o meu distintivo. Vou encontrar o respons�vel mesmo assim. Essa � a �nica pessoa que vai
ter de se preocupar comigo.
Avan�ou para a porta, deixando as vozes exaltadas e os rostos insultados para tr�s.
Hopp apanhou-o no passeio. - Ignatious, espere um minuto. Espere s� um minuto, - gritou ela, mas ele continuava. - Raios partam!
Parou, agitando as chaves no bolso.
Ela franziu a testa enquanto acabava de vestir o casaco. - N�o h� d�vida que sabe animar uma reuni�o da assembleia municipal.
- Estou despedido?
- Ainda n�o, mas n�o me parece que tenha conquistado votos de popularidade ali dentro. - Fechou o casaco que lhe dava pela cintura, da cor de uma uva Concord. -
Podia ter tido um pouco mais de tacto.
- O homic�dio � uma das coisas que provoca curto-circuito nos meus interruptores de tacto. Depois, tamb�m temos a quest�o de aparecer numa reuni�o onde o meu estatuto
profissional est� a ser questionado.
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- Est� bem, est� bem, talvez n�o tenha sido muito correcto.
- Se voc� ou algu�m tinham algum problema com a forma como executo o meu trabalho, deviam ter vindo falar comigo sobre isso.
- Tem raz�o. - Apertou a cana do nariz. - Estamos todos alterados, estamos todos � beira de um ataque de nervos. E agora largou-nos esta bomba no colo. Ningu�m gosta
de pensar que Max fez aquilo que parece mais �bvio, mas era muito mais f�cil do que aquilo que est� a sugerir.
- N�o estou a sugerir. Estou a afirmar, de caras. Vou descobrir aquilo que preciso de saber, por mais tempo que demore, mesmo que tenha de arrastar algu�m comigo
no processo.
Ela tirou os cigarros e o isqueiro do bolso do casaco. - Estou a ver isso com muita evid�ncia.
- Onde � que estava h� dezasseis anos, Hopp?
- Eu? - Os olhos dela saltaram. - Por amor de Deus, Ignatious, n�o pensa sinceramente que escalei a Sem Nome com Pat e lhe espetei uma picareta de gelo. Ele tinha
o dobro do meu tamanho.
- Mas do seu marido, n�o. Voc� � uma mulher de ideias fixas, Hopp. J� fez muito por aqui para preservar a vis�o do seu marido. Era capaz de fazer tudo para proteger
o nome dele.
- Isso � uma coisa ardilosa para me dizer. Ardilosa de dizer sobre um homem que nem sequer conheceu.
- Tamb�m n�o conheci Galloway. Mas voc�, sim.
A f�ria inundava-lhe o rosto, ao dar um passo atr�s. Virou-se e marchou de volta para a C�mara. A porta bateu como um tiro de canh�o atr�s dela.
Sabia que os rumores e os boatos iam circular, por isso Nate decidiu manter-se vis�vel. Jantou n'A Estalagem. Dos olhares lan�ados na sua direc��o, imaginava que
as declara��es que fizera na reuni�o j� haviam corrido para l� das vinhas geladas de Lunacy.
Mas tudo bem. Era altura de dar um certo aban�o.
Charlene levou-lhe o especial de salm�o � mesa, e deslizou para o banco � sua frente. - Deixou as pessoas mesmo preocupadas e curiosas.
- A s�rio?
- Eu sou uma delas. - Pegou no caf� dele, bebeu e enrugou o nariz. - N�o sei como � que algu�m pode beber isto sem p�r um nadinha de a��car.
Ele agarrou na caixa com os pacotinhos de a��car. - Se quiser, sirva-se.
- Pois bem. - Abriu dois pacotes de ado�ante, deitou e mexeu. Vestia uma camisa cinzenta lustrosa, do tipo que demarcava as curvas
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de uma mulher, e apanhara o cabelo atr�s, revelando os brincos de prata pendentes. Depois de bater com a colher na borda da caneca, provou.
- Bem melhor. - Deixou as m�os � volta da caneca, ao debru�ar-se com intimidade na direc��o de Nate. - Quando soube o que aconteceu a Pat, enlouqueci um pouco por
dentro. Estivera preparada para acreditar em si se me dissesse que o Jim Trinca-Espinhas lhe tinha enterrado a picareta, mas ele s� apareceu cinco ou seis anos depois
de Pat ter desaparecido. Mas j� acalmei.
- Isso � bom, - retorquiu Nate, e continuou a comer.
- Deve ter ajudado a certeza de o trazer para c� e de o enterrar assim que a terra permitir. Gosto de si, Nate, apesar de n�o me ligar nenhuma. Gosto de si o bastante
para lhe dizer que n�o est� a fazer bem a ningu�m, ao levar isto adiante.
Nate passou manteiga num p�ozinho. - E isto significa o qu�, Charlene?
- Sei o que estou a dizer, esta conversa de termos um assassino entre n�s. Uma coisa dessas come�a a ser comentada, e as pessoas s�o capazes de acreditar. � mau
para o neg�cio. Os turistas v�o deixar de vir, se acharem que podem ser assassinados enquanto dormem.
- Cissy? - Chamou ele, com os olhos ainda fixos nos de Charlene.
- Importa-se de me trazer mais uma caneca de caf�? � a isso que se resume o problema, Charlene? Tudo se resume a dinheiro? � sua declara��o de rendimentos.
- Temos de ganhar a vida. Temos de...
Calou-se ao ver Cissy pousar outra caneca em cima da mesa, enchendo-a de caf�. - Precisa de mais alguma coisa, Nate?
- N�o, obrigado.
- Durante o Ver�o fazemos um bom neg�cio. Tem de ser, se n�o quisermos viver de subs�dios o Inverno inteiro, e o Inverno � comprido. Tenho de ser pr�tica, Nate.
O Pat morreu. Max matou-o. N�o posso ficar com ressentimentos em rela��o a Carrie. At� queria, mas n�o posso permitir-me. Ela tamb�m perdeu o homem dela. Mas Max
matou Pat. Sabe Deus porqu�, mas matou.
Voltou a pegar no caf� e bebeu, enquanto olhava pela janela escura.
- Pat levou-o l� a cima, por impulso, sei l�. Max andava � procura de uma hist�ria para um artigo, ou coisa assim, e Pat achava que podia viver mais uma aventura
e ganhar uns d�lares. A montanha � capaz de enlouquecer uma pessoa. Foi isso que aconteceu.
Ao ver que ele n�o dizia nada, ela levou a sua m�o � dele. - Pensei nisso, como me pediu. E lembro-me que nesse Inverno, Max n�o p�s aqui os p�s durante quase um
m�s. Talvez mais. Naquela �poca, este era o �nico
331
s�tio em quil�metros para cada direc��o onde se podia comer uma refei��o quente, e ele era cliente habitual. Atendia-o quase todas as noites. Mas deixou de aparecer.
Distra�da, estendeu o bra�o e partiu um peda�o do p�o com que Nate acompanhava o jantar. - Ainda ligou algumas vezes a pedir comida, - disse, ao mordiscar o p�o.
- N�o faz�amos entregas, tal como agora, mas Karl era t�o querido. Ia entregar a comida pessoalmente ao jornal. Disse-me que Max parecia doente e um pouco louco.
N�o prestei aten��o nenhuma. Andava preocupada com Pat e ocupada a tentar resolver os meus problemas. Mas disse-me que tentasse recordar, e foi o que fiz, e lembrei-me
disto.
- Est� bem.
- N�o est� a prestar aten��o.
- Ouvi tudo o que disse. - Encontrou os olhos dela. - Quem mais � que deixou de aparecer nesse Fevereiro? - Ela soltou um suspiro impaciente. - N�o sei, Nate. S�
me lembrei de Max porque ele morreu. E porque de repente me lembrei que eu e Carrie cas�mos ambas nesse Ver�o. No Ver�o a seguir ao desaparecimento de Pat. Foi por
isso que me lembrei.
- Ok. Agora pense nas pessoas que ainda est�o vivas.
- Penso em si. - Riu-se, agitando a m�o. - Oh, n�o fique com esse ar s�rio. Uma mulher tem o direito de pensar num homem bonito.
- N�o quando ele est� apaixonado pela filha dela.
- Apaixonado? - Come�ou a tamborilar os dedos na mesa. - Bom, anda mesmo � procura de problemas, n�o anda? Entra de rompante na assembleia municipal, obrigando todos
a olh�-lo de lado, irrita Ed e Hopp ao m�ximo, agora desata a falar sobre amar Meg. Desde que ela descobriu o que fazer com os homens que n�o mant�m nenhum mais
de um m�s.
- Talvez isso signifique que sou o detentor do recorde actual.
- Vai arrancar um naco do seu cora��o e atirar-lho � cara num instante.
- O cora��o � meu, e a cara tamb�m. Porque � que isso a incomoda, Charlene?
- Tenho necessidades maiores do que ela. Maiores e mais intensas. - Os seus brincos giravam ao agitar a cabe�a. - Meg n�o precisa de nada nem de ningu�m. Nunca precisou.
Deixou bem claro h� muito tempo que n�o precisava de mim. Dentro em breve vai deixar bem claro que n�o precisa de si.
- Pode ser. Ou quem sabe se eu n�o a fa�o feliz. Talvez seja isso que a est� a incomodar. A ideia de que ela seja feliz, e que voc� n�o consiga l� chegar.
Ele esticou a m�o, agarrando-lhe no pulso antes que ela lhe derramasse
332
o caf� na cara. - Pense melhor, - disse, baixinho. - Uma cena dessas vai envergonh�-la muito mais do que a mim.
Ela saltou com viol�ncia do banco e marchou pela sala, escada acima.
Pela segunda vez naquele dia, Nate ouviu o tiro de canh�o de uma porta a bater.
E no seu eco, acabou de jantar.
Levou o carro at� casa de Meg, na esperan�a de que no caminho o sangue arrefecesse e as ideias assentassem. Erguera-se a sombra dos �ltimos dias, dando lugar �s
estrelas brilhantes num c�u vidrado de negro. Uma fatia de Lua reinava sobre as �rvores e um nevoeiro reluzente pairava baixinho junto ao ch�o. Os ramos das �rvores
estavam despidos, reparou Nate. A neve ainda cobria o ch�o, mas os ramos haviam-na sacudido.
Parte da estrada ainda estava inundada, por isso teve de abrandar e contornar a barricada, passando pela �gua rasa.
Ouviu o uivo de um lobo, solit�rio e insistente. Talvez andasse � ca�a de comida, pensou. Ou de uma parceira. Quando matava, fazia-o com um objectivo. N�o por gan�ncia,
nem por desporto.
Segundo o que lera, quando acasalava, era para a vida.
O som esmoreceu ao conduzir noite dentro.
Podia ver o fumo elevar-se da chamin� de Meg, ouvir a melodia da m�sica dela. Desta vez era Lenny Kravitz. A rockar nas brumas da desgra�a e nos campos da dor.
Estacionou atr�s dela, e deixou-se ficar. Era aquilo que queria, pensava, mais ainda do que devia. Chegar a casa. Absorver o dia, mas depois esquec�-lo e chegar
a casa ao som da m�sica, na direc��o da luz, de uma mulher.
A mulher.
Terra e casa, dissera Meg. Bom, j� o fisgara. Por isso, se acabasse por lhe cuspir o naco do cora��o na cara, o �nico culpado seria ele mesmo.
Ela abriu a porta ao v�-lo chegar, e os c�es correram para dan�ar � sua volta. - Ol�. J� me perguntava se esta noite ias encontrar o caminho at� � minha porta. -
Espreitava, com a cabe�a de fora. - J� teve melhor cara, Comandante. O que � que andaste a fazer?
- A fazer amigos, a influenciar pessoas.
- Bom, vai entrando, bonit�o, bebe qualquer coisa e conta-me tudo.
- � disso que estou a precisar.
333
LUZ
ir
Ser� assim t�o pouco ? Apreciar o sol,
Vivenciar a luz na Primavera,
Amar, pensar, realizar,
Ir � conquista de novos amigos, e
� derrota de ferozes inimigos...?
Matthew Arnold
Queimamos a luz do dia.
William Shakespeare
26.
- Comandante. - Peach oferecia-lhe um bolinho doce e uma caneca de caf�, quase antes de chegar � porta.
- Sabe, se continuar a fazer estes bolos, n�o tarda deixo de me conseguir sentar na cadeira.
- � preciso muito mais do que uns meros bolinhos doces para dar cabo desse traseiro lindo. Al�m disso, � um suborno. Tenho de lhe pedir se posso tirar mais uma hora
de almo�o amanh�. Estou na comiss�o de organiza��o do Dia de Maio. Temos uma reuni�o amanh� e vamos acabar de coordenar a parada.
- Parada?
- A parada do Dia de Maio, Nate. Est� na sua agenda e j� n�o falta muito.
Maio, pensava ele. Brincara um pouco com os c�es naquela manh�, no p�tio de Meg. Tinha neve at� ao cano das botas. - O Primeiro de Maio?
- Fa�a chuva ou fa�a sol, j� fizemos a parada com um ou outro. Marchas das bandas da escola. Os nativos usam os fatos tradicionais e tocam instrumentos tradicionais.
Todas as equipas desportivas participam, bem como as turmas de dan�a de Dolly Manners. Das pessoas que aqui vivem, h� mais a participar do que a assistir, mas recebemos
turistas e gente do Exterior, de todo o lado.
Ela remexeu no vaso de narcisos de pl�stico em cima do balc�o. - � uma �poca simp�tica, e nos �ltimos anos at� fizemos publicidade. Este ano ainda fizemos mais,
atraindo o interesse dos media e a especula��o. Charlene coloca publicidade na p�gina Web d'A Estalagem e elabora uns pacotes. E Hopp insistiu e incluiu-nos na p�gina
de eventos de algumas revistas.
- Que m�ximo. Isso � muito bom.
- Bom, � mesmo. O evento dura o dia todo. Fazemos uma fogueira e nessa noite temos mais m�sica. Se o tempo piorar muito, passamos para A Estalagem.
- Fazem uma fogueira n'A Estalagem?
Trocista, deu-lhe um murro no bra�o. - S� a m�sica.
- Demore o tempo que for preciso.
Grande parada, pensava Nate. Reservas n'A Estalagem, servi�o de refei��es, clientes na Loja da Esquina, ver os artistas locais e o trabalho de artesanato. Mais dinheiro,
mais movimento no banco, na bomba de gasolina. Mais movimento, ponto final.
Mas o falat�rio constante sobre homic�dio podia estragar o ambiente favor�vel.
337
Quando Otto entrou, ele dirigiu-lhe o olhar. - N�o est� de folga hoje?
- Estou.
Nate podia ver algo nos seus olhos, mas foi com calma. - Passou por c� por causa dos bolinhos doces?
- N�o. - Otto estendeu um envelope castanho. - Anotei onde estava, o que estava a fazer e tudo, em Fevereiro de 88. Na noite em que Max morreu, e quando mataram
Yukon. Pensei que seria melhor se o fizesse, antes que tivesse de mo pedir.
- Porque � que n�o vem at� ao meu gabinete?
- N�o � preciso. N�o tenho problema nenhum com isso. - Soprou o ar das bochechas. - Talvez um bocadinho, mas prefiro que seja assim do que me venha perguntar. N�o
tenho grande �libi para as tr�s situa��es, mas escrevi tudo.
Nate pousou o bolo para pegar no envelope. - Agrade�o, Otto.
- Bom. Vou pescar.
Saiu, passando por Peter ao sair.
- Raios, - murmurou Nate.
- Est� num aperto valente. - Peach passou-lhe a m�o pelo bra�o. - Tem de fazer o que for preciso, mesmo que isso signifique magoar pessoas e tocar em pontos sens�veis.
- Tem raz�o.
- Hum. - Peter olhava de um para o outro. - Passa-se alguma coisa com Otto?
- Espero que n�o.
Peter ia fazer mais perguntas, mas Peach lan�ou-lhe um lento aceno da cabe�a. - Bom, o motivo de me ter atrasado � que o meu tio apareceu hoje de manh�. Queria contar-me
que h� um tipo isolado a norte da cidade, perto de Hopeless Creek. H� l� uma velha cabana. Parece que ele se mudou para l�. Ningu�m est� preocupado, a n�o ser o
meu tio, com medo que ele arrombe o seu barrac�o de trabalho, e a minha tia diz que desapareceu comida da despensa.
Ele pegou num bolinho doce e mordeu. - Ele, o meu tio, passou por l� esta manh�, s� para ver como estava, e diz que o tipo saiu com uma ca�adeira e lhe ordenou que
sa�sse da sua propriedade. Como a minha prima Mary estava com ele, porque a ia levar � escola, n�o ficou l� para chamar o tipo � raz�o.
- Est� bem. Vamos l� n�s cham�-lo � raz�o. - Nate pousou o caf� por provar e o envelope de Otto em cima do balc�o. Depois foi ao arm�rio do armamento e tirou duas
ca�adeiras e muni��es. - S� para o caso de n�o resultar, - disse a Peter.
338
O Sol brilhava com for�a. Parecia imposs�vel que apenas umas semanas antes teria feito aquela viagem �s escuras. O rio corria junto � estrada, de um azul gelado,
formando uma orla de cor marcante em contraste com a neve que ainda cobria as suas margens. As montanhas impunham-se, l�mpidas como monumentos esculpidos no vidro,
recortadas no c�u.
Ele viu uma �guia pousada num marco � beira da estrada como uma guardi� dourada da floresta que se espraiava atr�s de si.
- H� quanto tempo � que esta cabana est� vazia?
- Oficialmente, nunca ningu�m l� viveu, desde que me lembro. Est� devoluta e foi constru�da demasiado perto do ribeiro, por isso todas as Primaveras fica alagada.
Os caminhantes de vez em quando usam-na para passar uma ou duas noites, e, ah, os mi�dos devem us�-la para... voc� sabe. A chamin� ainda est� de p�, por isso aguenta
uma lareira. No entanto, os fumos s�o uma coisa horr�vel.
- Quer dizer que j� a usou para... voc� sabe.
Ao sorrir, um colorido cobriu as faces de Peter. - Uma ou duas vezes. Ouvi dizer que dois cheechakos a constru�ram h� muito tempo. Iam viver da terra, garimpar o
ribeiro � procura de ouro. Era de pensar que conseguiam subsistir, e passado um ano come�aram a receber o subs�dio. Mal sabia eu. Um deles morreu gelado e o outro
enlouqueceu com febre de cabana. Talvez tenha comido o que morreu.
- Lindo.
- � capaz de ser um monte de tretas. Mas a coisa adquire outras propor��es quando levamos uma mi�da at� l�.
- Pois, n�o h� nada mais rom�ntico.
- Vire a� em cima nessa curva. - Indicou Peter. - Agora o terreno fica mais dif�cil.
Depois de cerca de quase tr�s metros aos saltos e a ranger pelo carreiro estreito e coberto de neve, Nate decidiu que Peter era o senhor dos eufemismos.
As �rvores eram grossas e tapavam o Sol, por isso era como conduzir por um t�nel pavimentado por dem�nios do gelo s�dicos.
Enrolou a l�ngua para tr�s, para que n�o se prendesse nos dentes ao cerrar o maxilar, e agarrou o volante com for�a.
N�o podia ter-lhe chamado uma clareira. O rect�ngulo delapidado de troncos estava encafuado no rect�ngulo oprimido de salgueiros, que se mantinha verdejante e crescente
na margem gelada do magro leito do ribeiro. Oscilava nas sombras, uma janela tapada com t�buas, a outra coberta de fita adesiva aos ziguezagues. Um alpendre deprimente
pendia sobre alguns blocos de esc�ria empilhados.
339
Um todo-o-terreno Lexus imundo, com matr�cula da Calif�rnia, dominava a entrada. - Ligue a Peach, ela que verifique a matr�cula, Peter.
Enquanto Peter usava o r�dio, Nate debatia-se. Havia fumo a emergir lascivamente da chamin� encardida. E um qualquer mam�fero morto, pendurado de forma tenebrosa
num poste por cima da porta.
Nate desbloqueou a arma, mas deixou-a no coldre, ao sair do carro.
- A� est� bom! - A porta da cabana abriu-se de par em par. No lusco-fusco, Nate conseguia ver o homem e a ca�adeira.
- Sou o Comandante Burke, da Pol�cia de Lunacy. Vou pedir-lhe que baixe essa arma.
- N�o me importa quem diz que �, ou o que diz que pretende. Estou atento aos vossos truques, seus patifes. N�o vou voltar l� para cima.
Extraterrestres, pensou Nate. Perfeito. - As for�as alien�genas deste sector j� foram derrotadas. Agora est� seguro aqui, mas preciso que baixe essa arma.
- Isso � o que voc� diz. - Mas deu mais um passo para a rua. - Como � que sei que n�o � um deles?
Trinta e poucos anos, calculava Nate, metro e meio, sessenta e oito quilos. Cabelo castanho. Olhos tresloucados, cor indeterminada. - Tenho identifica��o, carimbada
e certificada ap�s os testes. Se baixar essa arma, posso provar, posso mostrar-lhe.
- Identifica��o? - Agora parecia confuso, e a ca�adeira desceu alguns mil�metros.
- Certificada pelas For�as Terrestres Infiltradas. - Nate tentou um aceno s�brio. - Hoje em dia todo o cuidado � pouco.
- Sabe, o sangue deles � azul. Da �ltima vez que me apanharam, matei dois deles.
- Dois? - Nate ergueu as sobrancelhas, como se estivesse bastante impressionado, e observou a arma baixar mais um mil�metro. - Vamos ter de registar a sua ocorr�ncia.
Temos de o levar para controlo, e registar o seu depoimento.
- N�o os podemos deixar vencer.
- N�o deixaremos. O cano da arma inclinou-se para o ch�o e Nate avan�ou. Aconteceu tudo muito r�pido. Ele ouviu Peter abrir a porta do carro, e dizer o seu nome.
Observou a cara do homem, os olhos, viu o que lhes acontecia. P�nico, raiva, terror, tudo de uma s� vez.
J� praguejava, j� ordenava a Peter que se baixasse. - Baixe-se! - Ao agarrar na arma que levava no coldre.
O estouro da ca�adeira agitou o ar, obrigando os p�ssaros a emitir um
340
piar agudo no meio das �rvores. Um segundo estrondo ecoou assim que viu sangue manchar a neve.
- Oh, c�us. Oh Jesus Cristo. Peter.
O seu corpo pesava como chumbo, e por um momento intermin�vel, ficou abalado debaixo do pr�prio volume. Conseguia cheirar o beco, a chuva, a podrid�o do lixo. Sangue.
A sua respira��o disparou, num limite sinuoso de p�nico que lhe deixava a cabe�a leve, o sabor amargo do desespero que lhe transformava a garganta em p�. Levou tudo
consigo ao rastejar pela neve.
Peter estava ca�do atr�s da porta aberta do carro, os olhos muito abertos e vidrados. - Acho... acho que fui atingido.
- Aguente. - Nate pressionou a m�o no bra�o de Peter, onde o seu casaco estava rasgado e ensanguentado. Conseguia sentir o fluxo quente, e o batimento de bigorna
do pr�prio cora��o no peito. Com um olho a espreitar para a cabana, tirou um len�o.
De dentro da sua mente as preces abundavam, ele n�o as conseguia reconhecer.
- N�o � muito mau, pois n�o? - Peter humedecia os l�bios, inclinando a cabe�a para baixo, numa tentativa de ver. E ficou branco como cal.
- Bolas.
- Ou�a-me. Ou�a. - Nate atou o len�o com for�a por cima do ferimento, e deu uma palmadinha na face de Peter, para que n�o desmaiasse.
- Deixe-se estar deitado. Vai correr tudo bem.
N�o te vais esvair em sangue. N�o vais morrer nos meus bra�os. Outra vez, n�o. Deus, por favor.
Sacou a arma de Peter do coldre. Fechou a m�o de Peter � volta dela.
- Agarrou-a?
- Eu... sou destro. Ele alvejou-me.
- Pode usar a esquerda. Se ele passar por mim, n�o hesite. Ou�a-me Peter. Se ele chegar at� aqui, dispara. Aponte para o tronco. E dispare at� que caia ao ch�o.
- Comandante...
- Fa�a isso.
Nate deslizou de barriga no ch�o at� � traseira do carro, abriu a porta e entrou. Voltou a sair com as duas ca�adeiras. Conseguia ouvir o homem dentro de casa, a
barafustar. Disparos de tiros ocasionais.
Ouvia os sons do beco a fundirem-se com aqueles. A chuva, os gritos, os passos de corrida.
Voltou a rastejar at� Peter e pousou-lhe uma das ca�adeiras no colo. - N�o desmaie. Est� a ouvir? Fique acordado.
- Sim, senhor.
341
N�o havia ningu�m que pudesse chamar para refor�os. N�o estava em Baltimore, e estava entregue a si mesmo.
Acocorado, de ca�adeira numa m�o, o rev�lver de servi�o na outra, atravessou o ribeiro gelado e penetrou no arvoredo. Um tronco explodiu. Sentiu uma farpa, como
uma faca, saltar e atingir-lhe o rosto, mesmo por baixo do olho esquerdo.
Significava que, agora, a aten��o do atirador se centrava nele, e n�o em Peter.
Abrigado pelas �rvores, abriu caminho pela neve.
O seu parceiro fora alvejado. O seu parceiro fora abatido. Projectava a respira��o num assobio, ao tentar percorrer a neve que lhe dava pelo joelho, dando a volta
� cabana.
Agarrado atr�s de uma �rvore, estudou o cen�rio. N�o havia porta das traseiras, reparou, mas outra janela lateral. Podia ver a sombra do atirador no vidro, sabendo
que ele o aguardava, � espera de qualquer movimento.
Nate carregou a ca�adeira com uma m�o e disparou.
O vidro explodiu, e com aquele som - os gritos, o fogo de resposta que lhe enchiam os ouvidos - procurou o pr�prio rasto para voltar para a frente da cabana.
Gritos e tiros ressoavam atr�s dele, enquanto ele abria rachas no gelo do ribeiro, remando na �gua gelada e saltava para a frente da casa.
