M�NICA DE CASTRO
Quando Luciana se foi, Marcela pensou que seria o fim de sua vida. O desequil�brio a fez adotar medidas extremas. Depois de um suic�dio frustrado, encontrou no m�dico
que a salvou uma nova raz�o para viver. Temendo o preconceito, Marcela esconde do jovem namorado a avassaladora paix�o do passado. A partir da�, intrinca-se numa
rede de omiss�es e subterf�gios para tentar conter a verdade, vendo em Luciana a arma com que o inimigo tramar� sua derrota. O passado, contudo, n�o pode ser apagado,
e as experi�ncias nele vividas remanescem no reposit�rio indel�vel da alma. Mais cedo ou mais tarde, o universo desvenda segredos e ilus�es, porque a verdade � o
estado natural de todas as coisas. Presa ainda aos desenganos do mundo, Marcela n�o compreende a obra da natureza, que incessantemente trabalha para restabelecer
o seu curso. Por mais que tente fugir ou se esconder, os rumos que a vida percorre chegam sempre ao mesmo ponto, onde ela estar�, inevitavelmente, de frente com
a verdade. Meu amor pela literatura existe desde os meus tempos de menina. Sempre gostei de ler e escrever, em verso e prosa, e foi nos poemas de Manuel Bandeira
que lapidei ainda mais a sensibilidade da minha alma. Gostava de escrever poemas, contos, textos diversos, e cheguei a ganhar um concurso de poesia aos treze anos,
aqui na cidade do Rio de Janeiro, onde nasci em 1962. Ao mesmo tempo, minha mediunidade despertou, e adotei o espiritismo como b�lsamo do meu cora��o. Meu desejo
sempre foi o de ser escritora. Mas a vida nos leva por caminhos diferentes, sempre em nosso benef�cio, e acabei me formando em Direito e passando num concurso para
o Minist�rio P�blico do Trabalho. Anos depois, ap�s o nascimento do meu filho, senti a primeira inspira��o. Foi uma coisa estranha. Uma voz ficava na minha cabe�a,
repetindo esse nome: Rosali, e a id�ia de fazer um romance brotou na mesma hora. Rejeitei a id�ia e pensei: "Quem sou eu para escrever um romance?". Por outro lado,
a mesma voz tamb�m me dizia: "N�o custa nada tentar. O m�ximo que pode acontecer � n�o dar em nada". Aceitei a sugest�o do invis�vel, acreditando ser o meu pensamento,
e fui sentar-me ao computador. Na mesma hora, a inspira��o para Uma Hist�ria de Ontem surgiu espont�nea, e fui escrevendo, cada dia um pouquinho. At� ent�o, eu n�o
sabia que estava psicografando. Foi s� quando terminei o romance que recebi a psicografia do Leonel, que abre o meu primeiro livro, e nele se apresenta, dando o
seu nome. Mas foi preciso uma boa dose de desprendimento para escrever, sem questionar e aceitar a interfer�ncia do esp�rito. Hoje, posso dizer, Leonel � parte fundamental
da minha vida. N�o escrevo para viver. Escrevo porque gosto e porque acredito estar levando algum bem para as pessoas. E � esse sentimento que me faz querer escrever
cada vez mais. � pelas pessoas que vale a pena escrever. Pelos leitores, que est�o em busca de algo, al�m do aqui e agora, e que acreditam no poder da f�, do autoconhecimento
e do amor, como caminhos seguros para a transforma��o do Ser. Acredito que n�s todos podemos trabalhar pelo aperfei�oamento moral da humanidade para construir um
mundo melhor.
LEONEL
Leonel � um esp�rito muito querido do meu cora��o. J� em nosso primeiro romance, ele me deu uma id�ia do que teria sido em sua vida passada: escritor. Sei que nasceu
e viveu na Inglaterra, em sua �ltima encarna��o, assim como nas anteriores. Em Segredos da Alma, ele narra um pouquinho da sua hist�ria, juntamente com a da mulher
que foi o grande amor da sua vida. N�o foi um escritor dos mais famosos. Era um bo�mio, mas algu�m com tanta dignidade que logo despertou para os verdadeiros valores
do esp�rito, e hoje est� em condi��es de transmitir mensagens de otimismo e amorosidade. Eu mesma percebi isso no contato quase di�rio com ele e nas comunica��es
que transmite, sempre de forma mental. H� algum tempo, ele me permitiu conhecer sua apar�ncia. Leonel mostrou-se para mim na casa esp�rita, em um momento de profundo
recolhimento e reflex�o. Fisicamente, � um rapaz bonito. Cabelos negros, cheios, com fei��es delicadas e olhos azuis. Estatura mediana, magro, veio vestido com cal�a
e bata brancas, descal�o e com ar tranq�ilo. Tinha um rosto t�o sereno, que me contagiou. Ali, ele me disse coisas que modificaram para sempre o meu modo de encarar
certos aspectos da vida. Sua proposta � a do crescimento e da dissemina��o do amor. � para isso que trabalha, � nisso que acredita e me faz tamb�m acreditar. Sem
a esperan�a e a certeza na consolida��o do amor, a vida n�o tem raz�o de ser. E o instrumento que ele encontrou para a realiza��o desse prop�sito, no momento, foi
a psicografia. Assim como eu, Leonel escreve por amor a si mesmo e ao pr�ximo. Considero Leonel mais um batalhador do invis�vel. Um esp�rito com enorme sabedoria
e inigual�vel capacidade de amar. Um ser em evolu��o que conhece o caminho para o crescimento e sabe onde est� a fonte do discernimento e da moral. Uma alma que
cresce por meio do esfor�o pr�prio, do reconhecimento de suas imperfei��es e da busca incessante do dom�nio sobre si mesmo. E � nisso, acima de tudo, que reside
o seu valor.
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O livro que Marcela acabara de ler jazia inerte a um canto, a p�gina final aberta e manchada pela umidade de suas l�grimas. Era um livro de poesias, de Jo�o Cabral
de Mello Neto, em que a personagem central questionava se n�o seria melhor saltar a ponte e desistir da vida. Aquela id�ia lhe pareceu rom�ntica, e ela pegou invejando
a criatura que, de forma t�o corajosa, decide abandonar as decep��es da vida. Por que n�o podia ela fazer a mesma coisa? A passos vagarosos, aproximou-se do arm�rio
do banheiro e abriu a porta de espelho oxidado, fitando o seu interior com ang�stia. Remexeu nas prateleiras at� que encontrou o que procurava: um vidro de comprimidos
para dormir. Revirou-o na m�o e fechou a porta, apertando o frasquinho contra o peito. Duas grossas l�grimas escorreram de seu rosto, e ela suspirou amargurada.
De que adiantaria viver? Sua vida havia perdido o sentido naquela noite, no exato momento em que Luciana dissera que tudo estava terminado. E ela simplesmente acha
que n�o podia viver sem Luciana. Ainda se lembrava do dia em que abandonara a fam�lia e a cidade de Campos para segui-la. Luciana sempre fora uma menina esperta,
travessa e extrovertida, muito segura de si e de suas escolhas. Quando, finalmente, descobriu sua verdadeira orienta��o sexual, entregou-se a ela sem muitos questionamentos,
nem dando import�ncia aos coment�rios maldosos a seu respeito. Em 1966, numa cidade pequena feito Campos de Goytacazes, foi um esc�ndalo sem precedentes. Quando
o fato caiu no dom�nio p�blico, a fam�lia se revoltou, os amigos se afastaram, os professores a recriminaram, e ela acabou sendo convidada a se retirar da escola
normal que freq�entava. Foi por essa �poca que elas se conheceram. Os pais de Luciana a puseram de castigo, aos quase dezessete anos, proibindo-a de sair de casa
e matriculando-a em outro col�gio, do outro lado da cidade, onde os rumores ainda n�o haviam chegado. Apesar da revolta, Luciana concordou com as imposi��es dos
pais. Era menor de idade e n�o tinha muitas escolhas. Queria sair de Campos, mas n�o pretendia fugir de casa para se tornar prostituta em uma cidade grande. Tinha
ambi��es maiores. Pretendia terminar o curso normal para poder ingressar numa faculdade no Rio de Janeiro, onde poderia se misturar �s multid�es e fazer passar despercebida
a sua vida sexual. Quando Luciana entrou na sala de aula no meio do ano, chamou a aten��o de muita gente. Era o tipo de garota cujo comportamento fugia aos padr�es.
Entrou calada, por�m, sorridente, e foi sentar-se no �nico lugar vago na sala, ao lado de Marcela. Como era nova na escola e n�o conhecia ningu�m, logo travou conversa
com Marcela que, por sua timidez, n�o tinha muitos amigos. Da conversa, passaram aos encontros e da� a um relacionamento mais �ntimo n�o demorou muito. Em breve,
as duas estavam namorando, sem que a fam�lia de Marcela sequer desconfiasse, e a de Luciana preferisse n�o saber. Terminado o ano letivo, j� agora com dezoito anos
completos e formada professora, Luciana decidiu partir. Chamou os pais e comunicou-lhes sua decis�o. Os pais demonstraram al�vio e n�o se opuseram. Era mesmo melhor
para eles verem-se livres daquela filha ingrata, a ovelha negra da fam�lia, que s� lhes trazia problemas e manchara a sua reputa��o de gente honesta e direita. O
pai ainda lhe deu dinheiro para as primeiras despesas, com a condi��o de que ela se arranjasse no Rio de Janeiro e n�o retornasse mais a Campos, a n�o ser que se
emendasse e voltasse a ser uma mo�a decente. Luciana n�o questionou. Apanhou o dinheiro, arrumou a mala e partiu sem maiores complica��es. Para Marcela, as coisas
n�o foram assim t�o f�ceis. Os pais nada sabiam sobre seu romance com Luciana e n�o queriam permitir que ela partisse com a amiga para uma cidade grande e cheia
de tenta��es como o Rio. N�o lhe deram nenhum apoio e chegaram mesmo a proibi-la de ir. Fr�gil demais para enfrent�-los, Marcela n�o insistiu, mesmo porque Luciana
prometera escrever-lhe sempre. As cartas de Luciana chegavam regularmente, at� que, um dia a mo�a lhe escreveu dizendo que havia passado num concurso p�blico e agora
dava aulas numa escola do munic�pio. Alugara um pequeno apartamento de quarto e sala no sub�rbio e convidava Marcela para ir viver com ela. A felicidade foi tanta
que Marcela pensou que o peito fosse explodir. Mas o que poderia fazer? Contar aos pais seria loucura porque eles jamais a deixariam partir. Aos dezenove anos, decidiu
que o melhor seria fugir. Como n�o podia contar com a ajuda financeira do pai, escreveu a Luciana, que lhe enviou dinheiro suficiente para a viagem. �s escondidas,
Marcela comprou a passagem e, no dia e na hora marcados, subiu no �nibus e foi embora, ao encontro de Luciana, talvez para nunca mais retornar � terra natal. Foi
assim que seu relacionamento come�ou. Luciana estava indo bem na profiss�o e passou no vestibular para odontologia Com sua ajuda, Marcela ingressou na faculdade
de letras e conseguiu um emprego de auxiliar numa escola particular. Mais tarde mudaram-se para um apartamento melhor, num bairro de classe m�dia, e levavam a vida
em paz e tranq�ilidade, sem ningu�m para se intrometer em suas vidas. Os vizinhos nada sabiam sobre seu relacionamento e, para todos os efeitos, elas eram apenas
estudantes vindas de outra cidade que dividiam um apartamento. Essas lembran�as fizeram estremecer o cora��o de Marcela. Haviam sido felizes por quase oito anos,
e agora Luciana lhe dizia que tudo estava terminado. O que faria da vida dali para frente? Na verdade, n�o tinha mais vida. A vida de Marcela havia acabado na hora
em que Luciana cruzara a porta do apartamento dizendo que n�o pretendia mais voltar. Ela ainda n�o entendia o que havia feito de errado. "Nada", dissera Luciana,
mas Marcela n�o acreditava. Alguma coisa havia acontecido. Chegou a pensar que Luciana havia conhecido outra pessoa, mas ela lhe assegurou que n�o. Simplesmente
o amor que as unira no passado havia terminado, e Luciana achava que j� era hora de cada uma seguir o seu pr�prio caminho. Mas os caminhos de Marcela estavam entrela�ados
aos de Luciana, ou assim ela pensava. N�o podia e n�o queria viver sem ela. Quando ela se foi, Marcela ficou desesperada e se atirou num choro profundo, at� que
apanhou um livro de poesias, que era a �nica coisa que a acalmava. Come�ou a ler Morte e Vida Severina, at� que aquela passagem lhe chamou a aten��o. Assim como
a personagem, ela tamb�m duvidava se ainda valia a pena viver. A mis�ria tamb�m havia invadido a sua vida, pela car�ncia de amor. Saltar da ponte lhe parecia a �nica
solu��o, e aquelas p�lulas seriam sua ponte para a outra vida, para o nada, para uma exist�ncia em que o vazio n�o lhe faria sentir a falta da presen�a de Luciana.
Marcela sentou-se na cama e ficou olhando o vidro de rem�dios, ainda hesitando entre tom�-los ou n�o. De vez em quando, olhava para o livro no ch�o e para o retrato
de Luciana na mesinha de cabeceira, e seus olhos voltavam a derramar l�grimas sentidas.
- Ah! Luciana, n�o posso viver sem voc�! Por que fez isso comigo, por qu�?
Ao pensar na amada, Marcela sentia que n�o havia outra sa�da para a sua dor. Ou era a morte, ou a vida vazia. Preferia morrer. Decidida, levantou-se e foi apanhar
�gua na cozinha. Voltou para o quarto e derramou o conte�do do vidro de rem�dio nas m�os, enfiando todos os comprimidos na boca e sorvendo a �gua em goles largos.
Repetiu esse movimento at� n�o restar mais nenhum comprimido no frasco. Chorando cada vez mais, deitou-se na cama, acomodando-se sobre os travesseiros. Apanhou o
retrato de Luciana, agarrou-se a ele e fechou os olhos. Agora era s� esperar a chegada da morte. Ao sair do apartamento que dividia com Marcela, Luciana sentia a
garganta estrangular. Afinal, foram muitos anos de conviv�ncia e, por mais que n�o quisesse continuar a viver com Marcela, a situa��o n�o lhe era indiferente. Haviam
sido amigas, amantes e confidentes por muito tempo. Dividiram alegrias, tristezas e dificuldades. Venceram na vida sozinhas, lutando contra tudo e contra todos,
firmando-se no mundo como mulheres e pessoas de bem. Aquilo n�o era um nada. Ao contr�rio, era algo de que se lembrar e se orgulhar por toda a vida. Naquele �ltimo
ano, as coisas entre as duas n�o iam nada bem. Luciana sentia vontade de conhecer outras pessoas, viajar, freq�entar semin�rios e congressos relacionados � sua profiss�o.
Mas Marcela, embora n�o se opusesse, ficava insegura com a sua aus�ncia, telefonando a toda hora para os hot�is em que ela se hospedava, cobrando as liga��es n�o
retornadas, temendo que ela se interessasse por mais algu�m. Mas o que Luciana queria era viver com liberdade. Embora gostasse de conhecer pessoas interessantes,
n�o era sexualmente que procurava se envolver com elas. Apreciava as conversas intelectuais, principalmente aquelas relacionadas a sua profiss�o. Pena que Marcela
fosse t�o insegura e assustada. A muito custo conseguira passar num concurso tamb�m, para dar aulas de portugu�s numa escola cient�fica. Ela, Luciana, deixara o
magist�rio para se dedicar � odontologia, para se entregar exclusivamente ao pequeno consult�rio que, com muito sacrif�cio, conseguia montar no M�ier, juntamente
com Ma�sa, uma amiga de faculdade. Afinal, fora para isso que juntara dinheiro por tantos anos para poder realizar o sonho de ter um consult�rio que fosse seu. A
inseguran�a e os medos de Marcela foram, talvez, os maiores respons�veis pelo fim de seu relacionamento. Luciana era muito decidida e segura, independente e confiante,
tudo o que Marcela n�o era. Isso a decepcionava, porque Marcela era o seu oposto e n�o lhe causava admira��o. Nunca fazia o que Luciana esperava, encolhia-se diante
de tudo e de todos, sempre com medo de que descobrissem o seu relacionamento. Tal atitude foi cansando Luciana cada vez mais, at� que, saturada e sem ver perspectivas
de mudan�a em Marcela, decidiu que o melhor mesmo, dali em diante, seria se separarem. Durante muito tempo, Luciana sentiu-se respons�vel por Marcela, por t�-la
convencido a deixar Campos e a seguran�a dos pais. Fora Ma�sa quem lhe mostrara que Marcela era dona de sua vida e capaz de decidir o seu pr�prio caminho.
- Sei como se sente - dissera Ma�sa. Marcela veio de Campos atr�s de voc�. Mas veja o que fez por ela. N�o fosse por voc�, ela n�o estaria formada nem teria o emprego
que tem. Se for professora de letras, � gra�as a voc�.
- N�o � bem assim, Ma�sa - contestou Luciana. Marcela sempre foi muito inteligente.
- Mas n�o � nada decidida. � medrosa e insegura. Foi voc� quem lhe deu for�as, quem a encorajou a ser algu�m. Agora est� na hora de ela caminhar com as pr�prias
pernas. N�o � justo que voc� se mantenha presa a quem n�o ama s� por sentimento de culpa ou gratid�o. Ma�sa tanto falou, que Luciana resolveu tomar aquela decis�o.
Gostava muito de Marcela, mas n�o podia mais viver com ela. Queria liberdade para desfrutar da independ�ncia rec�m-conquistada. E depois, n�o era justo abrir m�o
de seus planos para satisfazer as car�ncias de Marcela. Ela agora era uma mulher mais madura e capaz de gerir a pr�pria vida. Por isso, tomou aquela atitude. Foi
dif�cil terminar uma rela��o de mais de sete anos, mas estava decidida. Procurou ser o mais am�vel poss�vel, sem deixar de ser sincera. Exp�s a Marcela os seus sentimentos,
seus anseios e afirmou que a decis�o era irrevog�vel. N�o a amava mais, embora lhe tivesse muito afeto. Queria o melhor para ela, mas queria o melhor para si tamb�m.
Podiam continuar sendo amigas, mas sem envolvimento emocional ou sexual. Quando Marcela desatou a chorar e atirou-se em seus bra�os, implorando-lhe que n�o partisse,
Luciana quase desistiu, mas algo dentro dela lhe dizia que seria pior. Estaria alimentando uma mentira e passaria a viver insatisfeita para que Marcela n�o sofresse.
N�o era justo nem com ela, nem com Marcela. O melhor, para ambas, era a separa��o, por mais que Marcela n�o conseguisse enxergar dessa forma. Com firmeza, Luciana
desvencilhou-se da companheira, apanhou a mala e partiu apressada, esquecendo-se at� de deixar suas chaves. Sabia que Marcela n�o a seguiria, com medo de que os
vizinhos percebessem que ela estava desesperada por ter sido abandonada por outra mulher. Luciana partiu, e Marcela ficou chorando atr�s da porta, at� que resolveu
tomar aquela atitude extrema e desesperada. Embora Luciana n�o soubesse de suas inten��es, uma inquieta��o come�ou a se alastrar por seu peito, e um medo indiz�vel
se apossou de seu cora��o. E se Marcela fizesse alguma besteira? Luciana foi caminhando com aquela sensa��o horr�vel, tomou um t�xi e se dirigiu para o apartamento
de Ma�sa, com quem iria morar dali em diante. Ma�sa n�o era homossexual, mas era pessoa de cabe�a aberta e sem preconceitos, cujos pais a enviaram cedo para estudar
no Rio de Janeiro. Ao chegar � casa de Ma�sa, a amiga estava terminando de lavar a lou�a do jantar, Luciana pousou a mala na saleta e foi a seu encontro na cozinha.
- Sinto se n�o a esperei para jantar - disse Ma�sa -, mas voc� demorou muito e eu estava morrendo de fome. Ainda tem arroz e feij�o na panela. � s� fritar um bife.
Ah! E tem salada na geladeira.
- N�o quero nada, Ma�sa, obrigada.
Ma�sa enxugou as m�os no pano de prato e aproximou-se de Luciana, que se sentou � mesa.
- E a�? Como � que foi? Correu tudo bem?
- Pior do que eu imaginava. Marcela n�o quis aceitar e ficou desesperada. Tive que larg�-la chorando e sair meio na marra.
- Que coisa chata.
- Sim, foi muito chato. E triste tamb�m.
- Mas o importante � que voc� conseguiu.
- Consegui... �, consegui. Mas estou preocupada. Sinto que Marcela � capaz de alguma besteira.
- Ser�?
- N�o sei. Meu cora��o est� pequenininho.
- Voc� quer que eu d� um pulo l� e veja se est� tudo bem?
- Voc� faria isso?
- � claro. N�o me custa nada. E depois, tamb�m n�o quer que Marcela fa�a nenhuma besteira.
De posse das chaves que Luciana se esquecera de entregar Ma�sa chegou ao apartamento de Marcela. Tocou a campainha uma, duas, tr�s vezes e nada de Marcela abrir.
Encostou o ouvido na porta, mas n�o escutou nada. Ou ela havia sa�do, ou n�o queria atender; ou, o que era pior, alguma coisa havia acontecido. Ma�sa n�o podia esperar
mais. Apanhou a chave na bolsa e meteu-a na fechadura, abrindo-a com m�os tr�mulas.
- Marcela! - chamou. Oi! Voc� est� a�?
O apartamento estava escuro e em total sil�ncio, Ma�sa foi acendendo as luzes por onde passava. Acendeu a sala, o corredor e deu uma espiada na cozinha, do outro
lado. Parecia deserta, e Ma�sa seguiu para o quarto. A porta estava fechada, e ela bateu de leve. Ningu�m respondeu, e ela bateu novamente. Sil�ncio. Experimentou
a ma�aneta, que cedeu de imediato. Ma�sa empurrou a porta, que foi abrindo lentamente, e acendeu a luz. Rapidamente, passou os olhos pelo quarto e viu... Num �timo,
compreendeu tudo. Marcela deitada na cama, o retrato de Luciana em seus bra�os, o frasco de rem�dio no ch�o. Ma�sa soltou um grito de pavor e correu para a outra,
tentando escutar seu cora��o. As batidas pareciam fracas, a respira��o, quase inexistente. Mais que depressa, correu para o telefone e ligou para o pronto-socorro.
Deu o endere�o ao atendente, explicou mais ou menos a situa��o, largou o fone no gancho e arrancou o retrato de Luciana das m�os de Marcela, saindo �s pressas logo
em seguida. Cora��o aos pulos, Ma�sa desceu as escadas correndo e foi ocultar-se do outro lado da rua, sob a sombra de um poste cuja l�mpada estava queimada. Pouco
depois, uma ambul�ncia apareceu, e homens vestidos de branco entraram apressados no edif�cio. Mais atr�s, uma patrulhinha estacionou, e dois guardas desceram. Alguns
vizinhos apareceram nas janelas, mas ningu�m sabia de nada, ningu�m a havia visto. Ma�sa tinha medo de qualquer coisa que se relacionasse � pol�cia, por causa de
seu envolvimento com o movimento estudantil na faculdade. Fizera parte da UNE e chegara a ser fichada na pol�cia, mas o pai do namorado, que era desembargador no
Tribunal de Justi�a, conseguira solt�-la. De l� para c�, jurara a si mesma que n�o se envolveria mais com pol�tica ou a ditadura e evitava qualquer contato com a
pol�cia. Instantes depois, os enfermeiros apareceram carregando uma maca, com o corpo de Marcela estendido, e Ma�sa apertou os dentes na m�o cerrada. Estaria ela
morta? N�o saberia dizer. Esperou at� que os guardas sa�ssem tamb�m e voltou para casa.
- E ent�o? - indagou Luciana, logo que ela abriu a porta. Como � que ela est�?
Ma�sa estava l�vida feito uma folha de papel. Apanhou um copo de �gua e bebeu com avidez, jogando-se pesadamente no sof�.
- Voc� nem queira imaginar - come�ou ela a dizer. Quando cheguei l�, encontrei Marcela deitada na cama, agarrada ao seu retrato, com um vidro de p�lulas para dormir
ca�do no ch�o.
- Meu Deus! Ela est� morta?
- N�o sei. Quando sa�, ela estava respirando.
- Voc� a deixou l�?
- � claro que n�o. Liguei para a emerg�ncia e me mandei. Ah! E tirei a foto das m�os dela.
Ma�sa apanhou na bolsa o retrato de Luciana, estendendo-o a ela.
- Por que fez isso? - quis saber Luciana.
- Voc� sabe que n�o posso ter complica��es com a pol�cia. Pensei que voc� tamb�m n�o quisesse. Imagine o que a pol�cia n�o vai dizer quando descobrir que ela tentou
se matar por sua causa.
- Mas o que aconteceu a ela? Para onde a levaram?
- Para o hospital, � claro.
- Que hospital? Como � que vamos saber para onde ela foi?
- Quer um conselho, Luciana? Sei que � dif�cil, mas � melhor esquecer o que houve. N�o h� nada que voc� possa fazer. Marcela est� sendo cuidada, n�o � mais problema
seu.
- Como pode ser t�o fria, Ma�sa? E se ela morrer?
- N�o quero que ela morra, mas n�o podemos fazer mais nada. Agora, � com os m�dicos.
- Voc� est� � com medo de que a pol�cia venha bater aqui n�o �?
- J� disse que n�o posso me envolver...
- Eu sei, eu sei! Mas eu tamb�m n�o posso ficar aqui sentada sem saber o que aconteceu a Marcela. Tenho que fazer alguma coisa.
- Acho melhor voc� n�o fazer nada. A pol�cia vai querer saber quem foi que telefonou.
- Posso dizer que fui eu.
- Ah! �? E por que se mandou? S� foge quem � culpado. Pelo amor de Deus, Luciana, n�o me crie problemas. Mais tarde, posso pedir ao Breno para ver se o pai dele
descobre alguma coisa.
Embora contrariada, Luciana acabou aquiescendo. Tinha medo de comprometer Ma�sa, que tudo fizera para ajudar. Em considera��o a ela, esperaria at� o dia seguinte,
quando Breno, seu namorado, poderia obter algum tipo de informa��o atrav�s do pai. Se ele n�o conseguisse nada, ela mesma procuraria Marcela, nem que tivesse que
telefonar para todos os hospitais da cidade. Quando Marcela abriu os olhos, a primeira coisa que viu foi um mo�o louro, olhos azuis, todo vestido de branco, sorrindo
para ela.
- Eu morri? - divagou ela, ainda meio zonza.
- Isto aqui n�o � o c�u, nem eu sou o seu anjo da guarda - respondeu o rapaz, endere�ando-lhe um sorriso compreensivo. Voc� est� no hospital do Andara�, e eu sou
o m�dico de plant�o.
- M�dico? Hospital? Mas o qu�...?
S� ent�o Marcela se lembrou do que havia acontecido: de Luciana, do desespero, dos rem�dios. Sentiu-se profundamente constrangida com a situa��o. Tinha medo de que
descobrissem que ela havia tentado se matar por causa de outra mulher.
- Est� tudo bem - confortou o m�dico. Conseguimos chegar a tempo.
- Obrigada - falou ela timidamente.
Em seguida, fechou os olhos e adormeceu. Certificando-se de que ela voltara a dormir, o m�dico auscultou-a ainda uma vez e foi cuidar de outros doentes. N�o conseguiu,
contudo, desviar os pensamentos daquela mo�a. Havia algo nela que lhe chamara a aten��o. O que levaria uma jovem t�o linda �quele ato extremo? Na certa, fora abandonada
pelo namorado e n�o conseguira suportar a separa��o. E onde estariam seus pais? Por que ningu�m aparecera para cuidar dela? Mais tarde, quando ele retornou � enfermaria,
Marcela j� estava acordada, tomando a sopa que a enfermeira deixara em sua cabeceira.
- Ol� - cumprimentou ele gentilmente. Que bom que j� est� melhor!
- Obrigada... - murmurou ela, enfiando a colher de sopa na boca para n�o precisar dizer mais nada.
- Voc� se chama Marcela, n�o �?
- Como � que soube?
- A pol�cia me informou.
- Pol�cia? Mas eu n�o fiz nada de errado!
- Bem, voc� tentou se matar, e isso � caso de pol�cia. Sabe como �, eles t�m que saber se foi tentativa de suic�dio mesmo.
- Isso foi... uma loucura. Eu estava fora de mim.
- N�o precisa falar nada. Sei o quanto deve ser doloroso para voc�. Procure n�o se lembrar de coisas tristes agora.
- Obrigada, doutor...
- Fl�vio. Mas n�o precisa me chamar de doutor, n�o.
Marcela achou encantador o sorriso de Fl�vio e abaixou os olhos, envergonhada. Nunca, em toda a sua vida, tivera tal pensamento com rela��o a um homem.
- Quando vou ter alta?
- Amanh�. Voc� est� muito bem, e n�o vejo motivos para mant�-la aqui - notando o seu ar de tristeza, Fl�vio considerou. O que h�? N�o est� contente por poder sair?
- Estou... Mas � que...
A frase morreu em seus l�bios. Em lugar de palavras, o que saiu de sua boca foram solu�os angustiados e sentidos, e ela afundou o rosto no travesseiro, chorando
copiosamente. Penalizado, Fl�vio alisou os seus cabelos, sentindo estranha como��o a domin�-lo e retrucou com ternura:
- Chorar faz bem � alma e ao cora��o. Deixe que as l�grimas lavem o seu peito de toda a dor.
Ouvindo t�o ternas palavras, Marcela redobrou o pranto, agarrando a m�o que a acariciava. S� depois de muitos minutos foi que ela parou e, durante todo aquele tempo,
Fl�vio permitiu que ela segurasse a sua m�o, apertando a dela como a lhe transmitir for�a. Quando ela finalmente se acalmou, enxugou os olhos e evitando encar�-lo,
disse em tom de desculpas:
- Sinto muito, doutor Fl�vio... � que � tudo t�o dif�cil...!
- Eu sei, compreendo. Voc� passou por momentos realmente dif�ceis. Esteve entre a vida e a morte e, embora eu n�o saiba nem queira saber que motivos a levaram a
t�o desesperado ato, sei que deve ter sido algo tamb�m muito dif�cil. Mas voc� est� viva, e � isso o que importa.
- Estou sozinha no mundo. Nada mais me resta...
- N�o diga isso. Voc� � jovem, tem a vida toda pela frente.
- Sinto que minha vida acabou...
Fl�vio estava certo de que Marcela havia passado por grave decep��o amorosa, mas n�o queria constrang�-la nem reavivar lembran�as dolorosas.
- Sua vida mal come�ou - tornou ele, animador. Pessoas e coisas v�m e v�o de nossas vidas, deixam marcas em nossos cora��es, mas n�o t�m o poder de levar nossa alegria
com elas. Voc� s� precisa se recuperar e descobrir quantas coisas boas pode fazer por voc�.
- N�o posso fazer nada por mim.
- N�o � verdade. Pode dar o melhor de si. E a sua contribui��o para o mundo?
- N�o tenho nada para dar ao mundo.
- N�o acredito. O que voc� faz?
- Sou professora de literatura.
- � mesmo? Viu s� como voc� � �til e importante? Quantos alunos dependem de voc�, neste momento, para se educar e crescer?
- H� muitos professores de literatura no mundo.
- Mas, se voc� sumir, o mundo vai ter um a menos. N�o ser� uma pena?
Marcela n�o p�de deixar de sorrir. O doutor Fl�vio estava se esmerando para anim�-la, e ela ficava contradizendo tudo o que ele dizia, com um pessimismo que j� come�ava
a ser desagrad�vel.
- O senhor tem raz�o, doutor. O que fiz foi uma tolice, mas eu estava desesperada.
- Desespero tamb�m vem e vai. Se tivermos paci�ncia e confian�a, ele desaparece como veio.
- O senhor � sempre assim t�o otimista?
- Muito mais quando deixam de me chamar de senhor - ela riu com mais desenvoltura, e ele sentiu que estava preso �quele sorriso ing�nuo e at� mesmo infantil. Sabia
que tem um lindo sorriso? - prosseguiu ele, fazendo-a corar.
- Est� sendo gentil - retrucou-a, ao mesmo tempo feliz e embara�ada com aquele elogio.
- Quantos anos voc� tem?
- Vinte e seis, quase vinte e sete.
- Tudo isso? Parece mais jovem.
- Obrigada. E voc�, quantos anos tem?
- Vinte e nove - e, baixando a voz, acrescentou em tom jovial: E ainda estou solteiro.
Ela tornou a rir e, quando deu por si, estava em animada conversa com aquele m�dico desconhecido. Ficaram conversando amenidades por quase uma hora, at� que a enfermeira
veio cham�-lo para atender outro paciente.
- Vir� me ver antes de eu ir embora? - indagou ela, s� ent�o se dando conta do quanto a companhia dele lhe fazia bem.
- � claro! Ou pensa que vou deix�-la me abandonar assim?
Ele sorriu e lhe atirou um beijo com as m�os, que ela fingiu apanhar no ar. Por uns momentos, desligara-se da realidade, presa ao encantamento daquele m�dico. O
que seria aquilo? Por que sentira tanta simpatia por um estranho? Marcela nunca tivera um namorado. A �nica pessoa com quem se relacionara fora Luciana. O que estaria
acontecendo agora que a fazia interessar-se por um homem? Ser� que estaria mesmo interessada? Ou se deixara levar pela gentileza com que ele a tratava em um momento
t�o dif�cil? De qualquer forma, era muito bom sentir-se admirada e desejada, ainda mais por um rapaz bem-apessoado como o doutor Fl�vio. Enquanto isso, Luciana se
retorcia de preocupa��o, colada a Breno, namorado de Ma�sa, que tentava descobrir o paradeiro de Marcela. Alguns telefonemas depois, finalmente descobriu-a no hospital
do Andara�, onde dera entrada dois dias antes e fora imediatamente socorrida, submetendo-se a uma lavagem estomacal para retirada dos muitos rem�dios para dormir
que havia ingerido. Naquele momento, encontrava-se bem e fora de perigo.
- Gra�as a Deus! - exclamou Luciana, bastante aliviada. Por instantes, temi pelo pior.
- Viu? - tornou Ma�sa. Ela est� bem. Est� satisfeita?
- Gostaria de visit�-la.
- N�o sei se seria boa id�ia - rebateu Breno. A pol�cia pode fazer perguntas.
- Mas que medo da pol�cia, voc�s dois, hein?
- Sabe que Ma�sa n�o pode envolver-se.
- Sei, sei. Mas e eu? N�o tenho nada com isso.
- Por favor, Luciana - pediu Ma�sa -, n�o v�. Ela est� bem. Voc� pode visit�-la depois.
- Mas ela vai achar que eu n�o estou me importando!
- Ou pode pensar que voc� se arrependeu e quer voltar.
- Ora, Ma�sa, francamente, isso n�o � hora de pensar nisso.
- Mande-lhe algumas flores - sugeriu Breno.
- Isso tamb�m pode n�o ser uma boa id�ia - contrap�s Ma�sa. A pol�cia pode querer saber quem foi que mandou as flores.
- Querem saber de uma coisa, voc�s dois? - redarguiu Luciana, irritada. Vou mandar-lhe flores, sim. E, se a pol�cia fizer perguntas, azar. Direi que fui eu que chamei
a emerg�ncia e fugi apavorada.
Sem dar aten��o aos protestos de Ma�sa, Luciana comprou um lindo buqu� de rosas amarelas e o enviou a Marcela, no hospital. Queria ir pessoalmente, mas ainda n�o
estava certa se seria mesmo uma boa id�ia. Ma�sa dissera tantas coisas sobre pol�cia, que ela, no fundo, tinha medo de comprometer a amiga. Mas flores, ela pensava,
n�o fariam nenhum mal. Para a pol�cia, o caso estava encerrado antes mesmo de come�ar. Assim que viram a mo�a estirada na cama, com o vidro de rem�dios ao lado,
os policiais conclu�ram que se tratava mesmo de uma tentativa de suic�dio. N�o havia d�vidas. Os vizinhos disseram que ela morava com uma amiga, e eles deduziram
que a tal amiga havia-lhe roubado o namorado, o que a levara ao gesto extremo. N�o havia mais o que questionar. Ao despertar na manh� seguinte, Marcela sentiu o
perfume suave das flores invadindo suas narinas e surpreendeu-se vendo que elas haviam sido enviadas por Luciana.
- Enfermeira! - chamou ela, com o cart�ozinho nas m�os. Quem trouxe estas flores?
- O rapazinho da floricultura. N�o s�o lindas?
- E a pessoa que as enviou? N�o veio tamb�m?
- Ningu�m veio visit�-la, sinto muito.
- N�o tem import�ncia.
- N�o fique triste. Voc� vai sair hoje. O doutor Fl�vio, em pessoa, disse que vir� para assinar a alta. Ele n�o � bonit�o? Marcela assentiu, sem gra�a.
- E parece que gostou de voc�.
- Acho que n�o � bem assim. Ele estava apenas sendo educado.
- Muito educado! Ora, vamos, menina, n�o ligue para esse antigo namorado. Foi por causa de um rapaz, n�o foi? Que voc� tentou se matar? Esque�a-o. Ele n�o a merece.
Marcela sorriu meio sem jeito e ocultou o cart�o entre as m�os. N�o queria que ningu�m soubesse que ela tentara se matar por causa de uma mulher.
- Vou esquecer - afirmou, achando que seria melhor que todos pensassem que a tentativa de suic�dio fora devido a um namorado.
- Ah! Veja, o doutor Fl�vio j� chegou. Adeus, menina, e boa sorte.
- Bom dia - cumprimentou ele, tomando-lhe o pulso nas m�os. Sente-se bem?
- Sim.
- �timo - em seguida, auscultou-a novamente, examinou seus olhos e apertou sua barriga. Sente alguma dor?
- N�o.
- Muito bem. Voc� j� pode ir. Tem algu�m para busc�-la?
Instintivamente, Marcela olhou para as flores ao lado da cama e respondeu com tristeza:
- N�o.
Foi ent�o que Fl�vio notou as rosas amarelas e retrucou com certo desapontamento:
- Vejo que voc� tem um admirador.
- N�o. S�o... de uma amiga.
- Uma amiga? Tem certeza?
- Tenho.
Ela exibiu o envelope onde Luciana depositara o cart�ozinho e, ao ler o nome da mo�a, Fl�vio suspirou mais animado.
- Menos mal. Pensei que mais algu�m estivesse interessado em roubar o seu cora��o.
- Mais algu�m?
- N�o diga nada, mas eu sou o outro algu�m. Ela corou violentamente e n�o respondeu. Desde ontem, n�o consigo parar de pensar em voc�. Ser� que n�o podemos nos encontrar
fora daqui?
- Nos encontrarmos fora daqui?
- Sei que o momento n�o � o mais apropriado, mas gostaria de, ao menos, ser seu amigo.
- Meu amigo?
- Ser� que voc� vai ficar repetindo tudo o que eu digo? Por que n�o me d� uma resposta direta? Se voc� n�o quiser se encontrar comigo, tudo bem, eu vou embora e
n�s nunca mais nos veremos. Mas, se voc� me der uma chance, prometo que n�o vai se arrepender.
Pelo jeito como falava, Fl�vio parecia muito interessado nela. E, pelo visto, nada sabia sobre seu envolvimento com Luciana. Marcela ficou se perguntando o que todos
teriam pensado ao encontr�-la inconsciente, agarrada ao retrato da outra, mas n�o teve coragem de perguntar. Talvez Fl�vio n�o soubesse desse detalhe, e n�o seria
ela quem iria lhe dizer. Ainda mais porque se sentia imensamente atra�da por ele. N�o compreendia de onde vinha tanta atra��o, mas, naquele momento, n�o tencionava
questionar. Podia ser que Fl�vio representasse apenas um amigo, algu�m em quem pudesse se apoiar naquele momento t�o dif�cil, e depois ela se desinteressasse dele
com a mesma velocidade com que se interessara. Fosse como fosse, precisava ocultar-lhe a verdade a qualquer custo.
- Gostaria muito de encontr�-lo fora daqui - sussurrou ela, finalmente.
- S�rio?
- S�rio. Voc� me parece uma boa pessoa, e estou precisando de um amigo.
- Excelente! Onde � que voc� mora?
- D�-me um peda�o de papel, que escreverei meu telefone e o endere�o.
Ele catou no bolso um pedacinho de papel, uma caneta e estendeu-os a ela, que os apanhou e anotou tudo. Devolveu-os, e ele a fitou com interesse.
- Quando poderei v�-la?
- Quando quiser.
- Saio do plant�o �s sete. Posso passar na sua casa �s oito? Apanh�-la para jantar?
- �s oito horas est� bom. Estarei esperando.
Marcela abaixou novamente os olhos, engoliu em seco e prosseguiu constrangida:
- Fl�vio... N�o sei como lhe dizer isso, mas... estou sem dinheiro. Quando me trouxeram para c�, vim sem a carteira. Ser� que voc� podia me emprestar dinheiro para
o t�xi? Lhe pago quando voc� chegar l� em casa.
Ele retirou algumas notas do bolso e depositou-as na m�o de Marcela, acrescentando com carinho:
- V� com calma, menina. N�o deixe que nada mais lhe aconte�a. De hoje em diante, voc� tem um amigo que se interessa por voc�.
Marcela podia sentir a sinceridade na sua voz, e uma calma inigual�vel foi tomando conta dela. Ele teve que sair para atender outros doentes, e ela se levantou,
indo aprontar-se para sair. Meteu o cart�ozinho de Luciana no bolso, apanhou as flores do vaso e se foi. O apartamento parecia vazio sem os vest�gios de Luciana.
O arm�rio sem roupas, um buraco na estante onde ficavam seus livros. Marcela estava sozinha, e uma profunda tristeza a foi dominando por inteiro. De repente, a lembran�a
de Luciana lhe trouxe l�grimas aos olhos, e ela se atirou na cama, chorando sem parar. Ficou deitada por quase uma hora, acariciando o lugar que ainda guardava o
cheiro da outra. Tudo parecia um sonho; ou melhor, um pesadelo. As flores que Marcela colocara no vaso, em cima da escrivaninha, davam-lhe a certeza de que Luciana
se fora de vez. Ela era sempre muito segura e n�o costumava voltar atr�s em suas decis�es. Nunca se arrependia de nada, porque pesava muito os pr�s e os contras
antes de agir. Luciana n�o tinha medo de viver. Fazia o que bem entendia e enfrentava as dificuldades com coragem e persist�ncia, sem depender de ningu�m. N�o era
feito ela, medrosa e insegura, dependente do amor e da presen�a de mais algu�m. Desde que sa�ra de Campos, nunca ficara sozinha. As duas, at� ent�o, estavam sempre
juntas, sa�am juntas, viajavam juntas. Luciana n�o se importava com o que as pessoas pensassem dela e, embora n�o assumisse publicamente que vivia com outra mulher,
n�o se escondia do mundo nem inventava mentiras para manter as apar�ncias. Na faculdade, Marcela sempre se esquivara das outras mo�as, com medo de que lhe fizessem
perguntas e acabassem descobrindo sua rela��o com Luciana. Para todos os efeitos, elas eram apenas duas amigas que vieram de Campos e dividiam agora um apartamento.
Se algu�m desconfiou, n�o disse nada, e Marcela tamb�m n�o pediu a opini�o de ningu�m. Os rapazes, no come�o, ainda tentaram umas investidas, mas ela era t�o fria,
t�o distante e fechada, que eles logo desistiram. S� vivia para Luciana. Por que ter outros amigos se Luciana lhe bastava? Embora a companheira lhe dissesse que
era bom ter novas amizades, Marcela n�o conseguia. O medo e a inseguran�a a afastavam de todos, e ela pensava que, enquanto tivesse Luciana, n�o precisaria de mais
ningu�m. Achava que a outra tamb�m agiria assim e ficou um tanto decepcionada quando ela voltou para casa, um dia, em companhia de Ma�sa. Marcela ficou ofendida
e magoada, com ci�mes e insegura. Mas Ma�sa mostrou-se desligada de tudo aquilo e apareceu depois com o namorado, deixando claro que n�o estava interessada em Luciana.
O ci�me foi passando, at� que ela teve certeza de que as duas eram apenas amigas, e Luciana havia se aproximado de Ma�sa porque ela era uma mo�a livre, que tamb�m
sa�ra de casa, no interior, para vir estudar no Rio, e n�o se importava se elas eram l�sbicas ou n�o. Bem diferente das outras garotas, que viviam com os pais e
estavam acostumadas a fazer tudo certinho. Foram tempos maravilhosos ao lado de Luciana, mas aquilo agora havia acabado. Por causa dela, Marcela quase cometera uma
loucura. Nem sabia por que n�o tinha morrido. Algu�m a socorrera, mas ela n�o sabia quem fora. E o retrato de Luciana, ao qual se agarrara antes de perder a consci�ncia?
Onde teria ido parar? Procurou-o rapidamente, mas n�o o encontrou por ali. Talvez Luciana tivesse voltado e a encontrado desmaiada, chamando ent�o os m�dicos e levando
consigo o retrato. S� podia ser isso. A campainha do telefone soou estridente, e Marcela levou um susto, correndo para ele com ansiedade. Talvez fosse Luciana. S�
podia ser Luciana!
- Al�? - atendeu com excita��o.
- Marcela, � voc�?
A voz de homem a assustou, e ela respondeu decepcionada:
- Eu mesma. Quem �?
- Fl�vio. J� se esqueceu de mim?
Ela se lembrou do m�dico novamente, e seu cora��o se desanuviou. De repente, a imagem de Luciana desapareceu de seus pensamentos, e uma alegria incontida tomou conta
de sua alma.
- Doutor Fl�vio! � claro que n�o me esqueci do senhor.
- Pensei que j� tiv�ssemos superado a fase das formalidades.
Ela riu gostosamente e retrucou de bom humor:
- Desculpe-me, Fl�vio. � que minha m�e me ensinou a ser uma mo�a educada.
- Voc� �. Educada e maravilhosa.
Ela n�o respondeu, intimamente sorrindo ante aquelas palavras.
- Ei! Voc� ainda est� a�?
- Estou aqui.
- Que bom. Pensei que j� tivesse me abandonado antes mesmo de come�ar a sair comigo.
- � claro que n�o.
- �timo. E agora deixemos as brincadeiras de lado. Liguei para saber como voc� est� passando.
- Estou bem.
- Nenhuma depress�o? Sabe como �, a volta para casa costuma trazer lembran�as que reavivam o desejo de morrer.
Ele foi t�o direto que ela se chocou e respondeu com hesita��o:
- N�o quero morrer... N�o mais.
- Fico feliz. Ent�o, descanse por hoje, ou melhor, at� a noite, e arrume-se bem bonita. Vou lev�-la a um lugar especial.
- Que lugar?
- Voc� vai ver. Um beijo e at� mais.
- Outro...
Fl�vio desligou o telefone, e ela pousou o fone no gancho. O que seria aquilo que estava sentindo? Nunca se interessara por nenhuma outra pessoa al�m de Luciana,
mas agora se pegava pensando naquele m�dico. Era bonito, charmoso e muito espirituoso. E estava interessado nela. Ser� que ela estaria se interessando por ele tamb�m?
Ou estaria apenas sensibilizada com tanta aten��o? Pensando nisso, Marcela desejou que aquele sentimento que come�ava a brotar pelo m�dico n�o se extinguisse com
o passar do tempo. Estava sendo muito bom sentir-se desejada por ele, e mais, desej�-lo tamb�m. De repente, ficou imaginando como seria fazer amor com um homem,
e seu corpo encheu-se de desejo. Que novas sensa��es seriam aquelas que estava experimentando? Subitamente, percebeu que queria estar bonita para quando ele chegasse.
Deixando de lado a saudade de Luciana, abriu a porta do arm�rio e come�ou a revirar suas roupas. N�o tinha nada deslumbrante. N�o costumava ser feminina, vestia-se
com simplicidade, geralmente de cal�a jeans e camiseta de malha. Mesmo quando ia trabalhar, colocava uma saia reta e sem gra�a, sapatos rasteiros e quase n�o usava
maquiagem. S� um pouco de blush e batom bem clarinho. Naquela noite, contudo, usaria algo especial. Queria impressionar Fl�vio. Antes, queria impressionar a si mesma.
Uma vontade de se fazer bonita para ele a foi dominando, e ela amaldi�oou o arm�rio. Precisava sair e comprar roupas novas. Come�aria uma nova vida dali em diante,
e a mudan�a no guarda-roupa seria a primeira que empreenderia. Tomou um banho r�pido, vestiu-se apressada e foi �s compras. Ainda bem que era per�odo de f�rias escolares,
e ela podia fazer de seu tempo o que bem entendesse. Passou a manh� toda fazendo compras, o que a ajudou a n�o pensar em Luciana. Comprou coisas bonitas, que nunca
havia usado antes, e voltou para casa satisfeita, carregada de embrulhos. Fez uma arruma��o no arm�rio, separando as pe�as que j� n�o queria mais, e usou o lado
de Luciana para guardar as roupas e os sapatos novos. A tarde passou, e ela nem percebeu. Ao terminar a arruma��o, estava cansada e com fome, mas valera a pena.
Juntara duas sacolas de roupas usadas, que entregaria num asilo, e o arm�rio estava limpo e arrumado, cheio de roupas bonitas penduradas e sapatos brilhantes enfeitando
a sapateira. Terminara tudo bem a tempo. O rel�gio da sala batera seis horas. Era hora de come�ar a se aprontar. Marcela tomou um banho demorado, lavou os cabelos
e escolheu o vestido branco que comprara especialmente para aquela noite. Cal�ou sand�lias de salto alto, que n�o estava acostumada a usar, e passou a maquiagem
desajeitadamente. Atrapalhou-se um pouco com a sombra e o l�pis de olho, mas insistiu at� conseguir um bom resultado. O cabelo precisava de um corte, mas n�o estava
ruim, e ela o penteou vigorosamente, deixando-o solto por cima dos ombros. As unhas estavam pintadas com um esmalte quase branco, e ela decidiu que, da pr�xima vez,
usaria um tom mais vivo, como um rosa ou um vermelho. Ao final, olhou-se no espelho, deu uma, duas voltas, apreciando o efeito que a roda do vestido fazia, e sorriu
satisfeita, muito satisfeita. Nunca se achara t�o bonita como naquele dia. �s oito horas em ponto, Fl�vio tocou a campainha, e seu cora��o deu um salto. Ser� que
ele a acharia bonita? Queria, desesperadamente, que ele a achasse bonita. E Luciana? Se a visse daquele jeito, ser� que aprovaria? N�o, n�o queria pensar em Luciana.
Balan�ou a cabe�a de um lado a outro, apanhou a bolsa nova e saiu cambaleante, tentando se equilibrar no imenso salto a que n�o estava acostumada.
- Voc� est� linda - elogiou Fl�vio assim que ela apareceu, beijando-a de leve no rosto. Realmente deslumbrante.
- Obrigada - falou ela, abaixando os olhos e corando levemente.
Foram a um restaurante elegante, onde Fl�vio j� era conhecido e havia reservado uma mesa. Escolheram os pratos, e ele pediu champanha. Esperou at� que o gar�om os
servisse e levantou a ta�a, dizendo com anima��o:
- Ao futuro e � vida - e, olhando fixamente em seus olhos, concluiu: E a n�s dois.
Ela apenas sorriu e brindou com ele. Estava feliz e satisfeita, nem pensava em Luciana.
- Como foi o seu dia? - indagou ele, para puxar assunto.
- Foi bom. Fiz umas compras e arrumei o arm�rio.
- Muito bem! Nada como jogar fora o velho para come�ar vida nova.
- � verdade.
Fl�vio evitava tocar no assunto do quase suic�dio, e ela tamb�m n�o queria falar sobre aquilo. N�o havia pensado em nada para lhe dizer. S� o que sabia era que n�o
poderia lhe contar a verdade. O que ele pensaria se descobrisse que ela fora amante de outra mulher e tentara se matar por causa dela? E, mais ainda, que estava
apaixonada por ela e queria muito que ela voltasse? Ah! Se Luciana voltasse, largaria tudo e correria para ela. Nem pensaria mais em Fl�vio.
- Voc� mora sozinha? - perguntou ele, de forma casual.
- Moro.
- E os seus pais, onde est�o?
- Em Campos, onde nasci.
- Tem contato com eles?
- N�o. Faz tempo que n�o os vejo.
- N�o sente falta deles?
Fazia muito tempo que Marcela n�o pensava nos pais. Depois que fugira de Campos, telefonara para tranq�iliz�-los, mas o pai a recebera mal, dizendo que n�o tinha
mais filha. Ficara sabendo do seu envolvimento com Luciana e se chocara. N�o queria v�-la nunca mais. Dois anos depois, ligou para eles novamente, no Natal, e descobriu
que agora tinha um irm�ozinho, e o pai fora bem claro ao afirmar que n�o precisava mais dela. Tinha um filho que lhe traria orgulho e alegrias, e jamais o decepcionaria
como Marcela o fizera. Ela ficou contente com o nascimento do beb� e demonstrou o desejo de conhec�-lo, mas o pai foi categ�rico: n�o queria que ela se envolvesse
com o pequeno e n�o pretendia deixar que ele soubesse que, um dia, tivera uma irm�. Marcela ainda tentou apelar para a m�e, mas ela, encantada com o ca�ula tempor�o,
endossou as palavras do pai e pediu para que ela nunca mais os procurasse. Fl�vio, contudo, jamais poderia conhecer essa parte da sua vida, e ela respondeu com receio:
- Sa� de Campos h� oito anos, e acabamos perdendo contato. Hoje somos quase estranhos.
- Mas por qu�? Voc�s brigaram?
- N�o � que tenhamos brigado. Fugi de casa aos dezoito anos. Queria estudar, viver numa cidade grande, e meus pais n�o concordavam. Sabe como �: gente de cidade
pequena, eles tinham medo de que eu me perdesse aqui no Rio.
- Entendo. Mas por que voc� n�o os procurou depois de formada? J� maior de idade, dona do seu nariz, com emprego.
- No come�o, foi dif�cil. Mas eu consegui me formar e passar num concurso.
- Seus pais n�o sentem orgulho de voc�?
- Devem sentir... N�o sei bem. Eles n�o aprovam mulheres que trabalham fora.
- Voc� � uma mo�a muito corajosa e determinada. Poucas, no seu lugar, teriam ido t�o longe. A maioria vem para c� e, ante as dificuldades, acaba se perdendo e caindo
na vida, ou ent�o consegue um emprego de dom�stica ou balconista. N�o que eu tenha algum tipo de preconceito contra essas profiss�es, em absoluto. Acho que todas
s�o necess�rias e valorizo muito quem trabalha assim. Mas esse n�o � o sonho de quem se muda para a cidade grande, n�o � mesmo?
- Acho que n�o.
Marcela respondeu com temor, embora ele nada percebesse. Ent�o ele a achava corajosa e determinada? Mas como, se ela era insegura e amedrontada? Era o que parecia,
porque ele n�o a conhecia, n�o conhecia Luciana, n�o sabia que fora ela a respons�vel por todo o sucesso na sua vida. E agora, sem ela, sentia-se perdida e abandonada,
sem ningu�m para cuidar dela. Talvez Fl�vio cuidasse dela. Era um homem bom e, ele sim, determinado e muito seguro de si mesmo.
- Voc� est� me ouvindo? - tornou ele, percebendo que ela n�o lhe prestava mais aten��o. A comida chegou.
- O qu�? - ela se assustou, vendo o prato que o gar�om colocara diante dela. Oh! Desculpe-me, Fl�vio, de repente, me desliguei.
- Percebi. S�o lembran�as ou fantasmas?
- Acho que um pouco dos dois. Estava pensando na minha fam�lia.
- S� nisso?
- Sim. Por qu�?
- Por nada.
� claro que Fl�vio achava que ela pensava no suposto ex-namorado, causa de todo o seu infort�nio, mas ela nada fez para diluir essa impress�o. Evitaria ao m�ximo
tocar naquele assunto com Fl�vio ou com qualquer outra pessoa. Ele, por sua vez, julgando que ela ainda n�o estava pronta para falar, e n�o querendo invadir a sua
privacidade, silenciou e n�o fez mais perguntas a respeito.
- O que fazem seus pais? - o retrucou, como se de nada desconfiasse.
- Minha m�e � dona de casa, e meu pai tem uma padaria.
- Voc� tem irm�os?
- Tenho. Deve estar com uns seis anos agora.
- Deve ser bom ter um irm�o pequeno.
- Voc� � filho �nico?
- Sou.
- Na verdade, � como se eu tamb�m fosse. Quando ele nasceu, eu j� tinha ido embora de Campos. Fui criada sozinha.
- Voc� n�o o conhece?
- N�o.
Era a primeira vez que Marcela falava sobre a fam�lia com algu�m, al�m de Luciana, o que a deixou confusa. Mas Fl�vio, notando o seu desconforto e n�o conseguindo
mais conter a admira��o, perguntou sem rodeios:
- Voc� quer me namorar?
- O que foi que disse? - tornou ela, perplexa.
- Sei que a hora n�o � a mais oportuna. Voc� passou por momentos dif�ceis e talvez ainda n�o se sinta pronta para iniciar uma nova rela��o. Mas, desde que a vi hoje
pela manh�, n�o consigo parar de pensar em voc�. Estou sendo sincero, foi amor � primeira vista.
Ela riu em d�vida e objetou:
- Amor � primeira vista... N�o sei se acredito nisso.
- Eu tamb�m n�o acreditava, at� conhecer voc�. Quando a vi, meu cora��o deu uma cambalhota e quase foi parar no est�mago. Parecia at� que j� a conhecia antes.
- Voc� est� sendo rom�ntico.
- Pode at� ser. Mas uma coisa � certa: voc� me impressionou como nenhuma outra jamais o fez. Em um dia, cativou mais o meu cora��o do que tantas outras j� tentaram
fazer em anos.
- Convencido. S� para me dizer que j� teve muitas mulheres apaixonadas por voc�.
- N�o � nada disso. Tive muitas namoradas, n�o nego, e algumas se apaixonaram mesmo por mim. Mas eu jamais me interessei por nenhuma delas. N�o como estou interessado
em voc�.
- E quem me garante que esse interesse n�o vai passar um dia? Talvez voc� descubra que eu sou como todas as outras e se desinteresse de mim tamb�m.
- Voc� n�o � como as outras.
Aquela conversa estava deixando-a confusa e transtornada. Como ser� que ele reagiria se soubesse de Luciana? Ele tinha raz�o: ela n�o era como as outras. Seria certo
engan�-lo, deixando-o pensar que ela s� se relacionara com homens? Esse pensamento a assustou, e ela contrap�s acabrunhada:
- Voc� n�o se incomoda com o fato de eu... ter feito o que fiz?
- O que voc� fez? Nada. Foi um ato de desespero. Sei que n�o faria isso de novo.
- Como pode ter tanta certeza?
- Eu estarei aqui para ajud�-la. N�o sei o que se passou entre voc� e seu namorado, nem me interessa saber.
- N�o interessa?
- N�o. Se voc� quiser me contar, muito bem. Antes de tudo, quero ser seu amigo, e voc� pode confiar em mim. Mas, se n�o quiser falar, n�o faz mal. O que voc� fez
da sua vida antes de me conhecer n�o � problema meu.
- Tem certeza?
- Tenho.
- Qualquer coisa?
- Se est� tentando me dizer que se entregou ao seu namorado, n�o precisa se preocupar. N�o sou do tipo conservador e n�o me importo com isso. N�o me importaria nem
se voc� j� tivesse dormido com a torcida do Flamengo inteira.
Como ele era inocente! Achava que ela dormira com outro homem e n�o era mais virgem. � claro que ela n�o era mais virgem, mas perdera a virgindade em suas loucuras
com Luciana. O que ele diria se soubesse que ela foi deflorada por outra mulher? Teria a mesma compreens�o que demonstrava agora? Pensou em lhe contar a verdade
para ver como ele reagiria. Se n�o a aceitasse, n�o tinha problema. Era praticamente um desconhecido, e ela n�o sentia nada por ele. Ia se preparar para lhe contar
tudo sobre Luciana quando algo surpreendente aconteceu. Eles estavam sentados, de frente um para o outro, e Fl�vio, inesperadamente, puxou a sua cabe�a, aproximando-a
de si, e pousou-lhe delicado beijo nos l�bios, que ela correspondeu com medo e prazer.
- Isso � para voc� ver como n�o faz diferen�a o que voc� fez com seu namorado - falou ele, os l�bios ainda se ro�ando.
- Posso am�-la e respeit�-la ainda assim, tenha voc� dormido ou n�o com outros homens.
Aquele beijo encheu-a de desejo, e ela se pegou pensando novamente em como seria fazer sexo com ele. Quanto mais pensava, mais o desejo aumentava, e seu cora��o
come�ou a bater mais forte, a respira��o foi-se acelerando, e um suor frio desceu de sua testa. Ele a beijou novamente e sussurrou em seu ouvido:
- Vamos sair daqui.
A decis�o de lhe contar sobre Luciana se esvaiu naquele beijo, e ela nada disse. Ele pagou a conta, e sa�ram para a noite. Entraram no carro, e ele dirigiu at� um
motel. Marcela estava assustada, nunca antes havia entrado em um motel, nunca antes se vira numa situa��o daquelas com algu�m al�m de Luciana. Era a primeira vez
que se relacionaria com um homem. Um p�nico a invadiu, e ela pensou em desistir, mas a m�o direita de Fl�vio, deslizando entre suas coxas, fez com que ela reconsiderasse
e s� pensasse nele. Ao lev�-la para o quarto, Fl�vio agiu gentilmente, despertando-lhe sensa��es que ela nunca antes havia experimentado com Luciana. Ela n�o entendia.
Como podia ser que ela, que sempre fora apaixonada por Luciana, se pegava agora ardendo de desejo por um homem, suspirando e gemendo sob seu corpo e em seus bra�os?
Em dado momento, n�o conseguiu pensar em mais nada, entregando-se � paix�o daquele homem com um ardor incontrol�vel. Amaram-se por quase toda a noite e, ao final,
ela estava feliz e extasiada, certa de que nunca sentira tanto prazer em sua vida. Olhando para ele, Marcela teve certeza de que agora mesmo � que n�o conseguiria
lhe contar nada. Os momentos que vivera com ele naquela noite haviam sido maravilhosos e inigual�veis, e ela come�ava a sentir que n�o suportaria perder algu�m novamente.
Se Fl�vio desistisse dela, a frustra��o seria muito grande. Por outro lado, se ele tivesse que partir, seria prefer�vel que o fizesse logo no come�o, enquanto ela
ainda n�o o amava. Marcela, no entanto, sabia que j� n�o poderia mais lhe contar a verdade. Envolvera-se com ele, em apenas uma noite, de tal forma, que n�o poderia
mais prescindir da sua presen�a. N�o lhe contaria nada sobre Luciana. Ele nada sabia a respeito e n�o precisava saber. N�o fora ele mesmo que lhe dissera que seu
passado n�o lhe interessava? Que ela n�o tinha que lhe contar nada, se n�o quisesse? Ent�o, ela podia se sentir desobrigada de lhe contar a verdade. A d�vida ainda
era muito grande, por�m, e ela n�o conseguia se decidir realmente, at� que ele a beijou de novo e recome�ou a acarici�-la, sussurrando com paix�o:
- Voc� � a mulher mais maravilhosa que j� conheci. Estou apaixonado...
Beijou-a com ardor, e ela se entregou a ele outra vez, finalmente sepultando, no mais profundo de seu ser, a vontade de lhe contar sobre Luciana. Fazia muito calor,
Luciana caminhava esbaforida, pulando de sombra em sombra para escapar do sol escaldante. Como gostaria de estar de f�rias! Mas trabalhava em seu pr�prio consult�rio
particular, e profissionais liberais n�o podiam se dar ao luxo de ter f�rias enquanto ainda n�o se firmassem e fizessem nome. E era para isso que se esfor�ava. Mais
alguns minutos e alcan�ou o edif�cio comercial em que ficava o consult�rio. Subiu de elevador e entrou encalorada em seu consult�rio, indo direto beber �gua. Na
outra sala, o barulho do motor se fazia ouvir, e ela se sentou para refrescar-se. Ainda bem que a sala tinha ar-condicionado. Fora o �nico luxo que ela e Ma�sa puderam
pagar. Mais alguns minutos, a porta da sala foi aberta, e o paciente de Ma�sa saiu.
- Precisamos contratar uma secret�ria - disse ela, fechando a porta depois que o rapaz se foi. Est� ficando dif�cil atender os clientes e ainda ter que atender telefone,
marcar consultas e cuidar da parte banc�ria.
- Voc� tem raz�o. Providenciaremos isso mais tarde.
- Mais tarde, n�o. Tem que ser para j�.
- Podemos p�r um an�ncio no jornal.
- N�o seria melhor pedirmos numa ag�ncia? E se aparecer aqui alguma louca, espi� do governo...?
- Deixe de bobagens, Ma�sa. Voc� agora n�o se envolve mais com essas coisas. Vou colocar um an�ncio no jornal e marcar entrevistas para depois do expediente. O que
voc� acha?
- Se voc� garante que n�o tem perigo, para mim, est� bom.
- N�o tem perigo. Pode crer.
- Ent�o est� bem. Voc� cuida disso?
- Cuido, pode deixar.
- Ah! J� ia me esquecendo. Sabe quem eu vi hoje de manh�, quando vinha para c�?
- Quem?
- A Marcela. E adivinhe s�!
- O qu�?
- Estava de m�os dadas com um rapaz.
- Com um rapaz? Est� brincando!
- N�o estou, n�o. E parecia bem feliz.
- Ser� que ela virou hetero (1) agora?
- Vai ver que depois que voc� a deixou, ela ficou t�o decepcionada que resolveu experimentar outras coisas. E pela cara dela, acho que gostou. Se bem que n�o posso
culp�-la. Os homens s�o realmente muito bons...
Luciana riu bem-humorada. J� estava acostumada �quelas brincadeiras de Ma�sa e n�o se importava.
- Ela viu voc�? - retrucou interessada.
- Acho que n�o. Se viu, fingiu que n�o viu. N�o posso culp�-la.
- Por qu�? Ela n�o tem motivos para fingir que n�o a viu. Ou ser� que tem?
- Voc� sabe como as pessoas s�o preconceituosas. E se o namorado n�o aceitar que ela j� tenha tido um caso com outra mulher?
- Ent�o n�o deve gostar dela de verdade, n�o � mesmo? Quem ama n�o se importa com essas coisas.
- Voc� n�o conhece os homens. S�o muito legais e bonzinhos, mas machistas que s� vendo.
- Isso n�o � motivo para viver na mentira.
- Ei! Calma a�. Voc� nem sabe se ela mentiu para ele.
- Isso tamb�m n�o me interessa. Marcela � p�gina virada na minha vida.
(1) Hetero: prefixo de heterossexual, utilizado na linguagem coloquial (N.A.)
- Ser� que voc� n�o est� com ci�me?
- N�o � isso. N�s convivemos por oito anos, e a gente se apega, de uma maneira ou de outra. Gosto de Marcela e quero-lhe muito bem, mas o que ela faz da sua vida
n�o � problema meu.
- Tem certeza de que n�o � ci�me?
- Se fosse para sentir ci�me, n�o a teria deixado.
- Bom, isso � verdade, mas voc� sabe como s�o essas coisas do cora��o: a gente n�o quer mais o outro, mas, quando o v� com mais algu�m, bate um sentimento de posse,
o orgulho cutuca a vaidade, e l� vamos n�s, enveredando pelo caminho do ci�me.
- Eu n�o. N�o sou ciumenta nem possessiva, e n�o quero mais nada com Marcela. Se ela encontrou algu�m que a fa�a feliz, ainda que seja um homem, � muito bom para
ela. Fico feliz com isso tamb�m.
- Voc� � muito engra�ada, Luciana. Se fosse comigo, estaria me roendo de despeito.
- Ainda bem que eu n�o sou como voc�.
O som da campainha interrompeu a conversa, e o primeiro cliente de Luciana chegou. Ma�sa se foi, e ela se concentrou no trabalho, afastando Marcela de seus pensamentos
e s� voltando a pensar nela no final da tarde. Fazia tempo que n�o a via. Desde que a deixara. Soube que ela melhorou e teve alta do hospital, mas n�o a procurou
depois disso. Como ser� que estaria? Pelo que Ma�sa lhe contara, parecia feliz. Encontrara um homem e devia estar namorando. Luciana n�o entendia bem como aquilo
fora acontecer. Tinha certeza de que Marcela n�o gostava de homens, mas podia estar enganada. S� se ela realmente estivesse tentando modificar sua conduta para se
adaptar aos padr�es sociais e deixar de sofrer. Ou, ent�o, talvez estivesse tentando algo novo para ver se a esquecia. Nenhuma das duas hip�teses seria boa, porque
Marcela estaria levando uma mentira para sua vida. Mas ela podia ainda estar apaixonada pelo rapaz. Seria isso poss�vel? Receber not�cias de Marcela fez com que
Luciana sentisse vontade de v�-la novamente, de saber como estava, de conversar com ela. N�o estava com ci�me nem queria voltar, mas ainda se sentia um pouco respons�vel
por ela. Tinha-lhe afei��o, gostaria mesmo de ser sua amiga. Preocupava-se com o seu futuro e n�o queria que ela sofresse. Se ela estivesse mesmo apaixonada pelo
rapaz, n�o teria com o que se preocupar. Mas se o estivesse namorando s� para fugir do sofrimento e da desilus�o, estaria cometendo um erro muito grande, pois acabaria
sofrendo ainda mais e fazendo outra pessoa sofrer tamb�m. No dia seguinte, foi colocar o an�ncio no jornal, que sairia no domingo, e elas tencionavam marcar as entrevistas
para o dia seguinte, se poss�vel. Ocupada com seus afazeres, Luciana deixou de se preocupar com Marcela e concentrou a aten��o no trabalho. O n�mero de clientes
aumentava a cada dia, porque ela e Ma�sa eram realmente muito boas no que faziam, e eles, satisfeitos, as recomendavam a amigos e parentes. Precisavam mesmo de uma
secret�ria, e com urg�ncia. Na segunda-feira, logo pela manh�, o telefone do consult�rio come�ou a tocar. Como Ma�sa atendia de manh�, e ela, � tarde, resolveram
se revezar ao telefone, marcando as entrevistas para depois das seis horas. Muitas mo�as apareceram. O desemprego era grande na �poca, e as oportunidades de trabalho
eram poucas, principalmente para quem n�o tinha experi�ncia. Sens�veis a esse problema, Luciana e Ma�sa n�o fizeram tal exig�ncia, aceitando mo�as inexperientes,
que nunca haviam trabalhado, desde que demonstrassem garra e vontade de aprender. Entrevistaram muitas candidatas, deixando algumas para o dia seguinte. No primeiro
dia, nenhuma delas lhes pareceu adequada. A maioria queria ganhar muito al�m do que elas podiam pagar e preferiam ficar sem o emprego a aceitar trabalhar por menos
do que desejavam. Na ter�a-feira, as entrevistas continuaram, e uma mo�a, em especial, chamou a aten��o de Luciana. Era bonita, de boa apar�ncia, muito viva e inteligente.
N�o tinha experi�ncia, mas demonstrou ser paciente e n�o se queixou das condi��es. Precisava trabalhar para ajudar no sustento da fam�lia e queria crescer na vida.
Chamava-se Cec�lia e acabara de concluir o curso cient�fico, aos dezenove anos.
- E ent�o, o que voc� achou? - perguntou Ma�sa, depois que as entrevistas se encerraram.
- Gostei dessa aqui - respondeu Luciana, exibindo a ficha de Cec�lia. N�o tem experi�ncia, mas n�o � muito exigente e tem boa vontade.
- Hum... N�o sei, n�o. Achei-a um pouco ambiciosa.
- E da�? Um pouco de ambi��o n�o faz mal a ningu�m. Ajuda a crescer e progredir.
- N�o sei. Algo nela n�o me agradou.
- Voc� est� de implic�ncia s� porque ela � bonitinha.
- Ah! � por isso que quer contrat�-la? Porque ela � bonitinha?
- N�o seja boba. Quero contrat�-la porque acho que ela serve para o cargo. Como n�o tem experi�ncia, podemos trein�-la do nosso modo. Aposto como ela vai aprender
tudo com facilidade e rapidez, e n�o demonstrou repulsa a sangue e inje��es. Voc� sabe que teremos que ensinar a auxiliar a preparar massas, anestesias e radiografias,
n�o sabe? Ma�sa assentiu. Ent�o? Cec�lia me parece perfeita para isso.
Ma�sa suspirou profundamente e deu de ombros:
- Est� bem. N�o sei o que voc� viu nessa Cec�lia, mas se gostou dela... seja feita a sua vontade.
- �timo! Vou telefonar para ela amanh�, dizendo que a vaga � dela, e ela pode come�ar na quinta-feira mesmo, se n�o tiver problemas.
Na quinta-feira, logo pela manh�, Cec�lia se apresentou no consult�rio, pronta para trabalhar. Como Luciana previra, aprendeu tudo rapidamente, demonstrando efici�ncia
e cordialidade com elas e com os clientes. At� Ma�sa ficou satisfeita.
- � - falou ela -, tenho que reconhecer que estava errada. Cec�lia est� se saindo muito bem.
- Eu n�o disse?
Depois que tudo retomou a normalidade, Luciana voltou a pensar em Marcela. Como estaria se saindo? Estava em casa lendo uma revista odontol�gica, quando lhe ocorreu
telefonar. O telefone tocou v�rias vezes at� que algu�m atendesse, e Luciana desligou assustada, ao ouvir a voz de um homem do outro lado.
- Est� tudo bem? - quis saber Ma�sa, vendo que ela bateu o telefone apressada.
- Liguei para Marcela... Um homem atendeu...
- Voc� n�o devia estar surpresa. N�o sabe que ela est� namorando um rapaz?
- Luciana est� com ci�me - afirmou Breno, namorado de Ma�sa.
- N�o estou, n�o. E parem de me amolar, voc�s dois.
Ma�sa e Breno trocaram olhares maliciosos, e a mo�a continuou:
- Estou pensando em convidar Marcela para o nosso casamento. O que voc� acha?
- O casamento � seu. Fa�a como quiser.
- N�o precisa ser mal-educada - rebateu Ma�sa.
- Tem raz�o, desculpe-me. Mas � que voc� agora deu para cismar que estou com ci�me de Marcela, quando n�o estou.
- Tudo bem, Luciana, eu � que devo pedir desculpas. N�o soube a hora de parar com a brincadeira.
- Eu tamb�m, Lu - acrescentou Breno. N�o queremos que fique aborrecida conosco.
- Ah! Deixem para l� - arrematou Luciana.
- Mas voc� ainda n�o respondeu a minha pergunta - prosseguiu Ma�sa. Acha que eu devo convidar a Marcela?
- Quer mesmo saber a minha opini�o?
- Se n�o quisesse, n�o perguntava.
- Voc� gosta dela?
- Gosto. Conhe�o-a a tanto tempo quanto conhe�o voc�.
- Ent�o convide. Acho mesmo que ela se sentiria magoada se soubesse que voc� se casou e n�o a convidou. Afinal de contas, n�s terminamos, mas n�o � por isso que
nos tornamos inimigas nem que os amigos t�m que se afastar dela.
- Luciana tem raz�o - concordou Breno. Marcela sempre foi nossa amiga e seria uma falta de considera��o n�o a convidarmos.
- Est� combinado, ent�o - assentiu Ma�sa, colocando o nome de Marcela na lista que estavam fazendo. Marcela ser� convidada. Com o namorado?
- Naturalmente.
- Mande dois convites individuais para a festa - sugeriu Breno. Assim, ela pode levar quem quiser.
- Boa id�ia. Dois convites para Marcela. E Cec�lia? Devo convid�-la tamb�m?
- Quem � Cec�lia? - quis saber Breno.
- Nossa nova secret�ria.
- Seria uma descortesia n�o a convidar - ponderou Luciana. Ela trabalha para n�s.
- Tem raz�o. Mas vou mandar apenas um convite individual para ela.
- O certo seria mandar dois. Voc� n�o sabe se ela tem namorado.
- Ai, ai, ai. V� l�: dois convites para Cec�lia tamb�m. Assim desse jeito, essa lista vai ficar imensa.
- N�o foi voc� quem quis fazer festa? - perguntou Luciana.
- Meu pai n�o abre m�o - esclareceu Breno. Sabe como �, casamento do filho advogado, muitos parentes, amigos desembargadores...
- Sei, sei.
Enquanto os dois continuavam discutindo sobre a lista de convidados, Luciana se afastou e foi para o quarto, pensando se Marcela levaria o namorado. E Cec�lia? Ser�
que levaria tamb�m o seu? Ser� que tinha um namorado? De repente, Luciana se deu conta de que pensava em Cec�lia com uma insist�ncia maior do que desejava. Achava
a mo�a bonita e inteligente, admirava-a mesmo. Era esperta e ambiciosa, e n�o tardaria muito para deixar aquele emprego e partir para uma coloca��o melhor em uma
grande empresa. Tinha tudo para isso. Desde que rompera com Marcela, Luciana decidira n�o se envolver com mais ningu�m durante um bom tempo. Precisava pensar na
carreira, alugar um apartamento s� para ela. Depois que Ma�sa se casasse, teria que entregar aquele. O propriet�rio j� dissera que n�o queria mais alugar, e ela
precisaria sair. Queria alugar outro, maior e pr�ximo da praia. Quem sabe at� n�o poderia comprar um? Talvez fizesse um financiamento na Caixa Econ�mica, realizando
o sonho de ter uma casa pr�pria. Com tudo isso, n�o estava em seus planos se envolver com ningu�m. Gostava de ser independente e n�o queria outra pessoa dependendo
dela. Contudo, havia certas coisas de que n�o conseguia abrir m�o. Gostava de sexo e pensava se n�o poderia encontrar algu�m com quem passar horas agrad�veis, sem
envolvimento nem cobran�as. Mas onde encontraria uma pessoa assim? Se quisesse um homem, seria mais f�cil. Mas uma mulher que procurava outra mulher era complicad�ssimo.
Ser homossexual era algo seriamente reprovado pela sociedade, e quem era l�sbica esfor�ava-se para n�o parecer que era. Mesmo ela, que n�o tinha vergonha de ser
como era, n�o sa�a por a� falando que gostava de mulheres nem adotava nenhum comportamento escandaloso que pudesse chocar algu�m. Agora, por�m, seu corpo reclamava
o contato de outro corpo, e ela se pegou pensando em Cec�lia. Nem sabia se a mo�a era homossexual. De vez em quando a surpreendia olhando-a com certa admira��o,
mas aquilo n�o queria dizer nada. Admira��o era um sentimento que estava al�m do sexo e podia ter v�rios motivos. E Marcela? N�o, decididamente, n�o queria mais
contato com Marcela. Pensar nela causava-lhe preocupa��o, despertava-lhe ternura, mas n�o desejo. Pensava em Marcela como uma irm�, n�o como amante. O mesmo n�o
acontecia com Cec�lia. Pensar na mo�a enchia-a de desejo, e ela se esfor�ou ao m�ximo para tir�-la da cabe�a. Cec�lia devia ter namorado e comportar-se como qualquer
mo�a normal de sua idade. Resolveu n�o pensar em mais ningu�m e foi para o chuveiro. Talvez uma ducha fria acalmasse seus sentimentos. Depois do banho, foi para
a cama e apagou a luz, adormecendo logo em seguida, sem sonhos ou fantasias a lhe povoar a mente. Os trov�es ao longe prenunciavam a tempestade de ver�o que estava
prestes a cair, enquanto uma lufada de vento quente entrava pelas janelas da casa de Fl�vio, agitando as cortinas e fazendo com que algumas portas batessem em seu
interior. Na correria, os criados, tentando conter a ventania, n�o ouviam a campainha da porta da frente, que tocava sem parar.
- Voc�s est�o surdos? - zangou-se Dolores, surgindo no alto da escada. A campainha quase estourando de tanto tocar, e ningu�m abre?
- Desculpe, dona Dolores - falou uma das criadas. Est�vamos t�o ocupados com a ventania que nem ouvimos a campainha.
Mais que depressa, correu a abrir a porta da frente, e Ariane entrou no exato momento em que uma chuva grossa come�ou a cair.
- O que foi que houve com todo mundo? - reclamou ela. Estou a quase uma hora tocando!
- Perd�o, dona Ariane, � que est�vamos tentando fechar as janelas e...
- Deixe para l�. Dona Dolores est�?
- Estou aqui mesmo - falou Dolores, dando beijinhos no ar, perto das bochechas de Ariane. Como voc� est�?
- Mais ou menos... Fl�vio sumiu.
- Sumiu? Pensei que ele estivesse saindo com voc�.
- Comigo? N�o.
- Mas ele sai todas as noites...
- Ele tem sa�do com algu�m?
Dolores a encarou em d�vida. Nos �ltimos dias, Fl�vio s� voltava tarde da noite, e ela podia jurar que era em companhia de Ariane que ele estava.
- Estranho - divagou ela. Com quem ser� que ele anda? Se n�o � com voc�, ent�o, com quem �?
- Era isso que eu gostaria de saber. Pensei que voc� tivesse dito que ele seria meu.
- E vai ser. S� n�o entendo o que est� acontecendo, mas, assim que descobrir, dou um jeito nisso.
- Est� demorando muito! J� estou ficando impaciente.
- V� com calma, Ariane. Voc� sabe que fa�o muito gosto no seu casamento com Fl�vio, n�o sabe? Ela assentiu. Por isso, n�o ponha tudo a perder. Sua ansiedade pode
acabar afastando-o de voc�. Fl�vio n�o gosta de ser pressionado.
Ariane sentou-se no sof� da sala e ficou olhando a chuva pela porta envidra�ada que dava para a piscina.
- Precisamos descobrir se ele est� saindo com algu�m.
- Cuidarei disso. E foi muito bom voc� vir me procurar antes de tomar qualquer atitude. Tem que deixar essas coisas por minha conta.
- Quero me casar com ele, Dolores. Voc� sabe o quanto gosto dele.
- Sei, sim. E � por isso que voc� � a mo�a ideal para ele. Bonita, culta. � a mulher perfeita para me dar netos.
- Ele n�o pode me usar assim desse jeito. Fez o que fez comigo para depois cair fora.
- Ele n�o vai cair fora. Vai casar-se com voc�, e ambos ser�o muito felizes aqui. Como eu n�o fui - acrescentou em voz baixa, para que Ariane n�o pudesse ouvir.
O casamento de Dolores terminara no dia em que o marido descobrira que ela o tra�a com N�lson, seu s�cio e pai de Ariane. Justino n�o fez nenhum esc�ndalo. Simplesmente
apanhou as suas coisas e saiu de casa, entrando com o pedido de desquite na semana seguinte. Tudo correu de forma amig�vel, para evitar esc�ndalos, e Justino rompeu
a sociedade com N�lson, montando sua pr�pria cl�nica depois disso. Apesar do desquite, continuava amigo do filho, a quem sempre via, e lhe ofereceu um emprego em
sua cl�nica, logo que ele se formou. Fl�vio aceitou prontamente. Era uma cl�nica ortop�dica, e ambos gostavam muito do que faziam. Apesar de n�o precisar trabalhar
em hospital, Fl�vio quis auxiliar numa emerg�ncia e fazia plant�o, uma vez por semana, no hospital do Andara�, onde conhecera Marcela. Justino jamais contou ao filho
que a m�e o tra�ra. Para todos os efeitos, seu casamento terminara porque os dois j� n�o se amavam mais. Fl�vio aceitou tudo com naturalidade. J� havia completado
21 anos e era maduro o bastante para compreender. Dolores, por sua vez, n�o terminou o relacionamento com N�lson. A esposa dele, Anita, nunca desconfiou de que houvesse
algo entre os dois. Era uma mulher feia e apagada, e engordara excessivamente depois do nascimento do �ltimo de seus quatro filhos, n�o conseguindo mais retornar
ao peso antigo. Essa mudan�a na apar�ncia da mulher acabou direcionando os olhares de N�lson para Dolores. Apesar de madura, era uma mulher muito bonita, jovem ainda,
esbelta e quase sem rugas. Casara-se aos dezesseis anos, gr�vida de Fl�vio, pelo que se sabia, e mantinha ainda a apar�ncia da juventude. Um casamento entre Fl�vio
e Ariane interessava muito a Dolores. Ela era uma mulher possessiva e autorit�ria, e n�o queria correr o risco de ter que se deparar com uma nora que a enfrentasse.
Por isso, era preciso escolher bem a mulher com quem Fl�vio se casaria, e Ariane era perfeita. Apesar de dotada de rara beleza, n�o dava valor � intelig�ncia, al�m
de n�o se interessar por assuntos financeiros ou dom�sticos. Era f�til e facilmente manipul�vel. Desde que houvesse muitas lojas para fazer compras e festas onde
pudesse se exibir, estava satisfeita. E depois de casados, ela e Fl�vio viveriam em casa de Dolores, sob suas ordens, onde ela poderia control�-los e aos netos que
chegariam. No princ�pio, Fl�vio at� se interessou por Ariane, atra�do por sua beleza e eleg�ncia. Mas depois, com o tempo, acabou se cansando dela, achando-a f�til
e vazia, sem objetivos ou ideais. Ariane s� se interessava por festas, j�ias e roupas, al�m de ser arrogante e maltratar os criados e as pessoas humildes. Esse comportamento
desagradava Fl�vio ao extremo. Acostumado � gentileza e cordialidade do pai, que demonstrava respeito por qualquer ser humano, a atitude soberba de Ariane foi desgastando-o.