Correu para o alpendre decr�pito e, com um pontap�, arrombou a porta.
Tinha ambas as armas apontadas para aquele homem, e parte dele, a maior parte, queria descarreg�-las sobre ele. Abat�-lo, a sangue-frio, tal como fizera com o patife
assassino em Baltimore. O patife assassino que matara o seu parceiro e lhe deixara a vida em peda�os.
- Vermelho. - Nos escombros da cabana, o homem olhava para ele. Os seus l�bios tremiam num sorriso. - O seu sangue � vermelho. - Largando a arma, deixou-se cair
no ch�o imundo da cabana e chorou.
O seu nome era Robert Joseph Spinnaker, consultor financeiro de L.A., recente paciente psiqui�trico. Alegara m�ltiplos raptos alien�genas nos �ltimos dezoito meses,
e afirmou que a esposa era uma reprodutora, atacando dois clientes durante uma reuni�o.
Foi dado como desaparecido por quase tr�s meses.
Agora, dormia sossegado numa cela, tranquilizado pela cor do sangue no rosto de Nate e no bra�o de Peter.
Nate pouco mais havia feito do que prend�-lo, antes de correr para a cl�nica, onde ficou a andar de um lado para o outro, na sala de espera.
342
Percorreu mentalmente tudo o que acontecera centenas de vezes, e via-se sempre a fazer algo diferente, que impedia que Peter se magoasse. Quando Ken apareceu, Nate
estava sentado, com a cabe�a apoiada nas m�os.
Levantou-se de imediato. - � grave?
- Ser alvejado nunca � bom, mas podia ter sido bem pior. Vai andar de bra�o ao peito por uns tempos. Tem sorte ter sido de rasp�o. Est� um pouco fraco, algo grogue.
Quero que ele fique c� por mais algumas horas. Mas ele est� bem.
- Ok. - Nate permitiu que os joelhos cedessem e voltou a cair na cadeira. - Ok.
- Porque � que n�o vem comigo, e me deixa limpar esses cortes que tem na cara?
- S�o s� uns arranh�es.
- O que tem debaixo do olho mais parece uma cratera. V� l�, n�o discuta com o m�dico.
- Posso v�-lo?
- A Nita est� l� com ele. Pode v�-lo depois de eu o tratar. - Ken mostrou o caminho e gesticulou para que Nate se sentasse na maca de observa��o. - Sabe, - disse
ele, ao limpar os cortes, - � t�o est�pido sentir-se culpado.
- Ele � novato. N�o tem experi�ncia, e levei-o para uma situa��o inst�vel.
- N�o est� a demonstrar muito respeito por ele ou pela miss�o que lhe foi atribu�da.
Nate assobiou num sopro ao sentir a dor por baixo do olho. - � uma crian�a.
- N�o � nada. � um homem. Um bom homem. E se assumir a responsabilidade, vai minimizar o que lhe aconteceu hoje, e o que fez.
- Levantou-se, desprotegeu-se e foi at� � porta atr�s de mim. Mal se conseguia p�r de p�, mas foi atr�s de mim para me dar apoio.
Nate encontrou o olhar de Ken, enquanto ele lhe colocava um penso na face. - Tinha o sangue dele nas m�os, mas mesmo assim, foi atr�s de mim para me apoiar. Talvez
seja eu que n�o consigo lidar com a situa��o.
- Mas voc� lidou bem com tudo. O Peter contou-me o que se passou. Acha que � um her�i. Se lhe quiser retribuir pelo que aconteceu, n�o o desiluda. Pronto. - Ken
recuou. - Vai sobreviver.
Hopp estava na sala de espera, quando Nate apareceu, juntamente com os pais de Peter e Rose. Diante dele, come�aram todos a falar ao mesmo tempo.
343
- Ele est� a descansar. Est� bem, - sossegou Ken. E Nate seguiu caminho.
- Ignatious. - Hopp correu atr�s dele. - Gostava de saber o que aconteceu.
- Vou regressar ao servi�o.
- Ent�o acompanho-o, para que me possa contar. Gostava de saber directamente de si, em vez de dar ouvidos �s v�rias hist�rias que, a esta altura, j� circulam pela
vila.
Ele contou-lhe, resumindo.
- Quer ir mais devagar? Tem as pernas mais compridas que o meu corpo todo. Como � que se magoou na cara?
- Farpas de uma �rvore. Um bocado da casca que voou, s� isso.
- Voou porque ele disparou contra si. Por amor de Deus.
- O facto de ter um golpe na cara � capaz de ser a raz�o de eu e Spinnaker ainda estarmos vivos. Ainda bem que o meu sangue � vermelho.
E o de Peter tamb�m, pensou. Hoje sangrara um vermelho bem vivo.
- A Pol�cia Estadual vem busc�-lo?
- Peach est� a tentar contact�-los.
- Bom. - Respirou fundo. - H� tr�s meses que anda por ali feito louco, a provocar dist�rbios. Ocupou o espa�o sabe Deus h� quanto tempo. Pode ter sido ele a matar
o pobre Yukon. Pode ter sido ele a fazer isso.
Nate procurou os �culos de sol no bolso e colocou-os. - Podia ter sido, mas n�o foi.
- O homem � louco, e foi um acto de loucura. Ele pode ter pensado que Yukon era um extraterrestre num fato de c�o. Faz sentido, Ignatious.
- S� se acreditar que este indiv�duo conseguiu entrar � socapa na vila, perseguiu um c�o velho, levou-o para a porta da C�mara e abriu-lhe a garganta, tendo previamente
roubado a faca de mato. � demasiado rebuscado para mim, Hopp.
Ela agarrou-lhe no bra�o, para que parasse. - Talvez por preferir acreditar noutra hip�tese. Talvez porque acreditar noutra hip�tese lhe d� algo a que ferrar os
dentes. Mais do que resolver umas rixas ou impedir que o Mike B�bedo gele o rabo arrependido. Alguma vez lhe ocorreu que est� a enredar esta teia, � procura de um
assassino entre n�s por querer que assim seja?
- N�o quero que seja assim. Mas aconteceu assim.
- Que teimoso de um raio... - Cerrou os dentes, virando-se para o lado at� controlar a atitude. - Se continuar nesta agita��o, as coisas nunca mais v�o acalmar por
aqui.
- At� que tudo se resolva, � bom que as coisas n�o acalmem por aqui. Tenho de ir escrever o meu relat�rio sobre isto.
344
Nate passou a noite na esquadra, a maior parte do tempo a ouvir os relatos sinceros de Spinnaker das suas experi�ncias alien�genas. Para o manter calmo, sen�o quieto,
Nate permaneceu sentado � porta da cela, onde tirou alguns apontamentos.
Sentiu-se bastante contente ao ver a Pol�cia Estadual chegar na manh� seguinte, aliviando-o do fardo daquele prisioneiro.
Tamb�m ficou surpreendido ao ver Coben no grupo.
- Talvez devesse pensar em alugar um quarto por aqui, Sargento.
- Pensei que esta seria uma oportunidade de aprofundar outros assuntos. Se pud�ssemos falar uns instantes no seu gabinete.
- Claro. Tenho aqui para si a papelada de Spinnaker.
Entrou no gabinete e pegou nos documentos. - Agress�o com tentativa de homic�dio a agentes da pol�cia, et cetera. Os psiquiatras v�o suavizar, mas o meu adjunto
n�o deixa de ter sido alvejado.
- Como � que ele est�?
- Est� bem. � jovem, resistente. Apanhou-o praticamente s� na zona mais muscular do bra�o.
- Sempre que nos safamos, � um dia bom.
- Visto dessa forma.
Coben caminhou at� ao quadro. - Ainda a investigar?
- Parece que sim.
- Fez alguns avan�os?
- Depende da perspectiva.
Cerrando os l�bios, Coben apoiou-se nos calcanhares. - Um c�o morto? Est� a ligar a isso?
- Um homem tem que se distrair.
- Olhe, n�o estou muito satisfeito com a resolu��o do meu caso, mas tenho algumas restri��es. Muitas delas dependem da perspectiva. Podemos concordar que havia um
terceiro homem n�o identificado naquela montanha, quando Galloway foi assassinado. N�o significa que ele tenha assassinado Galloway, nem que sabia o que se passou.
Tamb�m n�o significa que ainda esteja vivo, e � mais l�gico que o indiv�duo que matou Galloway tamb�m tenha matado este terceiro homem.
- N�o se o terceiro homem era Hawbaker.
- N�o acreditamos que seja. Mas se for, - Coben prosseguiu, - de certeza que n�o significa que este terceiro homem n�o identificado teve alguma coisa a ver com a
morte de Hawbaker, ou a morte de um c�o qualquer. Oficiosamente, tenho algumas d�vidas em confirmar a identidade do terceiro homem, mas isso n�o me est� a levar
a lado nenhum.
- O piloto que os levou l� acima morreu em circunst�ncias estranhas.
345
- N�o h� provas disso. J� investiguei, Kijinski saldou umas d�vidas e acumulou mais durante o per�odo entre a morte de Galloway e a sua. Sem d�vida que � suspeito.
Mas n�o h� ningu�m que confirme que ele os transportou.
- Porque morreram todos, menos um.
- N�o h� depoimentos, nem registos de voo. Nada de nada. E ningu�m que conhecia Kijinski, ou que o possa admitir, que se lembre dele reservar aquele voo. Pode muito
bem ter sido o piloto, e se foi o caso, tamb�m � l�gico presumir que Hawbaker se viu livre dele da mesma forma.
- � capaz de ser l�gico. Excepto que Max Hawbaker n�o matou tr�s homens. E n�o regressou da sepultura para abrir o pesco�o do c�o.
- N�o importa o que o seu instinto lhe diz. Preciso de algo s�lido.
- D�-me tempo, - retorquiu Nate.
Dois dias depois, Meg entrou na esquadra, acenou a Peach e foi directamente para o gabinete de Nate.
Uma olhadela ao quadro quase lhe interrompeu o passo. - Ok, gira�o, vou raptar-te.
- Perd�o?
- At� os pol�cias atenciosos, dedicados e trabalhadores t�m direito a um dia de folga. Est� na altura.
- Peter est� de baixa. Temos um homem a menos.
- E tu est�s aqui sentado a remoer nisso e em tudo o resto. Precisas de tempo para aclarar as ideias, Burke. Se aparecer alguma coisa, voltamos.
- De onde?
- � surpresa. Peach, - chamou, ao sair da sala. - O teu patr�o vai tirar o resto do dia. Como � que lhe chamam na Balada de Nova Iorque? Tempo pessoal.
- Bem que precisa.
- Otto, tratas do que for preciso?
- Meg... - Come�ou Nate.
- Peach, quando foi a �ltima vez que o Comandante tirou um dia?
- H� tr�s semanas, talvez mais, se bem me lembro.
- Tempo para aclarar as ideias, Comandante. - Meg tirou ela mesma o casaco dele do bengaleiro. - Hoje o dia est� favor�vel.
Ele decidiu-se pelo meio-termo. - Uma hora. Ela sorriu. - Come�amos por a�.
Assim que ele viu o avi�o dela na doca, estacou im�vel. - N�o disseste que este tempo para aclarar as ideias envolvia voar.
- � o melhor m�todo. Garantido.
346
- N�o pod�amos ir antes dar uma volta de carro, fazer amor no banco de tr�s? Parece-me um m�todo bastante bom.
- Confia em mim. - Mantinha a m�o dele firme na dela e com a outra, afagou o corte debaixo do olho dele. - Como te sentes?
- Agora que falas nisso, talvez seja melhor n�o voar com uma ferida destas.
Ela colocou a m�o em concha, inclinou-se e depositou-lhe um beijo prolongado, lento e profundo. - Vem comigo, Nate. H� uma coisa que gostava de partilhar contigo.
- Bom, posto dessa forma.
Entrou no avi�o e p�s o cinto de seguran�a. - Sabes, nunca descolei da �gua. N�o com a �gua... l�quida. Ainda h� algum gelo. N�o � muito bom batermos no gelo, certo?
- Um homem que enfrenta um doente mental armado n�o devia ficar t�o nervoso a voar. - Ela beijou os dedos e bateu com eles nos l�bios de Buddy Holly, para come�ar
a deslizar sobre a �gua.
- � como fazer esqui aqu�tico, mas de outra forma, - Nate conseguiu dizer, e depois susteve a respira��o ao mesmo tempo que ela ganhava velocidade, mantendo-a at�
que o avi�o se elevou da �gua.
- Pensei que hoje ias trabalhar, - disse ele, quando decidiu que era seguro voltar a respirar.
- Passei as marca��es para Jerk. Mais tarde vem descarregar a mercadoria. Temos encomendas para a parada, incluindo uma caixa s� de produto para insectos.
- Tu e Jerk arranjam droga para insectos.
Ela revirou os olhos na direc��o dele. - Repelente de insectos, gira�o. Sobreviveste ao primeiro Inverno no Alasca. Agora, vamos ver que tal te safas no Ver�o. Com
os mosquitos do tamanho de B-52s. N�o vais querer afastar-te dois metros de casa sem o produto para insectos.
- J� percebi o produto para insectos, mas n�o vou comer gelado esquim�. Jesse disse que � feito de gordura de foca.
- �leo, - disse ela a rir. - �leo de foca ou sebo de alce. E n�o � mau, se misturares bagas e a��car.
- Fico-me pela tua palavra, porque n�o vou comer sebo de alce. Nem sei que raio � isso.
Ela voltou a sorrir ao perceber que os ombros dele haviam descontra�do, e que come�ava a olhar para baixo. - Visto daqui � bonito, n�o �, o rio, o gelo, e a vila
alinhada atr�s dele?
- Parece sossegado e simples.
- Mas n�o �. N�o � nem uma coisa nem outra. O bosque parece tamb�m calmo, visto do ar. Silencioso e sereno. Um tipo de beleza agreste.
347
Mas n�o � serena. A natureza mata-te num instante, e de formas mais terr�veis do que um tresloucado com uma arma. Mas isso n�o a torna menos bela. Acho que n�o podia
viver noutro s�tio. N�o podia estar noutro s�tio.
Sobrevoou o rio e o lago, e ele conseguia ver o progresso do degelo, a marcha constante da Primavera. Retalhos verdes a perder de vista, e os raios de Sol acariciando
a neve. Uma queda de �gua deslizava por um penhasco com a centelha reluzente do gelo projectada de sombras profundas.
Abaixo deles, uma pequena manada de alces corria por um campo. Acima, o c�u curvava como numa fita indom�vel e azul.
- Jacob estava c� naquele Fevereiro. - Meg lan�ou-lhe um olhar furtivo. - Queria esclarecer isso, talvez at� para ambos. Ele vinha ver-me muitas vezes, quando o
meu pai desapareceu. N�o sabia se tinha sido o meu pai a pedir-lhe, ou se era apenas a maneira de ser de Jacob. � prov�vel que tenha estado alguns dias por c�, e
que eu n�o o tenha visto. Mas n�o mais de uma semana de cada vez, n�o teria tempo suficiente para subir com o meu pai. Queria que soubesses isso, com toda a certeza,
s� para o caso de precisares de lhe pedir ajuda.
- Foi h� muito tempo.
- Pois, e eu era pequena. Mas lembro-me disso. Quando comecei a pensar, lembrei-me. Via-o mais a ele do que a Charlene naquelas semanas que se seguiram ao desaparecimento
do meu pai. Levava-me a pescar no gelo e a ca�ar, e quando ca�a alguma tempestade, fic�vamos uns dias em casa dele. Estou a dizer-te que podes confiar nele, s� isso.
- Est� bem.
- Agora, olha para estibordo.
Ele rodou o olhar para a direita e viu-os a voar na orla do mundo, sobre um canal de �gua azul que parecia demasiado pr�xima para se sentir confort�vel. Antes que
pudesse reclamar, viu uma placa enorme daquele mundo azul e branco rachar e cair dentro de �gua.
- Meu Deus.
- � um glaciar marinho activo. E o que est�s a ver chama-se fragmenta��o, - disse ela, enquanto outros blocos de gelo se partiam e ca�am. - Talvez seja porque, no
ciclo, se pare�a mais com um nascimento do que com uma morte.
- � lindo. - Agora, estava colado � janela do avi�o. - � maravilhoso, Jesus, alguns s�o do tamanho de uma casa. - Soltou uma gargalhada ao ver outro bloco soltar-se
no ar, mal percebendo a trepida��o do avi�o numa bolsa de turbul�ncia.
- As pessoas pagam-me bem para as trazer aqui de avi�o e verem este espect�culo, mas depois passam o tempo todo com os olhos colados �
348
lente de uma c�mara de v�deo. Parece-me um desperd�cio. Se queriam ver isto num filme, deviam alugar um.
N�o se tratava apenas do espect�culo, pensava Nate, a maravilha que proporcionava. Era o ciclo, violento, inevit�vel, algo m�tico. A vista, blocos soltos de gelo
azul soltos no ar. O som que projectavam, a quebrar, o trovejar e os tiros de canh�o. O jorrar da �gua, perante o impacto, a eleva��o branca numa ilha cintilante
que escorria pelo fiorde imponente.
- Tenho de ficar aqui.
Ela levava o avi�o para cima, em c�rculos para que ele conseguisse apreciar de outro �ngulo. - Aqui, no ar?
- N�o. - Virou a cabe�a, sorriu para ela de uma forma que ela raramente via. F�cil, descontra�da e feliz. - Aqui. Tamb�m n�o posso estar noutro s�tio. � bom saber
isso.
- E c� vai outra coisa que tamb�m � bom saber. Estou apaixonada por ti.
Ela riu-se ao mesmo tempo que o avi�o estremecia pelo ar espesso; depois, abriu caminho com ele, levando-o disparado pelo canal enquanto o gelo ca�a em redor deles.
27.
Charlene sempre adorara a Primavera poss�vel no Alasca. Adorava a forma como os dias se prolongavam, mais e mais, at� a luz perdurar.
No seu escrit�rio, deixou-se ficar junto � janela, negligenciando o trabalho que tinha sobre a secret�ria, a fitar a rua, l� fora. Agitada. Pessoas que passavam,
conduziam, iam e vinham. Residentes e turistas, gente do interior que ia � procura de v�veres ou companhia. Tinha reservados catorze dos vinte quartos dispon�veis,
e na semana seguinte ia estar com a casa cheia durante tr�s dias. Depois disso, a luz forte e inesgot�vel ia atrair as pessoas como moscas no mel.
Ia trabalhar como uma condenada o m�s de Abril quase todo, e in�cio de Maio, quase at� come�ar a arrefecer de novo.
Gostava de trabalhar, de ter a casa cheia de gente, do barulho e da confus�o que geravam. Do dinheiro que gastavam.
Constru�ra algo ali, ou n�o? Descobrira o que queria, ou quase tudo o que queria. Fitava o rio, l� fora. Os barcos vogavam, deslizando pelas ilhas de gelo que derretiam.
Olhava para l� do rio, al�m das montanhas. Branco e azul, o verde que aparecia devagar, t�o devagar a seus p�s. O branco dos picos, sempre brancos naquele mundo
gelado e estranho.
349
Ela nunca escalara. Nunca o faria.
Nunca havia sentido o chamamento das montanhas. Mas sentira o de outras coisas. Pat sentira-o. Ela sentira esse chamamento penetrar nas suas entranhas, em milhares
de trompetas, quando ele entrara na sua vida como um furac�o. Nem sequer tinha dezassete anos, lembrava-se, e ainda era virgem. N�o estava h� s�culos presa, agarrada
�quelas pradarias infind�veis do Iowa, � espera que algu�m a colhesse?
A t�pica rapariga de quinta do midwest, pensava agora, desesperada por fugir dali para fora. Ent�o, ele aparecera, agitando aquele ar ins�pido na sua moto, parecendo
t�o perigoso e ex�tico... diferente.
Oh, houvera o chamamento dele, Charlene recordava, e ela tinha respondido a esse chamamento. A sair �s escondidas de casa naquelas noites geladas de Primavera para
ir ter com ele, para rebolar nua com ele na erva verde e macia, livre e despreocupada como um c�ozinho. E desesperadamente apaixonada. Aquele amor ardente e empolado
que talvez s� fosse poss�vel sentir aos dezassete anos.
Quando ele se foi embora, ela foi com ele, abandonando a casa, a fam�lia e os amigos, virando costas ao mundo que conhecia, para entrar noutro, na garupa de uma
Harley.
Ter dezassete, pensava, e ser t�o destemida de novo.
Tinham vivido. Como tinham vivido. Iam onde queriam, faziam o que gostavam. Pelas quintas e o deserto, pela cidade ou pelas pequenas vilas.
E todas as estradas por que vaguearam haviam levado ali.
As coisas mudaram. Quando � que mudaram?, perguntava-se ela. Quando descobriu que estava gr�vida? Ficaram t�o empolgados, t�o estupidamente empolgados com o beb�.
Mas as coisas mudaram quando se mudaram para ali com a semente plantada dentro dela. Quando ela lhe disse que queria ficar.
Claro, Charley, n�o h� problema. Podemos ficar uns tempos.
Uns tempos tornou-se um ano, depois dois, uma d�cada e, c�us, c�us, fora ela quem mudara. Insistir e pressionar aquele homem lindo e inconsequente, tentar e for�ar
que se tornasse um homem, que fosse tudo aquilo de que fugira. Respons�vel, acomodado. Normal.
Ele ficara, ela sabia que mais por Meg, mais pela filha que era a sua imagem do que pela mulher que lhe havia dado uma filha. Ele ficara, mas nunca assentara.
Ela ressentira-se por isso. Ressentia-se de Meg. Como podia n�o o fazer? N�o tinha estrutura para o contr�rio. Era ela quem trabalhava, n�o era? Para ter a certeza
de que havia comida na mesa e um tecto sobre as suas cabe�as.
350
E sabia, quando ele se ausentava, � procura de trabalho, para fazer uma pausa, escalar o raio das montanhas, que ia ter com prostitutas.
Os homens queriam-na. Podia fazer com que qualquer homem a quisesse. E o �nico que queria realmente preferia ir ter com rameiras.
O que eram as montanhas sen�o rameiras? Putas frias e brancas que o seduziram para longe dela? At� que ficou dentro de uma e a deixou sozinha para sempre.
Mas ela sobrevivera, ou n�o? Fizera melhor ainda. Encontrara ali o que queria. Quase tudo o que queria.
Agora tinha dinheiro. Tinha a sua casa. Tinha homens, corpos jovens e duros de noite
Ent�o, porque � que se sentia t�o infeliz?
N�o gostava de pensar demasiado, de olhar para dentro de si e preocupar-se com o que via. Gostava de viver. De avan�ar, de manter-se em movimento. Quando dan�ava,
n�o precisava de pensar.
Virou-se, ligeiramente irritada quando lhe bateram � porta. - Entre.
Agora a sua express�o suavizara-se, e o sorriso malicioso foi autom�tico ao ver John. - Bom, ol�, bonit�o. J� acabaram as aulas? J� � assim t�o tarde? - Alisava
o cabelo ao olhar para a secret�ria. - Tenho andado a sonhar acordada, a desperdi�ar o dia com parvo�ces. Tenho de ir l� abaixo e ver o que o Mike Grande est� a
preparar como prato especial desta noite.
- Preciso de falar contigo, Charlene.
- Claro, querido. Tenho sempre tempo para ti. Vou fazer um ch� para n�s, para ficarmos mais confort�veis.
- N�o, n�o fa�as.
- Do�ura, est�s muito carrancudo e s�rio. - Foi ter com ele e passou o dedo pela sua face. - Claro que sabes que adoro quando ficas s�rio. � sensual.
- N�o, - repetiu ele e agarrou-lhe nas m�os.
- Passa-se alguma coisa? - Os dedos dela apertavam os dele como arames. - Oh, c�us, algu�m, ou alguma coisa, morreu por aqui? Acho que n�o vou aguentar. Acho que
n�o vou suportar.
- N�o. N�o � nada disso. - Soltou-lhe as m�os e recuou um passo. - Queria dizer-te, vou-me embora no fim do semestre.
- Vais tirar umas f�rias? Vais viajar, logo agora que Lunacy est� ao rubro?
- N�o vou de f�rias. Vou-me embora.
- O que � que est�s a dizer? Embora? Para sempre? Isso n�o faz sentido nenhum, John. - O sorriso sedutor desvanecera-se, e algo quente e agudo lhe perfurou o abd�men.
- Para onde � que ias? Fazer o qu�?
351
- H� muitos lugares que ainda n�o vi, muitas coisas que n�o fiz. Quero ver. Quero fazer.
Sentiu que o seu cora��o se afundava, ao erguer o olhar para o seu rosto fidedigno. Os que importam, sussurrava a sua mente, abandonam-te.
- John, tu vives aqui. Trabalhas aqui.
- Vou viver e trabalhar para outro lado.
- N�o podes simplesmente... porqu�? Porque � que est�s a fazer isto?
- J� o devia ter feito h� anos, mas deixei-me levar na onda. Deixei que a minha vida andasse � deriva. Na semana passada, Nate foi � escola falar comigo. Algumas
das coisas que ele disse fizeram-me pensar, fizeram-me olhar para tr�s... o passar de muitos anos.
Ela queria encontrar a sua raiva, do tipo que a incitava a gritar, a partir coisas. Do tipo que a tirava do s�rio. Mas algo a preocupava especialmente.
- O que � que Nate tem a ver com tudo isto?
- � ele a mudan�a. Ou a pedra no rio que originou essa mudan�a. Andas � deriva, Charlene, como �gua num rio, e talvez n�o tenhas reparado tanto quanto devias no
que vais encontrando pelo caminho.
Tocou-lhe no cabelo, e depois voltou a deixar cair a m�o. - Depois uma pedra cai nesse rio, e o seu curso altera-se. Muda tudo. Talvez pouco, talvez muito. Mas nada
volta a ser como era dantes.
- Nunca sei do que � que est�s a falar quando ficas assim. - Fez beicinho ao virar-se e bateu na secret�ria, mas o gesto f�-lo sorrir. - �gua, pedras e rios. O que
� que isso tem a ver com o facto de chegares aqui para me contares que te vais embora? N�o te importas mesmo com os meus sentimentos?