Aprendera com o pai a dar valor �s pessoas e aos sentimentos, e n�o a coisas ou dinheiro, e o jeito de Ariane acabou convencendo-o de que ela n�o era a mulher ideal
para ele. S� que Ariane n�o queria aceitar que Fl�vio n�o estava mais interessado nela. Estimulada por Dolores, continuou a freq�entar a sua casa, convidando-o muitas
vezes para sair. De vez em quando, ele aceitava e a levava ao cinema ou para jantar, sem qualquer tipo de envolvimento, sem nem mesmo a beijar. Apenas como amigos.
Mas, depois que Fl�vio conheceu Marcela, deixou de aceitar os convites de Ariane e passou a evit�-la, dando sempre uma desculpa para n�o ir mais a sua casa.
- H� tempos que Fl�vio est� distante - queixou-se Ariane. Nem me telefona mais.
- Quando ele chegar, vamos resolver tudo. Direi que a convidei para jantar, e ele vai ter que ficar em casa. Voc� vai ver.
Ariane suspirou desalentada e concordou. Mais tarde, quando Fl�vio chegou, n�o conseguiu esconder o desagrado por v�-la sentada na sala, em animada conversa com
a m�e.
- Boa noite - cumprimentou ele da porta, j� se virando em dire��o �s escadas.
- Fl�vio! - chamou a m�e. N�o vem cumprimentar Ariane?
Ele voltou para a sala e estendeu a m�o para ela.
- Como vai, Ariane? Tudo bem?
- Mais ou menos - foi a resposta direta. Por que n�o tem me procurado?
- Muito trabalho.
- N�o podia ao menos telefonar?
- Tenho andado ocupado.
Notando que ele come�ava a se irritar, Dolores resolveu intervir:
- Por que n�o sobe, toma um banho e nos acompanha ao jantar?
- Lamento, mas n�o posso. Tenho um compromisso.
- Com quem? - sondou Ariane.
- Com uma amiga.
- Voc� est� saindo com algu�m?
- Por favor, Ariane, n�o quero conversar sobre isso, est� bem?
- Mas n�s est�vamos saindo juntos!
- Como amigos, nada mais.
- Voc� est� namorando outra mo�a? - intercedeu Dolores novamente.
- Isso n�o � problema seu - irritou-se Fl�vio. N�o gosto de interrogat�rios. E agora, com licen�a. J� estou atrasado.
Depois que ele saiu, Dolores encarou Ariane, que mantinha a boca entreaberta, perplexa com a atitude de Fl�vio.
- Voc� viu? - rugiu ela, col�rica. Eu n�o lhe disse? Ele est� saindo com alguma vagabunda e n�o quer nos contar.
- Acalme-se, Ariane, n�s n�o temos certeza. Ele n�o disse que estava.
- E precisava dizer? Voc� viu pelo jeito como ele falou. H� algu�m na sua vida, e eu preciso descobrir quem �.
- Voc� n�o vai fazer nada disso. Quer p�r tudo a perder?
- Vou perd�-lo se n�o agir logo. N�o posso ficar aqui sentada enquanto outra mulher me toma o namorado.
- Tenha calma, j� disse! Precisamos agir, sim, mas com cautela. N�o quer que ele tome raiva de voc�, quer?
- � claro que n�o!
- Pois ent�o, deixe de ser impulsiva e espere. Eu mesma vou me inteirar dessa hist�ria. Sou m�e, sei como agir e como fazer para ele confiar em mim.
- E enquanto isso, o que eu fa�o?
- V� para casa e aguarde. Logo darei not�cias.
- Agora?
- Acho melhor. Se ficar, vai espant�-lo ainda mais.
Mesmo contrariada, Ariane obedeceu e saiu furiosa. Dolores esperou alguns minutos e subiu ao quarto do filho. Bateu na porta de leve, at� que ele abriu, com a toalha
enrolada na cintura.
- O que quer, m�e? Estava indo tomar banho.
Ela entrou e se sentou na cama, cruzando as pernas e fixando nele um olhar perscrutador.
- Seu pai vai bem?
- N�o foi para falar de papai que voc� veio aqui. � por causa de Ariane, eu sei.
- Calma, meu filho, n�o se zangue comigo. N�o tenho culpa se a mo�a gosta de voc�.
- Mas eu n�o gosto dela.
- Mas fez parecer que gostava. Saiu com ela v�rias vezes. O que esperava que ela pensasse?
- Nunca disse que gostava dela nem lhe fiz nenhuma promessa. Ao contr�rio, sempre deixei claro que sa�amos como amigos.
- Amigos muito �ntimos, n�o � mesmo?
- N�o sei o que ela lhe disse, mas, seja o que for, n�o � verdade. Jamais tive intimidade alguma com Ariane.
- Tem certeza?
- Absoluta. Mesmo no come�o, quando realmente est�vamos namorando, nunca fomos al�m de uns beijos e abra�os. Mas, depois que terminamos e passamos a sair como amigos,
nunca mais nem a beijei.
- No entanto, ela se encheu de esperan�as. Acha que voc� � namorado dela.
- N�o posso fazer nada. Ela se iludiu porque quis.
- Eu tamb�m me enganei. Jurava que voc�s dois estavam apaixonados.
- Olhe, m�e, n�o � porque voc� gosta de Ariane que eu tenho que gostar tamb�m.
- Est� certo, meu filho, j� entendi. Voc� n�o gosta dela, mas sa�a com ela. De repente, deixou de sair. Posso saber por qu�?
- N�o quero ser grosseiro, mas isso n�o lhe interessa.
- N�o ser� porque voc� conheceu outra pessoa?
- E se for? Qual o problema?
- Problema nenhum. Queria apenas que voc� confiasse em mim e me contasse. Sou sua m�e, n�o estou contra voc�.
- Sei que voc� gostaria que eu me casasse com Ariane...
- Gostaria, mas n�o posso obrig�-lo a isso. Se voc� escolheu outra mo�a, n�o vou me opor. Trata-se da sua felicidade, e � voc� quem tem que escolher a mulher com
quem vai se casar.
Fl�vio fitou-a perplexo. Nunca poderia imaginar que a m�e fosse se mostrar t�o compreensiva. Sempre achou que ela fazia quest�o de que ele se casasse com Ariane
e n�o admitiria que qualquer outra tomasse o seu lugar, mas agora estava surpreso.
- Aceitaria se eu lhe dissesse que estou apaixonado por outra mo�a?
A palavra apaixonado soou muito forte para Dolores, que engoliu em seco e mentiu de forma convincente:
- Voc� tem o direito de se apaixonar por quem quiser. E eu nada posso fazer al�m de aceitar.
- N�o vai se opor?
- De jeito nenhum - continuou a mentir, sentindo a raiva esquentar-lhe o sangue. Gostaria at� de conhecer a mo�a.
- N�o vai destrat�-la?
- � claro que n�o! Antes de tudo, sou uma mulher de boa educa��o.
- Hum... N�o sei. Talvez voc� n�o goste dela.
- Por qu�? Ela n�o � de boa fam�lia?
- �, � de boa fam�lia.
- O que ela faz?
- � professora de portugu�s numa escola normal.
- Professora?
Dolores mal conseguiu conter a indigna��o. Achava �timo que as mo�as freq�entassem a escola normal para ter boa instru��o, adquirir cultura e status, mas da� a dar
aulas era outra hist�ria. A tal mo�a n�o devia ser de fam�lia rica, caso contr�rio, n�o teria que trabalhar para sobreviver.
- Ela d� aulas porque gosta ou para se manter?
- As duas coisas.
- O que o pai dela faz?
- � dono de uma padaria, l� em Campos, de onde ela veio para estudar. Cursou a faculdade de letras aqui no Rio e est� pensando em fazer p�s-gradua��o.
Fl�vio disse isso t�o cheio de orgulho que nem percebeu o olhar horrorizado que Dolores lhe endere�ava. Ent�o o filho se atrevia a trocar uma mo�a fina feito Ariane
pela filha de um padeiro, uma mulherzinha sem ber�o, sem linha e pobre!? Era muita coragem.
- Seu pai a conhece?
- Ainda n�o. Mas vai conhec�-la em breve.
- O que ele acha disso?
- Voc� sabe como papai �: gosta de todo mundo. J� gosta de Marcela antes mesmo de conhec�-la, o que n�o � nada dif�cil, por sinal. Marcela � uma mo�a ador�vel.
- Marcela... � esse o nome dela?
Ele assentiu e tornou com orgulho:
- N�o � bonito?
- Voc� disse que ela veio de Campos. N�o mora com a fam�lia, ent�o.
- N�o, mora sozinha. Mas por pouco tempo. Se tudo correr bem, pretendo me casar em breve.
Aquilo j� era demais, e Dolores deu um salto da cama, virando-se para a janela para que Fl�vio n�o notasse o seu ar de repulsa. Jamais permitiria que o filho se
casasse com uma mulher qualquer, uma fulaninha sem eira nem beira, interessada apenas na fortuna da fam�lia.
- Se � assim t�o s�rio - falou ela entre os dentes -, preciso conhecer essa mo�a. Afinal, ela vai ser minha nora.
- Calma, m�e. No momento certo, vou traz�-la aqui.
- Por que n�o a convida para jantar?
- Marcela � muito t�mida. Preciso ir devagar.
- Mas eu quero muito conhec�-la! Por favor, Fl�vio, fa�a isso por sua m�e. Convide-a para jantar aqui em casa no s�bado.
- No s�bado? N�o vai ser poss�vel. Temos um casamento para ir.
- Casamento de quem?
- De uma amiga dela.
- No domingo, ent�o.
- Vou ver. Conversarei com ela e depois lhe direi. E agora, m�e, se me der licen�a, gostaria de tomar um banho. N�o quero deixar Marcela esperando.
- Sim, claro.
Mordendo os l�bios para n�o gritar, Dolores saiu do quarto do filho. Aquilo era um insulto! Casar-se com algu�m fora de seu c�rculo social era inadmiss�vel. N�o
entendia como Fl�vio podia interessar-se por algu�m assim e ficou imaginando um jeito de destruir aquele romance. Mas como? Se agisse de forma direta, Fl�vio se
zangaria e sairia de casa. Ela o conhecia bem demais para saber que ele era decidido e n�o admitiria intromiss�es em sua vida. N�o. Ela precisava agir, por�m, de
forma velada, sem que ele soubesse o que estava fazendo. Ainda n�o sabia bem o que faria, mas o primeiro passo seria conhecer a mo�a. Em seguida, alertar Ariane
e orient�-la para que ela n�o fizesse nenhuma besteira. Depois, pensaria numa estrat�gia para acabar com aquele namoro e fazer com que Fl�vio se interessasse por
Ariane novamente. E o que tivesse que fazer, tinha que ser bem feito. A cl�nica ortop�dica estava cheia aquela manh�. Fl�vio terminava de atender o �ltimo paciente
quando o telefone na sua mesa come�ou a tocar, e a recepcionista anunciou que Marcela acabara de chegar.
- Pe�a que ela me aguarde um instante. J� estou terminando.
Deu as �ltimas orienta��es ao paciente, prescreveu a medica��o e levou-o at� a porta, saindo atr�s dele. Sentada na recep��o, Marcela observava o movimento dos clientes,
e ele se aproximou, estendendo-lhe a m�o.
- Minha querida - falou, beijando a ponta de seus dedos. Que bom que foi pontual.
- Eu sempre sou pontual! - afirmou ela de bom humor. Principalmente quando estou apaixonada.
Os olhos de Fl�vio brilharam, e ele a puxou com delicadeza. Apresentou-a �s mo�as da recep��o e foi conduzindo-a ao consult�rio do pai.
- Est� nervosa? - o indagou, sentindo-a um tanto quanto tr�mula.
- Um pouco.
- Pois n�o precisa. Meu pai � uma pessoa muito bacana. Voc� vai ver. Fl�vio bateu de leve na porta do pai, que se abriu no mesmo instante. Est� sozinho?
- Estou - disse Justino. Entre.
Fl�vio entrou puxando Marcela pela m�o, e Justino a cumprimentou com um sorriso.
- Esta � a Marcela, pai - apresentou Fl�vio.
- Muito prazer - respondeu ele. Fl�vio fala muito em voc�.
- No senhor tamb�m - acrescentou Marcela, com certo acanhamento.
- N�o precisa me chamar de senhor - objetou-o, com jovialidade. N�o quero parecer t�o velho.
A simpatia de Justino e a sua naturalidade logo colocaram Marcela � vontade, e ela se descontraiu, entregando-se a animada conversa. Fl�vio marcara aquele encontro
para que ela e o pai se conhecessem e estava feliz porque eles estavam se dando bem. Ao final de uma hora de conversa, o telefone tocou, e a recepcionista anunciou
a chegada do pr�ximo cliente.
- Bem - falou Justino -, o dever me chama.
- Vou levar Marcela para almo�ar - avisou Fl�vio. Meu pr�ximo paciente s� vir� �s tr�s horas.
- Muito bem. Foi um prazer conhec�-la, Marcela. Fl�vio e voc� formam um lindo casal.
Marcela corou levemente e respondeu com timidez:
- Obrigada, doutor Justino. O senhor � muito gentil.
Com um sorriso, despediram-se, e Fl�vio foi com Marcela almo�ar. Ficaram juntos at� quase �s tr�s horas, quando ele a deixou em casa e retornou para atender o pr�ximo
cliente.
- Vamos nos ver mais tarde? - quis saber ele, parando o carro em frente ao seu edif�cio.
- Se voc� quiser...
- Eu sempre quero.
- Ent�o, estarei esperando.
Ela saltou e ficou olhando at� que o carro sumisse na primeira esquina. Como se sentia feliz! Pensava no quanto amava Fl�vio e como fora bom encontr�-lo em um momento
t�o dif�cil da sua vida, quando ela achava que n�o suportaria viver sem Luciana. Fl�vio era t�o amoroso, t�o atencioso, t�o amigo, que ela come�ou a se desligar
de Luciana. Ainda sentia o peito doer todas �s vezes em que pensava nela, mas a dor n�o era mais insuport�vel. Era como sentir saudade de algu�m que j� tivesse morrido.
Sentia falta de Luciana, mas sabia que ela nunca mais voltaria. Por isso, teve que utilizar todos os meios para se acostumar a viver sem ela. E estava conseguindo.
Ou melhor, fora Fl�vio quem conseguira. Ainda se perguntava se o amor que sentia por Fl�vio n�o era apenas uma fuga. Temia que sim, que n�o o amasse de verdade e,
assim que pusesse os olhos em Luciana novamente, toda a loucura de seu amor por ela retornasse em um segundo. Precisava certificar-se de seus sentimentos, e o casamento
de Ma�sa viera bem a calhar. Ela queria ir, fazia quest�o. S� estando diante de Luciana para ver a sua rea��o e ter certeza de que o que sentia por Fl�vio j� era
maior do que o amor que um dia sentira por ela. Enquanto isso, Fl�vio entrava no consult�rio quando faltavam exatos cinco minutos para as tr�s horas, e o paciente
j� o estava esperando. Durante o resto da tarde, concentrou-se no trabalho, e s� ao final do expediente foi que tornou a ver o pai, quando ele sa�a de seu consult�rio.
- Ser� que podemos conversar? - perguntou Justino.
- � sobre Marcela? - ele assentiu. O que foi? N�o gostou dela?
- Gostei muito, e esse � o problema.
- N�o estou entendendo.
- Marcela � uma mo�a encantadora, mas nota-se que n�o pertence a nosso c�rculo social.
- N�o pensei que voc� fosse preconceituoso.
- E n�o sou. Mas sua m�e �. Preocupa-me a rea��o que ela vai ter quando conhecer a mo�a.
- Est� se preocupando � toa. J� contei a mam�e, e ela aceitou.
- Aceitou? Assim, sem mais nem menos?
- Pediu-me at� para convid�-la para jantar.
- N�o acha isso estranho?
- No come�o, at� que achei. Mas depois, acabei me convencendo. Mam�e n�o me parecia fingir quando disse que aceitaria a mo�a por quem eu me apaixonasse.
- Sei... Muito estranho. Dolores n�o � disso.
- N�o est� sendo severo demais com ela? Mam�e tem l� as suas manias, mas quer o meu bem.
- A� � que est�: ela quer o seu bem de acordo com o julgamento dela. E algo me diz que ela est� interessada � no seu casamento com Ariane.
- Pode at� ser. Os pais de Ariane s�o amigos da fam�lia, N�lson j� foi seu s�cio. Ali�s, n�o entendo at� hoje por que voc�s brigaram.
- N�s n�o brigamos. Apenas nos incompatibilizamos para a sociedade.
- Tudo bem. O problema � de voc�s, e eu n�o tenho nada com isso. Quanto � mam�e, acho que voc� est� se preocupando demais. Ela pode n�o ter ficado muito satisfeita,
porque realmente queria que eu me casasse com Ariane, mas, quando lhe disse que amava Marcela, ela aceitou prontamente. Acredito at� que intimamente ela tenha tido
certa relut�ncia. Mas mam�e n�o se op�s ao nosso namoro e est� se esfor�ando para aceitar Marcela. Temos que louvar esse seu esfor�o.
- N�o quero lev�-lo a desconfiar de Dolores, mas eu a conhe�o muito bem. Temo que ela esteja aprontando alguma.
- N�o se preocupe, pai. Mam�e n�o � perfeita, e eu sei que Marcela n�o � a mulher com quem ela sonhou para nora. Mas ela me conhece e sabe que eu n�o aceito interfer�ncias
em minha vida. Se quiser que continuemos nos entendendo, sabe que tem que respeitar a minha escolha. E � isso que ela est� tentando fazer.
Justino suspirou profundamente e apertou o ombro do filho.
- Espero que voc� esteja certo, Fl�vio. Eu lamentaria muito se voc� e Marcela acabassem brigando por causa de alguma arma��o da sua m�e.
- Ela n�o vai armar nada, pai, n�o se preocupe. E depois, n�o sou nenhum idiota. Se ela aprontar, eu logo vou perceber.
- Espero.
Por mais que se esfor�asse para acreditar no que Fl�vio dizia, Justino tinha certeza de que Dolores n�o se conformaria assim t�o facilmente. N�o era de seu feitio
aceitar com passividade aquilo que n�o lhe agradava. Ela era maquiav�lica e, com certeza, estava maquinando algum plano diab�lico para terminar com o namoro de Fl�vio
e atir�-lo nos bra�os de Ariane. O filho estava cego de amor e feliz com a rea��o de Dolores, e n�o conseguia perceber a falsidade por detr�s de suas palavras. Mais
tarde, depois que Fl�vio saiu, Justino foi � casa de Dolores. A mulher estranhou a sua visita e n�o conseguiu esconder o desagrado que a sua presen�a lhe causava.
- O que est� fazendo aqui? - perguntou ela, de mau humor. Veio pedir para suspender a pens�o?
- Embora voc� n�o precise do meu dinheiro - respondeu ele calmamente -, n�o sou homem de fugir �s minhas obriga��es. Se a Justi�a diz que eu tenho que lhe pagar
pens�o, ainda que voc� n�o a mere�a, n�o vou discutir nem me recusar. � o meu dever.
Ela o olhou com desprezo e retrucou com frieza:
- Por que veio ent�o? Para falar com Fl�vio � que n�o pode ser.
- Tem raz�o, n�o � para falar com Fl�vio. � para falar com voc�.
- O que �? O que fa�o da minha vida n�o lhe diz respeito.
- Fique sossegada - tornou ele em tom ir�nico. N�o me daria ao trabalho de vir at� aqui para falar da sua vida. Tenho coisas mais importantes a fazer.
- Ent�o diga logo o que � e v� embora.
- Vim para falar de Fl�vio. Ele me disse que voc� aceitou de imediato a mo�a que ele est� namorando.
- � verdade. E da�?
- E da� que n�o sou tolo. Voc� est� aprontando alguma.
- E se estiver, o que voc� tem com isso?
- Tudo. Fl�vio � meu filho, e n�o vou admitir que voc� interfira na sua felicidade.
- Ele � meu filho tamb�m, e ningu�m melhor do que a m�e para saber o que � felicidade para seu filho.
- Voc� n�o sabe o que � isso. S� pensa em dinheiro e em colecionar bens materiais.
- Voc� n�o tem nada com isso, j� disse. E depois, n�o lhe dou o direito de entrar na minha casa para vir questionar a minha rela��o com meu filho.
- Tenho o direito de me preocupar com ele e de tentar livr�-lo da sua ambi��o.
- Como se atreve? Quem � voc� para me falar em ambi��o? Tem uma cl�nica que rende rios de dinheiro. Vai querer me convencer agora de que tamb�m n�o � ambicioso?
- H� uma grande diferen�a nisso a�, Dolores. A minha ambi��o n�o prejudica ningu�m. Tive vontade de crescer, esforcei-me e cresci. Mas fiz isso honestamente, sem
ter que passar por cima de ningu�m, sem manipular nem destruir a vida de outras pessoas.
- Acha mesmo que eu quero destruir a vida de Fl�vio? Do meu pr�prio filho? Quero o melhor para ele.
- Voc� quer que ele fa�a o que voc� acha que � melhor para voc�.
- Ele est� namorando uma mo�a pobre e sem ber�o. Acha que isso � o melhor para ele?
- A mo�a � maravilhosa. E depois, quem tem que decidir isso n�o � voc�. � ele.
- Aposto como � uma aventureira, querendo se casar com ele pelo dinheiro.
- Por que a julga antes mesmo de conhec�-la?
- N�o preciso conhec�-la para saber o que ela quer. Conhe�o bem esse tipo de gente.
- Deixe-os em paz, Dolores. D� a seu filho a chance de ser feliz.
- Ora, mas que desprop�sito! Ent�o n�o fa�o tudo para ele ser feliz? S� n�o quero que ele se envolva com nenhuma aventureira, que fa�a a escolha errada e venha a
sofrer depois.
- N�o acredito que Marcela seja nenhuma aventureira, mas, ainda que fosse, Fl�vio tem o direito de fazer as escolhas erradas tamb�m.
- N�o se eu puder evitar.
- Voc� est� tentando evitar que ele viva a pr�pria vida, o que n�o � certo. E depois, a mo�a � muito direita e correta.
- Voc� � quem diz, que � t�o tolo quanto ele.
- Sou tolo porque sou decente?
- Isso n�o tem nada a ver com dec�ncia. Fl�vio vai trazer a mo�a para jantar, se ela for o que voc� e ele est�o dizendo, ningu�m tem com o que se preocupar.
Darei o meu consentimento para que eles namorem e se casem.
- Primeiro: ainda que ela n�o seja o que pensamos, voc� n�o tem o direito de fazer nada para interferir. Se ela for uma aventureira, como voc� diz, cabe a Fl�vio
descobrir e decidir se quer ou n�o ficar com ela. Segundo: voc� n�o tem que dar o seu consentimento para nada. Fl�vio � um homem de quase trinta anos e n�o precisa
da sua autoriza��o para se casar.
- Voc� est� me cansando, Justino. Por que n�o arranja uma mulher e me deixa em paz?
- Estou-lhe avisando, Dolores. Se fizer algo contra Marcela, vai se ver comigo.
- Vai me amea�ar agora, �?
- N�o. Mas lembre-se de que sou capaz de destruir a imagem de m�e perfeita que voc� empurra para o seu filho. A prop�sito, N�lson vai bem, n�o vai?
- Voc� n�o se atreveria!
- Experimente.
Sem esperar resposta, Justino rodou nos calcanhares e foi embora, deixando Dolores entregue a uma f�ria quase incontrol�vel. Ela ficou andando de um lado para outro
na sala, maldizendo o dia em que o ex-marido descobriu o caso que ela mantinha com N�lson. Talvez fosse melhor terminar tudo com ele. Se Fl�vio viesse a descobrir,
ela podia inventar uma desculpa qualquer, uma aventura passageira. Sim, faria isso. Fl�vio ficaria indignado, mas acabaria entendendo. De toda sorte, ela j� estava
mesmo se cansando de N�lson, e j� era hora de ele deix�-la em paz. Havia chegado a hora do casamento de Ma�sa, e ela estava atrasada para entrar na igreja. Luciana
chegou cedo. Era madrinha e foi colocar-se no altar, ao lado de um primo de Ma�sa, que faria par com ela como padrinho. Havia outros casais de ambos os lados, mas
ela n�o lhes prestou aten��o. Passou os olhos pela igreja, procurando por Cec�lia, sem a encontrar. Avistou Marcela ao fundo, em companhia de um rapaz atraente,
e sentiu uma pontada de alegria no cora��o. Gostava de Marcela e torcia para que ela fosse feliz. Escolhera-se construir a sua vida ao lado de um homem agora, Luciana
entendia e respeitava. O que importava era a sua felicidade. O �rg�o come�ou a tocar a Marcha Nupcial, e todos os olhares se voltaram para a entrada da nave, onde
Ma�sa despontou, linda, em seu vestido de noiva cintilante. A cerim�nia transcorreu sem maiores problemas, e a posterior recep��o ocorreria em um clube pr�ximo,
onde os noivos receberiam os cumprimentos. J� no clube, Luciana foi sentar-se a uma mesa com antigos colegas de faculdade e ficou observando o movimento dos convidados.
As pessoas chegavam e iam-se espalhando pelas mesas, mas ela n�o via quem procurava. At� que Marcela chegou na companhia de Fl�vio, e Luciana olhou-a com admira��o.
Ela estava muito atraente. Nunca a vira t�o bonita, num vestido altamente feminino, usando uma maquiagem luminosa que lhe assentava t�o bem. Seu rosto irradiava
felicidade, e Luciana n�o conseguiu conter o impulso. Levantou-se de sua mesa e foi direto para o lugar onde Marcela e o namorado haviam-se sentado.
- Oi, Marcela - cumprimentou Luciana, beijando-a amigavelmente nas faces. Como tem passado?
Marcela levou um susto. Por mais que tivesse esperado encontr�-la ali, v�-la parada diante dela, sentir os seus l�bios em seu rosto deixou-a confusa e transtornada.
Luciana estava muito bem, e Marcela tamb�m n�o se lembrava de t�-la visto t�o linda como naquele dia. Luciana sempre usava roupas femininas, maquiava-se e pintava
as unhas. Mas aquele vestido azul-celeste que usava a deixava simplesmente deslumbrante, e Marcela pensou que n�o poderia existir, no mundo, mulher mais bonita do
que Luciana.
- N�o me apresenta ao seu namorado? - continuou ela, agora em d�vida sobre se tomara a decis�o mais acertada ao ir procurar a outra.
- Este � Fl�vio - apresentou Marcela, maquinalmente. Fl�vio, esta � Luciana, uma amiga.
- Velha amiga - acrescentou ela, estendendo a m�o para ele.
- Muito prazer - cumprimentou Fl�vio, apertando sua m�o. N�o quer se sentar conosco?
Para surpresa e temor de Marcela, Luciana aceitou o convite e se sentou ao lado deles. Naquele momento, olhando para ela, Marcela notou o quanto era importante que
Fl�vio jamais descobrisse a verdade sobre as duas. Achara Luciana linda, maravilhosa, estonteante. Mas, estranhamente, n�o sentia mais por aquela beleza nada al�m
de uma profunda admira��o. Fixando bem o seu rosto e o seu corpo, Marcela descobriu que n�o tinha mais nenhum desejo por ela, e seu cora��o, ao palpitar dentro do
peito, alertou-a da poss�vel trag�dia que seria se Fl�vio viesse a saber que ela e Luciana, um dia, haviam sido amantes. Marcela n�o conseguia dizer nada. Estava
at�nita e amedrontada. Desde que conhecera Fl�vio e se envolvera com ele, temia que ele descobrisse que ela fora l�sbica e a desprezasse por isso. No entanto, seu
temor nunca fora t�o intenso como o que agora sentia. Pensava que, ao ver Luciana, fosse sentir um baque no cora��o, e toda aquela louca paix�o retornaria e desabaria
sobre ela como uma avalanche. No entanto, Luciana agora lhe causava admira��o, mas n�o lhe despertava mais nenhum sentimento de amor ou de paix�o.
- Voc� n�o diz nada? - era a voz de Fl�vio, que parecia soar ao longe, como num sonho.
- Eu... - balbuciou ela, tentando encontrar o que dizer. Quero ir ao toalete. Voc� me acompanha, Luciana?
- Claro.
As duas se levantaram, e Marcela conduziu Luciana para um canto no jardim, fora do sal�o de festas, onde ningu�m as podia ver. Por uns instantes, Luciana pensou
que ela fosse tentar beij�-la ou come�ar a chorar, mas Marcela n�o fez nada disso. Agarrou a outra pelos bra�os e come�ou a suplicar de forma atropelada:
- Pelo amor de Deus, Luciana, n�o diga nada ao Fl�vio. Ele n�o pode saber! Nunca poder� descobrir!
- Ei! Calma. Saber o qu�? Descobrir o qu�?
- Estou apaixonada por ele... realmente apaixonada...
- Puxa, Marcela, isso � muito bom. Fico feliz por voc�.
- Mas ele n�o pode saber! N�o vai compreender e vai me abandonar.
Pela carga de temor em suas palavras, Luciana come�ava a entender aquilo a que ela estava se referindo. Marcela era uma mo�a fraca e medrosa, sempre tentando esconder
de todos sua condi��o de l�sbica. Antes, quando sa�am juntas, nunca deixava que a tocasse, ainda que de forma inocente, porque Luciana tamb�m n�o era dada a cenas
em p�blico. E agora, seu medo dobrava de intensidade, porque n�o queria que o namorado descobrisse o que ela era ou fora.
- Voc� n�o contou a ele sobre n�s? - perguntou Luciana.
- Eu!? De jeito nenhum! Fl�vio n�o vai entender, ningu�m entende.
- Como � que voc� sabe? Ele me pareceu bem simp�tico.
- Voc� n�o o conhece. A fam�lia dele � super conservadora. Ele � m�dico, o pai � dono de uma cl�nica ortop�dica. Acha que eles v�o aceitar uma coisa dessas?
- N�o acha que est� exagerando? Afinal, voc� n�o fez nada demais.
- Nada demais? N�s duas faz�amos amor, Luciana! Isso n�o � nada demais?
- Na �poca, voc� me pareceu bem � vontade.
- Mas isso foi antes. Agora, n�o posso.
- Voc� o ama realmente, Marcela?
- Amo. Sei que pode parecer estranho, mas amo Fl�vio desde o primeiro dia em que o vi... naquele hospital.
- Voc�s se conheceram no hospital?
Marcela balan�ou a cabe�a e esclareceu:
- Foi ele que me atendeu naquele dia... em que fiz aquela loucura.
- Entendo. E voc� n�o lhe contou por que tentou se matar?
- Como poderia? Ele demonstrou interesse por mim desde o come�o. Pensa que eu fiz aquilo por causa de um ex-namorado, e eu fui deixando que acreditasse nisso, at�
o estimulei a crer nessa vers�o. N�o sei como ele n�o descobriu... N�o soube do seu retrato, Lu. Lembro-me de ter agarrado o seu retrato quando comecei a me sentir
sonolenta. Ele deve ter ca�do no ch�o.
- N�o caiu. Foi Ma�sa quem o encontrou e o retirou das suas m�os.
- Ma�sa? Quer dizer ent�o que foi ela que me socorreu?
- Foi, sim. Naquele dia, quando sa� de casa, fiquei preocupada com voc� e pedi a Ma�sa para dar um pulo l�. Foi sorte, porque ela chegou bem a tempo de chamar os
m�dicos, e voc� foi salva.
- Por que ela n�o me disse nada?
- Sabe como � a Ma�sa: morre de medo de complica��es com a pol�cia. Quando ela viu voc� e o vidro de rem�dios ao lado, ligou para a emerg�ncia, tirou o retrato das
suas m�os e foi embora.
- Ma�sa... S� agora descobri quem me salvou. Ningu�m sabia de nada. Preciso agradecer a ela. Foi gra�as a ela que pude conhecer o Fl�vio.
- Voc� pode fazer isso depois. No momento, o que me preocupa � esse seu medo de que seu namorado descubra sobre n�s.
- Olhe, Luciana, n�o quero que voc� fique chateada por causa do Fl�vio. Eu realmente amei muito voc� e quase morri por sua causa.
- Eu n�o estou chateada. Quando sa�, expliquei-lhe direitinho o que estava sentindo. Gosto de voc� como uma irm� e quero a sua felicidade. Se Fl�vio � a pessoa que
voc� escolheu para faz�-la feliz, se voc� o ama de verdade, ent�o, fico feliz tamb�m.
- Obrigada - tornou ela, olhos �midos de emo��o. Tamb�m gosto muito de voc�, embora de uma forma diferente agora.
- Creio que n�s duas desenvolvemos um amor mais sublime, n�o foi? Marcela assentiu. Isso � muito bonito, e eu estou realmente contente. N�o queria que voc� ficasse
magoada ou com raiva de mim.
- Por que n�o me procurou?
- Tive medo de que voc� n�o compreendesse o meu interesse e voltasse a sofrer. Mas tive not�cias suas o tempo todo. Breno conseguiu descobrir o hospital em que voc�
estava, e eu sempre ligava. At� mandei flores.
- � verdade. Guardo o cart�ozinho at� hoje.
- Podemos ser amigas daqui para frente, Marcela. E � como amiga que vou lhe dar um conselho: n�o inicie um relacionamento na mentira...
- Eu n�o minto para o Fl�vio.
- Mas est� escondendo dele algo que pode ser importante para o futuro de voc�s dois.
- Sim, pode ser importante. T�o importante que ele vai terminar comigo se souber.
- N�o vai.
- Como � que voc� pode saber? Voc� nem o conhece.
- A melhor coisa � sermos francos. Se disser a verdade e ele a amar, ainda que n�o a compreenda de imediato, vai refletir e acabar aceitando. Afinal, o que importa
� o amor de voc�s dois no presente.
- N�o posso correr esse risco. Tem id�ia do que eu sofri quando voc� me deixou? N�o esperou resposta e foi logo dizendo:
- Sofri tanto que queria morrer... Por am�-la demais. Depois, conheci Fl�vio e tudo se transformou. Penso que o amo como jamais amei voc�. N�o digo isso por despeito
nem para que voc� fique chateada. Digo por que � a verdade. Vim aqui hoje, n�o s� porque gosto de Ma�sa, mas para fazer um teste comigo mesma. Queria encontrar voc�
para ver o que sentia.
- E...?
- Achei-a linda, maravilhosa, a mulher mais deslumbrante do mundo. Mas n�o � para mim. S� o que senti foi admira��o e certa emo��o por rev�-la ap�s quase quatro
meses. Afinal, fizemos uma hist�ria juntas.
- � isso mesmo, temos uma hist�ria. Uma hist�ria que voc� quer negar e apagar. Ningu�m apaga o passado. Precisamos aceit�-lo como ele foi, porque n�o podemos mais
modific�-lo. � com as experi�ncias do passado que precisamos viver no presente e construir o futuro.
- N�o estou negando o passado. Apenas n�o quero que ele venha � tona.
- Quanto tempo acha que vai conseguir esconder isso de Fl�vio? E se ele descobrir por outra pessoa?
- As �nicas pessoas que sabem de n�s s�o voc�, Ma�sa e Breno.
- Nenhum de n�s vai contar, com certeza. Ainda assim, ele pode descobrir.
- Como? De que jeito?
- N�o sei... Uma carta, uma foto, sei l�.
- Vou me desfazer de tudo. Se voc� quiser, envio para voc�.
- N�o � esse o problema, Marcela, � a mentira. N�o seria mais honesto lhe contar a verdade?
- Honesto, seria. Mas eu n�o posso, n�o tenho coragem. N�o vou me arriscar a perder tudo novamente.
- Pense bem. Ningu�m constr�i uma vida feliz sobre a mentira. Voc� vai perder a paz e o sossego, sempre com medo de que ele venha a descobrir. E a desconfian�a?
Qualquer coisa, vai achar que ele descobriu.
- N�o � bem assim. Pretendo esquecer esse assunto. Nosso relacionamento morre hoje aqui conosco. De agora em diante, agiremos como se sempre tiv�ssemos sido amigas.
Luciana ia retrucar, mas uma voz de homem interrompeu a conversa, fazendo com que ambas se sobressaltassem:
- H�, h�! A� est�o voc�s! Posso saber por que tanto segredinho?
Marcela afastou-se de Luciana e apertou Fl�vio de encontro ao peito, para que ele n�o visse as pequenas l�grimas que tinha presas nos olhos.
- N�o estamos de segredinho - justificou Marcela. � que Luciana tinha algo a me contar. Algo particular.
- Sei... Bem, isso n�o � problema meu. Voc�s s�o amigas, e eu n�o posso me interpor entre a sua amizade. Mas agora podemos voltar?
- Podemos.
- N�o vem conosco, Luciana?
- V�o indo. Vou depois.
Eles se afastaram, e Luciana ficou olhando-os pensativa. O que Marcela estava fazendo era uma loucura inconseq�ente, mas ela n�o tinha o direito de interferir. Se
fosse ela, teria contado a Fl�vio na primeira oportunidade, mas Marcela n�o pensava assim. Era medrosa, t�o medrosa que preferia arriscar-se numa mentira a revelar
a verdade. Fl�vio n�o a deixaria. Ele parecia apaixonado e acabaria entendendo. N�o fora compreensivo ao pensar que ela tentara o suic�dio por causa de um ex-namorado?
Por que n�o demonstraria a mesma compreens�o ao saber que o ex-namorado n�o era namorado, mas namorada? Que diferen�a havia se a pessoa se apaixonava por um homem
ou uma mulher? Ela mesma, por mais que s� gostasse de mulheres, n�o teria nenhum problema em manter um relacionamento com um homem se, porventura, se apaixonasse
por ele. Mas a primeira coisa que faria seria lhe contar a verdade, quer ele a aceitasse, quer n�o. De volta � festa, Luciana viu Marcela conversando a s�s com Ma�sa
e deduziu que ela deveria estar agradecendo por ter-lhe salvado a vida. A conversa terminou rapidamente, e ela voltou para junto de Fl�vio, que havia ido buscar
algumas bebidas. Luciana estava chateada e sem vontade de conversar, por isso evitou a mesa dos amigos. Apanhou uma ta�a de champanha e saiu de novo para o jardim.
Havia uma piscina ao fundo, e ela se debru�ou sobre a grade que a separava da �rea da festa, bebendo sua champanha em sil�ncio. Passado algum tempo, ouviu passos
na grama, e a sombra de uma mulher se aproximou. Luciana pensou que Marcela havia voltado e se virou, sentindo o cora��o disparar involuntariamente, ao ver a mo�a
que se aproximava.
- Est� se escondendo aqui? - perguntou Cec�lia, caminhando para perto dela.
- N�o... Vim aqui para pensar. E voc�? Chegou agora?
- Nesse instante.
- N�o a vi na igreja.
- Ah! N�o tenho paci�ncia para serm�o de padre. Acho casamento religioso uma chatice.
Luciana n�o aprovou o coment�rio, mas n�o disse nada. Cec�lia ainda era jovem e n�o devia compreender aquelas coisas.
- Veio sozinha? - tornou Luciana, fixando nela o olhar.
- Vim.
- E o namorado?
- N�o tenho namorado.
- N�o acredito! Uma garota linda feito voc�!
- Voc� tamb�m � linda e n�o parece ter ningu�m.
Pela primeira vez, Luciana corou. Havia, nas palavras de Cec�lia, uma segunda inten��o que ela podia claramente perceber, embora temesse acreditar que era o que
ela pensava que deveria ser.
- N�o tenho tempo para namoros.
- Por qu�? Voc� j� tem consult�rio montado, s� trabalha � tarde e n�o tem uma agenda cheia de compromissos.
- N�o estou interessada em ningu�m.
- N�o? Que pena!
O olhar de Cec�lia, seus l�bios carnudos e �midos pareciam convidar Luciana para um beijo, mas ela se conteve. Embora a conversa da mo�a soasse comprometedora, Luciana
tinha medo de estar enganada e assust�-la. Al�m disso, n�o descartava a possibilidade de que Cec�lia j� houvesse percebido a sua prefer�ncia e estivesse simplesmente
brincando com ela, para depois rejeit�-la como se nada houvesse notado. Contudo, n�o podia deixar passar aquela oportunidade. Esperara por Cec�lia a noite toda e,
agora que ela estava ali, tinha que arranjar um meio de n�o permitir que se fosse.
- Bom... - divagou com cautela. Talvez esteja interessada em algu�m, afinal.
- � mesmo? Em quem? Por acaso ele est� na festa? Ela n�o respondeu. Ou ser� que n�o � ele?
- Por que diz isso? - redarguiu Luciana calmamente.
- Por nada. Brincadeira.
- E voc�? Est� interessada em algu�m daqui?
- N�o sei. Pode ser.
- Pode ser? E em quem seria?
- Estamos fazendo um jogo de adivinha��o?
- N�o estou fazendo jogo nenhum. Posso ser clara e objetiva, mas o respeito me aconselha cautela.
- Por qu�? A quem estaria desrespeitando?
- A voc�, talvez.
- A mim? Por qu�?
- Ser� que voc� n�o sabe? - ela meneou a cabe�a, olhando para Luciana com um olhar divertido. Se n�o sabe nem desconfia, ent�o � melhor eu me calar.
- Pode dizer.
Luciana j� estava ficando cheia daquela brincadeira e revidou friamente:
- N�o tenho nada a dizer.
- N�o acredito. Voc� tem algo a me falar, mas lhe falta coragem.
- Engana-se, Cec�lia. O que me falta � colocar de lado o fato de que voc� trabalha para mim e n�o posso correr o risco de perder uma boa assistente. Nem quero que
voc� saia por a� dizendo que eu n�o a respeitei e me aproveitei da minha condi��o de patroa para... - calou-se abruptamente, fitando a outra nos olhos.
- Para qu�?
Em vez de responder, Luciana puxou Cec�lia para si e beijou-a nos l�bios, com inseguran�a e medo de que ela a repelisse. Cec�lia, no entanto, n�o fez nada disso,
correspondeu ao beijo com ardor e come�ou a acariciar Luciana.
- Vamos para o meu apartamento - sugeriu Luciana, soprando em seu ouvido.
As duas sa�ram rapidamente. Luciana s� se despediu de Ma�sa e Breno, que olharam para Cec�lia de soslaio e sorriram, j� sabendo do que se tratava.
- Olhe l�, hein? - brincou Ma�sa. N�o v� me fazer perder a secret�ria.
Luciana piscou para ela e saiu com Cec�lia. Da porta do sal�o, ainda teve tempo de dar uma �ltima espiada em Marcela, que dan�ava com Fl�vio e nada percebera. Foram
para o apartamento de Ma�sa, que agora estava vazio, e amaram-se por toda a noite. Ao final, Luciana estava saciada e feliz, e Cec�lia parecia assustada e insegura.
- Tudo bem? - perguntou Luciana, alisando os cabelos dela.
- Tudo...
- Ent�o, por que essa carinha?
- � que nunca fiz isso antes. Voc� foi minha primeira experi�ncia.
- E...?
- Foi maravilhoso! Imagine s�! Eu, que sempre acreditei em pr�ncipe encantado, namorando outra mulher!
- Espere um momento. Quem foi que disse que n�s estamos namorando?
- E n�o estamos?
- Olhe, Cec�lia, n�o quero magoar voc�, mas n�o posso mentir. N�o estou querendo me envolver com ningu�m por enquanto.
- Mas... e n�s? E o que aconteceu?
- Tamb�m achei maravilhoso e podemos repetir. Mas sem compromissos.
- Como assim?
- Voc� ainda � a minha secret�ria, e eu sou sua chefe. N�o gostaria que voc� misturasse as coisas.
- Fica dif�cil. Depois do que houve esta noite, n�o posso mais ver voc� somente como chefe.
- Lamento, mas tem que ser assim. Do contr�rio, nossa rela��o no trabalho vai acabar se tornando insustent�vel.
- E voc� vai me despedir, n�o �?
- N�o foi isso que eu disse. S� n�o quero que esse nosso relacionamento atrapalhe suas obriga��es no trabalho. Voc� n�o � minha namorada; � minha secret�ria.
- Mas como espera que eu me porte com voc� depois desta noite? N�o posso fingir que n�o houve nada.
- Na frente de Ma�sa e dos clientes, aja com naturalidade, como se nunca tivesse havido nada mesmo. Quando estivermos a s�s, podemos nos comportar de maneira mais
�ntima.
- N�o entendo. Voc� diz que n�o quer me namorar, mas podemos ter intimidades?
- Podemos ter um relacionamento, se voc� quiser. Eu quero. Gosto de voc�, acho-a linda e inteligente, mas n�o quero nenhum compromisso s�rio. Passei oito anos da
minha vida ao lado de uma pessoa e agora n�o quero me prender a ningu�m.
- Que pessoa? Uma mulher?
- N�o interessa.
- Diga-me apenas se foi com uma mulher.
- Sim, foi com uma mulher, e n�o pretendo me envolver com outra t�o cedo.
- Mas, e se eu me apaixonar por voc�? E se voc� se apaixonar por mim?
- Se isso acontecer, aconteceu. Ningu�m pode mandar no cora��o. Mas quero que fique bem claro que entre n�s n�o h� nenhum compromisso. Se voc� n�o quiser aceitar
assim, eu compreendo. Essa noite foi �tima, mas, a partir de amanh�, tudo pode voltar a ser como antes e podemos agir como se nada tivesse acontecido.
Naquele momento, uma raiva imensur�vel se apossou de Cec�lia, que teria mandado Luciana para o inferno, n�o fosse o interesse que a movia. Desde que come�ara a trabalhar,
tinha certeza de que Luciana era l�sbica, pelo seu comportamento e pelos olhares discretos que lhe lan�ava. Estava na cara que Luciana a admirava, e ela come�ou
a arquitetar o seu plano. O consult�rio estava indo muito bem, e o dinheiro entrava em quantidade. Fazia um m�s que ela estava trabalhando l�, e logo na primeira
semana teve aquela id�ia brilhante. Luciana parecia uma mulher dura e meio rebelde, o que Cec�lia atribuiu ao fato de ela ser l�sbica num mundo masculino cheio de
preconceitos. E era solit�ria tamb�m. Ela n�o sabia da exist�ncia de outra na vida de Luciana e pensava que ela vivia sozinha por medo de se expor. Agora, contudo,
via que a solid�o de Luciana era deliberada, e ela n�o tinha ningu�m porque n�o queria se envolver. Aquilo atrapalharia seus planos. Cec�lia estava disposta a conquistar
o cora��o, a confian�a e a carteira de Luciana. Se ela se apaixonasse, tinha certeza de que tudo lhe daria para torn�-la feliz. E Cec�lia queria uma vida f�cil.
Estava trabalhando e era ambiciosa, mas n�o pretendia seguir carreira como secret�ria. Aquilo n�o tinha futuro. S� arranjara aquele emprego porque o pai exigira,
amea�ando coloc�-la para fora de casa, se ela n�o colaborasse com as despesas. Mas n�o queria trabalhar. Queria algu�m que a sustentasse e precisava se empenhar
para alcan�ar o seu intento. Quando aceitou aquele emprego, n�o imaginava que estaria ali a chance que procurava. A princ�pio, concordou com o trabalho porque precisava
do dinheiro e o sal�rio era bom. Mentiu para as donas do consult�rio, fazendo-as crer que o mais importante era estar empregada, e esfor�ou-se o m�ximo que p�de
para aprender aquele of�cio chato e ma�ante. Aprendeu a tirar radiografias e preparar massas e inje��es, embora tivesse horror a tudo aquilo e visasse apenas o dinheiro.
Logo nos primeiros dias, percebeu o interesse de Luciana. Por mais que ela tentasse disfar�ar, Cec�lia conhecia muito bem aqueles olhares. Estava acostumada a ser
assediada pelos rapazes e, embora nunca antes houvesse se envolvido com uma mulher, as rea��es n�o eram muito diferentes. O desejo falava igual nas pessoas de qualquer
sexo e qualquer prefer�ncia. No come�o, estranhou a id�ia de se entregar a outra mulher e precisou de um tempo at� se acostumar, mas o casamento de Ma�sa pareceu
uma boa oportunidade para experimentar sua nova forma de sedu��o. Deu certo. Contando com o interesse de Luciana, que fatalmente estaria esperando que ela comparecesse
� festa, Cec�lia se atrasou de prop�sito. N�o gostava mesmo de cerim�nia religiosa e dispensou-a, s� aparecendo na recep��o bem mais tarde, quando achou que Luciana
j� devia ter perdido as esperan�as de que ela fosse. Dito e feito. Luciana estava sozinha e triste, e demonstrou uma alegria contagiante logo que a viu. Dali para
o sexo, foi um pulo. Cec�lia usou com Luciana as mesmas manhas que utilizava quando queria envolver algum homem, e ela caiu feito um patinho. Na hora do beijo, pensou
que fosse desistir, mas at� que gostou e correspondeu sem maiores problemas. Tudo estava saindo muito mais f�cil do que ela imaginava. O �nico problema era que Luciana
n�o queria se envolver, e ela precisava fazer com que Luciana se apaixonasse por ela. Mas como? Precisava ser esperta e agir com calma, ou a outra se afastaria dela
e ainda a dispensaria do emprego. Ao contr�rio do que ela imaginara, Luciana era uma mulher segura e decidida, e n�o uma l�sbica solit�ria e amarga, pronta para
cair nos bra�os de qualquer uma que lhe desse aten��o e lhe saciasse o desejo. Pensando nisso, Cec�lia engoliu a raiva e retrucou com aparente docilidade:
- Acho que voc� tem raz�o, Luciana. Um envolvimento n�o seria bom para nenhuma de n�s. N�s temos uma rela��o de trabalho que poderia ficar abalada se nos envolv�ssemos
emocionalmente. E eu preciso do emprego.
- Fico feliz que pense assim. Tamb�m preciso da secret�ria, e voc� � muito boa no que faz.
Luciana encerrou a conversa com um beijo e foi tomar banho, deixando Cec�lia remoendo a raiva. Na segunda-feira, quando Luciana chegou ao consult�rio, cumprimentou
Cec�lia formalmente, porque havia um cliente na sala de espera. Ma�sa viajara em lua de mel e s� retornaria dali a quinze dias, de forma que ela estava sozinha,
atendendo inclusive alguns pacientes de Ma�sa com casos mais urgentes. No fim do dia, depois que todos os clientes haviam sa�do, Cec�lia come�ou a arrumar a mesa,
guardando fichas e somando os cheques, e Luciana se aproximou. Cec�lia n�o queria parecer ansiosa e limitou-se a olh�-la, contendo a ansiedade. Se demonstrasse excessivo
interesse, Luciana logo se cansaria dela, e era por isso que precisava se fazer de dif�cil.
- Deseja alguma coisa, Luciana? - perguntou ela, de forma estudadamente profissional.
Luciana n�o respondeu. Puxou-a para si e amou-a ali mesmo, no sof� da sala de espera, para regozijo de Cec�lia. Efetivamente, aquele era o caminho certo. Luciana
n�o gostava de mulheres carentes nem que se apegassem a ela, e Cec�lia estava disposta a fazer o papel de desligada e desinteressada. Ao final, Luciana se levantou
e come�ou a se vestir, falando com satisfa��o:
- Voc� � maravilhosa, Cec�lia. Sabia que n�o me enganaria com voc�.
- Gosto muito de voc�, Luciana, mas cheguei � conclus�o de que tamb�m n�o quero me envolver. Ainda sou muito nova, quero experimentar outras coisas na vida.
Com uma express�o indefin�vel no olhar, Luciana considerou:
- Fez uma op��o segura e sensata, mas tenha cuidado com o que vai experimentar.
N�o esperou resposta. Atirou um beijo no ar, apanhou a bolsa e saiu em dire��o ao ponto de �nibus. Precisava comprar um carro, mas primeiro tinha que pensar no apartamento.
Ma�sa se mudara, e o propriet�rio n�o queria alugar para ela. Dera-lhe um prazo de noventa dias para que ela se mudasse, tempo mais do que suficiente para encontrar
outro lugar. No consult�rio, Cec�lia exultava. Tinha certeza de que Luciana sa�ra com os pensamentos voltados para ela, embora com medo de assumir. N�o sabia, sequer
imaginava, que Luciana deixara de pensar nela assim que cruzara a porta da rua, os pensamentos tomados por coisas pr�ticas que requeriam a sua aten��o. De tanto
Dolores insistir, Fl�vio acabou por concordar em levar Marcela a um almo�o em sua casa, no s�bado seguinte ao casamento de Ma�sa. Marcela estava insegura, sem saber
como se portar diante de uma mulher t�o distinta e requintada.
- Voc� n�o tem que se preocupar com nada - tranq�ilizou Fl�vio. Mam�e pode parecer meio austera a princ�pio, mas n�o � nenhuma megera.
- N�o � isso... - argumentou Marcela. � que nunca me vi numa situa��o como essa antes.
- Que situa��o? De conhecer a m�e do namorado?
Ela ficou confusa e terminou por gaguejar:
- �... isto �, assim, t�o de repente.
- N�o � de repente. J� estamos juntos h� quatro meses, e pretendo assumir um compromisso formal com voc� - notando o seu embara�o, ele emendou: Voc� n�o quer?
- Quero...
- Voc� n�o me parece muito segura. Ser� que n�o me ama?
- Amo...
- Se me ama, do que tem medo?
- De nada... Na verdade, tenho medo do meu passado...
Aquele era um terreno espinhoso, e Marcela temia acabar revelando mais do que deveria. O que diria a m�e de Fl�vio se soubesse que ela tentara se matar por causa
de outra mulher? Era preciso ocultar a verdade a qualquer pre�o.
- Se voc� est� com medo de que mam�e saiba que voc� tentou suic�dio por causa de um ex-namorado, n�o precisa se preocupar. Ela n�o sabe de nada e, se depender de
mim, nunca vai saber.
- Voc� n�o lhe contou?
- N�o. Por que contaria? Minha m�e n�o tem nada com a minha vida ou a sua, e n�o sou homem de ficar dando explica��es. Nem ela, nem meu pai sabem dessa particularidade
da sua vida.
- Obrigada, Fl�vio - murmurou ela aliviada. Eu n�o saberia o que dizer se ela descobrisse a verdade.
- Voc� n�o precisa dizer nada. N�o por vergonha ou medo, mas porque a sua vida s� a voc� diz respeito. Voc� n�o � obrigada a revelar a sua vida a ningu�m. O seu
passado s� a voc� pertence.
- Voc� acha mesmo isso? - admirou-se Marcela.
- � claro que acho.
- N�o gostaria de conhecer o meu passado?
- J� sei de tudo o que interessa. O que voc� fez antes de me conhecer n�o � da minha conta. Se dormir com um, dois ou dez homens, n�o � problema meu.
Marcela n�o disse nada. Ele parecia muito honesto no que dizia, ainda mais porque pensava, realmente, que ela tivera outro homem antes dele. Mas o que diria se sua
paix�o anterior n�o fosse por um homem, mas por outra mulher? De qualquer forma, n�o iria lhe dizer. N�o at� ter certeza de que ele entenderia e n�o a julgaria nem
condenaria. Quando s�bado chegou, fazia um dia de muito sol e c�u azul, e Fl�vio foi buscar Marcela por volta das onze horas. Ela estava muito bonita num vestido
branco florido, e ele a elogiou v�rias vezes. A pr�pria Marcela se envaidecia de sua rec�m-descoberta feminilidade e tudo fazia para agrad�-lo e deix�-lo impressionado
com a sua beleza. Chegaram � casa de Fl�vio �s onze e meia, e Dolores estava sentada na varanda dos fundos, bebendo um refresco, � sua espera. Quando eles entraram,
ela se levantou e estendeu a m�o para Marcela, dizendo com uma cordialidade estudada e falsa:
- Mas ent�o, � voc� a Marcela. Agora entendo por que Fl�vio ficou t�o impressionado com voc�.
O rosto de Marcela ardia profundamente, mas ela conseguiu se controlar e apertou a m�o de Dolores.
- Muito prazer em conhec�-la, dona Dolores. Fl�vio fala muito bem da senhora.
- Isso n�o me surpreende. Tenho um filho maravilhoso e espero que ele esteja me arranjando uma nora � altura.
- Deixe disso, mam�e - cortou Fl�vio, notando o constrangimento de Marcela.
- N�o seja implicante - repreendeu-a. Marcela e eu vamos ser muito amigas, n�o � Marcela?
- Vamos... - respondeu Marcela hesitante.
- Viu s�? Por isso, n�o me amole. Tenho certeza de que ela corresponde bem �s minhas expectativas de m�e e n�o vai me decepcionar.
Para desfazer o mal-estar, Fl�vio tomou Marcela pela m�o e desceu com ela os tr�s degraus que dariam no jardim.
- Vou mostrar a casa a Marcela - avisou � m�e. Voltaremos na hora do almo�o.
Dolores pensou em protestar, mas tinha que se controlar. Sua vontade era de desmascarar aquela ca�a-dotes ali mesmo, mas precisava agir com cautela. Fl�vio parecia
muito interessado na mo�a, e ela n�o podia trat�-la mal. N�o entendia o que o filho vira naquela lambisg�ia. Era bonita, de fato, mas beleza n�o era tudo, e Ariane
era ainda mais bonita e tinha mais classe. N�o sabia se era inteligente, mas devia ser, porque Fl�vio lhe dissera que ela era professora de portugu�s, formada em
literatura. Pelo seu comportamento, parecia uma mo�a apagada e insegura, e acabaria dependendo de Fl�vio para tudo. Aquilo poderia ser uma vantagem, porque pessoas
fracas eram facilmente manipul�veis, mas ela n�o tinha estilo. Era uma pobretona sem eira nem beira, n�o tinha ber�o nem educa��o. Tinha jeito de empregadinha e
ar subalterno. Bem se via que era de origem humilde, para n�o dizer inferior. E ela, Dolores C�ndida Raposo, jamais permitiria que seu filho se casasse com uma gentinha
feito ela. No jardim, Marcela e Fl�vio passeavam de m�os dadas, e a mo�a ia dizendo:
- Sua m�e n�o gostou de mim.
- Bobagem! Minha m�e � assim mesmo.
- Ela pensa que eu n�o sirvo para voc�.
- Ela disse isso? Eu n�o ouvi.
- Dava para perceber pelo jeito dela.
- Impress�o sua. Ela quer apenas conhec�-la melhor, e � natural que se interesse pela mulher com quem vou me casar.
- Casar!?
- Eu n�o disse que queria assumir um compromisso s�rio?
- Mas voc� n�o falou em casamento.
- Estou falando agora. Quer se casar comigo?
- Tenho medo...
- Voc� n�o me ama?
- Amo.
- Tem certeza? - ela assentiu. Certeza absoluta?
- Tenho...
- Ent�o, n�o h� o que temer.
- Mas... e se sua m�e n�o me aceitar?
- Esque�a minha m�e. Quem tem que aceit�-la sou eu, n�o ela.
- E se ela descobrir o meu passado?
- De novo com essa hist�ria de passado? Voc� fala como se fosse uma criminosa ou algo parecido. J� esteve presa?
- Deus me livre!
- Andou metida em algum seq�estro, roubo ou prostitui��o?
- � claro que n�o!
- Ent�o, isso de passado � tolice, e voc� n�o devia voltar a essa hist�ria. O seu passado n�o me interessa, j� disse.
- Tem certeza? E se eu tiver feito algo que voc� n�o aprove?
- O qu�?
- Sei l�... Ter vivido com outra mulher, por exemplo.
- Como � que �? - ele soltou uma gargalhada. Mas que besteira! Desde quando voc� � mulher de se envolver nessas esquisitices?
- Acha esquisitice?
- Ser l�sbica? - ela aquiesceu. Acho, sim. Mulher direita n�o se mete com esse tipo de gente.
- Voc� � preconceituoso!
- N�o sei se sou preconceituoso. Olhe, Marcela, n�o sei por que estamos conversando sobre isso. N�o tem nada a ver com voc�.
- Sei que n�o... Mas gostaria de saber o que voc� pensa a respeito.
- Por qu�?
- Por nada. Curiosidade, apenas. Voc� � m�dico, e n�o dizem que os m�dicos n�o podem ter preconceito?
- N�o � bem assim. Se aparecer no meu consult�rio uma l�sbica ou um homossexual, vou atend�-los normalmente. A vida � deles, e eu n�o tenho nada com isso. Minha
fun��o � cuidar da vida e da sa�de das pessoas, e � o que pretendo fazer, independentemente da pessoa que precise de meus cuidados. Mas n�o entendo muito bem a escolha
que essa gente faz e n�o gostaria de ningu�m na minha fam�lia envolvido com isso. Muito menos a mulher com quem vou-me casar.
Marcela engoliu em seco, decepcionada. Fl�vio considerou:
- Voc� n�o tem nada a ver com isso, tem?
- � claro que n�o! - mentiu ela, agora decidida a n�o deixar que ele descobrisse a verdade. Deus me livre de ter rela��es com uma mulher! Acho nojento.
Assim que terminou de dizer essas palavras, Marcela sentiu-se mal. Estava traindo um sentimento que a alimentara por oito anos, traindo a pessoa com quem dividira
a sua vida por todo aquele tempo e lhe dera muito mais do que amor e amizade; traindo a si mesma, negando que fora feliz e se realizara ao lado de Luciana. Como
podia agora se desfazer de tudo aquilo, falando coisas que n�o pensava ou sentia, apenas por medo de perder o homem por quem se julgava apaixonada? Sua consci�ncia
lhe dizia que aquele era o momento de revelar a Fl�vio toda a verdade. Talvez ele n�o fosse t�o preconceituoso, afinal. Se realmente a amasse, saberia entender aquele
seu momento e n�o a julgaria ou criticaria pelo que fizera. Afinal, n�o fora ele mesmo quem dissera que o seu passado n�o lhe importava? Por outro lado, era o mesmo
Fl�vio quem dizia que mulher direita n�o se metia com aquelas coisas, e n�o gostaria de se envolver com mulheres daquele tipo. Do mesmo tipo que ela era. O medo
a fez calar-se novamente. N�o negaria para si mesma tudo o que vivera e sentira por Luciana, mas tamb�m n�o podia correr o risco de perder a pessoa que amava naquele
momento. Luciana fora o grande amor de sua vida, mas o que ela agora sentia por Fl�vio ia crescendo a cada dia, e Marcela come�ava a pensar que n�o poderia viver
sem ele, assim como um dia achou que n�o conseguiria viver sem Luciana. S� que Luciana fora passado. Fl�vio representava o presente e o futuro.
- Vamos voltar? - ela ouviu Fl�vio dizer, enquanto a puxava pela m�o. Estou vendo mam�e acenando da varanda.
Efetivamente, Dolores acenava para eles da porta, chamando-os para o almo�o. Fl�vio foi conduzindo Marcela pela alameda do imenso jardim, e a conversa se perdeu
no ar. Apesar de achar estranho aquele assunto, Fl�vio n�o pensou mais nele. N�o tinha nada a ver com Marcela, e ele preferia nem imaginar que ela pudesse ter-se
envolvido com l�sbicas.
- O almo�o est� servido - anunciou Dolores, logo que eles subiram os degraus da varanda. N�o vamos deixar a comida esfriar, n�o � mesmo?
Os tr�s entraram na sala de jantar, e Dolores indicou o lugar em que Marcela deveria se sentar, do lado oposto de Fl�vio.
- O que temos para comer? - indagou Fl�vio, cheirando as travessas.
- Mandei fazer lagosta com salada de camar�o - avisou Dolores. Marcela me parece uma mo�a simples, e eu n�o queria fazer nada formal.
Lagosta? Marcela jamais comera lagosta em toda a sua vida. Nem sabia como retir�-la da travessa e coloc�-la no prato, mas Fl�vio n�o se deixou intimidar. Mandou
que a servissem e cortou tudo para ela, sob o olhar malicioso da m�e.
- Marcela �, realmente, uma mo�a de gostos simples, mam�e - esclareceu ele. E ningu�m que � simples come lagosta. Por que n�o escolheu um prato menos complicado?
- Oh! Desculpe-me, querida. Pensei que voc� estivesse acostumada e soubesse se servir.
Fl�vio fuzilou-a com o olhar, mas n�o respondeu. Parecia claro agora que a m�e estava se esfor�ando para deixar Marcela sem gra�a desde o come�o. N�o quis acreditar
achando que a inseguran�a de Marcela a fazia imaginar coisas, mas agora reconhecia que servir um prato de lagosta a uma pessoa como Marcela era, no m�nimo, maldoso.
- Coma, meu bem - disse ele para Marcela, vendo que ela n�o se mexia. Voc� vai gostar.
Bem lentamente, Marcela levou o garfo � boca e experimentou a lagosta. Estava gostosa, mas ela temia fazer algo inapropriado e olhou para Fl�vio, pedindo socorro.
O olhar que ele lhe devolveu transmitiu-lhe tranq�ilidade, e ela acabou comendo tudo, lutando contra a vergonha e o embara�o.
- Fl�vio me disse que o seu pai � padeiro - comentou Dolores, com aquele ar de mal disfar�ada mal�cia.
- Meu pai � dono de uma padaria, sim - confirmou Marcela.
- A vida de um padeiro deve ser emocionante! - ironizou ela, mordiscando a lagosta e evitando o olhar de censura do filho. Levantar todo dia �s quatro da manh� para
fabricar todo tipo de p�o!
- N�o sei se � emocionante - respondeu Marcela, sentindo o rubor cobrindo-lhe as faces. Mas � um trabalho digno, e meu pai se esfor�ou muito para conseguir o seu
pr�prio neg�cio.
- Imagino que sim... - deu um risinho mordaz e prosseguiu: H� quanto tempo voc� saiu de casa?
- Desde que vim estudar no Rio, h� cerca de oito anos.
- E n�o tem visto os seus pais desde ent�o?
- N�o...
- Campos � muito longe, mam�e - intercedeu Fl�vio. N�o d� para ficar indo e vindo a toda hora.
- Ah! E a passagem de �nibus deve ser muito cara tamb�m.
- Isso n�o nos interessa, n�o � mesmo? - era Fl�vio novamente.
- Nem um pouco! - disse Dolores. Bem, voc� veio para o Rio estudar letras, n�o � mesmo?
- Sim, senhora.
- E hoje d� aulas.
- Dou. Numa escola normal.
- � muito bom ter um emprego nos dias de hoje, n�o �? Quer dizer, ser professora � melhor do que estar desempregada.
- Marcela � professora concursada - defendeu Fl�vio. E muito capaz.
- Imagino que sim. E deve ganhar bem.
- O suficiente para viver com certa tranq�ilidade - respondeu Marcela, cheia de orgulho.
- O que isso nos importa, m�e? - censurou Fl�vio. Quanto Marcela ganha � problema dela.
Dolores ignorou o coment�rio de Fl�vio e prosseguiu em tom inquisidor:
- Suponho que voc� pretende deixar de trabalhar depois que se casar com meu filho.
- Quem foi que disse que vamos nos casar? - explodiu Fl�vio.
- N�o � para isso que est�o namorando? Com certeza, os dois n�o t�m mais idade para namoricos de passatempo. Fl�vio j� vai fazer trinta anos, e voc� n�o � mais nenhuma
garotinha.
- A idade de Marcela n�o � problema seu, mam�e - rebateu Fl�vio, bastante aborrecido. E, virando-se para a mo�a: J� terminou de comer?
Marcela aquiesceu e limpou os l�bios no guardanapo, preparando-se para se levantar da mesa quando Dolores a impediu:
- Deixem de bobagens, voc�s dois, e terminem de almo�ar.
- Voc� est� sendo grosseira, mam�e - afirmou Fl�vio. Est� me envergonhando na frente de Marcela.
- Estou? Perdoem-me, n�o era essa a minha inten��o. Voc� sabe como eu sou, Fl�vio, vou falando as coisas sem nem me dar conta. N�o sabia que estava ofendendo Marcela.
- N�o faz mal - contemporizou Marcela. N�o foi nada.
- Viu s�? Ela nem se aborreceu.
- Marcela s� est� sendo gentil, coisa que voc� n�o �.
- J� pedi desculpas. N�o queria ofender ningu�m.
- Deixe para l�, Fl�vio - disse Marcela. Tenho certeza de que sua m�e n�o fez por mal. N�o vamos nos aborrecer por causa disso.
- Muito bem, Marcela. Voc� � uma mo�a sens�vel e sensata.
- Ent�o, vamos mudar de assunto - retrucou Fl�vio carrancudo.
A conversa mudou de rumo, e Dolores riu intimamente. N�o podia perder a chance de humilhar a mo�a, ainda que n�o houvesse ningu�m para assistir. Contudo, precisava
refrear a sua �nsia de mostrar a Fl�vio que tipo de mulher era aquela, porque ele acabaria se zangando, e sua atra��o por ela aumentaria. Afinal, nada melhor do
que uma mocinha desprotegida e carente para atrair a aten��o de um homem firme e protetor feito Fl�vio. Mas sabia que precisava destruir aquele namoro. Jamais permitiria
que seu filho estragasse a vida com uma professorinha de escola normal sem classe nem distin��o. Como faria para separar aqueles dois? A mo�a viera de Campos e n�o
via a fam�lia h� anos. Por que sa�ra de sua cidade e nunca mais retornara? Por que nem sequer mantinha contato com os pais? Uma mo�a que sai de casa cedo para viver
numa cidade grande, na certa, n�o tem o apoio da fam�lia. Que pai permitiria que a filha solteira fosse morar sozinha no Rio de Janeiro? A n�o ser que a fam�lia
n�o ligasse para ela. Ou ent�o, que ela tivesse fugido de casa. Descobrir tudo sobre seu passado talvez fosse um caminho, mas Fl�vio n�o se deixaria impressionar
por nada que se referisse � fam�lia de Marcela. Fl�vio n�o era de se importar com regras de etiqueta e linhagem, e se os pais de Marcela n�o fossem pessoas dignas
ou honestas, ele n�o ligaria. Decididamente, encontrar segredos escabrosos dos pais da mo�a n�o serviria para nada. O que ela precisava era de algo na vida da pr�pria
Marcela, algo que lhe dissesse respeito diretamente e chocasse ou desgostasse o filho a tal ponto que ele nunca mais quisesse olhar para ela. Enquanto isso, em casa
de Ariane, a situa��o come�ava a ficar insustent�vel. Os pais viviam brigando, porque a m�e desconfiava que N�lson estivesse tendo um caso com algu�m. Os dois discutiam
no quarto, mas a janela aberta facilitava que Ariane escutasse toda a conversa.
- N�o suporto mais isso! - afirmava Anita. Voc� n�o me d� mais aten��o, n�o me procura mais.
- Tenho andado ocupado - desculpou-se N�lson, sem a encarar.
- As coisas entre n�s j� n�o s�o mais as mesmas. Voc� anda frio, distante... Tenho certeza de que arranjou outra mulher.
- Voc� est� imaginando coisas. N�o tenho tempo para mais ningu�m.
- N�o � verdade, eu sinto isso.
- Pare de me amolar, Anita. Tenho mais o que fazer.
Com ar irritado, N�lson virou-lhe as costas e saiu do quarto, deixando-a entregue a profunda tristeza. Havia algo de errado com o seu casamento, e Anita sabia o
que era: ela. Desde o nascimento de seu �ltimo filho, onze anos antes, ganhara peso e jamais conseguira se recuperar. De l� para c�, o interesse de N�lson foi minguando,
at� que, um dia, ele deixou de procur�-la para o sexo, dando-lhe a certeza de que arranjara outra mulher. Agora, ent�o, as coisas pareciam bem piores. Al�m de frio,
ele andava irritadi�o e mal-humorado, e n�o se preocupava mais em manter as apar�ncias. N�o a levava para jantar fora e s� comparecia acompanhado �s recep��es e
festas quando absolutamente necess�rio. Sem contar que a situa��o financeira de ambos estava beirando a ru�na. N�lson n�o falava, mas ela tinha certeza de que a
cl�nica n�o ia bem. Desde que Justino desfizera a sociedade, os neg�cios pareciam ir de mal a pior. N�lson era p�ssimo administrador, e ela ainda duvidava de suas
habilidades m�dicas. De onde estava, Ariane percebeu a sa�da do pai e, chegando mais perto da janela, ouviu solu�os abafados, deduzindo que a m�e estava chorando.
Ainda pensou algumas vezes se deveria ou n�o ir ao seu quarto, at� que decidiu ir. Aquela situa��o a incomodava, e ela n�o suportava mais ver a m�e naquele estado.
Bateu de leve na porta, mas Anita n�o respondeu, e ela entrou lentamente.
- M�e - chamou ela, tocando no ombro de Anita, que tinha o rosto afundado nos travesseiros. Voc� est� bem?
Anita levantou a cabe�a, enxugou os olhos vermelhos e se levantou.
- Estou bem - respondeu fungando. Acho que peguei um resfriado.
- Pare de se enganar, voc� n�o tem resfriado algum. Brigou com papai de novo, n�o foi?
- Seu pai est� diferente...
- Por que diz isso?
- N�o � poss�vel que voc� n�o note como ele me trata - ela n�o respondeu. Ele n�o me quer mais, sinto isso.
- Por qu�?
- E eu � que sei?
A �ltima coisa que Ariane queria era magoar a m�e, mas aquilo j� estava indo longe demais. Algu�m precisava despert�-la para a realidade, e era isso que ela acabaria
fazendo:
- Ser� que posso lhe falar uma coisa, m�e? Com toda a sinceridade?
- O que �?
- Voc� n�o vai me levar a mal nem ficar chateada?
- N�o. O que �? Pode dizer.
- N�o quero que voc� se magoe... mas voc� sabe como as mulheres vivem se cuidando hoje em dia...
- J� sei! - a interrompeu, entre aborrecida e magoada. Vai me dizer que eu estou gorda, n�o �?
- N�o foi isso o que eu quis dizer.
- Foi isso, sim. Voc� acha que seu pai perdeu o interesse em mim porque eu engordei. Mas o que eu posso fazer? Tive quatro filhos... Isso n�o � para qualquer uma.
- � claro que n�o, e eu entendo. N�o estou dizendo que voc� teve culpa de engordar. Mas voc� pode tentar emagrecer...
- Eu n�o consigo! J� tentei de tudo, tomei rem�dios, fiz gin�stica, experimentei dietas milagrosas. Nada deu certo. E depois, pensei que seu pai me amasse de qualquer
jeito.
- M�e, n�o � bem assim...
- Tem raz�o, n�o � mesmo. Se seu pai realmente me amasse, n�o se importaria com isso. Mas o fato � que ele n�o me ama. Casou-se comigo porque eu era jovem, rica
e linda. Mas depois que os filhos vieram, e meu corpo se modificou, ele logo, logo, tratou de me trocar por alguma garota.
- Voc� n�o sabe se isso � verdade.
- S� pode ser. Voc� mesma acha que eu estou horr�vel!
- Eu n�o disse isso.
- Mas foi o que quis dizer.
- Eu s� acho que, se voc� n�o fizer alguma coisa, vai acabar perdendo o papai.
- Era s� o que me faltava! Minha pr�pria filha contra mim.
- N�o estou contra voc�. Ao contr�rio, quero ajud�-la a conservar o seu casamento.
- E s� conseguirei isso se emagrecer?
- N�o sei. Mas talvez ajude.
- Est� tudo errado - lamentou Anita, recome�ando a chorar. Eu sempre achei que o amor estivesse acima dessas coisas. Amor � algo que vem do cora��o, n�o do corpo.
Se a apar�ncia f�sica � tudo o que importa, ent�o, n�o h� amor.
- N�o � que papai n�o a ame. Ele deve apenas estar chateado porque a mulher dele ficou gorda e relaxada. Voc� j� viu como as mulheres dos outros s�o bonitas e bem
cuidadas? Voc� nem as unhas faz mais.
Anita olhou para a filha de boca aberta. Para ela, o amor independia da beleza f�sica, mas a filha parecia pensar de outro jeito. O marido tamb�m pensava como Ariane.
Todo mundo pensava. Por outro lado, a filha tinha raz�o. Sua apar�ncia estava horr�vel. Os cabelos apresentavam v�rios fios brancos que a tinta da farm�cia n�o conseguia
esconder. As unhas estavam lascadas e sem brilho. A pele oleosa e descuidada. As roupas, ent�o, pareciam coisa de velha. Olhando-se no espelho, Anita achou que aparentava
bem mais do que os seus 44 anos.
- � isso que tem import�ncia para voc�? - a retrucou, desanimada e triste.
- Apar�ncia pode n�o ser tudo, mas ajuda um bocado. Entre mulheres bonitas e inteligentes, os homens ficam com as bonitas.
- Mas est� errado. E o car�ter, onde � que fica?
- Que car�ter, m�e? Desde quando mulher precisa disso?
- Ariane! - tornou ela, surpresa e embasbacada.
- Isso tudo � tolice - prosseguiu ela, ignorando o espanto da m�e. Veja Dolores, por exemplo. � mais velha do que voc�, mas parece infinitamente mais jovem. Est�
sempre indo a sal�es de beleza, faz massagem, tratamentos para a pele, tinge os cabelos. � uma mulher linda. N�o h� quem n�o a admire. Os valores de Ariane pareceram
distorcidos para Anita, mas ela resolveu se calar. N�o tinha argumentos para rebater as argumenta��es da filha. Podia dizer-lhe que nada daquilo era importante,
que o que importava eram os valores morais e espirituais, mas ela n�o entenderia. Completamente aturdida, s� o que conseguiu foi balbuciar:
- N�o reconhe�o voc�...
Ariane n�o ouviu o seu coment�rio e continuou falando, agora presa a outro assunto:
- E � por isso que vou-me casar com o filho dela. Ela me adora e faz muito gosto no meu casamento com Fl�vio. Agora, imagine s� se eu fosse relaxada e descuidasse
da apar�ncia. Fl�vio nem olharia para mim, e Dolores n�o ia me querer para nora.
- Voc� e Fl�vio ainda est�o namorando? - indagou Anita agora envolvida pelo novo assunto, sentindo-se at� mesmo grata por n�o ter mais que ouvir as barbaridades
de Ariane.
- Estamos... Isto �, mais ou menos.
- Como � que algu�m namora mais ou menos?
- Bom, Fl�vio anda meio arredio, sabe como �.
- N�o, n�o sei. E quer que lhe diga? Acho que Fl�vio n�o gosta de voc�.
- Gosta, sim.
- Se voc� quer se iludir, o problema � seu. Mas a verdade � que ele n�o me parece nem um pouquinho interessado em voc�.
- Voc� n�o sabe de nada, m�e. Nem sai de casa! Como pode saber por quem Fl�vio se interessa?
- Posso n�o andar saindo muito ultimamente, mas sou mulher e entendo dessas coisas. Se Fl�vio gostasse de voc�, viria v�-la com freq��ncia. Mas ele nem sequer a
procura... nem telefona.
- Porque anda ocupado. E j� que voc� falou, vou aproveitar o s�bado e ligar para ele.
Um tanto quanto aborrecida, Ariane saiu do quarto e foi telefonar para Fl�vio, deixando Anita sozinha. Depois que a filha saiu, ela se entregou novamente � reflex�o.
Ariane podia estar com os valores distorcidos, mas n�o deixava de ter l� a sua raz�o. Ela andava mesmo muito descuidada da apar�ncia, o que n�o era bom. J� tentara
de tudo para emagrecer e n�o conseguira nenhum resultado significativo. Por causa disso, desistira e se entregara ao des�nimo. Mas agora pensava melhor. Ser� que
s� porque estava gorda precisava se vestir feito uma bruxa? N�o seria melhor colocar uma roupa mais bonita, pentear os cabelos, pintar as unhas? Talvez fosse uma
boa id�ia para levantar o �nimo. Do jeito que ela estava, n�o podia mais ficar. O marido a ignorava, e os filhos tinham suas pr�prias vidas para cuidar. Huguinho,
o mais novo, estava crescendo, e os outros dois estudavam na Europa. Ariane logo se casaria e deixaria a casa materna. E ela? O que seria dela depois que eles se
fossem, cada vez mais velha e mais gorda? Precisava tomar uma atitude. N�o pelo marido nem pelos filhos, mas por ela mesma. O �nico problema � que ainda n�o se resolvera.
Faltavam-lhe �nimo e coragem. Na mente, a id�ia era excelente, mas coloc�-la em pr�tica exigiria um pouco mais de esfor�o. Precisava de um est�mulo, um incentivo,
mas n�o tinha nada. Em seu quarto, Ariane desligava o telefone com f�ria. A criada lhe dissera que Fl�vio havia sa�do logo depois do almo�o e ainda n�o voltara.
Aonde teria ido? N�o queria admitir, mas a m�e tinha raz�o. Fl�vio estava muito indiferente, n�o demonstrava o menor interesse por ela. Dolores lhe garantira que
ele se casaria com ela, mas o que estaria fazendo para conseguir isso? Pelo visto, nada. Ariane j� n�o ag�entava mais esperar. Devia ter pedido para falar com Dolores,
mas a raiva a fizera desligar o telefone. Ia ligar de novo, contudo, mudou de id�ia. Iria pessoalmente falar com ela. Dolores estava em casa e n�o se surpreendeu
quando Ariane entrou com ar ansioso.
- Muito bem, Dolores - foi logo dizendo. O que � que est� acontecendo com Fl�vio?
- Em primeiro lugar, boa tarde - retrucou Dolores calmamente. Em segundo, n�o sei do que voc� est� falando. N�o aconteceu nada com Fl�vio.
- Voc� est� querendo me enrolar? N�o me prometeu que Fl�vio se interessaria por mim? N�o � isso que est� acontecendo.
Dolores soltou um suspiro desanimado e encarou Ariane. N�o adiantava mais lhe esconder nada. Depois de conhecer Marcela, tinha certeza de que o filho estava mesmo
disposto a se casar com ela. Era melhor contar a verdade a Ariane e tentar fazer com que ela a ajudasse.
- Voc� tem raz�o - come�ou a dizer, com certo tom dram�tico na voz. Fl�vio n�o est� mais interessado em voc�. E, pelo visto, vai continuar assim, a n�o ser que voc�
me ajude.
- Como?
- Fl�vio arranjou uma namorada. Uma professora pobre e sem classe, mas � por ela que ele se diz apaixonado.
- O qu�!? Apaixonado por uma professorinha sem eira nem beira? N�o pode ser!
- E ela nem � assim t�o bonita, mas ele se tomou de amores pela mo�a. Quem � que vai entender?
- Ningu�m! Ningu�m pode entender. Voc� me prometeu que Fl�vio seria meu. N�o pode simplesmente se desfazer de mim agora!
- Quem disse que quero me desfazer de voc�? Se bem me lembro, acabei de lhe dizer que vou precisar da sua ajuda.
- Mas o que posso fazer? Seduzi-lo?
- Isso n�o vai adiantar. Marcela veio do interior e mora sozinha. J� deve ser mulher, se � que voc� me entende.
Ariane corou at� as orelhas. Por mais que tivesse tentado, Fl�vio nunca quis fazer amor com ela.
- O nome dela � Marcela? - tornou, tentando disfar�ar a vergonha. E voc� diz que ela � mulher. Mas eu tamb�m sou mulher!
- Voc� � uma menina mimada que nada sabe da vida. E creio que foi justamente isso que o atraiu nessa mo�a. Ela � independente, mas insegura, e deve ter um passado,
uma hist�ria comovente que o sensibilizou e o aproximou dela. Os homens s�o uns tolos e se sentem atra�dos por mulheres que t�m passado. Precisamos descobrir o que
�.
Apesar de aborrecida com o coment�rio sobre ela, Ariane ouvia atentamente o que Dolores dizia e indagou:
- Posso saber como faremos para descobrir isso?
- Pensei em procurar os pais dela, mas eles moram em Campos, e n�o estou disposta a me aventurar numa cidadezinha desconhecida. Podia contratar um detetive, mas
tamb�m n�o � garantido. Fl�vio pode descobrir, e a�, podemos esquecer de vez. Ocorreu-me outra id�ia... - ela fitou Ariane em tom enigm�tico.
- Que id�ia?
- Talvez seja melhor voc� mudar de atitude e se aproximar dessa mo�a, travar amizade com ela.
- Eu!? Nem pensar! Vai parecer muito estranho, voc� n�o acha? Num dia, estou apaixonada por Fl�vio. No outro, viro amiga da namorada dele.
- D� um jeito de parecer natural. Eu � que n�o posso fazer amizade com ela. N�o vai convencer ningu�m.
- Mas como farei isso? N�o sei nada sobre ela.
- Vou descobrir onde ela trabalha, e voc� tratar� logo de agir.
- N�o sei, Dolores, isso n�o me agrada.
- Se n�o a agrada, pode esquecer. N�o tenho mais ningu�m com quem contar.
- Fl�vio vai desconfiar. Ele n�o � tolo.
- N�o precisa se preocupar com isso. Tenho tudo planejado. Voc� vai conhecer a mo�a, mas sem ser por interm�dio de Fl�vio. Vai fazer amizade com ela e vai evitar
encontrar-se com ele. Assim ter� oportunidade de descobrir tudo a respeito dela.
- E se eu n�o conseguir?
- Se n�o conseguir, esque�a. Fl�vio vai se casar com a professorinha e voc� vai ficar a ver navios.
- N�o sei... Tenho medo de me delatar.
- Aja com naturalidade, e tudo vai dar certo. Ent�o? Vai ou n�o colaborar?
Durante alguns instantes, Ariane ficou pensativa, imaginando se conseguiria levar adiante aquele plano ousado. Contudo, estava desesperada. N�o queria perder Fl�vio
por nada no mundo.
- Supondo que eu concorde, quando dar�amos in�cio a esse plano?
- Assim que eu descobrir onde ela trabalha. Ent�o, aceita ou n�o?
- N�o sei.
- Voc� tem que se decidir. Se ficar hesitante, vai perder a oportunidade, e Fl�vio se casar� com a outra. Vamos, menina, n�o seja indecisa. Gosto de voc� porque
� uma mo�a forte, segura e corajosa. N�o me decepcione agora!
Dolores sabia que aqueles elogios a incentivariam, e n�o estava errada. Para Ariane, seria a oportunidade de mostrar que ela n�o era nenhuma garotinha mimada e ing�nua.
Tentando causar-lhe admira��o, Ariane estufou o peito, empinou o nariz e respondeu em tom altivo:
- Tem raz�o, Dolores. Sou uma mulher de fibra, n�o uma garota mimada e insegura. Aceito.
Estava resolvido. No dia seguinte se iniciaria o plano que colocaria em risco a felicidade e a vida de Fl�vio e Marcela. A caminho do consult�rio, Cec�lia ia imaginando
como fazer para arrancar algum dinheiro de Luciana e impressionar o namorado. Conhecera Gilberto no baile do clube e queria muito lhe causar admira��o. Precisava
de um vestido novo e de uma sand�lia que combinasse, mas n�o tinha dinheiro. A roupa que vira numa vitrina da cidade era muito cara, e comprar a cr�dito n�o era
uma boa id�ia. Os juros eram altos, e ela acabaria sem nada. Trabalhou normalmente durante o dia, at� que o �ltimo paciente se foi. Depois de fechar o consult�rio,
seguiu para a casa de Luciana, como costumava fazer. Ela alugara um novo apartamento e o estava decorando, e Cec�lia se oferecera para ajudar. Depois que terminaram
de pendurar uns quadros na sala, as duas se deitaram no sof�, exaustas, e logo estavam se amando. Ao final, foram para o banho, e Cec�lia ia ensaboando as costas
de Luciana, pensando que aquele seria o melhor momento para iniciar a conversa:
- Vi um vestido lindo na vitrina hoje!
- � mesmo? - retrucou Luciana, desinteressada. De que cor?
- Vermelho. N�o acha que vermelho me cai bem?
- �, cai.
- Pena que o meu dinheiro n�o deu para comprar.
- � muito caro?
- Um pouco.
Era agora! Cec�lia achou que Luciana lhe ofereceria o dinheiro para comprar o vestido, mas ela n�o disse nada. Terminou de se enxaguar e saiu do chuveiro.
- Vai demorar? - indagou, enrolando-se na toalha.
Cec�lia estava furiosa, mas n�o podia deixar que Luciana percebesse e respondeu com fingida docilidade:
- J� estou saindo - desligou o chuveiro e saiu, retomando o assunto. Voc� tinha que ver o vestido, Luciana. Uma beleza!
- No seu pagamento, voc� compra.
- Ah! Mas o meu dinheiro n�o d�. � muito, mas muito caro mesmo!
- Se n�o fosse t�o caro, eu poderia at� lhe dar de presente. Estou ganhando bem agora e n�o me custaria nada. Mas um vestido muito, muito caro est� al�m das minhas
possibilidades. Por que n�o escolhe algo mais barato?
Algo mais barato n�o servia. Tinha que ser aquele. O rapaz a convidara para sair no s�bado, e ela precisava estar bem-vestida para ele. No entanto, n�o podia deixar
que Luciana percebesse a sua ansiedade e lhe recusasse tudo. Um vestido barato era melhor do que nada.
- Eu n�o quero que voc� me d� nada de presente! - objetou com veem�ncia, fingindo-se ofendida. N�o � para isso que estou com voc�.
Luciana n�o se incomodou. Simplesmente deu de ombros e, alisando os cabelos com a escova, respondeu com naturalidade:
- Tudo bem. Voc� � quem sabe.
Cec�lia quase a esganou. Se ela n�o tivesse virado as costas naquele momento, teria percebido o seu olhar de raiva.
- Mas um empr�stimo, eu aceitaria - emendou rapidamente, torcendo para que Luciana n�o percebesse o tremor na sua voz.
Sem dizer nada, Luciana apanhou o tal�o de cheques na bolsa e preencheu um deles, estendendo-o para Cec�lia.
- Considere como adiantamento de sal�rio.
Cec�lia mordeu os l�bios com tanta for�a que quase os feriu. Apanhou o cheque com certa rispidez, que Luciana n�o percebeu, e enfiou-o na carteira, fuzilando de
�dio. Aquela t�tica n�o daria certo. Luciana era muito segura de si para cair naquela armadilha. Era at� segura demais, confiante demais em sua capacidade e em si
mesma. N�o. Cec�lia estava tomando o rumo errado. O comportamento incisivo e objetivo de Luciana parecia o de um homem. Ent�o... por que n�o? Por que n�o dispensar
a ela o mesmo tratamento que se dava �s mulheres em geral? Luciana n�o estava acostumada a gentilezas, e Cec�lia precisava conquist�-la com gestos simples e carinhosos,
que lhe despertassem sentimentos mais doces e meigos. Se conseguisse isso, traria � tona uma fragilidade desconhecida e poderia se aproveitar dela depois. No dia
seguinte, Cec�lia pediu licen�a a Ma�sa e saiu mais cedo para o almo�o. Queria estar de volta antes que Luciana chegasse. Comeu um sandu�che rapidamente e parou
numa floricultura. Comprou algumas margaridas, que eram mais baratas, e uma caixa de chocolates.
- O que � tudo isso? - indagou Ma�sa, vendo-a entrar com as flores e os bombons.
- � uma surpresa que quero fazer para Luciana.
Ma�sa n�o respondeu. Logo que retornara da lua de mel ficara sabendo do novo romance entre Luciana e Cec�lia. Ela logo desaprovou aquele relacionamento, mas Luciana
foi categ�rica e lhe assegurou que o envolvimento de ambas era apenas sexual.
- Isso ainda vai acabar mal - comentara Ma�sa. Ambiente de trabalho n�o � bom para essas coisas.
- Voc� est� se preocupando � toa - argumentou Luciana. Cec�lia n�o est� interessada em compromisso s�rio, assim como eu.
- N�o sei. Isso n�o me parece profissional.
- Eu tamb�m pensava assim, mas Cec�lia me garantiu que n�o vai deixar que o nosso relacionamento influencie no trabalho.
- E voc� acreditou?
- Tenho motivos para n�o acreditar?
- N�o entendo voc�, Luciana. � uma mulher segura, pr�tica, experiente. Como � que se deixa iludir assim por essa garota?
- Quem disse que estou me iludindo?
- S� voc� n�o enxerga. Essa mo�a est� tentando fazer voc� de boba.
- N�o est�. E, se estivesse, n�o conseguiria.
- Ser�?
- N�o se preocupe, Ma�sa, sei o que estou fazendo. Gosto de Cec�lia, mas n�o sou a tola que voc� imagina.
- Por mim, eu a mandava embora.
- De jeito nenhum! N�o podemos perder uma boa secret�ria.
Ma�sa se lembrou daquela conversa que tivera com Luciana e sentiu um estremecimento. Por mais que a amiga dissesse que confiava em Cec�lia, havia algo na mo�a que
soava falso. Contudo, Luciana n�o se convencia, e ela tamb�m n�o tinha motivos para despedi-la. Com um olhar de desgosto e d�vida, Ma�sa tirou o jaleco e, antes
de sair, falou para Cec�lia:
- Deixe tudo arrumado.
Pouco depois, Luciana vinha entrando. Ela e Ma�sa se cruzaram no elevador, mas mal tiveram tempo de conversar. A fila do elevador era grande, e Luciana n�o p�de
interromper a entrada das pessoas. A primeira coisa que Luciana percebeu quando entrou foram as flores na mesa de Cec�lia.
- Recebeu flores? - perguntou ela.
- N�o - respondeu Cec�lia, aproximando-se dela. S�o para voc�.
- Para mim?
- Sim. Achei que voc� ia gostar.
- Eu adorei! - exclamou desconcertada. Jamais recebi flores em toda a minha vida!
- � mesmo? N�o acredito.
- Bem, quero dizer, recebi algumas no meu anivers�rio, mas isso foi h� muito tempo. Nunca recebi flores assim, do nada.
- Achei que voc� ia gostar. Mas n�o � s�. Trouxe-lhe isso tamb�m.
Cec�lia estendeu a caixa de bombons, beijando-a gentilmente, e Luciana retrucou desconfiada:
- Por que fez isso? N�o estamos comemorando nada de especial, estamos?
- N�o. Eu s� quis lhe fazer um agrado. Por qu�? N�o posso?
- Pode... claro que pode...
A campainha tocou, e Cec�lia abriu a porta para o primeiro cliente da tarde. Luciana sumiu na outra sala, e Cec�lia ficou rindo intimamente de sua esperteza. A id�ia
parecia ter dado certo. Luciana ficara confusa e balan�ada, tocada em sua sensibilidade feminina. Dentro do consult�rio, Luciana se desligou daquele epis�dio, concentrada
no trabalho que estava fazendo. S� no final da tarde foi que tornou a pensar nele, ao ver Cec�lia pronta para sair, com as flores em uma m�o e a caixa de bombons
na outra. Dali, foram para o apartamento de Luciana, que seguia calada, pensando no que significava tudo aquilo. Temia que Cec�lia estivesse come�ando a se apaixonar
por ela e acabou se retraindo. Em casa, n�o fizeram nada naquela noite a n�o ser jantar, e Luciana comentou sobre suas suspeitas.
- Est� se preocupando � toa - garantiu Cec�lia. Eu apenas acho que voc� precisa de um pouco mais de alegria na sua vida. S� pensa em trabalho, trabalho... H� coisas
bonitas ao seu redor que voc� nem percebe.
- Que coisas?
- As flores, por exemplo. V� como ficaram bonitas na sua sala?
- � verdade.
- Voc� est� precisando de um toque feminino - elas riram -, e sou eu que vou dar.
As flores passaram a ser um h�bito. De vez em quando, Cec�lia enfeitava o consult�rio e o apartamento de Luciana, sem demonstrar qualquer mudan�a no seu comportamento
que pudesse deixar a outra cismada. Para retribuir, Luciana come�ou a comprar presentinhos para Cec�lia, como roupas �ntimas e algumas pe�as de bijuteria, o que
n�o a contentava. Queria j�ias caras e roupas de grife. Passado algum tempo, Cec�lia voltou a insistir:
- Vi uma blusa na vitrina hoje...! Voc� n�o tem id�ia!
- Voc� gosta de roupa, hein? Vive apaixonada por vestidos e blusas.
- Mas voc� tem que ver, Luciana. Maravilhosa! Pena que n�o tenho dinheiro para comprar!
- Onde foi que voc� viu?
- Numa loja chamada Eleg�ncia. Conhece?
- Eleg�ncia? Voc� n�o faz por menos, hein? � uma butique car�ssima!
- Nem tanto assim. E essa blusa era cara, mas nada absurdo.
- Como � essa blusa?
- Linda! Azul, com lacinhos miudinhos bordados. Nunca vi nada igual.
- Voc� � muito tolinha - finalizou Luciana, beijando-a nos l�bios e encerrando a discuss�o.
No dia seguinte, quando as duas foram para o apartamento de Luciana, Cec�lia encontrou uma caixa embrulhada para presente em cima da mesa da sala e, antes mesmo
de perguntar, j� sabia do que se tratava.
- O que � isso? - sondou, como se de nada desconfiasse.
- Uma coisa que comprei para voc�.
- Para mim!? O que �?
- Abra.
L� estava a blusa, e Cec�lia sorriu euf�rica.
- Oh! - exclamou, com fingida surpresa. N�o devia ter feito isso, Luciana. Sei que essa blusa custou caro.
- Experimente.
A blusa serviu perfeitamente, e Cec�lia beijou Luciana v�rias vezes.
- Ficou linda, Luciana! Adorei!
- Sabia que voc� ia gostar.
Ao sair do apartamento de Luciana naquela noite, Cec�lia carregava nos l�bios um sorriso malicioso e c�nico, fruto da alegria que experimentava n�o apenas por ter
conseguido o que queria, mas por ter enganado Luciana, que se achava t�o esperta e confiante. E aquilo era apenas o come�o. Com sua ast�cia, Cec�lia pretendia lucrar
muito mais. Ainda era cedo, e ela n�o precisava ir para casa dormir. Resolveu que estrearia a blusa naquela mesma noite. Gilberto a estava esperando para sa�rem,
e ela n�o queria perder a oportunidade de lhe mostrar a roupa nova. Ao sair do apartamento de Luciana, foi ao encontro de Gilberto, e os dois passaram a noite fora,
num motel barato. No dia seguinte, Cec�lia acordou em cima da hora e nem teve tempo de passar em casa. Tomou um banho, vestiu a blusa nova e partiu para o trabalho.
- Mas que blusa linda! - elogiou Ma�sa, espantada com o fato de Cec�lia estar usando uma roupa aparentemente t�o cara.
- Obrigada, Ma�sa. Foi Luciana quem me deu.
Ma�sa ficou chocada. Sabia que Luciana dava presentinhos a Cec�lia, mas aquilo parecia demais. Elas estavam ganhando bem, mas n�o dava para ficar esbanjando. Naquele
dia, resolveu esperar Luciana e, assim que a mo�a chegou, Ma�sa mandou Cec�lia almo�ar e pagar umas contas no banco.
- O que foi que houve? - perguntou Luciana, notando o ar de preocupa��o de Ma�sa.
- Sou eu que pergunto. O que foi que houve para voc� dar presentes caros a Cec�lia?
- Refere-se �quela blusa? Ora, nem foi t�o cara assim.
- N�o me venha com essa, Luciana. Vi a etiqueta da loja. Voc� comprou na Eleg�ncia.
- Ah! Mas estava em liquida��o.
- N�o tenho nada com a sua vida, mas voc� n�o acha que est� exagerando? Ser� que n�o percebe que Cec�lia est� se aproveitando de voc�?
- Gosto de Cec�lia e compro presentinhos para ela em compensa��o �s flores que ela sempre me d�. Essa blusa foi uma exce��o, realmente. Ela estava louca pela blusa,
e eu quis fazer-lhe um agrado maior. Mas n�o pense que sou idiota. Sei muito bem at� onde posso ir, e se Cec�lia pensa que vai se aproveitar de mim, vai ter uma
baita decep��o.
- Por que faz isso? Sabe-se que ela est� tentando se aproveitar de voc�, por que permite?
- Eu n�o disse isso. Acho que ela est� um pouco deslumbrada e gosta de receber presentes, mas n�o vai tirar nenhum proveito de mim. N�o tenho dinheiro para isso.
- Para ela, tem sim. Cec�lia sabe o quanto lucramos no consult�rio, o que � muito mais do que ela ganha, com certeza.
- Pare de se preocupar, Ma�sa, j� est� ficando chata. E confie no que eu digo: sei muito bem o que estou fazendo e at� onde posso ir. Ningu�m est� me enganando nem
me fazendo de idiota.
- Espero mesmo que voc� saiba o que est� fazendo. N�o quero que voc� se decepcione depois.
- De jeito nenhum! Para isso, era preciso que eu fosse uma menina ing�nua, o que n�o � o caso. Sei bem onde estou pisando e at� que ponto posso ir. N�o se preocupe.
E pare de implicar com Cec�lia.
- Como voc� pode ter tanta certeza?
Luciana abaixou o tom de voz e sussurrou perto do ouvido de Ma�sa:
- Sou eu quem durmo com ela, lembra-se?
Estava encerrada a discuss�o. Luciana parecia muito segura do que dizia, mas Ma�sa n�o estava bem certa. De toda sorte, n�o podia interferir na vida da amiga e,
se ela n�o queria seguir os seus conselhos, s� o que podia fazer era torcer para estar errada e Cec�lia realmente n�o ser nada daquilo que ela pensava. Como o s�bado
amanheceu nublado, n�o havia muito que fazer, e Luciana sentiu certo aborrecimento ao ver as nuvens negras que se aglomeravam no horizonte. Contemplou a decora��o
do apartamento e se sentiu cansada de ficar em casa sem fazer nada. Ningu�m a convidava para uma festa e n�o havia nenhum programa que pudesse fazer. Ainda era muito
cedo, e algumas got�culas de chuva come�aram a cair. Luciana olhou pela janela e bocejou, sentindo as p�lpebras pesarem, embaladas pela cad�ncia mi�da e ritmada
dos pingos que batiam na janela. Em breve, adormeceu. No mesmo momento, seu perisp�rito se desprendeu do corpo f�sico, e ela se levantou assustada. Parada a seu
lado, uma mulher alta, morena, de fei��es finas e porte esguio, trajando um s�ri amarelo-ouro, com uma pedra igualmente amarela na testa, encarava-a com uma express�o
indefin�vel no olhar.
- Quem � voc�? - indagou Luciana temerosa.
- N�o me reconhece?
- N�o. Deveria?
A mulher fez um ar sonhador e n�o respondeu � sua pergunta, mas come�ou a falar como se a conhecesse de longa data:
- N�o adiantou nada trocar de corpo. Eu o reconheci mesmo assim. Formas femininas n�o s�o o bastante para me enganar. Confesso que demorei um pouco a localiz�-lo,
mas finalmente, consegui.
Luciana abriu a boca, perplexa. N�o compreendia nada do que aquela mulher dizia.
- Quem � voc�? O que quer de mim?
- Voc� n�o se lembra mesmo, n�o �?
- Do que � que deveria me lembrar?
- Bem que me avisaram que, com a reencarna��o, voc� esqueceria tudo - fitou Luciana com olhar triste e prosseguiu:
- Como voc� se chama agora?
- Luciana.
- � um bonito nome, mas n�o combina com a sua alma negra.
- Alma negra? Pelo amor de Deus, do que � que voc� est� falando?
- Ser� poss�vel que voc� n�o guarde nenhuma lembran�a de mim? - tornou a outra, a voz embargada pelo pranto que se avizinhava.
- Olhe, mo�a, acho que nunca a vi. Mas se voc� afirma, com tanta certeza, que eu a conhe�o, e eu n�o me lembro, ser� que n�o � melhor me contar logo onde foi que
nos conhecemos?
O esp�rito suspirou tristemente e aproximou-se de Luciana com a m�o estendida, tentando tocar o seu rosto. Luciana, por�m, assustou-se e deu dois passos para tr�s,
amea�ando voltar ao corpo f�sico.
- N�o fa�a isso - pediu o esp�rito, olhando com tristeza para o corpo de Luciana estendido na cama. Ainda n�o.
Com certa hesita��o, Luciana considerou:
- Se n�o quer que eu v� embora, acho melhor ir-se explicando.
- Voc� tem raz�o. Fui uma tola em pensar que chegaria at� voc�, e voc� logo me reconheceria. Voc� agora � outra pessoa, tem um corpo de carne que n�o me agrada muito.
Mas a sua alma continua a mesma. Sua ess�ncia ainda � aquela pela qual me apaixonei.
- Apaixonou-se? Por mim? Mas como? E por que voc� fica o tempo todo se referindo a mim como se eu fosse homem? N�o v� que sou uma mulher?
- Agora...
- O que quer dizer?
- Nada... E eu que enfrentei tantas dificuldades para encontr�-lo aqui...! S� agora me permitiram... n�o tenho mais raiva de voc�... quero ajudar...
- Ajudar-me em qu�, se eu nem sequer a conhe�o?
- Lamento... N�o sei se posso...
Antes que Luciana pudesse contestar, o esp�rito desvaneceu no ar, e ela ficou parada no meio do quarto, fitando o vazio com uma express�o de surpresa. Quando acordou,
j� passava das onze horas, e ela se levantou sonolenta. Assim que p�s os p�s no ch�o, uma lembran�a assaltou a sua mente. Quem era aquela mo�a com quem sonhara,
com apar�ncia de indiana, e que lhe dizia coisas das quais n�o conseguia se recordar? Era fruto de um sonho, pensou. Um sonho bobo que n�o queria dizer nada. Luciana
jamais estivera na �ndia nem nunca conhecera uma indiana, logo, aquilo s� podia ser algum sonho idiota. Embora a sensa��o de reconhecimento fosse muito forte, Luciana
n�o pensou mais naquilo. N�o costumava perder tempo com sonhos e n�o perderia com aquele. Depois de tomar banho, pensou em fazer algo para comer, mas uma imensa
sensa��o de solid�o a acometeu, e ela correu a apanhar o telefone. Ligou para Cec�lia, convidando-a para almo�arem juntas. A outra prontamente aceitou, e ficaram
de se encontrar num restaurante pr�ximo, conhecido de ambas. Luciana foi a primeira a chegar e sentou-se a uma mesa perto da janela, e logo Cec�lia apareceu.
- Oi - cumprimentou ela, puxando a cadeira e sentando-se a seu lado.
- Tudo bem? - respondeu Luciana, com um sorriso frio. Estava triste e nem sabia por qu�.
- O que voc� tem?
- Eu? Nada, por qu�?
- N�o sei. Voc� est� estranha, sem brilho. Aconteceu alguma coisa?
- Nada que eu saiba.
- Ent�o, deixe para l� - atalhou Cec�lia, afagando a m�o da outra com discri��o. Gostaria de lhe pedir uma coisa.
- O que �?
- Ser� que voc� n�o tem como me emprestar um dinheiro para eu me matricular num cursinho pr�-vestibular?
- Vestibular? Est� querendo fazer faculdade?
- �. Pensei em fazer odontologia, como voc�. Desde que fui trabalhar no seu consult�rio, me interessei pelo assunto e creio que levo jeito para a coisa. Voc� acha
que eu posso?
- � claro! Qualquer um pode.
- Pois �. Preciso estudar, porque o vestibular � dif�cil, mas n�o tenho condi��es de pagar um cursinho.
- Voc� j� viu o pre�o?
- Andei me informando. Pedi aos meus pais, mas eles, infelizmente, n�o podem me ajudar. N�o queria pedir isso a voc�, mas n�o vi outra sa�da. Tive que deixar de
lado o orgulho e arriscar. S� posso contar com voc�.
- Acho �timo que voc� queira estudar, Cec�lia, mas n�o posso lhe dar um aumento agora. N�o sem antes falar com Ma�sa.
- Mas eu n�o estou pedindo aumento! Nem quero que voc� me d� nada. Gostaria apenas de um empr�stimo.
- E como voc� pretende me pagar esse empr�stimo? Com o seu sal�rio n�o d�, sen�o voc� n�o o estaria pedindo.
Cec�lia abaixou a cabe�a para engolir a raiva, sem que Luciana percebesse. Gilberto lhe dera aquela id�ia. Mas a outra ficava questionando tudo. � claro que n�o
poderia lhe pagar o empr�stimo. E era �bvio tamb�m que ela n�o pretendia freq�entar nenhum cursinho para o vestibular. Estava apenas interessada no dinheiro. Luciana
n�o era m�o-aberta e custava a lhe dar presentes. Dera-lhe aquela blusa com muito custo, mas, depois daquilo, nunca mais lhe dera nada. Nem uma calcinha. Mas um
curso era diferente. Luciana valorizava muito os estudos e n�o lhe negaria aquela oportunidade. Ainda mais se ela dissesse que pretendia estudar odontologia. Que
odontologia, que nada! Cec�lia tinha pavor de agulhas e sangue. S� tolerava as suas fun��es no consult�rio porque n�o tinha outro jeito. Precisava do emprego. E
mais: precisava de Luciana. S� que Luciana n�o parecia muito disposta a facilitar as coisas. Pensava em pagamento de empr�stimo, quando o que ela pretendia era nunca
lhe pagar. Cec�lia estreitou bem os olhos, for�ando as l�grimas, e retrucou com uma vozinha de s�plica, escolhendo bem as palavras:
- Sei que o que ganho n�o � suficiente e s� poderei lhe pagar a longo prazo, mas esperava poder contar com a sua ajuda. Voc� � minha �nica esperan�a. Contudo, se
n�o puder me emprestar, n�o faz mal. Posso entender.
- N�o � isso, Cec�lia - contrap�s Luciana, agora penalizada. Quero muito ajud�-la, mas n�o sei se dar dinheiro � uma boa ajuda. Isso pode estimular o �cio e a pregui�a.
- Agora voc� est� me ofendendo, Luciana! Ent�o eu n�o trabalho? N�o cumpro meu hor�rio, n�o desempenho minhas fun��es satisfatoriamente? E estou pedindo dinheiro
para estudar. Como voc� pode achar que eu vou me manter no �cio?
- Tem raz�o, voc� n�o � assim. Voc� sempre se mostrou esfor�ada e dedicada. Muito bem. Se a sua vontade � ingressar na faculdade, vou ajud�-la nisso. Darei, eu mesma,
o dinheiro para o cursinho. Mas trate de estudar para passar em uma universidade do governo.
- Sem d�vida! Obrigada, Luciana, voc� n�o vai se arrepender. Vou estudar, vou ser a melhor aluna da turma! E vou ser sua colega de trabalho, voc� vai ver!
A conversa continuou animada, com Cec�lia mentindo para Luciana a respeito de seus planos para o futuro. Na verdade, Gilberto ficaria exultante. Ele tamb�m estava
precisando de roupas novas, e ela pretendia lhe proporcionar aquele prazer. Depois que descontasse o cheque que Luciana lhe dera, passaria numa loja de artigos masculinos
e compraria um bonito conjunto de cal�a e camisa que ele havia visto no outro dia. Depois do almo�o, enquanto assinava outro cheque para pagar a conta, Luciana perguntou
a Cec�lia:
- N�o gostaria de ir ao cinema mais tarde? Est� passando um novo filme do 007.
Aquilo n�o estava em seus planos. Combinara de se encontrar com Gilberto � noite, para irem juntos ao baile do clube, e ele ficaria chateado se ela desmarcasse.
Fazendo voz de decep��o, ela fingiu lamentar:
- Oh! Sinto muito, Luciana, mas hoje n�o vai dar. Prometi a minha m�e que a acompanharia at� a casa de minha av�. Ela est� doente e me adora.
- Quanto ano tem a sua av�? - perguntou Luciana, para esconder a frustra��o.
- Oitenta e quatro - mentiu Cec�lia, dizendo a primeira coisa que lhe vinha � cabe�a. Na verdade, ela nem tinha mais av� e nunca acompanhava a m�e em nada.
- Que pena... - tornou Luciana, bastante desapontada. Fica para outro dia. Amanh�, quem sabe?
- Amanh�? - temendo despertar as suspeitas de Luciana se recusasse seu convite duas vezes seguidas, Cec�lia achou melhor concordar: Amanh� est� bem.
- �timo. Ligo para voc� amanh�, para marcarmos o hor�rio.
- Combinado.
Sa�ram do restaurante, e Cec�lia seguiu exultante para casa. N�o via a hora de dar a not�cia a Gilberto. Depois que Luciana telefonara, convidando-a para almo�ar,
avisara Gilberto que se atrasaria para seu encontro, mas valeria a pena. Conseguira o dinheiro, e isso era tudo o que importava. Depois que Cec�lia se foi, Luciana
ficou pensativa. N�o sabia o que estava acontecendo, mas a solid�o tornou a invadir o seu peito. N�o queria ficar sozinha naquele dia e foi procurar Ma�sa. A amiga
estava em casa com o marido, que a recebeu com alegria.
- Mas que surpresa! - exclamou Breno. N�o a vejo desde o nosso casamento.
- Tenho andado ocupada - desculpou-se Luciana. E voc�, como est�? Gostando da vida de casado?
- Estou adorando. Voc� devia experimentar.
- J� passei por essa experi�ncia antes, Breno, e s� o que quero agora � desfrutar da minha liberdade.
- Sei. Quem diz que quer ser livre, o que quer, na verdade, � um amor que a prenda.
- Desde quando voc� deu para filosofar? Voc� � advogado, n�o fil�sofo.
Nesse momento, Ma�sa entrou na sala, os cabelos ainda molhados do banho.
- Ouvi a sua voz e mal pude acreditar que era voc� quem estava aqui - disse ela, beijando a amiga na face. O que deu em voc� para vir nos visitar?
- Pare com isso, Ma�sa - protestou Luciana, um tanto quanto envergonhada. N�s sempre fomos amigas.
- Mas, desde que eu me casei, voc� nunca mais veio a minha casa. Acho que nem a conhece.
- �... Mas est� muito bonita. Foi voc� quem a decorou?
- Ma�sa? - objetou Breno. Imagine! Contratamos um decorador.
- Ficou uma beleza!
- N�o foi para falar da decora��o do meu apartamento que voc� veio aqui, foi? - tornou Ma�sa.
- N�o. Na verdade, queria conversar. Estou me sentindo sozinha.
- Ent�o, venha comigo. Podemos conversar enquanto seco o cabelo.
- Voc�s v�o sair?
- Mais tarde. Temos um casamento para ir.
- De quem?
- Voc� n�o conhece. De um amigo do Breno.
- Ah...
Luciana saiu acompanhando Ma�sa, triste, porque teria que ficar sozinha naquela noite. Sentia uma indefin�vel opress�o no peito, uma sensa��o estranha que ela n�o
podia explicar.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou Ma�sa, sentando-se � penteadeira e ligando o secador de cabelos.
- N�o sei! - gritou Luciana, para se fazer ouvir por cima do barulho do secador.
- Como assim, n�o sabe?
- Estou me sentindo estranha, mas n�o sei definir. � um sentimento de vazio, de solid�o... a sensa��o de que perdi algo que n�o sei o que �.
- Brigou com a Cec�lia?
- N�o. Ao contr�rio, estamos muito bem.
- Por que n�o a procura?
- Estive com ela at� agora. Almo�amos juntas e ela foi para casa. Vai com a m�e visitar a av� doente.
- Eu nunca soube que Cec�lia tinha uma av�.
- Nem eu, mas tem.
- Sei... Quer dizer ent�o que voc�s almo�aram juntas?
- Foi. E adivinhe s�! Ela est� querendo fazer vestibular para odontologia.
- Que interessante! E voc� vai lhe pagar um cursinho.
- Como voc� sabe?
- N�o � dif�cil adivinhar - Ma�sa desligou o secador e virou-se de frente para Luciana. N�o entendo voc�, Lu. Sempre foi t�o maliciosa, t�o esperta. Como � que se
deixa enganar por essa aproveitadora? N�o v� o que ela est� fazendo com voc�?
- Voc� est� exagerando. Sei que ela � ambiciosa, mas eu a controlo bem.
- Mas por que voc� tem que ficar lhe dando coisas?
- O que lhe dou � muito pouco. Nada al�m de bobagens e pequenos agrados.
- N�o est� apaixonada por ela, est�?
- Acho que n�o. Gosto dela, mas n�o � amor.
- N�o falei em amor, falei em paix�o. E acho que voc� est� apaixonada, sim. Est� empolgada com a beleza dela, com o seu entusiasmo, com a sua vontade de subir na
vida. E n�o est� percebendo que ela est� se aproveitando de voc�.
- N�o creio que ela se aproveite de mim. E, se � assim, aproveito-me dela tamb�m. � uma troca.
- S� quero ver o que ela vai fazer quando n�o puder lhe tirar mais nada. Vai se mandar.
- Ela n�o me tira nada demais e tem um emprego, o que n�o � assim t�o f�cil de se arranjar.
- Isso � s� o come�o, voc� vai ver. Ali�s, ela j� est� pedindo mais, n�o �? Voc� vai lhe pagar um curso.
- � uma forma de ajud�-la a crescer.
- Como se ela estivesse mesmo interessada em crescer...
- Deixe disso, Ma�sa. Sei bem o que fa�o, e n�o � por causa de Cec�lia que estou chateada.
- E por que �, ent�o?
- N�o sei. De repente, me senti s�...
- Se quiser, podemos lev�-la ao casamento conosco. Ainda d� tempo de voc� ir em casa e se arrumar, ou pode pegar um vestido meu emprestado.
- Obrigada, mas n�o quero. N�o estou com �nimo para festas.
- Credo, Luciana, espante esse des�nimo para l�! Voc� n�o � disso.
- N�o sou mesmo, mas hoje estou assim. O que posso fazer?
- N�o � poss�vel. Aconteceu alguma coisa?
- N�o aconteceu nada. De repente, acordei assim... - foi s� ent�o que Luciana se lembrou do sonho e comentou em d�vida: Tive um sonho estranho hoje de manh�. Acordei
muito cedo e, como estava chovendo, acabei dormindo de novo e sonhei com aquela mo�a.
- Que mo�a?
Em breves palavras, Luciana contou o sonho a Ma�sa.
- Acha que minha chatea��o tem a ver com isso?
- N�o sei - respondeu Ma�sa. N�o entendo nada de sonhos.
Luciana ficou pensativa e continuou conversando com Ma�sa sobre outras coisas, at� que a opress�o no peito come�ou a diminuir, e ela foi para casa. Sentia-se melhor,
embora confusa e, de repente, lembrou-se de Marcela. Fazia tempo que n�o a via e sentiu uma pontinha de saudades. Pensou em ligar para ela, mas mudou de id�ia. Marcela
estava namorando um rapaz e n�o se sentia � vontade em sua companhia. Ela sempre se envergonhara de ser o que era e agora, mais do que nunca, tinha medo de que algu�m
descobrisse a verdade. Luciana n�o concordava com aquilo, mas respeitava Marcela. Se ela queria fingir que nunca houvera nada entre elas, Luciana n�o insistiria.
Mas a saudade continuou, e ela n�o conseguiu afast�-la. Apesar da chuva, Marcela havia combinado de passar o domingo em companhia de Fl�vio, que chegou a sua casa
logo pela manh�. Os dois pretendiam ir a Petr�polis, mas o tempo ruim desaconselhava subir a serra por causa da neblina e do ch�o molhado e escorregadio.
- Que tempo, hein? - avaliou Fl�vio, sacudindo o guarda-chuva na �rea do apartamento de Marcela. N�o vai dar para ir a Petr�polis. O que vamos fazer agora?
- Podemos ficar aqui. Posso cozinhar e preparar um almo�o delicioso.
- Isso me parece irresist�vel - sussurrou ele, puxando-a pela cintura e colando seu corpo ao dele.
Come�aram a se beijar, e ele a conduziu para o quarto, deitando-a na cama com carinho e paix�o. Os dois estavam come�ando a se despir quando a campainha da porta
soou, e Marcela fez men��o de ir atender.
- Deixe tocar - protestou ele baixinho. N�o esperamos ningu�m h� essa hora. Deve ser algum chato.
Por mais que Marcela n�o quisesse perder aquele momento, a campainha n�o parava de tocar, e ela come�ou a se irritar com o seu som estridente.
- Acho melhor atender - falou ela. Seja quem for, n�o parece disposto a desistir.
A surpresa foi instant�nea, e Marcela ficou boquiaberta, vendo Luciana parada na porta, toda molhada de chuva.
- Luciana! - exclamou, entre assustada e confusa.
- Posso entrar?
Antes que Marcela pudesse responder, Luciana passou para o lado de dentro, sacudindo os cabelos encharcados e molhando o ch�o da sala.
- Voc� est� toda molhada - observou Marcela. N�o tem guarda-chuva?
- A chuva me pegou no meio do caminho, e eu...
Calou-se abruptamente, vendo Fl�vio surgir na porta do quarto com a camisa entreaberta e os cabelos em desalinho. Luciana olhou para Marcela e reparou que ela tamb�m
parecia um tanto quanto amarrotada, s� ent�o se dando conta de que interrompera algo importante.
- Ol� - cumprimentou Fl�vio, tentando se lembrar de onde a conhecia.
- Eu... sinto muito... - gaguejou Luciana. N�o sabia que voc�s... que voc�s... Perdoem-me.
Rodou nos calcanhares e saiu pela porta entreaberta, deixando Marcela apavorada e Fl�vio, curioso. Luciana saiu maldizendo a si mesma, a sua imprud�ncia, a sua precipita��o.
N�o imaginava encontrar o rapaz ali t�o cedo. E o que pretendia? N�o havia terminado com Marcela? Por que resolvera procur�-la, quando sabia que Marcela evitava
encontrar-se com ela? Em casa, Marcela n�o sabia o que dizer. Quase n�o acreditava que Luciana irrompera pela porta de forma t�o intempestiva. V�-la causou-lhe certo
tremor no cora��o, muito mais pelo medo do que pela paix�o. Marcela n�o negava que fora apaixonada por Luciana nem queria rejeit�-la e deix�-la magoada, mas a situa��o
que vivia agora era outra. Amava Fl�vio e n�o podia correr o risco de que ele a deixasse, caso descobrisse que ela e Luciana haviam sido amantes. Ainda mais depois
da conversa que tiveram no outro dia, quando ele lhe dissera que desaprovava a rela��o entre duas mulheres.
- O que foi que houve, meu bem? - perguntou ele, olhando para ela com ar inocente. Quem era aquela? Acho que j� a vi em algum lugar, mas n�o me lembro de onde.
- � Luciana - respondeu Marcela com cuidado. Voc� a viu no casamento de Ma�sa, lembra-se?
- Ah! Aquela sua amiga. Agora me lembro. O que ela queria?
- N�o sei. Ela n�o teve tempo de me dizer. Acho que ficou sem gra�a e foi embora.
- Ser� que ela est� pensando mal de voc�? Quero dizer, ela n�o � do tipo puritana, �?
- N�o, n�o. Luciana � uma mo�a liberal. � dentista e tamb�m mora sozinha. Na verdade - acrescentou com cautela -, n�s moramos juntas quando viemos de Campos.
- Moraram? Mas ent�o, voc�s devem ser amigas �ntimas. O que foi que aconteceu entre voc�s? Brigaram?
- N�o exatamente.
- N�o v� me dizer que ela... - interrompeu a fala, concatenando as id�ias, at� que prosseguiu: N�o v� me dizer que foi por causa dela que o seu ex-namorado a deixou.
Foi isso, Marcela? Foi por isso que voc� tentou se matar? Porque o seu namorado a trocou pela sua melhor amiga?
Fl�vio estava criando uma hist�ria em cima do que acontecera a ela, s� que uma hist�ria bem distante da realidade, o que deixou Marcela extremamente confusa. Tinha
a chance de lhe contar a verdade, mas o medo a paralisou. N�o seria melhor deixar que ele acreditasse naquela fantasia, desviando assim as suspeitas sobre o seu
passado? A vinda de Luciana talvez ainda a ajudasse, fazendo com que Fl�vio jamais desconfiasse de que elas haviam sido amantes. Era uma mentira, mas uma mentira
conveniente e providencial, que ela bem poderia aproveitar em seu benef�cio. Mas, ainda assim, era uma mentira, e ela n�o estava acostumada a mentir. Sim, mas, na
verdade, ela n�o seria obrigada a mentir. Podia simplesmente se calar e deixar que Fl�vio pensasse o que quisesse.
- N�o quero falar sobre isso - ela encerrou o assunto, com ar meio zangado.
A rea��o de Marcela deu a Fl�vio a certeza de que fora aquilo mesmo que acontecera, e ele se calou. Prometera a Marcela que n�o faria perguntas sobre o seu passado
e pretendia cumprir a promessa. Apesar da curiosidade, n�o disse nada e tomou-a nos bra�os, amando-a com uma paix�o e uma ternura ainda maiores, imaginando o quanto
ela deveria ter sofrido com aquela dupla trai��o. Na segunda-feira, Marcela levantou-se para trabalhar como sempre fazia. Havia passado um dia maravilhoso ao lado
de Fl�vio e estava ainda sob o efeito das lembran�as suaves do que haviam vivido na v�spera, quando chegou � escola em que dava aulas. Ela estava de bem com a vida,
e o dia transcorreu de forma maravilhosa. Quando o turno da manh� terminou, Marcela apanhou as suas coisas e dirigiu-se para o ponto de �nibus. Gostava de lecionar,
mas Fl�vio a convencera a parar de trabalhar depois do casamento, e ela estava decidida a s� cuidar da casa e dos filhos. No ponto de �nibus, ficou esperando, at�
que um carro �ltimo tipo parou perto dela, e uma mo�a jovem e muito bonita lhe pediu uma informa��o:
- Estou perdida e n�o sei como chegar a esse endere�o. Voc� pode me ajudar?
Ao pegar o papelzinho que a mo�a lhe estendia, Marcela levou um susto. Era a sua rua, e o n�mero ficava bem pr�ximo do seu.
- Mo�a, voc� n�o vai acreditar na coincid�ncia, mas o fato � que eu moro nessa mesma rua e perto do n�mero para onde voc� vai.
- � mesmo? - a outra fingiu surpresa. Mas que coincid�ncia, hein?
- Nunca vi nada igual.
- Tenho uma id�ia. Por que voc� n�o entra, e eu lhe dou uma carona? Assim voc� me mostra onde fica e n�o precisa tomar o �nibus.
Marcela olhou para ela com hesita��o. N�o conhecia aquela mo�a e lembrou-se dos conselhos da m�e, quando era crian�a, dizendo-lhe para n�o entrar em carros de estranhos.
No entanto, a coincid�ncia era um fato, e a mo�a, apesar de estranha, n�o parecia capaz de lhe fazer nenhum mal. Pela apar�ncia e pelo carro, tratava-se de pessoa
muito rica, e ela bem podia imaginar a dificuldade em encontrar um endere�o num bairro de classe m�dia inferior feito o seu. E depois, estava chovendo, e a condu��o
sempre demorava. N�o faria mau nenhum aceitar aquela carona. Seria bom para a mo�a e para ela tamb�m.
- Est� certo - concordou Marcela por fim, abrindo a porta do carro e entrando devagar.
A outra p�s o autom�vel em movimento e come�ou a conversar:
- Meu nome � Adriana. E o seu?
- Marcela.
- Muito prazer, Marcela - revidou Ariane, entusiasmada por ter conseguido dar in�cio ao plano de Dolores com tanto sucesso.
N�o foi dif�cil para Dolores descobrir onde Marcela trabalhava. O pr�prio filho lhe deu a informa��o, achando que tudo n�o passava de uma natural curiosidade de
m�e. Deu-lhe o nome da escola e o hor�rio em que Marcela sa�a, inclusive o n�mero do �nibus que costumava tomar. Seu endere�o tamb�m foi f�cil de conseguir porque,
numa conversa informal, ele disse tudo, at� satisfeito com o interesse da m�e por Marcela. De posse dessas informa��es, n�o foi dif�cil montar o plano. Dolores escolheu
um n�mero pr�ximo �quele em que Marcela vivia e mandou que Ariane lhe pedisse informa��es.
- E o que vou fazer na casa de um estranho? - perguntou Ariane, logo que tomou conhecimento do plano.
- Seja sonsa e pergunte por qualquer um: Paulo, Pedro, sei l�. Muito provavelmente, n�o vai morar ningu�m naquela casa com o nome que voc� der. Pe�a ent�o desculpas
e chore no ombro de Marcela, dizendo-se enganada por algum rapaz por quem voc� se apaixonou e se aproveitou da sua ingenuidade. Isso vai sensibiliz�-la, e ela vai
tentar consolar voc�.
- Como sabe que ela vai tentar me consolar?
- Isso faz bem o tipo de Marcela: a tola boazinha.
- E se o n�mero n�o existir?
- Ent�o, ser� mais f�cil ainda. Diga que ele lhe deu um endere�o inexistente.
- Mas... e se ela me perguntar por que fui procurar o rapaz?
- Diga que ele n�o lhe deixou n�mero de telefone e voc� est� apaixonada por ele, mas ele sumiu de repente, logo ap�s conseguir lev�-la para a cama. Isso vai deix�-la
ainda mais sensibilizada. Ah! E n�o esque�a: mude de nome.
No come�o, Ariane sentiu medo de se aproximar da pessoa errada mas a descri��o daquela mo�a batia com a que Dolores lhe dera de Marcela. Mesmo com medo, arriscou
e acertou em cheio. Embora ela n�o lhe dissesse o nome antes de entrar no carro, era imposs�vel haver duas pessoas, com a mesma descri��o f�sica, trabalhando no
mesmo local e morando na mesma rua. Ariane chegou � escola antes do turno de Marcela terminar e viu quando ela atravessou a rua, a caminho do ponto de �nibus. Achou-a
bonitinha, embora um tanto sem gra�a, e ficou imaginando o que Fl�vio vira naquela mo�a para deix�-lo t�o apaixonado. Ela, Ariane, era muito mais bonita, fina, rica
e elegante do que aquela Marcela, que lhe pareceu muito t�mida e sem classe. Era preciso, contudo, ocultar a indigna��o e fingir-se de aflita, para que Marcela acreditasse
na hist�ria que lhe contaria.
- Estou muito nervosa, Marcela - comentou Ariane, emprestando um excessivo tom de nervosismo � voz. Nunca vim � casa de um rapaz antes.
- � um rapaz que procura?
- �, sim. Meus pais n�o sabem que vim aqui, mas estou desesperada. Ele me fez mal e agora sumiu.
- Como assim, fez mal?
- Transou comigo. Por favor, n�o fa�a mau ju�zo de mim. Estou t�o desesperada!
Ariane come�ou a for�ar o choro, e Marcela a tranq�ilizou:
- Acalme-se, Adriana, n�o tenho nada com a sua vida e n�o estou fazendo nenhum mau ju�zo de voc�. Sei bem como s�o essas coisas.
- Voc� sabe?
- Sim... Quero dizer, j� estive apaixonada antes e entendo o que voc� deve estar passando.
- Fico aliviada. N�o tenho ningu�m com quem conversar.
- Uma mo�a t�o bonita e fina! N�o � poss�vel que n�o tenha amigas.
- Minhas amigas se afastaram de mim quando comecei a namorar esse rapaz, s� porque ele � pobre.
- Oh! Mas que preconceito tolo!
- Tamb�m acho, mas voc� n�o tem id�ia de como as mo�as da sociedade s�o esnobes. At� meus pais s�o assim, e � por isso que eles foram contra o nosso namoro. Imagine,
agora, se eles descobrem que eu e o Mike j� transamos.
Ela escolheu um nome estrangeiro para n�o correr o risco de encontrar algu�m com o mesmo nome na casa em que fosse procurar, e Marcela retrucou:
- Isso n�o � nada demais, Adriana. Hoje em dia as coisas est�o ficando mais liberais.
- Pode at� ser, desde que eu me entregasse a algu�m de nosso meio. Mas a um p�-rapado, como diz a minha m�e...
Enquanto dirigia, Ariane ia seguindo as instru��es de Marcela, at� que chegaram � rua em que ela morava.
- � aqui que eu moro - informou Marcela, apontando para um pr�dio de quatro andares logo no come�o da rua.
O pr�dio pareceu horr�vel a Ariane, que virou o rosto para o lado, a fim de que Marcela n�o visse o seu ar de repulsa. N�o entendia como Fl�vio podia se envolver
com aquela mulherzinha pobre e vulgar. Mas era preciso continuar fingindo e levar adiante o plano bolado por Dolores.
- Ser� que voc� n�o poderia me acompanhar at� a casa do Mike? Estou t�o apavorada!
Marcela considerou por alguns segundos, j� come�ando a sentir pena daquela mo�a rica e infeliz.
- Est� bem - concordou. Vou com voc� at� l� e depois venho para casa.
Na mesma hora, Ariane acelerou o carro e parou em frente ao n�mero que tinha anotado no papel. Era outro pr�dio, e Marcela lhe chamou a aten��o para o fato de que
o n�mero que ela possu�a n�o indicava o apartamento.
- Ser� que � aqui mesmo? - duvidou Ariane.
- Esse � o n�mero que voc� tem.
- Mas qual ser� o apartamento?
- Vamos tocar em todos.
- Tocar em todos? Ficou maluca? V�o-nos xingar. O pr�dio � muito grande, vai ser imposs�vel localizar o apartamento do Mike.
- Vamos perguntar ao porteiro. Mike n�o � um nome comum, e o porteiro deve conhecer.
Marcela saiu do carro, com Ariane atr�s dela, envergonhada por se ver naquela situa��o, parada diante de um edif�cio t�o simples e em companhia de uma mo�a t�o pobre,
mas n�o tinha jeito. Se pretendia levar avante o plano, tinha que engolir a repulsa e seguir as ordens de Dolores.
- Por favor - come�ou Marcela, dirigindo-se ao homem que estava na portaria. O senhor conhece algum Mike que more aqui?
- Mike? - repetiu o homem, de olho no carro elegante de Ariane. Aqui n�o � lugar de bacana, n�o, mo�as. Estrangeiro por aqui s� o Joaquim da padaria.
- Ele n�o � estrangeiro - objetou Marcela, olhando de esguelha para Ariane, que negou com a cabe�a.
- Pior ainda. Brasileiro com esse nome n�o tem por aqui, n�o.
- Tem certeza?
- Absoluta. Trabalho aqui h� oito anos e nunca vi nem ouvi falar de nenhum Mike.
- Ser� que n�o se mudou ningu�m para c� chamado Mike e o senhor n�o viu?
- Mo�a, n�o se muda ningu�m para c� h� bem uns cinco anos.
- Mas o senhor tem certeza?
- J� disse que tenho. N�o tem nenhum Mike aqui nesse pr�dio, n�o. Pode acreditar.
- Est� certo - finalizou Marcela desapontada. Obrigada.
As duas voltaram para o carro, e Ariane, apesar de exultante, conseguiu imprimir �s fei��es uma express�o de tanta dor, que Marcela se condoeu ainda mais.
- N�o fique assim, Adriana, voc� deve ter anotado o endere�o errado.
- N�o! Ele � um mentiroso, falso! Aproveitou-se de mim e depois me deixou. Eu bem devia ter desconfiado, mas sou uma tola, rom�ntica, acreditei que ele me amava.
Isso � bem feito, para eu aprender a n�o confiar nos homens.
- Voc� diz isso agora, porque est� magoada, mas vai passar.
- Duvido. Nunca mais vou me apaixonar por ningu�m, nunca!
Ela estava t�o descontrolada que Marcela se preocupou e apertou a sua m�o.
- Por que n�o vamos � minha casa? Posso lhe preparar um ch�.
- Obrigada, Marcela, mas voc� j� fez demais por mim. Eu nem a conhe�o e a envolvi nos meus problemas fiz voc� se expor e estou perturbando-a com as minhas lam�rias.
Voc� n�o tem nada com isso.
- N�o posso deix�-la ir embora assim. Vamos, venha at� a minha casa e beba alguma coisa. Voc� vai se sentir melhor, tenho certeza.
Era tudo o que Ariane queria, e ela aceitou exultante, embora demonstrasse certa contrariedade.
- Est� bem, mas n�o quero atrapalhar.
- N�o vai atrapalhar.
Seguiram para o apartamento de Marcela, que levou Ariane direto para a cozinha e p�s-se a preparar um ch�.
- Voc� mora sozinha? - indagou Ariane.
- Moro. Minha fam�lia � de Campos, e eu vim para o Rio estudar.
- Voc� os v� com freq��ncia?
- Na verdade, desde que sa� de l�, foram poucas as vezes que os vi.
- Deve se sentir muito s�.
- Um pouco.
- N�o tem ningu�m na sua vida? Um namorado?
- Tenho um namorado, mas ele n�o mora comigo.
- Ele a ama?
- Acho que sim.
- E voc� o ama?
- Muito. Sou louca por ele.
- Deve ser muito bom amar algu�m - revidou ela, com raiva por Marcela estar se referindo a Fl�vio.
- �, sim, � maravilhoso.
- E como foi que voc�s se conheceram?
Marcela n�o gostava de falar sobre a sua vida particular, mas Adriana era uma estranha que nada sabia a seu respeito e com quem poderia iniciar uma nova amizade.
- No hospital. Ele � m�dico.
- E voc� � enfermeira?
- N�o, n�o, sou professora. Trabalho naquela escola em frente ao ponto de �nibus em que voc� me encontrou. Conhecemo-nos no hospital porque eu estava doente, e foi
ele quem cuidou de mim.
- Doente? O que voc� teve?
- Bem, n�o propriamente doente. Eu passei mal e fui atendida por ele.
- Mal de qu�?
- Eu... - ela hesitou - na verdade... eu tentei me matar.
Ariane n�o esperava por aquilo e, instintivamente, levou a m�o � boca, sufocando um grito de espanto.
- Por que voc� fez isso?
A curiosidade suplantou a raiva que ela sentia de Marcela e, por uns instantes, Ariane viu-se interessada na vida daquela mo�a que mal conhecia. Marcela, por sua
vez, sentia estranha confian�a em Ariane e sequer lhe passava pela cabe�a a trama s�rdida em que a estava envolvendo. Sentia vontade de lhe contar tudo, mas o medo
e a vergonha a fizeram recuar, e ela contou apenas uma parte da hist�ria.
- Tive uma decep��o amorosa.
- Meu Deus! E eu aqui, chorando por causa de um idiota qualquer.
- N�o diga isso. Cada um tem os seus problemas, e a nossa dor parece sempre a maior, porque n�o podemos sentir a de mais ningu�m.
Ariane ficou vendo Marcela preparar o ch� em sil�ncio e observou a cozinha. Era pequena, mas estava muito limpa e brilhando, como de resto, todo o apartamento. E
havia algo naquela mo�a que a deixava inquieta. Ela a odiava s� pelo fato de estar lhe roubando o namorado, mas parecia simp�tica e inteligente, bem diferente do
que lhe dissera Dolores. Ser� que era certo o que estava fazendo? Tentando descobrir seus segredos para us�-los contra ela? N�o perguntou mais nada. Bebeu o ch�
ainda em sil�ncio e s� depois voltou a falar:
- Est� ficando tarde e tenho que ir embora.
- N�o quer ficar para almo�ar? Sou excelente cozinheira. Fl�vio sempre diz isso.
- Fl�vio?
- �. O meu namorado.
O nome Fl�vio, pronunciado com tanta intimidade por Marcela, reavivou a raiva de Ariane, que se lembrou do por que estava ali e do plano que deveria seguir. Mas
j� era realmente tarde, e ela n�o tinha mais est�mago para prosseguir no mesmo dia. Tinha que ir com calma e deixaria o resto para depois.
- Eu realmente preciso ir embora - lamentou, levantando-se e apanhando a bolsa. Mas ser� que n�o poder�amos nos ver novamente? Estou precisando tanto de uma amiga,
e voc� foi t�o atenciosa comigo!
- Venha quando quiser Adriana. Ser� um prazer conversar com voc�. Espere! Vou-lhe dar o meu telefone.
Ariane apanhou o telefone de Marcela e sorriu intimamente, certa de que a outra ca�ra como um patinho em seu plano.
- Vou telefonar para voc�, Marcela. Podemos nos encontrar para um ch� ou um lanche.
- Vai ser muito bom.
Despediram-se, e Ariane saiu com o cora��o aos pulos. Estava dando certo! Ia dar tudo certo. Marcela n�o desconfiara de nada e j� no primeiro encontro revelara particularidades
de sua vida. Em breve, todo o seu passado estaria desvendado, e Ariane tinha certeza de que teria em m�os as armas com que poderia destru�-la. Depois de deixar Marcela,
Ariane voltou para casa exultante, ainda sob o efeito do sucesso de seu plano. Mal abriu a porta, vozes altercadas alcan�aram seus ouvidos, e ela parou hesitante.
Os pais estavam brigando, o que a deixou transtornada. N�o ag�entava mais aquelas brigas. Aproximou-se vagarosamente e ficou observando-os de longe. A m�e suava
frio e estava � beira das l�grimas, e o pai parecia prestes a ter um ataque do cora��o. Andava de um lado para outro da sala e gritava enraivecido:
- N�o suporto mais isso! N�o tenho sossego dentro da minha pr�pria casa!
- Essa nem parece mais a sua casa. Voc� entra como se fosse um estranho e sai feito um desconhecido.
- Isso � porque voc� n�o me d� paz. Vive me apoquentando com a sua ladainha!
- Ser� que � demais pedir que voc� se comporte como meu marido? Voc� n�o me d� mais aten��o, n�o liga para mim.
- Quer saber, Anita? � voc� quem n�o liga mais para si mesma. Parece uma matrona, toda largada e feia.
- Ent�o � por isso que voc� n�o me procura mais? Porque estou gorda e feia?
- Voc� nem se parece mais com a mulher com quem me casei!
- E o nosso amor, N�lson, onde � que fica?
- Nosso amor? - ele hesitou, mas acabou se enchendo de coragem e disparou: Acabou. Quem � que pode amar uma criatura feito voc�?
- N�o fa�a isso comigo - suplicou-a, atirando-se em seus bra�os e tentando beij�-lo. Sou sua mulher, ainda o amo.
Ele se desvencilhou com rispidez, atirando-a para o lado, e rebateu com ar de repulsa:
- Voc� me d� nojo. � asquerosa, gorda e desleixada. Nenhum homem pode sentir atra��o por voc�.
Anita come�ou a chorar e se teria atirado no ch�o, n�o fosse a entrada s�bita de Ariane. Ouvira o suficiente para n�o permitir que o pai humilhasse ainda mais a
m�e.
- Papai! - berrou ela, com ar reprovador. N�o tem vergonha de falar assim com a sua pr�pria mulher?
Ele ficou confuso, fitando a filha com ar de assombro. Sem dizer nada, virou as costas e saiu porta afora, lan�ando ainda um �ltimo olhar de raiva para Anita, que
chorava descontrolada. Ariane se aproximou dela e enla�ou-a com ternura, sentando-a no sof� e tentando acalmar o seu pranto.
- Isso n�o pode ficar assim, m�e. N�o est� direito o que papai faz com voc�.
- Voc� ouviu o que ele disse?
Ouvi o bastante para saber que o seu casamento acabou.
- N�o diga isso! Casei-me para sempre.
- E voc� vai ficar se sujeitando a essas humilha��es? Est� na cara que ele n�o a ama nem a deseja mais. Por que rasteja desse jeito?
- O que posso fazer, minha filha? N�o tenho dinheiro, n�o tenho ningu�m. S� voc�s e ele.
- Huguinho ainda � muito crian�a, n�o entende dessas coisas, e os outros dois est�o longe. Voc� s� tem a mim, m�e. N�o pode contar com papai para nada.
- Oh! Ariane, o que vou fazer? Quero mudar, mas n�o consigo!
- Voc� devia ter umas conversas com Dolores, m�e de Fl�vio. Ela � uma mulher e tanto!
- De jeito nenhum! E onde fica o meu orgulho? Dolores � praticamente uma estranha. Al�m disso, � esnobe e, provavelmente, vai rir de mim.
- Tudo bem, voc� � quem sabe. Mas eu ainda acho que desse jeito n�o d� para ficar. Por que ao menos n�o experimenta mudar o visual? Voc� podia sair, ir ao cabeleireiro,
fazer as unhas. Quem sabe at� comprar uma roupa nova?
- Que roupa? Daquelas lojas especiais que s� vendem roupas para gordinhas? N�o, obrigada. Acho aquilo horr�vel.
- � melhor do que andar malvestida do jeito como voc� anda.
- Oh! Ariane! - solu�ou Anita, deitando no colo da filha. Estou t�o deprimida! Agora percebo que meu casamento foi um erro.
- Tamb�m n�o precisa exagerar. Nos primeiros tempos n�o deve ter sido assim.
- No come�o, tudo parecia maravilhoso. Seu pai tinha dinheiro, e eu era linda. Mas agora compreendo que nunca houve amor por parte dele. Ele n�o queria se casar
comigo, era por outra que estava apaixonado.
- O qu�? Voc� nunca me contou isso.
- Estou contando agora. Ele amava uma mo�a pobre, mas os pais dele n�o consentiram no casamento. Foi por isso que se casou comigo.
- Mas... que disparate! - ela estava confusa com aquela revela��o, sem saber direito o que pensar. Se ele amasse a mo�a de verdade, teria batido o p� e se casado
com ela.
- Voc� n�o sabe... Sua av� e eu fizemos uma coisa terr�vel!
- O que voc�s fizeram? - interessou-se Ariane, cada vez mais aturdida.
- Oh! Minha filha, jura que n�o vai me odiar por isso? N�o vai me achar uma mulher cruel e mesquinha?
- N�o vou achar nada de voc�, m�e. Mas me diga: o que foi que voc�s fizeram?
- N�s lhe oferecemos dinheiro... muito dinheiro... para que ela o deixasse.
- E ela o deixou?
- Sim.
- Mas, ent�o, ela n�o o amava. Se o amasse jamais teria aceitado. Voc� n�o devia se torturar por causa disso.
- Voc� n�o est� entendendo. N�o � o fato de ele n�o ter se casado com a mo�a que me tortura. � porque ele acabou se casando comigo sem me amar. Eu o queria a qualquer
pre�o, sem pensar nas conseq��ncias de um casamento sem amor. N�o se case sem amor, Ariane, n�o estrague a sua vida como eu estraguei a minha.
- Eu n�o vou fazer isso...
- Quando vejo voc� e Fl�vio, fico pensando. Ele n�o a ama, mas voc� o quer assim mesmo. Cuidado para n�o fazer como eu fiz.
Ariane se levantou nervosa e come�ou a andar de um lado a outro, pensando no que a m�e lhe dizia e no que ela pr�pria tava fazendo.
- N�o tenho nada a ver com voc�, m�e - rebateu ela rapidamente. Ao contr�rio de papai, Fl�vio me ama. N�o force um casamento sem amor, Ariane. Vai estragar a sua
vida.
- N�o estou for�ando nada. Fl�vio me ama, voc� vai ver.
- Tem certeza?
Se havia alguma coisa de que Ariane tinha certeza, era que Fl�vio n�o a amava. Percebia pelos seus gestos, as suas palavras, a forma como a tratava. Tudo indicava
que estava mesmo apaixonado por aquela tal de Marcela, que ela conhecera naquele dia. Contudo, apesar dessa certeza, Ariane ficava dizendo para si mesma que Fl�vio
poderia vir a am�-la com o tempo. Quando descobrisse o quanto ela era carinhosa e meiga, voltaria para ela a sua afei��o, e os dois poderiam ser felizes juntos.
Seria isso verdade? Ouvindo as palavras de Anita, Ariane ficou confusa. Aquilo era uma revela��o muito significativa do passado da m�e e do pai. Ela nunca soubera
daquele detalhe do casamento dos dois e ficou comparando as duas situa��es, dizendo a si mesma que eram diferentes. Mas diferentes em qu�? Ela n�o tencionava dar
dinheiro a Marcela, como a m�e fizera com a tal mo�a. O que pretendia era descobrir algo em seu passado que acabasse com a confian�a e a admira��o que Fl�vio tinha
por ela. Se n�o descobrisse nada no passado de Marcela que pudesse servir aos seus prop�sitos, o que faria? Seguia a intui��o de Dolores. Dolores conhecia muito
bem a vida das pessoas para saber quando elas escondiam algo importante. E se Dolores achava que Marcela escondia algo importante de seu passado, era porque realmente
escondia. Isso n�o era o mesmo que tentar comprar a mo�a. At� porque, Dolores n�o a julgava venal, sen�o j� teria lhe oferecido uma boa quantia para ela sumir da
vida de Fl�vio. O que elas tencionavam era muito diferente do que a m�e fizera. Era um favor, um bem que fariam a Fl�vio livrando-o de uma mentirosa, falsa e fingida.
Com isso, ele se decepcionaria, e o amor que pensava sentir por Marcela se desmancharia, deixando-o livre para amar qualquer outra que o cobrisse de aten��es e carinhos.
E aquela outra seria ela. Tinha que ser ela. Contudo as palavras da m�e ficavam se repetindo em sua cabe�a: n�o force um casamento sem amor, o que a deixava transtornada.
N�o queria for�ar Fl�vio a se casar com ela; queria que ele a amasse. Estava fazendo aquilo em nome do amor, para despertar nele esse sentimento por ela. Mas n�o
estaria ela se iludindo? Ser� que n�o estava se deixando levar pela conversa de Dolores, prestando-se ao papel de espi� traidora s� para satisfazer a sua vontade?
N�o sabia mais o que pensar.
- Venha, m�e - disse ela por fim, puxando Anita pela m�o. N�o vamos mais pensar nisso. Vamos sair e nos distrair um pouco.
J� era de noite, e as duas se aprontaram para ir a um restaurante. Anita, pela primeira vez em muitos anos, aceitou um convite para sair sem o marido e foi jantar
com a filha. N�o tinha nada bonito para vestir, mas Ariane improvisou algo, com um xale e sapatos altos. Maquiou a m�e e prendeu seu cabelo num coque bem-feito.
N�o estava nenhuma maravilha, mas ao menos n�o chamava a aten��o de forma negativa. Quando chegaram ao restaurante, n�o havia mais mesas vagas, e elas tiveram que
esperar, para desespero de Anita, que se sentia mal todas as vezes que se via exposta aos olhares alheios.
- N�o podemos ir a outro lugar? - a sugeriu, acabrunhada.
- Acho melhor - concordou Ariane, desanimada com a quantidade de pessoas � sua frente.
J� iam saindo quando o maitre as alcan�ou, tocando Ariane no bra�o.
- Perd�o, senhoras - falou ele polidamente -, mas h� um senhor l� dentro que diz que as conhece e mandou perguntar se as senhoras n�o gostariam de acompanh�-lo ao
jantar.
- Quem? - indagou Ariane, olhando para o maitre com certa desconfian�a.
- Acompanhem-me, que eu lhes mostro.
Anita olhou para a filha com ar de s�plica. N�o queria que ningu�m mais a visse, mas Ariane fingiu n�o perceber. Ficou curiosa para saber quem as chamava e saiu
puxando a m�e, apesar de seus protestos quase mudos, seguindo atr�s do maitre. Ele as levou para uma mesa no centro, onde um senhor jovem tomava um drinque, desacompanhado,
tendo em m�os o card�pio aberto. Quando elas chegaram, o homem levantou os olhos e sorriu amistosamente, indagando com jovialidade:
- Como vai, Ariane? N�o gostaria de me fazer companhia?
- Justino! Mas que surpresa! Ser� um prazer acompanh�-lo.
Ariane se sentou e repreendeu a m�e com o olhar, fazendo com que ela se sentasse a seu lado.
- � sua m�e, Ariane? - tornou Justino, observando Anita discretamente.
- �, sim. N�o se lembra dela?
- Est� um pouco diferente. Anita corou, temendo que ele fizesse algum coment�rio pejorativo, mas ele continuou naturalmente: Como vai, dona... Anita, n�o � mesmo?
- Este � o doutor Justino, m�e - interrompeu Ariane. O pai de Fl�vio.
- Ah...! - respondeu ela, completamente sem gra�a. Vou bem, doutor Justino, e o senhor?
- Muito bem, gra�as a Deus. Bom, ainda n�o pedi o jantar. O que voc�s v�o querer?
A um sinal de Justino, o gar�om trouxe mais dois card�pios, e os tr�s fizeram os pedidos. Enquanto comiam, estabeleceram uma conversa amig�vel e despretensiosa,
e s� quando se despediram foi que Anita se deu conta do quanto havia se divertido naquela noite. Justino era um homem alegre e bem-educado e, em momento algum, disse
nada que pudesse deix�-la pouco � vontade ou constrangida. Elas estavam de carro, de forma que Justino n�o precisou lev�-las a casa. Acompanhou-as at� o estacionamento
e tomou o seu pr�prio autom�vel, seguindo direto para seu apartamento. No caminho, ia pensando naquela noite. Fora um jantar agrad�vel e alegre, e ele descobrira
que Ariane podia ser inteligente e interessante, muito diferente da mo�a que via sempre em companhia de Dolores. E a m�e dela ent�o? Que mulher ador�vel parecia
ser Anita. Culta, inteligente, bonita � sua maneira, embora um pouco descuidada da apar�ncia. Justino conhecia bem as pessoas para saber o que os problemas familiares
podiam causar � sua imagem f�sica. Ainda mais Anita, cujo marido era amante de sua ex-mulher. Ser� que ela sabia? Seria por causa disso que relaxara daquela maneira,
deixando de cuidar de si mesma e se entregando � falsa id�ia de que era uma mulher feia e sem direito � beleza e ao amor? De repente, Justino percebeu que pensava
em Anita mais do que deveria. Ela n�o lhe sa�a da cabe�a. Podia estar um pouco acima do peso e maltratada, mas isso n�o tinha import�ncia para ele. Justino sabia
que, por detr�s daquela gordura, havia uma mulher exuberante e bela, pronta para ser amada e querida. Ele n�o ligava para apar�ncias e julgava que beleza f�sica
n�o era nada. Bastava olhar para Dolores: uma mulher linda, elegante, fina, mas sem nenhuma beleza no cora��o. De que valia tanta beleza exterior, se por dentro
s� o que se via era uma alma turva? E Dolores tinha a alma turva, como nenhuma mulher deveria ter. Apesar do interesse por Anita, Justino procurou tir�-la da cabe�a.
Ela era uma mulher casada, e ele n�o pretendia seguir o exemplo de Dolores e de N�lson. O fato de os dois serem amantes n�o era justificativa para que ele iniciasse
um caso com Anita. Precisava parar de pensar nela, mas havia algo que o deixava inquieto. Seria piedade, por ela estar sendo enganada pelo marido e deixada de lado
por causa da ex-mulher? Ou certa empatia, que o fazia aproximar-se dela por causa das circunst�ncias? Ou, o que ele achava mais prov�vel, seria apenas interesse
genu�no por uma mulher interessante, que n�o precisava de desculpas para atrair a aten��o de um homem? De qualquer forma, ela era casada, e ele pretendia respeit�-la
por isso. E depois, talvez nunca mais a visse, o que o ajudaria a n�o mais pensar nela. O medo passou a ser uma constante na vida de Marcela, pois temia que Fl�vio
descobrisse o seu envolvimento com Luciana. V�-la parada na sua porta, naquele dia, causou-lhe imenso constrangimento, e Marcela n�o sabia o que pensar ou como agir.
Contudo, ainda sentia por Luciana uma grande afei��o e n�o podia simplesmente fingir que ela n�o a procurara. Mas por que ela o fizera? Luciana era uma mulher independente
e decidida, e Marcela duvidava que ela tivesse voltado atr�s na decis�o de deix�-la. Alguma coisa deveria ter acontecido. Acima de tudo, elas sempre tinham sido
amigas, e uma podia confiar na outra para qualquer coisa. Tentou n�o pensar mais naquilo, mas a preocupa��o foi-se acentuando, at� deix�-la a tal ponto inquieta,
que ela n�o conseguiu mais suportar. Se alguma coisa acontecesse a Luciana, ela jamais se perdoaria por n�o ter, ao menos, tentado ajud�-la. Tomou uma decis�o e
foi ao seu consult�rio no M�ier. Chegou cedo, antes do hor�rio de Luciana, e foi Cec�lia quem a recebeu com certa desconfian�a.
- Voc� tem hora marcada? - indagou com um tom intimidador.
- N�o. Sou uma amiga.
- Uma amiga? Lamento inform�-la, mas a doutora Luciana est� com a agenda cheia, e n�o sei se vai poder receb�-la.
- Vai me receber, sim, tenho certeza. Sou amiga de muitos anos.
Sem perceber a desconfian�a e o desagrado de Cec�lia, Marcela sentou-se para esperar. Poucos minutos depois, a porta da sala de atendimentos se abriu, e Ma�sa saiu
logo atr�s do �ltimo paciente daquela manh�. Ao ver Marcela ali sentada, levou um tremendo susto, mas exclamou com satisfa��o:
- Marcela! Que bom ver voc�! O que a trouxe aqui?
Marcela a abra�ou meio sem jeito e respondeu baixinho:
- � a Luciana. Preciso falar com ela.
- Aconteceu alguma coisa?
- N�o sei. Ela foi me procurar no domingo...
Nesse instante, Luciana vinha chegando e ficou deveras surpresa ao ver Marcela no consult�rio.
- Aconteceu alguma coisa? - a indagou, mal acreditando no que via.
- Foi exatamente o que perguntei a ela - informou Ma�sa.
- Foi uma surpresa e tanto v�-la aqui.
- Sou eu que devo perguntar isso - retrucou Marcela, fitando Luciana com emo��o. Vim saber por que voc� foi me procurar no domingo.
Luciana olhou de soslaio para Cec�lia, sem saber o que dizer. N�o lhe agradava partilhar detalhes de sua vida particular com outras pessoas al�m de Ma�sa.
- Por que voc�s n�o v�o beber alguma coisa? - sugeriu Ma�sa, sens�vel � situa��o. Deixe o seu primeiro paciente comigo, Luciana. Eu o atenderei.
- S�rio?
- � claro. V�, n�o se preocupe.
Sob o olhar de f�ria de Cec�lia, Luciana saiu em companhia de Marcela, e foram sentar-se numa lanchonete perto dali. Pediram dois refrigerantes, e Marcela foi a
primeira a falar:
- Sinto incomod�-la no trabalho, Luciana, mas n�o pude simplesmente ignorar o fato de que voc� foi me procurar, debaixo daquela chuva toda. Aconteceu alguma coisa?
- N�o - respondeu Luciana, sem saber o que dizer. Na verdade, nem ela sabia ao certo por que fora procurar Marcela.
- Espero n�o ter estragado nada.
- N�o estragou... Mas deixou Fl�vio pensando que voc� � a causa do meu quase suic�dio.
- Como � que �?
- Ele pensa que meu namorado fugiu com voc�, que era a minha melhor amiga.
- Que hist�ria � essa, Marcela?
- Fl�vio n�o sabe do meu passado. Pensa que eu tentei me matar por causa de um ex-namorado. Quando viu voc�, achou que esse tal ex-namorado tivesse me abandonado
por sua causa.
- E voc� o deixou acreditando nessa mentira? Marcela aquiesceu e respondeu em tom de desculpa:
- Ele nem desconfia de que fomos amantes. Se souber, vai me deixar.
- N�o tenho nada com a sua vida, Marcela, mas, como j� disse, n�o acho justo engan�-lo. E depois, se ele a ama de verdade, vai aceitar. Afinal, voc� n�o fez nada
de sujo nem de errado.
- Fl�vio n�o pensa assim.
- Ele lhe disse isso?
- Disse... mais ou menos.
- Tudo bem, Marcela, o problema � seu. Eu s� acho que n�o se constr�i um relacionamento em cima de uma mentira. Mais cedo ou mais tarde, ele vai acabar descobrindo.
- N�o vai, n�o. S� se voc� lhe contar.
- Eu!? Era s� o que me faltava! N�o se preocupe, de mim, ele n�o vai saber nada.
- Obrigada, Luciana, sabia que podia contar com voc�. Mas n�o foi por isso que vim procur�-la. Fiquei preocupada com voc�. O que foi que houve para voc� aparecer
l� em casa daquele jeito, debaixo daquele temporal?
- Aquilo? N�o foi nada. Eu estava me sentindo sozinha e bateu uma saudade de voc�...
- Saudade?
- �. Das nossas conversas, da nossa amizade. Senti vontade de ver voc�, de saber como estava passando. Gosto de voc� como uma grande amiga e queria lhe dizer isso.
A emo��o levou l�grimas aos olhos de Marcela, que apertou a m�o de Luciana discretamente. As duas estavam t�o entretidas na conversa que nem repararam que estavam
sendo observadas. Do outro lado da rua, Cec�lia as vigiava, mordendo os l�bios a cada instante. N�o conhecia aquela Marcela, mas n�o tinha d�vidas de que ela e Luciana
eram bem pr�ximas, �ntimas, para dizer a verdade, o que poderia representar uma amea�a aos seus planos. Assim que o primeiro paciente da tarde havia chegado, Cec�lia
o encaminhara para Ma�sa e esperara at� que ela fechasse a porta da sala de atendimento para sair. Tirou o fone do gancho, para que o telefone n�o come�asse a tocar
e atra�sse a aten��o de Ma�sa, e saiu procurando Luciana. S� havia uma lanchonete a que elas pudessem ter ido, e Cec�lia foi direto para l�. Acertara em cheio. Luciana
e Marcela conversavam muito pr�ximas, demonstrando uma intimidade que ela nunca vira Luciana ter com ningu�m, nem com Ma�sa. Um �dio cego brotou dentro dela. N�o
era ci�me, mas medo. Medo de que Luciana a deixasse por aquela outra, por quem demonstrava vis�vel afei��o. Com ela, era diferente. Luciana a tratava bem, mas nunca
lhe dirigira aquele olhar de ternura que tinha para com aquela mo�a. Alguns minutos depois, Luciana e Marcela se separaram, e Cec�lia correu na frente dela, de volta
ao consult�rio. Quando chegou, Ma�sa ainda estava na sala com o paciente e n�o desconfiou de nada. Passaram-se alguns instantes, e Luciana chegou tamb�m. Vinha com
ar de felicidade, o que encheu de �dio o cora��o de Cec�lia.
- Quem era aquela? - indagou Cec�lia, tentando n�o emprestar � voz um tom de excessiva cobran�a. Ouvi Ma�sa cham�-la de Marcela.
- � uma amiga - foi a resposta seca.
- Que amiga?
- N�o interessa. N�o lhe dou o direito de fazer interrogat�rios sobre a minha vida.
O sangue subiu �s faces de Cec�lia, que teve de fazer um esfor�o tremendo para n�o voar em cima de Luciana.
- Ser� que � demais eu sentir ci�mes de uma desconhecida? Afinal, pensei que voc� gostasse de mim.
- E gosto.
- Ent�o, por que n�o me diz quem � ela?
- Porque voc� n�o tem nada com isso.
- N�o quero me intrometer em sua vida, se � o que est� pensando. Mas a cumplicidade e a confian�a s�o naturais no relacionamento entre duas pessoas. E voc� n�o confia
em mim.
- N�o � isso... - retrucou Luciana, no fundo, dando raz�o �s palavras de Cec�lia. Marcela � uma amiga de longa data, nada mais.
- No entanto, voc�s se tratavam com uma intimidade que n�s nunca tivemos.
- Impress�o sua. � que conhe�o Marcela a mais tempo do que conhe�o voc�.
- Voc�s namoraram?
Luciana hesitou. N�o havia nada de mau em dizer que ela e Marcela haviam tido um romance, mas ela se lembrou da promessa que lhe fizera e teve medo de revelar a
verdade.
- Deixe isso para l�, Cec�lia. N�o vamos criar um caso por nada. Afinal, � com voc� que eu estou no momento, n�o �? Esque�a Marcela e pense s� em n�s.
A sa�da do paciente foi providencial, deixando Luciana deveras aliviada. Ela se desculpou com o rapaz, agradeceu a Ma�sa e entrou na sala de atendimento, dando gra�as
a Deus por se livrar do interrogat�rio de Cec�lia. No final da tarde, Cec�lia a estava esperando para sa�rem juntas do consult�rio, mas n�o fez nenhum outro coment�rio
sobre a visita de Marcela. Queria descobrir mais, mas tinha que ir devagar, ou Luciana acabaria mandando-a embora. Por isso, ao inv�s de crivar a outra de perguntas,
n�o disse nada e tratou de agrad�-la o mais que p�de, para al�vio de Luciana. Mais tarde, naquele mesmo dia, Fl�vio foi-se encontrar com Marcela em sua casa, como
era de costume.
- Voc� quer sair para jantar? - perguntou ele, logo ap�s pousar a maleta de m�dico na poltrona.
- N�o. Podemos comer aqui hoje. Gosto de cozinhar para voc�.
Ele a enla�ou por tr�s, e ela sorriu intimamente, perguntando-se o que ele faria se descobrisse sobre Luciana. Ele nunca poderia descobrir. Luciana prometera n�o
contar, e Marcela confiava nela.
- O que fez hoje o dia inteiro? - prosseguiu ele. Liguei para c� e voc� n�o estava.
Ela precisava inventar uma desculpa r�pida para lhe dar, quando se lembrou da mo�a que conhecera na v�spera. Como se esquecera de contar sobre Adriana, podia dizer
que tudo se passara naquele dia, e n�o no anterior, e ele jamais ficaria sabendo que ela fora ao encontro de Luciana.
- Voc� nem imagina o que aconteceu! - come�ou ela, despertando-lhe a curiosidade.
- O qu�?
- Conheci uma mo�a na sa�da da escola. Ela estava procurando um endere�o, e adivinhe s�: era justamente na minha rua.
- N�o brinque! Que coincid�ncia, n�o?
- Pois �. Como eu estava parada no ponto de �nibus, ela me ofereceu uma carona...
Fl�vio tinha a aten��o presa na hist�ria que Marcela lhe contava e ficou perplexo com a situa��o daquela mo�a.
- Como � que ela se chama?
- Adriana.
- Adriana de qu�?
- Isso eu n�o sei nem me interessei em perguntar. Por qu�?
- Voc� disse que ela � da alta sociedade. Talvez eu a conhe�a.
- E se a conhecer, o que vai fazer? Vai contar aos pais dela o que lhe aconteceu?
- Eu, n�o! Deus me livre de ser fofoqueiro. Perguntei apenas por curiosidade, porque acho um absurdo o que esse rapaz fez. Esse sujeito � um canalha. Onde j� se
viu enganar assim uma mo�a?
- Para voc� ver como existem pessoas ruins.
- Sei que existem - tornou ele com brandura, achando que ela se referia ao inexistente ex-namorado. Mas existem pessoas boas tamb�m. Pessoas como eu, que a amo acima
de qualquer coisa.
Fl�vio parecia testar a sua confian�a. Todas as vezes que ele lhe falava de seu amor, ela se sentia tentada a lhe contar a verdade, mas o medo de perd�-lo era muito
grande, e ela se calava.
- Tamb�m o amo - disse ela, beijando-o nos l�bios. Mais do que tudo no mundo.
Ele sorriu satisfeito e a beijou com vontade, at� que ela se soltou e continuou a fazer o jantar.
- Minha m�e nos espera para o almo�o no s�bado - informou ele, comendo um peda�o de cenoura.
- De novo?
- Minha m�e quer conhec�-la melhor. N�o vejo nada demais nisso.
- Nem eu... Mas � que tenho medo dela.
- Sua bobinha, minha m�e n�o morde. E depois, voc� n�o tem com o que se preocupar. Sei que ela � autorit�ria e arrogante, mas tem medo de me desagradar e que eu
me mude e a deixe sozinha.
- Por falar nisso, n�s n�o vamos morar com ela depois que nos casarmos, vamos?
- � claro que n�o! Deus me livre! Gosto muito de minha m�e, mas ela vai se meter na nossa vida de todas as maneiras, e eu n�o quero isso. N�o, minha querida, quando
nos casarmos, vamos para a nossa pr�pria casa. S� eu e voc�... e nossos filhos.
A conversa mudou de rumo, e Marcela se pegou pensando novamente em Luciana. Os dois eram muito parecidos: tanto Fl�vio quanto Luciana eram decididos e sabiam muito
bem o que queriam. Seria por isso que ela se aproximara tanto de Fl�vio? N�o importava. O que tinha import�ncia era que ela e Fl�vio estavam apaixonados e iam se
casar, construir uma vida e um futuro, ao passo que Luciana pertencia agora ao passado. Enquanto andava pela rua, a caminho de casa, Luciana ia pensando no seu relacionamento
com Cec�lia. Ma�sa tinha raz�o: j� estava indo longe demais. Por mais que Cec�lia lhe dissesse que n�o queria nenhum compromisso, n�o era isso que suas atitudes
demonstravam. Ela a tratava feito namorada e agora estava com ci�mes, insistindo para que lhe contasse sobre o seu relacionamento com Marcela, o que a deixou muito
insatisfeita. Afinal, nunca lhe dera tanta intimidade para se intrometer em sua vida, e as perguntas que ela fez lhe causaram imenso desagrado. Se fosse para se
envolver com algu�m que quisesse dominar a sua vida, era melhor terminar com ela. Luciana lamentaria ter que perder uma secret�ria competente feito Cec�lia e esperava
n�o precisar chegar �quela medida extrema. Mas, se ela n�o se contivesse, n�o veria outra sa�da, a n�o ser terminar de uma vez com o romance. Tudo dependeria de
como Cec�lia se portaria em seu pr�ximo encontro. Naquela noite, Cec�lia n�o apareceu em sua casa, e Luciana pensou que ela estivesse chateada com o ocorrido � tarde,
mas a verdade era que ela estava em companhia de Gilberto e nem pensava em Luciana. A visita de Marcela, embora tivesse despertado preocupa��o em Cec�lia, n�o a
incomodou mais, porque pouco ou nada se importava com os antigos casos de Luciana. Desde que n�o atrapalhassem seus planos, n�o se preocuparia. Quando Luciana chegou
ao trabalho na tarde seguinte, Cec�lia a tratou normalmente e n�o fez nenhum coment�rio sobre a v�spera, o que deixou Luciana aliviada. Ao final do expediente, enquanto
trancava a porta, Cec�lia ia perguntando:
- O que vai fazer hoje � noite?
- Nada. Vou para casa, jantar e dormir. Estou muito cansada.
- N�o gostaria de ir ao cinema?
- Hoje n�o.
Cec�lia n�o insistiu. Se pressionasse Luciana, ela se irritaria e a mandaria embora, quem sabe, at� de sua vida. Precisava agir com cautela. No dia seguinte e no
outro, Cec�lia n�o fez mais nenhum coment�rio sobre a visita de Marcela e ficou � espera que Luciana a convidasse para sair, o que, efetivamente, aconteceu. Embora
receando mais perguntas indiscretas, Luciana convidou Cec�lia para ir a sua casa depois do expediente.
- Tem certeza, Luciana? - indagou Cec�lia, com cuidado. N�o quero atrapalhar voc�.
- N�o vai me atrapalhar. Tenho me sentido muito s�... - calou-se, j� arrependida de ter demonstrado fraqueza.