- Demasiado, para meu pr�prio bem. Amei-te desde o primeiro minuto em que te vi. Sabes disso.
- Mas j� n�o.
- Sim, naquela �poca, agora, todos os anos que passaram. Amei-te quando estavas com outro homem. E quando ele desapareceu, pensei, "Agora, ela vem ter comigo". E
assim foi. Pelo menos, foste para a minha cama. Deixaste que tivesse o teu corpo, mas casaste com outro. Mesmo sabendo que te amava, casaste com outro.
- Tinha de fazer o melhor para mim. Tinha de ser pr�tica. - Agora atirava algo, um pequeno cisne de cristal. Mas a sua destrui��o n�o lhe deu qualquer satisfa��o.
- Tinha o direito de cuidar do meu futuro.
- Eu teria sido bom para ti, e por ti. Teria sido bom para Meg. Mas escolheste outra coisa. Escolheste isto. - Abriu as palmas das m�os para indicar A Estalagem.
- Mereceste-a. Trabalhas muito. Constru�ste-a. E enquanto Karl era vivo, continuavas a vir ter comigo. E eu deixava. Comigo e com outros.
352
- Karl n�o queria sexo, quase nunca. Queria uma companheira, algu�m Que cuidasse dele e desta casa. Mantive o meu objectivo, - disse ela, com paix�o. - T�nhamos
um compromisso.
- Tomaste conta dele e desta casa. E quando ele morreu, continuaste a cuidar. Perdi a conta das vezes em que te pedi em casamento, Charlene, o n�mero de vezes que
disseste que n�o. O n�mero de vezes que fiquei a ver-te ir com algu�m, ou deitares-te na minha cama, quando n�o havia mais ningu�m. Isso acabou.
- N�o me quero casar, e por isso vais-te embora, e pronto?
- Foste para a cama com aquele homem, uma noite destas. O do grupo de ca�a. Alto, com cabelo preto.
Ela espetou o queixo. - E depois?
- Como � que ele se chamava?
Ela abriu a boca, percebendo que tinha a mente em branco. N�o se lembrava da cara, muito menos do nome, e nem se lembrava das cambalhotas no escuro. - Ralo-me muito
com isso, - ripostou ela. - Foi s� sexo.
- N�o vais encontrar aquilo de que andas � procura, n�o com homens sem nome com quase metade da tua idade. Mas se tiveres de continuar � procura, n�o te posso impedir.
Isso ficou bem claro desde o in�cio. Mas posso deixar de ser a tua segunda escolha.
- Vai-te l� embora, ent�o. - Pegou numa pilha de pap�is que tinha em cima da secret�ria e atirou-os ao ar. - N�o quero saber.
- Eu sei. Se quisesses, a s�rio, n�o me ia embora. Saiu do quarto e fechou a porta atr�s de si.
Ele ficou maravilhado pela luz. Nate n�o se fartava, por mais que o dia durasse, queria mais. Sentia-a penetrar nos ossos e na carne, dando-lhe energia.
H� dias que n�o acordava de um pesadelo.
Acordava para a luz, trabalhava e caminhava com ela durante o dia. Pensava e comia com ela; deleitava-se nela.
E todas as noites observava o Sol deslizar por tr�s das montanhas, sabendo que dali a algumas horas ia nascer outra vez.
As noites eram calmas, quando se levantava da cama de Meg e ia passear os c�es, em busca de companhia para ver as luzes assolarem o c�u nocturno.
Conseguia sentir a dor a latejar nas cicatrizes do seu corpo. Mas pensava que a dor revelava agora uma certa cura. Esperava com todas as for�as que sim. Uma esp�cie
de aceita��o do que perdera e um vislumbre do que podia ter.
353
Pela primeira vez desde que sa�ra de Baltimore, ligou � mulher de Jack, Beth.
- S� queria saber como estavas. Tu e os mi�dos.
- Vamos indo. Estamos bem. J� passou um ano... Ele sabia. Fazia um ano.
- Hoje custa um pouco mais. Esta manh� sa�mos, fomos levar flores. Os primeiros tempos custam mais. O primeiro Natal, o primeiro anivers�rio, a data de casamento.
Mas ultrapassamos, e fica um pouco mais f�cil. Pensava, e tinha esperan�a, que me ligasses hoje. Ainda bem que o fizeste.
- N�o tinha a certeza se querias ter not�cias minhas.
- Temos saudades tuas, Nate. Eu e os mi�dos. Preocupo-me contigo-
- Tamb�m estou bem. Melhor.
- Conta-me como s�o as coisas por a�. � terrivelmente frio e sossegado?
- Na verdade, hoje est�o quase dezasseis graus. Quanto ao ser sossegado... - Olhou para o quadro. - Sim. Pois. � bastante sossegado. Temos tido algumas inunda��es.
N�o est� t�o mau como no sudeste, mas o bastante para nos dar algum trabalho. � lindo.
Agora, virava-se para a janela. - N�o se compara com nada do que possas imaginar. Tens de ver, e mesmo assim, n�o � f�cil.
- Pareces-me bem. Fico muito contente.
- N�o pensei que fosse aguentar-me por estes lados. - Ou em lado nenhum. - Mas queria. E n�o me importava muito, at� chegar aqui. At� me instalar, mas depois quis
muito. Mas sinceramente que achava que n�o ia conseguir.
- E agora?
- Acho que vou conseguir. Beth, conheci uma pessoa.
- Oh? - Na voz dela, sentia-se o sorriso, e ele fechou os olhos para a ouvir. - Ela � maravilhosa?
- Espectacular, de tantas maneiras. Acho que ias gostar dela. N�o � como ningu�m que j� conheci. � piloto do mato.
- Piloto do mato? N�o � daquelas pessoas que voam como man�acos naqueles avi�es min�sculos?
- Mais ou menos. � linda. Bom, n�o �, mas �. � divertida e dura, talvez at� um pouco doida, mas condiz com ela. Chama-se Meg. Megan Galloway, e estou apaixonado
por ela.
- Oh, Nate. Fico muito feliz por ti.
- N�o chores, - disse ele ao ouvir o solu�ar.
- N�o, � bom. Jack ia encontrar milhentas formas de gozar contigo, mas l� no fundo, tamb�m ia ficar feliz por ti.
354
- Bom, de qualquer forma, queria que soubesses. Queria falar contigo e Contar-te, e dizer que um dia, tu e os mi�dos podiam vir at� c�. � um lugar fant�stico para
as f�rias de Ver�o. Em Junho s� escurece � meia-noite, contaram-me que, depois, o crep�sculo se prolonga e quase n�o h� escurid�o. E � mais ameno do que julgas,
pelo menos foi o que me disseram. Gostava que viesses, que conhecesses Meg. Gostava de te ver e aos mi�dos.
- Posso prometer-te que iremos ao casamento.
A gargalhada dele foi algo nervosa. - Ainda n�o avancei nessa direc��o.
- J� te conhe�o, Nate. Um dia chegas l�.
Quando desligou, sorria. Era a �ltima coisa que esperara. Deixou o quadro destapado, uma esp�cie de evid�ncia de que agora fazia a investiga��o �s claras, e saiu
do gabinete.
Ainda lhe causava sobressalto, ver Peter de bra�o ao peito. O jovem adjunto estava sentado � secret�ria, a martelar nas teclas s� com uma m�o.
Trabalho administrativo. Tratar da papelada. Um pol�cia, e era isso que o rapaz era, era bem capaz de morrer de t�dio puro.
Nate aproximou-se. - Quer sair daqui?
Peter ergueu o olhar, o dedo da m�o s� pousado no teclado. - Senhor?
- Quer que o liberte por instantes dessa secret�ria? O seu rosto iluminou-se. - Sim, senhor!
- Vamos dar uma volta. - Pegou no walkie-talkie. - Peach, o Adjunto Notti vem comigo fazer patrulha a p�.
- Hum. O Otto j� est� na rua, - disse Peter.
- Tanto quanto sabemos, o crime pode desatar numa escalada desenfreada. Peach, fica aos comandos.
- Entendido, Comandante, - disse ela, com um sorriso divertido. - Tenham cuidado, meninos.
Nate pegou num casaco de Ver�o pendurado no cabide. - Quer o seu? - Perguntou a Peter.
- Nah. S� os dos Lower 48 � que precisam de casaco num dia destes.
- N�o me diga? Est� bem. - Deliberadamente, Nate voltou a pendurar o casaco.
L� fora estava fresco e nublado. Era bem prov�vel que viesse a chover e, sem d�vida, pensava Nate, arrependeu-se do gesto de deixar o casaco, antes de sa�rem.
Mas desceu o passeio com o vento h�mido e fresco a soprar-lhe no cabelo. - Como � que est� o bra�o?
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- Bastante bem. Acho que n�o precisa de andar ao peito, mas n�o vale a pena discutir com Peach e a minha m�e.
- As mulheres ficam todas preocupadas, quando um tipo leva um tiro.
- Nem me fale. Sabe, eu tento ser est�ico com este assunto, mas elas n�o me largam.
- N�o falei muito consigo sobre o sucedido. No in�cio, pensei para comigo que cometera um erro em lev�-lo at� l�.
- Assustei-o quando sa� do carro. Provoquei a situa��o.
- At� um esquilo a deixar cair uma bolota o teria assustado, Peter. A princ�pio, convenci-me de que cometera um erro. Mas na verdade, n�o. � um bom pol�cia. J� deu
provas. Foi alvejado. Magoou-se e ficou abalado, mas protegeu-me.
- Voc� tinha a situa��o controlada. N�o precisava de ajuda.
- Mas podia ter precisado. Essa � que � a quest�o. Quando se est� com algu�m numa situa��o vol�til, tem de se poder confiar nessa pessoa, sem reservas.
Da forma que ele e Jack confiavam um no outro, pensava. Por isso, passaram a porta, entraram no beco, sem saber o que os esperava na escurid�o.
- Quero que saiba que confio em si.
- Eu... pensava que estava � secret�ria por me querer dispensar.
- Est� � secret�ria porque est� ferido. No cumprimento do dever, Peter. Vou recomendar uma condecora��o de acordo com o seu comportamento durante o incidente.
Peter estacou, fitando-o. - Uma condecora��o?
- Merecida. Vou anunci�-la na pr�xima reuni�o da assembleia municipal.
- N�o sei o que dizer.
- Ser est�ico funciona.
Atravessaram a rua na esquina, para caminharem do outro lado. - Tenho mais uma coisa para dizer, e � delicado. Est� relacionado com a investiga��o que o nosso departamento
est� a levar a cabo. Os homic�dios.
Captou o olhar furtivo de Peter. - O que quer que a Pol�cia Estadual tenha determinado, este departamento est� a trat�-los como homic�dios. Tenho v�rios depoimentos
de indiv�duos que relataram o seu paradeiro na �poca em quest�o. No entanto, n�o � poss�vel corroborar a maioria dos depoimentos, pelo menos n�o da forma que queria.
Isso inclui o de Otto.
- Oh, mas Comandante, o Otto...
- � um de n�s. Eu sei. Mas n�o o posso riscar da lista por ser um de n�s. H� muitas pessoas nesta vila, ou nas imedia��es, que tiveram a
356
oportunidade de cometer os tr�s crimes. Um motivo, j� � outro problema. O motivo dos dois subsequentes remonta a Galloway. Qual foi o motivo do homic�dio dele? Crime
passional, d�vidas, encobrimento? Rela��o com drogas? Talvez uma combina��o de tudo? Mas quem quer que fosse, ele conhecia-o.
Nate perscrutava as ruas, os passeios. Por vezes era o que se conhecia que aguardava na escurid�o. - Conhecia-os t�o bem, para realizar a escalada de Inverno com
o assassino e com Max. Os tr�s sozinhos. Conhecia o assassino ao ponto de se divertirem, de brincarem �s personagens, mesmo no meio de condi��es severas.
- N�o percebo o que quer dizer.
- Ele tinha um di�rio. Trazia-o com ele, e com ele ficou. Coben deu-me uma c�pia.
- Mas se ele tinha um di�rio, ent�o...
- Nunca usou os nomes dos companheiros. Entraram numa esp�cie de brincadeira. Do tipo que suspeito que se ele n�o tivesse sido assassinado l� em cima, teria morrido
numa outra subida qualquer, se n�o se tivesse endireitado. Andavam a fumar erva, a meter speeds. Imitavam a Guerra das Estrelas. Galloway era Luke, Max era Han Solo
e, ironicamente, o assassino de Galloway desempenhava o papel de Darth Vader. A montanha tornou-se o mundo gelado dos protagonistas.
- Que coisa. Gosto dos filmes, - acrescentou Peter, encurvando os ombros. - Coleccionava as figuras das personagens, e assim, quando era mi�do.
- Eu tamb�m. Mas estes n�o eram mi�dos. Eram homens adultos, e a certa altura, perderam o controlo do jogo. Galloway escreveu que Han, que acho ser Max, se magoou
no tornozelo. Deixaram-no para tr�s numa tenda, com algumas provis�es, e prosseguiram.
- Isso prova que n�o foi Max que o matou.
- Depende da perspectiva. Podemos especular que Max decidiu ir atr�s deles, os alcan�ou na gruta de gelo e enlouqueceu. Mais ainda, podemos especular que Max era
quem desempenhava o papel de Vader e matou os dois companheiros de aventuras. N�o s�o as minhas teorias pessoais preferidas, mas s�o teorias. E a Estadual aceita
a segunda.
- Que o Sr. Hawbaker matou os dois? E que depois desceu sozinho? N�o estou a ver como.
- Porqu�?
- Bom, sei que era s� um mi�do quando isto tudo aconteceu, mas o Sr. Hawbaker nunca teve reputa��o de ser, sabe, audaz e auto-suficiente. Tinham de ser dois para
conseguir descer.
- Concordo. Mais para a frente, no di�rio, Galloway escreveu que a
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personagem de Darth revelava ind�cios de, chamemos-lhe, loucura, raiva, corria riscos, fazia acusa��es. Havia muita droga envolvida e, pelo que li, consequ�ncias
do esfor�o, enjoo de altitude, a pedra que alguns alpinistas sentem ao chegar l� a cima.
Nate observava Deb a sair da Loja da Esquina para levar Cecil a passear. O c�o envergava uma camisola verde-clara.
- Galloway estava preocupado, preocupado com o estado de esp�rito do indiv�duo, - prosseguiu, ao trocar casualmente acenos com Deb. - Sobre lev�-los para baixo a
todos em seguran�a. A �ltima entrada do di�rio escreveu-a dentro da gruta. N�o chegou a sair de l�, por isso tinha motivos para preocupa��o. Mas ainda assim, n�o
foi suficiente para tomar medidas concretas para se proteger. Ainda tinha a picareta no cinto. Conhecia o assassino, tal como Max conhecia o seu. Tal como Yukon
conhecia o homem que lhe cortou o pesco�o.
- N�s tamb�m o conhecemos, Peter. - Lan�ou outro aceno ao Juiz Royce, que avan�ava na direc��o da KLUN com um charuto preso nos dentes. - S� que ainda n�o o identific�mos.
- O que � que fazemos?
- Continuamos a vasculhar com o que sabemos. Continuamos a derrubar camadas at� sabermos mais. N�o vou contar a Otto do di�rio. Por enquanto, n�o.
- C�us.
- Para voc� � ainda mais dif�cil. S�o pessoas que conheceu toda a vida, ou grande parte dela.
Acenou enquanto descia a rua, onde Harry se encontrava no passeio, � porta da Loja da Esquina a fumar um cigarro, e a falar com Jim Mackie. � frente deles, Ed avan�ava
apressado na direc��o do banco, mas parou para trocar uma palavra com a senhora dos correios, que estava na rua a varrer a entrada.
Mike Grande saiu d'A Estalagem e correu, sem d�vida a caminho da Casa Italiana e da sua dose di�ria de conversa com Johnny Trivani. A sua filhinha soltou algumas
gargalhadas divertidas, sentada �s cavalitas dele.
- S�o s� pessoas. Mas uma delas, das que aqui est�o na rua, dentro de um destes edif�cios ou das casas, numa cabana fora da cidade, � um assassino. E se for obrigado
a isso, vai voltar a matar.
Todas as noites ia para casa de Meg. Ela nem sempre l� estava. Os trabalhos apareciam � medida que o tempo aquecia. Mas tinham um acordo impl�cito de que ele podia
l� ficar. Tratava dos c�es, cuidava das outras tarefas.
Come�ava a deixar l� os seus pertences, aos poucos e poucos. Outro
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acordo impl�cito. Ele mantinha o quarto n'A Estalagem mas, naquele momento, era mais uma despensa da sua roupa de Inverno.
Tamb�m podia ter levado tudo para casa de Meg. Mas isso seria definitivo. T�o definitivo ao ponto de reconhecerem que estavam a viver juntos.
Viu o fumo sair da chamin�, antes de dar a curva, e a sua disposi��o avivou-se. Mas n�o viu o avi�o no lago, e era a carrinha de Jacob que estava na entrada.
Os c�es acorreram do bosque para o cumprimentar, Rock levando na boca um dos ossos monstruosos que adoravam roer. Parecia a Nate que era fresco; deixou os c�es a
brincar numa luta en�rgica pela sua posse, e entrou.
Nate sentia o cheiro de sangue a meio caminho da cozinha. Por instinto, levou a m�o � coronha da arma.
- Trouxe carne, - disse Jacob sem se virar. Havia alguns nacos de algo ensanguentado em cima do balc�o. Nate descontraiu a m�o.
- Hoje em dia, ela anda com pouco tempo para ca�ar. Os ursos acordaram. A carne � boa para o guisado, rolo de carne.
Rolo de carne de urso, pensava Nate. Que mundo aquele. - Tenho a certeza que ela vai gostar.
- Partilhamos o que temos. - Prosseguiu Jacob, calmamente a embrulhar a carne de urso em papel vegetal. - Ela contou-lhe que eu estive com ela quase sempre, desde
que levaram o pai dela.
- Levaram? � uma forma interessante de p�r a quest�o.
- Levaram-lhe a vida, n�o foi? - Jacob terminou de embrulhar a carne e pegou num marcador preto para escrever a data nos embrulhos. Era um gesto t�o dom�stico que
Nate pestanejou.
- Ela contou-lhe, mas voc� n�o confia na mem�ria dela, nem no seu cora��o.
- Confio nela.
- Era uma crian�a. - Jacob lavava as m�os no lava-lou�a. - Ela pode estar enganada, ou ent�o, por gostar de mim, estar a proteger-me.
- Pois pode.
Jacob secou as m�os, e pegou nos embrulhos de carne. Ao virar-se, Nate viu que usava um amuleto ao pesco�o. Uma pedra azul-escura por cima de uma camisa de ganga
co�ada.
- Falei com algumas pessoas. - Avan�ou para a entrada, onde Meg tinha uma pequena arca congeladora. - As que n�o gostam muito de falar com a pol�cia. Pessoas que
conheciam Pat e Dois-Dedos. - Come�ou a guardar a carne na arca. - Essas pessoas, que falam comigo e n�o com a pol�cia, disseram-me que quando Pat estava em Anchorage,
tinha dinheiro. Mais dinheiro do que seria normal para ele.
359
Fechou a arca e voltou para a cozinha. - Agora vou beber um u�sque.
- Onde � que arranjou o dinheiro?
- Trabalhou uns dias na f�brica de conservas, pediu adiantamento do ordenado, pelo que consta. Usou-o para jogar p�quer. - Jacob serviu tr�s dedos de u�sque num
copo. Pegou noutro copo, com uma express�o inquiridora no rosto.
- N�o, obrigado.
- Acredito que deva ser verdade, porque ele gostava de jogar, e apesar de perder muitas vezes, encarava isso como... pagar para se divertir. Parece que desta vez
n�o perdeu. Jogou duas noites e quase um dia inteiro. Quem falou comigo disse que ganhou � grande. Uns dizem que foi dez mil, outros vinte, outros ainda mais. Deve
ser como o peixe que vai crescendo com a hist�ria. Mas todos concordam que ele jogou e ganhou, e que tinha dinheiro.
- O que � que ele fez com o dinheiro?
- Isso, ningu�m sabe, nem admite saber. Mas h� quem diga que o viu a beber com outros homens. N�o � invulgar, por isso ningu�m pode dizer quem eram esses homens.
E porque � que se iam lembrar de uma coisa que se passou h� tanto tempo?
- Havia uma prostituta.
Os l�bios de Jacob curvaram, ligeiramente. - Como sempre.
- Kate. Ainda n�o a consegui localizar.
- A Kate Rameira. Morreu, talvez h� uns cinco anos. Ataque card�aco, - acrescentou Jacob. - Era uma mulher muito gorda e fumava cerca de tr�s ma�os de Camel por
dia. A morte dela n�o foi uma grande surpresa.
Outro beco sem sa�da, pensava Nate.
- Essas pessoas que falam consigo, mas n�o com a pol�cia, contaram-lhe mais alguma coisa?
- Algumas dizem que o Dois-Dedos levou Pat e mais dois, ou tr�s, mais do que isso n�o, para fazer alpinismo. Outras dizem que iam escalar a Denali, outras a Sem
Nome, outras ainda a Deborah. Os pormenores n�o s�o certos, mas lembram-se do dinheiro, do piloto, da subida e de dois ou tr�s companheiros.
Jacob bebeu mais u�sque. - Ou posso estar a mentir e ter sido eu a subir com ele.
- Pois pode, - admitiu Nate. - Seria preciso coragem. Um homem que ca�a um urso � corajoso.
Jacob sorriu. - Um homem que ca�a um urso come bem.
- Acredito em si. Mas posso estar a mentir.
Desta vez, Jacob riu-se e bebeu o resto do u�sque. - Pois �. Mas como estamos na cozinha de Meg, e ela gosta de n�s dois, podemos fingir que
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acreditamos um no outro. Agora ela anda mais luminosa. Sempre foi brilhante, mas agora est� mais, e as sombras elimina-as consigo. Sabe tomar conta de si. Mas...
Levou o copo para o lava-lou�a, lavou-o e deixou-o a escorrer, virando-se - Cuide bem dela, Comandante Burke. Sen�o ca�o-o a si.
- Percebido, - retorquiu Nate, antes de Jacob sair.
28.
Nate aproveitou o tempo. Parecia ser coisa que sobrava. Uma vez que fazia quest�o de passar pelo restaurante d'A Estalagem para ver Jesse todos os dias, n�o tinha
problemas em arranjar uma oportunidade para conversar em particular com Charlene.
Encontrou Rose a tirar partido da calmaria a meio da manh�, sentada num banco corrido a encher os frascos dos condimentos.
- N�o se levante, - disse ele, ao ver que ela come�ava a deslizar para se levantar. - Onde � que est� o meu amiguinho hoje?
- Temos l� em casa uns primos de Nome, por isso Jesse tem amigos para brincar por alguns dias. Tem andado a exibir o tio, Adjunto, - comentou, a sorrir. - Mas quer
traz�-los todos para conhecerem o seu grande amigo, o Comandante Nate.
- A s�rio? - Sentia o pr�prio sorriso espalhar-se de orelha a orelha. - Diga-lhe que os traga, at� podemos fazer uma visita � esquadra. - Ia ligar a Meg via r�dio,
para ver se ela conseguia encontrar distintivos de brincar, quando fosse buscar mercadoria.
- N�o se importa?
- Ia ser o m�ximo.
Debru�ou-se para espreitar Willow no carrinho. - � linda, de cair para o lado.
Agora podia diz�-lo com sinceridade. As suas faces haviam-se tornado rosadas e quase lhe dava vontade de as beliscar. E os olhos, t�o negros, pareciam colar-se aos
dele como se soubesse algo que ele n�o sabia.
Esticou um dedo. Willow enrolou o dela e abanou.
- Charlene est� no escrit�rio?
- N�o, na despensa ao p� da cozinha. A fazer o invent�rio.
- Posso ir l� ter com ela?
- � melhor levar um colete � prova de bala, - avisou Rose, ao deitar ketchup num frasco de pl�stico vermelho-vivo. - Tem andado de mau humor nos �ltimos dias.
- Vou arriscar!
361
- Nate. Peter contou-nos da condecora��o. Est� t�o orgulhoso. N�s tamb�m. Obrigada.
- N�o fiz nada. Foi ele.
Ao ver os olhos dela marejados, afastou-se com celeridade.
Mike Grande estava ao balc�o a fazer o que parecia ser salada suficiente para alimentar um ex�rcito de coelhos. Tinha o r�dio sintonizado na esta��o local, onde
se ouvia o violoncelo intenso e apaixonado de Yo-Yo Ma.
- Caranguejo Florentine � la Mike � o prato do dia, - gritou ele. - Salada de b�falo para os apetites mais vorazes.
- Yam.
- Vai entrar a�? - Perguntou Mike, ao ver Nate virar na direc��o da despensa. - � melhor levar uma espada e um escudo.
- Foi o que ouvi dizer. - Mas Nate abriu a porta, e como nunca podia saber com Charlene, deixou-a aberta por quest�es de seguran�a.
Era uma sala grande e gelada, cheia de prateleiras de metal carregadas de enlatados e v�veres secos. Duas arcas frigor�ficas verticais guardavam recipientes de perec�veis,
com uma arca de gavetas aninhada entre ambas.
Charlene encontrava-se no meio, a escrevinhar atarefada numa prancheta.
- Bom, j� sei para onde vir, no advento de uma guerra nuclear.
Ela lan�ou-lhe um olhar furtivo, sem vest�gios do calor intenso que costumava transmitir. - Estou ocupada.
- J� percebi. S� queria fazer-lhe uma pergunta.
- De si � a �nica coisa que posso esperar, - murmurou ela, erguendo a voz para soltar um grito. - Gostava de saber porque � que nos faltam duas latas de feij�o encarnado.
A resposta de Mike Grande foi levantar o volume do r�dio.
- Charlene, d�-me s� uns minutos e vou-me embora num instante.
- Est� bem, est� bem! - Pousou a prancheta na prateleira, com tanta for�a que Nate ouviu a madeira estalar. - S� estou a tentar governar o neg�cio. O que � que isso
interessa a algu�m?