- N�o precisa ter vergonha de mim - afirmou Cec�lia, notando o embara�o da outra. Todo mundo se sente s�, de vez em quando.
Luciana sorriu em agradecimento, e as duas foram para casa. Enquanto Luciana tomava banho, Cec�lia preparou um jantar maravilhoso, que as duas comeram quase em sil�ncio,
e depois foram ver televis�o. Era uma fita de amor e, em breve, as duas tamb�m estavam se amando, at� adormecerem em seguida. Durante todos os momentos em que estiveram
juntas, Cec�lia n�o fez nenhuma pergunta ou observa��o a respeito de Marcela, o que deixou Luciana um pouco mais tranq�ila. Adormecida nos bra�os de Cec�lia, Luciana
sentiu que seu corpo flutuava e abriu os olhos assustada. A seu lado, l� estava aquela mulher novamente, fitando-a com certa tristeza:
- Voc� de novo? - indagou Luciana, hesitando entre retornar ao corpo f�sico e aproximar-se da desconhecida.
- Como voc� consegue dormir com ela? - tornou o esp�rito, apontando com o queixo para Cec�lia.
- Gosto dela. Por qu�? O que voc� tem com isso?
- N�o tenho nada com isso. Mas tamb�m gosto de voc�, Robert, apesar de tudo o que me fez.
- Robert? Perd�o, mas voc� deve estar me confundindo com algu�m. Por que cisma de se referir a mim como homem?
- Voc� n�o se lembra mesmo, n�o �?
- Do que deveria me lembrar?
- De mim...
- Quem � voc�?
- Sou Rani. N�o se lembra? - Luciana meneou a cabe�a. N�o se lembra dos nossos anos na �ndia?
- �ndia? Eu nunca estive na �ndia.
- Ah! Esteve, sim. Conheceu-me l� e me levou para a Inglaterra. De l�, viemos para o Brasil, tentar a sorte.
- Voc� deve estar louca. Meu nome � Luciana e eu sempre estive aqui, no Brasil. Nada sei sobre a Inglaterra ou a �ndia, al�m do que se l� nos livros ou jornais.
- Diz isso agora. Mas voc� j� foi um aventureiro ingl�s que primeiro tentou a sorte na �ndia, onde n�o obteve o sucesso desejado. Quando me conheceu, eu era uma
mo�a pobre e ing�nua, e acreditei nas suas juras de amor e promessas de casamento. Deixei minha casa e meus pais para seguir voc�. A sorte n�o nos sorriu, e voltamos
para a Inglaterra, mas as coisas l� tamb�m n�o estavam muito boas. Voc� devia muito dinheiro, e o que eu ganhava vendendo o meu corpo n�o dava para cobrir as suas
d�vidas. Por isso, viemos para o Brasil, onde ningu�m o conhecia, e voc� podia se fazer passar por um respeit�vel cavalheiro ingl�s acompanhado de sua esposa indiana.
Isso tamb�m n�o deu certo, e eu continuei me vendendo para sustentar voc�, at� que conseguimos juntar algum dinheiro, e voc� montou aquele bordel... Luciana ouvia
aquela hist�ria entre at�nita e cr�dula. � medida que o esp�rito falava, sua mem�ria ia-se reavivando, e ela conseguia vislumbrar pequenos peda�os de sua vida passada.
- Por que est� me contando isso? - perguntou confusa.
- Porque eu o amo. Apesar de tudo, meu cora��o ainda est� preso ao seu, Robert.
- Gostaria que voc� parasse de me chamar de Robert. Meu nome � Luciana, e eu sou uma mulher.
- Mais ou menos, n�o � mesmo? - tornou ela em tom mordaz, apontando para Cec�lia novamente. Voc� sempre foi muito mulherengo. Devia saber que trocar de corpo n�o
faria voc� respeitar as mulheres.
Eu respeito as mulheres! Respeito todo mundo, inclusive voc�, que eu nem conhe�o e me aparece assim, de repente, para me contar uma hist�ria fant�stica e assombrosa!
Quem voc� pensa que �?
- Perdoe-me, Robert, eu n�o quis ofender...
- Pare de me chamar de Robert! Meu nome � Luciana! Se n�o consegue se acostumar com isso, pe�o que v� embora e n�o apare�a mais. Sua presen�a n�o me faz bem.
Para surpresa de Luciana, o esp�rito a encarou com olhar magoado e se virou para a parede, sumindo em seguida. Furiosa, Luciana retornou ao corpo e acordou sobressaltada,
ainda sob a forte impress�o que o esp�rito lhe causara. Que hist�ria seria aquela de �ndia e Inglaterra? A mulher no sonho lhe dissera algo a respeito daqueles pa�ses
e a chamara por outro nome, um nome de homem, Roberto ou Robert, n�o se lembrava bem. E lhe dissera tamb�m o seu nome, mas ela n�o se recordava. Era muito esquisito.
Durante o resto da semana, Rani n�o apareceu para Luciana, magoada com a forma como ela a havia tratado. Desde que Robert vivera na �ndia, sempre fora um homem grosseiro
e rude, apesar de ardoroso e bom amante. Muitas mulheres haviam sido enganadas por ele, e agora Robert se disfar�ara de mulher para fugir daquelas que o perseguiam.
As que o achassem se decepcionariam ao encontr�-lo preso num corpo feminino e perderiam o interesse por ele. Mas Rani n�o. Durante muitos anos, ele se perdera para
Rani, ela n�o sabia onde ele estava. Mas tanto fez, tanto pensou nele que conseguiu captar a sua vibra��o e, com a permiss�o dos esp�ritos superiores, descobriu-o
na vida atual. V�-lo no corpo de uma mo�a n�o deixou de ser uma surpresa, mas, ao contr�rio das outras, n�o se desanimou. Ainda era o seu Robert por debaixo daquelas
curvas femininas, e o que ela amava em Robert n�o era o seu corpo, mas a ess�ncia do homem que ela conhecera e por quem se apaixonara um dia. N�o fora por outro
motivo que os esp�ritos superiores a encarregaram de auxiliar Robert em sua nova trajet�ria. Ela n�o era nenhum ser iluminado e estava bem longe da perfei��o, mas
o seu amor a impedia de tentar prejudicar Luciana e a fazia querer-lhe bem.
- O que voc� tem? - questionou Cec�lia, que notava o quase alheamento de Luciana.
- Nada. Tenho andado cansada, s� isso.
- Tem certeza? N�o � nada comigo?
- N�o, � s� cansa�o mesmo.
- Que bom.
- Vou tomar um banho e j� volto - disse Luciana, para encerrar o assunto, dirigindo-se ao banheiro.
Cec�lia estava deitada na cama e resolveu ligar a televis�o, que ficava sobre a c�moda. Levantou-se com pregui�a e girou o bot�o que acionava o aparelho, e a imagem
em preto e branco logo surgiu na tela. Por que � que Luciana ainda n�o havia comprado uma TV colorida? Assim que terminou de ajustar o canal, Luciana entrou no quarto,
enrolada na toalha, e se dirigiu ao arm�rio, para se vestir. Quando passou pela c�moda, notou que havia esquecido ali algo que n�o deveria: uma caixa de madeira
contendo todas as lembran�as que guardava de Marcela. Estivera mexendo na caixa, � procura de uma foto, e se esquecera de guard�-la depois. Como Luciana n�o queria
que Cec�lia a visse, tratou logo de apanh�-la para guard�-la de volta no arm�rio, mas n�o foi cuidadosa o bastante. Na pressa, a caixa deslizou de suas m�os e foi
direto ao ch�o, espalhando todo o seu conte�do. Na mesma hora, Cec�lia se abaixou para ajudar a catar as coisas, apesar dos protestos de Luciana:
- Que desastrada! Pode deixar que eu mesma cato tudo, Cec�lia, n�o precisa se incomodar.
Abaixada ao lado de Luciana, Cec�lia ia apanhando cartas e fotos viradas, e foi s� quando desvirou uma que percebeu do que se tratava. Eram todas fotografias de
Luciana ao lado de Marcela, e ela reconheceu a mo�a que fora ao consult�rio no outro dia.
- Quem � essa? - indagou Cec�lia, segurando a foto nas m�os.
- Ningu�m. D�-me isso aqui.
Luciana arrancou o retrato da m�o de Cec�lia e tornou a guard�-lo na caixa, enquanto Cec�lia desdobrava um papel de carta cor-de-rosa e lia uma declara��o comovente
de amor, de Marcela para Luciana.
- Ora, ora, mas ent�o voc�s foram apaixonadas! - a constatou, olhando para Luciana com ar de triunfo. Por que o mist�rio?
- N�o h� mist�rio nenhum.
- Como n�o? Voc� se recusa a falar sobre essa Marcela. Diz que s�o apenas amigas.
- E somos.
- N�o � o que parece - afirmou Cec�lia, abrangendo, com um gesto, as cartas e as fotos de Luciana.
- Tivemos um relacionamento um dia, mas hoje somos apenas amigas.
- E por que esconder isso? Voc� n�o me parece o tipo de pessoa que precise ocultar o passado.
Luciana, sentada sobre os tornozelos, ajeitou a toalha em volta do corpo e olhou para Cec�lia com ar desanimado. Por que fora mexer naquela caixa? Se a tivesse deixado
onde estava, a outra nem a teria percebido. Mas agora todo o seu conte�do estava ali, derramado no ch�o, e ela n�o tinha mais como esconder o relacionamento que
tivera com Marcela. Pensando bem, por que deveria esconder? Marcela n�o queria que o namorado soubesse que ela vivera com uma mulher no passado, mas Cec�lia n�o
era o seu namorado. Sequer a conhecia. E ela, Luciana, n�o tinha problema nenhum com aquilo. Sempre assumira a sua condi��o de l�sbica e n�o se envergonhava do que
era. Por que ent�o deixar que o temor de Marcela a contaminasse e a fizesse sentir vergonha de algo que lhe parecia t�o natural?
- Olhe, Cec�lia - come�ou ela a dizer -, voc� tem raz�o. N�o d� mais para esconder, n�o �? Marcela e eu vivemos juntas muitos anos, mas isso acabou. Ela agora est�
namorando um rapaz, e n�s quase n�o nos vemos.
Ajudada por Cec�lia, Luciana terminou de guardar as coisas na caixa e come�ou a trocar de roupa, enquanto ia contando tudo a respeito de seu relacionamento com Marcela.
Contou de suas vidas em Campos, de como fugiram para o Rio, de seus empregos, estudos, sua paix�o, at� o dia em que Luciana a deixou e ela tentou se matar.
- Muito comovente essa hist�ria - falou Cec�lia, tentando disfar�ar o desprezo.
- �, sim. Eu amei muito Marcela, e ainda amo, s� que de outra maneira. Contudo, ela tem vergonha do que foi e n�o quer que o namorado saiba. Por isso, eu lhe pe�o:
jamais diga qualquer coisa sobre o que hoje lhe contei.
- Por que eu diria alguma coisa? Eu nem a conhe�o!
- E n�o quero que voc� sinta ci�mes de Marcela. Gosto muito dela, mas ela � apenas minha amiga.
- N�o estou com ci�mes. Quando a vi no consult�rio, naquele dia, fiquei enciumada, sim, mas depois passou. E agora que sei o que aconteceu, n�o tenho mesmo motivos
para sentir ci�mes.
- �timo. Gosto de Marcela como se fosse minha irm� e, embora n�o concorde com o fato de ela estar ocultando do rapaz o seu passado, n�o tenho nada com isso. A vida
� dela, e eu pretendo respeit�-la.
- � claro. N�o se preocupe, nunca direi nada.
- Obrigada. Sabia que podia confiar em voc�.
Cec�lia em nada se comoveu com aquela hist�ria. Temia apenas que Marcela pudesse representar alguma amea�a a seus interesses e precisou disfar�ar para que Luciana
n�o percebesse o seu receio. Fora isso, n�o sentia nada al�m de um profundo e quase indisfar��vel desprezo. Assim que saiu do col�gio, Marcela notou o carro de Ariane
parado perto do port�o de entrada e se dirigiu para l�. A mo�a estava ao volante, de �culos escuros, e a chamou quando ela passou:
- Ol�, Marcela. Como est�?
- Oi, Adriana. Tudo bem e voc�?
Ariane deu de ombros e indicou a porta do carro:
- N�o quer uma carona?
Sem de nada desconfiar, Marcela entrou no carro e se sentou ao lado dela. Fazia algum tempo que Ariane, vez por outra, a procurava na sa�da da escola, e elas seguiam
conversando. O motivo era sempre o mesmo: solid�o e falta de amigos.
- E a�? - perguntou Marcela. Teve not�cias do Mike?
- N�o. Ele nunca mais apareceu...
- Por que voc� n�o o deixa para l�? Est� na cara que ele n�o a ama. Voc� � uma mo�a bonita, culta, sens�vel. Merece coisa melhor.
- Acha mesmo? - retrucou Ariane, segurando a tenta��o de lhe dizer: "algu�m melhor feito Fl�vio".
- Acho, sim.
- Pena que as coisas n�o sejam assim t�o f�ceis. Bons rapazes, hoje em dia, s�o dif�ceis de se encontrar.
- Nem tanto. Veja eu, por exemplo: conheci Fl�vio num momento dif�cil, e ele me ajudou a me levantar da minha ru�na.
- Voc� ficou assim t�o mal quando o seu namorado rompeu com voc�?
- Fiquei... Olhe, Adriana, sei que voc� � minha amiga, mas n�o gosto de falar do passado. � muito doloroso.
- Entendo. Bem, fale-me de Fl�vio, ent�o. Ele foi o m�dico que a atendeu e salvou a sua vida, em todos os sentidos.
- � verdade. N�o fosse por ele, acho que teria tentado me matar de novo. Mas ele me deu uma nova raz�o para viver, trouxe um novo alento para a minha vida.
- Ser� que voc� n�o � muito dependente dele?
- N�o sei. Talvez at� seja, mas ele � a �nica pessoa com quem posso contar.
- Voc� gostaria de tomar um sorvete? - perguntou Ariane, parando o carro perto de uma sorveteria. Podemos continuar conversando, se n�o for atrasar voc�.
- N�o tenho nenhum compromisso agora. Fl�vio s� vem mais tarde.
Sentaram-se a uma mesa e pediram duas ta�as de sorvete, e Ariane se pegou muito mais interessada na vida de Marcela do que propriamente na de Fl�vio.
- Pelo visto, Fl�vio n�o liga para o fato de voc� ter tentado se matar por causa de outro.
- L�gico que n�o. Foi ele, inclusive, quem insistiu para que sa�ssemos.
- Esse Fl�vio deve mesmo ser um homem maravilhoso... Quem me dera encontrar um homem assim.
- N�o perca as esperan�as, Adriana. Tenho certeza de que esse homem est� por a�, em algum lugar, esperando por voc�.
- Mas n�o sou mais virgem...
- E da�? Quem � que se importa com isso hoje em dia?
- Muita gente. Fl�vio n�o se importa?
- � claro que n�o.
- Voc�s transam, n�o transam?
- Essa pergunta � um pouco indiscreta, mas n�o faz mal contar para voc� - ela deu um sorrisinho malicioso e completou: Quando conheci Fl�vio, j� n�o tinha mais o
que preservar.
De repente, Ariane se deixou tomar por um ci�me incontrol�vel e por pouco n�o estragou tudo, mas conseguiu se conter a tempo. Ent�o Marcela se gabava de dormir com
Fl�vio, enquanto ela ainda era virgem e nunca transara com ningu�m.
- Ent�o Fl�vio n�o foi o primeiro, foi? - revidou ela, mordendo os l�bios para que Marcela n�o percebesse o seu ci�me.
- Oh! N�o!
- O primeiro foi seu antigo namorado.
- Foi... Mas n�o quero falar sobre ele.
- Como � o nome dele?
- J� disse que n�o quero falar sobre ele, Adriana. � muito doloroso.
- Est� bem, desculpe-me. Foi apenas curiosidade, perdoe-me.
- N�o tem import�ncia. Na verdade, sou eu quem deve lhe pedir perd�o. N�o queria ser grosseira, mas...
- Voc� n�o foi. Eu � que estava sendo indiscreta. Vamos fazer uma coisa? Vamos mudar de assunto.
Era preciso ir devagar ou Marcela acabaria desconfiando.
- E os seus pais, Marcela? Voc� disse que quase n�o os v�. N�o sente falta deles?
- Sinto, sim. Antigamente, no Natal, ligava para eles, mas eles deixaram bem claro que n�o querem mais saber de mim. Com o tempo, desisti de procur�-los.
- Por que eles fizeram isso?
- Meus pais s�o gente de cidade pequena. N�o aceitam mulheres independentes e jamais quiseram que eu viesse para o Rio.
- Mas ent�o eles n�o sabem o que lhe aconteceu?
- A tentativa de suic�dio? N�o, n�o sabem. E nem precisam saber.
Ariane ficou pensando se n�o seria uma boa id�ia procurar os pais de Marcela e lhes contar tudo, mas achou que s� serviria para aproxim�-la ainda mais de Fl�vio
e desistiu.
- E voc�, Adriana? Por que n�o me fala um pouco mais de voc�?
- O que quer saber? J� lhe contei tudo sobre mim. Minha vida � muito vazia e sem gra�a. Desde que o Mike se foi, n�o tenho nem sa�do mais.
- Isso � uma pena! Mas voc� pode vir me visitar quando quiser. Por que n�o marcamos para sair num s�bado? Voc� fica conhecendo o Fl�vio, e ele pode levar um amigo.
Aquela era a �ltima coisa que Ariane pretendia fazer, e ela tornou com cuidado:
- N�o d�, Marcela. Voc� e Fl�vio querem namorar, e eu s� atrapalharia.
- Mas se estou dizendo que ele pode levar um amigo!
- N�o estou pronta para isso ainda. Enquanto n�o conseguir tirar Mike da cabe�a, n�o vou poder sair com mais ningu�m.
- N�o creio que lhe fa�a bem ficar assim pensando num homem que n�o lhe d� a m�nima. Ele n�o merece voc�.
- J� sei, mas n�o consigo evitar. � duro quando o cora��o est� ferido.
- Voc� tem que tentar vencer isso.
- Eu estou tentando, mas tem que ser no meu tempo. N�o adianta querer for�ar o que n�o estou sentindo.
- Tem raz�o. Mas quero que saiba que sou sua amiga, e voc� pode contar comigo sempre que precisar.
- Obrigada, Marcela.
Ariane sentiu o aperto de m�o que Marcela lhe deu e ficou emocionada. Aquela mo�a parecia muito sincera na amizade que lhe oferecia. Afinal, ela n�o era assim t�o
diferente da Adriana que inventara. N�o tinha amigos e perdera o namorado. As mo�as com quem se relacionava eram todas f�teis e viviam �s voltas com festas e rapazes.
Pensando bem, no que � que ela diferia das outras mo�as? Tamb�m s� pensava em festas e num rapaz em particular. N�o tinha nenhuma ocupa��o, nada com o que se preocupar,
nenhum compromisso de trabalho, estudo ou outra coisa qualquer. Levava uma vida vazia, voltada para as apar�ncias e os eventos sociais. Ser� que aquilo realmente
a agradava? Marcela era diferente. Era professora, tinha uma profiss�o e um objetivo. Havia pessoas que dependiam dela, que precisavam dela para alguma coisa. Ela
era respons�vel por ensinar dezenas de alunos, o que tornava Marcela bem mais importante do que ela. Se Ariane morresse, n�o faria falta a ningu�m na sociedade,
n�o deixaria de prestar algum servi�o �til. Mas, se Marcela viesse a morrer, o que seria de seus alunos? Mesmo que arranjassem outra para colocar no seu lugar, seria
uma pessoa a menos no mundo para colaborar com o seu crescimento. E ela? Com que crescimento contribu�a? Nem com o dela mesma. Aqueles pensamentos incomodaram Ariane,
e ela se apressou para sair da sorveteria. Deixou Marcela em casa e seguiu para a sua, levando no cora��o aqueles questionamentos todos. Poderia tentar dividi-los
com a m�e, que n�o era uma pessoa f�til, mas a m�e estava muito envolvida em seus pr�prios problemas para compreend�-la. O pai n�o queria saber dela, e Dolores a
chamaria de tola e idiota. A �nica pessoa que parecia capaz de realmente entend�-la era mesmo Marcela. Mais tarde, quando Fl�vio chegou, encontrou Marcela preocupada
e triste.
- Aconteceu alguma coisa? - perguntou, beijando-a como sempre.
- Lembra-se daquela mo�a de quem lhe falei? Da Adriana?
- Lembro. Por qu�?
- Ela apareceu na escola hoje de novo.
- E...?
- Est� cada vez mais triste, deprimida. O namorado desapareceu, e ela n�o tem com quem se abrir.
- Ser� que essa mo�a n�o est� se apegando a voc�?
- Creio que sim. Ela n�o tem amigas, e eu lhe ofereci a minha amizade. Fiz mal?
- De jeito nenhum. Por que n�o a convida para vir aqui uma noite dessas? Podemos lev�-la para dar uma volta e espairecer.
- J� dei essa id�ia. Disse at� que voc� convidaria um amigo, mas ela n�o aceitou. Ainda est� muito ligada no rapaz.
- Ent�o, s� o tempo � que poder� ajud�-la.
- Foi o que pensei. Quando essas coisas acontecem, � melhor dar tempo ao tempo. Mas n�o posso deixar de me sentir triste.
- N�o quero que se sinta assim. Voc� est� sendo amiga dela. Quando ela quiser, vai sair dessa. Ele a abra�ou e mudou de assunto: N�o se esque�a do nosso almo�o amanh�.
E voc� pode convidar a Adriana, se quiser.
- Engra�ado, Fl�vio. Agora que voc� mencionou isso � que me lembrei de que n�o tenho nem o telefone, nem o endere�o dela. N�o posso entrar em contato com ela.
- Que pena! Bom, deixe para uma pr�xima vez. Quando ela aparecer de novo, pe�a o seu telefone, e n�s poderemos convid�-la numa outra oportunidade. E agora - tornou
ele, em tom solene -, quero lhe mostrar uma surpresa.
- Uma surpresa? O que �?
Ele tirou da bolsa uma caixinha e a depositou nas m�os de Marcela, que soltou um gritinho de alegria. Entusiasmada, soltou o la�o de fita que a envolvia e exibiu
o seu conte�do.
- Fl�vio! - exclamou embevecida, admirando o solit�rio que reluzia sob a luz. � lindo!
- N�o tanto quanto voc� - contestou ele, retirando o anel da caixinha e colocando-o no dedo de Marcela. Serviu feito uma luva. Parece que foi feito para voc�.
Marcela olhava admirada para o diamante e beijou Fl�vio com paix�o, acrescentando com embara�o:
- N�o precisava...
- Voc� n�o gostou?
- Se n�o gostei? Eu adorei! Mas n�o quero que voc� gaste seu dinheiro comigo.
- Isso � porque eu a amo e quero me casar com voc�.
- Est� me pedindo em casamento? - ele assentiu emocionado. Oh! Fl�vio, como eu o amo!
- Quer dizer ent�o que aceita?
- E como poderia recusar? Amo-o mais do que a pr�pria vida.
Ele retirou outra caixinha do bolso, contendo duas alian�as de ouro, e experimentou a menor no dedo de Marcela, que a fitava embevecida.
- Ent�o, est� resolvido - disse ele, enquanto empurrava o anel no anular direito de Marcela, junto com o solit�rio.
Deu a outra alian�a para ela, que a colocou no dedo dele. Agora s� falta comunicar aos meus pais e aos seus. Come�aremos com a minha m�e. Diremos a ela amanh�, no
almo�o. No dia seguinte, Fl�vio foi buscar Marcela para o almo�o em sua casa, e encontraram Dolores mais sorridente do que o habitual. Minutos antes, Ariane a havia
colocado a par de todo o ocorrido, e ela considerou o resultado satisfat�rio. Marcela j� estava come�ando a se abrir com Ariane e n�o tardaria muito a lhe fazer
as confid�ncias mais �ntimas.
- Boa tarde, dona Dolores - cumprimentou Marcela, estendendo-lhe a m�o.
- Como vai, Marcela?
- Bem, e a senhora?
- Muito bem tamb�m.
- Mam�e, h� algo que gostaria de lhe contar.
- Sim? O que �?
- Mostre a ela, Marcela - ela mostrou o anel e a alian�a a Dolores, e Fl�vio anunciou em tom solene: Marcela e eu decidimos nos casar.
Um raio n�o a teria fuzilado com maior intensidade, e ela retrucou at�nita, n�o conseguindo ocultar o desagrado e a contrariedade:
- Casar? Mas j�? Ainda � cedo...
- N�o �, n�o. J� estou com quase trinta anos, e Marcela tem vinte e sete. N�o somos mais crian�as.
- N�o, claro que n�o. Mas n�o era a isso que me referia. Um casamento n�o se resolve assim, da noite para o dia. Precisamos organizar a festa de noivado, a lista
de convidados, a igreja, o sal�o...
- N�o precisa se preocupar com nada disso, mam�e. Marcela e eu s� queremos uma cerim�nia simples no civil, com um almo�o em fam�lia.
- Mas... e os nossos amigos? E a sociedade?
- Mais tarde, mandaremos a todos um cart�ozinho oferecendo a nossa casa.
- Isso n�o � poss�vel, Fl�vio! Todos j� conhecem a nossa casa.
- Conhecem a sua casa. Mas Marcela e eu pretendemos ter o nosso pr�prio apartamento. Na segunda-feira vou entrar em contato com uma imobili�ria e pedir que nos encontrem
algo.
- Voc�s n�o v�o morar aqui?
- � claro que n�o.
- Mas n�o pode ser! Voc� n�o pode me deixar sozinha. A casa � muito grande, tem espa�o suficiente para voc�s e os filhos que vierem a ter.
- Conhece o ditado, m�e: quem casa quer casa? Ent�o? Vamos nos casar e queremos ter a nossa pr�pria casa, onde Marcela possa fazer tudo do jeitinho dela. N�o �,
meu bem?
Marcela assentiu com um sorriso, o que encheu Dolores de f�ria e indigna��o:
- Mas isso � que n�o! - explodiu. N�o vou permitir que meu �nico filho me envergonhe diante de toda a sociedade. J� n�o basta querer se casar com algu�m fora de
nosso meio? Ainda tem que fazer um casamento de pobre?
- Mam�e, est� ofendendo Marcela - censurou-o, notando o rubor que subia �s faces da mo�a.
- Pouco me importa! N�o vou admitir que meu filho envergonhe o nome da nossa fam�lia por causa de uma pobretona.
Indignada, Marcela se levantou de chofre e come�ou a falar, envergonhada e aflita:
- Lamento se a desagrado, dona Dolores. Fl�vio, eu... quero ir embora. Por favor, leve-me para casa.
Nem esperou que ele respondesse. Apanhou a bolsa, rodou nos calcanhares e saiu, indo aguard�-lo do lado de fora.
- Viu o que voc� fez, mam�e? Insultou minha noiva e fez com que ela fosse embora.
- Ela n�o � sua noiva. Voc�s ainda nem oficializaram o noivado.
- As alian�as em nossos dedos s�o mais do que oficiais. E, se quer saber, � tudo o que me importa. N�o os an�is em si, mas o que eles representam. Marcela aceitou
o anel, aceitou o meu pedido de casamento, e isso j� � mais do que tornar o nosso noivado oficial.
- � claro que ela aceitou! Que mo�a pobre e sem classe n�o aceitaria um diamante daqueles de um homem feito voc�?
- Est� insinuando que Marcela s� quer se casar comigo por causa do meu dinheiro?
- Insinuando, n�o. Estou afirmando.
- Lamento que pense assim, m�e, mas n�o posso fazer nada. Nosso casamento j� est� decidido, e nada do que voc� diga vai me fazer mudar de id�ia. E agora, com licen�a.
Minha noiva est� me esperando l� fora.
Ante o olhar de f�ria de Dolores, Fl�vio voltou as costas e saiu ao encontro de Marcela, que chorava no port�o da frente. Ele a abra�ou por tr�s, e ela enterrou
o rosto no seu peito, dando livre curso �s l�grimas.
- Oh! Fl�vio, ela foi mesquinha, horrorosa, cruel.
- Eu sei, minha querida, e lamento. Devia ter imaginado que algo assim pudesse acontecer.
- E agora? O que vamos fazer?
- Vamos nos casar, ora essa.
- Contra a vontade dela?
- Contra a vontade de todo mundo, se necess�rio. S� o que me importa � voc�. Voc� me ama?
- Voc� sabe que sim.
- Isso para mim j� � o suficiente. Lamento pela minha m�e, mas, ou ela se acostuma, ou vai perder o filho.
- N�o quero que voc�s briguem por minha causa.
- Nem eu, mas n�o posso permitir que ela estrague a minha felicidade por causa dos seus conceitos mesquinhos. Sociedade... Pois sim! N�o estou nem um pouco interessado
nisso.
- Mas Fl�vio, ela pode ter raz�o. Eu n�o sou do seu n�vel.
- Que n�vel? Isso � besteira. N�o me importo com isso, n�o me importo com nada. Amo-a do jeito que voc� �.
- Tem certeza?
- Voc� ainda duvida?
- Seria capaz de aceitar qualquer coisa de mim?
- Qualquer coisa... - ele a olhou ressabiado. Por qu�? Est� me escondendo algo?
- N�o. Mas � que eu passei por tanta coisa!
- Isso n�o me importa. J� disse que o seu passado n�o me interessa. O que voc� fez da sua vida antes de me conhecer n�o � problema meu. Quando a conheci, sabia o
que voc� havia feito e por qu�. N�o � novidade para mim que voc� tenha tido outro homem antes de mim e tenha sido apaixonada por ele, t�o apaixonada a ponto de querer
se matar. Voc� quis morrer por ele, mas agora quer viver por mim. Isso n�o � mais importante?
Ela n�o conseguiu responder. Estava emocionada demais para falar. Fl�vio a amava, n�o tinha d�vidas, e dizia que a aceitava de qualquer jeito, fosse o que fosse
que ela tivesse feito no passado. Contudo, ainda se lembrava do que ele dissera sobre relacionamentos homossexuais e sentiu medo. Ser� que ele ainda pensaria assim
se descobrisse que o ex-namorado por quem ela quase se matara n�o era um homem, mas sim outra mulher? A not�cia que Fl�vio trouxera deixou Dolores espumando de raiva.
N�o podia contar com aquilo. Por mais que imaginasse que Fl�vio e Marcela tinham planos para se casar, n�o imaginou que fosse t�o r�pido. Era preciso agir, e agir
com presteza. Precisava falar com Ariane, pression�-la para que ela descobrisse logo alguma coisa importante no passado de Marcela.
- Voc� precisa fazer algo com urg�ncia! - berrava ela ao telefone. Ou pode esquecer Fl�vio para sempre.
- Mas fazer o qu�? - respondeu Ariane, do outro lado da linha. S� me encontrei com Marcela algumas vezes. Por mais que ela esteja come�ando a confiar em mim, ainda
� muito pouco tempo para confid�ncias mais �ntimas.
- N�o interessa! Voc� disse que ela j� estava come�ando a se abrir, n�o disse?
- Disse, mas...
- Pois ent�o, fa�a-a abrir-se de vez! Obrigue-a a lhe contar todos os seus segredos.
- Est� certo, Dolores, verei o que posso fazer. Mas antes de segunda-feira, n�o poderei agir. Preciso esperar que Fl�vio esteja no trabalho, ou ainda acabarei dando
de cara com ele, o que n�o vai ser bom para ningu�m.
Desligaram. Naquele momento, Ariane n�o podia tomar nenhuma atitude. Tinha que esperar at� segunda-feira, quando ent�o pensaria em algo. Mas o qu�? Pensando melhor,
j� n�o tinha mais certeza se queria mesmo fazer aquilo. Olhou para a m�e, largada no sof�, devorando uma caixa de bombons, e ficou imaginando se era aquele o futuro
que pretendia para si. A m�e for�ara o casamento com o pai, e para qu�? Para terminar deixada de lado, gorda e relaxada, lamentando uma vida inteira sem amor? Ser�
que o exemplo da m�e n�o era suficiente para ela? Por que insistia em repetir o seu erro? N�o valia a pena tramar para destruir o romance de Fl�vio se ele n�o a
amava. Ele podia fazer como seu pai, casando-se com ela por desgosto, assim como o pai se casara com sua m�e para ocultar a frustra��o. Mas amor mesmo, n�o havia.
O pai nunca amara a m�e, assim como Fl�vio tamb�m n�o a amava. E depois, tinha Marcela. Desde que a conhecera, sentira uma forte amizade pela mo�a, que era bem diferente
do que Dolores dizia. Marcela era meiga, gentil e amiga. Podia n�o ser rica, mas n�o tinha nada de vulgar ou interesseira. Ao contr�rio, era uma mo�a inteligente
e agrad�vel, e ela bem podia compreender por que Fl�vio se apaixonara por ela. Marcela sabia conversar, conhecia assuntos ricos em interesse e n�o era f�til. Muito
diferente dela. Contudo, Dolores insistia naquela empreitada. Dolores n�o lhe daria tr�gua e s� ficaria satisfeita quando separasse Marcela de Fl�vio e o fizesse
casar-se com Ariane. Mas ela j� n�o estava bem certa se queria se casar com Fl�vio. Queria algu�m que realmente a amasse, n�o um homem que a desposasse s� por ter
perdido a mulher amada. Quando segunda-feira chegou, Ariane havia decidido que faria a �ltima tentativa com Marcela. Talvez ainda valesse a pena arriscar com Fl�vio,
afinal de contas. Quem sabe ele n�o a amasse e estivesse apenas impressionado com a vida livre que Marcela levava? Pensava nisso enquanto se arrumava, para ir ao
encontro de Marcela na sa�da da escola, quando vozes altercadas entraram pela janela de seu quarto:
- N�o ag�ento mais voc�, Anita! - berrava N�lson. Quero o desquite!
- Voc� n�o pode fazer isso. E os nossos filhos? E os nossos bens?
- N�o quero saber! Os filhos j� est�o grandes, e temos muitos bens. Vamos dividir tudo meio a meio.
- Mas N�lson, eu n�o quero. Eu o amo...
- Mas eu n�o a amo! Se quer saber, nunca a amei! Nem sei por que me casei com voc�.
- Por favor, N�lson, n�o me deixe - choramingava ela. Podemos tentar mais um pouco. Farei o poss�vel para agrad�-lo. Vou emagrecer, me arrumar direito, voc� vai
ver.
- Isso n�o me interessa mais, Anita. Voc� pode se tornar a miss Universo, que eu n�o a quero mais. Acabou, entendeu bem? Acabou!
Ariane ouviu uma porta batendo, e solu�os angustiados chegaram aos seus ouvidos. O pai havia sa�do, e a m�e estava chorando. Ela n�o ag�entava mais aquilo. Era nisso
que dava um casamento sem amor. E era isso que ela desejava para si mesma? N�o. Decididamente, merecia um futuro melhor. Decidira-se novamente por n�o procurar Marcela,
n�o queria mais saber de nada de seu passado que a pudesse comprometer. No entanto, os gritos da m�e continuavam a ferir seus ouvidos, e Ariane n�o conseguiu mais
suportar. Seu lar se havia transformado num inferno, e ela come�ou a chorar, acompanhando o pranto da m�e. Como queria que ela se desvencilhasse do pai e fosse feliz!
Ariane estava muito sentida, at� que ouviu a voz da m�e, que a chamava. Mas ela n�o queria ir. N�o suportava mais as lam�rias da m�e, os gritos do pai. Tudo o que
queria era fugir dali, ir para algum lugar onde ningu�m nunca tivesse ouvido falar nela. Sem responder aos apelos da m�e, Ariane passou a m�o na chave do carro e
correu porta afora. Foi guiando pela rua, a esmo, sem saber bem aonde ir, e, quando deu por si, havia parado o carro em frente � escola em que Marcela dava aulas.
Tinha ido at� ali sem querer e pensou em ir embora quando viu a mo�a se aproximando pelo outro lado, vindo do ponto de �nibus.
- Oi, Adriana - cumprimentou ela. Aconteceu alguma coisa?
- Oh! Marcela!
Ariane come�ou a chorar convulsivamente, e Marcela abriu a porta do carona, sentando-se ao lado dela.
- Foi o Mike? Ele apareceu?
Naquele momento, Ariane quase lhe contou toda a verdade, mas tinha medo da rea��o de Marcela. E depois, sentia-se t�o sozinha que queria algu�m para conversar.
- Ser� que n�s podemos ir a algum lugar?
- Quer ir at� a minha casa?
- Fl�vio n�o est� para chegar?
- N�o. Por qu�?
- Queria conversar a s�s com voc�. Estou t�o triste, Marcela!
- Vamos l� para casa, ent�o. Fa�o-lhe um ch� e conversaremos mais � vontade.
Durante todo o trajeto, Ariane permaneceu em sil�ncio, e Marcela nada disse, achando que ela estava deprimida por algo que houvesse acontecido com Mike. Chegaram
em poucos minutos, e Marcela indicou o sof� para Ariane, indo preparar-lhe um ch�. Voltou alguns instantes depois, estendendo uma x�cara para Ariane, enquanto se
sentava com a outra.
- Pode beber. � camomila, vai acalm�-la.
Com um sorriso de gratid�o, Ariane come�ou a bebericar o ch�, enquanto as l�grimas desciam pelo seu rosto.
- Lamento procurar voc� com os meus problemas - come�ou ela a falar -, mas � que n�o tenho mais ningu�m.
- N�o tem import�ncia. N�o disse que sou sua amiga? - Ariane assentiu. Ent�o, pode falar.
- S�o os meus pais... Vivem brigando, e hoje...
Com a voz carregada de emo��o e ang�stia, Ariane narrou a Marcela tudo sobre o casamento de seus pais e o que vinha acontecendo nos �ltimos tempos, chorando muito
a cada passagem. Marcela ouviu a narrativa em sil�ncio, apenas balan�ando a cabe�a de vez em quando e lan�ando-lhe olhares de simpatia e compreens�o.
- Deve ser muito dif�cil para voc� - come�ou Marcela a dizer, logo ap�s Ariane terminar sua hist�ria.
- N�o � o fato de eles n�o se amarem mais que me incomoda. � que eles n�o se respeitam. Meu pai humilha minha m�e, e ela, por sua vez, se humilha diante dele.
� deprimente.
- J� tentou conversar com eles?
- Com minha m�e, sim. Com meu pai, n�o tenho di�logo.
- Sei que n�o � algo agrad�vel, mas talvez voc� deva dar mais for�a a sua m�e.
- Mais do que eu fa�o? Converso com ela, levo-a para sair, insisto para que ela se arrume. E tudo isso para nada. Ela n�o se anima.
- Acho que voc� deveria lhe mostrar o seu apoio. N�o apenas insistir para que ela fa�a algo que ainda n�o est� pronta para fazer, mas mostrar a ela que, ainda que
ela n�o consiga sair dessa situa��o, voc� estar� ali ao lado dela.
- Como assim?
- N�o me leve a mal, Adriana, mas sua m�e n�o me parece querer, realmente, mudar a apar�ncia. S� que voc� fica insistindo nisso, como se fosse a melhor solu��o para
a crise no seu casamento, quando voc� sabe que n�o � verdade. Isso deve angusti�-la ainda mais, e ela deve se sentir cada vez mais culpada por n�o conseguir mudar.
- Mas eu n�o a culpo de nada!
- Sei que n�o, mas ser� que ela n�o entende assim? Se voc� chega perto dela quando ela est� chateada e vai logo falando da apar�ncia f�sica, ser� que n�o est�, indiretamente,
acusando-a de ter contribu�do para a perda de interesse de seu pai?
- Voc� acha isso?
- Acho que � uma possibilidade. �s vezes, queremos mudar, sabemos que precisamos, mas n�o conseguimos. N�o nos sentimos fortes ou preparados. Ou talvez n�o queiramos
de verdade. Voc� p�e a apar�ncia f�sica em primeiro lugar, quando os sentimentos � que deveriam vir antes. O que importa ser feio ou gordo quando h� amor?
- N�o h� amor entre meus pais.
- Exatamente. E � por isso que seu pai quer o desquite: porque n�o h� amor. N�o porque sua m�e est� gorda nem relaxada. Isso � apenas uma desculpa que ele d� a si
mesmo para justificar que n�o sente nada por ela.
- Acho que voc� tem raz�o, Marcela. N�o h� amor entre eles, e meu pai n�o devia tentar justificar essa aus�ncia de amor com a gordura da minha m�e. Isso n�o � justo.
E, afinal, ela nem est� t�o gorda assim. Est� mais relaxada do que gorda. E depois, onde ficam as outras qualidades? Ela sempre foi boa esposa e boa m�e. Por que
meu pai n�o reconhece isso?
- N�o o culpe, Adriana, porque tamb�m n�o deve ter sido f�cil para ele se casar com ela s� porque a outra o deixou.
- N�o o estou culpando. Vendo por esse �ngulo, acho que ningu�m � culpado de nada.
- Isso mesmo. Acho que o mais importante agora � voc� dar apoio � sua m�e, mas sem acusar o seu pai. Ela me parece mais fr�gil, precisa mais de voc�.
- � isso mesmo o que vou fazer, Marcela. Vou voltar para casa e procurar conversar com mam�e. Talvez consiga ajud�-la.
- Fa�a isso e depois me conte como foi. Vai ver que ela vai se sentir bem melhor, e voc� tamb�m.
Mais calma, Ariane agradeceu e saiu, antes que Marcela se lembrasse de pedir o seu telefone e o seu endere�o. Quando chegou a casa, saiu em busca de Anita, que estava
no quarto, devorando um pacote de biscoitos recheados. Sem dizer nada, Ariane se aproximou e, gentilmente, retirando o saco de biscoitos das m�os da m�e, abra�ou-a
com carinho e falou emocionada:
- Eu estou aqui, m�e, e a amo.
Era a primeira vez que Ariane a abra�ava daquela maneira, e Anita se agarrou a ela, chorando sem parar.
- Oh! Ariane, voc� nem imagina o que aconteceu! Seu pai... seu pai saiu de casa... disse que quer se desquitar.
- Eu sei, m�e, eu ouvi.
- Voc� ouviu?
Ela assentiu:
- Eu estava no quarto quando escutei os dois conversando, ou melhor, gritando.
- Tudo isso porque eu n�o consigo emagrecer!
- N�o pense assim, m�e, porque n�o � verdade. Gordura nada tem a ver com amor.
- Tamb�m pensava desse jeito, at� seu pai se distanciar de mim. Ele esfriou comigo porque estou feia e gorda.
- N�o � verdade. Ele esfriou com voc� porque nunca a amou, porque s� se casou com voc� para preencher o vazio que a outra deixou.
Anita engoliu o choro e tornou entre solu�os:
- Eu n�o devia ter feito aquilo, n�o devia! � nisso que d� se casar sem amor. E eu ainda fui engordar...
- Pare de se acusar, m�e, ningu�m tem culpa. O casamento de voc�s acabou, mas voc� n�o. Voc� ainda � uma mulher jovem, pode refazer a sua vida.
- Quem � que vai querer uma mulher gorda?
- Quem falou que voc� precisa ter algu�m? Voc� n�o precisa lutar consigo mesma para fazer algo que n�o quer. Pode ser feliz assim mesmo do jeito que �.
- Voc� n�o acha mais que seu pai me deixou porque eu estou gorda e feia?
- N�o, m�e, eu n�o acho. Acho que ele a deixou porque n�o a ama, nunca amou. Mas voc� pode amar a si mesma e fazer algo por voc�. Pode levar a sua vida do jeito
que quiser.
- Mas eu n�o consigo emagrecer!
- Quem � que est� falando em emagrecer? Anita ficou confusa. Voc� � que est� com id�ia fixa. Por mim, amo-a do jeito que voc� est�.
- Isso � porque voc� � minha filha.
- Para voc� ver como o amor verdadeiro n�o se incomoda com isso. E, assim como eu, quem a amar tamb�m n�o vai se importar.
- Voc� est� mudada, Ariane. Aconteceu alguma coisa?
- Aconteceu. Refleti em tudo o que voc� me contou e aprendi com o seu erro. N�o quero repetir na minha vida o que voc� fez com a sua.
- Mas o que aconteceu?
- Nada. Descobri que Fl�vio ama outra mulher, n�o a mim, e estou disposta a aceitar esse fato, ainda que isso custe a minha felicidade a seu lado.
- Ariane!
- � verdade, mam�e. Quero ser feliz ao lado de algu�m que me ame, assim como voc� ainda pode encontrar a felicidade ao lado de um homem que tamb�m a ame de verdade.
N�s merecemos isso.
Anita estava deveras impressionada com Ariane. Apesar de sempre terem sido muito ligadas, nunca a filha demonstrara tanta maturidade quanto agora. Ela se abra�ou
a Ariane e beijou suas faces, sentindo inexplic�vel vontade de viver e se sentir viva.
- Quer saber de uma coisa? - ela perguntou, olhando para a filha com uma desconhecida vivacidade no olhar. Vamos sair. N�s duas. E vamos procurar ser felizes.
Ariane n�o respondeu, mas concordou com um aceno de cabe�a, intimamente agradecendo o conselho que Marcela lhe dera. Era o primeiro passo para fazer a m�e acreditar
que tamb�m merecia ser feliz. N�lson respirou aliviado. Aquele casamento de mentiras j� o estava desgastando, e ele n�o estava mais disposto a continuar com aquela
farsa. Deixou as malas no hotel e telefonou para Dolores, pedindo para falar-lhe com urg�ncia. Agora sim, podia assumir a vida ao lado da mulher que realmente amava.
Combinaram de se encontrar em um restaurante discreto e afastado dos lugares freq�entados por conhecidos. Quando Dolores chegou, N�lson j� a estava aguardando, bebendo,
a goles largos, seu segundo copo de u�sque.
- Gra�as a Deus, Dolores! - exclamou ele, assim que ela chegou. Mal podia esperar a hora de lhe contar a not�cia.
- Sua voz parecia grave ao telefone. O que houve? Alguma coisa com Anita?
- Eu me separei de Anita. Sa� de casa hoje cedo e n�o pretendo mais voltar. Resolvi pedir o desquite. Dolores ficou boquiaberta, olhando para ele com ar de assombro.
Voc� ouviu o que eu disse, Dolores? Pedi o desquite. Vamos poder ficar juntos publicamente. N�o � maravilhoso?
O sangue subiu e desceu das faces de Dolores com a rapidez de uma cascata, para depois subir novamente, deixando-a rubra de raiva e indigna��o.
- Voc� ficou louco? - berrou. Est� fora do seu ju�zo?
- Mas... mas... - gaguejou ele - n�o entendo... Pensei que voc� fosse ficar feliz.
- Como posso ficar feliz se voc� quer atirar o meu nome na lama? Acha mesmo que eu vou comprometer o nome da minha fam�lia assumindo um romance com voc�?
- E por que n�o? Estou livre agora, podemos viver juntos.
- Nem pensar! O que as pessoas v�o dizer? Que n�s j� t�nhamos um caso antes do seu desquite.
- As pessoas n�o v�o dizer nada. N�s podemos esperar...
- De jeito nenhum! Todo mundo vai falar que voc� saiu de casa por minha causa.
- E n�o foi?
- Se foi, voc� � muito est�pido! O que o fez pensar que eu assumiria um compromisso p�blico e s�rio com voc�?
- Pensei que voc� me amasse.
- Nunca disse que o amava. Se voc� pensou assim, sinto muito, mas � problema seu.
- Se n�o me ama, por que ficou comigo esses anos todos?
- Pelo mesmo motivo que voc� ficou comigo.
- Eu a amo!
- Ent�o, eu me enganei, e nossos motivos foram diferentes. Pensei que estiv�ssemos juntos por conveni�ncia de ambas as partes.
- Que conveni�ncia?
- Voc� sabe. Sua mulher est� um lixo, e meu marido nunca foi l� grande coisa.
- Como pode dizer isso com tanta frieza, Dolores? N�o sente nada por mim?
Dolores olhou bem dentro de seus olhos e respondeu com voz glacial:
- N�o. Nosso relacionamento acabou. Ningu�m mandou voc� ser burro e sair de casa. De hoje em diante, n�o me procure mais.
Antes mesmo que o gar�om pudesse anotar os pedidos, Dolores passou a m�o na bolsa e saiu apressada. Entrou no autom�vel rapidamente e foi embora, deixando N�lson
no restaurante, segurando o copo de u�sque, tomado de verdadeiro assombro. Dolores n�o podia acreditar que ele havia feito aquilo. Estragara tudo! Ela jamais amara
N�lson, como nunca amara homem algum, nem o marido. N�lson fora bom amante, mas ela j� come�ava a se cansar dele. E depois, ele dera para beber al�m da conta e estava
praticamente falido. Aquela parte, ela n�o desejava. Deixava para a mulher dele aturar os seus problemas. S� o que lhe interessava era o prazer do sexo que ele podia
lhe proporcionar. Mas, se ele come�ava a misturar sexo com sentimento, estava na hora de deix�-lo de lado e arranjar outro. Da parte de N�lson, a �nica coisa que
lhe interessava era Ariane. Dolores at� que gostava de Ariane. Sempre desejara ter uma menina, mas, por complica��es no parto de Fl�vio, ficara impossibilitada de
ter outros filhos. Por isso tamb�m lhe interessava o casamento dos dois. Ariane era uma mo�a tola e faria o que ela desejasse, desde que continuasse vivendo aquela
vida de compras e festas. Se tudo corresse bem, Ariane lhe daria uma neta, a menina que tanto desejara e manteria sob seus cuidados e sob sua vigil�ncia, para fazer
o que ela quisesse. E N�lson aparecia para estragar os seus planos. Ariane n�o se sentiria nada � vontade se Dolores e ele fossem viver juntos. Por mais tola que
a menina fosse, era muito ligada � m�e e n�o aceitaria aquela trai��o. E se Ariane se aborrecesse e lhe virasse as costas, Fl�vio se casaria com Marcela, e seus
planos iriam por �gua abaixo. Era prefer�vel que ela e N�lson n�o se vissem mais. Ele n�o estava mesmo valendo mais a pena. Dolores gostava de sexo, mas homens,
havia muitos pelo mundo, e ela tinha dinheiro. Podia comprar um rapag�o musculoso e de cabe�a vazia, que fizesse sexo e nenhuma pergunta ou observa��o mais complexa.
Depois de uma semana longe de casa, N�lson come�ou a sentir o vazio que a falta da mulher deixara. Ele n�o a amava, mas n�o podia viver s�. Acostumara-se � boa vida
que ela lhe dava e n�o lhe fazia bem o atendimento distante e frio daquele hotel barato. Al�m disso, as despesas come�avam a pesar. O dinheiro estava acabando, e
ele n�o tinha mais de onde tirar. Resolveu voltar para casa. Anita lhe implorara que n�o se fosse e o aceitaria de volta sem questionar, e ainda lhe agradeceria.
Quando tocou a campainha, foi Ariane quem atendeu. Ela estava de sa�da e abriu a porta assim que a campainha soou.
- Papai! - assustou-se ela.
- Perdi minhas chaves... - balbuciou ele, ansioso para passar.
- O que faz aqui?
- Ora, o que fa�o aqui... Eu moro aqui, se esqueceu?
- Que eu saiba, voc� saiu de casa h� uma semana.
- Mas estou de volta. Tive apenas uma briguinha com sua m�e, coisas de casal, mas j� passou. E agora, deixe-me entrar.
Ele tentou entrar, mas Ariane postou o corpo na frente dele e estendeu os bra�os, barrando a sua passagem.
- Lamento, pai, mas aqui n�o � mais a sua casa.
- Que disparate � esse, menina? Trate de me respeitar.
- Se quer ser respeitado, d�-se ao respeito primeiro.
- N�o fale assim comigo, Ariane! Eu n�o admito.
- E eu n�o admito que voc� trate a minha m�e da forma como a tratou.
- Isso � assunto de marido e mulher! Voc� n�o tem nada com isso!
- Tenho. Se a sua mulher � a minha m�e, eu tenho tudo com isso.
- Saia da frente - ordenou ele, tentando empurr�-la para tr�s.
- N�o! Aqui voc� n�o entra. E, se insistir, chamo a pol�cia.
- Onde j� se viu chamar a pol�cia para me impedir de entrar na minha pr�pria casa? - o desdenhou, empurrando-a novamente. Deixe-me passar, j� disse!
- N�o! V� procurar as suas vagabundas e pe�a abrigo a elas.
- Olhe l� como fala comigo, menina.
Nesse momento, Hugo, irm�o mais novo de Ariane, vinha chegando da escola e parou abismado diante daquela cena.
- O que est� acontecendo? - perguntou ele confuso.
- Sua irm� n�o quer me deixar entrar na minha casa - respondeu N�lson com raiva, dirigindo-se a ela: E seu irm�o? Vai deix�-lo na rua tamb�m?
Ariane n�o respondeu e afrouxou os bra�os, para dar passagem ao irm�o, e N�lson, percebendo a manobra, agarrou o filho pelo punho e empurrou Ariane com viol�ncia,
atirando-a de costas ao ch�o. O menino come�ou a chorar assustado, e Anita entrou na sala nessa hora, vindo do banheiro, os cabelos molhados ca�dos sobre o rosto.
- Mas o que � isso? - indagou at�nita, correndo para levantar a filha do ch�o. Ariane, voc� est� bem?
- Estou bem, mam�e - respondeu ela. Apesar de meu pai se comportar como um animal, eu estou bem.
Anita n�o a escutava direito, preocupada que estava em acalmar Hugo. Abra�ou o menino com amor e, virando-se para N�lson, explodiu com f�ria:
- Voc� n�o tem o direito de vir � minha casa maltratar os meus filhos! Olhe s� o que voc� fez!
- Eles s�o meus filhos tamb�m. Ariane � muito atrevida, e Hugo vai acabar se tornando um maricas, de tanto que voc� o mima.
- O que veio fazer aqui, N�lson? J� n�o estava decidido a pedir o desquite?
- Mudei de id�ia. Meu lugar � na minha casa, ao lado da minha mulher e dos meus filhos.
- Mas que cinismo! - disparou Ariane. Desde quando voc� se interessou em ficar conosco?
- V� para o seu quarto, Ariane! - ordenou o pai. E leve seu irm�o. Isso n�o � assunto de crian�as.
- Eu n�o sou mais crian�a! N�s tamb�m moramos nessa casa e temos o direito de saber o que acontece aqui.
- Saiam, vamos!
- N�o vamos sair.
N�lson avan�ou para ela, e Anita se colocou entre os dois, ainda com Hugo agarrado a sua cintura:
- Voc� n�o vai bater na minha filha! N�o vou permitir!
Ele se conteve e retrocedeu dois passos, mas continuava disposto a ficar e esbravejou:
- O que � isso, afinal? Um compl� dentro da minha pr�pria casa?
- Esta n�o � mais a sua casa - tornou Anita. Quando voc� escolheu nos deixar, deixou tamb�m o seu lar.
- Vai me impedir de ficar?
- Vou.
- Voc� n�o pode fazer isso. Eu tenho meus direitos.
- Pois ent�o, v� busc�-los na Justi�a!
A atitude de Anita, em seguida, foi inesperada. Desvencilhou-se do filho, fazendo sinal para que Ariane o acolhesse, e saiu empurrando N�lson, que foi caminhando
para tr�s a cada cutuc�o que ela lhe dava. Tinha vontade de esbofete�-la, mas a presen�a dos filhos o intimidou, e ele foi-se deixando enxotar, at� que ela o empurrou
porta afora.
- Anita... - ele ainda tentou suplicar.
Anita n�o respondeu. Empurrou-o com for�a, o que o fez tombar sobre as malas, desabando no ch�o tal qual Ariane, e Anita bateu a porta em sua cara. Durante alguns
segundos, todos sustiveram a respira��o, esperando que ele esmurrasse a porta, mas nada aconteceu. Ferido em seu orgulho e espumando de �dio, N�lson apanhou as malas
e foi embora. Ouviram o barulho da porta do elevador se fechando, e Ariane correu para a janela. Pouco depois, o pai apareceu na portaria, seguindo pela rua com
as malas.
- Ele foi embora! - espantou-se ela. Mam�e, voc� o colocou para fora!
- Coloquei - confirmou Anita, mal acreditando que havia feito aquilo. Posso suportar tudo de um homem, menos que maltrate meus filhos.
Os filhos correram para ela e a abra�aram emocionados, Hugo ainda chorando assustado. Anita o abra�ou fortemente, beijou sua cabe�a e o levou para o quarto, esperando
at� que se acalmasse. Sentou-se na cama e conversou com ele longamente, at� que as horas foram avan�ando, e ele acabou se distraindo com um epis�dio antigo de Viagem
ao Fundo do Mar. Anita tornou a abra��-lo e o beijou v�rias vezes, repetindo, a todo instante, o quanto o amava. Certificando-se de que ele havia realmente se acalmado
e tinha a aten��o presa na TV, Anita se levantou e foi procurar Ariane.
- Como ele est�? - a indagou, correndo para a m�e.
- Est� mais calmo. Ficou assustado, mas agora est� melhor.
- Voc� foi admir�vel, mam�e! - elogiou Ariane. Teve muita coragem e determina��o.
- N�o posso permitir que N�lson trate os meus filhos desse jeito. Isso n�o!
- Espero que voc� mantenha essa decis�o de n�o o aceitar de volta.
- Quer que lhe diga mesmo, Ariane? - ela assentiu. Eu gostei de ter tomado a atitude que tomei. Serviu para me mostrar que sou capaz de cuidar de mim e dos meus
filhos. N�o preciso me submeter a todo tipo de humilha��o s� para ter um marido ao meu lado. Foi seu pai quem escolheu nos deixar, n�o eu. Mas eu n�o posso ficar
aqui sentada, � espera que ele volte, para aceit�-lo seja de que maneira for.
- Por que acha que ele voltou?
- Quem � que vai saber? Talvez a amante n�o o queira, afinal.
- Voc� acha que ele tem uma amante?
- Ele diz que n�o, mas eu tenho quase certeza. Ele nunca mais me procurou, parece at� que tem nojo de mim. Homem, quando fica assim com a mulher em casa, � porque
tem outra na rua.
- E isso n�o a incomoda?
- J� incomodou. Agora que estou decidida a n�o aceitar mais o seu pai de volta, ele pode fazer o que quiser, que eu n�o me importo. Quero viver a minha vida em paz.
- Assim � que se fala, mam�e. Voc� ainda pode ser muito feliz.
- Gorda desse jeito? N�o acredito.
- L� vem voc� de novo com essa hist�ria de que est� gorda.
- E n�o estou?
- E da�? Voc� pode emagrecer, se quiser. Se n�o quiser, n�o faz mal. Se aceite desse jeito e voc� vai ser muito mais feliz. Se algu�m tiver que amar voc�, vai am�-la
de qualquer maneira.
- Voc� est� estranha, Ariane. Muito mudada.
- Estou aprendendo com a vida, m�e. Conheci uma mo�a que est� me ensinando outros valores.
- Que mo�a � essa?
- Voc� n�o conhece.
- Ela � do nosso meio?
- N�o. Por qu�? Tem preconceito?
- De jeito nenhum! Seu pai � que se prende a essas bobagens.
- Ela � professora. Um dia, apresento-a a voc�.
A conversa tomou outro rumo, e Anita percebeu que respirava mais aliviada. A aus�ncia de N�lson at� que estava lhe fazendo bem. Quando ele estava em casa, ela vivia
sobressaltada, com medo de que ele partisse, e se humilhava constantemente. Ele a destratava, n�o lhe tinha respeito e n�o a desejava. O dinheiro que dava em casa
tamb�m come�ou a diminuir, e ela foi obrigada a cortar algumas despesas. E agora ele come�ava a maltratar os filhos. Aquilo fora a gota d'�gua. Ela podia suportar
qualquer coisa, menos que maltratassem seus filhos. Olhando o acontecido por um �ngulo mais otimista, Anita achou que at� que o resultado fora positivo. Ela tomou
consci�ncia do tipo de homem em que N�lson se transformara e revolveu nela o amor por si mesma. Atrav�s dos filhos, Anita percebeu que precisava se amar e se valorizar
como mulher e como pessoa, para inclusive dar-lhes um exemplo de dignidade e respeito. E o exemplo de mulher que queria ser para os filhos era bem diferente do modelo
de m�e insegura e apagada que fora at� aquele momento. Ela podia estar feia e gorda, mas era uma pessoa decente e honrada, e ningu�m no mundo tinha o direito de
lhe tirar a dignidade. Queria mostrar isso aos filhos, para que eles tamb�m se impusessem no mundo como pessoas dignas e conscientes do seu valor, para que ningu�m
os humilhasse ou os desrespeitasse. A partir daquele momento, preocupar-se-ia em dar-lhes esse exemplo. Mais um almo�o na casa de Dolores, e Marcela acabaria por
enlouquecer. Dolores j� demonstrara claramente a opini�o que tinha a seu respeito, e ela n�o pretendia se sujeitar aos rompantes da futura sogra. O noivo que a perdoasse,
mas ela n�o tinha est�mago para aquilo. Marcela saiu da escola no hor�rio de sempre e, como de costume, deu uma olhada para ver se o carro de Adriana estava l�,
mas ela n�o aparecera. Fazia alguns dias que n�o vinha, e ela estava preocupada. Da �ltima vez que se tinham visto, ela estava aflita com o casamento dos pais e
sa�ra de sua casa disposta a ajudar a m�e. Ser� que conseguira? Marcela tencionava pedir o seu telefone, mas acabara esquecendo e agora n�o tinha como obter not�cias.
Quando Marcela se aproximou de casa, estranhou um carro parado diante da sua porta. Era um carro muito elegante para aquela vizinhan�a, e ela n�o sabia de ningu�m
que possu�sse um modelo daqueles. Ao se aproximar ainda mais, a porta se abriu subitamente, e Dolores saltou, fitando Marcela com olhar mordaz.
- Dona Dolores! - exclamou Marcela, realmente espantada. Que surpresa...
- Como vai, Marcela? - a indagou, olhando com ar de proposital desagrado para o edif�cio em que ela vivia. � aqui que voc� mora?
- Sim, senhora.
- N�o vai me convidar para entrar?
- Sim, claro.
A visita de Dolores n�o agradara Marcela, mas o que ela podia fazer? N�o podia ser grosseira com a futura sogra e n�o teve outro rem�dio, sen�o abrir a porta e deixar
que ela passasse. Dolores torceu o nariz e entrou no pr�dio, fingindo que disfar�ava a repulsa. Subiu os dois lances de escada at� o apartamento de Marcela, n�o
sem antes fazer um coment�rio desagrad�vel sobre a falta que faziam os elevadores. Marcela apenas assentiu, at� que chegaram ao segundo andar, e abriu a porta para
Dolores passar. O apartamento, apesar de pequeno, estava muito bem cuidado, e Dolores lamentou n�o poder chamar Marcela de relaxada. Marcela indicou o sof�, e Dolores
se sentou e sorriu de um jeito afetado, esfor�ando-se para que a mo�a conseguisse ler, em seus olhares estudados, a desaprova��o que fazia a sua pessoa.
- Muito bem - falou Dolores, utilizando um tom de voz excessivamente alto para uma simples visita. Aqui estamos.
Marcela sorriu sem jeito e retrucou pouco � vontade:
- A senhora gostaria de beber alguma coisa? Uma �gua, um caf�?
- Gostaria mesmo de um c�lice de xerez, mas n�o creio que voc� tenha algum por aqui.
As faces de Marcela enrubesceram at� a raiz do cabelo, e ela concordou constrangida:
- Desculpe-me, dona Dolores, mas eu n�o bebo.
- � claro que n�o - ela ficou tamborilando com os dedos no bra�o do sof�, estudando o ambiente com olhar cr�tico, at� que encarou Marcela de frente e disparou:
- Muito bem. Vou ser sincera com voc�, Marcela. Dei-me o trabalho de vir at� aqui procur�-la porque estou muito preocupada com o futuro do meu filho. Voc� me entende,
n�o �?
- N�o, n�o entendo - respondeu Marcela, sustentando o seu olhar e lutando para n�o demonstrar o p�nico que a invadia.
- Ora, vamos, menina, n�o precisa se fazer de tola comigo. Bem sei o quanto � esperta.
- Lamento, dona Dolores, mas n�o sei do que a senhora est� falando. Sou uma mo�a simples.
- Muito simples, para dizer a verdade. N�o sei se tanta simplicidade assim faria bem ao meu Fl�vio.
- N�o estou entendendo...
- N�o est�? Pois eu acho que me entendeu muito bem.
- Por que a senhora n�o fala com mais clareza? N�o compreendo esse jogo de adivinhas.
- Tem raz�o, Marcela. N�o sou mesmo mulher de fazer rodeios. A verdade � que tenho minhas d�vidas se Fl�vio fez uma boa escolha. N�o sei se voc� � a mo�a certa para
ele. N�o que eu tenha alguma coisa contra voc�, n�o � nada disso. Mas � que eu a acho... um pouco simpl�ria demais. Meu Fl�vio � um homem da alta sociedade, e n�o
estou bem certa se voc� conseguiria acompanhar o seu estilo.
- A senhora est� querendo dizer que n�o me aprova como esposa do seu filho. � isso, n�o �?
- N�o � que n�o aprove. � que, no fundo, me preocupo com voc�. Como se sentir� quando tiver que comparecer a festas e recep��es, com esse seu jeito simples de mo�a
do interior? N�o acha que vai se sentir envergonhada?
Cada vez mais ruborizada, Marcela ainda tentou contra-argumentar:
- Posso n�o ter tido uma educa��o esmerada, mas tamb�m n�o sou mal-educada. Sou professora e tenho meus princ�pios. Isso n�o conta para nada?
- Que princ�pios voc� tem? - rebateu Dolores de imediato. Conte-me que princ�pios s�o esses, para que eu possa conhec�-la melhor.
- Sou uma pessoa decente, dona Dolores! - exaltou-se ela, levantando-se de chofre. A senhora, nem ningu�m, tem o que dizer de mim.
- Acalme-se, menina, e sente-se. N�o vim aqui para acus�-la. Quero apenas lhe mostrar onde voc� est� se metendo.
- N�o creio que esteja me metendo em lugar nenhum. Fl�vio e eu nos amamos, e � s� isso que importa.
- Ser� que o amor de voc�s vai ser forte o suficiente para enfrentar as diferen�as sociais?
- A senhora fala como se eu fosse uma mulher vulgar e grosseira. Posso n�o ter tido ber�o, mas creio que meus pais me educaram muito bem.
- Por falar em seus pais, por que eles n�o v�m v�-la?
- J� falei sobre isso. Meus pais est�o ficando velhos e t�m medo do Rio.
- Eles n�o v�m para o casamento?
- Na �poca certa, irei busc�-los. Mas n�o creio que a senhora tenha vindo at� aqui para falar de meus pais.
- N�o. Como disse, gostaria de conhecer os seus princ�pios. Soube que Fl�vio a conheceu no hospital.
- Foi.
- Porque voc� tinha tentado o suic�dio.
- Como � que a senhora sabe disso? - espantou-se. Ele lhe contou?
Dolores apenas sorriu. Quem lhe dera a informa��o fora Ariane, que soubera pela pr�pria Marcela.
- Por que voc� tentou se matar? Alguma decep��o amorosa?
- Eu... sinto muito, dona Dolores, mas n�o gosto de falar sobre isso. O que aconteceu no passado ficou enterrado no passado.
- � mesmo? E o que aconteceu no passado?
- Nada, j� disse. N�o quero ser grosseira, mas isso � problema meu. Nem Fl�vio me faz essas perguntas.
- Fl�vio � muito ing�nuo, mas eu gostaria de saber.
- Por qu�?
- Curiosidade de sogra, talvez. Ou, quem sabe, n�o poderia ajud�-la? Voc� fez algum aborto?
- N�o!
- Mas voc� e Fl�vio j�... Voc� sabe.
- Isso tamb�m n�o lhe diz respeito - retorquiu ela, o rosto parecendo em chamas.
- Meu filho n�o liga para essas coisas. Nem eu, na verdade.
- Se n�o liga, por que est� me crivando de perguntas? Ser� que n�o � suficiente a senhora saber que Fl�vio e eu nos amamos?
- Eu acredito nisso, mas gostaria de conhec�-la melhor. Por que voc� � t�o relutante em falar do passado?
- N�o sou relutante. O passado acabou, n�o interessa mais.
- Est� escondendo alguma coisa, Marcela?
- N�o tenho nada a esconder. Sou uma mo�a simples que, num momento de desespero, atentou contra a pr�pria vida, mas gra�as a Deus n�o consegui. Seu filho me salvou
a tempo.
- � por isso que ele se apegou tanto a voc�. Sente-se respons�vel.
- N�o � nada disso! Fl�vio n�o � respons�vel por mim. Ele salvou a minha vida, mas eu sou adulta e capaz de responder por meus atos. O que aconteceu foi que n�s
nos apaixonamos. Por que � t�o dif�cil para a senhora aceitar isso?
Dolores n�o respondeu, mas ficou olhando para ela com aquele sorriso ir�nico de quem est� se divertindo com a situa��o. Estava claro que Marcela escondia algo, mas
ela n�o conseguia atinar o que fosse. J� ia fazer outra das suas perguntas maldosas quando um som insistente de buzina entrou pela janela. Seria Fl�vio? Ao se aproximar
da janela, Marcela suspirou aliviada. Adriana estava l� embaixo buzinando, e ela acenou para a mo�a, fazendo sinal para que subisse. Ariane saltou e trancou o carro,
entrando no edif�cio, e Marcela foi abrir-lhe a porta.
- Gra�as a Deus voc� chegou - sussurrou ela, assim que Ariane surgiu.
- Voc� nem vai imaginar o que aconteceu, Marcela! - falou ela exaltada, sem notar o ar de al�vio da outra. Minha m�e deu um basta na situa��o. Colocou meu pai para
fora e...
Calou-se abismada, ao dar de cara com Dolores, que olhava de uma para outra com um ar entre divertido e zangado.
- Esta � dona Dolores, Adriana. M�e de Fl�vio.
- Muito prazer - cumprimentou Dolores, levantando-se e estendendo a m�o para Ariane.
- Dona Dolores, esta � minha amiga Adriana.
- Ol�... - respondeu Ariane, l�vida de espanto e surpresa.
- Sente-se bem, minha filha? - continuou Dolores em tom zombeteiro. Voc� ficou p�lida de repente.
- Estou bem... - afirmou Ariane, apoiando-se em uma cadeira para n�o cair.
- Bem - fez Dolores, levantando-se e apanhando a bolsa -, acho que sua amiga veio aqui para conversar com voc�. Parecia mesmo muito entusiasmada para lhe contar
algo, e eu n�o quero atrapalhar. At� logo.
- At� logo - repetiu Marcela, que n�o esperava essa atitude de Dolores.
- Ah! - exclamou Dolores, virando-se para Ariane. Seja o que for que tenha vindo conversar com sua amiga, espero que n�o seja nada que n�o se possa resolver.
- Obrigada - falou Marcela, porque Ariane n�o se mexia nem piscava.
Em seguida, Dolores saiu, caminhando para seu carro a passos largos. Ver Ariane ali naquela hora n�o foi tanta surpresa. Fazia parte de seu plano aproximar-se de
Marcela. O que Dolores realmente estranhou foi o entusiasmo, a alegria com que ela se dirigira � outra. Havia um tom de amizade e confian�a nas suas palavras, o
que deixou Dolores desconfiada e preocupada. Seria poss�vel que Ariane tivesse tomado amizade pela tonta da Marcela? Aquilo, al�m de imposs�vel, era um desastre.
Em seu apartamento, Marcela suspirou aliviada, assistindo, pela janela, ao carro de Dolores sumir no fim da rua. A seu lado, Ariane parecia petrificada. No af� de
contar a Marcela �s novidades de sua casa, nem percebera que o carro parado na frente do seu era o de Dolores.
- Ufa! - suspirou Marcela. At� que enfim, ela se foi.
- O que ela veio fazer aqui? - perguntou Ariane, sinceramente interessada.
- Essa mulher � terr�vel! N�o aprova o meu casamento com Fl�vio.
- Por que n�o?
- Porque eu n�o perten�o � alta sociedade.
- Mas que besteira...
- Voc� pensa assim. J� esteve apaixonada por um rapaz pobre e entende essas coisas do cora��o. Mas dona Dolores queria uma princesa encantada para o filho, e eu
n�o fa�o esse tipo.
- Mas o que ela queria?
- Veio me fazer perguntas... perguntas sobre o meu passado. Perguntou da tentativa de suic�dio. Como � que ela soube disso? - Ariane engoliu em seco, sinceramente
arrependida de ter aceitado aquele papel de espi�. Ser� que foi o Fl�vio quem contou? Mas por que ele faria isso, conhecendo a m�e que tem?
- Vai ver que n�o foi ele.
- Mas quem foi ent�o? Ningu�m mais sabia disso. S� ele e Luciana... Marcela parou de falar abruptamente e olhou para Ariane, que havia escutado o que ela dissera.
- Quem � Luciana?
- Uma amiga.
- Voc� nunca me falou sobre ela.
- � que... faz tempo que n�o a vejo. Ela... ela... se mudou. � isso, Luciana se mudou do Rio. N�o sei mais onde mora.
Marcela come�ou a andar de um lado para o outro nervosamente, apavorada porque havia falado demais.
- Por que voc� ficou assim de repente? - tornou Ariane desconfiada.
- Assim como?
- Nervosa, aflita.
- N�o estou nervosa. Ou melhor, estou. � que dona Dolores me tira do s�rio.
- N�o foi por causa dessa Luciana?
- De Luciana? � claro que n�o. Imagine... N�o vejo Luciana h� tanto tempo!
Era vis�vel que ela estava mentindo, mas Ariane achou melhor n�o perguntar mais nada. O nome Luciana mexera demais com Marcela, e tudo indicava que havia algo mais
naquela hist�ria. Quem seria aquela Luciana? Onde estaria? E que import�ncia tivera na vida de Marcela? Essas eram as perguntas que Ariane se fazia, e uma curiosidade
m�rbida foi-se apossando dela. Ser� que ela e a tal de Luciana haviam sido comparsas em alguma atividade il�cita ou imoral? Ser� que se drogavam juntas? Ou ser�
que foram companheiras na prostitui��o? Por mais que Ariane estivesse um pouco arrependida de iniciar aquele jogo de espionagem e trai��o, a curiosidade foi-se agu�ando,
e ela se pegou louca de vontade de conhecer mais sobre aquela Luciana. Talvez Dolores tivesse raz�o afinal, e houvesse alguma hist�ria escabrosa no passado de Marcela.
Ser� que valia a pena descobri-la para us�-la contra a mo�a? Ariane se afei�oara a Marcela, mas aquela n�o era uma amizade verdadeira. N�o podia ser. Ariane precisava
deixar de lado o sentimentalismo e se concentrar em seu objetivo. S� assim conseguiria reconquistar Fl�vio. Era s�bado, Luciana havia acabado de chegar da praia
em companhia de Cec�lia. Estava tomando banho, enquanto a outra preparava o almo�o, at� que o telefone come�ou a tocar com insist�ncia. Cec�lia deu uma espiada na
dire��o do banheiro, mas a porta fechada e a �gua do chuveiro indicavam que Luciana n�o estava ouvindo. Cec�lia largou a colher de pau dentro da panela e correu
a atender:
- Al�?
- Luciana? - falou a voz do outro lado.
- N�o. Luciana est� no banho. Quer deixar recado? - sil�ncio. Se n�o, pode ligar mais tarde.
- Quem �, Cec�lia? - perguntou Luciana, que acabara de sair do banheiro.
- N�o sei. Uma mo�a.
Luciana estendeu a m�o, e Cec�lia colocou nela o fone, voltando para a cozinha. Luciana esperou at� que ela sa�sse para atender:
- Al�? Quem fala?
- Sou eu, Lu, a Marcela.
- Ah! Oi, Marcela, tudo bem? Como conseguiu o meu telefone?
- Peguei com a Ma�sa. Espero que n�o se importe.
- Voc� sabe que n�o me importo. Eu o teria dado a voc�, se tivesse pedido.
- Obrigada.
- Diga-me l�! O que a fez ligar para mim?
- N�o sei... - pausa. Estou confusa... com medo...
- De qu�?
- Tenho medo, Luciana. Sinto que vou perder o Fl�vio.
Ela estava chorando, e Luciana tentou tranq�iliz�-la:
- Tenha calma, Marcela. O que foi que aconteceu?
- Ser� que n�o podemos conversar?
- Tem certeza de que � isso que voc� quer?
- Voc� disse que era minha amiga!
- E sou. Mas � voc� quem tem vergonha da nossa amizade.
- Oh! Luciana, estou t�o confusa! Diga-me o que fazer. Voc� sempre soube o que fazer.
- Acho melhor termos essa conversa em outro lugar. Por telefone, n�o d�.
- Ser� que posso ir � sua casa?
- Hum... N�o sei se seria bom.
- Voc� est� com algu�m, n�o est�? Foi quem atendeu ao telefone.
- Sim, tenho outra pessoa e n�o sei se seria boa ideia conversarmos aqui.
- Ela pode n�o gostar, n�o � mesmo? N�o quero atrapalhar a sua vida, Luciana. Se vou lhe trazer problemas, deixe para l�.
- N�o, espere. Cec�lia � s� uma amiga. Deu um riso maroto e emendou num sussurro: Um pouco mais do que uma amiga, mas bem menos do que voc�.
De onde estava, Cec�lia n�o perdia uma s� palavra do que Luciana dizia. Fingira que voltara para a cozinha e se pusera a escutar no corredor, fora das vistas da
outra. Amiga, n�o �? E menos do que Marcela? O que ela queria com Luciana? Pelo tom de sua voz no come�o, e pelo jeito de Luciana, era algo s�rio. Cec�lia s� esperava
que ela n�o representasse nenhum perigo. De jeito nenhum, poderia permitir isso. Alguns instantes depois, Luciana desligou o telefone, e Cec�lia correu para a cozinha,
apanhou a colher de pau e fingiu que mexia a panela. Passaram-se mais alguns minutos, at� que Luciana apareceu toda arrumada, pronta para sair.
- Quem era? - indagou Cec�lia, de forma estudadamente desinteressada.
- Uma amiga.
- Marcela? - Luciana aquiesceu. O que ela queria?
- Falar comigo.
- N�o posso saber o que �?
- � assunto particular, Cec�lia. N�o lhe diz respeito.
- Voc� vai sair? - a retrucou, mordendo os l�bios.
- Vou almo�ar com ela.
- E o almo�o que estou preparando?
- Guarde para o jantar. Poderemos comer juntas.
- No jantar, n�o estarei mais aqui.
- Voc� � quem sabe.
O pretenso ci�me de Cec�lia era o que irritava Luciana. Ela queria ter a posse de sua vida, e Luciana n�o gostava de pessoas possessivas. Cec�lia j� a estava cansando
com suas cobran�as e o seu apego, e j� era hora de deixarem de se ver.
- Sabe de uma coisa, Cec�lia? - prosseguiu Luciana. Acho melhor que voc� n�o esteja mesmo aqui na hora do jantar.
- Como assim?
- Creio que j� � hora de terminarmos esse relacionamento. Foi muito bom, mas acabou. Quero de volta a minha liberdade.
- Voc� n�o pode estar falando s�rio! � por causa dessa Marcela, n�o �? Voc� ainda gosta dela.
- Marcela n�o tem nada a ver com isso. O que sinto por ela � apenas amizade.
- Ela vai lhe pedir para voltar, e voc� vai aceitar. � por isso que n�o me quer mais.
- Como lhe disse, Marcela agora namora outra pessoa, e eu n�o a amo mais. Gosto dela como uma irm�, s� isso.
- Mas quer terminar comigo s� porque ela telefonou.
- Engano seu. Vou sair para conversar com ela, sim, mas estou terminando com voc� porque j� estou cansada das suas cobran�as. Desde que nos conhecemos, eu lhe disse
que n�o gostava de ficar presa a ningu�m, mas voc� parece se esquecer disso �s vezes.
- Isso � porque eu a amo!
- N�o sei se acredito nesse seu amor. Acho que voc� est� empolgada comigo e pensa que me ama, mas n�o ama. Voc� ainda � jovem e vai arranjar outra pessoa em breve.
- Voc� n�o pode fazer isso comigo, Luciana. N�o � justo.
- N�o queria que as coisas fossem assim, mas n�o posso mentir ou fingir s� para agradar voc�.
- Voc� n�o tem mais interesse por mim?
- N�o. Lamento, Cec�lia, mas � assim que eu sou.
- N�o pode! N�o aceito!
- Eu lhe avisei quando come�amos e voc� concordou. Disse que tamb�m n�o queria compromisso.
- Mas era porque n�s mal nos conhec�amos. Com o tempo, fui-me apegando a voc� e hoje a amo de verdade. � imposs�vel que voc� n�o sinta nada por mim.
- Sinto apenas amizade.
- Amizade � um sin�nimo bonito para desinteresse.
- N�o � verdade. Interesso-me por voc�, pelo seu futuro, o seu bem-estar. Vou continuar pagando seu cursinho pr�-vestibular e voc� vai continuar trabalhando no consult�rio.
Nada vai mudar.
- S� n�o dormiremos mais juntas.
- S� isso.
- S� isso? Voc� acha que � pouco?
- N�o sei se � muito ou pouco, mas � assim que vai ser.
- Por favor, Luciana, n�o fa�a isso comigo! - ela come�ou a chorar. Vou sentir muito a sua falta.
- Voc� se acostuma.
- Por que est� sendo t�o fria e cruel?
- Estou sendo apenas verdadeira. Voc� n�o ia querer estar ao lado de uma pessoa que diz que a ama s� da boca para fora, ia?
- N�o...
- Pois ent�o? Eu n�o a amo, Cec�lia, e lamento se voc� pensa me amar. N�o d� mais para continuarmos, e nosso relacionamento termina agora. Vou sair e, quando voltar,
espero n�o a encontrar mais aqui.
- Est� me mandando embora?
- N�o, em absoluto! Estou apenas tentando fazer as coisas da forma mais clara poss�vel.
- Vai voltar com Marcela, n�o vai?
- Marcela � s� minha amiga, j� disse. Vivemos juntas por muito tempo, mas agora somos s� amigas. Por favor, n�o me fa�a mais repetir isso.
Cec�lia se calou por um momento, engolindo o �dio que, naquele momento, jorrava aos borbot�es de seu cora��o.
- Por favor, Luciana...
- N�o! Por favor, pe�o eu. N�o rasteje nem se humilhe. � repugnante.
Repugnante? Aquilo j� era demais. Luciana a estava rejeitando e humilhando, o que era muito mais grave. E tudo por causa daquela Marcela. Se perdesse a fonte de
renda de Luciana, ela ia ver s�. Luciana bateu a porta e deu um suspiro doloroso. N�o gostava de magoar ningu�m, muito menos Cec�lia, que fora sua amante durante
muito tempo. Mas era melhor terminar tudo antes que Cec�lia se apaixonasse verdadeiramente por ela, o que n�o acreditava que j� houvesse acontecido. Ela fora dura,
mas tinha um prop�sito: s� assim conseguiria fazer com que Cec�lia entendesse e aceitasse que seu romance chegara ao fim. Saiu do edif�cio e deixou a lembran�a de
Cec�lia para tr�s, concentrada no telefonema de Marcela. N�o precisava nem encontr�-la para saber que o problema era ela, o envolvimento que tiveram no passado.
Chegou ao restaurante cinco minutos adiantada, e Marcela j� a estava aguardando, olhando o rel�gio a cada segundo.
- Oi, Marcela - cumprimentou Luciana, puxando uma cadeira para se sentar.
- Oh! Luciana, estou t�o aflita! N�o sei mais o que fazer. Estou me enfurnando cada vez mais numa mentira.
- O que foi que houve dessa vez?
- Fiz amizade com uma mo�a... Ela me perguntou de voc�, e eu inventei que voc� havia se mudado. Mas isso foi porque dona Dolores foi me procurar, me fazendo perguntas...
- Ei, ei! Calma. Uma coisa de cada vez. N�o estou entendendo nada.
Marcela parou de falar e respirou fundo, sentindo as l�grimas umedecerem seus olhos. Tomou f�lego algumas vezes, assoou o nariz e come�ou a contar tudo o que vinha
acontecendo desde que ela conhecera Fl�vio.
- � isso, Luciana - finalizou. N�o sei mais o que fazer. Estou entrando cada vez mais fundo nessa mentira e n�o vejo como retornar.
- Bom, vamos por partes. Essa tal de Adriana � uma amiga recente e n�o conhece o Fl�vio, logo, n�o pode prejudicar voc�. Quanto � m�e dele, acho que voc� n�o lhe
deve satisfa��o nenhuma. O problema � o Fl�vio mesmo. Voc� devia contar para ele.
- Mas eu n�o posso! Ele j� externou a sua opini�o sobre l�sbicas. N�o vai me aceitar!
- Voc� n�o � l�sbica.
- Mas j� fui!
- Olhe, Marcela, eu nem sei se algu�m deixa de ser l�sbica. Essas coisas n�o s�o assim, a gente n�o escolhe o que vai ser de repente. � a natureza. O que eu acho
mesmo � que voc� � bissexual e agora se apaixonou por Fl�vio...
- Eu o amo, Luciana! Paix�o � pouco.
- Tudo bem, voc� o ama. Mais um motivo para lhe falar a verdade.
- Mas ele vai romper comigo, sei que vai.
- N�o acredito que ele fa�a isso. Mas, se fizer, n�o � melhor do que construir a vida em cima de uma mentira?