- Lamento que esteja chateada com alguma coisa, e vou tentar que seja o mais r�pido poss�vel. Tem conhecimento de Galloway ganhar somas avultadas ao p�quer, entre
a altura em que se foi embora e at� subir � montanha?
Ela emitiu um som de aborrecimento. - Como se fosse poss�vel. - Depois, franziu os olhos. - Como assim, avultadas?
- Alguns milhares. Uma fonte disse-me que ele passou umas noites a jogar e ganhou.
- Se havia jogo, � prov�vel que tenha alinhado. Quase nunca ganhava,
362
e se tivesse sorte, s� conseguia ganhar uns duzentos d�lares. Houve uma vez em Portland. Ganhou � volta de trezentos. E derretemos tudo num hotel caro, num belo
bife ao jantar e em duas garrafas de champanhe do servi�o de quartos. Ele comprou-me roupa para essa noite. Um vestido e sapatos, e um par de brincos de safira.
Os olhos dela ficaram brilhantes. Mas abanou a cabe�a e os ombros com brusquid�o e secou as l�grimas. - Est�pida. Tive de vender os brincos em Prince William para
pagar o arranjo da moto e a comida. Serviram-me de muito.
- Se ele tivesse ganho dinheiro, o que � que faria com ele?
- Esbanjava-o. N�o. - Pousou a testa num dos postes da prateleira, parecendo t�o cansada, t�o perdida, t�o triste que arriscou fazer-lhe uma festa no ombro.
- N�o. Na hora, n�o. Ele sabia que eu andava aflita de dinheiro. Se tivesse deitado as m�os a uma bela quantia, era capaz de jogar um pouco, mas guardava a maior
parte, para trazer para casa e me calar.
- Era capaz de o p�r no banco? Em Anchorage?
- N�o t�nhamos banco em Anchorage. Guardava-o na mochila e trazia-o para casa, para eu o governar. N�o tinha respeito nenhum pelo dinheiro. Muita gente que nasceu
cheia dele n�o tem.
Ela ergueu a cabe�a. - Est� a dizer que havia dinheiro?
- Estou a dizer que � poss�vel.
- Nessa altura n�o mandou nada para casa. N�o mandou nem um c�ntimo.
- E se tivesse dinheiro e quisesse fazer a escalada?
- Deixava-o guardado numa gaveta, se alugasse um quarto. Sen�o, levava-o consigo. A Pol�cia Estadual n�o se pronunciou sobre dinheiro.
- N�o tinha nenhum com ele.
Nenhum, pensava Nate, ao sair novamente. N�o tinha carteira, identifica��o, dinheiro. Nem mochila. S� f�sforos e o di�rio, guardado no bolso da parca.
No passeio, tirou o bloco de notas. Escreveu DINHEIRO e desenhou um c�rculo � volta.
Tudo dizia "Segue a mulher", pensava ele, mas um pol�cia sabia que se houvesse dinheiro envolvido num homic�dio, sempre, mas sempre se devia seguir o dinheiro.
Perguntava-se como � que ia descobrir que algu�m em Lunacy tivesse chegado com o proveito de uma sorte inesperada, h� dezasseis anos.
Claro que era t�o prov�vel como Galloway ter alugado um quarto e guardado l� o dinheiro. E a empregada da limpeza, o propriet�rio ou o h�spede seguinte a ocupar
o quarto tivessem tido uma sorte dos diabos.
363
Tamb�m podia t�-lo levado na mochila. O assassino n�o a abrira, antes de a lan�ar de um penhasco abaixo.
Mas porque � que o assassino levaria a mochila, se n�o tivesse um motivo? Por causa da comida, e oooohhhh, vejam s� que mais temos aqui. Ou ent�o largou-a em p�nico,
pensando que se descobrissem o corpo, n�o o podiam identificar.
Mas se houvesse dinheiro, Nate estava disposto a apostar que o assassino sabia que estava l�, e que tratara de o levar. Quem...?
- As pessoas podem come�ar a perguntar-se para onde vai o dinheiro dos impostos, para que o Comandante da pol�cia possa andar a sonhar acordado na rua.
Deu um salto para tr�s, e olhou para Hopp. - Est� em todo o lado?
- Tanto quanto poss�vel. Ia agora beber um caf� e comer qualquer coisa. E conspirar. - No seu rosto vislumbrava uma certa irrita��o, t�o evidente como a sua camisa
aos quadrados verdes.
- O que � que se passa?
- John Malmont acaba de apresentar a demiss�o. Diz que se vai embora no final do ano lectivo.
- Vai deixar o ensino?
- Vai deixar Lunacy. N�o podemos perd�-lo.
Ela tirou o Zippo, mas deixou-se ficar a abrir e a fechar a tampa. Falava-se na vila que andava a tentar deixar de fumar.
- � professor com forma��o acad�mica, e al�m disso, est� a ajudar Carrie n'O Lun�tico, encena as pe�as da escola, lidera a comiss�o do anu�rio, coloca-nos nos mapas
tur�sticos com artigos que consegue publicar nas revistas. Tenho de pensar e arranjar uma forma de o manter.
- Disse porque � que decidiu ir embora? Assim de repente?
- S� que estava na altura de mudar. Num minuto estamos a planear o clube liter�rio de Ver�o, que ele aprova, e no seguinte est� a fazer as malas. Filho da m�e!
Ela rolou os ombros. - Vou tomar caf� e comer uma tarte. Tarte � la mode. - Bateu com o isqueiro com for�a. - Vai p�r-me as c�lulas cerebrais a funcionar. Ele n�o
se vai embora sem resist�ncia.
Interessante, pensava Nate. Que altura interessante.
Burke tinha de ir. Agora era ponto assente. Andava a bisbilhotar e a aprofundar assuntos que n�o eram da sua conta.
Bom, havia mais do que uma forma de afugentar um cheechako chato como o raio da cidade. Havia os que afirmavam que Burke suplantara o seu estatuto, agora que sobrevivera
ao primeiro Inverno.
364
Mas ele sabia que alguns permaneciam cheechakos, por mais sobreviventes que fossem.
Galloway fora um deles. Quando se via num aperto, ficava cobarde, choramingas e matreiro. Acima de tudo, matreiro.
O homem tinha sido um parvalh�o, puro e simples. Por que raio � que se haviam de importar que tivesse morrido?
Fizera o que tinha a fazer, convencia-se ao carregar os sacos de pl�stico pesados pelo bosque. Tal como agora estava a fazer o que era preciso.
Haveria de tratar de Burke. Outro idiota cobarde, choramingas e matreiro. Oh, a minha mulher deixou-me por causa de outro homem. Pobre de mim. Oh, sou culpado da
morte do meu parceiro. Bu�aaa. Tenho de fugir para onde ningu�m me conhe�a, e afogar-me na minha po�a de autocomisera��o.
Mas isso n�o era suficiente. Tinha de tentar ser um espertalh�o. De conquistar o que n�o era dele. Que nunca seria dele.
Pois, tinha de tratar dele, e a vida ia voltar ao seu curso normal.
Pendurou os sacos de pl�stico nas �rvores mais pr�ximas da casa, enquanto os c�es o rodeavam, dando � cauda.
- Desta vez n�o, meninos, - disse em voz alta e pendurou outro no cabide atr�s da porta das traseiras, longe do alcance da entrada. - Desta vez n�o, amigos.
Deu uma festa vigorosa aos c�es, mas eles estavam mais interessados em cheirar e lamber-lhe as m�os.
Gostava dos c�es. Gostava de Yukon. Mas aquele c�o velho estava quase cego, cheio de artrite e quase surdo que nem uma porta. Abat�-lo na verdade fora um acto de
miseric�rdia. E marcara uma posi��o.
Regressou ao bosque, parando na orla para olhar para tr�s. Havia partes de terra em que a neve derretia ao sol, onde as chuvas a haviam levado. Uns pontinhos verdes
tentavam emergir dela.
Era a Primavera, pensava. Assim que a terra aquecesse bastante, iam levar Pat Galloway para a sua �ltima morada.
Fazia inten��o de ir at� � sepultura, com a cabe�a ca�da, em sinal de respeito.
Come�ava a cair o crep�sculo quando Nate chegou a casa. Esperou na berma da estrada enquanto Meg se aproximava, vinda do lago, pisando o verde da erva com resqu�cios
de neve, reparou.
Ela trazia uma caixa de encomendas e envergava uma camisa vermelho-vivo que o levou a pensar num p�ssaro tropical chamativo. - Queres trocar?
365
Ela olhou para a caixa de pizza que ele segurava e cheirou. - N�o, fico com ela e com os distintivos de brincar. Mas gosto de um homem que traz o jantar para casa.
Como � que sabias que vinha jantar, ou estavas a planear comer isso tudo sozinho?
- Ouvi o avi�o. Acabei o que estava a fazer, fui � Casa Italiana e comprei-a. Imaginei que ainda tivesses de descarregar a mercadoria, e seria � justa.
- Quase perfeito. Estou esfomeada. - Levou a caixa para dentro de casa e foi directamente para a cozinha.
- Por acaso, uma das coisas que trago hoje � o que se pode chamar um cabernet excepcional. - Pegou na garrafa. - Alinhas?
- Claro. S� um minuto. - Pousou a pizza e com as m�os segurou-lhe os ombros para a beijar. - Ol�.
- Ol�, gira�o. - Sorrindo, agarrou-lhe no cabelo e puxou-o para um beijo mais forte e prolongado. - Ol�, meninos. - Acocorou-se para fazer uma festa breve e brincar
com os c�es. - Tiveram saudades, huh, tiveram?
- Tivemos todos. Ontem � noite consol�mo-nos com um osso de urso e macarr�o com queijo. Jacob forneceu o osso, e a carne de urso que est� na arca.
- Mmm, que bom. - Pegou num saco de pl�stico, abanou-o para o conte�do tilintar e entregou-lho.
L� dentro encontrou estrelas de p�r ao peito. - Porreiro.
- Disseste sete, mas tens a� uma d�zia. D� jeito mais, se quiseres tornar mais mi�dos adjuntos.
- Obrigado. Quanto � que te devo?
- Fica na conta. Pagas depois. Abra a garrafa, sim, Comandante? - Deslizou a m�o pela caixa da pizza e cortou uma fatia. - N�o almocei, - disse ela com a boca cheia.
- Tive de aterrar, com um pequeno problema no motor, o que me custou mais algumas horas.
- Que esp�cie de problema no motor?
- Nada de mais. Agora j� est� arranjado, mas sabia-me bem uma pizza e vinho, um duche quente e um homem que saiba massajar-me nos s�tios certos.
- Parece-me que podemos tratar disso tudo.
- Continuas a exibir esse teu meio sorriso. Para que � isso?
- Para nada. Queres sentar-te e comer, ou vais ficar a� de p� a encher a pan�a?
- Vou ficar de p�. - Ela deu outra dentada enorme. - A encher a pan�a.
- Ok. N�o era melhor deixar o vinho respirar?
366
- N�o, quando estou a engolir pizza com ele. D� c�.
Ele serviu-lhe um copo e outro para si. Depois, partiu uma fatia e recostou-se no balc�o a comer. - Lembras-te do dia em que Peter foi alvejado?
- � dif�cil esquecer. Dantes seguia-me e � Rose como um cachorrinho. Est� a recuperar bem, n�o est�?
- Est�. Mas naquele dia, quando vi o sangue na neve, cheguei ao p� dele e fiquei com sangue nas m�os, parte da minha mente ficou em branco. N�o, foi como se recuasse.
At� Jack. Voltei �quele beco. Conseguia v�-lo, ouvi-lo, cheir�-lo. E de alguma forma, queria desaparecer. Fugir dali para fora.
- N�o foi o que me contaram.
- Mas no fundo, era isso que estava a acontecer. - Primeiro tinha de deitar aquilo para fora, pensava Nate. Ter a certeza que ela o via como fora, como era, e como
esperava vir a ser. - Pareceu muito tempo. Muito tempo acocorado na neve, com ele a sangrar para cima de mim. Mas n�o foi. E eu n�o desapareci.
- Pois n�o. Atra�ste o fogo dele para longe de Peter.
- N�o � essa a quest�o.
- Gira�o. - Ela avan�ou, deu-lhe um beijo suave e recuou outra vez para se encostar ao balc�o. - �s um belo pol�cia.
- Controlei a situa��o. Cumpri o meu dever e consegui tirar toda a gente dali com vida. Podia t�-lo matado. Spinnaker.
Ele viu que ela assimilava, numa leve inclina��o da cabe�a.
- Podia t�-lo feito, por instantes ainda pensei nisso. Ningu�m iria p�r em causa a minha decis�o. Ele disparou contra o meu adjunto, disparou contra mim. Estava
armado e perigoso. N�o foi como no beco, com Jack. Depois o meu parceiro abatido, o meu parceiro a morrer, - corrigiu, - e eu tamb�m ca�do no ch�o, e nada a impedir
aquele filho da m�e.
Desceu o olhar para o vinho enquanto ela escutava, aguardava. Pousou-o sobre o balc�o. - N�o tive escolha, e aqui tive. Pensei mesmo em mand�-lo para o Inferno.
Devias saber isso. Devias saber que dentro de mim tive esse �mpeto.
- Est�s � espera que me importe com isso? Ele tentou matar um amigo meu, tentou matar-te. N�o me teria importado, Nate. Tamb�m devias saber que � o que sinto, dentro
de mim.
- Teria sido...
- Errado, - concluiu ela. - Para ti. Para o homem que �s, para o tipo de pol�cia que �s. Por isso, ainda bem que n�o o fizeste. A tua no��o de certo e errado est�
mais delineada do que a minha. � assim que as coisas s�o.
367
- Fez um ano que Jack morreu.
A compaix�o inundou os olhos dela. - Oh, querido, est�s sempre a levar murros no est�mago, n�o �?
- N�o. N�o, nesse dia telefonei � Beth. A mulher de Jack. Telefonei-lhe e foi bom. Ela est� bem. Ao falar com ela, percebi que n�o me ia afundar outra vez. N�o sei
quando � que sa� do fosso, com exactid�o, e por vezes o ch�o que piso ainda � um pouco mole e inst�vel. Mas n�o vou voltar l� para baixo.
- Nunca l� estiveste. - Deitou mais vinho no copo. - Conhe�o pessoas que estiveram, ou que v�o acabar por ficar. Do tipo que se espetam na escarpa de uma montanha
num dia limpo, ou que se despenham no mato, para morrer. Conhe�o-os. Fazem parte do mundo exterior do qual me refugio neste cantinho. Pilotos tresloucados ou algum
Forasteiro que acaba por aqui, porque j� n�o aguenta o mundo l� fora. Mulheres agastadas de anos de abusos ou neglig�ncia, que se deitam e deixam que o pr�ximo homem
as mate de pancada na rua.
Estavas triste, Nate, e algo perdido, mas nunca foste um deles. Tens demasiada fibra para seres um deles.
Por instantes ele ficou em sil�ncio, mas depois estendeu a m�o e tocou-lhe nas pontas do cabelo. - Tu afugentaste as minhas sombras.
- Huh?
O meio sorriso assomou-lhe aos l�bios. - Casa comigo, Meg.
Por momentos ela fitou-o, os olhos azuis cristalinos plenos de poder nos dele. Depois, atirou a fatia de pizza meio comida para dentro da caixa.
- Eu sabia! - Lan�ando as m�os ao ar, deu meia-volta nos calcanhares e desatou a caminhar pela cozinha com viol�ncia suficiente para que os c�es se levantassem,
a cheir�-la. - Eu j� sabia. D�s bom sexo a um tipo, algumas refei��es quentes, amoleces ao ponto de lhe dizeres que o amas e, boom Sem dar por isso, j� se fala em
casamento. N�o te disse? N�o te avisei?
- Girou outra vez para lhe espetar o indicador. - Terra e casa, tatuadas no teu rabo.
- Parece que me fisgaste.
- N�o gozes comigo.
- H� um minuto atr�s quase sorriste, e pensavas que at� era engra�ado.
- Mudei de ideias. Para que � que queres casar?
- Amo-te. Tu amas-me.
- E depois? E depois? - Ainda agitava os bra�os e agora os c�es pensavam que se tratava de uma brincadeira, e desataram a correr � volta deles.
- Porque � que queres estragar tudo?
368
- Deve ser maluquice. E tu, est�s com medo?
Ela inspirou uma golfada de ar, e os seus olhos transformaram-se num fogo gelado. - N�o brinques com essa porcaria.
- Tens medo do casamento? - Ele recostou-se no balc�o, voltou a pegar no copo e bebeu mais vinho. - A corajosa piloto do mato fica com os joelhos a tremer quando
se menciona a palavra C. Interessante.
- N�o tenho os joelhos a tremer, parvalh�o.
- Casa comigo, Meg. - O seu meio sorriso florescia agora em toda a plenitude. - V�s, ficaste p�lida.
- N�o fiquei nada. N�o fiquei.
- Amo-te.
- Seu parvalh�o.
- Quero passar a minha vida contigo.
- Raios partam.
- Quero ter beb�s contigo.
- Oh. - Ela pegou num peda�o de cabelo e puxou, ao mesmo tempo que emitia da garganta um som indescrit�vel. - P�ra com isso.
- V�s? - Ele contemplava outra fatia de pizza. - Medricas.
A m�o direita dela fechou-se num punho. - Achas que n�o dou conta de ti, Burke?
- J� deste, da primeira vez que te vi.
- Oh, p�. - Deixou cair o punho ao lado do tronco. - Achas que �s engra�ado, achas que �s esperto, mas �s est�pido e simples. J� passaste por esta treta do casamento,
deram-te cabo do canastro e aqui est�s tu, a pedir mais.
- Ela n�o eras tu. Eu n�o era eu.
- Que raio � que isso quer dizer?
- A primeira parte � f�cil. N�o h� mais ningu�m como tu. Eu n�o sou quem era quando estava com ela. Pessoas diferentes fazem, bom, pessoas diferentes. Contigo sou
um homem melhor, Meg. Fazes-me querer ser um homem melhor.
- Oh, c�us, n�o digas essas coisas. - Sentia os olhos a arder. As l�grimas que lhe subiam do cora��o eram quentes e fortes. - �s o homem que sempre foste. Talvez
estivesses inseguro por uns tempos, mas qualquer pessoa fica, quando � maltratada e posta de lado. Eu n�o sou melhor, Nate. Sou ego�sta, contradit�ria e... ia dizer
impulsiva, mas n�o me parece que viver como se quer seja impulsivo. Quando quero, sei ser m�, n�o me importo com as regras, a n�o ser que sejam as minhas, e estou
aqui, ainda estou neste lugar, porque sou meio louca.
- Eu sei. N�o mudes.
- Sabia que contigo ia ter problemas, na passagem de ano, quando
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me deu aquele impulso idiota e te trouxe c� para fora, para vermos as luzes do norte.
- Tinhas um vestido vermelho.
- Achas que sou t�o menina assim, que me vou derreter toda, s� porque te lembras da cor do meu vestido?
- Amas-me.
- Sim. - Ela soltou um suspiro prolongado, passou as m�os pelas faces molhadas. - Sim, amo-te. Que grande trapalhada.
- Casa comigo, Meg.
- N�o vais parar de dizer isso, pois n�o?
- At� me dares uma resposta.
- E se a resposta for n�o?
- Espero, invisto mais algum tempo em ti, e volto a perguntar. N�o costumo desistir, por isso j� me mentalizei.
- N�o desistes mesmo. S� estavas a hibernar.
Ele voltou a sorrir. - Olha s� para ti, a� onde est�s. Podia ficar a olhar para ti para sempre.
- C�us, Nate. - Do�a-lhe o cora��o, do�a literalmente, de tal forma que teve de esfregar nele a palma da m�o. E aquela dor, percebia, doce no �mago, suavizara a
sensa��o de p�nico. - Tu matas-me.
- Casa comigo, Meg.
- Oh, bom. - Suspirava. Depois riu-se, ao perceber que a do�ura se espalhava por tudo o resto. - Que se lixe. Vou tentar. - Desatou a correr e de um salto, quase
o deitou ao ch�o, n�o fosse ele estar encostado ao balc�o. Enrolou as pernas � cintura dele, a boca esmagada na dele. - Isto vai correr mal, est� estampado na tua
cara.
- Nem � preciso dizer.
- Vou ser uma esposa terr�vel. - Encheu-lhe a face, o pesco�o de beijos. - Vou irritar-te e dar contigo em doido metade do tempo. Vou dar luta e ficar danada quando
ganhares, o que n�o vai acontecer muitas vezes. - Inclinou-se para tr�s e emoldurou-lhe o rosto com as m�os. - Mas n�o te vou mentir. N�o te vou enganar. E nas coisas
importantes, n�o te vou deixar ficar mal.
- Vai resultar. - Pousou a face na dela e inalou o seu perfume. - Faremos com que resulte. N�o tenho nenhum anel.
- Tens de tratar disso, o mais r�pido poss�vel. E n�o olhes a despesas.
- Ok.
Rindo, inclinou-se para tr�s, tanto que ele teve de ajustar a posi��o para a conseguir segurar. - Isto � t�o doido que s� pode correr bem. - Ela ergueu-se de novo
e prendeu os bra�os � volta do pesco�o dele. - Acho que
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est� na altura de irmos l� para cima e entregarmo-nos a uma t�rrida sess�o de sexo de noivado.
- Estava a contar com isso. - Levantou-a um pouco e levou-a ao colo para fora da sala. Quando ela lhe cerrou os dentes no pesco�o, ele soltou um gemido entrecortado.
- Tem de ser l� em cima? Que tal nas escadas? Ou ali mesmo, no ch�o. Depois, pod�amos... raios partam.
Os c�es correram a ladrar para a porta, e um instante depois, ele viu o brilho dos far�is atrav�s da janela.
- Tranca as portas todas, - murmurou Meg, sonhadora, ainda a mordiscar o pesco�o dele. - Apaga as luzes todas. Vamos esconder-nos. Vamos despir-nos e esconder-nos.
- Tarde de mais. Mas n�o nos esquecemos de onde fic�mos, e depois de nos livrarmos de quem seja, mesmo que tenhamos de os matar, retomamos.
- Combinado. - Ela saltou para o ch�o. - A�! - Ordenou aos c�es, que se sentaram, estremecendo na direc��o da porta. Ela foi abrir, reconhecendo o jovem que saiu
do carro. - Amigo, - disse aos c�es, para depois levantar a m�o num cumprimento. - Ol�, Steven.
- Ol�, Meg. - Baixou-se para afagar os c�es. - Ol�, rapaziada. Como � que v�o? Ah, vi o Peter e ele disse que o Comandante Burke estava aqui. Gostava de falar com
ele um instante, se n�o te importares.
- Claro. Entra. Meninos, l� para fora, v�o dar uma corrida.
- Ol�, Steven, como vais?
- Comandante. - Apertou a m�o a Nate. - Muito melhor, desde a �ltima vez que nos vimos. Queria agradecer-lhe outra vez, pessoalmente e agora que tenho as ideias
mais assentes, o que fez por mim. Por n�s. A ti tamb�m, Meg.
- Ouvi dizer que ficaste com os dedos todos.
- Dez dedos nas m�os e nos p�s. Bom, nove e meio nos p�s. Tive muita sorte. Tivemos todos. Desculpem incomodar-vos em casa... quero dizer, quando n�o est�o de servi�o.
- N�o h� problema.
- Vem sentar-te um pouco, - convidou Meg. - Queres vinho? Uma cerveja?
- Ele � menor, - disse Nate, ao ver que Steven se preparava para aceitar. - E vai conduzir.
- Pol�cias, - resmungou Meg. - Desmancha-prazeres.
- Talvez uma Coca-Cola, ou algo que tenham � m�o?
- Chru.
Steven sentou-se, tamborilando os dedos nos joelhos. - Vim a casa passar uns dias. F�rias de Primavera. Queria ter vindo mais cedo,
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mas tenho muito a recuperar. Perdi muitas aulas enquanto estive fora, sabem.
- Est�s a compens�-las?
- Sim, tenho feito algumas noitadas, mas estou a recuperar o tempo perdido. Assim que soube o que aconteceu a Yukon, quis voltar.
A voz tremia, os dedos enterrados com for�a nos joelhos.
- Lamento.
- Lembro-me de quando o fomos buscar. Eu era um mi�do, e ele n�o passava de uma bola de p�lo. � dif�cil. Muito mais para a minha m�e. Era como um filho para ela.
- N�o sei o que faria se algu�m fizesse mal aos meus c�es, - disse Meg, ao voltar � sala. Passou a Nate um copo de vinho dos que trazia na m�o, e depois tirou a
lata de Cola debaixo do bra�o e deu-a a Steven.
- Sei que est� a fazer o melhor que pode. Algu�m me contou que andou por a� um doido, maluco, que disparou contra Peter. - Abanou a cabe�a ao abrir a lata. - E h�
quem pense que foi ele que fez aquilo a Yukon. Mas...
- N�o �s dessa opini�o, - interrompeu Nate.
- Yukon era amig�vel, mas n�o teria acompanhado um desconhecido. S� acho que n�o teria ido com algu�m que n�o conhecia. N�o sem resistir. Estava velho, e quase cego,
mas n�o teria sa�do do quintal com um desconhecido.
Bebia com vontade. - De qualquer forma, n�o foi por isso que passei por c�. S� queria dizer o que sentia. S� isso.
Projectou as ancas para a frente, ao procurar no bolso das cal�as de ganga. Tirou um pequeno brinco de prata, semelhante a uma cruz de Malta. - Estava na gruta,
- disse ele.
Nate pegou nele. - Encontraste isto na gruta, com Galloway?
- Na verdade, foi o Scott. E eu esqueci-me. Acho que nos esquecemos todos. Ele guardou-o na mochila. Quando sa�mos todos da montanha, no estado em que est�vamos,
no hospital e essa treta toda, ele esqueceu-se completamente. Encontrou-o nas coisas dele, lembrou-se e deu-mo, porque eu vinha a casa. Pens�mos que talvez fosse
do teu pai, Meg, e que devias ficar com ele. Mas entretanto, achei que talvez fosse melhor a pol�cia ver primeiro, e trouxe-o ao Comandante Burke.
- Mostraste-o ao Sargento Coben? - Perguntou Nate.
- N�o. O Scott deu-mo mesmo antes de vir para casa, e eu estava com pressa de chegar. Pensei que faria bem em traz�-lo a si.
- Fizeste bem. Obrigado por mo trazeres.
- N�o sei se era dele, - disse Meg, quando se viu sozinha com Nate. - �
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capaz. Ele usava brinco. Tinha uns quantos. N�o me lembro bem. Alguns de brilhante, uma argola de ouro. Mas � capaz de ser dele. Pode t�-lo comprado em Anchorage,
enquanto esteve fora. Pode ser...
- Do seu assassino, - concluiu Nate, a analisar o brinco na palma da m�o.
- Vais d�-lo a Coben?
- Ainda vou pensar nisso.
- Guarda-o, sim? Podemos guard�-lo s� por esta noite? N�o quero ficar triste.
Nate enfiou-o no bolso do peito da camisa e fechou-o com o bot�o. - Est� bem assim?
- Sim. - Deitou a cabe�a no ombro dele e passou a m�o por cima do bolso. - Podes mostr�-lo a Charlene amanh�. Talvez ela o conhe�a. Mas agora... - Colocou as m�os
nos ombros dele, elevando-se de novo no colo dele. - Onde � que est�vamos?
- Acho que est�vamos ali.
- E agora estamos aqui. E v� s�! H� um sofazinho bem confort�vel atr�s de ti. Quanto tempo demoras a p�r-me nua em cima dele?
- Vamos descobrir.
Ele deixou-se cair para tr�s, puxando-a para si no �ltimo instante, e ela caiu, rindo, debaixo dele. Ainda tinha as pernas presas na cintura dele ao puxar-lhe a
camisa para fora das cal�as, deslizando as unhas pelas suas costas.
- Espero que esta noite toques no bot�o principal, uma vez que sou uma virgem de sexo de noivado.
- Vou fazer os poss�veis por abrir caminho at� esse bot�o. - Desabotoou a camisa dela, deslizando os l�bios pela abertura at� ao bot�o das cal�as de ganga. - E ao
subir, toco em todos os mais pequenos tamb�m.
- Admiro um homem ambicioso.
Sentiu a l�ngua dele percorrer o seu corpo, os dentes arranhar a carne exposta enquanto lhe puxava as cal�as de ganga pelas pernas.
Ia casar com aquele homem. Dava para imaginar? Ignatious Burke, de olhos enormes e tristes e m�os fortes. Um homem cheio de paci�ncia e ansiedades e coragem. E honra.
Deslizou a m�o pelo cabelo dele. N�o fizera nada na vida para o merecer. E de certa forma, isso tornava tudo ainda mais maravilhoso.
Com os dentes, ele mordiscava-lhe a parte interna da coxa, ao que o corpo dela estremecia, impedindo-a de articular qualquer pensamento.
Subia e descia percorrendo-a, em cima dela, � sua volta, derramando a certeza de que agora ela lhe pertencia. Para acarinhar e proteger, para
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apoiar e confiar. O amor por ela era como um sol dentro dele, que brilhava forte e branco.
Voltou a encontrar os l�bios dela, mergulhando neles, em todo aquele calor e pot�ncia.
Num recanto do seu c�rebro, ouvia os c�es a ladrar, uma cacofonia fren�tica que cortava o frenesim sexual. Ao levantar a cabe�a para dar aten��o ao ru�do, Meg j�
o empurrava com o mesmo intuito.
- Passa-se alguma coisa com os c�es.
Correu para fora do quarto ao mesmo tempo que ele rolava para fora do sof�. - Meg! Espera um minuto. Espera a� um minuto.
Ouviu algo, alguma coisa que n�o era um c�o, um ru�do perto da casa, e correu atr�s dela.
29.
Ela levava uma espingarda e, de um empurr�o, abria a porta das traseiras, quando ele a apanhou. Deu um salto e fechou a porta.
- Que raio � que est�s a fazer?
- A proteger os meus c�es. V�o dar cabo deles, l� fora. Sai da frente, Burke, sei o que estou a fazer.
Demasiado enervada para cortesias, bateu com a coronha da espingarda no est�mago dele e ficou furiosa e espantada, quando em vez de se contorcer, ele se manteve
firme e a empurrou para tr�s.
- D�-me a arma.
- Tens a tua. Os c�es s�o meus. - Um rugido pulsante e uma pancada seca sobrep�s-se ao ladrar feroz. - Vai matar os meus c�es!
- N�o vai nada. - N�o sabia do que estavam a falar, mas pelo ru�do, era maior do que um c�o. Acendeu as luzes exteriores e pegou na arma que pousara no balc�o da
cozinha dela, tirando-a do coldre. - Fica aqui.
Mais tarde, iria perguntar-se porque � que achara que ela o ia ouvir, dar-lhe raz�o. Ficar em seguran�a. Mas ao abrir a porta, de arma erguida, em posi��o de combate,
ela saiu disparada, fugindo por baixo do bra�o dele, esgueirando o corpo e o cano da espingarda na direc��o dos sons de uma vil batalha.
Ele sentiu-se assolado por um instante de espanto, num misto de receio e respeito terr�veis. O urso era enorme, uma grande massa negra em contraste com a alvura
da neve. Os dentes brilhavam afiados, mort�feros debaixo da luz, as mand�bulas abertas, rugindo feroz para os c�es.
Eles investiram, com golpes curtos e experimentais, mordendo, rosnando. Ele viu sangue derramado no ch�o, uma po�a que ensopava o ch�o
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h�mido. O cheiro acre, o odor pungente do animal selvagem, empestava o ar.
- Rock, Buli! Aqui! Venham agora!
Estavam longe de mais, foi a �nica coisa que Nate pensou, ao ouvir Meg gritar. Longe de mais para a ouvir, mesmo a ela. J� haviam escolhido entre lutar ou fugir,
cobertos pelo brilho do sangue.
O urso caiu nas quatro patas, o dorso arqueado, o som que emitia n�o se parecia nada com os grunhidos que Hollywood atribu�a � sua esp�cie. Era muito mais. Mais
selv�tico, mais arrepiante. Mais real.
Foi � carga, as garras afiadas no ar, lan�ando um dos c�es num trambolh�o pela neve, num latido agudo. Levantou-se nas patas traseiras. Era mais alto que um homem,
cheio como a Lua. Tinha sangue nas presas e os olhos enraivecidos pela luta.
Ele disparou quando o urso atacou, disparou novamente quando ele se p�s nas quatro patas na direc��o deles. Ouviu a explos�o da espingarda de Meg, uma, outra vez,
atrav�s do seu pr�prio fogo. O urso gritou, a ele pareceu-lhe um grito, enquanto o sangue corria, ao fundir-se com o p�lo.
Caiu a menos de um metro de onde estavam, abalando o ch�o sob os p�s de Nate.
Meg colocou a espingarda nas m�os de Nate e saltou, para acorrer ao c�o, que coxeava na sua direc��o. - Est� tudo bem, est�s bem. Deixa-me ver. S� te deu um safan�o,
n�o foi? Seu c�o est�pido, est�pido. N�o te disse que viesses ter comigo?
Nate ficou im�vel alguns instantes, certificando-se de que o urso estava mesmo abatido, enquanto Rock cheirava o corpo, o nariz no sangue.
De seguida, foi at� onde Meg estava ajoelhada, envergando apenas as cuecas e uma camisa aberta. - Vai para dentro, Meg.
- Nada de especial. - Disse ela, apaparicando Buli. - Eu trato de ti. Isco. A casa foi o isco, percebes? Carne ensanguentada. - Os seus olhos estavam duros como
pedras, ao gesticular para os peda�os de carne mastigada junto �s traseiras da casa. - Carne pendurada, carne fresca na casa, provavelmente na orla do bosque. Para
atrair o urso. Patife. Foi isso que o patife fez.
- Vai l� para dentro, Meg. Est�s fria. - Levantou-a e sentiu como tremia. - Pega nisto. Eu vou buscar o c�o.
Ela agarrou nas armas e assobiou para Rock. L� dentro, pousou-as no balc�o e foi buscar um cobertor e o estojo de primeiros socorros. - Deita-o aqui, - gritou ela,
ao ver Nate trazer o c�o ao colo. - Deita-te com ele, mant�m-no sossegado. Ele n�o vai gostar nada disto.
Ele acedeu, segurando a cabe�a do c�o, em sil�ncio, enquanto ela limpava as feridas.
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- N�o s�o profundas, n�o muito. Deve deixar cicatriz. N�o faz mal, s�o feridas de guerra. Rock, senta! - Exclamou ela, percebendo que este tentava furar debaixo
do seu bra�o, para cheirar o companheiro.
- Vou dar-lhe duas injec��es aqui. - Pegou na seringa, deu-lhe uma pancada leve e, com a m�o firme, premiu para expelir o fluxo. - Segura-o bem.
- Pod�amos lev�-lo ao Ken.
- N�o � assim t�o grave. N�o pode fazer muito mais do que eu aqui. Agora dou-lhe isto, deixo-o meio zonzo para o conseguir coser nos golpes mais profundos. Depois
damos-lhe um antibi�tico, tapamo-lo e deixamos que durma at� melhorar.
Agarrou num peda�o de p�lo e espetou a agulha. Buli gemeu e revirou os olhos sofridos para Nate. - V�, descontrai, grand�o, daqui a nada j� te vais sentir melhor.
Afagava o c�o enquanto Meg come�ava a suturar. - Tens sempre isto tudo em casa?
- Aqui nos confins, nunca se sabe. �s capaz de cortar uma perna ou qualquer coisa, a cortar lenha, e se n�o houver electricidade, ou as estradas estiverem bloqueadas,
o que � que fazes?
Enquanto progredia, as suas sobrancelhas permaneciam unidas, a voz calma e decidida. - N�o posso depender de um m�dico para tudo e mais alguma coisa. Pronto, querido,
est� quase. Vais ficar deitado e quentinho. Tenho aqui esta salva. Vai ajudar a curar e a que ele n�o lamba, porque sabe muito mal. Deixa-me lig�-lo. Amanh� levo-o,
para observa��o, mas n�o me parece muito mau.
Quando o c�o adormeceu debaixo do cobertor com Rock aninhado ao lado dele, ela pegou na garrafa de vinho e bebeu. Agora, as suas m�os tremiam com viol�ncia. - Jesus
Cristo.
Nate tirou-lhe a garrafa e pousou-a ao lado com cuidado. Depois, agarrou-a pelos cotovelos e elevou-a a tr�s cent�metros do ch�o. - Nunca, mas nunca mais voltes
a fazer uma coisa daquelas.
- Hei!
- Olha para mim. Ouve o que te digo.
Ela mal tinha escolha, j� que a voz dele vibrava, e o seu rosto, r�gido de f�ria, lhe absorvia o olhar.
- Nunca mais voltes a correr um risco daqueles.
- Tinha de...
- N�o tinhas, n�o. Eu estava aqui. N�o era preciso sa�res de casa a correr, meia despida, para abater um grizzly.
- N�o era um grizzly, - ripostou ela. - Era um urso preto. Voltou a pous�-la no ch�o. - Bolas, Meg.
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- Sei cuidar de mim e do que � meu.
Ele deu meia-volta, o rosto repleto de raiva, que a levou a recuar um passo. N�o era o amante paciente; n�o era o pol�cia de olhar frio. Era um homem furioso que
fervia num caldeir�o t�o quente que a podia queimar viva.
- Agora �s minha, por isso, habitua-te.
- N�o vou ficar a assistir, inutilmente, s� porque...
- Inutilmente, o tanas. Quem � que quer que sejas in�til? H� uma grande diferen�a entre seres in�til e desatares a correr porta fora, de roupa interior, quando n�o
sabes o que te espera. H� uma grande diferen�a, Meg, quando tentas despachar-me enfiando-me a coronha de uma espingarda no est�mago.
- Eu n�o... foi? - Com estranheza, foi o g�nio explosivo dele que domou o dela, conseguindo geri-lo, permitindo-lhe voltar a pensar. - Desculpa, desculpa. Fiz mal.
Levou as m�os ao rosto, respirando fundo algumas vezes at� que o medo, a raiva, o rescaldo tr�mulo de ambos chegasse ao fim.
- Muitas outras coisas tamb�m foram erradas, mas limitei-me a reagir. Eu... - Estendeu a m�o, a palma para fora em sinal de paz, e voltou a pegar no copo de vinho.
Bebia lentamente, para amaciar a garganta �spera.
- Os meus c�es s�o os meus companheiros. Compreendes que n�o podes hesitar quando o teu parceiro est� com problemas. E eu conhecia a situa��o. N�o havia tempo para
explicar. E n�o tive a oportunidade de te dizer que senti... um misto de coisas boas e diferentes, ao saber que estavas a meu lado, l� fora. Mesmo que a minha reac��o
tivesse sugerido o contr�rio, sabia que estavas ali, e isso era importante.
Engrossou a voz ao mesmo tempo que levou os dedos da m�o livre aos olhos, at� conseguir controlar-se. - Se quiseres ficar chateado, n�o te levo a mal. Mas talvez
devas esperar para gritar comigo quando estiver mais vestida. Est� frio.
- Acho que j� acabei. - Avan�ou na direc��o dela, puxou-a para os seus bra�os e segurou-a com f�ria.
- Vejam s�. Estou a tremer. - Afundava-se nele. - N�o estaria, se n�o estivesses aqui para me abra�ar.
- Vamos l� vestir-te. - Ele manteve um bra�o � volta dela at� chegarem � sala de estar, depois soltou-a para deitar mais lenha na fogueira.
- Sinto uma necessidade de cuidar de ti, - disse ele baixinho. - Mas n�o te vou sufocar com isso.
- Eu sei. E eu tenho uma necessidade de cuidar de mim, mas vou tentar n�o te empurrar.
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- Ok. Agora, explica l� isso do isco.
- Os ursos gostam de comer. � por isso que enterramos ou selamos os restos quando vamos acampar, que levamos a comida em recipientes selados e os penduramos, longe
do acampamento. � por isso que arranjamos uma caixa para a comida e a penduramos em estacas, e a escada que usamos para a ir buscar s� desce quando l� vamos.
Puxou as cal�as e passou a m�o pelo cabelo. - Quando os ursos apanham o cheiro de algo para comer, aparecem para petiscar, e conseguem subir escadas. Ias ficar surpreendido
com o que consegue subir uma escada. At� costumam vaguear pela vila, uma zona habitada, para remexer nas latas do lixo, na comida dos p�ssaros, e coisas parecidas.
� poss�vel que um tente entrar em tua casa, s� para ver se h� alguma coisa mais interessante para comer l� dentro. A maior parte das vezes, consegues enxot�-los.
Mas outras, n�o d�.
Ela abotoava a camisa, aproximando-se do lume. - H� carne pelo ch�o l� fora, e aposto que vamos encontrar restos do pl�stico onde estava guardada. Algu�m a p�s l�,
na esperan�a de atrair um urso c� a casa, e podes ter a certeza que este tipo de isco funciona nesta altura do ano. Os ursos est�o a come�ar a acordar. Est�o cheios
de fome.
- Algu�m p�s o isco, querendo que ca�sses numa armadilha.
- N�o, eu n�o. Tu. - Aquilo p�s-lhe o est�mago �s voltas. - Pensa s�. Tiveram de colocar o isco hoje, antes de eu voltar. Se tivessem tentado quando est�vamos c�,
ter�amos ouvido os c�es a ladrar. Digamos que estavas aqui sozinho ontem � noite, o que � que terias feito se ouvisses os c�es a ladrar como agora?
- Ia l� fora descobrir o motivo, mas ia armado.
- Com o rev�lver, - disse ela, acenando. - Talvez consigas abater um urso com um rev�lver, ou afugent�-lo, se tiveres sorte e tiveres hip�tese de disparar � vontade
antes que ele to arranque das m�os e o coma. Essencialmente, s� o vais irritar. E um urso que est� atarefado a comer ou a lutar com dois huskies? Teria passado pelos
meus c�es com toda a facilidade, Nate. � prov�vel que o atacassem antes de ele os fazer em fanicos. E se ficasses l� fora sozinho com essa nove mil�metros, � prov�vel
que tamb�m ficasses em fanicos. � prov�vel. Um urso ferido, enraivecido, teria atravessado a porta atr�s de ti. Era com isso que estavam a contar.
- Se foi esse o caso, devo estar a deixar algu�m muito nervoso.
- � isso que os pol�cias fazem, n�o �? - Passou-lhe a m�o pelo joelho, quando ele se sentou a seu lado. - Fosse quem fosse, queria-te morto, ou muito ferido. E n�o
se importava de sacrificar os meus c�es para isso.
- Ou a ti, se as coisas corressem de outra forma.
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- Ou a mim. Bom, agora irritou-me a s�rio. - Bateu no joelho dele antes de se levantar, para caminhar. - Matar o meu pai, isso magoou-me. Mas ele tinha desaparecido
h� muito tempo, e consegui ultrapassar. Persegui-lo, tranc�-lo numa cela, teria sido suficiente. Mas ningu�m vem atr�s dos meus c�es.
Virou-se e viu que o meio sorriso voltara. - Ou atr�s do tipo com quem vou casar, em especial antes de ele me trazer um anel caro como tudo. Ainda est�s zangado
comigo?
- Nem por isso. Vou ficar para sempre com aquela imagem tua, l� fora, de cuecas vermelhas, a camisa vermelha aberta, batida pelo vento, com uma espingarda na m�o.
Mas passados os primeiros instantes, torna-se er�tica, em vez de aterradora.
- Amo-te mesmo. � mesmo tramado. Ok. - Esfregava as m�os com for�a pela cara. - N�o podemos deixar ali a carca�a do bicho. Vai trazer toda a esp�cie de visitas interessadas,
e os c�es v�o rebolar em cima dela, de manh�. Vou ligar a Jacob, para me ajudar a livrar dela, e talvez at� ver se consegue descobrir vest�gios de quem deixou o
isco.
Ela viu o rosto dele, e deu um passo em frente.
- Estou a ver a tua cabe�a a dar voltas. Jacob esteve c� hoje com carne de urso. Ele n�o ia fazer isto, Nate. Podia dar-te v�rios motivos espec�ficos, al�m do mais
importante de todos: ele � um bom homem e adora-me. Em primeiro lugar, nunca ia p�r os meus c�es em perigo. Adora-os e respeita-os muito. Segundo, sabia que eu voltava
hoje � noite para casa. Comuniquei com ele na base, depois de ter arranjado o motor. Terceiro, se ele te quisesse matar, bastava espetar-te uma faca no cora��o e
enterrar-te algures, onde nunca te encontrassem. Simples, limpo e directo. Isto? Parece-me matreiro e cobarde, e nem um pouco desesperado.
- Concordo contigo. Telefona-lhe.
Na manh� seguinte, no seu gabinete, Nate estudava as provas recolhidas mais recentes. Vest�gios de pl�stico branco, que parecia um material usado na Loja da Esquina
para levar os produtos, peda�os de carne que tinha selado num saco de provas.
Um brinco de prata.
J� o tinha visto antes? Aquele brinco? Havia algo nos recantos da sua mem�ria, um dedo que lhe cutucava o c�rebro, tentando acord�-lo.
Um �nico brinco de prata. Os homens usavam-nos mais agora do que nunca. As modas mudavam e evolu�am, e at� um executivo n�o seria criticado por usar um brinco.
Mas h� dezasseis anos? N�o era comum, nada vulgar que um homem o usasse. Era mais coisa de hippies ou de m�sicos, artistas, motoqueiros e
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rebeldes. E n�o se tratava de um garanh�ozinho discreto, nem de um desportista valente, n�o com aquela cruz pendurada
Era mais uma tomada de posi��o.
N�o era de Galloway. Verificara em fotografias e Galloway morrera com uma argola na orelha. Ao que pudera apurar, atrav�s de uma lupa, a outra orelha de Galloway
n�o tinha qualquer furo.
Para ter a certeza, consultou o m�dico-legista.
Mas sabia que aquilo que tinha na m�o pertencia ao assassino.
Faltava a pe�a que fechava o brinco, que raio de nome � que aquilo tinha? Podia distinguir, no seu ecr� visual, a silhueta sem rosto, a inclinar-se para tr�s com
a picareta na m�o, e o pequeno brinco a cair, sem que desse conta. Descendo a picareta, devolvendo-a ao dono.
Teria l� ficado, a testemunhar a express�o chocada de Galloway, a ver o amigo cair desamparado pela parede gelada? Teria ficado a assistir, imp�vido e sereno, analisando?
Chocado tamb�m, ou satisfeito? Maravilhado ou abismado? N�o importava, pensava Nate. O trabalho estava feito.
Pegou na mochila, verificou-a? N�o adiantava deixar mantimentos ou dinheiro, se � que o dinheiro estava l�. Tinha de ser pr�tico. Tinha de sobreviver.
Quanto tempo deve ter levado a reparar que perdera o brinco? Era tarde de mais para voltar atr�s e verificar, era um pormenor demasiado insignificante para se preocupar.
Mas eram sempre os pormenores que constru�am o caso, e a solu��o.
- Nate?
Ainda com o brinco na m�o, carregou no intercomunicador. - Sim?
- Jacob est� aqui para falar consigo, - informou Peach.
- Mande-o entrar.
N�o se levantou, mas recostou-se na cadeira, ao mesmo tempo que Jacob entrava e fechava a porta atr�s de si. - Estava � sua espera de manh�.
- Quero dizer algumas coisas que n�o queria dizer ontem � noite, � frente de Meg.
Jacob envergava uma camisa de pele de gamo sobre os jeans desbotados, e um fino colar de contas ao pesco�o com uma pedra castanha polida. O cabelo cor de prata estava
apanhado atr�s num rabo-de-cavalo. Os l�bulos das orelhas expostos n�o ostentavam qualquer adorno.
- Sente-se, - convidou Nate, - e diga tudo.
- Prefiro falar de p�. Vai usar-me para p�r termo a isto, ou terei de fazer o que for preciso, sozinho. Mas isto vai acabar. - Avan�ou e, pela primeira vez desde
que se conheciam, Nate vislumbrou uma raiva evidente no rosto de Jacob.
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- Ela � minha filha. � minha h� muitos mais anos do que alguma vez foi de Pat. � a minha filha. O que quer que pense de mim, o que imaginar, tem de saber isso. Quero
participar nas buscas de quem foi o respons�vel de a p�r em perigo a noite passada, de uma forma ou de outra.
Nate balan�ou para a frente e para tr�s na cadeira. - Quer um distintivo?
Viu as m�os de Jacob fecharem-se em punhos, abrirem novamente, devagar, t�o devagar como a raiva que se ocultava naquela m�scara enigm�tica. - N�o. N�o me parece
que precise de nenhum distintivo. � muito pesado para mim.
- Ok, podemos manter a sua... participa��o n�o oficial. J� lhe parece bem?
- J�.
- Essas pessoas a quem andou a fazer perguntas, as que lhe contaram sobre o dinheiro? � poss�vel que tenham surgido rumores sobre isso em Lunacy?
- Mais que poss�vel. As pessoas falam, especialmente os brancos.
- E se esses rumores se espalharam, n�o seria rebuscado concluir, devido � sua liga��o a Galloway e a Meg, que me passou essa informa��o.
Jacob encolheu os ombros.
- Porque n�o impedi-lo de falar, antes que me contasse?
E agora, Jacob sorria. - J� vivi muitos anos e sou dif�cil de matar. Voc� n�o. O que aconteceu a noite passada foi um desleixo e uma estupidez. Porque n�o dar-lhe
logo um tiro na cabe�a, quando estivesse sozinho junto ao lago? Atava-lhe umas pedras para fazer peso e afundava-o. Era o que eu faria.
- Agrade�o a informa��o. Ele n�o usa uma abordagem directa. N�o, nem sequer com Galloway, - disse Nate, ao ver que Jacob perscrutava o quadro. - Foi um momento de
loucura, de cobi�a, de oportunidade. Talvez tudo em simult�neo. N�o foi planeado.
- N�o. - Pensativo, Jacob acenava. - H� formas mais f�ceis de matar um homem do que escalar a uma montanha.
- Um golpe de picareta, - prosseguiu Nate. - Um. Depois disso, ele n�o tem est�mago... para a retirar, para se ver livre do corpo. Seria demasiado directo, com bastante
envolvimento. Passou-se o mesmo com Max. Suic�dio encenado. Max era t�o respons�vel quanto ele, e pode encar�-lo dessa forma. O c�o? � s� um c�o, uma manobra de
divers�o, uma distrac��o, e uma estalada indirecta a Steven Wise. Ele n�o me vai enfrentar cara a cara.
Empurrou o brinco em cima da secret�ria. - Reconhece isto? Jacob franziu o sobrolho. - Um amuleto, um s�mbolo. N�o � nativo. N�s temos os nossos.
381
- Acho que o assassino o perdeu h� dezasseis anos. Est� h� muito esquecido. Mas vai lembrar-se dele, se o vir novamente. Eu j� o vi. Algures. - Nate pegou nele,
deixando a cruz balou�ar. - Algures.
Levava-o com ele. N�o era procedimento habitual, mas Nate guardava o brinco no bolso, enquanto tratava da rotina pela vila.
N�o contou a ningu�m o incidente em casa de Meg, e pediu-lhe e a Jacob para fazerem o mesmo. Um pequeno jogo com o assassino, pensou.
Na Primavera que despontava, enquanto os dias cresciam e o verde dominava o branco, foi tratar da sua miss�o, conversar com as pessoas da vila, ouvir os seus problemas
e as suas reclama��es.
Verificava os l�bulos das orelhas de todos os homens com quem contactava.
- Podem fechar, - disse-lhe Meg, numa noite.
- O qu�?
- Os furos nas orelhas, ou onde decidires perfurar-te. - Dan�ava com os dedos ao de leve sobre o p�nis dele.
- Por favor. - N�o conseguiu conter o tremor e f�-la rir. Delirante.
- Ouvi dizer que aumenta bastante o grau de... fric��o.
- Nem penses. O que queres dizer com fechar?
- Podem sarar. Se n�o os puseres durante muito tempo, ou se nunca mais usares nada, acabam por... - Emitiu um som abafado. - Fecham outra vez.