- Ele n�o precisa saber!
- Ele vai acabar descobrindo, pode crer.
- S� se voc� contar a ele.
- �s vezes, essa � a vontade que d�. S� assim, voc� acaba com essa agonia.
- Nem pensar! Voc� n�o tem o direito.
- Sei que n�o, mas tamb�m n�o me agrada ver voc� nesse estado. E falar assim do nosso relacionamento depois de todos esses anos, Marcela, francamente... Eu esperava
um pouco mais de considera��o da sua parte.
- Voc� est� chateada comigo?
- N�o � que esteja chateada, mas d�i ouvir voc� falar de mim como se eu fosse uma aberra��o. Pense bem: como voc� se sentiria se eu lhe dissesse que tenho vergonha
de voc�?
- Mas eu n�o tenho vergonha de voc�!
- Tem, sim. De mim e de voc�. Tudo seria muito mais f�cil se voc� chegasse para o Fl�vio e, naturalmente, lhe contasse tudo. Ele pode ficar chocado no come�o, mas
vai entender. E, se n�o entender, � porque n�o ama voc� tanto assim.
- N�o posso, Luciana. Sei que voc� est� certa, mas n�o me pe�a para fazer isso.
- Quer que eu fa�a por voc�?
- Como assim?
- Quer que eu conte a ele? N�o tenho problema nenhum quanto a isso.
- Deus me livre! A� mesmo � que ele vai me odiar.
- Acho que voc� est� fazendo um julgamento precipitado sobre seu noivo. Afinal, o que n�s fizemos n�o foi t�o grave assim.
- Pode n�o ter sido para voc�, mas para ele e a sociedade foi, sim.
- Ele n�o pensa que voc� tentou se suicidar por causa de um rapaz?
- Pensa.
- E n�o a aceitou mesmo assim, mesmo imaginando que voc� j� n�o era mais virgem porque havia transado com outro?
- Mas � diferente...
- N�o �, n�o. Basta voc� dizer que ele est� certo em quase tudo. O �nico ponto em que ele errou foi no sexo do seu namorado. N�o era namorado, era namorada...
- Isso n�o � hora para brincadeiras, Luciana! O assunto � s�rio.
- Tem raz�o, desculpe-me. Ent�o me diga: o que voc� quer que eu fa�a?
- S� quero que me ajude. Se algu�m vier lhe perguntar alguma coisa, diga que fomos apenas amigas.
- Voc� quer que eu minta?
- Por favor, Luciana, eu estou implorando.
- Voc� sabe que eu n�o gosto de mentiras. Nem sei mentir.
- � s� desta vez.
- Que vez? Ningu�m nem me conhece!
- Eu sei, mas o meu cora��o est� pequenininho. Sinto que algo vai acontecer.
- Bobagem sua.
- Voc� n�o vai contar nada a ele, vai?
- J� disse que n�o.
- Mas h� pouco voc� falou que tinha vontade...
- Mas n�o vou contar. Embora n�o concorde com essa sua decis�o, vou respeitar a sua vontade. Quem tem que contar � voc�.
- Obrigada, Lu - suspirou ela aliviada. Sabia que voc� compreenderia.
Naquele momento, um estranho pressentimento perpassou o cora��o de Luciana, e uma sombra cinzenta turvou o semblante de Marcela. O destino na terra � tra�ado pelas
pr�prias pessoas que o vivem, que, muitas vezes, conseguem alterar o rumo que suas vidas tomam. Mas, quando isso n�o acontece, e as desgra�as sobrev�m, a tend�ncia
dos encarnados � culpar a sorte, a fatalidade, Deus e os esp�ritos. Em tudo procuram uma desculpa para os seus infort�nios, mas se esquecem de que a �nica justificativa
para o seu sofrimento � a sua pr�pria vontade, a sua imprevid�ncia e a sua invigil�ncia. Depois de deixar Marcela, Luciana voltou para casa pensativa. As mentiras
da amiga ainda a colocariam em uma situa��o dif�cil, e ela n�o poderia evitar. Respeitava a decis�o de Marcela e tinha seus pr�prios problemas para resolver. Seu
maior problema, no momento, era Cec�lia. Na verdade, nem era Cec�lia, mas ela mesma. Sua �nsia desenfreada por liberdade, a avers�o que tinha a compromissos e liga��es
s�rias a deixavam intrigada. Ela dizia a si mesma que tudo era reflexo do enorme tempo que vivera com Marcela, mas sabia que n�o estava sendo verdadeira consigo
mesma. O que ela sentia era uma necessidade indescrit�vel de ser livre e n�o se apegar a ningu�m. Reconhecia que acabava ferindo o sentimento alheio, como fora com
Marcela e agora com Cec�lia. Mas ela n�o podia evitar. N�o podia fingir o que n�o sentia nem enganar a si mesma e �s outras. Procurava ser sincera ao m�ximo, mas
sempre acabava machucando algu�m. J� estava cansada. Bem l� no fundo, o que queria era algu�m que a aceitasse do jeito que ela era, que a fizesse aquietar o cora��o
e se sentir amada. Mas algo dentro dela relutava em se submeter � passividade das rela��es est�veis e estava sempre em busca de algo mais que ela n�o sabia precisar
ou definir. Nunca se envergonhara de ser como era. Desde menina, aceitara com naturalidade a sua prefer�ncia por mulheres. S� que agora come�ava a questionar o porqu�
de muitas coisas. Ser l�sbica n�o era problema, mas por que ela precisava temer tanto o envolvimento emocional? Ficara aquele tempo todo com Marcela porque praticamente
a dominava e representava o papel masculino na rela��o, no sentido de ser aquela que resolvia tudo e tomava a frente em todos os assuntos. Marcela era mais fr�gil,
mais feminina, ao passo que ela sentia em si mesma uma alma forte e destemida, como se sua ess�ncia fosse mesmo a de um homem. Ela era uma mulher, mas n�o se comportava
muito como tal. Bem que gostaria de ter nascido homem, mas n�o fora aquele o destino que a natureza lhe reservara. Por qu�? Por que nascera num corpo t�o diferente
de sua ess�ncia? Muitas vezes, ela vivia imenso conflito consigo mesma. Se, de um lado, era uma pessoa sens�vel; de outro, era muito pr�tica e at� mesmo fria. Nascer
mulher talvez a estivesse ensinando a exercitar uma sensibilidade que lhe parecia sufocada, mas por que ser� que ela precisava de tudo aquilo? Eram essas as perguntas
que se fazia e para as quais n�o conseguia encontrar as respostas. A �nica certeza que tinha era de que estava ficando cansada. Na segunda-feira seguinte, Cec�lia
apareceu no consult�rio acabrunhada e silenciosa, tentando fazer parecer que estava triste com o rompimento de Luciana, quando, na verdade, o que temia era perder
para sempre a sua fonte de renda. Logo pela manh�, Ma�sa estranhou o seu quase mutismo e indagou com certa preocupa��o:
- Est� tudo bem?
- Est� - foi a resposta lac�nica.
- Voc� parece meio abatida. Est� doente?
- N�o tenho nada, estou bem.
Ma�sa n�o insistiu e entrou em sua sala, preparando-se para come�ar os atendimentos. Tudo transcorreu normalmente durante a manh�, embora a quietude excessiva de
Cec�lia causasse estranheza. Mais tarde, quando Luciana chegou, as coisas permaneceram iguais. Cec�lia n�o queria que ela percebesse o seu temor e a sua raiva, mas
sim que julgasse que ela estava sofrendo com a sua falta. A posi��o que Luciana adotou foi de n�o dizer nada. J� havia dito tudo o que precisava e n�o pretendia
voltar atr�s. Chegou em cima da hora, um pouco depois do paciente, e entrou logo para o atendimento. Entre um cliente e outro, Cec�lia redobrava o ar de tristeza,
para chamar a aten��o de Luciana. Por fim, ao final do expediente, comovida com o ar desolado da secret�ria, Luciana considerou:
- N�o gostaria que ficasse assim, Cec�lia. N�o gosto de ver voc� sofrer.
Com gestos estudados, Cec�lia encarou Luciana e for�ou as l�grimas, que umedeceram e avermelharam seus olhos, para, em seguida, responder baixinho:
- O que voc� queria? Estou triste, n�o d� para disfar�ar.
- N�o precisa disfar�ar. S� n�o queria que voc� sofresse.
- N�o se pode mandar nos sentimentos, e eu estou sofrendo muito.
- Cec�lia, por favor...
Nessa hora, Cec�lia se levantou e se virou de costas para Luciana, ocultando o rosto entre as m�os.
- N�o d� para ag�entar, Luciana. Eu a amo muito... - calou-se com um solu�o abafado e fungou algumas vezes, ainda sem se voltar.
- Voc� est� enganada. N�o pode me amar.
- Como � que voc� sabe? - fingiu explodir. Por acaso voc� est� dentro de mim?
- N�o � isso. � que acho que o que voc� sente por mim n�o � amor.
- Ah! N�o? E o que � ent�o? Desejo?
- N�o sei... pode ser...
- Voc� n�o sabe nada, Luciana. N�o sabe o que eu sinto ou o que desejo. N�o sabe nem o que voc� sente.
- Isso n�o � verdade. Sei muito bem o que quero e o que n�o quero...
- E o que voc� n�o quer sou eu, mas o que quer � Marcela, n�o �?
- N�o diga isso. J� falei que Marcela � apenas uma amiga.
- Uma amiga t�o �ntima! - ela fitou Luciana com olhos injetados e disparou em tom de deboche, imitando a voz de Luciana ao telefone: Um pouco mais do que uma amiga,
mas bem menos do que voc�... �, Luciana, eu ouvi. Ouvi quando voc� disse isso a sua amiguinha Marcela. O que queria que eu pensasse?
- Voc� n�o tinha o direito de escutar minha conversa ao telefone! - zangou-se.
- E voc� n�o tinha o direito de falar assim de mim! O que fui para voc�, afinal? Um passatempo? Uma distra��o? Ou algu�m para satisfazer os seus desejos e as suas
fantasias sexuais?
- Como se atreve a dizer uma coisa dessas? Tivemos uma rela��o de cumplicidade e troca.
Luciana estava se exaltando, e Cec�lia, perdendo a cabe�a. Era preciso ter calma e intelig�ncia para n�o p�r tudo a perder.
- Perdoe-me, Luciana - reconsiderou ela, imitando voz de choro e tentando aparentar arrependimento. Voc� tem raz�o... Nossa rela��o sempre foi de troca. � que eu
estou sofrendo tanto! Estou desesperada!
A raiva fez com que o pranto brotasse do peito de Cec�lia, e ela deu livre curso �s l�grimas, fazendo parecer a Luciana que chorava de dor.
- N�o precisa ficar assim - ponderou Luciana, penalizada. Voc� � jovem, bonita. Pode ter a pessoa que quiser.
- Mas eu quero voc�! S� voc� me interessa.
- Sinto muito, Cec�lia, mas isso n�o � poss�vel. N�o posso ficar com voc� s� para agrad�-la ou impedi-la de sofrer. N�o seria honesto nem comigo, nem com voc�.
- Por favor, Luciana, pelo amor de Deus! O que voc� quer que eu fa�a? Que implore? Que me ajoelhe a seus p�s?
Num gesto dram�tico, Cec�lia atirou-se aos p�s de Luciana e abra�ou as suas pernas, solu�ando de tal forma que quase n�o conseguia mais falar. Aquela cena provocou
uma esp�cie de choque el�trico em Luciana. Se, por um lado, sentia piedade de pessoas em sofrimento; por outro, tinha repulsa daquelas que rastejavam e abandonavam
o orgulho e a raz�o. Por isso, naquele breve momento, tomou uma decis�o.
- Olhe aqui, Cec�lia - falou ela, com voz entre compreensiva e firme, levantando a outra do ch�o -, assim, do jeito que est� n�o vai dar. N�o tem condi��o de voc�
continuar trabalhando para mim.
- Est� me mandando embora? - indignou-se.
Luciana hesitou, mas era o melhor que deveria ser feito.
- Estou - afirmou convicta.
- Mas como? Do que � que eu vou viver? E o cursinho pr�-vestibular?
- Lamento, mas � assim que tem que ser. N�o queria que as coisas chegassem a esse ponto, mas voc� n�o me deixa escolha. N�o quero que voc� sofra nem pretendo prejudic�-la,
mas manter voc� aqui s� vai piorar as coisas.
- Por qu�? Trabalhei normalmente hoje, n�o foi?
- Voc� passou o dia todo acabrunhada.
- N�o tenho nem o direito de ficar triste? Por acaso eu destratei algu�m? Fiz alguma grosseria para algum cliente?
- N�o se trata disso. N�o � com o trabalho que estou preocupada. O que me preocupa � voc�. Acho que ficar perto de mim n�o vai lhe fazer bem.
- Voc� n�o sabe o que me faz bem ou n�o. Amo voc�, Luciana, mas n�o posso perder o meu emprego.
- Sinto, mas � o melhor. Tamb�m n�o queria mand�-la embora, mas n�o vejo outra sa�da. Vou lhe pagar o aviso pr�vio, e voc� pode ir procurando outro emprego.
- Aviso pr�vio? Mas assim, dessa forma?
- Amanh� formalizaremos tudo.
- Mas Luciana...
- Vou pedir ao contador para resolver isso para mim. Voc� vai ficar muito bem. Vou lhe pagar a indeniza��o e ainda lhe dar uma gratifica��o por fora.
- Quanta generosidade! Eu n�o quero esmola, quero o meu emprego e ganhar o meu dinheiro gra�as ao meu trabalho!
- Voc� pode arranjar outro emprego. Vou lhe dar refer�ncias...
A vontade de Cec�lia era apertar o pesco�o de Luciana at� ouvi-lo estalar em suas m�os, mas ela n�o podia fazer nada. Perder o emprego significava perder a boa vida
que Luciana estava lhe dando, e isso, ela n�o podia permitir. Mas com Luciana, n�o podia agir de forma rude ou agressiva. Ela era geniosa e temperamental, e uma
rea��o brusca s� serviria para afast�-la ainda mais. Era preciso despertar a sua compaix�o e a sua simpatia. Luciana, por favor... N�o adianta Cec�lia, estou decidida.
A partir de amanh�, voc� n�o trabalha mais aqui. Voc� n�o pode fazer isso. E a Ma�sa? Ela n�o vai gostar. Ma�sa n�o vai se opor tenha certeza. Vou falar com ela
e explicar tudo.
- Ela ainda n�o sabe do nosso rompimento?
- Ainda n�o. N�o queria envolv�-la em nossos assuntos pessoais, mas agora n�o tem mais jeito. Hoje mesmo, conto-lhe tudo.
- Mas Luciana, eu a amo!
- Por favor, Cec�lia, n�o repita mais isso. � degradante e humilhante.
- Como voc� pode falar assim do meu amor?
- N�o vamos come�ar com isso de novo. J� est� decidido, e eu n�o vou voltar atr�s.
- Luciana, me escute... - choramingou ela, as m�os postas em sinal de s�plica. Eu n�o posso viver sem voc�. N�o � justo...
- Humilhar-se s� vai piorar as coisas. Lamento muito que tenha que ser assim, Cec�lia, mas � o melhor. Sei que voc� vai me odiar hoje, mas isso vai passar, e a�
ent�o voc� vai me dar raz�o.
- Eu a amo - insistia Cec�lia, com voz cada vez mais s�plice.
- J� disse que n�o acredito nesse amor.
- Mas � verdade! Voc� n�o pode falar sobre os meus sentimentos.
- N�o quero come�ar tudo outra vez, j� disse. E, ainda que seja verdade, ainda que voc� me ame, eu n�o a amo. Nunca a amei.
O sangue foi subindo � cabe�a de Cec�lia que, por mais que n�o quisesse se descontrolar diante de Luciana, n�o conseguia mais conter o seu �dio.
- Voc� me usou, n�o foi mesmo? Enquanto eu servia, me quis ao seu lado. Mas, quando sua ex-amante apareceu, voc� logo aproveitou para me enxotar e voltar correndo
para os bra�os daquela l�sbica vagabunda!
- Isso j� � demais! - vociferou Luciana, dirigindo-se para a porta e escancarando-a. V� embora. D�-me a chave do consult�rio e saia daqui!
Completamente vencida e atordoada, Cec�lia apanhou a bolsa e passou por Luciana feito uma bala. J� n�o pensava mais em reatar o romance. Queria se vingar de Luciana
de uma forma que ela jamais esquecesse. Em seu �ntimo, pensamentos atrozes a visitavam, e ela foi-se deixando consumir por um �dio desmesurado e irracional. Durante
quase um ano, tivera que se submeter aos caprichos e fantasias de Luciana, quando, na verdade, o que queria era estar na cama de Gilberto. Suportara tudo em sil�ncio
e com fingida paix�o e, embora tivesse alcan�ado alguns momentos de prazer com Luciana, aquilo n�o era nada se comparado ao turbilh�o de emo��es que sentia ao fazer
sexo com Gilberto. Luciana era o seu p�-de-meia, e Gilberto, sua verdadeira paix�o. Submetera-se a tudo por causa dele, para agrad�-lo, para conseguir algum dinheiro
a mais e se colocar bonita e vistosa para ele. E, agora, Luciana queria acabar com tudo.
- Isso n�o vai ficar assim - rosnou Cec�lia entre os dentes, seguindo pela rua aos trope��es.
Era preciso tomar alguma atitude antes que algu�m descobrisse o que acontecera. Ningu�m presenciara aquela discuss�o e ningu�m sabia que elas haviam rompido. Cec�lia
precisava agir antes que Luciana tomasse alguma provid�ncia. Mas o que poderia fazer? Pensando com rapidez, aproximou-se de um orelh�o e ligou para Gilberto, rezando
para que ele estivesse em casa. O rapaz logo atendeu, e Cec�lia lhe narrou brevemente o que havia acontecido, pedindo que ele fosse ao seu encontro no endere�o de
Luciana, o mais r�pido que pudesse. De l�, Cec�lia tomou um t�xi e se dirigiu para a casa de Luciana. N�o podia se dar �queles luxos, mas aquela era uma ocasi�o
especial. Chegou praticamente junto com ela, e Gilberto apareceu cerca de dez minutos depois. Enquanto isso, dentro de casa, Luciana caminhava de um lado a outro
na sala. A discuss�o que tivera com Cec�lia deixara-a transtornada e aflita. Nunca imaginara que Cec�lia pudesse falar aquelas coisas e se surpreendera com a forma
agressiva e grosseira com que reagira. Ser� que Ma�sa tinha raz�o? Pensando na amiga, apanhou o telefone e ligou para ela. Foi Breno quem atendeu e foi chamar a
mulher, que estava terminando o jantar.
- Oi, Lu - falou. O que foi?
- Voc� est� muito ocupada?
- Estou fazendo o jantar. Por qu�? Quer vir comer aqui?
- N�o. Preciso conversar com algu�m. Aconteceu uma coisa hoje, no consult�rio...
- Que coisa?
Nesse momento, a campainha do apartamento de Luciana come�ou a soar, e ela respondeu apressada:
- Um momento. Est�o tocando a campainha.
Luciana largou o fone em cima da mesinha e foi atender a porta. Pelo olho m�gico, viu que era Cec�lia e balan�ou a cabe�a, contrariada. N�o conseguiu ver Gilberto,
que estava escondido no patamar da escada, aguardando, e acabou por abrir a porta, pronta para mandar Cec�lia embora novamente. Mas, antes mesmo que ela pudesse
dizer alguma coisa, Gilberto saltou de onde estava e foi empurrando-a para dentro, ao mesmo tempo em que a imobilizava e cobria sua boca com uma das m�os.
- N�o pensou em me ver novamente, n�o �, cadela? - rugiu Cec�lia. Pensou que podia me usar e me colocar na rua com uma m�o na frente e outra atr�s? Pois n�o pode,
ouviu? N�o sou mulher de se dispensar. Pensa que estou realmente apaixonada? Por voc�? Ora, francamente! Como � que uma mulher feito eu poderia se apaixonar por
uma aberra��o feito voc�? Eu sou mulher, entendeu? Gosto � do meu homem. Luciana sentiu uma umidade repulsiva em seu rosto e percebeu que Gilberto passava a l�ngua
em sua face, rindo e debochando dela.
- Voc� s� gosta de mulher �, sua vadia? - o escarneceu ao mesmo tempo em que enfiava a m�o entre as suas coxas. Isso � porque ainda n�o experimentou um homem de
verdade.
Ela conseguiu se desvencilhar um pouco e tentou correr, mas Gilberto foi mais r�pido e a alcan�ou, jogando-a no sof� com brutalidade. O seu riso era debochado e
frio, e Cec�lia come�ou a rir freneticamente, enquanto repetia com voz maldosa:
- Mostre a ela, Gilberto! Mostre o que � ser mulher de verdade.
Recobrando o dom�nio sobre si mesma, Luciana come�ou a se debater, tentando se soltar dos bra�os de Gilberto, que a apertou ainda mais. Ela gritava e estava quase
se soltando quando ele, com medo de que algu�m pudesse ouvir, acertou-lhe um murro violento na face, depois outro, e outro, fazendo-a calar-se, o rosto inchado e
sangrando. Mais que depressa, ele puxou o short que ela vestia e se deitou sobre ela, novamente apertando a sua boca para que ela n�o fizesse barulho. Ela soltou
um grito abafado quando ele a penetrou, por�m suportou tudo e n�o se permitiu chorar. Estava com raiva, mas n�o daria a Cec�lia o gostinho de v�-la chorando e suplicando
que n�o lhe fizessem mal. Com a boca tapada, Luciana n�o podia dizer nada e disfar�ava o medo. Instintivamente, olhou para o telefone pousado na mesinha, e Cec�lia,
seguindo o seu olhar, viu-o tamb�m. Correu para ele e o apanhou, colocando-o no ouvido. Estava mudo.
- Com quem estava falando? - perguntou ela, com raiva. Com a tonta da Ma�sa? Ou com sua amante l�sbica?
Gilberto j� havia terminado de estupr�-la e olhou assustado para Cec�lia.
- Vamos embora daqui - disse, cheio de medo. Ela estava falando com algu�m. Devem ter ouvido tudo!
Luciana estava exausta. N�o tinha sequer for�as para gritar e s� o que conseguiu foi ficar ouvindo os dois tramando seus pr�ximos passos.
- Sua cadela! - vociferou Cec�lia, esbofeteando-a novamente. Merecia era morrer!
- Vamos embora! - insistiu Gilberto com gravidade.
- N�o! Ela vai contar � pol�cia.
- Vamos fugir! Vamos fugir! - repetia ele descontrolado.
Mas Cec�lia n�o o escutava. Deixara-se invadir a tal ponto pelo �dio que nada nem ningu�m poderia demov�-la do prop�sito de matar Luciana. A passos r�pidos, ela
se aproximou da outra, desfalecida no ch�o, e se abaixou junto a ela, quando s� ent�o Gilberto percebeu uma faca reluzindo em sua m�o. Nem teve tempo de falar. Com
extrema agilidade, e um olhar de loucura e �dio sobrenatural, Cec�lia enterrou a faca no peito de Luciana, que gemeu baixinho e depois se calou. Ela teria ainda
enfiado a faca outras vezes se Gilberto, vendo a sangueira que se espalhava sobre o tapete, n�o a tivesse arrancado de suas m�os e berrado cheio de pavor:
- Voc� a matou! Vamos embora daqui!
Cec�lia olhou para o corpo inerte de Luciana e deteve a m�o, acompanhando, com um misto de prazer e fasc�nio, o sangue que escorria pelo tapete. Sem dizer palavra,
virou-se para a porta da frente, soltou a faca e correu. Assim que Luciana pousou o fone na mesinha, uma forte apreens�o foi tomando conta do esp�rito de Ma�sa.
Durante alguns minutos, apenas o sil�ncio vinha pelo outro lado da linha, at� que, de repente, palavras de agress�o, perfeitamente aud�veis, chegaram at� seus ouvidos.
O tom era inconfund�vel, e Ma�sa reconheceu a voz de Cec�lia. Apesar do �dio com que falava, Ma�sa conseguiu entender tudo o que ela dizia. Somou a suas palavras
as poucas que trocara com Luciana momentos antes, o que foi suficiente para deduzir que ela e Cec�lia haviam terminado, e Cec�lia fora � casa dela movida por alguma
inten��o escusa. Quando o sil�ncio irrompeu pelo fone novamente, Ma�sa desligou o telefone e chamou Breno, para juntos irem � casa de Luciana.
- Mas querida, e o jantar? - ele tentou argumentar.
- Desligue o fogo e vamos! Sinto que � urgente!
Ele n�o protestou. Ma�sa n�o era mulher de fazer esc�ndalos nem de se descontrolar por qualquer motivo e, se ela estava assustada e preocupada, uma boa raz�o havia
de ter. Mais que depressa, sa�ram de casa e partiram para o apartamento de Luciana, Breno guiando o mais r�pido que podia. Luciana morava relativamente perto, e
eles chegaram em menos de quinze minutos. A porta do apartamento estava fechada, mas n�o trancada, e Ma�sa a abriu facilmente. As luzes da sala estavam acesas, e
a primeira coisa que ela viu quando entrou foi o corpo ca�do de Luciana, uma ferida aberta no peito, por onde escorria um fio grosso e espesso de sangue. Ma�sa soltou
um grito e teria desmaiado, n�o fossem a preocupa��o e a urg�ncia que o caso requeria. Nem tiveram tempo de chamar a ambul�ncia. Ma�sa estava t�o nervosa que nem
saberia dizer se Luciana estava viva ou morta, e Breno teve que agir com rapidez. Ergueu o seu corpo, e foram correndo ao hospital. Ela ainda estava viva, mas a
respira��o parecia que ia sumindo, e Ma�sa p�s-se a chorar e a rezar. A seu lado, Rani acompanhava tudo. Desde o momento em que Luciana e Cec�lia haviam brigado,
no consult�rio, permanecera junto a ela, j� sabendo o que aconteceria. Chegaram em instantes a um hospital particular, e Luciana foi logo socorrida e levada � sala
de cirurgia. A ferida era grave, e ela tinha que ser operada imediatamente. Durante horas, Luciana ficou na sala de cirurgia, entregue aos cuidados dos m�dicos e
dos orientadores espirituais daquele hospital. Ao final da opera��o, o m�dico respons�vel foi falar com Ma�sa e Breno, que permaneceram o tempo todo na sala de espera.
- Foram voc�s que a trouxeram? - o indagou, aproximando-se dos dois.
- Fomos - respondeu Breno. Como ela est�?
- Ainda � cedo para dizer. O estado � grave, mas ela tem chance de sobreviver. A ferida � profunda, e ela est� com o rosto muito ferido, al�m de ter sido estuprada.
- Estuprada!? - chocou-se Ma�sa. Mas por quem?
O m�dico n�o respondeu, e Breno retrucou:
- Ela est� consciente?
- N�o. Est� em coma desde que chegou.
- Oh! Meu Deus! - exclamou Ma�sa chorando, agarrada ao peito de Breno.
- Ser� que voc�s podem avisar � fam�lia?
- Ela n�o tem fam�lia no Rio. S� n�s.
- Entendo. Bem, pelos procedimentos legais, a pol�cia j� foi avisada. Deve chegar aqui em alguns instantes.
Com efeito, o detetive de plant�o na pol�cia, naquela noite, chegou poucos minutos depois, e Ma�sa e Breno foram conversar com ele. Ma�sa deixou de lado o medo da
pol�cia e contou tudo o que ouvira pelo telefone, mas as suas declara��es n�o eram suficientes para prender Cec�lia. O policial, contudo, ficou de investigar.
- � um absurdo! - desabafou Ma�sa para Breno, depois que chegaram a casa. Sei que foi Cec�lia. Eu ouvi a voz dela!
- Querida, a pol�cia n�o pode sair por a� prendendo as pessoas s� porque voc� acha que ouviu a voz de Cec�lia ao telefone. E se voc� estiver enganada?
- Mas n�o estou. E tinha mais algu�m com ela. N�o sei quem, mas ela foi estuprada, o que significa que havia um homem com Cec�lia.
- O detetive sabe de tudo isso e vai investigar. Logo, logo, descobrem o meliante.
- Isso n�o � justo. Tenho certeza de que foi Cec�lia. Se a prenderem, ela revela o nome de seu comparsa. Eles n�o podem ficar impunes!
- E n�o v�o. Contudo, temos que aguardar. Se for Cec�lia quem fez isso, e n�s sabemos que foi a pol�cia vai descobrir e vai prend�-la. Ela e seu c�mplice.
- Pobre Luciana - lamentou-se Ma�sa. Eu cansei de avis�-la sobre Cec�lia. E agora vejo s� no que deu.
- N�o � hora de ficar pensando nisso.
- Acha que eu deveria avisar a Marcela?
- E por que n�o? Marcela e Luciana viveram juntas por muito tempo. Ela precisa saber.
- Tem raz�o. Vou telefonar para ela.
O dia havia acabado de nascer quando Marcela entrou no hospital em que Luciana estava internada. Recebera a not�cia poucas horas antes e quase desfaleceu de susto
e tristeza. Deu o nome de Luciana na recep��o e foi informada de que ela estava no Centro de Tratamento Intensivo, onde n�o podia receber visitas.
- Quero apenas not�cias dela - implorou Marcela. Por favor!
- A senhora � parenta?
- N�o... Sou uma amiga.
- Est� bem. V� ao segundo andar e siga pelo corredor � direita do elevador. No final, vai encontrar outra recep��o, que � a do CTI. D� o nome dela e pe�a informa��es.
Marcela fez como a mo�a lhe dissera e foi pedir not�cias de Luciana na outra recep��o, onde foi informada de que o estado da amiga era grave.
- Posso v�-la?
- Lamento, mas s� parentes e, assim mesmo, por alguns poucos minutos.
Marcela saiu do hospital desolada. Como aquilo podia ter acontecido a Luciana? Ma�sa dissera que estava certa de que fora Cec�lia, a mo�a com quem ela estava saindo.
Mas por que teria feito aquilo? Uma profunda tristeza envolveu o cora��o de Marcela. Precisava ao menos ver como Luciana estava, mas ela n�o era parenta nem m�dica,
e n�o podia entrar. Sim, ela n�o era m�dica, mas Fl�vio era. Talvez ele pudesse ajud�-la a entrar. Aquela parecia ser a �nica oportunidade de ver Luciana pessoalmente,
por�m havia outras coisas a considerar. Fl�vio faria perguntas... mas ela n�o precisava lhe contar sobre o seu envolvimento com Luciana. Ele sabia que elas haviam
sido amigas e que tinham morado juntas. Ele at� pensava que Luciana era a respons�vel pelo seu quase suic�dio, porque, supostamente, haveria roubado o homem por
quem Marcela se apaixonara.
- Por que voc� quer v�-la? - indagou Fl�vio, quando ela lhe contou o que havia acontecido.
- Ela � minha amiga... ou era... Viemos juntas de Campos e...
- E ela lhe roubou o namorado, n�o foi? - Marcela n�o respondeu. Tudo bem, Marcela, n�o precisa me explicar nada. Admiro a sua generosidade e o seu desprendimento.
Qualquer uma, no seu lugar, n�o ligaria a m�nima e ainda acharia bem feito.
- N�o sou qualquer uma.
- E � por isso que eu amo voc�.
- Vai me ajudar, ent�o?
- Como n�o poderia ajud�-la?
- Vai at� l� comigo?
- � claro. Quando � que voc� quer ir?
- Pode ser agora?
- Pode. Vamos l�.
N�o foi dif�cil arranjar a visita de Marcela. Fl�vio gozava de nome e prest�gio na comunidade m�dica e foi prontamente atendido em seu pedido. Marcela, contudo,
foi avisada de que o estado de Luciana era grave e n�o seria nada agrad�vel a vis�o da mo�a ligada a aparelhos e toda espetada de agulhas. Marcela quis ir assim
mesmo, e Fl�vio foi com ela. Realmente, ver a amiga naquele estado provocou incontidas l�grimas em Marcela que, durante alguns minutos, permaneceu parada diante
dela, olhando o seu corpo com um assombro mudo. De repente, apanhou uma das m�os de Luciana e levou-a aos l�bios, chorando com ang�stia e sussurrando coisas inaud�veis,
que Fl�vio n�o conseguiu compreender. Ela estava a ponto de se descontrolar quando Fl�vio a retirou dali.
- Voc� est� bem? - perguntou ele, do lado de fora, preocupado com o estado em que Marcela havia ficado.
- Oh! Fl�vio, � t�o horr�vel! Como algu�m p�de fazer isso com ela?
- Ser� que n�o foi o namorado? - sondou ele com cautela. Quero dizer, o mesmo que...
Marcela n�o conseguiu mais ouvir e desatou a correr pelo corredor do hospital. Queria fugir dali o mais r�pido poss�vel, para n�o escutar as conjeturas de Fl�vio
e n�o ter que mentir novamente. Aquela mentira estava chegando ao limite do insustent�vel, e ela estava a ponto de lhe contar toda a verdade. Se ele quisesse deix�-la
depois disso, n�o teria import�ncia. O que ela n�o suportava mais era conviver com tanta mentira, tendo que esconder seus sentimentos justamente do homem que amava
e em quem deveria confiar. Foi s� quando alcan�ou a recep��o da entrada que Marcela parou de correr, e Fl�vio chegou logo em seguida. Ela chorava muito, e ele a
abra�ou comovido.
- Tenha calma, Marcela - ele procurava consolar. Seja quem for que tenha feito isso, vai ter que se entender com a Justi�a.
- N�o estou preocupada com a Justi�a, Fl�vio. Mas � que ver Luciana naquele estado... Uma mo�a t�o jovem, t�o cheia de vida. E eu, que a conheci antes disso... �
muito doloroso!
- Eu sei, querida, mas n�o fique assim. Tudo vai acabar bem.
- N�o importa o que ela tenha feito... o que n�s tenhamos feito... Eu a amava mesmo assim. Ser� que voc� pode compreender o que � o verdadeiro amor?
- � claro que sim, meu bem. Acho isso muito bonito de sua parte. N�o guardar m�goa nem rancor. � admir�vel que algu�m seja dotado de tanta capacidade de amor e compreens�o
quanto voc�.
- Ah! Fl�vio... - suspirou ela, certa de que ele n�o compreendia o que ela estava falando.
- Marcela - eles ouviram uma voz chamar nesse instante.
Os dois se viraram ao mesmo tempo e viram Ma�sa parada perto deles, com profundas olheiras e ar cansado.
- Ah...! Oi, Ma�sa - cumprimentou Marcela, enxugando os olhos e assoando o nariz no len�o. Lembra-se de Ma�sa, Fl�vio?
- � claro - respondeu ele, apertando-lhe a m�o. Como vai?
- Quem � que pode estar bem numa situa��o como essa?
- � verdade.
- Voc�s foram ver Luciana?
- Fomos - disse Marcela. Oh! Ma�sa, fiquei t�o chocada!
- Foi uma coisa horr�vel.
- J� sabem quem foi que fez isso? - perguntou Fl�vio.
Conhecendo o problema de Marcela, Ma�sa a fitou discretamente e tornou de forma vaga:
- Ainda n�o. Mas a pol�cia est� investigando.
- Espero que prendam logo o bandido. Um crime como esse n�o pode passar impune.
- Espero que ela sobreviva - desabafou Marcela, entre l�grimas.
- � claro, querida, eu tamb�m.
- Bom - finalizou Ma�sa -, vou l� em cima ver como ela est�.
- Voc� pode entrar?
- Posso. Como Luciana n�o tem fam�lia no Rio, tive que assinar como sua respons�vel.
Marcela assentiu com a cabe�a e, bra�os dados com Fl�vio, sa�ram do hospital, deixando l� dentro a vontade e a determina��o de lhe contar a verdade. Estava muito
fragilizada com o que acontecera a Luciana e, se Fl�vio a abandonasse naquele momento, era bem capaz de tentar matar-se novamente. A verdade podia esperar. Havia
apenas tr�s pacientes no Centro de Tratamento Intensivo daquele hospital, e Rani os observou com piedade. Os corpos flu�dicos de todos estavam adormecidos acima
de seus corpos f�sicos, inclusive o de Luciana, que pairava a alguns cent�metros do leito. Ela esperou pacientemente. Os esp�ritos de luz lhe disseram que Luciana
logo despertaria, e caberia a ela recepcion�-la naquele mundo. Efetivamente, cerca de dez minutos depois, Luciana abriu os olhos e levou um susto, sentindo seu corpo
flutuar bem mais pr�ximo do teto do que normalmente estaria. Assustada, tentou se levantar e acabou se virando para baixo, dando de cara com seu corpo f�sico estirado
na cama, todo ligado a aparelhos. Ela come�ou a se debater no ar, e Rani resolveu ajudar. Estendeu-lhe a m�o e ajudou-a a reequilibrar-se, puxando-a gentilmente
para baixo. Os p�s de Luciana tocaram o ch�o, e ela fitou novamente o seu corpo f�sico, sentindo um temor diante do desconhecido.
- Estou morta? - perguntou a Rani.
- N�o. Sua mat�ria densa est� em processo de coma, contudo, ainda vive.
Luciana ouviu as explica��es com ar de assombro e encarou Rani desconfiada.
- Quem � voc�? N�o a conhe�o de algum lugar?
- Estive algumas vezes em sua companhia, durante o sono f�sico.
- � isso mesmo! Agora me lembro... Voc� � a mulher que me confundiu com o tal de... Robert...
- Voc� n�o � mais Robert. Agora compreendo isso. Sei quem voc� � hoje e n�o estou aqui para prejudic�-la.
- Por que est� aqui? O que quer comigo?
- Fui designada para auxili�-la nesse momento dif�cil.
- Quem a designou?
- Esp�ritos iluminados que s�o superiores a mim.
- Onde est�o eles?
- N�o sei. Deram-me a incumb�ncia de conversar com voc� e expor o seu problema.
Luciana virou-se para o seu corpo f�sico e observou com azedume:
- Parece-me que voc� n�o pode resolver o meu problema.
- S� quem pode resolver esse problema � voc�.
- Olhe... Como � mesmo o seu nome?
- Rani.
- Olhe, Rani, vamos parar com essa conversa e vamos direto ao ponto. Eu nem a conhe�o, mas voc� diz que foi mandada para me ajudar. Posso saber por qu�? Quem a mandou?
- Porque eu a amo sinceramente, e h� esp�ritos superiores a mim interessados no seu crescimento. Se voc� est� recebendo uma chance de se reconciliar com a vida,
eu tamb�m estou recebendo a minha de me reconciliar com o passado.
- Chance de qu�? N�o estou entendendo nada.
- Voc� n�o se lembra do seu passado de mentiras e manipula��es, n�o � mesmo? - Luciana meneou a cabe�a. Pois foi isso que levou Cec�lia a tentar matar voc�.
- Isso o qu�?
- N�o se lembra do que fez a todas n�s?
- Eu fiz alguma coisa a voc�s?
- Voc� sabe. Apenas n�o quer se lembrar. Mas est� tudo a� dentro de voc�.
De repente, foi como se um v�u se descortinasse, e Luciana quedou estarrecida diante do que via. As paredes do hospital foram se desmanchando, e algo parecido com
uma tela surgiu em seu lugar, ligada a fios t�nues e transparentes que, por sua vez, se ligavam � sua mente. Os pensamentos come�aram a se atropelar, e imagens de
v�rios momentos de suas vidas zuniam pela sua cabe�a, enquanto Luciana ia-se recordando de v�rias passagens do que vivera no passado. Era ela quem controlava a m�quina,
que respondia ao que ela pensava e relembrava, projetando na tela imagens vividas de suas recorda��es. V�rias cenas iam surgindo e desaparecendo, at� que, em dado
momento, sua mente se fixou em uma lembran�a espec�fica, e ela come�ou a ver, na tela diante de si, o que se desenrolava na tela de seus pensamentos. Ela n�o era
ela, mas um ingl�s bonito e elegante, que caminhava por uma rua suja e escura de uma cidade que ela reconheceu como o Rio de Janeiro do s�culo XVIII. O ingl�s, Robert,
trazia pela m�o uma mo�a ainda muito novinha, de seus treze anos, toda tr�mula e assustada. Ao final da rua, entraram no que parecia ser uma taverna, mas na verdade
era um prost�bulo clandestino que oferecia aos fidalgos da corte mocinhas rec�m-sa�das da puberdade, todas entre doze e quatorze anos no m�ximo.
- Por favor, senhor - dizia ela -, n�o quero. Tenho medo.
- Deixe de ser tola - respondeu ele num portugu�s mal falado e carregado de sotaque brit�nico. Voc� vai ganhar muito dinheiro.
- Mas meus pais v�o me matar se eu fizer isso.
- Se n�o fizer, quem vai mat�-la sou eu.
A menina come�ou a chorar, e Robert a empurrou para dentro de um quarto tosco e mal iluminado, onde um homem velho e gordo ressonava em cima da cama. Robert cutucou
o homem com a bengala, e ele despertou assustado. Assim que abriu os olhos, viu a menina ao lado de Robert, e seus olhos se encheram de cobi�a. Robert colocou a
menina diante dele e rasgou as suas roupas com viol�ncia, expondo seu corpo esguio ao homem, que passava a l�ngua pelos dentes, j� se contorcendo de prazer. Em seguida,
atirou-a nos bra�os dele e saiu, sem ligar para o seu choro e as suas s�plicas. Duas horas depois, a porta do quarto se abriu, e o homem saiu satisfeito. Pagou a
Robert o prometido e foi embora sem dizer nada. Robert ent�o entrou no quarto e encontrou a menina deitada na cama, chorando, toda machucada com a brutalidade do
homem.
- Levante-se da�, vamos! - ordenou ele. Voc� j� pode ir embora.
Apesar de dolorida, ela obedeceu. Levantou-se da cama e apanhou as roupas, vestindo-se em l�grimas.
- O que vou dizer a meus pais?
- N�o diga nada. Mostre-lhes o dinheiro, e eles ficar�o satisfeitos.
- Por que fez isso comigo, mister Robert?
- Quando lhe ofereci o dinheiro, voc� concordou.
- Mas eu n�o sabia o que aconteceria. O senhor me disse que ele era pintor...
- Deixe de lam�rias, menina, e tome o seu dinheiro. Foi merecido.
Robert atirou v�rias c�dulas em cima dela, que as recolheu entre solu�os.
- Nunca mais quero fazer isso, nunca mais...
Ela se levantou para ir embora e, ao passar rente a ele, sentiu que suas m�os a seguravam.
- Voc� � uma menina muito bonita - elogiou-o, ro�ando os l�bios nos dela. Pena que n�o fui o primeiro.
Assustada, a menina recuou e se desvencilhou dele, correndo porta afora, e as imagens se misturaram e passaram correndo pela tela e a mente de Luciana, ora indo
para frente, ora para tr�s. Em dado momento, tornaram a parar, e l� estava Robert novamente, deitado ao lado da mesma menina. Ela agora estava com ar mais descansado,
aparentando paix�o nos gestos e na voz.
- Mister Robert - falou ela, quase num sussurro -, quando � que o senhor vai me tirar da minha casa?
- Tenha calma, menina. Voc� ainda � muito jovem, e seu pai n�o vai permitir. Voc� n�o quer que eu seja acusado de rapto, quer?
- Oh! N�o! Mas � que eu gosto tanto do senhor!
Novamente, as imagens se misturaram, at� pararem no mesmo quarto, em outro momento, e a menina dizia novamente:
- Estou esperando, mister Robert. Meu pai j� est� ficando desconfiado.
- Voc� tem que ter paci�ncia, j� disse. N�o posso me casar com voc� assim, de uma hora para outra.
- Mas o senhor disse que me amava. E eu amo tanto o senhor!
- Se me ama de verdade, ent�o vai ter que esperar.
As imagens deram outra volta, e mais outra, e todas mostraram a Luciana a mesma cena que se repetia: a menina declarando o seu amor e suplicando a Robert que se
casasse com ela. Por fim, uma �ltima cena preencheu a tela, e a menina ia dizendo, aos prantos:
- Isso n�o est� certo! O senhor prometeu.
- Deixe de sandices, menina! Ent�o n�o v� que n�o posso me casar com voc�?
- Mas o senhor prometeu. Disse que me levaria embora da minha casa.
- E voc� acreditou? Ora, vamos, mas quanta burrice.
- O senhor mentiu para mim.
- Eu at� que tinha vontade de lev�-la comigo para bem longe daqui, mas isso n�o � poss�vel. Tenho neg�cios a cuidar, e minhas garotas dependem de mim.
- N�o posso ser uma de suas garotas?
- Voc� �. N�o lhe arranjo clientes especiais?
- O senhor s� me arranja velhos.
- Isso � porque eu gosto de voc� e n�o quero correr o risco de que voc� se envolva com nenhum jovem galante.
Era mentira. A menina, de nome Mariana, era oferecida aos velhos e ricos fidalgos porque era jovem e pouco experiente, o que rendia um dinheiro extra a Robert. As
mo�as de seu prost�bulo s� atendiam homens do povo, sem muitos recursos, porque os nobres se recusavam a pisar num bordel sujo, com mulheres castigadas pelo tempo
e malvestidas. O futuro de Mariana, fatalmente, seria aquele, mas enquanto ela ainda era jovem e fresca, Robert podia se aproveitar para extrair um pouco mais de
dinheiro daqueles homens ricos e nobres, que procuravam mulheres fora do lar e pagavam bem em troca de seu segredo. E, enquanto elas serviam aos ricos, serviam tamb�m
a ele, porque Robert n�o gostava de mulheres velhas e usadas, mas s� das menininhas de corpo rijo e doce.
- Quero me casar com o senhor - prosseguiu Mariana. Se n�o, vou contar tudo a meu pai.
- Voc� n�o faria isso. Ele a expulsaria de casa.
- Mas mataria o senhor primeiro. Meu pai � soldado da guarda real e n�o vai deixar o senhor sair impune.
- Soldado? Mas voc� n�o disse que seu pai era artes�o?
- Disse. Mas s� porque tive medo de que o senhor n�o me quisesse. Ou acha que eu me deitei com aqueles porcos velhos por causa do dinheiro? Deitei-me com eles para
agradar o senhor, porque era o que o senhor queria, mas o que eu queria mesmo era me deitar com o senhor.
- Por que fez isso, menina? N�s dois podemos acabar muito mal.
- Eu sempre via o senhor da minha janela... t�o bonito t�o distinto... Apaixonei-me pelo senhor s� de v�-lo passar.
- Voc� � louca? O que est� dizendo?
- Estou dizendo que fiz o que fiz por amor ao senhor. E agora que consegui o que queria, n�o posso perder. O senhor vai ser sempre meu. Se eu falar com o meu pai,
ele vai obrigar o senhor a se casar comigo.
- Ele vai me matar! Voc� mesma disse.
- S� se o senhor n�o quiser se casar. Meu pai tem verdadeira adora��o por mim e nunca me mataria.
- N�o fa�a isso, Mariana! N�o posso me casar. Voc� � s� uma menina!
- E o senhor � um homem muito mau. Enganou-me para conseguir o que queria, fez-me milh�es de promessas e agora quer fugir ao seu compromisso. Meu pai precisa saber
disso.
- Se seu pai me matar, voc� vai ficar sem mim. N�o � isso o que voc� quer, �?
- N�o. Mas prefiro v�-lo morto a v�-lo nos bra�os de outra mulher. Ou o senhor se casa comigo, ou n�o vai ser de mais ningu�m.
- Voc� � louca! Louca! Devia estar num sanat�rio!
Robert estava apavorado. Casar-se com aquela doidivanas era a �ltima coisa que desejava. J� estava ficando cansado dela e pretendia terminar tudo, mas aquela revela��o
o deixou estarrecido e amedrontado. Mariana mentira, dizendo que o pai era artes�o, mas ele era um soldado, provavelmente violento, que n�o hesitaria em matar o
homem que tivesse roubado a honra de sua �nica filha. O que poderia ele fazer?
- Ele j� sabe sobre n�s? - perguntou Robert, o rosto iluminado pela terr�vel id�ia que tivera.
- Ainda n�o.
- Contou a mais algu�m sobre n�s?
- N�o, j� disse. Ningu�m sabe. Por enquanto.
- Pois ent�o - tornou ele, um brilho frio no olhar -, ningu�m nunca vai saber.
De um salto, Robert agarrou o pesco�o de Mariana, que come�ou a se debater assustada, nos olhos uma indiz�vel express�o de surpresa e dor. Ela era pequena e fr�gil
e, em poucos minutos, tudo estava terminado. Depois que ela morreu, Robert enrolou o seu corpo num cobertor e, altas horas da madrugada, colocou-o numa carruagem
e saiu com ele da cidade. Chegou a um rio turbulento e profundo, e amarrou v�rias pedras no corpo de Mariana, atirando-o na �gua. As �guas imediatamente o tragaram,
e o corpo de Mariana sumiu para sempre; nunca mais foi encontrado. O desaparecimento de Mariana foi um mist�rio. Ningu�m sabia que ela e Robert se encontravam. As
mo�as do bordel nem desconfiavam de que ele estava dormindo com uma menina. Apenas Rani, sua preferida e confidente, sabia de seu envolvimento com ela, mas Rani
nunca disse nada. O pai de Mariana ficou feito louco, procurando-a por toda parte, afirmando que ela era um pouco estranha e perturbada, sempre fantasiando as coisas,
e precisava de cuidados, mas n�o conseguiu apurar nada. Os fidalgos que se deitaram com ela, por medo e vergonha, se calaram, at� que ningu�m nunca mais ouviu falar
da pobre e pequenina Mariana. Nesse ponto, as imagens se desvaneceram na mente de Luciana, e a tela projetada na parede do quarto se dissolveu. Luciana encarou Rani
com l�grimas nos olhos e se ajoelhou diante dela, enla�ando seus joelhos. Em seguida, deitou a cabe�a em seu colo e simplesmente chorou. Rani teve que aguardar alguns
minutos at� que as l�grimas de Luciana secassem. As lembran�as haviam levado a mo�a a extrema como��o, e ela sentia a dor da culpa pesar sobre seus ombros.
- Agora compreendo tudo - lamentou-se Luciana, ainda agarrada ao colo de Rani. Pobre Cec�lia... foi aquela menina.
- N�o fui autorizada a lhe trazer essas lembran�as para que voc� se sentisse culpada.
- Como � que voc� acha que eu deveria me sentir? Agora me lembro de quem fui e do que fiz a ela. Acha que � f�cil saber que matou algu�m?
- � por isso que temos consci�ncia: para que ela nos alerte sobre o que fizemos de bom ou mau, de certo ou errado, mas para que possamos consertar e evoluir.
N�o � para nos castigar nem para nos infligir puni��es.
- Mas e o remorso?
- O remorso � muito bom, porque � atrav�s dele que reconhecemos o mal que fizemos. Mas n�o encare o mal como essa coisa terr�vel e conden�vel. O mal � parte
do crescimento humano, porque � atrav�s dele que aprendemos o valor do bem. E, mais cedo ou mais tarde, todo mundo aprende.
- Ah! Rani, o que foi que eu fiz? Eu nasci homem e abusei das mulheres. E hoje, vim como l�sbica para aprender o qu�?
- Voc� nasceu mulher para experienciar o universo feminino que tanto desprezou. Robert jamais acreditou que as mulheres possu�ssem intelig�ncia e vontade.
Para ele, as mulheres eram objetos in�teis e descart�veis. Quando jovens e belas, serviam para o prazer. Se feias, tinham utilidade nas tarefas dom�sticas. As velhas
eram dispens�veis e podiam ser abandonadas. Quantas mulheres Robert colocou na rua porque, ao envelhecer, ficavam impedidas de trabalhar ou n�o despertavam mais
o interesse dos homens? Quantas mo�as gr�vidas ele abandonou porque n�o podiam mais se deitar com ningu�m? E quantos abortos provocou para n�o perder os seus lucros?
Foram muitos lares desfeitos, muitas vidas perdidas, muitas esperan�as destru�das.
- Obrigada, Rani, isso s� faz com que me sinta mais culpada - ironizou Luciana.
- Pois n�o devia. Devia era agradecer a Deus a oportunidade que teve de reencarnar e se modificar. Eu ainda n�o consegui essa chance.
- Por que n�o?
- Porque s� queria estar junto de voc�, e isso n�o ser� poss�vel.
- E voc�, Rani? Onde � que entra nisso tudo?
- J� disse que voc� me trouxe da �ndia para a Inglaterra, e depois, para o Brasil. Eu sempre fui a sua preferida, a �nica que voc� respeitava e a quem realmente
amou. Mas n�o era a �nica em sua vida, apesar de voc� sempre voltar para mim. Tive que suportar muitas humilha��es para ter voc� ao meu lado.
- N�o tem �dio de mim?
- Meu cora��o n�o aprendeu a odiar, s� a amar. Durante muito tempo, procurei-a, porque queria estar perto de voc�, partilhar da sua vida, mesmo que no mundo astral.
Demorei muito a encontr�-la, porque procurava um homem. Mas os seus pensamentos acabaram me atraindo, e eu a reconheci sob essa capa de mulher. O amor que sentia
naquela �poca, ainda sinto, mas o desejo que experimentei em sua companhia esfriou quando a vi. Foi bom, porque pude perceber o que �, realmente, o amor. Tanto faz,
para mim, que voc� seja homem ou mulher. O que sinto por voc� vem daqui de dentro - ela colocou uma das m�os sobre o seu cora��o e outra sobre o cora��o de Luciana.
Quando entendi isso, ficou mais f�cil perdo�-la.
- Voc� me perdoou?
- J� disse que sim. Sabe, Luciana, quando desencarnei, passei algum tempo no astral inferior, presa � paix�o que sentia por voc�. Mas, depois que voc� sumiu, fiquei
pensando... de que me valia tanto sofrimento se voc� j� n�o estava mais ali? E, ainda que estivesse, do que valia, para mim, estar ao seu lado naquele momento de
solid�o e dor? Resolvi partir tamb�m. Os esp�ritos que me acolheram ressaltaram que eu possu�a muitas qualidades e as foram mostrando a mim, uma a uma. Disseram
que eu era uma pessoa generosa e boa, amiga de todos, compreensiva, sens�vel, honesta e sincera, incapaz de maltratar ou de querer mal a quem quer que fosse, ainda
que a meus inimigos, e acima de tudo dotada de grande capacidade de amar. Meu �nico problema, eles diziam, era o apego que sentia por voc�.
- E as outras mulheres? Tamb�m pensam como voc�?
- A maioria a odeia, mas muitas desistiram de voc� quando a encontraram nesse corpo. Disseram que n�o tinha gra�a se vingar de um homem que agora era mulher. Outras
sequer a encontraram, porque estavam t�o presas ao sexo e � sua masculinidade que n�o conseguiram enxergar, no corpo de Luciana, a alma do Robert de antigamente.
- Pelo que voc� est� me dizendo, eu nasci mulher para fugir das minhas inimigas. � isso?
- Mais ou menos. N�o para fugir, propriamente, mas para ter liberdade de viver as suas experi�ncias sem interfer�ncias indesej�veis.
- N�o sei se adiantou muito vir mulher...
- Se est� se referindo ao fato de ser l�sbica, isso n�o tem nada a ver com os seus projetos. A sua prefer�ncia sexual, � claro, est� ligada � sua sexualidade do
passado. Voc� sempre foi um homem atra�do pelas mulheres, com uma sexualidade muito ativa e forte. Mas n�o foi para compreender a feminilidade sexual que voc� reencarnou
como mulher. Voc� nem fez disso um plano de vida. Voc� gosta de mulheres porque sempre gostou, isso est� impregnado em sua alma. Continua com essa prefer�ncia porque
isso n�o influi nos seus projetos de crescimento. Tanto faz que voc� goste de fazer sexo com homens ou mulheres. Sua necessidade � de valoriza��o dos ensinamentos
morais, de amor e respeito ao seu semelhante.
- E eu n�o poderia conseguir isso reencarnando como homem?
- Se voc� tivesse vindo homem, estaria usando as mulheres, talvez n�o da mesma forma, porque os tempos hoje s�o outros, mas continuaria n�o tendo respeito por elas,
julgando-as seres inferiores e servis. Talvez voc� se casasse, e sua esposa seria praticamente uma escrava, sem vontade ou direitos. Se tivesse filhas, n�o permitiria
que elas estudassem nem que vivessem suas pr�prias vidas, mas as criaria para o lar e para servir a seus maridos. Se possu�sse empregadas a seu servi�o, iria discrimin�-las
e trat�-las como subalternas, pagando-lhes sal�rios menores e dando-lhes cargos inferiores aos dos homens. Foi para isso que voc� veio mulher: para ter essa compreens�o
de que homens e mulheres s�o iguais em import�ncia no mundo, e o papel que cabe � mulher na sociedade n�o a torna incapaz de exercer as suas pr�prias escolhas nem
de dar vaz�o � intelig�ncia e � liberdade de seguir o destino que eleger. Uma mulher pode ser carinhosa e m�e, ao mesmo tempo em que est� apta a estudar e seguir
a carreira que quiser.
- � algo a se pensar, Rani.
- O que voc� fez no passado n�o deve influir nessa vida a ponto de pensar em deix�-la antes do tempo programado. Voc� precisa voltar.
- Entendo o que voc� diz, mas, no fundo, no fundo, n�o sei se sinto alegria nessa vida. Acho que as culpas, inconscientemente, me levam a querer desistir.
- Voc� n�o pode desistir. Pense no que j� conquistou at� agora.
- Estou pensando no que ainda n�o consegui conquistar. A atitude de Cec�lia me fez pensar na minha falta de amor. Sou uma mulher muito sozinha, e isso me d�i bastante.
- D�i porque voc� estava acostumada a viver rodeada de mulheres, mas agora n�o tem ningu�m.
- N�o sei, Rani. Sinto que falta alguma coisa. Um amor, talvez... um amor de verdade.
Os olhos de Luciana se encheram de l�grimas, bem como os de Rani. Naquele momento, Luciana tinha vividas na mem�ria as lembran�as de todas as mulheres que conhecera
em outras vidas, inclusive de Marcela, que fora uma das que mais abusara, e de Rani, que sempre fora sua companheira e amiga. Agora compreendia o vazio dentro de
si e o desejo oculto que a levava a pensar em retornar ao mundo espiritual, ainda que, conscientemente, seu c�rebro f�sico n�o tivesse aquela impress�o.
- Voc� n�o deve se sentir assim - falou Rani, lendo-lhe os pensamentos. Por mais que eu a ame, n�o poderei estar com voc�.
- Estou t�o cansada! Tenho medo de estar usando as mulheres novamente, como fazia antes.
- Isso n�o est� acontecendo. Voc� as respeita, porque � uma delas e sabe o quanto de potencial possui para fazer coisas boas e produtivas.
- Mas n�o consigo amar ningu�m. Nem Marcela, que viveu comigo tantos anos.
- Voc� e Marcela j� aprenderam a se amar, e � por isso que n�o est�o mais juntas. Marcela agora tem outras experi�ncias para viver, assim como voc� tem as suas.
Sei que voc� n�o quer mesmo morrer. Est� apenas triste e cansada, mas vai superar Voc� � um esp�rito forte e determinado, e n�o vai desistir da vida com tanta rapidez.
- Voc� tem raz�o, mas eu preciso de um pouco mais de tempo para pensar.
- E voc� ainda tem uma tarefa a cumprir.
- Que tarefa?
- Algo que vai ajud�-la a compreender o que seja o ser feminino.
- O que �?
- Logo vai descobrir. Quando chegar o momento, virei prepar�-la.
- Para qu�?
- N�o quero deix�-la curiosa nem apressar o curso das coisas. Vim apenas alert�-la de que h� uma miss�o muito importante em sua vida, que impulsionar� o seu crescimento.
- N�o sei do que est� falando, mas confio em voc�.
- �timo. E agora, volte logo, que � para n�o causar danos ao seu corpo f�sico. E, se precisar, chame por mim. Virei ajud�-la, se puder.
Rani e Luciana trocaram um abra�o efusivo, e o esp�rito de Rani desapareceu num piscar de olhos. Durante algum tempo, Luciana ficou fitando o lugar vazio onde ela
estivera e depois se virou para o corpo f�sico, deitado na cama branca do hospital. Caberia a ela decidir se aquele corpo viveria ou n�o, o que a assustava um pouco.
Ela sempre achara que a vida ou a morte eram estados de poder, e esse poder estava nas m�os de Deus. E estava. Deus era soberano em todas as coisas, mas deixava
a seus filhos o livre-arb�trio para direcionar as suas vidas. Tratava-se de uma concess�o, e Luciana pensou que deveria aproveitar aquela concess�o da melhor forma
poss�vel. Por isso, sabia que tinha que retornar e, na volta, tentaria fazer diferente. Ainda havia a misteriosa tarefa que Rani dissera que lhe cabia. Embora n�o
soubesse do que se tratava, algo em seu �ntimo lhe dizia que era importante. Era algo relacionado ao ser feminino, algo que talvez transformasse a sua vida para
sempre. Luciana nem desconfiava o que poderia ser, mas sua alma se agitou e se colocou na expectativa. O tempo estava come�ando a esquentar, ap�s uma breve e refrescante
chuva, e Ariane n�o queria ficar em casa e perder a oportunidade de sentir na pele a proximidade do ver�o. Estava se preparando para sair quando a m�e veio cham�-la
ao telefone.
- Quem �? - perguntou Ariane desinteressada.
- � a m�e de Fl�vio. Disse que � urgente.
Dolores detestava ter que falar com Anita e, por isso, raramente telefonava para sua casa. Mas era imperioso que conversasse com Ariane, ou ela acabaria estragando
todos os seus planos.
- Al�? - disse Ariane ao telefone.
- Venha a minha casa imediatamente - ordenou Dolores, com voz arrogante. Estou esperando.
Desligou antes que Ariane pudesse responder. Pelo tom de sua voz, Dolores parecia bem aborrecida, o que s� podia ter uma raz�o: ela presenciara Ariane em companhia
de Marcela, e era vis�vel a amizade que entre as duas havia se firmado. Ariane pensou em n�o ir, mas sentiu inc�moda hesita��o. Afinal, travar amizade com Marcela
fora id�ia de Dolores, na tentativa de descobrir algo no passado da mo�a que pudesse aniquilar o seu relacionamento com Fl�vio. No meio do processo, Ariane come�ou
a mudar de id�ia, em fun��o do afeto e da verdadeira amizade que j� sentia por Marcela. Chegou mesmo a pensar em desistir, mas algo lhe dizia que estava chegando
perto de conhecer algum segredo importante da vida de Marcela, um segredo que talvez a ajudasse a reconquistar Fl�vio. E aquele segredo parecia estar relacionado
a uma mo�a chamada Luciana, que Ariane n�o conhecia e de quem nunca antes ouvira falar, nem mesmo pela pr�pria Marcela. Fora por acaso que ela deixara escapar aquele
nome, em tom de nervosismo e medo, o que dava a Ariane a certeza de que Marcela e Luciana eram c�mplices em algum segredo s�rdido e escuso. Mas teria ela o direito
de vasculhar a vida de Marcela e revelar esse segredo, se � que havia realmente um? De toda sorte, era melhor atender o chamado de Dolores. Ela estava zangada, e
com certa raz�o, porque presenciara uma camaradagem entre Marcela e Ariane que jamais deveria existir. Poucos instantes depois, Ariane entrava na casa de Dolores,
que a aguardava com impaci�ncia.
- At� que enfim! - exclamou Dolores. Pensei que n�o fosse aparecer mais.
- Estive ocupada... - desculpou-se a mo�a, � falta de coisa melhor para dizer.
- Fazendo o qu�? Voc� n�o trabalha nem estuda. Gasta a vida em butiques e restaurantes. Ser� que n�o lhe sobra tempo para prestar contas de suas atividades a sua
futura sogra? Ariane n�o disse nada. Queria protestar, mas havia uma supremacia nas palavras e nos gestos de Dolores que a fazia calar-se. Muito bem, explique-se.
- Explicar-me? - balbuciou Ariane. Como assim?
- N�o se fa�a de tonta, menina! Vi muito bem a forma como voc� e Marcela se tratavam. Pareciam at� grandes amigas!
- Foi impress�o sua. Quero dizer, Marcela at� que � uma garota legal, mas...
- Uma garota legal? - esbravejou ela, os olhos chispando fogo. Voc� j� se esqueceu de que foi ela quem lhe tomou o noivo?
- N�o.
- Pois ent�o, comece a agir como se ela fosse sua inimiga. Do contr�rio, de nada adiantar� essa farsa.
- Isso n�o � verdade, Dolores. Voc� n�o sabe o que est� acontecendo.
- Pelo visto, muitas coisas est�o acontecendo, e uma delas � que voc� e Marcela se tornaram amigas. Ser� que ela vai convidar voc� para ser madrinha do seu casamento?
- N�o diga uma coisa dessas. Fl�vio vai se casar comigo - concluiu ela, sem muita convic��o.
- Voc� n�o me parece muito segura disso.
- As coisas n�o s�o t�o f�ceis como voc� pensa. E depois, Marcela � uma pessoa com sentimentos...
- Voc� est� desistindo do nosso plano? � isso? Encantou-se pela pobretona e est� querendo partilhar com ela sua vida ingl�ria? O que h�? � monotonia? Cansou-se da
vida regalada e farta que voc� leva? Da vida que eu lhe dei, porque, sem a minha ajuda financeira, o seu pai j� teria falido!
- O qu�?! Que hist�ria � essa? Meu pai tem a cl�nica...
- Que quase faliu quando Justino se retirou da sociedade. E quem voc� pensa que ajuda seu pai a manter aquela porcaria? Sua m�e? - ela n�o respondeu. Voc� n�o sabe,
n�o �, sua tonta, mas quem d� apoio financeiro ao incompetente do seu pai sou eu. E sabe por qu�? Porque quero que a filha dele se case com o meu filho. Vim preparando
voc� desde pequena para isso e n�o admito que voc� me traia agora. Ou voc� segue adiante com o plano e se casa com Fl�vio, ou pode ir procurando uma cama vaga no
apartamento f�tido da sua amiguinha. Voc�, sua m�e e seu irm�ozinho!
Aquilo era uma humilha��o. Por que o pai nunca dissera que mantinha a cl�nica gra�as � ajuda de Dolores? Ser� que a m�e sabia daquilo? N�o devia saber, porque nunca
comentara nada.
- Por que est� sendo t�o cruel, Dolores? Voc� sabe que amo Fl�vio, mas n�o me julgo capaz de concluir esse plano.
- Ah! N�o? Quero ver s� quando voc� estiver debaixo da ponte, o que � que vai pensar. Vai se arrepender de n�o haver seguido as minhas ordens.
- O que voc� quer que eu fa�a? - tornou Ariane, em l�grimas. J� tentei, mas n�o consegui nada. N�o � culpa minha se Marcela � uma boa pessoa...
- N�o acredito nisso! Ela esconde alguma coisa, sei que esconde! E voc� sabe o que �!
- N�o sei de nada...
- Imposs�vel. Voc� n�o sabe mentir. Est� em seus olhos que descobriu alguma coisa. O que �? Vamos, fale. Eu exijo que me conte a verdade!
- N�o sei se � importante - hesitou Ariane, oprimida pela irresist�vel for�a de Dolores.
- Ah! Ent�o existe algo, n�o �? O que �? Diga-me!
- N�o � nada... quero dizer, � apenas uma suspeita, nada de concreto.
- Que suspeita � essa? Fale logo, Ariane, porque eu j� estou perdendo a paci�ncia! O que est� esperando? Fale, ou vou p�r o seu pai na fal�ncia!
A amea�a era muito grave para Ariane resistir. Ela era jovem e achava que podia se virar sem o luxo e o conforto, mas o que dizer da m�e e do irm�o? A m�e j� n�o
tinha mais idade para procurar emprego e n�o sabia fazer nada, e o irm�o ainda estava estudando. E quanto ao pai? Ariane n�o se importava com ele. Era por culpa
dele que ela agora se encontrava nessa situa��o, mas n�o podia permitir que a incapacidade do pai colocasse em risco a vida de todos na sua fam�lia.
- Marcela tem uma amiga... - come�ou ela a dizer, entre a contrariedade e o medo.
- Que amiga?
- O nome dela � Luciana.
- E da�? O que tem essa amiga demais?
- Desconfio que ela e Luciana guardem algum segredo. Acho que compartilharam algo escuso ou il�cito, n�o sei.
- Por que pensa assim?
- No dia em que voc� esteve l�, Marcela deixou escapar o nome de Luciana e ficou muito nervosa com isso.
- Hum... O que voc� acha que pode ser?
- N�o sei ao certo. Pensei em drogas ou prostitui��o.
- Sim! - berrou Dolores de repente. S� pode ser isso. Ela mora sozinha e j� mant�m rela��es com Fl�vio h� muito tempo. E meu filho n�o foi o primeiro, tenho certeza.
A infeliz veio de Campos e, n�o tendo como sobreviver, tratou logo de se prostituir. Deve ter conhecido essa tal de Luciana na vida, e ela a apresentou �s drogas.
Todo mundo se droga quando as coisas v�o mal, n�o � mesmo?
- Pode ser. O fato � que Luciana sabia, inclusive, da tentativa de suic�dio.
- Sabia? Mas que interessante! Deve ter sido por isso que ela tentou se matar. A vida foi ficando dura, ela deve ter apanhado de algum malandro e j� devia estar
cheia de maconha ou hero�na quando resolveu que viver assim n�o valia a pena. Vai ver que foi por isso que tentou dar cabo da pr�pria exist�ncia. Menina idiota!
Nem se matar conseguiu!
- Por falar nisso, por que voc� foi falar sobre o suic�dio com Marcela? Ela est� pensando que foi o Fl�vio quem contou.
- E da�? Melhor que pense. Vai achar que n�o pode confiar nele e, quem sabe, n�o cai fora? - Ariane n�o respondeu, e Dolores prosseguiu: Se essa tal de Luciana sabia
da tentativa de suic�dio, � porque deve ser uma pessoa bem chegada, voc� n�o acha? �ntima mesmo. Ser� que Fl�vio sabe a seu respeito?
- N�o sei.
- Precisamos descobrir mais. Voc� est� no caminho certo, Ariane, algo me diz que est�. Em breve, essa vagabunda vai se delatar e vai colocar todos os podres para
fora.
- Ela � professora concursada. N�o deve ser nenhuma vagabunda. Pensando melhor agora, essa hist�ria est� muito exagerada. Nunca ouvi falar de prostitutas drogadas
que consigam se formar professoras e ainda passar num concurso p�blico.
- �, isso � esquisito. Mas talvez ela s� puxasse um baseado de vez em quando, para diminuir a dor da sua mis�ria. Devia estudar de dia e se prostituir � noite. Isso
n�o � t�o incomum assim. Depois que se formou, abandonou a vida e as drogas, mas duvido que tenha contado algo a Fl�vio. Se isso for verdade, ele precisa saber.
Pelo bem da nossa fam�lia, Fl�vio tem que ser alertado sobre o passado sombrio e negro dessa mo�a.
- V� com calma, Dolores. N�s nem sabemos se isso � verdade.
- � por isso que voc� tem que voltar l� e descobrir. N�o quero fazer intrigas infundadas, porque Fl�vio n�o � nenhum tolo e, se n�o for verdade, ele vai se voltar
contra mim.
- E se ele j� souber de tudo? E se ela lhe contou e ele a aceitou desse jeito? Afinal, foi ele quem cuidou dela no hospital.
- Duvido muito. Ela deve ter inventado uma hist�ria comovente, e Fl�vio, cora��o mole, caiu direitinho. Mas eu sei a cria��o que dei a meu filho e duvido muito que
ele aceitasse se casar com uma prostituta.
- Marcela diz que tentou se matar por causa de um ex-namorado.
- Muito conveniente, n�o � mesmo? Uma mo�a pobre e sozinha, seduzida e abandonada pelo namorado numa cidade grande. Quer algo mais tocante e comovente? O tolo do
Fl�vio logo amoleceu e resolveu que tinha que cuidar da pobrezinha. Est� a� a mentira.
- N�o sei, Dolores, algo nessa hist�ria n�o cai bem. Ela n�o combina com a personalidade de Marcela.
- Marcela � uma idiota que pensa que � esperta. Se ela acha que vai dar o golpe do ba� no meu filho, est� muito enganada. N�o vou permitir!
- Engra�ado, n�o �? Voc� n�o quer que Fl�vio se case com Marcela porque ela � pobre. No entanto, pelo que voc� mesma disse, eu n�o estou muito longe de me tornar
t�o ou mais pobre do que ela.
- � diferente, meu bem - ironizou. Voc� tem ber�o, tem estilo. Sua fam�lia � do nosso meio, e voc� n�o vai causar coment�rios em sociedade.
-Ser� mesmo por isso? Ou ser� porque voc� espera a minha gratid�o e a minha obedi�ncia?
- Isso n�o tem import�ncia. O que importa � que voc� � a mulher ideal para o meu filho. Venho sonhando com esse casamento desde que voc� nasceu. N�o � justo que
Fl�vio destrua os meus sonhos de m�e. Ele n�o tem esse direito.
- Ele n�o tem o direito de ser feliz?
- Ele n�o sabe o que � felicidade. Se ele se casar com essa mo�a, vai ver como o preconceito da sociedade pode torn�-lo extremamente infeliz. Estou lhe fazendo um
favor e, mais tarde, ele ainda vai me agradecer.
- Acho que voc� est� sendo ego�sta. Est� pensando apenas em si mesma e nas apar�ncias sociais.
- Quem � voc� para me julgar, menina? - enfureceu-se ela. N�o me queira como inimiga, porque posso destruir voc� e a sua fam�lia com uma simples assinatura.
- E voc� seria bem capaz disso, n�o � mesmo?
- Quer experimentar?
- N�o precisa. Sei bem quem voc� �.
- Voc� devia estar do meu lado. Fiz tudo por voc�, para que seja feliz com o homem que ama. Por que se volta contra mim agora?
- � voc� que est� contra o mundo, Dolores. Pensa que o mundo lhe pertence e n�o se conforma que ele gire em dire��o contr�ria � que voc� pretende.
- Muito bonito e filos�fico, mas n�o quer dizer nada. O mundo n�o me pertence por inteiro, mas existe uma parcela dele que eu posso comprar.
- Voc� n�o pode comprar amor. E � por isso que vai acabar sozinha nesse seu mundo de riquezas e dinheiro.
- Pare com essa discuss�o tola - cortou ela irritada. N�o gosto de serm�es nem de digress�es moralistas. E depois, voc� n�o � ningu�m para me dar li��es de moral.
Deixe de lado as crises de consci�ncia e alie-se a mim. Ver� que s� tem a lucrar.
A vontade de Ariane era de chorar, mas nem l�grimas ela conseguia mais verter. S� agora conseguia enxergar a mulher mesquinha e ego�sta que era Dolores. E acabara
se deixando envolver por suas maldades. Em sua paix�o irracional por Fl�vio, embrenhara-se num caminho de trai��o do qual n�o via mais como voltar. N�o gostaria
de levar adiante aquele plano p�rfido, mas tinha que pensar em sua fam�lia. A noite mal dormida e os pesadelos constantes impediram Marcela de ir � escola naquele
dia. A visita que fizera a Luciana na v�spera a deixara transtornada e aflita, e do�a-lhe no cora��o lembrar-se da imagem da amiga, toda ligada a tubos e fios, jogada
inerte na cama daquele hospital. Apanhou o telefone e ligou para a escola, informando que n�o poderia ir naquele dia. N�o era seu costume faltar. Nem as faltas mensais
a que tinha direito, ela costumava tirar. Por isso, ningu�m reclamou de sua aus�ncia, e ela tranq�ilizou a diretora afirmando que apenas n�o se sentia muito bem.
Foi para a cozinha preparar um caf� e ligou para Fl�vio v�rias vezes naquela manh�. Sentia-se insegura e com medo, porque o estado de Luciana lhe despertava muitas
preocupa��es, ao mesmo tempo em que a assustava a possibilidade de que, com isso, Fl�vio viesse a descobrir a natureza de sua liga��o. J� perto da hora do almo�o,
vencida pelo cansa�o, recostou-se no sof� e acabou adormecendo, s� despertando quando a campainha da porta come�ou a tocar insistentemente. Marcela se levantou sonolenta
e olhou o rel�gio da parede. Passava de duas horas da tarde, e o est�mago doeu de repente. Ela passara a manh� toda sem se alimentar e agora sentia fome. Mas n�o
tinha vontade de preparar nada nem se animava a sair para comer. Quando Marcela abriu a porta, ouviu a exclama��o de Ariane, que a encarava com ar de espanto:
- O que foi que houve, Marcela? Estou h� meia hora tocando!
- Eu dormi, Adriana. Passei a noite em claro e acabei pegando no sono no sof�.
- Voc� n�o foi trabalhar hoje. Fiquei preocupada.
- N�o estou me sentindo bem.
- Voc� est� com uma cara horr�vel! Est� doente?
- N�o se preocupe, n�o � nada.
- Ningu�m fica assim por nada. Se n�o est� doente, o que foi que houve?
- N�o estou me sentindo bem, j� disse.
- Mas o que voc� tem? � dor de cabe�a? De barriga? C�lica?
- Por favor, Adriana, eu estou bem. Apenas gostaria de ficar sozinha, se n�o se importa.
- Quer que eu v� embora? - Marcela assentiu. Tem certeza?
Marcela n�o resistiu. N�o ag�entava mais guardar tanta dor dentro do peito sem poder partilh�-la com algu�m. A �nica com quem ainda podia falar sobre Luciana era
Ma�sa, mas ela quase n�o a via. Estava sozinha e apavorada, com medo de Luciana morrer e de acabar revelando a verdade a Fl�vio. Mas ela n�o queria realmente ficar
sozinha. Dissera aquilo s� porque sabia que, se Ariane ficasse, ela acabaria se abrindo e lhe contando o que a machucava tanto. E foi exatamente isso o que aconteceu.
Marcela se atirou no pesco�o de Ariane e desatou a chorar de tal forma que a outra ficou deveras preocupada.
- O que � isso? - perguntou Ariane, abra�ando a amiga com carinho. O que foi que houve?
- Oh! Adriana!
- Foi o Fl�vio? Voc�s brigaram? - ela meneou a cabe�a, e Ariane prosseguiu deveras preocupada: Foi a m�e dele? Ela lhe fez alguma coisa?
- N�o � nada disso... Mas eu estou t�o desesperada!
- Por que voc� n�o se acalma e me conta o que aconteceu? Sou sua amiga, quero ajud�-la.
- Ser� que posso confiar em voc�?
Ariane engoliu em seco e respondeu com uma quase convic��o:
- Voc� sabe que pode - o est�mago de Marcela roncou, e Ariane tornou com preocupa��o: J� almo�ou?
- Ainda n�o.
- Pois ent�o venha. S� sei fazer macarr�o, mas, pelo menos, voc� n�o morre de fome.
Enquanto Ariane apanhava as panelas e os ingredientes da macarronada, Marcela se sentou � mesa da cozinha e afundou o rosto entre as m�os, come�ando a chorar novamente.
- Estou me sentindo p�ssima... - balbuciou ela. Aconteceu algo t�o horr�vel!
- Com voc�? - ela negou. Com Fl�vio? - negou novamente. Ent�o, com quem?
- Luciana...
- Quem?
- Luciana. Lembra-se de que lhe falei sobre ela?
- Lembro-me de que voc� falou o nome dela, mas n�o me disse nada a seu respeito. O que foi que houve com Luciana?
- Voc� n�o sabe o quanto n�s somos amigas! E agora... - ela come�ou a chorar novamente, at� que conseguiu falar com voz sofrida: Tentaram mat�-la...
- Mat�-la? Mas quem, meu Deus? Foi assalto?
- N�o... foi... uma... ex... companheira...
- Meu Deus! E por que ela fez isso? Foi por causa de algum namorado?
- Voc� n�o entendeu. Luciana n�o tem namorado. Ela tem...
- Tem o qu�? Um amante?
- N�o. - Marcela achou que j� era hora de parar de divagar e, enchendo-se de coragem, disparou: Na verdade, Luciana foi esfaqueada pela mulher que era sua amante.
- O qu�?! - Ariane parou o que estava fazendo e abriu a boca, pasmada. Quer dizer que Luciana � l�sbica?
- �.
- Que coisa nojenta!
- N�o diga isso, Adriana, n�o � nojento. Somos apenas pessoas comuns.
- Somos? Marcela, n�o v� me dizer que voc� e essa Luciana... - calou-se, com medo das pr�prias palavras. Que voc� e ela tiveram... um caso!
- Tivemos. Sinto se a decepciono, mas a verdade � que eu fui perdidamente apaixonada por Luciana, e foi por causa dela que tentei me matar.
Nesse ponto, Ariane soltou as panelas e se sentou ao lado de Marcela, fitando-a com um assombro mudo. E ela, que imaginara tantas coisas que justificassem um segredo,
nem de longe pensara que Marcela pudesse ser l�sbica. Como poderia pensar aquilo, se ela e Fl�vio iam se casar?
- N�o estou entendendo - murmurou Ariane confusa. Voc� e Fl�vio... voc� o est� enganando?
- N�o. Fl�vio � tudo o que me resta, e eu o amo mais do que a pr�pria vida. No entanto, n�o posso negar a pessoa importante que Luciana foi e ainda � em minha vida.
- Isso � um disparate! - gritou Ariane, levantando-se da mesa e afastando-se de Marcela. E eu que pensei que voc� quisesse a minha amizade. O que pretendia comigo?
Seduzir-me? V� esquecendo, Marcela, porque n�o sou disso.
- Voc� est� sendo injusta, Adriana. Quando a conheci, era voc� quem estava procurando uma amiga. Foi voc� quem me procurou todas as vezes, quem ia ao meu trabalho
me esperar na hora da sa�da. E nunca, em todos esses momentos, sequer me passou pela cabe�a ter alguma rela��o �ntima com voc�. Gosto muito de voc�, mas � como amiga.
� Fl�vio que amo e � s� com ele que quero estar.
Raciocinando em cima das palavras de Marcela, Ariane se acalmou e tornou a se sentar, levantando-se em seguida para mexer a panela no fogo. N�o sabia o que fazer
e n�o queria encarar Marcela, por isso, p�s-se a preparar a comida, tentando pensar em algo para dizer.
- Como foi que isso aconteceu? - perguntou ela, lutando contra a indigna��o.
- O qu�?
- Como foi que voc� e Luciana...
- Como n�s nos conhecemos? - ela assentiu. N�s �ramos amigas em Campos...
De forma pausada e paciente, Marcela contou a Ariane toda a sua hist�ria desde que sa�ra de Campos, para ir atr�s de Luciana. Contou de seus primeiros anos juntas,
dos estudos, dos empregos, dos concursos, da for�a que Luciana sempre lhe dera e como a incentivara a ser algu�m na vida.
- Luciana trabalha como dentista? - perguntou Ariane, surpresa com a hist�ria que Marcela contara.
- Tem um consult�rio com uma amiga, e est�o indo muito bem, pelo que Ma�sa me disse.
- Ma�sa � outra de suas amantes?
- N�o. � a amiga que divide o consult�rio com Luciana. S�o amigas desde a faculdade, mas Ma�sa n�o � l�sbica, se � o que quer saber. � casada com um advogado, filho
de um desembargador.
- Como uma mulher que n�o � l�sbica pode ser amiga de outra que �?
- Amizade n�o tem nada a ver com sexo.
- Acho dif�cil. Quem n�o � l�sbica n�o aceita uma coisa dessas.
- N�o julgue os outros por si mesma. S� porque � preconceituosa, n�o quer dizer que todo mundo tenha que ser.
- Ou�a, Marcela, n�o tenho nada a ver com a vida dessa sua amiga Luciana. Se ela quer enveredar por esse caminho, o problema � dela. Mas o fato � que voc� me enganou.
Fez-se passar por algu�m que n�o �.
- Eu a enganei? Nunca menti para voc�. Apenas guardei um segredo que s� a mim pertence e j� me arrependo de ter revelado.
De repente, as palavras de Marcela provocaram, em Ariane, uma reflex�o sobre si mesma. Quem era ela para falar em enganar ou mentir? Marcela estava certa: ocultara-lhe
aqueles fatos porque sabia que ningu�m compreenderia, mas eram coisas que s� a ela diziam respeito e n�o faziam mal a ningu�m. Mas, e quanto a ela? Ariane, sim,
mentia e se fazia passar por algu�m que n�o era, s� para descobrir segredos com que pudesse destruir a vida de Marcela. Ser� que aquilo era correto? Onde estava
a sua capacidade de discernir e avaliar o que era certo ou errado? E depois, fora ela mesma quem dissera a Marcela que podia confiar-lhe o seu segredo. Que amiga
era aquela, afinal, que oferecia confian�a, mas o que dava mesmo era recrimina��o? E quem era ela para julgar? Se havia algu�m ali com uma conduta reprov�vel, esse
algu�m era ela, que se fingia de amiga quando, na verdade, n�o passava de uma impostora. Esses pensamentos envergonharam Ariane, que come�ou a se sentir mal com
tudo aquilo. De repente, percebeu que a verdade que Marcela lhe contara n�o era assim t�o terr�vel. Teria sido muito pior se ela fosse viciada, prostituta ou ladra.
Mas n�o. Marcela era uma mo�a direita e honesta, e ela n�o tinha como p�r em d�vida a sua amizade. Nunca fizera ou dissera nada que revelasse inten��es escusas.