- Filho da m�e. Tens a certeza?
- Dantes tinha quatro aqui. - Tocou na orelha esquerda. - Apeteceu-me e furei um terceiro e um quarto.
- Tu? Sozinha?
- Claro. Sou alguma mariquinhas? - Rolou sobre ele e, como estava nua, a mente dele divagou da conversa, at� que se concentrou de novo.
- Durante umas semanas usei os quatro, mas come�ou a dar muitos problemas, por isso dispensei os extra. E acabaram por fechar. - Estendeu o bra�o para o outro lado,
para acender a luz, e inclinou a cabe�a. - V�s?
- Podias ter-me contado isso antes de andar a ver as orelhas da vila inteira, a tomar notas de quem tinha piercings.
Esfregou a orelha dele. - Eras capaz de ficar giro com um.
- N�o.
- Eu podia faz�-lo.
- J� disse que n�o. Nem na orelha, nem em mais lado nenhum.
- Desmancha-prazeres.
- Pois, sou mesmo. Agora preciso de pensar bem nisto, uma vez que a minha pequena lista deixou de ser vi�vel.
382
Ela sentou-se de pernas afastadas sobre ele, para o possuir. - Pensas depois.
Apareceu n'A Estalagem e avistou Hopp e Ed, reunidos a comer uma salada de b�falo. Parou junto � mesa deles. - Posso interromp�-los um instante?
- Claro, sente-se. - Hopp arranjou espa�o para ele. - Estamos a rever o que podemos chamar de quest�es fiduci�rias. Fico com uma dor de cabe�a e aqui o Ed fica todo
animado. Estamos a tentar encontrar uma forma de esticar o or�amento para construir uma biblioteca. Cort�vamos uma parte do proposto para os correios, pelo menos
por agora. O que � que acha?
- Parece-me boa ideia.
- Estamos de acordo. - Ed limpava o l�bio a um guardanapo. - Mas precisamos de mais flexibilidade no or�amento para que d�. - Piscou o olho a Hopp. - Sei que n�o
era isto que queria ouvir.
- Envolvemos as pessoas, conseguimos donativos para os materiais, para a m�o-de-obra. Apelamos � doa��o de livros, ou pedimos com empenho. As pessoas unem-se, se
as entusiasmarmos com um determinado projecto.
- Podem contar comigo, - afirmou Nate. - Se e quando precisarem. Entretanto, tamb�m tenho uma pergunta do tipo fiduci�rio. Ia dar-lhe uma palavrinha, Ed. Uma pergunta
sobre o banco, de h� alguns anos, por isso apelo � sua mem�ria.
N�o tinha furo na orelha, pensava Nate, ao ver Ed acenar.
- No que toca ao banco, a minha mem�ria � longa. Diga l�.
- Tem a ver com Galloway.
- Pat? - Baixou a voz, olhando em redor do restaurante. - Talvez n�o dev�ssemos discutir isto aqui. Charlene.
- N�o demoro. Tenho uma fonte que alega que Galloway ganhou uma boa maquia a jogar p�quer, quando estava em Anchorage.
- Pat adorava jogar p�quer, - comentou Hopp.
- � verdade. Joguei com ele mais de uma vez. Mas fazia pequenas apostas, - acrescentou Ed. - N�o consigo imagin�-lo a ganhar � grande.
- A fonte diz o contr�rio. Pergunto-me, ser� que enviou dinheiro para casa, para a conta que tinha aqui na vila, antes de come�ar aquela subida?
- Que me lembre, n�o. Nem sequer um cheque. Naquele tempo ainda �ramos um banco pequeno, como j� lhe tinha contado. - Franziu os olhos, pensativo. - Apesar de na
altura em que Pat se foi embora, j� termos constru�do um cofre a s�rio e termos dois funcion�rios em part-time. Mas eu estava envolvido em quase todas as transac��es.
383
A esfregar o queixo, recostou-se. - Pat n�o queria saber das economias. N�o era do g�nero de ir ao banco fazer dep�sitos, nem levantar dinheiro.
- E quando sa�a da vila para ir procurar trabalho? Costumava enviar dinheiro?
- Bom, �s vezes, sim. Lembro-me de Charlene ir ao banco uma vez, at� duas vezes por semana, durante mais de dois meses, para ver se ele tinha feito algum dep�sito
directo, depois de partir, naquela �poca. Se fosse uma quantia muito elevada, o que duvido bastante, � prov�vel que ele a tenha depositado no banco de l�, ou ent�o
enfiou-a numa caixa de sapatos.
- Eu estou com Ed na segunda hip�tese, - disse Hopp. - Pat nunca pensava duas vezes no dinheiro.
- As pessoas com origens abastadas normalmente s�o assim. - Ed encolheu os ombros. - E depois temos n�s, - disse ele a piscar o olho a Hopp, - que temos de andar
a pedinchar, se quisermos uma biblioteca para a vila.
- Vou deixar-vos retomar esse assunto. - Nate deslizou para fora da mesa. - Obrigado.
- Ele devia investir tempo nos assuntos da vila. - Ed abanava a cabe�a enquanto pegava no caf�.
- Deve achar que este � um deles.
- Precisamos do Primeiro de Maio, Hopp, se quisermos a biblioteca.
- Sem d�vida. Desde que ele mantenha a conversa discreta. Vai ter de remexer em tudo, at� perceber que foi Max quem matou Pat. Ignatious teimoso, - disse ela. -
� assim que tenho pensado nele ultimamente. O rapaz n�o desiste. � uma boa qualidade para um comandante da pol�cia.
Jacob tinha raz�o: algumas pessoas n�o falam com pol�cias. Mesmo com Jacob, Nate n�o fora capaz de espremer nem uma resposta, naquela ida a Anchorage.
N�o que tivesse perdido a viagem.
N�o tinha ido falar com Coben. Devia t�-lo feito, admitia, enquanto Jacob deslizava pelo lago. Devia ter ido entregar o brinco, mas n�o o fez.
Queria ganhar mais tempo. Um pouco mais de tempo para juntar as pe�as.
Descontraiu os ombros quando o avi�o bateu na �gua. - Obrigado por ter ido comigo. Quer que atraque o avi�o? Vai entrar?
- Sabe como se faz?
- Para mim, � como um barco com asas. Sei como atracar um barco � doca.
384
Jacob acenou na direc��o de Meg, que caminhava para ir ao encontro deles. - Tem outros assuntos a tratar.
- Pois tenho. Ent�o, at� logo.
Saiu para a doca flutuante, rezando para n�o perder o equil�brio, e fazer a figura triste de cair ao lago. Mas saiu em seguran�a para uma das extremidades da doca,
assim que Meg pisou na outra.
- Onde � que ele vai? - Indagou ela, ao ver Jacob afastar-se.
- Disse que tinha outros assuntos a tratar. - Estendeu o bra�o, � procura da m�o dela. - Voltaste cedo.
- N�o, tu � que chegaste tarde. S�o quase oito horas.
Ele ergueu o olhar para o c�u, ainda com o brilho do meio-dia. - Ainda n�o me habituei. Mulher, onde est� o meu jantar?
- Ah, ah, ah. Podes atirar uns hamb�rgueres de alce para o grelhador.
- Hamb�rgueres de alce, os meus preferidos.
- Soubeste mais alguma coisa em Anchorage?
- N�o, pelo menos n�o sobre a investiga��o. E como foi o teu dia?
- Na verdade, tamb�m passei a correr por Anchorage. E j� que estava l�, acabei por entrar numa loja que, por acaso, tinha vestidos de noiva.
- A s�rio?
- P�ra com esse sorriso. Ainda mantenho a inten��o de n�o querer nada grande nem vistoso. S� uma festa louca aqui em casa. Mas decidi que quero um vestido de arrasar.
Daqueles que te vai fazer saltar os olhos das �rbitas.
- Encontraste-o?
- Isso � para eu saber e tu tentares descobrir. - Subiu para o alpendre � frente dele e deu-lhe um beijo sonoro. - Gosto do meu hamb�rguer de alce bem passado e
do p�o levemente torrado.
- Registado. Mas antes de jantarmos, hoje tamb�m fiz umas compras para o casamento.
- Ai, sim?
- Sim. - Tirou a caixa do anel do bolso. - Adivinha o que � isto.
- � meu. D�-me.
Num s� gesto, abriu a tampa e teve o prazer de ver os olhos dela saltar, ao vislumbrar o diamante lapidado solit�rio, ladeado por brilhantes numa alian�a de platina.
- M�e do C�u! - Tirou-o da caixa, segurou-o no ar e saltou do alpendre abaixo. Come�ou a dan�ar � volta do p�tio, emitindo urros que ele encarou como sendo de aprova��o.
- Quer dizer que gostas?
- Cintilante! - Regressou para junto dele ao ritmo de gargalhadas
385
girat�rias. - Isto, Comandante Burke, � um anel. Quanto � que tiveste de empenhar para o comprar?
- Bolas, Meg.
Ela continuava a rir, como doida. - Eu sei, forreta. E n�o me importo mesmo nada. � lindo de morrer, Nate, de cair para o lado. � est�pido, extravagante, por isso
� perfeito. Absolutamente perfeito.
Ela segurou-o bem � frente, e depois deixou-o cair na palma da m�o dele, aberta. - Ok, podes p�r-mo, e despacha-te.
- Desculpa, mas podemos dar alguma dignidade a este momento?
- Acho que j� pass�mos essa fase h� algum tempo. - Enla�ava os dedos. - V� l�. Desiste.
- Ainda bem que n�o dei cabo da cabe�a a tentar inventar algo po�tico para dizer, quando to desse. - Colocou-o no dedo dela, onde brilhou intensamente. - Tem cuidado
para n�o cegares com o brilho desta coisa.
- Quando � que caio na real?
- Perd�o?
- Cada vez estou mais apaixonada por ti. Quando � que vou acordar e cair na real de vez? - Emoldurou-lhe o rosto de uma forma que sempre lhe fizera o cora��o saltar
no peito. - N�o sei se sou perfeita para ti, Nate, mas tenho a certeza absoluta que tu �s para mim.
Ele pegou na m�o que ostentava o anel e beijou-a. - Se e quando cairmos na real, vamos faz�-lo juntos. Vamos l� tratar dos hamb�rgueres de alce.
30.
- O que � isto?
Meg olhava para a argola de chaves na m�o de Nate, franzindo o sobrolho de forma deliberada. - Parecem chaves.
- Porque � que precisas de tantas chaves?
- Porque h� muitas fechaduras? � algum concurso de charadas? - Tilintava-as na palma da m�o, sem que ela deixasse de lhe lan�ar aquele sorriso solarengo e inocente.
- Meg, tu quase nunca trancas as portas. Porque � que agora est�s preocupada com as chaves?
- Bom... H� alturas em que uma pessoa tem de entrar num s�tio e, hei, esse s�tio est� trancado. Nessa altura � que precisamos de uma chave.
- E esse s�tio que, hei, est� trancado, por acaso trata-se da propriedade de algu�m. Estarei correcto?
- Tecnicamente. Mas nenhum homem � uma ilha, e � s� preciso uma aldeia, e assim por diante. No universo Zen, somos todos unos.
386
- Ent�o, estas s�o chaves Zen?
- Exactamente. Devolve-mas.
- N�o me parece. - Ele fechou-as no punho cerrado. - Tens de ver, mesmo no universo Zen, detestava ter de prender a minha mulher por invas�o de propriedade privada.
- Ainda n�o sou tua mulher, amigo. Pediste um mandado de busca para ficares com essas?
- Estavam � vista de qualquer um. N�o foi preciso nenhum mandado.
- Gestapo.
- Delinquente. - Encaixou o queixo dela na m�o que tinha livre e beijou-a. Abrindo a porta traseira do todo-o-terreno, chamou os c�es. - Vamos, rapazes. Vamos l�
dar uma volta.
Agora, ela recusava-se a deixar os c�es sozinhos em casa. Iam com ela, a casa de Jacob, ou quando o trabalho o impossibilitava, ficavam no canil d'A Estalagem.
Ajudou Buli, ainda em recupera��o, a saltar para o carro.
- Bons voos, - disse a Meg.
- Pois, pois.
Com as m�os enfiadas nos bolsos, caminhou na direc��o do avi�o, e depois virou-se e voltou atr�s. - Sabes, eu consigo mais chaves. Tenho os meus meios.
- Claro que tens, - murmurou Nate.
Ficou � espera, como era seu h�bito, que ela levantasse voo. Gostava de a ver deslizar pela �gua, subir aos ares e pairar, o rumor dos seus motores a quebrar o sil�ncio.
Ao faz�-lo, n�o pensava em mais nada sen�o nela, neles, na vida que estavam a construir.
Ela j� come�ara a dedicar-se, descobriu ele depois de a neve derreter, a um par de canteiros de flores que enfeitavam o alpendre, um de cada lado. Falava de columbinas
e tr�lios, e da urina de lobo que borrifara para as proteger dos alces.
Os delf�nios, prometera, iam chegar aos tr�s metros de altura nos longos dias de Ver�o.
Imaginem s�, pensava ele. Imaginem Meg Galloway, piloto do mato, ca�adora de ursos, viciada em entrada ilegal em propriedade privada, a cuidar de um jardim. Alegara
que as suas d�lias eram do tamanho das jantes de um carro.
Ele queria v�-las. Queria sentar-se com ela no alpendre, numa noite infind�vel de Ver�o, com o Sol a dominar os c�us e as flores dela espalhadas pela frente da casa.
Era simples, pensava. A vida deles podia ser feita de milhares de momentos simples. E, ainda assim, n�o ser vulgar.
387
O avi�o dela descolara, bem alto, um passarinho vermelho num vasto c�u azul. E ele sorria, sentia o r�pido acelerar do seu cora��o quando ela mergulhava as asas,
para a direita e para a esquerda, saudando-o.
Quando o sil�ncio voltou a imperar, entrou no carro com os c�es. E pensou noutras coisas.
Talvez fosse tolice, dar tanta import�ncia a um brinco, um pequeno objecto de prata, e a uma alega��o sem fundamento de que Galloway ganhara uma quantia avultada
n�o especificada.
Mas ele j� tinha visto aquele brinco, e haveria de se lembrar. Mais cedo ou mais tarde, ia lembrar-se. E o dinheiro vinha quase sempre de m�os dadas com o homic�dio.
Continuou a pensar nisso enquanto conduzia a caminho da vila. Galloway tinha na sua posse dinheiro vivo e uma bela mulher. Motivos mais que provados para um assass�nio.
E num lugar daqueles, as mulheres eram luxos raros.
A comiss�o da parada j� tinha come�ado a pendurar os enfeites do Primeiro de Maio. N�o ostentavam o vermelho, branco e azul do costume nas paradas das pequenas vilas.
Porque haveria de ser costumeiro em Lunacy? Em vez disso, as faixas e as bandeirinhas eram de um arco-�ris de azuis, amarelos e verdes.
Viu uma �guia empoleirada no meio delas, como se lhe concedesse a sua aprova��o.
Ao longo da rua principal, as pessoas enfeitavam as casas e as lojas para receber a Primavera. Vasos com cestos de amores-perfeitos e couve escocesa - j� aprendera
que ambas se d�o bem com o frio - j� come�avam a despontar. Os alpendres e as persianas ostentavam camadas de tinta fresca. Motorizadas e scooters substitu�am os
snowmobiles.
As crian�as come�avam a ir para a escola de bicicleta, e ele via mais Doe Martens e Timberlands do que botas de neve.
Ainda assim, as montanhas que coroavam o cintilar primaveril, que se elevavam num c�u que emanava luz catorze horas por dia, mantinham-se fi�is ao Inverno at� �
�ltima hora.
Nate estacionou, e levou os c�es at� ao canil. Eles bem lhe lan�aram olhares miser�veis, as caudas encolhidas entre as pernas, ao entrarem nas jaulas.
- Eu sei, eu sei, � uma chatice. - Acocorou-se e enfiou os dedos pela grade, para que os lambessem. - Deixem-me apanhar o mau da fita, que a vossa m�e vai-se deixar
de preocupa��es, e j� podem ficar em casa a brincar.
Ganiram ao v�-lo afastar-se, o que lhe deixou uma pontada de culpa.
388
Avan�ou pela recep��o e foi � procura de Charlene, no seu gabinete.
- Contratei tr�s universit�rios durante o Ver�o. - Deu uma pancadinha no computador. - Com tantas reservas, v�o ser precisos.
- Isso � bom.
- Os guias locais tamb�m costumam receber alguns. Isto vai estar cheio de universit�rios lindinhos at� Junho. - No seu olhar um brilho acompanhava as palavras, mas
para Nate, parecia ser mais de desafio do que de antecipa��o.
- V�o manter-nos a todos ocupados. Charlene... - Fechou a porta. - Vou pedir-lhe uma coisa, e sei que n�o vai gostar.
- Desde quando � que isso o impede de alguma coisa?
N�o havia como ser delicado, concluiu. - Quem foi a primeira pessoa com quem foi para a cama, depois de Galloway se ir embora?
- N�o costumo contar o que fa�o, Nate. Se alguma vez tivesse experimentado, saberia disso.
- N�o se trata de mexericos, Charlene, e t�o-pouco de um jogo. � importante para si saber quem matou Pat Galloway?
- Claro que sim. Faz ideia como tem sido dif�cil planear o funeral dele, sabendo que ele ainda est� naquela morgue, e sem saber quando � que o v�o trazer para casa?
De vez em quando, pergunto a Bing quando � que acha que a terra est� macia para se poder cavar. Para cavar a sepultura do meu Pat.
Arrancou dois len�os de papel da caixa em cima da secret�ria, e assoou-se.
- Quando a minha m�e enterrou o meu pai, - disse Nate, - andou a vaguear pela casa, como um fantasma, durante um m�s. Talvez at� mais tempo. Fez tudo o que tinha
a fazer, tal como voc�, mas eu n�o conseguia chegar at� ela. Ningu�m lhe podia tocar. Desapareceu para parte incerta. Nunca mais falei com ela.
Charlene pestanejava entre l�grimas, baixando os len�os. - Isso � muito triste.
- Voc� n�o fez isso. N�o deixou que tudo isto a transformasse num fantasma. Agora, estou a pedir a sua ajuda. Quem � que tomou alguma liberdade consigo, Charlene?
- Quem n�o o fez? Era jovem e agrad�vel de se ver. Devia ter-me visto naquela �poca.
Algo se agitava, ele tentou estender a m�o para a sossegar, quando ela explodiu.
- E estava sozinha! N�o sabia que ele tinha morrido. Se soubesse, n�o teria tanta pressa em... fiquei magoada e zangada, e quando os homens
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come�aram a rondar, porque � que n�o havia de aproveitar? De aproveitar bastante?
- N�o a culpo de nada.
- Primeiro, fui para a cama com John. - Com um trejeito do ombro, atirou o len�o para o cesto de pap�is cor-de-rosa. - Sabia que ele tinha um fraco por mim, e era
t�o querido. Atencioso, - disse ela, com melancolia. - Por isso, fui ter com ele. Mas n�o s�. Enchi as medidas. Desfiz cora��es e casamentos. E n�o me ralei nada.
Recomp�s-se e, por uma vez s�, parecia calma, quase pensativa. - Ningu�m matou Pat por minha causa. Se o fizeram, perderam o seu tempo. Nunca me importei com nenhum
deles. Nunca lhes dei nada que n�o tivesse pedido em troca. Ele n�o morreu por minha causa. Caso contr�rio, juro que n�o vou conseguir viver com isso.
- Ele n�o morreu por sua causa. - Caminhou � volta dela, passou por tr�s e pousou as m�os nos seus ombros, afagando-os ao de leve.
- Acredite que n�o.
Ela levantou a m�o e fechou-a sobre a dele. - Continuei � espera que ele voltasse. Que ele visse que n�o estava a chorar por ele, e que me quisesse de novo. Juro
por Deus, Nate, acho que continuei � espera at� ao dia em que foi l� a cima com a Meg. At� o encontrar, continuei � espera dele.
- Ele teria voltado. - Apertou a m�o, e ela abanou a cabe�a. - Acabamos por conhecer as v�timas, na minha profiss�o. Entramos no �ntimo delas e compreendemo-las
melhor, muitas vezes mais ainda do que as pessoas que conviveram com elas. Ele teria voltado.
- � a coisa mais simp�tica que j� me disseram, - retorquiu ela, passado um instante. - Especialmente vindo de algu�m que n�o est� a tentar saltar-me em cima.
Ele deu-lhe uma palmadinha nos ombros, e depois tirou o brinco do bolso. - Reconhece isto?
- Hmm. - Voltou a fungar, passando o dedo pelas pestanas para as secar. - � engra�ado, mas n�o sei, masculino. N�o faz o meu g�nero. Gosto deles mais vistosos.
- Pode ter sido de Pat?
- De Pat? N�o, ele nunca teve nada do g�nero. Nada de cruzes. N�o gostava nada de s�mbolos religiosos.
- J� o viu alguma vez?
- Acho que n�o. Se tivesse, acho que n�o me ia lembrar. N�o � nada de especial.
Ele decidiu come�ar por o mostrar, para ver as reac��es. Uma vez que Bing
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estava a tomar o pequeno-almo�o n'A Estalagem, Nate passou pela mesa dele e deixou o brinco pendurado nos dedos. - Perdeu isto?
Bing mal olhou para ele antes de fitar os olhos de Nate. - Da �ltima vez que lhe disse que perdi alguma coisa, s� tive chatices.
- Gosto de devolver as coisas aos seus leg�timos propriet�rios.
- N�o � meu.
- Sabe de quem possa ser?
- N�o perco muito tempo a olhar para as orelhas das pessoas. E n�o quero perder mais a olhar para a sua cara.
- Tamb�m tive muito prazer em v�-lo, Bing. - Guardou o brinco. Bing aparara a barba um cent�metro, reparou Nate, imaginando que seria o seu visual para quando estava
bom tempo.
- Fevereiro de 1988. N�o encontro ningu�m por aqui que me diga, com toda a certeza, que voc� esteve aqui o m�s todo. J� encontrei algu�m que acha que talvez n�o
estivesse.
- As pessoas deviam meter-se na sua vida, como eu.
- Max estava fora, e ouvi dizer que, naquela �poca, tinha um fraco por Carrie.
- N�o mais do que por qualquer outra mulher.
- Parece-me uma boa altura para ter feito algum avan�o. Sei que n�o ia desperdi�ar uma boa oportunidade.
- Ela n�o estava interessada, ent�o, para qu� perder o meu tempo? Merda. Era mais f�cil encontrar outra e pagar � hora. Talvez tenha ido a Anchorage nesse Inverno.
Havia uma prostituta chamada Kate com quem fiz algumas transac��es. Galloway tamb�m. Tinham assuntos pendentes.
- A Kate Rameira?
- Sim. J� morreu. Foi uma pena. - Encolheu os ombros enquanto comia. - Caiu para o lado de ataque card�aco, entre engates. Pelo menos, � o que dizem. - Debru�ou-se.
- N�o matei aquele c�o.
- � o que voc� diz, e parece-me mais preocupado com isso do que com os dois mortos.
- Os homens sabem melhor tomar conta de si do que um c�o velho e cego. Talvez estivesse na cidade naquele Inverno. Talvez tenha encontrado Galloway a passar a porta
girat�ria de Kate. Para mim, n�o quis dizer nada.
- Falou com ele?
- Tinha mais em que pensar. E ele tamb�m. Jogo de p�quer.
Nate arqueou as sobrancelhas, como se estivesse algo surpreendido, algo interessado. - N�o me diga? De repente, est� a lembrar-se de muitos pormenores.
391
- Voc� est� constantemente em cima de mim, n�o �? D�-me cabo do apetite, por isso, tive tempo para pensar no assunto.
- Participou na partida de p�quer?
- Fui � procura de uma rameira, n�o de jogo.
- Ele falou nos planos de escalar a Sem Nome?
- Ainda estava a apertar o cinto, por amor de Deus, e eu estava a preparar-me para abrir o meu. N�o convers�mos. Disse que estava com pressa, fizera uma pausa para
dar uma queca a Kate e que ia voltar. Kate falou sobre aquele s�tio estar cheio de lun�ticos, e que n�o se importava nada. O neg�cio ia bem. Depois, pass�mos � ac��o.
- Voltou a ver Galloway, depois de tratar dos seus assuntos?
- N�o me lembro de o voltar a ver. - Bing espetava a comida. - Talvez tenha ido ao bar, talvez n�o. Eu continuei, para ir falar com Ike Transky, um ca�ador que conhecia,
e tinha uma casa nos arredores de Skwenta; fiquei com ele l� uns dias a ca�ar, e tamb�m pesc�mos no gelo. Depois, voltei.
- Transky pode confirmar?
Os olhos de Bing endureceram como duas �gatas. - N�o preciso que ningu�m confirme o que digo. De qualquer forma, j� morreu. Em 96.
Que conveniente, pensava Nate, ao sair. As duas pessoas mencionadas como potenciais �libis estavam mortas ou desaparecidas. Ou podia inverter o prisma e encarar
de um outro ponto de vista.
Luvas roubadas, faca roubada, ambas deixadas ao lado de um c�o morto. Propriedade de um homem que vira e falara com Galloway.
N�o era preciso um grande esfor�o imaginar Galloway a voltar para o jogo, ou a fazer uma pausa para beber um copo com os amigos.
Adivinhem quem � que encontrei a caminho de uma queca com a Kate Rameira? O mundo � pequeno, pensava Nate. Pequeno e velho. Se Bing estava a dizer a verdade, era
poss�vel que o assassino estivesse preocupado que Galloway tivesse mencionado quem mais de Lunacy estava a jogar p�quer e a pagar a prostitutas.
Nate decidiu fazer algumas visitas, acompanhado da sua prova mais recente, a caminho da esquadra.
Nesse dia, mais tarde, mostrou-a a Otto.
O adjunto encolheu os ombros. - N�o me diz nada.
Entre ambos, havia-se imposto uma certa frieza, uma formalidade r�gida que Nate lamentava. Mas era inevit�vel.
- Sempre achei que a Cruz de Malta era mais militar do que religiosa. Otto nem sequer pestanejou. - Os fuzileiros, onde cumpri o servi�o, n�o usam brincos.