Ao contr�rio, procurou ajud�-la em seu caso com o fict�cio Mike e deu-lhe s�bios conselhos referentes � problem�tica da m�e. Sempre se demonstrou muito apaixonada
todas as vezes que falava de Fl�vio. Afinal, onde � que estaria a raz�o? Se Dolores soubesse daquilo, seria um desastre. A primeira coisa que faria seria contar
a Fl�vio, e Ariane n�o sabia o que ele pensava sobre o assunto, porque nunca antes haviam conversado a respeito. Naquele ponto, ela come�ou a se sentir curiosa e
perguntou com mais calma:
- Seu namorado sabe disso?
- N�o.
Marcela estava magoada, o que era bastante compreens�vel.
- N�o fique chateada comigo, Marcela - desculpou-se Ariane.
- O que voc� queria? Contei-lhe o meu maior segredo, e voc� veio logo com um monte de recrimina��es. Acreditei que voc� era minha amiga, confiei em voc�, mas voc�
n�o p�de me compreender. Estou decepcionada comigo mesma, porque pensei que voc� fosse algo que realmente n�o �.
- Como assim? - tornou Ariane assustada.
- Pensei que voc� fosse compreensiva, mas agora vejo que � igual a todo mundo: preconceituosa e cr�tica.
- Perdoe-me, Marcela, eu n�o quis criticar voc� nem nada. Mas � que voc� me pegou de surpresa. Jamais poderia imaginar que voc� fosse l�sbica.
- Eu n�o sou. Luciana diz que n�o, porque estou apaixonada por Fl�vio e pretendo me casar com ele. E, ainda que fosse, o que isso tem demais? Por acaso diminuiu
a amizade que sinto por voc�, e voc� sente por mim?
- N�o sei... Acho que n�o...
- Voc� n�o sabe de nada mesmo. Veja Ma�sa, por exemplo. Voc� n�o a conhece, mas ela sempre foi muito amiga de Luciana. No come�o, at� eu senti ci�mes, mas depois
percebi que o que havia entre as duas era amizade mesmo. Ma�sa nunca se importou com a homossexualidade de Luciana nem se preocupou com o que os outros poderiam
falar. � amiga porque �, porque gosta de Luciana, porque sente com o cora��o. N�o acha isso bonito?
- Se � como voc� diz, � bonito, sim - ela se calou por uns instantes, fitando a outra e se permitindo sentir apenas com o cora��o. E quer saber? Voc� tem raz�o.
Acho que eu me deixei impressionar pelo preconceito da sociedade e me esqueci de dar mais valor ao sentimento. Amizade n�o tem pre�o. Preconceito � descart�vel.
Gosto de voc� assim mesmo, Marcela.
- Eu n�o sou l�sbica, Adriana. N�o mais. Mas n�o posso negar ou me envergonhar do que senti por Luciana nem do que ela representou em minha vida. S� tenho medo �
que Fl�vio n�o entenda isso.
- Foi por isso que n�o lhe contou?
- Eu tentei, v�rias vezes. Mas ele j� me deu a sua opini�o a respeito, e n�o � muito favor�vel. Tenho medo de perd�-lo.
Em vez de sentir-se vitoriosa com o segredo que, finalmente, conseguira arrancar de Marcela, Ariane descobriu-se preocupada com o futuro da amiga ao lado de Fl�vio
e percebeu que n�o desejava mais separ�-los. Nem se incomodava com o fato de que Marcela fora apaixonada por outra mo�a. S� o que lhe importava, naquele momento,
era a felicidade da amiga, a preocupa��o que ela sentia por Luciana e o medo de perder Fl�vio.
- Quer que eu v� com voc� ao hospital visitar Luciana? - perguntou Ariane, sinceramente interessada em ajudar.
- Voc� realmente faria isso? - ela assentiu. Oh! Adriana, eu adoraria! Fl�vio sabe que Luciana est� internada, mas desconhece a verdade, e eu tenho medo.
Se voc� fosse comigo, eu me sentiria bem melhor.
- Ent�o est� combinado. Vamos almo�ar, e eu a acompanharei ao hospital.
Marcela se aproximou de Ariane e segurou a sua m�o, falando emocionada:
- Sabia que voc� era minha amiga. Entendo a sua primeira rea��o, mas sabia que voc� tamb�m acabaria me entendendo. Obrigada, Adriana.
O nome Adriana deu uma pontada no cora��o de Ariane. Ela estava arrependida de haver iniciado aquele jogo e queria deixar tudo para tr�s, mas sua mentira a levara
longe demais. Ariane mentira sobre seu nome, sobre o namorado fict�cio e, principalmente, sobre seu relacionamento com Fl�vio e com Dolores. N�o havia como convencer
Marcela de que tudo n�o passara de um mal-entendido e, se ela descobrisse, terminaria a primeira e �nica amizade que conquistara em toda a sua vida. Pensando naquilo,
Ariane abaixou a cabe�a e chorou. Ela tamb�m tinha um segredo que n�o queria que ningu�m descobrisse. No hospital, a visita transcorreu sem altera��es. O estado
de Luciana era est�vel, e ela tinha boas chances de sair do coma. N�o havia seq�elas aparentes, e tudo indicava que, se ela retornasse, se curaria e voltaria a ter
uma vida normal. S� o que faltava era reagir. Ariane n�o p�de entrar com Marcela, de forma que ela teve que ir sozinha. As enfermeiras se lembravam dela como a noiva
do doutor Fl�vio Raposo Epion, conceituado ortopedista que tinha particular interesse na doente. Sozinha com Luciana, Marcela desprendeu a emo��o do peito e deixou
que as l�grimas se derramassem em abund�ncia, extravasando os sentimentos que, na presen�a de Fl�vio, n�o podia se permitir demonstrar. Em seu estado de coma, Luciana
via e ouvia tudo o que Marcela dizia, mas seu esp�rito, embora determinado a voltar ao corpo f�sico e reassumir a sua vida no plano material, n�o se sentia forte
o bastante para recome�ar em meio a uma torrente de l�grimas. Quando Marcela deixou o Centro de Tratamento Intensivo, tinha os olhos inchados e vermelhos, e Ariane,
num primeiro momento, sentiu raiva daquela situa��o. Estava perdendo o noivo para uma mulher que chorava por causa de outra mulher. N�o pela amizade, mas pelas lembran�as
de uma antiga paix�o. Aquilo n�o lhe parecia justo. Por que Fl�vio tinha que ser o primeiro homem por quem Marcela se interessara? Por outro lado, apiedou-se de
seu estado dolorido. Era �bvio que Marcela vivia um dilema muito grande, um conflito com seus pr�prios sentimentos. Ariane experimentava sensa��es contradit�rias
no que se referia a Marcela, dividindo-se entre a revolta pela perda do amado, naquelas circunst�ncias, e a amizade que sentia por ela. Queria reconquistar Fl�vio,
mas se afei�oara a Marcela a tal ponto que sofria com a sua dor.
- Foi tudo bem? - perguntou Ariane, logo que Marcela saiu do CTI.
Marcela assentiu pausadamente e respondeu com tristeza:
- D� uma dor no cora��o v�-la naquele estado!
- Ela vai melhorar, tenho certeza.
J� dentro do carro, Marcela apertou a m�o de Ariane e falou com emo��o e sinceridade:
- Estou muito agradecida a voc�, Adriana. Est� sendo minha amiga de verdade, a �nica que tive depois de Luciana. A amizade que sinto por voc� n�o tem pre�o, e pode
ter certeza de que � sincera e desinteressada, assim como sei que a sua � por mim.
Uma pontada de remorso descompassou o cora��o de Ariane, que apenas sorriu e virou a chave na igni��o. Tinha medo de que Marcela descobrisse quem ela realmente era
e se sentia atormentada pela culpa de estar enganando e traindo a outra. Mas agora j� fora longe demais e n�o podia voltar. Marcela n�o a compreenderia e n�o a perdoaria
jamais. O melhor que tinha a fazer era sumir. Desapareceria da vida de Marcela como uma nuvem de fuma�a. Ela n�o sabia o seu endere�o ou o seu telefone, de forma
que n�o a veria nunca mais. Sim, pensando bem, era o melhor. N�o tinha for�as para contar a verdade e n�o podia mais prosseguir naquela farsa. Dolores que a desculpasse,
mas ela n�o era mulher para aquilo. No come�o, deixara-se levar pelo ci�me e a paix�o, mas agora percebia que de nada valia prender um homem que n�o a amava. E depois,
havia coisas mais importantes do que assegurar um bom casamento: a amizade era uma delas, e s� agora Ariane compreendia o seu verdadeiro valor. Na porta da casa
de Marcela, Ariane parou o carro e, sem desligar o motor, abra�ou a amiga e disse emocionada:
- Gosto muito de voc�, Marcela. De verdade. Perdoe-me por ter parecido incompreensiva e chocada com o seu segredo, mas foi pura surpresa. Jamais pensaria mal de
voc� ou deixaria de acreditar na sua amizade. E, se algum dia eu a magoar ou decepcionar, n�o ter� sido por querer, mas porque sou uma mulher cheia de fraquezas
e imperfei��es. Tente me compreender e pense em mim apenas como um ser humano.
- Por que est� dizendo isso? - estranhou Marcela.
- Queria que voc� soubesse.
Ariane tornou a abra��-la e procurou sorrir com naturalidade e, embora Marcela achasse muito estranha a sua atitude, n�o fez nenhum coment�rio. Talvez ela tamb�m
estivesse sensibilizada com o ambiente do hospital, ou n�o estivesse sendo sincera quanto � revela��o de sua homossexualidade.
- Voc� est� assim por causa do que lhe falei esta manh�? - indagou Marcela, parada a meio caminho da sa�da.
- N�o, em absoluto - respondeu Ariane, com tanta convic��o, que a convenceu de imediato.
- Ent�o, por qu�?
- Coisas minhas, que nada t�m a ver com voc�. N�o se preocupe com o seu segredo; jamais o revelarei a ningu�m.
- N�o estou preocupada com isso. Preocupo-me com voc�.
- N�o se preocupe. N�o � nada.
Ariane deu um beijo no rosto de Marcela e empurrou-a gentilmente para fora, tornando a ligar o carro. Marcela desceu com um estranho pressentimento e, quando o autom�vel
se afastou alguns metros, novamente se lembrou de que n�o possu�a ainda o telefone e o endere�o de Adriana. Ela ainda chegou a cham�-la de volta e agitar os bra�os,
mas Ariane fingiu que n�o a viu pelo espelho retrovisor. Continuou o seu curso, deixando Marcela com o estranho pressentimento de que Adriana pretendia se afastar
dela. Quando Ariane chegou a casa, encontrou a m�e em frente ao espelho, arrumando-se para sair, o que a deixou um pouco mais aliviada, depois da comovente tarde
que passara com Marcela.
- Voc� vai sair? - perguntou Ariane surpresa, observando a m�e se arrumar.
- Pensei em ir ao cinema, ver Um Estranho no Ninho. Estava apenas esperando voc� chegar para saber se n�o quer ir comigo.
- Hum... Jack Nicholson? - ela assentiu. Voc� sabe que adoro Jack Nicholson.
- Por isso mesmo, pensei logo em voc�. Dizem que o filme � maravilhoso.
- E o Huguinho?
- Foi dormir na casa de um amigo. Ent�o? Vamos ou n�o vamos?
Ariane considerou por alguns minutos. N�o estava com muito �nimo para sair, mas n�o podia perder a oportunidade de ver a m�e se distrair.
- Est� certo - concordou por fim. D�-me apenas meia hora para tomar um banho e me aprontar.
- Vista uma roupa bonita. Depois, vamos jantar. Dessa vez, fiz reserva naquele restaurante elegante a que fomos da outra vez.
- Qual? Aquele em que encontramos o doutor Justino, e ele nos convidou para nos sentarmos com ele?
- Esse mesmo.
Ariane estranhou o fato de a m�e fazer reservas em um restaurante, ainda mais em um restaurante chique feito aquele, mas n�o disse nada. Era bom que ela quisesse
sair e se distrair, e n�o seria ela a estragar a sua alegria e a sua noite. Na verdade, nem Anita sabia que escolhera aquele restaurante movida pelo desejo inconsciente
de reencontrar Justino. Depois do filme, seguiram direto para o restaurante. Anita usava um conjunto de saia e blusa preto, que Ariane n�o conhecia.
- Essa roupa � nova? - indagou, quando se sentaram � mesa.
Anita assentiu e respondeu com um sorriso, feliz porque a filha havia, finalmente, reparado.
- Comprei hoje. Voc� gostou?
- Voc� est� querendo-me dizer que saiu sozinha para fazer compras?
- O que � que tem? N�o posso?
- � claro que pode! E deve. Ah! Mam�e, fico muito feliz por voc� estar reagindo a essa situa��o.
- Obrigada. Mas voc� ainda n�o me disse se gostou ou n�o.
- Gostei! Ficou muito bem em voc�. Preto sempre emagrece.
Anita sorriu satisfeita e apanhou o card�pio que o gar�om lhe estendia. Ambas estavam com os rostos enfiados no menu quando ouviram uma voz conhecida soando acima
de suas cabe�as:
- Acho que dessa vez fui eu que sobrei. Ser� que n�o posso me juntar a voc�s?
As duas olharam ao mesmo tempo, e Anita distendeu as fei��es num largo sorriso:
- Doutor Justino! Mas que surpresa!
- O restaurante est� cheio, como sempre, e eu n�o consegui um lugar. Ia jantar com um cliente, mas ele desmarcou em cima da hora, e eu n�o confirmei minha reserva
aqui, como sempre fa�o, de forma que fiquei sem mesa. Ent�o, posso me sentar com voc�s?
- � claro - respondeu Ariane, mudando a bolsa de lugar para que ele se sentasse.
- Ser� um prazer retribuir o favor que nos fez da outra vez - acrescentou Anita, mais alegre do que normalmente estaria.
Ele se sentou e fitou Anita discretamente, por�m com interesse, fazendo-a corar por uns instantes. De seu lugar, Ariane percebeu o olhar de Justino e o rubor da
m�e, e seu cora��o bateu mais forte. Seria poss�vel que Justino estivesse interessado nela? Se estivesse, parecia �bvio que a m�e tamb�m n�o lhe era indiferente,
embora se esfor�asse ao m�ximo para n�o demonstrar um interesse anormal. Que �tima id�ia, pensou Ariane. Justino estava desquitado de Dolores, e a m�e e o pai n�o
tinham mais chances de se reconciliar. Justino era um homem atraente e simp�tico, muito digno e correto, um verdadeiro cavalheiro. Bem o tipo de que Anita precisava.
Ariane resolveu prestar mais aten��o aos dois e tudo faria para incentivar um envolvimento entre eles.
- Voc�s n�o v�m sempre aqui, v�m? - perguntou Justino.
- N�o - respondeu Anita. Mas gostei muito do lugar e, desta vez, fiz reserva.
- Que sorte a minha! N�o fosse por voc�s, eu n�o conseguiria jantar esta noite.
- Voc� s� janta fora? - indagou Ariane.
- Normalmente. Agora estou solteiro e n�o tenho ningu�m que me prepare um bom jantar.
Terminou as �ltimas palavras fitando Anita diretamente nos olhos, o que lhe causou um estranho tremor e deu a Ariane a certeza de que ele estava interessado na m�e.
- Voc� precisa ir jantar l� em casa um dia desses - convidou Ariane.
- Eu bem que gostaria... Mas, infelizmente, n�o posso.
- Por qu�? - era Anita.
- N�o me leve a mal, dona Anita, mas � que seu marido e eu j� nos desentendemos uma vez...
- Mam�e e papai est�o separados - cortou Ariane rapidamente, evitando o olhar de reprova��o de Anita.
- Est�o? Mas que pena! Sinto muito.
- N�o sinta - objetou Anita, voltando-se para encar�-lo. Foi a melhor coisa que j� fiz por mim at� hoje.
- Se � assim, sinto-me mais � vontade para aceitar o seu convite, Ariane. Isto �, se sua m�e n�o se incomodar.
- N�o me incomodo - declarou ela, quase num sussurro.
- Acho uma �tima id�ia! - era Ariane. Hum... vejamos... que tal amanh�?
- Amanh�? - indignou-se Anita.
- Por que n�o? Amanh� � sexta-feira. Um �timo dia para jantar em casa de amigos. O que voc� acha, Justino?
- Por mim, est� tudo bem. A n�o ser que dona Anita n�o queira.
- Ela quer, n�o �, mam�e? - Anita, confusa, n�o respondeu, e Ariane insistiu: N�o �, mam�e?
- Sim... Amanh� est� bem.
- Ent�o est� combinado - confirmou Justino. Amanh� janto em sua casa.
- Ser� um prazer receb�-lo, doutor Justino - declarou Anita, saindo de seu estado de torpor. Se n�o se importar com um jantar simples e caseiro.
- Faz tempo que n�o provo comida caseira - contrap�-lo, com simpatia. E a senhora tem cara de quem cozinha muito bem.
- Por que voc�s n�o param com a formalidade, hein?
- interrompeu Ariane. Essa hist�ria de dona para c�, de doutor para l�, � muito cafona.
- Acho uma excelente id�ia - concordou Justino. Ainda mais porque agora considero Anita minha amiga, e formalismos s�o reservados apenas a estranhos. E n�s n�o somos
mais estranhos, somos?
Novamente aquele olhar penetrante, que fez com que Anita quase engasgasse. Ela sentiu o corpo gelar e teve vontade de sair correndo dali, agora que estava mais do
que claro que Justino a estava cortejando abertamente. Mas como poderia ser aquilo, se ela era uma mulher gorda e velha? Seria poss�vel que ele estivesse apenas
se divertindo com ela, fazendo-a crer que ele a cortejava quando, na verdade, s� o que queria era zombar de sua apar�ncia? Pensando nisso, Anita se retraiu um pouco
e procurou se conter, embora a simpatia natural de Justino fizesse com que ela se desarmasse mesmo sem querer ou sentir. A noite transcorreu agrad�vel, at� que chegou
a hora de se separarem, e Justino lamentou profundamente o fato de elas estarem de carro e n�o precisarem que ele as levasse em casa. De toda sorte, o jantar ficou
acertado para a noite seguinte, �s oito horas, e ele n�o pretendia faltar. No caminho para casa, Ariane ia falando com euforia:
- Ele est� interessado em voc�, m�e! Voc� viu?
- Ser�? Acho que deve ser impress�o. Um homem fino e elegante feito o doutor Justino deve ter muitas mulheres lindas � disposi��o. N�o se interessaria por uma gorducha
feito eu.
- Por que voc� se diminui tanto assim? Ele est� interessado em voc�, sim.
- N�o � poss�vel. N�o sou nenhuma beldade.
- E da�? Justino � um homem de princ�pios e valores. E depois, voc� n�o est� t�o gorda assim. Mesmo que estivesse, ele pareceu n�o se importar. Bastava ver os olhares
que ele lhe deu. Pareceu-me bem interessado.
- Tem certeza de que ele olhou mesmo para mim com interesse? Ser� que n�o est� zombando de mim? Ou ser� que n�s n�o estamos nos iludindo?
- Quanta besteira, mam�e! J� disse que Justino � um homem de princ�pios. N�o perderia o seu tempo flertando com uma mulher s� para zombar dela. E n�s n�o estamos
nos iludindo. Se ele n�o tivesse interesse em voc�, n�o aceitaria o nosso convite para jantar.
- Voc� ouviu o que ele disse: est� enjoado de comida de restaurante.
- Isso � desculpa. Ele pode muito bem pagar uma cozinheira. S� falou isso para justificar o fato de que estava louco para aceitar o convite. Louco para jantar com
voc�.
Aquelas palavras sacudiram o seu cora��o, e Anita corou novamente. Fazia muitos anos que nenhum homem demonstrava interesse por ela e parecia-lhe dif�cil convencer-se
de que um homem feito Justino, dentre tantas mulheres jovens e bonitas, fosse interessar-se justo por ela.
- Foi muita coincid�ncia encontr�-lo ali, n�o foi?
- Nem tanta. Justino costuma freq�entar aquele restaurante. A coincid�ncia foi ele n�o ter feito reserva justo no dia em que n�s fizemos. E, c� entre n�s, foi uma
feliz coincid�ncia. Do contr�rio, voc� e ele n�o teriam se aproximado.
Anita n�o respondeu. Algo dentro dela retornara � vida, e ela via reacender, em si mesma, o fogo da paix�o. N�o uma paix�o de adolescente, desvairada, louca, inconseq�ente.
Mas uma paix�o madura e comedida, um fogo que n�o chega a queimar, ilumina sem ofuscar, um sentimento de euforia controlada n�o pela ditadura da raz�o, mas pela
pr�pria experi�ncia de vida que faz assentar o �mpeto e despertar a pondera��o. No depoimento que deu � pol�cia, Ma�sa acabou falando sobre o telefonema que Luciana
lhe dera e sobre as vozes altercadas que escutara em seguida, quando ela largou o fone para atender a campainha. Diante disso, a pol�cia intimou Cec�lia para depor,
mas ela negou tudo e, como Breno previra, nada p�de ser comprovado. Vozes ao telefone eram uma prova fr�gil demais para uma acusa��o formal. A faca deixada na cena
do crime ainda estava sob exame, e o resultado da identifica��o pelas digitais levaria algum tempo para sair. Cec�lia compareceu ao consult�rio uma semana depois,
dizendo-se chocada e impossibilitada de trabalhar, mas foi logo dispensada por Ma�sa, que sentia horror s� de olhar para ela.
- N�o vai me pagar indeniza��o? - perguntou Cec�lia, em tom de desafio, logo que Ma�sa a despediu.
- Voc� � muito descarada mesmo, n�o �? Depois do que fez, ainda se atreve a voltar aqui e, pior, pedir indeniza��o?
- � o meu direito.
- Pois ent�o, v� busc�-lo na Justi�a. De mim, voc� n�o vai ter nem um tost�o.
- � isso mesmo o que farei. Voc� n�o pode me despedir assim, com uma m�o na frente e outra atr�s.
- Devia ter pensado nisso antes de fazer o que fez.
- Eu n�o fiz nada - objetou-a calmamente.
- A mim, voc� n�o engana. Sei muito bem que foi voc� que esfaqueou Luciana e posso imaginar por qu�. Ela ia me contar tudo minutos antes de voc� aparecer.
- Eu n�o apareci. Voc� est� me acusando de algo que n�o fiz. Posso process�-la por isso, sabia?
- Pois fa�a! Vou adorar ver a sua cara na Justi�a quando ficar provado que voc� � uma criminosa.
Coberta de �dio, Cec�lia saiu batendo a porta do consult�rio. Estava furiosa e bem podia matar Ma�sa tamb�m. N�o fosse a enrascada em que j� se metera, daria cabo
daquela megera. Ma�sa jamais gostara dela, e ela tamb�m n�o gostava de Ma�sa. Contudo, tinha que ter cautela. A pol�cia j� a interrogara e estava desconfiada, embora
n�o pudesse provar nada.
- O que vamos fazer? - perguntou ela a Gilberto, minutos mais tarde.
- O melhor � fugir.
- N�o posso fugir antes de apanhar o meu dinheiro. Ma�sa me deve e vai ter que pagar.
- N�o seja tola, Cec�lia. Como pretende obrigar Ma�sa a lhe dar dinheiro?
- Posso ir � Justi�a do Trabalho.
- Voc� deve ter enlouquecido mesmo. Se estivermos tentando fugir da Justi�a, voc� vai at� a Justi�a para qu�? Para se incriminar?
- Tenho os meus direitos.
- Que direitos? Raciocine, Cec�lia! Voc� quase matou uma mulher e est� com a corda no pesco�o. Pensa que a pol�cia n�o desconfia de voc�, est� muito enganada.
- Ningu�m nos viu.
- Luciana nos viu.
- Ela est� em coma e duvido que acorde.
- Pior para n�s. Assassinato tem pena maior.
- Voc� est� se apavorando � toa. Ningu�m pode provar nada contra n�s.
- Ah! N�o? E a faca? Esqueceu-se de que voc� a deixou l� quando fugimos? E se tirarem as suas impress�es digitais?
Ela havia esquecido. Na pressa de fugir, Cec�lia deixara cair a faca no ch�o da sala de Luciana e se esquecera dela completamente. No depoimento que dera � pol�cia,
n�o mentira sobre seu envolvimento com Luciana, fingindo-se triste e chocada, o que justificaria a presen�a de suas impress�es digitais no apartamento inteiro. Mas
a faca, com o sangue de Luciana e contendo as suas digitais, era uma prova incontest�vel.
- Temos que apanhar essa faca - anunciou ela, olhar febril. � a �nica prova contra n�s.
- Ficou louca? A faca est� nas m�os da pol�cia.
- Precisamos fazer alguma coisa! - descontrolou-se. Tinha me esquecido da droga da faca. Por que voc� n�o a apanhou? Por que a deixou l�?
- N�o venha me culpar agora. Voc� n�o devia ter feito aquilo.
- Ela vai nos incriminar. A faca vai nos incriminar!
- Nos incriminar? Vai incriminar voc�. Foi voc� quem a usou.
- Vai dar para tr�s agora, vai? - revidou ela at�nita. Vai se acovardar e pular fora?
- N�o se trata disso. Mas eu n�o fiz nada. Dei uns socos na cara dela, mas n�o a matei.
- N�o a matou, mas a deixou bem machucada. E ainda a estuprou. Acha que isso tamb�m n�o � crime?
- Estupro n�o � homic�dio, e os sopapos que lhe dei n�o a mataram. Ningu�m pode me acusar de algo que n�o fiz.
- Eu posso! Voc� foi meu c�mplice. Direi que, depois de estupr�-la, voc� a segurou enquanto eu a esfaqueava. Todo mundo vai acreditar. Quem � que vai duvidar?
Um homem que estupra e esmurra uma mulher indefesa � capaz de qualquer coisa.
- Isso � uma loucura! - choramingou ele. Por que fui me deixar envolver por uma doida feito voc�?
- Agora eu sou doida, n�o �? Na hora que trans�vamos, voc� n�o pensava isso. Quando trazia dinheiro para voc�, minha loucura nunca o incomodou.
- � diferente. Voc� n�o tinha matado ningu�m.
- E voc�? J� havia estuprado algu�m antes?
- Eu... perdi a cabe�a. Tinha fumado um baseado...
- Mais um motivo para n�o duvidarem de mim: viciado, estuprador e assassino.
- Eu nunca matei ningu�m.
- Voc� foi comigo � casa de Luciana porque quis! - esbravejou ela.
- Voc� n�o pode fazer isso comigo. Eu estava doid�o e n�o sabia o que voc� ia fazer. Voc� me disse que n�s s� �amos dar um susto nela. Eu nem sabia que voc� estava
com uma faca!
- N�o adianta se fazer de inocente agora. Ningu�m vai acreditar nessa sua hist�ria.
- Vamos fugir - cortou ele desesperado. Antes que nos prendam, vamos desaparecer daqui.
- E o dinheiro...?
- Deixe o dinheiro para l�! Vamos arrumar nossas trouxas e meter o p� na estrada. Antes que seja tarde!
Cec�lia estava t�o desesperada quanto ele e come�ava a ver sentido no que ele dizia. Tentar arrancar dinheiro de Ma�sa era uma inutilidade, e ela n�o podia recorrer
� Justi�a. O depoimento de Ma�sa a comprometera e, em breve, a pol�cia acabaria prendendo-a, seguindo a pista das impress�es digitais na faca que usara no crime.
Que outra alternativa lhes restava? Estavam sem dinheiro, mas ela sempre podia se prostituir para arranjar algum. N�o era isso mesmo que vinha fazendo com Luciana?
Algo que, de certa forma, at� lhe parecia normal?
- Est� bem - concordou ela afinal. Vamos fugir hoje � noite. N�o quero que meus pais desconfiem de nada.
- Precisamos ter cuidado. A pol�cia mandou que voc� n�o se ausentasse da cidade e, se nos pegar em fuga, ser� o seu fim.
- Ser� o nosso fim. Voc� est� comigo nessa, n�o se esque�a.
A pol�cia nada sabia sobre Gilberto, porque, at� aquele momento, Cec�lia n�o havia ainda revelado o seu nome, e ele n�o tocara em nada na casa de Luciana. Uma id�ia
assomou em sua mente, e ele come�ou a raciocinar com rapidez. A surra e o estupro deviam ser crimes s�rios, mas n�o t�o s�rios quanto um assassinato. A faca n�o
continha suas digitais, s� as de Cec�lia, e ningu�m poderia provar que ele a usou. Restava a alega��o de Cec�lia de que ele segurara Luciana. Precisava desmentir
isso. Talvez houvesse uma sa�da...
- Esteja pronta �s dez horas - anunciou ele, tentando conter a excita��o em sua voz. Virei busc�-la.
- N�o se preocupe, estarei esperando.
Com um aceno de despedida, Gilberto se foi. Mais tarde, � hora aprazada, Cec�lia o aguardava ansiosamente, a trouxa pronta, contendo as roupas e as pequeninas bugigangas
que Luciana lhe dera. As dez e cinco, ela ouviu um assobio embaixo de sua janela e a abriu com cuidado, para n�o acordar as irm�s que dormiam com ela.
- Por que demorou tanto? - sussurrou, enquanto empurrava a trouxa para ele e enfiava uma perna pelo peitoril.
- Vamos embora - resmungou ele em resposta, ajudando-a a saltar.
Assim que ela pulou para o lado de fora e ajeitou as roupas, uma luz branca e brilhante se derramou sobre seu rosto, tornando-a cega por uns instantes. Colocou a
m�o na frente dos olhos, tentando ver o que estava acontecendo, at� que uma voz grave e autorit�ria soou a seu lado:
- Vai a algum lugar, dona Cec�lia?
Ela se assustou e, num �timo de segundo, compreendeu tudo. Gilberto a havia tra�do e a entregara � pol�cia, avisando, inclusive de sua fuga, da fuga que ele mesmo
sugerira. Tentou correr, mas foi agarrada por bra�os fortes que a seguraram e a conduziram para o cambur�o parado do outro lado da rua, oculto pela escurid�o.
- Voc�s n�o podem fazer isso! - berrava ela. Conhe�o os meus direitos! N�o podem me prender assim!
O homem que fizera a pergunta exibiu um papel sob os seus olhos e anunciou friamente:
- N�o se preocupe. N�s temos um mandado de pris�o.
Ela come�ou a chorar desesperada e se virou para Gilberto, mas ele havia sumido, e os guardas a empurraram para dentro do cambur�o e trancaram a porta, deixando-a
aos gritos e dando socos na parede do carro. Em outro carro, longe das vistas de Cec�lia, Gilberto tremia. Fizera a sua parte entregando-a as autoridades, mas n�o
podia simplesmente ficar parado vendo-a ser levada � for�a para a pris�o. Ele gostava muito dela, mas n�o era justo o que ela pretendia fazer com ele. Queria acus�-lo
de algo que ele n�o fizera nem desejara. Aquilo l� era amor? Na delegacia, informaram-lhe sobre o que aconteceria. Se Luciana n�o desse queixa do estupro, o que
eles achavam que ela n�o faria se acordasse, ele seria acusado de invas�o de domic�lio e les�es corporais leves, mas n�o de tentativa de homic�dio. E, o que era
pior, se Luciana viesse a morrer, de homic�dio consumado e qualificado. Ele n�o entendia o que isso significava, mas devia ser algo bem ruim. Embora n�o lhe agradasse
passar uns anos na cadeia, convenceram-no de que era melhor do que ser acusado de assassinato. Assim, contou toda a verdade, que pareceu bem veross�mil para a pol�cia,
e Cec�lia foi presa, enquanto ele aguardaria, em liberdade, o julgamento pelos seus crimes. A not�cia deixou Ma�sa entusiasmada. Ela n�o se conformava de ver Cec�lia
livre enquanto Luciana se consumia naquela cama de hospital. Ma�sa estava a seu lado naquela tarde e, baixinho, contara sobre a pris�o de Cec�lia. Depois, pediu
que Luciana reagisse e, de olhos fechados, rezava, segurando a sua m�o por cima do len�ol. Luciana abriu os olhos lentamente e ouviu, ainda sem compreender, as s�plicas
de Ma�sa:
- Por favor, Deus, n�o a deixe morrer. Ela � t�o jovem, tem ainda tanto a viver...
- Tenho mesmo... - confirmou Luciana, a voz meio cavernosa como se acabasse de sair do t�mulo. - O que estou fazendo aqui...?
- Luciana! - gritou Ma�sa, hesitando entre abra�ar a amiga e correr para chamar a enfermeira.
- Estou com sede - prosseguiu ela, a voz ainda bastante fraca. Pode me dar um copo de �gua?
- Espere um instante... - falou ela apressada, enquanto sa�a pelo corredor em busca da enfermeira.
Poucos minutos depois, a enfermeira apareceu, seguida pelo m�dico, que correu a examin�-la. Ma�sa teve que aguardar do lado de fora, mas logo recebeu a not�cia de
que Luciana estava fora de perigo e estaria sendo transferida para o quarto ainda naquela tarde.
- Voc� n�o sabe o que tive que fazer por voc� - anunciou
Ma�sa de bom humor, assim que p�de v�-la novamente.
- At� o medo da pol�cia venci por sua causa.
- Jura? Ent�o, minha interna��o valeu para alguma coisa.
- N�o tem gra�a, Luciana. O m�nimo que voc� deve fazer � ficar em minha casa quando sair e deixar que eu cuide de voc�.
Luciana n�o teve como contestar e ficou acertado que passaria uns dias na casa de Ma�sa, at� se recuperar totalmente. A not�cia da pris�o de Cec�lia deixou-a entristecida,
porque ela jamais poderia esperar que algu�m que ela julgava que a amasse fosse capaz de fazer uma coisa daquelas. Ela se lembrava vagamente do ocorrido. Lembrava-se
do aparecimento repentino de um rapaz atr�s de Cec�lia, da discuss�o que elas tiveram e das m�os do homem a segurando. Em seguida, os socos em seu rosto, o gosto
de sangue e uma dor violenta nas entranhas, quando ele a violentou com brutalidade. J� meio desfalecida, ouviu a voz dele a dist�ncia, pedindo a Cec�lia que fossem
embora. E, quando a consci�ncia amea�ava esvanecer-se por completo, experimentou uma dor aguda e cortante na proximidade do cora��o, e a fraqueza a dominou inteiramente,
� medida que o sangue aflu�a numa torrente, fugindo sem controle de seu peito. Depois disso, a escurid�o e o sil�ncio a atiraram no vazio de si mesma.
- Isso � maravilhoso! - dizia Fl�vio ao telefone. Vou j� para a�.
Ele colocou o fone no gancho e se levantou para sair, parando com aborrecimento ao ver a m�e barrando a sua passagem na porta do quarto.
- O que � maravilhoso? - perguntou Dolores curiosa.
- Nada. Uma amiga de Marcela que sofreu um atentado e saiu do coma.
- Um atentado? Como assim?
- Algu�m tentou mat�-la com facadas no peito. Deve ter sido um ex-namorado.
- Ex-namorado, �? Estranha a capacidade que a sua noiva tem de se envolver com gente desse tipo.
- Gente de que tipo, mam�e? - impacientou-se.
- N�o precisa fingir para mim, Fl�vio, porque sei de tudo.
- Sabe de tudo o qu�?
- Sei que ela tentou se matar por causa de um ex-namorado.
- Quem foi que lhe contou isso?
- N�o interessa. Sou uma pessoa influente e tenho amigos em toda parte.
- E da�? O que voc� tem com isso?
- Nada. Mas n�o � estranho que, agora, a amiga quase tenha sido morta pelo ex-namorado?
- N�o vejo nada de estranho nisso. S�o coisas que acontecem.
- A fatalidade parece rondar a sua noivinha. Ser� que tudo tem que acontecer com ela? Fl�vio n�o respondeu. Como � mesmo o nome da amiga dela?
- Luciana. Por qu�?
Ela gelou ao ouvir aquele nome, o mesmo que Ariane pronunciara da �ltima vez que estivera ali. Era coincid�ncia demais.
- Luciana de qu�? - questionou ela, enquanto sua cabe�a ia maquinando.
- N�o sei e n�o me interessa.
- Ser� que essa Luciana � uma pessoa direita?
- Como assim?
- N�o estar� envolvida com drogas ou coisa assim? Talvez seja por isso que tenham tentado mat�-la.
- Mam�e, voc� devia ser escritora. Tem uma imagina��o muito f�rtil. Luciana � uma mo�a decente e morou com Marcela quando elas vieram de Campos.
Dolores fingiu surpresa:
- � mesmo?
- �, sim. As duas se formaram, e Luciana hoje � dentista. Tem um consult�rio particular, que divide com uma amiga.
- Onde � o consult�rio dela?
- Acho que no M�ier. Por qu�? Est� precisando se tratar?
- N�o seja tolo, Fl�vio. Estou pensando em enviar-lhe umas flores.
- Ela est� no hospital. Envie para l�.
- Muito bem. Em que hospital?
- Deixe de bobagens, mam�e. Conhe�o-a muito bem e sei que voc� n�o est� nem um pouco interessada em enviar flores a Luciana. Mas Marcela est� aflita para v�-la.
Por favor, deixe-me passar. Minha noiva est� me esperando.
Com olhos brilhantes, Dolores saiu do caminho para que Fl�vio passasse. Assim que escutou o ronco do motor de seu carro saindo da garagem, ela apanhou o telefone
e ligou para Ariane.
- Venha aqui imediatamente - ordenou ela com voz fria, batendo o telefone em seguida.
Ariane j� esperava uma liga��o de Dolores e n�o se surpreendeu nem ficou contrariada com o seu telefonema e a sua ordem. Estava decidida a acabar com aquela farsa
e, embora n�o pudesse dizer isso a Dolores, agiria como se n�o tivesse descoberto nada. Mas n�o precisava se apressar. Arrumou-se com calma e s� apareceu na casa
de Dolores duas horas depois. Dolores andava em c�rculos pela sala, fumando um cigarro atr�s do outro, quando ela chegou.
- Por que demorou tanto? - questionou contrariada. Estou esperando h� duas horas.
- S� agora pude vir. Tenho meus assuntos para resolver.
- Que assuntos? Deixe isso para l�. Quero informa��es sobre a tal de Luciana. Por que n�o me contou que ela foi v�tima de uma tentativa de assassinato?
- Como foi que descobriu?
- Fl�vio me contou. Por que n�o me disse?
- Achei que n�o era importante.
- N�o era importante? Onde � que voc� est� com a cabe�a, Ariane? Essa mo�a talvez seja a resposta aos nossos problemas.
- N�o sei por qu�. Tentaram matar a mo�a, o que n�o tem nada a ver com Marcela.
- Duvido muito. Algo me diz que essa mo�a � a chave de tudo.
- Impress�o sua. Voc� est� se deixando levar pelo desespero e quer se agarrar a qualquer coisa.
- Deixe que eu mesma decida isso. E agora me diga: quem tentou mat�-la?
- E eu � que sei? Pergunte � pol�cia. Ou a ela, quando acordar.
- Ela j� acordou. Fl�vio est� indo para l� com Marcela.
- J�? - Ariane demonstrou genu�na surpresa e alegria ao mesmo tempo.
- Voc� parece satisfeita. Por qu�?
- Quem n�o ficaria satisfeita em saber que algu�m, seja quem for, est� se recuperando e voltou � vida?
- N�o fuja do assunto. Ela � importante para Marcela, n�o �? Muito importante.
- Isso, voc� j� sabe.
- O que h� entre as duas?
- N�o sei.
- Voc� sabe, mas n�o quer me contar.
- N�o sei de nada, j� disse.
- Em que hospital ela est�?
Ariane n�o queria dizer, mas n�o teve escolha. Dolores n�o acreditaria se ela dissesse que n�o sabia e a pressionaria at� conseguir.
- No S�o Lucas - respondeu maquinalmente.
- Em que quarto?
- N�o sei. Da �ltima vez que soube algo, ela estava no CTI.
- Ela agora est� no quarto. Preciso descobrir qual �. Voc� vai ter que agir novamente.
- Para qu�? O que voc� pretende fazer? Interrogar Luciana?
- N�o seja tola! Estou seguindo a minha intui��o. Quero que voc� v� at� l� e descubra algo.
- N�o posso fazer isso.
- Por que n�o?
- � perigoso. Posso me encontrar com Fl�vio.
- Tem raz�o. Havia me esquecido desse detalhe.
Ariane suspirou aliviada. Ao menos por enquanto estava livre de ter que procurar Marcela novamente, o que n�o estava mais disposta a fazer. N�o podia dizer a Dolores
que mudara de plano mas n�o faria mais nada que ela pedisse. Ficou imaginando o que ela diria se soubesse que Justino freq�entava agora a sua casa e vivia em companhia
de sua m�e, levando-a ao cinema, restaurantes. Na certa, ficaria furiosa e a amea�aria ainda mais.
- Deixe Luciana para l� - aconselhou Ariane. Ela n�o pode nos ajudar em nada. � apenas uma amiga de Marcela.
- Duvido muito. Sou uma pessoa muito intuitiva, e a intui��o me diz que h� algo revelador entre essas duas, e estou disposta a descobrir o que �.
Dolores n�o sabia o qu�o pr�xima estava da verdade. A seu lado, esp�ritos das sombras a acompanhavam diuturnamente interessados tamb�m na infelicidade de Marcela.
Poderosos aliados de outras vidas, n�o perdiam a oportunidade de intu�-la sobre os fatos da vida de Marcela, o que levava Dolores sempre ao caminho certo. Sem imaginar,
ela seguia as dicas de seus amigos das sombras e ia adivinhando tudo o que era importante para o deslinde daquele mist�rio. Naquele momento, a intui��o lhe dizia
que deveria abandonar o plano que tra�ara com Ariane. A mo�a j� fizera muito, e ela devia agora agir por conta pr�pria.
- Pode deixar que eu resolvo tudo sozinha de agora em diante - falou para Ariane, seguindo os conselhos de seus amigos. - N�o preciso mais de voc�, por enquanto.
Foi uma surpresa que Dolores n�o quisesse mais a interven��o de Ariane. Ela pensava que teria que prosseguir naquele plano at� o final e n�o entendia o que a havia
feito mudar de id�ia. Contudo, era �timo n�o mais precisar fingir. Depois que Ariane se foi, Dolores ficou pensando numa maneira de descobrir algo que ela nem sabia
bem o que seria. Precisava obter informa��es de Luciana, mas n�o podia ir ao hospital visit�-la. Foi quando teve uma id�ia que talvez pudesse surtir efeito. Arrumou-se
toda e, em poucos instantes, seguia para a cl�nica decadente de N�lson. Ao chegar, foi informada de que ele n�o estava, e sentou-se em sua sala para esperar. O lugar
estava precisando de uma pintura e havia poucos pacientes. Sem a sua ajuda, em breve, a cl�nica estaria falida. N�lson chegou meia hora mais tarde e foi tomado de
imensa alegria ao v�-la sentada em seu consult�rio.
- Dolores, minha querida! - balbuciou ele, certo de que ela estava ali para reatar o seu caso. Mal pude acreditar quando me disseram, na recep��o, que voc� estava
aqui.
- N�o v� se animando - cortou ela, esquivando-se dele. N�o vim para o que voc� pensa. Preciso de um favor.
- Um favor? Meu?
- Sim, seu. Voc� � amigo do diretor do hospital S�o Lucas, n�o �?
- Sou. Ou fui, n�o sei bem.
- N�o importa. Quero que voc� ligue para ele e obtenha umas informa��es para mim.
- Que tipo de informa��es?
- A respeito de uma mo�a. Seu nome � Luciana, n�o sei o sobrenome. Ela deu entrada h� alguns dias, v�tima de uma facada no peito. Quero saber tudo sobre ela, principalmente,
o autor e o motivo do crime.
- Por que eu faria isso por voc�? - o retrucou de m� vontade, encarando-a agora com ar hostil.
- Porque este lugar est� um lixo, e eu posso limp�-lo para voc�. Antes que ele respondesse, ela retirou o tal�o de cheques da bolsa e preencheu um, exibindo-o para
N�lson. Isso � o suficiente para come�ar a limpeza?
Ele apanhou o cheque e engoliu em seco. Era muito mais do que poderia esperar faturar em um m�s de servi�o com a cl�nica dando lucros. Ele a fitou com rancor, mas
ela nem se incomodou. Estava com o fone na m�o e o passou para ele, que o apanhou sem qualquer emo��o.
- Ligue para o hospital S�o Lucas - disse para a recepcionista. Diga que � urgente.
Em poucos minutos, Dolores tinha em m�os todas as informa��es que N�lson conseguira obter com o diretor do hospital. Ele teve que esperar pacientemente at� que o
diretor entrasse em contato com o setor correspondente e se informasse sobre a mo�a, o que levou cerca de meia hora. Pelas informa��es que obtivera, inclusive atrav�s
dos coment�rios que as enfermeiras ouviam, a mo�a fora ferida por outra de nome Cec�lia, que se encontrava agora na pris�o. O motivo do crime, ele n�o conhecia nem
ningu�m parecia comentar, a pol�cia estivera poucas vezes no local, por causa do estado de Luciana, e fora aconselhada a aguardar at� que ela tivesse alta para depor.
Mas o que Dolores conseguira j� era o suficiente. A criminosa fora presa e seria de grande utilidade, ainda mais se ela lhe acenasse com a possibilidade de uma ajuda
financeira para sua defesa. Iria procur�-la pessoalmente, certa de que estava prestes a descobrir o grande segredo de Marcela, um segredo que, esperava, aquela mo�a
pudesse lhe revelar. A ansiedade foi t�o grande que Dolores n�o esperou muito para fazer uma visita a Cec�lia na cadeia. Sua presen�a na delegacia causou estranheza,
mas o delegado era esperto e prudente e o nome Dolores C�ndida Raposo era conhecido como o de uma das maiores socialites de ent�o. O que uma dama distinta e elegante
como aquela poderia querer com uma criminosa de baixo n�vel feito Cec�lia, era algo que ele jamais poderia supor. Contudo, o pedido foi feito, e ele n�o teve como
negar a visita. O delegado lhe arranjou uma sala reservada para que ela pudesse conversar a s�s com Cec�lia, que chegou algemada, conduzida pelas m�os indelicadas
de um guarda. Num primeiro momento, Cec�lia pensou que aquela mulher fosse a defensora designada para o seu caso e se largou sobre a cadeira de madeira que lhe foi
indicada, fitando Dolores com certa expectativa e ansiedade. Logo que o guarda as deixou a s�s, Dolores come�ou a falar com ar de superioridade:
- Sabe quem eu sou?
- Minha defensora? - Dolores meneou a cabe�a. Ent�o, nem imagino.
- Meu nome � Dolores C�ndida Raposo. Esse nome diz algo a voc�?
- N�o. Deveria?
- Talvez. Mas isso n�o vem ao caso no momento. Basta que voc� saiba que eu sou uma pessoa muito importante e influente na sociedade.
Cec�lia pensou em perguntar: "e da�?", mas teve medo de que ela fosse amiga ou parenta de Luciana e achou melhor n�o dizer nada.
- Sabe por que vim? - prosseguiu Dolores.
- N�o fa�o a m�nima id�ia - respondeu Cec�lia, agora com cautela.
- Voc� deve ter tido um motivo muito s�rio para tentar matar Luciana, n�o teve?
- Quem foi que disse que fui eu que tentei mat�-la?
- N�o precisa fazer teatro comigo, menina. N�o estou aqui para julg�-la nem conden�-la.
- O que a senhora tem com isso?
- Nada, particularmente. Estou apenas interessada em conhecer algo a respeito dessa mo�a.
- Por qu�?
Notando o medo no olhar de Cec�lia, Dolores aproximou mais o rosto do dela e tornou em tom baixo, por�m, claro e aud�vel:
- Tenho dinheiro, menina. Dinheiro suficiente para pagar o melhor advogado do pa�s para fazer a sua defesa.
- E por que a senhora faria isso por mim? - retrucou Cec�lia, cada vez mais desconfiada.
- Porque eu preciso de um favor seu e posso lhe oferecer um meu. Por que n�o fazermos a troca?
Durante alguns minutos, Cec�lia permaneceu estudando aquela senhora rica e elegante sentada � sua frente. N�o sabia quem ela era nem por que estava ali, mas se ela
lhe oferecia dinheiro para pagar uma defesa brilhante, por que n�o aceitar? Estava mesmo comprometida at� a alma, n�o tinha nada a perder.
- Muito bem - falou ela, o olhar vivido de quem agora se sentia um pouco dona da situa��o. Farei como a senhora me pede. Mas em troca, quero um bom advogado para
fazer a minha defesa.
- N�o se preocupe com isso. J� disse que posso pagar o melhor.
- Ent�o, vamos l� - ela jogou o corpo para tr�s e esticou as pernas sobre a mesa. O que a senhora gostaria de saber?
- Em primeiro lugar, preciso saber por que voc� tentou matar Luciana. N�o tenha medo. O que disser ficar� apenas entre n�s. N�o sou espi� nem estou aqui a servi�o
da pol�cia ou da Justi�a.
Cec�lia venceu a desconfian�a e contou tudo. Aparentemente, a tentativa de homic�dio de Luciana nada tinha a ver com Marcela, e n�o havia ind�cios de uma liga��o
entre as duas. Mas os amigos espirituais de Dolores, irradiando baixas vibra��es, iam inspirando-a para que tomasse o rumo certo, e Dolores seguia as suas sugest�es
sem nem titubear, atribuindo-as a sua pr�pria intui��o, sem saber que a intui��o nada mais era do que o pensamento dos esp�ritos que a acompanhavam. N�o apenas os
bons esp�ritos s�o capazes de inspirar pensamentos ou id�ias na mente dos encarnados. Os esp�ritos das trevas tamb�m podem intuir para o mal e, estando o encarnado
em afinidade com eles, seguir� os seus conselhos como o faria uma pessoa mais avisada e vigilante, que tende a obedecer �s sugest�es de seus guias e mentores. Estabelecida
a sintonia de prop�sitos, os pensamentos se ligam como em cadeias, formando elos poderosos que s� com a ora��o poderiam se romper. Mas Dolores n�o sabia de nada
disso e, ainda que soubesse, nada faria para alterar esse estado, pois o que lhe interessava era atingir o seu objetivo, fosse quem fosse que a estivesse ajudando.
E os esp�ritos lhe diziam que seria atrav�s de Cec�lia que ela descobriria o grande segredo de Marcela. Agora um pouco intimidada pelo tom de voz de Dolores, al�m
de tamb�m estar sujeita � influ�ncia dos esp�ritos ignorantes que as cercavam, Cec�lia desviou os olhos do rosto da outra e contou com cuidado:
- Luciana me traiu.
- Como?
- Ela me traiu... Prometeu-me coisas e depois me deixou a ver navios.
- Que tipo de coisas? Vamos, menina, fale! Seja o que for, pode me contar. Estou velha demais para me chocar com as sujeiras do mundo.
Dolores esperava que Cec�lia lhe contasse algo sobre drogas e prostitui��o e j� come�ava a se impacientar.
- Bem... - prosseguiu Cec�lia, ainda com cautela - ela me prometeu dinheiro... mais ou menos.
- Por qu�? O que voc� teria que fazer para ela?
- Olhe, dona, na verdade eu n�o tinha que fazer nada. S� transar com ela.
- O qu�?! Transar? Quer dizer, sexualmente? - ela assentiu. Est� querendo me dizer que Luciana � l�sbica?
- Isso mesmo.
- S� isso? - havia um tom de desapontamento na voz de Dolores que Cec�lia n�o entendeu, e ela prosseguiu decepcionada: Nem drogas, nem prostitui��o?
Cec�lia n�o sabia o que Dolores queria escutar. Se soubesse, teria inventado uma hist�ria s� para agrad�-la, mas como n�o conhecia os seus prop�sitos, achou melhor
dizer a verdade:
- N�o sei a que a senhora est� se referindo, mas Luciana n�o usa drogas e, que eu saiba, nunca se prostituiu.
- Sei... E o que sabe sobre uma mo�a chamada Marcela?
- Marcela? Nada. S� sei que era amiga de Luciana.
- Amiga? Elas tamb�m foram amantes?
- Foram. Luciana me contou que ela e Marcela foram apaixonadas. Fugiram de Campos e viveram oito anos juntas aqui no Rio. Depois, Luciana se cansou dela e terminou
tudo. Parece que a tal de Marcela tentou at� se matar por causa disso.
- Tentou se matar? - repetiu Dolores, come�ando a vislumbrar o desfecho daquela hist�ria, que come�ava a lhe parecer interessante.
- Foi. A garota � uma tonta. Apaixonou-se pelo m�dico que a salvou e vive com medo de que ele descubra a verdade.
Os olhos de Dolores brilharam intensamente, e ela concluiu com frieza:
- Obrigada, menina, voc� me foi muito �til. Aguarde uma visita de meu advogado.
- � s� isso?
- Voc� j� disse o que eu queria saber. - Dolores se levantou abruptamente e chamou o guarda que esperava do lado de fora. Pode lev�-la agora. Estou satisfeita.
O guarda n�o esperou uma segunda ordem. Levantou Cec�lia pelo bra�o e saiu conduzindo-a pelo corredor. Cec�lia queria perguntar por que a entrevista se encerrara
t�o repentinamente, mas nem teve tempo. Esperava ser crivada de perguntas por aquela mulher, mas ela fora sucinta em seus questionamentos e pareceu interessada apenas
no relacionamento de Luciana e Marcela. Para Dolores, tudo estava satisfatoriamente esclarecido. Particularmente, ela n�o via na atitude de Marcela algo que por
si s�, levasse a um rompimento do noivado com Fl�vio. E conhecia a opini�o do filho a respeito de homossexualidade, sabia que ele n�o a aprovava, mas n�o estava
certa sobre a rea��o que ele teria ao saber que Marcela era ou fora l�sbica. Ele estava apaixonado demais, e homens apaixonados tendia a fazer coisas est�pidas em
nome do amor. E se Fl�vio j� conhecesse aquela hist�ria? Se ela lhe contasse a verdade agora, talvez ele se aborrecesse e brigasse com ela acusando-a de querer fazer
intrigas para destruir o seu noivado. E se ele nada soubesse, ser� mesmo que se importaria? Talvez nem se incomodasse e at� ficasse feliz porque Marcela n�o tivera
outro homem antes dele. Mas tamb�m podia ser que ele se desgostasse da mo�a e a condenasse pelo que fez. Como poderia ela saber? N�o podia agir de forma direta com
o filho. Tinha que estudar uma maneira de afast�-los usando aquela verdade, o que n�o significava que, necessariamente, precisasse contar tudo a ele. Cec�lia lhe
dissera algo que parecia muito importante: Marcela tinha medo de que ele descobrisse a verdade. Se for assim, ele n�o devia saber nada. O passado de Marcela permanecia
obscuro e sigiloso, o que constitu�a uma arma em suas m�os. Enquanto isso, Marcela e Fl�vio deixavam juntos o hospital, onde haviam acabado de visitar Luciana. Apesar
do temor de que o noivo descobrisse algo, Marcela fez quest�o de ir com ele, para n�o o deixar cismado. Al�m disso, o estado de Luciana ainda era delicado, e ela
n�o podia falar muito, o que evitaria que Fl�vio fizesse perguntas comprometedoras. Quando chegaram ao apartamento de Marcela, Fl�vio comentou:
- Voc� sabia que foi uma mo�a que a esfaqueou?
- Uma mo�a? Como assim? Como � que voc� sabe?
Marcela j� sabia, por Ma�sa, que Cec�lia era a poss�vel autora daquele crime horrendo, mas ela ainda n�o estivera com Ma�sa para saber que Cec�lia estava presa,
e Luciana n�o tocou no assunto.
- Era o coment�rio entre as enfermeiras - prosseguiu ele. Dizem que a mo�a a esfaqueou por ci�me.
- Ser�?
- � o que dizem. E n�o foi por ci�me de namorado, n�o! Parece que as duas tinham um caso.
Marcela ouvia as palavras de Fl�vio cheia de horror, e um suor gelado come�ou a brotar de sua testa.
- Isso � fofoca - rebateu ela, esfor�ando-se para que a voz n�o sa�sse t�o tr�mula quanto seu cora��o. Essas enfermeiras n�o sabem de nada. Pegam um coment�rio aqui,
outro ali, e criam uma hist�ria sensacionalista.
- N�o sei, n�o. N�o creio que todas juntas fossem inventar a mesma hist�ria. Dizem que foi o pr�prio detetive da pol�cia quem contou, meio em tom de chacota, que
a outra j� est� at� presa.
O sangue fugiu do rosto de Marcela, que sentiu os l�bios gelar e o cora��o petrificar, ao mesmo tempo em que tentava ainda reverter aquela situa��o:
- Luciana n�o � assim.
- N�o era, voc� quer dizer. Ou talvez fosse, e voc� nunca tivesse percebido. Ela nunca tentou nada com voc�? - Marcela meneou a cabe�a. Nunca lhe deu uma cantada?
- N�o...
- N�o � poss�vel que voc� n�o tenha percebido nada em oito anos de conviv�ncia com ela.
- Luciana n�o � assim, j� disse!
- N�o entendo essas meninas - continuou ele, sem dar aten��o �s palavras de Marcela. Tanto homem dando sopa por a�, e elas v�o escolher logo outra mulher para transar.
- Por que voc� � t�o preconceituoso? - rebateu Marcela, j� no limite de suas for�as.
- N�o sou preconceituoso. Se Luciana e a tal querem ter um caso, o problema � delas. Eu s� n�o consigo entender... - ele parou de falar e retrucou desconfiado:
- Voc� nunca teve nada com ela, teve?
- E se tivesse tido? Terminaria comigo?
- N�o, porque sei que voc� n�o teve. Voc� n�o � desse tipo.
- Responda-me uma coisa, Fl�vio: o que voc� sente ao ver duas mulheres transando?
- Nojo.
- Tem certeza? N�o fica excitado tamb�m?
- N�o...
- N�o � o que parece. Quando vamos ao motel, voc� bem que se anima vendo aquelas fitas de mulheres transando.
- � diferente. Aquilo � filme, s�o mulheres desconhecidas, n�o � com voc�.
- Isso � hipocrisia.
- Est� tentando me dizer alguma coisa, Marcela? - rebateu ele, j� agora bastante desconfiado e se afastando dela uns cent�metros.
Por uma fra��o de segundos, ela se viu contando toda a verdade, sem se importar com o que ele diria ou qual seria a sua rea��o. Mas o olhar de expectativa e paix�o
que ele lhe lan�ava deu um choque na sua determina��o, e ela voltou os olhos para dentro de si e examinou o seu cora��o. Como se sentiria se Fl�vio a deixasse por
causa de seu passado com Luciana? Certamente, ela n�o suportaria e, por mais que dissesse a si mesma que o suic�dio era um erro, sabia que seria a �nica coisa que
poderia fazer por si mesma. Era covarde e n�o tinha coragem de enfrentar a vida e seus dissabores.
- N�o estou tentando lhe dizer nada - respondeu ela vagarosamente. S� me incomoda o fato de voc� ser preconceituoso, porque eu n�o sou.
Disse essas �ltimas palavras com cautela e olhou para ele, que sustentou o olhar e revidou:
- Voc� pode n�o ser preconceituosa, mas at� que ponto vai essa sua liberalidade? Ser� que voc� e Luciana j� chegaram a ter algum caso?
Era agora ou nunca. A �ltima chance que poderia esperar de contar toda a verdade e acabar com aquela agonia. Marcela chegou a articular o monoss�labo, mas a coragem
lhe escapou na hora. O medo de perd�-lo ainda era muito grande, e ela calou a voz da verdade e mentiu mais uma vez:
- � claro que n�o. Quando mor�vamos juntas, Luciana nunca demonstrou nenhuma tend�ncia homossexual.
Mentir lhe fazia grande mal. Na verdade, aquela era a primeira vez que precisava elaborar uma mentira. At� ent�o, o que vinha fazendo era silenciar quanto �s afirma��es
de Fl�vio, levando-o a crer que suas desconfian�as sobre um poss�vel ex-namorado eram corretas.
- Posso lhe fazer uma pergunta que, at� ent�o, jamais quis formular? - questionou ele, olhando-a com ar entre severo e s�plice.
- Pode. O que �?
- Por que voc� tentou se matar?
Ela sentiu como se uma corrente el�trica descarregasse inteira sobre o seu cora��o, que quase se tornou aud�vel, tamanha a intensidade com que se descompassava.
- Voc� sabe...
- Na verdade, n�o sei. Apenas fiz suposi��es sobre o que parecia ser. Mas agora gostaria de ouvir de voc�. O que, realmente, aconteceu?
- Eu... n�o gosto de falar sobre isso... E voc� prometeu que nunca perguntaria... que n�o se importava com o meu passado.
- Isso foi antes... - ele ia tocar no nome de Luciana, mas desistiu. Mas agora preciso saber. N�o quero que a mulher com quem vou me casar esconda nada de mim. Precisamos
de cumplicidade at� nos nossos segredos mais �ntimos.
Mais uma vez, a oportunidade de revelar a verdade se fazia; mas ela n�o tinha coragem e se atirou de cabe�a no po�o da mais profunda mentira:
- Eu tinha um namorado, e ele me deixou. Quando fugi de Campos, estava sozinha com Luciana, �ramos duas meninas e eu conheci esse rapaz num bar. N�s nos apaixonamos,
e eu me entreguei a ele. Depois de oito anos, ele simplesmente me abandonou. Pensei que o mundo tivesse desabado sobre mim e quis morrer.
- E Luciana? Quando foi que saiu daqui? Foi antes ou depois disso tudo acontecer? Foi por causa desse rapaz que ela se mudou? Voc�s brigaram porque ele a trocou
por ela?
A press�o estava por demais forte e, nesse ponto, Marcela nem conseguiu mais se conter, desabando num pranto angustiado e pontilhado de solu�os aflitos, demonstrando
o seu estado de patente desespero.
- Por que est� fazendo isso comigo? - a lamentou. Eu n�o fiz nada... Por que est� me tratando como se eu tivesse feito alguma coisa errada? Eu o amo, Fl�vio, ser�
que n�o v�? O que importa o meu passado? N�o percebe o quanto est� me fazendo sofrer com essa sua desconfian�a?
As s�plicas o comoveram, e ele correu para ela, os olhos �midos de arrependimento. Estreitou-a com for�a e beijou-a diversas vezes na boca, nos olhos, nas faces.
Ela chorava e solu�ava, nem conseguia mais falar. Seu desespero era t�o vis�vel que ele come�ou a se desesperar tamb�m e praticamente implorou:
- Pelo amor de Deus, Marcela, perdoe-me! Como sou est�pido! Eu a amo e sei que voc� me ama. Por que estamos discutindo bobagens quando o que importa � o nosso amor?
- Ah! Fl�vio...! - solu�ava ela.
- N�o diga mais nada. N�o quero que voc� diga mais nada. Eu acredito em voc�, sei que voc� me ama e n�o seria capaz de fazer nada de errado. Vamos deixar isso tudo
para l� e viver a nossa vida.
Ela redobrou o choro porque ele ainda n�o havia compreendido a verdade, e ela fracassara na coragem de ser sincera. Agora sabia que n�o poderia lhe contar. Embrenhara-se
na mentira e n�o sabia como desatar tantos n�s. Por isso, encostou o rosto em seu peito e continuou a chorar, at� que as l�grimas se cansaram e pararam de cair.
Ao deixar Marcela em casa, Fl�vio seguiu dirigindo em sil�ncio, refletindo sobre tudo o que acontecera naquele dia: a visita a Luciana, os coment�rios das enfermeiras
e a discuss�o com a noiva. Ele n�o sabia o que pensar. Algo dentro dele lhe dizia que a verdade estava no que n�o fora dito, nas palavras distorcidas e nos pensamentos
adulterados. Mas o que dizer do que sentia? Onde estaria a verdade a respeito de seus sentimentos? Fl�vio n�o duvidava de seu amor por Marcela, mas estava preso
� id�ia do modelo de mulher perfeita que a sociedade lhe impingira desde a mais tenra inf�ncia. E agora n�o sabia o que fazer. Por mais que Marcela negasse o seu
envolvimento com Luciana, uma voz dentro dele dizia que ela estava mentindo, mas ainda assim, era melhor n�o saber. Por outro lado, por que ela mentiria? Seria medo
da sua rea��o ou vergonha de si mesma? Aquele era um assunto espinhoso, e ele preferia n�o ter que discuti-lo com Marcela. N�o lhe agradava imagin�-la trocando com
outra mulher as mesmas car�cias a que se entregavam, chegando mesmo a sentir certa repulsa. Preferiu n�o pensar mais no assunto e centrou os pensamentos no futuro.
Marcela e ele se casariam, teriam muitos filhos, e ele n�o precisaria mais se preocupar com aquela hist�ria. Quando chegou a casa, Dolores ainda estava acordada
e o viu passar a caminho do quarto. Pensou em cham�-lo, mas conseguiu se conter. Suas palavras tinham destinat�rio certo, e n�o era o filho. No dia seguinte, Dolores
acordou mais cedo do que o habitual e saiu sem dizer nada a ningu�m. N�o pediu motorista e foi, ela mesma, dirigindo at� a casa de Marcela. Queria encontr�-la antes
que sa�sse para o trabalho. N�o eram nem sete horas quando ela tocou a campainha do apartamento de Marcela, que abriu a porta j� arrumada para trabalhar.
- Dona Dolores! - surpreendeu-se ela. O que faz aqui t�o cedo?
- Tenho urg�ncia em lhe falar - respondeu ela, passando para o lado de dentro e fechando a porta com cuidado.
- N�o pode ser outra hora? Estou de sa�da para o trabalho.
- Tem que ser agora.
- Mas vou me atrasar...
- Ligue e diga que est� doente. Depois de ouvir o que tenho a lhe dizer, voc� n�o vai conseguir trabalhar.
Mesmo sem saber do que se tratava, Marcela sentiu medo. Jamais vira aquele olhar de v�bora amea��-la de forma t�o exuberantemente feroz. Apanhou o telefone e ligou
para a escola, dizendo que estava doente e precisaria faltar. Em seguida, desligou e foi sentar-se junto de Dolores.
- O que foi que aconteceu? - come�ou ela, quase em s�plica.
- N�o vou fazer rodeios com voc�, Marcela. Diga-me apenas o quanto quer para deixar meu filho em paz.
- O qu�!? - a retrucou, mal acreditando no que ouvia. A senhora enlouqueceu? Amo Fl�vio, e n�s vamos nos casar.
- S� se eu morrer antes. Voc� n�o se casa com ele nem que eu tenha que mover c�us e terra para impedir.
- Por que est� dizendo isso, dona Dolores? A senhora pode n�o gostar de mim, mas pensei que j� havia me aceitado.
- Como voc� � est�pida, menina! Ent�o acha que eu me conformaria em ver o meu filho, meu �nico filho, se casando com uma mulherzinha apagada, vulgar e sem classe
feito voc�? E, ainda mais, l�sbica?
Os olhos de Marcela se esbugalharam, e ela pensou que fosse desmaiar.
- O que a senhora est� dizendo?
- N�o se fa�a de inocente comigo, garota. Sei muito bem que voc� e uma tal de Luciana dormiram juntas por oito anos. Foram caso uma da outra, l�sbicas, sim!
- Quem lhe contou isso?
- N�o importa. O fato � que eu sei, e n�o adianta nem voc� tentar mentir.
Marcela abaixou a cabe�a, derrotada, e come�ou a chorar de mansinho. Isso, chore mesmo, sua oportunistazinha barata. Seu plano de escalada social est� desmascarado,
e voc� pode parar de fingir para o meu filho e voltar para a sua amante l�sbica quando ela sair daquele hospital.
- Isso n�o � verdade, dona Dolores. N�o sou interesseira nem oportunista. Vou me casar com seu filho porque o amo de verdade.
- Como o ama, se voc� gosta � de transar com mulheres? Ou ser� que pretende enganar meu filho, depois do casamento, com sua amante de saias?
- Isso � uma afronta! - ela se levantou indignada. Sou uma mulher decente, assim como Luciana tamb�m �. A senhora n�o tem o direito de vir a minha casa e nos insultar.
- N�o precisa fazer cena comigo, Marcela, porque n�o vai funcionar. Sei muito bem quem voc� � e o que pretende, e estou aqui para impedir que voc� arruine a vida
do meu filho. Pela �ltima vez, quanto voc� quer para deix�-lo em paz e sumir da sua vida?
- A senhora n�o pode fazer isso. N�o pode me obrigar a aceitar.
- Posso, sim. Ou ser� que prefere que eu conte a verdade a meu filho? Ele ainda n�o sabe da sua estranha prefer�ncia, sabe? - ela n�o respondeu. Duvido muito. Voc�
n�o � mulher o suficiente para lhe dizer a verdade. Mas eu sou. E n�o hesitarei em lhe contar tudo o que sei.
- O que a senhora ganha fazendo isso? Fl�vio pode muito bem me aceitar como sou.
- Duvido muito. Conhe�o a educa��o que dei a meu filho, e nela n�o se inclui o trato com gente da ral�.
- A senhora n�o faria isso. Vai fazer Fl�vio sofrer.
- Aposto como ele sofreria muito menos se voc� simplesmente desaparecesse. Voc� lhe pouparia o desgosto de saber que a noiva que ele tanto pensa que ama nada mais
� do que uma l�sbica safada e interesseira.
- Que prazer a senhora sente em me humilhar, dona Dolores? Que mal eu fiz � senhora?
- Voc� faz mal � pr�pria vida. Sua exist�ncia corrompe a sociedade e macula as pessoas de bem.
- Isso n�o � verdade - solu�ou ela. Eu amo Fl�vio, e nem a senhora, nem ningu�m pode negar meu sentimento.
- N�o estou aqui para discutir o seu amor. E estou sendo generosa com voc�, porque podia simplesmente contar tudo a meu filho, e ele a abandonaria de qualquer jeito.
Mas n�o. N�o quero que voc� fique na pior. Sei que voc� � pobre e trabalha duro naquele col�gio para ter o que comer. Por isso quero lhe dar uma ajuda. Voc� pode
melhorar de vida, nem vai precisar casar-se com Fl�vio ou com qualquer outro homem. Pode simplesmente pegar o dinheiro e ir buscar a sua amante para viver com ela
confortavelmente em qualquer outro lugar. Por que n�o voltam para Campos?
- A senhora est� sendo cruel. N�o sabe nada a meu respeito, n�o conhece os meus sentimentos. Por que me julga dessa maneira?
- Conhe�o gente feito voc�. Ca�adoras de dote, h� muitas por a�. Voc� n�o ser� a primeira nem a �ltima. Mas o meu filho n�o vai ser v�tima de nenhum golpe barato
para lev�-lo ao altar. N�o enquanto eu ainda estiver viva.
Havia tanta ang�stia no olhar de Marcela que Dolores, ao inv�s de se condoer, sentiu-se vitoriosa e capaz. Ela, sozinha, podia manipular toda a vida de uma pessoa,
o que lhe dava uma sensa��o de poder indescrit�vel, como se ela fosse a senhora do destino de Marcela.
- Vou lhe dar um tempo para pensar - prosseguiu Dolores. At� amanh� de manh�. Depois disso, conto tudo a Fl�vio, e voc� pode esquecer o noivado e o dinheiro. Pense
bem.
N�o havia mais o que fazer ali, e Dolores se levantou elegantemente para sair. Depois que ela se foi, Marcela ficou alguns minutos parada, olhando para a porta que
acabara de fechar. Aquilo devia ser algum pesadelo. Ainda na v�spera estivera conversando com Fl�vio, e tudo parecia ter-se acertado. Ele n�o fizera mais perguntas,
e os dois haviam se amado com intensidade e paix�o. Como podia ser que agora Dolores aparecia em sua casa para lhe fazer aquele tipo de amea�a? E quem poderia ter-lhe
contado tudo? Teria sido a pr�pria Luciana? N�o. Luciana prometera que jamais contaria. Ma�sa tamb�m n�o. Fl�vio n�o tinha certeza de nada. S� sobrava Adriana, mas
a nova amiga n�o conhecia Fl�vio nem a m�e dele. Ah! Que falta fazia Adriana. Marcela n�o tinha o seu telefone, mas era com ela que gostaria de conversar. Luciana
estava no hospital, e ela n�o podia levar-lhe problemas. Ma�sa, apesar de amiga, n�o era �ntima e ela n�o costumava fazer-lhe confid�ncias. Com Fl�vio, n�o podia
nem pensar em falar. Quem sobrara ent�o para conversar? Ningu�m. Marcela n�o tinha amigos nem ningu�m com quem pudesse abrir o seu cora��o. De repente, sentiu-se
t�o sozinha, t�o infeliz! Come�ou a chorar descontrolada e atirou-se na cama fitando o retrato de Fl�vio em cima da mesinha. Seus olhos percorreram o quarto, pousando
sobre o exemplar de Morte e Vida Severina, e algo significativo assomou em sua mente: n�o seria melhor pular da ponte e da vida? Marcela n�o queria morrer porque
amava Fl�vio e sabia que ele a amava. Mas n�o poderia suportar separar-se dele. Tamb�m n�o ag�entaria se ele descobrisse a verdade atrav�s de Dolores. O ju�zo que
ele faria dela seria pior do que a morte, e Marcela n�o conseguiria enfrentar seu olhar de decep��o. Se era assim, se era para decepcion�-lo, para faz�-lo infeliz
e estragar a imagem que ele constru�ra sobre o seu amor, o melhor mesmo era morrer. Atordoada e vencida, Marcela se levantou da cama e foi procurar rem�dios para
dormir, mas, desde o dia em que Fl�vio entrara em sua casa pela primeira vez, retirara todos os comprimidos do arm�rio e a proibira de comprar outros. No arm�rio
do banheiro havia um aparelho de barbear com o qual se depilava, e ela retirou a gilete. Experimentou a l�mina no dedo, e um filete de sangue aflorou, t�nue e quase
impercept�vel. Voltou para a cama com a gilete e se deitou, apanhando o retrato de Fl�vio e agarrando-se a ele. Igualzinho ao que fizera com o de Luciana, pensou.
A �nica diferen�a era que sujaria o retrato de sangue. Ser� que valia mesmo a pena fazer aquilo? Ser� que n�o preferia viver? Ficou pensando na rea��o das pessoas
quando soubessem, na cara de quem descobrisse o seu corpo. Dessa vez, n�o haveria Ma�sa para impedir a consuma��o de seu ato extremo. Faltava ainda uma coisa: Marcela
n�o podia partir sem deixar uma mensagem a Fl�vio. Ele precisava saber, ao menos, do seu amor. N�o pretendia lhe contar sobre aquela mentira s�rdida, mas n�o podia
deix�-lo pensando que ela se fora porque n�o o amava. Ao contr�rio, partia por excesso de amor a ele, para n�o ter que faz�-lo sofrer. Apanhou a caneta em sua escrivaninha
e arrancou uma folha de caderno, escrevendo com uma caligrafia bonita e caprichada, a t�pica letra de professor:
Meu querido Fl�vio,
Parto desta vida por minha covardia, por falta de amor a mim mesma e medo de ser o que sou. O que sou agora n�o importa. Basta que voc� saiba que sou uma mulher
cheia de erros e defeitos, mas que talvez tenha, como �nica virtude, o verdadeiro amor que sente por voc�. N�o chore a minha morte nem se sinta culpado por eu ter
desistido de viver, e lembre-se de mim como aquela que mais o amou na vida, porque o meu amor por voc� n�o tem limites nem raz�o. Amo voc�. Amo voc�. E s� voc�.
Marcela.
Terminou de escrever o bilhete e o colocou em cima da cama, no travesseiro ao lado do seu. Queria que estivesse vis�vel para quem o encontrasse. Em seguida, apertou
a gilete contra o pulso, fechou os olhos e chorou. Assim que chegou a casa, a primeira coisa que Dolores fez foi telefonar para Ariane.
- Venha at� aqui imediatamente - ordenou e bateu o telefone; sem esperar resposta.
Do outro lado da linha, Ariane fitava o fone mudo, coberta de indigna��o. Dolores n�o podia mandar nela daquela maneira. J� estava passando dos limites. Afinal,
ela n�o era sua criada nem secret�ria particular, e ela n�o tinha o direito de dispor de seu tempo como se este lhe pertencesse. Contudo, mesmo contrariada, achou
melhor atender o chamado de Dolores, pois, pelo tom de sua voz, alguma coisa muito importante deveria ter acontecido. Ariane estava se preparando para ir � manicura,
mas mudou de id�ia e rumou direto para a casa de Dolores. Encontrou-a recostada numa espregui�adeira, � beira da piscina, fumando tranq�ilamente ao sol frio da manh�
invernal.
- Bom dia, Dolores - cumprimentou ela, sem muito interesse.
- Por que me chamou t�o cedo?
- Voc� sabe o que fiz hoje? - retrucou Dolores, em tom de irritante vit�ria.
- N�o. O qu�?
- Salvei a honra de meu filho, a sua felicidade e a minha realiza��o.
- Como � que �?
- Resumindo: dei um jeito de fazer aquela Marcela sumir.
- Voc� o qu�?
- Acabei com ela, Ariane. Voc� tinha que ver a cara dela quando eu a desmascarei.
- Como assim, voc� a desmascarou?
- Sente-se aqui, e eu lhe conto tudo. Voc� n�o vai acreditar. Fiz, em um dia, bem mais do que voc� em v�rios meses. Sabe o que descobri? - Ariane meneou a cabe�a.
Que a sua amiguinha Marcela � l�sbica e vivia com a tal de Luciana. Voc� sabia?
- Ariane n�o respondeu, e Dolores continuou falando, sem lhe prestar muita aten��o. Isso n�o importa. O importante � que eu acabei com aquele ar de anjo que ela
pendurou na cara s� para impressionar o meu filho. Podemos nos considerar vitoriosas. Marcela est� fora da jogada, e Fl�vio vai se voltar para voc�. Trate de estar
bem-disposta para lhe oferecer conforto e carinho.
- O que voc� fez? - tornou Ariane at�nita. Como foi que descobriu essa... particularidade de Marcela?
- Eu sou esperta, meu bem. Peguei as suas informa��es e rapidinho consegui desvendar a hist�ria toda. Descobri por que e por quem Luciana foi esfaqueada e o paradeiro
da quase assassina. Ela est� presa, e eu fui visit�-la na cadeia. � uma pobretona, mau car�ter e interesseira, e n�o foi dif�cil arrancar-lhe a verdade.
- Que verdade?
- A que lhe contei, ora! Que Marcela � l�sbica e vivia com Luciana. A mo�a, que se chama Cec�lia, me contou tudo...
Enquanto Dolores falava, o cora��o de Ariane ia se tornando pequenininho de dor e arrependimento, pois sabia que fora ela quem come�ara aquela hist�ria toda. Se
n�o tivesse se aproximado de Marcela, Dolores jamais descobriria sobre Luciana e, muito menos, sobre a tal de Cec�lia. E agora, Dolores fizera alguma coisa para
terminar com o namoro de Marcela e Fl�vio, e ela era a �nica culpada. N�o queria aquela culpa, n�o podia conviver com a lembran�a de que conquistara a felicidade
passando por cima da felicidade de mais algu�m. Dolores n�o parava de falar, sentindo um prazer m�rbido ao narrar para Ariane a conversa que tivera com Marcela e
ver a rea��o da mo�a ao se descobrir desmascarada. Havia at� certa euforia ao descrever o ar de assombro, de frustra��o, de medo e de desespero de Marcela quando
ela desferiu o golpe fatal, procurando for��-la a aceitar dinheiro e sumir, antes que ela contasse ao filho a verdade sobre o seu passado sujo. No fundo, sabia que
estava atingindo Ariane tamb�m. Fingia falar descontroladamente, mas n�o havia nada que Dolores fizesse que n�o fosse estudado e planejado. Contava o que acontecera
entre ela e Marcela com ar de superioridade e vit�ria, deixando claro, nas entrelinhas, que esmagara Marcela como poderia esmagar qualquer uma que atravessasse o
seu caminho. Para Ariane, o efeito era diferente. A cada palavra de Dolores, ela se lembrava da hist�ria que a m�e lhe contara sobre o seu casamento, sobre ter dado
dinheiro � mo�a por quem o pai fora apaixonado para que a m�e pudesse se casar com ele. E no que foi que deu? Anita vivera uma vida infeliz, e o pai tamb�m nunca
sentira o que era a verdadeira felicidade, porque se casara com uma mulher a quem n�o amava apenas para se compensar da perda. Ser� que era essa vida que queria
para ela tamb�m? Decididamente, Ariane queria ser feliz ao lado do homem por quem se apaixonasse. Mas era essencial que esse homem a amasse tamb�m. Tinha o exemplo
da m�e e do pai e sabia como podia ser infeliz e destrutiva uma conviv�ncia sem amor, principalmente naquelas circunst�ncias. N�o, n�o queria isso para si mesma
nem para Fl�vio. Nem para Marcela. Eles eram pessoas que mereciam a chance de, ao menos, errar por si mesmas, sem que algu�m mais tivesse que determinar os seus
erros. Era direito de eles tentarem o que achassem melhor, viver as suas pr�prias experi�ncias, sofrer ou ser felizes com as escolhas que fizessem livremente. Dolores
n�o tinha o direito de fazer isso por eles. Antes que Dolores terminasse a sua narrativa s�rdida e mordaz, Ariane se levantou e virou-lhe as costas, caminhando para
a rua a passos apressados.
- Aonde voc� vai? - ela ainda ouviu Dolores gritar. Volte Ariane, ainda n�o acabei de contar...
Ariane n�o ouvia mais nada. Sua pressa a levou at� o carro e fez surdos os seus ouvidos. Entrou rapidamente e ligou o motor, cantando pneus rumo � casa de Marcela.
Tocou a campainha v�rias vezes, mas ningu�m respondeu. Tentou a ma�aneta, que estava trancada, e p�s-se a dar murros na porta, mas ningu�m atendia. Come�ou a se
apavorar. Algo em seu �ntimo lhe dizia que alguma coisa muito errada estava acontecendo.
- Marcela! Marcela! - gritava em desespero, virando a ma�aneta v�rias vezes. Voc� est� a�? Pelo amor de Deus, Marcela!
Como Marcela n�o respondesse, Ariane correu at� um orelh�o pr�ximo e ligou para o n�mero particular da mesa de Fl�vio, no consult�rio. Era a �nica coisa que lhe
ocorria naquele momento, e ele era a �nica pessoa que ela conhecia e que conhecia Marcela tamb�m.
- Al�! Fl�vio? � Ariane! - ele ia dizer qualquer coisa, mas ela n�o lhe deu tempo. Venha � casa de Marcela agora! � urgente!
Desligou e voltou correndo para o apartamento de Marcela, deixando Fl�vio sem nada entender do outro lado da linha. O que Ariane estaria fazendo em casa de Marcela?
E desde quando as duas se conheciam? Sua voz, muito grave e aflita, o deixou preocupado. Por mais que n�o entendesse por que Ariane havia lhe telefonado para cham�-lo
� casa da noiva, n�o podia simplesmente ignorar. Fl�vio deu um sorriso sem gra�a para o paciente que aguardava atendimento e ligou para a casa de Ariane. Quem atendeu
foi a m�e, e ele pediu para falar com a mo�a, mas Anita o informou de que ela havia sa�do para ir � manicura e n�o havia retornado. Ainda assustado, tentou a sua
casa, e a empregada lhe disse que Ariane l� estivera, mas que havia sa�do apressada fazia quase uma hora. Ele consultou o rel�gio e constatou que o hor�rio conferia
com o tempo que Ariane levaria para ir da sua casa a casa de Marcela, o que o deixou ainda mais preocupado. �quela hora, Marcela deveria estar na escola, dando aulas,
de forma que ele n�o esperava encontr�-la em casa. Ainda assim, ligou para l�. O telefone tocou insistentemente por v�rias vezes, mas ningu�m atendeu, e ele deduziu
que Marcela deveria estar trabalhando. N�o havia com o que se preocupar. Ariane, com certeza, fora � sua casa e conversara com sua m�e, retomando aquelas id�ias
absurdas de namoro e casamento. Talvez a m�e tivesse lhe dito algo que a desagradara, e Ariane, de prop�sito, resolvera se vingar, deixando-o preocupado e angustiado
por causa de Marcela, cujo endere�o ela nem conhecia.Ainda assim, uma opress�o se espalhou pelo seu peito, e Fl�vio foi tomado por um indiz�vel medo de perder Marcela.
Ele olhou para o paciente, sentado � sua frente com ar de interroga��o, apertou o interfone e chamou a secret�ria, dando-lhe ordens para transferi-lo, imediatamente,
ao consult�rio do pai.
- Sinto muito, seu Od�cio, mas recebi um chamado urgente. Tenho que sair.
O cliente fez uma express�o de pasmo e ia contestar, mas Fl�vio j� havia atirado longe o jaleco e disparado porta afora. Em seus pensamentos, mil coisas se atropelavam
e, por mais que ele tentasse encontrar alguma explica��o que o fizesse compreender por que Ariane estaria em casa de Marcela, n�o conseguia pensar em nada que fosse,
ao menos, razo�vel. Mesmo assim, seguiu avante, procurando n�o se deixar levar pela surpresa e as indaga��es. Enquanto isso, Ariane chegava ao patamar onde ficava
a porta do apartamento de Marcela e estranhou que ela agora estivesse apenas encostada. Pela pequenina fresta que se abria, ela aprumou um olho e espiou para dentro.
O apartamento estava escuro com todas as cortinas cerradas, e parecia deserto. Ariane sentiu medo e quase desistiu de entrar. Podia haver algu�m escondido ali, esperando
para surpreend�-la e atac�-la, o que lhe causou calafrios. Podia at� mesmo ser que Cec�lia tivesse sido solta e houvesse ido � casa de Marcela para ultimar sua vingan�a
com Luciana. Quem poderia saber? Talvez fosse melhor esperar que Fl�vio chegasse. Ela j� havia telefonado para ele e tinha certeza de que ele n�o hesitaria em atender
o seu chamado. N�o depois que ela dissera que se tratava de Marcela e era urgente. Mas, se esperasse, quando Fl�vio chegasse, bem podia ser tarde demais. E se a
porta estivesse aberta porque o malfeitor, ouvindo o som da campainha houvesse resolvido ir embora? Podia ser que Marcela estivesse ferida e precisando de ajuda,
e cabia a ela ajudar. N�o pensou em mais nada. Decidida a descobrir o que havia sido feito a Marcela, Ariane empurrou a porta e entrou na escurid�o da sala. Olhou
ao redor e n�o encontrou Marcela em lugar nenhum. Queria cham�-la, mas a voz entalou na garganta, presa pelo medo de ser descoberta. Sem produzir qualquer ru�do,
Ariane dirigiu-se ao quarto e escancarou a porta. O quarto tamb�m estava vazio e parecia intocado, a n�o ser por uma pequena mancha de sangue derramada sobre a colcha
branca que cobria a cama de Marcela. A vis�o do sangue sobre o branco do tecido causou um choque em Ariane, que levou as m�os aos l�bios e abafou um grito de agonia
e pavor, virando bruscamente para a porta de sa�da. N�o chegou nem a dar um passo e se chocou de frente com a pr�pria Marcela, que vinha do banheiro com olhos vermelhos
e um dos pulsos enfaixado.
- Adriana! - exclamou ela, debulhando-se em l�grimas e atirando-se ao pesco�o da outra.
- Marcela... - balbuciou Ariane, tentando entender o que havia passado. O que foi que houve? Voc� se machucou? Ariane se havia desvencilhado de Marcela e segurava
seu pulso ferido com uma das m�os, o sangue ainda a tingir a bandagem malfeita. O que foi isso? Voc� se cortou?
- N�o foi nada - esclareceu Marcela, puxando o bra�o �s pressas e se atirando na cama logo em seguida. Oh! Adriana, voc� n�o sabe o que aconteceu! Dona Dolores...
Foi horr�vel!
Ela desatou a chorar convulsivamente, e Ariane aproximou-se dela, sentando-se na cama ao seu lado. S� ent�o percebeu a gilete perto de onde o sangue se derramara
e apanhou-a com cuidado.
- O que isso est� fazendo aqui? - perguntou desconfiada, exibindo a l�mina para a outra. N�o v� me dizer que voc�... - calou-se, temendo as pr�prias palavras.
- Oh! Adriana! - choramingou Marcela novamente.
- Voc� ficou louca, Marcela? - revidou Ariane, entre zangada e aflita. Ia tentar se matar novamente?
- De que adianta viver? - disparou a outra, redobrando o pranto. Dona Dolores descobriu tudo! Sobre mim, Luciana e at� sobre Cec�lia! Como p�de isso ter acontecido?
Quem foi que teve a coragem de lhe contar s� para me fazer infeliz?
Ariane sabia quem havia contado, mas n�o podia dizer. Estava feliz porque nada de mau havia acontecido a Marcela, e maldisse a si mesma por haver-se precipitado
e ligado para Fl�vio. Ele j� devia estar chegando, e ela precisava arranjar uma boa desculpa para ir embora ao meio daquela como��o.
- N�o devia ter feito isso, Marcela. Voc� ainda tem o Fl�vio.
- N�o tenho mais! Ele vai descobrir e vai me desprezar.
- N�o acha que o est� julgando mal? J� n�o � hora de acabar com essa agonia e lhe contar toda a verdade? Voc� j� foi longe demais com essa mentira, e veja s� no
que deu. Fl�vio precisa saber...
Antes que Marcela pudesse dizer alguma coisa, Fl�vio chegou ao quarto e estava parado no umbral da porta, fitando aquela cena sem nada entender.
- Saber o qu�? - falou ele, assustando as mo�as. E Ariane, o que est� fazendo aqui?
- Voc�s se conhecem? - retrucou Marcela, surpresa com essa constata��o.
- � claro que conhe�o Ariane! - continuou ele, indignado.
- Conhe�o-a desde pequeno.
- Como pode ser isso? Adriana, isso � verdade?
Na confus�o, Marcela n�o percebera a troca de nomes, mas Fl�vio, sim. Num �timo, compreendeu tudo: Adriana, a amiga misteriosa que ele nunca via e n�o deixava telefone
nem endere�o. Nome muito parecido ao seu verdadeiro.
- Isso, por acaso, foi id�ia da minha m�e? - perguntou ele, cheio de raiva, e sem notar o sangue no pulso e na cama de Marcela.
- Foi - confirmou Ariane, a voz sumida de medo e vergonha.
- Isso o qu�? - intercedeu Marcela. Que id�ia? Ser� que voc�s podem me explicar o que est� acontecendo? N�o estou entendendo nada.
- Conte a ela, Ariane. Explique para que ela possa compreender que grande amiga voc� �.
- O nome dela � Adriana - corrigiu Marcela, s� agora se dando conta de que ele a chamava de outro jeito.
- N�o � n�o, Marcela! O nome dela � Ariane mesmo. Ela � filha do ex-s�cio de meu pai e amiga �ntima de minha m�e. - Ele apontou o dedo para a outra e disparou em
tom acusador: Fazia parte do plano de voc�s fazer-se passar por amiga de Marcela para destruir o nosso noivado? � isso, Ariane? Marcela olhava de Ariane para Fl�vio
t�o surpresa com o que ele dizia que at� se esquecera de seu pr�prio sofrimento. De repente, foi como se uma nuvem sa�sse da frente de seus olhos, e ela p�de enxergar
e compreender a realidade daquela situa��o.
- Voc� est� querendo me dizer, Fl�vio, que Adriana adotou um nome falso e se fez passar por minha amiga s� para destruir o meu namoro com voc�? - Ele assentiu.
- Por qu�?
- Porque ela quer se casar comigo, e � o que minha m�e quer tamb�m.
Marcela fitou-a cheia de horror, sentindo no peito a dor aguda da trai��o.
- Adriana, como p�de? Eu acreditei em voc�, confiei em voc�, contei a voc� os meus segredos mais �ntimos... Agora compreendo tudo - ela ocultou o rosto entre as
m�os e desatou a chorar. - Foi voc�, n�o foi? Foi voc� quem cometeu aquela trai��o e contou tudo a dona Dolores.
A muito custo, Ariane conseguiu retomar o dom�nio sobre si mesma e falar algo em sua defesa.
- Por favor, Marcela, em primeiro lugar, pe�o que me perdoe. Meu nome n�o � Adriana, como voc� v�, mas Ariane. Conheci-a seguindo o plano de Dolores, que sugeriu
que eu me aproximasse de voc� e me tornasse sua amiga, para descobrir os seus segredos e us�-los contra voc�, afastando-a de Fl�vio.
Aquela confiss�o estava sendo muito dolorosa e sofrida, mas Ariane n�o podia parar e tentar inventar uma desculpa qualquer que a isentasse de responsabilidade em
tudo o que acontecera.
- Voc� se fingiu de minha amiga! - acusou Marcela, entre a raiva e a decep��o. E eu lhe contei toda a minha vida, dei-lhe as armas para voc� me destruir. Quantas
noites passei aqui, com pena de voc�, julgando-a uma pobre menina rica abandonada pelo namorado e sem o apoio da fam�lia. Como fui ing�nua e burra!
- Voc� foi ing�nua, mas n�o burra - contestou Ariane, a voz cada vez mais sumida. Voc� � uma pessoa muito especial, Marcela, e eu me afei�oei a voc� de verdade.
- Como quer que eu acredite em voc�? Voc� fingiu para me destruir... Conseguiu... Ariane... n�o foi? Como p�de ser t�o cruel...? - calou-se decepcionada, engolindo
o pranto, os l�bios tr�mulos e o cora��o dolorido.
- Voc� n�o sabe o que est� dizendo. Fl�vio est� ao seu lado.
Marcela chorava angustiada. N�o sabia o que lhe do�a mais: se o medo de perder Fl�vio ou a trai��o de Ariane.
- Por que fez isso comigo quando s� o que eu quis foi ajud�-la? Eu era sua amiga... Ariane. E voc�? Nunca sentiu nada por mim?
Vendo o quanto ela chorava, Fl�vio se aproximou e estreitou-a em seus bra�os, s� ent�o percebendo a bandagem manchada de sangue que cobria o seu punho.
- Mas o que � isso? - questionou ele alarmado. O que houve com seu pulso?
Marcela se calou e voltou a aten��o para ele, olhando de soslaio para a gilete que Ariane deixara sobre a mesinha, e o sangue que manchava a colcha. Fl�vio seguiu
o seu olhar e ficou surpreso por n�o haver notado o que havia se passado ali.
- Voc� tentou se matar novamente? - prosseguiu ele indignado. Por qu�?
Marcela e Ariane se olharam naquele momento, uma com ang�stia e medo, a outra com ang�stia e arrependimento.
- Seja o que for que ela lhe disser, Fl�vio - considerou Ariane -, ter� sido em nome do amor.
- O que quer dizer com isso? O que houve entre voc�s duas que eu n�o sei?
- N�o houve nada entre n�s, exceto, talvez, uma grande amizade que mal chegou a nascer e j� foi eliminada. Arrependo-me muito pelo mal que lhe causei, Marcela, e
quero que saiba que eu gosto, realmente, de voc�. Se fiz o que fiz, foi porque pensei que amava Fl�vio e o queria a qualquer pre�o. Hoje sei o quanto estava enganada
e posso lhe afirmar com toda a sinceridade do meu cora��o: n�o quero me casar com Fl�vio, e nada me daria mais alegria do que v�-lo casado e feliz com voc�.
- N�o acredito em voc� - contestou Marcela, embora sem muita convic��o.
- Eu tamb�m n�o acreditaria, se fosse voc�, mas � a mais pura verdade. Aprendi a gostar de voc� e a dar valor � amizade, embora estivesse presa ao poder de Dolores.
- Voc� me traiu...
- Eu n�o a tra�. Voc� pode n�o acreditar em mim, mas jamais disse uma palavra a ningu�m... - ela parou de falar abruptamente, encarando Fl�vio, que as fitava cheio
de assombro. Lamento o mal que lhe fiz. Vou embora e prometo que voc� nunca mais vai ouvir falar de mim.
Marcela n�o conseguiu se mover ou dizer nada que a impedisse. Estava decepcionada, triste, com raiva e com medo, tudo ao mesmo tempo. Queria ir atr�s dela e lhe
pedir maiores explica��es, mas a presen�a de Fl�vio a paralisou. Ele ouvira mais do que deveria e n�o tardaria a questionar sobre tudo aquilo. E ela agora j� n�o
tinha mais como lhe omitir a verdade ou inventar uma mentira que a salvasse. Ningu�m seguiu Ariane. Por mais surpreso e indignado que Fl�vio estivesse, havia preocupa��es
maiores do que aquela com que se ocupar. Marcela havia tentado novamente o suic�dio, o que indicava que ela estava com problemas s�rios outra vez. Muito bem - disse
ele, algum tempo depois que Ariane saiu. Deixe-me ver esse pulso agora.
- N�o foi nada.
- Isso, quem decide sou eu. Vamos, mostre-me.
Embora contrariada, Marcela exibiu-lhe o pulso ferido. Ele desatou as bandagens, fez um ar de reprova��o e foi com ela para o banheiro refazer o curativo.
- Sorte que foi superficial - anunciou, examinando o corte com aten��o. Passou perto da veia, mas n�o vai precisar levar pontos.
Com extremo cuidado e muito profissionalismo, Fl�vio apanhou o material de primeiros socorros dentro do arm�rio e p�s-se a cuidar da ferida, enquanto Marcela puxava
o pulso de vez em quando, � medida que ele limpava o local.
-Est� doendo - queixou-se ela, mas ele n�o lhe deu muita aten��o.
Depois de refeito o curativo, ele a conduziu de volta ao quarto e tirou a colcha da cama, sentando-se com ela sobre o len�ol nu.
- E agora, ser� que voc� pode me explicar o que aconteceu?
Voc� n�o viu? - falou ela, tentando desviar o assunto. Sua ex-namorada se fez passar por minha amiga para me destruir.
- Voc� sabe que n�o � a isso que me refiro. Quero saber o que aconteceu para voc� cortar os pulsos.
- Eu... n�o cortei... foi um acidente...
- Acidente com uma gilete, em cima da cama, no pulso esquerdo? N�o me convenceu.
- Mas � a verdade... Eu estava vendo se a gilete estava afiada... precisava me depilar... passei-a por acaso sobre o pulso, e ele sangrou...
Fl�vio colocou os dedos sobre os seus l�bios e a censurou com ternura:
- Est� tentando enganar a si mesma, porque a mim, voc� n�o engana. Ouvi muito bem Ariane dizer que voc� j� havia ido longe demais com a sua mentira e precisava me
contar a verdade, porque eu precisava saber. Saber o qu�?
- � alguma inven��o daquela fingida! - a objetou, tentando imprimir � voz um tom de f�ria. Provavelmente, mais uma de suas mentiras para fazer intriga.
- N�o me pareceu mentira nem intriga. Ela falava de algo que voc� sabia muito bem o que era.
- Voc� n�o pode dar cr�dito ao que ela disse. Ariane j� provou que � falsa e mentirosa.
- N�o se trata de dar cr�dito, mas eu vi o jeito como voc�s duas estavam falando. Voc� est� tentando me esconder algo.
- Prefere acreditar nas artimanhas daquela fingida em vez de confiar em mim? Como pude ser t�o est�pida confiando nela? Que �dio que sinto de mim mesma!
- Acho que voc� est� tentando fugir do assunto.
- Ser� que voc� n�o percebe que est� fazendo justamente o que ela quer? Est� entrando no jogo de Ariane e de sua m�e.
- N�o estou entrando no jogo de ningu�m. Estou apenas querendo descobrir a verdade.
- A verdade � cristalina. Voc� n�o v�, Fl�vio? Ela nos enganou com as suas artimanhas, fez-me passar por tola. E eu fiquei com pena dela. Jamais poderia imaginar
que sua m�e estivesse por tr�s disso.
- Sei que mam�e e Ariane tramaram contra n�s, mas n�o conseguiram nada. Ali�s, nem tiveram tempo, porque foram desmascaradas antes. Mas o que eu ouvi n�o foi um
truque nem artimanha. Ariane n�o sabia que eu estava aqui e se referia a algo que me pareceu bem real. O que � que eu deveria saber e voc� n�o me contou?
- Nada... - hesitou. Por que n�o acredita em mim? Se n�o acredita, por que n�o corre para Ariane e vai perguntar a ela? Talvez a palavra dela tenha mais peso do
que a minha.
- Voc� est� usando Ariane como desculpa para n�o me contar a verdade, seja ela qual for.
- Eu, usando Ariane? Mas se foi ela quem me usou!
- Vamos esquecer Ariane. Quero que voc� me diga o que est� acontecendo.
- Ela n�o est� aqui, mas plantou a sua semente de disc�rdia. Voc� est� me pressionando por causa dela.
- Pode at� ser. Mas o que ela disse n�o foi inven��o, e voc� parecia bem transtornada. Vamos, Marcela, o que �?
- Ariane � quem deve saber. Afinal, foi ela quem disse...
- N�o tente me fazer de tolo, Marcela. Se voc� est� me escondendo algo, eu preciso saber. - Ela o encarava � beira das l�grimas, e ele pressionou mais um pouco:
- Por que voc� tentou se matar?
- Eu n�o tentei...!
- Voc� acusou Ariane de mentirosa, mas n�o est� me parecendo muito diferente dela. Por que reluta em me contar a verdade?
N�o havia mais sa�da, e Marcela sabia disso. Fl�vio escutara pouco, contudo, o que ouvira fora suficiente para lhe dar a certeza de que ela escondia algo importante.
- Por favor, Fl�vio, n�o � nada. Acredite em mim.
- Ningu�m tenta se matar por nada. E, no seu caso, o nada j� quase a matou por duas vezes. N�o acha que � demais?
- Eu... - ela estava tentando imaginar algo convincente para lhe falar, mas n�o lhe vinha nada � cabe�a. A verdade lhe parecia, naquele momento, a �nica solu��o
poss�vel. Tenho medo...
- De qu�? De mim?
- De voc� n�o aceitar.
- O qu�? Voc� fez alguma coisa? - ela assentiu. O qu�? Vamos, diga-me. Eu exijo saber a verdade.
- Voc� n�o tem o direito de me pressionar - objetou-a, quase em desespero.
- Tem raz�o, n�o tenho. Mas voc� tamb�m n�o tem o direito de exigir que eu me conforme com mentiras e evasivas. Se n�o me contar a verdade, � porque n�o confia em
mim, e se n�o h� confian�a entre n�s, n�o pode haver casamento.
Ao ouvir isso, Marcela liberou o pranto e come�ou a chorar angustiada. Atirou-se ao pesco�o de Fl�vio e deixou-se ficar abra�ada a ele por alguns minutos. Ele a
estreitou contra si, sentindo os tremores que os solu�os infligiam a seu corpo fr�gil. Esperou pacientemente at� que ela se acalmasse. Secou seus olhos, alisou seus
cabelos e deu-lhe um beijo suave nos l�bios, acrescentando com a voz mais doce que conseguiu entoar:
- Voc� sabe que a amo, n�o sabe? Seja o que for que voc� tenha feito, eu sempre vou continuar amando voc�.
- Eu sei... - solu�ou ela. Mas o seu amor... ser� capaz de aceitar coisas com as quais voc� n�o concorda e n�o consegue entender? Coisas que voc� despreza e das
quais sente repulsa e desprezo?
- Por que diz isso?
Ela ainda relutava em falar, mas descia por uma corredeira sem volta, que a obrigava a soltar o destino e deix�-lo seguir seu curso normal na correnteza da vida.
- Ser� que voc� n�o sabe? Nem desconfia?
Fl�vio abaixou os olhos e balan�ou a cabe�a, falando com certa ang�stia:
- Voc� � l�sbica, n�o �? Tentou se matar duas vezes por causa de Luciana, n�o foi?
Ela simplesmente cobriu o rosto com as m�os e assentiu, sem coragem de encar�-lo.
- Eu n�o queria que as coisas fossem assim - murmurou ela, entre um solu�o e outro. Mas n�o podia apagar meu passado.
- Por que n�o me contou?
- Pensei em contar, mas tive medo. E depois, voc� mesmo foi criando uma hist�ria, acreditando que eu havia tentado o suic�dio por causa de um ex-namorado. Criou
at� uma parte para Luciana, como se ela fosse a mulher que tivesse tirado o namorado de mim.
- E voc� achou melhor me deixar acreditar numa mentira...
- Tive medo. N�o queria que voc� me desprezasse. Quando o conheci, fiquei confusa e assustada, nunca antes me havia relacionado com um homem, e era tudo novo para
mim. Cheguei a pensar que estava confundindo as coisas...
- E n�o estava?
- No come�o, pensei que sim, porque voc� foi aquele que salvou a minha vida, que me deu carinho e aten��o, que se importou comigo sem ligar para o meu passado ou
para o que eu havia feito. Pensei que tudo n�o passasse de gratid�o e car�ncia, porque voc� se preocupava comigo de verdade e parecia sincero no sentimento que me
oferecia. Mas depois fui percebendo que a sua presen�a me enchia de alegria, e a sua falta me causava tristeza e saudade. Depois que fizemos amor pela primeira vez,
tive certeza de que estava mesmo apaixonada. Nunca antes havia experimentado algo t�o bom e maravilhoso e me senti satisfeita e completa. Se isso n�o � amor, ent�o
desconhe�o o que seja amar.
- Voc� possui uma forma muito estranha de amar.
- Por que diz isso?
- Seu amor a aprisiona na depend�ncia.
- Est� sendo injusto, Fl�vio. Quando voc� me conheceu, sabia que eu estava fr�gil e carente. N�o queria que eu me apegasse a voc� e dependesse do seu amor?
- Ningu�m deve ser t�o dependente a ponto de abrir m�o da vida quando v� amea�ada a seguran�a que pensa que a depend�ncia traz. Foi por isso que Luciana a deixou,
n�o foi? Porque se cansou da sua depend�ncia.
- Voc� n�o tem o direito de falar de coisas que desconhece! Est� me julgando por fatos que ocorreram antes de voc� surgir na minha vida e dos quais voc� nada sabe.
- Voc� est� fugindo do assunto porque tem medo de me contar a verdade. Mas o fato � que ela a deixou, e foi por isso que voc� tentou se matar.
- E da�? - explodiu ela, agitando as m�os nervosamente.
- Luciana simplesmente deixou de me amar. Isso acontece �s vezes, sabia?
Com os olhos marejados, Fl�vio se afastou de Marcela e p�s-se a caminhar de um lado a outro do quarto, mordendo os l�bios para n�o desabar no pranto. Estava diante
de uma situa��o que lhe despertava sentimentos contradit�rios e confusos. Se, por um lado, n�o aprovava a homossexualidade; por outro, amava Marcela acima de tudo.
O que deveria fazer?
- Por que tentou se matar novamente? - o indagou, seguindo o emaranhado de pensamentos que n�o o levavam a lugar algum. Foi porque Luciana quase morreu?
- N�o - objetou-a, entre perplexa e magoada. J� n�o sinto mais por Luciana o amor que sentia na �poca em que o conheci.
O olhar de Fl�vio n�o parava de acompanh�-la, e Marcela come�ou a se sentir encurralada, como um animal acuado pelo predador faminto.
- Por que tentou se matar novamente? - repetiu Fl�vio, agora tomado por s�bita rispidez e impaci�ncia. Como � que ela podia lhe falar do amor por outra mulher como
se estivesse se referindo a um namoradinho de inf�ncia?
- Eu... - balbuciou ela, percebendo a sua hostilidade rec�m aflorada. Tive medo de perd�-lo... N�o queria perder voc�, Fl�vio.
- E preferiu se matar a arriscar me contar a verdade.
- Tive medo... - repetiu ela, a voz sumida na garganta.
- O �nico medo real que voc� tem � de perder.
- Estou perdendo voc�?
- N�o sei se posso conviver com isso. Sinto-me enganado e tra�do.
- N�o fa�a isso, Fl�vio. Eu o amo...
- Voc� diz que me ama, no entanto, n�o confiou em mim o suficiente para me contar o seu grande segredo. Por qu�? Ser� que n�o � porque ainda ama Luciana?
- Isso � um disparate! J� disse que n�o contei porque tive medo de voc� n�o me aceitar. Depois de me dar a sua opini�o sobre homossexuais e l�sbicas, o que queria
que eu pensasse?
Fl�vio ficou por um tempo refletindo no que ela lhe dissera. Realmente, falara coisas ruins sobre o assunto, mas de uma forma impessoal. Era diferente quando a pessoa
envolvida era aquela com quem pretendia se casar.
- N�o me referia a voc� - defendeu-se ele.
- Referia-se, sim. Voc� mesmo disse que n�o gostaria de me ver envolvida com isso. Como eu poderia me abrir com voc� depois disso? Para mim, voc� me deixaria.
- Ainda assim, devia ter-me contado. Por mais que me chocasse no come�o, meu amor por voc� acabaria fazendo-me compreender e aceitar.
Ela deu um sorriso esperan�oso e procurou abra��-lo, mas ele n�o correspondeu.
- Por que n�o esquecemos tudo isso? - sussurrou ela. O que importa � que n�s nos amamos.
- N�o estou bem certo. Se voc� realmente me amasse, teria assumido o risco de me perder e teria me contado a verdade.
- Mas voc� n�o queria saber! Por v�rias vezes, tentei lhe contar, mas foi voc� mesmo quem disse que o meu passado n�o lhe interessava. Por que se importa com ele
agora?
Era vis�vel a confus�o de Fl�vio. Queria deixar aquilo de lado e estreit�-la com ardor, mas se lembrava da rea��o dela quando Luciana fora esfaqueada, da sua afli��o
e de seu quase desespero. N�o seria aquilo uma prova de amor? Marcela n�o estaria sofrendo por medo de perder a pessoa a quem verdadeiramente amava? E um pensamento
maldoso o incomodava: Marcela o amava, n�o tinha d�vidas, mas ser� que o seu amor resistiria se Luciana quisesse voltar para ela? Como ele se sentiria se a sua noiva
- ou esposa - o abandonasse por outra mulher?
- O que me importa agora - considerou ele - � a possibilidade de voc� ainda amar Luciana...
- Mas eu n�o a amo!
- Voc� n�o me deixou terminar. Incomoda-me esse amor, a mentira e a inseguran�a que sentirei daqui para frente, o medo de ser trocado por uma l�sbica.
- Voc� est� sendo cruel.
- E voc� pode n�o conter as suas tend�ncias.
- Que tend�ncias? O que est� querendo dizer? Que eu sou l�sbica tamb�m?
- E n�o �?
- Eu sabia! Tudo n�o passa de desculpa para o seu preconceito.
- Ao contr�rio de voc�, eu nunca menti. Sempre fui sincero e claro a respeito do que pensava sobre homossexualidade.
- Est� querendo-me dizer que vai romper comigo por causa de um preconceito idiota?
- N�o. N�o me agrada que voc� tenha se relacionado com outra mulher, mas eu at� poderia relevar isso se voc� tivesse sido honesta desde o princ�pio. A sua mentira
s� me faz imaginar que voc� me usa como ref�gio para a sua frustra��o. N�o digo que voc� n�o me ame. Sei que ama. Mas o que pergunto �: ser� que o seu amor � genu�no
ou � fruto da sua car�ncia?
- Voc� est� sendo injusto novamente. Nunca fiz nada para que voc� duvidasse do meu amor.
- N�o mesmo? E o que me diz do seu desespero quando soube que Luciana estava no hospital?
- � diferente! N�o queria que ela morresse.
- Isso n�o � amor?
- �, mas n�o o amor que voc� est� pensando. Luciana e eu, hoje, somos como irm�s. Por favor, Fl�vio, acredite em mim!
- Eu quero acreditar, mas tenho medo de ser enganado.
- Isso n�o vai acontecer. Eu juro!
- Voc� j� mentiu uma vez. N�o pode estar mentindo novamente agora?
- Por que � t�o impiedoso? J� disse por que menti. Voc� me obrigou a isso.
- Eu a obriguei? Ora, essa � boa.
- N�o, n�o voc�, mas as circunst�ncias. Ser� que o que fiz foi assim t�o terr�vel? Voc� n�o pode me perdoar?
- Tenho medo de estar me iludindo. Voc� n�o confiou em mim. Como posso confiar em voc� agora?
- Confie no meu amor. Perdoe-me por n�o lhe ter contado. Sei que errei, mas n�o foi com a inten��o de engan�-lo. Foi a minha inseguran�a.
- Preciso de tempo para pensar, Marcela.
- Voc� n�o pode estar falando s�rio. Por favor, n�o me deixe.
- N�o estou deixando voc�. Mas preciso de um tempo. H� muito a considerar nesse caso.
- Voc� est� fazendo parecer que eu cometi um crime. E � o que sua m�e quer. N�o percebe?
- Minha m�e n�o tem nada a ver com as suas mentiras.
- Mas foi ela quem tramou isso tudo! Ela e Ariane. Sua m�e esteve aqui e me amea�ou. N�o sei como ela descobriu, mas amea�ou contar tudo a voc�, caso eu n�o sumisse
da sua vida.
Fl�vio sentiu a contrariedade que aquela not�cia lhe causava e tornou com desagrado:
- Minha m�e esteve aqui?
- Hoje cedo.
Era bem o tipo de sua m�e. Aquilo podia ter sido mesquinho e cruel, mas n�o alterava as circunst�ncias. Fora Marcela quem mentira, n�o sua m�e.
- Isso n�o muda nada - contrap�-lo. Voc� me devia fidelidade e confian�a, n�o ela.
- Pelo amor de Deus, Fl�vio, ela usou isso para nos destruir! Se ela n�o tivesse vindo aqui, eu n�o teria tentado me matar novamente, e Adriana n�o o teria chamado,
e voc� n�o teria descoberto, e...
- E eu continuaria vivendo na mentira. Era isso que voc� pretendia? - Ela abaixou os olhos e n�o respondeu, e ele continuou: Ent�o me diga por que desistiu de se
matar. Ia me deixar, como minha m�e queria?
- N�o...
- Mas ent�o ela me contaria a verdade. Voc� assumiria esse risco?
- N�o sei! - ela desatou a chorar e foi falando aos trope��es: N�o sei o que faria. A �nica coisa que sabia era que n�o queria mais morrer. Quis viver porque voc�
deu um novo significado a minha vida.
- Voc� mesma me contaria, ent�o?
- N�o sei, j� disse! Oh! Por favor, n�o me pressione mais! N�o sei de mais nada. Tudo o que sei, Fl�vio, � que o amo. Por que n�o pode acreditar nisso?
- N�o sei se posso acreditar em voc� depois de tudo. Minha m�e n�o devia ter feito o que fez, mas n�o foi ela quem inventou essa hist�ria. E se voc� tivesse me contado
antes, nada disso teria acontecido.
- Por favor, Fl�vio, reflita. E acredite em mim quando digo que o amo.
- N�o sei, Marcela. S� com o tempo � que poderei dizer.
Ele se levantou para sair, mas ela tentou segur�-lo.
- Por favor, n�o v�.
- Deixe-me, Marcela. Ficar aqui com voc� s� vai aumentar a minha inseguran�a.
Mesmo contrariada, Marcela afrouxou as m�os que seguravam o seu bra�o, e ele se encaminhou para a porta.
- Voc� n�o vai mais voltar, n�o �? - a indagou, com voz sofrida.
Fl�vio n�o respondeu. Hesitou alguns segundos, mas logo se reequilibrou e partiu sem olhar para tr�s. Uma ang�stia indescrit�vel sacudiu o cora��o de Marcela, que
j� n�o tinha mais for�as para discutir nem para tentar convenc�-lo a ficar. Um extremo cansa�o dominou todo o seu ser, e ela foi arriando o corpo at� que seu rosto
tocasse o ch�o, e as l�grimas se espalhassem sobre ele. Fechou os olhos lentamente e suspirou entre solu�os. Perdera tudo. Ser� que ainda valia a pena viver? Fl�vio
voltou para casa com o cora��o oprimido e subiu direto para o quarto. Dolores se preparava para um encontro com um playboy de 28 anos e n�o queria se atrasar, mas
n�o conseguiu simplesmente ignorar a chegada do filho. Ouviu seus passos no corredor e foi atr�s dele em seu quarto.
- Est� tudo bem? - sondou ela.
- O que voc� acha?
- N�o acho nada. Por isso, estou perguntando.
Ele remoeu a raiva que sentia, naquele momento, da m�e e retrucou com uma f�ria contida:
- Marcela tentou se matar outra vez. Voc� sabia?
Ela meneou a cabe�a e respondeu com ironia:
- Como poderia saber? Quem dorme com ela � voc�, n�o eu.
- N�o se fa�a de c�nica, m�e! Sei muito bem que voc� foi � casa dela e a amea�ou.
O rosto de Dolores estava impass�vel. N�o era surpresa que Fl�vio tivesse descoberto a verdade. S� o que ela n�o podia era deixar que ele se voltasse contra ela.
- Fui � casa dela, sim - concordou Dolores com seguran�a. Mas n�o lhe fiz nenhuma amea�a.
- N�o adianta fingir, m�e, porque j� sei de tudo. Ela mesma me contou.
- Contou o qu�?
- Contou-me de seu plano s�rdido, mandando Ariane se fazer passar por Adriana para fazer amizade com Marcela e a destruir.
- E da�? Fiz o que toda m�e faria por seu filho.
- Quanta dedica��o - desdenhou-o. O que voc� lucra destruindo a vida das pessoas? N�o se importa em destruir a felicidade de seu pr�prio filho?
- Quanto drama... Eu lhe fiz um favor. Voc� ia se casar com uma l�sbica oportunista. Devia me agradecer por t�-la desmascarado a tempo.
- Como pode ser t�o insens�vel e mesquinha?
- Quem foi que disse que sou insens�vel? Sensibiliza-me a sua vida, a sua felicidade.
- Voc� n�o se importa com isso. S� o que v� s�o os seus interesses.
- Eu apenas tentei evitar que voc� estragasse a sua vida se casando com uma l�sbica.
- N�o a chame assim! Marcela n�o � l�sbica.
- E como � que se chama ent�o uma mulher que vive de amores com outra?
- Marcela n�o � assim.
- Creio que voc� j� sabe de tudo, n�o � mesmo? Do romance nefasto que ela teve com aquela dentista de sub�rbio.
- Isso n�o � problema seu. E depois, quem tem que se preocupar com isso sou eu.
- Voc� devia aceitar o meu conselho e se casar com Ariane. Ela � a mulher ideal para voc�.
- Ariane � uma mentirosa! E foi ela quem me telefonou quando Marcela tentou se matar novamente! Ela estava l�, na casa dela, fingindo-se de amiga. Ningu�m me contou.
Eu vi!
- Ariane, sim, o ama de verdade. N�o � uma aventureira feito Marcela.
- � pior. � falsa, intrigante, maquiav�lica.
- Mas n�o � l�sbica. Raciocine, Fl�vio. Como voc� pode ser feliz se casando com uma l�sbica? Marcela gosta � de mulheres, e de voc�, s� o que quer � o dinheiro.
Fl�vio n�o conseguiu mais ouvir. Estava enojado daquilo tudo, sem saber quem era pior naquela hist�ria: se Marcela, a m�e ou Ariane. Mas Fl�vio n�o era o �nico a
se lamentar pelo ocorrido. Ariane, muito mais do que ele, perdia-se em seu remorso. Se Fl�vio terminasse com Marcela, e se ela tentasse se matar novamente ser� que
poderia conviver com a culpa? Ficou andando de um lado para outro no quarto, at� que resolveu ligar para Marcela. Precisava saber se ela estava bem. J� tentara se
matar duas vezes. Quem garantia que n�o tentaria uma terceira? O telefone tocou insistentemente na casa de Marcela antes que ela atendesse, e Ariane exclamou aliviada:
- Marcela? Gra�as a Deus voc� est� bem!
Na mesma hora, Marcela reconheceu a voz de Ariane e desligou o telefone. N�o queria falar com ela nunca mais. N�o queria a sua amizade nem a sua simpatia. Muito
menos a sua piedade. Ariane sentiu uma infind�vel tristeza com a rea��o de Marcela, mas n�o podia esperar nada diferente. Ela estava magoada e com raiva, o que era
compreens�vel. Mas estava viva, e isso era tudo o que importava. Sim, viva. Ficou pensando no que poderia fazer para ajud�-la e achou que a �nica solu��o poss�vel
seria tentar entrar em contato com Luciana. Foi ao hospital em que ela estava internada, rezando para que Luciana ainda n�o tivesse tido alta. Encontrou-a acordada
no quarto e pediu licen�a para entrar. Luciana n�o a conhecia e ficou � espera de que ela lhe dissesse por que estava ali.
- Sou amiga de Marcela - come�ou ela a dizer, e Luciana abriu um sorriso simp�tico. Meu nome � Ariane e... bem, n�o sei como lhe dizer isso. Sei que o seu estado
� grave, mas n�o sabia mais a quem procurar.
- Eu estou me sentindo muito bem - rebateu Luciana, j� come�ando a se preocupar. Pode me contar o que quer que seja. Se aconteceu alguma coisa a Marcela, pode falar.
- N�o aconteceu nada, ainda... � o que espero.
- Como assim? Por favor, seja mais clara. Sinto-me confusa com tanto rodeio.
Ariane inspirou fundo, tomando coragem, e foi falando sem encarar Luciana:
- Gostaria que voc� me perdoasse por vir procur�-la, mas sei que voc� � a �nica amiga que ela tem. Acho que Marcela e Fl�vio brigaram, e estou com medo do que ela
possa fazer...
- Brigaram? Voc� quer dizer, terminaram? - ela assentiu.
- E voc� est� com medo de que ela tente o suic�dio outra vez?
- Ela assentiu novamente. Mas por qu�? Eles pareciam t�o apaixonados!
- Voc� sabe o quanto Marcela se esfor�ou para esconder a rela��o de voc�s duas, n�o sabe? Era uma surpresa que aquela mo�a soubesse daquilo, mas Luciana n�o fez
nenhum coment�rio, limitando-se a aquiescer com a cabe�a. Pois �, a m�e de Fl�vio descobriu e amea�ou contar tudo a ele, caso ela n�o terminasse o namoro. Por isso,
ela tentou se matar de novo...
- O qu�!? Est� me dizendo que a doida da Marcela tentou outro suic�dio? Mas voc� disse que temia...
- Temia que ela tentasse ainda outro, depois deste �ltimo.
- O terceiro, voc� quer dizer?
- �. N�o sei no que deu a conversa que ela teve com Fl�vio, mas temo pelo pior. Se eles terminaram, Marcela bem pode tentar se matar outra vez.
- N�o me leve a mal por perguntar, mas qual o seu papel nessa hist�ria toda? Se for amiga de Marcela, e amiga �ntima, pois conhece at� o seu passado, por que n�o
vai correndo � casa dela averiguar e impedir?
- Por que... n�s brigamos. Marcela est� aborrecida comigo.
Por mais que Luciana quisesse saber por que, n�o teve tempo de perguntar. A preocupa��o com a vida de Marcela era muito maior, e ela falou em tom incisivo:
- Apanhe o telefone e ligue para ela.
Ariane obedeceu sem titubear. Discou o n�mero da casa de Marcela e estendeu o fone para Luciana, que o apanhou aflita. Como sempre, a campainha soou in�meras vezes,
mas ningu�m atendeu.
- Tente de novo - pediu Luciana, e Ariane ligou mais uma vez.
O som da campainha continuou a tocar, at� que, l� pela d�cima quinta vez, Marcela atendeu. Tinha uma voz sonolenta e pastosa, e Luciana falou com pressa:
- Marcela? � voc�?
- Sim... Quem �? Luciana?
- Sou eu. Como voc� est�?
- Bem... E voc�? Aconteceu alguma coisa para estar me ligando?
- Na verdade, Marcela... - ela pensava rapidamente em uma desculpa convincente para lhe dar - eu gostaria que voc� viesse me visitar. Estou me sentindo t�o sozinha...
- Agora?
- Se poss�vel.
- Eu gostaria, Luciana, mas n�o sei se vai dar. Tomei uns comprimidos para dormir e estou me sentindo um pouco zonza.
- Voc� o qu�?
- Tomei uns comprimidos... - calou-se, s� ent�o percebendo o temor na voz de Luciana. Espere um pouco, n�o � o que voc� est� pensando.
- N�o?
- Eu estava com dor de cabe�a e um pouco nervosa. Por isso, tomei umas p�lulas.
- Pensei que o m�dico tivesse proibido as p�lulas para dormir.
- Fui � farm�cia e comprei. Voc� sabe que ningu�m pede receita m�dica mesmo.
- Isso n�o importa. Por que o nervosismo?
Ela demorou a responder, at� que falou quase num sussurro:
- Fl�vio rompeu comigo...
Luciana fitou Ariane com ar significativo e retrucou:
- Isso n�o � motivo para fazer nenhuma besteira, �?
- N�o sei... Mas n�o quero que voc� se preocupe.
- Imposs�vel n�o me preocupar. Ou�a, Marcela, por que voc� n�o vem at� aqui, e n�s conversamos sobre isso?
- N�o estou com vontade de sair.
- Por favor, estou pedindo. Venha me fazer companhia. Falaremos sobre o assunto e, quem sabe, voc� n�o se sentir� melhor? - Ela n�o respondeu. Por favor, s� um pouquinho.
- Est� bem. J� que insiste, vou tomar um caf� forte e vou para a�.
- �timo! Venha logo. Estarei esperando.
Desligaram, e Ariane falou em seguida:
- Eu n�o disse?
- Mas gra�as a Deus ela est� bem. Est� vindo para c�.
- Ent�o, � melhor que eu me v�. Se ela me vir aqui, vai ficar com raiva e � bem capaz de ir embora.
- Foi s� para isso que veio?
- Como disse, voc� foi a �nica pessoa em quem pude pensar e lhe sou grata por isso. Fa�a por ela o que n�o consegui fazer: seja amiga.
O assunto estava encerrado, e Ariane se despediu de Luciana, tomando o caminho de volta para sua casa. N�o queria que Marcela a encontrasse ali de jeito nenhum.
Quando Marcela chegou, Ariane h� muito j� havia partido. Ela beijou Luciana no rosto e sentou-se na poltrona ao lado da cama.
- E ent�o? - disse ela. Como � que estamos?
- Muito bem. Acho que amanh� ou depois terei alta.
- Fico feliz, Luciana. Esse hospital � deprimente.
- Hospitais n�o lhe trazem boas lembran�as, n�o �?
- N�o.
- Que bom que n�o precisa mais deles.
- � verdade.
- Bem, diga-me l�: o que aconteceu entre voc� e Fl�vio? Nada grave, espero.
- Ele rompeu comigo - ela come�ou a chorar. Acho que nunca mais vai voltar.
- N�o vai? Por qu�?
S� depois que o pranto se acalmou foi que Marcela conseguiu contar, em min�cias, tudo o que havia acontecido. Contou de Dolores, de Ariane e da rea��o de Fl�vio,
o que fez com que Luciana entendesse por que Ariane n�o queria que Marcela a encontrasse.
- Estou t�o deprimida, Lu! Sinto que desejo morrer.
- N�o deseja, n�o. Tem que viver para lutar pelo seu amor. Se morrer, quem � que vai lhe provar que voc� � uma mulher de fibra e de coragem?
- Mas eu n�o sou.
- �, sim. S� n�o sabe disso.
- Estou me sentindo um lixo. Pensei que Fl�vio me amasse.
- Ele a ama. S� est� um pouco confuso, chateado com a mentira e inseguro. Mas vai passar.
- N�o sei. Ele estava muito decepcionado quando deixou a minha casa.
- E essa tal de Ariane? N�o me parece assim t�o ruim.
- Ela foi uma v�bora! Onde j� se viu se fazer passar por amiga, mudar de nome e tudo, s� para me enganar?
- Talvez ela esteja arrependida.
- Tomara! Tomara que morra de remorso.
- Quem a ouve falar desse jeito at� pensa que � rancorosa.
- N�o sou rancorosa, mas o que ela fez foi imperdo�vel.
Luciana n�o quis insistir. Afinal, n�o conhecia Ariane para tentar defend�-la. O pouco que sabia era o que vira alguns minutos antes, n�o sendo suficiente para formar
um ju�zo de valor.
- Preocupo-me com voc�, Marcela - falou Luciana em tom s�rio. Tenho medo de que tente aquilo novamente.
- N�o vou tentar.
- Promete?
- Prometo.
- Olhe l�, hein? Pense que n�o vale a pena perder a vida por ningu�m.
Era a primeira vez que Luciana tocava no assunto da tentativa de suic�dio de Marcela, que perguntou:
- Como foi que voc� se sentiu, Luciana? Qual foi a sensa��o de saber que algu�m tentou se matar por sua causa?
- Nada agrad�vel. Senti-me horr�vel, com medo e culpa, embora soubesse que fiz o que achava certo. Mas fiquei me questionando se havia feito da forma correta e no
momento mais apropriado. N�o � uma sensa��o das mais confort�veis para ningu�m.
- Imagino.
- N�o adianta tentar se matar, Marcela, voc� s� vai se enganar.
- Como assim, me enganar?
- Acredito que exista vida ap�s a morte, e o que ser� de voc� quando acordar l� do outro lado, sem um corpo de carne e s� com o seu arrependimento?
- O que quer dizer com isso?
- Quero dizer, e se voc� se arrepender? Se destruir o seu corpo f�sico, n�o pode mais voltar atr�s. E dizem que os suicidas sofrem � be�a no outro mundo. Ouvi dizer
que at� revivem o momento da morte e ficam sentindo os vermes comendo o seu corpo.
- Cruzes, Luciana! Onde foi que ouviu isso? Em alguma hist�ria de terror?
- Eu li em algum lugar - afirmou, tentando se lembrar de onde poderia ter sido. Na verdade, suas palavras vinham de Rani, que se encontrava a seu lado, tentando
incutir um pouco de ju�zo na cabe�a de Marcela, nem que fosse pelo medo. De qualquer forma, � melhor n�o arriscar. Se for verdade o que dizem, sua alma pode ficar
vagando por a�, sem sossego, at� a exaust�o da energia vital que voc� teria para usar at� o fim de seus dias.
- Pare com isso, Luciana, est� me assustando! Eu nunca a ouvi falar nessas coisas.
- Nem eu - concordou Luciana, sem saber de onde vinham aquelas id�ias estranhas.
- E eu n�o estou mais pensando em me matar. Essa hist�ria de suic�dio j� est� ficando mon�tona.
- Que bom que pensa assim. Ao inv�s de procurar um caminho que voc� pensa que � o mais f�cil, mas que n�o �, deveria se fortalecer para continuar vivendo. Eu ainda
acho que Fl�vio vai acabar voltando para voc�, e voc� precisa estar pronta para receb�-lo de volta. Receb�-lo de volta... Era tudo o que Marcela queria, embora n�o
acreditasse mais que aquilo fosse acontecer. Para ela, Fl�vio parecia um sonho perdido para sempre nas brumas da desilus�o.
- Acho que isso n�o ser� mais poss�vel - finalizou. Eu o perdi para sempre.
Ela apertou a m�o de Luciana, abaixou os olhos e chorou. O envolvimento entre Anita e Justino cada vez mais se intensificava, e ela come�ava agora a perder o temor
que tinha de si mesma. Ele se demonstrava sempre gentil e interessado, e lhe fazia observa��es que elevavam o seu moral e a sua auto-estima. Jamais fizera qualquer
coment�rio a respeito de sua gordura; parecia mesmo n�o se importar com ela, ressaltando os pontos favor�veis que via em Anita. Isso fazia com que ela se sentisse
segura e confiante, e recuperasse o gosto de se vestir e se arrumar, ficando mais satisfeita com sua apar�ncia f�sica. Eles haviam terminado de almo�ar, e Justino
acabara de deix�-la em casa para retornar ao trabalho. Anita se despediu com um longo e suave beijo e subiu ao apartamento com uma sensa��o de felicidade soprando
em seu peito. O filho j� havia retornado da escola e estava vendo televis�o na sala. Anita passou por ele e o beijou no rosto, afagando seus cabelos desalinhados.
- Tudo bem? - perguntou ela. Como foi na escola?
- Bem...
- E a sua irm�?
Huguinho deu de ombros e falou sem desviar a aten��o do aparelho de TV:
- Acho que est� l� no quarto.
Anita assentiu e foi bater � porta do quarto de Ariane, entrando euf�rica e contando as novidades de seu envolvimento com Justino. Contudo, ao perceber o estado
de des�nimo da filha, ficou alarmada e indagou aflita:
- Aconteceu alguma coisa? Voc� est� abatida.
Ariane olhou para ela com os olhos cheios de l�grimas e se atirou em seus bra�os, solu�ando.
- Ah! Mam�e, voc� n�o sabe... n�o tem id�ia do que eu fiz...
Aos prantos, Ariane contou a Anita tudo o que havia se passado entre ela e Marcela, desde o dia em que aceitara compactuar com o plano diab�lico de Dolores. Anita
ouviu tudo com tristeza, temendo que o futuro da filha fosse igual ao seu se ela prosseguisse com aquela loucura.
- Voc� n�o pode voltar para ele - objetou Anita.
- N�o vou fazer isso. Primeiro, acho praticamente imposs�vel que ele me queira depois de tudo o que aconteceu. E depois, eu mesma n�o o quero mais. N�o quero que
a minha vida seja uma repeti��o da sua.
- Fico muito feliz que voc� pense assim. Espero que tenha aprendido com o meu erro e n�o o repita. Ao menos essa utilidade teve a infelicidade do meu casamento:
servir de exemplo para impedi-la de estragar a sua felicidade e a de Fl�vio, assim como eu estraguei a minha e a de seu pai.
- Tamb�m n�o exagere, m�e. Meu pai se casou com voc� porque quis. Voc�s dois foram imaturos e n�o refletiram no que estavam fazendo. Se voc� se deixou levar pela
paix�o inconseq�ente, ele se deixou levar pela fraqueza e a conveni�ncia. Ambos tiveram sua quota de participa��o.
- Que n�o precisa ser tamb�m a sua. N�o fique triste. Tudo passa nessa vida.
- Apenas uma coisa me incomoda... o fato de Marcela n�o querer mais ser minha amiga.
- Isso tamb�m h� de passar. Com o tempo, a raiva de Marcela vai esfriar, e ela vai perceber que voc�, apesar de ter tra�do a confian�a dela, tentou ajud�-la de todas
as maneiras. Vai se sensibilizar e acreditar que o seu arrependimento e a sua amizade s�o sinceros.
- Espero.
- Voc� � uma boa mo�a. Deixou-se envenenar pelas loucuras de Dolores, mas n�o � Feito ela. Dolores � uma mulher ambiciosa e mesquinha, e n�o se importa com a felicidade
de ningu�m, s� com a dela. Nem com a do filho se importa.
- O que ela diria se soubesse que voc� e o ex-marido dela est�o namorando?
- Anita corou levemente e retrucou envergonhada:
- Namorar � para garotinhas. Estamos nos relacionando...
- D� no mesmo. O que interessa � que est�o juntos. E Dolores se roeria toda se descobrisse.
- Vai acabar descobrindo. Mais cedo ou mais tarde, isso vai chegar aos seus ouvidos.
- E da�? Est� com medo?
- N�o tenho do que ter medo. Quando comecei a sair com Justino, ele j� era desquitado. Quem � casada sou eu...
- Voc� est� se separando. E depois, foi papai quem deixou o lar.
- Tenho medo de que ele tire Huguinho de mim.
- Duvido at� que tente. N�o se preocupe com isso. Justino, al�m de tudo, pode ajud�-la. Aposto como conhece bons advogados que poder�o defender a sua causa, se isso
vier a acontecer, no que n�o acredito.
- Voc� � muito especial, Ariane, e agrade�o a Deus por ter uma filha como voc�. Sem o seu apoio, n�o sei o que seria de mim.
Emocionada, Ariane abra�ou a m�e e rebateu com olhos �midos:
- E voc� � a melhor m�e do mundo, que agora est� se redescobrindo como mulher. Est� mais bonita, bem-vestida, com ar de felicidade. A companhia de Justino est� lhe
fazendo bem.
- Ele n�o se importa que eu seja gorda...
- Ele � um homem de verdade e d� valor ao que voc� tem por dentro. E depois, nem � t�o gorda assim. Est� um pouco acima do peso, mas nada de extraordin�rio. Ainda
� uma mulher bonita.
Abra�aram-se novamente, e Ariane consultou o rel�gio. Tinha uma id�ia em mente, algo que precisava fazer e n�o aliviaria apenas a sua consci�ncia, mas talvez ajudasse
na reconcilia��o de Marcela e Fl�vio. Quando o �ltimo paciente do dia se retirou, Fl�vio se preparou para ir embora, n�o sem antes procurar o pai para uma conversa.
Encontrou-o em seu consult�rio, examinando as radiografias de alguns pacientes.
- Ol�, pai - cumprimentou da porta. Posso entrar?
- E precisa perguntar? Entre, vamos. - Fl�vio entrou e foi-se sentar na poltrona defronte � mesa de Justino, que abaixou as chapas e olhou para ele.
- Algum problema?
- Marcela e eu rompemos - anunciou ele, ap�s uma breve hesita��o.
- Romperam? Por qu�?
- Porque... ela mentiu para mim, me enganou, �... - calou-se, engolindo a �ltima palavra.
- � o qu�?
- L�sbica.
- O que voc� disse? Marcela � l�sbica? N�o acredito. Como pode ser?
Com um suspiro de tristeza, Fl�vio contou tudo ao pai, que balan�ava a cabe�a de um lado a outro, ouvindo as palavras do filho com indigna��o e surpresa.
- Ela n�o me ama, pai - finalizou Fl�vio. Est� comigo apenas para esquecer uma antiga paix�o.
Justino ficou olhando o filho por alguns instantes, at� que considerou:
- N�o creio que isso seja verdade. E voc� tamb�m, no fundo, n�o acredita nisso. Pode-se sentir o amor verdadeiro apenas com a sua proximidade. E duvido que voc�
n�o o sinta em Marcela.
- N�o sei mais o que sinto. Muitas coisas j� me passaram pela cabe�a desde ent�o, inclusive que ela s� esteja interessada no meu dinheiro.
- N�o se deixe levar pelas id�ias de sua m�e. Isso � ela quem acha. Mas voc�, no fundo, acredita nisso tamb�m?
- N�o - desabafou ele, ap�s breves segundos. Marcela n�o faz o tipo interesseira.
- Voc� est� com preconceito.
- N�o sei bem se � isso. � claro que n�o fico feliz em saber que a mulher com quem pretendia me casar transava com outra mulher. Mas o meu amor por Marcela poderia
at� superar isso...
- Ent�o, qual � o problema?
- Pense bem, pai. No meu lugar, o que voc� faria? Aceitaria tudo numa boa, como se n�o fosse nada demais?
- N�o sei se � demais ou n�o. S� sei que n�o perderia um amor verdadeiro por causa disso.
- Voc� n�o concorda que �, no m�nimo, estranho? Quero dizer, me casar com uma ex-l�sbica?
- Tamb�m n�o posso responder a essa pergunta - considerou ele com ar de d�vida. Talvez eu me chocasse um pouco no in�cio, porque n�o estou acostumado a esse tipo
de rela��o. Mas acabaria por aceitar. Se voc� analisar bem, Marcela n�o fez mal a ningu�m. Fez o que quis da vida dela, e ningu�m tem nada com isso.
- Mas ser� que isso � certo?
- O que � certo ou errado, meu filho? Quem somos n�s para julgar?
- Tudo bem, eu posso at� aceitar seu envolvimento com Luciana. Mas e a mentira? Ela me enganou uma vez. Quem garante que n�o o far� de novo?
- S� porque ela n�o lhe revelou um segredo n�o quer dizer que v� tra�-lo. Marcela n�o � nenhuma mentirosa. E, depois, o que voc� esperava? Nesse ponto, se eu estivesse
no lugar dela, talvez tivesse feito a mesma coisa.
- N�o acredito. Voc� sempre foi sincero e assumiria o risco.
- Marcela n�o tem que ser como eu. Al�m do mais, se ela n�o disse a verdade, voc� n�o queria ouvi-la. Foi voc� quem provocou a mentira.
Ele fez ar de indigna��o e revidou:
- Quer dizer que o culpado agora sou eu?
- N�o h� culpados. Voc� teve medo de ouvir a verdade, ela teve medo de falar. Mas agora, seja de que maneira for, tudo se esclareceu. Ent�o, qual o problema? Surpresas
e choques se resolvem na confian�a e no amor.
- A� � que est�. N�o sei se ainda confio em Marcela. Receio que ela possa estar me usando para esquecer Luciana ou para conseguir salvar a sua reputa��o.
- Nisso mesmo � que n�o acredito. Marcela n�o � esse tipo de mo�a. Teve medo da sua rea��o e pode ter medo do preconceito social, o que � bastante compreens�vel,
mas n�o leva jeito de quem usa um rapaz s� para sustentar ares de respeitabilidade. Afinal de contas, ela j� � uma pessoa respeit�vel. � professora, trabalha, vive
de forma decente e ama voc�. O que importa o resto?
- Voc� acha que eu estou errado em me afastar dela?
- O seu cora��o � que vai lhe dizer isso, n�o eu. Voc� � um homem decente, Fl�vio, mas se deixou impregnar pelas id�ias idiotas de sua m�e. N�o perca o amor da sua
vida por preconceito ou inseguran�a.
- Mas, e se ela me trair? E se voltar a sair com mulheres?
- E se sair com outros homens? N�o � a mesma coisa?
Fl�vio ia dizer: � pior, mas mudou de id�ia e acrescentou taciturno:
- N�o quero que ela me traia com ningu�m.
- Por que ent�o n�o espera para tomar uma atitude quando isso acontecer, se acontecer? N�o vale a pena ficar imaginando situa��es que, provavelmente, nunca v�o se
concretizar. Voc� n�o a ama?
- Amo.
- Pois ent�o, apresse-se. V� procur�-la antes que ela se canse e voc� a perca para algu�m que a compreenda e a aceite sem acusa��es ou temores. Quer que isso aconte�a?
Fl�vio desviou o olhar do pai e fixou o pensamento em Marcela, imaginando como seria a sua vida sem ela. Depois que a conhecera, sentira que tudo mudara e ganhara
um significado que antes n�o existia. Marcela o preenchia em todos os sentidos: era meiga, carinhosa, inteligente, amiga e n�o era dada a futilidades como as mo�as
de sociedade que conhecia. Era, enfim, tudo o que poderia desejar numa mulher. Ele encarou o pai, que o fitava com ar de compreens�o, e respondeu com voz sumida:
- N�o.
Com um sorriso que se misturava �s l�grimas, Fl�vio se levantou resoluto, feliz por ter ouvido os conselhos de Justino. Sim, ele realmente amava Marcela e n�o achava
que o que ela havia feito era crime ou pecado, algo reprov�vel que n�o merecesse compreens�o. O que o incomodava mesmo era o fato de ela ter escondido aquilo por
tanto tempo, de t�-lo enganado e n�o ter confiado nele. Mas, como o pai lhe dissera, ele n�o quis lhe dar a chance de contar a verdade. E quanto ao fato de que ela
havia vivido com outra mulher, e da�? Que import�ncia isso poderia ter diante do amor que sentiam um pelo outro? Ele acreditava que Marcela o amava. Ela n�o era
aquela interesseira que a m�e dizia. A m�e fizera aquilo tudo s� para afast�-los, para que ele se casasse com Ariane. Mas ele n�o amava Ariane. Amava Marcela, e
era com ela que se casaria. Resolveu passar em casa antes de procurar Marcela. Precisava de um banho, de roupas limpas e descontra�das. Compraria flores e bombons
para ela. Faria tudo ao estilo antigo e rom�ntico. Passou na floricultura e comprou um lindo buqu� de rosas vermelhas. Em seguida, foi a uma loja de doces e pediu
a caixa de bombons mais finos que havia. Apanhou tudo e foi para casa se aprontar. Assim que entrou em casa, foi surpreendido pelo som de gargalhadas que partiam
da sala de estar. A m�e estava recebendo visitas, mas ele n�o estava nem um pouco interessado nelas. Sequer iria cumpriment�-las. Passou em sil�ncio pela porta da
sala, tomando o caminho da escada. A porta dupla de vidro estava apenas encostada, de forma que, ao passar diante dela, p�de ouvir o que diziam l� dentro.
- Essa � muito boa, Dolores - falava uma mulher com voz esgani�ada, entre gargalhadas sonoras. Uma l�sbica! Quanto atrevimento!
- Ah! Mas o meu Fl�vio colocou-a direitinho no lugar dela. Ela pensou que lhe tomaria dinheiro, mas ele descobriu tudo e a enxotou.
- E o que ela fez? - acrescentou outra amiga.
- Foi correndo chorar nos bra�os da amante?
Nova gargalhada, puxada por Dolores, que respondeu convicta:
- Certamente! Correu para o colo de sua mulher de cal�as... ou homem de saias, n�o sei bem...
Nesse instante, a porta da sala se escancarou com estrondo, quase quebrando os vidros, e Fl�vio apareceu com o rosto em chamas. N�o disse nada. Fitou uma a uma das
presentes com �dio e terminou em Dolores, que o olhava com ar de triunfo. Em seguida, rodou nos calcanhares e saiu, deixando as mulheres em um estado de torpor indescrit�vel,
envergonhadas com aquela situa��o. Apenas Dolores n�o sentia nenhum constrangimento. Na verdade, chamara as amigas ali para um ch� bem na hora em que sabia que Fl�vio
chegaria do trabalho, manipulando a conversa de forma que ela se prolongasse at� a hora em que ele chegasse. Era de seu interesse que ele ouvisse aquilo. As amigas
ficaram impressionadas com a hist�ria, e ela as insuflou ainda mais com uma quase histeria, rindo de suas pr�prias observa��es e levando-as a acompanh�-la nas gargalhadas
ensaiadas. Em seu quarto, Fl�vio espumava de �dio. N�o podia mais conviver com aquilo. Al�m de tramar contra ele, a m�e ainda o desmoralizava na frente das amigas,
fazendo-o passar por idiota. Aquilo j� era demais. N�o ag�entaria viver naquela casa nem mais um minuto e resolveu partir. Apanhou uma mala grande e come�ou a arrumar
suas coisas, at� que a m�e apareceu, meia hora depois. Entrou sem bater e foi-se postar diante dele, cruzando os bra�os e acompanhando o seu trabalho de fazer a
mala.
- Aonde � que pensa que vai? - a indagou com ar reprovador.
- Isso n�o � da sua conta. E agora, saia, por favor. N�o lhe dei permiss�o para entrar no meu quarto.
- A porta n�o estava trancada.
- Saia, j� disse!
- Est� aborrecido comigo porque eu falei a verdade, ao contr�rio do que Marcela fez com voc�?
Ele soltou as camisas que dobrava em cima da cama e a fitou com raiva.
- Por que fez isso, m�e? O que voc� ganha me humilhando dessa forma?
- Humilhando?! Mas se eu s� o elogiei! Contei a minhas amigas o quanto voc� foi digno e honrado ao despachar aquela vagabunda l�sbica.
- Pare de repetir isso! - explodiu ele. Voc� n�o tinha o direito de falar da minha vida com ningu�m!
- Por que ficou t�o aborrecido, Fl�vio? Minhas amigas acharam at� engra�ado.
- Muito engra�ado, n�o �? Devia se envergonhar de fazer fofoca. Ou acha que suas amiguinhas v�o segurar a l�ngua e n�o v�o falar isso com mais ningu�m?
- E da�? Qual o problema? Todo mundo vai felicitar voc� por ter posto aquela aventureira... (ia dizer l�sbica, mas se conteve) no seu devido lugar. A n�o ser, �
claro, que voc� volte para ela. A�, sim, todos v�o falar mal de voc�. Se ela n�o fosse sua m�e, ele a teria estrangulado, tamanho �dio que sentia naquele momento.
- � isso que voc� quer, n�o �? Espalhar essa hist�ria para todo mundo, para que eu fique com medo do falat�rio, para que eu sinta vergonha e nunca mais volte para
Marcela.
- A l�ngua da sociedade � implac�vel, Fl�vio, mas ningu�m vai falar de voc�.
- Quer saber de uma coisa, m�e? Eu n�o ligo. Pouco me importam os coment�rios dessa gente hip�crita, f�til e vazia que freq�enta a sociedade.
Para Dolores, presa �s apar�ncias sociais, os coment�rios em seu meio constitu�am uma esp�cie de estigma, uma marca vergonhosa que se deveria evitar. Pensou que
havia passado esse temor ao filho, mas n�o se surpreendeu muito com a sua rea��o.
- Os coment�rios n�o incomodam voc� - observou ela, em tom malicioso. Mas deveriam. Quem � que quer ficar malvisto na sociedade?
- Voc� � asquerosa! - disparou ele, coberto de f�ria. Tenho vergonha de ser seu filho.
- Pode se envergonhar, desde que n�o me envergonhe.
- N�o ligo a m�nima se voc� sente vergonha ou n�o.
- Pelo visto, voc� j� perdoou a sua noivinha por ser l�sbica. E por ser interesseira? Perdoou-a tamb�m?
- N�o me aborre�a, m�e.
- Aposto como, assim que se casar com voc�, ela vai voltar � sua vidinha de l�sbica, s� que agora com dinheiro e posi��o social. Muito conveniente.
- Voc� n�o sabe o que diz. Marcela me ama.
- Ama? Quem lhe garante isso? Ela ou a outra? Sim, porque duvido que ela e Luciana realmente parem de se encontrar. Essa gente � assim: come�a no v�cio e n�o larga
mais.
- Marcela n�o � nenhuma viciada. Viveu a vida dela, e ningu�m tem nada com isso. Muito menos voc�.
- Tudo bem. N�o tenho nada com isso. Mas e voc�, n�o tem? Quem lhe garante que Marcela n�o vai cair em tenta��o outra vez e se atirar nos bra�os de sua namoradinha
na primeira oportunidade que tiver? - ela acertou em cheio no seu questionamento, e ele n�o respondeu. Ser� que vale a pena arriscar tudo por uma noivinha l�sbica?
- Para de cham�-la de l�sbica.
- Mas n�o � isso que ela �?
- O que ela � n�o � da sua conta, e voc� n�o tem o direito de falar dela. Quem voc� pensa que �? Uma mulher f�til, maquiav�lica, maldosa. Acha que � melhor do que
algu�m?
- Pelo menos, n�o sou nenhuma pervertida.
- � pervertida, sim. Perverteu-se em sua moral e em seus valores.
Ele fechou o trinco da mala e lhe lan�ou um olhar faiscante de revolta.
- E agora, saia da minha frente. Voc� n�o � mais minha m�e.
Fl�vio a empurrou para o lado e saiu enfurecido. J� n�o escutava mais nada. Ganhou a rua e entrou em seu carro, completamente transtornado. No banco ao lado, as
flores e os bombons que comprara para Marcela jaziam � espera de um final feliz. Ele os apanhou com f�ria e os atirou pela janela. Estava t�o irritado com a m�e
que aquele n�o lhe parecia o melhor momento para uma reconcilia��o, pois poderia estourar com Marcela e descontar nela a sua indigna��o. Ou, o que era pior, podia
atirar sobre ela as desconfian�as que nutria, e a m�e, t�o habilmente, conseguira alimentar. Resolveu ir para a casa do pai. Era o �nico lugar onde poderia sentir
a proximidade e o apoio de uma pessoa amiga. N�o era bem o final que Dolores esperava para aquela hist�ria, mas nem tudo estava perdido. Fl�vio esfriaria a cabe�a
e voltaria para casa, mas ela precisava se aproveitar de seu desequil�brio para afast�-lo de vez de Marcela. Era hora de Ariane agir, de lhe dar apoio e estar ao
seu lado. Ligou para ela e mandou que fosse a sua casa imediatamente.
- Lamento muito, Dolores - respondeu Ariane com frieza -, mas n�o tenho nada que fazer a�. Nossa rela��o acabou.
- O que � isso, menina? - rebateu Dolores com espanto. E o nosso plano? Vai desistir, logo agora que estamos conseguindo sucesso?
- Prossiga com ele voc�. N�o estou mais interessada.
- N�o est� mais interessada em Fl�vio?
- N�o.
Desligou. N�o suportava mais nem ouvir a voz de Dolores. Lamentava ter-se deixado envolver por suas maldades, mas agora n�o tinha como apagar o que fizera. S� n�o
queria continuar se enredando cada vez mais naquela sordidez. Sentia-se culpada pelo rompimento entre Marcela e Fl�vio, e n�o queria atrair mais culpas para sua
consci�ncia. Dolores ficou parada com o fone na m�o, hesitando entre a f�ria e a indigna��o. Pensou em telefonar novamente, mas n�o daria aquela import�ncia toda
a Ariane. Seria melhor aguardar, at� que ela, sufocada pelo amor, voltasse correndo e implorando sua ajuda para conquistar Fl�vio outra vez. Mas n�o era nada disso
que Ariane pretendia fazer. Estava t�o arrependida que n�o tencionava mais se envolver nem com Fl�vio, nem com Dolores. S� o que queria era a sua consci�ncia tranq�ila
de volta. Ao meio-dia do dia seguinte, foi postar-se diante da cl�nica em que Fl�vio trabalhava. Sabia que ele costumava sair para o almo�o por volta dessa hora
e resolveu esperar. Dez minutos depois, ele apareceu em companhia do pai, o que a contrariou um pouco. N�o pretendia envolver Justino na conversa que precisava ter
com ele. Mesmo assim, n�o desistiu. Aproximou-se dos dois e cumprimentou-os com um esfor�o para parecer natural.
- Ah! Ariane, boa tarde - falou Justino, rapidamente se apercebendo da situa��o.
Fl�vio n�o respondeu, e Ariane falou com certa hesita��o:
- Est�o indo almo�ar?
- O que voc� acha? - rebateu Fl�vio com rispidez.
Ela n�o conseguiu dizer mais nada, j� pensando em desistir, at� que Justino interveio:
- Estamos indo almo�ar, sim. Gostaria de nos fazer companhia?
- Se n�o for inc�modo...
O olhar que Fl�vio lhe dirigiu veio t�o carregado de �dio que ela pensou em desistir novamente, mas Justino continuou tomando a dianteira:
- Que inc�modo voc� poderia nos causar? Venha conosco, ser� um prazer.
Os dois come�aram a andar pela cal�ada, mas Fl�vio n�o se disp�s a acompanh�-los. Permaneceu parado onde estava fitando-os com certa f�ria.
- Fl�vio, voc� n�o vem? - perguntou Justino.
- N�o, podem ir. Perdi a fome.
- N�o precisa ficar sem almo�o, Fl�vio - contestou Ariane. Quem est� sobrando aqui sou eu. Deixe que eu v� embora.
- De jeito nenhum! - objetou Justino. Fl�vio vai nos acompanhar, ora se vai! - Aproximou-se do filho e cochichou em seu ouvido: N�o se esque�a de que estou saindo
com a m�e dela. Sei que voc� n�o quer a sua companhia, mas fa�a isso por mim.
Mesmo contrariado, Fl�vio os acompanhou s� para n�o recusar o pedido do pai. No restaurante, sentaram-se, e Fl�vio tomou a cadeira o mais distante de Ariane poss�vel,
embora ficasse de frente para ela. Pediram o almo�o e come�aram a comer em sil�ncio, que s� era quebrado por uma observa��o ou outra que Justino fazia. Justino comia
apressado, o que n�o foi percebido nem por Fl�vio, nem por Ariane. De repente, olhou para o rel�gio e soltou uma exclama��o:
- Meu Deus! Como fui me esquecer?
- De qu�? - indagou Fl�vio.
- Marquei uma consulta de emerg�ncia hoje, ao meio-dia e meia, e j� � quase uma hora. - Fl�vio olhou-o surpreso, mas Justino prosseguiu: Voc�s v�o ter que me desculpar;
tenho que ir.
- Mas, pai, voc� n�o pode - rebateu Fl�vio perplexo.
- Desculpe-me, filho, mas preciso correr. Acerte tudo a�, sim? E n�o se esque�a de levar Ariane em casa depois.
Rapidamente, Justino deu um beijo na face de Ariane e outro na cabe�a do filho, saindo apressado do restaurante. N�o tinha cliente nenhum para atender de emerg�ncia,
mas sua sensibilidade dizia que Ariane tinha algo de importante para conversar com o filho, e ele estava disposto a ajudar. N�o s� pela mo�a, mas por Anita tamb�m,
que estava muito preocupada com o abatimento da filha por causa do que fizera a Fl�vio. Ela lhe contara sobre o arrependimento de Ariane, e ele n�o achava justo
que ela sofresse tanto por causa de uma irresponsabilidade da qual estava sinceramente arrependida. Fl�vio cruzou os talheres em cima do prato e virou o rosto para
o outro lado. Tinha que esperar Ariane terminar de comer, mas n�o estava disposto a lhe dar motivos para conversa. Ela, por sua vez, comia lentamente, de olhos baixos,
tentando ganhar tempo e coragem para falar. Ficaram em sil�ncio por quase quinze minutos, e a comida no prato de Ariane j� havia esfriado porque fazia um bom tempo
que ela n�o levava o garfo � boca.
- J� acabou? - perguntou Fl�vio por fim, em tom bastante irritado.
- Estou acabando - respondeu ela, o rosto corado e em fogo.
- Ent�o ande logo. Tenho um paciente para atender daqui a pouco.
Ela deu uma garfada na comida e come�ou a chorar de mansinho, sentindo a carne mais salgada do que realmente estava. Fl�vio n�o percebeu, ou fingiu n�o perceber,
que ela chorava e consultava o rel�gio a todo instante. At� que, em dado momento, seus olhares se cruzaram, e ela sustentou o olhar dele, deixando que as l�grimas
descessem abundantes pelo seu rosto.
- Eu sinto muito... - balbuciou ela, entre solu�os.
Ariane soltou o garfo em cima do prato e escondeu o rosto entre as m�os, chorando e solu�ando sem parar, para desespero de Fl�vio. Algumas pessoas no restaurante
se viraram para olhar, e ele se viu obrigado a dizer alguma coisa.
- Sente muito pelo qu�?
- Por tudo. Pelo mal que lhes causei... a voc� e a Marcela.
- N�o acha que isso � um pouco tarde agora?
- N�o sei. Nunca � tarde quando se ama.
- A quem voc� ama, Ariane? A mim? Duvido muito. E mesmo que me ame, essa n�o foi a melhor maneira de me dizer, voc� n�o acha?
- N�o. Mas n�o � de mim que estou falando. Refiro-me a voc� e a Marcela.
- Por qu�? Em que lhe interessa o nosso amor? Voc� n�o fez tudo para nos destruir?
- Se quisesse destru�-los, n�o teria ligado para voc� no dia em que Marcela tentou se matar novamente.
- � verdade - refletiu ele, por instantes. Mas tenho certeza de que voc� s� fez isso porque n�o queria, na sua consci�ncia, o peso de um suic�dio.
- N�o exatamente. Fiz porque gosto de Marcela e n�o queria que nada de mau lhe acontecesse.
- Estranho voc� dizer isso, n�o �, Ariane? Depois de tudo o que fez.
- Sei que agi mal, mas n�o fui eu que os separei.
- N�o. Foi a sua intriga.
- Eu n�o contei nada a ningu�m. Nem a voc�, nem a sua m�e.
- Voc� e minha m�e tramaram tudo. S�o iguaizinhas e s� o que merecem � o meu desprezo.
- N�o quero me desculpar acusando sua m�e, e n�o foi para isso que vim procurar voc�. N�o foi para implorar que voc� me perdoe nem que volte para mim, porque isso,
j� n�o quero mais.
- N�o? E por que foi que veio me procurar ent�o?
- Apenas para me explicar.
- N�o precisa.
- Preciso, sim. Voc� tem todo o direito de me odiar, se quiser, mas ao menos me d� a chance de me explicar.
- Por que isso � t�o importante para voc�?
- Porque �. Sabe, Fl�vio, desde que voc� me deixou, eu...
- Eu n�o deixei voc�, Ariane. N�s nunca tivemos nada.
- Tudo bem, que seja. Mas eu pensei que tiv�ssemos. Estava apaixonada por voc� e me deixei iludir pelos meus sonhos, achando que �amos nos casar. S� que voc� come�ou
a esfriar comigo e deixou de ir � minha casa. Depois, apareceu com Marcela, que ningu�m sabia de onde tinha surgido. Senti-me tra�da, fiquei desesperada. Queria
voc� a qualquer custo.
- Ela o olhou com certa m�goa e prosseguiu: Na �poca, era ing�nua e imatura, e acreditei que poderia t�-lo de volta simplesmente afastando Marcela de seu caminho.
Sua m�e me prometeu ajuda e me convenceu a tomar parte no plano para separar voc�s dois. Eu devia fazer amizade com Marcela e descobrir algo em seu passado que denegrisse
a sua imagem diante de seus olhos. Sua m�e tinha certeza de que Marcela escondia algo, e eu me dispus a descobrir. Sob um falso nome, tornei-me amiga de Marcela
e passei a conviver com ela. Mas o que eu n�o esperava era que me afei�oasse a ela...
- N�o acredito nisso. Voc�? Afei�oando-se a sua rival?
- Ela, ent�o, j� estava deixando de ser minha rival. Descobri em Marcela uma pessoa t�o doce, meiga e amiga, que comecei a refletir no que estava fazendo e percebi
que a amizade que sentia por ela valia mais do que o meu desejo de ter voc� de volta. Eu nunca tive amigos, e Marcela me ensinou o que � ser amiga de verdade. Aos
poucos, fui desistindo do plano, mas tinha a sua m�e me pressionando do outro lado. N�o quero acusar Dolores, porque eu me deixei envolver deliberadamente. Hoje
estou pronta para assumir a minha parcela de responsabilidade nessa hist�ria toda e, embora n�o queira acus�-la de nada, n�o h� como lhe contar o que aconteceu sem
tocar no nome dela.
- Sei do que minha m�e � capaz e sei o que ela fez. Voc� n�o vai me contar nenhuma novidade.
- N�o quero que pense que estou tentando me justificar em cima do comportamento dela.
- N�o estou pensando nada.
- Muito bem. Pressionada por ela, contei-lhe algumas particularidades da vida de Marcela, mas n�o todas. Ela sabia de Luciana, mas eu nunca lhe disse que elas haviam
vivido juntas.
- E como foi que minha m�e descobriu?
- Atrav�s de Cec�lia, a mo�a que esfaqueou Luciana. Sua m�e descobriu onde ela estava presa e conseguiu as informa��es. Depois chantageou Marcela que, com medo do
que voc� faria se descobrisse, pensou at� mesmo em se matar. Da� em diante, acho que voc� j� conhece a hist�ria.
- J�. N�o precisa mais perder o seu tempo para me contar.
- Por que est� me tratando assim?
- Conhe�o as suas artimanhas.
- N�o o amo mais, Fl�vio...
Aquela conversa o estava deixando aborrecido, e ele perguntou de repente:
- J� acabou de comer?
Ela percebeu que havia chegado ao seu limite e n�o insistiu. Balan�ou a cabe�a afirmativamente, e ele pediu a conta. Pagou-a, e os dois sa�ram.
- N�o precisa me levar em casa - disse ela, n�o desejando mais a sua companhia.
- N�o poderia mesmo. Tenho muito trabalho me esperando.
Despediram-se, cada qual tomando o seu caminho. Ariane ia se questionando sobre a efic�cia daquela conversa, e Fl�vio pensava em Marcela. O que Ariane dissera n�o
o influenciaria em nada. Ele j� tinha mesmo se decidido a procur�-la e s� n�o o fizera porque a conversa com a m�e, na v�spera, o deixara muito irritado, e ele n�o
queria encontrar Marcela com �dio no cora��o. Preferia se acalmar e se preparar para um encontro amistoso e cheio de amor. Reconhecia, contudo, que Ariane tivera
coragem. O pai j� havia lhe falado do seu arrependimento, mas ele n�o lhe dera import�ncia. N�o fosse a raiva que sentia, a teria at� admirado por sua sinceridade.
Mas ela agira muito mal, e ele n�o sabia se conseguiria perdo�-la. N�o sabia nem se deveria tentar. Luciana voltou ao trabalho duas semanas depois de retornar do
coma. Passou um tempo em casa de Ma�sa, se recuperando, at� que a ferida sarou por completo, e ela p�de retomar suas atividades. Depois desse epis�dio, parecia mudada.
Continuava a mesma mulher forte e decidida de antes, mas certa maturidade indescrit�vel havia marcado o seu semblante. Come�ou a reavaliar sua vida e concluiu que
precisava de experi�ncias que lhe ensinassem o que fosse, verdadeiramente, o amor.
- J� n�o tenho mais idade para viver aventuras inconseq�entes - disse ela a Ma�sa. Preciso de algo novo, bom e duradouro em minha vida.
- N�o seja t�o r�gida - censurou Ma�sa. Seu relacionamento com Marcela foi bastante verdadeiro, e voc�s s� terminaram porque o amor acabou.
- N�o � a isso que me refiro. N�o sei explicar, Ma�sa. Sinto que falta algo na minha vida, mas n�o sei dizer o que �.
- N�o � um amor?
- N�o.
- Dinheiro n�o deve ser. Estamos indo bem financeiramente. Voc� trabalha no que gosta. Ser� que � um carro ou casa pr�pria?
- N�o � nada disso. N�o s�o bens materiais.
- Mas ent�o, o que �?
- J� disse que n�o sei. S� sei que sinto um vazio indefin�vel dentro do peito. Preciso de um objetivo novo e estimulante, que me encha de amor e prazer.
- Bem, n�o sei o que pode ser isso. Quando descobrir, me avise.
Naquela noite, Luciana foi dormir ainda com esses pensamentos, e Rani lhe apareceu novamente em sonhos. J� mais acostumada � presen�a do esp�rito, com quem agora
come�ava at� a simpatizar, Luciana logo se desprendeu do corpo f�sico e foi ao seu encontro.
- Ouvi a sua conversa com Ma�sa hoje � tarde - comentou Rani.
- Ouviu? E da�?
- Sua alma anseia por novas experi�ncias, algo que lhe ensine o valor da vida e do amor.
- Talvez. Mas n�o posso amar mais ningu�m.
- Voc� fala de amor f�sico. Esse voc� j� aprendeu. Falta-lhe a ess�ncia do que � divino, do amor verdadeiro que n�o se acaba e n�o esmorece nunca.
- Como assim?
- J� pensou em ser m�e?
- Eu?! N�o sei... Adoro crian�as, mas n�o me vejo tendo rela��es com nenhum homem.
Rani sorriu enigmaticamente e retrucou em tom de quem conhecia algum mist�rio:
- J� pensou em adotar uma crian�a?
- N�o, nunca. Para falar a verdade, por mais que goste de crian�as, tamb�m n�o consigo me ver como m�e.
- Isso � porque voc� n�o viu ainda a crian�a.
- Que crian�a? - tornou ela surpresa.
- Em breve, voc� vai saber. Mas agora h� outra coisa que preciso lhe perguntar: como vai o seu sentimento em rela��o a Cec�lia?
- Bem, n�o quero mais assunto com ela.
- � compreens�vel. Mas voc� a odeia?
Depois de pensar alguns instantes, Luciana respondeu convicta:
- N�o. N�o pretendo lhe dar a chance de tornar a fazer o que fez comigo, mas n�o a odeio. Acho at� que compreendo os seus motivos.
- Voc� tirou a vida de Cec�lia em outra vida, lembra-se?
- � por isso que digo que a compreendo. Deve ser dif�cil para a alma esquecer uma coisa assim.
- Pois �. Cec�lia n�o se esqueceu, assim como o pai dela tamb�m n�o.
- O que o pai dela tem a ver com isso?
- Muita coisa. Ele nunca desconfiou de voc� em vida, mas, depois que desencarnou e descobriu que voc� havia matado a sua filha, ficou com muito �dio de voc�. �dio
esse que precisa ser dissolvido.
- Como?
- A melhor forma de dissolver �dios e ressentimentos s�o os la�os de fam�lia.
- La�os de fam�lia? Mas ele n�o � da minha fam�lia... - ela se calou, temerosa, e come�ou a gaguejar: N�o pode ser... n�o o que estou pensando...
- Em que est� pensando?
- O estupro... - calou-se novamente, j� sentindo l�grimas nos olhos. Mas eu fiquei menstruada... Por favor, Rani, diga que n�o � isso. Diga que n�o estou gr�vida
daquele miser�vel que me estuprou.
- N�o posso dizer nada - objetou Rani, fechando o cenho de repente. Mas em breve voc� vai descobrir. S� lhe pe�o para ter equil�brio e pondera��o. Procure se lembrar
de tudo isso que falamos. O pai de Cec�lia precisa de uma nova chance, e chegou a hora de voc� provar que n�o guarda rancor.
- Mas n�o posso aceitar ser m�e de um filho assim!
- Ningu�m est� falando isso.
- Voc� est� sugerindo.
- N�o estou, n�o. Estou apenas lhe pedindo para refletir.
- Voc� est� me pedindo demais! Nenhuma mulher pode amar um filho gerado num ato de viol�ncia!
- Deus nunca pede demais. Nada que voc� n�o possa suportar.
- Mas, mas...
Rani n�o lhe deu mais ouvidos. Abra�ou-a com ternura e partiu. No dia seguinte, quando Luciana acordou, n�o se lembrava do sonho da noite anterior, mas achava que
alguma situa��o surpreendente e complicada estava por vir. Tomou o caf� em sil�ncio e, ao final, um enj�o repentino lhe causou �nsia de v�mito. Correu para o banheiro
e colocou tudo para fora, arriando no ch�o com os joelhos tr�mulos. O que ser� que teria comido? De repente, a id�ia de gravidez brotou em sua mente, e ela sufocou
um grito. Seria poss�vel? Quando estava no hospital, fora examinada pela sua ginecologista particular e fizera exames para saber se havia contra�do alguma doen�a,
mas os resultados haviam sido todos negativos. S� n�o fizera nenhum teste de gravidez, porque isso nem lhe passava pela cabe�a. Estava apavorada ante a id�ia de
estar gr�vida, ainda mais daquele canalha. Se estivesse, faria o aborto. Era contra o aborto, mas n�o via outra sa�da. Se tivesse aquele filho, seria um desastre.