- Bom. - Tal como fizera em todas as visitas nesse dia, Nate voltou a guardar o brinco no bolso, e abotoou-o.
392
- Servi�o completo, - disse Nate, com �-vontade.
- Comandante, - disse Peach do balc�o, - recebemos uma chamada a comunicar que est� um urso na garagem de Ginny Mann, para os lados de Rancor. O marido saiu com
um grupo para ca�ar, - acrescentou Peach. - Est� sozinha em casa com o filho de dois anos.
- Diga-lhe que vamos a caminho. Otto?
Quando viraram no trilho esburacado a um quil�metro e meio da vila, Otto olhou de relance para Nate. - Espero bem que n�o me obrigue a conduzir como um doido, enquanto
voc� se debru�a da janela a disparar tiros de aviso para assustar o raio do urso.
- Vamos ver o que acontece. Que raio est� um urso a fazer numa garagem?
- N�o deve estar a arranjar o carburador. - Ao ver o ar divertido de Nate, Otto sorriu. Depois voltou a ficar s�rio, ao lembrar-se do que se interpunha entre ambos.
- Algu�m se esqueceu e deixou a porta aberta, quase de certeza. Talvez tivessem uma lata cheia de comida de c�o ou de p�ssaro. Ou o parvalh�o do urso foi ver se
encontrava alguma coisa interessante.
Ao pararem diante da cabana de dois andares com o anexo da garagem, Nate viu que a porta da garagem estava, de facto, aberta. N�o sabia se o urso era respons�vel
pela confus�o que saltava � vista l� de dentro, ou se os Mann se limitavam a despejar a tralha para ali, como se fosse a lixeira municipal.
Ginny abriu a porta da frente. O cabelo ruivo estava apanhado no alto da cabe�a, e a t�nica larga e as m�os manchadas de tinta. - Ele foi pelas traseiras. Tem andado
aos trambolh�es ali dentro h� coisa de vinte minutos. Pensava que se tinha ido embora, mas tive medo que tentasse entrar em casa.
- Fique a� dentro, Ginny, - ordenou Nate.
- Viu-o bem? - Indagou Otto.
- Assim que ele come�ou a fazer algazarra, vi-o bem aqui na frente. - Atr�s dela ouvia-se um ladrar feroz e o choro de um beb�. - Fechei o c�o c� dentro e estava
l� em cima a trabalhar no est�dio, quando o Roger desatou a ladrar. Acordou o beb�. Estou quase a dar em doida com o barulho. Urso pardo. N�o me parecia adulto,
mas j� � bem grandinho.
- Os ursos s�o curiosos, - comentou Otto, ao verificar as espingardas para avan�ar pela lateral da garagem. - Se for dos novos, provavelmente s� andava a bisbilhotar,
e assim que nos vir, foge num instante.
Pelas traseiras, Nate constatou que os Mann tinham vedado uma por��o de terrenos para plantar um jardim. Aparentemente, o urso tinha
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furado a veda��o, ao entrar ou ao sair, al�m de ter arrancado uma grade de pl�stico cheia de jornais e cat�logos de encomendas.
Nate analisou e depois gesticulou, ao avistar um vulto castanho junto das �rvores.
- L� vai ele.
- � melhor pregar-lhe um susto, obrig�-lo a fugir. Desencoraj�-lo de voltar. - Otto apontou a arma para o c�u, e disparou duas vezes. E Nate observava, algo divertido,
o urso a bambolear os quartos traseiros e a correr.
Ficou a v�-lo afastar-se ao lado de um homem que constava na sua lista de suspeitos.
- At� foi f�cil.
- � quase sempre.
- Mas nem sempre. Eu e Meg, uma destas noites, tivemos de abater um, em casa dela.
- Foi isso que apanhou o c�o dela? Ouvi dizer que o c�o tinha sido atacado.
- Pois. E tamb�m nos teria atacado, se n�o o tiv�ssemos matado primeiro. Algu�m deixou isco � volta da casa.
Otto franziu os olhos, at� quase desaparecerem numa nesga. - Que raio � que est� para a� a dizer?
- Estou a dizer que algu�m pendurou carne, crua e ensanguentada, em sacos de pl�stico finos, � volta da casa de Meg.
A boca de Otto estreitou, e depois ele afastou-se, dando v�rias passadas. Nate repousava a m�o na coronha da arma. - Est� a perguntar-me se fui eu? - Aproximou-se
dele, ficando a cent�metros do seu rosto. - Quer saber se eu faria algo t�o cobarde, t�o vil? Se faria algo que podia fazer duas pessoas em fanicos? Sendo uma delas
uma mulher?
Espetou o dedo no peito de Nate. Duas vezes. - At� aguento que ponha o meu nome na berlinda no que toca a Galloway, at� mesmo em rela��o a Max. Fiquei mortificado
por ter feito o mesmo em rela��o a Yukon, mas engoli. Mas raios me partam se admito isto. Fui fuzileiro. Sei como matar um homem, se precisar. Sei como faz�-lo depressa
e conhe�o muitos s�tios onde me podia livrar do corpo, onde ningu�m no mundo o ia encontrar.
- Foi isso mesmo que pensei. Por isso pergunto, Otto, porque conhece as pessoas daqui, quem desceria t�o baixo?
Ele estremeceu. A raiva ainda estava latente, percebia Nate. Tinha a espingarda na m�o, mas mesmo com mau g�nio, apontava-a para o ch�o. - N�o sei. Mas n�o merece
viver.
- O brinco que lhe mostrei pertence-lhe.
Nos olhos de Otto, o interesse derrotou a raiva. - Encontrou-o em casa de Meg?
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- N�o. Na gruta de Galloway. Aqui est� o que acho que devemos pensar: de quem � que Galloway gostava, ou em quem confiava, que aguentasse uma escalada no Inverno?
Quem � que ganhava alguma coisa com a morte dele? - Acrescentou, batendo no bolso. - Quem � que, naquela �poca, se considerava um Dur�o, e podia sair da cidade durante
umas semanas, sem que ningu�m comentasse?
- Deixa-me voltar ao caso?
- Sim. Vamos dizer � Ginny que a costa est� livre.
Foi dif�cil perceber quem ficou mais surpreendida, quando Meg passou pela vila para ir buscar os c�es. Se ela se Charlene, que foi apanhada com a boca na botija
a dar as sobras dos pratos aos c�es.
- N�o queria mandar isto para o lixo. Estes c�es odeiam ficar fechados.
- � s� at� o Buli estar completamente recuperado.
Ali ficaram de p�, numa sensa��o de estranheza, enquanto os c�es comiam.
- Sabes o que o atacou? - Perguntou Charlene, passados instantes.
- Um urso.
- C�us. Tem sorte em serem s� uns arranh�es. - Charlene acocorou-se e emitiu sons de beijos para Buli. - Pobre pequenino.
- Esque�o-me sempre que gostas de c�es. Nunca tiveste nenhum.
- J� tenho muita coisa por aqui para tomar conta. - Olhou em redor, ao mesmo tempo que o anel de Meg brilhou com a luz do Sol. - Tamb�m ouvi falar nisso.
Agarrou a m�o de Meg e puxou-a para debaixo do nariz, ao levantar-se. - A Joanna da cl�nica soube, contou � Rose e ela contou-me a mim. Podias ter sido tu a dar
a not�cia. Ele saiu-me uma bela pe�a, n�o achas?
- Sorte a minha.
- Sim, sorte a tua. - Charlene soltou a m�o de Meg. Ia afastar-se, mas estacou. - Sorte a dele, tamb�m.
Por instantes, Meg n�o disse nada. - Estou � espera do golpe.
- N�o h� golpe nenhum. Voc�s ficam bem juntos, melhor do que de outra maneira qualquer. Se queres casar com algu�m, � melhor faz�-lo com algu�m que fique bem contigo.
- Que tal com algu�m que te faz feliz?
- Foi isso que quis dizer.
- Ok. Ok, - repetiu Meg.
- Hum. Talvez te possa fazer uma festa. Uma esp�cie de festa de noivado.
Meg enfiou as m�os nos bolsos do blus�o de ganga. - N�o vamos
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esperar muito tempo. N�o me parece que seja preciso festa, se s� vamos ficar noivos � volta de um m�s.
- Bom. Como queiras.
- Charlene, - chamou Meg antes de se ir embora. - Talvez pudesses ajudar nos preparativos do casamento. - Observou o prazer, e a surpresa inundarem o rosto de Charlene.
- N�o quero nada vistoso, s� uma recep��o ao ar livre, l� em casa, mas queria uma festa. De arromba. �s muito boa a juntar esses dois elementos.
- Posso fazer isso. Mesmo que n�o queiras nada vistoso, precisas sempre de comida, muita bebida. E tem de ser bonito. Com flores e decora��es. Depois falamos sobre
isso.
- Est� bem.
- H�... h� uma coisa que tenho de fazer agora. Talvez possamos falar, sobre isso amanh�.
- Amanh� parece-me bem. Como eles acabaram de comer, os c�es podiam ficar aqui mais um bocado, enquanto vou buscar as encomendas, e assim.
- Ent�o, at� amanh�.
Charlene entrou apressada, antes que mudasse de ideias. Foi directamente ao quarto de John e bateu.
- Est� aberta.
Estava sentado � secret�ria min�scula, cheia de pap�is, e deixou-se ficar im�vel a v�-la entrar. - Charlene. Desculpa, estou a corrigir trabalhos. Tenho mesmo de
acabar isto.
- N�o v�s. - Encostou-se � porta fechada. - Por favor, n�o v�s.
- N�o posso ficar, por isso tenho de ir. J� entreguei a minha demiss�o. Estou a ajudar Hopp a encontrar um substituto.
- N�o h� quem te possa substituir, John, n�o importa o que penses, sobre... sobre os outros homens. Tenho sido m� para ti. Sabia que me amavas, mas n�o me deixei
envolver. Gostava de saber que havia algu�m que estava ali, sempre que precisasse, mas n�o me deixei envolver.
- Eu sei. Sei muito bem, Charlene. Finalmente, arranjei coragem para enfrentar a situa��o.
- Por favor, deixa-me dizer isto. - De olhos compassivos, cruzou as m�os sobre o peito. - Tenho medo, e tenho de dizer tudo agora, antes que perca a coragem. Gostei
que os homens me desejassem, de ver aquele brilho nos seus olhos. Gostei de os levar para a cama, especialmente os mais novos. Assim acreditava, no escuro, quando
tinha as m�os deles sobre mim no escuro, que ainda n�o tinha feito quarenta anos.
Agora, tocava o rosto. - Odeio estar a envelhecer, John, ver novas
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rugas todos os dias ao espelho. Enquanto os homens me quiserem, posso fingir que as rugas n�o est�o l�. Ando assustada e zangada h� tempo de mais, e estou cansada.
Deu um passo em frente. - Por favor, n�o v�s, John. Por favor, n�o me deixes. �s o �nico, desde Pat, com quem consegui descontrair, sossegar. N�o sei se te amo,
mas quero. Se ficares, vou tentar.
- N�o sou o Karl Hidel, Charlene. E n�o me posso acomodar mais. N�o posso ficar aqui a consolar-me com um livro, sabendo que foste para a cama com outra pessoa.
- N�o vai haver mais ningu�m. N�o vai haver mais homens, juro. Se ficares e me deres uma oportunidade. N�o sei se te amo, - repetiu, - mas sei que pensar em ficar
sem ti me est� a despeda�ar o cora��o.
- � a primeira vez em mais de dezasseis anos que entras neste quarto para falares comigo. E que me dizes algo de concreto. � tempo de mais para esperar.
- Tempo de mais? Diz que ainda � poss�vel.
Ele foi ter com ela, abra�ou-a, o seu rosto em cima da cabe�a dela.
- N�o sei. N�o sei se algum de n�s sabe. Por isso, acho que vamos ter de esperar para ver.
Nate pregou o distintivo numa camisa de caqui que ostentava o emblema do DP de Lunacy na manga. Fora informado por sua excel�ncia, a Presidente da C�mara, que o
Primeiro de Maio precisava de um ambiente mais formal.
Ao colocar o coldre, Meg emitiu um longo mmmmm. - Os pol�cias s�o t�o sensuais. Porque � que n�o voltas para a cama?
- Tenho de me apresentar cedo. J� l� devia estar. Incluindo os participantes, estamos � espera de quase duas mil pessoas, hoje na vila. Hopp e Charlene fizeram de
rela��es p�blicas.
- Quem � que n�o adora uma parada? Est� bem, j� que est�s t�o oficial, d�-me dez minutos e levo-te de avi�o.
- Levavas mais tempo a verificar os pain�is e a voar do que eu a chegar l� de carro. Al�m do mais, n�o te arranjas em dez minutos.
- Isso � que arranjo, especialmente se algu�m descer e fizer o caf�. Ao v�-lo olhar para o rel�gio e suspirar, ela correu para a casa de banho.
Quando ele voltou com duas canecas, j� ela vestia a camisa vermelha por cima de uma camisola branca e justa, de gola alta. - Considera-me surpreendido.
- Sei rentabilizar o meu tempo, gira�o. Assim, podemos falar sobre o casamento a caminho. Consegui com que Charlene desistisse da ideia de alugar uma p�rgola e de
a cobrir de rosas cor-de-rosa.
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- O que � uma p�rgola?
- Sei l�, mas n�o a vamos ter. Ela est� furiosa, porque diz que n�o � s� rom�ntico, mas tamb�m essencial nas fotografias de casamento.
- Ainda bem que se est�o a entender.
- N�o vai durar muito, mas facilita-me imenso a vida, por enquanto. - Engoliu o caf�. - Dois minutos para a cara, - disse ela e voltou a correr para a casa de banho.
- Ela e Mike Grande trocaram ideias sobre um bolo de casamento gigantesco. Vou deix�-la levar a dela avante neste ponto. Gosto de bolo. Ainda n�o estamos de acordo
sobre as flores. N�o quero que me soterrem em rosas cor-de-rosa, mas concord�mos nalgumas coisas. Como contratar um fot�grafo profissional. As fotografias s�o bestiais,
mas isto � uma coisa monumental, por isso precisamos de um profissional. Oh, e ela diz que tens de comprar um fato novo.
- J� tenho um.
- Ela diz que tem de ser um novo, e que tem de ser cinzento. Cinzento-met�lico, n�o cinzento-pomba. Ou talvez fosse cinzento-pomba e n�o met�lico. N�o sei, e nesta
quest�o lan�o-te aos lobos, Burke. Discute tu com ela.
- Posso comprar um fato, - resmungou ele. - Posso comprar um fato cinzento. Posso escolher a minha roupa interior?
- Pergunta � Charlene. Pronto, j� est�. Vamos, ainda n�o est�s pronto? Est�s a atrasar a parada.
Ela riu-se assim que ele a tentou agarrar, e desatou a correr pelas escadas abaixo.
Tinham chegado � porta quando ele estacou, quando se apercebeu, quando aquele instante de mem�ria se tornou palp�vel. - Fotografia. Raios partam.
- O que foi? - Meg comp�s o cabelo ao v�-lo subir as escadas outra vez. - Queres uma m�quina fotogr�fica? Bolas, homem. E passam a vida a reclamar que s�o as mulheres
que nunca est�o prontas a horas.
Acorreu tamb�m escada acima, e ficou a v�-lo, abismada, enquanto ele tirava os �lbuns e as caixas de fotografias do arm�rio e os despejava em cima da cama.
- O que � que est�s a fazer?
- Est� aqui. Eu lembro-me. Tenho a certeza.
- O que � que est� aqui? O que � que est�s a fazer �s minhas fotografias?
- Est� aqui. Piquenique no Ver�o? N�o, n�o... fotografia do campismo, � volta da fogueira. Ou... bolas.
- Espera a�. Como � que sabes que tenho a� fotografias do campismo ou dos piqueniques de Ver�o, ou seja o que for?
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- Bisbilhotei. Discutimos depois.
- Podes contar com isso.
- O brinco, Meg. Vi-o quando andei aqui a vasculhar. Sei que o vi. Ela empurrou-o para conseguir pegar numa pilha de fotografias. - Quem � que o tinha? Quem � que
viste? - Perscrutava, atirando as fotos para o lado como avi�es de brincar.
- Foto de grupo, - murmurou ele, tentando concentrar-se a todo o custo. - Foto numa festa. F�rias... Natal.
Pegou no �lbum que ela tentara agarrar e come�ou a folhe�-lo do fim. - Aqui. Em cheio.
- Passagem de Ano. Deixaram-me ficar acordada. Fui eu que tirei a fotografia. Fui eu.
A sua m�o tremia ao tentar puxar o pl�stico, libertando a fotografia. Ao canto via-se a extremidade da �rvore, as luzes e as bolas coloridas tremidas. Ela tirara
de perto, por isso s� se viam os rostos, quase s� os rostos, apesar de se lembrar agora que o pai tinha a guitarra no colo.
Rira-se bastante, com Charlene t�o abra�ada a ele que a sua face estava colada � dele. Max furara por tr�s do sof�, mas ela cortara-lhe o alto da cabe�a.
Mas o que estava sentado do outro lado do pai, a cabe�a ligeiramente virada enquanto sorria para algu�m do outro lado da sala, era evidente.
Tal como a cruz de Malta de prata, que pendia da sua orelha.
31.
- N�o prova nada, Meg, n�o a cem por cento.
- N�o me venhas com essas tretas de pol�cia, Burke. - Enquanto ele conduzia, ela mantinha os bra�os cruzados com for�a sobre a cintura, como se contivesse a dor.
- N�o s�o tretas. � circunstancial. � bom, mas � circunstancial. - A sua mente andava para a frente e para tr�s, tentando perceber. - O brinco andou nas m�os de
pelo menos duas pessoas, antes de chegar �s minhas. Nada de peritos forenses. Tem um desenho comum, � prov�vel que haja por a� milhares iguais neste preciso momento.
Ele pode t�-lo perdido, ou t�-lo oferecido, ou at� ter pedido emprestado. A verdade � que por o usar numa fotografia tirada h� mais de dezasseis anos, n�o prova
que estava na montanha. Um advogado de defesa d�bil mental era capaz de arrasar esse argumento em tribunal.
- Ele matou o meu pai.
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Ed ressentiu-se. Fora Hopp que lhe contara, depois do encontro com Hawley.
Todas as linhas se cruzam. Galloway com Max, Galloway com Bing, Galloway com Steven Wise.
Podem juntar-se ainda mais. Woolcott com Max - o velho amigo preocupado, que ajudava a vi�va com o funeral. Woolcott com Bing - implicando o homem que podia saber,
que se podia lembrar de uma conversa casual de h� dezasseis anos.
Os pneus rasgados de Hawley e a carrinha pintada com tinta de spray, vingan�a pela indiscri��o, disfar�ada de vandalismo adolescente.
Dinheiro. Ed Woolcott era o homem do dinheiro. Que melhor forma de esconder o surgimento de dinheiro s�bito do que o pr�prio banco?
- Aquele patife do Woolcott matou o meu pai.
- � verdade. Eu sei. Tu sabes. Ele sabe. Mas construir o caso � outra coisa.
- Desde Janeiro que andas a construir um caso. Um passo de cada vez, enquanto a Estadual se limitou a fech�-lo. Tenho-te observado.
- Deixa-me acab�-lo.
- O que � que achas que vou fazer? - Franziu os olhos para o Sol. Sa�ra de casa sem os �culos escuros, sem nada a n�o ser a urgente vontade de agir. - Que vou ter
com ele para lhe apontar uma arma � orelha?
Como pressentira na sua voz, o desgosto profundo aliado � raiva, pousou a m�o sobre as dela. Apertou-as. - Nem me passou pela cabe�a.
- N�o vou fazer nada disso. - Teve de se esfor�ar para virar a m�o, para voltar a estabelecer essa liga��o, quando at� teria sido f�cil retir�-la com for�a. Ficar
sozinha numa tempestade de emo��es. - Mas vou ver a cara dele, Nate. Quero estar l�, para ver a cara dele, quando o prenderes.
A rua principal j� estava cheia de pessoas que guardavam os lugares. Cadeiras desmont�veis e geleiras em cima do passeio e na berma da estrada, muitas j� ocupadas
ou a serem usadas pelas pessoas que se sentavam a beber em copos de pl�stico.
Pelo ar o ru�do era j� intenso, os gritos, guinchos e gargalhadas atravessavam a m�sica potente da KLUN.
As carrinhas que ofereciam cones de neve, gelados, cachorros-quentes e outra comida t�pica da parada, estavam estacionadas nas esquinas e nas ruas adjacentes. Bandeirinhas
com as cores do arco-�ris agitavam-se ao vento.
Duas mil pessoas, estimava Nate, e grande parte delas eram crian�as. Num dia normal em Lunacy, podia ter entrado no banco e levado Ed calmamente para o seu gabinete.
N�o era um dia normal, de forma nenhuma.
400
Est4acionou na esquadra, e entrou com Meg. - Otto e Peter? - perguntou a Peach.
- Est�o l� fora com a multid�o, onde eu devia estar. - Os seus olhos agitavam-se de irrita��o, ao mesmo tempo que alisava a saia rodada, da cor dos narcisos, sobre
as ancas largas. - Ach�mos que estaria aqui antes de...
- Chame os dois.
- Nate, temos mais de duas mil pessoas � espera no terreno da escola. Temos de...
- Chame os dois! - Explodiu ele. Continuou a andar, a agarrar Meg pelo bra�o. - Quero que fiques aqui.
- N�o. N�o s� � est�pido e errado ficar � espera, � uma falta de respeito.
- Ele tem licen�a de porte de arma.
- Eu tamb�m. D�-me uma.
- Meg, ele j� matou tr�s vezes. Vai fazer o que puder para se proteger.
- N�o � f�cil escapar � minha mira.
- N�o estou...
- Est�s, sim. � o teu primeiro instinto, mas esquece. N�o te vou pedir para n�o trazeres o trabalho para casa, ou que n�o te queixes quando interferir com a minha
vida. N�o te vou pedir para seres quem n�o �s. N�o me pe�as isso. D�-me uma arma. Prometo que s� a vou usar se for mesmo necess�rio. N�o o quero ver morto. Quero-o
vivo. Que apodre�a. Quero-o inteiro e a ganhar ra�zes, por muito, muito tempo.
- Quero saber o que se passa. - Com as m�os fechadas em punho sobre as ancas, Peach encheu a entrada da porta. - J� chamei os dois rapazes, e agora n�o temos ningu�m
l� fora para manter a ordem. Uma cambada de mi�dos do liceu j� hastearam um soutien no mastro da bandeira, um dos cavalos do desfile deu um coice num turista que,
est� visto, nos vai processar, e os parvalh�es dos Mackie j� deitaram abaixo uma grade de Budweiser e j� est�o b�bedos que nem um cacho.
A frustra��o disparava-lhe as palavras como uma metralhadora. - Roubaram um monte de bal�es e, neste preciso instante, est�o a marchar pela rua acima e abaixo como
idiotas. Temos c� jornalistas, Nate, temos a aten��o dos media, e esta n�o � de todo a imagem que queremos projectar.
- Onde est� Ed Woolcott?
- Com Hopp, na escola. V�o desfilar atr�s do raio dos cavalos. O que � que se passa?
- Telefone ao Sargento Coben, em Anchorage. Diga-lhe que vou deter um suspeito do homic�dio de Patrick Galloway.
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- N�o o quero assustar, - disse Nate aos adjuntos. - N�o quero viol�ncia, nem p�nico de esp�cie alguma, com a multid�o que vamos enfrentar hoje. A seguran�a dos
cidad�os � sempre prioridade.
- N�s tr�s devemos conseguir det�-lo de forma simples e r�pida.
- Talvez, - reconheceu Nate. - Mas n�o vou arriscar vidas civis no "talvez", Otto. Ele n�o vai a lado nenhum. Nesta altura, n�o tem motivos para tentar a fuga. Por
isso, vamos det�-lo. Enquanto tivermos esta parada a decorrer, pelo menos um de n�s vai estar sempre a control�-lo.
Virou-se para o quadro de corti�a. - Temos ali o percurso e o hor�rio da parada elaborado por Peach. Ele aparece logo a seguir � banda do liceu. � a posi��o seis
no programa. Saem da escola para o centro da vila, passam pelo O Lun�tico e voltam a sair. V�o parar aqui, na Buffalo Inlet, e depois viram e passam pelas traseiras
da escola para acabar o desfile. Nessa altura, j� n�o vai estar tanta gente, e podemos det�-lo nas calmas, com o m�nimo de risco para civis.
- Um de n�s pode patrulhar a �rea da escola, - sugeriu Peter. - Depois de chegarmos aos limites da cidade. Evacuamos os civis.
- � exactamente o que quero que fa�a. N�s prendemo-lo sem alarido, no fim do desfile, trazemo-lo para c� e informamos Coben que o suspeito est� sob cust�dia.
- Vamos simplesmente entreg�-lo � Pol�cia Estadual? - Indagou Otto. - Simplesmente, tomem l�, amigos, depois de termos feito o trabalho todo?
- O caso � de Coben.
- Bardamerda. A Estadual marimbou-se para o caso. N�o quis sujar as m�os nem dar-se ao trabalho, e foi pelo caminho mais f�cil.
- N�o � bem verdade, - disse Nate. - Mas mesmo assim, � assim que se faz. � assim que vamos fazer.
N�o precisava de condecora��es nem de medalhas. Agora, j� n�o. S� queria acabar a sua miss�o. Das trevas para a luz, pensava ele. Da morte para a justi�a.
- As nossas prioridades s�o manter a seguran�a civil e colocar o suspeito sob cust�dia. Depois, a jogada � de Coben.
- Voc� � que sabe. Parece que vou ter de me contentar em ver Ed borrar-se todo, enquanto o algema. O patife matou o pobre do c�o velhote.
Otto olhou de relance para Meg, e corou um pouco. - E os outros, Pat e Max. O c�o � que foi mais recente, s� isso.
- N�o faz mal. - Meg ofereceu um sorriso amarelo. - Desde que pague pelo que fez, tudo bem.
- Bom. - Otto pigarreava, fitando com aten��o os mapas afixados
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no quadro de corti�a. - Quando passarem pelas ruas secund�rias, vamos deixar de o ver, - lembrou.
- N�o, isso vai ficar tratado. Tenho alguns civis volunt�rios. - Olhou para o lado, assim que Jacob e Bing entraram.
- Disse que havia trabalho. - Bing co�ava a barriga. - Quanto � que ganho?
Meg esperou at� ele desligar o walkie-talkie e colocar os homens nas posi��es iniciais. - E onde � que eu fico nisto tudo?
- Comigo.
- Parece-me bem. - Puxara a camisa para fora para tapar a.38 que guardara ao fundo das costas.
- Podem achar estranho tu n�o andares a sobrevoar, como programado.
- Problemas no motor, - disse ela, ao sa�rem. - Lamento imenso. Na multid�o, as cores e o barulho eram intensos, os clamores e o cheiro de carne grelhada e do a��car
impregnavam o ar. Crian�as corriam � volta de um mastro enfeitado erigido para o evento diante da C�mara Municipal. Viu que as portas d'A Estalagem estavam abertas,
e Charlene executava as suas tarefas, apressada, servindo quem preferia um almo�o mais substancial ao que era servido na rua.
As ruas secund�rias encontravam-se fechadas ao tr�nsito autom�vel. Um jovem casal estava sentado numa das barricadas aos beijos, com algum entusiasmo, enquanto um
grupo de amigos jogava Hacky Sack na rua atr�s deles. Uma equipa de televis�o de Anchorage filmava a multid�o do canto oposto.
Os turistas filmavam ou passavam pelas mesas desmont�veis e as bancadas port�teis, onde se vendiam o artesanato e a joalharia locais. Malas de senhora de cabedal,
cheias de contas, espanta-esp�ritos, m�scaras nativas elaboradas, penduradas em biombos. Canoas de pele de foca simples e adornadas e cestos de verga trabalhados
� m�o estavam expostos nas mesas desmont�veis ou em contraplacados apoiados em cavaletes.
Apesar do tempo solarengo e quente, os gorros e cachec�is feitos de qiviut, a l� do boi almiscarado do �rctico, vendiam-se bem depressa.
A Casa Italiana vendia fatias de pizza para levar. A Loja da Esquina tinha uma promo��o de m�quinas fotogr�ficas descart�veis e repelente de insectos. Um mostru�rio
girat�rio com postais dominava a porta de entrada. Vendiam tr�s a dois d�lares.
- Uma vilazinha virada para o neg�cio, - comentou Meg, enquanto seguiam no carro.
- � mesmo.
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- E depois de hoje, bem mais segura. Gra�as a ti. Otto percebeu isso. � gra�as a ti, Comandante.
- Que treta, madame.
Esfregava a m�o sobre a dele. - Ao dizeres isso, parecias o Gary Cooper, mas os teus olhos revelam mais o Clint Eastwood, do tempo do Dirty Harry.
- V� se n�o... estou a confiar em ti.
- Podes confiar. - Agora sentia uma calma gelada sobre a raiva instalada. Se era poss�vel que transbordasse, se essa raiva fervesse e quebrasse a calma, sabia que
ia conseguir arrefec�-la de novo. - Tenho de estar presente, mas... podemos dizer que este urso fica para tu abateres.
- Ok.
- Vai estar um dia lindo para a parada, - comentou ela, depois de um imenso suspiro. - No entanto, o ar est� t�o parado. � como se esperasse alguma coisa. - Estacionaram
junto � escola. - Parece que cheg�mos.
As bandas que iam desfilar estavam alinhadas nos seus uniformes azuis-claros, com os bot�es de bronze e os instrumentos a brilhar do polimento. Os instrumentos de
sopro fizeram-se ouvir, quando as diferentes sec��es come�aram a praticar, e os adultos respons�veis desataram a gritar instru��es.
Os tambores rufaram.
A equipa de h�quei j� estava a entrar no carro, a bater os sticks ao assumirem as suas posi��es. Iam liderar a parada, com a faixa de campe�es regionais a esconder
a ferrugem da carrinha de caixa aberta de Bing. Um teste �s colunas e � grava��o p�s a tocar "We Are the Champions", dos Queen.
- Est� a�. - Hopp elegante, num fato rosa-rebu�ado, apressou-se para ele. - Ignatious, pensei que �amos ter de come�ar o espect�culo sem si.
- Estive a tratar de uns assuntos na vila. Tem casa cheia.
- E uma afiliada da NBC a documentar. - As suas faces estavam quase t�o rosadas quanto o seu fato, com a excita��o do momento. - Meg, n�o devias andar l� em cima?
- Apontou para o c�u.
- O motor deu de si, Hopp. Lamento.
- Oh. Paci�ncia. Sabes se Doug Clooney j� tem o barco no rio? Ando � procura de Peach ou Deb, que j� deviam andar a orientar as hostes por aqui, mas andam todos
a correr de um lado para o outro como desvairados.
- Tenho a certeza que j� est� a postos, e Deb est� ali mesmo, a tratar da equipa de h�quei.
- Oh. Deus do C�u, vamos come�ar. Ed! P�ra de te arranjares por
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cinco segundos. N�o sei como � que me convenceram a ir atr�s destes cavalos. N�o percebo porque � que n�o pudemos ir num descapot�vel. Era mais digno.
- Mas n�o dava tanto espect�culo. - Ed ria com vontade ao juntar-se a eles. Envergava um fato de tr�s pe�as azul-marinho, num visual banc�rio, de riscas brancas
e vistoso, com a gravata �s cornuc�pias. - Parece que dev�amos ter aqui o comandante da pol�cia, atr�s dos cavalos.
- Talvez para a pr�xima, - disse Nate com �-vontade.
- Ainda n�o o felicitei pelo noivado. - Os olhos dele permaneciam fixos nos de Nate, ao estender a m�o.
Ele pensou em faz�-lo nesse momento, ali mesmo. Podia domin�-lo e algem�-lo em menos de dez segundos.
Mas tr�s mi�dos da prim�ria correram entre ambos, perseguidos por outro com uma pistola de pl�stico. Uma majorete bonita e jovem, cheia de brilhantes, precipitou-se
a agarrar o bast�o, que lhe aterrou aos p�s.
- Desculpe! Desculpe, Comandante Burke. Escapou-me.
- N�o faz mal. Obrigado, Ed. - Estendeu a m�o para completar o cumprimento interrompido e pensou outra vez - talvez agora.
Jesse desatou a correr, lan�ando os bra�os aos joelhos de Nate.
- Deixaram-me entrar na parada! - Gritava o pequeno. - Posso vestir um fato e marchar pela rua abaixo. Vai ver-me, Comandante Burke?
- Claro.
- Mas que lindo est�s, - comentou Hopp, e acocorou-se ao lado de Jesse, ao ver o menino, confiante, a dar a m�o a Nate.
Aqui n�o, pensava ele. Agora n�o. Hoje ningu�m se pode magoar. - Espero que v� ao casamento, - disse a Ed.
- N�o perdia por nada. N�o te contentaste com um nativo, eh, Meg?
- Ele sobreviveu a um Inverno. J� faz dele bastante nativo.
- Imagino que sim.
- Jesse, � melhor voltares para o teu grupo. - Hopp deu-lhe uma palmadinha no traseiro, e ele correu, a gritar, - Olhem para mim!
- Ed, ajuda-me a subir para esta coisa. Est� quase a come�ar.
- Vamos at� l� abaixo a p�, - disse Nate, ao v�-los entrar no buggy. - Aqui parece estar tudo sob controlo. Quero ter a certeza que os Mackie se est�o a comportar.
- Andam a roubar bal�es. - Hopp lan�ou o olhar para o c�u. - Foi o que ouvi dizer.
Nate pegou na m�o de Meg e afastaram-se. - Ele sabe? - Perguntou ela.
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- Estou preocupado. H� muita gente � volta, Meg. Muitas crian�as
- Eu sei. - Apertou-lhe a m�o, ao ouvir as botas da banda que marchava baterem no ch�o. - Daqui a pouco isto acaba. N�o demora muito a chegar de uma ponta da vila
� outra, e voltar.
Ele sabia que seria infind�vel. Com as multid�es, os gritos e aplausos, a m�sica alta. Uma hora, convencia-se. No m�ximo, uma hora, e j� o podia prender sem magoar
ningu�m. Desta vez, n�o era preciso entrar a correr num beco, n�o tinha de se arriscar na escurid�o.
Manteve o passo firme, mas sem pressa, ao passar os aglomerados de gente, abrindo caminho at� ao cora��o da vila.
O trio de majoretes dan�ava, acenando e atirando os bast�es ao ritmo de aplausos entusiastas. A que quase lhe acertara lan�ou a Nate um sorriso enorme, revelando
os dentes brancos.
O percussor pavoneava-se com o seu chap�u alto, e a banda lan�ou-se � interpreta��o de "We Will Rock You".
Avistou Peter no primeiro cruzamento e virou a cabe�a para levar os l�bios ao ouvido de Meg. - Vamos continuar a andar, at� �quele homem do bal�o. Vou comprar-te
um bal�o. Eles v�o passar por n�s, e assim conseguimos v�-los por mais tempo.
- Um vermelho.
- Claro.
Est�o a dar a volta at� ao limite da vila, pensava ele. A equipa de h�quei j� devia ter acabado de passar e regressava � vila, para estarem com os amigos, misturarem-se
com a multid�o. A banda ia para a escola trocar o uniforme.
Caminho livre. Quase toda a gente deixava o caminho livre. E Peter estava ali, para apressar os que se demoravam.
Parou junto ao palha�o de cabelo laranja e um punhado de bal�es. - Bolas, Harry, � voc� a� dentro?
- Foi ideia da Deb.
- Bem, est� mesmo giro. - Nate debru�ou-se para ver o buggy, a multid�o. - A minha menina quer um vermelho.
Nate tirou a carteira, de ouvido atento, enquanto Harry e Meg debatiam a forma do bal�o. Observava Peter a descer o passeio do outro lado da rua e, enquanto passava
a banda, levando com ela o som, ouvia o trotar dos cavalos.
Os mi�dos guinchavam e saltavam, ao ver Hopp e Ed lan�ar m�os cheias de doces. Deu as notas a Harry e continuou, para se virar como se apreciasse o espect�culo.
Avistou Coben, com o cabelo louro, quase branco, � luz do Sol, no meio da multid�o. De imediato, percebeu que Ed tamb�m o vira.
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- Raios partam, raios partam, porque � que ele n�o esperou?
No rosto de Ed o p�nico era j� evidente. Ao perceb�-lo, Nate come�ou a abrir caminho no meio dos espectadores, que se aglomeravam encostados a uma parede, ao longo
da berma da estrada. N�o ia conseguir chegar a tempo. Ouvia os aplausos e os clamores da multid�o, como uma onda que se aproximava de si. Aplaudiram, quando Ed saltou
do buggy, at� mesmo quando tirou uma arma do bolso do fato.
Como se estivessem na antecipa��o de um espect�culo, afastaram-se dele, ao ver que ele corria para o lado oposto da rua. Seguiram-se gritos e urros, quando ele come�ou
a derrubar as pessoas para fugir, saltando por cima delas ao ca�rem.
Nate ouviu tiros, ao abrir caminho para a rua.
- No ch�o! Todos para o ch�o!
Atravessou a rua a correr, saltando por cima de transeuntes em estado de choque. Viu Ed a recuar no passeio por tr�s das barricadas, com uma pistola apontada � cabe�a
de uma mulher.
- Para tr�s! - Gritava. - Atire a arma ao ch�o e afaste-se. Eu mato-a. Sabe bem que sim.
- Sei que sim. - Podia ouvir os gritos atr�s de si, e a m�sica a descer de tom, enquanto a banda prosseguia a marcha, sem saber do sucedido. Na berma havia carros
e carrinhas estacionados, e os edif�cios tinham portas
laterais que, quase de certeza, estariam abertas.
Tinha de manter em si a aten��o de Ed, antes que o homem fizesse algum uso daquele c�rebro em estado de p�nico, para pensar e arrastar a ref�m para um edif�cio.
- Para onde � que vai fugir, Ed?
- N�o se preocupe com isso. Preocupe-se com ela. - Puxou a mulher, de tal forma que os calcanhares dos t�nis de corrida bateram no passeio. - Meto-lhe uma bala nos
miolos.
- Tal como fez a Max.
- Fiz o que tinha a fazer. � assim que se sobrevive aqui.
- Talvez. - O rosto de Ed suava. Nate via-o brilhar � luz do Sol.
- Mas desta vez n�o vai conseguir fugir. Acerto-lhe a� mesmo onde est�.
Sabe que sim.
- Se n�o deitar essa arma ao ch�o, � voc� que a mata. - Ed arrastou a mulher, que chorava, para tr�s mais tr�s passos. - Tal como matou o seu parceiro. Voc� � um
cora��o que sangra, Burke. N�o consegue viver com
isso.
- Consigo eu. - Meg apareceu ao lado de Nate, apontando a arma entre os olhos de Ed. - Conheces-me, patife. Abato-te como se fosses um cavalo doente, e n�o vou perder
um minuto de sono sequer.
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- Meg, - avisou Nate. - Chega-te para tr�s.
- Sou capaz de a matar e a um de voc�s primeiro. Se me obrigares a isso.
- A ela, talvez, - concordou Meg. - Mas ela a mim n�o me diz nada. For�a, mata-a. Est�s morto antes de ela cair no ch�o.
- Chega-te para tr�s, Meg. - Agora, Nate levantava a voz, e os seus olhos desviaram-se de Ed. - Faz o que te digo, agora. - Depois ouviu o caos de vozes, os p�s
a bater. A multid�o avan�ava, sabia Nate, agu�ada pela curiosidade, fasc�nio e terror, que suplantavam o medo puro.
- Largue a arma e solte-a, - ordenou Nate. - Fa�a-o agora e ainda tem uma hip�tese. - Nate viu Coben a chegar por tr�s e sabia que algu�m ia morrer.
E foi um Inferno.
Ed girou, e disparou. Num instante, Nate viu Coben correr para se proteger e o esguicho de sangue da bala que lhe acertou em cheio no ombro. A arma de servi�o de
Coben ca�ra no passeio, para onde voara da sua m�o, com o impacto.
Nate ouviu um segundo disparo bater no edif�cio atr�s de si e o som de milhares de pessoas a gritar.
Mal os assimilou. Tinha o sangue gelado.
Empurrou Meg para tr�s, lan�ando-a com for�a ao ch�o. Ela praguejou ao mesmo tempo que ele avan�ava, a arma firme na m�o. - Se algu�m tiver de morrer hoje, - disse,
com frieza, - vai ser voc�, Ed.
- O que � que est� a fazer? - Ed gritava, ao ver Nate aproximar-se de onde estava. - Que raio � que est� a fazer?
- O meu trabalho. A minha vila. Baixe a arma, sen�o vou ter de o abater como o tal cavalo doente.
- V� para o diabo! - Com um gesto violento, empurrou a mulher chorosa para Nate e escondeu-se atr�s de um carro.
Nate deixou a mulher deslizar, inerte, para o passeio. Depois rolou para tr�s de outro carro, e sentiu o instinto de rua alerta.
Acocorado, olhou em redor para ver como estava Meg, e viu-a a acalmar a mulher, a cuja vida alegara ser indiferente. - Vai, - gritou ela. - Apanha o desgra�ado.
Depois, come�ou a rastejar sobre a barriga na direc��o de Coben, que se encontrava ferido.
Ed disparou, a bala explodindo um p�ra-brisas.
- Isto acaba aqui. Acaba agora! - Gritou Nate. - Atire a arma, sen�o vou a� tirar-lha das m�os.
- N�o vale nada! - Na voz de Ed havia algo mais do que p�nico, mais do que raiva. - Voc� nem sequer � daqui. - Come�ou a chorar.
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Exp�s-se, disparando como um louco. Os vidros saltavam e voavam como estrelas letais; metal ressaltava e batia no ch�o.
Nate ergueu-se e avan�ou para a estrada com a arma levantada. Sentiu algo ferrar-lhe o bra�o, como uma abelha gorda e zangada. - Larga, seu est�pido filho da m�e.
Com um grito, Ed voltou-se e fez pontaria.
E Nate disparou.
Viu Ed agarrar-se � anca, viu-o cair. E continuou a avan�ar com o mesmo passo firme, at� chegar � arma que Ed largara ao cair.
- Est� preso, sua besta. Seu cobarde. - Tinha a voz calma como Juno, ao virar Ed de barriga para baixo, agarrar-lhe os bra�os atr�s das costas e algemar-lhe os pulsos.
Depois agachou-se e falou baixinho, enquanto Ed apenas pestanejava, com um olhar vidrado da dor. - Disparou sobre um agente da autoridade. - Olhou, sem grande interesse,
para a fina linha de sangue mesmo acima do cotovelo. - Dois. Est� arrumado.
- � preciso ir buscar Ken? - A pergunta de Hopp revelava uma certa normalidade, mas quando Nate olhou para a ver aproximar-se, esmagando o vidro partido com os sapatos
de festa, viu-lhe o tremor nas m�os e nos ombros.
- Mal n�o faz. - Esticou o queixo na direc��o das pessoas por cima das quais havia saltado, rastejado ou apenas empurrado contra as barricadas. - Vai ser preciso
manter essas pessoas mais atr�s.
- � esse o seu trabalho, Comandante. - Conseguiu sorrir, e depois congelou ao descer o olhar para Ed. - Sabes, aquela equipa de televis�o conseguiu filmar quase
tudo. O operador de c�mara � dos bons. Temos de deixar algo bem claro nas entrevistas que dermos sobre esta confus�o. Agora, � este o Forasteiro. N�o � um de n�s.
Deliberadamente, afastou-se de Ed e estendeu a m�o a Nate, como se o fosse ajudar a levantar. - Mas voc� �. N�o haja d�vidas que �, Ignatious, e gra�as a Deus por
isso.
Ele pegou na m�o dela e sentiu o ligeiro tremor na sua m�o, ao apert�-la com for�a. - Algu�m ficou ferido a� atr�s?
- S� umas n�doas negras. - As l�grimas que lhe reluziam nos olhos foram reprimidas. - Tomou conta de n�s.
- �ptimo. - Acenou, ao ver Otto e Peter a tentarem fazer recuar a multid�o.
Depois olhou em redor, e viu Meg acocorada na porta de um pr�dio. Ela encontrou o olhar dele. Tinha sangue nas m�os, mas parecia que ela conseguira enfaixar a ferida
de Coben com alguma destreza.
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Distra�da, passou a m�o pela face, sujando-a de sangue. Depois sorriu, e lan�ou-lhe um beijo.
Disseram que fora uma sorte n�o ter havido nenhuma baixa, nem feridos graves entre os civis, enquanto a maior parte eram feridas sem qualquer gravidade - ossos partidos,
concuss�es, cortes e n�doas negras devido a quedas e ao p�nico.
Disseram que os danos materiais n�o eram consider�veis, janelas partidas, p�ra-brisas de autom�veis, um candeeiro de ilumina��o p�blica. Jim Mackie, um orgulho sem
igual, contou ao jornalista afiliado da NBC que ia deixar os buracos das balas na pickup.
Resumindo, disseram que fora um cl�max dos diabos para a Parada do Primeiro de Maio no Alasca.
Disseram muitas coisas.
A cobertura dos meios de comunica��o foi mais consider�vel ainda do que os feridos. A captura violenta e bizarra de Edward Woolcott, o alegado assassino de Patrick
Galloway, o Homem de Gelo da Montanha Sem Nome, foi alimento nacional durante semanas.
Nate n�o via as not�cias, e contentava-se com os artigos d'O Lun�tico.
� medida que Maio passava, o mesmo acontecia com o interesse do Exterior.
- Que dia comprido, - disse Meg, ao sair para o alpendre, sentando-se ao lado dele.
- Gosto deles compridos.
Deu-lhe uma cerveja e ficou a ver o c�u com ele. Eram quase dez horas e a luz ainda era intensa.
Ela j� havia plantado o jardim. As d�lias, como esperara, estavam espectaculares, e os delf�nios desabrochavam, de um azul intenso, em caules de metro e meio.
Ainda iam ficar mais altos, pensava ela. Tinham o Ver�o pela frente, todos aqueles dias compridos, banhados de luz.
Na v�spera, ela enterrara o pai, finalmente. A vila inteira comparecera, por causa de um homem. Tamb�m os media estiveram l�, mas para Meg o importante fora a vila.
Charlene mantivera a calma, pensava ela. Para Charlene, de qualquer forma. Nem sequer representara para as c�maras, mantendo-se discreta, mais digna do que Meg alguma
vez a vira, de m�o dada e firme ao Professor.
Talvez conseguissem. Talvez n�o. A vida estava cheia de hip�teses.
Mas tinha a certeza de uma coisa. No pr�ximo s�bado, ia estar ali
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fora, � luz da noite de Ver�o, com o lago e as montanhas diante de si, para casar com o homem que amava.
- Diz-me, - indagou ela. - Diz-me o que descobriste hoje, quando foste falar com Coben.
Ele sabia que ela lho ia perguntar. Sabia que tinham de falar no assunto. N�o s� por causa do pai dela. Mas porque o que ele pr�prio fizera, quem era, tinha uma
grande import�ncia para ela.
- Ed mudou de advogado. Arranjou um espertalh�o do Exterior. Alega autodefesa no caso do teu pai. Que Galloway enlouqueceu, e que temeu pela vida e entrou em p�nico.
� banqueiro, e sempre guardou os registos do banco. Afirma que ganhou os doze mil que apareceram subitamente na conta dele em Mar�o desse ano, mas h� testemunhas
que afirmam o contr�rio. Por isso, n�o vai pegar. Diz que n�o tem nada a ver com o resto. Absolutamente nada. Isso tamb�m n�o vai pegar.
Uma nuvem de mosquitos pairava junto � orla do bosque. Zumbiam como uma serra el�ctrica e levavam-no a dar gra�as pelo repelente que espalhara antes de ir l� para
fora.
Virou a cabe�a para beijar a face dela. - Tens a certeza que queres ouvir isto?
- Continua.
- A mulher dele virou a casaca, ou j� desbobinou o suficiente para lhe arruinar os �libis todos, da altura em que mataram Max e Yukon. S� temos que juntar isso �
tinta de spray amarela que encontraram no barrac�o dele, e ao facto de Harry ter afirmado que Ed lhe comprou carne fresca no dia em que tivemos aquele encontro imediato
com o urso. Tricotamos tudo e ficamos com uma linda rede.
- Aliado ao facto de ele ter apontado uma arma � cabe�a de uma turista, ter alvejado um agente estadual e o nosso Comandante da pol�cia. - Depositou um beijo breve
no b�ceps dele. - Sem esquecer que tudo,
- acrescentou ela, - foi filmado pelo operador de c�mara da NBC.
- Espregui�ou-se, num gesto longo e sinuoso. - Grande televis�o. O nosso corajoso e lindo her�i a acertar nas pernas do bandido, mesmo por baixo dele, apesar de
tamb�m se encontrar ferido...
- Ferida superficial.
- Apanhaste o patife, como o Cooper em Matar ou Morrer. N�o sou nenhuma Grace Kelly, mas fico doida s� de pensar nisso.
- Bolas, madame. - Deu uma palmada num mosquito do tamanho de um pardal, que atravessara o repelente. - N�o foi nada.
- E eu tamb�m n�o me safei nada mal, mesmo quando me mandaste para o raio do passeio.
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- Agora est�s ainda melhor. Os advogados v�o tentar dar a volta... incapacidade... insanidade tempor�ria, mas...
- N�o vai pegar, - concluiu Meg.
- Coben vai apertar com ele... ou o Delegado do Minist�rio P�blico. J� o t�m na m�o.
- Se Coben te tivesse dado ouvidos, tinhas conseguido apanh�-lo sem aquela confus�o toda.
- Talvez.
- Podias t�-lo matado.
Nate deu um pequeno trago na cerveja e ouviu o piar de uma �guia.
- Tu queria-lo vivo. S� quis agradar.
- Agradas mesmo.
- Tu tamb�m n�o o terias feito. - Meg estirou as pernas e olhou para as velhas botas de jardinagem, gastas nos dedos. Talvez precisasse de umas novas. - N�o tenhas
assim tanta certeza, Nate.
- Ele n�o � o �nico que sabe p�r iscos. Estavas a provoc�-lo, Meg. A irrit�-lo para que ele desviasse a arma dela e tentasse acertar num de n�s.
- Viste os olhos dela?
- N�o, estava a olhar para os dele.
- Eu vi. J� tinha visto medo assim. Um coelho, com a pata presa numa armadilha.
Fez uma pausa para afagar os c�es, quando eles se levantaram para uma festa. - Se me disseres que, por mais advogados caros dos Lower48 que ele possa contratar,
vai ficar na pris�o por muito, muito tempo, acredito em ti.
- Ele vai ficar na pris�o por muito, muito tempo.
- Ent�o, est� bem. Caso encerrado. Queres ir dar um passeio pelo lago?
Levou a m�o dela aos seus l�bios. - Parece-me bem.
- E depois gostavas de te deitar na margem do lago a fazer amor, at� que a fraqueza se apodere do nosso corpo?
- Acho que sim.
- Os mosquitos s�o capazes de nos comer vivos.
- Certas coisas s�o merecedoras dos riscos.
Ele era-o, pensava ela. Levantou-se, estendeu a m�o a pedir a dele.
- Sabes, daqui a pouco, quando fizermos sexo, vai ser tudo legal. Achas que, para ti, vai perder a fa�sca?
- Nem um pouco. - Voltou a erguer o olhar para o c�u. - Gosto de dias compridos. Mas n�o me importo nada com noites compridas. Porque j� tenho a luz. - Passou o
bra�o sobre o ombro dela, para a puxar para o seu lado. - Tenho a luz aqui mesmo.
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Observava o Sol, t�o relutante em p�r-se, reluzente, sobre a �gua fria e profunda. E as montanhas, imponentes e brancas, que espelhavam o seu eterno Inverno no azul
do Ver�o.
nora roberts - luz na tormenta
Nora Roberts - luzes do norte
Abraços fraternos!
Bezerra
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