Reconhecia que o beb� n�o tinha culpa de nada, mas ela n�o podia se impor um sentimento que sabia que jamais seria capaz de sentir. N�o seria justo nem com ela,
nem com a crian�a. Lembrava-se de haver menstruado naquele m�s, mas isso n�o significava nada. Sabia de mulheres que haviam ficado menstruadas e, ainda assim, estavam
gr�vidas, provavelmente, fora isso que acontecera com ela. N�o. Decididamente, precisava abortar. Arrancar de suas entranhas aquele ser indesejado e odioso. Mas
aquele ser indesejado era um beb� inocente que nada sabia sobre o car�ter do pai e nada tinha de odioso. Nasceria livre de toda aquela sujeira, sem sequer desconfiar
de sua proced�ncia. Nesse momento, algo das palavras de Rani lhe veio � mente, e ela come�ou a pensar na crian�a como um ser inocente e indefeso que, como todos
os seres, s� queria viver. Ser� que ela teria o direito de privar uma pessoa do seu direito de nascer, cortando-lhe as esperan�as de vida antes mesmo de ver as primeiras
luzes do mundo? N�o, pensando melhor, n�o faria o aborto. Era contra tudo aquilo em que acreditava como mais sagrado na vida, que era a pr�pria vida. O mais correto
seria d�-lo para ado��o. Sim, faria isso. Deixaria que nascesse e o mandaria para ado��o antes mesmo de v�-lo. Nem queria tomar conhecimento de sua exist�ncia. Limitaria
sua participa��o at� o parto e depois o entregaria a outras pessoas. Havia muitos casais sem filhos que dariam tudo por um beb� forte e saud�vel, que era como ela
esperava ger�-lo em seu ventre. Ao menos dessa parte se encarregaria. Daria a ele o sustento da vida intra-uterina, e depois ele, ou ela, poderia se arranjar com
outras pessoas e uma verdadeira fam�lia. E ningu�m poderia culp�-la por isso. Ningu�m. Chegou ao trabalho com ar cansado, e Ma�sa j� estava de sa�da.
- Precisamos contratar outra secret�ria... - queixou-se Ma�sa, mas, notando o abatimento de Luciana, indagou aflita: O que voc� tem?
Luciana olhou-a com um quase desespero. Precisava dividir aquilo com algu�m ou morreria asfixiada na pr�pria dor.
- Voc� nem pode imaginar. Aconteceu algo terr�vel.
- O qu�?
- Acho que estou gr�vida.
- Gr�vida? Daquele bandido que a estuprou?
- S� pode ser dele, Ma�sa. N�o transei com nenhum homem.
- Meu Deus! E agora?
- N�o sei.
- Voc� vai abortar?
- Acho que n�o. N�o tenho coragem.
- Vai ter a crian�a?
- Vou. E vou d�-la para ado��o.
- �, talvez seja o melhor. Abortar � sempre um risco, nunca se sabe. Ainda mais nessas cl�nicas clandestinas, com esses carniceiros.
- N�o � por isso, Ma�sa. Estou pensando na crian�a. Ela tem o direito de viver.
- Tem. Mas voc� tamb�m tem o seu direito.
- Desde quando voc� � a favor do aborto?
- N�o sou. Mas no seu caso... A lei lhe d� esse direito, sabia? N�o sei qual o procedimento para isso, mas sugiro que voc� procure um advogado.
- N�o vou abortar, j� disse. Vou ter o beb� e d�-lo para ado��o.
- Tudo bem, se � o que voc� quer. No fundo, n�o sou contra. Acho at� que � melhor mesmo. Voc� tem raz�o quando diz que ele tem direito � vida. Afinal de contas,
� um inocente e n�o tem culpa das maldades do pai. Pensando bem, por que voc� n�o fica com ele?
- Ficar com ele?
- J� que vai passar pelos problemas da gravidez e sentir as dores do parto, por que n�o fica com ele logo de uma vez?
- Voc� muda de id�ia r�pido, hein? H� pouco achava que eu devia abortar. Agora me aconselha a ficar com ele.
- Pensei melhor. Tamb�m n�o sou a favor do aborto e, se fosse eu, n�o teria coragem.
- Mas voc� n�o ficaria com ele.
- N�o sei. Talvez ficasse. Imagine-se segurando nos bra�os um beb� lindo e rosado. Voc� vai se apaixonar por ele... ou ela. Todo mundo se apaixona por beb�s.
- � por isso que n�o pretendo nem colocar os olhos nele.
O primeiro paciente de Luciana chegou, e ela teve que encerrar a conversa.
- Precisamos de uma nova secret�ria - observou Ma�sa novamente.
- E eu preciso fazer o teste antes - sussurrou Luciana.
- Amanh� irei com voc�.
Luciana agradeceu com um sorriso e entrou no consult�rio com o paciente. Durante o resto do dia, procurou n�o pensar no assunto, embora sentisse que algo estava
prestes a mudar sua vida. E ela bem sabia o que era: um beb�. A primeira coisa que Luciana fez ao acordar foi ir ao laborat�rio fazer o teste. Ma�sa chegou cedo
a sua casa e foi com ela. O resultado s� ficaria pronto no dia seguinte, e ela teve que aguardar com uma estranha ansiedade. Queria muito que o resultado desse negativo,
mas a id�ia de se tornar m�e lhe deu uma nova perspectiva de vida. N�o desejava estar gr�vida naquele momento, mas quem sabe, mais tarde, n�o encontrasse um homem
disposto a transar com ela apenas para lhe dar um filho e nunca mais tornar a v�-la? Ela poderia criar o beb� sozinha ou com a companheira que escolhesse para dividir
a sua vida. Quem sabe um filho n�o seria o algo mais que lhe faltava? No dia seguinte, as duas foram buscar o resultado do exame. Luciana abriu-o avidamente e leu
apressada, seu rosto n�o demonstrava nenhuma emo��o.
- Ent�o? - perguntou Ma�sa, ansiosa. O que foi que deu?
- Negativo.
- Gra�as a Deus!
- �, gra�as a Deus.
Ela estava aliviada e, ao mesmo tempo, decepcionada. O que se lembrava do sonho com Rani n�o era suficiente para que insistisse na possibilidade de gravidez e num
poss�vel erro no resultado do teste. Por mais que se recordasse da indiana, n�o dava cr�dito a suas palavras e via naquele sonho fragmentado apenas um sonho idiota,
que n�o dizia nada. N�o dava import�ncia ao alerta da maternidade. Ma�sa seguiu para o trabalho, e Luciana foi resolver outros assuntos. O dia transcorreu normalmente,
at� que a noite chegou, e ela voltou para casa. Havia deixado de lado aquela hist�ria de maternidade e beb�s, e estava caminhando pela rua quando um carro parou
a seu lado. Instintivamente, ela se afastou, temendo que fosse algum tarado ou coisa pior, e j� ia se preparando para correr quando ouviu uma voz conhecida chamar
o seu nome:
- Luciana!
Ela se voltou espantada e julgou reconhecer o rosto que a mirava pela janela do autom�vel.
- Fl�vio?
- Eu mesmo. Quer uma carona?
- N�o, obrigada. Moro logo ali.
Luciana sabia o que havia acontecido entre ele e Marcela, e ficou se perguntando o que ele poderia querer com ela. � claro que n�o estava ali para lhe oferecer carona,
parecendo muito mais que a estava esperando.
- Ser� que eu poderia falar com voc�? - tornou ele, um tanto hesitante.
Ela estranhou aquele pedido, mas n�o quis recusar. Devia ser importante, ou ele n�o a procuraria assim, uma quase estranha que fora amante de sua noiva.
- � claro - respondeu ela, curiosa. Vamos at� a minha casa.
Ela entrou no carro e indicou o pr�dio. Fl�vio estacionou em frente, e os dois saltaram em sil�ncio, Luciana tentando adivinhar por que ele a procurara. J� no apartamento,
ela fez com que ele se sentasse e se sentou diante dele, fitando-o com curiosidade e expectativa.
- Muito bonito o seu apartamento - observou ele, olhando ao redor.
- Obrigada. Quer beber alguma coisa?
- N�o precisa se incomodar. N�o pretendo me demorar, porque sei que voc� teve um dia cheio e deve estar louca para descansar. - Ela n�o disse nada, at� que ele come�ou
a dizer o motivo por que estava ali.
- Desculpe-me por vir procur�-la assim t�o de repente... Na verdade, estava esperando voc� chegar.
- Por qu�?
- Gostaria de falar com voc� a respeito de Marcela - ela aguardou, e ele prosseguiu: N�o sei se voc� sabe que eu j� sei de tudo. - Ela assentiu.
- Marcela acabou me contando. Gostaria de ouvir a sua vers�o. O que leva uma mo�a bonita, inteligente e culta a tomar um rumo desse?
- O que o levou a ser m�dico?
Ele se surpreendeu, mas respondeu com certa vergonha:
- Eu sempre gostei da medicina.
- E n�s sempre gostamos de mulheres.
A resposta foi t�o direta que o chocou.
- Mas... por qu�...? - balbuciou. N�o me parece... natural...
- Tamb�m n�o me parece natural que algu�m que adore medicina estude direito s� porque o pai assim quer.
- N�o estou entendendo.
- A escolha da profiss�o deve decorrer da voca��o, voc� n�o acha? Cada um tem uma prefer�ncia, e ningu�m pode interferir nisso. � natural, faz parte da pessoa. Quando
ela segue outro rumo, porque algu�m assim determinou, na verdade, est� indo contra a sua natureza, est� se for�ando a ser algu�m que n�o �. N�o � assim?
Ele concordou com a cabe�a.
- Pois com o sexo � a mesma coisa. Cada um tem a sua prefer�ncia e, quando se for�a a seguir aquela que n�o � a sua, mas que � a �nica aceita pela fam�lia ou a sociedade,
est� tamb�m for�ando a sua natureza e se impondo ser algu�m que n�o �. Vai se sentir frustrado, incompleto e infeliz, assim como os profissionais que optam por carreiras
que n�o s�o de seu desejo, mas agradam aos pais, ou s� lhe d�o dinheiro. Se falta amor no que se faz ou se �, n�o pode haver felicidade. S� frustra��o e insatisfa��o.
- Entendo... - rebateu ele, admirado. E � da sua natureza, e de Marcela, gostar de mulheres.
- S� posso falar por mim, embora essa seja uma conversa que n�o me agrade muito, mexe com a minha privacidade e viola a minha intimidade.
- Sinto muito... - balbuciou ele envergonhado. Na verdade, n�o vim procur�-la para saber de sua intimidade. Vim aqui porque gostaria de conhec�-la melhor.
- Por qu�?
- Voc� foi... - calou-se, sem achar a palavra certa, at� que emendou encabulado: namorada de Marcela. Ela foi muito apaixonada por voc�... n�o foi?
- Foi. Mas n�o � mais, se � o que est� tentando descobrir.
- Tem certeza disso?
- Por que n�o pergunta a ela? J� que o sentimento lhe pertence, ningu�m melhor do que ela para responder.
- N�o me leve a mal, Luciana. N�o vim aqui �s escondidas para descobrir coisas sobre Marcela. A verdade � que estou confuso, com medo. Eu a amo muito e n�o gostaria
de perd�-la.
- J� lhe disse isso?
- Ainda n�o.
- Pois se a ama, devia estar falando com ela, n�o comigo.
- Tem raz�o. � justamente o que pretendo fazer, mas n�o sem antes ter a certeza de que ela me ama de verdade, e n�o a voc�.
- J� entendi. Pensa que Marcela se afei�oou a voc� para suprir a minha falta. � isso?
- De certa forma, sim.
- A certeza que voc� quer, ningu�m pode lhe dar. Nem ela. S� o tempo.
- Voc� ainda a ama?
- Amo, embora n�o da maneira como voc� pensa. Hoje somos mais como irm�s. Passamos muita coisa juntas, lutamos para sobreviver na cidade grande e ser algu�m
na vida. Ambas conseguimos e somos pessoas respeit�veis, temos nossas profiss�es, nossos empregos. Pagamos nossas contas como todo mundo, damos nossa contribui��o
� sociedade. Por que precisamos ser tratadas como marginais?
- N�o � isso. N�o creio que voc�s sejam marginais.
- No entanto, terminou com ela s� porque soube que ela viveu comigo no passado.
- Eu me senti tra�do. Ela devia ter me contado desde o in�cio.
- Nisso, voc� tem raz�o. N�o foram poucas as vezes que a aconselhei. Mas ela teve medo, e voc� devia entender isso.
- Agora entendo. E, como disse, pretendo procur�-la e me reconciliar com ela. S� gostaria de conhecer voc�...
- E ter a certeza de que eu n�o represento nenhuma amea�a.
- Perdoe-me, mas � mais ou menos isso, sim. Amo Marcela demais, contudo, n�o quero sofrer.
- Entendo. Bem, voc� j� me conheceu. Espero que esteja satisfeito e isso lhe d� um pouco da seguran�a que procura.
- Deu. Voc� me ajudou bastante. Obrigado.
Ele j� ia saindo, mas ela o interrompeu:
- Se pretende procur�-la, n�o deixe para amanh�, pois ela n�o vai estar em casa. Est� procurando apartamento para se mudar.
- Mudar?
- Sim, mudar. Sei que amanh� vai passar o dia na rua, olhando uns apartamentos, e me pediu para ir ver um com ela. Vou lhe dar o endere�o e direi que n�o poderei
ir. O resto � com voc�.
- E se ela n�o for?
- Ela vai.
Luciana sabia que, para Marcela, seu apartamento passara a ter uma atmosfera pesada, fazendo-a sentir-se sufocada e triste. Ali, Marcela vivera anos de felicidade
ao lado de Luciana, e fora ali tamb�m que, por causa dela, tentara se matar. Naquele lugar tivera momentos inesquec�veis com Fl�vio e, novamente ali, desejara mais
do que nunca morrer quando soube que o perderia. N�o podia mais viver entre aquelas paredes carregadas de lembran�as, umas felizes, outras desesperadoras, que insistiam
em jogar sua casca de tristeza sobre o que ela, um dia, conhecera como felicidade. Estava na hora de se mudar, e ela resolvera entregar o im�vel. Avisara o locador
de sua inten��o e sa�ra � procura de um novo lugar para morar, longe de todas aquelas lembran�as, onde pudesse come�ar de novo sem a sombra marcante e assustadora
do passado. Conseguira juntar um bom dinheiro, com o qual poderia dar entrada num pequeno apartamento. Come�ara a procurar no jornal e passava os dias visitando
apartamentos em v�rios bairros da cidade. N�o fazia quest�o de nenhum em especial. Desde que pudesse ter algo seu, tanto fazia onde fosse. Fl�vio anotou o endere�o
e o hor�rio em que Luciana disse que se encontrariam com o corretor para visitar um apartamento. Chegou meia hora mais cedo, e n�o havia ningu�m. Estacionou o carro
perto do pr�dio e ficou esperando. Vinte e cinco minutos depois, Marcela chegou com o corretor e entrou no edif�cio, sem nem se dar conta da sua presen�a. Ele esperou
at� que ela entrasse e saltou do carro, subindo atr�s dela. Como era de se esperar, a porta n�o estava trancada, e o corretor percorria os pequenos c�modos com ela,
mostrando-lhe tudo. Eles estavam de costas, apreciando a vista da janela da sala, que dava para um morro ainda verdinho, quando ele se aproximou por tr�s e falou:
- N�o acha um pouco pequeno para n�s?
Os dois se voltaram assustados, e Marcela ficou muda, n�o sabendo se chorava de emo��o ou se fugia correndo de pavor. O corretor, por sua vez, achando que ele era
o noivo, come�ou a falar apressadamente, ressaltando as qualidades do apartamento:
- Ah! Mas o lugar � muito bom. Tem com�rcio, condu��o, tudo perto. E depois, se o senhor olhar melhor, vai ver que n�o � t�o pequeno assim. � �timo para o in�cio
de vida de um casal...
Fl�vio n�o estava mais escutando. Fitava Marcela com um misto de ternura e medo. Sentia o quanto a amava, mas temia que ela, magoada com a forma como ele a tratara,
ignorasse a sua presen�a e o deixasse sozinho ali. Ela, contudo, tremia por dentro de felicidade. Realmente, estava magoada com ele, sentia-se humilhada pela forma
como ele a tratara e achava mesmo que nunca mais deveria olhar para ele. Mas o cora��o falou mais alto, e ela come�ou a chorar de mansinho, sem coragem de se mexer.
Ele se aproximou dela e tomou o seu pequeno queixo entre os dedos, fazendo com que ela voltasse os olhos para ele.
- Ser� que pode me perdoar? - sussurrou.
Em vez de responder, Marcela aproximou dele os l�bios e fez com que ele a tomasse nos bra�os e a beijasse, deixando o corretor embara�ado.
- Bem... - balbuciou o homem. Acho que vou deix�-los sozinhos. Talvez queiram conversar sobre o apartamento e...
- N�o precisa se incomodar - cortou Fl�vio, ainda retendo Marcela em seus bra�os. O apartamento � bom, mas � pequeno para n�s. Agrade�o a sua boa vontade, mas n�o
� o que procuramos.
Ainda abra�ados, os dois se desculparam com o corretor e deixaram o im�vel. Foram para a casa de Marcela e se amaram como nunca. De t�o feliz, Marcela n�o conseguia
nem falar. Nem pensava mais na avers�o que sentia de sua pr�pria casa. Naquele momento, parecia um peda�o do para�so, porque era Fl�vio que fazia a beleza do lugar.
- Ser� que voc� pode me perdoar? - o suplicou ao final, estreitando-a cada vez mais.
- Fui o maior idiota do mundo, mas n�o posso viver sem voc�.
- Voc� me magoou muito.
- Eu sei. N�o h� justificativa para o que fiz, mas quero compens�-la por tudo. Perdoe-me, Marcela, por favor. N�o devia ter falado aquelas coisas nem ter feito o
que fiz. Voc� n�o merecia.
- O que foi que aconteceu para voc� chegar a essa conclus�o?
- Ouvi alguns conselhos, mas, principalmente, segui o meu cora��o. Voc� � a mulher que eu amo, e n�o poderia perd�-la por uma bobagem.
- Acha bobagem agora?
- Sim. Pessoas amigas me fizeram ver que nada disso importa. O seu passado s� a voc� pertence, como eu mesmo lhe repeti tantas e tantas vezes. O que importa � o
que sentimos um pelo outro agora.
- Tem certeza do que diz, Fl�vio? N�o vai me atirar isso na cara depois? Sempre que discutirmos, n�o vai usar isso como arma para me ferir?
- Nunca! Se estou pedindo para voc� me aceitar de volta, � porque esse assunto est� superado e encerrado. N�o � mais importante para mim que voc� tenha vivido com
outra mulher ou n�o. S� o que lhe pe�o � que seja somente minha a partir de agora.
- Sou somente sua desde o dia em que o conheci.
- Promete que nunca vai me trair?
- Se vamos come�ar com desconfian�as, ent�o � melhor nem come�armos.
- Tem raz�o, perdoe-me novamente. N�o tenho motivos para desconfiar de voc�. Voc� sempre foi leal e sincera, sei que nunca me enganou nem me enganaria com ningu�m.
- Acredita no meu amor?
- Acredito. E voc�? Acredita no meu?
- Confesso que cheguei a duvidar, porque achei a sua conduta incompat�vel com quem diz amar tanto. Mas hoje, quando voc� apareceu, n�o tive mais d�vidas. Ningu�m
que n�o ama � capaz de um beijo t�o apaixonado como o que voc� me deu l� naquele apartamento.
Ele a beijou novamente e considerou:
- Voc� precisa mesmo sair daqui. Vamos logo marcar a data do casamento e procurar uma casa para n�s. N�o um apartamento pequenininho como o que voc� arranjou hoje
cedo, mas uma casa grande, arejada e confort�vel. Quero ter muitos filhos, e eles v�o precisar de espa�o para correr.
- Tem certeza de que � isso mesmo o que voc� quer? - tornou ela, ainda em d�vida.
- Absoluta! Voc� � a mulher que eu amo, e � com voc� que quero me casar.
Passaram o resto do dia conversando e fazendo planos. Falaram sobre Luciana e Ariane, sobre Dolores e suas intrigas. Nada disso, por�m, os abalou. Fl�vio concordou
que Luciana era uma boa amiga e admitiu que a admirava. Dolores ficaria furiosa quando soubesse, mas nenhum dos dois se importava. Apenas Ariane os incomodava. Ainda
n�o estavam bem certos sobre suas atitudes, mas, por enquanto, preferiam n�o reatar amizade com ela. Daquele dia em diante, come�aram os preparativos, e a not�cia
logo se espalhou. Algumas pessoas que os conheciam, ao ver Fl�vio e Marcela em algum restaurante ou qualquer outro lugar p�blico, riam e cochichavam entre si, mas
eles nem se incomodavam. Exibiam as alian�as com naturalidade, e Marcela ostentava o anel de brilhante que ele lhe dera com indisfar��vel orgulho. A not�cia logo
se espalhou, e Dolores n�o tardou a saber da reconcilia��o dos noivos. Espumando de �dio, come�ou a ligar para a cl�nica e o apartamento de Justino, onde sabia que
Fl�vio estava morando. Na cl�nica, ele n�o atendia e, no apartamento, ela nunca conseguia encontr�-lo. Ele e Marcela haviam, finalmente, achado uma casa e estavam
empenhados em reform�-la, passando l� muitas noites, planejando a decora��o e entregues ao amor. Dolores n�o sabia disso e foi ficando cada vez mais furiosa. At�
que resolveu ir pessoalmente ao apartamento de Justino para tentar falar com o filho. Precisava cham�-lo � raz�o, mostrar a ele algumas fotos em colunas sociais
e uma observa��o maldosa feita numa revista de fotonovelas. Com isso, esperava que ele acordasse e rompesse de vez com aquela aventureira l�sbica. A campainha do
apartamento de Justino quase estourou de tanto tocar. Era �bvio que ele n�o estava em casa, e ela, por pouco, n�o teve um acesso. Esmurrou a porta, chutou, mas nada.
N�o adiantava, ele n�o estava mesmo, e ela n�o via outro rem�dio, sen�o ir embora. Teve que esperar alguns minutos at� que o elevador chegasse e, quando puxou a
porta pelo lado de fora, algu�m a empurrou pelo lado de dentro, quase acertando a sua testa, o que a fez espumar ainda mais. J� ia se preparando para dizer um desaforo
quando percebeu quem havia chegado. Justino estava parado no corredor, ainda segurando a porta do elevador e, l� dentro, afigura de uma mulher, que Dolores conhecia
vagamente, levando-a a fazer tremendo esfor�o para se recordar.
- Anita! - gritou ela, finalmente se lembrando de quem era e avaliando a outra. O que faz aqui com o meu marido?
- N�o sou seu marido, Dolores - objetou Justino com frieza. E Anita n�o lhe deve satisfa��es.
Ao ver Dolores ali parada, os olhos chispando fagulhas de �dio, Anita pensou em recuar. Sua velha inseguran�a havia voltado, e ela se sentiu amedrontada e intimidada
com a figura elegante, esbelta e confiante de Dolores.
- Acho melhor eu ir para casa - murmurou ela. Posso chamar um t�xi...
- Nada disso! - protestou Justino. Voc� veio comigo, e � Dolores quem n�o tem nada para fazer aqui.
- Tenho um assunto a tratar, mas n�o � com voc� - comentou-a com azedume. � com meu filho. Onde est� ele?
- Ele n�o est� aqui.
- Isso, eu j� percebi. Quero saber onde ele est�.
- N�o � da sua conta.
Justino a empurrou para o lado e abriu a porta, puxando Anita pela m�o.
- E agora, se nos der licen�a, temos muito que fazer - anunciou ele, entrando com Anita no apartamento. At� logo.
Diante do ar embasbacado de Dolores, Justino fechou a porta delicadamente. Ela estava perplexa e, ao mesmo tempo, furiosa. Ouvira falar que Justino estava saindo
com uma mulher, mas jamais poderia imaginar que fosse com a ex-mulher de seu ex-amante. Ela estava horr�vel: gorda, velha e malvestida. Justino deveria estar muito
necessitado para aceitar sair com uma mulher daquela. Era revoltante e inadmiss�vel! Como podia ele se deixar envolver por algu�m sem linha feito aquela Anita? Do
lado de dentro, Anita tremia. Sentia-se pequenininha diante daquela mulher poderosa e cheia de classe. Justino percebeu o seu constrangimento e a abra�ou com ternura,
passando-lhe amor e confian�a.
- Por que est� desse jeito? - perguntou gentilmente. N�o se deixe intimidar por Dolores.
- � que sua ex-mulher � t�o... t�o bonita... t�o elegante... t�o senhora de si...
- E t�o f�til, t�o m�, t�o mesquinha. Por que se diminui diante dela? Ela n�o � melhor do que voc� em nada.
- Ela ainda � uma mulher muito bonita.
- Voc� tamb�m �.
- N�o sou, n�o. Envelheci muito depois de meu �ltimo filho. Deixei-me engordar e perdi a vontade de me arrumar, frustrada com o fracasso do meu casamento e a indiferen�a
de meu marido.
- Pois eu acho que voc� est� muito bem.
- Voc� est� apenas sendo gentil.
- Se n�o gostasse de voc� do jeito que �, n�o a teria convidado para sair.
- Ainda hoje me pergunto o que foi que voc� viu em mim...
- Al�m de achar voc� uma mulher atraente, interessante, sens�vel, culta, inteligente e espirituosa? - Ela assentiu, surpresa com tantos elogios. Apaixonei-me por
voc�.
- Oh! Justino!
Os dois se abra�aram, e ele foi at� o bar. Serviu duas ta�as de champanha e ofereceu-lhe uma.
- Vamos brindar.
- A qu�?
- Ao privil�gio de sermos pessoas maduras, que sabem o que querem e s�o livres para viver um amor sereno, confiante e verdadeiro.
Ela sorriu, e ambos estalaram as ta�as. Anita estava feliz como nunca antes se sentira em toda a sua vida. Sabia que podia confiar em Justino, em suas palavras e
no seu amor. Dali em diante, n�o pensaria mais em si mesma como algu�m inferior e procuraria melhorar n�o apenas a apar�ncia f�sica, mas, principalmente, os pensamentos.
N�o queria mais ser uma mulher insegura. Queria ser algu�m forte e corajosa, ciente de seu valor e do valor que Justino conseguia reconhecer nela. Ela o amava, mas
n�o queria fazer isso por ele. Faria por si mesma. A cada dia que passava, Dolores ficava mais e mais furiosa. Al�m de o filho estar visivelmente evitando falar
com ela, descobrira o caso rid�culo de seu marido com aquela mulher insossa e idiota. N�o fosse a ex-mulher de N�lson, ela at� acharia gra�a em ver que Justino se
envolvera com uma feiosa sem classe. Tratando-se de quem era, ficava pensando se ele realmente gostava dela ou se estaria fazendo aquilo somente para humilh�-la.
N�o acreditava, todavia, na segunda op��o. Justino fazia o tipo gentil e bonzinho, e o mais prov�vel era que tivesse mesmo se apaixonado pela bruaca velha. Mas Justino
podia ficar para depois. N�o tinha tempo para perder em conjecturas sobre as aventuras sexuais do ex-marido. O que lhe interessava no momento era o filho. Fl�vio
estava evitando falar com ela h� semanas. Tinha certeza de que Justino lhe informara que ela estivera � sua procura, e ele n�o a procurara de prop�sito. No entanto,
precisava conversar com ele e fazer com que voltasse � realidade. N�o precisou esperar muito. Uma semana depois, Fl�vio apareceu em sua casa, levando em m�os um
envelope alinhado.
- O que significa isso? - rugiu ela entre os dentes, segurando nas m�os o convite ainda lacrado.
- � um convite de casamento, m�e. N�o deu para perceber?
- Quem vai se casar? Voc�? - Ele assentiu. Com aquela l�sbica aventureira?
- Ela n�o � l�sbica e, muito menos, aventureira.
- Ora, vamos, Fl�vio, voc� conhece o passado dessa mo�a t�o bem quanto eu. Todos conhecem. Vai ser massacrado pela sociedade se voc� se casar com ela.
- Isso n�o me interessa. Ningu�m tem nada com a minha vida.
- Voc� saiu de casa por causa dessa mo�a e agora pretende levar adiante um casamento que vai causar a sua ru�na.
- Engano seu. Meu casamento tem tudo para ser bem-sucedido, porque n�s nos amamos, nos compreendemos e nos respeitamos. Ah! E eu n�o sa� de casa por causa de Marcela.
Foi por sua causa que me mudei: por causa de suas intrigas e da humilha��o que me fez passar.
- Meu filho, deixemos isso para l�. J� passou.
- Sim, passou, e � por isso que n�o pretendo mais retornar a esse assunto. Procuro relevar o que voc� fez, dizendo para mim mesmo que voc� pode ser orgulhosa, esnobe
e intrigante, mas � minha m�e e, presumivelmente, quer o meu bem. Ainda que o meu bem n�o seja, exatamente, o que voc� quer me oferecer.
- Mas � claro que quero o seu bem!
- Ent�o, aceite o meu casamento com Marcela como fato consumado.
- Voc� est� me pedindo para abrir m�o da nossa dignidade e conviver com uma l�sbica?
- Ela n�o � l�sbica. E, ainda que fosse, isso n�o faria dela essa pessoa desprez�vel que voc� quer fazer parecer.
- Est� bem, est� certo. Concordo que talvez isso n�o tenha tanta import�ncia. Mas o fato � que Marcela � uma pobretona, uma mulherzinha de classe inferior, sem eira
nem beira. O que um homem da alta sociedade como voc� pode esperar de uma criatura assim?
- Agora voc� est� sendo mais verdadeira. Est� claro para mim que o seu problema com Marcela � a sua condi��o social. Pois ent�o, m�e, deixe que lhe diga o que posso
esperar de Marcela: amor. � s� isso que me importa.
- Amor, pois sim! Tudo muito bonito enquanto ela n�o o fizer passar vergonha na frente dos seus amigos.
- Marcela � uma mo�a culta e educada. N�o vai me fazer passar vergonha em lugar nenhum.
- Mas n�o � do nosso meio, n�o tem o seu n�vel! Al�m de tudo, n�o gosta de mim.
- Voc� � quem n�o gosta dela. E n�o gosta porque n�o vai poder manipul�-la como pensava fazer com Ariane.
- Ariane anda meio sumida, contaminada pelas id�ias estranhas que Marcela colocou na cabe�a dela. Mas ainda � a mulher certa para voc�.
- Ariane n�o me quer mais, m�e. Ela mesma me disse.
- � mentira. Ela est� apenas escabreada com tudo o que passou. Mas se voc� a quiser, duvido que ela o rejeite.
- Ela est� arrependida. Ao contr�rio de voc�, Ariane mostrou senso de dignidade e veio se desculpar comigo.
- E voc� a desculpou? - Ele n�o respondeu. Pois eu acho que voc� devia. Com o tempo, voc� vai ver como ainda t�m chance juntos.
- N�o adianta, m�e. Ariane e eu somos dois estranhos agora. � com Marcela que vou-me casar, quer voc� queira, quer n�o.
- E veio me convidar para o casamento? - a retrucou com indigna��o, exibindo o convite fechado. Como se eu fosse uma estranha?
- Voc� n�o � uma estranha, mas vai ser apenas mais uma convidada. N�o a quero no altar junto comigo.
- Eu � que n�o quero que me vejam no altar, recebendo aquela l�sbica como nora!
- Pouco me importa. S� n�o quero que Marcela se sinta mal no dia que deve ser o mais feliz da sua vida. Ela o olhava com raiva, e ele finalizou: Bom, o convite est�
entregue. Se quiser comparecer, �timo. Se n�o quiser, tudo bem tamb�m.
Com um sorriso frio, Fl�vio se despediu. N�o tinha mais paci�ncia para as encena��es da m�e e n�o queria lhe dar a chance de encher os seus ouvidos com as suas hist�rias
maledicentes. Entregara-lhe o convite por insist�ncia de Marcela, que era uma pessoa boa e n�o guardava ressentimentos. Mas n�o a queria no altar e n�o pretendia
mais lhe dar a chance de lhe causar embara�os ou humilhar sua noiva. O casamento se realizou conforme o esperado, em uma recep��o simples, por�m elegante, para a
qual foram convidados todos os amigos e conhecidos de Fl�vio e Marcela. Ele n�o queria que dissessem que se casara em segredo, para n�o expor a noiva l�sbica, como
dizia a m�e, por isso, fez quest�o de uma cerim�nia sem luxo, mas grande o bastante para comportar todos aqueles a quem, supostamente, deveria temer em sociedade.
Ele e Marcela receberam a todos com alegria e satisfa��o, e n�o havia quem n�o elogiasse a beleza, a eleg�ncia e a delicadeza da mo�a. Alguns diziam mesmo que o
que se falava sobre ela devia ser inven��o, pois uma mo�a t�o bonita e inteligente n�o se prestaria �quelas coisas. Quem ouviu os coment�rios foi Luciana que, apesar
de entristecida com a hipocrisia, a intoler�ncia e o preconceito das pessoas, n�o rebateu nem emitiu qualquer opini�o, como teria feito em outros tempos.
- Deixe isso para l� - falou Ma�sa, a seu lado. As pessoas falam mal daquilo que temem ou n�o compreendem. Muitos desses a� devem fazer o diabo �s escondidas, mas,
como ningu�m sabe nem nunca viu, podem fazer-se passar por certinhos e moralistas.
- � uma ignor�ncia, Ma�sa. O que beleza e intelig�ncia t�m a ver com isso?
- J� disse para n�o ligar, Lu. N�o importa o que elas dizem.
- N�o sei nem por que me calei. Devia era ter-lhes dito umas poucas e boas.
- O mundo, infelizmente, � cheio de preconceitos e falsidades, mas isso ainda h� de mudar um dia. Esse dia ainda n�o chegou, e acho que n�o cabe a voc� fazer o papel
de transformadora. N�o sozinha nem nesse momento. Vai se expor sem necessidade, atrair a aten��o das pessoas que podem atirar sobre voc� energias ruins. Para que
isso? O importante � que voc� sabe quem � e conhece o seu valor. Deixe que os outros fiquem com o seu preconceito e a sua hipocrisia, porque n�s, que j� ultrapassamos
esse est�gio, podemos nos preocupar com coisas mais �teis.
Luciana olhou-a sem entender e retrucou admirada:
- Voc� diz cada coisa, Ma�sa...
- Ah! Deixe para l�.
Nesse momento, a orquestra come�ou a tocar uma m�sica rom�ntica, e Breno tirou Ma�sa para dan�ar, deixando Luciana sozinha � mesa. Em poucos minutos, Marcela estava
a seu lado, e as duas come�aram a conversar:
- Estou t�o feliz por voc�, Marcela!
- Eu tamb�m.
- Voc� est� radiante. Tenho certeza de que vai ser muito feliz.
- Sabe, Lu, amo Fl�vio imensamente, mas n�o posso dizer que foi o �nico que amei em minha vida. - Luciana limitou-se a olh�-la, e ela completou: Voc� sabe do que
estou falando, n�o sabe?
- N�o creio que essa seja uma conversa muito apropriada para o seu casamento - rebateu Luciana, sem entender o porqu� daquilo tudo.
- N�o se preocupe. Sei o que estou falando, e Fl�vio tamb�m sabe. Depois de tudo o que aconteceu, prometi a ele que n�o lhe esconderia mais nada.
- � o mais sensato. Mas por que est� me dizendo isso agora?
- Gostaria que voc� soubesse. O que sinto por Fl�vio hoje � �nico, mas n�o apaga o que senti por voc�. Foi �nico tamb�m.
- Eu sei, mas n�o entendo por que est� me dizendo isso. Nunca lhe cobrei nada nem fiz compara��es entre mim e Fl�vio.
- � claro que n�o. Estou falando isso por mim mesma, porque preciso assumir, para mim, que posso amar um homem sem precisar negar ou me envergonhar de ter amado
uma mulher. Hoje aprendi que o que se ama � a ess�ncia, n�o o corpo f�sico.
- Bom, esse deve ser o amor verdadeiro, mas eu ainda n�o consigo amar s� a ess�ncia... - disse ela, olhando de soslaio para uma mo�a bonita que vinha passando.
As duas ca�ram na gargalhada, e Marcela abra�ou Luciana com carinho.
- Eu amo voc�, sabia disso? - declarou Marcela. Como uma verdadeira irm�.
- Mas que comovente! - disse uma voz ir�nica atr�s delas. Mas a despedida de solteira n�o deveria ser hoje, no dia do casamento.
As duas desfizeram o abra�o e se voltaram ao mesmo tempo. Dolores estava parada perto da mesa, a essa altura bastante alterada pela bebida, acompanhada de tr�s mulheres
que ostentavam sorrisos igualmente ir�nicos. A surpresa de Marcela foi genu�na, porque Dolores garantira que n�o compareceria ao casamento. Logo um grupinho come�ou
a se formar ao redor delas, e Dolores continuou falando:
- N�o sei se todos conhecem Luciana... Luciana de qu�, mesmo? N�o importa. Luciana � amiga �ntima de Marcela, n�o � mesmo?
Ela frisou bem aquele �ntima e encarou a nora com olhar divertido e maldoso.
- �, sim - concordou Marcela, o rosto em chamas. Luciana � minha amiga de muitos anos.
- O que voc� faz, Luciana? - indagou uma mulher, que a olhava com ar malicioso.
- Sou dentista - respondeu ela, devolvendo o olhar com outro, cheio de dignidade.
- Ah! Ent�o � doutora Luciana.
- Doutora, n�o, doutor - cochichou algu�m bem baixinho logo atr�s, mas todos ouviram e come�aram a rir, inclusive Dolores.
A conversa estava tomando um rumo bastante desagrad�vel, e as duas queriam sair correndo dali, mas n�o viam como. Luciana ainda sustentava os coment�rios e os olhares,
mas Marcela estava vermelha desde a raiz do cabelo, e seus olhos j� come�avam a umedecer. O grupinho estava sendo observado por Justino e Anita, que imaginavam bem
o que deveria estar acontecendo. Justino pediu licen�a a Anita e foi procurar o filho, que cumprimentava um casal de tios idosos do outro lado do sal�o. Ele chegou
bem perto do filho e sussurrou em seu ouvido:
- Acho melhor voc� vir comigo. Sua m�e est� aprontando das dela.
Fl�vio olhou por cima do ombro, surpreso com o aparecimento repentino da m�e, e imediatamente percebeu o que acontecia. Marcela e Luciana, sentadas a uma mesa, em
meio a um grupo de fofoqueiros liderados pela m�e, s� podia significar uma coisa: a m�e as estava envolvendo em seus gracejos maldosos, humilhando-as a pretexto
de divertir todo o grupo. Na mesma hora, pediu licen�a e se dirigiu para l�, em companhia do pai, e Anita se juntou a eles. Tamb�m n�o queria mais evitar Dolores.
N�o tinha por que tem�-la.
- Divertindo-se, mam�e? - perguntou Fl�vio, pondo-se entre Marcela e Luciana, e envolvendo o ombro de cada uma com um bra�o.
- Est�vamos apenas conversando.
- � mesmo? E sobre o que falavam de t�o engra�ado? Conte-me, para que eu possa rir tamb�m.
De repente, a conversa parecia ter perdido a gra�a, e os convidados se sentiam constrangidos com a presen�a de Fl�vio, abra�ando a noiva e a amiga, demonstrando,
nitidamente, o apoio que dava a Luciana. Alguns come�aram a se afastar, e outros, muito pouco � vontade, olhavam a cena com um sorriso morto nos l�bios.
- N�o est�vamos falando nada demais - defendeu-se ela. Apenas convers�vamos sobre Marcela e sua amiga.
- N�o vejo que interesse isso possa despertar em nossos convidados.
- Nenhum. � que elas estavam se abra�ando... t�o bonitinho! N�o pudemos evitar. � t�o lindo ver uma amizade como essa: t�o verdadeira, t�o duradoura, t�o... �ntima.
Novamente aquele �ntima frisado, que irritou Fl�vio.
- Bom, sinto estragar a sua divers�o, mas Marcela e eu ainda temos muitos convidados para cumprimentar. Ah! Luciana, venha conosco. Quero apresent�-la a algu�m.
- Uma namorada nova, como pr�mio de consola��o para substituir a perdida?
Dolores falou praticamente sem pensar. Estava b�bada e t�o contrariada com o casamento e, mais ainda, com a presen�a de Luciana, que n�o conseguiu se conter. A indaga��o
mordaz apenas extravasou o que h� muito ia represado em seu cora��o.
- Com que direito voc� se atreve a fazer julgamentos e coment�rios sobre a vida de Marcela? - dessa vez, foi Justino quem falou, a voz tr�mula de indigna��o.
Ela lhe lan�ou um olhar cortante, fitou Anita com desd�m rebateu em tom de zombaria:
- Marcela, por acaso, � sua noiva? N�o, claro que n�o. Voc� n�o gosta de mocinhas. Gosta de mulheres maduras e inchadas, que j� est�o caindo do p�.
Ningu�m ag�entou. A gargalhada foi geral, deixando Anita roxa de vergonha, Fl�vio, Marcela e Luciana, perplexos, e Justino, furioso. Em meio �s risadas, Dolores
se virou para o sal�o, fazendo sinal para que os outros a acompanhassem. O grupo come�ou a se dispersar, mas Dolores foi interrompida pela observa��o perfurante
de Justino:
- Por que n�o conta a todos qual a sua prefer�ncia, j� que estamos falando de gostos? Quero dizer, antes de se envolver com rapazinhos.
Ela se virou bruscamente e o encarou com f�ria:
- Cale-se! N�o lhe dou o direito de falar da minha vida particular.
- Mas voc� se acha no direito de falar da vida de seu filho, de sua nora, de minha mulher e de outras pessoas, n�o � mesmo?
- N�o estou falando nada demais. E voc� n�o tem nada com isso.
- Gra�as a Deus, n�o tenho mais nada a ver com a sua vida mentirosa e libertina.
- Veja l� como fala! - urrou ela. N�o admito que ofendam a minha reputa��o!
O clima estava horrivelmente tenso, e nem Fl�vio entendia por que o pai dizia aquelas coisas naquele momento. Dolores estava visivelmente alcoolizada, mas Justino
parecia s�brio e consciente do que dizia.
- Pai, por favor, pare com isso - pediu Fl�vio, tentando pux�-lo pelo bra�o. Deixe-a, ela bebeu demais.
- Eu n�o estou b�bada! - gritou ela novamente, o rosto totalmente transformado pela c�lera. S� n�o vou permitir que seu pai, ou qualquer outro homem, tente me desmoralizar!
Ningu�m entendia por que Dolores, de repente, ficara t�o furiosa. Ningu�m, � exce��o de Justino. Na verdade, ela tremia de medo de que ele revelasse alguma coisa
sobre o seu antigo caso com N�lson.
- N�o precisa se alterar dessa maneira, m�e. Vamos acabar com essa discuss�o por aqui.
- Sua m�e est� assim, meu filho - falou Justino -, porque tem medo de que eu revele a todos por que nos separamos.
- Voc� n�o ousaria!
- Eu lhe avisei, Dolores. Avisei-a para deixar Marcela em paz, mas voc� n�o quis me ouvir. Pensou que eu n�o fosse capaz de expor as suas sujeiras? Pois se enganou.
Eu sou capaz, sim!
- Cale essa boca, Justino! - berrou ela. N�o se atreva a comentar nossa vida particular em p�blico!
- Pai, por favor...
- N�o, agora vou falar. Voc� acha que � melhor do que todo mundo, n�o �, Dolores? S� porque tem dinheiro, pensa que est� acima de tudo e de todos. Mas n�o est�.
Seu dinheiro pode comprar rapazolas interesseiros, mas n�o pode comprar a sua dignidade e, muito menos, o meu sil�ncio!
- Voc� est� louco. N�o sabe o que diz!
Ela come�ou a se afastar rapidamente, mas Justino elevou a voz e disparou:
- Tem medo de que todos saibam por que nos separamos, n�o �? Tem medo de que todos saibam que nos separamos porque eu descobri que voc� estava de caso com N�lson
Moreira, meu antigo s�cio na cl�nica e ex-marido de Anita!
Fez-se um sil�ncio geral, e Dolores fechou os olhos, lutando para n�o voar no pesco�o de Justino.
- Justino! - interrompeu Anita surpresa. Do que � que voc� est� falando?
- � isso mesmo! Dolores tinha um caso com N�lson, e era ela quem sustentava a sua cl�nica depois que nos separamos. Mas acho que se cansou dele tamb�m, porque hoje
prefere gastar o seu dinheiro com playboyzinhos desocupados e tostados de sol.
Aquilo j� era demais. Dolores n�o conseguiu se conter e se virou para ele, fuzilando-o com um olhar de tanto �dio, que muitos n�o conseguiram nem olhar para ela.
- Voc� n�o tem o direito! - vociferou.
- E voc� n�o tem o direito de falar de Marcela ou de Luciana, ou de quem quer que seja. Quem � voc� para julgar algu�m? Como pode acusar os outros quando a sua vida
� um mar de sujeiras e intrigas? Que moral voc� tem para levantar o dedo acusador e decidir o que � certo ou errado na vida? Voc� n�o � nada, Dolores.
- Cachorro! - grunhiu ela, avan�ando sobre ele e desferindo-lhe v�rios tapas e arranh�es no rosto.
Justino n�o fez nada al�m de se defender. Segurou as suas m�os, e ela come�ou a chut�-lo vigorosamente, at� que Fl�vio intercedeu e a agarrou por tr�s, puxando-a
para fora do sal�o. Ela foi arrastada aos berros e pontap�s, completamente transtornada e ensandecida. Do lado de fora, agarrou-se ao filho e desabou num pranto
convulsivo e atropelado por palavras desconexas, carregadas de �dio.
- Venha, m�e, vou lev�-la para casa - anunciou ele, entrando com ela no carro e partindo pela rua.
O epis�dio foi a sensa��o do ano nas colunas sociais. N�o havia uma s� revista de fofocas que n�o noticiasse o ocorrido. Para Dolores, foi uma desmoraliza��o total,
e ela se fechou em sua casa, recusando-se a receber visitas. Nem o telefone queria atender. Os amigos que ligavam n�o estavam interessados em levar-lhe algum conforto,
mas queriam saber detalhes sobre aquele caso secreto e t�o bem oculto, de que ningu�m sequer chegou a desconfiar. Para sua surpresa, as �nicas pessoas que foram
a sua casa para tentar confort�-la foram Fl�vio e Marcela. No come�o, ela pensou que a nora havia aparecido para tripudiar sobre o seu sofrimento, mas Marcela n�o
fez nada disso. Sentou-se a seu lado e demonstrou um carinho que Dolores nunca antes havia visto, mas que a deixou envergonhada e irritada ao mesmo tempo. N�o queria
a compaix�o daquela mulher.
- Voc�s n�o precisam se incomodar comigo - disse ela em tom arrogante, ainda sustentando uma pose de orgulho. Estou muito bem.
- Dona Dolores, quero que saiba que n�o lhe guardo qualquer rancor. Se precisar de alguma coisa, pode contar comigo.
A vontade de Dolores era cham�-la de fingida, mas n�o conseguiu detectar nenhuma falsidade nas suas palavras, o que a deixou ainda mais desgostosa. Por que a nora
tinha que ser t�o boazinha daquele jeito? N�o podia ser como todo mundo e aproveitar aquela arma para disparar contra ela? Mas n�o. Marcela se mostrava compreensiva
e disposta a ajudar, dando uma facada no seu orgulho. Fl�vio, por sua vez, apesar da surpresa que a atitude da m�e lhe causou, logo se apiedou dela, vendo ali uma
mulher decadente e solit�ria, escrava do dinheiro e das apar�ncias.
- Deixe isso para l� - ele tentou consolar. Com o tempo, isso passa. As pessoas logo se cansam e arranjam outra coisa para fofocar.
- Seu pai n�o podia ter feito isso comigo - queixou-se ela. S� pode ter sido por vingan�a.
- Meu pai n�o � homem de se vingar.
- Ele me desmoralizou publicamente.
- Mas tamb�m, m�e, voc� exagerou. Por que foi tentar humilhar Marcela e Anita na frente de todo mundo, no dia do nosso casamento?
Ela ergueu os olhos para Marcela e n�o disse nada. N�o tinha que dar satisfa��es.
- Acho melhor n�o tocarmos mais nesse assunto - ponderou Marcela.
- Tamb�m acho - concordou Dolores. E voc�s podem ir. Eu estou muito bem e n�o preciso de nada.
Vendo que n�o adiantava oferecer-lhe ajuda, Fl�vio desistiu e resolveu deix�-la sozinha. O tempo daria um jeito naquelas marcas, e ela logo estaria de volta ao seu
c�rculo social de futilidades e apar�ncias. Mas ele n�o sabia o quanto estava errado. Apesar de n�o perder a arrog�ncia, desde aquele dia, Dolores se manteve quieta
em seu canto, fazendo quest�o de n�o ser notada nem se envolvendo em nada que pudesse chamar a aten��o sobre ela. Justino se arrependeu de ter falado aquilo tudo
no casamento do filho. De certa forma, ele contribuiu para estragar a festa. Depois do ocorrido, partiram o bolo assim que Fl�vio retornou da casa de Dolores, e
a maioria dos convidados se retirou, encerrando a recep��o mais cedo do que o esperado.
- Sinto muito, meu filho - disse Justino a Fl�vio mais tarde, depois que todos se foram. N�o queria estragar o seu casamento. Estava uma festa t�o bonita!
- N�o foi culpa sua, pai. Mam�e estava pedindo por isso.
- Mas eu devia ter escolhido outro momento.
- N�o faz mal. Aconteceu no momento que tinha que ser. E depois, ela estava humilhando Marcela, Luciana e at� Anita diante dos nossos convidados. Apesar do estrago
que fez na festa, foi bem feito para ela. Algu�m tinha que lhe p�r um freio. Depois disso, eles haviam ido viajar em lua de mel, e Justino foi procurar Anita. Ela
estava muito abalada, e ele se sentia na obriga��o de lhe dar alguma explica��o. Anita estava em casa e havia narrado o epis�dio a Ariane, que n�o comparecera ao
casamento, temendo desgostar os noivos. N�lson tamb�m n�o havia ido. Andava sempre embriagado e metido em jogatinas, afastado do conv�vio com a sociedade e envolvido
com indiv�duos de reputa��o duvidosa.
- Foi horr�vel - comentou Anita. Ainda bem que voc� e seu irm�o n�o estavam l�.
- O que disse a ele?
- Nada, por enquanto. E nem sei se vou dizer alguma coisa.
- Acho melhor voc� contar a verdade. Sabe como s�o essas coisas: as pessoas comentam em casa, os filhos ouvem e contam tudo na escola. � melhor que ele saiba por
voc�.
- Tem raz�o. Vou conversar com ele mais tarde.
A campainha soou, e Justino apareceu acabrunhado. Deu um beijo no rosto de Anita, cumprimentou Ariane com um aceno de cabe�a e indagou preocupado:
- Como � que voc� est�?
- Melhor do que eu esperava - respondeu Anita. Ainda estou tentando digerir isso tudo, mas tenho que confessar que, no fundo, n�o me surpreendi. � como se achasse
N�lson e Dolores capazes desse tipo de trai��o.
- E s�o mesmo.
- Por que n�o me contou isso antes?
- Porque achei que n�o devia. Quando n�s come�amos a sair, tanto eu quanto voc� j� est�vamos separados. N�o faria diferen�a.
- E como foi que voc� descobriu?
- Eu os surpreendi.
Naquele ponto, j� n�o havia mais por que ocultar as coisas de Anita, e Justino lhe contou exatamente o que acontecera. Anita e Ariane escutaram atentamente, sem
fazer qualquer interrup��o.
- De meu pai, pode-se esperar tudo - observou Ariane, depois que Justino terminou.
- E de Dolores tamb�m - acrescentou ele.
- Deve ter sido muito dif�cil para voc�, na �poca - disse Anita. N�lson era seu amigo.
- � verdade, foi. Mas eu consegui me recuperar muito bem. Abri a minha pr�pria cl�nica, juntamente com meu filho, e encontrei uma mulher realmente digna a quem amo.
N�o posso querer coisa melhor.
Anita corou levemente e falou:
- Quanto a mim, s� posso agradecer estar separada dele agora. Se tivesse descoberto isso quando ainda est�vamos casados, teria sido muito doloroso.
- As coisas sempre aparecem no momento certo.
Os dois continuaram conversando, e Ariane foi para o quarto. A revela��o de Justino n�o a deixara surpresa, nem revoltada, nem entristecida. Ela e o pai nunca haviam
se dado bem mesmo, e era at� melhor que os pais estivessem separados. Contudo, ficou pensando no casamento de Fl�vio e Marcela, sentindo uma alegria interna por
ver que eles haviam conseguido ficar juntos. A �nica coisa que a entristecia era n�o poder compartilhar com Marcela aquele momento. Sabia que Marcela n�o confiava
mais nela e talvez nunca mais lhe dirigisse a palavra novamente, mas precisava demonstrar o seu arrependimento e o seu afeto de alguma maneira. Resolveu sair e comprar
algo para ela. N�o havia lhe dado nada de presente de casamento e ficou imaginando o que poderia dar que demonstrasse a sua amizade. Todas as coisas eram comuns,
e ela escolheu um presente pessoal, que n�o fosse muito caro. Havia uma promo��o de len��is numa loja, e ela acabou comprando um jogo completo, com as iniciais M
e F gravadas. Deu o novo endere�o deles, que havia conseguido no caderninho de telefones da m�e, e comprou um cart�o numa loja. Come�ava a escrever votos de felicidades
e aquelas coisas que sempre se colocam em cart�es, quando a emo��o a dominou, e ela acabou escrevendo uma mensagem bonita e cheia de sentimento. Marcela e Fl�vio
s� receberam o presente uma semana depois, quando voltaram da lua de mel. Eles ainda nem haviam terminado de desembrulhar todos os presentes quando a campainha tocou,
e a empregada que eles haviam contratado entrou com um pacote grande e bonito.
- Este chegou atrasado, dona Marcela - comentou a criada, depositando o embrulho ao lado dos outros.
- Deixe-me ver - pediu Marcela, apanhando o cart�o e abrindo-o com curiosidade.
Foi direto na assinatura e se surpreendeu ao ver o nome de Ariane.
- De quem �? - indagou Fl�vio, com interesse.
- De Ariane.
- De Ariane? N�o me diga!
- Vou ler o cart�o: Querida Marcela. N�o sei se deveria lhe enviar nenhum presente, muito menos lhe escrever, mas n�o posso deixar passar a emo��o que me invade
nesse momento. Agora que voc� e Fl�vio est�o casados, e nenhum interesse mais eu poderia ter em voc�, posso lhe revelar o que realmente sinto. Dizer que me arrependo
n�o � o suficiente, porque eu j� lhe disse (e a Fl�vio tamb�m). N�o escrevo para falar sobre isso, mas para dizer como me senti quando soube do seu casamento, ao
qual n�o compareci por raz�es �bvias, e n�o por falta de vontade. Fiquei e estou muito feliz por voc�, porque muito mais do que o meu arrependimento, o que me conforta
� saber que voc� e Fl�vio conseguiram se entender e est�o felizes. Isso, para mim, j� � motivo de felicidade. Que voc�s possam sempre alimentar esse amor, um amor
que eu, um dia, espero poder conhecer por um homem que me ame de verdade. Porque o amor que nasce da amizade, esse j� conquistei ao conhecer voc�. Mesmo que nunca
mais nos falemos, jamais vou deixar de admir�-la e am�-la, porque a considero a melhor amiga de meu cora��o. Marcela soltou o cart�o com l�grimas nos olhos e olhou
para Fl�vio, que tinha o olhar vago e refletia as palavras de Ariane.
- Ela me procurou um dia desses - contou ele.
- Procurou-o para qu�?
- Para me falar de voc�. Disse que estava arrependida e me pareceu bem sincera.
- Tamb�m acredito no seu arrependimento. N�o sei por qu�...
- Meu pai, que fica sabendo de muitas coisas atrav�s de Anita, garantiu que ela realmente se arrependeu e que gosta muito de voc�.
- Voc� acha que � verdade?
- Acho, sim. Quando ela me procurou, n�o me pareceu interessada em mim como antes. S� estava preocupada com a sua amizade. Acho que ela, realmente, se afei�oou a
voc�.
Marcela ficou pensativa. Mais tarde, quando foram dormir, teve um sonho estranho. Nele, ela e Ariane eram irm�s, mas Ariane, por ser a mais velha, tinha que se casar
primeiro. Era uma �poca muito remota, e as fam�lias da noiva e do noivo haviam acertado o casamento dos filhos assim que eles nasceram, e Ariane era a prometida
de Fl�vio. Eles n�o se amavam. Como Fl�vio e Marcela estavam apaixonados, os pais de ambos haviam concordado em transferir o compromisso para Marcela, pois assim
o acordo se manteria entre as fam�lias, mas Ariane n�o aceitou, for�ando os pais a manterem a palavra e concretizarem o enlace. E assim foi feito. Ariane e Fl�vio
se casaram, e Marcela ficou solteira para sempre, mas Fl�vio nunca a esqueceu e foi infeliz ao lado de Ariane, fazendo-a infeliz tamb�m. No dia seguinte, Marcela
contou o estranho sonho a Fl�vio, que n�o o compreendeu muito bem.
- Voc� ficou impressionada com o cart�o que Ariane lhe escreveu - explicou ele. Por isso sonhou essa bobagem.
- N�o era bobagem. Na verdade, Marcela sonhara com uma vida passada, sem o saber. Algo despertara dentro dela. Desde que lera aquele cart�o, come�ou a sentir compaix�o
de Ariane. N�o que tivesse pena propriamente. Mas conseguia se colocar no lugar da outra e tentou imaginar o que faria se ela mesma estivesse apaixonada por um homem
que n�o a amasse, influenciada por algu�m que lhe prometia milagres de amor. Ela, na certa, faria diferente. Mas ela era outra pessoa. N�o tinha aquela fraqueza
de Ariane, mas tinha outras. E depois, quem na vida n�o cometia seus erros? Seria justo condenar Ariane eternamente por ter-se deixado envolver por uma ilus�o? Marcela
fora capaz de superar a avers�o que sentia por Dolores e lhe oferecera a sua amizade, mesmo depois de tudo o que ela fizera. Por que ent�o n�o fazia o mesmo com
Ariane? A resposta parecia �bvia. Ariane a havia decepcionado, ao passo que, de Dolores, podia-se esperar qualquer coisa. Mas, se era assim, tamb�m estava claro
que havia um sentimento por Ariane, o que n�o existia com rela��o a Dolores. Marcela se sentira frustrada pela atitude de Ariane justamente porque se afei�oara a
ela. Reconhecia que gostava dela e, se gostava, por que n�o perdoar? Ariane n�o se satisfazia mais com a vida que levava, repleta de ideais vazios e sonhos de casamento.
Queria ser algu�m diferente. Queria se orgulhar de si mesma, de sua contribui��o ao mundo em que vivia. Resolveu estudar, contudo, como a situa��o financeira de
sua fam�lia n�o andava l� muito boa, pensou em arranjar tamb�m um emprego, o que n�o era muito f�cil naqueles dias.
- Voc� n�o pode ajudar? - indagou Marcela a Fl�vio, quando este lhe contou o que soubera.
- N�o sei. Meu pai sugeriu que o fiz�ssemos. Tem presenciado o esfor�o dela e me garantiu que ela est� disposta a mudar de vida. Perguntou-me se eu n�o concordaria
em lhe oferecer um emprego em nossa cl�nica.
- E o que voc� disse?
- Que ia conversar com voc� primeiro. Nem ele, nem eu queremos fazer nada que a desagrade.
- Isso n�o vai me desagradar. Ao contr�rio, gostaria mesmo de ajudar Ariane. Hoje compreendo a sua atitude e n�o tenho mais raiva dela.
- Nem eu. Ariane estava perdida e se deixou levar por uma ilus�o. Mas n�o � m�.
- � claro que n�o! Agora que a raiva passou, percebo isso. Sinto que ela, realmente, gostava de mim.
- Posso oferecer-lhe o emprego, ent�o?
- � claro que pode.
- Muito bem. Vou falar com meu pai amanh� mesmo.
Ariane recebeu a not�cia com alegria e certo receio. Gostaria muito de trabalhar na cl�nica de Justino e Fl�vio, mas temia que Marcela n�o se sentisse muito � vontade.
- N�o se preocupe com Marcela - informou Justino. Foi id�ia dela tamb�m.
- Foi!? - surpreendeu-se Ariane.
- Marcela � uma boa mo�a. N�o guarda raiva de voc�.
Logo na segunda-feira, Ariane come�ou a trabalhar como recepcionista. Mostrou-se dedicada e atenciosa, e todos os pacientes gostavam muito da sua companhia. Isso
influenciou a sua decis�o na hora de escolher o que estudar. Ia fazer faculdade de enfermagem, e Justino lhe garantiu que ela teria uma vaga certa em sua cl�nica.
Ela e Fl�vio se viam todos os dias, at� que ele resolveu convid�-la para almo�ar. Ariane aceitou, embora sem nenhuma outra inten��o que n�o fosse tentar conquistar
a sua amizade. Sentaram-se � mesa, e Fl�vio pediu uns drinques antes de fazerem o pedido.
- Por que n�o pedimos logo? - a indagou aflita. N�o quero me atrasar na volta do almo�o.
- N�o se preocupe. Meu pai est� sabendo que voc� veio almo�ar conosco.
- Conosco?
Nesse instante, Ariane levantou os olhos e viu que algu�m se encaminhava para a mesa, sorrindo para ela. Ela se levantou confusa e fitou a outra com uma emo��o incontida
no olhar. Marcela se aproximou e a abra�ou com ternura.
- Como est�, Ariane? - perguntou ela de forma amistosa. Faz muito tempo que n�o nos falamos.
- � verdade... - respondeu a outra, confusa.
- N�o v�o sentar-se? - interveio Fl�vio. Acabamos de pedir alguns drinques.
- Hum... - fez Marcela. Deixe ver... Acho que vou querer um coquetel de frutas, sem �lcool.
Fl�vio fez o novo pedido e esperou at� que o gar�om trouxesse os drinques.
- O motivo pelo qual a convidei para almo�ar, Ariane - come�ou Fl�vio a dizer -, � que Marcela e eu estivemos pensando muito em voc�...
Marcela o interrompeu com um gesto de m�os e acrescentou em seguida:
- Deixe que eu fale, por favor. Afinal de contas, Ariane foi mais minha amiga do que sua.
Fitou a outra, que n�o sabia em que pensar, e concluiu: N�o foi, Ariane? Ela tomou um gole da bebida e encarou Marcela de volta, respondendo com toda a sinceridade:
- Sempre fui sua amiga, Marcela.
- Eu sei - concordou Marcela. Hoje posso compreender. Li o seu bilhete no presente de casamento e compreendi tudo.
- Fui sincera quando escrevi aquilo. Eu realmente gosto muito de voc�. Tenho-lhe uma amizade que jamais tive por mais ningu�m.
- Sei disso e agrade�o. No princ�pio, logo que a verdade veio � tona, fiquei furiosa, sentindo-me tra�da, mas depois consegui entender a sua ilus�o.
- N�o quero me desculpar novamente pelo que fiz. Nem quero justificar a minha atitude acusando ningu�m. Fiz o que fiz porque, como voc� mesma falou, deixei-me levar
por uma ilus�o... - fitou Fl�vio discretamente e abaixou os olhos - a ilus�o de que, afastando-a de Fl�vio, ele seria meu. Hoje n�o penso mais assim e sei que o
que julgava sentir por Fl�vio era outra ilus�o. Eu n�o o amo, e voc� pode acreditar em mim quando digo isso. Tenho-lhe muito carinho, mas n�o o amo. Do contr�rio,
n�o poderia estar aqui, conversando sobre isso com voc�s dois.
Fl�vio desviou o olhar, meio sem jeito por estarem falando dele, mas Marcela prosseguiu:
- Sabemos de tudo isso. E n�o creio que seja saud�vel revivermos o passado. Fiz com que Fl�vio a trouxesse aqui hoje para lhe dizer que n�o estou mais com raiva
e acredito na sua amizade.
- Minha atitude naquela �poca pode ter sido trai�oeira, mas meu sentimento n�o foi. E eu me sentia muito mal por ter que fazer aquilo.
- Sei disso.
Durante o resto do almo�o, continuaram conversando sobre o passado e os projetos para o futuro, acertando as diferen�as e esclarecendo os mal-entendidos. Quando
aquele almo�o terminou e Ariane voltou para o trabalho, sentia o peito mais leve e o cora��o livre. A amizade de Marcela era muito importante para ela, muito mais
do que o amor que pensara sentir por Fl�vio. Com o passar dos meses, as coisas foram retomando a normalidade. Ariane tinha um bom emprego e se preparava para ingressar
na faculdade de enfermagem. A m�e e Justino j� come�avam a pensar em morar juntos, assim que o desquite de Anita se consumasse. Numa tarde de domingo, Ariane estava
em casa dando um jeito em suas gavetas quando o telefone tocou. A m�e e Justino haviam ido levar o irm�o ao cinema, junto com alguns amiguinhos, e ela estava sozinha.
Ao atender ao telefone, prendeu a respira��o e escutou em sil�ncio a voz do outro lado. Sem dizer nada, fez uma anota��o num caderninho e, em seguida, colocou o
fone no gancho, trocou de roupa e saiu. Na rua, fez sinal para um t�xi e deu ao motorista o endere�o que havia anotado minutos antes. Levaram algum tempo para chegar
ao local indicado, e Ariane se surpreendeu quando o motorista parou o t�xi e, voltando-se para ela, informou:
- S� d� para ir at� aqui, madame. O resto, a senhora vai ter que ir a p�.
Estavam parados em uma ladeira, e Ariane constatou que o n�mero indicado no papel ficava na parte que subia o morro, onde n�o havia mais passagem para carros. Assustada,
pagou o motorista e saltou. Havia bares dos dois lados da rua, e as pessoas a olharam desconfiadas, mas n�o disseram nada. Embora pobres, eram, em sua maioria, gente
direita e decente, que aproveitava o domingo para tomar uma cerveja e ver jogos de futebol com os amigos, pela pequena TV em preto e branco colocada em um dos bares.
Sem dizer nada, ela come�ou a subir a ladeira, que agora se estreitava para s� dar passagem a uma pessoa de cada vez. O cal�amento era prec�rio, e ela, v�rias vezes,
escorregou ou prendeu o salto do sapato nas reentr�ncias das pedras. N�o precisou caminhar muito at� que encontrou o n�mero que procurava. Bateu na porta uma, duas,
tr�s vezes, mas ningu�m atendeu, at� que ela colocou a m�o na ma�aneta, e a porta cedeu sem maiores esfor�os. Ariane entrou num c�modo escuro e sujo, cheirando a
mofo e v�mito. Imediatamente, sentiu n�useas e recuou, respirando o ar puro da tarde. Encheu o peito de ar e tomou coragem, entrando novamente. Deixou a porta aberta
e foi caminhando na semi-escurid�o, at� que viu algu�m deitado numa cama perto da parede, roncando sonoramente. Ela se aproximou e fitou o pai ali largado, lutando
contra a vontade de fugir correndo. Abaixou-se perto dele e cutucou-o gentilmente primeiro e, depois, com mais for�a.
- Pai! - chamou. Acorde, pai!
Ele levou algum tempo para abrir os olhos, piscando-os v�rias vezes, at� que a reconheceu e se sentou na cama.
- Ariane! - surpreendeu-se. Voc� veio.
- O que est� fazendo num lugar desses? - tornou ela, indicando o ambiente ao redor.
- Estou falido, minha filha - come�ou a chorar. Arruinado. Desde que sua m�e me deixou...
- N�o culpe mam�e pelos seus erros, pai. E depois, todos sabemos que voc� n�o est� assim por causa dela, mas sim de Dolores.
Ele arregalou os olhos, admirado, e balbuciou:
- Como... como foi que descobriram?
- Isso n�o importa agora. Venha. Vou tir�-lo daqui.
Ela o ajudou a se levantar e guardou suas roupas em uma mala, dando gra�as a Deus por ainda estarem em bom estado.
- Para onde vamos? - quis saber N�lson, apoiando-se nela para n�o cair.
- N�o sei. Para qualquer lugar com ar fresco e luz. Isso aqui cheira mal, e o ar est� viciado.
Quando ela saiu amparando o pai, notou que algumas pessoas os encaravam com certa hostilidade e sentiu medo. Estava num lugar distante, e ningu�m sabia que ela fora
ali. Contudo, ela e o pai passaram em seguran�a e foram descendo a ladeira, at� que alcan�aram a rua, e ela p�de chamar um t�xi.
- Para onde vamos, mo�a? - perguntou o motorista.
- Voc� conhece alguma pens�o que n�o seja cara, mas decente?
- Hum... Deixe ver. Sei de uma no centro da cidade. Normalmente, � utilizada por caixeiros viajantes para o pernoite. Serve?
- � um lugar direito?
- �. N�o � de luxo, mas � limpo e n�o s�o permitidos encontros, se � o que est� pensando.
- Ent�o serve. Leve-nos para l�.
Seguiram para l�, e o pai come�ou a chorar, apertando as m�os da filha nos olhos �midos.
- N�o posso ir para minha casa? - choramingou ele.
- Voc� n�o tem mais casa, pai. Foi voc� quem nos deixou, lembra-se?
- Estou arrependido...
Ariane sabia muito bem o que era o arrependimento, mas n�o podia for�ar a m�e a aceitar o pai de volta. N�o agora, que ela havia, finalmente, encontrado a felicidade
ao lado de Justino.
- Sei que est� - respondeu ela. Mas mam�e tem outra vida agora.
- Ela tem outra pessoa?
- Tem - Ariane n�o queria tocar no nome de Justino naquele momento e mudou de assunto: De quem era aquele barraco em que voc� estava?
- De uma amiga.
Ariane n�o fez mais perguntas, imaginando que tipo de amiga seria aquela. De qualquer forma, n�o lhe cabia julgar e devia mesmo agradecer a tal amiga por ter mantido
o pai vivo at� aquele momento. Finalmente, chegaram � pens�o, e eles saltaram defronte a um pr�dio antigo no centro da cidade, tombado pelo patrim�nio hist�rico,
meio descascado e com janelas altas. � primeira vista, n�o parecia grande coisa, mas entraram mesmo assim. Na recep��o, Ariane se surpreendeu com a limpeza e o bom
gosto do ambiente que, embora simples, era bem arrumadinho, com m�veis lustrosos e cortinas de rendas nas janelas. Uma senhora gorda veio atend�-los, e ela pediu
um quarto para o pai.
- � para passar a noite? - a indagou desconfiada, olhando de Ariane para N�lson.
- N�o, senhora. � para passar uns tempos. N�o se preocupe, pago adiantado. A mulher ainda os olhava desconfiada, e ela achou melhor esclarecer: � para o meu pai.
- Ah! Bom, ent�o est� bem. Quer com banheiro ou sem banheiro?
- Com banheiro. Ela apanhou uma chave e levou os dois para o quarto, enquanto ia ditando as regras da pens�o. Ariane concordou com tudo e acomodou o pai numa cadeira,
satisfeita porque era um c�modo arrumado e limpo. Depois que a mulher se foi, ela falou:
- Muito bem, pai, estou disposta a ajud�-lo porque voc� � meu pai e n�o vou deix�-lo largado por a�, em qualquer pocilga. Mas voc� tem que me prometer que vai parar
de beber - ele assentiu, e ela continuou: O que houve com a cl�nica?
- Est� fechada. Estou falido, devendo a Deus e o mundo.
- Ent�o, vamos vend�-la e saldar suas d�vidas. Com o que sobrar, veremos o que fazer.
- N�o vai sobrar nada.
- N�o faz mal. Pelo menos, pague o que deve e durma em paz.
- De que vou viver?
- Vai ter que arranjar um emprego.
- Quem � que vai me dar emprego nessa idade?
- Voc� � m�dico.
- Sempre fui um p�ssimo m�dico.
- Pois ent�o, trate de melhorar. Voc� tem um diploma, use-o.
- Ah! Minha filha, sou um fracassado. Perdi a cl�nica, os amigos e a fam�lia. Tudo por causa daquela mulher!
- N�o acuse ningu�m pela sua derrota, pai. Voc� se envolveu com Dolores porque quis. Sei bem o que � isso.
Embora N�lson n�o tivesse compreendido muito bem o que Ariane dissera, n�o fez mais perguntas. Ela o estava ajudando, e ele devia ser-lhe grato. Ainda mais depois
de tudo o que havia feito.
- Voc� est� com raiva de mim? - perguntou ele.
- Se estivesse, n�o teria vindo ajud�-lo.
- � verdade. Sei que a magoei... a voc� e o seu irm�o, principalmente. Mas estou arrependido.
- Compreendo o seu arrependimento, e voc� vai ter muitas oportunidades de demonstr�-lo. Mas agora, voc� precisa reagir e sair desse estado lastim�vel. Ou quer que
Huguinho fique decepcionado com voc�?
- � claro que n�o! Quero que meu filho volte a se orgulhar de mim.
- Pois ent�o, fa�a o que eu digo. Por hoje, descanse. Amanh�, depois do trabalho, passo aqui para ver como voc� est� e vou ajud�-lo a procurar emprego.
- Voc� est� trabalhando? - ela assentiu. Onde?
- Na cl�nica de Justino e Fl�vio. Tamb�m eu encontrei quem me ajudasse.
Ele n�o disse nada. Sentia-se cansado e com vontade de beber, mas tinha que resistir.
- Estou com fome - queixou-se ele.
- Vou ver se arrumo alguma coisa para voc� comer. Agora, tome um banho e descanse. J� est� ficando tarde, e preciso voltar para casa. Qualquer coisa, me telefone.
Ela deu um beijo no rosto do pai e saiu. Pagou uma semana adiantado pelo quarto e, por uns trocados a mais, a dona da pens�o arrumou um prato de comida para N�lson.
Nos outros dias, ele comeria juntamente com os demais h�spedes. N�lson sempre foi um m�dico incompetente, e tornou-se dif�cil arranjar-lhe emprego nessa �rea. Mas
Ariane contou a Justino e Fl�vio que o encontrara, e Justino a ajudava, mandando algum dinheiro para as despesas dele, sem que ele soubesse. Ao menos, ele estava
tentando melhorar. Com a ajuda de Ariane, deixou de beber e largou as jogatinas. Perdeu a cl�nica, que Ariane vendeu para quitar as d�vidas, sobrando muito pouco
para ele. Todos os dias, ela ia visit�-lo na pens�o, o que o ia reanimando, at� que p�de se sentir forte o suficiente para voltar a trabalhar. A muito custo, e novamente
com a interfer�ncia de Justino, N�lson arranjou um emprego no gabinete m�dico de uma grande empresa. N�o ganhava muito, mas era um emprego decente, e ele ao menos
conseguia se mantiver. Com a ajuda de Ariane, alugou um apartamento de quarto e sala no sub�rbio e conseguiu levar uma vida mais ou menos equilibrada, embora dependente
dos filhos para n�o cair na tristeza e na depress�o. Ariane e Hugo passaram a ser sua �nica alegria, e foi a partir de ent�o que ele aprendeu o valor da fam�lia.
Quanto a Dolores, o esc�ndalo que provocara no casamento de Fl�vio, al�m de arranhar profundamente a sua reputa��o, afastou-a da conviv�ncia com o c�rculo de fofocas
em que vivia. Solit�ria e sem amigos, confortava-se com a presen�a do filho e da nora. N�o gostava de Marcela, mas ela era a �nica que realmente se importava, e
Dolores se pegava ansiando pela sua visita, a fim de minorar sua solid�o. Aos poucos, pois, sem que percebesse, tornava-se dependente da compaix�o de Marcela, que
a tratava sempre com gentileza e aten��o. Mas Dolores, presa ainda ao endurecimento de seu cora��o, precisaria encarnar novamente para tentar empreender uma modifica��o.
O que importava para o plano espiritual, contudo, � que a semente fora lan�ada, e seria atrav�s de Marcela e dos netos que ela lhe daria que Dolores come�aria a
semear, embora de forma prec�ria, os sentimentos que a aproximariam, mais tarde, dos verdadeiros valores do esp�rito. J� se haviam passado quase nove meses desde
que Cec�lia havia tentado matar Luciana. Como Cec�lia e Gilberto eram r�us prim�rios, conseguiram responder o processo em liberdade, ainda mais porque a v�tima n�o
havia morrido. Cec�lia esperou por longos dias a chegada do advogado prometido por Dolores, mas ele nunca veio. Dolores jamais cumpriu a sua promessa. Cec�lia agora
estava no hospital. Luciana recebeu um telefonema, pedindo que l� comparecesse com urg�ncia, porque Cec�lia estava entre a vida e a morte, e pedia para lhe falar.
Luciana entrou no hospital p�blico acompanhada de Ma�sa e, quando chegaram, souberam que Cec�lia havia acabado de morrer, ap�s dar � luz um menino.
- Voc� sabia que ela estava gr�vida? - sussurrou Ma�sa ao ouvido de Luciana.
- N�o. Nem imaginava.
As duas foram conduzidas a uma sala, onde uma senhora conversava com o m�dico. Quando elas entraram, o m�dico pediu licen�a e as deixou sozinhas.
- Qual de voc�s � Luciana? - a indagou, e Luciana se apresentou. Pois bem, vou ser r�pida. Cec�lia teve eclampsia e faleceu esta manh�, mas o beb� sobreviveu.
- Perd�o - interrompeu Luciana-, mas quem � a senhora?
- Desculpem-me. Na pressa, esqueci de me apresentar. Sou Ant�nia Macedo, advogada de Cec�lia.
- Advogada?
- Sim. Fui contratada para defender Cec�lia. Que coisa estranha, essa mo�a. Parecia at� que sabia o que aconteceria e pediu que eu viesse �s pressas.
Luciana e Ma�sa se entreolharam sem entender, e foi a primeira quem falou:
- A senhora est� querendo nos dizer que, sabendo que ia morrer, Cec�lia pediu a presen�a de um advogado?
- O certo seria um padre - comentou Ma�sa.
- Mas por qu�? - questionou Luciana, olhando para Ma�sa com ar reprovador.
- Cec�lia queria fazer um testamento.
- Testamento? E desde quando ela tem bens?
- Tem um filho. Como eu disse, parecia que ela sabia o que aconteceria e pediu-me que fizesse o testamento para ela. Ajudei-a com as formalidades legais para nomear
voc�, Luciana da Silva e Souza, a tutora legal de seu filho.
- O qu�?! - Luciana deu um salto para tr�s e se agarrou em Ma�sa. Eu?! Tutora do filho de Cec�lia? Da mulher que tentou me matar?
- Bem, o filho dela n�o tentou matar ningu�m.
- Mas por que ela fez isso? Por que logo eu?
- Foi a forma de demonstrar o seu arrependimento.
- Essa n�o! Isso n�o � sinal de arrependimento. � armadilha!
- E o pai? - interrompeu Ma�sa. A crian�a h� de ter um, com certeza.
- O pai n�o a quer.
- E a fam�lia dela?
A advogada meneou a cabe�a.
- E a dele?
- Ningu�m a quer. Desde que Cec�lia foi presa, todos lhe voltaram as costas. Por isso, ela nomeou voc� como tutora.
- Isso � um disparate! - objetou Ma�sa. Luciana n�o pode ser for�ada a aceitar um encargo desses. Aquela mulher tentou tirar a vida dela.
- Aquela mulher est� morta.
- N�o posso fazer isso - contestou Luciana. N�o estou preparada para criar uma crian�a.
- Se n�o aceitar, o beb� vai para um orfanato.
- E da�? - continuou Ma�sa: Algu�m h� de querer o menino. Tem tanta gente querendo adotar uma crian�a!
A advogada soltou um largo suspiro e finalizou com des�nimo:
- Voc� � quem sabe. De qualquer forma, tem dois dias para pensar. � o tempo m�ximo que o beb� ainda pode ficar aqui.
A advogada juntou as suas coisas e foi embora, deixando com Luciana um cart�ozinho com o seu telefone.
- Isso � um absurdo - falou Ma�sa, assim que deixaram o hospital. Voc� n�o vai aceitar, vai?
Luciana olhou para ela sem saber o que dizer.
- N�o sei.
- Mas, Lu, voc� n�o pode!
- Por que n�o?
- N�o acredito no que estou ouvindo! Voc� est� pensando em aceitar?
- Estou considerando a id�ia. Afinal, eu ia aceitar ser m�e, se estivesse gr�vida, do filho de meu estuprador. Adotar o filho de Cec�lia, depois disso, n�o me parece
assim t�o terr�vel.
- N�o sei se h� diferen�a entre eles. A conduta dos dois foi abomin�vel.
As palavras de Rani alcan�aram a sua mente, e Luciana as ouvia como se fossem seus pr�prios pensamentos, alertando-a de algo que sentira acerca da maternidade alguns
meses antes, quando se julgara gr�vida.
- A crian�a n�o tem nada com a atitude dos pais - comentou Luciana pensativa. Que mal ela me fez?
- Nenhum.
- Pois ent�o, � algo a se pensar.
Luciana foi para casa naquele dia refletindo sobre aquela estranha coincid�ncia. N�o fazia muitos meses, pensara que estava gr�vida, mas n�o estava. E agora lhe
aparecia um beb�, por outro caminho. O beb� n�o era dela, mas ser� que n�o lhe caberia a tarefa de educ�-lo? Ao dormir, logo Rani estava a seu lado. Luciana j� se
familiarizara com o esp�rito amigo e sorriu para ela quando a viu.
- Aconteceu, n�o foi? - perguntou Rani. Voc� tem em suas m�os a oportunidade de ser m�e.
- Voc� sabia que isso ia acontecer! - afirmou Luciana perplexa. Por que n�o me disse logo? Por que me deixou pensar que estava gr�vida?
- Fiz isso para preparar o seu esp�rito. Se voc� conseguiu aceitar a id�ia de gerar e criar o filho do homem que a estuprou, talvez fosse mais f�cil aceitar criar
o filho de Cec�lia. Foi id�ia dos esp�ritos luminosos, e deu certo.
- Realmente...
- Voc� s� precisou de um tempo para se preparar, deixando a id�ia germinar em sua mente e no seu cora��o, tal qual a crian�a no ventre de Cec�lia.
- Por qu�? Por que teve que ser assim?
- A gente devolve o que a gente tira.
- Nunca tirei a vida daquele beb�, que eu me lembre.
- Tirou a vida da m�e dele e deixou o pai dela feito louco. Tirou-lhe a alegria de viver porque perdeu a filha amada.
- Voc� quer dizer...? - ela se calou, perplexa. Quer dizer que o filho de Cec�lia � aquele que foi o pai dela?
- Exatamente como eu a havia prevenido. Cec�lia est� lhe dando a oportunidade de se reconciliar com ele. Por que a recusa?
- Eu... n�o me recuso.
- Ent�o, vai aceitar ser sua tutora? Mais do que isso: vai ser sua m�e?
Ela n�o respondeu, mas acordou com as palavras de Rani em sua mente, sentindo a necessidade de aceitar aquele encargo que n�o havia ido parar em suas m�os por acaso.
Ligou para Ma�sa e falou por telefone.
- Ma�sa, eu aceitei.
- Sabia que voc� faria isso. Voc� est� segura do que est� fazendo, n�o est�?
- Estou.
- Bom, seja o que Deus quiser.
- Vai comigo busc�-lo?
- Vou.
Depois, Luciana telefonou para a advogada. Cec�lia foi sepultada naquele mesmo dia, e no dia seguinte Luciana e Ma�sa foram buscar a crian�a.
- H� alguns procedimentos legais para finalizar, mas eu j� tenho uma autoriza��o judicial para voc� - disse a doutora Antonia. Entrarei em contato com voc� assim
que tudo estiver pronto.
Estavam paradas em frente ao ber��rio, e Luciana viu quando a enfermeira apanhou um beb� miudinho e sumiu com ele por uma porta lateral. Em poucos instantes, estava
a seu lado, com o beb� no colo, estendendo-o para ela.
- Pegue-o - incentivou a advogada. Ele agora � seu filho.
Meio sem jeito, Luciana estendeu os bra�os, e a enfermeira neles ajeitou, gentilmente, o beb� adormecido. Ele era lindo. Era pequenino, mas rosado e quase sem cabelo.
- � uma gracinha! - elogiou Ma�sa, embevecida.
- Gostou do seu afilhado?
- Voc� quer que eu seja madrinha dele?
- H�, h�.
As duas se despediram e voltaram para casa, onde haviam improvisado acomoda��es para o beb�. Haviam-lhe comprado as coisas b�sicas, como roupas e fraldas, mas tinham
que esperar at� que entregassem o ber�o comprado �s pressas. Depois de acomodado o beb� em sua pr�pria cama, cercado de almofadas e travesseiros, Luciana correu
para o telefone e ligou para Marcela:
- Al�? - era a voz de Marcela.
- Oi, Marcela, sou eu, Luciana - foi ela logo dizendo. Estou ligando para lhe fazer um convite. Voc� quer vir aqui em casa conhecer o meu beb�?
- Que beb�? - retrucou Marcela, sem nada entender.
- O meu filho.
- Desde quando voc� tem filho?
- Venha aqui, e eu lhe contarei.
Desligaram e, menos de uma hora depois, Marcela estava em sua casa, louca para saber que hist�ria era aquela de filho.
- Voc� n�o vai acreditar, Marcela - falou Ma�sa, levando-a at� o quarto, onde Luciana dava mamadeira � crian�a.
- Quem � esse beb� lindo? - indagou Marcela espantada.
- � o filho de Cec�lia - esclareceu Ma�sa.
- N�o - objetou Luciana. Este aqui � o meu filho.
As tr�s se olharam ao mesmo tempo, sentindo fluir entre elas uma compreens�o rec�proca, e depois se viraram para o beb�, que havia acabado de mamar e dormia agora
satisfeito no colo de Luciana. E, vendo os dois ali reunidos, ningu�m teria d�vidas em dizer que era uma m�e acalentando seu filho.
1
Muita paz !
Bezerra
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JOSÉ IDEAL
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